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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ILHA / Aldoux Huxley
A ILHA / Aldoux Huxley

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ILHA

 

  • Atenção! uma voz começou a chamar, e foi como se alguém inesperadamente começasse a tocar um oboé. Aten­ção! repetiu no mesmo tom nasal e monótono. Atenção!

    Deitado como um cadáver sobre as folhas secas, o cabelo em desalinho, o rosto grotescamente sujo e pisado, a roupa enlameada e em farrapos, Will Farnaby acordou sobressaltado. Molly o chamara. Estava na hora de levantar-se e vestir-se. Não podia chegar atrasado ao escritório.

  • Obrigado, querida disse, sentando-se. Uma dor agu­da trespassou-lhe o joelho direito. As costas, os braços e a fronte também estavam doídos.

  • Atenção! insistia a voz, no mesmo tom. Apoiando-se num dos cotovelos, Will olhou em redor e viu com espanto não as cortinas amarelas e o papel cinza das paredes do seu quarto em Londres, mas as luzes e as longas sombras da madrugada in­cidindo sobre uma clareira entre as árvores.

  • Atenção!

  • Por que isso?

  • Atenção! Atenção! insistia a voz de modo estranho e sem sentido.

  • Molly? perguntou ele. Molly?

    O nome agiu como um clarão em seu cérebro. Subitamente, e já com aquela sensação de angústia que lhe era tão familiar, seguiu pelo corredor verde, que cheirava a formol, a pequena e viva enfermeira cujas roupas estalavam de tão engomadas.

  • Número cinqüenta e cinco disse ela, abrindo uma porta branca. Ele entrou. Lá estava Molly numa cama alta e branca, com a metade do rosto envolta em ataduras e a boca como se fosse uma caverna.

  • Molly! chamou. Molly...

    Sua voz enfraqueceu e, chorando, implorou:

  • Minha querida! — Não obteve resposta. Através da bo­ca entreaberta, a respiração vinha em rápidos e ruidosos estertores, uma vez, outra vez...

  • Minha querida...

    A mão que segurava entre as suas adquiriu alguma vida, e momentos depois ficou imóvel.

  • Sou eu, Will — disse.

    Uma vez mais os dedos se moveram devagar e, com enorme esforço, fecharam-se sobre os seus, apertaram-nos por instantes e depois voltaram à imobilidade.

  • Atenção! — chamou aquela voz desumana. — Atenção!

    Procurava convencer-se de que fora um acidente. O carro derrapara na estrada molhada. Uma dessas coisas que sempre acontecem e que lemos nos jornais a toda hora. Ele mesmo as noticiara, às dúzias: Mãe e três filhos mortos num acidente... Mas isso não vinha ao caso. A questão era que, quando ela lhe per­guntara se tinha realmente chegado ao fim, respondera afirmati­vamente. A verdade era que há menos de uma hora, sob a chu­va, tinham terminado aquela última e vergonhosa entrevista. Ago­ra Molly estava morrendo na ambulância.

    Não a olhara quando ela se virou para partir; não tivera coragem. Outro olhar àquele rosto pálido e sofredor poderia ter si­do demais. Ela se levantou da cadeira e, atravessando lentamen­te o quarto, saiu de sua vida. Não deveria chamá-la e pedir-lhe perdão, dizendo-lhe que ainda a amava? Amara-a algum dia?

    Pela centésima vez ouviu o som parecido com o oboé:

  • Atenção!

    Amara-a realmente?

  • Adeus, Will — dissera naquele murmúrio tão conheci­do, voltando-lhe as costas no limiar da porta. — Apesar de tu­do, Will, ainda o amo — sussurrou.

    Um momento depois, a porta do apartamento se fechara atrás dela, quase sem ruído. Ouviu apenas o estalido seco da fechadura. Ela se fora. Pulara da cadeira e correra para abrir a porta da frente. Escutara seus passos se afastarem à medida que descia as escadas. Como um fantasma da madrugada, um perfume va­gamente familiar pairava no ar. Fechando novamente a porta, entrou em seu quarto cinza e amarelo e foi encostar-se à janela.

    Passados alguns segundos, viu-a atravessar a calçada e entrar no carro. Ouviu o ranger estridente do arranque, uma, duas vezes, e, depois, o ruído do motor em funcionamento. Deveria abrir a janela?

  • Espere, Molly, espere imaginou estar dizendo.

    Mas a janela continuou fechada. O carro começou a se movimentar, dobrou a esquina e a rua ficou vazia.

  • Tarde demais. Tarde demais, graças a Deus! dissera uma voz grosseira e vulgar. Sim, graças a Deus!

    Ainda assim, o seu sentimento de culpa estava ali, na boca do estômago. O sentimento de culpa! O tormento do remorso! Juntamente com esses sentimentos sentia uma indescritível ale­gria. Alguém baixo, lascivo, brutal, odioso, o estranho que era ele mesmo, se rejubilava pelo fato de não haver mais nada que o impedisse de ter o que quisesse. E tudo o que desejava era um perfume diferente, o calor e a elasticidade de um corpo mais jovem.

  • Atenção! repetiu o oboé.

    Sim, devia prestar atenção. Atenção para o quarto de Babs, com sua alcova rosa-morango, com suas duas janelas que deixa­vam entrever durante toda a noite o trêmulo cintilar do grande anúncio luminoso do Gin Porter, colocado do outro lado da rua Charing Cross. A palavra gin brilhava em vermelho vivo. Du­rante dez segundos a alcova era o próprio Sagrado Coração. Nes­ses dez milagrosos segundos, o rosto avermelhado, tão próximo ao seu, brilhava como o de um serafim transfigurado que tivesse sido iluminado pela chama do amor. E, na pausa escura que se sucedia, essa transfiguração era ainda mais evidente.

  • Um, dois, três, quatro... Deus permita que isto continue para sempre!

    Mas, quando chegar ao número dez, o controle elétrico tra­rá outra revelação uma revelação de morte e de horror! As luzes serão verdes e por dez horríveis segundos a encarnada alco­va de Babs se transformará num ventre de lama. Na cama, ela terá a cor de um cadáver, um cadáver galvanizado que tem epi­lepsia póstuma. Quando o Gin Porter era apregoado em verde tornava-se difícil esquecer tudo o que acontecera e tudo o que se era. O único recurso consistia em fechar os olhos e mergulhar, se possível, ainda mais profundamente no Outro Mundo. Mer­gulhar violenta e deliberadamente no mundo da sensualidade. Era poder entregar-se aos loucos frenesis aos quais a pobre Molly (Molly Atenção! nas suas ataduras, Molly na sua úmida cova em Highgate; por causa disso tinha de fechar os olhos, ca­da vez que a luz verde transformava num cadáver a nudez de Babs) tinha sido sempre uma estranha. Não apenas Molly.

    Com os olhos semicerrados, Will viu sua mãe, pálida como um camafeu, a face espiritualizada pela aceitação do sofrimento e com as mãos monstruosamente deformadas pela artrite. De pé, atrás da cadeira de rodas de sua mãe, já começando a engordar e tremendo como geléia de mocotó, estava sua irmã a pobre Maud —, cujos sentimentos nunca haviam encontrado meios de evasão na consumação do amor.

  • Como foi que você pôde, Will?

  • Sim. Como você pôde fazer isso? ecoou Maud, cho­rosa, na sua vibrante voz de contralto.

    Não havia resposta. Teria de explicar-lhes tudo, escolhendo cuidadosamente palavras que pudessem ser proferidas na presença de ambas. Palavras que pudessem ser compreendidas por essas duas criaturas que se tornaram mártires a mãe devido ao seu casamento infeliz, e a irmã pela piedade filial. Só conseguiria explicar-se usando expressões cheias da mais científica obsceni­dade e ditas com uma franqueza de todo inadmissível.

    Como pudera fazê-lo? Bem, fora impelido a isso porque... além de Babs ter certas particularidades físicas que Molly não pos­suía, era capaz, em certos momentos, de atitudes que Molly nun­ca poderia conceber.

    Houve um longo silêncio, abruptamente interrompido pela estranha voz que recomeçara o seu refrão:

  • Atenção! Atenção!

    Atenção para Molly. Atenção para Maud. Atenção para sua mãe. Atenção para Babs.

    Subitamente, outra recordação emergiu daquela bruma de incerteza e confusão. A alcova rosa-morango de Babs abrigava outro hóspede, e o corpo de sua dona estremecia em êxtase pelas carícias de alguém. Além do aperto no estômago, um aperto no coração, uma contração na garganta.

  • Atenção!

    A voz se aproximara, chamando de algum lugar à sua direi­ta. Virando a cabeça, tentou levantar-se para ver melhor, porém o braço que suportava o seu peso começou a tremer e fraquejou. Will caiu sobre as folhas.

    Cansado demais para continuar recordando, ficou deitado por longo tempo, olhando para cima, através das pálpebras semicerradas. Olhando para o incompreensível mundo à sua vol­ta... Onde estaria e como teria vindo parar ali? Não que isso ti­vesse importância. No momento, nada tinha importância, exce­to sua dor e esta fraqueza aniquilante. Sempre a mesma coisa, apenas um assunto de interesse científico...

    Esta árvore, por exemplo, debaixo da qual (por razão desconhecida) se encontrava deitado, esta coluna de casca acinzen­tada, com sua abóbada bem alta, de ramos salpicados de sol, ti­nha o direito de ser uma faia. Mas, neste caso — e Will se admi­rou por estar tão lucidamente lógico —, neste caso, as folhas não tinham o direito de ser tão verdejantes...

    E por que uma faia expulsaria dessa maneira suas raízes pa­ra a superfície do solo? E estes ridículos suportes de madeira on­de a pseudofaia se apoiava, onde encaixá-los?

De repente, lembrou-se da pior estrofe de poesia: Quem dá forças ao meu cérebro nesses maus dias é o que perguntas?

Resposta: é o ectoplasma congelado de Early Dali, aquele que realmente governou Chilterns.

Por que eram tão grandes as borboletas que voavam na densa e amanteigada luz solar? Por que tão irrealmente azul-celestes? Por que preto-aveludadas ou pintalgadas e com olhos extrava­gantes? Púrpura sobressaindo do castanho, prata pulverizada so­bre esmeralda, topázio e safira.

  • Atenção!

  • Quem está aí? — perguntou Will Farnaby, no que jul­gou ser uma voz alta e possante. Mas o que saiu de sua boca não foi mais que um coaxar fraco e trêmulo.

    Pareceu haver um silêncio longo e ameaçador. Surgindo de um buraco entre os galhos de duas árvores, uma enorme centopéia negra fez uma rápida aparição e desapareceu às pressas com seu regimento de pernas vermelhas, dentro de outra fenda do ec­toplasma coberto de líquen.

  • Quem está aí? — coaxou novamente.

    Ouviu estalidos nos arvoredos à sua esquerda e, como se fosse um cuco de relógio, um pássaro preto, do tamanho de uma gra­lha — mas que não era uma gralha — moveu-se no espaço e pou­sou num dos ramos mais baixos de um arbusto morto, que esta­va a pequena distância. Will reparou que seu bico era alaranjado e que havia uma parte amarela e nua sob cada olho. Os lados e a parte posterior de sua cabeça eram revestidos por uma espé­cie de plumagem amarelo-viva e por um retalho de pele espessa, semelhante a uma peruca.

    O pássaro empertigou-se e olhou-o primeiramente com o olho direito, depois com o esquerdo. Dando por terminada a inspe­ção, abriu o bico alaranjado e cantou dez ou doze notas de uma pequena escala pentatônica. Numa linguagem como que entre­cortada por soluços, cantava... dó, dó, sol, dó... e era como se dissesse: "Vamos, rapazes, está na hora!"

    As palavras como que dispararam uma mola e, de repente, Will se lembrou de tudo.

    Eis aqui Pala, a ilha proibida, o lugar nunca visitado por qualquer jornalista. O momento que estava vivendo devia repre­sentar a manhã seguinte àquela tarde em que tinha feito a tolice de ir velejar sozinho, fora da baía de Rendang-Lobo.

    Lembrava-se de tudo — a vela branca, curvada pelo vento, parecia uma imensa magnólia; a água sibilava na proa; a crista de cada onda tinha o brilho de diamantes e cada uma das suas dobras tinha a cor do jade. Do outro lado do estreito, as nuvens eram verdadeiros prodígios de brancura esculpida, que encima­vam os vulcões de Pala! Sentado, segurando a cana do leme, per­cebeu que estava cantando — descobriu, sem querer acreditar, porém sem qualquer possibilidade de erro, que se sentia feliz.

  • Três, três para os rivais — tinha declamado para o ven­to. — Dois, dois para os rapazes brancos como lírios, todos vestidos de verde, oh! Um é um e nada mais que isso.

Sim, estava só, inteiramente só, nesta jóia que é o mar.

  • Cada vez mais, assim será!

Depois disso, não é necessário acrescentar que as coisas so­bre as quais todos os iatistas cautelosos e experientes o adverti­ram vieram a acontecer. A súbita e negra rajada de vento e chu­va, o frenesi louco do vento, as ondas...

  • Vamos, rapazes, é agora! — cantou o pássaro. — É ago­ra, rapazes!

    Era realmente espantoso que ele estivesse debaixo daquelas árvores. Podia estar no fundo do estreito de Pala, ou ter sido feito em pedaços pelos rochedos, refletiu Will. Vencera a arreben­tação no barco que afundava. Conseguira por puro milagre atin­gir a única praia arenosa existente em todas aquelas milhas de rochedos que constituíam as costas de Pala. Mas sua epopéia não terminara. As rochas elevavam-se acima dele e, no ponto mais elevado da enseada, havia uma espécie de ravina escarpada, de onde descia um pequeno córrego numa sucessão de cascatas diá­fanas. Havia árvores e arbustos crescendo entre calcário cinzento.

    Cento e oitenta ou duzentos metros de subida pela rocha — calçando tênis e pisando em pontos de apoio molhados e escor­regadios.

    Então, Deus meu!, surgiram aquelas cobras. A preta enganchando-se no galho em que se apoiava para subir. Cinco minutos mais tarde, foi a vez daquela verde, enorme, que se en­rolara no ressalto em que pretendia pisar. A um terror seguia-se outro infinitamente pior. A vista da cobra o assustara, fazendo-o recolher violentamente o pé, e, com aquele súbito e impensado movimento, perdeu o equilíbrio. Por um longo segundo, oscilando à beira do abismo, fez a terrível descoberta de que seu fim havia chegado. Depois foi a queda... Foi então que ouviu o barulho de madeira lascada e viu-se agarrado aos galhos de uma pequena árvore.

    Tinha o rosto arranhado, o joelho direito machucado e sangrando, mas, ainda assim, continuava vivo.

    Dolorosamente, recomeçou a subida. O joelho doía terrivelmente, porém não se deteve. Não havia alternativa. A luz come­çara a faltar. Ao terminar a escalada, a escuridão era quase completa.

    Em completo desespero, guiara-se pela fé.

    — Vamos, rapazes, é agora! — gritava o pássaro.

    Will Farnaby não podia atender àquela convocação. Estava na encosta da rocha, revivendo o horrível momento da queda.

    As folhas secas farfalharam debaixo dele e seu corpo tremia de modo incontrolável, da cabeça aos pés.

     

    De repente, o pássaro deixou de emitir sons articulados e começou a gritar. Will escutou uma voz infantil dizer "Mainá!" e continuar falando uma língua desconhecida. A um som de fo­lhas secas pisadas se seguiu um grito de alarme. Depois, o silên­cio. Abrindo os olhos, Will viu duas estranhas crianças que o olha­vam com expressão de surpresa e de fascinado horror. A menor delas era um menino de cinco ou seis anos, vestindo apenas uma tanga verde. A seu lado, carregando uma cesta de frutas à cabe­ça, estava uma menina uns quatro ou cinco anos mais velha. Usa­va uma ampla saia vermelha que lhe chegava quase aos tornoze­los, porém estava nua da cintura para cima. À luz do sol, sua pele brilhava como se fosse de cobre, com reflexos rosados. Will olhou-os e admirou a beleza de ambos. Era realmente uma bele­za pura, aliada a uma extraordinária elegância. Pareciam dois puros-sangues. O menino era rechonchudo e forte, e seu rosto se assemelhava ao de um querubim. A menina tinha um tipo dife­rente um puro-sangue esguio, e seu pequeno rosto era ligeira­mente alongado e emoldurado por duas tranças de cabelos escuros.

    Houve outra explosão de gritos. Na árvore morta onde esta­va empoleirado, o pássaro fazia movimentos inquietos e, após emitir mais um grito estridente, lançou-se no ar. Sem desviar os olhos do rosto de Will, a menina estendeu uma das mãos e o pás­saro, após esvoaçar por alguns momentos, pousou em seu dedo. Agitou vigorosamente as asas e, recuperando o equilíbrio, come­çou imediatamente a soluçar.

    Will olhou para tudo aquilo sem nenhuma surpresa. Tudo era possível. Mesmo pássaros que falavam e que se empoleira­vam no dedo de uma criança. Tentou sorrir-lhes, porém seus lábios ainda estavam trêmulos, e o que deveria ter sido um sinal amistoso lhes deve ter parecido uma careta assustadora. O meni­no se escondeu atrás da irmã.

    Parando de soluçar, o pássaro começou a repetir uma pala­vra que Will não compreendeu.

    "Runa." Seria isso mesmo? Não. Era "karuna". Não ha­via a menor dúvida.

    Levantando a mão trêmula, Will apontou para as frutas na cesta redonda. Mangas, bananas... Sua boca seca se encheu de água.

  • Faminto disse. Sentindo então que em circunstâncias tão estranhas a criança talvez o compreendesse melhor se tentasse imitar uma comédia musicada chinesa, disse cuidadosamente:

  • Eu muita fome.

  • Deseja comer? a criança perguntou num inglês perfeito.

  • Sim, comer repetiu. Comer.

  • Voe, mainá disse a menina, sacudindo a mão. O pás­saro emitiu um grito estridente e voltou a se empoleirar na árvo­re morta.

    Erguendo os braços pequenos e magros num gesto parecido ao de uma bailarina, a menina tirou a cesta da cabeça, pousando-a no chão. Escolheu uma banana, descascou-a e, entre amedron­tada e compadecida, avançou em direção ao estranho. Na língua incompreensível, o menino gritou e agarrou-se à sua saia. Com uma palavra tranqüilizadora e a uma distância que a protegia de qualquer perigo, a menina ofereceu a fruta.

  • Quer? perguntou.

    Ainda trêmulo, Will Farnaby estendeu a mão. Com muito cuidado ela se aproximou, voltou a parar e, curvando-se, olhou- o atentamente.

  • Depressa disse ele com impaciência.

    Mas ela não queria se arriscar. Olhando para a mão estendi­da como que em busca do menor movimento suspeito, curvou-se mais e, com muito cuidado, estendeu o braço.

  • Pelo amor de Deus! implorou Will.

  • Deus? a criança repetiu com súbito interesse. Que Deus? perguntou. Há tantos deles...

  • Qualquer deus que você queira respondeu irritado.

  • Na verdade, não gosto muito de nenhum deles disse ela. Só gosto do Compassivo.

  • Então seja compassiva comigo implorou. — Dê-me essa banana.

  • Sinto muito disse ela em tom de desculpa e com a expressão do rosto completamente mudada.

    Voltando a erguer-se, deu um rápido passo à frente e deixou cair a fruta na mão trêmula que Will lhe estendia.

  • Tome disse. E, como se fosse um pequeno animal evitando uma armadilha, pulou para trás, ficando fora do seu alcance.

    O menino bateu palmas e riu alto. Virando-se para ele, a menina disse-lhe qualquer coisa na sua língua incompreensível. Ele concordou, balançando sua cabeça redonda, e disse:

  • Está bem, chefe.

    Atravessou em passos rápidos a barreira de borboletas azuis e amarelo-claras e desapareceu nas sombras da floresta, além da clareira.

  • Disse a Tom Krishna para ir em busca de alguém explicou.

    Tendo acabado de comer a banana, Will pediu outra e de­pois uma terceira. Mais saciado na sua fome, sentiu necessidade de satisfazer a curiosidade.

  • Como é que você fala um inglês tão bom? perguntou.

  • Porque todos falam inglês respondeu a menina.

  • Todos?

  • Sim. A não ser quando estão falando palanês.

    Perdendo o interesse pela conversa, ela virou-se, acenou apequena mão morena e assobiou.

  • Vamos, rapazes, é agora! o pássaro repetiu ainda umavez.

    Voou deixando o seu poleiro na árvore morta e acomodou- se no ombro da menina, que, descascando outra banana, deu dois terços dela a Will e ofereceu ao mainá o que sobrou.

    Este pássaro é seu? perguntou Will.

    Ela balançou a cabeça, negativamente.

  • Os mainás são como a luz elétrica — disse ela. Não pertencem a ninguém.

  • Por que ele diz essas coisas?

  • Porque alguém lhe ensinou respondeu pacientemen­te. O tom em que isso foi dito parecia querer dizer: "Como é burro!"

  • Mas por que lhe ensinaram essas coisas? Por que "aten­ção"? Por que "aqui e agora"?

  • Bem...

    Ela procurou palavras acertadas com as quais explicar a es­se estranho imbecil uma coisa que era mais do que evidente.

  • Porque essas são as coisas que a gente sempre esquece. Quero dizer, a gente se esquece de prestar atenção ao que está acontecendo e isto equivale a não estar aqui e agora.

  • E os mainás voam por aí para nos fazer lembrar? É isso o que você quer dizer?

    Ela concordou com um meneio de cabeça. Sim, era isso. Houve uma breve pausa.

  • Como você se chama? — perguntou ela.

    Will se apresentou.

  • Eu me chamo Mary Sarojini MacPhail.

  • MacPhail? — Era demasiadamente improvável.

  • MacPhail — ela lhe assegurou.

  • E seu irmãozinho se chama Tom Krishna?

    Ela fez que sim com a cabeça.

  • Não entendo mais nada!

  • Você veio a Pala pelo aeroplano?

  • Não. Vim por mar.

  • Por mar? Você tem um barco?

  • Eu tinha um. — Com os olhos e os ouvidos da memória reviu quando as ondas despedaçavam o casco encalhado e tornou a ouvir o estrondo de seus impactos.

    Respondendo às perguntas da menina, Will contou o que havia acontecido. A tempestade, o encalhe do barco, o longo pesa­delo da subida, as cobras, o terror da queda... Começou a tre­mer de novo e com mais violência do que nunca.

    Mary Sarojini ouviu com atenção e sem interrompê-lo. Observou que sua voz começou a ficar mais fraca e, quando ele pa­rou de falar, adiantou-se com o pássaro ainda empoleirado no ombro. Ajoelhando-se a seu lado, disse, pousando a mão em sua fronte:

  • Escute, Will, precisamos nos livrar disso.

    O seu tom de voz tinha a autoridade de uma profissional.

  • Gostaria de saber como — disse Will com voz trêmula, batendo os dentes.

  • Como? Evidentemente que é pelo método clássico. Ago­ra, repita o que me disse daquelas cobras e como se sentiu ao cair.

    Ele balançou a cabeça, negativamente.

  • Não quero.

  • É claro que você não quer — disse ela. — Mas você tem que falar. Escute o que o mainá está dizendo.

  • Aqui e agora, rapazes! — continuava a exortar o pássa­ro. — Aqui e agora, rapazes!

  • Você não poderá estar aqui neste momento a não ser que se liberte daquelas cobras — continuou ela. — Vamos, fale.

  • Não quero. Não quero.

    Estava quase em lágrimas.

  • Então você nunca ficará livre delas. Ficarão rastejando dentro de seu cérebro durante toda a sua vida. E é bem-feito! — Mary Sarojini acrescentou zangada.

    Will tentou controlar o tremor, porém seu corpo deixara de lhe pertencer. Outra pessoa tomara conta dele, alguém malevo- lamente disposto a humilhá-lo, a fazê-lo sofrer.

  • Lembre-se do que acontecia quando ainda era um meni­no pequeno — dizia Mary Sarojini. — Que é que sua mãe fazia quando você se machucava? Ela o tomava nos braços e dizia: "Meu pobre filhinho, meu pobre filhinho"? Será que fazia isso? — perguntou num tom escandalizado.

    Will concordou.

  • Mas é horrível! Essa é a melhor maneira de piorar a situação. Meu pobre filhinho.... — repetiu zombeteira. — Com is­so a dor deve ter se arrastado por várias horas. E você nunca se esqueceu.

    Will Farnaby não fez comentário algum, porém continuou deitado em silêncio, sacudido por incontroláveis arrepios.

  • Bem, se você não quer ajudar, serei forçada a fazê-lo. Escute, Will: era uma cobra, uma grande cobra verde e você quase pisou nela. Você quase pisou nela e isso o assustou tanto que, perdendo o equilíbrio, você caiu. Agora, diga-o você mesmo, diga-o!

  • Quase pisei nela — sussurrou obedientemente. — E en­tão eu... — Não, não podia terminar. Finalmente conseguiu di­zer, num tom de voz quase inaudível: — Então eu caí...

    Relembrou todo o horror da cena, a náusea do medo, o ter­ror que o acometera e fizera com que perdesse o equilíbrio e, pior que tudo, a terrível certeza de que tinha chegado ao fim.

  • Diga mais uma vez.

  • Quase pisei nela. E então...

    Percebeu que estava chorando.

  • Isso mesmo, Will. Chore, chore!

    O choro transformou-se em gemidos. Sentiu-se envergonhado e, cerrando os dentes, parou de gemer.

  • Não, não faça isso! — exclamou Mary Sarojini. — Não se contenha. Lembre-se daquela cobra, Will. Lembre-se da queda.

    Os gemidos recomeçaram e os tremores se tornaram mais violentos do que nunca.

  • Diga-me o que aconteceu.

  • Pude ver-lhe os olhos e a língua entrando e saindo da boca.

  • Sim, você pôde ver-lhe os olhos e a língua. Que aconte­ceu depois?

  • Perdi o equilíbrio e caí.

  • Diga-o novamente, Will.

    Ele estava soluçando.

  • Diga-o novamente — insistiu ela.

  • Eu caí.

  • Outra vez.

    Aquilo o estava fazendo em pedaços, mas mesmo assim continuou:

  • Eu caí.

  • Outra vez, Will. — Ela era implacável. — Outra vez!

  • Eu caí, eu caí. Eu caí.

    Gradativamente os soluços foram diminuindo de intensida­de. As palavras vinham com maior facilidade e as recordações que despertavam eram menos dolorosas.

  • Eu caí — repetiu pela centésima vez.

  • Porém não caiu muito longe — disse Mary Sarojini.

  • Não, não caí muito longe — concordou.

  • Então, qual o motivo de toda essa agitação? — pergun­tou ela.

    Não havia maldade ou ironia no tom de sua voz. Também não havia a menor acusação. Fazia uma pergunta simples e objetiva, cuja resposta devia ser igualmente simples e direta. Real­mente, qual a razão para todo esse estardalhaço? Afinal de con­tas, a cobra não o havia mordido e não quebrara o pescoço. Além disso, tudo acontecera ontem. Hoje havia essas borboletas e esse pássaro que lembrava as pessoas sobre a conveniência de presta­rem atenção. E havia também essa criança estranha que se pare­cia com um anjo pertencente a alguma mitologia desconhecida e que, vivendo a cinco graus do equador, chamava-se (acreditem se quiserem) MacPhail.

    Ainda mais estranho era o tom maternal com que o admoestava.

    Will Farnaby riu alto.

    A menina bateu palmas e riu também. O pássaro, que ainda estava em seu ombro, se associou ao riso de ambos, gargalhando estrepitosamente. O seu riso alto e demoníaco encheu a clareira e, ressoando entre as árvores, dava a impressão de que o Univer­so estava prestes a estourar sob o peso do imenso ridículo da exis­tência.

 

  • Fico satisfeito em ver que a coisa é divertida comen­tou uma voz grave.

    Will Farnaby deparou com um homem pequeno e magro, vestido à moda européia. Carregava uma maleta preta e olhava- o sorrindo. Sob o largo chapéu de palha escapava uma cabeleira farta e branca. No rosto escuro, destacavam-se olhos incrivelmente azuis e um estranho nariz adunco. Will calculou que devia beirar os sessenta anos.

  • Vovô! exclamou Mary Sarojini.

    O estranho virou-se para a criança.

  • De que estavam rindo? perguntou.

  • Bem... Mary Sarojini começou a falar, mas parou em seguida a fim de pôr em ordem seus pensamentos. Bem, ele estava num barco que naufragou na tempestade de ontem e veio dar em algum lugar lá embaixo na praia. Teve de escalar o ro­chedo. Lá havia algumas cobras e ele se assustou e caiu. Feliz­mente havia uma árvore onde se agarrou e tudo não passou de um susto. Essa foi a razão pela qual ele tremia tanto. Dei-lhe al­gumas bananas e o fiz contar o acontecido um milhão de vezes. De repente ele viu que não havia motivo para preocupações, uma vez que tudo já tinha acabado. Foi isso que o fez rir. E então eu o acompanhei, e o pássaro mainá também resolveu se asso­ciar às nossas gargalhadas.

  • Muito bem disse o avô. Depois desse primeiro socorro psicológico, vamos ver o que pode ser feito para o pobre e velho "Irmão Asno" acrescentou, dirigindo-se novamente a Will Farnaby. A propósito, sou o dr. MacPhail. E você, quem é?

  • Seu nome é Will disse Mary Sarojini, antes que este pudesse responder.O outro nome é Far... qualquer coisa.

  • Para ser preciso, Farnaby. William Asquith Farnaby. Meu pai, como deve ter deduzido, era um liberal ardente. Mes­mo quando estava bêbado. Aliás, especialmente quando bêba­do. — Dizendo isso, deu uma gargalhada desagradável e irônica, que soou completamente diferente daquela gargalhada alegre e espontânea com que saudara a descoberta de que realmente não havia mais nada com que se preocupar.

  • Você não gostava de seu pai? — perguntou Mary Sarojini, interessada.

  • Não tanto quanto deveria — respondeu Will.

  • O que ele quer dizer — explicou o dr. MacPhail à crian­ça — é que ele odiava o pai, como muitos outros, diga-se de passagem. — Abaixou-se e, enquanto desamarrava as tiras da sua maleta preta, dirigiu-se ao estranho: — Presumo que seja um dos representantes dos nossos ex-imperialistas.

  • Nascido em Bloomsbury — confirmou Will.

  • Deve pertencer à classe alta, mas não é membro das "subespécies" militares ou municipais — foi o diagnóstico do médico.

  • Correto. Meu pai era advogado e fazia jornalismo polí­tico, quando não estava demasiadamente ocupado com seu alcoolismo. Minha mãe, por mais inacreditável que pareça, era fi­lha de um arcebispo. De um arcebispo — repetiu, rindo do mes­mo modo que se rira ao mencionar a paixão de seu pai pelo brandy.

    O dr. MacPhail olhou-o por um instante e voltou a se ocu­par com sua maleta.

  • Quando você ri assim — observou num tom cientificamente imparcial —, seu rosto se torna cuidadosamente feio.

    Surpreso, Will tentou encobrir seu embaraço com uma resposta jocosa.

  • É sempre feio — disse.

  • Pelo contrário, de certa maneira baudelairiana, é bastante bonito. Com exceção de quando você resolve fazer ruídos seme­lhantes aos das hienas. Por que faz isso?

  • Eu sou um jornalista — explicou Will. — Um "correspondente especial", pago para viajar pelo mundo e relatar todos os horrores que ocorrem. Que outra espécie de ruídos você espe­ra que eu faça? Cuco? Bla-bla? Marx-marx? — Riu de novo e depois fez um de seus comentários chistosos: — Sou um homem que não aceita o "sim" como resposta.

  • Lindo! disse o dr. MacPhail. Muito lindo! Porém agora tratemos de negócios.

    Tirando um par de tesouras de sua maleta, começou a cor­tar a calça rasgada e manchada de sangue, que cobria o joelho machucado de Will. Enquanto o olhava trabalhar, Will começou a conjeturar sobre quanto de escocês e de palanês existia naquele possível highlander. Quanto aos olhos azuis e ao nariz adunco, não podia haver dúvidas. Porém a pele bronzeada, as mãos deli­cadas, a leveza dos movimentos estes com certeza vinham de algum lugar bastante ao sul do Tweed.

  • O senhor nasceu aqui? perguntou afinal.

    O médico balançou a cabeça afirmativamente.

  • Em Shivapuram, no dia do funeral da rainha Vitória. Houve um clique na tesoura, e o joelho ficou exposto. Bastante mau foi o veredicto do dr. MacPhail, depois de examiná- lo minuciosamente. Mas não acho que seja realmente grave. Virou-se para a neta e disse: Gostaria que você fosse cor­rendo ao posto e dissesse a Vijaya para vir aqui acompanhado de outro homem. Diga-lhes que tragam uma maca da enfermaria.

    Mary Sarojini fez um sinal afirmativo com a cabeça e, sem uma palavra, levantou-se e atravessou correndo a clareira.

    Will acompanhou com os olhos a pequena figura que se afastava, a saia vermelha agitando-se de um lado para outro e a pele rósea e lisa do dorso, que brilhava com reflexos dourados sob a luz do sol.

  • Você tem uma neta extraordinária disse ao dr. MacPhail.

  • O pai de Mary Sarojini era meu filho mais velho disse o médico após um curto silêncio. Faleceu há quatro meses num acidente de alpinismo.

    Will murmurou condolências e o silêncio caiu entre eles.

    O dr. MacPhail desarrolhou uma garrafa de álcool e desinfetou as mãos.

  • Isso vai doer um pouco avisou. Sugiro que preste atenção àquele pássaro. Fez um movimento com a mão em direção à árvore morta, para onde o mainá retornara após a saí­da de Mary Sarojini. Ouça-o cuidadosamente, concentrando- se nele. Isto afastará sua atenção da dor.

    Will Farnaby escutou. O mainá voltara ao seu tema inicial:

  • Atenção! chamava o oboé, nitidamente. Atenção!

  • Atenção para quê? perguntou, na esperança de obter uma resposta mais esclarecedora do que a obtida de Mary Sarojini.

  • Para a atenção respondeu o dr. MacPhail.

  • Atenção para a atenção?!

  • Claro!

  • Atenção! cantou o mainá, como que confirmando, ironicamente.

  • Vocês têm muitos desses "pássaros falantes"?

  • Deve haver pelo menos mil deles voando pela ilha. Foi uma idéia do velho rajá. Ele pensou que fazia bem ao povo. Tal­vez o fàça, apesar de parecer bastante injusto aos pobres mainás. Felizmente não entendem discursos de propaganda. Nem mesmo os de São Francisco. Que idéia! — continuou. Fazer sermões aos bons tordos e pintassilgos. Que presunção! Por que não ficou calado e deu aos pássaros a oportunidade de pregarem para ele! E agora acrescentou em outro tom é melhor que você comece a ouvir o nosso amigo da árvore. Vou limpar o fe­rimento.

  • Atenção!

  • Vou começar.

    Will Farnaby estremeceu e mordeu os lábios.

  • Atenção! Atenção! Átenção!

    Sim, era verdade. Se se escutasse com bastante atenção, a dor deixava de ser tão forte.

  • Atenção! Atenção...

  • Não posso conceber como você conseguiu subir aquela rocha! disse o dr. MacPhail enquanto apanhava uma atadura.

    Will conseguiu rir.

  • Ainda se lembra do começo de Erewhom? — perguntou. — No dizer da sorte, a Providência estava do meu lado...

Do lado mais afastado da clareira veio o som de vozes. Will virou a cabeça e viu Mary Sarojini surgir do meio das árvores, a saia vermelha balançando enquanto saltava. Atrás dela, nu até a cintura e carregando nos ombros as varas de bambu da maca de lona enrolada, caminhava a imensa figura bronzeada de um homem, e atrás dele vinha um esbelto adolescente de pele escura e de calções brancos.

  • Este é meu assistente, Vijaya Bhattacharya disse o dr. MacPhail enquanto a figura bronzeada se aproximava.

  • No hospital?

    O dr. MacPhail balançou a cabeça negativamente.

  • Com exceção dos casos urgentes eu não exerço mais a medicina. Vijaya e eu trabalhamos juntos no Posto Experimental Agrícola. E Murugan Mailendra — disse, apontando para o ra­paz de pele escura — está conosco desde há algum tempo, estu­dando a ciência do solo e do crescimento das plantas.

    Vijaya deu passagem e, pousando sua grande mão no om­bro do companheiro, empurrou-o adiante.

    Olhando para aquele rosto bonito e mal-humorado, Will ficou surpreso ao reconhecer o jovem de elegância irrepreensível que havia cinco dias encontrara dirigindo, por toda a ilha de Rendang-Lobo, o Mercedes branco do coronel Dipa.

    Sorriu para ele e, quando ia dirigir-lhe a palavra, percebeu que o rapaz balançara quase imperceptivelmente, porém de ma­neira muito significativa, a cabeça. Em seus olhos pôde ler uma expressão de súplica angustiada. Seus lábios se moveram silen­ciosamente. "Por favor", pareciam estar dizendo. "Por favor..."

    Will recompôs a expressão do rosto e disse:

  • Como está, Mr. Mailendra? — perguntou num tom formal.

    Murugan pareceu francamente aliviado.

  • Como está? — respondeu curvando-se ligeiramente.

    Will olhou em sua volta para ver se os outros haviam percebido o que acontecera. Mary Sarojini e Vijaya estavam ocupa­dos com a maca e o médico arrumava sua maleta preta. A pe­quena comédia havia sido representada sem auditório.

    O jovem Murugan evidentemente tinha as suas razões para não querer que se soubesse de sua estada em Rendang. Os rapa­zes são sempre os mesmos. Pode mesmo acontecer que não se­jam realmente rapazes.

    O coronel Dipa tinha sido mais do que paternal com seu jovem protegido e, em relação àquele Murugan, tinha tido uma ati­tude mais do que filial — uma atitude, positivamente, de franca adoração. Seria apenas adoração por um herói, simplesmente a admiração de um colegial pelo homem forte que vencera uma re­volução e que, após liquidar os opositores, se instalara como um ditador? Será que havia outros sentimentos envolvidos?

    Estaria Murugan representando o papel de Antinous para esse Hadrian de bigodes pretos? Ele tinha o direito de se sentir desse modo em relação aos gangstersmilitares de meia-idade. E se o gangstergostava de rapazes bonitos, também esse direito não lhe podia ser negado. E, talvez, Will continuou a refletir, fora por esse motivo que o coronel Dipa se abstivera de fazer uma apre­sentação formal.

  • Este é Muru — fora tudo o que dissera, quando o rapaz entrara no gabinete presidencial. — Meu jovem amigo Muru. — E, levantando-se, havia posto o braço em volta dos ombros do rapaz, impelindo-o para o sofá, e sentou-se a seu lado.

  • Posso dirigir o Mercedes? — perguntou Murugan.

    O ditador sorrira com benevolência e concordara com um movimento de sua cabeça preta e lustrosa.

    Por esse motivo Will pensava que havia alguma coisa além de uma simples amizade envolvendo aquelas estranhas relações. No volante do carro esporte do coronel, Murugan revelou-se um maníaco. Somente um amante apaixonado teria confiado sua vi­da, sem mencionar a de seu hóspede, a tal espécie de chofer. Na baixada entre Rendang-Lobo e os campos petrolíferos, o velocí- metro, por duas vezes, tocou os cento e dez quilômetros por ho­ra. Muito pior do que isso foi o que aconteceu na estrada monta­nhosa que ia dos campos petrolíferos para as minas de cobre. Nes­se percurso cheio de precipícios, onde os búfalos-da-índia surgiam das moitas de bambu, a pouca distância do carro, e caminhões de dez toneladas vinham em direção oposta, as curvas eram tão fechadas que faziam os pneus chiarem.

  • O senhor não está um pouco nervoso? — Will se aventurara a perguntar. Mas o gangster, além de apaixonado, era devoto.

  • Se alguém tem a certeza de estar cumprindo a vontade de Alá, e eu tenho, Mr. Farnaby, não há razão para nervosismos. Nessas circunstâncias isso seria uma verdadeira blasfêmia — disse o coronel Dipa.

    Enquanto Murugan se desviava para evitar outro búfalo, o coronel abriu uma cigarreira de ouro e ofereceu a Will um cigar­ro Balcan Sobranje.

  • Está pronta — disse Vijaya.

    Will voltou a cabeça e viu a maca estendida a seu lado, no chão.

  • Ótimo — disse o dr. MacPhail. — Vamos pô-lo na maca com todo o cuidado. Cuidado!...

    Minutos depois, a pequena procissão serpenteava pela estreita vereda entre as árvores. Mary Sarojini ia na dianteira, seu avô na retaguarda, e, entre eles, Murugan e Vijaya, que seguravam as extremidades da maca.

    De seu leito móvel, Will Farnaby olhou para o alto através da massa verde-escura e teve a sensação de estar olhando o fundo de um mar ondulante. À distância, próximo à superfície, ou­viu o ruído de macacos se agitando entre as folhas. Viu então uma dúzia de calaus saltar sobre uma nuvem de orquídeas e teve a im­pressão de estar assistindo a um trabalho de ficção, concebido de maneira desordenada.

  • Está se sentindo bem? — perguntou-lhe Vijaya, curvando- se solícito para olhá-lo no rosto.

    Will sorriu-lhe.

  • Principescamente — respondeu.

  • Não é longe. Chegaremos dentro em pouco — continuou o outro, procurando animá-lo.

  • Para onde vamos?

  • Para o Posto Experimental. É semelhante a Rothamsted. Você teve ocasião de ir a Rothamsted quando estava na Inglaterra?

    Will ouvira falar, porém nunca estivera lá.

  • Está em funcionamento há mais de cem anos — conti­nuou Vijaya.

  • Há exatamente cento e dezoito anos — disse o dr. MacPhail. — Lawer e Gilbert começaram a trabalhar com os fertili­zantes em 1843. Um de seus alunos esteve por aqui nos princí­pios de 1850 para ajudar meu avô na fundação do nosso posto. Criar uma Rothamsted nos trópicos — esta foi a idéia original. Nos trópicos e para os trópicos.

    A verde obscuridade se tornou menos intensa e pouco de­pois a maca saiu da floresta para a plena luminosidade do sol tropical. Will levantou a cabeça e olhou à sua volta. Não estavam distantes do andar térreo de um imenso anfiteatro.

    A uns cento e cinqüenta metros mais abaixo se via uma extensa planície cortada por campos dispostos como se fossem ta­buleiros de xadrez, salpicados por grupos de árvores e aglomera­dos de casas. Na direção oposta, rampas íngremes se erguiam a centenas de metros, dirigindo-se para um semicírculo de monta­nhas. Da superfície do solo até os contrafortes dos picos monta­nhosos, plataformas verdes e douradas se sucediam umas às ou­tras. Os campos de arroz acompanhavam os seus limites, ressal­tando as elevações e as depressões das rampas. Tudo parecia ter sido construído visando obter um efeito artístico. A natureza per­dera a naturalidade. A paisagem fora composta, reduzida à sua essência geométrica. Num quadro, tal efeito seria um verdadeiro milagre de virtuosismo expresso em termos de linhas sinuosas e de faixas de cores puras e brilhantes.

  • Que fazia em Rendang? — perguntou o dr. MacPhail, quebrando um longo silêncio.

  • Colhendo material para um artigo sobre o novo regime.

  • Não poderia imaginar que o coronel merecesse uma reportagem.

  • Está enganado. Ele é um ditador "militar". Isso quer di­zer que há morte ao largo. E a morte é sempre notícia. Mesmo o cheiro remoto da morte é notícia — disse Will, rindo. — Por isso é que me foi dito para dar um pulo até aqui, quando regres­sasse da China.

    Houvera também outras razões, as quais preferia não mencionar. Os jornais eram apenas um dos múltiplos interesses de lorde Aldehyde.

    A Companhia de Petróleo do Sudeste da Ásia e a Cobre Imperial e Estrangeira Ltda. eram dois outros ramos em que tinha interesses.

    Oficialmente Will viera a Rendang para sentir o cheiro do ar militarizado. Na realidade, também fora incumbido de descobrir as reações do ditador: como via o capital estrangeiro? Quais os descontos nos impostos que estava preparado a oferecer? Quais as garantias contra a nacionalização? Qual a parcela dos lucros que podia ser exportada? Quantos técnicos e administradores na­tivos teriam de ser empregados?

    Fizera uma verdadeira bateria de perguntas. Mas o coronel Dipa fora muito amável e cooperador, desde aquele passeio às minas de cobre, com Murugan na direção.

  • Tudo muito primitivo, meu caro Farnaby, muito primi­tivo. Precisamos com urgência de equipamento moderno, como você mesmo pode ver.

    Outro encontro fora arranjado — arranjado, Will agora se recordava, para a manhã de hoje.

    Imaginou o coronel sentado à sua mesa de trabalho, recebendo um relatório do chefe de polícia:

    "Mr. Farnaby foi visto pela última vez velejando sozinho um pequeno barco no estreito de Pala. Duas horas depois, hou­ve uma tempestade de grande violência... Supõe-se que esteja morto".

    Ao invés disso, aqui se encontrava ele, são e salvo, na ilha proibida.

  • Nunca lhe darão um visto — dissera-lhe Joe Aldehyde, na sua última entrevista. — Porém talvez você possa se disfarçar e desembarcar furtivamente. Use um albornoz ou qualquer coisa parecida, como fez Lawrence da Arábia.

    Com seriedade, Will prometera:

  • Tentarei.

  • De qualquer maneira, se você conseguir desembarcar em Pala, vá diretamente ao palácio. A rani, a rainha-mãe deles, é minha velha amiga. Conheci-a há seis anos, em Lugano. Ela se encontrava lá com o velho banqueiro Voegeli. Sua amiga se inte­ressava pelo espiritualismo e eles resolveram organizar uma ses­são espírita em minha honra. O médium trombeteava como se fosse uma voz vinda diretamente do Além. Mas infelizmente só falava alemão. Depois que as luzes foram acesas, tive uma longa conversa com ela.

  • Com a trombeta?

  • Não, não. Com a rani. Ela é uma mulher extraordiná­ria! Criou a Cruzada do Espírito.

  • Isso foi invenção dela?

  • Sem a menor dúvida. Pessoalmente eu a prefiro ao Rearmamento Moral. Tem melhor aceitação na Ásia. Naquela noite tivemos uma longa palestra a esse respeito. Depois falamos so­bre o petróleo. Há muito petróleo em Pala. A Petróleo do Su­deste da Ásia tem tentado por vários anos penetrar lá. Todas as outras companhias também tentaram, porém sem resultado. A linha política deles não dá concessões a ninguém. Mas a rani não concorda com isso; quer ver o petróleo fazendo algum bem à hu­manidade. Por exemplo, financiando a Cruzada do Espírito. Co­mo ia dizendo, se conseguir chegar a Pala, vá diretamente ao pa­lácio. Fale com ela. Obtenha a história verdadeira de todos os homens que têm o poder de tomar decisões. Descubra se existe uma minoria pró-petróleo e procure descobrir como podemos ajudá-los a prosseguir na "boa obra".

    Concluindo, havia prometido a Will uma generosa bonificação, caso seus esforços fossem coroados de êxito. O bastante para proporcionar-lhe um ano inteiro de liberdade.

  • Nada de reportagens. Nada além da grande Arte, Arte, Arte, ARTE. — Ele tinha emitido uma risada escatológica.

    Terrível criatura! Apesar disso, continuava a escrever para os vis jornais daquele homem sórdido e estava sempre pronto pa­ra, a troco de suborno, fazer o jogo sujo que lhe era ordenado. Agora, inacreditavelmente, aqui estava ele em solo palanês. A Providência tinha estado à seu lado, com o propósito evidente de perpetrar uma dessas sinistras e práticas brincadeiras, que são uma das suas especialidades.

    O som agudo da voz de Mary Sarojini o trouxe de volta à realidade.

  • Chegamos!

    Will levantou novamente a cabeça. A pequena procissão tinha se desviado da estrada e no momento passava através de uma abertura feita numa parede rebocada de branco. À esquerda, nu­ma crescente sucessão de plataformas, erguiam-se fileiras de cons­truções baixas, sombreadas pelas árvores. Mais adiante, via-se uma avenida de altas palmeiras que em suave declive ia terminar num poço de lótus. Na margem mais afastada desse poço, estava sentado um enorme Buda de pedra. Dobrando à esquerda, subi­ram para a primeira plataforma, aspirando a mistura de perfu­mes desprendidos pelas árvores em flor.

    Atrás de uma cerca, um touro branco como a neve e com o dorso corcovado ruminava em absoluta imobilidade. Na sua beleza serena e irracional se assemelhava a um deus. Um casal de pássaros de Juno, arrastando as suas asas na grama, deu-lhe a impressão de que o amante de Europa havia retrocedido no tempo.

    Mary Sarojini levantou a aldrava do portão de um pequeno jardim.

  • Meu bangalô — disse o dr. MacPhail. E, virando-se pa­ra Murugan: — Deixe-me ajudá-lo a subir a escada.

     

    Tom Krishna e Mary Sarojini foram fazer a sesta com os fi­lhos do jardineiro que morava na casa vizinha. Na penumbra da sala de visitas, Susila MacPhail estava sentada sozinha e sua soli­dão era povoada pelas recordações de um passado feliz e pela dor de sua recente perda.

    O relógio da cozinha bateu meia hora. Tinha de ir. Levantou- se com um suspiro, calçou as sandálias e saiu para a extraordiná­ria luminosidade da tarde tropical. Olhou para o céu. Acima dos vulcões, enormes nuvens subiam em direção ao zênite.

    Dentro de pouco mais de uma hora estaria chovendo.

    Procurando proteger-se sob as sombras, seguiu caminho através de uma vereda ladeada por árvores dispostas em linha.

    Com um rápido mover de asas, uma revoada de pombos se lançou daquelas árvores altaneiras e voou em direção à floresta. Tinham asas verdes, bicos cor-de-coral e seus peitos, mudando de cor sob o efeito da luz, pareciam ser de madrepérola.

    Quanta beleza! Eram realmente lindos! Susila esteve a pon­to de se voltar para ver a expressão de encanto com que Dugald os olhava, mas controlou-se a tempo e olhou novamente para baixo.

    Dugald cessara de existir e, em seu lugar, ficara aquela dor semelhante à dos "membros-fantasmas" que continuavam a per­seguir aqueles que sofreram amputações. Amputação... Ela so­frera uma, mas isso não era motivo para que se entregasse à autocomiseração. Dugald estava morto e os pássaros continuavam mais lindos do que nunca. E seus filhos, como todas as crianças, tinham a mesma necessidade de serem amados, ajudados e edu­cados. A ausência de Dugald estava constantemente a lembrar-lhe que, de agora em diante, teria de amar, de viver e de pensar por dois. Teria de sentir e de compreender, não apenas com seus olhos e com seu cérebro, mas com aqueles olhos e aquele cérebro que haviam pertencido a ele e que, antes da catástrofe, pertence­ram também a ela, numa verdadeira comunhão de prazer e de inteligência.

    Chegara ao bangalô do médico. Subiu a escada, atravessou a varanda e entrou na sala. Seu sogro, sentado junto à janela, bebericava chá frio de uma caneca de louça e lia o Jornal de Micologia.

    Percebendo sua aproximação, levantou os olhos e sorriu-lhe.

  • Minha querida Susila! Não imagina o quanto estou satisfeito por você ter podido vir!

    Ela curvou-se e beijou aquela face na qual o tempo deixara tantas marcas...

  • É mesmo verdade tudo o que Mary Sarojini me disse?

  • perguntou. Ela encontrou mesmo um náufrago?

  • Oriundo da Inglaterra, via China, Rendang e um nau­frágio. Um jornalista.

  • Como é ele?

  • Tem o físico de um Messias, mas é inteligente demais para acreditar em Deus ou para deixar-se convencer de sua própria mis­são. Além disso, sendo extremamente sensível, mesmo que vies­se a ser convencido, suas terminações nervosas e sua esperteza contrariariam os desejos de seus músculos e de seus ideais.

  • Deve ser muito infeliz!

  • Tão infeliz que é obrigado a rir como uma hiena.

  • E ele sabe que ri como uma hiena?

  • Sabe e parece orgulhar-se bastante disso. Chega mesmo a fazer epigramas a respeito: "Sou um homem que não aceita o 'sim' como resposta".

  • Está seriamente ferido? indagou.

  • Não, porém está com febre. Já comecei a dar-lhe antibióticos. Agora cabe a você levantar-lhe as forças a fim de que a vis medicatrix naturae tenha uma oportunidade.

    Farei o melhor que puder. E, depois de um silêncio:

  • Fui ver Lakshmi quando voltei da escola.

  • Como a achou?

  • No mesmo. Talvez um pouco mais fraca do que ontem.

  • Foi a impressão que tive ao vê-la esta manhã.

  • Felizmente a dor não parece estar piorando e podemos combatê-la psicologicamente. Koje tentamos superar a náusea.

    Ela conseguiu beber alguma coisa. Não creio que os fluidos in­travenosos continuem a ser necessários.

  • Graças a Deus — disse ele. — Aquelas injeções intravenosas eram uma tortura. Tanta coragem em face de cada perigo real; porém, quando se referia à injeção hipodérmica ou a uma agulha na veia, o terror mais abjeto e irracional a dominava. — Lembrou-se dos seus primeiros anos de casado, quando, perden­do a paciência, chamou-a de covarde por fazer tanto barulho por coisa tão sem importância. Lakshmi chorara e submetera-se ao martírio. Mas isso lhe causara tantos remorsos que implorara o seu perdão. Lakshmi, Lakshmi... Dentro de alguns dias ela esta­ria morta. Após trinta e sete anos! — A respeito de que vocês conversaram? — perguntou afinal.

  • Nada em especial — mentiu Susila. A verdade era que tinham falado de Dugald e não tinha coragem de repetir o que se passara entre elas.

  • Meu primeiro filho... — sussurrara a mulher agonizan­te. — Não sabia que os bebês eram tão lindos. — Enterrados nas órbitas e sombreados com profundas olheiras, seus olhos brilha­ram e os lábios se abriram num sorriso. — E que mãos tão pe­quenas — continuara a voz rouca e débil. — E que boquinha tão gulosa! — A mão quase descarnada tocara receosa o lugar onde, antes da operação do ano anterior, estivera o seio. — Eu nunca soube — dissera.

    Como poderia saber antes de sentir? Tinha sido uma verdadeira revelação, um apocalipse de tato e de amor.

  • Você" entende o que quero dizer?

    Susila balançou a cabeça afirmativamente. Claro que entendia. Tinha-o descoberto não só em relação a seus dois filhos, mas também naqueles outros apocalipses de tato e de amor que vive­ra com o homem em que se havia transformado o pequeno Du­gald, de mãos minúsculas e de boquinha gulosa.

  • Eu temia pelo seu futuro — sussurrou a mulher agoni­zante. — Ele era tão forte e tão despótico que poderia ter ferido, tiranizado e destruído. Se tivesse casado com outra mulher... Es­tou tão agradecida que tenha sido você!

    A mão descarnada movera-se do local onde estivera o seio, vindo descansar sobre o braço de Susila, que curvara a cabeça e beijara-a. Ambas haviam começado a chorar.

    O dr. MacPhail suspirou, olhou para cima e sacudiu-se co­mo se tivesse acabado de sair da água.

  • O nome do náufrago é Farnaby, Will Farnaby.

  • Will Farnaby — repetiu Susila. — Bem, é melhor que eu vá ver o que posso fazer por ele — disse em tom de despedida.

    O dr. MacPhail acompanhou-a de longe e, depois, reclinando-se na cadeira, fechou os olhos. Pensou na esposa e no filho. Em Lakshmi que vagarosamente se extinguia e em Dugald que fora uma brilhante e ardente chama, subitamente apa­gada. Pensou na incompreensível seqüência de mudanças que fa­ziam uma vida. Pensou que o destino dos seres humanos, ininterpretável e mesmo assim cheio de significação divina, era com­posto pela fusão de belezas, horrores e absurdos.

  • Pobre moça — disse para si mesmo ao se lembrar da expressão do rosto de Susila quando lhe dissera o que aconteceu a Dugald. — Pobre moça!

    E, naquele Jornal de Micologia, acabara de ler um artigo so­bre os cogumelos alucinogênicos. Ali estava mais uma coisa desconexa que viera se introduzir nesse conjunto de inconseqüências.

    As palavras de um dos pequenos e estranhos poemas do ve­lho rajá lhe vieram à mente:

     

Todas as coisas, para todas as coisas

inteiramente indiferentes,

trabalham juntas e em harmonia,

e, embora discordem sobre uma bondade maior

que a própria bondade

trabalham para um Ser

mais eterno na sua transitoriedade

e no seu declínio

do que o Deus que vive lá no céu.

 

A porta rangeu e, instantes depois, Will ouviu pisadas leves e o farfalhar de saias. Pousando a mão em seu ombro, uma voz feminina de tom suave e musical lhe perguntou como se sentia.

  • Sinto-me muito mal — respondeu, sem abrir os olhos. No seu tom não havia autocomiseração ou qualquer apelo à solidariedade, apenas a ira de um estóico que se cansara de passar por impassível e resolvera dar vazão a tudo o que sentia. — Es­tou me sentindo muito mal.

  • Sou Susila MacPhail — disse a voz —, a mãe de Mary Sarojini.

    Com relutância Will virou a cabeça e abriu os olhos.

    Uma versão adulta e mais escura de Mary Sarojini encontrava-se sentada ao lado da cama e sorria para ele com ami­gável solicitude.

    Retribuir-lhe o sorriso lhe custaria um grande esforço e ele contentou-se em dizer:

  • Como vai?

    Puxando o lençol um pouco para cima, tornou a fechar os olhos.

    Susila examinou-o em silêncio. Com a pele clara de nórdico recobrindo as costelas e os ombros ossudos, ele parecia, a seus olhos de palanesa, um doente frágil e vulnerável. No entanto ha­via delicadeza naqueles traços vigorosos e, analisando aquela fi­sionomia agitada, ela pensou num homem que fora espoliado e abandonado ao sofrimento.

  • Ouvi dizer que você é da Inglaterra — disse ela por fim.

  • Não me importa de onde vim nem para onde vou — respondeu irritado. — Do inferno para o inferno!

  • Estive na Inglaterra após a guerra, quando ainda era estudante.

    Ele tentou não ouvir, porém não havia meios de livrar-se da voz daquela intrusa.

  • Na minha classe de Psicologia tive uma colega cuja família morava no País de Gales e que me convidou para passar com ela o primeiro mês de férias de verão. Conhece o País de Gales?

    Claro que ele conhecia. Por que ela o atormentava com suas tolas recordações?

  • Gostava de passear à beira da água — continuou Susila, olhando a catedral através dos fossos que a circundavam. E pen­sava em Dugald. Imaginava-o na praia, sob as palmeiras. Recordava-se de quando lhe dera a primeira lição de alpinismo:

  • Você está presa na corda. Está na mais absoluta segu­rança. Não há possibilidade de cair — dissera ele.

    "Não há possibilidade de cair", Susila pensou com amargura.

    Enquanto olhava a fisionomia enérgica e devastada que ti­nha diante de si, lembrou-se de que havia uma tarefa a cumprir naquele momento. Tinha à sua frente um ser humano que sofria.

  • Como era lindo! — continuou ela. — Que paz mara­vilhosa!

    A Will Farnaby a voz pareceu que se tornara mais musical e singularmente distante. Talvez fosse por isso que ele deixara de se ressentir da intromissão.

  • Que extraordinária sensação de paz!

    Shanti, Shanti, Shanti.A paz que ultrapassa a compreensão.

    Agora a voz parecia estar quase cantando — parecia vir de um outro mundo.

  • Posso fechar os olhos — continuou cantando —, posso fechar os olhos e ver tudo com tanta nitidez... Ali está a igreja. É enorme, muito mais alta que as grandes árvores que rodeiam o palácio do bispo. Posso ver a grama verde-água, a luz dourada do sol batendo nas pedras e as sombras oblíquas incidindo entre os contrafortes. Escute! Ouço os sinos. Os sinos e as gralhas. As gralhas estão na torre. Você também está ouvindo?

    Sim, ouvia as gralhas, podia ouvi-las quase tão claramente quanto ouvia os papagaios que nesse instante estavam empolei­rados nas árvores lá fora. Estava simultaneamente aqui e lá: aqui neste escuro e sufocante quarto, próximo ao equador, e também lá, ao ar livre, naquele fresco vale à beira do Mendips, com as gralhas piando na torre da catedral e o som dos sinos morrendo no silêncio verde.

  • Existem nuvens brancas — dizia a voz — e o céu azul entre elas é tão pálido, tão delicado, tão estranhamente macio...

  • Macio — repetiu ele.

    O macio céu azul daquele fim de semana passado em companhia de Molly, antes do fracasso de seu casamento. Na grama havia margaridas, dentes-de-leão, e, através da água, se elevava a imensa igreja, desafiando, com sua austera geometria, a impe­tuosidade daquelas nuvens tênues de abril. Desafiando e ao mes­mo tempo completando aquela impetuosidade, viviam em termos de perfeita harmonia. Era o que existia naquela época entre ele e Molly. Era o que devia ter continuado a existir.

  • E os cisnes — ele ouviu agora a voz cantando sonhado­ramente. — Os cisnes...

    Sim, os cisnes. Cisnes brancos, movendo-se através de um espe­lho de jade e azeviche — um espelho que respirava e tremia, no qual as suas imagens prateadas estavam sempre separando-se e tornando a se unir, desintegrando-se para voltarem a formar um todo.

  • Tendo a beleza inacreditavelmente romântica das fábu­las heráldicas, aquelas aves têm existência real e habitam um lugar que também é verdadeiro. Neste momento sinto-os tão pró­ximos que quase posso tocá-los e, no entanto, milhares de mi­lhas nos separam. Estão lá longe... movendo-se com imponente lentidão na placidez das águas.

    Movendo-se majestosamente na água escura, que se elevava e se dividia ao avanço de seus peitos brancos e estufados, deixavam como um rastro de sua passagem aquelas ondas suaves e lon­gas que tanto se assemelhavam à ponta faiscante de uma flecha. Podia vê-los deslizando naquele espelho sombrio, podia ouvir as gralhas piarem na torre. Conseguia mesmo que o perfume frígi­do e inexpressivo do fosso gótico e das baixadas verdes sobrepu­jasse aquela mistura de desinfetante e de gardênias e chegasse até ele.

  • Flutuando sem esforço disse para si mesmo. Flutuando sem esforço. E essas palavras lhe deram uma profun­da satisfação.

  • Eu me sentava lá dizia ela. Eu me sentava e ficava olhando, olhando... e depois de pouco tempo também me sentia flutuar. Flutuava com os cisnes, naquela superfície que existia en­tre a obscuridade do fundo e o tranqüilo céu pálido e suave que se via lá no alto. Flutuava também naquela outra superfície, si­multaneamente próxima e distante, flutuava entre o passado e o presente... E, entre as recordações dos dias felizes, pensava na insistente e excruciante presença de uma ausência.

  • Flutuando disse Will em voz alta entre o real e o imaginário, entre aquilo que nos vem de fora e aquilo que nos vem do mais íntimo recesso do coração.

    Ela pousou a mão em sua fronte e, subitamente, as palavras se transformaram nas coisas e nos fatos pelos quais sofrera. As lembranças transformaram-se em fatos. Estava realmente flutuando.

  • Flutuando insistia suavemente a voz. Flutuando na água como se fosse um pássaro branco. Flutuando num grande rio de vida, num grande rio tranqüilo e silencioso, correndo tão devagar que chega a dar impressão de estar dormindo. Um rio adormecido, mas que mesmo assim não pára de correr. A vida fluindo silenciosa e irresistivelmente para se tornar cada vez mais plena e criar aquela espécie de paz cada vez mais profunda, mais rica e mais completa, porque conhece toda a sua infelicidade e a sua dor. E porque as integra completamente à sua própria subs­tância. E você está sendo levado pelas águas desse rio silencioso que, mesmo dormindo, não pára de correr. No sono desse rio reside toda a sua força. Eu também estou flutuando nele.

    Susila falava ao estranho, mas de um certo modo se dirigia a si mesma. Flutuando sem esforço. Sem ter que fazer nada. Bastava que se deixasse levar, pedindo a esse irresistível e sonolento rio da vida que a conduzisse para onde fosse. Sabendo durante toda a viagem que ele iria exatamente ao local onde queria e tinha de ir. Consciente de que iria ao encontro de uma vida plena e de uma paz mais completa, pois, acompanhando o destino irresistí­vel desse rio que dorme, atingiria a plenitude da reconciliação.

    Sem que tivesse consciência do que fazia, Will Farnaby emitiu um longo suspiro. Como o mundo se tornara silencioso!

    Os papagaios continuavam ocupados lá fora e aquela voz ainda cantarolava a seu lado, mas um silêncio profundo e cristalino dominava todos estes sons. Nada mais que o silêncio e o vazio através dos quais o rio adormecido seguia irremediavelmente seu curso.

    Susila baixou os olhos para a cabeça pousada no travessei­ro. De repente, Will lhe pareceu muito jovem e, em sua perfeita serenidade, tinha traços infantis. As rugas sobre a testa haviam desaparecido e os lábios que estiveram tão cerrados, quando sob a ação da dor, haviam se entreaberto. A respiração era suave, vagarosa, quase imperceptível.

    Recordou-se então das palavras que lhe ocorreram naquela noite de luar ao ver o rosto de Dugald transfigurado por aquela expressão de inocência: "E ela deu sono ao seu amado".

  • Durma — disse em voz alta. — Durma.

    O silêncio pareceu crescer ainda mais e o vazio tornou-se maior.

  • Dormindo no rio adormecido — dizia a voz. — E, aci­ma do rio, na palidez do céu, deslizam enormes nuvens brancas. Enquanto as observa, começa a flutuar também. Você vai encontrá-las lá em cima. Sim, você começa a flutuar e vai encontrá-las, e o rio é agora um rio nos ares, um rio invisível que o carrega, que o eleva alto, bem alto.

    Para cima... Para cima, através do vazio silencioso. A ima­gem era coisa concreta. As palavras transformaram-se em atos.

  • Saia do calor dessa planície e deixe-se conduzir à frescu­ra das montanhas — continuou a voz.

    Sim... Lá estava a brancura ofuscante da Jungfrau contrastando com o azul do céu. Lá estava o monte Rosa...

  • Como é leve o ar que respiramos! Leve, puro e cheio de vida!

    Will respirou fundo, e um novo surto de vida percorreu seu corpo.

  • Dos campos nevados vem chegando uma brisa deliciosamente fria. Sinta-a.

    E, dando ênfase a seus pensamentos, a voz continuou a fa­lar, como se estivesse realmente experimentando todas aquelas sensações:

  • Está frio. Você tem sono. Na atmosfera fria a vida se renova. Durante o sono mergulhamos na reconciliação total e atin­gimos a verdadeira paz.

    Meia hora mais tarde, Susila voltou para a sala.

  • Que tal? — perguntou-lhe o sogro. — Foi bem-sucedida?

    Ela assentiu.

  • Falei sobre um lugar que conhecera quando estive na Inglaterra e ele adormeceu muito mais rapidamente do que eu es­perava. Depois que estava em pleno sono, fiz-lhe sugestões sobre a temperatura...

  • Falou sobre o joelho?

  • Naturalmente.

  • Sugestão direta?

  • Não, resolvi agir da maneira indireta. Dá sempre melho­res resultados. Primeiramente fiz com que tivesse consciência da forma do próprio corpo. Depois eu o fiz imaginar-se bastante maior do que realmente é. Feito isto, reduzi consideravelmente as dimensões de seu joelho, que passou à categoria de uma coisa desprezível, e que se tivesse revoltado contra um gigante... Não creio que haja menor dúvida quanto ao vencedor desse embate. — Olhando para o relógio da sala, exclamou: — Meu Deus do céu! Vou correndo, senão chegarei atrasada à escola!

 

O sol estava nascendo quando o dr. Robert entrou no quar­to do hospital onde estava sua esposa.

As silhuetas das montanhas se recortavam sobre um fundo alaranjado e uma pequena foice incandescente começara a surgir entre dois picos. Essa pequena foice tornou-se um meio-círculo e os primeiros feixes de luz dourada, bem como as primeiras som­bras alongadas, cruzaram o jardim que se via da janela. Olhando- se para cima, via-se o sol na plenitude de sua glória.

O dr. Robert sentou-se ao lado da cama, segurou a mão da esposa e beijou-a. Ela sorriu e virou-se novamente para a janela.

  • Como a terra gira depressa murmurou. Fez uma pau­sa e disse: Uma dessas manhãs verei o meu último nascer do sol.

    Através do confuso coro dos pássaros e dos insetos, ouvia- se o canto de um mainá:

  • Karuna, Karuna ...

  • Karuna repetiu Lakshmi. Compaixão...

  • Karuna, Karuna insistia a voz de oboé do Buda do jardim.

  • Não necessitarei dela por muito mais tempo continuou.

  • Meu pobre Robert! Que será de você?

  • De um modo ou de outro acharei as forças necessárias

  • disse ele.

  • Mas que tipo de força irá desenvolver? A da couraça, a do isolamento, a da absorção pelo trabalho e pelos próprios pensamentos, a ponto de ignorar tudo que se passa à sua volta? Lembra-se de como eu costumava puxar seu cabelo, fazendo-o prestar atenção? Quem fará isso quando eu for embora?

    Uma enfermeira trouxe um copo de água açucarada. O dr. Robert passou a mão por baixo dos ombros da esposa, erguendo-a até sentá-la.

    A enfermeira levou o copo aos lábios de Lakshmi, que to­mou um pequeno gole, engolindo com dificuldade. Tomou ou­tro gole. Mais outro.

    Afastando o copo, olhou para o marido e, em sua face devastada, surgiu um sorriso travesso.

  • Sou a representação da Trindade, sorvendo o suco agua­do da laranja. Após três goles, o frustrado Aryan... — citou com voz rouca, interrompendo-se. — Que coisa mais ridícula para es­tar recordando! Porém eu sempre fui bastante ridícula, você não acha?

    O dr. Robert fez o possível para sorrir-lhe.

  • Bastante — concordou.

  • Você costumava dizer que eu me parecia com uma pulga. Um momento aqui e, de repente... a muitas milhas de distância. Não admira que você não tivesse conseguido me educar!

  • Mas você conseguiu me educar! — assegurou-lhe. — Se não fosse você a puxar meus cabelos e me fazer olhar para o mundo, ajudando-me a compreendê-lo, como seria hoje? Ape­sar de toda a minha educação, não seria mais que um pedante de viseiras. Felizmente tive o bom senso de pedi-la em casamen­to e, apesar de ter sido uma tola ao dar-me o "sim", teve a in­teligência e a sabedoria de me transformar para melhor. Depois de trinta e sete anos de educação adulta, sou um ser quase humano.

  • Mas eu continuo sendo uma pulga. — Ela balançou a cabeça. — No entanto eu tentei muito. Tentei muito. Não sei, po­rém se você percebeu, Robert. Estava sempre na ponta dos pés, sempre me esforçando para me nivelar ao seu trabalho, aos seus pensamentos e à sua cultura. Na ponta dos pés, tentando alcançá-lo para estar à seu lado. Meu Deus, como era cansativo! Que sé­rie infindável de esforços! Mas fracassei em todos eles porque não era mais que uma pulga. Uma pulga sempre a pular entre as pes­soas, as flores, os cães e os gatos. Seu tipo de mundo intelectual era um lugar que eu nunca pude atingir e nem ao menos consegui encontrar o caminho que a ele conduzia. Quando isto aconteceu (ela ergueu a mão em direção ao seio ausente), não tive de conti­nuar tentando. Tinha uma desculpa permanente para não ir mais à escola. Estava livre dos deveres.

    Houve um longo silêncio.

  • Quer tomar outro gole? — perguntou a enfermeira.

  • Sim, você deve beber um pouco mais — concordou o dr. Robert.

  • E destruir a Trindade?

    Lakshmi deu-lhe outro dos seus sorrisos.

    Através da máscara da idade e da inexorável moléstia, o dr. Robert viu a jovem sorridente por quem se apaixonara. Parecia que tudo acontecera na véspera, e, no entanto, já havia decorri­do mais da metade de uma existência...

    Uma hora depois, o médico estava de volta ao bangalô.

  • Você ficará completamente só esta manhã — anunciou a Will, após trocar-lhe o curativo do joelho. — Tenho que ir a Shivapuram para assistir a uma reunião do Conselho Privado. Uma das nossa estudantes de enfermagem virá por volta do meio- dia aplicar-lhe a injeção. Ela também lhe trará o que comer. À tarde, assim que terminar seu trabalho na escola, Susila virá aqui. Agora, devo ir. Levantando-se, pousou por instantes a mão no braço de Will e disse: — Até à noite. — A meio caminho da por­ta, parou e virou-se. — Quase me esqueci de lhe dar isto — disse, tirando um livrinho verde de um dos bolsos de seu casaco surra­do. — É o livro do velho rajá: Notas sobre o que é quê e sobre o que seria razoável fazer a respeito disso.

  • Que título admirável! — disse Will ao receber o livro.

  • Você gostará do conteúdo — afirmou-lhe o dr. Robert. — É pequeno, mas, se quiser ficar informado sobre Pala, não há melhor introdução.

  • E quem é o velho rajá? — perguntou Will.

  • Ele faleceu em 38, após um reinado três anos mais longo que o da rainha Vitória. Seu filho mais velho faleceu antes dele e o neto, que era um asno, foi seu sucessor. Mas, para compen­sação de tanta burrice, teve vida curta. O atual rajá é o bisneto.

  • O senhor permite que faça uma pergunta estritamente pessoal? Como foi que um MacPhail entrou em cena?

  • O primeiro MacPhail surgiu em Pala a chamado do avô do velho rajá, cognominado "rajá da reforma". Ele e meu bisa­vô inventaram a moderna Pala. O velho rajá consolidou e desenvolveu o trabalho iniciado por eles, e, hoje, estamos fazendo o máximo para seguir-lhes as pegadas.

  • E aqui é contada a história das reformas? — perguntou Will, levando o livro.

    O médico balançou a cabeça.

    — Ele se limita a estabelecer os princípios básicos. Inicialmente, leia sobre eles. À noite, quando voltar de Shivapuram, lhe darei um resumo da história. Se começar por tomar conheci­mento do que já foi executado compreenderá melhor o que esta­mos fazendo. Entenderá também o que tem de ser continuamen­te feito em toda parte, por qualquer um que tenha idéias defini das acerca do que é quê. Leia e não se esqueça de tomar seu suco de frutas às onze horas.

    Will o observou enquanto se retirava e, abrindo o livrinho verde, começou a ler:

     

Ninguém precisa ir a parte alguma. Como seria bom que to­dos soubessem disso!

Se apenas soubesse quem realmente sou, deixaria de proce­der como penso que sou. E se parasse de me comportar como penso ser, saberia quem sou.

Se ao menos o maniqueísta que penso ser me permitisse ser o que de fato sou, o "sim" e o "não" viveriam reconciliados na abençoada aceitação da experiência de Ser Único.

Em religião, todas as palavras são obscenas. Qualquer pes­soa que se mostrasse eloqüente acerca de Buda, Deus ou Cristo deveria ter a boca lavada com sabão carbólico.

A aspiração de todas as religiões de eternizar somente o "sim" em cada par de opostos é irrealizável porque contraria a natureza das coisas. O maniqueísta isolado, que penso ser, se auto-condena a uma repetição infindável de frustrações e está em conflito permanente com outros maniqueístas igualmente frus­trados em suas aspirações.

Conflitos e frustrações — tema de toda história e de quase toda biografia.

"Eu lhes mostro o sofrimento", disse Buda, realisticamen­te. Porém ele também mostrou o fim do sofrimento — o autoconhecimento, da aceitação total e a abençoada experiência de Ser Único.

O perfeito autoconhecimento gera o Bom Ser, e os Bons Se­res realizam uma melhor espécie de Bem. Mas as coisas bem-feitas não produzem automaticamente o Bom Ser. Podemos ser virtuo­sos sem que saibamos quem realmente somos. Os indivíduos ape­nas bons não são necessariamente Bons Seres; são simples pila­res da sociedade.

A maioria desses pilares representa o papel de Sansão. Sus­tentam a sociedade, porém cedo ou tarde a derrubam. Ainda não existiu uma só sociedade que, sendo criada por Bons Seres, fosse constantemente atualizada.

Isso não quer dizer que tal sociedade jamais existirá e que nós sejamos idiotas por estarmos tentando pô-la em prática aqui em Pala.

 

O iogue e o estóico — dois egos que pretendem atingir seus fins fazendo-se passar por alguém que na realidade não são. Mas não é fingindo ser outro alguém, mesmo um alguém sábio e su­perlativamente bom, que deixamos de ser meros maniqueistas cegos e isolados para nos transformarmos em Bons Seres. O ver­dadeiro conhecimento de quem realmente somos é que nos faz Bons; para sabermos quem realmente somos devemos conhecer nos mínimos detalhes aquilo que pensamos ser. 'Desse modo, des­cobrimos o que essa falsa idéia nos obriga a sentir e a fazer. Um simples momento de conhecimento claro e completo do que pen­samos ser, mas que na realidade não somos, põe um fim momen­tâneo ao enigma maniqueísta.

Se renovarmos esses momentos de autoconhecimento do que não somos, fazendo com que se tornem contínuos, poderemos vir a descobrir subitamente aquilo que realmente somos.

A concentração em pensamentos abstratos e exercícios espirituais eqüivale a exclusões sistemáticas no domínio do pen­samento.

O Ascetismo e o Hedonismo são exclusões sistemáticas no domínio das sensações, dos sentimentos e das ações.

Mas o Bom Ser conhece sua verdadeira posição em relação a todas as experiências e, desse modo, está em permanente estado de alerta. Está alerta ao que se possa crer, não crer, às coisas agradáveis e às desagradáveis, e essa vigilância não deve cessar, mesmo quando está imerso nos trabalhos e nos sofrimentos.

Essa é a única ioga verdadeira; o único exercício espiritual digno de ser praticado. Quanto mais um homem conhece os pro­pósitos dos indivíduos, mais sabe a respeito de Deus. Adaptando a linguagem de Spinoza, podemos dizer: Quanto mais um homem sabe o seu modo de sentir em relação a cada tipo de experiência, maiores serão as chances de que um dia venha a descobrir quem realmente é, ou melhor, Quem (com Q maiúsculo) Realmente (com R maiúsculo) É (com E maiúsculo).

São João estava certo. Num universo abençoadamente mu­do, a Palavra se limitava a estar com Deus. Era o próprio Deus. Alguma coisa para ser acreditada. Um símbolo projetado, um no­me para ser adorado. Deus = Deus.

A fé é uma coisa muito diferente da crença.

A crença resulta do fato de se levar a sério (sem a menor análise) as palavras proferidas... Palavras de Paulo, de Maomé, de Marx e de Hitler: palavras que o povo levou a sério...

Que resultou disso?

O resultado foi a ambivalência sem sentido da história — o sadismo apresentado como dever, a devoção contrabalançada pela paranóia, as despersonalizadas irmãs de caridade cuidando das vítimas dos inquisidores e dos cruzados da Igreja à qual per­tencem.

A fé, ao contrário da crença, nunca pode ser levada muito a sé­rio. Ela é a confiança empiricamente justificada na nossa capacida­de de saber quem realmente somos. É ela que nos permite esquecer o crente maniqueísta que existe no âmago do Bom Ser.

 

  • Quem está aí? — perguntou Will, levantando os olhos do livro.

  • Sou eu — respondeu uma voz fazendo reviver as lembranças desagradáveis do coronel Dipa e daquele verdadeiro pesade­lo que fora o passeio no Mercedes branco.

    Vestido apenas com calção branco, calçando sandálias da mesma cor e com um relógio de platina, Murugan caminhava em direção à sua cama.

  • Veio visitar-me? Quanta amabilidade!

    Outro visitante lhe perguntaria como estava se sentindo, porém Murugan estava demasiadamente preocupado com seus pro­blemas e não conseguia simular o menor interesse por quem quer que fosse.

  • Estive aqui há três quartos de hora — disse sem tom de queixa —, mas o velho ainda estava aqui e por isso voltei para casa. Encontrei minha mãe tomando o café da manhã em com­panhia de um homem que está hospedado conosco e tive de ficar com eles.

  • Por que não entrou enquanto o dr. Robert estava aqui? — perguntou Will. — Você está proibido de falar comigo?

    O jovem balançou a cabeça, impacientemente.

  • Claro que não. Apenas não queria que soubesse por que vim vê-lo.

  • Por que não? — sorriu Will. — Visitar os doentes não é um ato da mais elevada caridade?

    A ironia foi desperdiçada, pois Murugan continuou com o pensamento inteiramente concentrado em seus próprios problemas.

  • Obrigado por não ter dito que me conhecia — disse abruptamente e em tom quase zangado.

    Parecia ressentido pelo fato de ter sido forçado a agradecer o gesto de Will.

  • Percebi que você não desejava que falasse e por isso fi­quei calado.

  • Gostaria de agradecer-lhe — resmungou Murugan entre den­tes e num tom que mais parecia querer dizer: "Seu porco sujo!"

  • Nada tem que agradecer — respondeu Will com falsa cortesia. Que criatura fascinante!, pensava Will, enquanto olhava para aquele tronco liso e dourado e para aquele rosto desconfia­do, cujos traços eram tão regulares como os de uma estátua (não de uma estátua olímpica ou clássica e sim de uma face helênica, muito móvel e demasiadamente humana). Mas qual seria o con­teúdo desse vaso de tão incomparável beleza? Era uma pena, re­fletia, que não tivesse feito essa pergunta com mais seriedade an­tes de se deixar envolver com sua indescritível Babs. Pelo simples fato de Babs ser mulher e sendo ele um heterossexual, o tipo de pergunta que neste momento estava fazendo era totalmente inad­missível. No entanto, poderia ser feita por homens que gostassem de rapazes semelhantes a esse semideus de sangue ruim que estava sentado aos pés de sua cama. — O dr. Robert não sabia de sua ida a Rendang? — perguntou.

  • É claro que sabia. Todo mundo sabia que fui encontrar minha mãe que estava hospedada com uns parentes, a fim de trazê-la de volta a Pala. Tudo foi absolutamente oficial.

  • Então por que você não queria que eu dissesse que o ti­nha encontrado lá?

    Murugan hesitou por alguns segundos e depois olhou-o desafiadoramente.

  • Não queria que soubessem que estive com o coronel Dipa.

  • Por causa disso? Não vejo motivo, pois acho-o um ho­mem notável — disse em voz alta, lançando a isca para obter confidências.

    Para sua surpresa, o peixe mordeu inocentemente a isca. O rosto mal-humorado do jovem se iluminou de entusiasmo. Ali estava Antinous com toda a beleza da sua ambígua adolescência.

  • Acho que ele é formidável — disse, dirigindo o mais amável dos sorrisos a Will e dando a impressão de que só naquele momento tomara conhecimento da sua existência. A magnificên­cia do coronel lhe permitira esquecer o ressentimento. Naquele momento amava a todos, mesmo àquele homem com quem ti­nha uma grande dívida de gratidão. — Veja o que ele está fazen­do por Rendang!

  • Realmente, está fazendo muito por Rendang — concor­dou Will sem muito entusiasmo.

    Uma nuvem toldou o rosto radiante de Murugan.

  • Aqui não pensam assim — disse carrancudo. — Acham-no horrível.

  • Quem pensa assim?

  • Praticamente todo o mundo.

  • Não queriam que você o visse?

    Com a expressão travessa de um garoto que faz das suas enquanto a professora está de costas, Murugan sorriu triunfante.

  • Eles pensaram que estive com minha mãe durante todo o tempo.

    Will entendeu imediatamente a insinuação.

  • Sua mãe tinha conhecimento de que você estava com o coronel?

  • Claro.

  • E não fez nenhuma objeção?

  • Pelo contrário.

    Apesar disso, Will tinha quase certeza de que não se enga­nara quando pensara em Hadrian e Antinous. A mulher estaria cega? Ou apenas não desejava ver o que estava acontecendo?

  • Mas se ela não se importa, por que o dr. Robert e os ou­tros fazem objeções? — perguntou. Murugan olhou-o desconfiado. Notando que avançara na zona perigosa, Will apressou-se em mudar de assunto. — Será que pensam que o coronel possa levá-lo a crer numa ditadura militar? — perguntou, sorrindo.

    A mudança de assunto surtiu o efeito desejado, pois o rosto do jovem abriu-se num sorriso.

  • Não é bem por isso — respondeu. — Mas é coisa pareci­da. É tudo tão estúpido — acrescentou com um encolher de ombros. — Apenas um protocolo idiota.

  • Protocolo? — Will estava verdadeiramente confuso.

  • Não lhe disseram nada a meu respeito?

  • Apenas aquilo que o dr. Robert disse ontem.

  • Que eu sou um estudante? — Lançando a cabeça para trás, Murugan riu alto.

  • Que há de tão engraçado em ser um estudante?

  • Nada. Absolutamente nada. — O jovem desviou os olhos. Houve um silêncio. Finalmente Murugan disse:

  • A razão pela qual não devo estar com o coronel Dipa é que ele é o chefe de uma nação e eu de outra. Quando nos ve­mos, o encontro é um assunto de notícia na política internacional.

  • Que quer dizer com isso?

  • Acontece que eu sou o rajá de Pala.

  • O rajá de Pala?

  • Desde 1954, quando meu pai faleceu.

  • A rani deve ser sua mãe, não é verdade?

  • Sim, ela é minha mãe.

    "Vá diretamente para o palácio." Mas aconteceu que o pa­lácio veio diretamente a ele. Aí estava ele! Não podia haver dúvi­da de que a Providência estava trabalhando intensamente em favor de Joe Aldehyde.

  • Você é o filho mais velho? — perguntou Will.

  • O único filho — replicou Murugan. E então, acentuan­do sua qualidade de filho único ainda mais enfaticamente, ajuntou: — O único descendente.

  • Deus meu! — disse Will. — Não há dúvida! Eu o deve­ria tratar por Vossa Majestade ou pelo menos por sir.

    As palavras foram ditas com um sorriso, porém com a mais perfeita seriedade e com uma súbita adoção de dignidade real que Murugan respondeu:

  • Terá que me chamar assim a partir do fim da próxima semana, que é quando completarei dezoito anos. Somente então o rajá tem poder para governar. Até essa data continuo sendo Murugan Mailendra. Um estudante igual aos outros, aprenden­do um pouquinho de cada coisa, inclusive sobre o crescimento das plantas — acrescentou desdenhosamente —, a fim de que, quando chegar a época, saiba o que estou fazendo.

  • Você já tem algum plano para quando começar a gover­nar? — Entre esse belo Antinous e a solenidade das funções que viria a exercer, havia um contraste que Will achava intensamente divertido. — Como pretende agir? — perguntou no mesmo tom de brincadeira. — "Fora com as cabeças"? L'État c'est moi?

    Foi com ar sério e carregado de dignidade real que Murugan respondeu:

  • Não seja estúpido!

    Divertido, Will prosseguiu em tom de quem se desculpa:

  • Eu só queria saber quão despótico você irá ser.

  • Pala é uma monarquia constitucional — respondeu o jovem, com ar sério.

  • Em outras palavras, você não passará de uma figura simbólica. Pode reinar como a rainha Elizabeth da Inglaterra, po­rém não governará.

    Esquecendo sua dignidade real, Murugan estava quase aos gritos:

  • Não! Não! Não como a rainha da Inglaterra. O rajá de Pala não se limita a reinar; ele também governa. — Agitado demais para permanecer sentado, Murugan levantou-se de um sal­to e começou a andar pelo quarto. — Governa constitucional­mente; porém, por Deus, ele governa, governa!

    Murugan encaminhou-se para a janela e olhou para fora.

    Após um curto silêncio, voltou a defrontar Will com a fisionomia inteiramente transfigurada. E nessa nova fisionomia esta­va estampada, como se fosse um emblema estranhamente traba­lhado e multicolorido, a conhecida figura da baixeza psicológica.

