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O RAPTO DA ODALISCA / Barbara Cartland
O RAPTO DA ODALISCA / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RAPTO DA ODALISCA

 

O tráfico de escravas brancas crescia de maneira impressionante no fim do século passado.

Por anos, jovens eram levadas de seu país para povoar os haréns dos Sultões e dos Sheiks árabes.

Os árabes, de raça escura, tinham especial predileção pelas inglesas, mulheres louras e de pele clara. As holandesas e alemãs eram também muito procuradas.

Raptadas de suas cidades, essas criaturas transformavam em escravas dos homens que as possuíam, à custa de maus tratos e drogas.

Esse comércio envolvia três tipos de homens, o encarregado de encontrar as moças, o importador ou exportador que as conduzia ao destino, e o que as vendia para os milionários árabes.

A moça tinha de ser virgem ao ser entregue ao comprador.

Meninas ingênuas eram enganadas por anúncios como o seguinte,

"Ótima posição para jovens mulheres independentes, com não mais de vinte e cinco anos de idade, como Governantas para ensinar inglês e viajar pelo mundo. Enviar endereço e foto".

Ao serem entrevistadas por um homem bem apessoado, sentiam logo atraídas pela idéia de viajar e viver com famílias de fino trato. Jamais imaginavam o que lhes iria acontecer ao chegar ao destino.

 

1874

O Marquês de Calvadale lançou um olhar pela sala e viu que Lady Hester Sheldon flertava escandalosamente com o Embaixador francês, na festa de Lady Bellers.

Ele não ignorava o motivo pelo qual ela agia assim, mas não ficou com ciúme, conforme fora a intenção de Lady Hester.

Ao contrário se irritou. Se havia algo que ele detestava eram as demonstrações de carinho em público.

Não gostava quando os casais se portavam de maneira íntima, sem reserva alguma, considerando propriedade um do outro. Homem difícil de se contentar, o Marquês mantivera relacionamento amoroso com grande número de mulheres, preferindo sempre as que não tomavam a iniciativa de procurá-lo. Isso cabia a ele.

Já obtivera favores das mais famosas beldades de Londres. Contudo, tinha grande cuidado em manter a honradez de sua família.  Apesar de se divertir com mulheres, jamais manchara o nome de seus antepassados com escândalos.

Decidiu, naquele instante, que seu romance com Lady Hester chegava ao fim.

Ela era, sem dúvida, uma das mulheres mais lindas da Sociedade londrina.  Porém, ao mesmo tempo, possuía um temperamento selvagem, o que o fizera se enraivecer muitas vezes.

Filha do Conde de Battledon, Governador da Índia, Lady Mester fora para Madras morar com o pai quando contava dezessete anos. Lá se apaixonara por um dos ajudantes de ordem do Palácio.

Gordon Sheldon, rapaz atraente, sempre fardado, chamava a atenção de qualquer mulher. Acrescente-se a isso a beleza da Índia, que fornecia lindo cenário a relacionamentos amorosos.

Apesar da oposição do pai, Lady Hester insistiu em se casar com Sheldon.  Por dois anos viveram relativamente felizes. Depois disso, o tempo de serviço de Sheldon na Índia expirou, e ele teve de voltar à Inglaterra.

Após o esplendor da casa Governamental em Madras, Lady Hester teve de fazer sua opção, acompanhar o marido e morar num acampamento militar em qualquer parte do mundo, ou ir para a casa de seu pai em Norfolk.

Ela escolheu esta última e, daquele momento em diante, seu casamento estava praticamente terminado.

Gordon foi enviado para fora do país, e Hester sentiu grande alívio ao saber que ele morrera numa escaramuça na África.

Com a Rainha Vitória sempre atenta ao comportamento de seus súditos, ela não ousou tirar o luto antes de um ano. Porém, assim que os meses solitários se escoaram, foi para Londres. 

Sua beleza aumentara com a maturidade. Aprendera também, através da prática, a aprisionar um homem apenas com o olhar.  Tornou-se a figura mais notável dos clubes londrinos e do grupo social que freqüentava os bailes dados todos os anos pelo pai, em sua faustosa residência.

Hester era festejada, aclamada e procurada pelos homens desimpedidos, assíduos membros do beau monde.  Claro, isso subiu à cabeça.

Aceitava os amantes, e recusara uma dúzia de pedidos de casamento. Decidiu friamente que nenhum dos pretendentes era digno dela.  Um dia, encontrou-se com o Marquês de Calvadale. E concluiu, de imediato, que ele seria a pessoa certa para se tornar seu marido.

O Marquês tinha um sobrenome famoso e respeitado e uma fortuna considerável.

Sedutor, possuía um charme que as mulheres achavam irresistível.  O problema era que ele não queria se casar.

Testemunhara muitos casamentos infelizes entre seus amigos íntimos.

Não pensava em se casar nem quando a mulher com a qual se envolvia tinha sangue azul, nem no caso de sua família aprová-la para se tornar a Marquesa de Calvadale.

Já estava com quase trinta anos de idade e sorria cada vez que a avó, as tias e os primos suplicavam para que encontrasse uma esposa.

— Por que tanta pressa? — dizia ele — Há muito tempo ainda para eu constituir família e ter dúzias de herdeiros. Francamente, por agora, prefiro minha liberdade.

E a liberdade dele consistia em ir de boudoir a boudoir.

Tinha grande sucesso também como proprietário de cavalos de corrida, e viajava muito.  Às vezes viajava por prazer, outras vezes a pedido do Secretário de Estado para Assuntos Exteriores, ou do Primeiro Ministro.

Tendo uma esposa, esse tipo de vida seria impraticável, pois ela tolheria seus movimentos e com certeza se queixaria por ser negligenciada.

Lady Hester levou seis meses para conseguir que o Marquês, enfim, cedesse a seus carinhos.  Isso aconteceu num dia em que ambos foram convidados para um fim de semana na casa de amigos comuns que lhes pareceu entediante.

O Marquês aceitara o convite para passar três dias caçando faisões em Huntingdonshire.

Poderia ter sido um fim de semana interessante, mas a maioria dos convidados era composta de pessoas mais velhas que ele e de moradores locais, com quem não tinha nada em comum.  Errara, portanto, em aceitar o convite.

O único consolo fora o fato de Lady Hester estar presente.

Não tinha idéia de que ela pedira para ser convidada, pois queria ter oportunidade de conhecê-lo melhor e conquistá-lo.

E foi um alívio para o Marquês, considerando as circunstâncias, encontrá-la entre os convidados.  Ele descobriu logo que o quarto de Lady Hester ficava bem perto do seu.

Aproveitar a companhia dela seria um consolo. E, na verdade, foi.

Lady Hester era conhecida como excelente amante. E o Marquês teve chance de concordar com o que os homens comentavam.

No dia seguinte, de muito bom humor, achou a caçada ótima.

À noite constatou com alegria que fora posto ao lado de Lady Hester na mesa do jantar. Conversaram muito, sem dar atenção alguma aos vizinhos da direita e da esquerda.

Logo depois da refeição, ambos foram para a cama pela segunda noite.

Na hora do regresso a Londres, Lady Hester concluiu que aprisionara o Marquês. Ele não escaparia mais. Por não estar ela de romance com homem algum naquele momento, encontrava com o Marquês todos os dias. E, sempre que possível, passavam a noite juntos.

Lady Hester se aborrecia às vezes porque o Marquês não permitia que ela pernoitasse na residência dele. Isso era contra seus princípios.

Quando jantavam juntos na casa de Favian, eles nunca iam para o quarto.

— Que importa o que os criados pensam? — ela costumava perguntar com petulância.

— Criados falam demais, e quero proteger sua reputação, Hester — respondia o Marquês incansavelmente

— Você pensa é na sua reputação — retrucava Lady Hester.

 Certa vez, sentando mais perto dele, sussurrou,

— Seria tão fácil, meu querido Favian, lançarmos mão de um meio, para que os criados não se chocassem com nosso comportamento!

O Marquês percebeu que ela se referia ao matrimônio. Ele então disse,

— Você é linda, Hester, mas não consigo vê-la no papel de esposa e mãe!

— Por quê? — contestou ela.

Mas, ao ver a expressão do olhar do Marquês, concluiu que nunca o convenceria com palavras. Pôs os braços em torno do pescoço dele e murmurou,

— Eu amo você, nada mais me interessa.

O Marquês beijou-a e sentiu um fogo consumi-lo por dentro,

Não obstante, bem no fundo de sua mente, sabia não ser ela o tipo de mulher com quem desejava passar o resto de sua vida.

Naquela noite, para ir à festa de Lady Bellers, recusara apanhar Hester em casa.

— Não é bom chegarmos juntos — dissera ele.

— Verdade, Favian? Como pode ser tão antiquado? Caçoou Lady Hester — Todos sabem em Londres de nosso relacionamento. Que diferença faz chegarmos em uma ou duas carruagens?

— Muitas pessoas vão deduzir que saímos da mesma casa. É melhor que você siga na sua, e eu na minha.

— Você está ficando mais e mais semelhante a uma velha rabugenta — protestou Hester furiosa.

E, quando o Marquês se levantou, ela se deu conta de que falara demais.

— Querido Favian — suplicou — não vá embora! Tenho tanto a dizer. Desejo desesperadamente beijá-lo.

O Marquês desvencilhou-se dos braços de Hester e foi para a porta.

— Verei você esta noite — disse ele.

— E me trará de volta à casa?

Ele sabia muito bem o que esse pedido significava, e hesitou.

— Vou pensar no caso — admitiu ele.

Lady Hester bateu com o pé no chão, irritada, assim que ele saiu.

Uma peça de porcelana de Dresden caiu no chão, fazendo-se em mil pedaços.

— Eu me casarei com ele, me casarei! — gritou ela a sua própria imagem refletida no espelho.

Mas tinha a desagradável sensação de que perderia o Marquês.

Aí, tomou uma decisão.

O que precisava fazer mesmo era provocar o ciúme dele.

Naquela noite, arrumou-se com muito cuidado, para se fazer mais linda que nunca. Pôs um vestido caro, comprado em Bond Street, mas modelo vindo de Paris.

O cabeleireiro foi a sua casa e penteou-a num estilo completamente diverso do usual. Com uma esmerada maquiagem, Hester melhorou muito sua aparência.

"Como pode ele resistir a mim?" ela se perguntou, antes de sair. Ao descer a escada, lembrou que o Marquês era um homem diferente dos demais.

Muitos ajoelhavam-se a seus pés, e juravam que morreriam se ela os abandonasse. Um deles tentou se suicidar ao ser posto de lado por Lady Hester. Porém, por mais que tentasse admitir o contrário, reconhecia que o Marquês era o seu preferido.

E nada do que ela fizesse o mudaria.

Torturava-se diariamente ao pensar que, por alguma razão inexplicável, ele pudesse deixá-la.  Contudo, que homem não é ciumento do que pertence?

Quando Hester chegou na casa de Lady Bellers, em Grosvenor Square, viu logo, para seu grande prazer, que o Embaixador da França se achava lá.

A esposa dele encontrava-se em Paris.

O Embaixador era um homem simpático, que flertava sempre com a mulher pela qual se sentisse atraído.

Hester sentou-se logo ao lado dele, e o Marquês foi anunciado dez minutos mais tarde.

O Embaixador levava a mão de Lady Hester aos lábios, porém o Marquês não se impressionou com isso. Continuou irritado com o comportamento de Hester pelo resto da noite.  Não sentia ciúme. Este era um sentimento que jamais experimentara. Nunca tivera motivo para isso, afinal.

Nunca, em sua vida, fizera amor com uma mulher que não estivesse totalmente apaixonada por ele. Em geral, as mulheres continuavam interessadas, mesmo depois que ele terminava a relação.

O Marquês se aborrecia por Lady Hester estar fazendo aquela lamentável exibição em público. Achava também que o Embaixador francês devia se lembrar de que se encontrava em Londres, e não em Paris.

Quando os homens juntaram às mulheres depois do jantar, ele procurou por um amigo, uma autoridade em assuntos do norte da África. Esse homem escrevera recentemente um livro sobre o Marrocos.

— Adorei seu livro! — declarou o Marquês.

— Leu-o? — indagou o autor.

— Do começo ao fim.

O Marquês estava acostumado a perguntas daquele tipo. Ninguém acreditava que ele tivesse tempo para ler. Suas atividades noturnas, com mulheres, eram conhecidas de todos. Não obstante, qualquer trabalho literário que fosse publicado era logo adquirido por ele. A enorme biblioteca de sua casa de campo estava no momento sendo aumentada, para dar lugar a novos compêndios.

Após o Marquês fazer comentários ao livro que lera, o autor observou,

— Sei que você tem viajado muito, mas insisto que faça uma visita a Fez. É uma das mais interessantes cidades muçulmanas, e você a achará fascinante, como eu a achei.

— Seguirei seu conselho na primeira oportunidade — replicou o Marquês.

Nesse instante, a anfitriã chamou o escritor. Queria apresentá-lo a uma pessoa que desejava muito conhecê-lo.

Uma hora mais tarde o Marquês decidiu se retirar.  Não dirigira a palavra a Lady Hester durante a noite inteira.

Despediu-se de todos e Hester ainda estava com o Embaixador, ambos absorvidos em conversa animada. Para eles, todas as outras pessoas da festa não existiam. Muitos comentários eram sussurrados sobre o procedimento dos dois.

O Marquês se envergonhava da atitude de Hester, de quem nem se deu ao trabalho de se despedir.

Saiu.

A anfitriã acompanhou-o à porta. Uma Senhora de idade, a Duquesa de Cumbria, levantou-se para sair também.

— Está na hora de eu ir para casa — disse ela a Lady Bellers.

— Foi um prazer recebê-la — replicou Lady Bellers — Mas deixe-me ir dizer boa noite ao Marquês de Calvadale. Depois, falarei com a Senhora

A Duquesa, quase cega, dirigiu-se ao Marquês.

— Ouvi falar do Senhor, meu jovem! Vai se casar com a linda Lady Hester?

O Marquês retesou o corpo e, inclinando-se polidamente diante da velha Duquesa, replicou,

— Eu garanto que a Senhora conhece, Milady, o ditado, "Antes só que mal acompanhado".

A Duquesa riu muito.

— É verdade e, se é assim que o Senhor se sente, pense duas vezes antes de dar esse passo.

O Marquês riu e acrescentou,

— Não esquecerei seu conselho, Milady!

Antes de se afastar, Lady Bellers disse ao Marquês.

— Não se preocupe com o que a velha Duquesa falou. Ela pertence a uma geração que se expressa abertamente, de um jeito que nós não ousaríamos fazer.

— Não estou ofendido — replicou o Marquês — E sabe, como uma de minhas mais antigas amigas, que não pretendo me casar.

— Não duvido. E faça isso só quando estiver apaixonado de verdade.

O Marquês sorriu.

— Quer insinuar que nunca me apaixonei?

— Querido Favian, embora não acredite, acho que nunca encontrou o verdadeiro amor, uma emoção irresistível e não conseguida pela maioria dos homens.

Ela suspirou antes de continuar,

— Quando se deparar com o amor, verá que é muito diferente do que se diz, "Vem facilmente e vai facilmente".

O Marquês não ignorava que Lady Bellers gostava dele, por isso falava daquela maneira. Ele inclinou-se e beijou o rosto.

— Obrigado — disse — Sei que posso confiar na Senhora

— Pode, e sempre!

Um lacaio abriu a porta para o Marquês e entregou a capa e o chapéu. Outro criado perguntou,

— Quer que chame sua carruagem, Milorde?

O Marquês fez um gesto negativo com a cabeça e declarou,

— Minha casa é bem perto daqui. Prefiro ir a pé.

E ele saiu na escuridão da noite.  Havia luar, e foi fácil enxergar o caminho.  Precisava percorrer apenas dois quarteirões para chegar à casa.

A brisa fresca da noite contrastava com o ar abafado da sala de Lady Bellers, repleta de gente.

O único som ouvido era o de seus passos, e ele sentiu feliz por estar longe de Lady Hester.  Imaginava que ela faria uma cena quando descobrisse que o romance de ambos terminara.

O Marquês estava acostumado a lágrimas e recriminações das mulheres nas mesmas circunstâncias, o que sempre o irritava.  Mas considerava em cada uma dessas vezes um tanto quanto culpado.

Então, repetia para si mesmo que mulheres promíscuas, mulheres que enganavam seus maridos, não mereciam consideração nem pena. Não obstante, toda vez que uma mulher chorava por ser abandonada por ele, via-se tentado a tomar nos braços e confortá-la.

Sabia, contudo, que isso só faria as coisas piores do que já estavam.

"O melhor é não ver Hester nunca mais" pensou ele.

Infelizmente, seria impossível, desde que ambos moravam em Londres.

Se ele fosse para a casa de campo, ela o seguiria na certa.

"Nesse caso, que fazer?", perguntava-se.

Naquele exato momento descia pela Rua Audley. Ao passar diante de uma das maiores casas da rua, a porta se abriu e uma jovem apareceu, gritando,

— Pega ladrão!

O Marquês olhou a fim de verificar o que acontecia e descobrir a razão do alarme. A mulher fitou-o e disse,

— Desculpe. Tomei-o por outra pessoa.

Ela era bonita, porém vestia-se de maneira extravagante.

— Foi roubada? — perguntou o Marquês.

— Sim. O homem que estava comigo... Fugiu com uma jóia valiosa.

