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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DO PENHASCO / Agatha Christie
A CASA DO PENHASCO / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CASA DO PENHASCO

 

SÓ UM LOUCO MATA SEM RAZÃO

Hercule Poirot desconfiava que a pessoa que queria ma­tar a Senhorita Nick Buckley devia ter suas razões, mas ele não tinha conseguido descobrir nenhuma dessas razões, pelo menos entre os suspeitos:

Ellen — sendo empregada na misteriosa Casa do Penhasco, ela teria tempo de sobra para encenar os acidentes que per­seguiam sua patroa, porém, ela seria prejudicada com a mor­te da Senhorita Nick.

Sr. Croft — o alegre australiano vivia no chalé próximo à Casa do Penhasco. Tinha facilidade de acesso à casa, mas nenhuma razão para matar.

Frederica Rice — embora nada a associasse aos atentados, a melhor amiga de Nick não estava realmente no lugar onde disse que estava no momento de cada acidente.

Charles Vyse — era a única pessoa que teria lucro finan­ceiro, mas a casa velha e sem valor que receberia como herança não justificava um assassinato.

Comandante Challenger — o atraente oficial de mari­nha estava apaixonado por Nick. Como poderia desejar sua morte?

Nenhuma razão. Nenhum motivo! Poirot, contrariado, amarrotou sua lista de suspeitos. Ninguém tinha razão para matar. No entanto, alguém tentara não uma, mas quatro vezes! O motivo tinha de existir. E Poirot tinha de desco­bri-lo antes que fosse tarde demais.

 

                                   

 

O HOTEL MAJESTIC

Nenhuma cidadezinha litorânea da Inglaterra é tão atra­ente como Saint Loo. O título que lhe deram de Rainha das Cidades Balneárias é bem adequado e a cidade em si lembra muito a Riviera. A costa da Cornualha, na minha opinião, é tão fascinante quanto a do sul da França.

Eu disse isso ao meu amigo, Hercule Poirot.

— Tudo isso estava escrito no cardápio do vagão-restaurante ontem, meu amigo. Sua observação não é original.

— Mas você não concorda?

Ele sorria para si mesmo e não respondeu logo à mi­nha pergunta. Repeti.

— Mil perdões, Hastings. Meus pensamentos vaga­vam. Aliás vagavam exatamente nessa parte do mundo que você acaba de mencionar.

— O sul da França?

— Sim. E eu pensava no último inverno que passei lá e em tudo que aconteceu.

Eu me lembrava bem. Tinham cometido um crime no Trem Azul e o mistério, complicado e desconcertante, tinha sido esclarecido por Poirot com a perícia habitual.

— Como gostaria de ter estado lá — disse eu com pesar.

— Eu também. Sua experiência me teria valido de muito.

Olhei para ele de soslaio. É velho hábito meu sempre desconfiar de seus elogios, mas ele me parecia sério. E afinal, por que não? Tenho longa experiência dos métodos que emprega.

— O que me fez mais falta foi sua imaginação fértil, Hastings. Todos precisam de um certo alívio. Meu cama­reiro Georges, um homem admirável, com quem às vezes me permito discutir um ou outro problema, não tem nenhuma imaginação.

Essa observação me pareceu definitivamente irrelevante.

— Você nunca pensou em tentar recomeçar suas ati­vidades, Poirot? — indaguei. — Esta vida passiva...

— É exatamente o que desejo, meu amigo. Que pode ser mais agradável que sentar ao sol? E existe gesto mais grandioso que descer do pedestal no ápice de sua fama? Di­zem a meu respeito: “Aquele é Hercule Poirot, o grande, o único! Nunca houve ninguém como ele e nunca haverá!” Pois bem, estou satisfeito. Nada mais desejo. Sou modesto.

Eu não deveria usar a palavra modesto nesta narrativa. O egocentrismo de meu amigo não tinha certamente dimi­nuído com o correr dos anos. Reclinou-se na cadeira, aca­riciando o bigode e ronronando de satisfação.

Estávamos sentados numa das varandas do Hotel Ma­jestic. É o maior hotel de Saint Loo, com terreno próprio, e situado sobre um promontório com vista para o mar. Os jar­dins do hotel se estendiam diante de nós, salpicados de pal­meiras. O mar era de um belo azul profundo, o céu claro, e o sol brilhava com todo o ardor de um verdadeiro sol de agosto, o que é raro na Inglaterra. Ouvia-se no ar um agradável zumbido de abelhas. Tudo concorria para uma atmosfera ideal.

Tínhamos acabado de chegar na noite anterior e esta era a primeira manhã de uma semana de férias. Se o tempo continuasse como estava, seriam as férias perfeitas.

Apanhei o jornal da manhã que me tinha caído das mãos e continuei a passar os olhos pelas notícias da ma­nhã. A situação política parecia insatisfatória e sem inte­resse maior: havia desordem na China, um grande roubo na cidade e nada mais digno de nota.

— Que coisa curiosa, essa doença de papagaios — ob­servei enquanto virava a página.

— Muito curiosa.

— Duas mortes em Leeds, diz aqui o jornal.

— Meus pêsames.

Virei a página.

— Ainda não há notícias daquele aviador, Seton, que ia dar a volta ao mundo. Muito corajosos estes sujeitos. Aquela máquina anfíbia, o Albatroz, deve ser uma grande invenção. Foi uma pena ele ir para o oeste. Mas não de­sesperaram ainda: ele pode estar numa das ilhas do Pa­cífico .

— As ilhas Salomão ainda são canibais, não são? — indagou Poirot.

— Ele deve ser um bom sujeito. Este tipo de coisa faz com que me sinta orgulhoso de ser súdito britânico.

— Sempre consola das derrotas em Wimbledon — disse Poirot.

— Eu... Eu não quis dizer... — comecei eu, ga­guejando.

Meu amigo apenas afastou minhas desculpas com um gesto de mão.

— Eu não sou anfíbio, como a máquina do pobre Ca­pitão Seton, mas sou cosmopolita. E sempre tive grande admiração pelos ingleses, você sabe disso. Admiro por exem­plo a maneira como lêem o jornal inteiro, da primeira à última página.

As notícias políticas já tinham atraído minha atenção.

— Parece que o Ministro do Interior está passando por maus momentos — observei com um sorriso.

— Pobre homem. Tem sérios aborrecimentos. Tão sé­rios que pede auxílio às pessoas mais improváveis.

Olhei para ele.

Com um pequeno sorriso, Poirot tirou do bolso a cor­respondência matinal, amarrada com um elástico. Desse maço ele tirou uma carta que jogou em minha direção.

— Devíamos tê-la recebido ontem — disse ele. Li a carta com agradável sensação de ansiedade.

— Mas, Poirot, isto é muito elogioso!

— Você acha, meu amigo?

— Ele fala com o maior entusiasmo de sua habilidade.

— Ele está certo — disse Poirot, modestamente des­viando os olhos.

— Ele lhe pede que investigue este caso para ele e coloca o pedido em termos pessoais.

— Eu sei. Não é necessário repetir tudo isso para mim. Já li a carta eu mesmo, meu claro Hastings.

— Que pena!  — exclamei. — É o fim de nossas fé­rias.

— Não, não. Acalme-se. Não há razão para isso.

— Mas o Ministro do Interior diz que o assunto é urgente.

— Ele pode estar certo ou não. Esses políticos se exaltam com muita facilidade. Eu já vi, na Câmara dos Deputados em Paris...

— Sim, sim, mas Poirot, precisamos tomar providên­cias. O expresso para Londres já partiu: sai sempre às doze horas. O próximo...

— Acalme-se, Hastings, peço-lhe. Sempre esse movi­mento, essa agitação. Nós não vamos para Londres nem hoje, nem amanhã.

— Mas este chamado...

— Não me importa. Não pertenço à força policial in­glesa, Hastings. Pediram-me que me encarregasse de um caso como detetive particular e eu recusei.

— Você recusou?

— Claro. Respondi com toda polidez, apresentei meus sentimentos, minhas desculpas, expliquei que estava desola­do. Que quer? Aposentei-me. Acabei.

— Não. Você não acabou! — exclamei com entusiasmo.

Poirot bateu-me no joelho.

— É o bom amigo que assim fala, o cão fiel. E você tem razão. A massa cinzenta ainda funciona: a ordem, o método. Está tudo aqui. Mas quando decido aposentar-me, meu caro, é irreversível. Ponto final! Não sou estrela de palco que se despede do mundo uma porção de vezes. É preciso ser generoso e dar oportunidade a gente mais moça. Eles podem até realizar algo que valha a pena. Duvido, mas quem sabe? De qualquer maneira, eles saberão o que fazer nesse caso obviamente enfadonho do Ministro do Interior.

— Mas, Poirot, o elogio!

— Estou acima de elogios. O Ministro do Interior, ho­mem sensato, sabe perfeitamente que se obtiver meus servi­ços, tudo se resolverá bem. Mas que posso fazer? Falta de sorte a dele. Hercule Poirot já solucionou seu último caso.

Olhei para ele. No fundo, eu lastimava sua teimosia. A solução de um caso como o do Ministro do Interior aumen­taria ainda mais sua reputação no mundo inteiro. Em todo caso, eu não podia deixar de admirar sua obstinação inaba­lável.

De repente ocorreu-me algo que me fez sorrir.

— Será que você não tem medo de fazer afirmações tão categóricas? Poderia até tentar as forças divinas.

— É impossível que alguém possa abalar uma decisão de Hercule Poirot.

— Impossível mesmo, Poirot?

— Você está certo, meu caro, ninguém deve usar essa palavra. Se um tiro me raspasse a cabeça, não poderia dizer que não iria investigar. Afinal de contas, todos somos hu­manos.

Sorri. Uma pedrinha caíra perto de nós e a analogia com o que Poirot acabara de dizer despertou minha fantasia. Ele apanhou a pedrinha e continuou.

— É verdade. Todos somos humanos. Somos como cães profundamente adormecidos, porém cães podem ser desper­tados a qualquer momento. Existe um provérbio qualquer na sua língua a esse respeito.

— De fato: se você encontrar um punhal cravado perto de seu travesseiro, amanhã de manhã, o criminoso que se cuide.

Poirot concordou distraidamente.

De repente, para surpresa minha, levantou-se e desceu os degraus para o jardim. Ao mesmo tempo, avistei uma jovem que corria em nossa direção.

Eu já tinha percebido que ela era muito bonita, quando minha atenção foi atraída para Poirot, que, sem notar onde pisava, tropeçou numa raiz e caiu redondamente, bem diante da jovem. Nós dois o ajudamos a levantar-se. Toda minha atenção estava concentrada em Poirot, mas eu tinha perfeita consciência da presença de uns cabelos negros, de uns gran­des olhos azuis e profundos, e de uma carinha travessa.

— Mil perdões, senhorita. É muito amável. Sinto-me envergonhado, mas... ai!... meu pé dói horrivelmente! — gaguejou Poirot. — Não, não é nada. Apenas uma luxação. Em poucos minutos estarei bom. Mas se você, Hastings, pu­der ajudar junto com a moça, se ela não se importar, será melhor eu voltar para a varanda. Fico até sem jeito de lhe pedir auxílio, senhorita.

A garota de um lado e eu de outro, levamos Poirot até a cadeira da varanda. Sugeri a vinda de um médico, mas meu amigo recusou terminantemente.

— Não é nada, já lhe disse. Apenas torci o tornozelo, só isso. É doloroso na hora, mas logo depois passa. — Vi­rando-se para a jovem, continuou: — Senhorita, mil vezes obrigado! Foi muito gentil. Não quer sentar-se, por favor?

A jovem sentou-se.

— Sei que não é nada, mas é bom que um médico dê uma olhada — disse ela.

— Senhorita, garanto-lhe que é uma bobagem. O prazer de sua companhia faz passar qualquer dor.

— Que ótimo! — riu a garota.

— Que tal um drinque? — sugeri — Acho que está na hora.

— Bem... — ela hesitou. Depois acabou aceitando. — Quero sim, obrigada.

— Martini?

— Sim, por favor. Martini seco.

Saí. Quando voltei, depois de ter pedido os drinques, en­contrei Poirot e a jovem no meio de uma conversa animadíssima.

— Imagine, Hastings, que a casa na ponta do rochedo, aquela de que gostamos tanto, pertence a esta senhorita — disse Poirot.

— É mesmo? — respondi, embora não me lembrasse de ter dito que gostava da tal casa. Aliás nem me recordava direito dela. — Ela parece imponente e até um pouco sinis­tra assim tão isolada, longe de tudo.

— É a Casa do Penhasco — disse a jovem. — Eu, a adoro, mas é uma velharia, caindo aos pedaços.

— A senhorita é a última descendente de uma família tradicional?

— Ora, não somos importantes, mas têm existido Buckleys por aqui nos últimos dois ou três séculos. Meu irmão morreu há três anos e eu sou a última Buckley.

— É triste, senhorita. Vive lá sozinha?

— Olhe, viajo muito e, quando estou em casa, há sem­pre um grupo alegre de amigos chegando ou partindo.

— Soa muito moderno. E eu que a imaginava habitando uma escura mansão mal-assombrada, perseguida por maldições de família.

— Que maravilha! E que imaginação fértil a sua. — Fez uma pausa e continuou: — Não. A casa não é mal-as­sombrada. Se é, deve ter um fantasma bonzinho. Escapei três vezes de morrer em tão poucos dias que hoje acredito que minha vida seja enfeitiçada.

Poirot alertou-se.

— Escapou da morte? Parece muito interessante, senho­rita .

— Ora, não foi tão emocionante assim. Só acidentes. — Ela virou a cabeça rapidamente para escapar de uma vespa que passou voando. — Malditas vespas! Deve haver um ninho delas por aqui.

— Abelhas e vespas não lhe agradam, senhorita? Já foi mordida alguma vez?

— Não, mas odeio a mania que têm de passar rente ao rosto das pessoas.

— A abelha dentro do boné... É uma expressão em sua língua.

Naquele momento os drinques chegaram. Levantamos o copo e fizemos as habituais saudações e observações vazias.

— Tinha de estar no hotel para a hora dos drinques — disse a Senhorita Buckley. — Espero que estejam sentindo minha falta.

Poirot pigarreou e pôs o copo na mesa.

— Gostaria de tomar uma xícara de chocolate bem gros­so neste momento, mas na Inglaterra não sabem fazer um bom chocolate. Mesmo assim, vocês têm hábitos agradáveis. Por exemplo, os chapéus das jovens caem com muita facili­dade... E voltam às cabecinhas tão encantadoramente como caíram.

A moça olhou para Poirot meio espantada.

— E por que não poderiam cair e voltar? Que quer dizer?

— A senhorita pergunta porque é jovem... jovem de­mais. Para mim o normal seria usar um penteado alto e duro. E o chapéu pregado no lugar com alfinetes de chapéu, muitos alfinetes: um aqui, outro aqui, outro aqui...

Poirot executou três gestos bruscos no ar, como se fos­sem golpes.

— Como deve ser incômodo!

— É, eu também acho — disse Poirot com ênfase dig­na de uma mulher martirizada pelos tais alfinetes. — E quan­do o vento soprava, era uma agonia: começava logo uma enxaqueca.

A Senhorita Buckley tirou o chapéu de feltro, simples e de abas largas, que usava e colocou-o ao lado da cadeira.

— Agora é só fazer assim — disse ela rindo.

— O que me parece mais sensato e encantador também — disse Poirot com uma mesura.

Olhei para ela interessado. O cabelo escuro em desor­dem dava-lhe um ar travesso de duende. Havia qualquer coi­sa de fada nela: o rostinho expressivo, em forma de amor-perfeito, os enormes olhos azul-escuro e algo mais... Algo de sobrenatural e cativante. Seria uma suspeita de atrevimento, audácia? Havia olheiras sob os olhos.

O terraço onde estávamos não era muito freqüentado. A varanda principal onde quase todos ficavam era do outro lado, num ponto onde o promontório descia diretamente para o mar.

Vindo desse outro lado, surgiu naquele momento um ho­mem corado, de andar gingado, os punhos meio cerrados. Parecia um típico homem do mar, alegre e despreocupado.

— Não posso imaginar onde essa menina se meteu — dizia ele num tom de voz que ouvimos facilmente de onde estávamos. — Nick! Nick!

A Senhorita Buckley levantou-se.

— Sabia que iam ficar nervosos! — E virando-se para o rapaz, gritou: — George, estou aqui.

— Freddie está louca por um drinque.  Vamos logo.

O rapaz lançou um olhar de franca curiosidade para Poirot, que deveria ser completamente diferente do resto dos amigos de Nick.

A moça iniciou as apresentações.

— Este é o Comandante Challenger e este... — disse ela, indicando Poirot com um gesto de mão.

Para grande surpresa minha, Poirot não deu seu nome como ela esperava. Em vez disso, ele se levantou, cumpri­mentou cerimoniosamente e murmurou:

— Da Marinha Britânica, suponho. Tenho grande res­peito pela Marinha Britânica.

Este tipo de comentário não costuma agradar a um in­glês. O Comandante Challenger ficou mais vermelho ainda. Nick Buckley tomou conta da situação.

— Vamos logo, George. Não fique aí de boca aberta. Vamos procurar Freddie e Jim.

Ela sorriu para Poirot.

— Obrigada pelo drinque. Espero que seu tornozelo fi­que bom.                            

Com um cumprimento de cabeça para mim, ela deu o braço ao Comandante e desapareceram os dois em direção à outra varanda.

— Então esse é um dos amigos da moça — murmurou Poirot pensativo. — Faz parte daquele grupo alegre. Que acha você dele? Dê-me sua opinião de homem experiente, Hastings. Ele é o que você chama de “bom sujeito”?

Fiz uma pausa para tentar descobrir exatamente a opi­nião de Poirot sobre o que significava para mim ser “um bom sujeito”. Por fim, afirmei sem muita convicção:

— Ele parece ser “bom sujeito”, até onde se pode ver num encontro casual.

— Será mesmo?  — disse Poirot.

A moça tinha esquecido o chapéu. Poirot apanhou-o do chão e girou-o distraidamente no dedo.

— Você acha que ele tem uma certa queda por ela, Hastings?

— Meu caro Poirot, como poderia saber? Escute aqui: dê-me o chapéu. A moça vai sentir falta dele. Vou levá-lo para ela.

Poirot não prestou atenção ao meu pedido. Continuou a girar o chapéu lentamente no dedo.

— Ainda não. Isso me distrai.

— Ora, Poirot!

— Pois é, meu amigo, torno-me cada vez mais um ve­lho infantil, não é?

Suas palavras expressavam tão bem o que eu estava pen­sando que fiquei sem jeito.

Poirot deu uma risadinha e, curvando-se para a frente apoiou o dedo no lado do nariz.

— Não. Não pense que sou tão imbecil assim. Nós devolveremos o chapéu, é claro. Mais tarde, porém. Vamos levá-lo à Casa do Penhasco e assim teremos oportunidade de ver outra vez a encantadora Senhorita Nick.

— Poirot, creio que você se apaixonou.

— Ela é bonita, não é?

— Ora! Você já viu com seus próprios olhos.  Por que pergunta?

— Porque, afinal de contas, não posso julgar. Para mim, hoje em dia, qualquer jovem é bonita. Mocidade... Mocida­de... É a tragédia de meus dias. Mas será que devo pedir sua ajuda, Hastings? Sua opinião não é moderna naturalmente, tendo vivido tanto tempo na Argentina. O tipo de corpo de que você gosta é o de cinco anos atrás, mas de qualquer maneira, você é mais moderno do que eu. Ela é bonita, não é? E atrai os sexos também, não acha?

— Atrair só um sexo — o oposto — já é mais que sufi­ciente, Poirot. Sim, ela é muito atraente.  Por que está tão interessado na moça?

— Estou?

— Basta ver o que acabou de perguntar.

— Você não entendeu, meu amigo. Posso estar inte­ressado na moça, porém estou muito mais interessado no cha­péu dela.

Olhei para ele estarrecido, mas ele parecia falar sério.

— É, Hastings. Este chapéu aqui. Já notou a razão de meu interesse? — E ele me estendeu o chapéu.

— É um chapéu bonitinho — disse eu meio desnortea­do. — Mas é muito comum. Uma porção de moças tem chapéus como este.

— Como este em particular, não.

Examinei o chapéu mais minuciosamente.

— Já percebeu, Hastings?

— Um chapéu de feltro castanho, muito simples. Bom estilo...

— Não lhe pedi para descrever o chapéu. Está claro que você não percebeu. É incrível, meu pobre Hastings, como você quase nunca percebe as coisas. Espanto-me sempre com isso! Olhe meu caro imbecil, olhe! Não é preciso usar a massa cinzenta. Bastam os olhos. Olhe! Olhe com olhos de ver!

Finalmente vi o que ele estava tentando mostrar: o cha­péu girava devagar em seu dedo e esse dedo atravessava di­reitinho um furo na aba. Quando ele percebeu que eu ha­via notado o que desejava, tirou o dedo do buraco da aba e me estendeu o chapéu. Era um furinho pequeno, bem re­dondo, e eu não podia imaginar sua finalidade, se é que tinha alguma.

— Você observou como a Senhorita Nick se esquivou quando uma vespa passou voando perto dela? A abelha den­tro do boné e o furo no chapéu...

— Mas uma abelha ou uma vespa nunca poderiam fa­zer um buraco assim.

— Exatamente, Hastings. Que perspicácia! Naturalmente que não poderiam. Mas um tiro poderia, meu caro.

— Um tiro?

— Uma bala como esta.

Estendeu-me a mão em cuja palma se via um pequeno objeto.

— Uma bala disparada, meu amigo. Foi o que bateu no chão da varanda há pouco, quando conversávamos. Uma bala disparada!

— Você quer dizer que...

— O que quero dizer é que com uma polegada de dife­rença, o buraco não estaria na aba do chapéu e sim na ca­beça. Agora você percebe por que estou interessado; Hastings? Você acertou quando me disse que não usasse a palavra im­possível, meu amigo. É verdade: todos somos humanos. Mas o criminoso frustrado cometeu um erro grave quando atirou em sua vítima perto de Hercule Poirot. Para ele foi realmente má sorte.  Percebe agora por que precisamos ir à Casa do Penhasco e entrar em contato com a Senhorita Buckley? Por três vezes, em três dias, ela escapou da morte. Foi o que ela disse. Precisamos agir com rapidez, Hastings. O perigo é iminente.

 

A CASA DO PENHASCO

— Poirot — disse eu, — estive pensando.

— Um exercício admirável, meu caro. Continue prati­cando.

Era hora de almoço e estávamos sentados, um em frente ao outro, a uma mesa perto da janela.

— O tiro deve ter sido dado bem próximo a nós e, no entanto, não ouvimos nada.

— E você naturalmente pensa que, naquela tranqüilida­de e silêncio só quebrado pelo marulho das ondas, nós de­veríamos ter escutado, não é?

— Bem, de qualquer maneira, é estranho.

— Não, não é estranho. Você se habitua a determinados sons a tal ponto que sua menti nem os registra mais depois de certo tempo.Durante toda a manhã, lanchas cruzaram a baía: no princípio você reclamou, mas depois nem notou mais o ruído delas. Creio que o barulho dessas lanchas afogaria completamente os tiros de uma metralhadora.

— É. Você tem razão.

— Muito bem — murmurou Poirot. — Parece que a senhorita e seus amigos vão almoçar aqui. Portanto, preciso devolver o chapéu. Mas creio que o caso é suficientemente sério e exige uma visita especial.

Levantou-se agilmente, atravessou a sala rapidamente e, com uma mesura, entregou o chapéu no momento em que Nick Buckley e seus companheiros se sentavam.

Era um grupo de quatro: Nick Buckley, Comandante Challenger, e um outro casal. De onde estávamos, não se podia vê-los muito bem. De vez em quando a risada do Comandante ressoava. Ele parecia ser uma alma simples e agradável e me tinha conquistado a simpatia.

Meu amigo esteve calado e distraído durante nossa refei­ção. Esmigalhou o pão, falou baixinho consigo mesmo e ar­rumou tudo o que estava em cima da mesa. Tentei entabular uma conversa, não tive nenhum sucesso e desisti.

Poirot continuou sentado por longo tempo depois de ter­minar o queijo. Assim que o outro grupo deixou a sala, ele se levantou. Eles estavam-se acomodando a uma mesa na sala-de-estar quando Poirot marchou para eles, quase marcial-mente, e se dirigiu frontalmente a Nick.

— Senhorita, desejo falar-lhe.

A moça franziu a testa. Vi logo o que devia estar pen­sando. Ela receava que esse homenzinho esquisito viesse a ser um transtorno. Eu a compreendia muito bem, levando em conta as aparências. Quase involuntariamente, ela recuou um passo. Mas logo depois uma expressão de surpresa se estampou em seus olhos à medida que Poirot lhe falava bai­xinho .

Enquanto isso, eu não me sentia nada à vontade. Chal­lenger discretamente veio em meu socorro, oferecendo-me cigar­ros e fazendo comentários sem conseqüências. Nós nos tínha­mos avaliado mutuamente e a simpatia era recíproca. Creio que eu fazia mais seu gênero do que o homem com quem ele havia almoçado e que somente agora eu podia observar bem. Era um rapaz alto, claro, refinado, com o nariz um pouco largo. Um tanto bonito demais na minha opinião. Tinha um ar arrogante e a voz arrastada: o que mais me desagradou porém foi sua polidez exagerada.

Olhei então para a mulher. Estava sentada de frente para mim numa poltrona grande. Acabava de tirar o chapéu. Não era um tipo comum — uma Madona cansada a descreveria bem. Usava os cabelos louros quase sem cor, repartidos no meio, em coque sobre a nuca e cobrindo as orelhas. Seu rosto era pálido e macilento porém curiosamente atraente. Os olhos com pupilas grandes, de um cinzento bem claro, olha­vam-me fixamente. Tinha um ar distante. De repente ela se dirigiu a mim.

— Sente-se até que seu amigo termine com Nick.

Era uma voz afetada, lânguida, artificial, mas que possuía um curioso poder de atração, uma espécie de ressonância que permanecia como que suspensa no ar. A mulher me dava a impressão de ser a pessoa mais fatigada que eu já tinha visto: mentalmente cansada, não fisicamente. Era como se ela achasse tudo no mundo vazio e sem finalidade.

— A senhorita Buckley muito gentilmente auxiliou meu amigo esta manhã quando ele torceu o pé — expliquei en­quanto me sentava.

— É, ela me disse. — Os olhos me examinaram, ainda com ar distante. — Não me parece haver nada de errado com o pé dele agora.

Senti-me encabulado.

— Foi somente uma distensão momentânea — expli­quei.

— Ainda bem. Pensei que Nick tivesse inventado toda essa história. Ela é a maior mentirosazinha que Deus já colo­cou na terra! É espantosa sua imaginação: é como se fosse um dom especial.

Eu nem sabia o que dizer e meu embaraço parecia di­verti-la.

— Nick é uma de minhas amigas mais antigas — disse ela, — e eu sempre achei que lealdade é uma virtude muito cansativa. Principalmente quando é observada pelos escoceses, como a usura e o Sabath. Mas Nick é mesmo mentirosa, não é, Jim? Lembra-se daquela história dos freios do carro? E afinal os freios funcionavam muito bem, segundo disse o Jim.

— Entendo alguma coisa a respeito de carros — disse o homem louro com uma voz macia. Ele olhou para fora. Entre os outros, estava um carro vermelho e longo. Parecia mais longo e mais vermelho que qualquer carro comum. A capota era de metal polido. Um supercarro.

— É seu aquele carro? — perguntei.

Ele confirmou com um gesto de cabeça:

— É sim.

Tive um ímpeto quase irresistível de dizer: só podia ser!

Naquele momento Poirot aproximou-se de nós. Levan­tei-me, ele tomou-me pelo braço e, com um cumprimento de cabeça para os outros, levou-me rapidamente para longe.

— Já está tudo combinado, meu amigo. Vamos visitar a senhorita na Casa do Penhasco às seis e meia. Ela já terá voltado do passeio a essa hora. Creio que já terá voltado e com saúde perfeita, espero.

Sua expressão era de ansiedade e o tom preocupado.

— Que lhe disse você, Poirot?

— Pedi a ela que me concedesse uma entrevista assim que pudesse. Ela não gostou muito da idéia, é claro. Está se perguntando — e eu quase posso ver as dúvidas em sua mente: “Quem é este homenzinho? Será um aproveitador? Um oportunista? Um diretor de cinema?” Se ela pudesse re­cusar, ela o faria — continuou Poirot. — Mas é difícil, as­sim de repente. Por isso pedi a entrevista como se fosse uma idéia de momento, e ela consentiu, dizendo que estaria de volta às seis e meia.

Respondi então que tudo parecia bem encaminhado, mas Poirot não parecia concordar. Ele estava mais agitado que um gato assustado. Passeou para lá e para cá em nosso apar­tamento durante toda a tarde: falava sozinho sem cessar, ges­ticulava e rearranjava tudo que já estava arrumado. Quando eu lhe dirigia a palavra, ele abanava as mãos e sacudia a cabeça.

Finalmente saímos do hotel quando não eram nem seis horas ainda.

— Parece incrível — disse eu, enquanto descíamos, — que tentem matar alguém no jardim de um hotel. Só um lou­co faria uma coisa dessas.

— Não concordo — disse Poirot. — Nas condições pre­sentes parece-me bastante seguro. Para começar, o jardim es­tá sempre deserto. As pessoas que se hospedam em hotéis são como rebanhos de carneiros: se o hábito é sentar-se virado para o mar, todo mundo se senta virado para o mar. Só eu, que sou original, sentei-me virado para o jardim. E mesmo assim, não vi nada. Há muita cobertura: árvores, pal­meiras, touceiras floridas. Qualquer pessoa poderia esconder-se confortavelmente e esperar, sem ser visto, que a Senhorita Buckley passasse por aqui. E ela viria sem a menor sombra de dúvida. Vir pela estrada da Casa do Penhasco ficaria mui­to mais distante e ela é do tipo que está sempre atrasado e por isso prefere os atalhos mais curtos.

— De qualquer maneira, o risco é enorme. Ele pode­ria ser visto e você não pode fazer uma tentativa de morte parecer um acidente, assim sem mais nem menos.

— Não, não. Acidente não.

— Que quer dizer com isso?

— Nada, nada. É só uma idéia que me ocorreu e pode não ser verdadeira. Deixando essa discussão de lado por en­quanto, há algo que mencionei antes: uma condição essen­cial.

— E qual é?

— Ora, Hastings, diga-me você. Qual é?

— Eu não lhe tiraria o prazer de me fazer de idiota, Poirot.

— Ah! Sarcasmo! Ironia! Mas vou dizer-lhe: o que sal­ta aos olhos é que o motivo não poderia ser óbvio. Se fosse, então o risco seria grande demais. As pessoas diriam: “Será que não foi Fulano? Onde andava Fulano no momento dos tiros?” Não, não. O assassino, ou assassino em perspectiva, não pode ser óbvio. E é por isso, Hastings, que estou tão assustado. Procuro acalmar-me lembrando-me de que são qua­tro no passeio. Nada pode acontecer se os quatro ficarem juntos. Seria loucura do assassino! Mas mesmo assim tenho medo: preciso saber mais sobre esse “acidente”.

Poirot voltou-se abruptamente.

— É muito cedo — disse ele. — Vamos pela estrada da casa. O jardim já não oferece novidade. Vamos examinar o caminho ortodoxo para a Casa do Penhasco.

Saímos pelo portão principal do hotel, subimos uma es­cadaria íngreme e lá em cima havia um caminhozinho com uma tabuleta: “Exclusivamente para a Casa do Penhasco.”

Seguimos pela trilha e, depois de algumas centenas de metros, havia uma curva abrupta e logo chegamos a uns portões caindo de velhice, que bem precisavam de uma pin­tura, pelo menos.

Do lado de dentro, à direita, havia um chalé. Este chalé era um contraste gritante com os portões e o caminho cober­to de capim. As janelas pintadas recentemente ostentavam cortinas novas e limpas. O jardim viçoso parecia agradecer os cuidados constantes de alguém.

De fato, curvado sobre um canteiro, via-se um homem com uma jaqueta desbotada. Levantou-se e virou-se quando ouviu o ranger dos portões. Era um homem de seus sessenta anos, um metro e oitenta pelo menos, forte e com o rosto marcado pelas intempéries. Era quase completamente careca. Os olhos eram azuis e vivos. Parecia uma boa alma.

— Boa tarde — cumprimentou ele.

Respondi-lhe. Enquanto seguíamos pelo caminho, eu ti­nha consciência daqueles olhos azuis examinando inquisitiva­mente nossas costas.

— Estou imaginando... — disse Poirot pensativamente.

Calou-se e não deu a menor explicação sobre o que po­deria estar imaginando.

A casa era grande e sombria. Grandes árvores a cerca­vam e os galhos maiores chegavam a tocar o teto. Precisava urgentemente de consertos. Poirot examinou a casa, avaliando-a, antes de tocar a campainha. Era uma campainha anti­ga que só tocava depois de feitos esforços hercúleos para puxar a corda. Quando começava a tocar não parava mais.

Uma senhora de meia-idade abriu a porta. Eu a clas­sifiquei imediatamente como “uma senhora decente vestida de preto”. Muito respeitável, bastante lúgubre e completa­mente desinteressante.

A Senhorita Buckley ainda não tinha voltado, disse ela. Poirot explicou que nós tínhamos um encontro marcado, no que teve certa dificuldade, pois ela era do tipo que desconfia de estrangeiros. Sinto-me envaidecido em declarar que fui quem conseguiu algum resultado com ela. Deixou-nos en­trar afinal e nos levou até à sala para esperarmos a Senho­rita Buckley.

A sala não tinha nada de triste. Dava para o mar e estava inundada de sol. O mobiliário era ordinário em parte e mostrava uma mistura de estilos: moderno barato e vito­riano de boa qualidade. As cortinas eram de brocado desbo­tado. Os estofados eram novos e alegres e as almofadas com­pletamente alucinantes. Por toda parte, nas paredes, retratos de família. Alguns até bons. Havia uma vitrola e uns discos largados em volta. Um rádio portátil. Livro, praticamente nenhum. Só um jornal aberto no canto do sofá. Poirot apa­nhou o jornal e largou-o imediatamente, com uma careta. Era o semanário de Saint Loo. Algo o fez apanhar o jornal ou­tra vez. Lia uma coluna quando Nick Buckley entrou.

— Traga gelo, Ellen — gritou ela por cima do ombro. Depois dirigiu-se a nós.

— Bem, aqui estou. Livrei-me de todos os outros e es­tou morrendo de curiosidade. Serei a futura heroína de al­gum filme? O senhor parecia tão solene que achei logo que não poderia ser outra coisa. Faça-me uma proposta bem van­tajosa!

— Quisera eu, senhorita... — começou Poirot.

Por favor não me diga que é o inverso — implorou ela. — Não diga que o senhor pinta miniaturas e quer que eu compre uma. Mas, não. Não pode ser. Com esse bigode e hospedando-se no Majestic, que serve a pior e mais cara comida da Inglaterra, simplesmente não pode ser!

A mulher que abrira a porta para nós entrou com uma bandeja cheia de garrafas e um balde de gelo. Nick preparou os coquetéis ainda falando sem parar. Creio que, ao cabo de certo tempo, o silêncio de Poirot a impressionou. Ela pa­rou quando enchia os copos e disse meio agressiva:

— Então? Que deseja?

— Desejo que tudo acabe bem, senhorita. — Ele apa­nhou o copo que ela oferecia e continuou: — À sua saúde duradoura.

A moça não era tola e percebeu que havia algo no tom de voz de Poirot:

— Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu sim, senhorita. Isto...

Ele estendeu a bala para ela na palma da mão aberta. Com a testa franzida, ela apanhou a bala.

— Sabe o que é? — indagou Poirot.

— É claro que sei! Uma bala disparada.

— Exatamente, senhorita. Não foi uma vespa que pas­sou perto de seu rosto hoje de manhã. Foi esta bala.

— O senhor quer dizer que há um idiota atirando nas pessoas no jardim de um hotel?

— É. Parece que sim.

— Por Deus do céu! — disse Nick. — Parece que mi­nha vida é enfeitiçada mesmo. É a tentativa número quatro.

— Eu sei — disse Poirot. — Essa foi a número quatro. Quero saber sobre as outras três.

Ela olhou para ele.

— Quero estar certo — continuou Poirot, — de que foram meros acidentes.

— Mas claro que foram! Que mais poderiam ser?

— Senhorita, prepare-se, por favor, para um grande choque: alguém está tentando matá-la?

A resposta foi uma risada gostosa. A idéia parecia di­verti-la enormemente.

— Que coisa formidável!  Caro senhor, quem poderia querer matar-me? Não sou nenhuma herdeira cuja morte sol­taria milhões. Até que seria interessante se alguém me qui­sesse matar! Seria magnífico, mas infelizmente não há a me­nor esperança disso acontecer.

— A senhorita me contará como foram os acidentes? insistiu Poirot.

— Claro! Mas não têm a menor importância! Foram tão idiotas! Por exemplo: há um quadro muito pesado na parede bem em cima de minha cama. Uma noite o quadro caiu, mas por acaso eu tinha ouvido uma porta bater em algum lugar da casa e fui verificar. E escapei. Se não fosse isso o quadro me teria esmagado a cabeça. Esse foi o pri­meiro acidente.

Poirot nem sorriu.

— Continue, senhorita. Passemos ao segundo.

— Esse foi mais bobo ainda. Existe um caminho difícil

entre os rochedos para descer até o mar. Sempre desço por ali Há uma pedra de onde mergulho. Não sei como, um pedregulho se soltou, desceu em avalancha e quase me atin­giu. O terceiro acidente foi bem diverso. Houve algo de er­rado com os freios do carro, não sei bem o quê. O mecânico me explicou mas não entendi nada. Em todo caso, se eu tivesse atravessado os portões, nada poderia segurar o carro na descida e eu teria ido de encontro ao edifício da Prefei­tura. Seria uma batida e tanto: ligeiras escoriações na fa­chada da Prefeitura e completa destruição do carro e da mo­torista, no caso, eu mesma. O que me salvou dessa é que sou muito distraída e tinha voltado para buscar alguma coisa que tinha esquecido em casa. Só bati contra a cerca viva de loureiros.

— E a senhorita não conseguiu saber o que houve com os freios? — indagou Poirot.

— O senhor pode perguntar na oficina do Mott. Eles sabem. Era coisa simples. Parece que um parafuso estava frouxo. Na hora pensei que o filho de Ellen — aquela que abriu a porta para vocês — tivesse mexido no motor. Garotos adoram carros. Mas Ellen jurou de pés juntos que o menino nem tinha chegado perto do automóvel. Acho que o para­fuso afrouxou sozinho, apesar de Mott ter dito que alguém o tinha soltado.

— Onde é a garagem, senhorita?

— Do outro lado da casa.

— Está sempre trancada?

Os olhos de Nick arregalaram-se.

— Claro que não!

— Então qualquer pessoa poderia mexer em seu carro sem ser vista?

— Acho que sim. Mas isso tudo é tão ridículo!

— Não, senhorita. Não é nada ridículo. A senhorita não compreende que está em perigo? E perigo grave? E sou eu quem lhe diz isso. Sabe quem sou eu?

— Não. Quem? — perguntou Nick assustada.

— Sou Hercule Poirot.

— Ah! sei — disse Nick num tom sem grande expres­são. — Sei, sim.

— A senhorita conhece meu nome?

— Sem dúvida, Sr. Poirot.

Ela se mexeu um pouco sem jeito. Uma expressão ame­drontada apareceu-lhe nos olhos. Poirot a observava atenta­mente.

— A senhorita não está à vontade. Isto quer dizer que não leu meus livros.

— Bem, na verdade, não. Todos não. Mas conheço o nome.

— A senhorita é uma mentirosa muito gentil.

Tive um sobressalto lembrando-me do que me dissera aquela mulher com ar de madona fatigada, no Hotel Ma­jestic, horas antes, depois do almoço.

— Esqueci-me de que é muito jovem — prosseguiu Poi­rot. — Não, não deve ter ouvido falar de mim. A fama é passageira. Meu amigo, Hastings, pode falar-lhe sobre mim.

Nick virou-se para mim. Pigarreei um pouco encabulado.

— O senhor Poirot é... quero dizer, foi... um grande detetive — gaguejei.

— Mas, meu amigo! Isto é tudo que sabe dizer sobre o grande Poirot? Vamos! Diga à senhorita que sou um dete­tive sem rival, inigualável, o maior de todos os tempos.

— Agora é inteiramente desnecessário. Você mesmo aca­bou de lhe dizer — respondi-lhe.

— Sim, é verdade. Mas é bem mais agradável poder preservar sua modéstia. Ninguém deve tecer loas a si mesmo.

— Nunca se deve ter um cachorro e ser obrigado a latir por ele — concordou Nick caçoando. — Por falar nisso, quem é o cachorro? Dr. Watson, suponho?

— Meu nome é Hastings — disse-lhe eu friamente.

— Batalha de...1066 — disse Nick. — Quem disse que não tenho cultura? Acho tudo isso maravilhoso. O senhor acha mesmo que alguém quer livrar-se de mim? Seria emocionante! Mas estas coisas não acontecem de verdade. Só nos livros. Acho que o Sr. Poirot é como um cirurgião que inventou um tipo de intervenção ou então um médico que descobriu uma doença desconhecida e agora deseja que to­dos estejam contaminados.

