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O CASTELO MEDIEVAL / Barbara Cartland
O CASTELO MEDIEVAL / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CASTELO MEDIEVAL

 

1886

— Sinto muito, lady Arletta. Temo que agora o tempo seja curto.

— Curtíssimo Dr. Metcalfe.

Lady Arletta Cherrington-Weir deu um profundo suspiro e, com seus imensos olhos azuis, lançou um olhar melancólico ao homem de meia-idade.

O Dr. Metcalfe, um advogado muito correto, se pudesse, faria qualquer coisa a seu alcance para tirar daquele rosto angelical o olhar de preocupação. Conhecia Arletta desde bebê, vira-a crescer e ir ficando cada vez mais adorável. Para ele não havia mulher alguma mais bela e ao mesmo tempo tão inconsciente de seus próprios encantos.

Não era para menos, porém. Nos últimos dois anos, lady Arletta tinha cuidado do pai, o conde de Weir, que fora ficando cada vez mais desagradável e exigente. O irascível enfermo não quisera que ninguém mais cuidasse dele e sempre tratava a filha de forma abominável: esta era a opinião de todos, inclusive dos médicos.

Como as enfermeiras eram raras nos pacatos condados da Inglaterra — nas aldeias, havia no máximo a parteira, normalmente velha e gorda, com fama de bebericar uns copos a mais nas madrugadas — Arletta tinha sido obrigada a cuidar do pai. O conde sofria do coração, e de gota também, tendo ataques e sentindo dores fortíssimas, resultado das doses generosas de vinho Clarete e do Porto que insistia em tomar, apesar dos conselhos médicos.

— Se vou morrer — costumava esbravejar o velho senhor —, deixem-me ao menos o consolo de me sentir bêbado. Diabos me levem se vou permitir que me tirem meu único conforto.

Arletta logo desistira de discutir com o pai. Limitava-se a concordar com tudo que dizia, e ele então a acusava de sem graça e insossa.

A verdade é que, quando estava de bom humor, o conde era imensamente carinhoso com a filha, embora sentisse uma profunda decepção por não ter gerado um varão que herdasse o condado. Assim, as propriedades passariam para Hugo, seu sobrinho, pessoa que o conde detestava.

Arletta também não gostava de Hugo, um jovem presunçoso, com idéias próprias de como administrar a herdade, que se recusava a ouvir qualquer conselho do tio ou da prima. E agora, duas semanas depois da morte do pai, estava sendo informada pelo Dr. Metcalfe de que seu primo pretendia ir morar na mansão da família Weir imediatamente.

Arletta teria que se mudar o quanto antes. O problema, como a jovem acabara de explicar ao advogado, é que não sabia para onde ir. O bondoso homem tentava ajudá-la.

— Deve haver algum parente com quem possa ficar. E, claro, não precisa sair da propriedade, basta ir para outra casa.

— Sei disso, e foi gentil da parte do primo Hugo ter me oferecido uma das casas. Mas o senhor sabe tão bem quanto eu, Dr. Metcalfe, que não poderia viver lá sozinha.

— Tem razão…

— E acho que não suportaria ver meu primo virando a propriedade toda de cabeça para baixo, administrando-a de maneira tão diferente da de papai.

— Concordo que a melhor coisa a fazer é sair daqui — disse o Dr. Metcalfe pausadamente — mas você é praticamente uma desconhecida. Por causa da doença de seu pai, não foi apresentada à corte, nem participou do baile das debutantes…

Arletta sorriu.

— Sempre sonhei com um baile esplêndido só para mim, aqui. Mamãe costumava falar sobre isso quando eu era bem pequena. Dizia-me que seria o melhor que este condado já vira, como nos áureos tempos em que vovô era vivo.

O Dr. Metcalfe sabia que tinha sido o avô, o terceiro conde de Weir, quem dissipara a fortuna da família, deixando dívidas enormes.

O pai de Arletta fizera o possível para recuperar as propriedades, pagar as dívidas, e para tanto todos na família tinham vivido mais modestamente. Nunca conseguira, infelizmente, recuperar todos os terrenos e casas de Londres que haviam sido vendidos por quantias que agora pareciam irrisórias, e todo o dinheiro desperdiçado em esquemas pseudomilagrosos de enriquecimento imediato.

Quando sua doença começou a ficar séria, pouco depois de Arletta sair da escola, o conde pôs de lado toda e qualquer idéia de festa. Com o correr do tempo, foi se tornando cada vez mais ranzinza com todos que vinham visitá-lo e, junto com a filha, acabou ficando completamente isolado na mansão da família, o burburinho dos hóspedes sendo substituído por um silêncio sepulcral.

Como não pudesse mais cavalgar, os cães de caça foram doados a outro proprietário rural; a festa de verão, que costumava ser um dos grandes prazeres das redondezas, tivera que ser transferida para outro local; e os campeonatos entre arqueiros havia muito não se realizavam mais, nos gramados da mansão.

A propriedade toda parecia envolta numa neblina de depressão e expectativa pela morte do conde. Foram os cuidados de Arletta que prolongaram bem mais sua existência. Mas, agora que estava tudo acabado, o Dr. Metcalfe pensava com otimismo que talvez fosse o começo de uma vida melhor para lady Arletta.

— Vamos pensar com calma — falou o advogado, com voz pausada. — Conheço todos os seus parentes. Espero que não considere impertinência de minha parte sugerir-lhe aqueles que a meu ver poderão fazê-la feliz.

— Mas é claro que não. Fico-lhe grata por qualquer sugestão.

O problema, porém, como bem sabe, é que tenho pouquíssimos parentes na Inglaterra.

O irmão mais moço do conde, muito mais moço, na verdade, era governador de Cartum, na África, não era casado e, portanto, não iria querer receber sua sobrinha em lugar tão isolado e tormentoso.

A única tia de Arletta, por outro lado, estava casada com o governador das províncias do noroeste da Índia. Como já tivesse três filhas, o Dr. Metcalfe considerou que, com certeza, não iria acrescentar mais esta responsabilidade a seus encargos.

O advogado ficou uns bons momentos em silêncio, antes de se manifestar.

— Resta sua prima Emily. Arletta teve um sobressalto.

— Não vou morar com a prima Emily, Dr. Metcalfe! Não daria certo. O senhor sabe que ela se dedica à caridade e leva uma vida reservada e severa. Com ela não se pode dançar, nem cantar. Não imagino nada mais deprimente do que viver com a prima Emily.

O Dr. Metcalfe riu.

— Concordo lady Arletta. Vamos pensar noutra pessoa.

— Mas quem?

Arletta parou uns instantes, como se refletisse.

— Sempre tive vontade de conhecer os parentes de minha avó, mas, como eram franceses, acho que nunca vieram à Inglaterra. Eu mesma, tendo um nome de lá, nunca fui à França.

— Disso eu tinha me esquecido. É verdade. Arletta é um nome francês.

— Disseram-me que era o nome da mãe de Guilherme, o Conquistador. Vovó veio da Normandia, tinha cabelos loiros e olhos azuis. Por isso é que, embora eu pareça inglesa, também passo por francesa.

O advogado olhava-a, divertido.

— Estou disposto a acreditar no que disse lady Arletta, se bem que sempre tenha imaginado as mulheres francesas com olhos e cabelos escuros.

— Não se forem normandas — retrucou a jovem com altivez. Depois, voltando ao assunto, prosseguiu: — A menos que escreva para os parentes de vovó, a quem nunca conheci, não há ninguém na Inglaterra.

— E lady Travers? Arletta fez um muxoxo.

Lady Travers era uma prima que de vez em quando aparecia sem ser convidada para passar uns tempos na mansão. Era daquele tipo de mulher de meia-idade que estava sempre sofrendo de alguma estranhíssima e desconhecida doença, para desespero dos médicos.

Havia muito tempo Arletta concluíra que o grande problema da prima era falta do que fazer. Com um arrepio, pensou que, depois de dois anos cuidando de um doente, seria horrível começar tudo de novo com uma pessoa cheia de problemas e achaques.

Só de observá-la o Dr. Metcalfe já sabia o que lhe passava pela cabeça.

— Decididamente não é com lady Travers que deve ficar.

Estou tentando ver quem mais há.

— Era justamente o que fazia quando o senhor chegou. É inacreditável que de uma família tão numerosa tenham sobrado tão poucos.

— Deve haver alguém — disse o advogado em tom de desespero.

— Tenho alguns parentes no extremo-norte da Escócia, e acho que há um ramo da família na Irlanda, mas não acredito que ficassem muito satisfeitos em me ver, depois de papai tê-los ignorado por tanto tempo.

Como fosse a mais pura verdade, o Dr. Metcalfe nem se deu ao trabalho de concordar. Limitou-se a rabiscar o bloquinho que tinha nas mãos, revendo, de memória, a esplêndida árvore genealógica retratada na tapeçaria pendurada no corredor que levava à biblioteca.

Arletta deu um salto da cadeira, como para espantar a melancolia.

— Por enquanto não há tanta pressa. Farei minha mudança para a casa que meu primo ofereceu e então pensarei de novo no assunto.

— Londres é o seu lugar — falou o advogado devagar. — Afinal, sempre é tempo, e deve haver alguém que possa apresentá-la a pessoas de sua idade, apesar de estar de luto.

— Diz que estou de luto, mas não se esqueça das expressas recomendações de papai para que ninguém vestisse preto, nem o pranteasse. Ele deixou por escrito que quanto antes morresse, seria melhor!

O Dr. Metcalfe, que redigira o testamento, lembrou-se de como a cláusula lhe parecera de mau-gosto. Ouvi-la agora, na voz melodiosa e suave de Arletta, era ainda mais cruel.

— Ninguém se esforçou tanto quanto você para fazer seu pai feliz nos últimos anos de vida. Sei bem o paciente difícil que ele foi.

— Terrível! — concordou Arletta. — Os médicos não podiam com ele, nem eu mesma. Acho que seu único prazer, quando sentia aquelas dores tremendas, era nos desafiar fazendo exatamente o oposto do que devia.

— Ele sempre foi um rebelde e. ..

— Tomara eu também o seja! — interrompeu-o Arletta prontamente.

O advogado olhou-a surpreso, e ela explicou:

— Não pretendo me deixar amofinar pelo passado. Agora que estou livre, quero aproveitar a vida.

Não era preciso explicar ao advogado que cuidar do pai, naquela casa vazia, enorme e lúgubre, sem ter com quem conversar, tivesse sido, para alguém de sua idade, a morte em vida.

— Tem toda a razão — concordou o homem, - pensativo. — É preciso que se divirta. E a primeira coisa a fazer é comprar roupas novas. Minha esposa sempre diz que não existe nada como um vestido novo para alegrar uma mulher.

Arletta riu com espontaneidade, o que a deixava muito atraente.

— A Sra. Metcalfe está certa, e é exatamente o que farei. Irei a Londres assim que tiver resolvido minha mudança e, por mais estranho que possa parecer, vou comprar uns lindos vestidos. Apenas, em obediência à última vontade de papai, nenhum será preto.

O Dr. Metcalfe recolheu os papéis que espalhara sobre a mesa, guardando-os numa pasta de couro.

— Acho que foi a única coisa sensata que decidimos esta tarde. Prometo que pensarei no problema com todo o cuidado e acabarei chegando a uma solução.

Embora o advogado procurasse aparentar confiança, ao mesmo tempo sabia que não existia ninguém realmente agradável, compreensivo e bom na família, com quem a adorável jovem pudesse ficar.

No último ano, Arletta assumira responsabilidades que teriam sido difíceis mesmo para um rapaz. E, como a quisesse muito bem, o Dr. Metcalfe buscava um meio mágico qualquer de fazê-la feliz no futuro.

“Tem que haver uma saída!”, pensou o bondoso homem enquanto conduzia sua velha charrete a caminho da aldeia onde morava.

Acompanhando com o olhar o veículo que desaparecia sob a linha de carvalhos que ladeavam a entrada da mansão, Arletta voltou para dentro e imediatamente experimentou aquela sensação de melancolia que invadira a casa, e que nem o sol era capaz de dissipar. Tinha certeza de que o novo conde, embora tivesse lá suas idéias próprias de como melhorar a casa, tachando de ridículos os esforços que o tio fizera para restaurar os bens originais, também a acharia deprimente.

— Algumas dívidas nunca fizeram mal a ninguém — dissera Hugo certa vez.

Talvez tivesse sido uma brincadeira. O fato é que ele não partilhava dos mesmos princípios rígidos que haviam norteado o tio, de nunca contrair dívidas.

Arletta, porém, tinha inteligência suficiente para perceber que a reação do pai era natural, depois de passar a infância inteira vendo a família gastar mais do que possuía. Era-lhe penoso, portanto, depois de tantas economias e cuidados, pensar no primo Hugo esbanjando como fizera o avô.

Devagar, Arletta retornou para a saleta onde estivera conversando com o Dr. Metcalfe.

Situada na face sul da casa, a pequena sala recebia mais sol que qualquer outro aposento da casa. Além do mais, sua mãe a havia transformado num lugar muito seu: decorada com mobília francesa, leve, e pinturas que eram o oposto dos pesados quadros da família Weir. Fosse inverno ou verão, sempre havia flores perfumando o ar e colorindo o ambiente, cujas paredes eram forradas com painéis verde-claros.

— Vou sentir falta desta sala…

Instintivamente, ergueu os olhos para o retrato da mãe, sobre a lareira.

Era uma representação delicada de alguém mais do que adorável.

Observando a pintura, Arletta via no sorriso e no brilho do olhar não só expressões da personalidade da mãe mas, mais que isso, seu sangue francês, que a fazia tão diferente dos Weir, cujos ancestrais remontavam ao tempo dos saxões.

Depois de algum tempo, estava falando com o quadro, como se ele pudesse entender.

— Preciso de sua ajuda, mamãe. Não sei exatamente o que fazer — murmurou como num transe hipnótico.

Voltando a si, lembrou que o mais importante no momento era encontrar alguém que pudesse ser sua dama de companhia.

Sabia, vagamente, que existiam senhoras da sociedade que aceitavam o encargo de apresentar uma jovem na corte e na alta roda.

Não tinha idéia, porém, de como descobri-las. Sua natureza recatada e tímida também rejeitava a hipótese de forçar as coisas, de se fazer notar.

Desgostava-a, sobretudo, a sensação de que alguém pudesse pensar que seus planos incluíam casamento.

— Não quero me casar — afirmou categórica. — Quero viver! Ao mesmo tempo sabia que, na sua idade, na época, as duas coisas vinham indissoluvelmente ligadas.

As jovens eram educadas para se casar assim que deixavam a escola. Para elas, não havia nada mais a fazer. Ou então ficariam solteironas, cuidando de um parente doente e aborrecido e depois se transformariam em tias úteis para os sobrinhos e sobrinhas.

Como não os tivesse, Arletta descartou esta opção. Mas, de novo, pegou-se às voltas com a mesma pergunta: “O que posso fazer? O que posso fazer?”

A tal ponto estava absorta em seus pensamentos, que custou a perceber que alguém havia entrado na sala. Então, reagiu, entre surpresa e alegre.

— Jane! — exclamou. — Será mesmo você? A recém-chegada aproximou-se.

— Cansei de bater e ninguém respondeu. Mesmo assim achei que ia encontrá-la aqui.

Arletta correu a beijá-la.

— Jane, querida! Que surpresa agradável. Não sabia que tinha voltado.

— Cheguei esta tarde mesmo. Quando soube que seu pai havia morrido, vim vê-la imediatamente.

— Obrigada, Jane!

— Eu sinto muito!

— Foi melhor assim. Os ataques do coração estavam ficando cada vez mais frequentes, e ele tinha dores horríveis por causa da gota. Papai só conseguiu sobreviver tanto tempo porque era forte como um leão.

— Meu pai contou que você cuidou dele com carinho — comentou Jane, compreensiva. — Pobre Arletta, pensei em você muitas vezes. Deve ter sido tão difícil!

— Foi terrível — admitiu a jovem, com sinceridade. — Mas estou feliz de vê-la, Jane. Por que voltou?

O rosto da moça, que não era tão gracioso quanto o de Arletta, iluminou-se com um sorriso que a fez quase bonita. A amiga contemplou-a um instante, surpreendida.

— Alguma coisa aconteceu, Jane. Eu sei que sim. O que foi?

— Você não vai acreditar… mas eu vou me casar!

— Que ótimo! — Arletta falou com entusiasmo. Com quem?

— Você nem imagina! Simon Sutton.

De imediato Arletta não conseguia se lembrar dele. Hesitou. — Não é possível… Não pode ser. ..

— É ele, sim, Arletta. Lembra-se de quando se formou pastor aqui na propriedade de papai? Pois ele foi para a Jamaica. ..

— E você vai casar-se com ele! Oh, Jane, isto é maravilhoso!

— Nunca pensei, nem sonhei que ele me amasse. Mas, como ele me escrevia quase toda semana, dizendo que sentia muito minha falta, nunca, claro, deixei de pensar nele.

Jane enrubesceu e baixou os olhos timidamente.

Arletta enlaçou-a pela cintura.

— Parece um conto de fadas. Ele amando você todo esse tempo!

— Desde quando morava aqui em Litlle Meldon. Bem que percebi que ele estava infeliz quando partiu, mas nunca imaginei que fosse por minha causa!

— Mas era!

— Exato. Ele chegou dois dias atrás e me disse que agora tem meios para se casar, e quer que eu volte com ele para a Jamaica.

Arletta estava enlevada.

— É a coisa mais excitante que já ouvi! Oh, Jane, estou tão feliz por você! Foi por isso que voltou, para se casar?

— Claro! Queria que papai nos casasse. Simon tinha umas coisas para resolver em Londres. Deve chegar amanhã.

— Jane, querida, você nem imagina como me sinto feliz de assistir a seu casamento.

— Não teremos tempo de convidar muita gente — a jovem disse e, em seguida, acrescentou, muito tímida: — Gostaria de ser minha única dama de honra?

— Mas é claro! Eu ficaria muito sentida se você não me convidasse.

— Parece meio errado ter uma dama de honra, sendo tão velha. Já pensou, eu vou fazer vinte e oito daqui a um mês.

— Tenho certeza absoluta de que você está na idade para ser a esposa de um pastor! — disse Arletta em tom de brincadeira.

Jane não conseguiu conter uma risada.

As duas se conheciam desde criança e costumavam brincar juntas. Jane era filha do reverendo local e seu pai, por insistência do conde, ensinara a Arletta muitas das disciplinas que estavam fora do alcance da governanta. A garota, que se estava formando para ser governanta, também a ajudara nos deveres de casa.

Embora fosse grande a diferença de idade entre as duas, elas tinham se tornado boas amigas. Se havia alguém que Arletta amava, fora da família, esse alguém era Jane.

Sentia-se mais feliz do que podia dizer, sabendo que Jane ia se casar. Sempre lhe parecera uma grande pena que alguém tão doce, tão boa, tão compreensiva quanto Jane não conseguisse atrair os poucos varões que haviam nas redondezas, apenas por não ser especialmente bonita.

Mas agora, ao saber que Jane seria a esposa de Simon Sutton, Arletta não cabia em si de satisfação. Ansiosa, fez com que a amiga lhe contasse todos seus planos para o futuro.

Ao terminar, Jane acrescentou, pensativa:

— Curioso como as coisas parecem acontecer ao mesmo tempo.

— Que quer dizer com isso?

— É que tinha acabado de receber uma proposta que na época parecia uma oportunidade maravilhosa. Na verdade, cheguei a aceitá-la.

— O quê?

— Lembra-se de lady Langley, a quem sua mãe me apresentou, que estava precisando de alguém para dar aulas a seus filhos?

— Claro que sim.

— Pois bem, eu tinha acabado de preparar o último dos garotos, que vai para a escola no semestre que vem, quando lady Langley implorou-me para eu ir para a França.

— França! — surpreendeu-se Arletta.

— É uma história muito estranha — prosseguiu Jane. — O falecido irmão de lady Langley havia se casado com uma francesa, irmã do duque de Sauterre. Ao que parece, ela também faleceu, quatro anos atrás, e, embora lady Langley tenha se oferecido para cuidar do casal de sobrinhos, o duque não aceitou. Ele acha que o lugar das crianças é na França.

Arletta ouvia, fascinada.

— Sentindo-se culpada por nunca ter visitado o sobrinho e a sobrinha, lady Langley foi ao castelo do duque, faz algumas semanas.

A maneira de Jane falar aguçou a curiosidade de Arletta.

— E o que houve? O que aconteceu?

— Bem, com toda a razão, lady Langley ficou horrorizada. David, o sobrinho, deve ir para Eton daqui a um ano, mas não sabe uma palavra de inglês!

— Realmente, ele vai passar por maus bocados, se isso for verdade — concordou Arletta.

— É exatamente este o medo de lady Langley. A menina, que é mais nova que o irmão, está na mesma situação, mas o caso dela não é tão urgente.

— Quer dizer que você ia para lá ensiná-los? — perguntou Arletta, muito atenta.

— Eu já havia combinado tudo com lady Langley. Deveria partir para o castelo em quatro dias.

— Ela deve ter ficado muito nervosa ao saber que você não poderá ir.

— Mas ela não sabe! Combinamos tudo e em seguida ela saiu com lorde Langley para um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Não tenho meios de avisá-la, e estou mortificada. Sinceramente, Arletta. Não queria desapontá-la, mas como poderia não me casar com Simon?

— Jane! — Arletta gritou.

— O que foi?

— Acho que descobri a solução para os seus e os meus problemas!

Jane não disse nada, aguardando o que viria.

— Irei para a França em seu lugar! É o que sempre tive vontade de fazer. Parece até que mamãe ouviu minhas preces e enviou você.

A amiga a olhava atônita.

— Você não pode fazer isso!

— Claro que posso. Pouco antes de você chegar, estava aqui com o Dr. Metcalfe, tentando descobrir para onde ir, com quem poderia ficar Não sei se você sabe, Jane, mas o primo Hugo pretende mudar-se para cá o quanto antes e tenho que deixar esta casa.

— Oh, Arletta, que horror! É muito desagradável da parte dele tirar você de sua própria casa. Se bem que, agora, não creio que você quisesse ficar.

— Não, não quero. Ao mesmo tempo, não poderia viver sozinha na casa que Hugo me ofereceu, e também não consigo pensar em nenhum parente que ficasse feliz em cuidar de mim.

Jane não contestou. Conhecia quase todos os parentes de Arletta e no fundo sempre achara que formavam uma família bem deprimente.

Como se pudesse ler os pensamentos da amiga, Arletta acrescentou:

— Sei o que você deve estar pensando. Olhe, tenho certeza de que poderia substituí-la sem que ninguém desse por isso.

— Mas… é impossível!

— Por quê? Você disse que lady Langley está num cruzeiro. Quanto tempo ela vai permanecer lá?

— Acho que por pelo menos um mês, talvez umas seis semanas.

Arletta sorriu.

— Pois bem. Ela não precisa ficar sabendo do que houve até regressar. E aí já estarei na França, como sempre quis! Se for bem-sucedida, eles continuarão comigo. Caso contrário, posso voltar e ir morar na casa que o primo me ofereceu, e pagar para que alguém more comigo.

Jane fez um muxoxo.

— Isto me parece horrível!

— Também acho. Mas seria melhor que ficar com uma das tias ou primos. Você os conhece!

Jane levantou-se do sofá onde estavam.

— Não sei se estaria fazendo a coisa certa em deixá-la ir para a França.

— Como assim?

Jane escolheu com o máximo de cuidado as palavras que iria usar. Demorou uns instantes antes de responder.

— Embora lady Langley tenha dito que o duque de Sauterre é um homem feroz, aterrorizante mesmo, na verdade não é com ele que me preocupo tanto. Tenho medo é dos franceses que vai conhecer, Arletta. O problema é que você é bonita demais.

Arletta riu.

— Agora entendi o que você queria dizer. Mas é muito pouco provável que algum francês se interesse por uma governanta. lá ouvi dizer que eles são muito orgulhosos e arrogantes.

Jane, sabendo como Arletta era inocente, perguntava-se como explicar o que um francês provavelmente pensaria de uma governanta tão linda assim. Lembrou-se então de que lady Langley sentira-se quase culpada ao pedir-lhe que fosse para o castelo, que ficava num lugar deserto da Dordonha. Ela própria confessara que David e Pauline, os sobrinhos, não tinham amigos, e que não havia vizinhos nas redondezas do castelo.

— O duque passa a maior parte do tempo em Paris, o que é bom porque ele aterroriza todos os empregados do castelo — começou Jane.

— Aliás, lady Langley diz que a fortaleza é um exemplo de arquitetura francesa, impecavelmente conservada e mantida como nos tempos medievais.

Jane interrompeu o que dizia para ver a expressão de Arletta. Ela o ouvia com toda atenção.

— Lady Langley chegou a se desculpar por me pedir para ir a um lugar tão retirado. Mas insistiu porque seu sobrinho sofrerá em Eton, só porque o duque tem sérios preconceitos contra os ingleses.

Arletta nem piscava, e Jane continuou sua narrativa:

— O duque ficara furioso com o casamento de Richard e sua irmã. Mas não houve jeito, os dois se apaixonaram e fugiram. Quando já era tarde demais para que a família pudesse fazer qualquer coisa, o casal voltou e pediu perdão. Mas consta que o duque nunca perdoou a irmã.

— Parece um romance! — interrompeu Arletta.

Jane percebeu que nada do que dissera contra o duque de Sauterre impressionara Arletta.

— Se você não mandar alguém em seu lugar, Jane, o duque ficará ainda mais cheio de preconceitos contra os ingleses. E David chegará a Eton falando apenas francês, o que será um verdadeiro desastre!

— Confesso que nunca imaginei encontrar alguém para me substituir, embora estivesse me sentindo com a consciência culpada.

— Mas não pense que vai começar agora a procurar outra governanta. Tenho toda a intenção de ir no seu lugar! Honestamente, Jane, essa é a resposta para todas as minhas preces. É um sinal dos céus de que não fui esquecida.

Jane riu com ternura.

— Ninguém poderia esquecê-la, Arletta. Você é a criatura mais adorável que já conheci. Sabe que meus pais, eu e todos no povoado a amam.

— Obrigada.  Mas, se gosta de mim, então me deixe fazer o que quero, deixe-me ir para a França. Um pouco antes de você entrar, estava olhando para o retrato de mamãe, buscando sinais de sangue francês.

— Não conheço ninguém mais inglesa que sua mãe — retrucou Jane, olhando para o retrato.

— Aí é que você se engana. Ela era normanda. Minha avó veio da Normandia, e mamãe dizia que todos os seus parentes tinham olhos azuis e cabelos loiros.

— Talvez o duque fique satisfeito em saber que corre sangue francês em suas veias. Por outro lado, ele pode pensar que isso a desqualifica como professora de inglês.

— Jane, você está tentando me intimidar — disse Arletta rindo. — Garanto-lhe que não tenho medo do Grande Duque Mau! Se ele for muito feroz, volto para casa sem referências. É só. Esta viagem não alteraria o meu futuro, como seria o seu caso.

Jane abraçou Arletta antes de responder:

— Se deixá-la ir, você promete solenemente, e digo isto com toda a sinceridade…

— O quê?

— … que não vai se deixar influenciar por nenhum elogio que lhe façam os franceses?

— Por que diz isso?

— Os homens franceses são diferentes dos ingleses. Eles se casam muito cedo, como foi o caso do duque, parece-me. E por conveniência. Não se casam por amor.

— Mamãe me falou sobre isso. É um jeito muito frio de se unir a alguém.

— Claro que é. E depois disso eles têm sempre uma infinidade de casos amorosos…

Arletta ficou pensativa por alguns instantes.