— Um homem? Uma pessoa que você conhece bem?

A menina deu um soluço e fez um gesto de desânimo com a mão.

— Fui... Uma tola! Uma verdadeira tola! E agora, não sei o que fazer.

— Posso ajudá-la? — interrogou o Marquês.

A moça encarou-o por alguns segundos, depois exclamou,

— É o Marquês de Calvadale!

— Me conhece?

— Não, mas vi fotografias suas nos jornais, e meu irmão está sempre falando do Senhor e em seus cavalos. Meu irmão é Sir lan Warrington.

O Marquês lembrou-se logo de um jovem que encontrara várias vezes nas pistas de corrida do jóquei clube.

— Conheço seu irmão — confirmou o Marquês — Talvez eu possa ajudá-la, se me contar o que houve.

A moça olhou para ambos os lados da rua e constatou que estava deserta.

— O ladrão deve se encontrar bem longe agora — disse ela — Acho que não poderemos alcançá-lo. Que devo fazer, meu Deus?

— Que tal me relatar o ocorrido em detalhes? — sugeriu o Marquês.

— Claro, claro, embora acredite que ninguém poderá me auxiliar. De qualquer forma, não podemos conversar aqui.

— Acho que não — concordou o Marquês.

A moça entrou na casa e ele a seguiu. Havia um lacaio a serviço, no hall.

Ela fechou a porta tão logo ambos entraram.

Sem uma palavra, conduziu o Marquês a um atraente salão, muito bem decorado. Havia vários lampiões a gás, todos acesos.  As paredes estavam forradas de telas de valor, e a mobília era de bom gosto e luxuosa.

A moça então perguntou,

— Posso oferecer... Alguma coisa? Acredito que as bebidas da casa estejam em boa condição, excetuando-se o conteúdo de meu copo.

— Você foi drogada? — exclamou o Marquês — É isso que está dizendo?

A moça hesitou e ele disse,

— Não quero nada. Mas, se for possível, a ajudarei. Onde se acha seu irmão?

— Foi a uma corrida de cavalos fora da cidade. Uma de minhas tias ficou aqui comigo, mas não quero importuná-la a esta hora da noite.

— Não, não faça isso — concordou o Marquês.

Ele acomodou-se numa poltrona.

Observando a moça à luz dos lampiões, reparou que usava maquiagem pesada.

Tinha ruge nas faces e sombra nos olhos. Sem dúvida, os lábios muito vermelhos ficavam longe da cor natural, mesmo em se tratando de pessoa tão jovem.  O vestido, vistoso demais, combinava com o penteado, obedecendo a um estilo não adequado a uma Lady.

Vendo que o Marquês a fitava intrigado, explicou,

— Acho que se surpreende com meu aspecto, e confesso que me meti numa grande confusão.

— Conte-me tudo desde o início — pediu ele — Antes de mais nada, como é seu nome? Tem o mesmo sobrenome de seu irmão?

— Tenho. E meu nome de batismo é Narda, que significa "alegria". Mas não me sinto nada alegre neste instante.

— Preciso saber tudo!

Narda deu um suspiro e sentou no tapete, aos pés da lareira. Sua saia rodada espalhou-se pelo chão.

— Fui uma boba — disse — E agora, suponho que tenha de pagar pelo que fiz.

— Conte-me sua história, e talvez nós dois juntos possamos encontrar uma solução.

— Acredito ser... Impossível! — exclamou Narda — Tudo aconteceu porque alguns amigos, que minha mãe, se fosse viva, não aprovaria, me convidaram para uma festa.

— Por que sua mãe não os aprovaria?

— Porque são ousados, vulgares. Meu irmão conheceu-os numa corrida de cavalos.

— E apresentou-os a você? — perguntou o Marquês, atônito.

— lan trouxe-os certa noite para um drinque. Mas, logo que se foram, disse que eu não devia ter contato com eles no futuro. Errei, portanto, em aceitar o convite para essa festa.

— Seu irmão tentou protegê-la, Narda. Não entendeu isso?

— Entendi. É que encontrei uma das moças do grupo na costureira e ficamos amigas.

Narda falava mantendo-se sempre na defensiva, como se esperasse pela censura do Marquês. Ao notar que ele não dizia nada, continuou,

— Beris, esse é o nome da moça, servia-se da mesma costureira que eu. Há dois dias falou sobre a festa que iriam dar esta noite. E convidou-me em nome do grupo.

— Uma festa à qual você não deveria ter comparecido— observou o Marquês.

— Sei disso. Mas lan estava fora da cidade e eu aqui entediada, sozinha com tia Edith. Também tratava de uma novidade para mim ir a uma festa sem dama de companhia.

— Fale então sobre a festa.

— Beris contou que a festa estava sendo oferecida a um Sheik marroquino, que viera à Inglaterra com a finalidade de comprar cavalos. Soube que era um homem muito atraente e Beris achou que seria divertido para mim conhecê-lo.

Narda hesitou uns segundos antes de prosseguir,

— É claro que eu desejava conhecer um Sheik! Lera sobre eles e sempre me fascinei com as histórias do norte da África.

Então, Narda relatou ao Marquês o diálogo que mantivera com Beris.

— Gostaria que você fosse, Narda, mas precisa usar um disfarce — dissera Beris.

— Que quer dizer com isso, Beris?

— Bem. As moças convidadas pertencem ao Teatro de Variedades, e garanto que o Sheik as achará divertidas. Todas são bem mais velhas que nós duas e muito sofisticadas. Temos de parecer iguais a elas.

Narda fez uma pausa.

O Marquês, que ouvia atentamente, percebeu que ela o fitava com olhar suplicante.

— Tente... Entender! Sei que agi erradamente, mas sempre quis me vestir de maneira extravagante, fingindo ser... Uma atriz.

— Então, o que fez?

— Fui como corista de um Teatro de Variedades. Ao menos... Acho que disfarcei bem.

O Marquês deduziu a razão da maquiagem exagerada.

— Beris conhece uma mulher — continuou Narda — que vende roupas de teatro pouco usadas. Roupas que as artistas passam adiante, quase novas, porque não podem aparecer mais de uma vez com o mesmo vestido.

Ela olhou para o seu e acrescentou,

— Este é um deles.

— Achei exagerado demais para uma moça de sua idade — observou o Marquês.

— Eu precisava parecer mais velha — replicou Narda — Beris arrumou meus cabelos, dizendo ser esta a maneira como as artistas faziam seus penteados. E eu tinha uma pena de avestruz na cabeça.

— E fez o Sheik entrar aqui?

— Foi tolice minha convidá-lo para entrar — confessou Narda — Mas ele insistiu em tomar o último drinque da noite.

— E o que foi que ele roubou? — O Marquês estava ansioso por saber.

— Um colar. Custa-me crer que ele tenha roubado algo de mim, sendo um homem riquíssimo. Por ser meu vestido decotado demais, resolvi por um colar que pertencera a minha mãe, colar esse que lan adora mais que qualquer outro tesouro que possuímos.

— Como é o colar?

— É uma jóia dada a meu avô, há muitos anos, por um Marajá da Índia. O valor do colar está principalmente em ser o único no mundo.

Narda soluçou antes de continuar,

— lan tem paixão por ele. Muitas pessoas tentaram comprá-lo, mas meu irmão jurou nunca se separar dessa jóia, e seu filho, se ele o tiver, a herdará.

— Que aspecto tem o colar, Narda?

— É uma peça muito trabalhada, de joalheria, com enormes rubis, esmeraldas e diamantes. Só poderia ter sido montada no Oriente, e as pedras são muito fora do comum. Eu jamais conseguirei substituir aquele colar por outro.

Narda quase chorava, e o Marquês quis esclarecer bem o caso,

— Tem certeza de que o tinha no pescoço ao entrar em casa?

— Tenho.

— E como é esse tal de Sheik?

— Alto, moreno e muito atraente. Mais atraente do que eu supusera, e imaginei-o logo cavalgando seus magníficos animais pelo deserto.

O Marquês pensava com ironia que, como todas as mulheres, Narda acreditava que os Sheiks árabes eram todos românticos.

Mas ele conhecera muitos bastante rudes, cruéis no Governo de suas pequenas comunidades. Mercenários, preocupavam apenas com dinheiro.

— Então, a despeito de toda a competição, você foi um sucesso com o Sheik! — disse o Marquês sorrindo.

— Acho que fui — replicou Narda com simplicidade — Contava apenas vê-lo, nunca esperei que ele falasse comigo.

O Marquês não tinha dúvida de que a juventude de Narda atraíra o árabe. Apesar de todo o disfarce, ela não escondia sua ingenuidade.

— Quer dizer, Narda, que depois de ter falado e, suponho, dançado com o Sheik, ele a trouxe para casa?

— Insistiu em me acompanhar. Dispensou minha carruagem e voltamos na dele.

— Ah! Ele tem uma carruagem própria!

— Acho que sim. Quando chegamos aqui, disse ao cocheiro que não o esperasse. Julguei que fosse por ele morar perto.

O Marquês achou que o Sheik possuía outras razões para isso, mas limitou-se a dizer,

— Conte exatamente o que se passou depois.

— Entramos nesta sala. O Sheik pediu vinho. Hesitou uns segundos e olhou para mim de maneira estranha. Fiquei um pouco sem jeito. Em seguida, seus olhos pousaram no colar e, num tom de voz bem diferente do que usara na carruagem, pediu que falasse sobre o colar. Adivinhou ser uma peça oriental.

— E você confirmou que era, Narda?

— Sim. Contei que meu avô recebera o colar como presente de um Marajá, em pagamento de grande serviço. Falei também que minha família tinha muito orgulho da jóia e que era a primeira vez que eu a usava.

— Foi de fato a primeira vez? — indagou o Marquês.

— Foi. Minha mãe achava o colar vistoso demais para uma moça de minha idade. Mas eu concluí que seria perfeito para uma corista.

— E que disse o Sheik?

— Declarou que o colar era lindíssimo! Depois, decidiu que ambos devíamos tomar um drinque. Quis me servir, o que achei comovente, pois sei que no país dele as mulheres sempre servem os homens.

— É verdade — concordou o Marquês.

— O Sheik pôs vinho num copo, e ia começar a encher o outro quando eu disse que preferia limonada. Havia uma jarra sobre a mesa. Ele deu as costas para mim e colocou limonada no outro copo. Achei que demorava demais para isso, e fiquei observando seus cabelos muito negros, que, com certeza, estariam sempre cobertos por um gorro, no Oriente.

— E você bebeu a limonada?

— Bebi. Mas antes ele quis fazer um brinde. Ergueu seu copo e disse que o imitasse. Peça que seu destino e seu carma tragam felicidade, disse ele. Com certa timidez, obedeci. E beba tudo, do contrário, atrairá infelicidade, completou.

— E que houve depois?

— Uma escuridão me envolveu... E não senti mais nada. Não sei quanto tempo durou. Segundos... Minutos, talvez...

— Ele drogou você! — concluiu o Marquês.

— Pode ter usado uma droga, mas a reação foi bem diferente do que ouço falar. Quando abri os olhos, sentia-me muito bem. Olhei ao redor e vi que o Sheik... Desaparecera... Sem se despedir de mim.

Narda interrompeu sua narração, ainda atônita com o que acontecera. Depois continuou,

— Vi meu copo no chão, vazio. Não estava quebrado. Não conseguia acreditar que o Sheik houvesse saído daquela maneira.

Ela fez uma pausa antes de prosseguir,

— Fui à porta, pensando encontrá-lo no vestíbulo. Há um grande espelho lá. Ao ver minha imagem refletida, constatei que estava sem o colar!

— Tem mesmo certeza de que o tinha no pescoço ao voltar da festa? — insistiu mais uma vez o Marquês.

— Absoluta! O Sheik referiu-se a ele, lembra?

— Ah! É mesmo. Continue!

— Não podia acreditar num roubo. Voltei ao salão para ver se o colar havia caído no chão. Talvez tudo não passasse de um sonho!

O horror expresso no rosto de Narda impressionou o Marquês.

— Aí — acrescentou ela — vi o copo do Sheik vazio, sobre a mesa. Deduzi que ele roubara o colar! Corri para a rua, na esperança de alcançá-lo. Mas lá estava apenas... O Senhor.

— E foi como nos encontramos — observou o Marquês calmamente.

— E agora... Que posso fazer? Diga que posso fazer? Lan nunca me perdoará por eu ter perdido o colar. E como é possível que o Sheik seja um ladrão?

— Essas perguntas só poderão ser respondidas indo ao país dele — opinou o Marquês — Sabe de onde ele é?

— Sei que veio de Fez. Disseram que tem uma enorme casa lá, quase um Palácio, como também uma casbá no deserto.

O Marquês concluiu que Fez seria o lugar onde Lady Hester nunca o encontraria.

— Acho que posso ajudá-la, Narda. Porque, muito em breve, na verdade imediatamente, terei de ir a Fez!

 

O Marquês teve a impressão de que o destino interferia em sua vida.

No dia anterior à festa de Lady Bellers, antes do almoço, ele fora à Secretaria de Estado para Assuntos Exteriores, atendendo a um chamado recebido de Lorde Derby, Ministro de Estado.

Quando o Marquês entrou no escritório de Lorde Derby, foi logo dizendo, não esperando que o Ministro falasse,

— Se Milorde tem alguma missão desagradável para mim, como por exemplo atravessar o deserto do Saara, ou galgar o Himalaia, a resposta é não!

Lorde Derby riu.

Conhecia o Marquês há muito tempo. Achou-o mais atraente que nunca quando o viu entrando em sua sala.

— Sente-se, Favian — disse ele — E escute o que tenho a dizer.

— Isso é o que me assusta! — retorquiu o Marquês — Toda vez que o ouço, acabo fazendo o que não desejo. Fico hipnotizado e aceito missões absurdas e geralmente perigosas!

Lorde Derby riu de novo. Depois, num tom sério, disse,

— Acredito que achará interessante o que vou contar, e garanto que não tem nada a ver com subir o Himalaia.

— E acerca do deserto? — perguntou o Marquês, suspeitando de algo.

— O deserto consistirá apenas num pano de fundo para seu trabalho.

Foi a vez de o Marquês rir.

Lorde Derby apanhou alguns papéis sobre a escrivaninha e prosseguiu,

— O que vou pedir concerne ao noroeste da África, e você não ficará surpreendido ao saber que envolve o mercado de escravas brancas.

O Marquês resmungou, em protesto veemente,

— Não venha com essa velha história. Ouço isso há anos e, pessoalmente, desconfio que haja muito exagero no caso.

— A maioria dos membros do Parlamento concorda com você — replicou Lorde Derby — Mas o Primeiro Ministro está preocupado, e eu também.

— Por quê? — indagou o Marquês.

— Vou por você a par do assunto. Sabe que, após muitos anos de confusão e quase anarquia no norte da África, as coisas finalmente se acalmaram no Marrocos.

— Sei que seu interesse primordial — disse o Marquês — é garantir que o estreito de Gibraltar não seja controlado pelas potências européias, nossas rivais.

— Correto — concordou Lorde Derby — Por esse motivo, a Grã-Bretanha garante a independência do Marrocos e incentiva suas reformas.

— E suponho que pensa que vamos consegui-las — replicou o Marquês com sarcasmo.

Favian estava a par das dificuldades que haviam sido criadas no Marrocos em razão da rivalidade existente entre a França e a Espanha.

Havia somente alguns anos a paz fora enfim restaurada.

Isso porque o Governo britânico tornara bem claro não tolerar a ocupação permanente da Espanha na costa do Marrocos.

— As coisas estão mudando para melhor — Lorde Derby ia dizendo — O novo Sultão, Mulay-el-Hassen, que subiu ao trono no ano passado, é um homem de temperamento forte.

O Marquês não opinou e Lorde Derby prosseguiu,

— Nosso representante britânico, Sir John Drummond Hay, o tem em grande conceito. Como você sabe, Sir John tem trabalhado diligentemente para granjear a confiança do Sultão e incrementar o comércio entre o Marrocos e o nosso país.

— O dinheiro sempre fala mais alto — replicou o Marquês secamente.

— Concordo com você, Favian. E estamos muito ansiosos para que nada perturbe esse relacionamento amigável que agora existe entre a Grã-Bretanha e o novo Sultão.

— E acha que o tráfico das escravas brancas porá em risco essa amizade? — indagou o Marquês.

Ele achava impossível, e imaginou que Lorde Derby estivesse fazendo "tempestade num copo d'água" por causa de um assunto que talvez não passasse de invencionice de mentes férteis.  Boatos de que mulheres brancas estavam sendo raptadas da Inglaterra para os países muçulmanos existiam há séculos.

Contava-se que as mulheres eram trancafiadas em haréns na Turquia ou no norte da África, de onde jamais poderiam escapar. O tema se tornara o preferido dos novelistas.  Não obstante, muitas pessoas pareciam, céticas quanto a isso e acreditavam que o tráfico não consistia nem na metade do que se comentava.

— Eu afianço — Lorde Derby dizia, vendo dúvida no olhar do Marquês — que fizemos todas as investigações possíveis. Mas admito também ser difícil provar que um comércio em larga escala venha se efetuando.

— E você crê que seja em larga escala? — questionou o Marquês.

— Como você sabe, Favian, os muçulmanos podem ter quatro esposas e um número ilimitado de concubinas. E recentemente há muitas mulheres viajando da Inglaterra para o Marrocos.

