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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ANOS DE TORMENTA / A. J. Cronin
ANOS DE TORMENTA / A. J. Cronin

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ANOS DE TORMENTA

 

Numa úmida tarde de dezembro, a cinco desse mês, no ano de 1919 – data que marcou o início de uma grande mudança em minha vida - bateram seis horas na torre da universidade e um nevoeiro ralo do Rio Eldon ia cercando os edifícios de Patologia Experimental, no sopé do Monte Fenner, invadindo nossa comprida sala de trabalho que cheirava ligeiramente a formol e era iluminada apenas por lâmpadas baixas veladas de verde.

O Professor Usher ainda estava em seu escritório, por trás da porta fechada, à minha direita. Com os ouvidos incomumente apurados, eu podia ouvir os tons precisos enquanto ele falava, demoradamente, ao telefone. Furtivamente, olhei para os dois outros assistentes que, como eu, faziam parte do grupo do professor. Diretamente à minha frente, Spence estava no seu banco, movimentando tubos de culturas, esperando a chegada de sua mulher. Ela o visitava regularmente nas noites de sexta-feira, e eles iam jantar ou ao teatro. Um raio oblíquo traçava na parede uma cruel caricatura do seu perfil quebrado.

No canto mais distante do laboratório, Lomax tinha deixado o trabalho e batia distraído um cigarro na unha do polegar - sinal para uma saída que ele geralmente conseguia tornar fácil e negligente. Dentro em pouco, aborrecido, cercado por uma vagarosa nuvem de fumaça, levantou-se e ajeitou as ondas do cabelo num espelho que ele guardava em cima da pia.

- Vamos a algum lugar esta noite, Shannon. Jante comigo e depois vamos a um cinema.

O convite era lisonjeiro, mas, naturalmente, esta noite eu o recusei.

- E você, Spence? - Lomax voltou-se para o outro. - É que eu e Muriel vamos sair esta noite.

- Que cidade insociável! - queixou-se Lomax.

Neil Spence hesitava, quase pedindo desculpas, tapando o queixo com a mão esquerda, um gesto instintivo que lhe parecia dar confiança e que sempre me tocava, aumentando a afeição e profunda simpatia que eu sentia por ele.

- Por que não vem conosco? A sugestão fez Lomax hesitar.

- Ora, não quero me intrometer e estragar a noite de vocês.

- Nada disso.

Nesse instante ouviu-se a buzina de um automóvel, e quase imediatamente Smith, o atendente, entrou e anunciou que a Sra. Spence tinha chegado e estava lá fora.

- Não façamos Muriel esperar. - Spence, tendo vestido seu sobretudo, esperou o amigo Lomax à porta. - Acho que você vai gostar do espetáculo desta noite... É The Maid of the Mountains. Boa noite, Robert.

- Boa noite.

Quando eles saíram, respirei um pouco mais depressa e meus olhos, vagueando por aquele mundo que eu amava, aquele mundo íntimo, misterioso, secreto, foram pousar, com apreensiva expectativa, na porta do professor.

No mesmo instante, ela se abriu e Hugo Usher apareceu. Suas entradas e saídas, aliás todos os seus movimentos, tinham um jeito um tanto teatral, que se enquadravam tanto com sua figura severa, cabelos cinza-aço e pêra aparada, que ele me dava a impressão desconfortável de ser menos um cientista notável do que um ator desempenhando com excessiva perfeição o seu papel. Chegou até a centrifugadora Hoffman, próxima do meu banco. Apesar de sua expressão bem controlada, para mim não era difícil ler, na ligeira contração dos seus músculos frontais, uma desaprovação pelas minhas peculiaridades, do velho uniforme naval, que eu persistia em vestir, ao meu insucesso, durante as últimas seis semanas, para mostrar entusiasmo pela pesquisa que ele me obrigara a fazer.

Então, com um tom benévolo, que ele adotava para moderar sua severidade, disse brevemente:

- Não, Shannon... Acho que não.

Meu coração parou de pular e afundou lentamente, enquanto meu rosto corava de decepção e mortificação.

- Mas, certamente, professor, se o senhor leu o meu memorando...

- Li-o - interrompeu ele e, à guisa de prova, depôs na minha mesa a folha datilografada que, mais cedo, naquele mesmo dia, eu lhe tinha apresentado e que agora, para os meus olhos queimando, tinha a suja e deplorável aparência de um manuscrito recusado. - Lamento não poder aceitar sua sugestão. O trabalho no qual está empenhado é de uma considerável importância. Impossível... Permitir que o interrompa.

Baixei os olhos, abatido por meu orgulho ferido em ter apresentado o meu pedido, sabendo que suas decisões eram sempre irrevogáveis. Embora minha cabeça estivesse curvada, eu podia sentir seu olhar para os diapositivos empilhados na madeira corroída de ácidos da minha mesa.

- Já terminou as nossas últimas contagens?

- Ainda não - respondi, sem levantar os olhos.

- Você sabe que eu, particularmente, quero a nossa comunicação terminada para o Congresso da Primavera. E como vou estar fora durante várias semanas, é imperioso que você toque para a frente com a maior rapidez possível.

Como eu não respondesse, seu sobrecenho enrugou-se um pouco. Pigarreou. Pensei que ia receber uma dissertação sobre a nobreza da investigação patológica, especialmente quando ligada ao seu assunto favorito: a teoria das opsoninas. Contudo, depois de brincar um momento com o seu chapéu mole de abas largas, enfiou-o inclinado na cabeça.

- Boa noite, Shannon.

Com aquela curvatura formal que tinha aprendido no estrangeiro, retirou-se.

Fiquei sentado por longo tempo, completamente imóvel.

- Estou pronto para fechar, senhor.

Magro e cadavérico como sempre, o Atendente Smith estava me olhando com o canto do olho, o mesmo Herbert Smith que, quando entrei pela primeira vez no laboratório de zoologia, esfriara meu entusiasmo com o seu pessimismo. Agora ele era o chefe dos atendentes do Departamento de Patologia, mas a obtenção desta posição melhor não o havia mudado, e tinha para comigo uma suspeita muda de que meus poucos sucessos, inclusive o grau de Medicinae Doctor (M.D.) e a obtenção da Medalha de Ouro Lister, tinham aumentado ao invés de dissipar.

Sem uma palavra, cobri meu microscópio, guardei os diapositivos, apanhei o meu quepe e saí. Meus pensamentos eram amargos, quando eu descia no escuro a avenida molhada do Monte Fenner, atravessava a apinhada Pardyke Road - onde, embaixo de arcos nevoentos de luz, os bondes trepidavam e sacolejavam pelo oleoso pavimento - e entrava no insípido Distrito de Kirkhead. Ali, terraços de casas antiquadas, aferrando-se desesperadamente à respeitabilidade ante à invasão dos bares e botequins, sorveterias e casas para trabalhadores das docas vizinhas, erguiam os seus altos e medonhos frontões, com cornijas de estuque quebradas, pórticos torcidos e beirais caídos, chorando, parecia, sua antiga glória, sob o céu eternamente nevoento.

No número 52, que ostentava na bandeira da porta o delicado nome de ROTHESAY, e mais abaixo, em letras discretas de dourado escamado, HÓSPEDES, subi as escadas e entrei.

 

Meu quarto, no alto da pensão, era pequeno, quase um sótão, parcamente mobiliado com uma caminha de ferro, uma pia branca de madeira e um texto bordado em lã com uma moldura preta. Mas tinha a vantagem de dar para uma pequena estufa de vidro pintado de verde ainda provida de prateleiras e bancos, uma relíquia dos prósperos dias da mansão. Embora fria no inverno e sufocante no verão, servia-me convenientemente de escritório.

Por essa acomodação, mais duas refeições por dia, eu pagava às Srtas. Dearie, co-proprietárias do estabelecimento, a módica soma de 34 xelins por semana - a qual, devo reconhecer logo, era o máximo de que eu podia dispor. O dinheiro que eu tinha herdado de meu avô, "para me sustentar na universidade", tinha não mais do que cumprido sua finalidade, ao passo que meus honorários como assistente, e pelo trabalho extraordinário de instrutor de bacteriologia para terceiranistas, subiam a cem guineis por ano, uma ilusória sugestão de moedas de ouro que escondia o fato de que na Escócia são cautelosos para não estragar com mimos os seus gênios em botão.

Assim, no sábado, depois de pagar a minha pensão, mal me restavam cinco xelins no bolso para fazer o meu lanche na União, mais roupas, sapatos, livros, cigarros - em suma, eu era ultrajantemente pobre, obrigado a usar o meu uniforme obsoleto, que tanto ofendia a noção de conveniência do Professor Usher, não por preferência, mas por ser a única roupa que eu possuía.

Todavia, estas apertadas circunstâncias mal me perturbavam.

Minha educação em Levenford tinha-me afeito de tal modo às vicissitudes da vida espartana como o mingau encaroçado, o leite aguado de um azul singular e inesquecível e os sapatos de sola grossa com tachas para que durassem mais. Além disso, eu considerava o meu presente estado como puramente transitório, precursor de um esplêndido futuro, e tinha a mente tão desesperadamente voltada para o empreendimento que deveria levar-me a um grande e imediato sucesso que não podia ocupar-me com ninharias.

Quando cheguei à minha alta água-furtada, da qual eu tinha uma vista para uma parede branca de tijolos encimada pela chaminé do incinerador da cidade, detive-me por momentos em determinado pensamento, estudando o papel que Usher me havia devolvido.

- O senhor vai se atrasar para o chá.

Com um sobressalto, virei-me para a tímida visitante que estava à minha porta. Era, está claro, a Srta. Jean Law, minha vizinha na porta contígua do corredor. Uma dos cinco estudantes de medicina que moravam na Rothesay, ela estava freqüentando as minhas aulas de bacteriologia, e durante todo o presente curso fizera-me alvo de suas atenções de vizinha.

- O gongo tocou há cinco minutos - murmurou ela, no seu sotaque nortista; e, notando minha irritação, teve a graça de corar: um rubor quente e recatado que subiu a seu rosto claro, mas não a levou a baixar os olhos castanhos. - Bati, mas o senhor não ouviu. Amarrotei o papel.

- Já lhe pedi, Srta. Law, que não me perturbe quando estou ocupado.

- Sim... Mas a hora do seu chá - protestou ela, mais do que nunca rolando os erres em sua confusão.

Não pude evitá-lo... Diante dela, na sua saia de sarja azul, sua simples blusa branca, meias pretas e sapatos grossos, rogando-me com aquela séria solicitude, como se a perda do meu chá fosse uma calamidade mortal, fui obrigado a sorrir.

- Muito bem - consenti, imitando seu tom de voz. - Irei neste instante.

Descemos juntos para a sala de jantar, uma pavorosa câmara mobiliada com estofados de pelúcia vermelha e puída, e até o linóleo impregnado do cheiro de repolho cozido.

No consolo da lareira, que tinha uma franja de veludo com borlas, estava o orgulho das Srtas. Dearie, penhor do seu falecido pai e da sua própria educação como "damas": um horrível relógio de mármore verde, parado, mas apoiado por duas figuras douradas de capacete, portando machados e a legenda Presenteado ao Capitão Hamish Dearie por ocasião da sua aposentadoria no comando da Brigada de Fogo de Winton. A refeição, pálida e magra sombra do tradicional "grande" chá dos escoceses, já tinha começado, e a Srta. Beth Dearie o presidia na mesa de mogno coberta com uma remendada mas limpa toalha branca, com uns poucos pratos de pão, bolos de aveia e de sementes aromáticas, uma bandeja de arenques, um para cada pessoa, e um bule de metal Britannia, encaixado numa "boneca" de tricô azul. Ao servir nosso chá, a Srta. Beth, uma solteirona correta, alta e orgulhosa, de 45 anos, parecia acentuar seu ar de empobrecida fidalguia, mostrando-nos - embora tivesse respeito pelo meu diploma de doutor, e a Srta. Law fosse certamente a sua favorita - o seu tênue sorriso de "sofrimento", que desaparecia somente quando eu metia um penny em uma caixinha de madeira colocada ao lado de uma lata vazia de biscoitos no centro da mesa, e marcada "Para os Cegos".

Pontualidade, como a polidez, era um dos princípios da Srta. Dearie mais velha, e que todos os chegados depois que ela "pedira a bênção" deviam apresentar desculpas, embora a gente fosse perdoado por duvidar, em momentos descuidados, de que aquele tributo jamais chegasse a seu indicado destino. Comecei a comer calado o meu arenque, que estava salgado, oleoso e mais do que usualmente minguado. Aquelas duas distintas damas se esforçavam por igualar a despesa com a receita, e a Srta. Beth - que "gerenciava" o estabelecimento na frente, enquanto a Srta. Alice cozinhava e limpava nos fundos - fazia com que o pecado da gula nunca fosse cometido em sua presença. Apesar disso, a escrupulosa reputação da sua casa era reconhecida pelas pessoas ligadas à universidade, e raramente tinha uma vaga. Esta noite vi que, além de sua tripulação de seis, Galbraith e Harrington, dois estudantes que ainda não tinham colado grau, estavam ausentes, tendo ido passar o fim-de-semana em casa, mas, diante de mim, sentavam-se os dois outros estudantes de medicina, Harold Muss e Babu Lal Chatterjee. Muss era um rapaz de estatura abaixo dos seus 18 anos, perpetuamente sarapintado de espinhas, e provido do mais notável conjunto de dentes protuberantes de bode. Estava apenas no seu primeiro ano e na maior parte do tempo mantinha um silêncio deferente, mas, ocasionalmente, quando julgava que alguém tinha feito uma troça, rebentava de rir com um relincho de cavalo selvagem. Lal Chatterjee, um hindu de Calcutá, era mais velho do que Muss, na verdade teria uns 33 anos, muito gorducho e molenga, com uma tez lisa de açafrão realçada por uma barbicha aparada, com um rosto sorridente, inefavelmente estúpido. Fazia pelo menos 15 anos que ele vivia entrando e saindo do curso da Universidade de Winton, usando calça bombacha que pendia no assento como um saco de batatas vazio, e sempre com um enorme guarda-chuva verde, procurando sem êxito obter seu diploma de médico.

Loquaz e de boa natureza, com uma tagarelice amável e incessante, tinha-se tornado na universidade uma instituição cômica. Assim que entramos, numa "melopéia" que sempre parecia o grito do muezim anunciando as horas de oração e a ser afinada em tom menor, ele começou:

- Ah! Bom dia, Dr. Robert Shannon e Srta. Jean Law. Receio que já tenhamos comido todos os alimentos. Por seu atraso, talvez venham a morrer de subnutrição. Oh, sim, talvez, ha! Ha! Sr. Harold Muss, por obséquio, alcance-me a mostarda, muito obrigado. Apelo para o doutor meu colega. Pergunto-lhe, Dr. Robert Shannon, a mostarda estimula as glândulas salivares, das quais há duas, a sublingual e outra cujo nome anotei cuidadosamente no meu caderno? Desculpe-me, doutor, como se chama a outra glândula?

- Pâncreas - sugeri.

- Ah! sim, doutor, o pâncreas - concordou Babu, radiante. - Esse é exatamente o meu ponto de vista.

Muss, que estava tomando chá, engasgou-se violentamente.

- O pâncreas! - exclamou, sem fôlego. - Eu não sei muito, mas isso fica na minha pança!

Lal Chatterjee olhou com reprovação para aquele seu convulsivo colega.

- Oh, pobre Sr. Harold Muss! Não exiba sua ignorância. Queira lembrar-se de que estudo medicina há muito mais anos do que o senhor. Tive a honra de ser reprovado como Bachelor of Arts na Universidade de Calcutá, provavelmente antes de o senhor ter nascido.

A Srta. Law estava tentando encontrar meu olhar e atrair-me para sua conversação com a Srta. Beth. Discutiam com o grave mas grande interesse daqueles que, ligados por simpatias evangélicas, esperavam a próxima apresentação de O Messias, no St. Andrew's Hall - sempre um notável evento de inverno em Winton - mas uma vez que eu tinha, por motivos pessoais, uma particular reticência por assuntos religiosos, fixei os olhos no meu prato.

- Gosto muito de música coral, o senhor não gosta, Sr. Shannon?

- Não - respondi. - Receio que não.

Neste ponto, a Srta. Ailie Dearie entrou, vinda da cozinha, silenciosamente, nas suas chinelas de feltro esfiapadas, uma figura pesada trazendo o "cristal", isto é, a sopeira de vidro de ameixas cozidas mas duras como pedra que nas "noites de  defumados", com a inevitabilidade da morte, terminava o nosso triste repasto.

Diferente de sua irmã, a Srta. Ailie era uma criatura tenra e dócil, um tanto desleixada em sua aparência, pesadona e lenta, com as mãos nodosas e desfiguradas pelo trabalho doméstico. Dizia-se provavelmente coisa da insensatez dos estudantes, animada pelo fato de que seu único recreio, à noite, era ler as novelas românticas da biblioteca pública - que, quando moça, tinha tido um trágico caso de amor. Seu rosto bondoso, afogueado pelo fogão, paciente sob a língua ácida da irmã, era triste e pensativo, com uma mecha de cabelos caindo constantemente sobre a testa, que a mulher tinha o curioso hábito de afastar com os lábios, com um ligeiro sopro para cima. Talvez suas próprias dificuldades a fizessem simpatizar com os meus problemas. Agora, com bondoso interesse, curvou-se e cochichou no meu ouvido:

- Como foram as coisas hoje, Robert?

Para tranqüilizá-la, forcei um sorriso, e ela acenou com a cabeça, indicando sua satisfação, soprou o cabelo e saiu.

O coração da Srta. Ailie era mais mole do que as suas ameixas! Porque nos próximos cinco minutos nenhum som era audível, exceto os da difícil mastigação, o estalo dos caninos errantes de Muss contra a fruta de pedra.

Quando nada comestível ficou sobre a mesa, a refeição terminou com Beth Dearie levantando-se como a castelã que acaba de oferecer um banquete em seu castelo. Nós então nos dispersamos para os nossos quartos; Harold Muss, com um ar ausente, tirando espinhas de arenque dos dentes com o indicador, e Lal Chatterjee arrotando musicalmente com uma espécie de majestade oriental, en rou te.

- Sr. Shannon. - Apressando-se atrás de mim, a Srta. Law sussurrou meu nome. Ao menos eu lhe tinha tirado o costume de dirigir-se a mim como "Doutor", um título que, com as suas implicações de mediocridade profissional, eu naquela fase detestava inteiramente. - Não estou bem certa do que escrevi sobre o Trypanosoma pambierae... O senhor sabe, a questão que hoje nos apresentou. Ela despertou tanto o meu interesse que... O senhor teria... Teria a grande bondade de dar uma olhada?

Apesar de preocupado e aborrecido, não tive a força de vontade para recusar; algo naquele desprotegido frescor do seu rosto afastava as minhas respostas mais rudes.

- Traga-o - resmunguei.

Cinco minutos depois, sustentado pelas molas quebradas de uma cadeira da estufa, li o que a moça havia escrito, enquanto ela, sentada muito ereta na beira de um banco coberto por um encerado rachado, com as mãos cruzadas nos pulsos sobre a sua saia de sarja, olhava-me com um ar grave e ansioso.

- Servirá? - perguntou ela, quando terminei de ler.

O ensaio era notavelmente bem-feito, com várias observações inteiramente originais e uma série extremamente precisa de desenhos do desenvolvimento do parasita flagelado.

Ao considerar aquela jovem, eu tinha que admitir que ela não era igual à maior parte das moças que vinham em bandos para a universidade, querendo "fazer" medicina. Algumas delas vinham para divertir-se, outras eram empurradas por pais ambiciosos da classe média, ainda outras estavam apenas procurando casar-se com um rapaz aceitável que um dia, em alguma comunidade suburbana, se tornaria um clinico enfadonhamente respeitável, mais ou menos incompetente, mas financeiramente  garantido.

Nenhuma tinha qualquer talento ou capacidade para a profissão.

- Vê o senhor - murmurou ela, como para encorajar minha opinião – há trabalho esperando por mim. Estou ansiosa por colar grau.

- Isto está bem acima dos padrões comuns - falei. - De fato, está muitíssimo bom.

Uma onda de calor assomou-lhe às faces macias.

- Oh! Muito obrigada, Dr.... Sr. Shannon. Vindo do senhor , isso significa tudo. Não lhe posso dizer o quanto, nós estudantes respeitamos sua opinião... E o seu... Sim, deixe-me dizer, o seu brilho. E naturalmente sei o que passou na guerra.

Tirei o chinelo e examinei a rachadura que começava no meu artelho. Eu já tinha tentado explicar por que eu não podia ferir aquela minha estranha vizinha; contudo, precisava dar vazão à minha sensibilidade ferida. Minha natureza era reservada e secreta, e eu não era constitucionalmente um mentiroso; todavia, sob aquele olhar estatelado e confiante, algum diabo, que eu talvez tivesse herdado do meu incorrigível avô, tinha começado, naquelas últimas semanas, escondido pelo meu semblante pensativo e até melancólico, a praticar as mais descabeladas diabruras.

Durante as nossas freqüentes conversações eu lhe tinha confiado que vinha de uma família rica e aristocrática de Levenford, mas que, tendo ficado órfão e preferido a pesquisa médica a uma carreira de antemão traçada para mim, tinha sido expulso e privado de meu lar ancestral.

Sua inocente credulidade incitava-me a novas petas.

Durante os quatro anos da guerra, eu tinha levado uma existência monótona e sem acontecimentos como médico a bordo de um cruzador ligeiro destacado para tarefas com submarinos no Mar do Norte. Nossas missões semanais, através dos campos minados pelo inimigo, eram talvez bastante perigosas, mas inteiramente aborrecidas. No porto, bebíamos gim, jogávamos vinte-e-um e pescávamos enguias. Um dos nossos oficiais superiores foi pilhado em roupas íntimas com uma bela mulher, à qual, disse-nos ele depois, estava ensinando a abstrusa arte da navegação. Além disso, nada quebrou a monotonia até que entramos na Batalha da Jutlândia, e então tudo aconteceu tão depressa que restou apenas uma confusa impressão de barulho e clarões, eu suando numa enfermaria de bordo, fazendo tudo mal, com dedos trêmulos, minhas entranhas tão liquefeitas que durante uma semana inteira sofri abominavelmente de cólicas.

Naturalmente, isto não servia para a Srta. Jean Law; assim, enquanto ela bebia as minhas palavras, inventei uma nova e mais pitoresca história. Tínhamos sido torpedeados, errado durante dias numa balsa no meio do Pacífico, houve cenas dramáticas de fome e sede, lutamos com tubarões e assim por diante até que, pelo mais incrível dos acasos, acordei, pálido mas triunfante, aliás um herói, num hospital da América do Sul.

Durante meu presente silêncio, ela pareceu ficar mais nervosa, agora os seus cílios começaram a tremer, sempre um sinal de tensão interior.

- Estive pensando... Quero dizer... Não me parece justo, Sr. Shannon que eu saiba tanto a respeito do senhor... Enquanto o senhor nada sabe sobre mim. - Fraquejou por um momento, e depois continuou bravamente: - Eu estava pensando se o senhor gostaria de ir à minha casa em Blairhill.

- Bem - disse eu um tanto surpreendido. - Vou estar muito ocupado durante todo o inverno.

- Sei disso. Mas o senhor tem sido tão bondoso comigo que eu gostaria que conhecesse minha gente. Naturalmente - acrescentou, às pressas - somos pessoas simples, não como o senhor. Meu pai - e novamente ela corou; contudo, com um ar de quem  depois de uma longa consulta consigo mesma tomou uma resolução difícil, continuou valentemente: - não é uma pessoa muito importante. Ele é... Padeiro.

Houve uma pausa um tanto longa. Sem saber o que dizer, ou fazer, fiquei sentado muito silencioso. Eu começava a sentir-me desconfortável, quando ela, subitamente, sorriu, mostrando a mesma centelha de humor que iluminava seu fervor seráfico.

- Sim, ele faz pão. Trabalha na padaria com meu irmão mais moço e outro homem. E manda as fornadas para o campo numa carroça puxada por um cavalo. É um negócio bem pequeno, mas estabelecido há muito tempo, como pode deduzir. Assim, embora o senhor tenha grandes relações, não olhe para nós com desprezo.

- Deus do céu, por quem me toma! - Picado, lancei-lhe um olhar rápido, mas ela era muito inocente para ver um duplo sentido.

- Então irá? - Com uma expressão deliciada, levantou-se, apanhou os seus papéis do braço da minha cadeira e ficou olhando para mim. - Fico-lhe muitíssimo grata por esses tripanossomos. A medicina tropical me interessa muitíssimo. - Meu olhar inquiridor provocou uma confidência final: - O senhor sabe... Pertenço à Irmandade em Blairhill... E imediatamente após a minha formatura... Vou como médica para a nossa missão em Kumasi, na África Ocidental.

Meu queixo deve ter caído pelo menos uns três centímetros. A sua absurda capacidade de surpreender-me não teria fim? Meu primeiro impulso foi rir, mas a expressão dos seus olhos, que brilhavam como se ela tivesse lobrigado o Santo Graal, impediu-me. E enquanto a observava, tinha que admitir que ao menos ela possuía a virtude da sinceridade.

- Há quanto tempo tem essa idéia doida?

- Desde que comecei a estudar medicina. Foi por isso que entrei para a universidade.

Então ela não tinha vindo para Winton para divertir-se, ou casar-se, como as outras. Mesmo assim, eu ainda não estava convencido.

- Parece muito nobre - falei, lentamente. - Romântico e cheio de auto-sacrifício... No papel. Mas se for... Imagino se você realmente sabe o que a espera.

- Devo saber. Minha irmã está lá há cinco anos como enfermeira.

Isso me silenciou. A jovem fez uma pausa na porta e, com um sorriso, esgueirou-se do quarto. Após um intervalo durante o qual fiquei sentado imóvel, olhando um tanto tolamente para nada, e ouvindo inconscientemente, e um tanto desconfortável, os seus tranqüilos movimentos no quarto contíguo, dei de ombros e, com os lábios apertados, voltei a considerar minha própria situação.

Devia submeter-me à direção do Professor Usher, ou devia, à minha própria maneira, vista como imprecisa e arriscada, arrostar a autoridade e o destino?

 

O dia seguinte, sábado, era a minha folga semanal, e às seis horas da manhã, deixando a pensão adormecida, caminhei para a aldeia de Dreem, a cerca de 40 quilômetros de distância. As ruas de Winton ainda estavam escuras, úmidas de orvalho e, exceto os passos de um operário madrugador, silenciosas e desertas. Quando surgiu o sol, eu já tinha atravessado as cercanias da cidade, deixando para trás, com alívio, os últimos dos bangalôs espalhados entre hortas, e estava em campo aberto, com o largo estuário do Clyde indo até o mar diante de mim, uma imagem luminosa e familiar que sempre me alentava o coração.

Por volta do meio-dia, comi uma maçã que a Srta. Ailie, arriscando o desagrado da irmã, tinha enfiado no meu bolso na noite anterior. Depois, atravessando o rio em Erskine Ferry, oito quilômetros acima da cidade de Levenford, penetrei no estreito trecho de terra de lavoura que margeia as águas do Firth, um rico terreno de pastoreio, com ovelhas e gado pastando nas colinas ondulantes, fechadas por cercas de pedra cinzenta.

Quando me aproximei do meu destino, o propósito desta jornada, por ingênuo que pudesse ser, dominava meu espírito. Por todo aquele ano, desde que o Conselho Universitário, após a minha desmobilização, concedeu-me a Bolsa Eldon, fui utilizado pelo Professor Usher para uma investigação de rotina sobre certas opsoninas, mas consideradas por mim de importância secundária - na verdade, toda a teoria opsônica já estava sendo desacreditada por cientistas avançados.

Talvez fosse preconceito meu devido ao profundo respeito que tinha pelo chefe anterior do departamento, Professor Challis, que, na universidade, tinha-me ensinado e inspirado: um belo velho, agora retirado, com a idade de 70 anos, para a obscuridade da vida particular. Não gostei, contudo, do seu sucessor, nem confiava nele. Frio, às vezes insinuante, empurrado por uma mulher rica e socialmente ambiciosa, Hugo Usher parecia falto de inspiração, de força criativa, despreparado para o sacrifício de sangue e lágrimas exigido pela pesquisa, um oportunista que tinha chegado àquela posição por sua facilidade em tabular estatísticas, e mais especialmente pela força da publicidade feita em momentos oportunos, uma notável capacidade para aproveitar-se do cérebro dos outros. Levando homens jovens para o seu departamento, tinha adquirido uma reputação em investigações originais - minha monografia anterior, por exemplo, sobre a Função Pituitária, uma coisinha enfadonha talvez, mas laboriosamente executada, fora publicada como trabalho conjunto do Professor Hugo Usher e do Dr. Robert Shannon.

Estando sob essa servidão, eu andava procurando, com patética ansiedade, um assunto realmente importante para pesquisa, uma tese ampla e original, uma tese tão inconfundivelmente momentosa que influiria, ou até alteraria, o rumo da medicina geral.

Uma busca pretensiosa, sem dúvida. Mas eu era jovem, apenas 24 anos, apaixonadamente ligado a meu trabalho, ardendo com a insofrida ambição de uma natureza retirada e silenciosa, desejando, na minha pobreza e obscuridade, assombrar o mundo.

Durante meses, eu tinha procurado em vão, até que subitamente, por si mesma, uma oportunidade se apresentou. Durante aquele outono, em certo número de zonas rurais em todo o país, havia aparecido uma curiosa epidemia que, talvez por falta de um termo melhor, foi imprecisamente classificada como influenza. O índice de mortalidade de infecção era elevado e grande a sua incidência - a imprensa popular tinha publicado algumas manchetes de natureza sensacionalista e, na verdade, em publicações médicas, encontrei várias comunicações dos Estados Unidos, Holanda e Bélgica, e de outras fontes estrangeiras que registravam irrupções de uma condição comparável.

Os sintomas de fortes calafrios, febre, intensa dor de cabeça e dores no corpo eram de considerável severidade, levando, às vezes, a uma pneumonia fatal, ou, em casos de recuperação, a uma conseqüente e prolongada debilidade. E enquanto eu os estudava, comecei a sentir que havia ali uma enfermidade nova e diferente, suspeita essa que foi aumentando à medida que o tempo passava, e produzindo uma corrente de excitação nas minhas veias.

Meu interesse pelo assunto aumentou ainda mais com o fato de que um dos principais centros locais da epidemia era nas circunvizinhanças de Dreem. E me encontrava agora, às três horas da tarde, perdido ao longo das ribanceiras de uma plácida corrente de água, sempre um lugar tão quieto, mas, hoje, devido à recente enfermidade, parecendo ainda mais deserto e silencioso. Minha ansiedade, vencendo o cansaço, fazia com que eu me apressasse. Sem me deter para um costumeiro pão e queijo numa pequena taberna da aldeia, segui imediatamente para avistar-me com Alex Duthie.

Ele estava no seu chalé, sentado, cachimbo na boca, na sua aconchegante cozinha, enquanto Simon, seu filhinho, brincava no tapete a seus pés, e Alice, sua esposa, uma mulher calma e matronal, estendia massa sobre a mesa.

Alex era um homem de 35 anos, de aspecto sólido, baixo; vestia calça limpa de pele de toupeira, meias grossas e uma camisa de flanela listrada. Cumprimentou-me com um impenetrável movimento da cabeça, e uma ligeira contração das feições, tão leve que era quase invisível, mas que de certo modo tinha mais acolhida do que um comprido discurso. Ao mesmo tempo notou, não sem ironia, minha aparência cansada e poeirenta.

- Perdeu o ônibus?

- Não, Alex. Eu queria caminhar. - Incapaz de conter-me, continuei: - Espero não ter chegado tarde. Fez... Fez os arranjos? Ele pareceu não ter ouvido; depois, reservadamente, sorriu, e tirou o cachimbo da boca.

- Belo sujeito decente para escolher uma tarde de sábado. Quase todos gostam de descansar... Especialmente depois do que passamos. - Fez uma pausa suficientemente longa para tornar-me ansioso. - Mas consegui a maioria deles para você. Vamos agora ao instituto.

Enquanto eu soltava uma exclamação de gratidão, ele se levantou, foi ao guarda-fogo e começou a amarrar os sapatos.

- Gostaria de uma xícara de chá, doutor? - perguntou a Sra. Duthie. - O corpo precisa de uma coisa quente num tempo como este.

- Não, muito obrigado, Alice. Tenho que ir para o trabalho.

- Você vai jantar e passar a noite conosco - anunciou Alex, num tom de quem não admite recusa. - Sim quer lhe mostrar a nova vara de pescar que eu cortei para ele. Apanhou seu boné bicudo e saímos. Sim, cinco anos de idade, uma alma silenciosa e comedida como o pai, acompanhou-nos até a porta.

- Sou um incômodo aborrecimento para você, Alex - disse eu, quando descíamos para a estrada. - Não lhe teria pedido que fizesse isso, se não pensasse que era importante.

- Sim - concordou ele, secamente. - Você é uma espécie de irmão, Rob. Mas como gostamos de você, temos que agüentá-lo.

Meu relacionamento com Alex Duthie, e aliás com Dreem, datava de seis anos, de antes da guerra, quando, como um estudante solitário na universidade, tinha esquecido os meus livros para satisfazer à paixão de pescar naquelas águas de maré, onde, cada primavera, a prateada truta marinha era uma ótima fisgada e corrida. Na ribanceira do rio, certa tarde, Alex me ajudou a pôr em terra um tremendo peixe; e nesse encontro agitado, no delicioso triunfo que se seguiu, as sementes de uma permanente amizade foram lançadas. Embora um trabalhador, empregado como chefe dos pastores na Dreem Farms Company, Duthie era localmente uma figura altamente respeitada e há vários anos vinha sendo eleito preboste da pequena comunidade. Suas maneiras podiam ser difíceis às vezes, e sua língua, quando a usava, era freqüentemente rude, mas nem uma vez eu o tinha visto fazer uma coisa mesquinha ou indigna. Desde que a aldeia era muito remota para ter um médico residente, foi a ele que eu apresentei o meu pedido não ortodoxo, um pedido que só poderia ter partido de um jovem ingênuo e entusiasta, e que de fato tinha nele uma ponta de absurdo.

O instituto era um pequeno edifício de tijolos, recentemente construído pelo Consórcio de Fazendeiros, e tinha várias salas para clubes e uma biblioteca. Alex me introduziu numa dessas salas onde havia cerca de 30 pessoas, lendo ou conversando, mas com um ar de expectativa. Fez-se silêncio quando entramos.

- Bem! - exclamou Alex. - Aqui está o Dr. Shannon. A maioria de vocês o conhece como um grande pescador. Mas, além disso, é uma espécie de professor na universidade, e quer descobrir que raio de influenza foi a que nos atacou aqui. Ele veio para lhes pedir um favor.

Isso tocou no ponto certo e várias pessoas sorriram, embora algumas ainda parecessem pálidas e doentes. Quando lhes agradeci por terem comparecido, expliquei o que queria e prometi não lhes tomar muito tempo. Tirei então minha mochila, apanhei uma série de tubos numerados e comecei a trabalhar sistematicamente.

Todos eram, está claro, gente da aldeia, e a maioria constituída de homens que trabalhavam nos campos, e todos tinham tido a recente infecção. Alguns, eu conhecia pessoalmente, o grandão Sam Louden, que muitas vezes amarrava moscas no meu  anzol, Harry Vence, de olho vivo, e outros que eu tinha encontrado, no crepúsculo, com água até os joelhos, lançando suas varas de bibiru. Era uma operação simples obter deles uma pequena amostra de sangue, e sua paciência amiga e bondosa tornava as coisas mais fáceis. Mesmo assim, levei mais tempo do que esperava, porque, enquanto trabalhava, uma leve tremura me veio aos dedos e eu sabia o que isso podia significar para mim.

Finalmente, acabei. Meu último paciente tinha desenrolado a manga, apertado minha mão e saído. Então, quando eu escrevia no meu bloco de notas, vi Alex sentado num banco próximo, olhando-me com um resumo alerta do meu caráter - um olhar curioso,  penetrante, misturado, também, com um interesse inteligente que, quando nossos olhos se encontraram, ele teve trabalho para esconder.

Houve uma pausa. Eu já lhe dissera o que tinha em mente. - Tenho que fazer isto assim, Alex. Não posso evitar... Eu simplesmente tenho que descobrir.

Seguiu-se um silêncio; então, vagarosamente, ele me tomou a mão.

- Você é um sujeito inteligente, Rob, e eu com certeza lhe desejo sorte. Se eu puder ajudar, de algum modo, é só pedir. - Um sorriso seco franziu os cantos dos seus olhos. - Enquanto isso, vamos voltar para o jantar. Alice tem um gostoso pudim de rins e filé para nós.

Retribuí-lhe o sorriso.

- Vá na frente, Alex. Irei depois de terminar as minhas anotações.

- Muito bem, rapaz. Não demore.

Depois que ele saiu, trabalhei durante meia hora, verificando e tabulando as amostras. Em seguida, com a minha mochila à bandoleira, caminhei pela trilha tortuosa para o chalé de Duthie. Caía uma noite clara e uma lua fininha com sua estrela acompanhante subia no céu gelado. O ar de textura leve era frio e calmo, e de súbito meu espírito sentiu uma onda de alegria ante a perspectiva que estava à minha frente, com esta viagem de descoberta, cheia de dificuldades e perigos, por mares não cartografados.

Tiritei, lembrando-me de que estava com fome; e certo de que ia encontrar comida, fogo e amizade ali no chalé, e o riso tranqüilo do pequeno Sim, entrei na casa de Alex.

 

Na sexta-feira seguinte, teve lugar o acontecimento que eu previra, e sobre o qual estava baseado meu plano de ação.

Durante toda a semana, na universidade, enquanto desempenhava automaticamente a tarefa que me algemava, observei que o Professor Usher mostrava-se incomumente agradável conosco, movimentando-se mais incisivo do que nunca, porém dispensando um sorriso tão artificialmente agradável que me arrepiava os cabelos da nuca.

Na tarde de sexta-feira, aquela afável presunção de espírito de cooperação atingiu o auge, quando ele deu uma pequena volta pelo laboratório e, finalmente, pigarreando, olhou-nos com um sorriso confidencial.

- Cavalheiros, como sem dúvida já sabem, fui honrado com um convite para presidir a comissão consultiva do próximo Congresso de Patologia, uma distinção que me obriga a visitar várias universidades com meu distinto colega, Professor Harrington, a fim de que possamos traçar uma agenda apropriada e completa.

Após uma pausa impressionante, continuou.

- A Sra. Usher e eu partimos para Londres às seis horas desta tarde. Estaremos fora durante oito semanas. Sei, naturalmente, que durante a minha ausência o trabalho do departamento prosseguirá tranqüila e expeditamente, de acordo com as melhores tradições da pesquisa. Alguma pergunta?

Ninguém falou. Ele acenou com a cabeça como que estabelecendo o fato de que um acordo tinha sido feito entre nós; e então, olhando para o relógio, curvou-se para cada um de nós por sua vez e deixou o departamento. Smith foi com ele a fim de tratar da bagagem.

Eu mal podia conter minha emoção, quando a porta se fechou, porque, embora esperasse uma breve pausa das atenções do meu chefe de tarefas, a notícia de que ele tinha saído, de fato, para uma ausência de oito semanas era tão maravilhosa que quase me derrubou. O que eu não poderia realizar nesse tempo.

Lomax já estava em pé e, acendendo um cigarro, olhava para mim com um sorriso cansado.

- Ele sentiu que estávamos dispostos a trabalhar continuamente enquanto ele estiver fora, não é? Gosto tanto dele que não posso vê-lo afastar-se.

Pálido, de olhos descontentes e crespo cabelo louro, e em geral com uma expressão ligeiramente cínica, Adrian Lomax era quatro anos mais velho do que eu, e uma dessas pessoas afortunadas que atraem instintivamente por seu encanto e bela aparência.  Era filho único, com uma mãe rica e viúva que morava em Londres, e tinha sido educado em Winchester e Oxford, onde causara impressão com a marca de suas maneiras e boa criação. Após sua graduação, pretendia continuar os estudos no estrangeiro, mas a guerra interveio, e agora, devido a alguma remota relação entre o professor Usher e sua família, tinha vindo para Wiston a fim de "fazer" 12 meses de pesquisa de pós-graduação. Afetava um gosto exótico, desprezava a maioria das coisas alheadamente, e rejeitava tudo o que não podia ser explicado em termos de ciências naturais; e com o seu meio encolher de ombros, sorriso arrogante, suas exposições metafísicas, tentava freqüentemente fechar o caixão da minha crença. Egocêntrico e afetado, sua ausência demasiado consciente da condescendência para comigo e Spence escondia uma vaidade mimada. Era, contudo, uma pessoa realmente cativante. Preparando-se para uma carreira distinta, mas desdenhando a vulgaridade de um esforço demasiado óbvio, trabalhava espasmodicamente; e, lamentando seu exílio, descuidadamente conseguia, nos seus aposentos confortáveis, mobiliados por ele mesmo, exceder sua generosa mesada e ter o melhor de tudo.

Entrementes, tinha estado a remexer no seu armário, do qual extraiu, com um ar divertido, uma garrafa de Benedictine.

- Acontece que isto estava à mão. Vamos assinalar a ocasião. Imediatamente. - Tirou a rolha e despejou pródigas doses do líquido dourado em três provetas limpas. Neil Spence, o terceiro membro da equipe de Usher, além daquelas suas saídas regulares com a mulher, não era inclinado à alacridade - como o Bernardo- eremita, somente em raríssimas ocasiões aventurava-se fora de sua concha - mas agora foi sociável e reuniu-se a Lomax.

Também eu. A idéia da minha tremenda decisão de usar o laboratório da universidade para os meus próprios experimentos dava-me uma sensação de liberdade e euforia, e um desejo de celebrar aparecia descuidadamente em mim.

- Aos amigos ausentes - bebeu Lomax. - Juntamente com o nome do Herr Professor Hugo. Espero que gostem desta beberagem. Nada é demasiado bom para os meus distintos colegas.

- É muito gentil - disse Spence, na sua voz tranqüila e prosaica.

- Feita por monges - disse Lomax, voltando para mim o seu olhar irônico. - Isso deve agradar-lhe, Shannon. Você é católico, não?

- Sim... Naturalmente. - Dei à minha resposta uma apaziguadora segurança.

Lomax tornou a encher os béqueres com um sorriso meio zombeteiro.

- Mas, Robert, pensei que você fosse um cientista. Não pode conciliar o Gênesis com a mutação das espécies.

- Nem procuro. - Tomei um gole do suave e quente licor. Um é um fato sórdido... Outro um mistério romântico.

- Hum! - fez Lomax. - E o Papa.

- Não tenho nada contra ele.

- Gosta dele?

- Certamente. - Deixei de sorrir. O humor de Lomax sobre aquele tópico geralmente acabava por me aborrecer. - Admito que não sou um exemplo brilhante... Bem ao contrário, aliás. De qualquer modo, há alguma coisa da qual eu nunca posso afastar-me... Contra a razão, se quiser... Espero que você não queira que diga que o lamento.

- Longe disso, meu caro colega - falou Lomax, tranqüilamente.

Neil Spence estava olhando para o seu relógio.

- Quase seis horas. Muriel deve chegar a qualquer momento. Apanhou o lenço e começou, furtivamente, a limpar a umidade que lhe escapava dos cantos do lábio.

Uma noite, numa trincheira perto do Marne, na escuridão enlameada, ao erguer-se descuidado para aliviar sua posição encolhida; a mandíbula de Spence tinha sido esmagada por uma saraivada de shrapnel alemão; e embora o cirurgião plástico o tivesse  remendado maravilhosamente com uma de suas próprias costelas, o resultado era uma triste distorção do rosto humano: o queixo suplantado por uma feia cicatriz, um cruel contraste com a testa baixa e fina, sob a qual os seus olhos escuros e algo assombrados se retraíam instintivamente. O que tornava pior essa desfiguração era o fato de que Spence fora um belo rapaz, muito procurado para bailes locais, piqueniques e torneios de tênis na sossegada mas confortável sociedade de Winton.

- Sua esposa é encantadora - observou, delicadamente, Lomax. - Apreciei o teatro imensamente na semana passada. Posso servir-lhe outra libação a Herr Hugo?

- Não, não sirva - disse Spence, sensatamente.

- Mas ele nos pediu que bebêssemos na melhor tradição do departamento - falei.

Todos riram, até Spence. Era uma coisa que ele raramente fazia; contorcia-lhe o rosto horrivelmente. Nesse instante, fomos interrompidos por um ruído atrás de nós.

A Sra. Spence tinha entrado no laboratório, sem ser anunciada, com um ar ousado de quem sabe que infringiu as regras. Sorriu para nós com vivacidade por detrás do véu cheio de pontinhos que lhe caía do chapéu e dava um certo sabor picante aos contornos ligeiramente afundados do seu rosto.

- Smith não foi encontrar-me, e eu esperei... Esperei como uma alma perdida.

Muriel Spence tinha uns 27 anos, de altura média, um tanto magra, mas graciosa, com tornozelos delicados, cabelos castanhos claros, face um tanto descorada, na  qual, todavia, por momentos, seus olhos cinzentos eram grandes e infantis. Sem exagero, ela podia ser considerada como um lenitivo para o infortúnio de Spence. Antes da guerra estavam noivos e, quando ele voltou, inteiramente quebrado, a moça ficou a seu lado, resistindo à pressão de sua família e aos esforços dele para lhe devolver a liberdade. O casamento, com a presença de muitos convidados, despertou imenso interesse. Agora, apesar de ela ter perdido muito de sua boniteza juvenil, e fosse um tanto artificial nas maneiras, ainda era atraente e, no seu costume escuro com gola de peliça marrom, alegrou nosso triste laboratório.

Por causa de Spence, que era o meu amigo mais íntimo, eu tinha tentado gostar de Muriel; contudo, minha natureza, acanhada e sem dúvida difícil, sempre achava nela algo que fazia retirar-me, como se não desejado, para dentro de mim mesmo.

Ela levantou o véu e beijou o marido, ligeiramente, no rosto, observando com uma ponta de censura:

- Chegaremos tarde ao nosso compromisso para jantar, querido. Por que não está pronto?

- Naturalmente, Sra. Spence - disse Lomax, erguendo uma sobrancelha à sua melhor maneira - agora que está aqui dentro, talvez nunca mais saia desta câmara de tortura.

Ela inclinou a cabeça para um lado, tocando-me com seu olhar vivo e provocante.

- Sinto-me muito segura com a presença do Sr. Shannon. E Diante disso, por algum motivo, Lomax e a Sra. Spence sorriram. Neil, cujos olhos escuros pousavam com uma dedicação quase canina no rosto da esposa tinha colocado seu sobretudo, e agora ela enfiava as mãos enluvadas no braço dele.

- Neil e eu vamos para o seu lado, Sr. Lomax - disse ela, convidativamente. - Podemos deixá-lo no seu destino?

Houve uma ligeira pausa.

- Obrigado - disse ele, por fim. - São muito gentis.

Saí com eles, e junto ao carrinho de Muriel, estacionado diante da entrada do edifício, despedimo-nos. Enquanto eles saíam de carro para a cidade, caminhei até o Monte Fenner, pretendendo ir buscar minhas amostras e voltar com elas, imediatamente, para o laboratório.

No Eldon Park, à minha direita, o lago ornamental estava "suportando", apinhado de patinadores. Podia ouvir no ar quieto o som agudo e alegre das lâminas dos patins riscando o gelo. Animado pelo Benedictine, e pelo pensamento delicioso da viagem de Usher, tive vontade de cantar. Havia uma agradável vertigem em minha cabeça, o mundo parecia um lugar inteiramente delicioso.

Quando eu chegava à pensão familiar, a porta se abriu e apareceram Harold Muss e a Srta. Law, ambos com patins pendentes dos pulsos pelas correias. Diante disso, o licor, traindo sua origem monástica, mostrou ser mais forte do que eu tinha imaginado. Eu não podia explicar por que, mas o súbito aparecimento da Srta. Law em tal companhia, usando uma elegante blusa branca e um boné de lã, com uma borla vermelha, sobre os cabelos, pretendendo não socorrer e salvar, mas fazer um exercício saudável, deu-me um ataque de riso silencioso.

- O que há. Sr. Shannon? - Vendo-me, ela se deteve. - Está doente?

- Nem um pouco - respondi, tirando a mão da grade. Estou em perfeita condição física e mental... Pronto para um esforço que pode abalar o mundo. Falei claro?

Muss conteve um risinho abafado; adivinhava a natureza dos meus sintomas. Mas a atitude recatada da Srta. Law exprimia somente simpatia e uma profunda preocupação.

- Não quer ir ao lago conosco? A brisa pode fazer-lhe bem.

- Não - respondi. - Não irei ao lago. - E acrescentei com lógica: - Não tenho patins.

- Eu podia emprestar-lhe os meus - sugeriu Muss, obliquamente. - Mas o gelo é escorregadio.

- Cale-se, Muss - falei, com gravidade. - Já não arrebento os dedos por você... E por toda a humanidade?

- O senhor tem trabalhado demais, Sr. Shannon. - Na sua perplexidade, a Srta. Jean tomara minhas palavras inteiramente ao pé da letra. – O senhor prometeu ir a Blairhill. Eu vou esta noite. Tire um dia de folga e vá visitar-nos amanhã.

Fitando os seus doces olhos castanhos, meus poderes inventivos pareceram subitamente abandonar-me. Não encontrando nenhuma desculpa, após um momento, murmurei, tropegamente:

- Muito bem. Irei.

 

O trem de uma e meia para Blairhill era dolorosamente vagaroso, seus compartimentos antigos estavam cheios e tão sujos que, a cada solavanco da locomotiva, uma nuvem de pó saía das capas bolorentas dos assentos. Enquanto ele se arrastava pelas Lowlands industriais e fumacentas, passando por chaminés de fábricas que soltavam rolos de fumo, sem nunca uma folha de capim à vista, parando em cada estaçãozinha, censurei-me por cumprir uma promessa que eu nunca tinha pretendido fazer e pouco me consolava pensar que um dia de folga me devolveria descansado para a minha pesquisa.

Por fim, após uma hora de ter deixado o Low Level, de Winton, tendo escapado à pior parte da "região preta", entramos aos trancos em Blairhill. A fim de que o infeliz viajante não pudesse fugir a seu destino, o nome estava escrito com pedras brancas entre dois abetos da Escócia, sobre o terrapleno da estação. E lá, esperando na plataforma, erguendo-se um pouco na ponta dos pés, percorrendo ansiosamente com olhos brilhantes os lados do trem estacionado em curva, estava a Srta. Jean Law.

Quando abri a porta do vagão e me dirigi para ela, percebi que, em honra de  minha visita, ou simplesmente, talvez, por suas férias de fim de semana, ela vestia, por baixo de um casacão solto, sua suéter branca de tricô e, sobre os cachos  castanhos, que pareciam mais notáveis do que nunca, aquele pequeno boné de lã com borlas conhecido na Escócia como "frio". Distinguindo-me entre os passageiros que se acotovelavam, seu rosto iluminou-se de boas-vindas. Apertamos as mãos.

- Oh, Sr. Shannon! - exclamou ela, alegremente. - Foi muito gentil em ter vindo. Eu estava quase com receio de que...