— Pelo amor de Deus! — gritou Poirot. — Não pode falar sério? Será que nada parece suficientemente sério à ju­ventude de hoje? Creio que não seria uma piada muito en­graçada se fosse agora um defunto, sem dúvida muito lindo, no gramado do hotel. E na sua bonita cabecinha um buraco bem feito, em vez do chapéu. Não lhe parece hilariante, se­nhorita?

— Risadas de outro mundo seriam ouvidas em alguma sessão — disse Nick. — Seriamente, Sr. Poirot, é muito gen­til de sua parte, mas tudo isso não passou de um acidente.

— Você é teimosa como o diabo!

— É daí que vem meu nome. O povo acredita que meu avô vendeu a alma ao demônio. Todos o chamavam de Ve­lho Nick. Ele era um velho mau, mas muito engraçado. Eu o adorava. Andava por todo lado com ele e então come­çaram a nos apelidar de Velho Nick e Jovem Nick. Meu nome verdadeiro é Magdala.

— É um nome pouco comum.

— É uma espécie de nome de família. Existem montes de Magdalas na família Buckley. Olhe uma ali — e ela apontou para um retrato na parede.

— Ah! Sim — disse Poirot. Olhando então para um retrato sobre a lareira, perguntou: — É seu avô?

— É ele sim. O retrato chama a atenção, não é? Jim Lazarus quis comprá-lo, mas eu não quis vender. Gosto mui­to do Velho Nick.

— Claro, claro — disse Poirot. — Mas voltemos a nos­so assunto. Escute, senhorita, peço-lhe encarecidamente que leve isso a sério. A senhorita está em perigo. Hoje alguém a alvejou com uma pistola Mauser e...

— Uma pistola Mauser?  — interrompeu ela. Parecia surpresa.

— Foi. Por quê? Conhece alguém que possua uma Mau­ser?

Ela sorriu.

— Eu mesma tenho uma.

— A senhorita?

— Sim. Era de papai. Ele a trouxe de volta da guerra. Anda por aí pela casa desde então. Eu a vi noutro dia na­quela gaveta.

Nick mostrou uma secretária antiga. De repente, como se lhe ocorresse uma idéia, foi até lá e abriu a gaveta. A voz tinha mudado de tom, quando disse:

— Desapareceu!

 

ACIDENTES OU TENTATIVAS DE HOMICÍDIO?

Daquele momento em diante a conversa mudou de tom. Até então, Poirot e a moça vinham tendo opiniões divergen­tes. Afinal estavam separados por um abismo no tempo: ela nem sequer tinha ouvido falar nele ou na fama que o ro­deava. Era da geração a quem só o presente importa. Por­tanto, todas as advertências dele em nada a tinham impres­sionado. Nick considerava Poirot um velhinho estrangeiro um tanto cômico e com tendências melodramáticas.

E esta atitude deixava meu amigo completamente per­plexo. Para começar, sua enorme vaidade estava ferida. Ele sempre dizia que o mundo inteiro sabia da existência de Her­cule Poirot.

E ali estava alguém que nem ouvira falar dele. Bem feito, pensava eu comigo mesmo. Mas essa ignorância em na­da ajudaria Nick Buckley.

Com o desaparecimento da pistola, porém, o caso pas­sou a um outro plano. Nick deixou de se referir aos aciden­tes como a piadas divertidas. Ela ainda considerava o assun­to com uma certa leviandade porque este era seu hábito e sua maneira de encarar a vida mas havia uma mudança evi­dente em sua atitude.

Ela voltou para perto de nós e se sentou no braço da Poltrona, com ar preocupado, a testa franzida.

— Estranho — disse.

Poirot virou-se para mim imediatamente.

— Lembra-se, Hastings, daquela idéia de que lhe falei? Estava certo! Suponha que o corpo da senhorita tivesse sido encontrado no jardim do hotel. Levariam algumas horas para encontrá-lo, pois pouquíssimas pessoas passam por ali. Ao lado de sua mão — caída no chão — sua própria pistola. Não tenho a menor dúvida de que a boa senhora Ellen iden­tificaria a arma. Haveria sugestões, é claro, quanto à causa da tragédia: preocupações demasiadas, insônia...

Nick se mexeu meio apreensiva.

— É verdade. Ando preocupadíssima. Todo mundo me diz que ando nervosa. Ficam todos dizendo que...

— O veredicto do suicídio seria fácil. As marcas digi­tais convenientemente à vista. Só as dela, de ninguém mais, é claro. Seria tudo muito simples e convincente.

— Como seria divertido! — disse Nick, mas não como se achasse mesmo o quadro terrivelmente divertido.

Poirot porém interpretou as palavras dela no sentido li­teral .

— Não é mesmo? Mas é preciso que compreenda, se­nhorita, que não haverá mais falhas. Quatro fracassos, sim, mas a quinta vez deverá ser bem sucedida.

— Traga o coche mortuário! — murmurou Nick.

— Mas nós estamos aqui, meu amigo e eu, para impe­dir isso!

Senti-me agradecido por aquele “estamos”. Poirot sem­pre teve o hábito incômodo de ignorar minha presença.

— É verdade, Senhorita Buckley — interpus. — Não fique alarmada. Nós a protegeremos.

— É muito gentil de sua parte — disse Nick. — Acho tudo isso perfeitamente maravilhoso. Muito, muito emocionante.

Ela ainda conservava o ar leviano e superior, mas os olhos traíam inquietação.

— A primeira coisa a fazer — disse Poirot — é um interrogatório.

Ele se sentou e sorriu para a moça com certo carinho.

— Para começar, senhorita, uma pergunta convencio­nal: tem inimigos?

Nick sacudiu a cabeça como se lamentasse a ausência de inimigos.

— Acho que não — disse, como que se desculpando.

— Ótimo. Isto está fora então. A pergunta seguinte é a do detetive de cinema e de livros policiais: quem se bene­ficiaria com sua morte?

— Não faço a menor idéia — disse Nick. — E é por isso que acho tudo um absurdo. Naturalmente há este ce­leiro velho, mas a casa está hipotecada até o último tostão e, além disso, entra água pelo telhado. A não ser que haja uma mina de carvão, ou coisa parecida, escondida nos ro­chedos do terreno.

— Ah! Está hipotecada?

— Pois é. Tive de hipotecá-la. Para pagar as despesas da morte de meu avô há seis anos, e de meu irmão, mais re­centemente. As mortes foram muito próximas uma da outra e isso acabou com o equilíbrio financeiro que já não era lá essas coisas.

— E seu pai?

— Ele era inválido de guerra. Depois teve pneumonia e morreu em 1919. Minha mãe morreu quando eu ainda era bebê. Eu vivia aqui com meu avô. Ele e papai não se en­tendiam, então papai resolveu deixar-me com meu avô e vagabundear pelo mundo por conta própria. Gerald, meu ir­mão, também não se dava com meu avô. Acho que, se eu fosse menino, também não me entenderia com o velho. A minha sorte foi ser menina. Meu avô costumava dizer que eu era a única que tinha herdado seu temperamento. Ele era um solitário, creio. Tinha uma sorte tremenda. Diziam que tudo que ele tocava transformava-se em ouro. Mas era um jogador e perdeu tudo que tinha. Quando morreu não deixou quase nada além da casa e do terreno. Eu tinha dezesseis anos e Gerald vinte e dois. Gerald também morreu há três anos, num desastre de automóvel, e eu herdei a casa.

— Além da senhorita, ainda existe alguém da família?

— Meu primo Charles. Charles Vyse. É advogado. Bom profissional, de valor, mas muito maçante. Ele é meu conse­lheiro e tenta impedir minhas extravagâncias.

— Toma conta de seus negócios?

— É, creio que se pode definir assim. Não tenho mui­tos negócios: ele providenciou a hipoteca e me fez alugar o chalé da entrada.

— Ah! sim! o chalé! Ia perguntar-lhe a respeito dele. Está alugado?

— Está sim. Os inquilinos são uns australianos.  Cha­mam-se Croft.  Muito saudáveis, sabe? Amáveis demais. Vi­vem trazendo aipo, ervilhas e coisas assim. Ficam chocadíssimos com o estado de meu jardim. Eles me aborrecem; pelo menos ele. Ela é doente, coitada: fica deitada num sofá o dia inteiro. Mas eles pagam o aluguel pontualmente, e isso é uma grande coisa.

— Há quanto tempo estão aqui?

— Mais ou menos uns seis meses.

— Sei, sei. Agora diga-me: além desse primo seu... a propósito: ele é do lado materno ou paterno?

— Materno. Minha mãe era Amy Vyse.

— Ótimo! Mas como ia dizendo, além desse primo seu, tem outros parentes?

— Uns primos afastados em Yorkshire. Buckleys tam­bém.

— Ninguém mais?

— Não que eu saiba.

— Isto a torna muito só.

Nick olhou para ele surpresa.

— Só? que idéia engraçada! Não venho muito freqüen­temente para cá. Fico em Londres. Famílias são como pragas. Interferem demais na vida da gente. É muito melhor ficar sozinha em Londres.

— Não estamos muito de acordo, senhorita. Suas opi­niões são modernas demais para mim. Agora, a respeito da mordomia aqui.

— Mordomia! Como soa importante! Ellen é a mordo­mia... E há o marido dela que é uma espécie de jardineiro. Diga-se de passagem que, como jardineiro, ele não é lá essas coisas. Pago muito pouco porque o menino deles mora aqui com eles. Ellen faz todo o serviço quando estou aqui. Quando quero dar uma festa, arranjamos quem venha ajudar. Vou dar uma na segunda-feira.  É a semana da regata, sabia

— Segunda-feira... e hoje é sábado — disse Poirot pensativo. — Agora fale-me a respeito de seus amigos. Aque­les com quem almoçava hoje, por exemplo.

— Bem, deixe-me ver... Freddie Rice, a moça loura, é minha maior amiga. Teve uma vida miserável. Casou-se com um animal que andava sempre bêbado e tomava drogas. Ain­da por cima era homossexual. Ela o deixou há um ano ou dois atrás. Desde então ela anda viajando sem destino. Gos­taria muito se ela se divorciasse e se casasse com Jim Lazarus.

— Lazarus? O negociante de arte em Bond Street?

— É sim, Jim é filho único. Tem dinheiro à beça. Já viu o carro dele? E ele está apaixonado por Freddie. Andam juntos por toda parte. Estão hospedados no Majestic du­rante o fim de semana e na segunda-feira vêm para cá ficar comigo.

— E o marido da Sra. Rice?

— Aquele vigarista? Desapareceu de circulação. Nin­guém sabe onde anda. E isso é muito embaraçoso para Fred­die. Não se pode pedir divórcio de um homem cujo para­deiro se ignora.

— Evidentemente!

— Coitada da Freddie! — disse Nick pensativa. — De­finitivamente não tem sorte! Houve uma ocasião em que tudo já estava combinado. Ela falou com ele e ele concordou. Como não tinha dinheiro nenhum — nem para levá-la para um hotel — Freddie emprestou-lhe o necessário. Pois bem, assim que pôs as mãos no dinheiro, ele desapareceu. Até hoje ninguém sabe dele. Não é horrível?

— Meu Deus! — exclamei.

— O amigo Hastings ficou chocado — disse Poirot. — A senhorita precisa ter mais tato quando falar com ele. Tor­nou-se um pouco obsoleto depois que viveu algum tempo fora daqui, nos grandes espaços abertos do estrangeiro, de onde acaba de retornar. Hastings terá de aprender os modismos atuais.

— Eu não disse nada que pudesse chocar ninguém — disse Nick, os olhos arregalados. — Acho que todos sabem que existem pilantras assim. De qualquer maneira, foi um golpe muito sujo. A pobre Freddie quase não tinha dinhei­ro e depois ficou a ver navios, sem saber para onde se virar.

— É, tem razão. Não me parece um negócio muito limpo. Conte-me agora a respeito de seu outro amigo, o simpá­tico Comandante Challenger.

— George? Parece que o conheci a vida inteira. Bem, pelo menos há cinco anos. George tem alma de escoteiro. É um bom sujeito.

— Ele quer casar-se com a senhorita, não é verdade?

— Bem, de vez em quando ele resolve falar nisso. Sabe como é: de madrugada, depois de uma boa noitada ou então depois que já bebeu umas e outras.

— Mas a senhorita mantém-se firme como uma rocha...

— Ora! Qual seria a vantagem de nos casarmos, eu e George? Nenhum de nós tem um tostão.  E além disso, ele cansa qualquer um com aquela mania de “velhos e bons tem­pos”. E afinal de contas, não é um rapaz. Deve andar pe­los quarenta.

A observação me fez vacilar.

— Realmente, ele já está com o pé na sepultura — dis­se Poirot. — Não, não. Não pense que me ofendi, senhorita. Nem entro em linha de conta, pois já sou avô... Agora con­te-me mais a respeito dos acidentes. O do quadro, por exem­plo.

— Está no lugar outra vez, com outro arame. Venha ver, se quiser.

Ela nos levou para outra parte da casa. Lá estava o quadro bem em cima da cabeceira da cama. Era um óleo, com uma moldura pesadíssima.

— Com licença — murmurou Poirot, tirando os sapa­tos e subindo na cama. Ele examinou o quadro e o arame de sustentação. Experimentou também o peso do quadro. Com uma careta, desceu em seguida.

— Não deve ser nada agradável receber este peso na cabeça, senhorita. Diga-me: o que sustentava o quadro antes do acidente? Era um arame revestido de pano, como este?

— Era sim, mas não tão grosso. Comprei um bem mais grosso desta vez.

— É bastante compreensível. A senhorita chegou a exa­minar as extremidades do outro para ver se estavam esfiapadas?

— Acho que sim, mas não notei nada demais. Será que deveria?

— Exatamente como diz, senhorita. Por que deveria? Mas eu gostaria muito de ver o pedaço de arame. Ainda estaria aqui pela casa?

— Quando colocaram o arame novo, o antigo ainda es­tava no lugar. Acho que o homem que veio trocar jogou fora o antigo.

— É uma pena. Gostaria muito de vê-lo.

— O senhor não acredita mesmo que tenha sido um acidente? Não pode ter sido outra coisa.

— Pode ser que tenha sido um acidente.  É impossível dizer com certeza. Mas, e os freios de seu carro? Também foi um acidente? E a pedra que rolou encosta abaixo? Aliás, gostaria de ver o lugar exato em que esse “acidente” ocorreu.

Nick nos levou para fora, através do jardim, até a bei­rada do penhasco. O mar azul faiscava lá embaixo. Um ca­minho áspero descia pelos rochedos e Nick mostrou exata­mente onde o acidente tinha ocorrido. Poirot sacudiu a cabe­ça pensativamente e perguntou:

— Quantos caminhos há, que vão até seu jardim?

— Existe a entrada principal, passando pelo chalé e a entrada de serviço que é uma porta lateral. Há também um portão perto daqui, junto ao penhasco, por onde passa uma trilha que vai desde aquela praia ali embaixo até o Hotel Majestic. Passando por um buraco na cerca viva, o senhor sai diretamente no jardim do hotel. Foi por lá que eu entrei de manhã. Aliás, para ir à cidade é o caminho mais curto.

— E seu jardineiro, onde é que trabalha?

— Bem, normalmente ou ele faz que trabalha na horta ou então fica sentado no abrigo dos vasos fingindo que amola a tesoura do jardim.

— Do outro lado da casa?

— É, sim.

— De modo que se alguém vier até aqui e soltar uma pe­dra, pode perfeitamente passar despercebido, não é?

Nick estremeceu.

— O senhor... o senhor acha mesmo que foi o que aconteceu? — perguntou ela. — Não consigo acreditar nis­so. É tudo tão sem propósito.

Poirot tirou a bala do bolso e olhou para ela.

— Isto aqui não foi tão sem propósito, senhorita.

— Deve ter sido um louco!

— Talvez. Seria um bom tópico para conversa depois do jantar: serão todos os criminosos loucos? Quem sabe se não há um defeito qualquer nas células cinzentas de todos eles? Pode ser até verdade. Mas isso é coisa para médicos e não para mim. Meu trabalho é diferente. Tenho de pensar nos inocentes e não nos culpados; na vítima e não no cri­minoso. É na senhorita que penso, e não no atacante. A se­nhorita é jovem e bonita, o sol brilha no céu, o mundo é bom, e existe vida e amor. É em tudo isso que penso, se­nhorita. Diga-me: esses amigos seus, Sra. Rice e Sr. Lazarus, há quanto tempo estão aqui?

— Freddie chegou na quarta-feira. Ela ficou em Tavistock por uns dias, com uns amigos que encontrou por lá. Chegou só ontem. Jim estava de turista por aí antes da chegada dela, creio eu.

— E o Comandante Challenger?

— Ele fica em Devonport. Vem para cá de carro sem­pre que pode. Em geral nos fins de semana.

Poirot balançou a cabeça. Íamos de volta para a casa, em silêncio, quando ele perguntou de repente:

— A senhorita tem alguma amiga em quem possa con­fiar?

— Tenho a Freddie — respondeu Nick.

— E além da Sra. Rice?

— Não sei. Nunca pensei nisso. Devo ter sim. Por quê?                                                                        

— Porque quero que chame uma amiga para lhe fazer companhia aqui, imediatamente.

Nick assustou-se visivelmente. Ficou em silêncio duran­te alguns segundos, pensativa. Depois disse:

— Existe Maggie, é claro. Creio que poderia chamá-la.

— Quem é Maggie? — perguntou Poirot.

— Uma prima de Yorkshire. Pertence a uma família enorme. Ele é pastor. Maggie é mais ou menos de minha idade e vem, vez por outra, ficar comigo no verão. In­felizmente não é muito divertida: pura demais, sofridamente pura... Daquelas cujo penteado fica na moda por mero acaso. Este ano ela não fazia parte de meus planos.

— Em absoluto. Preciso de sua prima aqui com a se­nhorita. Ela é exatamente o tipo de pessoa em que eu es­tava pensando.

— Vá lá — disse Nick com um suspiro. — Vou tele­grafar para ela. Não consigo pensar em mais ninguém além de Maggie. Todos já têm programa. Se não tiver qual­quer festa de caridade ou de igreja, virá, com certeza.

— Quero que ela durma em seu quarto.

— Darei um jeito — respondeu Nick.

— Será que ela não vai achar estranho esse pedido? — perguntou Poirot.

— Que nada! Maggie nunca raciocina sobre coisa al­guma. Ela apenas faz as coisas. Sabe como é: trabalho cris­tão, com fé e perseverança. Mas voltando ao nosso assunto, vou telegrafar para ela na segunda-feira.

— Por que não amanhã?

— Com os trens de domingo? Ela vai pensar que meu estado é gravíssimo se fizer isso — respondeu Nick. — Não, segunda-feira está bem. — E continuou, melodramática, em tom de caçoada: — O senhor vai contar a respeito dos horri­pilantes atentados e da ameaça que paira como uma nuvem negra sobre meu pobre destino?

— Veremos, veremos.  A senhorita ainda acha muito engraçado, não é? Pelo menos vejo que é corajosa. É uma grande coisa.

— De qualquer maneira é uma mudança na rotina de todos os dias — disse Nick.

Alguma coisa nó tom da voz dela me deu a impressão curiosa de que escondia algum pormenor. Já estávamos na sala-de-estar outra vez. Poirot folheava o jornal que estava no sofá.

— A senhorita lê isto?  — perguntou subitamente.

— O semanário de Saint Loo? Não levo o jornal mui­to a sério, mas ele dá o movimento das marés todas as se­manas.

— Sim, sim — disse ele reticente.

— Mudando completamente de assunto, senhorita: já fez algum testamento?

— Fiz sim. Há seis meses mais ou menos, pouco antes de minha operação.

— Como? Operação? Uma intervenção cirúrgica?

— Sim. Apendicite. Alguém me disse que deveria fa­zer antes um testamento. Então eu fiz. Senti-me tão impor­tante que nem imagina!

— E quais são os termos de seu testamento?

— Deixei a Casa do Penhasco para Charles. Não pos­suo muito mais do que isso, mas o resto todo deixei para Freddie. Como se diz, o passivo parece exceder em muito o ativo...

Poirot balançou a cabeça distraído.

— Vou-me embora agora, senhorita. Tome muito cui­dado.

— Com quê?

— A senhorita é inteligente. Realmente este é o nosso ponto fraco: com quê? Quem sabe? Mas confie em mim. Dentro de poucos dias eu lhe darei a solução.

— Até então, cuidado com veneno, bombas, tiros, aci­dentes de carro e flechas embebidas em curare — continuou Nick num tom de caçoada outra vez.

— Não brinque, senhorita! — disse Poirot muito sério.

Ele parou quando chegou à porta:

— Quando disse que o Sr. Lazarus ofereceu pelo re­trato de seu avô?

— Cinqüenta libras.

— Ah! sim — disse Poirot

Meu amigo examinou novamente o rosto moreno e sombrio em cima da lareira.

— Mas como já lhe disse — continuou Nick, — não quero vender o velhinho.

— Não. Claro que não. Eu compreendo seus senti­mentos.

 

UMA PISTA NO AR

— Poirot — disse eu, logo que saímos da casa — há algo que acho que você deveria saber.

— E o que é, meu amigo?

Relatei-lhe a versão do problema com os freios, que me tinha sido contada pela Sra. Rice.

— Interessante! Existe, de fato, um tipo de personali­dade vaidosa e histérica que procura tornar-se o centro das atenções, imaginando-se alvo de tentativas de morte e que contam histórias mirabolantes que nunca aconteceram na realidade. São tipos comuns... não param nem diante de ferimentos que provocam em si mesmos para tornar as histórias mais reais.

— Espere, Poirot! Você não está pensando que...

— Que Nick Buckley é desse tipo? Não, claro que não. Você observou, Hastings, que tivemos algum trabalho em convencê-la do perigo iminente. E ela manteve até o fim o ar de troça de quem não acredita realmente na ameaça que ronda por lá. Ela é típica dessa geração moderna. Mas, mesmo assim, é interessante o que disse a Sra. Rice. Por que teria dito aquilo? Por que dizê-lo, mesmo que fosse verdade? Desnecessário, quase inconveniente.

— É verdade — disse eu. — Ela provocou o assunto de maneira óbvia e insistiu nele sem necessidade aparente.

— Isto é muito curioso... Muito curioso... Há pe­quenos detalhes significativos que surgem ao longo do ca­minho e que, às vezes, podem indicar a direção a seguir.

— Direção? Para onde?

— Você acabou de localizar o ponto fraco, meu caro Hastings: para onde? Infelizmente só saberemos quando che­garmos lá, onde quer que seja!

— Diga-me uma coisa, Poirot: por que insistiu tanto na vinda dessa prima?

Poirot parou, nervoso, dedo em riste diante de meu rosto:

— Pense! — gritou ele. — Pense por um minuto, Has­tings! Temos tudo contra nós! Nossas mãos estão atadas! Caçar um criminoso depois de cometido o crime é fácil, pe­lo menos para mim. O criminoso deixa sempre alguma pis­ta. Mas neste caso, ainda não houve crime! E nós não que­remos que haja! Encontrar um criminoso antes que o crime seja cometido é uma dificuldade quase insuperável. Qual é nosso principal objetivo? — continuou ele. — A segurança da Senhorita Buckley. E isso não é nada fácil, Hastings. Vejamos algumas das dificuldades. Não podemos ficar junto dela dia e noite. Não podemos enviar um policial de botas enormes e conspícuas. Não podemos também passar a noite dentro do quarto de uma jovem senhorita. O caso está ouriçado de obstáculos.

Poirot prosseguiu após alguns segundos:

— Só há poucas providências que podemos tomar e que tornarão o trabalho mais árduo para nosso assassino. Colocamos a jovem de sobreaviso e introduzimos uma tes­temunha imparcial, no caso a prima de Yorkshire. Será pre­ciso um homem muito esperto mesmo para anular essas providências.

Ele parou então, e disse num tom completamente di­ferente:

— Mas o que me amedronta, Hastings.

— Sim? O que é?

— O que me amedronta é que ele é na realidade um homem muito inteligente. Não. Não estou tranqüilo. Nada tranqüilo.

— Poirot — disse-lhe eu, — você está-me pondo nervoso.

— Eu também estou nervoso. Escute, meu amigo, aquele jornal de Saint Loo estava aberto, e dobrado sabe em que página? Numa em que se lia num pequeno pará­grafo: “Entre os hóspedes do Hotel Majestic estão o Sr. Hercule Poirot e o Capitão Hastings.” Suponha, só supo­nha, que alguém tenha lido aquele parágrafo. Todos conhe­cem meu nome. Todos!

— A Senhorita Buckley não conhecia — disse eu sor­rindo.

— Ela é uma cabeça de vento que não entra em linha de conta. Um homem sério — um criminoso — conheceria meu nome. E teria medo! Começaria a se fazer perguntas. Ele tentou matar a Senhorita Buckley três vezes e logo de­pois Hercule Poirot chega ao Hotel. Ele se perguntaria. “— Será coincidência? E se for?” Que fazer então?

— Esperar e esconder as pistas que tenha deixado.

— Sim, sim! Ou então, se ele fosse mesmo audacioso, atacaria fulminantemente, sem perda de tempo. A Se­nhorita Buckley já estaria morta, antes que eu tivesse tempo de investigar. Um homem audacioso agiria assim, Hastings.

— Mas por que pensa que alguém além de Nick Buc­kley teria lido aquele parágrafo?

— Não foi ela quem leu o parágrafo. Quando mencio­nei meu nome, nada significou para ela. Nunca o tinha ou­vido. Sua expressão nem mudou. Além disso, a Senhorita Buckley nos disse que lia o jornal só para saber o movi­mento das marés. Naquela página nada havia sobre marés.

— Então você pensa que alguém da casa...

— Sim. Alguém da casa ou de fora. É fácil entrar na sala: a janela está sempre aberta. Não tenho dúvidas de que o movimento de entrada e saída é intenso.

— Você tem alguma idéia, alguma suspeita?

Poirot abriu os braços como quem nada sabe.

— Nada! Qualquer que seja o motivo, não é um mo­tivo óbvio, como eu já previa. E esta é a proteção do nosso provável assassino — por isso agiu tão audaciosamente esta manhã. Na aparência, ninguém deseja a morte de Nick Buc­kley. A propriedade? A Casa do Penhasco? Isso tudo é herança do primo. Mas será que ele cobiça tão ardentemente uma casa hipotecada e caindo aos pedaços? Para ele, a casa nada significa sentimentalmente. Ele não é um Buckley, lem­bra-se? Precisamos entrevistar o Sr. Charles Vyse, é claro, mas a simples suposição de que ele é suspeito é ridícula e fora de propósito. Ainda temos a Senhora Rice — conti­nuou Poirot. — Com seu ar de Madona perdida e olhar estranho e distante...

— Ah! Você também percebeu! — disse eu espantado.

— Que tem ela a ver com toda essa trama? Diz a você que a amiga é uma mentirosa. Muito gentil, sem dú­vida. Por que contar a você em particular? Estará com medo de que Nick fale? Terá algo a ver com o acidente de car­ro? Usou o relato do acidente como exemplo ou receia alguém ou alguma coisa? Alguém mexeu no motor do carro? Se mexeu, quem? A Sra. Rice saberá disso? Aí entra em cena o bonito e louro Sr. Lazarus — prosseguiu Poirot. — Onde entra ele em toda essa confusão, com seu carro ma­ravilhoso e seu dinheiro? Será que ele se incomoda com o que possa acontecer? O Comandante Challenger...

— Este é correto — interrompi eu. — Estou seguro disso: um verdadeiro senhor colonial.

— Sem dúvida ele deve ter freqüentado o que você chamaria de escola adequada. Felizmente, como estrangeiro, não tenho preconceitos desse tipo e que possam perturbar minhas investigações. Apesar disso, admito que é difícil ligar Challenger a qualquer dos incidentes. Não vejo possibilidade disso.                                                        

— Mas é evidente! — disse eu com ênfase..

Poirot me olhou pensativo:

— Sabe que você tem um efeito extraordinário sobre mim, Hastings? Você sempre fareja na direção errada, mas com tanta convicção que me sinto tentado a segui-lo. Você é daquele tipo íntegro, honesto, crédulo, honrado, que pode ser enganado por qualquer salafrário. Você seria capaz de investir em poços duvidosos de petróleo ou em minas de ouro inexistentes. São pessoas iguais a você que fazem sobreviver os vigaristas deste mundo. Voltando ao Comandante Challenger, estudarei o tipo mais tarde. Você despertou mi­nhas suspeitas.

— Meu caro Poirot — gritei indignado, — você é completamente absurdo! Um homem que viajou por todo o mundo como eu...

— Nunca aprende — disse Poirot tristemente. — É impressionante, mas é verdade.

— Então você acha que minha fazenda na Argentina seria o sucesso que é, se eu fosse crédulo como você diz?

— Não se irrite, meu amigo. Você e sua mulher fize­ram da fazenda um grande sucesso.

— Bella sempre concorda comigo em tudo — disse eu.

— Ela é tão sensata quanto encantadora — disse Poi­rot. — Não vamos brigar, meu amigo. Olhe, ali adiante há um letreiro que diz: “Oficina do Mott”. Não é o mecânico da Senhorita Buckley? Algumas perguntas e saberemos tudo a respeito dos freios do carro.

Entramos na oficina e Poirot se apresentou como um cliente recomendado por Nick Buckley. Disse querer alugar um carro para visitar as redondezas e daí, sutilmente, pas­sou ao assunto dos freios do carro da Senhorita Buckley.

O proprietário da oficina tornou-se logo muito loquaz a respeito. Tinha sido a coisa mais extraordinária que vira até então. As tecnicidades nos escaparam — a mim, e creio que a Poirot também. Porém, de todo aquele jargão técnico, os fatos emergiram muito evidentes: alguém tinha mexido no carro e o defeito tinha aparecido depois de uma interfe­rência fácil e rápida nos freios do veículo.

— Veja só — disse Poirot quando saímos, — Nick Buckley estava certa e o rico Sr. Lazarus estava enganado. Hastings, meu amigo, tudo isso é deveras interessante.

— E o que vamos fazer agora?

— Vamos ao correio enviar um telegrama, se não for tarde demais para isso.

— Um telegrama? — perguntei com estranheza.

— Sim — disse Poirot pensativo. — Um telegrama.

O correio ainda estava aberto. Poirot redigiu seu telegrama e enviou-o. Não me confiou uma palavra sobre o conteúdo.                      

Senti que ele desejava que eu lhe perguntasse e por isso mesmo refreei minha curiosidade.

— É uma pena que amanhã seja domingo — observou ele quando já caminhávamos para o hotel. — Não po­demos falar com o Sr. Vyse até segunda-feira de manhã.

— Você poderia alcançá-lo em casa, se quisesse.

— É claro, eu sei. Mas é exatamente o que não quero de maneira alguma. Primeiro desejo conhecê-lo como pro­fissional e formar meu julgamento deste ponto-de-vista.

— É — respondi pensativo, — talvez seja o melhor caminho.

— A resposta a uma pergunta muito simples, por exem­plo, pode fazer grande diferença. Se Charles Vyse estava em seu escritório ao meio-dia-e-meia de hoje, não pode ter sido ele o autor do tiro no jardim do hotel — disse Poirot.

— Não deveríamos examinar os álibis daqueles três que estavam no hotel hoje?

— Isso é muito mais difícil. Seria facílimo sair sorra­teiramente por uma das inumeráveis janelas de qualquer uma das salas, em seguida correr até o ponto por onde a moça passaria: um tiro, uma retirada rápida e pronto! Mas, lem­bre-se, meu amigo — continuou Poirot, — que nós ainda não investigamos todos os personagens do drama que se desenrola. Há ainda a respeitável Ellen e seu invisível ma­rido. Os dois moram na casa. Terão algo contra nossa jo­vem Senhorita Nick? Não sabemos ainda. E os australianos desconhecidos que moram no chalé? Deve haver outros, ami­gos ou conhecidos, que a Senhorita Buckley nem mencio­nou por não crer que possam ser. suspeitos. Hastings, não posso dizer-lhe com certeza, mas sinto que ainda existem fatos ou pessoas que não vieram à tona nesse caso.  Nick Buckley sabe mais do que revelou.

— Você acha que ela esconde alguma coisa?

— Creio que sim.

— Com a finalidade de proteger alguém?

Poirot sacudiu a cabeça energicamente:

— Não, não! Absolutamente!  Ela me deu, até agora, a impressão de bastante franqueza. Estou convencido de que nos contou tudo que sabia a respeito dos atentados contra sua vida, mas existe algo mais... algo que ela acredita que não tenha nada a ver com o caso e por isso não mencionou. Gostaria de saber que “algo” é esse. Porque eu — continuou Poirot — modéstia à parte, sou bem mais inteligente do que uma moça como ela. Eu, Hercule Poirot, poderia ver um elo onde ela não vê nada. Poderia ser uma pista que lançasse luz sobre o caso. Preciso confessar-lhe humildemente com toda franqueza, Hastings, que estou completa­mente no ar. Até que eu veja uma razão atrás disso tudo, estou no escuro. Deve haver algum fator que não consigo compreender. O que será? Eu me pergunto isso sem cessar: o que será? Uma pista?

— Você descobrirá, Poirot — consolei-o.

— Desde que eu não descubra tarde demais — res­pondeu ele sombrio, — tudo acabará bem.

 

SR. E SRA. CROFT

Naquela noite houve uma festa no hotel. Nick Buckley jantou lá com seus amigos e nos acenou alegremente de longe.

Estava com um vestido longo, de gaze vermelha, flutuan­te, tocando o chão. Os ombros e o pescoço alvos emergiam do decote, encimados por uma atrevida cabecinha de cabelos negros.

— Um diabinho encantador — disse eu.

— E que contraste com a amiga, hein?

Frederica Rice estava de branco. Dançava com uma graça lânguida completamente diferente da animação de Nick.

— Ela é muito bonita — disse Poirot de repente.

— Quem? Nick?

— Não. A outra. Será boa ou má? Será apenas infe­liz? Não se pode concluir nada. Ela é um mistério. Talvez nem isso! Entretanto, digo-lhe uma coisa: ela é muito pro­vocante.

— Como assim? — perguntei curioso.

Ele apenas abanou a cabeça sorrindo.

— Você saberá cedo ou tarde. Lembre-se então do que lhe disse agora.

Subitamente, para surpresa minha, Poirot ergueu-se. Nick dançava com Challenger. Frederica e Lazarus tinham parado e estavam sentados à mesa. Nesse momento Lazarus levantou-se e saiu. A Sra. Rice estava só. Poirot dirigiu-se para ela. Segui-o.

Seus métodos eram sempre diretos:

— Com licença? — Apoiou-se numa cadeira e deixou-se cair nela.

— Estou ansioso para falar-lhe, enquanto sua amiga dança.

— Sim? — a voz era altiva e desinteressada.

— Não sei se sua amiga lhe disse, mas se não o fez, eu o farei agora. Atentaram contra a vida dela hoje.

Os enormes olhos cinzentos arregalaram-se com horror e surpresa. As pupilas, negras e dilatadas, aumentaram mais ainda.

— Que quer dizer?

— Atiraram na Senhorita Buckley hoje no jardim do hotel.

De repente ela sorriu. Um sorriso de complacência e incredulidade.

— Foi Nick quem lhe contou?

— Não senhora. Eu mesmo vi com meus olhos. Aqui está a bala.

Ele mostrou-lhe a bala e ela recuou um pouco.

— Mas então... então...

— Não é fantasia da Senhorita Buckley, como está vendo. Fui testemunha do atentado. E há mais. Vários in­cidentes curiosos ocorreram nos últimos dias. A senhora já deve ter ouvido falar deles. Pensando bem, talvez não, pois só chegou ontem, não foi?

— Sim. Ontem.

— Antes estava passando algum tempo com amigos em Tavistock, não é verdade?

— Sim.

— Gostaria de saber os nomes desses amigos, senho­ra.

Ela alçou as sobrancelhas.

— Há alguma razão por que eu deva revelar os nomes de meus amigos? — perguntou ela friamente.

Poirot mostrou-se inocentemente surpreso.

— Mil perdões, senhora! Fui muito grosseiro. Como tenho amigos em Tavistock, julguei que talvez a senhora os conhecesse. Chamam-se Buchanan.

A Sra. Rice disse que não:

— Não me lembro deles. Acho que não os conheço. — E continuou em tom mais cordial: — Deixe seus amigos para lá. Fale mais a respeito de Nick. Quem atirou e por quê?

— Não sei ainda quem foi — disse Poirot. — Mas vou descobrir. Sou um detetive, sabe? Meu nome é Hercule Poi­rot.

— Um nome muito famoso.

— A senhora é muito amável.

— Que quer que eu faça? — perguntou ela devagar.

Ela nos surpreendeu aos dois. Não esperávamos o ofe­recimento.

— Vou pedir-lhe para proteger sua amiga.

— Está bem.

— É só o que queremos.

Poirot levantou-se, cumprimentou, e voltamos a nossa mesa.

— Escute, Poirot, você não está descobrindo seu jogo demais?

— Meu amigo, que posso fazer? Falta sutileza, mas pelo menos aumenta um pouco a segurança. Não posso ar­riscar. De qualquer maneira, um fato é certo.

— O quê?

— A senhora Rice não esteve em Tavistock. Onde es­teve então? Hercule Poirot vai descobrir. Você sabe que é impossível esconder-me uma informação. Olhe lá — conti­nuou ele. — O belo Lazarus voltou. Ela está contando a ele. Ele olha para cá. Parece-me inteligente: a forma da cabeça é a de um homem inteligente. Como gostaria de sa­ber...

— Saber o quê? — perguntei.

— O que só vou saber na segunda-feira — respondeu ele ambíguo.

Olhei para ele mas nada disse. Poirot suspirou.

— Você não é mais tão curioso como era nos velhos tempos, meu amigo.

— Há prazeres que se devem evitar — disse eu fria­mente.

— Por exemplo?

— O prazer de recusar-se a responder a perguntas.

— Mas isso é cruel.

— É. Também acho.

— É mesmo? — murmurou Poirot. Seus olhos faisca­ram com o brilho de antigamente.

Nick passou por nossa mesa pouco mais tarde. Sepa­rou-se do par e baixou sobre nós como um belo pássaro colorido.

— Dançando à beira da morte! — disse ela alegre­mente.

— A sensação é agradável?

— É sim! Divertida!

Foi-se outra vez, com um aceno de mão.

— Preferiria que ela não tivesse dito aquilo — disse eu devagar. — “Dançando à beira da morte”. Não gosto nem um pouco.

— Sei por quê. É muito próximo da verdade. Ela é corajosa. Muito corajosa. Mas não é de coragem que preci­samos, e sim, de cautela.

O dia seguinte era domingo. Estávamos sentados na Varanda da frente do hotel. Eram onze e meia. Poirot le­vantou-se subitamente.

— Venha, meu amigo. Vamos fazer uma experiência. Tenho certeza de que o Sr. Lazarus e a Sra. Rice saíram de automóvel. A Senhorita Buckley deve estar com eles. Temos o caminho livre.

— Livre para quê?

— Você vai ver.

Descemos os degraus, atravessamos o gramado até um portão que se abria sobre uma trilha ziguezagueante até o mar. Alguns banhistas, de volta da praia, passaram por nós rindo e brincando. Quando eles desapareceram de nossa vista, Poirot dirigiu-se a um portãozinho enferrujado, onde se lia em letras apagadas: “Casa do Penhasco. Propriedade particular.” Não havia ninguém por perto. Entramos. Em pouco tempo chegamos ao gramado na frente da casa. Não se via vivalma. Poirot foi até à beira do penhasco e olhou. Então dirigiu-se à casa. As portas da varanda estavam abertas e entramos diretamente na sala-de-estar. Poirot não per­deu tempo. Abriu a porta, atravessou o saguão e subiu a escada. Eu continuava atrás dele. Foi direto ao quarto de Nick sentou-se na beirada da cama e piscou para mim.

— Viu, meu amigo, como é fácil? Ninguém nos viu entrar. Ninguém nos verá sair. Poderíamos fazer o que qui­séssemos, em perfeita segurança. Poderíamos por exemplo enfraquecer e esfiapar um arame do quadro de tal maneira, que ele se partiria em poucas horas, com o peso. Se alguém por acaso nos viu em frente à casa, temos a desculpa per­feita: somos amigos da família.

— Você quer dizer que o assassino só pode ser alguém conhecido?

— É exatamente o que quero dizer. Não é nenhum louco estranho o nosso homem. Precisamos investigar perto da casa.

Ele encaminhou-se para a porta. Segui-o sem uma pa­lavra. Estávamos, creio, preocupados demais para falar.

Na curva da escada, paramos abruptamente: um homem vinha subindo! Ele também parou. Seu rosto estava na som­bra, mas sua atitude era de completa surpresa. Foi o pri­meiro a falar em voz alta, de quem está habituado a man­dar.

— Que diabo estão fazendo aqui?

— Ah!  — disse Poirot. — Suponho que seja o Sr.Croft?

— É esse meu nome, sim. Mas...

— Vamos para a sala conversar? Seria melhor, eu acho.

O homem cedeu, virou-se e desceu. Seguimos nos. seus calcanhares. Na sala-de-estar, com a porta fechada, Poirot se apresentou:

Sou Hercule Poirot, às suas ordens.

A expressão do homem desanuviou-se um pouco.

— Já sei! — disse ele. — Você é aquele detetive. Li a seu respeito.