O Marquês achava difícil provar que essas mulheres não iam por vontade própria. Mas não emitiu sua opinião, e Lorde Derby foi adiante com seu discurso,

— Há também enorme quantidade de navios com carga suspeita que nossos funcionários da alfândega duvidam ser a que é declarada.

— Que quer dizer com isso? — perguntou o Marquês. Lorde Derby suspirou.

— Navios podem ter esconderijos construídos propositadamente para essa finalidade, e caixões com mulheres drogadas são levados a bordo. É quase impraticável investigar tudo sem causar problemas.

Ele franziu a testa e acrescentou,

— Há milhares de meios para se transportar da cidade moças inexperientes sem que se tome conhecimento do fato. E os árabes gostam de mulheres jovens.

— Realmente pensa que isso vem se fazendo em grande escala?

— Penso. Sir John Drummond Hay está ansioso para que nada interfira no bom relacionamento nosso com o Sultão. Porém, sabe, tanto quanto eu, Favian, que se alguns moralistas ouvirem falar sobre o caso, haverá tremenda gritaria que com certeza aborrecerá os muçulmanos.

— Por que em particular os muçulmanos?

— Porque — explicou Lorde Derby — esse tráfico se faz principalmente entre a Inglaterra e Fez, que é considerado lugar sagrado pelos muçulmanos. Eles se ressentirão do escândalo, que refletirá na santidade e dignidade do local.

— Entendo o que diz — concordou o Marquês — Os muçulmanos são muito sensíveis no que se refere a cidades santas como Marrakesh, Rabat, Meknés e, naturalmente, Fez.

O Marquês acomodou melhor na poltrona antes de perguntar,

— Que deseja que eu faça? Roubar alguma moça drogada dos braços de um árabe? Com certeza, antes que eu pudesse pensar em fugir, teria uma faca enterrada em meu coração.

Ele falava jocosamente, porém Lorde Derby declarou,

— O que peço, Favian, é o mesmo que já fez no passado, descobrir a verdade e ver se as histórias que se contam são exageradas ou não.

— E depois?

— Assim que tivermos informações seguras, Sir John encontrará um meio de convencer o Sultão de que o que está acontecendo não é bom para o país dele.

— Essa sua ambição pode me trazer sérios problemas. Acho bom eu fazer meu testamento antes de partir.

Lorde Derby riu muito e falou,

— Suponho que já o tenha feito inúmeras vezes, antes de outras missões perigosas que empreendeu. E sempre voltou delas ileso, havendo prestado imenso serviço ao nosso país.

Lorde Derby apanhou mais alguns papéis da escrivaninha, deu ao Marquês e disse,

— Tudo que peço, Favian, é que vá a Fez, quando tiver tempo, olhe tudo por lá, faça amizade com alguns dos mais ilustres cidadãos e descubra exatamente o que está ocorrendo. Você tem grande habilidade para isso.

— Elogios não me comovem! — caçoou o Marquês — Não tenho vontade de ir a Fez no momento. Estou me divertindo imensamente em Londres!

— Sua mulher atual deve ser muito bonita, Favian! Mas nunca vi seus romances durarem longo tempo. Você se cansa deles bem depressa.

— Agora me insulta! — protestou o Marquês — Deixe-me tornar as coisas bem claras, no presente, não estou nada entediado.

Lorde Derby fez um gesto expressivo com a mão e observou,

— Nesse caso, espero até que fique!

O Marquês riu muito e Lorde Derby pôs-se de pé.

Abriu um dos armários. Dentro, havia copos e garrafas de vinho.

— Vamos beber ao bom resultado de sua missão — declarou Lorde Derby.

— Ainda não concordei com seu pedido, lembre-se disso.

— Você nunca se negou a nada do que pedi, Favian, e recuso admitir que essa seja a primeira vez.

Lorde Derby encheu o copo de vinho e ofereceu-o ao Marquês.

— Experimente este vinho — disse — É de uma vindima especial. O Embaixador francês trouxe-me uma garrafa o mês passado. Como só há três garrafas até agora aqui na Inglaterra, guardei a minha para uma ocasião especial.

— Você já começou a me bajular. Conheço seus métodos muito bem.

O Marquês experimentou o vinho e exclamou,

— Excelente! Vou mandar um convite ao Embaixador na esperança de que ele seja tão generoso comigo como foi com você.

Lorde Derby ergueu seu copo.

— A você, Favian! Para que possa adicionar um novo sucesso a seu arquivo secreto, do qual só eu tenho a chave!

Ao rememorar essa conversa que tivera com Lorde Derby na véspera, o Marquês suspirou.

"Não adianta lutar contra o destino", pensou inquieto.

Primeiro, Lorde Derby suplicara que fosse ao Marrocos e visitasse a cidade santa.

Em seguida, o autor de um livro sobre Fez recomendara a visita.

Em terceiro lugar, veio o grito de desespero de uma jovem pela qual ele sentira grande compaixão.

Entendia bastante bem como um Sheik árabe podia parecer atraente a uma mulher tão jovem. Contudo, Narda estivera prestes a iniciar sua própria destruição.

Uma inocente debutante fora a uma festa fingindo ser uma atriz sofisticada, vivida. E era moça lindíssima!

Por essa razão, o Sheik, rodeado de muitas mulheres, preferira a companhia de Narda.

Uma vez no interior de sua casa, Narda não conseguiria defender-se ou gritar por socorro. Ela fora por demais imprudente ao deixá-lo entrar.

Não teria sido fácil, entretanto, barrar a entrada. O Sheik forçaria essa permissão.

O Marquês viu claramente o que se passara.

Narda devia ser a moça mais jovem da festa e, com certeza, a mais bonita.

Porém, o que atraiu a atenção do árabe foi a jóia valiosíssima.

Ele interessou-se pelo colar mais do que pela moça pesadamente maquiada e vestida como uma mulher experiente. Não se assemelhava em nada à debutante ingênua que na realidade era.

O Marquês sabia que no Oriente havia sempre uma variedade de drogas que agiam das maneiras mais diversas.

Já ouvira falar de uma cujo efeito era exatamente igual ao que Narda descrevera. Aluava de imediato, deixando a pessoa inconsciente, mas a recuperação era rápida e não produzia efeitos colaterais.

Os árabes sempre a carregavam consigo, com o auxílio dessa droga, seduziam qualquer mulher, ou transformavam qualquer rival num homem inconsciente. Assim, podiam agir com liberdade e sem interferências.  A droga usada pelo Sheik, no caso de Narda, era mesmo de efeito poderosíssimo.

Pensando assim, ele encarou a moça que o fitava incrédula.

— O que eu preciso fazer — declarou ele a Narda — é descobrir algo mais sobre o Sheik Rachid Shriff, para ver se há alguma possibilidade de recuperar o colar.

— Vai mesmo a Fez? — indagou ela.

A expressão triste no olhar de Narda foi substituída por uma chama de esperança.

— Tenho negócios a fazer por lá — respondeu o Marquês — E me esforçarei em descobrir o que aconteceu com seu colar. O Sheik disse quando voltaria ao Marrocos?

— Partirá imediatamente. Declarou a todos na festa que se divertira muito em Londres e, na carruagem, me confessou, "Quando eu partir amanhã, estarei pensando na agradável festa em que tive o enorme prazer de conhecê-la".

— Tem idéia de onde ele se acha hospedado em Londres?

Narda sacudiu a cabeça num gesto negativo.

— Não. Ele apenas me disse que me acompanharia por que minha casa ficava a meio caminho da dele.

O Marquês concluiu que o Sheik se encontrava em algum hotel naquela área de Londres. Mas também podia estar hospedado com amigos.

Seria ridículo tentar procurá-lo àquela hora da noite.

A única coisa que poderia fazer era iniciar as investigações assim que chegasse a Fez.

— Quando vai ao Marrocos? — interrogou Narda.

— Talvez parta amanhã ou depois.

— Então... Por favor... Leve-me com o Senhor.

O Marquês fitou-a estarrecido.

— Não, claro que não!

— Mas... Se eu não for, como poderá achar meu colar? Se o Sheik não quiser devolver, dará ao Senhor uma imitação.

— Se você me fizer uma descrição exata da jóia, não serei enganado — replicou o Marquês.

— De qualquer modo, eu gostaria de ir com o Senhor — insistiu Narda.

— Isso nunca, Narda! Já se meteu em muita confusão para alguém tão jovem. Sugiro que, no futuro, comporte-se de maneira mais discreta, como sua mãe esperaria que fizesse.

Depois de curto silêncio, Narda reiterou,

— Vou a Fez. Por isso, por favor, seja sensato e permita-me viajar com o Senhor. Do contrário, irei sozinha.

— Que quer dizer com isso, Narda?

— Para recuperar o colar preciso ir a Fez. Apenas espero que encontre o Senhor por lá.

— Isso é ridículo! É claro que não pode ir a Fez sozinha. Alguém deve acompanhá-la.

— Minha criada causaria mais problemas que ajuda. Prefiro ir só.

O Marquês levantou e ficou observando as chamas da lareira.

— Ouça, Narda — disse ele — você é muito jovem e, perdoe a franqueza, muito inexperiente também. Já se envolveu numa perigosa aventura e considere-se feliz por ter escapado ilesa.

— Que quer insinuar?

O Marquês ia explicar melhor, mas resolveu calar-se. Aconselhou apenas,

— O que tem a fazer agora é agir como se nada houvesse acontecido, e deixar tudo nas minhas mãos.

— Acha que posso fazer isso? — interrogou Narda — Estou desesperada, absolutamente desesperada! Meu irmão ficará tão furioso quando descobrir tudo que me mandará para nossa casa de campo, e eu não terei mais nada a fazer além de chorar.

— Talvez seu irmão não venha a saber da verdade antes de minha volta, segundo espero, com o colar nas mãos.

— O Senhor nunca encontrará o Sheik. Sei que nunca o encontrará — protestou Narda — Como vai a Fez?

— Em meu iate — explicou o Marquês — É uma condução mais rápida e mais confortável que qualquer outra. E voltarei o mais depressa possível.

Era o que ele desejava. Tinha certeza de que descobriria tudo que Lorde Derby pedira em alguns dias de permanência em Fez. Possuía muitos contatos no mundo árabe, contatos esses que o auxiliariam em sua tarefa.

— Vou com o Senhor — insistiu Narda — Não será fácil encontrar o Sheik sem minha ajuda. Ele deve ter outro nome, mas eu o reconhecerei com qualquer disfarce.

— Ouça, Narda — ordenou o Marquês — Você não vai comigo, e chega de discussão.

— Muito bem. Então, vou a Gibraltar de trem ou de navio.

— Não pode fazer essa viagem sozinha, Narda!

— É o Senhor que está me forçando a isso. Não posso contar a meu irmão o que pretendo fazer. E minha tia, que está quase sempre doente, vai achar que essa viagem me matará.

— Você deve ter amigas.

— Moram todas no campo, e nunca viajam. Como já disse, sendo essa minha primeira visita a Londres, não conheço quase ninguém aqui.

O Marquês comprimiu os lábios.

— Sua história é muito triste, Narda. Mas não há nada que eu possa fazer. Espere aqui até que eu volte.

— Encontro com o Senhor em Fez! — repetiu ela obstinadamente.

O Marquês sabia que, para Narda, viajar sozinha representaria envolver-se em maiores dificuldades e perigos do que os que ela já passara.

Ela era linda demais, jovem e inocente!

Só por um milagre, e por causa do colar, salvara-se dos braços do Sheik. Por sorte não tivera problemas concernentes a sexo na companhia do árabe.  Contudo, qualquer jovem viajando sozinha estaria sujeita a ser importunada pelos homens.

Muitos deles não achavam nada mais interessante na vida que conquistar mulheres desacompanhadas.

Percebendo que precisava ser firme com Narda, o Marquês ameaçou,

— Se tomar essa atitude, recusarei ajudá-la. Encontramos por acaso e ofereci minha assistência, mas em meus termos. Se não a aceitar assim, não há nada mais a fazer.

Falava com determinação.

Outra pessoa que não fosse Narda pediria desculpas e se humilharia. Narda meramente riu.

— Agora tenta me assustar — declarou ela — Sei que é um Cavalheiro e que não vai se afastar de mim sem mais nem menos, abandonando a minha sorte.

O Marquês ia responder, porém Narda acrescentou,

— Logo que chegar a Fez, talvez vá procurar o colar, mas o Sheik o enganará de uma maneira ou de outra. Ele fará isso por certo.

Narda pôs a mão no braço do Marquês e disse,

— Prometo que não causarei transtorno caso viaje em seu iate. O Senhor nem mesmo vai saber que estou lá, a menos que queira, lógico... Eu ficaria na verdade aterrorizada se tivesse de fazer essa viagem sozinha. Mas, se precisar, eu a farei assim mesmo.

— É absolutamente impossível! — insistiu o Marquês.

— Nada é impossível para mim. Deixarei uma carta a meu irmão dizendo que fui passar uns dias com amigos.

Ela olhou para o Marquês, imaginando que ele fosse protestar, o que não ocorreu. E ela continuou,

— Afinal de contas, meu irmão pode não voltar antes de duas semanas. Foi convidado para, após as corridas, ficar alguns dias com amigos em Doncaster.

— Eu não terei condições de voltar de Fez em menos de duas semanas!

— Garanto que lan não se preocupará comigo, como não se preocupa agora. É claro que, se estivesse em Londres, eu não teria ido a essa festa.

O Marquês decidiu explicar melhor,

— Você não pode viajar comigo sozinha, sem uma dama de companhia. E eu não tenho intenção de levar um grupo de pessoas. Detesto aglomerações a bordo.

E era verdade.

Quando ele, por alguma razão, viajava em seu iate, ia quase sempre sozinho, principalmente em missões de Estado.

Consistia num grande incômodo ter amigos fazendo perguntas sobre para onde ia e por quê. Era também cansativo precisar organizar festas para eles. Seria difícil planejar seus contatos, às vezes tendo de se disfarçar em outra pessoa.

— Entendo não ser aconselhável, perante seus amigos, o Senhor me levar — admitiu Narda — Contudo, sendo eu tão pouco importante, não há motivo para que alguém saiba que estou no iate.

Mesmo assim, o Marquês achava imprudente carregar consigo uma quase menina. Se o caso fosse descoberto, ele seria forçado, pelas convenções sociais, a se casar com ela.  E de uma coisa o Marquês estava seguro, não desejava se casar de maneira alguma.  Como se lesse tais pensamentos, Narda sugeriu,

— Eu poderia viajar disfarçada. Talvez como empregada. Sou boa cozinheira.

— Eu não a incluiria em minha tripulação nunca, Narda!

— Então talvez o Senhor possa declarar que sou uma prima que esteve muito doente e que precisa do ar marinho para se recuperar.

— O problema com você, Narda, é que tem imaginação fértil demais. Se não tivesse ido a essa maldita festa, fingindo-se de corista, não estaria agora nessa situação.

— Mas foi muito divertido! — comentou ela, com um brilho no olhar — Homens disseram coisas na minha frente que nunca diriam se soubessem quem eu sou. Até acho que as outras mulheres tiveram ciúme de mim!

— Esqueça de que foi a essa festa! — censurou—a o Marquês — E lembre que é uma Lady.

Narda riu muito.

— Agora o Senhor fala tal qual minha tia Edith! Ela está constantemente dizendo, "uma Lady usa sempre luvas, uma Lady caminha devagar, não corre nunca!". Estou farta de ser uma Lady.

— E acho que nunca procurou de fato ser uma — O Marquês falava com sarcasmo.

— Procurei... Sim... Procurei! — protestou Narda — E, ao constatar que era um fracasso, resolvi ser eu mesma e me divertir a minha maneira.

— Se com isso pretende dizer que ainda que ir comigo em meu iate, desista!

— Muito bem. Então, encontro com o Senhor em Fez. Talvez seja bastante amável em me dizer em que lugar aportará, e em que hotel vai se hospedar em Fez.

— Não posso continuar eternamente dizendo que não a quero em Fez! — exclamou o Marquês.

— E eu não posso continuar eternamente dizendo que vou a Fez! — retorquiu Narda.

— Mandarei um recado a seu irmão.

— Não disse onde ele está. E não o encontrará nunca, sem minha ajuda. Enfim, acho que o Senhor porta-se de modo horrível, e sem espírito esportivo algum.

Inesperadamente o Marquês riu.

— Você é impossível, Narda! Absolutamente impossível, e eu lavo as minhas mãos.

— Quer dizer... Que vai me levar... A Fez? — sussurrou ela.

O Marquês deu uns passos pela sala. Pensava no que fazer com aquela menina impulsiva. Se não a levasse, ela tentaria empreender a viagem por si mesma.

E ele se sentiria culpado pelo resto da vida se algo de mal sucedesse.

Era só olhar para Narda para ver como era linda e ao mesmo tempo ingênua. Com certeza nunca fora beijada por homem algum.

Estremeceu ao pensar no que poderia ter se passado naquela noite, se a cobiça do Sheik não tivesse superado suas intenções amorosas.

"Preciso fazer alguma coisa" disse o Marquês a si mesmo.

Narda observava-o.

— Vou pensar numa solução para o caso — anunciou ele, enfim.

— A única solução é eu ir no iate com o Senhor — declarou Narda — E, como receio que viaje sem me dizer nada, vou para sua casa amanhã bem cedo, com minha bagagem.