Interrompeu-se, mas eu terminei a frase. - ...que eu a deixasse plantada aqui.

- Bem... - Enrubesceu como lhe ocorria freqüentemente. Sei que o senhor é um homem ocupado. Mas, de qualquer forma, está aqui, faz uma tarde linda, tenho muito para lhe mostrar e, embora eu não devesse dizer isso, acho que vai gostar.

Enquanto ela falava, caminhávamos juntos pela estreita rua principal. A cidade estava menos estragada do que eu tinha esperado; situava-se dentro do vasto domínio da família ducal Blairhill e possuía um ar de antiquado burgo do campo, com pedras colocadas à mão nos pavimentos, inesperadas alamedas curvas e um velho mercado.

Cheio de orgulho por sua cidade natal, minha companheira explicava que "o duque atual", juntamente com a Sociedade Histórica de Blairhill, tinha feito muito para preservar as antiguidades locais, e ela assegurou, séria e entusiasticamente, que, findas as formalidades de apresentação, me levaria para uma visita completa.

No fim do aclive fez uma pausa súbita, diante de um pequeno edifício baixo e despretensioso, e com um ar nervosamente acanhado, denunciado pela tremura das pestanas, a jovem observou:

- Esta é a nossa padaria, Sr. Shannon. Entre e conheça o meu pai.

Segui-a, por sob uma arcada baixa, atravessando um pequeno pátio empedrado onde uma carroça envernizada apontava seus varais para o céu, e depois para baixo, ultrapassando um portal estreito, entre sacos de farinha empilhados, até um subsolo obscuro, de terra batida, com um cheiro adocicado, iluminado pelo clarão vermelho de dois fornos de carvão. Gradualmente, enquanto meus olhos se habituavam ao escuro recinto, distingui duas figuras em mangas de camisa, cada uma armada com uma comprida pá de madeira, trabalhando energicamente nos fornos abertos, seus aventais brancos avermelhados pelo fulgor, retirando a fornada de pão para longas bandejas de madeira.

Durante vários minutos observamos em silêncio essa operação, que parecia exigir energia, destreza e rapidez. Então, quando nova fornada foi colocada e as portas de ferro se fecharam com estrépito, o mais próximo dos dois homens voltou-se imediatamente e veio para nós. Limpou a mão no avental e estendeu-a, com as unhas ligeiramente incrustadas de massa seca.

Daniel Law teria uns 55 anos, era de estatura média, pálido em conseqüência de sua ocupação, mas de aspecto vigoroso, com ombros fortes e uma robusta compleição.

Apesar dos seus óculos de aros metálicos e da curta barba preta que, de certo modo, mascarava suas feições, tinha uma expressão séria e franca, e uma testa ampla, agora perlada de suor: Obviamente, não era de riso fácil; contudo, quando os seus dedos quentes apertaram os meus, seus lábios se afastaram ligeiramente, saudando, mostrando dentes fortes, um tanto estragados, como tudo em volta, pela farinha.

- Muito prazer em conhecê-lo, senhor. Minha filha falou-me de sua grande bondade com ela, lá na faculdade. Qualquer amigo de minha filha é bem-vindo.

Sua voz funda tinha uma qualidade patriarcal, acentuada pela pronúncia especialmente pausada da palavra "faculdade" e seus olhos brilharam afetuosamente quando ele se referiu á Srta. Jean Law. Prosseguiu, apresentando desculpas.

- Lamento estarmos tão apertados agora. Meu filho e eu cuidamos sozinhos nas tardes de sábado. - Chamou por sobre o ombro: - Luke, venha cá um momento.

O rapaz de 17 anos, que avançou sorrindo e tirando sua jaqueta, tinha uma estreita semelhança com a irmã, a mesma cor da tez e dos olhos. Tinha um ar humano, alegre e caloroso que me fez gostar dele imediatamente. Luke não podia ficar, tinha que atrelar o cavalo e dirigir a carroça no seu giro pelo campo. Percebi que o próprio Law, a despeito da sua delicadeza, estava com pressa; assim, com um olhar de esguelha para minha companheira, indiquei que não devíamos abusar do seu tempo.

Law acenou afirmativamente.

- Nossos fregueses carecem de receber o pão, senhor. E amanhã é o Dia do Senhor. Mas a gente se vê mais tarde em casa. Aí pelas cinco. Enquanto isso, minha filha cuida do senhor.

Lá fora, e continuando nosso caminho para a orla da cidade, passamos por casas novas entre pequenos jardins, minha companheira lançando olhadelas furtivas para mim, meio ansiosa, meio sôfrega, como se tentasse avaliar minha opinião quanto a seus parentes. Dentro em pouco, na curva de uma avenida tranqüila, alcançados por ramos baixos e nus de alguns castanheiros, aproximamo-nos de uma pequena vila de pedra, linda e despretensiosa, com uma sebe aparada de alfenas e cortinas de renda imaculada cobrindo as janelas. Ali, incapaz de conter-se, com a mão no trinco do portão de ferro que tinha uma placa de bronze com o nome SILOAM, a Srta. Law exclamou:

- Os dois gostaram do senhor... Meu pai e Luke. Vi isso. Agora, o senhor vai conhecer minha mãe.

Enquanto ela falava, a porta da frente se abriu e uma mulher franzina, de cabelos prateados, bonita, com uma pele delicada e transparente, o corpo protegido por um roupão de alpaca, apareceu para receber-nos. Depois de um rápido olhar para a filha, sem fazer nenhum esforço para tentar esconder o espanador de penas que tinha na mão, voltou-se para mim e me examinou por um longo minuto com os seus olhos serenos e confiantes. Então, como que tranqüilizada, começou a falar com naturalidade:

- O senhor me pegou antes que eu mudasse de roupa, Sr. Shannon. Estava justamente terminando de arrumar a minha sala quando o vi caminhando pela avenida. Entre e sente-se.

- Não, mamãe - protestou a Srta. Jean, rapidamente. Vamos aproveitar a tarde.

A Sra. Law voltou para a minha companheira o seu olhar calmo, experimentado, que, embora amiga e tolerante com aquela impaciência juvenil, preservava um certo ar de superioridade materna. - Têm muito tempo, filha.

- Não para o que eu planejei.

- Vai levar Malcolm?

- Claro que não, mãe - respondeu a filha, um tanto irritada. – A senhora sabe que ele está fora nesta tarde.

Quem era Malcolm? Seria talvez, pensei ausente, alguma relação juvenil, ou possivelmente um cachorro.

- Muito bem... Então vão logo - concordou a Sra. Law, com seu ar de tranqüilo raciocínio. - Mas tratem de estar de volta antes do jantar. Todos estaremos aqui e prontos para comer às seis horas. Até já, Sr. Shannon.

Enquanto ela sorria e se retirava, competentemente, para sua sala, a Srta. Jean Law, com um ar ligeiramente aliviado de quem passou pelas preliminares com sucesso, ficou comigo só para si.

- Agora - exclamou ela com energia - posso levá-lo para dar uma volta.

Guiando o caminho, levou-me para o jardim dos fundos, com cerca de 200m, e se deu o trabalho de conduzir-me pelas trilhas ensaibradas, entre canteiros cuidados, o de ruibarbo, o verde lavado. Quando aprovei essa ordem, lançou-me um sorriso agradecido.

- Naturalmente, tudo é muito pequeno... Suburbano, o senhor pode dizer. Estou certa de que nada aqui é igual à sua casa, Sr. Shannon.

Fingindo não ter notado o ligeiro tom de pergunta em sua voz, apontei, apressadamente, para a casinha das ferramentas, onde uma motocicleta vermelha estava inclinada em seu suporte.

- É de Luke - respondeu ela, indulgentemente, à minha pergunta muda. - Ele é louco por motores e sabe tudo a respeito deles... Embora papai não aprove. Mas o coitado tem que andar tão devagar na carroça que gosta de tirar a forra com a sua Indian.

Minha opinião sobre Luke, já elevada, subiu consideravelmente. Durante longo tempo, como quem deseja a lua, eu tinha cobiçado uma máquina daquelas, que era capaz de levar a gente primorosamente através do ar a uma velocidade de 130 quilômetros por hora. Eu teria gostado de deter-me para examinar os seus requintes, mas a Srta. Jean já se apressava lá atrás, além da casa, e para uma estrada. Ajeitando o seu "frio" mais firmemente sobre os cachos, olhou metodicamente para o relógio e observou.

- Temos umas boas três horas. Vamos tentar ver tudo.

- Não devíamos descansar um pouco, primeiro? - sugeri, lançando um olhar para duas cadeiras que estavam num canto abrigado da varanda. Tinha-me levantado no meio da noite tentando planejar uma cultura técnica para as minhas amostras.

Ela riu muito alegremente e observou, brejeiramente, como se eu tivesse dito alguma coisa engraçada:

- Ora, Sr. Shannon, o senhor é um cure. Mas se apenas começamos...

Nunca houve um excursionista mais escrupuloso, um cicerone mais devotado, estou disposto a jurar, do que aquela bonita filha do padeiro de Blairhill.

Séria e infatigavelmente, levou-me a todo o antigo burgo realengo. Mostrou-me a prefeitura, a biblioteca pública, a loja maçônica, o mausoléu ducal, as velhas casas de tecelões na Cottar's Row, os restos de uma muralha romana (três pedrouços arruinados) e, com um ar reverente, na Lamb Lane, a Casa de Reunião dos Irmãos. Até me mostrou o lugar exato da Cruz onde Claverhouse, dispersando um Conventículo, tinha sido providencialmente arrebatado do seu custódio.

Então, enquanto eu me alegrava com o fim de nossa peregrinação, ela me fez, mal concedendo uma pausa para respirar, vigoroso aceno e fitou-me com um olhar misterioso de quem guardou o melhor para o fim.

- Não podemos perder o Gado Branco - declarou ela, ajuntando, formalmente, como se lesse num livro: - São absolutamente únicos.

Para ver aqueles animais fabulosos, que, instruiu-me ela, eram parte do famoso rebanho de Château-le-Roi, importado da França pelo "falecido pai do duque",  fomos obrigados a voltar uns três quilômetros e entrar, através de portões com  pilares, numa extensa herdade conhecida como "High Parks", que "o falecido duque" tinha graciosamente separado das suas propriedades e doado à cidade.

Era sem dúvida uma bela extensão de bosques e prados, ainda mantendo, desde que não se via vivalma, o seu antigo ar de propriedade particular.

Mas a Srta. Law não podia encontrar o gado. Embora o procurasse vigorosa e ardentemente, como se sua honra estivesse em jogo, colina acima e vale abaixo, em torniquetes de madeira e em clareiras entre os arbustos, seus olhos perscrutadores,  entrementes, já mostrando uma crescente preocupação, o rosto encompridando de desânimo, foi eventualmente forçada a deter-se no alto da última colina relvosa e, olhando-me envergonhada, reconhecer a derrota.

- Receio... Sr. Shannon... - Então, com uma explosão final de ressentimento: - Realmente, isso está além de qualquer compreensão.

- Provavelmente estão escondidos de nós embaixo das árvores.

Ela sacudiu a cabeça, recusando-se a ver humor no assunto.

- Animais tão lindos! Brancos como leite e com uns belos chifres curvos. Devem estar recolhidos para o inverno. Vou mostrá-los ao senhor em outra ocasião.

- Mostre, sim - falei. - Enquanto isso, vamos sentar-nos. A tarde era extremamente serena, quente para a estação, com o sol, parcialmente velado, difundindo uma luz ambarina, que parecia mergulhar a paisagem na quietude de um mundo não descoberto. Os contornos dos bosques silenciosos lá estavam aos nossos pés, escondendo um pequeno regato, calado pelo ambiente geral, arrastando-se de tanque para tanque, segurando seu fôlego, impondo-nos um silêncio igual.

A meu lado, mastigando uma folha castanha de capim-peludo, a Srta. Jean Law sentava-se ereta, ainda alimentando sua humilhação, e, descansando num cotovelo, comecei, inconscientemente, a estudá-la, procurando, de maneira fortuita, dissecar sua personalidade. Eu não podia, claro, revisar minha opinião sobre sua naiveté; fui obrigado a admitir que, entre as poucas moças que eu tinha conhecido, ela era supremamente natural. Tinha, especialmente naquele cenário, uma frescura jovem, surpreendente. Seus olhos castanhos, a pele e os cabelos combinavam com as terras arborizadas, como a sua firme e pequena garganta e queixo. Os dentes, enquanto ela mascava a folha peluda, eram brancos e sadios. Observando-a de baixo para cima, quase se podia ver o fluxo de sangue quente através da curva suave do seu lábio superior. Todavia, mais do que tudo, ela parecia, e cheirava, tão extraordinariamente limpa! Concluí negligentemente que, uma vez que essa virtude se seguia à devoção, ela devia lavar-se, toda, inteiramente, de manhã e à noite, com sabonete Windsor. Nela, tudo o que era visível, e, estava certo, também invisível, era limpo e imaculado.

De repente, enquanto eu a avaliava criticamente, a moça voltou a cabeça e  deparou, inesperadamente, com o meu olhar inquisidor. Durante um momento sustentou-o com sua usual e destemida honestidade; depois, seus olhos recatados baixaram, e um doce rubor lhe ocupou as faces. Houve uma pausa constrangida, um silêncio que, de certo modo, fazia parte da quietude da natureza em volta e que, como que pedindo uma palavra, uma ação de minha parte, que não vinha, estava cheia de uma expectativa quase dolorosa. Então, quase zangada, como se recusasse ceder ao acanhamento, olhou para seu reloginho redondo de prata e pôs-se em pé num pulo.

  - Já é hora de voltar. - E acrescentou numa voz baixa, que ela procurava tornar prática: - O senhor deve estar morrendo por seu chá.

Quando chegamos a Siloam toda a família nos esperava na imaculada sala dos fundos, a Sra. Law usando o seu vestido cinzento pérola de "companhia", o Sr. Law  e Luke bem-arrumados com colarinhos de linho e ternos de casimira. Também estava presente, um tanto para minha surpresa, outro convidado, que me foi apresentado como Sr. Hodden, que respondia, com um agradável sorriso, ao nome de Malcolm, que imediatamente se ligou a Jean, e que, na verdade, estava em termos de devotada intimidade com todos os membros da família Law.

Era um jovem de cerca de 25 anos, correto, digno de confiança por seu aspecto, com um corpo bem plantado, uma expressão aberta, ligeiramente séria, lábios firmes, e uma cabeça compacta, quadrada, vestido com uma elegância metódica, de tweed marrom, com um colarinho alto e engomado. Sempre afeito a invejar nos outros qualidades que me eram opostas, senti-me ligeiramente diminuído em sua presença, porque ele mostrava uma solidez tranqüila, um ar de quem todos os dias faz exercícios na ACM, um olhar de franqueza masculina, cônscio de sua correção, resolvido a encontrar no seu próximo masculino iguais atributos. O bolso de cima, no lado direito do seu paletó, carregava um diapasão e uma fila de lápis apontados, que sem dúvida serviam para facilitar sua ocupação, que depressa soube que era a de um professor na escola elementar de Blairhill.

Quando ele me estendeu uma mão amiga, o Sr. Law pôs o seu selo sobre nosso encontro.

- Vocês, moços, devem ter muito em comum. Malcolm é mesmo um dos nossos, Sr. Shannon. Ensina todas as semanas na nossa escola dominical. Um verdadeiro trabalhador, posso dizer-lhe.

Uma vez que o jantar estava pronto, tomamos os nossos lugares na mesa e Daniel, gravemente, repetiu uma oração de graças, na qual, com um relance para a  fotografia, em uniforme de enfermeira, sobre o consolo da lareira, fez uma referência um tanto tocante sobre sua filha ausente, Agnes, "agora trabalhando em campos estrangeiros".

Então, a Sra. Law começou a servir largas porções de um grande salmão cozido que estava diante dela.

Decidido, ataquei com o apetite que se poderia esperar de um dos hóspedes da Srta. Dearie. Havia, além do generoso peixe, batatas cozidas na casca, verduras de inverno, presunto frio e língua, picles e potes de conserva feita em casa; na verdade, a simples gostosura dos alimentos teria deliciado um paladar muito mais refinado do que o meu. Para honrar minha visita, o padeiro tinha feito um bolo fofo especial, um maçapão enfeitado com cerejas cristalizadas. O que mais me agradou, porém, foi o pão. Leve e bem fermentado, com uma crosta quebradiça e estalante, exalava uma deliciosa fragrância e derretia-se na língua da gente. Quando me aventurei a um cumprimento sobre o seu produto, o Sr. Law pareceu gravemente agradado. Apanhou uma fatia do prato, experimentou sua consistência, cheirou-o delicadamente, e então partiu-o, com um ar sacramental, entre os dedos.

Olhando profissionalmente por cima da mesa para o filho, observou:

- Um pouquinho mal cozido hoje, Luke... Mas não de todo mau. - Depois, voltando-se para mim, prosseguiu com grande simplicidade: - Levamos nosso ofício muito a sério, senhor. O sustento da vida, isso é o que significa o nosso pão para muita gente pobre do campo. Não tem muito mais... Mineiros, trabalhadores do arado, das fazendas, com famílias grandes, trabalhando talvez por 35 xelins semanais. Por isso é que o fazemos só com a melhor farinha e o mais doce levedo de cerveja, tudo misturado com a mão.

- O melhor pão do país - interpôs Malcolm, com um aceno para mim. Estava sentado ao lado de Jean e passando os pratos numa corrente oculta de tranqüilo divertimento.

Daniel sorriu.

- Ai! Caminham oito quilômetros, alguns desses cidadãos, para encontrar nossa carroça e comprá-lo. - Fez uma pausa, empertigando-se com dignidade. - Provavelmente está lembrado, Sr. Shannon, da significação bíblica do artigo que produzimos. Saberá que o Salvador multiplicou os pães para alimentar a multidão, que Ele repartiu o pão com os seus discípulos na última Ceia.

Fiz um murmúrio confuso de assentimento e, enquanto Luke aliviava o meu embaraço passando-me a geléia de morango, tentei, em voz baixa, atrai-lo para uma conversação sobre os méritos da sua motocicleta. Daniel, contudo, não podia ser deixado de lado. Chefe daquela casa, pregador nas reuniões, estava acostumado a continuar falando, e agora, irradiando o grave e bem disposto olhar através da mesa, parecia determinado a sondar-me.

- Naturalmente, doutor, o senhor também segue uma nobre profissão. Curar os doentes, restaurar os mutilados, fazer os coxos andarem, o que poderia haver de mais meritório? Para mim, senhor, foi um momento de feliz orgulho quando minha filha decidiu dedicar-se a esse grande e esplêndido trabalho.

Mantive silêncio, uma vez que lhe poderia dizer que a minha intenção era nunca clinicar, mas dedicar-me exclusivamente à pesquisa da ciência pura.

Sem se intimidar com a minha reticência, e com aquele curioso jogo de dignidade e humildade que o caracterizava, Daniel voltou ao assunto, falando sobre a irmandade dos homens, a virtude cristã de ajudarem-se uns aos outros; depois, tendo estabelecido sua posição, enfrentou-me diretamente.

- Posso perguntar-lhe, senhor, qual a sua confissão?

Tomei um demorado gole de chá. Exceto Hodden, cujo olhar traía um ligeiro estado de alerta, todos me viam com bondosa atenção, esperando com cálido interesse a minha resposta como se, de fato, fosse esse o nó da questão, a pedra angular que completaria o firme edifício de sua unida aprovação. A Srta. Jean, em particular, um tanto corada pela bebida forte e quente, olhava-me com lábios entreabertos e olhos brilhantes.

Que diabo eu ia dizer? Conhecia suficientemente as questiúnculas daquelas cidadezinhas sobre as diferentes denominações para imaginar qual a comoção que eu não causaria, se falasse a verdade nua e crua - que eu era católico, me extraviara ocasionalmente nos corredores menos escuros do ceticismo, mas que ainda, no coração, apegava-me à minha primeira crença. Esse pensamento me levou a procurar apoio na estrutura que eu já tinha criado para a Srta. Law. Afinal de contas, o que importava isso? Eu jamais tornaria a ver aquela digna família, e preferi não perturbar a harmonia da ocasião e, se fosse habilidoso, sem precisar mentir.

- Bem, senhor - falei com uma fluência que me chocava, como se aquela congregação de bondade evocasse as piores sutilezas do meu caráter. - Devo confessar que meu trabalho biológico tem restringido um tanto as minhas oportunidades de ir à igreja. Mas fui criado, em Levenfort, numa atmosfera não-conformista muito estrita. Aliás - ainda lançando mãos da minha diversificada criação, melhorei modestamente um dos gabos menos críveis de minha avó - um tio-avô pelo lado paterno fora um dos reformistas protestantes que deram testemunho, com o seu sangue, na Charneca de Marston.

Houve uma pausa. Então, enquanto minha resposta penetrava lentamente, percebi que seu efeito não era somente satisfatório, mas altamente impressionante.

- Não me diga - Daniel inclinou a cabeça com desculpável interesse. - A charneca de Marston. Ah! Esse foi o martírio dos santos. Devia orgulhar-se desse antepassado, Sr. Shannon. E acrescentou, fazendo uma leve graça - espero que se lembre desse bom exemplo.

Transposto o obstáculo, a noite continuou numa amável nota de concórdia. Quando Malcolm, com profusas expressões de pesar, foi obrigado a retirar-se para dar algumas aulas noturnas no Blairhill Institute - trabalho extra, confiou-me a Sra. Law, que ele estava fazendo para sustentar a mãe viúva - fomos para a sala de estar, onde a Srta. Jean foi induzida a executar, no piano, uma peça de Grieg. Falou-se então na distante Agnes. Sua última carta, muito alegre, foi orgulhosamente lida em voz alta. Instantâneos foram passados, ternamente, um por um, todos amarelados e ligeiramente foscos – grupos de crianças nativas, altas e magras, de olhos grandes, usando aventais brancos, estranhamente patéticas, amparadas por uma forte e sorridente figura de enfermeira; choupanas de madeira, uma vista de uma residência estéril, e sempre o luxurioso fundo da floresta, estranhas árvores semelhantes a samambaias, tudo cortado de raios de sol e entremeado de sombras negras e tristes.

Quando o relógio bateu oito horas, levantei-me entre protestos e cordiais apertos de mão.

- Ficamos muito honrados, senhor - disse o Sr. Law, com um inesperado calor nos olhos: - Talvez na próxima vez, quando nos visite, lhe ofereçamos pousada para a noite.

- Sim, voltarei em breve.

A Sra. Law meteu-me um embrulho na mão, murmurando confidencialmente:

- É um gostoso pedaço de pão da Escócia para ajudar as coisas na pensão da Srta. Dearie.

A escuridão tinha caído quando Luke e a irmã me escoltaram até a estação. No caminho, Luke generosamente ofereceu-me sua moto para eu usá-la sempre que quisesse.

Quando a locomotiva juntou vapor e o trem partiu, a Srta. Jean caminhou ao lado da minha janela.

- Espero que tenha gostado da visita, Sr. Shannon. Sei que nós todos gostamos, muito mesmo.

Sozinho, no compartimento do vagão, derreei-me a um canto, exausto pelo excesso de sociabilidade, procurando verificar quais as minhas reações a isso. Para falar a verdade, o contato com aquela família simples e zelosa tinha-me enchido de aversão por mim mesmo, mais forte do que usual: sentia-me reles e indigno. Sim, por algum motivo, eu me sentia um grande covarde.

E de repente me veio uma imagem do rosto de Jean Law, quando, inocentemente, ela havia corado de olhos baixos, a meu lado, nos High Parks. Eu tinha uma ligeira experiência com mulheres, e a esse respeito era inteiramente sem pretensão. Mas, agora, um pensamento me atravessou como uma flecha. Sentei-me sobressaltado, chocado, no vagão vazio.

- Oh, não! - exclamei alto. - Ela não podia... Ela não pode... Seria demasiado absurdo.

 

Fevereiro estava chegando com muita geada e frio, dias claros e brilhantes que mexiam com o sangue. Havia mais de um mês que eu me atirava com completo abandono, a meu próprio trabalho. Sentia-me bem e vivo.

Naturalmente, Lomax e Spence notaram a minha atividade, mas Smith, embora eu ocasionalmente o apanhasse me olhando e mordendo as pontas do seu bigode falhado, não podia adivinhar o que eu estava fazendo. Agora que o Professor Usher achava-se ausente, ele passava a maior parte do dia no bar da universidade.

Não era um processo fácil aquele a que eu me dedicava. Não se deve imaginar que a pesquisa original é realizada num belo arroubo poético; antes que a luz apareça é preciso mourejar dentro dos caminhos de um labirinto, ou empurrar incessantemente a pedra montanha acima como Sísifo.

Todavia, depois de experimentar com diversos meios, que foram inúteis para o meu propósito, finalmente consegui desenvolver, em caldo de peptona, com as amostras de Dreem, uma cultura que eu acreditava conter o organismo causador da moléstia epidêmica. Ao olhar para os delicados fios amarelos, formando cordões açafroados dentro do líquido claro e cor de topázio, aumentando e coalescendo como flores brilhantes do açafrão, contudo para mim mais bonitos do que a flor mais rara, meu coração pulava de alvoroço.

A medida que o tempo de que eu dispunha diminuía, aumentei meus esforços, com  um método de cultura seletiva, a fim de produzir uma cepa forte e pura daquele precioso organismo. Eu tinha uma chave da porta lateral do edifício da patologia que me dava acesso ao laboratório, quando todos já tinham saído. Depois do chá na pensão da Srta. Dearie, eu voltava ao departamento, permanecendo lá, submerso como um mergulhador, ligado ao mundo pela mais fina fibra da consciência, na solidão fria, de luz esverdeada, até que as pancadas da meia-noite ecoavam na universidade silenciosa. Essas eram as horas mais produtivas de todas.

Eu estava confiante em que poderia terminar essa parte essencial no sábado seguinte, primeiro de fevereiro, e retirar todos os traços dos meus experimentos naquela mesma noite. Tudo se encaixava lindamente, como um mosaico bem feito: o Professor Usher tinha escrito que voltaria segunda-feira, dia três, e eu estaria na minha mesa, ocupado com os seus testes, quando ele voltasse.

Na noite de quarta-feira dessa última semana, pouco depois das nove horas, achei que, finalmente, a cultura estava madura para exame, e com um anel de platina esfreguei e colori uma lâmina de microscópio. Era um momento crucial. Contendo a respiração, coloquei a lâmina sob as lentes; então, quando as formas escuras saltaram contra o fundo negro e brilhante, soltei uma exclamação involuntária.

O campo estava cheio de pequenos bacilos em forma de vírgula que eu nunca tinha visto antes.

Durante longo tempo, fiquei imóvel, olhando para minha descoberta, cheio de uma exaltação que me punha a cabeça à roda. Por fim, recompondo-me, apanhei meu bloco de notas e comecei, com precisão científica, a fazer uma descrição específica do organismo, que, devido à sua forma, chamei, provisoriamente, de Bacilus C. Continuei durante uns 15 minutos, mas de repente minha concentração foi interrompida por um dilúvio de luz vindo da bandeira da porta. Poucos segundos depois, ouvi  passos no corredor, a porta abriu-se e, enquanto me enregelava de consternação, o  Professor Usher entrou no laboratório. Usava um terno cinzento com uma capa escura sobre os ombros, e seu rosto pálido e duro estava manchado com a poeira da viagem. A princípio, eu não podia acreditar que ele era real. Então vi que acabava de desembarcar do trem.

- Boa noite, Shannon. - Adiantou-se lentamente, de maneira estudada. - Ainda aqui?

Pisquei, olhando-o por sobre os tubos de cultura. O professor estava olhando para eles.

- Mostra uma notável aplicação. O que é isto? Completamente enervado por ter sido apanhado, fiquei calado.

Oh! Por quê... Por que ele tinha chegado antes da hora? Subitamente, atrás do Professor Usher, percebi outro pássaro de mau agouro, em pé, sem o seu jaleco branco, num terno de passeio mal-ajustado, com o comprido pescoço caído, as órbitas fundas: Smith. Compreendi, então, que era obrigado a dizer-lhe.

Comecei a falar com interrupções, mas com ciumenta reserva. A atitude de Usher tornou-se mais distante e severa. Quando terminei, seu rosto era glacial.

- Quer dizer que deliberadamente pôs de lado o meu trabalho em favor do seu próprio?

- Vou reiniciar a contagem na semana entrante.

- Quantas fez enquanto estive fora?

Hesitei.

- Nenhuma.

Suas feições marcadas e estreitas tornaram-se cinzentas de raiva.

- Eu lhe disse expressamente que queria o nosso trabalho pronto no fim do mês... Para o Professor Harrington... Cuja hospitalidade estive recebendo... Um velho amigo e colega. Contudo, no momento em que virei as costas... - Gaguejou ligeiramente. - Por quê? Por quê?

Continuei a olhar para as dobras da fazenda de sua capa. Era de seda verde escura. Murmurei:

- Eu precisava descobrir isto...

- Ah! Sim? - Até as suas narinas tinham ficado brancas. - Pois bem, senhor, vamos deixar de rodeios. Abandone isso imediatamente.

Estremeci, mas serenei meus nervos indóceis.

- Com toda a certeza a minha bolsa me dá o direito de dizer alguma coisa a respeito.

- Como Professor de Patologia Experimental, tenho a última palavra.

Eu não me irritava facilmente; de fato, a minha natureza era reservada e inofensiva, acreditava profundamente na tolerância universal, na abençoada expressão "Viva e deixe viver", contudo agora uma névoa avermelhada flutuava diante de mim.

- Não posso abandonar esta investigação. Considero-a muito mais importante do que os testes das opsoninas.

Ao fundo, Smith engolia em seco, com o seu pomo-de-adão subindo e descendo no pescoço, como se degustasse um bocado saboroso. Usher aproximou todo o seu corpo, com lábios finos como um fio.

- Você é um sujeito singularmente desagradável. Observo-o nos seus modos, que são deploráveis, nas suas roupas, inteiramente impróprias para sua posição profissional, e no seu desaforado desrespeito para comigo. Estou acostumado a cooperar com cavalheiros. Tenho sido tolerante com você por achar que, convenientemente dirigido, poderia ir longe. Mas se prefere portar-se como um grosseirão, sei como lidar com você. A não ser que segunda-feira me entregue um pedido de desculpas por escrito por seu próprio punho por esse lapso quase imperdoável, devo pedir-lhe que abandone o meu departamento.

Seguiu-se uma quietude mortal.

Após um intervalo conveniente, Usher tirou o lenço e enxugou os lábios. Viu que me tinha silenciado e, como sempre, o pensamento no seu interesse próprio subiu à superfície.

- Seriamente, Shannon, e para seu próprio bem, aconselho-o a controlar-se. Apesar de tudo, reluto em interromper nossa colaboração. Agora, se me desculpar, ainda não estive em casa.

Com um lance da sua capa de matador, girou nos calcanhares e saiu. A sua partida, Smith ficou por um momento, e então começou a assobiar baixinho por baixo do seu bigode falhado e, sem olhar para mim, fingia limpar a pia de Spence.

Sem dúvida estava esperando que eu falasse, e fui bastante tolo para cair na armadilha.

- Então - disse eu, amargamente. - Supondo que você pensa ter entornado o meu caldo.

- O senhor ouviu o Chefe. Devo cumprir as ordens dele. Tenho as minhas responsabilidades.

Eu sabia que aquilo era mera hipocrisia. A verdade era que, pelo mais incrível dos motivos, Smith alimentava contra mim, no coração, uma inveja quase mórbida. Um pobre moço como eu, ele tinha certa vez aspirado a mais alta meta científica. Agora, batido, frustrado e ralado de inveja, não podia suportar que eu tivesse sucesso onde ele fracassara.

- Não é minha culpa, senhor. - Enxaguava a pia com um risinho desafiante. - Apenas cumpri o meu dever.

- Parabéns.

Separei as minhas culturas e regulei o incubador para a temperatura necessária, enquanto ele me olhava de esguelha, na sua maneira esquisita. Então apanhei o meu quepe e saí.

Doente de ressentimento, caminhei até o Monte Fenner, no escuro.

No cruzamento da Pardyke Road com Kirkhead Terrace, para clarear as idéias, entrei num abrigo de cocheiros, e pedi uma caneca de café. Sentado no banco alto, com os cotovelos no balcão, eu sorvia o líquido escuro e areento, cego ao movimento da vida noturna naquele bairro pobre - a costumeira gente nos bares e barracas de peixe frito, os ambulantes gritando com os seus carrinhos sob lâmpadas de nafta, as mulheres passeando vagarosamente, os jornaleiros disparando, entre o tráfego, gritando a última manchete.

Um momento depois, sentado e pensativo, senti a batida de um guarda-chuva no meu ombro e, voltando-me, vi o Babu bem atrás de mim, de dentes arreganhados, cheio de amizade e afeição pelos seus semelhantes.

- Boa noite, senhor.

Olhei-o com cara feia, mas Babu sentou-se num banco e, ofegante, elevou o corpanzil à altura do balcão.

- Encontro muito afortunado. Estive no Alhambra Varieties, casa de segunda ordem naturalmente, mas extremamente engraçada. - Raspou o guarda-chuva no balcão pedindo atenção. - Café, por obséquio, com bastante açúcar. E uma fatia grande de bolo de fruta. Dê-me um pedaço bonito, por favor.

Voltei as costas, mas Chatterjee, entre goles ruidosos e com muitos risinhos, insistia em descrever sua noite de diversão, na qual o famoso comediante escocês, Sir Harry Lauder, tinha desempenhado um papel importante.

- Hi! Hi! Hi! Com as galhofas desse hilariante nobre, ri tanto que quase caí da minha poltrona, no balcão da frente. Digo-lhe, senhor, estou tão apaixonado pela música escocesa que sinceramente desejo aprender a tocar gaita de foles. Poderia indicar-me um professor?

- Por amor de Deus, deixe-me só.

- Mas como seria interessante, senhor, para os meus amigos de Calcutá se, ao voltar com o meu diploma, também executasse árias escocesas, vestido com o saiote nacional. - Balançando um indicador rechonchudo, cantarolou em agudo falsete. - Ay, ay, ay... La, la, la... Garoto do lado... Nas margens do lindo Clyde... Quando o sol vai descansar... Essa é a hora que eu gosto mais... Vagueando no... Vagueando no crepúsculo. Desculpe-me, Dr. Robert Shannon, mas o significado preciso da palavra escocesa gloaming é mesmo crepúsculo, um bosque, uma floresta, ravina ou lugar escondido, provavelmente apropriado para o amor?

Procurei uma moeda no bolso, coloquei-a no balcão para pagar o meu café e saí bruscamente.

- Espere, espere, espere, Dr. Robert Shannon - gritou ele, procurando deter-me com o cabo do guarda-chuva. - Adivinhe, senhor. Na platéia desta noite, quem eu vi do alto da minha fila dianteira no balcão? Eram dois amigos seus, na primeira fila das poltronas. O Dr. Adrian Lomax e a esposa do Dr. Spence, ambos juntos. O senhor já vai? Desejo acompanhá-lo.

Mas eu já estava do outro lado do abrigo. Um novo medo tinha entrado em meu espírito, obrigando-me a refazer os meus passos apressadamente para o departamento.

"Devo cumprir as ordens dele."

Correndo, eu pensava com maior pressentimento naquele último fulgor no olho do atendente-chefe.

Quando cheguei, o lugar estava totalmente escuro. Apressadamente, abri a porta lateral e ingressei no laboratório. Mesmo ao entrar, senti falta do leve zumbido do aquecedor. Com o coração partido, acendi a luz em cima da minha mesa e abri o incubador. Então vi com toda a clareza. Smith tinha jogado fora as minhas culturas, os frascos estavam vazios em cima da mesa, e quatro semanas do meu mais árduo trabalho estavam perdidas.

 

Na manhã seguinte, não fui à universidade, mas me dirigi, depois do café da manhã, a Parkside Crescent, onde, num tranqüilo e discreto terraço, que dava para Kelvingrove Gardens, o Professor Challis vivia retirado. Eu estava certo de que obteria conselho e ajuda daquele velho bom que tantas vezes me encorajara no passado. Quando toquei a campainha, foi Beatrice, sua filha, que abriu a porta. Uma moça agradável usando uma espécie de macacão estampado, com as suas filhas, duas menininhas de olhos vivos, espiando por detrás e suas saias.

- Desculpe incomodá-la tão cedo, Beatrice. Eu poderia ver o professor?

- Mas Robert - exclamou em sua voz cálida, sorrindo sem querer da minha cara - você não sabia...? Ele está fora.

Meu desapontamento deve ter sido tão evidente que ela, mudando de atitude, começou a explicar rapidamente que seu pai, que sofria gravemente de artrite, tinha sido levado por alguns amigos para uma viagem ao Egito, por causa de sua saúde. Poderia ficar por lá todo o inverno.

- Não quer entrar por um momento? - acrescentou ela, bondosamente. - As crianças e eu estamos tomando chocolate quente com biscoitos.

- Não, muito obrigado, Beatrice. - Tentei sorrir ao despedir-me.

A maior parte do dia, que era cinzento e enfarruscado, caminhei à toa pela cidade, ao longo das ruas Sinclair e Manfield,  olhando sem ver para as vitrinas das grandes lojas; depois, à tarde, vagabundeei pelas docas, onde, envolto num frígido nevoeiro, os vapores brancos e pretos do rio estavam, costado a costado, parados para o inverno. Voltei à pensão e, mais por hábito do que qualquer outra coisa, acabei sentado à mesa do chá.

Com o canto do olho, notei que a Srta. Jean Law, que tinha estado fora - onde, eu não o sabia - nos últimos três dias, estava outra vez no seu lugar. Achei que ela parecia estranha, bem doente, aliás: pálida, com o nariz e os olhos ligeiramente  inchados, como se tivesse tido um forte resfriado. Mas eu estava muito taciturnamente preocupado para lhe dirigir mais do que um único olhar. Ela saiu da mesa antes dos demais.

Contudo, quando subi as escadas, 10 minutos mais tarde, encontrei-a tesa no corredor, de costas para minha porta. Dirigiu-se a mim num tom rígido e afetado:

- Eu gostaria de trocar uma palavra com o senhor.

- Neste momento, não - respondi. - Estou cansado. Estou ocupado. E meu quarto está uma desordem.

- Então venha ao meu. - Seus lábios se tornaram resolutos. Ela abriu a porta do seu quarto, antes que eu pudesse protestar. Seu quartinho era, em contraste com o meu covil atravancado e sujo, um modelo de asseio. Quando, pela primeira vez, vi a estreita cama branca, cuidadosamente "feita", o tapete tecido à mão, a brilhante fotografia dos seus pais, numa moldura prateada, colocada sobre a mesinha precisamente disposta com o seu pente e escova, lembrei-me vagamente de que ela me dissera que, para ajudar a Srta. Alie, ela mesma "fazia" o seu quarto.

- Sente-se, Dr. Shannon. - Quando eu ia sentar-me no peitoril da janela, ela interpôs com um ligeiro tom de ironia: - Não, aí não... Na cadeira, por favor...  É muito mais própria para um cavalheiro como o senhor.

Relanceei rapidamente os olhos para ela. Ela respirava apressada e estava mais pálida do que antes; uma palidez que escurecia seus olhos castanhos e tornava mais fundas as sombras embaixo deles. Vi também, com surpresa, que ela estava tremendo. Mas, mantendo o olhar fixo em mim, começou, firmemente, e com um lábio franzido.

- Sr. Shannon, eu lhe devo muito. Aliás, é realmente notável que uma pessoa da sua elevada posição tenha condescendido em ser bom para uma pobre criatura como eu, filha de um pequeno comerciante.

A despeito de mim mesmo, eu agora a ouvia com sombria atenção.

- O senhor pode ter notado que estive ausente uns poucos dias. Talvez queira adivinhar onde estive?

- Não - disse eu. - Não poderia.

- Então eu lhe direi, Sr. Shannon. - Seus olhos escuros fuzilaram. - Estive visitando sua parte do país. Todos os anos meu pai vai falar na Reunião da Tenda e, embora isso possa diverti-lo, eu fui com ele. Este ano a Tenda foi armada em Levenford.

Comecei a ver vagamente a forma que as coisas iam tomar, e uma nova amargura me invadiu.

- Espero que ela não tenha caído em cima de você.

- Não, não caiu - respondeu ela com veemência - embora eu esteja certa de que o senhor queria que caísse.

- Longe disso, eu até gosto do circo. O que você fez? Pulou através de arcos de papel?

- Não, Sr. Shannon. - Sua voz tremia. - Tivemos uma esplêndida e proveitosa missão. Três bondosas pessoas estavam em Levenford, vê o senhor. Conheci uma delas, após a nossa primeira reunião. Uma excelente senhora... Sra. Leckie.

Apesar de me ter encouraçado, encolhi-me. Eu não a via há mais de 12 meses, mas tinha todos os motivos para lembrar-me daquela mulher indomável, a um tempo o sustento e o flagelo da minha infância, daquele modelo que usava seis saias de baixo e sapatos de elástico, cuja cama eu tinha ocupado com a idade de sete anos, a  padroeira dos conventículos a céu aberto, dos pós Gregory e das mentais imperiais; agora - computei rapidamente - com 84 anos. Ela era minha bisavó.

De pé à minha frente, com os olhos lançando chamas, a Srta. Law viu que tinha tocado num ponto em carne viva. Começou a tremer da cabeça aos pés.

- Naturalmente, na sua terra natal, falamos a seu respeito com ela. Meu pai perguntou, aliás, se algum dos seus parentes ricos não poderia ser induzido a apoiar a nossa causa. Ela olhou para nós, e desatou a rir. Sim, Sr. Shannon, riu às gargalhadas.

Senti que enrubescia com a imagem daquele riso no rosto ocre e enrugado, mas o meu algoz prosseguiu cortante e impiedosamente.

- Sim, ela contou-nos tudo a seu respeito. A princípio, não podíamos acreditar. "Deve haver um engano", disse meu pai. "Esse rapaz é aparentado com gente de posses."

Depois ela nos levou ao Common.

- Cale a boca - exclamei com raiva. - Não estou interessado no que ela fez.

- Ela nos levou e mostrou a sua casa de campo. - Pálida e trêmula, quase sem fôlego, a Srta. Jean Law engasgava-se com as palavras. – Uma casinha miserável, um tanto afastada, com mato por toda a parte e roupas no varal. Uma por uma, ela desmascarou todas as suas mentiras. Contou-nos que o senhor nunca sofreu um naufrágio na guerra. Disse que o senhor é tão mau como o seu avô. Sim, ela até nos contou - a voz sumiu num espasmo de ódio - a que religião o senhor pertence.

Pus-me em pé furioso. Em cima de todas as minhas dificuldades, aquela era a última gota.

- Que direito tem você para me pregar um sermão? Eu só disse aquelas coisas por brincadeira.

- Brincadeira! Isso as torna ainda mais vergonhosas.

- Oh, cale-se! - gritei. - Eu mesmo lhe teria contado a verdade, se você não andasse correndo atrás de mim, impondo-me sua presença a cada momento com os seus malditos papéis médicos... E as suas inexistentes vacas brancas.

- Então foi assim? - Mordeu vivamente os lábios, mas não pôde impedir as lágrimas. - Agora estamos sabendo a verdade. Oh, seu belo cavalheiro, seu herói, seu aristocrata... Seu miserável Ananias, seria bem feito se fosse derrubado. - Suas cores iam e vinham fez um movimento para engolir, e então, súbita, apaixonada e irrestritamente desatou em soluços. - Nunca mais quero vê-lo, nunca, nunca, enquanto eu viver.

- Isso me serve. Em primeiro lugar, jamais quis vê-la. E pelo que me interessa, você pode ir para Blairhill, ou para a África Ocidental, ou Timbuktu. Aliás, pode ir para o inferno. Passe bem!

Saí do quarto e bati a porta.

 

Fiquei acordado quase toda a noite, pensando no meu futuro incerto. Fazia frio no meu quarto. Através da janela, que eu sempre deixava aberta, ouvia os bondes noturnos estrondeando ao longo da Pardyke Road. O barulho entrava na minha cabeça. Ocasionalmente, das docas, vinha o apito rouco de um navio, entrando no rio com a maré. Não vinha nenhum som do quarto contíguo, nenhum. De costas, com as mãos na nuca, eu roia o osso duro da reflexão. O que Usher não compreendia era a íntima compulsão - chamem-na, se quiserem, de inspiração - que motivava minha pesquisa. Como poderia abandoná-la sem trair minha consciência científica, sem, de fato, vender-me? O desejo de descobrir a verdade sobre aquela epidemia, aquele estranho bacilo, era irresistível. Eu não podia abandoná-la.

Quando chegou a manhã, levantei-me de corpo duro. Quando me vestia, rasguei a suéter de tricô, um velho agasalho que usei durante toda a guerra e do qual eu tanto gostava. Aborrecido, cortei-me ao fazer a barba. Depois de uma xícara de chá, fumei um cigarro; e então saí para a universidade.

Era uma manhã fria e linda, todos pareciam na melhor das disposições. Passei por um grupo de moças com xales na cabeça, rindo e tagarelando, a caminho da lavanderia Gilmore. O charuteiro da esquina estava limpando sua vitrina.

Meu humor era ainda mais ríspido e amargo; contudo, à medida que eu me aproximava dos edifícios da patologia, mais meu nervosismo aumentava; ai de mim! Apresentar-me com desenvoltura era uma façanha acima das minhas forças. Quando entrei no laboratório e vi que todo o grupo estava presente, senti que eu estava pálido. Todos me olhavam. Fui à minha mesa, abri todas as gavetas e comecei a tirar os meus livros e papéis. Nisto, o Professor Usher aproximou-se de mim.

- Limpando o convés para a ação, Shannon? - Sua maneira era ativa, como se a minha submissão fosse coisa subentendida. - Quando estiver pronto, gostarei de discutir nossos planos de trabalho.

Respirei fundo, esforçando-me para manter minha voz segura. – Não posso fazer esse trabalho. Estou deixando o departamento esta manhã.

Completo silêncio. Eu tinha certamente causado uma sensação, contudo isso não me trouxe nenhuma satisfação. Sentia uma ardência nos olhos. Usher estava franzindo a testa de uma maneira provocante. Vi que ele não tinha esperado aquilo.

- Não percebe o que significa, se abandonar sua bolsa de repente?

- Já considerei tudo isso.

- O conselho sem dúvida vai botar uma marca negra embaixo do seu nome. Nunca terá outra oportunidade.

- Terei que achar minha oportunidade.

Por que eu estava resmungando? Eu queria estar calmo e frio, especialmente desde que o aborrecimento perplexo tinha deixado sua face e ele estava me olhando com uma expressão de franca aversão.

- Muito bem, Shannon - disse ele, severamente. - Está agindo com imensa estupidez. Mas, se persiste, não posso detê-lo. Simplesmente, lavo as mãos. O sangue lhe subiu à cabeça.

Encolheu os ombros e, voltando para seu escritório, deixou-me juntando o resto das minhas notas. Quando completei a pilha, levantei-a com ambos os braços, ao mesmo tempo em que lançava um olhar pelo laboratório. Lomax, com o seu costumeiro meio sorriso, examinava as unhas, sentado, ao passo que Smith, de costas para mim, cuidava das gaiolas com aparente indiferença. Somente Spence dava sinais de preocupação e, quando passei por sua mesa, disse-me à meia-voz:

- Se eu puder fazer alguma coisa, diga-me.

Isso, pelo menos, era um ligeiro tributo à minha partida. Acenei para Spence, e então ergui a cabeça, mas, ao sair pelas portas de vaivém, meu edifício de livros desequilibrou-se e, apesar dos meus esforços, caiu espalhando-se pelo corredor externo. Tive que ajoelhar no corredor escuro e apalpar para achar os meus pertences.

Lá fora, com o ar frio batendo no meu rosto quente, senti-me esquisitamente perdido, indo daquele jeito para casa no meio da tarde, uma emoção intensificada, quando quase tropecei num balde de água com sabão no escuro saguão de Rothesay. A casa tinha uma estranha ambiência e um cheiro ainda mais rançoso.

Subi as escadas, lavei as mãos por hábito, sentei-me à minha mesa e fiquei olhando para o papel de parede desbotado. O que ia fazer? Antes que eu pudesse responder a essa pergunta, a Srta. Ailie, trazendo vassoura e espanador, usando um velho roupão e chinelas de ourelo, entrou no meu quarto. Sobressaltou-se ligeiramente à minha presença inesperada.

- Oh! Rob, o que aconteceu? Está doente?

Sacudi a cabeça, enquanto ela me olhava com ansiosa bondade.

- Então, por que não está na universidade?

Hesitei por um momento e depois falei a verdade. - Joguei fora o meu emprego, Srta. Ailie.

Ela não pediu maiores informações, mas me olhou quieta, por longo tempo, com uma bela expressão, que era quase terna. Soprando a mecha de cabelos que lhe caía sobre os olhos azuis esmaecidos, disse:

- Bem, isso não importa, Rob. Você arranjará outro. - Houve uma pausa; então, como se desejasse distrair-me do meu próprio infortúnio, acrescentou: - É assim mesmo. Nunca chove e a água desaba. A Srta. Law deixou-nos esta manhã. De repente. Uma bela pessoa também. Vai voltar a estudar em casa para o seu exame.

Recebi essa informação em silêncio; contudo, sob o olhar inocente da Srta. Ailie, meu rosto, ligeiramente abatido, avermelhou-se culposamente.

- Pare - disse ela. - Isso não servirá de nada.

Sem mais comentários, saiu do quarto, voltando dali a pouco com um copo de leitelho e uma fatia de pão-de-ló. Como ela havia surrupiado essas preciosas coisas da cozinha, sob os olhos vigilantes da irmã, eu não podia imaginar. Sentou-se e, com franca satisfação, ficou olhando para mim, que, não querendo ofendê-la, consumi os alimentos. Comida era o remédio da Srta. Ailie para a maioria dos males, uma crença fácil de compreender naquela casa.

- Isso! - exclamou ela, quando terminei. Não mais do que uma palavra, mas que tesouro de sentimento colocou nela. E que ânimo a sua bondade me infundia!

Agora, a perspectiva não parecia tão má. Lentamente, como o sol sobrenadando um nevoeiro cinzento, uma grave resolução surgia dentro do meu peito perturbado.  Eu continuaria o meu trabalho de modo independente... Sim, de alguma maneira, em alguma parte, sozinho, eu o levaria, com sucesso, até o fim. Por que não? Outros tinham trabalhado com dificuldades quase insuperáveis. Cerrei o punho e dei um murro na mesa... Por Deus, eu o faria. Arranjaria um emprego em alguma parte, agora... Imediatamente... E continuaria.

 

Com a fé em mim mesmo recuperada, saí com suficiente confiança, dirigindo-me para a Northern Informary, que ficava bem perto, na margem esquerda do Eldon, à vista da torre da universidade. Claramente a melhor solução para mim - embora pudesse ser considerada como "um passo para baixo" - era obter uma nomeação como médico num dos grandes hospitais da cidade, onde eu ao menos teria possibilidades definidas, ainda que restritas, para continuar minha pesquisa. E escolhi a Northern, não apenas por sua conveniência e grande reputação, mas porque conhecia o administrador George Cox.

