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REVOADA / Gabriel García Márquez
REVOADA / Gabriel García Márquez

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

REVOADA

 

     De súbito, como se um remoinho se tivesse instalado no centro da aldeia, chegou a companhia bananeira, perseguida pela revoada. Era uma revoada tumultuosa, alvoroçada, formada pelos detritos humanos e materiais das outras aldeias; resquícios de uma guerra civil que cada vez mais parecia remota e inverosímil. A revoada era implacável. Contaminava tudo com o seu revolto cheiro a gente, cheiro a secreções à flor da pele e a morte recôndita. Em menos de um ano, arremessou sobre a aldeia os escombros de numerosas catástrofes anteriores a ela própria, espalhou pelas ruas a sua confusa carga de detritos. E esses detritos, precipitadamente, ao ritmo convulso e imprevisto da tormenta, iam‑se seleccionando, individualizando, até converterem o que foi uma ruela com um rio numa ponta e um recinto para os mortos na outra, numa aldeia diferente e confusa, feita com os detritos das outras aldeias.

     A ela chegaram, confundidos com a revoada humana, arrastados pela sua impetuosa força, os detritos dos armazéns, dos hospitais, dos salões de festas, das centrais eléctricas; detritos de mulheres sozinhas e de homens que amarravam a mula a um poste do hotel, trazendo como única bagagem um baú de madeira ou uma trouxa de roupa, e daí a poucos meses tinham casa própria, duas concubinas e o título militar que lhes ficaram a dever por terem chegado tarde à guerra.

     Até os detritos do amor triste das cidades nos chegaram na revoada, e construíram pequenas casas de madeira, e fizeram primeiro um recanto onde meio catre era o sombrio lar para uma noite, e depois uma ruidosa rua clandestina, e depois toda uma aldeia de tolerância dentro da aldeia.

     No meio daquele vendaval, daquela tempestade de caras desconhecidas, de tendas na via pública, de homens mudando de roupa na rua, de mulheres sentadas nos baús com os chapéus‑de‑sol abertos, e de mulas e mulas abandonadas, a morrerem à fome na cavalariça do hotel, nós, os primeiros, éramos os últimos; éramos os forasteiros, os intrusos.

     A seguir à guerra, quando chegámos a Macondo e apreciámos a qualidade do seu solo, soubemos que alguma vez havia de chegar a revoada, mas não contávamos com o seu ímpeto. Por isso, quando sentimos chegar a avalancha, a única coisa que pudemos fazer foi pôr o prato com o garfo e a faca atrás da porta e sentar‑nos pacientemente à espera que os recém‑chegados nos conhecessem. Então, pela primeira vez, o comboio apitou. A revoada alvoroçou‑se e saiu para o receber e, com o alvoroço, perdeu o balanço, mas adquiriu unidade e solidez; e sofreu o natural processo de fermentação e incorporou‑se aos gérmens da terra.

      (Macondo, 1909)

 

    

     Pela primeira vez vi um cadáver. É quarta‑feira, mas é como se fosse domingo, porque não fui à escola e vestiram‑me este fato de bombazina verde que me fica apertado. Pela mão da mamã, seguindo o meu avô, que tacteia com a bengala a cada passo para não tropeçar nas coisas (não vê bem na penumbra e coxeia), passei em frente do espelho da sala e vime de corpo inteiro, vestido de verde e com este laço branco engomado que me aperta de um lado do pescoço. Vi‑me na redonda lua manchada e pensei: Aquele sou eu, como se hoje fosse domingo.

     Viemos à casa onde está o morto.

     O calor é sufocante na sala fechada. Ouve‑se o zumbido do sol pelas ruas, mas nada mais. O ar é denso e concreto; dá a impressão de que seria possível torcê‑lo, como a uma lâmina de aço. Na sala onde puseram o cadáver cheira a baús, mas não os vejo em parte nenhuma. Há uma rede no canto, suspensa da argola por uma das pontas. Há um cheiro a detritos. E creio que as coisas arruinadas e quase desfeitas que nos rodeiam têm o aspecto das coisas que devem cheirar a detritos, embora realmente tenham outro cheiro.

     Sempre julguei que os mortos deviam ter chapéu. Agora vejo que não. Vejo que têm a cabeça rígida e um lenço amarrado ao maxilar. Vejo que têm a boca um pouco aberta e que se vêem, por detrás dos lábios roxos, os dentes manchados e irregulares. Vejo que têm a língua mordida de lado, grossa e pastosa, um pouco mais escura do que a cor da cara, que é como a dos dedos quando os apertamos com uma corda. Vejo que têm os olhos abertos, muito mais do que os de um homem, ansiosos e desorbitados, e que a pele parece ser de terra compacta e húmida. Julguei que um morto parecia uma pessoa tranquila e adormecida, e agora vejo que é precisamente o contrário. Vejo que parece uma pessoa viva e irritada depois de uma discussão.

     A mamã também se vestiu como se fosse domingo. Pôs o antigo chapéu de palha que lhe cobre as orelhas e um vestido preto, fechado em cima, com mangas até aos punhos. Como hoje é quarta‑feira, vejo‑a distante, desconhecida, e tenho a impressão de que me quer dizer alguma coisa enquanto o meu avô se levanta para receber os homens que trouxeram o caixão. A mamã está sentada a meu lado, de costas para a janela fechada. Respira custosamente e a cada instante compõe os fios de cabelo que lhe caem por baixo do chapéu posto à pressa. O meu avô ordenou aos homens que pusessem o caixão ao pé da cama. Só então me dei conta de que o morto cabe de facto dentro dele. Quando os homens trouxeram a urna, tive a impressão de que era demasiado pequena para um corpo que ocupa todo o comprimento da cama.

     Não sei porque é que me trouxeram. Nunca tinha entrado nesta casa, e até julguei que estava desabitada. É uma casa grande, de esquina, cujas portas, creio, nunca foram abertas. Sempre julguei que a casa estivesse desocupada. Só agora, depois de a mamã me dizer: «Esta tarde não vais à escola», e eu não sentir alegria porque mo disse com voz grave e reservada, e de a ver regressar com o meu fato de bombazina e mo vestir sem falar e irmos até à porta ter com o meu avô, e de passarmos pelas três casas que separam esta da nossa, só agora me dei conta de que vivia alguém nesta casa de esquina. Alguém que morreu e que deve ser o homem a quem a minha mãe se referiu quando me disse:

     «Tens de estar com muito juízo no enterro do doutor.» Ao entrar não vi o morto. Vi o meu avô à porta, a falar com os homens, e vi-o depois a mandar‑nos entrar. Julguei então que havia alguém na sala, mas ao entrar senti‑a escura e vazia. O calor atingiu‑me o rosto desde o primeiro momento, e senti este cheiro a detritos que a princípio era sólido e permanente e que agora, como o calor, chega em ondas espaçadas e desaparece. A mamã levou‑me pela mão através da sala escura e sentou‑me a seu lado, a um canto. Só passado algum tempo comecei a distinguir as coisas. Vi o meu avô tentando abrir uma janela que parece ter os bordos colados, soldados ao aro, e vi-o às bengaladas à aldraba, com o casaco cheio de pó que se soltava a cada pancada. Virei a cara para onde o meu avô se dirigiu quando se declarou incapaz de abrir a janela e só então vi que havia alguém na cama. Havia um homem desconhecido, esticado, imóvel. Então virei a cabeça para o lado da mamã, que permanecia distante e séria, a olhar para outra parte da sala. Como os meus pés não chegam ao chão e ficam suspensos no ar, a um palmo do soalho, pus as mãos debaixo das coxas, as palmas apoiadas no assento, e comecei a baloiçar as pernas, sem pensar em nada, até que me lembrei do que a mamã me tinha dito: «Tens de estar com muito juízo no enterro do doutor.» Então senti uma coisa fria, atrás de mim, voltei a olhar e apenas vi a parede de madeira seca e gretada. Mas foi como se alguém me tivesse dito da parede: «Não mexas as pernas, que o homem que está na cama é o médico e está morto.» E quando olhei para a cama já não o vi como antes. Já não o vi deitado, mas sim morto.

     Desde então, por muito que me esforce por não olhar para ele, é como se alguém me virasse a cara para aquele lado. E, apesar de fazer esforços para olhar para outras partes da sala, continuo a vê‑lo, em todos os lados, com os olhos desorbitados e a cara verde e morta na escuridão.

     Não sei porque não veio ninguém ao enterro. Viemos nós, o meu avô, a mamã e os quatro guajiros (Índios da península de Gnajira, no nordeste da Colômbia (N' do T') que trabalham para o meu avô. Os homens trouxeram um saco de cal e esvaziaram‑no dentro do caixão. Se a minha mãe não estivesse estranha e distraída, perguntava‑lhe porque é que fazem isso. Não entendo porque é que têm que deitar cal dentro da urna. Quando o saco ficou vazio, um dos homens sacudiu‑o sobre o caixão e ainda caíram umas últimas aparas, mais parecidas com serradura do que com cal. Levantaram o morto pelos ombros e pelos pés. Tem umas calças ordinárias, presas à cintura por uma correia larga e preta, e uma camisa cinzenta. Só tem calçado o sapato esquerdo. Está, como diz Ada (Diminutivo de Adelaida (N' do T'), com um pé rei e outro escravo. O sapato direito está caído a uma ponta da cama.

     Deitado, o morto parecia desconfortável. No caixão parece mais cómodo, mais tranquilo, e o rosto, que era o de um homem vivo e acordado depois de uma discussão, adquiriu uma expressão repousada e firme. O perfil tornou‑se suave; e é como se ali, na urna, se sentisse já no lugar que lhe correspondia como morto.

     O meu avô andou de um lado para o outro na sala. Apanhou alguns objectos e colocou‑os na urna. Volto a olhar para a mamã com a esperança de que me diga porque é que o meu avô está a deitar coisas no caixão. Mas a minha mãe permanece imperturbável dentro do vestido preto e parece esforçar‑se por não olhar para o sítio onde está o morto. Eu também quero não olhar, mas não consigo. Olho para ele fixamente, examino‑o. O meu avô põe um livro dentro do caixão, faz um sinal aos homens, e três deles colocam a tampa sobre o cadáver. Só então me sinto liberto das mãos que me viravam a cabeça para aquele lado e começo a examinar a sala.

     Volto a olhar para a minha mãe. Ela, pela primeira vez desde que aqui chegámos, olha para mim e sorri com um sorriso forçado, sem nada dentro; e oiço ao longe o apito do comboio que se perde na última curva. Sinto um ruído no canto onde está o cadáver. Vejo que um dos homens levanta uma extremidade da tampa e que o meu avô introduz no caixão o sapato do morto, o que estava esquecido em cima da cama. O comboio volta a apitar, cada vez mais distante, e de repente penso: São duas e meia. E lembro‑me de que a esta hora (enquanto o comboio apita na última curva da aldeia) os rapazes formam filas na escola para assistirem à primeira aula da tarde.

     Abraão, penso.

     Não devia ter trazido a criança. Não lhe faz bem este espectáculo. A mim própria, que vou fazer trinta anos, perturba‑me este ambiente rarefeito devido à presença do cadáver. Poderíamos sair agora.

     Poderíamos dizer ao papá que não nos sentimos bem num quarto em que se acumularam, durante dezassete anos, os resíduos de um homem alheado de tudo o que possa ser considerado como afecto ou gratidão. Talvez tenha sido o meu pai a única pessoa que sentiu por ele alguma simpatia. Uma inexplicável simpatia que agora lhe vale para não apodrecer dentro destas quatro paredes.

     Preocupa‑me o ridículo que há em tudo isto. Inquieta‑me a ideia de sairmos à rua, daqui a pouco, seguindo um caixão que a ninguém inspirará um sentimento de compaixão. Imagino a expressão das mulheres às janelas, vendo passar o meu pai, vendo‑me passar com a criança atrás de uma urna mortuária em cujo interior vai apodrecendo a única pessoa a quem a aldeia tinha querido ver assim, conduzida ao cemitério no meio de um implacável abandono, seguida pelas três pessoas que decidiram fazer a obra de misericórdia que há‑de ser o princípio da sua própria vergonha. É possível que esta decisão do papá seja a causa de que amanhã não se encontre ninguém disposto a seguir o nosso enterro.

     Talvez por isso tenha trazido a criança. Quando o papá me disse, há pouco: «Tem de me acompanhar», a primeira coisa que me ocorreu foi trazer também a criança, para me sentir protegida. Agora estamos aqui, nesta sufocante tarde de Setembro, sentindo que as coisas que nos rodeiam são os agentes impiedosos dos nossos inimigos. O papá não tem com que se preocupar. Na realidade, passou a vida a fazer coisas como esta; fazendo a aldeia morder o pó, cumprindo os seus mais insignificantes compromissos de costas voltadas a todas as conveniências. Há vinte e cinco anos, quando este homem chegou a nossa casa, o papá devia ter suposto (ao dar‑se conta dos modos absurdos do visitante) que hoje não haveria na aldeia nem uma pessoa disposta sequer a atirar o cadáver aos galináceos. Talvez o papá tivesse previsto todos os obstáculos, medido e calculado os possíveis inconvenientes. E agora, vinte e cinco anos depois, deve sentir que isto é apenas o cumprimento de uma tarefa longamente premeditada, que teria levado a cabo de qualquer modo, ainda que tivesse de arrastar ele próprio o cadáver pelas ruas de Macondo.

     Todavia, chegada a hora, não teve coragem para o fazer sozinho, e obrigou‑me a participar nesse intolerável compromisso que deve ter assumido muito antes de eu ter chegado ao uso da razão. Quando me disse: «Tem de me acompanhar», não me deu tempo para pensar nas consequências das suas palavras; não pude calcular quanto há de ridículo e impudico em enterrar um homem que toda a gente tinha esperado ver transformado em pó dentro do seu covil. Porque o povo não só tinha esperado isso, como se havia preparado para que as coisas acontecessem desse modo, e tinham‑no esperado de coração, sem remorsos, e até com a satisfação antecipada de algum dia virem a sentir o gostoso cheiro da sua decomposição flutuando na aldeia, sem que ninguém se sentisse comovido, alarmado ou escandalizado, antes satisfeito por ver chegar a hora almejada, desejando que a situação se prolongasse até o tortuoso cheiro do morto saciar mesmo os mais recônditos ressentimentos.

     Agora privaremos Macondo de um prazer longamente esperado. É como se, de certa maneira, esta nossa decisão fizesse nascer no coração do povo não o melancólico sentimento de uma frustração mas o de um adiamento.

     Também por isso devia ter deixado a criança em casa; para não a comprometer nesta maquinação que agora se cevará em nós, como antes fez com o médico durante dez anos. A criança devia ter permanecido à margem deste compromisso. Nem sequer sabe porque está aqui, porque é que o trouxemos a este quarto cheio de escombros. Permanece silenciosa, perplexa, como se esperasse que alguém lhe explique o significado de tudo isto; como se aguardasse, sentada, baloiçando as pernas e com as mãos apoiadas na cadeira, que alguém lhe decifre esta espantosa charada. Quero ter a certeza de que ninguém o fará; de que ninguém abrirá essa porta invisível que a impede de ultrapassar os limites dos seus sentidos.

     Olhou para mim várias vezes e sei que me achou estranha, desconhecida, com este vestido fechado e este chapéu antigo que pus para não ser identificada, nem sequer pelos meus próprios pressentimentos.

     Se Meme estivesse viva, aqui nesta casa, talvez fosse diferente. Poderia julgar‑se que vim por ela. Poderia julgar‑se que vim para partilhar uma dor que ela não teria sentido, mas que teria podido aparentar, e que a aldeia teria podido compreender. Meme desapareceu há cerca de onze anos. A morte do médico põe fim à possibilidade de conhecer o seu paradeiro, ou, pelo menos, o paradeiro dos seus ossos. Meme não está aqui, mas é provável que, se cá estivesse ‑ se não tivesse acontecido o que aconteceu, e que nunca se conseguiu esclarecer ‑, se tivesse posto do lado da aldeia contra o homem que durante seis anos lhe aqueceu a cama com tanto amor e tanta compaixão como teria podido fazê‑lo um jumento.

     Ouço apitar o comboio na última curva. São duas e meia, penso; e não consigo afastar a ideia de que a esta hora toda a Macondo está suspensa do que fazemos nesta casa. Penso na senhora Rebeca, magra e encarquilhada, com algo de fantasma doméstico no olhar e no vestir, sentada ao pé da ventoinha eléctrica e com a sombra das redes das suas janelas no rosto. Enquanto ouve o comboio que se perde na última curva, a senhora Rebeca inclina a cabeça para a ventoinha, atormentada pela temperatura e pelo ressentimento, com as velas do seu coração girando como as pás da ventoinha (mas em sentido inverso), e murmura: «Aqui anda a mão do diabo»; e estremece, ligada à vida pelas minúsculas raízes do quotidiano. E Agueda, a tolhida, vendo Solita que regressa da estação, onde foi despedir‑se do noivo, vendo‑a abrir a sombrinha ao dobrar a esquina deserta, sentindo‑a aproximar‑se com o regozijo sexual que ela própria sentira outrora e que se transformou nessa paciente doença religiosa que a faz dizer: «Hás‑de chafurdar na cama como um porco no seu esterqueiro.»

     Não consigo ver‑me livre desta ideia. Não quero pensar que são duas e meia; que passa a mula do correio envolta numa poeirada abrasadora, seguida pelos homens que interromperam a sesta da quarta‑feira para receber o maço dos jornais. O padre Angel, sentado, dorme na sacristia, com um breviário aberto sobre a barriga gordurosa, ouvindo passar a mula do correio, sacudindo as moscas que lhe apoquentam o sono, arrotando, dizendo: «Envenenas‑me com as tuas almôndegas.»

     O papá tem sangue‑frio para isto tudo. Até para mandar destapar o caixão e pôr lá dentro o sapato esquecido em cima da cama. Só ele era capaz de se interessar pela grosseria deste homem. Não me surpreenderia que, quando sairmos com o caixão, a multidão esteja à porta à nossa espera com os excrementos acumulados durante a noite e nos dê um banho de imundícies por ir‑mos contra a vontade da aldeia. Talvez não o façam por se tratar do papá. Talvez o façam por se tratar de algo tão indigno como sonegar à aldeia um prazer prolongadamente almejado, imaginado durante muitas tardes sufocantes, de cada vez que os homens e as mulheres passavam por esta casa e diziam de si para si: «Mais tarde ou mais cedo havemos de almoçar com esse cheiro.» Porque era o que todos diziam, da primeira à última casa.

     Daqui a pouco serão três da tarde. A Señorita já sabe. A senhora Rebeca viu‑a passar e chamou‑a, invisível por detrás da rede, saiu por um momento da órbita da ventoinha e disse‑lhe: «Señorita, é o diabo, a senhora sabe'''» E amanhã já não será o meu filho que irá à escola, mas sim outra criança completamente diferente; uma criança que há‑de crescer, reproduzir‑se e morrer, por fim, sem que ninguém tenha para com ela uma dívida de gratidão que a torne merecedora de um enterro cristão.

     Eu estaria agora em casa, tranquila, se há vinte e cinco anos este homem não tivesse vindo ter com o meu pai, com uma carta de recomendação que nunca ninguém soube donde veio, e tivesse ficado connosco, alimentando‑se de erva e olhando para as mulheres com aqueles olhos ávidos de cão que lhe saltaram das órbitas. Mas o meu castigo já estava escrito quando nasci, e permanecera oculto, reprimido, até este fatal ano bissexto em que havia de fazer trinta de nascida e o meu pai me diria: «Tem de me acompanhar.» E depois, sem me dar tempo de perguntar nada, batendo com a bengala no chão: «Temos de sair disto seja como for, filha. O doutor enforcou‑se esta madrugada.»

     Os homens saíram e regressaram à sala com um martelo e uma caixa de pregos. Mas não pregaram o caixão. Puseram as coisas em cima da mesa e sentaram‑se na cama onde estivera o morto. O meu avô parece tranquilo, mas a sua tranquilidade é imperfeita e desesperada. Não é a tranquilidade do cadáver no caixão, mas sim a do homem impaciente que se esforça por não o parecer. É uma tranquilidade inquieta e ansiosa, a do meu avô, que dá voltas pela sala, coxeando, removendo os objectos amontoados.

     Quando descubro que há moscas na sala, começa a torturar‑me a ideia de que o caixão ficou cheio de moscas. Ainda não o pregaram, mas parece‑me que este zumbido, que a princípio confundi com o rumor de uma ventoinha eléctrica na vizinhança, é o tropel das moscas batendo, cegas, contra as paredes do caixão e a cara do morto. Sacudo a cabeça, fecho os olhos; vejo o meu avô abrir um baú e tirar de lá coisas que não consigo distinguir; vejo em cima da cama as quatro brasas sem ninguém dos cigarros acesos. Acossado pelo calor sufocante, pelos minutos que não passam, pelo zumbido das moscas, é como se alguém me dissesse: «Hás‑de estar assim. Hás‑de estar dentro de um caixão cheio de moscas. Ainda não fizeste onze anos, mas um dia hás‑de estar assim, abandonado às moscas dentro de uma urna fechada.» E estico as pernas juntas, e vejo as minhas próprias botas pretas e lustrosas. Tenho um atacador solto, penso, e volto a olhar para a mamã. Ela também olha para mim e inclina‑se para me apertar o atacador da bota.

     O bafo que se desprende da cabeça da mamã, quente e a cheirar a armário fechado, a madeira adormecida, volta a recordar‑me a clausura do caixão. A respiração torna‑se‑me difícil, quero sair daqui; quero respirar o ar abrasado da rua, e lanço mão ao meu último recurso. Quando a mamã se endireita, digo‑lhe em voz baixa: «Mamã!» Ela sorri, diz: «Ah.» E eu, inclinando‑me para ela, para o seu rosto austero e brilhante, tremendo: «Preciso de ir lá atrás.»

     A mamã chama o meu avô, diz‑lhe qualquer coisa. Vejo os seus olhos miúdos e imóveis por trás das lentes, quando se aproxima e me diz: «Pois saiba que agora é impossível.» Estico‑me e depois permaneço quieto, indiferente ao meu fracasso. Mas as coisas acontecem de novo com demasiada lentidão. Houve um movimento rápido, outro e outro. E depois outra vez a mamã inclinada sobre o meu ombro, dizendo: «Já te passou?» E di‑lo com voz séria e concreta, como se, mais do que uma pergunta, fosse uma recriminação. Tenho a barriga seca e dura, mas a pergunta da mamã amolece‑a, deixa‑a cheia e relaxada, e então tudo, até a sua seriedade, se me torna agressivo, desafiador. «Não», digo‑lhe. «Ainda não passou.» Aperto o estômago e tento bater com os pés no chão (outro recurso extremo), mas em baixo só encontro o vazio, a distância que me separa do chão.

     Entra alguém na sala. É um dos homens do meu avô, seguido por um agente da polícia e por um homem que também veste calças de cotim verde, usa revólver no cinto e segura na mão um chapéu de aba larga e revirada. O meu avô avança para o receber. O homem das calças verdes tosse na escuridão, diz qualquer coisa ao meu avô, volta a tossir e, tossindo ainda, ordena ao agente que force a janela.

     As paredes de madeira são de aparência frágil. Parecem construídas com cinza fria e amassada. Quando o agente bate na aldraba com a coronha da espingarda, tenho a impressão de que as portadas não se abrirão. A casa virá abaixo, desmoronadas as paredes, mas sem estrépito, como ruiria no ar um palácio de cinzas. Creio que a uma segunda pancada ficaremos na rua, em pleno sol, sentados, com a cabeça coberta de escombros. Mas à segunda pancada a janela abre‑se e a luz penetra na sala; irrompe violentamente, como quando se abre a porta a um animal sem direcção, que corre e fareja, mudo; que se enfurece e arranha as paredes, espumando, e volta depois a deitar‑se, pacífico, no canto mais fresco da jaula.

     Quando a janela se abre, as coisas tornam‑se visíveis, mas consolidam‑se na sua estranha irrealidade. Então a mamã respira fundo, estende‑me as mãos e diz‑me: «Anda, vamos à janela ver a casa.» E, dos seus braços, vejo outra vez a aldeia, como se a ela regressasse depois de uma viagem. Vejo a nossa casa desbotada e arruinada, mas fresca sob as amendoeiras; e, daqui, é como se nunca tivesse estado dentro dessa frescura verde e cordial, como se a nossa casa fosse a perfeita casa imaginária prometida pela minha mãe nas minhas noites de pesadelos. E vejo Pepe passar sem nos ver, distraído. O rapazinho da casa do lado, que passa a assobiar, transformado e desconhecido, como se acabasse de cortar o cabelo.