— Como sabe onde é minha casa?

— Eu passeava por Grosvenor Square há dois dias, e vi escrito acima de uma porta muito imponente, "Calvadale House".

— Não seria prudente você ir a minha casa, Narda. Prometo que não fugirei, como pensa, e vou ajudá-la.

Os olhos de Narda se iluminaram. E ela perguntou,

— Posso confiar no Senhor?

— Pode. Nunca falto com minha palavra!

Narda sorriu.

— Sabia que o Senhor era um Cavalheiro. E eu prometo que me comportarei muito bem. Nunca enjôo no mar, por mais agitado que esteja.

— Tenho de pensar num jeito prático de levá-la a Fez. Nesse meio tempo, espere aqui e não faça bobagens como ir a minha casa e criar um escândalo.

— Só farei um escândalo se o Senhor partir sem mim — retorquiu Narda.

— Você é uma menina teimosa mesmo! Se eu tivesse mais bom senso, a deixaria entregue a seu destino e não a levaria a Fez.

Narda nem por sombra assustou-se com a ameaça.

— Sei que vai me ajudar — disse — O Senhor prometeu que o faria e acabou de dizer que nunca falta com sua palavra.

"O tiro saiu pela culatra” pensou o Marquês, sentindo-se preso a sua promessa.

— Promete que virá aqui amanhã bem cedo para me falar sobre os planos? — indagou ela — Estarei preparada para tudo.

O Marquês considerou inútil continuar com o mesmo assunto. Dentre todas as mulheres teimosas que encontrara, Narda era a pior delas.

Jogou a capa sobre os ombros, apanhou o chapéu e saiu.

— Tive muita sorte em encontrá-lo — comentou ela — Obrigada... Obrigada por me ajudar.

— Boa noite! — despediu-se ele brevemente, e desceu os poucos degraus até a rua.

Tomou a direção de Grosvenor Square. Sabia que Narda o observava da porta. Ao chegar no fim da Rua Audley, virou à esquerda, não sem antes olhar para trás.

Lá estava Narda, no mesmo lugar. Ela acenou.

Virando novamente, o Marquês resmungou, amaldiçoando sua decisão.

 

Favian levantou cedo na manhã seguinte.

Assim que desceu para tomar café, disse ao mordomo,

— Peça ao Major Ashley que venha falar comigo.

O Marquês sabia que seu secretário, homem de grande dedicação, estaria a postos no escritório. Alguns minutos mais tarde, o Major Ashley entrou na sala.

Era um homem muito atraente.

Ele e o Marquês haviam se conhecido durante a guerra, numa situação bastante perigosa, na qual o Major perdera uma vista.

Por ter escapado ileso, o Marquês viu-se quase na obrigação de proteger o homem que fora seu superior no Exército.

Um mês depois que o Major fora desligado do serviço, como inválido, o Marquês ocupou o lugar dele.

Convidou-o mais tarde para trabalhar como seu secretário. O Major Ashley, nove anos mais velho que o Marquês, aceitou o convite com grande satisfação. E provou, por seus serviços, ter sido essa uma das melhores idéias que Favian já tivera.

O Major era um gênio em organização.  Não apenas como secretário, mas como perito em finanças e contabilidade.

De início, tomou sob sua responsabilidade os negócios da vida particular do Marquês. Porém, logo começou a administrar toda a propriedade.

Cuidava dos estábulos, dos cavalos de corrida, do acampamento e das terras reservadas à caça, de tudo enfim que fizesse parte das enormes posses do Marquês.

Os dois homens entendiam-se maravilhosamente bem. O Major era a única pessoa em quem o Marquês confiava.

Durante a guerra, ambos foram encarregados de negócios de espionagem. Era confortador, portanto, ao Marquês, poder conversar com alguém sobre esse período secreto de sua vida.

Conseqüentemente, quando ele tinha tarefas a realizar por ordem da Rainha, na Secretaria de Estado para Assuntos Exteriores, pedia sempre conselhos ao Major.

Antes que a missão tivesse lugar o Major era consultado, e comunicado sobre o desfecho ao final dos trabalhos.

Naquele instante, logo que os criados saíram da sala, o Marquês começou a falar,

— Sente-se, Brian. Tenho algo a dizer.

O Major obedeceu.

Puxou uma cadeira e sentou de frente para o Marquês.  A venda preta sobre uma vista dava um ar de pirata, não prejudicando em nada sua aparência. Com mais de um metro e oitenta de altura e ombros largos, ainda tinha o porte ereto de um militar.

Seu ar de autoridade transparecia. Todos logo notavam isso quando se punham em contato com ele.

— Que houve, Milorde? — indagou o Major.

Ele insistia em dirigir ao Marquês formalmente, apesar de serem amigos íntimos. Explicara a razão disso, diante dos protestos veementes do Marquês,

— Sou seu empregado, e tenho de dar exemplo aos que estão abaixo de mim. Considero isso muito importante,

Diante disso, Favian não insistira mais.

Contudo, quando estavam sozinhos, Brian chamava-o pelo nome de batismo, apesar de conservar o "Senhor"

— Estou em apuros — respondeu o Marquês à pergunta do Major.

Este acomodou-se um pouco melhor na cadeira.

— Imaginei, quando Lorde Derby quis falar ontem — declarou o Major calmamente — que não era só pelo prazer de sua companhia que o convidava a comparecer no escritório dele.

— Não, não era. Trata-se de uma investigação que, de acordo com ele, só eu posso fazer.

— Onde?

— No Marrocos. Para ser exato, em Fez.

O Major então comentou,

— Suspeitava que, mais cedo ou mais tarde, o Senhor seria chamado para esse trabalho.

O Marquês fitou-o surpreso.

— Por que motivo pensou em algo semelhante? Ouviu falar sobre o caso?

— Um de meus amigos no Ministério do Exterior contou-me que o tráfico de escravas brancas estava crescendo impressionantemente, e que alguma coisa precisava ser feita.

Ele sorriu antes de continuar,

— Supus que ele tivesse dado essa informação para que eu a passasse ao Senhor.

— Mas você não o fez.

— Achei que o Senhor já tinha muitos problemas nas mãos, no momento! — retorquiu o Major Ashley.

O Marquês percebeu que ele se referia a Lady Hester. Houve um curto silêncio antes de o Marquês comentar,

— Está tudo acabado com Lady Hester!

O Major ergueu as sobrancelhas.

— Já? Tão depressa?

— Estava mais do que na hora. Para ser honesto, eu procurava um meio de escapar das cenas dramáticas que viriam após o rompimento. Aí, surgiu essa viagem a Fez.

— Então, qual a dificuldade?

O Marquês esboçou um sorriso ao notar que o Major desconfiava haver algo mais além da história já relatada.

Ele colocou os talheres sobre a mesa, empurrando o prato para um lado, e disse,

— Vou contar tudo, Brian, desde o início.

O Marquês relatou então o que Lorde Derby dissera.

Porém confessou que, ao sair do Ministério, não havia ainda decidido ir a Fez. E, se fosse, não seria imediatamente.

— Não mencionei nada a você antes, Brian, pela mesma razão que apresentei a Lorde Derby. Isto é, que estava me divertindo muito em Londres.  Ao menos, pensei que estivesse.

— Que houve para perturbar seu divertimento? — indagou o Major.

Brevemente, o Marquês descreveu o comportamento de Lady Hester na noite anterior.

O Major sabia da obsessão do Marquês quanto ao direito de propriedade que sentia sobre a mulher pela qual se interessava no momento. Não admitia o menor deslize.  E a Lady Hester faltava o autocontrole e a dignidade. Isso o Major notara desde o começo.

O Marquês exigia essas duas qualidades numa mulher. Achava-as imprescindíveis.

Brian, na verdade, considerara um erro Favian manter um romance com ela.

O Marquês passou a descrever a conversa que tivera na festa de Lady Bellers, com o autor de um livro sobre Fez.

— Pode parecer bobagem o que estou contando, Brian. Mas quero explicar como tudo começou a tomar corpo em minha mente, a ponto de me forçar a ir a Fez, mesmo contra minha vontade.

O Major Ashley sorriu.

Nunca ouvira o Marquês dizer que estava sendo forçado a fazer uma coisa que não queria. Até as missões secretas do passado, embora ele se queixasse delas às vezes, fazia-as com prazer.

Algumas foram terrivelmente perigosas, mas o Marquês empenhara nelas com satisfação e sempre saíra vitorioso. Talvez o fato de ele passar de uma mulher bonita para outra aliviava-o da monotonia da vida. Mas sempre restava um pouco de desilusão, pois a mulher nunca era o que seu patrão esperava.

Favian procurava por algo que tinha dificuldade em encontrar.  Queria uma mulher que despertasse um amor sublime e duradouro, e não uma paixão cuja chama se apagava tão rapidamente quanto se acendera.

O Major preocupava-se com isso, pois tinha grande admiração por Favian.

No Exército, o Marquês se destacara por seus serviços. E o Major mantinha por ele, como empregado, o mesmo respeito que mantivera durante a guerra.

Ficara apreensivo quando o Marquês dissera que estava em apuros. Estudava o semblante de Favian atentamente enquanto ele prosseguia,

— Saí da casa de Lady Bellers cedo e decidi voltar a pé. Dispensei então minha carruagem.

Era um hábito do Marquês. Após permanecer por horas numa festa repleta de gente, ou num quarto muito perfumado, gostava de andar ao ar livre.

— Estava quase no fim da Rua Audley — continuou ele — quando ouvi uma jovem gritando, "Pega ladrão!".

Ele relatou ao Major como conhecera Narda. Repetiu palavra por palavra o diálogo que mantiveram. Comentou como a moça insistira, quase brigara, para acompanhá-lo a Fez.

— Enfim, ela me forçou a prometer que a levaria, pois, caso contrário, iria sozinha encontrar comigo no Marrocos.

A voz do Marquês tornou-se mais grave ao dizer,

— Claro que foi uma promessa ridícula! Completamente ridícula! Mas sei que, se recusar, ela é o tipo de mulher que não hesitará em viajar sozinha.

— Isso seria impossível! — exclamou o Major — Se é linda e jovem como o Senhor a proclama...

— Sei que é impossível — concordou o Marquês — É exatamente o que disse a ela. Mas Narda parece não me ouvir.

— E se mandar um recado ao irmão dela? — sugeriu o Major.

— Pensei nisso, porém Narda me considerou sem espírito esportivo.

O Major riu.

— Concordo com ela. Portanto, Milorde, não vejo outra saída. Leve-a consigo no Dolphin.

Era esse o nome do iate do Marquês. Favian encarou Brian com espanto.

— Fala seriamente? Acha que não posso recusar o pedido dela? — indagou — Vai sugerir com certeza que eu leve outras pessoas também, não?

Antes que o Major pudesse responder, o Marquês acrescentou irritado,

— Detesto esse tipo de reuniões a bordo. Odeio ouvir um grupo de mulheres queixando-se de enjôo e curiosas sobre meu trabalho no local de desembarque.

O Major abriu a boca para falar, mas o Marquês continuou, agora furioso,

— E Fez fica longe do mar. Precisarei percorrer grande distância por terra e não tenho intenção de carregar comigo um bando de turistas rindo como bobos.

— Não ia sugerir isso — explicou o Major depressa.

— Então, o que sugere? E por que diabo haveria de levar uma moça sem utilidade nenhuma para mim, se já tenho tantas mulheres grudadas em meu calcanhar?

O Marquês fez uma pausa.

— Aprecio seu bom senso — admitiu o Major — Mas considero um crime deixar uma menina decente viajar sozinha pela França e Espanha até o Marrocos. Mesmo que ela sobreviva nos dois primeiros países, certamente não sobreviverá no terceiro!

— É o que penso — anuiu o Marquês — A única razão pela qual não foi violentada pelo Sheik, que garanto tinha essa intenção, residiu no fato de ela ter um aspecto de mulher muito mais velha do que na realidade é. Também, o colar o atraiu acima de tudo.

— Entendo. Porém, sendo a moça tão jovem, não poderia ir com o Senhor na condição de parente, irmã, ou talvez sobrinha?

Como o Marquês o fitasse espantado, o Major explicou melhor.

— Espero que não vá viajar sob seu próprio nome!

— Claro que não. Usarei um dos passaportes falsos que possuo. O de Anthony Dale, penso, a menos que você imagine outro disfarce.

— A cidade de Fez é o centro cultural do mundo muçulmano — observou o Major — Por isso talvez possa fingir que é um ardente arqueólogo. O Senhor tem bastante conhecimento nesse campo.

— É verdade — concordou o Marquês — Mesmo assim, não quero uma jovem cansativa pendurada em meu pescoço.

— Isso é capaz de tornar sua posição mais convincente no país. É uma experiência que o Senhor ainda não viveu antes.

 

— Você acha, Brian, que ela poderá me trazer benefício em vez de representar um ônus?

— Acho. Qualquer pessoa que suspeite do Senhor, e sempre há algumas prontas para questioná-lo sobre suas atividades privadas, mudará de idéia se o vir mostrando à jovem e linda parente o mundo muçulmano.

O Marquês encarou-o e sorriu.

— Compreendo seu ponto de vista, mas não desejo, quando voltar, ser forçado a agir como um Cavalheiro por ter arruinado a reputação da moça.

— Não será necessário — insistiu o Major.

— Por que acha que não?

— Porque ela terá uma companhia a bordo do iate.

— Recuso! Recuso categoricamente levar também uma matrona comigo! E, se tratar de mulher da mesma categoria de Hester, ficará com ciúme de Narda e me monopolizará de modo embaraçoso.

Ele fez uma pausa e acrescentou,

— Além disso, não há ninguém no momento, como já disse, com quem eu deseje ficar sozinho num mar tempestuoso.

O Major riu muito.

— Concordo, seria aborrecido!

— Então, o que sugere, Brian? — O Marquês falava com hostilidade.

— Que convide a encantadora esposa do Capitão Barratt, com quem ele vive muito feliz, e que passa cada minuto de sua vida com o marido, quando ele está em terra.

— Não tinha idéia de que Barratt fosse casado! — exclamou o Marquês.

— Casou-se há dois anos e não posso imaginar nada que daria mais prazer à Senhora Barratt que ter permissão de acompanhar o marido a bordo.

O Marquês ouvia atentamente o Major, que continuou,

 

— Ela não interferirá em coisa alguma, e o Senhor nem terá necessidade de vê-la. Mas, se o problema em questão é que sua protegida não viaje sozinha, posso assegurar que a Senhora Barratt é pessoa respeitável.  Foi governanta das filhas de Lorde Pershore antes de se casar.

— Adivinhava, Brian, que você teria a resposta — disse o Marquês — Mas só Deus sabe como eu preferiria não levar essa menina comigo!

— Espero, como a moça prometeu, que ela fique fora de seu caminho, principalmente nos seus dias de mau humor.

O Marquês franziu a testa. Depois, riu.

— Muito bem, Brian, você venceu! Encontrou uma solução para meu problema. Agora, vá preparar tudo, a fim de que eu possa partir amanhã bem cedo.

— Pois não — replicou o Major.

— Quanto mais depressa concluir meu trabalho, melhor. Embora, se você me perguntar, ache que tudo não passa de uma suspeita sem fundamento! Não acredito, nem por um segundo, que grande número de moças ingênuas, brancas, tenham sido mandadas a Fez para se unirem aos Sheiks ou a quem quer que seja.

— Vou fazer uma lista com os contatos que o ajudarão — declarou o Major — Um homem em particular, que nos auxiliou na Argélia, mudou-se para Fez, segundo me informaram.

— Sei qual é o homem. Só você, Brian, tem resposta para tudo.

— Não para tudo, infelizmente. E penso não ser necessário recomendar que tenha muito cuidado. Se esse tráfico realmente existir, os que o organizam devem estar fazendo rios de dinheiro. Lutarão com unhas e dentes para impedir que o Senhor interfira!

Brian falava seriamente, e o Marquês perguntou,

— Acredita mesmo que essa atividade tem a importância que dá Lorde Derby? De minha parte, imagino que há muito exagero nisso.

— Não concordo. Acho que esse comércio vem atingindo grandes proporções. E seria um desastre se o bom relacionamento entre a Grã-Bretanha e o novo Sultão fosse prejudicado, já no início do reinado dele.

 

— Muito bem. Você e Lorde Derby sabem melhor do que eu, Brian! Daqui a pouco vou comunicar àquela moça cansativa que a apanharei amanhã de manhã. O Dolphin encontra-se no Tamisa?

— Sim. Junto de Hampton Court — explicou o Major.

— Direi ao Capitão que o Senhor terá a bordo uma visita, e que gostaria que a esposa dele o acompanhasse nessa viagem. O nome da jovem é Narda?

— Certo — confirmou o Marquês — Ela me disse que significa "alegria". Mas não é o que sinto por ter de levá-la comigo.

— Nunca se sabe — opinou o Marquês — Será um alívio para o Senhor conversar livremente com alguém, sem recear que cada uma de suas palavras seja repetida em todos os bazares.

— Duvido que a conversa de Narda me interesse — disse o Marquês com sarcasmo.

— Ela precisa ter o mesmo sobrenome que o seu, não se esqueça. Informe-a de que, no momento em que puser os pés no Marrocos, o nome dela será Narda Dale. E faça-a chamá-lo de "tio".

— Prefiro que ela seja minha irmã. "Tio" me faz pensar que sou um matusalém.

O Major gargalhou.