— Acho que esse não é privilégio dos franceses. Afinal, até aqui em Litlle Meldon já chegaram rumores dos amores do príncipe de Gales…

— Não deviam fazer esses comentários na sua frente — disse Jane com ar de reprovação.

— Jane, eu cresci! Tenho quase vinte anos. Mesmo vivendo nestes cafundós, como se diz por aí, leio os jornais, os romances. Aliás, esse foi meu passatempo durante a doença de papai. E meus únicos momentos de sossego passava ouvindo as intrigas dos criados.

Jane deu uma boa risada.

— Tenho certeza de que foi uma vida de divertimentos intensos.

Calou-se em seguida, arrependida com a frivolidade.

— Minha querida amiga, sei o quanto foi difícil para você. Papai me contou tudo. Se acha mesmo que ir para a França a fará feliz, e desde que me prometa tomar o máximo de cuidado, eu concordarei. Embora continue achando que é um erro.

— Verdade? — perguntou Arletta, ansiosa. Seus olhos cintilavam de entusiasmo. Estava linda.

Jane sentiu que era loucura deixar uma moça bonita como aquela viajar sozinha, sem ter idéia alguma do que poderia lhe acontecer.

— Tenho que pensar um pouco — concluiu.

— Não há nada em que pensar. A não ser em como faremos para que eu passe por você. Tem um passaporte?

— Tenho. Aliás, tinha pedido um para esta viagem, mas agora não vou mais precisar dele, porque Simon vai me incluir no dele.

— Isto resolve o problema. Serei a Srta. Jane Turner, doravante!

— Não combina!

— Combina mais do que você pensa. Serei a Srta. Jane Turner, de partida para a França, para ver o mundo!

— Receio que vá achar esse mundo pequeno demais. Apenas um castelo, num local isolado e quieto do interior, com duas crianças e inúmeros criados. Duvido que haja alguém mais.

— Ficarei muito desapontada se não puder ver o desagradável duque de Sauterre!

— Prometa que, ao encontrá-lo, deixará bem claro, desde o início, que você é filha de um pastor!

Jane parou de falar um instante.

— Prometa também que você sempre, mas sempre mesmo, manterá a porta de seu quarto trancada à noite!

De início, Arletta pareceu não compreender, para logo depois abrir-se num riso só.

— Ora, Jane! Você andou lendo novelas demais. Não creio, por um instante sequer, que o grandioso, arrogante e orgulhoso duque se digne a prestar atenção numa pobre e humilde governanta. Se, como diz você, ele está sempre em Paris, deve viver cercado de belíssimas e exóticas mulheres, que as damas de verdade fingem ignorar.

— E você é uma dama de verdade!

— Mas não tão boba nem tão burra que não saiba que as cortesãs de Paris são as mulheres mais exóticas, mais extravagantes e sedutoras do mundo.

Jane olhou-a severamente.

— Não devia falar dessas coisas. E como ousa saber da existência dessas mulheres?

— Li e ouvi muito sobre elas e, se quiser saber, papai de vez em quando falava delas. Ora, Jane, se alguém está sendo antiquada, com a própria cabeça enterrada na areia, é você.

Jane fez um gesto de quem não entendia mais nada e Arletta riu muito. Seu riso parecia iluminar a sala toda, como se o sol tivesse de repente inundado tudo de luz.

 

No vapor, a caminho de Bordéus, Arletta achava que nada de tão excitante lhe havia acontecido.

Tinha tido mais uma dezena de discussões com Jane, até que ela finalmente resolvera ceder, vencida pelos seus argumentos.

— Lembre-se, minha amiga, de que se não der certo eu posso voltar para casa. Não tem importância, para mim, sair sem uma referência dos meus patrões.

Jane temia que a amiga, inocente e inexperiente das coisas do mundo, se visse em dificuldades das quais não saberia sair.

Também haviam discutido a possibilidade de Arletta encontrar uma dama que pudesse acompanhá-la em Londres, e apresentá-la à corte. Para Jane a escolha óbvia recaía sobre lady Langley.

— Tenho certeza de que, quando souber que você me substituiu, dando aulas para seus sobrinhos, ela se sentirá muito grata, devendo-lhe um favor.

Arletta sabia que a amiga estava certa. Lady Langley, que fora amiga de sua mãe, era a pessoa certa para ajudá-la.

— Tudo o que tenho a fazer — respondera Arletta, com os olhos faiscantes — é preencher meu tempo até que ela volte do Mediterrâneo. Nada melhor do que fazer isso ensinando seus sobrinhos, ao mesmo tempo que conheço a França, como sempre sonhei.

Finalmente, conseguira convencer Jane, que só então lhe mostrara as instruções que havia recebido do secretário do duque de Sauterre.

Ele havia escrito num inglês formal, pomposo, obviamente traduzido, e Jane comentara:

— Não sei bem se deveria ter me ofendido por ele achar que não sei francês.

Depois rira, de bom humor.

— De qualquer forma, você fala francês bem melhor que eu. Como se fosse francesa.

— E sou mesmo, do lado de minha avó.

A mãe de Arletta fizera questão que a filha falasse francês parisiense das grandes famílias de França. Quando era pequena, tinham os “dias franceses”, em que não se falava outra língua a não ser o francês. Aquilo tinha se tornado um jogo, ao qual até o pai aderia. Quando a mãe morreu, o francês de Arletta já era perfeito.

O que vinha bem a calhar na atual circunstância. Enquanto o vapor rumava em direção a Bordéus, Arletta praticava algumas frases, e lia um romance em francês, que descobrira entre as coisas de sua mãe.

O sol estava alto, e Bordéus ao longe parecia uma cidade imponente, um grande centro comercial. Desde os tempos romanos, tinha sido um importante posto para o comércio de vinhos. Passou-lhe pela cabeça que seu pai gostaria de saber onde ela estava, pois fora justamente o vinho daquela região, o bordeaux, a causa de sua gota.

Nas instruções que Jane lhe entregara estava escrito que, chegando a Bordéus, deveria tomar um trem que a levaria à estação mais próxima do castelo, onde uma carruagem estaria à sua espera.

Estava tudo muito bem arranjado, mas o vapor demorara a partir do porto de Plymouth e, portanto, atracaria com atraso.

Mesmo sabendo que se tivesse chegado na hora teria que esperar várias horas pelo trem, Arletta ficou com medo de perdê-lo. Nunca viajara só antes, e surpreendeu-se com o número de pessoas dispostas a ajudá-la.

Qs carregadores haviam brigado entre si para carregar-lhe a bagagem, e diversas senhoras idosas tinham vindo perguntar-lhe se precisava de algo. Arletta não tinha a menor consciência de que todas essas atenções se deviam ao fato de ser tão bonita e parecer tão jovem e indefesa.

Jane e ela tinham tido longas discussões para decidir que tipo de roupa deveria usar como governanta.

— Desde que papai ficou doente, não comprei mais nada para mim, de maneira que tudo que tenho no momento está velhíssimo. Ia a Londres para renovar todo o meu guarda-roupa.

— De maneira alguma poderá ter vestidos muito elegantes — interrompera Jane com toda a firmeza —, senão o duque ficará desconfiado.

— É verdade, mas eu também não tenho a menor intenção de parecer uma mendiga. Com estas roupas que tenho agora, acho que até as crianças não acreditariam na minha autoridade.

Sem dizer nada, Jane pensou que não seriam as roupas o que faria as crianças não acreditarem nela. Mas não valia a pena começar a discussão outra vez. Portanto, limitara-se a dizer:

— O melhor que temos a fazer é ir até Worcester. Lá poderá comprar alguns vestidos que não parecerão estar além das posses de uma governanta.

Haviam partido bem cedo, com tempo de estar de volta na hora que Simon Sutton deveria chegar.

Jane conhecia a cidade, um antigo mercado, e sabia que lá poderiam encontrar algumas roupas boas para o caso de Arletta. Entretanto, fora obrigada a reconhecer que qualquer coisa que Arletta vestisse transformava-se imediatamente numa moldura para sua beleza.

Arletta tinha um charme todo especial de usar as roupas. Jane achava, sem nada dizer, que vinha de seu sangue francês. “Ela é chique”, pensara enquanto a amiga experimentava os vestidos. “Uma coisa que nunca consegui ser.”

Ficara comovidíssima quando Arletta insistira em lhe dar um vestido, um casaco de viagem e um belo traje de noite.

— Faz parte do meu presente de casamento — dissera a amiga. — E é muito mais útil que um broche ou um colar, não acha?

— Não devia ser tão extravagante! — Jane protestara.

— Jane, se você usa este tom repressivo com seus alunos, tenho muita pena deles.

Caíram as duas na risada. Aliás, haviam rido o dia todo, até o regresso a casa.

Simon Sutton já estava esperando per elas e, quando Arletta vira a expressão do seu olhar, percebera o quão felizarda tinha sido a amiga. Para ele, pouco importava que Jane não fosse bonita. Amava-a e não havia dúvida de que Jane também estava totalmente apaixonada.

Durante o casamento, que fora realizado na manhã seguinte à das compras, Arletta tivera certeza de que os anjos se haviam unido ao coro da igreja.

Nunca vira um casal de noivos tão radiantes quanto Jane e Simon, quando saíram de braços dados pela nave.

No último instante, Arletta havia se lembrado onde estava o magnífico véu de rendas usado por incontáveis noivas na família Weir.

Também fizera questão que Jane usasse uma pequena tiara de diamantes. As grandes jóias, os colares, braceletes e broques que haviam feito parte dos tesouros da família tinham sido vendidos pelo pai, para cobrir as dívidas herdadas.

Havia conservado apenas aquela pequena tiara, para que a esposa usasse em ocasiões especiais.

Jane, é claro, ficara maravilhada com o empréstimo. E o fato de parecer, como ela própria dissera, “uma noiva de verdade” aos olhos de Simon, fizera da cerimônia de casamento uma ocasião ainda mais feliz.

Depois que uns poucos convidados haviam bebido à saúde dos noivos, o casal partira para uma curta lua-de-mel, antes de voltar à Jamaica.

Na despedida, Jane abraçara Arletta e sussurrara em seu ouvido:

— Prometa que vai se cuidar. Estou preocupada com você e rezarei todas as noites para que esteja segura.

— Claro que estarei segura! Se algo der errado, eu simplesmente direi ao duque tudo o que pensar dele e voltarei para casa. Afinal, se estiver em alguma dificuldade, sei que o pastor cuidará de mim, quando eu voltar para cá.

— Naturalmente que sim. Só que não contei a papai o que você está fazendo.

— E ninguém pode saber — respondeu Arletta mais que depressa. — Se souberem, vão tentar me impedir.

Jane beijara a amiga mais uma vez e em seguida correra para o marido, que já a esperava.

Arletta partira três dias depois. Enviara apenas uma carta, endereçada ao Dr. Metcalfe. Dissera-lhe que estava indo para a França, ficar com alguns amigos, e dera-lhe o endereço do duque de Sauterre, para o caso de haver urgência em se comunicar com ela.

Estivera tão ocupada arrumando suas coisas que nem tinha tido tempo de pensar no que a esperava.

Sabia perfeitamente que, uma vez fora da mansão, seria muito difícil obter qualquer coisa de lá sem ter antes que travar uma batalha com o primo.

Tinha, portanto, dado ordens aos jardineiros e criados para que levassem à casa que lhe fora destinada tudo aquilo que desejava conservar.

Não imaginara, porém, que houvesse tanta coisa. Havia a mobília, os livros e os quadros que tinham pertencido à mãe. Esquecera-se também de que a velha chefe da criadagem pusera todas as roupas da mãe nos aposentos do último andar e, fielmente, costumava inspecioná-las para que não fossem comidas pelas traças.

Já Arletta, arrasada com a doença do pai, nunca prestara muita atenção às peles e sedas que tanto enfeitavam sua mãe. Agora, embora muitas já tivessem caído de moda, pareciam-lhe adoráveis. Algumas poderiam ser aproveitadas. E as peles e os casacos seriam úteis no inverno.

— Por que não me lembrou antes de todas estas coisas? — perguntara à criada-chefe.

— Porque achei que trariam recordações tristes — fora a resposta irrefutável.

O fato é que no momento, para Arletta, lembravam tempos mais felizes, e por isso colocara algumas das peças nos baús que levava para a França.

Havia camisolas lindíssimas e, para usar sobre elas, um irresistível négligé de cetim azul, que tinha muito pouco a ver com o roupão de lã que usava desde os dezesseis anos.

— Ninguém me verá — pensara — e poderei me sentir atraente quando estiver sozinha, à noite. São as camisolas certas para um castelo.

Por mais que Jane tivesse falado mal do duque de Sauterre, repetindo o que lhe dissera lady Langley, Arletta não podia deixar de pensar em tudo aquilo como num conto de fadas: estava indo em direção a um castelo encantado, situado numa região da França famosa por suas fortalezas.

Gostaria de ter tido mais tempo pata ler dados e informações sobre a Dordonha, onde a família do duque vivera durante séculos. Mas, como sempre acontece, quando precisara dos livros que tratavam daquela região em especial, não pudera encontrá-los. A primeira coisa que pretendia fazer, quando tivesse tempo, era comprar um bom guia.

Ao chegar a Bordéus, não cabia em si de excitamento por causa das pessoas nas ruas, tão diferentes dos ingleses.

As camponesas, com saias rodadas e chalés, tinham um charme especial, bem como as freiras em seus toucados variados.

De vez em quando via uma ou outra mulher com a curiosa touca e o avental rendados, característicos daquela região, e até mesmo alguns gendarmes. Estes guardas, em seus uniformes elegantes, pareciam recém-saídos de uma ópera ou opereta.

Infelizmente, Arletta não tinha muito tempo para observar o movimento das ruas, a caminho da estação ferroviária. Chegou exatamente quinze minutos antes da partida do trem.

Depois da saída, já instalada, pôs-se a observar a paisagem ondulante que desfilava pela janela, os bosques imensos, onde lhe parecia ver um dragão, e os raros castelos edificados no topo das colinas.

Na imaginação de Arletta, o trem tinha chegado ao Reino Encantado.

Reconheceu o castelo do duque de Sauterre assim que pôde avistá-lo. Correspondia a todas as suas expectativas.

Delineado no horizonte, era imponente, solene e, ainda que não quisesse admiti-lo, assustador.

Àquela distância, as janelas não pareciam maiores que seteiras, as torres ameiadas trouxeram-lhe à mente imagens dos tempos da Idade Média, em que deviam ser guardadas por soldados prontos para repelir o inimigo, viesse de onde viesse.

Pouco abaixo do castelo corria um rio, e de uma de suas margens erguia-se uma muralha de pedra até o edifício.

Sem se dar conta, Arletta já estava pensando em tenebrosos calabouços onde prisioneiros eram encarcerados na escuridão até morrerem.

Ao desembarcar, lá estava a carruagem, à sua espera. Aproximando-se do castelo, teve a sensação desagradável de estar sendo observada detrás das estreitas janelas.

Cruzaram a ponte sobre o rio e entraram pelo lado leste, seguindo uma trilha, colina acima, ladeada por pequenas habitações. Quase no topo, passaram diante de uma capela muito antiga, com toda a certeza do século XII, como o castelo.

Logo a seguir, a carruagem cruzou o portão duplo, bem no centro da muralha, e Arletta mal pôde acreditar no que via.

Encontravam-se num imenso pátio, diante do qual via agora com clareza a habitação propriamente dita, que se alcançava galgando uma longa rampa coroada por um arco, ao mesmo tempo romântico e imponente.

A carruagem, puxada por quatro cavalos, parou e imediatamente um lacaio, trajando uma libré púrpura, enfeitada por alamares dourados, tirou os degraus para que pudesse descer.

Ao apear, teve a impressão de que fora olhada com surpresa.

No topo da rampa aguardava-a alguém ainda mais pomposo, tom toda a certeza o mordomo. — Mademoiselle Turner? — perguntou em francês.

— Exato.

— Por aqui, por favor, mademoiselle.

Acompanhou-a através de um enorme hall medieval, cujo centro era dominado por uma lareira aberta, grande o suficiente para acomodar uma árvore inteira no inverno.

As paredes, de ambos os lados, estavam ornadas com estandartes e bandeiras antiquíssimos, mas Arletta mal pôde vê-los, pois o mordomo já tinha se encaminhado por uma longa passagem.

Estava curiosa para saber aonde estava sendo conduzida, até que o mordomo abriu a porta de um aposento, com toda certeza o escritório do secretário do duque.

— Mademoiselle Turner chegou, monsieur.

Um homem de meia-idade, cabelos esbranquiçados, levantou-se devagar e estendeu-lhe a mão. Era monsieur Byien, que havia escrito a ]ane, dando-lhe as instruções.

Ao olhar para Arletta seu sorriso congelou. Olhava-a com puro espanto.

— Trata-se de mademoiselle Turner — O inglês dele deixava a desejar. A intenção fora a de fazer uma pergunta.

— Devo agradecer-lhe, monsieur — respondeu Arletta com seu francês impecável —, pelas instruções perfeitas que me enviou. O vapor atrasou-se um pouco, e estava com receio de perder o trem, em Bordéus. Mas, como pode ver, aqui estou.

— Sente-se, por favor, mademoiselle.

Monsieur mostrou-lhe uma cadeira diante da escrivaninha. Ao sentar-se, Arletta pensou que talvez devesse ter posto óculos, para parecer mais velha.

Chegara a pensar nisto, mas depois descartara a idéia como sendo, além de teatral, perigosa. Mais cedo ou mais tarde, tinha certeza, acabaria se esquecendo dos óculos, e todo mundo perceberia que enxergava perfeitamente sem eles.

Preferira pentear os cabelos de uma maneira muito simples e pouco atraente. Além do mais, usava um chapéu que pertencera à mãe, pouco adequado a sua idade.

Seus esforços não tinham tido muito sucesso, porém, porque monsieur Byien perguntou de chofre:

— Pelo que lady Langley me havia dito, mademoiselle, achava que fosse bem mais velha do que parece.

— Sempre me disseram, monsieur, que não fica bem a um cavalheiro discutir a idade de uma dama. Se pareço jovem, o que aceito como um elogio, deixe-me acrescentar que o tempo se encarregará de desfazer as aparências.

Monsieur Byien sorriu e sua expressão mudou. Só então Arletta percebeu o quanto ele estava apreensivo.

— Quanto a isso, não resta a menor dúvida, mademoiselle. Mas há de convir comigo que tenho razão em me surpreender. Não esperava uma governanta inglesa com sua aparência.

— Tranquilize-se, monsieur. Sou uma ótima professora de inglês, e tudo me leva a crer que fui contratada exatamente para tal função. Não acredito que minha aparência, seja ela qual for, interfira com minha proficiência em minha língua-mãe.

— O inglês pode ser sua língua-mãe, mademoiselle — apressou-se a dizer tnonsieur Byien, conciliatório —, mas permita-me elogiar o seu excelente francês.

— Obrigada. Garanto-lhe que, se meu francês lhe parece bom, meu inglês é melhor ainda.

— Pois então, como disse, é tudo que importa — finalizou o secretário do duque.

Arletta não pôde deixar de notar que monsieur Byien ainda estava preocupado.

O secretário levantou-se.

— Acredito, mademoiselle, que deva estar ansiosa por ver seus aposentos e conhecer seus pupilos, que também estão ansiosos por conhecê-la.

Sem demora, conduziu Arletta através de caminhos que para ela pareciam intermináveis.

O castelo era realmente impressionante, embora a mobília fosse, é claro, bem mais moderna que a construção.

Como as janelas eram muito pequenas, havia pouca luz. No inverno, ou à noite, pensou Arletta, aqueles aposentos deviam dar calafrios.

Subiram então por uma escada, que não era a principal. No andar superior, Arletta deu-se conta de que se achavam numa das torres circulares.

Entraram numa sala que Arletta reconheceu de pronto como sendo a sala de aula. Lá estavam as duas crianças.

O menino dispunha sobre uma mesa alguns soldadinhos feitos de madeira, habilmente pintados.

Assim que monsieur Byien entrou na sala, as duas crianças olharam para a porta.

— Mademoiselle Turner chegou — disse o secretário em francês — e sei que estão querendo conhecê-la.

Encaminhando-se para a mesa, fez as apresentações:

— Este, mademoiselle, é David, possuidor, como pode ver, de uma excelente coleção de soldadinhos. E esta é Pauline.

Arletta estendeu a mão.

— Muito prazer em conhecê-lo, David. Espero que um dia me mostre seus soldados. Meu pai também tinha uma coleção, da qual muito se orgulhava.

Quase acrescentou que, quando seu pai os expunha, retratavam a batalha de Waterloo, mas deu-se conta a tempo de que seria falta de tato. Afinal, os franceses haviam sido derrotados ali. Voltou-se então para Pauline.

A menina tinha cabelos castanhos cacheados, e um rosto suave, bonito, dominado por dois olhos enormes.

— Teremos que fazer uma porção de lições de casa, mademoiselle?— perguntou Pauline.

— Espero que não. Só que eu vou querer saber tudo a respeito deste castelo maravilhoso. Você me dará as lições… em inglês!

As duas crianças olharam-na surpresas.

— Seus aposentos, mademoiselle, como os das crianças, ficam no andar de cima. Assim que estiver disposta, tenho certeza de que Pauline a conduzirá até lá.

— Obrigada.

Antes de deixá-los, o secretário olhou-a com uma expressão que para Arletta parecia muito preocupada.

Só então tirou o casaco e desamarrou as fitas do chapéu.

— Acho que vocês já sabem que estou aqui para ensiná-los a falar inglês. Só que preciso que me digam a melhor maneira, porque você, David, terá que aprender muito depressa.

David olhou para os soldadinhos que segurava na mão.

— Quero aprender inglês, ir para a Inglaterra e nunca mais voltar a este lugar!

Falou isso com violência e logo em seguida olhou para trás, como se temesse que alguém estivesse escutando. Arletta tomou um susto.

— Quer dizer que não gosta de viver aqui no castelo? David não respondeu nada por alguns instantes, mas depois, como se não visse por que esconder a verdade, respondeu:

— Odeio isto aqui. Sou inglês, e não francês! Eles são nossos inimigos!

Enquanto falava, deu uma olhadinha para trás.

— Eles não são mais nossos inimigos. A França e a Inglaterra são países amigos, agora. Mas é claro que você é inglês. ]á esteve lá?

— Não, mas mon père costumava me contar coisas da Inglaterra. Dizia que um dia moraria lá, mas tio Etienne quer que eu fique aqui. — Baixou a voz antes de continuar: — Está torcendo para que eu seja expulso de Eton. Mas, se eu não conseguir ficar no colégio, hei de fugir e me esconder em algum lugar da Inglaterra, para nunca mais ter que voltar.

Da maneira como o menino falava, Arletta percebeu que havia mais um problema, com o qual não contava.

Nesse instante, entrou uma criada trazendo uma bandeja.

— Com os cumprimentos do chef, mademoiselle. Ele encomendou chá especialmente para a senhora. Aqui não se bebe chá mas, como é inglesa, ele achou que gostaria de uma xícara.

— Muito obrigada. É exatamente o que queria.

Na bandeja havia um bule de chá, uma xícara e dois pratinhos, um com sanduíches e o outro com pâtisseries, recheadas com um creme que só os franceses sabiam fazer.

Assim que a criada saiu, as crianças correram para olhar o chá, cheias de curiosidade.

— Lembro de papai tomando chá assim. Mas aqui não se permite a bebida. Temos que ser franceses e beber café ou vinho.

— Acho que vocês gostariam de dividir o chá comigo. Que tal começarem por um sanduíche?

As crianças comeram quase todos os sanduíches e as pâtisseries. Pauline pouco falou, até que, lambendo o creme dos dedos, perguntou a Arletta:

— Quando David for estudar na Inglaterra, posso ir morar com você?

— Quando David for para a escola, você vai morar com sua tia…

— Tio Etienne a detesta. Se for morar na Inglaterra, terei que me esconder em algum lugar onde ele não me ache — disse a garotinha.

Arletta não estava em condições de desmenti-la. Limitou-se aos comentários gerais.

— Vocês terão que me contar por que seu tio odeia tanto a Inglaterra.

— Ele odeia tudo e todos — completou David —, mas ninguém ousa dizer-lhe isto.

— Seria muito indelicado se você o fizesse. Afinal, está morando na casa dele.

— Ele nos odeia — acrescentou o menino em voz mais baixa, como se conspirasse. — Mas, em vez de deixar a gente ir embora, ele nos tranca nas masmorras.

Este comentário fez Arletta rir.

— Sei que isto não é verdade. Ninguém fica trancado em masmorras, nos dias de hoje.

— Tio Etienne faria uso delas, se pudesse. Um dia as mostro para você. Verá os ossos dos prisioneiros. Ainda estão lá.

Arletta teve um calafrio.

— Não tenho a menor vontade. Que tal se agora vocês me mostrassem meu quarto e o de vocês?

Num dos lados da torre havia uma escada de pedras, em caracol. Era apenas um pouco mais larga que os baús de Arletta, que os criados teriam que carregar escada acima.

Estavam cada vez mais alto, e ela se sentia como que isolada do mundo.

As crianças tinham dois quartos, no piso imediatamente acima da sala de aula. Arletta ficaria no seguinte.

Como a torre fosse redonda, de seu quarto descortinava-se um esplêndido panorama dos campos ao redor do castelo. No teto, altíssimo, havia traves de madeira antiquíssima e, entre elas, um forro vermelho-escuro.

O carpete era da mesma cor, bem como as cortinas curtas das duas janelas laterais.

Sobre seu leito havia um estranho desenho heráldico, que David explicou:

— Aqui era o quarto de um dos ancestrais de tio Etienne, que lutou contra os ingleses. Dizem que ele matou vinte homens antes de ser atingido.

O menino pareceu hesitante, mas resolveu prosseguir o relato:

— Os criados dizem que ele assombra esta torre; aliás, o castelo todo é assombrado.

— Verdade? Você já viu algum fantasma? — indagou Arletta.

— Eu vi! — interrompeu Pauline. — Já vi uma porção. Os criados gritam e saem correndo, mas eu não. Sou muito corajosa, faço apenas uma prece, como mamãe me ensinou, e eles desaparecem.

— Eram apenas sombras — cortou o irmão, desdenhoso. — Os verdadeiros fantasmas não se vêem. A gente os ouve: prisioneiros gemendo, os feridos gritando de dor, e os apelos dos que estão sendo apunhalados!

Falava tão dramaticamente que Arletta assustou-se.

— Não quero que me assuste, David. E, se continuar falando assim, vai acabar assustando também sua irmã.

David sacudiu os ombros, num gesto tipicamente francês.

— Temos que aguentar essas coisas. Se quer saber a verdade, mademoiselle, eu acho que nunca conseguiremos sair daqui e ir para a Inglaterra.

— Não diga tolices. Daqui a um ano estará em Eton. Você bem sabe que é a melhor escola que existe na Inglaterra, e é por isso que sua tia conseguiu convencer o duque de Sauterre a me contratar. Você vai aprender inglês.

Arletta olhou o menino bem nos olhos, antes de prosseguir:

— Mas você terá que se esforçar bastante. Não vai querer ser o único rapazinho da escola incapaz de se expressar. Portanto, quanto antes começarmos, melhor.

— Quero aprender, não porque esteja indo para Eton, porque tenho certeza que tio Etienne não deixará. Mas aí poderei escapar. Eu.. .

Parou de repente, como se não quisesse ser indiscreto. Arletta percebeu então que os criados haviam entrado, trazendo os baús. Uma das criadas fez uma pequena mesura:

— A chefe da criadagem disse que devo desfazer suas malas, m'mselle.

— É muito gentil. Espero que haja lugar para toda a minha roupa.

— Não se preocupe, m'mselle.

Arletta olhou o relógio que pertencera à mãe, que pendurara na blusa, com um alfinete dourado.

