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A VOZ DO CORAÇÃO / Barbara Cartland
A VOZ DO CORAÇÃO / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A VOZ DO CORAÇÃO

 

Á pedido do primeiro-ministro, lorde Kenington parte para a índia. Sua missão é descobrir o que acontece na fronteira Noroeste e se o objetivo dos russos é invadir a índia.

No navio em que viaja lorde Kenington conhece Aisha Warde, que também está indo a Calcutá para encontrar-se com o pai. Como Aisha viaja sozinha, lorde Kenington faz-lhe companhia e assim impede que um passageiro atrevido a importune. O que ele não imagina é que, muito em breve, desejará com todas as suas forças ter Aisha em seus braços!

 

 “1880”

Lorde Kenington acordou com um sobressalto. Olhou para o relógio do seu lado e viu que já era um novo dia.

Embarcara tão cansado no vapor da companhia P.&O. Com destino à índia que, mal terminara o jantar trazido à cabine pelo valete, fora para a cama, adormecendo imedia­tamente, sem sequer pensar nos problemas ou nas decisões que teria de tomar.

O dia anterior fora extenuante. Ele havia estado com o primeiro-ministro, numa reunião que se prolongara por ho­ras, e deixara a Downing Street com a missão de embarcar para a índia a fim de descobrir e relatar ao Sr. Disraeli o que acontecia na fronteira Noroeste daquele país.

A rainha Vitória, pessoalmente, pedira á lorde Kenington um relatório muito mais minucioso do que aqueles que lhe eram mandados oficialmente.

A índia, no momento, era extremamente importante para a Inglaterra. Havia uma inequívoca ameaça de invasão da fronteira por parte da Rússia.

Os cossacos, montados em seus cavalos magníficos, avançavam pelo sul da Ásia, e aproximavam-se perigosa­mente do que era considerada a mais preciosa "Jóia da Coroa Britânica".

Lorde Kenington tocou chamando Newman, seu valete, que ocupava a cabine vizinha. Então se levantou e começou a trocar-se em silêncio.

Sabendo que o patrão não gostava de conversa pela ma­nhã, Newman entregou-lhe as roupas uma a uma, ele sempre calado, ajudou-o a arrumar o laço da gravata.

Tendo decidido tomar o café da manhã no salão, lorde Kenington deixou a cabine. Foi primeiro para o convés para respirar o ar fresco. O vapor quase terminara a travessia do canal da Mancha e em breve alcançaria a baía de Biscaia, onde o mar era invariavelmente encapelado, mesmo que o sol brilhasse.

Sendo bom marinheiro, lorde Kenington não se aborrecia quando o mar estava revolto. Pelo contrário, tinha prazer de observar a fúria dos elementos, as ondas se arremetendo violentas contra o casco do navio.

Andando pelo convés ele lamentou que durante a viagem fizesse tão pouco exercício. Em Londres costumava cavalgar todas as manhãs na Rotten Row. Quando estava campo, além dos passeios a cavalo, também praticava saltos. Só depois de exercitar-se durante duas horas é que começava a trabalhar.

Aos vinte e oito anos, lorde Kenington poderia gozar a vida divertir-se e com as beldades de Mayfair, como faziam seus amigos e o príncipe de Gales. Entretanto, ele não acha­va interessante perseguir aquelas ladies sofisticadas que tinham beleza, mas, em geral, um cérebro vazio.

Assim, ainda que parecesse absurdo, lorde Kenington pre­feria o trabalho ao jogo das conquistas amorosas.

Tal qualidade muito agradava ao primeiro-ministro e ao ministro das relações exteriores, os quais consultavam lorde Kenington com freqüência e não raro encarregavam-no de missões delicadas e sigilosas em vários países da Europa.

Dotado de cérebro brilhante e ar de autoridade, lorde Kenington saíra a seus ancestrais. Todos eles desempenha­ram papel importante na política do país.

Desde muito jovem ele sempre gostara, da companhia e da conversa de homens bem mais velhos do que ele, com quem muito aprendia.

Em Eton e na universidade ele fora, em todos os anos, o primeiro da classe.

Alguns colegas chegaram a lhe dizer, queixosos:

— Você é muito inteligente, Charles, e nos faz sentir tolos e humilhados.

Mas os colegas e amigos jamais se indispunham com Charles. Pelo contrário, gostavam dele por ser extremamen­te simpático e generoso. Charles os convidava para caçar na propriedade do pai, no campo, e para participar de stee-plechases, um dos grandes acontecimentos da primavera.

Depois de ter herdado o título, Charles passara a adminis­trar as propriedades deixadas pelo pai, mas sua presença não era imprescindível em nenhuma delas, pois tudo era muito organizado e seus empregados mereciam total confiança.

Sendo assim, sobrava ao novo lorde Kenington muito tem­po para dedicar-se à política.

Invariavelmente ele se envol­via em todas as crises, quer ocorressem em Londres, Paris ou Tombucto.

Lady Kenington, mãe de Charles morava na casa ances­tral da família, uma das mais belas da Inglaterra. Ao saber que o filho estava de partida para a índia, queixara-se:

— Não sei por que o primeiro-ministro e o ministro do exterior recorrem a você para ajudá-los, Charles, se pode contar com o vice-rei e os diplomatas. — Sempre há conflitos na índia e receio pela sua vida, meu filho.

— Merecer a confiança de Disraeli e do ministro das relações exteriores é uma honra, mamãe — tornara lorde Kenington.  — A bem da verdade, devo dizer que eu ficaria magoado e surpreso se eles não quisessem ouvir a minha opinião.

— Pelo menos você descansará na viagem de ida e de volta, cada uma com dezessete dias de duração, meu querido.

— Por que acha que preciso de descanso, mamãe? — Indagara lorde Kenington. — Está querendo dizer que não estou bem de saúde?

— Não é isso, filho. — Vejo que você trabalha demais e passa muito tempo em reuniões ou viajando. — Já está na hora de pensar em ter a sua família e dedicar-se apenas a ela e às suas propriedades — observara lady Kenington.

— Oh, não, mamãe! — Lorde Kenington levantara as mãos. — Estou cansado de ouvi-la dizer que devo me casar e acomodar-me. — A senhora sabe melhor do que ninguém que amo aventuras. — Se eu ficar só na Inglaterra, seja no campo ou em Londres, eu acabarei morrendo de tédio. — Gosto de viajar pelo mundo e estando casado isso não seria possível.

Lady Kenington sorrira, mas havia ansiedade em seu olhar. Como todas as mães ela se preocupava com o filho único que, a seu ver, desperdiçava a juventude. Charles se desgastava ao tomar sobre si responsabilidades que seriam do governo.

Um homem tão bonito e tão jovem como ele, ela pensava, não devia ficar trancado em reuniões com o primeiro-mi­nistro, nos ministérios ou mesmo no seu escritório, em vez de divertir-se.

Charles, porém, sentia que era seu dever contribuir da maneira que fosse possível para a maior glória do Império Britânico que se expandia cada vez mais.

Otimista como sempre, Charles Kenington embarcara para a índia disposto a resolver todos os problemas que o aguardavam.

Porém considerou bem-vindos os dias de descanso que teria obrigatoriamente durante a longa viagem. Também se alegrou porque não lhe faltaria tempo para ler.

A leitura era um de seus passatempos prediletos. A mãe costumava dizer que ele devorava livros. De fato, seu se­cretário tinha ordem de adquirir tudo o que de melhor fosse publicado

Em sua bagagem, alem das roupas, estavam uma pilha de volumes, quase todos os lançamentos recentes que ele preten­dia ler antes de chegar a Calcutá

Depois da terceira volta no convés lorde Kenington foi para o salão tomar o café da manhã.

Queria ver como eram os passageiros da primeira classe.

Apesar de ter sido convidado pelo comandante para sentar-se à sua mesa, lorde Kenington agradecera a deferência alegando que estaria muito ocupado a bordo e raramente faria as refeições no salão.

Fora-lhe então reservada uma mesa de canto; dali ele podia observar todos os que estivessem no salão. Sentan­do-se à mesa lorde Kenington, constatou como já esperava que os companheiros de viagem fossem, em sua maioria, ca­sais de meia-idade, oficiais que retornavam à índia depois de um período de licença ou subalternos eufóricos, enviados para o Oriente pela primeira vez.

Ele não deixou de notar que as senhoras conversavam alto, e vestiam-se com exagero.

Os indianos em geral viajavam na segunda e terceira classes, em cabines pequenas e mal ventiladas.

Impressionados com a aparência e o título de lorde Ke­nington, os criados de bordo dispensaram-lhe toda atenção, certos de que receberia do aristocrata inglês uma gorjeta muito generosa.

Lorde Kenington não se demorou à mesa, mesmo porque os pratos servidos não eram mais do que comíveis e o café razoável.

Mal ele levantou-se um dos criados adiantou-se, apres­sado, para abrir-lhe a porta.

A intenção de lorde Kenington era ir até a cabine, pegar um livro e então voltar ao convés para ler um pouco. Mas ao passar pela biblioteca decidiu verificar se encontraria ali algo do seu interesse.

Seria melhor fazer isso antes que outros passageiros to­massem os livros emprestados. Uma vez na biblioteca, na verdade uma pequena cabine, ele viu que as estantes es­tavam repletas e os volumes, da mesma forma que o navio, era novo.

Ao correr os olhos pelas lombadas verificou que quase todos os livros eram romances. O que ele procurava era algum volume sobre a índia que ainda não tivesse lido.

Estava absorto lendo os títulos nas lombadas quando uma voz o surpreendeu.

— Por favor... Posso falar... Com o senhor?

Virando-se, lorde Kenington viu uma jovem do seu lado.

Era linda e sua expressão e seu modo de falar indicavam que ela estava amedrontada.

— Sim, claro — ele respondeu. — O que posso fazer por você?

— Quero que aquele homem... Veja-me conversando com o senhor. — Ele me assusta... Mas talvez vá embora... Se me vir na companhia de um cavalheiro importante... Como o senhor. — A voz da moça tremia um pouco.

— Que homem? — Por que ele a assusta? — Indagou lorde Kenington, olhando ao redor sem ver ninguém.

— Ele estava atrás de mim... Ainda há pouco. — Desde que o embarquei vem... Importunando-me. — Ontem à noite tive muito medo. — Quando vi o senhor sozinho no salão... Decidi pedir a sua ajuda. — As palavras pareciam cair dos lábios da moça.

— Este lugar é muito pequeno e se conversarmos aqui alguém poderá entrar e nos ouvir.

— Vamos para o convés — lorde Kenington convidou-a. — Lá ninguém nos perturbará e você poderá-me falar sobre esse homem.

— É muita amabilidade sua milorde. — Já li á seu respeito nos jornais e sei que... Ninguém se atreverá a aborrecer um cavalheiro tão distinto e importante.

Lorde Kenington sorriu.

— Eu queria que isso fosse verdade. — Vamos ver se en­contramos um lugar onde não nos perturbem.

No convés eles se sentaram ao abrigo do vento. Pela primeira vez lorde Kenington observou a moça com aten­ção e viu que ela era, sem dúvida, uma lady e tinha uma beleza extraordinária. Não era possível que estivesse via­jando sozinha.

— Com quem você está viajando? — Perguntou. — Na­turalmente você tem uma chaperon.

A moça respirou profundo antes de responder:

— Estava tudo arranjado para eu viajar na companhia do deão de Worcester e da esposa, que iam para a índia. — Porém ele ficou doente e o casal cancelou a viagem.

— Não é aconselhável fazer uma viagem como esta, so­zinha — lorde Kenington observou.

— Sim, concordo com o senhor. — Mas eu estava ansiosa para ir ao encontro de meu pai e decidi não esperar pelo restabelecimento do deão. — Além disso, achei que ninguém sequer notaria a minha presença — a moça justificou-se.

Assim falando ela olhou ao redor, como se receasse que o seu perseguidor estivesse por perto, observando-a.

— Continue — pediu lorde Kenington. — O que aconteceu então?

— Ontem à noite o comandante convidou-me para sen­tar-se à sua mesa, mas eu não quis ser um estorvo. — Também não gostei de ver que havia muitos homens com ele. — Agra­deci-lhe pelo  gentil convite e preferi sentar-me sozinha a uma mesa. — Então o homem de quem eu lhe falei, milorde, tam­bém convidado do comandante, sentou-se à minha frente e começou a conversar.

— Achei-o muito atrevido e permaneci a maior parte do tempo calada. — Terminado o jantar ele in­sistiu em me levar até o convés e... Quis tomar... Liberdades... — a moça parou de falar, evidentemente constrangida.

— Você está querendo dizer que ele tentou beijá-la — concluiu lorde Kenington delicadamente.

— Sim... Tentou... — a moça assentiu. — Mas corri para a minha cabine. — Tive o cuidado de trancar a porta a chave.

— Era o melhor que você tinha a fazer — lorde Kenington aprovou.

— Infelizmente esse homem desagradável descobriu onde eu dormia e bateu na porta.

— Como não respondi... Ele con­tinuou batendo. — Fez tanto barulho que alguns passageiros reclamaram.

— E você acha que eu posso protegê-la, por isso veio me procurar — lorde Kenington deduziu.

— Acredito que se o senhor conversar comigo... Ocasio­nalmente... Aquele homem atrevido não me molestará. — Com certeza ele não irá indispor-se com um aristocrata impor­tante como o senhor.

— Não esteja tão certa — contrapôs lorde Kenington. Em outro tom acrescentou: — Bem, você já sabe que sou eu. — Gostaria que me dissesse seu nome.

— Oh, peço-lhe desculpas por não ter-me apresentado assim que o procurei para pedir-lhe ajuda. — Sou Aisha Warde, filha do major Harold Warde. — Meu pai está servindo na índia no momento.

O nome não era estranho á lorde Kenington. Ele achou que alguém o havia mencionado ou ele já havia lido a res­peito do major Warde. Como não tinha certeza, preferiu manter-se calado.

— Já viajei bastante, mas esta é a primeira vez que vou para a índia — Aisha estava dizendo.

— Não vejo a hora de conhecer aquele país e de estar com papai, claro.

— Seu entusiasmo é natural, Aisha. — Quanto a esse ho­mem que a vem molestando, você sabe quem é ele?

— Sei que se chama Arthur Watkins e posso afirmar que não é um gentleman.

— Pelo menos não se comporta como tal — replicou lorde Kenington. — Vou cuidar para que esse Arthur Watkins não a aborreça mais.

— Fará isso por mim? — Muito obrigada — Aisha agradeceu, aliviada. — É muito gentil de sua parte.

— Continuo achando que é arriscado você viajar sem uma chaperon — lorde Kenington insistiu. — Vou falar com o comissário para saber se é possível você mudar de cabine. — Depois verificarei se há alguém a bordo que aceite fazer-lhe um pouco de companhia e concorde em tê-la à mesa para as refeições. — Fique tranqüila, pois ninguém mais baterá à sua porta de modo tão inconveniente.

— É... Assustador. — Tive muito medo de que a porta... Se abrisse — Aisha murmurou.

— Como este navio é novo, eu acredito que as fechaduras sejam perfeitamente seguras.

— Uma vez que a porta esteja trancada a chave, você não precisa temer intrusos, estejam eles à sua procura ou atrás do seu dinheiro.

O modo de lorde Kenington falar fez com que Aisha sor­risse. Ele á achou ainda mais encantadora.

— É muita amabilidade sua ter tanto trabalho por minha causa — ela disse. — Lamento estar sendo uma amolação para o senhor.

— Você não é nada disso — redargüiu lorde Kenington, cortesmente. — Estou viajando sozinho e, ainda há pouco, no salão, olhei para os passageiros e disse a mim mesmo que não tinha vontade de conversar com nenhum deles.

— É verdade? — Aisha riu. — Pois ontem, ao jantar, eu pensei a mesma coisa. — Então aquele homem horrível veio até a minha mesa e não tive como mandá-lo embora.

— Você deveria ter sentado à mesa do comandante — observou lorde Kenington em tom de censura.

— Na mesa dele também havia alguns homens com quem não me simpatizei e que viajavam sozinhos. — Preferi evitá-los — expôs Aisha.

— Vou falar com o comissário de bordo — lorde Kenington repetiu. — Quer acompanhar-me ou me espera aqui? — Vol­tarei em poucos minutos.

— Prefiro esperá-lo... Mas você... Voltará mesmo? — A voz de Aisha soou trêmula novamente.

— Voltarei claro — lorde Kenington prometeu. — Fique tranqüila.

O escritório do comissário de bordo era bem perto e lorde Kenington foi gentilmente recebido.

— Estive falando com uma jovem lady, a Srta. Warde, que se queixou de estar sendo importunada por um dos passageiros — ele expôs.

— Importunada, milorde? — Como? — Indagou o comissário em tom incisivo.

— Um passageiro de nome Arthur Watkins a vem aborre­cendo, aproveitando-se do fato de ela estar viajando sozinha.

— Arthur Watkins? — Tem certeza de que é esse o nome, milorde?

— Plena certeza. — Peço-lhe, senhor, que o advirta por mo­lestar uma jovem. — Na verdade, estou admirado de saber que um homem como esse, que nem por sombra é um ca­valheiro, esteja viajando na primeira classe — lorde Kenington falou em tom autoritário.

O comissário ficou em silêncio e parecia muito contrariado.

— O que foi? — Lorde Kenington quis saber. — Certa­mente o senhor irá falar com esse homem.

— O grande problema é exatamente esse, milorde. — Não posso chamar-lhe a atenção — respondeu o comissário, nada à vontade.

— Por que não?

— Porque o Sr. Watkins é um dos nossos maiores acio­nistas, milorde. — Recebi ordens de tratá-lo com a maior deferência e fazer tudo para que ele tenha todo o conforto possível.

— Será que estamos falando do mesmo homem? — Lorde Kenington duvidou.

— Só há um Arthur Watkins a bordo, milorde, é ele ocupa a nossa melhor cabine — afirmou o comissário. — Na verdade o Sr. Watkins fez questão de ficar também com a cabine vizinha á sua.

— Para usá-la como sala, de modo a poder receber nela, com privacidade, pessoas do seu interesse.

Lorde Kenington comprimiu os lábios. Teve certeza de a intenção do Sr. Watkins era convidar Aisha para ir à sua cabine.

Em voz alta disse:

— Compreendo a sua dificuldade. — Ao mesmo tempo, a jovem lady recorreu a mim para ajudá-la. — Ela viaja sem uma chaperon e ela está assustada com o modo como o Sr. Watkins vem se comportando.

O comissário passou a mão pela cabeça, evidentemente aflito.

— Não sei o que fazer. — Mesmo que eu mude a Srta. Warde de cabine, o Sr. Watkins descobrirá para onde ela foi trans­ferida. — Ele tem todo o direito de consultar a lista de pas­sageiros e saber onde cada um dorme.

— Nesse caso, verifique se há uma cabine desocupada perto da minha. — Se houver, transfira a Srta. Warde para lá dessa forma eu poderei olhar por essa jovem que me pediu ajuda.

Depois de consultar o registro de passageiros o comissário informou:

— Há uma cabine vaga, vizinha da sua, mas está reser­vada para um passageiro que embarcará em Gibraltar.

— Nesse caso talvez seja possível uma troca. — A Srta. Warde se mudará para essa cabine vaga e o passageiro de Gibraltar ocupará a dela — lorde Kenington sugeriu.

Se estivesse falando com outra pessoa, o comissário iria argumentar que a cabine vaga era melhor, e mais ampla do que a ocupada pela Srta. Warde. — Entretanto, diante do ar de autoridade de lorde Kenington e de sua importância, ele aceitou a sugestão que lhe foi apresentada.

— Muito bem, milorde. — Direi ao camareiro de bordo para transferir a bagagem da Srta. Warde para a cabine vaga. — Mas é necessário que ela pague a diferença de preço, pois passará a ocupar uma de nossas melhores cabines.

— Obrigado. — Quanto a isso não há problema. — Vou avisar a Srta. Warde sobre a mudança.

Lorde Kenington deixou o escritório imediatamente, sem ter idéia de que o comissário, voltando-se para seu assis­tente, desabafou:

— O mínimo que posso dizer é que acabo de arranjar uma boa encrenca. — Se o Sr. Watkins ficar sabendo que in­terferi no que ele considera a sua diversão predileta, fará o maior barulho e eu serei despedido.

— Watkins pode ter muito dinheiro, mas que é um cara desagradável, isso nem se discute — comentou o assistente, abaixando a voz.

De volta ao convés, lorde Kenington foi ao encontro de Aisha.

Ao vê-lo ela ficou de pé e perguntou ansiosa:

— Você conseguiu que eu me mude para outra cabine?

— Está tudo arranjado para você ocupar a cabine que fica à direita da minha.

— Oh, que ótima notícia! — Aisha alegrou-se. — Nem sei como lhe agradecer. — Mas... Será que o senhor Watkins não descobrirá para onde fui transferida?

— Não se preocupe com isso. — Como você ficará perto de mim, ninguém a aborrecerá.

— Saberei lidar com qualquer homem que se comporte de maneira inconveniente. — A pro­pósito, fiquei sabendo que Arthur Watkins é um dos maiores acionistas da companhia P.&O.

— Oh, não! — Aisha exclamou, atemorizada. — Nesse caso ele se julga dono do navio e me impedirá de mudar-me para perto de você.

— Por mais rico que Watkins seja, posso garantir que ele não vai querer indispor-se comigo — lorde Kenington falou com firmeza.

— Tem razão. — Por um momento esqueci que você é muito importante. — Seu nome está nos jornais dia após dia e eu sempre me perguntava como seria esse famoso lorde Kenington.

— E como eu sou? — Ele inquiriu com um sorriso.

— É o cavalheiro mais amável e solidário que já conheci — Aisha falou com sinceridade.

— Talvez você me considere petulante por tê-lo procurado para pedir ajuda. — Mas eu sou­be intuitivamente que podia confiar em você. — Papai sempre me disse para eu não ter medo de fazer o que julgava certo.

— Vejo que seu pai lhe deu um bom conselho — disse lorde Kenington, rindo.

— Espero que papai esteja bem. — Havia uma sombra no olhar de Aisha. — Ele sempre me preocupa, pois está constantemente envolvido em missões perigosas.

Subitamente lorde Kenington lembrou-se de que o pri­meiro-ministro lhe falara sobre o major Warde, um dos prin­cipais agentes do Grande Jogo, a organização secreta mais extraordinária criada recentemente. As autoridades da ín­dia estavam muito preocupadas com a infiltração dos russos na Ásia. Os cossacos atacavam de surpresa as cidades e povoações e vinham avançando consideravelmente nos úl­timos três anos.

No momento eles se achavam a uma distância descon­fortável e perigosamente pequena das fronteiras com a ín­dia. Ocupavam toda a área que se estendia das montanhas nevadas do Cáucaso, a Oeste, até os grandes desertos e cordilheiras da Ásia Central.

A conquista dos russos tivera início nos primeiros anos do século XIX, quando suas tropas foram avançando pelo Cáucaso, então habitado por tribos ferozes, muçulmanas e cristãs, na direção do norte da Pérsia.

A princípio esse avanço não impressionou a Grã-Breta­nha. Os postos britânicos da fronteira ficavam muito dis­tantes para preocupar Sua Majestade.

Só quando informações secretas chegaram a Londres, o governo britânico ficou alarmado.

Não só na Inglaterra, mas também na índia as autoridades compreenderam que os russos vinham tentando tirar da Grã-Bretanha o país que era considerado a maior "Jóia da Coroa".

Era esse o motivo de lorde Kenington estar fazendo a presente viagem.

— Quero que você descubra quais são os planos dos rus­sos, se as suas tropas são numerosas e fortes o bastante para vencer os obstáculos do caminho e para nos fazer re­cuar, caso cheguem à fronteira da índia — dissera o pri­meiro-ministro á lorde Kenington.

O Sr. Disraeli tinha conhecimento de que a maioria dos que trabalhavam com ele considerava suas preocupações absurdas. Quase todos acreditavam que seria impossível a Rússia resistir ao poderio do Exército britânico num con­fronto corpo a corpo.

Mas o primeiro-ministro não era tão otimista e, quando lorde Kenington aceitara a missão, recomendara-lhe com insistência:

— Quero saber a verdade, toda a verdade e confio na sua capacidade, inteligência e perspicácia. — Há pessoas aqui que só acreditarão que o pior pode acontecer quando já for tarde demais.

Havia na voz dele uma nota severa. Lorde Kenington sabia que o primeiro-ministro estava tendo problemas com seus assessores e vários ministros.

Muitos achavam que o Sr. Disraeli gastava dinheiro de­mais e outros  o criticavam por mandar grande número de bons homens para a índia.

Tudo o que lorde Kenington pudera fazer para animar o primeiro-ministro fora prometer-lhe descobrir a verdade, como lhe fora pedido.

Para ajudá-lo na sua missão lorde Kenington trouxera consigo vários livros sobre a índia.

Precisava adquirir mais conhecimentos sobre o país.

O que ele não esperava nessa viagem era ter de desviar a atenção do seu trabalho para ajudar uma linda moça as­sustada. Ao mesmo tempo, ele não poderia dizer-lhe para cuidar dos próprios problemas, pois não tinha a menor in­tenção de envolver-se neles.

Ele sabia que os temores de Aisha tinham fundamento. Com a sua experiência não ignorava que tipos como Arthur Watkins sentiam uma atração irresistível por moças lindas que viajavam sozinhas.

"Não creio que seja o bastante transferir Aisha para a cabine vizinha", lorde Kenington considerou. "Suponho que seja melhor eu tomar conta dela."

Sentando-se do lado de Aisha ele viu a expressão de pro­fundo agradecimento em seus olhos e convenceu-se de que não teria escolha. Seria desumano não proteger uma garota tão doce e assustada.

— Daqui a pouco um dos camareiros irá trazer a sua bagagem para a cabine pegada à minha — disse. — Se Watkins voltar a bater em sua porta eu o ouvirei e lhe direi para comportar-se, coisa que o comissário não pode fazer.

— Mais uma vez, muito obrigada! — Aisha tornou a agra­decer. — Assim que o vi eu soube que poderia contar com você. — Estou tranqüila, pois tenho certeza de que o Sr. Watkins não voltará a me aborrecer... Quando nos vir juntos.

— Não creio que haja necessidade de procurarmos algum casal para cuidar de você. — As refeições você poderá sentar-se à mesa do comandante ou à minha.

— É claro que prefiro ficar com você — Aisha escolheu sem hesitar.  — O Sr. Watkins senta-se também à mesa do comandante e quando me vir  fará tudo para sentar-se do meu lado. — Ontem à noite ele ficou me olhando de um modo horrível.