No jornal de Saint Loo?

Não, não. Há muito tempo, lá na Austrália. É fran­cês, não é?

Belga, mas isso não importa. Este é meu amigo, Capitão Hastings.

— Muito prazer. Mas o que está havendo? Que faz aqui? Algo errado nas redondezas?

— Depende do que chame de errado.

O australiano era um belo homem apesar da calvície e da idade avançada. Sua forma física era soberba. O rosto, um pouco gordo, parecia um tanto caído. Um rosto vulgar, classifiquei para mim mesmo. O que chamava atenção nele era o olhar penetrante, nos olhos azuis.

— Olhem aqui — disse ele, — vim só trazer uns to­mates e um pepino para a Senhorita Buckley.  Aquele ho­mem que trabalha para ela não presta para nada. Um vaga­bundo! Não planta coisa nenhuma. Preguiçoso como ele só! A Mãe e eu ficamos indignados e achamos que o mí­nimo que podemos fazer é agir como bons vizinhos. Temos mais tomates do que podemos consumir, então vim, como sempre, pela janela e pus a cesta no chão. Já ia saindo quando ouvi passos e vozes de homens lá em cima. Achei estranho. Por aqui não existem ladrões, mas tudo é possí­vel. Fui verificar e esbarrei com vocês dois. Agora o Sr. me diz que é detetive. Que está acontecendo?

— É simples — disse Poirot sorrindo.  — A senhorita passou por uma experiência alarmante há algumas noites: um quadro pesado caiu da parede sobre sua cama. Ela lhe contou?

— Contou sim. Escapou por pouco.

— Para garantir que isto não aconteceria outra vez, prometi a ela trazer uma corrente especial bem mais segura. Ela me disse que sairia hoje de manhã, mas que eu poderia vir medir o comprimento necessário. Viu? É simples.

Croft respirou fundo:

— E é tudo?

— O senhor está amedrontado à toa. Meu amigo e eu somos perfeitamente pacíficos.

— Espere! — disse Croft. — Eu não vi vocês dois ontem à tarde? Vocês passaram por nossa casa.

— Sim, é verdade. O senhor estava trabalhando no jardim e nos deu um amável boa-tarde quando passamos.

— Tem razão Então o senhor é o famoso Hercule Poirot de quem tanto ouvi falar. Diga-me, está muito ocupa­do agora? Porque se não estiver, gostaria de que voltasse comigo para uma xícara de chá matinal à moda australiana. Minha mulher adoraria conhecê-lo: leu sempre tudo a seu respeito nos jornais.

— O Sr. é muito amável, Sr. Croft. Realmente, não temos nada para fazer e ficaríamos encantados em ir com o senhor.

— Ótimo!

— Você tirou as medidas, Hastings? — perguntou Poi­rot, virando-se para mim.

Assegurei-o de que tinha as medidas comigo e segui­mos nosso novo amigo.

Croft era bastante loquaz. Logo fizemos esta constata­ção. Contou-nos a respeito de sua casa perto de Melbourne, de como tinha conhecido sua mulher, dos esforços que ti­nham feito juntos e do sucesso final que tinham alcançado.

— Resolvemos então viajar. Sempre tínhamos desejado conhecer a Inglaterra. Chegamos aqui e procuramos uns parentes de minha mulher originários desta parte do país. Não encontramos ninguém. Então fomos para o continente: Paris, Roma, os lagos italianos, Florença. Foi na Itália que aconteceu o acidente de trem. Minha mulher ficou muito machucada. Levei-a aos melhores médicos, mas eles todos são unânimes: é uma questão de tempo e repouso. Problema de coluna.

— Que infelicidade! — exclamou Poirot.

— Falta de sorte, não é? E ela só tinha um desejo: voltar para cá. Ela pensava que, se tivéssemos uma casinha só para nós, tudo se arranjaria. Vimos muitos chalés e ca­sinhas até que encontramos esta em que estamos. Agradá­vel, sossegada e isolada: não há movimento de carros, nem vitrolas e altos brados na vizinhança. Alugamos imediatamente.

Quando terminou, estávamos chegando. Ele soltou um grito modulado, com voz possante. Imediatamente uma ou­tra voz respondeu.

— Entrem — disse o Sr. Croft. Ele entrou, subiu uns degraus e penetramos num quarto agradável onde uma se­nhora gorda, de meia-idade, achava-se deitada num sofá. A Sra. Croft tinha cabelos grisalhos e um sorriso muito doce.

— Adivinhe quem é esse, Mãe! — disse o Sr. Croft. — Nada mais, nada menos que o mundialmente famoso Hercule Poirot, o detetive! Eu o trouxe para bater um papo com você.

— É emocionante demais para palavras! — respondeu a Sra. Croft apertando calorosamente a mão de Poirot.

— Li tudo a respeito do Trem Azul, onde o senhor viajava por coincidência. Segui também muitos dos seus ou­tros casos. Desde que tenho este problema de espinha, leio todas as histórias de detetive que aparecem. Nada faz pas­sar o tempo mais rápido — continuou ela. — Bert querido, peça a Edith para trazer um chá.

— Ótimo, Mãe!

— Edith é uma espécie de enfermeira — explicou a Sra. Croft.  — Ela vem todas as manhãs para cuidar de mim. Não temos empregadas porque Bert pode fazer tudo. É até um ótimo cozinheiro. Isso o mantém ocupado o tem­po todo. Além do jardim, é claro.

— Aqui está, Mãe, nosso chá — disse o Sr. Croft, entrando com uma bandeja. — Este é sem dúvida um gran­de dia para nós.

— O Sr. está hospedado por aqui, Sr. Poirot? — per­guntou a Sra. Croft enquanto se curvava um pouco para servir o chá.

— Estou sim, senhora. Estou de férias.

— Mas li em algum lugar que o Sr. se tinha aposentado, que tinha tirado férias definitivas.

 — A Sra. não deve acreditar em tudo que lê nos jor­nais, Sra. Croft.

— É bem verdade. O Sr. continua a trabalhar então?

— Só quando encontro um caso que me interesse o suficiente.

— Mas o Sr. não está aqui para trabalhar, não é? — indagou o Sr. Croft sem rodeios. — Dizer que está de fé­rias poderia fazer parte do jogo.

— Não faça perguntas embaraçosas, Bert, ou ele não voltará — disse a Sra. Croft. E virando-se para Poirot: — Somos gente simples, Sr. Poirot. Sua vinda a nossa casa hoje é um acontecimento para nós. O Sr. e seu amigo não imaginam o prazer que nos deram.

Ela parecia tão sincera e pôs tanto calor humano no agradecimento, que me conquistou de vez.

— Foi um acidente feio, o do quadro — disse o Sr. Croft.

— Aquela menina podia ter morrido — disse a Sra. Croft com ênfase. — Nick é como um tratamento de cho­que para todos na redondeza. Tudo aqui adquire outra vida quando ela chega. Nem todos gostam dela por isso. Esses ingleses são muito cheios de formalidades, não lhes agrada ver animação e alegria numa moça. Não censuro a garota por não passar aqui muito tempo. E aquele empertigado da­quele primo dela não tem a menor possibilidade de conven­cê-la a sossegar e vir para cá.

— Não fale demais, Milly — disse o marido.

— Afinal É nessa direção que sopra o vento! — ex­clamou Poirot.  — Sempre se deve confiar na intuição fe­minina. Então o Sr. Charles Vyse está apaixonado por nos­sa jovem amiga?

— Ele é maluco por ela! — respondeu a Sra. Croft. — Ela nunca se casará com um advogado do interior. Não é culpa dela. Ele é um pobre coitado. Pessoalmente prefiro que ela se case com aquele marinheiro tão gentil, o Co­mandante Challenger: há casamentos piores. Ele é bem mais velho do que Nick, mas e daí? Ela precisa é de um apoio na vida — prosseguiu a Sra. Croft. — Voando por toda parte; sozinha ou com aquela mulher de aparência esquisita, a Sra. Rice, não é vida para uma moça como ela. Nick é uma boa menina, Sr. Poirot. E ela não me parece muito feliz ultimamente: tem um olhar preocupado e isso me afli­ge. Tenho razões pessoais para estar interessada no bem-estar dessa menina, não é, Bert?

O Sr. Croft levantou-se abruptamente:

— Não precisa tocar nesse assunto, Milly — disse com firmeza. — Sr. Poirot, o Sr. gostaria de ver umas fo­tografias da Austrália?

O resto da visita decorreu sem novidades. Dez minutos mais tarde, despedimo-nos e saímos.

— Boa gente — comentei. — Simples, e sem afeta­ções. São mesmo tipicamente australianos.

— Você gostou deles, Hastings?

— E você, não gostou?

— Foram amáveis, muito gentis mesmo.

— Já sei que há alguma coisa. Diga de uma vez, Poi­rot.

— Bem, eles foram talvez um pouco “típicos” demais — respondeu Poirot pensativo: — Aquele grito modulado, a insistência para vermos os retratos... Não sei. Acho que exageraram um pouco na representação.

— Que diabo! Como você é desconfiado!

— Você tem razão, meu amigo. Suspeito de todos e de tudo. Tenho medo, Hastings, tenho medo.

 

UMA VISITA AO SR. VYSE

Poirot mantinha-se fiel ao café da manhã europeu. Ver­me comendo ovos com bacon o incomodava profundamente, dizia sempre. De maneira que ele tomava seu café com leite e pão no quarto, deixando-me à vontade para iniciar meu dia como um verdadeiro inglês: ovos, bacon, geléia, etc...

Procurei-o no quarto, na segunda-feira de manhã, quan­do ia descer para comer. Ele estava sentado na cama, metido num fantástico robe-de-chambre.

— Bom dia, Hastings. Ia chamá-lo agora mesmo. Será que você poderia levar este bilhete até à Casa do Penhasco e entregá-lo imediatamente à Senhorita Buckley?

Estendi a mão para apanhar o mencionado bilhete, mas Poirot quedou-se olhando-me com um suspiro.

— Se ao menos você repartisse o cabelo no meio, Has­tings, e não do lado, sua aparência lucraria imensamente. Haveria mais simetria. E seu bigode é uma desgraça! Se você insiste em usar bigode, que seja um bigode de perso­nalidade. Um exemplo de beleza como é o meu.

Refreando um arrepio só de pensar na possibilidade, tomei-lhe o bilhete das mãos e saí.

Quando cheguei de volta a nossa saleta, recebemos um recado dizendo que a Senhorita Buckley estava lá embaixo. Poirot mandou pedir-lhe que subisse.

Ela entrou alegremente mas as olheiras me pareceram e mais escuras que antes. Trazia um telegrama que a Poirot:

— Acho que isso vai alegrá-lo — disse ela.

Poirot leu em voz alta: “Chego 5:30 hoje. Maggie.”

— Minha enfermeira e guardiã! — exclamou Nick. —. Mas você está enganado, sabe? Ela não é inteligente: tra­balhos de caridade é o que ela sabe fazer. Não tem o menor senso de humor. Freddie seria muito melhor para localizar assassinos ocultos. Melhor ainda seria o Jim Lazarus. Nin­guém pode imaginar até onde vão as habilidades dele.

— E o Comandante Challenger?

— George! Imagine! Esse não vê um palmo adiante do nariz. Mas quando vê, toma providências drásticas. É muito útil se houver alguma briga ou coisa parecida.

Nick tirou o chapéu e continuou:

— Dei ordens para que deixassem entrar o homem que o Sr. mandou. Muito misterioso! Ele está instalando um di­tafone ou coisa parecida?

— Não, não — negou Poirot. — Nada científico. É uma questão de opinião, senhorita: uma dúvida que eu que­ria desfazer.

— Então está bem — disse Nick. — é tudo muito divertido, não acham?

— A senhorita acha mesmo? — murmurou Poirot.

Ela ficou de pé junto à janela, de costas para nós. Quando virou, todo o desafio corajoso que havia antes nos olhos tinha desaparecido. Nick lutava para conter as lágri­mas, as feições contraídas.

— Não — disse ela. — Não é nada divertido! Estou com medo! Um medo horrível. E eu que sempre pensei que fosse corajosa...

— E é, senhorita. Muito corajosa mesmo. Nós dois já falamos de sua bravura com admiração.

— Nós a admiramos e muito! — disse eu entusiasti­camente.

— Não, não sou nada corajosa — choramingou Nick. — A espera é que acaba comigo. Saber que algo vai acon­tecer e não saber o quê, ou como vai acontecer.   .

— Sei, sei. É a tensão nervosa.

— Ontem à noite arrastei a cama para o meio do quarto, fechei a janela e tranquei a porta. Quando vim para cá agora, vim pela estrada principal: não tive coragem de vir pelo jardim, como sempre. É como se toda a minha força se tivesse acabado. Esses incidentes foram a última gota d'água. Não agüento mais!

— Que quer dizer exatamente, senhorita? Que houve, além dos incidentes que conhecemos?

Fez-se uma pausa antes que ela replicasse.

— Não, não é nada de especial. É o que os jornais chamam de “pressões da vida moderna”: coquetéis demais, cigarros demais, esse tipo de coisa. É que... é que estou muito nervosa!

Ela afundou numa poltrona e ali ficou, torcendo as mãos.

— A senhorita não está sendo completamente franca comigo; sinto que existe algo mais.

— Não, não! Pode acreditar. É verdade — respondeu ela.

— Existe algo que não me contou.

— Eu lhe contei tudo. Tudo, tudo.

Ela parecia falar sinceramente e com honestidade.

— A respeito dos atentados — continuou Poirot, — a senhorita contou tudo, de fato.

— Então, sobre quê?

— Não me contou tudo que está dentro de si, que a está preocupando...  Sobre sua vida pregressa talvez...

Ela disse devagar:

— Será que alguém pode adivinhar...?

— Ah! — exclamou Poirot triunfante. — A senhorita admite que existe algo!

Ela negou com a cabeça. Ele a observava atentamente.

— Será um segredo? — indagou ele sem rebuços.

Julguei ver um ligeiro palpitar de cílios. Mas quase imediatamente ela saltou:

— Dou-lhe minha palavra, Sr. Poirot. Já contei tudo que tinha de contar, até os mínimos detalhes, a respeito dessa confusão absurda. Se o Sr. suspeita de que sei algo mais sobre alguém ou sobre alguma coisa, está redondamente en­ganado. É justamente a falta de suspeitas que me perturba. Não sou nenhuma idiota. Sei perfeitamente que, se esses “acidentes” não foram acidentes reais, devem ter sido ar­quitetados por alguém muito próximo, alguém que me co­nhece bem. E isto é horrível! Mesmo porque não tenho a menor idéia de quem possa ser.

Nick foi outra vez até a janela e ficou olhando para fora. Poirot fez-me sinal para que ficasse em silêncio. Creio que ele esperava alguma revelação, agora que o autocontrole da jovem se tinha quebrado.

Quando ela voltou a falar foi num tom diferente, como que sonhando:

— Sabe que sempre tive um desejo muito estranho? Adoro a Casa do Penhasco e sempre quis produzir uma peça de teatro tendo a casa como cenário: respira-se em toda ela uma atmosfera de drama. Já imaginei uma porção de peças sendo encenadas ali. E agora é como se a peça estivesse sendo realmente encenada. E eu faço parte do elenco! Eu faço parte! Sou a personagem que deve morrer no primeiro ato.

A voz de Nick como que se quebrou de repente.

— Não, não, senhorita! — a voz de Poirot era auto­ritária e animadora. — Assim não pode ser.. Isso é histeria.

Ela se voltou agressiva e encarou-o:

— Freddie lhe disse que sou histérica? Ela diz que sou, mas o Sr. não pode acreditar em tudo que Freddie diz. Há momentos em que ela fica um pouco fora de si.

Houve uma pausa. Poirot fez então o que me pareceu uma pergunta totalmente irrelevante:

— Diga-me, senhorita, já quiseram comprar a Casa do Penhasco?

— Comprar?

— Sim, exatamente.

— Não, ninguém se ofereceu para comprar.

— E se recebesse uma boa oferta, a senhorita vende­ria?

Nick refletiu durante alguns minutos.

— Não. Creio que não. A não ser que a oferta fosse tão fantástica que me obrigasse a pensar.

— Precisamente onde quero chegar.

— Não quero vender, o Sr. já sabe disso. Gosto de­mais da casa.

— É. Já percebi.

Nick se dirigiu devagar para a porta.

— Vai haver fogos hoje à noite. Vocês vem? O jantar é às oito. Os fogos começam às nove e meia. Pode-se ver muito bem do jardim que dá para a baía.

— Será um prazer — respondeu Poirot.

— O convite é para os dois, é claro.

— Obrigado — disse eu.

— Nada como uma festa para levantar o moral abati­do — comentou Nick. Com uma risada ela saiu.

— Coitadinha!  — disse Poirot

Ele apanhou o chapéu e limpou uma poeira imaginá­ria.

— Nós vamos sair? — perguntei surpreso.

— Vamos, meu amigo. Temos assuntos legais para re­solver.

— É claro, é claro. Compreendo — disse eu.

— Alguém tão brilhante como você não poderia dei­xar de compreender, Hastings.

Os escritórios dos Srs. Vyse, Trevannion e Wynnard estavam situados na rua principal. Subimos até o primeiro andar onde três funcionários escreviam diligentemente numa sala. Poirot pediu para falar com o Sr. Vyse. Um dos fun­cionários murmurou umas palavras num telefone interno. Parece que a resposta foi afirmativa pois imediatamente o rapaz nos conduziu por um corredor até uma porta que ele abriu, depois de bater. Fomos introduzidos na sala do Sr. Vyse.

O Sr. Vyse, atrás de uma mesa coberta de papéis, le­vantou-se para nos cumprimentar. Era alto, pálido, fisionomia impassível. Uma calvície incipiente já aparecia nas têmporas. Usava óculos. A tez de coloração indefinida nada acrescentava à sua aparência.

Poirot tinha vindo preparado para o encontro. Trazia cora ele um acordo legal que não assinara e sobre o qual queria a opinião do Sr. Vyse.

O Sr. Vyse, falando correta e cautelosamente, logo dis­sipou as dúvidas de Poirot e explicou-lhe os termos legais que ele não alcançara.

— Agradeço-lhe o auxílio — murmurou Poirot. — Para um estrangeiro como eu, esse jargão legal é muito di­fícil.

Foi nesse momento que o Sr. Vyse perguntou quem o tinha indicado como advogado.

— A Senhorita Buckley — respondeu Poirot pronta­mente. — Sua prima, creio. Uma moça encantadora. Eu lhe disse que estava em dificuldades com esse documento e ela me aconselhou que viesse vê-lo. Tentei vir no sábado, por volta de meio-dia-e-meia, mas infelizmente não o encontrei.

— É. Lembro-me de ter saído cedo no sábado.

— Sua prima deve achar aquele casarão muito solitá­rio. Ela vive sozinha, não é?

— É verdade.

— Diga-me, Sr. Vyse, há alguma possibilidade de que a propriedade esteja à venda?

— Absolutamente nenhuma.

— O Sr. compreende, não lhe pergunto à toa. Tenho minhas razões. Procuro algo exatamente assim para com­prar. O clima de Saint Loo me encantou. É verdade que a casa não está em boas condições. Parece que não há di­nheiro para gastar com reparos.  Pensei então que, nessas circunstâncias, a Senhorita Buckley poderia considerar uma proposta de compra.

— Nem pense nisso! — respondeu o Sr. Vyse com ên­fase. — Minha prima é louca pela casa. Nada a convence­ria a vender. Para ela, é a casa ancestral.

— Compreendo isso, mas...

— Está inteiramente fora de cogitações.  Conheço bem minha prima. Tem verdadeiro fanatismo pela casa.

Pouco depois estávamos na rua.

— Como é, meu amigo? — disse Poirot. — Que im­pressão teve do Sr. Charles Vyse?

Pensei um pouco antes de responder.

— Impressão negativa. Ele tem uma personalidade ne­gativa.

— Você diria que não tem uma personalidade mar­cante?

— É. Realmente não tem. É o tipo de homem de quem a pessoa não se lembra quando encontra outra vez. Me­díocre, eu diria.

— Sua aparência não deixa uma impressão forte ou agradável. Você notou alguma contradição na nossa con­versa?

— Achei sim — respondi eu lentamente. — Quando você falou da venda da Casa do Penhasco.

— Exatamente. Você descreveria a atitude da Senho­rita Buckley em relação à casa como sendo “verdadeiro fa­natismo”?

— A mim pareceu-me uma expressão um tanto forte.

— Pois é. E o Sr. Vyse não é homem dado a usar expressões fortes. Sua tendência, como homem de leis, seria mais para a moderação. No entanto ele diz que a Senhorita Buckley tem um “verdadeiro fanatismo” pelo lar dos ante­passados.

— Curioso é que não foi a impressão que me ficou de nossa conversa com ela hoje de manhã — disse eu. — Ela falou da casa com muito carinho. Obviamente ela gosta do lugar, como qualquer pessoa gostaria, na posição dela. Nada mais que isso.

— Então, um dos dois está mentindo — murmurou Poirot pensativo.

— Creio que não podemos suspeitar de Vyse, neste caso. Ele não mentiria.

— Se alguém tivesse de mentir, seria sempre bom dar essa impressão de que nunca mentiria... — disse Poirot irônico. — Acho que tem razão, Hastings. Esse homem parece ter a retidão de um George Washington. Você notou algo mais, meu amigo?

— O quê, por exemplo?

— Que ele não estava no escritório no sábado ao meio-dia-e-meia!

 

TRAGÉDIA

De noite, a primeira pessoa que vimos ao chegar à Casa do Penhasco foi Nick. Dançava sozinha no saguão, vestida num quimono maravilhoso, coberto de dragões.

— Oh! São vocês! — exclamou ela, decepção trans­parecendo na voz.

— Senhorita, mil perdões!

— Não se ofendam! Fui muito indelicada, eu sei. Mas imaginem que ainda estou esperando pelo vestido que vou usar hoje. Eles prometeram — os bandidos! — eles pro­meteram de pedra e cal, que iam trazê-lo a tempo!

— Ah! Então, se é um problema de roupa, realmente é um caso sério. Vai haver dança hoje, não é? — indagou Poirot.

— Vai, sim.Vamos dançar logo que terminarem os fogos. Isto é, creio que vamos.

A voz fraquejou um pouco, mas logo depois Nick esta­va rindo.

— Nunca desanimar é o meu moto! Não seja pessi­mista e tudo acabará bem. Estou alegre hoje e disposta a me divertir muito.

Ouvimos alguém que descia as escadas. Nick virou-se.

— Aí vem Maggie. Maggie, estes são os detetives que estão protegendo sua pobre prima contra o assassino oculto. Por que não vai com eles para a sala? Assim você vai saber de tudo que aconteceu até agora.

Cumprimentamos Maggie Buckley e nos dirigimos com ela para a sala-de-estar. Minha opinião sobre ela foi imediatamente favorável. Creio que me atraía a sensação de calma e bom-senso que ela transmitia. Uma moça tranqüi­la, bonitinha à maneira antiga e que não se pintava. Usava um vestido preto simples e que não parecia muito novo. Os olhos azuis eram francos e a voz pausada e agradável.

— Nick tem-me contado as coisas mais espantosas — disse ela. — Vocês têm certeza de que ela não está exa­gerando? Quem poderia querer fazer mal a ela? Nick não tem inimigos.

A incredulidade transparecia em sua voz. Maggie fita­va Poirot de maneira não muito simpática, como se estran­geiros em geral lhe despertassem suspeitas.

— No entanto, Senhorita Buckley, posso garantir-lhe que é tudo verdade — disse Poirot calmamente.

Ela não respondeu, mas via-se que não acreditara ain­da.

— Nick parece possuída por algum espírito hoje — disse Maggie. — Não sei o que aconteceu. Ela parece meio desvairada.

A palavra “possuída” me deu arrepios. Além disso, al­guma coisa no sotaque e na entonação de Maggie Buckley me deixou cismado.

— A senhorita é escocesa? — perguntei abruptamente.

— Minha mãe era — explicou ela.

Ela me encarava com melhores olhos do que a Poirot e achei que um relato vindo de mim seria mais bem aceito.

— Sua prima tem demonstrado grande bravura — dis­se-lhe eu. — Está mesmo resolvida a agir como se nada estivesse acontecendo.

— É o único caminho, não é mesmo? — disse Maggie. — Quero dizer, não importa o que se está sentindo inte­riormente. Não se deve fazer um espetáculo dos próprios sentimentos. Seria um transtorno para os outros. — Fez uma pausa e continuou. — Gosto muito de Nick. Ela sempre foi muito boa para mim.

Nós nem pudemos responder, pois naquele momento entrou Frederica Rice. Ela usava um vestido azul-céu e pa­recia muito frágil e etérea. Logo depois entrou Lazarus e, atrás dele, Nick que estava de preto envolta em um magní­fico xale chinês vermelho-lacre.

— Alô, todo mundo! Drinques!

Todos nós bebemos e Lazarus ergueu o copo para ela.

— Que maravilha de xale, Nick! É antigo, não é?

— É sim!  O bisavô de meu tio-avô, Timothy, trouxe de uma de suas viagens ao Oriente.

— É uma beleza! Uma verdadeira beleza! Você não encontraria outro nem parecido, se quisesse.

— Ele esquenta — disse Nick. — Vai ser útil na hora dos fogos. E é alegre. Detesto preto!

— É verdade — disse Frederica. — Nunca vi você de preto antes, Nick. Por que comprou um vestido preto hoje?

— Não sei! — A jovem deu um volteio petulante mas notei que em seu sorriso havia um quê de dor. — Por que as pessoas fazem as coisas? Precisa haver uma razão?

Fomos jantar. Um garçom tinha aparecido misteriosa­mente. Contratado para a ocasião, creio. A comida era insossa, mas em compensação o champanha estava excelente.

— George não apareceu — disse Nick.  — Um trans­torno, esse negócio de ter sido obrigado a ir a Plymouth ontem de noite. Espero que ele apareça ainda hoje a tem­po de dançar. Arranjei um companheiro para Maggie: nada de extraordinário, mas apresentável.

Um ruído de motor veio de fora.

— Maldita lancha! — exclamou Lazarus. — Esse ba­rulho cansa!

— Não é lancha — disse Nick. — é um hidroavião.

— Acho que você tem razão.

— Ê claro que tenho razão! O barulho é completamen­te diferente.

— Quando é que você vai arranjar uma mariposa as­sim, Nick?

— Quando conseguir quem me empreste o dinheiro!

— Aí você decola para a Austrália como aquela ga­rota... Como é mesmo o nome dela?

— Você nem sabe como eu gostaria de fazer isso...

— Admiro enormemente aquela moça — disse a Sra. Rice com sua voz cansada. — Que fibra! E foi completa­mente só!

— Eu admiro todas as pessoas voadoras — disse La­zarus — Se o Michael Seton tivesse sido bem sucedido na sua volta ao mundo, ele hoje seria um herói e com toda razão. É uma pena que tivesse morrido. É o tipo de homem que a Inglaterra não poderia perder atualmente.

— É capaz de ainda estar vivo — disse Nick.

— Acho difícil. Uma probabilidade em mil. Pobre Se­ton Maluco!

— Sempre o chamaram de Seton Maluco, não é? — perguntou Frederica.

Lazarus confirmou.

— Ele descende de uma família meio louca. O tio, Sir Matthew Seton, que morreu há uma semana mais ou menos, era louco varrido.

— Era o milionário maluco que organizava reservas naturais de pássaros? — indagou Frederica.

— Ele mesmo. Comprava ilhas e fazia nelas refúgios para pássaros. Detestava mulheres. Acho que uma garota o enganou uma vez e ele passou a se interessar por Histó­ria Natural como uma fuga e um consolo.

— Por que diz que Michael Seton morreu? — insistiu Nick. — Não vejo razão para desistir ainda.

— Você o conhecia, não é? — disse Lazarus. — Ti­nha-me esquecido.

— Freddie e eu o encontramos em Le Touquet, no ano passado. Ele era maravilhoso, não era, Freddie?

— Não pergunte a mim, querida! Ele foi conquista sua. Você chegou até a voar com ele!

— É mesmo! Em Scarborough. Foi simplesmente fantástico!

— Já voou alguma vez, Capitão Hastings? — pergun­tou Maggie, para incluir-me na conversa.

Tive de confessar que minha única experiência aérea tinha sido uma viagem a Paris, de ida é volta.

De repente, com uma exclamação, Nick saltou da ca­deira.

— O telefone! Não me esperem! Está ficando tarde e eu convidei uma porção de gente!

Ela saiu correndo. No meu relógio eram nove horas. Comemos a sobremesa. Vieram os licores. Poirot e Lazarus falavam sobre arte. Quadros não estavam tendo grande saí­da no mercado, dizia Lazarus. Os dois continuaram a trocar idéias sobre mobília e decoração.

Procurei cumprir meu dever conversando com Maggie Buckley mas confesso que a tarefa não era fácil. Ela res­pondia às perguntas mas o assunto morria Era como subir uma ladeira íngreme, a pé.

Frederica Rice, silenciosa e sonhadora, os cotovelos sobre a mesa, fumava. A fumaça à volta de sua cabeça loura fazia-a parecer um anjo meditativo.

Às nove e vinte Nick apareceu de volta.

— Venham! Venham todos! Os bichos estão chegan­do aos pares!

Levantamo-nos e fomos. Nick recebia os convidados. Ela convidara um punhado de casais e a maioria era intei­ramente sem interesse. A Senhorita Buckley posava muito bem de anfitrioa. Deixara de lado os modernismos e recebia tradicionalmente, dando as boas-vindas a cada um. Entre os que chegavam, percebi a figura de Charles Vyse.

Daí a momentos dirigimo-nos todos ao jardim, para um lugar de onde se podia ver o mar e a baía. Algumas ca­deiras tinham sido trazidas para as pessoas mais velhas, po­rém quase todos ficaram de pé. O primeiro morteiro subiu.

Nesse momento ouvi uma voz familiar que falava alto. Voltei-me para ver Nick que cumprimentava o Sr. Croft:

— É uma pena que a Sra. Croft não possa estar aqui também. Ela poderia vir de maca ou coisa parecida.

— É pouca sorte mesmo. Pobre da Mãe! Mas ela nun­ca se queixa. Tem o melhor temperamento do mundo. Aque­la é realmente uma ótima criatura — respondeu o Sr. Croft. Nisso, uma chuva de ouro apareceu no céu.

A noite estava escura e sem lua. A lua nova deveria aparecer dentro de três dias. Estava frio também, como só ía acontecer nas noites de verão. Maggie Buckley, junto a mim, estremeceu de frio.

— Vou correndo apanhar um agasalho — murmurou ela.

— Deixe-me ir para a senhorita — disse-lhe eu.

— Não, não. O senhor não saberia onde encontrá-lo.

Ela se dirigiu para a casa. Nesse momento, a voz de Frederica Rice soou.

— Apanhe o meu também, Maggie! Está no meu quarto.

— Ela não escutou — disse Nick. — Vou apanhar o seu para você. Eu também quero o meu de pele porque este xale não esquenta muito. Acho que é o vento.

Havia mesmo uma brisa forte que vinha do lado do mar.

Outros fogos de artifício começaram a ser preparados ao longo do cais. Entabulei uma conversa sem conseqüên­cias com uma senhora de meia-idade que estava ao meu lado e que me fez um verdadeiro interrogatório quanto a minha vida, carreira, gostos e tempo de permanência em Saint Loo.

Bang! Um chuveiro de estrelas verdes encheu o céu. Tornaram-se depois azuis, vermelhas e, por fim, prateadas. Subiu outro foguete. E mais outro.

— Você começa exclamando oh!, ah! Depois fica mo­nótono, você não acha? — observou inesperadamente a voz de Poirot junto a mim. — Brrr! A grama está úmida debai­xo dos pés. Vou apanhar um resfriado por causa disso, te­nho certeza. E não há possibilidade de se arranjar um bom chá medicinal nesta terra!

— Um resfriado? Numa noite linda como esta?

— Noite linda! Noite linda! Como bom inglês, você diz isso porque não está chovendo torrencialmente. Quando não chove, é sempre uma noite linda.  Mas digo-lhe uma coisa, meu amigo, se eu tivesse um termômetro, eu lhe mos­traria sua noite linda e agradável!

— Bem, confesso que um agasalho não me faria mal.

— Pelo menos você é sensato, mas acho que é porque veio há pouco tempo de um país de clima quente.

— Vou buscar seu casaco — disse eu.

Poirot levantou um pé, depois o outro, como um gato:

— É a umidade nos pés que me incomoda. Você acha que seria possível conseguir umas galochas?

Fiz esforço para não sorrir.

— Poirot, não sei se você sabe que não se fazem mais galochas.

— Então vou-me embora, sentar-me dentro de casa — declarou ele. — Não vou arriscar um resfriado ou uma pneumonia, só por causa de alguns fogos de artifício.

Com murmúrios indignados e ininteligíveis, marchou com decisão para a casa. Aplausos ainda chegaram a nossos ouvidos, vindos do cais lá embaixo, onde a figura de um navio delineado com fogos de artifício trazia as palavras: Sejam bem-vindos!

— No fundo, todos somos crianças — disse Poirot pensativo. — Fogos, festas, jogos, até o mágico que engana os olhos mais atentos... Mas que é isso, Hastings? Que tem você?

Eu o tinha agarrado pelo braço, com força, e com a outra mão apontava sem conseguir falar. Estávamos a uns cem metros da casa e, bem em frente a nós, diante da porta aberta, via-se um vulto no chão, envolto num xale ver­melho!

— Meu Deus! — exclamou Poirot. — Oh! Meu Deus!

 

O XALE FATAL

O horror nos imobilizou por uns quarenta segundos que nos pareceram uma hora. Logo Poirot se adiantou, libertando-se de minha mão ainda crispada em seu braço. Ele se movia como um autômato.

— Aconteceu!  — murmurou ele num tom indescritivelmente angustiado e amargo. — Apesar de todas as pre­cauções tomadas, aconteceu. Criminoso sou eu que não a protegi melhor! Deveria ter previsto: não deveria deixá-la só, um minuto sequer.

— Você não se pode culpar — disse eu. Minha lín­gua pegava no céu da boca seca e eu quase não podia falar.

Poirot só me respondeu com um triste aceno de cabe­ça. Ajoelhou-se junto ao corpo.

E foi nesse momento que ele recebeu o segundo cho­que: a voz de Nick soou, clara e alegre. Um momento de­pois a figura dela apareceu na porta delineada contra a luz acesa do interior.

— Desculpe se demorei, Maggie, mas...

Ela parou de chofre diante da cena.

Com uma exclamação ansiosa Poirot virou o corpo no chão e eu me debrucei para olhar.

Meus olhos viram a morte estampada no rosto de Mag­gie Buckley.

Num instante Nick estava a nosso lado. Deu um grito penetrante:

— Maggie! Oh! Maggie! Não pode ser!

Poirot ainda examinava o corpo da jovem. Por fim ele. se ergueu lentamente.

— Ela está... — a voz de Nick partiu-se.

— Sim, senhorita. Ela está morta.

— Mas por quê? Por quê? Quem poderia querer ma­tá-la?

A resposta de Poirot veio clara e firme.

— Não era ela que queriam matar!  Era a senhorita! Enganaram-se por causa do xale.

Um grito saiu dos lábios de Nick.

— Por que não fui eu? — choramingou ela. — Por que não fui eu? Não quero viver, agora. Gostaria de mor­rer!

Ela agitou os braços num frenesi e cambaleou ligeira­mente. Passei o braço por seus ombros para sustentá-la de pé.

— Leve-a para dentro, Hastings — disse Poirot.— Depois chame a polícia.

— A polícia?

— Claro! Diga-lhes que alguém foi assassinado. Depois permaneça ao lado da Senhorita Buckley. Não a deixe so­zinha sob nenhum pretexto!

Um sinal de cabeça indicou-lhe que eu tinha compre­endido as instruções. Com o braço à volta dos ombros da jovem quase desmaiada, sustentando-a, entrei na sala-de-es­tar. Deitei-a no sofá, coloquei-lhe uma almofada debaixo da cabeça e saí apressado para o saguão à procura do telefone. Levei um susto quando quase dei um encontrão em Ellen. Ela estava parada, respeitável e humilde, com uma expres­são estranha no rosto. Os olhos brilhavam e ela umedecia repetidamente, com a língua, os lábios secos. As mãos tre­miam como se ela estivesse nervosa. Assim que me viu, falou.

— Aconteceu...  alguma coisa, senhor?

— Sim — respondi lacônico. — Onde é o telefone.

— Nada de grave, não é, senhor?

— Houve um acidente — disse eu evasivamente. — Alguém se machucou. Preciso telefonar.

— Quem se machucou, senhor? — Havia uma curio­sidade intensa na voz e no rosto.

— A Senhorita Buckley. A senhorita Maggie Buckley.

— A Senhorita Maggie? Tem certeza, senhor? Quero dizer, tem certeza de que é a Senhorita Maggie?

— Absoluta certeza! Por quê?

— Nada. Nada. Pensei que tivesse sido alguma das outras senhoras. Talvez a Senhora Rice.

— Escute aqui: onde é o telefone? — disse eu brus­camente.

— Na saleta, senhor. Aqui. — Ela abriu a porta e mostrou o telefone.

— Obrigado. — E como ela parecia disposta a ficar por ali, acrescentei: — É só o que desejava, Obrigado.

— Se o senhor quiser falar com o Dr. Graham...

— Não, não — disse eu. — Pode ir, por favor.

Ela saiu com relutância, tão lentamente quanto possí­vel. Com toda certeza, ia escutar do lado de fora da porta, mas isso eu não podia evitar. Afinal de contas ela saberia de tudo dentro de pouco tempo.

Telefonei para a polícia e relatei o ocorrido. Depois, por iniciativa própria, chamei o Dr. Graham de quem Ellen tinha falado. Achei o número no catálogo. Embora um mé­dico nada mais pudesse fazer por aquela pobre moça lá fora, pelo menos Nick precisava de cuidados médicos. Ele prometeu que viria imediatamente. Desliguei e apressei-me a sair da saleta para o saguão. Se Ellen estava antes escu­tando atrás da porta, ela tinha conseguido desaparecer com incrível rapidez. Não havia ninguém à vista quando saí. Voltei para a sala-de-estar. Nick tentava sentar-se.

— Será que o senhor poderia arranjar um pouco de conhaque?

— Claro!

Fui rapidamente à sala-de-jantar, achei o que queria e voltei. Uns goles de conhaque reviveram a jovem: a cor voltou às faces. Ajeitei a almofada sob a cabeça dela.

— É horrível tudo. Por toda parte. — Ela estreme­ceu.

— Eu sei, meu bem, eu sei.

— Não! O senhor não pode saber! É um desperdício tão grande!  Antes tivesse sido eu... Estaria tudo acabado.

— Não seja mórbida — disse-lhe eu.

Ela sacudiu a cabeça, repetindo:

— O senhor não sabe! O senhor não sabe!

Então, de repente, começou a chorar. Soluçava man­samente como uma criança desamparada. Chorar era o me­lhor para ela. Não procurei consolá-la.

Quando o choro diminuiu um pouco, fui até à janela e olhei para fora. Eu tinha ouvido pouco antes um vozerio. Com efeito, estavam todos lá agora, em semicírculo à volta do corpo. Poirot, como uma sentinela, mantinha-os à dis­tância.

Enquanto eu olhava, duas figuras atravessaram o gra­mado em largas passadas. A polícia tinha chegado.

Voltei para perto do sofá. Nick levantou o rosto man­chado de lágrimas:

— Eu devia estar fazendo alguma coisa, não é?

— Não, meu bem. Poirot está providenciando tudo. Deixe tudo com ele.

Nick ficou calada por alguns minutos. Depois disse:

— Coitada da Maggie! Pobre querida! Tão boa alma! Nunca fez mal a ninguém em toda sua vida. E aconteceu isso logo com ela!  Sinto-me como se a tivesse matado eu mesma, trazendo-a para cá.

Sacudi a cabeça melancolicamente. Ninguém pode pre­ver o futuro: quando Poirot insistiu para que Nick convi­dasse uma amiga, nunca poderia imaginar que estivesse as­sinando a sentença de morte de uma desconhecida.

Ficamos em silêncio. Ansiava por saber o que aconte­cia lá fora, mas cumpri lealmente as instruções de Poirot e permaneci no posto, junto a Nick.

Quando Poirot e um inspetor de polícia entraram na sala, parecia que se tinham passado horas e horas. Com eles veio um homem que só podia ser o Dr. Graham. Ele se dirigiu imediatamente para Nick.

— Como se sente, Senhorita Buckley? Deve ter sido um grande choque emocional. — Com os dedos o médico sentiu-lhe a pulsação. — Não está má.

Virou-se para mim:

— Ela tomou alguma coisa?

— Só um pouco de conhaque.

— Estou bem — disse Nick com bravura.

— Pode responder a algumas perguntas?

— Naturalmente.

O inspetor de polícia adiantou-se com um pigarro pre­liminar. Nick o saudou com a sombra de um sorriso.

— Não estou impedindo o tráfego dessa vez.

Imaginei logo que se conhecessem.

— Isto tudo é terrível. Senhorita Buckley — disse o inspetor. — Sinto muito. O Sr. Poirot aqui presente e cujo nome conheço bem me disse que atiraram na senhorita no jardim do Hotel Majestic há alguns dias. É verdade?

Nick confirmou.

— Pensei que fosse só uma vespa mas não era.