A entrada de um hospital metropolitano tende a ser um lugar confuso, mas com a indiferença da familiaridade fui passando por um exército de porteiros vestidos de branco, atendentes, enfermeiras, através de uma série de corredores azulejados até o escritório do administrador, onde Cox estava sentado diante da sua escrivaninha, e fiquei observando-o por alguns minutos, entre a pilha de papéis que o assoberbavam, assinando rapidamente uma batelada de papeletas de dieta.

- Cox - disse eu, quando ele terminou - eu gostaria de trabalhar aqui.

Devolvendo meu olhar, ele sorriu cordialmente, e depois acendeu um cigarro. Era um homem atarracado, solidamente musculoso, com cerca de 32 anos, de cara  afável, chata e feia, um bigode loiro aparado, e uma pele grossa, áspera e graxenta, cheia de poros aumentados. Era enormemente forte - de fato parecia exsudar uma descuidada vitalidade - e as muitas liberdades que ele tomava consigo, desde fumar um cigarro atrás do outro até, na sua frase, "ir além das pontas", não faziam a menor mossa em sua constituição. Dedicado ao atletismo, tinha, quando estudante, representado a universidade em todos os jogos conhecidos e, aborrecido por cortar uma conexão na qual tinha alegremente quebrado praticamente todos os ossos do corpo, acabara animadamente naquela posição administrativa no hospital de ensino da faculdade. Respondeu-me afinal, com um gracejo pesado:

- O superintendente ainda não está disposto a aposentar-se. Quando ele estiver, eu lhe comunico.

- Não estou brincando - falei, rapidamente. - Quero mesmo trabalhar como médico da casa.

Ele ficou tão surpreso que achou difícil desfazer seu sorriso. - O que aconteceu com sua bolsa?

- Morreu de repente... Esta manhã.

Cox mudou de posição na cadeira, e atirou cuidadosamente o cigarro no chão.

- E uma pena, Shannon. Não temos uma única vaga. Acontece que acabamos de fazer as nomeações para o próximo semestre, e todos os internos parecem infelizmente gozar de boa saúde.

Houve uma pausa, preenchida pelas batidas de uma máquina de escrever atrás da divisória de vidro. Eu podia ver que aquele ótimo sujeito estava mesmo aborrecido, quase inquieto, pelo fato de que uma pessoa com o meu talento tivesse que andar procurando, de um momento para outro, um lugar de estagiário. Contudo, eu sabia que sua resposta era absolutamente honesta.

- Tudo bem, Cox. Vou tentar na Alexandra.

- Isso! - disse ele, sofregamente. - Quer que eu ligue pra lá?

- Obrigado de qualquer maneira - disse eu, levantando-me. - Mas vou lá por mim mesmo.

Fui, de fato, à Alexandra Infirmary. Fui ao Great Eastern, ao King George, ao Royal Free; fiz, aliás, com crescente humilhação, a exaustiva e infrutífera via-sacra de todos os hospitais da cidade. A possibilidade de que meu pedido não fosse aceito nunca me tinha passado pela cabeça. Esquecera-me de que, durante os anos da guerra, diante da emergência nacional, o currículo médico fora tão encurtado e acelerado que centenas de moços e moças tinham sido automaticamente formados, e depois vomitados, de diploma na mão, para a linha de montagem, por assim dizer, do mercado aberto. Como resultado disso, a profissão tinha-se tornado inteiramente superlotada e agora eu era apenas um da multidão.

Este fato se evidenciou de modo ainda mais vivo durante os dias seguintes, quando me apresentei, como um candidato a emprego, na agência médica de Winton. Não havia vagas disponíveis nos hospitais. Eu poderia comprar uma clínica geral por apenas três mil libras. Também podia, se quisesse, obter uma "colocação" por duas semanas numa ilha remota de Syke, mas enquanto eu debatia a conveniência de tal compasso de espera, a oportunidade foi arrebatada, diante do meu nariz, pelo jovem de óculos que estava atrás de mim. No fim da semana eu fora compelido, envergonhadamente, a procurar a Srta. Dearie mais velha no seu escritório, um cubículo embaixo das escadas.

- Sinto muito, Srta. Beth. Não lhe posso pagar esta semana. Estou quebrado.

Ela se armou, na sombra; como uma boa serpente, e fixando em mim um olho de censura e sofrimento, com sua mais piedosa e mais senhoril expressão, disse:

- Eu já tinha adivinhado, Doutor... E não me faltando uma certa experiência... Para meu prejuízo. Naturalmente, nossas regras em tais contingências são estritas. Mas o senhor é um antigo cliente deste estabelecimento. Pode ficar.

Ao deixar o seu santuário, senti, com gratidão, que a Srta. Beth tinha mostrado muita tolerância para comigo. Mas, ai de mim! Não era de sua natureza mostrar por muito tempo essa virtude, e enquanto meus dias decorriam numa procura sem êxito, ela ia aumentando progressivamente o branco dos olhos na mesa, com suspiros lutuosos e martirizados, olhando-me de, quando em quando com uma santa resignação, como se eu estivesse juntando lenha para a sua fogueira, e dirigindo a conversação expressamente para tópicos tão desconcertantes como o custo da luz elétrica e o crescente preço da carne. Notei, também, que minhas porções tendiam progressivamente, quase com precisão matemática, a diminuir. Finalmente, para não me sentir um caloteiro, comecei a ausentar-me da refeição da tarde, recorrendo ao embrulho de pão e queijo que a Srta. Ailie contrabandeava para o meu quarto, a fim de atenuar a fome.

No fim do mês, embora eu evitasse a Srta. Beth tanto quanto possível, senti nos ossos que a crise não estava distante, que dali a pouco, de fato, eu me acharia na rua, fora do Rothesay, sem nenhuma outra acomodação debaixo do céu. Então, num sábado, quando estava no refúgio do meu quarto, fui chamado ao telefone pela Srta. Ailie. Ouvi a voz de Spence na linha:

- Já se arranjou, Shannon? - Enquanto eu hesitava, envergonhado de confessar minha derrota, ele continuou. - Se ainda não, acabo de saber que há uma vaga no Dalnair Cottage Hospital. É um lugar pequeno, para febres infecciosas, e Haines, o médico de lá, está deixando o hospital, um tanto repentinamente. Você se lembra de Haines? Parecia sempre adormecido. Diz que lá não há muito trabalho. Você terá bastante tempo de sobra. Pensei que podia interessar-lhe... Especialmente porque fica no caminho de Levenford... Na sua parte do país.

Quando comecei a pensar, ele desligou. Coloquei o receptor no gancho, pensando em que bom amigo era Spence, na sua maneira sossegada e discreta. Eu não tinha recebido sequer uma palavra de Lomax. Precisava conseguir aquele lugar a qualquer custo, e como Dalnair ficava perto de Levenford, eu sabia instintivamente o que tinha a fazer. Já era tempo de eu mandar para o diabo os últimos vestígios do meu orgulho.

De volta ao meu quarto, com uma batida forte no coração, escrevi uma carta ao único homem com o qual eu sabia que poderia contar. Pedi um selo emprestado à  Srta. Ailie e coloquei a carta na caixa coletora do saguão. Depois, quando o crepúsculo começou a cair, cobri meu microscópio com sua capa de baeta e atravessei o parque até a loja de Hillier, uma casa de penhores que ficava atrás da universidade e que atendia especialmente os estudantes falidos e sem dinheiro. Ali, empenhei meu instrumento por oito libras e 15 xelins. Era um Leitz e provavelmente valia 20 guineis, mas eu não era bom em regatear, e aceitei o dinheiro sem protestar.

Ignorando o empregado de cabelos compridos que estava atrás do balcão, cujo lápis, enfiado numa orelha, intensificava seu ar geral de agudeza, e que, tendo tido muito trabalho para depreciar as qualidades do meu microscópio, estava agora disposto a discursar, agradavelmente, sobre o tempo, coloquei sete libras, quatro semanas de pensão, num envelope para dar à Srta. Beth. Cinco xelins, o preço de uma passagem de ida e volta no trem para Levenford, meti seguramente no bolso do meu colete. Isto me deixava um saldo de 30 xelins. Como a recordação das minhas privações do mês - minhas exíguas refeições, minhas côdeas de pão e cascas de queijo - viesse a mim, resolvi, imprudente e imediatamente, jantar na Rob Roy Tavern, que ficava perto e era um restaurante famoso, freqüentado pelos lentes da universidade, oferecendo uma cozinha nativa da mais alta qualidade.

Então, quando eu vinha do Hillier e, já lambendo os beiços, começava a subir a alameda de trás, pouco mais do que uma trilha inclinada, que serpenteava entre os sicômoros para a elevação na qual se situava a universidade, subitamente discerni uma figura solitária de mulher, descendo vagarosamente a trilha para o terminal do bonde, com um ar peculiar de devaneio e tristeza, e imediatamente reconheci a moça como sendo a Srta. Jean Law, o que me causou uma pontada de desconforto. Como a jovem vinha de cabeça baixa, olhando para o chão, não me viu durante alguns segundos; mas quando estava a 20 passos de distância, como se fosse avisada de uma presença perturbadora por todos os seus instintos, um protoplasma incompatível, ergueu os olhos enuviados, que instantaneamente encontraram os meus.

Ela se sobressaltou, quase tropeçou, e depois continuou seu, caminho, com o rosto, que parecia patético, sujo aqui e ali pelo seu trabalho do dia, e também menor e mais tensa como nunca eu a tinha visto, branca como a farinha do pai. A moça queria desviar o olhar, mas não podia, e seus olhos escuros, compelidos contra sua vontade, permaneceram em mim, assombrados e assustados, quase como se culpados de um pecado, enquanto ela se aproximava. Agora, estávamos um ao lado do outro, e tão próximos que o cheiro de sabonete Windsor me chegava às narinas. O que estava acontecendo comigo? Naquele instante de proximidade, uma súbita palpitação estremeceu-me o peito. Então, ela passou dura por mim, cabeça rígida no ar, e imediatamente ficou fora do meu campo de visão.

Não olhei para trás; contudo, em face daquela figura abatida e solitária, fiquei comovido e abalado mais do que poderia acreditar. Por que eu não tinha falado com ela? Teria sido tão fácil, naquele momento, com dinheiro no bolso, fazer uma reparação delicada e convidá-la para compartilhar do meu jantar. Desconsolado, picado por minha estupidez, por fim voltei. Mas ela já tinha desaparecido, perdida no crepúsculo sereno que rapidamente escurecia os sicômoros em botão. Soltei uma palavra feia.

E então... Não posso explicar minha próxima ação, que lamentei imediatamente depois de praticá-la, nem posso tentar defender o que é tão claramente indefensável; contudo, desde que jurei dizer a verdade, devo lembrar envergonhadamente os fatos.

Ao subir a encosta, pelas ruas estreitas e antigas, atrás da universidade, continuando a dizer de mim cobras e lagartos, cheguei à igreja da Natividade, que nos meus primeiros tempos de estudante eu visitava todos os dias e onde, ainda, apesar da irregularidade da minha vida e dos devastadores conflitos do meu espírito, eu assistia à missa; onde, na verdade, movido por instintos irrevogáveis dos meus ossos, eu vinha às vezes, num ímpeto de ternura, fazer, na obscuridade, um ato de reparação, uma promessa de emenda, um extravasamento do coração do qual eu saía confortado.

Agora, empurrado por um impulso irresistível, quase como quem é garroteado pelas costas, detive-me, de olhos piscos, e entrei apressado, automaticamente, na igrejinha cheia do suave cheiro de incenso, vela de cera e umidade. Lá, na porta, rápido como se cometesse um crime, enfiei as minhas três notas de 10 xelins, durinhas, na caixa de ferro com cadeado marcado com letras cinzentas "SAO VICENTE DE PAULO" e, sem ao menos olhar para o altar, saí furtivamente.

- Pronto! - exclamei sem satisfação para algum santo que estivesse me observando. - Passe sem o seu jantar, seu tolo duma figa.

 

Na tarde seguinte, às duas horas, cheguei a Levenford. As vezes, eu me  prometia uma peregrinação sentimental àquele burgo às margens do Clyde, onde a  fachada cinzenta da academia, o trecho relvoso do Common com o seus pequenos coretos de ferro, o contorno elefantino do "Rochedo do Castelo", visto através das altas chaminés dos estaleiros, com a distante vista de Ben Lomond, parecia impregnado de memórias daqueles verdes anos. Contudo, por um motivo ou outro, eu não tinha achado ocasião para essa satisfação - o tempo havia cortado tantos dos laços que me ligavam à cidade. E agora, ao subir a High Street para o escritório de Duncan McKellar, meus pensamentos fixavam-se na entrevista próxima que tinha solicitado, tomando consciência da insipidez prosaica, e não de alguma qualidade romântica, que me cercava.

A cidade parecia pequena e suja, seus habitantes de aparência deprimentemente ordinária, e o antes imponente escritório do procurador mostrava-se achaparrado do lado oposto a uma prefeitura tristemente apoucada e bastante precisada de uma camada de tinta.

Entretanto, o próprio McKellar pouco tinha mudado, talvez mais algumas veias salientes no nariz, mas ainda bem barbeado e cabelo aparado, olhos secos e penetrantes sob as sobrancelhas cor de areia, modos contidos, deliberados, judiciais. Ele não me fez esperar e, quando me sentei diante da sua ampla mesa de mogno, começou a alisar o seu lábio inferior carnudo e, contra o fundo de um fichário envernizado, a contemplar-me.

- Bem, Robert - falou ele por fim, terminada a sua inspeção, num tom moderado.  - O que é, desta vez?

A pergunta era bastante comum, mas a nota de tranqüila desaprovação com que fora feita levou-me a olhar para ele na defensiva. Desde aqueles dias de antigamente,quando, sem uma palavra, ao passar por mim na rua, metia-me na mão entradas para os Mechanics' Concerts, eu tinha consciência de uma corrente de simpatia, de interesse, fluindo daquele homem para mim. Tinha ficado a meu lado, quando eu era menino, tinha administrado o dinheiro deixado para minha educação, um verdadeiro cão de guarda da probidade, e, como uma espécie de um tutor não oficial, havia me aconselhado e encorajado durante os meus dias de estudante. Mas agora ele estava meneando a cabeça com triste desapontamento.

- Vamos lá. Diga logo, rapaz. O que você quer?

- Nada - respondi. - Se é assim que o senhor pensa.

- Ora, ora... Não seja um moço tolo. Vomite!

Suprimindo meu sentimento de injúria, contei-lhe os fatos da melhor maneira que pude.

- O senhor vê agora como isso é importante. Para continuar essa pesquisa, preciso de um emprego num hospital. Talvez Dalnair não seja um grande lugar, mas me deixaria muito tempo para meu próprio trabalho.

- Você acha que eu carrego nomeações no bolso, como bolinhas de gude?

- Não, mas o senhor é tesoureiro da Junta do Erário do Condado. Tem influência. Pode colocar-me lá.

McKellar estudou-me de novo, com o cenho contraído: então, não podendo mais conter sua irritação, explodiu:

- Olhe só para você, homem. Maltrapilho e sem eira nem beira. Falta um botão no seu paletó, seu colarinho está quebrado, precisa cortar o cabelo. Há um rasgão no seu sapato, também. Digo-lhe, meu jovem, que você é uma desgraça para mim, para você mesmo, e para a profissão médica. Ora bolas, você nem parece um doutor.  Depois de tudo o que fiz por você! Parece um vagabundo.

Sob aquele ataque fulminante, mordi os lábios.

- E o pior - continuou, descambando cada vez mais para o sotaque escocês à medida que sua raiva aumentava - é que tudo é por sua própria culpa, idiota e  perversa. Quando penso na carreira que poderia ter tido, das medalhas, honras e associações, e depois, quando a gente tanto esperou de você... Vem dar nisto. Oh, homem, isso é bastante deplorável.

- Muito bem. - Levantei-me. - Então direi adeus. E muito obrigado.

- Sente-se! - gritou ele.

Houve uma pausa. Sentei-me. Dominou com esforço os seus sentimentos e disse numa voz constrangida:

- Não posso mais arcar com a responsabilidade sozinho, Robert. Solicitei uma reunião com certa pessoa que também está interessada em você, e cujo grande bom senso muito aprecio.

Apertou um botão na mesa e, um minuto depois, a Srta. Glennie, sua fiel servidora, introduziu respeitosamente na sala uma figura imutável como o destino, fatal como o Juízo Final, usando sua histórica capa enfeitada de contas, botinas de elástico e touca de linho com franjas brancas e enfeitadas de crepes. De todos os meus parentes, os que andavam por muito longe, minha bisavó Leckie era agora a única representante em Levenford. Desde que o filho morrera de um ataque do coração pouco depois de ser aposentado do Departamento de Saúde, ela continuava a morar na casa dele, Lomond View, e estava agora com 84 anos, contudo fisicamente ativa e de alerta posse de todas as suas faculdades, inconquistável e indestrutível, último esteio de uma família que se desintegrava.

A velha sentou-se, muito ereta, com uma elegante curvatura para McKellar, que estava meio levantado, e depois se voltou para mim, observando-me, mas sem sinais de reconhecer-me no seu rosto comprido, firme, amarelento e profundamente enrugado. O cabelo, ainda repartido ao meio, parecia um tanto mais ralo do que antes, mas ainda não estava grisalho. A bolsa, que ela tanto prezava, segura na mão com luva, assim como também os pêlos crespos que nasciam de uma verruga no lábio superior. E ainda dava aqueles estalos com os dentes.

- Bem, madame - disse McKellar, abrindo formalmente o inquérito – aqui estamos.

Novamente a velha inclinou a cabeça e, como se estivesse na igreja para deleitar-se com um sermão de excelente severidade, tirou da bolsa uma pastilha de menta imperial e colocou-a austeramente entre os lábios.

- A situação simplesmente é esta - continuou o advogado - Robert Shannon, aqui presente, com tudo a seu favor e as melhores perspectiva do mundo, está sentado diante de nós sem um vintém no bolso.

Diante dessa acusação, que era bem verdadeira, porque, além da minha passagem de volta para Winton, eu tinha em moeda sonante precisamente nada, minha bisavó mais uma vez inclinou a cabeça para a frente rigidamente, a fim de indicar que compreendia minha lamentável situação.

- Ele devia - arrazoou McKellar - ter a sua própria clínica. Há quem possa ajudá-lo, se ele ao menos disser uma palavra. Tem miolos. É um rapaz bonito. Quando quer, tem bastante encanto pessoal. Aqui, em Levenford, podia ganhar as suas mil libras por ano em prata de lei sem a menor dificuldade. Poderia estabelecer-se, casar-se com uma jovem decente e tornar-se um sólido e respeitável membro da comunidade, o que seus amigos sempre desejaram para ele. Mas, em vez disso, o que faz ele? Começa uma busca inútil que nunca botará um centavo para ele no banco. E agora, aqui está, pedindo-me que lhe consiga um lugar num hospital para casos de febre, insignificante e fora de mão, enterrado no ermo, com apenas 120 libras por ano!

- O senhor está esquecendo uma coisa - falei. - Nesse hospital poderei realizar o trabalho que quero realizar, trabalho que me tirará da zona rural, e pelos seus padrões materiais me dará mais consideração do que eu jamais obteria como clínico geral em Levenford.

- Hum! - McKellar despediu meu argumento com um raivoso encolher de ombros. - Tudo isso está no ar. Esse é o problema com você. Não é prático com as palavras.

- Não estou tão certa! - Pela primeira vez, a velha senhora falou, olhando inescrutavelmente para o advogado. - Robert ainda é moço. Está procurando grandes coisas. Se fizermos dele um clínico geral, ele nunca nos perdoará.

Eu mal podia acreditar nessas palavras. McKellar, que claramente contava muito com o seu vigoroso apoio, olhou para ela com uma expressão desanimada.

- Devemos lembrar que Robert sofreu diferentes influências quando menino. Precisa que lhe demos tempo para livrar-se delas. Não acho que seria uma coisa má, se ele tivesse sua oportunidade. Se a levar a bom termo, muito bem. Se não levar... - Fez uma pausa e eu vi o que vinha pela frente. - Ele terá que aceitar nossas condições.

O advogado estava agora olhando curiosamente para minha bisavó, disparando para ela olhadelas compreensivas e peculiares, ao tempo que mordia os lábios e brincava com a pesada régua sobre a mesa.

Aproveitei-me do silêncio.

- Ajudem-me a conseguir esse emprego em Dalnair. Se eu não tiver êxito naquilo que estou procurando, dou-lhes a minha palavra de honra que farei o que me pedirem.

- Hum! - McKellar cantarolava de boca fechada, voltava-se para a direita, ainda consultando a velha senhora por baixo das sobrancelhas com uma expressão mista, na qual predominava, contudo, um relutante respeito.

- Essa me parece uma proposta sensata - observou ela, serenamente, mas com um ligeiro e significativo afrouxamento de suas feições para ele.

- Hum! - fez McKellar outra vez. - Eu acharia... Acharia... Bem - resolveu-se - pois que assim seja. Note bem, Robert, não posso prometer o emprego para você, mas farei o que puder. Conheço Masters muito bem, o presidente da comissão. E se eu o conseguir, espero que você, sem falta, mantenha o seu lado do trato.

Com isso, apertamos as mãos, e após um pouco mais de conversação, saí do seu escritório.

Eu queria ir embora antes que a velha pudesse tomar conta de mim. Mas quando botei o pé na rua, ouvi que ela me seguia de perto.

- Robert.

Tive que voltar-me.

- Não seja tão apressado.

- Tenho que pegar o trem.

Ela não pareceu notar a minha desculpa.

- Dê-me o seu braço. Não sou tão moça como era, Robert. Apertei os dentes. Eu era um bacteriologista de 24 anos que tratava com desprezo os germes mais mortais, que, depois da guerra, tinha adquirido uma dura experiência da vida. Mas, na sua presença, os anos me fugiam e eu era de novo uma criança. Ela me reduzia. Humilhava-me. E eu sabia que, por esse traço possessivo, eu teria que agüentá-la o resto da tarde, que ela extrairia de mim, usando a língua como um chicote, a história completa das minhas andanças.

Assim, de braço dado, solenemente, fizemos a curva da Church Street, ela inclinada para mim, varrendo os últimos restos da minha resistência.

- A primeira coisa que vamos fazer é tirar esse uniforme velho de suas costas. Subiremos até as Co-operative Stores e botaremos você dentro de um terno decente. Depois, em vez dessas chancas velhas, calçaremos um par de sapatos novos nesses seus pés transviados. Ai, ai, homem! Farei de você outra vez a metade de um homem antes que fique uma hora mais velho.

Tremi diante da perspectiva de ser "arranjado", sob os seus olhos de águia, pelas vendedoras das Seções de Calçados e Roupas. Inclinando-se ainda mais, exalando seu potente odor de menta, ela respirou seu bafo quente no meu ouvido:

- Agora me conte tudo, Robert, sobre aquela moça Law.

 

 

 

Fui recebido na estação da aldeia de Dalnair pelo motorista e factótum do hospital, com uma velha ambulância Argyll, com carroçaria de metal amarelo e pintura apagada, mas com os vidros brilhantes, á maneira de carro fúnebre. Ele se apresentou como Peter Pim, colocou minha bolsa a bordo, meio arrastadamente, e, depois de muitas voltas na manivela, o motor pegou. Lá fomos nós pachorrentamente passando por uma confusão de casas desengonçadas, uma lojinha miserável, algumas argileiras e uma olaria abandonada; depois, seguindo um córrego lutando valentemente para purificar as suas águas lodosas, entramos numa zona suburbana enlameada, na qual, todavia, o começo da primavera já tinha estendido um manto verde e novo.

De quando em quando, saltando do duro assento dianteiro, eu lançava olhares furtivos. O perfil inexpressivo do meu conterrâneo, que por baixo do seu boné bicudo dava tamanha impressão de letargia, fazia com que eu hesitasse em abrir a boca. Mas finalmente me aventurei a cumprimentá-lo sobre o estado do seu antigo veículo, o qual, por sua maneira de dirigir, era claramente uma fonte de orgulho para ele.

Peter Pim não respondeu imediatamente; depois, com os olhos fixos lá adiante, na estrada, fez uma espécie de ponderada declaração.

- Eu me interesso por mecânica, senhor.

Se assim fosse, achei que ele podia ser útil para mim, e manifestei a esperança democrática de que poderíamos ser amigos. Novamente ele se comunicou consigo.

- Acho que nos daremos bem, senhor. Farei tudo o que puder. Eu mantinha excelentes relações com o Dr. Haines. Um cavalheiro atencioso e bom, o Dr. Haines, senhor. Fiquei triste vendo-o ir embora.

Um tanto esfriado por esse elogio ao meu predecessor e pela entonação melancólica em que foi feito, voltei ao silêncio até alcançarmos laboriosamente o topo de uma estreita alameda e tomarmos por uma estradinha circular de saibro que dava acesso a um pequeno grupo de bonitas construções de tijolo. Paramos diante da maior delas e, descendo da ambulância, vi uma mulher baixa, morena, de uniforme branco, que achei ser a enfermeira-chefe, parada nos degraus, segurando sua larga touca branca contra o vento e irradiando um sorriso de boas-vindas.

- Dr. Shannon, não é? Encantada em conhecê-lo. Sou a Srta. Trudgeon.

Enquanto Pim se encolhia com uma expressão severa, ela me cumprimentava jovialmente e, quase antes de saber onde eu estava, mostrou-me os meus cômodos: sala de estar, quarto de dormir e banheiro, tudo na ala leste do edifício central. Então, conduzindo-me, cheia de alegria e entusiasmo, levou-me orgulhosamente numa volta por toda a instituição.

Era bem pequena, consistindo de quatro pavilhões separados, espaçados nos cantos de um retângulo, atrás do bloco administrativo, dedicados respectivamente ao tratamento da escarlatina, difteria, sarampo e "infecções diversas". As disposições eram primitivas, mas as enfermarias antiquadas, com os soalhos bem encerados e caminhas imaculadas, brilhavam de limpeza. A maior parte dos poucos pacientes era constituída de crianças, e elas estavam sentadas, de camisolas vermelhas, sorrindo quando passávamos, enquanto o sol da tarde jorrava pelas compridas janelas, fazendo sentir que os meus deveres seriam agradáveis. As enfermeiras também - cada uma dirigia um pavilhão - tinham um ar judicioso, quieto e tranqüilizador. Em suma, a impressão geral daquele pequeno hospital, que, do alto de uma colina varrida pelo vento, comandava uma vista sobre as cidades do vale por ele servidas, era de eficiência e utilidade.

No fundo do terreno, a alguma distância dos quatro pavilhões, havia uma peculiar construção marrom de zinco ondulado, um tanto descuidada, e inteiramente cercada de arbustos.

- Esse era o nosso pavilhão de varíola - explicou a Srta. Trudgeon, com seus olhos miúdos e espertos interpretando meu pensamento. – Como vê, não está sendo usado... Assim não vamos entrar nele. Felizmente, os loureiros novos o escondem. E acrescentou, complacente: - Não tivemos um único caso em cinco anos.

Dali, sempre com aquele ar de justificável orgulho, conduziu-me à sala de recreio das enfermeiras, à cozinha e ao escritório de recepção - todos exibindo o mesmo brilho imaculado - e, finalmente, a uma peça com um comprido balcão de madeira no qual havia instalações para gás e eletricidade e duas pias de porcelana.  Algumas mesas envernizadas e um par de bancos estavam empilhados contra a parede.

- Esta é a nossa sala de testes - observou a enfermeira-chefe. – Não acha ótima?

- Perfeita.

Está claro que eu não disse mais nada. Contudo, vi imediatamente que tinha encontrado o lugar ideal para o meu laboratório. Ao refazermos os nossos passos para a alameda, eu já estava, com o olho da mente, distribuindo o espaço disponível e fazendo meus arranjos.

De volta ao edifício principal, a Srta. Trudgeon insistiu em oferecer-me o chá da tarde na sua própria sala, uma peça de frente, arejada, encantadora, com uma janela em arco, sofá e cadeiras forrados de chintz e um vaso de louça com jacintos sobre o piano, uma sala que, não pude deixar de notar, era a mais bonita de todas as que eu entrara previamente com ela. Quando apertou a campainha, uma moça do campo, de rosto vermelho, de avental e touca engomados, que ela me apresentou como Katie, nossa "criada comum", trouxe um serviço de chá e bandeja com repartições para bolos. Falando durante todo o tempo, a Srta. Trudgeon presidia oficiosamente por trás desse equipamento, oferecendo-me chá da Índia ou da China com um excelente bolo de ameixas que acabava de sair do forno do hospital.

Teria ela uns 50 anos, calculei, e antes de "estabelecer-se" em Dalnair, tinha passado, informou-me, 10 anos em Bengala como enfermeira do Exército, uma estada que sem dúvida tinha dado às suas feições proeminentes o seu distinto tom acobreado, e que  também, talvez, dera à sua voz e maneiras características muito semelhantes às de um sargento-mor. Eu notara particularmente o seu busto saliente e arrogante, e a oscilação lateral das suas curtas mas longe de apoucadas ancas, quando ela me precedia pelos pavilhões. E agora, sua rude cordialidade, a altura do seu riso e seus gestos precisos e decididos pareciam completar a pintura de uma personalidade mais adequada para o quartel do que para a enfermaria.

Contudo, o que mais me impressionava nela era o seu manifesto orgulho pelo hospital, quase um sentimento de propriedade. Novamente, meio troçando, voltou a esse tema dominante.

- Estou contente por o senhor ter aprovado o nosso lugarzinho, Doutor. É um pouco antiquado, sem dúvida, mas tenho tentado compensar isso com algumas artimanhas do Exército. Trabalhei duramente para pôr as coisas no presente estado. Sim, trabalhei de mangas arregaçadas.

Seguiu-se um breve e curioso silêncio, mas dentro em pouco, para meu alívio, ouviu-se uma discreta batida na porta e, em resposta ao "Entre!" da Srta. Trudgeon, o trinco girou sem ruído e apareceu na porta uma enfermeira alta, magra e de cabelos vermelhos. Vendo-me, sobressaltou-se, e seus olhos verdes pálidos, margeados por pestanas cor de palha, procuraram os da Srta. Trudgeon com uma censura humilde que provocou na face bronzeada da matrona um sorriso indulgente.

- Entre, entre, minha querida, não fuja. Doutor, esta é Effie Peek, a enfermeira da noite. Ela geralmente toma chá comigo quando se levanta à tarde. Sente-se, minha querida.

Modestamente, a Enfermeira Peek entrou na sala e, sentando-se numa cadeira baixa, aceitou a xícara que lhe era oferecida.

- Estou muito satisfeita por o senhor ter conhecido a Enfermeira Peek - continuou a Srta. Trudgeon. - Ela é sem dúvida a pessoa mais eficiente do meu grupo.

- Oh! Não. - A pálida enfermeira de cabelos vermelhos recusou o cumprimento com uma tremura da sua indigna carne; então, voltando-se para mim, murmurou: - A chefe é muito bondosa. Mas naturalmente uma palavra dela vale muito. E ela está aqui há tanto tempo, que nós simplesmente não poderíamos passar sem ela. Afinal de contas, nossos médicos vêm e vão. Mas a Chefe permanece.

Tendo assim parafraseado o Brook, de Tennyson, para meu benefício, a branca criatura - até o seu cabelo vermelho era pálido e sua pele alva como a neve - caiu num respeitoso silêncio. Em poucos minutos, como se não ousasse abusar mais do nosso tempo, levantou-se e, com um olhar de corça para a Chefe, esgueirou-se da sala para ir atender os seus deveres noturnos. Levantei-me e, expressando à Srta. Trudgeon o quanto apreciara sua calorosa acolhida, desculpei-me dizendo que precisava desfazer a mala.

- Está certo, Doutor. Devemos tocar para diante juntos. Como diz a Enfermeira Peek, sou antiga aqui. - Pulando em pé, com a cara larga enfeitada de sorrisos, lançou-me, por um momento, um olhar penetrante, e ajuntou, com ênfase jovial: - Creio que o senhor achará que o meu jeito é o melhor.

Com sentimentos curiosamente confusos, descobri o caminho para os meus cômodos, satisfeito com a recepção que tivera, dizendo comigo, ao zanzar pelo quarto, examinando os seus severos mas inadequados móveis com o olho de quem deve viver e tornar-se íntimo daqueles artigos desconhecidos, que, embora talvez um tanto grosseira, a Srta. Trudgeon era uma alma franca em boas condições, mas ao mesmo tempo vagamente perturbadora pelo ímpeto de suas maneiras e por impressões e reações que eu não podia definir precisamente.

 

Nada, absolutamente nada, poderia deprimir meu espírito, nem diminuir minha satisfação com o plano de reiniciar minha pesquisa após aquelas semanas de exasperante atraso.

Conforme eu previra, minhas obrigações oficiais eram agradáveis e nada exigentes. A capacidade real do hospital era pequena, não mais do que 50 pacientes quando inteiramente cheio, e agora, como não havia uma epidemia, nesta temporada particular, tínhamos somente uma dúzia de crianças, todas convalescentes, a maior parte de simples sarampo e, não importa o quanto eu prolongasse minhas visitas pelas enfermarias, estava livre ao meio dia.

A sala de testes era melhor do que eu havia imaginado. Nos armários e gavetas encontrei uma variedade de equipamentos que eu podia converter e usar. O material acumula-se facilmente nos hospitais - pedido num momento de entusiasmo, e depois posto de lado e esquecido. Os meus próprios aparelhos foram logo instalados e, utilizando o meu primeiro mês de salário, resgatei meu microscópio do Hillier. Já tinha iniciado uma ativa correspondência, no papel timbrado do hospital, com diversos médicos nas outras zonas rurais afetadas pela epidemia, e com os espécies que eles bondosamente me enviavam, juntamente com os que tinham sobrado de Dreem, comecei novamente a cultivar o Bacillus C.

Tudo isto, naturalmente, era feito discretamente. Eu desempenhava escrupulosamente os meus deveres profissionais, e agradava assiduamente a enfermeira-chefe com minhas atenções, a qual, durante aqueles primeiros dias, por baixo da sua sorridente cordialidade, estudava-me quase como um pugilista experimentado pode estudar o seu adversário no primeiro round da luta.

Ela era uma mistura estranha. Quando chegou a Dalnair, "nos bons velhos tempos" lamentados por Pim - que logo descobri ser um resmungão profissional - o  hospital tinha sido dirigido frouxamente. Passo a passo, a enfermeira-chefe tinha mudado o sistema, obtido as boas graças da Comissão do Hospital, ficado com toda a autoridade nas mãos. Agora, dirigia o estabelecimento, do sótão ao porão, com firmeza, economia e incansável eficiência.

- Atendo a um sinal dela e corro o dia inteiro - confiou-me Pim com magoada dignidade, enquanto, sentado num balde virado, ocupava toda a manhã em polir a  antiga ambulância. – Acabaram-se todos os meus pequenos atrevimentos. Ora, pode acreditar, doutor, ela até controla o sabonete para o meu banheiro lá fora!

Embora eu tomasse café e jantasse sozinho, era costume que o doutor e a enfermeira-chefe almoçassem juntos. Assim, todos os dias, à uma hora, ela entrava na minha sala para a "boquinha", como dizia. Sentava-se à mesa e enfiava o guardanapo no peito. Gostava da comida, especialmente de pratos temperados e de caril, que apareciam freqüentemente no cardápio, servidos com molho de manga e coco ralado. Enchendo o prato até em cima, misturava os ingredientes inteiramente, depois mergulhava na comida gostosa, usando uma colher - a única maneira de comer caril, disse-me ela - e empurrava os bocados com suco de lima e soda. Orgulhava-se de suas receitas de Bengala, e tinha um repertório de anedotas sobre as suas experiências no Exército e, dentre elas, a sua preferida era uma vívida narrativa sobre como ela e o Dr. Sutler, do Serviço Médico de Bengala, tinham combatido a cólera em Bogra, em 1902.

Apesar dessas repetidas histórias, ela possuía um senso de humor que, embora demasiado ruidoso para meu gosto, evitava que eu, até agora, a detestasse. Ela podia ser um tanto apegada à disciplina, contudo sua risada retumbante era afável, e em algumas ocasiões ela podia ser bondosa. Com as enfermeiras que trabalhavam bem e não a contrariavam. Era, de um modo geral, justa e de bom coração. Durante anos, tinha feito o possível com a comissão - tarefa nada fácil - para melhorar as condições de trabalho e o pagamento inadequado do seu pessoal. Num hospital como Dalnair, sempre havia o sério risco de contrair uma febre infecciosa, e quando uma enfermeira adoecia desse modo, a Srta. Trudgeon, que poderia muito bem ter-lhe dito as últimas uma semana antes, cuidava dela como uma mãe.

Uma de suas predileções era um acentuado gosto pelo jogo de damas; e ocasionalmente, no começo da noite, ela me honrava com um convite para jogar no seu quarto. Ora, o meu bisavô, mestre consumado desse jogo, tinha-me ensinado, quando eu era menino, todos os abismos e diabólicas sutilezas do tabuleiro e, em nossas inúmeras partidas, aprendi com ele esse tipo de esperteza marota que atrai o adversário para sua derrota. Em meu primeiro jogo com a chefe, bastaram-me 30 segundos para descobrir que ela estava longe de ser adversário para mim - na verdade, tive dificuldade  em perder. Perdi contudo, com boa diplomacia, em todas ocasiões, para imensa satisfação dela. Quando me derrotava, atirava-se para trás na sua cadeira, muitíssimo satisfeita, e, zombando da minha incapacidade para vencê-la, tudo ia dar invariavelmente na história da vez em que ela havia jogado contra o Coronel Sutler, durante a epidemia de cólera em Bogra, em 1902.

A provocação era grande, mas, tendo em mente o meu objetivo principal, eu a recebia com louvável paciência. Certa noite, todavia, ela passou da conta e os seus sarcasmos me irritaram.

- Coitado! - zombou ela. - Onde estão os seus miolos? Como, diabo, conseguiu formar-se em medicina? Vou-lhe dar uma lição. Já lhe contei a minha partida com o...

- Até quase a sei de cor - retruquei. - Arrume as peças novamente.

Ela o fez, sacudindo-se de riso. A partida começou e, em cinco lances, passei por uma defesa e comi todas as peças.

- Que sorte! - exclamou ela, mal podendo acreditar no que via. – Vamos jogar outra.

- Com muito prazer.

Desta vez, ela jogou mais cautelosamente, mas não teve a mínima chance. Duas vezes troquei três peças dela por uma das minhas, e em quatro minutos ela estava batida.

Houve um silêncio constrangido. Seu rosto se tornara vermelho escuro. Mas ela ainda não podia acreditar que sua segunda derrota não fosse mais do que um incrível azar.

- Não deixarei o senhor sair daqui assim. Mais uma.

Eu devia, naquele ponto, ter pensado melhor, mas ainda estava ofendido por sua língua cortante. Além do mais, aquelas freqüentes sessões me roubavam um tempo precioso do meu trabalho, e queria acabar com elas. Usando a abertura em dois tempos que o Velho Janota tinha inventado, sacrifiquei quatro peças em rápida sucessão; então, com apenas dois movimentos, tomei todas as que ela tinha no tabuleiro. O sorriso triunfante que começara a aparecer no rosto dela mudou-se num trejeito de raiva, enquanto as veias do pescoço e da testa inchavam. Dobrou o tabuleiro e atirou as peças na caixa.

- Por esta noite chega, doutor. Muito obrigada.

Já arrependido do que tinha feito, ri como quem se desculpa. – É incrível como esses jogos mudam.

- Bastante incrível mesmo. Parece que no senhor há um pouco mais do que se vê.

- Não posso ter sempre tamanha sorte. Estou certo de que a senhora ganhará na próxima vez.

Sua exasperação tirou-a do sério. Levantou-se.

- Por quem o senhor me toma? Acha que sou uma tola completa?

- Oh! Não, de modo nenhum, Chefe.

Ela se controlou com um esforço.

- Então feche a porta quando sair.

De volta a meu quarto, comecei a ver como eu fora estúpido em ofendê-la, e com as mãos enfiadas no bolso fiquei olhando sombriamente pela janela, mais aborrecido comigo do que com ela. Naquele instante, ouvi uma série de rápidos estouros e uma motocicleta vermelha dobrou a alameda e parou diante da porta da minha sala. O motociclista de cabeça descoberta desligou a máquina e tirou os óculos. Reconheci-o muito surpreso. Era Luke Law. Abri a janela.

- Olá, Luke.

- Olá, para você também.

Seu sorriso alegre desfez minha desconfiança, quando ele entrou na sala - pelo simples expediente de pular a janela - tirou as compridas luvas de couro e  apertou-me a mão.

- Trouxe-lhe a moto - falou. E vendo a minha expressão de surpresa, ajuntou: - Não se lembra? Eu disse que ia emprestá-la por uns tempos.

- Mas você não precisa dela?

- Não - respondeu ele, sacudindo a cabeça. - Não pelas próximas semanas, de qualquer maneira. Vou à Tyne Home Bakery, em Newcastle. Aprender como eles cozem a farinha moída em mós de pedra. Papai conhece o gerente.

Eu não tinha esperado aquela bondade e me sentia um tanto embaraçado em aceitá-la, mas Luke afastou meus protestos com o ar mais natural do mundo e, espichando-se numa cadeira, acendeu um dos meus cigarros.

- Este seu amigo não tem licença para fumar - disse ele, sorrindo. - Mas eu gosto de uma fumacinha... E fumo mesmo, quando tenho certeza de que não vão sentir o cheiro. Você não faz idéia do inferno que é a gente ser controlado em tudo.  Quero ser como os outros camaradas. - Soprou a fumaça, rebelde mas  humoristicamente, pelo nariz. – Eu gostaria de ter um trabalho que me empolgasse. Quem é que quer ser um padeiro manual? Farinha de mó! Hum! Vinte anos atrasado. Quero trabalhar com maquinaria, com bicicletas e motores de automóvel, ter a minha pequena fábrica. Sou bom nisto... Posso fazer as coisas funcionarem. Se ao menos eu pudesse modernizar nossa padaria... Pôr batedeiras mecânicas, fornos elétricos...

- Você o fará... Mais tarde.

- Bem - suspirou ele. - Talvez.

Eu podia ver que ele, apesar de sua juventude e boa natureza, estava começando a impacientar-se com as restrições familiares e a exigir o direito à sua própria existência.

Após uma pausa, atirou-me um olhar que, embora não tendo nada de censura, mas ainda assim reprovando, de fato, meio humoristicamente, a loucura e a tolice do sexo feminino, trazia contudo uma certa expressão de perturbada tristeza.

- As coisas andam meio por baixo lá em casa, Robert. É Jean...

Para esconder meus sentimentos, inclinei-me e apanhei um cigarro da caixa. A simples menção daquele nome mexera com meus sentimentos. Luke era tão  absurdamente parecido com ela, com sua expressão franca, seus olhos castanhos, seus cabelos crespos e tez viçosa e morena, que naquele momento eu mal me atrevia a olhar para ele.

- Ela não tem passado bem? - perguntei, cautelosamente.

- Está uma coisa horrível - exclamou ele. - A princípio, estava uma fúria contra os patifes e chantagistas do mundo. Riu-se. - Era você, naturalmente. Depois, aos poucos, caiu num abatimento... E nas últimas duas semanas não faz outra coisa senão chorar. Ela procura esconder, mas é fácil de ver.

- Talvez esteja preocupada com o exame - sugeri. - Não é o exame final neste verão?

- Nenhum exame abateria Jean desse modo. - O rapaz fez uma pausa e acrescentou, num tom confidencial de homem do mundo: - Você sabe tão bem como eu o que é que ela tem. Tome! Ela me deu este bilhete para você.

Depois de remexer no bolso de sua jaqueta de Norfolk, tirou um papel dobrado, que recebi com uma curiosa aceleração do pulso.

"Caro Sr. Shannon, Tendo sabido, por puro acaso, que meu irmão pensa visitá-lo para tratar de um assunto dele, aproveito a oportunidade para escrever-lhe estas poucas linhas.

"O fato é que tenho alguma coisa para lhe dizer, algo inteiramente impessoal e sem importância, e se, por acaso, o senhor estiver em Winton na próxima quarta-feira, será que poderia tomar chá comigo no Grant's, na Botanic Road, por volta das cinco horas? Possivelmente, o senhor já se esqueceu de mim. Nesse caso, isso não importa. Queira desculpar a minha presunção.

"Sou sua como sempre

"JEAN LAW.

P.S. Eu estava caminhando sozinha no High Parks, no sábado passado, e descobri por que não vimos o Gado Branco. Tinha havido uma epidemia no rebanho e muitos haviam morrido. Não é uma pena?

P.P.S. Sei que tenho muitos defeitos, mas ao menos falo a verdade."

Depus o bilhete na mesa e olhei para o rosto ingênuo e inquisidor do jovem Law, imaginando se Jean não tinha planejado tudo aquilo: a visita de Luke, o oferecimento da motocicleta, o convite para o chá na semana vindoura com tranqüila mas definitiva intenção. Já esquecido de minhas apreensões, correntes de euforia picavam-me a pele.

- Você vai? - perguntou Luke.

- Acho que sim - respondi, numa voz que, apesar das pancadas do meu coração, procurei tornar comum e madura.

- As mulheres são uma chatura, não são? - disse Luke, com súbita simpatia.

Ri, e com o espírito muito animado, insisti em que ele ficasse para jantar. Fizemos uma boa refeição juntos, seguida por café e cigarros, durante os quais,  como seres superiores, afrouxamos os nossos colarinhos e discutimos sobre motos rápidas, modelos de aviões, a confraria dos homens, batedeiras elétricas e a  incompreensível perversidade do sexo oposto.

 

Winton era uma cidade bastante tristonha, cinzenta, sob um pálio de fumaça, cercada de chaminés fumegantes, muito molhada, oprimida por uma arquitetura monumental e alguma estatuária medonha; mas sua glória, se glória pudesse pretender, estava nos seus salões de chá. Eles animavam as ruas monótonas, dezenas deles, pequenos oásis de repouso e recreio, onde, tendo atravessado o recinto dos bolos e doces, os cidadãos de Winton - funcionários, datilógrafos, vendedoras de lojas, estudantes, todo o tipo de comerciantes e homens de negócio - se reuniam a toda a hora do dia em torno das mesas cobertas por toalhas brancas e abarrotadas de biscoitos, pães, bolinhos e copiosa pastelaria, e iam procurar conforto numa xícara de chá ou café.

Desses estabelecimentos, um dos mais freqüentados pelos estudantes e professores da universidade era o Grant's, onde, além de; uma famosa marca de pães de creme, podia-se gozar um seleto ambiente de "tom" dado por um interior forrado de carvalho escuro, com pinturas a óleo de um membro da Academia Escocesa, entremeado de punhais da Escócia cruzados e antigas espadas escocesas de dois gumes nas paredes apaineladas.

Na quarta-feira seguinte, com um misto curioso de afoiteza e apreensão, cheguei ao Grant's. Tinha resolvido tirar toda a tarde para uma folga, pois havia algo ligado ao meu trabalho que eu queria ultimar. Cheguei cedo ao encontro, mas mesmo assim a Srta. Law chegara mais cedo ainda. Quando entrei no café apinhado, cheio do zumbido da conversação e do tilintar das colheres de chá, uma pequena figura soergueu-se no fundo, embaixo da mais tremenda das espadas  bigúmeas e, com um gesto nervoso, acenou para uma mesa que, diante de considerável oposição, estava bravamente guardando para nós. De outro modo, não me cumprimentou, e eu abri caminho e sentei-me silenciosamente diante dela; observei que, contrastando com aqueles dias tranqüilos do "frio" na cabeça e a suéter, ela estava vestida com certa severidade num costume cinza escuro e um elegante chapéu preto. Também estava pálida, extremamente pálida. Positivamente mais magra e, embora procurasse escondê-lo, dolorosamente agitada.

Houve uma pausa constrangida, enquanto, pelo processo de curvar o indicador e mantê-lo no ar, ela por fim venceu a dificuldade de atrair uma garçonete.

- Limão ou creme?

Essas foram as suas primeiras palavras, e fez a pergunta em voz baixa sem se atrever a olhar-me, enquanto a garçonete esperava impaciente, de lápis em punho. Pedi chá com limão.

- E gostaria de uns bolinhos de creme?

Concordei com os bolinhos, acrescentando: - Sem dúvida. Eu é que peço.

- Não - disse ela com os lábios trêmulos, mas com o queixo firme – fui eu quem o convidou.

Ficamos sentados em silêncio até que a moça nos serviu, e então, também em silêncio, começamos a tomar o chá.

- Está cheio aqui, não? - aventurei-me por fim.

- Está, sim. - Uma pausa. - Muito popular. E merecidamente.

- Claro. E estes bolinhos de creme são deliciosos.

- São mesmo? Que bom.

- Não quer um?

- Não, muito obrigada. Não tenho grande apetite.

- Senti muito o que aconteceu ao seu Gado Branco.

- Sim, coitados... Foi uma pena.

Outra pausa.

- Verão um tanto molhado até agora, não acha?

- Muito molhado. Não sei qual é o tempo que vai fazer.

Uma pausa ainda maior. Depois, nervosa com um gole de chá - e notei que sua mão tremia ao depor a xícara - voltou-se para mim com um olhar de séria intenção.

- Sr. Shannon - exclamou ela, engolindo e de um só fôlego. – Estive pensando se, afinal, não poderíamos ser amigos outra vez.

Enquanto eu a fitava, desconcertado, ela continuou, com as cores do rosto indo e vindo, a voz falhando ocasionalmente, enquanto se esforçava por manter-se calma e razoável.

- Quando eu digo amigos, quero dizer amigos... Nem mais, nem menos. A amizade é uma coisa maravilhosa. E raramente se encontra. A verdadeira amizade, quero dizer. Naturalmente, o senhor pode achar que não deseja ser meu amigo. Eu não sou ninguém. E admito que fui estúpida em levar as coisas tão a peito e brigar com o senhor. Mas agora vejo que o senhor estava apenas troçando, e que eu me portei como uma criança. Afinal de contas, somos pessoas adultas e práticas, não é? Pertencemos a religiões diferentes, mas, embora isso seja uma coisa séria, não é um crime, pelo menos não impede que às vezes tomemos juntos uma xícara de chá. Seria uma grande pena se deixássemos de ser amigos, simplesmente por nada... E nos apartássemos... Como navios que cruzam de noite... Quero dizer, se nunca mais nos tornássemos a ver... Quando, se fôssemos sensatos, poderíamos encontrar-nos freqüentemente, isto é, de vez em quando, como amigos...

Interrompeu-se, brincando com a colherinha, com um vivo vermelhão nas faces, com os olhos castanhos um tanto assustados, mas resolutamente enfrentando os meus.

- Bem - falei, dubiamente. - É um pouco difícil, não? Tenho o meu trabalho. E você está estudando muito para o seu exame.

- Sim, eu sei que o senhor está ocupado. E suponho que eu também tenha que estar. - Havia uma estranha falta de entusiasmo na voz daquela antes sôfrega estudante de patologia, e ela acrescentou rapidamente, como se pedindo um tratamento racional de toda a questão da aquisição de conhecimentos. - Temos que parar um pouco de vez em quando. Quero dizer, é impossível estudar todo o tempo.