     Então o alcaide levanta‑se, de camisa aberta, suado, a expressão completamente transtornada. Aproxima‑se de mim, congestionado pela exaltação que o seu próprio argumento lhe produz. «Não podemos garantir que esteja morto enquanto não começar a cheirar mal», diz, e acaba de abotoar a camisa e acende um cigarro, o rosto de novo virado para o caixão, pensando talvez: Agora não podem dizer que estou fora da lei. Olho‑o nos olhos e sinto que olhei para ele com a firmeza necessária para lhe dar a entender que penetro até ao mais fundo dos seus pensamentos. Digo‑lhe: «O senhor está a pôr‑se fora da lei para agradar aos outros.» E ele, como se tivesse sido exactamente isso que esperava ouvir, responde: «O senhor é um homem respeitável, coronel. O senhor sabe que estou no meu direito.» E eu digo‑lhe: «O senhor sabe melhor do que ninguém que ele está morto.» E ele diz: «É certo, mas afinal de contas eu não passo de um funcionário. A única coisa legal seria a certidão de óbito.» E eu digo‑lhe: «Se a lei está do seu lado, aproveite‑a para arranjar um médico que passe a certidão de óbito.» E ele, com a cabeça levantada, mas sem arrogância, mas também calmamente, mas sem o mais ligeiro assomo de fraqueza ou desconcerto, diz: «O senhor é uma pessoa respeitável e sabe que, isso sim, seria uma arbitrariedade.» Ao ouvi‑lo, compreendo que não está tão imbecilizado pela aguardente como pela cobardia.

     Apercebo‑me agora de que o alcaide partilha dos rancores da aldeia. É um sentimento alimentado ao longo de dez anos, desde aquela noite tormentosa em que trouxeram os feridos à porta e lhe gritaram (porque não abriu; falou de dentro): «Doutor, trate estes feridos que os outros médicos já não dão vazão», gritaram‑lhe, ainda sem abrir (porque a porta permaneceu fechada, os feridos deitados em frente dela): «O senhor é o único médico que nos resta. Tem de fazer uma obra de caridade»; e ele respondeu (e tão‑pouco então a porta se abriu), imaginado pela multidão no meio da sala, de candeeiro levantado, os duros olhos amarelos iluminados: «Esqueceu‑me tudo o que sabia disso. Levem‑nos a outro lado», e continuou (porque desde então a porta nunca mais se abriu) com a porta fechada, enquanto o rancor crescia, se ramificava, se transformava numa virulência colectiva, que não daria tréguas a Macondo até ao resto da sua vida, para que em cada ouvido continuasse a ressoar a sentença ‑ gritada nessa noite – que condenou o médico a apodrecer por detrás destas paredes.

      Passaram ainda dez anos sem que bebesse a água da aldeia, acossado pelo temor de que estivesse envenenada, alimentando‑se com os legumes que ele e a sua concubina índia semeavam no pátio. Agora a aldeia sente chegar a hora de lhe negar a piedade que ele há dez anos negou à aldeia, e Macondo, que o sabe morto (porque todos devem ter acordado esta manhã um pouco mais aliviados), prepara‑se para desfrutar este prazer esperado, que todos consideram merecido. Apenas desejam sentir o cheiro a decomposição orgânica através das portas que não se abriram daquela vez.

     Agora começo a acreditar que o meu compromisso de nada valerá contra a ferocidade de uma aldeia e que estou encurralado, cercado pelos ódios e pela impenitência de um bando de ressentidos. Até a Igreja encontrou maneira de estar contra a minha decisão. O padre Angel disse‑me há momentos: «Nem sequer permitirei que sepultem em terra sagrada um homem que se enforca depois de ter vivido sessenta anos fora de Deus. Até a si, o Senhor vê‑lo‑ia com bons olhos se desistisse de levar a cabo o que não seria uma obra de misericórdia, mas antes um pecado de rebeldia.» E eu disse‑lhe: «Enterrar os mortos, como está escrito, é uma obra de misericórdia.» E o padre Angel disse: «Está bem. Mas neste caso não nos cabe a nós fazê‑la, mas sim à Delegação de Saúde.»

     Vim. Chamei os quatro guajiros que se criaram em minha casa. Obriguei a minha filha Isabel a acompanhar‑me. Assim, o acto transforma‑se numa coisa mais familiar, mais humana, menos pessoal e desafiadora do que se eu próprio tivesse arrastado o cadáver pelas ruas da aldeia até ao cemitério. Creio Macondo capaz de tudo, depois do que já vi desde o princípio deste século. Mas, se não me respeitarem a mim nem sequer por ser velho, coronel da República e para cúmulo coxo de corpo e inteiro de consciência, espero que pelo menos respeitem a minha filha por ser mulher. Não o faço por mim. Talvez também não seja pela tranquilidade do morto. Apenas para cumprir um compromisso sagrado.

     Se trouxe Isabel, não foi por cobardia, mas por caridade. Ela trouxe a criança (e entendo que o fez por isso mesmo), e agora estamos aqui, os três, suportando o peso desta dura ocorrência.

     Chegámos há momentos. Pensei que iríamos encontrar o cadáver ainda suspenso do tecto, mas os homens adiantaram‑se, estenderam‑no na cama e quase o amortalharam, com a secreta convicção de que a coisa não duraria mais de uma hora. Quando chego, espero que tragam o caixão, vejo a minha filha e a criança que se sentam ao canto, e examino a sala pensando que o médico possa ter deixado alguma coisa que explique a sua decisão. A escrivaninha está aberta, cheia de papéis confusos, nenhum escrito por ele. Na escrivaninha está a pasta das receitas, a mesma que trouxe para casa há vinte e cinco anos, quando abriu aquele baú enorme dentro do qual poderia caber a roupa de toda a minha família. Mas não tinha no baú senão duas camisas ordinárias, uma dentadura postiça, que não podia ser sua simplesmente porque tinha a sua dentadura natural, forte e completa, um retrato e um maço de receitas. Abro as gavetas e em todas elas encontro papéis impressos; apenas papéis antigos, poeirentos; e em baixo, na última gaveta, ainda a dentadura postiça que trouxe há vinte e cinco anos, coberta de pó, amarela do tempo e da falta de uso. Sobre a mesinha, ao pé do candeeiro apagado, há vários maços de jornais por abrir. Examino‑os. Estão escritos em francês, os mais recentes de há três meses: Julho de 1928. E há outros, também por abrir: Janeiro de 1927. Novembro de 1926. E os mais antigos: Outubro de 1919. Penso: Há nove anos, um depois de pronunciada a sentença, que não abria os jornais. Renunciara desde então à última coisa que o ligava à sua terra e à sua gente.

     Os homens trazem o ataúde e põem lá dentro o cadáver. Então recordo o dia de há vinte e cinco anos atrás em que chegou a minha casa e me entregou a carta de recomendação, datada do Panamá e dirigida a mim pelo intendente‑geral do Litoral Atlântico, no final da guerra grande, o coronel Aureliano Buendía. Procuro na obscuridade daquele baú sem fundo as suas bugigangas dispersas. Está sem chave, no outro canto, com as mesmas coisas que trouxe há vinte e cinco anos. Recordo: Tinha duas camisas ordinárias, uma caixa com dentes, um retrato e esta velha pasta de receitas. E vou recolhendo estas coisas antes que fechem o caixão e ponho‑as lá dentro. O retrato ainda está no fundo do baú, quase no mesmo sítio em que estava daquela vez. É o daguerreótipo de um militar condecorado. Ponho o retrato na urna. Ponho lá dentro a dentadura postiça e por fim a pasta das receitas. Quando termino, faço um sinal aos homens para que fechem o caixão. Penso: Agora está outra vez de viagem. O mais natural é que na última leve consigo as coisas que o acompanharam na penúltima. Pelo menos, isso é o mais natural. E então parece‑me vê‑lo, pela primeira vez, comodamente morto.

     Examino a sala e vejo que nos esquecemos de um sapato em cima da cama. Faço novo sinal aos meus homens, com o sapato na mão, e eles tornam a levantar a tampa no preciso instante em que apita o comboio, perdendo‑se na última curva da aldeia. São duas e meia, penso. Duas e meia de 12 de Setembro de 1928; quase a mesma hora daquele dia de 1903 em que este homem se sentou pela primeira vez à nossa mesa e pediu erva para comer. Adelaida disse‑lhe, daquela vez: «Que espécie de erva, doutor?» E ele, com a sua parcimoniosa voz de ruminante, ainda para mais perturbada pela nasalidade: «Erva vulgar, senhora. Da que comem os burros.»

    

     A verdade é que Meme não está nesta casa e ninguém seria capaz de dizer com exactidão quando deixou de estar. Vi‑a pela última vez há onze anos. Ainda tinha nesta esquina a taberna que as exigências dos aldeãos foram modificando insensivelmente até a converterem numa miscelânea. Tudo muito ordenado, muito arrumado pela escrupulosa e metódica aplicação de Meme, que passava os dias a costurar para os aldeãos numa das quatro Domestic que havia então na aldeia, atrás do balcão, atendendo a clientela com aquela simpatia que nunca deixou de ter e que era ao mesmo tempo aberta e reservada: uma complexa mistura de ingenuidade e desconfiança.

     Eu deixara de ver Meme desde que saiu de nossa casa, mas a verdade é que já não seria capaz de dizer com exactidão quando é que ela veio viver para a casa de esquina com o médico, nem como pôde ser indigna ao ponto de se transformar na mulher de um homem que lhe negou os seus serviços, apesar de ambos partilharem a casa de meu pai, ela como filha adoptiva e ele como hóspede permanente. Soube pela minha madrasta que o médico era um homem de mau carácter, que tivera uma longa discussão com o papá para o convencer de que o mal de Meme não se revestia de qualquer gravidade. E disse‑o sem a ter visto, sem sequer ter saído do quarto. Fosse como fosse, mesmo que a guajira não tivesse mais do que um achaque passageiro, devia tê‑la assistido, mais que não fosse pela consideração com que foi tratado em nossa casa durante os oito anos em que nela viveu.

     Não sei como se passaram as coisas. Sei que uma bela manhã Meme já não estava em casa, e ele também não. Então a minha madrasta mandou fechar o quarto e não voltou a falar dele até há doze anos, quando costurávamos o meu vestido de noiva.

     Três ou quatro domingos depois de ter abandonado a nossa casa, Meme foi à igreja, à missa das oito, com um espampanante vestido de seda estampada e um ridículo chapéu que rematava em cima com um ramo de flores artificiais. Tinha‑a visto sempre tão simples em nossa casa, descalça a maior parte do dia, que nesse domingo, quando entrou na igreja, me pareceu uma Meme diferente da nossa. Assistiu à missa à frente, entre as senhoras, direita e afectada, sob aquele montão de coisas que tinha vestido e que a tornavam complicadamente nova, com uma novidade espectacular e cheia de ouropéis. Esteve ajoelhada, à frente. E até a devoção com que ouviu a missa era desconhecida nela; até na maneira de se benzer havia algo daquela presunção florida e resplandecente com que entrou na igreja, ante a perplexidade dos que a conheceram como criada em nossa casa e a surpresa dos que nunca a tinham visto.

     Eu (por essa altura não teria mais de treze anos) perguntava a mim própria a que se deveria aquela transformação; porque é que Meme tinha desaparecido da nossa casa e reaparecia naquele domingo no templo, vestida mais como uma árvore de Natal do que como uma senhora, ou como três senhoras juntas para assistirem à missa pascal, apesar de ainda sobrarem na guajira folhos e missangas para vestir mais uma senhora. Quando a missa terminou, as mulheres e os homens detiveram‑se à porta para a verem sair; puseram‑se no átrio, em dupla fileira diante da porta principal, e creio que até houve algo de secretamente premeditado naquela solenidade indolente e trocista com que estiveram à espera, sem dizer palavra, até que Meme chegou à porta, fechou os olhos, e a seguir abriu‑os em perfeita harmonia com a sua sombrinha de sete cores. Passou assim, por entre a dupla fila de mulheres e homens, ridícula no seu disfarce de pavão real com tacões altos, até que um dos homens começou a fechar o círculo e Meme ficou no meio, aniquilada, confusa, tentando sorrir com um sorriso de distinção tão aparatoso e falso como o seu aspecto. Mas quando Meme saiu, abriu a sombrinha e começou a andar, o papá aproximou‑se de mim e arrastou‑me para o grupo. Por isso, quando os homens começaram a fechar o círculo, o meu pai tinha já aberto passagem até junto de Meme, que, atarantada, tentava encontrar uma maneira de fugir. O papá ofereceu‑lhe o braço, sem se preocupar com a assistência, e levou‑a pelo meio da praça com aquela atitude soberba e desafiadora que adopta quando faz alguma coisa com que os demais não estarão de acordo.

     Passou algum tempo antes de eu saber que Meme tinha vindo viver como concubina do médico. Nessa altura a taberna já estava aberta e ela continuava a assistir à missa como uma perfeita senhora da melhor sociedade, sem se importar com o que se dizia ou pensava, como se se tivesse esquecido do que acontecera no primeiro domingo. Todavia, passados dois meses não voltámos a vê‑la na igreja.

     Eu recordava o médico em nossa casa. Recordava o seu bigode preto e retorcido e a sua maneira de olhar as mulheres com os seus lascivos e ávidos olhos de cão. Mas lembro‑me de que nunca me aproximei dele, talvez porque o visse como um animal estranho que se sentava à mesa depois de todos se terem levantado e que se alimentava com a mesma erva que alimenta os burros. Até à doença do papá, há três anos, o médico não saíra desta casa de esquina uma única vez, depois da noite em que negou assistência aos feridos, da mesma maneira que seis anos antes a negara à mulher que dois dias mais tarde seria sua concubina. O tasco fechou antes de a aldeia ter ditado a sentença ao médico. Mas sei que Meme continuou a viver aqui, vários meses ou anos depois de ter fechado a loja. Foi com certeza muito mais tarde que desapareceu, ou pelo menos que se soube que tinha desaparecido, porque assim o dizia o panfleto que apareceu nesta porta. De acordo com esse panfleto, o médico assassinara a sua amante e enterrara‑a na horta por recear que a aldeia se servisse dela para o envenenar. Mas eu tinha visto Meme antes do meu casamento. Há onze anos, quando voltava do terço, a guajira chegou à porta da loja e disse‑me, com o seu arzinho alegre e um tanto irónico: «Menina, vais‑te casar e não me dizias nada.»

     «Pois», digo‑lhe, «a coisa deve ter sido assim.» Então estico a corda, onde numa das pontas se vê ainda a carne viva das suas fibras recém‑cortadas à faca. Dou outra vez o nó que os meus homens cortaram para tirar o corpo e atiro uma das pontas por cima da viga, até deixar a corda suspensa, firme, com força suficiente para proporcionar muitas mortes iguais à deste homem. Enquanto se abana com o chapéu, o rosto transtornado pela sufocação e pela aguardente, a olhar para a corda, calculando a sua força, ele diz: «É impossível que uma corda tão delgada tenha aguentado o corpo dele.» E eu digo‑lhe: «Essa corda é a mesma que aguentou com ele na rede durante muitos anos.» E ele puxa uma cadeira, entrega‑me o chapéu e pendura‑se a pulso na corda, com o rosto congestionado pelo esforço. Depois torna a ficar de pé em cima da cadeira, a olhar para a ponta caída. Diz: «É impossível. Essa corda não chega para me dar a volta ao pescoço.» E então compreendo que é deliberadamente ilógico, que está a inventar pretextos para impedir o enterro.

     Olho‑o de frente, perscrutando‑o. Digo‑lhe: «Não reparou que você lhe chegava, quando muito, ao ombro?» E ele volta‑se, para olhar para o caixão. Diz: «Mesmo assim, não tenho a certeza de que o tenha feito com esta corda.»

     Tenho a certeza que foi assim. E ele sabe‑o, mas pretende ganhar tempo, com medo de criar compromissos. Vê‑se‑lhe a cobardia pelo modo de andar de um lado para o outro, sem direcção precisa. Uma cobardia dupla e contraditória: para impedir a cerimónia e para a autorizar. Então, quando chega ao pé do caixão, roda sobre os calcanhares, olha para mim e diz: «Tinha de o ver pendurado para me convencer.»

     Eu tê‑lo‑ia feito. Teria autorizado os meus homens a abrirem o caixão e a voltarem a pendurar o enforcado, como esteve até há pouco. Mas seria de mais para a minha filha. Seria de mais para a criança, que ela não devia ter trazido. Se não me repugnasse tratar assim um morto, ultrajar a carne indefesa, perturbar o homem pela primeira vez tranquilo dentro do seu casulo, se o facto de tocar num cadáver que repousa serena e merecidamente no seu caixão não fosse contra os meus princípios, mandá‑lo‑ia pendurar de novo, para saber até onde é que este homem é capaz de chegar. Mas é impossível. E digo‑lhe: «Pode estar certo de que não darei essa ordem. Se quiser, pendure‑o o senhor mesmo e assuma a responsabilidade do que acontecer. Lembre‑se de que não sabemos há quanto tempo está morto.»

     Ele não se mexeu. Está ainda ao pé do caixão, a olhar para mim; olha depois para Isabel e depois para a criança e a seguir outra vez para o caixão. De repente, a sua expressão torna‑se sombria e ameaçadora. Diz: «O senhor não ignora o que pode acontecer‑lhe por isto.» E compreendo então até que ponto a sua ameaça é verdadeira. Digo‑lhe: «Claro que não. Sou uma pessoa responsável.» E ele, agora com os braços cruzados, suando, avançando para mim com movimentos estudados e cómicos que pretendem ser ameaçadores, diz: «Poderia perguntar‑lhe como é que soube que este homem se tinha enforcado ontem à noite.»

     Espero que chegue ao pé de mim. Permaneço imóvel, a olhar para ele, até que a sua respiração quente e áspera me atinge no rosto; até que ele se detém, ainda com os braços cruzados, abanando o chapéu por detrás da axila. Então digo‑lhe: «Quando me fizer essa pergunta oficialmente, terei muito gosto em responder‑lhe.» Continua à minha frente, na mesma posição. Quando lhe falo, não há nele surpresa nem perturbação. Diz: «Claro, coronel. Estou a perguntar‑lho oficialmente.» Estou disposto a dar‑lhe a corda toda. Tenho a certeza de que, por muitas voltas que ele tente dar‑lhe, terá de ceder perante uma atitude férrea, embora paciente e tranquila. Digo‑lhe: «Estes homens tiraram o corpo porque eu não podia permitir que continuasse ali, pendurado, até o senhor se decidir a vir cá. Há duas horas que lhe disse que viesse e o senhor demorou todo este tempo para andar dois quarteirões.»

     Continua imóvel. Estou em frente dele, apoiado na bengala, ligeiramente inclinado para a frente. Digo: «Além disso era meu amigo.» Antes de eu acabar de falar, ele sorri ironicamente, mas sem mudar de posição, atirando‑me ao rosto o seu hálito espesso e ácido. Diz: «É a coisa mais simples do mundo, não?» E subitamente deixa de sorrir: «Portanto, o senhor sabia que este homem se ia enforcar.»

     Tranquilo, paciente, convencido de que só pretende enredar as coisas, digo‑lhe: «Repito‑lhe que a primeira coisa que fiz quando soube que se tinha enforcado foi ir ter consigo, e já lá vão mais de duas horas.» E, como se eu lhe tivesse feito uma pergunta e não prestado um esclarecimento, diz: «Eu estava a almoçar.» E eu digo‑lhe: «Bem sei. Parece‑me que até teve tempo de dormir a sesta.»

     Então não sabe que dizer. Recua. Olha para Isabel, sentada ao lado da criança. Olha para os homens e, finalmente, para mim. Mas agora a sua expressão mudou. Parece decidir‑se por algo que lhe ocupa o pensamento desde há momentos. Vira‑me as costas, caminha para o agente e diz‑lhe qualquer coisa. O agente faz um gesto e sai do quarto.

     A seguir vira‑se para mim e pega‑me no braço. Diz: «Gostaria de falar consigo na outra sala, coronel.» Agora a sua voz mudou por completo. Agora está tensa e alterada. E, enquanto me dirijo para a sala ao lado, sentindo a pressão insegura da sua mão no meu braço, surpreende‑me a ideia de que sei o que me vai dizer.

     Esta sala, ao contrário da outra, é ampla e fresca. Invade‑a a claridade do pátio. Aqui vejo‑lhe os olhos alterados, o sorriso que não corresponde à expressão do seu olhar. Oiço a sua voz, que diz: «Coronel, isto podia‑se resolver de outra maneira.» E eu, sem lhe dar tempo de acabar, digo‑lhe: «Quanto?». E então transforma‑se num homem totalmente diferente. Meme trouxera um prato com bolos e dois pãezinhos salgados dos que tinha aprendido a fazer com a minha mãe. O relógio dera as nove. Meme estava sentada diante de mim, nas traseiras da loja, e comia sem apetite, como se os bolos e os pãezinhos não passassem de uma maneira de prolongar a visita. Eu assim o entendia, e deixava‑a perder‑se nos seus labirintos, afundar‑se no passado com aquele entusiasmo nostálgico e triste que a fazia parecer, à luz do candeeiro que se consumia em cima do balcão, muito mais enxovalhada e envelhecida do que no dia em que entrou na igreja de chapéu e saltos altos. Era evidente que naquela noite Meme desejava recordar. E, enquanto o fazia, dava a impressão de que durante os anos anteriores tinha ficado parada numa única idade estática e sem tempo, e que naquela noite, ao recordar, punha de novo em marcha o seu tempo pessoal e começava a sofrer o seu longamente diferido processo de envelhecimento.

     Meme estava direita e sombria, falando daquele pitoresco esplendor feudal da nossa família nos últimos anos do século passado, antes da guerra grande. Meme recordava a minha mãe. Recordou‑a nessa noite em que eu voltava da igreja e ela me disse, com o seu arzinho trocista e um pouco irónico: «Menina, vais‑te casar e não me dizias nada.» Foi precisamente na época em que eu sentira a falta da minha mãe e procurava fazê‑la voltar com mais força à minha memória. «Era o teu retrato vivo», disse. E eu acreditava realmente nela. Estava sentada em frente da índia, que falava com uma inflexão mesclada de precisão e incerteza, como se houvesse muito de lendário no que recordava, mas como se o recordasse de boa‑fé e até com a convicção de que a passagem do tempo transformara a lenda numa realidade remota, mas difícil de esquecer. Falou‑me da viagem dos meus pais durante a guerra, da dura peregrinação que haveria de terminar com o estabelecimento deles em Macondo. Os meus pais fugiam dos percalços da guerra e procuravam um recanto próspero e tranquilo onde assentarem arraiais, quando ouviram falar do bezerro de ouro e o vieram procurar no que era então uma aldeia em formação, fundada por várias famílias refugiadas, cujos membros se esmeravam tanto na conservação das suas tradições e nas práticas religiosas, como na engorda dos seus porcos. Macondo foi para os meus pais a terra prometida, a paz e o Velo de Ouro. Aqui encontraram o sítio apropriado para reconstruírem a casa que poucos anos depois seria uma mansão rural, com três cavalariças e dois quartos para os hóspedes. Meme recordava os pormenores sem amargura e falava das coisas mais extravagantes com um irreprimível desejo de as viver de novo ou com a dor que lhe provocava a evidência de que não as voltaria a viver.

     Não houve sofrimento nem privações na viagem, dizia. Até os cavalos dormiam com mosquiteiro, não porque o meu pai fosse um esbanjador ou um louco, mas porque a minha mãe possuía um estranho sentido de caridade, dos sentimentos humanitários, e considerava que, aos olhos de Deus, produzia tanta satisfação o facto de proteger um homem dos mosquitos como o de proteger um animal. Levaram para toda a parte o seu extravagante e incómodo carregamento; os baús cheios com a roupa dos mortos anteriores ao nascimento deles próprios, dos antepassados que seria impossível encontrar vinte braças debaixo da terra; caixotes cheios de utensílios de cozinha há muito postos de parte e que tinham pertencido aos mais remotos parentes dos meus pais (eram primos direitos entre si), e até um baú cheio de imagens, com que reconstruíam o altar doméstico em cada lugar que visitavam. Era uma curiosa trupe, com cavalos e galinhas e os quatro guajiros (companheiros de Meme) que tinham crescido em casa e seguiam os meus pais por toda a região, como animais amestrados num circo.