— Tudo bem, sua irmã então! Mas, por Deus, não a deixe se apaixonar pelo Senhor! E nem o Senhor se apaixone por ela!

— Não há perigo! — protestou o Marquês — Uma coisa que me irrita acima de tudo é ter jovenzinhas tolas a minha volta, que não sabem nem conversar.

O Major ergueu-se e disse,

— Por tudo que me contou, acho que Narda sabe conversar, e muito bem. Talvez estejamos até cometendo um erro em não providenciar uma companhia para ela e mandá-la por terra através da França e da Espanha para Fez.

— E eu terei de esperar pelas duas até chegarem lá? — perguntou o Marquês.

O Major suspirou.

— Por isso mesmo achei melhor que Narda fosse com o Senhor no Dolphin. E, se preferir, tente persuadi-la a ficar a bordo enquanto fizer suas investigações.

O Marquês resmungou,

— Tenho a desagradável impressão de que, mesmo que chova canivete, ela insistirá em me seguir por toda parte.

— Então, é melhor que passe por sua irmã mais moça, que foi apreciar as belezas do Marrocos com o irmão, um conhecedor dos tesouros do país.

— Muito bem, muito bem, Brian. Não vejo outra alternativa. Porém, garanto que algum dia meu coração bondoso e meu forte senso de responsabilidade acabarão por me destruir.

— Duvido. O Senhor obteve grande sucesso em todos os seus empreendimentos até agora, e não vejo como essa pequena aventura possa resultar num fracasso.

— Espero que tenha razão — observou o Marquês sem muito entusiasmo — Para ser franco, estou apreensivo.

— A outra opção é o Senhor ficar em Londres e continuar com Lady Hester.

O Marquês ergueu as mãos para o alto.

— Prefiro enfrentar uma dúzia de ferozes marroquinos.

— É o que vai fazer. Agora, deixe-me trabalhar. Prometo conseguir todas as informações possíveis antes de sua partida.

O Major saiu da sala sem esperar pelos agradecimentos do Marquês.

Assim que ele se retirou, o Marquês serviu mais uma. Xícara de café. Bebeu-a, refletindo no assunto da viagem.

Ele surpreendia-se com o fato de Brian ter concordado que Narda o acompanhasse no iate.   Em geral, ele era cuidadoso com a reputação de seu amo, e constantemente chamava atenção sobre as "línguas viperinas".

O Marquês reviu todo o plano.

Achou que era boa idéia visitar Fez ostensivamente, a fim de admirar a arquitetura histórica da cidade. Ele era muito meticuloso no que se referia a missões secretas. Levaria consigo um livro intitulado, A herança arquitetônica da Europa, escrito por ele sob o pseudônimo de Anthony Dale.

O livro fora publicado havia três anos, e já era conhecido no mundo da arquitetura.

Se alguém demonstrasse curiosidade quanto a seu trabalho, apenas diria que estava colhendo material para o próximo livro.

Versaria sobre a história arquitetônica da África Setentrional. Aprendera a duras penas que um erro somente, quando em missão secreta, poderia acarretar a morte.

Um homem pelo qual tanto ele como Brian Ashley nutriam grande afeição havia sido assassinado recentemente.  Disfarçado de brâmane, fora visto comendo como um europeu e não como um oriental.

Era fácil cometer esse erro.

Pois bem, duas horas mais tarde, encontraram-no morto com uma faca no pescoço.

Felizmente Lorde Derby recomendara que não interferisse em nada do que constatasse em Fez. Queria apenas que coletasse evidências e dados.  Isso era melhor que entrar na luta, sem dúvida alguma.

Ao mesmo tempo, Favian desejava reaver o colar de Narda.

"Farei o possível", pensava ele ao sair da sala. "Porém, jóia alguma vale uma vida."

Era algo que ele faria Narda compreender.

Não estava muito otimista quanto à recuperação do colar. Mesmo que encontrasse o Sheik, ele por certo não o devolveria.

No hall, comunicou ao mordomo que iria dar um passeio e que voltaria em meia hora.

A manhã estava ensolarada e o ar muito fresco ainda.  Ele foi para a Rua Audley, e logo chegou na casa de Narda.

Ergueu o braço para bater com a aldrava de prata na porta da frente.

Antes que o fizesse, porém, a porta se abriu e lá se achava Narda.

— Esperava pelo Senhor — disse ela — Enfim, chegou! Que alegria vê-lo!

À luz do dia Narda estava mais bonita que na noite anterior. Com o rosto sem maquiagem, sua pele era alva e rosada.  Os cílios pintados da véspera haviam dado uma aparência pesada.

Naquele instante, o Marquês podia ver que eram escuros na raiz e dourados nas pontas, como os de uma criança.

Os olhos dela tinham a cor da violeta genciana.

Favian dizia a si mesmo que, se o Sheik a tivesse visto daquele jeito, a acharia mais atraente que o colar.

Narda conduziu-o ao salão, o mesmo da noite anterior. O sol penetrava pelas janelas abertas.

Havia vários vasos com flores, espalhados pela sala toda. Um perfume suave impregnava o ar.

Narda fechou a porta e fitou-o. Estava apreensiva. Achava que, mais uma vez, ele se recusaria a levá-la.

O Marquês, ainda irritado com ela, permaneceu de costas para a lareira acesa por alguns segundos.

Enfim, Narda tomou a palavra.

— O que... Decidiu? Não consegui dormir de tanta preocupação. Achei que o Senhor me deixaria ir... Sozinha.

— Continua mesmo querendo ir a Fez? Continua querendo fazer essa tolice?

Narda fez um sinal afirmativo com a cabeça. Depois, sussurrou,

— Mas eu... Gostaria... De ir com o Senhor.

— É possível, Narda. Porém...

Antes que ele pudesse terminar a sentença, ela deu um grito que ecoou pela sala.

— Concorda? Concorda mesmo? Que maravilha! Sabia que o Senhor era um homem de grande espírito esportivo. Não me abandonaria numa situação dessas.

— Levo você comigo em meu iate. Mas com uma condição.

— E qual é?

— Que me obedeça sem protestar. Que faça o que eu considerar certo.

— Prometo. É claro que prometo! — exclamou ela— Mas... Espero que o Senhor seja bondoso e não me peça para fazer coisas impossíveis.

O Marquês riu. Não pode evitar.

— Você está tentando fugir da resposta que desejo. Sim ou não?

— Sim!

— Esperava essa afirmação, Narda.

— Quando vamos partir? Por favor, diga "imediatamente", antes que algum problema surja para nos impedir.

— Apanharei você amanhã de manhã, às dez horas.

Narda deu outro grito de alegria. O Marquês pensou que ela fosse atirar-se em seus braços.

— Agora lembre-se — disse ele — Vamos para o Marrocos para você recuperar uma jóia que significa muito para sua família.

Ele fez uma pausa e acrescentou,

— Tenho pensado nisso e concluí não ser conveniente eu chegar lá como Marquês de Calvadale, nem você como Senhorita Warrington.

Narda fitou-o atônita e ele explicou,

— Se o Sheik souber que você está na cidade na companhia de um nobre inglês, é capaz de desaparecer no deserto, onde seria impossível encontrá-lo.

— É mesmo! O Senhor é muito esperto.

— Também — continuou o Marquês — haveria muito falatório por você viajar sozinha comigo.

— Acha que precisamos levar uma dama de companhia conosco? — perguntou Narda — Nenhuma aprovaria... O que vou fazer.

— Na certa! E essa é a razão pela qual imaginei um plano, e espero que concorde com ele.

Narda encarou—o com certo nervosismo, e o Marquês explicou,

— Antes de tudo, você passará por minha irmã mais moça, a quem estou mostrando os tesouros de Fez. Falarei sobre seu nome depois, que será o meu também.

— Quer dizer que preciso ir disfarçada! Que bom! Vou adorar tudo isso!

— Disfarçar-se não é nada divertido — preveniu Favian — Pode às vezes ser desastroso, pois, se as pessoas descobrirem que estão sendo enganadas, sentirão ofendidas.

— Entendo — concordou Narda — vou tomar muito cuidado para não dizer, nem fazer nada que possa despertar suspeitas.

— Conto com você.

O Marquês enxergou entusiasmo nos olhos de Narda. Ele já havia percebido que ela gostava de fingir que era outra pessoa. Afinal, entusiasmara-se representando uma corista de Teatro de Variedades.

— Pedi à esposa do Capitão de meu iate que fosse conosco — prosseguiu o Marquês — Ela não irá interferir em nossos planos. Mas, se por um acaso, mais tarde, houver comentários desagradáveis quanto ao fato de você ter viajado comigo, teremos uma prova de que estava acompanhada.

Narda bateu palmas.

— Muito bom! Muito bom! — exclamou ela — Devia ter sabido, quando o conheci, que era um homem brilhante e que enfrentaria qualquer dificuldade! E, assim como seus cavalos vencem nas corridas, nós venceremos essa batalha em Fez.

— Não seja tão otimista! — preveniu o Marquês — Há muita possibilidade de não conseguirmos nada.

— Estou absolutamente certa de que... Com o Senhor, vencerei!

 

Na manhã seguinte o Marquês mandou chamar de novo o Major Ashley, enquanto tomava seu café.

— Bom dia, Milorde — disse o Major ao entrar na sala — Tudo já foi preparado, e o Dolphin estará pronto assim que o Senhor chegar ao porto.

— O que vou fazer agora — anunciou o Marquês com voz decidida — é ver Lorde Derby e dizer que estou de partida, e também requisitar algum dinheiro.

— Ia lembrá-lo disso — comentou o Major.

— Nesse ínterim, vá buscar a Senhorita Warrington e leve-a ao Dolphin. Aproveite para recomendar que se comporte bem durante a viagem, ou a jogarei no mar.

O Major achou divertida a ameaça de seu patrão.

— Duvido que o Senhor faça isso. Mas vou preveni-la para que evite qualquer desavença com seu anfitrião.

— Não entendo como fui me meter nessa enrascada! — exclamou o Marquês com raiva.

Empurrou o prato para o lado e saiu da sala.

A carruagem o esperava, ele partiu sem dizer mais nada.

O Major Ashley já tinha feito todos os arranjos, e o valete do Marquês partiu um minuto depois, com a bagagem.

Não havia pressa, pois o Marquês com certeza se demoraria com Lorde Derby.

Mas o Major chegou na casa de Narda um pouco depois das nove e meia.

Narda o esperava. Na verdade, perguntava-se o que faria no caso de o Marquês mudar novamente de idéia e se recusar a levá-la. Teria de viajar sozinha a Fez, ou contar a verdade ao irmão sobre o colar. E, naturalmente, enfrentar a fúria dele.  Disse a si mesma que nunca mais, no futuro, confiaria em homem algum Jamais esperaria que qualquer pessoa do mundo social, mesmo numa festa como a daquela noite fatídica, se rebaixaria à condição de um larápio comum.

E, muito menos, um homem da importância do Sheik. Ele fora tratado com respeito pelos homens presentes na festa.

"Como pode aquilo acontecer?" ela se questionara centenas de vezes durante a noite, pois não pudera dormir.

Levantou logo após o nascer do sol.  Sem chamar a empregada, arrumou tudo o que precisava, fosse a viagem feita por mar ou por terra. Não tinha muita prática com viagens e resolveu se prevenir, só esperava que o Marquês não se incomodasse por ela ter tanta bagagem.  Tão logo terminou de tomar seu breakfast, ouviu o ruído de uma carruagem.

Correu à janela com o coração aos pulos, concluiu que vencera e que o Marquês a levaria consigo para o Marrocos.

Aí, percebeu que não era ele que saía do veículo, mas um homem mais velho, um desconhecido com grande constrangimento, Narda desceu para saber quem seria aquele estranho. Aguardou que a empregada abrisse a porta.

O visitante foi conduzido ao salão.

— O Major Ashley deseja vê-la, Senhorita Narda — disse a criada.

Assim que Narda entrou na sala, viu que o homem tinha uma venda negra num dos olhos. Mas era atraente, apesar de mais velho que o Marquês.

— Bom dia, Senhorita Warrington — cumprimentou ele — Sei que esperava ver Sua Senhoria, mas ele teve um encontro importante e mandou-me em seu lugar. Sou o secretário de Sua Senhoria.

— Veio... Dizer que ele se recusa a me levar a Fez? — balbuciou Narda.

O Major sorriu.

— Ao contrário, estou aqui para conduzi-la ao iate ancorado no Tamisa, perto de Hampton Court.

Os olhos de Narda se iluminaram e ela deu uma exclamação de alegria.

— Vou com ele? Que maravilha! Tive tanto medo de que tivesse de viajar por terra! Não sei se conseguiria fazer isso sozinha.

— Claro que não! — protestou o Major — Seria impossível para uma jovem como a Senhorita percorrer tamanha distância desacompanhada.

— Mas não há ninguém mais que possa ir comigo, e penso que o Senhor saiba a razão de minha viagem a Fez.

— Como secretário de confiança de Sua Senhoria, estou sempre a par de seus afazeres — admitiu o Major — Mas garanto Senhorita Warrington, que ninguém mais sabe sobre o assunto.

— Antes assim — disse Narda tristemente — Trata-se de uma situação desagradável e meu irmão ficará furioso se eu não recuperar o colar.

— Não sei como vai conseguir, Senhorita Warrington. Só sei que a Senhorita não poderia ter melhor auxiliar que Sua Senhoria.

Narda não respondeu por um segundo. Depois murmurou,

— Receio... Que ele não tenha gostado da idéia.

— Falaremos sobre isso durante nossa ida ao Dolphin. Tem tudo pronto?

— Sim, naturalmente — replicou Narda bem depressa — Apenas tenho de por o chapéu e apanhar o casaco.

Ela subiu.

O Major notara mesmo uma pilha de malas no hall, ao entrar.

“A Senhorita Warrington tenciona fazer-se bonita a bordo" admitiu ele.

Lembrou-se então de que precisava preveni-la para ser o mais discreta possível. Reparou em como Narda era linda e em como se movia com graça juvenil, e concluiu que não seria uma tarefa assim tão fácil ela se manter em segundo plano.

Talvez o Marquês não fosse achar a viagem tão maçante como previa, pensou o Major.

Mas ele logo comparou Narda às mulheres sofisticadas, como Lady Hester, com quem o Marquês costumava se entreter.  E deduziu que seu patrão preferiria ver Senhorita Warrington o menos possível.  Era óbvio que ele não estava habituado a lidar com mulheres muito jovens. Na verdade, o Major supunha que Favian nunca saíra com uma debutante, nem dançara com uma delas.

"Farei o melhor que puder", disse a si mesmo, "mas imagino que, no fim da viagem, a pobre menina terá sido tão relegada ao silêncio que se sentirá muito infeliz. Mas a culpa é só dela."

Ele chamou o lacaio para colocar as malas na carruagem.

Trouxera um carro próprio para viagens, com um bagageiro.

Contudo, três volumes tiveram de ser postos dentro do veículo, no assento de costas para a boleia.

Mais cedo do que ele esperava, Narda desceu com um lindo chapeuzinho que se assemelhava a uma auréola sobre seus cabelos louros.

Trazia no braço um casaco forrado de pele.

O Major achou que o agasalho seria de grande utilidade como proteção contra os ventos frios da baía de Biscaia.

— Estou pronta — anunciou ela — Mas não levo muito dinheiro comigo. Acho que deveria ter ido ao banco.

— Não terá de pagar por sua viagem ao Marrocos. E asseguro que, se precisar de alguma coisa por lá, Sua Senhoria providenciará o dinheiro ou um cheque.

— Conto com isso — replicou Narda — Mas não deixa de ser embaraçoso impor-me assim a Sua Senhoria. Ele pode se ressentir.

O Major concordou mentalmente. Era mais um item para aumentar o ressentimento do Marquês por ter de levá-la ao Marrocos.  Em voz alta, porém, apenas disse,

— Se estiver pronta, vamos. Terá tempo de abrir suas malas antes que o iate entre em alto mar.

— Se receia que eu vá ter enjôos, posso garantir que está enganado. Sou boa marinheira! — explicou Narda sorrindo.

Enquanto falava, dirigiu-se à carruagem.

O Major seguiu-a e, assim que partiram, Narda comentou em voz baixa,

— Espero que tia Edith não tenha ouvido o que disse.

— Por que motivo?

— Porque deixei um recado a ela dizendo que ia ficar com amigos no campo. Não mencionei nada sobre a viagem à África.

— Esperemos que sua tia não seja curiosa e não faça muito esforço para descobrir o paradeiro da sobrinha — comentou o Major.

— De qualquer forma, meu irmão só chegará em duas ou três semanas. Ninguém se preocupa muito comigo, além de meu irmão. O perigo é tia Edith escrever para ele, o que é pouco provável.

— Então, não terá problemas — replicou o Major — Agora, quero falar sobre a viagem.

Havia um tom sério na voz dele, o que fez Narda lançar um olhar apreensivo.

— Sei o que vai dizer — adiantou ela — O Marquês está furioso por eu ter forçado a me levar. Por esse motivo, é melhor que fique longe dele o máximo possível. Vou tentar!

O Major fitou-a intrigado.

Jamais encontrara uma mulher que se conformasse em ficar longe de seu patrão com tanta facilidade. A maioria delas fazia esforço para ser notada, usando todos os meios disponíveis.

— Como sabe que era isso que eu ia falar? — indagou o Major.