— Já são quase seis horas. Vocês dois me digam o que devo fazer, e a que horas vão para a cama.

— Jantamos às sete, na sala de jantar.

— Na sala de jantar? — perguntou Arletta, sem compreender.

— Tio Etienne diz que as famílias francesas jantam reunidas, e que as crianças comem à mesma hora que os adultos. São só os ingleses que mandam seus filhos para a cama, porque não os suportam.

— Isto não é verdade — respondeu Arletta, indignada. — Os ingleses fazem seus filhos dormirem mais cedo porque, sendo mais jovens, precisam de mais sono que os adultos.

— Tio Etienne diz que somente os franceses sentem afeto pelos seus parentes, dos avós até o bebê de colo. E que as crianças inglesas ficam fechadas na nursery ou na sala de aula porque todos acham que elas atrapalham.

Arletta teve que admitir que havia um fundo de verdade no que David dissera.

— Crianças, tenho um sem-número de argumentos em defesa dos ingleses. Só que agora estou um pouco cansada e gostaria de me trocar. Mais tarde irei procurá-los, e vocês me mostrarão onde jantamos.

— Então, au revoir, mademoiselle.

O menino curvou-se num cumprimento muito francês, e Pauline fez uma pequena mesura.

Quando as crianças saíram, Arletta dirigiu-se à criada:

— Poderia me mostrar onde posso me refrescar? Gostaria de tomar um banho.

— Um banho, m'mselle? — espantou-se a criada. — Isto é muito inglês, mas, se quiser, mandarei que tragam água cá para cima.

Arletta não disse que não, como sabia que uma governanta de verdade faria.

Com muito trabalho, primeiro os criados trouxeram a tina para seu quarto e em seguida um criado transportou latas e latas de água quente.

Havia, como descobriu mais tarde, atrás de uma cortina, uma bacia, mas não uma banheira.

Pensou consigo mesma que o duque ficaria muito aborrecido se soubesse quantas vezes ela iria pedir que lhe levassem o banho lá para cima. A menos que ele a proibisse.

Não acreditava, porém, que num castelo tão grande o duque pudesse ficar sabendo de tudo o que se passava.

Por outro lado, pelo que as crianças haviam dito, sua sombra pairava sobre a vida de todos!

Era tudo muito fascinante e, enquanto relaxava no banho, ia rememorando o que havia visto e ouvido até então.

Seria trabalhoso apagar da mente das crianças tudo o que o duque deliberadamente lhes dissera contra a Inglaterra.

No jantar, mal podia acreditar na formalidade dispensada a duas crianças e uma governanta.

Servidos por um copeiro e três lacaios, os três jantavam na sala baronial, que acomodaria facilmente cem pessoas.

A cadeira do duque à cabeceira, lavrada e pintada com as armas da família Sauterre, parecia um trono.

Haviam sentado na extremidade oposta, e Arletta comia com apetite os pratos deliciosos que se sucediam uns após outros, embora se desse conta de que, ao fim do jantar, Pauline já estivesse meio adormecida.

David comeu com apetite também, conversando animadamente e discorrendo sobre o castelo.

Não havia dúvida de que tinha sido doutrinado sobre a importância da família Sauterre, à custa de um bom pedaço da história da França.

Quanto aos ingleses, eram obviamente os grandes inimigos.

— Os ancestrais de tio Etienne estiveram no Campo do Sudário de Deus — anunciou David, com orgulho. — E tentaram salvar Santa Joana D'Arc, que foi queimada viva pelos ingleses, embora fosse santa!

— Tudo isto aconteceu há muito tempo — retrucou Arletta com firmeza.

— Os ingleses podem ter vencido a batalha de Waterloo, mas tio Etienne diz que foram muito maus para Napoleão, quando ele estava preso na ilha de Santa Helena.

— O que eu acho, David, é que você precisa saber um pouco mais sobre os ingleses antes de ir para a Inglaterra. Não se esqueça de que você pertence a uma antiga e eminente família. Na verdade, os Redruth eram quem sabe até reis na Cornualha, uito antes de Guilherme, o Conquistador, ter invadido a Inglaterra, vindo da Normandia.

Fora Jane quem lhe dera essa informação, mas na hora não sabia o quão valiosa viria a ser.

— Guilherme era francês e venceu.

— Mas agora o Império Britânico se estende por metade do mundo, e você precisa aprender mais. — Deu um suspiro significativo. — Na verdade, você é muito, muito feliz!

— Por quê? — David perguntou num tom meio hostil.

— Porque você é tanto inglês quanto francês, e precisa tentar entender os dois países e fazer o possível para mantê-los em paz.

David estava meio surpreso.

— Alguns membros de sua família, os Redruth, foram estadistas e diplomatas. Precisa aprender que eles fizeram um grande trabalho para evitar a guerra e criar a amizade entre os dois países.

Não tinha certeza absoluta de que isso fosse verdade, mas David não poderia contradizê-la!

— Acha a guerra errada, mademoiselle?

— Acho que ela é horrível, má, cruel, pois muitos homens perdem, nas batalhas, o que de mais precioso possuímos, a vida!

David ficou silencioso, pensando.

— Suponha que eles não se incomodem em morrer.

— Todo mundo se incomoda em morrer, principalmente quando se é jovem. A vida é excitante. É uma aventura. Há tanta coisa para fazer, para aprender, para aproveitar!

Percebeu que David escutava com atenção.

— Por que alguém deveria perder algo tão precioso? Só por causa de uma disputa política, ou porque o dirigente de um país é ganancioso e quer derrubar o dirigente do outro?

David estava impressionado e, depois de alguns instantes, falou:

— Tio Etienne quer que eu vá para o Exército francês.

Sem refletir, Arletta retrucou:

— Claro que você não pode fazer uma coisa destas! Seu pai ficaria horrorizado em saber que você estaria lutando contra seus próprios irmãos.

Falou com tanta veemência que David arregalou os olhos.

Arrependendo-se de ter sido tão emotiva, Arletta terminou a conversa:

— David, se já acabou de jantar, creio que devemos nos recolher. Estou certa de que Pauline quer dormir.

— Estou tão cansada! — disse a menina, como se estivesse esperando a deixa.

— Pobrezinha, deve estar mesmo. Quem põe você na cama? Quer que faça isso?

— Não! Quero Ma Bonne. É ela, é Ma Bonne quem me põe na cama.

Uma francesa simpática, de meia-idade, já estava à espera de Pauline, do lado de fora da sala de jantar. Pegou-a no colo, com toda a ternura.

— Ela fica muito cansada a esta hora, m'mselle. Não é muito forte, e devia dormir bastante. Mas monsieur insiste em que as crianças jantem aqui em baixo. E, com sua chegada, Pauline nem repousou antes do jantar.

— Precisamos evitar que isso volte a ocorrer — afirmou Arletta, com firmeza.

Mariette, a babá, levou a menina embora, e Arletta voltou-se então para David:

— Está pronto para ir dormir também, David?

— Ainda não.

— Então quem sabe você me mostra um pouco do castelo, ou será que já está muito tarde?

David sorriu, feliz.

— Tio Etienne não está, e ninguém vai nos impedir. Gostaria muito de mostrá-lo, mademoiselle.

— Então vamos, antes que escureça completamente. Arletta logo percebeu, porém, que era impossível ver todo o castelo de uma vez só.

Teve a impressão de que a edificação se estendia por muitos quilômetros. Havia três outras torres iguais àquela em que estava junto com as crianças. Não tardou a descobrir as enormes salas de recepção, que davam para um magnífico jardim formal, no bloco central.

Pontilhado de pequenos lagos, rodeados de urnas antiquíssimas, aquele jardim tinha uma fonte que chamava a atenção por ser esculpida com cupidos e golfinhos que jorravam água como se fossem milhares de arcos iridescentes.

Era adorável, e ao mesmo tempo tradicional, formal, muito diferente dos jardins de sua casa, enfim, dos indisciplinados jardins ingleses.

Tudo parecia ter seu lugar exato. Devia ser absolutamente impossível, mesmo para uma erva daninha revolucionária, levantar um broto que fosse entre as aléias pavimentadas, ou entre as meticulosamente podadas cercas vivas.

Tudo no castelo era luxuoso.

Já quando chegara tinha notado que o mobiliário era predominantemente Luís XIV. Não entendia como tanta coisa pudera escapar à Revolução, e David explicou:

— Tio Etienne diz que, durante a Revolução, quase tudo foi escondido nas montanhas, em cavernas, ou nos calabouços, onde ninguém tinha acesso.

Na verdade, o que ocorrera era que o castelo não tinha sido tão saqueado quanto os que ficavam perto de Paris.

— Aqui é tão isolado — David continuou — que não havia gente suficiente para se rebelar contra o duque de então.

— Ele teve sorte. David sacudiu os ombros.

— E tio Etienne ficou ainda mais estufado de orgulho. Uma vez ouvi um criado dizendo que ele acha que é Deus!

Arletta repreendeu-o suavemente:

— Você não devia dizer estas coisas de seu tio.

— Para você não importa. Já é o inimigo, e ele a odeia, antes mesmo de vê-la.

— Tem certeza, David? — sobressaltou-se Arletta.

— Ele disse para a gente, quando a tia Margaret partiu: “Sua tia me impingiu, contra minha vontade, uma governanta inglesa que virá ensinar-lhes a língua barbárica que você, David, terá que assimilar, antes de partir para aquele inferno que os ingleses chamam de public school”.

— Isto não é verdade, David. Tenho certeza de que seu pai adorou ter ido para Eton. Todos os que estudam lá têm as melhores lembranças da escola. Sua família ficaria horrorizada se ouvisse você falando desse jeito de Eton.

— Estou disposto a ir para o inferno, para qualquer lugar, conquanto fique longe daqui.

Estavam na biblioteca. Arletta, olhando os milhares de livros em volta, achou estranho que um menino não se interessasse por um castelo tão belo, com tanta coisa para descobrir.

Sentou-se numa banqueta, diante da lareira apagada.

— David, me diga uma coisa. Por que você odeia este lugar? O menino chegou mais perto dela para responder.

— Porque é horrível. Quando mamãe estava viva, eu ainda conseguia suportar, mas agora, é pior do que viver numa prisão!

— Mas por quê? Por que diz isto?

Hesitou. Arletta se perguntava se ele diria a verdade.

— É o tio Etienne. Ele nos odeia porque papai era inglês. O castelo todo é horrível. — Abaixou a voz ainda mais: — E tio Etienne é um assassino! Ele já matou duas mulheres!

 

Diante de uma das janelas do quarto, Arletta concluiu que, no geral, o dia havia sido exaustivo mas bom.

Em primeiro lugar, constatara que o inglês de David não era tão ruim quanto tinha imaginado.

O pai havia morrido quando o menino estava com seis anos, e até então só falara inglês com ele. Só depois que a mãe os trouxera para o castelo é que tinha sido proibido de falar na língua paterna.

Foi só começar a conversar com ela que o vocabulário voltou todo, embora a gramática estivesse meio confusa. David parecia ansioso para aprender, e num dia só haviam feito enormes progressos.

Arletta fez questão de ensinar David isoladamente, e só mais tarde tentou interessar Pauline no nome de algumas flores, alimentos e objetos a sua volta.

A pequena se esforçava, mas para ela era mais difícil. De qualquer forma, o mais importante agora era preparar David para Eton.

Iria levar tempo, mas sentia-se capaz da tarefa. Além de se interessar pelo menino, era preciso admitir que também estava muito curiosa.

Quando David lhe dissera, na noite anterior, que o tio assassinara duas mulheres, primeiro pensara que fosse brincadeira, e depois que o menino estivesse pregando uma mentira, só para assustá-la.

Porém, acabara tendo que admitir que esse era um mistério que precisaria resolver por si mesma.

De manhã, acordara pensando nas palavras de David, e em como o menino podia dizer isso do tio.

Se David acreditava mesmo no que tinha dito, não era de estranhar que não se sentisse bem no castelo.

Depois das lições, David a levara para ver melhor os jardins e os estábulos. Haviam conversado o tempo todo em inglês.

Já esperava que os cavalos do duque fossem excelentes, a julgar pelos magníficos animais da carruagem que a esperara na estação.

Só não sabia que os estábulos estavam repletos de cavalos árabes puros-sangues, de linhagem soberba, melhores do que qualquer animal que tivesse visto.

— O haras de tio Etienne fica em Chantilly. Lá ele cria os cavalos de corrida. Estes são para ele cavalgar. E para nós, claro.

Os olhos de Arletta se acenderam.

— Acha que poderia cavalgar com você?

— Claro, se quiser. Mas eu não imaginava que uma governanta inglesa gostasse de andar a cavalo.

David parou, riu e acrescentou:

— Bom, mas mademoiselle não é exatamente a governanta que eu estava esperando.

— Por quê?

— Tio Etienne disse que seria uma mulher severa, feia e empertigada.

Arletta não conseguiu descobrir se o menino falava a verdade ou estava apenas brincando.

Combinaram um passeio a cavalo para depois do almoço mas, como Pauline preferisse ficar em casa, com sua babá, Arletta e David saíram sozinhos.

Ele a levou pelas campinas agradáveis, em direção a um dos bosques frondosos onde Arletta imaginara, na viagem, ter visto um dragão.

Depois de todo o luxo que presenciara no castelo, não se surpreendeu ao ver que as árvores haviam sido plantadas de maneira a deixar largas trilhas para as cavalgadas e a caça. As árvores eram impecavelmente mantidas por madeireiros, que trabalhavam num dos bosques visitados.

Ao voltarem, Arletta estava plenamente convencida de que o duque administrava suas propriedades com todo o esmero. Presenciara, entretanto, um episódio inquietante.

Haviam parado para conversar com alguns camponeses que trabalhavam numa pequena vinha. O capataz fora ao encontro de David.

— É um prazer vê-lo por aqui, monsieur — dissera polidamente. Depois pusera-se a olhar Arletta, com intensa curiosidade.

— Este é Pierre Beauvais, mademoiselle. É ele quem cuida de todas as vinhas de tio Etienne, e faz o melhor vinho da região.

Arletta estendera-lhe a mão.

— Estou no castelo — dissera em francês — para ensinar inglês a monsieur e a mademoiselle Pauline.

Pierre Beauvais olhara Arletta com espanto absoluto.

— Trabalha como governanta, m'mselle? Arletta fizera um sinal afirmativo com a cabeça.

Assim que David afastou-se para conversar com um dos camponeses, o capataz dissera em voz baixa:

— Cest impossible! Volte para casa, m'mselle. Não será feliz aqui.

— Por que diz isso?

Pierre Beauvais olhara em volta, como se estivesse embaraçado por ter falado demais.

Como David já viesse voltando, ajuntara rapidamente:

— Vá embora, m'mselle. Será melhor.

Não tinha havido chance de dizer mais nada. Na volta, Arletta fora refletindo sobre o incidente. Fora muito estranha aquela conversa que tivera com um dos empregados.

Pauline já esperava por eles, e os três, em vez de ir para a sala de aula, foram para a biblioteca do castelo.

Arletta queria achar alguns livros com gravuras, para facilitar o aprendizado da menina.

O difícil era saber por onde começar a procurar. Havia milhares de livros na biblioteca, e aparentemente nenhum catálogo.

Começaram, as crianças e ela, a folhear alguns, ao acaso, quando de repente a porta se abriu, e um homem entrou.

Era jovem, bem-apessoado e muitíssimo elegante.

Arletta não tinha a menor idéia de quem fosse, até que David disse, sem muita cerimônia:

— Olá, primo Jacques! Não sabia que voltaria hoje!

— Já voltei. E pelo visto temos visitas! Arletta foi em sua direção.

— Sou Jane Turner, monsieur — apresentou-se, ao mesmo tempo que se perguntava onde se encaixaria o rapaz, na organização do castelo.

— É a governanta?!

Sem sombra de dúvida, ele estava espantado. A surpresa era patente na voz e na expressão de seu rosto.

— Acredito que não esperava encontrar-me aqui — retrucou Arletta, um tanto fria.

— Esperava encontrar uma governanta inglesa, e não alguém assim!

— Não compreendo o que minha aparência tem a ver com minha presença aqui, monsieur. Vim para ensinar inglês.

— Talvez fosse melhor eu me apresentar. Sou Jacques de Sauterre, conde Jacques, se quiser ser formal. Sou primo do duque e, quando não estou em Paris, vivo aqui, no castelo.

Arletta sorriu.

— Cheguei anteontem, monsieur le comte, e ainda não me inteirei sobre todos os moradores do castelo.

— Isso não me surpreende. E as crianças não devem ter ajudado. São uns monstrinhos muito cansativos, a não ser quando os ameaçamos.

Parecia estar brincando mas, para espanto de Arletta, David o olhava furioso e Pauline havia se virado de costas para o primo.

— Como pode ver, somos uma grande família feliz — disse o conde em tom sarcástico. — Suponho que ainda não tenha conhecido a duquesa.

— A duquesa?! — gaguejou Arletta.

Nunca lhe ocorrera que pudesse haver outra mulher no castelo.

— A avó do duque. Está muito velha e doente, e raramente se incomoda com visitantes, a menos que esteja curiosa.

Olhou para Arletta de um jeito levemente insultante.

— Mas tenho certeza, Srta. Turner, que ela ficará muito, muito curiosa em conhecê-la.

Qualquer coisa na maneira como dissera isso fez Arletta enrijecer.

— Desculpe-me, mas estou ocupada tentando achar um livro que interesse Pauline.

— Se espera encontrar algum livro em inglês, aqui, perca as esperanças.

— Não tinha essa pretensão. Mas não consigo encontrar um catálogo e está difícil saber o que há.

— Deve haver um catálogo em algum lugar. Não posso acreditar que meu muito eficiente e caro primo não tenha tudo que lhe diz respeito na mais perfeita ordem.

Havia um tom sarcástico e bem maldoso em sua voz e Arletta limitou-se a caminhar até onde estava Pauline, que folheava um livro.

— Vamos levar este conosco?

— Não, este é muito sem graça — replicou a menina. — Queria um livro com uma porção de passarinhos e flores, ou então com gravuras da Inglaterra.

O conde riu.

— Isso você não vai encontrar aqui. E seu tio, se ouvi-la dizendo isso, ficará muito bravo!

Pauline não lhe deu atenção.

— Procure um para mim, mademoiselle.

— Farei o possível, mas nem sei por onde começar. Arletta tentou ignorar a presença do conde, que estava atrás dela, olhando-a de modo um tanto impertinente.

Em seguida, como se tivesse finalmente decidido, falou:

— Gostaria de ter uma conversa a sós com mademoiselle. Poderia acompanhar-me até o fundo da biblioteca?

Arletta hesitou.

Teve vontade de dizer que não tinha nada para conversar com ele mas, pensando melhor, seria um erro não tratar bem os parentes do duque.

Com relutância, e pedindo a David, em inglês, que continuasse a procura, dirigiu-se para o outro extremo da biblioteca, onde ficava uma enorme lareira, rodeada por um sofá e várias cadeiras.

Sentou-se no sofá e imediatamente arrependeu-se, pois o conde sentou-se a seu lado, um pouco mais próximo do que era necessário.

Baixando a voz, ele disse:

— Cometeu um grande erro ao vir para cá.

— Um erro? Por quê?

— Vai achar tudo aqui muito entediante. Há muitos outros lugares na França bem mais interessantes e onde, com seu rostinho tão belo, seria um enorme sucesso, mademoiselle.

— Não sei do que está falando, monsieur. Vim para cá ensinar inglês aos sobrinhos de lady Langley, minha amiga, e é o que pretendo fazer.

— Já que insiste, mademoiselle, deixe-me pelo menos ajudá-la. Não será fácil lidar com o duque. Ele resolveu odiá-la de antemão, e sua vida no castelo, quando o primo regressar, vai ser muito desconfortável.

— Tenho certeza de que pretende ser gentil, monsieur, mas, como o duque ainda não chegou, irei fazendo o melhor que posso.

— A mim isso basta. Como já lhe disse, cuidarei, ajudarei e guiarei seus passos, mademoiselle.

Arletta ergueu-se.

— Fico-lhe muito grata pela gentileza. Mas, sendo inglesa, sou perfeitamente capaz de cuidar de meus próprios passos.

Afastou-se do conde, que não tentou detê-la.

Ouvindo-o rir baixinho, reconheceu em Jacques o tipo de francês contra o qual Jane a havia prevenido.

Não tinha gostado dele e começou a temer que fosse tornar tudo mais difícil, e não, como havia oferecido, mais fácil.

Com grande alívio, percebeu que o conde os havia deixado e, assim que conseguiu alguns livros com gravuras, voltou para a sala de aula.

Nem bem haviam entrado, David disse:

— Não gosto do primo Jacques.

— Nem eu — ecoou Pauline, não querendo ficar de fora.

— Por quê?

Arletta percebeu que, de novo, David olhava por cima do ombro, como se temesse ser ouvido.

— Há qualquer coisa nele que não me deixa à vontade. Não sei explicar por quê. — O menino parecia confuso. — Mamãe costumava dizer que a gente deve emitir ondas de bondade, para que as pessoas gostem de nós, mas as ondas que vêm do primo não são boas.

Fora exatamente isso o que Arletta sentira, mas espantou-se de ver um menino tão pequeno com tanta percepção.

Talvez o fato de viver em condições tão estranhas, no castelo, o tivesse feito diferente das outras crianças.

Se fosse esse o caso, então a escola, na Inglaterra, seria ainda mais difícil para ele.

— Acho que o melhor seria tentarmos gostar de todo mundo — disse Arletta, para desanuviar o ambiente. — Nem sempre é possível, mas não custa tentar.

David, porém, não estava ouvindo. Brincava com seus soldadinhos.

— É uma coleção maravilhosa. Quem lhe deu?

— Tio Etienne. Ele mandou fazer especialmente para mim, mas acho que a idéia não era me agradar. Acho que queria que me interessasse em ser soldado do Exército francês!

Arletta mais uma vez se surpreendeu com o curso inusitado dos pensamentos de David para um menino de onze anos. Não sabia se devia encorajar ou suprimir tal tendência. O que teria feito Jane, em seu lugar?

Jane, como dizia o próprio pai, tinha os pés bem firmes no chão. Arletta tinha certeza absoluta de que a moça teria enfrentado o castelo de uma maneira prática, direta. Para ela, porém, aquele lugar possuía magia, aliada àquela atmosfera de opressão ameaçadora.

Durante a tarde, haviam prosseguido com as explorações e Arletta descobrira que parte do edifício principal era de construção mais recente à das torres.

Naquela parte, o pé-direito era tão alto e as tapeçarias, quadros e candelabros de cristal tão lindos, que o difícil era se convencer de que não estava num castelo encantado.

Pouco antes do jantar, quando as crianças já haviam subido para se trocar e Arletta se preparava para fazer o mesmo, um dos lacaios trouxe-lhe um recado:

— Madame Ia duchesse deseja vê-la, m'mselle.

Arletta seguiu-o, curiosa por conhecer a avó do duque.

Perguntava-se se seria parecida com sua avó, de quem se lembrava vagamente, com seus cabelos muito brancos, feições delicadas e mãos alongadas, gentis.

Sua avó era uma senhora muito digna e sentava-se como se as costas estivessem apoiadas numa vareta. Traía-se, porém, nos olhos, sempre muito brilhantes e vivos, e na risada, delicada e melodiosa.

Quantas vezes não desejara que a avó tivesse vivido um pouco mais.

Talvez a duquesa se parecesse com ela, pensava Arletta.

O lacaio a conduziu ao outro lado do castelo, uma parte que ainda não tivera tempo de explorar.

Subiram então por uma magnífica escadaria, até o primeiro andar, onde os esperava uma velha criada.

— Boa tarde, m'mselle — disse com polidez, virando-se em seguida para o lacaio. — Espere aqui, Jean, senão m'mselle não achará o caminho de volta.

Arletta seguiu a criada por um portal até um pequeno hall, onde havia duas portas, e no instante seguinte estava dentro do quarto da duquesa.

Ela nunca vira algo parecido. A cama era enorme, sobre um estrado, atrás do qual corriam cortinas pendentes do teto.

Recostada sobre um número incontável de travesseiros, achava-se a velhinha mais estranha que Arletta já encontrara.

Era velhíssima. Seu rosto, que talvez tivesse sido bonito, era enrugado e marcado como pergaminho chinês.

O cabelo era branco, mas tão habilmente arrumado que Arletta suspeitou tratar-se de uma peruca.

Em volta do pescoço, trazia bem uma dezena de fios de pérolas enormes, e nas orelhas brincos de diamantes resplandecentes, que rebrilhavam a cada movimento da cabeça.

Suas mãos, de veias azuladas, mal podiam com o peso dos anéis, e em cada pulso havia pelo menos meia dúzia de braceletes.

Embora fosse verão, a cama estava coberta por uma colcha de arminho que começava a amarelecer nas bordas.

Ao se aproximar, Arletta percebeu que, embora fosse muito velha, a duquesa registrava cada detalhe de sua aparência com um olhar penetrante.

Arletta fez-lhe uma mesura e esperou que falasse primeiro:

— Você é Jane Turner, que veio para ensinar meus bisnetos?

— Sou eu, madame.

— Não acredito. Veio aqui para ver meu neto, foi para isso que veio!

— Asseguro-lhe, madame, que vim ao castelo porque lady Langley pediu-me para ensinar inglês a seus sobrinhos, depois de ter constatado, quando aqui esteve, recentemente, que nenhum dos dois falava sua própria língua.

— Sua própria língua?! — retrucou a duquesa. — É melhor que meu neto não a ouça dizendo isso! Ele odeia os ingleses, e ninguém poderá culpá-lo por isso. Se pretende caçá-lo, está indo pelo caminho errado!

— Está muito enganada, madame, se é isso que pensa de mim. Não imagino quem possa ter-lhe dito tamanha bobagem, totalmente falsa.

Se por acaso Jane se visse diante de uma acusação tão ridícula, pensou Arletta, teria ficado constrangida e perturbada.

Depois percebeu que a pobre e feiosa Jane nunca teria sido acusada de estar tentando caçar ninguém, muito menos o duque de Sauterre.

A duquesa olhou-a de alto a baixo.

— Você é muito bonita, devo admitir. Mas aqui não é lugar para exibir sua beleza. Quanto antes voltar para o local de onde veio, tanto melhor, para você e todos os demais. Asseguro-lhe que meu neto não tem tempo a perder com governantas.

— E eu lhe asseguro, madame — respondeu Arletta, pausadamente e com voz clara —, que não estou interessada em seu neto, que nem conheci ainda. Apenas nas crianças, a quem vim ensinar.

Fez uma pequena mesura, virou as costas e encaminhou-se para a porta.

Já tinha quase chegado até lá quando a duquesa gritou:

— Attendez! Como ousa ir embora antes que eu tenha terminado o que tenho a lhe dizer? Volte imediatamente!

Arletta voltou-se, mas não fez nenhum movimento. Limitou-se a olhar para a duquesa, de cabeça erguida. Subitamente, a velha senhora riu.

— Pelo menos, seja quem for, tem espírito e coragem! A maioria tem medo de mim.

Arletta não respondeu.

— Venha até aqui. Quero vê-la de perto!

Devagar, relutante, Arletta dirigiu-se para onde estava a duquesa.

— É muito bonita, e é uma lady — disse a velhinha, como se falasse consigo. — Por que Jacques estaria tão ansioso em se ver livre de sua presença?

Arletta também gostaria de saber por quê, mas não adiantaria dizer isso à duquesa.

Alguns instantes depois, falou:

— Com sua licença, madame, mas se não for agora me atrasarei para o jantar, o que, nesta casa tão bem organizada e pontual, seria um crime, tenho certeza.

A duquesa sorriu.