Houve um silêncio. Como se estivesse consciente das suas faces afogueadas, finalmente baixou os olhos e recostou-se na cadeira, para esconder-se da curiosidade da sala de chá. Olhando-a furtivamente, fiquei pasmado por tê-la tratado com desdém. O seu enrubescimento, os cílios baixos davam-lhe um ar sensível, sim, perfeitamente angélico. Nada, nem as suas elegantes luvas de pelica preta, nem o antiquado relógio redondo de ouro que usava num pulso, nem mesmo o seu duro chapeuzinho, poderia estragar o vivo encanto daquela criatura.

E de repente, para minha surpresa, senti no peito uma onda de ternura, e ouvi-me dizer com uma decisão lógica:

- Não há nenhuma lei contra isso, suponho. Atrevo-me a dizer que bem nos poderíamos encontrar de quando em vez.

Seu rosto iluminou-se. A moça inclinou-se para diante com um sorriso trêmulo e feliz e, num tom que rendia um alto tributo à minha superior sabedoria, exclamou:

- Estou tão contente... Quero dizer, essa é uma maneira muito sensata de considerar as coisas...

- Ótimo. - Recebi sua lisonja com uma generosa inclinação de cabeça e, impelido por algum impulso incompreensível, mirei seus olhos brilhantes. - O que vai fazer esta noite?

Uma imperceptível rijeza do corpo recebeu aquela pergunta inesperada.

- Bem... Vou ver as Srtas. Dearie... Elas foram tão bondosas comigo, o senhor sabe. E depois vou tomar o trem das seis e meia para Blairhill.

O estímulo da imprudência aumentou mais em mim. Perguntei friamente:

- Por que não vem ao teatro comigo?

Ela sobressaltou-se, perceptivelmente, e a ligeira expressão de medo voltou a seus olhos, aumentando quando continuei:

- Tenho um assunto a tratar que levará mais ou menos uma hora. Vamos encontrar-nos no Theatre Royal às sete. Hoje é The Only Way, com Martin Harvey. Deve gostar disso.

Ela continuava a olhar-me em transido silêncio como se meu convite tivesse exposto para ela todos os secretos horrores e perigos do mundo. Engoliu em seco.

- Sr. Shannon, acho que não me entende. Eu nunca fui ao teatro em minha vida.

- Deus do céu! - Embora eu devesse estar preparado para aquilo, mal podia creditar nos meus ouvidos. - Mas por que, diabo, não?

- Bem, o senhor sabe como são rigorosos lá em casa.

Baixando o olhar, começou a desenhar com o dedo sobre a toalha.

- Os Irmãos não admitem jogo de cartas, danças ou ir ao teatro. Está claro que papai não nos proíbe expressamente... Mas parece que nós nunca pensamos nisso.

Estudei-a, pasmado.

- Então já é mais do que tempo de pensar agora. Ora - falei com largueza - o teatro é uma das maiores influências culturais do mundo. Veja bem, eu não gosto muito de The Only Way. Mas, para começar, serve.

Ela ficou calada, continuando a fazer os desenhos na toalha da mesa com triste e cruel indecisão. Então, lentamente, quando a sua fibra puritana se recusou a ceder, ergueu a cabeça e balbuciou:

- Acho que não posso ir, Sr. Shannon.

- Mas por quê?

Ela não respondeu, mas seu olhar úmido estava profundamente magoado. Na balança, pesando contra sua natural inclinação, tão vívida e ardente, estavam todos os tristes e sombrios ensinamentos da sua infância, aquelas austeras advertências contra o mundo, aquelas apocalípticas profecias do Juízo Final.

- Bem - exclamei - se isso não é o cúmulo, então não sei mais nada! Você gastou a metade da tarde para me convencer que devemos passar algum tempo juntos. E quando eu a convido para ir comigo a um divertimento, perfeitamente inocente, aliás uma representação clássica baseada numa novela famosa de Charles Dickens, você se recusa terminantemente a ir.

- Oh, Dickens - murmurou ela debilmente, como se um tanto tranqüilizada. - Charles Dickens. Ele foi um escritor notável.

Mas no meu ressentimento eu já tinha abotoado o paletó e estava olhando em torno para chamar a garçonete e pedir a conta.

- Muito bem - sussurrou ela, inerme. - Eu vou.

A despeito da súplica do seu olhar, eu não a perdoei imediatamente, não antes de eu ter pago a conta - uma ação que agora ela não se atrevia a disputar - e  acompanhá-la até a rua. Lá, voltei-me e, ao nos despedir-mos, dirigi-me a ela num tom amigo mas de advertência:

- Às sete horas no teatro. Não vá chegar atrasada.

- Não, Sr. Shannon - murmurou ela, submissa e, com último olhar trêmulo, voltou-se e foi embora.

Depois de ficar um pouco parado, caminhei para o Departamento de Patologia, onde, uma vez que eu lhe tinha escrito antes, esperava encontrar Spence me aguardando.

Eram seis e quinze quando cheguei ao edifício e, como a última coisa que desejava era topar com Usher ou Smith, andei pelos corredores, cuidadosamente, antes de entrar no laboratório. Lá, conforme eu esperava, Spence estava sozinho, curvado sobre sua mesa em atento estudo.

Como minha entrada foi silenciosa, eu já estava a seu lado, quando ele notou minha presença. Então vi que ele não estava estudando, mas examinando atentamente uma fotografia.

- É você Robert! - Olhou para mim, com os olhos um tanto pesados. - Senti sua falta. Como vai indo em Dalnair?

- Muito bem! - respondi, alegremente. - Estou engabelando, a enfermeira-chefe. Mas já cultivei os meus bacilos outra vez... Uma cepa pura.

- Bom trabalho. Identificou-o?

- Não, mas vou. Estou trabalhando nisso agora.

Spence acenou afirmativamente com a cabeça.

- Eu também gostaria de sair daqui, Robert. Se ao menos pudesse arranjar uma cadeira de professor em uma das escolas menores... Aberdeen ou St. Andrews.

- Arranjará - disse eu, encorajando-o.

- Sim. - O seu tom era curiosamente reflexivo. - Sim, mourejei duramente nestes últimos quatro anos... Por causa de Muriel. Ela gostaria de St. Andrews.

- Como esta Lomax? - perguntei.

Spence lançou-me um olhar inexpressivo. Houve uma pausa perceptível.

- Bonito e atrevido como sempre. Muito satisfeito com a vida... E com ele.

- Faz muito tempo que não o vejo.

- Ultimamente, ele parece que anda muito ocupado. Bem, é bom saber que você está tocando para a frente. Recebi sua carta. Posso lhe dar todo o meio de cultura de glicerina que quiser.

- Obrigado, Spence. Eu sabia que podia contar com você. Ele fez um gesto de pretensa censura. Seguiu-se um silêncio esquisito. Sem jeito, desviei o olhar, que foi dar na fotografia diante dele. Seus olhos seguiram os meus.

- Olhe bem - disse ele, e entregando-me a foto.

Era a de um rosto agradável de um moço de feições bem talhadas e um ar limpo e vigoroso.

- Bonitão! Quem é? perguntei.

Ele começou a rir, um som estranho, porque embora ele sorrisse muitas vezes, na sua maneira torcida, eu raramente o ouvira rir.

- Você não vai acreditar - disse ele. - Sou eu.

Soltei um murmúrio inarticulado. Não sabia o que dizer. Olhei para ele desconfortavelmente. Spence estava muito diferente do seu jeito usual, tranqüilo e afável.

- Sim, eu era assim quando tinha 18 anos. Extraordinário como um rosto é importante... Não quero dizer um rosto bem-parecido... Apenas um rosto comum, mesmo feio. Você sabe, o que se lê nos romances. "Seu rosto era de uma fealdade encantadora". Mas você não pode romancear a metade de um rosto. Impossível. O Coliseu é um grande espetáculo. Mas somente ao luar e durante meia hora. Quem quer olhar para o diabo de uma ruína durante todo o tempo? Aliás, se me perguntar, Shannon, eu lhe direi que ela acabaria irritando os seus nervos.

Não, eu jamais tinha visto Spence naquele destroçado, naquele mórbido estado de espírito. Seu ar quieto e reservado fazia a gente esquecer que ele devia sempre exercer sobre si mesmo uma rígida disciplina contra a autopiedade. Tocado, vagamente inquieto, fiquei pensando se deveria falar. Mas naquele momento, quando ele parecia quase a ponto de desabar, recuperou-se de repente, pôs-se em pé e dirigiu-se para as prateleiras do depósito.

- Venha comigo - disse ele, vivamente. - Vamos embrulhar a sua encomenda.

Acompanhei-o, vagarosamente.

Juntos, escolhemos uma dúzia de frascos de meio litro do meio de cultura, que empacotamos com palha e colocamos num cesto de vime forte. Depois me retirei, agradecendo mais uma vez, calorosamente, a Spence.

Fiquei aliviado em ver que o rapaz parecia quase ele mesmo outra vez. Aquele seu esquisito desabafo me causara um forte abalo.

 

Ao pé da colina, tomei o bonde vermelho para a Estação Central, e no depósito de bagagem da esquerda guardei meu cesto. Então entrei no café da Estação e fortifiquei-me apressadamente com uma salsicha fria e um copo de cerveja. Eu começava a ter meus receios com a noite, e a pensar se a sensível consciência da Srta. Law não seria uma barreira intransponível para o nosso divertimento.

Todavia, quando a encontrei no teatro, ela tinha jogado fora todos os seus escrúpulos, sua expressão era ansiosa e atenta, os íris escuros cintilavam de excitação.

Nossos lugares embora não dispendiosos, eram razoavelmente bons, duas poltronas na terceira fila da platéia, e, ao ocupá-las, a orquestra começava a afinar. Minha companheira lançou-me um olhar de comunicativo ardor e mergulhou no programa que eu lhe entregara. Depois, como se quisesse livrar-se de todo empecilho, tirou seu relógio do pulso e me deu.

- Por favor, guarde bem isto para mim. Está frouxo. E me preocupou toda a tarde.

Dentro em pouco, as luzes se apagaram; então, após uma breve abertura, o pano subiu sobre um cenário de Paris do século XVIII, e o tremendo melodrama da Revolução Francesa começou lentamente a desdobrar os seus temas entrelaçados de amor sem esperança e heróico sacrifício.

Aquele era o eterno drama do Um Conto de Duas Cidades, que, com seu soberbo talento de ator, Martin Harvey, entregando-se nobremente ao sacrifício noite após noite e nas matinês de quarta feira, vinha arrebanhando as platéias provincianas, há pelo menos uma vintena de anos.

A princípio, minha companheira parecia, circunspectamente, guardar sua opinião; então, aos poucos, foi-se endireitando na poltrona, com os olhos brilhando de interesse e deleite. Sem afastar o olhar do palco, cochichou para mim numa voz humana:

- Que linda cena!

Então rendeu-se do fascínio pálido e sombrio de Sydney Carton e ao encanto frágil de sílfide de Lucie Manette.

No primeiro intervalo, relaxou lentamente, com um suspiro e, abanando as faces afogueadas com o programa, baixou para mim um olhar agradecido.

- É esplêndido, Sr. Shannon. Tão diferente do que eu esperava. Não lhe posso dizer o imenso prazer que sinto.

- Gostaria de um sorvete?

- Oh, não! Eu não poderia sequer sonhar com isso. Depois do que vimos, seria um sacrilégio.

- Naturalmente, não é uma peça de primeira categoria.

- Oh, é sim! - insistiu ela. - É linda. Senti pena do pobre Sydney Carton. Ele ama tanto Lucie e ela... Oh! Deve ser uma coisa medonha, Sr. Shannon, estar terrivelmente apaixonado por uma pessoa e não ser amado por ela.

- É, sim - concordei, grave: - Naturalmente, eles são muito bons amigos. E amizade é uma coisa maravilhosa.

Ela consultou o programa para esconder o rubor.

- Gosto de todos - disse ela. - A moça que faz o papel de Lucie é muito meiga, tem uns cabelos loiros e compridos muito lindos. Srta. N. de Silva é o seu nome.

- Ela - respondi - na vida real é a esposa de Martin Harvey.

- Não! - exclamou a jovem, erguendo os olhos com animação. – Que interessante!

- Tem provavelmente 45 anos. E aquele cabelo loiro é uma peruca.

- Ah, não diga isso, Sr. Shannon! - exclamou ela, numa voz chocada. - Como pode brincar com tais coisas? Estou gostando de cada minuto. Psiu! O pano vai  subir.

O segundo ato começou com luzes verdes e uma música suave e triste. E cada vez mais, as sensíveis feições da minha companheira refletiam as emoções despertadas no seu peito. No intervalo, profundamente comovida, mal disse uma palavra. Mas, à medida que o último ato prosseguia e ela ficava cada vez mais enlevada, ocorreu um estranho fenômeno, como, eu não podia adivinhar, mas sua pequena mão úmida ficou entrelaçada na minha. Tão estimulante era a corrente de calor do seu sangue que não interrompi o contato. E assim ficamos, com os dedos entrelaçados, ligados como para manter um ao outro, enquanto o drama do auto-sacrifício de Carton ia chegando a seu doloroso fim. Quando o nobre sujeito fez o supremo sacrifício, subindo firmemente para a guilhotina, com o rosto pálido e cachos cuidadosamente penteados, seu olhar falando comovedoramente para a galeria e a platéia, senti um tremor convulsivo percorrer o corpo da minha companheira, que estava muito próximo do meu; então, uma a uma, como pingos de chuva da primavera, suas ternas e quentes lágrimas caíram sobre as costas da minha mão.

Afinal, a peça terminou com a casa aplaudindo estrondosamente, e muitos chamados à cena da Srta. De Silva e Martin Harvey – agora parecendo, de fato, bonito e feliz na sua camisa de seda e botas envernizadas, maravilhosamente ressuscitado do túmulo. A Srta. Jean Law, todavia, estava demasiado comovida para reunir-se àquele aplauso tão banal. Silenciosamente, como que esmagada por sentimentos demasiado profundos para serem expressos em palavras, levantou-se e acompanhou-me para fora do teatro.

- Oh, Robert! Robert! - sussurrou ela com os olhos marejados. – Você não pode acreditar no imenso prazer que senti.

Era a primeira vez que ela me tratava por você.

Andamos até a Estação Central em silêncio, e como o seu trem, o último do dia, só partia dentro de 15 minutos, ficamos juntos um tanto acanhados embaixo do relógio da livraria.

De repente, como se acordasse de um sonho, Jean teve um pequeno sobressalto.

- Meu relógio - exclamou ela. - Eu quase ia esquecendo.

- De fato. - Sorri. - Eu também tinha quase esquecido. Apalpei os bolsos do meu paletó procurando o relógio, por dentro e por fora. Depois, com crescente consternação comecei a procurar nos bolsos do colete.

- Deus do céu! - murmurei. - Não posso achá-lo.

- Mas você deve tê-lo. - Sua voz soava rígida e esquisita. Eu lhe dei para guardar.

- Sei que deu. Mas sou um idiota distraído. Perco tudo.

Eu agora estava examinando, vamente e um tanto desesperado, os bolsos da calça, quando, por acaso, levantei os olhos e vi a expressão do rosto da Srta. Jean, a expressão de uma mocinha pura que descobre, afinal, que está realmente tratando com um patife, um chantagista,e foi por ele enganada, lograda e desiludida, uma tal expressão de mágoa, dúvida e consternação que interrompi, desalentado, as minhas apalpadelas fúteis.

- O que é?

- O relógio não é meu. - Seus lábios estavam mortalmente brancos e a voz mais débil do que nunca. - É o relógio de minha mãe, presente de papai. Eu o pedi emprestado, por vaidade, para impressionar você. Ó, meu Deus! - A inestancável fonte dos seus olhos transbordou de novo. - Depois desta noite adorável... Quando eu estava confiando... E gostando de você...

- Com mil diabos! - gritei. - Você pensa que eu roubei aquela porcaria?

A guisa de resposta, ela se desesperou de todo. E então, ao abrir a bolsa para tirar seu lenço ensopado, um súbito fulgor de ouro iluminou a obscuridade dos arcos da estação. Antes mesmo da sua surpresa, lembrei-me de que, quando ela estava arrebatada por uma cena da peça, receando que eu pudesse perder aquilo, meti-o seguramente em sua bolsa.

- Oh! - fez ela, petrificada. - Oh, Meu Deus! Meu Deus do céu! – Olhou para mim contritamente horrorizada e gaguejou: Como é... Que eu... Posso pedir desculpas... Por duvidar de você?

Silêncio de pedra de minha parte. Atrás de nós, soou o apito agudo de um guarda, seguido pelo ranger da locomotiva.

- Robert! - exclamou ela fora de si. - O que posso dizer... Oh, meu querido, o que faço?

Olhei para ela friamente. Novamente a locomotiva rangeu.

- A menos que queira passar a noite nas calçadas de Winton, aconselho-a a pegar seu trem.

Freneticamente, ela olhava de mim para a plataforma, onde o trem, com lentas e brilhantes baforadas, começava a mover-se. Hesitou por um instante, e então, com um pequeno gemido, voltou-se e correu.

Quando vi que ela estava seguramente a bordo, dei volta, apanhei meu cesto e, minutos depois, tomei o último trem para Dalnair, não de todo insatisfeito comigo. Que eu tinha sido um tanto impostor, sabia-o perfeitamente; mas, de certo modo, como Sydney Carton, tinha adquirido uma auréola, ao menos por enquanto, e isso me dava um agradável conforto.

 

Cheguei ao hospital pouco depois da meia-noite e, para minha surpresa, observei que a luz ainda estava acesa na janela da Srta., Trudgeon. Como a lousa do corredor indicava que não tinha havido novas admissões de pacientes, fechei a porta, pensando retirar-me em seguida. Mas nem bem eu tinha entrado nos meus cômodos, ouvi, no corredor, aquela voz blandiciosa que pertencia somente à Enfermeira Peek.

- Doutor... Dr. Shannon.

Abri a minha porta.

- Doutor - disse ela com seu sorriso submisso de olhos baixos – a Chefe quer vê-lo.

- Como?

- Sim, imediatamente, doutor, no escritório dela.

Aquele chamado peremptório, comunicado em segunda mão, a em tais horas, pareceu-me uma impertinência. Por um instante, ansioso por preservar a paz, pensei em atender. Depois, achei que era um desaforo.

- Dê-lhe os meus cumprimentos. Se quer falar comigo, ela sabe onde encontrar-me.

A Enfermeira Peek revirou, desalentada, o branco dos olhos; contudo, pela maneira como desapareceu, pude ver que ela não sentia agir como intermediária em causar um desentendimento entre mim e a Chefe. Devia mesmo ter dado o recado com considerável empressement, porque, um minuto depois, a Srta. Trudgeon me atropelava, usando seu uniforme escuro mas sem a touca, punhos e gola. Despida desses aformoseamentos de linho branco, seu rosto parecia mais amarelo do que nunca.

- Dr. Shannon. Na minha inspeção mensal, hoje, fui à sala de testes. Encontrei-a na mais horrível desordem, atravancada com toda a espécie de lixo... Suja, revirada e desfeita.

- E daí?

- Foi coisa sua?

- Foi.

- O senhor não tem direito de fazer tal coisa, nenhum direito mesmo. Primeiro, devia ter-me pedido.

- Por quê?

- Porque devia. É meu departamento.

- Todo o hospital não é o seu departamento? - Eu começava a perder a calma. - A senhora quer dirigir tudo. Só fica satisfeita quando todos se curvam e lhe lambem os pés. Aliás, a senhora trata este lugar como se fosse sua propriedade particular. Pois bem, não é. Tenho meus direitos, tanto quanto a senhora.  Acontece que estou realizando agora um importante trabalho científico. Foi por isso que ocupei a sala de testes.

- Então queira ter a bondade de devolvê-la.

- Está sugerindo que eu pare o meu trabalhado?

- Para mim é indiferente o que o senhor esteja fazendo, desde que se desincumba dos seus deveres. Mas quero a minha sala de testes de volta, limpa e em ordem outra vez.

- Por quê? A sala nunca foi usada.

Ela soltou um risinho.

- Aí é que o senhor se engana. É usada nesta época todos os anos. Para as aulas das minhas enfermeiras. Não notou as mesinhas? A sessão começa no sábado.

- A senhora pode usar outra sala - protestei, sentindo que o chão parecia fugir dos meus pés.

Ela sacudiu a cabeça, terminantemente.

- Não há outra sala com acomodações apropriadas. Só a do isolamento. E essa é muito úmida e pobre. Além das enfermeiras, eu não gostaria que o senhor também ficasse mal acomodado, doutor. Porque - lançou a farpa final com um humor ácido - quem dá essas aulas é o senhor.

Estrategicamente vencido - aliás, completamente encurralado – fiquei reduzido a olhar para ela num silêncio impotente. O brilho de um divertimento escarninho nos seus olhos, quando ela caminhou para a porta, mostrou-me sua satisfação em ter igualado o placar entre nós e me colocado em meu lugar.

Fui para a cama ás voltas com aquela nova dificuldade no pensamento.

Amadurecida por uma vida de choques e ameaças, endurecida por intermináveis brigas com serventes, comerciantes, enfermeiras e auxiliares, navegando para a frente, vitoriosamente,  com uma sangrenta esteira de médicos, ela era um osso duro de roer. Por muito que me ralasse, não me restava outra coisa, no presente, senão uma retirada estratégica.

No almoço do dia seguinte, após um período de silêncio, anunciei-lhe formalmente que sairia da sala de testes. Em recompensa pela minha capitulação, ela me lançou um sorriso desagradável.

- Achei que o senhor reconheceria a razão, doutor. Pode alcançar-me o molho de manga, por obséquio? Agora me lembro que quando eu estava em Bogra...

Tive vontade de quebrar-lhe o vidro de molho na cabeça. Em vez disso, passei-o com um sorriso igualmente sem graça. Uma hora mais tarde, às duas e meia, desci casualmente até o antigo pavilhão de isolamento para variolosos, e então me escondi rápido sob a proteção dos arbustos que o tapavam. A Srta. Trudgeon atarefava-se na rouparia; contudo, eu queria ser mais cuidadoso.

O pavilhão de isolamento estava uma ruína - nenhuma outra palavra é possível - e só pude entrar abrindo um buraco numa folha de zinco ondulado que estava enferrujada. Fechado, às escuras, frio como um túmulo, e inteiramente vazio de outra coisa que não poeira e teias de aranha, evidentemente há anos que não era aberto. Acendendo fósforos, que queimavam meus dedos, examinei a ruína abandonada. Havia um buraco nas pranchas de onde a estufa fora arrancada. Uma pia de esmalte amarela, rachada e corroída, jazia no chão. Até a água tinha sido cortada, e a torneira estava quase consumida pela ferrugem.

Desconsolado, deixei o local; encontrando Pim na garagem, expliquei-lhe a minha situação.

- Vou me mudar para o velho pavilhão da varíola. Ele riu, incrédulo.

- Aquilo lá? Não presta para nada.

- Poderíamos recondicioná-lo.

- Nunca.

Continuou a teimar que era impossível; quando lhe meti 10 xelins na palma da mão, ele finalmente concordou, embora de mau grado, com o meu plano.

Na mesma tarde, ao lusco-fusco, mudamos toda a minha tralha da sala de provas para o pavilhão abandonado. Então Pim, resmungando todo o tempo, começou a repor o lugar numa ordem primitiva, instalando uma nova torneira para mim, ligando os fios elétricos cortados, restaurando a parte mais apodrecida do madeirame. Sujos e cansados, paramos às 10 horas da noite porque ele tinha que ir apanhar uma das enfermeiras na estação.

Levamos mais duas noites para completar o trabalho, e o resultado não era coisa que se visse. Contudo, era o meu lugar particular, ventoso e frio, mas com uma banca sólida, água, eletricidade, quatro paredes e um teto. A Enfermeira Cameron, que era a encarregada da enfermaria de escarlatina, tinha feito para mim, com camisolas velhas, três cortinas que, montadas por trás dos postigos, não deixava passar a menor luz. Uma nova fechadura, colocada na porta, dava-me o direito exclusivo de entrar e sair. E estendendo um fio invisível da campainha da porta dos meus cômodos, Pim tinha instalado um indicador que me avisava quando eu era procurado. Em suma, eu tinha um laboratório secreto, uma fortaleza, um arsenal de pesquisa do qual ninguém poderia enxotar-me. Todas as tardes, depois da minha visita final às enfermarias, eu fazia uma volta pelos arbustos e, na escuridão que caía, enfiava-me pelos espessos arbustos de loureiros e ganhava o santuário do pavilhão. Às nove horas, eu estava trabalhando laboriosamente.

Mantinha-me com café preto, que eu mesmo preparava, e geralmente trabalhava até à uma da manhã; e às vezes, absorvido pela busca, ficava até de madrugada e não ia para a cama, recorrendo a um chuveiro frio e uma boa esfregadela a fim de me refrescar para o café da manhã, e os deveres do novo dia.

Eu progredia rapidamente, mas aquela constante aplicação estava minando meus nervos, e às tardes comecei a utilizar a motocicleta de Luke. Nada mais apaziguante do que uma rápida corrida pelas estradas vazias do campo, aquela sibilante anestesia da velocidade. E a moto, como se levada pelo instinto do lar, levava- me sempre às vizinhanças de Blairhill, passando, com estrondos e rangidos, pelo portão da Vila Siloam.

Numa tarde, ao invés de passar numa chispada, diminuí a marcha, e parei a máquina atrás do muro de pedra do jardim. Não era um muro alto, e eu o subi facilmente. E ali, na latada de verão, quase a meus pés, estava a filha do padeiro de Blairhill.

Ainda inconsciente da minha presença, ela estava sentada diante de uma mesa rústica, de pés descalços e usando uma jaqueta curta, com o queixo na mão em concha, um livro de medicina e um saco de papel com ameixas na frente dela. Estava estudando, é claro. Seu ar era contudo tão pensativo e tão ausente à sua maneira, tão remoto o seu olhar, que comecei a pensar que sua aplicação a Practice of Medicine, de Osler, não era a que poderia ser. Na verdade, não virara uma página desde a minha chegada, e tinha consumido, de maneira melancólica, três ameixas; e agora, escolhendo tristemente uma quarta, tinha, com um débil suspiro, cravado seus dentes brancos na polpa suculenta, e tanto que gotinhas de sumo avermelhado lhe escorriam pelo queixo, quando, erguendo os olhos de súbito, deu comigo no muro.

- Tudo bem - falei. - Não vim roubar nada. Jean quase engasgou com o caroço.

- Oh! Sr. Shannon... Como é bom vê-lo... Eu estava pensando... naquele horrível equívoco.

- Pensei que estivesse estudando.

- Sim, estava - admitiu ela, com um ligeiro rubor. - De certo modo. Meu exame é daqui a um mês. - Suspirou. - Não acho que esteja aproveitando.

- Talvez precise de um pouco de ar fresco - sugeri. - Estou com a moto do Luke aí. Quer dar uma volta comigo?

Seus olhos brilharam.

- Gostaria.

Levantou-se e eu estendi-lhe a mão, para ajudá-la a subir o muro, desnecessariamente, aliás, porque ela era leve e ágil. Saltamos para o outro lado. No instante seguinte, ela estava sentada no selim traseiro. Meti o pé dando partida ao motor, e saímos rodando.

Era um luminoso dia de agosto, e fugimos das ruas tortuosas de Blairhill, animados pelo sol e pela deliciosa velocidade do nosso deslocamento; guiado, talvez, por uma estranha compulsão, rumei para a aldeia de Markinch na costa do lago Lomond.  A região era soberba, as encostas do Darroch chamejavam com os trigais em plena maturação, entremeados com as manchas das papoulas escarlates. Nos férteis sopés do Gowrie, os pomares de pêra, maçã e ameixa estavam pesados de frutos maduros, e os colhedores, enchendo, com aparente indolência, os seus cestos presos ao peito, acenavam para nós enquanto passávamos velozes.

Desafiando o deslocamento do ar, gritei por sobre o ombro para minha companheira:

- Formidável, não? - Sobrevivemos a uma série de saltos engraçados e evitamos, por alguns centímetros, uma carroça estacionada. - Você sabe segurar-se. Suponho que sai muitas vezes com Luke.

Com os lábios junto à minha orelha, ela gritou em resposta:

- Oh, sim, muitas vezes.

Mas no seu tom havia algo que depreciava todas as prévias excursões, que punham Luke severamente no seu lugar como simples irmão, que exaltavam o momento presente de um modo incomparável. Cada vez mais, eu sentia o círculo dos seus braços em minha cintura, o leve contato do seu corpo atrás de mim, a pressão do seu rosto contra as minhas costelas, quando ela se recostava para proteger-se do vento.

Pelas cinco horas, passamos a crista do Markinch Brae; e lá, diante de nós, estava o lago, liso e frio, refletindo o azul profundo do céu sem nuvens, com as  encostas ricamente arborizadas, subindo do sopé para escarpadas montanhas penhascosas no seu azul pálido à distância. Rompendo a superfície daquela serena extensão, uma cadeia de ilhotas verdes se refletia, como colares de jade e, na margem próxima, havia uma pequena aldeia com suas cabanas caiadas, cercadas de madressilvas e rosa-de-cão.

Aquilo era Markinch, a predileta das minhas lembranças da infância, aonde eu fora tantas vezes, sozinho ou com meu amigo Gavin Blair, a fim de encontrar alívio para a minha alma magoada. E agora, ao descermos a ladeira íngreme, serpenteando, senti de novo, e mais intensamente, aquele fundo calor que sempre me aquecia o peito naquele lugarzinho modorrento e esquecido, saturado da quietude do verão, impregnado do perfume das madressilvas, sem outro som que não o zumbido das abelhas, o espadanar de um peixe no baixio, e nenhum sinal de vida além de um cachorro solitário, sentinela sonolenta, espichado na poeira branca do pequeno molhe no qual o vapor do lago, brinquedo de chaminé vermelha, atracava uma vez por semana.

No fim da curta rua da aldeia parei, e nos separamos, tesos e um tanto acanhados, da máquina que, ainda fumegando e cheirando a óleo quente, tinha nobremente resistido ao calor e à carga do dia.

- Bem... - disse eu, achando estranhamente difícil encontrar o seus olhos após a estreita comunhão da nossa viagem. - Foi uma grande corrida. Espero que lhe tenha despertado o apetite para o chá.

Ela olhou em torno apreciativamente, mas, não tendo avistado uma única loja na aldeia, voltou-se para mim sorrindo, e com um ar de íntima camaradagem.

- É bonito. Mas aqui nunca conseguiremos o que comer.

- Não posso deixá-la faminta. - Guiei o caminho até a última cabaninha branca, onde, acima do portal, quase escondida pelas fúcsias escarlates grimpantes, havia uma velha tabuleta com uma palavra enigmática: Minerais - o que naquele distrito setentrional devia ser interpretado como "refrigerantes".

Bati na porta e dali a pouco apareceu uma mulher curvada, com um vestido escuro de xadrez de lã.

- Boa tarde. Pode nos dar uma xícara de chá?

A senhora olhou para nós e sacudiu a cabeça de um modo desanimador.

- Uh! Uh! Já venderam tudo menos as águas com ar... A limonada do Reid e a água de ferro do Barr.

Minha companheira relanceou justificadamente os olhos para mim.

- Você me surpreende, Janet. Muitas vezes você me serviu um chá delicioso. Não se lembra de quando vínhamos pescar... Gavin e eu... E do salmão que pegamos para você...? Eu sou Robert Shannon.

Quando a chamei pelo nome, ela se sobressaltou e, olhando de perto para mim, como uma bruxinha velha, deixou escapar uma exclamação de afeto, esse grito que sai instintivamente do coração da Highland, tão lento para reconhecer estranhos, mas calorosos, sempre caloroso, com um amigo.

- Filho de Deus! Se eu estivesse com as minhas lentes, teria conhecido. É você mesmo, Robert!

- Sou, sim, Janet. E esta é a Srta. Law. E se você nos enxotar da sua porta, sumiremos daqui e nunca mais voltamos.

- Mas não vou fazer nada disso. Deus me livre! - exclamou Janet, vigorosamente. - Vão tomar o melhor chá de Markinch dentro de 10 minutos...

- Pode ser no jardim, Janet?

- Pode, como não! Ora, ora... Vejam só. Robert Shannon crescido e doutor... Isso mesmo! Não posso dizer que não. Li a seu respeito no Lennox Herald...

Com esta e muitas outras exclamações, levou-nos para o jardim dos fundos, e depois disparou em passinhos curtos para sua pequena e escura cozinha, onde, pela janela fixa, entrevíamos de quando em quando sua figura curvada, azafamando-se junto a uma grande chapa de ferro. Como resultado dos seus prontos labores, logo estávamos sentados embaixo da latada de madeira, diante daquele lanche simples mais delicioso que tinha saboreado, aqui, no passado: pãezinhos recém-cozido com manteiga caseira, ovos frescos cozidos, mel silvestre nos favos, e chá preto e forte. Jean rezou as graças gravemente, de olhos fechados, e então, naturalmente e com bom apetite, atacou a ótima refeição do campo. A princípio, a velha Janet ficou ali, ansiosa por todas as minhas notícias, e olhando para nós com a esperteza nativa, e nos embaraçando muito com suas perguntas. Mas dali a pouco, depois de reencher o bule, deixou-nos. E, com um suspiro de contentamento, a Srta. Jean voltou-se para mim.

- Isto é tão lindo! - exclamou ela, feliz e inocente. - E pensar que quase perdemos tudo isso. Se eu não lhe tivesse pedido para sermos amigos, aquele dia no Grant's...  Você não faz idéia da coragem que precisei... Estava tremendo toda.

- Está arrependida?

- Não. - Corou ligeiramente. - E você?

Abanei a cabeça em silêncio, ainda olhando para ela, levando-a a baixar os olhos, num gesto de timidez, como naquela ocasião em que passei por ela, triste e solitário, diante da loja do Hillier, no Monte Fenner, e senti uma onda pulsante de ternura. Como ela era bonita, naquele ambiente campestre, varrido pelo vento e fulgurante, virginal e doce. Uma cigana, talvez. Os cabelos castanhos, arrepanhados por uma fita marrom, castanhos também eram os seus olhos, e seu rosto cheio de pequeninas sardas de um castanho mais escuro. Brincando nervosamente com a colherinha, observou, como que tentando repor a conversa num plano comum:

- Sente o cheiro das madressilvas? Estou certa de que há algumas no jardim.

Não respondi, embora o cheiro da flor, ou de algo mais doce, estivesse subindo do meu sangue. Tomado por uma emoção que era estranha e nova, procurei dirigir meus pensamentos para o nível da razão, para as minhas pesquisas bacteriológicas, para as inúmeras dissecções que efetuara friamente no necrotério do departamento. Como, à vista destes, eu ainda poderia achar beleza no corpo humano? Mas, ai de mim! Podia. Pensei então, em desespero, naquelas amebas, a forma mais baixa de toda a vida celular que, ao serem colocadas sob o microscópio numa lâmina, são instintivamente atraídas. Eu não tinha uma mente, uma compensação, uma vontade para livrar-me daquela reação cega? Em vez disso, ouvi-me dizer, independentemente da minha vontade.

- Vamos dar um passeio? Ainda não é tarde. Não iremos longe.

Ela hesitou. Contudo, também estava relutante em quebrar o encanto que nos envolvia.

- Venha, insisti. Ainda é cedo.

- Só um pouquinho, então - consentiu Jean, em voz baixa.

Deixei um generoso presente sobre a mesa, e nos despedimos de Janet. Então saímos lentamente pela trilha estreita que descia para as margens serpeantes do lago. O crepúsculo começava a cair, uma lua crescente riscava no alto do céu de leste e era acolhida nas misteriosas funduras da água escura lá embaixo. O ar era macio, suave como uma carícia. À distância, uma garça cinzenta grinfava e era remotamente respondida por seu companheiro. E então o chape chape do lago se tornou parte da quietude da tarde.

Em silêncio, seguimos para a margem do lago, chegando a uma pequena gruta arenosa, abrigada por tufos de ulmárias e mentas. De repente, paramos e nos voltamos um para o outro. Um instante de expectativa. Seus lábios estavam quentes e secos, entreabertos como para o sacrifício, oferecendo-se com o puro e perfeito conhecimento de que nunca tinham sido beijados por um homem.

Nem uma palavra foi dita. Suspendi a respiração, meu coração batendo no peito, como se temeroso de uma espécie de medo. Mas não, o encanto se prolongou, e não houve nada senão aquele beijo doce e único. Sua inocência tinha sido conquistada.

Enquanto retornávamos vagarosamente, uma pura e branca névoa deslizou por sobre a água, como um bafo num espelho. Véus de vapor cobriram a terra, enchendo os vales com um ar espectral. E embora para mim a lua brilhasse com radiante luminosidade, estranhamente minha querida companheira tremia.

 

Na tarde de 29 de setembro, no livro do meu laboratório, que eu usava como diário e registro do meu trabalho, escrevi esta exultante anotação:

"Esta manhã, às duas horas, identifiquei finalmente o Bacillus C. Não é outro senão a Brucella melitensis, um obscuro coco-bacilo que David Bruce isolou em 1886 durante uma epidemia de febre em Malta, causada pelo leite infetado de cabras. Esse bacilo, aparentemente confinado ao litoral do Mediterrâneo e, de acordo com os livros, transmitido somente por cabras, sempre  tem sido considerado como de interesse meramente histórico ou, pelo menos, de menor importância no campo da medicina geral. Semelhante crença é inteiramente errônea. Ao contrário, a Brucella melitensis é o organismo causador da recente e grave epidemia nesta região e, quase com certeza, freqüentemente registrada na Europa e nos Estados Unidos. Conferindo cuidadosamente os dados de que disponho, estou convencido de que, no caso presente, a transmissão pelo leite de cabra pode ser afastada como uma impossibilidade. Suspeito de que o agente infeccioso seja, de fato, o leite de vaca. Se assim for, a importância desta descoberta não pode ser subestimada."

Atirei a caneta e, com uma olhadela para o relógio, peguei meu gorro e saí às pressas do hospital para a Estação de Dalnair, a fim de tomar o trem. Ia encontrar-me com Jean em Winton às três horas e, cheio de alvoroço, eu mal podia esperar para lhe dar a maravilhosa notícia.

Durante todo aquele demorado verão que, pela beleza de sonhos dos seus dias, conspirava para vencer a força da razão, nós tínhamos ficado cada vez mais juntos um do outro. Eu, talvez, uma vítima voluntária, mas a minha companheira, por seu temperamento e religião, por todos os íntimos desvãos da sua vida familiar, podia ver melhor a barreira ao nosso apego, que, naquela tarde em Markinch, fora cegamente revelado para ela. Presa pela teia de laços paternos, fechada pelos limites inexoráveis do seu credo, nenhum pesadelo era mais terrível para ela do que o fantasma sombrio da minha religião. Mais de uma vez, ela havia protestado, com lágrimas nos olhos, que a nossa ligação era impossível. Mas quando, após um triste adeus, eu voltava a Dalnair, o telefone do meu quarto chamava e a sua voz tremia na linha:

- Oh, não, Robert, não... Não podemos abandonar um ao outro.

Rendidos pela maravilha daquela nova emoção, arrastados por uma cachoeira, estávamos perdidamente apaixonados.

Em Inton, meia hora depois, caia uma chuva de outono, quando desembarquei do trem e apressei-me para o café tranqüilo que tínhamos descoberto perto da Estação Central. Ela já estava lá, uma figura solitária, no fundo do salão quase deserto.

- Jean - exclamei, tomando-lhe ambas as mãos. - Finalmente, consegui.

Sentando-me ao lado dela num banco junto à parede, despejei a narrativa do meu sucesso.

- Não está vendo o tremendo significado disto? Não é apenas o leite de cabra... Na ilha de Malta. Mas o leite de vaca, em toda parte. Leite de vaca, queijo, manteiga, todos os laticínios... Os alimentos mais consumidos no mundo... Assim é que o germe é transmitido. E há mais. Telefonei a Alex Duthie esta manhã. Ele me disse que tinha tido muito trabalho com o seu rebanho de ordenha, imediatamente antes da epidemia. Vários animais morreram. Isso não é coincidência. Aliás, ele disse que tem havido graves irrupções no gado de toda a região... 35 por cento afetados. Se houver outro animal doente em Dreem, Alex vai-me mandar amostras do leite. Você não vê a possibilidade, Jean... Meu Deus! Se houver uma ligação entre as duas...

Interrompi-me, num fervor de sentimentos, enquanto ela me olhava com serena simpatia.

- Estou muito contente, Robert. - Hesitou, e o seu sorriso se tornou submisso. - Eu não me importaria, se no meu exame de amanhã me fizessem essa pergunta.

Houve uma pausa, durante a qual a minha efervescência foi serenando. Eu tinha de fato esquecido que hoje era a véspera daquele acontecimento importante, o seu exame final, e a sua ansiedade com a prova, que começaria na manhã seguinte e se prolongaria por cinco dias, era agora tão evidente que despertou em mim uma pungente contrição. Eu tinha levado adiante a minha pesquisa, todas as noites, premindo, cheio de inexaurível energia, evitando os falsos rumos por uma espécie de mágica. Mas e ela? Quando aludiu ligeiramente às horas cheias de ansiedade quanto ao futuro, eu a censurei  dizendo que ela também tinha o seu trabalho, e eu, é verdade, de tempos em  tempos, em Dalnair, a tinha levado a certos temas que julgara provável aparecerem nas suas provas. Não podia, contudo, tê-la instruído mais completamente, mais pacientemente, ao invés de ser uma permanente distração.

- Você se sairá muito bem - animei-a. - Estudou muito.

- Acho que sim - respondeu ela, abatida. - Parece que não tenho muita confiança. O examinador é o Professor Kennerly... E ele é muito rigoroso.

Novamente minha consciência e meu coração se afligiram. Era aquela a mesma brilhante e animada neófita que, no ardor da sua demissão, entusiasmada para curar, tinha vindo ao meu quarto para sondar os excitantes mistérios dos tripanossomos?

- Jean - disse eu, em voz baixa. - Tenho sido um grande egoísta.

Ela sacudiu a cabeça sem me ouvir, com o lábio caído. - A culpa é tanto minha como sua.

Em silêncio, curvei-me e apertei-lhe fortemente os dedos. Ela sussurrou:

- Pelo menos temos um ao outro.

Quando saímos do café eu ainda me acusava e, em nosso caminho para a estação, num esforço para alegrá-la, e também, talvez, para aplacar minha sensação de culpa, parei numa pequena casa de antiguidades na esquina do Woolmarket. Nas minhas caminhadas por aquela rua secundária, eu tinha visto na janela um colar verde, extremamente simples, pois as contas eram apenas de vidro, mas bonito, de bom gosto, e genuinamente antigo. Antes que minha companheira soubesse o que eu ia fazer, pedi-lhe que me esperasse um pouco, entrei e comprei-o. Um momento depois, ao entrarmos na estação e ficarmos no nosso lugar habitual de despedida, sob o relógio da livraria, dei-lhe o colar de contas.

- Isto é para lhe dar sorte - falei. - Verde é a minha cor de sorte.

Ela corou de surpresa, e seu rosto, perdendo o abatimento, iluminou-se de prazer. Eu nunca lhe tinha dado nada antes.

- É lindo - disse ela.

- Não, não é nada. Mas deixe que o ponha em você.

Peguei o colar e prendi-o em torno do seu pescoço, e então, impelido por aquela nova ternura, sem pensar nos transeuntes nem que estávamos num lugar público, tomei-a nos braços e beijei-a.

Jean tinha que partir imediatamente para o trem. Quando me voltei, avistei de repente uma alta figura senhoril, como que petrificada, com os olhos fixos em mim com um olhar chocado e incrédulo. Com o coração afundando no peito, reconheci-a, e vi imediatamente que ela havia testemunhado o presente do colar e o beijo na boca. Dei um passo para ela, mas com o mais gélido dos olhares, e uma fria e imperceptível inclinação da cabeça, ela já tinha começado a afastar-se. Era a Srta. Beth Dearie.

No resto daquela semana, de acordo com o combinado, não tentei comunicar-me com Jean. Mas enquanto eu trabalhava duramente em Dalnair, pensava nela; na segunda-feira levantei-me cedo e corri ao saguão para apanhar o Herald antes que o levassem à sala da Srta. Trudgeon. As aprovações em medicina apareciam sempre no alto da última página e, parando no corredor, em pijama e sobretudo, passei rapidamente os olhos pela lista impressa. Depois mais uma vez, com maior cuidado, mas com um crescente mau pressentimento, verifiquei linha por linha.

O nome de Jean não figurava na lista. Eu não podia acreditar. Tinha sido reprovada. Embora ela me tivesse pedido que não lhe telefonasse, movido por uma profunda comiseração, fui à mesa telefônica do saguão e, enquanto a Enfermeira Peek se azafamava de ouvido alerta, pedi o número de Blairhill.

- Alô! Desejo falar com a Srta. Law.

Quem respondia era uma voz de mulher, não a de Jean, mas quase certamente a de sua mãe.

- Quem fala? Hesitei.

- Um amigo.

A voz voltou depois de uma pausa.

- Desculpe, mas a Srta. Law não está em casa.

- Ouça, por favor - falei. Mas desliguei, porque um estalido no meu ouvido indicou-me que a outra pessoa tinha posto o fone no gancho.

Todo aquele dia, mal sabendo o que fazer, trabalhei sob uma impressão sombria. Depois do jantar, quando bateram sete horas, eu estava me preparando para recuperar-me com a minha sessão noturna no laboratório, quando Katie, a empregada, que já tinha retirado a louça, bateu na minha porta.

- Um cavalheiro quer ver o senhor.

- É um doente?

- Oh, não, doutor.

- Parente?

- Acho que não, senhor.

Olhei para ela perplexo; eu não estava acostumado a receber visitas àquela hora.

- Bem... Então é melhor mandá-lo entrar.

Deve ter havido, naquela noite, um ponto cego na minha inteligência. Tive a maior surpresa da minha vida, quando, com passo firme, Daniel Law entrou na sala. Ao fechar-se a porta atrás dele, dispensou-me o seu olhar grave e firme.

- Espero que não esteja perturbando numa hora imprópria, doutor. Se não for inconveniente, gostaria muito de ter uma palavra com o senhor.

- Ora... Certamente - balbuciei.

A isto ele fez uma curvatura e tirou o seu pesado sobretudo preto, que dobrou metodicamente, e colocou, com o chapéu, sobre o sofá. Então, puxando uma cadeira para perto de mim, sentou-se, muito formal no seu melhor terno escuro, colarinho duro e gravata fina de laço caído, pôs as mãos sobre os joelhos e de novo me transfixou com olhos decididos.

- Doutor - começou ele, serenamente. - Para mim não foi um passo fácil vir ao senhor deste modo. Antes de o fazer, rezei indeciso. - Fez uma pausa. - Ultimamente o senhor tem visto muito a minha filha?

Fiquei vermelhíssimo.

- Acho que sim.

- Posso perguntar por quê?

- Bem... Eu... Eu gosto muito dela.

- Ah! - Não havia ironia nem condenação nessa simples exclamação, apenas uma sombra de interesse um tanto frio. - Também gostamos dela, doutor. Na verdade, desde que ela se tornou uma filha da luz, tem sido para nós o que a ovelha é para o pastor. O senhor avaliará, por conseguinte, como foi grande a nossa decepção, quando soubemos hoje que ela foi reprovada no seu exame de medicina. E receio que a principal razão disso foi que, em vez de estudar, ela andou perdendo seu tempo em atividades frívolas.

Fiquei calado.

- Naturalmente - prosseguiu ele, com um ar de visionário - tenho a maior confiança em minha filha. Devemos sofrer a mão do Senhor, quando ela baixa sobre nós, e ela será santificada por essa aflição. Minha santa mulher e eu discutimos o assunto com ela, e Jean vai tentar novamente, depois de mais uns meses de estudo sem interrupção. O que nos preocupa é uma questão muito mais séria. Não sei até onde foi o seu relacionamento. Doutor... Não posso saber disso por intermédio de minha filha e estou agradecido à Srta. Dearie pela pequena informação que possuo... Apesar disso, o senhor deve concordar que, nas circunstâncias, já foi bastante longe.

- Não compreendo - falei, rapidamente. - Por que o senhor se opõe ao meu relacionamento com sua filha?

Ele não respondeu logo. Encostando as pontas dos dedos, meditou intensamente.

- Doutor - disse ele de súbito, e com maior firmeza - espero que minha filha se case. Espero que um dia seja uma esposa feliz. Mas nunca encontrará essa felicidade se não se casar com um homem da mesma religião dela. Estávamos agora em águas profundas, mas, descuidado, mergulhei.

- Não concordo com o senhor - retruquei. - A religião é um assunto íntimo. Não podemos evitar a crença na qual nascemos. É inteiramente possível que duas pessoas sejam tolerantes com a crença uma da outra.

Ele sacudiu vigorosamente a cabeça, com um sorriso frio e estranhamente desconcertante, que parecia, se alguma coisa, indicar sua exclusiva familiaridade com os meios e ordenações de um Deus onisciente.

- Levo em conta sua juventude e inexperiência. Só pode haver um verdadeiro testemunho do Sangue, uma verdadeira congregação de santos. Nessa verdadeira congregação dos ungidos do Senhor foi criada minha filha. Ela jamais se pode misturar com as águas da Babilônia.

Enquanto ele falava, por alguma estranha antítese, meus pensamentos voaram súbita e pesadamente para as belas águas de Markinch, ao lado das quais Jean e eu tínhamos perambulado e trocado sob a benigna e indulgente abóbada do céu, nosso primeiro doce beijo.

- Meu jovem. - Observando a minha amargura, e os sinais de rebelião no meu rosto, sua voz tornou-se áspera. - Desejo-lhe o bem, e espero que um dia a luz o ilumine. Mas somente para que possa compreender, finalmente, que minha filha não é para o senhor. Há, em nossa comunhão, um irmão de quem ela está virtualmente noiva. Refiro-me a Malcolm Hodden. O senhor o conheceu sob o meu teto. Atualmente, ele é professor, mas aspira a tornar-se um dia ministro do Evangelho e erguer a tocha do deserto. Por todas as afinidades da mente e do espírito, ele já se mostrou digno de a  conduzir e guiar ao longo dos caminhos desta vida terrena.

Houve um silêncio. Ele parecia esperar que eu falasse, mas como eu, afundado na cadeira, não dizia nada, levantou-se, tranqüilo como sempre, e vestiu metodicamente o sobretudo. Quando abotoou o último botão, olhou-me entre triste tolerância e fria admoestação.

- Alegra-me que nossa conversa tenha sido salutar, doutor. Todos devemos aprender a sujeitar-nos ao Senhor... A alcançar um verdadeiro conhecimento da Sua vontade... Ao despedir-me, confio-o ao Seu cuidado.

Pegando o chapéu, com passos firmes, e aquele ar de serena e firme disciplina, retirou-se da sala.

Não me mexi durante um longo tempo. A despeito dos seus pontos de vista rígidos e tacanhos, eu era constrangido, honestamente, a admitir que ele estava agindo de acordo com a sua capacidade mental. Isso não me ajudou. O tom do seu discurso, como se cada palavra fosse sagrada e profética, tirada da Revolução, aniquilou-me. E Hodden... Aquela era uma pílula amarga de engolir.

Cheio de amor magoado e furioso, eu pensava em Jean. Ergui o queixo firmemente. Pelo menos, eu não tinha prometido que não a veria.