— Watkins não a aborrecerá mais — prometeu lorde Kenington. — Agora vou fazer um pouco de exercício. — Quer dar umas voltas comigo pelo convés? — Será bom exercitar as pernas.

— Se você não achar que estou abusando de sua bondade e paciência, terei grande prazer de acompanhá-lo. — Prometo não conversar, caso você prefira o silêncio.

— Vamos nos concentrar no exercício. — Conversaremos mais à vontade durante as refeições. — Lorde Kenington ficou de pé e deu a mão para ajudar Aisha a levantar-se. — Por enquanto o convés está relativamente vazio e o mar calmo. — Não vai demorar muito teremos ondas altíssimas que invadirão o convés, deixando-o escorregadio.

— É o que costuma acontecer na baía de Biscaia, não?

— Sim, em geral há tempestade nessa baía. — Mas no Me­diterrâneo o mar é normalmente calmo.

— Não vejo á hora de entrarmos no Mediterrâneo. — Para mim é o mais belo que existe.

— Também estou ansiosa para conhecer a índia sobre a qual só tenho lido.

— Você gosta de ler?

— Muito. — Antes de embarcar li o que pude sobre a índia e trouxe comigo dois livros nos quais, espero, encontrarei descrições e informações interessantes.

— Eu também trouxe vários livros para ler na viagem. — Estão a seu dispor — lorde Kenington ofereceu.

— Se você me emprestá-los prometo ser muito cuidadosa com eles — disse Aisha, eufórica.

— Moro no campo e não é fácil conseguir todos os livros que quero. — O deão ia trazer consigo uma pequena biblioteca e, sabendo que eu leio muito, pôs os livros à minha disposição.

— Infelizmente, como já lhe falei, ele e a esposa tiveram de cancelar a viagem.

— Há pessoas que se contentam com o que vêem e ouvem, mas você é como eu, e gostamos de pesquisar e ler. — Isso é muito bom — apreciou lorde Kenington.

Passou pela mente dele que Aisha era diferente das ou­tras moças da sua idade que só gostavam de leitura leve e de saber do que era publicado nas colunas sociais.

No mesmo instante lhe ocorreu que se o major Warde fosse quem ele estava pensando, também era um homem extraordinário que vinha prestando grandes serviços à Grã-Bretanha.

Certamente iria conhecê-lo pessoalmente quando chegasse à índia.

Lá ele iria ter uma reunião com o vice-rei e os respon­sáveis por manter o Grande Jogo atuante. Tudo o que ele sabia era que a organização era coordenada por oficiais do Exército e alguns indianos que não desejavam ser esmaga­dos pelos russos.

Lorde Kenington pensou também que a amizade com Ais­ha iria ajudá-lo a ganhar a confiança e a gratidão do pai. E, se ele não estava enganado, o major Warde era uma peça muito importante do Grande Jogo.

Depois de terem passado a tarde lendo confortavelmente no convés, Aisha e lorde Kenington foram trocar-se para o jantar.

Tendo ficado pronta antes da hora marcada por lorde Kenington para se encontrarem e descerem para o salão, Aisha foi até a biblioteca devolver um livro que havia tomado emprestado logo que embarcara. Não se interes­sara por ele por ser muito mal escrito. Apenas as ilus­trações a agradaram.

Mal colocou o livro de volta à estante, viu Arthur Watkins parado à porta da biblioteca!

Arthur Watkins era um homem feio, com mais de qua­renta anos, de cabelos ralos e grisalhos nas têmporas, rosto marcado pelas rugas e com sinais de devassidão.

Entretanto, ele parecia ter autoconfiança e emanava dele um ar de superioridade, sem dúvida por ser muito rico. Tinha grande atração por jovens bonitas e tudo fazia para conquistá-la. Quando conseguia que uma delas lhe dessa atenção, gastava com ela uma verdadeira fortuna.

Assim que vira Aisha embarcando, logo à frente dele, Watkins encantara-se com a sua beleza.

O fato de ela estar sozinha e viajando na primeira classe viera de encontro a seus planos de conquista.

Intimamente antecipou que a viagem seria muito mais agradável do que imaginava. De modo algum esperava fra­cassar no seu papel de sedutor. Tenacidade, paciência e perseverança não lhe faltavam. Fora graças a tais qualida­des que ele chegara á poucos anos a uma posição privi­legiada e a juntar invejável fortuna.

"Sou inteligente, astuto e persistente e homem algum ou mulher consegue levar vantagem sobre mim", Arthur Wat­kins costumava dizer a si mesmo.

Quanto a Aisha, ele estava mais do que certo de que a teria conquistado antes de chegarem a Calcutá. Na primeira oportunidade, depois de o navio ter deixado o porto, ele falara com ela e fora tratado cortesmente.

Quando a vira sozinha à mesa do jantar, Watkins sen­tara-se à sua frente, certo de que ela se sentiria honrada, de merecer as atenções de um homem tão rico e bem vestido.

Terminado o jantar, ele a convidara para ir até o convés. O fato de Aisha ter concordado em ir ver a lua refletindo-se no mar, deixara-o convencido de que a garota sucumbiria ao seu charme.

Sem dúvida, a lua estava linda, a orquestra tocava no salão, tornando a noite mágica e romântica. Mas assim que percebera que Watkins ia abraçá-la, Aisha acordara para a realidade e dera um grito de protesto.

— Não tenha medo — Arthur Watkins dissera com na­turalidade. — Você é uma garota bonita e podemos nos divertir muito durante a viagem.

Inclinando-se, ele tentara beijá-la, mas ela saíra correndo, sem lhe dar tempo de agarrá-la.

Uma vez em sua cabine, Aisha trancara a porta a chave e sentara-se no beliche, sentindo o coração em disparada. Estava morrendo de medo. Tarde demais reconhecera que não devia ter ido ao convés com um estranho.

"Como pude ser tão boba?", repreendera-se.

Até o momento ela jamais viajara sozinha; estava sempre na companhia dos pais, ou só da mãe, de um parente ou ainda de uma governanta.

O pior era que ainda teriam dezessete dias de viagem. Como fugir daquele homem desagradável e atrevido?

Aisha começara a se despir quando ouvira uma batida à porta. Prudentemente, perguntara:

— Quem é?

— Sou eu. — Não tenha medo, linda e jovem lady. — Era a voz de Arthur Watkins. — Não lhe farei mal algum. — Pro­meto não aborrecê-la, não precisa fugir de mim.

Aterrorizada, Aisha ficara em silêncio. Não ouvindo res­posta, Watkins passara a falar mais alto e a bater na porta.

— Fale comigo! — Saia daí! — Ficara repetindo.

As pancadas na porta foram tão altas que as pessoas das cabines vizinhas reclamaram.

Chegaram até a sair para o corredor para ver quem os perturbava daquela forma.

Essa reação, felizmente, fizera com que Arthur Watkins se afastasse resmungando.

Aisha ouvira uma das camareiras falarem severamente com o Sr. Watkins:

— Há passageiros querendo dormir, sir.

— Eu só queria dizer boa noite a uma lady. — Se ela abrisse a porta e me ouvisse eu ficaria tão quieto quanto um ratinho — Arthur Watkins respondera.

— Se a lady não respondeu é porque já está dormindo — rebatera a camareira.

— Ora, minha garota, por esta noite passa, mas teremos muitas outras noites pela frente — respondera Watkins.

— Não pense que me fará desfeita semelhante pela se­gunda vez.

Tudo ficara em silêncio. Aisha ouvira passos se afastando e, ainda trêmula de medo, acabara de trocar-se, fizera uma oração de agradecimento e deitara-se.

Ficara muito tempo acordada, pensando no que fazer caso Arthur Watkins insistisse em persegui-la durante a viagem,

"Amanhã encontrarei alguém que possa me ajudar", dis­sera a si mesma.

Como se em resposta às suas preces, na manhã seguinte encontrara lorde Kenington. Já vira seu retrato em jornais e lera muito sobre ele, tanto nas notícias do Parlamento como nas colunas de esportes.

No ano anterior um de seus cavalos havia sido o ven­cedor da corrida Derby, e outro ganhara a Taça de Ouro, em Ascot.

"Este, sim, é um gentleman", ela dissera a si mesma ao vê-lo na biblioteca, dispondo-se a pedir-lhe ajuda.

 

Na manhã seguinte tanto Aisha como lorde Kenington tomaram o café da manhã nas respectivas cabines e só se encontraram pouco antes do al­moço, quando foram juntos para o salão.

Aisha estava encantada com a nova cabine por ser muito mais ampla e confortável do que a que havia ocupado an­teriormente.

As duas vigias permitiam-lhe ter mais claridade tanto durante o dia como à noite.

Ao sentar-se à mesa com lorde Kenington, agradeceu-lhe entusiasticamente:

— Muitíssimo obrigada! — Você tem sido maravilhoso! — As palavras são pobres para expressar a minha gratidão. — É claro que papai pagará de bom grado a diferença de preço dessa nova cabine.

— Prefiro falar sobre seu pai a discutir quanto a mais custará á nova cabine — tornou lorde Kenington.  — Se não estou enganado o major Warde está realizando um trabalho muito importante na índia.

Aisha ficou em silêncio; apenas olhou para lorde Kening­ton de modo indagador.

Ele esclareceu:

— Estou Indo para a índia com a missão de descobrir se os russos representam mesmo uma ameaça ao Império Britânico. — Acredito que seu pai esteja á  par da situação atual na índia e quero que você me ajude; preciso entrar em contato com o major.

Os olhos de Aisha se iluminaram.

— É esse o motivo de você estar indo para a índia! — Bem, nesse caso, o ajudarei. — Confio em você e vou revelar-lhe o que sei... Embora não seja muita coisa.

— Toda informação me será muito útil. — Diga-me onde poderei encontrar seu pai e o que ele está fazendo no momento.

— Seria melhor conversarmos no convés — sugeriu Aisha, abaixando a voz. — Mesmo que aqui no salão ninguém nos possa ouvir, papai me disse que há espiões por toda parte e eles sabem ler os lábios das pessoas.

Lorde Kenington ficou imediatamente interessado. Disse a si mesmo que era muita sorte ter conhecido a filha do major Warde. Ao mesmo tempo, receou que ela nada lhe revelasse que já não fosse do seu conhecimento.

Eles continuaram a comer. Lorde Kenington saboreou o vinho especial que conseguira e Aisha apreciou sua limonada.

Durante a refeição ela percebera que, da mesa do co­mandante, Arthur Watkins acompanhara todos os seus movimentos. Mesmo sem olhar na direção da mesa que ficava a pouca distância, ela sentia aquele olhar persist­ente fixo nela.

Isso também não passou despercebido á lorde Kenington que a aconselhou:

— Faça de conta que Watkins não existe. — Tire-o da mente. — Dessa forma você não se desgastará nem ficará apreensiva.

— Você tem razão — Aisha concordou. — É o que tento fazer. — Não está sendo muito fácil porque sinto os olhos dele fixos em mim e tenho vontade de virar-me para verificar se não é apenas impressão minha.

— Compreendo. — Lorde Kenington sorriu para ela. — Isso por vezes acontece comigo.

— Mas quando não gosto de uma pessoa, para mim ela deixa de existir. — É como se es­tivesse morta.

— Bem que eu queria tirar esse homem horrível da mente — murmurou Aisha, estremecendo.

— Pelo menos se convença de que ele nada tem a ver com você e que não mais a molestará — tornou lorde Kenington.

— Tentarei. — Aisha deu um sorriso. — Mas falar é bem mais fácil do que fazer.

Ansiosos para sair do salão antes dos outros passageiros, Aisha e lorde Kenington terminaram o almoço, dispensaram o café e foram para o convés.

Sentaram-se ao abrigo do vento e do sol, onde ninguém poderia ouvi-los nem os perturbaria.

— Sei que seu pai poderá me ajudar. — Estou muito inte­ressado em ouvi-la falar sobre ele — disse lorde Kenington.

— Papai se sentirá lisonjeado quando souber desse seu interesse. — Naturalmente, ele fará o possível para ajudá-lo. — Mas eu sei bem pouco sobre seu trabalho na índia. — Como já lhe disse, tudo é mantido em segredo. — Só lhe posso adian­tar que papai corre grandes riscos, o que me deixa cons­tantemente preocupada.

— Grandes riscos?

Aisha olhou ao redor e revelou, abaixando ainda mais a voz:

— Ele faz parte do Grande Jogo. — Já ouviu falar nessa organização?

— Claro que sim — lorde Kenington respondeu. — Dela só participam homens de grande coragem e capacidade. — Só mesmo uma organização como essa poderá descobrir o que está acontecendo do outro lado da fronteira e se um ataque dos russos é tão iminente quanto se supõe.

— Segundo papai, eles são muito perigosos e já estão bem próximos das fronteiras com a índia. — Como papai sabe falar urdu, tem sido muito útil à organização, pois se dis­farça de indiano e vive entre os nativos.

— Você quer dizer que o major convive com os indianos das tribos da região Noroeste? — lorde Kenington sur­preendeu-se.

Aisha assentiu com a cabeça e acrescentou:

— Ele se disfarça de homem santo ou de indiano, habi­tante de outra região. — Até hoje papai nunca foi descoberto.

Lorde Kenington sabia que se descobrissem a verdadeira identidade do major, certamente o matariam. Para não dei­xar Aisha nervosa ou infeliz, ele perguntou:

— Como seu pai aprendeu a falar urdu tão bem a ponto de não suspeitarem de que ele não é um indiano? — O fato de ele saber esse idioma o ajuda muito em seu trabalho.

— Meu avô era juiz na índia e papai passou ali a sua infância e adolescência — Aisha respondeu.  — No colégio onde estudou havia ingleses e indianos. — Como seus melhores colegas e amigos eram indianos, papai aprendeu natural­mente a falar seu idioma.

— O que agora lhe está sendo muito útil, pois ele se faz passar por indiano sem levantar suspeitas — rematou lorde Kenington.

— Suas missões são muito arriscadas. — No ano passado ele esteve do outro lado da fronteira Noroeste e me confessou que viveu sob constante tensão.

— E agora, onde o major se encontra? — Lorde Kenington quis saber.

— Papai já foi informado que eu chegarei a Calcutá neste navio e estará à minha espera no cais.

A notícia alegrou lorde Kenington. Por meio do major Warde ele saberia, logo ao chegar, quais eram os homens do serviço secreto com quem deveria entrar em contato.

— A melhor coisa que me aconteceu nesta viagem foi você ter vindo pedir-me para ajudá-la e protegê-la — ele disse em voz alta.

— Eu, sim, me considero uma pessoa de sorte por tê-lo encontrado. — Esta noite dormi tranqüilamente sabendo que você estava na cabine vizinha.

— Suas preocupações terminaram — lorde Kenington frisou. — Você está sob as minhas asas, por assim dizer, e o Sr. Watkins é bastante sensato para não se arriscar a ofender-me.

— Que homem horrível! — Tenho certeza de que papai sa­berá como lidar com ele.

Ambos conversaram por mais algum tempo, depois foram andar pelo convés.

— Quando chegarmos ao Mediterrâneo poderá jogar tênis de bordo — sugeriu lorde Kenington. — Você sabe como é esse jogo?

— Não só conheço o jogo, como sou boa jogadora — Aisha respondeu orgulhosa. — Aprendi a jogar tênis de bordo num cruzeiro que fiz às ilhas Canárias. — Venci várias par­tidas, mesmo contra homens.

— Nesse caso será um desafio jogar com você. — E os de­safios me estimulam. — Lorde Kenington riu. — Pode ter certeza de que não me derrotará.

— Pelo seu modo de falar posso deduzir que você nunca aceita ficar em posição de inferioridade — Aisha observou, rindo também. — Acertei?

— Acertou. — Para ser sincero, sempre quis ser o melhor em tudo que me dispus a fazer — lorde Kenington admitiu.  — Em Eton eu era o primeiro da classe e me destacava nos esportes.

— Os colegas me consideravam arrogante.

— Hoje eles diriam a mesma coisa a seu respeito. — De fato você parece ser superior a todos os que o cercam.

— É essa a impressão que as pessoas têm de mim? — Lorde Kenington indagou, parecendo surpreso.

Aisha acenou com a cabeça afirmativamente e acrescentou:

— Em minha opinião você também inspira medo e respeito tanto para os amigos como para inimigos.

Notando a expressão de pasmo de lorde Kenington, Aisha desculpou-se depressa:

— Perdoe-me. — Eu não devia ter dito isso. — Estou falando com você como se estivesse conversando com papai. — Ele sem­pre me aconselhou a falar a verdade corajosamente e a expressar sem medo a minha opinião.

Lorde Kenington não conteve o riso.

— Não é a primeira vez que você me fala sobre os conselhos de seu pai, aliás, muito bons.

— Mas eu não quero intimidar as pessoas, especialmente na índia.

Ao dizer isso ele estava pensando que as pessoas comuns jamais falavam franca e abertamente com homens que con­sideravam importantes.

Até o momento ele se orgulhara de saber ser muito sim­pático e até cativante quando conversava com as pessoas para obter informações. Mas agora, depois do que Aisha dissera, decidiu que teria de questionar seu comportamento.

Como se soubesse no que ele estava pensando, Aisha tentou emendar:

— Não dê atenção às minhas palavras. — Expressei-me mal. — Na verdade você é um homem de forte personalidade e se sobressai mesmo entre uma multidão. — Imagino que inúme­ras mulheres já lhe disseram que você também é muito bonito.

— Se eu responder isso você, provavelmente, me acusará de ser convencido — disse lorde Kenington, rindo.

— Por que eu o acusaria? — Você é mesmo um belo homem e deve estar feliz e orgulhoso por isso. — Aisha falou com naturalidade.

Para lorde Kenington o tipo de conversa que estava tendo com Aisha era algo inédito. Ela lhe falava como se fosse um dos amigos dele ou uma mulher mais velha, não uma garota. E, sem dúvida, era muito franca.

Era muito bom para ele saber o que as pessoas pensavam a seu respeito, principalmente agora, quando pretendia ex­trair informações de tanta gente. Se as pessoas tivessem medo dele, jamais seriam espontâneas.

— Imagino que cada pessoa tem uma opinião diferente a nosso respeito — Aisha observou como se estivesse dando continuidade a seu pensamento.  — Eu, por exemplo, me surpreendo com o que dizem sobre mim. — Uns me acham inteligente e amadurecida para a idade, enquanto outros, ao contrário, porque sou jovem, me consideram tola e criançola.

— Se quer ouvir a minha opinião, acho você inteligente, amadurecida e culta — declarou lorde Kenington.

— Obrigada, sir! — É claro que recebo de bom grado todos os elogios que me fazem! — O tom de Aisha era zombeteiro.

— Pode acreditar que falei com sinceridade  — lorde Kenington redargüiu. — Tenho ficado surpreso com seus ar­gumentos e sei que você gosta muito de ler.

— A propósito, o livro que você me emprestou é absolu­tamente fascinante! — Aisha exclamou. — Espero ler todos os outros livros da biblioteca que você trouxe a bordo.

— Por falta de espaço, tive de limitar o que você chama de "biblioteca". — Portanto, não devore os livros e sim os leia devagar para ter sempre algo novo para ler — lorde Kenington aconselhou-a.

— Não sei ler devagar quando o assunto me prende muito a atenção. — Tenho vontade de chegar logo ao fim para ver o que acontece.

— Isso é natural. — Mas aprendi que, lendo mais devagar, meu pobre cérebro capta melhor a mensagem escrita.

— Seu pobre cérebro? — Aisha riu. — Não creio que você precise se preocupar com seu cérebro. — Com sua inteligência você desempenhará sua missão na índia com brilhantismo.

— Só com a minha inteligência, não — contrapôs lorde Kenington.  — Vou precisar da ajuda de seu pai e de outros homens que trabalham na mesma organização.

— Conheço alguns desses homens; eles já estiveram em casa. — Mas papai só permitia que eu falasse com eles algumas poucas palavras cordiais.

— Posso imaginar por quê. — O major não queria ver a filha envolvida nos assuntos do Grande Jogo, pois seria perigoso tanto para você como para eles.

— Isso mesmo. — Mas é grande a minha ansiedade para saber o que está acontecendo e se aqueles que fazem parte do Grande Jogo estão sendo bem sucedidos.

— Estão certamente — lorde Kenington falou confiante.

O dia pareceu passar rapidamente. No fim da tarde lorde Kenington e Aisha se separaram e foram ler um pouco nas respectivas cabines.

Aisha não se cansava de agradecer a Deus por ter conhecido lorde Kenington. Sentia-se segura sabendo que ele estava ali bem perto para socorrê-la se fosse necessário. Quando se trocou para o jantar escolheu um dos seus vestidos mais bonitos, pensando em agradar seu importante protetor. Quanto mais ficava com lorde Kenington, mais o admirava e mais apreciava a sua companhia. Gostava tanto de conversar com ele que não cabia em si de alegria por ver que ele não tinha interesse por nenhum outro passageiro e lhe dava toda atenção.

Nessa noite, ao jantar, lorde Kenington divertiu-a falando abre as capitais que visitara poucos meses atrás e sobre as diferenças que havia notado nas pessoas de cada país.

— Os alemães são agressivos — disse —, enquanto não ha quem supere os franceses em encanto pessoal e alegria de viver.

— Você já esteve no Japão? — Sempre tive vontade de conhecer esse país e também a China.

— O Japão é lindo e o povo muito inteligente e ativo. — Fiquei impressionado com a riqueza dos templos e dos mosteiros.

— O que achou das mulheres? — As gueixas são mesmo bonitas e femininas como dizem?

Lorde Kenington sorriu antes de responder:

— As mulheres japonesas são submissas e extremamente dominadas. — Quanto às gueixas, sua função é alegrar e fascinar os homens. — Elas têm muito talento e habilidade para isso.

— Enquanto a mulher japonesa se esforça para agradar um homem, a inglesa espera que o homem a agrade e se curve diante dela.

Apesar de o tom de lorde Kenington ser brincalhão, Aisha ficou séria e observou:

— Não acho que as mulheres inglesas são como você descreveu. — Eu também não gostaria de ser como as japonesas.

— Você é perfeita e não deve mudar em nada — acudiu lorde Kenington.

A si mesmo ele dizia que Aisha era única. Além de in­teligente ela era tão espontânea e simples. Ainda era cedo quando se separaram.

— Obrigada pelo dia tão agradável — ela agradeceu ao dizer boa noite.

— Amanhã chegaremos a Gibraltar e poderemos fazer um passeio. — Talvez você goste de ver os macacos que são uma grande atração do lugar. — E há as lojas, às quais ne­nhuma mulher resiste — lorde Kenington expôs.

— Se houver tempo só para fazer uma coisa, prefiro ver os macacos — Aisha escolheu.

Dirigindo á lorde Kenington um sorriso encantador, acrescentou: — Mas, se for possível, também quero ir ver as lojas.

— Haverá tempo para as duas coisas. — Boa noite, Aisha, durma bem. — Trate de não cansar os olhos lendo até tarde.

— O conselho também serve para você. — Boa noite.

Em sua cabine lorde Kenington sentou-se à mesa para fazer algumas anotações. Estava pensando que ao chegar a Calcutá conheceria o major Warde pessoalmente e con­seguiria informações importantes.

Na cabine vizinha Aisha olhou-se ao espelho da pentea­deira antes de tirar o vestido e, com certo desapontamento, lembrou que se havia esmerado tanto e lorde Kenington não a elogiara.

"O que será que ele pensa a meu respeito, como mu­lher?", questionou-se. "Bem, o importante é que ele tem sido muito amável e do seu lado sinto-me protegida. Devo ter cuidado para não agarrar-me a ele a ponto de eu ser considerada um peso."

Até o momento lorde Kenington parecia ter apreciado sua companhia, Aisha continuou refletindo. A conversa que haviam mantido fora muito interessantes e o Sr. Watkins se mantivera a distância, ainda que a olhasse daquele modo desagradável que a fazia estremecer.

Devagar, ela tirou o vestido, colocou-o no cabide forrado que deixara sobre a cadeira e atravessou a cabine para pendurá-lo no compartimento com cortina que havia a um canto, reservado para os trajes longos, casacos e sobretudos.

As roupas para o dia eram guardadas no armário que ficava do lado da penteadeira.

Ao afastar a cortina para colocar o cabide no varão, Aisha deu um grito de horror e ficou semi paralisada. A frente dos vestidos estava o Sr. Watkins!

Saindo do seu esconderijo ele a segurou pelo braço e com a outra mão tapou-lhe a boca para impedi-la de gritar novamente.

— Com certeza você pensou que estava livre de mim, linda lady, mas eu não desisto facilmente — ele disse, exa­lando um hálito forte de vinho.

Desde que fora repelido por Aisha Warde, Arthur Watkins dissera a si mesmo que iria conquistá-la, pois jamais rece­bera um "não" de uma mulher.

O fato de ela ter fugido dele, amedrontada, e passado a evitá-lo, longe de fazê-lo pensar em desistir da conquista, estimulara-o. Ele iria encontrar um meio de ficar a sós com ela novamente.

Para Arthur Watkins ter Aisha Warde nos braços repre­sentava um desafio e em toda a sua vida atarefada e bem sucedida ele jamais havia ignorado ou deixara de aceitar um desafio.

Na sociedade freqüentada por Arthur Watkins o dinheiro era mais importante do que a linhagem ou a educação. Por ser muito rico ele se acostumara a ver seus desejos satis­feitos num estalar de dedos. Bastava demonstrar interesse por uma mulher para tê-la nos braços.

Na verdade, Watkins começava a achar aborrecida essa vida de contínuo sucesso e a facilidade com que via con­cretizados os seus desejos. Ele alcançara uma posição em que não era mais necessário lutar para conseguir o que queria.

Portanto, prometera a si mesmo que venceria a resistência da linda jovem inglesa e a conquista, para ele, teria mais sabor.

Pouco lhe importava que ela tivesse procurado a compa­nhia de lorde Kenington. Estava-se viajando sozinha, sem uma respeitável chaperon, Aisha não devia ser importante socialmente.

Na opinião de Arthur Watkins o interesse de lorde Ke­nington pela garota só iria durar, quando muito, enquanto eles estivessem no navio.

Watkins sabia que muitas mulheres viajavam sozinhas, a bordo de um vapor como aquele, justamente porque esse era um modo de conhecer homens dispostos a gastar com elas bastante dinheiro, de modo a deixá-las, ao final da viagem, em melhor situação financeira do que quando ha­viam embarcado.

O que ele não poderia afirmar era se Aisha pertenceria a esse tipo de mulher. Por outro lado, não lhe passara pela mente que a Srta. Warde era uma lady por nascimento e, portanto, alguém que evitava, por todos os meios, um ho­mem como ele.