— E aconteceram alguns acidentes estranhos antes dis­so?

— É verdade. Pelo menos foram estranhamente próxi­mos um do outro.

Ela contou rapidamente o que já ocorrera.

— Muito bem. Agora diga-me: por que sua prima es­tava usando seu xale hoje?

— Viemos apanhar o casaco dela. Estava frio lá fora. Joguei o xale neste sofá e subi. Vesti o casaco de nútria que estou usando e apanhei um agasalho para a Sra. Rice no quarto dela. Está ali no chão, perto da porta. Nesse mo­mento Maggie gritou, dizendo que não conseguia encontrar seu casaco. Respondi que o casaco devia estar aqui embai­xo. Ela desceu e disse que ainda não tinha encontrado. En­tão eu lhe disse que o casaco devia ter ficado no carro. Era um mantô de tweed que ela procurava, pois não tinha nada de pele. Ia trazer-lhe um dos meus, mas. ela quis usar meu xale, caso eu. não o quisesse. Achei que não seria su­ficiente mas Maggie garantiu que sim, pois em Yorkshire faz mais frio. Concordei e pedi que me esperasse pois ia descer logo. Quando desci... — ela parou, sua voz como que se partiu.

— Não se aflija, Senhorita Buckley. Só me diga isso: ouviu tiros?

Nick sacudiu a cabeça:

— Não. Só os morteiros estourando e os outros fogos.

— É isso mesmo — disse o inspetor. — Nunca pode­ria ouvir um tiro com todo o barulho em volta.  Creio que não adianta perguntar se desconfia de quem possa ter cau­sado esses acidentes.

— Não faço a menor idéia — respondeu Nick.

— Acho que não poderia mesmo saber. Deve ser algum maníaco homicida. Só pode ser. Negócio feio — con­tinuou ele. — Bem senhorita não preciso perguntar-lhe mais nada por hoje. Sinto muito mais do que a senhorita ima­gina.

Dr. Graham adiantou-se.

— Vou sugerir Senhorita Buckley que não permaneça aqui. Já conversei com o Sr. Poirot á respeito. Conheço uma excelente clínica dê repouso. A senhorita sofreu um choque e necessita de descanso completo.

Nick não olhava para ele. Seus olhos procuravam Poi­rot.

— É por causa do choque?

Poirot se dirigiu para ela:

— Quero mantê-la a salvo, menina. Quero estar certo de que está a salvo. Haverá uma enfermeira objetiva e sem imaginação que ficará sempre a seu lado. Quando a senhorita despertar e gritar ela estará lá. Compreende?

— Sim — disse Nick. — Compreendo. É o senhor que não compreende. Não tenho mais medo. Não me importo com o que possa acontecer. Se alguém me quiser matar, pode fazê-lo agora.

— Não diga isso — interpus. — A senhorita está debaixo de muita tensão.

— Nenhum de vocês sabe de nada!

— Creio que o plano do Sr. Poirot é muito bom — interrompeu o médico tentando conciliar.— Eu mesmo a levo no meu carro e a senhorita pode tomar alguma coisa que lhe assegure uma boa noite de sono. Concorda?

— Não me importo. Façam o que quiserem.

Poirot colocou a mão sobre a dela.

— Eu sei, senhorita, como se deve sentir. Estou en­vergonhado por ter falhado. Prometi proteção e não fui capaz de proteger. Acredite, meu coração dói por causa desse fracasso. Se soubesse o que sofro também, poderia perdoar-me, tenho certeza.

— Isto não tem importância — disse Nick, ainda com voz inteiramente sem expressão. — Não se culpe. Estou certa de que fez o melhor que pôde. Ninguém poderia evi­tar o que houve. Não fique infeliz, por favor.

— A senhorita é muito generosa.

— Não. Eu apenas...

Houve uma interrupção. A porta se abriu de repente e George Challenger entrou apressado.

— Que confusão é esta? Cheguei agora e encontrei o carro da polícia no portão e boatos de que alguém morreu. Que aconteceu? Pelo amor de Deus, digam! É... é Nick?

A angústia em sua voz era impressionante. De repente, percebi que Poirot e o médico bloqueavam completamente a visão que Challenger poderia ter de Nick, no sofá.

Antes que qualquer pessoa pudesse responder, ele re­petiu:

— Não pode ser verdade! Nick não está morta!

— Não, meu amigo — disse Poirot com calma. — Ela está viva.

Ele se afastou para que Challenger pudesse ver a jo­vem no sofá.

Por instantes Challenger fitou-a incrédulo. Depois cam­baleando como um bêbado ele murmurou: Nick... Nick... De repente caindo de joelhos junto ao sofá e escondendo o rosto nas mãos, continuou:

— Nick, minha querida! Pensei que você estivesse mor­ta!

Nick tentou sentar-se.

— Está tudo bem George. Não seja idiota! Estou sã e salva.

Ele ergueu a cabeça e olhou à volta assustado.

— Mas quem morreu? O policial me disse que alguém tinha morrido.

— Sim — disse Nick. — Foi Maggie. A pobre da Maggie!

Um espasmo contorceu-lhe as feições. O médico e Poi­rot aproximaram-se e Dr. Graham ajudou-a a levantar-se. Amparando-a, um de cada lado, levaram Nick para fora da sala.

— Quanto mais cedo for deitar-se melhor. Vou levá-la em meu carro.  Pedi à Sra. Rice que arrumasse numa maleta o essencial para a senhorita — disse o médico.

Eles desapareceram pela porta aberta. Challenger agar­rou-se a meu braço:

— Não compreendo! Para onde a estão levando?

Eu lhe expliquei.

— Entendo. Mas agora, Hastings, pelo amor de Deus, dê-me os pormenores dessa história!   Que tragédia! Pobre menina!

— Venha tomar um drinque — disse eu. — Você está em pedaços.

— É uma boa idéia.

Fomos para a sala-de-jantar.

— Julguei que fosse Nick, sabe? — explicou, enquanto se servia de uma dose forte de uísque com soda.

Não havia dúvidas quanto aos sentimentos do Comandante George Challenger. Estava obviamente apaixonado.

 

DE  A. A. J.

Duvido que possa esquecer algum dia a noite que se seguiu. Poirot não cessava de se recriminar e estava em tal estado de angústia que fiquei alarmado. Andava para baixo e para cima no quarto, repreendendo-se fortemente, sem dar a menor atenção às minhas demonstrações de consolo e so­lidariedade.

— Mas quem poderia conceber tamanha audácia? Di­to de si mesmo? Fui punido por isso. Exatamente: fui cas­tigado. Eu, Hercule Poirot, confiava demais em mim mes­mo.

— Não é bem assim, Poirot.

— Mas quem poderia conceber tamanha audácia? Di­ga-me: quem? Nunca vi igual! Eu tinha tomado todas as precauções possíveis e imagináveis. Eu tinha praticamente posto o assassino de sobreaviso...   

— Como, Poirot? Você pôs o assassino de sobreaviso?

— Você não percebeu? Chamei sua atenção para mim. Deixei-o ver que eu suspeitava de alguém. Tornei as cir­cunstâncias perigosas demais para que ele tentasse repetir as tentativas de homicídio. Praticamente cerquei a Senhorita Buckley com um cordão de isolamento. E ele ultrapassou esse cordão de isolamento! Com uma ousadia inaudita, de­baixo de nossos narizes, ele passou! Apesar de todos esta­rem alertados, ele conseguiu seu objetivo!

— Não, não conseguiu exatamente seu objetivo, Poirot — respondi.

— Por acaso, Hastings, só por acaso. Mas do meu pon­to-de-vista, dá tudo no mesmo: uma vida foi tirada. E isso é o essencial.

— Naturalmente — disse eu. — Não quis dizer isso.

— Mas por outro lado, o que você disse é verdade. E, de certo modo, piora tudo. Lembre-se, meu amigo, de que o assassino está longe, como estava antes, de ter alcançado seu objetivo. Creio que as circunstâncias mudaram — para pior. O que aconteceu significa que duas vidas, em vez de uma, serão sacrificadas.

— Enquanto você estiver por aqui, isto não acontece­rá — disse eu com ênfase.

Ele parou e apertou calorosamente minha mão.

— Obrigado, meu amigo! Muito obrigado. Você ainda confia no. velho, ainda acredita! Isto renova minhas forças! Hercule Poirot não falhará outra vez! Não será sacrificada outra vida. Vou corrigir o engano que cometi. Porque deve ter havido um erro qualquer. Em algum momento, deve ter havido uma falta de ordem talvez, ou falta de método, um deslize, no meu raciocínio que habitualmente funciona tão bem. Recomeçarei. Sim. Vou recomeçar lá do início. É dessa vez não falharei.

— Então você realmente pensa que a vida de Nick Buckley continua em perigo? — perguntei.

— Meu amigo, por que julga que a enviei a uma clí­nica de repouso?

— Então não foi por causa do trauma?

— Trauma! Qualquer pessoa se recupera de um cho­que emocional em casa, com muito melhores perspectivas do que numa clínica de repouso!  Não é agradável lá: o chão de linóleo verde, a conversa das enfermeiras, as re­feições em bandeja, a ininterrupta sucessão de banhos... Não, não. É só por segurança. Confidenciei ao médico toda a minha precaução. Ele concordou e tomará todas as providências necessárias. Ninguém, ninguém será admitido no quarto da Senhorita Buckley. Nem mesmo sua maior amiga. Só a nossa entrada será permitida. Para os outros haverá estritas ordens médicas de que visitas estão proibidas. É uma boa saída e ninguém ficará ofendido.

— Tem razão — disse eu. — Só que...

— Só que... o quê, Hastings?

— Isso não pode durar muito.

— E verdade. Mas teremos uma pausa para respirar e mudar de tática. Você percebeu que o nosso objetivo mu­dou, não é? Que o caráter de nossas atividades será outro?

— Como assim?

— Nossa tarefa original era garantir a vida da Senho­rita Buckley. Agora é muito mais simples e estamos em ter­reno conhecido nosso: trata-se de caçar e prender um as­sassino.

— E você acha que é mais simples, Poirot?

— E lógico que é mais fácil. O assassino já assinou seu nome na obra que realizou. Ele apareceu e fez alguma coisa.

— Você não acha... — hesitei, depois prossegui. — Você não acha que a polícia tem razão? Que isso se trata da obra de um louco, algum lunático com fixação de ho­micídio?

— Estou mais convencido do que nunca do contrário.

— Você pensa mesmo que...

Parei. Poirot continuou o que eu ia dizer num tom de muita seriedade.

— Que o assassino é alguém que pertence ao grupo que rodeia Nick Buckley? Sim, meu amigo, estou certo disso.

— Os acontecimentos de ontem à noite excluem quase completamente essa possibilidade.   Estávamos todos jun­tos e...

Ele interrompeu.

— Você pode jurai que ninguém se desgarrou do gru­po à beira do penhasco nem por um momento sequer? Vo­cê pode jurar em sã consciência que os tinha todos sob os olhos durante todo o tempo em que estivemos lá?

— Não — disse eu, abalado por suas palavras. — Penso que não. Estava escuro. Todos se mexiam e mudavam de lugar. Em ocasiões diferentes pude notar a Sra. Rice, Lazarus, você, Croft, Vyse. Mas todos juntos durante todo o tempo, não.

Poirot concordou.

— Exatamente. Era uma questão de fração de tempo. As duas jovens se dirigem para a casa. O assassino, sorra­teiro, segue as duas e se esconde atrás daquela árvore no meio do gramado. Nick Buckley — foi o que ele pensou — sai e passa a poucos metros dele. Ele atira três vezes em rápida sucessão...

— Três?! — exclamei.

— Sim. Desta vez ele não queria sujeitar-se a um novo fracasso. Encontramos três balas no corpo.

— Foi muito arriscado, não acha?

— Menos arriscado que um tiro só, provavelmente. Uma pistola Mauser não faz muito barulho. Parece o pipo­car dos fogos e se confundiria facilmente com o ruído deles.

— Você encontrou a arma? — perguntei.

— Não. E neste pormenor está a prova irrefutável, na minha opinião, de que não é um estranho o responsável pelo crime. Concordamos os dois — não é mesmo? — em que a pistola da Senhorita Buckley foi roubada por uma única razão: fazer com que sua morte parecesse suicídio.

— Sim.                                                          

— Essa seria a única razão lógica, não é? Mas observe que, agora, não existiu a menor pretensão de simular um suicídio. O assassino sabe que já não pode enganar a nós dois. Ele sabe que nós sabemos!

Refleti. Não podia impedir-me de admitir a lógica do raciocínio.

— Que pensa que ele fez com a pistola?

Poirot deu de ombros.

— É difícil dizer. O mar estava ali bem perto: um gesto com o braço e a pistola é tragada para todo o sem­pre. Nunca será encontrada. Não podemos, é claro, estar absolutamente certos disso, mas seria o que eu faria no lu­gar dele.

Sua naturalidade me deu arrepios.

— Você acha... você acha que ele percebeu que matou a pessoa errada?

— Nos primeiros momentos, estou certo de que não — disse Poirot sombrio. — Deve ter tido uma pequena surpresa muito desagradável quando soube da verdade. Manter as aparências e não se trair não deve ter sido nada fácil.

Suas palavras fizeram-me lembrar a atitude curiosa de Ellen, a empregada. Comentei com Poirot o estranho com­portamento dela. Ele me pareceu bastante interessado.

— Ela demonstrou surpresa ao saber que a vítima ti­nha sido Maggie?

— Enorme surpresa.

— Interessante. A tragédia em si, obviamente, não foi surpresa para ela. Aí está algo que precisa ser investigado. Quem é ela, essa Ellen? Tão inconspícua, tão respeitável à maneira inglesa? Será que foi ela que...? — Ele parou abruptamente.

— Se você vai incluir os acidentes — disse eu, — só um homem teria força suficiente para lançar aquele pe­dregulho penhasco abaixo.

— Não necessariamente. Seria uma questão de alavanca. O serviço poderia ser feito sem muito esforço.

Ele continuou passeando lentamente pelo quarto.

— Todos que estavam presentes ontem à noite na Ca­sa do Penhasco são automaticamente suspeitos. Creio que podemos excluir os convidados. A maioria deles eram só conhecidos. Não havia a menor intimidade entre eles e a dona da casa.

— Charles Vyse estava lá.

— É verdade. Não podemos esquecê-lo. Ele é, por natureza, nosso maior suspeito. — Poirot fez um gesto de desespero e se jogou numa cadeira em frente à minha. — Cá estamos outra vez! Voltamos sempre ao ponto de partida um motivo! Precisamos encontrar o motivo se quisermos elucidar o crime. E é aí, Hastings, que perco continuamente. Quem teria um motivo para desejar livrar-se de Nick Buckley? Já cheguei às mais absurdas suposições. Eu, Hercule Poirot, já me deixei levar pelas mais ridículas fantasias. Atingi a mentalidade dos detetives baratos — prosseguiu ele. — O avô, o Velho Nick, de quem todos dizem que perdeu a fortuna no jogo, não terá escondido o dinheiro em alguma parte da Casa do Penhasco? Terá ele enterrado sua fortuna no terreno da casa? Com isso em mente (envergonho-me de confessá-lo), perguntei à Senhorita Nick se alguém tinha tentado comprar a casa.

— Sabe, Poirot — disse eu, — a idéia não é má. É capaz de ter algum fundamento.

Poirot grunhiu em resposta.

— Sabia que você gostaria da idéia. Para seu tempe­ramento romântico e seu intelecto ligeiramente medíocre a idéia é irresistível. Tesouro enterrado... Você tinha de ado­rar a idéia!

— Não vejo por que...

— Porque, meu amigo, a explicação mais prosaica é, quase sempre, a mais provável. E ainda há o pai. Ele me fez ter idéias ainda mais degradantes. O pai de Nick Buc­kley era viajante por profissão. Imagine que ele tenha rou­bado uma jóia: o olho de um deus qualquer. Os sacerdotes zelosos o perseguem. Sim. Acredite ou não, eu, Hercule Poirot, desci a este extremo. — Meu amigo continuou: — Já tive outras idéias também referentes ao pai. Idéias mais dignificantes e mais prováveis. Ele poderia ter-se casado ou­tra vez durante suas viagens. Então teríamos um outro her­deiro além de Charles Vyse. Mas então esbarramos outra vez com a mesma dificuldade: não há nada de real valor para herdar. — Poirot fez uma pausa curta. — Não negli­genciei nenhum ângulo. Nem mesmo o oferecimento feito pelo Sr. Lazarus para comprar o retrato do avô, que a Se­nhorita Buckley mencionou em conversa. Você se lembra? Passei um telegrama pedindo a um especialista que viesse até aqui examinar o quadro. O bilhete que escrevi para a Senhorita Buckley, hoje de manhã, falava da vinda dele. Imagine se o quadro valesse alguns milhares de libras?

— Você certamente não pensa que um homem rico co­mo o jovem Lazarus...

— Ele é rico? Aparência não é tudo. Até mesmo uma firma estabelecida num palácio e com toda a aparência de prosperidade pode ter uma base apodrecida. Que se faz então? Anda-se por aí queixando-se das dificuldades atuais de vida? Não, claro que não! Compra-se um luxuoso carro no­vo. Gasta-se um pouco mais do que o habitual. Vive-se com um pouco mais de ostentação. Porque, você sabe, crédito é tudo: muitas vezes um negócio das arábias pode ir por água abaixo só por falta de dinheiro vivo. Não mais do que uns milhares de libras às vezes podem arruinar tudo. — Antes que eu pudesse protestar, ele continuou. — Eu sei. Eu sei, É difícil de acreditar, mas não tanto como sacerdotes vinga­tivos ou tesouros enterrados. Pelo menos tem alguma rela­ção com os acontecimentos. Não podemos omitir coisa al­guma que nos possa fazer chegar mais perto da verdade.

Cuidadosamente ele rearranjou os objetos sobre a mesa à sua frente. Quando falou de novo, a voz era grave e, pela primeira vez, calma.

— Motivo! — disse ele. — Voltemos ao mesmo ponto e encaremos o problema calma e metodicamente. Para co­meçar, quantas espécies de motivos existem que justifiquem um homicídio? O que pode levar um ser humano a tirar a vida de outro ser humano? — Poirot refletiu por momentos e continuou. — Vamos excluir por enquanto o maníaco homicida. Estou convencido de que o caminho para a solução de nosso caso não é este. Está excluído também o impulso momentâneo ou privação temporária dos sentidos. Foi um assassinato a sangue-frio.  Que motivos poderiam levar al­guém a cometer um homicídio deliberado como esse? — Outra pausa. Depois ele prosseguiu: — Bem, a primeira idéia que ocorre é lucro. Quem lucraria com a morte de Nick Buckley, direta ou indiretamente? Charles Vyse seria o pri­meiro da lista. Mas não faz sentido: ele herdaria uma pro­priedade que, do ponto-de-vista financeiro, não compensa. Ele poderia, é verdade, pagar a hipoteca, construir casas para alugar dentro do terreno e, eventualmente talvez, tirar algum proveito da herança. O lugar poderia, também, ter algum valor afetivo para ele, se tivesse sido, por exemplo, o lar de seus ancestrais. Você sabe que certas pessoas po­dem ser levadas a cometer crimes em casos assim de amor arraigado à tradição familiar. Mas nada disso acontece no caso de Charles Vyse. — Poirot calou-se, mas prosseguiu em seguida. — A única outra pessoa que poderia lucrar com a morte da Senhorita Buckley é a Sra. Rice, sua amiga. Mas a importância da herança é tão pequena que é até ridículo. Ninguém mais, que eu perceba, lucraria com a morte de Nick Buckley. — Poirot parou. — Que outro motivo há? Ódio? Amor que se transformou em ódio? Seria então um crime passional. Nós sabemos, através das observações da Sra. Croft, que tanto Charles Vyse quanto o Comandante Challenger estão apaixonados pela jovem.

— Creio que pudemos testemunhar nós mesmos o amor do Comandante pela Senhorita Buckley — observei mali­ciosamente com um sorriso.

— É verdade. O nosso honesto marinheiro tem ten­dência a deixar transparecer bastante claramente seus sen­timentos. Quanto ao outro, só temos as informações da Sra. Croft a respeito. Agora, diga-me: se Charles Vyse se jul­gasse relegado a um segundo plano, ficaria ofendido a pon­to de preferir matar sua prima a vê-la casada com outro homem?

— A mim me parece muito melodramático — disse eu reticente.

— Não lhe parece britânico é o que você quer dizer. Concordo, mas mesmo os ingleses têm sentimentos. E Char­les Vyse deve ter emoções fortes. Ele é um reprimido e são estes os mais violentos.  Eu nunca julgaria o Comandante Challenger autor de um crime passional. Não é o tipo. Já Charles Vyse é bem capaz disso. Mas nada disso me satisfaz. — Poirot prosseguiu em suas suposições. — Outro motivo para um crime: ciúme. Separo ciúme de amor, por­que ciúme pode não ser necessariamente uma emoção se­xual. Existe a inveja: inveja da fortuna de alguém, inveja do poder. Lembre-se de que a inveja impeliu Iago a co­meter um dos crimes mais inteligentes que conheço do pon­to-de-vista profissional, numa das peças de Shakespeare.

— Por que foi tão inteligente? — perguntei eu, momentaneamente afastado da linha geral de nossa conversa.

— Ora, Hastings! Porque ele conseguiu que outras pessoas fizessem o trabalho para ele. Imagine só um criminoso, nos dias de hoje, que ninguém conseguisse prender porque pessoalmente ele tem as mãos limpas! Mas não era isso que estávamos discutindo. — E Poirot continuou. — Poderia o ciúme, de qualquer espécie, ser a mola do nosso crime? Quem tem razão para invejar a Senhorita Buckley? Outra mulher? Só há a Sra. Rice e não me parece que exista qualquer tipo de rivalidade entre as duas. Mas veja bem: não me parece, não tenho certeza. Pode haver algo a in­vestigar aí. Por fim — disse meu amigo — há o medo. Será que a Senhorita Nick sabe de algum segredo grave de alguém? Algum segredo que pudesse arruinar uma vida? Se ela sabe, creio que não tem consciência disso. Mas é uma possibilidade. E se for isso, fica tudo muito difícil. Porque se ela possui esta pista, não nos poderá contar nada, por­quanto ela mesma ignora.

— Você acha mesmo que isso é possível?

— Bem, é uma hipótese que só apareceu por causa da dificuldade de encontrar uma teoria plausível que ex­plique os acontecimentos. Quando você elimina todas as possibilidades mais razoáveis, você fica dentro de um cam­po limitado.

Poirot silenciou por algum tempo.

Finalmente, despertando da absorção em que tinha mer­gulhado, pegou uma folha de papel e começou a escrever

— Que está escrevendo? — perguntei curioso.

— Meu amigo, estou fazendo uma lista das pessoas em volta de Nick Buckley. O nome do assassino terá de constar dessa lista, se meu raciocínio estiver correto. — Leia, meu amigo. Veja se compreende alguma coisa. O que se segue foi o que li nos papéis.

A. Ellen.

B. O marido jardineiro.

C. O filho dos dois primeiros.

D. Sr. Croft.

E. Sra. Croft.

F. Sra. Rice.

G. Sr. Lazarus.

H. Comandante Challenger.

I. Sr. Charles Vyse.

J. ?

Observações:

A. Ellen. Circunstâncias suspeitas. Comportamento quando soube do crime. O que disse. Pessoa com as melhores possibilidades para arranjar os acidentes. De­via saber da existência da pistola. Pouco provável que tenha mexido no motor do carro. O crime parece estar acima de sua capacidade mental.

Motivo: Nenhum, a não ser que ódio possa ter nas­cido de algum incidente desconhecido. Nota — Investigações necessárias quanto aos antece­dentes e quanto às relações pessoais com Nick Buckley.

B. O marido jardineiro. Observações idênticas às an­teriores. Única exceção: pode ter mexido no motor do carro.

Nota — Tem de ser entrevistado.

C. A criança. Fora de suspeita.

Nota — Deve ser entrevistada pois pode dar informa­ções preciosas.

D. Sr. Croft. Única circunstância duvidosa: o fato de o termos encontrado na escada a caminho dos quartos. Forneceu explicação imediata e satisfatória, mas que pode não ser verdadeira. Nada conhecemos dos ante­cedentes.

Motivo: Nenhum.

E. Sra. Croft.   Circunstâncias a colocam acima de suspeitas.

Motivo: Nenhum.

F. Sra. Rice. Circunstâncias suspeitas. Ocasião per­feita para o crime. Pediu a N.B. para apanhar seu agasalho. Criou deliberadamente a impressão de que N.B. é mentirosa. Sua versão dos acidentes não ins­pira confiança.

Não estava em Tavistock no momento do acidente. Onde estava então?

Motivo: Lucro? Quase nenhum. Ciúme? É possível mas pouco provável. Medo? É possível também mas nada se sabe a esse respeito.

Nota — É preciso conversar com N. B. a respeito, para tentar esclarecer o assunto. Será algo ligado a seu casamento com Lazarus?

G. Sr. Lazarus. Circunstâncias suspeitas. Ocasião pa­ra preparar qualquer dos acidentes. Oferecimento para comprar o quadro. Declaração, confirmada por F.R., de que os freios do carro estavam perfeitos. Pode ter estado nas redondezas antes de sexta-feira. Motivo: Nenhum, a não ser lucro na compra do qua­dro. Medo? Pouco provável.

Nota — Investigar onde J.L. estava, antes de chegar a Saint Loo. Pesquisar situação financeira da empresa Lazarus.                             

H. Comandante Challenger. Circunstâncias suspeitas inexistentes. Esteve nas redondezas durante toda a se­mana passada, portanto poderia preparar os acidentes. Chegou meia hora depois do crime. Motivo: Nenhum.

I. Sr. Vyse. Circunstâncias suspeitas. Ausente do es­critório no momento do tiro no jardim do hotel. Po­deria talvez ter preparado os acidentes. Declaração a respeito da venda da Casa do Penhasco sujeita a dú­vidas. Reprimido de temperamento. Provavelmente sa­bia da existência da pistola.

Motivo: Lucro? Improvável. Amor ou ódio? Talvez, por causa do temperamento reprimido. Medo? Impos­sível.

Nota — Investigar a quem está hipotecada a casa e a posição da firma de Vyse no caso.

J. E uma incógnita. Poderia ser até alguém de fora, ligado a uma pessoa da lista. Se este for o caso, pro­vavelmente o elemento de ligação seria A., D. e E., ou F. A existência de J. explicaria muita coisa: a au­sência de surpresa por parte de Ellen a respeito do crime e sua satisfação, embora isso possa ser atribuído ao prazer que o crime sempre desperta em meio aos empregados. Daria a razão da presença dos Crofts. Poderia fornecer motivo para o medo de F.R. de que o segredo seja revelado, ou motivo para ciúme.

Poirot me observava enquanto eu lia.

— É muito inglês, não é — comentou ele com orgu­lho. — Eu consigo ser mais inglês quando escrevo do que quando falo.

— É um trabalho muito bom — disse eu entusiastica­mente. — Mostra com clareza todas as possibilidades.

— É — disse ele pensativo, quando tomou de volta os papéis. — E um nome me salta de imediato aos olhos, meu amigo: Charles Vyse. Ele teve as melhores oportunidades e nós lhe atribuímos dois motivos para o crime. Numa lista de cavalos para uma corrida, ele seria favorito de saída.

— Ele é, de fato, o suspeito mais evidente.

— Você tem uma tendência a preferir sempre o que não pode ter cometido o crime de jeito nenhum. Você anda lendo muito livro policial. Na vida real, nove em cada dez vezes, o assassino é o suspeito mais óbvio.

— Mas dessa vez isso não acontece, não é?

— Há só um pormenor contra isto: a audácia com que o crime foi cometido. Foi a primeira constatação que sal­tava aos olhos. Por causa disso, como sempre lhe disse, o motivo não pode ser óbvio.

— É, foi, o que você disse de saída.

— E é o que digo outra vez.

Com um movimento brusco, ele amarrotou os papéis atirou-os ao chão.

— Não! — disse ele quando tentei protestar. — A — A lista é inútil, mas clareou meu raciocínio. Ordem e método é o primeiro estágio para arrumar os fatos com precisão e clareza. O estágio seguinte...

— Sim?...

— O segundo estágio é o da psicologia. Trabalho da massa cinzenta. Aconselho você a ir para a cama, Hastings.

— Não! — Protestei. — A menos que você vá dei­tar-se também. Não vou deixá-lo sozinho.

— Cão fiel! Mas veja, Hastings, você não me pode ajudar a pensar. E é isso que vou fazer. Pensar.

Sacudi a cabeça com energia.

— Você pode querer discutir alguma dúvida comigo, Poirot.

— Você é mesmo um amigo leal. Pelo menos, então sente-se na poltrona.

Essa proposta eu aceitei logo. Dali a pouco a sala começou a ficar escura e fora de foco. O último fato de que me lembro foi ver Poirot apanhando cuidadosamente os pa­péis amarrotados no chão e colocando-os na cesta de pa­péis.

Depois disso, devo ter caído no sono.

 

O SEGREDO DE NICK

Já era dia quando acordei.

Poirot ainda estava no mesmo lugar da véspera. A ati­tude era idêntica mas, no rosto, a expressão era diferente. Os olhos tinham aquele estranho brilho felino que eu co­nhecia tão bem.

Lutei para sentar-me direito, com uma sensação incômo­da de dormência no corpo. Dormir numa cadeira não é das coisas mais aconselháveis na minha idade, mas pelo menos um resultado positivo adveio disso: logo ao abrir os olhos, não senti aquela sonolência característica de uma noite bem dormida, mas sim as faculdades mentais em pleno funciona­mento: a mente tão ativa como quando tinha adormecido.

— Poirot — exclamei — você já resolveu parte do problema!

Ele concordou com a cabeça. Inclinou-se para a frente, tamborilando na mesa à sua frente.

— Responda Hastings, a estas três perguntas: por que a Senhorita Buckley tem dormido mal ultimamente?... por que comprou um vestido de noite preto, se ela nunca usava preto antes? Por que ontem à noite ela disse: “não tenho razões para viver agora.”

Olhei para ele com estranheza. As perguntas me pa­reciam inteiramente sem sentido.

— Responda às perguntas, Hastings! Responda!

— Bem, em primeiro lugar, ela disse que tem andado preocupada ultimamente.

— Precisamente. Por que anda preocupada?

— O vestido preto... Ela pode ter querido sair da rotina. Todos saem às vezes.

— Para um homem casado, você parece conhecer mui­to pouco a psicologia feminina. Se uma mulher acha que uma cor não lhe vai bem, ela simplesmente recusa-se a usá-la.

— E por último, o que ela disse, foi natural depois de um choque daqueles.

— Não, meu amigo, não foi natural. Ficar horrorizada com a morte da prima, sim, está certo. Recriminar-se pela tragédia, também é natural. Mas o que ela disse, não. Ela falou da vida com cansaço, como se viver fosse um peso para ela. Nunca tinha tido essa atitude antes. Ela tinha desafiado a situação com um estalar de dedos mas, quando viu que não adiantava, ficou com medo. Medo, veja bem. Porque a vida era doce e ela não queria morrer. Cansada da vida, não. Isso nunca! Mesmo antes do jantar não era essa a atitude. Temos aí, Hastings, uma mudança psicoló­gica. E isso é interessante. O que causou essa modificação de ponto-de-vista?

— O choque da morte da prima.

— Não sei não. Foi o choque que lhe soltou a língua, mas a modificação é anterior. O que terá sido?

— Não me ocorre nada que possa ter causado o fe­nômeno.

— Pense, Hastings, pense! Use a massa cinzenta.

— Para dizer a verdade...

— Quando tivemos oportunidade de observá-la pela última vez?

— Não foi durante o jantar?

— Exatamente! Depois disso só a vimos recebendo os convidados, tentando fazê-los sentir-se à vontade, isto é, numa atitude formal. Que aconteceu no final do jantar, Has­tings?

— Ela saiu para falar ao telefone — disse eu deva­gar.

— Até que enfim! Felicidades! Você chegou onde eu queria! Ela saiu para falar ao telefone. E demorou pelo menos vinte minutos. É muito tempo para um telefonema. Quem falou com ela? Que disseram os dois? Será que ela foi telefonar mesmo? Temos de descobrir, Hastings, o que aconteceu naqueles vinte minutos. Não tenho a menor dúvida de que a pista que procuramos está aí.

— Você acredita realmente nisso?

— Mas claro! Durante todo o tempo eu lhe disse que Nick Buckley guardava algum segredo, que ela julga não tenha a menor ligação com o crime. Mas eu, Hercule Poirot, enxergo mais longe! Deve haver uma ligação. Enquanto in­vestigava eu sempre tinha a sensação de que faltava um elo em algum lugar. Se não faltasse esse elo — que dúvida! — tudo estaria claríssimo para mim. Como nada está claro, é evidente que o elo que falta é a chave do mistério! Sei que estou certo, Hastings. — E Poirot continuou. — Preciso saber a resposta àquelas três perguntas. Quando souber, então, tudo começará a se esclarecer.

— Bem — disse eu, espreguiçando-me, — acho que vou tomar banho e fazer a barba.

Quando terminei meu banho e pude mudar de roupa, senti-me outro. A dor no corpo e o cansaço de uma noite mal dormida passaram. Fui para a mesa com a sensação de que um bom café bem quente restauraria inteiramente minhas forças.

Dei uma olhada no jornal, mas as notícias não tinham o menor interesse. Só a morte de Michael Seton, agora con­firmada, prendia a atenção. O intrépido aventureiro tinha mor­rido. Comecei a imaginar como seriam as manchetes do dia seguinte: “JOVEM ASSASSINADA DURANTE UMA DE­MONSTRAÇÃO DE FOGOS DE ARTIFÍCIOS. TRAGÉDIA MISTERIOSA”.  Alguma coisa assim.

Quando estava terminando meu café, Frederica Rice veio até minha mesa. Ela usava um vestidinho preto, simples, com uma gola branca de pregas soltas. O tom claro de sua pele branca sobressaía mais do que nunca.

— Queria ver o Sr. Poirot, Capitão Hastings. Ele já está de pé?

— Eu a levarei até lá — respondi. — Deixei-o na sa­leta quando desci.

— Muito obrigada.

— Espero que não tenha dormido muito mal — disse eu quando saímos do restaurante.

— Foi brutal — disse ela, em tom meditativo. — Na­turalmente eu não conhecia a moça e, para mim. teria sido pior se tivesse sido Nick.

— A senhora nunca tinha visto a moça antes?

— Uma vez só, em Scarborough. Ela veio almoçar com Nick.

— Vai ser um terrível golpe para os pais dela — dis­se eu.

— Horrível.

Ela disse isso muito impessoalmente. Era uma egoísta, pensei. Nada que não a envolvesse era real.

Poirot tinha acabado seu café e lia o jornal. Ergueu-se e cumprimentou Frederica com sua costumeira polidez fran­cesa.

— Encantado, senhora. Encantado! — Em seguida ofe­receu uma cadeira.

Ela lhe, agradeceu com um ligeiro sorriso e sentou-se, as mãos pousadas nos braços da poltrona. Não se apressou a falar e manteve-se erecta, os olhos fixos à frente. Havia qual­quer coisa de intimidante em sua imobilidade e distância.

— Sr. Poirot — disse ela por fim, — creio que não há dúvida de que esse negócio triste de ontem à noite é parte de tudo que tem acontecido. A verdadeira vítima deveria ser Nick, não é?

— Eu diria que não tenho a menor dúvida a respeito, senhora.

Frederica franziu a testa.

— Nick é mesmo enfeitiçada.

Havia qualquer coisa estranha no tom com que ela dis­se isso, que não consegui identificar.

— A sorte é traiçoeira — comentou Poirot.

— Talvez. E é inútil lutar contra ela.

Agora havia só cansaço no tom de voz. Depois de uma pausa, ela prosseguiu.

— Preciso pedir desculpas, Sr. Poirot, ao senhor e a Nick. Até ontem à noite eu não acreditava. Nunca imaginei que o perigo pudesse ser sério.

— É mesmo, senhora?

— Agora concordo em que tudo deva ser investigado cuidadosamente. E os amigos mais próximos de Nick não estão acima de suspeita. É ridículo, mas é verdade. Correto, Sr. Poirot?

— A senhora é muito inteligente.

— O Sr. indagou outro dia sobre Tavistock, Sr. Poirot. Como o Sr. vai descobrir de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde, é melhor que lhe diga a verdade agora. Não estive em Tavistock.

— Não, minha senhora?

— Viemos de carro, o Sr. Lazarus e eu, para esta parte do país, no princípio da semana passada. Não queríamos des­pertar comentários inúteis a respeito. Então paramos num lu­garzinho chamado Shellacombe.

— Fica a umas sete milhas daqui, se não me engano.

— Mais ou menos isso.

Ainda aquele cansaço distante.

— Permite-me uma impertinência, minha senhora?

— Ainda existe isso hoje em dia?

— Talvez tenha razão, minha senhora. Diga-me: há quanto tempo a senhora e o Sr. Lazarus são amigos?

—- Conheci-o há seis meses.

Frederica deu de ombros.

— Ele... ele é rico.

— Sra. Rice! — exclamou Poirot. — Dizer isso é de­selegante!

Ela parecia estar-se divertindo.

— Não é melhor eu mesma dizer do que esperar que o senhor o diga por mim?

— É verdade. Existe sempre esse perigo. Se me per­mite, torno a dizer que é muito inteligente.

— O senhor me dará um diploma muito breve — disse ela, levantando-se.

— Não tem mais nada para me dizer, Sra. Rice?

— Não. Acho que não. Vou levar umas flores para Nick e saber como está.

— É muito amável de sua parte. Muito obrigado por sua franqueza, Sra. Rice.

Ela olhou para ele rapidamente como se fosse dizer algu­ma coisa, arrependeu-se e saiu sorrindo ligeiramente para mim quando lhe abri a porta.

— Ela é inteligente — disse Poirot. — Mas Hercule Poirot também é.

— Que quer dizer? — perguntei.

— Que é muito oportuno e conveniente ser tão óbvia a respeito da riqueza do Sr. Lazarus.

— Devo dizer que ela me enojou...

— Meu caro, você sempre tem a reação certa no mo­mento errado! No momento não se trata de uma questão de bom ou mau gosto. Se a Sra. Rice tem um amigo dedicado que lhe dá tudo de que necessita, obviamente ela não preci­sará matar sua maior amiga por uma ninharia.

— Oh! — exclamei, compreendendo afinal.

— Precisamente: oh!

— Por que então não a impediu de ir à clínica?

— E por que mostrar minhas cartas? Não é Hercule Poirot que vai impedir a Senhorita Buckley de ver suas ami­gas. Que idéia! São os médicos e enfermeiras. Aquelas en­fermeiras maçantes cheias de normas e regulamentos e “or­dens médicas”.

— Você não tem medo de que a deixem entrar? Afi­nal até Nick pode insistir.

— Ninguém entrará a não ser você e eu, meu caro Has­tings. E quanto mais cedo nós formos lá, melhor.

De repente a porta se abriu violentamente e George Chal­lenger entrou, o rosto moreno rubro de indignação.

— Escute aqui, Sr. Poirot, que significa isso? Telefonei para aquela maldita clínica onde Nick está e perguntei como estava ela e quando poderia visitá-la. Responderam-me que o médico não permite visitas.  Quero saber o que significa isso! É trabalho seu ou Nick está realmente doente?

— Asseguro-lhe, Comandante, que não dito normas para clínicas de repouso. Não ousaria. Por que não telefona para o bom doutor... — como é mesmo o nome? — Graham?

— Já telefonei. Ele disse que ela está como era de se esperar.   Os médicos sempre dizem isso.   Mas conheço os truques da profissão. Meu tio é médico. Harley Street. E neurologista, psicanalista e todo o resto. Estou cansado de ver essa tática de afastar os parentes e amigos com palavras de conforto. Não acredito que Nick não esteja em condições de ver os amigos. E vou-lhe dizer: acho que o senhor é o causador disso tudo.

Poirot sorriu afetuosamente. Aliás já observei que meu amigo tem uma ternura especial para com os apaixonados.

— Escute, meu amigo — disse ele. — Se uma pessoa conseguir entrar, o Sr. não pode impedir outras de querer vi­sitá-la. O Sr. compreende? Tem de ser tudo ou nada. Nós só queremos o bem-estar da Senhorita Buckley, não é, Coman­dante? Pois é. Então agora o Sr. entende: ninguém pode entrar.

— Compreendo — disse Challenger devagar. — Mas en­tão...

— Nem uma palavra mais! Não diremos mais nada a respeito e esqueceremos rapidamente o que já foi dito. Pru­dência, muita prudência é o de que precisamos no momento.

— Não abrirei a boca — disse o Comandante em voz baixa.

— Flores não estão proibidas, não é? Desde que não se­jam brancas.

Poirot sorriu.

— E agora — disse Poirot depois que a porta se fechou atrás do Comandante Challenger, — enquanto o Sr. Chal­lenger, a Sra. Rice e talvez o Sr. Lazarus se encontram na loja de flores, nós vamos silenciosamente até a clínica.

— Vai fazer-lhe aquelas três perguntas? — indaguei.

— Vamos, sim. Embora eu já saiba as respostas.

— O quê?

— É isso mesmo.

— Quando descobriu?

— Enquanto tomava meu café, Hastings. As respostas estavam debaixo de meu nariz.

— Diga-me então.