 

Com esse espírito inquieto e perturbado, fiz a minha visita noturna às enfermarias. Depois de dar à Enfermeira Peek as suas instruções, fui, como sempre, para o pavilhão do isolamento, mas não podia concentrar-me. A pesquisa da ciência pura, à qual eu estava dedicado, exige completo alheamento de todos os enredos da vida. Contudo, agora pouco me importava essa aliança solene. A imagem de Jean estava diante de mim, delgada e fresca, com os seus olhos castanhos enevoados com a flor da juventude. Eu a amava. E precisava muito vê-la.

Na tarde seguinte, no momento em que fiquei livre, corri para a garagem. Eu já tinha telefonado duas vezes para a Vila Siloam, mas, em ambas ocasiões, a voz da Sra. Law tinha respondido, e sem uma palavra, como se fosse um ferro quente, soltei o receptor no gancho. Agora, apesar da neblina, montei na motocicleta e me dirigi a Blairhill.

Aos fundos de Siloam, com o coração pulando, caminhei para a latada de verão. Achei-a vazia, a cadeira desocupada, a mesa rústica sem o Practice of Medicine, de Osler. Incerto, sentei-me no muro, observando a chuva escorrer nas treliças pintadas de verde; depois, saltando para o terreno, contornei o jardim e cheguei à frente da casa. Durante quase meia hora, fiquei entre os arbustos, forçando os olhos para as janelas de cortinas rendadas. Mas embora eu várias vezes divisasse o vulto de sua mãe, andando aqui e ali no interior sombrio da sala da frente, nem uma vez fui recompensado por um vislumbre de Jean.

De repente, ouvi o som de passos que se aproximavam na alameda. A princípio, pensei que fosse Daniel Law, mas um momento depois apareceu a figura de Luke. Adiantei-me.

- Luke! - exclamei. - Eu não sabia que você estava de volta.

- Estou, sim -  admitiu ele.

- Por que não me avisou? Você é a única pessoa que pode me ajudar.

- Eu?

- Sim, Luke. Ouça - falei com dolorosa instância. – Preciso ver Jean, agora mesmo.

- Mas não verá - respondeu ele, hesitante, olhando de mim para a frente silenciosa da casa. Depois, tomando uma decisão aparentemente em meu favor, ajuntou: - Não podemos falar aqui. Venha comigo lá para a rua.

Ele guiou o caminho de volta para a cidade, olhando de quando em quando por cima do ombro, então, uma esquina um tanto duvidosa, perto da Market Square, penetrou num salão de cores berrantes cuja tabuleta dizia: BLAIRHILL SPORTS BAR. Sentados num compartimento traseiro desse lugar deprimente, que, por seu conveniente equipamento de boliche e máquinas de sucos, percebi que era o recanto da mocidade dourada da cidade, Luke pediu dois copos de cerveja. Lançou-me então um olhar demorado e confuso.

- Desta vez você está frito - disse ele, por fim. - Se quiser saber... Está tudo acabado... Inclinei-me, rápido, para a frente.

- O que aconteceu?

- Do pior, eu me lembro. Quando mamãe soube, por intermédio da Srta. Dearie, a seu respeito, chamou Jean de lado, muito sossegada e triste, e a fez chorar por toda a casa. Quando papai chegou para o chá, houve uma demorada confabulação. Então, enquanto a mamãe saía e voltava com Malcolm, papai foi com Jean para o quarto dela e lá ficaram rezando por mais ou menos uma hora. Até da cozinha eu podia ouvir o choro dela, como se seu coração fosse despedaçar-se. Quando voltaram, ela tinha parado de chorar. Estava branca, mas quieta. Como vê, tava tudo acabado.

- Luke! O que quer dizer?

- Acho que a fizeram jurar que ela nunca mais o veria de novo.

Levou um minuto para eu compreender inteiramente o que ele acabava de dizer, mas depois caiu sobre mim a férrea convicção de que ele falara a verdade. Embora nesta época de progresso mal se possa acreditar no fato, existia naquela família uma autoridade que remontava aos dias do Velho Testamento, quando as tribos de Gad e Gilead seguiam o seu destino através das planícies de Moab, pastoreando os seus rebanhos, submetendo-se aos mais velhos, confiando cegamente no Senhor.

Daniel Law era um desses patriarcas. Ele ainda vivia nos e pelos livros dos  Reis, Número e Deuteronômio, e no meio do estrépito da idade da máquina, da  batida alucinante do jazz, do atraente pisca-pisca do cinema, tinha criado os seus filhos naquela  tradição, não por medo, pois não era um tirano, mas por uma regra de firmeza  temperada, acima de tudo pela inflexível mostra da sua convicção, da luz firme do seu exemplo. A concepção popular, ligeiramente cômica, do evangelista de esquina estava tão longe de Daniel Law, como uma erva enfezada de um robusto carvalho. Ele não era nenhum camponês de joelhos frouxos, nenhum entoador de salmos. Era, na verdade, um verdadeiro Paulo, justo e valente, com um fulgor nos olhos que intimidava a serpente do mal antes de esmaga-la sob o seu calcanhar. Tinha, está claro, o defeito de suas qualidades. Seu olhar era firme, mas só podia ver diretamente na frente. A transigência estava fora dele - uma coisa, para ele, era preta ou branca. Fora da órbita brilhante da sua luz interior, existiam somente as trevas, cheias de tentações para o eleito, como raízes retorcidas numa floresta escura, os esgares de Satanás. A tolerância era uma fraqueza proibida; na verdade, uma palavra que ele não compreendia. Se não éramos "salvos" então, ai, estávamos condenados eternamente. Isso era o que tinha mantido sua filha no caminho de pedra durante anos, livrando-a da iniqüidade das danças, dos jogos de cartas e do teatro, limitando suas leituras a Good Words e a Pilgrim's Progress. E agora, pelo exercício da prece e da pressão, arrancara dela, entre prantos, a promessa de que renunciara a seu indigno namorado.

Tudo isto me passou rapidamente pela mente, enquanto estava sentado diante de Luke naquela fria e reles cervejaria, e embora as minhas reflexões me dessem a estonteante sensação de ter batido contra um muro de pedra, embora eu também sentisse um oculto ressentimento contra Jean por haver capitulado, eu, não obstante, não podia, simplesmente não podia, renunciar a ela.

- Luke - falei, tensamente. - Você tem que me ajudar.

- Como? - indagou o rapaz, sem muita convicção.

- Simplesmente, preciso ver sua irmã. - Fiz esta declaração com certo desespero.

Ele não respondeu. Limpou os lábios com o punho farinhento e olhou-me com um sorriso lastimoso.

- Você sabe que pode - continuei. - Eu espero aqui e você volta à sua casa e diz a Jean que saia para encontrar-se comigo. Ainda calado e condoído, ele sacudiu a cabeça.

- Jean - disse ele - não está lá em casa. Está fora.

Olhei para ele, imóvel, enquanto o rapaz acenava vagarosamente com a cabeça.

- Está-se vendo que você não conhece meu pai. Ela foi mandada ontem à noite para a casa de tia Elizabeth, em Bethnal Green. Vai ficar lá, estudando, durante os próximos quatro meses, até prestar novo exame. - Fez uma pausa. - E a Sra. Russel, a nossa tia, tem instruções para abrir todas as cartas que ela receber.

Bethnal Green, um subúrbio de Londres, a quase 500 quilômetros de distância - um destino impossível para os ataques do vilão Shannon. E nada de cartas, por ordens expressas! Oh, sábio e hábil Daniel! De fato, um Daniel vindo para julgar. Eu continuava sentado, muito quieto, mas meus olhos caíram infelizes.

Houve um prolongado silêncio do qual fui despertado pela voz de Luke, quando, de maneira simpática, perguntou:

- Gostaria de outra cerveja? Ergui a minha cabeça curvada.

- Não, obrigado, Luke. - Pelo menos ele era bem-intencionado. - E isso me faz lembrar. Você quer sua moto de volta?

- Ah, não tem pressa.

- Sim, tem. - Vi que ele protestava apenas por delicadeza. Está na alameda atrás da sua casa. Cuidei bem dela. Aqui está a chave.

Ele aceitou a chave da ignição sem mais qualquer objeção; levantamo-nos, então, e saímos. Na rua, após olhar para cima e para baixo, apertou-me a mão com uma espécie de melancólica camaradagem. Pus-me a caminhar para a estação.

A chuva agora apertara, a água corria pelas sarjetas, enchendo de lama a calçada estreita, fazendo tudo parecer cinzento e miserável. Oh, meu Deus, pensei comigo, num súbito acesso de dor no coração, o que estou fazendo nesta cidadezinha triste e esquecida? Eu gostaria de estar num dubbeh, flutuando Nilo abaixo, ou nas brilhantes colina de Sorrento, ardendo acima do azul Mar Tirreno. Não, tudo que vá para o inferno, eu gostaria de estar no nevoeiro e na fuligem de Bethnal Green. Mas eu sabia que não podia estar lá.

 

Depois disso, tudo desabou sobre mim ao mesmo tempo... Mas tentarei, calmamente, manter a seqüência. Não pretendo estender-me tediosamente sobre o meu estado de espírito. Era como o tempo, que continuava com uma chuva incessante e violentos vendavais equinociais que arrancavam as folhas e ramos das árvores ainda não mortas juncando o caminho de lixo encharcado.

Estávamos agora ocupadíssimos nas enfermarias, na maior parte dos casos de difteria - tinha surgido uma epidemia desta doença no Distrito de Wintonshire.  Eu próprio tinha tido essa infecção, uma circunstância que, ouso dizer, me dava um sentimento de companheirismo pelas crianças que se viam atingidas por ela. Até agora, a Srta. Trudgeon desfilava orgulhosamente pelo hospital, como se ela, pessoalmente, fosse a responsável por isso. E talvez fosse - sua eficiência me impressionava cada vez mais, e no meu coração eu tinha começado, involuntariamente, a admirar aquele indomável e capaz pequeno cavalo de batalha, cujas qualidades ocultas ultrapassavam sobejamente os seus atributos óbvios e menos atraentes. Mas tomava cuidado em não lhe dizer isso. No meu presente humor, eu me mostrava carrancudo e rude com todos.

Então, na noite de três de novembro - essa data exata e fatal está escrita de maneira indelével nas minhas recordações - caminhei de cabeça baixa e passos lentos do pavilhão para os meus cômodos e atirei-me numa cadeira. Não fiquei ali 10 minutos antes que um insistente zumbido me chegasse aos ouvidos. Era o telefone da minha mesinha-de-cabeceira, e a campainha tocava baixinho porque eu esquecera de puxar a alavanca antes de ir para o pavilhão. Fui ao quarto e apanhei cansado o receptor.

- Alô!

- Alô! É você, doutor? Que sorte tê-lo encontrado! - Apesar, da má ligação, o alívio na voz era evidente. - Aqui é Duthie, Alex Duthie, de Dreem. Doutor... Robert... Tem que fazer algo por mim.

Antes que eu pudesse responder, ele continuou:

- É o nosso Sim. Está com difteria há uma semana. Ele não está passando bem. Quero levá-lo ao hospital para você.

Não hesitei um instante. Já estávamos cheios, e Alex, morando fora dos limites do condado, não tinha direito à nossa assistência. Contudo, eu não podia sequer sonhar em recusar.

- Muito bem. Peça a seu médico para assinar um atestado e amanhã eu mando uma ambulância aí, a primeira coisa de manhã.

- Não, não. - Sua voz veio rápida. - O menino está mal mesmo, Robert. Temos um carro na porta, e ele está todo enrolado em cobertores. Quero levá-lo para você agora mesmo.

Eu não estava certo de que fosse correr o risco de fazer aquela admissão irregular, naquela hora. Contudo, por causa da minha profunda consideração por Alex, eu tinha que assumi-lo.

- Venha, então. Espero-o dentro de uma hora. Trate de mantê-lo aquecido durante a viagem.

- Tratarei, sim. E obrigado, rapaz... Obrigado.

Recoloquei o receptor no gancho e fui pelo comprido corredor até o quarto da enfermeira-chefe. Ali, no entanto, as luzes estavam apagadas e fui obrigado a apertar o botão da campainha noturna, que chamava a Enfermeira Peek. Quando ela chegou, dei-lhe breves instruções para que preparasse uma cama no quarto ao lado da Enfermaria B; um pequeno anexo confortável, geralmente reservado para pacientes particulares e agora o único espaço que permanecia desocupado.

A vigília não foi longa. Pouco antes da meia-noite, um carro de aluguel parou na entrada do hospital, e quando abri a porta contra o vento e a chuva forte, Alex apareceu carregando nos braços o seu filho, enrolado numa trouxa de cobertores.  Levei-o á sala de recepção. O seu rosto estava branco e repuxado.

Quando depositou o menino na cama, onde a Enfermeira Peek começava a prepará-lo para o exame, Alex limpou a testa com as costas da mão e ficou a um lado em silêncio, fixando em mim um olhar de abatida interrogação.

- Não fique tão preocupado. Quando é que Sim adoeceu?

- No começo da semana.

- E ele tomou injeções de antitoxinas?

- Duas doses. Mas não o ajudaram muito - falou Duthie, mais depressa.

- É berís no fundo da garganta. Quando vimos que a cada minuto ele piorava, eu simplesmente tive que trazê-lo. Temos fé em você, Rob. Dê uma olhada nele, por amor de Deus.

- Muito bem. Não se desespere.

Voltei-me para o leito e imediatamente a expressão tranqüilizadora que eu tinha assumido para benefício de Alex deixou meu rosto. De fato, quando meu olhar se voltou para a criança lívida, de olhos fechados e mãos apertadas, lutando por cada respiração, tive um choque doloroso.

Silenciosamente, continuei a examiná-lo. A temperatura era de 40 graus, o pulso muito fraco, quase imperceptível. Não tentei contar as respirações. Uma dura membrana amarela cobria a parte posterior da garganta e estendia-se insidiosamente até a laringe. A criança estava claramente in extremis, já quase moribunda. Relanceei os olhos para Duthie, que, de pé, mudo, com ansiedade ainda maior, leu o meu rosto; e embora movido pela piedade, senti uma súbita raiva contra ele pela difícil situação em que me metera.

- Você não deveria tê-lo trazido. Ele está desesperadamente doente.

Alex engoliu em seco. - O que ele tem?

- Difteria laríngea. A membrana está bloqueando a traquéia... Impedindo-o de respirar.

- Não se pode fazer nada?

- Traqueotomia... E imediatamente. Mas não podemos fazê-la aqui. Não temos sala de operações - nenhuma instalação. Ele há muito devia ter sido removido para um hospital de casos de febre de uma das cidades grandes. - Dirigi-me para o telefone. - Vou ligar para Alexandria agora e providenciar para que ele seja levado imediatamente.

Eu tinha começado a discar o número de emergência, quando, subitamente, a criança começou a chiar, um estridor fino e desesperado que ecoava e arranhava a sala. Alex puxou meu braço.

- Nunca conseguiremos levá-lo para outro hospital. Deus sabe como já foi mau trazê-lo aqui. Faça você o que for necessário.

- Mas eu não posso. Isso é trabalho para um cirurgião.

- Opere logo, opere!

Detido, fiquei olhando para ele, de maneira sobressaltada e inerme, parecendo um tolo. Como já expliquei em outra parte, eu tinha a mais limitada experiência na prática da medicina, e jamais fizera uma operação séria em minha vida; das límpidas alturas da ciência pura, sempre afetei desprezar o prático azafamado que, numa emergência, tentaria tudo. No entanto, não havia como negar a terrível urgência daquele caso. Era, aliás, uma questão de minutos; porque agora eu percebia que, se me eximisse daquele caso, a pretexto de transferir o paciente para Alexandria, a criança nunca chegaria viva a esse hospital. Ciente da minha desesperançada ineficiência, eu gemia por dentro.

- Acorde a Chefe - disse eu, voltando-me para a Enfermeira Peek. – E remova o paciente para o quarto anexo à enfermaria, imediatamente.

Seis minutos mais depois, estávamos naquele quarto. A Srta. Trudgeon, a Enfermeira Peek e eu, reunidos em torno de uma mesa comum, na qual, numa camisola limpa de hospital, jazia a forma arquejante da criança desacordada. Além dessa respiração convulsiva, havia um silêncio mortal no quartinho acanhado. Arregacei as mangas, lavei as mãos apressadamente em solução carbólica e, mortalmente apavorado, olhei instintivamente, quase com descrédito, para a enfermeira-chefe à procura de auxílio. Ela estava admiravelmente calma, impessoal, eficiente e, embora tivesse acabado de acordar e enfiado seu uniforme às pressas, impecavelmente vestida. Até sua touca engomada achava-se ajustada de modo que nem um só fio de cabelos estava fora do lugar. A despeito da quizila entre nós, não pude suprimir um ímpeto de admiração, e também de inveja. Ela conhecia o seu trabalho por dentro e por fora, e sua coragem era soberba.

- Quer anestésico? - perguntou ela, em voz baixa.

Sacudi a cabeça. As condições respiratórias simplesmente não o permitiriam. De qualquer modo, a criança já estava em coma.

- Muito bem, então - disse a Srta. Trudgeon, animadamente. - Eu seguro a cabeça e os braços. Segure as pernas, Enfermeira Peek.

Enquanto falava, alcançou-me uma lanceta num quadrado de gaze branca dentro de uma bacia esmaltada e, plantando-se à cabeceira da mesa, segurou firme os braços de Sim. A enfermeira da noite, de maneira titubeante, apanhou os tornozelos do menino.

Embora sem dúvida fosse apenas um instante, pareceu-me que estive ali, em pé, com o bisturi na minha mão inepta e nervosa, por uma eternidade sem tempo.

- Estamos todos prontos, doutor - lembrou-me a enfermeira-chefe, e, creia-se ou não, havia de novo um firme encorajamento no seu tom de voz. Respirei fundo, apertei os dentes e, segurando a pele tensa, fiz uma incisão na garganta da criança. O sangue saiu espesso e escuro, obscurecendo o corte. Feri outra vez, e mais outra, e cortei mais fundo. Sim estava inconsciente e nada sentia; contudo, a cada corte, ele tremia e se retorcia na mesa numa espécie de débil agonia. Ao mesmo tempo surgia, intermitentemente, aquela horrível arcada para respirar, que convulsionava todo o seu corpo, como se fosse um peixe arfando numa prancha. Aqueles movimentos súbitos e incontroláveis aumentavam as minhas dificuldades. Tentei aplicar um retrator na abertura. O objeto entrou mas imediatamente saltou fora e rolou estalando no chão. Então o sangue começou a empoçar-se mais denso, não um esguicho vivo que eu pudesse controlar, mas um fluxo lento e melado que fechava tudo. Eu não podia usar mais a lanceta. Já estava demasiado próximo dos grandes vasos do pescoço. Um movimento em falso e eu cortaria a veia jugular. Tentei afastar os tecidos com o meu indicador, mergulhando naquela massa, procurando desesperadamente a traquéia. Se eu não a encontrasse rapidamente, tudo estaria acabado para Sim. O menino agora estava com o rosto quase negro. Seus esforços para respirar, que afundavam todas as suas costelas e o esterno, até o seu peitinho ficar fundo, tinham uma aparência mais frenética, mas eram menos freqüentes e mais fracos. Havia longos intervalos em que ele parava de respirar. Seu corpo já causava uma sensação fria e pegajosa.

O suor brotava em grandes gotas na minha testa. Eu me sentia tão tonto que pensei que fosse desmaiar. Eu não podia achar a traquéia, simplesmente não podia, e a criança estava morrendo. Ó Deus, ó Cristo, ajudai-me a achar essa traquéia!

- Está sem pulso agora, doutor. - Era um frouxo balido de censura da Enfermeira Peek que, de quando em quando, tomava o pulso do menino.

Contudo, à cabeceira da mesa, a enfermeira-chefe não dizia uma palavra. Não sei como aquilo me ocorreu - com a coragem do desespero, empunhei a lanceta e cortei fundo. De súbito, como por um passe de mágica, saltou da ferida, fino, branco e brilhante, como uma palhinha prateada, o objeto da minha frenética e desastrada procura. Meu próprio peito teve um grande hausto convulsivo e, limpando rápido o suor dos meus olhos, fiz uma incisão na traquéia exposta. Instantaneamente, houve um assovio de ar entrando livremente, uma abençoada corrente que encheu aqueles pulmões entupidos e asfixiados. Uma, duas vezes o peito moribundo arfou profundamente, em toda a sua extensão. Outra vez, e mais outra, numa espécie de êxtase de alivio. Então, lentamente a princípio, depois com força crescente, a criança moribunda começou a respirar regularmente. A tonalidade cinzenta sumiu de sua pele, os lábios arroxeados ficaram vermelhos, o menino cessou de lutar.

Rapidamente, com os dedos trêmulos, coloquei o tubo duplo de traqueotomia, suturei pequenos pontos que sangravam, costurei a ferida e a enfaixei de modo que o estreito orifício de metal ficasse de fora. Meus joelhos se entrechocavam abaixo de mim, meu coração batia contra as costelas, e o pior da minha agitação era que eu tinha que escondê-la. Fiquei por ali, mole, suado e desalinhado, com os dedos sujos de sangue, enquanto a enfermeira-chefe habilmente acomodava Sim na cama do quartinho, com botijas quentes em volta dele e a cabeça bem levantada nos travesseiros.

- Pronto - observou a Srta. Trudgeon, finalmente. - Ele vai passar muito bem. Cuide deste caso, enfermeira, de modo especial e durante toda a noite. Ao virar-se para sair, lançou-me um rápido olhar, nem de aprovação nem de censura, como se fosse para dizer: - Foi duro mesmo, mas você se saiu melhor do que merecia. Pela primeira vez, compreendemos um ao outro.

Mesmo quando a enfermeira-chefe se retirou, eu mal podia sair de onde estava. A Enfermeira Peek tinha puxado uma cadeira para junto da cama, com uma bandeja de algodões, preparada para limpar o muco que ocasionalmente formava bolhas na boca do tubo, e atrás dela eu permanecia olhando para o menino, agora descansando, com uma boa cor nas faces. De pura exaustão, o paciente tinha começado a dormitar, mas, de súbito, durante um breve instante, seus olhos se abriram e, por um estranho acaso, encontraram os meus. Naquele instante ele sorriu, pelo menos a sombra de um sorriso moveu ligeiramente os seus lábios. Depois, suas pálpebras se fecharam, e ele voltou a dormir.

Nada poderia ser tão profundamente comovente para mim como aquele sorriso trêmulo e infantil. Eu não poderia ter desejado maior recompensa.

- Já vou, enfermeira - falei, num tom prosaico. - A senhora sabe o que fazer?

- Sei, sim, doutor.

Somente quando saí é que me lembrei de Alex Duthie, ainda à espera na sala de recepção, e ante a perspectiva de pôr fim à sua ansiedade, apressei o passo, sob a luz das estrelas brilhantes e canoras. Sim, lá estava ele, sentado teso numa cadeira dura, olhando para a porta, segurando o seu cachimbo frio e vazio, como se não tivesse feito um movimento desde que eu o deixara ali. Quando entrei, sua atitude tornou-se mais rígida, e então se levantou, confrontando-me em silêncio, os olhos ardendo com a pergunta que não podia articular.

- Ele está bem agora - falei.

Tão tensa era a sua expressão, que ele não podia aliviá-la imediatamente. Eu via nitidamente sob a pele os tendões dos músculos das suas mandíbulas tensas. Então, de um só golpe, sua boca começou a torcer-se. Ele disse, por fim, em voz baixa:

- Você o operou?

Acenei, afirmativamente, com a cabeça.

- Agora ele pode respirar. Aliás, está dormindo. Quando se curar da difteria, em 10 dias mais ou menos, retiraremos o tubo e a ferida fechará. Nem sequer ficará uma cicatriz.

Duthie deu um passo à frente e segurou-me a mão, sacudindo-a tão agradecidamente, com tamanho fervor, que me fez recuar.

- Jamais me esquecerei do que você fez por nós esta noite. Nunca, nunca. Eu lhe disse que tínhamos fé em você, eu e minha mulher. – Misericordiosamente, soltou os meus dedos esmagados.

- Posso telefonar para ela? Está à espera na casa do gerente da fazenda.

Um minuto mais tarde ele estava no saguão, dando a boa notícia, inarticuladamente. Quando terminou, aproximei-me e saímos juntos para o automóvel alugado, ao lado do qual o motorista esquecido, com o boné enterrado até as orelhas, caminhava pacientemente de cá para lá.

- Está tudo bem, Joe! - gritou Duthie, numa voz fina. - O garoto já está fora de perigo.

Na sua gratidão, o bom amigo inclinou-se na janela do carro, com a voz apertada de sentimento.

- Volto amanhã, rapaz... Trazendo a patroa. E novamente... Do fundo do coração... Agradeço a você.

Quando o carro partiu, demorei-me um pouco na escuridão fria e ventosa. Então, ao ouvir o relógio do vestíbulo bater uma hora, dirigi-me meio às tontas para a minha cama. Eu sabia que, entre as minhas decepções e perplexidades, havia uma curiosa paz no meu coração. Adormeci quase imediatamente, pensando, dentre todas as coisas, no sorriso de Sim.

 

Eu devia ter dormido cerca de quatro horas, quando fui novamente despertado, á força, por alguém que me puxava pelo braço. Abri os olhos e vi a luz acesa e a Enfermeira Peek ao lado da minha cama com a cara aflita, exclamando histericamente no meu ouvido:

- Venha imediatamente... Venha imediatamente...

Ela quase me puxou dos lençóis, e enquanto eu procurava enfiar o casaco e uns chinelos, percebi que somente uma catástrofe poderia ter levado aquela tímida criatura a invadir meu quarto de semelhante modo e a tais horas. Na verdade, ela estava quase fora de si, e quando saí ao lado dela, quase correndo, para a Enfermaria B, ela continuava repetindo, como uma lição decorada, ao trotar junto de mim.

- Não fui eu. Não fui eu.

No anexo aquecido e sombrio, Sim estava deitado de costas com a cabeça alta no travesseiro como eu o deixara, muito quieto e pacífico. Contudo, parecia anormalmente imóvel, e eu arranquei o abajur da lâmpada de cabeceira, olhei mais de perto e vi, com um sobressalto, que o brilhante orifício não estava na atadura, e que o tubo não se encontrava em sua garganta. Às pressas, apanhei um par de pinças e limpei o tampão de muco da ferida, e então, tomando-o pelos braços frouxos, comecei a aplicar a respiração artificial. Trabalhei com Sim, como um demente, por mais de uma hora. Mas mesmo antes de eu chegar ele já estava morto, bem morto. Parei, abotoei a camisola amarrotada sobre aquele pequeno arcabouço, que tinha lutado tão duramente, e agora jazia com a cabeça no travesseiro.

Subitamente, ao endireitar-me junto à cama, descobri entre as dobras dos lençóis amarfanhados, o tubo de traqueotomia, inteiramente obstruído pela membrana. Olhei estupidamente para ele, e então me voltei para a Enfermeira Peek, que durante todo esse tempo tinha permanecido apertada contra a porta.

- Está bloqueado - disse eu, num tom pasmo. - Ele deve ter tossido e o tubo saltou.

Então vi tudo, e mesmo antes que eu pudesse acusá-la, a expressão do seu rosto me disse que as minhas suspeitas eram corretas. Outro pensamento me ocorreu. Caminhei lentamente para o pavilhão da cozinha. Sim, na mesa, a mesma mesa na qual tinha sido travada a batalha pela vida de Sim, achava-se um bule de chá, um prato de sanduíches de sardinha e uma xícara de chá pela metade, frio. Uma tentadora refeiçãozinha.

- Oh, doutor. - Ela me havia seguido, torcendo as mãos. Nunca pensei que... Ele estava dormindo tão bem... E apenas saí por um minuto.

Não pude agüentar aquilo. Pensei que meu coração ia rebentar. Saí da cozinha, atravessei a enfermaria e fui para o ar livre. Lá fora, as primeiras estrelas desmaiavam e os dedos pálidos da aurora tinham afastado as sombras do céu oriental. Cheguei à minha sala de estar, onde caí numa cadeira junto à mesa. Não era apenas a minha pequena realização que me havia sido arrebatada. O que me ardia e pungia o peito, e envenenava todo o meu ser, era a insensata transformação de uma vitória em derrota, a perda egoísta e criminosa da vida. Mergulhado num cego estupor, entreguei-me ao desespero.

Devo ter ficado ali sem tugir nem mugir durante um longo tempo, pois ainda ali estava, de sobretudo e pijama, quando Katie apareceu às nove horas e serviu o café da manhã. Incapaz de suportar os seus olhares solícitos, entrei no meu quarto e  fui para o banheiro. Barbeei-me maquinalmente e me vesti. Quando voltei, uma boa refeição extra me esperava - torradas, café, bacon com ovos - sob a tampa de metal. Embora eu necessitasse de alimento, não pude comer nada, meu estômago se revoltou até com uns poucos golinhos de café. Era uma manhã fria e nevoenta, precursora de um inverno úmido de céu coberto.

Uma batida na porta. Voltei-me e vi a Srta. Trudgeon entrar no quarto, composta, como sempre, mas mostrando nos olhos alguns sinais de tensão. Sua maneira era amiga. Atravessou até a lareira, onde umas poucas achas verdes estavam estalando e lançando rolos de fumaça úmida.

- A Enfermeira Peek foi ver-me. - Sua voz, quando falou, era séria e contida. - Ela está muito abalada.

- Isso não me surpreende - disse eu, amargamente.

- Eu sei como o senhor deve sentir-se, doutor. Especialmente depois de todos os seus esforços. Toda a coisa é muitíssimo lamentável. - Fez uma pausa. - De minha parte, sinto-o muito, porque ninguém pode tomar o interesse deste hospital mais a peito do que eu. Mas esses acidentes ocorrem, doutor, até nas instituições mais bem dirigidas. E, com a minha longa experiência, aprendi que há apenas uma coisa a fazer com eles.

- E o que é?

- Relevá-los.

Tomei fôlego, bruscamente.

- A senhora não pode deixar passar isto. Não foi um acidente. Foi um caso de grossa negligência, que deve ser punido.

- Suponha que eu faça como o senhor sugere. O que acontece? A Enfermeira Peek é demitida, há um falatório e um escândalo, o hospital fica mal-afamado, e ninguém fica melhor com isso.

- Mas ela tem que ir embora - repliquei, obstinadamente. É uma má enfermeira e custou a vida de uma criança.

A Srta. Trudgeon fez um gesto apaziguador.

- Compreendo seu ponto de vista, doutor. E simpatizo com ele. Mas... Neste hospital... Há outras considerações de natureza prática que se devem ter em mente.

- Ela não pode ficar aqui e fazer a mesma coisa outra vez.

- Ela não fará. Esta será uma lição que ela nunca vai esquecer. Garanto-lhe isso. Asseguro-lhe, doutor, que a Enfermeira Peek tem muitos pontos bons, e não seria de todo sensato, não quero dizer injusto, arruinar sua carreira, porque isso é que a sua demissão importaria, por causa de um único acidente.

Olhei para ela pesadamente, lembrando-me de como saíra dos seus cuidados para defender a enfermeira da noite sua favorita. Imaginei se uma ligeira sensação de privilégio não a ligaria a Effie Peek. Eu ia falar quando ouvi uma batida discreta na porta, e Katie novamente se apresentou no limiar.

- O Sr. e a Sra. Duthie estão à sua espera na recepção, senhor.

Senti uma onda de frio, e na verdade um calafrio involuntário percorreu todos os meus membros. Minha resposta à enfermeira-chefe congelou nos meus lábios. Olhei baçamente para o chão por um momento; então, com esforço, obriguei-me a andar para a porta.

Quando eu saía, a Srta. Trudgeon aproximou-se de mim e instou com uma voz de inconfundível sinceridade:

- Tenha cuidado, doutor. No seu próprio interesse... E no meu.

Minha visão estava turva e incerta, o corredor parecia enevoado; mas ao desembocar na sala de recepção, pude ver bem claramente que Duthie e a esposa sorriam como incapazes de conter uma profunda e íntima felicidade. De fato, Alex levantou-se com um rosto radiante, e segurou-me pela mão.

- Espero que não seja muito cedo para você, rapaz. Mas ninguém poderia deter a patroa e eu esta manhã. Sentimos vontade de cantar durante todo o caminho até aqui.

- Isso mesmo, doutor. - Alice Duthie tinha-se levantado e estava ao lado do marido, com o seu ansioso e singelo rosto todo radiante. – E devemos tudo à sua habilidade e talento.

Segurei-me contra a mesa. As pernas me abandonavam, a cabeça parecia cheia de algodão e, pior de tudo, sentia que a todo momento eu ia arriar e chorar.

- Eh, rapaz! - exclamou Alex. - Você está abatido. E isso não admira, depois de perder seu sono por nossa causa. Não vamos incomodá-lo nem mais um pouquinho. Só vamos dar um pulo e ver Sim.

- Pare... - pronunciei, de maneira débil e entrecortada. Eles me olharam, a princípio admirados, depois preocupados e finalmente com aguda ansiedade.

- O que há? - perguntou Alex, com uma voz alterada. E depois de uma pausa, como que arrancando as palavras: - O nosso menino está mal de novo?

Curvei a cabeça, sem olhar.

- Muito pior? Deus do céu, homem, não fique parado desse jeito. Diga-nos como ele está.

Eu não podia olhar para Alice; a visão do rosto de Alex, despida do seu brilho, cinzenta e lastimável, era muito mais do que eu podia suportar.

- Deus do céu - disse ele em voz baixa, quase extinta. - Ele não...

Houve um comprido silêncio, quão longo não sei dizer. O tempo deixou de ter qualquer significação. Tudo estava turvo e vazio. Mas eu podia ver que Alice estava chorando e que Alex tinha o braço em torno dela.

- Podemos ir vê-lo?

- Sim - murmurei. - Eu irei com vocês.

- Se não se importar, vamos sós.

A caminho da porta, ele se voltou para mim como para um estranho.

- Isto teria sido mais fácil, se ontem de noite você não me tivesse dito que tinha salvo o nosso filho. Nunca mais quero botar os olhos em você.

Voltei ao meu quarto, onde fiquei zanzando, apanhando e soltando coisas.

E então, ao olhar pela janela, vi Alex e a Sra. Duthie dobrando a esquina do edifício e descendo vagarosamente a alameda. A figura dele parecia curvada e esmagada, o braço ainda estava sobre os ombros da esposa, segurando-a apertadamente e apoiando-a enquanto ela se movia cega e indefesa de choro.

Então, tudo me ferveu por dentro. Voltei-me e desci o corredor até a sala de estar das enfermeiras. Conforme eu suspeitara, a Enfermeira Peek estava lá sozinha. Sentada numa cadeira confortável diante de um bom fogo, com os olhos vermelhos, mas a expressão vagamente aliviada; tendo tido "um bom choro", sentia agora que o pior havia passado. Tinha acabado o seu lanche naquele instante, a refeição que fazia cedo antes de deixar o trabalho, e no seu prato vi duas costeletas peladas. Um espasmo de raiva, de fúria insensata e selvagem, sufocou-me.

- Você, sua vagabunda, inútil e sem entranhas! Como se atreve a ficar sentada aí, bebendo e se aquecendo, depois do que fez? Você não compreende que o seu descuido egoísta custou a vida do pobre garoto? Foi por sua culpa, sua maldita e podre culpa, que neste momento ele está lá em cima, morto.

A expressão do meu rosto deve tê-la assustado. Esgueirou-se da cadeira e retirou-se para o canto da sala. Eu a segui, agarrei-a pelos ombros e a sacudi até os seus dentes baterem.

- E você se diz uma enfermeira? Inferno e peste, suficiente para fazer um gato rir. Se você continuar aqui, eu farei com que a agarrem pelo gasganete. Devia ser enforcada pelo que fez. Pense nisso na próxima vez que quiser abandonar seu paciente para ir tomar chá.

Ela não tentou responder. Aferrada no canto, mole e abalada, seus olhos verdes luziam para mim. Dei-lhe as costas e saí. Embora não o lamentasse, eu estava dolorosamente ciente de que a minha explosão tinha sido um erro estúpido. Mas só mais tarde percebi o quanto fora estúpido.

 

Três semanas mais tarde, quando tomávamos o café após o almoço a Srta. Trudgeon, com um ar camarada, mostrou uma carta. Aquela noite da traqueotomia tinha marcado o fim do nosso conflito. Ela não estava em cima das minhas costas, e eu estava disposto a jurar por sua honestidade e responsabilidade. Na verdade, eu começava a achar que ela, relutantemente, já estava gostando de mim.

- Vamos receber esta tarde a visita anual da comissão de administração.

Estudei o memorando datilografado que ela me passou às mãos.

- Então é melhor eu botar um colarinho limpo em honra do acontecimento.

- Isso pode ser aconselhável. - Seus olhinhos cintilaram... São apenas três membros... Masters, Hone e Gloag. Mas são esquisitos. Este ano estão chegando mais cedo que de costume.

- Como a coisa se processa?

- Vamos alimentá-los... Essa é a metade da batalha. Depois, damos uma volta por aí. - Olhou-me de esguelha. - Você não tem por que se preocupar. Quem recebe as palmatoadas sou eu.

Não prestei muita atenção à iminente visita. Eu ainda estava sofrendo e oprimido por minha reação, e só recentemente tinha começado a apanhar os fios da minha pesquisa. Não tinha chegado nenhuma notícia de Jean, e as duas cartas que eu lhe escrevera foram devolvidas, reendereçadas por uma mão estranha.

Vagamente, durante a tarde, eu percebia um ar de preparação, varridas e esfregadelas nos corredores, um polimento final no assoalho e as paredes imaculadas. Também no meu quarto, um armarinho de bebidas fora colocado sobre o consolo, e havia mais lugares na mesa, que estava ornamentada com um vaso de flores e serviço para um copioso repasto.

As quatro e meia, um carro parou na porta da frente, e após alguns minutos de conversação e riso no corredor, a enfermeira-chefe apareceu, toda sorridente, no seu melhor uniforme, conduzindo para a sala os membros da comissão.

- Dr. Shannon... Este é o Sr. Ben Masters... O Sr. Hone... E o Sr. Gloag.

Apresentou-me com um brilho bondoso no olhar, quase timidamente, como se nunca tivéssemos sido outra coisa senão bons amigos que sempre tinham convivido em perfeita harmonia, e imediatamente passou a servir para os recém-chegados altos copos de uísque, com um ar de dignidade e responsabilidade, que eles aceitaram como devido.

O chefe da comissão, Sr. Maters, era um homem de aspecto rude, alto e enxuto de carnes, com feições duras e castigadas pela intempérie, olhos fundos, e voz alta e ríspida de quem está habituado a gritar ordens ao ar livre. Olhou para mim como um capataz, e era, como mais tarde vim a descobrir, um construtor por administração e empreiteiro na vizinha cidade de Prenton. Ao beber seu uísque, ouvindo sem comentários a tagarelice da Chefe, senti que ele me olhava especulativamente por cima dos aros dos óculos.

Entrementes, fui agarrado pelo segundo membro da comissão, o Sr. Hone, uma figura gorda e elegante, com um bigode encerado, terno azul muito justo e polainas. Parecia meticuloso e loquaz; contudo, à sua maneira, embora comercial, era agradável.

- O senhor sabe, doutor - confiou-me ele - nada convém melhor a um homem do que servir seu próximo numa comissão hospitalar. Toma tempo, note o senhor, e tempo é dinheiro nos dias que correm, especialmente quando temos o nosso próprio negócio... Estou no ramo de roupas e estofamento... Mas veja o bem que realiza... Obrigado, Chefe, não me importo em aceitá-lo. O trabalhador merece o seu salário. Uísque muito bom... Imagino o que ele não nos custa. E o interesse, doutor, o senhor não faz idéia das coisas que aprendi a respeito da medicina. Ainda outro dia a mulher mostrou-me uma erupção em nosso caçula... Um bonito bebê, o que eu diria mesmo que ele não fosse... E quando eu lhe disse que não se preocupasse - era apenas do sangue, o senhor compreende - veja, Albert, disse ela, eu tenho que cumprimentá-lo, mesmo que seja meu marido, você sabe tudo a respeito de febres, e qualquer dia será tão bom quanto um médico! Deixarei este cartão com o senhor. - Tirando do bolso superior do colete um cartão comercial, meteu-o confidencialmente na minha mão. - Conforme observa, tenho meus pequenos empreendimentos laterais. No caso de quaisquer pais enlutados dos seus pacientes abastados requererem a minha assistência, é ótimo estar preparado. Fazemos tudo muito dignamente, doutor, e razoavelmente.

Até agora, o Sr. Gloag, o último membro da comissão, um homenzinho de olho vivo, de meia-idade, havia permanecido mudo; contudo, tinha uma maneira de voltar a cabeça na direção da conversa, como se determinado a não deixar que nada lhe escapasse, e de tempos em tempos, como sinal de sua concordância com os colegas, emitia uma exclamação de assentimento meio de má vontade.

- Bem, cavalheiros - observou a Srta. Trudgeon, no seu tom mais mavioso - espero que tenham vindo com bom apetite. Vamos sentar-nos à mesa?

Nossos convivas mostraram pouca hesitação em aceitar o convite. Sem dúvidas, tinham vindo preparados para fazer justiça àquele repasto anual e grátis, e embora, ocasionalmente, o Sr. Masters, à cabeceira da mesa, jogasse uma piada grosseira, durante a maior parte da refeição não se ouviu outra coisa além do tilintar de facas e garfos e da firme mastigação das mandíbulas.

Contudo, por fim, a despeito da insistência hospitaleira da Srta. Trudgeon, os esforços da comissão afrouxaram e cessaram. Depois de uma pausa, o Sr. Masters empurrou sua cadeira para trás e pôs-se em pé, limpando as migalhas do colete, com um ar de negociante.

- Agora, Chefe, se for conveniente, eu gostaria de dar uma volta com a senhora. E com o doutor.

A sua maneira oficial, estabeleceu o tom geral ao começarem o seu turno de inspeção, e logo percebi, pelo ar de tensão da enfermeira-chefe e cor ligeiramente alterada, que aquilo era mais do que uma inspeção aborrecida, como estivera preparada a admitir em minha presença.

No edifício administrativo, os membros visitantes viram o escritório, a lavanderia e a cozinha, onde o Sr. Gloag mostrou um notável talento para espiar nos armários, cheirar nos cantos escuros, e levantar a tampa das panelas e caçarolas para provar a sopa do pessoal.

A seguir, nosso grupo passou para os pavilhões, onde, enfrentando sua tarefa principal, os homens da comissão começaram uma vagarosa marcha, quase real. Determinado a não perder nada, Gloag foi por toda a parte, até espiou embaixo das camas no seu esforço para encontrar poeira ilícita. Uma vez o perdemos no lavatório do Pavilhão B, mas ele reapareceu com uma expressão de derrota, tendo achado tudo em perfeita ordem. Masters foi igualmente completo, interrogando os pacientes, inquirindo cada um deles em cochichos roucos, que se podiam ouvir de longe, indagando se havia motivo para queixas. Hone, entrementes, achou de seu dever sondar o pessoal, especialmente as enfermeiras mais jovens, inquirindo com untuosa familiaridade sobre sua saúde e hábitos.

Uma vez, deteve-se e, apontando para um caso bem típico de sarampo, observou-me por cima do ombro, como um aparte de teatro, e o ar de um conhecedor:

- Bela erupção, não? Varicela, hein? Eu poderia ver a um quilômetro de distância.

Eu não o contradisse. De fato, apaguei-me o quanto possível. Aquilo era obviamente responsabilidade da enfermeira-chefe, e embora eu só pudesse simpatizar com ela, não tinha nenhum desejo de atrair o fogo do inimigo contra mim.

Talvez fosse preconceito meu, e a comissão estivesse desempenhando sua tarefa com os mais elevados motivos; contudo, eu não podia afastar a idéia de que aqueles três intrometidos mal-educados e desinformados, cada um à sua maneira, eram do tipo do político de cidade pequena que empurra os negócios públicos para a frente, a fim de obter alguma vantagem pessoal e que, investido de uma autoridade insignificante, trata de exercê-la ao máximo.

Afinal, estava acabado; emergimos do fim do pavilhão para o ar frio de novembro e, com uma sensação de alívio, eu me preparava para ver os nossos hóspedes indesejados partirem, quando, de súbito, num tom intencional, Masters exclamou:

- Agora vamos dar uma olhadela no Pavilhão E.

Por um instante, fiquei intrigado, e na verdade o grupo fez um ar geral de surpresa; depois, com um sobressalto, observei a direção do seu olhar.

- O senhor se refere ao velho pavilhão da varíola? - perguntou a Chefe, num tom dúbio.

- E que outro mais? - respondeu Masters, irritado. - Faz parte das construções do hospital. Quero vê-lo como o resto. Hesitou um pouco. - Estou pensando que poderemos reconstruí-lo.

- Naturalmente - falou a Chefe, sem se mover. - Faz um bom tempo que não é usado.

- Exatamente - interrompi, açodadamente.

- Nós seremos os juízes disso. Vamos adiante.

Deixei-me levar para a frente com os outros, sem saber como aquilo tinha-me ocorrido. Da sua mal escondida surpresa e aborrecimento, fiquei inteiramente convencido de que não houvera a mão da Chefe naquilo. Masters estava agora na porta, torcendo o trinco, empurrando o ombro contra uma folha. Como a porta resistisse, tomei uma decisão completamente errada.

- Talvez esteja pregada. Nunca poderemos entrar aí.

Houve uma curiosa espécie de silêncio. Então Hone perguntou, tranqüilamente:

- O senhor não quer que entremos, doutor?

Entrementes, Masters tinha riscado um fósforo e, curvado para baixo, estava remexendo no buraco da fechadura. Num tom de descoberta, exclamou:

- Este é um cadeado novo... Novinho em folha. – Endireitou-se. - O que está acontecendo aqui? Gloag, vá dizer a Pim que traga uma alavanca.

Vi então que eu tinha de enfrentar aquilo. Eu não queria que Pim fosse envolvido, a enfermeira-chefe parecia preocupada, de maneira que remexi no bolso de dentro e tirei a chave.

- Vou abrir para os senhores - falei, a fim de melhorar o que já era mau.

Com os seus instintos de investigação plenamente despertados, todos os três se precipitaram para o interior da construção e ficaram olhando de maneira ultrajada para o meu equipamento. Depois da excursão até agora infrutífera, descobrir aquela iniqüidade era para eles um prato cheio.

- Raios me partam! - exclamou Masters. - O que é isto aqui?

Sorri para eles conciliatoriamente.

- É muito simples, cavalheiros. Estou fazendo um trabalho de pesquisa, e como este pavilhão estava completamente desocupado, aventurei-me a usá-lo como meu laboratório.

- Quem o autorizou?

A despeito de minha resolução de ser manso, fiquei vermelho com o tom da voz de Masters.

- Era preciso que alguém autorizasse?

Masters franziu o cenho e olhou fuzilando para mim.

- O senhor não sabe que é responsável por tudo perante a comissão? O senhor não tinha nenhum direito de tomar semelhante liberdade.

- Não compreendo o seu ponto de vista. Será tomar uma liberdade aplicar-me à pesquisa científica?

- Sem dúvida. O senhor é o médico deste hospital de febres, e não uma porcaria de pesquisador.

Hone tossiu baixinho por trás da mão.

- Posso perguntar-lhe que tempo utilizou para isso que o senhor chama de pesquisa. Presumo que a fazia quando devia estar nas enfermarias cuidando dos nossos doentes.

- Trabalhei no meu próprio tempo, de noite, depois de acabados os meus deveres oficiais.

- Seus deveres oficiais não acabam nunca - atalhou Masters, rudemente.

- Este é um trabalho de tempo integral. Nós lhe pagamos para estar atento 24 horas por dia, não para escapulir e fechar-se com uma coleção de germes. E que, diabo, anda fazendo com eles?

Esquecendo o sábio exemplo da enfermeira-chefe, no sentido de que a única maneira de tratar com um funcionário que se atribui importância é linsojeá-lo e engabelá-lo, perdi a calma.

- Mas que diabo o senhor pensa que estou fazendo? Que estou brincando com eles?

Genuinamente chocado, Hone interpôs.

- Insolência não vai ajudá-lo, doutor. Muito imprópria. Este é um assunto grave, muito grave. Quem acha o senhor que paga a eletricidade que está gastando, e o gás para acender esses bicos? Nós representamos os contribuintes do distrito. O senhor não pode manter um negócio particular com o tempo do público e o dinheiro do público.

- Vamos informar a comissão principal de tudo - declarou Masters. - Vou informá-lo pessoalmente.

Mordi o lábio, impotente. O grão de verdade nas observações de Hone ainda as tornava menos aceitáveis. Embora eu nunca tivesse sonhado que fosse necessário, via agora que teria sido mais prudente de minha parte obter, em primeiro lugar, uma licença. Eu só podia ranger os dentes em silêncio, minha desgraça aumentada pelo curioso olhar de comiseração que a Srta. Trudgeon me lançou, quando fechei a porta daquele fatal pavilhão e acompanhei os demais ao edifício principal, onde, após um rápido gole de bebida para se fortificarem contra o frio, meus três opressores meteram-se nos sobretudos e cachecóis e prepararam-se para sair. Despediram-se cordialmente da enfermeira-chefe, mas mal me disseram "passe bem", e isso com o mais gélido dos olhares.

Taciturnamente, acabei voltando para o meu quarto. A minha má sorte era colossal; contudo, não podia acreditar que tomassem medidas severas contra mim. O que eu tinha cometido não era um crime, e quando, com mais calma, considerassem o assunto, certamente deveriam reconhecer a honestidade do meu propósito. Resolvido a não deixar nada para o acaso, sentei-me imediatamente à escrivaninha e escrevi-lhes um relatório completo sobre o que estava tentando fazer com a minha pesquisa.

Senti-me mais confiante, quando o coloquei na caixa da correspondência. Naquela noite, quando voltava da minha última visita às enfermarias, encontrei a Enfermeira Peek no corredor. Ela não tinha começado o seu trabalho; o livro de anotações da noite estava firme debaixo do seu braço. Aparentemente, estava ali à minha espera. Quando apareci, ela tomou fôlego.

- Boa noite, Dr. Shannon. Espero que se tenha divertido esta tarde.

- O que quer dizer? - perguntei-lhe.

- Espero que tenha gostado da visita desta tarde.

Sua voz estava estranhamente aguda; aliás, o fato de ela se dirigir diretamente a mim, era, em si mesmo, suficientemente estranho para prender minha atenção. Ultimamente, mantinha-se fora do meu caminho, e quando nos encontrávamos ela passava por mim sem levantar os olhos. Fitando-a melhor no corredor obscuro, vi que quase estava agachada, contra a parede. Contudo, apesar de todo o seu encolhimento, continuou de um só fôlego:

- Deve ter sido ótimo para o senhor, quando eles entraram no pavilhão do isolamento e descobriram tudo a respeito do seu belo laboratório. Estou certa de que o senhor deve ter apreciado muito.

Continuei a observar seu rosto. Surpreendia-me ver o quanto ela me odiava.

- Oh, sim, meu belo Dr. Shannon. Não sou eu quem vai ser posto na rua. Eis aí! Talvez isso lhe ensine a não insultar uma dama. Porque, no caso de que o senhor não saiba - arquejou com terrível triunfo - o presidente da comissão, Sr. Masters, é meu cunhado.