— Tem razão quanto a isso. Mas quero vê-la de novo, compreende? Amanhã voltarei a chamá-la, e aí poderá me contar tudo a seu respeito.

— Obrigada, madame. Boa noite!

O lacaio esperava-a do lado de fora, para conduzi-la de volta à torre.

Chegando, Arletta agradeceu e o lacaio comentou:

— Velhinha esquisita, não é? As pessoas pensam que ela é uma bruxa! Sabe, existe uma bruxa de verdade no povoado e, se quiser ler sua sorte, não existe ninguém melhor.

— Acho que não seria interessante saber o futuro com antecedência. Mas o que o faz pensar que a mulher na aldeia seja uma bruxa?

— Ela é bruxa, sim. É preciso tomar cuidado para não ofendê-la.

— Tomarei todas as precauções. E obrigada mais uma vez.

Galgou as escadas até seu quarto, pensando que as coisas no castelo ficavam cada vez mais estranhas.

Nunca tinha conhecido alguém tão extraordinário quanto a avó do duque.

Todo mundo, porém, parecia estar lhe avisando para não ficar naquele castelo. O que fazia Arletta ainda mais curiosa para descobrir por que as pessoas queriam se ver livres dela.

Não se esquecera do que David dissera, que o tio era um assassino.

“Não pode ser verdade”, pensou, enquanto se vestia para o jantar.

Lamentou não ter avisado a criada para preparar-lhe o banho.

A criadagem era em número suficiente naquele castelo para que a tarefa não fosse muito árdua.

— Preciso deixar claro que quero um banho todas as tardes. O conde jantara com eles, monopolizando as atenções de Arletta. Nem Pauline nem David falaram muito.

Terminado o jantar, ela teve de recusar-se terminantemente a acompanhar o conde a um dos salões, alegando que precisava pôr as crianças na cama.

A babá de Pauline já esperava pela menina, e Arletta ficou a sós com David.

— Pelo que percebi, não gosta muito do primo Jacques.

— Não disse nada nesse sentido — retrucou Arletta. Sem se dar por achado, David continuou:

— Não falei que havia algo desagradável nele?

— David, sabe muito bem que não devo criticar ninguém neste castelo.

— Mas eu não vou contar a ninguém, mademoiselle. Só precisamos ter cuidado para que não nos ouçam.

— E quem estaria interessado em nos ouvir? David sacudiu os ombros.

— As criadas escutam a gente para contar à minha bisavó, os criados nos espreitam em nome de tio Etienne.

— Não acredito, David! Por que iriam nos espionar?

— Não sei… — David repetiu seu gesto típico, sacudindo os ombros.

— O que eu acho é que você e sua irmã ficam muito isolados aqui. Deve haver outras crianças nas vizinhanças.

— Mesmo que houvesse, tio Etienne não deixaria que chegássemos perto. Mas tio Jacques tem muitos amigos.

Arletta quis perguntar quem eram esses amigos, mas resolveu que seria um erro.

Ao recolher-se para dormir, teve vontade de escrever para Jane, na Jamaica, contando-lhe tudo. Todas as coisas extraordinárias que estava presenciando no castelo.

“Se fosse mais esperta, escreveria um romance”, pensou. “Se bem que, no momento, está faltando o herói.”

Na manhã seguinte, para alívio de todos, o conde não apareceu. Tinha ido visitar alguns amigos.

— Será muito melhor sem ele — disse David sombriamente. — O primo diz uma coisa mas seus olhos dizem outra muito diferente.

— Você se deixa impressionar muito, David. Garotos da sua idade devem pensar em críquete, cavalos e, claro, nas lições de casa!

— Penso em tudo isso, exceto críquete. Tio Etienne diz que é um jogo inglês. Mas quando entrar para Eton vou aprender a jogá-lo.

— Posso ensinar como se joga, David. Quem sabe um dos criados quer ser o arremessador?

David gostou da idéia, e Arletta foi ter com monsieur Byien, para pedir-lhe autorização.

Era estranho que ela, enquanto governanta, pudesse fazer as refeições na sala de jantar da família, enquanto monsieur Byien almoçava e jantava sozinho.

Encontrou-o em seu escritório e, quando explicou o que desejava, o pobre secretário ficou ainda mais preocupado do que já estava.

— Creio que o melhor é esperar e pedir diretamente ao duque.

— Mas pode ser que ele demore um tempão para voltar. Acho importante que David aprenda as regras deste jogo. E ele está tão entusiasmado. Seria um erro desanimá-lo com promessas.

Monsieur Byien parecia vencido.

— Muito bem, mademoiselle. Eu mesmo já joguei críquete quando menino. Se não estiver muito enferrujado, farei os arremessos para vocês.

O jardineiro colocou alguns tocos para marcação e, para surpresa de Arletta, monsieur Byien apareceu com um taco e uma bola de críquete, velhíssimos, mas utilizáveis.

Com um pouquinho de prática, David começou a manejar o taco com destreza, e a perder cada vez menos bolas.

Monsieur Byien foi o primeiro a parar, dizendo-se já muito idoso para tanto exercício. Não sem antes prometer que faria uma pesquisa entre os rapazes da criadagem, para ver quem gostaria de treinar com David, no dia seguinte.

— Preferiria jogar com o senhor. É um companheiro extraordinário — disse David em impecável inglês.

Arletta não pôde deixar de rir.

— Este é um elogio e tanto, monsieur — o secretário teve que concordar, sorrindo.

De volta ao castelo, Arletta tinha a sensação de ter conseguido muita coisa, em pouco tempo, mas ainda havia bastante por fazer.

Naquela tarde, Pauline havia se exercitado tanto que não conseguiu descer para o jantar, ficando com a babá. Arletta e David estavam a sós.

Podiam falar à vontade em inglês, sem interrupções, a não ser quando o menino queria dizer alguma coisa muito depressa. Aí tinha que recorrer ao francês.

Arletta teve a impressão de que, pelo menos momentaneamente, o garoto parara de olhar sobre os ombros e de falar mal do tio.

A duquesa não mandara chamá-la e, depois que David foi para o quarto, Arletta ainda tinha umas duas horas para si, antes de deitar.

Com satisfação, notou que uma das lindas camisolas da mãe estava sobre a cama. Vestiu-a, ansiosa pelos momentos que teria para si.

Percebeu, então, que não tinha nada para ler.

Tivera a intenção de passar pela biblioteca para pegar um livro, mas acabara esquecendo.

Arletta ficou desolada, mas de repente lembrou que, àquela hora, o castelo estaria completamente vazio.

Impulsivamente, saiu do quarto e dirigiu-se para um dos salões, no prédio principal. Vestia apenas a camisola e o belíssimo négligé azul da mãe.

Sabia que todos os criados estariam recolhidos a suas dependências, à exceção do lacaio que ficava de guarda no hall da entrada principal.

As chinelinhas macias não faziam barulho algum, além do que não havia ninguém para escutá-lo.

Atravessando os extensos corredores que conduziam aos salões, começou a compreender por que adultos e crianças naquele castelo tinham a imaginação tão exacerbada.

A antiguidade do lugar e as sombras espessas nas paredes convidavam aos devaneios ameaçadores.

O sol já havia se posto no horizonte, mas o céu ainda estava arroxeado quando Arletta entrou no salão que considerava o mais bonito.

Ficava no centro do edifício, e era conhecido como o salão de baile. Estava mobiliado com elegantes sofás Luís XIV e tapetes de Aubusson, pontilhados de cores vivas.

Das paredes pendiam tapeçarias antiquíssimas, em tons rosados. Os longos espelhos de moldura dourada, entre cada janela, refletiam o rosa das tapeçarias e mesclavam-se à cor do céu.

Era tudo tão adorável que Arletta sentiu-se uma princesa antiga, recebida regiamente pelo duque de séculos atrás.

Num dos cantos do salão havia um piano branco, incrustado com porcelana de Sèvres. Como faltasse música à cena que Arletta imaginara, sentou-se ao piano para tocar uma valsa de Strauss.

A melodia espalhou-se pelo ambiente, enquanto o sol lançava seus últimos raios sobre a Terra, deixando atrás de si apenas o misterioso lusco-fusco.

Arletta teve uma idéia.

Ao entrar, notara uma longa vara, com um círio na ponta, usada para acender os candelabros que pendiam do teto.

Não via motivos para não iluminar o salão e aproveitar inteiramente o momento.

Sobre o piano havia um castiçal e uma caixa de fósforos. Acendeu este primeiro e depois o círio da vareta. Com ele pôs fogo nas velas do candelabro central. Na verdade só conseguiu alcançar as mais baixas, mas mesmo assim acendeu quase uma dezena de velas.

O salão inteiro encheu-se de vida.

E a imaginação de Arletta povoou-se de damas esplêndidas, com altas perucas empoadas e amplos vestidos de anquinhas.

Depois vieram os cavalheiros, também de perucas empoadas, os cabelos presos na nuca por grandes laços de veludo, de punhos rendados, cheios de mesuras.

Sentou-se novamente ao piano, dedilhando um minueto que trazia os pares imaginários para o meio do salão.

Nesse passeio pelo tempo chegou, como era inevitável, a seu próprio tempo. Viu-se então vestida em saias muito rodadas, rodopiando ao som melodioso de Strauss.

Seus dedos voavam sobre o teclado até que não pôde mais conter sua fantasia e saiu, volJeando pelo salão, deslizando no chão polido.

O négligé era estreito demais para os passos da valsa. Impaciente, atirou-o sobre uma poltrona e voltou a rodopiar.

Arletta vestia agora apenas uma camisola de finíssima cambraia transparente, entremeada de rendas. Mais nada.

Sem precisar olhar-se no espelho, tinha certeza de que se parecia a uma princesa encantada, saída de um conto de fadas.

Levada totalmente pela imaginação, deslizava pelo imenso salão, cantarolando a melodia que até há pouco dedilhara no piano.

Seu parceiro era o rapaz alto, moreno, bonito, que nunca deixara de povoar seus sonhos.

De repente, em meio aos volteios graciosos que dava sob o candelabro, abriu os olhos e viu o homem de seus sonhos bem na entrada do salão!

Arletta estacou imediatamente, enrijecendo todos os músculos. Aquele homem era real, e não produto de sua imaginação fértil.

Não havia necessidade de ninguém lhe dizer. Estava diante do duque de Sauterre!

 

Arletta sentiu-se paralisada, plenamente consciente de que vestia somente uma camisola e de que seus cabelos estavam espalhados em desalinho pelo ombro.

O duque olhava para ela como se não pudesse acreditar em seus próprios olhos.

Era mais alto que a média dos franceses e, embora tivesse cabelos escuros, sua pele era muito clara. Tinha as feições bem-delineadas e bonitas.

O que assustava nele, pensou Arletta, era a expressão do olhar e as pálpebras ligeiramente semicerradas.

Da base do nariz aos cantos da boca, uma linha profunda e cínica marcava-lhe a expressão.

Com uma voz que parecia fazer o ambiente todo vibrar, perguntou:

— Quem é você? Qual é seu nome?

— Arletta… Jane Turner!

Houve uma pausa perceptível entre as duas primeiras palavras. Assustada com o súbito aparecimento do duque, Arletta esquecera-se momentaneamente do papel que desempenhava. Seu nome verdadeiro viera-lhe automaticamente aos lábios.

Enquanto falava, fez um esforço tremendo para se mexer e apanhar o négligé que jazia sobre uma das poltronas.

— Não me diga que é a governanta inglesa enviada por lady Langley!

— Exato… e peço desculpas… mas ninguém esperava o seu regresso esta noite.

As palavras vinham-lhe com dificuldade à boca.

O duque continuava a olhá-la com um jeito ameaçador por debaixo das pálpebras semicerradas. Mas, já com o négligé, e um pouco mais recuperada do susto, Arletta conseguiu repetir numa voz normal:

— Peço-lhe desculpas, monsieur le duc. A beleza desta casa me… fez voltar ao passado!

— E resolveu acender os candelabros e tirar a roupa para completar sua ilusão?

O duque falava como se ela tivesse cometido um ato indecente, um crime mesmo.

Arletta enrubesceu, antes de gaguejar:

— Não posso fazer mais nada, exceto desculpar-me. Espero… monsieur le duc… que aceite minhas desculpas e. .. minha palavra de que isto não voltará a acontecer.

Houve um momento de silêncio antes que o duque dissesse:

— Mademoiselle é realmente a governanta inglesa que eu aguardava?

— S-sim.

Por algum motivo, era difícil mentir. Arletta tinha certeza de que não soara convincente.

Fez mais um esforço e foi até o piano, fechá-lo.

Sabia que o duque continuava a observá-la e sentiu-se totalmente amedrontada.

“Como pude ser tão tola?”, questionava-se, em desespero.

Notou, então, que o duque havia se aproximado.

— Devo apagar os candelabros, monsieur le duc?

— Os criados farão isto. Amanhã, Srta. Turner, quando estiver mais adequadamente vestida para o papel para o qual foi contratada, gostaria de lhe falar.

— Naturalmente, monsieur. Fez-lhe uma pequena mesura e, sem olhar para trás, saiu do salão.

Andou devagar, tentando preservar sua dignidade, até que, não se contendo mais, saiu numa corrida desabalada pelos corredores do castelo em direção à torre.

Em seu quarto, percebeu que tinha se defrontado com um dos dragões que imaginara vivendo nos bosques. Não sabia se tinha sido aniquilada ou se saíra ilesa.

— Como é que eu iria adivinhar, como poderia saber, que ele voltaria hoje?

Naquela noite, demorou a pegar no sono.

Acordou com o coração pesado, apreensivo. Tinha medo que o duque a mandasse embora.

Não havia dúvida de que ficara espantado. Se ele já não apreciava a idéia de uma governanta inglesa em sua casa, a cena da noite anterior deveria ter aumentado seus preconceitos.

Era, portanto, muito possível que fosse mandada embora imediatamente.

Arletta rezava para que isso não acontecesse.

Queria ficar e sabia que, se fosse despedida, os mistérios do castelo a perseguiriam por muito tempo.

Seria enfurecedor não descobrir a resposta para todas aquelas dúvidas que a assaltavam e para as quais não tinha explicação plausível.

A primeira coisa a fazer, porém, a menos que quisesse ser despedida vergonhosamente, era causar uma boa impressão. Precisava criar o ar de respeitabilidade que o duque esperava de uma governanta.

Puxou os cabelos para trás, usando uma dezena de grampos para mantê-los no lugar. O que pensaria um homem de qualquer mulher que dançasse com aquele abandono, e de camisola? Tal comportamento, por parte de uma governanta, era indesculpável.

Procurava consolar-se, dizendo que a culpa era do duque, que entrara em seu próprio castelo de maneira tão sub-reptícia, sem avisar ninguém de sua chegada.

— Sabe que tio Etienne chegou, mademoiselle? — perguntou David assim que a viu.

— Quando é que ele chegou? — retrucou evasiva.

— Pouco depois que fomos deitar.

— Agora que tio Etienne está de volta, vai estragar tudo.

— Está sempre zangado e, quando se zanga, fico com dor de barriga — disse Pauline.

Arletta compreendia perfeitamente a menina.

Com seu vestido menos atraente e os cabelos severamente puxados para trás, Arletta desceu com as crianças para a sala onde a família fazia o desjejum. Mas o duque não estava lá.

— Onde está tio Etienne? — perguntou David a um dos copeiros.

— Monsieur le duc já fez seu desjejum.

— Ótimo — murmurou David, sem se conter.

Sentou-se e devorou com apetite os croissants quentes em que espalhava porções generosas de manteiga, feita com leite da propriedade, e mel, também proveniente das muitas colméias espalhadas pela herdade.

Como inglesa, Arletta acreditava que as crianças deviam começar o dia com algo mais substancial, como ovos, por exemplo, e não com tanto pão, por mais delicioso que fosse.

Mas sabia que seria inútil propor a mudança de hábitos, que o duque não toleraria.

Arletta não tinha apetite. Estava apreensiva. Assim que as crianças haviam terminado o desjejum, veio o chamado que esperava.

— Monsieur le duc deseja vê-la, m'mselle. Era uma ordem!

Como se estivesse se dirigindo para a guilhotina, Arletta cruzou os corredores que levavam aos apartamentos privados do duque, próximos à biblioteca.

Eram aposentos que nunca vira, pois as crianças haviam dito em tom proibitivo:

— Estas são as dependências de tio Etienne!

O lacaio postado à entrada abriu-lhe a porta. O dono do castelo estava de costas, junto à janela.

Delineado de encontro à luz do sol, Arletta confirmou a impressão da noite anterior, de que não havia nada de deformado no físico do duque. Era esbelto e atlético, e suas roupas caíam-lhe como se tivessem sido feitas pelos mais hábeis alfaiates da Inglaterra, em Saville Row.

Ele ficaria furioso se tivesse a menor idéia do que se passava pela cabeça de Arletta, que não pôde, porém, se furtar de lembrar do pai, que dizia: “Todos os cavalheiros elegantes da França fazem suas roupas em Saville Row, e todas as damas elegantes da Inglaterra vão a Paris comprar seus vestidos”.

Arletta continuava perto da porta, ciente de que o duque sabia de sua presença.

Ele, por sua vez, se demorava a falar, como se quisesse reafirmar sua autoridade e humilhar Arletta.

— Mandou me chamar, monsieur? — perguntou Arletta, com voz clara e pausada.

Sabia, ao vê-lo voltar-se, que ele se surpreendera com sua audácia em dirigir-lhe a palavra em primeiro lugar.

Olhava-a de alto a baixo. Tinha o ar de quem duvidava que ela fosse quem dizia ser. Também parecia estar procurando um defeito qualquer.

Muito devagar, com as costas muito eretas, Arletta deu alguns passos em sua direção.

Como ele já estivesse se encaminhando até ela, encontraram-se no meio da sala.

Estavam diante um do outro, e Arletta fez uma breve, mas graciosa mesura, dizendo:

— Ia justamente começar a aula de David, monsieur, o que fazemos todos os dias depois do desjejum até o meio-dia.

— Aula de inglês!

A maneira como disse isso fez da aula uma atividade verdadeiramente abominável.

— Esse, monsieur, é o motivo de minha presença aqui.

— Sei disso. Ontem à noite, porém, mademoiselle estava muito à vontade em meu castelo.

Havia um tom de acusação na voz do orgulhoso nobre.

— Não acho que seja a expressão mais adequada, monsieur. Não estava “me fazendo à vontade” em seu belíssimo salão de baile. Estava apenas visitando o passado, vendo o salão da maneira como deve ter sido na época de Luís XIV.

Estava tentando ser valente, mas sua voz tremia e, sem saber, seu olhar estava assustado.

O duque afastou-se um pouco, indo postar-se diante da magnífica lareira de mármore.

Voltou-se e disse de súbito:

— Sente-se, Srta. Turner.

Arletta sentou-se na cadeira mais próxima e, ao fazê-lo, notou que o estofamento estava bordado em petit point, um exemplo maravilhoso do século XVIII.

— Obrigada.

Sentia os joelhos fracos, mas não tinha a menor intenção de deixar que ele percebesse o quanto se sentia intimidada. O duque manteve o suspense durante alguns instantes.

— Agora, Srta. Turner, gostaria que me explicasse por que a história deste castelo e de meus ancestrais carregou-a ao reinado da fantasia. Isto é muito raro numa prosaica governanta inglesa.

Arletta não pôde deixar de notar o sarcasmo de sua voz, cortante como o fio de uma navalha, como se a punisse mentalmente pelo comportamento que tivera na noite anterior.

— Até mesmo os ingleses, monsieur, sabem usar a imaginação. Para mim, este castelo é extremamente belo, e ao mesmo tempo excitante.

— Não se sente intimidada com ele, ou com seus moradores?

— Para a primeira parte de sua pergunta, monsieur, a resposta é… não! Quanto à segunda, ainda não… estou certa.

Teve a ligeira impressão de que os lábios do nobre haviam tremido imperceptivelmente, como se estivesse se divertindo.

— Lady Langley, mademoiselle, deu-me as melhores referências possíveis em relação tanto a seu caráter quanto a seu comportamento. Acha-as consistentes com a maneira como se comportou ontem à noite?

— Já me desculpei, monsieur — disse Arletta com frieza. — Não tinha idéia, sendo tão tarde, e naquela parte deserta do castelo, que seria vista por alguém.

O duque não se manifestou, e depois de alguns instantes Arletta completou:

— Saí do meu quarto somente porque queria pegar um livro na biblioteca. Depois encantei-me com o salão, e tive vontade de tocar um pouco de piano. Não premeditei a dança. Ela aconteceu, simplesmente.

— Costuma ter esses impulsos, mademoiselle? Da forma como fala, tenho a impressão de que se deixa facilmente levar por sua imaginação. Isto me parece um pouco perigoso, para uma governanta.

Suas últimas palavras traziam um inegável tom de ironia. Arletta teve a vívida sensação de que zombava dela.

— Acredito, monsieur, que, sob vários aspectos, a imaginação seja um atributo aconselhável a uma governanta. Afinal de contas, precisa-se dela para criar, na mente das crianças, um interesse pelo que se ensina.

— É isso que faz?

— Eu tento — respondeu Arletta, de cabeça erguida. — E as crianças reagem bem, porque, quando são normais, sempre têm uma imaginação muito aguçada. Imaginação que se atrofia ou desaparece depois que crescem.

Arletta falava com convicção, simplesmente porque achava que o duque usava a imaginação de David e Pauline como uma arma. Parecia querer assustar as crianças, inculcando-lhes o medo da Inglaterra e dos ingleses.

— Compreendo o que está querendo dizer, mademoiselle, e ao mesmo tempo tenho a impressão de que estou sendo criticado.

O duque era bem mais perspicaz do que supunha Arletta.

— Não cabe a mim, monsieur, qualquer coisa remotamente parecida a uma crítica. Mas tenho certeza de que já percebeu que David é um menino cheio de imaginação e muito sensível. Talvez seja assim por viver aqui, neste castelo. Talvez seja porque, como órfão, aprendeu a depender somente de si próprio, sem ter ninguém a quem recorrer.

Tinha certeza que suas palavras o haviam surpreendido.

— Para qualquer um de nós, a imaginação pode ser algo maravilhoso, algo que nos inspira, nos guia e nos conduz. Mas também pode ser perigosa, assustadora e, às vezes, inibidora.

— De novo estou tendo a impressão, mademoiselle, de que está se dirigindo diretamente a meu comportamento, e de que suas palavras têm um sentido duplo.

— Monsieur, só me resta pedir desculpas uma vez mais. Minha preocupação diz respeito tão-somente a David e às reações que o menino possa ter às coisas que lhe ensino, ou àquilo que ouve…

Arletta teve receio de ter ido longe demais. Talvez o duque considerasse suas palavras impertinentes e resolvesse usá-las como desculpa para se livrar dela. Mas ele se limitou a dizer:

— É difícil acreditar, Srta. Turner, diante de sua aparência tão jovem, que tenha tido muita experiência no ensino. Entretanto, fala como se tivesse estudado o comportamento humano por muitos anos e se preocupado com disciplinas que não fazem parte do currículo normal.

— Sinto-me honrada, monsieur, que pense assim.

Diante do silêncio daquele homem taciturno, Arletta sentiu que devia dizer mais alguma coisa.

Não sabia, porém, exatamente o quê. Ele percebeu, então, que a conversa tinha chegado a um fim mais ou menos brusco e disse:

— Acredito, Srta. Turner, depois dessa nossa conversa, que posso deixar o inglês de David por sua conta. Ao mesmo tempo, permita-me sugerir-lhe que, quando meu sobrinho entrar para a escola, em seu país, precisará de bom senso e praticidade, e não histórias da carochinha e fantasias que não podem ser provadas.

— Concordo inteiramente, monsieur, e, se me permite a impertinência, diria que tanto David quanto Pauline precisam de companheiros da mesma idade, com quem brincar.

— Por quê?

O tom da pergunta era brusco.

— Porque, monsieur, não é natural que as crianças cresçam tendo ao redor apenas adultos com quem conversar. Isto as torna velhas antes do tempo e dá origem às fantasias de que falava há pouco com tanto desdém.

Pareceu-lhe que os olhos do nobre faiscaram ao ouvi-la falar daquele modo, mas ele respondeu, arrastando um pouco as palavras, como se quisesse dar-lhes mais peso:

— As crianças francesas sentem-se felizes em ficar com suas famílias.

— Claro, sei disso, monsieur. Mas as famílias francesas normalmente são bem mais numerosas que a de David e Pauline. .. Se tivesse filhos, monsieur, David teria muitos primos com quem brincar. E o mesmo se aplica ao conde Jacques.

Como se não tivesse mais nada a acrescentar, o duque interrompeu o diálogo com um comentário abrupto:

— Não deve fazer David aguardá-la mais por suas aulas de inglês, Srta. Turner. Só espero que ele aproveite.

Arletta levantou-se:

— Também espero que sim, monsieur. Farei todo o possível para que ele se sinta ansioso em ir para Eton, e que lá seja tão feliz quanto seu pai o foi. — Acreditou ter visto um ar de desprezo no olhar do nobre, e acrescentou: — Para a maioria dos meninos, Eton, com seus jogos, seu ensino excelente e seu sentido de companheirismo, lança alicerces que duram para a vida toda. Eles nunca se esquecem da escola. Tenho certeza de que David não só vai gostar muito de lá como descobrirá os companheiros de que tanto precisa, embora nem ele tenha se dado conta disso.

Não esperou por sua resposta. Fez uma pequena mesura e dirigiu-se para a porta.

O duque avisou-a de longe:

— Informe a David que poderá sair a cavalo comigo, depois do almoço.

— Darei o recado, monsieur.

Assim que a porta fechou atrás de si, Arletta deu um suspiro de alívio.

Depois do duelo que travara com o duque, e fora um verdadeiro combate de palavras, Arletta tinha dificuldade em respirar.

Sabia que a conversa iria ser difícil, mas não previra que as palavras lhe sairiam da boca como se inspiradas por outra pessoa.

Espantara o duque, e ela própria tinha muito em que pensar.

“Por que não fui corajosa o suficiente para pedir-lhe que pare de envenenar a cabeça do menino contra Eton e contra o país de seu pai?”, recriminou-se instantaneamente.

Em seguida consolou-se porque, afinal, não tinha se saído de todo mal, considerando-se que era o primeiro encontro. E, como não tinha sido despedida, provavelmente haveria outros.

Assim que entrou na sala de aula, David deu um salto de onde estava e veio correndo a seu encontro.

— Está bem, mademoiselle? Tio Etienne não foi muito desagradável?

— Não, David. Estou bem. Agora vamos pôr mãos à obra e começar nossa aula de inglês. Você deveria ter feito a composição que passei ontem à tarde, em vez de ficar brincando com seus soldadinhos.

— Não estava com cabeça para escrever. Estava com medo de que tio Etienne a mandasse embora.

— E por que pensou que ele fosse fazer uma coisa destas?

— Porque você é inglesa e porque, quando ele voltou, ontem à noite, você estava tocando piano lá embaixo, no salão de baile.

— Como sabe disto? — sobressaltou-se Arletta.

— Ouvi o pajem de tio Etienne contando a um dos criados que, quando eles chegaram, ontem à noite, titio ouviu música vindo do salão de baile e desceu para ver o que estava havendo. Não teve medo, sozinha naquela parte do castelo, à noite?

— Não era tão tarde assim, David. Você tinha acabado de ir deitar. E eu já lhe disse várias vezes que não tenho medo de fantasmas. Acho que eles não passam de lendas para assustar os tolos. O que eu não sabia é que seu tio estava para chegar. Achei que ninguém fosse me ouvir.

— Se tivesse me pedido, teria ido com você.

— Você é um anjo, David. Mas eu só estava admirando a beleza do salão. Só quis ouvir uma valsa de Strauss tocada lá.