— Li seus pensamentos. Não foi difícil, considerando como Sua Senhoria ficou zangado quando insisti em acompanhá-lo.

O Major não deu palpite, e ela continuou,

— Entende que não tinha outro remédio? Como poderá ele reconhecer o colar? E, mais ainda, nunca viu o Sheik!

— Se quer saber minha opinião, acho mais fácil encontrar o Sheik que o colar.

— Preciso recuperar o colar — insistiu Narda — E foi um jogo sujo o do Sheik me drogar e sumir.

— Concordo — respondeu Brian — Mas, de acordo com o que Sua Senhoria me contou, a Senhorita não devia ter ido a essa festa, para início de conversa.

— Sei muito bem, que errei. É mais uma razão para eu recuperar o colar. O Senhor acha que posso ficar calmamente sentada em casa, e dar o colar por irremediavelmente perdido?

O Major começou a sentir pena dela. Ao mesmo tempo, não podia esquecer das recomendações do patrão.

— O que peço acima de tudo — disse Brian — é que deixe as coisas nas mãos de Sua Senhoria. Ele tem muita experiência acerca do caráter das pessoas, e possui grande conhecimento do mundo árabe.

O Major escolhia as palavras com cuidado, mas Narda interveio, impulsivamente,

— Tenho certeza de que Sua Senhoria, por ter viajado muito, já esteve em situações estranhas e perigosas.

O Major observava-a cada vez mais atônito.

— Como sabe? — perguntou.

— Sinto, apenas sinto. Quando ele disse que me ajudaria se pudesse, percebi que não se tratava de uma promessa qualquer, mas a de um homem experiente e de responsabilidade.

O Major deduziu que Narda era muito observadora.  Ou talvez ela tivesse ouvido comentários sobre o que ele sempre julgara ser um segredo muito bem guardado?

Por conhecer o trabalho de seu patrão, o Major estava sempre preparado a responder perguntas referentes às atividades secretas dele.  Mas tudo que as pessoas queriam saber era acerca dos casos de amor do Marquês.

As mulheres que o perseguiam confiavam seus problemas a ele.  E confessavam, sem constrangimento, o que pretendiam.

Mas Narda referia-se mesmo às atividades secretas do Marquês.

— O que tem a fazer — explicou o Major, enfim — é fazer só o que for solicitado. Caso contrário, confie na inteligência brilhante dele.

Narda riu muito.

— O que o Senhor insinua é que eu fique fora do caminho de Sua Senhoria, e que me comporte como uma verdadeira idiota.

— Não falei isso!

— Não falou, mas pensou!

Continuaram a viagem em silêncio por algum tempo.

Narda finalmente disse,

— vou tentar fazer o que pediu. Porém, quando chegar ao Marrocos, preciso, de qualquer maneira, achar o Sheik e o colar.

— Ainda penso ser mais prudente deixar tudo a cargo de Sua Senhoria, Senhorita Warrington.

— Não esquecerei seu conselho, porém não faço promessas. Tenho de pensar em meu problema e voltar com o colar antes que meu irmão descubra o ocorrido.

— Nesse caso, tudo que posso fazer — replicou o Major com um suspiro — é desejar uma boa viagem e muito sucesso! Mas garanto que não conseguirá nada se irritar Sua Senhoria!

Narda sorriu. Porém ele percebeu que a moça entendera perfeitamente bem o que recomendara.  Não restava a menor dúvida de que ela absorvera as instruções.

"A Senhorita Warrington é mais inteligente que a maior parte das moças de sua idade", pensava o Major.

Chegavam ao iate e o Major mostrava-se apreensivo. Falhara na sua missão de fazer Narda concordar com ele sobre o comportamento que deveria manter durante a viagem e, ainda pior, no Marrocos.

 

O Marquês foi ao Ministério do Exterior e pediu para falar com Lorde Derby.

Alguns minutos mais tarde entrava no escritório do Ministro, que o fitou estarrecido.

— Não esperava vê-lo tão cedo, Favian! — exclamou Lorde Derby.

— Sei disso — replicou o Marquês — Mas resolvi seguir para Fez imediatamente.

— Que surpresa agradável! O que aconteceu para apressar sua decisão?

— Algo que não pretendo revelar. O que desejo, Milorde, é dinheiro e meu passaporte como Anthony Dale.

O passaporte, por ser secreto, ficava sempre guardado no próprio Ministério.  Isso assegurava que nenhum empregado, ou visita, o visse na casa do Marquês.  Sem dizer mais nada, Lorde Derby tocou a sineta e um funcionário apareceu.

—. Jackson, quero o passaporte que está em nome de Anthony Dale — declarou Lorde Derby — E também uma quantia em francos e dinheiro marroquino.

— Notas velhas, por favor — acrescentou o Marquês.

O funcionário retirou-se e Lorde Derby disse,

— Estou muito grato a você, Favian, por tomar meu pedido a sério. Ontem mesmo recebi um relatório confirmando o que já contei.

— Tentarei descobrir tudo que deseja — prometeu o Marquês — Mas conte-me agora o que sabe sobre o Sheik Rachid Shriff, que recentemente esteve em Londres.

Isso requeria uma consulta em outra seção do Ministério.  Mas um funcionário foi chamado e Lorde Derby pediu que buscasse informações sobre o Sheik.

Após vinte minutos o homem voltou com um relatório que dizia que o Sheik Rachid Shriff estivera em Londres várias vezes, há poucos dias, há seis meses e no ano anterior.

Dera muitas festas estrondosas, associara-se a pessoas importantes e a outras de reputação duvidosa, envolvidas no tráfico de entorpecentes.

— Sinto muito, Milorde — desculpou-se o funcionário que trouxera as informações — mas não há mais que isso sobre o Sheik. Fala-se, também, que ele tem grande sucesso com mulheres.

— É o mal de muitos homens! — replicou Lorde Derby ironicamente.

Quando a sós disse ao Marquês,

— As informações ajudaram?

— Sim, e é o que eu suspeitava. Penso não ter grande dificuldade em encontrá-lo.

— Concluí, Favian, que você não quer me contar a razão de tanto empenho em saber sobre esse Sheik. Porém, se tiver problemas, sabe onde encontrar auxílio.

— Sim, sei — respondeu o Marquês — Não pretendo me ausentar de Londres por longo tempo. Voltarei logo trazendo as informações requeridas.

— Creio não ser necessário dizer como sou grato, Favian. Não pediria isso se não fosse de importância tão relevante, politicamente.

O Marquês sorriu.

— Mais alguma coisa? — perguntou.

— Nada mais — respondeu Lorde Derby.

Um funcionário voltou trazendo o passaporte com a assinatura de Lorde Derby.

O Marquês leu e pediu,

— Gostaria que fosse acrescentado o nome de Narda Dale, irmã de Anthony.

Lorde Derby encarou-o estupefato.

Depois indagou,

— Irmã?

— Irmã!

Lorde Derby simplesmente deu ordens ao funcionário, que se retirou mais uma vez. Fechada a porta, pediu ao Marquês,

— Agora conte o que significa isso! Nunca soube antes que você viajava com uma "irmã".

— É uma jovem irritante a quem eu prometi assistência, em Fez, na recuperação de uma jóia que o Sheik roubou — explicou o Marquês.

Falava relutantemente, detestando ter de dar satisfação de seus atos.

Lorde Derby limitou-se a declarar,

— Bem, suponho que saiba o que está fazendo, Favian. Mas nunca, no passado, levou consigo uma mulher em viagem de "negócios", usando uma palavra elegante para o que vai realizar.

— Eu sei, eu sei! — concordou o Marquês — Não pude evitar. Mas, pensando melhor, achei que isso me daria um disfarce mais convincente que qualquer outro.

— Há lógica no que diz — concordou Lorde Derby — Contudo, ela pode ser indiscreta, e você correria grande risco.

Como o Marquês não desse opinião, ele continuou,

— Sempre me surpreendi com o sucesso das missões que tornou a seu cargo no passado, Favian, e ninguém nunca suspeitou, nem por um segundo, de que você não fosse apenas um homem desimpedido à procura de mulheres bonitas.

O Marquês riu muito.

— E me assusta — prosseguiu Lorde Derby — pensar que agora possa levar uma mulher tagarela que diga ao melhor amigo dela que você viaja incógnito. E o amigo contará isso ao mundo inteiro, sem dúvida.

— Deixe tudo por minha conta — insistiu o Marquês — A moça não saberá nada e conservará, garanto, a boca fechada.

— Já vi homens bem inteligentes e espertos serem destruídos por uma mulher faladeira — observou Lorde Derby preocupado.

— Há mulheres que falam demais. Porém, garanto que essa não é do mesmo tipo.

Lorde Derby sacudiu os ombros.  Que mais poderia fazer?

Pensava que, pela primeira vez, o Marquês dava um passo no escuro, do qual se arrependeria por certo, e amargamente.

Uma hora mais tarde, quando saía do Ministério, Favian refletia sobre a mesma coisa.

"Por que diabo fui prometer auxiliar Narda?" ele se questionou. "Se eu a tivesse deixado naquela noite, dizendo que assunto do colar não era de minha conta, não estaria agora arriscando algo muito importante por causa de uma jóia roubada."

Essas considerações o fizeram franzir os sobrolhos.  Não obstante, não poderia ter lavado as mãos e seguido seu caminho.  Se o tivesse feito, Narda iria sozinha ao Marrocos, por terra, através da França e da Espanha.

E, se qualquer coisa desagradável acontecesse a ela, jamais se perdoaria.

"Mas não é de minha conta", disse a si mesmo, apesar de tudo. "Como posso me portar como um Dom Quixote, quando tenho a realizar um empreendimento de real importância?"

Porém, concluiu que, se conseguisse convencer Narda a agir como ele desejava, ela poderia ser útil em vez de se transformar em um peso em suas costas.

E, se as coisas eram assim difíceis como Lorde Derby imaginava, mesmo um arqueólogo fazendo perguntas e viajando pela cidade poderia despertar suspeitas.  Em contrapartida, mostrando à jovem irmã as vistas de Fez, passaria por um turista sem muita importância.

Não queria isso dizer que ele não se preocupasse, como Lorde Derby, com o ponto fraco da mulher, a língua.

"Farei com que ela se cale", jurou para si mesmo. "Nem que tenha de estrangulá-la para que me obedeça."

 

Quando Narda subiu a bordo do Dolphin, achou que entrava no iate mais lindo do mundo.

E tinha certeza também de que era o mais veloz.

O Major Ashley apresentou ao Capitão antes de levá-la a um tour pelo barco.

Tratava-se de uma aquisição bem recente do Marquês.  Ele considerava seu velho iate vagaroso demais, especialmente quando perseguido por outras embarcações.  Muitos acessórios foram adicionados ao Dolphin durante a construção.

O motor e grande número de instrumentos eram os mais avançados do mundo náutico.  O Dolphin havia sido também lindamente decorado.

Narda ficou encantada com sua cabine de cortinas e tapete vermelhos.  As paredes brancas e o armário, igualmente branco, cheio de gavetas, davam a impressão de que a cabine era bem maior que na realidade.

Como o Marquês ainda não estivesse a bordo, o Major Ashley deixou-a dar uma olhada na cabine principal.

Claro, era a maior do iate, e ocupava o espaço todo da popa. Tinha uma decoração mais discreta que as outras e aparência muito masculina.  Mas não deixava de ser bonita.

Depois, Narda descobriu uma coisa que a deixou entusiasmada.

No salão, como no escritório do Marquês, havia uma infinidade de livros.  Num golpe de vista, notou que muitos deles versavam sobre países estrangeiros, e supôs que também sobre o Marrocos.

Perguntou ao Major se, de fato, havia livros sobre aquele país.

— Sabia para onde Sua Senhoria se dirigia, por isso incluí na bagagem quase uma dúzia de livros acerca do Marrocos. Portanto, terá muito que ler antes de chegar ao seu destino, Senhorita Warrington.

— Com isso quer dizer que, se ficar lendo o tempo todo, não perturbarei o Marquês? — sussurrou Narda.

Os olhos dela tinham uma expressão brejeira.

— Agora estou certo de que adivinha meus pensamentos — observou o Major.

Ambos riram.

Quando as malas de Narda foram levadas à cabine, ela disse,

— Penso que seja boa idéia eu começar a por minhas coisas no armário.

— Acho que sim — concordou o Major — Eu a avisarei quando Sua Senhoria chegar.

Pelo semblante de Narda, ele percebeu que ela se divertia com tanto empenho em informá-la da chegada de Sua Senhoria.

Narda concluiu que o Major se preocupava com as reações de seu patrão.

— Pode dizer ao Marquês que serei dócil — preveniu Narda — Desde que ele faça o que eu quiser, uma vez em nosso destino.

— Não vou falar nada disso! — protestou o Major — A Senhorita tem de lutar sua própria batalha. Minha única sugestão é que, considerando que um não pode escapar da presença do outro, tente fazer essa viagem em paz, e da maneira mais agradável possível.

Mas, consigo mesmo, ele não acreditava que isso se desse, no que concernia ao Marquês, pelo menos.  Contudo, tinha de admitir que Narda não se parecia nada com o que ele pensara.

Sabendo como era jovem, imaginou que fosse tímida, acanhada, ou então efusiva demais, um tanto gaúche.  Mas ela estava longe disso tudo.

Tinha um senso de humor e uma presença de espírito que ele esperaria encontrar apenas numa mulher muito mais velha.

"Acho que Sua Senhoria vai ter grande surpresa!” dizia ele a si mesmo ao deixar a cabine de Narda.

Narda quase acabara de esvaziar as malas quando ouviu uma pancada na porta.

Abriu-a e, parado do lado de fora, estava um homenzinho vigoroso, que Narda adivinhou ser o valete do Marquês.

— Oh, já guardou tudo, Senhorita! — exclamou ele — Não havia necessidade. Eu teria feito isso para a Senhora

— É muita bondade sua — replicou Narda — Mas imaginei que já tivesse bastante trabalho a fazer com Sua Senhoria.

— Não há nada mais a ser feito — respondeu o valete — Meu nome é Yates, e vim para prevenir que, se precisar de alguma coisa, estarei às suas ordens.

— Obrigada, Yates. O que eu gostaria, se for possível, é que me trouxesse um livro sobre o Marrocos. Acho que há alguns incluídos na bagagem. Preciso ler alguma coisa durante a viagem.

— Isso é fácil, senhorita. Já os pus no escritório de Sua Senhoria.

O homenzinho desapareceu e voltou logo após com os braços carregados de livros.

— Escolha o que quiser, Senhorita — disse ele — E trarei outro assim que a Senhorita terminar o que estiver lendo.

Narda sorriu e agradeceu.

— Muito, muito obrigada.

Olhou os livros e escolheu dois deles.

— Começarei por estes — declarou ela.

— Se terminar depressa demais, vou ter certeza de que pulou algumas páginas! — observou Yates rindo.

— Leio bem rapidamente. E não pularei nada, porque estou muito interessada pelo Marrocos.

O valete lançou um olhar observador.  Sabia que a maior parte das mulheres interessava-se mais pelo seu patrão do que por livros.

Tão logo Yates se retirou, Narda fechou a porta e sorriu.

"O problema com o Marquês", pensou "é que dá a si próprio muita importância. E se Yates pensa que vou me interessar por ele mais do que pelos livros, está redondamente enganado."

Ela pôs os dois livros ao lado da cama e antecipou o prazer que iria ter com sua leitura.

Ficara muitos anos sozinha com seu pai na casa de campo, durante a doença dele. E os livros eram um antídoto para sua solidão e tristeza.

Felizmente, por seu pai ser um homem culto, possuía enorme biblioteca. E ele costumava discutir com a filha sobre suas leituras.  Acrescentava em geral ao conhecimento dela alguns episódios de sua própria experiência, dando aos fatos um colorido muito especial.

Era quase como se ela houvesse viajado por aqueles lugares. Narda sempre tivera curiosidade pelo norte da África. Nunca sonhara, contudo, que iria ter a felicidade de conhecer o Marrocos.

O irmão não tinha interesse por viagens.

Contentava-se em viver na Inglaterra e se divertir indo a corridas de cavalos e passando o resto do tempo livre com amigos.  Às vezes, lan freqüentava certos tipos de festa, às quais ele deixava bem claro à irmã que não poderia levá-la.  E lia apenas as colunas de esporte nos jornais e revistas.

Narda gostava de ler notícias sobre política, e tudo que se referisse a outras regiões do mundo. Em particular aos lugares sobre os quais conversava com o pai.

Ela abriu um dos livros e passou o olhar pela primeira página.

De súbito, percebeu um movimento desusado no barco e supôs que o Marquês chegava.

Imaginou o que estaria ele perguntando ao Major Ashley. E este repetiria com certeza a conversa que tivera com ela na carruagem.

"Sua Senhoria desejará saber se suas ordens foram cumpridas" pensou Narda. "E quer ter certeza de que fui informada de que devo ficar longe do caminho dele."

Sentou numa poltrona e começou a ler.

Ouvia pessoas se movimentando pelo convés superior.

"Sua Senhoria não precisa se preocupar comigo" pensou. "Ficarei bem quieta em meu lugar até chegarmos ao Marrocos. Então, farei com que ele procure o Sheik e me ajude a recuperar o colar."

Sorriu.

"Até lá, acharei estes livros bem mais absorventes que ele."

 

Na baía de Biscaia o mar estava mais calmo do que o Marquês havia previsto.