Fiquei ali, parado, imóvel... Muito tempo depois de ela ter saído. Agora, tudo estava claro, a última coisa do mundo que eu jamais sonhara que aconteceria. Em certo tempo, eu temia que a enfermeira-chefe me denunciasse, mas nunca, entre todas as pessoas, nunca Effie Peek.

Durante o seu trabalho noturno, ela me via sair para o pavilhão e, depois de espiar aqui e ali, tinha-me denunciado a seu digno parente. Era uma doce vingança. Quando passou o meu primeiro assomo de fúria, senti-me abatido e desamparado. Como se poderia lutar contra uma coisa como aquela? Eu tinha insultado as suas tímidas sensibilidades além de qualquer perdão. Não era a vendeta ordinária ou despeito, porém alguma coisa mais. Ela era provavelmente vítima de uma compulsão neurótica, e não podia evitá-lo. Contudo, aquilo não tinha remédio. E depois disso, não me restava uma centelha de esperança.

No último dia do mês, recebi uma comunicação oficial da comissão de administração, assinada por Ben Masters, pedindo que eu me demitisse da minha posição de médico do Dalnair Hospital. Li a carta com uma cara de pedra.

O pessoal do hospital manifestou sua simpatia. Encabeçados pela enfermeira-chefe, fizeram uma lista e, numa pequena cerimônia, após discursos agradáveis, presentearam-me com um lindo guarda-chuva. Então, com um ar melancólico, Pim levou-me à estação na velha ambulância. Eu estava outra vez solto no mundo, enfrentando a possibilidade de continuar os meus experimentos na rua. E para começar, saí andando cegamente na plataforma da Estação de Winton, tendo deixado o meu guarda-chuva novo no trem, e o perdi.

 

 

Uma semana mais tarde, por volta das nove horas da noite, eu carregava minha mala numa estrada deserta, forçando os olhos na escuridão nevoenta para avistar pela primeira vez o Eastershaws Palace, ainda de todo invisível no vazio ilusório da noite. Eu tinha perdido o trem em Winton e, chegando com uma hora de atraso a Shaw Junction, que fica nas pastagens arborizadas e solitárias do Lothian, cerca de 60 quilômetros da cidade, não encontrei nenhuma condução à minha espera. Na estação da aldeia, tinham-me indicado a direção, mas naquela região deserta eu estava quase certo de ter perdido o caminho, quando dei com um alto e sólido muro de pedra, encimado por lanças de ferro. Segui por ele durante uns 10 minutos e, com uma curva brusca, ele me levou aos portões de entrada, guardados por uma guarita de pedra, com uma lanterna na janela.

Depondo minha mala, bati na pesada porta ornada de pregos que dava acesso à guarita. Após um breve intervalo, alguém apanhou a lanterna da janela e desceu da guarita, uma figura invisível espiando por trás do portão.

- Quem é?

Dei-lhe o meu nome, acrescentando: - O senhor me esperava, não?

- Não sei nada a seu respeito. Que é do seu passe?

- Não tenho passe. Mas com certeza lhe disseram que eu vinha.

- Não disseram nada.

O porteiro estava para voltar à guarita e deixar-me lá fora no escuro. Mas nesse momento apareceu outra lanterna balançando, e uma voz feminina, aguda, um tanto pretensiosamente culta, e com um sotaque irlandês, fez-se ouvir por trás do porteiro.

- É o Dr. Shannon. Muito bem, Gunn, abra e deixe-o entrar. Não sem algum resmungo do empregado, os portões de ferro lavrado se abriram.

Apanhei minha mala e entrei.

- Trouxe as suas coisas consigo? Ótimo. Venha.

O meu guia, até onde eu podia julgar pela frouxa luz da lanterna, era uma mulher de cerca de 40 anos, de cabeça descoberta, óculos azuis, com um grosso sobretudo irlandês, folgado e de tweed grosseiro. Quando os portões se fecharam com estrondo, ela tomou por uma comprida e escura alameda e apresentou-se.

- Sou a Dra. Maitland, encarregada da Ala das Mulheres. Rocei numa moita de arbustos e quase perdi o equilíbrio. - O Dr. Palfrey é que devia recebê-lo... Ele cuida das Alas Leste e Oeste dos Homens, mas hoje é o seu meio dia de folga e ele foi a Winton. - Fez uma pausa e acrescentou: - Esse aí na frente é o nosso edifício principal.

Ergui os olhos. A alguma distância, sobre uma ligeira elevação entrevia-se uma forma acastelada, uma colméia de luzes que enxameavam brumosamente na negrura úmida. A névoa enfraquecia aquelas luzes, dava-lhes uma aparência luminosa e ilusória. Enquanto eu observava, andando para a frente, algumas luzes se apagaram e outras se acenderam, o que fazia a constelação tremeluzir e dançar.

O fim da alameda levou-nos diante de uma alta fachada, e Maitland avançou para um pórtico de pedra iluminado por uma lâmpada suspensa de uma grade de ferro. Detendo-se, com a chave na mão, no alto dos largos e baixos degraus de granito, explicou:

- Este é o Sul dos Cavalheiros. Seus aposentos ficam aqui.

Lá dentro, o corredor era largo e alto, pavimentado de mármore branco e preto, com uma estátua de alabastro no fim e três enormes paisagens, a óleo e pesadamente douradas, nas paredes. Dois armários marchetados, flanqueados por imponentes poltronas verde e ouro, completavam o quadro que estupefazia pelo seu esplendor rococó.

- Espero que aprove - disse Maitland, que pareceu esconder um sorriso.

- A Entrada do Valhalla, não é?

Sem esperar resposta, continuou a subir a larga escadaria atapetada até o terceiro andar. Aqui, usando, com notável destreza, a mesma chave, que agora eu via estar ligada a seu pulso por um delgado fio de aço, abriu a porta de uma suíte independente.

Apesar do frio divertimento dela, os quartos, embora um tanto arcaicos no estilo da mobília, eram incomumente confortáveis. Na sala de estar, onde as cortinas de chenille já estavam descidas, um fogo de carvão lançava um quente fulgor sobre o guarda-fogo de bronze e o felpudo e vermelho tapete. Havia duas espreguiçadeiras e um sofá, uma lâmpada de leitura e uma secretária com prateleiras de livros encadernados em couro. O quarto de dormir, mais adiante, mostrava uma confortável cama de mogno; a banheira, no compartimento contíguo, era de porcelana, grossa e redonda. Fui tentado, com uma ponta de amargura, a dizer à minha colega que, em contraste com os inconvenientes que eu tinha no Globe, aquilo era um luxo.

- Não quer desfazer a mala? - perguntou ela, parada discretamente à porta. - Ou talvez gostaria que lhe trouxessem um jantar?

- Sim, gostaria. Se não fosse muito incômodo.

Coloquei a mala atrás do sofá e, enquanto ela tocava a campainha ao lado do consolo da lareira e pedia alguma coisa para mim, olheia-a melhor. Era extremamente comum, com uma pele rósea e lustrosa, manchada, os cabelos acastanhados, descuidadamente arrepanhados num nó atrás da cabeça. Os olhos eram evidentemente fracos, porque, mesmo através das suas lentes violetas, as pálpebras eram visivelmente vermelhas. Como para acentuar intencionalmente sua falta de beleza, estava desmazeladamente vestida, com uma blusa de flanela de listras cor-de-rosa e uma saia de tweed de babados, por baixo do seu grosso casacão irlandês.

Em cinco minutos, uma criada de uniforme preto e largo e avental branco engomado entrou silenciosamente com a bandeja. Era baixinha e rechonchuda, quase uma anã, com panturrilhas musculosas sob as meias pretas e uma cara cinzenta e inexpressiva.

- Muito obrigada, Sarah - disse Maitland, atenciosamente. – Isso parece ótimo. A propósito, este é o Dr. Shannon. Sei que você vai cuidar bem dele.

A criada manteve os olhos no tapete, sem afrouxar a palidez do rosto. Mas, subitamente, fez uma pequena reverência. Sem falar, saiu. Acompanhei-a com os olhos, e então me voltei para minha colega, interrogativamente.

- Sim - fez ela, descuidadamente.

Observara-me com o seu sorriso provocante e meio zombeteiro, ao servir-se de uma xícara de café e começar a comer um sanduíche.

- Aqui nos tratam muito bem. A Srta. Indre, que cuida da casa, é muito diferente. A propósito, não vou arrastá-lo por aí para apresentá-lo aos colegas. Palfrey é o homem que você verá mais; tomará o café da manhã com ele diariamente na Ala Leste dos Homens. E há o Dr. Goodall... Nosso Chefe... Aquela era a sua casa, a de cortinas vermelhas, à esquerda da entrada.

- Não devo apresentar-me a ele esta noite? - perguntei, levantando os olhos.

- Vou informá-lo de que você está aqui - respondeu Maitland.

- Quais são os meus deveres?

- Visitas matinais e noturnas. Substituir Palfrey e a mim em nossos dias de folga. Inspeção no refeitório. Ocasionalmente, no dispensário. Além disso, faça-se geralmente útil e agradável à boa gente do nosso pequeno mundo. É muito simples. Entendo que vai fazer alguma pesquisa. Terá ampla oportunidade para isso entre os turnos. Aqui está a sua chave mestra.

Tirou uma chave do bolso do sobretudo, semelhante à dela, ligada a uma fina corrente de aço.

- Logo aprenderá o jeito de usá-la. Aviso-o de que não irá a parte alguma em Eastershaws sem ela. Não a perca.

Não havia zombaria nas maneiras de Maitland, quando me entregou a chave larga e antiquada, incrivelmente lisa e polida como prata pelo uso constante.

- Bem, imagino que isso é tudo. Agora, vou sair para ver a Duquesa. Ela tem estado muito rebelde e precisa de uma boa leitura e de uma dose de heroína.

Quando a médica se retirou, terminei meu jantar, que era muito diferente da comida comum do hospital, e inteiramente à altura daquele suntuoso estabelecimento. Eu não sabia se dava ou não uma pequena volta de reconhecimento com a minha nova e indispensável chave. Quando eu chegara à escadaria com Maitland, tinha  observado, em cada patamar, uma porta de mogno com um letreiro desbotado ao  alto, e grossos painéis de vidro que davam vista para uma comprida galeria, frouxamente iluminada, que, por sua vez, dava misteriosamente em outra porta, e mais outra galeria.

Apesar da recomendação do Professor Challis, já esquecido de que aquele lugar era um dos melhores da sua classe, uma vaga inquietação me perturbava. Nesta profissão, a gente sempre tende a olhar de esguelha para o trabalho em um hospício como um tantinho fora do normal. Há gente esplêndida nesse serviço, claro, mas, por outro lado, alguns são nitidamente esquisitos, ficando mais esquisitos, à medida que o tempo passa. É uma vida tranqüila, e muitos médicos desempregados acabavam entrando nela. Além disso, uma vez lá dentro, é de certo modo mais difícil sair. Sem exagerar muito o assunto, digamos que alguns desses estados mentais peculiares "pegam" como as febres contagiosas. Todavia, eu teria que correr o risco. Levantei-me abruptamente. Minha cama tinha sido cuidadosamente arrumada, com os lençóis dobrados, de um linho mais fino e mais branco do que eu vira até então. Apanhando minha mala atrás do sofá, abri-a, distribuindo os meus livros, papéis e meus pobres pertences da melhor maneira. O médico anterior, que eu não sabia o nome, não se tinha dado ao trabalho de retirar todos os seus objetos, deixando meia lata de cigarros, um velho roupão de banho de listras vermelhas, vários romances, e uma vintena de quinquilharias espalhadas em descuidada profusão.

Eu possuía apenas uma pequena fotografia, colada num passe-partout barato, um instantâneo batido num dia de sol nas charnecas que ficavam atrás do Gowrie: uma carinha franca e simples, em sépia, com os cachos arrepiados pelo vento, um queixo pontudo e corajoso... Com olhos escuros sorridentes... Podia-se acreditar...  Realmente sorrindo com uma estranha felicidade acordada. Estariam sorrindo agora? Ao menos, quando coloquei a foto no consolo da lareira, ao lado do relógio, eu não tinha um sorriso correspondente. Em vez disso, fui até o calendário da escrivaninha e, com uma expressão fixa e estranha, marquei a data de 31 de julho.

Nesse momento, uma rápida batida na porta me sobressaltou instintivamente e, quando vi a figura alta e de traços marcados no limiar, percebi que meu visitante era o superintendente.

- Boa noite, Dr. Shannon. - A voz era branda e hesitante. – Seja bem-vindo a Eastershaws.

Comprido e meio desengonçado, o Dr. Goodall tinha um ar sombrio e alquebrado, com os cabelos cinza-aço que precisavam de um corte e pendiam desalinhados sobre o colarinho. O rosto era comprido e saturnino, com o nariz um tanto grande, queixo retraído, olhos ictéricos com pálpebras espessas e que, embora alheados, eram profundamente humanos, cálidos de compreensão, com uma profundidade estranhamente hipnótica.

- O Professor Challis me falou muito do senhor. - Sorriu, meditativamente. - Ocorreu-me que deve estar ansioso para ver o seu laboratório.

Com um gesto, indicou que eu devia acompanhá-lo. Descemos as escadas e, por um subterrâneo lajeado, iluminado por lâmpadas elétricas com cúpulas foscas, levou-me a uma considerável distância sob o edifício principal, e depois, por um declive, a um pequeno pátio central, aberto às estrelas, mas cercado por altos muros. Abriu silenciosamente outra porta e acendeu a luz.

- Cá estamos, Dr. Shannon. Confio em que o achará satisfatório.

Fiquei sem fala. Apenas podia olhar em mudo pasmo, completamente emocionado. Sem dúvida, eu tinha esperado uma sala de trabalho razoavelmente boa, embora, á luz da minha passada experiência, não ousasse contar com isso. Mas aquilo excedia às minhas mais desvairadas expectativas. Era a mais requintada unidade que eu jamais tinha visto, melhor ainda, que o laboratório do departamento, com bandejas após bandejas de reagentes arrolhados, um escopômetro Exton, coifas condicionadas, um moedor elétrico, câmara esterilizante - tudo perfeito, das paredes azulejadas à última pipeta, sem qualquer despesa.

- Receio - comentou, desculpando-se ligeiramente, Goodall - que não tenha sido muito usado. Alguns dos aparelhos talvez necessitem de regulagem.

- Mas é perfeito. - A voz me fugia. Ele sorriu, levemente.

- É um acréscimo recente. E tivemos a melhor assistência técnica quando o instalamos. Alegro-me de pensar que ele vai ver alguma atividade. - Naquela sua maneira remota e simpática, concluiu: - Esperamos grandes coisas do senhor. Eu sou um solteirão solitário, Dr. Shannon. Eastershaws é o meu filho. Se puder trazer-lhe crédito, o senhor me fará feliz.

Refizemos os nossos passos. No corredor, abaixo da escadaria que levava aos meus aposentos, ele se deteve, com aquele olhar de pálpebras pesadas que apenas alcançava o meu.

- Confio em que esteja satisfeito com o que Eastershaws pode fazer pelo senhor. Suas acomodações são confortáveis?

- Mais do que confortáveis.

Uma pausa.

- Boa noite, então, Dr. Shannon.

- Boa noite.

Quando ele se retirou, entrei no meu quarto, tonto com o impacto daquela estranha e irresistível personalidade. Despi-me lentamente, tomei um banho quente e fui para a cama. Ao acomodar-me para dormir, ouvi, através do silêncio geral, um grito súbito e lúgubre. Era como o desolado e selvagem pio de uma coruja. Eu saiba que não era coruja, mas não me importei. Eu agora não tinha lugar para desânimo.

O grito soou outra vez, perdendo-se lentamente na escuridão la de fora.

 

Na manhã seguinte, do pequeno balcão de ferro saliente da minha janela, pude ver a impressionante perspectiva de Eastershaws.

A mansão, construída em granito cinzento, brilhante ao ar da manhã, era em estilo baronial, com seus frontões acastelados e seus quatro torreões maciços. Na frente, havia um largo terraço balaustrado com um repuxo central cercado de desenhos ornamentais em madeira de buxo. Um relvado, margeado por canteiros de rosas, estendia-se até fundir-se com um gramado para jogos, servido por um pequeno chalé tirolês. Alamedas cortavam os gramados verdes, e o alto muro de pedra que circundava o vasto terreno dava-lhe um ar de propriedade particular, como se fosse um domínio privilegiado.

Barbeei-me e desci; então, quando bateu oito horas, saí para o café da manhã com o Dr. Palfrey. Na sala de estar atrás do Leste dos Homens encontrei um homem meio calvo, de uns 50 anos, baixo, gordo e rosado, sentado à mesa e comendo vigorosamente por trás do jornal da manhã. Nossos olhos se encontraram.

- Venha sentar-se, meu caro colega. - Sempre a comer, estendeu a mão em cumprimento, e completou o gesto enchendo a boca com uma torrada amanteigada. - Você é Shannon, sem dúvida. Sou Palfrey...  De Edimburgo, colei grau em 1899. Arroz com ervilhas e ovos mexidos, bacon e ovos ali... E aqui... Café. Uma bela manhã... Céu azul e ar claro... Um "legítimo dia de Eastershaws", como dizemos aqui.

Palfrey tinha um ar caloroso, inofensivo e ligeiramente tolo, faces lisas e roliças, que a cada movimento balançavam como geléia. Parecia inteiramente lavado e manicurado, os punhos eram engomados, pincenê de ouro elegantemente preso ao pescoço por um fio invisível. Aqui e ali, na calva rosada, alguns cabelos claros, ligeiramente manchados de amarelo-avermelhado, cuidadosamente arranjados a partir das orelhas. Não parava de passar o guardanapo nos lábios róseos e no bigode branco.

- Devia tê-lo conhecido ontem à noite. Mas eu estava fora. No exterior, como dizemos aqui. Fui à ópera. Carmen. Ah! Maravilhoso, infeliz Bizet. Pensar que ele morreu com o coração despedaçado, após o fracasso da encenação na Opera Comique, sem um vislumbre do glorioso sucesso que obteria depois. Assisti a essa ópera precisamente 37 vezes. Já a ouvi com Bressler-Gianoli, Lehmann, Mary Garden, Destinn...  Reszke como Don José, Amato como Escamillo. É muita sorte termos uma temporada de Carl Rosa em Winton. - Trauteou alguns compassos da Canção do Toureiro, batendo com os dedos no Herald que tinha na frente. - Na crítica aqui, diz que Scotti estava com uma bela voz. Evidentemente! Ah, naquele momento em que Micaela, símbolo da doçura, entra na caverna rochosa e selvagem do acampamento dos contrabandistas! "Procuro não mostrar que tremo." Delicado... melodioso... soberbo! Interessa-se por música?

Respondi com um murmúrio inarticulado.

- Ah! Você deve ir ao piano do auditório comigo. Vou lá quase todas as noites, repassar umas poucas coisas. Posso confessar que a música é o meu deleite. Conto três grandes momentos na minha vida... Quando ouvi a Patti cantar as Vésperas Scilianas, Galli-Curci no Pássaro Formoso, da Pérola do Brasil, e Sevilhann de Massenet pela Melba.

E assim continuou até que eu terminei a refeição; então, com um gesto adamado, consultou o relógio de pulso.

- O chefe falou para eu dar um giro com você. Vamos.

Saiu espalhafatosamente, com as pernas curtas e gorduchas movimentando-se com inesperada velocidade na galeria subterrânea, então, fazendo uma completa inclinação para a direita, como por uma materialização astral, levou-nos inesperadamente para a luz do dia no corredor que ficava abaixo dos meus cômodos.

Ali, um homem obeso, de ar estúpido, com seus 50 anos, metido num uniforme cinzento desalinhado e manchado de graxa, com sapatos de sola de borracha, andava abaixo e acima em seu trabalho. Quando Palfrey apareceu, empinou a barriga e cumprimentou com um misto de obsequiosidade e pompa.

- Bom dia, Scammon. Dr. Shannon... Este é Samuel Scammon... Nosso Atendente-Chefe... E também, posso acrescentar, nosso precioso maestro da Banda de Música de Eastershaws.

Acompanhados pelo auxiliar de Scammon, o Atendente Brogan, um belo rapaz de atrevidos olhos azuis, avançamos para a primeira galeria, sobre a qual eu agora via, em ouro desbotado, o nome BALACLAVA. Como um prestidigitador, Scammon manipulou sua chave. E estávamos lá dentro.

A galeria era comprida, alta e tranqüila, bem iluminada por um renque de janelas altas de um lado e com uma vintena de portas, que davam para os dormitórios individuais, do outro. A mobília, como a da entrada lá embaixo, era marchetada, os tapetes e cortinas, embora desbotados, eram ricos. Havia cadeiras espreguiçadeiras em abundância, prateleiras de livros e periódicos, e num canto um globo terrestre giratório. O ambiente era o de um clube confortável mas antiquado, cheirando a velhice, sabonete, couro e polidor de móveis, com um leve odor de sanitários.

Cerca de 20 cavalheiros, sentados sossegadamente, gozavam as amenidades da galeria. No primeiro plano, dois deles estavam ocupados com um jogo de xadrez. Outro, num canto, com um dedo meditativo, girava a esfera geográfica. Vários liam os seus jornais matutinos. Outros sem fazer nada mantinham-se empertigados nas suas cadeiras.

Palfrey, tendo passado os olhos no relatório que Scammon lhe entregou, adiantou-se jovialmente.

- Bom dia, cavalheiros. O joguinho está bom? - Radiante, colocou uma mão amiga no ombro de cada jogador de xadrez. - Está um dia esplendoroso lá fora. Apreciarão o seu pequeno passeio, garanto-lhes. Vou dar uma volta por aí... E então podem sair.

Desceu pela galeria, detendo-se de quando em quando, cheio de bom humor e conselhos afáveis. O seu fluxo de conversa fiada, embora um tanto padronizada, nunca falhava. Ouvia queixas com um ar indulgente e apaziguador. Cantarolava às vezes. Contudo, não gastou um minuto na sua expedita passagem.

ALMA era a galeria seguinte, e depois vinha a INKERMAN; eram seis ao todo, e quando, por fim, emergimos no vestíbulo do andar térreo, tendo completado todo o circuito, era quase uma hora da tarde. Palfrey, sem demora, escoltou-me para o ar fresco e ao longo do terraço até a Ala Oeste para o almoço.

- A propósito, Shannon, talvez eu devesse avisá-lo... Maitland e a nossa governanta, a Srta. Indre, formam uma pequena associação de admiração mútua muito fechada. Não estão particularmente apaixonadas por mim. - Despediu o assunto aereamente. - Isso pouco me importa. Mas é mais uma razão para nos apoiarmos um ao outro.

Na pequena sala de estar diante do vestíbulo da Oeste Senhoras, arranjada com gosto como sala de jantar, a mesa quadrada posta com uma fina toalha de linho e serviço para quatro, a Srta. Indre e Maitland já estavam à espera. A governanta saudou-me com uma pequena e quieta inclinação de cabeça, uma mulher aristocrática, delgada, murcha, de mais de 50 anos, imaculada e frágil num uniforme de voile azul, com colarinho e punhos brancos, estreitos e moles.

Ao sentarmos, olhares velados de entendimento e observações íntimas e discretas passavam de uma mulher para a outra. Foi uma refeição constrangida e desconfortável. Após a sopa, foi trazida uma travessa de carne com o osso inteiro e colocada diante de Palfrey, que a trinchou embaraçadamente, respirando arduamente ao cortar as fatias da parte inferior da paleta para os vários pratos. Ocasionalmente, com modos masculinos, Maitland dirigia uma jovial observação na minha direção - perguntou-me se eu prepararia a provisão de soluções depois do almoço para a sua enfermeira-encarregada. Uma ou duas vezes quando Palfrey falou, ela lançou um olhar divertido para a Srta. Indre.

Oprimido pelas novidades da manhã, e pela minha inesperada dificuldade em ajustar-me àquele ambiente estranho, eu mantinha silêncio. Quando Palfrey se levantou, após a sobremesa, murmurando uma desculpa, acompanhei-o ao terraço.

- Essas mulheres! - exclamou ele. - Eu não lhe disse? Não posso agüentar essas duas, Shannon. Aliás, detesto todas as mulheres. Graças a Deus, nunca tive nada com uma delas em toda a minha vida.

Virou-se e saiu rapidamente para desempenhar as suas funções no refeitório, deixando-me seguir, com emoções confusas, para o dispensário.

Ali, a Enfermeira Shadd e uma outra enfermeira me aguardavam com um ar oficial. Shadd era uma mulher de meia-idade, de feições grosseiras, com um enorme busto e olhos bondosos. Estava examinando o relógio, pregado na frente do seu uniforme, quando entrei.

- Boa tarde, doutor. Esta é a Enfermeira Stanway. Podemos receber o nosso suprimento?

Quando Shadd colocou sua cesta vazia no balcão, a outra enfermeira relanceou os olhos para mim, de lado, e por sua face achatada, pálida e composta, passou um ligeiro sorriso. Teria 25 anos, possuía cabelos escuros e portava-se com um ar de indiferença, usando um anel de noivado na mão direita.

- Deixe-me mostrar-lhe onde estão as coisas - falou Shadd. - Um amigo na hora é amigo que se adora.

Eu ia descobrir que a Enfermeira Shadd tinha uma coleção de provérbios tais como "Seis e meio já é uma dúzia", "Não chove mas cai água”, "Um ponto na hora poupa nove”, que ela constantemente dizia com um ar de sabedoria. Agora, muito alegremente, ajudava-me a encher sua cesta com as drogas usuais, na maior parte hipnóticos; então, com outro olhar para o seu relógio pendente, retirou-se, observando por cima do  ombro, ao passar pela porta, naquele tom amigo e bem disposto que tinha para com Stanway:

- Apanhe a roupa da Leste para o Dr. Shannon. Depois, venha ajudar-me na rouparia.

Houve uma pausa quando a Enfermeira Stanway e eu ficamos a sós, processando-se uma alteração do ambiente, uma imperceptível queda do plano funcional. Quando soltou a cesta, lançou-me um olhar despreocupado.

- O senhor se importa se eu me sentar?

Não fiz objeção. Adivinhei que ela queria iniciar uma conversação comigo, mas, embora fosse minha regra nunca olhar duas vezes para uma enfermeira, aquele lugar, francamente, estava mexendo com meus nervos, e achei que um pouco de conversa humana poderia ajudar.

Encarapitando-se no balcão, ela me fitou, sem expressão, mas ainda assim com um ar ligeiramente zombeteiro. Não era exatamente bonita, demasiado pálida, com lábios cheios, malares altos e lisos e um nariz repuxado. Tinha, contudo, um aspecto atraente. Sob os olhos havia leves sombras azuis, e a pele era esticada. Os cabelos pretos, cortados retos na frente, tinham um brilho azulado.

- Bem - disse ela, friamente. - O que o trouxe a Eastershaws?

- Vim apenas à procura de descanso - respondi, no mesmo jeito.

- E terá. Este lugar é praticamente um necrotério.

- De algum modo, parece antiquado.

- Foi construído há um século. E acho que não mudou muito desde então.

- Aqui não usam métodos modernos?

- Usam, sim. Não Palfrey, coitado. Ele apenas come, dorme e cantarola. Mas Maitland sua na hidroterapia, no tratamento de choque e na psicanálise. Ela é muito séria, tem boa intenção, muito decente, de fato. O plano de Goodall é o melhor. Não se mete com a gente. Mas trata de que os pacientes sejam bem atendidos, e de certo modo os ajuda fingindo que eles são normais.

- Gostei de Goodall. Conheci-o ontem á noite.

- Ele é correto. Apenas é meio pancada também. – Olhou-me satiricamente. - Nós todos estamos um pouco fora dos trilhos.

Completei a lista Leste para ela, gaze, fios para compressas, ataduras, soluções de valeriana, brometo, e cloridrato. Eu nunca tinha lidado com paraldeído antes, e quando tirei a rolha do frasco o seu cheiro de éter quase me derrubou.

- É uma droga forte.

- É, sim. É um tapa. Nada mau para ressaca.

Riu brevemente com a minha expressão de surpresa e enfiou o braço na alça da cesta. Ao dirigir-se para a porta, lançou-me, com os seus olhos oblíquos, aquele meio sorriso direto e peculiar.

- Aqui não é tão mau, quando a gente conhece os jeitos. Algumas de nós conseguem ter um tempo muito decente. Apareça em nossa sala de estar, quando estiver aborrecido.

Quando ela saiu, achei-me franzindo ligeiramente o cenho. Não que estivesse intrigado. Embora fosse bem moça, seu ar de experiência, a pele azul esticada embaixo dos olhos, aquele rosto inexpressivo e encolhido que nada denunciava sugeriam uma história agitada.

Quando terminei no dispensário, eram apenas três horas, e eu estava livre para começar meu próprio trabalho. Com um suspiro de alivio, saí do prédio. Mas ali me detive de súbito, com a cena que tinha diante de mim.

Na cancha abaixo do terraço um grupo de cavalheiros tinha sido reunido pelo Atendente-Chefe Scammon para um jogo de boliche que, por suas freqüentes exclamações, estava sendo muito interessante. As quadras de tênis do outro lado do pavilhão tirolês estavam em plena atividade, com Palfrey sendo juiz de uma partida. Do próprio pavilhão, vinham os esforços da banda de música: pequenos trechos interrompidos, agradáveis prestos e rallentandos de uma marcha de Sousa, indicando que a banda de Eastershaws estava em ação. A cor era acrescentada por um grupo de senhoras, encabeçadas pela Enfermeira Shadd, desfilando de maneira elegante; algumas ostentavam pára-sóis - em volta do pomar. Tampouco o quadro era inteiramente consagrado a diversão. Nas hortas da cozinha, um grande grupo de homens da Ala Leste estava industriosamente trabalhando, distribuídos de espaço a espaço, capinando os sulcos recém-plantados com enxadas.

Fiquei olhando para a cena por longo tempo; depois me veio um sentimento estranho e sobressalente, uma recorrência, uma intensificação da sensação que me perturbava desde que eu pusera o pé naquele lugar. Aquilo era agradável, aquilo era bonito, mas, meu Deus, era quase mais do que eu podia agüentar. Meus nervos não se achavam em bom estado, talvez, porém eu já estava mais ou menos farto de Eastershaws, com aquelas suas galerias da Criméia, e os cavalheiros dentro delas, e Palfrey, e a chave mestra presa a uma corrente, as portas sem trinco, o cheiro dos sanitários, e todo o resto.

De fato, uma tonteira confusa e estranha começava a zumbir em minha cabeça. Voltei-me de repente, entrei diretamente no laboratório e tranquei a porta. Ao fechar a minha janela para não ouvir os gritos distantes dos jogadores de boliche, um terrível peso de desolação, de solidão se assenhoreou de mim e me prostrou. Súbita e desesperadamente, de todo o coração, senti saudades de Jean. O que eu estava fazendo naquele lugar maldito? Eu devia estar com ela. Devíamos estar juntos, eu não podia ficar ali... Sozinho.

Mas, por fim, dominei-me e, sentado à mesa, iniciei a última fase da minha pesquisa.

 

No último dia de julho, a data que eu tão determinadamente esperava, obtive o consentimento do Dr. Goodall e parti, cedo, para a solenidade da colação de grau na universidade. Embora Palfrey ocasionalmente tentasse arrastar-me para uma das suas óperas favoritas e Maitland muitas vezes sugerisse que eu devia "sair um pouco", devido às minhas atividades no laboratório, desde a minha chegada, eu não me havia afastado uma só vez do perímetro do hospital. Eu começava a estabelecer-me. Na verdade, parecia irreal estar outra vez dentro de um bonde, e ver automóveis e pessoas andando à vontade pelas ruas.

Quando, pelas 11 horas, cheguei ao alto do Monte Fenner, o Moray Hall já estava cheio de estudantes e seus parentes, no alvoroço costumeiro da expectativa, com a sua dignidade antiquada despida, de quando em quando, pelas demonstrações dos mais jovens e exuberantes que ainda não tinham chegado ao último ano, e que cantavam canções estudantis, correndo entre as filas de cadeiras, gritando e vaiando, desenrolando rolos de papel. Tudo aquilo me parecia infantil e estúpido. Não entrei, ficando longe da multidão, junto à porta, esperando encontrar Spence ou Lomax e, enquanto isso examinando a platéia e os balcões com um olhar forçado e nervoso.

Jean não estava visível. Mas, de súbito, entre o mar de rostos, avistei sua família, o pai, a mãe e Luke, sentados na segunda fila dos balcões do lado esquerdo, com Malcolm Hodden ao lado deles. Todos estavam com as suas melhores roupas, inclinados ansiosamente para a frente, com tanta animação, tão satisfeitos, orgulhosos e expectantes,  que tive de reprimir uma sensação instintiva de hostilidade. Escondi-me atrás da coluna mais próxima.

Naquele momento, usando habilmente o seu guarda-chuva, um corpulento espectador foi empurrando e achou um lugar ao meu lado - e então, com uma exclamação de triunfo abordou-me.

- Olá, meu caro Dr. Robert Shannon.

Achei-me diante daquela fonte de mexericos e de boa natureza que era o sempre sorridente Babu Chatterjee.

- Como é muitíssimo agradável encontrar o senhor, doutor. Sentimos sempre sua falta em Rothesay, mas, naturalmente, acompanhamos sua carreira com interesse. Não é uma esplêndida reunião esta que hoje temos aqui?

- Esplêndida - concordei, sem entusiasmo.

- Ora, doutor. Hi! Hi! Nada de desdém pela nossa velha Alma Mater. - As suas observações eram pontilhadas por pequenos grunhidos, quando, periodicamente, da multidão que se comprimia, ele recebia uma cotovelada na barriga. - Embora eu próprio não esteja colando grau, esperando fazê-lo em breve, o esplêndido cerimonial me agrada muitíssimo. Não perdi uma só diplomação nos últimos 10 anos. Vamos, doutor. Vamos empurrar para a frente e conseguir duas cadeiras juntas na primeira fila?

- Acho que vou ficar aqui. Estou esperando Spence e Lomax.

Nesse instante, o grande órgão acima de nós começou a tocar, afogando todos os outros sons; e, percebendo que a solenidade começava, uma nova onda de gente recém-chegada comprimiu-se na sala, separando-nos violentamente, levando Babu para o corredor central.

Mantive o meu lugar por algum tempo, enquanto o diretor fazia um breve discurso e, ajudado pelo Professor Usher, que estava a seu lado com os pergaminhos, começou a tarefa de "impor o capelo" á longa procissão de diplomandos; mas a multidão era demasiado compacta para que eu pudesse ver o espetáculo; de qualquer modo eu não queria vê-lo todo e, desde que o meu olhar frustrado continuava a subir furtivamente para o balcão, a visão de Hodden e da família Law, sorrindo e aplaudindo, tornou-se demasiado para mim. Diante de oposição e protestos, abri caminho para o saguão. Havia uma cabine de telefone público num canto dos claustros e, num impulso, entrei e telefonei para o Departamento de Patologia. Mas Spence não estava lá. Não pude encontrar em casa. O telefone simplesmente tocava e ninguém respondia.

Derrotado, saí da cabine e fui lentamente pela velha e baixa escadaria de pedra, ao longo do corredor, para a sala das becas. Era aqui que, por meio guinéu, os estudantes alugavam as becas e os capelos, e eu sabia que, depois da cerimônia Jean voltaria para devolver as suas vestes alugadas. Aquele era o único lugar onde eu podia encontrá-la sozinha, e sentei-me a um canto, junto a um comprido balcão de madeira à espera.

Com o som deprimente dos aplausos forçados, que estalavam a cada 30 segundos, meu ânimo afundou para uma amarga tristeza. Um movimento de recém-diplomados que voltavam me fez erguer a cabeça abruptamente e, entre outros, ver Jean que se apressava pelo corredor, vestindo sua beca sobre um costume marrom novo, com meias e sapatos novos, também marrons. Estava afogueada, falando com a moça a seu lado, com um ar alvoroçado. Uma animação momentânea que, após aquelas semanas de separação, partiu-me o coração. Porque a amava, queria encontrá-la banhada em lágrimas.

Ela não me viu. Lenta e cuidadosamente, fiquei diante do balcão, ao lado dela. Eu estava ali, junto dela, mas Jean não sonhava que eu estava ali, e eu não disse uma palavra.

Durante vários segundos, nada aconteceu; então, de súbito, Jean fez uma pausa, interrompendo-se no ato de entregar sua veste. Ela não podia ter-me visto, contudo o sangue cálido desceu lentamente da sua face e pescoço, deixando-a muito branca. Durante um longo minuto, ela ficou inanimada; então como se pelo exercício de um esforço imenso e quase sobre-humano, forcejou para voltar a cabeça.

Olhei-a diretamente nos olhos. Ela parecia transformada em pedra.

- Não fui convidado, mas, assim mesmo vim.

Uma longa pausa. Seus lábios pálidos poderiam ter formado uma resposta. Mas ela não podia falar. Continuei.

- Talvez você tenha uns poucos minutos a perder? Gostaria de falar a sós com você.

- Estou só agora.

- Sim, mas na certa seremos interrompidos aqui. Não poderemos ir a algum lugar por alguns minutos?

- Minha gente está me esperando lá embaixo na escada. Tenho que voltar para junto deles imediatamente.

Embora meu coração se derretesse por ela, respondi amargamente.

- Eu me mantive longe do seu caminho durante quatro semanas, não a contaminei com a minha presença. Acho que me deve uma breve conversa com você.

A moça umedeceu os lábios secos e pálidos.

- Que bem poderá fazer isso?

Olhei para ela cruelmente. Eu tinha ansiado por vê-la, e agora que estávamos ali, juntos, meu único desejo era feri-la o mais profundamente que pudesse. Procurei as palavras mais duras e cortantes.

- Ao menos isso nos daria uma oportunidade de despedir-nos. Agora que já tem o seu diploma, não duvido de que ficará muito contente em livrar-se de mim. Provavelmente sabe que estou em Eastershaws. Sim. O hospício. Desci ainda mais neste mundo.

Enquanto eu continuava desse modo, fazendo aquele escuro olhar de sofrimento aprofundar-se nos seus olhos, vi, de repente, uma sólida forma avançando para nós. Virei-me rápido e, num tom diferente, falei:

- Jean, Venha ver-me em Eastershaws... Numa tarde destas... Apenas uma vez...  Por amor aos velhos tempos.

Eu podia ver a luta que ela travava por trás da sua testa pálida e atormentada, mesmo quando percebi o que isso devia significar para ela; ela mal sussurrou:

- Na próxima quarta-feira, então... Eu talvez vá.

Nem bem ela acabara de falar, Malcolm, um pouco ofegante por ter subido as escadas rapidamente, estava passando um braço em torno dos seus ombros, como se para protegê-la da multidão que se comprimia e, ao mesmo tempo, dirigindo-me, com os seus firmes olhos azuis, um olhar de calmo reconhecimento.

- Venha agora, querida - disse ele, mas sem censura. - Já estávamos preocupados com sua demora.

- Estou atrasada? - perguntou ela, nervosamente.

- Oh! Não - exclamou ele sorrindo e escoltando-a para os degraus. - Reservei a mesa para uma hora... Temos muito tempo. Mas o Professor Kennerly está com o seu pai e perguntou por você.

Ao pé da escadaria, enquanto Jean se esgueirava, sem ao menos um olhar, para juntar-se aos pais, que estavam num grupo próximo ao pátio quadrangular, Malcolm voltou para mim um olhar sério mas não hostil.

- Não me olhe assim, Shannon. Não somos inimigos. E uma vez que temos uns poucos minutos juntos, vamos falar sensatamente. Conduziu-me pelo arco de pedra para o terraço fronteiriço, onde estava a bandeira da universidade, num espaço aberto no alto do outeiro, protegida por uma grade circular de ferro. Sentando-se, fez sinal para que eu fizesse o mesmo. Sua calma era admirável. Ele era, de fato, tudo o que eu não era. Forte, prático, responsável, com o olho límpido e um belo físico, consciente do seu próprio equilíbrio interior, não mostrando hesitações delicadas. Não havia nenhuma dúvida secreta ou lugares escuros na sua alma. Eu o invejava de todo o meu coração imperfeito e angustiado.

- Temos, ao menos, uma coisa em comum - começou ele, como se lesse o meu pensamento. - Ambos queremos que Jean seja feliz.

- Sim - disse eu com os lábios comprimidos.

- Então pense, Shannon - argumentou ele, logicamente. Você não vê que é impossível? Você e ela não combinam de todos os modos.

- Eu a amo - falei, obstinadamente.

- Mas amor não é casamento - trucou ele, prontamente. O casamento é compromisso sério. Não se pode simplesmente entrar nele impetuosamente. Casados, vocês seriam infelizes.

- Como você pode dizer isso? Correríamos o risco... O casamento é algo inevitável... Uma calamidade, talvez, da qual não há como fugir... Mas não é um plano para um novo estabelecimento da missão.

- Não, não, Shannon. - Com grande seriedade, contrariou meu argumento. - O casamento deve confirmar e não desintegrar duas vidas. Antes de você conhecer Jean, tudo estava arranjado... Seu trabalho... Sua vida. Ela estava assentada e de espírito alegre. E agora você está pedindo que ela abandone tudo isso, desconheça sua família, afaste-se das próprias fontes do seu ser.

- Nenhuma dessas coisas precisa acontecer.

- Ah, isso é o que você pensa. Deixe-me fazer-lhe uma simples pergunta. Gostaria de assistir ao ofício na igreja de Jean?

- Não.

- Exatamente. Então como pode esperar que ela vá á sua?

- Esse é justamente o ponto. Eu não espero isso. Não desejo forçá-la a coisa alguma. Devemos ter completa liberdade de pensamento e ação.

Ele meneou a cabeça, não convencido.

- É uma bela teoria, Shannon. Na prática, não dará resultado. Há muitíssimas oportunidades de conflito. E quanto aos filhos? Pergunte ao seu próprio sacerdote. Ele lhe dirá que estou certo. A Sua Igreja sempre viu com maus olhos os casamentos mistos.

- Alguns tiveram sucesso - afirmei, com dura teimosia. Nós seríamos felizes juntos.

- Por algum tempo, talvez - disse Malcolm, quase com pena. - Mas ao cabo de cinco anos, considere apenas... A música de um hino entreouvida, uma reunião para a propagação da fé na rua, alguma recordação da infância dela, o sentimento daquilo que ela abandonou... Olharia para você e o odiaria.

Essas palavras soaram nos meus ouvidos como um dobre de finados. No silêncio que se seguiu, eu podia ouvir apenas o pesado rumor da bandeira, transmitido pelo mastro, como se a madeira vibrante lutasse por estar viva.

- Acredite-me, Shannon, estou procurando pensar somente em Jean. Hoje, ela quase tinha reconquistado a felicidade, quando você reapareceu. Você quer magoá-la sempre! Ah, conheço-o melhor e sei que não. De homem para homem, Shannon, sei que o seu lado melhor prevalecerá.

Tirou o relógio, encaixado num estojo de chifre, consultou-o e, num tom mais leve, declarou:

- Estamos oferecendo uma pequena celebração para Jean. Almoço no Windsor Hotel. - Fez uma pausa. - Se as circunstâncias fossem diferentes, eu gostaria que você estivesse conosco. Há alguma coisa mais que eu possa dizer?

- Não - respondi.

Levantou-se e, após uma firme e indulgente pressão sobre meu ombro, afastou-se, decidido. E lá fiquei sentado, ouvindo o canto e o zumbido da bandeira, isolado por meus próprios atos, procurando não odiar Malcolm, sentindo-me cada vez mais um proscrito. Um grupo de visitantes bem vestidos olhou-me curiosamente, ao passar, e então desviou delicadamente os olhos.

 

Quebrando a longa estiada de bom tempo, quarta-feira amanheceu úmida e nevoenta. Esperei ansiosamente que clareasse, mas até o meio-dia o céu estava coberto e, embora não estivesse chovendo muito, os relvados achavam-se encharcados e, nas alamedas, as árvores gotejavam sem cessar.

Imediatamente após o almoço, andei até a portaria, incitado, nervosamente, pela ansiedade. Eu estava na hora, mas ela já havia chegado, e estava sentada, desatendida e perturbada, na sala de espera, que, sendo dia de visita, estava barulhenta e cheia de vapor, abarrotada com parentes dos clientes da Ala Leste.

Preocupado, adiantei-me e lhe teria tomado a mão, se ela não se tivesse posto em pé.

- Por que não pediu ao porteiro que me telefonasse?

- A culpa é minha. - Deu-me um sorriso distante e vacilante. – Tomei um trem que saiu mais cedo. Estava um pouco difícil lá em casa... e como eu não tinha mais nada a fazer, vim para cá.

- Se ao menos eu tivesse sabido.

- Não foi nada. Eu não queria incomodá-lo. Mas bem podiam ter-me deixado entrar no jardim.

- Bem - expliquei - aqui eles têm de tomar algumas precauções. É como passar de um país para outro. Somos um grupo exclusivo. Mas se tivesse dito a Gunn que era médica, ele a deixaria entrar imediatamente.

Embora eu tentasse afastá-la de sua depressão, Jean permaneceu silenciosa e recolhida, parecendo pequena e desamparada no seu impermeável e com o chapéu mole de aba cinzenta cercada de pingos de chuva. A saudade dela me doía, mas procurei dar às minhas feições contraídas uma aparência de compostura.

- Bem, isso não importa - falei, recomeçando de modo diferente. – Você está aqui... E estamos juntos.

- Sim - respondeu ela, com voz sumida. - É uma pena que esteja um dia tão chuvoso.

Caminhamos em silêncio pela Alameda Sul, passando pelo chalé de telhado molhado, sob as árvores gotejantes, silenciosas, curvadas sobre a trilha úmida como se estivessem com medo da chuva. O tempo miserável nos envolvia, borrando os contornos desta cidade silenciosa e vazia. Ela não iria falar?

Subitamente, ao nos aproximarmos do edifício principal, ela ergueu lentamente o olhar... Então, diante de alguma coisa visível atrás de mim, deu um grito sobressaltado. Era um grupo de homens da Ala Leste que surgiu do nevoeiro, chefiados por Scammon e seu auxiliar Brogan, e que se aproximavam unidos em dupla formação. Estavam apenas se exercitando, mas as suas figuras escuras arremetendo em nossa direção, em massa, com os pés batendo ritmicamente no saibro fofo, fizeram Jean fechar os olhos, mantendo-se rígida até que eles passaram e o som dos seus passos se perdesse na névoa cinzenta.

- Sinto muito - disse ela, deploravelmente. - Sei que é absurdo de minha parte, mas estou com os nervos à flor da pele.

Tudo estava saindo mal. Em silêncio, eu me amaldiçoava. A chuva desabou pesadamente.

- Vamos entrar - falei. - Quero mostrar-lhe o laboratório.

Após o ar úmido lá fora, era confortável estar no laboratório, mas, embora ela tirasse as luvas, não desabotoou a gola do seu impermeável. Ficamos em pé, lado a lado, junto à mesa, enquanto seus olhos percorriam o lugar; pegou todas as culturas, uma a uma, de um modo reminiscente, como se fosse algo passado, enuviado pela memória, algo que jamais se repetiria.

- Cuidado! - murmurei, quando ela tocou na rolha da cultura mais forte.

Ela se voltou para mim e as suas pupilas escuras e dilatadas abrandaram-se ligeiramente. Contudo, ela nada disse. Não havia ninguém ali, estávamos juntos, mas não estávamos sós.

- Eu preparei uma vacina - falei, em voz baixa. - Mas agora tive uma idéia melhor. Extrair e concentrar a nucleoproteína. Challis concorda em que seria muito mais eficaz.

- Tem-no visto ultimamente?

- Não. Sinto dizer que ele está novamente adoentado, em Bute.

Houve uma pausa. Sua calma aparente, aquele fingimento de normalidade, tornava tudo irreal. Estávamos um diante do outro e nos olhávamos como que hipnotizados. Esfriou subitamente.

- Você está com frio - disse eu.

Fomos para a minha sala de estar, onde Sarah já tinha acendido um bom fogo. Toquei a campainha, e quase imediatamente ela nos trouxe uma bandeja com muitas coisas que eu lhe pedira para preparar.

Afundada numa ampla cadeira e aquecendo as mãos ao fogo, Jean tomou com satisfação uma xícara de chá e comeu um dos petits fours que eu tinha trazido especialmente do Grant's. Sua disposição parecia decaída, como se a perspectiva fosse uma carga da qual ela recusasse. Eu simplesmente não podia romper o frio constrangimento que existia entre nós. Contudo, observando a cor voltar lentamente às suas faces tensas, esperei que aquilo se desfizesse. Parecia pateticamente pequena e leve. Quando suas cores frescas e suaves voltaram, um vivo calor ardeu no meu peito.  Mas o orgulho não me deixava mostrá-lo. Disse-lhe numa voz rígida:

- Espero que se sinta melhor.

- Estou sim, muito obrigada.

- Sinto ter sido tão tolo lá fora... Mas aqui... É como se alguém nunca cessasse de observar-nos.

Novamente, caiu um silêncio no qual o tique-taque do relógio soava como o destino. A sala começava a escurecer. Exceto o bruxuleio da lareira, mal havia luz para eu distinguir seu rosto, tão quieto, como se ela dormisse. Um arrepio me percorreu os nervos.

- Você mal falou esta tarde. Não pode me perdoar... Pelo que aconteceu...

Jean não levantou a cabeça.

- Tenho vergonha - falei. - Mas não poderia ter sido diferente.

- É terrível apaixonar-se contra a vontade - disse ela, por fim. - Quando estou com você, não pertenço mais a mim mesma.

Esta admissão deu-me um sentimento de esperança, que se avolumou, gradualmente, até uma estranha sensação de poder. Olhei-a através das sombras.

- Quero pedir-lhe uma coisa.

- Quer? - fez ela. Seu rosto tinha uma expressão tensa, o olhar de quem espera receber um golpe.

- Vamos nos casar. Imediatamente. No cartório do registro civil.

Ela pareceu sentir, mais do que me ouvir, sentada silenciosa e ferida, com a cabeça desviada, como se quisesse afastar-se. Vendo-a tão desamparada, uma súbita exaltação flamejou em mim. - Por que não? - insisti, rapidamente, em voz baixa. - Diga que vai casar comigo. Esta tarde.

Com a respiração suspensa, esperei a resposta. Suas pálpebras estavam abaixadas, o rosto meio aturdido, como se o mundo vacilasse em torno de Jean e ela estivesse perdida.

- Diga que sim.

- Oh, não posso! - murmurou ela inarticuladamente, atormentada, no tom de quem vai morrer.

- Pode, sim.

- Não! - gritou ela, virando-se histericamente para mim. - Isso é impossível.

Uma pausa, longa e pesada. Aquele grito repentino fizera de mim um inimigo, o seu inimigo, o inimigo da sua gente. Procurei conter-me.

- Por amor de Deus, não seja tão desamorosa, Jean.

- Tenho que ser. Já sofremos o bastante. E os outros também. Minha mãe anda pela casa, olhando-me sem dizer uma palavra. E está doente. Tenho que dizer-lhe, Robert. Vou-me embora para sempre.

A peremptoriedade de sua voz pasmou-me.

- Está tudo arranjado. Haverá uma festa para nós ao partirmos para a África Ocidental na viagem inaugural do novo navio da Clan Line, o Algoa. Partimos dentro de três meses.