"Ela está se fazendo de difícil", Watkins dissera a si mes­mo inúmeras vezes. "Mas conheço esse jogo e não desistirei facilmente."

Sua esperança era que lorde Kenington, sendo um homem tão importante, logo se cansasse da garota e a dispensasse. Então seria a vez dele, Watkins, tê-la para si.

O Sr. Watkins reconheceu que fora um erro ter avançado tão depressa assim que conhecera a garota. Devia ter per­cebido que ela era jovem e inexperiente e a agressividade dele á deixara assustada.

Ao mesmo tempo, ele estava quase convencido de que a fuga de Aisha fora apenas um lance para deixá-lo ainda mais interessado nela.

Naqueles dois dias ele ficara extremamente entediado. Observara os passageiros da segunda classe e não vira nin­guém interessante. As mulheres mais jovens estavam com os maridos e os filhos. Na primeira classe viajavam muitos oficiais, casais idosos ou de meia idade.

O tédio fizera com que Watkins decidisse procurar Aisha novamente. Iria prometer-lhe ser muito mais generoso do que lorde Kenington. Deixaria claro que ela teria a seus pés tudo com que sonhasse.

Durante o jantar ele observara Aisha e Kenington e vendo que conversavam animadamente, achou que seria impossí­vel interrompê-los.

Ao deixar o salão, lembrou-se de que Aisha fora trans­ferida para uma das cabines mais caras do navio e a dife­rença de preço ainda não fora paga, ele certificara-se.

Isso  fez  imaginar que era a sua chance. Com certeza ao fim da viagem ela não teria como pagar a diferença de preço e ele desde já se disporiam á fazer isso.

Watkins andou um pouco pelo convés e foi para o lado do navio onde ficava a cabine de Aisha. Viu a porta entreaberta e soube que a camareira estava preparando o beliche para a noite.

Quando a mulher afastou-se, deixando a porta só no trinco, com certeza para buscar água fresca, ele entrou na cabine e escondeu-se atrás da cortina que fechava o es­paço para roupas, uma espécie de closet.

Do seu esconderijo Watkins ouviu a camareira voltar e colocar alguma coisa sobre a mesa-de-cabeceira. Em seguida ela apagou a luz e deixou a cabine, trancando a porta.

"Agora é só esperar que Aisha entre na cabine", pensou o Sr. Watkins, sorrindo, já antecipando o seu prazer.

O que ele não fazia idéia era que a cabine de lorde Ke­nington ficava vizinha àquele onde ele se achava.

Arthur Watkins não teve de esperar muito tempo. Aisha entrou na cabine, girou a chave na fechadura e foi para diante do espelho.

Por um vão da cortina ele viu-a tirar o delicado colar de pérolas que usava e despir-se, ficando ela só de anágua de cor pinho. Estava tão linda que Watkins sentiu ò coração ba­tendo mais forte e a respiração acelerada.

Quando Aisha atravessou a cabine ele logo percebeu o que ela ia fazer e aguardou...

Os novos gritos de Aisha foram abafados. Desesperada, ela lutou para libertar-se da mão que lhe prendia o pulso como se fosse de aço.

— Fique quietinha e me ouça — pediu Arthur Watkins em voz baixa.

Não pôde continuar falando. Aisha chutava-o e debatia-se, desesperada, animada por uma força que nunca imaginara possuir.

Em sua cabine lorde Kenington sentia-se com ótima dis­posição e com a mente ativa.

Reconheceu que a mãe estava certa ao lhe dizer que o descanso da viagem lhe faria bem.

Tirou o casaco e só então lembrou que não avisara o valete que nessa noite ele estava dispensado.

Toda a noite Newman ajudava-o a despir-se e deixava suas roupas passadas para o próximo dia.

Antes de sentar-se para escrever um pouco, como pre­tendia lorde Kenington ouviu uma batida à porta. Era um dos camareiros trazendo-lhe água mineral.

— Atrasei-me, milorde, porque no bar não havia água da marca que Vossa Senhoria havia pedido e tive de ir até o depósito — o homem desculpou-se.

— Lamento ter-lhe dado tanto trabalho, mas prefiro essa marca a qualquer outra — disse lorde Kenington.

— De fato, é a melhor  —  o camareiro concordou. Em seguida alarmou-se. — O que foi isso? — Um grito?

— Um grito? — Lorde Kenington repetiu. — Não ouvi nada.

— Estou aqui perto da porta e posso garantir que al­guém gritou na cabine vizinha. — Será que a lady com quem Vossa Senhoria sentou-se à mesa do jantar está com al­gum problema?

Lorde Kenington não esperou mais nada.

— Você tem uma chave-mestra; depressa, abra a cabine vizinha para mim — ordenou.

O camareiro saiu para o corredor e prontamente abriu a cabine de Aisha.

Encontraram-na lutando para livrar-se de Arthur Watkins que a segurava pelo pulso e tapava-lhe a boca com a outra mão.

Com duas largas passadas lorde Kenington alcançou Watkins e deu-lhe um murro no queixo, deixando-o prostrado no chão, aturdido, sem ter plena consciência do que estava acontecendo.

Sem lhe dar tempo de dizer uma palavra, lorde Kenington arrastou-o para o corredor, colocou-o de pé e desferiu-lhe outro murro, arremessando-o novamente ao chão, quase in­consciente.

Voltando-se para o camareiro, que assistia à cena boquiaberta, lorde Kenington ordenou-lhe:

— Leve esse suíno para bem longe. — Se eu pegá-lo aqui novamente eu atira-o no mar.

— Repita a esse miserável o que eu disse.

— Sim, milorde  —  assentiu o homem, um tanto nervoso.

Lorde Kenington ficou parado, seus olhos dardejantes pousados em Arthur Watkins que lutava para sentar-se, tendo um fio de sangue a lhe escorrer pelo canto da boca.

Voltando para a cabine ele fechou-a e foi para junto de Aisha que, muito pálida, mantinha as mãos cruzadas sobre o peito, por lembrar-se de que usava apenas o corpinho e anágua, ambos de seda.

— Tive tanto... Medo. — Graças a Deus... Você... Apareceu, ela murmurou.

— Prometo-lhe que isso não se repetirá — lorde Kenington falou suavemente para acalmá-la.

— É uma vergonha pura uma companhia de navegação importante como esta ter um acionista que se comporte de maneira tão infame.

— Eu tentei gritar... Mas... Ele tapou a minha boca. — Fiquei apavorada... Porque você... Não tinha idéia do que estava... Acontecendo.

— Posso imaginar o que você sofreu. — Sente-se enquanto eu vou pegar um pouco de água.

— Depois se troque, deite-se e esqueça o que aconteceu.

— Você tem certeza... De que ele... Não voltará?

— Plena certeza. — Por mais insensato que Watkins seja não se arriscará a aborrecê-la novamente. — Por sorte, tive lições de boxe na universidade, o que me valeu esta noite como em outras ocasiões.

Enquanto falava, lorde Kenington despejou um pouco de água num copo e deu-o para Aisha beber. Notando que as mãos dela estavam trêmulas aconselhou-a:

— Segure o copo com as duas mãos.

Depois de tomar à água a cor pareceu-lhe voltar ao rosto. Lorde Kenington não pôde deixar de achá-la adorável com o colo, os ombros e os braços nus.

— Quando eu sair deite-se. — Se precisar de mim, bata na parede. — Nem pense mais no Sr. Watkins — lorde Ke­nington aconselhou-a. — Ele não a aborrecerá mais. — Creio que você nem o verá amanhã. — Com certeza ele perdeu um ou dois dentes. — O último soco que lhe dei não foi brincadeira.

— Não se preocupe comigo... Estarei bem. — Obrigada mais uma vez... Por tudo — Aisha murmurou.

— Durma tranqüilamente. — Mas tranque a porta a chave assim que eu sair.

— Até agora não entendi como o Sr. Watkins... Entrou nesta cabine — disse Aisha, pensativa.

— É melhor nem tentar entender. — Fique tranqüila porque esta noite você está em completa segurança. — Vou tomar providências para que sejam assim todas as noites. — Eu mesmo virei à sua cabine e a revistarei antes de você se deitar. — Isso lhe dará certeza de que não há nenhum Sr. Watkins escondido.

— Já estou... Mais calma. — Pode sair despreocupado... Vou trancar a porta.

— Boa noite. — Lembre-se: bata nesta parede se precisar de mim.

Ele indicou a parede que separava as duas cabines.

Assim que lorde Kenington saiu, Aisha levantou-se e tran­cou a porta, dando duas voltas na chave.

Voltou para a cama e ficou sentada, sentindo-se fraca.

"Como é possível que isto me tenha acontecido?", questionou-se.

Levantando-se, trocou-se e entrou sob as cobertas. O medo havia passado. Agora se sentia dominada por uma emoção nova. Lorde Kenington não lhe saía da mente. Ele era maravilhoso!

"Obrigado, meu Deus, por ter permitido que ele me sal­vasse", agradeceu do fundo do coração.

Adormeceu com um sorriso nos lábios.

 

Era bem cedo quando o navio atracou no porto de Gibraltar.

Aisha vibrou ao ver os macacos de pêlo marrom-alaranjado e cara rosada, em bandos, correndo sobre os rochedos.

Lorde Kenington contou-lhe que se acreditava que os ma­cacos eram um símbolo do domínio britânico e este termi­naria quando os macacos de Gibraltar não fossem mais en­contrados na região.

Na cidade as lojas ofereciam todo tipo de artigos do Ex­tremo Oriente. Depois de lorde Kenington muito insistir, Aisha concordou que ele lhe desse de presente lindo um xale chinês ricamente bordado.

— Vi na China garotos de quatro anos bordando xales como este — disse lorde Kenington.

— E uma crueldade explorar o trabalho de crianças tão pequenas — Aisha observou. — Mas não posso recusar um presente tão lindo. — Muito obrigada.

— Não podemos nos demorar — ele lembrou-a depois de terem ido á outra loja. — O comandante pretende chegar a Calcutá no dia e horário previstos.

— E chegará, sem dúvida. — Esse navio é o mais rápido no qual já viajei.

— A companhia orgulha-se de tê-lo adquirido. — É o mais novo da frota da P.&O. — informou lorde Kenington. — Como o tempo da viagem para a índia e o Extremo Oriente é atualmente menor, o preço da passagem tornou-se mais acessível, o que tem atraído mais passageiros para o Oriente, inclusive turistas.

— Por certo. — A abertura do canal de Suez reduziu bem o tempo da viagem — Aisha concordou.

— Se tivéssemos de seguir pela costa da África e contornar o cabo da Boa Esperança, levaríamos seis semanas para  chegar à índia — completou lorde Kenington.

No convés, Aisha admirava o Mediterrâneo, intensamente branco como o manto da Virgem Maria. As ondas quebravam-se e iam de encontro à proa do navio. Vendo-a tão entretida e feliz, lorde Kenington deixou para jogar tênis de bordo mais tarde.

Pouco antes do chá, embora relutante, Aisha concordou em jogar duas partidas. Na primeira lorde Kenington foi o vencedor e ela ganhou á segunda.

— Estou vendo que preciso tomar mais cuidado — disse ele  rindo. — Sempre me considerei um campeão de tênis de bordo e agora perdi para você.

— E eu me sinto orgulhosa por derrotá-lo. — Quando eu estiver com papai vou me vangloriar de ter vencido um campeão. — O riso que brincava nos lábios de Aisha desapareceu quando ela acrescentou pensativa, como se falasse consigo mesma: — O que papai estará fazendo no momento?

— Eu também gostaria de saber, mas como isso não é possível, vamos para o salão tomar chá — lorde Kenington convidou-a pensando em distraí-la.

Reconhecia, no entanto, que a preocupação de Aisha tinha razão de ser. As missões dos membros do Grande Jogo eram sempre tão importantes quanto perigosas.

Os russos avançavam continuamente e estendiam suas fronteiras de modo alarmante. Segundo lorde Kenington fora informado, o Império do czar expandia-se, em média... Cento e cinco milhas quadradas por dia!

Ele achara difícil acreditar que esse número fosse ver­dadeiro e sua missão era verificar se tal expansão, de fato, ocorria e se constituía perigo iminente para a Grã-Bretanha.

Era muito importante ele descobrir se os domínios dos khans e as cidades e povoações da velha Rota da Seda já haviam sido todas tomadas pelos velozes cavaleiros cossacos.

Embora isso lhe parecesse improvável, os relatórios re­cebidos em Londres, procedentes da índia, eram cada vez mais preocupantes.

Na noite anterior, ao deitar-se, lorde Kenington havia pensado mais uma vez que ter conhecido Aisha era uma das melhores coisas que já lhe acontecera.

Graças a ela o contato com o major Warde seria muito fácil e este poderia lhe prestar grande ajuda, fornecendo-lhe informações valiosas. O que lorde Kenington não queria, porém, era envolver Aisha em suas investigações.

Todas as histórias que haviam chegado aos ouvidos de lorde Kenington, sobre os participantes do Grande Jogo, eram tão fantásticas e alarmantes que ele duvidava de sua autenticidade.

Seu ceticismo o levava a crer que os jovens oficiais e subalternos que aceitavam participar da organização secre­ta, pensando em livrar-se da monotonia da vida na guarnição e, mais ainda, atraídos pela possibilidade de serem promovidos. Certamente exageravam não só ao cumprir suas tarefas, como ao relatar o que acontecia na índia.

O Sr. Disraeli tinha razão de, apesar de preocupado, não mostrar-se excessivamente nervoso devido ao avanço dos russos. Assim, ele havia preferido mandar alguém não ligado diretamente ao governo, tampouco um militar, descobrir, no local, o que acontecia realmente.

Lorde Kenington tinha consigo um papel com os números de seis participantes do Grande Jogo. Eram homens mais velhos e com muita experiência com quem ele devia entrar em contato para saber a verdade sobre a situação na fronteira.

Na organização, por medida de segurança, cada agente era conhecido por um número.

— Não será fácil descobrir o que se passa. — Os que par­ticipam do Grande Jogo mantêm segredo sobre suas ativi­dades e só dão informações àqueles diretamente ligados à defesa da índia — dissera o primeiro-ministro á lorde Kenington.  — Mas você jamais falhou no passado e não falhará desta vez. — Os liberais, como você sabe, acham que me preocupo sem razão e que as notícias que nos chegam são exa­geradas, só para nos assustar. — Eu, pessoalmente, pressinto que a situação é, de fato, muito séria.

Lorde Kenington tranqüilizara a Sr. Disraeli e prometera desempenhar sua tarefa da melhor maneira possível.

— Sei que o estou mandando para uma missão difícil e que pode provar-se inútil — acrescentara o primeiro-ministro, — Entretanto, Charles eu confio mais em sua opinião do que na de qualquer outro.

Os elogios não surpreenderam lorde Kenington. Ele sabia que o primeiro-ministro preferia lisonjear os que trabalha­vam para ele a dar-lhes ordens.

O Sr. Disraeli prosseguira:

— Esses seis homens cujos números estão anotados no papel que lhe dei são extremamente confiáveis e estão na Índia  há muito tempo. — Provavelmente você conhecerá outros, mas pode crer que não obterá deles informação alguma.

— Por quê? — Indagara lorde Kenington.

— Pela simples razão, caro Charles, que eles sabem que as pessoas falam demais. — O segredo é o grande sucesso da organização. — Já aconteceu de um rapaz, recém-chegado da índia, mencionar em uma festa, depois de ter bebido além da conta, o nome de um participante do Grande Jogo. — Dois meses depois este último desapareceu.

— O senhor quer dizer que ele foi assassinado?

O primeiro-ministro respondeu com um gesto com as mãos.

— Ninguém sabe o que lhe aconteceu, mas acreditamos que ele tenha sido eliminado pelos russos. — Você não ignora que há espiões russos por toda parte.

Ao despedir-se do primeiro-ministro lorde Kenington prometera-lhe que jamais poria a vida de um homem em risco, falando descuidadamente de assunto tão sigiloso e importante.

O momento não era muito propício para lorde Kenington deixar Londres, pois estavam no auge da temporada. Por causa da viagem ele teria de cancelar inúmeros compro­missos, inclusive recepções na Marlborough House.

Antes de partir ele estivera com o príncipe de Gales e dissera que iria para a índia.

Naturalmente deixara de men­cionar qual o motivo da viagem, porém Sua Alteza Real observara sem o menor preâmbulo:

— É claro que você pretende descobrir como está a força bélica da Rússia, até onde os russos já avançaram e se precisamos de mais tropas na índia.

Conhecendo bem o príncipe de Gales, lorde Kenington já esperava tal observação. Ele não ignorava que, embora a rainha Vitória excluísse o filho de qualquer coisa que tivesse a ver com assuntos do governo, o príncipe demonstrava o maior interesse por tudo o que acontecia no Império.

— Sim, Alteza eu espero ter a chance de falar com homens experientes que participam do Grande Jogo e fazer as mi­nhas próprias investigações — respondera lorde Kenington.

— Até o momento os russos têm avançado muito rapi­damente — salientara o príncipe de Gales. — Isso nos faz concluir que se eles já estão tão perto da índia, á tomarão com facilidade.

— É essa a minha opinião, Alteza  —  tornara lorde Ke­nington. — Porém, um grande número de pessoas no poder ignora o perigo e quando perceberem o que está realmente acontecendo, talvez seja tarde demais.

— Você está absolutamente certo, Charles. — O primeiro-ministro escolheu muito bem; você é a pessoa indicada para esta missão. — Ninguém melhor do que você para descobrir a verdade.

O príncipe de Gales fizera uma pausa antes de acrescentar:

— Espero que você me diga, ao voltar, o que descobriu.

Chegava a ser patético, lorde Kenington pensara ver o príncipe de Gales, herdeiro do trono, tão distante dos assuntos do Império. Ele não tinha permissão de saber o que se pas­sava no governo e jamais era convidado pela mãe a fazer parte das reuniões com representantes de outras nações.

— Quando eu voltar, direi a Vossa Alteza Real tudo o que descobri — prometera lorde Kenington, sabendo pela expressão do príncipe quanto ele estava preocupado e como a informação era importante para ele.

Lorde Kenington sentia pena de Sua Alteza Real por não merecer a confiança da mãe.

Compreendia também que o fato de o príncipe ser obrigado a manter-se longe dos as­suntos do governo, levava-o à conquista das beldades que o recebiam de braços abertos.

Também era do conhecimento de lorde Kenington que a rainha Vitória o repreenderia se viesse á saber que ele pro­metera passar informações ao príncipe de Gales.

Após o chá lorde Kenington e Aisha falaram sobre assuntos diversos, especialmente sobre os lugares que ele ha­via visitado.

— Você já esteve mesmo no Tibete? — Aisha perguntou. — Já li muito sobre esse país e adoraria conhecê-lo.

— Se você tiver oportunidade de ir ao Tibete, visite um dos mosteiros — lorde Kenington aconselhou-a. — Ficará fascinada. — Falei com o Dalai Lama e os demais Lamas dos grandes mosteiros que visitei. — Mas vi muita pobreza por onde andei. — A região era árida, o povo sujo e, em geral, hostil.

— Nos mosteiros, acredito você aprendeu muito sobre o céu e o inferno — Aisha inferiu.

— Não — respondeu lorde Kenington, rindo. — Mas fiquei impressionado com alma  que têm os libolanos e com a sua capacidade de prever com antecedência o que vai acontecer.

— Como eles podem prever?

— Segundo eles todos  nos podemos fazer o mesmo, desde que exercitemos nossa mente.

— Temos o que os egíp­cios chamavam de "terceiro olho" e por meio dele podemos prever o que e bom e importante para a nossa vida e o que devemos evitar.

— Bem, não duvido que a nossa mente, de fato, é poderosa e precisa ser exercitada. — Já pratiquei telepatia com meu pai e obtive bons resultados.

— Telepatia?  O assunto é fascinante, mas acredito que a telepatia ou outros poderes da mente sejam dons que apenas poucos privilegiados possuem. — Nunca me passou pela cabeça que eu pudesse ser um deles — replicou lorde Kenington.

— Os ocidentais, em geral, são céticos. — Mas para quem vive no mundo da política, como você, seria muito vantajoso saber o que seus oponentes pensam ou o que estão plane­jando — Aisha apontou.

— Duvido que mesmo com muito treino eu seja capaz de desenvolver essa capacidade.

— Vamos fazer uma experiência — Aisha propôs. — Fe­che os olhos e pense em alguma coisa. — Tentarei adivinhar em que você está pensando.

Embora achasse tolice o que Aisha lhe propunha, lorde Kenington atendeu-a. Pelo menos se tratava de uma expe­riência diferente de tudo o que ele já fizera antes.

Fechou os olhos e concentrou-se no cavalo que vinha sendo treinado para ser o vencedor do Grande Prêmio Nacional, no ano seguinte.

Ambos ficaram em silêncio durante alguns minutos. Por fim Aisha expôs:

— Ele não vencerá a corrida no ano que vem; talvez só daqui a dois anos.

Lorde Kenington abriu os olhos e perguntou surpreso:

— De que você está falando?

— Refiro-me a um dos seus cavalos. — Você estava pensando em um puro-sangue no qual tem grandes esperanças. — Na corrida do ano que vem ele chegará a segundo ou terceiro lugar.

— Será vencedor em outra ocasião.

— Que extraordinário! — Além de adivinhar no que eu estava pensando, você acaba de prever o futuro! — Como isso é pos­sível? — Lorde Kenington não escondeu a sua perplexidade.

— Aprendi nos livros e com indianos que nos visitavam que nossos poderes extra-sensoriais podem ser desenvolvidos com exercícios, concentração e meditação. — Já pratiquei telepatia com meu pai, mas nunca com outra pessoa, a não ser agora, com você.

— De modo extraordinário! — Lorde Kenington repetiu. — Eu gostaria de ter esse dom.

— Como eu disse, é preciso praticar. — Para você será muito útil, principalmente nesta sua missão, quando terá de descobrir o que está acontecendo na fronteira.

— Estou confiante na ajuda de seu pai.

— Meu pai não é a única pessoa envolvida. — Se você co­meçar a exercitar-se, conseguirá, por telepatia, saber que outras pessoas poderão ajudá-lo. — Então, bastará entrar em contato com elas — Aisha salientou.

— Não acredito que seja tão simples como você diz — rebateu lorde Kenington. — Se, de fato, nossos pensamentos podem  ser lidos com facilidade, correrei o risco de encontrar muitos que saberá em que estarei pensando.

— Lembre-se de que no Oriente isso não só é possível, como  é mais comum do que se pensa.

— Portanto, você deverá ter cuidado  — Aisha aconselhou-o.

Durante o jantar e depois, no convés, eles conversaram sobre assuntos diversos.

Á pedido de Aisha, lorde Kenington falou sobre os tipos exuberantes e estranhos que ele havia encontrado em suas viagens.

Os que mais a impressionaram foram os dançarinos do Vilão que executavam a "dança do diabo". Com o uso de umas caras esses dançarinos personificavam o espírito do mal. Os ritos de exorcismo, bem como para curar doentes ou... Como para afastar das pessoas a má sorte.

Á hora de dormir lorde Kenington revistou a cabine de Aisha como prometera fazer. Estava tudo em ordem, mesmo assim ele tranqüilizou-a:

— Durma sossegada. — Estarei atento, caso precise de mim. — Como não vimos sinal daquele homem desagradável até agora, posso afirmar que ele está trancado em sua cabine cuidando dos ferimentos.

— Aqueles socos devem tê-lo machucado bastante — Aisha deduziu. — O pobre estava sangrando.

— Não tenha pena dele. — O miserável merecia até mais. — Tranque a porta e durma.

Uma vez em sua cabine lorde Kenington deitou-se pen­sando que jamais passara momentos tão agradáveis com uma mulher com a qual não estava envolvido sentimentalmente.

O que ela dissera sobre telepatia e a demonstração que fizera o deixaram impressionado.

Como resultado disso ele decidiu exercitar-se, pois concordava com Aisha que seria de grande valia nas missões que realizava para o primei­ro-ministro e o ministro das relações exteriores.

"Aisha é uma jovem extraordinária", lorde Kenington pen­sou. Ao mesmo tempo se questionou se conseguiria aprender a utilizar a telepatia.

No dia seguinte lorde Kenington e Aisha passaram juntos quase o tempo todo, conversando, andando pelo convés ou jogando tênis de bordo.

— Você acredita no poder da oração? — Ela perguntou quando ambos sentaram-se no convés, após o almoço.

— Claro que sim. — Infelizmente os homens, em sua maio­ria, vivem tão presos a valores materiais que esquecem o extraordinário poder da oração. — Para mim a oração é a ponte que nos liga a Deus ou a um Poder Maior.

— E o que me diz da reencarnação? — Você acredita que  quando morremos renascemos em outro corpo?

— Como quase três quartos do mundo acreditam na reencarnação, decidi estudar o assunto e concluí que há muita lógica na lei da reencarnação, pela qual nós, em vidas sucessivas, vamos evoluindo no plano intelectual, moral e espiritual, enquanto espiamos os erros de vidas passadas.

— É isso também que eu penso — Aisha concordou. — Quando considero, por exemplo, o talento que meu pai tem para idiomas e a facilidade com que aprendeu urdu e dialetos de certas tribos da índia, sou levada a acreditar que ele tenha sido indiano em outra vida.

— E quanto a você?

— Não faço idéia do que eu possa ter sido em vidas passadas. — No entanto, por vezes, sei exatamente o que vai acontecer. — É como se eu já tivesse vivido a mesma experiência em outra vida. — Não sei se você entende o que estou dizendo.

— Entendo claro. — E posso afirmar que você já passou por muitas encarnações. — Só isso explica que uma pessoa jovem possua esses olhos ajuizados demais, o amadu­recimento que você tem, bem como uma inteligência tão viva. — Certamente você adquiriu muitos conhecimentos em outras vidas e trouxe consigo, ao renascer, mais virtudes e uma intuição bem desenvolvida.

Aisha ficou pensativa; depois disse com modéstia:

— Talvez você esteja certo. — Só acho que está sendo muito lisonjeiro ao mencionar as minhas qualidades.

Naqueles poucos dias de viagem lorde Kenington surpreendia-se cada vez mais com Aisha.

Ele jamais conhecera nenhuma mulher, mesmo sendo religiosa, que tivesse argumen­tos para discutir sobre assuntos como a vida após a vida e reencarnação.

— Vamos parar em Roma? — Aisha perguntou quando eles se aproximavam da Itália,

— Não, infelizmente — respondeu lorde Kenington. — Nós não passaremos, eu teria prazer de levá-la à basílica de São Pedro. — Nossa próxima parada será Nápoles e daí em adiante navegaremos a todo vapor, diretamente para o ca­nal de Suez.