Tentou não dar importância à história, embora tivesse certeza de que, assim que fora descoberta, o fato se havia espalhado pelo castelo todo.

— Acho que você é muito corajosa. Tenho certeza que nenhum criado teria ido ao salão de baile sozinho.

Ficou quieto um minuto, mas não se aguentou:

— Como é que acendeu os candelabros?

— Mais tarde conto-lhe tudo, David. Agora é hora da nossa aula de inglês.

— Tio Etienne não mandou suspendê-las?

— Não, claro que não. Ele sabia que eu viria para cá para ensiná-lo a falar inglês. Tenho a impressão, David, de que você está transformando seu tio num monstro, num dragão, num bicho-papão, sei lá, só porque não tem outros assuntos para conversar.

— As pessoas falam mal de tio Etienne porque todos têm medo dele. Acham que matou sua esposa.

— Se isso fosse verdade, ele teria sido guilhotinado — respondeu Arletta, sem pestanejar.

— Alguém empurrou-a das ameias — explicou David, em voz baixa. — Não havia mais ninguém lá, exceto tio Etienne. As pessoas dizem que os dois se odiavam e que viviam brigando!

Arlette bateu com a mão sobre a mesa, querendo encerrar a questão.

— Não quero mais ouvir falar dessas tolices. É horrível, é errado e, com toda a sinceridade, não acredito numa palavra desta história.

David deu de ombros.

— Como quiser. Mas todas as pessoas neste castelo acreditam. E, também quando a condessa morreu, pouco antes da época em que devia se casar com tio Etienne, todo mundo disse que ele a matou porque não queria mais que ela fosse sua esposa.

Arletta suspirou.

— Se você insistir em continuar dizendo essas bobagens, David, essas malvadezas que, tenho certeza, são todas mentiras, vou começar a falar apenas em francês com você. Não lhe ensinarei mais inglês.

— Isto não é justo! — queixou-se o menino.

— É você que está sendo injusto. Na Inglaterra, uma pessoa é considerada inocente até prova em contrário. Talvez seja diferente na França. Mas tudo o que posso dizer é que, se seu tio fosse culpado das maldades de que o acusam, em qualquer país civilizado teria sido levado perante um tribunal, julgado e condenado à forca ou à guilhotina.

— Ele escapou porque é muito esperto!

— Se foi assim… melhor para ele! Pessoalmente, acho que tudo isso não passa de um monte de tolices imaginadas por um punhado de mulheres fofoqueiras que não têm nada melhor para fazer!

Arletta disse isso com raiva. Tinha certeza que fazia muito mal ao menino pensar tais coisas de um parente seu e relatá-las com tamanha satisfação.

Mas talvez estivesse tomando o caminho errado na questão. Portanto, acrescentou:

— Ouça, David. Isso tudo deve ter acontecido muito tempo atrás. Você é um menino inteligente, e devia se recusar a acreditar nessas histórias sobre seu tio, a menos que as pessoas que as vêm espalhando tenham provas irrefutáveis de que ele é, realmente, um assassino.

Como esperava, David ficou intrigado.

— Como é que eles poderiam provar?

— Não sei. Mas, como disse há pouco, na Inglaterra uma pessoa é considerada inocente até prova em contrário. Daqui por diante, quando alguém chegar contando uma dessas histórias sobre seu tio, sugiro que você diga: “Prove, prove e então acreditarei!” Esta é a única maneira justa e digna de um cavalheiro agir.

— Tem razão. Talvez seja um erro acreditar que foi tio Etienne quem empurrou tia Theresa das ameias. Ninguém sabe ao certo se ela gritou pedindo socorro ou se se atirou sozinha.

— Agora está sendo sensato — aprovou Arletta.

— Já a condessa — continuou David —, morreu envenenada. Era lindíssima, e morreu porque tomou muito láudano. Dizem que foi tio Etienne quem colocou o medicamento no café dela.

— Talvez tenha sido ela própria — retrucou Arletta.

— Dizem que ela não queria morrer. Ela queria casar-se com tio Etienne.

— Dizem. Dizem — repetiu Arletta. — As pessoas dizem qualquer coisa para contar uma boa história! Ouça o que lhe digo, David. Não acredite em nenhuma dessas maldades, a menos que tenha provas concretas de que são verdadeiras. Descubra alguém que viu seu tio pondo o láudano no café da condessa, ou alguém que consiga provar que ele comprou o medicamento com esse objetivo.

— Acho que sei o que quer dizer. Um homem não compraria láudano, não é verdade?

— Láudano é um remédio que algumas mulheres tolas tomam porque não conseguem dormir. Mas nunca ouvi dizer que os homens o tomassem, a menos que estejam feridos e o médico tenha receitado. Quando meu pai estava sofrendo de dores terríveis, o médico lhe receitou láudano, mas ele recusou, dizendo que somente as mulheres é que se anestesiavam.

Ao falar, lembrou-se de quantas vezes desejara que o pai não fosse tão corajoso e permitisse que o dopassem, de vez em quando. Pelo menos teria tido um pouco de sossego, sem seus berros, impaciências e queixas constantes.

David continuava intrigadíssimo com a história toda.

— Que tal esquecermos seu tio e todas essas coisas que aconteceram anos atrás e pensarmos no futuro? Cada minuto que a gente perde com seu tio é um minuto tirado da sua eficiência, quando for para Eton.

David sentou-se à escrivaninha e puxou o livro para si.

— Devo continuar traduzindo o que estávamos lendo ontem?

— Sou toda ouvidos — disse Arletta, sorrindo.

Ao descerem para o almoço, Arletta ficou satisfeita em ver que o conde Jacques também estava presente. Pensou que assim as atenções do duque não se concentrariam sobre ela e as crianças.

Estava certa, porque o conde começou imediatamente a falar sobre a propriedade, os cavalos e, mais tarde, sobre a situação política em Paris. Mesmo assim, enquanto falava, não tirava os olhos dela, o que a deixou preocupada. Não haveria nada mais desagradável do que levar o duque a pensar que estivera incentivando as atenções do primo.

Também não se esquecera do que a duquesa lhe havia dito, sobre o conde Jacques querer se livrar dela.

Preferindo não irritar o duque sem necessidade, falou em francês com as crianças, procurando dizer o mínimo possível, para que não pensassem que se estava intrometendo.

“Se não disser nada, provavelmente pensará que sou uma tola”, pensou. Percebeu que a posição de uma governanta era bastante precária e que era impossível agradar a todos, principalmente ao patrão.

Terminado o almoço, que fora uma refeição deliciosa, o duque e David saíram para andar a cavalo.

Arletta sentiu uma pontada no coração, ao vê-los partindo.

Temia que suas chances de cavalgar tivessem ido por água abaixo.

Quem sabe o duque iria proibi-la de andar a cavalo, ou talvez fizesse questão de sempre acompanhar David nos passeios. Neste caso, não haveria necessidade alguma de sua presença. Jamais chegaria a montar um daqueles magníficos animais.

“Eu o odeio!”, pensou Arletta, sabendo, no fundo, que não era verdade.

Lembrava-se agora do quanto ficara impressionada com ele à mesa, sentado à cabeceira como um verdadeiro rei.

Era um homem belíssimo, cuja personalidade marcante obrigava Arletta a olhá-lo e ouvi-lo com toda a atenção.

Tinha que admitir que estava intrigada e fascinada por esse homem, o mais extraordinário e surpreendente que já conhecera.

Voltou, um tanto desconsolada, para a sala de aula. De certa forma nem chegou a se surpreender ao encontrar lá o conde Jacques, esperando por ela.

Pauline, como de hábito, estava com a babá, e deveria descansar ainda uma hora, antes que Arletta pudesse levá-la para o jardim.

Ao entrar na sala, percebeu nos lábios do conde um sorriso que a deixou imediatamente apreensiva.

— Espero, monsieur, que não precise de mim agora, porque infelizmente tenho uma série de cartas muito importantes para escrever.

— É claro que preciso. Senti sua falta, ontem, e desejo que também tenha sentido a minha.

— Estava ocupadíssima, monsieur.

— Não me venha dizer que a conversa de dois pirralhos consegue satisfazer alguém tão inteligente quanto mademoiselle. Além do mais, tenho muitas coisas para lhe dizer.

— Só posso acrescentar, monsieur, que é uma pena. Como disse, tenho várias cartas que precisam pegar o correio desta tarde.

— Pois muito bem. Não vou tomar muito de seu tempo. Sente-se, por favor, Srta. Turner, porque o que tenho para lhe dizer é muito importante.

Com muita relutância, mas consciente de que não poderia fazer mais nada, sob pena de parecer rude demais, Arletta sentou-se em uma cadeira, e o conde acomodou-se diante dela. Como se achasse que a distância era grande demais entre eles, mudou de lugar, sentando-se ao lado de Arletta.

— Você é adorável! Não consigo entender como pode perder seu tempo e desperdiçar sua beleza e seu cérebro com algo tão entediante quanto dar aulas para crianças.

— Na verdade, monsieur, não considero minha tarefa entediante. Ao contrário, acho-a fascinante. Meu problema não são as crianças, mas sim os adultos.

Se Arletta imaginava que com esta resposta enervaria o conde, estava muitíssimo enganada, pois ele atirou a cabeça para trás, numa sonora risada.

— É uma pessoa muito franca, Srta. Turner. Mas isto, se não me engano, é uma peculiaridade tipicamente inglesa. Embora saiba que não exista uma inglesa que consiga receber elogios sem ficar sem graça, deixe-me dizer que a acho linda e extremamente desejável.

— Se é isto que tinha para me dizer, monsieur, irei agora para meu quarto, onde as cartas me esperam.

Teria se levantado da cadeira rapidamente, se ele não tivesse se apressado em acrescentar:

— O que tenho a dizer é verdadeiramente importante. Quero que analise com todo o cuidado a proposta que vou lhe fazer.

— Proposta? — ecoou Arletta, surpresa.

— Deixe-me levá-la a Paris. Posso mostrar-lhe todas as alegrias e divertimentos da cidade que, para mim, é a mais atraente do mundo.

Arletta olhou-o, perplexa. A expressão no olhar do conde respondia à pergunta que não ousaria fazer.

— Não posso acreditar, monsieur, que esteja querendo insultar-me!

— Acha realmente que é um insulto que eu queira fazê-la feliz, dar-lhe belos vestidos e muitas jóias… que nunca brilharão tanto quanto seus olhos?

— O senhor está me insultando! Levantou-se, indignada, e o conde imitou-a.

— Como pode ser tão tola a ponto de não compreender que, aceitando minha proposta, será a sensação de Paris? Todos os homens a quem eu apresentá-la cairão a seus pés.

— E o que isto significa para mim, monsieur? — perguntou Arletta, tentando ser irônica.

— Fama, sucesso, riqueza, uma posição que a maioria das mulheres daria a vida para ter!

— Neste caso, monsieur, sugiro que faça sua proposta a elas! No que me diz respeito, nunca, em circunstância alguma, mesmo que estivesse morrendo de fome, pensaria em aceitar uma proposta degradante como esta.

— Então permita-me que a torne mais atraente — insistiu o conde —, dizendo-lhe o quanto você me excita, o quanto a quero para mim, o quanto eu a faria feliz.

Aproximou-se, enquanto falava, mas Arletta recuou.

— Infelizmente, monsieur, o senhor não me atrai! Portanto, por mais estranho que possa parecer-lhe, prefiro continuar sendo uma governanta a ser sua amante!

O conde estendeu os braços, mas Arletta escapou a tempo, refugiando-se atrás da cadeira.

Com toda a agilidade, esquivou-se até a porta antes que ele pudesse alcançá-la. Voltou-se uma última vez, para acrescentar:

— A resposta, monsieur, é firme, decidida e definitivamente: não!

Não esperou pela resposta. Fechou a porta atrás de si e desabalou escada acima, em direção a seu quarto.

Trancou-se, ofegante, para o caso de o jovem resolver segui-la. Um pouco mais calma, pôs-se a pensar nas palavras exatas que ele lhe dissera. Percebeu então que não havia sido apenas um insulto. Havia um motivo estranho e escondido no comportamento do conde.

David dissera que havia algo insincero nele, algo falso. Arletta poderia jurar que não o atraía tanto quanto ele fizera crer.

Neste caso, por que estaria disposto a gastar tanto dinheiro com ela?

Preocupada, passou um longo tempo à janela, olhando os verdes campos que se estendiam diante do castelo.

Pouco abaixo da janela, corria o rio, placidamente. No passado, servira como barreira natural aos inimigos.

 “Hoje, eles estão aqui mesmo, dentro do castelo”, pensou Arletta, com tristeza.

Gostaria de saber se o duque tinha noção do estranho comportamento de seus parentes, ou do que se falava sobre ele.

Era muito amedrontador, mas havia qualquer coisa a mais por trás de tudo.

Conseguia ver agora com toda a nitidez a figura do duque sentado à cabeceira da mesa, em sua heráldica cadeira.

Era um verdadeiro membro da família real, alguém que dirigia seus domínios com mãos de ferro e combatia seus inimigos em batalhas das quais voltava sempre vitorioso.

Seus inimigos atuais, porém, estavam combatendo com uma campanha de murmúrios muito mais difícil de vencer.

“Será possível que tenha mesmo assassinado duas mulheres?”

Seu instinto lhe dizia que não, embora não tivesse nada de positivo para sustentá-lo.

Era óbvio que o duque inspirava medo, que era uma figura dominadora, cuja personalidade fazia os outros se sentirem intimidados e desconfortáveis.

Sendo a natureza humana como é, era inevitável que as pessoas não gostassem dele.

Assassinato, porém, era uma coisa bem diferente. Arletta, lembrando-se de seu porte nobre, da maneira como falava e se movia, não conseguia imaginá-lo conspirando para matar e depois encobrindo seus crimes com um ar de inocência.

Tal atitude não combinava com aquele homem, embora não soubesse dizer por que tinha certeza disso.

“Deve haver outra explicação”, pensou, ao mesmo tempo que desejava que houvesse outra pessoa, além de David, com quem pudesse conversar a respeito.

Movida por um impulso, e por se achar tão perturbada com a história do duque de Sauterre e a investida do conde Jacques, decidiu ir até a pequena igreja que ficava próxima aos portões do castelo.

Colocou um chapéu para proteger-se do sol, alto àquela hora do dia, e desceu pé ante pé, calculando que ninguém estaria na sala de aula.

A porta estava aberta e o aposento estava vazio.

Aliviada, Arletta seguiu pela passagem que a conduziria a uma porta lateral, onde não havia ninguém de guarda.

A passos rápidos, para que não fosse vista de uma das janelas, atravessou os portões do castelo, e num instante se achava no povoado que circundava as muralhas.

A igreja ficava a menos de cinquenta metros dali. Ao entrar, Arletta deu-se conta de quão antiga e bela era a construção.

Os pilares arredondados sustentavam um teto em arco que repousava sobre espessas paredes. A pequena nave era testemunho de uma congregação diminuta.

A antiguidade do lugar dava-lhe um ar de santidade e fé que Arletta reconheceu imediatamente.

Estava tudo muito quieto e, como as janelas fossem pequenas, a luz era quase inexistente, exceto pelo santuário, diante do qual brilhavam algumas velas.

Arletta surpreendeu-se rezando e pedindo forças para ajudar as crianças e, talvez, embora fosse um pedido estranho, para remover a sombra de medo que pairava sobre o próprio castelo.

— É tão belo, meu Deus! A beleza devia sempre significar amor e não ódio.

Ao erguer-se, teve a vontade súbita de acender uma vela, sabendo que, na crença dos católicos, enquanto a vela estivesse acesa, as preces subiriam aos céus.

Apalpou o bolso do casaco e, para sua surpresa, descobriu ali uma moedinha.

Na verdade era um xelim, que pusera no bolso no último domingo em que fora ao culto. Na hora do ofertório, por algum motivo, tirara o dinheiro da bolsa, esquecendo-se da moeda no bolso.

Com certeza o padre descobriria um jeito de trocar a moeda inglesa.

Colocou o dinheiro na caixinha de ferro e retirou uma vela, que acendeu diante da imagem.

— Por favor, ouça minhas preces.

Ao voltar os olhos para o santo, descobriu que estava falando com Santa Joana D'Arc.

Com um ligeiro sorriso nos lábios, Arletta imaginou que agora ela estaria trabalhando em prol da amizade entre ingleses e franceses, para evitar que novas guerras voltassem a acontecer. Onde quer que estivesse agora, Santa Joana diria a uns e outros para aprenderem o amor, ainda que houvesse tantas diferenças entre os dois povos.

— Grandmère me compreenderia — disse consigo mesma. Pela primeira vez, desde que chegara ao castelo, Arletta estava pedindo à avó que a ajudasse a compreender os franceses.

— Também tenho sangue francês, grandmère. Parecia-lhe, neste momento, ser a avó sorrindo bondosamente, concordando com ela.

Arletta terminou de rezar e saiu. O sol brilhava com todo o esplendor.

Viu então sair dos portões do castelo, em roupas comuns, já que estava de folga, o lacaio que a havia acompanhado até o quarto da duquesa.

— A senhorita por aqui, m'mselle.

— Eu mesma, Jean!

— Vejo que esteve na igreja. Mas, já que está no povoado, precisa ir ver a bruxa.

— Não, não. Não poderia fazer uma coisa destas — respondeu depressa.

— Por que não? Não há outro povoado nas redondezas que tenha uma bruxa tão esperta quanto a nossa. Ela é capaz de prever o futuro. Venha! Eu a levo até lá. Conheço-a há muito tempo. Sei que também ficará curiosa a seu respeito.

— Não… não acho que — balbuciou Arletta. De repente, achou que seria muito interessante.

Nunca vira uma bruxa antes. Sabia que bruxas e bruxarias sempre desempenharam um papel importante na história da França, mas nunca pensou que um dia fosse ver uma de verdade.

Subitamente, suas hesitações lhe pareceram demasiado tolas.

— Está bem, Jean. Vou com você. Mas terá que me emprestar algum dinheiro, pois não tenho nada comigo.

— Está certo. Empresto-lhe dinheiro agora, e poderá me pagar quando receber seu salário.

— Pago-lhe antes disso. Não gosto de ficar devendo. Jean riu.

— É orgulhosa, m'mselle? Sempre ouvi dizer que vocês ingleses se julgam muito importantes!

Ele a estava provocando, e Arletta limitou-se a sorrir. Sabia que o rapaz não estava sendo impertinente, apenas amigável.

“A estas alturas devo estar preparada para tudo, até para as bruxas”, pensou, enquanto seguia Jean.

 

Jean a conduzira a uma casinhola minúscula, cuja porta era tão baixa que, para entrar, o rapaz teve que se curvar.

Dentro, a escuridão era completa até que, acostumando os olhos, Arletta enxergou, diante da lareira acesa, embora o dia estivesse muito quente, uma anciã.

Estava embrulhada num chalé escuro, e os cabelos ralos, completamente grisalhos, presos na nuca.

Possuía feições muito marcadas. Talvez tivesse sido o nariz aquilino, mais do que qualquer outra coisa, pensou Arletta, que fizera dela uma bruxa.

— Trouxe uma cliente, vovozinha — disse Jean, e a velha senhora voltou-se.

— Quem é?

Arletta, ao se aproximar, percebeu que a bruxa tinha catarata nos dois olhos, o que a tornava totalmente cega.

— Sou nova no povoado — apresentou-se, em voz baixa — e Jean achou que eu devia conhecer a moradora mais importante daqui.

A bruxa deu uma risotinha.

— É isso que ele lhe disse? Bem, algumas pessoas me julgam importante. Outras têm medo de mim.

— Não estou com medo.

Jean abriu a mão da velha bruxa e depositou uma moeda de prata, dizendo:

— Conte o futuro a esta jovem dama, vovozinha. Como é uma moça muito bonita, acho que vai descobrir coisas interessantes no futuro dela.

Deu um largo sorriso para Arletta e saiu, fechando a porta atrás de si.

Com sua saída, baixou um silêncio estranho no casebre, quase como se a anciã tivesse ido para outro mundo.

Arletta sentou-se diante dela e não disse nada. Depois de alguns momentos, a bruxa falou:

— Você vem do exterior, e está escondendo alguma coisa! Nervosamente, Arletta olhou para a porta, certificando-se de que ]ean não estava à escuta.

A porta, porém, estava bem fechada, e a bruxa continuou:

— Vejo que está intrigada… preocupada… com medo. Há perigo! Perigo real! Vejo sangue!

Arletta prendeu a respiração. Mas não disse nada. A bruxa prosseguiu:

— Fique alerta, esteja preparada e proteja-se. Quando chegar a hora, você terá que se defender sozinha. Lembre-se do que lhe falei.

A voz da anciã foi diminuindo, como se não tivesse mais nada a dizer. Arletta falou docemente:

— Não me esquecerei de suas palavras, mas me parece um quadro um tanto assustador.

— Algumas pessoas são vencedoras, e você é uma delas.

— Obrigada, mas não tenho certeza qual corrida quero vencer.

A velha deu uma risadinha.

— A corrida da vida, minha jovem. E estamos todos competindo nela.

— Acha mesmo que sou uma vencedora?

— Você vencerá!

Depois, como se quisesse deixar bem claro que tinha terminado, recostou-se de novo e fechou os olhos.

Arletta fitou-a por uns momentos, ansiosa por saber mais. perguntando-se se deveria ousar perguntar-lhe sobre o duque de Sauterre. Sabia, porém, que era impossível.

Agradeceu outra vez e levantou-se.

A velha bruxa não respondeu e Arletta saiu do casebre. Jean esperava por ela encostado a uma árvore.

— Que achou? O que ela lhe disse?

— Foi meio amedrontador. Disse que haveria problemas, mas que eu sou uma vencedora.

— Tenho certeza de que isto é verdade, m'mselle. A senhorita já nos alegrou a todos no castelo, simplesmente com sua presença.

Arletta riu, divertida, mas não respondeu. Sabia que seria um erro tornar-se muito íntima de Jean. Tinha certeza de que ele era um dom Juan no povoado. Assim, estendeu a mão, dizendo:

— Muito obrigada, Jean, pela gentileza. Darei o dinheiro que me emprestou na próxima vez que for à sala de aula.

— Não se preocupe.

Percebendo que Arletta não desejava mais que a acompanhasse, tocou de leve na boina e afastou-se pelas ruelas estreitas do povoado, enquanto ela se dirigia de volta ao castelo.

Acabara de entrar no hall principal e ia se encaminhando para as escadarias quando Jacques apareceu.

— Srta. Turner! Preciso lhe falar.

— Estou indo para a sala de aula.

— Está bem. Eu a acompanho.

Não havia nada que pudesse fazer para evitá-lo. Caminharam em silêncio pelos corredores que conduziam à torre.

Arletta estava torcendo para que Pauline já tivesse terminado seu descanso e se encontrasse na sala.

Mas estava tudo vazio.

Tirando o chapéu, Arletta pôs-se a arrumar alguns livros que haviam ficado espalhados sobre as escrivaninhas.

O conde fechou a porta, ficou uns momentos a olhá-la, antes de dizer:

— ]á pensou na proposta que lhe fiz há pouco?

— Dei-lhe a resposta naquele momento, que continua sendo não!

— As mulheres sempre mudam de idéia.

— Talvez seja verdade no que diz respeito a certas mulheres. Mas não tenho a menor intenção de mudar a minha. Com toda a franqueza, monsieur, considero o que me disse insultante e não desejo que volte a se referir ao assunto.

— Não acredito que seja tão tola. Sabe muito bem que gostaria de Paris e de todos os divertimentos que lhe mostraria. Sem mencionar o fato de que poderei lhe ensinar tudo sobre o amor…

Havia algo em sua voz que Arletta reconheceu como sendo definitivamente perigoso, e disse depressa:

— Esta é a hora de dar aula de inglês a Pauline, monsieur, portanto eu lhe peço, se não tem mais nada sensato a dizer, que se retire.

O conde riu de mansinho e foi se aproximando dela.

Moveu-se com a rapidez de um felino e, antes que Arletta pudesse evitar, tinha os braços em torno de sua cintura.

Arletta protestou, tentando desvencilhar-se. À medida que ele a puxava, tentando beijá-la, Arletta deu-se conta de como era forte.

— Eu te desejo! Pouco me importa o que sente por mim. Só sei que te desejo loucamente!

Pelo tom da voz, Arletta percebeu que não se tratava de fingimento e que ela o excitava realmente. Havia, em seus olhos, um fogo inconfundível.

— Largue-me! — gritou, empurrando-o com as duas mãos apoiadas no peito do conde. Era inútil, e seus lábios aproximando-se…

Arletta virou a cabeça, desesperada, primeiro para um lado, depois para o outro, tentando evitar que ele a tocasse. Sentia sua boca quente e insistente de encontro a seu rosto. Sabia que estava completamente indefesa, e deu um novo grito.

Neste momento, a porta abriu-se e o conde soltou-a. Era Pauline, que entrava afobada.

— Estou atrasada, mademoiselle. Peguei no sono, e Mariette não me acordou!

Com muito custo, sentindo o coração aos pulos, Arletta conseguiu responder:

— Não tem importância, Pauline. Não está muito atrasada… e o dia.. . está tão… agradável… Que tal irmos para o jardim?

A voz saía-lhe com esforço, mas reparou que a menina nada percebera. Pauline olhava para o conde.

— Não quero que ouça minhas lições, primo Jacques, iria rir dos meus erros.

— Mas não rio de mademoiselle Turner.

Tinha os olhos fixos em Arletta, que percebeu, então, que o conde não estava bravo, apenas divertido com o acontecido.

Muito confiante, achava que ela acabaria voltando atrás e cedendo a seu convite.

Arletta não suportou nem mais um instante a presença daquele homem. Apanhou o chapéu que pusera sobre uma cadeira e dirigiu-se para Pauline:

— Vamos. Lá você poderá me dizer os nomes das flores e dos passarinhos em inglês.

— Só lembro de alguns, mademoiselle.

De mãos dadas, as duas saíram da sala de aula, sem olhar para trás.

Ao ar livre, enquanto ensinava Pauline, Arletta foi se acalmando.

Se era esse o perigo a que tinha se referido a bruxa, voltaria a ameaçá-la muitas outras vezes, raciocinou Arletta.

Devia haver alguma maneira de convencer o conde a deixá-la em paz, e chegou mesmo a pensar em falar com o duque de Sauterre.

Mas, como ele a odiava por ser inglesa, certamente iria achar que a culpa era dela. Ela é que teria encorajado o conde a insultá-la desta forma.

“E agora, o que é que vou fazer”, remoía-se Arlette. Não parou de se perguntar isto, a tarde inteira.

Num determinado momento, sentaram-se as duas num banco, sob uma estátua de Afrodite.

Observando o castelo de encontro ao céu azul, muito límpido, ressentiu-se de que houvesse tantas emoções conflitantes e desagradáveis abrigadas naquele edifício magnífico.

Como era possível que alguém, vivendo entre tamanha beleza, pudesse ter tanto ódio dentro do coração?

Devia ter ficado calada por alguns minutos, porque Pauline, entediada, levantou-se e correu em direção à fonte.

A menina estava olhando os peixinhos nadar em meio aos nenúfares que boiavam na água.

Era uma imagem inesquecível, e Arletta sabia disto.

Teve um sobressalto quando uma voz falou-lhe, por trás:

— Em que está pensando, Srta. Turner? Era o duque.

Era óbvio que tinha acabado de voltar do passeio, porque ainda trajava vestes de montaria.

Fez menção de se levantar, mas ele a interrompeu:

— Não, não se levante — e sentou-se a seu lado.

— Como já está de volta, monsieur, devo ir ao encontro de David.

— David quis se exercitar um pouco mais nos obstáculos menores, no que eu chamo de minha escola de equitação. Deixei-o a cargo de meu cavalariço-mor, de maneira que não precisará de seus cuidados.