— Não. Vamos ouvir as respostas da Senhorita Buck­ley.

Então, como se fosse para distrair minha atenção, em­purrou para mim um envelope aberto.

Era o relatório de um especialista em arte que Poirot tinha enviado para examinar o retrato do Velho Nick. O relatório dizia que o quadro definitivamente não valia mais do que vinte libras.

— Essa parte está esclarecida.

— Esse buraco não tem rato — disse eu, lembrando-me de uma metáfora usada por Poirot num caso antigo.

— Ah! Você se lembra disso? Você tem razão: não há ratos nesse buraco. O quadro vale vinte libras e o Sr. Lazarus ofereceu cinqüenta. Que engano de avaliação para um jovem que parece tão astuto! — Depois de uma curta pausa, Poi­rot se dirigiu para a porta. — Precisamos sair.

A clínica de repouso estava situada numa colina e des­cortinava toda a baía. Um servente de branco nos recebeu. Fomos introduzidos numa saleta do primeiro andar e logo depois entrou uma enfermeira com ar decidido.

Um olhar para Poirot foi suficiente.

Evidentemente ela tinha recebido instruções do Dr. Gra­ham e uma descrição minuciosa do meu pequeno amigo de­tetive. Ela escondeu um sorriso.

— A Senhorita Buckley passou bem a noite. Quer su­bir?

Encontramos Nick num quarto agradável, cheio de sol. Na cama estreita de ferro, ela parecia uma criança cansada. A face pálida e os olhos estranhamente vermelhos, ela pare­cia cansada e inquieta.

— Foi amável de sua parte vir visitar-me — disse ela inexpressivamente.

Poirot tomou-lhe as mãos.

— Coragem, senhorita. Sempre vale a pena viver.

As palavras a surpreenderam. Ela olhou para ele.

— Oh! Oh! não! — disse ela.

— Vai-me dizer agora, senhorita, o que a vem afligin­do ultimamente? Ou vai deixar-me adivinhar? Quero apre­sentar-lhe meus pêsames, meus profundos sentimentos.

Ela corou.

— Então o Sr. sabe! Não importa mais quem saiba. Tudo acabou. Nunca mais vou vê-lo!

A voz partiu-se num soluço.

— Coragem, senhorita.

— Não tenho mais coragem. Usei toda a que tinha nes­sas últimas semanas. Esperando, esperando e, por fim, espe­rando sem esperança.

Eu assistia a tudo atônito. Não compreendia nada.

— Olhe para o pobre Hastings — disse Poirot. — Não sabe do que falamos.

Os olhos, onde se estampava a infelicidade, encontraram os meus.

— Michael Seton, o aviador... Estávamos noivos e ele morreu.

 

O MOTIVO

Eu estava aturdido.

Virei-me para Poirot.

— Era essa a sua descoberta?

— Sim, meu caro. Soube esta manhã.

— Como soube? Como adivinhou? Você disse que es­tava claro à sua frente, no café da manhã.

— E estava. Na primeira página do jornal. Lembrei-me da conversa ontem à noite durante o jantar e então tudo se arrumou.

Virou-se para Nick outra vez.

— A senhorita ouviu a notícia ontem à noite, não foi?

— Foi sim. No rádio. Dei uma desculpa dizendo que ia falar ao telefone.  Queria ouvir as notícias sozinha, caso fossem desagradáveis. — Ela engoliu em seco. — E então ouvi...

— Eu sei, eu sei. — Ele tomou as mãos dela.

— Foi... foi horrível. Todo mundo chegando e eu ten­do de recebê-los. Não sei como agüentei. Parecia um pesade­lo. Era como se eu fosse uma pessoa estranha olhando para mim mesma. E tendo de comportar-me como sempre. Uma sensação muito esquisita.

— Compreendo.

— Então, quando fui buscar o agasalho de Freddie, por um momento, eu desanimei, mas recuperei-me logo. Maggie me chamava continuamente pedindo o casaco. Como demo­rei um pouco, ela apanhou meu xale e saiu. Retoquei a pintura com um pouco de pó e batom e segui-a. E lá estava ela...  morta.

— Deve ter sido um tremendo choque.

— O Sr. não compreende. Eu estava furiosa! Queria que tivesse sido eu! Queria estar morta! E estava viva, muito viva, por anos e anos talvez. E Michael morto. Afogado em algum lugar do Pacífico.

— Pobre menina.

— Não desejo mais viver! Não quero mais viver! — gritou ela, revoltada.

— Eu sei. Eu sei. Para todos nós há sempre um mo­mento em que preferimos a morte. Mas isso passa. O tempo apaga tudo. A senhorita não me acredita, eu sei. É inútil para um velho como eu falar assim: palavras vazias, é o que pensa. Palavras vazias...

— O Sr. pensa que vou esquecer e casar-me com ou­tro! Nunca!

Ela estava muito bonita sentada na cama, as faces em fogo, as mãos crispadas.

— Não, não. Não penso nada de parecido. A senho­rita tem muita sorte.   Foi amada por um grande homem: um herói. Como o conheceu? — perguntou Poirot.

— Foi em Le Touquet, setembro passado. Quase um ano atrás.

— E ficaram noivos quando?

— Logo depois do Natal.  Mas tinha de ficar em se­gredo.

— Por quê?

— Por causa do tio dele, o velho Sir Matthew Seton. Ele adorava pássaros e detestava mulheres.

— Mas isso não é razoável!

— Não é bem assim. Ele era meio louco. Pensava que as mulheres só estragavam a vida dos homens. E Michael dependia completamente dele. O tio tinha muito orgulho de Michael. Financiou a construção do Albatroz e pagou pela viagem à volta do mundo. Era o seu maior sonho essa via­gem. Dele e de Michael. Se Michael tivesse sobrevivido, poderia pedir qualquer coisa ao tio. E se o velho se zan­gasse com o noivado, Michael seria um herói mundial e o tio acabaria por fazer as pazes.

— Compreendo.

— Mas Michael disse que seria fatal se o tio descon­fiasse de alguma coisa antes.  Tivemos de manter absoluto sigilo. Eu mantive. Nunca disse nada a ninguém. Nem mes­mo a Freddie.

Poirot grunhiu.

— Se me tivesse dito, senhorita...

Nick olhou para ele.

— Que diferença poderia fazer? Não tinha nada que ver com os atentados. — Ela fez uma pausa. — Não. Pro­meti a Michael e cumpri a palavra. Foi horrível.  A angús­tia, a espera, a ansiedade durante todo o tempo. Todos me dizendo que eu parecia nervosa e eu sem poder explicar.

— Agora compreendo tudo.

— Ele foi dado como desaparecido uma vez já. O Sr. sabia? Quando cruzava o deserto em direção à Índia. Foi horrível, mas depois tudo se arranjou. A máquina foi dani­ficada, mas consertada logo depois e ele pôde continuar. Eu dizia para mim mesma que seria igual desta vez. Todos di­ziam que ele estava morto e eu me repetia sempre que não, que ele estava bem. Ontem à noite foi o ponto final para mim.

A voz dela era só um murmúrio nas últimas palavras.

— A senhorita tinha esperanças até então?

— Na verdade, não sei. Creio que me recusava a acre­ditar. Era horrível não poder contar a ninguém.

— Posso bem imaginar. Nunca teve a tentação de con­tar à Sra. Rice?

— Algumas vezes, desesperadamente.

— Não crê que ela tenha adivinhado?

— Acho que não. — Nick considerou a hipótese cui­dadosamente. — Ela nunca disse nada. É claro que, de vez em quando, ela fazia insinuações a respeito de sermos grandes amigas e não haver segredos entre nós.

— Não pensou em contar a ela nem quando o tio do Sr. Seton morreu? A senhorita sabia da morte dele, não é? Há mais ou menos uma semana já.

— Eu sei. De uma operação. Creio que então poderia ter revelado a qualquer pessoa. Mas não seria muito ele­gante, não acha? Pareceria que estava me gabando, num momento em que os jornais estavam cheios de Michael. Re­pórteres viriam entrevistar-me, com certeza. Ficaria muito vulgar. E Michael não gostaria.

— Concordo com sua opinião, senhorita. Não poderia anunciar publicamente, mas falar com uma amiga em parti­cular é outra coisa.

— Eu dei uma indireta para alguém — disse Nick. — Achei que devia isso a ele, mas não sei se ele... se a pes­soa percebeu.

Poirot sacudiu a cabeça.

— Tem boas relações com seu primo, o Sr. Vyse? — perguntou ele mudando subitamente de assunto.

— Charles? O que fez o Sr. lembrar-se dele?

— Estava só pensando, é tudo.

— Charles é boa pessoa — disse Nick. — Não é mui­to inteligente, é claro. Nunca sai de seu lugar. Não creio que aprove a vida que levo.

— Oh! Senhorita, senhorita! Ouvi dizer que ele se co­locou a seus pés.

— Desaprovar alguém não quer dizer que não se es­teja apaixonado por esse alguém.Charles acha que minha maneira de viver é lamentável. Ele desaprova meus drinques, minha aparência, meus amigos e minha conversa. Mas eu o fascino.  Ele espera regenerar-me um dia, creio.

Ela fez uma pausa e disse com uma ligeira piscadela:

— De quem andou arrancando as informações locais?

— Não me denuncie, senhorita. Tive uma conversinha com aquela senhora australiana, a Sra. Croft.

— Ela é um amor, quando se tem tempo para ela. Sentimental demais: amor, lar e crianças. Sabe como é.

— Sou obsoleto e sentimental também, senhorita.

— É mesmo? Eu diria que o Capitão Hastings é o mais sentimental dos dois.

Fiquei encabulado.

— Ele está furioso — disse Poirot constatando com grande prazer o meu embaraço. — Mas a senhorita está certa. Sim, a senhorita está certa.

— Absolutamente!  — protestei zangado.

— Hastings tem uma índole singularmente boa. Por muitas vezes isso me atrapalhou.

— Não seja absurdo, Poirot! — disse eu.

— Ele não percebe maldade em nada nem em ninguém e, quando finalmente percebe, fica tão justamente indignado que se torna incapaz de disfarçar. Sem dúvida uma natureza rara e bela. — E virando-se para mim, continuou. — Não, meu amigo, não permitirei que me contradiga. É verdade o que acabo de dizer.

— Vocês dois têm sido muito bons para mim — disse Nick baixinho.

— Não foi nada, senhorita. Temos muito que fazer. Para começar, a senhorita permanece aqui. Vai obedecer às ordens. Fará o que eu mandar, A esta altura não quero em­pecilhos.

Nick suspirou cansada.

— Faço tudo o que quiser. Nada me importa.

— Não verá seus amigos por enquanto.

— Não faz mal. Não quero ver ninguém.

— Fará a parte passiva. Nós agiremos. Vou deixá-la agora e à sua dor. Não desejo ser um intruso por mais tempo.

Dirigiu-se para a porta e parou a mão pousada na ma­çaneta.

— A propósito, a senhorita mencionou um testamen­to que fez. Sabe onde está?

— Oh! Está por aí, em algum lugar.

— Na Casa do Penhasco?

É.

— Num cofre? Trancado em sua secretária?

— Para dizer a verdade, não sei. Está em algum lu­gar. — Ela franziu a testa. — Sou terrivelmente relaxada, sabe? Papéis e coisas assim devem estar sobre a mesa, na biblioteca. É onde está a maioria das contas. O testamento deve estar no meio delas. Ou talvez no meu quarto.

— Permite-me procurar?

— Claro. Procure onde quiser.

— Obrigado, senhorita. Aproveitarei sua permissão.

 

ELLEN

Poirot não disse uma palavra até que estivéssemos do lado de fora. Então ele agarrou meu braço.

— Viu, Hastings? Viu? Deus do céu! Eu estava certo! Eu estava certo! Senti durante todo o tempo que faltava algum pormenor. Uma peça do quebra-cabeça não estava lá. E sem essa peça o conjunto estava sem sentido.

Seu tom quase desesperado de triunfo me parecia bas­tante exagerado. Não me constava que nada de tão impor­tante tivesse acontecido.

— Estava ali todo o tempo e eu não percebia. Mas também como poderia perceber? Saber que existe algo mais é uma coisa, porem saber em que consiste este algo mais, é coisa completamente diferente! É muito mais difícil.

— Você quer dizer que essa história teve alguma in­fluência no crime?

— Será que você ainda não percebeu?

— Para lhe dizer a verdade, não.

— Será possível? Ora, o que a Senhorita Buckley nos relatou nos dá o que faltava: o motivo. O misterioso motivo oculto até então.

— Devo ser muito estúpido, pois não entendo nada. Você se refere a inveja ou ciúme?

— Inveja? Não, meu amigo. O motivo de sempre, o inevitável e habitual motivo: dinheiro, meu caro, dinheiro!

Olhei para ele espantado. Ele continuou calmamente.

— Escute, Hastings. Há pouco mais de uma semana morreu Sir Matthew Seton. E ele era um milionário, um dos homens mais ricos da Inglaterra.

— Sei, mas...

— Espere. Chegamos lá. Ele tinha um sobrinho a quem adorava e para quem — nós supomos — deve ter deixado toda sua enorme fortuna.

— Mas...

— Claro: deve haver outros legados, uma doação para a perpetuação de suas manias, mas o grosso da fortuna fi­caria para Michael Seton. Terça-feira passada Michael Se­ton é dado como desaparecido e na quarta-feira começam os atentados contra a vida da Senhorita Buckley. Suponha, Has­tings, que o Sr. Seton tenha feito um testamento antes de iniciar sua grande aventura, deixando sua fortuna para a noiva.

— É só uma suposição sua.

— Sim, é uma suposição, mas deve ter sido assim. Porque se não foi, nada que aconteceu faz sentido. Lem­bre-se de que não se trata de herança desprezível.  É uma fortuna considerável.

Fiquei calado por algum tempo meditando sobre o que tinha ouvido. Parecia-me que Poirot estava chegando a conclusões apressadas, mas mesmo assim eu estava conven­cido de que ele devia estar certo. Seu faro extraordinário me influenciava, porém ainda restava provar muita coisa.

— Mas se ninguém sabia do noivado, Poirot!  — ar­gumentei.

— Alguém devia saber. Aliás há sempre alguém que sabe.  Se não sabem, adivinham. A Sra. Rice suspeitava. A Senhorita Buckley mesmo admitiu essa hipótese. E a Sra. Rice deve ter tido meios de transformar sua dúvida em certeza.

— Como?

— Bem, por um lado, deveria haver cartas do Sr. Se­ton para Nick Buckley. Afinal de contas eles estiveram noi­vos durante certo tempo. A melhor amiga dela sabia que a jovem era descuidada. Ela sempre deixa tudo espalhado por toda parte. Duvido que alguma vez na vida tenha tran­cado alguma coisa. Sabe, Hastings, havia meios de certi­ficar-se .

— E Frederica Rice saberia do testamento da amiga?

— Sem dúvida. Você se lembra da minha lista de pes­soas, de A a J. Pois bem, essa lista está diminuindo: só temos duas pessoas agora. Os empregados estão de fora. O Comandante Challenger também, embora ele tenha levado uma hora e meia para chegar, vindo de Plymouth que fica só a trinta milhas daqui. O Sr. Lazarus, que ofereceu cin­qüenta libras por um quadro que só vale vinte, está fora. De fora também estão os australianos tão saudáveis e agra­dáveis. Só ficam duas pessoas na lista.

— Uma é Frederica Rice — disse eu devagar.

Revi em pensamento o rosto, os cabelos dourados, a alva fragilidade de sua aparência;

— Sim, tudo parece convergir para ela. Por mais mal escrito que esteja o testamento, ela seria obviamente a her­deira universal. Cora exceção da Casa do Penhasco, todo o resto ficaria para ela. Se a Senhorita Buckley estivesse no lugar de Maggie Buckley ontem à noite, a Sra. Rice seria hoje uma mulher rica.

— Não posso acreditar!

— Você quer dizer que não acredita que uma mulher bonita possa ser assassina? Por causa desse preconceito, às vezes passam-se momentos difíceis diante de um júri.  Mas você pode estar certo. Ainda há outro suspeito,

— Quem?

— Charles Vyse.

— Mas ele só herda a casa.

— É. Mas ele pode não saber disso. Foi ele que fez o testamento? Creio que não. Porque se tivesse sido ele, o documento estaria em seu poder e não “em algum lugar por aí”, ou coisa parecida, como disse a jovem. Portanto, Has­tings, é pouco provável que ele saiba algo a respeito do testamento. Possivelmente pensa que ela nunca fez um testamento e, nesse caso, ele herdaria tudo, sendo o parente mais próximo.

— Você sabe? — disse eu. — Acho esta segunda hi­pótese mais provável.

— Lá vem você com suas tendências românticas, Has­tings. O advogado malvado! É figura comum nos romances. E, se além de advogado, ele ainda por cima tem feições impassíveis, então é quase certo que seja o culpado.É ver­dade que ele aparece mais no quadro do que a Sra. Rice e provavelmente seria mais fácil para ele saber da existên­cia da pistola e de seu manejo.

— Mais fácil para ele também deslocar o pedregulho.

— Talvez. Embora, como eu já disse, muito possa ser feito por meio de alavancas. O fato de que a pedra rolou no momento errado e não acertou o alvo me parece mais obra feminina. A idéia de mexer no motor de um carro, por outro lado, parece mais masculina, se bem que existam mulheres que são tão boas mecânicas quanto um homem. Entretanto existem dois ou três buracos na teoria contra o Sr. Vyse.

— Por exemplo.

— Ele tinha menos probabilidade de saber do noivado do que a Sra. Rice. E há mais: ele teria sido muito preci­pitado em suas ações.

— Como assim?

— Até ontem à noite não havia nenhuma certeza da morte de Seton. Agir apressadamente, sem a devida segu­rança, não é característica de um homem de leis.

— Sim. Uma mulher tira as conclusões rápido de­mais.

— Exatamente. O que uma mulher quer, até Deus também quer. Esta é a atitude.

— É espantoso como Nick Burckley conseguiu escapar de tudo. É quase incrível.

De repente lembrei-me do tom de voz com que Fre­derica Rice me tinha dito: — “Nick tem a vida enfeitiçada”.

Estremeci.

— Sim — disse Poirot pensativo. — Não tenho ne­nhum mérito nisso. É humilhante.

— Foi a providência divina — murmurei.

— Ah! meu amigo! Eu não colocaria nos ombros do bom Deus o peso dos crimes dos homens. Você diz isso na sua voz agradecida dos serviços dominicais, sem refletir que suas palavras implicam realmente que o bom Deus ma­tou Maggie Buckley.

— Francamente, Poirot!

— Francamente digo eu, meu caro! Não ficarei inerte dizendo que o bom Deus conserta tudo e que eu não devo interferir, porque estou convencido de que o bom Deus criou Hercule Poirot expressamente para que ele interfira nas Coi­sas. É minha profissão.

Estávamos subindo a trilha ziguezagueante que levava ao penhasco. Nesse momento passamos pelo portãozinho e entramos nos terrenos da casa.

— Uf! — exclamou Poirot. — Subida íngreme essa! Es­tou com calor. Meu bigode está até caído. Como disse an­tes, estou ao lado do inocente: ao lado da Senhorita Buck­ley porque foi atacada; ao lado de Maggie Buckley porque ela foi assassinada..

— E está contra Frederica Rice e Charles Vyse.

— Não, não, Hastings. Não tenho preconceitos no mo­mento. Só os, terei quando um dos dois for indiciado.

Tínhamos chegado ao gramado da casa e um homem cortava a grama com uma máquina. Tinha uma expressão estúpida e os olhos sem brilho. Ao seu lado via-se um menino de seus dez anos, feio, porém com aspecto inte­ligente.

— Psiu! — disse Poirot. — Cale a boca!

Achei curioso que não tivéssemos ouvido antes o ruí­do da máquina, mas concluí que o jardineiro não queria fatigar-se. Ele estava provavelmente descansando e reco­meçou a trabalhar quando ouviu nossas vozes que se apro­ximavam.

— Bom dia — disse Poirot.

— Bom dia, senhor.

— O Sr. é o jardineiro, não é? É o marido daquela senhora que trabalha na casa?

— Ele é meu pai — disse o menino.

— Sou eu mesmo, senhor — respondeu o homem. — E o Sr. deve ser o estrangeiro que é um detetive de verdade. Tem alguma notícia da nossa patroazinha?

— Venho de lá nesse momento. Ela passou uma noite satisfatória.

— A polícia veio cá — disse o menino. — Foi aqui que a mulher foi morta. Nestes degraus. Um dia eu vi matarem um porco, não foi, papai?

— É! — respondeu o pai indiferentemente.

— Papai costumava matar porcos quando trabalhava numa fazenda, não é, papai? Eu vi matarem um porco. Gos­tei muito.

— Crianças gostam de ver matar porcos — disse o homem como se estivesse declarando algo natural e inalte­rável .

— Atiraram na moça com uma pistola — continuou o menino. — Não cortaram a garganta dela, não.

Dirigimo-nos para a casa e senti-me aliviado ao afas­tar-me daquela criança sinistra.

Poirot entrou na sala de visitas, cujas janelas estavam abertas, e tocou a campainha. Ellen, corretamente vestida de preto, atendeu ao chamado e não demonstrou surpresa ao ver-nos.

Poirot explicou que tínhamos a permissão da Senho­rita Buckley para dar uma busca na casa.

— Muito bem, senhores.

— A polícia já terminou?

— Eles disseram que já tinham visto tudo que que­riam. Andaram por todo o jardim desde muito cedo hoje. Não sei se encontraram alguma coisa.

Ela ia sair quando Poirot lhe dirigiu a palavra.

— A Sra. se surpreendeu ontem à noite quando soube que a Senhorita Buckley tinha sido morta?

— Muito, Senhor Poirot. A Senhorita Maggie era mui­to boa. Não consigo imaginar que haja alguém tão cruel que lhe quisesse fazer mal.

— Se tivesse sido outra pessoa, a Sra. não se surpre­enderia tanto, não é?

— Não compreendo. O que quer dizer, Sr.?

— Quando entrei no saguão ontem à noite — disse eu, — a Sra. perguntou imediatamente se alguém tinha sido fe­rido. Esperava qualquer coisa assim?

Ellen calou-se. Seus dedos brincavam com o avental. Sacudiu a cabeça e murmurou.

— Os Srs. nunca entenderiam.

— Sim — disse Poirot. — Por mais fantástico que seja o que vai dizer, nós compreenderíamos.

Ela olhou para ele com ar de dúvida e depois pareceu disposta a confiar em Poirot.

— O Sr. pode bem ver que esta casa não é uma casa boa.

Fiquei surpreso e desapontado. Poirot, entretanto, não achou nada de estranho na observação.

— A Sra. quer dizer que a casa é velha.

— Sim, Sr. E não é uma casa boa.

— Há quanto tempo está aqui?

— Seis anos. Mas já estive aqui quando era menina. Na cozinha, como ajudante. Foi na época do velho Sir Ni­cholas. Era a mesma coisa naquele tempo.

Poirot a olhava atentamente.

— Numa casa antiga — disse ele, — parece pairar às vezes uma atmosfera sinistra.

— É isso mesmo, Sr.! — exclamou Ellen vivamente. — Desgraça. Maus pensamentos e infortúnios também. É como uma espécie de podridão. E o Sr. não pode escapar. Está no ar. Sempre tive certeza de que alguma infelicidade aconteceria nesta casa um dia.

— E a Sra. estava certa, como vê.

— Sim, Sr.

Havia uma espécie de satisfação oculta no tom com que respondeu: a satisfação de ver realizados seus lúgubres prognósticos.

— Mas não lhe passou pela cabeça que pudesse ser a senhorita Maggie.

— Não. Na verdade, não, Sr. Ninguém a detestava, es­tou certa disso.

Pareceu-me que havia qualquer mistério em suas pala­vras. Julguei que Poirot fosse insistir no assunto, mas para surpresa minha, ele mudou completamente de direção:

— Não ouviu os tiros?

— Não poderia dizê-lo, com o barulho dos fogos de artifício. Muito barulhentos.

— E a Sra. não assistiu à demonstração?

— Não. Eu ainda não tinha acabado de arrumar a co­zinha .

— E o garçom estava ajudando?

— Não, Sr. Ele tinha ido ver os fogos, do jardim.

— Mas a Sra. não foi.

— Não, Sr.

— E por quê?

— Queria acabar logo o serviço.

— Não gosta de fogos de artifício?

— Gosto, sim. Mas é que há duas noites de fogos e amanhã William e eu estamos de folga.  Vamos os dois à cidade e veremos os fogos de lá.

— Compreendo — murmurou Poirot. — E a Sra. ou­viu a Senhorita Maggie perguntando pelo casaco que não encontrava?

— Ouvi a Srta. Nick subir as escadas. Depois a Srta. Maggie gritou do saguão, dizendo que não encontrava al­guma coisa e que não tinha importância pois ia apanhar o xale.

— Perdão — interrompeu Poirot. — A Sra. não ten­tou procurar o casaco para ela? Nem se ofereceu para ir até o carro, onde estava o agasalho?

— Eu estava trabalhando, senhor.

— É verdade. E sem dúvida, nenhuma das duas lhe perguntou pelo casaco porque pensavam que a Sra. estava assistindo aos fogos.

— Creio que sim.

— Nos outros anos, a Sra. saía para ver os fogos?

As faces pálidas de Ellen coraram subitamente.

— Não sei o que quer dizer, Sr. Sempre pudemos sair para o jardim quando quiséssemos. Se este ano eu não quis ver os fogos e sim terminar meu trabalho é problema meu, eu creio.

— Mas claro, claro. Não quis ofendê-la. Por que não fazer sempre o que prefere? Sair da rotina é agradável.

Ele fez uma pausa e acrescentou:

— Agora um outro detalhe em que pode ajudar-me. Esta casa é antiga. Será que existem nela quartos secretos ou coisa parecida?

— Bem, existe aqui neste aposento mesmo uma espécie de painel secreto. Lembro-me de tê-lo visto quando ainda era pequena. Só que me esqueci onde era. Nem tenho cer­teza se era aqui mesmo ou na biblioteca.

— Era suficientemente grande para esconder uma pes­soa?

— Oh! não, Sr.! Era uma prateleirinha, um nicho. Na­da mais que uns trinta e cinco centímetros quadrados.

— Não! Não era isso que eu queria!

Ellen corou outra vez.

— Se o Sr. pensa que eu estava escondida, está muito enganado!  Ouvi a Senhorita Nick correr escada abaixo e depois gritar. Então fui até o saguão para ver se tinha acon­tecido alguma coisa. Esta é toda a verdade. Juro.

 

CARTAS

Tendo-se livrado de Ellen, Poirot virou-se, pensativo, para mim.

— Fico imaginando: será que ela não ouviu os tiros? Creio que sim. Ela os ouviu e abriu a porta da cozinha, assim como deve ter ouvido Nick Buckley descer correndo a escada. Então ela saiu para ver o que estava acontecendo. Tudo muito natural. Mas por que não foi ela assistir aos fogos? Isso é o que eu gostaria de saber, Hastings.

— Que idéia foi aquela de perguntar por um painel secreto?

— Foi uma idéia de momento. Lembre-se de que, ape­sar de tudo, ainda não nos desfizemos de J.

— Que J.?

— A última pessoa de minha lista: o elemento hipoté­tico que viria de fora. Suponha por exemplo, que, por algu­ma razão ligada a Ellen, esse elemento tenha entrado na casa ontem à noite. Ele ou ela esconde-se num aposento se­creto aqui nesta sala. Passa uma jovem que lhe parece ser Nick Buckley. Ele, ou ela, a segue e atira — Poirot parou subitamente. — Não! É uma idéia idiota! E, além disso, não há nenhum esconderijo nesta sala. A decisão de Ellen de Permanecer na cozinha foi puro acaso. Venha. Vamos pro­curar o testamento da Senhorita Buckley.

Não havia nenhum papel na sala de visitas. Fomos en­tão para a biblioteca, um aposento sombrio, que dava para a estrada. Uma grande secretária antiga de nogueira chamava logo a atenção.

Levamos algum tempo para examinar a papelada toda que estava espalhada, em completa confusão, sobre a mesa. Havia de tudo: contas, recibos, convites, cartas de credores, correspondência de amigos.

— Vamos colocar estes papéis em ordem — disse Poi­rot severamente.

Ele cumpriu a palavra: meia hora depois, admirava o trabalho feito, com uma expressão de orgulho. Estava tu­do separado por assunto, em pilhas, como num arquivo.

— Agora sim. Pelo menos há uma vantagem: para ar­rumar assim, tivemos de examinar tudo com tanto cuidado, que não creio que possa ter escapado nada de interesse.

— Tem razão. Mas também, não havia muito que achar aqui.

— Com exceção disto — disse Poirot, jogando-me uma carta. Estava escrita numa letra grande e espalhada quase ilegível:

“Querida, a festa foi maravilhosa! Sinto-me como um verme hoje. Você fez bem em não tomar aquele negócio — nunca tome, querida. É terrivelmente difícil desistir depois. Vou escrever ao meu amigo para trazer mais assim que puder. Esta vida é um inferno! Sua Freddie.”

— Datada de fevereiro último — murmurou Poirot pen­sativo. — Ela é viciada em drogas. Constatei os sintomas assim que a vi.

— É mesmo? Nem me passou pela cabeça.

— É óbvio. Basta olhar para os olhos dela. E há tam­bém a instabilidade emocional: ora irritada, tensa; ora iner­te, sem vida.

— Drogas podem afetar a noção de moral?

— Inevitavelmente. Mas a Sra. Rice não é viciada. Ainda está no início.

— E Nick Buckley?

— Não vi sinais nela. Ela pode ter experimentado em uma festa ou outra, mas só isso.

— Ainda bem.

De repente lembrei-me de que Nick tinha dito que Fred­die nem sempre era a mesma. Poirot bateu com os dedos na carta.

— É a drogas que ela se refere, sem dúvida alguma. Bem, já terminamos aqui. Vamos para o quarto da senhorita.

Havia uma secretária também no quarto da jovem, mas muito pouca coisa estava guardada lá. Do testamento, nem sinal. Encontramos o registro do carro e uma garantia de di­videndos datada de um mês atrás. E foi só.

Poirot suspirou exasperado.

— Essas jovens de hoje em dia não têm a educação adequada. Não lhes ensinam ordem e método. Ela é en­cantadora, a Senhorita Buckley, mas é uma cabeça-de-vento. Decididamente uma cabeça-de-vento.

Ele examinava agora as gavetas de uma cômoda.

— Escute, Poirot — disse-lhe eu encabulado, — são roupas de baixo.

Ele parou surpreso.

— E por que não, meu caro?

— Você não acha... quero dizer, nós não podemos...

— Decididamente, meu pobre Hastings, você pertence à era vitoriana! A própria Senhorita Buckley acharia isso se estivesse aqui. Provavelmente ela lhe diria que tem a cabeça suja! As moças de hoje em dia não têm vergonha de suas roupas de baixo. A combinação, a calcinha não são mais segredo vergonhoso. Todos os dias na praia, você vê muito mais que isso a poucos metros de você.  E por que não?

— Não vejo nenhuma necessidade de fazer o que está fazendo.

— Escute, meu amigo. Vê-se que ela não tranca nada. Se quisesse esconder alguma coisa, onde esconderia? Debai­xo das meias e anáguas. Ah! Que vejo aqui? — excla­mou Poirot.

Tinha na mão um maço de cartas amarradas com uma fita rosa desbotada.

— As cartas de amor do Sr. Michael Seton, se não me engano.

Calmamente, ele desamarrou a fita e começou a abrir as cartas.

— Poirot! — exclamei. — Você não pode fazer isso! E jogo sujo.

— Não estou jogando, meu amigo. — Sua voz de re­pente soou áspera e severa. — Estou caçando um criminoso.

— Eu sei.  Mas cartas particulares?

— Podem não conter nada de novo. Por outro lado, pode ser que esclareçam muita coisa, meu amigo. Preciso examinar todas as probabilidades. Venha. É melhor que você as leia junto comigo. Dois pares de olhos vêem melhor que um. Console-se com o pensamento de que a fiel Ellen deve sabê-las de cor.

Pessoalmente não me agradava, mas não podia deixar de concordar com Poirot. Na posição em que estava, ele não se podia dar o luxo de melindres inúteis. Consolei-me com as últimas palavras de Nick: — “Examine tudo que quiser”.

As datas nas cartas começavam no último inverno, dia de Ano Novo.

“Querida,

chegou o Ano Novo e estou cheio de boas inten­ções. É maravilhoso demais para ser verdade: você me ama. Você mudou minha vida. Acho que nós dois percebemos isso no primeiro momento em que nos vi­mos. Feliz Ano Novo, minha menina querida.

Seu para sempre,

Michael.”

8 de fevereiro

“Amor querido,

como gostaria de vê-la mais vezes. É horrível, não é? Detesto todo este segredo, mas já lhe expliquei como são as coisas. Já sei como você odeia mentiras e sub­terfúgios. Eu também. Mas, francamente, dizer a ver­dade agora estragaria todos os nossos planos. Tio Mat­thew não aceita casamentos jovens e diz que eles po­dem arruinar a carreira de um homem. Como se você pudesse arruinar alguma coisa, meu anjo querido. Alegre-se, querida, tudo vai acabar bem.

Seu,

Michael.”

 

2 de março

“Não deveria escrever-lhe dois dias seguidos, eu sei. Mas não resisti. Quando acordei ontem, pensei em você. Voei sobre Scarborough. Bendito, bendito, bendi­to Scarborough — o lugar mais lindo do mundo. Queri­da, você não faz idéia o quanto a amo.

Seu,

Michael.”

18 de abril

“Meu amor,

Está tudo arranjado. Definitivamente. Se eu for bem sucedido — e eu vou ser — serei firme com Tio Mat­thew e, se ele não gostar, pior para ele. Você é ado­rável por se interessar em todos os longos detalhes téc­nicos a respeito do Albatroz. Anseio por voar nele. Só falta um dia! Pelo amor de Deus, não se preocupe comigo. A coisa não é tão arriscada como parece. E eu simplesmente me recuso a morrer, agora que sei que você me ama. Tudo se arranjará, meu bem.

Confie no seu

Michael.”

20 de abril.

“Anjo meu, tudo que você diz é verdade e guardarei sempre aquela carta. Não sou suficientemente bom para você. Você é única. Eu adoro você.

Seu,

Michael.”

A última carta não tinha data.

“Amor querido,

parto amanhã. Sinto-me tremendamente entusias­mado e excitado e absolutamente seguro do sucesso. Meu Albatraz está todo ajustado e regulado. Sei que não me deixará na mão.

Alegre-se, querida, e não se preocupe. Existe um risco, é claro. Mas a vida é toda feita de riscos. A propósito, alguém me disse que fizesse um testamento antes de sair (otimista, não é?), e eu então fiz, numa fo­lha de papel, e enviei-o para o velho Whitfield, Não tive tempo de ir lá. Alguém também me contou que um homem fez um testamento em quatro palavras: “tudo para minha mãe”, e foi tido como legal. Meu testa­mento foi assim. Lembrei-me de seu verdadeiro nome, Magdala, para o que foi preciso grande esforço mental. Dois amigos serviram de testemunhas.

Não leve tudo isso muito a sério, sim? Voltarei são e salvo, vai ver só. Mandarei telegramas da Índia, da Austrália, de onde estiver. Coragem! Vai dar cer­to, viu?

Boa noite e Deus a abençoe,

Michael.”

Poirot juntou as cartas outra vez.

— Viu, Hastings? Tinha de lê-las para certificar-me. É como lhe disse.

— Você poderia descobrir de outra maneira.

— Não, meu caro, não poderia. Tinha de ser assim. Temos provas valiosas aqui.

— Como assim?

— Sabemos agora que o fato de haver um testamento de Michael Seton, fazendo a Senhorita Nick Buckley sua herdeira, é verdadeiro. E ainda, que está registrado nestas cartas. Qualquer pessoa que as ler, saberá disso. E descui­dadamente guardadas como estão, qualquer pessoa poderá lê-las.

— Ellen?

— Ellen, com certeza. Vamos fazer uma pequena ex­periência com ela antes de sair.

— Não há sinal do testamento.

— Não. E é curioso. Provavelmente estará em cima de uma estante ou dentro de um jarro chinês. Precisamos fazer com que a Senhorita Buckley se lembre. De qualquer maneira não há mais nada para encontrar aqui.

Ellen tirava o pó no saguão, quando saímos.

Poirot desejou-lhe um bom-dia ao passar. Voltou-se, já na porta, para perguntar.

— A Sra. sabia, suponho, que a Senhorita Buckley es­tava noiva de Michael Seton?

Ela nos fitou surpreendida.

— O quê? Aquele de quem todos os jornais estão fa­lando?

— Ele mesmo.

— Ora vejam só! Nunca pensaria uma coisas dessas! Noivo da Senhorita Nick!

Quando saímos, observei.

— Completa e absoluta surpresa demonstrada muito convincentemente.

— É. Pareceu-me genuína.

— Talvez tenha sido.

— E aquele pacote de cartas lá no meio da roupa de baixo, há meses já? Não, meu amigo, não acredito.

— Está bem — pensei com meus botões, — nem to­dos somos Hercule Poirot. Não andamos fuçando no que não é de nossa conta.

Mas não disse nada.

— Essa Ellen é um enigma — disse Poirot. — Não gosto disso. Há qualquer coisa que não compreendo.

 

O TESTAMENTO EXTRAVIADO

Fomos direto à clínica.

Nick mostrou surpresa ao ver-nos.

— Sim, senhorita — disse Poirot. — Sou como aquele boneco dentro da caixa: apareço de repente. Para come­çar, digo-lhe que pus em ordem seus papéis. Está tudo ar­rumado.

— É, creio que já era tempo — respondeu Nick Buck­ley com um sorriso involuntário. — O Sr. é muito metódi­co, Sr. Poirot?

— Pergunte aqui ao Hastings.

A jovem voltou os olhos inquisitivos para mim.

Contei-lhe algumas das peculiaridades de Poirot. As tor­radas têm de ser quadradas, os ovos estalados têm de ser do mesmo tamanho. Falei-lhe também das objeções que Poirot fazia ao golpe como um jogo sem forma definida, em que se acerta por acaso. O único elemento que ainda re­dime o golfe é aquela caixa de areia úmida onde se limpam as bolas antes de cada partida. Terminei contando o caso famoso que Poirot solucionou por causa de seu hábito de endireitar os objetos sobre a lareira.

Poirot escutava sorrindo.

— Ele é um bom contador de histórias — disse ele quando acabei. — Mas grande parte é verdade. Imagine, senhorita, que estou sempre tentando convencê-lo de que é melhor repartir o cabelo no meio do que do lado. Observe bem que fisionomia torta e assimétrica este repartido do lado lhe dá.

— Então o Sr. não deve aprovar meu cabelo reparti­do do lado, mas deve gostar do de Freddie que é dividido no meio.

— Ah! Então foi por isso que Poirot a admirou tanto na outra noite — disse eu maliciosamente.

— Basta! — interpôs Poirot. — Estamos aqui para tratar de um assunto sério: seu testamento, senhorita, não o encontrei.

— Tem tanta importância assim? — perguntou ela franzindo a testa. — Afinal de contas, não estou morta e testamentos só são importantes depois da morte, não é?

— É verdade. Mesmo assim esse testamento me inte­ressa muito. Tenho várias hipóteses a respeito. Pense, senho­rita. Onde pode tê-lo deixado? Quando o viu pela última vez?

— Não creio que o tenha posto em nenhum lugar es­pecial — disse Nick. — Não tenho lugar certo para as coisas. Provavelmente enfiei-o numa gaveta.

— Não o pôs, por acaso, no nicho secreto?

— Nicho secreto?

— Sua empregada Ellen diz que existe um painel se­creto na sala-de-visitas ou na biblioteca.

— Bobagens! Nunca ouvi falar em painéis secretos. El­len disse isso?

— Disse sim. Parece que ela já trabalhou na Casa do Penhasco quando era menina e a cozinheira mostrou a ela.

— É a primeira vez que ouço falar em tal coisa. Vo­vô devia saber da existência desse nicho mas, se sabia, nun­ca me contou nada. E tenho certeza de que me contaria. Sr. Poirot, o Sr. está certo de que Ellen não está fabulando?

— Não, senhorita, não posso estar certo. Parece-me haver algo de estranho em Ellen.

— Oh! Não! Eu não a chamaria de estranha. Willian é meio retardado e a criança é um animalzinho malvado, mas Ellen é cem por cento. A respeitabilidade em pessoa.

— A senhorita deu-lhe permissão para assistir aos fo­gos ontem à noite?

— Claro! Eles sempre assistem e terminam o serviço depois.

— Mas ela não saiu.

— Saiu, sim.

— Como sabe, senhorita?

— Bem, creio que não sei ao certo. Disse-lhe que fos­se e ela agradeceu, daí concluí que ela tivesse ido.

— Ao contrário: ela ficou em casa.

— Estranho!

— Acha esquisito?

— Acho sim — respondeu a jovem — Ela nunca fez isso antes. E disse por quê?

— Ellen não me deu a razão verdadeira.

Nick olhou para ele, curiosa.

— É tão importante?

Poirot abanou as mãos.

— Não consigo responder a essa pergunta, senhorita. É esquisito. É só o que posso dizer.

— A história do painel — murmurou Nick pensativa — parece-me extremamente fora de propósito e pouco con­vincente. Ela lhe mostrou onde era?