- Três meses - repeti as suas palavras - pelo menos não era amanhã. - Mas tristemente, com uma calma forçada, ela abanou a cabeça.

- Não, Robert... Estarei ocupada durante todo esse tempo... Fazendo um trabalho temporário.

- Onde?

Ela corou ligeiramente, mas seu olhar não vacilou.

- Em Dalnair.

- No hospital do campo? - A surpresa juntou-se a meu desespero.

- Sim.

Sentei-me calado e abatido. Ela continuou:

- Há uma vaga lá outra vez. Querem experimentar uma médica para variar... Uma breve atividade experimental. A enfermeira-chefe recomendou-me à comissão.

Esmagado pela notícia de sua partida, continuei, no entanto, a tentar, de uma maneira estúpida, imaginá-la naquele hospital tão meu conhecido, atravessando as enfermarias e corredores, ocupando os próprios cômodos que eu havia ocupado. Por fim, murmurei entrecortadamente:

- Você vai se dar bem com a enfermeira-chefe. Aliás, você se dá bem com todos, menos comigo.

Seu peito arfou. Deu-me um sorriso estranho sem naturalidade.

- Se nunca nos tivéssemos encontrado... Teria sido melhor. Tratando-se de nós, há uma penalidade para tudo.

Adivinhei o que ela queria dizer. Mas, embora os meus olhos ardessem e meu coração se dilacerasse, retruquei com uma última e desesperada amargura:

- Não vou desistir.

Ela ainda estava calma, mas as lágrimas lhe rolavam pelas faces.

- Robert... Eu vou me casar com Malcolm Hodden.

Olhei para ela gelado. Sussurrei, quase imperceptivelmente: - Oh! Não... Não... Você não gosta dele.

- Gosto, sim. - Pálida e trêmula, ela se defendia com viva aflição. - Ele é um homem digno, honrado. Crescemos juntos, fomos à escola, sim à escola dominical juntos. Rezamos na mesma igreja. Temos os mesmos fins e objetivos, ele será bom para mim de todas as maneiras. De fato, quando estivermos casados, partiremos juntos no Algoa, eu como médica, Malcolm como diretor da escola.

Engoli a enorme bola que tinha subido por minha garganta.

- Isso não pode ser verdade - murmurei, inaudivelmente. - Tudo isso é um sonho.

- Você e eu é que somos um sonho. Robert. Devemos voltar à realidade.

Cerrei o punho contra a testa e, enquanto eu fazia isso, impotentemente, ela começou a chorar de verdade. Aquilo era mais do que eu podia resistir. Pus-me em pé. No mesmo instante, ela se levantou, às cegas, como se movida pelo instinto de fuga. Encontramo-nos. Então, por um momento, ela esteve nos meus braços, chorando como se seu coração estivesse partido, ao passo que o meu estava delirantemente inebriado e deliciado. Mas quando a apertei ainda mais forte, ela pareceu apelar de repente para toda a sua energia. Soltou-se abrupta e apaixonadamente.

- Não... Robert... Não...

A angústia no seu rosto, e todas as linhas da sua forma frágil e vacilante enraizaram-se no lugar onde eu estava.

- Jean...

- Não, Robert... nunca mais... Nunca mais. Disse sem segurar os soluços que  afloravam.

Soluços que me torciam o coração e me faziam desejar acalmá-la contra o meu peito. Mas aquele olhar nos seus olhos luzentes, perdido e torturado, mas ainda assim bravamente firme, vindo das profundezas de sua alma, dissipou lentamente em mim qualquer esperança. As ardentes palavras de amor que eu pensava dizer morreram nos meus lábios. Os umbrais que eu tinha erguido para ela tombaram. A cabeça latejava- me surda e pesadamente.

Por fim, rigidamente, Jean enxugou as lágrimas com as costas da mão e depois limpou os lábios. Com um rosto duro como ferro, pensei que se preparava para ir embora.

- Vou com você até o portão.

Caminhamos sem uma única palavra. Os riachinhos que corriam pela alameda tinham um som quase vivo. Mas os nossos passos eram pesados, mudos, sobre o chão encharcado. Chegamos ao portão. Tomei-lhe os dedos, molhados de chuva e lágrimas, mas ela se desvencilhou rapidamente.

- Adeus, Robert.

Olhei para ela como pela última vez. Um carro passou rápido na estrada lá fora.

- Adeus.

Ela fraquejou ante essa palavra, mas se recuperou com um estremecimento e saiu apressada, com os olhos marejados de novas lágrimas, sem olhar para trás. No minuto seguinte, os pesados portões se fecharam com estrondo; ela fora embora.

Cheguei à alameda, soturno e miserável. O crepúsculo começava a descer, e a chuva por fim cessara. No horizonte oeste, o céu estava lívido, como se o sol poente tivesse cometido um assassinato sangrento entre as nuvens. De repente, sobre o lugar sossegado, o clarim da noite soou e do alto mastro no outeiro a bandeira desceu, lentamente, lentamente, enquanto, desenhada contra a elevação, lá ficava, rígida, em atitude de continência, a figura ereta e solitária do recluso destacado para essa tarefa.

Viva Eastershaws, pensei amargamente.

De volta a meu quarto, encontrei o fogo quase extinto. Fiquei a olhar para as cinzas, opacas e escuras.

 

Era domingo, e os sinos da igreja coberta de hera ecoavam no ar de Eastershaws. Como se para agravar as trevas do meu espírito, a manhã mais uma vez era límpida e quente. Os frutos pendiam pesados das árvores do pomar e, nos canteiros do terraço balaustrado, gerânios e begônias traçavam vívidos arabescos.

Da minha janela, quando acabei de vestir-me, pesado e somente meio acordado, eu podia ver os internos convergindo para o edifício sagrado, uma estrutura gótica de bom tamanho, de tijolos descorados, apropriadamente sombreado por um bosquete de altos olmos.

Os homens da Ala Leste chegaram primeiro, flanqueados por Brogan e três funcionários do pessoal de Scammon, um largo e sólido grupo, vestidos de cinzento como operários, com sapatões e bonés de serviço, a maioria dos quais trabalhavam nos campos ou nas oficinas. Alguns estavam alegres e sorridentes, outros silenciosos, uns poucos taciturnos - pois esses eram os "maus" degredados entre os "bons", e que às vezes entravam em conflito com as autoridades. Um grupo tinha um ar superior, embora menos atrevido, em roupas mais escuras e colarinho branco engomado - esses eram os homens que tinham subido e estavam incumbidos de funções especiais, como fiscalizar as carradas de carvão na grande balança, o ou controlar a lavanderia, com folhas de papel, pena e tinta. Palfrey, já no pórtico, pastoreava-os com um sorriso benigno e os recebia com um aceno da calva rosada.

As mulheres aproximaram-se um minuto mais tarde, vestidas com o preto dos domingos, algumas delas reconhecíveis como copeiras e camareiras do estabelecimento. Estavam na mesma categoria dos homens.

A cena mostrou a seguir os cavalheiros da instituição, acompanhados por Scammon, que, com o seu melhor uniforme, dava o tom, de perfeição da alfaiataria. Pelo menos uma dúzia de participantes exibia fraques matutinos e cartolas. Ali estava, se quiserem, "a camada superior" da Eastershaws.

Um momento de pausa, quando os cavalheiros atravessaram o terreno sagrado...  Dentro da igreja, um órgão tinha começado a tocar; então, como se tivessem consciência de que acrescentavam o toque final, as damas da Ala Oeste fizeram sua entrada, não numa tropa sólida como as pessoas de menor conseqüência, mas isoladas e aos pares, capitaneadas pela Enfermeira Shadd. Chegavam à vontade, com todos os seus enfeites, evitando que suas saias tocassem a poeira do chão. No próprio centro do grupo, cercada por sua corte adulatória, uma dama avançava para o pórtico com grande dignidade. Pequena, franzina, de cabelos grisalhos, com um beicinho estendido e olhos brilhantes cintilando no rosto de pergaminho, trazia um vestido de seda lavanda, com rendas no peito e um amplo chapéu com uma pena de avestruz.

Agora tinham entrado todos e os sinos cessaram. Andando lepidamente pela alameda, num terno simples de todo dia, chegou Goodall para dirigir o ofício. Quando ele desapareceu dentro da igreja, afastei-me da janela com um cenho amargo, empunhei minha chave e desci as escadas.

Aquele era o terceiro domingo do mês, e eu estava de serviço todo o dia, pelo menos até as seis; mas fui primeiro ao laboratório, de onde eu tinha saído apenas seis horas antes, a fim de checar as condições da bolsa que eu estava usando como uma membrana de diálise. Sim, estava funcionando perfeitamente. Agora, o caminho era esse. No meu trabalho, tudo corria bem. Tirei a bandeja com 20 tubos estéreis parafinados, e introduzi em cada um deles um centímetro cúbico de fluido dialisado. Arrolhei os tubos de ensaio cuidadosamente, numerei-os e coloquei-os na incubadora.

Detive-me por um momento, cansado e cismarento, sentindo aquela dor atrás da cabeça causada pelo excesso de trabalho. Eu queria o meu café, mas mal podia dispor-me para ir buscá-lo. Sim desta vez não havia engano. Eu não estava longe de isolar a nucleoproteína que seria muito mais eficiente do que a vacina primária. E então eu teria terminado. Tudo. Meus nervos se apertaram a esse pensamento. Mas eu não sentia um verdadeiro alvoroço. Apenas uma espécie de satisfação amarga e emburrada.

Na sala de café do Norte dos Homens, comi uma torrada e tomei três xícaras de café. Era bom estar sozinho - não que eu me importasse muito com Palfrey, ele era uma criatura amável e inofensiva. Os versos que a Enfermeira Stanway fizera descreviam-no perfeitamente: "Gosto do Palfreyzinho, de paletó tão quente, Se a gente não o magoa, ele não faz mal á gente.”

Acendi um cigarro e inalei profundamente, como para amortecer aquela minha contínua dor do lado. Estava acabado, contudo sempre vinha um momento imprevisto, quando Jean estava perto de mim, quando, com um espasmo de estremecimento, eu devia enxota-la selvagemente. A princípio, com tristeza, eu tinha tido pena de mim.  Agora, um vivo e lento ressentimento se misturava com a dor, e a temperava como aço. Agitava-se dentro de mim uma corrosiva raiva contra a vida.

Levantei-me e desci ao dispensário, onde comecei a fazer a provisão de cloral e brometo para as galerias. O dispensário era sossegado e sombrio, forrado de mogno escuro, com um cheiro aromático de drogas, madeira velha e lacre, que acalmava vagamente as minhas sensações conflituais. Otimamente, aquele lugar tinha adquirido maior importância para mim. Minha primeira inquietação tinha-se desfeito. Eu aceitava, sem segunda intenção, a chave, as quentes galerias rococós, a estrutura social daquele pequeno mundo isolado.

Soaram passos no corredor e, um instante mais tarde, o postigo subiu, enquadrando a cabeça e os ombros da Enfermeira Stanway.

- Pronto? - perguntou ela.

- Num minuto - respondi brevemente.

Ela ficou observando-me, enquanto eu completava o último item da lista do Lado Oeste.

- O senhor não foi à igreja?

- Não - respondi. - Você foi?

- O dia está tão lindo. Além disso, essa não é a minha especialidade.

Olhei para ela. Stanway recebeu meu olhar sem qualquer mudança discernível no seu rosto inexpressivo. O tufo de cabelos lustrosos tinha um brilho azulado e era aparado reto na testa branca abaixo da touca do uniforme. Eu sabia agora que, durante a guerra, esteve casada com um oficial-aviador que mais tarde se divorciara dela. Ela não parecia importar-se com isso. Nunca se sabia o que estava sentindo. Parecia que nada podia perturbar seu ar casual, sua completa indiferença, como se a vida fosse sem valor, para ser gasta descuidadamente, ou simplesmente jogada fora.

- O senhor ainda não foi à nossa sala de estar - falou ela deliberadamente, quase com uma lentidão zombeteira. - A Enfermeira Shadd é muito sensível com essas coisas.

- Não tenho tido tempo. - Dei a desculpa bruscamente.

- Por que não aparece esta noite? Pode achar divertido. Nunca se sabe.

Havia um desafio ligeiramente malicioso no seu tom de voz que provocou um forte impulso nos meus nervos esgotados. Olhei para ela com uma atenção pensativa. Seus olhos um tanto cheios ainda zombavam, e tinham um brilho significativo.

- Muito bem - disse eu, de súbito. - Irei.

Ela sorriu levemente e, ainda me olhando, recolheu os remédios que eu havia colocado junto ao postigo. Depois, sem uma palavra, foi-se embora. Seus movimentos vagarosos tinham uma certa informalidade, uma graça sensual.

Passei o resto do dia desassossegado, sentindo um mal-estar. Após o almoço, escrevi o relatório no livro de registro do Leste dos Homens e, às três horas, fui entregá-lo na casa do Dr. Goodall, na frente do edifício principal.

Uma criada idosa atendeu à campainha e, tendo ido perguntar, voltou dizendo que o superintendente estava descansando, mas que me receberia.

Acompanhei-a ao escritório, uma sala ampla e desarrumada, forrada de uma madeira castanha indefinível e escassamente iluminada por uma janela gótica amarelenta com um brasão de armas no vitral. Espichado num sofá diante da larga lareira, coberto com uma manta de lã escocesa, lá estava Goodall.

- Deve desculpar-me, Dr. Shannon. O fato é que, depois da igreja, não me senti bem e tomei uma boa dose de morfina.

Anunciou o fato simplesmente, com os olhos pesados no rosto amarelado e dorido.

- Não foi Montaigne quem comparou a cólica biliar às torturas dos condenados? Também sou um sofredor.

Depôs o livro que lhe entreguei e fixou em mim os olhos enrugados e de pálpebras pesadas.

- Você parece estar me acomodando muito bem. Isso me alegra. Não gosto de fazer mudanças em meu pessoal. Temos uma grande oportunidade aqui, Dr. Shannon... Neste nosso pequeno planeta. - Fez uma pausa, com um olhar estranhamente distante e meditativo. - Nunca lhe ocorreu que somos uma raça à parte, com as nossas próprias leis e costumes, virtudes e vícios, nossas camadas sociais e intelectuais, e nossas reações à carga da existência? A gente do outro mundo não nos compreende, ri de nós, talvez nos tema. Mas somos, não obstante, cidadãos do universo, um símbolo da indestrutibilidade do Homem sob as forças da Natureza e do Fado.

Meu coração falhou uma pulsação; inclinando-se para mim, ele continuou com aquele fulgor remoto das íris minúsculas.

- Minha tarefa, Dr. Shannon, o esforço da minha vida é criar uma nova sociedade, fora de uma ordem que está enferma e decadente. Difícil... Ah, sim, mas não impossível! E que oportunidade doutor! Quando terminar sua presente pesquisa, posso abrir para o senhor um campo científico de escopo inimaginável. Estamos no limiar da compreensão dessas doenças que afetam nossa mente. O cérebro, Dr. Shannon, o cérebro humano, em todo o seu mistério e majestade, rosa e translúcido, brilhando como um belo fruto dentro das suas delicadas membranas, do seu estojo craniano...

Que desumana exaltação em sua voz. Por um momento, pensei que ele fosse remontar para alturas estonteantes, mas, como se fizesse um esforço, recompôs-se. Lançou-me um olhar rápido e, após um momento de silêncio, despediu- me com seu sorriso sombrio mas aliciante.

- Não trabalhe demais, doutor. Ocasionalmente, devemos pagar tributos aos sentidos.

Saí de sua casa com um tumulto ainda maior nos meus sentimentos, atraído, mas excitado e confuso. Ele sempre causava esse efeito em mim. Mas, naquela tarde, foi pior do que nunca. Eu simplesmente não podia descansar. Um impetuoso fermento sobrecarregava as minhas veias, pronto para irromper para fora. Ocasionalmente, devemos pagar tributo aos sentidos, tinha dito ele.

Embora, várias vezes, eu tivesse dito a mim mesmo que não iria, por volta das oito horas bati na porta da sala de estar das enfermeiras e abri-a. Eu precisava encontrar uma maneira de escapar daqueles pensamentos febris e torturantes.

Sentadas na extremidade da comprida mesa, o que mostrava que a maioria delas já tinha jantado e saído da sala, estavam a Enfermeira Shadd, de uniforme, a Srta. Paton, a dietista, e a Enfermeira Stanway, vestida de "fora de serviço", com uma saia azul e blusa de seda branca. As três conversavam em vozes íntimas, e foi Shadd quem, espichando o pescoço como uma pomba, me viu primeiro.

- Vejam só! Maomé veio à montanha. - Pronunciou essas palavras com uma voz delicada. - Uma grande honra para nós, estamos certas.

Quando entrei, a Srta. Paton, uma mulher de rosto avermelhado, cumprimentou-me com um aceno de cabeça. A expressão da Enfermeira Stanway era calma e indiferente. Era a primeira vez que eu a via sem uniforme. A cabeleira lustrosa caía mais evidentemente sobre a testa, e a fazenda brilhante e macia da blusa sobre os seios e o peito chato.

- Já terminaram? - perguntei.

- Para falar a verdade, nem começamos. - Shadd enfrentou meu olhar interrogativo com uma sonora risada. - Para o senhor bem que podemos dizer... Desde que agora é um de nós. Às vezes, cansamo-nos do nosso menu. Não seria boa disciplina, para as outras, se nos queixássemos. Assim, apenas esperamos e vamos, as três, jantar na cozinha.

- Ah, compreendo!

Diante do meu tom de voz, uma leve cor penetrou na dureza dérmica da Enfermeira Shadd. Ela se levantou.

- Se disser uma só palavra a esse respeito, nunca mais falarei com o senhor.

A cozinha, alcançada pelo subterrâneo, ficava inteiramente embaixo do chão, mas era alta, fresca e suavemente iluminada por um conjunto de globos opacos que pendiam do teto. Contra uma parede branca de azulejos, havia uma coleção de panelões antiquados; na outra, pendia um bacterie de cuisine de cobre; ao passo que numa terceira se estendia uma série de portas brancas isoladas que davam para os frigoríficos. Três misturadores de massa, um cortador de pão e uma máquina de cortar presunto com uma pesada roda de aço ficavam na extremidade ao lado de uma mesa muito limpa, sobre a qual um caldeirão de aveia já estava de molho para o mingau da manhã seguinte. Um ligeiro zumbido do sistema de ventilação enchia o ar do porão imaculado.

A Srta. Paton tinha adquirido uma nova vivacidade no seu domínio particular. Foi até o refrigerador marcado Oeste Damas e, com uma torção do pulso da alça niquelada, abriu a pesada porta, mostrando um sortimento de carnes frias, língua, presunto, sardinhas e, em recipientes de vidro, manjar, geléias e frutas em conserva. A Enfermeira Shadd estalou os lábios. - Estou com fome - disse ela.

Quando os pratos e garfos foram postos diante de nós, começamos a comer como num piquenique. Com o canto do olho, vi Stanway encarapitar-se na mesa de madeira com uma desenvoltura e segurança que avolumaram em mim as forças escuras da exasperação. Com as pernas cruzadas, de modo que uma delas pendia solta, acentuando sua lisura de seda, e ligeiramente inclinada para trás, punha em relevo as linhas da coxa, da cintura e dos seios.

Uma aspereza me apertou a garganta. O desejo de subjugá-la, de romper as barreiras que me restringiam, de destruir e conspurcar dominava-me como uma febre. Não prestei atenção a ela, ficando ao lado da Enfermeira Shadd, servindo-a de quando em quando, mantendo com ela uma conversação estúpida. Contudo, embora eu fingisse ouvir Shadd, ainda podia ver Stanway equilibrando um prato de salada, com os olhos cheios de uma oblíqua e secreta ironia.

Finalmente, tendo terminado seu prato, a Enfermeira Shaldd soltou um suspiro de pesar.

- Bem! Todas as coisas boas acabam. Preciso ir agora e verificar a minha lavanderia abandonada. Seja camarada, Paton, e venha comigo. Se você me ajudar, não levará mais de meia hora.

Ao voltarmos pelo subterrâneo, as duas mulheres mais velhas tomaram o declive Oeste. Continuei com a Enfermeira Stanway para o vestíbulo da Ala Norte. Chegamos lá.

- E agora?

- Acho que vou dar um passeio - disse Stanway, despreocupadamente.

- Irei com você.

Ela indicou sua indiferença com um ligeiro dar de ombros, um instinto de crueldade; mas lisonjeada, de um modo felino, com a minha atenção.

Lá fora, a noite estava escura, com poucas estrelas e não havia lua. Logo que ficou longe dos edifícios, Stanway acendeu um cigarro. A chama protegida pela mão em curva iluminou por um instante seu rosto pálido e despreocupado, com os malares altos e o nariz achatado. Por que, perguntei-me, estou fazendo isto? Não sabia praticamente nada a respeito dela e menos ainda me importava. Uma desconhecida condescendente que me ajudaria a rolar na sarjeta, a escapar. Uma dureza maior tomou conta de mim.

- Qual o caminho? - perguntei, numa voz controlada.

- O da granja... - Ela pareceu sorrir.

- Para voltar também.

- Como quiser.

Andando ao longo da alameda Oeste, ajustando os meus passos aos dela, mantive certa distância entre nós, olhando diretamente para a frente. Mas, na escuridão, sua noção de espaço era menos exata, e de tempos em tempo ela roçava em mim. O suave contato do seu ilíaco com o meu aumentou a tortura dos meus pensamentos.

- Por que não fala? - perguntou ela, com um leve riso. Era como uma gata, e a noite parecia excitá-la e fortalecê-la.

- Sobre o quê?

- Qualquer coisa. Não me importa. Que estrela é essa adiante de nós.

- A Estrela Polar. Procure-a, quando se perder no mato. Ela tornou a rir, menos desdenhosamente do que o usual.

- Temos probabilidade de perder-nos? Não estará vendo Vênus, por acaso?

- Ainda não.

- Bem... - Ela ainda estava rindo. - Sempre há esperança.

Eu não disse nada. Sentia-me agora mais duro e mais despreocupado, desprezando a mim e a ela. Aquele riso, num tom tão alto, privado de segurança, tinha-a denunciado, revelado sua pretensa indiferença como uma simulação, um convite secreto, desde o começo.

Na curva da estrada, sob os olmos da granja, havia um portão de cinco sarrafos, seguro por dois altos muros de turfa. Parei.

- Isto é o mais longe que deseja ir?

Ela apagou o cigarro contra o portão. Agarrei-a pelos ombros, dizendo:

- Eu gostaria de torcer o seu pescoço.

- E por que não tenta?

Apertada contra o muro, sua face estava mortalmente branca, a pele esticada sob os olhos mais azuis do que nunca. Nossas narinas estavam ligeiramente dilatadas. O sorriso dela era fixo, quase uma careta. Uma onda de repugnância me percorreu, mas o desejo de esquecimento tinha ido demasiado longe para ser afastado. Seus lábios estavam secos e ligeiramente amargos por causa do cigarro. Abriram-se de maneira experiente. Eu podia sentir um fiapo de fumo na sua língua. A respiração da mulher era mais acelerada do que a minha.

Houve um instante em que a figura de Jean flutuou diante de mim, mas a lua se escondeu numa nuvem e ficou escuro embaixo dos olmos, onde nada restava senão desilusão e desespero.

 

Agosto decorreu com uma onda de calor abafante. Embora a carreta de irrigação desse a sua volta todas as manhãs, nuvens de pó subiam das alamedas, e as folhas pendiam moles das árvores. O sol, atravessando as vidraças, contra as quais zumbia continuamente uma mosca, comunicava às galerias sombrias um suave e nostálgico encanto.

Na última noite desse mês tórrido estava tão abafado que deixei a porta do laboratório meio aberta. Ao curvar-me sobre o colorímetro de Dubóscq, com as mangas da camisa arregaçadas e o suor escorrendo por meu colarinho desabotoado, ouvi  passos atrás de mim.

- Boa noite, Shannon. - Para minha surpresa, era a voz de Maitland. - Não, não se incomode por mim.

Ela nunca tinha me visitado ali. A julgar pela bolsa de trabalho, estufada de lã, que trazia no braço, ela estava voltando de uma das suas longas e íntimas sessões com a Srta. Indre, em que as duas mulheres, tricotando juntas, revisavam confidencialmente os problemas correntes do estabelecimento. Agora, puxando um banco, sentou-se junto de mim.

- Como está indo?

Soltei a caneta e esfreguei os meus olhos ligeiramente injetados. Eu podia sentir o repuxamento do meu nervo supra-orbital esquerdo. Disse brevemente:

- Dentro de poucas horas estará terminado.

- Fico muito contente. Desconfiei que estava perto do fim.

Ela não se ofendeu com a minha brusquidão. Eu não desgostava de Maitland, mas era aborrecido vê-la no caminho naquele momento em particular. Agora, eu a podia ver melhor, o rosto manchado tinha uma expressão séria, ao olhar-me firmemente por trás de suas lentes violetas, estudando-me, e ao mesmo tempo nervosa para falar.

- Não sou uma pessoa intrometida, Shannon... Sob a minha casca de bravata, esta, antes, uma criatura fraca e lastimável. Estou pensando se me atrevo a dar- lhe um conselho.

Olhei para ela completamente surpreso. Com uma gravidade formal que aumentou a minha irritação, ela recomeçou:

- É terrivelmente importante encontrar o seu próprio lugar na vida, Shannon. Tome o meu caso, por exemplo... Enfadonho como é. Sou irlandesa, como sabe, mas de fato minha família é inglesa, estabelecida em Wexford num domínio outorgado por Cromwell. Durante 300 anos, nós, os Maitlands, temos vivido lá, isolados, alienígenas, separados do povo por sangue e lágrimas, duas vezes queimados em cinco gerações, sofrendo uma decadência insidiosa, uma praga, inconsciente, mole e incessante como um nevoeiro no mar, que apodrece a alma.

Houve uma pausa. Olhei-a friamente.

- Você parece ter escapado desse destino infeliz.

- Sim, Shannon, escapei. Mas foi somente porque fugi.

Seu olhar estava carregado de tamanha significação que eu me remexia impaciente.

- Francamente, não sei o que quer dizer.

- Não se lembra da definição de psicose de Freud? Uma fuga da vida para o reino da doença.

- E que tem isso a ver comigo?

- Não pode atinar?

- Não, não posso. - Minha paciência esgotou-se inesperadamente, e minha voz saiu perturbadoramente aguda: - Aonde é que você está querendo chegar?

A médica tirou os óculos e limpou-os vagarosamente. Depois, esquecida, deixou-os no colo, e olhou para mim com aqueles olhos fracos e sem sobrancelhas.

- Shannon... Você deve sair de Eastershaws.

Fiquei absolutamente assombrado.

- O quê! Sair?

- Sim - repetiu ela. - Assim que acabar sua pesquisa.

Senti-me vivamente abrasado. Olhei para ela com olhos raivosos e incrédulos.

- Essa é uma boa piada. Pensei por um momento que você falasse a sério.

- Falo com toda a seriedade... E meu conselho também é sério.

- Então espere sentada. Acontece que gosto daqui tanto quanto você. E também tenho amigos aqui.

- A Enfermeira Stanway. - Encrespou ligeiramente os lábios. - Ela teve alguns seguidores no seu tempo. O Atendente Brogan, por exemplo... E o seu predecessor.

- Isso não é da sua conta. Tenho sido tratado muito mal lá fora. Não vou jogar fora um bom emprego e um laboratório de primeira classe, porque você tem algumas idéias estapafúrdias na cabeça.

Vi que isso a tinha silenciado. Continuou sentada, imóvel, por alguns minutos, então se levantou.

- Muito bem, Shannon. Vamos esquecer isso. Boa noite. Sorriu e saiu rapidamente.

Voltei furioso para minha mesa. No fundo da minha mente, estava sombriamente advertido de como eu me havia gasto naquele esforço final. Tinha perdido peso e as minhas faces estavam encovadas; quando me vislumbrei no espelho, pareceu-me confrontado por um desconhecido. No passado, duas ou três horas de sono podiam bastar-me. Mas agora eu não podia dormir de modo algum. Insônia completa. Para acalmar meus nervos durante aquelas longas sessões noturnas, eu fumava tanto que a língua e a garganta me ardiam. E havia aqueles estranhos truques e fantasias - fetiches, de fato - que eu desenvolvera sob o crescente esforço. Todas as vezes que eu deixava a minha mesa, tinha que voltar, três vezes, para certificar-me de que, de fato, havia fechado a torneira da minha bureta. Tinha adquirido o hábito de fechar o olho esquerdo, quando fazia as minhas leituras, e de escrever os meus números de trás para diante. Cada dia, antes de começar a trabalhar, eu contava os azulejos da seção da parede acima da incubadora. Havia também uma palavra, que de certo modo entrara na minha cabeça, "abracadabra", e que eu murmurava para mim mesmo, como uma espécie de invocação, um estímulo para engabelar-me, e como uma baixa exclamação de triunfo, sempre que eu completava outra fase da minha pesquisa. E ainda assim continuava, como um autômato, testando e titulando... Tocando para a frente, para a frente... Eu tinha que prosseguir. Tinha ido muito longe para recuar, era tudo ou nada... Sim, tudo ou nada.

Às oito horas, comecei a filtrar o extrato de vacina, e como esse processo levaria cerca de uma hora, levantei-me, apaguei as luzes e deixei o laboratório, tencionando repousar um pouco no meu quarto. Lá fora, eu podia ouvir as afinações preliminares no auditório, onde, no fim de cada mês, havia um entretenimento, metade baile, metade concerto, patrocinado por Palfrey, ostensivamente para benefício dos pacientes, mas principalmente para permitir que o pequeno maestro cantasse, com a mão no coração o "Até o mais bravo coração se inflama...", de Gounod. Eu ia raramente a essas festinhas, e esta noite com toda a certeza não iria.

Ansioso por espichar-me no sofá, entrei no meu quarto, mas logo vi que não estava só. Sentado junto à janela aberta, com os ombros caídos e uma fixidez peculiar no olhar, lá estava Neil Spence.

- Oh, Spence! - exclamei. - Como é bom vê-lo de novo. Ele agradeceu minha acolhida com um leve sorriso nos olhos grandes e imóveis, e depois de apertarmos as mãos, afundou novamente na cadeira, com o rosto sombreado pela cortina.

- Não posso demorar-me, Robert. Mas tive a idéia de vir vê-lo. Você se importa?

- Claro que não. - Eu tinha muitas vezes insistido em que ele me visitasse, contudo, estranhamente, fiquei imaginando qual o motivo de ele ter vindo. - Quer uma bebida?

Spence olhou-me meditativamente, com aquele sorriso sombrio ainda luzindo em suas pupilas escuras.

- Por favor.

Vi então que ele já tinha tomado vários drinques, mas que isso não fazia diferença, além de que eu também queria um. Era fácil encontrar uma boa bebida no meu armário, e ultimamente eu tinha quase acabado com o estoque. Eu agora quase não comia, mantendo-me em pé com café, uísque e cigarros. Servi duas boas doses.

- A nossa sorte, Robert.

- Saúde.

Ele envolvia o copo com as mãos, enquanto seu olhar vagueava pela sala. Havia na sua calma algo que me tornava inquieto.

- Como está Muriel?

- Muito bem, acredito.

- Devia tê-la trazido.

Ele continuou sentado, imóvel; sua imobilidade era apavorante.

- Muriel deixou-me na semana passada. Está com Lomax... Em Londres.

Disse isso num tom tão comum que me deixou sem fôlego. Houve uma pausa. Eu não tinha desconfiado de que ele fosse tão sórdido assim.

- Que grande sujeira! - murmurei, por fim.

- Não sei, não - respondeu ele, logicamente, com aquele mesmo e desumano autocontrole. - Lomax é um sujeito bonito, e Muriel ainda é uma moça atraente. E afinal de contas não é muito divertido viver comigo.

Olhei para ele rapidamente. Continuou, meditativamente, no mesmo tom incolor:

- Suponho que ela agüentou enquanto pôde, até cair por Lomax.

Eu precisava dizer alguma coisa.

- Que grande safado ele deve ser!

Spence sacudiu a cabeça. Apesar do uísque, estava inteiramente sóbrio.

- Provavelmente não é pior do que o resto de nós. - Deixou escapar baixinho um longo suspiro. - Em primeiro lugar, eu nunca devia ter casado com ela. Mas estava tão perdidamente apaixonado. E Deus sabe que fiz o melhor que pude. Levava-a para jantar fora todas as sextas-feiras. - Repetiu isso como se o confortasse. Todas as sextas-feiras da vida.

- Ela acaba voltando - falei. - Vocês terão um novo começo.

- Não seja tolo, Robert. Está tudo acabado. - Fez uma pausa, reflexivamente. - Ela já pediu o divórcio. Quer ficar livre. Pois bem, tratarei disso para ela. Não é extraordinário... Vejo agora que ela é frívola e indigna... Mas não posso odiá-la.

Servi-lhe outro drinque, e um para mim. Eu mal sabia o que dizer. Numa vã tentativa para distrair seu espírito, perguntei:

- Tem ido ao departamento?

- Sim. Ainda ninguém sabe a respeito. Lomax está de férias... Muriel estaria visitando a irmã. Mas afinal para que, se perdi o interesse! Não sou como você, Robert. Nunca dei para a pesquisa. E acrescentou, numa voz sem expressão: - Não teria sido tão mau, exceto quando vi o rumo que as coisas tomavam e falei com ela, que me disse: "Deixe-me em paz. Odeio olhar para você."

Houve um silêncio prolongado. Depois, suavemente o som de uma música em compasso de dois tempos entrou pela janela aberta, através do ar quieto da noite, e ficou soando na sala. Spence olhou para mim com uma vaga pergunta nas feições impassíveis.

- É uma dança que eles têm uma vez por mês - falei. - O pessoal e alguns pacientes.

Ele refletiu por um instante.

- Muriel teria gostado disso... Nós, às vezes, íamos dançar nas noites de sexta-feira. Acho que Lomax deve sair com ela à noite. Ouviu até que a música terminou, e então pousou o copo vazio. - Preciso ir agora, Robert.

- Tolice! Ainda é muito cedo.

- Preciso. Tenho um encontro. Há um bom trem às nove.

- Tome outro, então?

- Não, obrigado. Quero estar bem para o meu encontro.

Desconfiei que ele tinha ido ver um advogado sobre o divórcio. Eu não estava satisfeito com ele, mas não havia nada que pudesse dizer. Eram 20 para as nove. Desci até a portaria com ele e abri o portão. Gunn tinha ido ao baile.

- Vou caminhar com você até a estação. Ele sacudiu a cabeça.

- Se estou certo de uma coisa, é de que você quer voltar ao laboratório.

Havia uma ligeira cor nas suas faces magras, e a expressão dos seus olhos sombrios me sobressaltou.

- Você está bem, Spence?

- Perfeitamente - respondeu ele, com um riso fantasmagórico na voz.

Uma pausa.

Apertamos as mãos. Quando o olhei dubitativamente, ele realmente sorriu o seu sorriso torto.

- Boa sorte, Robert... Deus o abençoe.

Voltei vagarosamente pela alameda. O que ele dissera era bem verdade. Eu tinha que terminar, absolutamente, ou aquilo acabaria comigo. No escuro, indo para o laboratório, ainda podia ouvir o compasso da música suave. Aquele nevoeiro noturno que tínhamos tão freqüentemente estava chegando.

Quando entrei, a sala fria e branca estava silenciosa, a não ser pelo pulsar baixo e abafado da música. Libertei minha mente de tudo, exceto do meu trabalho. Apesar das janelas de folhas duplas e vidros embaciados, o nevoeiro tinha penetrado furtivamente, e flutuava como uma faixa mole, qual um espírito desencarnado, sob o teto abobadado.

Embaixo, no centro do chão lajeado, sobre a minha mesa de trabalho, estava o aparelho de filtragem. Vi que o frasco estava quase cheio de um fluido límpido e translúcido. Levou-me um instante para tirar o paletó, enrolar as mangas da camisa e enfiar meu guarda-pó manchado. Avançando para a mesa, apanhei o frasco, olhei-o com uma estranha e trêmula emoção. Então, atentamente, pus-me a trabalhar. Era apenas um rápido processo padronizar e encapsular o produto final. A um quarto para as dez, estava feito. Por fim, a despeito de tudo, eu tinha chegado ao cume da colina interminável e olhava lá embaixo os reinos espalhados diante de mim.

Sentia-me tão tonto que tive de segurar-me à beira da mesa. Uma zumbidora euforia nos meus ouvidos transformava a música distante. Fraca, depois claramente, concebi as cepas como uma sinfonia celestial, com agudas vozes angélicas, viva como uma clarinada, de mistura com sinos e um sonoro contraponto de tambores. Enquanto essas arrebatadoras harmonias se avolumavam, eu continuava a murmurar tensamente para mim mesmo:

- Eu o fiz... Ó, Deus Todo-Poderoso... Terminei afinal.

Com esforço me recompus, coloquei as ampolas cuidadosamente na geladeira, fechei o laboratório e saí. Dirigi meus passos exaustos para meu quarto. Ao chegar ao vestíbulo, ouvi alguém chamar meu nome e, voltando-me, vi Brogan, o atendente, correndo para mim. Parei e esperei que ele chegasse. O rapaz estava branco e arfava.

- Dr. Shannon, estive procurando o senhor por toda parte. Tomou fôlego. - Houve um pequeno acidente, doutor.

Permaneci imóvel, olhando para ele.

- Escute, doutor. A despeito da sua experiência, o homem tremia. – É aquele seu amigo... Acabamos de ser avisados da estação.

Spence! Subitamente, senti-me nauseado. Um suor frio começou a brotar da minha testa. Engoli com esforço.

- Ele escorregou e caiu, doutor. Exatamente quando o trem das nove entrava na plataforma. Foi instantâneo.

 

Os próximos dias foram ásperos e enevoados, um sopro frio e precoce do outono, presságio melancólico do inverno que viria, e, enquanto eu desempenhava as minhas obrigações, tinha um igual pressentimento de que algo se abateria friamente sobre mim. O enterro de Spence tivera lugar na sua cidade natal de Ullapool, no distante Condado de Ross, e eu não tinha podido comparecer. Mas numa carta a seus pais procurei atenuar o golpe atribuindo a ocorrência a um trágico acaso. Eu nada soubera de Lomax e Muriel.

O laboratório estava fechado, a chave no meu bolso, e parecia estranho que eu não estivesse indo lá. O Professor Challis voltaria para Winton no fim da semana, e eu deixaria nas suas mãos tudo o que se referia à comunicação oficial. Inevitavelmente, notícias da minha realização escaparam de Eastershaws e fui obrigado a suportar o embaraço das congratulações - contidas da parte de Maitland e da Srta. Indre, efusivas de Palfrey, calorosas e dignas do Dr. Goodall. Veio também um extraordinário telefonema interurbano da empresa Wilson, o grande laboratório farmacêutico de Londres que, até que Challis me aconselhasse, recusei-me a atender.

Mas na terça-feira recebi um visitante que era o mais inesperado de todos. Após o jantar, quando caminhava de cá para lá na minha sala, fumando um cigarro atrás do outro, procurando concentrar os meus pensamentos dispersos e controlar meus nervos ainda indóceis, o Professor Usher foi introduzido. Fiquei olhando sem ver para aquela figura alta e distinta, quando ele se aproximou e apertou minha mão com um sorriso cordial.

- Meu caro Shannon, como está? Espero não estar chegando num momento inconveniente.

- Não... - retruquei, secamente. - De modo algum.

- Posso sentar-me? - Ocupou uma cadeira e cruzou uma perna sobre a outra. - Eu deveria ter-lhe avisado de que vinha, mas gosto de agir por impulso. E desejo estar entre os primeiros a felicitá-lo.

- Muito obrigado.

- Eu estava no meu escritório, trabalhando num pequeno projeto, quando o Professor Challis me telefonou de Bute. - Sorriu e cofiou sua bem-aparada pêra: - Apesar dos meus pesados encargos administrativos, procuro ocasionalmente fazer uma verdadeira pesquisa. Pois bem, não hesitei um momento.

Eu não podia achar uma resposta conveniente, de maneira que acabei não dizendo nada.

- Naturalmente, eu sabia que isso viria. Gabo-me de manter o ouvido atento perto da terra. Afinal de contas, a finalidade principal do meu departamento é encorajar tudo o que vale a pena no progresso científico moderno e, a despeito do nosso pequeno desentendimento, percebi que um dia você justificaria minha crença em sua pessoa.

Mordi o lábio diante dessa frívola sinceridade.

- Teria-me poupado uma considerável dificuldade, se tivesse agido de acordo com essa suposição.

- Sim - concordou ele, na sua maneira mais aliciante. Estou pronto a admitir francamente que fui precipitado. E agora que já o disse, espero que me encontre na metade do caminho e esqueça o que passou.

A cabeça me doía mais do que nunca. Eu não podia sondar sua intenção. Seu tom tornou-se mais confidencial.

- Agora escute, Shannon. Serei inteiramente franco com você. Ultimamente, temos tido uma má sorte chocante no departamento. Não estamos obtendo resultados satisfatórios. Para encurtar uma longa história, quero você de volta.

Fiz um gesto instintivo de recusa, mas ele me deteve com um olho imponente.

- Não me interprete mal. Refiro-me a algo consideravelmente mais importante do que meramente ter você de volta. Mudanças significativas estão tomando forma na universidade. Afinal me atraíram para a idéia de incorporar um laboratório bioquímico ao edifício da patologia, e o Conselho Diretor decidiu criar uma cadeira de pesquisa experimental nesse campo particular. O salário foi estipulado em 700 libras por ano, e os deveres do novo diretor, sujeitos, naturalmente, à minha mais cordial cooperação, serão os de organizar e promover o laboratório. Ele terá o status de um professor-assistente, com o privilégio de dar aulas. Agora, Shannon.... Respirou com profunda importância. - Quero que você considere os resultados que um homem moço e brilhante pode obter nessa posição, ajudado por técnicos experimentado e estudantes jovens e dispostos. - Inclinou- se para diante e bateu-me num joelho. - O que você diria se essa oportunidade lhe fosse dada?

Procurei manter-me firme na cadeira. A oferta me tirou o fôlego, uma oportunidade como essa eu jamais ousara, sequer, imaginar. Via que os motivos de Usher eram inteiramente egoístas, ele me queria por causa do seu departamento, e por causa dele próprio. O interesse popular e científico criado pela publicação do meu trabalho, o aplauso dos jornais, a nova legislação sanitária que seria introduzida no Parlamento, tudo isso era infinitamente valioso para que ele o perdesse.

- Ora, vamos - disse Usher, tranqüilamente. - Faço uma boa idéia de como foi duro para você. Não o importunarei mais agora. O que sugiro é o seguinte. Venha jantar na minha casa, segunda-feira à noite. O Reitor da universidade estará lá, juntamente com uns poucos colegas meus, membros do Conselho Deliberativo, que estão vivamente interessados em conhecê-lo e felicitá-lo. Também podem estar presentes, embora não o cochiche em Gath - sua expressão incisiva arqueou uma sobrancelha – um editor ou dois, distintos representantes da imprensa. Acho que posso prometer-lhe uma noite estimulante.

Tentei exprimir os meus agradecimentos, mas ele me deteve com um sorriso.

- Nem uma palavra, meu caro colega. Você deve aceitar isso como a minha amende honorable. Então, às oito em ponto, em minha casa, segunda-feira. E novamente as minhas congratulações, junto com a esperança de que, no futuro, possamos adiantar juntos a nobre causa da ciência.

Levantou-se, apertou-me a mão com um estalo, dispensou-me um sorriso histriônico e saiu da sala.

Tornei a afundar em minha cadeira. Aquela brilhante viravolta dos acontecimentos era demasiada para o meu cérebro cansado, e eu mal podia avaliá-la. O primeiro tremor de excitamento tinha passado, eu não sentia euforia, apenas uma estranha tensão interior. Aquela era a recompensa de praxe ao trabalho sistemático, perseverança e elevado empenho. Agora, eu era o estudante premiado, o primeiro da lista. Todos professavam a sua amizade, estavam ansiosos por me apertar a mão; até a comissão de Dalnair agora ia alegar sua relação comigo. Mas eles tinham sido contra mim, cada um deles, quando eu estava realmente lutando, atolado no pântano da adversidade.

Contudo, eu sabia que não seria tão heróico a ponto de desprezar o sucesso. Eu tinha sofrido demasiado tempo as dores, o trabalho esfalfante do esforço independente. Usher não interferiria muito comigo. E o dinheiro... 700 libras por ano... Eu nunca tinha pensado uma só vez nisso, mas agora, a despeito de mim mesmo, eu seria rico, poderia até vestir-me como um médico abastado, afinal de contas. Não era bom para mim, esta amargura, mas não podia domina-la. Meu futuro nunca se mostrara tão brilhante, contudo uma mortalha parecia envolver minha alegria. Somente uma pessoa poderia realmente interessar-se, alegrar-se honestamente com o meu sucesso.

Durante semanas, eu tinha sepultado aquela imagem nos recessos secretos da minha mente, agora não podia libertar-me dela. E de súbito, através da agrura que me invadia, surgiu um terno e suave anseio. Jean tinha rompido comigo. Seu prolongado silêncio indicava-o. Eu a havia traído. Mas queria falar com ela, apenas por um momento, para dizer-lhe que a minha pesquisa estava terminada somente um momento, para ouvir sua voz. E assim, contra o bom senso, contra o meu orgulho, contra tudo fui lentamente ao telefone e, depois de um momento final de hesitação, chamei o hospital de Dalnair. Era uma chamada interurbana e tive que esperar algum tempo, mas, afinal, consegui a ligação. Minha voz soou áspera e forçada.

- Gostaria de falar com a Dra. Law, por obséquio.

- Lamento, senhor, mas não é possível.

A recusa abrupta me surpreendeu e desconcertou.

- Ela não está no hospital? - perguntei.

- Oh, está sim, senhor.

- Quer dizer que está ocupada com os pacientes?

- Não, não está, não senhor.

- Então, o que quer dizer? Por favor, vá ao quarto dela e diga-lhe que estou no aparelho.

- Ela não está no seu quarto, senhor. Está na enfermaria.

Quem estava do outro lado da linha? Procurei reconhecer a voz, mas não pude. Além disso, a estação telefônica do campo estava agindo da sua maneira habitual, e a linha começou a zumbir e a estalar. Refreando minha impaciência, passei o receptor para o outro ouvido.

- Alô, alô... Quem está falando?

- É a empregada, senhor.

- Katie?

- Não, sou a ajudante dela.

Meus nervos estavam tão tensos que tive de fechar os olhos.

- Por favor, chame a enfermeira-chefe. Diga que o Dr. Shannon quer falar com ela.

- Muito bem, senhor, aguarde, por obséquio.

Fiquei aguardando, com crescente aflição e ansiedade, pelo que me pareceu um período interminável. Mas, finalmente, com alívio, ouvi um passo pesado, seguido pela voz inconfundível da Srta. Trudgeon.

- Sim, Dr. Shannon.

- Chefe! - exclamei. - Sinto incomodá-la, mas preciso trocar uma palavra com a Dra. Law. Poderia chamá-la para mim?

- Acho que não poderá falar com ela, doutor. O senhor não tem tido notícias nossas?

- Não.

Houve uma considerável pausa. Depois:

- A Dra. Law está doente, muito doente, nas últimas três semanas.

Enquanto meu coração se torcia no peito, ouviu-se um estalo no aparelho que impediu qualquer fala. Mas eu já tinha ouvido o suficiente para transformar minha rápida suspeita em certeza. Pendurei o receptor. Sempre fora meu defeito saltar impetuosamente para uma conclusão imatura, e isso, precisamente, era o que eu acabava de fazer.

 

Na manhã seguinte, fui cedo para o laboratório, depois caminhei até a casa do Dr. Goodall. Ele ainda não se tinha levantado, mas, quando lhe mandei dizer que era obrigado a tirar o dia, deu-me sua permissão.

O céu ainda estava cinzento quando desci a alameda e saí pelos grandes portões. Após a minha longa e ininterrupta permanência dentro dos muros, era penoso fazer esta viagem a Dalnair. A cidade jazia úmida e quente sob um manto baixo de fumaça. O ruído e a atividade das ruas, a multidão que empurrava sua bagagem na Estação Central eram estranhamente dissonantes após a ordem e tranqüilidade de Eastershaws. Mas eu tinha que ver Jean... Sim, a qualquer custo, eu precisava vê-la.

Contudo, ao sentar-me taciturno no trem sacolejante, enquanto os campos sujos de fuligem desfilavam, meu sentimento era menos de pena do que uma raiva lenta e bruxuleante. Cada vez mais, eu estava obcecado pela imagem dos seus dedos tocando as culturas e esmagando o biscuit dos seus lábios.

Na Estação de Dalnair, não pude arranjar um carro, e assim, sob um céu cinzento e úmido, caminhei para o hospital pelo aclive por onde eu costumava correr a toda velocidade. Mas agora eu subia lentamente, desejando ter parado na taberna da estação para tomar alguma coisa. Estava sem fôlego, quando cheguei ao cume da colina, entrei na alameda e apertei a campainha da porta da frente. Não houve demora. Foi Katie quem atendeu a meu chamado.

Eu não tinha avisado que vinha, e a moça me olhou assustada. Mas Katie sempre gostara de mim e, com um ar contido de boas-vindas, admitiu-me na sala de recepção. Um momento depois, apareceu a Srta. Trudgeon.

- Ora - exclamou ela, entrando com o seu vivo e enérgico sorriso. - Que surpresa! Estou muito contente em vê-lo de novo.

Olhando seriamente para ela, vi que tinha falado muito sinceramente; contudo, sentindo-me grato por sua acolhida amistosa, não fui iludido pela vivacidade enganadora de seu jeito, que imediatamente reconheci como mero disfarce profissional, o qual eu a vira usar muitas vezes ao receber parentes ansiosos.

- Mas tenho de dizer que o senhor não lisonjeia o seu novo emprego. Está magro como um palito. O que lhe andaram fazendo? Parece que o passaram por um cilindro de massa.

- Oh, estou muito bem.

- Não lhe dão de comer por lá?

- Sim... A comida é excelente.

Ela sacudiu ligeiramente a cabeça, como se duvidasse das minhas palavras.

- Está precisando de um tratamento com os meus bons e nutritivos pratos de caril.

Houve uma pausa embaraçosa durante a qual, como ela não me tivesse convidado para sentar, ambos permaneceram de pé. O sorriso alegre e até encorajador, que por longa prática os seus músculos faciais pareciam capazes de sustentar indefinidamente, tinha perdido um pouco do brilho. Umedeci os lábios.

- Como está Jean?

- Tão bem como se podia esperar. Já faz três semanas que está doente. - A enfermeira-chefe hesitou; então, observando que eu esperava maiores informações, continuou na mesma nota de otimismo, escolhendo as palavras a fim de não se comprometer. - A princípio, ela parecia estar resistindo bem. Mas nestes últimos poucos dias tem havido uma perda de terreno.

Senti meu coração contrair-se. Eu conhecia essa frase muito bem.

- Quem está tratando dela?

- O Dr. Fraser, médico do Centro de Saúde.

Eu guardava uma imagem daquele homem de meia-idade, de cabelos ralos cor de areia, sobrancelhas ruivas e espessas, e um rosto quadrado, comum, engelhado, tornado grosseiramente áspero por uma reticulação de veias vermelhas no queixo.