Falava no seu jeito habitual, meio seco, meio cínico, deixando Arletta sem graça. Talvez sua preocupação com o menino tivesse parecido tola aos olhos do nobre.

Desviou os olhos para onde se achava Pauline.

— Gostaria de saber, Srta. Turner, o que acha do meu castelo.

Arletta sorriu.

— Há menos de um minuto, monsieur, eu pensava que ele é tão lindo que ninguém que more ali pode pensar em coisas erradas ou ruins. Apenas no amor.

— O amor é algo com que a maioria das mulheres se preocupa — interrompeu o duque, com cinismo.

— Não estava falando desse tipo de amor! — disse Arletta sem pestanejar. — Falo do amor pela beleza dos campos, dos jardins, do amor que devia estar presente numa construção tão antiga e tão impecavelmente conservada.

— Aceito a correção!

Arletta sabia que ele estava sendo sarcástico, e disse:

— Talvez considere impertinência minha, monsieur, mas acho que, embora tenha todo o direito de ser cínico… as crianças deveriam ser poupadas. Temo, monsieur, principalmente porque eles são órfãos, que cresçam com um idéia errada da vida.

Ao mesmo tempo que falava, cumprimentava-se pela coragem de dizer a verdade.

Podia ser, porém, que ele nunca mais mostrasse seus sentimentos de maneira tão óbvia.

Olhou-a por uns momentos, antes de responder.

— Tenho a impressão, Srta. Turner, que mesmo para uma inglesa, seu tipo de governanta é bem pouco comum.

— Não acho. Governantas preocupam-se com seus pupilos, e não se trata apenas de dar lições, mas também de ensiná-los sobre a vida.

— E devo supor que você entenda bastante sobre a vida? — comentou o duque, uma vez mais com sarcasmo.

— A verdade, monsieur, é que sei muito pouco sobre ela, e é por esta mesma razão que ainda tenho ilusões e ideais. E não tenho intenção de perdê-los aqui, monsieur.

Arletta percebeu que havia surpreendido seu patrão.

— Entendi perfeitamente o que me disse, Srta. Turner. Pensarei cuidadosamente sobre o assunto.

Levantou-se bruscamente do banco e afastou-se. Talvez Arletta o tivesse ofendido. Quem sabe cometera um erro.

Já era hora de voltar ao castelo e às aulas. Chamou Pauline e regressaram as duas, a menina contando-lhe sobre os peixinhos que vira.

Assim que entraram no corredor que levava à sala de aula, Arletta viu o conde esperando por elas.

Pauline escapou imediatamente, para não ter que falar com o primo.

Arletta tentou segui-la, mas o rapaz prendeu-a pela cintura.

— O que foi que meu primo Etienne lhe disse? — perguntou com ferocidade.

Arletta, que esperava uma pergunta completamente diferente, olhou-o meio atordoada.

— Que importância tem?

— Quero saber!

Havia um tom ameaçador na voz do conde e na expressão de seus olhos.

— Nada de muito interessante. Estava apenas me explicando que David não voltou porque ficou praticando equitação — respondeu Arletta mais do que depressa.

— Só isso?

— Que lhe interesse, só.

Arletta tinha conseguido se desvencilhar, e afastou-se.

Tinha a sensação de que era seguida com o olhar, até que fechou a porta da sala de aula.

Não podia acreditar que ele estivesse com ciúmes. Ao mesmo tempo, havia uma insistência estranha em suas perguntas. Não restava dúvida de que ficara perturbado porque o duque se sentara com ela.

— O conde é deveras maçante — concluiu Arletta.

Uma vez mais perguntou-se como poderia persuadi-lo a deixá-la em paz.

Àquela noite, para sua surpresa, havia diversos convidados para o jantar. Entre eles, o marquês e marquesa de Vasson, que moravam a cerca de dez quilômetros do castelo.

A marquesa de Vasson era uma mulher lindíssima, justamente naquela idade em que deixara a juventude ligeiramente para trás, mas que não entrara ainda na idade madura.

Sentara-se à direita do duque. Fascinada com os visitantes franceses, Arletta observara-os o tempo todo e, antes de terminado o jantar, tinha certeza de que a marquesa e o duque haviam sido muito íntimos no passado.

Era óbvio que ela ainda se sentia atraída por ele, e que tentava por todos os meios reacender a velha chama que se tinha apagado.

Era curioso, mas Arletta não conseguiria explicar como sabia destas coisas.

Tá esperava, é certo, uma atitude de flerte por parte das francesas, quando estavam ao lado de um homem atraente. Naquele caso, porém, sabia, instintivamente, com uma percepção que ignorava ter, que a marquesa ainda estava apaixonada pelo duque.

Ele falava com o jeito seco e cínico de costume. Não havia nada na expressão de seus olhos semicerrados que levasse Arletta a pensar que ainda nutria um sentimento especial pela marquesa.

Mesmo assim, estava certa de que em alguma época ele tivera sentimentos muito diferentes.

O marquês era um homem bem mais velho, de cabelos brancos, ligeiramente surdo. Falava sem parar sobre assuntos nos quais ninguém, à mesa, estava especialmente interessado.

O conde tinha a seu lado duas senhoras de meia-idade, muito distintas, que faziam o possível para entretê-lo.

Arletta percebeu que ele estava entediado. Sempre que podia, seus olhos a procuravam no outro extremo da mesa, onde se sentara com as crianças.

O mesmo acontecia com outro homem, o marido de uma das senhoras que ladeavam o conde.

Tratava-se do típico conquistador local, aquele tipo de homem idoso que iria atrás de qualquer jovem, tendo a chance.

Já antes de jantar, ele a elegera como presa.

Quando as crianças foram levadas ao salão, para serem apresentadas aos convidados, Arletta ficara para trás, lembrando-se de que era assim que a sua governanta agia, quando era pequena.

Para surpresa sua, o duque de Sauterre fizera-lhe sinal para se aproximar, dizendo:

— Sei que vocês ficarão espantados em saber que tenho uma inglesa no castelo. Acontece que a tia de David e Pauline, lady Langley, que nos visitou recentemente, insistiu para que os sobrinhos aprendessem inglês. E eu, como vocês todos sabem, não tinha a menor intenção de ensiná-los a falar tal língua.

— E por que deveria você, meu caro duque, ensiná-los qualquer outra coisa além da arte em que é supremo e imbatível? — disse a marquesa, tocando-lhe de leve no braço.

— Você me lisonjeia! — respondera o nobre, secamente, continuando a apresentar Arletta aos convidados.

Ela não cometera o engano de se vestir para uma festa, mesmo quando soubera que haveria um jantar.

Trajava um dos vestidos de noite mais severos que possuía, que na verdade assentava-lhe muito bem. Deliberadamente, arranjara os cabelos da forma que achava mais adequada para uma governanta.

Eram, porém, ondulados naturalmente, e por mais que puxasse a cabeleira para trás, dali a instantes voltavam a emoldurar o adorável rosto oval. Seus cabelos eram longos demais, e não conseguia prendê-los num coque; usava-os presos num chignon.

“Ninguém vai reparar em mim. Só preciso parecer arrumada”, pensara.

Mas, como Jane já previra, tudo que Arletta vestia transformava-se em moldura ideal para a sua beleza. Além do mais, não havia nada que pudesse fazer para alterar os grandes e maravilhosos olhos que iluminavam seu rosto fino.

— É uma governanta muito severa? — perguntara-lhe imediatamente o velho conquistador.

— Tento ser.

— Eu acho, mademoiselle — prosseguira o homem, em voz baixa —, que seus lábios não foram feitos para ensinar inglês a crianças rebeldes, mas sim para serem beijados!

Irritada por ter-se ruborizado, Arletta fora em busca de Pauline.

Durante todo o jantar, sentira o velho conquistador olhando-a com insistência. Na verdade, para onde quer que dirigisse os olhos, encontrava ou os do conde, ou os daquele homem.

Foi com alívio que, terminado o jantar, Arletta foi pôr Pauline na cama. David, porém, ficou um pouco mais com os convidados.

Ainda estava na sala de aula quando David apareceu sorrindo.

— Falaram a seu respeito depois que saiu, mademoiselle.

— O que disseram eles?

— Disseram que é muito jovem e muito bonita para ser uma governanta! A marquesa disse a tio Etienne que iria achar alguém bem melhor para nos ensinar.

— E o que foi que seu tio respondeu? — quis saber Arletta.

— Eu falei primeiro — contou David. — Disse à marquesa que você é uma ótima governanta e que já aprendi um bocado de inglês, e que não tinha a menor vontade de ser ensinado por outra pessoa.

Arletta estava comovida.

— Você é um amor, David.

— Eles todos riram de mim — disse o menino, com um pouco de ressentimento — e aí o homem gordo, de bochecha vermelha, me falou: “Você está certo, garoto, fique com ela enquanto pode”.

— Muito obrigada, David. Mas agora já está ficando um pouco tarde. É melhor que vá dormir, senão amanhã de manhã perderemos um tempo precioso.

— Meu inglês melhorou, não melhorou, mademoiselle?

— Você tem se esforçado bastante, e estou muito orgulhosa disso. Não creio que alguém tivesse aprendido inglês mais depressa do que você, mas ainda temos bastante trabalho pela frente.

— Sei disso! Agora, antes de ir dormir, eu converso comigo em inglês, e tento pensar em inglês também!

— É uma idéia excelente, David.

Pela primeira vez, desde que chegara ao castelo, curvou-se e deu um beijo no menino. Não esperava que a criança correspondesse com o abraço gostoso que David lhe deu.

— Gosto de estar com você — disse ele.

Percebeu que ele sentia falta da mãe, e devolveu o abraço, antes de dizer:

— Boa noite, David. Durma bem, e tenha bons sonhos!

— Acho que devo desejar-lhe o mesmo, caso os fantasmas venham assustá-la.

— Duvido que isso aconteça — respondeu sorrindo, antes de subir para seu quarto.

A criada havia deixado uma pequena lâmpada a óleo acesa, com a chama bem baixinha. Arletta cruzou o quarto para aumentá-la, antes de voltar para trancar a porta.

Foi então que percebeu, muito surpresa, que a chave, que estivera ali na noite anterior, e todas as outras noites, havia desaparecido.

A princípio supôs que tivesse caído no chão mas, depois de procurar em vão, assustou-se.

E se o conde Jacques, depois daquilo que dissera, viesse até seu quarto?

Mal podia acreditar que fizesse tal coisa; porém, a maneira como se comportara naquela tarde amedrontava Arletta.

Parecia ciumento, pelo jeito com que perguntara sobre o duque. Se viesse durante a noite, ninguém a ouviria. Tinha certeza de que as crianças não acordariam.

De repente Arletta sentiu-se muito jovem e indefesa, e percebeu que Jane tinha razão, quando a prevenira sobre os homens franceses.

Parecia-lhe inacreditável que o conde pudesse se comportar de forma tão desonrosa com uma mulher que fora contratada por seu primo.

Ainda assim, qualquer coisa lhe dizia que o desaparecimento da chave estava ligado ao vil conquistador.

Queria pedir ajuda a alguém, mas a única pessoa com quem poderia falar era o duque de Sauterre. E isto era impossível.

Pensou em ir ter com a chefe da criadagem, para pedir-lhe um novo quarto, mas lembrou-se de como os boatos corriam entre os serviçais. Se dissesse qualquer coisa sobre uma chave desaparecida, todos os empregados do castelo ficariam desconfiados. Os rumores sobre quem teria pegado a chave correriam como fogo em palha, e chegariam inevitavelmente aos ouvidos da duquesa. — O que farei?

O conde era muito mais perigoso que qualquer fantasma. Subitamente, teve uma idéia.

No primeiro dia, quando David a levara para conhecer o castelo, havia lhe mostrado a sala de armas. Lá ficavam os canhões, arcos e flechas, e os antigos mosquetes usados pelo exército particular dos duques de Sauterre. Mas havia também, naquela sala imensa, um armário com armas menores.

— Algumas destas aqui — explicara David — foram ofertadas aos vários duques de Sauterre por reis, príncipes, sultões e xeques.

O menino queria mostrar-lhe tudo, e ela mal tivera tempo de ver o que continha o armário.

Lembrava-se, porém, de ter visto um pequeno revólver, com a coronha incrustada de pedras preciosas. Ao lado, havia um pequeno cartão com a data em que havia sido presenteado ao duque pelo czar da Rússia. Para Arletta, aquele revólver era a única coisa que podia ajudá-la agora. Desceu, em carreira desabalada, pelas escadas sinuosas da torre.

Com alguma dificuldade, descobriu o caminho para a sala de armas. Ficava no extremo oposto do castelo e, embora algumas partes do edifício já estivessem iluminadas a gás, outras tinham apenas uma lâmpada a óleo ou uma vela.

No final de um longo corredor, iluminado por alguns poucos candeeiros, o castelo ficava escuro como breu. Percebeu que precisaria levar uma vela consigo. Seria sua única luz durante todo o percurso até a sala de armas.

Para seu alívio, a porta não estava trancada. Entrou, sentindo a friagem vinda das paredes sem estuque, e a atmosfera que as crianças chamariam de “arrepiante”, por causa do teto muito alto, da escuridão e do silêncio.

Lembrou-se de onde estava o armário e cruzou o chão de pedras. Não estava trancado. Levantou o tampo e olhou a coleção de espadas, adagas e pistolas de duelo. Era fácil enxergar o que procurava porque as ametistas incrustadas no cabo do revólver e os diamantes rebrilhavam à luz da vela.

Arletta pegou-o. Muitas vezes havia praticado com a espingarda do pai, e com seu revólver também, um modelo não muito moderno.

O pai divertia-se muito ao vê-la usar as pistolas de duelo que haviam pertencido ao bisavô, cavalheiro famoso na época em que George IV era ainda príncipe de Gales.

O revólver podia estar extravagantemente decorado, mas pareceu-lhe uma arma em perfeitas condições de ser usada. Sentiu-se ainda mais segura ao ver uma pequena pilha de balas, que tinham sido banhadas a ouro, ao lado do pequeno revólver.

Pegou todas e, segurando a vela numa das mãos e a arma e as balas na outra, tomou o tortuoso caminho de volta para a torre. Ao passar pela parte iluminada do corredor de onde tinha tirado a vela, recolocou-a no candeeiro.

Deu mais alguns passos e de súbito escutou vozes. Estacou. Alguém estava vindo em sua direção. Rapidamente escondeu-se na reentrância de uma grande porta.

As vozes, reconhecia agora, eram de alguns dos convidados. Eles haviam saído do salão e Arletta não compreendeu por quê. Estavam cada vez mais perto, e percebeu então que duas pessoas estavam se aproximando. Eram o duque e a bela marquesa. Encostou-se ainda mais à porta e, com medo de ser vista, girou rapidamente a maçaneta e entrou.

Deixou a porta ligeiramente aberta e pela fresta pôde ver o duque e a marquesa passando, de braços dados.

— Senti sua falta, Etienne — dizia a marquesa. — Como pode ser tão cruel comigo? Tão mau?

— As pessoas estavam começando a comentar a nosso respeito, Justine, e você sabe que, para você, isto é um erro.

— Pode ser um erro, mas eu o amo — e Arletta pôde sentir também a dor na voz da marquesa, ao dizer estas palavras.

Afastaram-se, e não conseguiu ouvir mais nada. Deviam estar se dirigindo para o viveiro, que ficava um pouco mais adiante. Havia lá inúmeros pássaros pouco comuns, e Pauline adorava observá-los.

Arletta supôs que a marquesa tivesse manifestado vontade de ver o viveiro como uma desculpa, para afastar o duque dos outros convidados. Por algum motivo que não compreendia, sentiu uma dorzinha em saber que ele estava com aquela linda mulher.

Assim que teve certeza de que não havia mais ninguém no corredor, voltou depressa para seu quarto, sem encontrar mais ninguém.

Colocou o revólver sobre a cômoda, certa de que não estava mais indefesa. Pareceu-lhe que, ao segurar a arma nas mãos, conseguia pensar com mais clareza e que não havia razão para pânico.

Era verdade que, quando carregara a arma, percebera que aquelas balas pequeninas não matariam ninguém, a menos que a pessoa fosse atingida num ponto vulnerável do corpo. Mas seriam suficientes para causar bastante dor, se atingissem uma perna ou um braço.

“Agora estou a salvo”, pensou, e pôs-se imediatamente a arrastar os móveis do quarto para frente da porta.

Satisfeita, percebeu que uma das cadeiras era suficientemente alta para encaixar-se sob o trinco. Mas não bastaria, caso a porta fosse forçada com insistência.

Com muita dificuldade, arrastou também uma cômoda para junto da porta.

“Isto manterá o conde à distância!”

Exausta, Arletta vestiu a camisola e deitou-se, com o revólver sob o travesseiro e a sensação agradável de ser auto-suficiente.

“A bruxa tinha razão. Eu vou vencer esta batalha.”

Lembrou-se em seguida, horrorizada, que a velha também vira sangue.

“Quando souber que tenho um revólver”, raciocinou, tentando acalmar-se, “não vai se arriscar a ser baleado.”

Embora assustada, Arletta pegou no sono pouco depois.

Quando acordou, o sol já estava entrando através das cortinas. Abriu os olhos devagar e, ao ver os móveis que havia empilhado diante da porta, ficou curiosa em saber se o conde havia tentado entrar.

Estava quase certa que sim. Mas, ao perceber os obstáculos na porta, devia ter desistido, com medo de fazer barulho.

Nunca saberia, porém, o que realmente ocorrera. Só sabia que tinha dormido sem ser perturbada, e isto era o mais importante.

Depois de pronta, desceu com as crianças para a saleta do desjejum, perguntando-se se conseguiria dizer, pela cara do conde, se ele estivera ou não na porta do quarto.

Não havia sinal, porém, nem dele nem do duque, e os criados xplicaram que o conde Jacques partira bem cedo, para visitar uns amigos.

A manhã transcorreu calma, com as lições de David, até que, para alegria de Arletta, saíram a cavalgar.

Montada sobre um dos melhores animais que já vira na vida, sentiu-se feliz a ponto de achar que todas as dificuldades tinham valido a pena. Mesmo as investidas do conde diminuíam de importância diante do privilégio de estar naquele castelo.

Já haviam cavalgado por todo o parque, e Arletta estava pensando em retornar, quando viu uma figura esplêndida de cavaleiro vindo na direção dos dois. Era o duque de Sauterre.

— Aí vem tio Etienne — notou David, com um tom de desagrado na voz. — Com certeza vai achar algum defeito no jeito de eu montar!

— Talvez nos elogie — sugeriu Arletta, conciliatória. — Não se esqueça de que seu tio tem sido muito compreensivo com o fato de você ter uma governanta inglesa.

— É verdade. Eu achava que ele ia implicar muito mais.

— Seja bonzinho com ele — disse Arletta em voz baixa, antes que o duque os alcançasse.

— Bom-dia, tio Etienne! — cumprimentou David, enquanto o nobre tirava o chapéu para Arletta. — Quer ver como eu ando depressa no Le Roi, agora? É o maior cavalo que já montei.

— Gostaria muito de ver seus progressos, David.

O menino conduziu o cavalo para a longa faixa de terreno plano, onde o duque estivera cavalgando. Esporeou e partiu a todo galope.

O duque observou-o com um ligeiro sorriso, antes de dizer a Arletta:

— Creio que é melhor acompanhá-lo, Srta. Turner. Gostou do passeio?

— Este é o melhor cavalo que já vi, monsieur. Cavalgando lado a lado, ele comentou:

— Vejo que monta muito bem!

— Meu pai fez questão que eu aprendesse a montar corretamente.

— Estou certo de que não ficou desapontado! Era quase um elogio, e Arletta olhou-o sorridente.

— Estava pensando agora há pouco que animais como este compensam todos os problemas e frustrações da vida.

— Tem muitos problemas, Srta. Turner? Lembrando-se do conde, Arletta desviou o olhar.

— Alguns.

— Talvez eu possa ajudá-la.

Arletta ficou tão surpresa com o oferecimento que olhou-o, boquiaberta. Depois apressou-se a responder:

— Não, não. Preciso aprender a cuidar de mim mesma. Foi o que a bruxa me disse que devo fazer.

— A bruxa?! Está me dizendo que foi ver aquela velha charlatã?

Arletta achou que tinha falado demais. Felizmente haviam alcançado David, e não precisou dizer mais nada.

— Fui bem veloz, não fui, tio Etienne?

— Muito veloz, David. Tenho certeza de que se sua mãe estivesse aqui, sentiria orgulho do filho.

Sem dizer mais nada, esporeou o cavalo e desapareceu rapidamente.

Por alguns momentos, os dois ficaram a olhá-lo, até que David interrompeu o silêncio:

— Ouviu o que ele disse, madeimoselle? Ele me elogiou, e isto tio Etienne nunca tinha feito antes.

 

Durante o almoço, o duque estava de muito bom humor, e contou histórias interessantes sobre o castelo. Arletta chegou até a pensar que ele havia parado de odiá-la.

Foi gentil com as crianças e em nenhum momento zombou das aulas de inglês que estavam tendo.

— O que farão esta tarde? — indagou ele, terminada a refeição.

— Estava pensando, monsieur, que David e eu poderíamos sair de novo a cavalo, já que o dia está tão lindo. Mas, claro, se acha que é demais, faremos outra coisa.

— Acho uma idéia excelente, desde que cavalguem sob as árvores, onde é mais fresco. Suponho que ainda não tenha visitado um de nossos bosques mais interessantes. Eu os acompanho até lá.

Arletta surpreendeu-se com o convite, mas agradeceu efusivamente. O duque conduziu-os por um caminho diferente do que haviam seguido na parte da manhã e logo depois entravam num bosque onde as árvores eram bem mais antigas.

Era tudo fascinante, principalmente porque ele ia dizendo os nomes dos pássaros e das árvores.

Até David conversava alegremente com o tio, sem sinal do medo e hostilidade que sentia antes.

No meio do bosque havia uma capela construída quase na mesma época que o castelo.

Nunca era usada, explicou o duque, mas, ao entrar, Arletta teve a mesma sensação de santidade que permeava a igreja do povoado.

Não havia mais mobiliário algum, restando apenas as pedras nuas das paredes e do chão. Os passarinhos tinham feito ninhos nas vigas e lagartas corriam pelas paredes.

A impressão era a de que, pelo menos para os animais da floresta, aquele lugar continuava sendo um santuário no qual se refugiavam dos predadores e caçadores.

Arletta não disse isso alto, mas era como se o nobre tivesse lido seus pensamentos:

— Quando era menino, costumava achar que os animais feridos vinham para cá e que os espíritos dos monges os curavam. E agora, Srta. Turner, está pensando a mesma coisa.

— Como sabe o que estava pensando?

— Seus olhos são muito reveladores, mademoiselle!

Na volta, Arletta preferiu deixar que David conversasse com o tio, limitando-se a ouvi-los.

Tinha certeza, agora, de que seu patrão não a odiava tanto, por ser inglesa, quanto no início.

Nutria esperanças, pelas crianças, de que a atmosfera no castelo viesse a ser mais feliz.

“Ele tem uma personalidade tão forte”, pensou, “é preciso que a use para inspirar aqueles que o cercam.”

Ao ouvir a voz profunda do duque respondendo a uma das perguntas de David, concluiu:

“Ele devia ser um líder…”

Houve uma pequena pausa e uma voz dentro dela, que não podia controlar, completou:

“Com amor”.

Ao entrarem no hall, um dos lacaios informou Arletta de que a duquesa desejava vê-la.

Sabia, por intermédio dos criados, que nos últimos dois dias a velha senhora havia se sentido mal, e que não queria ver ninguém.

Assim que mudou os trajes de montaria para um de seus vestidos bem simples, um lacaio acompanhou-a até os aposentos da duquesa. Ela estava ainda mais formidável, com uma volta de rubis em torno do pescoço, enormes rubis nas orelhas, nos pulsos e nos dedos.

Arletta aproximou-se da cama, sob seu olhar vigilante e atento.

— Venha cá e me diga o que anda planejando, minha jovem! Ouvi dizer que Jacques a está perseguindo! Sei também que andou cavalgando com meu neto.

Arletta não conseguiu suprimir um riso curto.

— Por que está rindo, menina?

— Porque, madame, a senhora sabe de tudo que se passa neste castelo, embora esteja confinada a seus aposentos.

— No que mais posso me interessar, a não ser pelas peculiaridades e excentricidades dos outros? — Arletta não respondeu, e a duquesa continuou: — O que Jacques anda lhe dizendo? Fui informada de que ele tem perseguido você. Mas não é seu hábito se interessar por governantas. Você o está encorajando?

— Asseguro-lhe, madame — respondeu Arletta, friamente —, que já disse ao conde, com toda a firmeza, para que me deixe em paz. Só espero que ele me atenda.

— Suas pretensões vão mais alto? — indagou, com ironia.

— Minha pretensão é certificar-me de que David fale inglês perfeitamente ao ingressar em Eton. ]á fez enormes progressos, e ele está ansioso por aprender, o que torna as coisas mais fáceis.

— Considera-se, então, uma boa professora?

— Espero que sim.

A duquesa lançou-lhe um olhar penetrante, como se estivesse tentando ver o que estava por trás da superfície.

— Fale-me mais a seu respeito, mademoiselle. Estou muito curiosa.

— Não há nada interessante que possa lhe contar, madame. Se não se importa, gostaria de ir ter com Pauline, que deve estar se sentindo abandonada, já que passei a maior parte do dia com David.

— Qualquer coisa é desculpa para escapar! Está bem, mas nada pode ficar oculto para sempre. Mais cedo ou mais tarde, a verdade virá à tona.

— É o que sempre me disseram, madame. Mas, quando não se tem medo da verdade, por que se preocupar?

Fez uma pequena mesura à velha senhora e, sem esperar, dirigiu-se para a porta.

Tinha certeza de que, quando pusesse a mão na maçaneta, a duquesa a chamaria de novo. Mas ela não disse nada, e com alívio, Arletta viu-se do lado de fora de seus aposentos.

A criada agradava-a e disse, num tom de desculpa:

— Não se importe com as coisas que madame Ia duchesse lhe disser, m'mselle, mesmo que pareçam rudes. Ela já tem muita idade, e está doente. Ainda assim, não suporta ficar alheia às coisas que acontecem no castelo.

— Compreendo perfeitamente esta sensação — respondeu Arletta, com toda a gentileza.

— Ela também se preocupa demais — continuou a criada — com as coisas que o conde Jacques lhe diz sobre o duque de Sauterre.

Adivinhando o que vinham a ser estas coisas, Arletta comentou:

— Talvez pudesse persuadir madame de que o conde Jacques não é uma pessoa em quem se possa confiar sempre. Se quiser saber minha opinião, acho que ele é um encrenqueiro.

No mesmo instante, teve a sensação de que falara demais.

No entanto, poderia jurar que Jacques estava inventando histórias sobre ela e o duque, e tentando disfarçar sua própria culpa. Era um comportamento vergonhoso.

“Como seria bom se ele desaparecesse”, pensou, enquanto seguia pelos tortuosos corredores, de volta à torre. “O castelo é um lugar bem mais feliz, sem a presença dele.”

Já de volta, deu uma aula curtinha a Pauline, usando os livros que haviam pegado na biblioteca, enquanto David traduzia duas páginas de um livro de história.

Ao terminar, David falou:

— Ainda há um lugar no castelo, mademoiselle, que não visitou. São as masmorras.

— Depois de todas as coisas tremendas que ouvi a respeito, David, não tenho o menor interesse de conhecê-las.

— Por que não vem comigo, agora? — sugeriu o garoto. — Espanto-me de que ainda não tenha ouvido os gemidos e urros dos prisioneiros.