  • Eu lhes mostrarei quem manda aqui — disse ele num tom que fora sem dúvida alguma plagiado do herói de algum filme americano sobre gangsters.— Essa gente pensa que pode mano­brar comigo como fizeram com meu pai — prosseguiu como se estivesse recitando o argumento do filme —, mas está cometen­do um erro muito grave. — O jovem proferiu esta última frase com um riso sinistro e abafado. — Um erro muito grave — repe­tiu, meneando a cabeça odiosamente bela.

    Essas palavras foram ditas de dentes cerrados, quase sem mover os lábios. O queixo fora arremetido para a frente e lhe dava a aparência de um desses criminosos das histórias em quadrinhos. Os olhos brilhavam friamente através das pálpebras semicerradas. Antinous havia se transformado na caricatura de todos os valentes lançados desde os tempos imemoriais pelos filmes da sé­rie B.

  • Quem tem governado o país durante a sua menoridade? — perguntou Will.

  • Três grupos de velhos retrógrados — respondeu com desdém. —- O Gabinete, a Câmara dos Deputados e, finalmente, o Conselho Privado, que representa o rajá; ou seja, que me re­presenta.

  • Pobres velhos fósseis! Muito em breve levarão um gran­de susto — disse Will. Assumindo alegremente um ar de cumplicidade, ele riu alto. — Apenas espero estar por perto quando is­so vier a acontecer.

    Murugan associou-se ao riso, não com o aspecto do valen­tão sinistramente alegre, mas irradiando aquela jovialidade triunfante do menino que fez uma travessura e que tivera a oportuni­dade de ver havia alguns momentos. E, vendo essas súbitas mu­danças de humor e de expressão fisionômica, Will pôde avaliar quão difícil devia ser para ele o desempenho do papel de "ho­mem mau".

  • Será o maior choque da vida deles — disse Murugan.

  • Você já tem algum plano específico?

  • Claro que sim — respondeu. Em seu rosto móvel, o me­nino triunfante cedeu lugar ao estadista sério e afavelmente condescendente, que falava como se estivesse dando uma entrevista à imprensa. — Prioridade absoluta: modernização deste lugar. Veja o que tem sido feito em Rendang, graças aos lucros prove­nientes das concessões para a exploração do petróleo.

  • E Pala não aufere lucro das concessões petrolíferas? — perguntou Will com aquele ar de total ignorância desenvolvido em vários anos de experiência e que considerava o melhor meio de extrair informações dos simples e dos presunçosos.

  • Nem um tostão. Na parte sul da ilha o petróleo está aflorando à terra, mas os velhos fósseis só permitem a exploração de alguns poços pequenos e a produção é toda destinada ao uso caseiro. — O estadista estava ficando zangado. Na voz e em sua fisionomia viam-se os primeiros indícios do homem mau. — Es­ses velhos estúpidos não deram atenção às várias propostas fei­tas por companhias como a Petróleo do Sudeste da Ásia, a Shell, a Royal Dutch e a Standard da Califórnia.

  • Você não pode persuadi-los?

  • Eu os forçarei a ouvir! — disse o valentão.

  • E assim que eu gosto! — Depois continuou num tom indiferente: — Qual das ofertas você pensa em aceitar? — per­guntou.

  • O coronel Dipa está trabalhando com a Standard da Califórnia e acha que será melhor fazermos o mesmo.

  • Eu não faria isso antes de obter pelo menos algumas ofertas.

  • Também penso assim e minha mãe tem a mesma opinião.

  • É a atitude mais prudente.

  • Minha mãe tem preferência pela Petróleo do Sudeste da Ásia. Ela conhece lorde Aldehyde, que é o presidente do conse­lho dessa companhia.

  • Conhece lorde Aldehyde? Isso é simplesmente formidável! — O tom de deslumbramento que Will demonstrava era inteiramen­te convincente. — Joe Aldehyde é meu amigo. Eu escrevo para seus jornais e sirvo mesmo como seu embaixador particular. Confiden­cialmente — acrescentou —, foi por esse motivo que fizemos aquela visita às minas de cobre. O cobre é um dos ramos de negócios secun­dários de Joe. O petróleo é que é sua paixão.

    Murugan tentou parecer sagaz.

  • Quanto acha que ele estaria disposto a nos oferecer?

    Will entendeu a insinuação e respondeu no melhor estilo de

    magnata cinematográfico:

  • Aquilo que a Standard oferecer e um pouco mais.

  • Muito bem — disse Murugan, concordando cautelosamente e como se estivesse seguindo o argumento do mesmo fil­me. Houve um longo silêncio e, quando ele falou novamente, foi no estilo do estadista concedendo entrevista à imprensa. — Os direitos do petróleo serão usados do seguinte modo: vinte e cin­co por cento do total do dinheiro recebido irão para a Recons­trução do Mundo.

  • Pode me dizer em detalhes como pretende reconstruir o mundo? — perguntou Will com respeito.

  • Através da Cruzada do Espírito. Você já ouviu falar nela?

  • Claro! Quem não a conhece?

  • É um grande movimento que já está espalhado por todo o mundo — disse o estadista, com ar grave. — É como o Primiti­vo Cristianismo. Foi fundado por minha mãe. — Will se mos­trou surpreso e admirado. — Sim, foi fundado por ela — repetiu Murugan, acrescentando comovidamente: — Creio ser a única esperança para o ser humano.

  • Realmente — disse Will. — Realmente.

  • Bem, essa é a maneira pela qual vinte e cinco por cento dos direitos serão utilizados. O restante será empregado num intenso programa de industrialização. — O tom de voz mudou no­vamente: — Esses velhos idiotas daqui apenas querem industria­lizar certos pontos e deixar o resto como estava há dois mil anos.

  • Sei que você gostaria de resolver esse assunto, não é verdade? Industrialização pelo idealismo, não é?

  • Não. Industrialização com a finalidade de beneficiar o país. Industrialização para tornar Pala forte e respeitada. Veja o que se passa em Rendang. Daqui a cinco anos estarão fabricando os rifles, os morteiros e a munição de que necessitam. Le­vará ainda bastante tempo para que possam fabricar tanques; po­rém, nesse intervalo, poderão adquiri-los da Skoda com os lu­cros obtidos do petróleo.

  • Dentro de quanto tempo estarão trabalhando com a bom­ba H? — perguntou Will ironicamente.

  • Nem mesmo tentarão — respondeu Murugan. — Afinal de contas, você há de convir que as bombas H não são as únicas armas decisivas. — Ele pronunciou a frase com deleite. Era evi­dente que achava um sabor todo especial nas "armas decisivas". — O coronel Dipa diz que as armas químicas e biológicas são as bombas H dos pobres. Uma das primeiras coisas que construirei será uma grande fábrica de inseticidas.

    Farnaby riu, piscou um olho e disse:

  • Se você puder fazer inseticidas, poderá fazer gases que afetam os nervos. — Lembrou-se da fábrica ainda inacabada que vira nos subúrbios de Rendang-Lobo.

  • Que é isso? — perguntara ao coronel Dipa, enquanto passavam por ela num relâmpago, no Mercedes branco.

  • Inseticidas — respondera o coronel, mostrando num am­plo sorriso seus dentes alvos e brilhantes. — Dentro em breve estaremos exportando essas substâncias para todo o sudoeste da Ásia.

    Naquela época não lhe ocorrera que na resposta do coronel pudesse haver segundas intenções. Mas agora... Will encolheu mentalmente os ombros. Coronéis sempre serão coronéis, e ra­pazes, mesmo os do tipo de Murugan, serão sempre apaixonados pelas armas. Sempre haverá bastante serviço para os corres­pondentes especiais.

  • Com isso você quer dizer que pretende fortalecer Pala, não é? — perguntou em voz alta.

  • Não poderei fortalecê-la porque Pala não tem exército. Terei de criá-lo.

  • Pala não tem exército?

  • Absolutamente nenhum. Todos aqui são pacifistas. — O "p" soou como uma explosão de desprezo e o "s" foi dito num sibilo desdenhoso. — Terei de começar do nada.

  • Industrialização e militarismo se desenvolverão juntos, não é verdade?

  • Exatamente.

    Will sorriu.

  • Os assírios fizeram o mesmo! Você ficará na História co­mo um verdadeiro revolucionário.

  • É isso o que espero — disse Murugan. — A continuação do meu programa é o Prosseguimento da Revolução.

  • Excelente!

  • Apenas prosseguirei com a revolução iniciada mais de cem anos atrás, pelo bisavô do dr. Robert, quando chegou a Pala e ajudou o meu tetravô a executar as primeiras reformas. Algumas das coisas que fizeram realmente foram maravilhosas. Porém, não todas — disse ele, balançando a encaracolada cabeça, num gesto de judiciosa censura. Will teve a impressão de estar vendo um colegial interpretando o Polonius de Hamlet,numa representa­ção de fim de ano. — Pelo menos fizeram alguma coisa — continuou. Enquantò hoje em dia estamos sendo governados por um grupo de conservadores retrógrados que não levantarão um dedo para introduzir qualquer dos aperfeiçoamentos da técnica moderna. Além disso, são radicais e se recusam a alterar qualquer das más idéias revolucionárias antigas, muitas das quais já deviam ter sido banidas. Têm-se negado a reformar conceitos que na sua maioria me repugnam.

  • Será que têm alguma coisa que ver com assuntos refe­rentes a sexo? Murugan concordou e virou o rosto. E foi com surpresa que Will observou que corara. — Dê-me um exemplo pediu.

    Mas Murugan não conseguiu dar qualquer explicação.

  • Pergunte ao dr. Robert ou a Vijaya disse. Eles acham que essa espécie de coisa é simplesmente formidável. De­vo dizer que essa é a opinião de todos daqui e que esta é uma das razões pelas quais ninguém quer que as coisas mudem. Gostariam que elas se perpetuassem neste mesmo modo antiquado e repugnante para todo o sempre.

  • Para todo o sempre uma rica voz de contralto repetiu em tom de brincadeira.

  • Mamãe! exclamou Murugan, pondo-se de pé.

    Will virou-se e viu, à soleira da porta, uma mulher grandee corada, envolta em nuvens de musselina branca. Enquanto a olhava, pensou que as cores malva, carmesim ou azul-elétrico combinariam muito melhor com seu tipo físico.

    Parada com um sorriso enigmático nos lábios, ergueu um braço gordo e moreno e apoiou a mão recoberta de jóias no um­bral da porta. Parecia uma prima-dona fazendo uma pausa an­tes de sua primeira aparição em cena, para receber os aplausos dos adoradores. Um pouco atrás, esperando pacientemente por uma "deixa", estava um homem alto com um terno de dacron cinza-chumbo. Após espreitá-lo através de uma nesga existente entre o vão da porta e o corpo maciço de sua mãe, Murugan cumprimentou-o, chamando-o Mr. Bahu.

    Sem sair dos bastidores, Mr. Bahu curvou-se sem dizer palavra.

    Murugan voltou-se novamente para a mãe e perguntou:

  • Você veio a pé até aqui? No seu tom havia um misto de incredulidade e de solícita admiração. Vir a pé até aqui! Não podia conceber que tivesse vindo a pé, mas se o tivesse feito teria realizado um verdadeiro ato de heroísmo! Veio andando de tão longe?

  • Sim, meu filhinho respondeu ela num tom meigo e brincalhão. O corpo esbelto do rapaz foi envolvido pelo braço que estivera levantado e sua mãe apertou-o rapidamente de en­contro ao volumoso peito, submergindo-o nas pregas flutuantes de musselina. — Tive um dos meus impulsos. Will observou que tinha um modo de fazer com que as pessoas sentissem as le­tras maiúsculas no princípio das palavras que desejava acentuar.

  • Minha Pequena Voz disse: "Vá ver esse estranho na casa do dr. Robert... Vá!" "Agora?", perguntei. "Malgré la chaleur?" Essa minha observação fez com que a Pequena Voz perdesse a paciência. "Mulher", disse, "cale a boca e obedeça!" Por isso, eis-me aqui, Mr. Farnaby.

    Com a mão estendida e envolta numa forte emanação de óleo de sândalo, ela encaminhou-se, resoluta, em sua direção.

    Will curvou-se sobre aqueles dedos grossos, recobertos de jóias, e murmurou alguma coisa que terminava em "Vossa Ma­jestade"...

  • Bahu! chamou, usando da prerrogativa real de des­prezar os títulos que normalmente precedem os sobrenomes.

    Aproveitando sua tão esperada "deixa", o coadjuvante fez sua entrada em cena e foi apresentado como "Sua Excelência Abdul Bahu, o embaixador de Rendang".

  • Abdul Pierre Bahu, car sa mère est parisienne. No en­tanto aprendeu inglês em Nova Iorque. Lembrava Savonarola, pensou Will, enquanto apertava a mão do embaixador. Um Savonarola de monóculo, vestido por um alfaiate da Savile Row.

  • Bahu disse a rani é o Cérebro da Organização do coro­nel Dipa.

  • Vossa Alteza, se me é permitido dizer, é demasiado bondosa para mim, mas não para o coronel comentou o embaixdor. Suas palavras e seus gestos eram tão palacianos que chega­vam a parecer irônicos. Davam a impressão de uma paródia de deferência e de servilismo. Os cérebros estão na cabeça, que é o lugar feito para eles prosseguiu. Não passo de mera fra­ção do sistema nervoso simpático de Rendang.

  • Et combien sympathique!disse a rani. Entre ou­tras coisas, Mr. Farnaby, Bahu é o último dos aristocratas. Você deveria ver seu país! Basta você bater palmas para que surjam instantaneamente seis criados prontos a lhe satisfazer os desejos. Se é aniversário de alguém, dá-se uma fête nocturne nos jardins. Música, bebidas e dançarinas. Duzentos dependentes ali estão a iluminar tudo com suas tochas. Você se sente como se estivesse vivendo um sonho das Mil e uma noites. É a vida de Harun al Raschid... com água encanada.

  • A descrição é muito sedutora disse Will, recordando as cidades que atravessara no Mercedes branco do coronel Dipa: os casebres de palha, o lixo, as crianças com oftalmia, os cães esqueléticos, as mulheres vergadas sob cargas enormes.

  • E que gosto apurado! Que idéias independentes e, acima de tudo ela baixou o tom de voz —, que profundo e infalível Senso do Divino.

    Mr. Bahu abaixou a cabeça. O silêncio envolveu o ambiente.

    Enquanto isso, Murugan puxara uma cadeira. Sem ao me­nos olhar para trás imbuída da convicção de que sempre deve existir alguém à disposição, a fim de impedir que uma majestade perca sua dignidade —, a rani sentou-se com todo o peso dos seus cem quilos.

  • Espero que não considere minha visita como uma intru­são disse ela para Will. Ele assegurou-lhe que não, porém ela continuou a desculpar-se. — Devia ter lhe avisado, ter lhe pedi­do permissão. Porém minha Pequena Voz disse: "Não. Você de­ve ir agora". Por quê? Não sei, mas não tenho dúvidas de que acabaremos descobrindo a razão. Ela fixou-o com seus gran­des olhos protuberantes e sorriu misteriosamente. Antes de qualquer coisa, como está se sentindo, meu caro Mr. Farnaby?

  • Como pode ver, madame, estou muito bem.

  • Está mesmo? Os olhos protuberantes perscrutaram tão cuidadosamente seu rosto que ele ficou acanhado. Vejo que você é do tipo de homem que, como um verdadeiro herói, conti­nua tranqüilizando seus amigos, mesmo estando às portas da morte...

  • A senhora muito me lisonjeia, mas acontece que estou realmente bem. Levando-se em conta as circunstâncias, tenho de admitir que foi um verdadeiro milagre.

  • Foi exatamente o que disse quando soube como você se salvou. Um verdadeiro milagre! disse a rani.

  • No dizer da sorte, a Providência estava à meu lado — respondeu Will, citando novamente Erewhom.

Mr. Bahu começou a rir; porém, notando que a rani não percebera a malícia, transformou rapidamente o riso num pigarro.

  • Quanta verdade! A Providência sempre está do nosso lado

  • dizia a rani numa vibrante voz de contralto. E, quando Will ergueu uma sobrancelha inquisidora, ela continuou: — Quero di­zer, Ela se esmerou diante dos olhos daqueles que Verdadeira­mente Compreendem. (V maiúsculo e C maiúsculo.) Isso realmen­te acontece, mesmo quando tudo parece estar conspirando con­tra nós, même dans le désastre. Certamente você entende fran­cês, não é, Mr. Farnaby?

    Will fez que sim com a cabeça.

  • Após ter vivido tantos anos na Suíça, primeiramente no colégio e mais tarde quando tivemos que ir viver nas montanhas para tratar da saúde do meu filhinho — e ela afagou o braço de Murugan —, freqüentemente me exprimo com mais facilidade em francês do que na minha própria língua, em inglês ou em polonês - explicou. — A doença do meu filho vem ilustrar o que dizia a respeito de a Providência estar sempre ao nosso lado. Quando soube que meu filhinho estava à beira da tuberculose pulmonar, esqueci tudo o que aprendera e fiquei desesperada. Cheia de me­do e de angústia, indignei-me contra Deus, por ter permitido que tal coisa acontecesse. Que Cegueira Absoluta! O meu filhinho fi­cou bom e aqueles anos passados nas Neves Eternas foram os mais felizes de nossas vidas. Você não acha, meu querido?

  • Sim. Foram os mais felizes — concordou o jovem, parecendo inteiramente sincero.

    A rani sorriu triunfante, apertou os lábios carnudos e vermelhos e, com um leve estalo, separou-os novamente, num beijo a longa distância.

  • Disso se deduz, meu caro Farnaby, que nada acontece por Acaso. Existe um Grande Plano e, dentro dele, um número incontável de pequenos planos. Um pequeno plano para cada um de nós. Todas as coisas que nos acontecem dispensam explicações.

  • É mesmo...

  • Houve um tempo — continuou a rani — em que eu ape­nas o sabia com a lógica. Agora eu o sei com meu coração. Eu realmente... — fez uma pausa por um instante para preparar a pronúncia da Maiúscula Mística — Compreendo!

    "Ela tem uma mediunidade assombrosa", pensou Will, recordando-se do comentário daquele freqüentador assíduo de ses­sões espíritas que era Joe Aldehyde.

  • Presumo que a senhora é dotada de uma mediunidade natural — disse.

  • De nascença — admitiu ela. — Mas a desenvolvi graças especialmente a um treino continuado. Um treino visando a Al­guma Coisa Mais.

  • Que quer dizer com isso?

  • Refiro-me à vida do Espírito. Enquanto se avança no Caminho, todos os sidhis, todos os dons mediúnicos e poderes mi­raculosos se desenvolvem espontaneamente.

  • É verdade?

  • Minha mãe faz as coisas mais fantásticas — disse Murugan com orgulho.

  • N'exagérons pas, chéri.

  • Mas não estou exagerando — insistiu Murugan.

  • É um fato que posso confirmar e que realmente con­firmo — acrescentou o embaixador, sorrindo contrafeito. — Como sou um perpétuo cético a respeito dessas coisas, não me agrada ver o impossível acontecer. Mas, infelizmente, tenho um "fraco" pela honestidade e, quando o impossível realmente acontece ante meus olhos, sinto-me compelido, malgré moi, a testemunhar o fato. Sua Majestade faz as coisas mais fantásticas.

  • Está bem... Se assim lhe agrada... — disse a rani irra­diando contentamento. — Porém nunca se esqueça, Bahu, nun­ca se esqueça de que os milagres não têm a menor importância. O que importa é a Outra Coisa, a Coisa que encontramos no fim do Caminho.

  • Depois da Quarta Iniciação — especificou Murugan. — Minha mãe...

  • Querido! Não se deve falar dessas coisas! — E a rani le­vou um dedo aos lábios, como que pedindo silêncio.

  • Sinto muito — disse o jovem.

    A rani fechou os olhos e Mr. Bahu, deixando cair o monó­culo, respeitosamente acompanhou o séquito e era a própria ima­gem de Savonarola orando em silêncio.

    Que se passava atrás daquela austera e quase descarnada máscara de reconhecimento?, pensava Will.

  • Poderia saber como a senhora veio a descobrir o Caminho?

    Por um ou dois segundos a rani nada respondeu. Continuou sentada com os olhos fechados, sorrindo como um Buda miste­rioso e complacente.

  • Foi a Providência quem me mostrou disse afinal.

  • Sim, sei disso. Mas deve ter havido uma ocasião, um lu­gar ou um instrumento humano.

  • Vou lhe contar.

    As pálpebras tremularam, abriram-se, e uma vez mais ele se encontrou sob o brilhante e firme olhar daqueles olhos protuberantes.

    Acontecera em Lausanne, durante o primeiro ano em que estudava na Suíça. O instrumento fora a querida e pequena ma­dame Buloz, que era a esposa do velho e querido professor Buloz. Este fora o homem a quem seu pai, o último sultão de Rendang, a confiara, após muitas conjeturas e investigações. O pro­fessor tinha sessenta e sete anos de idade, ensinava Geologia e era protestante. Pertencia a uma seita tão austera que, salvo por algumas exceções (tomava um copo de clarete ao jantar, fazia so­mente duas preces ao dia e era rigidamente monógamo), poderia ser considerado muçulmano.

    Sob tal guarda a princesa de Rendang teria estímulo intelectual, conservando-se ao mesmo tempo moral e doutrinariamente intacta. Porém o sultão de Rendang não contava com a esposa do professor. Madame Buloz tinha apenas quarenta anos, era gor­da, sentimental, esfuziante e oficialmente professava a mesma re­ligião do marido. Na verdade, ela nada tinha de protestante e era uma ardente teosofista, recém-convertida, que num quarto do só­tão da casa perto da Place de la Riponne tinha o seu oratório. Sempre que dispunha de tempo, ela secretamente se recolhia nes­se oratório para fazer exercícios respiratórios e de concentração, a fim de elevar o kundalini. Embora se submetesse a uma disci­plina exaustiva, a recompensa foi transcendentalmente grande.

    Altas horas de uma quente noite de verão, ela sentira a Presença, enquanto o querido velho professor dormia, roncan­do ritmadamente, dois andares abaixo. O mestre Koot Hoomi ali estava!

    A rani fez uma pausa de suspense.

  • Extraordinário! disse Mr. Bahu.

  • Extraordinário! repetiu Will, incrédulo.

    A rani resumiu a história.

    Imensamente feliz, madame Buloz fora incapaz de guardar seu segredo. A princípio se limitou a fazer misteriosas alusões que aos poucos se transformaram em confidências, as quais redun­daram num convite para visitar o oratório e para assistir a um curso de Iniciação. Em pouco tempo Koot Hoomi estava conce­dendo maiores graças à noviça que à professora.

  • E, desde então concluiu a rani —, o Mestre tem me ajudado a ir Para a Frente.

    "Ir para a frente? Ao encontro de quê?", Will se pergun­tou. Somente Koot Hoomi sabia a resposta. Aquela expressão de calma e arrogância, de serena egolatria que podia ver naquele ros­to grande e rubicundo, desagradava-o profundamente. Ela o fa­zia lembrar-se de Joe Aldehyde. Joe era um desses felizes mag­natas sem escrúpulos que usam seu dinheiro para comprar tudo aquilo que possa representar influência e poder. Ali estava, en­volta em samito branco e maravilhosamente mística, uma repre­sentante da "espécie" de Joe Aldehyde: uma mulher magnata que tinha o monopólio, não da soja ou do cobre, mas do Espiritua­lismo puro dos Mestres Ascendentes e que esfregava as mãos com sua façanha.

  • Eis um exemplo do que Ele fez por mim continuou a rani. Oito anos atrás, para ser precisa, em 23 de novembro de 1953, o Mestre veio a mim, durante a minha Meditação mati­nal. Veio em pessoa e veio com Glória.

  • Uma grande Cruzada deverá ser iniciada disse Ele. Um movimento mundial para salvar a Humanidade da autodes­truição; e você, minha filha, é o instrumento indicado.

  • Eu? Um movimento mundial? Mas isso é absurdo respondi. Nunca fiz sequer uma palestra em toda a minha vida ou escrevi uma só palavra que pudesse ser publicada! Nunca fui uma líder ou tive espírito organizador!

  • Todavia e Ele me deu um de seus sorrisos de beleza indescritível —, será você quem iniciará esta Cruzada: a Cruza­da Mundial do Espírito. As pessoas se rirão e você será chamada de tola, excêntrica e fanática. Os cães latem, porém a caravana prossegue. Desse pequeno e ridículo começo, a Cruzada do Espí­rito está destinada a se transformar em Força Poderosa. Uma for­ça para o Bem, uma força que finalmente salvará o mundo.

    Após dizer isso, Ele se foi. Fiquei petrificada, confusa e apavorada. Porém não havia outra saída. Eu teria de obedecer. E obe­deci. Que aconteceu? Fiz discursos e Ele me deu eloqüência. Acei­tei o fardo da liderança e, porque Ele caminhava invisível a meu lado, as pessoas me seguiram. Pedi ajuda e o dinheiro jorrou. Agora... aqui estou. — Fazendo com as mãos gordas um gesto de auto-depreciação, sorriu de modo místico. — "Sou uma po­bre coisa que não se pertence", parecia estar dizendo. "Pertenço a meu mestre Koot Hoomi." — Aqui estou — repetiu.

  • Deus seja louvado pelo fato de a senhora estar aqui! — disse Mr. Bahu devotamente.

    Depois de uma pausa conveniente, Will perguntou à rani se ela continuou fazendo os exercícios tão providencialmente apren­didos no oratório de madame Buloz.

  • Evidentemente. A Meditação me é tão indispensável quanto o Alimento.

  • A senhora deve ter tido dificuldades para continuá-los depois do casamento, não é verdade? Calculo que antes de ter regressado à Suíça deve ter sido envolvida por obrigações oficiais bastante cansativas!

  • Sem mencionar as não-oficiais — respondeu a rani num tom que deixava entrever uma série enorme de comentários des­favoráveis a respeito do caráter weltanschauung e hábitos sexuais do seu finado marido. Ela abriu a boca para entrar em detalhes sobre o assunto, mas, tendo olhado para Murugan, fechou-a no­vamente. — Querido — chamou.

    Murugan, absorvido em lustrar as unhas da mão esquerda na palma aberta da mão direita, olhou para a mãe com ar culpado.

  • Que é mamãe?

    Ignorando as unhas e a evidente falta de atenção para o que ela estivera dizendo, a rani sorriu-lhe sedutoramente.

  • Seja bonzinho — disse ela — e vá buscar o carro. Minha Pequena Voz não me diz nada a respeito de voltar a pé para o bangalô. — E virando-se para Will: — São apenas algumas cen­tenas de metros — explicou —, porém neste calor e com a minha idade...

    Suas palavras exigiam algum comentário galante. Porém, se estava demasiado quente para andar, também o estava para des­pender a grande quantidade de energia requerida para ser con­vincente numa demonstração de falsa sinceridade, pensou Will.

    Felizmente um diplomata profissional, um cortesão treina­do, estava à mão para suprir as deficiências do jornalista. Mr. Bahu deu uma estrepitosa gargalhada e depois desculpou-se por sua alegria.

  • Mas foi realmente engraçado! "Na minha idade!" repetiu, continuando a rir. Murugan ainda não tem dezoito anos e acontece que eu sei a idade que tinha a princesa de Rendang, e como era jovem!, quando se casou com o rajá de Pala.

    Enquanto isso, Murugan levantara-se obedientemente e beijava a mão de sua mãe.

  • Agora poderemos falar com a maior franqueza disse a rani quando o filho saiu do quarto. E com maior liberdade desabafou. Dizendo isso, seu rosto, o tom de sua voz e o bri­lho de seus olhos protuberantes se entregaram à mais intensa re­volta. De mortuis... Ela não diria nada acerca do seu finado ma­rido, senão que, de maneira geral, ele era um palanês típico, um verdadeiro representante do seu país. Porém, a triste verdade era que sob a suave e brilhante aparência de Pala se escondia a mais horrível podridão. Quando penso no que eles tentaram fazer ao meu filhinho, dois anos atrás, quando viajava pelo mundo a serviço da Cruzada do Espírito! E ergueu as mãos numa ex­pressão horrorizada, fazendo tinir os braceletes. Foi uma verdadeira agonia para mim estar separada dele por tanto tempo. Mas o Mestre havia me enviado em Missão e minha Pequena Voz dissera que não seria direito levar meu filhinho comigo. Ele vive­ra muito tempo fora do país. Já era mais que tempo para ele tra­var conhecimento com o lugar que deveria governar. Então, me decidi a deixá-lo. O Conselho Privado nomeou um comitê de guar­diães: duas mulheres, que tinham dois filhos crescidos, e dois ho­mens, um dos quais, digo com pesar e com mais pena do que ódio, era o dr. Robert MacPhail. Resumindo a história, assim que dei­xei o país, esses estimados guardiães a quem confiara o meu fi­lhinho, o meu Filho Único, começaram a trabalhar sistematica­mente, sistematicamente, Mr. Farnaby, para enfraquecer mi­nha influência. Tentaram destruir o edifício inteiro de valores Mo­rais e Espirituais que eu havia construído tão laboriosamente no decurso de vários anos.

    Com malícia (pois sabia do que ela estava falando), Will demonstrou surpresa.

  • Todo o edifício de valores morais e espirituais? — perguntou. — E, no entanto, ninguém poderia ter sido mais bondo­so que o dr. MacPhail e os outros. Nenhum dos Bons Samarita­nos poderia ter demonstrado a caridade mais simples e eficaz.

  • Não nego a bondade deles — disse a rani —, mas afinal de contas a bondade não é a única virtude!

  • Claro que não — concordou Will, enumerando todas as qualidades que evidentemente faltavam à rani: — Existe também a sinceridade. Sem mencionar a lealdade, a humildade, o despren­dimento...

    —Você se esquece da Pureza — disse a rani severamente. — A Pureza é fundamental! A Pureza é o sine qua non.

  • Penso que, aqui em Pala, essa não seja a opinião geral.

  • Certamente. — E ela continuou a contar como seu po­bre filhinho fora deliberadamente exposto à impureza e mesmo ativamente encorajado a se viciar com uma dessas moças preco­ces e promíscuas que em Pala existem em tão grande número. Quando descobriram que ele não era o tipo de rapaz que quises­se seduzir uma moça (pois ela o criara na crença de que a Mulher era Sagrada), eles a encorajaram a seduzi-lo.

    Teria sido bem-sucedida?, pensou Will. Ou será que as práticas sexuais iniciadas com amiguinhos da mesma idade e conti­nuadas com pederastas mais velhos e experientes (algum percur­sor suíço do coronel Dipa) já tinham imunizado aquele Antinous ao poder de sedução das moças?

  • Porém, isso não foi o pior. — A rani dera ao tom de sua voz uma inflexão teatral de horror. — Uma das mães do Comitê de Guardiães, uma das mães, veja você, aconselhou-o a tomar uma série de aulas.

  • Que espécie de aulas?

  • Naquilo que elas eufemisticamente chamam de Amor. — Ao dizer isso, franzia o nariz, como se tivesse sentido o cheiro de algum esgoto. — Aulas — e a repugnância transformou-se em indignação — ministradas por Mulheres Mais Velhas!!!

  • Céus! — exclamou o embaixador.

  • Céus! — ecoou Will, obedientemente.

    No conceito da rani, as mulheres mais velhas eram muito mais perigosas do que aquelas moças precoces e promíscuas. Uma mulher madura, sendo instrutora de amor, seria uma espécie de mãe rival, gozando a monstruosa vantagem de ser livre até os li­mites do incesto, pensava Will.

  • Elas ensinam... — a rani hesitou. — Elas ensinam Téc­nicas Especiais.

  • Que espécie de técnicas?

    Ela não conseguiu entrar em detalhes repulsivos. E, de qualquer modo, não era necessário, pois Murugan (Deus o abençoe) havia se recusado a ouvi-las. Lições de imoralidade ministradas por alguém com idade bastante para ser sua mãe — a simples idéia o nauseara. Essa atitude não constituiu surpresa, pois ele cresce­ra aprendendo a respeitar o Ideal de Pureza.

  • Brahmachaya. Você sabe o que isso significa?

  • Sei — disse Will.

  • Essa é outra razão pela qual considero sua enfermidade como uma bênção disfarçada, uma verdadeira dádiva de Deus. Penso que não poderia tê-lo educado dessa forma aqui em Pala, onde as influências nocivas são tão numerosas. Forças trabalhando contra a Pureza, contra a Família e mesmo contra o Amor Materno.

    Will ficou atento.

  • Chegaram mesmo a reformar as mães?

    Ela assentiu.

  • Você não imagina a que ponto as coisas chegaram. Mas Koot Hoomi sabia que espécie de perigos correríamos. Que acon­teceu? Meu filhinho ficou doente e os médicos nos enviaram à Suíça, onde ficamos fora do alcance da Maldade.

  • Como foi que Koot Hoomi permitiu que saísse em Cru­zada? — perguntou Will. — Será que não previu o que acontece­ria a Murugan assim que a senhora virasse as costas?

  • Ele anteviu tudo — disse a rani. — As tentações, a resistência e o assalto conjunto de todas as Forças do Mal. Sabia tam­bém que a Salvação viria no último instante!... Por longo tempo — explicou ela —, Murugan não me disse o que estava aconte­cendo. Após três meses, os assaltos da Força do Mal foram de­masiados e então ele começou a fazer alusões veladas. Mas eu estava demasiadamente absorvida no trabalho do meu Mestre e não dei a devida atenção. Finalmente ele me escreveu uma carta onde me explicava tudo em detalhes. Cancelei minhas quatro úl­timas palestras no Brasil e fui para casa nas asas do mais rápido dos jatos. Uma semana depois, estávamos de volta à Suíça. Ape­nas o meu filhinho e eu, sós com o Mestre.

    Ela cerrou os olhos e uma expressão de êxtase maligno apareceu em seu rosto. Will desviou os olhos enojado. Essa salvado­ra do mundo que se auto-canonizava, essa mãe arrebatada e do­minadora se teria visto, por um instante, com os olhos dos ou­tros? Teria consciência do que já havia feito e continuava fazen­do àquele filhinho tolo?

    Para a primeira pergunta a resposta era certamente negati­va. A respeito da segunda, podia-se conjeturar. Talvez ela realmente não soubesse o que fizera ao jovem. Por outro lado, tal­vez soubesse. Talvez preferisse o que estava acontecendo com o coronel Dipa ao que poderia vir a acontecer, caso a educação do filho fosse empreendida por uma outra mulher. A mulher pode­ria suplantá-la, mas não havia esse risco com o coronel.

  • Murugan me disse que pretende modificar essas chama­das "reformas", ora em vigor.

  • A única coisa que posso fazer é rezar para que lhe sejam dadas a Força e a Sabedoria de que necessitará para realizá-la — disse a rani num tom que fez com que Will se lembrasse do seu avô arquidiácono.

  • E o que pensa de seus outros projetos? Sobre o petróleo, as indústrias e a criação de um exército?

  • Economia e política não são o meu forte — respondeu com uma risadinha cuja intenção era lembrá-lo de que estava falando com alguém que havia recebido a "Quarta Iniciação". — Pergunte a Bahu o que ele acha.

  • Não tenho o direito de emitir opinião — disse o embaixador. — Sou um estranho que representa uma potência es­trangeira.

  • Não tão estrangeira — disse a rani.

  • Não, perante seus olhos, minha senhora. E não, como a senhora o sabe muito bem, perante os meus. Mas, aos olhos do governo palanês, sou considerado como um estrangeiro.

  • Mas isso não o impede de ter opiniões próprias — disse Will. —Apenas evita que tenha de seguir as opiniões ortodoxas locais. Que­ro lembrá-lo — acrescentou — de que não estou aqui como um pro­fissional. O senhor não está sendo entrevistado, senhor embaixador. O que me disser não constituirá assunto de reportagem.

  • Minha opinião estritamente pessoal (não como um representante oficial) e confidencial é de que o nosso jovem amigo es­tá inteiramente certo.

  • Deduzo daí que o senhor acha que a política do governo palanês é inteiramente errada.

  • Exatamente — disse Mr. Bahu. E a máscara ossuda e vigorosa de Savonarola se retorceu num sorriso voltairiano. Es­tá inteiramente errada por ser inteiramente certa.

  • Certa? protestou a rani. Certa?

  • Inteiramente certa porque visava a dar o máximo de liberdade e de felicidade concebíveis a cada homem, mulher e crian­ça desta encantadora ilha.

  • Porém com uma falsa felicidade e uma liberdade apenas para o Eu Inferior! gritou a rani.

  • Eu me curvo disse o embaixador, curvando-se devidamente diante do alto discernimento de Vossa Majestade. No entanto, superior, inferior, verdadeira ou falsa, a felicidade é sem­pre a felicidade e a liberdade é bastante agradável. Não pode ha­ver dúvidas de que a política iniciada pelos reformadores e de­senvolvida através dos anos foi admiravelmente bem adaptada na obtenção desses dois objetivos.

  • O senhor pensa que esses objetivos sejam indesejáveis? indagou Will.

  • Pelo contrário, todos os desejam. Infelizmente, porém, devido a presente situação do mundo em geral, e de Pala em par­ticular, eles foram completamente ultrapassados.

  • Serão menos importantes agora do que o foram quando os reformadores iniciaram o trabalho em prol da felicidade e da liberdade?

    O embaixador assentiu.

  • Naquela época Pala não constava dos mapas. A idéia de transformá-la num oásis de liberdade e felicidade tinha razão de ser. Enquanto permanecer sem contato com o resto do mundo, uma sociedade ideal pode subsistir. Eu diria que Pala era com­pletamente viável até cerca de 1905. Mas em menos de uma gera­ção o mundo se transformou completamente. Os cinemas, os au­tomóveis, os aeroplanos e o rádio apareceram. E, com eles, a pro­dução em massa, a matança em massa, a comunicação em massa e, dominando tudo, a massa: gente, cada vez mais gente, acomo­dada em cortiços e subúrbios cada vez maiores. Por volta de 1930 qualquer observador esclarecido teria notado que, para três quar­tos da raça humana, a liberdade e a felicidade eram assuntos quase fora de discussão. Hoje, após trinta anos, estão completamente fora de questão. Enquanto isso, essa pequena ilha de liberdade e felicidade vem sendo envolvida pelo mundo. O cerco vem se fechando vagarosa e inexoravelmente em torno dela. Aquilo que antes era um ideal viável, agora não o é mais.

  • Na sua opinião, Pala terá de se transformar?

    Mr. Bahu concordou.

  • Radicalmente — respondeu.

  • Dos pés à cabeça — disse a rani, com o prazer sádico de um profeta.

  • E por duas irrefutáveis razões — continuou Mr. Bahu. — Primeiro, porque é simplesmente impossível que Pala continue sendo diferente do resto do mundo. Segundo, porque não é justo que seja diferente.

  • Não é justo que as pessoas sejam livres e felizes?

    Uma vez mais a rani disse algo inspirado a respeito do conceito errôneo de felicidade e de liberdade.

    Mr. Bahu, após tomar um conhecimento respeitoso da interrupção, dirigiu-se novamente a Will:

  • Não é justo que ostentem felicidade frente a tanta misé­ria. É hubristotal, é uma afronta deliberada ao resto da humanidade. Chega mesmo a ser uma espécie de desafio a Deus.

  • Deus, Deus... — murmurou a rani fechando os olhos voluptuosamente. Reabrindo-os, continuou: — Esse povo de Pala não acredita em Deus. Crê apenas em Hipnotismo, Panteísmo e Amor Livre.

    Essas palavras, ditas de modo enfático, traduziam uma indignada repugnância.

  • E a senhora se propõe a torná-los infelizes, na esperança de que isto lhes devolva a fé em Deus? Bem, este é um modo de conseguir conversões! Talvez funcione e o fim venha a justificar os meios — disse Will com um encolher de ombros. — Vejo, po­rém que todo esse plano, não importa que seja bom ou mau, se­rá bem-sucedido. Também não importa saber como os palaneses o encaram. Não é necessário ser um profeta para predizer o su­cesso de Murugan. Ele está cavalgando a onda do futuro, e essa onda é, sem dúvida, uma onda de petróleo bruto. Por falar em petróleo — acrescentou —, tenho a impressão de que a senhora conhece meu velho amigo Joe Aldehyde...

  • Você o conhece?

  • Muito bem.

  • Então era por isso que minha Pequena Voz estava tão insistente! — Fechando novamente os olhos, ela sorriu para si mesma e meneou a cabeça devagar.

  • Agora compreendo! — E, mudando de tom: — Como vai aquele homem a quem tanto estimo? — perguntou.

  • Continua o mesmo de sempre.

  • Que personalidade rara! L'homme au cerf-volanté co­mo eu o classifico.

  • O empinador de papagaios? — Will estava intrigado.

  • Enquanto trabalha, ele não deixa de segurar uma das extremidades de um cordel que sustém um papagaio. Um papagaio que está sempre tentando subir mais alto, mais alto, mais AL­TO. Mesmo quando envolvido pelos negócios, não deixa de sen­tir o Puxar do Alto, sentir o Espírito arrastando insistentemente a carne. Pense! Um homem de negócios, um grande Capitão da Indústria, para quem a única coisa que Realmente Importa é a Imortalidade da Alma! Você já imaginou a significação disso?

    As coisas tornaram-se claras. A mulher estivera falando so­bre o ingresso de Joe Aldehyde no Espiritualismo. Lembrou-se daquelas sessões espíritas semanais com Mrs. Harbotle (a autômata) e com Mrs. Pym (que era "dirigida" por um índio kiowa chamado Bawbo). Lembrou-se de Miss Tuke e de sua trombeta flutuante, pela qual, num chiado susssurrado, ela proferia pala­vras oraculares, que eram taquigrafadas pela secretária particu­lar de Joe: "Compre cimento australiano. Não se alarme pela que­da nas Breakfast Foods. Livre-se de quarenta por cento das suas ações de borracha e empregue o dinheiro em IBM e Westinghouse..."

  • Alguma vez ele lhe falou a respeito daquele falecido corretor que sempre sabia como seria o movimento do mercado na semana seguinte? — perguntou Will.

  • Sidhis — disse a rani, indulgente. — Apenas sidhis. O que se pode esperar deles? Quanto a Joe, é apenas um Princi­piante e, neste momento de sua vida, o negócio é o seu "carma". Ele foi predestinado a fazer o que fez, o que faz e o que fará. E o que fará — continuou ela, dramaticamente, ficando imóvel numa atitude de expectativa, com o dedo erguido e a cabeça le­vantada —, e entre o muito que fará (isso é o que minha Peque­na Voz está dizendo) estão incluídas coisas grandes e maravilho­sas aqui em Pala.

    Que maneira espiritual de dizer: "É isso que eu quero que aconteça! Não como eu quero, mas sim como Deus o quer — e, por uma coincidência feliz, a Vontade de Deus e a minha sempre são idênticas!"

    Ao pensar nisso, Will sorria interiormente, conservando porém a fisionomia impassível.

  • Sua Pequena Voz diz alguma coisa a respeito da Petró­leo do Sudeste da Ásia?

    A rani voltou a "escutar" e depois balançou a cabeça, afirmativamente.

  • Com toda a clareza.

  • Presumo que o coronel Dipa não fale em outra coisa se­não na Standard da Califórnia. Tenho curiosidade em saber — continuou Will — por que Pala tem de se preocupar com a pre­ferência do coronel a respeito de companhias de petróleo.

  • Meu governo — replicou Mr. Bahu sonoramente — está pensando em termos de um Plano Qüinqüenal para Coordena­ção e Cooperação entre as ilhas.

  • Nesse plano está implícito que a Standard deverá ter o monopólio?

  • Somente se as condições oferecidas forem mais vantajo­sas do que as dos outros competidores.

  • Em outras palavras — disse a rani —, apenas se não hou­ver alguém que nos pague mais.

  • Antes de sua vinda, estava discutindo esse assunto com Murugan — informou Will. — A Companhia de Petróleo do Su­deste da Ásia dará a Pala aquilo que a Standard der e mais um pouco, eu disse a ele.

  • Quinze por cento a mais?

  • Digamos dez.

  • Doze e meio.

    Will olhou-a com admiração. Para alguém que tinha alcançado a Quarta Iniciação, ela estava indo bem.

  • Joe Aldehyde dará urros, mas tenho certeza de que a senhora acabará conseguindo os doze e meio por cento.

  • Não há dúvida de que é uma proposta bastante atraente — disse Mr. Bahu.

  • O único problema é que o governo palanês não a aceitará.

  • O governo palanês não tardará em mudar sua política — disse a rani.

  • A senhora pensa assim?

  • Eu o SEI — respondeu a rani, num tom que tornou bem claro que a informação tinha vindo diretamente do Mestre.

  • Quando sobreviesse essa mudança, não seria bom que alguém dissesse ao coronel Dipa uma palavrinha em favor da Pe­tróleo do Sudeste da Ásia?

  • Sem a menor dúvida.

    Will voltou-se para Mr. Bahu:

  • Estaria o senhor preparado, senhor embaixador, a tra­tar do assunto com o coronel Dipa?

    Com polissílabos, como se estivesse se dirigindo ao plenário de alguma organização internacional, Mr. Bahu se esgueirou di­plomaticamente. Por um lado, sim, mas pelo outro, não. De um ponto de vista, branco; porém, de um ângulo diferente, distinta­mente negro.

    Will escutou-o, mantendo um silêncio polido. Atrás da máscara de Savonarola, atrás do monóculo aristocrático e da verbo­sidade do embaixador, ele via e ouvia o corretor levantino em busca da sua comissão, o oficial insignificante mendigando uma gratificação. Quanto teria sido prometido àquela "real iniciada" para que patrocinasse com tanto entusiasmo a causa da Petróleo do Sudeste da Ásia? E claro que ela nada queria para si mesma! Evidentemente que não! Não é preciso dizer que tudo se destina­ria à Cruzada do Espírito e à maior glória de Koot Hoomi.

    Mr. Bahu alcançara a peroração do seu discurso no plená­rio da organização internacional:

  • Conseqüentemente, deve ser compreendido — dizia ele — que qualquer atitude a ser tomada por mim ficará na dependência do momento oportuno. Estou sendo bastante claro?

  • Perfeitamente — assegurou-lhe Will. — E agora deixe-me expor minha posição nesse assunto — continuou com chocante fran­queza. — O que me interessa é o dinheiro. Receberei duas mil libras para não fazer absolutamente nada. Terei um ano de liberdade ape­nas para ajudar Joe Aldehyde a pôr as mãos em Pala.

  • Lorde Aldehyde — disse a rani — é extraordinariamente generoso.

  • Extraordinariamente — concordou Will —, consideran­do-se o pouco que posso fazer neste assunto. Não é necessário dizer que ele será ainda mais generoso com alguém que possa co­laborar mais eficazmente.

    Houve um longo silêncio. À distância, um pássaro mainá gritava monotonamente: "Atenção!" Atenção para a avareza, aten­ção para a hipocrisia, atenção para o cinismo vulgar...

    Bateram à porta.

  • Entre disse Will. Virando-se para Mr. Bahu, sugeriu: Continuemos essa conversa em outra ocasião. Mr. Bahu concordou. Entre repetiu ele.

    Uma jovem de cerca de vinte anos, vestindo uma saia azul e um casaco curto, sem botões, que deixava sua cintura descoberta e que somente às vezes escondia um par de seios redondos como maçãs, entrou alegremente no quarto. Em seu rosto more­no havia um sorriso de amigável saudação, salientado por duas covinhas laterais.

  • Sou a enfermeira Appu — apresentou-se. — Radha Appu. Notando as visitas de Will, interrompeu-se: — Oh, desculpe-me! Não sabia... Fez uma reverência mecânica à rani.

    Enquanto isso, Mr. Bahu levantara-se cortesmente.

  • Enfermeira Appu disse entusiasticamente. Meu anjinho do hospital de Shivapuram. Que surpresa agradável.

    Will percebeu logo que a surpresa estava bem longe de ser agradável.

  • Como está o senhor, Mr. Bahu? perguntou a enfer­meira sem nenhum sorriso.

    Virando-se rapidamente, começou a ocupar-se com as alças da bolsa de lona que trazia consigo.

  • Vossa Majestade provavelmente se esqueceu, mas eu ti­ve de ser submetido a uma intervenção cirúrgica no verão passa­do disse Mr. Bahu. Hérnia especificou ele. Bem, essa jovem costumava vir lavar-me todas as manhãs, às oito e qua­renta e cinco, pontualmente. E agora, após ter desaparecido por todos esses meses, eis que a encontro de novo!

  • Sincronização disse a rani, oracularmente. É tudo parte do Plano.

  • Deveria aplicar uma injeção em Mr. Farnaby disse a enfermeira, levantando os olhos de sua bolsa, ainda sem sorrir.

  • As ordens do médico são ordens para ser cumpridas disse a rani, exagerando o papel do personagem real que se per­mite uma benevolência brincalhona. Ouvir é obedecer! Mas, onde está o meu chofer?

  • O seu chofer está aqui respondeu uma voz familiar.

    Belo como uma aparição de Ganimedes, Murugan estava parado à porta. Um olhar de surpresa surgiu no rosto da pequena enfermeira.

  • Alô, Murugan, quero dizer, Majestade. — Ela fez outra reverência que tanto poderia ser julgada como um sinal de res­peito quanto de irônica zombaria.

  • Oh! Alô, Radha — disse o jovem num tom intencionalmente cerimonioso. Passando por ela, foi até onde sua mãe esta­va sentada. — O carro, se aquilo pode ser chamado de carro, es­tá à porta. — Com um riso sarcástico, explicou a Will: — É um pequeno Austin da série de 1954. É o que de melhor este país al­tamente civilizado pode fornecer à sua família real. Enquanto is­so, Rendang dá ao seu embaixador um Bentley — comentou com amargura.

  • O qual virá me buscar neste endereço em cerca de dez minutos — disse Mr. Bahu, olhando para seu relógio. — Vossa Majestade permite que eu me retire? — A rani estendeu a mão. Com a piedade de um bom católico que beija o anel do cardeal, curvou-se sobre ela. Porém, endireitando-se, virou-se para Will: — Presumo, talvez injustamente, que Mr. Farnaby possa acolher- me por um pouco mais. Poderia ficar? — Will assegurou-lhe que seria um prazer. — Espero que não haja objeção no terreno da medicina — disse Mr. Bahu, dirigindo-se à pequena enfermeira.

  • Não no terreno médico — disse a jovem num tom que dava a impressão da existência das mais irrefutáveis objeções não- médicas.

    Auxiliada por Murugan, a rani se levantou da cadeira.

  • Au revoir, mon cher Farnaby — disse, enquanto lhe estendia a mão coberta de jóias.

    Seu sorriso estava carregado de uma doçura que Will considerou positivamente ameaçadora.

  • Adeus, madame.

    Ela virou-se, deu um tapinha na face da enfermeira e saiu do quarto. Tal uma lancha que seguisse na esteira de um navio de linha, armado em galera, Murugan acompanhou-a.

 

  • Céus! explodiu a pequena enfermeira, quando a por­ta estava bem fechada atrás deles.

  • Concordo plenamente com você disse Will.

    O brilho voltairiano luziu por um segundo no rosto evangélico de Mr. Bahu.

  • Céus! repetiu ele. Ouvi essa exclamação dos lábios de um colegial inglês ao ver a Grande Pirâmide pela primeira vez. A rani nos causa a mesma impressão. Monumental! Ela é o que os alemães chamam eine grosse Seele. O brilho sardónico de­sapareceu e o rosto era, sem a menor dúvida, o de Savonarola, e era óbvio que as palavras se destinavam à imprensa.

    De repente, a pequena enfermeira começou a rir.

  • Que há de tão engraçado?

  • Tive uma repentina visão da Grande Pirâmide toda ves­tida em musselina branca disse ela ofegante. O dr. Robert dá-lhe o nome de "uniforme dos místicos".

  • Espirituoso, muito espirituoso! disse Mr. Bahu. No entanto acrescentou diplomaticamente —, não sei por que os místicos não podem usar uniformes se assim o desejarem.

    A pequena enfermeira deu um suspiro, secou as lágrimas provocadas pelo riso e começou a preparar a injeção que deveria apli­car no paciente.

  • Sei exatamente o que está pensando disse ela a Will. Pensa que sou jovem demais para fazer bem o meu serviço.

  • Realmente, você é muito jovem.

  • Vocês vão para a Universidade aos dezoito anos e lá permanecem por quatro anos. Nós começamos aos dezesseis e con­tinuamos nos educando até os vinte e quatro anos. Estudamos durante metade do tempo e a outra metade é dedicada a traba­lhos práticos. Há dois anos estudo Biologia e faço trabalhos de enfermagem. Não sou tão tola quanto pareço. Sou uma boa en­fermeira.

  • Uma afirmação que posso confirmar de modo inequívo­co disse Mr. Bahu. Miss Radha não é apenas uma boa enfermeira. É uma enfermeira de primeiríssima ordem!

    O que ele realmente queria dizer (pensava Will, enquanto observava a expressão naquele rosto de monge torturado pelas tentações) era que Miss Radha tinha uma cintura, um umbigo e uns seios de primeira ordem. Mas a possuidora do umbigo, da cintura e dos seios havia se ofendido com a admiração do Savonarola ou com a forma pela qual fora externada. Esperançoso, excessivamente esperançoso, o rejeitado embaixador vol­tava ao ataque.

    A lâmpada de álcool foi acesa e, enquanto a agulha era fervida, a pequena enfermeira Appu tomou a temperatura do pa­ciente.

  • Noventa e nove ponto dois.

  • Isso significa que terei de ser expulso? perguntou Mr. Bahu.

  • Por causa dele não será necessário respondeu a jovem.

  • Então fique, por favor disse Will.

    A pequena enfermeira aplicou-lhe a injeção de antibiótico e, tirando de um dos vidros de sua bolsa uma colher de sopa de líquido esverdeado, misturou-o em meio copo de água.

  • Beba.

    O sabor era parecido com uma dessas misturas de ervas, usadas pelos entusiastas de alimentos saudáveis para substituírem o chá.

  • Que é isso? perguntou Will.

    Ela explicou que era extrato de uma planta das montanhas, da família da valeriana.

  • Ajuda as pessoas a deixar de lado as preocupações continuou a pequena enfermeira sem que fiquem sonolentas. Nós a damos aos convalescentes. É também muito útil nos casos mentais.

  • Como estou sendo classificado? Caso mental ou convalescente?

  • Ambos respondeu sem hesitação.

    Ele riu alto.

  • E o que acontece quando procuramos elogios.

  • Não tive intenção de ser grosseira. Tudo o que quis dizer foi que nunca encontrei uma pessoa de fora que não fosse um caso mental.

  • Incluindo o embaixador?

    Ela devolveu a pergunta ao inquiridor:

  • Qual a sua opinião?

    Will passou a questão a Mr. Bahu.

  • O senhor é um perito neste campo — acrescentou ainda.

  • Resolvam o assunto entre vocês — disse a pequena enfermeira —, pois tenho de ir providenciar o almoço do meu pa­ciente.

    Mr. Bahu observou-a enquanto se afastava. Depois, erguendo a sobrancelha esquerda, deixou cair o monóculo e metodicamen­te passou a limpar a lente com o lenço.

  • A sua anormalidade é de um modo e a minha é de outro — disse ele a Will. — Um esquizóide (não é isso que você é?) e, do outro lado do mundo, um paranóide. Ambos vítimas da mesma praga do século XX. Desta vez não se trata da peste ne­gra, mas da vida cinza. Você já se interessou pelo poder? — per­guntou, após um momento de silêncio.

  • Nunca — respondeu Will, balançando vigorosamente a cabeça. — Ninguém pode ter poder sem se comprometer!

  • Para você, o terror de se comprometer é maior do que o prazer de ser obedecido?

  • Milhares de vezes maior.

  • Nunca se sentiu tentado?

  • Nunca — disse Will. Depois de uma pausa, ajuntou num outro tom: — Vamos tratar de negócios.

  • Aos negócios — repetiu Mr. Bahu. — Diga-me algo so­bre lorde Aldehyde.

  • Bem, como disse à rani, ele é notavelmente generoso.

  • Não estou interessado em suas virtudes, apenas em sua inteligência. Qual o grau de sua vivacidade?

  • Tem bastante inteligência para saber que ninguém faz qualquer coisa sem receber nada em troca.

  • Ótimo — disse Mr. Bahu. — Diga-lhe em meu nome que, para um trabalho eficiente, feito por um perito em posições es­tratégicas, ele deve estar preparado para pagar dez vezes mais do que vai lhe pagar.

  • Eu lhe escreverei uma carta a esse respeito.

  • Faça-o hoje — aconselhou Mr. Bahu —, pois o avião sai de Shivapuram amanhã ã noite e não haverá outro levando o cor­reio até a próxima semana.

  • Obrigado pelo aviso — disse Will. — E agora, Sua Majestade e o adolescente tendo se retirado, tratemos de outra ten­tação. Que tal o sexo?

    Com o gesto de um homem que tenta se libertar de um enxame de incômodos insetos, Mr. Bahu agitou a mão ossuda e mo­rena para a frente e para trás do rosto.

  • Apenas uma distração, isso é tudo. Apenas uma impor­tuna e humilhante aflição. Mas um homem inteligente sempre sabe como manejá-la.

  • Como é difícil compreender os vícios de outro homem! - disse Will.

  • Você está certo. Todos deveriam se apegar à insanidade que Deus achou adequada à própria maldição. Pecca fortiter, era o conselho de Lutero. Porém faça o propósito de pecar os seus próprios pecados, não os de outrem. E, acima de tudo, não faça aquilo que o povo desta ilha faz. Não tente proceder como se fosse essencialmente sadio, razoável e intimamente bom. Somos peca­dores viajando neste mesmo barco cósmico que está perpetuamen­te a naufragar.

  • Apesar disso, rato algum tem qualquer justificativa para abandoná-lo. É isso o que quer dizer?

  • Alguns deles às vezes tentam sair, porém nunca vão muito longe. A História e os outros ratos sempre se encarregam de fa­zer com que eles se afoguem como o resto de nós. É por isso que Pala não tem a mínima chance.

    Carregando uma bandeja, a pequena enfermeira tornou a entrar no quarto.

  • Com exceção do peixe, a comida é toda budista — disse, enquanto amarrava o guardanapo em torno do pescoço de Will.

  • Decidimos que os peixes são vegetais, no sentido estrito do termo.

    Will começou a comer.

  • Com exceção da rani, de Murugan e de nós, quantas pes­soas de fora você conhece? — perguntou, após engolir a primei­ra porção.

  • Bem, houve um grupo de médicos americanos — respondeu ela. — Eles vieram a Shivapuram no ano passado, quando eu trabalhava no Hospital Central.

  • De que se ocupavam?

  • Queriam descobrir a razão pela qual temos índices tão baixos de neurose e de doenças cardiovasculares.. Que médicos! — E ela balançou a cabeça. — Francamente, Mr. Farnaby, eles me fizeram ficar arrepiada! Aliás, todos lá no hospital ficaram arrepiados.

  • Você julga a nossa medicina primitiva?

  • Esta não é a palavra acertada. Não é primitiva. Em cinqüenta por cento é extraordinária! Nos outros cinqüenta é ine­xistente. Antibióticos maravilhosos! Por outro lado, não existem métodos destinados a aumentar a resistência orgânica, a fim de que o emprego dos mesmos não seja necessário. Operações fan­tásticas! Porém não há nada que ensine ao povo como atraves­sar a vida sem ser retalhado. E assim por diante. Alfa positivo para remendá-lo quando começar a cair aos pedaços, porém del­ta negativo quando se trata de conservá-lo saudável. Afora a ca­nalização dos esgotos e as vitaminas sintéticas, vocês não pare­cem fazer nada no que diz respeito à profilaxia. No entanto, têm um provérbio que diz: A prevenção é melhor que a cura. Mas a cura é tão mais dramática do que a prevenção!

  • E para os médicos é também bastante mais rendosa — disse Will.

  • Pode ser que o seja para os seus médicos. Os nossos são pagos para conservarem a saúde do povo.

  • Como é que isto é feito?

  • Há centenas de anos essas perguntas vêm sendo feitas e já obtivemos uma infinidade de respostas. Respostas químicas e psicológicas, respostas sobre o que devemos comer, respostas so­bre como fazer o amor, respostas sobre o que ver e ouvir, res­postas sobre como devemos nos sentir, sendo o que somos nesta espécie de mundo...

  • E quais são as melhores respostas?

  • Absolutamente nenhuma delas é melhor que as outras.

  • Não existe nenhuma panacéia?

  • E como poderia existir? — Dando essa resposta, ela começou a recitar o pequeno verso que toda estudante de enferma­gem tinha de decorar desde o primeiro dia de aula:

     

Sou como a multidão que obedece a leis

Tão numerosas quanto os seus membros.

Quimicamente impura

E a minha constituição.

Não existe um remédio único

Para males que jamais têm somente uma causa.

 

  • Assim, quer se trate de prevenir ou de curar, atacamos simultaneamente em todas as frentes. Vamos desde a dieta à auto-sugestão, dos íons negativos à meditação.

  • Muito sensato — comentou Will.

  • Talvez sensato em demasia — disse Mr. Bahu. — Você já tentou falar a sério com um maníaco?

    Will meneou a cabeça.

  • Eu tentei uma vez — disse Mr. Bahu, afastando uma me­cha de cabelo que já começava a branquear e que estava caída em sua testa. Logo abaixo da linha de implantação do cabelo via- se uma cicatriz irregular, cuja estranha palidez contrastava com o queimado da pele. — Felizmente a garrafa com que me bateu era bastante frágil. — Ajeitando o cabelo desordenado, virou-se para a pequena enfermeira, dizendo: — Nunca se esqueça, Miss Radha, que para os desajuizados, nada mais irritante que o juí­zo. Pala é uma pequena ilha completamente cercada por dois bi­lhões e novecentos milhões de casos mentais. Por isso, cuidado com o excesso de racionalismo. No país dos insanos, o homem perfeitamente integrado não se torna rei. — O rosto de Mr. Ba­hu positivamente luzia com o brilho voltairiano. — É linchado — disse.

    Will sorriu ligeiramente; dirigindo-se novamente à enfermeira, perguntou:

  • Vocês não têm candidatos aos manicômios?

  • Temos tantos quanto vocês. O nosso manual diz que, relativamente à nossa população, a proporção é a mesma.

  • Com isso, chega-se à conclusão de que viver num mun­do sensato não parece fazer a menor diferença.

  • Não para aqueles com a espécie de química corporal que os transforma em psicóticos. Esses nascem vulneráveis. Pequenos problemas, que as outras pessoas quase nem sentem, podem fazê-los cair. As investigações que estão sendo feitas nos levam a concluir que isso é o que os faz tão vulneráveis e, graças a esses trabalhos, temos a possibilidade de atendê-los antes que tenham o colapso nervoso. Logo que é identificado, o futuro doente co­meça a receber cuidados que se destinam a elevar a resistência. Novamente medicina preventiva, claro que aliada a um ataque maciço, partindo ao mesmo tempo de várias direções.

  • Quer dizer que o fato de nascer num mundo sensato faz diferença, mesmo para os predestinados às psicoses?

  • No que diz respeito aos neuróticos, a diferença já é bem nítida. A média de neuróticos entre vocês é de, aproximadamen­te, um em cada cinco ou mesmo quatro pessoas. A nossa é mais ou menos de um para cada vinte pessoas. Todo aquele que sofre colapso nervoso recebe um tratamento em que todas as frentes são atacadas. Os dezenove restantes (os que ainda não sofreram nenhum colapso) são tratados preventivamente em todas as fren­tes. Isso me faz voltar àqueles médicos americanos. Três deles eram psiquiatras. Entre eles havia um que falava com sotaque alemão e estava sempre fumando charutos. Esse foi o escolhido para nos fazer uma preleção! — A pequena enfermeira segurou a cabeça entre as mãos. — Nunca ouvira nada semelhante.

  • Qual foi o assunto?

  • Foi sobre o modo como tratam as pessoas que apresen­tam sintomas neuróticos. Não podíamos acreditar em nossos ouvidos. Eles nunca atacam de todos os lados. Apenas atacam mais ou menos a metade de uma frente. No ponto de vista deles, a "frente física" não existe. Com exceção de uma boca e de um ânus, os seus pacientes não possuem corpo. O doente não é um organismo, não nasceu com uma constituição nem com um tem­peramento. Tudo o que possui são as duas extremidades do tubo digestivo, uma família e uma psique. Porém, que espécie de psi­que? Não conseguem ver a mente como um todo; não parecem vê-la como é na realidade. Como admitir que não dêem valor à anatomia, à bioquímica e à fisiologia? A mente separada do cor­po, essa é a única frente que atacam. E nem mesmo essa é ataca­da integralmente. O homem com o charuto continuou falando sobre o inconsciente. Mas o único inconsciente que os interessa é o inconsciente negativo; o lixo de que alguém tentou se livrar, enterrando-o no porão. Não dizem uma só palavra a respeito do inconsciente positivo! Não fazem qualquer movimento a fim de ajudar o paciente a se levantar na corrente da vida ou em direção à Natureza de Buda. Nenhuma tentativa visando ao menos ensi­nar-lhe a ter um pouco mais de consciência da vida rotineira. Você sabe a que me refiro: "Aqui e agora, rapazes! Atenção!" — dis­se, numa imitação dos pássaros mainás. — Essa gente se limita a deixar que os infortunados neuróticos chafurdem no velho há­bito de nunca viverem inteiramente o presente. Ouvi tanta idioti­ce! Mas o fumador de charutos nem ao menos podia ter a des­culpa de ser um tolo; pelo contrário, era um homem tão inteli­gente quanto possível! Deve ser algo voluntário. Alguma auto-indução, semelhante à embriaguez ou ao ato de a pessoa se con­vencer a acreditar em alguma tolice, somente porque a leu nas Escrituras. E a idéia que fazem do que seja normal! Acredite se quiser, mas no conceito deles um ser humano normal é aquele que é capaz de ter um orgasmo e de se ajustar à sociedade! — A pequena enfermeira segurou novamente a cabeça entre as mãos, continuando: — É inacreditável! Nenhuma pergunta sobre o que faz dos seus orgasmos. Nada a respeito de seus sentimentos, pen­samentos e percepções! E que tal a sociedade com a qual se su­põe que o indivíduo esteja ajustado? É sadia ou louca? Mesmo admitindo-se que seja bastante sadia, é justo que alguém deva ser completamente ajustado a ela?

    Dando outro dos seus sorrisos sardónicos, o embaixador começou a falar:

  • Aqueles a quem Deus pretende destruir, começa por transformar em loucos. Porém às vezes se decide por uma alternativa mais eficiente e faz com que sejam sadios. — Mr. Bahu levantou- se e foi até a janela. — Meu carro já chegou. Preciso voltar para o meu escritório em Shivapuram. — Dirigindo-se a Will, obsequiou-o com uma longa e floreada despedida e, "desligando- se" do embaixador, fez o seguinte arremate: — Não se esqueça de escrever aquela carta. É muito importante. — Sorriu com ares de conspirador e, com a mão direita, fez o gesto de quem conta dinheiro.

  • Graças a Deus! — disse a pequena enfermeira quando ele se retirou.

  • Qual foi sua ofensa? A de costume? — perguntou Will.

  • Ofereceu dinheiro a alguém com quem desejou ir para a cama, porém esse alguém não gostava dele. Repetiu a proposta, oferecendo uma soma ainda maior. Será que isso é comum na terra dele?

  • É um hábito muito divulgado — assegurou-lhe Will.

  • Eu não gostei.

  • Pude observar. Gostaria de lhe perguntar uma coisa. Que me diz de Murugan?

  • Por que pergunta?

  • Por simples curiosidade. Percebi que vocês já haviam se encontrado. Isto se deu dois anos atrás, não é verdade? Quando a rani estava fora, não foi?

  • Como soube disso?

  • Um passarinho me disse. A bem da verdade, foi um pás­saro bem grande e pesado.

  • A rani! Ela deve ter feito os fatos parecerem com Sodoma e Gomorra.

  • Infelizmente fui poupado dos detalhes escusos. Ela se limitou a negras insinuações. Por exemplo, insinuações a respeito de veteranas messalinas dando aulas de amor a jovens e inocen­tes rapazes.

  • E como ele precisava dessas lições!

  • Insinuações também a respeito de uma jovem promíscua que tinha a mesma idade que ele. — A enfermeira Appu soltou uma risada. — Você a conhece?

  • A jovem precoce e promíscua era eu.

  • Você? A rani sabe disso?

  • Murugan apenas lhe contou os fatos, não os nomes. Por isso eu lhe sou muito grata. Procedi muito mal perdendo a cabe­ça por uma pessoa a quem realmente não amava e ferindo a quem amava. Por que somos tão tolos?

  • O coração tem as suas razões e as glândulas endócrinas têm outras — disse ele.

    Houve um longo silêncio.

    Will terminou de comer a verdura e o peixe cozido, e a enfermeira estendeu-lhe um prato de salada de frutas.

  • Você nunca viu Murugan usando pijama de cetim bran­co — disse ela.

  • Acha que é um espetáculo que não devo perder?

  • Não faz idéia do quanto ele fica bonito! Ninguém tem o direito de ser tão belo! Chega a ser indecente. E a mesma coisa que gozar de uma vantagem desleal.

    Fora a beleza dele vestindo o pijama de sulkaque finalmen­te a fizera perder a cabeça. Perdê-la de modo tão completo que durante dois meses foi outra pessoa — uma tola a perseguir al­guém que não a suportava. Enquanto isso, desprezara a quem sempre a amara e a quem também amava.

  • Até que ponto chegaram as coisas com o jovem do pija­ma? — perguntou Will.

  • Somente até a cama. Porém, quando comecei a beijá-lo, ele fugiu, indo trancar-se no banheiro, e lá ficou até que eu lhe dei a minha palavra de honra de que não o molestaria. Agora posso rir desse dia; porém, na época... — Ela meneou a cabeça.

  • Que tragédia! Pelo meu modo de proceder, eles devem ter per­cebido tudo o que aconteceu. Tornou-se claro que jovens preco­ces e promíscuas não resolviam o problema. Ele necessitava de aulas regulares, essa era a verdade.

  • O resto da história eu sei — disse Will. — O rapaz escre­veu à mãe, que veio voando, e voando o levou para a Suíça.

  • Regressaram há seis meses e a maior parte desse tempo têm vivido em Rendang, na casa da tia de Murugan.

    Will esteve a ponto de falar sobre o coronel Dipa, mas lembrou-se em tempo da promessa que fizera ao rapaz e manteve-se em silêncio.

    Do jardim veio o som de um assobio.

  • Com licença — disse a pequena enfermeira, dirigindo-se à janela. Sorrindo feliz para o que via, ela acenou com a mão.

  • É Ranga.

  • Quem é Ranga?

  • Aquele meu amigo de quem eu falava. Ele deseja lhe fa­zer algumas perguntas. Poderia entrar por um minuto?

  • Claro que pode!

    Ela voltou à janela e fez um sinal.

  • Presumo que o pijama de cetim branco está completa­mente fora de cena, não é mesmo?

    Ela concordou.

  • Foi uma tragédia em apenas um ato. Achei minha cabe­ça tão rapidamente quanto a perdera. E, quando a achei, vi que Ranga estava esperando por mim.

    A porta se abriu e um jovem esbelto, usando tênis e calça curta cáqui, entrou no quarto.

  • Ranga Karakuran — disse, ao apertar a mão de Will.

  • Se você viesse cinco minutos antes, teria o prazer de encontrar Mr. Bahu — disse Radha.

  • Ele estava aqui? — Ranga fez uma careta de nojo.

  • É tão mau assim? — perguntou Will.

    Ranga enumerou as acusações.

  • Ouça: a) ele nos odeia; b) ele é o chacal domesticado do coronel Dipa; c) ele é o embaixador não-oficial de todas as com­panhias de petróleo; d) o velho porco fez insinuações a Radha; e, finalmente, e) anda por aí fazendo preleções a respeito da ne­cessidade da revivência da religiosidade. Chegou mesmo a pu­blicar um livro sobre o assunto, que foi prefaciado por alguém da Harvard Divinity School. Tudo isso faz parte da campanha contra a independência palanesa. Deus é o álibi de Dipa. Por que os criminosos não podem ser francos a respeito de seus pla­nos? Todo esse idealismo vagabundo faz qualquer pessoa vomitar!

    Radha estendeu a mão e deu-lhe três fortes beliscões na orelha.

  • Sua pequena... — começou ele, zangado. Interrompeu- se logo e começou a rir. — Você tem toda a razão — disse. — Mas isso não era motivo para beliscar com tanta força.

  • É isso que usa quando ele se entusiasma? — Will per­guntou a Radha.

  • Quando se entusiasma no momento impróprio ou a respeito de coisas que não pode resolver.

    Will voltou-se para o rapaz.

  • E você, precisa beliscar-lhe a orelha?

    Ranga respondeu sorrindo:

  • Acho mais satisfatório dar-lhe umas palmadas nas náde­gas. Infelizmente ela raramente merece.

  • Isso quer dizer que ela é mais equilibrada do que você?

  • Mais equilibrada? Posso lhe garantir que ela é anormalmente sã.

  • E você? É apenas um ser normal?

  • Talvez um pouquinho fora do centro. — Ele balançou a cabeça. — Às vezes fico terrivelmente deprimido, com a impressão de que não sirvo para nada.

  • Tanto isso não é verdade — disse Radha — que lhe de­ram uma bolsa para estudar bioquímica na Universidade de Man­chester.

  • Que é que faz com ele quando começa a usar esses recur­sos desesperados de mísero pecador? Puxa-lhe as orelhas?

  • Sim — respondeu —, e... também faço outras coisas.

Ela olhou para Ranga, que retribuiu o olhar, e ambos começaram a rir.

  • Bem — disse Will —, essas outras coisas sendo o que são, você está mesmo entusiasmado com a idéia de deixar Pala por cerca de dois anos?

  • Não muito — admitiu Ranga.

  • Mas ele tem que ir — disse Radha com firmeza.

  • E você acha que ele será feliz quando chegar lá?

  • Isso é exatamente o que eu queria lhe perguntar — disse Ranga.

  • Você não gostará do clima, da comida, dos ruídos, dos cheiros e da arquitetura. Porém tenho certeza de que gostará do trabalho, e é até provável que chegue à conclusão de que gosta de grande parte do povo.

  • Que tal as moças? — perguntou Radha.

  • Como é que você quer que responda? Quer saber a ver­dade ou quer que eu diga coisas para consolá-la?

  • Diga a verdade.

  • Bem, minha cara, a verdade é que Ranga fará um enor­me sucesso. Dúzias de moças o acharão irresistível e algumas delas serão realmente encantadoras. Como se sentirá você se ele não puder resistir?

  • Ficarei satisfeita porque ele estará bem.

    Will voltou-se para Ranga:

  • E você se alegrará se ela se consolar com outro rapaz enquanto estiver fora?

  • Gostaria de ficar — disse ele. — Mas se realmente me alegrarei, isto é outra questão.

  • Fará com que jure fidelidade?

  • Não a farei prometer nada.

  • Mesmo sendo ela a sua namorada?

  • Ela é livre.

  • Ele também é livre. Livre para fazer o que quiser — dis­se a pequena enfermeira.

    Will lembrou-se da alcova rosa-morango de Babs e deu uma risada grosseira.

  • Livre especialmente para fazer o que ele não gosta. — Dizendo isso, olhou de um para outro daqueles rostos jovens e percebeu que estava sendo observado com uma certa surpresa. Mudando de tom e sorrindo de maneira diferente, comentou:

    Tinha me esquecido de que um de vocês é anormalmente são e o outro é apenas um pouco fora do centro. Como poderei espe­rar que cheguem a compreender a respeito do que este forasteiro e doente mental está se referindo? Sem dar-lhes tempo de res­ponder, perguntou: Há quanto tempo... Talvez vocês me con­siderem indiscreto. Gostaria de saber, apenas por uma questão de interesse antropológico, há quanto tempo vocês são amigos. Se acharem que estou me intrometendo, basta que digam que não é da minha conta.

  • Amigos ou amantes? perguntou Radha.

  • Já que estamos conversando francamente, por que não falar sobre os dois?

  • Ranga e eu somos amigos desde crianças. Temos sido amantes (exceto por aquele deprimente episódio do pijama bran­co) desde que tinha quinze anos e meio e ele dezessete. Quer di­zer, há mais ou menos dois anos e meio.

  • E ninguém fez objeção?

  • Por que haveriam de fazer?

  • De fato, por quê? Acontece que, na parte do mundo de onde venho, praticamente todos fariam objeções.

  • E a respeito das relações entre rapazes? perguntou Ranga.

  • Teoricamente, são consideradas ainda mais fora das convenções do que as moças. Na prática... as coisas são um pouco diferentes. Você pode imaginar o que acontece quando quinhen­tos ou seiscentos adolescentes masculinos estão reunidos num in­ternato. Esse tipo de coisa costuma acontecer por aqui?

  • É claro.

  • Estou surpreso!

  • Surpreso? Por quê?

  • Desde que não existem barreiras para as moças...

  • Mas uma espécie de amor não exclui a outra.

  • Ambos são legítimos?

  • Naturalmente.

  • Você quer dizer que ninguém se incomodaria se Murugan estivesse interessado por um outro jovem de pijama?

  • Não, se fosse uma boa espécie de amizade.

  • Mas infelizmente disse Radha a rani fez um traba­lho tão completo que ele não se interessaria por ninguém mais, a não ser por ela e por ele mesmo.

  • Nada de rapazes?

  • Pode ser que agora esteja se interessando. Tudo o que sei é que no meu tempo não havia nada no seu universo. Nada de rapazes e, ainda mais enfaticamente, nada de moças. Apenas a Mãe, a masturbação e os Mestres Ascendentes. Apenas discos de jazz, carros esporte, idéias hitlerianas a respeito de se tornar um grande líder, transformando Pala naquilo que ele chama "um Estado moderno".

  • Há três semanas ele e a rani estiveram no palácio em Shivapuram — disse Ranga. — Convidaram um grupo da nossa Uni­versidade para ouvir as idéias de Murugan sobre petróleo, indus­trialização, televisão, armamentos e Cruzada do Espírito.

  • Conseguiu converter alguém?

    Ranga balançou a cabeça, negativamente.

  • Por que razão alguém deveria trocar algo rico, bom e interessante por algo mau, medíocre e enfadonho? Nós não senti­mos necessidade de possuir seus barcos velozes ou sua televisão. Muito menos suas guerras, revoluções, renovações, os slogans po­líticos e as tolices metafísicas vindas de Roma e de Moscou. Vo­cê já ouviu falar sobre maithunal

  • Maithuna?Que é isso?

  • Comecemos com um esboço histórico — disse Ranga; e, com o atraente pedantismo de um estudante, que faz uma preleção sobre assuntos que aprendeu há muito pouco tempo, princi­piou: — O budismo chegou a Pala há cerca de mil e duzentos anos. Não veio do Ceilão como era de se esperar. Veio inicial­mente de Bengala e, mais tarde, do Tibete, via Bengala. Por cau­sa disso somos mahayanise o nosso budismo caminha lado a la­do com tantra.Você sabe o que é tantra?

    Will teve de admitir que tinha somente a mais confusa das noções.

  • Para falar a verdade — disse Ranga, com um riso que rompeu a crosta do seu pedantismo —, não sei a respeito desse assunto muito mais do que você. Existem estudos exaustivos so­bre tantra.Na minha opinião, a maior parte do que já foi escrito a esse respeito não passa de um amontoado de tolices e de su­perstições. Apesar disso, tem um grande lastro de bom senso. O tantriknão renuncia ao mundo nem tampouco nega o seu valor. Não tenta escapar da vida através do nirvana, como fazem os monges da Southern School. Isso não! Aceita o mundo e dele se utiliza. Faz uso de tudo aquilo que produz, de tudo o que lhe acon­tece, de todas as coisas que vê, ouve, come ou toca. Tudo é usa­do como um meio de se libertar da própria prisão.

  • Boa preleção disse Will, num tom polido e descrente.

  • Ainda tem mais insistiu Ranga, acrescentando ao pedantismo a ânsia do proselitismo juvenil. Nisso reside a dife­rença entre a sua filosofia e a nossa. Os filósofos ocidentais (mes­mo o melhor deles) não passam de bons oradores. Os filósofos orientais geralmente não sabem como se expressar, mas não é is­so o que importa. A filosofia de vocês é tão pragmática e eficien­te quanto a física moderna. A diferença é que, nos assuntos pu­ramente filosóficos, as questões são de ordem psicológica e os resultados são transcendentais. Os seus metafísicos fazem afir­mações sobre a natureza humana e sobre o universo, porém não oferecem ao leitor qualquer meio que lhe permita analisar a ver­dade dessas afirmações. As nossas afirmações são sempre acom­panhadas por uma verdadeira lista na qual são mencionadas to­das as operações que podem ser feitas, a fim de avaliar a solidez das mesmas. Por exemplo: a afirmação Tat Twam asi (Tu és Es­se) é o centro de toda a nossa filosofia. Tat Twam asi repetiu ele. Parece um problema de metafísica. Na realidade é uma experiência psicológica e as maneiras pelas quais essa experiên­cia pode ser vivida foram descritas por nossos filósofos. Desse modo, qualquer pessoa que queira efetuar todas as operações que se fazem necessárias pode verificar a solidez do Tat Twam asi. Essas operações são chamadas ioga dhyana ou zen. Em certas cir­cunstâncias especiais recebe também o nome de maithuna.

  • Isso nos trouxe de volta à pergunta inicial. Que vem a ser maithuna?

  • Talvez seja melhor perguntar a Radha disse o rapaz.

    Will voltou-se para a pequena enfermeira.

  • Que é?

  • Maithunarespondeu ela com seriedade é a ioga do amor.

  • Sagrado ou profano?

  • Não existe diferença entre os dois.

  • Tudo está incluído nisso ajuntou Ranga. Quando se pratica maithuna, o amor profano é amor sagrado.

  • Buddhatvan yoshidyonisansritan — citou a moça.

  • Nãn entendo nada do seu sânscrito! Quer explicar?

  • Como você traduziria Buddhatvan, Ranga?

  • Estar impregnado. Estar iluminado por Buda, isto é, es­tar em estado de graça.

    Radha concordou e, voltando-se para Will, explicou:

  • Significa que a graça está no yoni.

  • No yonP.— Will se lembrou daqueles pequenos emble­mas de pedra do "eterno feminino" que havia comprado das mãos de um vendedor corcunda, a fim de presentear as moças do es­critório. Fora em Benares. Pagara oito annaspor um yoni preto e doze pela imagem ainda mais sagrada do yoni-lingan.— Está mesmo no yoni ou isso tudo tem apenas uma significação meta­fórica?

  • Que pergunta ridícula! — disse a enfermeira dando seu riso claro, alegre e sem afetação. — Você pensa que fazemos amor metaforicamente? Buddhatvan yoshi dyoni sansritan — repetiu. — Nada pode ser mais integralmente literal.

  • Por acaso você ouviu falar na Comunidade de Oneida? - perguntou, por sua vez, Ranga.

    Will disse que aprendera um pouco a respeito, através de um historiador americano especializado em comunidades do século XIX.

  • Mas como é que você aprendeu isso? — perguntou.

  • Porque é mencionado em todos os nossos manuais de filosofia aplicada. Basicamente, maithunaé o mesmo que o povo de Oneida chamava "continência masculina". É o mesmo que os católicos romanos querem dizer com coitus reservatus.

  • Reservatus — repetiu a pequena enfermeira. — Isso sem­pre me dá vontade de rir. Mas que jovem "reservado"! — As covinhas reapareceram e houve um lampejo de dentes alvos.

  • Não seja tola — disse Ranga severamente. — Isto é sério.

    Ela expressou a sua contrição. Porém reservatus era realmen­te muitíssimo engraçado!

  • Em uma palavra, é apenas o controle da natalidade sem o uso de anticoncepcionais — concluiu Will.

  • Isso é apenas o início da história — prosseguiu Ranga.

  • Maithuna significa também uma outra coisa. Alguma coisa ainda mais importante! — O estudante pernóstico havia readqui­rido segurança. — Lembre-se — continuou com seriedade —, lembre-se do ponto que Freud está sempre repisando. O ponto a respeito da sexualidade das crianças. Aquela com que nasce- mos. A que tivemos na infância e na puberdade e que estava con­centrada nos órgãos genitais. A sexualidade dissimulada em to­do o nosso ser. Esse foi o paraíso que herdamos e que perdemos à proporção que crescemos. Maithuna é a tentativa sistematiza­da para que readquiramos esse paraíso. Você, que tem boa me­mória, é capaz de se lembrar de qual a frase de Spinoza que ci­tam no manual de filosofia aplicada? perguntou, dirigindo-se a Radha.

  • Torne seu corpo capaz de fazer muitas coisas e isso o ajudará a aperfeiçoar o amor intelectual de Deus — recitou a moça.

  • Conseqüentemente, todas as iogas estão incluídas, mesmo a maithuna disse Ranga.

  • E é realmente uma ioga insistiu a moça. É uma io­ga tão boa quanto a rajá ioga, a carma ioga ou a bhakti ioga. Para a maioria das pessoas é mesmo muito superior às outras, pois a maithuna realmente as leva até lá.

  • Que quer dizer com "lá"? perguntou Will.

  • "Lá" é onde você sabe.

  • Sabe o quê?

  • Sabe quem na realidade é. Acredite ou não ajuntou ela —, Tat Tv/am asi (Tu és Esse) na verdade quer dizer Eu sou. "Esse" sou eu. As covinhas vieram à tona e os dentes brilha­ram. E "Esse" é também ele disse, apontando para Ran­ga. Inacreditável, não é? Ela mostrou a língua para Ranga.

  • E, no entanto, é um fato.

    Ranga sorriu, estendeu a mão e pôs o dedo indicador na pon­ta do nariz de Radha.

  • Não é um simples fato e sim uma verdade comprovada

  • disse. Deu uma pancadinha no nariz dela. Uma verdade comprovada repetiu. Portanto, cuidado, moça!

  • Se tudo se resume em fazer amor seguindo uma técnica diferente, por que razão não somos todos iluminados? perguntou Will.

  • Vou lhe explicar começou Ranga, porém a moça o interrompeu.

  • Escute disse. Escute!

    Will ouviu nitidamente, embora falha e distante, a voz estranha e inumana que o recebera quando de sua chegada a Pala.

  • Atenção! dizia. Atenção, atenção...

  • Aquele pássaro dos diabos está de volta!

  • Mas esse é o segredo.

  • "Atenção"? Mas há apenas um minuto você dizia que era uma coisa completamente diferente! Que há com esse rapaz, que subitamente ficou tão calado?

  • Está calado apenas para poder prestar atenção com mais facilidade.

  • E realmente se torna mais fácil confirmou Ranga. Esse é o ponto básico de maithuna. Não é a técnica especial que transforma a cópula em ioga; é a espécie de percepção que a téc­nica torna possível. É a consciência das próprias sensações, a cons­ciência da não-sensação que existe em cada sensação.

  • O que é "não-sensação"?

  • É a matéria-prima da sensação que me é fornecida pelo meu não-ser.

  • E você pode prestar atenção ao seu 1'não-ser"?

  • Claro que posso.

    Will voltou-se para a pequena enfermeira e perguntou:

  • Você também?

  • Dou simultaneamente atenção a mim mesma, ao meu não-ser, ao não-ser de Ranga, ao ser dele, ao corpo dele e a tudo que representa sentimento. Nisso incluo todo o amor, a amizade e os mistérios da outra pessoa, um perfeito estranho que se torna a outra metade do nosso ser e do nosso não-ser. Durante todo o tempo se presta atenção a tudo isso, mas as pessoas sentimentais, ou, pior ainda, as espiritualistas como a pobre velha rani conside­rariam esse conceito como destituído de atrativos, grosseiro e até mesmo sórdido. Mas não é sórdido porque, quando se presta a devida atenção ao que se passa, tudo se reveste de beleza, tão ma­ravilhosa como tudo o que possa existir de mais belo.