De repente, ele se deu conta de que não vira Narda por três dias, desde que subira a bordo.

Quando Narda não apareceu para almoçar no primeiro dia, julgou que ela não estivesse passando bem.

O mar apresentava-se agitado no fim do estuário do Tamisa. No estreito de Dover, o Dolphin começou a sacudir bastante.

O Marquês supunha que, como a maioria das mulheres, Narda estivesse nauseada, e fora bastante prudente em não sair da cabine.  Pensou a mesma coisa quando atravessaram o Canal da Mancha, com o vento sacudindo as águas do mar, que formavam ondas enormes.

Quando o Dolphin entrou, enfim, na baía de Biscaia, o Marquês teve certeza absoluta de que Narda não pusera os pés no convés.

Considerava-se rude por não ter perguntado sobre o estado de saúde da moça.  É que se sentia ainda furioso com a intrusão dela, embora, até aquele momento, não houvesse causado transtorno algum.

Na manhã do terceiro dia de viagem, enquanto se vestia, perguntou a Yates,

— A Senhorita Warrington está melhor? Não se recuperou das náuseas?

Yates espantou-se com a pergunta.

— Ela não está doente, Milorde. Lê o tempo todo. Já terminou o sétimo livro sobre o Marrocos e me pediu mais três.

O Marquês não podia acreditar.

— A Senhorita Warrington está lendo, Yates?

— Isso mesmo, Milorde.

— E... Não enjoou nada?

— Nada, Milorde.

— Então, por que não saiu da cabine?

Yates hesitou em responder.

O Marquês percebeu que ele não queria dizer que Narda o evitava. Após segundos, Yates resolveu falar,

— Ela vai ao convés depois que Vossa Senhoria se recolhe, Milorde, e mais uma vez bem cedo de manhã. Mas diz que nunca se divertiu tanto na vida!

O Marquês não podia entender mais nada.  Nunca imaginara que uma mulher, jovem ou velha, deliberadamente evitasse sua companhia e preferisse um livro a ele.

Terminado o breakfast, ele foi, como de uso, à ponte de comando.  Era o lugar onde preferia passar a maior parte de seu tempo, quando a bordo, pois gostava de comandar seu próprio barco.

Porém, naquela manhã, seu pensamento prendia-se a Narda.

"Devo mandar chamá-la?” perguntava-se.

Cismava ainda sobre o que fazer, quando anunciaram que o almoço estava pronto. Assim que terminou a excelente refeição, tão boa quanto qualquer uma de sua casa, disse ao comissário de bordo,

— Diga a Senhorita Warrington que mandei convidá-la para jantar comigo esta noite. Mais ou menos às sete e meia.

O empregado correu para cumprir a ordem do patrão. O Marquês notou, pelo semblante do rapaz, que ele achava esquisito Senhorita Warrington ainda não ter tomado suas refeições fora da cabine.

O Marquês esperou até que o comissário voltasse.

— A Senhorita Warrington agradece pelo convite, Milorde, e disse que terá grande prazer em jantar com Vossa Senhoria às sete e meia.

O Marquês voltou para o convés.  Não tinha muita certeza de ter dado o passo certo.

Afinal, Narda conservara-se longe de sua vista, conforme ele mesmo ordenara. Talvez fosse mais aconselhável vê-la o menos possível até chegarem ao Marrocos.

Contudo, precisava instruí-la sobre o modo de se comportar como sua irmã.

Não seria fácil para Narda representar o papel, a menos que conversassem acerca do assunto previamente.

Narda achou graça no convite do Marquês.

Pensara várias vezes em quando chegaria esse momento, o momento de trocarem idéias, embora ele se ressentisse de sua presença a bordo.

"Ao menos Sua Senhoria não pode me acusar de ter sido inconveniente, impondo minha presença."

Ela passou a tarde lendo um livro sobre as diferentes tribos que habitavam o Marrocos. A mais interessante delas era a dos berberes. Eles conquistaram o Saara e levaram o islamismo até as fronteiras da África negra.  Foi no Marrocos que o islamismo dos berberes atingiu seu apogeu.

Os marínidas, que se estabeleceram no Marrocos oriental, conquistaram, pouco a pouco, terras pertencentes a outras tribos e anexaram-nas a seu território. Fizeram de Fez sua capital.  Havia muito a ler sobre Fez.

E Narda surpreendia-se com os vários nomes que a cidade tivera, no decorrer dos anos.

Fez el Bali ou Fez, a Velha, foi fundada no ano 800 d.C. e constituiu-se num dos centros sagrados mais famosos do mundo muçulmano. Havia sido conhecida também como Fez, a Imperial, e Fez, a Secreta. Este último nome por ser a cidade cheia de intrigas políticas.

Quanto mais ela lia, mais se convencia de como, pondo de lado o Sheik e o colar, ia ser interessante aquela visita.

Para jantar, Narda pôs um de seus mais lindos vestidos, comprado em Londres. Na época pensou que o irmão a levaria a um grande número de reuniões sociais. Como isso não aconteceu, o vestido foi esquecido no guarda-roupa.

Narda esperava que o Marquês apreciasse sua toalete. Embora essa esperança parecesse pouco provável.  Mas, na verdade, ele encantou-se logo que a viu.

Mesmo em Londres, quando a vira pela primeira vez, toda maquiada, ele já a achara linda.

Agora, à luz suave do salão, Narda assemelhava-se a um ser vindo de uma esfera angelical.

Ela ficou em pé junto à porta, fitando-o.

Não com nervosismo, como ele talvez esperasse, mas com ar inquisitivo, aguardando que ele se pronunciasse.

— Boa noite, Narda — disse ele — Devo me desculpar por não a ter convidado antes, mas só hoje soube que não estava sofrendo enjôos, comuns, aliás, no mar.

— Eu obedecia a suas instruções, Milorde, de não interferir em sua vida particular.

Não falava com ressentimento, mas com ar divertido. 

Aproximou de Favian com passos graciosos, sem se perturbar com o balanço do barco.

Sentou numa das confortáveis poltronas, fixas no soalho da embarcação.

— Aceita uma taça de champanhe? — indagou o Marquês.

— Sim, obrigada.

Ele passou a taça às mãos dela, dizendo,

— Espero que tenham cuidado bem de você, providenciando tudo de que necessita.

— Seu valete é muito amável — replicou Narda — Mas quero cumprimentá-lo por sua biblioteca, com o auxílio da qual aprendi muitíssimo.

— Lamento que não contenha muitas novelas.

— Não posso imaginar que alguma novela seja mais emocionante que os livros que li sobre o Marrocos, especialmente sobre Fez.

O Marquês desconfiou que Narda tentava impressioná-lo. Porém, mais tarde, quando sentaram para jantar, concluiu que ela adquirira enorme conhecimento sobre a história marroquina.

— Por que tamanho interesse pelo país? — perguntou o Marquês.

— Sempre quis conhecer o Marrocos — explicou Narda.

— Fui a Constantinopla com meus pais, há cinco anos, e bem estive no Cairo. Mas o noroeste da África, para mim, tem uma atração especial.

O Marquês mostrou-se surpreso.

— Por que razão seu pai levou a Constantinopla?

— Ah, é mesmo! Vossa Senhoria não sabe que meu pai fez parte do serviço diplomático — esclareceu Narda — Ele retirou-se ao herdar o título e as propriedades de meu avô. Precisou cuidar delas, que são bastante grandes, por sinal.

O Marquês ouvia atentamente e Narda continuou,

— Suponho que, por papai ter viajado tanto, tenho vontade de fazer o mesmo. Porém, apesar de não ter visitado pessoalmente muitos lugares do mundo, visitei-os mentalmente, lendo.

O Marquês estava boquiaberto.

Jamais encontrara uma mulher que se desse ao trabalho, quando a bordo, de ler a história do país para onde se dirigia.  Mesmo indo a Paris ou a Roma, qualquer mulher se interessaria apenas pela vida social, nunca pela história do lugar.

Durante o jantar, o Marquês falou a Narda acerca dos países que visitara.

Acrescentou assim muito à cultura dela, da mesma maneira que o pai o fizera no passado.

Os empregados tiraram a mesa.

O Marquês levantou e foi para um canto do salão, onde havia poltronas confortáveis.

Narda, contudo, em vez de segui-lo, tomou a direção da porta. Lá chegando, apenas virou-se e disse,

— Muito obrigada pelo interessante e delicioso jantar. Boa noite!

Favian fitou-a incrédulo.  E, antes que pudesse dizer "espere", ela desapareceu.

O Marquês considerou então pouco apropriado correr atrás de Narda.  Mas mal podia acreditar que ela voltara à cabine e que não queria estar com ele.

Outra mulher preferiria ficar até altas horas da noite conversando. Conversando? Não apenas isso, ele admitiu.

Qualquer outra mulher flertaria com ele e o induziria a fazer amor, usando de todos os métodos possíveis para convencê-lo a tal. Entretanto, aquela jovem inocente, embora apreciasse sua experiência e conhecimento, não se interessava por ele como homem!

Essa era uma situação completamente nova para o Marquês, nunca deparada antes.

Quando, mais tarde, foi ao convés, concluiu que Narda devia achá-lo velho demais. Interessava-se por ele como se interessaria por uma enciclopédia.  E embora tentasse não pensar no caso, ainda tinha Narda na cabeça quando foi para a cama.

Não conseguiu conciliar o sono.

De repente lembrou-se de que Yates dissera que Narda ia ao convés bem cedo pela manhã ou à noite, depois que ele se retirava para o quarto.

Olhou para o relógio. Era quase uma hora da madrugada.

"Yates só fala bobagem!" pensou.

Apesar disso, ficou curioso. Não resistindo, pulou da cama. Pôs um roupão longo, quente, que usava sempre quando a bordo do Dolphin.

Era de lã grossa, forrado de seda e, por causa da passamanaria que o enfeitava, dava uma aparência de militar.  Pôs os chinelos.

Abriu a porta da cabine e entrou no corredor iluminado por apenas uma lanterna. Enquanto se dirigia ao convés, considerou-se um tolo. O que Yates dissera era um absurdo!

Naturalmente Narda dormia e, quanto antes ele voltasse para a cama, melhor. Mas foi até o convés.

O mar estava calmo e o Dolphin movia-se um pouco mais lentamente que durante o dia.

O céu apresentava-se cravejado de estrelas.

O luar permitia que se visse, a distância, a escura costa da Espanha.

O convés estava deserto. Ele ia voltar à cabine quando divisou um vulto na outra extremidade.  Foi até lá e constatou que era Narda, debruçada no gradil.

Usava uma capa forrada de pele sobre o que ele supunha ser uma camisola ou um négligé. Os cabelos louros caíam sobre os ombros.

Mesmo quando ele já estava bem perto, Narda não se moveu. Continuava olhando fixamente para o mar.

Era a fosforescência na água que a atraía. Criava formas fantásticas ao mais ligeiro movimento da superfície.

O Marquês ficou a seu lado, em silêncio, até que enfim ela confessou,

— Numa noite como esta achei que poderia ver uma sereia. Mas, quem sabe, essas águas são frias demais para elas!

Havia uma tonalidade misteriosa na voz de Narda, como se ela apenas expressasse um pensamento, em vez de estar falando com alguém.

— A primeira vez que viajei num iate, quando ainda menino — declarou o Marquês — achei que vira uma sereia.  Meu pai me disse que era um boto, mas não me convenceu.

— Garanto que o Senhor viu mesmo uma sereia! — insistiu Narda — Seu pai é que estava enganado. Os marinheiros do passado freqüentemente viam sereias, e não podiam todos estar errados.

— Penso que não — concordou o Marquês.

— Suponho que o Senhor tenha dado a seu iate o nome de Dolphin por motivos mitológicos, não é verdade?  Apolo se fazia transportar em um golfinho.

O Marquês sorriu.

— Mas não pensava em mim como um Apolo! — falou ele.

— Claro que não!

A resposta de Narda foi muito rápida, decidida. Pouco elogiosa, pensou o Marquês. E ela prosseguiu,

— Mas, pensando bem, como ele trouxe luz e esperança ao mundo, o Senhor, a sua maneira, vai fazer o mesmo, ainda que secretamente.

O Marquês lançou um olhar intrigado.

— Por que diz isso, Narda?

— Acho que vai a Fez por um motivo muito importante. Sinto que é perigoso, porém tenho certeza de que o Senhor conseguirá seu objetivo.

O Marquês ficou estupefato.

— Não imagino a razão de você pensar dessa maneira! — exclamou ele após curta pausa.

Narda não respondeu.

O Marquês notou que a moça sorria, enquanto continuava olhando para as ondas do mar, à procura da sereia.

No dia seguinte, por insistência do Marquês, eles almoçaram e jantaram juntos. Não obstante, entre as duas refeições, Narda desapareceu da vista de Favian.

O Major Ashley tornara bem claro que ela não deveria aborrecer o Marquês com sua companhia.

Ele, por sua vez, dizia a si mesmo, um tanto pesaroso, que aquela experiência talvez fizesse bem.

Quem sabe não fosse tão sedutor como pensava.  Mas, de qualquer forma, não podia conceber que uma mulher, viajando no iate com ele, limitasse o tempo em sua companhia a duas refeições somente.

Só quando estavam muito perto do Marrocos, o Marquês pediu, após o almoço,

— Não vá embora, Narda. Preciso falar com você.

Ela havia se levantado da mesa para sair. Foi para junto dele, no canto do salão onde estavam as confortáveis poltronas.

Quando os empregados se retiraram, o Marquês começou a falar,

— Acho que já disse como seria perigoso chegarmos ao Marrocos como nós mesmos, não?

Narda concordou com um sinal afirmativo. Então Favian continuou,

— Tenho um passaporte com o nome de Anthony Dale e passarei por um arqueólogo que viaja com sua irmã.

Narda riu.

— Suponho, Milorde, que deveria me sentir sumamente honrada por ser sua "irmã", sabendo quanto o Senhor se ressente de minha presença a bordo.

— Não tenho mais ressentimento algum, Narda. Constatei, e é a pura verdade, que você é uma moça inteligente, e adorei as conversas que tivemos durante as refeições.

Ele, de fato, não mentia.

Conversava com Narda como fazia com seus amigos homens. Da mesma forma, enfim, que falava com Brian Ashley.

Favian notara que a cultura de Narda sobre os costumes de outros povos era similar à de qualquer homem bem instruído.  Quando ela fez referência a alguns dados acerca de várias regiões do mundo, o Marquês viu que a moça sabia ainda mais que ele próprio.

Porém, nenhuma palavra, nenhum olhar dela demonstrava que o apreciava como homem.

— Nem por um segundo pessoa alguma deve desconfiar de nossa identidade. Isso é essencial! — insistiu o Marquês.

— Entendo, Milorde.

— Uma observação descuidada pode ser funesta. Preste bastante atenção para não cometer algum engano.

Narda já contava com essas recomendações, e respondeu,

— Se o Senhor me disser o que quer que eu faça, prometo que obedecerei cegamente.

— Obrigado. Agora, deixe-me explicar bem quem sou e por que visitamos o Marrocos.

O Marquês mostrou o livro que ele publicara sobre arquitetura, com o pseudônimo de Anthony Dale.  Esclareceu então a Narda que constaria que ele estava mostrando a cidade à irmã, por causa de seu grande valor histórico.

Prometeu que faria todas as investigações possíveis sobre o Sheik.

Pediu a ela que não desse passo algum nesse sentido, nem demonstrasse curiosidade. Devia limitar-se a apreciar os lugares que ele mostrava.   E, claro, ouvir as explicações sobre a história de Fez.

— Vai ser fácil — concordou Narda — Já sei tanto acerca de Fez!

— As pessoas com quem nos associarmos, e nossos guias, esperam que você seja um tanto quanto ignorante no assunto.

— Entendo isso também — replicou Narda humildemente.

O Marquês preveniu para que levasse pouca bagagem consigo, ficando o resto no iate. No fim de suas explicações, concluiu que não poderia desejar aprendiz mais atenta nem mais obediente que Narda.

E ela estava linda enquanto o ouvia.

"A beleza de Narda, pensava o Marquês, "talvez acrescente mais perigo à situação."

Porém consolou-se, pensando que, como turistas ingleses, eles despertariam pouco interesse entre os habitantes de Fez.

A menos que, naturalmente, começassem a fazer muitas compras. Os árabes sempre se sentiram atraídos por dinheiro!

— Chegaremos depois de amanhã — terminou o Marquês — Amanhã entraremos em mais detalhes. Combinaremos o que dizer, o que fazer, para que nada nem ninguém nos apanhe de surpresa.

Narda sentiu um calafrio percorrer o corpo.

— Estou... com um pouco de medo.

— Não tenha medo, Narda. Não há razão para isso.

— Não é verdade. Estaremos lidando com um homem sem escrúpulos, que roubou um colar de valor incalculável.   Imagino que seu problema, ainda que diferente, envolva também grande risco.

— Isso, no caso de eu ter um problema — disse o Marquês.

Narda não opinou, e ele prosseguiu,

— O que a faz tão certa de que tenho um motivo secreto para ir a Fez?

Ela desviou o olhar, mas o Marquês insistiu,

— Aguardo sua resposta, Narda.

— Eu... leio... seus pensamentos.

— Se for verdade, não vou gostar nada disso! — exclamou o Marquês — Mas, diga-me, por que tem tanta certeza de que lê meus pensamentos?