— Está me dizendo que as masmorras ficam sob esta torre?

— A maioria delas fica. Há uma cujo alçapão se abre, deixando um enorme buraco no chão.

— Já ouvi falar sobre estes alçapões, e acho-os muito cruéis, David.

— Um dos duques de Sauterre, do século dezessete, tinha um alçapão ainda mais cruel — continuou David, como se fosse um feito merecedor de orgulho. — Quando ele puxava a alavanca, a vítima caía pelo alçapão numa caverna cavada no fundo do rio, morrendo afogada.

Para Arletta, tal comportamento ia contra todas as regras da guerra, segundo as quais havia sempre a chance de que os prisioneiros fossem trocados ou soltos, finda a contenda.

À menção de masmorras e alçapões, um arrepio correu-lhe pela espinha.

— Não falemos mais sobre isso, David. E, com toda a franqueza, não estou interessada em sua masmorra.

— Elas ficam muito abaixo de nós — disse David, tentando acalmá-la. — Não precisa pensar nelas, a menos que ouça os fantasmas daqueles que morreram gemendo, como os criados garantem que escutam.

— Nunca vi nem ouvi um fantasma, desde que cheguei aqui. Estou plenamente convicta de que tudo não passa de superstição tola.

Mudando de assunto, Arletta sugeriu que fossem os três até o viveiro, dar de comer aos pássaros. Encantadas com a idéia, as crianças puseram-se imediatamente a caminho do longo corredor onde, na noite anterior, Arletta havia visto o duque e a marquesa.

Embora não fosse da sua alçada, não podia evitar a lembrança da marquesa dizendo-lhe o quanto ainda o amava.

Enquanto as crianças iam de gaiola em gaiola, dando as sementes e frutas que haviam levado para os pássaros, Arletta se perguntava se, quando o duque fazia amor com uma mulher, tinha o mesmo olhar entediado e cínico que ostentava em outras ocasiões.

Mas este não era um pensamento apropriado para uma jovem solteira…

— Gostaria de ter um passarinho só para mim — dissera Pauline, interrompendo o curso de suas lembranças. — Eu o poria numa gaiola na sala de aula, e poderia ouvi-lo cantar.

— Terá que pedir permissão a seu tio, Pauline. E é triste ver uma ave engaiolada, você não acha?

— Acho… mas eu quero um passarinho! Tenho certeza de que tio Etienne vai dizer não — queixou-se a menina.

— Ele foi muito bonzinho comigo hoje — reforçou David.

— Quem foi bonzinho com você? — perguntou uma voz vinda da porta.

Arletta voltou-se e teve um sobressalto.

O conde Jacques os havia seguido até o viveiro, justamente quando esperava que estivessem livres dele, pelo menos por algum tempo.

David sentiu-se no dever de responder:

— Falava de tio Etienne.

— Por que ele foi bonzinho com você, David?

— Mademoiselle e eu saímos a cavalo com ele, que nos levou até a velha capela no bosque. Foi muito interessante!

David falava num desafio, como se esperasse que o primo contradissesse suas palavras.

Em vez disso, o conde olhou para Arletta de um modo estranho, antes de perguntar:

— Quer dizer que meu estimado primo tem sido agradável, apesar do fato de você ser inglesa?

Era justamente o que havia surpreendido Arletta, mas não havia motivo algum para que o cínico nobre enfatizasse isso.

Tratava-se, naturalmente, de algo que ele poderia relatar à duquesa de tal forma que a velha senhora teria uma interpretação muito diversa dos fatos.

— Suponho, monsieur — declarou com voz fria, que o duque tenha percebido e aceitado a necessidade de que David fale inglês adequadamente antes de ingressar em uma escola inglesa.

— E é claro que David tem muita sorte em ter uma professora tão atraente, charmosa e inteligente para ensiná-lo.

Arletta suprimiu um gesto de contrariedade. Achava muito cansativa a constância com que ele lhe fazia elogios, na esperança, decerto, de que acabaria cedendo e aceitando sua proposta.

Ele, claro, não tinha idéia de quão impertinente e insultante estava sendo, já que Arletta não era apenas uma governanta.

O conde jamais teria pensado naquilo se soubesse sua verdadeira identidade, e nunca teria ousado sugerir o que ele chamava de “proposta”, a uma moça francesa protegida por uma boa família.

— Acho que é hora de voltarmos à sala de aula — disse Arletta às crianças.

— Está bem — concordou David.

Quanto a Pauline, só abandonou os passarinhos com a maior relutância, insistindo sempre que queria um só para si.

O conde permaneceu silencioso enquanto Arletta, pegando Pauline pela mão, afastava-se do viveiro.

Ainda assim, ela podia sentir seu olhar, seguindo-a pelo corredor, quase como se pudesse penetrar por sua pele alva.

“Esse homem é tremendamente maçante, e quero-o a distância”, pensava cabisbaixa, no caminho de volta.

Com grande satisfação, lembrou-se do revólver que havia trancado numa das gavetas da cômoda, em seu quarto, e sentiu-se um pouco mais aliviada.

Durante o jantar não havia convidado algum, apenas o conde e o duque, que continuava se comportando de forma afável, contando histórias interessantes.

Conversaram sobre as telas existentes no castelo e Arletta descobriu, deliciada, que seu patrão era um grande connaisseur de arte.

Com muito custo conteve-se para não dizer que no solar dos Weir, da sua família, havia uma coleção de retratos considerada uma das melhores em toda a Inglaterra.

Quando Arletta foi pôr Pauline na cama — a menina parecia preferi-la agora à Mariette —, teve a impressão de que o conde a olhara com ressentimento, por tê-lo deixado de lado. Não tinha certeza disso, porém. Tudo que sabia é que aquele olhar a assustava.

Arletta já havia programado empilhar de novo os móveis do quarto diante da porta. Dormiria, outra vez, com o pequeno revólver russo sob o travesseiro.

Mas, como estivesse cansada, depois de um dia exaustivo, não ficou nem um minuto acordada na cama, preocupando-se com o conde ou qualquer outra pessoa. Poucos minutos depois de se deitar, Arletta já estava profundamente adormecida.

Sonhava que estava cavalgando um enorme cavalo por campos muito verdes, quando, de repente, alguma coisa perturbou seu sono e Arletta acordou.

Imediatamente pensou no conde e, imóvel na cama, tentava descobrir se o barulho que a havia acordado seria ele, forçando a porta.

Na parte da manhã pediria, sem falta, à chefe da criadagem para que providenciasse outra chave. Talvez o melhor fosse pedir a colocação de um ferrolho na porta.

Arletta sabia, porém, que se dissesse uma palavra sequer sobre uma chave desaparecida, a qualquer dos criados, a história seria repetida mil vezes por todo o castelo.

Era óbvio o que a duquesa iria dizer sobre o assunto. Arletta não suportava a idéia dos boatos que seriam cochichados em meio à criadagem, e dos olhares curiosos que iriam lançar-lhe, como se fosse ela a culpada pelo desaparecimento da chave.

“Não, tenho que continuar me defendendo sozinha”, concluiu, ainda bem tensa.

Na verdade, fora preciso uma dose considerável de força para arrastar a pesada cômoda até a porta, mas qualquer coisa era preferível a saber que todo mundo estava falando sobre ela.

Por alguns segundos o castelo estivera em silêncio total. Talvez tivesse se enganado e, pensando assim, virou a cabeça no travesseiro, pronta para voltar a dormir.

De repente, ouviu um grito muito diferente do barulho que estava esperando ouvir. Embora não fosse muito alto, parecia mais um guincho de dor.

Um pensamento atravessou-lhe o cérebro com a rapidez de um relâmpago. Talvez fossem os fantasmas de quem David vivia falando. Seriam estes os sons de que falava o menino, desde a sua primeira noite na torre?

Por alguns instantes o medo invadiu-lhe o corpo todo, paralisando-a. No segundo grito, Arletta fechou os olhos com força, de medo que surgissem, em sua frente, fantasmas e aparições.

Tremia inteira, e tinha vergonha do fato. Aos poucos seu bom senso foi mais forte e convenceu-se de que, apesar do que dizia a criadagem, fantasmas, de maneira geral, não costumam fazer barulho.

Ouviu de novo o mesmo guincho e, prestando mais atenção. Arletta teve quase certeza de que vinha de um pequeno animal.

Os gemidos pioraram, vinham com insistência, e ela concluiu que deveria ser um coelho, ou talvez um gato, caído numa armadilha.

Era-lhe impossível ignorar aquele barulho. Sentou-se na cama e reacendeu a lâmpada a óleo que apagara antes de deitar-se.

Percebeu que o ruído vinha do lado oeste.

Sem poder se conter mais, Arletta levantou-se e foi até a janela que dava para aquela parte do castelo, com vista para a campina que conduzia ao bosque.

Os guinchos continuavam, cada vez mais lancinantes. Debruçou-se sobre o parapeito da janela, da mesma grossura que as paredes da torre.

O rio corria imediatamente abaixo da janela, e Arletta lembrou-se de que na outra margem, antes do campo aberto que levava aos bosques do castelo, havia algumas árvores e arbustos.

Os gritos vinham exatamente dali, bem abaixo da janela, ao pé da torre, na verdade. Embora não pudesse enxergar nada, tinha certeza de que algum animal estava preso numa armadilha.

“Quem sabe eu posso soltá-lo”, pensou, angustiada.

O único jeito de conseguir isso seria descendo até a base da torre, onde ficavam as masmorras.

“Talvez fosse melhor esperar o dia amanhecer.”

No entanto, Arletta sabia muito bem que não conseguiria dormir enquanto houvesse uma criatura qualquer lá embaixo, sofrendo daquele jeito.

Talvez fosse possível chamar um dos criados e contar-lhe o que estava ocorrendo.

Era muito difícil, porém, que algum deles fosse se interessar especialmente pelo caso, já que não era um ser humano que estava gritando em agonia.

“Preciso ser sensata e esquecer do assunto”, concluiu, ajuizadamente.

Acontece que Arletta jamais seria capaz de dormir ou de descansar enquanto soubesse que havia um animalzinho qualquer sofrendo de dor.

Sem pensar nem mais um instante, levantou-se, acendeu as velas do toucador e vestiu o négligé de cetim azul, que a arrumadeira deixara sobre uma das cadeiras.

Ao abotoá-lo, notou pela primeira vez que havia um bolsinho na frente, debruado de renda.

Se pudesse ver onde o animal estava, seria mais caridoso sacrificá-lo do que deixá-lo sofrendo.

Seu pai é que costumava dizer que, quando um animal cai numa armadilha de dentes, um dos piores tipos, mesmo que seja um cão, o melhor é sacrificá-lo. Não há jeito de salvar a perna do animal, que se quebra, estraçalhada no meio das argolas de ferro. Quanto antes morressem, melhor para eles.

Arletta se revoltava diante da idéia de matar o que quer que fosse, mas no fundo sabia perfeitamente bem que era mais caridoso sacrificar a presa.

Pegou, portanto, o revólver que estava sob o travesseiro e colocou-o no bolso do négligé.

Arrastou os móveis que estavam diante da porta e, lembrando-se de que as correntes de ar no castelo certamente apagariam sua vela, trocou-a pela lâmpada a óleo.

Tateando o caminho, iluminado apenas pela pequena lâmpada, Arletta desceu as escadas sinuosas da torre. Ao chegar ao corredor, as coisas ficaram mais fáceis, pois o caminho era iluminado por candeeiros de prata.

Não encontrou viva alma e, chegando ao pavimento térreo, dirigiu-se para uma escada muito estreita que a levaria até as masmorras.

Não havia dado dois passos sequer naquela direção, quando uma voz por trás dela indagou:

— O que está fazendo? Aonde vai?

Arletta levou tamanho susto que a lâmpada em sua mão balançou um pouco, antes que se voltasse para ver quem lhe falara.

Era o duque postado no topo das escadas principais. Arletta, de susto, não conseguia articular uma palavra. Ele repetiu a pergunta.

— O que faz aqui a esta hora da noite? E por que vai às masmorras?

Ele ainda estava em trajes de noite. Arletta se deu conta imediatamente de que estava usando apenas um négligé e de que seus cabelos caíam-lhe soltos pelos ombros, exatamente como ele a vira antes.

Ao olhar o duque, notou que sua expressão não chegava a ser de raiva, mas sim de suspeita.

No mesmo instante, pensou no que ele estaria imaginando. Tudo, na sua atitude, o levaria a crer que Arletta se dirigia para um encontro secreto com o conde Jacques.

Envergonhada, embaraçada, Arletta apressou-se em responder:

— Há um animal preso numa armadilha, monsieur. Ele está gemendo de dor e me acordou.

— Um animal? — repetiu o duque, meio cético.

— Sim senhor. Ele está bem embaixo da minha janela.

— E diz que não consegue dormir?

— Eu estava dormindo, mas não podia ignorá-lo, os gemidos de dor.

Arletta não estava conseguindo se expressar coerentemente, e ele não parecia acreditar na sua história.

— Se é este o caso, precisamos, claro, fazer algo a respeito. Deixe-me levar a lâmpada.

Desceu o lance de escadas, em dois saltos, e tomou-lhe a lâmpada. Saiu na frente, segurando a lamparina bem no alto, para iluminar melhor o caminho.

As escadas pareciam não ter fim. Arletta, seguindo-o na descida, pensava que aquele homem a devia achar muito tola.

Finalmente chegaram a uma câmara circular, do mesmo tamanho que a torre. Arletta pressentiu, mais do que viu, as pesadas portas de ferro que conduziam às masmorras.

Então, com uma sensação quase de alívio, Arletta ouviu os gemidos que a haviam acordado. Tinha certeza de que o duque podia ouvi-los também.

Na verdade, ele já estava no meio da câmara, esperando que ela descesse os últimos dois degraus e fosse ter a seu lado.

Ele voltou-se para a direção de onde partiam os ruídos.

— Estão vindo de lá.

Abriu a porta de uma das masmorras e o barulho, ecoando pelas paredes de pedra, era quase ensurdecedor.

O calabouço era minúsculo e um homem mal podia ficar ereto dentro dele. Havia uma única janela, pouco abaixo do teto de pedra, fechada por barras de ferro com alguns centímetros de distância apenas entre si.

Mesmo durante o dia, aquela janela não era suficiente para deixar entrar a luz do sol. Mas não havia dúvida de que os ruídos vinham dali.

Segurando a lamparina bem no alto, o duque caminhou até a janela, seguido por Arletta. Debatendo-se, preso numa das barras, estava um animal, guinchando de desespero.

De imediato, Arletta não conseguiu identificar o que poderia ser.

O duque aproximou a lamparina da janela e os dois viram então que se tratava de um pequeno gato, branco e preto.

Era pouco mais que um filhote, mas grande o bastante para fazer um barulho quase ensurdecedor. O duque olhou-o por uns bons momentos, antes de dizer:

— Segure a lâmpada um instante, para que eu possa soltá-lo.

— Pobrezinho! Ele vai cair no rio! — disse Arletta, assustada.

— Não. Se estiver livre poderá se salvar.

Arletta pegou então a lâmpada enquanto o duque esforçava-se para desmanchar o nó da corda que prendia as patas do gato às barras de ferro.

Aquele gato, mesmo pequeno, não teria passado pelas barras da janela; portanto, como Arletta percebeu imediatamente, pelo menos duas pessoas estavam envolvidas na tortura daquele pobre animal.

Não era preciso ver o rosto do duque, que estava de costas para ela, para saber que ele estava extremamente irritado.

 “Só pode ter sido alguém do castelo que fez isto”, pensou Arletta. Tinha curiosidade em saber se ele descobriria o culpado e qual o castigo que aplicaria.

Pareceu-lhe que havia transcorrido uma eternidade até que o duque conseguiu, finalmente, puxar a corda toda para dentro do calabouço. Ao mesmo tempo o gato soltou um miado agudo, caindo no rio.

O duque voltou-se para Arletta. Tinha uma expressão preocupada e, antes que ele dissesse qualquer coisa, ela perguntou:

— Quem teria sido capaz de fazer uma crueldade destas?

— Isto é o que eu gostaria de saber.

— Eu vou lhe dizer quem foi — interrompeu uma voz, vinda da porta.

Os dois voltaram-se ao mesmo tempo. O duque tomou a lamparina das mãos de Arletta, para ver a cara de seu interlocutor. Atônitos, viram a sua frente o conde Jacques.

— Você sabe quem torturou este pobre animal? — perguntou o duque asperamente.

— Fui eu! A intenção era atrair um “coelho” só. Mas que bela surpresa! Isto é que é eficiência. Com uma cajadada, apenas, mato dois coelhos de uma vez!

— Não faço a menor idéia sobre o que está falando, Jacques. Mas poderá nos explicar tudo quando sairmos daqui.

— É aí que se engana, meu caro primo. Você não vai sair daqui. Talvez compreenda melhor o que estou querendo dizer quando lhe disser que estou com a mão na alavanca do alçapão.

Todos os músculos do corpo do duque enrijeceram-se e Arletta sentiu como seu coração tivesse parado de bater.

Podia ver agora, exatamente como David havia descrito, que bem no centro da câmara circular havia uma alavanca, sobre a qual descansava a mão do conde.

Bastava a mais leve pressão sobre a alavanca e o chão sob ela e o duque se abriria, levando-os para o fundo da caverna escavada no leito do rio. Eles morreriam afogados.

Tudo isto lhe passou pela cabeça numa fração de segundo.

Ainda assim não podia crer que fosse verdade. Devia estar sonhando, aquilo não estava acontecendo.

— Do que é que está falando, Jacques?

O duque, deliberadamente, falava devagar, em voz baixa, arrastando um pouco as palavras.

— Precisa compreender, meu caro primo, ou pelo menos já deveria ter compreendido, que não tenho a menor intenção de permitir que se envolva com uma jovem mulher, por mais atraente, por mais fascinante que seja.

— Não estou compreendendo nada do que está me dizendo, Jacques. Sugiro que saiamos todos deste lugar úmido e desagradável, para podermos conversar sensatamente.

— Ouça! Atraí mademoiselle até aqui quando percebi o jeito com que você a olhava. Um jeito que considero bastante perigoso para o meu futuro. Se ela desaparecesse sem deixar rastros, quem seria culpado?

— Claro! Não há dúvida quanto a isto! — concordou o duque.

O conde riu e, para Arletta, havia um quê de loucura naquela risada.

— Ninguém faz a menor idéia, não é mesmo, primo Etienne, de que fui eu quem empurrou sua esposa de lá de cima das ameias! — zombou o conde. — Você a deixara lá, chorando, e foi fácil, fácil demais até, certificar-me de que ela não teria o filho que me deserdaria…

Arletta começou a compreender tudo. Estava assustada. Muito assustada. O duque continuou a falar devagar.

— Como você mesmo diz, Jacques, foi esperto demais e ninguém jamais suspeitou de você.

— Tomei todos os cuidados para que isto não acontecesse — vangloriou-se o conde.

— Suponho também — e agora a voz do duque tinha o mesmo tom de cinismo com que tratara Arletta, na sua chegada — que tenha matado Madeleine Monsarrat!

— Claro! Foi bem fácil matá-la, já que estava sempre bebendo café. Nada mais simples do que colocar uma grande dose de láudano na sua bebida. Pobre primo Etienne, você tem sido, de fato, injustamente acusado!

— Surpreende-me que tenha me deixado em paz por tanto tempo! — comentou o duque, sarcástico.

— Bem, eu estava um pouco preocupado, caso seu desaparecimento súbito atraísse as atenções para o fato de eu me tornar o próximo duque. Mas agora você e a deliciosa professora de inglês desaparecerão do mapa, e eu, é claro, espalharei o boato de que fugiram juntos. Não haverá qualquer outra explicação possível.

Arletta não conteve um grito.

— Como pode pensar em uma coisa tão diabólica… tão cruel?

Como se só então se tivesse dado conta de sua presença, o conde lhe disse:

— A culpa é exclusivamente sua! Se está bem lembrada, tentei afastá-la do meu querido primo, e até convidei-a a ir comigo para Paris.

— Não posso crer que tenha realmente chegado a pensar que eu aceitaria uma proposta dessas! — retrucou com raiva.

— Por que não? Teríamos nos divertido à grande, os dois juntos. Isto eu garanto. E eu não precisaria temer que meu primo viesse a se apaixonar por você, como já lhe aconteceu no caso da comtesse Monsarrat.

— Mas não pode estar falando a sério quando… diz que vai nos matar! Isto é terrível!

Arletta estava tentando persuadir o conde, mas sua voz tremia. Estava assustadíssima, com medo.

— Consta que a morte por afogamento é bem agradável. Embora sinta muitíssimo perder a companhia de meu distinto e charmoso primo, compensarei a perda tornando-me o mais exemplar e fascinante dos duques de Sauterre!

Jacques tinha os olhos fixos em Arletta, enquanto falava, e ela percebeu que seria apenas uma questão de segundos antes que ele puxasse a alavanca.

— Preste atenção, Jacques — disse o duque com severidade. — Tenho algo a sugerir-lhe.

— O quê?

— Afogue-me, se quiser, mas poupe mademoiselle. Ela não tem nada a ver com nossas brigas nem com a sucessão dos duques de Sauterre. Ela é inglesa. Deixe que volte para seu país e esqueça que esteve envolvida em negócios tão desagradáveis.

Jacques riu um riso desagradável.

— Uma sugestão heróica! Mas não sou tão tolo a ponto de deixar em liberdade uma mulher que fatalmente falaria, meu caro primo. Quem não daria com a língua nos dentes, numa situação destas? — Riu de novo, e continuou: — Não há nada que possa fazer, nada! Desta vez passei na sua frente, como sempre quis. E venci!

À menção da palavra “venci”, Arletta lembrou-se do que lhe dissera a bruxa. A velha lhe havia dito que era uma vencedora e que sua salvação dependia exclusivamente de si mesma…

Com cuidado, para não chamar a atenção do conde, levou a mão ao bolso do negligée. Segurou a coronha do revólver.

— Adeus, primo Etienne! — ia dizendo Jacques, em triunfo. — Minhas desculpas por não lhe dar tempo de dizer suas preces!

Antes mesmo que pudesse terminar a frase, Arletta sacou do pequeno revólver incrustado de pedras preciosas e disparou.

A explosão ecoou, como se em desafio, por toda a câmera, e a impressão de Arletta é que seus tímpanos haviam estourado.

O conde tirara a mão da alavanca para levá-la ao ombro, no local onde fora atingido. O duque avançou em sua direção.

Ainda segurava a lamparina, na mão esquerda, o que não o impediu de, com o punho direito cerrado, desfechar um murro no queixo do primo.

Com um gemido, o conde foi de encontro à parede de pedra, escorregando, até cair inconsciente.

Ao bater no chão, sua casaca desabotoou-se e Arletta viu a branca camisa ir-se, aos poucos, manchando de sangue.

O duque voltou-se e estendeu a mão para ela. Com delicadeza, mas firmemente, puxou-a para fora do calabouço.

Depositando a lamparina numa protuberância da parede, o duque envolveu-a com ambos os braços.

— Está tudo bem — sossegou-a, carinhosamente. — Está tudo bem, e foi você que nos salvou.

— Eu… eu o matei?

Mal podia falar, de tanto que seus dentes batiam.

— Não. Está vivo. Mas vou cuidar disso depois. Conservando um braço em torno de Arletta, o duque praticamente arrastou-a para fora, fechando e aferrolhando a porta.

— Acha que consegue andar? — indagou.

— Eu… estou… bem.

Sem soltá-la, o duque apanhou a lamparina e subiram, lado a lado, pela escada que os levaria para longe daquele pesadelo.

Assim que atingiram o topo, o duque percebeu que Arletta estava quase desmaiando. Abandonando a lamparina num pequeno aparador, ele tomou-a nos braços.

Arletta quis protestar, dizer que podia andar, mas as palavras não saíam. Escondeu o rosto em seu ombro e desatou em lágrimas.

O duque carregou-a através de um longo corredor, e depois para cima. Arletta não sabia aonde estava indo e não se importava. Chorava apenas .

Somente quando ele parou de andar e colocou-a no chão, sem soltá-la, é que levantou a cabeça.

— Está tudo bem, ma chérie. Estamos vivos, e prometo que isto jamais voltará a acontecer.

A maneira como disse isso, o tom de voz, o carinho— implícito, parece que penetraram os sentidos de Arletta, e as lágrimas se estancaram.

Levantou o rosto, olhando-o com espanto. Seus braços reconfortantes apertaram-na um pouco mais, puxando-a para mais perto dele.

O duque não disse nada, mas Arletta podia sentir seu coração batendo de encontro ao dele.

Devagar, seus lábios se aproximaram, unindo-se num doce beijo.

 

Por uns segundos, tudo que Arletta sentiu foi a firmeza daqueles lábios de encontro aos seus. Depois, o duque se tornou mais insistente, mais exigente, apertando-a ainda mais contra si, e sentindo a maciez da sua boca trêmula.

Como nunca tivesse sido beijada antes, Arletta não tinha idéia de que um beijo lhe trouxesse todas aquelas sensações que tomava conta de seu ser. Era a concretização de todos os sonhos, toda a beleza imaginada engolfando visões e sensações.

Beijou-a até ela imaginar que, por um poder extraordinário, tinha subido ao paraíso. Não era possível que estivesse viva, na Terra, e, ao mesmo tempo, ouvindo a música celestial de mil anjos à sua volta.

Quando pensou que não era possível sentir mais nada, o corpo trêmulo com o enlevo tão difícil de exprimir e tão maravilhoso, o duque afastou-se um pouco e olhou-a longamente, os olhos ainda molhados de lágrimas, mas tão radiantes que pareciam iluminar toda a sala.

Ficaram os dois assim, por alguns momentos, olhando-se. Quando ele ia beijá-la outra vez, Arletta deu um pequeno gemido e escondeu o rosto de encontro ao pescoço do homem amado.

Ele a manteve firme nos braços e, com os lábios pousados sobre seus cabelos, sussurrou com uma voz profunda e hesitante:

— Vá dormir, meu tesouro. Preciso ir cuidar daquele demônio lá embaixo, que nos queria ver mortos.

— Como ele pôde fazer tamanha crueldade contra você?

Era tanta a intensidade dos sentimentos de Arletta que as palavras lhe saíam desarticuladas, mas o duque entendeu-as.

— Está… pensando em mim?

— Eu… tinha… que salvá-lo.

— E o fez brilhantemente.

Percebeu então que o corpo de Arletta estava se desequilibrando. Tomou-a nos braços e carregou-a escada acima, até o quarto.

As velas que Arletta acendera antes de descer às masmorras ainda estavam queimando.

Com toda a delicadeza, o duque pôs Arletta na cama e olhou-a pensativo. Abrindo os olhos, Arletta estendeu os braços para ele:

— Não… não me deixe… por favor.

— Eu preciso… ir. Está tudo bem, agora.

— Você… volta… para me dizer se seu primo está… morto?

Com um gemido, acrescentou:

— Se… ele morrer, serei… julgada?

O duque sentou-se à beira da cama e tomou suas mãos.

— Não haverá julgamento. Jacques não está morto, o que de certa forma é uma pena. Mas vou cuidar para que ele pague por todas as maldades que fez.

Havia um tom ameaçador em sua voz. Arletta segurou-lhe a mão com força.

— Tem certeza de que… se for lá agora, ele não vai… tentar matá-lo de novo?

— Importa-se com isto?

Arletta olhou-o, sem compreender, a princípio, o que ele queria dizer.

Depois, percebendo suas intenções, baixou os olhos e enrubesceu. Para o duque foi a cena mais linda que vira.

— Não precisa me responder, ma belle. Você me ama como eu a amo, e falaremos disso mais tarde. Descanse, você está precisando. Talvez demore um pouco, mas prometo que voltarei para contar-lhe o que houve.