  • Maithuna é dhyanaconcluiu Ranga, pensando que uma palavra nova esclareceria tudo.

  • E que é dhyana? perguntou Will.

  • Dhyana é contemplação.

  • Contemplação!

    Will pensou naquela alcova rosa-morango da rua Charing Cross. Contemplação não era bem a palavra que escolheria. E, no entanto, pensando bem, mesmo lá ele encontrara uma espécie de alívio! Aquelas alienações à luz incerta do Gin Porter eram as loucuras do seu odioso ego diurno. Infelizmente eram também as alienações de todo o resto do seu ser — alienações do amor, da inteligência, da decência... Alienações de toda a consciência, com exceção daquele excruciante frenesi à luz mortuária ou sob o "brilho rosado da mais barata e vulgar ilusão.

Olhou novamente o rosto radiante de Radha. Que felicida­de! Naquele rosto jovem estava estampada a convicção nascida de uma serenidade na qual não se via a noção de pecado que Mr. Bahu estava tão determinado a combater. Tamanha tranqüilida­de chegava a ser profundamente comovente!

Mas ele se recusava a se deixar comover. O Noli me tangere era um imperativo categórico. Resolveu mudar o ponto de vista pelo qual via as coisas e conseguiu analisá-las sob um aspecto in­teiramente ridículo. Que devemos fazer para sermos salvos? Pen­sou numa pilhéria que lhe ocorrera e, ainda sorrindo, perguntou ironicamente:

  • Ensinaram-lhe maithunana escola?

  • Sim, na escola — respondeu Radha com uma naturali­dade que tirou todo o rabelaisianismo de suas esperanças.

  • Todos o aprendem na escola — ajuntou Ranga.

  • Quando começaram a ensinar?

  • Quase que simultaneamente com a trigonometria e a biologia adiantada. Entre quinze anos e quinze anos e meio.

  • E continuam a praticar o maithuna, mesmo depois que atingem a idade adulta e se tornam independentes? Mesmo de­pois do casamento?

  • Sim. A grande maioria continua a utilizá-lo mesmo de­pois do casamento.

  • Durante todo o tempo?

  • Só deixam de usá-lo quando desejam ter um filho.

  • Como agem os que, não desejando filhos, apenas que­rem sair da rotina do maithuna?

  • Usam anticoncepcionais — disse Ranga laconicamente.

  • Os anticoncepcionais são adquiridos com facilidade?

  • São distribuídos pelo governo e isentos de qualquer despesa. Gratuitamente. As despesas, se é que você quer ser preciso, são aquelas representadas pelas contribuições oriundas dos im­postos. No princípio de cada mês o carteiro entrega uma provi­são para trinta noites.

  • E os bebês não aparecem?

  • Apenas aqueles que desejamos. Ninguém tem mais de três e a maioria dos casais pára no segundo. As estatísticas demonstram que nossa população está crescendo de menos de um terço de um por cento anualmente. Enquanto isso, em Rendang o au­mento é igual ao do Ceilão, isto é, de quase três por cento. Na China é de dois por cento e na índia é de 1,7 por cento disse Ranga, com ares de importância.

  • Estive na China há um mês disse Will. É assusta­dor! No ano passado, visitei a índia durante quatro semanas e, antes disso, viajei pela América Central, onde a natalidade exce­de a de Rendang e a do Ceilão. Algum de vocês já esteve em Rendang-Lobo?

    Ranga balançou a cabeça afirmativamente.

  • Passei três dias em Rendang. Ao atingirmos a 6a série superior, essas viagens estão incluídas no curso de Sociologia. Têm por objetivo permitir que o aluno veja por si mesmo o mundo exterior.

  • Qual a sua impressão?

    O rapaz respondeu com outra pergunta:

  • Quando esteve em Rendang-Lobo, eles lhe mostraram os cortiços?

  • Pelo contrário, fizeram tudo o que era possível para evi­tar que eu os visse. Contudo, consegui escapar.

    Will se lembrava perfeitamente da escapada que dera quan­do voltava para o hotel, depois do coquetel que o ministro de Relações Exteriores oferecera a todos aqueles que tinham "posição". Lá estavam os dignitários e suas esposas uniformes e meda­lhas, Dior e esmeraldas. Todos os estrangeiros importantes di­plomatas em abundância, homens do petróleo (ingleses e ameri­canos), seis membros da missão comercial do Japão, uma far- macologista de Leningrado, dois engenheiros poloneses, um tu­rista alemão (que era primo de Krupp von Bohlen), um armênio enigmático (que representava um consórcio financeiro muito im­portante em Tânger) e, sorrindo triunfalmente, os quatorze téc­nicos tcheco-eslovacos que tinham vindo no mês anterior, junta­mente com o carregamento de tanques, canhões e metralhadoras Skoda. "E essas são as pessoas", ele dissera para si mesmo, en­quanto descia os degraus de mármore do edifício do Ministério das Relações Exteriores em direção à praça da Liberdade, "essas são as pessoas que governam o mundo. Dois bilhões e novecentos milhões de seres humanos estão à mercê de um punhado de políticos, uns poucos milhares de magnatas e generais e agiotas. Vós sois o cianureto do mundo — e o cianureto jamais perderá seu sabor."

    Depois do resplendor do coquetel, depois dos sorrisos, dos deliciosos odores dos canapés e das mulheres borrifadas com Chanel, aquelas ruelas atrás do novíssimo "Palácio da Justiça" lhe pareceram duplamente fétidas e escuras. E aqueles pobres des­graçados que se abrigavam sob as árvores da "avenida da Inde­pendência" lhe pareceram ainda mais completamente abandona­dos por Deus e pelo homem do que aqueles milhares de "sem lar e sem esperanças" que vira dormindo, como se já estivessem mor­tos, nas ruas de Calcutá.

    Lembrou-se daquele menino, um minúsculo esqueleto com a barriga enorme, a quem ele levantara trêmulo e machucado de­pois de ter caído das costas da irmã, que, embora sendo pouco maior que ele, o carregava. Levantara o menino e, guiado pela irmã, carregara-o no colo até o porão sem janelas, que era seu lar. E, na escuridão desse "lar", ele contara nove cabeças infec­tadas pela micose!

  • Manter as crianças vivas, tratar os doentes, evitar que os detritos invadam o fornecimento da água são coisas intrinseca­mente boas, não há a menor dúvida! Mas aonde conduzem to­das essas boas coisas? O resultado é o aumento do número das misérias humanas; é a civilização exposta ao perigo. E esta é a espécie de brincadeira cósmica com que Deus parece realmente se deleitar! — Will dirigiu aos jovens um de seus sorrisos ferozes e agressivos.

  • Deus nada tem a ver com isto — retrucou Ranga — e a brincadeira não é cósmica; foi inteiramente elaborada pelo ho­mem. Essas coisas não são como a lei da gravidade ou a segun­da lei da termodinâmica. Elas não têm de acontecer. Somente ocorrem se as pessoas são bastante estúpidas para permitirem. Aqui em Pala não o permitimos e, por isso, não brincaram co­nosco. Há quase um século temos bom sistema sanitário e, ape­sar disso, não temos excesso de população, não temos miséria e não estamos sob uma ditadura. A razão de tudo isso é muito simples: escolhemos um modo de proceder que é sensato e realista.

  • Como conseguiram escolher? — perguntou Will.

  • As pessoas a quem cabia decidir foram inteligentes no momento oportuno — disse Ranga. — Mas temos de admitir que a sorte nos ajudou muito. De um modo geral, Pala tem tido uma sorte fora do comum. Em primeiro lugar, pelo fato de nunca ter sido uma colônia. Rendang possui uma baía magnífica. Isso lhes trouxe uma invasão árabe, na Idade Média. Como nós não te­mos uma baía, os árabes nos deixaram em paz. Continuamos bu­distas, xivaítas ou simples agnósticos de tantrik.

  • Você é um agnóstico de tantrik? — perguntou Will.

  • Com um "toque" de mahayana— especificou Ranga. — Mas, voltando á história de Rendang... Depois dos árabes, vieram os portugueses. Em Pala, sem a baía, nada de portugueses. Conseqüentemente, não houve minorias católicas nem a tola blas­fêmia que diz ser a vontade de Deus que manda as pessoas se re­produzirem até o grau da miséria subumana. Finalmente, não houve resistência organizada ao controle da natalidade. Essa não foi nossa única bênção. Após duzentos e vinte anos de domínio português, Ceilão e Rendang passaram a ser dominados pelos ho­landeses e, depois, pelos ingleses. Escapamos de ambas as infes­tações. Sem os holandeses ou ingleses, não surgiram os planta­dores, o trabalho braçal, colheitas pagas à vista e destinadas à exportação. Não houve a exaustão sistemática do nosso solo, não houve uísque, calvinismo, sífilis ou administradores estrangeiros. Permitiram-nos seguir nosso próprio caminho e tomar a respon­sabilidade de nossos próprios negócios.

  • Não há dúvida! Vocês tiveram sorte!

  • E, para coroar esta sorte surpreendente — continuou Ranga —, houve também a administração excepcionalmente boa de Murugan, o "Reformador", e de Andrew MacPhail. O dr. Robert já lhe falou a respeito de seu bisavô?

  • Muito pouco.

  • Ele lhe contou a respeito da fundação do Posto Experimental? — Will balançou a cabeça, negativamente. — O Posto Experimental — disse Ranga — teve um papel relevante na polí­tica da nossa população. Tudo começou com a fome. Antes de vir para Pala, o dr. Andrew viveu alguns anos em Madras. Esta­va lá havia dois anos quando os ventos não sopraram na época devida. As colheitas foram queimadas, os reservatórios de água e até mesmo os poços secaram. Não havia comida a não ser para os ingleses e para os ricos. As pessoas morriam como moscas. Há uma famosa passagem nas memórias do dr. Andrew a respei­to daquela falta de víveres. Um comentário após a descrição. Quando ele era criança, teve de ouvir muitos sermões. Nesse mo­mento, enquanto trabalhava entre indianos famintos, um deles lhe vinha à memória: O homem não vive apenas de pão, este era o texto, e o pregador fora tão eloqüente que várias pessoas se converteram. O homem não vive apenas de pão. Porém sem o pão, ele estava vendo com os próprios olhos, não há inteligência, es­pírito, luz interior ou Pai do Céu. Só há lugar para a fome, o desespero, a apatia e finalmente a morte.

  • É outra das brincadeiras cósmicas — disse Will. — Esta é de autoria do próprio Jesus: Àqueles que têm lhes será dado, e daqueles que não têm será tirado, mesmo o pouco que têm, a mera possibilidade de continuar a viver como um ser humano. Esta é a mais cruel de todas as brincadeiras de Deus e também a mais usada. Tive oportunidade de vê-la em ação, sobre os mi­lhões de homens, de mulheres e de crianças espalhados por todo o mundo.

  • Então está em condições de compreender por que aquela fome causou uma impressão tão profunda no espírito do dr. An­drew. Ele e seu amigo, o rajá, decidiram que ao menos em Pala jamais deveria faltar o pão. Daí nasceu a idéia de construir o Posto Experimental. O Rothamsted dos trópicos foi um grande suces­so. Em poucos anos tínhamos novas espécies de arroz, de milho, de painço e de fruta-pão. As criações de gado e de galinhas me­lhoraram, assim como as condições do cultivo e de adubação. Fo­mos nós que construímos a primeira fábrica de superfosfato a leste de Berlim. Graças a todas essas coisas, o povo estava se ali­mentando, tinha vida mais longa e perdia menor número de crian­ças. Dez anos após a fundação do Rothamsted dos trópicos o ra­já fez um recenseamento. A população se conservara estável por quase um século e agora começava a aumentar. O dr. Andrew previu que, dentro de aproximadamente cinqüenta ou sessenta anos, Pala se transformaria na mesma espécie de cortiço que Rendang já era. Que devia ser feito? O dr. Andrew já lera Malthus: A produção do alimento cresce aritmeticamente, enquanto a população cresce geometricamente.O homem tem apenas duas escolhas: deixar o assunto a cargo da Natureza, que o resolverá pelos métodos conhecidos (fome, peste ou guerra), ou optar pela solução apresentada por Malthus (que era um clérigo), que con­sistia no uso da contenção moral a fim de limitar o número de nascimentos.

  • Contenção moral repetiu a pequena enfermeira, enrolando o "r" no modo indonésio de imitar um clérigo escocês. Incidentalmente acrescentou o dr. Andrew acabava de se casar com a sobrinha do rajá, que tinha dezesseis anos.

  • E isto disse Ranga foi ainda mais uma razão para corrigir Malthus. A fome de um lado e a contenção do outro. Claro que deveria haver um modo melhor, mais feliz e humano, e que permitisse que as opções malthusianas fossem seguidas. Mes­mo naquela época, mesmo antes da idade da borracha e dos es­permicidas, existiam recursos. Havia as esponjas, os sabões e camisas-de-vênus que eram feitos de qualquer espécie de tecido impermeável (desde a seda oleada à tripa de carneiro). Todo um arsenal foi utilizado pelo Comitê de Controle da Natalidade.

  • Como reagiram o rajá e seus súditos a esse controle? Horrorizaram-se?

  • De modo algum. Eram budistas convictos e cada um de­les sabia muito bem que a procriação não é mais que um assassinato adiado. "Faça o máximo para escapar à roda do nascimen­to e da morte e, por favor, não contribua com vítimas supérfluas para a roda." Para um budista convicto o controle da natalida­de adquire um sentido metafísico. Para a comunidade de uma aldeia de plantadores de arroz, tem um sentido social e econômi­co. Deve haver jovens em número suficiente para trabalhar nos campos, sustentar os idosos e as crianças. Porém esse número não deve ser excessivo, pois, se assim for, nem os velhos nem os tra­balhadores nem seus filhos terão o que comer. Nos tempos anti­gos os casais tinham seis filhos para que uns dois ou três sobrevi­vessem. Surgiram então a água purificada e o Posto Experimen­tal. Dos seis filhos, cinco passaram a sobreviver. Os velhos mé­todos de procriação deixaram de ter sentido é a única objeção feita ao Controle da Natalidade era sua crueza. Felizmente havia uma alternativa mais estética. O rajá era um iniciado em tantrik e aprendera a ioga do amor. O dr. Andrew passou a conhecer o maithuna e, sendo um verdadeiro homem de ciência, concordou em experimentá-lo. Ele e sua esposa foram convenientemen­te instruídos.

  • Quais foram os resultados?

  • Aprovação entusiástica.

  • Esse é o sentimento de todos a respeito do assunto disse Radha.

  • Vamos, vamos, nada de generalização! Algumas pessoas estão de acordo, outras não. O dr. Andrew foi um dos entusias­tas. O assunto foi discutido longamente. Por fim decidiram que os anticoncepcionais deveriam ser como a educação: livres, ad­quiridos com os impostos e (embora seu uso não fosse completa­mente compulsório) divulgados. Para aqueles que tinham neces­sidade de algo mais apurado, haveria o ensino da ioga do amor.

  • Quer dizer que eles continuaram com a idéia do maithunal

  • Não foi assim tão difícil. O maithuna é ortodoxo. As pessoas não eram compelidas a fazer nada contra sua religião. Ao contrário, uma oportunidade lhes era oferecida a fim de se reu­nirem aos eleitos, pelo simples fato de estarem aprendendo algo esotérico.

  • E não se esqueça do ponto mais importante de todos interrompeu a pequena enfermeira. Para as mulheres, todas as mulheres, e não importa o que diga a respeito de "impulsos de generalização", a ioga do amor significa perfeição, ser trans­formada, sair de si mesma e completar-se. — Houve um breve silêncio. Agora continuou num tom mais vivo —, é preciso que o deixemos dormir.

  • Antes que se vão disse Will —, gostaria de escrever uma carta. Nada mais que um bilhete para meu chefe, comunicando-lhe que continuo vivo e sem perigo imediato de ser comido pelos nativos.

    Radha deu uma busca no gabinete do dr. Robert e voltou trazendo lápis, papel e um envelope.

Veni vidi. Naufraguei, encontrei a rani e seu colaborador de Rendang, que sugere poder entregar a "encomenda" em troca de "baksheesh", ao som de vinte mil libras (ele foi específico). Devo negociar nessa base? Se você telegrafar: "Artigo proposto O.K.", irei em frente. Se, ao contrário, mandar dizer: "Sem pres­sa para o artigo", deixarei o assunto morrer. Diga a minha mãe que estou bem e que escreverei em breve.

  • Aí está — disse ele, entregando a Ranga o envelope fechado e endereçado. — Por favor, você poderia comprar o selo e enviá-la em tempo de alcançar o avião de amanhã?

  • Pode ficar descansado — prometeu o rapaz.

    Observando-os enquanto se retiravam, Will sentiu uma dor

    aguda na consciência. Que jovens encantadores! E ele ali estava conspirando com Bahu e as forças da História, para subverter o mundo deles! Consolou-se com o pensamento de que, se ele não o fizesse, outra pessoa o faria. Além disso, mesmo que Joe Aldehyde obtivesse a concessão, eles continuariam a poder fazer amor do modo a que estavam acostumados. Ou será que não po­deriam?

    Da porta, a pequena enfermeira voltou-se para uma última palavra.

  • Nada de ler — disse, com o dedo em riste. — Durma!

  • Nunca durmo durante o dia — assegurou-lhe Will com uma ponta de perversa satisfação.

 

Ele nunca dormia durante o dia, porém quando olhou para o relógio novamente eram quatro horas e vinte e cinco minutos e se sentia maravilhosamente repousado. Pegou as Notas sobre o que é quê e recomeçou a leitura que interrompera:

Dê-nos neste dia a nossa fé diária, porém livre-nos, ó Deus amado, da Crença.

Nesse ponto parara a leitura durante a manhã. A parte seguinte era a quinta.

 

O "eu" que penso ser e o "eu " que realmente sou! Em ou­tros termos, o sofrimento e o fim do sofrimento. Cerca de um terço do sofrimento que devo suportar é inteiramente inevitável por ser inerente à própria condição humana. Representa o preço que todos temos que pagar pelo fato de sermos dotados de sensi­bilidade; embora sedentos de liberação, nos sujeitamos às leis na­turais que nos obrigam a continuar caminhando (sem poder re­troceder) através de um mundo inteiramente indiferente ao nos­so bem-estar. Caminhando em direção à decrepitude e à certeza da morte. Os outros dois terços são "confeccionados em casa" e o universo os considera inteiramente supérfluos.

 

Will virou a página. Uma folha de bloco esvoaçou sobre a cama. Apanhando-a, olhou-a rapidamente. Havia umas vinte li­nhas escritas com boa caligrafia e, no fim da página, viam-se as iniciais S. M. Evidentemente não se tratava de uma carta e sim de um poema. Assim sendo, poderia ser considerado coisa públi­ca. Passou a lê-lo:

 

Em algum lugar, entre o silêncio cruel e o último domingo, Cento e trinta mil sermões; Além, entre

Calvino e Cristo (Deus nos ajude!), e os lagartos;

Além, entre ver e falar,

Além, entre a nossa suja torrente de palavras

E a primeira estrela, grandes mariposas esvoaçando

Entre fantasmas e flores,

Está o lugar iluminado onde eu,

Embora não mais o mesmo,

Consigo me lembrar

Da sabedoria do amor noturno da Outra Margem; E, escutando o vento, recordo também Aquela primeira noite insone da minha viuvez, Com a morte a meu lado na escuridão. Minha, minha, toda minha, inevitavelmente minha! Porém não sou mais eu mesmo

E, nesta clareira que existe entre meu pensamento e o silêncio,

Vejo tudo o que tinha e perdi,

E as angústias e alegrias

Brilham como as gencianas das relvas alpinas,

Livres, azuis e abertas!

 

— Comogencianas — repetiu Will a si mesmo, lembrando- se daquelas férias de verão que passara na Suíça por volta dos seus doze anos de idade. Recordou-se das flores e das lindas bor­boletas (tão diferentes das inglesas) que vira nos prados que se elevavam acima do Grindelwald. Reviu o céu azul-escuro, o bri­lho do sol e as brilhantes e gigantescas montanhas que se erguiam do outro lado do vale. Diante de tanta beleza, tudo o que seu pai conseguira dizer, à guisa de comentário, fora que a paisagem se parecia com um anúncio de chocolate Nestlé. "Nem ao menos é chocolate puro", insistira com uma careta de desagrado. "É chocolate com leite!" Após aquele comentário se seguira uma iro­nia sobre a aquarela que sua mãe estava pintando (infelizmente tão mal) com tanto amor e cuidado: "O anúncio do chocolate com leite que a Nestlé rejeitou". Agora chegara sua vez: "Em vez de ficar aí gemendo de boca aberta como se fosse um idiota de aldeia, por que não faz algo inteligente para variar? Estude um pouco de gramática alemã, por exemplo". E, mergulhando a mão na mochila, puxara, dentre os ovos cozidos e os sanduíches, o horroroso livrinho marrom. Que homem detestável! No entanto, se Susila estivesse com a razão, deveria vê-lo (depois de se terem passado tantos anos) a brilhar como se fosse uma genciana.

Will passou os olhos novamente na última linha do poema.

  • Livres, azuis e abertas!

  • Viva!... — disse uma voz familiar.

    Ele voltou-se para a porta.

  • Falando do diabo, ou melhor, lendo o que o diabo escreveu... — disse ele, erguendo a folha de papel a fim de que ela pudesse ler.

    Susila olhou-a.

  • Oh! Isto! Como se boas intenções fossem o bastante para fazer boa poesia... — disse, suspirando e balançando a cabeça.

  • Estava tentando pensar no meu pai como se fosse uma genciana porém só obtenho a imagem persistente de um grandís­simo molenga.

  • Mesmo os molengas podem ser vistos como gencianas — respondeu Susila.

  • Presumo que isso só aconteça no lugar descrito por vo­cê: Nesta clareira que existe entre meu pensamento e o silêncio.

  • Susila concordou. — Como se chega até ela?

  • Não se vai até ela. É ela que vem até você. Melhor ain­da, na realidade, ela está aqui.

  • Você é igualzinha à pequena Radha — queixou-se ele. — Sempre papagueando aquilo que o velho rajá diz no princípio do seu livro.

  • Se o repetimos — disse ela — é porque é verdadeiro. A não-repetição significaria a ignorância dos fatos.

  • Quais fatos? — perguntou ele. — Certamente não os meus.

  • Não neste momento — concordou ela. — Mas, se você fizesse as coisas recomendadas pelo velho rajá elas poderiam se tornar os seus fatos.

  • Você teve alguma dificuldade com seus pais? — pergun­tou Will após um curto silêncio. — Ou sempre teve a faculdade de ver gencianas em vez de molengas?

  • Naquela idade, não respondeu ela. As crianças têm que ser dualistas, maniqueus. Este é o preço que temos de pagar para aprender os rudimentos da arte de como nos tornar seres. Ver gencianas em vez de molengas, ou melhor, ver tanto as gen­cianas quanto os molengas como se ambos fossem Gencianas com G maiúsculo, isto é uma proeza somente reservada a quem já foi diplomado.

  • Como você procedeu com seus pais? Limitou-se a sor­rir e a tolerar o intolerável? Ou seu pai e sua mãe eram tole­ráveis?

  • Toleráveis quando separados respondeu ela. Especialmente meu pai. Mas completamente insuportáveis quando jun­tos; insuportáveis porque não podiam suportar um ao outro. Ima­gine uma mulher dinâmica, alegre e extrovertida, casada com um homem permanentemente introvertido! Ela era uma fonte de con­tínua irritação para ele e creio que essa irritabilidade ia até a ca­ma. Ela nunca parava de falar; ele nunca iniciava uma conversa. O resultado disso foi que ele a julgava superficial e falsa e ela o considerava insensível, desdenhoso e destituído dos sentimen­tos humanos normais.

  • Esperava que o seu povo fosse mais esperto e não caísse nesse tipo de armadilha.

  • Somos realmente espertos — assegurou-lhe ela. As moças e os rapazes são especialmente educados para saber o que es­perar de pessoas cujo físico e temperamento sejam muito dife­rentes dos seus. Infelizmente, nem sempre as aulas produzem os resultados que se esperam. Em outros casos, a distância psicoló­gica entre as pessoas envolvidas é tão grande que não pode ser vencida. Qualquer que tenha sido a razão permanece o fato de que meu pai e minha mãe nunca tentaram resolver suas diferen­ças. Haviam se apaixonado, só Deus sabe por quê!!! Mas, quan­do veio a aproximação, ela sentia-se constantemente magoada pela inacessibilidade dele, enquanto a camaradagem sem inibições dela o fazia encolher-se completamente aterrorizado dentro de seu aca­nhamento e de sua aversão. Minhas simpatias estavam sempre com meu pai, com quem muito me apreço, tanto no físico como no temperamento. Em nada me pareço com minha mãe, e lembro de que mesmo quando muito criança costumava me defen­der da sua exuberância. Ela era uma invasão permanente ao iso­lamento de qualquer pessoa. E ainda o é.

  • Você é obrigada a vê-la com freqüência?

  • Não, pois ela tem seu trabalho e suas amigas. Em nosso pequeno mundo, "mãe" é estritamente o nome de uma função, e esse título desaparece quando a missão foi devidamente cum­prida. A ex-criança e a mulher que era mãe estabelecem um novo tipo de relações; quando se entendem bem, continuam se vendo com regularidade. Caso contrário, separam-se. Ninguém espera que permaneçam apegadas, pois o apego não pode ser compara­do ao amor e, por isso, não pode ser encarado como qualquer coisa particularmente digna de crédito.

  • Entendo que agora tudo esteja bem — disse Will. — E naquela época? Que aconteceu quando você era a criança que cres­cia entre duas pessoas que não podiam vencer o abismo que as separava? Sei o que significa. É como a história de fadas, com a diferença de que o fim é diametralmente oposto ao clássico re­frão: "E eles viveram felizes para sempre".

  • Levando em conta todos esses fatores desfavoráveis, conseguimos nos entender bastante bem.

  • Como conseguiram isso?

  • Não conseguimos nada. Tudo foi arranjado para nós. Vo­cê já leu o que o velho rajá escreveu a respeito de livrar-se dos dois terços do sofrimento que é "confeccionado em casa" e que é desnecessário?

    Will fez que sim com a cabeça.

  • Estava lendo a respeito quando você entrou.

  • Bem, nos velhos maus tempos — continuou ela — as famílias palanesas eram tão propiciadoras de maus tratos, tiranas e criadoras de mentiras quanto a sua gente o é nos dias atuais. Eram tão horríveis que o dr. Andrew e o rajá da reforma decidi­ram que algo tinha que ser feito a respeito. As éticas budistas e o comunismo primitivo de aldeia foram habilmente trabalhados para servirem a planos nacionalmente delineados, e em apenas uma geração todo o sistema familiar foi radicalmente transfor­mado. — Ela hesitou por um momento. — Deixe-me explicar — continuou — em termos do meu caso particular: o caso de uma filha única de duas pessoas que não podiam se compreender e que estavam sempre se desentendendo e discutindo. Nos velhos tempos, uma menina criada nesse ambiente se transformaria num destroço, numa rebelde ou numa conformista hipócrita e resig­nada. Porém, sob o novo regime, não tive que suportar sofrimento desnecessário e, por conseguinte, não fui forçada a me tornar um destroço, uma rebelde ou uma resignada. Por quê? Porque, des­de o momento em que comecei a andar, era livre para fugir.

  • Fugir? — perguntou Will. — Fugir?!

    Parecia bom demais para ser verdade.

  • Fugir — explicou ela — está no novo sistema. Em qual­quer tempo em que o "lar, doce lar" paterno se torna insuportá­vel, a criança tem permissão, ou melhor, é ativamente encoraja­da (e todo o peso da opinião pública está por trás desse encorajamento) a emigrar para um outro lar.

  • Quantos lares tem uma criança palanesa?

  • Em média, uns vinte.

  • Vinte?! Meu Deus!

  • Todos nós pertencemos a um CAM (Clube de Adoção Mútua). Cada CAM é composto por quinze a vinte e cinco ca­sais diferentes. Casais jovens, mais velhos e com filhos em idade de crescimento, avós e bisavós, todos os do clube se adotam mu­tuamente. Além dos nossos parentes consangüíneos, dispomos de uma porção de mães, pais, tias, tios, irmãos, irmãs, bebês e ado­lescentes que nós mesmos elegemos.

    Will meneou a cabeça, incrédulo, dizendo:

  • Ajudando no desenvolvimento de vinte famílias, em vez de uma só!

  • Porém o tipo de família que havia anteriormente era igual ao seu tipo. As vinte são do nosso tipo. — Prosseguiu como se estivesse lendo um livro de receitas: — Tome um assalariado se­xualmente incapaz, uma mulher insatisfeita, dois (ou mesmo três) pequenos viciados em televisão e faça um escabeche misturando uma porção de freudismo e uma solução fraca de cristianismo. Arrolhe bem num apartamento de quatro cômodos e cozinhe tu­do isso durante quinze anos no próprio caldo. A nossa receita, por outro lado, é bastante diferente: tome vinte casais sexual­mente satisfeitos, juntamente com a prole deles. Adicione ciên­cia, intuição e humor em partes iguais. Ingresse no budismo tantrike ponha a mistura a ferver ao ar livre, lenta e indefinida­mente, numa panela aberta, colocada sobre a chama viva da afeição.

  • E o que resulta dessa panela aberta?

  • Uma espécie de família completamente diferente da do seu mundo e onde não existe nada de exclusivismo, de predestinado e de compulsório. Ao contrário, tudo é feito para que a pre­destinação seja substituída pela escolha voluntária. Vinte pares de pais e mães, oito ou nove ex-pais e ex-mães, além de quarenta ou cinqüenta crianças dos mais variados tipos e idades.

  • As pessoas permanecem no mesmo clube de adoção por toda a vida?

  • Claro que não. As crianças mais crescidas não adotam seus próprios pais, irmãos e irmãs. Elas saem e adotam outros mentores, um grupo diferente de companheiros da mesma idade e também mais moços. Os membros do novo clube os adotam e, com o passar do tempo, os filhos dos casais também os acei­tam como componentes da família. Nossos sociólogos chamam a isso de "hibridação de microculturas" e dizem que os efeitos são tão bons quanto aqueles que permitem a obtenção de dife­rentes variedades de milho ou de galinhas. Disso resultam rela­ções mais sadias em grupos mais responsáveis; surgem simpatias mais amplas e uma compreensão mais profunda. E as simpatias e compreensões se estendem a todos os componentes do CAM desde as criancinhas até os centenários.

  • Centenários? Qual a média de vida aqui?

  • Apenas um ano ou dois acima da de vocês — respon­deu Susila. — Dez por cento da população ultrapassa os ses­senta e cinco anos. Os velhos que não estão em condições de ganhar a vida recebem uma pensão. É óbvio que a pensão não é suficiente e eles necessitam fazer algo que seja ao mesmo tempo útil e tentador. Precisam de pessoas a quem possam dedicar cuidados e de quem recebam amor. Os CAM preenchem essas lacunas.

  • Isso tudo parece tão suspeito quanto a propaganda das novas comunas chinesas — disse Will.

  • Nada poderia ser menos parecido com uma comuna que o CAM Um CAM não é controlado pelo governo e sim por seus membros. Além disso, não somos militaristas e não estamos interessados em nos tornar "bons membros do partido"... Nosso único objetivo consiste em nos tornarmos bons seres huma­nos. Não incutimos dogmas e não tiramos as crianças de seus pais. Pelo contrário, damos alguns pais adicionais. E, aos pais, ofere­cemos filhos adicionais. Mesmo no berçário gozamos de um cer­to grau de liberdade. Essa liberdade aumenta à medida que cres­cemos e que vamos nos capacitando a lidar com responsabilida­des mais amplas e mais sérias. Enquanto isso, na China não há a menor liberdade. As crianças são entregues a "domesticadoras oficiais de bebês", cuja única missão consiste em transformá-los em seres obedientes ao Estado. As coisas são consideravelmente melhores na parte do mundo de onde você vem. Melhores, po­rém ainda assim bastante más. Vocês escapam às domesticado­ras de bebês designadas pelo Estado, porém sua sociedade con­dena alguém a passar a infância numa família composta dos pais e de um par de irmãos que lhe foram impostos pela predestina­ção hereditária. Não há nenhuma possibilidade de se ficar livre deles. Não se pode ficar longe deles durante as férias e muito me­nos ir viver com outra pessoa. Não existe chance de uma mudan­ça moral ou psicológica. Tem-se liberdade, é claro, mas a espécie de liberdade que se tem dentro de uma cabine telefônica.

  • Trancado — arrematou Will pensando em sua própria infância — na companhia de um tirano sarcástico, de uma már­tir cristã e de uma menininha que, amedrontada pelo tirano e chantageada pelos apelos que a mártir fazia a seus sentimentos mais puros, ficou reduzida a um estado de trêmula imbecilidade. Nesse lar vivi sem poder escapar, até a idade de quatorze anos, época em que a tia Mary veio morar na vizinhança.

  • E seus infortunados pais também nunca puderam esca­par de você.

  • Essa não é bem a verdade. Meu pai costumava fugir às custas do brandye minha mãe se utilizava do alto anglicanismo. Tive que cumprir minha sentença sem a menor mitigação. Qua­torze anos de servidão familiar! Como eu invejo você! Livre co­mo um pássaro!

  • Não seja tão lírico! Digamos, livre como um ser huma­no em desenvolvimento, livre como uma mulher futura, porém nada além disso. A Adoção Mútua protege a criança contra a injustiça e outras conseqüências ainda piores da inépcia dos pais; não as protege contra a disciplina ou contra o fato de ter de acei­tar seus encargos. Ao contrário, aumenta o número de suas res­ponsabilidades e as expõe a grande variedade de disciplinas. Nas suas famílias, exclusivistas e predestinadas, as crianças, como você disse, passam um período longo na prisão, sob a guarda de um par de carcereiros. É claro que esses carcereiros podem ser bons, sábios e inteligentes. Nesse caso, os pequenos prisioneiros emer­girão mais ou menos intactos. Mas o fato é que a maioria dos pais-carcereiros do seu mundo não é realmente boa, sábia ou in­teligente. Podem ter boas intenções e ser ignorantes, podem ser frívolos e destituídos de qualquer intenção boa e podem ser neu­róticos, maus ou definitivamente mórbidos. Desse modo, Deus que ajude aos jovens convictos que são compelidos pela lei, pe­los costumes e pela religião a se submeter às suaves misericórdias familiares! Considere agora o que acontece numa família esco­lhida voluntariamente. Nada de cabines telefônicas nem de car­cereiros predeterminados. Aqui, as crianças se desenvolvem num mundo que é um modelo de sociedade em pleno funcionamento e que é uma miniatura perfeita do ambiente no qual terão de vi­ver quando atingirem a idade adulta. Um "todo" sagrado e sau­dável: todos oriundos de uma mesma raiz, cada um trazendo nuanças diferentes, porém com a mesma significação. De acor­do com a etimologia, nossa família (a espécie escolhida de modo voluntário) é aquela que verdadeiramente pode ser chamada de "sagrada". A de vocês é a "não-sagrada".

  • Amém disse Will, pensando novamente em sua pró­pria infância, e também no pobre Murugan sob as garras da rani.

  • O que acontece quando as crianças emigram para um ou­tro lar? Por quanto tempo permanecem lá?

  • Depende. Quando meus filhos estão cansados de mim, raramente ficam fora mais do que um ou dois dias. O motivo é que, fundamentalmente, são muito felizes em casa. Eu, pelo con­trário, não o fui, e por isso acontecia que às vezes ficava fora por um mês inteiro.

  • Seus pais eleitos lhe davam apoio nos desentendimentos que tinha com seus verdadeiros pais?

  • Não é uma questão de fazer nada contra ninguém. Dá-se apoio somente à inteligência e ao bom sentimento e se faz oposi­ção à infelicidade e às suas causas evitáveis. Se uma criança é in­feliz no primeiro lar, fazemos o possível por ela nas outras quin­ze ou vinte "segundas bases" por ela escolhidas. Enquanto isso, o pai e a mãe recebem uma terapêutica discreta dos outros mem­bros do seu Clube de Adoção Mútua e, após algumas semanas, estão aptos a conviver novamente com seus filhos, e vice-versa. Não vá pensar que é apenas quando estão em dificuldades que as crianças recorrem a seus pais e avós eleitos. Elas o fazem cons­tantemente, bastando para isso que sintam a necessidade de uma mudança ou de qualquer outra espécie de conhecimento. E isso não é apenas uma obrigação social. Seja qual for o lugar para onde se dirijam como crianças eleitas, têm suas responsabilida­des e seus direitos. Por exemplo, escovar o cachorro, limpar as gaiolas dos passarinhos, tomar conta do bebê, enquanto a mãe faz qualquer outra coisa. Todos têm deveres e privilégios, porém esses deveres e privilégios não são os mesmos que os das suas aba­fadas cabines telefônicas. São deveres e privilégios dentro de uma grande família, uma família do tipo das nossas, onde todas as sete idades do homem e mais de uma dúzia de habilidades e de talentos estão representados. As crianças travam conhecimento com todas as coisas importantes e significativas que os seres hu­manos fazem e sofrem: aprendem a brincar, a amar, a envelhe­cer, a trabalhar e adoecer e a morrer. — Ela ficou silenciosa pen­sando em Dugald e na mãe dela. Mudando deliberadamente de tom, perguntou: — E você? Como vai? Estive tão ocupada fa­lando a respeito das famílias que nem ao menos perguntei como está se sentindo. Não há dúvida de que sua aparência está bem melhor do que da última vez em que o vi.

  • Graças ao dr. MacPhail e também a alguém que, suspei­to, definitivamente exerce a medicina sem diploma. Pode me dizer o que fez comigo ontem à tarde?

    Susila sorriu.

  • Você o fez sozinho — disse; — Eu apenas apertei os botões.

  • Que botões?

  • Os botões da memória e da imaginação.

  • E isso foi o bastante para me pôr num transe hipnótico?

  • Se você preferir dar esse nome...

  • De que outro modo poderia chamá-lo?

  • Por que dar-lhe nome? Os nomes são sempre objeto de controvérsias. Por que não ficar satisfeito em saber apenas que houve o acontecimento?

  • Mas o que foi que aconteceu?

  • Para começar, estabelecemos uma espécie de contato, não

    foi?

  • Não há nenhuma dúvida sobre isso. No entanto, não creio que tenha ao menos olhado para você.

    Ele a olhava agora e, enquanto o fazia, perguntava-se quem seria essa mulher pequenina. Que se esconderia atrás daquele rosto suave e sério? Que veriam aqueles olhos escuros que olhavam para os seus, interrogadores? Que estaria pensando?

  • Como poderia me ver se já tinha ido gozar férias?

  • Fui voluntariamente ou empurrado?

  • Empurrado? Não! — Ela balançou a cabeça. — Di­gamos que foi ajudado. — Houve um momento de silêncio. — Alguma vez você experimentou fazer um trabalho com uma criança que andava continuamente em seu redor? — Will pen­sou no pequeno vizinho que se oferecera para ajudá-lo a pin­tar a mobília da sala de jantar e riu-se à lembrança de sua própria exasperação. — Pobrezinho! A intenção é tão boa e ele está tão ansioso por ajudar — continuou ela. — Mas a tinta caiu no tapete, há marcas de dedos por toda a parede... No final você tem que se livrar dele: "Vá andando, meu bem! Vá brincar no jardim!"

    Houve um silêncio.

  • E então? — perguntou ele por fim.

  • Será que você não percebe? — Will balançou a cabeça, negativamente. — Que acontece quando se está doente ou feri­do? Quem promove a cicatrização? Quem trata dos ferimentos e debela a infecção? É você?

  • Quem mais haveria de ser?

  • É você? — insistiu ela. — Você? Realmente acredita que uma pessoa que está sentindo dores e que se preocupa a respeito do pecado, do dinheiro e do futuro seja mesmo capaz de fazer o que tem de ser feito?

  • Agora vejo aonde quer chegar.

  • Até que enfim! — brincou ela.

  • Sou mandado brincar no jardim para que os "crescidos" possam trabalhar em paz. Mas quem são os "crescidos"?

  • Não sei. Essa é uma pergunta que deve ser feita a um neuroteólogo.

  • Qual o seu significado?

  • Significa exatamente o que diz. Alguém analisa as pes­soa e as vê ao mesmo tempo em termos da "luz clara do vazio" e do sistema neurovegetativo. Os "crescidos" são um misto de intelecto e de fisiologia.

  • E as crianças?

  • As crianças são aqueles que pensam saber mais que os "crescidos".

  • E, por isso, devem ser mandados "brincar lá fora".

  • Exatamente.

  • Esse é o tratamento-padrão usado aqui em Pala?

  • Sim, é o método comum. Na sua parte do mundo, os médicos se livram das crianças envenenando-as com barbitúricos. Nós o fazemos através de conversas a respeito de catedrais e de gralhas. — A voz dela adquiriu um tom monótono. — Falamos a respeito de brancas nuvens flutuando no céu, cisnes brancos deslizando no escuro e também sobre o irresistível rio da vida...

  • Vamos, vamos, nada disso! — protestou Will. Um sor­riso iluminou o grave rosto moreno e ela começou a rir. Will olhou-a atônito. Eis que subitamente lá estava uma pessoa dife­rente, outra Susila MacPhail, alegre, travessa e irônica. — Já co­nheço seus truques — acrescentou ele, aderindo ao riso.

  • Truques? — Ainda rindo, ela negou com um movimen­to de cabeça. — Apenas lhe explicava como agi.

  • Sei exatamente como você o fez e também sei que funciona. E, ainda mais, dou-lhe permissão de fazê-lo de novo, quan­do for necessário.

  • Caso queira, lhe mostrarei como pressionar seus próprios botões — disse ela com maior seriedade. — Nós o ensinamos em todas as nossas escolas elementares. Os três erres mais CD.

  • O que vem a ser isso?

  • Autodeterminação, aliás, Controle do Destino.

  • Controle do Destino? — perguntou ele, erguendo as sobrancelhas.

  • Não. Nós não somos tão tolos como você parece pensar. Sabemos perfeitamente que somente uma parte do nosso destino é controlável.

  • E vocês o controlam apertando os próprios botões?

  • Sim. Apertando nossos próprios botões e visualizando em seguida aquilo que gostaríamos que acontecesse.

  • Mas isso é possível?

  • Sim, em vários casos.

  • É tão simples! — disse Will em tom de ironia.

  • Maravilhosamente simples — concordou ela. — No entanto, pelo que sei, somos o único povo que ensina sistema­ticamente o CD (Controle do Destino) às crianças. Vocês lhes dizem aquilo que devem fazer em termos de "proceder bem". Mas como proceder bem? Isso vocês nunca lhes ensinam. Tudo o que fazem fica restrito a alguns sermões e punições. Pura idiotice!

  • Pura e simples idiotice concordou ele, lembrando-se de Mr. Crabbe (o superior do internato) discorrendo sobre o assunto da masturbação. Recordou aqueles sermões semanais pre­fabricados e a cerimônia da cominação na quarta-feira de cin­zas: "Amaldiçoado é aquele que se deita com a esposa do seu vizinho. Amém".

  • Se suas crianças levarem a sério todas essas idiotices, crescem para se tornar míseros pecadores. Se não levarem a sério, ao crescerem se transformarão em pobres cínicos. Caso reajam contra o cinismo ficam aptos cara o papismo ou o marxismo. Não admira que lhes sejam necessários todos aqueles milhares de prisões, de igrejas e células comunistas.

  • Enquanto isso, existem muito poucas aqui em Pala, não é verdade?

    Susila concordou.

  • Não temos nada de Alcatrazes nem de Billy Graham nem de Mao Tsé-Tung e nem de Nossa Senhora de Fátima. Nada de infernos na terra, nada de desordem cristã no céu ou de agita­ções comunistas no vigésimo segundo século. São apenas homens, mulheres e crianças que tentam fazer o melhor, aqui e agora, ao invés de viverem (como a maioria de vocês) algures, em outra épo­ca, em um universo imaginário. Mas tenho de admitir que são isentos de culpa. O presente é tão decepcionante que são pratica­mente compelidos a viver desse modo. Tudo isso é altamente desapontador porquanto nunca lhes foi ensinado como transpor a brecha que existe entre a teoria e a prática, entre as resoluções do ano novo e o procedimento real.

  • Pelo bem que poderia fazer e não faço. Pelo mal que fa­ço e que não deveria fazer — citou Will.

  • Quem disse isso?

  • São Paulo, o homem que inventou o cristianismo.

  • Veja só, ideais tão elevados e sem os métodos para se­rem postos em prática! disse ela.

  • Existe apenas o método sobrenatural de se esperar que Alguém os realize. Atirando a cabeça para trás, Will Farnaby começou a cantar:

     

Existe uma fonte cheia de sangue

Retirado das veias de Emanuel,

Onde os pecadores que nela mergulharem

Terão limpas todas as suas manchas.

 

Susila tapou os ouvidos.

  • É realmente obsceno disse.

  • Esse era o hino preferido do superior do internato. Costumávamos cantá-lo pelo menos uma vez por semana, durante o meu tempo de colégio explicou Will.

  • Graças a Deus nunca houve nenhum sangue no budismo. Gautama viveu até os oitenta anos e morreu por ter sido tão cor­tês a ponto de não recusar mesmo comida de má qualidade. Morte violenta sempre atrai mortes violentas. Se não acreditares que foste redimido pelo meu sangue redentor, eu te afogarei no teu próprio sangue. No ano passado fiz um curso de História do Cris­tianismo em Shivapuram. Susila estremeceu a essa lembran­ça. Que coisa horrível! Tudo porque aquele pobre e ignorante homem não soube como executar suas boas intenções.

  • A maioria de nós continua ainda no mesmo velho cami­nho. O mal que não faríamos e que fazemos. E como fazemos!

    Reagindo imperdoavelmente ao imperdoável, Will Farnaby sorriu zombeteiramente. Sorriu porque, mesmo depois de ter per­cebido a bondade de Molly, escolhera a alcova rosa e, com isso, causara sua infelicidade e sua morte, e que lhe deixara aquele in­quietante sentimento de culpa. Havia também a dor martirizante, inteiramente fora de propósito (cuja causa reconhecia ser vul­gar e ridícula) que sentira quando Babs fez com ele aquilo que a mais tola das pessoas poderia prever: mandara-o sair de seu pa­raíso iluminado pelo gim, elegendo um novo amante.

  • Que foi que houve? perguntou Susila.

  • Nada. Por que pergunta?

  • Porque você não é muito hábil em esconder seus sentimentos. Parecia pensar em algo que o tornou infeliz.

  • Você tem olhos muitos penetrantes disse ele, desvian­do o rosto.

    Fez-se um longo silêncio entre eles.

    Deveria falar a ela a respeito de Babs, da pobre Molly, so­bre si mesmo e todas as coisas tristes e sem sentido que nunca, nem mesmo embriagado, dissera a seu melhor amigo? Os velhos amigos sabiam demais a respeito de alguém e das outras pessoas envolvidas. Sabiam demais a respeito de um jornalista duro e que era o agente particular (muito bem pago) de um homem rico a quem desprezava. Sabiam também que esse jornalista era um gentleman inglês e um boêmio com pretensões à poesia, que se de­sesperava por saber que nunca seria um bom poeta. Sabiam quan­to de grotesco, de complicado e de laborioso havia no jogo em que estava envolvido.

    Não, os velhos amigos não eram os indicados. Mas dessa pequena morena, dessa intrusa, não viriam quaisquer conclusões antecipadas nem tampouco julgamentos exparte. Dessa estranha a quem ele já devia tanto e de quem (apesar de nada saber a res­peito) se sentia tão íntimo, talvez viesse algum esclarecimento ines­perado ou alguma ajuda positiva e prática. Ficou admirado por ainda "esperar", ele que estava tão treinado em nunca esperar. Deus sabia quanto precisava de ajuda. Mas também sabia que ele nunca pediria essa ajuda.

    Como um muezim no seu mirante, um dos pássaros falantes começou a gritar da alta palmeira que se via além das mangueiras:

  • Aqui e agora, rapazes! Aqui e agora, rapazes!

    Will tomou a decisão de se arriscar, mas resolveu agir indiretamente, e começou falando dos problemas dela. Evitando olhá-la (pois se sentia envergonhado) iniciou a ofensiva:

  • O dr. MacPhail me falou ligeiramente a respeito... a respeito do que aconteceu a seu marido.

    As palavras foram como que uma estocada em seu coração. Mas isso devia ser esperado, era inevitável.

  • Na próxima quarta-feira faz quatro meses que ele mor­reu. Fez uma pausa e continuou como se estivesse meditando: Duas pessoas, dois seres inteiramente distintos que vêm for­mar uma coisa nova. Algo semelhante a uma entidade. De re­pente, metade dessa nova criatura é amputada e a outra metade não morre. Não pode morrer. Não deve morrer.

  • Por que não deve morrer?

  • Por tantas razões... Pelas crianças, por si própria... Uma série muito grande de coisas... Mas não é preciso dizer que essas razões não diminuem o choque da amputação ou tornam o re­sultado mais tolerável disse ela com um pequeno sorriso que veio acentuar a tristeza dos seus olhos. A única coisa que aju­da um pouco é aquilo de que já falamos: o Controle do Destino.

    E mesmo isso... — Ela balançou a cabeça e continuou: — Atra­vés do CD. se pode obter um parto quase sem dor. Porém não se consegue uma perda inteiramente indolor. Está claro que é as­sim que deve ser. Não seria direito que tivéssemos o poder de afas­tar todo o sofrimento de uma perda. Se conseguíssemos isso, se­ríamos menos que seres humanos.

  • Menos que seres humanos — repetiu Will. — Menos que seres humanos... — Aquelas palavras o definiam completamen­te. — O terrível é sabermos que a outra pessoa morreu por nossa culpa — disse em voz alta.

  • Você era casado? — perguntou ela.

  • Sim, havia doze anos. Tudo acabou na última primavera.

  • Ela morreu?

  • Sim, morreu num acidente.

  • Num acidente? E onde está sua culpa?

  • O acidente ocorreu porque... bem, porque fiz o mal que não queria fazer. E, naquele dia, tudo chegou ao ponto culminante. O choque a confundiu e distraiu. Mesmo assim, permiti que ela saísse dirigindo o carro. Permiti que fosse ao encontro de uma colisão.

  • Você a amava? — Ele hesitou por um momento e balan­çou a cabeça devagar. — Havia alguém mais, alguém de quem você gostasse mais?

  • Sim. Havia alguém de quem eu não podia gostar menos. — Ele fez uma careta de sardônica zombaria.

  • E que foi que fez sem querer?

  • Fiz e continuei fazendo até matar a mulher que deveria ter amado, mas não pude. Continuei fazendo mesmo depois que a matei, apesar de me odiar por isso. Sim, odiei a mim e à pessoa que me obrigou a fazê-lo.

  • Obrigou-o a fazê-lo porque possuía o corpo que você desejava?

    Will concordou. Houve um silêncio e ele continuou:

  • Você pode imaginar o que é uma pessoa sentir que nada é completamente real, inclusive ela mesma?

    Susila assentiu, dizendo:

  • Isso às vezes acontece quando alguém está a ponto de descobrir que tudo, inclusive o próprio "eu", é muito mais real do que realmente imaginou. É como fazer as mudanças na embreagem de um carro. Tem de se ir para o ponto morto antes de se mudar para a primeira.

  • Ou a terceira — disse Will. — No meu caso a mudança não estava em primeira, e sim em terceira. Não, não estava nem mesmo em terceira mas em marcha à ré. A primeira vez que acon­teceu, esperava um ônibus em Fleet Street para ir para casa. Mi­lhares e milhares de pessoas em movimento contínuo. No entan­to, cada uma delas era única, era o centro do universo. Nesse mo­mento, o sol apareceu vindo detrás de uma nuvem. Tudo estava extraordinariamente claro e brilhante. Subitamente, com um cli­que quase audível, todos se transformaram em larvas.

  • Larvas?

  • Estou me referindo àqueles vermes pálidos que têm a cabeça preta e que encontramos na carne podre. Nada mudara, é claro. Os rostos das pessoas eram os mesmos e suas roupas tam­bém. Porém todos eram vermes. Não vermes verdadeiros, mas simples espectros de vermes. Não mais que uma ilusão. E eu tive a ilusão de ser um espectador de vermes. Durante meses vivi na­quele mundo de vermes! Vivia, trabalhava, saía para almoçar e jantar, sem ter o menor interesse pelo que fazia. Sem o mínimo entusiasmo ou satisfação, completamente sem desejo, inteiramente impotente. Fiz essa descoberta quando tentei fazer amor com uma jovem com quem me divertira no passado.

    —- Que é que você esperava?

  • Exatamente isso.

  • Então, por que...?

    Will sorriu-lhe com a agressividade costumeira e encolheu os ombros.

  • Movido pelo interesse científico. Era um entomologista que estava estudando a vida sexual do verme ilusório.

  • Depois disso, suponho que tudo lhe pareceu ainda mais irreal.

  • Ainda mais, se isso fosse possível — concordou Will.

  • Em primeiro lugar, o que teria provocado o aparecimen­to dos vermes?

  • Para início de conversa, devo lhe dizer que eu era o filho de meus pais — respondeu. — Do "tirano beberrão e da mártir cristã". Além de ser filho de meus pais, era o sobrinho da tia Mary — continuou, após pequena pausa.

  • Que tinha sua tia Mary que ver com isso?

  • Foi a única pessoa de quem gostei, e quando eu tinha dezesseis anos ela ficou cancerosa. Primeiro amputaram-lhe o seio direito e, um ano depois, o esquerdo. A isso se seguiram aqueles nove meses de raios X e o enjôo da doente de irradiação. Depois o câncer atingiu o fígado, e isso foi o fim. Estive junto dela des­de o princípio. Para um jovem de menos de vinte anos, foi uma educação liberal, apenas liberal.

  • Liberal em quê? — perguntou Susila.

  • Em insipidez pura e aplicada. Algumas semanas depois do encerramento do meu "curso particular", foi grandiosamen­te iniciado o curso público: a Segunda Guerra Mundial. E, durante todo esse tempo, eu, que sonhava ser um poeta, ia desco­brindo que isso era impossível. Depois da guerra, tive que ingressar no jornalismo para ganhar a vida. O que eu queria na realidade era passar fome, contanto que escrevesse algo de bom. Boa pro­sa, já que não poderia fazer boa poesia. Mas me esqueci de in­cluir meus queridos pais nos meus cálculos. Meu pai faleceu em janeiro de 1946 e já gastara o último centavo da pequena fortuna que a família herdara. Quando felizmente ficou viúva, minha mãe estava entrevada pela artrite e teve que ser sustentada. E lá esta­va eu, em Fleet Street, mantendo-a com uma facilidade e um su­cesso que eram completamente humilhantes.

  • Por que humilhantes?

  • Você não se sentiria humilhada caso estivesse ganhando dinheiro através da mais barata e espalhafatosa espécie de ficção literária? Tornei-me um sucesso porque pertencia irremediavel­mente à segunda classe.

  • E os vermes foram o produto de tudo isso?

    Ele concordou:

  • Nem mesmo vermes: espectros de vermes. Foi então que Molly apareceu em cena. Eu a encontrei em Bloomsbury, numa festa de vermes da alta roda. Fomos apresentados e trocamos al­gumas palavras ocas e polidas sobre a pintura não-objetiva. Pa­ra evitar ver mais vermes, não olhei para ela, mas ela deve ter me olhado. Molly possuía olhos azul-acinzentados muito claros — ajuntou Will muito paternalmente. — Olhos que viam tudo (ela era muito observadora), porém observavam tudo sem malí­cia ou censura. Eles viam o mal, se ele existia, porém nunca o condenavam. Sentia enorme pena da pessoa que era compelida a ter tais pensamentos ou a fazer uma coisa odiosa. Como ia dizen­do, ela devia estar olhando para mim enquanto falávamos, pois inopinadamente me perguntou por que estava tão triste. Eu já tomara uns dois drinques e não havia impertinência nem ofensa no modo como fizera a pergunta. Falei-lhe a respeito dos ver­mes. "E você é um deles", arrematei, e, pela primeira vez, olhei- a e disse: "Um verme de olhos azuis e rosto como o de uma des­sas 'santas mulheres' que se vêem nas crucificações da 'escola flamenga' ".

  • Ela ficou lisonjeada?

  • Penso que sim. Abandonara o catolicismo, porém ainda tinha um fraco por crucificações e "santas mulheres". De qualquer modo, telefonou-me na manhã seguinte à hora do café. Perguntou-me se gostaria de dar um passeio de carro pelo cam­po. Era domingo e o tempo estava milagrosamente bom. Acei­tei. Passamos uma hora num bosque de aveleiras, colhendo pri­maveras e olhando as pequenas anêmonas brancas. Não se deve apanhar anémonas, pois elas murcham depois de uma hora — explicou ele. — Observei muitas coisas no meio daquelas avelei­ras, enquanto olhava as flores a olho nu e, depois, com a lente que Molly trouxera com ela. Não sei dizer porquê, mas foi uma terapêutica extraordinária observar o âmago das primaveras e ané­monas. Até o fim do dia, não via mais os vermes. Mas Fleet Street ainda existia e me esperava. Na segunda-feira, por volta da hora do almoço, eles já rastejavam aos milhões por toda parte. Mi­lhões de vermes. Mas agora eu sabia o que fazer com eles. Na­quela noite fui para o estúdio de Molly.

  • Ela era pintora?

  • Não uma pintora genuína, e ela sabia disso. Sabia e não se ressentia, apenas tirava o maior proveito possível do fato de não ter talento. Não pintava por causa da arte em si. Pintava por­que gostava de olhar as coisas e depois reproduzir meticulosa­mente o que vira. Naquela noite deu-me uma tela e uma paleta e me disse para fazer o mesmo que ela.

  • E isso funcionou?

  • Funcionou tão bem que, após dois meses, eu cortei uma maçã podre pelo meio e, no centro, não havia nenhum verme; quero dizer, no sentido subjetivo. Objetivamente havia e era tu­do o que um verme deve ser. E foi assim que o pintei. Aliás, nós o pintamos, pois costumávamos pintar as mesmas coisas.

  • Que houve com os outros vermes, os vermes espectrais do exterior da maçã?

  • Bem, eu ainda tinha recaídas, principalmente em Fleet Street e em alguns coquetéis. Porém os vermes eram definitiva­mente em menor número e menos perseguidores. Enquanto isso, algo novo acontecia no estúdio. Estava começando a amar. Aman­do porque o amor é contagioso e Molly estava claramente apai­xonada por mim. Por quê? Somente Deus é quem sabe!

  • Vejo várias razões plausíveis. Ela talvez o tenha amado porque... — Susila olhou-o como se o estivesse avaliando, e sor­riu. — Bem, porque você é uma espécie de peixe bastante atraente.

  • Obrigado por tão generoso cumprimento — disse ele sorrindo.

  • Por outro lado (e isso não é tão elogioso), talvez o tives­se amado porque você fez com que ela sentisse pena de você.

  • Confesso que isso é verdade. Molly era uma "irmã de caridade".

  • Infelizmente uma irmã de caridade não é o mesmo que "esposa do amor".

  • Foi exatamente o que descobri.

  • Suponho que descobriu depois do casamento.

    Will hesitou por um momento.

  • Para dizer a verdade, foi um pouco antes. Não porque tivesse havido um desejo premente de sua parte, mas apenas por­que estava ansiosa por fazer qualquer coisa que me agradasse. Apenas porque em princípio ela não acreditava em convenções e era entusiasta do amor livre, e mais surpreendentemente ainda da liberdade de se conversar a esse respeito. — Dizendo isso, lembrou-se das coisas escandalosas que ela dizia com tanta sere­nidade, mesmo em frente da mãe dele.

  • Você o sabia com antecedência e mesmo assim se casou com ela — resumiu Susila. Will concordou mudamente, com um aceno de cabeça. — Porque você era um cavalheiro e um cava­lheiro mantém a palavra, penso eu.

  • Em parte devido a essa razão fora de moda, mas tam­bém porque a amava.

  • Você a amava?

  • Sim. Não. Não sei. Mas naquela época eu sabia. Pelo me­nos pensava saber. Estava realmente convencido de que a ama­va. Sabia e ainda sei por que estava convencido. Estava grato por que ela conseguira exorcizar aqueles vermes e, além disso, a res­peitava e admirava. Ela era tão melhor e mais honesta do que eu! Infelizmente você está certa. Uma irmã de caridade não é o mesmo que uma esposa do amor. Mas estava pronto a aceitar Molly nos seus termos, não nos meus. Estava pronto a acreditar que seus termos eram melhores que os meus.

    Após uma longa pausa, Susila perguntou:

  • Depois de quanto tempo você começou a ter casos extra­conjugais?

    Will sorriu zombeteiramente.

  • Três meses após o dia do nosso casamento. O primeiro foi com uma das secretárias do meu escritório. Meu Deus, que coisa enfadonha! Depois desse houve uma pequena pintora, uma jovem judia de cabelos encaracolados que Molly ajudara finan­ceiramente enquanto estivera estudando em Slade. Eu costuma­va ir a seu estúdio duas vezes por semana, das cinco às sete. Passaram-se quase três anos até que Molly descobrisse.

  • Suponho que ficou aborrecida.

  • Ficou muito mais do que eu podia imaginar.

  • Qual foi sua atitude?

    Will balançou a cabeça.

  • Foi aí que tudo começou a se complicar, pois não tinha a menor intenção de me privar dos meus coquetéis com Raquel. No entanto, me odiava por fazer Molly tão infeliz. Ao mesmo tempo, odiava-a por ser infeliz. Ressentiam-me seu sofrimento e o amor que a fazia sofrer. Sentia que eram injustos, que eram uma espécie de chantagem para me forçar a deixar meu inocente divertimento com Raquel. Por causa do seu grande amor e por sentir-se tão infeliz com o que eu fazia (na realidade eu fora for­çado a fazê-lo), ela pressionava e tentava restringir minha liber­dade. Enquanto isso ela era verdadeiramente infeliz. E eu, ape­sar de odiá-la por estar fazendo chantagem às custas de sua infe­licidade, sentia uma pena enorme dela. Sentia pena, mas não sen­tia compaixão. Compaixão é compartilhar do sofrimento, e o que eu desejava a todo custo era me poupar da dor que seu sofrimen­to me causava. Queria evitar dolorosos sacrifícios por meio dos quais poderia pôr fim ao seu sofrimento. Ter pena era minha resposta. Sentia uma pena apenas superficial. Sentia como se fosse mero espectador, como um esteta ou um conhecedor de suplícios.

    Não sei se você entende o que quero dizer. E essa minha pena de esteta era de tal intensidade que, todas as vezes que a sua infe­licidade alcançava um clímax, chegava quase a confundi-la com amor. Quase, porém não completamente. E quando tentava ex­pressar minha pena sob a forma de ternura física (assim fazia por ser esse o único meio pelo qual podia obter uma pausa temporá­ria em sua infelicidade e na dor que secundariamente me infli­gia), essa ternura era sempre frustrada antes que pudesse chegar à sua consumação natural. Era frustrada porque, por tempera­mento, ela era apenas a "irmã de caridade" e não uma esposa. Apesar disso, em todos os níveis, com exceção do sensual, ela me amava com uma confiança integral, que em resposta exigia da minha parte uma entrega absoluta. Mas não me entreguei. Tal­vez porque realmente não pudesse e, ao invés de ficar agradecido pela sua entrega, eu a ressentia por saber que continha uma série de pretensões que me recusava a admitir. Desse modo, ao fim de cada crise, voltávamos ao início do velho drama, o drama de um amor incapaz de sensualidade, entregue a uma sensualidade incapaz de amor e que despertava sentimentos de culpa feitos de exasperação, pena, ressentimento e, às vezes, de verdadeiro ódio (porém sempre com uma ponta de remorso). Tudo isso contra- ponteado por uma sucessão de noites furtivas com a minha pin­tora de cabelos encaracolados.

  • Que espero tenham sido, pelo menos, agradáveis.

    Ele encolheu os ombros.

  • Apenas razoáveis, pois Raquel não conseguia esquecer que era uma intelectual e tinha um modo de perguntar qual a minha opinião sobre Piero di Cosimo nos momentos mais inopor­tunos. O prazer real, a verdadeira agonia eu nunca experimenta­ra até que Babs entrou em cena.

  • Quando foi isso?

  • Apenas um ano atrás, quando estava na África.

  • Na África?

  • Fui mandado lá por Joe Aldehyde.

  • O dono dos jornais?

  • E de tudo o mais. Ele era casado com Eileen, tia de Molly. Devo acrescentar que ele é um chefe de família exemplar e, por isso, tem a serena convicção de que é absolutamente honesto, mes­mo quando está envolvido na mais abominável operação fi­nanceira.

  • Você trabalha para ele?

    Will fez um sinal afirmativo com a cabeça.

  • O meu emprego no jornal de Aldehyde, com um salário de quase o dobro do que recebia onde trabalhava antes, foi o pre­sente de casamento que deu a Molly. Principesco! Mas ele gosta­va muito de Molly.

  • Como reagiu ao saber da existência de Babs?

  • Nunca soube a respeito dela, nem tampouco de que houvesse uma razão no acidente que causou a morte de Molly.

  • E continuou mantendo-o no emprego em memória de sua falecida esposa?

    Will encolheu os ombros.

  • A desculpa é que tenho que sustentar minha mãe.

  • É claro que você não gostaria de ser pobre!

  • Certamente que não.

    Após um silêncio, Susila disse finalmente:

  • Bem, voltemos à África.

  • Fora mandado lá para fazer uma série de artigos sobre o nacionalismo negro. Além disso, havia uma pequena trapaça particular que envolvia alguns negócios do "tio" Joe. Na minha volta para casa, vindo de Nairobi, encontrei-me sentado a seu la­do no avião.

  • Ao lado da jovem de que não poderia deixar de gostar?

  • Não poderia deixar de gostar e de desaprovar — repetiu ele. — Porém, quando se é um viciado, tem-se que tomar a dro­ga, mesmo sabendo de antemão que ela irá destruí-lo.

  • É uma coisa interessante, mas em Pala são raros os vi­ciados — disse ela pensativamente.

  • Mesmo os viciados sexuais?

  • Os viciados sexuais são também viciados em pessoas. Em outras palavras, são amantes.

  • Mas mesmo os amantes às vezes odeiam a pessoa à qual amam.

  • É natural. Pelo fato de ter sempre o mesmo nome, os mesmos olhos e o mesmo nariz, não quer dizer que eu seja sempre a mesma mulher. Admitir esse fato e reagir com tato e sensatez fazem parte da arte de amar.

    Will contou-lhe o resto da história do modo mais breve possível. Com a entrada de Babs em cena, toda a história se repeti­ra, porém com intensidade ainda maior. Babs foi elevada ao ní­vel de Rachel. Em outras palavras, Babs relegou Raquel aos bas­tidores. O sofrimento que ele infligira a Molly foi proporcional­mente maior do que aquele que ela fora obrigada a passar por causa de Raquel. A exasperação dele, seu ressentimento pela chan­tagem feita às custas do amor e sofrimento dela, seu próprio re­morso, sua autodeterminação em continuar a ter o que desejava, apesar do remorso e da pena, aquilo que ele odiava por desejar e aquilo que resolutamente se recusava a se negar cresceram na mesma proporção. Enquanto isso, Babs se tornava cada vez mais exigente, reclamava cada vez mais o seu tempo, não só na alcova rosa-morango, mas também fora, em restaurantes, boates e nos horríveis coquetéis dos seus amigos e nos fins de semana, no cam­po. "Somente você e eu, meu querido, juntos e completamente sós", dizia ela. Juntos e completamente sós, num isolamento que lhe dava a oportunidade de avaliar os abismos quase impenetrá­veis da estupidez e vulgaridade dela. Porém, apesar do seu enfa­do, da sua aversão e de toda a sua repugnância intelectual, o de­sejo continuava. Após esses horríveis fins de semana, continua­va irremediavelmente tão adepto de Babs quanto antes. Por seu lado, em seu nível de irmã de caridade, Molly permanecera, ape­sar de tudo, uma adepta desesperançada de Will Farnaby — sem esperança no que se referia a ele, pois o seu único desejo era que ela o amasse menos e lhe permitisse ir tranqüilamente para o inferno. Mas no que dizia respeito a Molly, o apego era sempre e irreprimivelmente esperançoso. Ela nunca deixava de esperar pe­lo milagre que o transformaria no bondoso, altruísta e carinhoso Will Farnaby a quem (apesar de todas as evidências e desaponta­mentos) ela insistia teimosamente em considerar como sendo o verdadeiro. Foi somente no decorrer daquela última e fatal en­trevista (na qual afogara sua pena e dera vazão a todo o seu res­sentimento pela chantagem feita com sua infelicidade) que lhe dis­sera de sua intenção de deixá-la para ir viver com Babs. Nesse momento a esperança cedeu lugar ao desespero.

  • Sua intenção é realmente essa, Will?

  • Sim é.

    Foi em desespero que ela fora até o carro, e em completo desespero o dirigira, na chuva, ao encontro da morte. No enter­ro, quando baixaram o caixão à sepultura, ele prometeu a si mes­mo que nunca mais veria Babs. Nunca, nunca, nunca mais! Na­quela noite, enquanto se achava sentado à sua mesa de trabalho tentando escrever um artigo sobre "o que há de errado com a juventude" e procurando se esquecer do hospital, da sepultura aberta e da sua própria responsabilidade em tudo o que havia acontecido, foi surpreendido pelo som agudo da campainha da porta. Talvez fosse uma mensagem retardatária de condolências... Abrira a porta e, em vez do telegrama, lá estava Babs, dramáti­ca, sem pintura, toda vestida de preto.

  • Meu pobre, pobre Will!

    Sentaram-se no sofá da sala. Ela acariciara seus cabelos e ambos choraram. Após uma hora estavam nus, na cama.

    Passados três meses (como qualquer tolo poderia ter previsto), Babs começara a se cansar dele. Depois de quatro meses um homem absolutamente divino, vindo de Quênia, aparecera num coquetel. Uma coisa levara a outra e, quando Babs apareceu em casa no fim de três dias, foi para preparar a alcova para um no­vo inquilino e despejar o antigo.

  • É isso mesmo o que você quer, Babs?

    Era o que ela queria.

    Houve um farfalhar nos arbustos do lado de fora da janela e, um instante depois assustadoramente alto e ligeiramente desa­finado, um pássaro falante gritou:

  • Aqui e agora, rapazes!

  • Cale a boca! — gritou Will em resposta.

  • Aqui e agora, rapazes! Aqui e agora rapazes! Aqui... — repetiu o mainá.

  • Cale a boca! — Fez-se silêncio. —Tive de fazê-lo calar- se porque está absolutamente certo — explicou Will. — "Aqui, rapazes! Agora, rapazes! Aqui e agora"... coisas sem nenhum propósito. Ou não? Será fora de propósito falar sobre a morte de seu marido?

    Susila olhou-o em silêncio por um momento e, depois, balançou a cabeça devagar.

  • Sim, em relação a tudo o que tenho de fazer agora é completamente inoportuno. Isso foi uma das coisas que tive que aprender.

  • É possível que alguém aprenda a esquecer?

  • O problema não é esquecer. O que se tem de aprender é recordar e continuar livre do passado. Aprender a ficar simultaneamente ao lado dos mortos, enquanto se está no meio dos vivos. — Ela sorriu-lhe tristemente e acrescentou: — Não é fácil.

  • Não é fácil — repetiu ele. Subitamente todas as suas de­fesas caíram, todo o seu orgulho o deixou. — Você me ajudará? — perguntou.

  • Prometo — disse ela, estendendo a mão.

    Um som de pisadas os fez voltar as cabeças. O dr. MacPhail entrara no quarto.

 

  • Boa noite, minha cara. Boa noite, Mr. Farnaby.

    O tom de voz era alegre. Nada havia de artificial naquela alegria espontânea e autêntica, observou Susila instantaneamen­te. No entanto, antes de voltar para casa deve ter passado no hos­pital e visto Lakshmi (como ela vira havia somente uma ou duas horas) mais emaciada que nunca, mais esquelética e ainda mais pálida. Metade de uma longa vida em comum, cheia de amor, de lealdade e de perdão mútuo que iria se extinguir dentro de um ou dois dias. Uma vida que fora plena até o dia em que o mal viera plena para determinada pessoa, em determinado lugar. Depois que se extinguisse, restaria apenas a solidão para o dr. Robert.

  • Ninguém tem o direito de infligir a própria tristeza aos outros, como também não tem o direito de fazer de conta que não está triste. Tem apenas de aceitar o sofrimento dos outros e os seus esforços a fim de parecerem estóicos. Aceitar, aceitar... dissera seu sogro num dia em que deixavam juntos o hospital. Sua voz ficara embargada e, olhando-o, ela vira que seu rosto estava molhado de lágrimas.

    Cinco minutos depois, estavam sentados num banco à beira do tanque de lótus, à sombra do enorme Buda de pedra. Com um ruído líquido, brusco e voluptuoso, um sapo saltara da folha redonda onde estava, mergulhando na água. Surgidas da lama, hastes verdes e de botões túrgidos cortavam o espaço. Dispersos irregularmente, aqueles símbolos do esclarecimento haviam aberto ao sol, às moscas, aos minúsculos besouros e às abelhas silves­tres, suas pétalas róseas e azuis. Numerosas e brilhantes libélu- las, verdes e azuis, dardejavam, paravam e voltavam a dardejar na caça aos mosquitos.

  • Tathatasussurrara o dr. Robert. "Semelhança."

    Permaneceram sentados em silêncio por muito tempo. De repente, ele tocara o seu ombro, dizendo:

  • Veja!

    Susila levantara os olhos na direção que ele apontava. Dois pequenos papagaios haviam se empoleirado na mão direita do Bu­da e seguiam os rituais do namoro.

  • O senhor parou de novo à beira do tanque de lótus? perguntou Susila em voz alta.

    O dr. Robert sorriu-lhe e concordou com um movimento de cabeça.

  • Como estava Shivapuram? indagou Will.

  • Bastante agradável respondeu o médico. O seu úni­co defeito é ser tão próximo do mundo exterior. Aqui podemos ignorar todas essas insanidades organizadas e prosseguir no tra­balho. Mas lá, com o rádio, os postos de escuta e os outros meios de comunicação que um governo deve possuir, o exterior pode ser sentido, ouvido e cheirado. É isso mesmo, pode ser cheirado!

    Dizendo isso, seu rosto se enrugou numa careta de repugnância cósmica.

  • Aconteceu algo mais desastroso do que o habitual, des­de que estou aqui?

  • Nada fora do comum na sua parte do mundo. Gostaria de poder dizer o mesmo a respeito da nossa.

  • Qual é o problema?

  • É o nosso vizinho mais próximo, o coronel Dipa, que para início de conversa fez outro negócio com os tchecos.

  • Mais armamentos?

  • Sim. No valor de sessenta milhões de dólares. Ouvi pelo rádio esta manhã.

  • Mas para quê?

  • As razões de costume: glória e poder. Os prazeres da vaidade e da tirania. Em casa, terrorismo e paradas militares. No exterior, conquista e Te Deus. Isto faz lembrar o segundo item das notícias desagradáveis. A noite passada, o coronel fez outro daqueles celebrados discursos sobre Rendang Maior.

  • Rendang Maior? Que é isso?

  • Você tem razão em perguntar respondeu o dr. Robert. A Rendang Maior é o território que foi controlado pelos sul­tões de Rendang-Lobo, entre 1447 e 1483. Esse território compreendia Rendang, as ilhas Nicobas, trinta por cento de Sumatra e a nossa Pala. Hoje isso é o grito de revolta do coronel Dipa.

  • Ele está mesmo falando sério?

  • Sim. E fala com o rosto perfeitamente sério. Não. Estou errado. Fala com um rosto distorcido, purpúreo e com a tonali­dade máxima de uma voz que ele educou, depois de muita práti­ca, para soar exatamente como a de Hitler. "Rendang Maior ou morte!"

  • Porém as grandes potências nunca o permitiriam.

  • Talvez não gostassem de vê-lo em Sumatra, mas quanto a Pala é outro assunto. — Ele meneou a cabeça. — Pala, infeliz­mente, não está sob as boas graças de ninguém. Não queremos o comunismo, nem tampouco o capitalismo. Desejamos ainda me­nos a industrialização por atacado que ambos (é claro que por diferentes razões) estão ansiosos para nos impor. O Ocidente o deseja porque o custo de nossa mão-de-obra é baixo e os divi­dendos dos investidores serão excelentes. O Oriente o deseja por­que a industrialização, criando um proletariado, abrigará novos campos para a agitação comunista, podendo mesmo, depois de algum tempo, originar uma outra "democracia popular". Temos nos recusado a ambos e por isso somos malquistos em toda a parte. A despeito das diferenças ideológicas, as grandes potências talvez prefiram ver Pala subordinada a Rendang e com o seu pe­tróleo explorado, a vê-la independente porém sem permitir qual­quer exploração. Se Dipa nos atacar, dirão que foi um ato de­plorável, porém não levantarão um só dedo para detê-lo. E quan­do formos dominados e os homens do petróleo forem chamados, ficarão realmente deleitados.

  • E o que é que vocês podem fazer a respeito do coronel Dipa? — perguntou Will.

  • Nada além da resistência passiva. Não dispomos de exér­cito nem de amigos poderosos, enquanto ele dispõe de ambos. O máximo que podemos fazer é apelar para as Nações Unidas, caso comece a criar embaraços. Nesse meio-tempo, protestare­mos através do nosso ministro em Rendang-Lobo sobre as últi­mas efusões do seu discurso a respeito da Rendang Maior. Pro­testaremos pessoalmente junto ao grande homem quando,'daqui a dez dias, fizer sua visita oficial a Pala.

  • Uma visita oficial?

  • Sim. Durante as comemorações da maioridade do jovem rajá. Ele já foi convidado há muito tempo, porém nunca deixou perceber se realmente vem. Hoje, porém, esse assunto foi defini­tivamente acertado. Além de uma festa de aniversário, teremos talvez uma visita muito importante. Mas vamos falar sobre coi­sas mais importantes. Como passou o dia de hoje?

  • Tive um dia que, além de ter sido bom, foi também glorioso. Tive a honra de receber a visita de seu soberano reinante.

  • De Murugan?

  • Por que não me disse que ele era o soberano reinante?

    O dr. Robert deu uma risada.

  • Porque talvez você quisesse entrevistá-lo.

  • Bem, não o entrevistei nem tampouco a rainha-mãe.

  • A rani também veio?

  • Veio a mandado de sua Pequena Voz. Não tenho a me­nor dúvida, sua Pequena Voz mandou-a para o lugar certo, pois meu chefe, Joe Aldehyde, é um de seus amigos mais caros.

  • Por acaso ela lhe falou que está tentando trazer seu che­fe para cá, a fim de explorar nosso petróleo?

  • Sim.

  • Recusamos sua última oferta cerca de um mês atrás. Vo­cê sabia disso?

    Will sentiu-se aliviado em poder responder com bastante sinceridade que não sabia. Nem Aldehyde, nem a rani lhe haviam falado nada a respeito dessa recente recusa.

  • O meu serviço se restringe à polpa de madeira, não ao petróleo — prosseguiu, não tão sincero. Houve um longo silêncio.

  • Qual é minha situação legal aqui? De estrangeiro indesejável?

  • Bem, felizmente você não é um vendedor de armamentos.

  • Ou um missionário — disse Susila.

  • Também não é um homem do petróleo, apesar de ter alguma culpa, por estar ligado a um deles. Pelo que sabemos, não é nem mesmo um explorador de urânio. Estes são os indesejáveis alfa po­sitivos — concluiu o dr. Robert. — Como jornalista você está clas­sificado entre os betas, embora não seja o tipo de pessoa que sonha­ríamos convidar para vir a Pala. Não é daqueles que, conseguindo chegar até aqui, necessitam ser sumariamente deportados.

  • Gostaria de ficar durante todo o tempo permitido pela lei — disse Will.

  • Poderia saber por quê?

    Will hesitou. Na qualidade de agente secreto de Joe Aldehyde e de repórter com uma incorrigível paixão pela leitura, teria que permanecer o tempo necessário para negociar com Bahu e ganhar seu ano de liberdade. Mas havia outras razões mais con­sistentes.

  • Se não fizerem objeção a alguns comentários estritamente pessoais, eu lhes direi.

  • Sou todo ouvidos disse o dr. Robert.

  • O fato é que, quanto mais contato tenho com vocês, mais os aprecio. Gostaria de saber mais a respeito de seu povo. Enquanto isso, talvez descubra algo interessante a meu respeito. Por. quanto tempo me permitirão ficar?

  • Normalmente nós o mandaríamos de volta assim que estivesse em estado de viajar. Mas se você realmente se interessa por Pala e, acima de tudo, se você realmente se interessa por si mesmo, abriremos uma exceção. Ou não deveríamos fazê-lo? O que acha você, Susila? Afinal, ele trabalha para lorde Aldehyde.

    Will esteve a ponto de protestar novamente, dizendo que trabalhava somente no departamento de polpa de madeira, mas as palavras ficaram presas na garganta e ele nada disse. Passaram- se os segundos. O dr. Robert repetiu a pergunta.

  • Sim, estaremos correndo um certo risco disse Susila. Mas pessoalmente... estarei pronta a aceitá-lo. Estarei agindo bem? perguntou, voltando-se para Will.

  • Acho que pode confiar em mim. Pelo menos, penso que pode.

    Sorriu tentando levar tudo em tom de brincadeira, mas para seu aborrecimento e maior embaraço sentiu que corara.

    "Qual a razão disso?", perguntou ressentido à sua consciên­cia. Se alguém estava sendo enganado, esse alguém era a Stan­dard da Califórnia. Uma vez que Dipa estivesse dominando, que diferença fazia que o concessionário fosse este ou aquele? Por quem era preferível ser devorado: por um lobo ou por um tigre? Para o cordeiro não havia a menor diferença. Joe não seria pior do que qualquer dos seus competidores. Apesar disso, desejaria não ter tido tanta pressa em mandar aquela carta. Por que, por que aquela mulher horrível não pudera deixá-lo em paz?

    Através do lençol, sentiu uma mão pousar em seu joelho bom. O dr. Robert sorria para ele.

  • Pode ficar por aqui durante um mês — disse. — Ficarei inteiramente responsável por você. Faremos o possível para mostrar-lhe tudo.

  • Fico-lhe muito grato.

  • Quando tiver qualquer dúvida, sempre aja na suposição de que as pessoas são mais honestas do que você possa julgá-las. Esse foi o conselho recebido do velho rajá na minha juventude.

  • Virando-se para Susila, perguntou: — Vamos ver, quantos anos tinha você quando o velho rajá faleceu?

  • Oito anos.

  • Então lembra-se dele muito bem, não?

    Susila sorriu.

  • Será que alguém pode esquecer o modo que ele tinha de falar sobre si mesmo? No fim de uma de suas citações, por exem­plo: "(...) cito, 'eu' gosto de açúcar no meu chá". Que homem adorável!

  • E que grande homem! — O dr. MacPhail levantou-se, dirigiu-se à estante que havia entre a porta e o guarda-roupa e tirou de uma das prateleiras mais baixas um grosso álbum ver­melho sobre os piores climas tropicais e os insetos marinhos. — Deve haver um retrato dele em algum lugar — disse enquanto virava as páginas do álbum. — Eis aqui um.

    Will olhou para o desbotado instantâneo de um pequeno e velho hindu de óculos, usando uma tanga e ocupado em esvaziar o conteúdo de uma molheira de prata, ricamente trabalhada, que repousava sobre um pilar baixo e grosso.

  • Que é que está fazendo?

  • Está untando um símbolo fálico com manteiga derretida - respondeu o médico. — Esse foi um hábito que meu pobre pai nunca pôde fazê-lo deixar.

  • Seu pai desaprovava os falos?

  • Não, não — disse o dr. MacPhail. — Ele era a favor de­les, mas desaprovava o símbolo.

  • Por que o símbolo?

  • Porque ele achava que as pessoas deviam beber a sua religião "como se bebe o leite ainda quente da vaca", se é que você entende o que quero dizer. Leite com nata, não pasteurizado nem homogeneizado. E, acima de tudo, sem ser enlatado em qualquer espécie de recipiente teológico ou litúrgico.

  • E o rajá tinha um fraco por recipientes, não?

  • Não para os recipientes de maneira geral. Apenas esse, em particular. Sempre teve um apego especial pelo linga da família, e esse era feito em basalto preto e tinha pelo menos uns oitocentos anos de idade.

  • Entendo — disse Will Farnaby.

  • Untar o linga da família era um ato de piedade e expres­sava um belo sentimento sobre uma idéia sublime. Porém mes­mo a mais sublime das idéias é totalmente diferente do mistério cósmico que se supõe que represente. O que têm de comum com a experiência direta do mistério, os belos sentimentos ligados à sublime idéia? Absolutamente nada. É desnecessário dizer que o velho rajá sabia disso perfeitamente bem. Melhor mesmo do que meu pai. Ele tomara o leite tal qual fora tirado da vaca e, na verdade, era o próprio leite. Mas o ato de untar os lingas era uma devoção da qual não conseguia se livrar. Aliás, ninguém de­veria ter lhe pedido que abandonasse essa prática. No que se re­feria aos símbolos, meu pai era um verdadeiro puritano e nisso superava Goethe: Alles vergängliche ist nicht ein Gleichnis.O seu ideal era a ciência experimental de um lado do espectro e o misticismo experimental do outro. A objetividade experimental seguida de pronunciamentos claros e racionais sobre o que foi feito nos vários setores. Se dependesse dele, os lingas e as cruzes, a manteiga e a água benta, as sutras e os evangelhos, as imagens e os salmos seriam totalmente abolidos.

  • Em que lugar ficariam as artes? perguntou Will.

  • Não seriam admitidas respondeu o dr. MacPhail. A poesia era o ponto mais fraco de meu pai. Costumava dizer que a apreciava, o que não era verdade. A poesia por si, a poesia como um universo autônomo, situada no espaço entre a expe­riência pura e os símbolos científicos, era algo que estava além de sua compreensão. Vou ver se encontro o retrato dele.

    O dr. MacPhail retrocedeu algumas páginas no álbum que folheava e apontou para um perfil de linhas angulosas e de so­brancelhas espessas.

  • Que escocês! comentou Will.

  • No entanto sua mãe bem como sua avó eram palanesas.

  • Não se nota o menor traço delas.

  • Enquanto isso seu avô, que veio de Perth, podia ser confundido com um raiputo.

    Will observou com atenção a velha fotografia de um jovem de rosto oval e costeletas pretas, cujo cotovelo repousava num pedestal de mármore, sobre o qual, virada para cima, via-se uma cartola de altura fora do comum.

  • Esse é seu bisavô?

  • É. Chamava-se Andrew e foi o primeiro MacPhail a pôr os pés em Pala. Nasceu no ano de 1822, em Royai Burgh, onde seu pai, James MacPhail, era proprietário de uma cordoaria. Es­se fato era bastante simbólico, pois sendo um calvinista convic­to, James estava imbuído da crença de que era um dos "eleitos" e obtinha uma satisfação profunda e ardente à simples idéia de que todos aqueles milhões de seres humanos atravessavam a vida com a corda da predestinação em torno do pescoço, enquanto o "velho pai de ninguém" contava os minutos para fazer o alça­pão funcionar. — Will sorriu. — Atualmente — continuou o dr. Robert — achamos isso engraçado, mas naquela época era as­sunto muito mais sério que a bomba H é para nossos contempo­râneos. Era tido como certo que 99,9 por cento da humanidade estavam condenados aos eternos vapores sulfurosos. Por quê? Ou pelo fato de nunca terem ouvido falar de Jesus ou por terem ou­vido e não acreditado inteiramente que Ele os libertaria desses vapores. A prova de que sua fé não era suficiente residia no fato, empiricamente observável, de que suas almas não estavam em paz. Define-se como "fé perfeita" algo que traz uma completa paz de espírito. Mas a paz de espírito integral é coisa que praticamente ninguém possui e, sendo assim, a fé perfeita não existe. Conse­qüentemente, todos nós estamos de antemão condenados à puni­ção eterna. Quod erat demonstrandum.