— Estou ansiosa para atravessar o canal novamente. — Nas ultimas vezes em que fiz a travessia tive a impressão de que navio navegava na areia.

— É exatamente a impressão que se tem, pois o nível do mar é mais alto que do canal e mais baixo do que o da terra arenosa o ladeia. — Para mim, chegar ao canal de Suez é motivo de alegria porque metade do percurso já foi vencida. — No entanto, esta viagem está sendo tão agradável que não vejo os dias passarem. — Nunca encontrei uma mulher que gostasse de falar sobre os assuntos que temos abordado muito menos uma garota como você que não deve ter vinte anos.

— Vou fazer dezenove, mas meu espírito pode ser muito mais velho. — Se está lembrado, já falamos sobre isso — Aisha observou.  — Os homens em geral acham que as mulheres são tolas e se julgam superiores a elas. — Mas isso não é verdade.

— Nunca duvidei da sua inteligência e seus argumentos não são o de uma pessoa tola — lorde Kenington protestou.

— Você está sendo condescendente comigo porque lhe agrada ter com quem conversar e discutir. — No entanto no fundo, você se julga superior a todas as mulheres que já conheceu.

— Reconheço que os homens demonstram ser mais "espertos" do que as mulheres ao organizar a sociedade ou o grupo em que vivem. — Em tal sociedade ou grupo a função do homem é sair para buscar o sustento, enquanto a da mulher é ficar em casa, cuidar dos filhos e tornar o ambiente do lar feliz e agradável para receber o marido quando ele voltar.

— Concordo com cada palavra do que você disse! — Lorde Kenington exclamou.

— Só podia concordar! — Aisha riu. — No mundo sob o domínio dos homens as mulheres ocupam sempre o segundo lugar. — Os gregos já diziam: "Aos homens a política, às mu­lheres a casa".

— Você preferiria ter nascido homem?

— Posso apostar que você está certo de que eu vou dizer "sim", mas a minha resposta é "não" — Aisha replicou.

— Não?!

— Por que a surpresa? — Estou muito feliz como sou. — Só não concordo com o tratamento dado à mulher, sobretudo no Oriente, onde ela é muito inferiorizada.

— No Ocidente a mulher vem tendo sucesso ao reivindicar seus direitos, mas no Oriente isso não acontecerá tão cedo, murmurou lorde Kenington.

— Infelizmente, não — Aisha reconheceu com um suspiro.

Quando eles chegaram a Nápoles o comandante avisou ninguém poderia desembarcar, pois a parada naquele porto seria bem curta, apenas para o embarque de alguns passageiros.

— Ah, que desapontamento! — Aisha lamentou. — Eu queria tanto de conhecer Pompéia.

— Já li tudo o que encontrei sobre essa cidade.

— É difícil acreditar que sendo tão nova você já tenha lido livros sobre tantos países! — admirou-se lorde Kenington.

— Pelo seu modo de falar e seu tom, você parece estar rindo de mim ou me considerando presunçosa — Aisha murmurou queixosa. — Fique sabendo que leio com muita freqüência e  tenho boa memória, por isso não esqueço o que li.

— Nesse caso quero que, mais tarde, você me fale sobre deuses e deusas da Grécia. — Agora vamos até o convés ver  os novos passageiros embarcando. — Quem sabe venha alguém interessante entre eles.

Enquanto eles caminhavam passou pela mente de Aisha que talvez lorde Kenington já estivesse aborrecido com a sua companhia e desejasse ver alguma pessoa conhecida, como se tal pensamento tivesse algum poder mágico, uma mulher de  meia-idade, muito elegante, materializou-se diante deles assim que chegaram ao convés.

— Charles! — A senhora exclamou. — Nunca imaginei que pudesse encontrá-lo aqui.

— Estou igualmente surpreso, Mavis. — Lorde Kenington apertou a mão do cavalheiro que acompanhava a senhora. — Pensei que você e Harry estivessem em Londres.

— Tive de vir para a Itália e Mavis me acompanhou — Harry esclareceu.

— Eu estava entediada em Londres — tornou Mavis. — Estamos indo para Calcutá.

— Que coincidência! — Eu também. — Lorde Kenington  voltou-se para Aisha e apresentou-a ao casal: — Esta é a Srta. Aisha Warde.

Aisha estendeu a mão e lorde Kenington terminou:

— Estes são o conde e a condessa de Dartwood.

Notando que a condessa olhava para Aisha de modo cu­rioso, lorde Kenington perguntou-lhe para desviar-lhe a atenção:

— Por que vocês estão indos para a índia no meio da temporada?

— Recebemos uma carta do coronel que comanda o re­gimento de nosso filho convidando-nos para fazer-lhe uma visita e estar com o rapaz — respondeu a condessa.

— Viemos à Itália para ver mamãe que se mudou para cá e decidimos continuar a viagem antes de voltarmos para casa — completou o conde.

— Será um grande prazer ter a companhia de ambos — disse lorde Kenington, gentil. — Com exceção da Srta. Warde não há outros conhecidos a bordo.

— Para nós também é maravilhoso tê-lo encontrado, caro Charles — disse a condessa.

— Tenho muitas coisas para lhe dizer que irão diverti-lo.

— Vamos Mavis — o conde convidou a esposa. — Convém verificarmos onde fica a nossa cabine.

Dois criados, obviamente o valete do conde e a criada pessoal da condessa acabavam de se aproximar com a ba­gagem de mão.

Assim que o casal se afastou e se dirigiu para o escritório do comissário de bordo, lorde Kenington segredou a Aisha:

— Agora estamos numa situação difícil.

Ela fitou-o, surpresa.

— Por quê?

Antes de responder lorde Kenington segurou-a pelo braço e levou-a para o outro lado do convés. Ali havia cadeiras vazias e ambos se sentaram.

— O que há de errado? — Aisha insistiu.

— Como estamos juntos e você não tem uma chaperon, o conde e a condessa irão imaginar que combinamos fazer essa viagem porque temos um... Envolvimento. — Isso arruinaria a sua reputação.

Por um momento Aisha ficou em silêncio, atônita e ruborizada. Então perguntou, aflita:

— O que podemos fazer?

— Ainda não sei. — Mavis e o marido são os maiores bisbilhoteiros que conheço. — No White's Club referem-se ao con­de como o "língua de palmo". — Ele sempre tem o que dizer de tudo e de todos.

— Compreendo. — A única coisa que me ocorre é desembarcar e esperar pelo próximo navio — Aisha sugeriu.

— É claro que você não pode fazer isso — rebateu lorde Kenington. — Fique calma.

— Encontraremos uma solução.

— Não estou preocupada com o que eles pensem ou digam a meu respeito. — Como o casal é seu amigo, não quero que pensem mal de você.

— De mim? — Oh, não! — É a sua reputação que está em jogo, Aisha — enfatizou lorde Kenington. — Bem, talvez eu esteja fazendo uma tempestade num copo d'água. — Ao mesmo tempo, não quero que falem de você. — Sei do que são capazes as pessoas maldosas da alta sociedade.

Pelo modo de lorde Kenington falar, Aisha deduziu que ele já havia sofrido com a maledicência das pessoas que o encontravam.

O fato, por ser muito bonito e riquíssimo e amigo do príncipe de Gales, Charles era alvo de comentários maldosos daqueles que freqüentavam o beau monde.

Bastava ele dançar duas vezes com a mesma mulher para os mexeriqueiros espalharem que ambos estavam tendo um romance.

Ele  olhou para Aisha e ao notar sua expressão consternada, sentiu um desejo imenso de protegê-la. Ela era tão inocente e pura e não conhecia o mundo no qual ele vivia.

O mundo onde quase todos eram como o conde e a condessa de Dartwood.

— O que temos a fazer, Aisha, é pôr a cabeça para pensar. — E descobrirmos um meio de impedir que esses meus ami­gos façam comentários sobre nós. — Você não conhece a so­ciedade londrina e não tem idéia de como as menores coisas podem ser passadas de boca em boca, em geral com exageros, até se tornar algo muito sério.

— É difícil acreditar que isso aconteça. — A expressão de Aisha descontraiu-se e ela riu.

— Acontece. — Pode ter certeza disso — lorde Kenington falou com firmeza. — Seria uma falta de consideração para com você e seu pai se eu não a livrasse da maledicência do conde e da condessa.

— Vou concentrar-me. — Quem sabe algumas coisas me ocorreram — disse Aisha.

Ambos ficaram em silêncio, refletindo. Lorde Kenington lembrou-se de que conhecera a condessa e o marido cerca de cinco anos atrás. Ela devia ter trinta e três anos e era muito atraente.

Ambos se encontravam em festas e em reuniões sociais e Mavis flertava com ele. Num dos bailes oferecidos pelo conde e a condessa na mansão Dartwood, na Berkeley Square, lorde Kenington dançou com Mavis e antes de terminar a música, ela convidou-o para ir ver as plantas que cultivava numa estufa. Ali ambos se beijaram.

Lorde Kenington arrependeu-se de ter sido tão impulsivo e decidiu não ficar mais á sós com Mavis. O que menos queria era ter um romance com a esposa de um amigo, pois já nascera uma amizade entre o conde e ele.

O conde o convidara algumas vezes para pescar salmão e caçar galo silvestre na sua fazenda, na Escócia.

Felizmente Mavis compreendera a atitude de Charles e a amizade dos três continuara firme até o momento. A única coisa que aborrecia lorde Kenington era o fato de o casal ser tão falador.

No White's Club, muitos dos sócios levantavam-se do lugar onde se achavam caso o conde de Dartwood se sentasse do seu lado.

"Por que justamente eles, entre tantos conhecidos, haveria de embarcar neste navio?", lorde Kenington se questionou.

A viagem na companhia de Aisha estava sendo tão agradável que ele não queria ter de separar-se dela. Alguma coisa precisaria ser feita, pois não lhe passara despercebido o modo  malévolo como Mavis Dartwood havia olhado para Aisha.

— Você já demonstrou que é inteligente e perspicaz. — Agora tente encontrar um meio de eu convencer meus amigos de que a conheço há muito tempo e apenas a estou protegendo nesta viagem — pediu lorde Kenington.

— Acho melhor eu desembarcar e aguardar o próximo navio Aisha repetiu. — Ainda a tempo de eu arrumar minha bagagem.

— Nada disso. — Está muito enganada se pensa que vou permitir que você faça uma loucura dessas. — Se for essa a solução eu prefiro que Mavis e o marido falem à vontade.

— Para o inferno com eles. — Nem em sonhos a deixarei sozinha  na Itália, quem sabe a mercê de algum outro homem atrevido como Watkins — lorde Kenington declarou com veemência.

Percebendo que tais palavras fizeram Aisha encolher-se ele acrescentou mais suavemente:

— Fique tranqüila, encontraremos uma saída. No mesmo instante eles perceberam que a escada do costado era erguida e o navio começava a afastar-se do porto.

— Tenho notado que duas senhoras estão sempre sozinhas a mesa das refeições. — Ambas parecem amáveis; posso perguntar-lhes se permitiriam que eu me sentasse com elas — Aisha murmurou.

Lorde Kenington considerou a sugestão por um momento, depois desconsiderou a idéia.

— Não enganaremos a condessa. — Mavis é intrometida e ela acabara descobrindo que temos estado juntos o tempo todo e de mais a mais, gosto muito da sua companhia, adoro ficar conversando com você.

— Tive uma idéia, — Aisha exclamou:

— Tive uma idéia! — Não sei se você irá aprová-la.

— Me fale que idéia e essa.

— Você tem primos ou outros parentes de uns vinte e poucos anos?

— Tenho vários. — Posso mencionar os nomes de pelo menos doze primos. — Por quê?

—  Então ouça: podemos dizer que estou noiva de um dos seus primos e você, gentilmente, se ofereceu para levar-me ao encontro dele.

— É uma história bem plausível — lorde Kenington falou devagar, depois de ter ficado um instante pensativo. — Nada há de errado em um cavalheiro acompanhar a noiva do primo.

— Podemos dizer que uma sua parenta iria fazer a viagem conosco e ficou doente no último instante. — Na ver­dade, tenho um primo que é oficial da Marinha e no mo­mento está na África.

— Sei que há navios de guerra nave­gando na direção da índia como uma advertência para os russos. — Portanto, meu primo, para todos os efeitos, está num desses navios.

— A história soará mais autêntica se mencionarmos que meu pai está trabalhando na índia e não pôde ir buscar-me em Londres — complementou Aisha.

— Você é tão inteligente que me faz sentir cada vez mais insignificante. — Receio ter desaparecido quando chegarmos à Índia — brincou lorde Kenington.

Aisha riu e replicou:

— Lembre-se de que, como meu acompanhante, não pode desaparecer antes de entregar-me em segurança a meu noivo.

 

Tendo sido repassada toda a história criada por eles, lorde Kenington desceu mais cedo para o salão. Queria falar com os amigos antes de Aisha também descer para o jantar.

— Terei o maior prazer que vocês sentem-se à minha mesa — lorde Kenington convidou o casal. — A não ser, claro, que prefiram a companhia do comandante e seus convidados.

— Ora, Charles, nós queremos ficar com você — declarou Mavis.

Abaixando a voz lorde Kenington confidenciou:

— Tenho um segredo para lhes contar. — Só lhes peço que não o revelem a ninguém até chegarmos a Calcutá.

Nos olhos da condessa era evidente a curiosidade.

— Um segredo? — O que é?

— A linda garota que lhes apresentei é a noiva de meu primo Jack.

— Noiva de seu primo?!

— Exatamente. — O noivado ainda é segredo, uma vez que a Srta. Warde está indo para a índia encontrar-se com o pai, em Calcutá, e, posteriormente, com Jack. — Então o noi­vado será oficializado.

— Oh, sim. — Agora compreendo — murmurou a condessa em outro tom de voz. — Quando você nos apresentou aquela linda jovem me perguntei por que ambos estariam juntos.

— Prometi a meu primo e ao major, pai da Srta. Warde acompanhá-la até a índia. — Uma parenta de Aisha deveria viajar conosco, mas ficou doente. — Conto com a discrição de vocês.

— Não digam nada sobre o assunto nem cumprimentem a Srta. Warde pelo noivado, uma vez que este ainda não é oficial — reiterou lorde Kenington.

— É claro que manteremos segredo, fique tranqüilo — asseverou o conde. — Esse seu primo não poderia ter es­colhido uma esposa mais encantadora. — A propósito, onde está o noivo no momento?

— Quando recebi notícias de Jack pela última vez seu navio seguia da África para a índia.

— Ele espera chegar a Calcutá no mesmo dia que nós ou pouco depois. — Então po­deremos festejar — informou lorde Kenington, satisfeito.

O conde e a condessa riram e demonstraram não duvidar de nada, mesmo porque ambos consideravam o amigo res­peitador das convenções sociais.

Quando Aisha desceu e reuniu-se a eles, o casal Dartwood tratou-a com a maior gentileza e não fez a menor insinuação sobre ela estar noiva.

Após o jantar os cavalheiros foram dar uma volta pelo con­vés e, vendo-se a só com Aisha, a condessa perguntou-lhe:

— Você conhece lorde Kenington há muito tempo?

Aisha meneou a cabeça.

— Não, mas a minha família conhece a dele há muitos anos.

— Oh, sim, compreendo. — Então esta é a primeira vez que você e Charles ficam sozinhos.

Achando que devia concordar, Aisha acenou com a cabeça afirmativamente.

— O que você pensa a respeito de Charles?

— Lorde Kenington é muito inteligente e gentil.

— Concordo com você. — E, claro, ele também é um belo homem.

— Não só ele, mas toda a família — Aisha acrescentou. — Meu pai sempre diz que todos são atraentes e muito simpáticos.

Aliviada, Aisha notou que a condessa apreciara a res­posta. Tanto que mudou de assunto e passou a falar sobre roupas. Com entusiasmo ela não se cansou de elogiar os estilistas franceses e de enfatizar que eram muito melhores do que os ingleses.

Os cavalheiros voltaram para junto delas e lorde Kening­ton deu-lhes boa noite.

— Não pretendo ficar acordado até tarde e tenho muito trabalho a fazer enquanto estou a bordo — desculpou-se.

— Também vou para minha cabine — disse Aisha. — Quero terminar o livro que estou lendo sobre a índia.

— Ah, a índia? — Eu também gosto de ler sobre o país que vou visitar. — Dessa forma compreendo melhor seu povo, seus hábitos e posso manter uma conversa mais inteligente sobre o lugar — apontou a condessa.

— Tenho lido tanto sobre a índia que é como se eu já conhecesse o país — Aisha observou, sorrindo.

— Você está pensando em morar na índia? — Indagou o conde.

— Não, claro que não. — Amo a Inglaterra, moro lá com meus parentes em nossa casa ancestral e tenho nossos ex­celentes cavalos para montar.

Essa resposta levou a conversa para os cavalos de lorde Kenington e Aisha preferiu ouvir a fazer comentários, re­ceando cometer algum erro.

Finalmente, todos se separaram. Lorde Kenington e Ais­ha alegraram-se ao saber que a cabine do conde e da esposa ficava do outro lado do navio.

— Está de parabéns. — Você saiu-se maravilhosamente neste primeiro encontro com o casal — lorde Kenington elogiou Aisha.

— Espero que sim. — Você não ouviu a conversa entre mim e a condessa. — Ela quis saber quando nos conhecemos e eu disse que as nossas famílias têm amizade há muitos anos. — Achei que a resposta a satisfez.

— Com certeza. — Conseguimos impedir que uma das  mulheres mais bisbilhoteiras de Londres tivesse em nós um bom assunto para suas maledicências.

— Por que será que ela tem prazer em criar problemas para os outros? — Aisha questionou.

— Mulheres assim não querem, na verdade, causar proble­mas. — Para elas é uma grande satisfação demonstrar que sabem de tudo o que acontece. — Elas sempre suspeitam que as outras mulheres façam coisas que, no fundo, elas próprias desejam fazer, mas não têm coragem — explicou lorde Kenington.

— É difícil acreditar que haja pessoas assim. — Bem, depois que chegarmos a Calcutá nós quatro tomaremos rumos di­ferentes. — Mais tarde, talvez daqui a uns seis meses, quando reencontrar o conde e a condessa, você pode lhes dizer que Jack e eu rompemos o noivado.

— Embora a mentira me desagrade, esta não pode ser evitada. — Se eu me propus a defendê-la de Arthur Watkins, agora devo impedir que o casal Dartwood arruíne a sua reputação. — Lorde Kenington fez uma pausa, depois acres­centou: — Estou aqui a me questionar o que virá a seguir.

— Oh, não! — Já chega de problemas! — Passei momentos terríveis com a perseguição do Sr. Watkins e esta noite estive apreensiva o tempo todo, receando cometer alguém deslize. — Aisha suspirou.  — E isso vai continuar. — Com os Dartwood a bordo estarei sempre preocupada com o que dizer. — Vou rezar com fervor para mais nada de ruim acontecer até chegarmos a Calcutá.

— Acredito que você não terá mais preocupação com Mavis e Dartwood. — Eles acreditaram piamente na história que lhes contamos e não voltarão ao assunto. — Em outro tom lorde Kenington falou: — Estou ansioso para conhecer seu pai. — Só espero que ele não me envolva em nenhuma de suas missões arriscadas.

— Enquanto eu estiver com papai não permitirei que ele arrisque a vida — disse Aisha.

— Não vejo a hora de ele se aposentar e voltar para a Inglaterra.

— Pelo modo como o primeiro-ministro falou sobre o tra­balho do major e pelos elogios que lhe fez, acredito que sua participação no Grande Jogo é indispensável. — Se você tentar convencer seu pai a aposentar-se, pode acreditar que terá todo o Exército da Grã-Bretanha contra você.

Ambos conversavam do lado de fora de suas cabines.

Aisha riu e observou:

— Bem, mesmo que eu tente convencer papai a deixar o Exército, ele não me ouvirá, pois ama o que faz. — Agora não devo mais prendê-lo, Charles. — Acredito que você queira trabalhar um pouco ou voltar para a leitura de seus livros. — Não devemos ficar aqui conversando; isso pode comprometer a sua reputação.

— Pensei que devêssemos zelar pela sua reputação! — Exclamou lorde Kenington.

— Ora, não sou importante. — Claro que qualquer co­mentário maledicente atingirá você, não eu.

— Está bem, Aisha.  — Lorde Kenington não quis argu­mentar e despediu-se: — Boa noite.

— Amanhã jogaremos tênis de bordo logo cedo. — Pretendo derrotá-la em todas as partidas.

— Duvido que consiga, pois estou determinada a ser a vencedora — Aisha retrucou.

— Espere e verá!

Lorde Kenington pegou a chave da cabine de Aisha, abriu a porta e fez a costumeira inspeção.

Vendo que estava tudo em ordem, despediu-se novamente e foi para a própria cabine.

Newman deixara tudo preparado para a noite. Lorde Ke­nington trocou-se, sentou-se numa das confortáveis poltro­nas e pegou o livro que começara a ler.

Sua mente, porém não se fixava na leitura e sim em Aisha. Ela era encantadora e sua conversa muito agradável. Nessa noite, depois do jantar, quase bocejara ao ouvir o conde contar as mesmas histórias sobre as mesmas pessoas, sempre ressaltando seus defeitos, suas fraquezas ou seu comportamento reprovável.

Há dias ele e Aisha ficavam juntos durante horas, con­versavam bastante e nunca nenhum dos dois mencionara algo impróprio ou indecoroso.

Na cabine do lado, Aisha considerava que, felizmente, o conde e a esposa haviam acreditado na história de seu noi­vado com Jack, primo de Charles.

A única dificuldade era que casal iria transtornar as ati­vidades rotineiras dela e de lorde Kenington, as quais, a cada dia que passava, tornavam-se mais agradáveis.

Mas era inevitável que de agora em diante eles ficassem mais distantes um do outro. Nessa noite mesmo, em outra circunstância, eles ainda estariam juntos, conversando sobre assuntos do interesse de ambos.

A conversa ao jantar fora monótona e em geral fútil ou sobre pessoas de quem Aisha nunca ouvira falar. Se lorde Kenington e ela estivessem sozinhas, discorreriam sobre te­mas palpitantes.

A mente de Aisha estava povoada de questões que dese­jaria discutir com lorde Kenington. A dificuldade era saber quando teriam chance de ficar conversando a sós.

A não ser que ambos estivessem jogando tênis de bordo, teriam constantemente a companhia de Mavis e do marido.

Durante o resto da viagem aconteceu o que Aisha previra. Ela raramente tinha a oportunidade de falar a sós com lorde Kenington.

Quando ficava com ele e os amigos mantinham-se quase o tempo todo em silêncio. Por isso, preferia desaparecer. Ficava trancada em sua cabine, lendo.

Os únicos momentos que ela e lorde Kenington tinham para si eram bem cedo, quando ambos davam voltas e mais voltas pelo convés ou quando jogavam tênis de bordo.

O conde e a condessa sentavam-se à mesa com eles em todas as refeições. Caso lorde Kenington e Aisha encontrasse um lugar isolado onde pudessem ficar tranqüilos, Ma­vis, invariavelmente, materializava-se diante deles em pou­cos minutos.

O vapor atravessou o canal de Suez, entrou no mar Ver­melho e tomou a direção da índia.

Quando avistaram Cal­cutá, Aisha disse á lorde Kenington, melancólica:

— Espero revê-lo, Charles. — Desde Nápoles não tivemos oportunidade de conversar e eu gostaria de lhe dizer tantas coisas e de fazer-lhe inúmeras perguntas.

— Ninguém sente mais falta de nossas conversas do que eu — lorde Kenington admitiu.

— Mas é claro que volta­remos a nos ver. — Quando eu estiver com seu pai, no cais, vou convidá-lo para ir visitar-me na residência de verão do vice-rei e você irá com ele.

O rosto de Aisha iluminou-se.

— Vou adorar fazer essa visita. — Mas não poderemos con­versar como conversamos na primeira parte desta viagem.

— Tenho uma idéia...

Nesse momento uma voz conhecida os interrompeu.

— Oh, aí está você, Charles! — Eu perguntava a mim mesma aonde você poderia ter ido.

— Procurei-o por toda parte.

— Eu acabava de dizer a Srta. Warde que Calcutá já surgiu á distância e em breve todos nós devemos nos des­pedir — respondeu lorde Kenington.

— Não ficaremos sem nos ver por muito tempo, Charles — tornou a condessa.

— Naturalmente você pretende ver o vice-rei, em Simla, a capital de verão da índia. — Nós também iremos para lá depois de visitarmos o coronel e nosso filho.

— Oh, que notícia agradável — disse lorde Kenington, esforçando-se para imprimir entusiasmo na voz.

O que mais ele poderia dizer?

Ainda era cedo, mas estava muito quente, quando o vapor entrou no porto de Calcutá.

Do alto do convés Aisha olhava atenta para a multidão esperando ver o pai. Estava linda usando um vestido vaporoso de musselina e um chapéu enfeitado com flores.

— Não esqueça que estou quase tão ansioso quanto você para ver seu pai — expôs lorde Kenington ao jun­tar-se a ela.

— Por razões diferentes —  Aisha lembrou-o.  — Eu o apresentarei a papai e ele lhe dirá onde nos ficaremos hospedados.

— Presumo que seja no Palácio do Governo, a não ser que o major esteja no quartel-general do seu regimento.

— Não sei, mas em breve saberemos a resposta.

Lentamente o navio encostou-se ao cais. Percebendo que Aisha deu depressa mais um passo para ficar bem perto dele, lorde Kenington olhou para o lado e viu Arthur Watkins a pouca distância dela, mas muito bem comportado.

Desde que vira o conde e a condessa de Dartwood sentados à mesa de lorde Kenington e de Aisha, o Sr. Watkins com­preendera que cometera um grave erro. A Srta. Warde não era quem ele havia imaginado.

Ele conhecia a alta sociedade o suficiente para saber que um casal de aristocratas sequer se aproximaria de Aisha se ela não fosse uma lady.

"Fiz papel de tolo", disse a si mesmo o Sr. Watkins e afastou-se, indo juntar-se às pessoas com quem fizera ami­zade a bordo, para as despedidas.

Aisha respirou aliviada.

— Esqueça-o — lorde Kenington aconselhou-a. — Você nunca mais o verá.

— Você está lendo meus pensamentos. — Eu disse que você seria capaz de fazer isso. — Aisha debruçou-se sobre a amurada e acrescentou em outro tom: — Não estou vendo meu pai; onde ele poderá estar?

Debruçado do lado dela lorde Kenington olhava para a multidão e se perguntava que aparência teria o major Warde.

Quando, por fim eles, desceram a escada do costado, de­ram adeus à condessa e ao conde que tomaram a carruagem enviada pelo coronel para apanhá-los no porto.