     Meme recordava com tristeza. Dava a impressão de que considerava a passagem do tempo como uma perda pessoal, como se pensasse, com o coração dilacerado pelas recordações, que, se o tempo não tivesse passado, ainda estaria naquela peregrinação que deve ter sido um castigo para os meus pais mas que para as crianças tinha algo de festa, com espectáculos insólitos como o dos cavalos debaixo dos mosquiteiros.

     Depois tudo começou a andar ao contrário, disse. A chegada à nova aldeiazinha de Macondo, nos últimos dias do século, foi a de uma família devastada, ainda apegada a um recente passado de esplendor, desorganizada pela guerra. A guajira recordava a minha mãe quando chegou à aldeia, sentada de lado numa mula, grávida, com o rosto esverdeado e palúdico e os pés inutilizados pelo inchaço. Talvez no espírito do meu pai germinasse a semente do ressentimento, mas vinha disposto a lançar âncora contra ventos e marés, enquanto aguardava que a minha mãe tivesse aquele filho que lhe cresceu no ventre durante a travessia e que a ia matando progressivamente, à medida que se aproximava a hora do parto.

    

     A luz do candeeiro dava‑lhe de perfil. Meme, com a sua dura expressão de índia, o seu cabelo liso e grosso como crina de cavalo ou rabo de cavalo, parecia um ídolo sentado, verde e espectral no quartinho quente das traseiras, falando como o faria um ídolo que se tivesse posto a recordar a sua antiga existência terrena. Nunca tinha privado com ela de perto, mas nessa noite, depois daquela repentina e espontânea manifestação de intimidade, sentia‑me ligada a ela por laços mais firmes que os do sangue.

     De súbito, numa pausa de Meme, ouvi‑o tossir no quarto, neste mesmo aposento em que agora me encontro com a criança e o meu pai. Tossiu com uma tosse seca e curta, a seguir pigarreou e depois ouviu‑se o ruído inconfundível que faz um homem quando se vira na cama. Meme calou‑se instantaneamente, e uma nuvem sombria e silenciosa toldou‑lhe o rosto. Eu tinha‑me esquecido dele. Durante o tempo que permaneci ali (eram umas dez horas), era como se a guajira e eu estivéssemos sozinhas em casa. A tensão do ambiente mudou logo. Senti o cansaço do braço com que segurava, sem lhe tocar, o prato com os bolos e os pãezinhos. Inclinei‑me para a frente e disse: «Está acordado.» Ela, agora impassível, fria e completamente indiferente, disse: «Vai estar acordado até de madrugada.» E de repente percebi o desencanto que se notava em Meme quando recordava o passado da nossa casa. As nossas vidas tinham mudado, os tempos eram bons e Macondo uma aldeia ruidosa em que o dinheiro chegava até para esbanjar ao sábado à noite. Enquanto lá fora se tosquiava o bezerro de ouro, lá dentro, no quarto das traseiras, a sua vida era estéril, anónima, todo o dia ao balcão e à noite com um homem que só adormecia de madrugada, que passava o tempo às voltas pela casa, de um lado para o outro, olhando‑a avidamente com aqueles lascivos olhos de cão que nunca pude esquecer. Comovia‑me imaginar Meme com este homem que uma noite lhe negou os seus serviços e que continuava a ser um animal endurecido, sem amargura nem compaixão, todo o dia numa interminável errância pela casa, de pôr fora de si os mais equilibrados.

     Recuperando o tom de voz, sabendo que ele estava aqui, acordado, abrindo talvez os seus ávidos olhos de cão de cada vez que as nossas palavras ressoavam nas traseiras, procurei dar uma volta à conversa.

     «E que tal te corre o negócio?», perguntei. Meme sorriu. O seu sorriso era triste e taciturno, como se não fosse o resultado de um sentimento actual, como se o tivesse guardado na gaveta e só de lá o tirasse nos momentos indispensáveis, mas usando‑o sem nenhuma propriedade, como se o uso pouco frequente do sorriso a tivesse feito esquecer a maneira normal de o utilizar. «Assim assim», disse, movendo a cabeça de uma forma ambígua, e voltou a ficar silenciosa, abstracta. Então compreendi que eram horas de me ir embora. Entreguei o prato a Meme, sem dar nenhuma explicação pelo facto de o seu conteúdo estar intacto, e via levantar‑se e pô‑lo em cima do balcão. De lá, olhou para mim e repetiu: «És o retrato vivo dela.» Eu estava certamente sentada a contra‑luz, ofuscada pela claridade oposta, e Meme não me via a cara enquanto falava. Depois, quando se levantou para pôr o prato em cima do balcão, por detrás do candeeiro, viu‑me de frente, e foi por isso que disse: «És o retrato vivo dela.» E veio sentar‑se.

     Então começou a recordar os dias em que a minha mãe chegou a Macondo. Tinha ido directamente da mula para a cadeira de baloiço e ficara sentada três meses a fio, sem se mexer, ingerindo os alimentos sem apetite. Às vezes almoçava e ficava até ao meio da tarde com o prato na mão, rígida, sem se baloiçar, com os pés apoiados numa cadeira, sentindo crescer a morte dentro deles, até que alguém chegava e lhe tirava o prato das mãos. Quando chegou o dia, as dores do parto tiraram‑na do seu esquecimento, e pôs‑se ela própria de pé, mas foi preciso ajudá‑la a dar os vinte passos que separavam a varanda do quarto de dormir, martirizada pela ocupação de uma morte que se tinha identificado com ela em nove meses de silencioso sofrimento. A sua travessia da cadeira de baloiço até ao leito teve toda a dor, a amargura e as provações que a viagem realizada há poucos meses não tivera, mas chegou até onde sabia que devia chegar antes de cumprir o último acto da sua vida. O meu pai pareceu desesperado com a morte da minha mãe, disse Meme. Mas, segundo ele próprio disse depois, quando ficou sozinho em casa, «Ninguém pode confiar na honestidade de um lar em que o homem não tem à mão uma mulher legítima.» Como tinha lido num livro que quando morre uma pessoa amada devemos semear um jasmineiro para a recordarmos todas as noites, plantou a trepadeira junto ao muro do pátio e um ano depois casou em segundas núpcias com Adelaida, a minha madrasta.

     Às vezes julgava que Meme ia chorar enquanto falava. Mas manteve‑se firme, satisfeita por estar a expiar o pecado de ter sido feliz e de ter deixado de o ser por sua livre vontade. A seguir estirou‑se na cadeira e humanizou‑se por completo. Foi como se tivesse feito mentalmente as contas à sua dor; inclinou‑se para a frente e viu que ainda lhe restava um saldo favorável de boas recordações, e então sorriu com a sua antiga simpatia ampla e trocista. Disse que aquilo tinha começado cinco anos mais tarde, quando chegou à sala onde o meu pai estava a almoçar e lhe disse: «Coronel, coronel, está no escritório um forasteiro à sua procura.»

    

     Por detrás da igreja, do outro lado da rua, havia um pátio sem árvores. Isto era nos fins do século passado, quando chegámos a Macondo e ainda não se iniciara a construção do templo. Eram terreiros pelados, secos, onde os miúdos brincavam quando saíam da escola. Mais tarde, quando se iniciou a construção do templo, cravaram quatro postes de um dos lados do pátio e viu‑se que o espaço cercado era bom para fazer um quarto. E fizeram‑no. E guardaram nele os materiais da igreja em construção.

     Quando deram por terminados os trabalhos do templo, alguém acabou de rebocar as paredes do quartinho e abriu uma porta na parede posterior, para o patiozinho pelado e pedregoso onde não medrava nem uma piteira. Um ano depois o quartinho estava construído, capaz de albergar duas pessoas. Lá dentro sentia‑se um cheiro a cal viva. Era o único cheiro agradável que se tinha sentido durante muito tempo dentro daquele espaço e o único gratificante que alguma vez se sentiria. Depois de terem caiado as paredes, a mesma mão que dera por concluída a construção correu a tranca na porta de dentro e pôs um cadeado na da rua.

     O quarto não tinha dono. Ninguém se preocupou em tornar efectivos os seus direitos sobre o terreno, nem sobre os materiais de construção. Quando chegou o primeiro pároco, alojou‑se em casa de uma das famílias abastadas de Macondo. Depois foi transferido para outra paróquia. Mas, por essa altura (e possivelmente antes de o primeiro pároco se ter ido embora), uma mulher com uma criança de peito tinha ocupado o quartinho, sem que ninguém soubesse quando, nem como fez para abrir a porta. Havia a um canto uma toalha negra e verde do musgo e um jarro pendurado num prego. Mas já não restava cal nas paredes. No pátio, sobre as pedras, formara‑se uma crosta de terra endurecida pela chuva. A mulher construiu um caramanchão para se proteger do sol. E, como não tinha recursos para lhe pôr tecto de palma, telha ou zinco, plantou um pé de videira junto ao caramanchão e pendurou um ramo de aloés e um pão na porta da rua, para se proteger dos malefícios.

     Quando se anunciou a chegada do novo pároco, em 1903, a mulher continuava a viver no quarto com a criança. Meia aldeia foi até à estrada principal, esperar o sacerdote. A banda local tocou trechos sentimentais, até que chegou um rapaz, ofegante, estoirado, a dizer que a mula do pároco estava na última curva da estrada. Então os músicos trocaram de posições e iniciaram uma marcha. O encarregado do discurso de boas‑vindas subiu à tribuna improvisada e aguardou a chegada do pároco, para dar início à saudação. Mas daí a pouco o trecho marcial cessou, o orador desceu da mesa e a multidão, atónita, viu passar um forasteiro, montado numa mula em cujas ancas viajava o maior baú que alguma vez se vira em Macondo. O homem passou ao largo em direcção à aldeia, sem olhar para ninguém. Mesmo que o pároco se tivesse vestido à civil para fazer a viagem, a ninguém passaria pela cabeça que aquele viajante queimado do sol, com polainas de militar, fosse um sacerdote vestido à civil.

     E de facto não era, porque a essa mesma hora, pelo atalho, do outro lado da aldeia, viram entrar um sacerdote estranho, espantosamente magro, de rosto seco e esguio, escarranchado numa mula, a sotaina arregaçada até aos joelhos e protegido do sol por um guarda‑sol gasto e desbotado. O pároco perguntou nas imediações do templo onde ficava a casa paroquial, e deve tê‑lo perguntado a alguém que não tinha a menor ideia de nada, porque lhe responderam: «É o quartinho que fica atrás da igreja, padre.» A mulher tinha saído, mas a criança brincava lá dentro, por detrás da porta entreaberta. O sacerdote apeou‑se, arrastou até ao quarto uma mala a rebentar, meio aberta e sem fechos, apenas presa com um cinto de couro diferente do da própria mala e, depois de examinar o quartinho, puxou a mula e amarrou‑a no pátio, à sombra das vides. A seguir abriu a mala, tirou de lá uma rede que devia ter a mesma idade e o mesmo uso do guarda‑sol, pendurou‑a em diagonal no quarto, de poste a poste, tirou as botas e deitou‑se a dormir, sem se preocupar com a criança, que olhava para ele com os seus olhos redondos espantados.

     Quando a mulher voltou, deve ter‑se sentido desorientada com a estranha presença do sacerdote, cujo rosto era tão inexpressivo que em nada se distinguia de uma caveira de vaca. A mulher deve ter atravessado a habitação nas pontas dos pés. Deve ter arrastado o catre até à porta, feito uma trouxa com a sua roupa e com os trapos da criança e abandonado a habitação, confusa, sem sequer se preocupar com a toalha e o jarro, porque uma hora mais tarde, quando a comitiva percorreu a aldeia em sentido inverso, precedida pela banda, que tocava a ária marcial por entre um magote de rapazes fugidos à escola, foram dar com o pároco sozinho no quarto, negligentemente estirado na rede, com a sotaina desabotoada, e sem sapatos. Alguém deve ter levado a notícia à estrada principal, mas ninguém se lembrou de perguntar o que é que o pároco fazia naquele quarto. Devem ter pensado que tinha algum parentesco com a mulher, tal como ela deve ter deixado o quartinho por julgar que o pároco tivesse ordem para o ocupar, ou que fosse propriedade da igreja, ou simplesmente por recear que lhe perguntassem porque é que vivera mais de dois anos num quarto que não lhe pertencia, sem pagar aluguer e sem autorização de ninguém. Também não passou pela cabeça da comitiva pedir explicações, nem nesse momento nem em nenhum dos seguintes, porque o pároco não aceitou os discursos, pôs as ofertas no chão e limitou‑se a saudar os homens e as mulheres com frieza, apressadamente, pois, segundo disse, não pregara olho durante toda a noite.

     A comitiva dissolveu‑se, perante aquele frio acolhimento por parte do sacerdote mais estranho que alguma vez tinham visto. Comentava‑se que o seu rosto parecia uma caveira de vaca, que tinha cabelo grisalho, cortado à escovinha, e que não tinha lábios, mas sim uma fenda horizontal que não parecia estar no lugar da boca desde o nascimento, mas antes feita posteriormente, com uma navalhada súbita e única. Mas, nessa mesma tarde, acharam‑no parecido com alguém. E antes de amanhecer todos sabiam quem era. Lembravam‑se de o ter visto com a fisga e a pedra, nu, mas de sapatos e chapéu, nos tempos em que Macondo era um humilde casario de refugiados. Os veteranos lembravam‑se das suas acções na guerra civil de 85. Lembraram‑se de que tinha sido coronel aos dezassete anos, e de que era intrépido, tenaz e oposicionista. Só que em Macondo ninguém voltara a saber dele até àquele dia em que regressava para tomar conta da paróquia. Muito poucos se lembravam do seu nome de baptismo. Em contrapartida, a maioria dos veteranos lembrava‑se do que a mãe lhe pusera (porque era voluntarioso e rebelde), e que foi o mesmo com que veio a ser conhecido pelos seus companheiros de guerra. Todos lhe chamavam El Cachorro. E assim continuaram a chamar‑lhe em Macondo, até à hora da sua morte:

     «Cachorro, Cachorrito.»

     Este homem chegou pois a nossa casa no mesmo dia e quase à mesma hora que El Cachorro a Macondo. O primeiro pela estrada principal, quando ninguém o esperava nem fazia a menor ideia do seu nome ou da sua profissão; o pároco pelo atalho, quando toda a aldeia o aguardava na estrada principal.

     Eu voltei para casa a seguir à recepção. Acabávamos de nos sentar à mesa ‑ um pouco mais tarde que de costume ‑ quando Meme se aproximou para me dizer: «Coronel, coronel, está no escritório um forasteiro à sua procura.» Eu disse‑lhe: «Manda‑o entrar.» E Meme disse: «Está no escritório e diz que precisa de falar consigo com urgência.» Adelaida parou de dar a sopa a Isabel (naquele tempo ela não tinha mais de cinco anos) e foi receber o recém‑chegado. Voltou daí a pouco, visivelmente preocupada:

     «Estava a remexer no escritório», disse.

     Vi‑a caminhar por detrás dos candelabros. Depois voltou a dar a sopa a Isabel. «Devias tê‑lo mandado entrar», disse eu, sem parar de comer. E ela disse: «Era o que eu ia fazer. Mas ele estava a remexer no escritório quando cheguei e lhe dei as boas‑tardes, e não respondeu porque estava a olhar para a prateleira, para a bailarinazinha de corda. E, quando eu lhe ia dar outra vez as boas‑tardes, começou a dar corda à bailarinazinha, pô‑la em cima da secretária e ficou a vê‑la bailar. Não sei se foi a musiquinha que não o deixou ouvir‑me quando lhe dei de novo as boas‑tardes e fiquei parada em frente da secretária, sobre a qual estava inclinado, a ver a bailarinazinha, que ainda tinha corda para um bocado.» Adelaida estava a dar a sopa a Isabel. Eu disse‑lhe: «Deve estar muito interessado no brinquedo.» E ela, continuando a dar a sopa a Isabel: «Estava a remexer no escritório, mas depois, quando viu a bailarinazinha, pegou nela como se soubesse de antemão para que servia, como se conhecesse o seu funcionamento. Estava a dar‑lhe corda quando lhe dei as boas‑tardes pela primeira vez, antes de a musiquinha começar a soar. Então pousou‑a em cima da secretária e ficou a olhar para ela, mas sem sorrir, como se não estivesse interessado no bailado, mas sim no mecanismo.»

     Nunca me anunciavam ninguém. Quase todos os dias chegavam visitas: viajantes desconhecidos que deixavam os animais na cavalariça e se abeiravam com total confiança, com a familiaridade de quem espera encontrar sempre um lugar desocupado à nossa mesa. Disse a Adelaida: «Deve trazer algum recado, ou qualquer coisa.» E ela disse: «Seja como for, tem um comportamento estranho. Ele a olhar para a bailarinazinha até se lhe acabar a corda e eu para ali parada, em frente da secretária, sem saber que lhe dizer, porque sabia que não me responderia enquanto a musiquinha não parasse de soar. Depois, quando a bailarinazinha deu o saltinho que dá sempre quando se lhe acaba a corda, ficou ainda a olhar para ela com curiosidade, inclinado sobre a secretária, mas sem se sentar. Então olhou para mim e vi que sabia que eu estava no escritório, mas que não tinha feito caso de mim porque queria saber quanto tempo a bailarinazinha estaria a dançar. Mas já não voltei a dar‑lhe as boas‑tardes, sorri‑lhe quando olhou para mim porque vi que tinha os olhos enormes, com as pupilas amarelas, que vêem de uma vez o corpo todo. Quando lhe sorri, ele continuou sério, mas fez uma inclinação de cabeça muito formal e disse: «O coronel? É com o coronel que quero falar.»' Tinha a voz funda, como se conseguisse falar com a boca fechada. É como se fosse ventríloquo.»

     Ela estava a dar a sopa a Isabel. Eu continuei a almoçar, porque julguei que se tratava de um simples recado; porque não sabia que naquela mesma tarde estavam a começar as coisas que hoje se concluem.

     Adelaida continuou a dar a sopa a Isabel e disse: «Ao princípio estava a remexer no escritório.» Então compreendi que o forasteiro a tinha impressionado de uma maneira pouco comum e que tinha um interesse especial em que eu o recebesse. Contudo, continuei a almoçar enquanto ela dava a sopa a Isabel e falava. Disse: «Depois, quando disse que queria falar com o coronel, foi quando eu lhe disse, tenha a bondade de entrar para a sala de jantar, e ele empertigou‑se onde estava, com a bailarina na mão. Levantou a cabeça e pôs‑se rígido e firme como um soldado, parece‑me, porque tinha botas altas e um fato ordinário com a camisa abotoada até ao colarinho. Eu não sabia o que lhe havia de dizer quando não respondeu nada e ficou quieto, com o brinquedo na mão, como se estivesse à espera que eu saísse do escritório para lhe dar corda outra vez. Foi então, de súbito, que me fez lembrar alguém, que percebi ser um militar.»

     Eu disse‑lhe: «Então tu achas que é alguma coisa de grave.» Olhei para ela por cima dos candelabros. Ela não olhava para mim. Estava a dar a sopa a Isabel. Disse:

     «É que quando cheguei ele estava a remexer no escritório, de modo que não podia ver‑lhe a cara. Mas depois, quando ficou parado ao fundo, tinha a cabeça tão levantada e os olhos tão fixos que me pareceu ser um militar, e disse‑lhe: «O senhor quer falar com o coronel em privado, não é verdade?» E ele disse que sim com a cabeça. Então vim dizer‑lhe que se parece com alguém, ou melhor, que é a própria pessoa com quem se parece, embora não perceba como está aqui.»

     Eu continuei a almoçar, mas olhava para ela por cima dos candelabros. Ela parou de dar a sopa a Isabel. Disse:

     «Tenho a certeza de que não é um recado. Tenho a certeza que não é parecido, que é mesmo o próprio com quem se parece. Tenho a certeza, dizendo melhor, que é um militar. Tem um bigode preto e pontiagudo e a cara como de cobre. Tem botas altas, e tenho a certeza que não é parecido, que é mesmo o próprio com quem se parece.»

     Falava num tom uniforme e monótono, insistente. Estava calor, e, talvez por isso, comecei a sentir‑me irritado. Disse‑lhe: «Ah, com quem é que se parece?» E ela disse: «Quando estava a remexer no escritório não lhe vi a cara, só depois.» E eu, irritado com a monotonia e a insistência das suas palavras: «Bom, bom, falo com ele quando acabar de almoçar.» E ela, dando outra vez a sopa a Isabel: «Ao princípio não lhe pude ver a cara porque estava a remexer no escritório. Mas depois, quando lhe disse tenha a bondade de entrar, ele ficou quieto, encostado à parede, com a bailarinazinha na mão. Foi então que me lembrei com quem se parece, e vim avisar‑te. Tem os olhos enormes e indiscretos, e, quando me voltei para sair, senti que estava a olhar directamente para as minhas pernas.»

     Calou‑se de repente. Na sala de jantar ficou a vibrar o tilintar metálico da colher. Eu acabei de almoçar e dobrei o guardanapo debaixo do prato.

     Nisto ouviu‑se, no escritório, a musiquinha festiva do brinquedo de corda.

    

     Lá em casa, na cozinha, há uma velha cadeira de madeira lavrada, sem travessas, em cujo fundo o meu avô põe os sapatos a secar, ao pé do fogão.

     Tobias, Abraão, Gilberto e eu saímos da escola, ontem por esta hora, e fomos às plantações com uma fisga, um chapéu grande para afugentar os pássaros e uma navalha nova. Pelo caminho, eu ia‑me lembrando da cadeira partida, abandonada a um canto da cozinha, que em tempos serviu para receber visitas e que agora é utilizada pelo morto que todas as noites se senta, com o chapéu preto posto, a contemplar as cinzas da lareira apagada.

     Tobias e Gilberto estavam a chegar ao fim da passagem escura. Como tinha chovido durante a manhã, os sapatos resvalavam‑lhes na erva enlameada. Um deles assobiava e o seu assobio duro e firme ressoava na galeria vegetal, como quando nos pomos a cantar dentro de um tonel. Abraão vinha atrás, comigo. Ele com a fisga e a pedra pronta para ser disparada. Eu com a navalha aberta.

     De repente o sol rompeu o tecto de folhas apertadas e densas e um corpo luminoso caiu esvoaçando na erva, como um pássaro vivo. «Viste?», disse Abraão. Eu olhei para a frente e vi Gilberto e Tobias no fim da passagem. «Não é um pássaro», disse. «É o sol que entrou com força.»

     Quando chegaram à margem, começaram a despir-se e a atirar um ao outro fortes chapinhadas daquela água crepuscular, que parecia não lhes molhar a pele. «Não há um único pássaro, esta tarde», disse Abraão. «Quando chove não há pássaros», disse eu. E eu próprio acreditei nisso. Abraão desatou a rir. O seu riso é tonto e simples e faz um ruído como o de um fio de água numa bacia. Despiu‑se. «Vou meter‑me na água com a navalha e encher o chapéu de peixes», disse.

     Abraão estava nu diante de mim, com a mão aberta, à espera da navalha. Eu não respondi logo. Apertava a navalha com força e sentia na mão o seu aço limpo e temperado. Não lhe vou dar a navalha, pensei. E disse‑lho: «Não te vou dar a navalha. Só ma deram ontem e vou ficar com ela toda a tarde.» Abraão continuou com a mão estendida. Então disse‑lhe:

     «Incomploruto.»

     Abraão entendeu‑me. Só ele entende as minhas palavras: «Está bem», disse, e caminhou para a água através do ar denso e ácido. Disse:

     «Começa a despir‑te e esperamos‑te na pedra.» E disse‑o enquanto mergulhava e voltava a aparecer reluzente como um peixe prateado e enorme, como se a água se tivesse tornado líquida em contacto com ele.

     Eu permaneci na margem, deitado sobre a lama morna. Quando abri a navalha de novo, deixei de olhar para Abraão e levantei os olhos, em direcção ao outro lado, para cima das árvores, para o entardecer furioso cujo céu tinha a monstruosa imponência de uma cavalariça incendiada.

     «Despacha‑te», disse Abraão, do outro lado. Tobias estava a assobiar no rebordo de pedra. Então pensei: Hoje não tomo banho. Amanhã.