  • Fico admirada de que todos não tenham enlouquecido! — disse Susila.

  • Felizmente a maioria acreditava somente de modo superficial — disse o dr. MacPhail, batendo com a mão no alto de sua cabeça. — Sem se aprofundarem, estavam convencidos de que suas crenças representavam a Verdade, escrita com o maior V. Mas suas glândulas e suas vísceras sabiam que tudo não passava de pura tolice. Para a maioria, a verdade só tinha sentido aos do­mingos e, assim mesmo, num sentido estritamente pickwickiano. James MacPhail sabia tudo isso e se impôs a obrigação de não permitir que seus filhos fossem crentes dos sabás. Teriam de acre­ditar em todas as tolices sagradas, mesmo nas segundas-feiras e nas tardes dos feriados. Eles teriam de acreditar com todas as suas forças e não apenas de um modo cômodo e superficial. Uma fé perfeita e a paz integral que dela advém teriam de ser-lhes incuti­das. Como? Dando-lhes o inferno na terra e ameaçando-os com ele na outra vida. E se eles, em sua diabólica perversidade, se re­cusassem a ter essa fé perfeita e assim obterem a paz, ele lhes da­ria ainda mais inferno e os ameaçaria com fornalhas ainda mais quentes. Enquanto isso, lhes diria que as boas obras são meros farrapos aos olhos de Deus e os puniria cruelmente pelo menor deslize. Incutiria em suas mentes a certeza de que, por natureza, eles eram inteiramente depravados e os castigaria por serem o que não podiam deixar de ser.

    Will Farnaby folheou o álbum.

  • Você tem algum retrato desse seu encantador ancestral?

  • Tínhamos uma pintura a óleo que foi destruída pelo excesso de umidade e pelos insetos. Era um magnífico espécime. Tal qual uma pintura de Jeremias, da época da Renascença: ma­jestoso, olhos inspiradores e aquela espécie de barba profética que cobre uma profusão de pecados que se estampam na face. A úni­ca relíquia dele que restou foi um esboço a lápis de sua casa. — Voltando outra página do álbum, Will o encontrou. — Era uma casa de granito e com grades em todas as janelas — continuou. — Dentro dela, no aconchego daquela pequena "família da Bas­tilha", quanta desumanidade sistemática era praticada em nome de Cristo e da justiça! Sabemos de tudo isso porque o dr. An­drew deixou uma autobiografia inacabada.

  • As crianças não foram ajudadas pela mãe?

    O dr. MacPhail balançou a cabeça negativamente.

  • Janet MacPhail era da família Cameron e calvinista tão convicta quanto o marido. Pelo fato de ser mulher podia ir ain­da mais longe, pois tinha um número ainda maior de espontaneidades a vencer. Ela as venceu heroicamente. Em vez de tentar deter o marido, ela o incitava e o apoiava. Havia sermões antes do café da manhã e antes do almoço. Havia catecismo aos do­mingos e as epístolas tinham que ser decoradas. Todas as noites, após a soma e a avaliação das faltas cometidas durante o dia, as seis crianças, tanto as meninas como os meninos, a começar pelo mais velho, eram metodicamente chicoteadas nas nádegas nuas com uma chibata de osso.

  • Sempre que me lembro disso me sinto enojada disse Susila. É puro sadismo!

  • Não, não é puro sadismo. É sadismo aplicado disse o dr. MacPhail. É sadismo por uma razão mais dissimulada, sadismo a serviço de um ideal, sadismo como uma convicção re­ligiosa. Aliás, as relações entre a teologia e o castigo corporal na infância são um assunto que merece um estudo histórico a res­peito concluiu, dirigindo-se para Will. Minha teoria é que, se as crianças de qualquer parte são sistematicamente flageladas, crescem com a impressão de que Deus é o Totalmente Diverso. Não é esse o argot em moda no seu lado do mundo? Se, pelo con­trário, as crianças são criadas sem serem sujeitas à violência físi­ca, consideram Deus como coisa imanente. A teologia de um po­vo reflete o estado de seu traseiro na infância. Tome como exem­plo os hebreus e todos os bons cristãos da Idade da Fé. Desde Jeová, desde o Pecado Original. Desde o Pai, infinitamente ul­trajado, das ortodoxias romana e protestante, todos têm sido en­tusiastas flageladores de crianças. Enquanto isso, entre os budis­tas e os hindus, a educação sempre tem sido ministrada sem o uso da violência, sem o seviciamento de pequeninas nádegas. Daí o Tat Twam asi ou "Tu és Esse"; as mentes vindas da Mente não são divisíveis. Posso ainda citar o exemplo dos quacres, que ain­da eram bastante heréticos para acreditar na "luz interior". Que aconteceu? Cessaram de espancar seus filhos e, assim, tornaram-se a primeira seita de cristãos a protestar contra a instituição da es­cravatura.

  • Mas o castigo corporal das crianças quase não é mais usa­do em nossos dias, e é exatamente neste momento que as explica­ções sobre o Totalmente Diverso estão em plena moda argu­mentou Will.

    O dr. MacPhail rebateu a objeção:

  • Isso é simplesmente um caso de ação seguida de reação. Na segunda metade do século XIX a filantropia livre-pensadora se tornara tão forte que mesmo os bons cristãos foram por ela influenciados e cessaram de castigar os filhos. Não houve vergastadas nos traseiros das gerações mais jovens. Em conseqüên­cia disso, deixaram de imaginar Deus como sendo o Totalmente Diverso e inventaram o "pensamento novo", a "ciência cristã", a "unidade" e todas as heresias semi-orientais, nas quais Deus é o Totalmente Idêntico. Esse movimento, que fora iniciado antes de William James, cada dia reúne maior número de adeptos. Porém, como toda tese tem sua antítese, depois de algum tempo essas heresias originaram a "neo-ortodoxia". Abaixo o Totalmen­te Idêntico! Queremos a volta do Totalmente Diverso! Voltaram a Agostinho, a Martinho Lutero; em uma palavra, voltaram aos dois traseiros mais implacavelmente flagelados de toda a história do pensamento cristão. Leia as Confissões e a Conversa de me­sa. Quando Agostinho, tendo sido espancado por seu professor, foi queixar-se aos pais, estes riram-se dele. Lutero foi sistematicamente chicoteado, não apenas por seu pai e professores, mas também por sua carinhosa mãe. Desde então, o mundo tem pa­go por essas cicatrizes que tinham nas nádegas. As monstruosi­dades que foram o prussianismo e o Terceiro Reich nunca teriam existido sem Lutero e sua teologia cheia de flagelações. Quanto à teologia de flagelação de Agostinho, Calvino conduziu-a a con­clusões lógicas que foram inteiramente absorvidas por pessoas pie­dosas, tais como James MacPhail e Janet Cameron. Sua premis­sa maior é que Deus é o Totalmente Diverso e sua premissa me­nor é que "o homem é totalmente depravado". Conclusão práti­ca: "Faça nos traseiros de seus filhos aquilo que foi feito no seu". É isso que o Pai do Céu tem feito nos traseiros da humanidade, desde o Pecado Original: chicoteado, chicoteado, chicoteado.

    Houve um silêncio. Will Farnaby olhou novamente para o esboço do homem granítico da cordoaria e pensou em todas as grotescas e horríveis fantasias elevadas ao grau de fatos sobrena­turais, nas dores infligidas e em todas as misérias suportadas por sua causa. Quando não é Agostinho em sua "aspereza benigna", é Robespierre ou Stalin. Quando não é Lutero exortando os prín­cipes a matar os plebeus, é um genial Mao que os reduz à escra­vatura.

  • Em certas ocasiões não se sente desesperado? — per­guntou.

    O dr. MacPhail abanou a cabeça:

  • Não nos desesperamos porque sabemos que as coisas não têm que ser necessariamente como sempre foram.

  • Sabemos que podem ser muito melhores — acrescentou Susila. — Sabemos porque, neste momento e nesta ilha pequena e ridícula, elas já estão muito melhoradas.

  • Se seremos capazes de convencê-los a seguir nosso exem­plo — disse o dr. MacPhail —, ou se, pelo menos, conseguiremos preservar este minúsculo oásis no meio desse seu mundo, que é uma verdadeira selva de macacos, é outra questão. Embora a situação atual justifique o mais extremo pessimismo, não vejo ra­zão para o desespero total.

  • Nem mesmo quando lê a História?

  • Nem assim.

  • Sinceramente, eu o invejo. Como consegue fazê-lo?

  • Apenas me lembrando de que a História é um documen­to que registra as coisas que os seres humanos foram impelidos a fazer devido à ignorância. E foi com arrogância que canoniza­ram a ignorância, transformando-a em dogma político ou reli­gioso. Voltando-se novamente para o álbum, disse: Volte­mos àquela casa em Royai Burgh, onde moram James, Janete e as seis crianças a quem o Deus de Calvino, na Sua inescrutável malevolência, condenou a viver à mercê de seus carinhos. O cas­tigo e a repressão conduzem à sabedoria, porém uma criança en­tregue a si mesma envergonha sua mãe. O doutrinamento refor­çado pela tensão psicológica e pela tortura física forma a base do pavlovianismo perfeito. Mas, para infelicidade das religiões organizadas e dos regimes ditatoriais, os seres humanos são mui­to menos dignos de confiança, como animais de experiência, do que os cães. O condicionamento funcionou a contento em Tom, Mary e Jean. Tom se tornou um pastor protestante, Mary se ca­sou com um pastor protestante e morreu, muito apropriadamente, ao dar à luz uma criança. Jean permaneceu em casa e cuidou durante muito tempo da mãe, que fora acometida de um câncer de evolução lenta. Depois disso, consagrou os vinte anos que se seguiram inteiramente ao patriarca, que, com a idade, foi se tor­nando caduco. Até aí tudo correu bem, mas com Annie, a quar­ta filha, as coisas saíram da rotina. Ela era bonita e, aos dezoito anos, um capitão dos dragões lhe propôs casamento. Mas o ca­pitão era anglicano e suas opiniões a respeito da depravação to­tal e das boas alegrias proporcionadas por Deus foram conside­radas errôneas. O casamento foi proibido. Tudo fazia crer que ela teria o mesmo destino de Jean, e durante dez anos permaneceu em casa. Aos vinte e oito anos, deixou-se seduzir pelo segun­do oficial de um navio da East Indiaman e, durante sete sema­nas, gozou de uma felicidade como nunca conhecera na vida. Seu rosto estava como que transfigurado por uma espécie de beleza sobrenatural e seu corpo resplandecia de vitalidade. O segundo oficial embarcou então para uma viagem de dois anos a Madras e Macau. Quatro meses depois, Annie, grávida, sem amigos e de­sesperada, lançou-se às águas do Tay. Enquanto isso, Alexandre, o quinto descendente, fugira da escola e fora juntar-se a uma com­panhia de teatro. Desde então, na casa do cordeiro, ninguém ti­nha permissão de mencionar seu nome. Andrew, o caçula, era o benjamim da família. Obediente, gostava de estudar e apren­deu mais rápida e corretamente do que os outros irmãos as epís­tolas que lhe foram ensinadas. Uma vez, a tempo de fortificar a crença de sua mãe na licenciosidade dos seres humanos, ela o surpreendeu mexendo nos órgãos genitais. Foi chicoteado até san­grar. Algumas semanas depois, foi novamente surpreendido, no­vamente chicoteado e preso a pão e água numa solitária. Disseram-lhe também que cometera um pecado contra o Espírito Santo e que este era, sem dúvida, o motivo por que sua mãe estava can­cerosa. Durante todo o resto de sua infância Andrew foi acome­tido por pesadelos freqüentes, relacionados com o inferno. Quando sucumbia às tentações que periodicamente o perseguiam, refugiava-se na latrina existente no fundo do jardim. Cada vez que isso acontecia, mais aterrorizado ficava ante as versões dos terríveis castigos que o esperavam.

  • E ainda se afirma que a vida moderna não tem significa­ção comentou Will. Veja o que era a vida quando se dizia que tinha significação! Se tiver que escolher entre uma história contada por um idiota ou por um calvinista, minha preferência sempre recairá no idiota.

  • Concordo disse o dr. MacPhail. Mas não haverá uma terceira possibilidade? Será que não existe uma história contada por alguém que não seja imbecil ou paranóico?

  • Por alguém que, fugindo a essa regra, seja mentalmente sadio? disse Susila.

  • Seria uma exceção abençoada disse o dr. MacPhail. Felizmente, até o velho regime existiam pessoas que mesmo a educação mais diabólica não conseguiu arruinar. Admitindo- se como válidas as afirmações pavlovianas e freudianas, meu bi­savô deveria ter se tornado um doente mental. Na realidade, tornou-se um verdadeiro atleta mental. Isso apenas vem provar quão inadequados são esses dois sistemas psicológicos. Freudismo e behaviorismo, pólos opostos mas que concordam inteira­mente quando, discutindo os fatos referentes à formação da personalidade, mencionam as diferenças congênitas entre os indiví­duos. Como é que seus preciosos psicólogos manejam esses pro­blemas? Simplesmente ignorando-os ou cautelosamente negan­do que existam. Daí advém a total incapacidade que demonstram ao lidar com a verdadeira situação do homem, tal como ele é, ou mesmo no plano puramente teórico. Examinemos esse caso em particular: os irmãos e as irmãs de Andrew ou foram domi­nados pelo meio ambiente ou foram destruídos. Por quê? Por­que a roleta da hereditariedade parou num número de sorte. Ele tinha uma constituição mais elástica que os outros, uma anato­mia, um bioquimismo e um temperamento diferentes. Seus pais foram tão nocivos a ele quanto a seus infortunados irmãos. Ape­sar disso, Andrew superou todos os obstáculos praticamente in­cólume.

  • A despeito dos pecados contra o Espírito Santo?

  • Felizmente se libertou desse problema durante o primei­ro ano de seu curso médico em Edimburgo. Era muito jovem, tinha dezessete anos, mas naquele tempo começavam cedo. Nas salas de dissecção, o rapaz começou a ouvir as obscenidades ex­travagantes e as blasfêmias com as quais seus colegas mantinham a alegria entre os cadáveres que lentamente se decompunham. A princípio escutava-as cheio de horror, temendo uma vingança di­vina que nunca chegou. Os blasfemadores floresciam e os espa­lhafatosos fornicadores continuavam sem outra punição além de uma gonorréia de vez em quando. Na mente de Andrew o medo foi substituído por uma enorme sensação de alívio e liberdade, e ousou mesmo fazer algumas brincadeiras obscenas. A primeira vez que proferiu uma palavra de quatro letras constituiu um ato de libertação, uma experiência genuinamente religiosa. Nas ho­ras vagas leu Tom Jones,o Ensaio sobre os milagres, de Hume, e o irreligioso Gibbons. Após ter conseguido melhorar o francês que aprendera na escola, leu La Mettrie e o dr. Cabanis. O ho­mem é uma máquina cujo cérebro segrega idéias do mesmo mo­do que o fígado segrega a bile. Como tudo era simples e claro! Com o fervor de um converso numa "renovação" religiosa, se decidiu pelo ateísmo. Devido às circunstâncias, isso não consti­tuiu surpresa. Em determinado momento não se consegue mais suportar Santo Agostinho nem tampouco repetir as incoerências atanasianas. Então, puxa-se a descarga e se lança tudo pelos es­gotos. A esse ato segue-se uma felicidade que dura pouco! Des­cobre-se que alguma coisa está faltando. O bebê experimental tam­bém foi lançado nos esgotos, juntamente com as sujeiras teoló­gicas e com a água de sabão. Mas a natureza abomina o vazio e a felicidade é substituída por um mal-estar crônico e se passa a ser atormentado por uma sucessão de Werleys, Puseys, Moodies e Billies (Domingo e Graham). Todos trabalhando como cas­tores para retirar a teologia da fossa, com isso esperando salvar o bebê. Nunca obtêm sucesso. Tudo o que esses predicantes con­seguem é sifonar um pouco dessa água suja que, depois de al­gum tempo, é novamente jogada fora. Isso acontece indefinida­mente e sempre do mesmo modo. Após algum tempo o dr. An­drew chegou à conclusão de que essas coisas eram extremamente maçantes e totalmente desnecessárias. Nessa época estava intei­ramente embriagado pela sua recente liberdade. Sua exaltação e entusiasmo se escondiam atrás daquela aparência sóbria e cortês que usava nos seus contatos com o mundo.

  • Ele teve alguma desavença com o pai? — perguntou Will.

  • Nenhuma, pois não gostava de discussões. Era desse ti­po de homem que, sem alardear, só faz o que quer. Do tipo que não discute com aqueles que discordam dos seus pontos de vista. Seu pai nunca teve oportunidade de usar as lamentações de Jere­mias, pois Andrew nunca mencionou Hume e La Mettrie e conti­nuou a seguir as tradições. Terminado o curso, limitou-se muito simplesmente a não voltar para casa. Dirigiu-se a Londres e se engajou como cientista e naturalista no HMS Melampus, que es­tava prestes a zarpar para os mares do Sul a fim de fazer serviços de levantamento hidrográfico, coletar espécimes marítimos e pro­teger os missionários protestantes e os interesses britânicos. O cru­zeiro do Melampus levou três anos e, nesse período, aportou no Taiti, permaneceu dois meses em Samoa e um mês nas ilhas Marquesas. Depois de Perth, as ilhas lhe pareceram verdadeiros edens que infelizmente eram imunes não só ao calvinismo, ao capitalis­mo e aos cortiços das cidades industriais, mas também a Shakes­peare, Mozart, aos conhecimentos científicos e ao pensamento lógico. Era um paraíso, mas não o sentia como tal. Prosseguin­do viagem, teve oportunidade de visitar as Fiji, as Carolinas e as Salomão. Cartografaram a costa ao norte da Nova Guiné, e em Bornéu um grupo que foi à terra capturou uma fêmea de orangotango grávida e galgou o monte de Kinabalu. A isso seguiu-se uma semana em Pannoy e uma quinzena no arquipélago de Mergui, de onde se dirigiram para o oeste, em direção de Andaman, e dali para a índia. Lá, numa queda de cavalo, meu bisavô que­brou a perna direita. O comandante do Melampus contratou ou­tro cirurgião e voltou para a Inglaterra. Dois meses depois, com­pletamente restabelecido, Andrew começou a clinicar em Madras. Naquela época existiam poucos médicos e a freqüência das doen­ças era assustadora. O jovem começou a prosperar, mas a vida entre os funcionários do governo e os comerciantes era terrivel­mente enfadonha. Era um exílio sem as compensações do exílio: sem aventuras e sem originalidade. Um simples retiro para as pro­víncias, para os equivalentes tropicais de Swampsea e Huddersfield. Apesar disso, resistiu à tentação de comprar uma passa­gem de volta no primeiro navio que se destinava à pátria. Se conseguisse tolerar aquilo por cinco anos, teria dinheiro bastante para adquirir uma clínica em Edimburgo. Ou, pensando melhor, no West End de Londres. Antevia um futuro "rosa e dourado". Ha­veria uma esposa, que preferia tivesse cabelos castanho-avermelhados e que fosse despretensiosa e recatada. Teriam qua­tro ou cinco filhos felizes que nunca seriam chicoteados e que per­maneceriam ateus. Sua clínica aumentaria e seus doentes provi­riam de camadas sociais cada vez mais elevadas. Fortuna, repu­tação, respeitabilidade, talvez mesmo um título de nobreza... Via, em imaginação, sirAndrew MacPhail descendo de seu carro pu­xado por um cavalo em Belgrave Square. O grande sirAndrew, médico da rainha! Chamado a São Petersburgo para operar um grão-duque. Indo às Tulherias, ao Vaticano e à Porta Sublime. Fantasias deliciosas! Mas a realidade se tornou ainda mais inte­ressante. Numa bela manhã, um estranho de pele trigueira pro­curou o cirurgião. Num inglês hesitante se deu a conhecer. Vi­nha de Pala e tinha sido mandado por Sua Alteza o rajá, a fim de procurar e levar consigo um cirurgião ocidental que fosse bas­tante hábil. A recompensa seria principesca. Principesca, insis­tiu o emissário. No mesmo instante o dr. Andrew aceitou o con­vite. Em parte, naturalmente, devido à oferta de boa remunera­ção. Mas o que realmente fizera com que aceitasse logo a pro­posta fora a necessidade de sair daquele marasmo e sentir o gos­to da aventura. Uma viagem à "ilha proibida" tinha um irresis­tível poder de atração.

    — Convém lembrar que, naquela época, Pala era ainda mais proibida do que agora — comentou Susila.

  • Por aí você pode avaliar o entusiasmo com que o jovem dr. Andrew aceitou a oportunidade que lhe fora oferecida pelo embaixador do rajá! Dez dias depois seu navio ancorou na costa norte da ilha proibida, onde desembarcou levando a maleta de instrumentos, um baú contendo medicamentos e outro menor on­de estavam suas roupas e alguns livros que considerava indispen­sáveis. Através de um mar de ondas agitadas, foi conduzido à terra numa guiga. Em palanquim foi levado pelas ruas de Shivapuram e deixado no pátio do palácio. Seu real paciente o aguar­dava ansioso. Sem ter tido tempo de se barbear ou mesmo trocar de roupa, o dr. Andrew foi conduzido à presença de um homem trigueiro, franzino, com pouco mais de quarenta anos e terrivel­mente emaciado sob os ricos brocados. Seu rosto, de tão incha­do, não parecia humano, e sua voz não era mais que um rouco sussurro. Seu aspecto inspirava compaixão. Ao examiná-lo, o dr. Andrew constatou a existência de um tumor que se originara no centro do maxilar e se irradiara em todas as direções. As narinas estavam invadidas, bem como a órbita direita. A garganta esta­va quase inteiramente bloqueada. A respiração se tornara difícil, a deglutição intensamente dolorosa. Também não podia conci­liar o sono porque, quando isso acontecia, despertava sufocado, lutando para respirar. Sem uma cirurgia radical era evidente que morreria dentro de poucos meses. Com a mesma, em ainda me­nos tempo. Não nos esqueçamos de que aquela era a época da cirurgia séptica e sem o auxílio de anestesia pelo clorofórmio. Mes­mo em condições ideais, a mortalidade era de um doente para cada quatro operados, e, em condições menos propícias, atingia cinqüenta por cento, com um mínimo de trinta e um máximo de cem por cento. O prognóstico nesse caso não poderia ser pior. O paciente estava debilitado e a operação seria longa, difícil e incrivelmente dolorosa. O óbito poderia ocorrer durante a ope­ração e era quase certo que, se sobrevivesse, seria vitimado pela septicemia, após alguns dias. Se ele morresse, pensava o dr. An­drew, qual seria o destino do cirurgião estrangeiro que matara o rei? E, durante a operação, quem conteria o real paciente en­quanto se contorcesse sob o bisturi? Qual o criado ou cortesão que teria o entendimento para não obedecer ao patrão quando este gritasse de dor ou lhe ordenasse que o soltasse?

  • Talvez o mais acertado fosse dizer logo que nada havia a ser feito, que o caso era perdido e pedir que o enviassem imediatamente para Madras. Foi então que olhou de novo para o doente e viu que, através daquele rosto grotescamente deforma­do, o rajá o fitava com os olhos de um condenado que pede a compaixão de seu juiz. Emocionado com aquele apelo, o dr. An­drew sorriu-lhe encorajadoramente e, enquanto lhe segurava a mão descarnada, teve uma idéia. Era uma idéia absurda, inteira­mente destituída de fundamento, mas, no entanto...

  • Lembrou-se de que, havia cinco anos, enquanto cursava a Universidade de Edimburgo, lera um artigo no Lancetno qual o famoso professor Elliotson era acusado pelo fato de advogar o magnetismo animal. Elliotson ousara comentar a respeito de operações indolores, feitas em pacientes em transe mesmérico.

  • O homem era um louco ingênuo ou um canalha inteiramente inescrupuloso. O argumento que apresentava como con­cludente para essa tolice não tinha a menor valia. E, em seis co­lunas cheias de justa indignação, tudo aquilo era considerado pura impostura, fraude e charlatanice. Nessa época, o dr. Andrew ain­da estava transbordante de La Mettrie, Hume, Cabanis e, cheio de ardor, leu e concordou com a crítica ortodoxa. Depois disso, esqueceu completamente a existência do magnetismo animal. Ago­ra, à cabeceira do rajá, tudo lhe voltou à memória: o professor louco, os passes hipnóticos, as amputações sem dor, o baixo ín­dice de mortalidade e as rápidas convalescenças. Apesar de tu­do, talvez houvesse algum fundamento nessas coisas. Estava imer­so em seus pensamentos quando o doente, quebrando um longo silêncio, falou-lhe num inglês que o surpreendeu pela fluência, apesar do forte sotaque londrino que adquirira com seu profes­sor, um marinheiro que desertara de seu navio em Rendang-Lobo e conseguira atravessar o estreito. Aquele sotaque londrino — dis­se o dr. MacPhail com um sorriso — é mencionado de quando em vez nas Memórias de meu bisavô. Para ele, havia alguma coi­sa de inexprimivelmente impróprio no fato de um rei falar como Sam Weller: no caso do rajá, essa impropriedade deixava de ser apenas social, porquanto, além de ser um soberano, era também um intelectual altamente requintado, possuidor de convicções re­ligiosas arraigadas (coisa que qualquer imbecil imaturo pode ter) e de grande vida introspectiva. Um homem de tão grande estatu­ra mental, expressando-se no linguajar de Londres, era coisa com a qual um escocês do início da era vitoriana, leitor dos Pickwick Papers, não podia admitir. O rajá nunca pôde pronunciar com perfeição os ditongos e os agás aspirados, apesar do tato com que meu bisavô procurava corrigi-lo. Mas isso ocorreu depois. Na­quele primeiro e trágico encontro, aquele acento vulgar e cho­cante causou-lhe grande emoção. Unindo as mãos num gesto sú­plice, o doente sussurrou: "Ajude-me, dr. MacPhail!"

    A súplica decidiu-o. Sem mais hesitações, o dr. Andrew, tomando as magras mãos do rajá entre as suas, começou a lhe falar cheio de convicção sobre um novo e maravilhoso método de tratamento recentemente descoberto na Europa, onde somen­te era aplicado por alguns dos médicos mais famosos. Então, voltando-se para os serviçais que, durante todo esse tempo, os observavam em silêncio, ordenou-lhes que se retirassem. Embo­ra sem compreenderem o que o médico dissera, o tom de voz e os gestos enfáticos que utilizara foram bastante claros e, após curvarem-se, deixaram o aposento. Tirando o casaco e arrega­çando as mangas da camisa, o dr. Andrew deu início aos famo­sos "passes" sobre os quais lera, com irônico ceticismo, nas pá­ginas do Lancei. Do alto da cabeça, sobre o rosto, descendo até atingir o epigástrio... Esses gestos deveriam ser repetidos até que o paciente caísse em transe... ou, segundo o comentário irônico do autor do artigo, "até que o charlatão dirigente se decida a di­zer que seu crédulo paciente já se encontra sob o influxo magné­tico". Impostura, fraude, charlatanice! Mas a despeito disso... Ele continuava a trabalhar em silêncio. Vinte passes, cinqüenta passes. Após um suspiro, o paciente fechou os olhos. Sessenta, oi­tenta, cem, cento e vinte. O calor estava opressivo. A camisa do dr. Andrew estava encharcada de suor e seus braços doíam. In­flexível, prosseguia repetindo a mesma gesticulação absurda. Cen­to e cinqüenta, cento e setenta e cinco, duzentas vezes. Tudo não passava de fraude e impostura, mas ainda assim se impôs a fazer com que esse pobre homem dormisse, mesmo que para isso pre­cisasse de um dia inteiro. "O senhor vai dormir", disse em voz alta, enquanto fazia o passe número duzentos e onze. "O senhor vai dormir." O doente pareceu afundar mais nos travesseiros e, de repente, o dr. Andrew percebeu o som de um sibilo. "Desta vez o senhor não sufocará, pois há bastante espaço para a passa­gem do ar. O senhor não vai ficar sufocado." A respiração do rajá ficou calma e, depois de mais alguns passes, o dr. Andrew achou que não haveria perigo se repousasse um pouco. Enxugando o rosto, levantou-se, esticou os braços e deu umas voltas pelo quarto. Voltando a sentar-se à cabeceira do rajá, segurou seu pu­nho extremamente descarnado e contou-lhe o pulso. Havia uma hora estava em torno de cem e agora a freqüência era de setenta batimentos por minuto. Erguendo o braço do paciente, sua mão balouçou como a de um morto e, ao soltá-lo, caiu inerte. "Ma­jestade", disse ele. Após uma pausa, chamou novamente em voz mais alta: "Majestade". Não obteve resposta. Tudo não passa­va de charlatanice, impostura e fraude, mas mesmo assim havia funcionado.

    Subitamente, um grande louva-a-deus multicor esvoaçou pelo quarto de Will, indo empoleirar-se na grade aos pés da cama; do­brando as asas rosa e branco, ergueu a pequena cabeça chata e esticou as pernas dianteiras, surpreendentemente fortes, em ati­tude de oração. Tirando uma lente do bolso, o dr. MacPhail se curvou para examiná-lo.

  • É um Gongylus gongyloides e se disfarça de modo a pa­recer uma flor. Quando as moscas e as mariposas vêm incautas sugar-lhe o néctar, é ele quem as suga. E, quando são fêmeas, devoram os amantes. Guardando novamente a lente, recostou-se na cadeira e disse a Will Farnaby: O que mais nos fascina no universo é sua selvagem improbabilidade. Não sei dizer o que é mais inverossímil: o Gongylus gongyloides, o Homo sapiens ou a apresentação de meu bisavô a Pala e à hipnose.

  • Nada poderia ser mais inesperado, com exceção talvez da minha própria apresentação a Pala e à hipnose. A primeira foi através de um naufrágio e um precipício. A segunda, através de um monólogo sobre uma catedral inglesa disse Will.

    Ouvindo isso, Susila riu-se e comentou:

  • Felizmente não foi necessário que lhe fizesse todos aque­les passes. Com este calor! Na realidade admiro o dr. Andrew, pois às vezes são necessárias cerca de três horas para anestesiar as pessoas, usando os passes.

  • E ele conseguiu?

  • Sim, triunfalmente.

  • E a operação chegou a ser realizada?

  • Foi realizada, porém não imediatamente disse o dr. MacPhail. Uma longa preparação se fazia necessária. A pri­meira providência do dr. Andrew foi dizer a seu paciente que daí em diante poderia engolir sem sentir dores, e nas três semanas que se sucederam alimentou-o. Entre as refeições, punha-o em transe e fazia com que dormisse até a hora da próxima refeição. É maravilhoso observar do quanto é capaz um ser humano, se lhe for dada a chance. O rajá engordou cerca de seis quilos e se sentia como um homem novo. Estava cheio de esperança e con­fiança. O dr. Andrew se sentia do mesmo modo, pois ao tentar fortalecer a fé do rajá fortelecera a sua própria, e isso o fazia acreditar no sucesso da operação. Porém esse sentimento não o impediu de fazer o que estava a seu alcance para aumentar as pos­sibilidades de sucesso. No princípio, insistia em dizer ao doente que o transe estava se tornando cada vez mais profundo, e que no dia da intervenção cirúrgica seria mais profundo ainda e bas­tante mais demorado. "O senhor dormirá durante quatro horas após a operação e, quando despertar, não sentirá a mínima dor", assegurou ao rajá. Nessa afirmativa que era feita pelo dr. An­drew havia um misto de absoluto ceticismo e de inteira confian­ça. A razão e a experiência lhe diziam que tudo aquilo era im­possível. Mas na situação que estava enfrentando, a experiência ortodoxa havia se mostrado impraticável. O impossível já tinha acontecido várias vezes e não havia razão para que não continuas­se acontecendo. O importante era dizer que aconteceria e, por isso, repetia continuamente: "Tudo está bem". O ensaio, porém, foi a maior das invenções do dr. Andrew.

  • Ensaio de quê?

  • Do ato cirúrgico. Eles ensaiaram cerca de meia dúzia de vezes e o ensaio final foi realizado na manhã da operação. Às seis horas, o dr. Andrew se dirigiu ao quarto do rajá e, depois de uma conversa alegre, começou a fazer os passes. Em poucos minutos o doente estava em profundo transe e o dr. Andrew des­crevia tudo o que ia fazer. Tocando o osso malar próximo ao olho direito do rajá, disse: "Para iniciar, vou esticar a pele. Agora, com o bisturi". E passou a ponta de um lápis sobre a face do doente. "Estou fazendo uma incisão. O senhor não sentirá dor nem mal-estar. Os tecidos subjacentes estão sendo cortados ago­ra e o senhor continua sem sentir desconforto. O senhor dorme simplesmente, com todo o conforto, enquanto eu disseco a face na direção de seu nariz. De vez em quando paro para ligar um vaso sangüíneo e depois prossigo. Terminada essa parte, estarei em condições de começar a dissecar o tumor que, tendo se origi­nado no antro, se irradiou para cima, sob o malar, e atingiu a órbita. Ele também se irradiou para trás, até a garganta. Enquanto eu disseco, o senhor continua a dormir, sem sentir nada, inteiramente relaxado e confortável. Agora estou levantando sua cabe­ça." Dizendo essas palavras, levantou a cabeça do rajá e fletiu-a para diante. "Estou fazendo isso para que o senhor possa se li­bertar do sangue que escorreu para sua boca e para sua gargan­ta. Um pouco de sangue atingiu sua traquéia e o senhor precisa tossir ligeiramente para desobstruí-la. Isso não o fará acordar." O rajá tossiu uma ou duas vezes e, quando o dr. Andrew voltou a pousar a cabeça nos travesseiros, ainda estava em sono pro­fundo. "O senhor não ficará sufocado, mesmo quando eu esti­ver operando na garganta, onde terei de remover a parte mais baixa do tumor." O dr. Andrew abriu a boca do rajá e introdu­ziu dois dedos em sua garganta. "Tudo se resume em soltá-lo. Nada o fará sufocar e, se tiver que tossir para expelir o sangue, isso poderá ser feito sem que o senhor desperte. Durante o sono, durante um sono profundo."

    — E, com isso, terminou o último ensaio. Dez minutos depois, tendo feito mais alguns passes e persuadido o doente a dor­mir ainda mais profundamente, o dr. Andrew deu início à ope­ração. Distendendo a pele, fez a incisão, dissecou a face e libe­rou o tumor de suas raízes no antro. O rajá permanecia inteira­mente relaxado, com o pulso firme e regular, batendo setenta e cinco vezes por minuto, sem sentir mais dor do que sentira du­rante a operação-ensaio. O dr. Andrew estava trabalhando na gar­ganta e o doente não sufocou. O sangue escorreu para a traquéia. O rajá tossiu e não acordou. A operação demorou quatro horas. Imediatamente após seu término, com uma pontualidade abso­luta, abriu os olhos, sorriu para o dr. Andrew através das atadu­ras e perguntou, no seu cantado sotaque londrino, quando a ope­ração iria começar. Depois de ser alimentado e lavado, o rajá re­cebeu mais alguns passes e foi persuadido a dormir mais quatro horas, na certeza de que, ao despertar, deveria se restabelecer ra­pidamente. O dr. Andrew manteve essa rotina por uma semana. O rajá ficava acordado diariamente durante oito horas e perma­necia em transe durante as dezesseis horas restantes. Apesar das condições sépticas em que foi realizada a intervenção e da troca dos curativos, o paciente não sentiu dores e a cicatrização se pro­cessou sem que tivesse havido supuração. Lembrando-se dos hor­rores que presenciara na enfermaria de Edimburgo, especialmente nas enfermarias de cirurgia de Madras, o dr. Andrew quase não podia crer no que seus olhos viam. Agora estava tendo outra opor­tunidade para se convencer dos poderes do magnetismo animal. A rani, impressionada com o que o dr. Andrew fazia por seu ma­rido, mandou que a filha mais velha do rajá, que estava no nono mês de sua primeira gravidez, mandasse chamá-lo. Ele encontrou a rani sentada junto a uma jovem de dezesseis anos, franzina e amedrontada, que, num inglês deficiente, conseguiu dizer que tan­to ela quanto o filho que esperava iriam morrer. Tal afirmativa era baseada no fato de que, em três dias consecutivos, três pássa­ros pretos haviam cruzado seu caminho. O dr. Andrew não dis­cutiu com ela, tendo, ao invés disso, pedido que se deitasse. Em seguida, começou a fazer os passes. Vinte minutos depois, a jo­vem estava em transe profundo. "Neste país os pássaros pretos trazem felicidade; são um presságio de vida e alegria", convenceu- a o dr. Andrew. Sua gravidez seria normal e o parto, sem dor. Ela não sentiria mais dor do que seu pai sentira durante a operação. Tudo seria absolutamente indolor, prometeu-lhe.

  • Três dias mais tarde, e após mais três ou quatro horas de sugestão intensiva, tudo se confirmou. Quando o rajá despertou para o jantar, encontrou a esposa sentada à beira de seu lei­to. "Temos um neto e nossa filha está bem. O dr. Andrew disse que amanhã você poderá ser levado até o quarto dela a fim de abençoá-los." Decorrido um mês, o rajá dissolveu o Conselho de Regência e reassumiu seus poderes reais; em sinal de gratidão ao homem que lhe salvara a vida (a rani estava convencida disso) e a vida de sua filha, investiu o dr. Andrew das funções de primeiro-ministro.

  • Ele não voltou mais para Madras?

  • Nem para Madras, nem mesmo para Londres. Ficou aqui em Pala.

  • Tentando melhorar a pronúncia do rajá?

  • Sim. No entanto, foi mais bem-sucedido nas modifica­ções que fez no reino do rajá.

  • Modificações em quê?

  • Esta é uma pergunta a que não poderia responder, pois naquele tempo não havia nenhum plano, somente um amontoa­do de simpatias e de aversões. Tanto em Pala como na Europa, havia coisas das quais gostava apaixonadamente e outras que real­mente detestava. Em suas viagens vira muitas coisas que lhe pa­receram cheias de bom senso e outras que o repugnavam. Começou a compreender que os povos são, ao mesmo tempo, os bene­ficiários e as vítimas de suas próprias culturas. A cultura pode proporcionar-lhes os meios de atingirem a plena beleza de uma flor, mas também pode podá-los quando ainda em botão, ou fazê-los apodrecer no início da florescência. Nesta ilha proibida have­ria possibilidade de evitar o apodrecimento, de reduzir ao mínimo a poda dos botões e fazer com que cada flor tivesse mais be­leza? Esta era a questão para a qual, a princípio de modo implí­cito e depois cada vez mais cônscios daquilo que realmente pre­tendiam realizar, o dr. Andrew e o rajá procuravam encontrar uma resposta.

  • E encontraram alguma?

  • Olhando o passado, a gente fica surpreendido com o que esses dois homens fizeram — disse o dr. MacPhail. — O médico escocês e o rei palanês, o calvinista que se tornou ateu e o piedo­so mahayanabudista, formavam uma estranha combinação. Em pouco tempo, esses dois homens de temperamentos, talentos, cul­turas e filosofias diferentes, se tornaram amigos, e as deficiên­cias de cada um eram mutuamente compensadas. As qualidades naturais de um eram estimuladas e desenvolvidas pelo outro. O rajá tinha uma inteligência aguda e sutil, porém desconhecia o mundo além dos limites de sua ilha. Nada sabia sobre ciências físicas e desconhecia totalmente a tecnologia, a arte e o modo de pensar dos europeus. Embora não menos inteligente, o dr. An­drew ignorava totalmente a pintura, a poesia e a fisiologia india­nas. Pouco a pouco foi descobrindo que também ignorava tudo a respeito da inteligência e da arte de viver. Nos meses que se se­guiram à operação, cada um se tornou ao mesmo tempo aluno e professor do outro. Isso, no entanto, foi somente um começo, pois não eram pessoas que se contentassem apenas em melhorar os conhecimentos em proveito próprio. O rajá tinha um milhão de súditos e o dr. Andrew era virtualmente o seu primeiro-ministro. A melhoria dos conhecimentos privados de cada um de­veria ser como que uma preliminar para os melhoramentos pú­blicos. Se o rei e o médico estavam se educando mutuamente so­bre o que de melhor havia em ambos (o oriental e o europeu; o antigo e o moderno), era para auxiliar toda a nação a fazer o mes­mo. Aproveitando o melhor dos dois mundos para criarem o me­lhor de todos os mundos. Um mundo que, além de ser criado se­gundo os vários padrões culturais, fosse pleno de potencialida­des ainda não realizadas. Era uma ambição enorme, quase que irrealizável, mas que tinha o mérito de esporeá-los, de fazer com que andassem depressa por caminhos que os próprios anjos te­meriam percorrer. E os resultados que ocasionalmente colheram vieram provar, para surpresa geral, que não eram tão loucos co­mo pareciam. É verdade que não conseguiram criar o melhor de todos os mundos, mas com uma série de tentativas audazes reali­zaram um mundo superior a muitos outros. Uma pessoa que fosse simplesmente prudente e perspicaz nem sequer imaginaria ser pos­sível congregar de modo harmonioso, e num mesmo mundo, cul­turas tão diversas.

  • Se o louco persiste na sua loucura, acabará se tornando sábio — disse Will, citando Os provérbios do inferno.

  • Exatamente — disse o dr. Robert. — E a mais extra­vagante de todas as loucuras é aquela descrita por Blake e que o rajá e o dr. Andrew contemplavam: a enorme loucura de tentar fazer um casamento entre o céu e o inferno. Mas, se você persistir nessa enorme loucura, a recompensa será estu­penda! No entanto, é indispensável que permaneça inteligen­te. Tolices a nada conduzem. É somente entre os inteligentes e os espertos que a loucura pode trazer sabedoria ou produ­zir bons resultados. Felizmente, esses dois loucos tinham ta­lento e foram bastante hábeis para iniciar suas loucuras de mo­do modesto e sedutor. Começaram dando alívio às dores. Os palaneses eram budistas e sabiam como a miséria está relacionada com a mente. Apegue-se, almeje, lute e viverá num in­ferno de sua própria fabricação. Desapegue-se e viverá em paz. Buda já dizia: "Eu lhes mostro o sofrimento e o seu fim". O dr. Andrew dispunha de um meio que permitia uma espé­cie de desligamento mental que daria fim a pelo menos uma espécie de sofrimento: a dor física. Com o próprio rajá, sua esposa, a rani, e sua filha servindo como intérpretes, o dr. An­drew dava aulas dessa arte recém-descoberta a grupos de par­teiras, médicos, professores, mães e inválidos. O parto sem dor colocou imediatamente as mulheres de Pala, cheias de en­tusiasmo, ao lado dos inovadores. Com as operações sem dor para pedras na bexiga, cataratas e hemorróidas, ganharam a aprovação de todos os velhos e doentes. De um só golpe, mais da metade da população adulta se aliou a eles e ficou incli­nada a receber com boa vontade as reformas que se seguiram.

  • Que fizeram depois da vitória sobre a dor? — perguntou Will.

  • Voltaram-se para a agricultura e para a linguagem. Contrataram na Inglaterra um homem para criar uma "Rothamsted nos trópicos" e se empenharam em dar aos palaneses uma segunda língua. Pala deveria permanecer uma ilha proibida e o dr. An­drew e o rajá concordaram inteiramente em que missionários, plantadores e comerciantes eram demasiadamente perigosos pa­ra serem tolerados. A entrada desses estrangeiros subversivos não devia ser permitida, mas os nativos podiam de algum modo ser auxiliados a deixar a ilha, pelo menos intelectualmente. Sua lin­guagem e a versão arcaica do alfabeto brâmane, porém, consti­tuíam uma prisão sem janelas. Não havia saída, eles não conse­guiram nem ao menos vislumbrar o mundo exterior, até que aprenderam o inglês e puderam ler os caracteres latinos. O aper­feiçoamento lingüístico foi se tornando moda na corte do rajá. A conversação entre damas e cavalheiros era entremeada de frag­mentos de gíria londrina. Alguns deles chegavam a mandar bus­car no Ceilão professores que falavam inglês, e o que a princípio era simples moda transformou-se em programa de ação. Foram construídas escolas inglesas e um grupo de impressores de Ben­gala, juntamente com suas prensas e tipos de Caslon e Bodoni, foi importado de Calcutá. O primeiro livro inglês a ser publica­do em Shivapuram foi uma seleção das Mil e uma noites, e o se­gundo O diamante sutra, até então somente disponível em sânscrito ou em manuscrito. Aqueles que desejassem ler acerca de Simbá, o marujo,assim como os que se interessassem pela Sabedo­ria da outra margem, dispunham agora de duas fortes razões pa­ra aprender inglês. Isso foi o princípio do longo processo educa­cional que nos tornou um povo bilíngüe. Falamos palanês quan­do cozinhamos, quando contamos histórias cômicas, quando fa­lamos de amor ou quando o fazemos. Diga-se de passagem que dispomos do mais rico vocabulário erótico e sentimental do su­doeste da Ásia. Para os assuntos comerciais, científicos ou filo­sóficos, usamos o inglês. A maioria do nosso povo prefere escre­ver em inglês. Cada escritor precisa de uma literatura que lhe sirva de modelo ou de ponto de referência. Precisa de uma série de padrões aos quais se adapte ou dos quais se afaste. Pala tinha uma boa pintura e escultura. A arquitetura era esplêndida. A mú­sica era sutil e expressiva e as danças verdadeiramente maravi­lhosas, porém não havia literatura no sentido real da palavra. Não existiam poetas ou dramaturgos nacionais, nem mesmo contadores de histórias. Existiam somente trovadores que recitavam as len­das budistas e hindus, e um grande número de monges que pre­gavam sermões ricos em intrincadas divagações metafísicas. Adotando o inglês como uma segunda língua-mãe, adquirimos uma literatura espiritual, uma grande variedade de estilos e de técni­cas, bem como uma fonte inesgotável de inspiração. Resumin­do, nos propiciamos a possibilidade de poder criar, num campo onde anteriormente nada havíamos criado. Graças ao rajá e ao meu bisavô, existe uma literatura anglo-palanesa, da qual, devo acrescentar, Susila é um dos luminares contemporâneos.

  • No lado obscuro — disse Susila.

    O dr. MacPhail fechou os olhos e, sorrindo para si mesmo, começou a recitar:

     

Assim fui para os que se foram,

Com a mão de Buda ofereci a flor ainda não colhida,

O solilóquio da rã entre as folhas de lótus,

A boca que se manchou de leite

No meu seio túmido e cheio de amor,

E do mesmo modo que o céu sem nuvens

Torna possível a visão das montanhas

e do cair da lua,

Esse vazio que é o útero do amor

E a poesia do silêncio.

 

Abriu os olhos novamente e disse:

  • Não é somente "essa poesia do silêncio". É a ciência, é a filosofia, é a teologia do silêncio. Já está mais do que na hora de dormir. — Levantou-se e se dirigiu para a porta, — Vou bus­car um copo de suco de frutas para você.

 

O patriotismo, a ciência, a religião, a arte, a políti­ca, a economia, o dever, a ação desinteressada e mesmo a contemplação (embora sublime), isoladamente não são suficientes. Nada é suficiente desde que o Todo seja deficiente.

— Atenção! — gritou um pássaro a distância. Will olhou seu relógio. Cinco para o meio-dia. Fechou as Notas sobre o que é quê e, apanhando seu bordão de bambu, que pertencera a Dugald MacPhail, saiu para o encontro que combi­nara com Vijaya e o dr. Robert. Indo pelo atalho, o edifício prin­cipal do Posto Experimental ficava a menos de um quarto de mi­lha do bangalô do dr. Robert. Mas o calor estava opressivo. Te­ria que subir dois lances de escada e, para um convalescente com a perna direita ainda imobilizada por talas, esse pequeno percur­so representava uma longa viagem.

Lenta e penosamente, tomou o caminho sinuoso e iniciou a subida. Ao atingir o último degrau do segundo lance, parou para descansar, enxugou a testa e, mantendo-se bem junto ao mu­ro (no qual ainda havia uma estreita faixa de sombra), dirigiu-se para o local onde viu uma tabuleta com a palavra laboratório.

A porta estava entreaberta; empurrando-a, achou-se na entrada de uma sala grande e de teto alto. Deparou com as pias, as mesas de trabalho e armários cheios de frascos e os instrumen­tos. Sentiu o cheiro dos produtos químicos e dos ratos engaiola­dos. Num primeiro momento teve a impressão de que a sala esta­va vazia, mas verificou logo que, escondido por uma estante de livros que fazia ângulo reto com a parede, Murugan lia com aten­ção. Tão silenciosamente quanto lhe era possível (pois é sempre divertido assustar pessoas), entrou na sala. O ruído de um venti­lador elétrico encobria o som de seus passos e Murugan só perce­beu sua presença quando ele se achava a poucos metros da estan­te. Assustado, o rapaz empurrou o livro que tinha diante de si para dentro de uma pasta de couro e, pegando outro volume me­nor que estava aberto na mesa, fingiu que o lia. Somente depois de ter feito todos esses arranjos foi que ergueu os olhos para o intruso.

  • Sou eu — disse Will com um sorriso tranqüilizador.

    No rosto do rapaz, o alívio substitui a expressão de desafio que havia em seus olhos.

  • Pensei que fosse...

  • Você pensou que era alguém que iria repreendê-lo por não estar fazendo o que devia, não é isso?

    Sorrindo, Murugan balançou afirmativamente a cabeça cacheada.

  • Onde está o pessoal? — perguntou Will.

  • Todos estão nos campos podando ou polinizando — respondeu num tom de desprezo.

  • Quer dizer que, com a saída dos gatos, o rato se diverte! Que é que você lia com tanta atenção?

    Com ingênua insinceridade, Murugan levantou o livro que fingia ler e disse:

  • Ecologia elementar.

  • Isto eu estou vendo. Mas estou lhe perguntando sobre aquele que estava lendo.

  • Aquele! Não lhe interessaria — disse Murugan encolhen­do os ombros.

  • Eu me interesso por tudo que qualquer pessoa pretenda esconder. Era um livro pornográfico?

    Abandonando sua expressão risonha, Murugan olhou-o co­mo se estivesse realmente ofendido e perguntou:

  • Quem você pensa que eu sou?

    Will estava a ponto de dizer que o considerava igual a todos os rapazes de sua idade, mas se conteve em tempo. Para o jovem e belo amigo do coronel Dipa, a expressão "igual a todos" po­deria ser considerada como um insulto ou uma insinuação. Ao invés disso, curvou-se com expressão zombeteira e disse:

  • Peço que Vossa Majestade me perdoe — e, mudando de tom, continuou: —, mas, apesar de tudo, ainda estou curioso. Permite que eu veja? — perguntou, pondo a mão sobre a pasta.

    Após hesitar um momento, Murugan disse com um riso forçado:

  • Pode abrir.

  • Que volume! — disse Will, puxando um grande livro que pôs sobre a mesa. E, em seguida, leu o título em voz alta: — Sears Roebuck e Cia., Catálogo de verão e primavera.

  • É do ano passado — disse Murugan como que a se des­culpar. — Mas não acredito que tenham surgido muitas modifi­cações desde então.

  • Aí é que se engana. Se os estilos não fossem completa­mente mudados, ninguém teria justificativa para adquirir as coi­sas novas antes que as velhas estivessem fora de uso. Você não compreende os princípios elementares que regem o comércio atual.

    Abrindo o livro ao acaso, leu: Cunhas flexíveis para plataformas de amplas dimensões. Abrindo-o novamente em outra pá­gina, achou a descrição e o retrato de um soutien de dacrone algodão pina, em "rosa-suspiro".

Virou a página e lá estava, memento mori, o que a compradora do soutien viria a usar daí a vinte anos — uma cinta contro­lada por alças próprias para sustentar abdomes pendulares.

  • Só é realmente interessante quando se chega à parte fi­nal do livro — disse Murugan. — Tem mil, trezentas e cinqüenta e oito páginas. Imagine! Mil, trezentas e cinqüenta e oito páginas!

    Will saltou as setecentas e cinqüenta páginas restantes.

  • Ah! Achamos! Nossos famosos revólveres e pistolas ca­libre 22. — Um pouco mais adiante se encontravam os Botes de fibra de vidro, os Motores marítimos de alta propulsão, um Mo­tor de popa de 12 hp por apenas $ 234,95; o tanque de combustí­vel estava incluído. — Mas isso é uma pechincha!

Era evidente, porém, que Murugan não estava interessado em náutica, pois, tomando-lhe o livro, folheou-o impaciente até encontrar o que procurava.

  • Veja este Veleiro a motor estilo italianol.

Enquanto Will olhava, Murugan leu em voz alta:

  • Esta lancha elegante e veloz chega a desenvolver 110 milhas por galão de combustível. Imagine só!! — Seu rosto, nor­malmente mal-humorado, irradiava entusiasmo. — E pensar que se pode andar mais de sessenta milhas com um galão, nessa mo­tocicleta de 14,5 hp, e que eles garantem poder alcançar uma ve­locidade de setenta e cinco milhas por hora. Garantem!

  • Notável! Foi alguém da América que lhe mandou esse livro? perguntou Will.

    Murugan sacudiu sua cabeça, negativamente.

  • Foi o coronel Dipa que me deu.

  • O coronel Dipa? Que estranho presente de Hadrian para Antinous! Olhando novamente para a ilustração da motocicleta, Will fitou o rosto radiante de Murugan e a intenção do coronel se lhe revelou. A serpente me tentou e comi. A árvore no meio do jardim se chamava "Árvore do consumidor de mer­cadorias". Para os habitantes dos edens subdesenvolvidos, pro­var seu fruto ou mesmo a simples visão das suas mil, trezentas e cinqüenta e oito páginas tinha o poder de lhes trazer a vergo­nhosa informação de que, industrialmente falando, eram com­pletamente nulos. O futuro rajá de Pala estava sendo informado de que não era mais que o governante nu de uma tribo de sel­vagens.

  • Você deveria importar um milhão desses catálogos e distribuí-los gratuitamente, é claro, como os anticoncepcionais, a todos os seus súditos.

  • Para quê?

  • Para lhes estimular o apetite pelas coisas. Desse modo começarão a clamar por progresso. E o progresso é representado por petróleo, armamentos, Joe Aldehyde e técnicas soviéticas.

    Murugan franziu as sobrancelhas e meneou a cabeça.

  • Não daria certo disse.

  • Quer dizer que eles não ficariam tentados nem mesmo pelos "velozes e elegantes veleiros a motor" e os "soutiens rosa- suspiro"? Não posso acreditar!

  • Pode lhe parecer inacreditável, mas é um fato disse Murugan amargurado. Eles simplesmente não se interessariam.

  • Nem mesmo os jovens?

  • Eu diria que especialmente eles.

    Will Farnaby aguçou os ouvidos. Essa falta de interesse lhe parecia profundamente interessante.

  • Não consegue imaginar qual a razão? perguntou Will.

  • Não preciso imaginar respondeu. Sei qual a razão. E, como se de repente se decidisse a fazer uma imitação de sua mãe, começou a falar num tom de justa indignação que des­toava completamente da sua idade e aparência. Para início de conversa, estão demasiadamente preocupados com... Hesitou um momento e conseguiu terminar, entre dentes e ostensivamen­te nauseado, a frase: — ...com o sexo.

  • Mas todos estão preocupados com o sexo e nem por isso deixam de idolatrar os "elegantes veleiros a motor".

  • O sexo aqui é diferente — insistiu Murugan.

  • Por causa da ioga do amor? — perguntou Will, lembrando-se do rosto extasiado da pequena enfermeira.

    O rapaz concordou.

  • Possuem algo que os faz pensar que são completamente felizes e por isso nada mais desejam.

  • Mas isto é uma verdadeira bênção!

  • Não concordo — disse Murugan com rispidez. — É ape­nas estúpido e nauseante. Nada de progresso, somente sexo, se­xo, sexo! Afora isso, apenas o abominável narcótico que lhes é dado.

  • Narcótico? — perguntou Will, atônito. Narcótico num lugar onde Susila declarara não haver viciados? — Que espécie de narcótico?

  • É feito de cogumelos venenosos! — Ao dizer isso, se transformou numa verdadeira caricatura da rani, nos momentos em que adquirira os mais vibrantes tons de espiritualidade ul­trajada.

  • Por acaso não serão desses lindos cogumelos onde os anões costumavam sentar?

  • Não. Esses são amarelos. Costumava-se ir colhê-los nas montanhas. Agora, essas "coisas" crescem no Posto Experimental de Grandes Altitudes, em canteiros especiais de fungos. É narcó­tico cultivado cientificamente. Lindo, não?

    Uma porta bateu. Ouviu-se o som de vozes e de pisadas que vinham do corredor. O espírito indignado da rani desapareceu abruptamente e Murugan se transformou, mais uma vez, no estu­dante que, cheio de remorsos, tenta esconder suas faltas. Num ins­tante, a Ecologia Elementar tomou o lugar da Sears Roebuck e a pasta cheia e de aspecto suspeito foi para debaixo da mesa. Após um momento, Vijaya entrou na sala. Seu peito, nu e suado pelo trabalho sob o sol do meio-dia, brilhava como bronze oleado. Atrás dele vinha o dr. Robert. Com o ar de um estudante-modelo que foi interrompido em seus estudos por transgressores do frívolo mundo exterior, Murugan olhou-os. Divertido, Will imediatamente prestou-se com sinceridade ao papel que lhe fora designado.

  • Cheguei cedo demais disse em resposta às desculpas de Vijaya por terem chegado atrasados. Acabei perturbando os estudos do nosso jovem amigo. Estivemos conversando muito.

  • Qual o assunto? perguntou o dr. Robert.

  • Os mais variados. Repolhos, reis, barcos a motor e ab­domes pendulares. Quando vocês entraram, falávamos sobre os cogumelos. Murugan me falava a respeito dos fungos usados aqui como estupefacientes.

  • Qual a significação de um nome? perguntou o dr. Robert sorrindo. Resposta: praticamente tudo. Murugan teve o infortúnio da educação européia e os chama de entorpecentes. Sua desaprovação vem de um reflexo condicionado, desencadea­do por essa palavra sórdida. Nós, pelo contrário, chamamo-lo moksha, o revelador da realidade, a pílula da verdade e da bele­za, e sabemos, graças a experiências objetivas, que esses nomes são merecidos. Mas nosso jovem amigo não tem o menor conhe­cimento a respeito dessa droga e não pôde ser ao menos persua­dido a experimentá-la, porquanto, para ele, entorpecente é por definição algo a que nenhuma pessoa decente deve jamais ceder.

  • Qual a opinião de Vossa Majestade? perguntou Will.

    Murugan meneou a cabeça.

  • Tudo não é mais que um amontoado de ilusões. Deveria ceder apenas para fazer papel de bobo?

  • É mesmo! Uma vez que você é o único ser humano que em seu estado normal nunca é feito de tolo e nunca tem ilusões a respeito de nada, para que experimentar? disse Vijaya.

  • Não disse isso! protestou Murugan. Quis apenas dizer que não desejo nenhum dos seus falsos samadhi.

  • Como sabe que são falsos? perguntou o dr. Robert.

  • Porque a verdade somente chega às pessoas após anos e anos de meditação, tapas e... você bem sabe: se abstendo das mulheres.

  • Murugan é um dos Puritanos explicou Vijaya a Will. Ele está insultado pelo fato de que, com apenas quatrocentos miligramas de moksha na sua corrente sangüínea, mesmo os prin­cipiantes (sim, mesmos os rapazes e moças que fazem amor) po­dem perceber num relance como é o mundo dos que foram liber­tados do cativeiro do próprio ego.

  • Porém não é real insistiu Murugan.

  • Não é real! — repetiu o dr. Robert. — Você poderia di­zer que a experiência de sentir-se bem também não é real.

  • Você está exagerando uma resposta — observou Will. — Uma experiência pode ser real em relação a algo que se tem den­tro da cabeça, porém estar em completo desacordo com qualquer coisa exterior.

  • É claro — concordou o dr. Robert.

  • Vocês por acaso sabem o que lhes vai dentro da cabeça após tomarem uma dose do cogumelo?

  • Sim. Temos uma vaga idéia.

  • E tentamos sempre descobrir mais — ajuntou Vijaya.

  • Por exemplo — disse o dr. Robert. — Descobrimos que as pessoas cujo EEG (eletroencefalograma) não apresenta nenhu­ma atividade das ondas alfa quando em repouso geralmente não reagem significativamente ao moksha. Isso quer dizer que, para cerca de quinze por cento da população, temos de descobrir ou­tro modo de libertação.

  • Outra coisa que apenas começamos a compreender é a correlação neurológica dessas experiências — disse Vijaya. — Que acontece no cérebro enquanto se tem uma visão? Que acontece quando se passa do estado pré-místico para o estado verdadeira­mente místico?

  • Vocês sabem? — perguntou Will.

  • Saber é uma palavra cujo significado é muito amplo. Prefiro dizer que estamos capacitados a fazer algumas suposições ra­zoáveis. Os anjos, as novas Jerusaléns, as Madonas e os futuros Budas são o produto de uma estimulação suscitada nas áreas ce­rebrais de projeção primária, como por exemplo o córtex visual. Ainda não sabemos de que modo o moksha produz esse tipo de estímulo, mas o que importa é que os produz e que atua, de um modo ou de outro, também de forma incomum sobre as áreas mudas do cérebro, isto é, sobre aquelas que não têm ação especí­fica sobre a percepção, sobre a motilidade e sobre as emoções.

  • E qual é a reação dessas áreas? — perguntou Will.

  • Comecemos com o modo pelo qual não reagem. Elas não "respondem" com visões nem com alucinações auditivas. Tam­pouco com manifestações telepáticas, de clarividência ou com qualquer outra proeza parapsicológica. Nada dessas palhaçadas pré-místicas. A "resposta" dessas áreas é a plenitude da expe­riência mística. Você sabe: "Um é tudo e tudo é um". A experiência básica com ou sem corolários; compaixão sem limites, mis­térios insondáveis e cheios de significação.

  • Sem mencionar a alegria, a indizível alegria! — disse o dr. Robert.

  • E toda essa turma está estreitamente confinada dentro do cérebro — disse Will. — Sem ter a menor relação com o exte­rior, exceto com o cogumelo.

  • Não é verdade! — interrompeu Murugan. — Era exatamente isso que estava tentando dizer.

  • Você está presumindo que o cérebro produz a consciên­cia. No entanto, presumo que ele transmite a consciência. Mas nem por isso minha explicação é mais artificial do que a sua — disse o dr. Robert. — Como é possível que uma série de aconte­cimentos pertencentes a uma ordem possam ser experimentados como se pertencessem a outra inteiramente diferente? Ninguém tem a menor idéia e tudo que pode fazer é forjar hipóteses. Filo­soficamente falando, uma hipótese é tão boa quanto a outra. Você diz que o moksha afeta as áreas mudas do cérebro, fazendo com que produzam uma série de acontecimentos subjetivos aos quais as pessoas denominaram "experiência mística". Eu digo que es­sa propriedade do moksha abre uma espécie de comporta neuro­lógica, permitindo que um maior volume de Mente (com M maiúsculo) flua para a sua mente (com m minúsculo). Tanto você quan­to eu podemos demonstrar a verdade das nossas hipóteses, e mes­mo que possa provar que estou errado, você acha que isso faria alguma diferença na prática?

  • Pensei que faria uma diferença enorme — disse Will.

  • Você gosta de música?

  • Mais do que da maioria das coisas.

  • Poderia responder-me o que simboliza o Quinteto em sol menor, de Mozart? Será que representa Alá, Tao, a segunda pes­soa da Santíssima Trindade ou Atman-Brahman?

    Will sorriu.

  • Mas isso não nos tira os efeitos benéficos do Quinteto em sol menor — continuou o dr. Robert. — Acontece o mesmo com o tipo de experiência que se obtém seja com o moksha, seja através da oração, do jejum ou dos exercícios espirituais. Mes­mo que não se refira a qualquer coisa exterior, ainda assim cons­titui a coisa mais importante que pode lhe acontecer. É como a música, porém incomparavelmente maior. E se você estiver preparado para a experiência e se decidir a acompanhá-la, os resulta­dos serão ainda mais terapêuticos e transformadores. Talvez tudo isso se passe dentro do cérebro de cada um. Talvez seja inteira­mente particular e não haja conhecimento unificado de nada que vá além da fisiologia de cada indivíduo. Mas que importância tem isso? A verdade é que a experiência pode abrir os olhos das pes­soas, tornando-as abençoadas e transformando-lhes as vidas.

    Houve um longo silêncio.

  • Deixe que lhe diga algo recomeçou, voltando-se para Murugan. É uma coisa sobre a qual não tencionava falar com ninguém. Agora, sinto que talvez tenha um dever a cumprir com o trono, com Pala e com todo o seu povo, e penso que devo lhe falar acerca desta experiência particular. Talvez, assim, venha a ajudá-lo a ter um pouco mais de compreensão com o povo e os costumes de seu país.

    Ficando silencioso por um instante, prosseguiu num tom calmo e natural:

  • Imagino que você conheça minha esposa.

    Com o rosto ainda desviado, Murugan concordou.

  • Fiquei pesaroso ao saber que está tão doente murmurou.

  • Agora é apenas uma questão de, no máximo, quatro ou cinco dias disse o dr. Robert. Mas ela se encontra perfeita­mente lúcida e consciente sobre tudo o que lhe está acontecendo. Ontem me perguntou se poderíamos tomar o moksha juntos. Nós o tomamos uma ou duas vezes por ano, nesses últimos trinta e sete anos. Desde quando decidimos nos casar. E, agora, toma­mos uma vez mais, pela última vez. Isso implicava um risco, de­vido aos danos que causa ao fígado, porém decidimos que valia a pena corrermos o risco. O resultado veio mostrar que estáva­mos certos. O moksha, ou o entorpecente, como você prefere chamá-lo, quase não causou perturbações. Tudo o que aconte­ceu foi a transformação mental.

    Depois que o dr. Robert se calou, Will percebeu os chiados e o raspar das patas dos ratos engaiolados; olhando pela janela aberta, ouviu a babel da vida tropical e o chamado distante de um pássaro mainá:

  • Aqui e agora, rapazes! Aqui e agora...

  • Você é como aquele mainá disse finalmente o dr. Robert. Educado para repetir palavras que não entende ou de que não conhece a razão de ser. "Não é real. Não é real." Po­rém, se experimentasse aquilo que Lakshmi e eu atravessamos jun­tos ontem, compreenderia melhor. Saberia que foi muito mais real do que aquilo que você chama de realidade. Mais real do que o que está pensando e sentindo neste momento. Mais real do que o mundo que tem à sua frente. No entanto, tudo o que lhe ensi­naram a dizer foi: "Não é real. Não é real. Não é real".

    O dr. Robert pousou afetuosamente a mão no ombro do rapaz.

  • Ensinaram-lhe que não passamos de um grupo de vicia­dos em entorpecentes, cheios de autocomiseração, chafurdando em ilusões e falsos samadhis.Ouça, Murugan, procure esquecer todas as obscenidades que lhe foram incutidas. Esqueça pelo me­nos até o ponto em que lhe seja possível admitir uma simples ex­periência. Tome quatrocentos miligramas de moksha e descubra, por si, qual o seu efeito. Descubra o que diz sobre a sua própria natureza e a respeito deste estranho mundo onde você terá que viver, aprender, sofrer e finalmente morrer. Sim, mesmo você morrerá um dia. Daqui a cinqüenta anos? Amanhã? Quem sa­be? No entanto, acontecerá, e somente um tolo não se prepara para esse dia. — Virando-se para Will, disse: — Gostaria de me acompanhar enquanto tomamos um banho de chuveiro e troca­mos de roupa?

    Sem esperar resposta, deixou-os e dirigiu-se a uma porta que conduzia ao corredor central do grande edifício. Will apanhou seu bordão de bambu e, acompanhado por Vijaya, deixou a sala.

  • Acha que Murugan ficou impressionado? — perguntou a Vijaya logo que a porta se fechou atrás deles.

    Vijaya encolheu os ombros, dizendo:

  • Duvido.

  • Com a influência de sua mãe e a paixão por motores de combustão interna, é provavelmente impermeável a qualquer coisa que lhe possa ser dita. Deveria tê-lo ouvido discorrer sobre os ve­leiros a motor! — disse Will.

  • Já tivemos oportunidade de ouvi-lo — aparteou o dr. Robert, que, parado diante de uma porta azul, os aguardava para que fossem todos juntos. — Já o ouvimos freqüentemente. Quan­do atingir a maioridade, os veleiros irão constituir um assunto político de grande importância.

    Vijaya sorriu e disse:

  • Velejar ou não velejar, eis a questão.

  • Não é somente em Pala que "é a questão" acrescen­tou o dr. Robert. É um problema que todos os países subdesenvolvidos terão que resolver de um modo ou de outro.

  • O resultado é sempre o mesmo. Em todos os lugares em que estive (e já estive quase em toda a parte) se decidiram espon­taneamente a velejar disse Will.

  • Sem exceção — concordou Vijaya. Velejar pelo sim­ples fato de velejar, mandando às favas as considerações sobre as realizações, o autoconhecimento e a liberação. Isso sem mencionarmos as simples questões de saúde pública, de agricultura e de felicidade.

  • Enquanto nós disse o dr. Robert sempre preferi­mos usar a nossa economia e tecnologia com os seres humanos, não permitindo que sejam usados pela economia e a tecnologia dos outros. Importamos o que não produzimos, porém nos limi­tamos a produzir e importar somente o que é permitido por nos­sos recursos. E nossos recursos são limitados, não só pelas nos­sas divisas em libras, marcos ou dólares, mas principalmente, prin­cipalmente insistiu por nosso desejo de sermos felizes e por nossa ambição em nos tornarmos inteiramente humanos. Após cuidadosos estudos sobre o assunto, decidimos que os veleiros a motor estão entre as coisas, no meio de muitas outras, que não nos podemos permitir. O probrezinho do Murugan terá de aprender isso pelo modo mais duro, uma vez que ainda não aprendeu e não o deseja fazer pelo modo mais fácil.

  • Qual o modo mais fácil? perguntou Will.

  • Através da educação e do "revelador da realidade". Murugan ainda não teve nenhum dos dois, ou melhor, teve o opos­to. Sua educação foi estragada na Europa (governanta suíça, pro­fessores ingleses, cinema americano, anúncios de todas as par­tes) e a realidade foi ofuscada pelo estigma da espiritualidade ma­terna. Não é de espantar que sonhe com os veleiros a motor.

  • Não creio que seus súditos concordem com isso.

  • E por que haveriam de concordar? Desde a infância lhes foi ensinado a estarem inteiramente cônscios do mundo e a desfrutarem dessa consciência. Além disso, tanto eles como o mun­do e as pessoas que lhes foram mostradas foram vistos como coi­sas iluminadas e transfiguradas pelos "reveladores da realidade". Isso naturalmente os ajuda a ter uma percepção mais intensa e um prazer ainda mais cheio de compreensão, de modo que os acontecimentos mais triviais e as coisas mais simples sejam como se fossem jóias e milagres. Jóias e milagres! — repetiu enfatica­mente. — Assim sendo, por que recorrermos aos veleiros a mo­tor ou a qualquer outra espécie de distrações e de compensações?

  • Nada a que falte o todo tem qualquer valor — citou Will.

  • Agora compreendo a que se referia o velho rajá. Não se pode ser um bom economista sem ser também um bom psicólogo. E um bom engenheiro sem ser um tipo acabado do metafísico.

  • Não se esqueça de todas as outras ciências — disse o dr. Robert. — Por exemplo, a farmacologia, a sociologia, a fisiolo­gia, sem esquecer a autologia pura e aplicada, a neuroteologia, a metaquímica, o micromisticismo e a ciência básica, a ciência sobre a qual, mais cedo ou mais tarde, teremos de ser inquiridos: a tanatologia. — Enquanto assim falava, o dr. Robert mantinha o olhar a distância, como se quisesse estar a sós com seus pensa­mentos, lembrando-se de Lakshmi no hospital. Continuando em silêncio por alguns momentos, disse finalmente, mudando de tom:

  • Bem... Vamos tomar banho.

    Abrindo a porta azul, precedeu-os à entrada de um longo banheiro que tinha, de um lado, uma fileira de chuveiros e de pias e, do outro, uma série de pequenas gavetas e um grande guarda-roupa.

    Will sentou-se enquanto seus companheiros se ensaboavam em bacias e continuou a conversar.

  • Seria permitido a um forasteiro sem educação experimentar uma pílula "da verdade e da beleza"?

    A resposta foi outra pergunta:

  • O seu fígado está em bom estado? — indagou o dr. Robert.

  • Excelente.

  • Além disso, você não parece ser mais do que medianamente esquizofrênico. Desse modo, não vejo nenhuma contra- indicação.

  • Posso me submeter à experiência?

  • Quando quiser — respondeu o dr. Robert e, entrando no chuveiro mais próximo, abriu a torneira. Vijaya acompanhou-o.

  • Vocês são mesmo intelectuais? — perguntou-lhes Will quando os dois saíram dos chuveiros e estavam se enxugando.

  • Fazemos trabalho intelectual! respondeu Vijaya.

  • Então, qual a razão para toda essa horrível trabalheira?

  • A razão é muito simples: durante esta manhã, tive algum tempo disponível disse Vijaya.

  • E eu também disse o dr. Robert.

  • Então foram para os campos e agiram à Tolstoi!

    Vijaya sorriu e disse:

  • Parece imaginar que o fazemos movidos por razões éticas!

  • E não é?

  • Certamente que não. Faço trabalho braçal simplesmente porque tenho músculos e, se não os usar, me transformarei num sedentário mal-humorado.

  • Sem nada entre o córtex e as nádegas. Ou melhor, com tudo, porém em condições de inconsciência completa e de estag­nação tóxica disse o dr. Robert. Os intelectuais do Ociden­te são tolos "viciados em cadeiras" e por esse motivo a grande maioria de vocês é repulsivamente corrupta. No passado, mes­mo os duques, os agiotas ou os metafísicos tinham que dar gran­des caminhadas. Quando não iam a pé, estavam se sacudindo no lombo dos cavalos. Enquanto hoje, do magnata à sua secretária, do positivista lógico ao pensador positivo, nove décimos do seu tempo são gastos sobre espuma de borracha. Almofadas de es­puma para traseiros de espuma: em casa, no escritório, nos car­ros, nos bares, nos aviões, nos trens e nos ônibus. Nada de movi­mentar as pernas, nada de lutar com as distâncias e a lei da gra­vidade, apenas elevadores, aviões, carros. Apenas espuma de bor­racha e a possibilidade de ficar eternamente sentado. A força vi­tal acostumada a achar uma forma de escape através dos músculos cansados é devolvida às vísceras e ao sistema nervoso e vai lentamente destruindo-os.

  • Resolveu cavar e cavoucar como uma forma de terapêutica?

  • Não como um tratamento, mas como um método profilático que torne desnecessário o tratamento. Em Pala, os profes­sores e os funcionários do governo trabalham pelo menos duas horas por dia, cavando e cavoucando.

  • Como parte das suas obrigações?

  • Sim. Mas isso também faz parte dos seus prazeres.

    Will fez uma careta e comentou:

  • Eu não consideraria isso um prazer!!

  • Sua atitude é decorrente do fato de não lhe terem ensi­nado a usar apropriadamente sua mente e seu corpo — explicou Vijaya. — Se lhe houvessem ensinado a fazer as coisas com o mí­nimo de esforço e o máximo de atenção, você apreciaria mesmo a labuta honesta.

  • Imagino que aqui as crianças sejam educadas dessa maneira, não é?

  • A partir do momento em que começam a fazer as coisas por si mesmas. Por exemplo, qual é a posição correta que se de­ve assumir enquanto se abotoam as roupas?

    Ato contínuo, Vijaya começou a abotoar a camisa que aca­bara de vestir.

  • A resposta à questão é: pôr-se o cérebro e o corpo na melhor posição fisiológica. Nós as encorajamos ao mesmo tempo a observar como se sentem por estarem na melhor posição fisio­lógica. Fazemos com que saibam, por meio de toques, pressões e sensações musculares, em que consiste o processo de abotoar- se. Quando alcançam os quatorze anos de idade, aprenderam co­mo tirar o melhor e máximo, tanto objetiva como subjetivamen­te, de qualquer atividade que empreendam. É nessa época que os iniciamos no trabalho. Noventa minutos por dia em alguma espécie de trabalho manual.

  • De volta ao velho sistema do trabalho manual infantil!

  • Ou melhor, um passo adiante desse ócio infantil moder­no. Vocês não permitem que seus adolescentes trabalhem e por isso eles têm de descarregar a força na delinqüência. Em outros casos, essa força é sufocada até que estejam completamente do­mesticados e aptos a se tornarem viciados no sedentarismo. E ago­ra, vamos. Já está na hora — acrescentou. — Irei na frente.

    Quando entraram no laboratório, Murugan terminava de fechar sua pasta para evitar que algum curioso a visse.

  • Estou pronto — disse ele. Pondo o volume de mil, trezentas e cinqüenta e oito páginas do "Novíssimo Testamento" debaixo do braço, acompanhou-os.

    Alguns minutos depois, apertados num jipe antiquado, os quatro rodavam pela estrada que, passando pelo estábulo do touro branco, perto do poço de lótus, pelo enorme Buda de pedra e pe­lo portão do acampamento, ia dar na rodovia.

  • Sinto muito que não possamos lhes fornecer um meio de transporte mais confortável disse Vijaya, enquanto iam aos trancos.

    Will deu uma pancadinha amigável no joelho de Murugan.

  • Este é o homem com quem você deveria estar se desculpando disse. Aquele cuja alma anseia por Jaguares e Thunderbirds.

  • Isso é um desejo que talvez tenha de permanecer insatisfeito disse o dr. Robert, do banco traseiro.

    Murugan não fez nenhum comentário, porém sorriu enigmaticamente e de modo superior.

  • Não podemos importar brinquedos, somente coisas essenciais continuou o dr. Robert.

  • Quais são elas?

  • Você verá daqui a pouco.

    Fizeram uma curva e a distância, abaixo deles, viam-se os telhados de sapé e os jardins tricolores de uma vila de tamanho considerável. Vijaya estacionou o veículo num lado da estrada e desligou o motor.

  • Você está diante de novo Rothamsted disse. Ou melhor, diante de Madalia. Aqui há arroz, legumes, frutas e aves domésticas, sem esquecer duas olarias e uma fábrica de móveis. Também há esses fios.

    Apontou na direção onde a longa fileira de torres metálicas subia por trás da vila, num aclive cheio de plataformas, mergu­lhava cume abaixo, escondendo-se para reaparecer mais adiante, subindo por outro vale, na direção do cinturão verde da selva montanhosa e dos distantes picos nublados.

  • Eis uma das importações indispensáveis: material elétri­co. Depois que a força das quedas-d'água tiver sido utilizada e as linhas de transmissão forem instaladas, existe algo mais que possui grande prioridade. Indicou com o dedo um bloco de cimento sem janelas que se erguia desajeitadamente entre as ca­sas de madeira existentes nas imediações da entrada superior da vila.

  • Que é aquilo? Algum forno elétrico? — perguntou Will.

  • Não. As estufas estão do outro lado da vila. É o frigorí­fico da comunidade.

  • No passado costumávamos perder aproximadamente metade dos víveres perecíveis que produzíamos explicou o dr. Robert. — Agora as perdas são mínimas. Tudo aquilo que planta­mos é para nós, não para as bactérias do meio ambiente.

  • Então, agora, dispõem de bastante alimento.

  • Mais do que o suficiente. Comemos melhor do que qualquer outro país da Ásia e ainda há um excedente que se destina à exportação. Lenin costumava dizer que eletricidade mais socia­lismo é igual a comunismo. Mas nossas equações são bastante diferentes. Eletricidade menos indústria pesada mais controle da natalidade é igual a democracia e abundância. Eletricidade mais indústria pesada menos controle da natalidade é igual a miséria, totalitarismo e guerra.

  • A título de curiosidade, quem é o dono de tudo isso? — perguntou Will. — Seu regime é o capitalismo ou o socialismo estatal?

  • Nenhum dos dois. Na maior parte do tempo, trabalha­mos no sistema cooperativo. A agricultura palanesa sempre se baseou na construção de plataformas e em obras de irrigação, e is­so requer acordos amigáveis e esforços conjugados das firmas con­correntes. As competições não são compatíveis com o plantio de arroz num país montanhoso. Por isso o nosso povo achou sim­ples passar, na comunidade de uma vila, do sistema de auxílios mútuos para as técnicas eficientes do cooperativismo. É nesse sis­tema que compram, vendem, financiam e dividem os lucros.

  • Mesmo o financiamento é feito em bases cooperativas?

    O dr. Robert fez que sim com a cabeça.

  • Não queremos nada com esses agiotas que se encontram por todo o interior da índia. Nada de bancos nos moldes ociden­tais. Nosso sistema de empréstimos foi baseado no estilo das as­sociações de crédito criadas na Alemanha, há mais de um século, por Wilhelm Raiffeisen. O dr. Andrew persuadiu o velho rajá a convidar um dos empregados de Raiffeisen a vir aqui para orga­nizar um sistema bancário cooperativo. E isso funciona até hoje.

  • Qual é a sua moeda?

    O dr. Robert mergulhou a mão no bolso da calça e tirou-a cheia de moedas de ouro, prata e cobre.

  • Modestamente falando, Pala é um país produtor de ou­ro —explicou. — Nossa mineração é suficiente para dar lastro ao nosso papel-moeda, completando assim nossa exportação. Podemos pagar à vista, mesmo equipamentos caros, como estas li­nhas de transmissão e aqueles geradores que estão mais adiante.

  • Parece que resolveram satisfatoriamente seus problemas econômicos.

  • Resolvê-los não foi difícil. Primeiramente, nunca nos permitimos produzir mais crianças do que aquelas que pudéssemos alimentar, vestir, abrigar e transformar em algo parecido com se­res humanos. Temos fartura de alimento, pela simples razão de não termos excesso de população. Apesar disso, resistimos à ten­tação do excesso de consumo, tentação à qual o Ocidente acaba de sucumbir. Não nos empanturramos de gorduras seis vezes mais do que o organismo necessita e por isso não somos chegados às doenças das coronárias. Não nos hipnotizamos com a crença de que possuir dois aparelhos de televisão nos fará duas vezes mais felizes do que se tivéssemos um só. Finalmente, não gastamos um quarto do orçamento da nação nos preparando para a Terceira Guerra Mundial ou para sua irmã caçula, a Guerra Local. Os três pilares da propriedade ocidental consistem em armamentos, dé­bito universal e absolutismo planejado. Haveria um colapso to­tal se a guerra, o desperdício e a agiotagem fossem abolidos. E, enquanto vocês abusam do consumo, o resto do mundo se afun­da cada vez mais na desgraça crônica, através da ignorância, do militarismo e da procriação. Das três causas, a última é a que traz maiores conseqüências, pois não há esperanças, nem sequer a mí­nima possibilidade, de se resolver qualquer problema econômico até que esse esteja solucionado. À proporção que a população cresce, a prosperidade decresce. O dr. Robert traçou uma li­nha descendente com o dedo. E, enquanto a prosperidade de­cresce, o descontentamento, a rebelião o dedo se ergueu no­vamente —, a crueldade política, a lei de um só partido, o nacio­nalismo e a belicosidade começam a crescer. Com mais uns dez anos de procriação desenfreada, o mundo inteiro, da China ao Peru, via África e Oriente Médio, estará coalhado de "grandes líderes", todos dedicados à supressão da liberdade, armados até os dentes pela Rússia ou pela América (ou simultaneamente pe­los dois), agitando bandeiras e bradando por Lebensraum.

  • E Pala? perguntou Will. Daqui a dez anos não se­rá também abençoada com um "grande líder"?

  • Não se o pudermos impedir, pois sempre fizemos o pos­sível para dificultar a ascensão de um "grande chefe".

    Pelo canto dos olhos, Will observou que o rosto de Muru-gan tinha a expressão de indignado e desdenhoso asco. Evidentemente Antinous imaginava ser um "herói de Carlyle". Will voltou-se novamente para o dr. Robert.

  • Explique-me como conseguem fazer isso.

  • Em primeiro lugar, não provocamos guerras nem nos preparamos para elas. Em conseqüência disso, não temos necessi­dade de recrutamento, hierarquias militares ou comandos unifi­cados. Nosso sistema econômico não permite que alguém tenha uma fortuna que ultrapasse mais de quatro ou cinco vezes a mé­dia. Disto resulta e inexistência de capitães de indústrias e de fi­nancistas onipotentes. Melhor ainda, não possuímos políticos ou burocratas onipotentes. Pala é uma federação de unidades auto­governadas: unidades geográficas, unidades profissionais e uni­dades econômicas, havendo bastante oportunidade para iniciati­vas em pequena escala e para os líderes democráticos. Mas não há campo para qualquer espécie de ditador, à frente de um go­verno centralizado. Além disso, não temos igreja estabelecida, e nossa religião salienta a experiência imediata e deplora a cren­ça em dogmas improváveis e as emoções inspiradas, decorrentes dessa crença. Desse modo, estamos salvos das pragas do papismo e das revivificações fundamentalistas. E, lado a lado com as experiências transcendentais, cultivamos sistematicamente o ce­ticismo. Faz parte integral do currículo escolar desencorajar as crianças a tomarem as palavras com demasiada seriedade, ensinando-lhes a analisar tudo o que ouvem ou lêem. O resulta­do é que um eloqüente incitador de massas como Hitler ou o nosso vizinho do outro lado do estreito, o coronel Dipa, não têm a me­nor chance aqui em Pala.

    Isso foi demasiado para Murugan, que, sem conseguir se conter por mais tempo, explodiu:

  • Porém veja a energia que o coronel Dipa inoculou em seu povo. Olhe para toda aquela devoção e auto-sacrifício! Não temos nada parecido por aqui.

  • Graças a Deus! disse o dr. Robert.

  • Graças a Deus! ecoou Vijaya.

  • Mas essas coisas são boas e eu as admiro! protestou o jovem.

  • Também as admiro disse o dr. Robert. — Admiro-as do mesmo modo que admiro um tufão. Infelizmente essa espécie de devoção e auto-sacrifício são incompatíveis com a liberdade, e isso sem mencionar a razão e a decência. Mas Pala tem se batido exatamente pela liberdade, pela razão e pela decência da hu­manidade, desde o tempo de seu homônimo, Murugan, o Re­formador.

    Tirando uma lata de sob o banco, Vijaya destampou-a e serviu sanduíches de queijo e abacate.

  • Não podemos parar para comer.

    Ligando o motor do jipe, segurava o sanduíche com uma das mãos e com a outra continuava a dirigir estrada afora.

  • Amanhã eu lhe mostrarei algumas vistas da vila e tam­bém um espetáculo ainda mais notável, que é o da minha família almoçando — disse Vijaya. — Isso é impossível hoje, pois temos compromisso aqui nas montanhas.

    Próximo à entrada da vila, dirigiu o veículo por uma estra­da lateral que serpeava entre as íngremes plataformas de campos de arroz e de legumes, entremeados de pomares e, aqui e ali, de plantações de pequenas árvores destinadas a fornecer às fábricas de Shivapuram o seu material bruto, segundo explicação do dr. Robert.

  • Qual é o número de jornais mantidos por Pala? — perguntou Will. Ficou admirado ao saber que havia apenas um. — Quem tem o monopólio? O governo? O partido que está no po­der? O Joe Aldehyde local?

  • Ninguém possui o monopólio — assegurou-lhe o dr. Robert. — Há um quadro de editores representando meia dúzia de partidos e de interesses diferentes. Cada um recebe o espaço que lhe foi destinado para fazer os comentários e críticas. Ao leitor é dada a oportunidade de comparar os seus argumentos e esco­lher. Lembro-me perfeitamente de como fiquei chocado na pri­meira vez que li um dos seus jornais de grande circulação. As man­chetes tendenciosas, a distorção sistemática das reportagens e dos comentários. Slogans publicitários em vez de argumentos. Ne­nhum apelo sério à razão. Apenas um esforço sistemático para estabelecer reflexos condicionados nas mentes dos leitores. Quanto ao resto, crime, divórcio, anedotas, mexericos, qualquer coisa des­tinada a mantê-los distraídos e impedi-los de pensar.