Do major Warde nem sinal.

— O que será que aconteceu? — Começo a ficar preocupada — disse Aisha com uma expressão sombria no olhar.

— Você avisou-o que estava viajando neste navio, não? — Indagou lorde Kenington.

— Claro que sim e recebi a confirmação de papai dizendo que estaria no cais à minha espera.

Ambos foram para um canto onde não corriam perigo de serem empurrados pela multidão que desembarcava das classes inferiores. Eram indianos em sua maioria.

Quando parecia não haver mais um passageiro sequer no navio, lorde Kenington sugeriu a Aisha:

— Como seu pai não apareceu, acho melhor você ir comigo para o Palácio do Governo. — Lá será mais fácil sabermos notícias do major Warde.

Em resposta ela assentiu com a cabeça. Sabendo que Aisha imaginava que o pai estava em perigo, lorde Kening­ton acrescentou depressa:

— Não se preocupe. — Uma dezena de coisas possa ter acontecido para atrasar seu pai.

— Além disso, aqui na índia ninguém dá muita atenção à pontualidade. — Os indianos ou estão adiantados ou atrasados demais.

— Não meu pai — Aisha discordou. — Ele é muito pon­tual. — Alguma coisa séria aconteceu.

Por ordem de lorde Kenington a bagagem deles foi levada para uma das carruagens estacionadas a pouca distância dali. Ele subiu com Aisha no veículo e ordenou ao cocheiro que tocasse para o Palácio do Governo.

Uma vez no palácio, lorde Kenington apresentou-se e foi levado imediatamente à presença do general, comandante das tropas de Calcutá.

— Sabíamos que estava a caminho, milorde — disse o general. — Infelizmente, não mencionaram qual o seu navio e não pude mandar buscá-lo.

— Na verdade eu mesmo só fui informado do nome do navio no último instante — expôs lorde Kenington. — Agora que estou aqui, espero que me ajude a entrar em contato com o vice-rei o mais depressa possível.

— Mandarei reservar um compartimento privativo no trem para Simla — o general prontificou-se.

Lorde Kenington voltou-se para Aisha.

— Permita-me apresentar-lhe a Srta. Aisha Warde. — Ela esperava encontrar o pai, major Warde, no cais.

O general empertigou-se.

— O major Warde é seu pai?

— Sim — Aisha respondeu. — Estou preocupada, pois papai não estava no cais me esperando, como prometeu. — Não posso imaginar o que terá acontecido.

No gabinete onde eles se achavam havia duas escrivani­nhas. Um oficial trabalhava sentado a uma delas. Levantando-se, o general falou em voz baixa com esse oficial que saiu da sala imediatamente, fechando a porta.

Voltando-se para os visitantes o general indicou-lhes um sofá e poltronas confortáveis para eles se sentarem.

— Ordenei que nos servissem uma bebida gelada — infor­mou. — Sei que a apreciarão neste clima. — Também ordenei a meu assistente que obtenha notícias do major Warde.

— Oh, o senhor está querendo dizer que papai está longe daqui... Em alguma missão? — Aisha perguntou, aflita.

— Não sei, realmente, Srta. Warde. — O major devia ter chegado ao seu regimento há alguns dias.

Sabendo o que Aisha estava sentindo, lorde Kenington segurou-lhe a mão e tentou confortá-la.

— Um trem lento demais ou alguma mula preguiçosa não permitiu que seu pai chegasse a Calcutá no dia previsto. — Fique calma e vamos aguardar; em breve teremos notícias do major.

— Tentarei ficar calma — Aisha murmurou. Sua mão tremia na de lorde Kenington.

Um criado entrou no gabinete trazendo refresco gelado. Enquanto ele servia os visitantes, o general deixou-os por alguns minutos.

— O que terá acontecido a papai? — Aisha perguntou quando o criado saiu. — Você sabe tão bem quanto eu que suas missões são muito arriscadas.

— O major é experiente e sensato. — É claro que ele sabe como se proteger. — Posso afirmar que nada lhe aconteceu de assustador.

Apesar da aparente despreocupação, lorde Kenington sa­bia que os participantes do Grande Jogo tinham sempre a vida por um fio.

O general voltou.

— Lamento, mas não temos notícia alguma do major. — Seu pai, Srta. Warde foi encarregado de uma missão especial e partiu há três semanas. — Até hoje não deu notícias, mas está sendo esperado a qualquer momento.

— Obrigada pela informação. — Mas não sei o que fazer, nem para onde ir — Aisha falou com a voz sumida.

— É melhor você ir para Simla, pois o major irá ime­diatamente para lá com as informações que tiver obtido. — Sugeriu o general. — O vice-rei e um dos nossos oficiais o aguardam.

— A Srta. Warde poderá ir comigo — propôs lorde Kenington.

— Vocês terão mais conforto no trem noturno. — Sugiro que esperem aqui no palácio até as nove, então uma car­ruagem os levará à estação.

— Já viajei nesse trem. — De fato, é bem confortável — concordou lorde Kenington.

— Obrigado pela hospitalidade, general.

— O almoço será servido em meia hora. — Convém vocês verificarem que parte da bagagem deve ir para o quarto de cada um e o restante já pode ficar na carruagem que os levará à estação.

— Depois do almoço vocês poderão descansar ou fazer um passeio pela cidade.

— Prefiro ficar no palácio e nadar um pouco — escolheu lorde Kenington.

— Ficarei descansando no quarto — disse Aisha.

Os visitantes foram levados para seus aposentos. Aisha gostou muito do quarto porque ficava voltado para o jardim.

Seu banho estava preparado e uma criada a aguardava para atendê-la.

Quando desceu para o almoço ela surpreendeu-se ao ver no salão inúmero oficiais, majores e coronéis em sua maio­ria. Havia também alguns indianos e apenas duas mulheres além de Aisha, uma delas era uma lady inglesa de meia-idade e a outra uma senhora indiana.

Alguns jovens oficiais aproximaram-se de Aisha assim que a viram encantados com a sua beleza. Passou pela mente de lorde Kenington que se ela ficasse na índia dei­xaria muitos homens apaixonados.

Á tarde, como desejavam lorde Kenington nadou e Aisha descansou.

Após o jantar os visitantes seguiram para a estação. Aisha ficou impressionada com o barulho e a confusão reinante nas plataformas superlotadas.

Várias pessoas dormiam no chão, esperando pelo trem que chegaria no dia seguinte. Famílias inteiras achavam-se reunidas e tinham consigo vários animais domésticos.

Ao barulho dos trens misturava-se o das vozes altas e até o de uma banda que tocava alegremente.

Os elegantes e empertigados passageiros ingleses des­toavam daquela multidão folclórica e barulhenta.

Notando que Aisha observava tudo com muito interesse, lorde Kenington disse:

— Eu sabia que você iria gostar de ver esta babel. — Quando estive aqui pela primeira vez minha impressão foi a de estar assistindo a uma das pantomimas que tanto me en­cantavam na infância,

— É mesmo uma cena extraordinária. — Tudo acontece ao mesmo tempo. — Há pessoas cozinhando, outras comendo, crianças brincando e muita gente dormindo, apesar de todo este barulho — Aisha falou com entusiasmo.

Para surpresa de ambos o general conseguira para eles um vagão privativo que fora engatado ao trem. Constava de dois quartos, uma saleta com poltronas confortáveis e uma pequena despensa com bebidas, bolachas e sanduíches. Do lado da despensa havia um pequeno compartimento para a bagagem e um beliche onde Newman iria dormir.

— Parece uma casa de bonecas! — Aisha exclamou, ma­ravilhada, depois de ter inspecionado todo o vagão. — Papai já descreveu para mim os trens da índia, mas nunca men­cionou nada parecido com isto aqui.

— O povo não tem tais luxos. — Um vagão como este é reservado para pessoas importantes como nós — lorde Ke­nington assinalou sorridente.

 — Estou muito feliz. — Entre­tanto, duvido que eu fosse tratado com tanta deferência se não estivesse com você, Srta. Warde.

— Ora, você não espera que eu acredite num exagero desses! — Eles podem estar muito bem impressionados com papai, mas o importante é você, milorde!

— Bem, digamos que devemos tal privilégio ao prestígio do seu pai e do primeiro-ministro, Sr. Disraeli. — Graças aos dois, viajaremos com todo conforto e ficaremos sozinhos du­rante muitas horas.

— Agora podemos conversar e também posso lhe fazer as perguntas que tenho em mente.

— São tantas que talvez eu o mantenha acordado a noite toda.

— Depois de o ótimo jantar e do excelente vinho, sinto-me inclinado a concordar com tudo o que você disser — lorde Kenington respondeu em tom provocador.

— Não acredito que você possa ser tão descortês. — Afinal, fui muito paciente e não o aborreci depois de o casal Dartwood ter embarcado — Aisha alegou.

— O que mais você poderia fazer? — Bem, agradeço aos céus por estar longe daqueles tagarelas. — Lamentavelmente, Mavis me disse que ela e o marido farão uma visita ao vice-rei.

— Espero passar apenas uma noite ou duas no palácio do vice-rei. — Quando o conde e a condessa chegarem a Simla eu, certamente, eu já terei voltado para Calcutá com papai. — Então viajaremos para o interior da índia. — Já fiz uma lista dos lugares que desejo conhecer.

— Está sendo egoísta — lorde Kenington acusou-a. — Quero ter bastante tempo para conversar com o major.

— Terá de se contentar com os dois dias, no máximo, que ficarmos em Simla — redargüiu Aisha, sorrindo.

Antes de o trem partir um garçom veio verificar se a despensa estava abastecida e perguntar aos passageiros se desejava alguma coisa.

Lorde Kenington e Aisha aceita­ram dois drinques bem gelados.

Por fim o trem partiu em meio a nuvens de fumaça e vapor. Uma grande alegria invadiu Aisha. Estava certa de que encontraria o pai em Simla. Segundo o general, ele iria ver o vice-rei em primeiro lugar, só depois seguiria para Calcutá.

"Tenho certeza de que papai estará em Simla", pensou confiante.

Mais uma vez lorde Kenington leu seu pensamento e observou:

— É claro que encontrará seu pai em Simla. — Deixe de se preocupar e alegre-se por estar na índia, viajando num vagão confortável e luxuoso como este o que neste país, é privilégio de pouquíssimas pessoas.

— Tem razão. — Vamos conversar um pouco. — Eu gostaria de ouvi-lo falar sobre o Nepal e os mosteiros que visitou.

— Você está fazendo esta viagem apenas para melhorar seus conhecimentos de geografia? — indagou lorde Kening­ton, rindo.

— Não, mas procuro alimentar a minha mente e devo dizer a alma, da mesma forma que alimento o corpo — Aisha argumentou.

— Eu já devia saber que você tinha uma desculpa pron­ta para me fazer falar. — Minha intenção era descansar um pouco antes do encontro com o vice-rei — lorde Kenington queixou-se.

— Mais tarde você poderá descansar. — A propósito, quero que você também me fale sobre o vice-rei.

— Acaba de me ocorrer uma passagem interessante que irá diverti-la — disse lorde Kenington.  — Quarenta anos atrás, em 1840, Disraeli visitou um colégio; ele devia ter trinta e cinco anos na ocasião. — Nessa visita ele presenteou um dos alunos com meio soberano. — Aquela era a primeira moeda de ouro que o menino ganhava.

— Imagino a sua alegria — Aisha comentou. — Suponho que esse menino da história seja lorde Lytton.

— Exatamente. — Anos mais tarde Disraeli declarou: "Pela segunda vez presenteei Edward Lytton. — Agora coloquei uma coroa em sua cabeça. — Isso porque Disraeli, como primeiro-ministro, nomeara Lytton para o cargo de vice-rei da índia.

— Lorde Lytton jamais se esquecerá disso. — Será uma grande honra conhecer o vice-rei.

— Você verá que lorde Lytton, além de ótima aparência, tem um encanto pessoal que poucos ingleses possuem. — Ele também é muito respeitado neste país.

— Meu pai disse o mesmo sobre o vice-rei.

— Não apenas seu pai e eu admiramos lorde Lytton. — A rainha Vitória disse sobre ele: "Além de inteligente, Lytton é um homem de muita sensibilidade e percepção".

— Um grande elogio, sem dúvida — reconheceu Aisha. Eles continuaram conversando, esquecidos das horas. Por vezes lorde Kenington discordava do argumento de Aisha só para provocar uma discussão. Era isso que tornava as conversas de ambos tão interessantes.

O trem fez uma parada e um garçom preparou para eles mais drinques gelados que serviram acompanhados de biscoitos e sanduíches.

Quando o garçom desembarcou e o trem continuou a via­gem, Aisha comentou:

— Nunca imaginei que eu pudesse ter tanto conforto num trem, aqui na índia.

— Agradeça à sua boa estrela por estar sob a proteção dos governantes deste país. — Isto a faz receber um tratamento de rainha.

— Jamais quis ser uma rainha — Aisha contrapôs.

— Não? — Por quê? — Pensei que esse fosse o sonho de toda mulher.

— O meu, pelo menos, não é. — Uma rainha está sempre sob o olhar crítico do público, não tem privacidade. — Deve ser assustador para uma pessoa acordar todas as manhãs lembrando-se de que é responsável por tantas vidas e que um erro pode ser até fatal.

— Nunca pensei dessa forma. — Mas você não deixa de ter razão. — As responsabilidades de um soberano são muito gran­des. — Se você não quer ser rainha, poderia ser uma conse­lheira — sugeriu lorde Kenington. — Você é ponderada e tem sempre idéias novas.

— Os conselheiros são sempre homens. — Quem sabe um dia as mulheres ocuparão cargos importantes.  

Já era bem tarde e lorde Kenington disse:

— Você precisa ir para a cama. — Devo avisá-la que os indianos são madrugadores; costumam levantar-se com os primeiros raios do sol. — Amanhã, quando Newman bater na porta do quarto para acordá-la você ainda estará sonhando. — E sem dúvida terá lindos sonhos porque está na índia.

Aisha levantou-se um tanto relutante e suspirou.

—É sempre tão agradável conversar com você que eu não me importaria de perder algumas horas de sono. — Desde que o trem partiu estou tão feliz que deixei de me preocupar com papai.

— Teremos tempo de sobra para conversar, amanhã. — Lembre-se de que muitas horas de sono são essenciais à sua beleza.

Lorde Kenington ficou um instante em silêncio, depois acrescentou:

— Quanto á seu pai, estou tentando ler os pensamentos dele. — Posso captar que o major está em segurança e chegará a Simla são e salvo.

— Quero acreditar com todas as forças do meu coração e da minha mente que isto é verdade.

— Portanto, já me vejo com papai, abraçando-o, muito feliz.

Eles se despediram e cada um foi para seu quarto ben­dizendo a sorte que os fizera encontrar-se e ainda os man­tinha juntos.

 

Todo o dia seguinte foi muito agradável para Aisha. Além de maravilhar-se com as mais diferentes paisagens que via das janelas do vagão, pôde ter a companhia e as atenções de lorde Kenington. Também teve chance de conversar com ele sobre inúmeros assuntos e de fazer-lhe as perguntas que tinha em mente.

Nessa noite, ao se deitar, agradeceu a Deus pelo dia tão feliz, pois nem se preocupara com o pai. Tivera o tempo toda uma tranqüilizadora sensação de que ele estava bem e que ambos se encontrariam em Simla.

Tanto Aisha como lorde Kenington acordaram com a me­lhor das disposições. O dia estava lindo, o sol radioso e a temperatura agradável.

Quando chegou à estação, em Simla, uma carruagem já os esperava para levá-los a Peterhof, a residência de verão do vice-rei.

— Imagino que Peterhof seja um palácio magnífico, uma vez que Simla é a capital de verão da índia. — Fale-me sobre ele — Aisha pediu quando a carruagem pôs-se em movimento.

— Sim, desde 1865 Simla é a capital de verão da índia. — Mas Peterhof nada tem de extraordinário. — Contam que lorde Lytton teve péssima impressão do prédio assim que o viu.

— Descreveu-o a um dos amigos como "um mero bivaque, pe­queno e sem conforto".

— Que exagero!

— Concordo com você. — Lytton também se queixava de que nunca podia ficar sozinho em Peterhof.

— Por quê?

— Ele se irritava com as sentinelas e os guardas. — Dizia que ficavam perto demais dele e de sua janela. — Também reclamava que se saísse para respirar o ar puro, três in­dianos vestidos de túnica branca e vermelha corriam atrás dele. — Caso decidisse dar uma volta no jardim, notava pelo menos quinze pessoas seguindo-o discretamente.

— Não acredito! — Aisha exclamou, rindo.

— Nem eu, mas não deixa de ser uma história divertida — assinalou lorde Kenington.

— O que você me diz dos habitantes de Simla? — Sei que há muitos ingleses nesta cidade.

— Os moradores ingleses são pessoas ligadas ao governo e ao Exército. — Ha também os visitantes. — Quanto aos nativos são alegres e cordiais. — O vice-rei, no entanto, prefere Paris a qualquer outro lugar. Em outro tom lorde Kenington acrescentou: — Já estamos chegando.

— Dentro de poucos mi­nutos você conhecerá Peterhof e o vice-rei e terá sua própria opinião sobre ambos.

Ao ver o edifício Aisha achou-o, de fato, pequeno e não tão bonito como imaginou que seria.

O jardim, no entanto, era encantador e estava inteiramente florido. Em Calcutá seria impossível cultivar flores como aquelas devido ao calor excessivo.

Eles foram recebidos pelo vice-rei no salão de recepções.

— Charles! — Exclamou lorde Lytton com um largo sor­riso, estendendo a mão para o visitante. — Estive contando os dias até a sua chegada. — Preciso muito da sua ajuda.

— Eu também vim até aqui especialmente para pedir-lhe que me ajude — tornou lorde Kenington. — Nesse caso, teremos de nos revezar.

— O importante é que você está em Simla — disse o vice-rei batendo no ombro do amigo.

— Trouxe comigo a Srta. Warde — esclareceu lorde Kenington ao notar que lorde Lytton olhava para Aisha, sur­preso.  — Ela devia encontrar-se com o pai, o major Warde, em Calcutá, mas ele não apareceu. — Decidi trazê-la até aqui, pois, segundo o general, o major passará por Simla antes de retornar a Calcutá.

— Fez muito bem em trazê-la. — É um grande prazer co­nhecê-la, Srta. Warde. — O vice-rei olhou ao redor e abaixou a voz para dizer: — Vamos até meu gabinete. — Lá poderemos conversar mais à vontade.

Lorde Kenington soube imediatamente que a conversa teria a ver com o major Warde.

— Sim, vamos — concordou. — Trouxe-lhe notícias im­portantes do primeiro-ministro.

Seguindo do lado de lorde Kenington, logo atrás do vice-rei, Aisha refletiu que lorde Lytton era, sem dúvida, um dos homens mais belos que já conhecera. Tinha a testa ampla e altiva, nariz atilado, olhos grandes e intensamente azuis.

Sua postura e suas maneiras eram a de um cavalheiro distinto e de excelente educação. Ela só não gostou daquela barba. Na verdade achava que a barba, geralmente, tornava os homens mais feios.

O gabinete de lorde Lytton era amplo, muito bem deco­rado e abria-se para o jardim. Depois de fechar a porta, o vice-rei foi para a sua escrivaninha, convidou os visitantes a sentarem-se no sofá à sua frente e voltou-se para Aisha.

— Lamento, mas estamos muito preocupados com seu pai.

Instintivamente ela estendeu a mão para lorde Kenington que a tomou nas suas.

— O que... Aconteceu... Com ele? — Ela perguntou assustada.

— Até o momento não há motivo para desespero, mas o major devia ter chegado ao quartel há uma semana e não apareceu nem deu notícias. — Receamos que ele tivesse tido sérios problemas.

— O senhor acredita que... Os russos o aprisionaram? — Aisha indagou.

— Não. — O caso não é tão grave assim. — Mais provavelmente seu pai se perdeu no caminho de volta ou está em um lugar  onde não há meio de condução alguma  e ele viu-se obrigado a caminhar.

— Por favor, adiante-nos mais alguma coisa sobre o major Warde — pediu lorde Kenington.

— A Srta. Warde sofreu um choque quando não o viu à sua espera, no porto.

— Avalio o que ela está sentindo e vejo que ela é tão corajosa quanto o major — disse o vice-rei com simpatia.

— Para onde o major foi? — Ele está usando algum disfarce? — Lorde Kenington quis saber.

— Sim, Harold Warde é um mestre em disfarce e graças a essa habilidade, além de nos ajudar, e muito, tem escapado com vida onde tantos outros morreram.

— Naturalmente você está á par da missão do major, Lytton — lorde Kenington insistiu.

— Harold Warde partiu na presente missão por vontade própria. — Tudo o que sei é que ele pretendia descobrir algo muito importante e tinha um plano em mente. — Mas você não ignora que na organização tudo é mantido em segredo. — Warde não confiou a ninguém para onde ia. — Disse apenas que soubera da existência de problemas a pouca distância de Simla e que ia investigar do que se tratava. — Ele ficou de passar aqui para dar-me as informações obtidas, então seguiria para Calcutá para receber a filha.

— Você não pode mandar alguns homens procurá-lo? — Perguntou lorde Kenington.

— Já mandei. — Estamos aguardando notícias. — Peço á Srta. Warde para não demonstrar a meus outros hóspedes que está preocupada. — Isso os deixaria alarmados e não seria conveniente para a organização.

— Saberei controlar-me — Aisha assegurou.

Observando-a, lorde Kenington admirou-lhe o comportamento. Qualquer outra mulher estaria chorando e soluçando por muito menos.

— Muito bem. — Procure divertir-se, Srta. Warde — sugeriu o vice-rei. — Se isso não for possível, faça de conta que está muito feliz e despreocupada aqui em Peterhof.

— Tentarei — Aisha murmurou.

— Sei que conseguirá — lorde Lytton sorriu para ela. — Você compreende que qualquer comentário pode ser pe­rigoso. — Especialmente diante dos criados.

— Sim, claro. — Terei muito cuidado. — Só quero que meu pai retorne o mais depressa possível.

— É o que todos esperamos. — Seu pai é insubstituível, Srta. Warde. — Ele é imensamente admirado pelo extraordi­nário trabalho que tem realizado aqui na índia. — Ainda é segredo, mas você deve ficar sabendo que o major será pro­movido e estará na lista de honra para o ano que vem — revelou o vice-rei. — Quando ele voltar para a Inglaterra terá sucesso na Câmara dos Lordes.

— Para mim é uma grande alegria saber que o trabalho que papai vem realizando pela Grã-Bretanha está sendo reconhecido. — Mas, por favor, faça tudo ao seu alcance para encontrá-lo — Aisha rogou.

— Asseguro-lhe que já estamos fazendo isso — lorde Lyt­ton asseverou. — Tenho a impressão de que o major apenas se distanciou além do que pretendia e a volta está sendo muito demorada. — Ele também pode ter escorregado e sofrido um ferimento leve, o que o está impedindo de andar.

Pelo olhar que o vice-rei e lorde Kenington trocaram, Aisha teve certeza de que ambos estavam muito apreensivos.

— Se me permitir, Lytton, vou levar a Srta. Warde para dar uma volta pelo jardim e admirar as flores — disse lorde Kenington, pensando em distrair Aisha. — Depois da longa viagem trancada num vagão ambos precisamos de ar fresco. — Mais tarde, se tiver tempo, eu gostaria de falar-lhe a sós.

— Fique à vontade, Charles. — Passeiem um pouco. — De­pois do almoço o calor aumenta e, com certeza, vocês dese­jarão fazer a sesta.

Lorde Kenington e Aisha ficaram de pé e saíram juntos do gabinete. Lá fora soprava uma brisa agradável vinda das montanhas, tão lindas a distância, seus picos se alteando acima das árvores.

Sem dúvida essa região era uma das mais belas e agra­dáveis da índia.

Ambos passearam pelo gramado e pelos caminhos bem cuidados entre os canteiros multicoloridos pelas flores, até chegarem a uma fonte, à frente da qual havia um banco de madeira à sombra de uma oliveira.

— Vamos nos sentar um pouco — lorde Kenington con­vidou Aisha.

— Está bem — ela concordou. — Mas, se você me pedir para manter a calma, sou bem capaz de gritar. — Estou muito ansiosa, querendo receber notícias de papai e não vou fingir que estou tranqüila.

— Tem toda razão de estar apreensiva. — Também estou. — A diferença entre nós é que conheço a índia e sei que neste país uma centena de coisas pode acontecer inesperada­mente.

— Uma delas pode ser o motivo de seu pai ainda não ter chegado a Simla.

— Quando não vi meu pai no porto à minha espera, pressenti que ele estava com sérios problemas.

— O mesmo aconteceu comigo. — Admirei-a por seu com­portamento exemplar. — Como filha do major, você não pode demonstrar sua emoções em público.

— Sim, compreendo que isso poderia ser perigoso. — Oh, meu Deus, eu só queria entrar em contato com papai.

Houve uma pausa depois da qual lorde Kenington sugeriu:

— Lembrei-me do que conversamos sobre os monges do Tibete e a telepatia. — Pela concentração, a meditação e a oração eles conseguem entrar em contato, mentalmente, com alguém, mesmo a distância. — Você demonstrou que tem um poder extraordinário; portanto, tente entrar em contato com seu pai por telepatia.

— Nunca tentei fazer isso a distância. — Será que, como os monges, eu conseguirei localizar papai, ainda que ele esteja á milhas daqui? — Aisha perguntou um tanto insegura.

— Talvez. — Não custa tentar. — Um dia, quem sabe, existirá um meio de falarmos com alguém que esteja muito distante de nós. — No momento, o recurso é a telepatia. — Embora eu seja cético e, como a maioria dos ocidentais, só acredite no que pode ser provado e no que vejo, eu reconheço que você tem um dom extraordinário e deve desenvolvê-lo.

Aisha suspirou.

— Vou concentrar-me e enviarei meus pensamentos até meu pai. — Se tais pensamentos forem captados, quem sabe ele me mandará de volta mensagens telepáticas. — Então des­cobrirei onde ele se encontra.

— Faça isso — lorde Kenington aconselhou-a. — Porém não fique frustrada caso não tenha sucesso. — Afinal, há no Oriente muitos segredos sobre os quais nós, do Ocidente, sequer ouvimos falar.

— Acaba de me ocorrer que poderíamos reunir nossa força mental e assim tentarmos entrar em contato com papai. — Aisha sugeriu.

— Quero muito ajudá-la, no entanto receio que, sendo uma pessoa prática e, como já disse cética, minha ajuda não seja significativa.