     Quando regressávamos, Abraão escondeu‑se atrás das silvas. Eu ia persegui‑lo, mas ele disse‑me: «Não venhas para aqui. Estou ocupado.» Obedeci, sentado nas folhas mortas do caminho, a olhar para a única andorinha que traçava uma curva no céu. Disse:

     «Esta tarde só há uma andorinha.»

     Abraão não respondeu logo. Estava silencioso, atrás das silvas, como se não me pudesse ouvir, como se estivesse a ler. O seu silêncio era profundo e concentrado, cheio de uma recôndita força. Só depois de um longo silêncio suspirou. Então disse:

     «Andorinhas.»

     Tornei a dizer‑lhe: «Há só uma, esta tarde.» Abraão continuava atrás das silvas, mas não se sabia nada dele. Estava silencioso e concentrado, mas a sua quietude não era estática. Era uma imobilidade desesperada e impetuosa. Daí a pouco, disse:

     «Só uma? Aaah. Pois, pois.»

     Desta vez não disse nada. Foi ele que começou a mexer‑se atrás das silvas. Sentado nas folhas, eu ouvi perto dele o barulho de outras folhas mortas debaixo dos seus pés. Depois tornou a ficar silencioso, como se se tivesse ido embora. A seguir respirou profundamente e perguntou:

     «O que é que estás a dizer?»

     Tornei a dizer‑lhe: «Que esta tarde há só uma andorinha.» E, enquanto lho dizia, olhava para a asa arqueada, traçando círculos no céu de um azul incrível. «Está a voar alto», disse.

     Abraão respondeu imediatamente:

     «Ah, pois, claro. Deve então ser por isso.»

     Saiu de trás das silvas, a abotoar as calças. Olhou para cima, para onde a andorinha continuava a traçar círculos, e, ainda sem me responder, disse:

     «O que é que estavas a dizer há bocado sobre as andorinhas?»

     Isto atrasou‑nos. Quando chegámos, as luzes da aldeia estavam acesas. Entrei em casa a correr e tropecei, no varandim, nas mulheres gordas e cegas, as gémeas de San Jerónimo que todas as terças‑feiras vêm cantar para o meu avô, desde antes de eu nascer, segundo disse a minha mãe.

     Passei a noite inteira a pensar que hoje voltaríamos a sair da escola e que iríamos ao rio, mas não com Gilberto e Tobias. Queria ir sozinho com Abraão, para lhe ver o brilho da barriga quando mergulha e torna a aparecer como um peixe metálico. Toda a noite desejei regressar com ele, sozinho pela obscuridade do túnel verde, para lhe roçar a coxa pelo caminho. Sempre que o faço, é como se alguém me mordesse com uns mordiscos suaves, que me eriçam a pele.

     Se este homem que saiu para ir conversar com o meu avô na outra sala não demorar muito, pode ser que cheguemos a casa antes das quatro. Então irei ao rio com Abraão.

     Ficou a viver em nossa casa. Ocupou um dos quartos da galeria, o que dá para a rua, porque eu assim achei conveniente; porque sabia que um homem do seu carácter não arranjaria maneira de estar à vontade no hotelzinho da aldeia. Pôs um aviso na porta (até há poucos anos, quando caiaram a casa, ainda estava no seu lugar, escrito a lápis por ele próprio, em letra cursiva), e na semana seguinte foi preciso arranjar mais cadeiras, para satisfazer as exigências de uma numerosa clientela.

     Depois de me ter entregue a carta do coronel Aureliano Buendía, a nossa conversa no escritório prolongou‑se de tal maneira que Adelaida não duvidou que se tratava de um funcionário militar em importante missão, e dispôs a mesa como para uma festa. Falámos do coronel Buendía, da sua filha nascida de sete meses e do primogénito meio tolo. Ainda a conversa não ia longa quando percebi que aquele homem conhecia bem o Intendente‑Geral e que tinha suficiente estima por ele para corresponder à sua confiança. Quando Meme nos veio dizer que a refeição estava servida, pensei que a minha esposa tinha improvisado umas coisitas para obsequiar o recém‑chegado. Mas estava muito longe da improvisação, aquela mesa esplêndida, posta com uma toalha nova, com a louça de porcelana exclusivamente destinada aos jantares de família do Natal e do Ano Novo.

     Adelaida estava solene e altiva numa das extremidades da mesa, com o vestido de veludo fechado até acima, aquele que usou antes do nosso casamento para tratar dos assuntos da sua família na cidade. Adelaida tinha hábitos mais refinados do que os nossos, certa experiência social que, a partir do nosso casamento, começou a influenciar os costumes da minha casa. Tinha posto o medalhão familiar, aquele que ostentava em ocasiões de extrema importância, e toda ela, como a mesa, como os móveis, como o ar que se respirava na sala de jantar, produzia uma severa sensação de compostura e asseio. Quando chegámos ao salão, até ele, que sempre foi tão descuidado no vestir e nas maneiras, se deve ter sentido envergonhado e deslocado, porque levou a mão ao botão do colarinho, como se tivesse gravata, e notou‑se‑lhe uma ligeira hesitação no andar despreocupado e enérgico. Não há nada que recorde com tanta precisão como aquele instante em que irrompemos na sala de jantar e eu próprio me senti vestido demasiado caseiramente para uma mesa como a preparada por Adelaida.

     Nas travessas havia aves de criação e caça grossa. Exactamente como, de resto, nas nossas refeições daquele tempo; mas a sua apresentação na louça nova, por entre os candelabros recém‑areados, era espectacular e diferente do habitual. Embora a minha esposa soubesse que se receberia um único visitante, pôs os oito talheres, e a garrafa de vinho, ao centro, era uma exagerada manifestação da diligência com que tinha preparado a homenagem para o homem que, desde o primeiro momento, confundira com um distinto funcionário militar. Nunca vi em minha casa um ambiente mais carregado de irrealidade.

     A indumentária de Adelaida teria podido parecer ridícula se não fossem as suas mãos (eram realmente bonitas, e demasiado brancas), que equilibravam com a sua distinção o muito de falso e rebuscado que tinha o seu aspecto. Foi quando ele levou a mão ao botão da camisa que eu me apressei a dizer: «A minha esposa em segundas núpcias, doutor.» Uma nuvem toldou o rosto de Adelaida e tornou‑o diferente e sombrio. Ela não se mexeu de onde estava, com a mão estendida, sorrindo, mas já não com o ar de cerimoniosa altivez que tinha quando entrámos na sala de jantar.

     O recém‑chegado bateu as botas, como um militar, levou a ponta dos dedos esticados à fronte e a seguir dirigiu‑se para ela.

     «Senhora», disse. Mas não pronunciou nenhum nome.

     Só quando o vi apertar a mão de Adelaida com uma sacudidela tosca me apercebi da vulgaridade e da grosseria do seu comportamento.

     Sentou‑se na outra extremidade da mesa, entre os cristais novos, entre os candelabros. A sua presença desleixada destacava‑se como uma nódoa de sopa na toalha.

     Adelaida serviu o vinho. A sua emoção do princípio tinha‑se transformado num nervosismo passivo que parecia dizer: Está bem, tudo se fará como estava previsto, mas deves‑me uma explicação. E foi depois de ela servir o vinho e se sentar no outro extremo da mesa, enquanto Meme se preparava para servir os pratos, que ele se deitou para trás na cadeira, apoiou as mãos na toalha e disse, sorrindo:

    

     «Olhe, menina, ponha a ferver um pouco de erva e traga‑me isso como se fosse sopa.»

     Meme não se mexeu. Tentou rir, mas não pôde, e voltou‑se para Adelaida. Então ela, sorrindo também, mas visivelmente desconcertada, perguntou‑lhe: «Que espécie de erva, doutor?» E ele, com a sua parcimoniosa voz de ruminante:

     «Erva vulgar, minha senhora; da que comem os burros.»

    

     Há um momento em que a sesta se esgota. Até a secreta, recôndita, minúscula actividade dos insectos cessa nesse momento preciso; o curso da natureza detém‑se; a criação vacila à beira do caos e as mulheres levantam‑se, babadas, com a flor da almofada bordada na face, sufocadas pela temperatura e pelo rancor; e pensam: «Ainda é quarta‑feira em Macondo.» E então tornam a aninhar‑se a um canto, entrelaçam o sono com a realidade e põem‑se de acordo para urdir a intriga, como se fosse um imenso lençol de linho tecido em comum por todas as mulheres da aldeia.

     Se o tempo de dentro tivesse o mesmo ritmo do de fora, agora estaríamos em pleno sol, com o caixão no meio da rua. Lá fora seria mais tarde: seria de noite. Seria uma pesada noite de Setembro com lua e mulheres sentadas nos pátios, conversando sob a claridade verde, e nós na rua, os três renegados, ao sol deste Setembro sedento. Ninguém impedirá a cerimónia. Esperava que o alcaide fosse inflexível na sua decisão de se lhe opor e que pudéssemos regressar a casa: a criança à escola e o meu pai aos seus tamancos, à sua bacia debaixo da cabeça, a gotejar de água fresca e com o seu jarro de limonada gelada ao lado esquerdo. Mas agora é diferente. O meu pai foi outra vez suficientemente persuasivo para impor o seu ponto de vista ao que a princípio julguei ser uma decisão irrevogável do alcaide. Lá fora está a aldeia em ebulição, entregue ao trabalho de uma longa, uniforme e impiedosa intriga; e a rua limpa, sem uma sombra no pó limpo e virgem desde que o último vento varreu as pegadas do último boi. E é uma aldeia sem ninguém, com as casas fechadas, em cujas salas não se ouve nada a não ser o surdo fervilhar da intriga e do ódio. E no quarto a criança sentada, rígida, a olhar para os sapatos; tem um olho para o candeeiro e outro para os jornais e outro para os sapatos e finalmente dois para o enforcado, para a sua língua mordida, para os seus vítreos olhos de cão agora sem avidez; de cão sem apetites, morto. A criança olha para ele, pensa no enforcado que está deitado ao comprido debaixo das tábuas; faz um trejeito triste e então tudo se transforma: sai um tamborete à porta da barbearia e atrás dele o altarzinho com o espelho, os pós e a água‑de‑colónia. A mão torna‑se sardenta e grande, deixa de ser a mão do meu filho, transforma‑se numa mão grande e destra que friamente, com calculada lentidão, começa a amolar a navalha enquanto o ouvido ouve o zumbido metálico da folha temperada, e a cabeça pensa: «Hoje virão mais cedo, porque é quarta‑feira em Macondo.» E então chegam, recostam‑se nas cadeiras à sombra e na frescura das ombreiras, torvos, estrábicos, as pernas cruzadas e as mãos entrelaçadas sobre os joelhos, mordendo as pontas dos charutos; olhando, falando da mesma coisa, vendo diante deles a janela fechada, a casa silenciosa com a senhora Rebeca lá dentro. Ela também se esqueceu de qualquer coisa: esqueceu‑se de desligar a ventoinha e percorre as salas com as redes nas janelas, nervosa, exaltada, revolvendo os trastes da sua estéril e atormentada viuvez, para se certificar até com o sentido do tacto de que não morrerá antes de chegar a hora do enterro. Abre e fecha as portas das suas salas, à espera que o relógio patriarcal se levante da sesta e lhe reconforte os sentidos com a badalada das três. Tudo isto enquanto se perfaz o trejeito da criança e torna a pôr‑se dura, direita, sem demorar sequer metade do tempo que uma mulher leva a dar o último ponto à máquina e a levantar a cabeça cheia de pinças. Antes da criança tornar a ficar direita, pensativa, a mulher levou a máquina para o ângulo do corredor e os homens morderam duas vezes os charutos, enquanto observam uma ida e volta completa da navalha no assentador; e Agueda, a tolhida, faz um último esforço para acordar os joelhos mortos; e a senhora Rebeca dá mais uma volta à chave e pensa: «Quarta‑feira em Macondo. Bom dia para enterrar o diabo.» Mas então a criança torna a mexer‑se e há nova transformação no tempo. Enquanto alguma coisa se mexer, pode saber‑se que o tempo passou. De contrário, não. Se nada se mexer é o tempo eterno, o suor, a camisa pegajosa sobre a pele e o morto impávido e gelado por detrás da sua língua mordida. Por isso o tempo não passa para o enforcado: porque, ainda que a mão da criança se mexa, ele não o sabe. E enquanto o morto o ignora (porque a criança continua a mexer a mão), Agueda deve ter passado mais uma conta no rosário; a senhora Rebeca, estendida na cadeira de lona, está perplexa, ao ver que o relógio permanece fixo à beira do minuto iminente, e Agueda teve tempo (embora no relógio da senhora Rebeca não tenha passado um segundo) de passar mais uma conta no rosário e pensar: «Se pudesse, ia ter com o padre Angel.» Então a mão da criança desce e a navalha aproveita o movimento no assentador e um dos homens, sentado na frescura da ombreira, diz: «Devem ser umas três e meia, não?» Então a mão detém‑se. Outra vez o relógio morto à beira do minuto seguinte, outra vez a navalha detida no espaço do seu próprio aço; e Agueda ainda à espera do novo movimento da mão para esticar as pernas e entrar na sacristia, de braços abertos, os joelhos de novo despertos, dizendo: «Padre, padre.» E o padre Angel, prostrado na quietude da criança, passando a língua pelos lábios para sentir o viscoso sabor do pesadelo de almôndegas, ao ver Agueda, diria então: «Isto deve ser um milagre, sem dúvida», e a seguir, revolvendo‑se de novo no torpor da sesta, gemendo na modorra líquida e pegajosa: «De qualquer modo, Agueda, não são horas de dizer missa pelas almas do purgatório.» Mas o novo movimento frustra‑se, o meu pai entra na sala e os dois tempos reconciliam‑se; as duas metades ajustam‑se, consolidam‑se, e o relógio da senhora Rebeca apercebe‑se de que esteve indeciso entre a lentidão da criança e a impaciência da viúva, e então boceja, confuso, mergulha na prodigiosa quietude do momento e sai escorrendo de tempo líquido, tempo exacto e rectificado, e inclina‑se para a frente e diz com cerimoniosa dignidade: «São duas e quarenta e sete minutos, exactamente.» E o meu pai, que sem o saber quebrou a paralisia do instante, diz: «Está nas nuvens, filha.» E eu digo: «Acha que pode acontecer alguma coisa?» E ele, suando, sorrindo: «Tenho pelo menos a certeza de que em muitas casas se há‑de queimar o arroz e derramar o leite.»

     Agora o caixão está fechado, mas recordo a cara do morto. Fixei‑a com tanta precisão que, se olho para a parede vejo os olhos abertos, as bochechas caídas e cinzentas como a terra húmida, a língua mordida a um lado da boca. Isto produz‑me uma forte sensação de intranquilidade. Talvez as calças nunca deixem de me apertar de um lado da perna.

     O meu avô sentou‑se ao pé da minha mãe. Quando voltou da sala ao lado puxou uma cadeira, e agora permanece aqui, sentado ao pé dela, sem dizer nada, o queixo apoiado na bengala e a perna coxa esticada para a frente. O meu avô espera. A minha mãe, como ele, espera. Os homens, que deixaram de fumar na cama e permanecem quietos, compostos, sem olhar para o caixão, também eles esperam.

     Se me vendassem os olhos, se me pegassem na mão e me dessem vinte voltas pela aldeia e me voltassem a trazer a este quarto, reconhecê‑lo‑ia pelo cheiro. Nunca esquecerei que esta sala cheira a detritos, a baús amontoados, apesar de só ter visto um baú, no qual eu e Abraão nos poderíamos esconder e ainda sobraria espaço para Tobias. Conheço as salas pelo cheiro.

     O ano passado, Ada tinha‑me sentado ao colo. Eu tinha os olhos fechados e via‑a através das pestanas. Via‑a indistinta, como se não fosse uma mulher mas apenas um rosto que olhava para mim e se baloiçava e balia como uma ovelha. Estava a começar a adormecer completamente, quando senti o cheiro.

     Não há em casa um cheiro que eu não reconheça. Quando me deixam sozinho na galeria, fecho os olhos, estendo os braços e ando. Penso: Quando sentir um cheiro a rum canforado, estarei no quarto do meu avô. Continuo a andar, com os olhos fechados e os braços estendidos. Penso: Agora vou passar pelo quarto da minha mãe, porque cheira a baralhos novos. A seguir há‑de cheirar a alcatrão e a bolinhas de naftalina. Continuo a andar e sinto o cheiro a baralhos novos no preciso instante em que oiço a voz da minha mãe, cantando no quarto. Então sinto o cheiro a alcatrão e a bolinhas de naftalina. Penso: Agora continuará a cheirar a bolinhas de naftalina. Depois viro para a esquerda do cheiro e hei‑de sentir o outro cheiro, a roupa branca e a janela fechada. Aí, paro. A seguir, depois de dar três passos, sinto o novo cheiro e fico quieto, com os olhos fechados e os braços estendidos, e oiço a voz de Ada, que grita: «Menino, lá estás tu a andar de olhos fechados.»

     Naquela noite, quando começava a adormecer, senti um cheiro que não existe em nenhuma das salas da casa. Era um cheiro forte e tépido, como se tivessem agitado um jasmineiro. Abri os olhos, cheirando o ar espesso e carregado. Disse: «Sentes?» Ada estava a olhar para mim, mas quando lhe falei fechou os olhos e olhou para o outro lado. Eu tornei a dizer‑lhe: «Não sentes? É como se houvesse jasmins nalgum sítio.» Então ela disse: «É o cheiro dos jasmins que estiveram junto ao muro há nove anos.»

     Sentei‑me ao colo dela. «Mas agora não há jasmins», disse. E ela respondeu: «Agora não, mas há nove anos, quando tu nasceste, havia um pé de jasmim junto à parede do pátio. À noite fazia calor e cheirava como agora.» Reclinei‑me no ombro dela. Olhava‑lhe para a boca enquanto ela falava. «Mas isso foi antes de eu nascer», disse. E ela disse: «É que naquele tempo houve um longo Inverno e foi preciso limpar o jardim.»

     O cheiro continuava ali, tépido, quase palpável, agitando os outros cheiros da noite. Eu disse a Ada: «Quero que me contes isso.» E ela ficou calada um instante, olhou depois para o muro branco de cal com lua e disse: «Quando fores grande, hás‑de saber que o jasmim é uma flor que aparece.»

     Eu não entendi, mas senti um arrepio estranho, como se uma pessoa me tivesse tocado. Disse: «Está bem»; e ela disse: «Com os jasmins acontece o mesmo que com as pessoas, que saem de noite a vaguear, depois de mortas.»

     Deixei‑me estar recostado no seu ombro, sem dizer nada. Pensava noutras coisas, na cadeira da cozinha em cujo fundo roto o meu avô põe os sapatos a secar, quando chove. Já então sabia que na cozinha há um morto que todas as noites se senta, sem tirar o chapéu, a contemplar as cinzas do fogão apagado. Passado um momento, disse: «Isso deve ser como o morto que se senta na cozinha.» Ada olhou para mim, abriu os olhos e disse: «Qual morto?» E eu disse‑lhe: «O que está todas as noites na cadeira onde o avô põe os sapatos a secar.» E ela disse: «Não há lá nenhum morto. A cadeira está ao pé do fogão porque já não serve para mais nada, a não ser para secar sapatos.»

     Isto foi no ano passado. Agora é diferente, agora vi um cadáver e basta‑me fechar os olhos para continuar a vê‑lo por dentro, na escuridão dos olhos. Ia dizê‑lo à minha mãe, mas ela começou a conversar com o meu avô. «Acha que pode acontecer alguma coisa?», diz. E o meu avô, levantando o queixo da bengala, movendo a cabeça: «Tenho pelo menos a certeza que em muitas casas se há‑de queimar o arroz e derramar o leite.»

    

     Ao princípio dormia até às sete. Víamo‑lo aparecer na cozinha, com a camisa sem colarinho abotoada até cima, as mangas enrugadas e sujas arregaçadas até aos cotovelos, as calças enxovalhadas à altura do peito e o cinto amarrado por fora, muito mais abaixo do cós. Dava a impressão de que as calças iam resvalar, cair, por falta de um corpo sólido a que se agarrassem. Não tinha emagrecido, mas notava‑se‑lhe no rosto, não já a expressão militar e altaneira do primeiro ano, mas antes o semblante abúlico e cansado do homem que não sabe o que será da sua vida daí a um minuto, nem tem o menor interesse em averiguá‑lo. Tomava o seu café puro, depois das sete, e a seguir voltava para o quarto, dando no regresso os seus inexpressivos bons‑dias.

     Há quatro anos que vivia em nossa casa, e era considerado em Macondo um profissional sério, apesar do seu carácter brusco e as suas maneiras desordenadas terem criado à sua volta uma atmosfera mais parecida com o temor do que com respeito.

     Foi o único médico na aldeia até chegar a companhia bananeira e se iniciarem os trabalhos do caminho‑de‑ferro. Então começaram a sobrar cadeiras no quartinho. As pessoas que o foram consultar durante os primeiros quatro anos da sua estada em Macondo começaram a deixar de lá ir, depois de a companhia ter organizado o serviço médico para os seus trabalhadores. Ele deve ter visto os novos rumos traçados pela revoada, mas não disse nada. Continuou a abrir a porta da rua, a sentar‑se na sua cadeira de couro durante todo o dia, até que passaram muitos anos sem voltar um doente. Então pôs o ferrolho na porta, comprou uma rede e fechou‑se no quarto.

     Meme ganhou por essa altura o hábito de lhe ir levar um pequeno‑almoço composto por bananas e laranjas. Comia os frutos e atirava as cascas para um canto, de onde a guajira as tirava ao sábado, quando fazia a limpeza ao quarto. Mas, pela maneira como procedia, não seria difícil suspeitar que pouco lhe importaria se um sábado se deixasse de fazer a limpeza e o quarto se transformasse num esterqueiro.

     Agora não fazia absolutamente nada. Passava as horas na rede, baloiçando‑se. Pela porta entreaberta, víamo‑lo na obscuridade, e o seu rosto seco e inexpressivo, o seu cabelo revolto, a vitalidade doentia dos seus duros olhos amarelos, davam‑lhe o aspecto inconfundível do homem que começou a sentir‑se derrotado pelas circunstâncias.

     Durante os primeiros anos da sua estadia em nossa casa, Adelaida mostrou‑se aparentemente indiferente ou aparentemente conformada ou realmente de acordo com a minha vontade de que ele permanecesse em nossa casa. Mas quando fechou o consultório e só saía do quarto à hora das refeições, vindo sentar‑se à mesa com a mesma apatia silenciosa e dolorida de sempre, a minha mulher rompeu os diques da sua tolerância. Disse‑me: «É uma heresia continuar a sustentá‑lo. É como se estivéssemos a alimentar o diabo.» E eu, sempre a defendê‑lo, por um complexo sentimento de piedade, de admiração e de pena (pois, ainda que queira encobri‑lo agora, havia muito de pena naquele sentimento), insistia: «Temos de o suportar. É um homem sem ninguém no mundo e precisa que o compreendam.»

     Pouco depois, o caminho‑de‑ferro começou a prestar os seus serviços. Macondo era uma aldeia próspera, cheia de caras novas, com um salão de cinema e numerosos lugares para toda a gente, menos para ele. Continuou fechado, esquivo, até à manhã em que intempestivamente, se apresentou na sala de jantar à hora do pequeno‑almoço e falou com espontaneidade e até com entusiasmo das magníficas perspectivas da aldeia. Nessa manhã ouvi a palavra pela primeira vez. Disse‑a ele: «Tudo isto há‑de passar quando nos acostumarmos à revoada.»

     Meses mais tarde vimo‑lo sair à rua com frequência, ao entardecer. Ficava sentado na barbearia até às últimas horas do dia e intervinha nas tertúlias que se formavam à porta, ao pé do rádio portátil, ao pé do tamborete alto que o barbeiro punha na rua para que a sua clientela desfrutasse do fresco do entardecer.

     Os médicos da companhia não se contentaram com privá‑lo de facto dos seus meios de vida; em 1907, quando já não havia em Macondo um só paciente que se lembrasse dele e quando ele próprio tinha desistido de o esperar, um dos médicos das bananeiras sugeriu ao alcaide que exigisse a todos os profissionais da aldeia o registo dos seus títulos. Ele não se deve ter sentido incluído quando apareceu o edital, uma segunda‑feira, nos quatro cantos da praça. Fui eu que lhe falei da conveniência de cumprir aquele requisito. Mas ele, tranquilo, indiferente, limitou‑se a responder: «Eu não, coronel.