- Ele é um bom homem.

- Excelente.

- Fale a verdade. O que ele diz?

A enfermeira-chefe ficou silenciosa. Encolheu ligeiramente os ombros.

- Ela está muito doente. Se ao menos tivesse caído logo, teria uma chance melhor. Mas continuou durante uma semana com dores de cabeça persistente e febre, antes de arriar. Mas isso acontece freqüentemente com a escarlatina.

- Escarlatina! - exclamei, num tom indescritível.

- Sim - disse a chefe-enfermeira, surpresa. - Eu lhe disse ontem à noite pelo telefone.

Um silêncio dilacerante. Respirei rápida e tão fundamente num hausto que parecia queimar até a ponta dos meus dedos. Tão enraizada estava a minha idéia que não pude levar-me a abandoná-la.

- Gostaria de vê-la - disse eu.

O olhar da Srta. Trudgeon escorregou sobre a minha cabeça.

- Ela não está consciente.

- Mesmo assim. Eu gostaria.

- Qual o bem que isso poderia fazer a ela?

- Mesmo assim...

A enfermeira-chefe pareceu inteiramente embaraçada agora.

- Os pais dela e o irmão estão aqui... Nos aposentos dela. E o noivo. A menos que eles permitam, doutor, não posso aceitar a responsabilidade.

Senti-me afundar num desânimo. Aquilo era algo impensado, uma dificuldade a vencer, uma penitência a sofrer. Contudo, por coisa alguma eu abandonaria o propósito que me trouxera aqui. Suspirei.

- Vou entrar e vê-la.

A enfermeira-chefe outra vez encolheu os ombros.

- Muito bem. O senhor sabe o que está fazendo melhor do que eu. Se precisar de mim, estarei no pavilhão.

Sem mais comentários, a Srta. Trudgeon inclinou ligeiramente a cabeça, girou nos calcanhares e foi-se, deixando-me tomar o meu caminho da melhor maneira que pude ao longo do corredor, para o meu antigo quarto. Diante da porta, fiquei um minuto inteiro, ouvindo o som de uma voz profunda lá dentro, e então, reunindo toda a minha coragem, torci a maçaneta e entrei.

Daniel Law estava sentado à mesa, lendo alto um trecho da Bíblia, com Luke na cadeira ao lado, muito junto dela. Sentados no vão da janela e voltados para minha direção achavam-se a Sra. Law e Malcolm Hodden.

Fiquei ali, como um ser desprezível, contendo a respiração até que a leitura terminou. Houve um silêncio grave. Daniel tirou os óculos, limpou-os com um lenço, contra a luz, e então meio que se virou na cadeira. Embora essa atitude fosse normal, seu aspecto imponente e ansioso não deu sinal de raiva ou acusação. Simplesmente olhou para mim com silenciosa dignidade.

Malcolm, no entanto, tinha-se levantado. Veio para mim. Sua voz velada era audível na sala silenciosa.

- Como pode intrometer-se numa hora destas? - Seus olhos cheios, perto de mim, estavam injetados. - Não pode respeitar a nossa intimidade... Impondo-se...

- Não, Malcolm - interpôs a mãe de Jean com um cicio.

Mantive o olhar no chão, com tudo o que eu queria dizer congelado.

- Ele não tem o direito de estar aqui! - exclamou Malcolm de súbito, numa voz sacudida.

- Oh! Fique quieto - murmurou Luke.

- Psiu, filho - sussurrou a Sra. Law. Olhando firme para mim, levantou-se. - Vou ver minha filha agora. Quer vir comigo à enfermaria?

Mudo, sem ter dito uma palavra, acompanhei-a para fora da sala, pelo corredor, até o quarto contíguo ao pequeno pavilhão. Ondas de luz corriam pelo saibro limpo do pátio, uma jovem enfermeira passou á nossa frente; embaixo de uma varanda, um grupo de crianças convalescentes, de paletós vermelhos, brincava com uma bola de borracha.

Meu coração me martelava insuportavelmente o peito, quando a enfermeira-chefe abriu a porta e entramos com ela no quarto pintado de branco. Somente uma das três camas estava ocupada, meia cercada por um biombo, com uma cadeira de esmalte branco a um lado. Nessa cadeira, inclinada para a frente numa atitude de  vigília, estava a Enfermeira Peek. Quando acompanhei a Chefe lentamente em volta do biombo e fiquei ao pé da cama, não ousei erguer os olhos. Somente pelo maior esforço da vontade, consegui levantar a cabeça, centímetro por centímetro, até que meu olhar, percorrendo a colcha branca, foi dar em Jean.

Estava deitada de costas, com os olhos muito abertos, murmurando constantemente, com movimentos trêmulos dos lábios secos, com as mãos finas sempre a puxar as cobertas. Contra o estreito travesseiro branco, por baixo do cabelo amarrado para trás, os seus ossos faciais eram agudos e finos. As faces não mostravam as manchas de febres vivas e usuais, mas um vermelho pesado e sem brilho, enquanto uma porção de pontinhos avermelhados, alguns dos quais já sem cor, deixando manchas castanhas, desfigurava a testa repuxada... A mancha típica da escarlatina tóxica. Por entre o latejar dos meus ouvidos, já me sentia escorregar ladeira abaixo.

Sobre a cama, fora do alcance daqueles dedos que puxavam e se torciam, estava o mapa no qual se vinham as linhas abruptas, os fundos e alcantilados contornos da febre. Meus olhos se fixaram esforçadamente nele. Sim, pensei, após um longo momento, não havia a menor dúvida. Que tolo eu fora, que tolo eu era sempre...  Era, com certeza, escarlatina.

Em tom baixo, a Sra. Law e a enfermeira-chefe começaram a falar uma com a outra. Eu não estava lá. Inútil como um traste velho, eu era ignorado. Não existia. Meus olhos se abaixaram, em angustiada confusão, vagueando pelo equipamento precisamente estendido na mesa de cabeceira, vidros de remédio, xícara para alimentos, uma seringa hipodérmica, éter, óleo canforado. Se tinha chegado àquele ponto, era muito mau.

A cena pairava, suspensa de um fio impiedoso do tempo que oscilava ligeiramente de um lado para outro, e lentamente diminuía, tornando-se mais frágil à medida que os segundos se escoavam, um por um, num vazio desconhecido. Saí, atravessei o estreito corredor para o quarto oposto, que estava desocupado, e sentei-me à beira de uma cama, olhando sem ver para a descorada parede amarela, com olhos fixos e esgazeados. Eu esperava fazer tanto, e agora não podia fazer nada... Nenhum ato dramático e apaixonado para provar-me, para estabelecer um motivo para existir... Nada.  Cada vez mais cheio de desprezo por mim mesmo, negando-me todo valor, tirei do bolso uma grande ampola que eu tinha embrulhado naquela manhã e, sob a pressão inconsciente dos meus dedos, o estalo do vidro partido alcançou a altura de uma ressonância, soando nos meus ouvidos como sinos. Pedaços de algodão úmido ficaram aderidos aos meus dedos. Impossível descrever o calor branco que ardia na minha mente, minha sensação de miserável inépcia, a carga, sem sentimento, que pesava sobre mim, a série de ecos zombeteiros no silêncio que me envolvia.

Quieto, o tempo continuava a oscilar, os segundos a cair como leves plumas. Como é que aquilo me viera? Ah, se a gente estava cansado, ou envolvido, a despeito de si mesmo, em algum sonho melancólico, então não poderia ser fácil esquecer aquelas simples precauções que fazem a diferença entre a saúde e a doença? Vozes soaram através do vazio gelado do pensamento. Ouvi a Sra. Law e a enfermeira-chefe saírem do quarto da enferma e caminharem pelo corredor. A Srta. Trudgeon procurava acalmar a mãe perturbada.

- Fique tranqüila, tudo está sendo feito. Saberemos dentro de 24 horas. O Dr. Fraser está dedicando toda a sua atenção. Quando à Enfermeira Peek, nada poderá ultrapassar sua dedicação a este caso. Está atendendo especialmente há três semanas, e muitas vezes dobra o seu serviço. Nunca vi tamanho auto-sacrifício.

Então eu também estava enganado. Para mim, era como pensar o pior de todos. Eu tinha julgado mal a enfermeira-chefe, e também lutado contra ela, desconfiado dela. Era a minha qualidade especial, pegar o lado errado das pessoas, agindo contra a convenção e o grão de decência, ficando contra o universo, não pertencendo a nenhum lugar nem a ninguém senão a mim mesmo.

Um gongo,vibrou na distância do edifício principal, chamando as enfermeiras para o almoço, um sinal de vida normal que aprofundava o buraco do presente. As duas mulheres tinham passado agora pela porta externa, suas vozes, baixas e tristes, sumiram-se. Levantei-me automaticamente e, como uma figura movida por cordéis, saí do pavilhão. Não se via ninguém. Como se arrastasse grilhões, comecei a descer a colina em direção à estação. Encolhido num compartimento vazio do trem de regresso, eu ainda estava no pavilhão, lá, na colina que escurecia.

 

Quando voltei a Eastershaws encontrei um bilhete dizendo que o Professor Usher tinha telefonado duas vezes, deixando recado que ligasse para ele quando voltasse. Hesitei, e então disse comigo que o chamaria mais tarde. Eu tinha uma terrível dor de cabeça, queria ficar só, isolar-me, alimentar minha tristeza, e os meus temores, em segredo.

Às cinco horas, tomei uma xícara de chá. Gostei. Todas minhas faculdades pareciam dormentes. Na bandeja havia outro bilhete: O Sr. Smith do Departamento de Patologia telefonou às 15 horas. Urgente.

Vagamente, através do peso que era eu mesmo, senti-me aborrecido com aquela insistência e intrigado, quando me lembrei de que Usher tinha aludido à vinda de um repórter do Herald. Smith devia ter sido incumbido de arranjar a entrevista. Justamente agora eu não podia suportar isso. Haveria tempo suficiente no jantar da segunda-feira. Enrolei o papel e atirei-o no fogo.

Goodall tinha-me dado todo o dia. Não havia necessidade de eu sair do meu quarto. Fiquei sentado, num pesado aturdimento, contando as horas, até as nove; então, despertando, telefonei para o hospital de Dalnair. Não houvera mudança nas condições de Jean. Nada mais podiam dizer-me. Exausto, latejando de ansiedade, achei que seria melhor recolher-me, mas a minha nevralgia era tão forte que eu sabia que não ia poder dormir. O tubo de aspirina do armário do banheiro estava vazio. Desci as escadas e, entrando no dispensário, apanhei algum piramido. Depois, ao voltar, no subterrâneo central, avistei uma das enfermeiras que se aproximava. Era Stanway. Estava sozinha, caminhando lentamente para o alojamento. Quando me viu, parou, inclinando-se casualmente contra a parede do corredor até que eu chegasse.

- Onde tem estado?

- Em parte nenhuma em particular.

- Você é uma pessoa estranha.

Embora falasse com aparente indiferença, estudava-me atentamente. Acrescentou:

- Espero que não tenha pensado que senti sua falta.

- Não - disse eu.

- Há muitos outros com quem eu posso sair.

- Não duvido.

Houve uma pausa. Olhei para ela, e desviei o olhar, tomado por uma revulsão dos sentimentos que me tornou doente e frio. Havia uma penalidade para tudo, pensei, lamentando amargamente aquelas muitas e tristes noites em que, cosido às paredes como um ladrão, eu tinha ido ao quarto dela. Promíscua e reles... Tudo sem sentido... Sem um único pensamento terno. As luzes geladas estavam lá em cima, artificiais e irreais. Ela não se importava comigo e eu, ó, Deus, estava cansado dela.

- O que há? - perguntou ela rispidamente, ainda observando as mudanças no meu rosto.

Não respondi. E, interpretando mal minha hesitação, um lento e provocante sorriso assomou-lhe aos lábios.

- Estou largando o serviço agora. - Olhou-me, indolentemente. – Se quiser, venha comigo.

- Não - falei, olhando diretamente para a frente.

Abaladíssima, empertigou-se, de vaidade ferida, e, ao menos por uma vez, seu rosto pálido enrubesceu, num vermelhão inesperado e furioso. Houve uma pausa.

- Muito bem - disse ela, dando de ombros. - Não pense que me importo. Mas não ande à minha volta, me perturbando, quando mudar de idéia.

Olhou-me, com franco desprezo. Sua cabecinha silhuetada como uma caveira contra a luz. Deu meia-volta e saiu pelo subterrâneo, batendo os saltos no cimento, batendo no silêncio.

Bem, aquilo era o fim, graças a Deus. Voltei para meu quarto e atirei-me na cama. Após algum tempo, o piramido fez efeito. Adormeci profundamente. Mas no dia seguinte, quando acordei, senti-me pior do que nunca. Meu sono apenas me havia preparado para o dia que chegava.

Por volta de meio-dia, terminei não sei como o meu serviço, e sem encontrar Maitland ou Palfrey - ultimamente eu ficara propenso a evitar os outros membros do pessoal. Após a uma hora, com um fundo pressentimento, forçando a demora até não poder agüentar mais, telefonei novamente para Dalnair. A Enfermeira Carneron falou comigo. Sua voz parecia alegre, mas ela sempre estava alegre. E a resposta que me deu foi a mesma. Nenhuma mudança. Resistindo. Nenhuma mudança de fato. Num ímpeto de boa intenção, tentou ajudar-me.

- De qualquer modo, o pior ainda não aconteceu. Enquanto há vida, há esperança.

Chovia lá fora, uma chuva grossa que escurecia o céu e lançava uma sombra de tempestade sobre todo o terreno. Subi vagarosamente a escada para meu quarto. Então, ao entrar, percebi na luz indireta que alguém estava sentado no sofá, no lado que ficava longe do fogo. Liguei o abajur de cima da prateleira de livros e, com aborrecida surpresa, vi que meu visitante era Adrian Lomax. Sem alterar sua postura recebeu o meu demorado e tedioso olhar de uma maneira que pelo menos simulava a calma superior e habitual, mas que, ao mesmo tempo, traía sua superfície uma incerteza quanto ao modo como eu o receberia.

- Lomax - disse eu, finalmente, à distância - Você é a última pessoa que eu esperava encontrar aqui.

- Não parece muito contente em me ver.

Não disse resposta. Houve uma pausa. Ele não tinha mudado muito, aliás, não tinha mudado quase nada. Eu imaginava que, depois do que tinha passado, estaria com um senso de responsabilidade e culpa. Ao contrário, continuava tão bem disposto como antes, mais pálido talvez, com um abaixamento mais desatento dos lábios, mas perfeitamente composto e preparado para defender-se.

- Você não sabia que eu tinha voltado?

- Não.

Embora de fato tivesse havido um pequeno escândalo, vi que o seu orgulho é que o trouxera de volta. Acendeu um cigarro, com uma tentativa de recuperar sua antiga desenvoltura. Sim, ele estava embaraçado, e procura escondê-lo com aquele ar de bravura.

- Suponho que aponte a faca para mim. Mas não tive a menor culpa.

- Não teve?

- Longe disso. Desde o começo foi Muriel quem correu atrás de mim. Não me deixava sozinho. Oh, atrevo-me a dizer que foi tolice minha, mas simplesmente não podia desvencilhar-me.

- Onde está ela agora?

- Propus-lhe casamento. Eu queria fazer a coisa correta. Mas tivemos uma briga dos diabos. Ela voltou para sua gente. Não sinto. Ela teria sido uma grande amolação.

- Você se safou muito bem. Melhor do que Spence.

- Você sabe que foi um acidente. Era uma noite de nevoeiro. Ele falseou o pé na plataforma. Tudo isso apareceu no inquérito.

- Por amor de Deus, não se desculpe. Parece sentir-se como se o tivesse empurrado.

A cor desapareceu no seu rosto.

- Você não acha que foi um tanto gratuito? De qualquer modo, quero mostrar que não sou o patife que dizem que sou. Vou trabalhar, trabalhar de verdade no departamento, e desta vez fazer alguma coisa que os deixe de boca aberta.

Lomax dava a impressão de ter sido vítima de circunstâncias incontroláveis, e que o futuro o justificaria inteiramente. Eu sabia que ele nunca realizaria nada, que, por baixo daquele ar de brilhante superioridade, era fraco, pesado e auto-indulgente. Estar com ele na sala me deixava inquieto. Levantei-me e avivei o fogo, esperando que aproveitasse a indireta para ir embora. Mas ele não foi. Continuou a olhar para mim de um modo curioso.

- Você tem feito um bom trabalho ultimamente.

Parado longe dele, fiz um gesto negativo.

- Ficariam muito alvoroçados com isso no departamento.

Ergui os olhos lentamente. Por entre as névoas que me cercavam, o emprego do pretérito perfeito me pareceu estranho. Seguiu-se um momento de silêncio. Lomax se inclinou para a frente, com aquele sorriso fino e curioso de pesar mais aparente nos seus lábios.

- Usher me pediu que viesse vê-lo, Shannon... Para dar-lhe a notícia. Você foi antecipado. Alguém publicou seu trabalho antes de você.

Fiquei olhando para ele tediosamente, imaginando aonde ele queria chegar; então, subitamente, indaguei:

- O que quer dizer? - Eu mal podia pronunciar as palavras. – Examinei toda a literatura antes de começar. Não havia nada.

- Não, Shannon, não havia. Mas agora há. Um pesquisador nos Estados Unidos, uma médica chamada Evans, acaba de aparecer na Medical Review deste mês com um relatório completo da sua pesquisa. Trabalho de dois anos. As conclusões dela são praticamente as mesmas que as suas. Ela isolou o bacilo, demonstrou a incidência mundial da doença, os números são pasmosamente grandes, e identificou a infecção nos rebanhos leiteiros, de fato, tudo.

Um longo silêncio. A sala girava em torno de mim. Lomax estava falando de novo. Com um tato demasiado óbvio.

- Foi Smith o primeiro a informar-nos. Ele vinha acompanhando o trabalho da Dra. Evans há meses. Tinha mesmo uma primeira prova do relatório impresso. Levou-a ao departamento ontem.

- Compreendo.

Meus lábios estavam duros e frios. Eu me sentia como se tivesse sido transformado em pedra. Dezoito meses de cruéis esforços, de febril aplicação, dia e noite, diante de todas as dificuldades, tudo em pura perda, e para nada. Se os resultados já estivessem perante o mundo científico, provados e publicados, eu agora não receberia nenhum crédito pelo que tinha feito, pelos problemas que havia resolvido com tamanho custo para mim mesmo. Sem dúvida, isso já tinha acontecido antes, como que por uma estranha telepatia, uma corrente passava entre dois pesquisadores, em continentes diferentes, lançando-os, ignorado um do outro, sobre a mesma questão. Contudo, isso não atenuava o terrível sofrimento de saber que outro atingiria a meta antes de mim, nem reduzia a amargura mortal da derrota.

- É realmente uma pena. - Lomax falava sem olhar. - Não preciso dizer-lhe o quanto sinto.

Sua expressão de piedade machucava mais do que a indiferença. Levantou-se da cadeira.

- A propósito, no caso de querer ler, eu trouxe o artigo. Tirou umas folhas impressas do bolso do paletó e colocou-as em cima da mesa. - Agora, vou indo. Boa noite, Shannon.

- Boa noite.

Quando ele saiu, comecei a olhar para nada, numa calma vazia e irremediável. Então, com um suspiro que parecia vir do fundo do coração, levantei-me, fui até a mesa, apanhei o informe e me preparei para ler. Como Lomax dissera, era uma soberba investigação da enfermidade, mais tarde a ser chamada de brucelose, e que chegou a ser considerada como um trabalho monumental. Depois de ler o relatório atentamente duas vezes, tive que reconhecer, com um rápido surto de inveja, que a Dra. Evans era uma cientista brilhante e habilidosa, cujo trabalho era talvez melhor do que o meu. Dobrei as folhas com intensa calma, e levantei-me. Esta nova calma, por falsa que fosse, era como uma súbita embriaguez enchendo minha cabeça com uma sensação de luz e poder. Já eram três horas e tempo para eu telefonar novamente a Dalnair. Sem uma tremura, dirigi-me ao telefone. Mas antes que eu pudesse apanhar o aparelho, ouvi uma batida na porta e a criada entrou e entregou-me um telegrama. Abri-o com dedos firmes.

"ACEITE MINHA SINCERA SIMPATIA PUBLICAÇAO REVISTA QUE DE NENHUMA MANEIRA DIMINUI MÉRITO INTRINSECO SEU ESFORÇO. AINDA NAO POSSO VIAJAR MAS ESPERO VE-LO BREVE A FIM COMBINAR FUTURO TRABALHO. ABRAÇOS. WILFRED CHALLIS."

Se a reação fora demorada, ela agora me vinha com força redobrada. Eu me apoiava em Challis, esquecido dos seus anos e do seu crescente enfraquecimento. Aquela mensagem de condolências destruía o último apoio. Ao contemplar as palavras borradas, senti, subitamente, um estalo por trás da testa, como se uma tira de elástico, muito esticada, tivesse finalmente cedido à tensão. No mesmo instante, os nervos se me escaparam, o mundo rodou em volta, e o esplêndido humorismo de toda a coisa me veio num relâmpago. Sorri, a princípio vagamente, contudo, após um momento com crescente convicção, até que eu pouco comecei a rir de mim mesmo, da minha presente situação. Então, como um prestidigitador ao qual se impõe a necessidade de outra mágica, subitamente me tornei calmo, sério e desembaraçado.

Com um ar de finalidade, consultei o relógio, esquecido de que fizera isso havia poucos minutos. Eram apenas três e 15, o que me tranqüilizou, porque eu subitamente experimentava um premente desejo de estar ocupado. Toda a sensação de desapontamento tinha desaparecido e, através da insensibilidade geral que me afetava, eu estava consciente de um vago e penetrante conforto, um reconhecimento de que o que ocorrera lá fora, no departamento ou em Dalnair, era de pouca importância no movimento geral da minha vida. Pois eu não estava seguro aqui, bem acomodado e alimentado, neste esplêndido, neste abrigado retiro? Por isso, se me agradava, eu não precisava deixá-lo.

Reforçado por esse pensamento, saí lepidamente para a Ala Oeste, onde, no dia de folga de Maitland, era minha obrigação fazer a visita da tarde. Ultimamente, eu andara um tanto relapso quanto a essa obrigação, talvez ainda não tivesse feito sentir todo o meu peso no estabelecimento. Isso não estava certo, não era justo para com o Dr. Goodall, não estava à altura dos padrões de Eastershaws. Censurando- me, disse comigo mesmo que devia fazer uma reparação conveniente. Havia muitas coisas que eu poderia atender antes de o dia acabar. No vestíbulo da Oeste, reuni-me à Enfermeira Shadd e fiz a ronda completa das seis galerias. Não corri nem fugi do trabalho; ao contrário, eu o fiz cuidadosa e solicitamente.

O sossego das galerias era estranhamente calmante, e conversei demoradamente com várias pacientes, até bebi uma xícara de chá com a Duquesa no seu próprio quarto, um soberbo apartamento com cortinas verdes desbotadas, uma pele de urso diante da lareira e um candelabro de pechisbeque. Ela usava um vestido de veludo malva, enfeitado com muitas jóias, e vários colares de sementes de melão recentemente enfiadas. A princípio, fixou os seus olhinhos de conta me examinando, mas, como me excedi em agradá-la, ela se endireitou lentamente e, quando me ergui para ir embora, estendeu-me, coquetemente, a mão de pergaminho amarelo. Um tanto divertido com o meu sucesso, voltei-me para Shadd quando nos reunimos diante da porta.

- Notável, enfermeira, não é... Como a Duquesa, apesar das suas extravagâncias, resume certos fenômenos observáveis entre as damas daqui. - Bastante notável. Durante toda a minha visita, ela se mantivera constrangida e silenciosa. Agora, dispensou-me um peculiar e ríspido olhar de desaprovação. Quero dizer - falei, sorrindo - que todas elas estão interessadas em vestidos. Até as mais velhas continuam tentando aparecer com alguma coisa nova, ajuntando um laço aqui, alterando um babado ali, num esforço para esconder o resto. Muitas vezes, as suas criações são grotescas, contudo, se forem suficientemente diferentes, imediatamente se tornam moda. Naturalmente, o vasto guarda-roupa da Duquesa habilita-a a reinar suprema.

A Enfermeira Shadd, ainda me encarando, abriu os lábios, e então os apertou com agudo desagrado.

- A atitude delas para com o sexo oposto também é interessante... - continuei. - Veja, por exemplo, as virgens passivas que empalidecem à simples vista de um homem... E as outras, com certa disposição romântica, que lançam olhares tímidos, quando passeiam no jardim, para os homens dos seus caprichos... E as criaturas desesperadas que alternadamente imploram e se queixam do rapto pelo relâmpago, pelo raio, pelas ondas elétricas, pelos raios solares e lunares, ou até mesmo pela visitação sobrenatural do próprio Goodall!

- Desculpe-me, doutor - atalhou Shadd, bruscamente. - A Srta. Indre precisa de mim. - Ao afastar-se, com uma cara de trovão, acrescentou: - Realmente, o senhor me surpreende. Por que não vai deitar-se um pouco?

Então ela pensava que eu andara bebendo, pois que fosse para o inferno. De qualquer maneira, filosofar com ela era perder tempo. Ressenti-me com sua retirada; recusei-me, contudo, positivamente, a permitir que aquilo me aborrecesse. Voltei-me com renovada vivacidade, e dirigi-me para o dispensário.

O estoque de soluções estava muito baixo. Levei uma hora inteira para completá-lo. Quando eu media os cristais de cloridrato e os agitava dentro de frascos azuis, dei comigo cantarolando - a frase favorita de Palfrey da Carmen... Do pobre e infeliz Bizet. Muito alegre e agradável. Se a minha cabeça não estivesse tão amortecida como batida por martelos, eu me teria sentido inteiramente à vontade.

De repente, o telefone tocou. A nota aguda e vibrante me causou um doloroso sobressalto. Contudo, foi com calma que apanhei o fone.

- Dr. Shannon? - Era a voz do porteiro.

- Sim.

- Estive procurando o senhor por todo o hospital. Está aqui um rapaz que deseja falar com o senhor.

- Comigo? - Olhei sem ver para a parede diante de mim. Qual é o nome dele?

- Law... Diz ele, Luke Law.

Oh, sim, eu me lembrava de Luke, o meu jovem amigo da motocicleta. O que queria ele àquela hora do dia? Eu mal começara a cantarolar novamente, quando a voz dele me chegou ao ouvido, ansiosa e excitada, com as palavras atropelando umas às outras.

- É você, Robert... Desça logo... Preciso vê-lo.

- De que se trata?

- De nada... De tudo... É uma boa notícia... Jean está muito melhor.

- Como assim?

- Está fora de perigo. Teve a crise às duas horas desta tarde. Está consciente agora. Ela falou conosco. Não é maravilhoso?

- É, sim, estou contentíssimo.

- Tive que pegar a moto e vir voando para contar a você. Desça aqui na portaria quero vê-lo.

- Lamento, meu caro rapaz. - Minha voz comunicava o pesar polido de uma pessoa que estava preocupada com muitos assuntos.

- Como?! - Uma pausa. - Depois de eu fazer todo o caminho? Robert... Alô... Alô...

Embora, remotamente, me magoasse fazê-lo, interrompi-o, pendurando o receptor no gancho com um tranqüilo sorriso. Por muito que eu gostasse de Luke, não tinha tempo a perder com coisas fúteis. Naturalmente, era um grande alivio saber que a Srta. Law estava melhor, e sem dúvida muito gratificante para os seus parentes.  Lembrei-me da canção... Jeannie dos leves cabelos castanhos... Melodia encantadora, devia mencioná-la a Palfrey. Eu me recordava dela vagamente, como uma estudante da minha classe, inteligente, mas um tanto importuna. Naturalmente eu não tinha maus sentimentos para com ela, nem a menor má vontade deste mundo.

Bizet, novamente... Pobre, infeliz Bizet... Não devo mostrar que estou tremendo... Terminei a minha provisão de soluções, limpei o dispensário, e novamente, lépido, com um olhar incerto, decifrei o tempo no meu relógio.

Sete horas. Eu sempre detestara o trabalho no refeitório, mas agora, apesar da dor de cabeça, parecia-me uma necessidade lógica e agradável. A refeição já tinha começado, quando entrei na sala de jantar, e as copeiras estavam trazendo bandejas após bandejas de pratos para as mesas compridas, onde, por entre grande ruído de louça, rangido de cadeiras e zunzum de vozes, todos tinham começado a comer. Fiquei parado por um momento; então, sem subir no estrado, caminhei de cá para lá, observando com benigno e possessivo interesse. O vapor que subia dos pratos e o cheiro temperado da comida me fizeram sentir a falta de sono, e enquanto meus pensamentos vagavam, a cena se tornava mais rica e calorosa, feudal, quase, na sua assembléia entrincheirada de damas e cavalheiros, o constante fluxo de servidores, como uma tela de Bruegel na vida e na cor, sua bizarra diversidade de fisionomias humanas, sua abundância, movimento e algazarra...

Ah, eu estava de volta no subterrâneo, regressando, com passos medidos, para meu quarto. Fora da copa da Balaclava, o atendente noturno tinha chegado para o serviço e estava misturando o chocolate da noite.

- Eu trouxe a correspondência, doutor. Há uma carta para o senhor.

- Obrigado, meu bom homem.

Passando, apanhei o envelope duro, estampado com o selo da universidade. Meu sorriso agora era fixo, como se estivesse impresso na minha face, uma máscara para todo o caos torvelinhante que ia por trás dela. Os pesados malhos batiam mais fortes no meu crânio, um suor repentino me inundava, e num lampejo fugaz e bravio reconheci que estava doente. Mas rapidamente a luz se extinguiu, e ansioso por continuar, certo de que o trabalho precisa ser feito, sorrindo mais fixamente, entrei no vestíbulo e abri a carta.

Departamento de Patologia, Universidade de Winton. Usher, Professor Usher, chefe dessa excelentíssima fundação. Uma carta gentil, sim, na verdade, uma carta encantadora. O bom professor lamentava, aliás, lamentava profundamente que, dadas as circunstâncias, fosse impossível entreter qualquer esperança em relação à nova nomeação. Se ao menos os resultados tivessem sido publicados mais cedo. A demora foi trágica, o desapontamento mais intenso, e os seus sentimentos perfeitamente compreensíveis. Havia um pós-escrito na página. Ah, sim, o jantar estava cancelado. Infortunadamente, quando o convite para segunda-feira fora formulado, um compromisso prévio tinha sido marcado. Profusas desculpas. Algum outro dia. Sim, tudo tinha sido, sem dúvida, agradável e correto. Voltar à sua banca no laboratório. Trabalhar sob suas ordens num espírito menos intratável com supervisão e cooperação adequadas. Uma oferta generosa. Mas muito obrigado, não.

Sob as altas luzes do vestíbulo, ao lado da estátua de Deméter, e os armários marchetados, rasguei cuidadosamente a carta em quatro pedaços. Eu queria gritar subitamente bem alto. Mas os meus lábios estavam demasiados duros, como que colados, e a dor de cabeça aumentava num crescendo de ruído e de trêmulas vibrações, como se alguém estivesse rachando lenha com um machado cego na minha nuca. A despeito disso, por fim, com o meu olhar vacilante e sonhador, vi o que eu queria. Essencial e importante. Adiante, adiante... Não pare... Não há um instante a perder.

Saí do edifício e me apressei para o laboratório. Agora estava bem escuro e o vento começava a soprar, sacudindo as árvores e arbustos, despertando estranhos cochichos através da noite. Uma folha, roçando meu rosto com dedos fantasmagóricos, fez com que eu acelerasse meus passos ruidosos até uma trôpega corrida.

Agora, eu estava no laboratório. Examinando a cena dos meus labores com um olho inexpressivo mas torturado, avancei, independente da minha própria volição, e abri o armário de depósitos. Os vidros redondos, com as rolhas de algodão, ali estavam numa fila, opalescentes e brilhantes, como sóis luminosos. Deslumbrado, cambaleei e recuei. Mas essa fraqueza foi momentânea. Recompondo-me, agarrei os preciosos vidros e esmigalhei-os tranqüila e cuidadosamente na pia de porcelana. Abri as duas torneiras. Quando a última gota de fluido tinha corrido pelo ralo, juntei as folhas de papel sobre a mesa, aquelas páginas cheias dos meus cálculos e conclusões, o labor de muitas horas na calada da noite.

Novamente, tranqüila e cuidadosamente, risquei um fósforo para lhes atear fogo e segurá-las, queimando, sobre a pia até que o último fragmento carbonizado fosse destruído. Mas antes que eu pudesse fazê-lo, o som de passos rápidos me obrigaram a voltar-me, equilibrando a intolerável carga da minha cabeça. Maitland estava na porta.

- Não, Shannon - gritou ela. E correu para mim.

O fósforo chamuscou meus dedos e apagou-se. As marteladas bateram mais fortes no meu cérebro. Levei ambas as mãos à testa. Então, tudo desabou.

 

A tarde de outubro era serena e dourada, cheia de um vagar tranqüilo. No meu antigo quarto em Lomond View, os raios oblíquos compunham uma mancha brilhante no papel da parede, reavivando o verniz amarelo com suas rosas desmaiadas, luzindo também sobre as bolas de metal da minha cama, amassadas anos atrás, quando tentei endireitar um patim entortado.

Através da janela, eu podia ver o matiz precoce do outono nas folhas crespas e carmesins da velha faia além da estrada e, à distância, acima da bruma violeta, os lombos azuis e encovados do Ben Lomond. Quando menino, neste mesmo quarto, eu tinha muitas vezes fitado ardentemente aquela distante perspectiva da montanha. Fitava-a agora. Deitado confortavelmente de lado, eu me sentia relaxado, consciente de que minha indolência era sancionada, uma vez que o Dr. Galbraith, apoiado por Vovó Leckie, estava sempre insistindo em que eu devia repousar. Contudo, o esplendor da tarde era irresistível... Resolvi que devia levantar-me. Pois eu não estava praticamente bom outra vez e capaz de andar por ali, depois do lanche, durante umas poucas horas todos os dias? Afastei as cobertas e comecei a vestir-me, cuidadosamente, todavia, porque eu ainda estava inseguro nos pés e mostrava quão lentamente se recupera as forças após um colapso total. Muito bem, eu o mereci. Tudo por minha própria e transviada culpa.

Desci as escadas, demonstrando meu progresso para a recuperação sem segurar nem uma vez no corrimão. Eu ainda não me habituara à esquisita sensação de morar naquela casa que, durante a minha infância em Levenford, tinha sido o meu lar. Agora, propriedade de minha bisavó, continuava inalterada, e embora povoada pelas sombras da maior parte dos seus antigos habitantes, ainda mantinha seu ar familiar de parca mas esperançosa dignidade. Tinham-me trazido para cá após o meu alquebramento, e, com implacável dedicação que me tornava sinceramente envergonhado de todas as coisas que eu tinha dito dela, a velha senhora tinha-me trazido de volta à saúde.

Na sala de visitas, o leque de papel tinha sido retirado, e um bom fogo ardia na lareira de grades pretas. Vovó o tinha acendido para mim, antes de partir para uma daquelas suas peregrinações de compras, das quais voltava, lentamente, cheia de embrulhos de boas coisas para eu comer. Tinha-me alimentado nobremente e, de acordo com seus preceitos peculiares, com restauradores comprovados e sancionados pelas tradições de sua região. Dez minutos atrás, antes de sair, tinha cochichado no meu ouvido, com um ar de significativa promessa:

- Uma linda galinha ensopada para esta noite, Robert.

Ela era uma firme crente na galinha, servida com o caldo, que chamava de "a bondade" do prato. Sozinho em casa, naquela casa silenciosa cheia de memórias do passado, eu sempre lutava contra o devaneio e a dolorosa nostalgia por ele evocada. Aqui estava o divã no qual o Velho Janota me convidava a descansar, quando eu voltava do meu jogo de colegiais com Gavin Blair. Ali, sobre o consolo da lareira, estava a velha pena que ele usava para as suas cópias legais. Naquele assento da janela, eu tinha estudado muito e infrutiferamente para ganhar a Bolsa Marshall. Nesta mesma mesa me disseram que eu não poderia ir para a universidade a fim de estudar medicina. Mas eu tinha ido. Ah, sim, eu sempre seguia teimosamente o meu próprio e solitário caminho, esse tortuoso caminho que me trouxera de volta para onde eu havia começado.

Rapidamente, endireitei-me, e com uma olhadela para o tempo, resolvi fazer um curto passeio. Enterrei o boné na cabeça, enfiei a chave debaixo do capacho para o caso de a velha voltar antes de mim, e saí de casa. Embora o ar estivesse limpo e frio, meus passos não eram vivos, e uma ou duas vezes tive que fazer uma pausa ao subir pela estrada para o povoado de Drumbuck. Era a mesma aldeola sossegada, situada numa suave encosta, atravessada por um regato que corria entre duas pontes de pedra. Algumas crianças estavam brincando com seus arcos, e os seus gritos finos e agudos rompiam alegremente o cenário. Na aldeia verde, descansei no assento que havia embaixo do grande pinheiro escocês que ali se aprumava havia um século. Das fissuras do tronco azul-cinzento tinham escorrido e endurecido pequenos cordões de seiva. Tirei um deles com a unha, e esfregando o pó cinzento entre as palmas da mão, aspirei o cheiro penetrante e forte da resina limpa. Fez-me sentir que a minha força estava voltando, que a minha vida, afinal de contas, não estava sem futuro.

Contudo, quando tinha feito a volta por Barloan Toll, achei que já era demais. Fiquei contente em voltar para a poltrona, calçar os meus chinelos e aquecer meus pés na lareira. O jornal da manhã estava dobrado na mesa ao meu lado, o Herald, que eu sempre apreciava, a principal diversão do meu dia de convalescente. Apanhei-o e o coloquei nos meus joelhos, ao mesmo tempo em que ouvi a porta da frente abrir-se e fechar-se. Depois, passos no corredor ruídos de movimentos atarefados no fundo da casa. Dali a pouco, a anciã entrou na sala. Olhamos um para outro. Eu sorri.

- Conseguiu sua galinha?

- Duas - respondeu ela. - Convidei McKellar para o jantar.

- Isso parece uma festinha.

- Ai! - fez ela. - O Dr. Galbraith também virá.

- Compreendo.

Antes que eu pudesse empenhá-la numa controvérsia, ela mudou de assunto.

- Já é hora de você tomar seu leite quente. Não queime os sapatos desse jeito. Vão ficar com a sola torta.

Voltou-se e saiu, deixando-me pensativo e abatido. Eu tinha pressentido por algum tempo o que vinha chegando, e agora estava aqui. O Dr. Galbraith estava entrando em anos. Sua grande clientela, que se estendia amplamente da cidade de Levenford até a região rural de Winton, tinha-se tornado demasiada para ele. Queria um sócio e, para minha tristeza, tinham sugerido que poderia ser eu.

Sim, a armadilha fora longa e pacientemente preparada, as mãos que a tinham armado eram bondosas e amigas. Contudo, ai de mim, apesar da promessa que eu fizera, aquilo me constrangia. Sensibilizava-me a certeza de que o teimoso McKellar estaria disposto a adiantar o necessário para a sociedade. Mil libras era muito dinheiro para um escocês. Eu gostava muito do velho médico, com o seu rosto castigado pela intempérie, e aquele seu jeito de franzir os lábios, sua barba cinzenta de bode, sua maneira a um tempo brusca e colérica, agora atenuada pela idade. Ao modorrar junto ao fogo, eu procurava imaginar-me no volante de um Ford pelas estradas do campo, trepidando, pulando nos sulcos endurecidos no verão, patinando na neve do inverno, visitando fazendas distantes, levando minha mala às quintas aconchegadas e cabanas pintadas de branco, isoladas na charneca. Mas meu coração não estava nisso. Eu me conhecia demasiado bem para sentir outra coisa que não má vontade com semelhante perspectiva. Não tinha vocação para a clínica geral e, com a minha passada experiência, sabia que eu me arrastaria, sem interesse, aparando as pontas da minha ambição, medíocre, indiferente e derrotado.

Reprimindo um suspiro, apanhei o jornal e, num esforço para distrair o espírito, comecei a passar os olhos pelas páginas. Li aqui e ali todos os artigos que me pareceram interessantes. Não havia muitas notícias. Eu ia virando para as colunas dos editoriais, na última página, quando um item me chamou a atenção. Era uma nota pequena, apenas três linhas, mas me causou um doloroso sobressalto; então, por longo  tempo, mantive-me imóvel.

Sob o título Partida de Navios, vinha o simples registro:

"O navio da Clan Liner, Algoa, zarpa hoje de Winton para Lagos e Costa do Ouro. Leva um grupo de trabalhadores para Kumasi."

Li a notícia várias vezes, como uma criança que aprende uma lição, como se estivesse incerto do seu significado e, ao fazê-lo, a sala esfriou, e aquele leve pressentimento, sangüíneo e instintivo que eu tivera embaixo do pinheiro, diminuiu dentro de mim. Então aquilo, também, estava acabado... Terminado para sempre. Desde quando eu soube que Jean viajaria naquele navio, temia o momento de sua partida. Agora o navio ia embora. E naquele ato, a separação do barco dessas costas, o lento afastamento na direção do horizonte, havia uma sensação de final, irrevogável separação...  Um solitário farol esquadrinhando um mar vazio, o bruxuleante raio de luz sobrepujado. E ela não veio, nem mesmo escreveu despedindo-se. Aquele fracasso era o grande tormento do amor, e me doía mais do que tudo.

Durante um longo tempo, talvez uma hora, mas não sei bem, fiquei olhando para o fogo. Distantemente, através dos meus pensamentos tristes e dolorosos, ouvi o ruído de alguém que chegava, passos e vozes no corredor. Não me mexi. Será McKellar ou o médico, eu não podia forçar-me a suportar o cordial aperto de mão, a simpatia cheia de tato que qualquer deles certamente me ofereceria. Então, continuando eu mudo e sentado, a porta se abriu sem ruído atrás de mim. Esperando o impacto de uma voz robusta, não me dei ao trabalho de mover-me, mas gradualmente a consciência de que alguém estava ali, em pé, numa perfeita imobilidade, às minhas costas, fez-me voltar a cabeça. E então, lentamente, ergui meus olhos apáticos.

A princípio, pensei que estava outra vez doente. Aquilo devia ser uma nova alucinação, outra daquelas visões febris que não havia muito tempo me afligiam. Então, num lampejo de compreensão, vi que era ela, vi também uma explicação para sua presença. Eu tinha esquecido que aqueles vapores, às vezes, atracavam à noite na extremidade do Embarcadouro, a fim de apanhar passageiros e esperar a maré favorável. Jean tinha vindo, afinal de contas, para despedir-se.

As surdas pancadas do meu pobre coração me ecoavam nos ouvidos, e uma névoa se ergueu diante de mim, através da qual olhei para ela em completo silêncio. Igualmente em silêncio, Jean me olhava. Embora ainda estivesse magra, com uma ligeira palidez persistindo nas faces, e pequenos traços de sua doença recente aparecessem nos seus olhos castanhos, sua aparência era serena, e o cabelo, lustroso. Eu não podia deixar de contrastar a minha atual condição com a sua serenidade. Ali estava eu, gasto, encolhido e alquebrado, ao passo que ela, firme e animada, tinha recuperado quase inteiramente a saúde. O vestido, também, de uma fazenda cinza escura, margeado com uma leve renda branca, era novo, comprado, sem dúvida, nos preparativos para a viagem. Eu notei, com uma nova pontada de sofrimento, que em torno do pescoço estavam as contas verdes que eu lhe dera.

Lentamente, endireitei-me em minha cadeira. Eu podia ver os seus lábios se conformando para falar. Eu queria estar pronto para receber o golpe.

- Como está, Robert?

- Nunca estive melhor. Não quer sentar-se?

- Obrigada. - Sua voz era baixa mas controlada.

Sentou-se, diante de mim, muito ereta, as mãos enluvadas enlaçadas, os olhos ainda voltados para mim. Como uma santinha de gesso, disse para os meus botões, amargurado por sua compostura que eu não podia imitar. Cerrei os dentes para conter a fraca exibição da minha emoção.

- Você se recuperou completamente - falei.

- Tive muita sorte.

- A viagem por mar vai fazer-lhe bem.

Ela não prestou atenção a essa estocada. Seu silêncio provocou em mim outro ataque de dor de cabeça. Bati com o jornal nos meus joelhos.

- Acabo de ler que vocês estavam partindo. Muito gentil ter vindo ver-me. Como está Malcolm? Ele está a bordo?

- Sim, Robert. Ele está a bordo.

A farpa retornou, delicadamente, sem rancor, e enterrou-se no meu peito. Procurei não pestanejar. Por causa das luvas, eu não podia ver o anel, mas se Malcolm ia com ela com toda a certeza já se tinham casado.

- Bem... - Procurei sorrir de um modo casual, mas meus lábios pálidos estavam repuxados num espasmo angustiado. - Devo congratulá-la. Ele é um bom sujeito. Espero que façam uma boa viagem.

Ela não respondeu logo; depois, disse seriamente:

- E quanto a você, Robert?

- Eu estou muito bem. Tenho a chance de entrar para uma boa clinica aqui em Levenfort.

- Não!

A única palavra pronunciada com uma carta de sentimento deteve-me.

- Que quer dizer? Está virtualmente arranjado.

- Não - repetiu ela. - Não deve fazer isso.

Uma pausa breve, constrangida. Ela estava menos calma agora, e seus olhos tinham ficado subitamente mais profundos.

- Robert - disse ela, gravemente. - Você não pode, não deve desperdiçar-se numa clínica no campo. Oh, eu não estou falando contra os médicos rurais. Mas eles não são você. Você sofreu um amargo desapontamento, um terrível revés, mas isso não é o fim. Tentará de novo, fará um trabalho mais difícil, maior. Não pode enterrar o seu talento. Você deve, tem que continuar.

- Onde? - perguntei, amargamente. - Em outro quarto dos fundos... Em outro hospício?

Com maior veemência, ela se inclinou um pouco para diante.

- Você se ressente com o Professor Challis, não é? Foi um engano dele mandá-lo para Eastershaws. Mas ele é um velho, e realmente nunca teve a oportunidade de colocá-lo no lugar certo.  Sua garganta apertou-se. - Pois bem, agora ele tem. Robert, você gostaria de ensinar bacteriologia na Universidade de Lausanne?

Olhei-a, imóvel, de fato mal podendo respirar, enquanto Jean continuava, mais rapidamente.

- Escreveram ao Professor Challis pedindo-lhe que recomendasse o melhor homem que ele conhecia, um jovem que pudesse organizar o laboratório. Ele mandou um relatório completo sobre sua pesquisa. Ontem me mostrou a resposta. Se você quiser, a nomeação é sua.

Esfreguei a mão nos olhos como para protegê-los de uma luz viva. Um novo começo, fora das restrições desta terra acanhada; em Lausanne, aquela bela cidade da Suíça às margens cintilantes do Lago Leman. Mas não, não... Minha confiança tinha desaparecido... Eu não ousava empreendê-lo.

- Eu não poderia - murmurei. - Não sou capaz.

Os lábios dela se uniram. Sob seu manto de rígida formalidade, vi um súbito tremor de resolução. Respirou funda e fortemente.

- Você precisa, Robert. Todo o seu futuro está em jogo. Não pode admitir que esteja derrotado.

Fiquei em silêncio com os olhos fixados, sem ver, no teto.

- Estou derrotado - falei, numa voz pesada. - Dei-lhes a minha palavra. Eles vêm aqui esta noite. É fácil lutar contra os nossos inimigos. Mas contra amigos... E a sua bondade... E a minha própria promessa... Não posso argumentar... Não posso lutar mais.

- Eu o ajudarei.

Em lenta surpresa, ergui o olhar.

- Você?... Estará longe.

Jean estava muito pálida, e por um momento seus lábios tremeram tanto que ela não podia falar. Sentada, olhava com as mãos enclavinhadas.

- Eu não vou.

- Mas Malcolm?

- O Algoa partiu às seis horas desta manhã. Malcolm estava a bordo.

Houve um silêncio mortal. Atordoado, incapaz de acreditar, senti que enrijecia. Antes que eu pudesse falar, Jean continuou numa voz que parecia estrangulada pela intensidade do seu esforço.

- Quando estive doente, Robert... E depois, pareceu-me ver coisas que antes não eram aparentes para mim. - Quase desmoronou, mas forçou-se a prosseguir. - Eu sempre tinha reconhecido as minhas obrigações para com meus pais, para o povo com quem eu pretendia trabalhar. Eu não percebia a minha obrigação com você... E porque amo você mais do que tudo neste mundo, essa é uma obrigação maior do que qualquer das outras. Se você tivesse sido bem sucedido, se não tivesse tido o colapso, eu nunca teria compreendido isso... Mas agora... Compreendo.

Fez uma pausa, procurando respirar melhor, olhando para mim com forte intensidade, como se oprimida pela ardente necessidade de me comunicar os difíceis e informes pensamentos que lhe tinham vindo recentemente. Na tensão de sua emoção, lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces.

- Todo o tempo, quando eu estava deitada lá, numa espécie de sonho, eu me perguntava por que me havia recusado a casar com você... Eu o amava... Na verdade, tinha adoecido por amar você, e sem tomar cuidado com o que fazia nos pavilhões... Mas atrás desse amor havia orgulho, medo e preconceito contra sua religião, da qual eu realmente nada sabia. Deus fez você nascer católico e eu um membro dos Irmãos. Isso queria dizer que Ele odiava um de nós e amava outro... Desejava que um vivesse nas trevas da mentira e outro na luz da verdade? Se fosse assim, o cristianismo não teria sentido. Oh, Robert, você foi mais bondoso com a minha crença do que eu com a sua. E eu me senti tão terrivelmente envergonhada que disse a mim mesma que, se melhorasse, eu viria e pediria para você me perdoar.

Agora, ela estava chorando incontrolavelmente e, enquanto eu continuava sentado, branco e rígido, incapaz de mover meus lábios endurecidos, ela sussurrou:

- Robert, meu querido Robert, você deve achar que sou a pessoa mais difícil... Mas incoerente do mundo. Mas há uma pressão nos acontecimentos que não podemos resistir. Oh, meu querido, deixei Blairhill, deixei os meus pais, deixei tudo para sempre.  E se você ainda me quiser, casarei com você, quando e onde quiser... Iremos para Lausanne... Trabalhar juntos... Ser bons e atenciosos um com o outro...

No instante seguinte, ela estava nos meus braços, seu coração contra o meu, sua voz embargada pelos soluços. Meus lábios se moveram sem fazer um som. Meu peito, dilatado de imensa alegria, parecia a ponto de rebentar.

Como num mundo distante, a porta abriu-se outra vez, ouvi os passos fortes da chegada de McKellar e do Dr. Gabraith, e a voz cautelosa da velha senhora ao recebê-los no corredor. Agora não mais importava. Eu não estava mais só, a escuridão tinha-se transformado em luz do dia, a vida estava para sempre refeita. Faríamos nosso caminho para o desconhecido juntos. Sim, no calor místico daquele momento, tudo se mostrava possível, não havia pensamento de fracasso, e a felicidade parecia eterna.

 

                                                                                            A. J. Cronin

 

 

                      

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