Arletta ficou à escuta, até que o barulho dos passos desapareceu a distância. Fechou os olhos e mal pôde acreditar que todas as coisas tenebrosas que presenciara haviam, realmente, ocorrido.

Mas a sensação mais vívida em sua mente ainda eram os lábios de encontro aos seus.

Bem mais tarde, quando as primeiras cores da madrugada raiavam no céu, o duque bateu suavemente na porta e entrou.

Arletta estava recostada sobre os travesseiros, seus longos cabelos dourados caídos nos ombros.

Não tinha conseguido dormir. Rezava com ardor para que, agora que o conde Jacques fora desmascarado, terminassem os boatos que circulavam no castelo.

Não era à toa que estavam todos contaminados, inclusive as crianças. O veneno que o conde espalhara impedia que o castelo fosse, como Arletta desejava, um templo de amor e felicidade.

“Agora o duque de Sauterre poderá ser feliz”, pensara, com uma pontada aguda de dor, no coração.

Não haveria mais razão, depois que tivesse terminado de ensinar inglês a David, para continuar lá.

Sempre haveria mulheres tão belas quanto a marquesa para amá-lo, mesmo que fossem casadas.

“Ele só me beijou por gratidão”, pensara.

Naqueles longos momentos em que tinha ficado à espera da volta do duque, rezara muito e concluíra muitas coisas.

Ela nunca fora beijada antes, mas, para ele, Arletta não passava de mais uma mulher, numa longa sucessão.

— Eu o amo — admitira finalmente para si mesma — Eu o amo!

Não era para menos, sendo um homem tão bonito, tão distinto. Ao mesmo tempo, seu cinismo e infelicidade haviam sido um desafio para Arletta.

Talvez o desejo de ajudá-lo tivesse nascido no primeiro momento em que o viu, espantado, enquanto ela dançava sob os candelabros, no salão de baile.

Pensando bem, ficara intrigada desde o momento em que Jane lhe contara a seu respeito, depois pela maneira como a duquesa havia insinuado que estava tentando “caçá-lo”, e também pelo que diziam as crianças e a criadagem.

“Agora que a escuridão e as sombras que pesavam sobre ele foram afastadas, que eu o salvei, não há mais nada que possa fazer pelo meu adorado,” pensara, melancolicamente.

Recostada na cama, inquieta, tinha tentado pensar sobre o assunto com frieza e lógica, mas tudo que conseguia lembrar eram aqueles braços fortes ao redor de seu corpo, as sensações confusas quando os lábios se tocaram.

Sentira de novo o êxtase e o enlevo que haviam-na transportado aos céus. Sabia perfeitamente que não era apenas algo de que jamais se esqueceria, era também algo que não voltaria a sentir com nenhum outro homem.

Foi, portanto, com rosto muito pálido e preocupado que Arletta recebeu o duque. Ainda em seus trajes de noite, ele estava tão bonito e elegante como se estivesse vindo diretamente de uma festa.

Trazia um sorriso nos lábios e, à luz da vela, Arletta notou que estava feliz e parecia mais jovem.

— Ainda acordada? Esperava que tivesse podido dormir. Aproximou-se e Arletta não pôde conter o gesto. Estendeu os braços para ele:

— Você está bem! O conde não… o feriu?

O duque sorriu, sentou-se na beira da cama e segurou as mãos de Arletta. Beijou-as no dorso e depois, com carinho, a palma de uma, em seguida de outra.

Sentindo que o corpo todo de Arletta tremia, ele sorriu outra vez e disse:

— Meu tesouro, tenho tantas coisas para lhe dizer, tão mais importantes do que o que acaba de acontecer.

— Preciso… preciso saber.

Ele deu um suspiro e, segurando ambas as mãos de Arletta numa só, principiou o relato:

— Levei Byien e o mordomo comigo até o calabouço onde deixamos Jacques.

— Ele está… vivo?

— Vivíssimo. E xingando e praguejando de uma forma que me fez perceber, o que aliás já devia ter percebido, que Jacques é desequilibrado.

— Para mim… ele é… louco!

— É o melhor que podemos dizer dele.

— O que fez com seu primo?

— Levei-o até o médico que cuida de todos no castelo. Ele possui um hospital, onde a bala será extraída. Providenciei, também, para que ele não escape. Amanhã decidirei o que fazer com seu futuro.

— Não haverá… julgamento?

— Ma chérie, não quero vê-la envolvida nisto; ao mesmo tempo, você há de compreender, não quero escândalos envolvendo a família. Jacques vai ser tratado muito melhor do que merecia.

— O que quer dizer?

— Estou pensando em mandá-lo para uma propriedade que possuo na África francesa. Ele trabalhará lá, até sua morte. Se voltar para a França, será preso.

Sua voz era firme, mas sem aspereza.

— Você está sendo bondoso.

— Muito mais do que ele merece, e muito mais do que ele foi conosco.

— Você não tinha idéia de que seu primo estava obcecado pela idéia de tomar o seu lugar?

— Não percebi que foi ele quem matou minha esposa, embora soubesse perfeitamente que os boatos sobre mim tinham partido dele. Jacques vivia dizendo que nós brigávamos muito.

O duque ficou uns momentos em silêncio e Arletta, a quem revoltava profundamente pensar o quanto ele havia sofrido com a calúnia, apertou-lhe a mão, com força.

— Entretanto, eu suspeitei de tudo quando minha amiga, Madeleine Montserrat, morreu com uma superdose de láudano.

Bem baixinho, Arletta perguntou:

— Estava… muito apaixonado… por ela.

— Amei-a o quanto era capaz de amar naquele momento — admitiu o duque com franqueza. — E achei que seria uma boa esposa e me daria os filhos que tanto desejava.

Arletta sentiu de novo uma agulhada no coração. Não disse nada, porém, e ele continuou:

— Depois, quando já tinha percebido que era Jacques quem estava me tornando uma pessoa odiável, aqui e lá fora, não soube mais como pará-lo.

— Você chegou a falar com ele, sobre isto?

— De que adiantaria? Jacques iria negar peremptoriamente a autoria dos boatos. Suponho também que eu era orgulhoso, orgulhoso demais para negociar com um homem que eu desprezava por completo.

— Compreendo-o perfeitamente.

Arletta percebeu que tinha sido o orgulho do duque que fizera dele um homem tão sarcástico e cínico. Ele jamais admitiria estar sendo manipulado por alguém tão execrável quanto o primo.

— Foi então que você chegou, e eu fiquei realmente assustado.

— Assustado?

Arletta jamais o teria imaginado usando esta palavra. Ele sorriu, e prosseguiu em voz baixa:

— Apaixonei-me por você, minha encantadora, fascinante professorinha, quando a vi dançando sob os candelabros, no salão de baile, usando quase nada sobre este corpo magnífico.

Arletta enrubesceu e não teve coragem de olhá-lo.

— Ficou… muito chocado?

— Fiquei intrigado. Ao mesmo tempo percebi que tinha descoberto, finalmente, a mulher que vinha procurando a vida toda.

— Como é possível isso?

— Você não é a única pessoa sensível neste mundo, minha criatura adorável.

— Sei que… você é sensível… Mas não… em relação… a mim.

— Sou muito, muito sensível em relação a você. Sabia que Jacques estava nos vigiando, mas não quis acreditar que fosse capaz de destruí-la, como já tinha feito com as duas outras mulheres em minha vida. Tive muito medo. Suspirou fundo, antes de continuar:

— Culpei-me amargamente por não tê-la mandado de volta para a Inglaterra, por não ser uma governanta adequada.

Arletta protestou:

— Tinha tanto, tanto medo que fosse me mandar embora depois… que me viu no salão de baile. Eu queria ficar aqui. Queria… muito ficar aqui.

— E ficou. No entanto, se você não nos tivesse salvado, poderia ter acabado numa tragédia para a qual ninguém teria encontrado uma explicação.

Seu modo de falar fez Arletta ficar pensativa.

— Estamos salvos, mas prometa-me que ele nunca mais tentará nos atingir.

— Dou-lhe minha palavra. E agora, minha querida, estou livre para pedir-lhe que se case comigo.

Arletta fitou-o, incrédula.

— Disse que. .. está realmente pedindo… você quer se casar comigo?!

— Eu te amo como nunca amei ninguém antes. E acho que você me ama.

— Não… pode ser verdade!

— É verdade. E, como não pretendo perdê-la, como quase aconteceu esta noite, quero casar-me imediatamente. Assim, poderei cuidar bem melhor de você.

Os olhos de Arletta irradiavam luz.

Ainda assim, era-lhe impossível compreender inteiramente o que o duque estava dizendo.

— Você não pode… não está certo que… e nem mesmo sabe quem sou eu!

Ele riu, feliz e descontraído.

— Sei que você é a pessoa que eu amo, que é tudo que sempre quis numa mulher e que, embora talvez não saiba disso, já faz parte do meu coração e da minha alma!

— M-mas… eu não sou… Jane… Turner!

— Sei muito bem disso.

— Sabe?! Mas como?!

— Porque, minha cara, quando lady Langley convenceu-me aceitar uma governanta inglesa, disse-me o seguinte: “Se está preocupado que a Srta. Turner perturbe o andamento do castelo de alguma forma, deixe-me tranquilizá-lo, porque Jane é uma jovem muito sensata, de vinte e oito anos, feinha, a pobrezinha, portanto nenhum homem vai se interessar por ela, mas muito competente e bondosa”. — Sorriu de novo, antes de prosseguir: — Só os dois últimos adjetivos se aplicam a você.

— Quer dizer que sabia o tempo todo que eu não era Jane!

— Para começar, nem com muito esforço de imaginação você poderia ter vinte e oito anos. Que idade tem?

— Vinte.

— E o nome?

— Arletta. É verdade. Escapou naquela primeira noite.

— Adivinhei isto também. Embora não faça diferença para mim, preciso saber o resto de seu nome, para poder preencher os documentos obrigatórios para podermos casar.

— Meu nome é Cherrington-Weir. Meu pai, que morreu há seis semanas apenas, era o sexto conde de Weir. — Timidamente, mas sem esperar os comentários, continuou: — O que eu queria dizer-lhe, há muito tempo, mas não podia, é que a mãe de minha mãe era a condessa de Falaise, da Normandia. Tenho o mesmo nome que ela.

Parou e olhou para o duque apreensiva, caso tivesse dito algo de errado.

— Mal posso acreditar! Os Falaise estão diretamente ligados à minha família. Isto quer dizer, minha adorada, que temos o mesmo sangue, além de estarmos ligados de todas as outras maneiras.

Arletta não cabia em si de alegria.

— Estou feliz, tão feliz! Acho que grandmère, que eu adorava, também deve estar feliz.

— Minha avó também.

— Tenho certeza de que, se eu fosse realmente Jane Turner, ela ficaria chocada em saber que seu neto quer selar o que ela fatalmente chamaria de uma mésalliance. Aliás, deixou bem claro as suas suspeitas de que eu tinha vindo para cá para “caçá-lo.”

— Foi exatamente isto que você fez! Na verdade, grandmère ficará tão grata por você ter salvado minha vida que qualquer outro detalhe não terá o menor significado para ela. E agora, meu tesouro, sabendo quem você é, aprovará, não que isto importe, inteiramente o nosso casamento.

— É verdade mesmo que vou me casar com você?

— Tenho muita vontade que o faça. E, embora haja muitas coisas para lhe ensinar, minha criança adorável, também tenho muito que aprender com você — Arletta olhou-o, sem compreender. — Já tive algumas lições, e agora cabe a você encher o castelo de amor, para que seja tão lindo por dentro quanto o é por fora.

Com um suspiro profundo, Arletta perguntou:

— Como pode querer se casar comigo… se odeia tanto os ingleses?

Não teve coragem de olhá-lo e sentiu um medo súbito quando o duque soltou sua mão.

— Já esperava que me fizesse esta pergunta. Tinha muitos motivos para odiar tanto seus compatriotas. Até que você chegou e mudou tudo. Mas antes gostaria que respondesse a uma pergunta.

— Claro!

— Será que você tem consciência, como eu tenho, de que nada mais importa, a não ser que nos amamos e que o que existe entre nós é completamente diferente de tudo? Nacionalidade, família, posição social, títulos, dinheiro, nada disso se compara ao que você sentiu quando eu a beijei, e ao que, para mim, foi uma experiência emotiva que jamais havia sentido em toda minha vida.

— Fala sério?

— Acho que você sabe que estou falando a sério! Eu a adoro, Arletta, e a venero, porque você é tudo que uma mulher deve ser e que pensei que nunca encontraria.

Falava com toda sua alma, e suas palavras vibravam dentro de Arletta.

Agora era ela que o atraía para si. Seus lábios se encontraram. De novo sentiu o enlevo, o espanto e o êxtase. Ele a transportava aos céus, e os dois eram parte de Deus.

Arletta não queria que ele parasse de beijá-la, mas o duque afastou-se.

— Não deve tentar-me, ma belle, até que estejamos casados. Então, sim, poderei ensinar-lhe sobre o amor, sem medo de assustá-la ou de fazê-la sentir-se culpada.

— Você está… cuidando de mim… me protegendo.

— É o que quero fazer. O que vou fazer. Mas agora preciso lhe contar por que odiava os ingleses. Antes, porém, tenho de dizer-lhe algo.

— O quê? — perguntou Arletta, um tanto apreensiva.

Os dois falavam, como sempre fizeram, em francês. O duque disse baixinho:

— Je t'aime. Nunca vou me cansar de dizer isto, mas agora quero dizê-lo na sua língua. I love you! Eu te amo, querida! Eu te amo!

— Não sabia que você falava inglês — surpreendeu-se Arletta.

— Quase tão bem quanto você fala francês.

— Não posso acreditar!

— Deixe-me explicar. Eu detestava os ingleses porque, quando minha mãe morreu, e eu tinha dez anos, meu pai casou-se com uma inglesa.

— Uma inglesa! — espantou-se Arletta.

— Talvez devesse dizer que ela se casou com ele — a voz do duque adquirira um tom severo. — Meu pai era um homem doente, de corpo e alma alquebrados com a perda da mulher que amava, e ela ludibriou-o, levou-o a se casar.

— Sinto muito!

Arletta podia bem calcular o sofrimento por que seu amado passara.

— Ela queria muito mais que ser a duquesa de Sauterre. Queria ter um filho e ele seria o próximo duque, deixando-me de fora. Como não pudesse, por causa da doença de meu pai, transformou minha vida num verdadeiro inferno. Torturou-me como só um menino muito sensível pode ser torturado, com uma crueldade mental que me fez odiá-la. Na verdade, era odiada por todos no castelo, inclusive por minha avó.

— Por que nunca ninguém me disse isso?

— Quando tinha dezoito anos, pouco antes de meu pai morrer e eu herdar o título, ela teve um acidente fatal a cavalo. Sua morte foi um alívio para todos, e dali em diante ninguém mais pronunciou seu nome nesta casa. Ninguém que a tivesse conhecido e sabido do tratamento diabólico que me dispensou.

— Eu sinto tanto, tanto… Etienne.

— Por isso que, quando minha irmã se casou com um inglês, opus-me com todas as minhas forças, pensando que todos nós iríamos sofrer de novo com a crueldade e desprezo de um inglês.

Os lábios dele abriram-se num leve sorriso.

— Na verdade, Gerald era uma pessoa muito quieta, tranquila, mas o que minha madrasta fizera comigo calara muito fundo para que eu pudesse esquecer ou perdoar.

— Eu compreendo você.

— Sabia que compreenderia. E confesso que agora percebo como eu estava errado em jogar David contra seus compatriotas e impedi-lo de cursar a mesma escola que o pai.

Para um homem tão orgulhoso quanto o duque, aquela admissão de um erro era um esforço enorme, e Arletta sabia disso.

— Você corrigiu tudo isso. Mas será que serei capaz de fazê-lo esquecer todos esses sofrimentos? — Olhou-o preocupada. — Suponha que fique, em nosso amor… uma sombra escura… uma mancha que eu não consiga mudar e que com o passar dos anos leve você a me odiar.

— Você acha mesmo, minha querida, que eu poderia odiá-la? Já disse que te amo, que te adoro! Sei que me trará o que há de melhor nos ingleses, assim como procurarei dar-lhe o que há de melhor nos franceses.

— É exatamente isto que eu quero que aconteça. Farei tudo que me for possível para torná-lo feliz.

— Você só precisa me amar. É de amor que eu tenho falta, desde que minha mãe morreu. É disso que preciso, desesperadamente, para mim e, um dia, para meus filhos.

— Eu lhe darei amor… juro solenemente que lhe darei amor.

Arletta estendeu de novo os braços, o duque curvou-se e a beijou.

Havia, naquele beijo, algo sagrado, reverente, que não existira no anterior.

Quando ele ergueu a cabeça outra vez, não havia mais necessidade da luz das velas. Os primeiros raios de sol penetravam pela janela leste, iluminando o quarto todo com uma suave claridade de ouro.

— Agora vou deixá-la, e você deve dormir. Sonhe comigo e esqueça todos os horrores que viu.

— Ainda estará aqui, quando eu acordar? Não vai desaparecer e me deixar com a lembrança de um sonho maravilhoso?

— Estarei. Não apenas hoje, nem amanhã, mas para sempre. Beijou a mão de Arletta, levantou-se e soprou as velas.

Da porta, despediu-se mais uma vez:

— Boa-noite, minha perfeita e amada futura esposa. Eu te amo loucamente!

Fechou a porta atrás de si, e Arletta sentiu as lágrimas correndo-lhe pelas faces. Chorava de amor e felicidade.

A igrejinha do povoado estava toda decorada com lírios brancos.

Além da noiva, do noivo e de monsieur Byien, que foi o padrinho do duque, não havia mais ninguém na igreja.

O pároco local oficiou a cerimônia, ajudado por dois coroinhas. Para Arletta, a nave deserta parecia povoada pelos espíritos de todos aqueles que viveram no castelo.

Tinham deixado, atrás de si, as preces e a fé que permearam seu coração na primeira vez que visitara a pequena igreja.

Arletta tinha pedido ao noivo para que todas as velas diante da imagem de Santa Joana D'Arc fossem acesas. O duque se surpreendera com aquele pedido, e Arletta explicou:

— A primeira vez que visitei esta igreja, acendi uma vela para Santa Joana e pedi-lhe que levantasse as sombras que pesavam sobre o castelo. Acho que, no fundo, também rezei por você.

— Então, precisamos agradecê-la — concordou sorrindo. Os moradores do povoado só se haviam conformado com uma cerimônia tão íntima quando viram que até mesmo Pauline e David aguardavam a saída dos noivos na porta da igreja.

Quando perceberam que as crianças pretendiam jogar sobre o casal pétalas de rosas, cada um colheu todas as pétalas de todas as flores existentes em seus respectivos jardins.

Como notou a própria Arletta, com um sorriso deliciado nos lábios, o caminho dos noivos, da igreja ao castelo, foi um “mar de rosas.”

— E assim será nossa vida — completou o duque.

Tudo havia sido feito com tamanha rapidez e eficiência que Arletta mal podia crer no que via.

No dia seguinte ao incidente nas masmorras, fora a chefe da criadagem em pessoa que lhe levara a refeição, com a recomendação expressa do duque de que Arletta não deveria se levantar.

À tarde, ele a chamara ao escritório.

Arletta entrara silenciosa, parando na porta. Quando ele estendeu os braços, correra para abraçá-lo.

Depois de conversarem um longo tempo, ele fora peremptório:

— Agora vou mandar você para a cama outra vez. Passou por uma experiência que deixaria qualquer mulher prostrada. E eu tenho uma série de coisas que não conseguiria fazer com você por perto.

— Não me quer? — perguntara Arletta, provocante.

— Responderei a esta pergunta amanhã, depois que estivermos casados.

— Amanhã?

— Não vou esperar nem um minuto a mais do que for necessário! Só depois de casados não terei mais medo de perdê-la.

De volta ao quarto, como o duque havia praticamente ordenado, Arletta sorrira, pensando em como ele seria sempre seu senhor.

Dormira com a mente nas nuvens, todo seu ser vibrando com a lembrança dos beijos do homem que amava.

No dia seguinte estariam casados, e iriam para o sul da França, os dois apenas.

O duque previra até suas objeções com relação a David, e já arranjara um universitário inglês, que cursava a Universidade de Limoges, para dar aulas a David, enquanto estivessem fora.

Previra mais até.

De manhã, trouxeram-lhe o vestido de noiva que havia sido usado pela mãe do duque. Caíra-lhe como uma luva, à exceção da cintura, um tantinho mais larga que a de Arletta.

De cetim branco, saia bem ampla, tinha o corpete em renda finíssima, toda bordada em fios de prata e pérolas.

Ao olhar-se no espelho, Arletta mal pudera crer que o vestido não tivesse sido feito sob medida para ela.

Com o belíssimo véu de Bruxelas e a tiara de diamantes que as Sauterre haviam usado por gerações, sentira-se como a princesa encantada que tinha imaginado ser, logo ao chegar ao castelo.

Ao descer de seu antigo quarto na torre pela última vez, encontrara um ramalhete de orquídeas brancas à sua espera.

E o noivo, mais atraente do que nunca, vestindo a indumentária francesa tradicional.

Estava tão belo que Arletta não conteve uma exclamação de admiração.

Beijando-lhe a mão, ele disse:

— Você está exatamente como eu a queria, como minha noiva, e como a santa que vive no santuário do meu coração.

Todas estas lembranças passaram pela mente de Arletta no trajeto de volta da igreja, de onde foram imediatamente tomar as bênçãos da duquesa.

Em comemoração à ocasião, a velha senhora estava ainda mais coberta de jóias do que o normal.

Arletta beijou-a e o duque fez o mesmo. A avó voltou-se então para a noiva:

— Viu como eu estava com a razão? Sabia que você tinha vindo aqui para agarrar meu neto!

— E fui agarrado com todo o prazer! — completou o duque bem-humorado.

— Preciso agradecê-la, minha querida, não só por ter salvado o meu neto, mas também por me ter poupado o desprazer de ver seu abjeto primo assumir o título de novo duque de Sauterre!

— Nem mais uma palavra sobre ele — vovó — interrompeu o duque.

— Ainda não terminei, Etienne — disse a velha com firmeza.

— Quero dizer a Arletta que ela é a criatura mais bela que já pisou neste castelo, e que todos nós a amamos.

Comovida, Arletta sentiu os olhos encherem-se de lágrimas.

Depois de beberem uma taça de champanhe com a avó, os dois beijaram-na de novo e saíram.

A velha criada, como sempre, aguardava-os à porta.

— Fez madame muito feliz, monsieur. Nunca a vi tão entusiasmada e contente como hoje.

— É isto que eu próprio estou sentindo— admitiu o duque. Sorrindo, desceram as escadarias.

Havia ainda outra festa. Tratava-se do almoço preparado para todos os empregados do castelo, os arrendatários do povoado e os camponeses.

O enorme salão, que há muitos séculos abrigara os festins medievais, estava inteirinho decorado com flores e bandeirolas.

Embora tudo tivesse sido organizado tão depressa, longas mesas apoiadas sobre cavaletes ostentavam as mais diversas iguarias, para deleite de todos. Mais tarde Arletta soube que os cozinheiros do castelo haviam trabalhado a noite inteira.

Havia sidra feita em casa e vinho à vontade.

David não cabia em si com as responsabilidades que o tio lhe delegara. Na ausência dele, David seria o anfitrião.

Sentado à cabeceira de uma das longas mesas, com Pauline na outra extremidade, Arletta sabia que as crianças estavam plenamente felizes.

O duque fez um discurso breve, agradecendo a todos pelos votos de felicidade e vaticinando uma nova era de paz e alegria para o castelo e povoado. Cabia agora, a cada um, esquecer as tristezas do passado.

Enquanto ele falava, Arletta prometeu, para si mesma, que compensaria todo o sofrimento que cercara aquelas pessoas.

Depois dos cumprimentos, Arletta e o marido retiraram-se para almoçar a sós, num dos aposentos onde ela nunca entrara.

O que Arletta comeu ou bebeu, não sabia. Embora tivessem conversado sobre assuntos corriqueiros, na presença dos criados que serviam a refeição, o tempo todo os olhos do duque falavam-lhe do amor que sentia.

Era impossível pensar em qualquer coisa além das sensações que ele provocava nela.

Quando ficaram finalmente a sós, Arletta pensou que ele a levaria à sua saleta particular. Mas ele a conduziu pelas grandes escadarias, em direção aos aposentos principais do castelo.

Achou então que a levaria até o salão de baile, onde se apaixonara por ela.

Mas não. Ele continuou pelo longo corredor, que terminava em seu quarto, o mais importante do castelo. Ao lado, estava o quarto que Arletta ocuparia dali para frente. Eram muito mais lindos do que imaginara. Encontrou seu quarto inteiramente decorado com flores brancas, que contrastavam com o brocado azul-claro das paredes. Eram a moldura mais perfeita para as telas de Fragonard, com seus cupidos e pares de namorados.

A cama baldaquinada era enorme, com cupidos entalhados nas colunas. Sobre ela, um afresco em que Vênus se erguia das espumas do mar.

— Não me sentirei real neste quarto — disse com uma vozinha espantada, deliciada.

— Venha ver o meu.

Abriu uma porta de comunicação, e Arletta deu-se conta de que o quarto dele era ainda mais amplo.

A decoração era praticamente a mesma, só um pouco mais masculina.

Cercado por uma cortina de veludo vermelho, o dossel ostentava as armas da família Sauterre.

Arletta sentiu o marido mais perto dela, e achou que ele iria beijá-la. Mas ele aproximou-se e retirou a tiara que adornava seus cabelos. Depois o véu.

Arletta esperava, aceitando que ele fizesse as coisas a seu modo, mas desejando ardentemente que a beijasse. Sentia o corpo todo pulsando como um estranho enlevo, enquanto esperava.

Vagarosamente, ele removeu os grampos que lhe prendiam a bela cabeleira dourada, que foi cascateando macia, por seus ombros.

— Foi assim que a vi pela primeira vez… Só que, meu amor, naquela noite você tinha bem menos roupa cobrindo seu corpo.

— Estou… ficando embaraçada!

— Eu adoro você quando se sente assim.

Como se não pudesse esperar mais, pegou-a pelo queixo e pousou os lábios sobre os de Arletta.

Enquanto ele a beijava, Arletta sentia a emoção que tomava conta de seu coração ir tomando conta de seus lábios. A mão do marido desabotoava, devagar, o seu vestido que, instantes depois, caía ao chão, com um farfalhar macio.

Ele pegou Arletta nos braços e levou-a até a enorme cama. Por momentos, ela não sabia dizer o que se passava. Sentia apenas uma turbulência que acompanhava as batidas descompassadas de seu coração.

Mas seu amor era muito mais que isso.

Estava em seu espírito, em sua mente, e pertencia todo ao seu amado duque.

Ele deitou-a sobre os travesseiros de renda e cobriu-a com o lençol.

Depois, quando o sol que entrava pelas janelas que davam para os jardins e fontes parecia cegá-la, deitou-se a seu lado.

Tinha os braços sobre ela e seu corpo todo tremeu, maravilhado.

Sabia que também para ele os anjos cantavam como se já tivessem os dois deixado a terra em direção ao paraíso.

— ]e faime!

Seus lábios estavam colados aos de Arletta, suas mãos tocavam-lhe o corpo macio. Os dois corações batiam juntos.

— Ensine-me… por favor… ensine-me a amar… Etienne. Não havia mais palavras na Terra para expressar o que sentiam um pelo outro.

Mas não havia necessidade de palavras. Aquele amor era a própria vida, a vida que vem de Deus e que seria deles por toda a eternidade!

 

                                                                                            Barbara Cartland 

 

                      

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