    O jipe continuava subindo e eles se encontravam agora en­tre duas encostas abruptas terminando à esquerda num lago cercado de árvores, ao pé de uma garganta. A direita havia um vale mais espaçoso, onde, entre duas aldeias arborizadas, erguia-se — como incongruência geométrica — uma grande fábrica.

  • É alguma fábrica de cimento? — perguntou Will.

    O dr. Robert meneou afirmativamente a cabeça.

  • Sim. É uma das indústrias indispensáveis. Nossa produ­ção dá para o consumo, havendo ainda um excesso, que é exportado.

  • E essas pequenas vilas fornecem a mão-de-obra?

  • Sim. Nos intervalos entre o trabalho de agricultura, na floresta e nas serrarias.

  • Essa espécie de sistema de trabalho em tempo não-integral funciona bem?

  • Depende do que você considera "bem". O resultado não é o máximo de eficiência. Porém em Pala a eficiência máxima não é considerada um imperativo categórico, como acontece com vocês. A sua principal preocupação é obter a maior produção pos­sível no menor espaço de tempo, enquanto nós pensamos primei­ramente em termos de seres humanos satisfeitos. A mudança cons­tante de atividade não traz o maior rendimento em menos dias, mas a maioria das pessoas prefere isso a ter que fazer o mesmo serviço durante toda a vida. Se tivermos de escolher entre a efi­ciência mecanizada e a satisfação humana, escolheremos a segunda.

  • Quando tinha vinte anos de idade — Vijaya adiantou —, trabalhei quatro meses naquela fábrica de cimento. Depois de tra­balhar com superfosfatos, passei seis meses na selva como lenhador.

  • Quanto trabalho honesto e pesado! É horrível!

  • Há vinte anos passados — disse o dr. Robert —, fiz um serviço na fundição de cobre e, após isso, senti o cheiro do mar num barco de pesca. Faz parte da educação de todos experimen­tar várias espécies de trabalho. Desse modo se aprende muito, sobre coisas, profissões e organizações. Trava-se conhecimento com várias espécies de pessoas e o modo como pensam.

    Will balançou a cabeça dizendo:

  • Ainda assim, prefiro aprendê-las nos livros.

  • Mas o que se obtém nos livros não é a mesma coisa. No fundo, todos vocês não passam de platônicos que adoram as pa­lavras e detestam os fatos — acrescentou o dr. Robert.

  • Diga isso aos clérigos, que estão sempre a nos chamar de materialistas grosseiros.

  • De fato, são grosseiros — concordou o dr. Robert. — Mas essa grosseria é motivada justamente pelo fato de não serem mais que materialistas incompletos. Professam o materialismo abstrato. Enquanto nós insistimos em ser concretamente mate­rialistas, materialistas nos níveis mudos da visão, do tato, do olfato, dos músculos contraídos e das mãos sujas. O materialismo abstrato é tão nocivo quanto o idealismo abstrato, que torna quase impossível a experiência espiritual imediata. Como materialistas concretos, o fato de experimentarmos diversas espécies de traba­lho constitui o primeiro, e indispensável, passo em nossa educa­ção, visando ao espiritualismo concreto.

  • Porém mesmo o materialismo mais concreto não nos le­vará muito longe, a não ser que tenhamos plena consciência daquilo que estamos fazendo e sentindo — interveio Vijaya. — É necessário que tenhamos plena consciência dos pequenos deta­lhes nas profissões que estivermos exercendo, bem como das pes­soas com quem trabalhamos.

  • Estou de pleno acordo! — disse o dr. Robert. — Deveria ter tornado bem claro que o materialismo concreto apenas representa a parte não trabalhada de uma vida absolutamente huma­na. E é através de um conhecimento completo e vigilante que a transformamos em espiritualidade concreta. Estando completa­mente cônscios daquilo que fazemos, o trabalho se torna a "ioga do trabalho", a diversão passa a ser a "ioga da diversão" e a vida diária é a "ioga da vida diária".

    Will se lembrou de Ranga e da pequena enfermeira e perguntou:

  • E a respeito do amor?

    O dr. Robert respondeu:

  • O amor também é transfigurado pela consciência e o ato do amor passa a representar a "ioga do ato do amor".

    Murugan imitou a expressão escandalizada de sua mãe.

  • Todas essas iogas são fundamentalmente os meios psicossomáticos visando a uma finalidade transcendental — disse Vijaya, levantando a voz para abafar o arranhar da primeira mar­cha que acabara de engatar. — Mas também são algo mais: são artifícios que permitem lidar com os problemas do poder. — Vol­tando a engatar em marcha mais silenciosa, sua voz readquiriu o tom normal: — Os problemas do poder — repetiu. — Defrontamo-nos com eles em todos os tipos de organização. São proble­mas que envolvem o governo nacional, as creches e os casais em lua-de-mel. Não se trata simplesmente de uma questão de tornar as coisas difíceis para os "grandes líderes". Há milhões de tira­nos e perseguidores em pequena escala. São os mudos e inglórios Hitlers, os Napoleões das vilas, os Calvinos e os Torquemadas da família. Isso sem mencionar os bandidos e tiranos, cuja estu­pidez é tão grande que nos permite que os classifiquemos como criminosos. Como se pode aproveitar a enorme força produzida por essas pessoas, fazendo com que seja utilizada em algum tra­balho útil? Como fazer com que, pelo menos, deixem de ser nocivos?

  • É exatamente isso que gostaria de saber — disse Will. — Por onde vocês começam?

  • Começamos simultaneamente em todos os lugares — respondeu Vijaya. — Desde que não se pode dizer senão uma coisa de cada vez, comecemos falando a respeito da anatomia e da fi­siologia do poder. O dr. Robert lhe dará a introdução bioquími­ca desse assunto.

  • Há cerca de quarenta anos — disse o dr. Robert — estudava em Londres e comecei a visitar as prisões durante os fins de semana e a ler História nas minhas noites de folga. Observei, através das minhas visitas e de minhas leituras, que havia uma correlação entre os crimes, desatinos e desgraças da humanidade (isso é de Gibbon, não é?) e os locais onde são encarcerados os infelizes autores de crimes malogrados e de outras espécies de de­satinos. Lendo e conversando com os meus "pássaros engaiola­dos" vi-me frente a frente com várias perguntas. Que espécie de pessoas se transformam em delinqüentes perigosos? Que faz os grandes delinqüentes dos livros de História e os pequenos delin­qüentes de Pentonville e da "terra dos anões amargurados"? Que categoria de pessoas é tentada pelos faustos do poder e pela pai­xão da tirania e do domínio? Quem são esses homens e mulheres insensíveis que sabem o que querem e não têm o menor escrúpu­lo em ferir, a fim de verem realizados seus desejos? E os mons­tros que ferem e matam não visando ao lucro, mas pela simples razão de que ferir e matar é uma coisa que os diverte? Essas perguntas me intrigavam e costumava discutir esses assuntos com os especialistas: médicos, psicólogos, sociólogos e professores. Mantegazza e Galton estavam fora de moda e a maioria dos meus es­pecialistas me assegurava que as únicas respostas convincentes a essas perguntas só podiam ser dadas em termos de cultura, eco­nomia e família. Tudo se resumia numa questão de traumatis­mos causados pelas mães ao quererem condicionar precocemen­te as crianças ao uso de vasos sanitários e aos ambientes causa­dores de traumas. Admitia que o condicionamento precoce dos atos fisiológicos e as tolices relativas às circunstâncias ambien­tais desempenhassem um papel importante; mas isso resumiria tudo! Seriam esses os únicos fatores importantes? Eu só estava meio convencido. Durante o período das minhas visitas às pri­sões, comecei a perceber a existência de uma espécie de padrão intrínseco. Os delinqüentes perigosos e os agitadores amantes do poder não pertencem a uma única espécie. Já naquela época co­mecei a perceber que a maioria deles pertence a uma das duas espécies que são completamente diferentes entre si: os "homens músculos" e os "Peter Pans". Eu me especializei no tratamento dos "Peter Pans".

  • Os meninos que nunca se tornam adultos? perguntou Will.

  • Nunca não é a palavra apropriada. Na vida real, Peter Pan sempre acaba crescendo. Apenas cresce tarde demais: o crescimento fisiológico é mais lento do que a passagem dos seus ani­versários.

  • E as "Peter Pans" do sexo feminino?

  • São muito raras, porém os meninos são tão comuns quan­to as amoras pretas. Pode-se contar com um deles em cada cinco ou seis crianças do sexo masculino. E se você tirar uma radiogra­fia dos punhos de todas as crianças-problema, dos meninos que jamais conseguem ler, dos que não querem se educar, que não fazem amigos e que acabam se voltando para as mais violentas formas de delinqüência, verá que a proporção de "Peter Pans" é de sete para cada dez. Os demais pertencem, na sua grande maio­ria, a uma ou outra espécie de "homens músculos".

  • Estou tentando imaginar um bom exemplo histórico de um delinqüente "Peter Pan".

  • Não é necessário ir muito longe. Adolf Hitler foi o me­lhor e o mais recente exemplo.

  • Hitler? o tom de voz de Murugan revelava uma sur­presa ofendida, pois evidentemente era um dos seus heróis.

  • Leia a biografia do fuhrer disse o dr. Robert. Ele é um "Peter Pan" e jamais existiu outro igual. Um fracasso na

    escola, e incapaz tanto de competir quanto de cooperar. Sempre invejando todos os garotos normalmente bem-sucedidos, odiando-os porque os invejava e, para sentir-se melhor, desprezando-os como se fossem inferiores. Quando chegou à puberdade, Adolf atrasou-se sexualmente. Enquanto os outros rapazolas faziam seus avanços com as mocinhas e eram correspondidos, ele era acanhado demais e cheio e incertezas quanto à sua virilidade. Durante todo esse período, permaneceu incapaz de fazer qualquer trabalho re­gular, somente ficando à vontade no seu "outro mundo" imagi­nário. Naquele mundo era um Michelângelo, enquanto no mun­do real não conseguia desenhar, pois seus únicos atributos eram o ódio, a astúcia baixa, um par de infatigáveis cordas vocais e o dom de falar interminavelmente, com brados que vinham das profundezas de sua paranóia de "Peter Pan". O preço que o mun­do teve de pagar pela maturidade retardada do pequeno Adolf foi de trinta ou quarenta milhões de vidas, e somente os céus sa­bem calcular quantos bilhões de dólares foram gastos. Felizmen­te a maioria dos meninos cujo desenvolvimento é muito lento nun­ca tem uma oportunidade de ultrapassar o nível de delinqüentes secundários. Mesmo esses, se forem em grande número, podem exigir um preço bem elevado. Essa é a razão pela qual tentamos podá-los quando ainda em botão. Melhor seria dizer que, desde que sabemos estar lidando com "Peter Pans", tentamos fazer com que esses "botões" que já foram podados desabrochem e floresçam.

  • E têm sucesso?

    O dr. Robert assentiu com um sinal de cabeça e respondeu:

  • Não é muito difícil, principalmente quando se começa bem cedo. Quando nossas crianças estão entre os quatro e meio e os cinco anos de idade, são cuidadosamente examinadas. Fazem exames de sangue, testes psicológicos e são classificadas bio-tipologicamente. Depois disso tiramos radiografias dos punhos e fazemos um eletroencefalograma. Todos os "Peter Pans" in­fantis são facilmente descobertos e um tratamento adequado é imediatamente iniciado. Cerca de um ano depois, quase todos es­tão perfeitamente normais. Uma safra de incapazes, de crimino­sos, de tiranos em potencial, de sadistas cujo único objetivo é a própria revolução, foi transformada em uma safra de cidadãos úteis e que podem ser governados ademdena asatthena,isto é, sem punição e sem pancada. Na sua parte do mundo, o problema da delinqüência ainda é entregue ao clero, aos assistentes sociais e à polícia. Sermões intermináveis e terapêutica protetora, e abun­dância de sentenças de prisão. Quais os resultados? O índice de criminalidade sobe constantemente. E isso não deve causar ad­miração, pois palavras acerca da competição entre irmãos, o in­ferno e a personalidade de Jesus não modificam o bioquimismo. Um ano na prisão não cura o desequilíbrio endocrínico e tam­pouco ajuda o "Peter Pan" a se livrar de suas conseqüências psi­cológicas. Para curar a delinqüência tipo "Peter Pan" é necessá­rio que o diagnóstico seja feito precocemente e que esses doentes tomem três cápsulas cor-de-rosa, diariamente, antes das refeições. Se proporcionarmos um ambiente tolerável, depois de dezoito me­ses teremos como resultado um tranqüilo bom senso e uma pe­quena dose das virtudes fundamentais. Assim, onde antes não ha­via a mínima possibilidade de uma possível prajnaparamita e karuna,há boa chance de sabedoria e compaixão. Peça agora a Vijaya para lhe falar a respeito dos "homens músculos". Como você já deve ter observado, ele é um deles. — Curvando-se um pouco para frente, o dr. Robert bateu com a mão nas costas do gigante, dizendo: — Pura carne! — e acrescentou: — Que sorte para nós, simples camarões, que este animal não seja selvagem!

    Vijaya tirou uma das mãos do volante do jipe, bateu-a no peito e rugiu alta e ferozmente.

    — Não provoquem o gorila! — disse, sorrindo bem-humorado. — Pense em Josef Vissarionovich Stalin, que foi outro gran­de ditador — disse a Will. — Enquanto Hitler é o exemplo mais perfeito do delinqüente tipo "Peter Pan", Stalin é o exemplo su­premo do delinqüente tipo "homem músculo", predestinado pe­la sua própria constituição a ser um extrovertido. Não um dos rotundos e suaves extrovertidos que anseiam por uma união in­discriminada, e sim o extrovertido barulhento e ativo, daqueles que sentem um impulso constante de fazer "alguma coisa" e que nunca são obstados por dúvidas, escrúpulos, simpatias ou emo­ções. No seu testamento, Lenin aconselhou aos seus sucessores a se livrarem de Stalin: o homem que gostava tanto do poder que podia chegar a se exceder. Mas o conselho veio tarde demais. Sta­lin já estava tão firme que não podia mais ser derrubado. Decor­ridos dez anos, seu poder era absoluto. Trotsky tornara-se ino­fensivo e todos os seus antigos companheiros haviam sido expul­sos. Era um deus no meio de um coro de anjos! Estava só, num pequeno e confortável céu, habitado por bajuladores e "homens-sim". Durante esse período, ocupou-se arduamente com o exter­mínio dos fazendeiros, com a organização de fazendas coletivas, com a indústria de material bélico e com o deslocamento de mi­lhões de camponeses relutantes para as fábricas. Trabalhava te­naz e eficientemente e com uma lucidez que o "Peter Pan" ale­mão (envolvido pelas fantasias apocalípticas e pela instabilidade dos seus humores) era totalmente incapaz de ter. Compare a es­tratégia de Hitler com a de Stalin na última fase da guerra. O cálculo frio em oposição aos sonhos compensadores, o realismo cru contra as tolices retóricas de Hitler das quais ele mesmo che­gava a se convencer. Dois monstros semelhantes na delinqüên­cia, porém extremamente diferentes nos temperamentos, nas mo­tivações inconscientes e na eficiência. Os "Peter Pans" são exce­lentes para começar as guerras e revoluções, mas cabe aos "ho­mens músculos" conduzi-las a uma conclusão satisfatória.

    Interrompendo-se, Vijaya agitou a mão em direção a um grande amontoado de árvores, que pareciam querer,bloquear-lhes a subida, e disse em outro tom de voz:

    Eis a selva.

    Minutos depois, deixaram o clarão da encosta descampada e penetraram num túnel verde e penumbroso que ziguezagueava encosta acima, entre verdadeiros paredões de folhagem tropical. As trepadeiras pendiam dos galhos arqueados e, entre os imen­sos troncos de árvores, samambaias e rododendros de folhas es­curas cresciam em meio a uma densa profusão de arbustos e moitas.

    A medida que Will olhava em volta, achava tudo desconhecido e estranho. A atmosfera estava muito úmida e sentia-se o cheiro quente e acre que emanava da luxuriante vegetação e da outra espécie de vida que é a decadência. Abafado pela densa fo­lhagem, Will ouviu a distância o som de machados e o chiar rit­mado de uma serra. Subitamente, depois de outra curva, a escu­ridão verde do túnel cedeu lugar à luz do sol. Haviam chegado a uma clareira da floresta. Meia dúzia de Ienhadores altos, espa­daúdos e quase nus se ocupavam em podar os galhos de uma ár­vore recém-abatida. A luz solar, centenas de borboletas azuis e cor-de-ametista se perseguiam mutuamente, esvoaçando e planan­do numa dança infindável e sem nexo. No lado mais afastado da clareira, um homem idoso mexia o conteúdo de um caldeirão de ferro que estava sendo aquecido sobre uma fogueira. Nas imediações, um cervo domesticado, de membros finos, graciosa­mente malhado, pastava tranqüilo.

  • São velhos amigos — disse Vijaya. Em seguida, gritou-lhes algo em palanês. Os lenhadores responderam e fizeram si­nais com as mãos. Mais uma curva brusca para a esquerda e começaram a subir novamente pelo verde túnel vegetal.

  • Falando de "homens músculos", aqueles eram realmen­te espécimes esplêndidos — disse Will, enquanto deixavam a clareira.

    — Esse tipo de físico é uma tentação permanente — disse Vijaya. — No entanto, entre todos eles (e eu trabalhei com mui­tos) nunca encontrei um só tirano ou um "amante do poder", potencialmente perigoso.

  • Isto é outro modo de dizer que ninguém aqui tem a me­nor ambição — interrompeu Murugan com desprezo.

  • Qual é a explicação para esse fato? — perguntou Will.

  • Muito simples, no que diz respeito aos "Peter Pans". Nunca lhes é dada a oportunidade para que desenvolvam qual­quer ânsia de poder. Nós curamos as suas tendências à delinqüência antes que tenham podido se desenvolver. Com os "homens músculos" a coisa é diferente. São tão musculosos e tão esmaga­doramente extrovertidos quanto no seu mundo. E por que não se transformam em Stalins, Dipas ou em tiranos domésticos? Em primeiro lugar, nossas organizações sociais lhes oferecem muito poucas oportunidades de tiranizarem as suas famílias, e com nos­sos sistemas políticos é praticamente impossível que exerçam um domínio que ultrapasse os limites. O segundo fator reside no modo como educamos os "homens músculos", a fim de que tenham consciência das coisas, que desenvolvam a sensibilidade e achem prazer nas coisas simples da vida diária. Isso significa que sem­pre dispõem de uma, entre inúmeras alternativas, a fim de com­pensar o prazer de se tornarem chefes. Finalmente, canalizamos esse "amor ao poder e ao domínio", que acompanha esse tipo de físico e quase todas as suas variantes, fazendo com que se vol­tem para as coisas e se afastem das pessoas. Nós os designamos para a execução das mais variadas espécies de tarefas difíceis, vi­gorosas e violentas, que lhes permitam exercitar os músculos e satisfazer a sua necessidade de domínio. Mas isso é feito sem pre­judicar ninguém e de um modo útil e positivamente inofensivo.

  • Essas esplêndidas criaturas abatem árvores em vez de pessoas, não é assim?

  • Exatamente. Quando já estão fartos das florestas podem ir para os mares ou fazer experiências em mineração. Quando que­rem um serviço mais leve, são encaminhados às plantações de arroz.

    De repente, Will Farnaby deu uma gargalhada.

  • De que está rindo?

  • Estava me lembrando do meu pai. Talvez que, rachando lenha, ele viesse a se beneficiar e também à sua desgraçada famí­lia. Infelizmente era um gentleman inglês, e rachar lenha estava inteiramente fora de questão.

  • Não fazia nenhum exercício físico para descarregar suas energias?

    Will moveu a cabeça em sinal negativo.

  • Além de ser um gentleman explicou —, meu pai esta­va convencido de que era um intelectual. E um intelectual não caça, não atira nem joga golfe; limita-se a pensar e a beber. Suas únicas diversões, além do brandy, eram a tirania, as licitações e a política teórica. Imaginava ser uma "versão século XX" de lorde Acton, o último e solitário filósofo do liberalismo. Vocês gosta­riam de ouvi-lo falar a respeito das iniquidades "do moderno e onipotente Estado"? "O poder corrompe. O poder absoluto cor­rompe completamente. Completamente!",dizia. Após isso, to­mava outra dose de brandy e voltava com renovado prazer à sua diversão favorita: maltratar a esposa e os filhos.

  • Se o próprio lorde Acton assim não procedeu, foi simplesmente porque era virtuoso e inteligente disse o dr. Robert. Nada havia em suas teorias que visasse impedir que um delin­qüente ("homem músculo" ou "Peter Pan") viesse a pisar qual­quer pessoa que se encontrasse ao alcance dos seus pés. Essa foi a fraqueza fatal de Acton. Como político teórico, era admirável. Como psicólogo prático, era quase inexistente. Parecia pensar que o problema do poder se resolveria apenas com boas organizações sociais, devidamente suplementadas pela moralidade sadia e por um pouco de religiosidade bem esclarecida. Mas o problema do poder tem as suas raízes na anatomia, na bioquímica e no temperamento. É evidente que o poder tem que ser restringido aos ní­veis legais e políticos. Também é evidente que deve haver uma contenção ao nível individual, isto é, nos instintos, emoções, glândulas, vísceras, músculos e sangue. Se dispusesse de tempo, gos­taria de escrever um livro sobre a psicologia humana em relação à ética, à religião, à política e à lei.

  • À lei repetiu Will. Estava pensando justamente em lhe fazer perguntas sobre ela. Vocês realmente não têm espadas ou punições? Ou ainda necessitam de juízes e de policiais?

  • Sim. Ainda necessitamos deles, porém em menor quantidade que vocês disse o dr. Robert. Em primeiro lugar, graças não só à educação, mas também aos tratamentos preventi­vos, não cometemos muitos crimes. Em segundo lugar, os raros crimes que são cometidos, na sua maioria são encaminhados ao CAM (Comitê de Auxílios Mútuos). Essa associação consiste na psicoterapia em grupo, praticada por membros da comunida­de que, também em grupo, assumiram a responsabilidade do au­xílio aos delinqüentes. Nos casos mais difíceis, a esse tipo de psi­coterapia é associado um tratamento médico. Sob a direção de alguém dotado de uma capacidade de discernimento excepcional, os casos-problema são submetidos a experiências com o moksha.

  • E qual é a função do juiz?

  • O juiz ouve as testemunhas e decide se a pessoa acusada é inocente ou culpada; se é culpada, envia-a ao seu CAM. Quan­do julga aconselhável, encaminha o acusado ao serviço local ou aos especialistas que utilizam os cogumelos em seus estudos. A intervalos preestabelecidos, os especialistas e os membros do CAM enviam relatórios aos juízes e, quando são considerados satisfatórios, o caso é dado por encerrado.

  • Que acontece nos casos que jamais venham a ser considerados satisfatórios?

  • Na maioria das vezes são satisfatórios disse o dr. Robert.

    Houve um silêncio.

  • Já escalou um rochedo alguma vez? perguntou subitamente Vijaya.

    Will sorriu e disse:

  • Como pensa que machuquei minha perna?

  • Isso foi escalada forçada. Pergunto se alguma vez já o fez como divertimento.

  • Sim. O bastante para me convencer de que não tinha a menor aptidão.

    Vijaya olhou de relance para Murugan e lhe perguntou:

  • E você, já escalou enquanto esteve na Suíça?

    O jovem corou fortemente, balançou a cabeça numa negati­va e disse:

  • Não se pode fazer nada disso quando se tem tendência para a tuberculose.

  • Que pena! — disse Vijaya. — Teria sido tão bom para você...

    Will perguntou:

  • Pratica-se muito o alpinismo nestas montanhas?

  • O alpinismo é parte integral do currículo escolar.

  • Para todos?

  • Um pouco para cada um. Para os "homens músculos" completamente desenvolvidos, as tarefas de escalada são maio­res. Isso corresponde a um entre doze meninos e vinte e sete me­ninas. Breve estaremos vendo alguns jovens tentarem fazer sua primeira escalada após o curso elementar.

    O túnel verde se alargou, ficou mais claro e subitamente se encontraram fora da floresta encharcada. Estavam numa larga prateleira de solo quase uniforme, cercada pelos seus três lados por rochas vermelhas que se elevavam a mais de seiscentos ou novecentos metros, numa sucessão de cumes recortados e de pi­náculos isolados. A temperatura estava agradável, mas ao passa­rem da luz solar para a sombra de uma ilha flutuante de cumulus poderia dizer-se que estava quase frio. O dr. Robert se inclinou para a frente e apontou, através do pára-brisa, um grupo de edi­fícios brancos que se achavam num montículo próximo ao cen­tro do platô.

  • Aquele é o Posto Experimental de Grandes Altitudes — disse. — Está a dois mil metros do nível do mar e tem mais de dois mil hectares de terra boa e plana, onde podemos plantar pra­ticamente tudo o que cresce no sul da Europa. Desde trigo, ceva­da, ervilhas verdes, repolho, alface e tomates (as frutas não cres­cem nos lugares onde a temperatura da noite ultrapassa os ses­senta e oito graus Fahrenheit),aos morangos, groselhas, nozes, ameixas rainhas-cláudias, pêssegos e abricós. Sem mencionar to­das as valiosas plantas que são nativas das altas montanhas desta latitude, como os cogumelos que o nosso jovem amigo desapro­va tão violentamente,

  • É para esse lugar que nos dirigimos? — perguntou Will.

  • Não. Iremos ainda mais alto.

    O dr. Robert apontou para o último posto avançado da cordilheira, onde havia uma rocha vermelho-escura que tinha uma vertente inclinada para a selva. A outra, muito escarpada, se di­rigia para um vértice que se perdia entre as nuvens.

  • Iremos ao velho templo de Xiva. Os peregrinos costumavam ir até lá nas primaveras e outonos equinociais. Em toda a ilha, este é um dos meus lugares favoritos. Quando as crianças eram pequenas, Lakshmi e eu costumávamos ir lá fazer piqueni­ques quase todas as semanas. Há quantos anos!

    Sua voz tinha um tom de tristeza. Suspirando, recostou-se no assento do jipe e fechou os olhos.

    Abandonando a estrada que se dirigia para o Posto Experimental das Grandes Altitudes, continuaram a subida.

  • Estamos chegando à última e pior etapa da viagem — disse Vijaya. — São sete curvas fechadas e cerca de oitocentos metros num túnel sem ventilação.

    Tendo mudado para a primeira marcha, a conversa se tor­nou impossível. Dez minutos depois chegavam ao destino.

     

    Movendo com cuidado a perna imobilizada, Will desceu do carro e olhou em redor. Ao sul se erguiam elevados penhascos vermelhos e nas outras direções viam-se declives escarpados. A crista da cordilheira tinha sido nivelada e no centro desse estrei­to terraço se erguia o templo uma grande torre vermelha ma­ciça, quadrangular e dotada de suportes verticais. As montanhas haviam fornecido a matéria-prima para a construção e suas for­mas simétricas contrastavam com as rochas. Possuía a regulari­dade pragmática das coisas vivas e não a das abstrações eucli­dianas. Suas paredes ricamente trabalhadas e seus contornos arredondados se entrelaçavam e se estreitavam para formar uma espiral que terminava num anel de mármore. Sobre a cúpula achatada e multiarqueada, uma protuberância da mesma pedra vermelha semelhante a um grande folheto coroava o conjunto.

  • Foi construída cinqüenta anos antes da conquista normanda disse o dr. Robert.

  • Parece que não foi construída pelo homem e sim que surgiu das rochas comentou Will. — Assemelha-se a um botão de agave, cujo caule, ao atingir três metros de altura, tivesse ex­plodido em flores.

  • Olhe disse Vijaya tocando seu braço. Um grupo de alunos do curso básico está descendo.

    Will olhou na direção das montanhas e viu que um jovem, calçando botas ferradas e usando trajes de alpinismo, tentava des­cer por uma garganta existente na encosta do precipício. Apoiando-se num ponto em que pôde repousar, o jovem atirou a cabeça para trás e emitiu o grito dos alpinistas. Quinze metros acima, outro rapaz surgira de trás de um contraforte de rochas e, deixando a saliência onde se apoiara, iniciou a descida.

  • Não se sente tentado? — perguntou Vijaya dirigindo-se a Murugan.

    Agindo como um adulto entediado e sofisticado, que tem coisas mais importantes com que se ocupar e que não se interessa por brincadeiras de criança, Murugan respondeu com um levan­tar de ombros:

  • Nem um pouco.

    Saindo de onde estava, sentou-se sobre um leão entalhado em madeira e gasto pelo tempo e, tirando do bolso uma revista americana ricamente encadernada, começou a ler.

  • Que é que está lendo? — perguntou Vijaya.

  • Ficção científica — respondeu Murugan, em tom de desafio.

  • Tudo o que lhe permita fugir à realidade — comentou sorrindo o dr. Robert.

    Fingindo não ter ouvido, Murugan virou uma página e continuou a ler.

  • Ele é muito bom — disse Vijaya, que estava observando os progressos do jovem alpinista. — Na extremidade de cada corda há um homem experimentado — esclareceu. — Você não pode vê-lo porque está atrás daquele contraforte, dez a doze metros acima. Existe um espigão de ferro fixado na rocha, onde a corda é amarrada. Todo o grupo pode cair sem que nada de grave aconteça.

    Com as pernas abertas e os pés apoiados nas encostas da estreita garganta, o chefe do grupo os encorajava e dava instru­ções em altas vozes. À medida que o rapaz se aproximava, ele cedia seu lugar, descia uns sessenta metros, parava e emitia o gri­to dos alpinistas. Usando botas e calças compridas, uma moci­nha alta e de tranças surgiu de trás do contraforte e começou a descer.

  • Excelente — disse Vijaya, observando-a.

    Enquanto isso, de uma construção baixa, existente no sopédo rochedo — uma versão tropical de uma cabana dos Alpes —, um grupo de jovens saíra para observar o que estava acontecendo.

    Will foi informado de que pertenciam aos outros três gru­pos de alpinistas que tinham se submetido, algumas horas antes, ao Exame Pós-elementar.

  • O melhor grupo recebe algum prêmio? — perguntou Will.

  • Ninguém ganha nada respondeu Vijaya. — Isto não é uma competição; se você quer saber, se assemelha muito mais a uma provação.

  • Uma provação que marca o fim da infância e o ingresso na adolescência explicou o dr. Robert. Uma provação que os ajudará a compreender o mundo onde têm de viver e que os fará sentir a onipresença da morte e a precariedade fundamental de toda a existência. À provação segue-se a revelação. Dentro de alguns minutos esses rapazes e essas mocinhas terão sua primeira experiência com o moksha. Assistirão em conjunto a uma ceri­mônia religiosa no templo.

  • Algo semelhante à confirmação?

  • Difere da confirmação por ser mais do que uma simples peça do palavrório teológico. Graças ao moksha, foi incluída uma experiência da "coisa" real.

  • A "coisa" real? perguntou Will meneando a cabeça. Gostaria de acreditar que isso existe.

  • Ninguém está lhe pedindo para acreditar disse o dr. Robert. A "coisa" real não é uma proposição. É um modo de ser. Não ensinamos nenhum credo às nossas crianças. Tam­bém não as perturbamos emocionalmente com cargas simbóli­cas. Quando chega o tempo em que devem aprender as verdades mais profundas da religião, mandamos que escalem um precipí­cio e depois disso lhes damos quatrocentos miligramas de reve­lação. Duas experiências de primeira mão sobre o que é a reali­dade, através das quais qualquer rapaz ou moça dotado de inte­ligência mediana pode tirar boas conclusões sobre a razão de ser das coisas.

  • Convém que o velho e querido problema do poder não seja esquecido disse Vijaya. O alpinismo é um preventivo à tirania.

  • Na sua opinião, meu pai deveria ter sido um alpinista, além de lenhador?

  • Isso pode lhe parecer engraçado respondeu Vijaya, rindo. Mas o fato é que funciona. Funciona realmente! Posso dar-lhe o meu caso como exemplo. Até agora, consegui resistir a todas as tentações de impor meus desejos. Garanto-lhe que as tentações foram tão fortes quanto esses desejos...

  • Parece existir somente um problema disse Will. Nesse processo de se livrar das tentações, você pode cair...

    Lembrando-se do que acontecera a Dugald MacPhail, deixou a frase inacabada.

    Foi o dr. Robert quem a terminou:

  • Poderia cair e morrer. Dugald estava escalando sozinho — disse após uma pausa. — Ninguém sabe o que aconteceu. Seu corpo só foi encontrado no dia seguinte.

  • Mesmo assim, continua achando que o alpinismo seja uma boa idéia? — perguntou Will, apontando com seu bordão de bambu para as minúsculas figuras que se arrastavam com dificuldade nas ermas escarpas de rocha nua.

  • Ainda assim acho que é uma boa idéia — respondeu o dr. Robert.

  • Mas a pobre Susila...

  • É verdade. Pobre Susila. Pobre Lakshmi. Pobre de mim. Mas se Dugald não tivesse o hábito de arriscar a vida, muitos ou­tros poderiam ser infelizes por razões inteiramente diferentes. É melhor que uma pessoa seja atraída por perigos que podem matá-la do que ser tentada a matar os outros ou fazê-los infelizes. Fe­rir a outrem simplesmente porque um excesso de prudência ou de ignorância não permitiu que, na escalada de um abismo, a agressividade natural fosse extravasada. E, agora, quero lhe mos­trar o panorama — disse em outro tom.

  • Enquanto isso, irei conversar com as mocinhas e os rapazes. — Assim dizendo, Vijaya dirigiu-se para o grupo que es­tava no sopé dos penhascos vermelhos.

    Deixando Murugan entregue à leitura da sua revista de fic­ção científica, Will acompanhou o dr. Robert através de uma porteira sustentada por pilares e cruzou a ampla plataforma de pe­dra que circundava o templo. Num dos ângulos dessa platafor­ma se erguia um pequeno pavilhão abobadado. Após entrarem, pararam junto a uma larga janela e olharam para fora. Na linha do horizonte, erguendo-se como uma sólida parede de jade e de lápis-lazúli, estava o mar. A uma íngreme escarpa de trezentos metros de profundidade, seguia-se o verde da selva. Além da sel­va, contrafortes e vales se desdobravam verticalmente. Campos incontáveis, dispostos como se fossem uma ampla escada cons­truída por mãos humanas, cortavam-nos em sentido horizontal e as rampas inferiores se precipitavam num vasto planalto. À dis­tância, parecendo inclinar-se entre as hortas e a praia franjada de palmeiras, surgia uma grande cidade que, do ponto privilegiado em que se encontravam, podia ser vista na plenitude de sua beleza. Parecia uma dessas cidades que se vêem nas minúsculas e delicadas pinturas dos livros de horas da Idade Média.

  • Ali está Shivapuram disse o dr. Robert. Aquele conjunto de edifícios que se vê na montanha do outro lado do rio é o grande templo budista. É anterior a Borobudur e a escultura é tão delicada quanto a dos períodos mais recentes da índia.

    Após um pequeno silêncio, continuou:

  • Esta pequena casa de veraneio é o local onde costumávamos fazer os nossos piqueniques nos dias de chuva. Nunca me esquecerei do tempo em que Dugald (que devia ter dez anos) se divertia subindo na borda da janela, se equilibrava numa perna só, imitando uma atitude de Xiva dançarino. A coitada da Lakshmi ficava apavorada. Mas Dugald era um acrobata nato, o que torna seu acidente ainda mais incompreensível.

    Balançou a cabeça e, depois de outro silêncio, prosseguiu:

  • A última vez em que viemos até aqui foi há oito ou nove meses. Dugald estava vivo e Lakshmi ainda podia sair com os netos. Ele repetiu as acrobacias tipo Xiva para divertir Tom Krish- na e Mary Sarojini, e os seus braços se moviam com tanta rapi­dez que você juraria serem quatro.

    O dr. Robert interrompeu a narrativa e, apanhando do chão um punhado de argila, atirou-o pela janela, dizendo:

  • Queda, queda no espaço vazio... Pascal avait son gouffre.Como é estranho que o mais poderoso símbolo da morte se­ja ao mesmo tempo tão pleno de vida! De repente o seu rosto se iluminou. Viu aquele gavião? perguntou.

  • Um gavião?

    O dr. Robert apontou para um ponto a meia distância entre o local em que estavam e as escuras copas das árvores, onde uma pequena encarnação de rapidez e rapinagem voava preguiçosa­mente em círculos, sem mover as asas.

  • Faz-me recordar um poema que o velho rajá escreveu a respeito deste lugar disse.

     

Você quer saber

O que penso estar

Fazendo nas alturas

Onde Xiva dança

Acima do mundo?

O gavião que sobre nós

Dardeja como uma seta negra

E que deixa atrás de si

Um grito agudo e um rastro cor de prata

É á única resposta para a pergunta

Sobre o que faço neste lugar.

Estamos muito longe das quentes planícies

Reprovadoramente distantes da nossa gente.

Apesar disso, sinto-me muito perto,

Pois daqui, entre o céu enevoado

E o mar que avistamos, de repente

Descubro os seus e os meus segredos.

E o segredo, eu o concebo

Como esse espaço vazio.

Em outras palavras, esse espaço vazio

É o símbolo da natureza de Buda,

Sempre em perigo.

Isso me faz lembrar...

 

Parou de declamar e olhou o relógio.

  • Qual a próxima parte do programa? — perguntou Will quando saíram para a luz.

  • O serviço do templo — respondeu o dr, Robert. — Os jovens alpinistas oferecerão a conclusão dos estudos a Xiva. Em outras palavras, às suas próprias imagens, que eles vêem como se fossem Deus. Após a cerimônia, começará a segunda parte da Iniciação: a experiência da auto-liberação.

  • Com o auxílio do moksha!

    O dr. Robert balançou a cabeça em sinal de afirmação.

  • Seus chefes lhes dão o remédio antes que deixem a caba­na da Associação de Alpinismo. De lá eles se dirigem para o templo e a droga começa a agir durante a cerimônia. Devo lhe dizer que a cerimônia é em sânscrito e, sendo assim, você não entende­rá uma só palavra. Na qualidade de presidente da Associação de Alpinismo, Vijaya fará uma alocução em inglês. Eu também fa­rei uma e na conversação dos jovens predominará o inglês.

    O interior do templo era frio e escuro como uma caverna. Toda a iluminação provinha de um pouco da esmaecida luz solar que se filtrava através de pequenas janelas de rótula e das sete velas do altar que pendiam como trêmulos halos amarelos sobre a cabeça da imagem. Era uma estátua em cobre, pouco maior que uma criança, e representava Xiva. Circundada por uma au­réola fulgurante de glória, com os quatro braços em expressivas posições, os cabelos trançados voando em desordem, o pé direi­to esmagando o mais horrível e maligno dos pigmeus e o pé es­querdo graciosamente erguido, lá estava o deus como que conge­lado em êxtase. Sem os trajes de alpinismo, de sandálias, com o peito nu, usando calções ou saias de cores vivas, um grupo de moças e rapazes, juntamente com seis jovens que haviam sido seus chefes e instrutores, estava sentado no chão com as pernas cru­zadas. Acima deles, no último degrau do altar, um velho sacer­dote, barbeado e usando um manto cerimonial amarelo, recitava algo sonoro e incompreensível.

    Deixando Will instalado num bom lugar, o dr. Robert, andando na ponta dos pés, dirigiu-se para onde Vijaya e Murugan estavam sentados e se acocorou atrás deles.

    Ao esplêndido ribombar do sânscrito seguiu-se um canto al­to e nasalado, que foi por sua vez substituído por uma ladainha na qual as alocuções do sacerdote se alternavam com as respos­tas dos fiéis.

    O incenso começara a ser queimado num turíbulo de bronze. O velho sacerdote ergueu as mãos. Durante longos minutos do mais absoluto silêncio, fios de fumaça do incenso se elevaram em linha reta e sem ondeações, ante o deus. Aí, como se tivesse encontrado uma corrente de ar, se desfez numa nuvem invisível que encheu o espaço penumbroso com a fragrância de um outro mundo.

    Abrindo os olhos, Will pôde observar que, ao contrário dos demais, Murugan estava inquieto e preocupado. Na sua fisiono­mia podia-se também perceber impaciência e desaprovação. Nun­ca havia feito escaladas e por isso considerava o alpinismo coisa sem importância. Sempre se recusara a tomar o moksha, achan­do que aqueles que o usavam ultrapassavam os limites do admis­sível. Sua mãe acreditava nos Mestres Ascendentes e conversava regularmente com Koot Hoomi. Por isso a imagem de Xiva lhe parecia um ídolo vulgar.

    "Que pantomima eloqüente", pensava Will enquanto observava o rapaz. Mas, para felicidade do pobre Murugan, ninguém estava prestando a menor atenção aos seus gestos.

    — Shivanayamadisse o velho sacerdote quebrando o longo silêncio. Shivanayamarepetiu, e fez um aceno.

    Levantando-se do lugar onde estava, a mocinha alta que Will vira descer o precipício subiu os degraus do altar. Apoiada na ponta dos pés, seu.corpo untado brilhando sob as lâmpadas co­mo uma segunda estátua de cobre, pendurou uma grinalda de flo­res amarelo-claras no mais alto dos braços esquerdos de Xiva. Feito isso, de mãos postas, olhando para a face serena e sorri­dente do deus, começou a falar numa voz insegura, mas que pro­gressivamente foi se tornando mais firme:

     

Oh! criador e destruidor,

Vós que manteis e dais fim,

Que à luz do sol acompanhais os pássaros e os folguedos das crianças

E que à meia-noite dançais com os cadáveres nos crematórios,

Vós, Xiva, escuro e terrível Bhairava,

Vós, Semelhança e Ilusão, Tudo e Nada,

Sois o Senhor da Vida e por isso vos trouxe flores,

Sois o Senhor da Morte e por isso vos trouxe o meu coração,

Esse coração que é agora a Vossa Pira

E onde a minha ignorância e o meu ego serão consumidos pelas chamas,

Para que Vós, Bhairava, possais dançar sobre as cinzas.

Para que possais dançar, Senhor Xiva, num canteiro de flores E para que eu possa

Vos acompanhar nessa dança.

 

Levantando os braços, a mocinha fez um gesto que traduzia o êxtase devocional de uma centena de gerações de adoradores dançarinos e, depois, fazendo meia-volta, se dirigiu na penum­bra para seu lugar. Alguém gritou: Shivanayama. Murugan res­mungava com desprezo à medida que o refrão ia sendo repetido pelos jovens. Shivanayama, Shivanayama... O velho sacerdote começou a entoar outra passagem das Escrituras. No meio da de­clamação, um pequeno pássaro cinzento de cabeça vermelha voou através de uma das rótulas, agitou nervosamente as asas em tor­no das lâmpadas do altar, chilreou alto, indignadamente, e de­pois saiu como uma flecha.

Os cânticos prosseguiram e, após atingirem um clímax, terminaram com uma oração sussurrada, na qual se pedia a paz: Shanti, Shanti, Shanti.

O sacerdote voltou-se novamente para o altar, apanhou uma longa vela, que acendeu numa das velas colocadas acima da ca­beça de Xiva, e começou a acender as outras sete que pendiam de um profundo nicho situado abaixo da laje onde estava o dan­çarino.

A chama das velas, refletindo-se em convexidades de metal polido, revelou outra estátua — a de Xiva e Parvati, onde o Arqui-ioguim aparece sentado, elevando com dois dos seus braços o tambor e o fogo simbólicos, enquanto com os outros dois aca­ricia a deusa Amorosa. Esta, com seus pares de braços e pernas, o abraça e cavalga nessa eterna representação em bronze. O ve­lho acenou com a mão. Dessa vez foi um rapazinho musculoso e de pele escura que se encaminhou para a zona iluminada. Curvando-se, pendurou uma grinalda em torno do pescoço de Parvati. Feito isso, deu mais uma volta no longo colar de flores e colocou uma segunda grinalda (dessa vez de orquídeas bran­cas) sobre a cabeça de Xiva.

  • Cada um representando os dois — disse o rapazinho.

  • Cada um representando os dois — repetiram os outros em coro.

    Prosseguiu então:

  • Oh, Tu que partiste, que partiste para outra terra e lá ficaste! Oh, Tu, luz e Tu outra luz, Tu libertação nascida de liber­tação, compaixão nos braços da infinita compaixão!

  • Shivanayama.

Sob profundo silêncio, o rapazinho voltou para seu lugar.

Vijaya levantou-se e começou a falar:

  • Perigo — disse ele. — Perigo — repetiu. — Perigo que, mesmo sendo deliberado, foi aceito com alegria. Perigo compar­tilhado com um amigo, com um grupo de amigos. Compartilha­do íntegra e conscientemente. Essa co-participação no perigo pas­sou a ser uma ioga. Dois amigos amarrados por uma corda na encosta de uma rocha. Outra vezes, três e mesmo quatro. Cada um tendo consciência da força dos seus músculos, da sua habili­dade, do seu medo e da sua capacidade para vencê-lo. Cada um tendo consciência da existência dos outros, preocupado com eles, fazendo as coisas corretamente para que nada venha a compro­meter a segurança dos mesmos. A vida no seu mais alto tom de tensão física e mental. Vida que a ameaça constante da morte tor­na ainda mais rica, mais inestimavelmente preciosa. Mas à ioga do perigo segue-se a ioga da chegada ao cume, a ioga do repouso e da lassidão, a ioga da receptividade total, a ioga que consiste em aceitar as coisas como nos são dadas, sem as censuras de uma mente moralista e ocupada, sem que nenhuma idéia de segunda mão nem tampouco nenhum desejo fantasioso sejam adiciona­dos. Sentado, com os músculos relaxados e a mente aberta à luz do sol, às nuvens, à distância e ao horizonte, se chega a entender aquela coisa informe, sem palavras. Não-pensada. No silêncio do cume, longe da excitação da vida diária, consegue-se pressenti-la, aprofundá-la, tolerá-la.

    Chegou a hora da descida, da segunda parte da ioga do pe­rigo. A tensão e a consciência da vida serão plenamente renova­das, enquanto, suspenso por uma corda, você se mantiver num equilíbrio instável, à beira da destruição. Ao atingir o sopé do abismo, você se liberta da corda e se dirige a passos largos atra­vés dos caminhos rochosos, em direção às primeiras árvores. De repente, você está na floresta, onde se iniciará uma outra espécie de ioga, a ioga da selva, na qual, todos os sentidos têm que estar em permanente estado de alerta. A vida da selva em toda a sua plenitude de beleza e de podridão sórdida e rastejante. E onde se observam, em toda a ambivalência dramática, orquídeas e centopéias, sanguessugas e pássaros, sugadores de néctar e sugadores de sangue. A vida impondo ordem ao caos e à feiúra. A vida parecendo repetir os milagres do nascimento e do crescimento. A autodestruição parecendo ser seu único objetivo! Beleza e hor­ror. Beleza e horror — repetiu, continuando em seguida:

  • E, de repente, como se tivesse chegado de uma expedi­ção às montanhas, você tem consciência de que há uma reconciliação. Mais do que uma simples reconciliação: fusão e identida­de. Beleza nascida do horror na ioga da selva. A vida reconcilia­da com a permanente ameaça da morte, na ioga do perigo. A iden­tificação do vazio e da auto-proteção, no sabá da ioga do cume.

    Fez-se o silêncio e Murugan bocejou ostensivamente. O velho sacerdote acendeu outro bastão de incenso e, murmurando, agitou-o em frente ao dançarino e depois em torno da imagem do namoro cósmico entre Xiva e a deusa.

  • Respirem profundamente e, enquanto respirarem, procurem sentir o cheiro do incenso — disse Vijaya. — Concentrem-se inteiramente nisso. Sintam-no como a um fato inefável e indes­critível que ultrapassa a razão e por isso não pode ser explicado.

    Conheçam-no como a um mistério. Perfume, mulheres e oração: eram as coisas que Maomé amava acima de tudo. As inexplicá­veis sensações trazidas pelo cheiro do incenso, por uma pele que se toca, pelo sentimento amoroso e, dominando tudo, mistério dos mistérios, a plenitude do ser único. O Vazio que é tudo, a Semelhança presente em todos os instantes e em seus mínimos detalhes. Respirem! Respirem! — disse num murmúrio final, en­quanto se sentava. — Respirem!

  • Shivanayama— murmurou o velho sacerdote em êxtase.

    O dr. Robert levantou-se e caminhou em direção ao altar.

    Parando a meio caminho, voltou-se e acenou para Will Farnaby.

  • Venha sentar-se a meu lado — disse em voz baixa, quan­do Will estava próximo a ele. — Gostaria que observasse as fisionomias.

  • Não irei atrapalhar?

    O dr. Robert balançou a cabeça e, juntos, começaram a su­bir as escadas que davam acesso ao altar, sentando-se lado a la­do antes de atingirem o último degrau, num local onde a escuridão, quebrada pela luz das velas, formava uma zona de penum­bra. O dr. Robert começou a falar calmamente a respeito de Xiva-Nataraja, o Senhor da Dança.

  • Olhem esta imagem. Observem-na com os olhos que o moksha lhes deu. Vejam como respira e pulsa. Vejam como seu fulgor se torna cada vez mais intenso! Dançando sem parar, dan­çando perpetuamente e eternizando o momento presente. Dan­çando sem repouso e ao mesmo tempo em todos os mundos.

    Perscrutando aquelas fisionomias que olhavam para o alto, Will observou em muitas delas as alvoradas iluminadas de delei­te, reconhecimento, compreensão, os sinais de curiosa adoração que as fazia tremer como se estivessem nos limites do êxtase e do terror.

  • Observem cuidadosamente — insistiu o dr. Robert. — Muito cuidadosamente.

    Após um longo silêncio, repetiu:

  • Dançando sem repouso e ao mesmo tempo em todos os mundos. Em todos os mundos! Principalmente no mundo da ma­téria. Olhem o grande halo, cercado pelos símbolos do fogo, den­tro do qual o deus está dançando. Aí está para defender a natu­reza, para defender o mundo da massa e da energia. Dentro de­le, Xiva Nataraja dança a dança infinita, a dança apropriada à morte. É o seu lila, sua diversão cósmica. Como se fosse uma criança que brinca pelo simples prazer de brincar. Mas essa criança é a ordem das coisas. Seus brinquedos são as galáxias, o espaço infinito é o seu pátio de recreio, e entre cada um dos seus dedos há um intervalo de milhares de milhões de anos-luz. Observem- no lá no altar. A imagem foi feita pelo homem e não passa de uma figura de cobre, de um metro cvinte de altura. Mas Xiva-Nataraja preenche o Universo, é o próprio Universo. Fechem os olhos e vejam-no altaneiro dentro da noite, vejam como disten­de seus braços infinitos e o modo como seus cabelos desordenados esvoaçam sem cessar. Nataraja brincando entre as estrelas e os átomos. Ele também está brincando no interior de cada ser vivo, de cada criatura dotada de sensibilidade, de cada criança, de cada homem e de cada mulher. Brinca peló prazer de brincar. Mas nesse momento o pátio o sente e a pista de danças está capa­citada a suportar o sofrimento. Para nós, essa dança sem objeti­vo parece uma espécie de insulto. O que realmente gostaríamos de ter era um deus que nunca destruísse o que tivesse criado. E, se o sofrimento e a morte tivessem de existir, deveriam ser distribuídos por um deus pleno de eqüidade, que punisse os maus e premiasse os bons com a felicidade eterna. Na realidade, o bom é atingido e o inocente sofre. Deveria existir um deus que nos com­preendesse e nos trouxesse conforto. Mas Nataraja se limita a dan­çar. Brinca imparcialmente com a morte e com a vida, com to­das as coisas más e com todas as coisas boas. Na mais alta das suas mãos direitas, ele segura o tambor que põe em movimento o ser que existe no Nada. E o tambor rufia o toque cósmico da alvorada. Olhem agora para a mais alta das suas mãos esquer­das. Brande o fogo com o qual tudo que foi criado é imediata­mente destruído. Dançando de um modo, cria a felicidade! De outro, cria a dor, o terrível medo, a desolação. Decide-se a saltar e a pular. Num pulo, a saúde perfeita. Num salto um pouco mais largo, eis o câncer e a senilidade. Com outro salto, afasta-se da plenitude da vida e cai no Nada. Do Nada, salta novamente em direção à Vida. Para Nataraja tudo é brincadeira. A brincadeira é seu eterno e inútil objetivo. Ele dança e a dança é seu maha- sukha, sua infinita e eterna bênção. Eterna bênção!

    O dr. Robert repetiu, em tom de dúvida:

    Eterna bênção? Balançou a cabeça e prosseguiu: Para nós a bênção não existe. O que existe é a oscilação entre a felicidade e o terror. A essa oscilação vem se acrescentar um sentimento de ultraje, toda vez que pensamos que nossas dores e nossos prazeres, nossa vida e nossa morte nada mais são que uma parte da dança de Nataraja. Pensemos com calma no que acabei de dizer.

    À medida que os segundos passavam, o silêncio se tornava mais profundo. De repente, uma das mocinhas começou a solu­çar. Saindo de onde estava, Vijaya ajoelhou-se a seu lado e colo­cou uma das mãos sobre seu ombro. Os soluços cessaram.

  • Sofrimento e doença, velhice, decrepitude e morte — continuou o dr. Robert. — Eu lhes mostro o sofrimento. Mas isso não foi a única coisa que Buda nos mostrou. Ele também nos mos­trou o fim do sofrimento.

  • Shivanayama— gritou o sacerdote em triunfo.

  • Abram bem os olhos e olhem para o Nataraja que está no altar. Observem-no detalhadamente. Em sua mão superior direita, como vocês já viram, ele segura o tambor que chama o mun­do para a vida, e em sua mão superior esquerda segura o fogo da destruição. Vida e morte, ordem e desintegração, imparcial­mente distribuídas. Agora, olhem para o outro par de mãos de Xiva. A mão inferior direita está erguida e com a palma voltada para fora. Qual a significação desse gesto? Ele quer dizer: "Não tenha medo, tudo está bem". Mas como pode alguém se impedir de ter medo? Como fingir que o mal e o sofrimento sejam coisas certas, quando a evidência de que são erradas é tão óbvia? Nata­raja tem a resposta. Agora, observem sua mão inferior esquerda e vejam que com ela está apontando para os pés. E os pés, que estão fazendo? Olhem com cuidado e verão que com o pé direito ele pisa numa pequena e repelente figura subumana: o demônio Muyalaka, que, embora sendo um anão, é dotado de um imenso poder de malignidade. Muyalaka corporifica a ignorância, representa a ganância e o egoísmo exagerado. Esmaguem-no, quebrem-lhe as costas! É exatamente isso que Nataraja está fazendo. Es­magando o pequeno monstro sob seu pé direito. Convém que ob­servem que não é para o pé direito que ele está apontando com o dedo, e sim para o esquerdo. O pé que, no ato de dançar, ele está levantando do chão. E por que aponta para ele? Por quê? Aquele pé erguido, aquele desafio dançante à força da gravidade é o símbolo da sublimação, do moksha, da libertação. Nataraja dança ao mesmo tempo em todos os mundos: no mundo da físi­ca e da química, no mundo da rotina, do demasiadamente hu­mano e, finalmente, no mundo da Semelhança, da Inteligência, da Luminosidade. E agora — prosseguiu o dr. Robert, após um momento de silêncio — quero que vocês observem a outra está­tua, a representação de Xiva e a deusa. Olhem para aquela pequena gruta iluminada onde elas estão. Agora, fechem os olhos e tornem a abri-los para vê-las resplandecentes, vivas, glorifica­das! Quanta beleza! Que profunda significação está contida na ternura que se vê em ambas! É a sabedoria daquela experiência de reconciliação e de fusão espiritual que transcende a tudo que de sábio se possa dizer! Eternidade no amor com o tempo. A uni­dade contraindo núpcias com a pluralidade. É o relativo tornado absoluto graças à sua fusão com a Unidade. É a identificação de nirvana com samsara; é a manifestação temporal, corporal e sen­timental da natureza de Buda!

  • Shivanayama!— O velho sacerdote acendeu outro bas­tão de incenso e, suavemente, uma sucessão de cadências prolongadas, começou a cantar alguma coisa em sânscrito.

    Nas faces jovens que tinha à sua frente, Will pôde Observar que os traços revelavam a serenidade com que escutavam, o sor­riso quase imperceptível com que saudavam uma súbita visão in­terior, uma revelação de verdade e beleza.

    Nesse momento, Murugan, protegido pela obscuridade, descuidadosamente sentado e encostado numa pilastra, enfiava o de­do em seu belo nariz grego.

  • Libertação — começou novamente o dr. Robert. — O fim do sofrimento. Deixem de ser o que ignorantemente pensam ser e se transformem no que realmente são. Por um pequeno pe­ríodo, graças ao moksha, saberão o que é realmente ser. Saberão também o que têm sido até agora. Que bênção eterna! Mas esse eterno é transiente como tudo o mais. Passará como todas as coi­sas. E quando isso ocorrer, que é que farão dessa experiência? Que farão com todas as experiências idênticas que o moksha lhes trará nos anos que estão por vir? Será que se limitarão a desfrutá-las, do mesmo modo como apreciam um espetáculo de fantoches, voltando depois às suas ocupações como se nada tivesse aconte­cido? Será que voltarão a se comportar como os tolos delinqüen­tes que imaginam ser? Ou será que, após vislumbrarem, se dedi­carão ao trabalho radicalmente diferentes do que eram, passan­do a ser o que realmente são? Tudo aquilo que nós, os mais velhos, lhes podemos ensinar, tudo aquilo que o sistema social de Pala pode fazer por vocês se resume em ensinamentos técnicos e oportunidades. Tudo aquilo que o moksha pode lhes proporcionar ocasionalmente é uma sucessão de vislumbres de clarivi­dência e de graça libertadora. Cabe a vocês decidir se vão cola­borar e se vão aproveitar essas oportunidades. Porém tudo isso pertence ao futuro. No momento, tudo o que têm a fazer é se­guir o conselho do pássaro mainá: "Atenção". Fiquem atentos, e gradual ou subitamente terão consciência dos grandes fatos pri­mordiais que se escondem atrás desses símbolos que vêem no altar.

  • Shivanayamarepetiu o velho sacerdote, movendo seu bastão de incenso. Junto dos degraus do altar, os rapazolas e as mocinhas permaneciam sentados numa imobilidade de estátuas.

    Ouviu-se o ranger de uma porta e som de passos. Voltando a cabeça, Will notou que um homem corpulento abria caminho entre os jovens contemplativos. Subindo a escada e curvando-se junto ao dr. Robert, disse-lhe qualquer coisa ao ouvido e dirigiu- se novamente para a porta.

    Pondo a mão sobre o joelho de Will, o dr. Robert, com um encolher de ombros e um sorriso nos lábios, disse-lhe:

  • É uma ordem real. Aquele homem é o encarregado da cabana alpina. A rani acaba de telefonar para dizer que precisa ver Murugan o mais breve possível. É urgente.

     

    Will Farnaby preparou sua refeição da manhã e, quando o dr. Robert voltou de sua visita ao hospital, estava tomando sua segunda xícara de chá palanês e comendo fruta-pão torrada com geléia de toronja.

  • Lakshmi não sentiu muitas dores durante a noite dis­se o dr. Robert, respondendo às suas perguntas. Dormiu um bom sono durante quatro ou cinco horas e, ao despertar, conse­guiu tomar um pouco de caldo. Podemos contar com outro dia de adiamento. Assim sendo, e como deve ser cansativo para ela me ver sempre a seu lado, resolvi ir até o Posto de Grandes Alti­tudes, a fim de trabalhar durante algumas horas com o grupo de pesquisas do laboratório farmacêutico. A vida continua e tem que ser vivida da melhor maneira, Will.

  • São os trabalhos com o moksha!

    O dr. Robert balançou a cabeça.

  • Não, os trabalhos com o moksha estão limitados atualmente à simples repetição das experiências clássicas. Como se trata de coisa rotineira, essas experiências são realizadas por técnicos. Os pes­quisadores estão ocupados com alguma coisa inteiramente nova.

    Começou a falar dos indóis recentemente isolados de sementes de ololiuqui que, trazidas do México no ano anterior, esta­vam crescendo no jardim botânico do posto. Pelo menos três in­dóis diferentes já haviam sido isolados. Um deles parecia ser bas­tante ativo, e experiências feitas em animais demonstravam que afetava o sistema reticular.

    Ficando sozinho, Will sentou-se sob um ventilador e continuou a leitura das Notas sobre o que é quê.

Não podemos racionalizar excluindo nossa irracionalidade básica. E o melhor que temos a fazer é aprender a arte de sermos irracionais de uma maneira razoável.

Em Pala, decorridas três gerações após a reforma, não exis­tem "rebanhos de carneiros" nem bons pastores para tosquiá-los e castrá-los. Também não existem os rebanhos de bovinos e de suínos. Tampouco existem marchantes (da realeza, das clas­ses armadas, do capitalismo ou das revoluções) que tenham a necessária permissão para marcá-los a fogo, confiná-los e retalhá-los. Existem somente associações voluntárias de homens e mu­lheres que buscam uma humanidade integral.

Cantigas ou seixos? Desfiles ou coisas substanciais? "Cantigas", respondem o Budismo e a ciência moderna. "Seixos", di­zem os filósofos clássicos do Ocidente. O Budismo e a ciência moderna pensam a respeito do mundo em termos de música. A imagem que nos vem à mente quando lemos os filósofos do Oci­dente é a de uma figura num mosaico bizantino. Uma figura rí­gida, feita de milhões de pequeninos quadrados de algum mate­rial pétreo, firmemente cimentado nas paredes de uma basílica sem janelas.

A graça de uma dançarina e a artrite que surge após terem decorrido quarenta anos — ambas as coisas são funções do esqueleto. Graças a uma inflexível moldura óssea a moça é capaz de executar piruetas. E é por causa desses mesmos ossos que sua avó fica condenada à cadeira de rodas. De modo análogo, um firme alicerce cultural é a condição essencial a toda a originali­dade individual e a todo o poder criador. Mas essa cultura básica é também o seu mais terrível inimigo. A coisa sem a qual não nos podemos transformar em seres humanos plenamente desen­volvidos é, freqüentemente, a mesma que impede esse desenvol­vimento.

Após um século de pesquisas com o moksha, chegamos à conclusão de que pessoas inteiramente comuns são capazes de ter vi­sões, sendo mesmo capazes de se sentir inteiramente liberadas. A esse respeito, tanto os homens como as mulheres que fazem ou que apreciam a cultura não são melhores que os incultos. Um alto nível de cultura é perfeitamente compatível com a pobreza de expressões simbólicas. As expressivas imagens criadas pelos artistas de Pala não são melhores do que as que foram produzi­das pelos artistas de outras partes do mundo. Sendo produtor da felicidade e de um sentimento de completa realização, são pro­vavelmente menos vivos, e talvez nos satisfaçam menos sob o pon­to de vista estético que as trágicas figuras criadas como motivo de compensação pelas vítimas da frustração, da ignorância, da tirania, da guerra e de todos os crimes culposos que alimentam as superstições. A superioridade palanesa não repousa em ima­gens simbólicas e sim numa arte que, embora mais elevada e de maior valor que todo o resto, pode ser executada por qualquer um — a arte de ter uma experiência adequada. A arte de se tor­nar mais intimamente familiarizado com todos os mundos nos quais habitamos. A cultura palanesa não é para ser julgada pelos mes­mos critérios (e ainda nos falta coisa melhor!) com que julgamos as outras culturas. Não é para ser julgada pelos feitos de uns pou­cos manipuladores privilegiados das imagens simbólicas ou artís­ticas. Deve ser julgada pelo que todos os seus membros (os co­muns e os superiormente dotados) fazem e experimentam em ca­da contingência e a cada intersecção do tempo com a eternidade!

O telefone começou a tocar. Devia deixá-lo tocar ou seria melhor atender e dizer que o dr. Robert tinha se ausentado por um dia? Decidindo-se pela segunda alternativa, Will tirou o fone do gancho.

  • É do bangalô do dr. MacPhail — respondeu, parodian­do a eficiência de uma secretária —, mas o doutor não está e não voltará hoje.

  • Tant mieux— disse a rica voz real no outro lado da li­nha. — Como vai, mon cherFarnaby?

    Surpreso e gaguejando, Will agradeceu as delicadas pergun­tas de Sua Majestade.

  • Então eles o levaram ontem à tarde para assistir a uma das chamadas "iniciações"? — perguntou a rani.

    Tendo se recuperado parcialmente da surpresa inicial, Will respondeu com voz neutra e não comprometedora:

  • Foi uma coisa extraordinária!

  • Extraordinária! — disse a rani, demorando-se enfaticamente nos equivalentes falados, pejorativos é laudatórios das le­tras maiúsculas. — Mas não passa de uma Caricatura Blasfema- tória da verdadeira Iniciação! Eles nunca aprenderam a fazer a mais elementar distinção entre a Ordem Natural e a Sobre­natural.

  • Absolutamente — murmurou Will. — Absolutamente.

  • Que foi que o senhor disse? — perguntou a voz do outro lado da linha.

  • Absolutamente repetiu Will, em tom mais alto.

  • Estou satisfeita com a sua anuência, mas não lhe telefo­nei para discutir a diferença entre o Natural e o Sobrenatural disse a rani. Telefonei para lhe falar de coisa mais urgente.

  • Petróleo?

  • Sim confirmou ela. Acabei de receber uma comunicação muito intranqüilizadora e que foi remetida pelo meu re­presentante pessoal em Rendang. Trata-se de pessoa altamente situada e sempre bem informada acrescentou.

    Will começou a pensar qual de todos aqueles convidados edu­cados e cheios de medalhas, no coquetel do Ministério das Rela­ções Exteriores, tinha traído seus companheiros, que por sua vez também eram traidores. E nesse grupo ele também se incluía.

  • Nos últimos dias prosseguiu a rani representantes de nada menos que três das maiores companhias de petróleo, européias e americanas, chegaram de avião a Rendang-Lobo. Sou­be pelo informante que eles já estão "trabalhando" as quatro ou cinco figuras-mestras da Administração que possam, no futuro, influir na decisão sobre quem deverá obter a concessão em Pala.

    Will estalou a língua em sinai de desaprovação.

    Quantias consideráveis, deu a entender a rani, tinham sido, se não diretamente oferecidas, pelo menos mencionadas, com a intenção de deixá-los ficar à mercê das tentações.

  • Execrável! — comentou Will.

  • O senhor usou a palavra exata — disse ela. E é por isso que alguma coisa tem que ser feita imediatamente.

    A rani soubera, por intermédio de Bahu, que Will já tinha escrito a lorde Aldehyde e que, certamente dentro de poucos dias, uma resposta deveria chegar. Mas uma espera de alguns dias era demasiado longa. O tempo era essencial, não somente por causa do que aquelas companhias rivais estavam fazendo, mas também e a rani falou baixo, em tom de mistério por outras razões. Imediatamente, imediatamente, começou a exortar. Imediatamen­te, sem mais delongas. Lorde Aldehyde deveria ser informado por telegrama de tudo o que estava acontecendo (o fiel Bahu havia se oferecido para transmitir a mensagem em código, por inter­médio da Legação de Rendang em Londres, disse ela) e, junta­mente com a informação, teria de seguir um pedido urgente, a fim de que Will, na qualidade de correspondente especial, tivesse poderes para tomar as decisões (nessa altura, as decisões seriam predominantemente de caráter financeiro) que se fizessem neces­sárias para assegurar o triunfo da Causa Comum.

  • Com sua permissão continuou —, direi a Bahu para telegrafar imediatamente. O telegrama será assinado por nós dois, Mr. Farnaby. Penso, mon cher, que isso será agradável para o senhor.

    Não havia nenhum motivo para se sentir lisonjeado, mas tam­bém nada havia que pudesse justificar uma negativa de sua par­te, uma vez que tinha escrito para Joe Aldehyde a fim de que ob­jetasse. Procurando demonstrar o máximo de entusiasmo, em vir­tude da longa pausa que havia feito enquanto procurava outra solução, Will respondeu que sim.

  • Amanhã deveremos receber alguma resposta acrescentou ele.

  • Receberemos Hoje à noite — assegurou-lhe a rani.

  • A senhora acha que é possível?

  • Com a ajuda de Deus, tudo é possível respondeu expressivamente.

  • É verdade disse Will. Mas...

  • Sigo o que minha Pequena Voz me diz, e ela está me dizendo: "Hoje à noite". Está dizendo também que "ele dará car­ta branca", carte blanchez Mr. Farnaby, e que Mr. Farnaby se­rá inteiramente bem-sucedido disse cheia de entusiasmo.

  • Que maravilha respondeu Will, em tom de dúvida.

  • O senhor deverá obter sucesso.

  • A senhora acha possível?

  • Deverá ter insistiu a rani.

  • Por quê?

  • Porque foi Deus quem me inspirou a lançar a Cruzada do Espírito.

  • Não consigo perceber a correlação.

  • Talvez não devesse lhe dizer. Parou de falar por al­gum tempo e depois prosseguiu. Mas, afinal de contas, que mal há nisso? Se a nossa causa triunfar, lorde Aldehyde prome­teu apoiar integralmente a Cruzada do Espírito. Como Deus quer o sucesso da Cruzada, a nossa causa não pode deixar de vencer.

  • QED... Quis gritar, mas se conteve. Não seria educa­do. De qualquer modo, o assunto não era para brincadeira...

  • Vou desligar, porque tenho de falar com Bahu. A bientôt, meu caro Farnaby. E, após um novo "bientôt, meu caro Farnaby", desligou.

    Com um encolher de ombros, Will recomeçou a leitura das Notas sobre o que é quê. Que mais havia para fazer?

Dualismo... Sem isso é dificílimo haver boa literatura. Com isso, a possibilidade de uma boa Vida não pode existir. "Eu" in­dica a existência de uma "coisa" que subsiste em mim. "Sou" nega o fato de que toda a existência é conexão e mudança. "Eu sou". Duas palavras pequenas; mas que imensidão de inverdades! O dualista dotado de mentalidade religiosa "extrai" o espí­rito do seio das profundezas abismais. O não-dualista "convo­ca" a imensidão para a intimidade do espírito. Em outras pala­vras, crêem que essa imensidão já se encontrava no âmago do espírito.

Will ouviu o barulho de um carro que se aproximava. Ao silêncio que se fez, quando o motor foi desligado, seguiu-se o som do bater de uma porta, o ruído de passos no cascalho e depois nos degraus da varanda.

  • Você está pronto? — perguntou Vijaya na sua voz grave.

    Pondo de lado as Notas sobre o que é quê, apanhou seu bordão de bambu, levantou-se e dirigiu-se para a porta de entrada.

  • Pronto e cheio de entusiasmo — disse Will, ao se encaminhar para a varanda.

  • Então vamos — disse Vijaya, segurando-lhe um dos bra­ços e recomendando-lhe para ter cuidado com os degraus.

    Uma mulher gorda, de rosto redondo, aparentando quaren­ta e cinco anos, estava em pé, ao lado do jipe. Usava um vestido cor-de-rosa e estava adornada com um colar e brincos de coral.

  • Apresento-lhe Leela Rao — disse Vijaya. — É nossa bibliotecária, secretária, tesoureira e mantenedora da ordem. Sem ela, estaríamos perdidos.

    Enquanto a cumprimentava, Will imaginou estar diante de uma versão mais escura dessas delicadas e incansáveis senhoras inglesas que, quando os filhos já estão criados, se dedicam às obras de caridade ou às organizações culturais, e que, embora sem serem dotadas de muita inteligência, são desprendidas, de­dicadas, genuinamente boas e... horrivelmente maçantes.

  • Os meus amigos Radha e Ranga já haviam me falado do senhor — disse Mrs. Rao quando marginavam o lago de lótus e se dirigiam para a rodovia.

  • Espero que tenham me aceito com o mesmo entusiasmo com que os aceitei.

  • Fico tão satisfeita em saber que o senhor gosta deles! disse Mrs. Rao com a fisionomia irradiando alegria.

  • Ranga é excepcionalmente inteligente disse Vijaya.

  • E como consegue manter em perfeito equilíbrio a introversão e o mundo exterior! — esmerou-se Mrs. Rao. Apesar de sempre tentado (e como!) a escapar para o mundo do nirvana de arhat ou para o pequeno paraíso tão lindamente arrumado da abstração pura. Sempre tentado e muitas vezes resistindo às ten­tações, pois o Ranga cientista de arhat também é um outro ser. É um Ranga compassivo e que está sempre pronto (se soubermos como atraí-lo) a aceitar as realidades da vida, a ser cônscio das suas responsabilidades e a prestar um auxílio eficiente. Que feli­cidade para ele e para todos nós que tenha encontrado uma pe­quena como Radha, que é simples, inteligente, alegre, meiga e tão ricamente dotada para o amor e a felicidade. Radha e Ranga estavam incluídos entre os meus alunos prediletos — confessou Mrs. Rao.

    "Alunos de alguma espécie de escola dominical budista", pensou Will com condescendência. Mas a realidade o supreendeu quando soube que nos últimos seis anos essa devotada pio­neira, nas folgas do seu serviço de bibliotecária, ensinava aos jo­vens a ioga do amor. Imaginava que os métodos que haviam afas­tado Murugan e que a rani, com toda a sua possessividade inces­tuosa, classificara de "ultrajantes", deviam ser os mesmos. Will abriu a boca para fazer algumas perguntas, porém conteve-se a tempo; seus reflexos haviam sido condicionados para latitudes maiores e para "pioneiras" de outro tipo. As perguntas simples­mente se recusaram a sair dos seus lábios e agora já era tarde de­mais para fazê-las. Mrs. Rao começara a falar acerca de sua ou­tra ocupação.

  • Se você soubesse o trabalho que dão os livros aqui neste clima! dizia ela. O papel apodrece, a cola se derrete, as en­cadernações não resistem, os insetos os devoram. A literatura é realmente incompatível com os trópicos.

  • Se formos acreditar no seu velho rajá, a literatura tam­bém é incompatível com vários outros aspectos locais . É incompatível com a integridade humana, com a verdade filosófica, com a sanidade individual e com um sistema social condigno. É in­compatível com tudo, exceto o dualismo, a demência criminosa, as aspirações impossíveis e os sentimentos de culpa desnecessá­rios. Sorrindo ferozmente, Will continuou: Mas não se preo­cupem com isso, o coronel Dipa endireitará tudo. Depois que Pala for invadida e salva pela guerra, pelo petróleo e pela indústria pesada, vocês terão, sem a menor dúvida, uma Idade de Ouro na literatura e na teologia.

  • Gostaria de poder rir, mas é bem provável que você este­ja inteiramente certo disse Vijaya. Tenho um desagradável pressentimento de que os meus filhos crescerão para ver a reali­zação da sua profecia.

    Deixando o jipe estacionado à entrada da aldeia, entre um carro de bois e um caminhão japonês inteiramente novo, conti­nuaram o caminho a pé. Entre casas cobertas de sapé construí­das em jardins sombreados de palmeiras, mamoeiros e árvores de fruta-pão, a rua estreita ia dar na praça do mercado central. Parando, Will apoiou-se no bordão de bambu e olhou à sua vol­ta. Num dos lados da praça se erguia uma verdadeira obra-prima do rococó oriental! A fachada de estuque cor-de-rosa, tendo um mirante em cada um dos seus quatro cantos, dava a impressão de ser a prefeitura local. À sua frente, no lado oposto da praça, via-se um pequeno templo de pedra rosada tendo uma torre cen­tral, na qual, dispostas em várias fileiras, uma série de figuras esculpidas contava as lendas do progresso de Buda desde sua infância mimada até se transformar em Tathagata. Entre esses dois monumentos, a maior parte do terreno era coberta por uma enor­me figueira-de-bengala. Ao longo de corredores sombreados e si­nuosos, enfileiravam-se as barracas de um grupo de vendedores de ambos os sexos. Atravessando fendas das abóbadas verdes, os longos e curiosos raios de sol mostravam, aqui, potes de água amarelos e pretos; ali, uma pulseira de prata, um brinquedo de madeira pintada e um pedaço de fazenda estampada. Adiante, uma pilha de frutas, um corpinho de menina alegremente estam­pado com flores, o lampejo de olhos e dentes de alguém que sor­ri e o saudável dourado de um torso nu.

  • Todos parecem tão saudáveis comentou Will, enquan­to caminhavam entre as barracas e à sombra da grande árvore.

  • Sua aparência é saudável simplesmente porque são realmente saudáveis disse Mrs. Rao.

  • E felizes, para variar.

    Pensava nos rostos que vira em Calcutá, em Manilha, em Rendang-Lobo os mesmos rostos que também podiam ser vis­tos diariamente em Fleet Street e no Strand.

  • Mesmo as mulheres comentou, olhando cada rosto —, mesmo as mulheres parecem felizes.

  • Elas não têm dez filhos explicou Mrs. Rao.

  • Do lugar de onde venho, elas também não têm dez filhos disse Will. Apesar disso... "Sinais de fraqueza, sinais de infelicidade." Fazendo uma pausa, olhou da face de uma ven­dedora de meia-idade que pesava fatias de fruta-pão secas ao sol para a de uma jovem mãe que carregava seu bebê numa sacola presa às costas. Há uma espécie de esplendor concluiu.

  • Graças à maithuna disse triunfalmente Mrs. Rao. Graças à ioga do amor.

    Em seu rosto brilhava um misto de fervor e de orgulho profissional.

    Enquanto andavam, deixaram uma faixa ensolarada e quente e, subindo uma escadaria de degraus bastante desgastados, atin­giram a obscuridade de um templo. Um gigantesco Bodhisattva dourado surgiu da escuridão. No meio do cheiro de incenso e de flores murchas escutava-se, vindo de algum lugar atrás da está­tua, um adorador invisível a murmurar uma ladainha sem fim.

    Silenciosamente, de pés descalços, uma criança entrou apressada por uma porta lateral. Sem prestar atenção aos adultos, su­biu até o altar com a agilidade de um gato e depositou um ramo de orquídeas na mão estendida da estátua. Feito isso, olhou para a enorme face de ouro, murmurou algumas palavras, fechou os olhos por um momento e murmurou novamente. Desceu do al­tar, cantando para si mesma, e saiu pela mesma porta por onde entrara.

  • Encantadora disse Will, enquanto a via afastar-se. — Não poderia ser mais graciosa. Contudo, que é que uma criança daquela pensava estar fazendo? Que espécie de culto religioso era aquele?

  • Ela pratica a variedade local do budismo mahayana e também um pouco de xivaísmo.

  • E vocês, intelectuais, encorajam essas práticas?

  • Não encorajamos nem desencorajamos. Apenas aceita­mos. Aceitamos como se aceita a teia de aranha ali na cornija. Devido à natureza das aranhas, suas teias são inevitáveis, e devido à natureza dos seres humanos as religiões também o são. Às aranhas não se pode impedir de fazer armadilhas para moscas. Os homens não conseguem deixar de fabricar símbolos. E o cé­rebro humano só serve para transformar em símbolos manejá­veis o caos de uma determinada experiência. Algumas vezes os símbolos correspondem quase que exatamente a alguns dos as­pectos da realidade exterior que se escondem atrás da nossa ex­periência. Somente então adquire consciência e bom senso. Ou­tras vezes ocorre o oposto: os símbolos quase não têm ligação com a realidade exterior. Desse modo, temos a paranóia e o delí­rio. Freqüentemente existe uma mistura realística e em parte fan­tástica. E isso é a religião. Boa religião ou má religião, tudo de­pende da mistura do coquetel. Por exemplo, na espécie de calvinismo em que o dr. Andrew foi criado, misturou-se uma porção mínima de realismo em sua coqueteleira cheia de fantasias ma­lignas. Em outros casos, a mistura é mais benigna. A proporção pode ser de cinqüenta, sessenta por quarenta e de até mesmo se­tenta por trinta, em favor da verdade e da decência.

    Will concordou com um movimento de cabeça e disse:

  • Realmente, oferecer orquídeas brancas a uma imagem que representa a compaixão e o esclarecimento parece bastante ino­fensivo. E, depois do que vi ontem, estou preparado para falar em favor das danças cósmicas e das cópulas divinas.

  • Lembre-se de que isso não é compulsório — disse Vijaya. — Mas a todos é dada a chance para irem mais além. Você perguntou o que aquela criança pensava estar fazendo. Eu lhe direi: com uma parte da sua mente, ela supõe estar falando com alguém, uma pessoa enorme e divina que pode ser bajulada com orquídeas e que, no entanto, lhe dará o que ela deseja. Todavia, ela já tem idade bastante para que lhe tenham falado acerca dos símbolos mais profundos que estão representados na estátua de Amitabha. Também já deve ter ouvido falar das experiências que deram origem a esses símbolos. Disso.se deduz que, com a outra parte da sua mente, ela sabe muito bem que Amitabha não é uma pessoa. Sabe também (porque já lhe foi explicado) que, se as pre­ces algumas vezes são atendidas, é porque neste nosso estranho mundo psicossomático os desejos têm tendência a se realizarem, quando neles nos concentramos. Já lhe ensinaram que esse tem­plo não é mais a casa de Buda, mas apesar disso ainda gosta de imaginar que é. Sabe que não é um diagrama da sua própria mente inconsciente, um cubículo escuro com lagartixas andando de ca­beça para baixo pelo teto e com baratas em todas as gretas. To­davia, no meio da escuridão povoada de vermes está a Sabedo­ria. E essa criança está fazendo alguma coisa além disso: de ma­neira inteiramente inconsciente, está aprendendo uma lição a seu próprio respeito. Já lhe foi dito que, se conseguir deixar de se sugestionar, talvez descubra que sua mente pequena e ocupada é também uma Mente com M maiúsculo.

  • Em quanto tempo a lição será aprendida? Quando dei­xará de se sugestionar por esses símbolos?

  • Talvez nunca venha a aprender. Isso acontece a várias pessoas. Para compensar, muitas outras aprendem com facilidade.

    Pegando o braço de Will, guiou-o na escuridão até chega­rem atrás da imagem da Sabedoria. O cantochão tornou-se mais nítido. Quase escondido pelas sombras, um homem velho e nu da cintura para cima estava sentado numa postura rígida e imó­vel, e só seus lábios se moviam: parecia a estátua dourada de Amitabha.

  • O que está entoando? — perguntou Will.

  • Alguma coisa em sânscrito.

    Sete sílabas incompreensíveis eram repetidas sem interrupção.

  • Que repetição tola!

  • Não é tão tola assim, pois graças a isso às vezes se consegue o que se quer — objetou Mrs. Rao.

  • Ajudam pelo simples fato de serem repetidas e não pelo que possam significar ou sugerir — explicou Vijaya. — Poderia repetir "Olá trapaceiro, trapaceiro", e isso funcionaria tão bem quanto "Om", "Kyrie Eleison" ou "Láila, illa, llah".Funcio­naria porque, enquanto a pessoa está ocupada com a repetição de "trapaceiro, trapaceiro", ou mesmo do nome de Deus, não pode estar inteiramente preocupada consigo mesma. O único in­conveniente é que o hábito de repetir "Olá, trapaceiro, trapacei­ro" pode ter conseqüências inteiramente diversas: tanto pode mergulhá-lo nas trevas da idiotia como pode levá-lo ao desconhe­cido mundo do conhecimento pleno.

  • Pelo que estou ouvindo, acho que você não recomenda­ria isso à nossa amiguinha das orquídeas...

  • Não recomendaria a não ser que estivesse excessivamen­te nervosa ou ansiosa. Contudo, isso não se dá com ela. Conheço-a muito bem, pois costuma brincar com meus filhos.

  • Sendo assim, que faria no caso dela?

  • Entre outras coisas, daqui a mais ou menos um ano a levaria ao lugar para onde estamos nos dirigindo agora respon­deu Vijaya.

  • Que lugar?

  • Para a sala de meditação.

    Will seguiu-o através de uma arcada e um pequeno corre­dor. Abriram pesadas cortinas e penetraram numa grande sala pintada de branco. De uma grande janela à esquerda se descorti­nava um pequeno jardim plantado de bananeiras e árvores de fruta-pão. Não havia mobiliário, apenas algumas almofadas es­palhadas pelo chão. Na parede oposta à janela havia um grande quadro a óleo. Will olhou-o de relance e depois aproximou-se para vê-lo mais de perto.

  • Que beleza! disse finalmente. Quem é o autor?

  • É Gobind Singh.

  • E quem é Gobind Singh?

  • É o melhor pintor de paisagens que Pala já teve. Morreu em 1948.

  • Por que nunca vimos nenhum quadro dele?

  • Simplesmente porque apreciamos demais seu trabalho pa­ra permitir que seja exportado.

  • Ótimo para vocês, porém nada bom para nós disse Will, olhando novamente para a pintura. Esse homem esteve alguma vez na China?

  • Não, mas estudou com um pintor cantonês que vivia em Pala, e é claro que tinha visto várias reproduções das paisagens de Sung.

  • Uma autoridade em Sung que escolheu pintar a óleo e que se interessava pelo claro-escuro disse Will.

  • Isso só aconteceu em 1910, quando foi a Paris e fez amizade com Vuillard.

    Will balançou a cabeça dizendo:

  • É fácil perceber isso se observarmos a extraordinária riqueza estrutural de sua obra.

    Continuando a olhar o quadro em silêncio, Will perguntou após algum tempo:

  • Por que está pendurado aqui nesta sala?

  • Dê a sua opinião.

  • Será porque é o que vocês chamam um "diagrama da mente"?

  • Não. O templo é que era um diagrama. Isso é algo muito melhor. É uma autêntica manifestação da Mente (com M maiús­culo) através do cérebro de um individuo. Essa manifestação es­tá relacionada com o que sentiu e com o modo como transpor­tou para uma tela uma paisagem que teve a oportunidade de ver. Representa o vale mais próximo, a oeste de onde estamos. Foi pintado do local onde as linhas de força desaparecem além da cordilheira.

  • Que nuvens! Que luz! — exclamou Will.

  • E a luz de uma hora antes do escurecer — explicou Vijaya. — Parara de chover pouco antes e o sol saíra novamente, mais brilhante do que nunca. Uma luminosidade oblíqua se filtrava através de um teto de nuvens e dava novo brilho aos moribundos clarões da tarde. Um pontilhado de luzes se espalhava sobre to­das as coisas e intensificava as sombras.

  • Intensificava as sombras — repetiu Will para si mesmo enquanto olhava o quadro. A sombra daquele maciço de nuvens, que se assemelhava a um verdadeiro continente, tornava quase negra toda a extensão da cordilheira. A meia distância, ilhas de nuvens formavam novas ilhas de sombras. E entre aquela suces­são de sombras se destacava o brilho do arroz novo, as tonalida­des quentes da terra lavrada, a incandescência do calcário virgem e as grandes manchas escuras alternavam com o fulgor de dia­mantes que se irradiava das flores eternamente verdes. No cen­tro do vale erguia-se um grupo de distantes e minúsculas casas de sapé. Apesar da distância e das dimensões, como eram perfei­tas, nítidas e cheias de significação! Significativas, mas, quando se indagava interiormente sobre seu significado, não se obtinha resposta. Will formulou a pergunta.

  • Qual o seu significado? — repetiu Vijaya. — Elas são o que são. O mesmo se aplica às montanhas, às nuvens, às luzes e às sombras. Por essa razão, consideramos este quadro uma imagem autenticamente religiosa. Os quadros pseudo-religiosos sem­pre têm alguma outra significação além das coisas que estão re­presentando, algum fragmento de tolice metafísica ou algum dog­ma absurdo sobre a teologia local. Uma imagem verdadeiramen­te religiosa é sempre intrinsecamente significativa. Por isso, pen­duramos este tipo de quadro nas nossas salas de meditação.