— Não creio que ele exista.

— Ela disse que não se lembrava — continuou Nick.

— É. Foi o que ela disse.

— Ellen deve estar ficando maluca, pobrezinha.

— Ela sabe contar histórias!  Contou-nos também que a Casa do Penhasco não é uma casa boa de se viver.

Nick estremeceu.

— Talvez ela esteja certa — disse a jovem devagar.

— Algumas vezes, mesmo eu sinto isso. Há uma atmosfera sinistra naquela casa...

Seus olhos tornaram-se mais escuros e maiores. Um olhar infeliz. Poirot imediatamente mudou de assunto.

— Esquecemos nosso objetivo principal: o testamento. O último testamento e as últimas ordens dê Magdala Buck­ley.

— Foi o que escrevi — disse Nick com certo orgulho. — Lembro-me de ter escrito isso e de ter mandado pagar as dívidas e despesas testamentárias.  Li isso num livro há algum tempo.

— Não empregou a forma usual de testamento então?

— Não. Não havia tempo. Eu ia para a casa de saúde e, além disso, o Sr. Croft disse que fórmulas feitas para tes­tamento eram perigosas. Era melhor fazer um testamento simples e não tentar ser legal demais.

— O Sr. Croft estava presente?

— Sim, estava. Foi ele que me disse que fizesse o tes­tamento . Eu mesma nunca tinha pensado nisso. O Sr. Croft afirmou que se eu morresse sem fazer testamento, a Coroa levaria grande parte dos bens e isso seria lamentável.

— Muito prestativo, o bom Sr. Croft.

— Foi mesmo! — disse Nick com ênfase. — Ele con­seguiu que Ellen e o marido servissem de testemunhas. — Ela parou e exclamou de repente: — Mas é claro! Deixei que vocês perdessem tempo procurando na Casa do Penhas­co e o testamento está com Charles, meu primo, Charles Vyse:

— Ah! Então essa é a explicação!

— O Sr. Croft me disse que um advogado seria a melhor pessoa para guardar o documento.

— Muito correto o Sr. Croft.

— Os homens de vez em quando são úteis. Um advo­gado ou o banco, foi o que ele disse. Eu achei que Charles seria melhor. Então metemos o testamento num envelope e o enviamos imediatamente.

Nick se recostou nos travesseiros.

— Desculpe-me por ter sido tão idiota, mas afinal tudo se resolveu bem. Charles tem o testamento sob sua guarda e, se o Sr. quiser dar uma olhada, é só pedir a ele.

— Não sem autorização sua.

— Que bobagem!

— Bobagem, não. Prudência.

— Eu acho que é bobagem. — Ela apanhou um pe­daço de papel de um bloquinho que estava ao lado da cama. — Que devo dizer? Deixe que o caçador veja a caça?

— Como? — perguntou Poirot surpreso.

Ri de sua expressão um tanto perplexa.

Ele ditou e Nick, obedientemente, escreveu.

— Muito obrigado, senhorita.

— Desculpe-me por ter-lhe dado tanto trabalho, mas eu tinha esquecido completamente. É impressionante como se podem esquecer as coisas assim de repente, todas de uma vez.

— Com ordem e método não se esquece nada.

— Vou procurar um curso para aprender a ter ordem .— disse Nick. — O Sr. está me dando complexo de infe­rioridade.

— Seria impossível! Até logo, senhorita. — Ele olhou em volta. — Suas flores são lindas.

— Não é mesmo? Freddie mandou os cravos, George, as rosas e os lírios são de Jim Lazarus. E olhe aqui...

Ela levantou o papel que envolvia uma grande cesta de uvas de estufa.

A expressão de Poirot mudou. Avançou rapidamente para ela.

— A senhorita não comeu nenhuma, espero.

— Não. Ainda não.

— Então não coma. Não deve comer absolutamente nada que venha de fora. Nada, compreende?

Ela olhou para ele, empalidecendo visivelmente.

— Compreendo. O Sr. acha que ainda não acabou. O Sr. acha que ainda estão tentando? — murmurou ela.

Ele lhe tomou a mão.

— Não pense nisso. Aqui está a salvo. Porém, lembre-se: nada que venha de fora.

Levei na mente aquela face pálida e amedrontada re­costada no travesseiro, quando saímos do quarto.

Poirot consultou o relógio.

— Ótimo. Temos o tempo exato para apanhar o Sr. Vyse no escritório antes que ele saia para o almoço.

Logo que chegamos, sem demora, fomos introduzidos até a sala do Sr. Charles Vyse.

O jovem advogado ergueu-se para cumprimentar-nos, formal e impassível como sempre.

— Bom dia, Sr. Poirot. Que posso fazer pelo Sr.?

Sem muitos preâmbulos, Poirot apresentou-lhe a carta de Nick. Ele a leu e nos olhou, perplexo.

— Perdoem-me os Srs. mas não entendo nada.

— A Senhorita Buckley não foi bastante clara no que escreveu?

— Nesta carta — disse ele, batendo no papel com a ponta dos dedos — ela me pede que lhe mostre um tes­tamento feito por ela e que deve estar sob minha guarda desde fevereiro último.

— Exatamente.

— Que eu saiba, minha prima nunca fez testamento. Eu, pelo menos, nunca fiz um para ela.

— Parece que ela escreveu esse testamento numa fo­lha de papel e o enviou para o Sr. pelo correio.

O advogado sacudiu a cabeça.

— Nesse caso, a única coisa que lhe posso adiantar é que nunca o recebi.

— Mas, Sr. Vyse...

— Sr. Poirot, eu lhe asseguro que nunca recebi nada parecido.

Houve uma pausa. Poirot levantou-se.

— Então, Sr. Vyse, não temos mais nada para dizer. Deve haver um engano.

— Mas claro que deve haver qualquer mal-entendido.

Ele se levantou também.

— Até a vista, Sr. Vyse.

— Até a vista, Sr. Poirot.

— E pronto! — observei quando atingimos a rua.

— Precisamente.

— Estaria mentindo?

— Impossível saber. Ele tem uma fisionomia impene­trável e uma pose de quem engoliu um pau de vassoura. Um detalhe é óbvio: ele não se moverá um centímetro da posição em que se colocou. Ele nunca recebeu o testa­mento. E acabou-se.

— Naturalmente Nick deve ter um recibo escrito qual­quer.

— Aquela menina nunca se preocuparia com uma coi­sa dessas, Hastings. Ela pôs no correio e se livrou de um encargo. É tudo. Além disso, foi no dia em que ela se internou para uma intervenção cirúrgica. Ela ia extrair o apêndice e devia estar nervosa.

— Que faremos agora?

— Ora, Hastings! Vamos visitar o Sr. Croft. Veremos do que ele ainda se lembra. Pareceu-me ser tudo obra dele.

— Ele não tirou proveito nenhum.

— Não. Não consigo ver nada que lhe trouxesse be­nefício. O Sr. Croft surge aí apenas como o intrometido, aquele que quer resolver todos os problemas dos vizinhos.

A atitude, sem dúvida, era típica do Sr. Croft. Ele me parecia uma espécie de Sr. Sabe-tudo, bondoso mas que irritava todo mundo.

Nós o encontramos em mangas de camisa, na cozinha, às voltas com uma panela de onde saía um cheiro apetitoso que enchia todo o chalé.

Ele abandonou a cozinha com prazer e via-se que es­tava realmente ansioso para falar sobre o crime.

— Só um momento — disse ele. — Vamos subir. Mãe vai querer saber de tudo. Ela nunca nos perdoaria se fi­cássemos aqui embaixo. — Ele soltou aquela espécie de grito modulado. — Milly, dois amigos vão subir!

A Sra. Croft nos recebeu calorosamente e perguntou logo por Nick. Eu simpatizava muito mais com ela do que com o marido.

— Coitadinha! — disse ela. — Está numa clínica? Em choque, eu imagino. Não é para menos.   Uma calamidade, Sr. Poirot, uma calamidade. Uma jovem inocente como aque­la, assassinada. Não se pode conceber. Não se pode conceber tal coisa, mesmo onde não existam leis. E acontecer aqui, no coração da Inglaterra. Não consegui dormir.

— Fiquei preocupado porque saí e deixei minha velha sozinha — disse o marido que tinha posto o paletó e se tinha juntado a nós. — Não gosto nem de pensar que você estava aqui sozinha ontem à noite. A idéia me dá arrepios.

— Você não me vai deixar só outra vez. Pelo menos de noite. Começo a pensar que gostaria de ir embora daqui assim que pudermos. Isso nunca será a mesma coisa. Aposto que nem a pobre Nick Buckley gostaria de dormir naquela casa outra vez.

Foi difícil trazer à baila o objetivo de nossa visita. O casal Croft estava ansioso para saber todas as minúcias. Os pais da jovem assassinada viriam? Quando seria o enterro? Haveria inquérito? Qual era a opinião da polícia? Havia al­guma pista? Era verdade que tinham prendido um homem em Plymouth?

Depois de respondermos a todas essas perguntas, eles insistiram em que almoçássemos com eles. Poirot nos sal­vou, mentindo que tínhamos já um compromisso com o Chefe de Polícia.

Quando se fez uma pausa, Poirot imediatamente inter­pôs a pergunta que era a única finalidade da visita.

— Mas claro que me lembro — disse o Sr. Croft. Pu­xou por duas vezes, para baixo e para cima, a corda da veneziana, com a testa franzida, distraidamente. — Lem­bro-me de todos os detalhes. Foi pouco depois que chegamos. Os médicos disseram que era apendicite.

— E provavelmente não era — interrompeu a Sra. Croft. — Esses médicos adoram cortar as pessoas. Não era nada que exigisse uma operação. Ela teve uma indigestão com algumas pequenas complicações. Os médicos tiraram um raio X e lhe disseram que tinham de operar. E lá se foi a pobre Nick para uma dessas horríveis casas de saúde.

— Perguntei a ela, mais como uma piada, se tinha fei­to testamento — disse o Sr. Croft.

— Sim?

— E ela fez um, sem mais nem menos. Falou em apanhar uma fórmula oficial no correio mas eu a fiz de­sistir disso. Um amigo meu uma vez me disse que essas fórmulas podem trazer complicações. Enfim, o primo dela é advogado e ele faria para ela um testamento na forma ade­quada quando fosse necessário e não seria necessário naquela ocasião, eu tinha certeza.   Tudo correu bem.  Foi só uma precaução.

— Quem foram as testemunhas?

— Ellen, a empregada, e o marido.

— E depois? Que aconteceu?

— Nós enviamos o documento pelo correio para Vyse, o advogado.

— Está certo de que foi enviado?

— Meu caro Sr. Poirot, eu mesmo o coloquei na cai­xa de correio perto do nosso portão.

— Então, se o Sr. Vyse assegura que nunca o rece­beu...

O Sr. Croft olhou para Poirot.

— O Sr. quer dizer que se extraviou no correio? É impossível.

— De qualquer maneira, o Sr. tem certeza de que o pôs no correio?

— Absoluta! — afirmou o Sr. Croft enfático. — Posso jurar sobre a Bíblia quando for necessário.

— Felizmente — disse Poirot — não tem importân­cia porque a Senhorita Buckley não morrerá tão cedo.

Saímos.

— E agora? — disse Poirot, quando não nos podiam ouvir. — Quem está mentindo? O Sr. Croft ou o Sr. Vyse? Devo confessar que não vejo razão alguma para que o Sr. Croft nos mentisse. Não vejo vantagem para ele no extravio do testamento, sobretudo porque ele auxiliou na sua feitura. Suas declarações me parecem coerentes e coincidem exatamente com o que nos disse a Senhorita Buckley. Mas mesmo assim.

— Sim?

— Mesmo assim fiquei muito satisfeito em ver o Sr. Croft cozinhando quando chegamos. Ele deixou uma ótima impressão digital de um polegar gorduroso na ponta do jornal que forrava a mesa da cozinha. Essa ponta, eu a rasguei e trouxe comigo. Vou enviá-la ao nosso bom amigo Japp, da Scotland Yard. Pode ser que ele saiba algo a res­peito.

— Como assim?

— Sabe, Hastings, não consigo afastar uma descon­fiança de que o nosso Sr. Croft é um pouco genuíno demais para ser verdadeiro. E agora — acrescentou ele, — vamos almoçar. Morro de fome.

 

ESTRANHO COMPORTAMENTO DE FREDERICA

A mentira de Poirot, a respeito do Chefe de Polícia, afinal não foi tão fora de propósito: ele nos telefonou logo depois do almoço.

O Chefe era um homem alto, com porte militar e ain­da bastante bonito. Tinha um grande respeito pelos feitos de Poirot a quem parecia conhecer bem.

— Que sorte a nossa ter o Sr. aqui num momento des­ses! — repetia ele de instante a instante.

Seu maior medo era ter de chamar a Scotland Yard para auxiliá-lo. Desejava ardentemente resolver o caso e prender o criminoso sem a ajuda deles. Daí estar tão en­cantado com a presença de Poirot no local do crime.

Poirot parecia confiar totalmente nele.

— Que complicação dos diabos! — exclamou o coro­nel. — Nunca vi nada parecido. Pelo menos a moça está a salvo na clínica de repouso. Contudo, você não pode man­tê-la lá para sempre!

— Esta é justamente a grande dificuldade, meu coro­nel. E só há um jeito de resolver o caso.

— E qual é?

— Precisamos apanhar o criminoso.

— Se suas suspeitas são verdadeiras, a coisa não é tão fácil assim.

— Pensa que não sei disso?

— Provas! Arranjar as provas vai ser o diabo — disse ele franzindo a testa. — Esses casos fora da rotina são sempre difíceis. Se ao menos pudéssemos encontrar a pis­tola...

— Muito provavelmente deve estar no fundo do mar; se o criminoso tiver tido um pouco de inteligência.

— Ah!  — disse o Coronel Weston.  — Muitas vezes eles não têm. Você ficaria horrorizado diante das bobagens que as pessoas fazem. Não falo de crimes de morte pois não temos muitos por aqui, graças a Deus. Mas você fica­ria surpreso diante das coisas sem sentido, das loucuras que as pessoas dizem e fazem na delegacia.

— Criminosos têm uma mentalidade diferente, creio eu.

— Talvez. Se Vyse for o nosso homem, teremos tra­balho. Ele é cauteloso e um ótimo advogado. Não se en­tregará. A mulher... Bem, aí teremos mais esperança. Apos­to dez contra um que ela tentará outra vez.

Ele se levantou:

— O inquérito é amanhã de manhã. O juiz que está encarregado do caso trabalhará conosco e não deixará trans­parecer muito. Queremos manter o maior sigilo possível.

Dirigia-se para a porta, quando, subitamente, voltou.

— E eu que me ia esquecendo de um elemento que vai interessá-lo sobremaneira. Quero sua opinião sobre isso.

Sentando outra vez, tirou do bolso um pedaço de pa­pel rasgado com algo escrito e o estendeu a Poirot.

— Meus policiais acharam isso quando revistavam o terreno. Não foi encontrado longe de onde todos assistiam ao espetáculo de fogos. Foi o único item de alguma impor­tância que nos veio às mãos.

Poirot alisou o papel. A letra era grande e espalhada:

“preciso de dinheiro agora. Se não... que acontecerá. Estou-lhe avisando.”

Poirot franziu a testa, sério. Ele leu e releu.

— Muito interessante. Posso ficar com o papel?

— Naturalmente. Não há marcas digitais. Veja se pode utilizá-lo. Ou mesmo entender.

O Chefe Weston levantou-se outra vez.

— Agora preciso mesmo sair. O inquérito será ama­nhã como lhe disse. A propósito, o Sr. não será chamado como testemunha. Só o Capitão Hastings. Não queremos que a imprensa saiba que o Sr. está investigando o caso.

— Compreendo. E os pais da pobre moça?

— Vêm de Yorkshire hoje. Devem chegar por volta das cinco e meia. Coitados! Tenho muita pena deles. Vão levar o corpo depois de amanhã. — Balançou a cabeça. — Muito desagradável esse caso. Não estou gostando nem um pouco.

Depois que ele saiu, Poirot examinou mais detidamen­te o pedaço de papel.

— Você crê que seja uma pista importante?

Ele encolheu os ombros.

— Como posso saber? Há indícios de chantagem no que está escrito. Alguém do grupo deve ter sido pressiona­do por dinheiro, de maneira bastante desagradável. Claro que também pode ser alguém de fora.

Examinou a letra com uma lente de aumento.

— A você, esta letra parece familiar, Hastings?

— Lembra-me qualquer coisa sim... Já sei! Aquela mensagem da Sra. Rice!

— É verdade — ponderou Poirot. — Existem seme­lhanças. É curioso. Mesmo assim, não acredito que a Sra. Rice tenha escrito isso. — Respondendo a uma batida na porta, meu amigo disse alto: — Entre, por favor!

Era o Comandante Challenger.

— Só vim saber se avançaram nas investigações.

— Particularmente neste momento sinto-me como se estivesse regredindo em vez de avançar.

— Isso é mau, mas não acredito, Sr. Poirot. Só se ouve falar do Sr., de como resolve todos os casos. Dizem que o Sr. nunca falhou.

— Não é verdade. Falhei uma vez na Bélgica, em 1893. Lembra-se, Hastings? Eu lhe contei depois: o caso da cai­xa de bombons.

Lembro-me bem — respondi.

Sorri, porque na época em que ele me contou o caso, recomendou-me que, toda vez que a vaidade lhe subisse à cabeça, eu mencionasse a caixa de bombons. Menos de três minutos mais tarde, naquela ocasião, eu obedeci à sua re­comendação e ele ficou furioso.

— Isso aconteceu há tanto tempo — disse Challenger, — que nem conta. O Sr. vai até o fim desse caso, não é?

— Quanto a isso, esteja tranqüilo, palavra de Hercule Poirot. Sou como um cão que, uma vez farejada a pista, não desiste até o fim.

— Ótimo. Tem alguma idéia nova?

— Suspeito de duas pessoas.

— É claro que não posso perguntar quem são.

— Nem eu diria! Poderia estar errado.

— Meu álibi é satisfatório, creio — disse Challenger com uma piscadela.

Poirot sorriu com benevolência para a face bronzeada à sua frente.

— O Sr. partiu de Devonport pouco depois das oito e meia. Chegou aqui às dez e cinco, isto é, vinte minutos de­pois que o crime foi cometido. Porém, Devonport fica a pouco mais de trinta milhas daqui e o Sr. já fez o mesmo caminho em uma hora, pois a estrada é muito boa. Como vê, seu álibi não é tão perfeito assim.

— É incrível! Como...?

— O Sr. compreende, Comandante, investigo tudo e todos. Seu álibi, como já disse, não é bom. Contudo, exis­tem outras coisas além de álibis. O Sr. gostaria, penso eu, de casar-se com a Senhorita Nick, não é?

O homem enrubesceu.

— Sempre quis casar-me com ela — respondeu numa voz abafada.

— Precisamente. A Senhorita Nick porém estava noi­va de outro homem. Aí está uma razão suficiente para ma­tar o outro homem. Esse outro homem no entanto morre como um herói, o que torna desnecessário qualquer gesto mais drástico de sua parte.

— Ah! Então é verdade que Nick estava noiva de Mi­chael Seton? Ouvi boatos a respeito hoje de manhã.

— É interessante como boatos logo se espalham. O Sr. nem desconfiava?

— Sabia que Nick estava noiva de alguém. Ela mes­ma me disse há dois dias. Mas não poderia imaginar quem fosse.

— Era Michael Seton. Aqui entre nós, ele deixou para ela uma bela fortuna. Certamente, do seu ponto-de-vista não seria o momento de matar a Senhorita Nick. Ela chora o amor perdido, mas o tempo apaga tudo. Ela é jovem e gosta muito do Sr.

Challenger ficou calado por certo tempo.

— Se fosse... — murmurou.

Uma batida na porta o interrompeu. Era Frederica Rice.

— Andei procurando por você — disse ela para Chal­lenger. — Disseram-me que o encontraria aqui. Você já foi buscar meu relógio de pulso?

— Ah! sim. Apanhei-o hoje de manhã.

O Comandante tirou o relógio do bolso e entregou a ela. Era um relógio com uma forma bastante fora do co­mum: redondo como uma bola, com uma correia de moiré preto. Lembrei-me de ter visto um igual no braço de Nick Buckley.

— Espero que agora ande direito — disse Challenger.

— É um aborrecimento. Este relógio vive com defeito.

— Ele foi feito para beleza e não para eficiência.

— Será que as duas coisas não podem vir juntas? — Ela olhou para nós três. — Estou interrompendo uma con­ferência?

— Absolutamente, Sra. Falávamos de boatos. Como se espalham com rapidez. Todos já sabem agora que a Senho­rita Nick estava noiva daquele bravo herói aviador que mor­reu.

— Então Nick estava noiva de Seton? — exclamou Frederica.

— Surpreende-se, Sra.?

— Um pouco. Não sei por quê. No outono passado ele estava bastante entusiasmado por ela. Andavam juntos por toda parte. Mais tarde, depois do Natal, os dois esfria­ram. Tanto quanto posso saber, mal se viam.

— Era segredo. Os dois souberam manter-se calados.

— Devia ser por causa de Sir Matthew. Ele era meio maluco.

— A Sra. nem desconfiava e no entanto era tão pró­xima da Senhorita Nick?

— Nick é fechada como o diabo, quando lhe convém — murmurou Frederica. — Agora entendo por que andava tão nervosa ultimamente. E eu devia ter adivinhado pelo que ela me disse outro dia.

— Sua amiguinha é muito atraente, Sra.

— O velho Jim Lazarus era da mesma opinião há al­gum tempo atrás — disse Challenger, com sua evidente falta de tato.

— Oh! Jim — e ela encolheu os ombros. Mas creio que a observação a aborreceu.

Ela virou-se para Poirot.

— Diga-me, Sr. Poirot, o Sr...?

Ela parou abruptamente. Seu corpo alto e esguio osci­lou e a face empalideceu mais ainda. Seus olhos estavam fixos no centro da mesa.

— A Sra. não se sente bem? — indaguei.

Empurrei uma cadeira para perto dela e ajudei-a a sen­tar-se. Ela sacudiu a cabeça murmurando:

— Estou bem, estou bem. — Curvou-se para a frente, o rosto entre as mãos. Todos a olhávamos sem jeito. Logo depois, ela sentou-se erecta.

— Que absurdo! George querido, não fique tão preo­cupado. Vamos falar de crimes. De algo emocionante. Quero saber se o Sr. Poirot já está no caminho certo.

— É muito cedo para saber — disse Poirot.

— Mas o Sr. já tem uma idéia, não é?

— Talvez, mas preciso de muito mais provas.

— Ah! sim. — Ela parecia insegura.

De repente a Sra. Rice levantou-se.

— Estou com dor de cabeça. Acho que vou deitar-me. Talvez amanhã me deixem ver Nick.

E saiu rapidamente. Challenger franziu a testa.

— Nunca se pode prever o que aquela mulher vai fa­zer. Nick podia gostar dela, mas não acredito na amizade dela por Nick. Com mulheres nunca se sabe: é querida pra cá, querida pra lá, mas no fundo estão-se odiando. O Sr. vai sair, Sr. Poirot? — perguntou o Comandante, já que Poirot se tinha levantado e apanhado o chapéu do qual ti­rava cuidadosamente uma poeirinha imaginária.

— Sim, vou à cidade.

— Não tenho nada que fazer. Posso ir com o Sr.?

— Claro. Será um prazer.

Saímos. Poirot pediu desculpas e voltou.

— Minha bengala — explicou ele quando voltou.

Challenger vacilou. Realmente a bengala, com um cabo de ouro, era ultra-enfeitada.

A primeira parada foi numa casa de flores.

— Preciso enviar flores para a Senhorita Buckley — disse ele.

A escolha foi difícil. Afinal Poirot se decidiu por uma cesta dourada toda enfeitada que ele queria que enchessem de cravos cor de laranja. E ainda exigiu um grande laçarote azul. A vendedora lhe deu um cartão onde ele escreveu: “Com os cumprimentos de Hercule Poirot”.

— Mandei flores hoje de manhã — disse Challenger. — Talvez mande agora algumas frutas.

— Inútil!  — exclamou Poirot.

— Por quê?

— Comestíveis não são permitidos.

— Quem disse?

— Eu. Impus a regra, expliquei à Senhorita Nick e ela compreendeu.

— Deus do céu! — explodiu o Comandante.

Ele parecia bastante alarmado. Olhou para Poirot es­pantado.

— Então é assim? O Sr. ainda receia um atentado, Sr. Poirot?

 

ENTREVISTA COM O SR. WHITFIELD

O inquérito foi breve e seco: só o essencial. Houve identificação do corpo, depois eu declarei ter encontrado o corpo no jardim. Seguiram-se as declarações do médico-le­gista. E o inquérito foi adiado por uma semana.

O crime de Saint Loo fez as manchetes de todos os jornais. Substituiu as notícias anteriores: “Seton ainda não foi localizado. Destino ignorado do bravo herói do ar”.

Agora que Seton estava morto e já lhe tinham sido prestadas as devidas homenagens, surgia uma nova sensação. O mistério de Saint Loo era um presente dos céus para os jornais, que, no mês de agosto, desesperam-se por falta de notícias.

Depois do inquérito, tendo evitado cuidadosamente os repórteres, Poirot e eu tivemos uma entrevista com o Re­verendo Giles Buckley e a esposa.

Os pais de Maggie formavam um casal encantador e sem nenhuma sofisticação. Não pareciam pertencer a este mundo. A Sra. Buckley era uma mulher de personalidade, alta e loura, em quem era patente a procedência do norte do país. O marido era um homem miúdo, de cabelos grisalhos, com um jeito acanhado e simpático.

Os pobres coitados estavam inteiramente confusos dian­te da tragédia que os tinha atingido e que roubara a filha tão querida, “nossa Maggie”, como a chamavam.

— Não consigo acreditar nem agora — disse o Sr. Buckley. — Uma menina tão querida por todos.  Sossegada, só fazia o bem, sempre pensando nos outros. Quem po­deria querer matá-la?

— Custou-me compreender o que dizia o telegrama — disse a Sra. Buckley. — Pois se nos tínhamos despedido dela na véspera.

— A morte sempre caminha com a vida — murmurou o marido.

— O Coronel Weston tem sido muito atencioso — obser­vou a Sra. Buckley. — Assegurou-nos que não serão pou­pados esforços para descobrir quem fez essa coisa horrível. Deve ser um louco. Não há outra explicação.

— Sra. Buckley, não posso dizer-lhe o quanto sinto a sua perda e como admiro sua bravura.

— Sucumbir sob a dor e desanimar não nos trará Maggie de volta.

— Minha mulher é extraordinária — disse o clérigo. — Sua fé e sua coragem superam de muito as minhas. É. tudo tão confuso, Sr. Poirot.

— Eu sei, eu sei, Sr. Buckley.

— O Sr. é um grande detetive, Sr. Poirot? — indagou a Sra. Buckley.

— Isso já foi dito algumas vezes, Sra.

— Eu sei. Mesmo na cidadezinha de interior onde vi­vemos, já ouvimos falar do Sr. E o Sr. vai descobrir a verdade, não é?

— Não descansarei enquanto não o fizer, Sra.

— Tudo lhe será revelado, Sr. Poirot. O mal não per­manece impune.

— O mal não permanece impune, Sra. mas às vezes o castigo passa despercebido.

— Que quer dizer?

Poirot apenas sacudiu a cabeça.

— Pobre Nick — disse a Sra. Buckley. — Sinto mais ainda por causa dela. Enviou-me uma carta patética em que se dizia culpada da morte de Maggie por tê-la chamado para cá.

— Isto é mórbido — disse o Sr. Buckley.

— Talvez, mas imagino como ela se sente. Gostaria de vê-la. É incrível que não permitam que nem a família a visite.

— Médicos e enfermeiras são muito rígidos em suas normas — disse Poirot evasivo. — Eles fazem as regras e ninguém pode mudá-las. Sem dúvida eles receiam as con­seqüências da emoção natural que a Senhorita Nick sentiria ao vê-los.

— Talvez — respondeu a Sra. Buckley hesitante. — Não gosto de casas de saúde. Nick estaria muito mais se­gura se a deixassem ir-se embora comigo e deixar este lu­gar.

— É possível, mas creio que eles não concordariam. Faz muito tempo que não vê a Senhorita Buckley?

— Não a vejo desde o outono passado. Estávamos em Scarborough. Maggie passou um dia com ela. Depois Nick veio e passou a noite conosco. Ela é uma boa menina, em­bora seus amigos não me agradem muito. A vida que ela leva não é bem culpa dela: nunca teve orientação de ne­nhuma espécie.

— É uma casa estranha, essa Casa do Penhasco.

— Não gosto dela — disse a Sra. Buckley. — Não gostei nunca. Há algo de sinistro naquela casa, sempre tive aversão ao velho Sir Nicholas: ele me dava arrepios.

— Creio que não era uma boa alma, porém possuía um charme todo especial — continuou o marido.

— Pois eu nunca senti charme nenhum. O mal se ani­nha naquela casa; Desejaria nunca ter permitido a vinda de nossa Maggie.

— Desejos, desejos! — murmurou o Sr. Buckley sa­cudindo a cabeça.

— Não desejo importuná-los mais. Só vim expressar minhas condolências.

— O Sr. tem sido muito gentil, Sr. Poirot, e saiba que lhe ficamos muito gratos por tudo.

— Quando voltam para Yorkshire?

— Amanhã. Uma triste viagem.  Adeus, Sr. Poirot, e ainda uma vez, muito obrigado.

— Que gente simples e simpática! — exclamei quando saíram.

Poirot concordou.

— Faz doer o coração, não é, meu amigo? Uma tra­gédia tão inútil, tão sem propósito. Essa jovem assassina­da... Eu me recrimino amargamente. Eu, Hercule Poirot, em pessoa, estava lá e não impedi o crime.

— Ninguém poderia evitar o crime, Poirot.

— Você fala sem refletir, Hastings. É claro que um detetive comum não poderia impedir o crime, mas o que adianta então ser Hercule Poirot, com um cérebro superior, se não posso fazer mais do que um detetive comum?

— Bem, se você coloca os fatos assim...

— Mas claro! Estou arrasado, abatido, completamente humilhado!

Refleti comigo mesmo que a humilhação de Poirot ti­nha muito em comum com vaidade, mas prudentemente guardei silêncio a respeito.

— E agora — disse ele, — para Londres!

— Londres?

— Sim. Vamos apanhar o trem das duas sem ter de nos apressar demais. Aqui está tudo em paz. A moça está a salvo na clínica. Ninguém pode fazer-lhe mal. Creio que os cães de guarda podem ter uma folga. Preciso de duas ou três informações de Londres.

Nossa primeira providência em Londres foi entrar em contato com os procuradores do desaparecido Capitão Seton, os Srs. Whitfield, Pargiter e Whitfield.

Poirot tinha marcado uma entrevista com antecedência e embora tivéssemos chegado um pouco depois das seis, fo­mos logo conduzidos até o Sr. Whitfield que era o chefe da firma.

Ele era muito cortês e causava um certo impacto. Tinha diante dele, sobre a mesa, uma carta do Chefe de Polícia e outra de uma alta autoridade da Scotland Yard.

— Seu pedido é bastante fora do comum e bem irre­gular, Sr...  — ah — ... Poirot — disse ele, enquanto limpava os óculos.

— Bastante, Sr. Whitfield. Considere, porém, que as­sassinatos são também irregulares e, graças a Deus, bastante fora do comum.

— É verdade. É verdade. Mas também é ir muito lon­ge fazer uma ligação entre esse crime e a petição de meu cliente desaparecido, não acha?

— Acho que não.

— Ah! O Sr. acha que não! Bem, diante das circuns­tâncias e considerando que Sir Henry me pede enfaticamen­te que lhe dê todo o auxílio necessário, estou às suas or­dens.

— O Sr. era p consultor legal do Capitão Seton?

— De toda a família Seton, Sr. Poirot. E isso, há pelo menos cem anos.

— Perfeitamente. Sir Matthew Seton fez um testamen­to?

— Nós o fizemos para ele.

— E como distribuiu ele sua fortuna?

— Houve vários legados. Um, por exemplo, foi para o Museu de História Natural. Mas o grosso de sua enorme, devo dizer imensa, fortuna ele deixou para o Capitão Mi­chael Seton. Ele não tinha outros parentes.

— A fortuna era imensa, diz o Sr.?

— Sir Matthew era o segundo homem mais rico da Inglaterra — retorquiu pomposamente o Sr. Whitfield.

— Ele tinha opiniões bastante peculiares, não é?

O Sr. Whitfield encarou Poirot severamente.

— Um milionário, Sr. Poirot, pode ser tão excêntrico quanto queira. É quase uma obrigação.

Poirot recebeu a repreensão humildemente e fez outra pergunta.

— Sua morte foi repentina?

— Ninguém esperava. Sir Matthew era muito saudável, porém desenvolveu um tumor interno de que não se suspei­tava e que atingiu órgão vital. Foi necessária uma interven­ção. A operação foi um sucesso, mas Sir Matthew morreu.

— E sua fortuna passou para o Capitão Seton.

— Exatamente.

— O Capitão Seton fez um testamento antes de par­tir, pelo que sei.

— É, pode chamar aquele documento de testamento se quiser — respondeu o Sr. Whitfield obviamente contra­riado.

— É legal?

— É perfeitamente legal. A intenção do testador é cla­ra e há testemunhas adequadas. Não há dúvida: é legal.

— O Sr. não aprova esse testamento?

— Meu caro Sr., se eu aprovasse, para que serviria esta firma?

Eu já tinha pensado nisso uma vez, quando tive de fa­zer um testamento simples. Fiquei pasmo com o palavrório e quantidade de papéis que saíram do escritório de meu advogado.

— A verdade é que naquela época o Capitão Seton tinha pouco para legar. Dependia da mesada que recebia do tio, então achou que qualquer coisa serviria.

E pensou bem, disse eu com meus botões.

E quais são os termos desse testamento?

— Ele deixa tudo que possuir no momento de sua morte, para sua noiva, a Senhorita Magdala Buckley. Eu sou o executor.

— Então a Senhorita Buckley herda tudo?

— Mas claro que a Senhorita Buckley herda tudo!

— E se a Senhorita Buckley por acaso morresse na segunda-feira passada?

— Desde que o Capitão Seton morreu antes dela, o dinheiro irá para quem ela nomear seu herdeiro. Se não hou­ver um testamento, o parente mais próximo herdará. — E o Sr. Whitfield acrescentou, não sem um certo prazer: — Naturalmente os impostos seriam altíssimos. Altíssimos! Ima­gine: se ela também morresse, seriam três mortes, uma logo depois da outra.

— Mas sempre restaria alguma coisa? — perguntou Poirot timidamente.

— Meu caro Sr., como já lhe disse, Sir Matthew era a segunda fortuna da Inglaterra.

Poirot levantou-se.

— Muito agradecido. Sr. Whitfield, pelas informações valiosas que nos forneceu.

— De nada, de nada. Devo entrar em contato com a Senhorita Buckley muito em breve. Aliás, creio que a carta já seguiu. Gostaria de ser útil a ela em tudo que me fosse possível.

— Ela é muito jovem e um bom advogado poderia ser-lhe realmente útil.

— Aparecerão caçadores de dotes com toda certeza — disse o Sr. Whitfield sacudindo a cabeça.

— Não há dúvida — concordou Poirot. — Tenha um bom dia, Sr. Whitfield. Até à vista.

— Adeus, Sr. Poirot. Alegro-me de ter podido dar-lhe ajuda. Seu nome já me era... ah... conhecido.

Ele disse isso como uma gentileza, com ar de quem faz uma grande concessão.

— É exatamente como você julgava, Poirot — disse eu quando já estávamos na rua.

— Meu amigo, tudo é sempre como eu penso. Não po­deria acontecer de outra maneira. Vamos agora ao restau­rante Cheshire Cheese onde Japp nos espera para jantar.

Encontramos o Inspetor Japp no lugar marcado. Ele fez uma acolhida muito carinhosa a Poirot.

— Há quanto tempo não o vejo, Sr. Poirot! Pensei até que estivesse entregue à cultura de algum vegetal pouco co­mum, perdido no interior do seu país.

— Eu bem que tentei, Japp. Bem que tentei... Mas mesmo quando você se dedica à plantação de vegetais es­tranhos, não se pode escapar de um crime.

Ele suspirou. Eu sabia no que pensava: naquele caso do Parque Ferneley. Como me arrependi de não estar com ele na ocasião.

— E o Sr., Capitão Hastings, como vai?

— Muito bem, obrigado.

— Não me diga que há novos crimes — continuou Japp maliciosamente.

— É como diz: novos crimes.

— Não fique tão deprimido, companheiro. Mesmo que o caminho não lhe pareça tão fácil, não desanime. O Sr. não pode esperar, a esta altura da vida, ter o mesmo suces­so de antigamente. Infelizmente todos envelhecemos. Temos de dar oportunidade aos mais jovens.

— Mas é sempre o cachorro velho que se lembra dos truques que aprendeu — murmurou Poirot. — Ele é astuto e nunca abandona a pista que farejou.

— Ora, Sr. Poirot! Falamos de gente, não de cachor­ros.

— E existe tanta diferença assim?

— Bem, depende de seu ponto-de-vista. O Sr. é incrí­vel, Poirot! Não é mesmo, Capitão Hastings? Sempre foi. Seu aspecto não se alterou em nada; talvez um pouco me­nos de cabelo, porém no rosto nada mudou; continua tão peludo e cheio como antes.

— Hein? Que quer dizer com isso? — inquiriu Poirot desconfiado.

— Ele o está cumprimentando pela exuberância de seus bigodes.

— É. São mesmo luxuriantes... — Poirot começou a acariciar os próprios bigodes com volúpia.

Japp desandou numa gostosa gargalhada.

Logo depois, passou a tratar de negócios:

— Já fiz o que me pediu. Aquelas marcas digitais que me enviou...

— Sim, sim? — indagou Poirot ansioso.

— Nada. Quem quer que seja esse homem, por nos­sas mãos ele ainda não passou. Por outro lado, telegrafei para Melbourne e não existe ninguém lá cuja descrição ou cujo nome corresponda com o que me deu.

— Ah!

— O negócio realmente não me cheira bem, mas ele não é fichado. — E Japp prosseguiu. — Quanto à outra consulta agora.

— Sim? — fez Poirot outra vez.

— Lazarus e Filho têm uma boa reputação. Honestos e honram os compromissos. Espertos, é claro, mas isso não vem ao caso. Você tem de ser esperto para ter sucesso nos negócios. São boa gente.  Apesar disso, a firma não anda muito bem ultimamente. Dificuldades financeiras.

— Como assim?

— A baixa do mercado de quadros atingiu-os dura­mente. E móveis antigos também saíram de moda com toda essa onda de coisas modernas. Eles construíram uma nova loja no ano passado e, como já lhe disse, não andam lá muito sólidos financeiramente.

— Muitíssimo obrigado.

— De nada. Não costumo fazer esse tipo de coisa, co­mo sabe. Mas para o Sr. eu fiz questão de investigar. Para nós é muito fácil colher informações.

— Caro amigo Japp, que faria eu sem o Sr.?

— Que nada! Sempre gosto de colaborar com os velhos amigos. Até que lhe dei muitos casos naqueles bons e ve­lhos tempos, não foi? E o Sr. resolveu muitos deles para mim.

Constatei que, para Japp, aquela tinha sido a melhor maneira de compensar em parte suas dívidas para com Poi­rot, que tinha solucionado alguns casos que tinham deixado o inspetor inglês inteiramente confuso.

— Bons tempos aqueles... — murmurou Poirot.

— Bem que gostaria de conversar com o Sr. de vez em quando Seus métodos podem ser antiquados, caro Sr. Poirot, mas sua cabeça está muito bem equilibrada em cima dos ombros.

— E quanto a minha outra pergunta: o Dr. Mac Allister?

— Ah! sim. É um médico de mulheres. Não é ginecologista. É desses psicanalistas que lhe dizem que durma num quarto de paredes vermelhas e teto laranja. Ele fala sobre a libido — o que quer que seja isso — e aconselha se deixe levar por seus desejos. Na minha opinião é charlatão, mas as mulheres não o deixam. Viaja muito e tem qualquer tipo de trabalho em Paris, eu acho.

— Por que Dr. Mac Allister? — perguntei espantado, pois nunca tinha ouvido o nome. — Onde é que ele entra na história?

— Ele é o tio do Comandante Challenger. Lembra-se de que ele mencionou um tio que era médico? — explicou Poirot.

— Você vai até ao fim. Será que você pensou que ele tinha operado Sir Matthew?

— Ele não é cirurgião — disse Japp.

— Amigo Hastings, gosto de investigar tudo. Hercule Poirot é um bom cão de caça. O cão de caça fareja a pista e se, infelizmente, não houver pista, ele fareja por todo lado, procurando algo que não cheire muito bem. Também assim age Hercule Poirot. E muitas vezes — quantas vezes! — ele encontra algo.

— Nossa profissão não é agradável — disse Japp. — Não me importo de dizer isso. Não, não é agradável. E para o Sr. ainda é pior: não é oficial e por isso tem de se in­troduzir sub-repticiamente em muitos lugares.

— Eu nunca disfarcei, Japp. E nunca me disfarcei tam­pouco.

— O Sr. não conseguiria. O Sr. é único: uma vez visto, nunca esquecido.

Poirot olhou para ele meio desconfiado.