— É lamentável que nós, que nos consideramos uma Na­ção avançada e com um sistema educacional tido como me­lhor do que o de outros países não procurou absorver os conhecimentos admiráveis dos povos do Oriente — disse Aisha.

— Não somos um povo meditativo; gostamos do que é positivo, evidente, concreto e inteligível. — Queremos somar dois e dois e obter quatro — tornou lorde Kenington.

— Tem razão. — Enquanto os monges, por exemplo, exer­citam  a mente de modo a fazer com que o pensamento voe e alcance centenas de milhas de distância, nós labutamos para construir uma ferrovia ou estrada de rodagem que nos permita chegar a algum lugar distante.

— Isso são civilização e progresso — concluiu lorde Ke­nington com um sorriso.

— Você parece estar rindo de mim — Aisha queixou-se. — Mas papai me entenderia.

— Também a compreendo, naturalmente — assegurou lorde Kenington.  — Só acho que você deve ser mais prática. — Mas a admiro por ser tão esclarecida, sensata e controlada.

— Não está sendo fácil. — Tenho vontade de chorar e gritar. — Se eu pudesse sairia à procura de meu pai.

Lorde Kenington segurou a mão de Aisha e falou bran­damente:

— Avalio a sua angústia. — Devemos, porém, ser cautelosos. — Ninguém pode saber que estamos preocupados com o major. — Seja corajosa e aja como se tudo estivesse perfeitamente bem.

— Verei se consigo — Aisha murmurou.

— Conseguirá — lorde Kenington encorajou-a. — Lem­bre-se de que seu pai seria a primeira pessoa a pedir-lhe para não fazer nada que possa representar algum risco para ele e outros que pertencem ao Grande Jogo.

— Embora seja muito difícil, fingirei que estou adorando este lugar encantador e achando todas as pessoas muito agradáveis — observou Aisha.

— Ficarei do seu lado para ajudá-la. — E agora acho melhor sairmos daqui e irmos para aquele bosque, pois vejo várias pessoas se aproximando — lorde Kenington sugeriu.

Aisha levantou-se depressa e afastou-se dali com lorde Kenington.

Apesar de o vice-rei considerar Peterhof pequeno, o prédio tinha inúmeros aposentos reservados para hóspedes e sem­pre havia grande número de convidados tanto para o almoço como para o jantar.

À mesa do almoço Aisha viu-se sentada entre dois rapazes bonitos e elegantes que tinham vindo a Simla para uma competição de pólo. Ambos eram jogadores experientes e estavam confiantes na vitória de seu time.

Dessa forma os rapazes conversaram sobre o esporte que se dedicavam e não deixaram de fazer elogios a Aisha, o que, longe de deixá-la embaraçada, divertiu-a.

Observando-a do outro lado da mesa, lorde Kenington, alem de achar ela linda, aprovou sua naturalidade e a apa­rente calma. A única coisa que o aborrecia era o fato de outras mulheres hospedadas em Peterhof, sabendo que ele e Aisha chegaram juntos ao palácio e vendo-os sempre jun­tos, julgarem que ambos estavam noivos.

Até o momento ele evitara um relacionamento sério com uma mulher por não pretender casar-se tão cedo. Era ver­dade que se encantara com Aisha e gostava muito de sua companhia, mas ambos se separariam assim que o major chegasse e ele se desincumbisse de sua missão.

Lorde Kenington imaginava que o conde e a condessa de Dartwood haviam acreditado no noivado entre a Srta. Warde e Jack. Portanto, em Simla, ele repetira a mesma história aos mais curiosos e interessados em saber quem era Aisha.

Para provar que ele não tinha o menor interesse na jovem filha do major Warde e para impedir falatórios, lorde Ke­nington fez questão de lisonjear as belas mulheres hospe­dadas na casa do vice-rei e em flertar com elas.

Só depois do chá lorde Kenington teve a chance de con­versar com lorde Lytton em seu gabinete privativo. Assim que entrou, perguntou-lhe:

— Há alguma notícia do major? — Bem, essa é uma per­gunta desnecessária, pois você mandaria me chamar se ti­vesse recebido alguma informação.

— Não tenha dúvida disso — respondeu o vice-rei. — Sente-se, Charles, e fale-me sobre essa encantadora moça que trouxe até aqui. — Eu não sabia que o major Warde tinha uma filha. — Ela é uma das mais lindas jovens que já conheci.

— Foi o que eu disse a mim mesmo quando a vi pela primeira vez. — Além da beleza a Srta. Warde tem uma in­teligência incomum. — Isso, naturalmente, herdou do pai.

— Com toda certeza — concordou o vice-rei. — Harold Warde é um dos homens de cérebro mais brilhante da or­ganização. — Se o perdermos será um desastre absoluto. — Só nestes últimos meses o major obteve para nós informações preciosas.

— É exatamente sobre isso que desejo falar com você, Lytton. — Recebi do primeiro-ministro a incumbência de descobrir o que está acontecendo, principalmente na fronteira Noroeste — revelou lorde Kenington.

— Estou sabendo disso. — Mas, independente da sua missão, sua vinda muito me alegra, Charles. — Só você poderá nos ajudar a resolver alguns problemas cuja solução parece tornar-se mais difícil a cada dia que passa.

— De que se trata?

— São os russos. — Sempre os russos. — Eles estão cada vez mais perto de nós — respondeu lorde Lytton.  — Precisamos reforçar, e muito, as tropas na fronteira. — Quero que você exija isso do conselho de ministros. — Ainda que não usemos todas as nossas tropas, é imperioso demonstrarmos nosso poderio bélico e nossa determinação. — Só isso impedirá os russos de avançarem mais um pouco e darem o passo final na tentativa de tirar-nos a índia à força.

— Será que eles se arriscarão a esse ponto?

Lorde Lytton assentiu com a cabeça.

— Tudo leva a crer que sim. — Os russos estão cada vez mais próximos e é, definitivamente, uma ameaça.

— É difícil acreditar que eles tenham a intenção de en­frentar tropas muitíssimo bem treinadas e com as melhores armas que existem.

— Muitos afirmam que a ameaça representada pelos rus­sos é exagerada, mas eu não penso assim. — Também não podemos correr riscos. — Portanto, eu gostaria que o nosso governo ficasse perfeitamente a par da situação reinante na índia.

— É para isso que estou aqui — volveu lorde Kenington.

— Sim, mas pode ter certeza de que se você revelar que a situação é preocupante.

— Gladstone e os do partido liberal irão dizer que é exagero de sua parte, Charles, e que você não esta perfeitamente inteirada do assunto.

— Digam eles o que quiserem, saberei ser firme. — O im­portante é que o primeiro-ministro dará mais crédito às minhas informações do que às de qualquer outra pessoa.

— Disraeli tem toda razão de confiar em você — apreciou o vice-rei. — Porém, como os liberais são obstinados, você terá de valer-se de argumentos ditatoriais para convencê-los do perigo que corremos.

— Não creio que seja difícil eu despertá-los para a rea­lidade. — Lorde Kenington sorriu.

— Depois de falar com o major Warde e de obter informações precisas e detalhadas sobre a situação, me sentirei pisando em terreno seguro e saberei argumentar com Gladstone, os liberais e os minis­tros. — A propósito, o que pode ter acontecido ao major Warde?

— É impossível saber. — Receio que ele tenha sido aprisio­nado, o que será terrível para a organização. — Harold Warde é o melhor homem que temos em todo o Grande Jogo. — Além de ser extraordinário em matéria de disfarces, ele fala urdu fluentemente. — Desafio qualquer um a reconhecê-lo quando ele estiver disfarçado de homem santo ou de um simples sudra. — A própria mãe do major se enganaria se ele surgisse diante dela representando um de seus papéis.

— Você enviou seus homens para procurá-lo?

— Sim, claro. — Porém, até agora, nem sinal de Warde. — Enfim, na organização as coisas podem acontecer de um momento para o outro. — Nunca sabemos do que ocorre antes de a missão ser concluída.

— Compreendo. — No Grande Jogo tudo é feito sigilosamente — aparteou lorde Kenington.

— Mas quero que você me dê todas as informações possíveis para eu entregar ao primeiro-ministro quando do meu regresso à Inglaterra.

— Terei um relatório completo e bem detalhado pronto para você levar quando partir — prometeu lorde Lytton.  — Mas, sem dúvida, não podemos dispensar as informações de Warde, pois serão extremamente valiosas. — Espero que ele retorne logo, são e salvo.

— É o que desejo de coração, pelo bem da filha dele.

A observação de lorde Kenington fez com que o vice-rei olhasse para ele de modo indagador.

— A Srta. Warde é adorável. — Você está apaixonado por ela, Charles? — Perguntou.

Lorde Kenington fez-lhe a concessão de um meio-sorriso antes de responder:

— Sei o que se passa em sua mente, Lytton, mas a res­posta é "não". — Não penso em me casar tão cedo. — Gosto da vida de solteiro e de namorar para passar o tempo, por assim dizer.

— Isso é compreensível, mas está na hora de você pensar em casamento e em ter um herdeiro — lorde Lytton acon­selhou-o.

— Você fala como minha mãe — protestou lorde Kenington. — É bom pararmos com este assunto, pois sou capaz de voltar para casa imediatamente. — Então direi a Disraeli que você é frívolo demais e não tem condições de lidar com nada sério.

— Veja lá, Charles, se não tiver cuidado com o que diz, atiro-lhe este tinteiro e seu terno elegante ficará arruinado — ameaçou lorde Lytton, rindo.

— Oh, não! — Exclamou lorde Kenington, rindo também.

— Este é o único traje decente que possuo e vesti-o em sua homenagem.

Ambos eram velhos conhecidos e acabou rindo das brin­cadeiras, o que tornou a conversa mais descontraída.

Embora houvesse grande diferença de idade entre lorde Lytton e lorde Kenington, eles se comportavam como dois colegiais quando se encontravam.

— Estou pensando em nadar um pouco — disse lorde Kenington. — Você também não quer ir à piscina?

— Não posso. — No momento estou muito atarefado — lorde Lytton justificou-se. — É incrível como há o que se escrever aqui na índia. — Acho esse trabalho extremamente cansativo e enfadonho.

— Não pense que me comove com seu queixume — tornou lorde Kenington. — Você deve fazer jus à fama que con­quistou. — Todos o consideram o melhor vice-rei que a índia já teve.

— É mesmo? — Está falando sério, Charles? — Indagou lorde Lytton um tanto embaraçado.

— Como se você não soubesse que o seu trabalho tem sido muito elogiado. — Você é brilhante em todos os sentidos, Lytton. — Estou sabendo que em Calcutá todos o adoram. — Tam­bém já me disseram que a decoração arrojada que você mandou fazer no salão de bailes causou espanto a muita gente.

— Isso é verdade — aquiesceu o vice-rei, rindo.

— Sei também que o delicado papel de parede que de­corava vários cômodos desta casa foi substituído por pintura vermelha, para destacar as telas maravilhosas que você trouxe de Knebworth, sua casa de Hertfordshire — men­cionou lorde Kenington.

— Como você está bem informado! — O vice-rei admi­rou-se. — É uma pena que o vermelho se choque horrivel­mente com o escarlate das túnicas dos soldados. — Mas prefiro isso àqueles cômodos sem atrativos e ao papel gasto e man­chado que encontrei ao chegar a Peterhof.

Lorde Kenington riu.

— Tem razão.

— A meu ver o pessoal dos ministérios devia preocupar-se com assuntos mais sérios. — Que lhes importa o modo como esta residência foi decorada?

— Concordo com você, Lytton. — Em outro tom lorde Kenington pediu: — Bem, como o major Warde ainda não retornou de sua missão, eu gostaria que você me falasse a respeito de outros homens importantes que fazem parte do Grande Jogo. — Disraeli entregou-me um papel com os nú­meros de seis agentes. — Quero saber quem são eles.

Lorde Kenington entregou ao vice-rei a folha de papel em questão.

— Dois destes homens estão mortos e um terceiro já se desligou da organização! — Exclamou lorde Lytton depois de correr os olhos pelos números. — O quarto agente é Warde, que, como você sabe, está desaparecido.

— O que você pode me adiantar sobre os outros dois?

— Encontra-se em Calcutá. — Quando você voltar para lá poderá conhecê-los e falar-lhes — informou lorde Lytton.

— Nesse caso, não há mais ninguém em Simla que possa dar-me as informações de que preciso sobre o Grande Jogo — lamentou lorde Kenington.

— Há, naturalmente, inúmeros participantes da organiza­ção que se encontram aqui na cidade, mas não são tão im­portantes. — Duvido que saibam alguma coisa que você ignore.

Um tanto desalentado, lorde Kenington pensou que a longa viagem a Simla fora perda de tempo. Levantou-se e disse:

— Acho melhor eu ir para a piscina. — Já que você vai ficar trabalhando, tente descobrir um meio de me ajudar. — Farei papel de tolo se tiver de voltar para Londres de mãos vazias.

Nesse instante a porta abriu-se e um camarista entrou no gabinete. Depois de olhar de relance para lorde Kening­ton foi até a escrivaninha do vice-rei para dizer:

— O major Harold Warde acaba de chegar, milorde, e quer saber se pode ser atendido.

 

Por um instante reinou no gabinete um espantoso silêncio. Assim que o major transpôs a soleira da porta o vice-rei ficou de pé e foi ao seu encontro, a mão estendida.

— Warde! — Exclamou. — Que alegria revê-lo! — Estávamos muito preocupados com o seu desaparecimento.

— Também estou muito feliz por ter conseguido chegar até aqui. — Vou contar-lhe o que me impediu de voltar na data prevista — disse o major.

Lembrando-se de lorde Kenington o vice-rei apresentou-o:

— Quero que você conheça lorde Kenington, recém-che­gado da Inglaterra. — O primeiro-ministro mandou-o até aqui para obter informações sobre a presente situação na índia, com respeito aos russos, e também para saber sobre as atividades do Grande Jogo.

O major voltou-se para apertar a mão de lorde Kenington que estava surpreso ao vê-lo impecável, muito bem barbeado e usando uniforme.

— É um grande prazer conhecê-lo — disse lorde Kenington

— Você deve agradecer á lorde Kenington, pois ele trouxa sua filha de Calcutá a Simla — interpôs lorde Lytton.

Os olhos do major se iluminaram.

— Aisha está aqui! — Alegrou-se. — Que notícia maravilhosa. — Receei que ela ainda estivesse em Calcutá esperando por mim.

— Teria ficado mesmo, não fosse lorde Kenington ter tido a feliz idéia de trazê-la consigo, já que precisava vir a Simla — observou o vice-rei.  — Bem, podemos nos sentar enquanto você nos conta o que aconteceu para desaparecer, deixando-nos tão apreensivos.

— Lamento ter-lhes causado tanta preocupação. — Mas o resultado desta missão foi melhor do que eu esperava. — Des­cobri, por acaso, que os russos estavam planejando atacar um dos fortes localizados na fronteira Noroeste — informou o major.

— Um ataque russo! — Exclamou o vice-rei, perplexo.

— Exatamente. — Os russos se infiltraram entre os nativos das tribos locais com a intenção de tomar o forte de assalto e incendiá-lo.

— Não imaginei que a situação fosse tão grave — mur­murou lorde Lytton.

— Fiz o possível para alcançar o forte a tempo de prevenir o coronel sobre o plano dos russos.

— Felizmente, cheguei à véspera do ataque.

— Com isso você impediu os russos de executar seu plano? — Inquiriu o vice-rei.

— Sim. — As tropas começaram a atirar na direção da fron­teira, como se estivessem treinando.  — O barulho que fizeram e a movimentação no forte amedrontaram os russos, frus­trando seus planos.

— Você foi brilhante, Warde — disse o vice-rei.

— Relatarei o que aconteceu ao primeiro-ministro — tor­nou lorde Kenington. — O que você acaba de dizer confir­mará que precisamos de mais tropas na índia. — Também já estamos sabendo que os russos estão muito perto de nós e constituem, de fato, uma séria ameaça.

— Claro! — Precisamos reforçar as tropas das fronteiras — replicou o major Warde. — Eu já disse isso inúmera vezes, mas, até o momento, ninguém pareceu dar importância às minhas palavras. — Quem sabe agora, depois do que aconteceram, os ministros e os liberais acreditarão que a situação é gravíssima.

Notando que o major não parecia muito otimista, o vice-rei asseverou:

— Lorde Kenington deixará bem claro que mais tropas serão necessárias. — Quanto aos agentes do Grande Jogo, como você, Warde, todos nós estamos imensamente gratos pelo que têm realizado. — Seu trabalho será, não apenas reconhe­cido, como também recompensado.

O major sorriu, agradecido.

— Ninguém o têm sido mais atuante e bem sucedido do que você, Warde — prosseguiu o vice-rei. — Quando se reformar será aclamado por sua bravura, o que não pode ser feito agora.

— Meu afastamento será mais do que oportuno — disse o major. — Muitas pessoas notaram que a minha chegada ao forte provocou todo o tiroteio. — Mesmo os recrutas e os nativos mais tolos não duvidam que eu tenha sido portador de notícias sobre um possível ataque dos russos.

— Está querendo dizer que você não pode mais continuar no Grande Jogo? — Indagou lorde Kenington.

— Não, se eu quiser permanecer vivo.

— Bem, só lhe posso agradecer do fundo do coração por tudo o que fez até o momento, Warde. — Também devo dizer que a sua última ação foi extraordinária. — Não pode haver modo mais magnífico de descer a cortina — louvou o vice-rei.

— Só tenho cumprido o meu dever — o major falou mo­destamente. — Bem, o coronel Brewhurst  quer que lhe seja enviado os reforços imediatamente e também lhe pedem  milorde, para avisar o governo, em Calcutá, sobre o que aconteceu.

— Farei isso, claro. — Mas estou ansioso para saber como você descobriu que os russos iriam atacar o forte — falou o vice-rei.

— Do modo costumeiro, conversando com os nativos e convivendo com eles — respondeu o major. — Desta vez tive um forte pressentimento de que algo iria acontecer, o que me deixou alerta.

— De mais a mais, refleti que os fortes da fronteira Noroeste são, certamente, os primeiros alvos para quem tiver a intenção de invadir a índia.

— Então você acredita que os russos são realmente uma ameaça séria? — Questionou o vice-rei.

— Séria e iminente — assegurou o major. — Eles estão a apenas vinte milhas de distância do forte no momento.

— Tão perto assim? — O vice-rei alarmou-se.

— Bem, eles não têm grande número de homens nem armamentos como os nossos, mas se nos descuidarmos, dei­xando os portões abertos, por assim dizer, eles nos atacarão na primeira oportunidade.

Foi á vez de lorde Kenington perguntar:

— Você acha que isso seja possível?

— Certamente — afirmou o major. — É tudo o que os russos desejam. — Todos os que trabalham no Grande Jogo não ignoram que a ambição do czar é nos tomar a índia. — Os cossacos começaram causando grande destruição na Ásia. — Atrás deles estão vindos as tropas e os canhões.

— Você acredita que os russos tentarão novo ataque depois de verem frustrado o plano anterior de atacar o forte e incendiá-lo? — O vice-rei quis saber.

— Sim, e o coronel Brewhurst pensa como eu. — Notam que havia numerosos soldados russos entre os nativos. — O três homens da organização ficaram para trás procurando por armas escondidas. — Posso afirmar que eles não só encontraram como também descobriram materiais que pode ser usado para incendiar o forte — esclareceu o major Warde.

— A Grã-Bretanha lhe deve muito, Warde, por impedir que perdêssemos esse forte em particular — declarou o vice-rei.

— A sorte, felizmente, nos ajudou. — O major voltou-se para lorde Kenington. — Se Aisha está mesmo em Simla eu gostaria de vê-la. — Também quero lhe agradecer sinceramente por ter cuidado dela de Calcutá até aqui.

— Quando não o vi no cais, levei Aisha para o Palácio do Governo — explicou lorde Kenington. — Lá todos estavam preocupados com a sua demora e a falta de notícias.

— Era impossível eu me comunicar. — Imaginei que Aisha sendo uma garota sensata, iria ao Palácio do Governo e perguntaria por mim.

— Foi o que ela fez e eu a acompanhei. — Naturalmente, não sabe que sua filha viajou sozinha e eu tive o pri­vilegio de cuidar dela — informou lorde Kenington.

— Viajou sozinha! — O major exclamou atônito. — O que aconteceu ao deão e à esposa?

— O deão ficou doente nas vésperas da viagem. — Assim que conheci Aisha compreendi que uma moça tão linda po­deria ter problemas se ficasse sozinha. — Lorde Kenington notou a preocupação no olhar do major e esclareceu: — Quando eu soube que Aisha era sua filha fiz questão de protegê-la.

— Fico-lhe imensamente agradecido. — Eu não fazia idéia de que Aisha estava viajando sozinha.

— Houve alguns momentos difíceis durante a viagem, sobre os quais Aisha lhe falará — apontou lorde Kenington.

— Estou ansioso para ver minha filha.

— Nada mais natural, Warde — assinalou o vice-rei, tocando a campainha sobre a sua mesa.

— Mais tarde você poderá conversar com lorde Kenington para lhe dizer tudo o que ele quer saber.

Um camarista abriu a porta.

— Avise a Srta. Warde para vir ao meu gabinete ime­diatamente. — Mas, por favor, não lhe adiante quem se en­contra aqui — recomendou o vice-rei.

— Perfeitamente, milorde — respondeu o camarista, afas­tando-se e fechando a porta.

O vice-rei voltou-se para o major e pediu-lhe:

— É muito importante que ninguém sequer suspeite do motivo da sua demora.

— Para todos os efeitos eu estava realizando as minhas tarefas regimentais costumeiras — respondeu o major Warde.

— Você deveria dizer "tarefas incomuns" — observou lorde Kenington, rindo.

— Essa foi a minha última missão, não poderia haver hora melhor de encerrar a carreira.

— Ao escurecer os milhões passaram a estrondar fazendo com que os nativos todos   começassem a correr atônitos. — A cena era dramática — ressaltou o major. — Eu mal podia acreditar que aquilo fosse real.

— Eles estavam esperando que anoitecesse para atacar o forte, não? — Perguntou lorde Kenington.

— Sem dúvida. — Atrás de cada arbusto, de cada rochedo e em buracos cavados no chão, havia homens armados — elucidou o major.

— O primeiro-ministro, certamente, vibrará com essa his­tória — opinou lorde Kenington.

— Quanto aos liberais, que vivem afirmando que nós somos exagerados, farão papel de tolos.

— Quem tiver dúvidas sobre o que acontece por aqui, deve passar algum tempo conosco — sugeriu o major Warde. — Eles logo ficarão a par da verdade.

— Saberei convencê-los da situação reinante — afirmou lorde Kenington.

Nesse instante a porta se abriu e Aisha entrou na sala. Estava encantadora usando um vestido vaporoso, azul-claro.

— Deseja falar comigo, milorde? — Perguntou ao vice-rei. Então viu o pai e, correndo para ele, exclamou com incontida felicidade:

— Papai! — O senhor voltou! — Que bom!

Ambos se abraçaram e Aisha acrescentou:

— Eu estava tão preocupada.

— Posso imaginar a sua angústia, minha querida — tornou o major. — Mas você devia saber que eu acabaria voltando.

— O importante é que está aqui, papai. — Rezei muito para que o senhor estivesse são e salvo.

— Suas orações foram atendidas — observaram o major beijando a filha repetidas vezes.

— Eu sempre lhe dizia para não se preocupar comigo e agora as suas apreensões terminaram, pois vamos voltar para casa.

— Vamos voltar para a Inglaterra? — Aisha perguntou, cheia de entusiasmo.

— Estou deixando o Exército  — comunicou o major. — De agora em diante você não passará mais noites em claro, preocupada com seu pobre pai.

— Oh, papai, isso é maravilhoso! — Aisha exultou. — O senhor não poderia dar-me notícia mais agradável

— Acho melhor você passear no jardim com sua filha — sugeriu o vice-rei. — Depois disso você deve voltar a este gabinete para relatar sua história, passo a passo, de modo que lorde Kenington possa transmiti-la ao primeiro-ministro.

— Por enquanto ainda faço parte do Grande Jogo e á detalhes que não posso revelar — contrapôs o major Warde.

— Mas o que vou expor satisfará o primeiro-ministro.

— Sim, compreendo — o vice-rei apressou-se em dizer.  — Lorde Kenington e eu não iremos pressioná-lo.

— Vamos, papai — Aisha convidou o major. — Temos muito que conversar. — Quero dar-lhe notícias de casa e falar-lhe sobre a viagem.

Dando o braço ao pai, Aisha caminhou com ele para a porta. Antes de sair, o major voltou-se e disse ao vice-rei:

— Como pode ver milorde, a família vem em primeiro lugar e o dever em segundo.

— Sim, claro — concordou lorde Lytton. — E quem pode resistir a uma filha encantadora como a sua?

Assim que a porta se fechou atrás do major e de Aisha o vice-rei deu um profundo suspiro.

— Nunca me preocupei tanto com um membro da orga­nização como desta vez, com Warde.

— Graças a Deus ele não sofreu um arranhão. — Embora eu reconheça que ele deve deixar o Exército e o Grande Jogo, não sei como faremos sem ele.

— Há muitos outros homens capazes na organização — salientou lorde Kenington.

— É verdade, mas Warde é especial — volveu o vice-rei. — Asseguro-lhe que nos fará muita falta.

— O major precisa partir, pois, como ele disse se expôs demais nesta última missão — considerou lorde Kenington

Assim que deixaram o gabinete, Aisha e o pai sentaram-se num banco perto da piscina, o lugar mais reservado que encontraram.

— Fiquei tão feliz em revê-lo, papai! — Ela exclamou. — Quando cheguei e não o vi no cais, logo imaginei que alguma coisa terrível lhe tivesse acontecido.

— Não falemos sobre isso — pediu o major. — Dê-me notícias de casa e conte-me como chegou até aqui, sozinha. — Eu não teria permitido que você fizesse esta viagem se sou­besse da doença repentina do deão.

Depois de dar notícias dos parentes, Aisha contou ao pai como havia sido a viagem a bordo do vapor. Falou-lhe sobre a bondade e atenção de lorde Kenington e como ele a pro­tegera do desagradável Arthur Watkins.

— Tudo isso seria evitado se você não viajasse sozinha — o pai admoestou-a. — Você deveria ter esperado que o deão se restabelecesse.

— Eu queria muito encontrar-me com o senhor, papai — Aisha falou docemente. — E agora, como o senhor vai voltar para casa, não nos separaremos mais.

— Ao que parece, serei indicado para a Câmara dos Lordes.

— Estou sabendo de sua indicação. — Ninguém merece isso mais do que o senhor.

Ambos continuaram conversando até a hora de se pre­pararem para o jantar.