  • Sempre paisagem?

  • Quase sempre. As paisagens realmente fazem com que as pessoas se lembrem de quem são.

  • E serão melhores do que as cenas da vida de um santo ou de um salvador?

    Vijaya balançou a cabeça.

  • Em primeiro lugar aí está a diferença entre o objetivo e o subjetivo. Um quadro de Cristo ou de Buda é simplesmente a lembrança de algo observado por um behaviorista e interpretado por um teólogo. Porém, quando se é confrontado com uma pai­sagem como esta, é psicologicamente impossível que seja vista com os olhos de algum J. B. Watson ou com o cérebro de um Tomás de Aquino. A submissão a essa experiência imediata é quase que forçada e a pessoa é praticamente compelida a representar um ato de autoconhecimento.

  • Autoconhecimento? Como assim?

  • Sim, autoconhecimento insistiu Vijaya. A vista deste vale é a projeção da sua própria mente, da mente de todos, tal qual existe, acima e abaixo do nível da história de cada um. São os mistérios da escuridão, de uma escuridão fervilhante de vida. Verdadeiros apocalipses de luz: o brilho da luz das frágeis casi­nhas, das árvores, da grama ou dos espaços azuis entre as nu­vens, tem a mesma intensidade. O homem é tão divino quanto a Natureza e tão infinito quanto o Vazio. Isto é um fato que re­siste a todas as tentativas que fazemos para negá-lo. Desse mo­do, estamos ficando perigosamente próximos à teologia e ninguém jamais foi salvo por uma teoria. Aferremo-nos aos dados e aos fatos concretos.

    Apontando para o quadro, Vijaya continuou:

  • E os fatos concretos estão todos representados neste quadro: metade de uma vila iluminada pelo sol, enquanto a outra está envolta em sombras e em mistério. Montanhas azul-escuras encimadas por fantásticas massas de vapor. Lagos azuis no céu, lagos verde-claros contrastando com o áspero marrom- avermelhado da terra iluminada pelo sol. Essa grama em primei­ro plano, essa moita de bambus a poucos metros da encosta... No vale, pequeninas casas... Mais adiante, picos de seiscentos me­tros de altura. As paisagens não dão a noção de distância e por isso são os motivos religiosos mais autênticos.

  • Será porque a distância nos encanta a vista?

  • Não. É porque lhe empresta realidade. A distância nos lembra que no universo existem muitas outras coisas além das pessoas, e que para os seres humanos existe muito mais além do que outros tantos seres humanos. Faz-nos lembrar que dentro de nosso cérebro existem espaços tão grandes como os que ve­mos no mundo que nos rodeia. A experiência da distância inte­rior e exterior, da distância no tempo e no espaço, é a primeira e fundamental experiência religiosa. Oh, morte em vida, os dias que não mais existem! — citou. — Oh, lugares! O infinito nú­mero de lugares que não são este lugar! Prazeres passados, infe­licidades e introspecções passadas: todas tão intensamente vivas em nossas memórias e, no entanto, todas mortas, mortas sem a esperança de ressurreição! E, no vale, a povoação que, apesar da distância, vemos com nitidez no meio das sombras é tão real e tão incontestável quanto isolada e fora de alcance. Um quadro como este é a prova da capacidade humana de aceitar todas as mortes em plena vida, todas as ausências sorvidas que envolvem cada presença. Para mim, a pior faceta dessa arte não-representativa repousa na sistematização das duas dimensões e na recusa de levar em conta a experiência universal da distância. Em matéria de cores, um quadro de expressionismo abstrato po­de ser considerado uma obra de arte. Mas pode também vir a ser encarado como se fosse uma simples glorificação de um dos borrões do teste de Rohrschach. Todos podem encontrar nele uma expressão simbólica dos seus próprios temores, luxúrias, ódios e sonhos. Será que alguém pode vir a descobrir, num desses qua­dros expressionistas, coisas que transcendem o humano e que só descobrimos em nós mesmos quando a mente se defronta com as distâncias exteriores da natureza que nos circunda? Será que alguém consegue analisar simultaneamente as distâncias interio­res e exteriores através de uma paisagem como a que estamos ven­do agora? Tudo que sei é que em suas abstrações eu não encon­tro as mesmas realidades que são reveladas aqui, e tenho dúvi­das de que alguém consiga encontrar. Por esta razão, considero o seuexpressionismo moderno sem objetivo e tão fundamental­mente irreligioso. Devo acrescentar, ainda, que mesmo o melhor deles é profundamente enfadonho e vulgar.

  • Costuma vir sempre aqui? — perguntou Will após uma pausa.

  • Sim. Todas as vezes que sinto vontade de meditar em grupo, em vez de sozinho.

  • Isso se dá com muita freqüência?

  • Acontece, em média, uma vez por semana. Algumas pessoas preferem fazê-lo com maior freqüência, outras muito rara­mente, havendo também aquelas que nunca o fazem. Isso depende do temperamento de cada um. Nossa amiga Susila, por exemplo, necessitando de uma dose maior de solidão, raramente vem até aqui, enquanto Shanta, minha esposa, gosta de vir até aqui qua­se que diariamente.

  • Eu também — disse Mrs. Rao. — Mas era de se esperar — acrescentou com uma risada. — As pessoas gordas apreciam a companhia de outrem, mesmo quando estão meditando!

  • A senhora utiliza este quadro para meditar? — pergun­tou Will.

  • Não medito nele. Dele retiro a meditação, se é que você entende o que quero dizer. Para ser precisa, medito paralelamente a ele. Eu e os outros o olhamos e isso nos lembra quem somos e quem não somos, e o modo pelo qual aquilo que não somos pode vir a se transformar no que somos.

  • Existe alguma ligação entre o que a senhora acaba de di­zer e o que vi lá no templo de Xiva?

  • Claro que há. O moksha e a meditação nos levam ao mesmo lugar.

  • Então, por que dar-se ao trabalho de meditar?

  • Isso seria o mesmo que perguntar: "Por que dar-se ao trabalho de comer?"

  • Mas, de acordo com sua teoria, o moksha é alimento!

  • É um banquete! — disse enfaticamente. — Justamente por essa razão deve haver meditação. Não se pode ter banquetes todos os dias, pois são muito copiosos e demasiado longos. Além do mais, os banquetes nos são proporcionados por um fornece­dor e não se toma parte nos seus preparativos. Nossa alimenta­ção diária é preparada por nós e o moksha entra nela como um prazer ocasional.

  • Em termos teológicos, o moksha nos prepara para a recepção de graças imerecidas: as visões pré-místicas ou as ex­periências místicas propriamente ditas. A meditação é um mo­do pelo qual se coopera com essas graças imerecidas — disse Vijaya.

  • Como assim?

  • Cultivando um estado de espírito que permita que esses clarões de êxtase ofuscante se transformem numa "iluminação" permanente. É necessário também que cada um se conheça até o ponto em que não possa mais ser impedido pelo subconsciente de fazer as coisas horríveis, absurdas e estultas que são feitas com tanta freqüência.

  • E isso ajuda alguém a ser mais inteligente?

  • Não mais inteligente em relação à ciência ou à argumentação lógica, e sim no que diz respeito aos níveis mais profundos das experiências concretas e das relações pessoais.

  • Mais inteligente nesse nível, embora se possa ser muito pouco dotado em outros níveis disse Mrs. Rao, batendo com a mão no alto da cabeça. Sou parva demais para entender as coisas que o dr. Robert e Vijaya sabem: genética, bioquímica, filosofia etc. Também não tenho dotes para a pintura, a poesia ou para o teatro. Não possuo talentos ou habilidades. Assim sen­do, deveria me sentir horrivelmente inferior e deprimida. No en­tanto, não me sinto assim, graças ao moksha e à meditação. Não possuo talentos ou habilidades, porém no que se refere a viver, a compreender as pessoas e a ajudá-las, sinto-me cada vez mais hábil e sensível. Quando se chega àquilo que Vijaya chama de "graças imerecidas"... Você pode ser o maior gênio do mundo, porém não pode ter nada além daquilo que me foi dado! Não é verdade, Vijaya?

  • Sim. É perfeitamente verdadeiro.

    Ela voltou-se novamente para Will, dizendo:

  • Como vê, Mr. Farnaby, Pala é o lugar ideal para as pes­soas estúpidas. A maior felicidade para a maioria. E nós, os estúpidos, somos a maioria. Reconhecemos a superioridade e sa­bemos muito bem que a espécie de inteligência de pessoas como o dr. Robert, Vijaya e o meu querido Ranga é tremendamente importante. Sabemos também que nossa espécie de inteligência é importante e não os invejamos porque recebemos tanto quanto eles. Algumas vezes recebemos mais.

  • Sim concordou Vijaya. Algumas vezes recebem até mais, pela simples razão de que um talento na manipulação de símbolos tenta seus possuidores a continuar manipulando-os, o que constitui um obstáculo à experiência concreta e à recepção de graças imerecidas.

  • Desse modo disse Mrs. Rao —, não precisamos que tenham tanta pena de nós. Olhou para o relógio. Meu Deus! Se não me apressar chegarei tarde para o almoço dos Dillip.

    Dizendo isso, encaminhou-se rapidamente para a porta.

  • Tempo, tempo, tempo brincou Will. Horário, mes­mo neste lugar de infinita meditação. A hora do almoço interrompendo incorrigivelmente a eternidade. Deu uma gargalha­da e continuou: Nunca aceite um "sim" como resposta. A na­tureza das coisas é sempre negativa.

    Mrs. Rao parou por um momento e, olhando-o, disse com um sorriso:

  • Algumas vezes é a eternidade que milagrosamente interrompe o tempo e mesmo a hora do almoço. Até logo.

    Agitando a mão num movimento de despedida, ela se foi.

  • O que é melhor, nascer-se estúpido numa sociedade inteligente ou nascer-se inteligente numa sociedade de mentecaptos? Will pensou alto, enquanto acompanhava Vijaya através da penumbra do templo para o descampado iluminado pelo sol do meio-dia.

     

    Chegamos — disse Vijaya quando o carro atingiu o fim da pequena rua enladeirada que partia da praça do mercado. Abrindo uma cancela, introduziu seu hóspede num pequeno jardim, no fundo do qual uma casa de sapé se erguia sobre curtos varais.

    Surgindo de trás do bangalô, um vira-lata amarelo, agitan­do a cauda, saudou-os calorosamente com latidos e saltos. Mi­nutos depois, um grande papagaio verde, de cabeça branca e bi­co negro como azeviche, vindo não se sabe de onde, pousou com um grito e um barulhento agitar de asas sobre o ombro de Vijaya.

  • Papagaios para você e mainás para a pequena Mary Sarojini — disse Will. — Todos vocês parecem manter excelentes relações de amizade com a fauna local.

    Vijaya balançou a cabeça afirmativamente.

  • Provavelmente Pala é o único país no qual um animal, se fosse teólogo, não teria razão para acreditar em demônios. Em todas as outras partes do mundo, satã é com muita razão repre­sentado pelo homo sapiens.

    Após subirem as escadas que conduziam à varanda, atravessaram a porta da frente e entraram na sala de estar do bangalô. Sentada numa cadeira baixa, uma mulher jovem, vestida de azul, amamentava o filho. Levantando o rosto de fronte larga e que se estreitava até terminar num queixo delicado, saudou-os com um sorriso.

  • Trouxe Will Farnaby comigo — disse Vijaya enquanto se inclinava para beijá-la.

    Shanta estendeu a mão livre ao estranho.

  • Espero que Mr. Farnaby não faça objeções à natureza como ela é.

    Como se quisesse dar ênfase às palavras da mãe, o bebê retirou a boca do mamilo marrom e arrotou. Uma bolha branca e sedosa apareceu entre seus lábios, cresceu e se desfez. Após ou­tro arroto, recomeçou a mamar.

  • Mesmo aos oito meses acrescentou as maneiras de Rama à mesa são ainda muito primitivas.

  • É uma bela criança disse Will delicadamente. Não se interessava muito por bebês e sempre fora grato aos repetidos abortos que frustraram todas as esperanças e desejos de Molly.

  • Com quem será parecido? Com você ou com Vijaya?

    Shanta deu uma gargalhada e Vijaya acompanhou-a uma oitava mais abaixo.

  • Tenho certeza de que não se parecerá com Vijaya respondeu Shanta.

  • Por que não?

  • Pela simples razão de que geneticamente eu não sou o responsável disse Vijaya.

  • Em outras palavras, a criança não é filha de Vijaya.

    Will olhou de uma para outra daquelas fisionomias risonhase, com um levantar de ombros, disse:

  • Desisto de querer entender.

  • Há quatro anos tivemos um par de gêmeos que são a imagem viva de Vijaya falou Shanta. Desta vez, pensamos que seria interessante que houvesse uma mudança radical e decidimos adicionar à família um ser inteiramente diferente, não só no físi­co como também no temperamento. Já ouviu falar em Gobind Singh?

  • Vijaya acabou de me mostrar um de seus quadros que se encontra na sala de meditações.

  • Foi esse o homem que escolhemos para ser o pai de Rama.

  • Mas pelo que depreendi, ele estava morto.

    Shanta aquiesceu com um movimento de cabeça.

  • No entanto, sua alma continua viva.

  • Que é que você quer dizer com isso?

  • C. e I. A.

  • C. e I. A.?

  • Congelação e Inseminação Artificial.

  • Oh! Estou entendendo.

  • Estamos cerca de vinte anos mais adiantados do que vo­cês, no que diz respeito às técnicas de I. A. disse Vijaya. Mas não pudemos fazer muita coisa até que tivéssemos energia elétrica e refrigeradores dignos de confiança, o que só consegui­mos nos últimos anos da década de 20. Desde essa época, a I. A. tem sido amplamente utilizada.

  • Meu bebê — disse Shanta pode vir a se tornar um pintor, caso essa espécie de talento possa ser herdada. Mesmo que isso não aconteça, ele será muito mais pícnico e viscerotônico do que seus irmãos e do que qualquer um de seus pais. Esse fato se­rá muito interessante e ilustrativo para aqueles que se dedicam a tal assunto.

  • É grande o número de pessoas que recorrem à inseminação? perguntou Will.

  • Cada dia aumenta mais respondeu Shanta. Posso lhe dizer que praticamente todos os casais que se decidem a ter um terceiro filho recorrem a esse processo. O mesmo está sendo feito por muitos que se dedicam a limitar a dois o número de fi­lhos. Vou lhe citar o exemplo da minha família. Na família do meu pai houve casos de diabete. Em vista disso, ele e minha mãe decidiram que deveriam recorrer à I. A. para terem filhos. Meu irmão descende de três gerações de dançarinos, e, geneticamen­te, eu sou a filha de Malcolm Chakravarti MacPhail, o secretá­rio particular do rajá e primo em primeiro grau do dr. Robert.

  • Ele foi também o autor da melhor história de Pala e era um dos homens mais capazes da sua geração acrescentou Vijaya.

    Will dirigiu um olhar a Shanta e depois voltou a encarar Vijaya.

  • E a habilidade foi herdada? perguntou Will.

  • Em tal quantidade respondeu Vijaya que tenho enorme dificuldade para manter a superioridade masculina. Shan­ta é mais inteligente do que eu, mas felizmente não pode compe­tir com a força dos meus músculos.

  • Força muscular disse Shanta, repetindo ironicamente força muscular... Ainda me lembro bem da história de uma jovem chamada Dalila.

  • Devo lhe dizer prosseguiu Vijaya que Shanta tem trinta e dois meios-irmãos e vinte e nove meias-irmãs. Mais de um terço desse total são pessoas excepcionalmente inteligentes.

  • Você está contribuindo para melhorar a raça, não é verdade?

  • Isso mesmo! Se as circunstâncias o permitirem, dentro de mais um século nosso coeficiente intelectual médio será superior a cento e quinze.

  • Enquanto o nosso, com o progresso de que dispomos, decrescerá para cerca de oitenta e cinco. Melhor nível de medici­na, maior número de deficiências congênitas que são preserva­das e transmitidas. Isso facilitará muito o trabalho dos futuros ditadores. Ao pensamento dessa brincadeira cósmica, Will deu uma gargalhada.

    Após um curto silêncio, perguntou:

  • Que é que você me diz dos problemas éticos e religiosos da inseminação artificial?

  • De início, havia um bom número daqueles que apresentavam objeções de consciência. Atualmente, porém, depois que as vantagens da I. A. foram tão claramente demonstradas, a maio­ria dos casais acha que é muito mais digno tomar uma injeção e ter uma criança mais bem dotada, do que correr o risco de re­produzir servilmente todas as deficiências e defeitos que possam existir na família do marido. Enquanto isso, os teólogos anda­ram ocupados. A inseminação artificial foi justificada em termos de reencarnação e da teoria do carma. Pais devotos sentem-se ago­ra felizes ao pensarem que estão dando aos filhos de suas espo­sas a oportunidade de criarem um destino melhor para eles mes­mos e para os seus descendentes.

  • Um destino melhor?

  • Sim, porque eles trazem em si um plasma germinal de melhor linhagem. E a linhagem é melhor porque é a manifestação de um carma melhor. Dispomos de um banco central de linha­gens superiores. Linhagens superiores de todas as variedades de físico e de temperamento. No seu ambiente, a hereditariedade da maioria do povo nunca tem a menor oportunidade. No nosso, isso não ocorre. Devo acrescentar que dispomos de excelentes re­gistros genealógicos e antropométricos que nos permitem retro­ceder ao século XVIII. Deste módo, não estamos trabalhando inteiramente no escuro. Por exemplo, sabemos que a avó materna de Gobind Singh era uma médium e que viveu até os noventa e seis anos.

  • Por aí você vê que nós podemos vir a ter um clarividente centenário na família disse Shanta.

    O bebê arrotou outra vez e, rindo, ela tornou a comentar:

  • O oráculo falou e, como de costume, de maneira muito enigmática. — Dirigindo-se a Vijaya, disse: Se você quiser que o almoço esteja pronto na hora é bom que comece a fazer alguma coisa. Ficarei ocupada com Rama pelo menos durante mais dez minutos.

    Vijaya levantou-se, colocou uma das mãos sobre o ombro da esposa e com a outra acariciou delicadamente o bebê.

    Curvando-se, Shanta esfregou o rosto na penugem da cabe­ça da criança.

  • É o papai — murmurou. — É um bom pai, bom, muito bom.

    Depois de um último tapinha no rosto do bebê, Vijaya disse a Will:

  • Você tem mostrado curiosidade em saber como é que mantemos boas relações com a nossa fauna. Eu lhe mostrarei. — Vijaya levantou a mão e disse: — Polly, Polly.

    Cautelosamente, o grande pássaro começou a andar de seu ombro em direção ao indicador estendido.

  • Polly é um bom pássaro — entoou. — Polly é um pássa­ro muito bom.

    Abaixou a mão com o intuito de possibilitar uma aproximação entre o corpo do pássaro e o da criança. Começou então a fazer movimentos lentos de modo a pôr em contato as suas pe­nas com a pele morena, e enquanto fazia esses movimentos repe­tia continuamente: "Polly é um bom pássaro... um bom pássaro".

    O papagaio emitia uma série de sons de baixa tonalidade, semelhantes a uma risada, e, curvando-se para diante, sobre o dedo onde estava empoleirado, bicou com cuidado a delicada ore­lha da criança.

  • Que bom pássaro — murmurou Shanta, continuando a repetir o refrão. — Que bom pássaro...

  • O dr. Andrew aprendeu isso — disse Vijaya — quando, trabalhando como naturalista no Melampus, entrou em contato com uma tribo do norte da Nova Guiné. Povo neolítico; porém, do mesmo modo que os cristãos e os budistas, acreditava no amor. Eram diferentes de nós e de vocês porque inventaram métodos práticos de tornarem reais as coisas em que acreditavam. Essa teoria foi uma das suas descobertas mais felizes. Acaricie uma criança enquanto ela está sendo alimentada. Isso duplica o seu prazer. Enquanto ela está mamando e sendo acariciada, apresente o animal ou a pessoa de quem você quer que ela goste. Esfregue o seu corpo contra o dela. Permita que haja um contato físico caloroso entre a criança e o objeto a ser amado. Simultaneamen­te repita uma palavra, como, por exemplo, "bom". A princípio, ela perceberá somente o som de sua voz. Com o passar do tem­po, quando aprender a falar, compreenderá a significação do que ouvia. Alimento, mais carícia, mais contato, mais "bom" é igual a amor. E amor é igual a prazer. Amor é igual a satisfação.

  • Isto é puro Pavlov!

  • Pavlov usado exclusivamente com um bom propósito. Pavlov para a amizade, para a confiança, para a compaixão. En­quanto isso vocês preferem usá-lo para lavagens mentais, para vender cigarros, vodca e patriotismo. Pavlov para beneficiar os ditadores, os generais e os magnatas.

    Recusando-se a continuar isolado, o vira-lata amarelo veio juntar-se ao grupo e lambia imparcialmente tudo que fosse dota­do de vida e que estivesse à seu alcance — o braço de Shanta, a mão de Vijaya, os pés do papagaio, as nádegas do bebê. Puxando-o para perto de si, Shanta esfregou a criança contra o seu flanco peludo.

  • Este é um cachorro muito, muito bom — disse. — Toby é um cachorro muito, muito bom. É um cachorro muito bom.

    Will deu uma risada.

  • Será que eu não deveria entrar na função? — perguntou.

  • Estava querendo lhe sugerir isso, mas estava receosa de que você considerasse tudo isso como coisa aquém da sua dignidade — respondeu Shanta.

  • Tome meu lugar — disse Vijaya. — Devo ir providen­ciar nosso almoço.

    Ainda carregando o papagaio, dirigiu-se para a porta que levava à cozinha.

    Levantando a cadeira, Will se aproximou da criança e começou a acariciar seu frágil corpo.

  • É outro homem — murmurou Shanta. — É um homem bom, meu bebê. Um homem bom.

  • Como gostaria que tudo isso fosse verdade — disse Will com um curto e triste sorriso.

  • Aqui e agora é a verdade. — Inclinando-se novamente sobre a criança, continuou a repetir: — Ele é um bom homem. Um homem muito bom.

    Will olhou para aquela fisionomia feliz, na qual havia um sorriso apenas esboçado, e sentiu na ponta dos dedos o corpo quente e macio da criança. Bom, bom, bom...

    Se sua vida tivesse sido completamente diferente, na sua absurda e odiosa realidade, ele também poderia ter conhecido essa bondade. Por isso nunca aceita o "sim" como respos­ta, mesmo quando, num momento como este, parece conter toda a evidência. Olhando novamente com os olhos proposi­tadamente voltados para uma outra onda de avaliação, pôde ver a caricatura de um altar de Memling. Viu a Madona com a Criança, o cão, Pavlov e o conhecimento casual. Subitamen­te compreendeu, do fundo do seu ser, por que Mr. Bahu odia­va aquele povo. A razão pela qual estava tão empenhado em destruí-los. É desnecessário dizer que, como sempre, tudo era feito em nome de Deus.

  • Bom — murmurava ainda Shanta para o bebê. — Bom, bom, bom.

    Bons demais, eis o crime deles. Isso simplesmente não podia ser permitido, e, no entanto, era tão precioso! Quão apaixona­damente desejara tomar parte nisso! "Puro sentimentalismo!" disse a si mesmo, e, depois, em voz alta:

  • Bom, bom, bom — repetiu com ironia. — E quando a criança cresce um pouco e descobre que muitas pessoas e coisas são completamente más, más, más?

  • O afeto gera o afeto — respondeu ela.

  • Somente dos benevolentes!! Mas não dos gananciosos, dos amantes do poder, dos frustrados ou dos amargos. Para es­tes, a benevolência não passa de fraqueza, de um convite à exploração, à tirania ou à vingança impune.

  • É preciso correr esse risco, é preciso começar. Felizmen­te ninguém é imortal. Os que foram condicionados a enganar, a tiranizar e a amargurar estarão mortos daqui a alguns anos. Mortos e substituídos por homens e mulheres educados de ma­neira diferente. Isso aconteceu conosco e pode acontecer a vocês.

  • Pode acontecer — concordou ele —, porém com a bom­ba H, o nacionalismo e cinqüenta milhões de pessoas nascendo anualmente não há a menor possibilidade disso.

  • Não se pode julgar até que se experimente.

  • Não podemos tentá-lo enquanto o mundo estiver como está. E é claro que assim permanecerá, a menos que tentemos mudá-lo. Além dessa tentativa, é necessário que haja pelo menos um sucesso como o seu. Foi isso que me levou à pergunta inicial. Que acontece quando o bom, bom, bom descobre que, mesmo em Pala, existe muita coisa má, má, má? As crianças não se sen­tem desagradavelmente chocadas?

  • Tentamos imunizá-las contra esses choques.

  • De que modo? Tornando-lhes as coisas desagradáveis enquanto ainda são jovens?

  • Desagradável não é a palavra certa, e sim real. Nós lhes ensinamos a amar e confiar, porém ao mesmo tempo os expomos a todos os aspectos da realidade. Damos-lhes responsabili­dades para que saibam que Pala não é um éden ou uma "terra de cocanhos". É um lugar agradável que somente permanecerá assim se todos trabalharem e procederem com decência. Enquanto isso, mesmo aqui, a realidade é a mesma.

  • Que dizer de realidades como as horripilantes cobras que encontrei quando escalava o rochedo? Vocês podem continuar dizendo "bom, bom, bom", e mesmo assim as cobras continua­rão mordendo.

  • Você se refere ao fato de elas ainda poderem morder, mas será que continuarão a fazê-lo?

  • Por que não?

  • Olhe ali — disse Shanta.

    Virando a cabeça, Will observou que ela apontava para um nicho na parede atrás dele. Dentro do nicho, um Buda de pedra estava sentado sobre um pedestal cilíndrico, curiosamente enta­lhado, encimado por uma espécie de dossel em forma de folha que, estreitando-se para baixo, formava um largo pilar atrás de­le. A escultura tinha a metade das dimensões de um homem.

  • É uma pequena réplica do Buda que se encontra no acampamento. Aquela figura enorme que está à beira do lago de lótus — continuou ela.

  • Acho que é um excelente exemplar de escultura — disse Will. — Aquele sorriso realmente dá às pessoas uma idéia de co­mo deve ser a visão beatífica. Porém, qual a sua relação com as cobras?

  • Olhe novamente.

    Ele obedeceu, dizendo em seguida:

  • Não vejo nada de especial.

  • Olhe com mais atenção.

    Passaram-se os segundos e, de repente, com grande surpre­sa, notou algo estranho e perturbador. Aquilo que imaginara ser um pedestal cilíndrico, estranhamente enfeitado, revelara-se su­bitamente como sendo uma enorme cobra enrolada. Aquela abó­bada inclinada e que ia se estreitando, sob a qual sentava-se o Buda, não passava de um capuz formado pelo achatamento da cabeça de uma cobra gigantesca.

  • Meu Deus! Não havia percebido! Como se pode ser tão desatento?

  • É esta a primeira vez que vê o Buda representado desta maneira?

  • Sim, é a primeira vez. Existe alguma lenda a respeito?

    Ela balançou a cabeça afirmativamente, dizendo:

  • É uma das minhas preferidas. Com certeza você já ou­viu falar a respeito da árvore Bodhi, não é verdade?

  • Sim. Sei alguma coisa a respeito.

  • Mas essa não foi a única árvore sob a qual Gautama sentou-se por ocasião da sua Iluminação. Depois da árvore Bod­hi ele sentou-se durante sete dias sob uma figueira, a árvore do Goatherd. Após isso, mudou-se para a árvore do Muchalinda.

  • Quem era Muchalinda?

  • Muchalinda era o rei das cobras, que por ser um Deus sabia tudo o que acontecia. Quando Buda se sentou debaixo da sua árvore, o rei Cobra, saindo da sua toca a vários metros de distância, veio se arrastando, a fim de prestar à Sabedoria as ho­menagens da Natureza. Quando esse fato se deu, desencadeou- se uma grande tempestade vinda do oeste. A divina cobra enrolou- se naquele corpo mais do que divino, abriu o capuz sobre sua ca­beça e abrigou o Tathagata da chuva e do vento, durante os sete dias em que esteve em contemplação. Desse modo continua até hoje. Sentado sobre a cobra, coberto pela cobra, estando côns­cio simultaneamente da cobra, da Grande Luz e da sua suprema identidade.

  • Como divergem os nossos pontos de vista a respeito das cobras! — disse Will.

  • Presume-se que esse seu ponto de vista seja o mesmo de Deus. Lembra-se do Gênesis?

  • Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a descendência dela e a tua — citou ele.

  • Porém a Sabedoria nunca distribui inimizades. Todas es­sas verdadeiras "brigas de galo" entre o homem e a natureza, entre a natureza e Deus e entre a carne e o espírito são destituí­das de sentido! A Sabedoria não faz essas separações insanas!

  • Nem tampouco a ciência...

  • Com passadas largas, a Sabedoria conduz a ciência a pon­tos distantes.

  • E o totemismo? — perguntou Will. — E os cultos de fertilidade? Eles não faziam quaisquer separações. Representam sa­bedoria?

  • Claro que sim. A sabedoria primitiva. A sabedoria do ní­vel neolítico. Passado algum tempo as pessoas começaram a se sentir constrangidas e os velhos "deuses negros" começaram a não lhes merecer respeito. O cenário mudou. Surgiram os "deu­ses da luz", os profetas, Pitágoras e Zoroastro, os jainistas e os primitivos budistas. Mais tarde surgiu a "idade da briga de galos cósmica", Ormuz versus Arimã, Jeová versusSatã e Baal. Nir­vana se opôs a samsara e a aparência à "realidade ideal" de Pla­tão. Exceto nos cérebros de alguns tankriksistas, mahaianistas, taoístas e cristãos heréticos, essa "briga de galos" se prolonga por quase dois mil anos.

  • Que se seguiu a isso?

  • Foi então que a biologia moderna começou a dar os primeiros passos.

  • Deus ordenou: "Darwin seja feito". E houve Nietzsche, o imperialismo e Adolf Hitler.

  • Houve tudo isso, mas também a possibilidade de uma no­va espécie de sabedoria para todos — concordou ela. — Darwin elevou o velho totemismo ao nível da biologia. Os cultos de ferti­lidade reapareceram sob a forma de genética e de Havelock Ellis. Agora, cabe-nos dar outra meia-volta na espiral. O darwinis­mo era a velha "sabedoria neolítica" construída sobre bases de conceitos científicos. Esta nova "sabedoria consciente", a espé­cie de sabedoria que foi profeticamente entrevista no zen, no taoísmo e no tantra,é a teoria biológica vivida na prática. E o darwi­nismo elevado à categoria de compaixão e compreensão interior. Sendo assim, não existe nenhuma razão terrena muito menos ce­lestial pela qual Buda ou qualquer outro não possa contemplar a Grande Luz que se revelou em uma cobra.

  • Mesmo que essa cobra pudesse tê-lo matado?

  • Mesmo assim.

  • Mesmo sendo o mais antigo e o mais universal dos símbolos fálicos?

    Shanta riu-se e respondeu:

  • "Medite sob a árvore de Muchalinda", é o conselho que damos a todos os pares de namorados. E, no intervalo dessas me­ditações amorosas, lembre-se daquilo que lhe foi ensinado quan­do criança: as cobras são suas irmãs, merecendo por isso sua com­paixão e seu respeito. Resumindo em uma só palavra, elas são boas, boas, boas.

  • São também venenosas, venenosas, venenosas.

  • Porém, se você se lembrar de que sua bondade é proporcional a seu veneno e agir de acordo com isso, elas não o usarão.

  • Quem disse isso?

  • Isto já é um fato constatado. Aqueles que não se amedrontam com elas e aqueles que não se aproximam delas com a idéia fixa de que a melhor cobra é a que está morta, quase nunca são mordidos. Na próxima semana pedirei emprestado a nosso vizinho seu píton domesticado. Por alguns dias darei as refeições de Rama entre os anéis da "velha serpente".

    Do lado de fora da casa vieram os sons de risadas e de uma confusão de vozes de crianças falando inglês e palanês. Após um momento, parecendo alta e maternal em relação aos seus encar­gos, Mary Sarojini entrou no aposento ladeada por um par de gêmeos idênticos de quatro anos, e seguida pelo robusto queru­bim que estava com ela quando Will abriu os olhos em Pala, pe­la primeira vez.

  • Trouxemos Tara e Arjuna do jardim da infância explicou Mary Sarojini, enquanto os gêmeos se atiravam sobre a mãe.

    Com o bebê num dos braços e com o outro envolvendo os dois meninos, Shanta agradeceu sorrindo:

  • Foi muita bondade sua.

    Tom Krishna foi quem respondeu:

  • A senhora não tem nada que agradecer. Dando um passo à frente, após um momento de hesitação, tornou a dizer: Estava pensando... começou ele, interrompendo-se e olhan­do suplicante para a irmã. Mary Sarojini balançou a cabeça.

  • Que estava pensando? perguntou Shanta.

  • Bem, na verdade, nós estávamos pensando... Quer dizer, poderíamos jantar com vocês?

    Shanta olhou de um para outro e disse:

  • E melhor que vá perguntar a Vijaya se há bastante comi­da, pois é ele quem está cozinhando hoje.

  • Está bem — disse Tom Krishna sem entusiasmo.

    Com passos vagarosos e relutantes atravessou o aposento, dirigindo-se à cozinha. Shanta voltou-se para Mary Sarojini, per­guntando:

  • Que houve?

  • Mamãe já lhe disse pelo menos umas cinqüenta vezes que não gosta que ele traga lagartixas para dentro de casa. Hoje pela manhã ele fez isso de novo e ela ficou muito zangada.

    Por isso vocês acharam melhor vir jantar aqui não foi?

  • Sim, mas se não lhe convier poderemos tentar a casa dos Rao ou dos Rajajinnadasa.

  • Estou certa de que não será incômodo — assegurou-lhe Shanta. — Apenas achei que seria bom para Tom Krishna ter uma pequena conversa com Vijaya.

  • A senhora está perfeitamente certa — disse Mary Saroji­ni gravemente.

    Após dizer isso, chamou com ar eficiente:

  • Tara, Arjuna, venham comigo ao banheiro para que eu os lave. Eles estão bastante sujos — disse, virando-se para Shanta, enquanto se afastava com os gêmeos.

    Will esperou que estivessem fora do alcance de sua voz e disse para Shanta:

  • Parece que tive a oportunidade de ver o Clube de Ado­ção Mútua em pleno funcionamento.

  • Felizmente em ação muito moderada. Tom Krishna e Mary Sarojini se dão maravilhosamente com a mãe. Não há nenhum problema pessoal por lá. Apenas o problema do destino, o enorme e terrível problema da morte de Dugald.

  • Susila se casará novamente? — indagou Will.

  • Espero que sim. Para o bem de todos. Enquanto isso, faz bem às crianças passar algum tempo com um e outro dos pais que escolheram. É bom, especialmente para Tom Krishna. Ele está chegando à idade em que os meninos descobrem sua virili­dade. Apesar de ainda chorar como um bebê, passados alguns momentos já está se jactando, se exibindo e trazendo lagartixas para dentro de casa, somente para provar que é duzentos por cento homem. Foi por isso que eu o mandei falar com Vijaya, que re­presenta tudo aquilo que Tom Krishna gosta de imaginar que é: dois metros e setenta de altura, um metro e oitenta de largura, terrivelmente forte e imensamente competente. Quando Vijaya lhe diz como proceder, Tom Krishna escuta; escuta como nunca o faria comigo ou com sua mãe, se disséssemos as mesmas coi­sas. A vantagem é que Vijaya pode dizer as mesmas coisas que diríamos, pois, além de ser duzentos por cento másculo, sua sen­sibilidade é quase cinqüenta por cento feminina. Desse modo, o menino está realmente lucrando. Agora, preciso pôr esse homen­zinho na cama e aprontar-me para o almoço — concluiu ela, olhando para a criança adormecida em seus braços.

     

    De banho tomado e cabelos penteados, os gêmeos já esta­vam em suas cadeiras altas. Mary Sarojini se debruçara sobre eles com se fosse uma pequena mãe ao mesmo tempo ansiosa e orgu­lhosa. No fogão, Vijaya, munido de uma concha, retirava arroz e verduras de uma panela de barro. Cuidadosamente e com a fi­sionomia denotando uma atenção concentrada, Tom Krishna le­vava para a mesa as tigelas cheias.

  • Até que enfim! disse Vijaya quando acabou de despachar a última tigela. Limpou as mãos e se dirigiu à mesa onde ocupou seu lugar.

  • É melhor que explique ao nosso hóspede sobre a oração falou, dirigindo-se a Shanta.

    Ela virou-se para Will e explicou:

  • Em Pala não damos graças antes das refeições e sim durante. Ou melhor, nós não dizemos orações, nós as mastigamos.

  • Mastigam?

  • Damos graças ao mastigarmos o primeiro bocado de ca­da prato. Mastigamos cuidadosamente, até que nada reste. Durante toda a mastigação prestamos atenção ao sabor do alimen­to, à sua consistência e temperatura, à pressão que exerce sobre os dentes e à tensão dos músculos maxilares.

  • Enquanto isso, agradecem ao Iluminado, a Xiva ou a quem quer que seja, não é verdade?

    Shanta balançou a cabeça vigorosamente.

  • Isso distrairá a atenção, que é a alma de tudo. Atenção à experiência de alguma coisa que está sendo dada. Atenção para alguma coisa que você não inventou. Não se trata de repetir uma série de palavras decoradas, dirigidas a alguém que existe em sua própria imaginação. — Ela circunvagou o olhar pela me­sa. — Vamos começar?

  • Viva! — gritaram os gêmeos em uníssono, pegando imediatamente as colheres.

    Durante um longo minuto reinou o silêncio, quebrado ape­nas pelos gêmeos que ainda não tinham aprendido a comer sem estalar os lábios.

  • Podemos engolir? — perguntou um deles passado certo tempo.

    Shanta acenou afirmativamente com a cabeça. Todos deglutiram. Houve um tinir de colheres e uma verdadeira explosão de conversas de boca cheia.

  • Que gosto tinha a sua "graça"? — perguntou Shanta.

  • Eu a senti como uma sucessão de várias coisas diferentes — disse Will. — Ou melhor, ela se assemelhou a uma sucessão de variações sobre o tema fundamental: arroz e açafrão. Havia também pimentão, zucchinie algo folhoso que não consegui iden­tificar. É interessante como o sabor muda continuamente, coisa que nunca observara.

  • Enquanto estava prestando atenção a essas coisas, se libertou momentaneamente das divagações, das lembranças, das antecipações, das idéias tolas, de todos os sintomas do seu pró­prio eu.

  • Será que não estava me saboreando?

    Shanta olhou para o outro lado da mesa e perguntou ao marido:

  • Que é que diz a isso, Vijaya?

  • Acho que é um meio-termo entre o eu e o não eu. Sabo­rear é o meu não eu fazendo alguma coisa para a totalidade do organismo. Ao mesmo tempo, o ato de saborear representa o meu eu tomando conhecimento do que está acontecendo. É aí que re­side a essência da nossa "ação de graças mastigada". Através dela, o eu adquire maior consciência do que o não eu está apto a realizar.

  • Tudo isso é muito bonito — comentou Will. — Mas on­de está a essência da "essência"?

    Foi Shanta quem respondeu:

  • A essência da "essência" é atingida quando tiver apren­dido a prestar cada vez maior atenção ao não eu que existe no seu próprio organismo (suas sensações gástricas). Subitamente per­cebe que está prestando atenção ao não eu que existe nos recan­tos da sua consciência. Talvez seja melhor que inverta inteiramente a ordem do meu raciocínio. O não eu que existe nos recônditos da consciência de cada um achará mais fácil se fazer conhecido por um eu que tenha aprendido a ter maior consciência do seu não eu fisiológico.

    Ela foi interrompida por uma queda seguida de um grito de um dos gêmeos.

  • Além disso — continuou enquanto limpava o assoalho —, temos de considerar o problema do eu e do não eu em relação às pessoas que medem menos de um metro. Um prêmio desessenta e quatro mil rupias será concedido a quem apresente uma solução que resista aos descuidos.

    Após limpar os olhos da criança e fazê-la assoar o nariz, deu- lhe um beijo e dirigiu-se ao fogão para apanhar outra tigela de arroz.

  • Que é que têm de fazer esta tarde? — perguntou Vijaya quando o almoço chegou ao fim.

  • Estamos encarregados dos espantalhos — respondeu Tom Krishna com ares importantes.

  • No campo, pouco abaixo da escola — acrescentou Mary Sarojini.

  • Eu os levarei de jipe até lá — disse Vijaya. — Quer nos acompanhar? — perguntou, dirigindo-se a Will Farnaby.

    Will concordou com um gesto de cabeça.

  • Se me fosse permitido, gostaria de ver a escola. É possí­vel que venha mesmo a sentir vontade de me sentar numa das salas de aula.

    Da varanda, Shanta acenou-lhes um adeus, e em poucos minutos viram o local onde o jipe estava estacionado.

  • A escola fica do outro lado da vila — explicou Vijaya enquanto punha o motor em movimento. — Temos de dirigir com cuidado. Após uma descida, teremos que subir novamente.

    Desceram através das plantações de arroz, de milho e de batata-doce, dispostas em plataformas, e ao atingirem a planície entraram por um atalho limitado à esquerda por um pequeno vi­veiro lamacento e à direita por um pomar de fruta-pão. Começa­ram então a subida, atravessando campos ora verdes ora doura­dos, e finalmente divisaram o prédio branco e espaçoso da esco­la, imerso nas sombras de árvores majestosas.

  • Os nossos espantalhos estão lá embaixo — disse Mary Sarojini.

    Will olhou na direção para onde ela apontava. Na mais próxima das plantações, numa plataforma que se via abaixo do lo­cal onde estavam nesse momento, o arroz amarelo estava quase pronto para ser colhido. Dois meninos usando tangas cor-de-rosa e uma menina de saia azul se revezavam no trabalho de puxar os cordéis que punham em movimento duas marionetes de dimen­sões humanas, que estavam amarradas em estacas em cada um dos extremos da estreita plantação. As bonecas feitas de madeira eram bem esculpidas e vestiam, não os conhecidos trapos, mas roupas feitas de tecidos excelentes.

    Will olhou-os surpreso.

  • Salomão em toda a sua glória não usava roupas como estas! — exclamou.

    Mas Salomão não era mais que um rei e esses maravilhosos espantalhos pertencem a uma classe mais elevada, conjeturou. Um deles representava um futuro Buda. O outro, numa versão en­cantadoramente alegre das índias Orientais, representava Deus, o Pai, tentando arrebatar o recém-criado Adão, tal como se vê na capela sistina. A cada puxão do cordel o futuro Buda balan­çava a cabeça, descruzava as pernas e, abandonando a posição de lótus, dançava um curto fandango no ar e finalmente tornava a cruzar as pernas, assumindo uma atitude imóvel, até que outro puxão do cordel viesse perturbar suas meditações. Enquanto is­so, Deus Pai balançava o braço distendido e com o dedo indica­dor fazia um grande sinal aconselhando cautela. Sua boca fran­jada de crinas de cavalo se abria e fechava a todo instante e seus olhos de vidro rolavam nas órbitas, dardejando o fogo da condenação sobre Qualquer pássaro que ousasse aproximar-se do ar­roz. Durante todo esse tempo, um vento fresco agitava suas ves­tes amarelo-vivas, onde se desenhavam em marrom, branco e pre­to figuras de tigres e de macacos. As amplas roupas do futuro Buda, em deslumbrante rayonvermelho e alaranjado, se agita­vam em seu redor e o vento fazia com que retinissem várias dú­zias de sinos de prata.

  • Todos os espantalhos são iguais a esses? — perguntou Will.

  • Foi idéia do velho rajá — respondeu Vijaya. — Ele que­ria que as crianças compreendessem que todos os deuses são feitos em casa e que somos nós que acionamos os cordéis, proporcionando-lhes desse modo o poder de puxar os nossos.

  • Faça-os dançar. Faça com que requebrem — disse Tom Krishna sorrindo alegremente.

    Vijaya bateu delicadamente, com a grande mão estendida, nos cabelos escuros e cacheados do menino.

  • Este é o espírito da coisa! — Voltando-se para Will, dis­se num tom que era evidentemente uma imitação do modo como se expressava o velho rajá: — O único grande mérito dos deuses, além de amedrontar os pássaros e os pecadores e às vezes conso­lar os miseráveis, consiste nisto: erguidos sobre estacas, temos de levantar a cabeça para vê-los. "Quando alguém olha para cima, mesmo que seja para procurar um deus, não pode deixar de ver o céu que está além. E o que é o céu? Simples dispersão de ar e de luz." Contudo, é também o símbolo da vacuidade plena (per­doe a metáfora) e sem limites, fora da qual tudo (as coisas vivas e as inanimadas, os fabricantes de bonecas e suas divinas mario­netes) emerge neste universo que conhecemos, ou melhor, que pen­samos conhecer.

    Mary Sarojini, que estava escutando atentamente, concor­dou com um meneio de cabeça e disse:

  • Meu pai costumava dizer que olhar para os pássaros no céu é ainda melhor. "Pássaros não são palavras", dizia ele. "São tão reais quanto o céu."

    Vijaya parou o jipe.

  • Divirtam-se — disse às crianças enquanto elas saltavam. — Faça-os dançar e requebrar.

    Gritando alegremente, Tom Krishna e Mary Sarojini correram para se juntar ao pequeno grupo que estava numa plantação abaixo do nível da estrada.

  • Agora vamos procurar os aspectos mais solenes da educação — disse Vijaya, conduzindo-o à estrada que levava à esco­la. — Deixarei o jipe aqui e voltarei a pé até o posto. Quando estiver farto, peça a alguém que o dirija para levá-lo para casa.

    Desligando o motor, entregou as chaves a Will.

    Na secretaria da escola, a diretora, Mrs. Narayan, estava conversando com um homem de cabelos brancos, cuja fisionomia tristonha fazia lembrar um sabugo enrugado.

  • O sr. Chendra Menon é o nosso subsecretário de educa­ção — explicou Vijaya, enquanto fazia as apresentações.

  • Ele está nos fazendo uma de suas inspeções periódicas — disse a diretora.

  • E aprovo inteiramente o que estou vendo — acrescentou o subsecretário, fazendo um gesto de cortesia a Mrs. Narayan.

    Vijaya desculpou-se:

  • Tenho que voltar para o trabalho — disse, dirigindo-se para a porta.

  • O senhor se interessa por problemas de educação? — perguntou Mr. Menon.

  • Seria melhor dizer que sou completamente ignorante no assunto — respondeu Will — e por este motivo gostaria de dar uma olhada em algo que seja verdadeiramente autêntico.

  • Bem, o senhor veio ao lugar certo, pois o "novo Rothamsted" é uma de nossas melhores escolas — assegurou-lhe Mr. Menon.

  • Qual é o seu critério de julgamento?

  • O sucesso.

  • Sucesso em quê? Na obtenção de bolsas de estudo? Em tornar seus estudantes aptos a arranjar empregos, após a gradua­ção? Ou na obediência às categóricas imposições locais?

  • Evidentemente que em tudo isso — disse o subsecretário —, mas a questão fundamental permanece insolúvel. A que se destinam os rapazes e as moças?

    Encolhendo os ombros, Will começou a falar:

  • A resposta depende do local onde residem. Por exemplo: para que servem os rapazes e as moças da América? Resposta: para consumirem maciçamente. E os corolários desse tipo de con­sumo são: comunicações em massa, publicidade em massa, nar­cóticos em massa, sob a forma de televisão, tranqüilizantes, pen­samento positivo e cigarro. Agora que a Europa também ingres­sou na produção em massa, para que servirão seus rapazes e mo­ças? Para consumirem maciçamente, exatamente como a juven­tude da América. Na Rússia, a resposta é diferente. A missão da juventude é fortalecer o Estado. Para isso existem todos aqueles engenheiros e professores de Ciência. Também não devemos nos esquecer das cinqüenta divisões modernamente equipadas, con­tando com tanques, bombas H e foguetes de longo alcance que estão sempre prontos para uma ação imediata. Na China o fenô­meno é o mesmo, porém em forma ampliada. Para que servem as moças e os rapazes daquele país? Para alimento dos canhões, da indústria, da agricultura e da construção de estradas. Deste modo e neste momento, o Leste continua sendo Leste e o Oeste continua sendo Oeste. Mas ambos podem vir a se encontrar em qualquer dos dois caminhos. O Oeste pode vir a ficar tão apavo­rado com o Leste a ponto de desistir da idéia de que os rapazes e as moças servem exclusivamente para consumir em massa tudo o que é produzido. Pode vir a achar que devem servir para fortalecimento do Estado e para forragem dos canhões. Por seu tur­no, o Leste pode se sentir tão pressionado pelas massas ansiosas de tudo consumir e que sonham com a ida para o Oeste que pode modificar sua atitude, vindo a admitir que os rapazes e as moças se destinem realmente a consumir indiscriminadamente toda a pro­dução industrial. Isso, no entanto, pertence ao futuro. No mo­mento, as respostas usuais à sua pergunta se restringem a cada um dos grupos, separadamente.

  • Ambas diferem das nossas — disse Mr. Menon. — Qual a finalidade da mocidade palanesa? Não se destina a tudo consu­mir em massa nem tampouco ao fortalecimento do Estado. É claro que o Estado tem de subsistir e que deve haver o suficiente para todos. Isso é preciso que seja dito. Somente nessas condições a nossa mocidade descobrirá qual a sua finalidade; somente nessas condições poderemos fazer alguma coisa por ela.

  • Em outras palavras, qual é mesmo o destino dessa mocidade?

  • Desejamos que se desenvolva harmoniosamente e que se transforme em adultos plenamente realizados.

    Will concordou, dizendo:

  • Notas sobre o que é quê: "Seja você mesmo".

  • O velho rajá se preocupava primordialmente com as pessoas tais como são, porém num nível que ultrapassava os limites da individualidade. Nosso interesse pelo assunto é idêntico ao dele, mas nosso primeiro objetivo é a educação elementar. Para dar­mos essa educação, temos que lidar com indivíduos que diferem entre si em tamanho, forma e deficiências. A unidade transcen­dental dos indivíduos constitui o objetivo de uma educação de alto nível. Esse ensinamento é iniciado na adolescência, parale­lamente com o curso elementar adiantado.

  • Começa com a primeira experiência com o moksha!

  • Então já ouviu falar do moksha!

  • Sim. Cheguei até a vê-lo em ação.

  • O dr. Robert levou-o para assistir à Iniciação de ontem

  • explicou a diretora.

  • Devo dizer que fiquei impressionado — acrescentou Will.

  • Quando me lembro da minha educação religiosa... — Deixou a frase intencionalmente inacabada.

  • Como ia dizendo, os adolescentes recebem simultaneamente os dois tipos de educação — continuou Mr. Menon. — Nós os auxiliamos a fim de que conheçam a unidade transcen­dental que existe entre eles e todos os outros seres dotados de sen­sibilidade. Ao mesmo tempo aprendem, nas aulas de Psicologia e de Fisiologia, que cada um de nós tem uma constituição singu­lar e que todos diferimos uns dos outros.

  • Quando freqüentei a escola, os pedagogos se esforçavam ao máximo para anular essas diferenças ou pelo menos moldá- las nos mesmos ideais dos últimos períodos da era vitoriana: o ideal do estudioso anglicano que se limitava a ser um gentleman na prática dos esportes. Gostaria muito de saber como vocês pro­cedem em relação a essas diferenças individuais.

  • Em primeiro lugar, nós as avaliamos — disse Mr. Me­non. — Que é a criança sob o prisma anatômico, bioquímico e psicológico? Na sua hierarquia orgânica, que terá precedência: os instintos, os músculos ou o sistema nervoso? Até que ponto se aproxima dos três pólos extremos? Até onde se harmonizam e em que se chocam os elementos que compõem seu corpo e sua mente? Até onde vai seu desejo inato de mando? Qual a exten­são da força que a faz sociável ou que a obriga a se voltar para seu mundo interior? Como sente, como pensa, como recorda? É um idealista? É destituído de ideal? Seu cérebro trabalha com idéias ou com palavras? Com ambas ao mesmo tempo ou com nenhuma delas? Em que plano se situa sua capacidade de narra­ção? Será que vê o mundo do mesmo modo que Wordsworth e Traherne o viam quando crianças? Se assim for, o que pode ser feito para evitar que a glória e a inexperiência se desvaneçam à luz do sol? Em termos genéricos, como podemos educar as crian­ças no nível conceptual sem que destruamos a capacidade para que tenham uma intensa experiência não literal? Como conciliar­mos a análise e a fantasia? Dezenas de perguntas devem ser fei­tas e respondidas. Por exemplo: essa criança está absorvendo to­das as vitaminas existentes na sua alimentação? Ou sofrerá de alguma carência crônica que, se não for reconhecida e tratada, a transformará numa criatura de humor sombrio, dessas que só sa­bem ver a feiúra e que, imersas no tédio, só pensam em tolices ou em coisas maliciosas? Qual o nível da sua glicose? Sofre de alguma perturbação respiratória? Apresenta algum vício de pos­tura? Como utiliza o corpo durante as horas de trabalho, de es­tudo e de divertimento? Além dessas, temos perguntas referentes a dons específicos: apresenta sinais que possam indicar talento para a música, para a Matemática, para a literatura? Será dota­da de um poder acurado para a observação? Pensa com lógica e tira conclusões próprias a respeito dos fatos que observa? Finalmente, nos interessamos por saber qual o grau de sugestionabilidade que terá ao atingir a idade adulta. Todas as crianças são facilmente hipnotizáveis. Isso é de tal maneira verdadeiro que qua­tro em cada cinco podem ser induzidas ao sonambulismo. Nos adultos a proporção é inteiramente oposta. Em cada cinco, so­mente um pode ser induzido ao sonambulismo. Em cada grupo de cem crianças, quais são as vinte que, ao crescerem, serão sus­cetíveis aos assaltos do sonambulismo?

  • É possível descobri-los com antecedência? perguntou Will. Caso seja, qual o objetivo dessa descoberta?

  • Podemos descobri-los respondeu Mr. Menon. Aliás, é muito importante que sejam descobertos, principalmente no seu mundo. Falando politicamente, os vinte por cento que podem fa­cilmente ser hipnotizados até o limite máximo constituem os ele­mentos mais perigosos de sua sociedade.

  • Por que perigosos?

  • Porque são predestinados a ser vítimas dos propagandis­tas. Numa democracia pré-científica e antiquada, qualquer ora­dor fascinante, possuindo uma boa organização que lhe sirva de apoio, pode transformar esses vinte por cento de sonâmbulos em potencial num exército de fanáticos arregimentados e inteiramente dedicados a tornar cada vez maior a glória e o poder do hipnotizador. Sob uma ditadura, esses mesmos sonâmbulos em poten­cial podem ser levados à fé implícita e passar a constituir o nú­cleo do partido onipotente. É essa a razão por que qualquer so­ciedade que dê valor à liberdade deve estar capacitada a desco­brir, enquanto ainda são jovens, os futuros sonâmbulos. Depois de descobertos, podem ser hipnotizados e educados sistematica­mente, a fim de não se deixarem hipnotizar pelos inimigos da li­berdade. Ao mesmo tempo, seria bom que vocês reorganizassem suas organizações sociais de modo a tornar difícil, ou mesmo im­possível, que os inimigos da liberdade tenham acesso ao poder e qualquer influência política.

  • É nesse plano que podemos situar Pala?

  • Exatamente — respondeu Mr. Menon. — E é por esse motivo que os nossossonâmbulos em potencial não constituem perigo.

  • Então, por que se dão ao trabalho de tentar descobri-los com antecedência?

  • Porque esse "dom", quando bem usado, tem muito valor.

  • Serve para controlar o destino? — perguntou Will, lembrando-se dos "cisnes terapêuticos" e de todas aquelas coisas ditas por Susila a respeito de as pessoas apertarem os pró­prios botões.

    O subsecretário balançou a cabeça, negativamente.

  • O Controle do Destino não exige nada além de um leve transe. Na prática, quase todos são capazes disso. Os sonâmbu­los em potencial constituem os vinte por cento que podem che­gar a um transe muito profundo. Somente quando uma pessoa está nessa espécie de transe é que se torna possível ensiná-la a al­terar o tempo.

  • O senhor pode alterar o tempo? — perguntou Will.

    Mr. Menon tornou a balançar a cabeça negativamente.

  • Infelizmente nunca pude me aprofundar bastante no assunto. Tudo aquilo que sei tive que aprendê-lo pelo modo mais longo e mais lento. Mrs. Narayan foi mais feliz do que eu. Fa­zendo parte dos privilegiados vinte por cento, pôde usar todos os atalhos educacionais que nos eram inteiramente interditos.

  • Que espécie de atalhos? — indagou Will voltando-se pa­ra a diretora.

  • São pequenos cursos de memorização de cálculos e de como pensar e resolver problemas. Começa-se aprendendo a sentir vinte segundos como se fossem dez minutos e um minuto como se fosse meia hora. Quando se está em transe profundo, isso é realmente muito fácil. Ouve-se a sugestão do professor e se fica lá, por longo tempo, sentado quietamente. Você é capaz de jurar que ficou sentado durante duas horas e, quando é trazido de vol­ta, o relógio mostra que a experiência de duas horas foi "con­densada" em quatro minutos.

  • Como?

  • Ninguém sabe — disse Mr. Menon. — Todavia, todas as histórias que se contam a respeito de pessoas que estão se afogando e que em poucos segundos vêem desenrolar diante de si, como numa projeção, tudo que viveram, são basicamente verda­deiras. O cérebro e o sistema nervoso, ou melhor, alguns intelec­tos e alguns sistemas nervosos são dotados dessa capacidade. Is­so é tudo o que sabemos a respeito do assunto. Há cerca de ses­senta anos tivemos a oportunidade de descobrir esse fenômeno e desde então temos continuado a explorá-lo. Entre outros moti­vos, nossos estudos têm objetivos educacionais.

  • Para exemplificar — disse Mrs. Narayan —, resumirei o assunto: tomemos um problema matemático que no estado nor­mal levaríamos cerca de meia hora para solucionar. Mas agora se tem a capacidade de distender o tempo de tal maneira que ca­da minuto equivale subjetivamente a trinta... Começando a tra­balhar no problema, em trinta minutos subjetivos estará resolvi­do. Contudo, esses trinta minutos subjetivos se resumem a um minuto cronológico. Sem que se tenha consciência de qualquer esforço extraordinário e sem a noção de que se está fazendo as coisas apressadamente, trabalha-se com tanta rapidez como qual­quer um desses meninos que vemos surgir de tempos em tempos e que são extraordinariamente dotados para os cálculos. Futuros gênios como Ampère e Gauss, ou futuros idiotas como Dase, to­dos eles tendo em comum, graças a algum arranjo interior, a capacidade de alterar o tempo. Esse dom lhes permite resolver um problema, que consumiria uma hora de trabalho concentrado, em poucos minutos e, em alguns casos, em frações de segundos. Sou uma estudante medíocre, mas através de um transe profun­do puderam me ensinar a condensar o tempo, reduzindo-o a um trigésimo da sua duração normal. Disso resultou maior tempo pa­ra ampliar os meus conhecimentos, de um modo que seria dificí­limo se seguisse os caminhos usuais. O senhor pode imaginar o que acontece quando alguém dotado do coeficiente intelectual (QI) de um gênio é também dotado do poder de alterar o tem­po? Os resultados são fantásticos!

  • Infelizmente — disse Mr. Menon — eles não são muito freqüentes. Nas duas últimas gerações, tivemos apenas dois "al­teradores do tempo" dotados de verdadeira genialidade e cinco ou seis de segunda classe. Mas o que Pala deve a esse pequeno grupo é verdadeiramente inestimável. Por esse motivo, não é pa­ra admirar que estudemos com cuidado nossos sonâmbulos em potencial.

  • Vocês realmente fazem uma série enorme de perguntas vi­sando a devassar a alma dos seus alunos comentou Will depois de curto silêncio. Que farão quando souberem as respostas?

  • Nós os educaremos de acordo com elas disse Mr. Menon. Indagamos o físico e o temperamento da criança e, após obtermos as respostas, separamos aquelas que são mais tímidas, mais tensas, mais sensíveis, bem como as introvertidas, e as reu­nimos num grupo único que, pouco a pouco, vai sendo amplia­do. A princípio algumas crianças que têm tendência para a so­ciabilidade indiscriminada vão sendo introduzidas. Depois, uma ou duas crianças (miniaturas de homens e mulheres minúsculos) agressivas e com ambição de mando são colocadas no grupo. Che­gamos à conclusão de que esse é o melhor método para fazer com que as crianças dotadas dos três temperamentos mais desseme­lhantes aprendam a se entender, desenvolvendo ao mesmo tem­po a tolerância mútua. Após alguns meses de convivência cuidadosamente controlada, estão capacitadas para admitir que pes­soas de diferentes origens têm tanto direito à vida quanto elas mesmas.

  • E os fundamentos são explicitamente ensinados à medida que vão sendo progressivamente aplicados disse Mrs. Narayan. Nos cursos elementares ensinamos em termos de analogia com os animais domésticos. Os gatos apreciam o isolamento, enquan­to os carneiros gostam de se agrupar. As martas são ferozes e não podem ser domesticadas. Os porquinhos-da-índia são mansos e amigáveis. A qual grupo você pertence? Ao grupo dos homens-gatos, dos homens-cordeiros, dos homens-porquinhos-da-índia ou dos homens-martas? Quando falamos sobre o assunto usando fábulas de animais, qualquer criança entende a existência da diversidade dos seres humanos e, através dessa compreensão, admite a neces­sidade da indulgência e do perdão mútuos.

  • Mais tarde, ao serem iniciados na leitura do Gita dis­se Mr. Menon —, falamos a elas sobre a ligação entre a constituição individual e a religião. Os homens-cordeiros e os homens-porquinhos-da-índia gostam dos rituais, das cerimônias públicas e das emoções revivificadas. Suas preferências temperamentais podem ser orientadas no "caminho da devoção". Os homens-gatos gostam de estar sós e suas meditações solitárias podem levá-los ao "caminho do autoconhecimento". Os homens-martas que­rem fazer coisas, e o problema é desviar sua agressividade para o "caminho dos atos desinteressados".

  • E a estrada que conduz ao caminho dos atos desinteressados foi o que tive ocasião de ver ontem? Será que, para atingi-lo, temos que cortar lenha e escalar montanhas?

  • Somente em casos especiais utilizamos o método de cor­tar lenha e de escalar montanhas disse Mr. Menon. Generalizando, podemos dizer que a reorientação da força é o cami­nho que leva a todos os "caminhos".

  • Que quer dizer com isso?

  • O princípio em que se baseia é muito simples. Utilize a força produzida pelo medo, pela inveja, pela administração ex­cessiva de nor-adrenalina ou por uma necessidade imperiosa e que no momento tenha que ser contida. Oriente-a de modo a que não seja nociva a ninguém. Não permita que seja reprimida e que ve­nha a causar dano a si mesmo. Despenda seus empreendimentos que, se não forem úteis, tenham pelo menos o mérito de ser inócuos.

  • Eis aqui um caso simples disse a diretora. — Uma criança zangada ou frustrada é capaz de acumular força bastan­te que resulte numa explosão de choro, de palavrões ou mesmo numa briga. Se a força gerada é suficiente para provocar qual­quer uma dessas coisas é também suficiente para fazê-la correr, dançar ou mesmo dar cinco suspiros profundos. Mais tarde lhe mostrarei uns números de dança. Por ora, limitemo-nos à respi­ração. Qualquer pessoa que estiver irritada e que respire profun­damente cinco vezes, libera grande parte de sua tensão, tornan­do mais fácil para si mesma agir de modo racional. Por isso ensi­namos às nossas crianças que toda a espécie de exercícios respi­ratórios deve ser usada todas as vezes que estiverem zangadas ou perturbadas. Qual dos dois antagonistas pode inspirar mais pro­fundamente e levar maior tempo expirando e dizendo simulta­neamente OM? É um duelo que termina, quase que invariavel­mente, com uma reconciliação. Existem porém ocasiões em que os exercícios de respiração ficam inteiramente deslocados. Nes­ses casos, há um pequeno jogo baseado no folclore local e que pode ser usado por uma só criança, quando necessário. Toda criança palanesa aprende as lendas budistas que na maioria são

    como histórias de fadas, onde alguém sempre tem a visão de um ser celestial. É como se fosse um Bodhisattva numa explosão de luzes, jóias e arco-íris. Simultaneamente com a gloriosa visão, sempre há uma olfação igualmente deliciosa. Os fogos de artifí­cio geralmente são acompanhados por perfume de inefável deli­cadeza. Pomos em ação todas essas fantasias tradicionais. Não é necessário que todas se baseiem em experiências utópicas como aquelas induzidas pelo jejum, pela privação dos sentidos e pelos cogumelos. Dizemos às crianças que os sentimentos violentos são como os terremotos. Estes nos sacodem com tal força que pro­vocam rachaduras na parede que separa nosso íntimo da univer­sal e multi-dividida natureza de Buda. Quando alguém fica zangado é como se algo dentro dele se rachasse, deixando escapar através da fenda um sopro do celestial perfume do Saber. Um perfume semelhante ao champak, ao ylang-ylang ou às gardênias, porém infinitamente melhor. Por essa razão, não se deve perder essa divindade que acidentalmente escapou. Ela estará presente todas as vezes que se zangar. Inale-a, respire-a, encha os pulmões com ela, uma, duas ou mais vezes.

  • E as crianças conseguem fazer isso?

  • Depois de algumas semanas de aprendizado a maioria de­las o faz com absoluta naturalidade. Algumas chegam mesmo a sentir o perfume. O velho refrão repressivo "não faça isso" pas­sou a ser expresso em termos de "faça isso". Este novo refrão está cheio de compensações. Forças potencialmente perigosas têm sido analisadas de modo a se tornarem inócuas, podendo mes­mo, em certas ocasiões, ser usadas no bom sentido. Nesse inter­valo desenvolvemos a percepção das crianças, mediante um ensi­no cuidadoso, que é progressivamente ministrado com o modo correto de usar a linguagem. Elas são ensinadas a prestar aten­ção a tudo o que vêem e ouvem. Pedimos que observem até que ponto seus sentimentos e desejos interferem na observação do mundo em que vivem. Fazemos com que sintam como determi­nados hábitos de linguagem afetam não só seus sentimentos, seus desejos, mas também suas sensações. O que meus olhos e ouvi­dos registram é uma coisa. Até que ponto meu estado de espíri­to, a palavra que uso e os objetos que estou perseguindo dão sen­tido a um ato é coisa completamente diferente. Por aí se vê que tudo se envolve em conjunto dentro de um processo educacional único. Damos um treino simultâneo em percepção e imaginação,

    que equivale à aplicação prática da fisiologia e da psicologia. É também um treino na prática da ética e da religião, um treino de autoconhecimento e de como se usar a linguagem. Resumin­do, a unidade psicossomática é treinada sob todos os ângulos.

  • Para que dar tanta importância a um treino tão comple­xo do cérebro e do corpo, na educação convencional? — pergun­tou Will. — Isso auxiliará as crianças a escrever gramaticalmen­te, a fazer cálculos ou a entender a física elementar?

  • Ajuda bastante — disse Mr. Menon. — Um conjunto mente-corpo bem treinado aprende melhor e com muito maior rapidez do que outro que não foi treinado. Além disso, tem maior capacidade de relacionar os fatos às idéias e aos acontecimentos de sua própria vida.

    Subitamente e para surpresa de todos (pois aquele rosto longo e melancólico dava a impressão de ser incompatível com qual­quer expressão de alegria, além de um pálido sorriso), Mr. Me­non soltou uma boa gargalhada.

  • Qual é a graça? — perguntou Will.

  • Estava me lembrando de duas pessoas que encontrei na última vez em que estive em Cambridge, na Inglaterra. Uma de­las era um físico atômico e a outra um filósofo, ambos muito fa­mosos. No entanto, a idade mental de um deles fora do labora­tório era a de uma criança de onze anos. O outro era um comilão compulsório que se recusava a encarar um problema de excesso de peso. Esses dois personagens constituem um exemplo clássico do que acontece quando um menino inteligente recebe uma edu­cação convencional e intensiva durante quinze anos, enquanto o conjunto mente-corpo, do qual dependem a vida e o saber, é com­pletamente negligenciado.

  • E seu sistema de ensino não produz essa espécie de "monstro acadêmico"?

    O subsecretário balançou a cabeça.

  • Até a minha ida à Europa, não tinha visto nada semelhante. São grotescamente divertidos — acrescentou. — E, po­bres coitados, como são curiosamente repulsivos!

  • Tornarmo-nos patética e curiosamente repulsivos, este é o preço que pagamos pela especialização.

  • Pela especialização — concordou Mr. Menon —, mas não no sentido que é dado a esse termo no mundo em que você vive. Tal tipo de especialização, além de ser necessária, é também ine­vitável. Sem especialização não há civilização. Se você educar o todo mente-corpo, utilizando símbolos intelectuais, esse tipo de especialização é necessário e não causa um dano apreciável. Mas vocês não educam esse todo. Pretendem remediar o excesso de especialização científica ministrando alguns cursos suplementa­res de humanidades. Concordo em que tudo isso é excelente. Em todo processo educacional deviam ser incluídos os cursos de hu­manidades, contudo não devemos nos deixar iludir pelas aparên­cias. Intrinsecamente, os cursos de humanidades não nos tornam mais humanos. Não passam de outra forma de especialização no nível simbólico. Lendo Platão ou ouvindo uma conferência de T. S. Eliot, nem todos conseguem se educar. Ocorre o mesmo num curso de Física ou de Química, onde, enquanto se ensina a manipulação dos símbolos, o resto do todo mente-corpo é dei­xado no seu estado de primitiva ignorância e de inépcia. Isso tu­do vem gerar as criaturas patéticas e repulsivas que tanto me cho­caram em minha primeira viagem ao exterior.

  • Qual sua opinião a respeito da educação convencional? Que pensa da instrução básica do ensino, das matérias indispen­sáveis e das habilidades intelectuais? Seu método de ensino é o mesmo que o nosso?

  • Nosso método apenas será utilizado por vocês daqui a uns dez ou quinze anos. Tomemos a Matemática como exemplo. Historicamente o seu início se deu com a elaboração de proveito­sas mágicas que foram elevadas até o plano da metafísica e final­mente explicadas em termos de transformações lógicas e estrutu­rais. Em nossas escolas, invertemos o processo histórico. Come­çamos com a estrutura e a lógica, excluímos a metafísica e passa­mos diretamente dos princípios gerais para a aplicação prática.

  • E as crianças são capazes de compreender isso?

  • Compreendem melhor do que se fossem iniciadas em trabalhos de utilidade imediata. A partir dos cinco anos de idade qualquer criança inteligente aprende praticamente tudo, desde que lhe seja apresentado sob a forma de jogos e de quebra-cabeças. Ao brincarem, compreendem o sentido das coisas com incrível rapidez. Isso feito, podemos passar às aplicações práticas. Com esse método de ensino a maioria das crianças pode aprender na metade do tempo um número de coisas três vezes maior e de um modo quatro vezes mais completo. Consideremos outro campo onde possam ser usados jogos para incutir a compreensão dos sistemas básicos. Todo pensamento científico é feito em termos de probabilidades. As velhas e eternas verdades não são mais que grandes verossimilhanças. As leis imutáveis da natureza apenas são valores estatísticos médios. Qual o modo de fazer com que as crianças aprendam as noções de coisas tão pouco evidentes? Ensinando-lhes a jogar roleta, girar moedas, fazer sorteios, jo­gar cartas, dados e jogos de tabuleiro.

  • O jogo mais popular entre os menores é "cobras e esca­das giratórias" disse Mrs. Narayan. Outro grande favorito é o das "felizes famílias de Mendel".

  • Mais tarde aprendem um ainda mais complicado, joga­do por quatro pessoas, com um baralho de sessenta cartas especialmente desenhadas e divididas em três naipes acrescentou Mr. Menon. É chamado "bridge psicológico". A sorte está nas mãos do jogador, mas o jogo requer habilidade e capacidade para o blefe.

  • Psicologia, mendelismo, evolução... Seu sistema educa­cional parece ser profundamente biológico disse Will.

  • E o é, realmente concordou Mr. Menon. Insisti­mos principalmente nas ciências da vida e não na física ou química.

  • Por questão de princípios?

  • Não somente por isso, mas também devido às nossas conveniências e necessidades econômicas. Não dispomos dos gran­des recursos financeiros indispensáveis à pesquisa em larga esca­la no campo da física ou da química. Além disso, não há nenhu­ma utilidade prática para nós no empreendimento dessas pesqui­sas. Não possuímos indústria pesada para motivar qualquer es­pécie de competição. Não temos armamentos e por isso não po­demos nos ocupar em torná-los ainda mais diabólicos. Também não nos anima o menor desejo de aterrissar do outro lado da Lua. A nossa única e modesta ambição é de que, nesta ilha e nesta la­titude deste planeta, possamos viver, como seres humanos "integrais", em perfeita harmonia com a vida que nos cerca. Quando quisermos ou quando nossos meios nos permitirem, aplicaremos os resultados de nossas experiências físicas e químicas em pro­veito próprio. Enquanto isso, concentraremos nossos esforços na­quilo que nos promete maiores benefícios: na ciência da vida e da mente. Se os políticos dos países recém-independentes tives­sem bom senso, também fariam o mesmo. Mas o poder é o que lhes interessa realmente. Querem exércitos, querem se emparelhar com os motorizados e viciados da televisão da América e da Europa. Vocês não têm outra escolha. Então irreparavelmente comprometidos com a física e a química aplicadas e com todas as suas funestas conseqüências militares, políticas e sociais. Mas os países subdesenvolvidos não estão comprometidos. Não têm que seguir esse exemplo, pois ainda dispõem de liberdade para escolher o nosso caminho: o caminho da biologia aplicada, da natalidade controlada, da produção limitada e da industrializa­ção seletiva, que só é possível quando se controla a natalidade. É o caminho que leva à felicidade e que vem de dentro de nós, através da saúde, do conhecimento e da mudança de atitude em face do mundo. Não é aquela miragem da felicidade exterior e que é adquirida à custa dos brinquedos, das pílulas e das inter­mináveis distrações. Esses países poderiam escolher nosso cami­nho, porém não o fazem porque desejam ser exatamente iguais a vocês. Que Deus os ajude! Não há a menor possibilidade de que possam realizá-lo no curto espaço de tempo em que se pro­puseram, e por isso estão condenados à frustração e ao desapon­tamento. Seu destino será a miséria do colapso social, a anarquia e finalmente a desgraça de serem escravizados pelos tiranos. É uma tragédia perfeitamente previsível, mas continuam caminhan­do em direção a ela com os olhos bem abertos.

  • E nada podemos fazer a respeito — ajuntou a diretora.

  • Não podemos fazer nada, exceto continuar a fazer o mes­mo que fizemos até agora, isto é, esperar que o exemplo de uma nação que achou o meio de ser humanamente feliz venha a ser imitado. Há muito poucas possibilidades de que isso venha a acon­tecer, mas pode ser que aconteça...

  • A não ser que Rendang Maior aconteça primeiro.

  • A não ser que uma Rendang Maior aconteça primeiro — concordou Mr. Menon gravemente. — Enquanto isso temos que continuar nosso trabalho, que consiste na educação. Há mais al­guma coisa que o senhor gostaria de saber, Mr. Farnaby?

  • Sim. Gostaria de saber muitas outras coisas. Por exem­plo, quando começam a ensinar ciência?

  • Damos as primeiras aulas de Ecologia quando começa­mos a ensinar a multiplicação e a divisão.

  • Ecologia? Isso não é um pouco complicado?

  • É exatamente por esse motivo que começamos logo a ensiná-la. Nunca se deve dar à criança a possibilidade de imagi­nar que as coisas possam existir isoladamente. Devemos mos­trar-lhe logo de início as relações que existem entre as matas e os descampados, entre os poços e os cursos de água e entre as vilas e os campos que as rodeiam. Deve-se insistir muito nesse assunto.

  • Deixe-me acrescentar — disse a diretora — que sempre ensinamos a ciência das relações juntamente com a ética das re­lações. A lei da natureza consiste num balanço perfeito entre o que se toma e aquilo que se dá. Em outras palavras, no equilí­brio. Se transportarmos este fato para o terreno da moralidade, essa deveria ser a lei entre as pessoas. Como já havia dito antes, as crianças têm facilidade em entender uma idéia que lhes é apre­sentada sob a forma de fábulas de animais e, por isso, contamos versões modernas das fábulas de Esopo, não usando os antigos mitos antropomórficos e sim verdadeiras fábulas ecológicas ri­cas em moral cósmica. Outra maravilhosa história para crianças é a história da erosão e por isso lhes mostramos fotografias do que aconteceu em Rendang, na Índia, na China, na Grécia, no Oriente, na África e na América, em todos os lugares onde as pessoas gananciosas e estúpidas tentaram tirar sem dar nada em troca, tentaram explorar sem amor ou compreensão. Se tratar­mos bem a natureza, ela nos retribuirá do mesmo modo. Se, no entanto, tentarmos feri-la ou mesmo destruí-la, seremos inexo­ravelmente esmagados. Nesse "caldeirão de poeira", o "Faça aquilo que gostaria de receber" dispensa explicações. As crian­ças reconhecem e compreendem esse fenômeno com muito mais facilidade do que reconhecem uma família ou uma cidade cor­rupta. Os danos psicológicos não deixam cicatrizes e elas sabem tão pouco a respeito dos mais velhos... Não possuindo critérios para estabelecer comparações, sua tendência é tomar por certa mesmo a pior das situações e aceitá-la como se fosse parte da na­tureza das coisas. Enquanto isso, as diferenças entre quatro hec­tares de campos, quatro hectares de sarjetas e as tempestades de areia são bastante evidentes. A areia e a sarjeta são alegorias e, ao confrontá-las, torna-se fácil para a criança perceber a necessi­dade da conservação das coisas e daí vir a compreender a neces­sidade da preservação da moralidade. Torna-se fácil fazê-las entender os conceitos morais em relação às plantas, aos animais e à terra que os mantém. Depois disso, é fácil transpor esses con­ceitos para as relações entre os seres humanos. Aí está outro pon­to importante: ao deixar os fatos da ecologia e as parábolas da erosão, a criança atinge uma ética universal. A Natureza não tem "povo eleito", "terras santas" ou "revelações raras de histó­ria". A moralidade e a conservação não justificam sentimentos de superioridade ou reivindicação de quaisquer privilégios espe­ciais. O conceito "Faça aquilo que gostaria de receber" se apli­ca em nossas relações com todas as espécies de vida nas várias partes do mundo. Somente teremos permissão de viver neste pla­neta enquanto tratarmos a Natureza com inteligência e compaixão. A ecologia elementar nos leva diretamente ao Budismo ele­mentar.

    Após alguns momentos de silêncio, Will disse:

  • Apenas há algumas semanas li o livro de Thorwald so­bre o que aconteceu na Alemanha Oriental, entre os meses de janeiro e maio de 1945. Algum de vocês por acaso teve ocasião de lê-lo?

    Ambos balançaram negativamente a cabeça.

  • Então não o façam — aconselhou Will sorrindo irônica e ferozmente. — Estive em Dresden após o bombardeio de feve­reiro. Numa só noite, cerca de cinqüenta a sessenta mil civis, na sua maioria refugiados que tentavam escapar aos russos, fo­ram queimados vivos. Tudo isso porque nunca ensinaram ecolo­gia e os primeiros preceitos da conservação ao “pequeno Adolf''. O acontecimento foi tão bárbaro que é preferível fazer humoris­mo a discuti-lo seriamente.

    Mr. Menon levantou-se e apanhou a pasta.

  • Devo ir agora. — Apertando a mão de Will, disse do pra­zer que tivera em conhecê-lo e que fazia votos de que gostasse da estada em Pala. — Tudo que quiser saber a respeito da educação palanesa — acrescentou — basta que pergunte a Mrs. Narayan. Não encontrará um guia e instrutor que a possa exceder em atributos.

  • O senhor gostaria de visitar alguma sala de aula? — perguntou Mrs. Narayan após a saída do subsecretário.

    Will levantou-se e, saindo da sala, acompanhou-a através de um longo corredor.

    Abrindo uma das portas a diretora disse:

  • Matemática. Esta é a 5a série superior, dirigida por Mrs. Anand.

    Ao ser apresentado, Will curvou-se respeitosamente. A professora de cabelos brancos deu-lhe um sorriso de boas-vindas e sussurrou:

  • Como o senhor pode observar, estamos imersos num problema.

    Will olhou em torno. Sentados em carteiras, rapazolas e mocinhas, com os cenhos franzidos, mordendo os lábios em profundo silêncio, estavam concentrados sobre os cadernos. As cabeças in­clinadas eram escuras e lustrosas. Acima dos calções brancos ou cáqui e das saias de colorido alegre, os corpos dourados brilha­vam no calor. Os rapazolas mostravam o gradeado costal abaixo da pele. Os corpos das mocinhas, mais cheios e delicados, mos­travam a intumescência dos pequenos seios, rígidos, altos e ele­gantes, como se tivessem sido criados por um escultor de ninfas da época do rococó. Todos sentiam-se inteiramente à vontade. Que conforto, pensou Will, viver num lugar onde a "queda" não era mais do que uma doutrina desacreditada!

    Enquanto isso, Mrs. Anand estava explicando, sotto voce, a fim de não distrair a atenção dos alunos. Ela sempre dividia as classes em dois grupos. Num ficavam os do tipo "visual", aque­les que, como os antigos gregos, pensavam em termos geométri­cos. Os "não-visuais", aqueles que preferiam a álgebra e as abs­trações, constituíam o outro grupo. Com alguma relutância, Will deixou de prestar atenção à beleza de um mundo não-destruído e que ali estava representado por aquele grupo de corpos jovens e se resignou a demonstrar um interesse inteligente pela diversi­dade humana e pelo ensino da Matemática.

    Finalmente saíram da sala. Na porta vizinha, numa sala azul- clara, decorada com quadros de animais dos trópicos, de Bodhisattva e dos seus peitudos shaktis, a 5a série inferior estava ten­do uma das aulas bissemanais de Filosofia Elementar Aplicada. Os seios eram menores, os braços mais finos e menos musculo­sos; somente há um ano haviam emergido da infância.

  • Os símbolos são públicos estava dizendo um homem ainda jovem próximo ao quadro-negro, no momento em que Will e Mrs. Narayan entraram na sala. Desenhou uma série de peque­nos círculos e escreveu os números 1, 2, 3, 4 e a letra n. Estes números representam o povo explicou. Depois, partindo de cada um dos pequenos círculos, desenhou uma linha que os ligava a um quadrado existente à esquerda do quadro-negro. Escreveu um S no centro do quadrado. Se o sistema de símbolos que o povo usa quando quer conversar entre si. Todos falam a mesma língua: inglês, palanês, esquimó, depen­dendo do local onde vivem. As palavras são públicas. Perten­cem a todos os que falam uma determinada língua. Estão cata­logadas nos dicionários. Observemos agora o que está aconte­cendo lá fora dizendo isso, apontou para uma janela aberta. Sobre o fundo branco de uma nuvem, meia dúzia de ruidosos papagaios voavam em nossa direção e, após passarem por trás de uma árvore, desapareceram no horizonte. O professor dese­nhou um segundo quadrado do lado oposto do quadro, marcou-o com a letra A (para designar "acontecimento") e ligou-o aos cír­culos por meio de linhas. O que acontece lá fora é público, ou pelo menos bastante público disse ele. Quando alguém fa­la ou escreve, isso também é público. Mas as coisas que ocor­rem no interior destes pequenos círculos são individuais. Indi­viduais.

    Pondo a mão sobre o peito, repetiu:

  • Individual. Friccionou a testa e disse: Individual.

  • Tocou as pálpebras e a ponta do nariz com o indicador escu­ro. Agora vamos fazer uma experiência simples: digam a pa­lavra "beliscar".

  • Beliscar disse a classe em uníssono. Beliscar...

  • B-E-L-I-S-C-A-R, beliscar. Isso é uma palavra pública. Todos podem procurá-la no dicionário. Mas agora quero que vo­cês se belisquem. Com força! Com mais força!

    Com um acompanhamento de risos, de "ais" e de "uis", as crianças cumpriram a ordem que lhes foi dada.

  • Pode alguém sentir aquilo que seu vizinho está sentindo?

    Seguiu-se um coro de "nãos".

  • Parece que embora haja... Vamos ver quantos somos?

  • disse o professor correndo os olhos pelas carteiras à sua fren­te. Parece que houve vinte e três dores diferentes e indepen­dentes. Vinte e três somente nesta sala. Quase três bilhões em to­do o mundo, sem acrescentarmos as dores de todos os animais. Cada uma delas é estritamente individual. Não há nenhum mo- do de transferir a experiência de um centro da dor para outro. Nenhuma comunicação a não ser indiretamente, através do S. — Dizendo isso, apontou para o quadrado à esquerda do quadro- negro e depois para os círculos do centro. — Dores individuais aqui em 1, 2, 3, 4 e n. Notícias a respeito de dores individuais em S, onde você pode dizer "beliscar", que é uma palavra públi­ca, catalogada no dicionário. Prestem atenção a isso: exige so­mente uma palavra pública, "dor", para designar os três bilhões de experiências individuais, embora cada uma delas possa diferir tanto da outra quanto meu nariz difere do de vocês, e como o nariz de cada um de vocês difere do nariz do outro. Uma única palavra define coisas e acontecimentos que pela sua natureza se assemelham entre si. Esta é a razão pela qual a palavra é pública. E, sendo pública, é impossível que abranja todas as múltiplas va­riantes de um mesmo acontecimento.

    Seguiu-se um silêncio, após o qual o professor levantou os olhos e perguntou:

  • Alguém sabe alguma coisa sobre Mahakasyapa?

    Muitas mãos se levantaram. Ele apontou com o dedo para uma menina de saia azul e de colar de conchas, que estava senta­da na primeira fila.

  • Conte-nos alguma coisa, Aniya.

    Nervosa e com voz ciciada, Amiya começou:

  • Mahakasyapa foi o único dos discípulos de Buda que compreendeu o que ele dizia — disse na sua pronúncia defeituosa.

  • E a respeito de que ele falava?

  • Ele não estava conversando e foi por isso que os discípu­los não o entenderam.

  • Todavia, Mahakasyapa compreendeu o que Buda dizia, embora ele não estivesse pregando, não é verdade?

    A menina concordou com um aceno de cabeça.

  • Foi exatamente assim. Todos pensavam que ele ia fazer um sermão, mas ele não o fez. Somente apanhou uma flor e levantou-a para que todos a vissem.

  • Isso foi o sermão — gritou um menino de tanga amarela e que se mexera durante todo o tempo no banco, contendo a cus­to o desejo de mostrar o que sabia.

  • Mas ninguém entendeu aquele tipo de sermão, somente Mahakasyapa — insistiu a menina.

  • Que disse Mahakasyapa quando Buda levantou a flor?

  • Nada — gritou em triunfo o menino de tanga amarela.

  • Limitou-se a sorrir — disse Amiya. — E isso mostrou a Buda que havia entendido. Retribuiu o sorriso e ambos se senta­ram sorrindo.

  • Muito bem — disse o professor. — E agora vamos ouvir o que você pensa que Mahakasyapa entendeu — falou, dirigindo- se ao menino de tanga amarela.

    Após um curto silêncio, a criança, de crista caída, balançou a cabeça.

  • Não sei — murmurou.

  • Alguém sabe?

    Houve uma série de conjeturas: talvez tivesse entendido que o povo fica enfastiado com sermões, mesmo com os sermões de Buda; talvez gostasse tanto de flores quanto o Compassivo gos­tava; talvez fosse uma flor branca que o tivesse feito pensar na Grande Luz; ou talvez fosse azul, a cor de Xiva...