— É só brincadeira minha. Não dê atenção — continuou Japp. — Um cálice de Porto?

A noite tornou-se agradável e harmoniosa. Começamos a lembrar o passado: esse caso, aquele caso e mais aquele outro... Devo dizer que gostei de falar do passado. Tinham sido bons tempos. Como me senti velho e vivido!

Pobre Poirot. Estava perplexo diante deste caso pre­sente. Eu podia bem testemunhar isso. Seus poderes talvez já não fossem os mesmos. Iria ele fracassar? Será que o matador de Maggie Buckley nunca seria punido?

— Coragem, amigo — disse Poirot, batendo no meu ombro. — Nem tudo está perdido. Não faça essa cara de­sanimada, por favor.

— Eu estou muito bem.

— E eu também e Japp também.

— Nós todos estamos ótimos — declarou Japp rindo.

E com isso separamo-nos.

Na manhã seguinte retornamos a Saint Loo. Assim que chegamos ao hotel, Poirot telefonou para a clínica e man­dou chamar Nick.

Subitamente seu rosto alterou-se. Quase deixou cair o telefone.

— Como? Repita, por favor?

Ele se calou por um ou dois minutos escutando aten­tamente. Depois disse:

— Sim, sim. Irei imediatamente.

Voltou-se para mim, pálido.

— Por que me afastei, Hastings? Meu Deus, por que me afastei?

— Que aconteceu?

— A Senhorita Nick está em estado grave. Envenena­mento por cocaína. Atingiram-na afinal.   Meu Deus, meu Deus, por que saí daqui?

 

A CAIXA DE BOMBONS

Durante todo o percurso para a clínica, Poirot falou consigo mesmo.  Recriminava-se fortemente.

— Eu deveria ter suspeitado — resmungou. — Eu de­veria ter desconfiado. Mas mesmo assim que poderia eu fa­zer para evitar o acontecido? Impossível.  Simplesmente im­possível: ninguém tinha permissão de se aproximar dela. Quem terá desobedecido às ordens?

Na casa de saúde permanecemos numa saleta embaixo, até que, após alguns minutos de espera, o Dr. Graham apa­receu, exausto e pálido.

— Ela sobreviverá. O problema foi sobretudo desco­brir a quantidade que ela tinha ingerido da maldita droga.

— Que espécie de droga?

— Cocaína.

— Tem certeza de que ela sobreviverá?

— Sim, sim, sem dúvida.

— Mas como aconteceu? Como puderam alcançá-la? A quem permitiram entrar? — Poirot praticamente saltava de excitação impotente.

— Ninguém entrou — respondeu o Dr. Graham.

— Impossível.

— Mas é verdade.

— Então como...?

— Foi uma caixa de bombons.

— E eu disse a ela que não comesse nada, absoluta­mente nada que viesse de fora.

— Disso eu não sei. É difícil para uma jovem resistir a uma caixa de bombons. Ainda bem que ela só comeu um.

— Todos os bombons continham cocaína?

— Não. A moça comeu um. Constatamos a presença da droga em dois outros da camada de cima. O resto não continha nada.

— Como foi posta a cocaína?

— Trabalho de principiante. O bombom foi cortado ao meio, a droga misturada ao recheio e depois as duas partes foram coladas outra vez. Primário. O que se poderia chamar de coisa feita em casa.

Poirot grunhiu.

— Ah! Se eu soubesse! Posso ver a senhorita?

— Volte daqui a uma hora — disse o médico. — Ani­me-se homem! Ela não vai morrer.

Perambulamos pelas ruas de Saint Loo por uma hora. Fiz o possível para distrair Poirot. Disse-lhe que, apesar de tudo, nada de grave tinha acontecido.

Mas ele só fazia sacudir a cabeça e murmurar:

— Tenho medo, Hastings. Tenho medo.

O tom com que ele dizia isso acabou contagiando-me.

Num determinado momento, ele agarrou meu braço.

— Escute, meu amigo. Estou completamente enganado. Estava enganado desde o início.

— Você quer dizer que a mola não é o dinheiro?

— Não, não. Quanto a esse ponto estou certo. Mas, aqueles dois... É tudo tão simples, tão fácil. E há outra reviravolta com que não contávamos. Sim, há algo mais!

De repente numa explosão indignada.

— Ah!  Essa menina. Eu lhe tinha proibido. Eu lhe disse: “Não toque em nada que venha de fora”. E ela me desobedece, a mim, Hercule Poirot. Será que as quatro ve­zes em que escapou à morte não lhe foram suficientes? Quer ainda uma quinta vez? É inaudito!

Afinal voltamos. Após uma breve espera, subimos.

Nick estava sentada na cama, as pupilas dos olhos bas­tante dilatadas. Parecia febril e suas mãos não paravam, contorcendo-se violentamente.

— Outra vez — murmurou ela.

Poirot ficou emocionado ao vê-la. Tomou-lhe as mãos nas suas.

— Ah!  Senhorita... Senhorita...

— Eu não me incomodaria se eles me pegassem desta vez — disse ela provocante. — Estou cansada de tudo! Simplesmente exausta!

— Pobre menina!

— Algo em mim não quer deixar-se vencer por eles.

— É seu espírito, senhorita. Seu espírito de luta.

— Sua famosa clínica, afinal, não é tão segura assim.

— Se a senhorita tivesse obedecido...

Ela o olhou um pouco espantada.

— Mas eu obedeci!

— Não lhe disse que não comesse nada que viesse de fora?

— E não comi.

— E os bombons?

— Bem, achei que estavam excluídos, já que o Sr. os tinha enviado.

— Que disse?!

— O Sr. os enviou.

— Eu?!  De jeito nenhum!

— Seu cartão estava na caixa.                                    .

— O quê?

Nick esboçou um movimento espasmódico para a mesa de cabeceira. A enfermeira imediatamente adiantou-se.

— A senhorita deseja o cartão que estava na caixa?

— Sim, por favor, enfermeira.

Momentos depois a enfermeira volta com o cartão.

— Aqui está.

Quase engasgamos, Poirot e eu. No cartão, com letra floreada, estavam escritas as mesmas palavras que eu tinha visto Poirot escrever no cartão que deveria acompanhar a cesta de flores: “Com os cumprimentos de Hercule Poirot”.

— Santo Deus!

— Viu só? — disse Nick em tom acusador.

— Eu não escrevi isto! — exclamou Poirot.

— O quê?

— Embora seja letra minha — murmurou ele pen­sativo.

— Sei que é sua. É a mesma letra do cartão que veio acompanhando os cravos cor-de-laranja.  Por isso não duvi­dei por um segundo que os bombons também vinham do senhor.

Poirot sacudiu a cabeça devagar.

— Como poderia duvidar? É um demônio! Um demô­nio cruel e esperto! Pensar numa coisa dessas! Este homem é decididamente um gênio! “Com os cumprimentos de Her­cule Poirot.” Tão simples! É, mas alguém teria de pensar nisso para executar. E eu, eu não pensei. Não previ uma coisa dessas.

Nick se movimentou, agitada.

— Não se preocupe, senhorita. Não teve absolutamen­te nenhuma culpa. Eu, eu sou o único culpado. Que imbecil eu sou! Devia ter previsto esse acidente.

Baixou a cabeça: era a própria imagem da infelicidade.

— Eu realmente acho... — começou a enfermeira.

Ela tinha estado inquieta nos últimos minutos, uma ex­pressão altamente desaprovadora no rosto.

— Sim, sim! Já vou indo. Coragem, senhorita. Este será o último erro que cometo. Estou envergonhado e de­solado: fui tapeado e enganado como um menino. Mas não acontecerá outra vez. Dou-lhe minha palavra. — E viran­do-se para mim: — Venha, Hastings.

A primeira providência que tomou foi a de entrevistar a diretora. Ela estava, como seria natural, muito aborrecida com o incidente.

— Parece incrível, Sr. Poirot. Incrível que ama coisa assim aconteça em minha clínica.

Poirot concordou, demonstrando muito tato.Depois que a consolou suficientemente, ele começou a perguntar a respeito das circunstâncias em que tinha chegado o paco­te fatal. A diretora aconselhou-o a entrevistar o servente que deveria estar de serviço na hora da chegada do embrulho.

O homem, cujo nome era Hodd, não era muito inteli­gente mas parecia honesto. Era um jovem de uns vinte e dois anos, nervoso e assustado. Poirot acalmou-o.

— Você não tem culpa de nada — disse ele bondosa­mente. — Quero só que me diga como e quando o pacote chegou.

O rapaz parecia confuso.

— É difícil dizer, Sr. Muita gente entra, faz perguntas e deixa coisas para os pacientes.

— A enfermeira disse que esse pacote chegou ontem noite, às seis horas mais ou menos — disse eu.

O rosto do rapaz iluminou-se.

— Então me lembro, Sr. Um cavalheiro veio trazê-lo.

— Um cavalheiro de feições finas, cabelos louros?

— Ele era louro, sim, mas não me lembro do rosto.

— Será que foi Charles Vyse? — murmurei para Poi­rot.

Tinha-me esquecido completamente de que o rapaz re­conheceria na certa o nome de alguém do lugar.

— Não foi o Sr. Vyse. Eu o conheço. Era um homem maior, bonitão, num carro enorme.

— Lazarus! — exclamei.

Poirot fulminou-me com um olhar, fazendo-me arre­pender-me de minha precipitação.

— Ele veio num carro grande e deixou este embru­lho para a Senhorita Buckley?

— Isso mesmo — confirmou o rapaz.

— E que fez você com o pacote?

— Nem o toquei. A enfermeira o levou para cima.

— É verdade, mas você o tocou quando o recebeu das mãos do cavalheiro, não foi?

— Claro! Recebi o embrulho e o coloquei sobre a mesa.

— Que mesa? Mostre-me a mesa, por favor.

O rapaz nos conduziu até o saguão. A porta da frente estava aberta. Perto da porta havia uma mesa comprida, com tampo de mármore, onde estavam vários embrulhos e cartas.

— Tudo que chega é colocado aqui, Sr. Depois as enfermeiras levam para os pacientes.

— Você se lembra a que horas chegou este pacote?

— Deve ter sido às cinco e meia mais ou menos. Tal­vez um pouco mais tarde. O correio passa sempre a essa hora e tinha acabado de passar. Foi uma tarde muito mo­vimentada: uma porção de gente trazendo flores e houve muitas visitas.

— Muito obrigado. Agora gostaríamos de conversar com a enfermeira que levou a caixa para cima.

A enfermeira era uma jovem principiante, uma criatu­rinha ansiosa por emoções. Ela se lembrava de ter levado o embrulho para cima às seis horas quando tinha entrado de serviço.

— Seis horas — murmurou Poirot. — Então a caixa ficou lá embaixo sobre aquela mesa pelo menos uns vinte minutos.

— Como?

— Nada, senhorita. Continue, por favor. Então levou a caixa para a Senhorita Buckley.

— Havia várias coisas para ela: a caixa, flores e um buquê de ervilhas-de-cheiro de um casal, Sr. e Sra. Croft. Levei tudo ao mesmo tempo. O mais curioso é que veio outra caixa de chocolates Fuller pelo correio.

— Como? Uma segunda caixa?

— É. Coincidência, não é? A senhorita abriu as duas e exclamou: “Que pena! Não posso comer nada!” Então ela levantou as tampas para ver se os bombons eram iguais e disse que havia um cartão seu numa das caixas. Imediatamente deu-me a outra, dizendo: “Leve esta caixa impura, enfer­meira. Eu sou capaz de confundir as duas.” Meu Deus! Quem poderia pensar em fazer isso a ela? Parece até Edgar Wallace!

Poirot interrompeu a enxurrada de palavras.

— Duas caixas, disse a Sra.? De quem vinha a outra?

— Não tinha nada dentro.

— E qual foi a que veio como se fosse enviada por mim? A que veio no correio ou a outra?

— Sabe que não sei mesmo? Quer que pergunte à Se­nhorita Buckley?

— Poderia fazer isso para nós?

Ela saiu correndo escada acima.

— Duas caixas — murmurou Poirot.  — Mais confu­são.

A enfermeira voltou esfogueada.

A Senhorita Buckley não tem certeza. Diz que desem­brulhou as duas ao mesmo tempo, antes de verificar do lado de dentro, mas acha que não foi a do correio.

— Hein? — perguntou Poirot um pouco confuso.

— A caixa que o Sr. mandou não veio pelo correio. Pelo menos é o que ela pensa.

— Diabo! — exclamou Poirot ao sairmos. — Será que ninguém tem certeza de nada? Nos livros, todos estão sem­pre certos das coisas. Mas na vida real é uma verdadeira confusão. Eu mesmo estarei certo das coisas? Não! Defini­tivamente não!                                              

— Lazarus — disse eu.

— Uma surpresa, não é?

— Você vai falar com ele?

— Claro. Quero ver como reage. Aliás poderíamos pio­rar o estado de saúde da Senhorita Buckley. Vamos dizer que ela está às portas da morte, com a cara mais séria pos­sível. Assim mesmo, Hastings! Você parece até um coveiro.

Tivemos sorte em encontrar Lazarus, metido debaixo do capô do carro, em frente ao hotel.

Poirot foi direto a ele.

— Ontem à noite, Sr. Lazarus, o Sr. deixou uma caixa de bombons para Nick Buckley — afirmou ele sem preâm­bulos.

Lazarus pareceu surpreso.

— Sim?

— Muito gentil de sua parte.

— Aliás os bombons foram mandados por Freddie, a Sra. Rice. Ela me pediu que os levasse.

— Compreendo.

Poirot ficou calado por certo tempo. Depois pergun­tou:

— Onde está a Sra. Rice?

— Acho que está na sala-de-estar do hotel.

Encontramos Frederica tomando chá. Olhou-nos com certa, ansiedade.

— Ouvi uns boatos de que Nick estaria doente?

— Um negócio muito misterioso, Sra. Diga-me: man­dou-lhe uma caixa de bombons ontem?

— Sim. Foi ela quem pediu.

— Ela pediu?

— Sim.

— Mas como, se ela não tinha permissão para ver ninguém?

— Não estive lá. Ela telefonou.

— Ah! E disse o quê?

— Se eu podia comprar uma caixa de um quilo de bombons Fuller.

— E a voz? Como estava? Fraca?

— Não de todo. Bem forte até. Mas diferente, muito diferente de sua voz normal. Nem a reconheci no começo.

— E ela disse quem era?

— Sim.

— Tem certeza, Sra., de que era sua amiga?

Frederica pareceu assustada.

— Mas claro que era. Quem mais poderia ser?

— Está aí uma pergunta interessante, Sra. Rice.

— O Sr. não quer dizer que...

— A Sra. juraria que era a voz de sua amiga, se ela não lhe dissesse quem era?

— Não... — respondeu Frederica devagar. — Acho que não. A voz estava bem diferente.  Julguei que fosse o telefone ou talvez a doença.

— Se ela não lhe dissesse quem era, a Sra. não sabe­ria?

— Não! Acho que não! Quem era, Sr. Poirot? Quem era?

A expressão séria de Poirot a assustou.

— Aconteceu alguma coisa com Nick? — perguntou ansiosa.

— Ela está gravemente doente. Os bombons estavam envenenados.

— Os bombons que eu mandei? Não é possível!

— Tanto é possível, Sra. Rice, que a Senhorita Buc­kley está às portas da morte.

— Oh! Meu Deus! — ela escondeu o rosto nas mãos. Olhou-nos depois, pálida e trêmula. — Não compreendo, não compreendo. Os outros sim, mas isto não. Não podiam estar envenenados. Ninguém tocou na caixa; só Jim e eu. O Sr. deve estar cometendo algum erro, Sr. Poirot.

— Não fui eu quem cometeu o erro, embora meu no­me estivesse no cartão.

Ela o fitou sem compreender.

— Se a Senhorita Nick morrer... — disse ele fazen­do um gesto ameaçador.

Ela soltou um grito abafado.

Poirot virou-se, tomou-me pelo braço e subimos. Lá chegando, jogou o chapéu sobre a mesa.

— Não entendo nada, mas nada mesmo. Estou no es­curo, como uma criança. Quem pode lucrar com a morte dessa jovem? A Sra. Rice. Quem admite ter comprado os bombons e conta uma história fantástica a respeito de um telefonema? A Sra. Rice. É tudo muito simples, muito idio­ta. E ela não é idiota.

 — Então...?

— Mas ela toma cocaína, Hastings. Estou certo disso. Não há margem de erro. E os bombons continham cocaína. E que quis ela dizer com: “Os outros sim, isto não”? Preci­sa ser explicado.  E o maneiroso Sr. Lazarus, que faz ele no meio de tudo isso? Que esconde a Sra. Rice? Ela sabe de alguma coisa, mas não consigo fazê-la falar. Ela não é daquelas que se assustam facilmente e despejam tudo. Mas ela sabe de alguma coisa, Hastings. A história do telefone será verdadeira ou ela inventou? Se é verdade, quem estava falando? Estou-lhe dizendo, Hastings. Estou no escuro, com­pletamente no escuro.

— É sempre mais escuro antes da madrugada — disse eu a título de consolo.

Ele sacudiu a cabeça.

— E a outra caixa, a que veio pelo correio? Não po­demos esquecê-la, porque a moça não tem certeza. Que aborrecimento! — grunhiu Poirot.

Eu ia falar, quando ele me interrompeu.

— Não. Outro provérbio não!  Não poderia tolerar! Se você quiser ser um bom amigo, um amigo prestativo...

— Sim, sim? — perguntei ansioso.

— Vá buscar para mim um baralho, por favor.

Parei, estupefato.

— Está bem — respondi friamente.

Suspeitei logo de que ele queria livrar-se de mim, mas estava sendo injusto com Poirot. Naquela mesma noite, quando entrei na saleta, por volta das dez, encontrei meu amigo construindo cuidadosamente castelos de cartas. Lem­brei-me subitamente! Era um velho truque para acalmar-se quando estava nervoso. Ele sorriu para mim.

— Você se lembra, não é? A precisão é imprescindí­vel. Uma carta sobre a outra, no lugar exato, deve suportar o peso das outras que vêm sobre elas, e assim por diante. Vá dormir, Hastings. Deixe-me com meu castelo de cartas. Ele clareia meu raciocínio.

Às cinco horas da manhã, mais ou menos, alguém me sacudiu. Poirot, de pé ao lado de minha cama, parecia fe­liz e alegre.

— Muito verdadeiro o que você disse, meu amigo! Ex­tremamente verdadeiro. Mais ainda: espiritual.

Pisquei, ainda meio adormecido.

— É sempre mais escuro antes da madrugada, foi o que você disse. Tem estado muito escuro; agora é madru­gada.

Olhei para a janela. Realmente era madrugada.

— Não, Hastings! Em minha mente! A massa cinzen­ta!

Fez uma pausa e então disse devagar:

— Você sabe, Hastings, a Senhorita Buckley está morta.

— O quê? — gritei eu completamente desperto.

— Calma, calma. A morte não será real. Será uma combinação com os médicos e enfermeiras. Só por vinte e quatro horas. Você entende, Hastings? O assassino conse­guiu afinal. Tentou quatro vezes e falhou. Na quinta vez conseguiu.

— E veremos o que vai acontecer...

— Vai ser muito interessante — murmurou Poirot.

 

UM ROSTO NA JANELA

Os acontecimentos do dia seguinte ainda estão, até hoje, confusos para mim. Para começar, acordei com febre. Sem­pre fui sujeito a esses acessos de febre desde que tive ma­lária há algum tempo atrás.

Por isso, o que aconteceu, naquele dia em especial, parece-me um pesadelo, com Poirot de figura principal, co­mo uma espécie de palhaço fantástico que aparecia e de­saparecia.

Ele se estava divertindo à grande. Sua pose de deses­pero era perfeita. Como tinha conseguido executar os pla­nos a que se propunha, não sei. Mas tudo parecia estar dando certo, dentro de suas previsões. Não deve ter sido nada fácil pois o plano envolvia mentiras e subterfúgios em grande escala. Os ingleses em geral não gostam muito de enganar os outros e era isso exatamente que o plano de Poirot exigia. Primeiro era preciso convencer o Dr. Graham. Tendo conseguido isso, ele precisaria então persuadir a di­retora e algumas enfermeiras a tomar parte no esquema. Imagino bem as dificuldades que deve ter tido. Foi prova­velmente o Dr. Graham quem fez a balança pender para nosso lado.

Depois ainda havia o Chefe de Polícia e os policiais. Poirot teria de convencer oficiais a agir contra as normas. Afinal, depois de alguns contratempos, ele conseguiu que o Coronel Weston, muito a contragosto, lhe desse a necessá­ria permissão para executar o plano, mas o Coronel tornou bem claro que estava isento de qualquer responsabilidade. Poirot, exclusivamente Poirot, seria o responsável por todas as mentiras. Poirot concordou.  Aliás ele concordaria com qualquer coisa que lhe permitisse levar avante seu plano.

Passei a maior parte do dia cochilando numa poltrona, uma manta sobre os joelhos. De três em três horas, Poirot vinha contar-me os últimos progressos do plano.

— Como vai, meu amigo? Não sabe como tenho pena de você, mas talvez até seja melhor. Você não é tão bom ator quanto eu. Imagine que acabei de encomendar uma coroa imensa de lírios. Mandei escrever na faixa: “Com os sinceros sentimentos de Hercule Poirot”. Ah! Que comédia!

Partiu logo depois.

Mais tarde veio com outras novidades.

— Tive uma conversa realmente emocionante com a Sra. Rice. Ela estava muito bem vestida, toda de preto. Sua pobre amiga! Que tragédia! Ela disse que Nick era tão ale­gre, tão cheia de vida, que é impossível imaginá-la morta. Eu concordei: “É a ironia da morte. Alguém como ela se vai e ficam os velhos e inúteis.”

— Como você está adorando tudo isso!  — murmurei debilmente.

— É parte do plano. Para fazer uma comédia dessas, é preciso que a pessoa se entregue de corpo e alma.

Ele prosseguiu na descrição da conversa com a Sra. Rice.

— Depois das demonstrações convencionais de pesar, a Sra. Rice começou a falar do que interessava. Toda a noite ela tinha ficado desperta pensando nos bombons. Diz que é impossível, impossível. Eu lhe respondi dizendo que bastava ver o relatório da análise do laboratório químico. Então ela pergunta, a voz vacilante: “Era cocaína?” Eu concordei. E ela diz: “Meu Deus! Não compreendo!”

— Talvez seja verdade, Poirot — disse eu.

— Ela sabe muito bem que está em perigo, Hastings. Ela é inteligente. Já lhe disse isso. E sabe que está em pe­rigo.

— É engraçado, mas pela primeira vez eu acho que você não a julga culpada.

Poirot fechou a cara. Seu entusiasmo diminuiu.

— É profundo o que acaba de dizer, Hastings. Pare­ce-me que, de alguma maneira, os fatos já não encaixam. Até agora, a sutileza, a finura, tem sido a marca registrada dos atentados todos. E, de repente, essa sutileza desaparece. Esta última tentativa é crua, pura e simplesmente. Não, não en­caixa.

Ele se sentou à mesa.

— Vamos examinar os fatos.  Há três possibilidades. Na primeira, a Sra. Rice compra os bombons e o Sr. La­zarus os entrega. Neste caso, um ou outro será o culpado. O telefonema de Nick Buckley terá sido pura invencionice. Esta é a solução mais óbvia. Na segunda possibilidade, con­sideremos a caixa de bombons que veio pelo correio. Qual­quer um dos suspeitos de nossa lista, de A. a J., poderia tê-la enviado. Mas, se aquela era a caixa envenenada, por que o telefonema? Por que complicar as coisas com uma se­gunda caixa?

Eu balancei a cabeça. Com a febre que eu estava, qual­quer complicação me parecia inútil e absurda.

— Vamos à terceira possibilidade. A caixa de bom­bons que a Sra. Rice comprou foi substituída por outra en­venenada. Nesse caso, o telefonema é compreensível e até engenhoso. A Sra. Rice seria a vítima de um ardil. A ter­ceira solução é a mais lógica, porém infelizmente a mais difícil. Como substituir a caixa no momento certo? O ser­vente poderia levar a caixa imediatamente para cima. Exis­tem pelo menos cem alternativas que poderiam impedir a substituição. Não, não faz sentido.

— A menos que Lazarus efetuasse a troca — murmu­rei.

Poirot olhou para mim.

— Você deve estar com febre alta, meu amigo.

Concordei balançando a cabeça.

— É curioso como a febre às vezes estimula o intelec­to. É de uma simplicidade cristalina. Tão simples que nem pensei nisso. E seria uma combinação curiosa. O Sr. La­zarus, amigo da Sra. Rice, fazendo tudo para ver a amiga enforcada. Seria curioso, mas muito complexo, muito com­plexo. Fechei os olhos, satisfeito de ter sido brilhante, mas cansado demais para pensar em coisas complexas. Queria só dormir. Poirot continuou falando, mas eu não escutei mais e adormeci embalado por sua vez.

era quase noite quando o vi de novo.

— Meu plano fez a felicidade e a fortuna dos floristas. Todos estão encomendando coroas: Sr. Croft, Sr. Vyse, Comandante Challenger...

O último nome despertou-me.

— Poirot, você precisa avisá-lo de seu plano. Pobre coitado! Deve estar sofrendo tanto! Não é Justo.

— Você sempre gostou dele, Hastings.

— Gosto dele, sim.  É decente. Você tem de contar seu plano a ele.

Poirot sacudiu a cabeça.

— Não, meu amigo, não abro exceções.

— Mas se você não suspeita dele...

— Não abro exceções.

— Pense no sofrimento dele.

— Ao contrário. Penso na surpresa única que estou preparando para ele. Será uma sensação fantástica, estupen­da: saber que sua amada, que ele julgava morta, está viva!

— Você é teimoso como o diabo! Ele não trairia seu segredo.                              

— Não estou tão certo assim.

— Ele é a imagem da honra, tenho certeza.

— Neste caso ainda seria mais difícil para ele guardar um segredo. Guardar um segredo é uma arte que às vezes requer mentiras ardilosas, aptidão para encenação e sobre­tudo prazer em enganar.   Você acha que o Comandante Challenger saberia fingir? Se ele é tudo isso que você diz, na certa, não saberá.

— Então você não vai dizer a ele?'

— Recuso-me a arriscar o sucesso de meu plano por sentimentalismo. Estamos jogando com a vida e a morte, meu amigo. De qualquer maneira, sofrer é bom para o ca­ráter. Pelo menos é o que dizem os clérigos ingleses. Até mesmo um bispo falou nisso, se não me engano.

Desisti de convencê-lo a mudar de idéia. Não adianta­ria mesmo.

— Não vou mudar de roupa para o jantar — murmu­rou ele. — Sou um velho falido. Faz parte do plano, você sabe. Toda minha autoconfiança se foi. Estou quebrado. Fracassei e nem terei apetite para jantar: vou deixar a co­mida intacta no prato. Acho que essa seria a atitude apro­priada no meu caso. Antes porém, tomarei certas providências quanto a minha alimentação: vou comer, no quarto, uns brioches e uns doces que já comprei de tarde. E você, que vai fazer?

— Vou tomar mais quinino — disse eu tristemente.

— Coragem, meu pobre Hastings. Amanhã será outro dia.

— Provavelmente; estes ataques em geral só duram vinte e quatro horas.

Não o ouvi voltar mais tarde. Devo ter caído no sono.

Quando acordei, ele estava sentado à mesa escrevendo. Na sua frente um pedaço de papel amarrotado que parecia ter sido alisado. Era o papel onde ele tinha feito a lista de A. a J. e que depois tinha jogado fora.

Ele balançou a cabeça em resposta à pergunta que eu nem tivera tempo de fazer.

— Exatamente, meu amigo: ressuscitei a lista e estou trabalhando nela de um outro ponto-de-vista. Estou fazendo uma série de perguntas a respeito de cada uma das pessoas. Algumas perguntas nada têm a ver com o crime, são porme­nores que não descobri e para os quais gostaria de arran­jar respostas.

— Até onde já chegou na lista?

— Já acabei. Quer ouvir? Sente-se melhor?

— Sim. Aliás na verdade sinto-me muitíssimo melhor.

— Que ótimo! Vou ler então para você. Algumas per­guntas você vai considerar até infantis.

Poirot pigarreou e começou:

A. Ellen — Por que ficou dentro de casa e não foi ver os fogos? (Comportamento não habitual, o que foi demonstrado pela surpresa da Senhorita Nick). Que pensava ou suspeitava que pudesse acontecer? Deixou entrar alguém na casa (J. por exemplo)? Es­tará dizendo a verdade a respeito do nicho secreto? Se este nicho existe na casa, por que não consegue localizá-lo?  (A Senhorita Buckley parece segura de que não existe o tal nicho e, sendo a dona da casa, deve saber o que diz). Se ela inventou o painel secre­to, por que fez isso? Terá lido as cartas de amor de Michael Seton ou sua surpresa foi mesmo genuína?

B. O marido de Ellen — É tão idiota quanto quer parecer? Ellen lhe conta tudo que sabe ou não? Terá problemas mentais de qualquer natureza?

C. O filho — Sua alegria ao ver sangue é própria da idade ou será um prazer mórbido? Se é morbidez, será hereditária? Já atirou com uma pistola de brin­quedo?

D. Sr. Croft — Quem é ele? De onde vem? Será que realmente pôs no correio o testamento? Que mo­tivo teria para não fazê-lo?

E. Sr. e Sra. Croft — Quem são? Estão-se escon­dendo por alguma razão? Se estão, por quê? Terão li­gação com a família Buckley?

F. Sra. Rice — Sabia do noivado de Nick e Mi­chael Seton? Adivinhou simplesmente ou terá lido as cartas?  (Neste caso ela saberia que Nick era herdeira de Seton). Sabia que era herdeira universal da Senho­rita Buckley? (Acho que deve saber. A Senhorita Buc­kley deve ter-lhe contado, dizendo que ela não ia lucrar muito com isso). Será verdade que Lazarus já teve atração por Nick, como disse o Comandante Challenger? (Este fato poderia explicar uma certa frie­za entre as duas amigas nos últimos meses). Quem é o “amigo” mencionado em seu bilhete e que lhe fornece a droga? Seria J.? Por que desmaiou aqui no outro dia? Foi algo que dissemos ou algo que viu? O telefonema pedindo-lhe que comprasse bombons é verdadeiro ou apenas uma mentira premeditada? Que quis dizer com “Compreendo os outros mas isto não”? Se não é culpada, qual é o segredo que não quer con­tar?

— Você percebeu — interrompeu Poirot, — que as perguntas que concernem à Sra. Rice são as mais numero­sas. Do princípio ao fim, ela é um enigma. O que me faz chegar a uma conclusão: ou a Sra. Rice é a culpada ou então sabe — ou pensa que sabe — quem é o culpado. Ela saberá mesmo, ou só suspeita de alguém? Como a obri­garemos a falar?

Ele suspirou.

— Bem, vou continuar com minha lista de perguntas.

G. Sr. Lazarus — Curioso. Quase não há per­guntas para ele, exceto uma, direta e crua: — Ele substituiu as caixas de bombons? — Fora essa, só uma outra sem importância: — Por que ofereceu cinqüenta libras por um quadro que só vale vinte?

— Ele queria ajudar Nick — sugeri.

— Então não seria desse jeito. Ele é um negociante. Não compra para vender com prejuízo. Se quisesse ser amá­vel, ele poderia emprestar o dinheiro como amigo.

— Em todo caso, isso nada tem a ver com o crime.

— É verdade, mas de qualquer maneira eu gostaria de saber. Sou um psicólogo amador, você já sabe.

— Agora vamos ao H. — disse eu.

H. Comandante Challenger — Por que Nick disse a ele que estava noiva? Qual era a necessidade de contar a ele? Não disse a ninguém mais. Ele a terá pedido em casamento? Quais suas relações com o tio?

Que tio, Poirot?

— O médico, aquele indivíduo meio duvidoso. Será que o almirantado soube da morte de Michael Seton, antes que fosse anunciada publicamente?

— Não sei aonde quer chegar, Poirot. Mesmo que Chal­lenger soubesse da morte de Seton com antecedência, que lhe adiantaria? Não daria absolutamente nenhum motivo pa­ra que Challenger matasse a moça que amava.

— Concordo, Hastings. O que diz é perfeitamente ló­gico. Mas há pontos que eu, Poirot, gostaria de esclarecer. Sou como um cão de caça, já lhe disse, farejando coisas que não são muito agradáveis.

E continuou:

I. Sr. Vyse — Por que disse que a prima era fa­nática pela Casa do Penhasco? Que motivo teria para dizer isso? Recebeu, ou não, o testamento? Será mes­mo um homem honesto? Ou não?

J. E agora? Existirá ou não? Só posso colocar aqui um grande ponto de interrogação. Se...

— Meu Deus, Hastings! Está sentindo alguma coisa?

Eu tinha pulado da cadeira com um grito repentino. Com a mão ainda trêmula, apontei para a janela.

— Um rosto, Poirot! — gritei. — Um rosto encostado no vidro. Um rosto terrível! Desapareceu agora, mas eu o vi.

Poirot foi até lá e abriu a janela.

— Não, há ninguém ali agora — disse pensativo. — Você tem certeza de que não foi sua imaginação?

— Absoluta! Era um rosto horrível.

— Existe uma varandinha, é claro. Qualquer pessoa poderia subir, se quisesse escutar o que dizíamos. Quando você disse “um rosto horrível”, que quis dizer exatamente, Hastings?                

— Um rosto pálido que nos olhava. Nem parecia hu­mano.

— Meu amigo, é a febre. Um rosto, vá lá. Um rosto desagradável, também vá lá. Mas um rosto que não parece humano, é demais. O que você viu foi o efeito de um rosto encostado com força contra a vidrada. Isso, aliado ao cho­que de ver alguém na janela, fez você imaginar coisa pior.

— Era um rosto de fazer medo — disse eu teimoso.

— Não era ninguém conhecido?

— Não, não.

— Mas pode ter sido sim. Você não reconheceria nin­guém nessas circunstâncias.Estou imaginando agora... É isso mesmo. Imagino se...

Ele juntou seus papéis.

— Há pelo menos uma coisa boa: se o dono do rosto ouviu nossa conversa, nós não dissemos nada sobre a Se­nhorita Buckley. O que quer que tenha ouvido, este porme­nor ele não sabe: se ela está viva ou morta.

— Mas até agora não vi nenhum resultado aparente da sua brilhante manobra. Nick está morta para todos os efeitos e nada de espantoso aconteceu ainda.

— Por enquanto eu não esperava nada de extraordi­nário mesmo. Eu disse vinte e quatro horas, meu amigo. Amanhã as coisas começarão a acontecer. Se nada aconte­cer, é porque eu estava errado do princípio ao fim. Há o correio, lembra-se? Tenho grandes esperanças no correio de amanhã.

Acordei sem febre no dia seguinte, mas ainda me sen­tia fraco. Sentia fome também. Poirot e eu tomamos café em nossa saleta.

— Então?— perguntei maliciosamente, enquanto ele examinava as cartas.  — Veio o que você esperava?

Poirot, que tinha acabado de abrir dois envelopes que, obviamente, eram contas, não respondeu. Achei-o meio de­sanimado, sem a segurança costumeira.

Abri minha correspondência. O primeiro envelope continha o anúncio de uma reunião espírita.

— Se todo o resto falhar, podemos valer-nos do espi­ritismo — observei. — Às vezes me pergunto por que não fazem mais testes desse tipo: o espírito da vítima aparece e aponta o criminoso.  Seria prova suficiente.

— Não nos ajudaria em nada — disse Poirot distraí­do. — Duvido que Maggie Buckley saiba quem a matou. Mesmo que pudesse falar, não teria nada para nos contar. — Poirot fez uma pausa: — Veja só.  Isso é estranho.

— O quê?

— Você falou sobre os mortos no mesmo momento em que eu estava abrindo esta carta.

Ele jogou uma carta para mim. Era da Sra. Burckley.

“Paróquia de Langley.

Caro Sr. Poirot.

Na minha volta, encontrei esta carta escrita por minha pobre filha quando chegou em Saint Loo. Não há nada nela que lhe interesse, creio eu, mas talvez gostasse de lê-la. Mais uma vez, obrigada por tudo.

Cordialmente

Jean Buckley.”

A carta da jovem me deu um nó na garganta: uma carta simples, jovial, sem o menor pressentimento de tra­gédia.

“Querida mamãe

Cheguei bem e a viagem foi muito boa. Só havia duas outras pessoas no vagão, até Exeter,

O tempo está ótimo aqui. Nick parece bem de saúde, talvez um pouco inquieta, mas alegre. Não sei por que me telegrafou com aquela pressa toda. Se telegrafasse na terça-feira daria no mesmo.

Vou parar por aqui. Vamos tomar chá com uns vizi­nhos australianos que alugaram o chalé da entrada. Nick diz que são amáveis demais. A Sra. Rice e o Sr. Lazarus vêm para ficar aqui. Ele é o negociante de arte. Vou botar esta carta na caixa do correio perto do portão e devem levá-la logo. Escrevo outra vez amanhã.

Sua filha

Maggie.

P.S. — Nick diz que houve uma razão para telegrafar tão às pressas. Vai dizer depois do chá. Ela anda muito estranha e assustada.”

— A voz da morte — murmurou Poirot. — E não nos diz nada.

— A caixa do correio perto do portão. — observei distraído. — A mesma onde Croft disse que colocou o tes­tamento.

— Foi o que ele disse. Mas será verdade? Será?

— Não veio nada mais interessante em sua correspon­dência?

— Nada, nada, Hastings. Estou muito aborrecido. Completamente no escuro. Ainda no escuro. Não compre­endo coisa nenhuma.

Naquele instante o telefone tocou e Poirot atendeu.

Imediatamente sua expressão mudou. Seu tom de voz estava controlado, mas ele não conseguia disfarçar a exci­tação no olhar.

Sua contribuição para a conversa telefônica foi intei­ramente banal, de modo que eu não podia fazer idéia do que pudesse ter acontecido.

Pouco depois, porém, com uma breve despedida, ele desligou e se dirigiu para onde eu estava. Mal podia escon­der seu entusiasmo.

— Meu amigo, que lhe disse eu? Coisas começaram a acontecer.

— Que foi?

— O Sr. Vyse me telefonou para informar que rece­beu hoje de manhã, pelo correio, um testamento assinado por sua prima, a Senhorita Buckley.  O documento está da­tado de 25 de fevereiro último.

— O famoso testamento?

— É claro.

— Apareceu afinal?

— Num momento extremamente conveniente, não acha você?

— E você não acha que ele está dizendo a verdade?

— Ou se eu acho que o testamento estava com ele todo esse tempo? Bem, não sei. É tudo muito estranho. Mas uma coisa é certa: eu lhe disse que, se pensassem que a Senhorita Buckley estava morta, fatos começariam a apa­recer. Dito e feito!

— Extraordinário! Você tinha razão. E este deve ser o testamento que faz da Sra. Rice a herdeira universal.

— O Sr. Vyse nada disse a respeito do texto do do­cumento. Foi muito correto. Mas não há dúvida de que este é o testamento autêntico. As testemunhas são Ellen e o marido, disse o Sr. Vyse.

— Voltamos ao ponto de partida: Frederica Rice — disse eu.

— O enigma! — murmurou Poirot.

— Frederica Rice — observei distraidamente. — é um nome bonito.

— Muito mais bonito que o apelido: Freddie, que não é um apelido para uma mulher bonita.

— Não existem muitas abreviações para Frederica. Não é como Margaret que você pode abreviar de várias ma­neiras: Maggie, Margot, Madge, Peggie, etc...

— É verdade.  Como é, Hastings, está mais feliz ago­ra que as coisas começaram a acontecer?

— Naturalmente. Diga-me: você esperava que o testa­mento aparecesse?

— Não especialmente. Não tinha nenhuma esperança assim precisa. Tudo que eu sabia era que, apresentadas cer­tas conseqüências, as causas sem dúvida viriam à tona.

— Sim — disse eu respeitosamente.

— Que ia eu dizer quando o telefone tocou? — per­guntou Poirot. — Ah! Sim! A carta da Senhorita Maggie. Preciso lê-la outra vez: tenho a impressão de que há algo nela que me escapou e que me pareceu curioso.

Entreguei a carta que ele leu e releu com atenção. Eu fui admirar os iates que passavam na baía.

De repente uma exclamação me assustou. Virei-me rá­pido.

Poirot segurava a cabeça entre as mãos. Parecia de­sesperado e infeliz.

— Oh! Como pude ser tão cego!

— Que houve, Poirot?

— Complexo, disse eu? Complicado? Claro que não! De extrema simplicidade. Extrema! E eu não vi nada! Não vi!

— Pelo amor de Deus, Poirot! Que luz foi essa que baixou de repente sobre você?

— Espere! Espere! Não diga uma palavra! Preciso ar­rumar as idéias. Rearrumar tudo diante desta grande desco­berta tão inesperada!

Percorreu outra vez sua lista de perguntas, os lábios movendo-se quase imperceptivelmente. Uma ou duas vezes balançou a cabeça enfático. Depois, pôs de lado o papel, recostou-se na cadeira e fechou os olhos. Pensei que afinal tivesse adormecido. De repente ele suspirou e abriu os olhos.

— Mas claro! Todas as pecinhas encaixam. Tudo que me parecia estranho e fora de lugar, agora encaixa.

— Quer dizer que resolveu o problema?