No salão de recepções o major foi apresentado aos hós­pedes do vice-rei.

Observadora como era Aisha notou que algumas pessoas olharam para seu pai com curiosidade, o que a sobressaltou. Ocorreu-lhe que tais pessoas talvez suspeitassem quem ele era realmente.

No mesmo instante afastou esse pensamento e censurou-se por estar sendo imaginativa demais.

A mesa do jantar ela deu atenção aos dois rapazes entre os quais estava sentada e conversou bastante com eles.

Terminada a refeição, todos voltaram ao salão de recep­ções e o major disse a filha:

— Vou deixá-la por um instante. — Continue conversando com aqueles rapazes simpáticos.

— O vice-rei quer falar comigo em seu gabinete.

— Eu não posso ir com o senhor?

— Não, querida. — Nossa conversa é sigilosa. — Nem mesmo você pode saber os segredos do Grande Jogo. — Pense que em breve voltaremos para a Inglaterra; comprarei uma casa em Londres e poderemos ficar sempre juntos.

— Duvido! — Sei que o senhor passará o dia no ministério da guerra ou com o primeiro-ministro, só trabalhando. — Se o senhor voltar para casa para o jantar devo me considerar muito feliz — Aisha queixou-se.

— Tolice! — Tenho grandes planos para nós dois. — Vamos nos divertir muito.

— Divertir, como? — Indo a festas e bailes? — O senhor sabe que não gosto desse tipo de diversão. — Prefiro conversar com o senhor. — A propósito, a conversa de lorde Kenington é tão agradável quanto a sua, papai. — No navio, além de salvar-me do Sr. Watkins, ele salvou-me do tédio — lembrou Aisha. — Detesto a companhia de rapazes que jamais atravessaram sequer o canal da Mancha ou aqueles que têm obsessão por cavalos de corrida e não falam de outra coisa.

— Uma garota da sua idade não pode ser tão crítica, minha querida — o major advertiu-a, rindo. — Mas prometo-lhe que passaremos muito tempo juntos antes de retornarmos a Calcutá.

— Agora devo ir ao encontro do vice-rei.

— Está bem — Aisha concordou, embora relutante. — Vou esperá-lo no salão. — Ficarei contando os minutos ate que o senhor venha ao meu encontro.

— Acredito que você chegará a contar mil minutos — brincou o major.

— Oh, papai, se o senhor pretende ficar, horas no gabinete do vice-rei, vou subir para o meu quarto — disse Aisha com um suspiro.

— Sinceramente, minha filha, eu ficarei muito mais tranqüilo sabendo que você está em seu quarto — disse em tom agora bem sério.

Aisha deu um beijo de boa noite no pai e ambos se separaram.

No dia seguinte, após o café da manhã, Aisha foi para o jardim, enquanto o pai e lorde Kenington reuniram-se novamente com o vice-rei, em sua sala de estar privativa.

— Venha assistir ao jogo de pólo — um dos rapazes con­vidou-a ao vê-la sozinha.

— Está muito quente ao sol — Aisha desculpou-se.

— Você pode sentar-se à sombra — o rapaz insistiu. — Quero mostrar-lhe como jogo bem.

— Obrigada pelo convite, mas, prefiro ficar no jardim. — Aqui está muito fresquinho.

— Se eu pudesse ficaria com você, mas prometi jogar.

— Provavelmente eu ainda estarei aqui quando você vol­tar — disse Aisha delicadamente.

— Está bem — o rapaz cedeu. — Mas você terá de me prometer á primeira dança no baile desta noite e muitas outras.

— Vou anotar no meu cartão — Aisha prometeu com um sorriso.

Mal o rapaz se afastou uma senhora idosa aproximou-se de Aisha.

— Ah, está aí, Srta. Warde! — exclamou sorridente. — Eu queria mesmo lhe falar. — Fui apresentada á seu pai, um homem encantador e gostaria que você me falasse sobre ele. — Todas as vezes que menciono o nome do major Warde as pessoas mostram-se relutantes em dizer alguma coisa a seu respeito e mudam de assunto. — Isso está me deixando curiosa.

— O que eu poderia lhe dizer? — Só sei que papai tem ótima reputação como oficial do Exército — Aisha respondeu.

— Não, Srta. Warde. — Não é só isso — a senhora duvidou. — Na verdade alguém me disse baixinho que o major Warde faz parte do nosso Serviço Secreto.

Embora alarmada, Aisha conseguiu rir.

— Oh, minha senhora, não se pode acreditar em tudo o que se ouve! — De fato, papai tem feito muitas coisas desde que entrou para o Exército. — Isso leva as pessoas a inven­tarem histórias a seu respeito, como se ele fosse o herói de um romance. — Mas lhe asseguro que meu pai é apenas um soldado que colocou o coração e a vida a serviço do regimento.

— Tenho certeza de que há muito mais do que isso — a senhora persistiu.

Para alívio de Aisha dois rapazes, sobrinhos da velha senhora, vieram falar com a tia.

— Vamos jogar tênis e queremos que assista ao jogo, tia Lucy — disse um deles. — O primo Nicholas vangloria-se de ser um campeão e está disposto a derrotar-me.

— Irei com prazer — assentiu á senhora. — Não quer nos acompanhar, Srta. Warde?

— Poderemos continuar a nossa conversa sobre o distinto e encantador major Warde.

— Tudo o que sei sobre papai são histórias de sua vida no regimento e isso nada tem de interessante. — Agora, feliz­mente, ele está na índia, onde tem inúmeros amigos. — Com a minha vinda para cá papai pensará em divertir-se um pouco — Aisha falou em tom descuidado.

— Estaremos esperando pela senhora na quadra, tia Lucy — disse Nicholas, afastando-se em seguida com o primo.

A velha senhora abaixou a voz e pediu com insistência:

— Oh, seja boazinha, Srta. Warde, e diga-me mais al­guma coisa sobre o major. — Sei que você está escondendo de mim coisa muito interessante, o que me deixa ar­dendo de curiosidade.

"Além de curiosa, suspeito que a senhora seja muito faladeira", Aisha teve vontade de dizer, mas replicou sim­plesmente:

— Converse com meu pai. — Acredito que ele não ficará na sala do vice-rei por muito tempo.

A velha senhora deu um suspiro, exasperada, e afastou-se torcendo o nariz.

Seguindo-a com o olhar, Aisha teve certeza de que a cu­riosa senhora era uma dessas mulheres intrometidas que fazia questão de conhecer tudo a respeito de pessoas em evidência apenas para vangloriar-se diante dos amigos que só ela sabia de particularidades sobre tais pessoas.

"Essa tal lady Lucy é bem parecida com a condessa de Dartwood", Aisha disse a si mesma.

"Graças a Deus a con­dessa e o marido ainda não chegaram a Simla. Espero ter a sorte de não estar mais aqui quando eles aparecerem."

Aisha caminhou até a piscina e ficou contente ao ver que ali não havia ninguém. Sentou-se num banco, à sombra de uma árvore e, aproveitando o momento a sós, fez uma oração de agradecimento pela volta do pai, são e salvo.

Depois da oração pensou que em breve voltaria com o pai para a Inglaterra. Desligado do Grande Jogo e do Exér­cito ele não correria mais perigo de vida e ambos poderiam ser muito felizes juntos.

"Ninguém fez mais pela Grã-Bretanha do que papai", Aisha continuou com suas reflexões.

"Agora ele pode pensar em descansar e divertir-se."

Contudo, desde que ela chegara a Peterhof uma estranha sensação de perigo não a abandonava. Por mais que o vice-rei e lorde Kenington enfatizassem que tudo estava bem. Aisha pressentia que os dois não queriam deixá-la alarmada, mas receavam que algo acontecesse ao major.

"Quando estivermos na Inglaterra convencerei papai a permanecer em nossa casa, no campo, até o final do verão", Aisha decidiu. "Depois aconselharei papai a comprar uma casa perto do Tamisa, onde estaremos livres de apreensões e não haverá ninguém ouvindo atrás das portas ou espiando pelo buraco das fechaduras."

Na sala de estar privativo do vice-rei o major Warde mencionava a este último e á lorde Kenington quais eram os pontos fracos na defesa da índia, quantas forças adicio­nais e que armamento eram necessários nas fronteiras e onde os reforços deviam ser colocados.

O vice-rei anotava metodicamente tudo o que ouvia, en­quanto lorde Kenington, de excelente memória, achava mais seguro não ter com ele anotação nenhuma.

Interessado em obter o maior número possível de informações, lorde Kenington fez inúmeras perguntas, ao major. Além de responder ao que lhe era perguntado, o major apresentou razões que dariam ao primeiro-ministro apoio contra os argumentos dos liberais.

— Só lhe posso dizer  Warde, que você tem sido brilhante, não apenas no desempenho de suas missões, como no que planejou para o futuro — louvou o vice-rei. — É uma pena que tenha de partir.

— Todo homem deve saber quando é chegado o momento de fechar a porta e cerrar a cortina — redargüiu o major.

— O primeiro-ministro ficará muito agradecido pelas in­formações e terá argumentos para defender-se dos ataques da oposição — tornou lorde Kenington.

— A oposição existe para justamente para criticar, con­testar e desafiar. — Sem uma oposição atuante e competente a Grã-Bretanha não teria as reservas e riquezas que possui no momento.

O vice-rei e lorde Kenington concordaram com o que aca­bava de ser dito.

— Pode parecer um paradoxo, mas é verdade — prosse­guiu o major. — O mesmo acontece conosco, em nossa vida particular. — As críticas e desafios são uma forma de incentivo para a luta e o progresso; são necessários para evitar que mergulhemos na apatia e no comodismo, o que seria um desastre para nós mesmos e para a nação.

Ouvindo o major falar, lorde Kenington lembrou-se de Aisha. Como o pai ela possuía um cérebro brilhante.

— Espero que você não guarde as suas idéias só para si quando retornar à Inglaterra — disse o vice-rei ao major Warde. — Precisamos de homens inteligentes e com a sua experiência. — Não permita  Warde, que as pessoas com poder cometam erros ou que, talvez, destrua tudo o que você lutou para preservar e criar. — Sei que você é daqueles que continuarão lutando enquanto tiver alento de vida, sem se preocupar com o reconhecimento por seus feitos. — Todos nós sabemos que os grandes homens e os gênios, em geral, são enaltecidos depois de mortos.

O major riu.

— Obrigado pelas palavras amáveis, milorde.

— E não é só isso — continuou o vice-rei. — Quando o primeiro-ministro ler o relatório que lhe enviarei e ouvir seu emissário, lorde Kenington, fará questão de ter a seu serviço o oficial mais brilhante que já lutou na índia. — Esse homem é você, Warde.

— Se eu continuar a ouvi-lo, milorde, acabará me tor­nando muito convencido — declarou o major, pondo-se de pé. — Agora, se me der licença, vou deixá-lo para ficar um pouco com minha filha.

— Sim, claro — o vice-rei consentiu. — Muito obrigado por tantas informações valiosíssimas.

O major deixou a sala, mas lorde Kenington ficou ainda com lorde Lytton.

Disse assim que a porta se fechou:

— Depois de tudo o que o major Warde nos relatou, su­ponho que você ficará mais tranqüilo se eu voltar imedia­tamente para Londres a fim de transmitir a Disraeli todas as informações recebidas.

— As revelações de Warde me perturbaram — confessou lorde Lytton. — Eu suspeitava que as coisas não estivessem bem, mas nunca imaginei que a situação fosse tão grave. — Graças a Deus Warde chegou a tempo de impedir que o forte fosse incendiado. — A tentativa dos russos deve ser man­tida em segredo para evitar o pânico.

— Warde não dirá uma palavra sobre o assunto. — Além disso, ele fez parecer aos nativos que as tropas do forte estavam apenas em treinamento — argumentou lorde Kenington.

— Sim, mas a chegada de novas tropas à fronteira deixará óbvio que algo está acontecendo, — lorde Lytton deu um profundo suspiro. — Também não posso ficar de braços cru­zados, sabendo que os russos se encontram tão perto de nós.

— Duvido que eles tenham homens e armas para en­frentar nossos homens e nossas guarnições. — Pelo menos, já sabemos que o inimigo está às nossas portas. — Portanto, você deve guarnecer as fronteiras e manter as tropas alertas — aconselhou lorde Kenington.

— Farei isso, claro, e ficarei aguardando que o primei­ro-ministro e o ministro da guerra nos mandem reforços imediatamente. — Precisamos de canhões de longo alcance.

— Partirei assim que você achar que é necessário.

— Sinto vê-lo partir assim tão depressa. — Fiquei imensa­mente feliz com a sua visita.

— Você nem imagina como estou cercado de imbecis que julgam saber tudo sobre a índia, mas na verdade não me dão uma informação precisa — o vice-rei queixou-se.

— Na presente situação é bom ninguém estar inteirado do que está realmente acontecendo para que, como você disse, não haja pânico — lembrou lorde Kenington.

— Você tem razão — concordou o vice-rei.

Notando o abatimento e a expressão preocupada do ami­go, lorde Kenington pensou em dizer-lhe algo que o fizesse rir.

Nesse instante a porta se abriu.

— O major Warde deseja vê-lo, milorde — disse um dos camaristas. — Ele disse que o assunto é urgente.

— Faça-o entrar, já — ordenou o vice-rei.

Voltando-se para lorde Kenington ele questionou em voz baixa:

— O que terá acontecido desta vez? — Warde nos disse que ia ver a filha.

Quando o major entrou os dois homens viram que ele estava transtornado.

— O que foi  Warde? — Indagou lorde Kenington.

Com dificuldade o major murmurou:

— Eles... Levaram Aisha e... Deixaram isto no lugar onde ela estava sentada.

Estendendo a mão ele entregou ao vice-rei um pedaço de papel amassado e sujo no qual estava escrito em mal urdu:

"DÊ OS NOMES DOS AGENTES 17, 24, 25 E 96 OU SUA FILHA MORRERÁ".

 

Depois de ouvir a tradução do que estava es­crito no papel, lorde Kenington exclamou:

— Não é possível! — Uma pessoa não pode ser levada daqui sem ninguém ter notado.

— É o que estou me perguntando — volveu lorde Lytton.

— Como alguém pode ter desaparecido do meu jardim, se há guardas por toda parte?

— Em se tratando de agentes russos tudo é possível — murmurou o major. — Apesar de todas as minhas precau­ções, alguém deve ter-me seguido. — Afirmo que há um espião entre os seus criados, milorde. — Esse espião revelou que a minha filha estava aqui.

— O que faremos? — Indagou lorde Lytton.  — Você sabe muito bem, Warde, que se revelarem quem são os nossos agen­tes todos eles serão assassinados.

— E se eu não fizer o que eles exigem, minha filha ficará trancada em algum cubículo até morrer de fome e sede — contrapôs o major, indo até a janela para olhar o jardim.

— Aisha disse que iria me esperar perto da piscina. — É incrível que a tenham levado dali.

— Vou tentar encontrá-la e agradeceria que alguém me acompanhasse.

— Irei com você — lorde Kenington se ofereceu.

— Tem certeza de que deseja ir? — Como deve saber, correremos grandes perigo, —   o major avisou-o.

— Não quero ficar aqui parado, enquanto Aisha pode ser morta. — Serei muito cauteloso e seguirei tudo o que você me ordenar, Warde — lorde Kenington prometeu.

— Eu não poderia ter melhor companhia do que a sua — disse o major, agradecido.

— Você tem idéia de onde deve começar a busca? — O vice-rei perguntou.

— Tenho quase certeza de que levaram minha filha para o mesmo lugar onde prenderam lorde Swinton.

— Swinton desapareceu e nunca mais foi encontrado, apesar de termos homens espalhado por toda a índia à sua procura — lembrou o vice-rei.

— Ele morreu de fome.

— Você o encontrou? — Como? — Você nunca disse uma pa­lavra sobre isso a ninguém! — admirou-se o vice-rei.

— De que adiantaria? — Ele já estava morto e eu não quis que os inimigos soubessem que eu havia descoberto o lugar onde ele fora escondido — o major justificou-se.

— Compreendo. — Mas que lugar é esse?

O major adiantou-se e sussurrou um nome em urdu. O vice-rei encarou-o, atônito.

— As montanhas dos Olhos? — Por que teriam levado a garota para lá?

— Porque as montanhas não ficam tão distantes daqui nem do território do inimigo, — volveu o major.

— Há tantas sentinelas e inúmeros guardas aqui em Peterhof, para quê? — Indignou-se o vice-rei. — Eles deviam ter visto algum estranho entrando no jardim. — Preciso veri­ficar o que aconteceu.

— Por favor, não tome providências nesse sentido en­quanto Aisha não for encontrada — pediu o major Warde.

— O que você quer dizer com isso? — Indagou o vice-rei, surpreso.

— Quero dizer que no momento devemos agir com na­turalidade e fazer de conta que nada extraordinário acon­teceu — recomendou o major, sempre falando em voz baixa.

Olhando ao redor ele puxou uma cadeira e sentou-se do lado de lorde Lytton. Lorde Kenington fez o mesmo. Os três cavalheiros ficaram bem juntos. Dessa forma ninguém po­deria ouvi-los, mesmo estando na sala, quanto mais lá fora.

— Kenington e eu partiremos após o almoço. — Diremos a todos os hóspedes que iremos ver o novo canhão que chegou para o meu regimento. — Como você sabe, há um pequeno destacamento acampado e treinando cerca de duas milhas daqui — expôs o major. — Na verdade, nosso destino será outro que, por segurança, prefiro não revelar.

— Entendo — assentiu o vice-rei. — Você vai precisar de alguma coisa para a viagem?

— Não. — Tenho dinheiro suficiente comigo e já arranjei um acompanhante. — Lorde Kenington continuará a busca caso o inimigo me mate.

Notando o olhar de espanto dos dois cavalheiros, o major acrescentou depressa:

— Essa é uma possibilidade remota. — Acredito que os agen­tes inimigos nada farão contra mim enquanto eu não lhes revelar o que eles querem saber.

— Que situação intolerável! — Lamentou o vice-rei. — Enfim, já me haviam prevenido de que neste país nunca estamos protegidos contra o inimigo.

Não havia o que responder... O major ficou de pé.

— Vou circular entre seus hóspedes, como se nada tivesse acontecido — disse.

Voltou-se então para lorde Kenington e sugeriu:

— Depois você também sairá um pouco, Kening­ton, para que o vejam. — Á noite, ao jantar, lorde Lytton dirá aos que perguntarem por nós que recebeu uma mensagem nossa dizendo que encontramos alguns amigos e só volta­remos amanhã.

— Queira Deus que vocês voltem mesmo, e com Aisha — desejou o vice-rei. Em outro tom acrescentou: — Você sofreu um choque terrível, Warde. — Vou servir-lhe um drinque.

O major meneou a cabeça.

— Não, obrigado. — Preciso ter a mente ativa.

— Você acha que se oferecêssemos uma boa quantia aos raptores eles libertariam Aisha? — lorde Kenington inquiriu.

— Se, como suponho, estamos lidando com agentes russos, dinheiro não lhes interessa.

— Eles querem eliminar os mem­bros mais importantes do Grande Jogo. — Os números men­cionados no bilhete correspondem aos nossos homens mais capazes e bem sucedidos. — O inimigo vem tentando apa­nhá-los há muito tempo e jamais descobriram sequer quem são eles. — Agora, com a vinda de minha filha, caímos nas mãos deles.

— Conseguiremos encontrar Aisha e libertá-la, onde quer que esteja — lorde Kenington falou com otimismo.

— Pelo menos os raptores não têm idéia de que já conheço o esconderijo onde eles prenderam lorde Swinton — consi­derou o major. — Seus ossos permanecem no mesmo lugar e o mistério de seu desaparecimento ainda intriga seus ami­gos e os que trabalharam com ele. — Os russos jamais podem suspeitar que nós três saibamos o que aconteceu ao nosso infeliz agente.

Por um momento lorde Kenington ficou em silêncio, re­fletindo sobre o poder e a ousadia dos espiões russos. Aos poucos eles vinham se infiltrando na índia e causando tu­multos sempre que possível.

Como eles não podiam enfrentar abertamente os fortes bem armados das fronteiras, agiam furtivamente.

Com a informação de que um homem importante como lorde Swinton havia desaparecido e seu corpo jamais fora encontrado, o primeiro-ministro decidiria mandar reforços para a índia quanto antes.

Lorde Kenington também considerou que era inacreditá­vel que Aisha pudesse desaparecer do jardim sem que nin­guém notasse. O próprio vice-rei se queixava de ter guardas e sentinelas em excesso em Peterhof.

"Temos de encontrar Aisha", ele disse a si mesmo com determinação.

— Vou assistir a uma partida de tênis ou ao jogo de pólo avisou o major. — Quanto mais pessoas me virem, me­lhor. — Vou demonstrar grande despreocupação, como se nada incomum estivesse acontecendo. — Se, à hora do almoço, alguém me perguntar por Aisha, direi que ela está com dor de cabeça e preferiu deitar-se.

— E quanto aos criados? — Lorde Kenington perguntou.

— Já pensei nisso. — Vou até o quarto de minha filha e se houver criados no corredor, fingirei que ela e eu estamos conversando. — Depois sairei do quarto e direi que Aisha não deve ser perturbada, pois está com dor de cabeça. — Trancarei a porta e ficarei com a chave.

— Você pensa em tudo — aprovou o vice-rei.

— Numa hora destas não podemos cometer enganos, milorde — disse o major. — Se eu não for cauteloso e hábil estarei pondo em risco a vida de minha filha e certamente morrerei também.

— Não diga isso — rebateu o vice-rei. — É impossível que você e Charles, juntos, não tenham sucesso nesta busca. — Vocês encontrarão Aisha e a trarão, de volta, sã e salva.

— Acreditamos no que desejamos — o major citou o pro­vérbio.

Foi até a porta e disse alto antes de sair:

— Vou assistir a uma partida de tênis. — Vejo-os à hora do almoço.

A porta se fechou e o vice-rei, levando a mão à testa falou com indignação:

— Não posso acreditar que isto esteja acontecendo. — Sem­pre considerei este lugar demasiadamente protegido, no en­tanto, uma de minhas hospedes foi levada do meu jardim sem que ninguém notasse.

— Também estou indignado — declarou lorde Kenington. — Porém, no momento não devemos fazer perguntas a quem quer que seja como Warde pediu.

— Está certo. — Mas você há de convir que tenha motivos para estar furioso. — Isso jamais poderia ter acontecido com a filha de um dos melhores homens que já trabalharam para mim. — E o pior é que aconteceu aqui, em minha casa!

— Iremos encontrar Aisha.

Ao dizer isso lorde Kenington estava pensando na con­versa que ambos haviam tido sobre os monges do Tibete e o poder da telepatia. Talvez ambos conseguissem se comu­nicar mentalmente, mesmo a distância.

"Certamente Aisha mandará alguma mensagem telepática, se não para mim, pelo menos para seu pai", ele pensou.

Durante o almoço lorde Kenington procurou conversar com as duas senhoras que estavam do seu lado. Felizmente, ambas eram mães de oficiais e falaram o tempo todo sobre a carreira promissora dos filhos.

Na outra extremidade da mesa o major Warde não só conversava animadamente com outros convidados, como ele ria descontraído.

"Que ótimo ator ele é", lorde Kenington disse a si mesmo.

O almoço pareceu arrastar-se e durar horas. De fato, estava sendo bem mais demorado do que o da véspera.

Terminada a refeição o major convidou lorde Kenington em voz alta:

— Vamos, Charles? — Está muito quente á esta hora, mas prometo-lhe uma bebida refrescante quando chegar­mos ao campo.

— Aonde vocês vão? — Quis saber lady Lucy, a senhora idosa que fizera perguntas a Aisha, no jardim.

— Há um destacamento do meu regimento acampado há algumas milhas daqui e prometi mostrar á lorde Kenington o novo canhão que chegou da Inglaterra — respondeu o major. — Em minha opinião é uma das armas mais pode­rosas inventadas até agora.

— Interessante — apreciou a curiosa lady Lucy, já ima­ginando que teria um bom assunto para sua conversa com as amigas. — Fale-me sobre esse sensacional canhão.

— Lamento minha senhora, mas agora é impossível — o major desculpou-se.

— Conversaremos à noite. — Lorde Ke­nington e eu devemos nos pôr a caminho. — A distância não é grande, mas com essas estradas... Eu já disse ao vice-rei o que penso de suas estradas e pode acreditar que não foram palavras elogiosas.

Lady Lucy e as pessoas que estavam por perto riram. Nicholas, o jovem jogador de tênis, sobrinho de lady Lucy disse:

— Boa viagem. — Espero que na estrada esteja bem mais fresco do que na quadra de tênis.

— Acredito que sim. — Obrigado — o major agradeceu. — E prepare-se, pois amanhã jogarei com você.

— Será um prazer — tornou Nicholas.

Tanto lorde Kenington como o major já estavam usando roupas leves e tomaram a pequena carruagem, puxada por um cavalo, que os esperava à frente do prédio.

Havia no veículo lugar apenas para os dois, exatamente para evitar que o cavalariço, que no momento estava segu­rando as rédeas do animal, os acompanhasse.

Assim que o homem entregou as rédeas ao major, este lhe disse em urdu:

— Não se preocupe se nos atrasarmos. — Provavelmente haverá uma festa esta noite no acampamento e dormiremos por lá. — O cavalo será muito bem cuidado.

Em resposta o cavalariço curvou-se, respeitoso, e o major tocou o animal.

— Fale-me sobre as montanhas dos Olhos — pediu lorde Kenington quando já se achavam na estrada.

— Elas ficam bem perto da fronteira. — No passado vários homens santos formaram ali uma pequena comunidade e adoravam um deus específico, cujo nome nem sei qual é. — Como o lugar era isolado e de difícil acesso, ninguém os per­turbava, nem interferia em seu culto — esclareceu o major.

— Nessa comunidade há cabanas ou coisa parecida?

— Não. — Os homens santos cavaram para si pequenas grutas ou aproveitaram as já existentes nas montanhas e ali moravam. — Há muito tempo o lugar está desabitado, mas as grutas permaneceram. — Há algumas muito profundas. — Lor­de Swinton ficou todo amarrado, preso numa delas, cuja entrada foi bloqueada com pedras.

— Será que eles levaram Aisha para esse lugar horrível?

— Não se pode ter certeza de nada — retorquiu o major, apreensivo. — Sei que os nossos inimigos já usaram essas grutas outras vezes, estou seguindo a minha intuição. — Foi assim que consegui encontrar o corpo de lorde Swinton, ou melhor, seu esqueleto.

— Como soube que o esqueleto era de lorde Swinton?