     Não voltarei a meter‑me em nada disso.» Nunca consegui saber se tinha realmente os seus títulos em ordem. Nem sequer soube se era francês como se supunha, nem se conservava recordações de uma família, que deve ter tido, mas sobre a qual nunca disse uma palavra. Algumas semanas depois, quando o alcaide e o seu secretário compareceram em minha casa para lhe exigirem a apresentação do registo da sua licença, ele negou‑se de maneira rotunda a sair do quarto. Nesse dia, depois de cinco anos a vivermos na mesma casa, a comermos à mesma mesa, apercebi‑me de que nem sequer sabíamos o seu nome.

     Não seria preciso ter dezassete anos (como eu tinha então) para reparar ‑ desde que vi Meme aperaltada na igreja, e depois, quando falei com ela na taberna ‑ que em nossa casa o quartinho que dava para a rua estava fechado. Mais tarde soube que a minha madrasta o fechara a cadeado e não consentia que se tocasse nas coisas que lá estavam dentro: a cama que o médico usou até comprar a rede; a mesinha dos medicamentos, da qual não trouxe para a casa de esquina senão o dinheiro acumulado durante os seus melhores anos (que devia ser muito, porque nunca teve gastos em casa e chegou para Meme abrir a taberna); e além disso, por entre um montão de detritos e jornais velhos escritos no seu idioma, a bacia e algumas roupas pessoais imprestáveis. Era como se todas aquelas coisas estivessem contaminadas pelo que a minha madrasta considerava uma natureza maléfica, completamente diabólica.

     Eu devia ter‑me apercebido de que o quartinho estava fechado em Outubro ou Novembro (três anos depois de Meme e ele deixarem a casa), porque no princípio do ano seguinte começara a alimentar esperanças sobre a instalação de Martín nessa divisão. Desejava viver nela depois do meu casamento; rondava‑a; nas conversas com a minha madrasta, chegava até a sugerir que já era tempo de se abrir o cadeado e de levantar a inadmissível quarentena imposta a um dos sítios mais íntimos e aprazíveis da casa. Mas, antes de começarmos a fazer o meu vestido de noiva, ninguém me falou directamente do médico, e muito menos do quartinho, que continuava a ser como que algo seu, como que um fragmento da sua personalidade que não podia ser desligado da nossa casa enquanto nela vivesse alguém que pudesse recordá‑lo.

     Eu ia casar‑me daí a menos de um ano. Não sei se seriam as circunstâncias em que se desenrolou a minha vida durante a infância e a adolescência que me davam por esta altura uma noção imprecisa dos factos e das coisas. Mas o certo é que, naqueles meses em que se faziam os preparativos para o meu casamento, ainda eu ignorava o segredo de muitas coisas. Um ano antes de me casar com ele, recordava Martín através de uma vaga atmosfera de irrealidade. Talvez por isso, desejava tê‑lo perto, no quartinho, para me convencer de que se tratava de um homem concreto, e não de um noivo conhecido em sonhos. Mas já não me sentia com forças para falar dos meus projectos à minha madrasta. O natural teria sido dizer: «Vou pôr a mesa ao pé da janela e a cama encostada à parede de dentro. Vou pôr um vaso de cravos na prateleira e um ramo de aloés por cima da porta.» Mas à minha cobardia, à minha absoluta falta de decisão, juntava‑se a nebulosidade do meu noivo. Recordava‑o como uma figura vaga, inacessível, cujos únicos elementos concretos pareciam ser o bigode brilhante, a cabeça um pouco inclinada para a esquerda e o eterno casaco de quatro botões.

     Estivera em nossa casa nos fins de Julho. Passava o dia connosco e conversava no escritório com o meu pai, dando voltas a um misterioso negócio de que nunca consegui saber nada. À tarde, Martín e eu íamos com a minha madrasta às plantações. Mas, quando o via regressar na claridade malva do crepúsculo, quando estava mais perto de mim, caminhando junto ao meu ombro, então era mais abstracto e irreal. Sabia que nunca seria capaz de o imaginar humano, ou de encontrar nele a solidez indispensável para que a sua recordação me desse coragem, me fortalecesse no momento de dizer: «Vou arranjar o quarto para Martín.»

     Até a ideia de me ir casar com ele me parecia inverosímil um ano antes do casamento. Conhecera‑o em Fevereiro, no velório do menino de Paloquemado. Havia várias raparigas a cantar e a bater palmas, procurando esgotar até ao excesso a única diversão que nos era permitida. Em Macondo havia um salão de cinema, havia um gramofone público e outros locais de diversão, mas o meu pai e a minha madrasta opunham‑se a que as raparigas da minha idade os frequentassem. «São divertimentos para a revoada», diziam.

     Em Fevereiro fazia calor ao meio‑dia. A minha madrasta e eu sentávamo‑nos na varanda, a passajar roupa branca, enquanto o meu pai dormia a sesta. Cosíamos até ele passar, arrastando os socos, para ir molhar a cabeça na bacia. Mas, à noite, Fevereiro era fresco e profundo, e ouviam‑se por toda a aldeia as vozes das mulheres cantando nos velórios das crianças.

     Na noite em que fomos ao velório do menino de Paloquemado, devia ouvir‑se melhor do que nunca a voz de Meme Orozco. Era magra, desajeitada e rija como uma vassoura, mas sabia colocar a voz melhor que ninguém. E, na primeira pausa, Genoveva García disse: «Está lá fora sentado um forasteiro.» Creio que todas parámos de cantar, menos Remédios Orozco. «Imagina que veio de casaco», disse Genoveva García. «Tem estado toda a noite a falar, e os outros ouvem‑no sem tugir nem mugir. Tem um casaco de quatro botões e cruza a perna e usa meias com ligas e botas de ilhoses.» Ainda Meme Orozco não tinha parado de cantar, já nós batíamos palmas e dizíamos: «Vamos casar‑nos com ele.»

     Depois, quando em casa pensava nele, não encontrava nenhuma correspondência entre aquelas palavras e a realidade. Era como se tivessem sido ditas por um grupo de mulheres imaginárias que batiam palmas e cantavam numa casa onde morrera uma criança irreal. Outras mulheres fumavam ao nosso lado. Estavam sérias, vigilantes, os longos pescoços de galináceo estendidos para nós. Atrás, na frescura da ombreira, outra mulher, envolta até à cabeça num enorme lenço preto, esperava que o café fervesse. De repente, uma voz masculina tinha‑se juntado às nossas. Ao princípio era desafinada e sem direcção. Mas depois foi vibrante e metálica, como se o homem estivesse a cantar na igreja. Veva García dera‑me uma cotovelada nas costelas. Então ergui os olhos e vi-o pela primeira vez. Era jovem e limpo, com o colarinho engomado e o casaco abotoado nas quatro casas. E estava a olhar para mim.

     Eu ouvia falar do seu regresso em Dezembro e pensava que não havia sítio mais apropriado para ele do que o quartinho fechado. Mas já não o achava possível. Dizia a mim própria: «Martín, Martín, Martín.» E o nome, examinado, saboreado, desmontado nas suas partes essenciais, perdia todo o significado.

     Ao sair do velório, ele agitara diante de mim uma chávena vazia. Dissera: «Li a sua sina no café.» Eu ia a caminho da porta, entre as outras raparigas, e ouvi a voz dele, funda, plácida, convincente: «Conte sete estrelas e sonhará comigo.» Ao passar junto à porta, vimos o menino de Paloquemado na urnazinha, a cara coberta de pó de arroz, uma rosa na boca e os olhos abertos com palitos. Fevereiro enviava‑nos tépidas golfadas da sua morte, e no quarto flutuava o bafo dos jasmins e das violetas queimadas pelo sol. Mas, no silêncio do morto, a outra voz era constante e única: «Lembre‑se bem. Sete estrelas, só sete estrelas.»

     Em Julho estava em nossa casa. Gostava de se encostar aos vasos do varandim. Dizia: «Lembra‑te de que nunca te olhava nos olhos. É o segredo do homem que começou a sentir medo de se apaixonar.» E a verdade é que não me lembrava dos seus olhos. Não teria sido capaz de dizer, em Julho, de que cor tinha as pupilas o homem com quem me ia casar em Dezembro. Todavia, seis meses antes, Fevereiro era apenas um profundo silêncio ao meio‑dia, um casal de centopeias, macho e fêmea, enroscadas no chão da casa de banho; a mendiga das terças‑feiras pedindo um raminho de erva‑cidreira, e ele, empertigado, sorridente, com o casaco abotoado até cima, dizendo: «Vou pô‑la a pensar em mim a todas as horas. Pus um retrato seu atrás da porta e espetei‑lhe alfinetes nos olhos.» E Genoveva García, morta de riso: «São palermices que os homens aprendem com os guajiros.»

     No fim de Março iria a nossa casa de passagem. Gastaria longas horas no escritório com o meu pai, convencendo‑o da importância de algo que nunca consegui decifrar. Agora passaram onze anos desde o meu casamento; nove desde que o vi dizendo‑me adeus à janela do comboio, fazendo‑me prometer que trataria muito bem da criança enquanto não regressasse. Haviam de passar estes nove anos sem que voltássemos a saber nada dele, sem que o meu pai, que o ajudou a fazer os preparativos dessa viagem sem fim, tenha voltado a dizer uma palavra a respeito do seu regresso. Mas nem sequer nos três anos que durou o nosso casamento foi mais concreto e palpável do que no velório do menino de Paloquemado, ou naquele domingo de Março em que o vi pela segunda vez, quando voltávamos da igreja, Veva García e eu. Estava parado à porta do hotel, sozinho, com as mãos nos bolsos do seu casaco de quatro botões. Disse: «Agora há‑de pensar em mim toda a vida, porque os alfinetes já caíram do retrato.» Disse‑o com a voz tão apagada e tensa que parecia verdade. Mas até aquela verdade era diferente e estranha. Genoveva insistia: «São invenções dos guajiros.» Três meses depois, Veva fugiu com o director de uma companhia de saltimbancos, mas naquele domingo parecia ainda muito escrupulosa e séria. Martín disse: «Tranquiliza‑me saber que alguém se lembrará de mim em Macondo.» E Genoveva García, olhando para ele, com o rosto transtornado pela raiva, disse:

     «Mafarificafá! Há‑de apodrecer‑lhe em cima esse casaco de quatro botões.»

    

     Embora ele tivesse esperado o contrário, era um personagem estranho na aldeia, apático apesar dos seus evidentes esforços por parecer sociável e cordial. Vivia entre o povo de Macondo, mas distanciado dele pela recordação de um passado contra o qual parecia inútil qualquer tentativa de rectificação. Olhavam para ele com curiosidade, como para um animal bisonho que tivesse permanecido muito tempo à sombra e que reaparecesse com um comportamento que a aldeia não podia deixar de considerar como postiço e, por isso mesmo, suspeito.

     Voltava da barbearia ao anoitecer e fechava‑se no quarto. Desde há algum tempo que suprimira a refeição da noite, e ao princípio tivemos a impressão de que voltava cansado e ia directamente para a rede, dormir até ao dia seguinte. Mas não tardou muito que me apercebesse de que se passava algo extraordinário com as suas noites. Ouvíamo‑lo mexer‑se no quarto com uma atormentada e enlouquecedora insistência, como se nessas noites recebesse o fantasma do homem que fora até então, e ambos, o homem passado e o homem presente, se empenhassem numa surda batalha em que o homem passado defendia a sua raivosa solidão, o seu invulnerável aprumo, os seus hábitos intransigentes, e o homem presente, a sua terrível e inalterável vontade de se libertar do seu homem anterior. Ouvia‑o dar voltas no quarto até de madrugada, até que o próprio cansaço esgotava a força do seu adversário invisível.

     Só me apercebi da verdadeira dimensão da sua mudança quando deixou de usar as polainas e começou a tomar banho todos os dias e a perfumar a roupa com água‑de‑colónia. E, poucos meses depois, a sua transformação tinha chegado ao limite em que o meu sentimento em relação a ele deixou de ser uma simples tolerância compreensiva para se transformar em compaixão. Não era o seu novo aspecto na rua que me comovia. Era imaginá‑lo durante a noite fechado no quarto, raspando a lama das botas, molhando o trapo no lavatório, engraxando os sapatos deteriorados por vários anos de uso contínuo. Comovia‑me pensar na escova e na caixinha da graxa guardadas debaixo da esteira, subtraídas aos olhos do mundo, como se fossem os elementos de um vício secreto e vergonhoso contraído numa idade em que a maioria dos homens se tornam serenos e metódicos. Estava a viver, na prática, uma tardia e estéril adolescência, e esmerava‑se no vestir como um adolescente, com a roupa todas as noites alisada com as mãos, a frio, e sem ser suficientemente jovem para ter um amigo a quem comunicasse as suas esperanças e os seus desencantos.

     Também a aldeia se deve ter apercebido da sua mudança, porque pouco tempo depois começou a dizer‑se que estava apaixonado pela filha do barbeiro. Não sei se haveria algum fundamento nesse rumor, mas o certo é que me fez reparar na sua tremenda solidão sexual, na fúria biológica que devia atormentá‑lo naqueles anos de sordidez e abandono.

     Todas as tardes o víamos ir até à barbearia, cada vez mais esmerado no vestir. A camisa de colarinho postiço, os punhos com botões dourados e as calças limpas e engomadas, só que ainda com o cinto por fora das presilhas. Parecia um noivo angustiadamente ataviado envolto na exalação das loções baratas, o eterno noivo frustrado, o amador crepuscular a quem faltaria sempre o ramo de flores para a primeira visita.

     Assim o surpreenderam os primeiros meses de 1909, sem que continuasse a existir outro fundamento para os rumores da aldeia que não fosse o facto de o verem todas as tardes sentado na barbearia, mas sem que ninguém pudesse afirmar ter visto, uma vez sequer, a filha do barbeiro. Descobri a crueldade desses boatos. Ninguém na aldeia ignorava que a filha do barbeiro continuava solteira depois de ter sofrido durante um ano inteiro a perseguição de um espírito, um amante invisível que lhe deitava punhados de terra na comida e turvava a água da talha e embaciava os espelhos da barbearia e lhe batia até lhe pôr o rosto verde e desfigurado. Foram os esforços de El Cachorro, os estolaços, a complexa terapêutica da água benta, as relíquias sagradas e os salmos administrados com dramática solicitude. Como último recurso, a mulher do barbeiro fechou a filha enfeitiçada no quarto, espalhou punhados de arroz pela sala e entregou‑a ao amante invisível numa lua‑de‑mel solitária e morta, depois da qual até os homens de Macondo disseram que a filha do barbeiro tinha engravidado.

     Ainda não passara um ano, deixou de esperar‑se o monstruoso acontecimento do seu parto, e a curiosidade popular orientou‑se no sentido de que o médico estava apaixonado pela filha do barbeiro, apesar de toda a gente estar convencida de que a enfeitiçada se fecharia no quarto, a esvair‑se em vida muito antes de os seus possíveis pretendentes se transformarem em homens casadoiros.

     Por isso eu sabia que, mais do que uma fundamentada suposição, se tratava de um rumor cruel, malevolamente premeditado. No fim de 1909, ele continuava a frequentar a barbearia e a aldeia continuava a falar, organizando o casamento, sem que ninguém pudesse dizer que a rapariga tenha alguma vez saído estando ele presente, nem que tivessem tido qualquer oportunidade de trocar uma palavra.

     Num Setembro abrasador e morto como este, há treze anos, a minha madrasta começou a fazer o meu vestido. Todas as tardes, enquanto o meu pai dormia a sesta, sentávamo‑nos a costurar ao pé dos vasos de flores do varandim, junto da ardente exalação do alecrim. Setembro foi assim toda a vida, desde há treze anos e muito mais. Como o meu casamento havia de realizar‑se em cerimónia íntima (pois assim o decidira o meu pai), cosíamos com lentidão, com a cuidadosa minúcia de quem não tem pressa e encontrou no seu trabalho a melhor medida para o seu tempo. Então falávamos. Eu continuava a pensar no quartinho que dava para a rua, acumulando coragem para dizer à minha madrasta que era o melhor sítio para instalar Martín. E nessa tarde disse‑lho.

     A minha madrasta estava a coser a longa cauda de tule, e dava a impressão, à luz ofuscante daquele Setembro intoleravelmente claro e sonoro, de estar submersa até aos ombros numa nuvem desse mesmo Setembro. «Não», disse a minha madrasta. E depois, voltando ao seu trabalho, sentindo passarem‑lhe diante dos olhos oito anos de recordações amargas: «Não permita Deus que alguém torne a entrar nesse aposento.»

     Martín voltara em Julho, mas não se tinha hospedado lá em casa. Gostava de se encostar aos vasos do varandim e de ficar a olhar para o outro lado. Gostava de dizer: «Ficaria a viver em Macondo para toda a vida.» De tarde íamos com a minha madrasta às plantações. Regressávamos à hora do jantar, antes de se acenderem as luzes da aldeia. Então dizia‑me: «Mesmo que não fosse por ti, ainda assim ficaria a viver em Macondo.» E também aquilo, da maneira como o dizia, parecia verdade.

     Por esse tempo fazia quatro anos que o médico tinha deixado a nossa casa. E foi precisamente na tarde em que começámos a coser o vestido de noiva ‑ nessa tarde sufocante em que lhe falei no quartinho para Martín ‑ que a minha madrasta me falou pela primeira vez dos seus estranhos costumes.

     «Há cinco anos», disse, «ainda ali estava, fechado como um animal. Porque não era só isso: um animal, mas qualquer coisa mais: um animal herbívoro, um ruminante como qualquer boi de junta. Se se tivesse casado com a filha do barbeiro, com a mosquinha morta que fez a aldeia acreditar nessa grande mentira de que tinha concebido depois de uma duvidosa lua‑de‑mel com os espíritos, é possível que nada disto tivesse acontecido. Mas deixou de ir à barbearia intempestivamente, e até apresentou uma transformação de última hora que não passava de um novo capítulo na realização metódica do seu espantoso plano. Só ao teu pai é que lhe pôde passar pela cabeça que depois disso, sendo um homem de tão baixos costumes, pudesse permanecer em nossa casa, vivendo como um animal, escandalizando a aldeia, dando motivos para que se falasse de nós como de quem pratica um permanente desafio à moral e aos bons costumes. O que ele estava a planear havia de culminar com a mudança de Meme. Mas o teu pai nem sequer reconheceu as alarmantes proporções do seu erro.»

     «Não sabia nada disso», disse. As cigarras faziam uma barulheira no pátio. A minha madrasta falava, sem deixar de coser, sem levantar a vista do bastidor sobre o qual estava a gravar símbolos, a bordar labirintos brancos. Dizia: «Nessa noite estávamos sentados à mesa (todos menos ele, porque desde a tarde em que voltou pela última vez da barbearia que não tomava a refeição da noite), quando Meme nos veio servir. Estava alterada. «Que tens, Meme?»', perguntei‑lhe. «Nada, senhora. Porquê?»' Mas sabíamos que não estava bem, porque vacilava junto do candeeiro e toda ela tinha um aspecto doentio. «Por amor de Deus, Meme, tu não estás bem»', disse eu. E ela lá se aguentava nas pernas, como lhe era possível, até que se voltou na direcção da cozinha, com a bandeja na mão. Então o teu pai, que não parava de a observar, disse‑lhe: «Se não se sente bem, que se deite.»' E ela não disse nada. Continuou com a bandeja na mão, de costas para nós, até que sentimos o estrépito da louça a fazer‑se em cacos. Meme estava na varanda, agarrando‑se à parede com as unhas. Foi então que o teu pai o foi chamar a esse quarto, para que se ocupasse de Meme.

     Em oito anos de estadia em nossa casa», dizia a minha madrasta, «nunca tínhamos solicitado os seus serviços para nada de grave. Nós, as mulheres, fomos ao quarto de Meme, friccionámo‑la com álcool, e esperámos que o teu pai voltasse. Mas não vieram, Isabel. Não veio ver Meme, apesar de o homem que o alimentou durante oito anos, que lhe deu cama e roupa lavada, o ter ido chamar pessoalmente. Cada vez que me lembro disso, penso que a sua chegada foi um castigo de Deus. Penso que toda essa erva que lhe demos durante oito anos, todos esses cuidados, toda essa solicitude foram uma prova de Deus para nos dar uma lição de prudência e desconfiança do mundo. Era como se tivéssemos pegado em oito anos de hospitalidade, de comida, de roupa limpa, e os tivéssemos atirado aos porcos. Meme estava a morrer (pelo menos era o que nós julgávamos) e ele, ali mesmo, continuava fechado, negando‑se a praticar o que já não era uma obra de caridade, mas de decência, de gratidão, de simples consideração para com os seus protectores.

     Só à meia‑noite é que o teu pai chegou», continuava. «Disse vagamente: «Dêem‑lhe fricções com álcool, mas não a purguem.»' E para mim foi como se me tivesse esbofeteado. Meme tinha reagido com as nossas fricções. Enfurecida, gritei: «Álcool, pois claro. Já a friccionámos e está melhor. Mas para fazer isso não precisámos de viver oito anos à custa de ninguém.»' E o teu pai, ainda condescendente, ainda com essa palermice conciliatória: «Não é nada de sério. Um dia hás‑de perceber isso.»' Como se o outro fosse adivinho.»

     Nessa tarde, pela veemência da sua voz, pela exaltação das suas palavras, era como se a minha madrasta estivesse a viver de novo os episódios daquela noite remota em que o médico se recusou a tratar Meme. O alecrim parecia asfixiado pela ofuscante claridade de Setembro, pelo torpor das cigarras, pelo arfar dos homens que tentavam desmontar uma porta na vizinhança.

     «Mas um daqueles domingos, Meme foi à missa aperaltada como uma senhora da alta», disse. «Lembro‑me, como se fosse hoje, de que tinha uma sombrinha de muitas cores.

     Meme, Meme. Também foi um castigo de Deus. Nisso de a termos tirado aos pais, que a matavam à fome, de nos termos encarregado dela, dando‑lhe tecto, alimentação e nome, nisso também interveio a mão da Providência. Quando a vi à porta no dia seguinte, à espera que um dos guajiros lhe levasse o baú, nem eu própria sabia para onde ia. Estava transformada e séria, (parece‑me que a estou a ver), parada ao pé do baú, a falar com o teu pai. Tudo se fez sem me consultarem, filha; como se eu fosse um boneco pintado na parede. Antes que eu pudesse perguntar o que é que se estava a passar, porque é que estavam a acontecer coisas estranhas na minha própria casa sem eu saber, o teu pai tinha‑me vindo dizer: «Não tens nada que perguntar a Meme. Ela vai‑se embora, mas talvez volte daqui a algum tempo.»' Perguntei‑lhe para onde ia, e não me respondeu. Foi‑se embora a arrastar os socos, como se eu não fosse a mulher dele, mas sim um fantoche pintado na parede.

     Só dois dias depois», dizia, «é que soube que o outro se tinha ido embora de madrugada e nem sequer tivera a decência de se despedir. Tinha entrado sem dizer água vem e oito anos depois saía sem dizer água vai, sem se despedir, sem dizer nada. Tal qual como teria feito um ladrão. Pensei que o teu pai o tinha mandado embora por se ter negado a tratar Meme. Mas quando lho perguntei, nesse mesmo dia, limitou‑se a responder: «Tu e eu temos muito que conversar sobre isso.»' E já lá vão cinco anos, e até hoje não voltou a tocar‑me no assunto.

     Só com o teu pai e numa casa desordenada como esta, em que cada qual faz o que muito bem entende, é que podia acontecer uma coisa assim. Em Macondo não se falava de outra coisa e ainda eu ignorava que Meme se tinha apresentado na igreja, enfeitada como uma qualquer armada em senhora, e que o teu pai tinha tido o descaramento de a levar de braço dado pela praça. Foi então que soube que não estava tão longe como eu julgava, e que vivia na casa da esquina com o médico. Tinham ido viver juntos, como dois porcos, sem passarem sequer pela porta da igreja, apesar de ela ser baptizada. Um dia disse ao teu pai: «Deus há‑de castigar esta heresia.»' E ele não disse nada. Continuava a ser o mesmo homem tranquilo de sempre, depois de ter apadrinhado o concubinato público e o escândalo.