  • Boas respostas — disse o professor. — Especialmente a primeira. Os sermões são terrivelmente maçantes, principalmen­te para o pregador. Contudo, uma pergunta ficou sem resposta. Se qualquer uma das respostas que vocês deram tivesse corres­pondido àquilo que Mahakasyapa entendeu quando Buda levan­tou a flor, por que será que ele não usou tantas palavras para explicá-lo?

  • Talvez não fosse um bom orador — disse Amiya na sua pronúncia defeituosa.

  • Era um excelente orador.

  • Talvez estivesse com dor de garganta.

  • Se estivesse com dor de garganta, não sorriria tão prazerosamente.

  • Diga-nos — pediu uma voz trêmula vinda do fundo da sala.

  • Diga-nos — repetiu uma dúzia de vozes.

    O professor balançou a cabeça.

  • Se Mahakasyapa e o Compassivo não conseguiram tra­duzir em palavras, como poderei fazê-lo? Vamos dar outra olha­da nesses diagramas que estão no quadro-negro. Palavras públicas, acontecimentos maiores, menos públicos. Finalmente o po­vo. Centros inteiramente individuais de dor e de prazer. Com­pletamente individuais? Talvez não seja de todo verdadeiro. É possível que, apesar de tudo, exista alguma espécie de comuni­cação entre os círculos, não através das palavras, como estou me comunicando com vocês neste momento. É possível que isso aconteça de um modo direto. Pode ser que tenha sido isso que Buda quis dizer naquele sermão sem palavras, no qual levantou a flor. "Possuo o tesouro dos ensinamentos sem erros", disse aos discípulos, "o maravilhoso espírito de nirvana, a ausência de forma da forma verdadeira, excedendo o poder das palavras, o ensinamento a ser ministrado e a ser recebido de uma fonte estranha a qualquer das doutrinas. Isto entreguei agora a Mahakasyapa".

    Apanhando novamente o giz, traçou uma elipse rudimen­tar com que envolveu dentro dos seus limites todos os outros dia­gramas existentes no quadro-negro: os pequenos círculos repre­sentando os seres humanos, os quadrados identificando os acon­tecimentos e os outros que se destinavam às palavras e aos símbolos.

  • Todos separados e, no entanto, únicos disse. Po­vo, acontecimentos, palavras: manifestações do Espírito, da Semelhança e do Vazio. O que Buda queria dizer e o que Mahaka- syapa entendeu foi que uma pessoa não pode transmitir esses en­sinamentos. Uma pessoa pode somente senti-los. E isso, todos vocês terão oportunidade de descobrir quando chegar o momen­to da Iniciação.

  • Está na hora de sairmos sussurrou a diretora.

    Quando a porta se fechou e se achavam no corredor, dissea Will:

  • Usamos este mesmo tipo de introdução no ensino da ciência, começando com a botânica.

  • Por que com a botânica?

  • Porque pode ser facilmente relacionada ao assunto que estava sendo ensinado: a história de Mahakasyapa.

  • É esse o ponto de partida?

  • Não. Começamos muito prosaicamente com o manual. Todos os fatos óbvios e elementares são fornecidos às crianças em arquivos padronizados e cuidadosamente organizados. Botâ­nica não diluída (este é o primeiro estágio) e ensinada em seis ou sete semanas. Depois disso, passam uma manhã no que chama­mos "construção de ponte". Durante duas horas e meia tenta­mos fazer com que relacionem tudo o que aprenderam nas lições anteriores com a arte, com a linguagem, com a religião e com o autoconhecimento.

  • Como conseguem estabelecer uma ponte entre a botâni­ca e o autoconhecimento?

  • É muito simples — assegurou-lhes Mrs. Narayan. Cada criança recebe uma flor comum, o hibisco, por exempo. A gar­dênia é ainda melhor que o hibisco, porque este não tem perfu­me. Cientificamente falando, o que é uma gardênia? De que se compõe? Pétalas, estames, pistilo, ovário e todo o resto. Pede-se às crianças que façam por escrito uma descrição analítica da flor e que ilustrem o trabalho com um desenho cuidadoso. Quando o trabalho está terminado, há um pequeno período de repouso, ao fim do qual a história de Mahakasyapa é lida e se pede a to­dos que pensem sobre ela. Buda estava dando uma lição de botâ­nica? Ou estava ensinando outra coisa aos discípulos? Neste ca­so, o que estaria ensinando?

  • O que estaria ensinando?

  • A história deixa bem claro que não há resposta que pos­sa ser traduzida em palavras. Assim, dizemos aos jovens para dei­xarem de pensar e para se limitarem a olhar. Mas que não olhem tentando analisar, advertimos. Que não olhem como se fossem cientistas nem tampouco como simples jardineiros. Que se liber­tem de tudo o que sabem e olhem com a mais completa inocência para esta coisa infinitamente improvável que têm diante deles, como se nunca tivessem visto nada semelhante: uma coisa anôni­ma e não pertencente a nenhuma classe conhecida. Que olhem com o espírito vivo. Que olhem passivamente, com receptivida­de, sem procurar dar um nome, sem julgar ou comparar. E que, enquanto olham, procurem aspirar seu mistério e inalar o espíri­to do bom senso, bem como o perfume da Sabedoria e da Outra Margem.

  • Tudo isso se assemelha bastante àquilo que o dr. Robert dizia na cerimônia de Iniciação comentou Will.

  • É verdade disse Mrs. Narayan. Aprender a aceitar o ponto de vista de Mahakasyapa a respeito das coisas é a melhor preparação para a experiência com o moksha. Toda crian­ça, antes de ser iniciada, recebe uma longa educação na arte de como se tornar receptiva. A princípio, a gardênia como espéci­me botânico. Depois, a mesma gardênia é vista em toda a sua singularidade. É a gardênia sob o ponto de vista do artista, a gardênia ainda mais miraculosa, aquela que foi vista por Buda e Mahakasyapa. Não é necessário acentuar que não nos restringimos ao mundo das flores — acrescentou Mrs. Narayan. — Cada cur­so é entremeado por sessões periódicas de "construção de pon­tes". Tudo, desde as rãs dissecadas às nebulosas espirais, é enca­rado de modo receptivo e conceptual, como um fenômeno de ex­periência estética ou espiritual, e também em termos de ciência, de história e de economia. O treinamento na receptividade é o complemento e o antídoto ao exercício da análise e da manipula­ção dos símbolos. Ambas as espécies de treinamento são absolu­tamente indispensáveis. Se algumas das partes forem negligen­ciadas, você nunca se tornará um ser humano completo.

    Houve um silêncio.

  • Como deve uma pessoa olhar as outras? — perguntou Will finalmente. — Sob o ponto de vista de Freud ou de Cézanne? Com olhos de Buda ou de Proust?

    Mrs. Narayan sorriu.

  • Como o senhor me vê? — perguntou.

  • Primeiramente penso que a vejo com os olhos do soció­logo. Vejo-a como uma representante de uma cultura estranha. Além disso, eu a estou sentindo receptivamente. Penso, espero que não se zangue com o que vou dizer, que a senhora envelhe­ceu de modo singularmente bom. Inteiramente bom sob o ponto de vista estético, intelectual, psicológico e espiritual. E o fato de ter me tornado receptivo tem muita significação para mim. En­quanto preferir imaginar em vez de incorporar, posso conceber tudo como se fosse uma tolice — dizendo isso, deu uma garga­lhada semelhante à das hienas.

  • Se uma pessoa quiser, pode substituir uma idéia previa­mente admitida por um melhor critério de receptividade. Eu me pergunto: o que leva uma pessoa a fazer tal escolha? Por que a pessoa não ouve as duas partes e harmoniza seus pontos de vis­ta? Não há infalibilidade no conceito do analista apegado às tra­dições e fazedor de conceitos, nem tampouco na passividade alerta do introspectivo-receptivo. Mas, trabalhando em conjunto, po­dem executar um serviço razoavelmente bom.

  • Qual a eficiência do seu treinamento na arte de fazer com que as pessoas se tornem receptivas?

  • Existem vários graus de receptividade. Se tomarmos a ciência como exemplo, veremos que ela se inicia com a observa­ção, que é sempre seletiva. Desse modo, a receptividade existen­te na ciência é muito pequena. O mundo tem que ser visto atra­vés de uma gelosia como um conjunto de conceitos projetados. Todavia, quando se toma o moksha, os conceitos deixam de existir quase instantaneamente. Essa experiência deve ser absorvida e não imediatamente colhida e classificada. É como aquele poema de Wordsworth: Traga consigo um coração que observa e recebe... Nas sessões de "construção de pontes" existe muita seleção e pro­jeção, porém em proporções menores do que nas aulas de ciên­cia que as precederam. As crianças não se transformam subita­mente em miniaturas de Tathagata, tampouco adquirem aquela receptividade pura que vem com o moksha. Longe disso. Tudo que podemos afirmar é que aprendem a ter cuidado com os no­mes e com os ensinamentos. Por um curto período de tempo, as­similam muito mais do que dão.

  • O que é que as obrigam a fazer com aquilo que assimilaram?

  • Nos limitamos a pedir que tentem fazer o impossível — respondeu Mrs. Narayan. — Pedimos que traduzam em palavras as suas experiências. Qual o significado desta flor, desta rã disse­cada e deste planeta que vemos através do telescópio, se o enca­rarmos como simples fragmento de dádivas ainda não concebi­das? O que dizem aos seus sentidos e à sua imaginação? Que sen­timentos e lembranças despertam? Tentem escrever tudo isso. É claro que não obterão o sucesso desejado, mais insistam, pois is­so os ajudará a compreender a diferença entre as palavras e os acontecimentos, entre o que é ter conhecimento das coisas e es­tar familiarizado com elas. Nós lhes dizemos ainda: "Quando ter­minarem de escrever, olhem novamente a flor, fechem os olhos por um ou dois minutos e procurem desenhar o que lhes veio à mente enquanto estavam de olhos fechados". Dizemos que dese­nhem qualquer coisa que tenham visto: algo vago ou vívido, pa­recido com a flor ou completamente diferente. Que desenhem e pintem, com tintas ou com lápis de cor, tudo aquilo que viram e também o que não viram. Ao terminarem, dizemos que des­cansem novamente e que façam depois a comparação entre o primeiro e o segundo desenho. Comparem a descrição científica da flor com aquilo que escreveram a seu respeito enquanto ainda não haviam analisado o que viam e, por isso, procediam como se na­da soubessem a respeito da flor e se limitavam a permitir que o mistério da sua existência vinda do nada chegasse até eles. Ao con­frontarem as suas interpretações escritas e desenhos com os dos outros colegas de classe, notarão que as descrições analíticas, bem como as ilustrações, são muito parecidas entre si, enquanto na outra espécie de desenhos e descrições são muito diferentes. Como é que tudo isso se relaciona com as coisas que aprenderam na escola, em casa, na selva e no templo? Formulamos dezenas de questões nesse sentido, todas bastante insistentes. As "pontes" devem ser construídas em todas as direções. Se começarmos com a botânica ou qualquer outro assunto do currículo escolar, no término de uma sessão de "construção de pontes" estaremos pensando a respeito da natureza da linguagem, sobre diferentes tipos de experiências, sobre a metafísica e a conduta de vida, sobre o conhecimento analítico e sabedoria da Outra Margem.

  • Como foi possível ensinar os professores dessas crianças a "construírem pontes"?

  • Começamos a ensiná-los há cerca de cento e sete anos respondeu Mrs. Narayan. Foram criados cursos para homens e mulheres que já haviam sido educados nos moldes palaneses tradicionais. Isso significava que tinham aprendido boas manei­ras, agricultura e artesanato industrial, misturados com a medi­cina caseira, a biologia e física das "velhas comadres", uma gran­de crença no poder mágico e na veracidade dos contos de fada. Não conheciam nada sobre ciência e história e ignoravam total­mente o que se passava no exterior. A única vantagem desses fu­turos professores residia no fato de serem budistas convictos. A maioria deles praticava a meditação e todos já haviam lido ou ouvido falar a respeito da filosofia do mahayana. Por conseguinte, nos campos da metafísica e da psicologia aplicadas, sua educa­ção era muito mais completa do que a de qualquer grupo de futuros professores da sua parte do mundo. O dr. Andrew era um humanista antidogmático, educado cientificamente, que havia des­coberto o valor do mahayana tanto na forma pura quanto na apli­cada. Seu amigo, o rajá, era um budista tantrik que descobrira o valor da ciência pura e aplicada. Ambos viram com clareza que, para alguém ter a capacidade de ensinar as crianças a se torna­rem seres humanos numa sociedade feita para permitir que seres humanos completos nela vivessem, o professor teria que apren­der, antes de qualquer coisa, a aproveitar aquilo que os dois mun­dos tivessem de melhor.

  • Qual foi a reação desses primeiros professores? Não hou­ve nenhuma resistência aos novos métodos?

    Mrs. Narayan meneou a cabeça negativamente:

  • Não houve a menor resistência pelo simples fato de que nada realmente importante fora atacado. O budismo foi respei­tado. Tudo o que se lhes pediu foi que deixassem de lado a ciên­cia das "velhas comadres" e os "contos de fadas". Em troca re­ceberam uma grande variedade de fatos do maior interesse, as­sim como as teorias mais úteis. De certo modo, as coisas excitan­tes da cultura, do poder e do processo do mundo ocidental ti­nham que ser associadas, e até certo ponto subordinadas, às teo­rias do budismo e aos fatos psicológicos da metafísica aplicada. Nesse programa do "melhor dos dois mundos" nada havia que ofendesse as suscetibilidades mesmo do mais sensível e ardente dos cultores religiosos.

  • Tenho minhas dúvidas quanto aos nossos futuros professores — disse Will após um curto silêncio. — A esta altura dos acontecimentos, será que ainda têm capacidade de aprender a ti­rar o melhor dos "dois mundos"?

  • Por que não? Não é necessário que abdiquem de qual­quer coisa que seja realmente importante. Os nãos-cristãos poderiam continuar a pensar nos homens e os cristãos continuariam adorando a Deus. A única diferença é que Deus deve ser imagi­nado como Ser Imanente e o homem, um ser potencialmente auto-transcendente.

  • E a senhora acha que eles fariam essas mudanças sem qualquer reclamação? — perguntou Will sorrindo. — É muito otimismo!

  • Meu otimismo se baseia no fato de que, se alguém tentar resolver um problema com inteligência e realismo, os resultados têm todas as possibilidades, de serem bons — disse Mrs. Nara­yan. — O exemplo desta ilha justifica uma certa dose de otimis­mo. E agora vamos assistir a uma aula de dança.

    Atravessaram um pátio sombreado por árvores e, passando por uma porta de vaivém, penetraram num recinto onde as bati­das ritmadas de um tambor e os sons dos pífanos repetiam uma curta melodia pentatônica que Will achou vagamente parecida com uma cantiga escocesa.

  • Trata-se de música mesmo ou é uma simples gravação — indagou Will.

  • É uma gravação japonesa em fita — respondeu laconicamente Mrs. Narayan.

    Abrindo uma segunda porta, penetraram numa grande sala de esportes onde dois jovens barbudos e uma senhora idosa, pequenina e extremamente ágil, usando longas calças de cetim pre­to, ensinavam os passos de uma dança alegre a um grupo de vin­te ou trinta crianças.

  • É alguma brincadeira ou faz parte do ensino?

  • É uma mistura de ambos e também de ética aplicada. É semelhante aos exercícios de respiração de que falamos há pou­co, porém muito mais eficazes porque são bem mais violentos.

  • Esmaguemo-lo — cantavam as crianças em uníssono, enquanto pisoteavam com toda a força dos seus pequenos pés cal­çados de sandálias. — Esmaguemo-lo. — Após um furioso piso­teio final, deram início aos meneios e evoluções de um outro mo­vimento da dança.

  • Esta é chamada "dança rakshasi" — explicou Mrs. Narayan.

  • Dança rakshasi? O que é isso? — indagou Will.

  • Um rakshasi é uma espécie de demônio muito grande e desagradável. Ele personifica as paixões mais pavorosas. A dan­ça rakshasi é um artifício usado para descarregar a energia acu­mulada pela ira e pelas frustrações naquelas cabecinhas perigosas.

    "Esmaguemo-lo"... A música chegara novamente à parte do refrão: "esmaguemo-lo"...

  • Batam novamente com os pés — gritou a professora de dança, dando o exemplo. — Com mais força! Mais!...

  • O que foi que deu maior contribuição para a moralidade e para o comportamento racional? As orgias de Baco ou a Repú­blica? As Éticas de Nicomaqueanas ou as danças coribânticas? — conjeturou Will.

  • Os gregos — disse Mrs. Narayan — eram demasiadamen­te sensatos para pensar em termos de alternativas. Pensavam em termos de não, somente, mas e também. Não me refiro somente a Platão e Aristóteles, mas também às bacantes. Sem as danças vivas destinadas a aliviar as tensões, a moral filosófica teria sido impotente. Por outro lado, sem a moral filosófica, as danças vi­vas perderiam a significação. Nós nos limitamos a arrancar uma página do velho livro grego.

  • Ótimo — disse Will, que como sempre (mesmo no auge do prazer e do entusiasmo) não conseguia esquecer que era um homem que nunca aceitava o "sim" com resposta. Lembrando-se disso, deu uma gargalhada. — Afinal de contas — disse —, isso não faz nenhuma diferença. O coribantismo não impediu que os gregos cortassem os pescoços uns dos outros. Se o coronel Di­pa se decidir a entrar em ação, em que essa dança rakshasi pode­rá ajudá-los? Talvez somente sirva para auxiliá-los a se reconci­liarem com o próprio destino.

  • Concordo — disse Mrs. Narayan. — Todavia, para mim, o fato de possibilitar a reconciliação com o nosso próprio destino constitui uma realização heróica!

  • Parece que a senhora admite o fato com muita calma.

  • Qual seria a vantagem de uma atitude histérica? Nossa situação pessoal seria agravada e a situação política não melhoraria.

    Esmaguemo-lo — tornaram a gritar as crianças em unísso­no. E as tábuas tremiam com o bater dos pés. — Esmaguemo-lo.

  • Não vá pensar que esta seja a única espécie de dança que ensinamos — prosseguiu Mrs. Narayan. — Dar nova direção às forças másculas de maus sentimentos é tarefa séria. Mas não me­nos importante é a missão de expressar a cultura e os bons senti­mentos. Para esse fim, nos utilizamos de movimentos enérgicos e de gesticulação expressiva. Se o senhor tivesse vindo ontem, quando nosso mestre-visitador esteve aqui, eu poderia ter-lhe mos­trado como ensinamos esse tipo de dança. Infelizmente hoje é im­possível e ele não voltará antes de terça-feira.

  • Que espécie de dança ele ensina?

    Mrs. Narayan tentou descrever:

  • Nada de saltos, nada de piruetas, nada de corridas. Os pés estão sempre firmes no solo. Os quadris e os joelhos execu­tam movimentos de flexão e de lateralidade. Toda expressão é limitada aos braços, punhos, mãos, pescoço, cabeça, face e, so­bretudo, aos olhos. Movimentos dos ombros para cima e para fora. Movimentos intrinsecamente belos e cheios de significação simbólica. É o pensamento adquirindo forma através de um ri­tual de gestos estilizados. É o corpo transformado num hierógli­fo, numa sucessão de hieróglifos. E, do mesmo modo que na mú­sica e na poesia, essas atitudes dão formas às várias nuanças do nosso espírito. Movimentos dos músculos expressando o que se passa no consciente, traduzindo a penetração da Semelhança na multidão e levando essa mesma multidão até o Imanente, o Úni­co e o Onipotente. É a meditação em ação. É a metafísica do mahayana, expressa não em palavras, mas através dos movimentos e gestos simbólicos concluiu.

    Saíram do ginásio por uma porta diferente daquela por on­de haviam entrado e se dirigiram para a esquerda de um pequeno corredor.

  • Quem vem a seguir?

  • A 4a série elementar respondeu Mrs. Narayan. Eles estão às voltas com a Psicologia Elementar Aplicada. Concluindo isso, abriu uma porta verde.

  • Agora vocês já sabem dizia uma voz que Will reconheceu. Ninguém tem que sentir dor. Vocês já disseram a vo­cês mesmos que a alfinetada não doerá. E não doerá!

    Entraram na sala. Muito alta, no meio de um grupo de pequenos corpos, alguns gordos, outros magros, porém todos de pele escura, lá estava Susila MacPhail. Após sorrir, apontou pa­ra duas cadeiras existentes num dos cantos da sala. Ninguém tem que sentir dor. Mas não esqueçam: a dor sempre indica que alguma coisa está errada. Vocês aprenderam como eliminar a dor, mas não o façam sem antes se perguntarem: "Qual a razão desta dor?" E se for intensa e sem razão aparente, falem com suas mães, com seus professores ou com qualquer dos membros adultos do Clube de Adoção Mútua. Depois disso, eliminem a dor. Elimi­nem a dor, na certeza de que, se alguma coisa precisar ser feita, será feita. Compreenderam?

    Depois de ter respondido a todas as perguntas, Susila continuou:

  • Vamos brincar de faz-de-conta. Fechem os olhos e façam de conta que estão olhando aquele velho mainá de uma perna só que vem aqui diariamente em busca de alimento. Podem vê-lo?

    Certamente que podiam. O mainá de uma só perna era indiscutivelmente um velho amigo.

  • Vejam-no com a mesma nitidez com que o viram hoje na hora do almoço. Não fixem o olhar. Não façam nenhum esforço. Vejam somente o que chegar a vocês. Deixem o olhar pas­sear do bico à cauda do pássaro, de seu olho redondo, pequeno e brilhante até sua única perna cor-de-laranja.

  • Posso ouvi-lo disse espontaneamente uma menina. Ele está dizendo: "karuna, karuna".

  • É mentira disse outra criança com indignação. Es­tá dizendo: "Atenção!"

  • Ele está dizendo as duas coisas — afiançou-lhes Susila.

  • É possível que esteja dizendo muitas outras palavras. Mas agora iremos fazer alguns exercícios práticos. Imaginem que existem dois mainás de uma só perna. Três mainás de uma só perna. Quatro mainás de uma só perna. Vocês podem vê-los?

    As crianças disseram que sim.

  • Quatro mainás de uma só perna. Um em cada canto de um quadrado e um quinto no meio. Agora mudemos as cores deles. No momento todos são brancos. Cinco mainás brancos com cabeças amarelas e uma perna cor-de-laranja. Agora as cabeças são de um azul vivo e o resto é cor-de-rosa. Cinco pássaros cor-de-rosa com as cabeças azuis. Eles continuam mudando de cor. Agora todos são vermelhos. Cinco pássaros vermelhos com as ca­beças brancas. Cada um deles com uma perna verde-clara. Que está acontecendo, meu Deus? Não são cinco mainás! São dez. São vinte, cinqüenta, cem. Centenas e centenas. Vocês podem vê-los?

  • Alguns conseguiam vê-los sem maiores dificuldades, e para aque­les que não podiam Susila fazia proposições mais modestas.

  • Imaginem doze deles disse. Se acharem que doze é muito, pensem em dez ou em oito, que é uma quantidade apreciável de mainás. Quando todas as crianças acabaram de invocar a quantidade de mainás que tinham capacidade de imaginar, ela ba­teu palmas e disse: Todos desapareceram. Todos, sem nenhu­ma exceção. Não há mais nada aqui. Agora vocês vão deixar de ver mainás. Vocês vão me ver. Eu, representada em amarelo. Duas figuras minhas em verde. Três em azul com manchas cor-de-rosa. Quatro no vermelho mais brilhante que já viram. Bateu pal­mas novamente. Desapareceu tudo. Desta vez pensem em Mrs. Narayan e nesse homem de aparência engraçada que entrou na sala com uma perna dura. Pensem em quatro de cada um deles. Imaginem que estão no grande pátio do ginásio. Imaginem que estão dançando a dança rakshasi. Esmaguemo-los! Esmaguemo-los!

    Houve risos abafados. Os "Wills" e as "diretoras" deviam lhes ter parecido muito cômicos no papel de dançarinos.

  • Livremo-nos deles! Desapareceram! Agora, cada um de vocês verá as próprias mães e pais. Três de cada um deles correndo no playground.Cada vez mais depressa. Mais depressa. De­sapareceram... De repente, vocês voltam a vê-los. Estão, não es­tão. Estão, não estão...

    As risadinhas se transformaram em fortes gargalhadas e, no meio dos risos, soou uma campainha. A aula de Psicologia Ele­mentar Aplicada estava encerrada.

  • Qual é o objetivo de tudo isto? — perguntou Will a Susila, depois que as crianças foram brincar e de Mrs. Narayan ter voltado para seu gabinete.

  • O objetivo é fazer as pessoas compreenderem que não es­tão completamente à mercê da memória e das fantasias — respondeu Susila. — Se o que pensamos nos perturba, podemos to­mar algumas providências. Tudo é uma questão de aprender co­mo fazer e se exercitar; o processo é o mesmo de quando se apren­de a escrever ou a tocar flauta. As crianças que estavam aqui há pouco aprendiam uma técnica muito simples e que mais tarde é desenvolvida a fim de se tornar um método de liberação. Não uma liberação completa, é claro, porém "meio pão é bem me­lhor do que nenhum". Essa técnica não conduz à descoberta da natureza de Buda, mas pode ajudá-lo a se preparar para essa des­coberta. E esse auxílio talvez consista na liberação de cada uma das lembranças dolorosas que o perseguem, dos remorsos e das apreensões infundadas quanto ao futuro.

  • Perseguição é a palavra certa — concordou Will.

  • Mas não é necessário que sejamos perseguidos. Alguns dos "fantasmas" podem ser destruídos com a maior facilidade. Se os tratarmos do mesmo modo como tratamos os mainás, a você e a Mrs. Narayan. Troque suas roupas, dê-lhes outro nariz. Multiplique-os. Diga-lhes que se vão. Chame-os de volta e obrigue-os a fazer algo ridículo. Somente então destrua-os. Pense no que poderia ter feito a respeito do que sentia por seu pai se alguém lhe tivesse ensinado, na infância, alguns truques simples! Você o pintava como o mais terrível dos papões! Isso, porém não era ne­cessário. Usando sua imaginação poderia ter transformado o pa­pão num ser ridículo e mesmo num conjunto de seres ridículos. Vinte deles, sapateando e cantando Sonhei que morava em salões de mármore. Com apenas um pequeno curso de Psicologia Elementar Aplicada, toda a sua vida poderia ter sido diferente.

    Enquanto se dirigiam para o local onde o jipe estava estacionado, Will pensava na maneira pela qual se conduzira quan­do da morte de Molly. Que espécies de exorcismos imaginários poderia ter praticado naquele alvo súcubo que cheirava a almís­car e encarnava os seus frenéticos e repugnantes desejos?

    Nesse momento chegaram perto do jipe. Will deu as chaves a Susila e procurou ajeitar-se no banco. Como se uma compulsão neurótica o obrigasse a ser ruidoso a fim de compensar a sua diminuta estatura, um carro pequeno e antigo, vindo da aldeia, enveredou pela estrada e estacionou ao lado do jipe.

    Voltando-se para olhá-lo, viram Murugan debruçado à ja­nela do "baby Austin" real. A seu lado, grande e ondeada como se fosse uma nuvem de musselina branca, estava a rani.

    Will cumprimentou-a com um gesto de cabeça, recebendo em troca o mais gracioso dos sorrisos, que logo se desvaneceu ao res­ponder secamente o cumprimento de Susila.

  • Vão passear? — indagou Will de modo cortês.

  • Vamos até Shivapuram — respondeu a rani.

  • Se essa "lata velha" não se desmanchar pelo caminho — ajuntou Murugan com amargura, ligando a chave de ignição. O motor deu um último soluço obsceno e parou de funcionar.

  • Vamos visitar alguém — continuou a rani. — Alguém — acrescentou, num tom altamente conspirador.

    Sorrindo para Will, quase chegou a piscar-lhe o olho.

    Fingindo não entender que ela se referia a Mr. Bahu, Will pronunciou um "Muito bem" não muito comprometedor e, mu­dando de assunto, passou a compadecer-se com os trabalhos e preo­cupações que ela teria que suportar com os preparativos da festa de maioridade de Murugan, que ocorreria na semana seguinte.

    Murugan interrompeu-o com uma pergunta:

  • Que está fazendo por aqui?

  • Passei a tarde observando de perto o sistema educacio­nal palanês.

  • A educação palanesa — ecoou a rani. Repetiu as pala­vras balançando tristemente a cabeça. — Educação... palanesa...

  • Gostei imensamente de tudo o que me foi dito ou mos­trado por Mr. Menon, pela diretora, e do modo como Mrs. MacPhail ensina a Psicologia Elementar Aplicada — disse ele, ten­tando fazer com que Susila participasse da conversa.

    Continuando propositadamente a ignorá-la, a rani apontou um dedo grosso e acusador em direção aos espantalhos que eram vistos no campo que ficava pouco abaixo de onde estavam.

  • O senhor já viu isto, Mr. Farnaby?

    Sim, ele os vira. E onde, a não ser em Pala, existem espantalhos que são ao mesmo tempo belos, eficientes e cheios de sig­nificação metafísica?

  • E que, além de afastarem os pássaros das plantações de arroz, também afastam as crianças de Deus e de Suas Manifesta­ções — disse a rani numa voz que vibrava com uma espécie de indignação soturna. — Escute — falou erguendo a mão.

    Tom Krishna e Mary Sarojini haviam se reunido a um gru­po de cinco ou seis companheiros e se divertiam em dar puxões nos cordéis que movimentavam as marionetes sobrenaturais. Do pequeno grupo vinha o som agudo de vozes que cantavam em uníssono. Ao repetirem a cantiga pela segunda vez, Will conse­guiu distinguir as palavras:

     

Puxe, Puxe com força

Os deuses sacodem e balançam

Porém o céu continua imóvel...

 

  • Bravo — disse Will sorrindo.

  • Infelizmente isto não me diverte — disse severamente a rani. — Não é engraçado. É Trágico!

  • Ouvi dizer que esses encantadores espantalhos foram invenção do bisavô de Murugan.

  • O bisavô de Murugan foi um homem notável — disse a rani. — Notável pela inteligência, porém nem por isso menos per­verso. Possuía dons preciosos, contudo os empregou mal! O que tornou as coisas ainda piores é que ele estava completamente im­pregnado de Falsa Espiritualidade.

  • Falsa espiritualidade?

    Will olhou para o enorme exemplar da "verdadeira espiritualidade" e conseguiu inalar, através do cheiro ainda quente dos derivados do petróleo, o perfume de sândalo tão semelhan­te ao do incenso e, como ele, tão extraterreno. Subitamente se surpreendeu em divagações e foi tomado por um arrepio ao ima­ginar a aparência que teria a rani se fosse inteiramente despida das suas vestes místicas e surgisse à luz do dia exibindo toda a sua exuberante obesidade. Usando a Psicologia Aplicada como vingança, ele a multiplicou em uma, duas, dez tríades de obesidades nuas.

  • Sim, Falsa Espiritualidade — repetiu a rani. — Falava continuamente acerca de Libertação, mas por causa da sua obs­tinada recusa em seguir o Caminho Verdadeiro batalhou sempre em prol da Servidão. Fingindo humildade, seu coração era tão cheio de orgulho que recusava a admitir que existisse qualquer Autoridade Espiritual mais alta que a sua. Os Mestres, a Encar­nação e a Grande Tradição nada significavam para ele. Nada! Por essa razão, existem agora estes horríveis espantalhos. Quan­do penso nessas Pobres e Inocentes Crianças que estão sendo de­liberadamente pervertidas, a custo me contenho, Mr. Farnaby. A custo...

  • Escute, mãe, se quisermos estar de volta até a hora do jantar é melhor que partamos agora — disse finalmente Murugan, após ter olhado várias vezes e com crescente impaciência seu relógio de pulso.

    Seu tom era rude e autoritário. Era evidente que, pelo fato de se encontrar dirigindo um carro (mesmo um "baby Austin" senil) se considerava maior que a própria vida.

    Sem esperar resposta da rani, ligou o motor, engrenou o carro e partiu após um ligeiro acenar de mão.

  • Que bom que tenhamos nos livrado dela — disse Susila.

  • Você não ama sua querida rainha?

  • Não. Ela tem o condão de fazer meu sangue ferver.

  • Então, esmaguemo-la! — cantou Will em tom de brincadeira.

  • Você tem toda a razão! — concordou ela com uma gargalhada. — Infelizmente a ocasião não era própria para a dança rakshasi.

    De repente seu rosto se iluminou com uma expressão traves­sa e, sem o menor aviso, ela deu um soco nas costelas de Will.

  • Pronto! — disse. — Agora estou me sentindo bem melhor!

 

Susila ligou o motor e saíram por um atalho em declive. Depois subiram novamente e se dirigiram para a rodovia que passa­va no outro extremo da vila. Ao chegarem ao Posto Experimen­tal, estacionou junto a um pequeno bangalô de sapé, em tudo semelhante aos demais. Subiram os seis degraus que conduziam à varanda e entraram numa sala de visitas caiada.

À esquerda, no vão de uma larga janela, estava armada uma rede.

  • É para você disse ela, apontando para a rede. Aí você pode pôr a perna para cima. E, enquanto Will se ajeita­va, perguntou: Sobre que assunto iremos conversar? Pu­xou uma cadeira de vime e sentou-se a seu lado.

  • Podemos falar sobre a bondade, a beleza e a verdade. Ou, talvez, sobre a feiúra, a maldade e sobre coisas ainda mais reais disse Will com um sorriso escarninho.

  • Acho que devíamos falar a seu respeito. Que tal continuarmos do ponto em que paramos da última vez? disse ela, sem dar atenção à sua ironia.

  • Foi o que estava sugerindo quando me referi ao feio, ao mau e àquilo que é mais verídico do que a verdade oficial.

    —- Quer exibir seu estilo de prosa ou quer realmente falar a seu respeito?

  • Estou verdadeiramente ansioso, mas minha vontade de não falar a meu respeito é tão grande quanto meu desejo de extroversão. Disso nasceu, como já deve ter observado, todo o meu inesgotável interesse pelas artes, ciência, filosofia, política, lite­ratura e por tudo, enfim, que não seja aquilo que tem realmente alguma importância.

    Depois de um longo silêncio, Susila começou a falar sobre a Catedral de Wells, num tom de quem recorda coisas sem importância. Relembrou o pio das gralhas e os cisnes brancos desli­zando entre os reflexos de nuvens que flutuavam na superfície das águas. Em poucos minutos, Will também estava flutuando.

  • Fui muito feliz durante toda a minha estada em Wells — disse ela. — Maravilhosamente feliz! Você também foi, não é verdade?

    Will não respondeu. Estava se lembrando dos dias passados, havia vários anos, nas pradarias verdes, antes de seu casamento com Molly, antes mesmo de terem sido amantes. Quanta paz! Que mundo compacto, sem vermes, todo feito de grama e de flores! E entre eles fluíra aquela espécie de sentimento natural e sem dis­torções, que não experimentava desde os dias distantes em que a tia Mary ainda vivia. A tia Mary fora a única pessoa a quem realmente amara. Agora ali estava Molly, que era sua sucessora. Que dádiva! Era o amor soando em outro tom, no entanto a me­lodia e as sutis harmonias eram as mesmas. Recordou, então, a quarta noite da estada deles. Molly batera na parede que separa­va seus quartos e ele, encontrando a porta escancarada, no escu­ro e às apalpadelas procurara a cama. Lá, inteiramente despida, a "irmã de caridade" se esforçara ao máximo (e falhara lamentavelmente) a desempenhar o papel de "esposa do amor".

    De repente, como acontecia quase todas as tardes, ouviu o barulho da ventania e, atenuado pela distância, percebeu o rugi­do surdo da chuva caindo na folhagem espessa. Esse rugido au­mentava à medida que a chuva se aproximava, e em poucos se­gundos as gotas estavam batendo nas vidraças, com a mesma in­sistência com que martelaram as janelas do seu estúdio no dia daquela última conversa: "Você está falando sério, Will?"

    A dor e a vergonha do seu ato fizeram-no sentir vontade de chorar alto. Mordeu os lábios.

  • Em que está pensando? — perguntou Susila.

    Não era só uma questão de pensar. Ele a via e, nesse momento, ouvia sua voz: "Você está falando sério, Will?" E, atra­vés do barulho da chuva, ele ouviu sua própria resposta: "Estou".

    O rugido tinha diminuído, o temporal amainara. Na vidra­ça, a chuva tamborilava timidamente. Em qual das vidraças? Quando e onde? Na vidraça daquela sala? Na outra?

  • Em que está pensando? — repetiu Susila.

  • Estou pensando no que fiz a Molly.

  • O que foi que fez a ela? — perguntou.

    Ele não queria responder, mas Susila estava inexorável.

  • Diga o que fez.

    Uma rajada violenta fez as janelas vibrarem. Estava choven­do forte e para Will Farnaby aquela chuva parecia ter por objetivo obrigá-lo a recordar coisas que não queria; parecia compeli-lo a dizer em voz alta as coisas vergonhosas que devia guardar consigo.

  • Diga-me.

    Relutantemente e contra a própria vontade, começou a falar:

  • "Você está falando sério, Will? Por causa de Babs? Babs? Deus o ajude!" Sim, por causa dela. Acreditasse ou não, estava falando sério. E ela saiu andando debaixo da chuva... Quando voltei a vê-la, estava no hospital.

  • Ainda estava chovendo? — perguntou Susila.

  • Ainda.

  • Tão forte como agora?

  • Quase. — Will não estava mais ouvindo um aguaceiro numa tarde tropical, mas o tamborilar contínuo na janela do quar­tinho onde Molly estava morrendo.

    "Sou eu", dissera, querendo abafar o ruído da chuva. "É Will." Nada aconteceu. De repente, sentiu a mão de Molly mover- se quase imperceptivelmente dentro da sua. Sentiu a pressão vo­luntária de seus dedos e, depois de alguns segundos, a descontração involuntária, a flacidez completa.

  • Repita tudo, Will.

    Ele sacudiu a cabeça. Era muito penoso, muito humilhante.

  • Repita — insistiu Susila. — É o único modo.

    Fazendo um esforço enorme, repetiu a odiosa história. Es­tava mesmo falando sério? Sim, estava. Quisera feri-la. Talvez quisesse (alguém sabe com certeza o que realmente quer?) matá-la. Tudo por Babs! Ou pelo Mundo Bem Perdido! Não o seu mun­do. O mundo de Molly e, no centro dele, a vida que o havia cria­do. Extinto, para que no escuro pudesse sentir aquele perfume delicioso. Por causa daqueles reflexos musculares, daquela enor­midade de prazer. Por causa daquelas habilidades despudoradas, devastadoras e intoxicantes. "Adeus, Will." E a porta se fechou atrás dela com um ruído fraco e seco. Ele quis chamá-la. Mas o amante de Babs recordava suas habilidades, seus reflexos e o cheiro de almíscar que se emanava de um corpo transfigurado no auge do prazer. Lembrando-se dessas coisas, permaneceu parado à janela. Observou o carro se afastar na chuva e, quando o viu dobrar a esquina, sentiu-se invadido por uma vergonhosa alegria. Finalmente estava livre! Três horas mais tarde, no hos­pital, sentiu que estava ainda mais livre do que esperava. Naque­le momento, sentiu pela última vez a fraca pressão de seus de­dos. Sua última mensagem de amor. A mão se tornou flácida e, de repente, a mensagem foi interrompida. Percebeu apavorado que não estava mais respirando.

  • Morta! — murmurou, e se sentiu sufocado. — Morta!

  • Suponha que não tenha sido por sua culpa. Pense que ela morreu subitamente sem que você tivesse tido qualquer inter­ferência. Não teria dado quase no mesmo? — perguntou Susila.

  • O que é que você quer dizer com isso?

  • Quero dizer que há mais do que complexo de culpa em seus sentimentos a respeito da morte de Molly. É a própria mor­te como ela é que você acha tão terrível, insensata e má.

    Ela agora estava pensando em Dugald.

  • Insensata e má — repetiu ele. — E justamente pelo fato de tudo ser tão bestial e sem sentido foi que me transformei num observador profissional de execuções e, como um abutre, vagueio de um a outro extremo da terra acompanhando o cheiro da mor­te. As pessoas boas e cordatas não têm a menor idéia do que seja o mundo. Não me refiro às épocas excepcionais, como a guerra, mas à vida em tempos normais. Durante todo o tempo!

    À medida que falava, estava vendo (com a mesma velocida­de e nitidez das visões dos que se afogam) todas as cenas odiosas que presenciara no curso de suas bem-remuneradas peregrinações a qualquer antro ou matadouro que, sendo bastante repulsivo, pudesse ser classificado como “notícia''. Os negros da África do Sul, o homem na câmara de gás em San Quentin, os corpos mu­tilados numa fazenda da Argélia. Multidões, policiais e pára-quedistas em todos os lugares. A visão daquelas crianças de pele escura, barrigudas, de pernas finas e em cujas pálpebras irrita­das as moscas enxameavam. Por toda a parte os cheiros nausean­tes da fome e da doença. Pior do que tudo, o terrível cheiro da morte. De repente sentiu que estava respirando a essência de al­míscar que se exalava do corpo de Babs. Sentiu seu perfume co­mo se estivesse misturado e impregnado com o odor da morte Ao respirar o perfume de Babs, lembrou-se de uma de suas brincadeiras sobre a composição química do Purgatório e do Para so. O Purgatório é um misto de tetraetilenodiamina com hidro­gênio sulfurado. O Paraíso, não há dúvida, é feito de sintrini-tropsibutil tolueno e de um coquetel de impurezas orgânicas. Ah, ah, ah! (As delícias da vida social!) Os odores do amor e da mor­te foram substituídos, numa fração de segundos, pelo cheiro de um animal — cheiro de um cão.

    O vento tornou-se novamente violento e fortes pingos de chu­va batiam de encontro à vidraça.

  • Ainda está pensando em Molly? — indagou Susila.

  • Não. Pensava em algo que estava completamente esque­cido — respondeu. — Não tinha mais do que uns quatro anos de idade quando se deu o fato que agora me veio à mente. Coitado do Tigre!

  • Quem é esse Tigre?

    Tigre fora o seu belo cão perdigueiro. A única fonte de luz naquela casa sombria onde passara a infância. Tigre. Querido Ti­gre! Em meio a todo aquele medo e aquela infelicidade, entre o ódio zombeteiro que seu pai nutria por tudo e por todos e o auto- sacrifício consciente de sua mãe, Tigre irradiava compreensão e amizade. Que latido vigoroso e cheio de uma alegria que não con­seguia conter!

    Sua mãe costumava pô-lo no colo e falar-lhe a respeito de Deus e de Jesus. Porém havia mais Deus em Tigre do que em to­das aquelas histórias bíblicas. Para Will, Tigre era a própria En­carnação. Mas, um dia, a Encarnação apareceu com melancolia.

  • Que houve então?

  • Sua cama fica na cozinha e eu estou ajoelhado perto de­le. Ao acariciá-lo, noto que seu pêlo está diferente do que era an­tes da doença. Parece pegajoso. Sinto o mau cheiro que emana. Se não gostasse tanto dele, sairia correndo, pois me custa ficar a seu lado. Porém gosto mais dele do que de qualquer pessoa ou coisa. Enquanto o acaricio, digo-lhe que em breve estará bom. Muito em breve, amanhã de manhã. De repente, ele começa a tremer. Segurando sua cabeça entre as mãos, tento fazer parar esse tremor. Tudo em vão. O tremor se transforma numa terrível crise convulsiva. Estou amedrontado e nauseado. Estou terrivel­mente amedrontado! Após algum tempo, cessam os tremores e as convulsões e ele fica inteiramente imóvel. Levanto sua cabeça e, ao soltá-la, ela cai para trás, fazendo um ruído semelhante a um pedaço de osso recoberto de carne.

    Will parou de falar. Lágrimas lhe rolavam pelas faces e ele estremecia com os soluços de uma criança de quatro anos que chora a perda do seu cão e se defronta com a terrível e inexplicá­vel realidade da morte. Como se uma chave tivesse sido aciona­da em seu cérebro, foi sacudido por um ligeiro tremor e voltou a seu estado normal. Era novamente um adulto. Cessara de divagar.

  • Desculpe-me. — Enxugou as lágrimas, assoou o nariz e continuou falando: — Essa foi a minha primeira apresentação ao Horror Fundamental. Tigre foi meu único amigo e consolo. E, naturalmente, isso era algo que o Horror Fundamental não podia tolerar. O mesmo aconteceu com a tia Mary. Ela foi a úni­ca pessoa que realmente amei, admirei, e em quem confiei intei­ramente. Meu Deus! Como foi horrível o que o Horror Funda­mental fez a ela!

  • Conte-me — pediu Susila.

    Will hesitou e, depois, com um encolher de ombros, disse:

  • Por que não? Mary Frances Farnaby era a irmã mais no­va de meu pai. Casou-se aos dezoito anos (poucos antes da Primeira Guerra Mundial) com um soldado profissional. Frank e Mary. Mary e Frank. Que harmonia! Que felicidade! — Sorriu. — Mesmo fora de Pala ocasionalmente encontramos algumas ilhas de decência. Pequenos recifes. De vez em quando depara­mos com uma Taiti exuberante, mas que infelizmente está rodeada pelo Horror Fundamental. Duas pessoas jovens na sua Pala par­ticular. Numa bela manhã, no dia 4 de agosto de 1914, Frank embarcou com a Força Expedicionária. Na véspera de Natal, Mary deu à luz uma criança disforme, que sobreviveu o tempo necessário para que visse tudo o que o Horror Fundamental po­de fazer. Somente Deus pode conceber um idiota microcéfalo. Três meses depois, Frank foi atingido por um estilhaço e morreu em conseqüência de uma gangrena. Tudo isso aconteceu antes de mim — continuou Will após uma pequena pausa. — Quando co­nheci tia Mary, ela estava na casa dos vinte e se dispusera a dedi­car a vida às pessoas idosas. Ajudava-as nos asilos para a velhice e nas casas onde viviam engaioladas. Ajudava àqueles que repre­sentavam um peso para seus próprios filhos e netos. Amparava os mendigos. E quanto mais decrépitos, extravagantes e rabugen­tos, maior sua dedicação. Como eu odiava, na minha infância, os velhos de tia Mary! Cheiravam mal, eram horrivelmente feios e maçantes. Alem disso, estavam geralmente zangados. Mas tia Mary os estimava muito. Gostava indiferentemente dos ricos e dos miseráveis; estimava-os apesar de todos os defeitos. Minha mãe costumava falar muito sobre a caridade cristã, mas de algum modo não se podia acreditar no que dizia. Em seus contí­nuos auto-sacrifícios, só conseguia sentir o dever, jamais o amor. Quanto à tia Mary, ninguém tinha a menor dúvida. Seu amor era como que uma espécie de irradiação física, alguma coisa que se podia sentir e que era quase tão evidente como o calor e a luz. Nas temporadas que passei com ela nos campos e em minhas vi­sitas quase diárias, depois que se mudou para a cidade, eu tinha a sensação de ter saído de uma geladeira para a luz e o calor do sol. Sentia a vida me invadir sob a influência da sua luz e do seu calor. Foi então que o Horror Fundamental voltou a trabalhar. "Agora sou uma amazona", disse em tom de brincadeira, após a primeira operação.

  • Por que uma amazona? — perguntou Susila.

  • Às amazonas tinham o seio direito amputado. Eram guerreiras e o seio as atrapalhava quando atiravam com os longos ar­cos. "Agora sou uma amazona", disse. — E Will Farnaby reviu com os olhos do espírito um sorriso naquela fisionomia de traços marcados, e pôde ouvir (com os ouvidos da imaginação) o tom di­vertido daquela voz clara e forte. — Decorridos alguns meses, o outro seio teve que ser amputado. Depois vieram os raios X, a doença da irradiação e a degradação lenta. — O rosto de Will ad­quiriu uma expressão de ferocidade. — Se não fosse tão indescritivelmente hediondo, seria até divertido. Que obra-prima de ironia! Ali estava uma alma que irradiava bondade, amor e obstinada caridade. Foi então que, sem nenhuma causa aparente, alguma coisa começou a funcionar mal. Em vez de ignorar o fato, uma peque­nina peça de seu corpo começou a obedecer à segunda lei da ter­modinâmica. E, à medida que o corpo se desintegrava, a alma começou a perder sua virtude e sua verdadeira identidade. O he­roísmo a abandonou. O amor e a bondade se evaporaram. Nos últimos meses de vida ela não era mais a tia Mary a quem eu tanto amara e admirara. Era alguém que dificilmente se distinguia (e is­so foi o toque final e mais requintado do Humorista) dos piores e dos mais fracos daqueles velhos aos quais amava e protegia. Tinha que ser humilhada e degradada. E quando a degradação atingiu o máximo, foi sendo conduzida, lentamente e entre dores, até a mor­te solitária. Solitária — insistiu Will —, porque ninguém pode aju­dar, ninguém pode estar sempre em torno. As pessoas têm que sobreviver enquanto você está sofrendo, enquanto você está mor­rendo. No entanto, todos estão presentes em outro mundo. No seu mundo você não é nada, absolutamente nada. Está só no so­frimento, na morte e mesmo no amor. Continua só, mesmo quan­do participa integralmente do prazer.

    Os odores de Babs e de Tigre. O odor que se desprendia do corpo devastado da tia Mary quando o câncer corroeu seu fíga­do. Aquele cheiro de sangue contaminado! No meio de todos es­ses odores nauseantes ou intoxicantes, atento a tudo, permane­cia uma consciência solitária. Ali estava uma criança, um rapaz e um homem condenado a permanecer só. Irremediavelmente só.

  • Para culminar tudo isso, ela era uma mulher ainda jo­vem. Tinha quarenta e dois anos e não queria morrer. Não podia compreender o que estavam fazendo com ela. O Horror Funda­mental teve que levá-la à força. Eu estava lá e presenciei tudo.

  • Será por isso que você se recusa a aceitar o "sim" como resposta?

  • Alguém pode admitir que o "sim" respondia a alguma coisa? "Sim" é faz-de-conta. Não é mais que pensamento positi­vo. As coisas básicas e finais são sempre respondidas com a pa­lavra "não". Espírito? Não! Amor? Não! Sabedoria, significa­ção, heroísmo? Não!

  • A exuberante vitalidade e alegria de Tigre. Tigre tão cheio de Deus! Depois, o mesmo Tigre transformado pelo Horror Fun­damental num pacote de lixo. Lixo que para ser removido exigiu a vinda de um veterinário remunerado. Depois de Tigre foi a vez da tia Mary. Mutilada, torturada, arrastada na lama, degradada e finalmente transformada (do mesmo modo que Tigre) num pacote de lixo. A única diferença foi que sua remoção foi feita por agente funerário. Um pastor foi contratado para nos fazer crer que tudo aquilo (num sentido de algum modo sublime e pickwickiano) era perfeitamente natural. Vinte anos depois, um outro pastor foi contratado para repetir o mesmo palavrório sobre o caixão de Molly. "Se, depois de observar a conduta dos homens, tivesse luta­do com as bestas em Éfeso, que lucro obteria se os mortos não se levantassem? Vamos comer e beber porque amanhã morreremos." — Will deu uma das suas gargalhadas de hiena. — Que lógica impe­cável, que sensibilidade, que refinamento moral!

  • Contudo, se você é um homem que não aceita o "sim" como resposta, por que cria objeções?

  • Para ser coerente não deveria objetar — concordou ele. Mas as pessoas continuam sendo estetas e gostam de que o "não" seja dito com elegância. "Vamos comer e beber porque amanhã mor­reremos." E Will torceu o rosto numa expressão de nojo.

  • Apesar disso, sob um certo aspecto, este conselho é excelente. Comer, beber, morrer: três manifestações da vida impes­soal e universal. Os animais vivem inconscientemente essa vida impessoal e universal. O homem comum sabe do fato mas não o vive e, se algum dia se dispusesse a pensar seriamente a respei­to dele, se recusaria a aceitá-lo. Uma pessoa esclarecida sabe, vi­ve e o aceita na íntegra. Essa pessoa come, bebe e no devido tem­po vem a morrer, porém de modo diferente.

  • Será que ressuscita? perguntou Will, ironicamente.

  • Esta é uma das perguntas que Buda sempre se recusou a discutir. O fato de acreditar na vida eterna nunca ajudou ninguém a viver na eternidade nem tampouco o fato de não admiti-la. Assim é melhor que você pare com os prós e os contras (esse é o conselho de Buda) e prossiga na sua missão.

  • Que missão?

  • A missão de se esclarecer, que é a missão de todos nós. O objetivo preliminar de todas as práticas iogas consiste em nos fazer cada vez mais cônscios.

  • Mas eu não quero me tornar mais cônscio. Quero ficar menos cônscio! Quero ter cada vez menos consciência dos hor­rores semelhantes à morte de tia Mary e os pardieiros de Rendang-Lobo. Menos consciência das visões hediondas e dos cheiros re­pugnantes. Quero ter menos noção, mesmo de alguns odores de­liciosos acrescentou quando percebeu que, misturado ao chei­ro do cão e do câncer, sentira uma brisa perfumada vinda da al­cova cor-de-rosa. Menos cônscio do meu aumento de peso e da anemia subumana de outros indivíduos. Menos cônscio do meu excelente estado de saúde no meio de um oceano de malária e de ancilostomíase. De minha esterilidade que me permite gozar em segurança os prazeres do sexo num mar de bebês famintos. "Perdoemo-los, porque não sabem o que fazem." Que estado de coisas verdadeiramente abençoado! Infelizmente, sei o que es­tou fazendo. Sei até demais! E, agora, você me pede que procure me tornar ainda mais cônscio!

  • Não estou lhe pedindo nada. Estou simplesmente lhe transmitindo os conselhos de uma sucessão de "pássaros" velhos e astutos, de Gautama ao velho rajá. Comece por se tornar ple­namente consciente do que pensa ser; isso o auxiliará a descobrir quem realmente é.

    Will levantou os ombros.

  • Sempre pensamos ser uma coisa única e maravilhosa, em tor­no da qual gravita o universo. Na realidade, não representamos mais que uma discreta protelação na marcha contínua da entropia.

  • Isso é exatamente a primeira metade da mensagem de Buda. Uma alma transitória e a inevitabilidade do sofrimento. Mas ele não parou aí. Sua mensagem tinha uma segunda parte. Esse retardo temporário da entropia nada mais é do que a simples di­luição da Semelhança. Essa ausência de uma alma eterna é tam­bém a natureza de Buda.

  • Ausência de alma, isso é fácil de admitir. Mas o que me diz a respeito da existência do câncer e da degradação lenta? O que me diz da fome e da superpopulação? O que me diz do coro­nel Dipa? Será que representam a Semelhança?

  • Sem dúvida. Mas descobrir a natureza de Buda é bastan­te difícil para todos aqueles que estão profundamente envolvidos nesses assuntos. Reforma social e saúde pública são pré-requisitos para que possa haver qualquer espécie de esclare­cimento.

  • Apesar das reformas sociais e da saúde pública, o povo ainda morre. Mesmo em Pala — acrescentou Will mordazmente.

  • Por isso mesmo o corolário do bem-estar tem que ser dhyana: a condensação de todas as iogas da vida e da morte. As­sim, a despeito de tudo, mesmo no momento da agonia final vo­cê continua a ter consciência do que realmente é.

    Ouviu-se o som de passos no assoalho da varanda e uma voz de criança chamou:

  • Mãe!

  • Estou aqui, meu bem — respondeu Susila.

    A porta foi aberta de repente e Mary Sarojini entrou correndo na sala.

  • Eles querem que a senhora vá logo, mamãe — disse a menina, ofegante. — É vovó Lakshmi. Ela está... — Só então per­cebeu que Will Farnaby estava na rede. Interrompeu a frase ini­ciada e disse: — Oh! Não sabia que você estava aí.

    Will acenou com a mão e não falou nada. Ela retribuiu com um ligeiro sorriso e se voltou para a mãe.

  • Vovó Lakshmi teve uma piora súbita e vovô Robert ain­da está no Posto das Grandes Altitudes; até o momento não conseguiram se comunicar com ele pelo telefone.

  • Você correu durante todo o percurso?

  • Sim, a não ser nos locais muito íngremes.

    Susila passou o braço em torno da menina e beijou-a. De repente levantou-se, plena de eficiência.

  • É a mãe de Dugald.

  • Ela está...? — Olhou para Mary Sarojini e voltou a olhar para Susila. A morte seria tabu? Podia ser mencionada na presença de crianças?

  • Quer saber se ela está morrendo?

    Will fez um sinal afirmativo com a cabeça.

  • Já estávamos esperando — prosseguiu Susila. — Mas não para hoje. Ela parecia ter melhorado um pouco. — Balançou a ca­beça. — Tenho que ir para seu lado, mesmo que esteja num outro mundo. Na verdade — acrescentou —, o outro mundo não é tão completamente diferente como se pensa. Sinto muito que tenha­mos de interromper nossa conversa. Continuaremos em outra oca­sião. Que pretende fazer agora? Quer ficar aqui ou quer ir à casa do dr. Robert? Talvez prefira vir comigo e com Mary Sarojini...

  • Na qualidade de observador profissional de execuções?

  • Não — respondeu ela enfaticamente. — Não o quero co­mo um observador profissional de execuções, e sim como um ser humano, como alguém que necessita saber como viver e morrer. Como alguém que necessita disso com tanta urgência como qual­quer um de nós.

  • Que precisa com muito mais urgência que a maioria das pessoas! No entanto, não irei atrapalhar?

  • "Se souber sair do caminho, não atrapalhará a passagem dos outros."

    Segurando sua mão, ela o ajudou a sair da rede. Dois minu­tos depois, passavam a lagoa de lótus e a grande imagem do Bu­da meditando sob o capelo da naja. Passaram pela imagem do touro branco e atingiram a entrada principal do acampamento. A chuva tinha passado e num céu verde nuvens enormes tinham um rubor de arcanjos. O sol se punha no Ocidente e sua lumino­sidade tinha um brilho quase sobrenatural.

     

Soles occidere et redire possunt;

Nobis cum semel occidit brevis lux,

Nox est perpetua una dormienda.

Da mi basia mille.

 

Crepúsculos e morte. Morte e beijos. Beijos dos quais resultam nascimentos. Conseqüentemente, morte para outra geração de observadores de crepúsculos.

  • O que é que você diz aos que estão morrendo? perguntou Will. Que não se preocupem com a imortalidade e que prossigam na missão?

  • Se prefere encarar o assunto desse modo, isso é exata­mente o que fazemos. Prosseguir na busca do Conhecimento, nisto reside toda a arte de morrer.

  • Vocês ensinam essa arte?

  • Eu diria de outro modo. Nós os auxiliamos na prática da arte de viver, mesmo quando estão às portas da morte. Quando se tem consciência da vida impessoal e universal que existe em cada um de nós, a pessoa sabe o que realmente é. Nisto consiste a arte de viver e isso é o que podemos oferecer àquelas que vão morrer. Até o último minuto. Talvez além mesmo do fim.

  • Além? interrogou Will. Não disse que isso era uma coisa em que os agonizantes não deviam pensar?

  • Ninguém lhes pede para que pensem a respeito disso. Nós os auxiliamos a sentir o além, se é que tal coisa existe. Se existir repetiu Susila. Se a vida universal continuar quando nos separamos dos nossos corpos.

  • Acredita que aconteça?

    Susila sorriu.

  • Minha opinião pessoal está fora de discussão. O que importa é o que possa pensar impessoalmente, enquanto estou vi­vendo, quando estiver morrendo e talvez mesmo depois de estar morta.

    Estacionou o carro e desligou o motor. Entraram na cidade a pé. O dia de trabalho havia terminado e na rua principal a aglo­meração era tão grande que dificultava o trânsito.

  • Vou na frente. Esteja no hospital dentro de uma hora disse dirigindo-se a Mary Sarojini. Não chegue antes.

    Após essas palavras, Susila se esgueirou entre os grupos de pessoas que passavam lentamente e desapareceu.

  • Agora é você quem está de guarda disse Will sorrindo para a menina.

    Mary Sarojini concordou com um aceno de cabeça e segu­rou sua mão.

  • Vamos ver o que está acontecendo na praça.

  • Quantos anos tem sua avó Lakshmi? indagou Will quando começaram a abrir caminho entre a multidão.

  • Não sei bem respondeu Mary Sarojini. Ela parece ser velhíssima. Mas pode ser que seja porque sofre de câncer.

  • Você sabe o que é o câncer?

    Mary Sarojini estava perfeitamente informada.

  • É o que acontece quando uma parte de você se esquece do todo e começa a agir como as pessoas loucas: vai crescendo, crescendo, como se nada mais existisse no mundo. E esse cresci­mento geralmente só pára quando a pessoa morre.

  • Presumo que seja isso que está acontecendo com sua avó.

  • Agora ela precisa de alguém que a ajude a morrer.

  • Sua mãe ajuda com freqüência as pessoas que vão morrer?

    A menina balançou a cabeça.

  • Ela é excelente nisso.

  • Você já viu alguém morrer?

  • É claro respondeu Mary Sarojini, num tom de voz que traduzia a surpresa que a pergunta lhe causara. — Deixe-me pen­sar... Depois de um cálculo mental, continuou: Já vi cinco pessoas morrerem. Seis, se contar um bebê.

  • Quando eu tinha sua idade, ainda não havia visto nin­guém morrer.

  • É verdade?

  • Sim. Vi somente cachorro.

  • Os cães morrem com mais facilidade que as pessoas. Eles não falam sobre o assunto antes da hora.

  • Como se sente... ao ver as pessoas morrerem?

  • Não é tão feio como o nascimento dos bebês. Isso, sim, é uma coisa medonha. Pelo menos, dá essa impressão. Depois, quando você se lembra de que a dor foi suprimida, a coisa muda de aspecto.

  • Acredite se quiser, mas nunca assisti ao nascimento de uma criança.

  • Nunca? Mary Sarojini estava espantada. Nem quando estava na escola?

    Will teve a visão de seu diretor, em vestes sacerdotais, conduzindo trezentos rapazolas de batina preta durante uma visita à maternidade.

  • Nem mesmo nos meus tempos de escola — disse em voz alta.

  • Nunca viu ninguém nascer nem morrer! Como foi que veio a aprender essas coisas?

  • Na escola que eu freqüentava não aprendíamos coisas. Só nos ensinavam palavras.

    A menina olhou-o, balançou a cabeça e, levantando a pequenina mão escura, bateu significativamente na testa.

  • Loucos! Ou será que seus professores eram apenas ignorantes?

    Will riu alto.

  • Eram educadores altamente qualificados, de todo devotados ao mens sana in corpore sano e à manutenção da tradição ocidental. Agora, me diga uma coisa: você nunca teve medo?

  • De pessoas tendo criança?

  • Não. Você nunca teve medo ao ver as pessoas morrendo?

  • Tive — respondeu ela após um momento de silêncio.

  • E o que foi que você fez?

  • Fiz o que me foi ensinado: tentei descobrir qual a parte de mim que tinha medo, e por quê.

  • E qual delas estava amedrontada?

  • Esta — dizendo isso, apontou para sua boca aberta. — Aquela que fala e que Vijaya chama de "pequena Miss Cibber". A que está sempre falando das coisas desagradáveis de que me lembro e de todas as grandiosas e impossíveis que penso poder realizar. Esta é a que me apavora.

  • Por quê?

  • Creio que isso acontece pelo fato de ela estar sempre falando em altas vozes ou para si mesma das coisas terríveis que talvez lhe aconteçam. Mas existe uma outra que não tem medo.

  • Qual delas?

  • Aquela que não fala, apenas olha, escuta e sente o que lhe vai no íntimo, e que algumas vezes, e de modo súbito, vê to­da a beleza das coisas — acrescentou Mary Sarojini. — Estou dizendo, ela vê a beleza durante todo o tempo, mas eu nada vejo a não ser que ela desperte minha atenção. E é nesse momento que, de repente, passo a ver tudo lindo! Tudo belo, muito belo!... Mes­mo a sujeira dos cães. — E apontou para um enorme exemplar que se encontrava por perto.

    A rua estreita pela qual seguiam desembocava na praça do mercado. Os últimos raios de sol ainda beijavam o pináculo es­culpido do templo e os pequenos mirantes cor-de-rosa que orna­vam o teto do edifício da prefeitura. Na praça predominava o lusco-fusco e já era noite sob a enorme figueira-de-bengala. As vendedoras já haviam acendido as lâmpadas que estavam pen­duradas entre as cordas e os pilares das barracas. Verdadeiras ilhas de forma e cor emergiam da escuridão das folhagens e figuras morenas surgiam da invisibilidade, ganhando uma existência efê­mera e brilhante antes de voltarem ao nada. Nos vazios entre os altos edifícios, uma verdadeira Babel de inglês e palanês vinha se mesclar aos pregões, aos assobios, aos gritos de papagaios e aos latidos de cães. A confusão era enorme. Empoleirado num mirante cor-de-rosa, um par de mainás implorava atenção e compaixão. De uma cozinha ao ar livre, no centro da praça, emana­va o cheiro apetitoso de cebola, de pimentão, de açafrão, de pei­xe frito, de bolos que estavam sendo feitos e de arroz cozido. Atra­vés da densa profusão de odores, como se fosse um lembrete da Outra Margem, pairava o perfume tênue, doce e de uma pureza etérea, emanado das multicoloridas guirlandas de flores que es­tavam à venda ao lado da fonte.

    A escuridão se adensava e, nos postes arqueados, as lâmpa­das foram acesas. Reflexos brilhantes se irradiavam dos vistosos colares, pulseiras e anéis que adornavam os corpos lustrosos cor-de-cobre das mulheres. Sob a luz das lâmpadas, os contornos tornavam-se mais dramáticos e as formas adquiriram maior reali­dade, como se quisessem afirmar suas presenças. As sombras tor­navam as órbitas mais profundas e destacavam os contornos do nariz e do queixo. Modelados por luz e sombra, os seios jovens pareciam mais opulentos e os rostos dos velhos pareciam mais enrugados e encovados.

    De mãos dadas, Will e Mary Sarojini atravessaram a multidão.

    Após cumprimentar a menina, uma senhora de meia-idade perguntou a Will:

    — O senhor é o homem que veio do "mundo exterior"?

  • Sim. Quase dos confins do "mundo exterior" — assegurou-lhe.

    Após olhá-lo por um instante, ela sorriu de modo amistoso, acariciou-lhe o rosto e disse:

  • Todos nós sentimos pena do senhor.

    Caminharam um pouco mais e pararam nas imediações de

    um grupo que, reunido junto à escadaria do templo, escutava um homem ainda jovem tocando um instrumento de haste alonga­da, semelhante a um alaúde, cantando em palanês. Alternava pe­ríodos de declamação rápida com melismas vocais prolongados e monótonos, semelhantes aos dos pássaros. A isso se seguia uma alegre melodia de tons vivos e que terminava com um grito. Da multidão partiam sons de risadas. Depois de alguns compassos musicais, cantou mais um ou dois versos e dedilhou os acordes finais. Um coro de comentários incompreensíveis veio se mistu­rar à nova onda de aplausos e de risos.

  • O que foi que ele cantou?

  • Uma canção acerca de meninos e meninas dormindo jun­tos — foi a resposta de Mary Sarojini.

  • Oh! Will ficou embaraçado, porém ao olhar para a face tranqüila da menina compreendeu que não havia razão para isso. Era evidente que o fato de meninos e meninas dormirem jun­tos era encarado com tanta naturalidade como o fato de irem à escola, correrem juntos e de virem à morrer.

  • A parte que os fez rir foi quando ele disse que o futuro Buda não teria que deixar sua casa para ir receber a Sabedoria sob a árvore Bodhi, pois a receberia mesmo deitado com a princesa.

  • Que você pensa disso?

  • Acho que é uma boa idéia, pois desse modo a princesa também fica sábia.

  • Você tem razão. Sendo um homem, não tinha pensado na princesa.

    O tocador de alaúde, após tanger uma escala de sons incomuns, seguida por uma sucessão de arpejos, começou a cantar em inglês:

     

Todos falam de sexo; mas não os leve à sério —

Nem cortesã nem ermitão, nem Paulo nem Freud.

Ame — e os seus lábios, e os seios dela,

Como que por encanto, receberão

A própria Essência, a Semelhança, o Vazio.

 

A porta do templo foi aberta. O perfume do incenso se misturou aos odores de cebola e peixe frito da praça. Uma velha saiu e desceu cautelosamente os degraus.

  • Quem foram Paulo e Freud? — perguntou Mary Sarojini quando recomeçaram a andar.

    Will começou a fazer um breve relato do Pecado Original e do Plano de Redenção. A menina o escutou atentamente.

  • Não é de admirar que a canção diga que não os levemos a sério.

  • Depois disso vieram Freud e os complexos de Édipo.

  • Édipo? Esse é o nome de um espetáculo de marionetes que vi na semana passada e que será reapresentado hoje à noite. Você gostaria de assistir? É muito bonito.

  • Achou bonito? E aquela cena quando a velha descobre que é a mãe dele e se enforca? Você achou bonito quando Édipo arrancou os próprios olhos?

  • Ele não arrancou os olhos — respondeu a menina.

  • No lugar em que nasci, ele arranca os olhos.

  • Aqui se limita a dizer que vai arrancá-los e sua mãe ape­nas tenta se enforcar. Mas ambos foram dissuadidos dos seus intentos.

  • Por quem?

  • Pelo menino e pela menina de Pala.

  • Como foram introduzidos na peça? — indagou Will.

  • Não sei. Eles aparecem nela. Agora se chama Édipo em Pala. Por que razão não haveriam de tomar parte?

  • Você diz que essas crianças dissuadiram Jocasta da idéia do suicídio e convenceram Édipo a não arrancar os olhos, não é verdade?

  • Sim. Tudo aconteceu no momento exato. Ela já estava com a corda em torno do pescoço e ele já tinha nas mãos dois estiletes. Mas o menino e a menina de Pala lhes disseram para não serem tolos, pois tudo não passara de obra do acaso. Édipo não sabia que o velho era seu pai. O velho o atingira na cabeça, e Édipo se descontrolara, pois ninguém lhes ensinara a dançar a dança rakshasi. Quando foi coroado rei, teve que se casar com a velha rainha, que era sua própria mãe. Mas ambos ignoravam isso. A única coisa que tinham que fazer, quando descobriram tudo, era darem o casamento por terminado. Essa história de que o casamento de Édipo com sua mãe fora a causa daquela virose é uma idiotice que nasceu da ignorância do povo.

  • O dr. Freud pensava que todos os meninos queriam se casar com a mãe e matar o pai. O mesmo acontecia às meninas: todas elas queriam se casar com os pais.

  • Que pais? Que mães? Nós temos tantos!

  • Você está se referindo ao Clube de Adoção Mútua?

  • Em nosso CAM existem vinte e dois.

  • Tal número inspira confiança!

  • Mas o pobre Édipo nunca teve um CAM Além disso, aprendera essa história acerca de a fúria de Deus se desencadear sobre os povos todas as vezes que cometiam erros.

    Tinham aberto caminho entre a multidão e se encontravam na entrada de um local cercado por cordas, no qual estavam sen­tadas cerca de cem pessoas. Na parte mais afastada do recinto, profusamente iluminado pela luz de refletores, erguia-se o pros­cênio vermelho e dourado de um teatro de marionetes. Utilizan­do as moedas que o dr. Robert lhe dera, Will comprou duas en­tradas.

    Ao soar de um gongo, a cortina do proscênio se ergueu silenciosamente, mostrando pilares brancos erigidos sobre uma gra­ma verde-clara. Era a fachada do palácio real de Tebas, cujo fron­tão era ornado por uma divindade barbada, sentada numa nu­vem. Um sacerdote semelhante à divindade, porém menos volu­moso e mais pobremente vestido, entrou em cena, vindo da di­reita. Após cumprimentar o auditório, voltou-se para o palácio e, numa voz aflautada que destoava comicamente de sua barba profética, gritou:

  • Édipo!

    Ao som de trombetas, usando coturnos e coroa, surgiu o rei. O sacerdote fez uma reverência e o fantoche real deu-lhe permis­são para falar.

  • Dê ouvidos às nossas súplicas — disse ele.

    O rei levantou a cabeça e passou a prestar atenção.

  • Ouço os gemidos dos moribundos, os gritos das viúvas, o soluçar dos órfãos e o balbucio de preces e de súplicas.

  • Súplicas! Isso é que é bom! — disse a divindade, que, sentada nas nuvens, passou a acariciar o peito.

  • Eles foram acometidos de uma virose. Uma coisa semelhante à gripe asiática, porém bastante mais grave — esclareceu Mary Sarojini num murmúrio.

  • Temos rezado e oferecido os mais dispendiosos sacrifí­cios. Toda a população está vivendo em castidade. Temos nos infligido flagelos todas as segundas, quartas e sextas-feiras. Apesar disso, a onda de mortes cresce dia a dia. Imploramos seu auxílio, ó rei Édipo — disse o velho sacerdote em tom de lamento.

  • Somente um deus pode nos ajudar.

  • Ouçam! Ouçam! — gritou a divindade.

  • De que modo?

  • Só um deus pode nos dizer.

  • Certo — disse a divindade na sua voz de basso profon­do. — Absolutamente certo.

  • Meu cunhado Creonte foi consultar o oráculo. Quando voltar (o que deve ocorrer dentro em breve), saberemos o que o céu nos aconselha.

  • O céu que vá para o diabo — comentou o basso profondo.

  • Será que o povo era mesmo tão ingênuo? — indagou Mary Sarojini, aproveitando-se do riso do auditório.

  • Não tenha dúvidas. Era mesmo — respondeu Will.

    Um fonógrafo começou a tocar a marcha fúnebre do Saul.

    Da esquerda para a direita, passando lentamente diante do palco, uma procissão de carpinteiros vestidos de preto conduzia ataúdes envoltos em lençóis. As marionetes desapareciam pela di­reita e reapareciam pela esquerda, fazendo com que a procissão parecesse interminável e não se pudesse contar o número de ca­dáveres.

  • Um morto! Outro! Mais outro! — disse Édipo enquanto observava o lúgubre desfile.

  • Isso lhes servirá de lição! Isso lhes mostrará o quanto são repulsivos — irrompeu a voz de basso profondo.

    Édipo continuou:

     

O ataúde do soldado e da cortesã,

Uma criancinha enregelada apertada

De encontro a seios túrgidos e doridos;

A mocidade afastando o olhar daquela face

Túmida e enegrecida que outrora,

Do travesseiro do seu leito de luar,

Ergueu os olhos ansiosa, à procura de beijos.

Mortos, todos mortos,

Pranteados pelos que em breve morrerão

E levados, com passos relutantes,

Ao odioso jardim de ciprestes

Onde uma cova,

Bocejando para a lua,

Espera os seus corpos imundos.

 

Enquanto falava, duas outras marionetes, um menino e uma menina, usando vistosos e alegres trajes palaneses, entraram pe­la direita e se dirigiram para o lado oposto, tomando posição na parte inferior, um pouco à esquerda do centro do palco, ao lado das carpideiras vestidas de preto.

  • Enquanto isso — disse o menino quando Édipo havia terminado:

     

Ritos apocalípticos absurdos

Diziam que

Da decomposição da carne

E da concupiscência

Surgiam mais belos jardins

E emergia o Imanente Infinito.

 

  • E eu? — brandiu o bassoprofondo, de sua abóbada celeste. — Parece que vocês se esquecem de que eu sou o Outro Todo.

    A interminável procissão negra ainda se arrastava em dire­ção ao cemitério. Nesse momento, a marcha fúnebre foi interrompida pelo meio. A música foi substituída por uma única nota grave — tuba e contrabaixo —, que se prolongava interminavel­mente. O menino, que estava no primeiro plano, levantou a mão.

  • Escutem. Prestem atenção a este sussurro, a este estribi­lho sem fim.

    Em uníssono com os instrumentos, invisíveis carpideiras começaram a cantar: "Morte, morte, morte, morte..."

  • Mas na vida cabe mais do que uma simples nota — disse o menino.

  • A vida pode tocar qualquer música — concordou a menina.

  • E seu incessante estribilho de morte serve somente para enriquecer a música.

  • Enriquecer a música — repetiu a menina.

    Dito isso, o tenor e a soprano começaram a cantar um irrequieto arabesco de intrincados sons que pareciam querer se en­rolar na haste do contrabaixo.

    O estribilho e o canto foram diminuindo pouco a pouco. Veio o silêncio. A última das carpideiras desapareceu. O meni­no e a menina deixaram o primeiro plano, retirando-se para um dos cantos onde continuaram a se beijar sem que fossem perturbados.

    A um novo toque de trombetas surgiu (vestindo uma túnica púrpura) a figura obesa de Creonte. Acabara de chegar de Del­fos, onde consultara o oráculo. Nos minutos que se seguiram, o diálogo foi todo em palanês, e Mary Sarojini teve que servir de intérprete para Will.

  • Édipo está perguntando o que foi que Deus lhe falou, e o outro está dizendo que, segundo Deus, tudo o que estava acon­tecendo era por causa de um homem que matara o velho rei, an­tecessor de Édipo, e que até agora não fora capturado. Deus tam­bém disse que esse homem ainda vive em Tebas, e que a virose que está matando todo o mundo é um castigo. É isso o que Creon­te está dizendo. Não sei por que todo esse povo, que não tinha feito mal a ninguém, devia ser punido. Deus disse ainda que essa doença não acabaria enquanto o homem que matara o velho rei não fosse expulso de Tebas. Édipo está dizendo que tudo fará para encontrar o homem e que se livrará dele.

    De seu canto na plataforma inferior do palco, o menino co­meçou a declamar em inglês:

     

Deus, tanto mais Autêntico quanto

Menos claramente se expressa.

Quando se dispõe a falar, faz com que

O mais incrédulo dos tolos se arrependa.

Ele ruge porque o Pecado causou a peste,

Mas a isso chamamos Imundície.

Portanto, lavemo-la.

 

Enquanto o auditório ainda ria, um outro grupo de carpideiras surgiu de ambos os lados e atravessou lentamente o palco.

  • Karuna! Compaixão! disse a menina, que estava no primeiro plano. Os ignorantes sofrem tanto quanto os outros.

    Sentindo que lhe tocavam o braço, Will se voltou e ficou surpreso ao deparar com o rosto belo e mal-humorado do jovem Murugan.

    Tenho andado à sua procura disse com um ar zanga­do, como se Will tivesse se escondido com o único propósito de irritá-lo. Falou tão alto que muitas cabeças se voltaram para pe­dir silêncio. Indiferente aos protestos, o rapaz continuou a ra­lhar: Você não estava nem na casa do dr. Robert nem na de Susila.

  • Silêncio! Silêncio!

  • Silêncio! gritou estentoricamente o basso profondo, do alto das suas nuvens. E acrescentou: As coisas chegaram a tal ponto que Deus não consegue nem escutar a Sua própria voz.

  • Escute, escute! disse Will, associando-se ao riso geral.

    Levantou-se e, seguido por Murugan e Mary Sarojini, dirigiu-

    se manquejando para a saída.

  • Não quer esperar para ver o fim? perguntou a meni­na, e, voltando-se para Murugan, disse em tom de reprimenda:

  • Você bem podia ter esperado!

  • Meta-se com a sua vida! respondeu Murugan de mo­do grosseiro.

    Will pousou a mão sobre o ombro da menina, dizendo:

  • Felizmente seu relato do fim foi tão real que não necessi­to vê-lo com meus próprios olhos. Além disso, Sua Majestade deve sempre ter a precedência acrescentou com ironia.

    Murugan retirou um envelope do bolso de um daqueles pijamas de seda branca que tanto haviam deslumbrado a pequena enfermeira, entregando-o a Will.

  • É de minha mãe. É coisa urgente ajuntou.

  • Que perfume agradável! comentou Mary Sarojini, aspirando a deliciosa aura de sândalo que se desprendia da carta da rani.

    Will desdobrou três folhas de papel de carta azul-celeste, ornadas por cinco lótus dourados sob uma coroa real. Que profu­são de palavras sublinhadas e de letras maiúsculas!, observou Will ao começar a ler.

Ma Petite Voix, cher Farnaby, avait raison — como sempre! Disseram-me várias vezes que Nosso Amigo Comum estava desti­nado a muito fazer pela pobre e pequenina Pala (com o auxílio fi­nanceiro que Pala permitirá que ele dê à Cruzada do Espírito) e tam­bém pelo mundo. Ao ler o telegrama (que me chegou às mãos gra­ças ao fiel Bahu e a seu amigo diplomata em Londres), não fiquei surpreendida com a notícia de que Lorde A. tinha lhe conferido Ple­nos Poderes (sem mencionar os meios) para entabular negociações na qualidade de seu representante. Os lucros obtidos não serão só dele, seus ou meus. Serão também do espírito, pois embora tri­lhemos caminhos diversos, somos todos cruzados!

Mas a chegada do telegrama de lorde A. não é a única notí­cia que tenho para lhe dar. Soube esta tarde (graças a Bahu) que se precipitam os acontecimentos que marcarão época na grande Evolução Histórica de Pala. Aliás, esses acontecimentos estão evo­luindo com maior rapidez do que esperava. Devido em parte a ra­zões políticas (a necessidade de renovar um declínio na populari­dade do coronel D.), a razões Econômicas (Rendang não pode su­portar os ônus da Defesa) e a razões Astrológicas (estes dias, se­gundo os entendidos, são singularmente favoráveis a uma asso­ciação entre Rams — eu e Murugan — e aquele típico Escorpião — o coronel D.), foi decidido que se antecipasse uma ação que fora planejada para o eclipse lunar do próximo mês de novembro.

Assim sendo, é essencial que nós três nos encontremos sem demora, para decidirmos sobre o que deve ser feito, visando esti­mular nossos interesses materiais e Espirituais. O "Acidente" que o trouxe às nossas praias neste Momento Crítico foi Decidida­mente Providencial, conforme você mesmo deve reconhecer.

Na qualidade de fiéis Cruzados, devemos colaborar com aquele poder divino, que de modo tão inequívoco advoga a nossa Causa.

Sendo assim, venha imedia tamente.

Murugan está de carro e o trará para nosso modesto Banga­lô, onde posso lhe assegurar, meu caro Farnaby, você terá uma acolhida bastante calorosa da parte da bien sincèrement vôtre,

Fátima R.

 

Terminada a leitura, Will dobrou as três folhas perfumadas de papel azul e colocou-as no envelope. Seu rosto nada demons­trava, mas atrás daquela máscara de indiferença fervia a indignação. Estava indignado com a falta de educação e a vacuida de daquele rapaz, tão bonito em seu pijama branco. Outra on da de indignação o invadiu quando o perfume, vindo daquela carta, atingiu novamente suas narinas. A carta daquele mons­tro grotesco, cujo primeiro objetivo na vida fora arruinar o pró­prio filho, em nome da castidade e do amor materno! A carta daquela mulher que, usando Deus e um grupo de Mestres As­cendentes, procurava transformá-lo a ele, Will em um novo cruzado que, sob a bandeira oleosa de Joe Aldehyde, viesse divulgar novos e inesperados acontecimentos. Estava irritado con­sigo mesmo por ter se deixado envolver com aquela dupla ridi culamente sinistra. Não podia saber até onde pretendiam levar aquela vil conspiração contra a decência humana. E isso viera acontecer a ele... A ele, que nunca aceitava o "sim" como res posta, e que nunca deixara de acreditar secretamente (e com que entusiasmo!) que um dia pudesse defender os direitos do homem!

Vamos embora disse Murugan, com a autoridade nas cida da crença de que uma ordem de Fátima R. devia ser obede­cida na íntegra e sem a menor hesitação.

Sentindo que devia ganhar tempo a fim de se acalmar, Will não respondeu imediatamente. Em vez disso, voltou a olhar de longe as marionetes. Jocasta, Édipo e Creonte estavam sentados nos degraus do palácio, esperando a chegada de Tirésias, imagi nou. Nas alturas, o basso profondo estava cochilando. Um gru­po de carpideiras vestidas de preto atravessava o palco. Perto dos refletores, o menino de Pala começou a declamar em versos brancos:

 

Luz e Compaixão— quão inefavelmente

Simples é a nossa Substância!

Mas os Simples esperaram

Durante séculos de atribulações

O conhecimento dos múltiplos aspectos Do seu Eu,

Do seu Todo real e das Verdades imaginadas.

Esperaram e continuam esperando

Pelo entrelaçamento perfeito e desmedido

Da estrina com a caridade,

Da verdade com as funções renais,

Da beleza com o quilo, com a bile, com o sêmen.

De Deus com um jantar,

De Deus com o jejum e com o som dos sinos,

O som — um , dois, três — e os ouvidos atentos.

Ouviu-se o tanger dos instrumentos e, a seguir, os sons prolongados de uma flauta.

  • Vamos? — repetiu Murugan.

    Will ergueu a mão, pedindo silêncio. A menina-marionete dirigira-se para o centro do palco e cantava:

     

O pensamento é o produto do trabalho

Que os três bilhões de células cerebrais

Lançam no espaço. Bilhões de jogos de bilhar

Assinalados, Fé e Dúvida.

Um amontoado de Dúvidas e a minha Fé,

Minhas enzimas e a minha Lógica,

Minhas Visões e a epinefrina rosa,

Meus crimes e a epinefrina branca.

Não passo de um delicado arranjo

E, na proporção de dez para vinte e sete,

Cada átomo, na sua complexidade,

 

Deve ser o meu profeta.

Perdendo a paciência, Murugan deu um forte puxão no braço de Will.

  • Você vem ou não? — gritou.

    Will virou-se para ele, irritado.

  • O que é que você está fazendo, seu idiotinha? Dizendo isso, fez um movimento de braço e se desvencilhou da mão do rapaz.

    Amedrontado, Murugan mudou de tom:

  • Apenas estava querendo saber se você já está pronto pa­ra ir ver minha mãe.

  • Não. Não estou pronto porque não irei.

  • Não vai? — perguntou Murugan, surpreso. — Ela o está esperando, ela...

  • Diga a sua mãe que sinto muito, mas já tenho outro compromisso. Um compromisso com alguém que está agonizando — acrescentou.

  • Mas o assunto é tremendamente importante!

  • A morte também é.

    Murugan baixou a voz:

  • Alguma coisa está acontecendo — murmurou.

  • Não consigo ouvi-lo — gritou Will, tentando vencer os ruídos confusos da multidão.

    Murugan olhou-o apreensivo e arriscou um comentário com voz um pouco mais alta:

  • Alguma coisa muito séria está acontecendo.

  • Alguma coisa muito séria também está acontecendo no hospital.

  • Ouvimos dizer... — começou Murugan. Após olhar em redor, balançou a cabeça. — Não, não posso lhe falar aqui. Este é o motivo pelo qual você deve ir agora ao bangalô. Não há tem­po a perder.

    Will olhou o relógio.

  • Não há tempo a perder — repetiu, e dirigiu-se a Mary Sarojini. — Devemos ir — disse. — Qual é o caminho?

  • Eu lhe mostrarei — ela respondeu, enquanto saíam de mãos dadas.

  • Espere — implorou Murugan. — Espere!

    Enquanto Will e Mary caminhavam, Murugan os seguia esgueirando-se entre a multidão.

  • Que devo dizer-lhe? — choramingou ao aproximar-se.

    A angústia do rapaz era de uma comicidade abjeta. A raiva de Will foi substituída por uma sensação divertida e ele riu alto.

  • O que é que você lhe diria, Mary Sarojini? — perguntou Will.

  • Se ela fosse minha mãe, diria a verdade. — Como se um novo pensamento tivesse lhe ocorrido, a menina disse: — Mas a rani não é minha mãe. — Olhando para Murugan, perguntou: — Você pertence a algum CAM?

    Ele não pertencia. Para a rani, a simples idéia de um Clube de Adoção Mútua soava como uma blasfêmia. Somente Deus podia indicar a Mãe. Os membros da Cruzada do Espírito queriam estar somente com as vítimas que Deus lhes dera.

  • Não é membro do CAM! — Dizendo isso, Mary Sarojini balançou a cabeça. — Isto é horrível! Não ter a ocasião de passar alguns dias com uma de suas mães!