— Quase completamente. Pelo menos o que importa. Em alguns pontos eu estava bem próximo da verdade, mas em outros, ridiculamente distante. Agora está tudo claro. Vou mandar um telegrama hoje, com duas perguntas cujas respostas eu já sei. Estão aqui: e bateu na testa com o dedo.

— E quando receberá as respostas?

Ele não respondeu e levantou-se agilmente.

— Meu amigo, você se lembra de que a Senhorita Nick queria montar uma peça na Casa do Penhasco? Hoje à noite haverá teatro na Casa do Penhasco. Mas a peça se­rá produzida por Hercule Poirot. A Senhorita Nick tomará parte nela. — Ele sorriu malicioso. — Você compreende, Hastings, a peça vai ter um fantasma.  Sim, um fantasma! A Casa do Penhasco nunca teve fantasmas.  Pois terá um hoje à noite. Não lhe direi mais nada, Hastings. Vamos montar uma comédia e revelar toda a verdade! Agora vou sair, que tenho muito que fazer. Muito mesmo. E ele saiu às pressas.

 

POIROT ENCENA UMA PEÇA

Era um grupo mesmo muito curioso que se reuniu na­quela noite na Casa do Penhasco.                             

Pouco vi Poirot durante o dia. Ele saiu para jantar mas deixou um recado pedindo-me que estivesse na Casa do Penhasco às nove horas. Não seria necessário vestir-me for­malmente, acrescentou ele no bilhete, recomendação que me pareceu bastante ridícula.

Quando cheguei, fui levado para á sala de jantar, Olhan­do à minha volta, vi que todas as pessoas da lista de Poi­rot, de A. a I. estavam presentes. Só faltava J., por motivos óbvios: ele (ou ela.) não existia. Até a Sra. Croft lá estava, numa cadeira de rodas. Ela sorriu e me cumprimentou.

— Isto tudo é uma surpresa, não é? — disse ela ale­gremente. — Para mim é uma completa alteração de há­bitos, mas gostei tanto que acho que vou começar a sair de vez em quando. Foi idéia do Sr. Poirot. Venha sentar-se perto de mim, Capitão Hastings. Tenho um pressentimento de que esse negócio não vai ser nada agradável, mas o Sr. Vyse insistiu tanto!

— O Sr. Vyse? — perguntei surpreso.

Charles Vyse estava perto da lareira e Poirot falava com ele em voz baixa.                                           

Olhei em volta. Sim, estavam todos lá. Depois que me levou até a sala, pois eu me tinha atrasado um pouco, Ellen também se juntou ao grupo, no lugar dela, perto da porta. Numa cadeira ao lado da dela estava o marido, muito esticado e respirando pesadamente. O filho, entre os dois, se mexia sem parar. O resto do grupo estava ao redor da mesa: Frederica de preto, Lazarus ao lado dela, George Challenger e Croft do outro lado da mesa. Eu estava mais afastado, próximo à Sra. Croft.

Por fim, Charles Vyse, com um sinal de assentimento para Poirot, sentou-se à cabeceira enquanto Poirot tomava seu lugar silenciosamente ao lado de Lazarus.

Vi logo que o “produtor” (como Poirot se tinha intitulado) não teria um papel importante na peça. Charles Vyse parecia estar encarregado de todas as providências. Comecei a imaginar que surpresa Poirot lhe estaria reser­vando.

O jovem advogado pigarreou e levantou-se. Seu aspec­to era o mesmo de sempre: impassível, formal e frio.

— Sei que esta reunião não lhes parece convencional, mas estamos diante de circunstâncias, bastante peculiares e que se afastam de convenções. Refiro-me, naturalmente, ao falecimento de minha prima, a Senhorita Buckley. Uma au­tópsia será sem dúvida obrigatória e parece certo que a morte foi causada por envenenamento e que o veneno foi administrado com intenção de matar. Isto é trabalho para a polícia e não preciso entrar no assunto mesmo porque a própria polícia preferirá que eu me mantenha fora disso. — O Sr. Vyse olhou em volta e continuou. — Num caso co­mum, o testamento de uma pessoa falecida só é aberto após o funeral, mas, em deferência a um pedido do Sr. Poirot, propus-me a ler o documento antes das cerimônias funerá­rias. Na verdade, vou lê-lo agora e aqui. Por isso pedi a presença de todos. Como já disse antes, as circunstâncias são tais, que justificam a abertura de um precedente. O tes­tamento, para começar, chegou-me às mãos de maneira bas­tante estranha. Embora datado de fevereiro último, somente hoje o recebi pelo correio. A letra parece ser a de minha prima; não tenho dúvidas a respeito e, se bem que seja um documento completamente informal, está devidamente teste­munhado.

O advogado fez uma pausa e pigarreou mais uma vez.

Todos os olhares estavam voltados para ele.

De um longo envelope, ele retirou um papel que nada mais era do que uma página de anotações que eu vira na Casa do Penhasco. No papel havia algo escrito.

— E muito breve o testamento — disse Vyse. Após uma pausa adequada, ele começou a ler.

“Estes são os últimos desejos e o testamento de Mag­dala Buckley. Todas as despesas de meu funeral devem ser pagas. Meu testamenteiro deverá ser meu primo Charles Vyse. Desejo que Mildred Croft seja a herdeira universal de todas as minhas posses no momento de minha morte. Faço isso em retribuição a todos os serviços que prestou a meu pai, Philip Buckley, serviços esses que jamais poderei recompensar.

Assinado: Magdala Buckley.

Testemunhas: Ellen Wilson

William Wilson.”

Eu estava atônito! Como todos os outros, creio. So­mente a Sra. Croft balançava a cabeça como se compreen­desse.

— É verdade — disse ela calmamente. — Não queria dizer a ninguém, mas se não fosse por mim, quando Philip Buckley esteve na Austrália, não sei o que seria dele. Mas não quero falar nisso: sempre foi um segredo, e deve per­manecer assim. Nick sabia. Seu pai deve ter-lhe contado. Viemos até aqui porque queríamos ver o lugar. Philip Buckley vivia falando da Casa do Penhasco e tínhamos curio­sidade de ver a casa. A pobre menina sabia de tudo e pro­curou fazer o impossível por nós. Queria que morássemos com ela, mas nós nunca faríamos isso.  Então ela insistiu em que ficássemos no chalé e não queria receber um tos­tão de aluguel. Nós queríamos pagar, é claro, mas ela devolvia sempre o dinheiro. E agora, isso! Quem disser que no mundo não existe gratidão, eu direi que não e verdade! Este testamento é prova bastante!

Reinava um silêncio de surpresa completa. Poirot olhou para Vyse.

— O Sr. sabia disso?

Vyse sacudiu a cabeça, negando.

— Eu sabia que Philip Buckley tinha estado na Aus­trália, mas nunca ouvi nada a respeito de qualquer escân­dalo lá.

Ele olhou inquisitivo para a Sra. Croft, mas ela sacudiu a cabeça.

— Não direi uma palavra. Nunca revelei nada e não vou começar agora. O segredo irá comigo para o túmulo.

Vyse não disse palavra, apenas batia na mesa com o lápis.

— Creio, Sr. Vyse, que o Sr., como parente mais pró­ximo, poderia contestar o testamento — disse Poirot incli­nando-se para a frente. — Estamos discutindo agora o des­tino de uma enorme fortuna que não existia na época em que o testamento foi feito.

Vyse olhou para ele friamente.

— Este testamento é perfeitamente válido. Não me pas­sa pela cabeça contestar a maneira pela qual minha prima dispõe de suas posses.

— O Sr. é muito honesto e vou recompensá-lo por isso — disse a Sra. Croft.

Charles Vyse pareceu um pouco embaraçado e arrepen­dido de suas palavras.

— Isto é uma surpresa, mãe — disse o Sr. Croft com uma alegria que não podia esconder. — Nick não me con­tou o que pretendia fazer.

— Querida menina! — murmurou a Sra. Croft, enxu­gando os olhos. — Gostaria de que ela pudesse ver-nos aqui embaixo neste momento.  Quem sabe ela nos vê?

— Quem sabe? — concordou Poirot.

De repente, ele olhou em volta, e algo veio-lhe à ca­beça.

— Tenho uma idéia! Estamos todos à volta da mesa. Vamos organizar uma sessão espírita!

— Uma sessão espírita? — perguntou a Sra. Croft meio chocada. — Mas escute...

— Não, não! Vai ser muito interessante. Meu amigo Hastings possui grande capacidade de mediunidade. É uma oportunidade única para receber mensagens do outro mun­do. As condições não poderiam ser mais propícias. Você não acha, Hastings?

— “Por que eu e não outra pessoa qualquer?”.— pen­sei eu enquanto respondia resolutamente, decidido a levar avante o jogo: — As condições são muito boas mesmo.

— Ótimo! Eu sabia.Depressa, apaguem as luzes — disse Poirot.

Num instante ele se levantou e apagou tudo. Os acon­tecimentos se sucederam tão rapidamente, que ninguém teve tempo de protestar mesmo que não estivesse de acordo. Aliás, eu acho que todos ainda estavam sob a ação do im­pacto do testamento.

A sala não ficou completamente às escuras. As janelas e as cortinas estavam abertas e por aí entrava uma ligeira luminosidade. A noite estava muito quente. Ficamos quie­tos e calados por alguns minutos, e logo comecei a perce­ber no escuro o contorno da mobília. Eu imaginava o que fazer naquelas circunstâncias e, mentalmente, maldizia Poi­rot por não me ter dado instruções antecipadamente.

Comecei a respirar em estertores. Fechei os olhos.

Logo depois Poirot veio até minha cadeira. Voltando para seu lugar, ele murmurou.

— Sim, ele já entrou em transe. Daqui a pouco coisas começarão a acontecer.

Quando se fica no escuro, sentado e calado, não sei por que, uma sensação de receio se apodera de nós. Eu es­tava nervoso e tenho certeza de que todos também estavam. Eu, pelo menos, desconfiava do que ia acontecer pois sa­bia do detalhe essencial que todos ignoravam. Apesar disso, fiquei com o coração aos pulos quando vi a porta da sala que se abria lentamente.

A porta não fez nenhum ruído (tenho certeza de que Poirot a tinha lubrificado). O efeito era sinistro: a porta ficou aberta e nada aconteceu. Só uma lufada de ar frio entrou na sala. Eu sabia que devia ser apenas uma corrente de ar que vinha do jardim porque as janelas estavam aber­tas, mas naquele ambiente pareceu-me exatamente aquela onda de ar frio que entra com os fantasmas, nas histórias do outro mundo.

E então nós todos percebemos! Emoldurada na porta uma figura branca esvoaçante. Nick Buckley!

Ela avançou devagar e silenciosamente: seus movimen­tos etéreos e lentos nem pareciam humanos. Ela flutuava.

Vi então que grande atriz o mundo tinha perdido. Nick queria montar uma peça na Casa do Penhasco e desempe­nhar um papel nela. Era o que a jovem fazia de todo co­ração, gozando cada momento da encenação. Ela estava per­feita.

Nick flutuou até o meio da sala. Súbito, o silêncio foi quebrado.

Ouviu-se um grito abafado vindo da cadeira perto de mim. Um som estranho saiu dos lábios do Sr. Croft. Chal­lenger soltou uma exclamação assustada. Charles Vyse ar­rastou a cadeira num movimento brusco. Lazarus inclinou-se para frente. Só Frederica não se moveu nem emitiu ne­nhum som.

Um grito cortou o ar. Ellen saltou da cadeira.

— É ela! Ela voltou! Os assassinados sempre voltam. É ela! É ela!

Então com um clique, as luzes se acenderam.

Vi Poirot ao lado do interruptor, um sorriso de diretor de cena bem sucedido nos lábios. Nick permaneceu no meia da sala, envolta nos panos brancos.

Frederica foi a primeira a falar. Ela estendeu a mão, incrédula, e tocou a amiga.

— Nick! — disse ela. — Você... você é real.

Era quase um sussurro. Nick riu e avançou para ela.

— Sim. Sou bem real — disse ela. E continuou. — Obrigada por tudo que fez por meu pai, Sra. Croft, mas acho que ainda não se beneficiará desse testamento.

— Meu Deus! Oh! Meu Deus! Leve-me embora, Bert. Leve-me! — balbuciou a Sra. Croft com dificuldade, mexendo-se na cadeira para lá e para cá. E para Nick: — Foi uma piada, querida. Nada mais que uma brincadeira. Juro.

— Uma brincadeira muito estranha.

A porta se tinha aberto outra vez e alguém entrara tão silenciosamente, que eu nem tinha visto. Para grande sur­presa minha, era Japp, o inspetor. Ele acenou para Poirot como que confirmando algo. Depois, com um largo sorriso, dirigiu-se para a inquieta figura na cadeira de rodas.

— Mas vejam só! Que surpresa! Quem vejo aqui? Uma velha amiga: Milly Merton! E outra vez fazendo das suas, minha querida.

Voltou-se então para o grupo, ignorando os estriden­tes protestos da Sra. Croft.

— Milly Merton é a falsária mais esperta que já co­nheci. Eu sabia que tinha acontecido um acidente com o carro em que fugiram da última vez, mas nem mesmo com problemas de espinha, Milly deixaria de se meter em en­crencas outra vez. Ela é uma verdadeira artista.

— Quer dizer que o testamento é falso? — perguntou Vyse incrédulo.

— É claro que é falso! — disse Nick sarcástica. — Você então acredita que eu faria uma coisa dessas? Eu dei­xei a Casa do Penhasco para você Charles, e o resto para Frederica.

Ela atravessou a sala enquanto falava e aproximou-se de sua amiga. Exatamente neste instante, aconteceu o im­previsto!

Um clarão de fogo e o assovio de uma bala vieram da janela. Outro clarão e outro assovio do lado de fora e o barulho surdo de um corpo que cai com um gemido.

Um fio de sangue descia pelo braço de Frederica, de pé.

 

J.

Foi tudo tão súbito e rápido, que por um momento nin­guém sabia o que tinha acontecido.

Com uma exclamação, Poirot correu para a janela. Challenger seguiu-o.

Pouco depois reapareceram os dois carregando o cor­po inanimado de um homem. Quando o colocaram cuidado­samente numa poltrona e a luz incidiu em cheio sobre o rosto, não pude impedir um grito.

— O rosto! O rosto da janela!

Era o homem que nos estivera espionando na noite an­terior. Reconheci-o imediatamente e vi que realmente eu ti­nha exagerado quando disse que nem parecia humano. Mes­mo assim, havia algo em sua expressão que justificava minha opinião.

Era um rosto de alguém perdido do resto dos homens.

Pálido, esquálido, degenerado, era somente uma más­cara, como se a alma não estivesse mais ali há muito tem­po. Da têmpora saía um filete de sangue.

Frederica aproximou-se devagar.

Poirot segurou-a.

— A Sra. está ferida?

Ela disse que não com a cabeça.

— A bala só raspou meu ombro. — Ela o empurrou brandamente e inclinou-se sobre a criatura na poltrona.

O homem abriu os olhos e viu-a.

— Desta vez eu apanhei você, espero — rosnou o ho­mem entredentes. Logo em seguida, a voz mudou, tornando-se quase infantil: — Freddie, eu não queria fazer isso! Não foi de propósito. Você sempre foi tão correta comi­go...

— Não se preocupe.

Ela se ajoelhou ao lado dele.

— Eu não que... — e a frase não pôde ser termi­nada.

Frederica olhou para Poirot.

— Sim, ele está morto, Sra. Rice.

Ela se levantou devagar e olhou para o corpo. Com de­dos piedosos, tocou a testa do homem, suspirou fundo e vi­rou-se para o grupo.

— Ele era meu marido.

— J. — murmurei.

Poirot escutou-me e acenou afirmativamente.

— Eu sempre achei que havia um J. Desde o começo, não é? — perguntou Poirot.

— Ele era meu marido — repetiu Frederica, com voz cansada. E deixou-se cair numa cadeira que Lazarus tinha trazido para ela.

— Agora, é melhor contar tudo.

E começou:

— Ele era inteiramente corrupto. Um viciado que me ensinou a tomar drogas. Luto desde que nos separamos pa­ra curar-me do vício. Foi muito difícil, mas acho que estou quase curada. Foi terrivelmente difícil, ninguém pode ima­ginar o quanto sofri por isso. Nunca podia escapar dele. Ele aparecia de repente e exigia dinheiro com ameaças. Uma espécie de chantagem; se eu não lhe desse o dinheiro, ele se suicidaria. Era o que sempre dizia. Depois passou a me ameaçar de morte. Não era uma pessoa responsável. Ele era maluco, louco... Acho que foi ele que matou Mag­gie Buckley. É claro que não era ela que ele queria matar. Era eu. Sei que deveria ter contado tudo antes, mas não tinha certeza.  Os estranhos atentados contra Nick, quase acreditei que fosse ele o causador. Mas podia ser outra pes­soa completamente diferente. Até que um dia, vi sua letra num pedaço de papel rasgado, na mesa do Sr. Poirot. Era parte de uma carta para mim. Vi que o Sr. Poirot estava na pista dele. Seria só uma questão de tempo. — Depois de uma pausa, Frederica Rice prosseguiu: — O que não entendo são os bombons. Ele não teria razões para envene­nar Nick. E, de qualquer maneira, não vejo como poderia estar metido nisso. Já pensei, pensei, e não cheguei a ne­nhuma conclusão. — Ela escondeu o rosto nas mãos. De­pois levantou a cabeça e disse pateticamente: — É tudo.

 

K.

Lazarus correu para ela.

— Minha querida, minha querida.

Poirot foi até o bar, voltou com um cálice de vinho para ele e ficou olhando até que bebesse tudo.

A Sra. Rice devolveu-lhe o copo e sorriu.

— Estou bem agora — disse ela. — Que vamos fazer?

Ela olhou para Japp, mas ele sacudiu a cabeça.

— Estou de férias, Sra. Rice. Só estou aqui ajudando um velho amigo. A polícia de Saint Loo está encarregada do caso.

Ela virou-se para Poirot.

— E o Sr. Poirot está encarregado da polícia de Saint Loo?

— Que idéia, Sra. Rice! Sou um simples consultor.

— Sr. Poirot — disse Nick, — Não podemos abafar o caso?

— A senhorita quer que seja assim?

— Quero. Afinal, eu sou a pessoa mais envolvida e não acredito que haja mais atentados.

— Isso é verdade. Não haverá mais atentados.

— O Sr. está pensando em Maggie, Sr. Poirot, mas nada pode trazê-la de volta. Se isto tudo for publicado, só trará sofrimento para Frederica e ela não merece isso.

— A senhorita diz que ela não merece?

— Claro que não! Contei-lhe desde o início que espé­cie de marido tinha ela. O Sr. viu hoje o que ele era. Ele está morto. Que seja a palavra final. Deixe que a polícia continue procurando o homem que matou Maggie Buckley. Eles não vão encontrá-lo, só isso.

— Então é o que quer: abafar o caso.

— Por favor, caro Sr. Poirot. Por favor!

Poirot olhou em volta.

— Que dizem os Srs.?

Cada um falou por sua vez.

— Eu concordo — disse eu.

— Eu também — disse Lazarus.

— É o melhor a fazer — observou Challenger.

— Vamos esquecer tudo que se passou nesta sala hoje — disse Croft com muita ênfase.

— Para você seria o melhor mesmo!  — interrompeu Japp.

— Não seja muito severa comigo, queridinha — pediu a Sra. Croft para Nick, que a olhou com desprezo e não respondeu.

— Ellen?

— Eu e William não diremos uma palavra. Quanto menos se falar, melhor.

— E ó Sr., Sr. Vyse?

— Uma coisa como esta não pode ser abafada: os fa­tos devem ser revelados a quem de direito.

— Charles!  — gritou Nick.

— Desculpe, querida. Olho para o caso sob o aspecto legal.

Poirot riu de repente.

— Então são sete a um. Japp é neutro.

— Estou de férias — sorriu Japp. — Não conte co­migo.

— Sete a um. Só o Sr. Vyse ao lado da lei e da or­dem.  Sabe, Sr. Vyse, o Sr. é um homem de caráter.

— Nossa posição é óbvia. Só há uma coisa a fazer — respondeu Vyse.

— Sim. O Sr. é um homem honesto. Bem, eu estou com a minoria e a favor da verdade.

— Sr. Poirot! — exclamou Nick.

A senhorita me envolveu no caso porque quis. Não pode obrigar-me a ficar calado.                          

Ele levantou um dedo ameaçador, num gesto que eu conhecia bem.

— Sentem-se todos, que eu vou contar a verdade.

Calaram-se todos diante de sua atitude autoritária. Sen­tamo-nos e esperamos, atentos.

— Escutem! Tenho aqui uma lista de pessoas ligadas ao crime. Vai de A. até J.  J. seria uma pessoa que eu não conhecia e que estaria ligada ao crime por uma das outras. Não sabia quem era J. até agora à noite, mas sabia de sua existência. Os acontecimentos provaram que eu estava cer­to. Mas ontem, cheguei à conclusão de que tinha cometido um erro grave. Tinha omitido alguém. Acrescentei então outra letra à minha lista. A letra K.

— Outra pessoa desconhecida? — resmungou Vyse le­vemente sarcástico.

— Não exatamente. Adotei J. como símbolo de um desconhecido. Outro desconhecido, seria outro J. A letra K. significa outra coisa: representa uma pessoa que deveria ter sido incluída na lista original e que foi omitida.

Poirot inclinou-se para Frederica.

— Não se preocupe, minha Sra., seu marido não era um assassino. Foi K. quem matou Maggie.

— Mas quem é K? — perguntou ela espantada.

Poirot acenou para Japp, que começou a falar num tom de quem estava prestando depoimento num tribunal.

— De acordo com sugestão que recebi, estive nesta casa desde hoje à tarde. O Sr. Poirot me introduziu aqui às escondidas. Estava atrás das cortinas da sala de estar. Quan­do todos estavam reunidos aqui na sala de jantar, uma moça entrou na outra sala e acendeu a luz. Foi até a lareira e abriu um compartimento secreto, cuja porta parecia ser acionada por uma mola. A jovem tirou do esconderijo uma pistola que levou consigo. Segui-a e, abrindo uma fresta da porta, pude observar seus movimentos. Os agasalhos esta­vam todos no saguão. A jovem limpou a pistola cuidadosamente com um lenço e colocou no bolso de um casaco cin­zento que creio ser de propriedade da Sra. Rice...

Um grito saiu dos lábios de Nick.

— É mentira! É tudo mentira!

Poirot apontou para ela.

— Está aí: K!  Foi a Senhorita Nick quem matou a prima dela, Maggie Buckley.

— Está louco? — gritou Nick. — Por que mataria Maggie?

— Para herdar a fortuna que Michael Seton tinha dei­xado para ela, que também se chamava Magdala Buckley. Ela era a noiva de Michael Seton e não a senhorita.

— Seu...! Seu...! — Nick nem conseguia falar, en­gasgada, trêmula.

Poirot Virou-se para Japp.

— Chamou a polícia?

— Sim. Estão esperando no saguão. Já têm a ordem de prisão.

— Estão todos loucos! — exclamou Nick com despre­zo. Aproximou-se rápida de Frederica e continuou: — Fred­die, você me dá seu relógio de pulso como lembrança?

Devagar Frederica tirou o relógio e o entregou a Nick.

— Obrigada.E agora continuemos esta comédia ridí­cula.

— A comédia que a senhorita planejou e encenou na Casa do Penhasco. Seu erro maior foi entregar a Hercule Poirot o papel principal. Este, senhorita, foi seu grande erro.

 

O FIM DA HISTÓRIA.

— Querem que explique? — perguntou Poirot com um sorriso de triunfo e o ar de falsa modéstia que eu tão bem conhecia.

Tínhamos ido para a sala de estar pois éramos poucos agora. Os empregados tinham saído discretamente e os Crofts tinham ido com a polícia. Só estávamos Frederica, Lazarus, Challenger, Vyse e eu.

— Confesso que fui enganado. A pequena Nick me ti­nha onde queria, como dizem vocês na sua língua. Minha Sra., quando disse que sua amiga era uma hábil mentirosa, sabia o que estava dizendo!

— Nick sempre mentiu — disse Frederica séria.  — Foi por isso que não acreditei em suas escapadas milagro­sas.

— Imbecil que sou, eu acreditei!

— Mas elas foram reais! — disse eu. Tinha de admitir que continuava completamente confuso.

— Foram habilmente arquitetadas para dar exatamente essa impressão.

— Impressão de quê?

— De que a vida de Nick estava em perigo. Mas vou começar antes: vou contar a história com todos os detalhes que consegui juntar. Tudo na devida ordem e não aos cla­rões, aos pedaços, como fui percebendo aos poucos.

— Para começar, temos uma jovem bonita e sem es­crúpulos, com uma paixão fanática pela casa dos ancestrais: Nick Buckley.

— Isso eu já disse — concordou Vyse.

— E o Sr. estava certo. Ela amava a Casa do Penhasco, a casa estava hipotecada e ela não tinha com que pagar. Nick precisava urgentemente de dinheiro e não tinha onde buscar. Então conheceu o jovem Seton em Le Touquet e o rapaz se apaixona. A jovem sabia muito bem que ele seria o único herdeiro de um tio que valia milhões. Ótimo, a sorte parecia estar de seu lado, pensa ela. Mas o namoro não durou. Ele só queria divertir-se com ela. Encontraram-se em Scarborough, ele a convida para voar e uma catástrofe acontece: Seton conhece Maggie e é amor à primeira vista.

A Senhorita Nick fica espantadíssima. Afinal, sua pri­ma nem bonita era em sua opinião. Mas acontece que para Seton, Maggie era diferente, a única mulher no mundo para ele. Ficam noivos secretamente e só uma pessoa sabe do noivado: Nick Buckley. A pobre Maggie sente-se até feliz de ter alguém com quem falar. Sem dúvida deve ter lido para a prima algumas partes das cartas do noivo. É assim que Nick Buckley fica sabendo do testamento. Na hora, ela não dá muita atenção ao fato, mas ele fica no subconsciente.

Aí Sir Matthew morre súbita e inesperadamente. Além disso começam a correr os boatos do desaparecimento de Michael Seton. Imediatamente, Nick arquiteta um plano in­crível. Seton não sabe que ela também se chama Magdala. Só a conhece como Nick. No testamento bastante informal, só há a menção do nome. Aos olhos do mundo, Seton é seu amigo. Foi ao seu nome que o nome dele esteve ligado. Se ela disser que é noiva dele, ninguém vai estranhar. Mas para dar certo, Maggie precisa ser afastada. O tempo é curto para isso. Nick então convida Maggie para vir passar uns dias aqui. Acontecem os supostos atentados contra a vida de Nick Buckley, dos quais ela sempre escapa milagrosamente: ela corta o arame que sustenta o quadro que caiu, depois mexe nos freios do carro. Quanto à pedra, que quase a atingiu, talvez não tenha sido provocado por ela e Nick só tenha inventado a parte final.

Nesse ponto dos acontecimentos, ela vê meu nome no jornal (bem que lhe disse, Hastings, que todos conhecem Poirot...). Tem então a audácia de me fazer seu cúmpli­ce. A bala que atravessou o chapéu cai a meus pés. E co­meça a comédia! Acreditei no perigo que a ameaçava. Óti­mo! Ela já tem uma testemunha valiosa. Faço seu jogo, sem saber, dizendo-lhe que convide uma amiga para acompanhá-la. Nick agarra a oportunidade e chama Maggie um dia antes.

Daí por diante é fácil. Ela sai durante o jantar e se certifica da morte de Seton pelo rádio. Está na hora de en­trar em ação com seu plano. Tem tempo de sobra para escolher entre as cartas de Seton para Maggie, quais as que lhe interessam. Leva estas últimas para seu quarto. Na ho­ra dos fogos, Maggie e ela vão até a casa. Nick diz à pri­ma que ponha seu xale, e então, por trás, atira e mata Maggie. Uma corrida rápida para dentro de casa e a pis­tola desaparece no nicho secreto, de cuja existência ela pensa que ninguém suspeita. Depois, escada acima onde ela espera ouvir as vozes. O corpo é descoberto. É o momento de descer. Vem correndo através da porta.

Poirot fez uma pausa e prosseguiu.

— Que atriz Nick Buckley se revelou! Magnífica. Ela encenou muito bem uma tragédia. A empregada, Ellen, me disse uma vez que havia maldade nesta casa. Estou começan­do a acreditar. Foi da casa que Nick Buckley tirou sua inspiração.

— E os bombons envenenados? — perguntou Frede­rica. — Ainda não compreendi.

— Foi tudo parte do mesmo esquema. Não percebe que se acontecesse algum atentado depois que Maggie esti­vesse morta, seria a prova final de que não era Maggie que queriam matar? Quando ela achou que tinha chegado a hora, telefonou para a Sra. Rice e pediu-lhe uma caixa de bombons.

— Então era a voz de Nick?

— Mas claro! Quantas vezes a explicação mais sim­ples é a verdadeira, não é? Ela apenas modificou um pouco a voz, de maneira que a Sra. ficasse em dúvida mais tarde. Quando a caixa de bombons chegou, ela recheou três deles com cocaína (Nick tinha cocaína com ela, muito bem es­condida), e comeu um. Só o necessário para fazer mal, sem maiores conseqüências. Ela sabia muito bem a quanti­dade que devia ingerir e quais os sintomas que devia exa­gerar. Ainda há o cartão que acompanhava os bombons. Meu cartão! Decididamente audaciosa essa menina! — Era o mes­mo cartão que eu tinha mandado com as flores. Simples, muito simples, mas é preciso ter cabeça para pensar nisso.

Houve uma pausa e Frederica Rice perguntou:

— Por que pôs a pistola no bolso de meu casaco?

— Esta pergunta estava demorando, Sra. Rice. Diga: já lhe passou pela cabeça alguma vez que Nick Buckley não gostasse mais da Sra.? Já lhe ocorreu que Nick pudesse de­testá-la?

— É difícil dizer — disse Frederica devagar. — Nós vivíamos uma vida falsa. Ela parecia gostar de mim.

— E quanto ao Sr., Sr. Lazarus? Não é o momento para falsa modéstia: já houve alguma coisa entre o Sr. e Nick Buckley?

— Não — respondeu Lazarus. — Estive caído por ela uma vez, mas passou. Não sei por que, mas passou.

— Esta era a tragédia dela. Ela atraía as pessoas, mas depois deixavam de gostar dela sem razão. Em vez disso, apaixonavam-se por suas amigas. Nick começou a detestar a Sra., porque a Sra. tinha um amigo rico a seus pés. No inverno passado ela fez o testamento. Então ainda gostava da Sra. Mais tarde tudo mudou.

Depois de uma pausa, Poirot continuou.

— Nick se lembrava bem do testamento, que daria um motivo para que a Sra. desejasse a morte dela. Só que não sabia que Croft tinha desaparecido com ele, que o testamen­to nunca tinha chegado ao destino. Por isso Nick telefonou para a Sra. pedindo os bombons. Hoje, quando lessem o tes­tamento, todos saberiam que a Sra. era a herdeira universal. Logo depois a pistola que matou Maggie Buckley seria encontrada no bolso de seu casaco. Se a Sra. encontrasse a ar­ma primeiro, provavelmente tentaria livrar-se dela e com isso se incriminaria.

— Ela devia mesmo me odiar — murmurou Frederica.

— A Sra. tinha o que ela não tinha: o poder de des­pertar amor e conservá-lo.

— Eu não sou lá muito inteligente — disse Challenger, — mas não consegui entender o negócio do testamento.

— Ainda não? Esta é uma história muito diferente: os Crofts estão aqui escondidos. A Senhorita Buckley vai ser submetida a uma operação. A moça nunca tinha feito tes­tamento. Os Crofts viram aí sua oportunidade. Eles a con­vencem de que o testamento é necessário e que eles mesmos enviariam o documento pelo correio. O plano é inteli­gente: se alguma coisa acontecesse a ela, se ela morresse, eles apareceriam com um testamento falso, deixando todo o di­nheiro para a Sra. Croft e fazendo referências à Austrália e a Philip Buckley, que já tinha viajado por lá.  Mas a Senho­rita Buckley passa pela operação sã e salva e o testamento falso não serve para nada. Pelo menos por enquanto. Aí os atentados começam. Os Crofts ficam esperançosos outra vez. Eu anuncio a morte dela. A oportunidade é boa demais para ser omitida. Imediatamente, o testamento falso é enviado ao Sr. Vyse. Naturalmente, eles pensavam que ela era mui­to mais rica do que realmente é. Não sabiam de nada a res­peito da hipoteca.

— O que eu quero saber é como o Sr. soube de tudo isso e quando começou a suspeitar, Sr. Poirot — disse La­zarus.

— Fico até envergonhado de lhe, contar o tempo que levei para suspeitar. Havia coisas que me intrigavam. Coisas que não me pareciam certas. Diferenças de opinião entre Nick e as outras pessoas. Mas eu sempre acreditava em Nick. Aí veio a revelação. Nick cometeu um erro. Achou que era inteligente demais. Quando lhe pedi que chamasse uma amiga, ela me prometeu que o faria, mas omitiu o fato de que já tinha chamado Maggie. Pareceu-lhe mais pruden­te, mas foi um erro, porque Maggie Buckley escreveu para casa assim que chegou e usou na carta uma frase que me intrigou: “Não entendo por que me telegrafou daquela ma­neira. Na terça-feira daria no mesmo.” Que significava aquela menção a terça-feira? Que Maggie viria na terça de qual­quer maneira. Então Nick tinha mentido ou, simplesmente, omitido a verdade. Pela primeira vez, meu ponto-de-vista co­meçou a mudar. Pensei comigo mesmo: imaginemos que o que ela disse era mentira, que os outros estavam certos. Lem­brei-me de todas as diferenças de opinião. Como seriam as coisas, se Nick estivesse mentindo e não as outras pessoas? Vamos simplificar: o que aconteceu realmente? Maggie Buck­ley foi assassinada. Só isso! Quem poderia desejar o desa­parecimento de Maggie Buckley?

Poirot respirou fundo e prosseguiu:

— Pensei então em outra coisa: num comentário incon­seqüente que Hastings tinha feito minutos antes.' Ele tinha dito que havia muitas abreviações para Margaret: Maggie, Margot, etc.... Qual seria o verdadeiro nome de Maggie? Neste momento, vi tudo claro! Suponhamos que seu nome fosse Magdala. Era um nome comum na família Buckley, Nick tinha dito. Duas Magdala Buckley. Lembrei-me das cartas de Seton que eu tinha lido. Não, não era impossível. Ele mencionava Scarborough, mas Maggie tinha estado lá com Nick, a mãe dela me tinha dito isso. Começava a ficar claro um ponto que me tinha preocupado na ocasião: por que tão poucas cartas guardadas? Se uma moça quer guardar suas cartas de amor, guarda todas e não só algumas. Por que só aquelas em particular? Então lembrei-me de que, em nenhuma delas, havia o nome Nick. Todas começavam com um nome carinhoso. E havia ainda outro detalhe gritante.

— Qual? — perguntamos todos.                   

— Só isto: a Senhorita Nick tinha sofrido uma opera­ção no dia 27 de fevereiro. Na carta datada de 2 de março, Michael Seton não menciona a operação ou qualquer preo­cupação sobre o estado físico de Maggie. Só este pormenor devia ter chamado minha atenção para o fato de que as car­tas eram endereçadas a outra pessoa e não a Nick. Consul­tei então minha lista de perguntas e respondi a elas levando em consideração o novo ponto-de-vista. As respostas torna­ram-se simples e convincentes. Além disso, respondi a uma outra pergunta que tinha ficado sem resposta: “Por que Nick teria comprado um vestido preto?” É simples: ela e a prima tinham de estar vestidas de modo semelhante, na mesma cor, o xale como toque adicional. Esta era a resposta certa, não a outra. Uma jovem nunca compraria um vestido de luto antes de saber se a pessoa estava realmente morta ou não. Pareceria pouco natural.

Poirot parou por uns segundos e continuou.

— Então resolvi encenar minha peça teatral. E o que eu esperava aconteceu. Nick Buckley tinha negado termi­nantemente a existência de um nicho secreto. Por outro lado, eu não via razão para Ellen ter inventado o painel secreto. Se ele existia por que Nick teria negado com tanta veemên­cia? Teria escondido a pistola lá com intenção de incriminar outra pessoa mais tarde? Deixei-a pensar que eu suspeitava fortemente da Sra. Rice. Era exatamente o que ela queria: não poderia deixar passar a oportunidade para a prova final contra a Sra. Além disso, era melhor para ela tirar a pistola do nicho secreto antes que Ellen a encontrasse lá.  Hoje à noite tudo parecia fácil: estávamos todos na sala de jantar. Ela esperava o sinal para entrar, Era só tirar a pistola do esconderijo e colocar no bolso do casaco da Sra. Rice. No último momento porém, ela fracassou...

Frederica estremeceu.

— De qualquer maneira, estou satisfeita de lhe ter dado meu relógio.

— Também acho, Sra.

Ela olhou para ele espantada:

— O Sr. sabia disso também?

Neste momento, eu interrompi a conversa:

— E Ellen? Ela sabia ou suspeitava de alguma coisa?

— Não. Perguntei-lhe e ela me disse que decidira ficar em casa aquela noite porque sentira que algo ia acontecer. Acho que Nick insistiu demais para que ela fosse ver os fogos. E ela me disse que “sentia nos ossos” que algo ia acontecer. Ellen, de algum modo, tinha percebido que Nick não gostava da Sra. Rice e pensou que a Sra. seria a vítima. Ela conhecia muito bem o gênio de Nick Buckley que sempre tinha sido uma menina estranha.

— Sim — murmurou Frederica, — tentemos pensar nela apenas como se fosse uma menina estranha. É isso que vou fazer, de qualquer jeito...

Poirot beijou-lhe a mão.

Charles Vyse mexeu-se inquieto.

—Vai ser um negócio muito desagradável. Preciso pensar numa defesa para ela.

— Acho que não vai ser necessário — comentou Poi­rot. — se minhas suposições estiverem certas.

Virou-se de repente para Challenger.

— É nos relógios de pulso que o Sr. coloca a droga, não ,é?

— Eu... eu... — gaguejou Challenger atrapalhado.

— Não tente enganar-me com seus modos simpáticos. O Sr. enganou Hastings, mas não engana Hercule Poirot. O Sr. deve fazer bom dinheiro com tráfico de drogas, não é? O Sr. e seu tio em Harley Street.

— Sr. Poirot! — Challenger levantou-se.

Meu amigo olhou para ele calmamente.

— O Sr. é o amiguinho útil. Negue se quiser, mas aconselho-o a desaparecer já, se não quiser ver os fatos nas mãos da polícia.

Para minha surpresa completa, Challenger se foi ime­diatamente. Fiquei boquiaberto.

Poirot riu.

— Eu lhe disse, meu amigo, que seus instintos sempre falham. É incrível!

— A cocaína estava no relógio de pulso...? — co­mecei.

— Isso mesmo. A cocaína estava à disposição de Nick, na casa de saúde. Foi porque acabou seu suprimento que ela pediu o relógio da Sra. Rice que estava cheio.

— Você quer dizer que...? — gaguejei.

— Ê a melhor saída para ela. Melhor que o carrasco. Mas não devemos dizer isso diante do Sr. Vyse que é par­tidário da lei e da ordem. Oficialmente, não sei de nada. A respeito do conteúdo do relógio, é só uma suposição.

— Suas suposições são sempre corretas, Sr. Poirot — disse Frederica.

— Preciso ir — disse Charles Vyse, desaprovação trans­parecendo na voz.

Poirot olhou de Frederica para Lazarus.

— Vocês vão-se casar, não é?

— Assim que pudermos.

— E saiba, Sr. Poirot, que não sou a viciada que o Sr. julga. Reduzi a dose para uma quantidade mínima e, com a felicidade diante de mim, acho que nem vou precisar mais de relógio...

— Espero que seja mesmo feliz, Sra. Rice — disse Poirot. — Sofreu muito e, apesar de todo o sofrimento, ain­da sabe perdoar.

— Vou tomar conta dela — disse Lazarus. — Os ne­gócios não andam bem, mas creio que atravesso a crise. E se não conseguir, Frederica não se incomoda de ser pobre em minha companhia.

Ela sorriu.

— Já é tarde — disse Poirot, olhando para o relógio.

Todos nos levantamos.

— Foi uma noite bem estranha numa casa estranha. É bem como disse Ellen, uma casa cheia de maldade no ar — continuou Poirot.

Ele olhou para o retrato do velho Sir Nicholas e puxou Lazarus para um canto.

— Desculpe, mas só tenho uma pergunta sem resposta: por que ofereceu cinqüenta libras por aquele quadro? Gosta­ria de saber, só para ter todas as respostas.

Lazarus olhou para ele, impassível, por alguns segundos. Depois sorriu.

— O Sr. sabe, Sr. Poirot, eu sou negociante.

— Exatamente.

— Este quadro não vale mais que vinte libras. Eu sa­bia que, se oferecesse cinqüenta, Nick desconfiaria que va­lia mais e mandaria avaliar. Ela então ia descobrir que eu tinha oferecido mais do que o valor do quadro. Assim, quando eu quisesse comprar outro quadro, ela não ia mandar avaliar.

— Sim, mas e daí?

— O quadro naquela parede do fundo vale pelo me­nos cinco mil libras — respondeu Lazarus secamente.

— Ah! Agora sei todas as respostas — disse Poirot com um suspiro feliz.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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