     Contudo, agora estou satisfeita por as coisas se terem passado daquela maneira, em troca de o médico ter deixado a nossa casa. Se aquilo não tivesse acontecido, ainda estaria ali no quartinho. Mas quando soube que o tinha abandonado e que levava para a casa da esquina os seus trastes e aquele baú que não cabia pela porta da rua, senti‑me mais tranquila. Era o meu triunfo, oito anos adiado.

     Duas semanas depois, Meme tinha aberto a loja e até tinha máquina de coser. Tinha comprado uma Domestic nova, com o dinheiro que ele acumulou nesta casa. Eu considerava aquilo como uma afronta, e assim o disse ao teu pai. Mas, embora ele não respondesse aos meus protestos, via‑se que, mais do que arrependido, estava satisfeito com a sua obra, como se tivesse salvo a sua alma opondo às conveniências e à honra desta casa a sua proverbial tolerância, a sua compreensão, a sua liberalidade. E até um pouco de insensatez. Disse‑lhe: «Deitaste aos porcos o melhor das tuas crenças.»' E ele, como sempre: «Também hás‑de perceber isso, um dia»'.»

    

     Dezembro chegou como uma Primavera imprevista, como foi escrito num livro. E com ele chegou Martín. Apareceu em nossa casa a seguir ao almoço, com uma mala de lona, sempre com o casaco de quatro botões, agora limpo e engomado de fresco. Nada me disse, porque foi directamente para o escritório do meu pai, conversar com ele. A data do casamento fora fixada para Julho. Mas dois dias depois da chegada de Martín, em Dezembro, o meu pai chamou a minha madrasta ao escritório para lhe dizer que o casamento devia realizar‑se segunda‑feira. Era sábado.

     O meu vestido estava pronto. Martín estivera lá em casa todos os dias, falava com o meu pai e este comunicava‑nos as suas impressões à hora das refeições. Eu não conhecia o meu noivo. Não estivera sozinha com ele em nenhuma ocasião. No entanto, Martín parecia ligado ao meu pai por uma profunda e sólida amizade, e este falava dele como se fosse ele e não eu quem ia casar com Martín.

     Eu não sentia nenhuma emoção perante a proximidade do meu casamento. Continuava envolta naquela nuvem cinzenta através da qual Martín chegava, direito e abstracto, gesticulando ao falar, abotoando e desabotoando o seu casaco de quatro botões. No domingo almoçou connosco. A minha madrasta dispôs os lugares à mesa de maneira que Martín ficasse ao pé do meu pai, três lugares separado de mim. Durante o almoço, a minha madrasta e eu trocámos muito poucas palavras. O meu pai e Martín conversavam sobre os seus negócios; e eu, sentada a três lugares dele, olhava para o homem que daí a um ano seria o pai do meu filho e a quem não me ligava sequer uma amizade superficial.

     No domingo à noite provei o vestido de noiva, no quarto da minha madrasta. Via‑me ao espelho pálida e pura, envolta na poalha de tule que me fazia lembrar o fantasma da minha mãe. Dizia para mim, frente ao espelho: :Aquela sou eu, Isabel. Estou vestida de noiva, para me casar de madrugada. E desconhecia‑me a mim própria; sentia‑me desdobrada no retrato da minha mãe morta. Meme falara‑me dela, nesta casa de esquina, poucos dias antes. Disse‑me que depois do meu nascimento vestiram a minha mãe com o seu vestido de noiva e puseram‑na no caixão. E agora, ao ver‑me ao espelho, via os ossos da minha mãe cobertos pelo verdete sepulcral, por entre um montão de tule rasgado e uma massa de pó amarelo. Eu estava fora do espelho. Lá dentro estava a minha mãe, de novo viva, a olhar para mim, estendendo‑me os braços do seu espaço gelado, tentando tocar a morte que prendia os primeiros alfinetes da minha coroa de noiva. E atrás, no meio do quarto, o meu pai, sério, perplexo: «Agora está igualzinha a ela, com esse vestido.»

     Nessa noite recebi a primeira, a última e a única carta de amor. Uma mensagem de Martín escrita a lápis nas costas de um programa de cinema. Dizia: Como me será impossível chegar a tempo hoje à noite, confessar‑me‑ei de madrugada. Diga ao coronel que o combinado está quase conseguido e que por isso não posso ir agora.

     Muito assustada? M. Fui para o quarto com o ácido sabor desta carta e ainda tinha o céu da boca amargo quando acordei, poucas horas depois, sacudida pela minha madrasta.

     Mas na realidade passaram muitas horas até acordar por completo. Sentia‑me outra vez com o vestido de noiva, numa manhã fresca e húmida, cheirando a almíscar. Sentia uma secura na boca, como quando partimos de viagem e a saliva se recusa a humedecer o pão. Os padrinhos estavam na sala desde as quatro. Eu conhecia‑os a todos, mas agora via‑os diferentes e novos, os homens com fatos de lã e as mulheres a falarem, com os chapéus postos, enchendo a casa com o bafo denso e enervante das suas palavras.

     A igreja estava vazia. Algumas mulheres voltaram‑se para olhar para mim quando atravessei a nave central, como um mancebo sagrado a caminho da pedra dos sacrifícios. El Cachorro, magro e digno, a única pessoa que tinha contornos de realidade naquele turbulento e silencioso pesadelo, desceu pelo locutório e entregou‑me a Martín com quatro movimentos das suas mãos esquálidas. Martín estava a meu lado, tranquilo e sorridente, como o vira no velório do menino de Paloquemado, mas agora com o cabelo curto, como para me demonstrar que no próprio dia do casamento se esmerara em ser ainda mais abstracto do que já era naturalmente nos dias normais.

     Nessa madrugada, já de regresso a casa, depois de os padrinhos terem tomado o pequeno‑almoço e proferido as frases habituais, o meu marido saiu e só voltou a seguir à sesta. O meu pai e a minha madrasta fingiram não se aperceber da minha situação. Deixaram passar o dia sem alterar a ordem das coisas, de maneira que nada permitisse sentir o sopro extraordinário daquela segunda‑feira. Tirei o vestido de noiva, fiz com ele uma trouxa e guardei‑o no fundo do roupeiro, lembrando‑me da minha mãe, pensando: Pelo menos estes trapos hão‑de servir‑me de mortalha.

     O marido irreal regressou às duas da tarde e disse que tinha almoçado. Então pareceu‑me, ao vê‑lo chegar, com o cabelo cortado, que Dezembro tinha deixado de ser um mês azul. Martín sentou‑se a meu lado e estivemos um momento sem falar. Pela primeira vez desde o meu nascimento, senti medo de que começasse a anoitecer. Devo tê‑lo expressado de alguma maneira, porque de repente Martín pareceu viver, inclinou‑se sobre o meu ombro e disse: «Em que é que estás a pensar?» Eu senti que alguma coisa se torcia no meu coração: o desconhecido começava a tratar‑me por tu. Olhei para cima, para onde Dezembro era uma gigantesca bola brilhante, um luminoso mês de vidro. Disse: «Estou a pensar que agora só faltava que começasse a chover.»

     Na última noite em que falámos na varanda, fazia mais calor que de costume. Daí a poucos dias, ele regressaria para sempre da barbearia e fechar‑se‑ia no quarto. Mas naquela última noite da varanda, uma das mais cálidas e densas que a minha memória retém, mostrou‑se compreensivo, como em muito poucas ocasiões. A única coisa que parecia viver, no meio daquele forno imenso, era a surda reverberação dos grilos alvoroçados pela sede da natureza, e a minúscula, insignificante e todavia desmedida actividade do alecrim e do nardo, ardendo no tempo parado. Ambos permanecemos calados um instante, suando essa substância gorda e viscosa que não é suor, mas sim a baba solta da matéria viva em decomposição. Às vezes ele olhava para as estrelas, para o céu desolado à força de esplendor estival; depois permanecia silencioso, como inteiramente entregue à azáfama daquela noite monstruosamente viva. Permanecemos assim, pensativos, frente a frente, ele na sua cadeira de couro, eu na de baloiço. De repente, à passagem de uma asa branca, vi-o com a cabeça triste inclinada sobre o ombro esquerdo. Recordei a sua vida, a sua solidão, as suas espantosas perturbações espirituais. Recordei a indiferença atormentada com que assistia ao espectáculo da vida. Antes sentira‑me ligado a ele por sentimentos complexos, por vezes contraditórios e tão variáveis como a sua personalidade. Mas, naquele momento, não tive a menor dúvida de que começara a estimá‑lo profundamente. Julguei descobrir dentro de mim essa misteriosa força que desde o primeiro momento me induziu a protegê‑lo, e senti em carne viva a dor do seu quartinho sufocante e escuro. Vi‑o sombrio e derrotado, esmagado pelas circunstâncias. E subitamente, a um novo relancear dos seus duros e penetrantes olhos amarelos, tive a certeza de que o segredo da sua labiríntica solidão me tinha sido revelado pela tensa pulsação da noite. Antes de eu próprio ter tido tempo de pensar porque o fazia, perguntei‑lhe:

     «Diga‑me uma coisa, doutor: o senhor acredita em Deus?»

     Ele olhou para mim. O cabelo caía‑lhe sobre a testa e todo ele ardia numa espécie de sufocação interior, mas o seu semblante não apresentava qualquer sombra de emoção ou desordem. Disse, inteiramente recuperada a sua parcimoniosa voz de ruminante:

     «É a primeira vez que alguém me faz essa pergunta.»

     «E o senhor, alguma vez a fez a si próprio?»

     Não pareceu indiferente nem preocupado. Pareceu apenas interessado na minha pessoa. Nem sequer na minha pergunta, e muito menos na sua intenção.

     «É difícil saber», disse.

     «Mas não lhe provoca temor uma noite como esta? Não tem a sensação de que há um homem maior do que todos caminhando pelas plantações, enquanto tudo se imobiliza e todas as coisas parecem estáticas à passagem do homem?»

     Então ficou calado. Os grilos enchiam o espaço, para além do cheiro tépido, vivo e quase humano que se desprendia do jasmineiro semeado em memória da minha primeira esposa. Um homem sem dimensões caminhava, sozinho, através da noite.

     «Pode crer que nada disso me perturba, coronel.» E agora parecia estático, também ele, como as coisas, como o alecrim e o nardo sob o calor ardente. «O que me desconcerta», disse, e ficou a olhar‑me nos olhos, concretamente, com dureza, «o que me desconcerta é que exista uma pessoa como o senhor, capaz de afirmar com segurança que se apercebe desse homem que caminha na noite.»

     «Nós procuramos salvar a alma, doutor. A diferença é essa.» E então fui mais longe do que me propunha. Disse: «O senhor não o ouve porque é ateu.»

     E ele, sereno, imperturbável:

     «Creio que não sou ateu, coronel. O que acontece é que me perturba tanto pensar que Deus existe como pensar que não existe. Por isso prefiro não pensar nisso.»

     Não sei porquê, tinha o pressentimento de que era exactamente aquilo que me ia responder. É um desencontrado de Deus, pensei, ouvindo o que ele acabava de me dizer espontaneamente, com clareza, com precisão, como se o tivesse lido num livro. Seguia‑o embriagado pelo torpor da noite. Sentia‑me metido no coração de uma imensa galeria de imagens proféticas.

     Ali, do outro lado do varandim, estava o jardinzinho que Adelaida e a minha filha cultivavam. Por isso o alecrim ardia, porque elas o fortaleciam todas as manhãs com os seus cuidados, para que numa noite como aquela o seu ardente vapor circulasse pela casa e tornasse o sono mais repousado. O jasmineiro exalava o seu insistente bafo e nós recebíamo‑lo porque tinha a idade de Isabel, porque de certa maneira aquele cheiro era um prolongamento da mãe dela. Os grilos estavam no pátio, entre os arbustos, porque nos esquecemos de limpar as ervas daninhas quando deixou de chover. A única coisa incrível, fantástica, era que ele estava ali, com o seu lenço enorme e ordinário, enxugando a testa brilhante de suor.

     Depois de nova pausa, disse:

     «Gostaria de saber porque me fez essa pergunta, coronel.»

     «Ocorreu‑me de repente», disse eu. «Talvez porque há sete anos que queria saber o que pensa um homem como o senhor.»

     Também eu enxugava o suor. Continuei: «Ou talvez porque me preocupo com a sua solidão.» Esperei uma resposta que não veio. Vi‑o diante de mim, ainda triste e só. Recordei Macondo, a loucura da sua gente, que queimava notas nas festas; a revoada sem direcção, que tudo desprezava, que chafurdava no seu lameiro de instintos e encontrava na dissipação o sabor desejado. Recordei a vida dele antes de chegar a revoada. E a sua vida posterior, os seus perfumes baratos, os seus velhos sapatos engraxados, o rumor que o perseguia como uma sombra que ele próprio ignorava.

     Disse‑lhe: «Doutor, o senhor nunca pensou em ter uma mulher?»

     E ainda eu não concluíra a pergunta, já ele estava a responder, dando início a um dos seus longos e habituais rodeios:

     «O senhor gosta muito da sua filha, coronel, não é assim?»

     Respondi que isso era natural. Ele continuou a falar:

     «Bom. Mas o senhor é diferente. Ninguém gosta mais do que o senhor de pregar os seus próprios pregos. Eu vi-o a pôr dobradiças numa porta, quando há vários homens ao seu serviço que o poderiam fazer. Gosta disso. Creio que a sua felicidade consiste em andar por casa com uma caixa de ferramentas, à procura de qualquer coisa para arranjar. O senhor é capaz de agradecer que alguém lhe estrague as dobradiças, coronel. Agradece porque vê nisso uma oportunidade para ser feliz.»

     «É um costume meu», disse, sem saber onde é que ele queria chegar. «Dizem que a minha mãe era igual.»

     Ele reagira. A sua atitude era pacífica, mas férrea.

     «Muito bem», disse. «É um bom costume. E além disso é a felicidade menos cara que conheci. Por essa razão tem uma casa como a que tem e criou a sua filha dessa forma. Digo que deve ser bom ter uma filha como a sua.»

     Eu continuava a ignorar a finalidade daquele longo rodeio. Mas, mesmo ignorando‑a, perguntei:

     «E o senhor, nunca pensou como seria bom para si ter uma filha?»

     «Eu não, coronel», disse. E sorriu, mas tornou logo a pôr‑se sério.

     «Os meus filhos não seriam como os seus.»

     Então não me restou a menor sombra de dúvida: ele falava a sério, e aquela seriedade, aquela situação pareceram‑me espantosas. Pensava: É mais digno de lástima por isto do que por tudo o resto. Tinha de ser protegido.

     «O senhor ouviu falar de El Cachorro?», perguntei‑lhe.

     Respondeu que não. Eu disse: «El Cachorro é o pároco; mas, mais do que isso, é um amigo de toda a gente. O senhor deve conhecê‑lo.»

     «Ah, sim, sim», disse ele. «Ele também tem filhos, não é?»

     «Não é isso que me interessa agora», respondi. «O povo inventa histórias sobre El Cachorro porque gosta muito dele. Mas ali tem o senhor um caso, doutor. El Cachorro está muito longe de ser um beato, um rato de sacristia, como se diz. É um homem completo, que cumpre os seus deveres como um homem.» agora ouvia com muita atenção. Permanecia silencioso, concentrado, os seus duros olhos amarelos fixos nos meus. Disse: «Isso é bom, não?»

     «Creio que El Cachorro há‑de ser santo», disse eu. E também nisso era sincero. «Nunca tínhamos visto em Macondo nada igual. Ao princípio desconfiaram dele por ser daqui, porque os velhos se lembram dele quando ia apanhar pássaros como todos os rapazes. Lutou na guerra, foi coronel, e isso era uma dificuldade. O senhor sabe que não respeitam os veteranos pelas mesmas razões por que respeitamos os sacerdotes. Além disso, não estávamos acostumados a que nos lessem o almanaque Bristol, em vez dos Evangelhos.»

     Sorriu. Aquilo devia parecer‑lhe tão engraçado como a nós durante os primeiros dias. Disse: «É curioso, não é?»

     «El Cachorro é assim. Prefere orientar o povo para os fenómenos atmosféricos. Tem uma preocupação quase teológica com as tempestades. Todos os domingos fala delas. E por isso a sua prédica não se baseia nos Evangelhos, mas sim nas previsões atmosféricas do almanaque Bristol.»

     Agora estava sorridente e escutava com uma atenção viva e satisfeita. Eu também me sentia entusiasmado. Disse: «Há ainda uma coisa que lhe interessa saber, doutor. Sabe desde quando está El Cachorro em Macondo?»

     Ele disse que não.

     «Chegou por acaso no mesmo dia que o senhor», disse eu. «E uma coisa ainda mais curiosa: se o senhor tivesse um irmão mais velho, tenho a certeza de que seria igual a El Cachorro. Fisicamente, claro.»

     Agora não parecia pensar noutra coisa. Notei pela sua seriedade, pela sua atenção concentrada e tenaz, que tinha chegado o momento de lhe dizer o que me propunha:

     «Pois bem, doutor», disse. «Faça uma visita a El Cachorro e verá que as coisas não são como o senhor as vê.»

     E ele disse que sim, que iria visitar El Cachorro.

    

     Frio, silencioso, dinâmico, o cadeado fabrica a sua ferrugem. Adelaida pô‑lo no quartinho quando soube que o médico veio viver para aqui com Meme. A minha mulher considerou aquela mudança como um triunfo seu, como o apogeu de um trabalho sistemático, tenaz, iniciado por ela desde o exacto momento em que eu decidi que ele viesse viver connosco. Dezassete anos depois, o cadeado continua a guardar o quarto.

     Se na minha atitude, inalterável durante oito anos, houve algo de indigno aos olhos dos homens, ou de ingrato aos de Deus, o meu castigo haveria de chegar muito antes da minha morte. Talvez me coubesse expiar em vida o que considerei como um dever humanitário, uma obrigação cristã. Porque ainda a ferrugem não tinha começado a acumular‑se no cadeado quando Martín chegou a minha casa com uma pasta recheada de projectos, de cuja autenticidade nada consegui saber, e a firme disposição de se casar com a minha filha. Chegou a minha casa com um casaco de quatro botões, segregando juventude e dinamismo por todos os poros, envolto numa luminosa aura de simpatia. Casou com Isabel em Dezembro, faz agora onze anos. Passaram nove desde que se foi embora, com a pasta cheia de obrigações assinadas por mim, e prometendo voltar assim que realizasse a operação que se propusera e para a qual contava com a garantia dos meus bens. Passaram nove anos, mas isso não me dá o direito de pensar que ele era um vigarista. Não tenho o direito de pensar que o seu casamento não foi mais do que um ardil para me convencer da sua boa‑fé.

     Mas oito anos de experiência tinham servido para alguma coisa. Martín deveria ter ocupado o quartinho. Adelaida opôs‑se. Dessa vez a sua oposição fora férrea, decidida, inabalável. Eu sabia que a minha mulher não teria hesitado em transformar a cavalariça num quarto nupcial, tudo menos permitir que os recém‑casados ocupassem o quartinho. Dessa vez aceitei sem vacilar o seu ponto de vista. Era o meu reconhecimento do seu triunfo, adiado durante oito anos. Se ambos nos enganámos ao confiar em Martín, foi um erro partilhado. Não há triunfo nem derrota para nenhum dos dois. Todavia, o que viria a seguir estava para além das nossas forças, era como os fenómenos atmosféricos anunciados no almanaque, que hão‑de cumprir‑se fatalmente.

     Quando disse a Meme que abandonasse a nossa casa, que seguisse o rumo que considerasse mais conveniente para a sua vida; e mesmo depois, embora Adelaida me tenha lançado à cara as minhas debilidades e fraquezas, consegui rebelar‑me, impor a minha vontade a tudo e a todos (sempre assim fora) e organizar as coisas à minha maneira. Mas algo me dizia que era impotente perante o curso que os acontecimentos iam tomando. Não era eu quem decidia as coisas no meu lar, mas sim outra força misteriosa, que organizava o curso da nossa existência e da qual não passávamos de um dócil e insignificante instrumento. Tudo parecia obedecer então ao natural e escalonado cumprimento de uma profecia.

     Pela maneira como Meme abriu a taberna (no fundo, toda a gente devia saber que uma mulher laboriosa, que da noite para o dia passa a ser concubina de um médico de província, mais tarde ou mais cedo acaba atrás de um balcão), vi que ele tinha conseguido acumular em nossa casa maior quantidade de dinheiro do que poderia imaginar‑se, e que o tinha na gaveta, em notas e moedas em que não tocava e que atirava despreocupadamente para a caixa desde os tempos em que começou a dar as consultas.

     Quando Meme abriu a taberna, supunha‑se que ele estivesse aqui, nas traseiras, encurralado sabe‑se lá por que implacáveis bestas proféticas. Sabia‑se que não comia nada da rua, que tinha plantado uma horta e que, durante os primeiros meses, Meme comprava um pedaço de carne para si, mas que um ano mais tarde tinha abandonado esse costume, talvez porque o contacto directo com o seu homem tivesse acabado por torná‑la vegetariana. Então fecharam‑se os dois, até que as autoridades forçaram as portas, revistaram a casa e escavaram a horta, tentando localizar o cadáver de Meme.

     Supunha‑se que estivesse aqui, fechado, baloiçando‑se na sua rede velha e gasta. Mas eu sabia, mesmo nesses meses em que deixou de se esperar o seu regresso ao mundo dos vivos, que a sua inflexível clausura, a sua surda batalha com a ameaça de Deus havia de culminar muito antes de lhe sobrevir a morte. Sabia que havia de sair mais tarde ou mais cedo, porque não há homem que consiga viver metade da vida em clausura, longe de Deus, sem sair de súbito para prestar ao primeiro homem que encontre à esquina, sem o menor esforço, as contas que nem as grilhetas e o cepo, nem o martírio do fogo e da água, nem a tortura da cruz e do torno, nem a madeira e os ferros incandescentes nos olhos e o sal eterno na língua e o potro da tortura, nem os açoites e as grelhas e o amor lhe teriam feito prestar aos seus inquisidores. E essa hora chegaria para ele poucos anos antes da sua morte.

     Há muito que conhecia essa verdade, desde a última noite em que conversámos na varanda, e depois, quando o fui chamar ao quartinho para que tratasse Meme. Teria eu conseguido opor‑me ao seu desejo de viver com ela, na qualidade de marido e mulher? Antes talvez tivesse conseguido. Nessa altura não, porque ia para três meses que começara a cumprir‑se novo capítulo da fatalidade.

     Naquela noite não ocupava a rede. Estendera‑se de costas no catre e jazia com a cabeça deitada para trás, os olhos fixos no sítio onde estaria o tecto se a luz da palmatória fosse mais intensa. Tinha uma lâmpada eléctrica no quarto, mas nunca a usou. Preferia jazer na penumbra, com os olhos fixos na escuridão. Não se mexeu quando entrei, mas percebi que desde o momento em que pisei o limiar começou a não se sentir sozinho. Então disse: «Se não é muito incómodo, doutor. Parece que a guajira não se sente bem.»

     Endireitou‑se na cama. Um momento antes não se sentia sozinho no quarto. Agora sabia que era eu que ali me encontrava. Eram sem dúvida duas sensações inteiramente diferentes, porque sofreu uma transformação imediata, alisou o cabelo e permaneceu sentado na beira da cama, à espera.

     «É Adelaida, doutor. Deseja que o senhor vá ver Meme», disse. E ele, sentado, com a sua parcimoniosa voz de ruminante, respondeu‑me de chofre:

     «Não é preciso. O que acontece é que ela está grávida.»

     Depois inclinou‑se para a frente, pareceu examinar o meu rosto e disse: «Há anos que Meme se deita comigo.»

     Devo confessar que não me surpreendi. Não senti perturbação, perplexidade ou cólera. Não senti nada. Talvez a sua confissão fosse demasiado grave, no meu modo de ver, e saísse dos trilhos normais da minha compreensão. Eu continuava quieto, de pé, impávido, tão frio como ele, como a sua parcimoniosa voz de ruminante. Depois, quando decorreu um longo silêncio e ele estava ainda sentado no catre, sem se mexer, como esperando que eu tomasse a primeira decisão, compreendi em toda a sua intensidade o que ele acabava de me dizer. Mas nessa altura era demasiado tarde para me transtornar.

     «É claro que o senhor se apercebe da situação, doutor.» Foi tudo o que consegui dizer. Ele respondeu:

     «Um indivíduo toma as suas precauções, coronel. Quando se corre um risco, sabe‑se como o corremos. Se alguma coisa falha, é porque havia alguma coisa imprevista, fora do nosso alcance.»