    Ainda aterrorizado com a idéia de ter que dizer à sua única mãe que falhara na missão que lhe confiara, Murugan começou a repisar de modo quase histérico uma variante do velho es­tribilho:

  • Não sei o que ela dirá. Não sei o que ela dirá — repetia.

  • Só há um jeito de saber. Volte para casa e ouça o que ela tem a dizer.

  • Venha comigo, por favor! — implorou Murugan, amparando-se no braço de Will.

  • Já lhe disse para não me tocar.

    A mão foi retirada bruscamente. Will voltou a sorrir.

  • Assim é melhor! — Levantou a bengala e fez um gesto de despedida. — Bonne nuit, Altesse! — Voltou-se para Mary Sarojini com bom-humor: — Conduza-me, MacPhail.

  • Você fingia, ou estava mesmo zangado?

  • Estava, sim — disse ele. Foi então que se lembrou do que vira no ginásio da escola. Cantarolando as primeiras notas da dan­ça rakshasi, bateu no chão com a ponta de ferro do seu bordão. — Deveria ter esmagado a raiva?

  • Talvez fosse melhor.

  • Você acha?

  • No momento em que deixar de ter medo, ele o odiará.

    Will levantou os ombros. Não se importava. Mas à medida que o passado se afastava e o futuro ficava mais próximo, quan­do Will viu distanciarem-se as luzes da praça do mercado e co­meçou a subir a rua íngreme e escura que levava ao hospital, o seu humor começou a mudar. "Me conduza, MacPhail." Em que direção? Para longe de quê? Ao encontro de uma nova manifes­tação do Horror Fundamental. Para longe daquele abençoado ano de liberdade que Joe Aldehyde havia lhe prometido e que seria tão fácil obter (Pala estava irremediavelmente condenada) sem que tivesse de trair, ou ser indecente. Não se afastava somente da esperança de liberdade. Bastava que a rani se queixasse a Joe, e que este ficasse suficientemente irritado, para que perdesse qual­quer outra oportunidade de continuar sendo um escravo que era bem pago para assistir às execuções. Deveria voltar, procurar Murugan, pedir desculpas e fazer tudo o que aquela terrível mulher lhe ordenasse?

    A cem metros de distância, as luzes do hospital brilhavam entre as árvores.

  • Vamos parar — disse.

  • Está cansado? — indagou, solícita, Mary Sarojini.

  • Um pouco.

    Apoiando-se no bordão, Will se voltou para olhar a praça do mercado. À luz das lâmpadas, o edifício cor-de-rosa da prefeitura brilhava como se fosse uma gigantesca porção de sorvete de framboesa. No pináculo do templo viam-se filas superpostas da exuberante e caótica escultura indiana — elefantes, demônios, meninas com seios e nádegas descomunais, Xivas acrobatas e Budas (do passado e do futuro) imersos em tranqüilo êxtase. Mais abaixo, no espaço que separava o sorvete e a mitologia, a multi­dão se agitava. No meio dela, havia um rosto zangado e um pija­ma de cetim branco. Deveria voltar? Seria a coisa mais sensata e mais inócua que tinha a fazer. Contudo, uma voz interior (não pequenina como a da rani) gritava com toda a força: "Miserável! Miserável!" Consciência? Não. Moralidade? Deus o livre. A sordidez, a feiúra e a vulgaridade que ultrapassam desnecessa­riamente o cumprimento do dever são coisas com as quais um homem de bom-gosto não pode compactuar.

  • Vamos andando? — indagou Mary Sarojini.

    Entraram no saguão do hospital. A enfermeira que estava sentada à mesa tinha um recado de Susila. Mary Sarojini devia ir para a casa de Mrs. Rao, onde, juntamente com Tom Krishna, passaria a noite. Pedia a Mr. Farnaby que fosse imediatamente para o quarto número trinta e quatro.

  • Por aqui — disse a enfermeira enquanto mantinha aber­ta uma porta de vaivém.

    Will adiantou-se. O reflexo condicionado de polidez entrou automaticamente em ação.

  • Muito obrigado — disse sorrindo. Mas foi com uma sensação de mal-estar na boca do estômago que ele seguiu manque­jando e preocupado, em direção ao futuro.

  • A última porta à esquerda — disse a enfermeira. — Ago­ra, tenho que voltar para meu posto no saguão. Terei que deixá-lo aqui. O senhor já sabe o caminho. — A porta se fechou atrás dela.

    Estava só. Tinha diante de si um futuro cheio de apreensões, em tudo idêntico ao tenebroso passado. O Horror Fundamental era onipresente e eterno. Esse corredor comprido e de paredes verdes era o mesmo por onde, havia um ano, caminhara para ir ao quarto pequeno onde Molly agonizava. Era a repetição do pe­sadelo. Consciente de seu destino, apressou-se em vê-lo consu­mado. Morte! Mais uma visão da morte!

    Trinta e dois, trinta e três, trinta e quatro...

    Bateu na porta e, enquanto esperava que abrissem, ouvia as batidas do próprio coração. A porta foi finalmente aberta e ele deparou com a pequena Radha.

    Susila o espera murmurou.

    Will a seguiu até o quarto. Atrás de um biombo divisou o perfil de Susila desenhado contra a luz de uma lâmpada e, numa cama alta, uma face escura e emaciada repousava sobre o traves­seiro. Descendo o olhar, pôde ver os braços que não eram mais que ossos recobertos de pergaminho e que terminavam em mãos que mais pareciam garras. Outra vez o Horror Fundamental! Sen­tiu um arrepio e afastou-se. Radha o levou até uma cadeira pró­xima à janela aberta. Ele se sentou e fechou os olhos — fechou-os fisicamente, para não ver o que estava se passando, e com esse ato abriu-os à visão do odioso passado que o presente evocava. Estava naquele outro quarto com a tia Mary. Talvez fosse me­lhor dizer que estava com a pessoa que um dia tinha sido a tia Mary e que agora era aquela coisa que dificilmente se poderia reconhecer. Alguém que nunca ouvira falar de coragem e de caridade, os dois atributos que eram a própria essência da tia Mary.

    Era alguém que se enchera de um ódio indiscriminado por todos aqueles que se aproximavam, que sentia repugnância por todos os que não tinham câncer, que não sentiam dor e não esta­vam condenados a morrer antes do tempo.

    E que, além de ter essa inveja maligna dos que tinham saúde e eram felizes, desenvolvera o hábito da autocomiseração, das la­múrias e do desespero. "Por que a mim? Por que isso aconteceu comigo?"

    Pôde ouvir a voz queixosa e estridente, pôde ver aquela face transtornada e sulcada de lágrimas. A única pessoa a quem tinha amado e à qual tinha admirado de todo o coração! E que na sua degradação ele se surpreendera a desprezar, a desprezar e a odiar.

    Para fugir do passado, reabriu os olhos e viu Radha sentada no chão com as pernas cruzadas e o corpo ereto em atitude de meditação. Em uma cadeira, à beira do leito, Susila parecia estar fascinada pelo mesmo tipo de silêncio concentrado. Olhou para a cabeça que repousava no travesseiro e viu que a expressão da­quele rosto estava tão tranqüila e serena como se tivesse sido in­vadida pela calma gelada da morte.

    Lá fora, na escuridão da folhagem, o grito de um pavão ecoou subitamente ampliado pelo contraste, e o silêncio que se seguiu pareceu se encher de sentidos misteriosos e apavorantes.

  • Lakshmi — disse Susila pondo a mão naquele braço descarnado. — Lakshmi — repetiu em tom mais alto.

    Aquele rosto, que parecia ter a calma da morte, continuou impassível.

  • A senhora não deve dormir.

    Não deve dormir? Para tia Mary o sono (o sono artificial que se seguia às injeções) era o único meio de dar repouso às suas auto flagelações, à autopiedade e ao medo que a dominava.

  • Lakshmi.

    A face adquiriu vida.

  • Não estava dormindo — murmurou a doente. — Devido à fraqueza tenho a sensação de estar flutuando.

  • Você tem que permanecer aqui. Tem que ter consciência de que está aqui todo o tempo — disse Susila, colocando mais um travesseiro sob os ombros da velha. Feito isso, apanhou um vidro de sais aromáticos que estava na mesinha-de-cabeceira.

    Lakshmi aspirou os sais e, abrindo os olhos, demorou-se a contemplar o rosto de Susila.

  • Tinha me esquecido da sua beleza — disse. — Mas Du-gald sempre teve bom-gosto. — A sombra de um sorriso mali­cioso apareceu por um momento naquela face descarnada. — Que é que você pensa, Susila? — perguntou em outro tom, depois de algum tempo. — Será que o veremos de novo, do lado de lá?

    Em silêncio, Susila bateu delicadamente em sua mão. De­pois, sorrindo, perguntou a Lakshmi:

  • Como será que o velho rajá faria essa pergunta? “Você pensa que 'nós o' (abra e feche aspas) veremos 'lá' (abra e feche aspas)?"

  • Quero saber o que você pensa.

  • Penso que todos viemos da mesma luz e que para ela voltaremos.

    Palavras, palavras e mais palavras, pensava Will. Com gran­de esforço Lakshmi levantou a mão e apontou-a para a lâmpada da mesinha-de-cabeceira.

  • Está me ofuscando.

    Susila desfez o nó do lenço de seda vermelha que tinha no pescoço e com ele envolveu o abajur. A luz deixou de ser branca e impiedosamente indiscreta e adquiriu uma tonalidade rosa, quente e sombria. Will se surpreendeu a pensar no leito amarfa­nhado de Babs, quando o Gin Porter se anunciava em tons ver­melhos.

  • Assim está muito melhor disse Lakshmi fechando os olhos. Depois de um longo silêncio voltou a falar: A luz está aqui de novo. Fez nova pausa e continuou: Que maravi­lha! Que maravilha! sussurrou.

    De repente, estremeceu e mordeu o lábio.

    Susila tomou-lhe as mãos entre as suas:

  • A dor está muito forte?

  • Seria forte se fosse realmente a minha dor. Mas, de al­gum modo, ela não me pertence. Está aqui, mas eu não estou. É semelhante ao que você descobre quando toma o moksha. Na­da lhe pertence, nem mesmo sua dor.

  • A luz ainda está aí?

    Lakshmi fez um sinal negativo com a cabeça:

  • Rememorando, posso lhe dizer o momento exato em que se foi. Desapareceu quando comecei a falar sobre o fato de a dor não ser realmente minha.

  • Ainda assim, o que você dizia era bom.

  • Eu sei, mas estava dizendo. A sombra de um hábito antigo e travesso cruzou o rosto de Lakshmi.

  • Em que está pensando? perguntou Susila.

  • Em Sócrates.

  • Sócrates?

  • Algaravia, algaravia! Algaravia mesmo depois que ele tomara o veneno. Não me deixe falar, Susila. Ajude-me a sair da minha própria luz.

  • A senhora se lembra daquela vez, no ano passado, quan­do fomos todos ao templo do velho Xiva, acima do Posto das Grandes Altitudes? perguntou Susila depois de um curto si­lêncio. — A senhora, o dr. Robert, Dugald, eu e as crianças, lembra-se?

    Lakshmi sorriu alegremente ao recordar.

  • Estou pensando especialmente naquela vista do lado oeste do templo. A vista do mar. Azul, verde, púrpura. As sombras das nuvens pareciam feitas a tinta. E as nuvens acetinadas eram brancas como a neve, cor de chumbo e pretas. Enquanto olháva­mos, a senhora fez uma pergunta. Será que ainda se lembra?

  • Aquela a respeito da Grande Luz.

  • Exatamente. "Por que as pessoas se referem à Mente em termos de Luz? Será que, tendo achado tão bela a luz do sol, acha­ram natural identificar a natureza de Buda com a mais clara de todas as luzes? Ou será que acham beleza na luz do sol porque, desde que nasceram, vêm tendo, consciente ou inconscientemen­te, revelações da Mente sob a forma de Luz?" Fui a primeira a responder — disse Susila sorrindo para si mesma. — Acabara de ler um trabalho de um behaviorista americano e nem me detive para pensar. Dei imediatamente o ponto de vista científico: "As pessoas equacionam a Mente, não importa o que isso possa ser, com alucinações luminosas porque ficaram impressionadas com os numerosos crepúsculos a que tiveram ocasião de assistir". Mas o dr. Robert e Dugald não concordaram comigo. Para eles a Gran­de Luz vem em primeiro lugar. "Você gosta dos crepúsculos por­que eles fazem com que se recorde das coisas que estão continua­mente acontecendo, com ou sem seu conhecimento, tanto no in­terior de seu crânio como no mundo exterior, isto é, no espaço e no tempo", insistiram eles. A senhora se lembra de que con­cordou com eles e disse: "Gostaria de ficar do seu lado, Susila, apenas para que esses nossos homens não se sintam sempre cer­tos. Mas neste caso é óbvio que têm razão". Eles estavam intei­ramente certos e eu estava errada. Não preciso dizer que você sa­bia a resposta certa antes mesmo de ter feito a pergunta.

  • Nunca soube nada. Eu apenas podia ver — sussurrou Lakshmi.

  • Ainda me lembro de quando me contou que podia ver a Grande Luz — disse Susila. — Gostaria que lhe recordasse o fato?

    A doente aquiesceu.

  • Quando a senhora tinha oito anos, viu-a pela primeira vez. Uma borboleta alaranjada pousada sobre uma folha, abrin­do e fechando as asas à luz do sol. Subitamente, a Grande Luz da Pura Semelhança brilhou como um outro sol.

  • Muito mais brilhante e mais suave do que o sol — murmurou Lakshmi.

  • A senhora podia olhá-la e não ficar ofuscada. Agora, lembre-se disto: uma borboleta abrindo e fechando as asas sobre uma folha verde. Isto é a natureza de Buda em toda sua plenitu­de, é a Grande Luz que brilha mais do que o sol. A senhora tinha apenas oito anos.

  • Que tinha feito para merecer isso?

    Will se surpreendeu a relembrar aquela noite, cerca de uma semana antes da morte de sua tia. Ela recordava a pequena casa em estilo Regência nas imediações de Arundel, onde, em sua com­panhia, ele passava a melhor parte das férias. Lembrava os pique­niques nas dunas ou sob as faias, as ocasiões em que ambos des­truíam os ninhos das vespas com a fumaça de enxofre queimado, as salsichas enroladas de Bognor, a cigana que lia a sorte e que tinha profetizado que ele seria ministro das Finanças. O sacristão de batina negra e de nariz vermelho que os tinha expulsado da Ca­tedral de Chichester porque tinham rido demais. Tinham "rido demais" e tia Mary repetiu em tom amargo: "Rido demais..."

  • Agora — dizia Susila —, pense no que viu no templo de Xiva. Pense naquelas luzes e sombras que viu no mar. Pense na­queles espaços azuis entre as sombras. Pense nessas coisas e dei­xe que abandonem sua mente. Permita que saiam a fim de que o não-pensado possa entrar. Coisas lançadas dentro do Vazio. O Vazio lançado no interior da Verossimilhança. A Verossimi­lhança voltando a se converter em coisas, no interior de sua mente. Lembre-se do que está escrito no Sutra: Sua própria consciência brilhando, vazia, inseparável do Grande Corpo de Esplendor, não está sujeita nem ao nascimento nem à morte, mas se identifica inteiramente com a Luz Imutável, o Buda Amitabha.

  • É idêntica à luz — repetiu Lakshmi —, no entanto está novamente escuro.

  • Está escuro porque a senhora está se esforçando demais — disse Susila. — Está escuro porque a senhora quer que isso seja a luz. Lembre-se do que costumava dizer quando eu ainda era criança: "Com leveza, menina, com leveza. Você deve apren­der a fazer as coisas com leveza. Pense, aja e sinta com leveza. Sim, sinta com leveza, mesmo que esteja sentindo profundamen­te. Com o espírito leve, deixe que as coisas aconteçam. Quando acontecerem, suporte-as sem se amargurar". Naquela época eu era tão absurdamente séria! Era tão pedante e sem senso de hu­mor! "Aceite as coisas com leveza", foi o melhor conselho que recebi na vida. Agora vou lhe dizer o mesmo, Lakshmi... Com leveza, querida, com leveza... Mesmo quando a morte se apro­xima. Nada que seja portentoso, cansativo ou solene. Nada de retórica nem de vozes tremidas. Nada de exames de consciência no estilo consagrado, na Imitação de Cristo, em Goethe ou em "pequena Neil". Não preciso dizer que não queremos nada com a teologia nem com a metafísica. Basta que pense na ocorrência da morte e da Grande Luz. Despeça-se de toda a bagagem e siga em frente. Existem areias movediças em seu redor. Elas estão puxando seus pés, tentando afundá-la no medo, na autocomiseração, no desespero. Por isso a senhora deve andar com leveza. Na ponta dos pés, sem nenhuma bagagem. Não leve nem mes­mo um estojo para pó-de-arroz. Vá inteiramente desemba­raçada...

    Will pensou na pobre tia Mary, que a cada passo que dava mais afundava nas areias movediças. Na tia Mary que se debateu e protestou até o momento em que foi completa e definitivamen­te tragada pelo Horror Fundamental.

    Olhou de novo a face descarnada que repousava no travesseiro e viu que sorria.

  • A luz, a Grande Luz! Está aqui, juntamente com a dor, apesar da dor — disse num rouco murmúrio.

  • Onde está você? — indagou Susila.

  • Ali, naquele canto — Lakshmi tentou apontar o lugar, mas a mão que erguera caiu inerte na colcha. — Posso me ver ali. E ela pode ver meu corpo aqui na cama.

  • Ela pode ver a Luz?

  • Não. A Luz está onde está meu corpo. Está aqui.

    A porta do quarto da doente foi aberta lentamente. Will virou a cabeça a tempo de ver a figura pequena e magra do dr. Robert emergir de trás do biombo e entrar no crepúsculo róseo.

    Susila se levantou e deu-lhe o lugar onde estava. O dr. Robert sentou-se e, inclinando-se para a frente, tomou numa das mãos a da esposa, pousando a outra em sua testa.

  • Sou eu — disse baixinho.

  • Até que enfim!

  • Uma árvore caiu sobre a linha telefônica. Nenhuma comunicação era possível com o Posto das Grandes Altitudes, a não ser através da estrada. Eles enviaram um mensageiro num carro, mas o carro enguiçou e perdemos mais de duas horas. Graças a Deus estou aqui finalmente.

    A agonizante suspirou profundamente, abriu os olhos por um momento, olhou-o sorrindo e tornou a fechá-los.

  • Eu sabia que você viria.

  • Lakshmi — disse ele com carinho. — Lakshmi. — Pas­sou repetidas vezes a ponta dos dedos sobre sua testa enrugada. — Meu amorzinho.

    Lágrimas escorriam em seu rosto, mas sua voz estava firme e ele falou ternamente, não a respeito da fraqueza humana e sim da força.

  • Não estou mais lá — murmurou Lakshmi.

  • Ela estava ali no canto — explicou Susila ao sogro. — Estava olhando o próprio corpo deitado na cama.

  • Mas agora voltei. Estamos todos juntos, eu e a dor, eu e a Luz, eu e você.

    O pavão tornou a gritar. Na noite tropical, onde o ruído dos insetos é equivalente ao silêncio, ouviu-se à distância o ruído de uma música alegre. Podiam-se identificar facilmente os sons da flauta, dos instrumentos de corda e as batidas dos tambores.

  • Escute — disse o dr. Robert. — Pode ouvir? Estão dançando.

  • Dançando — repetiu Lakshmi. — Dançando...

  • Dançando com tanta leveza! — comentou Susila. — E como se tivessem asas.

    A música aumentou novamente de intensidade.

  • É a dança do namoro — acrescentou Susila.

  • Você se lembra da dança do namoro, Robert?

  • Acha que poderia esquecer?

    Sim, disse Will para si mesmo. Pode alguém esquecer? Po­dia alguém esquecer o som daquela outra música, superficial e incomum? Podiam os ouvidos de um menino esquecer aquele dia distante em que escutou os sons de uma respiração a morrer? Nu­ma casa, no outro lado da rua, alguém estava se exercitando nu­ma das valsas de Brahms que a tia Mary gostava de tocar. Um, dois, três — um, dois e três — um, dois e três. Um... dois, três. Um e um — e dois — três e um e... A odiosa estranha que em algum tempo tinha sido a tia Mary agitou-se no meio do seu tor­por e abriu os olhos. Uma expressão da mais intensa maldade apareceu em seu rosto amarelo e descarnado. "Vá pedir-lhes que parem", disse quase chorando, naquela voz rouca e dificilmente reconhecível. Logo depois, os traços de maldade foram substi­tuídos pelos do desespero e a estranha, aquela odiosa estranha, tão digna de pena, começou a soluçar incontrolavelmente. Aquelas valsas de Brahms eram, de todas as peças do seu repertório, as de que Frank mais gostava.

    Uma nova rajada de vento fresco trouxe consigo os acordes ainda mais altos de uma melodia alegre e viva.

  • Todos aqueles jovens dançando disse o dr. Robert. Todos aqueles risos e desejos, toda aquela felicidade simples. Tudo isso está aqui na atmosfera, como se fosse um campo de força. A alegria deles e o nosso amor (o amor de Susila, o meu amor) trabalhando juntos, um reforçando o outro. O amor e a alegria envolvendo-a, minha querida. O amor e a alegria levando-a para a paz da Grande Luz. Escute a música. Ainda pode ouvi-la, Lakshmi?

  • Ela está flutuando novamente disse Susila. Tente trazê-la de volta.

    O dr. Robert colocou um braço sob o corpo emaciado, erguendo-o à posição sentada. A cabeça caiu para o lado, sobre seu ombro.

  • Meu amorzinho ele continuou sussurrando. Meu amorzinho...

    Os olhos dela piscaram por um momento.

  • Mais claro disse quase inaudível. Mais claro. E um sorriso de intensa felicidade, quase atingindo o entusiasmo, transfigurou-lhe as feições.

    Através das lágrimas, o dr. Robert sorria às suas costas.

  • Agora você pode deixar que se vá, minha querida dis­se alisando seus cabelos grisalhos. Agora pode deixar que se vá. Deixe que se vá insistiu. Deixe que se vá deste corpo velho e sofredor. Você não precisa mais dele. Permita que se des­prenda e que seu corpo fique aqui como uma trouxa de roupas velhas.

    Na face descarnada, a boca tinha se aberto. De repente a respiração se tornou estertorosa.

  • Meu amor, meu amorzinho... — disse o dr. Robert enquanto a estreitava nos braços. — Vá agora, vá. Deixe seu corpo e vá. Vá, minha querida, vá para a Luz, para a paz. Entre na paz vivificante da Grande Luz...

    Susila tomou entre as suas, uma das mãos inertes e beijou-a. Depois voltou-se para a pequena Radha e disse num sussurro, tocando-lhe um dos ombros:

  • Está na hora de ir embora.

    Interrompida na sua meditação, Radha abriu os olhos, levantou-se e dirigiu-se para a porta, na ponta dos pés.

    Susila acenou para Will e, juntos, acompanharam Radha. Os três seguiram em silêncio pelo corredor. Ao chegarem à porta de vaivém, Radha segurou uma das folhas para que os outros pas­sassem.

  • Obrigado por ter me deixado ficar com você — murmurou.

    Susila beijou-a.

  • Sou eu quem lhe agradece por ter tornado as coisas mais fáceis para Lakshmi.

    Will seguiu Susila através do saguão e, juntos saíram para a escuridão da noite quente e perfumada. Em silêncio começaram a descer a rua, dirigindo-se para a praça do mercado.

    Finalmente Will quebrou o longo silêncio e, num tom cínico e vulgar com o qual procurava dissimular a estranha compulsão sob a qual se achava, disse:

  • Imagino que Radha está correndo para fazer um peque­no maithunacom seu namorado...

  • Ela está de serviço na noite de hoje — respondeu Susila sem perder a calma. — Mas, mesmo que não estivesse, qual seria a objeção quanto ao fato de sair da ioga da morte para a ioga do amor?

    Will não respondeu logo. Estava lembrando o que aconte­cera entre ele e Babs na noite do enterro de Molly. Pensava naquela ioga do antiamor, naquela ioga de ressentimentos soma­dos, na luxúria e na auto-repugnância que reforça o ego, tornando-o ainda mais repulsivo.

  • Sinto muito que tivesse a intenção de ser desagradável — disse finalmente.

  • E o espírito de seu pai. Veremos se podemos exorcizá-lo.

    Tinham atravessado a praça do mercado e, chegando ao fim da pequena rua que saía da cidade, atingiram o descampado on­de o jipe estava estacionado.

    Quando Susila fez uma curva antes de atingir a rodovia, a luz dos faróis incidiu sobre um pequeno carro verde que vinha descendo pelo atalho.

  • Não é o "baby Austin" real?

  • É, sim disse Susila. Gostaria de saber para onde a rani e Murugan estão indo a esta hora da noite.

  • Não é para fazer nada de bom conjeturou Will.

    De repente, disse a Susila de sua condição de viajante semrumo, a serviço de Joe Aldehyde. Falou-lhe das suas relações com a rainha-mãe e com Mr. Bahu.

  • Você teria motivo para me deportar amanhã concluiu.

  • Não agora que você já mudou de mentalidade disse ela. Além disso, nada do que você fez pode ter afetado os verdadeiros interesses reais. Nosso inimigo é o petróleo em geral. Se somos explorados pela Companhia de Petróleo do Sudeste da Ásia ou pela Standard da Califórnia não faz a menor diferença.

  • Sabia que Murugan e a rani estavam conspirando contra vocês?

  • Eles não fazem segredo disso.

  • Então, por que não se livram deles?

  • Porque seriam imediatamente reconduzidos ao poder pelo coronel Dipa. A rani é uma princesa de Rendang e, se a expul­sássemos, criaríamos um casus belli.

  • E que pretendem fazer?

  • Tentaremos mantê-los dentro da ordem, tentaremos mudar-lhes a mentalidade, esperar que o futuro seja bom e es­tarmos preparados para o pior. Depois de um silêncio, per­guntou: O dr. Robert disse se você podia tomar o moksha!

    Will acenou afirmativamente com a cabeça.

  • Gostaria de tomá-lo?

  • Agora?

  • Sim. Se não se importar de passar toda a noite acordado.

  • Pelo contrário. Gostaria muito.

  • Pode também achar que é a pior coisa que lhe poderia acontecer advertiu Susila. O moksha tanto pode levá-lo ao céu como ao inferno. Pode levá-lo aos dois lugares ao mesmo tempo, ou a um e a outro alternadamente. Se tiver sorte, ou se estiver realmente preparado, pode conduzi-lo além do céu e do inferno. Pode também'trazê-lo do "além do além" para o lugar de onde partiu. De volta para cá, para novo Rothamsted e para as suas obrigações habituais. A única alteração é que, a partir de seu regresso, suas obrigações usuais terão um cunho inteira mente diferente.

     

    Um, dois, três... O relógio da cozinha bateu doze vezes. Co­mo pareciam inúteis desde que o tempo deixara de existir! As ino­portunas batidas soaram ridículas no âmago de um "aconteci­mento" eternamente presente no Agora, que muda incessante­mente e que é medido não em segundos e minutos, mas pelo que contém em beleza, significação, intensidade e em mistérios cada vez mais profundos.

  • Êxtase luminoso! Da superfície de seu cérebro, as palavras vinham a seus lábios como se fossem bolhas. Vinham à superfície e desapareciam no espaço infinito da luz viva que pul­sava e respirava por trás de seus olhos semicerrados.

  • Êxtase luminoso! Não era possível exprimir-se melhor, pois diante desse "acontecimento" que, apesar de eterno, estava sempre em mutação, as palavras não passavam de caricaturas e eram incapazes de exprimir seu verdadeiro sentido. O "aconteci­mento" não era apenas êxtase; também era compreensão. Uma compreensão total, inteiramente destituída de qualquer conheci­mento. O saber implica a existência de alguém que conheça toda a infinita variedade de coisas conhecidas e conhecíveis. Mas, na­quele momento, atrás de suas pálpebras cerradas não havia espe­táculo nem espectador: somente a sensação de estar completamen­te identificado com o êxtase.

    Numa sucessão de revelações, a luz ficou mais intensa, a compreensão se aprofundou e o êxtase atingiu tal intensidade que se tornou insuportável.

  • Meu Deus! disse para si mesmo. Oh! Deus meu!

    Nesse instante, como se tivesse vindo de outro mundo, ou­viu a voz de Susila:

  • Gostaria de me dizer o que está acontecendo?

    Passou-se um longo tempo antes que Will respondesse. O ato de falar se tornara difícil. Não que houvesse qualquer impedimento orgânico, mas porque as palavras lhe pareciam vazias e completamente sem sentido.

  • Luz! — murmurou finalmente.

  • Você a está vendo?

  • Não. Ela está em mim! Está em mim! — repetiu com ênfase.

    Sua presença implicava sua ausência. Em essência, a pessoa de William Asquith não existia. Somente existia um êxtase luminoso, uma compreensão sem sabedoria e uma fusão com a uni­dade através dos limites imprecisos de sua consciência. Era ób­vio que este devia ser o estado normal da mente. Mas não se po­dia negar a existência daquele espectador profissional de execu­ções, daquele desprezível que se viciara em Babs. Existiam tam­bém três bilhões de consciências isoladas, cada uma delas viven­do no centro de um mundo de pesadelo e no qual era totalmente impossível que qualquer pessoa, capaz de enxergar e dotada de um mínimo de honestidade, pudesse aceitar o "sim" como res­posta. Qual o milagre sinistro que transformara o estado natu­ral da mente nessas "ilhas demoníacas" de mesquinharia e de crimes?

    No firmamento do êxtase e da compreensão, como se fos­sem morcegos no crepúsculo, conceitos e restos de sentimentos passados se entrecruzavam com violência. "Pensamentos- morcegos" de Plotinus, dos gnósticos. Emanações do único. Mer­gulhos cada vez mais profundos na espessa camada de horrores. "Sentimentos-morcegos" de ódio e de nojo, à medida que a ca­mada de horrores se converteu em recordações específicas de tu­do aquilo que o inexistente William Asquith Farnaby tinha vis­to, tinha infligido e tinha sofrido.

    Mas, por trás desses pensamentos vacilantes, envolvendo-se e chegando mesmo a se integrar neles, estava o firmamento do êxtase, da paz e da compreensão. Não importava que houvesse alguns morcegos naquele céu de crepúsculo; o fato era que o ter­rível milagre da criação havia sido subvertido. O seu eu sobre-humanamente vil e criminoso foi desfeito e em seu lugar surgiu a mente em toda a sua pureza. A mente tal qual é, em seu estado natural: ilimitada, indistinta, radiosamente feliz e dotada de uma compreensão que não é fruto do saber.

    A luz estava aqui, neste momento. E porque estava infinitamente próximo neste eterno Agora, nada existia além dela e por isso ninguém podia vê-la. Toda a realidade se resumia no conhe­cimento de sua presença e nesse conhecimento se resumia toda a realidade.

    De alguma parte desse outro mundo que ficava além da luz, chegou o som da voz de Susila:

  • Você está feliz? — perguntou.

    Uma onda de radiação mais brilhante varreu para longe to­dos os pensamentos e lembranças vacilantes. Só restou a cristali­na transparência do êxtase.

    Sem ao menos falar ou descerrar as pálpebras, meneou a cabeça afirmativamente.

  • Eckhart chamou-a "Deus" — continuou Susila. — É uma felicidade tão arrebatadora, de intensidade tão inconcebível, que se torna impossível descrevê-la. E, no meio dessa felicidade, Deus brilha e Se inflama sem cessar.

Deus brilha e Se inflama...

Will riu alto, pois a veracidade dessa afirmação lhe pareceu comicamente acertada.

  • Deus, como se fosse uma casa se incendiando — disse ofegante. — Deus em quatorze de julho.

    Mais uma vez explodiu numa risada cósmica.

    Atrás de suas pálpebras cerradas, um oceano de felicidade radiosa jorrava de forma ascendente, parecendo uma catarata cujo curso tivesse se invertido. Jorrava de baixo para cima como se fosse uma união em busca de algo mais completo. Da impessoa­lidade para uma forma ainda mais absoluta de transcendência. Repetiu:

  • Deus — em — quatorze — de — julho. — E no meio da catarata explodiu uma risada final de reconhecimento e de com­preensão.

  • E em quinze de julho? Que sucederá na manhã seguinte? — indagou Susila.

  • Não haverá manhã seguinte.

    Ela balançou a cabeça e disse:

  • Isso se parece muito com o nirvana.

  • E o que há de mal nisso?

  • O Espírito Puro (o espírito a cem graus)'é uma bebida que somente os mais empedernidos beberrões-contemplativos se permitem. Os Bodhisattvas diluem seu nirvana em partes iguais de amor e de trabalho.

  • Assim fica melhor insistiu Will.

  • Você quer dizer que é mais delicioso e por isso constitui uma tentação tão grande. A única tentação à qual Deus poderia sucumbir. O fruto da ignorância do que seja o bem e o mal. Que doçura celestial! Que "supermanga"! Deus vinha se alimentan­do dela havia milhões de anos. De repente surge o Homo sapiens, surge o conhecimento do bem e do mal. Deus teve de comer uma nova espécie de fruto menos saboroso. Você acaba de comer ape­nas uma fatia do "superfruto" e por isso pode compadecer-se d'Ele.

    O ranger de uma cadeira. Um farfalhar de saias. Uma série de pequenos ruídos que ele não conseguia identificar. O que é que ela estaria fazendo? Poderia obter resposta para essa pergunta com o simples abrir de seus olhos. Mas, no final das contas, que importância tinha isso? Com exceção dessa abrasante torrente as­cendente de êxtase e compreensão, nada era importante.

  • O "superfruto" do saber. Eu o afastarei dele gradativa­mente disse Susila.

    Ouviu um chiado. Da superfície de seu cérebro, uma bolha de reconhecimento atingiu sua zona de consciência. Susila colocara um disco na vitrola.

  • Johann Sebastian Bach — ouviu-a dizer. É a música mais próxima do silêncio. Apesar de tão organizada, é a que está mais próxima do Espírito com cem graus de pureza.

    O chiado deu lugar a sons musicais. Outra bolha de reconhecimento veio à tona. Estava ouvindo o Quarto concerto de Brandenburg.

    O mesmo que ouvira tantas vezes no passado o mesmo, no entanto tão completamente diferente. Esse allegro, ele o sa­bia de cor. Isso queria dizer que se encontrava numa posição excelente para perceber que nunca o ouvira realmente. Em primei­ro lugar, não era mais William Asquith Farnaby quem o escuta­va. O allegro se revelava como um dos elementos desse "aconte­cimento" uma forma de congraçamento remoto, emanado do êxtase luminoso. Talvez esse fosse um modo muito suave de ex­plicar o que estava acontecendo. Por outro lado, o allegro era o próprio êxtase luminoso; era a compreensão instintiva de tudo o que fora apreendido graças a um tipo especial de conhecimen- to, era a sabedoria indiscriminada que, apesar de fracionada em notas e em frases, se conservava intacta. É claro que isso não per­tencia a ninguém e que estava ao mesmo tempo aqui, ali, em parte alguma. A mesma música que já fora ouvida cem vezes por Wil­liam Asquith Farnaby renascera sob a forma de uma sabedoria sem dono. Por esse motivo, ele a escutava pela primeira vez. Sem dono, o Quarto concerto de Brandenburgpossuía uma beleza tão intensa e um significado intrínseco que excedia tudo o que nele havia encontrado quando ainda era sem dono.

    Pobre idiota, foi o comentário irônico de uma bolha. O po­bre idiota que não quisera aceitar o "sim" como resposta em qualquer terreno que não fosse o estético. E que, durante todo o tem­po, tinha estado a se negar — pelo simples fato de ser ele mesmo — toda a beleza e todas as intenções às quais tão apaixonada­mente ansiava dizer "sim". William Asquith Farnaby não era mais que um filtro lamacento atolado, do qual os seres huma­nos, a natureza e mesmo sua adorada arte emergiam obscuros, enlameados, menores, diferentes e mais feios do que eram. Hoje à noite, pela primeira vez, sentia uma peça musical sem a menor dificuldade. Entre a mente e o som, a mente e o desenho, a men­te e o propósito, não existia mais nenhuma babel de improprie­dades biográficas para afogar a música ou provocar uma disso­nância sem sentido. Nessa noite, o Quarto concerto de Branden­burg representava uma coletânea de dados originais. Mais que isso, era um donum abençoado e não corrompido pela história pessoal, pela cultura de segunda mão e pela estupidez arraigada que revestiam as dádivas da experiência imediata de qualquer indivíduo e do pobre idiota que não quisera (e que na arte simples­mente não pudera) aceitar o "sim" como resposta.

    O Quarto concerto de Brandenburg executado na noite de hoje não era em si mesmo uma "coisa" sem dono. De um certo modo era um "acontecimento atual" de duração infinita. Ou me­lhor (isso era ainda mais impossível, uma vez que possuía três movimentos e estava sendo tocado no seu andamento normal), não tinha duração. O metrônomo orientava cada uma de suas frases, porém a soma delas não possuía uma duração de segun­dos ou de minutos. Havia um tempo, mas não existia o tempo. Que havia, então?

    — A eternidade — Will se viu forçado a responder. Essa era uma dessas imundas palavras metafísicas que nenhum homem in­telectualmente honesto sonharia pronunciar para si mesmo, quan­to mais em público.

  • Eternidade, meus irmãos — disse em voz alta. — Eternidade! Ah, ah, ah!

    Como se podia prever, o sarcasmo soou inteiramente falso. Hoje à noite, essas cinco sílabas tinham um significado tão con­creto quanto as cinco letras de outra espécie de palavra proibida.

    Ele começou a rir de novo.

  • Qual é a graça? — perguntou ela.

  • A eternidade. Acredite ou não, ela é tão real quanto a merda.

  • Excelente! — disse Susila em tom de aprovação.

    Will continuou sentado, imóvel e atento, seguindo com os olhos e ouvidos interiores as intrincadas torrentes de sons e de luzes que se harmonizavam e fluíam sem cessar de uma a outra seqüência. E cada frase dessa música tão familiar era uma reve­lação de beleza sem precedentes, que continuava a jorrar para o alto a fim de ir se derramar (como se fosse um labirinto de fon­tes) em outra revelação tão nova e surpreendente como ela mes­ma. O solo do violino e das duas flautas, a variedade de sons do cravo e da pequena orquestra de cordas variadas, tudo isso ele ouvia como se fossem torrentes que se interpenetram. Embora separadas, distintas, individuais, cada uma dessas torrentes de­pendia de todo o resto. E cada uma existia em virtude de sua re­lação com o todo do qual era um dos componentes.

  • Meu Deus! — ele se surpreendeu dizendo.

    Na seqüência eterna da variação, as flautas insistiam numa nota longa. Uma nota sem ascensões fracionárias, clara, transparente e divinamente vazia. Uma nota (a palavra borbulhou até ele) de contemplação pura. Eis aí outra inspiração obscena que adquirira um significado concreto e que podia ser pronunciada sem o menor sentimento de vergonha. Contemplação pura, sem ansiedade, muito além da incerteza e do contexto dos julgamen­tos morais. Através das luzes ascendentes, sua memória captou a expressão do rosto de Radha ao falar do amor contemplativo. Num outro momento a viu sentada, de pernas cruzadas, absolu­tamente imóvel e numa intensa concentração aos pés da cama on­de Lakshmi agonizava. No som dessa nota pura estava o significado das palavras dela, a expressão audível de seu silêncio. Du­rante todo o tempo, acompanhando o fluxo contemplativo e o vazio celestial daquele flautear, havia o som rico, vibrante e apai­xonado do violino. E aquele emaranhado de notas secas e brus­cas, tiradas das cordas do cravo, envolvia os sons contemplati­vos e destacados da flauta e as notas cheias de enlevo e de paixão emitidas pelo violino. A teia do intelecto envolvendo o espírito, o instinto, a ação e a visão. Todos eles envolvidos pelo pensa­mento dedutivo. Mas, como era óbvio, esse envolvimento vinha somente do exterior e nos termos de uma ordem de experiências radicalmente diferentes daquelas que o pensamento lógico se pro­põe a explicar.

  • É como o positivismo lógico disse Will.

  • Quê?

  • Esse cravo.

    Na superfície de seu cérebro pensava como um positivista lógico, enquanto em seu íntimo o grande "acontecimento" de luz e som continuava a se desdobrar, eternamente. Era como se um positivista lógico estivesse falando simultaneamente de Plotinus e de Julie de Lespinasse.

    A música mudou de novo. Agora era o violino que sustenta­va (quão apaixonadamente) a nota prolongada da contemplação, enquanto as duas flautas se encarregavam do tema envolvente a mesma forma, diferentemente consubstanciada e o repetiam de modo destacado. Dançando entre uma e outra, o positivista lógico (de modo absurdo, porém indispensável) tentava explicar tudo aquilo, numa linguagem incompatível com os fatos.

    Na eternidade que era tão real como a merda, continuou a ouvir e a ver essas torrentes entrelaçadas de sons e de luzes e con­tinuou sendo (lá, aqui e em lugar nenhum) tudo aquilo que via e ouvia. Bruscamente, ocorreu uma mudança na qualidade da luz. Essas torrentes entrelaçadas, que foram as primeiras diferencia­ções fluidas de uma remota compreensão de qualquer conheci­mento em particular, deixaram de fluir continuamente. Em seu lugar apareceu, de repente, uma interminável sucessão de formas distintas. Essas formas ainda estavam nitidamente carregadas com a felicidade luminosa do ser indistinto que agora estava limita­do, isolado, individualizado. Uma interminável sucessão de es­feras luminosas, prateadas, rosadas, amarelas, verde-pálidas e azul-genciana, vindas de alguma fonte secreta, ia aflorando e seguindo o compasso da música, formava caprichosas constelações de uma beleza e complexidade inacreditáveis. Era como se uma fonte inesgotável borrifasse intencionalmente maravilhosos en­trelaçamentos de estrelas vivas. E, enquanto as olhava e vivia a vida delas e a vida dessa música que a elas equivalia, continua­vam crescendo em novos entrelaçamentos que preenchiam as três dimensões de um espaço interior. Ao mesmo tempo, se transfor­mavam incessantemente em outra dimensão ilimitada e plena de qualidade e significação.

  • Que está escutando agora? perguntou Susila.

  • Ouço o que vejo e vejo o que ouço respondeu ele.

  • Como você descreveria isso?

  • Tem a aparência e o som da criação respondeu após um longo silêncio. Mas não é um acontecimento que tenha ocorrido de uma só vez. É uma coisa que não pára: é a perpétua criação.

  • Como se o nada absoluto perpetuasse alguma coisa, em algum lugar?

  • Isso mesmo.

  • Está progredindo.

    Se as palavras lhe viessem com maior facilidade à boca, e quando proferidas deixassem de ser tão sem sentido, Will lhe ex­plicaria que a sabedoria, a compreensão e o êxtase luminoso eram bem melhores que Johann Sebastian Bach.

  • Está progredindo, porém ainda tem muito que aprender repetiu Susila. Que tal abrir os olhos?

    Will balançou a cabeça negativamente.

  • Está na hora de você descobrir a razão última das coisas.

  • A razão das coisas é isto murmurou ele.

  • Não. Não é assim. Tudo o que você tem visto, ouvido e sentido constitui apenas a primeira razão. Agora é preciso que seja a segunda. Olhe-a e depois reúna as duas numa razão única que abranja todas elas. É por isso que você precisa abrir os olhos, Will. Abra-os completamente.

  • Está bem. Depois de muito relutar e com a sensação de desgraça iminente, abriu os olhos. A luminosidade interior foi absorvida por outra espécie de luz. A fonte de formas e os mun­dos coloridos com seus arranjos intencionais e seus entrelaçamen­tos propositadamente mutáveis cederam lugar a uma composi­ção estática de perpendiculares e diagonais, de planos achatados e de cilindros encurvados. Todas essas figuras eram esculpidas num material semelhante à ágata viva e emergiam da matriz nacarada de uma pérola. Como um cego recentemente curado e que se defronta pela primeira vez com o mistério da luz e da cor, seus olhos se esgazearam numa surpresa atônita. Foi então que, após mais vinte compassos eternos do Quarto concerto de Brandenburg,uma bolha de explicação atingiu seu consciente e, de re­pente, Will percebeu que estava olhando para uma pequena me­sa quadrada. Atrás dela havia uma cadeira de balanço e, mais além, uma parede de estuque inteiramente nua e caiada de bran­co. A explicação era tranqüilizadora: na eternidade que experi­mentara entre o abrir de seus olhos e o emergir do conhecimento daquilo que via, o mistério com que se defrontara tinha se apro­fundado e aquela beleza inexplicável havia se transformado nu­ma realização brilhante e estranha, e à medida que a olhava sentia- se invadido por uma espécie de terror metafísico. Esse mistério aterrador consistia em nada mais que duas peças de mobiliário e um pedaço de parede. O medo foi atenuado, porém a surpresa aumentou. Como era possível que objetos tão familiares e comuns pudessem ser isso? A evidência dizia não ser possível, no entanto ali estavam. Estavam ali!

    Sua atenção deixou as construções geométricas em ágata marrom e foi se concentrar naquele fundo pérola cujo nome ele sa­bia ser "parede", mas que sentia como uma coisa viva, uma sé­rie contínua de transubstanciações de estuque e cal na contextu­ra de um corpo sobrenatural — um deus-carne que continuamente se modulava de uma glória a outra. Escapando daquilo que as palavras-bolhas tentaram classificar como simples calcimina, al­gum espírito corporificado evocava uma sucessão interminável dos mais variados e delicados matizes — a um tempo vivos e sua­ves — que, emergindo de sua latência, continuassem a resplande­cer na pele divina e radiante do deus-carne. Maravilhoso! Maravilhoso! Devem existir ainda outros milagres. Novos mundos a se­rem conquistados. Outros mundos a nos conquistarem. Voltou a cabeça para a esquerda e lá estava (as palavras adequadas borbu­lharam quase que imediatamente) a grande mesa de tampo de már­more onde haviam feito suas refeições. Nesse momento, novas bo­lhas começaram a vir à tona com maior rapidez. Esse apocalipse vivo chamado "mesa" poderia ter sido considerado como uma tela de algum cubista místico, algum inspirado Juan Gris, com alma de Traherne e o dom de representar cuidadosamente em seus qua­dros as mudanças de humores das pétalas de nenúfares.

    Voltando a cabeça ainda um pouco mais para a esquerda, ficou surpreso diante do brilho das jóias. Que jóias estranhas! Estreitas incrustações de esmeralda, topázio, rubi, safira e lápis- lazúli, brilhando em filas superpostas como se fossem os tijolos de uma parede em Nova Jerusalém. Por fim no fim e não no início —, a palavra lhe veio à mente. No princípio eram jóias, as janelas, de vidro colorido e o muro do paraíso. Somente ago­ra as palavras "estante de livros" surgiram a fim de serem exa­minadas.

    Will ergueu os olhos dos "livros-jóias" e se encontrou no centro de uma paisagem tropical. Por quê? Onde? Lembrou-se então de que, ao penetrar no aposento pela primeira vez (numa outra vida), vira sobre a estante de livros uma aquarela grande e mal pintada. Entre dunas de areia e grupos de palmeiras, um estuário se alargava em direção ao mar e, além, no horizonte, enormes montanhas de nuvens se amontoavam num pálido céu.

    Uma bolha com a palavra "medíocre" veio à superfície. O trabalho pertencia a algum amador não muito talentoso. Mas no momento isso não tinha a menor importância. A paisagem deixa­ra de ser uma pintura e se transformara em seu original um rio verdadeiro, um mar autêntico, areia brilhando à luz do sol e árvores verdadeiras se elevando de encontro a um céu verdadeiro. Autêntico mar, representava seu próprio ser mergulhado em Deus.

    "'Deus' entre aspas?", indagou uma bolha irônica. Ou Deus (!) num sentido pickwickiano moderno?

    Will balançou a cabeça. A resposta era simplesmente: um Deus em quem alguém podia não acreditar mas que era evidente­mente o fato com que estava se defrontando. Apesar disso, esse rio continuava sendo um rio e esse mar era o Oceano Índico e não o produto de qualquer fantasia. Não havia nenhuma possi­bilidade de equívoco; eram eles mesmos. Contudo, não havia tam­bém a menor dúvida de que eram inequivocamente Deus.

  • Onde é que você está agora? perguntou Susila.

  • Penso que estou no céu disse apontando para a paisagem.

  • No céu? Ainda? Quando é que pretende aterrissar por aqui?

    Outra bolha de recordação emergiu da superfície limosa.

  • É algo muito mais intimamente fundido e cujo habitante é a luz de uma ou de outra coisa.

  • Mas Wordsworth também falou sobre a música triste e calma da humanidade.

  • Felizmente não há seres humanos nesta paisagem.

  • Não há nem mesmo animais — concluiu ela com uma risadinha. — Somente os vegetais mais inocentes e desconcertan­tes. Por esse motivo é melhor que olhe para o que está no chão.

    Will olhou para baixo. As nervuras nas tábuas do assoalho formavam um grande rio marrom e esse rio era um acontecimen­to turbilhonante da divina vida do mundo. No centro daquele dia­grama estava seu pé direito nu sobre as tiras da sandália e sur­preendentemente tridimensional, como o pé de mármore revela­do pelo farol de alguma estátua grandiosa.

    "Tábuas", "nervuras", "pé" — através do caudal de pala­vras, o mistério devolveu-lhe um olhar impenetrável e paradoxalmente compreensivo. Uma compreensão nascida daquela sa­bedoria sem conhecimento, à qual, a despeito de identificar os objetos e relembrar seus nomes, ele ainda estava acessível.

    De repente, pelo rabo do olho, viu uma coisa se mover com a rapidez de uma seta. Descobrira que, tornando-se acessível ao êxtase e à compreensão, ficara também acessível ao terror e à com­pleta incompreensão. Como uma criatura estranha que, alojada em seu peito, lutasse angustiosamente, seu coração começou a bater com uma violência que o fez tremer. Com a horrível certe­za de que estava para encontrar o Horror Fundamental, Will vi­rou a cabeça e olhou.

  • É um dos camaleões domesticados de Tom Krishna — disse Susila para tranqüilizá-lo.

    A luz tinha o mesmo brilho, mas este tinha mudado sua característica. Era agora um brilho diáfano e maligno que se irra­diava de cada uma das escamas verdes do dorso daquele ser, de seus olhos obsidianos e do pulsar de sua garganta rubra, dos bor­dos reforçados de suas narinas e de sua boca em fenda. Virou o rosto, mas esse movimento foi em vão, pois o Horror Funda­mental resplandecia de cada coisa para a qual olhava. Aquelas composições de cubista místico tinham se transformado em má­quinas complicadas e inofensivas. Aquela paisagem tropical, na qual tinha experimentado a união de seu próprio ser com Deus, era agora simultaneamente a mais nauseante das oleografias da época vitoriana. Naquela escuridão manifesta, os "livros-jóias" enfileirados nas prateleiras irradiavam uma luminosidade de mil volts. E como essas gemas do caos tinham se tornado baratas! E como eram indescritivelmente vulgares! Onde tinham existido ouro, pérola e pedras preciosas, havia somente enfeites de árvo­res de Natal, somente o pálido brilho de plástico e de lata polida. Tudo ainda pulsava com vida, mas era a vida de uma sinistra ven­da de saldos no subsolo de uma grande loja. Era isso o que a mú­sica confirmava agora era o que a onipotência estava perpe­tuamente criando um "Wordsworth" cósmico, cujo estoque fosse constituído de horrores produzidos em massa. Horrores da vulgaridade, de dores, de crueldade, de falta de gosto, de imbe­cilidade e de malícia intencional.

  • Não é um dos nossos pequenos e bonitos camaleões domésticos ele ouviu Susila dizer. É um desses hóspedes des­conhecidos e desajeitados que vêm de fora, uma sanguessuga. É claro que sugam sangue. Têm apenas gargantas e faces verme­lhas quando se excitam. Olhe! Lá vai ele!

    Will olhou novamente para baixo. Extraordinariamente real, o horror escamoso, com seus inexpressivos olhos pretos, sua bo­ca de assassino e a garganta vermelho-sangue que pulsava enquan­to o resto do corpo jazia esticado no assoalho, tão imóvel como se estivesse morto, estava agora a dois metros de seu pé.

  • Ele está vendo o que vai jantar disse Susila. Olhe para lá, à sua esquerda, na borda do tapete.

    Will voltou a cabeça.

  • Gongylus gongyloidesprosseguiu ela. Você se lembra?

    Ele se lembrava do louva-a-deus que tinha pousado em sua cama. Mas isso aconteceu em outra existência. O que vira naquela ocasião era simplesmente um inseto de aparência estranha. O que estava vendo agora era um par de monstros de três centímetros, horrivelmente requintado no ato da cópula. O azul-pálido dos seus corpos tinha barras e nervuras cor-de-rosa e as asas que se agita­vam continuamente, como pétalas ao vento, tinham as bordas sombreadas de roxo. Mas as formas dos insetos eram indisfarçáveis. Aquelas asas trêmulas eram os apêndices de duas bugigan­gas brilhantemente esmaltadas, dessas que compramos na seção de quinquilharias no subsolo dos grandes magazines dois pe­quenos modelos vivos de um pesadelo, duas miniaturas de má­quinas para copular. Agora uma dessas máquinas de pesadelo, a fêmea, tinha virado a cabeça pequena e chata toda boca e olhos esbugalhados no fim de seu longo pescoço e (Deus meu!) tinha começado a devorar a cabeça da máquina masculina. Pri­meiro um olho purpúreo foi mastigado, depois uma das metades da face azulada. O que era a metade esquerda da cabeça caiu no chão. Livre do peso dos olhos e dos maxilares, o pescoço corta­do voou impetuosamente. A máquina-fêmea abocanhou o coto gotejante e, enquanto o macho sem cabeça continuava a sua pa­ródia de Ares nos braços de Afrodite, mastigava-o metodicamente.

    Pelo canto do olho Will percebeu um novo movimento rápido e voltou a cabeça justamente a tempo de ver o camaleão se arrastar na direção de seu pé. Estava perto, cada vez mais perto. Desviou os olhos, amedrontado.

    Alguma coisa tocou os dedos de seu pé e continuou fazendo cócegas em seu dorso. Cessaram as cócegas, mas ele pôde sentir um leve peso no pé, um contato áspero e seco. Queria gritar, mas sua voz tinha desaparecido, e quando tentou se mover os múscu­los se negaram a obedecer.

    Aquela música eterna havia atingido o presto final. O Hor­ror marchava animadamente! E a dança era dirigida pelo Hor­ror, fantasiado de rococó.

    Completamente imóvel, o Horror escamoso, pousado no dorso de seu pé, olhava fixa e inexpressivamente para sua vítima em perspectiva. E, entrelaçados, os dois pequenos modelos vivos de um pesadelo tremulavam como pétalas sopradas pelo vento e eram agitados espasmodicamente pelas agonias simultâneas da morte e da cópula. Um século infinito havia decorrido; a pequena e ale­gre dança da morte prosseguia compasso após compasso. De re­pente, sentiu que pequeninas garras arranhavam sua pele. A san­guessuga tinha se arrastado no dorso de seu pé, em direção do assoalho, e durante um longo período lá permaneceu, de todo imóvel. Inopinadamente e com incrível velocidade, atravessou as tábuas e subiu no tapete. Abriu e fechou a boca, que parecia uma fenda. Das maxilas que trituravam via-se a ponta de uma asa de tonalidade violeta, que ainda vibrava como uma pétala de orquí­dea ao vento. Um par de pés esperneou vivamente durante um momento e depois desapareceu.

    Will estremeceu e fechou os olhos, mas através da fronteira que separava as coisas sentidas, lembradas e imaginadas, o Hor­ror o perseguia. Na fluorescência brilhante de sua luz interior, uma coluna interminável de insetos que reluziam com o brilho de latas e répteis raiados, surgidos de alguma fonte escondida de pesadelo, marchava diagonalmente, da esquerda para a direita, em direção a um fim desconhecido e monstruoso. Milhões de gongylus gongyloidese, no meio deles, inúmeras sanguessugas. Perpetuamente comendo e sendo comidas.

    E durante todo o tempo o violino, a flauta e o cravo continuavam seu trote infindável no presto final do Quarto concerto de Brandenburg.Que alegre e pequena marcha fúnebre rococó! Esquerda, direita, esquerda, direita. Contudo, qual fora a voz de comando para os hexápodes? Subitamente não eram hexápo­des, eram bípedes. A coluna interminável de insetos se transfor­mara numa coluna também interminável de soldados. E esses sol­dados marchavam como os "camisas-pardas" que vira desfilar em Berlim um ano antes da guerra. Eram milhares e milhares de­les, com os estandartes esvoaçando e seus uniformes reluzindo intensamente à luz dos holofotes, parecendo excrementos ilumi­nados. Incontáveis como os insetos, cada um deles se movia com a precisão de máquina e com a perfeita docilidade de um cachor­ro de circo. E as fisionomias, as fisionomias! Tinha visto alguns close-upsem noticiários cinematográficos alemães e lá estavam novamente: sobre-humanamente verdadeiros e em três dimensões, vivos. O rosto monstruoso de Hitler, gritando com a boca aber­ta. E os rostos daquela multidão heterogênea que o escutava: gran­des idiotas, completamente receptíveis. Eram como as fisiono­mias de sonâmbulos com os olhos bem abertos. Rostos de jovens, anjos nórdicos, inteiramente absortos ante a "visão beatífica". Rostos de santos barrocos, em pré-êxtase. Rostos de amantes à beira do orgasmo. Um povo, um império, um líder. União com a unidade de um enxame de insetos. O entendimento sem análise das tolices e do diabólico. E, então, a câmara das atualidades ti­nha filmado novamente as fileiras cerradas, as suásticas, a ban­da de música e o rosto ululante do hipnotista. Aqui, uma vez mais, sob o brilho de sua luz interior, estava aquela formação parda que se assemelhava a uma coluna de insetos, marchando inter­minavelmente ao ritmo dessa música de horror em estilo rococó. Para diante, soldados nazistas, para diante, soldados cristãos, pa­ra diante, marxistas, para diante, muçulmanos, para diante, ca­da povo eleito, cada cruzada e cada fazedor de Guerra Santa. Para diante! Ao encontro da miséria, da maldade e da morte! Will se surpreendeu olhando o fim que esperava aquela coluna, quando ela atingisse seu destino — milhares de cadáveres na lama da Co­réia, incontáveis pacotes de lixo no deserto africano. E aqui (por­que as cenas continuavam a mudar com uma rapidez de desnor­tear) estavam os cinco corpos recobertos de moscas, deitados com os rostos voltados para cima e as gargantas seccionadas que vira havia alguns meses no pátio de uma fazenda na Argélia. Aqui (surgida de um passado de mais de vinte anos) estava aquela ve­lha completamente despida que vira no meio dos escombros de uma casa de estuque na floresta de S. João. Sem que tivesse ha­vido qualquer transição, aqui também estava seu próprio quarto de dormir cinza-amarelo e o espelho do guarda-roupa que refle­tia os dois corpos pálidos: o seu e o de Babs, numa cópula frené­tica, acompanhada pelas lembranças do funeral de Molly e pelos acordes de Parsifal, que estavam sendo transmitidos pelo rádio de Stuttgart, no programa de sexta-feira santa.

    A cena sofreu nova mudança. Usando uma grinalda de estrelas de lata e lâmpadas de fantasia, tia Mary estava sorrindo alegremente para ele, quando se transformou ante seus olhos na­quela figura chorosa, estranha e maligna que a substituíra naque­las últimas e horríveis semanas que precederam sua transforma­ção em lixo. Um esplendor de amor e de bondade, uma venezia­na que se fecha, uma chave que gira numa fechadura, e estavam — ela no cemitério e ele em sua prisão particular, condenado ao confinamento solitário e a morrer numa bela manhã de um dia ainda não marcado. A agonia da venda de saldos no subsolo de uma grande loja. O crucifixo entre os enfeites da árvore de Na­tal. Fora ou dentro, com os olhos abertos ou fechados, não ha­via saída.

    — Não há saída — murmurou. E as palavras confirmaram o fato e se transformaram numa horrível certeza que continuou a se abrir, abrindo para as profundezas cada vez maiores de ma­ligna vulgaridade, numa sucessão de infernos e de sofrimentos inteiramente destituídos de qualquer finalidade.

    E esse sofrimento (isso ele sentiu com a força de uma revelação) não era apenas sem finalidade; era também cumulativo e se auto-perpetuava. Já estava bastante amedrontado com a certeza de que a morte que viera para Molly, para tia Mary e todos os outros também viria para ele. A morte viria para ele, mas nunca para esse medo, para a sensação de náusea, para essas dilacerações de remorso e de auto-repugnância. Imortal em sua falta de sentido, o sofrimento prosseguiria para sempre. Sob todos os ou­tros pontos de vista, era grotesco e desprezivelmente finito. Só não o era no que dizia respeito ao sofrimento. Esse coágulo pe­queno e espesso chamado "eu" era capaz de sofrer infinitamen­te e, a despeito da morte, o sofrimento prosseguiria sem fim. As dores de viver e de morrer, a rotina de agonias sucessivas na ven­da de saldos do subsolo da grande loja e a crucificação final com um brilho vulgar de lata e de plástico continuavam a reverberar, sempre ampliadas. Estariam sempre lá. E as dores não eram trans­missíveis, o isolamento era completo. A sabedoria que um dia existira era a consciência de que sempre se estava só. E a solidão era a mesma, tanto na alcova almíscar de Babs como ao se ter uma dor de ouvido ou fraturar um braço. Seria a mesma quando chegasse a vez do câncer final e, quando se pensasse que tudo havia passado, continuaria estando só com a imortalidade do sen­timento.

    Notou de repente que alguma coisa estava acontecendo com a música. O "tempo" tinha mudado. Rallentando. Era o fim: o fim de tudo, para todos. A alegre melodia da morte tinha im­pelido os que marchavam para a borda de um penhasco. E, ago­ra, aí estavam à beira do precipício. Rallentando, rallentando. A queda fatal, a queda para a morte. E de maneira pontual e ine­vitável aí estavam os dois acordes antecipados da consumação: a dominante esperada e depois a alta nota tônica que, de modo inequívoco, anunciava o fim. Depois disso, um som arranhado, um estalido e o silêncio. Através da janela aberta, podia ouvir o coaxar distante dos sapos e os ruídos monótonos e estridentes dos insetos. No entanto, de algum modo misterioso o silêncio con­tinuava íntegro. Como moscas num bloco de âmbar, os sons es­tavam envoltos numa transparência silenciosa, a qual eram impotentes para destruir ou mesmo modificar, e para a qual elas eram completamente insignificantes. A intensidade do silêncio se aprofundava. Um silêncio emboscado, expectante e conspiracional incomparavelmente mais sinistro do que aquela terrível e pe­quena marcha rococó para a morte que o precedera. Esse era o abismo para cuja beira o havia impelido. Para a beira do abismo e, agora sobre ele, o silêncio eterno.

    — Sofrimento infinito — murmurou Will. — E não se po­de falar nem mesmo gritar.

    Uma cadeira rangeu, sedas farfalharam e ele sentiu pelo deslocamento de ar contra seu rosto a proximidade de uma presença humana. Por trás das pálpebras cerradas tinha a noção de que Susila estava ajoelhada em sua frente e, momentos depois, sen­tiu que as mãos dela tocavam seu corpo — a palma das mãos con­tra suas faces, os dedos em suas têmporas.

    O relógio na cozinha fez um pequeno ruído e depois começou a bater as horas. Uma, duas, três, quatro...

    No jardim, um vento tempestuoso sussurrava intermitentemente entre as folhas. Um galo cantou e, um momento depois e de muito longe, um outro respondeu. Quase simultaneamente começaram a vir outras respostas e as respostas às respostas. Um contraponto de desafios: uma verdadeira competição de provo­cações. Nesse momento, uma voz diferente veio se juntar ao co­ro. Articulada, porém não humana.

  • Atenção — pedia através do canto dos galos e dos ruí­dos dos insetos. — Atenção! Atenção! Atenção!

  • Atenção! — repetiu Susila, e à medida que falava ele sen­tia que os dedos dela se moviam sobre sua fronte. De leve, muito de leve, dos supercílios até a altura de seus cabelos, de cada têm­pora até a glabela. Para cima e para baixo, para diante e para trás, acalmando as contrações da mente, desfazendo os sulcos dei­xados pelas confusões e pelas dores.

  • Atenção para isto — disse ela, aumentando a pressão das palmas sobre os ossos malares e da ponta dos dedos sobre suas orelhas. — Preste atenção a isto — repetiu. — Agora. Sua face está entre minhas mãos. — A pressão foi relaxada e os dedos co­meçaram a se mover de novo sobre sua fronte.

    "Atenção." Sobre um contraponto de gritos dissonantes, a injunção era insistentemente repetida. "Atenção." "Atenção." "Aten...", a voz não-humana parou no meio da palavra.

    Prestar atenção às mãos dela em sua face? Ou a esse terrível brilho da luz interior, a essa rápida ascensão de estrelas de lata e de matéria plástica e, transpondo a barreira da vulgaridade, a esse pacote de lixo que tinha sido Molly, àquele espelho de pros­tíbulo e a todos aqueles incontáveis cadáveres que jaziam na la­ma, no pó e nos escombros?

    Ali estavam de novo os camaleões e milhões de gongylus gongyloides.Ali estavam as colunas em marcha, os rostos exta­siados e devotamente atentos dos anjos nórdicos.

    Atençãol — gritou de novo o mairiá do outro lado da casa. — Atenção!

    Will balançou a cabeça. Atenção para quê?

  • Para isto — disse Susila, cravando as unhas na pele de sua fronte. — Para isto, aqui e agora! Não se trata de nada de romântico, como o sofrimento ou mesmo a dor. É somente a per­cepção das unhas. E mesmo que fosse muito pior, provavelmen­te não duraria para sempre. Teria um fim. Nada existe para sem­pre. Nada é infinito. Pode ser que a natureza de Buda seja a úni­ca exceção.

    Ela moveu as mãos e o contato passou a ser feito com a pele e não mais com as unhas. As pontas dos dedos deslizaram para baixo, sobre seus supercílios, e vieram repousar muito de leve so­bre as pálpebras fechadas.

    Will estremeceu ao primeiro contato; estava apavorado. Se­rá que ela estava se preparando para arrancar-lhe os olhos? Ele se sentou, pronto para jogar a cabeça para trás e se levantar ao primeiro movimento que ela fizesse. Mas nada aconteceu. Pou­co a pouco seus temores foram desaparecendo, mas persistiu a consciência desse contato íntimo, inesperado e potencialmente pe­rigoso. Uma consciência tão desenvolvida e tão absorvente (em virtude de os olhos serem extremamente vulneráveis) que ele na­da tinha para dar à luz interior ou às vulgaridades e horrores por ela revelados.

  • Preste atenção — sussurrou ela.

    Era impossível não prestar atenção. No entanto, suave e delicadamente, os dedos dela se aprofundaram na parte mais viva de sua consciência. E como estava alerta! Como podia sentir, neste momento, onde estavam aqueles dedos! Que estranho e quente formigamento fluía deles!

  • Parece uma corrente elétrica — comentou deslumbrado.

  • Mas felizmente esses fios não levam qualquer mensagem. No momento em que se tocam, no simples ato de tocar, se é to­cado. Há uma comunicação completa, mas nada é transmitido. Somente uma troca de vida. — Fez uma pausa e continuou: — Você percebeu que durante todas estas horas que passamos sen­tados aqui (no seu caso, durante todos estes séculos... todas es­tas eternidades) não olhou para mim uma só vez? Nem uma só vez! Está com medo do que possa ver?

    Will pensou sobre a pergunta e finalmente concordou com um sinal de cabeça.

  • Sim. Pode ser que seja isso. Talvez porque esteja com medo de ver alguma coisa com a qual tenha que me envolver. Alguma coisa que me obrigue a tomar uma atitude...

  • Foi por isso que ficou preso a Bach, às paisagens e à Gran­de Luz do Vazio!

  • Para os quais você não me permitiu continuar olhando — reclamou ele.

  • Simplesmente porque o Vazio não lhe seria benéfico, a não ser que você pudesse ver sua luz nos gongylus gongyloides. E nas pessoas, o que às vezes é bastante difícil.

  • Difícil? — Will pensou nas colunas de homens em mar­cha, nos corpos refletidos no espelho, em todos aqueles outros com os rostos enterrados na lama, e balançou a cabeça. — É im­possível.

  • Não, não é impossível — insistiu Susila — Karunaestá contido no sunyata. O Vazio é a luz, mas também é compaixão. Os contemplativos (gananciosos e ávidos) querem a luz sem se preocuparem com a compaixão. As pessoas que se contentam em ser simplesmente boas, tentam ser apenas compassivas e se recu­sam a se preocupar com a luz. Como sempre, tudo é questão de saber como fazer uso dos dois mundos... Mas está na hora de abrir os olhos e ver qual a aparência verdadeira de um ser humano.

    As pontas dos dedos se moveram das pálpebras para as têmporas e depois se dirigiram para as faces e para os ângulos da mandíbula. Decorridos alguns instantes, Will sentiu que tocavam seus próprios dedos e que suas mãos estavam seguras entre as dela.

    Will abriu os olhos e, pela primeira vez desde que tinha tomado o moksha, se surpreendeu a olhar atentamente o rosto de Susila.

  • Deus meu! — sussurrou finalmente.

    Susila sorriu.

  • É tão mau como a sanguessuga? — perguntou.

    Mas isso não era assunto para brincadeira. Will balançou a cabeça com impaciência e continuou a olhá-la. As órbitas, en­voltas em sombras, pareciam misteriosas. Exceto por uma peque­na meia-lua de luz na altura do malar, toda a face direita estava envolta em sombras. O lado esquerdo brilhava com uma radiância dourada — um brilho sobrenatural que não era nem o clarão vulgar e sinistro da escuridão visível, nem tampouco aquela aben­çoada incandescência revelada na distante alvorada da eternida­de que existia por trás das pálpebras fechadas, quando ao abri-las deparou com os "livros-jóias", com as composições de cubistas místicos e com a paisagem transfigurada. O que estava ven­do agora era o paradoxo de opostos indissoluvelmente ligados: de luz se irradiando da escuridão e de escuridão no âmago da luz.

  • Não é o sol... não é Chartres — disse afinal. — Graças a Deus, também não é a venda de saldos do subsolo. É tudo isso junto e a identifico como você mesma e consigo reconhecer a mim mesmo. Este comentário parece supérfluo desde que somos tão completamente diferentes. Você e eu pintados por Rembrandt, mas por um Rembrandt que fosse cinco mil vezes mais ele mesmo. — Fez uma pausa rápida, depois balançou afirmati­vamente a cabeça e prosseguiu: — É isso mesmo. Sol em Char­tres, janelas de vidros coloridos no subsolo onde estão fazendo uma venda de saldos e que é ao mesmo tempo a câmara de tor­tura, o campo de concentração, o cemitério com enfeites de ár­vores de Natal. E agora o subsolo dos saldos dá uma marcha à ré, capta Chartres e uma fatia de sol e chega até aqui; chega a você e a mim, pintados por Rembrandt. Será que entende o que quero dizer?

  • Perfeitamente — disse ela.

    Mas Will estava muito ocupado em olhá-la e não conseguia prestar atenção ao que ela estava dizendo.

  • Você é tão incrivelmente bela! Mas se fosse incrivelmen­te feia não teria a menor importância; continuaria sendo o quadro de um Rembrandt cinco vezes mais autêntico. Bela, bela! — repetiu. —Noentanto, não quero dormir com você. Não, isto não é verdade. Gostaria de dormir com você. Gostaria muito. Contudo, se não dormir, isso não fará a menor diferença. Conti­nuarei a amá-la, a amá-la do modo por que um Cristão deve amar seus semelhantes. Amor, repetiu, amor... É outra daquelas pala­vras sujas. "Apaixonado", "fazer amor", isso é uma obsceni­dade que não consigo pronunciar. Mas agora, agora... — Sorriu e balançou a cabeça. — Acredite ou não, agora posso entender o que quer dizer "Deus é amor". Que contra-senso! No entanto é a verdade. Enquanto isso, aí está esse seu rosto maravilhoso.

  • Ele se inclinou para a frente a fim de olhá-la mais de perto.

  • É como se estivesse olhando numa bola de cristal, onde sem­pre existe algo de novo — acrescentou incredulamente. — Você não pode imaginar...

    Mas ela podia imaginar.

  • Não se esqueça de que também estive lá — disse Susila.

  • Olhou para o rosto das pessoas?

    Ela fez que sim com a cabeça.

  • Olhei meu rosto no espelho. Também olhei o de Dugald. Meu Deus, a última vez que tomamos juntos o moksha! Ele co­meçou parecendo um herói de alguma mitologia impossível: de indianos na Islândia, de vikings no Tibete. E, sem qualquer avi­so prévio, passou a ser Buda Maitreya. Buda Maitreya, sem a me­nor sombra de dúvida. Quanto esplendor! Eu ainda posso ver.

    Susila interrompeu o que estava dizendo e Will se surpreendeu a olhar a Encarnação da Perda, com sete espadas no cora­ção. Lendo os sinais de dor nos olhos escuros e nos cantos da­quela boca de lábios cheios, ele descobriu que a ferida tinha sido quase mortal e que ainda estava aberta e sangrando. Ao fazer essa descoberta, sentiu um aperto no coração. Apertou as mãos dela. Não havia nada que se pudesse dizer, nenhuma palavra, ne­nhuma consolação filosófica apenas essa misteriosa solidarie­dade táctil, essa comunicação de uma pele com outra através de um influxo interminável.

  • As pessoas voltam ao passado com tanta facilidade... Com demasiada facilidade e com muita freqüência — disse ela. Dando um longo suspiro, endireitou os ombros.

    Diante de seus olhos, o rosto etodo o corpo sofreram outra transformação. Sob aquela aparência frágil havia bastante força para enfrentar qualquer sofrimento. Uma vontade capaz de so­breviver a todos os golpes com que o destino a quisesse ferir. Qua­se ameaçadora em sua obstinada serenidade, uma deusa escura e sedutora tomara o lugar da Mater Dolorosa. Lembrou-se ime­diatamente daquela voz calma que falava de modo tão irresistí­vel a respeito dos cisnes e da catedral, das nuvens e das águas plácidas. À medida que recordava, o rosto que tinha diante de si parecia brilhar com a consciência do triunfo. Viu a expressão do poder intrínseco. Sentiu sua presença grandiosa e se afastou dele.

  • Quem é você?

    Ela olhou-o em silêncio por um momento e depois sorriu alegremente.

  • Não fique tão amedrontado. Não sou a fêmea do louva-a-deus.

    Will retribuiu o sorriso alegre da menina que gostava de beijos e que tinha a coragem de pedi-los.

  • Graças a Deus! — disse-lhe Will. E o amor, que tinha fugido amedrontado, começou a voltar nas ondas de um mar de felicidade.

  • Por que está dando graças?

  • Por ter lhe concedido a bênção da sensualidade.

    Ela sorriu de novo.

  • Quer dizer que esse gato saiu do saco!

  • Todo aquele poder... Toda aquela admirável e terrível força de vontade... Você poderia ter sido Lúcifer, mas feliz e providencialmente... — Ele libertou sua mão direita e, com a ponta do indicador, tocou os lábios dela. — A dádiva abençoada da sensualidade tem sido sua salvação. Metade de sua salvação — acentuou ao se lembrar daqueles horríveis frenesis destituídos de amor que vivera na alcova cor-de-rosa. — Uma de suas salva­ções. Porque é certo que existe essa outra coisa que é o fato de você saber quem realmente é. — Ficou em silêncio por alguns ins­tantes e continuou: — Mary com espadas trespassadas no cora­ção, Circe e Ninon de Lenclos também com espadas no coração. Quem seria o próximo? Alguém como Juliana da Noruega ou Ca­tarina de Gênova? Será que você é essa gente toda?

  • Tudo isso e também uma idiota e uma mãe bastante preocupada e não muito eficiente. Acrescente a isso a criança preten­siosa e sonhadora, e provavelmente também aquela velha agoni­zante que ficou olhando para mim do espelho, na última vez que tomamos juntos o moksha. Foi naquela ocasião que Dugald olhou e viu como ele seria daqui a quarenta anos. Menos de um mês depois, estava morto.

    As pessoas voltam ao passado com tanta facilidade e com tanta freqüência... Metade de seu rosto estava envolta em som­bras e a outra irradiava uma luz dourada. Seu rosto se conver­teu, uma vez mais, numa máscara de sofrimento. Will pôde ver que, dentro das órbitas sombrias, seus olhos estavam fechados. Tinha retrocedido para outras épocas e estava só em algum lu­gar. Só com as espadas e a ferida aberta. Lá fora, os galos volta­ram a cantar e um segundo mainá começou a pedir compaixão num semitom acima do primeiro.

  • Karuna!

  • Atenção! Atenção!

  • Karuna!

Will levantou a mão e, mais uma vez, tocou os lábios de Susila.

  • Está ouvindo o que eles estão dizendo?

    Decorreu longo tempo antes que respondesse. Levantando a mão, segurou o dedo estendido de Will e com ele pressionou o próprio lábio inferior.

  • Muito obrigada disse ao abrir os olhos.

  • Por que está me agradecendo? Foi você quem me ensi­nou o que fazer.

  • Agora é sua vez de ensinar à professora.

    Como um par de "gurus" rivais, cada um apregoando sua marca de espiritualidade, os mainás continuavam a gritar "Karunal" e "Atenção!" Depois, como se cada um deles quisesse afugentar a sabedoria do outro, através da vitória nessa compe­tição, gritavam "Runattenshkarattunshon". Proclamando suas qualidades de senhor eternamente potente de todas as fêmeas e de adversário invencível de qualquer pretendente espúrio que de­safiasse sua virilidade, um frango apregoava esganiçadamente seus poderes divinos.

    Um sorriso quebrou a máscara do sofrimento; de seu mun­do particular de espadas e recordações, Susila voltou ao presente.

  • Cocorocó! Como gosto desse frango! Parece Tom Krishna quando sai pedindo às pessoas que sintam como seus músculos estão desenvolvidos. E esses ridículos mainás sempre a repe­tirem fielmente o bom conselho que não podem entender. São tão adoráveis como meu "galinho-valente".

  • Que me diz da outra espécie de bípede? Daqueles da espécie menos adorável? perguntou Will.

    À guisa de resposta, ela se inclinou para diante, pegou-o pe­los cabelos e, puxando sua cabeça para baixo, beijou-o na ponta do nariz.

  • Já é hora de mover as pernas. Levantando-se, estendeu-lhe a mão. Após segurá-lo, Susila ajudou-o a se levan­tar da cadeira.

  • Cantiga contraproducente e anti-sabedoria papagaiada. Isso é o que alguns dessa outra espécie de bípede gostam de fazer.

  • Qual a garantia que tenho de que não voltarei a vomitar?

  • É provável que isso volte a acontecer — disse Susila alegremente. — Mas também é provável que volte ao estado de es­pírito que tem neste momento.

    Algo moveu-se rapidamente, próximo aos pés de ambos.

    Will deu uma gargalhada.

  • Lá se vai a minha pobre e pequena encarnação rastejan­te do mal.

    Ela segurou seu braço e ambos caminharam em direção à janela aberta. Anunciando a próxima aparição da aurora, um ven­to fraco e vacilante fazia rufiar as copas das palmeiras. Abaixo de onde estavam, enraizada invisivelmente na terra úmida e de cheiro acre via-se uma touceira de hibisco — uma profusão sel­vagem de folhas lustrosas e de cornetas rubras que um feixe de luz vindo da sala punha em destaque, no meio da dupla escuri­dão formada pela noite e pelas frondosas árvores.

  • Não é possível — foi o comentário incrédulo de Will. — Estava novamente com Deus no dia quatorze de julho.

  • Não é possível — concordou Susila. — Mas, como tudo na vida, isto é um fato. E agora que você finalmente reconheceu minha existência, lhe darei permissão para olhar o conteúdo de seu coração.

    Ele parou imóvel a fitar uma interminável sucessão de intensidades crescentes e cheias de um significado cada vez mais profundo. Lágrimas encheram seus olhos e finalmente escorre­ram por seu rosto. Tirando um lenço do bolso, começou a enxugá-las.

  • Não posso evitá-las — disse Will em tom de desculpa. Não podia evitá-las porque não havia outro meio como expres­sar sua gratidão. Gratidão pelo privilégio de estar vivo e de ser uma testemunha desse milagre de ser. Na verdade, mais do que uma simples testemunha, era uma parte desse milagre. Gratidão por essas dádivas de êxtases luminosos, de conhecimento e de com­preensão. Gratidão por ter sido, ao mesmo tempo, essa união com a unidade divina e uma criatura finita entre outras também fini­tas. Por que choramos quando somos gratos? — perguntou en­quanto guardava o lenço. — Só Deus sabe. Mas sempre chora­mos. — Uma "bolha" de recordação emergiu do depósito de coi­sas que lera. — A gratidão é o próprio céu — citou. — Simples algaravia! Mas agora vejo que Blake se limitou a registrar sim­ples ocorrências. A gratidão é o próprio céu.

  • E ainda mais celestial por ser o céu na terra e não o céu no céu.

    Surpresos, ouviram o som distante de um tiroteio que dominava o canto dos galos, o coaxar dos sapos, o ruído dos insetos e o dueto dos "gurus" rivais.

  • O que é isso? — perguntou Susila.

  • São os garotos brincando com fogos de artifício — disse Will alegremente.

    Susila balançou a cabeça.

  • Nós não estimulamos essa espécie de fogos. Nem mesmo os possuímos.

    Da rodovia além dos limites do acampamento, o rugir de veículos pesados subindo em primeira se tornava cada vez mais au­dível. Dominando o barulho, uma voz ao mesmo tempo estentórea e esganiçada vociferava de modo incompreensível através do alto-falante.

    Em suas molduras de sombras de veludo, as folhas pareciam delgadas lâminas de jade e esmeralda, e do fundo desse fantásti­co luzir de pedras preciosas despontavam rubis esculpidos em for­ma de estrelas de cinco pontas. Gratidão, gratidão! Os olhos de Will tornaram a se encher de lágrimas.

    Fragmentos do vociferar esganiçado se transformaram em palavras compreensíveis e, contra sua própria vontade, ele se sur­preendeu a escutá-las.

  • Povo de Pala... — E a voz ampliada explodiu em sons inarticulados. Guinchos, rugidos, novos guinchos, e então: — O seu rajá lhes fala... Permaneçam calmos... Dêem as boas-vindas a seus amigos da outra margem do estreito.

    De repente, Will reconheceu aquela voz.

  • É Murugan.

  • Ele está com os soldados de Dipa.

  • Progresso... — dizia a voz insegura e excitada. — Vida moderna... Indo da Sears Roebuck para a rani e Koot Hoomi, prosseguiu no tom de voz esganiçado: — Verdade, valores... Ver­dadeira espiritualidade... Petróleo.

  • Olhe! — disse Susila. — Olhe! Estão se dirigindo para o acampamento.

    Visíveis através de uma brecha existente entre duas moitas de bambus, os reflexos de uma procissão de faróis brilharam de repente na face esquerda do grande Buda de pedra, e ao passar pelo poço de lótus recomeçaram as alusões à abençoada possibi­lidade de libertação, tornando a desaparecer da vista.

  • O trono de meu pai — uivava a voz esganiçada e tremendamente ampliada — se uniu ao trono dos antepassados de mi­nha mãe... Duas nações irmãs que de mãos dadas marcham para a frente, para o futuro... E esta nação fará parte, de agora em diante, do Reino Unido de Rendang e Pala. O primeiro-ministro desse Reino Unido é o grande político e líder espiritual, coronel Dipa.

    A procissão de faróis desapareceu por trás de uma longa fileira de edifícios e os guinchos vociferados se transformaram em sons incoerentes. As luzes surgiram de novo e a voz se tornou compreensível.

  • Reacionários. Traidores dos princípios da revolução permanente...

    Num tom aterrorizado, Susila sussurrou:

  • Estão parando no bangalô do dr. Robert.

    A voz tinha dito a última palavra. Os faróis e os motores foram desligados. Na escuridão que rodeava aquele silêncio ex­pectante, os sapos e os insetos continuavam nos solilóquios des­preocupados e os mainás reiteravam seus bons conselhos. "Aten­ção! Karuna!”

    Will olhou para baixo, na direção da moita incandescida, e viu a Semelhança do mundo e o seu próprio ser ardendo com a Grande Luz que também era (como tudo estava claro agora!) com­paixão. A Grande Luz que, como qualquer outra pessoa, ele sem­pre fora cego para ver. A Grande Luz que sempre desprezara em favor de suas preferências pelas torturas que sofrera ou infligira naquele subsolo onde havia uma venda de saldos. Suas solidões miseráveis com Babs ou com a falecida Molly no primeiro pla­no, com Joe Aldehyde a meia distância e bem atrás, o grande mun­do das forças impessoais, dos números prolíficos, de paranóias coletivas e de maldade organizada. E sempre e em toda a parte existiriam — ruidosos ou tranqüilos — os hipnotizadores autori­tários, e na esteira desses "sugestionadores reinantes" — sempre e em toda a parte — seguem as legiões de bufões, mercenários e os fornecedores de divertimentos sem propósito. Condiciona­dos desde o berço, continuamente entretidos, sistematicamente mesmerizados, suas vítimas uniformizadas continuarão sempre nas marchas e contramarchas obedientes; por toda a parte mata­rão e morrerão com a docilidade de poodles. No entanto, a des­peito da recusa plenamente justificada em aceitar o "sim" como resposta, a verdade seria sempre a mesma e sobreviveria em toda a parte — a verdade de que havia essa capacidade mesmo num paranóico em relação à inteligência, mesmo num adorador do dia­bo em relação ao amor; a verdade de que a essência de todo o ser poderia se manifestar inteiramente num arbusto em flor, num rosto humano; a verdade da existência de uma luz e de que essa luz também era compaixão.

    Ouviu-se um tiro isolado. A seguir, o espocar de um rifle automático.

    Susila cobriu o rosto com as mãos. Estava tremendo incontrolavelmente.

    Will passou um braço em torno de seus ombros e estreitou-a contra o corpo.

    Todo o trabalho de cem anos destruído em uma noite. No entanto, a verdade sobrevivia — a verdade do fim do sofrimen­to, bem como da existência do mesmo.

    Os motores foram ligados e os veículos começaram a se movimentar. Os faróis foram acesos e, depois de um minuto de ma­nobras, começaram a voltar pela mesma estrada por onde tinham vindo.

    O alto-falante começou a berrar os compassos de uma mú­sica (simultaneamente marcial e lasciva) na qual Will reconheceu o hino nacional de Rendang. O Wurlitzer foi desligado e a voz de Murugan tornou a ser ouvida.

    — Quem lhes fala é o seu rajá — proclamava a voz excita­da. Depois, da capo, seguiu-se uma repetição do discurso acerca de Progresso, Valores, Petróleo e Verdadeira Espiritualidade. Tão repentinamente como surgira, a procissão deixou de ser vista e ouvida.

    Após um minuto, estava novamente visível com seu contra- tenor a vociferar elogios ao primeiro-ministro do recém-criado Reino Unido.

    A procissão se arrastava para diante e, agora, desta vez, vindos da direita, os faróis do primeiro carro blindado iluminaram por um instante a face serena e sorridente da Sabedoria. E aí es­tava o Tathagata, iluminado pela segunda, terceira, quarta e quin­ta vez pelos faróis dos carros.

 

O último carro acabou de passar e, embora esquecida na escuridão, a verdade da sabedoria permanecia. O rugir dos moto­res diminuiu. A retórica esganiçada se converteu num amontoa­do de sons sem sentido. Morreram os ruídos estranhos. Os sa­pos, os insetos incessantes e os mainás estavam de volta.

  • Karuna! Karuna!

E num semitom abaixo:

  • Atenção!

 

                                                                                            Aldoux Huxley

 

                      

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