— Ele já estava desaparecido havia cinco anos e reconheci o escudo Swinton no anel de sinete, ainda preso no osso do seu dedo. — Guardo esse anel comigo. — Nunca revelei que o esqueleto de Swinton foi encontrado, como disse, por segu­rança. — Todos acreditam que ele tenha sido soterrado por alguma avalanche, pois não voltou de sua última missão.

— Compreendo. — Se você tivesse revelado o que encon­trou, nós agora não estaríamos indo para as tais grutas nas encostas das montanhas dos Olhos — observou lorde Kenington.

— Exatamente — aquiesceu o major. — Minha vida tem sido muito estranha e as mais extraordinárias coincidências têm acontecido comigo quando menos espero. — Agora, por exemplo, posso afirmar que Aisha está escondida numa da­quelas grutas das montanhas dos Olhos.

— Estou sendo guiado para lá, da mesma forma que aconteceu quando descobri o esqueleto de lorde Swinton.

— Você acredita que se disser aos raptores os nomes dos agentes nos quais eles estão interessados, sua filha será libertada?

— Minha experiência diz que não. — Também não tenho a intenção de entregar nenhum dos nossos agentes. — Se os russos me pegarem certamente serei torturado.

— Você não acha que devíamos ter trazido alguns sol­dados conosco? — Eles, pelo menos poderiam nos ajudar nas buscas.

— Sei o que estou fazendo e com quem estamos lidando, Kenington. — Temos de agir com a maior discrição possível. — Quanto menos pessoas se envolverem, melhor.

Eles estavam passando por uma aldeia aos pés de uma serra. Havia ali uma igreja, e diversas casas bem construídas e numerosas casinhas mais simples.

— Vamos falar com um morador desta aldeia, um indiano muito conhecido e respeitado nesta parte do país. — Ele é dono de uma loja de souvenires e outras quinquilharias. — Pos­sui também uma curiosa coleção de armas e ferramentas antigas, todas elas encontradas nas montanhas — informou o major conduzindo a carruagem para o pátio do lado da mencionada loja.

Pelo modo como o major falou lorde Kenington entendeu que esse homem era uma pessoa de confiança e poderia ajudá-los.

Um rapaz saiu da loja ao ver a carruagem e correu para segurar as rédeas do cavalo.

Conversou com o major em urdu, depois desatrelou o animal e levou-o para uma baia, enquanto os visitantes entraram na casa pela porta dos fundos.

Ambos seguiram por um corredor estreito e escuro e en­traram num salão onde estavam expostos uniformes antigos e estranhos e armas de diversas épocas, algumas delas de dois séculos atrás. Aquela devia ser a coleção do dono da loja, à qual o major se havia referido pouco antes de che­garem àquele lugar, lorde Kenington deduziu.

Minutos depois entrou no salão um indiano de meia-ida­de, com o corpo já curvado. Ele estendeu a mão para o major e saudou-o com alegria. Só depois de ambos conver­sarem por um instante, em urdu, lorde Kenington foi-lhe apresentado.

Voltando-se para o visitante o indiano fixou nele o olhar, como se quisesse examinar-lhe a alma. Por fim seus olhos brilharam e ele disse ao major:

— Lá em cima vocês encontrarão tudo o que desejam.

— Obrigado. — Eu tinha certeza de poder contar com a sua ajuda. — Desta vez vou realizar uma tarefa muito importante, delicada e perigosa — observou o major.

O indiano sorriu.

— Todas elas são assim — disse, e desapareceu em seguida.

O major abriu uma porta que estava oculta por um dos uniformes e entrou num pequeno hall.

Lorde Kenington se­guiu-o. Ambos subiram por uma escada de madeira, estreita, de degraus altos, que conduzia ao andar superior.

O dois homens tiveram de andar curvado por um cor­redor de forro baixo. O major abriu outra porta e entrou com lorde Kenington em um cômodo quadrado onde havia uma janela estreita, mas estava coberta com um pano gros­so, de modo a não permitir que alguém do lado de fora visse o que se passava ali dentro.

Trajes de todo tipo, inclusive uniformes, estavam pendu­rados nas paredes e estendidos sobre diversas cadeiras. Bas­tou correr os olhos por aquele estranho guarda-roupa para lorde Kenington compreender que tal traje era usado pelos membros do Grande Jogo, como disfarce.

Sempre em silêncio o major começou a procurar roupas para lorde Kenington e para si próprias.

Meia hora depois dois homens muito feios e usando rou­pas surradas saíam pelos fundos da loja e seguiam por um caminho diferente daquele que os trouxera até ali.

Atravessaram um terreno acidentado, alcançaram uma estradinha mal cuidada e, por fim, seguiram por uma trilha, no campo. Ambos caminhavam depressa e sempre em silêncio.

Lorde Kenington que tinha o rosto, as mãos e os pés escurecidos com cosmético, para parecer um indiano, refletiu que nem mesmo sua mãe o reconheceria com aquele disfarce.

O major Warde estava ainda mais moreno e também irreconhecível.

Eles deviam ter andado três milhas quando alcançaram um terreno rochoso ao sopé de umas colinas. Ali era im­possível andarem muito depressa. Felizmente a tarde fin­dava e o sol não estava tão forte.

Quando lorde Kenington começava a desanimar, pois pa­recia que caminhavam sem destino, viu à sua frente um estranho vale por onde corria um rio sereno. De cada lado desse vale erguiam-se o que os nativos chamavam de montanhas dos Olhos.

As montanhas não tinham grande altura e eram extre­mamente rochosas. Mesmo á distância viam-se buracos escuros, mas suas bases. Eram as grutas ou, como os nativos os chamavam, "os olhos" das montanhas.

Passou pela mente de lorde Kenington que aquele lugar era perfeito para uma seita religiosa, pois o vale parecia fértil e a água farta e límpida.

Por fim o major sentou-se numa rocha e lorde Kenington, aliviado, fez o mesmo. Sentia as pernas cansadas e os pés doloridos.

— Chegamos, mas será arriscado descermos agora. — Va­mos esperar que escureça — aconselhou o major.

— Você acha que há alguém numa daquelas grutas? — Lorde Kenington interpelou-o.

— Quem sabe? — O major encolheu os ombros. — Tanto pode não haver ninguém como inúmeras pessoas.

— Como saberemos se eles esconderam Aisha ali?

— Teremos de ir de gruta em gruta. — Foi por esse motivo que eu quis trazer alguém comigo.

— Quando escurecer cada um de nós vai por um lado. — Inspecionaremos aqueles bu­racos, um a um e cada canto desse vale.

Lorde Kenington inspirou fundo. Havia inúmeros buracos nas paredes rochosas. Para inspecionar tudo aquilo, no es­curo, eles correriam o risco de escorregar nas pedras e mes­mo de encontrar feras.

Nesse instante o major acabara de abrir um saco que trouxera às costas e estava tirando de dentro dele duas lanternas toscas, comumente usadas por operários. Eram feitas com um recipiente de vidro dentro do qual havia uma vela.

— Eu trouxe três velas extras para cada uma destas lanternas — avisou o major. — Queira Deus que encontre­mos Aisha bem depressa.

— Vamos encontrar — lorde Kenington falou com confiança. Intimamente ele desejou que suas palavras fossem pro­féticas, pois levaria muito tempo para alcançarem o fundo do vale se tivessem de inspecionar cada uma daquelas grutas.

— Se quisermos ser bem sucedidos em nossa busca, de­vemos descansar e nos concentrar no que temos de fazer — aconselhou o major. — É o que sempre faço quando estou desempenhando uma missão difícil e perigosa. — Ho­nestamente, devo meu sucesso ao fato de estar bem dis­posto, alerta, atento ao que diz a minha intuição e, prin­cipalmente, muito otimista. — Vou em frente acreditando no bom êxito da missão. — Repito mentalmente que, com a ajuda de Deus, serei vitorioso.

Lorde Kenington não fez comentário algum. Estava pen­sando em Aisha e no que ambos haviam conversado sobre o poder do pensamento. Subitamente lhe ocorreu que era o momento de tentar comunicar-se com ela por telepatia.

"Pensarei em Aisha e tentarei localizá-la. Sem dúvida ela está enviando mensagens telepáticas a seu pai e a mim."

Olhando para o major, lorde Kenington viu que ele estava, não só de olhos fechados, mas se exercitava para ficar com­pletamente relaxado.

"Farei o mesmo", lorde Kenington decidiu.

O lugar ermo e silencioso era propício para o recolhimento e a concentração. Lorde Kenington não tardou captar os apelos de Aisha. Ele parecia ouvi-la tão nitidamente que julgou estar imaginando coisas.

Mas não, seus apelos eram reais. Ambos pareciam estar, unidos espiritualmente, embora fisicamente estivessem distantes.

Quando lorde Kenington abriu os olhos viu que o sol já declinava no poente. Na índia escurecia muito depressa e em poucos minutos já não se podia ver o vale, lá embaixo. Tudo estava mergulhado nas sombras.

— Podemos agir — disse o major inesperadamente. — Só acenda a sua lanterna quando estiver bem no interior de uma das grutas e antes de sair tenha o cuidado de apagá-la. — Se alguém estiver por aqui e vir á luz certamente investigará para saber quem está andando pelas montanhas.

— Se suspeitar que se trate de algum intruso, atirará, incontinenti.

Eram conselhos desnecessários, e, lorde Kenington não fez comentário algum.

— Mais tarde estará bem claro porque é noite de lua cheia. — Apesar de facilitar-nos para ver o caminho, também seremos vistos mais facilmente. — Por isso devemos nos mover cautelosamente e nas sombras, mesmo estando usando estas roupas escuras — o major acrescentou.

— Agora vamos. — Você prefere seguir pela esquerda ou direita?

Por um instante lorde Kenington hesitou. Depois, como se ouvisse Aisha chamando-o, respondeu:

— Vou pela direita. — Como farei para entrar em contato com você, caso encontre sua filha?

— Dê um grito prolongado e tétrico. — Eu farei o mesmo se encontrar Aisha. — Nestas montanhas há um eco estranho e assustador. — Quem quer que nos ouça, à noite, irá pensar imediatamente em fantasmas ou demônios. — Os nativos acre­ditam que estas grutas sejam mal-assombradas.

Lorde Kenington levou a mão à boca para sufocar uma risada.

— Entendi — respondeu em voz baixa. — Seguirei pela direita.

— Muito bom. — É melhor levar isto consigo. — O major tirou da cintura um punhal de lâmina longa. — Se houver alguém em qualquer uma dessas grutas no momento, pode ter certeza de que se trata de um inimigo. — E um inimigo é sempre melhor morto do que vivo. — Também esteja certo de que ele estará armado com um punhal como este ou uma pistola. — Seja rápido e ágil se quiser salvar a vida.

— Seguirei a sua orientação.

— Estou muito feliz por tê-lo comigo. — Boa sorte. — Com­preenda que para mim o mais importante é encontrar a minha filha. — A voz do major traiu a sua emoção.

— Boa sorte para você também.

Os dois homens se separaram, tomando caminhos opostos.

Estava sendo muito difícil andar no escuro naquelas ro­chas e lorde Kenington teve de caminhar devagar e com cuidado.

Durante todo o tempo ele procurou entrar em contato com Aisha mentalmente. Tudo o que conseguiu foi ouvir seus chamados intermitentes. Sua voz chegava até ele para sumir em seguida.

A primeira gruta estava vazia e não era muito profunda, de modo que ele não perdeu tempo ali. As quatro seguintes exigiram maior investigação, mas ali também não havia ninguém.

"Neste ritmo nem daqui a dois meses eu terei examinado estas grutas", lorde Kenington pensou desanimado, ao subir nas rochas para entrar na sexta gruta.

De repente ele parou, alarmado. Julgou ter visto uma luz. Encostou-se na parede de pedra, manteve os ouvidos aguçados e os olhos bem abertos

Não se enganara: bem ao longe havia uma claridade, mas tudo estava em silêncio. Como não podia ser o major, lorde Kenington apagou a lanterna, segurou o punhal com firmeza e aguardou.

A luz se movia. Quem quer que esteja carregando uma lanterna, caminhava na direção da entrada da gruta. No mesmo instante os apelos de Aisha tornaram-se mais fortes. Lorde Kenington teve certeza de que ela estava a pouca distância dele.

Nesse instante viu um indiano se aproximando; esperou que ele desse alguns passos e saltou à sua frente.

O indiano não teve tempo de reagir, pois lorde Kenington atingiu-o com o punhal no coração, deixando o prostrado no chão rochoso. A lanterna que o indiano segurava com a mão esquerda estava caída do seu lado, ainda acesa, e na outra mão ele tinha uma pistola.

Certificando-se de que o homem estava mesmo morto, lorde Kenington pegou a lanterna do chão, guardou a pistola na cinta, retirou o punhal do cadáver e foi depressa para o interior da gruta, a qual, ele logo constatou, era muito mais profunda do que as outras que já inspecionara.

Não tinha mais dúvida de que Aisha estava ali. Depois de andar bastante, meio curvado, pois aquela parte da gruta era estreita e tinha pouca altura, lorde Kenington viu uma abertura maior.

Assim que entrou ali viu Aisha sentada a um canto, com as pernas e os braços amarrados, os olhos fechados e tão pálidos que por um instante ele teve a terrível sensação de que estivesse morta.

Colocou a lanterna no chão e correu para ela. Pressen­tindo a presença dele, Aisha abriu os olhos e exclamou:

— Você veio! — Você... Ouviu meu chamado e... Veio me salvar!

Ajoelhando-se do lado dela ele começou a desamarrá-la, enquanto dizia:

— Sim, ouvi-a me chamando e cheguei até aqui.

— Eu estava... Desesperada. — Tudo o que eu podia fazer era... Rezar e... Tentar comunicar-me com você e... Com pa­pai... Mentalmente.

— Agora você está salva e em breve verá seu pai. — Viemos juntos para estas montanhas.

Terminando de desatar as cordas, lorde Kenington incli­nou-se e, movido por intenso carinho, abraçou Aisha e beijou-a.

Foi um longo beijo, embora terno. Erguendo a cabeça, ele quis saber:

— Os raptores não a machucaram?

— Não. — Estou bem. — Só sinto as pernas doloridas... As cordas estavam muito apertadas.

— Também tive muito... Medo de, ser abandonada aqui e... Morrer de fome e sede.

Não se contendo, lorde Kenington beijou-a novamente. Desta vez foi um beijo ardente, sôfrego e apaixonado que os transportou para outra dimensão. Quando ambos esta­vam ofegantes, lorde Kenington pareceu voltar à realidade.

— Vamos sair daqui — disse, lembrando-se de que ainda corriam perigo. — Seus raptores podem voltar a esta gruta.

— Havia outros homens na gruta... Mas todos foram embora quando escureceu. — Só ficou aquele indiano... Em guarda.

— O indiano já está morto.

— Você... O... Matou?

Lorde Kenington assentiu com a cabeça. Ficou de pé e ajudou Aisha a levantar-se também.

Ela estava tão linda à luz bruxuleante da vela da lanterna que, mais uma vez, ele enlaçou-a pela cintura e seus lábios se encontraram. Libertando-a, por fim, lorde Kenington declarou-lhe:

— Quando recebi a notícia de que você fora raptada, tive um medo terrível de perdê-la.

— Então eu soube que estava perdidamente apaixonado por você.

— Desde que você me salvou do Sr. Watkins... No navio... Só tenho pensado em você.

— Agora compreendo que o que eu sentia... Era amor — Aisha revelou.

Dando-lhe a mão, lorde Kenington conduziu-a para a pas­sagem que levava à saída da gruta.

Ali eles tiveram de caminhar separados porque a abertura era muito estreita. Lorde Kenington foi à frente para iluminar o caminho.

Aisha pôde andar ereta, mas ele precisou abaixar-se no­vamente por ser muito alto. Quando chegou junto do indiano morto, parou e pediu a Aisha:

— Não olhe. — Passe por aqui, de costas. — Estou logo atrás de você.

Depois de ela ter passado bem rente, à parede de pedra, ambos deram mais alguns passos e chegaram à entrada da gruta. Lá fora estava muito claro. A lua ia alta no céu e prateava todo o vale e as montanhas. O cenário não poderia ser mais encantador.

Como se necessitasse de proteção, Aisha mantinha-se bem perto de lorde Kenington e segurava em seu braço.

— Amo você, querida. — Quando estivermos em segurança vou mostrar-lhe como é grande o meu amor — disse lorde Kenington beijando a testa de Aisha.

Lembrando-se do que havia combinado com o major para avisar que a filha fora encontrada, lorde Kenington deu um grito longo que ecoou e continuou ecoando pelo vale.

Não demorou muito ele avistou uma luz do lado oposto àquele onde ele e Aisha se achavam.

Teve certeza de que era a luz da lanterna do major Warde.

Bem mais tranqüilo  lorde Kenington ajudou Aisha a des­cer pelas rochas e a caminhar até o lugar onde ele e o major haviam descansado antes de se separarem.

— Nunca senti tanto medo em minha vida  — Aisha mur­murou quando se sentou numa rocha, do lado de lorde Kenington. — Quando eles me pegaram e me trouxeram para estas montanhas desertas... Imaginei que nem papai... Nem você... Conseguiriam me encontrar.

— Mas a encontrei porque você me guiou para este lugar. — Oh, minha querida, ficaremos sempre juntos; nunca mais a perderei — lorde Kenington prometeu.

Andando depressa o major não tardou a reunir-se a eles.

— Você encontrou minha filha! — Você a encontrou — ele foi dizendo, eufórico, mal subiu o barranco.

— Eu sabia que o senhor faria tudo para me encontrar e libertar-me daqueles homens horríveis, papai — disse Ais­ha atirando-se nos braços do pai, tendo os olhos cheios de lágrimas.

— Só tive medo de o senhor não fazer idéia de que estava neste lugar tão distante e estranho.

— Seu pai é um dos homens mais brilhantes do Grande Jogo. — Ele lembrou-se de que os russos haviam mantido um prisioneiro nestas grutas — observou lorde Kenington.

— Minha querida, você  nunca mais passará por tão ter­rível experiência. — Vou levá-la de volta para a Inglaterra, onde ficaremos sempre juntos.

A vontade de lorde Kenington era explicar ao major que Aisha lhe pertencia e que estava decidido a não perdê-la. Considerou, porém, que mais tarde teriam muito tempo de falar sobre o assunto.

Sabendo no que ele pensava, Aisha deu-lhe a mão.

A loja onde eles haviam estado ficava muito longe dali e o major avisou que iriam até a fazenda mais próxima para conseguir uma condução.

O indiano, dono da fazenda, olhou para os três muito adiados, mas quando o major lhe ofereceu uma grande quantia para levá-los até a aldeia, o homem aceitou a oferta, satisfeito, e correu para atrelar um cavalo nos varais de uma carroça.

Foi uma viagem desconfortável, porém bem melhor do que se eles tivessem de caminhar tantas milhas, à noite.

O indiano da loja ficou feliz em revê-los e encantado ao conhecer Aisha. Ao receber um generoso pagamento pelo empréstimo das roupas o comerciante exultou.

— É muito dinheiro, sir — disse. — Estou disposto a servi-lo sempre que precisar de mim.

— Sei disso, você nunca deixou de nos ajudar. — Obrigado — o major agradeceu-lhe.

Embora não fosse necessário, lorde Kenington também gratificou o homem.

Na carruagem emprestada pelo vice-rei, de volta para Peterhof, o major disse à filha:

— Partiremos para Calcutá assim que clarear o dia, no trem especial que o vice-rei vai providenciar para nós.

— Você acha necessário partirem tão depressa? — Inda­gou lorde Kenington.

— Absolutamente necessário. — Ao amanhecer, os raptores de Aisha descobrirão que perderam sua presa e virarão atrás de nós. — Eles já sabem que frustrei seus planos de ataque ao forte e quando não encontrarem Aisha também saberá que a libertei. — Sou um homem marcado.

— Se eu quiser viver um pouco mais devo deixar a índia quanto antes e Aisha também.

— Vou com vocês — declarou lorde Kenington. — Já obtive todas as informações nas quais o primeiro-ministro estava interessado e quanto antes eu partir, melhor para ele.

— Melhor para ele e para você também, Kenington — observou o major. — Você também se expôs demais.

— Oh, por favor, tenham  cuidado! — Aisha pediu quase num grito. — Vocês são as pessoas que mais amo no mundo. — Cheguei a pensar que nunca mais os veria. — Desde que dois homens jogaram uma coberta sobre a minha cabeça e me levaram do jardim, não parei de rezar para que vocês me salvassem.

— Como os guardas não viram os raptores? — Questionou lorde Kenington. — O vice-rei está furioso por você ter sido raptada quando estava no jardim, sem que um guarda se­quer tivesse conhecimento disso.

— Aquele prédio não é bem guardado — Aisha informou. — Lorde Lytton pode tomar providências para ter guardas e sentinelas mais eficientes. — Os raptores me levaram até o muro, passaram-me para o outro lado, onde dois outros ho­mens me pegaram.

— Tenho certeza de que o vice-rei será mais rigoroso com a vigilância, depois do que aconteceu — assegurou lorde Kenington.

— Bem, não pensemos mais nisso — pediu o major.

Àquela hora da noite não havia movimento nas estradas e eles não tardaram a chegar a Peterhof.

As sentinelas surpreenderam-se ao ver os ocupantes da carruagem, mas abriram depressa o portão e deixaram-nos entrar sem fazer perguntas.

Passava da meia-noite quando os três subiram os degraus da frente do prédio e entraram no grande hall.

Um dos vigilantes informou-os que o vice-rei ainda estava acordado e desejava vê-los.

— Gostaríamos de comer e beber alguma coisa — disse lorde Kenington ao funcionário que os conduziu até o ga­binete do vice-rei.

Imediatamente ele se prontificou a providenciar uma refeição para os três, em seguida abriu a porta do gabinete.

Lorde Lytton, que estava sentado à sua escrivaninha, ergueu a cabeça e pareceu aborrecido por estar sendo per­turbado àquela hora, mas ao ver quem se achava à porta, exclamou muito contente:

— Vocês a encontraram!

— Felizmente — disse lorde Kenington. — E tudo graças ao major Warde.

— Eles não a machucaram? — O vice-rei inquiriu.

— Não. — Mas pensei que eu iria morrer naquela gruta — Aisha respondeu.

— Quero saber de tudo o que aconteceu, mas isso pode ficar para depois. — Certamente vocês estão famintos e com sede — avaliou lorde Lytton.

— Já tomei a liberdade de pedir a um dos funcionários para nos providenciar algo para comer e beber — comunicou lorde Kenington.

— Fez bem — aprovou o vice-rei.

Notando que o amigo e Aisha estavam de mãos dadas e sorriam um para o outro, perguntou:

— Temos o que comemorar, além da volta de Aisha, Charles?

— Como pode ver, acatei os seus conselhos, Lytton. — Estou esperando que você nos dê os parabéns. — Aisha e eu vamos nos casar — declarou lorde Kenington.

— Esta é a melhor notícia que eu poderia receber! — Festejou lorde Lytton.

Olhando alternadamente para a filha e lorde Kenington, o major perguntou atônito:

— Será que entendi o que você disse.

— Oh, papai! — Eu amo Charles! — Aisha declarou. — Amo-o desde que o conheci, no navio.

— Estou muito feliz, Charles. — Você não poderia encontrar uma noiva mais adorável, nem que procurasse no mundo todo — aprovou o vice-rei.

— Tive consciência disso quando vi que Aisha estava em perigo — admitiu lorde Kenington.

— Eu não me perdoaria se algo lhe acontecesse. — Vamos deixar a índia o mais de­pressa possível.

— Nunca o vi amedrontado antes — observou lorde Lyt­ton com um sorriso. — Mas é claro que compreendo a sua apreensão.

— Depois do que aconteceu, não só eu, mas também lorde Kenington e minha filha serão pessoas marcadas — expôs o major.

— Vocês terão toda a proteção necessária até chegarem à Inglaterra — assegurou o vice-rei.

— Vou providenciar para que viagem no meu trem particular até Calcutá e em­barquem em seguida no navio de guerra, H.M.S. Victorious, que no momento está no porto.

— Um navio de guerra! — Aisha exultou.

— Você está esquecendo uma coisa — apontou lorde Kenington.

— O quê?

— Não poderá haver melhor navio do que o H.M.S. Victorious para a nossa viagem de lua-de-mel, mas Aisha e eu teremos de nos casar primeiro.

— Claro! — Concordou o vice-rei. — O casamento será realizado na minha capela particular, antes de meus hós­pedes acordarem. — Serei seu padrinho, Charles.

— Será maravilhoso! — Aisha murmurou, olhando cari­nhosamente para lorde Kenington.

Um criado entrou no gabinete trazendo uma bandeja com o jantar tardio dos recém-chegados e lorde Lytton insistiu em brindar à saúde dos noivos com champanhe.

O major Warde e lorde Kenington acompanharam Aisha até o quarto que ela estava ocupando em Peterhof. Ao se despedir dos dois, lorde Kenington disse:

— Antes de me deitar vou agradecer a Deus pela sorte de ter encontrado a mais adorável esposa e um sogro tão distinto e inteligente.

— Eu que me considero a pessoa mais feliz do mundo por ter vocês dois.

Voltando-se para o pai Aisha deu-lhe um beijo de boa noite.

Quando o major afastou-se discretamente, ela estendeu os braços para o noivo.

— Amo você, Charles...

Seus lábios foram selados com um beijo veemente, imperioso e prolongados que os deixou sem respiração.

— Também amo você, Aisha — declarou lorde Kenington quando ergueu a cabeça. — Eu não pensava em me casar tão cedo, mas quando a conheci o apelo do meu coração foi tão forte que não pude deixar de ouvi-lo.

— O que seu coração lhe dizia?

— Que você era a mulher que eu vinha buscando; que era a outra parte de mim e juntos seria uma só pessoa.

"Amo Charles! Como o amo!", Aisha repetiu inúmeras vezes enquanto se trocava para dormir.

Já deitada ficou pensando na sua felicidade. Encontrara o amor com o qual sempre havia sonhado. O amor puro, perfeito, vindo de Deus; o amor que julgara existir só nos livros.

"Amo Charles! Amo-o! Amo-o!"

Tais palavras ficaram ressoando na mente de Aisha como um acalanto até que ela adormeceu.

Em seu quarto lorde Kenington também repetia baixinho para si mesmo, virando-se de um lado para o outro, na cama:

— Amo Aisha! — Amo-a de todo o coração! — Amo-a! — Sou o homem mais afortunado do mundo por tê-la encontrado!

Quando, por fim, adormeceu, um sorriso de pura felici­dade marcava seus lábios.

 

                                                                                            Barbara Cartland

 

 

                      

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