     Eu conhecia aquela espécie de rodeios. Como sempre, ignorava onde é que ele queria chegar. Puxei uma cadeira e sentei‑me em frente dele. Então abandonou o catre, apertou a fivela do cinto, levantou‑se e ajustou as calças. Do fundo do quarto, continuou a falar. Disse:

     «Tão certo é que tomei as minhas precauções, que é a segunda vez que está grávida. A primeira vez foi há ano e meio e ninguém deu por nada.»

     Continuava a falar sem emoção, andando outra vez em direcção ao catre. Na escuridão, senti os seus passos lentos e firmes sobre a tijoleira. Dizia:

      «Mas é que então ela estava disposta a tudo. Agora não. Há dois meses disse‑me que estava outra vez prenhe, e eu disse‑lhe o mesmo que da primeira vez: vem ter comigo logo à noite, para te preparar a mesma coisa. Ela disse‑me nesse dia que nessa altura não, que no dia seguinte. Quando fui tomar o café à cozinha, disse‑lhe que estava à espera dela, mas ela disse que nunca mais voltaria.»

     Tinha chegado ao pé do catre, mas não se sentou. Virou‑me de novo as costas e iniciou outra volta pelo quarto. Eu ouvia‑o falar. Sentia a sua voz ir e vir, como se falasse comigo enquanto se embalava na rede. Dizia as coisas com calma, mas com segurança. Eu sabia que teria sido inútil tentar interrompê‑lo. Limitava‑me a ouvi‑lo. E ele dizia:

     «Apesar disso, veio daí a dois dias. Eu tinha tudo preparado. Disse‑lhe que se sentasse aí e fui à mesa buscar o copo. Foi então, quando lhe disse toma, que vi que daquela vez não o faria. Olhou para mim a sorrir e disse com uma vozinha impiedosa: «Este não o vou perder, doutor. Este vou pari‑lo para o criar»'.»

     Senti‑me exasperado pela serenidade dele. Disse‑lhe: «Isso não justifica nada, doutor. O que o senhor fez foi uma acção duas vezes indigna; primeiro pelas relações dentro da minha própria casa, depois pelo aborto.»

     «Mas o senhor viu que fiz tudo o que podia, coronel. Era o mais que podia fazer. Depois, quando vi que a coisa não tinha remédio, dispus‑me a falar consigo. Ia fazê‑lo um destes dias.»

     «Suponho que o senhor sabe que há um remédio para este tipo de situações, quando realmente se quer lavar a afronta. O senhor sabe quais são os princípios das pessoas que vivem nesta casa», disse.

     E ele disse:

     «Não quero provocar‑lhe nenhum incómodo, coronel. Creia‑me. O que lhe ia dizer era isto: vou viver com a guajira para a casa que está desocupada na esquina.»

     «Em concubinato público, doutor», disse eu. «Sabe o que isso significa para nós?»

     Voltou ao catre. Sentou‑se, inclinou‑se para a frente e falou com os cotovelos apoiados nas pernas. O seu tom tornou‑se diferente. Ao princípio era frio. Agora começava a ser cruel e desafiador. Disse: «Estou a propor‑lhe a única solução que não lhe causaria nenhum transtorno, coronel. A outra seria dizer que o filho não é meu.»

     «Mas Meme diria», disse eu. Começava a sentir‑me indignado. A sua maneira de se expressar era agora demasiado desafiadora e agressiva para que eu a aceitasse com serenidade.

     Mas ele, duro, implacável, afirmou: «Pode ter a certeza absoluta de que Meme não o diria. Por ter a certeza disso lhe digo que irei com ela para a casa da esquina, só para lhe evitar complicações a si. Apenas por isso, coronel.»

     Tal era a segurança com que se tinha atrevido a negar que Meme pudesse atribuir‑lhe a paternidade do seu filho, que me senti, então sim, transtornado. Qualquer coisa me fazia pensar que a sua forçatinha raízes muito mais fundas do que as palavras. Disse:

     «Confiamos em Meme como na nossa filha, doutor. Neste caso, estaríamos do lado dela.»

     «Se o senhor soubesse o que eu sei, não falaria dessa forma, coronel. Perdoe‑me que lho diga assim, mas se o senhor compara a índia com a sua filha, ofende a sua filha.»

     «O senhor não tem motivos para dizer isso», disse eu.

     E ele respondeu, mais uma vez com aquela amarga dureza na voz: «Tenho. E quando lhe digo que ela não pode dizer que sou o pai do seu filho, também tenho motivos para isso.»

     Deitou a cabeça para trás. Respirou fundo e disse:

     «Se o senhor tivesse tempo para vigiar Meme quando ela sai de noite, nem sequer me exigiria que a levasse comigo. Neste caso, quem corre o risco sou eu, coronel. Carrego com as culpas para evitar transtornos.»

     Então compreendi que não entraria nunca com Meme pela porta da igreja. Mas o grave é que, depois das suas últimas palavras, eu não me teria arriscado a assumir o que mais tarde poderia vir a ser um tremendo peso na consciência. Havia vários trunfos a meu favor. Mas o único que ele tinha bastava‑lhe para fazer uma aposta contra a minha consciência.

     «Muito bem, doutor», disse‑lhe. «Ainda hoje à noite me encarregarei de que lhes preparem a casa da esquina. Mas, de qualquer modo, quero que conste que o ponho fora da minha casa, doutor. O senhor não sai por sua própria vontade. O coronel Aureliano Buendía ter‑lhe‑ia feito pagar bem caro a maneira como o senhor correspondeu à sua confiança.»

     E quando eu esperava ter atiçado os seus instintos e aguardava o desencadear das suas obscuras forças primárias, ele descarregou‑me em cima todo o peso da dignidade.

     «O senhor é um homem decente, coronel», disse. «Toda a gente o sabe, e vivi nesta casa o tempo suficiente para que o senhor não precise de mo recordar.»

     Quando se pôs de pé, não parecia triunfante. Parecia apenas satisfeito por ter podido corresponder às nossas atenções de oito anos. Era eu que me sentia desorientado, culpado. Naquela noite, ao ver os gérmens da morte que faziam visíveis progressos nos seus duros olhos amarelos, compreendi que a minha atitude era egoísta e que, por aquela única mácula na minha consciência, me caberia sofrer para o resto da minha vida uma tremenda expiação. Ele, em compensação, estava em paz consigo próprio. E disse:

     «Quanto a Meme, dêem‑lhe fricções com álcool. Mas não a purguem.»

    

     O avô voltou para ao pé da mamã. Ela está sentada, profundamente absorta. O vestido e o chapéu estão aqui, na cadeira, mas a minha mãe deixou de estar neles. O meu avô aproxima‑se, vê‑a absorta e agita a bengala diante dos seus olhos, dizendo: «Acorde, menina». A minha mãe pestanejou, sacudiu a cabeça. «Em que é que está a pensar?», diz o meu avô. E ela, sorrindo com dificuldade:

     «Estava a pensar em El Cachorro.»

     O meu avô senta‑se de novo ao pé dela, o queixo apoiado na bengala. Diz: «Que coincidência. Eu estava a pensar no mesmo.»

     Eles entendem‑se um ao outro. Falam sem se olharem, a mamã estendida na cadeira, dando palmadinhas no braço, e o meu avô sentado ao pé dela, ainda com o queixo apoiado na bengala. Mas mesmo assim entendem‑se um ao outro, como Abraão e eu nos entendemos quando vamos ver Lucrecia.

     Digo a Abraão: «Agora teco tacando.» Abraão caminha sempre à frente, a uns três passos de mim. Sem se voltar para olhar, diz: «Ainda não, daqui a pouco.» E eu digo‑lhe: «Quando teco alcutana vem rebenta.» Abraão não vira a cara, mas oiço‑o rir em voz baixa com um riso tonto e simples que é como o fio de água que fica a tremer nos beiços do boi quando acaba de beber. Diz: «Isso deve ser lá para as cinco.» Corre um pouco mais e diz: «Se formos agora pode rebentar alcutana.» Mas eu insisto: «De qualquer modo, sempre está teco tacando.» E ele vira‑se para mim e desata a correr, dizendo: «Bom, então vamos.»

     Para ver Lucrecia é preciso atravessar cinco pátios cheios de árvores e valas. É preciso passar pelo murete verde com lagartos, onde antes cantava o anão com voz de mulher. Abraão passa a correr, brilhando como uma folha de metal sob a claridade forte, com o cão a ladrar‑lhe aos calcanhares. A seguir detém‑se. Nesse momento estamos diante da janela. Chamamos: «Lucrecia», baixinho, como se Lucrecia estivesse a dormir. Mas está acordada, sentada na cama, sem sapatos, com uma larga camisa de dormir branca e engomada que a cobre até aos tornozelos.

     Enquanto falamos, Lucrecia levanta os olhos e fá‑los girar pelo quarto e crava em nós um olho redondo e grande, como o de um alcaravão. Então ri‑se e começa a dirigir‑se para o meio do quarto. Tem a boca aberta e os dentes recortados e miúdos. Tem a cabeça redonda, com o cabelo cortado como o de um homem. Quando chega ao meio deixa de rir, agacha‑se e olha para a porta, até que as mãos lhe chegam aos tornozelos e, lentamente, começa a puxar a camisa de dormir para cima, com uma lentidão calculada, ao mesmo tempo cruel e desafiadora. Abraão e eu continuamos assomados à janela, enquanto Lucrecia puxa a camisa, os lábios esticados numa careta ofegante e ansiosa, o enorme olho de alcaravão fixo e resplandecente. Então vemos a barriga branca, que mais abaixo se transforma num azul espesso, quando ela cobre a cara com a camisa de dormir e permanece assim, esticada no meio do quarto, as pernas juntas e apertadas com uma força trémula que lhe sobe dos calcanhares. De súbito descobre a cara violentamente, aponta o indicador para nós e o olho luminoso salta da sua órbita, no meio dos terríveis uivos que ressoam por toda a casa. Então abre‑se a porta do quarto e surge a mulher a gritar: «Porque é que não vão moer a paciência à puta da vossa mãe?»

     Há uns poucos de dias que não vamos ver Lucrecia. Agora vamos ao rio pelo caminho das plantações. Se sairmos cedo disto, Abraão há‑de estar à minha espera. Mas o meu avô não se mexe. Está sentado ao pé da mamã, com o queixo apoiado na bengala. Eu fico a olhar para ele, examinando‑lhe os olhos por detrás das lentes, e ele deve sentir que olho para ele porque de súbito suspira com força, sacode‑se e diz à minha mãe, com a voz apagada e triste: «El Cachorro fazia‑os vir à chicotada.»

     A seguir levanta‑se da cadeira e vai até junto do morto. É a segunda vez que venho a este quarto. Da primeira, há dez anos, as coisas estavam como estão agora. É como se ele não tivesse voltado a tocar em nada desde então, ou como se desde aquela remota madrugada em que veio viver com Meme não tivesse voltado a ocupar‑se da sua vida. Os papéis estavam neste mesmo lugar. A mesa, a roupa escassa e ordinária, tudo ocupava o mesmo lugar que ocupa hoje. Como se tivesse sido ontem que el cachorro e eu viemos ajustar a paz entre este homem e as autoridades.

     Por essa altura, a companhia bananeira tinha acabado de nos espremer e tinha‑se ido embora de Macondo com os detritos dos detritos que nos trouxera. E com eles fora‑se a revoada, os últimos vestígios do que foi a próspera Macondo de 1915. Aqui ficava uma aldeia arruinada, com quatro armazéns pobres e esquecidos, ocupada por gente desempregada e rancorosa, atormentada pela recordação de um passado próspero e pela amargura de um presente angustiado e estático. Nada havia então no porvir, a não ser um tenebroso e ameaçador domingo eleitoral.

     Seis meses antes, uma manhã, apareceu um panfleto pregado nas portas desta casa. Ninguém se interessou por ele e aqui esteve pregado durante muito tempo, até que os chuviscos finais lavaram as letras ininteligíveis, e o papel desapareceu, arrastado pelos últimos ventos de Fevereiro. Mas em fins de 1918, quando a proximidade das eleições fez o governo pensar na necessidade de manter desperta ou excitada a tensão dos seus eleitores, alguém falou às novas autoridades deste médico solitário, de cuja existência há muito ninguém poderia dar testemunho verídico. Devem ter‑lhes dito que durante os primeiros anos a índia que vivia com ele esteve à frente de uma taberna que conheceu a mesma prosperidade que naqueles tempos favoreceu até as mais insignificantes actividades de Macondo. Um dia (ninguém se lembra em que data, nem sequer em que ano), a porta da loja não se abriu. Supunha‑se que Meme e o médico continuavam a viver aqui, fechados, alimentando‑se com os legumes que eles próprios cultivavam no quintal. Mas no panfleto que apareceu nesta esquina dizia‑se que o médico assassinara a sua amante e a sepultara na horta, por recear que a aldeia se servisse dela para o envenenar. O inexplicável é que se dissesse isso numa época em que ninguém teria motivos para tramar a morte do médico. Parece‑me que as autoridades se tinham esquecido da sua existência, até àquele ano em que o governo reforçou a polícia e a guarda‑fiscal com homens da sua confiança. Então desenterrou‑se a remota lenda do panfleto e as autoridades arrombaram estas portas, revistaram a casa, cavaram o pátio e sondaram a fossa, tentando localizar o cadáver de Meme. Mas não encontraram nem rasto dela.

     Nessa ocasião teriam arrastado o médico, tê‑lo‑iam espezinhado e teria sido certamente mais um sacrifício na praça pública e em nome da eficácia oficial. Mas el cachorro interveio, foi a minha casa e incitou‑me a visitar o médico, certo de que eu obteria dele uma explicação satisfatória.

     Ao entrar pelas traseiras, surpreendemos os despojos de um homem abandonado na rede. Nada neste mundo deve ser mais tremendo do que os despojos de um homem. E eram‑no muito mais os deste cidadão de parte nenhuma, que se endireitou na rede quando nos viu entrar, e parecia ele próprio coberto pela crosta de pó que tapava todas as coisas do quarto. Tinha a cabeça firme e os seus olhos duros e amarelos ainda conservavam a poderosa força interior que lhes conheci em minha casa. Eu tinha a impressão de que, se o tivéssemos raspado com a unha, o corpo teria aberto rachas, se teria transformado num montão de serradura humana. Tinha cortado o bigode, mas não se barbeava ao rés da pele. Desfazia‑se da barba com a tesoura, por isso o queixo não parecia semeado de pêlos duros e vigorosos, mas sim de uma penugem suave e branca. Ao vê‑lo na rede, pensava: Agora não parece um homem. Agora parece um cadáver no qual os olhos ainda não morreram.

     Quando falou, a sua voz foi a mesma parcimoniosa voz de ruminante que trouxe para nossa casa. Disse que não tinha nada a dizer. Disse, como se julgasse que o ignorávamos, que a polícia tinha arrombado as portas e escavado o pátio sem o seu consentimento. Mas não era um protesto. Era apenas uma confidência dolente e melancólica.

     Quanto a Meme, deu‑nos uma explicação que poderia parecer pueril, mas que foi dita por ele com o mesmo tom com que teria dito uma verdade incontestável. Disse que Meme se tinha ido embora, era tudo. Quando a loja fechou, começou a aborrecer‑se em casa. Não falava com ninguém, não tinha comunicação nenhuma com o mundo exterior. Disse que um dia a viu a fazer a mala e não lhe disse nada. Acrescentou que também não lhe disse nada quando a viu com o vestido de sair à rua, os sapatos altos e a mala de mão, parada no vão da porta mas sem falar, apenas como se estivesse a mostrar‑se assim arranjada, para ele saber que se ia embora. «Então», disse, «levantei‑me e dei‑lhe o dinheiro que restava na gaveta.»

     Eu perguntei‑lhe: «Há quanto tempo, doutor?»

     E ele respondeu: «Calcule‑o pelo meu cabelo. Era ela que mo cortava.»

     El Cachorro falou muito pouco, naquela visita.

     Desde a sua entrada no quarto que parecia impressionado com a visão do único homem que não conhecera em quinze anos de permanência em Macondo. Daquela vez apercebi‑me (e melhor do que nunca, talvez porque o médico tinha cortado o bigode) da extraordinária semelhança entre aqueles dois homens. Não eram iguaizinhos, mas pareciam irmãos. Um era vários anos mais velho, mais magro e sujo. Mas havia entre eles a afinidade de traços que existe entre dois irmãos, ainda que um se pareça com o pai e o outro com a mãe. Então lembrei‑me da última noite na varanda. Disse: «Este é El Cachorro, doutor. Uma vez o senhor prometeu‑me visitá‑lo.»

     Ele sorriu. Olhou para o sacerdote e disse: «É verdade, coronel. Não sei porque não o fiz.» E continuou a olhar para ele, examinando‑o, até que El Cachorro falou.

     «Mais vale tarde do que nunca», disse. «Gostaria de ser seu amigo.»

     Apercebi‑me imediatamente de que, face ao estranho, El Cachorro tinha perdido a sua força habitual. Falava com timidez, sem a inflexível segurança com que a sua voz troava no púlpito, lendo em tom transcendental e ameaçador as previsões atmosféricas do almanaque Bristol.

     Foi essa a primeira vez que se viram. E foi também a última. Contudo, a vida do médico prolongou‑se até esta madrugada, porque El Cachorro interveio de novo a seu favor na noite em que lhe suplicaram que tratasse dos feridos e ele nem sequer abriu a porta, e lhe gritaram aquela terrível sentença cujo cumprimento me encarregarei agora de impedir.

     Preparávamo‑nos para abandonar a casa, quando me lembrei de uma coisa que desejava perguntar‑lhe há anos. Disse a El Cachorro que ficaria aqui, com o médico, enquanto ele intercedia junto das autoridades. Quando ficámos sozinhos, disse‑lhe:

     «Diga‑me uma coisa, doutor: o que é que aconteceu à criança?»

     Ele não modificou a sua expressão. «Qual criança, coronel?», perguntou. E eu disse‑lhe: «A sua. Meme estava prenhe quando saiu de minha casa.» E ele, tranquilo, imperturbável:

     «Tem razão, coronel. Até me tinha esquecido disso.»

      O meu pai permaneceu silencioso. A seguir disse: «El Cachorro fazia‑os vir à chicotada.» Os olhos do meu pai manifestam um nervosismo contido. E enquanto se prolonga esta espera que já vai para meia hora (pois devem ser umas três horas), preocupa‑me a perplexidade da criança, a sua expressão absorta que nada parece perguntar, a sua indiferença abstracta e fria, que a torna idêntica ao pai. O meu filho vai dissolver‑se no ar abrasador desta quarta‑feira, como aconteceu com Martín há nove anos, enquanto agitava a mão à janela do comboio e desaparecia para sempre. Todos os meus sacrifícios por este filho serão vãos, se continuar a parecer‑se com o pai. Em vão rogarei a Deus que faça dele um homem de carne e osso, que tenha volume e cor como os homens. Tudo será em vão enquanto tiver no sangue os gérmens do pai.

     Há cinco anos, a criança não tinha nada de Martín. Agora vai ganhando tudo, desde que Genoveva García regressou a Macondo com os seus seis filhos, entre os quais havia dois pares de gémeos. Genoveva estava gorda e envelhecida. Tinham‑lhe aparecido umas veiazinhas azuis à volta dos olhos, que davam um certo ar de sujidade ao seu rosto anteriormente claro e firme. Manifestava uma ruidosa e desordenada felicidade no meio da sua ninhada de sapatinhos brancos e folhos de organdi. Eu sabia que Genoveva tinha fugido com o director de uma companhia de saltimbancos, e sentia não sei que estranha sensação de repugnância ao ver aqueles seus filhos, que pareciam ter movimentos automáticos, como regidos por um único mecanismo central, pequenos e inquietantemente iguais entre si, os seis com sapatos e folhos idênticos. Parecia‑me dolorosa e triste a desorganizada felicidade de Genoveva, a sua presença carregada de acessórios urbanos numa aldeia arruinada, aniquilada pelo pó. Havia qualquer coisa de amargo, como que uma desolada troça, na sua maneira de se mover, de parecer afortunada e de se condoer dos nossos sistemas de vida tão diferentes dos que conhecera na companhia de saltimbancos.

     Ao vê‑la lembrava‑me de outros tempos. Disse‑lhe: «Estás lindíssima, mulher.» E então ela pôs‑se triste. Disse: «Se calhar são as recordações que fazem engordar.» E ficou a olhar para a criança com atenção. Disse: «E que é feito do bruxo dos quatro botões?» E eu respondi‑lhe, secamente, porque sabia que ela sabia: «Foi‑se embora.» E Genoveva disse: «E não te deixou senão este?» E eu disse‑lhe que não, que só me tinha deixado o garoto. Genoveva riu com um riso descosido e vulgar: «É preciso ser muito mole, para não fazer mais do que um filho em cinco anos», disse, e continuou, sem deixar de se mexer, cacarejando por entre a ninhada revolta: «E eu que estava louca por ele. Juro‑te que to teria roubado, se não o tivéssemos conhecido no velório de uma criança. Naquele tempo era muito supersticiosa.»

     Foi antes de se despedir que Genoveva ficou a contemplar a criança e disse: «Realmente, é igualzinho a ele. Só lhe falta o casaco de quatro botões.» E, desde esse instante, a criança começou a ficar igual ao pai, como se Genoveva lhe tivesse trazido o malefício da sua identidade. Em certas ocasiões, surpreendi‑o com os cotovelos apoiados na mesa, a cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo e o olhar enevoado dirigido para o vazio. É igual a Martín, quando se encostava aos vasos de cravos do varandim e dizia: «Mesmo que não fosse por ti, ficaria a viver em Macondo para toda a vida.» Às vezes tenho a impressão de que o vai dizer, como poderia dizê‑lo agora que está sentado ao pé de mim, taciturno, levando a mão ao nariz congestionado pelo calor. «Dói‑te?», pergunto‑lhe. E ele diz que não, que estava a pensar que não seria capaz de suster os óculos.  «Não precisas de te preocupar com isso», digo‑lhe, e desfaço‑lhe o laço do pescoço. Acrescento: «Quando chegarmos a casa vais descansar, para depois te dar banho.» E a seguir olho para o meu pai, que acaba de dizer: «Cataure», chamando o mais velho dos guajiros. É um índio sólido e baixo, que estava a fumar na cama e que, ao ouvir o seu nome, levanta a cabeça e procura o rosto do meu pai com os seus pequenos olhos sombrios. Mas, quando o meu pai vai falar de novo, ouvem‑se no quartinho de trás os passos do alcaide, que entra no aposento a cambalear.

    

     Esta tarde foi terrível em nossa casa. Ainda que para mim não fosse uma surpresa a notícia da sua morte, pois desde há tempos que a esperava, não podia imaginar que ela produzisse semelhantes transtornos em minha casa. Alguém tinha de me acompanhar a este enterro, e eu pensava que esse acompanhante seria a minha mulher, sobretudo depois da minha doença, há três anos, e daquela tarde em que ela encontrou a bengalinha com festão de prata e a bailarinazinha de corda, quando revistava as gavetas da minha secretária. Creio que por aquela época nos tínhamos esquecido do brinquedo. Mas naquela tarde pusemos a funcionar o mecanismo e a bailarinazinha dançou como noutros tempos, animada pela música que antes era festiva e que depois do longo silêncio na gaveta soava taciturna e nostálgica. Adelaida via‑a dançar e recordava. A seguir voltou‑se para mim, com o olhar humedecido por uma tristeza simples:

     «De quem é que te estás a lembrar?», perguntei.

     E eu sabia em quem Adelaida estava a pensar, enquanto o brinquedo entristecia o espaço com a sua musiquinha gasta.

     «Que terá sido dele?», perguntou a minha mulher, recordando, comovida talvez pela agitação daqueles tempos em que ele aparecia à porta do quarto, às seis da tarde, e pendurava o candeeiro na ombreira.

     «Está na casa da esquina», disse eu. «Um dia destes morre, e vamos ter de o enterrar.»

     Adelaida ficou em silêncio, absorta na dança do brinquedo, e eu senti‑me contagiado pela sua nostalgia. Disse‑lhe: «Sempre desejei saber com quem o confundiste no dia em que chegou. Preparaste aquela mesa porque te fez lembrar alguém.»

     E Adelaida disse, com um sorriso apagado:

     «Havias de te rir de mim, se te dissesse quem é que me fez lembrar quando se pôs aí, ao canto, com a bailarinazinha na mão.» E apontou com o dedo para o vazio onde o vira vinte e quatro anos atrás, com as botas altas e o fato que parecia um uniforme militar.

     Julguei que naquela tarde se tinham reconciliado na recordação, por isso hoje disse à minha mulher que se vestisse de preto para me acompanhar. Mas o brinquedo está outra vez na gaveta. A música perdeu o seu efeito. Adelaida está agora desfeita. Está triste, desalentada, e passa horas a fio a rezar no quarto. «Só tu é que te podias lembrar de fazer esse enterro», disse‑me. «Depois de todas as desgraças que nos caíram em cima, a única coisa que nos faltava era este maldito ano bissexto. E a seguir o dilúvio.» Tentei convencê‑la de que tinha a minha palavra de honra empenhada nesta acção.

     «Não podemos negar que lhe devo a vida», disse.

     E ela respondeu: «Era ele que nos devia a nós. Não fez mais, ao salvar‑te a vida, do que saldar uma dívida de oito anos de cama, mesa e roupa lavada.»

     A seguir puxou uma cadeira para o varandim. E ainda lá deve estar, com os olhos toldados pelo desgosto e pela superstição. Tão decidida me pareceu a sua atitude, que tentei tranquilizá‑la.

     «Está bem. Nesse caso vou com Isabel», disse. E ela não respondeu. Continuou sentada, impenetrável, até que nos preparámos para sair, e eu lhe disse, julgando ser‑lhe agradável: «Enquanto estamos fora, vai ao oratório e reza por nós.» Então virou a cabeça para a porta, dizendo: «Nem sequer vou rezar. As minhas orações hão‑de continuar a ser inúteis enquanto todas as terças‑feiras vier essa mulher pedir um raminho de erva‑cidreira.» E havia na sua voz uma obscura e desconhecida rebeldia:

     «Ficarei aqui, prostrada, até à hora do Juízo. Se é que até lá o caruncho não comeu já a cadeira.»

     O meu pai detém‑se, com o pescoço esticado, a ouvir os passos conhecidos que avançam pelo quarto das traseiras. Então esquece‑se do que pensava dizer a Cataure e tenta dar uma volta sobre si próprio, apoiado na bengala, mas a perna inútil falha‑lhe e por pouco não cai de bruços, como lhe aconteceu há três anos, quando caiu no charco de limonada, por entre os ruídos do jarro que rolou pelo chão e a cadeira de baloiço e o choro da criança, que foi a única pessoa que o viu cair.

     Desde então coxeia, desde então arrasta a perna, que se lhe inteiriçou depois daquela semana de amargos sofrimentos, de que julgámos nunca mais o ver refeito. Agora, ao vê‑lo assim, recuperando o equilíbrio com o apoio que lhe presta o alcaide, penso que está naquela perna diminuída o segredo do compromisso que se dispõe a cumprir contra a vontade da aldeia.

    

     Talvez a sua gratidão venha dessa altura. Desde que caiu de bruços na varanda, dizendo que era como se o tivessem empurrado de uma torre, os dois últimos médicos que restavam em Macondo aconselharam‑nos a que o preparássemos para uma boa morte. Recordo‑o no quinto dia de prostração, diminuído entre os lençóis; recordo o seu corpo mirrado, como o corpo de El Cachorro, que no ano anterior fora conduzido ao cemitério por todos os habitantes de Macondo, numa densa e comovida procissão de flores. Dentro do caixão, a sua imponência tinha o mesmo fundo de irremediável e desconsolado abandono que eu via no rosto do meu pai naqueles dias em que o quarto se encheu com a sua voz e falou daquele estranho militar que apareceu uma noite, na guerra de 85, no acampamento do coronel Aureliano Buendía, com o chapéu e as botas enfeitadas com peles e dentes e unhas de tigre, e lhe perguntaram: «Quem é o senhor?» E o estranho militar não respondeu. E disseram‑lhe: «De onde vem?» E mais uma vez não respondeu. E perguntaram‑lhe: «De que lado combate?» E mais uma vez não obtiveram resposta alguma do militar desconhecido, até que a ordenança pegou num tição e lho aproximou do rosto e o examinou por um instante e exclamou, estupefacto: «Merda! É o duque de Marlborough!»

     No meio daquele terrível delírio, os médicos deram ordem para que o lavassem. Assim se fez. Mas no dia seguinte mal se conseguia notar uma imperceptível alteração no seu ventre. Então os médicos abandonaram a casa e disseram que a única coisa aconselhável era prepará‑lo para uma boa morte.

     O quarto ficou submerso numa atmosfera silenciosa, dentro da qual não se ouvia nada a não ser o lento e sereno esvoaçar da morte, esse recôndito esvoaçar que nos aposentos dos moribundos cheira a bafo de homem. Depois de o padre Angel lhe administrar a extrema‑unção, passaram muitas horas sem que ninguém se mexesse, contemplando o perfil anguloso do condenado. Depois soou a badalada do relógio e a minha madrasta preparou‑se para lhe dar o caldo. Levantámo‑lo pela cabeça, tentando separar os dentes para que a minha madrasta introduzisse a colher. Foi então que se ouviram os passos pausados e afirmativos na varanda. A minha madrasta deteve a colher no ar, deixou de murmurar a sua oração e virou‑se para a porta, paralisada por uma repentina palidez. «Até no purgatório era capaz de reconhecer esses passos», conseguiu dizer, no preciso instante em que olhámos para a porta e vimos o doutor. Estava ali, na soleira, a olhar para nós.

     Digo à minha filha: «El Cachorro fazia‑os vir à chicotada», e dirijo‑me para o caixão, pensando: Desde que o doutor abandonou a nossa casa, estava convencido de que os nossos actos eram orientados por uma vontade superior, contra a qual não poderíamos rebelar‑nos mesmo que tivéssemos tentado fazê‑lo com todas as nossas forças, ou que tivéssemos adoptado a atitude estéril de Adelaida, que se fechou a rezar.

     E, enquanto transponho a distância que me separa do caixão, vendo os meus homens impassíveis, sentados na cama, parece‑me que respiro, na primeira golfada do ar que fervilha sobre o morto, toda a amarga fatalidade que destruiu Macondo. Creio que o alcaide não tardará com a autorização para o enterro. Sei que lá fora, nas ruas atormentadas pelo calor, o povo está à espera. Sei que há mulheres assomadas às janelas, ávidas de espectáculo, e que permanecem ali, assomadas, sem se lembrarem de que nos fogões está o leite a ferver e o arroz seco. Mas creio que mesmo esta última manifestação de rebeldia é superior às possibilidades deste exangue e destroçado grupo de homens. A sua capacidade de luta estava diminuída já antes desse domingo de eleições em que se mexeram, traçaram os seus planos e foram derrotados, e ficaram depois convencidos de que eram eles que determinavam os seus próprios actos. Mas tudo aquilo parecia determinado, ordenado para encadear os acontecimentos que, passo a passo, os haveriam fatalmente de conduzir a esta quarta‑feira.

     Há dez anos, quando sobreveio a ruína, o esforço colectivo dos que aspiravam reerguer‑se teria sido suficiente para a reconstrução. Teria bastado ir para os campos destroçados pela companhia bananeira, limpá‑los e começar outra vez do princípio. Mas à revoada tinham‑lhe ensinado a ser impaciente, a não acreditar no passado nem no futuro. Tinham‑lhe ensinado a acreditar no momento presente e a saciar nele a voracidade dos seus apetites. Não foi preciso muito tempo para nos darmos conta de que a revoada se tinha ido embora e de que, sem ela, era impossível a reconstrução. Tinha trazido tudo, a revoada, e tudo levara consigo. Depois dela só restava um domingo nos escombros de uma aldeia, e o eterno trapaceiro eleitoral, na última noite de Macondo, pondo na praça pública quatro garrafões de aguardente à disposição da polícia e dos guardas.

     Se naquela noite El Cachorro conseguiu contê‑los, apesar de estar ainda viva a sua rebeldia, hoje poderia ir de casa em casa, escorraçando‑os como a cães vadios, e havia de os obrigar a enterrar este homem. El Cachorro tinha‑os submetido a uma disciplina férrea. Mesmo depois de o sacerdote ter morrido, há quatro anos – um ano antes da minha doença ‑, essa disciplina manifestou‑se na maneira apaixonada como toda a gente arrancou as flores e os arbustos das suas hortas e os levou para a campa, prestando a El Cachorro a homenagem final.

     Este homem foi o único que não assistiu a esse enterro. Precisamente o único que devia a vida àquela inquebrantável e contraditória subordinação da aldeia ao sacerdote. Porque, na noite em que puseram os quatro garrafões de aguardente na praça e Macondo foi uma aldeia espezinhada por um grupo de bárbaros armados, uma aldeia aterrorizada que enterrava os seus mortos na vala comum, alguém se deve ter lembrado de que nesta casa de esquina havia um médico. Foi nessa altura que puseram as macas ao pé da porta e lhe gritaram (porque não abriu, falou de dentro): «Doutor, trate estes feridos, que os outros médicos já não dão vazão», e ele lhes respondeu: «Levem‑nos a outro lado, eu não sei nada disso.» E disseram‑lhe: «O senhor é o único médico que nos resta. Tem de fazer uma obra de caridade.» E ele respondeu (mas não abriu a porta), imaginado pela multidão no meio da sala, de candeeiro ao alto, os olhos duros e amarelos iluminados: «Esqueci tudo o que sabia disso. Levem‑nos a outro lado», e continuou (porque a porta nunca mais se abriu) com a porta fechada, enquanto homens e mulheres de Macondo agonizavam diante dela. A multidão teria sido capaz de tudo, naquela noite. Preparavam‑se para incendiar a casa e reduzir a cinzas o seu único habitante. Mas então apareceu El Cachorro. Dizem que foi como se tivesse estado aqui, invisível, montando guarda para evitar a destruição da casa e do homem. «Ninguém toca nesta porta», dizem que ordenou El Cachorro. E dizem que foi tudo o que disse, os braços abertos em cruz, o seu inexpressivo e frio rosto de caveira de vaca iluminado pelo esplendor da fúria popular. E então o impulso refreou‑se, mudou de curso, mas teve ainda força suficiente para que gritassem aquela sentença que havia de fixar, para todos os séculos, o advento desta quarta‑feira.

     Ao dirigir‑me para a cama, para dizer aos meus homens que abram a porta, penso: Deve estar a chegar de um momento para o outro.

     E penso que, se daqui a cinco minutos não tiver chegado, levaremos o caixão sem a autorização e poremos o morto na rua, nem que tenha de lhe dar sepultura mesmo em frente da casa. «Cataure», digo, chamando o mais velho dos meus homens, e ele mal teve tempo de levantar a cabeça, quando oiço os passos do alcaide avançando pela sala ao lado.

     Sei que vem direito a mim, e tento rodar rapidamente sobre os calcanhares, apoiado na bengala, mas falha‑me a perna doente e vou para a frente, certo de ir cair e dar com a cara na borda do caixão, quando tropeço no seu braço e me agarro solidamente a ele, e oiço a sua voz de estupidez pacífica, dizendo: «Não se preocupe, coronel. Garanto‑lhe que não acontecerá nada.» E sei que assim é, mas sei que o diz para se dar importância. «Não creio que possa acontecer nada», digo‑lhe, pensando o contrário, e ele diz qualquer coisa das ceibas do cemitério e entrega‑me a autorização para o enterro. Sem a ler, dobro‑a, guardo‑a no bolso do colete e digo‑lhe: «Seja como for, há‑de acontecer o que tiver de acontecer. É como se o almanaque o tivesse anunciado.»

     O alcaide dirige‑se aos guajiros. Manda‑lhes pregar o caixão e abrir a porta. E vejo‑os mexerem‑se à procura do martelo e dos pregos que hão‑de apagar para sempre a visão deste homem, deste desamparado senhor de parte nenhuma que vi pela última vez há três anos, diante do meu leito de convalescente, com a cabeça e o rosto marcados por uma decrepitude prematura. Acabava então de me salvar da morte. A mesma força que o tinha levado ali, que lhe tinha comunicado a notícia da minha doença, parecia ser a que o mantinha diante do meu leito de convalescente, dizendo:

     «Só precisa de exercitar um pouco essa perna. É possível que tenha de usar bengala, de agora em diante.»

     Havia de perguntar‑lhe, daí a dois dias, quanto lhe devia, e ele havia de me responder: «O senhor não me deve nada, coronel. Mas se quer fazer‑me um favor, deite‑me em cima um pouco de terra, quando um dia esticar o pernil. É a única coisa que preciso, para as galinhas não me comerem.»

     No próprio compromisso que me fazia contrair, na maneira de o propor, no ritmo dos seus passos sobre os mosaicos do quarto, notava‑se que aquele homem há muito que começara a morrer, apesar de faltarem ainda três anos para que essa morte adiada e incompleta se viesse a concretizar. Esse dia foi o de hoje. E creio que nem sequer teria precisado da corda. Um ligeiro sopro teria bastado para extinguir a última centelha de vida que lhe restava nos olhos duros e amarelos. Eu pressentira tudo isto desde a noite em que falei com ele no quartinho, antes de ele vir viver com Meme. Por isso, quando me fez contrair o compromisso que agora vou cumprir, não me surpreendi. Disse‑lhe simplesmente:

     «É um pedido desnecessário, doutor. O senhor conhece‑me, e deveria saber que eu o teria enterrado contra tudo e contra todos, mesmo que não lhe devesse a vida.»

     E ele, sorridente, pela primeira vez apaziguados os seus olhos duros e amarelos:

     «Tudo isso é certo, coronel. Mas não se esqueça que um morto não poderia enterrar‑me.»

     Agora ninguém poderá remediar esta vergonha. O alcaide entregou ao meu pai a ordem para o enterro, e o meu pai disse: «Seja como for, há‑de acontecer o que tiver de acontecer. É como se o almanaque o tivesse anunciado.» E disse‑o com a mesma indolência com que se entregou à sorte de Macondo, fiel aos baús onde está guardada a roupa de todos os mortos anteriores ao meu nascimento. Desde então tudo começou a declinar. Até a energia da minha madrasta, o seu carácter férreo e dominador, se transformaram numa fadiga amarga. Parece cada vez mais distante e taciturna, e é tal o seu desespero que esta tarde se sentou ao pé do varandim e disse: «Vou ficar aqui, prostrada, até à hora do Juízo.»

     O meu pai não voltara a impor em nada a sua vontade. Só hoje se impôs para cumprir este vergonhoso compromisso. Está aqui, certo de que tudo há‑de decorrer sem consequências graves, a olhar para os guajiros que se puseram em movimento para abrir a porta e pregar o caixão. Vejo‑os aproximarem‑se, ponho‑me de pé, pego na mão da criança e puxo a cadeira para a janela, para não estar à vista da aldeia quando abrirem a porta.

     A criança está suspensa. Quando me levantei, olhou para a minha cara com uma expressão indescritível, um pouco aturdida. Mas agora está suspensa, a meu lado, a olhar para os guajiros, que suam por causa do esforço que fazem para puxar as argolas. E, com um penetrante e prolongado queixume de metal oxidado, a porta abre‑se de par em par. Então vejo de novo a rua, o pó luminoso, branco e abrasador, que cobre as casas e dá à aldeia um lamentável aspecto de móvel arruinado. É como se Deus tivesse declarado Macondo desnecessária e a tivesse atirado para o canto onde estão as aldeias que deixaram de prestar serviços à criação.

     A criança, que no primeiro momento deve ter ficado ofuscada com a claridade repentina (a mão tremeu‑lhe na minha quando a porta se abriu), levanta de repente a cabeça, concentrada, atenta, e pergunta‑me: «Ouves?» Só então reparo que num dos pátios vizinhos um alcaravão está a dar as horas. «Oiço. Já devem ser três», digo, quase no preciso momento em que soa a primeira pancada do martelo no prego.

     Tentando não escutar esse som dilacerante que me eriça a pele, procurando que a criança não se aperceba da minha perturbação, volto o rosto para a janela e vejo, no outro quarteirão, as melancólicas e poeirentas amendoeiras com a nossa casa ao fundo. Sacudida pelo sopro invisível da destruição, também ela está em vésperas de uma derrocada silenciosa e definitiva. Toda a Macondo está assim desde que a companhia bananeira a espremeu. A hera invade as casas, a erva cresce pelas ruelas, racham‑se os muros e deparamos em pleno dia com um lagarto no quarto. Tudo parece destruído desde que deixámos de cultivar o alecrim e o nardo, desde que uma mão invisível escaqueirou a louça de Natal no armário e pôs traças a engordar na roupa que ninguém voltou a usar. Quando uma porta se solta, não há uma mão solícita disposta a repará‑la. O meu pai não tem energia para se mexer como o fazia antes daquela prostração que o deixou a coxear para sempre. A senhora Rebeca, por detrás da sua eterna ventoinha, não se ocupa de nada que possa contrariar a fome de malevolência que a sua estéril e atormentada viuvez lhe provoca. Agueda está tolhida, atormentada por uma paciente enfermidade religiosa; e o padre Angel não parece ter outra satisfação que não seja a de saborear na sesta de todos os dias a sua perseverante indigestão de almôndegas. A única coisa que permanece invariável é a canção das gémeas de San Jerónimo, e aquela misteriosa mendiga que não parece envelhecer e que há vinte anos que todas as terças‑feiras vem a nossa casa pedir um raminho de erva‑cidreira. Só o apito de um comboio amarelo e poeirento, que não leva ninguém, interrompe o silêncio duas vezes por dia. E, de noite, o zum‑zum da pequena central eléctrica deixada pela companhia bananeira quando se foi embora de Macondo.

     Vejo a nossa casa pela janela e penso que a minha madrasta está ali, imóvel na sua cadeira, pensando talvez que antes de regressarmos terá passado o vento final que há‑de apagar esta aldeia. Todos se terão ido, então, menos nós, porque estamos ligados a este solo por um quarto cheio de baús nos quais se conservam ainda os utensílios domésticos e a roupa dos avós, dos meus avós, e os toldos que cobriam os cavalos dos meus pais quando vieram para Macondo a fugir da guerra. Estamos arreigados a este solo pela recordação dos mortos remotos cujos ossos já não seria possível encontrar a vinte braças debaixo da terra. Os baús estão no quarto desde os últimos dias da guerra; e ali estarão esta tarde, quando regressar‑mos do enterro, se entretanto não tiver passado já esse vento final que há‑de varrer Macondo, os seus quartos cheios de lagartos e a sua gente taciturna, arrasada pelas recordações.

     De repente o meu avô levanta‑se, apoia‑se na bengala e estica a sua cabeça de pássaro à qual os óculos parecem agarrados, como se fizessem parte do seu rosto. Creio que me custaria muito usar óculos. A qualquer movimento, haviam de se soltar das orelhas. E, a pensar nisso, dou pancadinhas no nariz. A mamã olha para mim e pergunta‑me: «Dói‑te?» E eu digo‑lhe que não, que estava simplesmente a pensar que não seria capaz de usar óculos. E ela sorri, respira profundamente e diz‑me: «Deves estar ensopado.» E é verdade, a roupa arde‑me na pele, a bombazina verde e grossa, fechada até acima, agarra‑se‑me ao corpo com o suor e provoca‑me uma sensação insuportável. «Estou», respondo. E a minha mãe inclina‑se para mim, desaperta‑me o laço e abana‑me o pescoço, dizendo: «Quando chegarmos a casa vais descansar, para depois te dar banho.»

     «Cataure», oiço'''

     Nisto entra outra vez, pela porta de trás, o homem do revólver. Ao aparecer no vão da porta tira o chapéu e caminha com cautela, como se receasse acordar o cadáver. Mas fê‑lo para assustar o meu avô, que cai para a frente empurrado pelo homem, e cambaleia, e consegue agarrar‑se ao braço do mesmo homem que tentou deitá‑lo ao chão. Os outros deixaram de fumar e permanecem sentados na cama, alinhados como quatro corvos na cumeeira de um telhado. Quando entra o do revólver, os corvos inclinam‑se, falam em segredo e um deles levanta‑se, vai até à mesa e pega na caixinha dos pregos e no martelo.

     O meu avô está a conversar com o homem, ao pé do caixão. O homem diz: «Não se preocupe, coronel. Garanto‑lhe que não acontecerá nada.» E o meu avô diz: «Não creio que possa acontecer nada.» E o homem diz: «Podem enterrá‑lo do lado de fora, junto ao muro esquerdo do cemitério, onde as ceibas são mais altas.» A seguir entrega um papel ao meu avô, dizendo: «Verá que tudo há‑de correr bem.» O meu avô apoia‑se na bengala com uma mão e com a outra pega no papel e guarda‑o no bolso do colete, onde tem o relógio de ouro pequenino e quadrado, preso com uma corrente. Depois diz: «Seja como for, há‑de acontecer o que tiver de acontecer. É como se o almanaque o tivesse anunciado.»

     O homem diz: «Há algumas pessoas à janela, mas é pura curiosidade. As mulheres aparecem sempre seja pelo que for.» Mas não creio que o meu avô o tenha ouvido, porque está a olhar para a rua, pela janela. Então o homem move‑se, vai até à cama e diz aos outros homens, enquanto se abana com o chapéu: «Agora podem pregá‑lo. Entretanto, abram a porta para entrar um pouco de ar fresco.»

     Os homens põem‑se em movimento. Um deles inclina‑se sobre a urna com o martelo e os pregos e os outros dirigem‑se para a porta. A minha mãe levanta‑se. Está suada e pálida. Puxa a cadeira, pega‑me na mão e afasta‑me para o lado, para que os homens que vierem abrir a porta possam passar.

     A princípio tentam fazer correr a tranca, que parece soldada às argolas oxidadas, mas não conseguem movê‑la. É como se alguém estivesse encostado com força do lado da rua. Mas, quando um dos homens se apoia contra a porta e lhe bate, levanta‑se no quarto um ruído de madeira, de gonzos oxidados, de fechos soldados pelo tempo, chapa contra chapa, e a porta abre‑se, enorme, capaz de dar passagem a dois homens, um em cima do outro, e há um rangido longo da madeira e dos ferros acordados. E, antes de termos tempo de saber o que se passa, a luz irrompe no quarto, vale costas, poderosa e perfeita, porque lhe tiraram o apoio que a conteve no quarto, arrastando a sombra das coisas na sua turbulenta queda. Os homens tornam‑se brutalmente visíveis, como um relâmpago ao meio‑dia, e cambaleiam, e é como se tivessem precisado de se apoiar para que a claridade não os deitasse ao chão.

     Quando se abre a porta, um alcaravão começa a cantar algures na aldeia. Agora vejo a rua. Vejo o pó brilhante e ardente. Vejo vários homens encostados às casas do outro lado da rua, de braços cruzados, a olharem para o quarto. Oiço de novo o alcaravão e digo à mamã: «Ouves?» E ela diz que sim, que devem ser três. Mas Ada disse‑me que os alcaravões cantam quando sentem o cheiro a morte. Vou a dizê‑lo à minha mãe no preciso instante em que oiço o barulho intenso do martelo na cabeça do primeiro prego. O martelo bate, bate, e enche tudo; descansa um segundo e bate de novo, ferindo a madeira por seis vezes consecutivas, acordando o prolongado e triste clamor das tábuas adormecidas, enquanto a minha mãe, com a cara voltada para o outro lado, olha para a rua pela janela.

     Quando acabam de pregar, ouve‑se o canto de vários alcaravões. O meu avô faz um sinal aos seus homens. Estes inclinam‑se, ladeiam o caixão, enquanto o que permanece ao canto com o chapéu diz ao meu avô: «Não se preocupe, coronel.» E então o meu avô volta‑se para o canto, agitado e com o pescoço inchado e violáceo, como o de um galo de combate. Mas não diz nada. É o homem que volta a falar, lá do fundo. Diz: «Creio que já nem há ninguém na aldeia que se lembre disso.»

     Neste instante sinto verdadeiramente a barriga a estremecer. Agora sim, tenho vontade de ir lá atrás, penso, mas vejo que é tarde de mais. Os homens fazem um último esforço, esticam‑se, com os calcanhares cravados no chão, e o caixão fica a flutuar na claridade, como se levassem a sepultar um navio morto.

     Penso: Agora hão‑de sentir o cheiro. Agora todos os alcaravões hão de pôr‑se a cantar.

 

                                                                                  Gabriel García Márquez

 

 

                      

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