— Não sei explicar. Porém, não posso fazer isso com qualquer um — replicou ela — Apenas com pessoas inteligentes, que têm pensamentos fora do comum, pensamentos que vale a pena serem lidos.

O Marquês comprimiu os lábios e, como não falasse nada, Narda explicou melhor,

— Por exemplo, eu sabia perfeitamente o que seu secretário, o Major Ashley, fora incumbido de me dizer, antes mesmo que ele o fizesse. E sabia, quando me comunicou que iria para Fez, que se tratava de missão secreta muito importante. Importante para alguém, mesmo que não diretamente para o Senhor.

O Marquês calou-se por segundos, depois disse,

— O que está dizendo me perturba. Só posso pedir, Narda, se tem mesmo o poder de adivinhar, que guarde suas adivinhações para si mesma e não fale sobre elas a ninguém.

— Pode ter certeza de que jamais cometerei esse erro, Milorde.

Ela ergueu a cabeça ao falar, e havia uma nota de determinação em sua voz.

— Sei que posso confiar em você — murmurou o Marquês — Mas, se lê meus pensamentos, não deve pensar no que vou fazer, pois será perigoso no caso de outras pessoas terem o mesmo poder para ler os seus.

Narda sorriu.

— Refleti muito sobre isso. No mundo islâmico, as pessoas parecem mais ligadas ao "desconhecido" e são muito perceptivas.

— Então, cuidado! — preveniu o Marquês — Se, por acaso, pensar em mim, e no que estou escondendo de você, desvie seu pensamento e distraia a mente com outra coisa.

— Vou tentar — prometeu Narda — Mas não pode me impedir de ser curiosa.

— Nada de curiosidade! Temendo isso, não queria trazê-la comigo!

— Entendo é claro que entendo. Prometo tudo ao Senhor, porque está sendo bondoso comigo. Sou muito grata e procurarei fazer exatamente o que me pede.

Ela lançou um olhar afetuoso e acrescentou,

— Sua Senhoria tem de admitir que fui muito boazinha até agora, fazendo o que o Major Ashley me recomendou.

— É verdade — admitiu o Marquês — E sua obediência me surpreendeu bastante!

— E agora — disse Narda — fale um pouco da família Dale, para o caso de alguém me perguntar onde moramos na Inglaterra e se nossos pais estão vivos ou mortos. Minhas respostas devem coincidir com as suas, não acha?

Antes do nascer do sol, Yates bateu na porta da cabine de Narda. Na noite da véspera, ela preparara tudo que ia levar à terra. Vestiu-se bem depressa.

O Marquês a prevenira que usasse roupas simples, a fim de não chamar atenção. Nada muito espalhafatoso. Felizmente, os vestidos que Narda levara a bordo, apesar de elegantes, eram simples.  Ao chegar no salão, viu que o Marquês já aguardava por ela. Ele usava traje de montaria com uma jaqueta bem velha, diferente de sua vestimenta habitual.

Isso também, Narda notou, alterava um pouco a personalidade dele. Tinha aspecto de homem mais velho, e mais severo, como competia a um arqueólogo.  Nas mãos levava uma valise com algumas peças de roupa.

Yates providenciara uma valise igual para Narda, feia mas suficientemente grande para conter todo o necessário.

Narda esperou que o iate ancorasse no porto. Para grande surpresa sua, viu, apesar da escuridão, enormes rochedos à frente. Então, estavam ainda em alto-mar! Estrelas desapareciam aos poucos, e a lua escondia atrás das nuvens.

Quando Narda foi ao convés com o Marquês, observou que junto ao iate havia um barco com dois remadores.

O Marquês desceu primeiro, por uma escada de corda, e ajudou—a a fazer o mesmo.

Assim que entraram no pequeno barco, os remadores começaram a se afastar do Dolphin, na direção dos altos rochedos. Remaram por quase meia hora. Felizmente o mar mostrava-se calmo.

Amanhecia e o sol lançava uma tênue luminosidade através das nuvens. Aí, como se alguém acendesse uma enorme fogueira, uma luz se espalhou pelo céu. Era dia. Narda percebeu que havia uma pequena baía muito perto.

O Marquês sussurrou, antes que ela fizesse qualquer pergunta,

— Estamos em Kenitra, o porto mais próximo de Fez.

Os marinheiros remaram até o interior da baía, quase deserta.  Num cais de madeira, eles atracaram o barco enquanto o Marquês e Narda pisavam em terra firme. Sem uma palavra, os remadores saudaram o Marquês e se foram.

O Marquês e Narda, com as valises na mão, olharam ao redor. Aguardaram alguns segundos.  Enfim, um homem foi ao encontro deles.

— Necessita de ajuda, Monsieur? — perguntou.

Falava mal o francês, com sotaque árabe, e o Marquês respondeu na mesma língua. Introduziu no diálogo algumas palavras em árabe, para se fazer entender melhor.

Narda percebeu que o Marquês pedia animais para levá-los até Fez. Ele também explicava que haviam chegado num navio que seguiu para Casablanca.  Queria fazer de sua chegada naquele lugar um acontecimento aceitável.

O homem levou-os para perto de um grupo de rapazes, e todos conversaram sobre o pedido do Marquês.  Levou algum tempo para que entrassem em entendimento quanto ao preço.

O Marquês explicou aos homens que ele e Narda queriam visitar as ruínas localizadas entre o porto em que desembarcaram e Fez.  Falava vagarosamente, numa mistura de francês e árabe.

Finalmente, assim que os homens entenderam bem o que lhes era solicitado, o Marquês e Narda foram à única estalagem local. Era limpa e usada para acomodar os viajantes.  Eles pediram que lhes fosse servido o café da manhã. Tudo foi simples mas apresentável e muito substancial.

Tão logo terminaram, a caravana que o Marquês encomendou chegava à estalagem, para levá-los a Fez.  Consistia em dois cavalos árabes, bastante comuns no Marrocos. Havia também três camelos fortes e ágeis, conforme foi explicado ao Marquês.

Este fora muito sagaz desembarcando no Marrocos da maneira que um arqueólogo o faria. Carruagens não poderiam jamais ir até as ruínas. Percorriam apenas estradas mais largas e desimpedidas.

Ninguém poderia suspeitar da finalidade daquela viagem. Ninguém poderia imaginar que o Marquês quisesse outra coisa além de visitar as ruínas. Ele usava de extremo cuidado e enganaria qualquer um que, por acaso, tivesse curiosidade acerca de seu trabalho. Falava com Narda, na estalagem e na frente dos homens, como falaria com uma jovem inexperiente e um tanto ignorante. 

Depois do café da manhã, eles continuaram a viagem através das ruas de Kenitra, os camelos seguindo logo atrás, montados por árabes.

O Marquês apontou para Narda um minarete, como se ela jamais tivesse visto um.  Chamaram a atenção de Narda as casas muito baixas e as ruas estreitas cheias de mendigos e burros com carga pesada.

Crianças brincavam nas ruas poeirentas.

Logo saíram da aldeia e entraram em campo aberto. Narda sentiu imediatamente que aquilo era o que desejara tanto ver. Mas, após a morte do pai, perdera a esperança de satisfazer seu anseio.

Quando a folhagem seca e as árvores quase nuas cederam lugar à terra árida, o coração de Narda palpitou mais forte, tão emocionada estava.

O cavalo que Narda montava era jovem e rebelde. Ela precisava controlá-lo para poder acompanhar o do Marquês. Os dois achavam-se um pouco na frente dos camelos. Olhando para Narda, o Marquês murmurou, sorrindo,

— Tinha certeza de que, tendo morado no campo, saberia cavalgar.

— Montei antes mesmo de aprender a andar — replicou Narda — Mas nem posso dizer como estou emocionada por estar em território africano, e por ver o que sempre desejei, o deserto!

O Marquês riu e comentou,

— Um deserto muito pequeno e insignificante. Os verdadeiros desertos, como deve saber, ficam muito mais para o sul.

— Mas este não deixa de ser uma amostra. Agora, para completar meu prazer, preciso ver uma miragem.

O Marquês riu de novo.

— Vou encomendar uma para você. Mas não posso prometer nada.

— Acostumei-me a enxergá-lo como um mágico. Ficaria humilhada se me desapontasse!

— Está me induzindo a fazer o impossível, Narda. Contudo, neste canto do mundo, nada é impossível!

Narda olhou para o sol, num gesto gracioso.

— Eu acredito! — exclamou ela — Como posso agora duvidar, por um momento sequer, que meus sonhos se transformaram em realidade?

 

Narda e o Marquês cavalgaram por longo tempo.

Alguns arbustos começaram a surgir, e logo um grande número de árvores.

Narda esperou que o Marquês sugerisse parar à sombra de uma delas. Mas, pela expressão do rosto dele, viu que iam direto às ruínas mencionadas no início da viagem.  Ao chegarem, ficaram desapontados.

As ruínas não lhes causaram nenhuma impressão. Porém, sem hesitar, o Marquês apeou e fez a Narda uma minuciosa descrição do valor das mesmas.

Os árabes que cuidavam dos camelos ouviram-no com atenção. Narda compreendeu que o Marquês representava bem seu papel, palavra por palavra.

Eles comeram os sanduíches que haviam, levado, à sombra das árvores, e prosseguiram a jornada.

Narda começou a se sentir cansada e dolorida, pois não cavalgava havia semanas.

Chegaram enfim a um lugar semelhante a um oásis, e o Marquês decidiu que lá passariam a noite. Por estarem a cavalo, iam bem mais depressa que os árabes nos camelos.

Narda apeou, constatando que estava mais cansada que seu cavalo. Agradou-o enquanto o Marquês procurava por alguma nascente onde os animais pudessem beber água.

Não foi possível encontrar nada. As montarias tiveram de esperar até que os camelos chegassem com enormes recipientes cheios de água. Os cavalos beberam com sofreguidão. O sol não estava tão quente como mais cedo, durante o dia. Havia uma brisa suave, e Narda rezou para que se tornasse mais intensa ao anoitecer.

Dois homens ergueram as barracas e um terceiro cuidou da comida.

O Marquês indagou a Narda, sentindo um pouco de pena dela,

— Está cansada?

— Mais ou menos — confessou Narda — Mas adorei cada minuto dessa travessia, e estou encantada por ter vindo aqui.

O Marquês apreciava muito aquele entusiasmo espontâneo de Narda. Ele sentou-se no chão, ao lado dela.

Havia tirado o paletó e tinha, em volta do pescoço, uma encharpe em vez de gravata. Parecia mais jovem e menos autoritário que usualmente.

— Fale-me sobre você — pediu ele a Narda — Não posso me conformar que, tão jovem, saiba tantas coisas que são também de meu interesse.

— Quase tudo é conhecimento de segunda mão — confessou Narda — Mas posso visualizar lugares em que nunca estive, descritos em livros. E esses lugares ficam ainda mais reais quando o Senhor ou papai os descreve para mim.

— Já conversamos muito sobre lugares. Que me diz acerca das pessoas?

— Estudei línguas para que, quando viajasse, pudesse falar com os nativos do país em que me encontrasse. Não quis sugerir isso no Dolphin, mas apreciaria se o Senhor me ensinasse algumas palavras em berbere.

— É uma língua difícil — preveniu o Marquês.

— O Senhor fala berbere?

Ele hesitava e Narda supôs que não quisesse admitir que era fluente nesse idioma. E talvez fosse imprudente deixá-la saber que ele falava várias línguas.

Bem depressa, Narda emendou,

— Sei que prefere que eu não faça perguntas. Prometo controlar minha curiosidade, nem que para isso precise usar de muito esforço.

O Marquês achou graça na preocupação de Narda. Depois disse,

— É uma moça muito fora do comum, Narda. Tenho confiança em você, e confesso que sei falar muitas línguas, entre elas, o berbere.

Narda bateu palmas.

— Foi o que pensei! — exclamou — O Senhor é muito, muito inteligente!

Houve um intervalo em que nenhum dos dois falou. Narda foi a primeira a observar,

— Suponhamos que o Senhor seja aprisionado, assim que chegarmos a Fez. Suponhamos que desapareça! Que devo fazer?

O Marquês fitou-a com espanto.  Depois concluiu que a pergunta não era fora de propósito. Por isso respondeu,

— O que você teme não vai acontecer. Mas, se por acaso algo estranho se passar, vá imediatamente à Embaixada Britânica e explique quem você é. Dê seu verdadeiro nome, e não o do passaporte. Eles cuidarão de você.

— E... que providências devo tomar... quanto a Vossa Senhoria? — gaguejou ela.

— Juro, Narda, que cuidarei de mim mesmo — replicou o Marquês com firmeza.

Ele ergueu-se ao falar e foi supervisionar a montagem das barracas.

Narda percebeu que a conversa chegara ao fim, e que não se tocaria mais naquele assunto. Fez então uma prece para que o Marquês escapasse ileso, e que ela não o perdesse.

"Seria muito... assustador... ficar sozinha no Marrocos” pensou.

Reconhecia que o Marquês estivera absolutamente certo quando dissera que não poderia viajar sozinha por aquela terra estranha.

— Mas tinha de vir — sussurrou ela, em defesa própria.

Observava o Marquês enquanto ele conversava com os condutores de camelos. Ele usava, na troca de palavras, a mesma mistura de francês e árabe, como fizera desde sua chegada a Kenitra. "O Marquês tem sido cuidadoso", admitiu Narda. "Mas tenho certeza, mesmo que ele tente me convencer do contrario, de que há perigo esperando por ele em Fez."

Os dois jantaram antes do pôr-do-sol.

O Marquês trouxera uma garrafa de vinho da estalagem onde haviam tomado o café da manhã.   E, quando a primeira estrela apareceu no céu, ele sugeriu,

— Acho melhor irmos dormir. Levantaremos cedo amanhã para percorrermos a maior parte do caminho antes do sol a pino.

— Boa idéia — concordou Narda.

Antes de se retirar para sua barraca, ela agradeceu ao Marquês,

— Muito. Muito obrigada por me trazer até aqui. Pensava, momentos atrás, que eu ficaria apavorada se tivesse vindo sozinha.

— Claro que ficaria. Apenas espero que valha a pena seu sacrifício e que ache o colar.

— Ainda que isso não aconteça, nunca me esquecerei do Marrocos e nem lamentarei ter viajado para cá.

Narda fez uma pausa, e acrescentou,

— Por isso mais uma vez agradeço sua cooperação. O sol começava a sumir na linha do horizonte, lançando seus últimos raios no rosto de Narda.

Era como um toque de prata em seus cabelos dourados. Ela estava tão linda que o Marquês, de repente, sentiu um incontrolável desejo de beijá-la.

É o que ele teria feito na companhia de qualquer outra mulher. Bastaria estender o braço e puxá-la para junto de si.

Aí, deu-se conta de que Narda dirigia a palavra como faria com um irmão mais velho, em quem confiava, apesar de nos olhos dela haver um brilho convidativo que era tão familiar ao Marquês.

Mas ele limitou-se a dizer,

— Boa noite, Narda, e durma bem.

— Vou dormir, e sei que o espírito do oásis estará cuidando de nós.

Mais uma vez ela falava com aquele tom de voz cheio de mistério, como quando procurava pelas sereias no mar.

Indo para sua barraca, o Marquês concluiu que Narda acreditava mesmo em espíritos.

As barracas ficavam a pequena distância uma da outra. A de Narda era menor, tão pequena que seria impossível ficar de pé dentro dela.  A do Marquês era bem maior. E ela se perguntava se, ao entrar, ele não se sentira tentado a oferecer a mais confortável.

Todavia, logo lembrou que seria errado fazer isso, num país em que se considerava a mulher um ser inferior, subserviente.

Os camelos e os árabes foram dormir, ao relento, a alguns metros mais além. Os homens acenderam uma fogueira onde prepararam a própria refeição. Sentavam em esteiras, usando-as como cama na hora de dormir.

O Marquês surpreendia-se com o fato de eles fazerem a viagem de Kenitra a Fez tão rapidamente.

Mas deduziu que estavam familiarizados com cada centímetro do terreno. Sem dúvida, aquele era o lugar onde em geral pernoitavam, antes de chegar à cidade.

A noite caiu com sua habitual ligeireza.

O Marquês despiu-se. Quando se deitou, as estrelas apareciam, uma a uma. Os primeiros raios da lua penetravam através da abertura da porta da barraca.

Narda também deitara-se logo. Pensava no prazer de dormir no deserto. Sempre desejara isso.

Falara com o pai muitas vezes sobre o assunto. Mas ele confessara, com franqueza, que estava muito velho e preferia um leito confortável e todas as facilidades de uma casa de verdade.

— O Senhor é muito mimado, papai! — caçoara ela.

— Já fiz viagens modestas e luxuosas — replicara o pai — E, francamente, prefiro as últimas.

Ambos riram muito.  Porém, naquele momento, Narda reconhecia que um de seus sonhos transformara em realidade.

Fez suas orações. Estando muito cansada por causa da viagem e do calor intenso, fechou os olhos e dormiu imediatamente.

Acordou assustada, sentindo um objeto duro e áspero apertando sua boca. Abriu bem os olhos, mas só enxergou escuridão.

Reconhecia, contudo, que qualquer coisa esquisita e horrorosa estava acontecendo com ela.

Não pode, nem por um segundo, imaginar o que tinha na boca, mas, o que quer que fosse, machucava-a muito. Enquanto tentava descobrir o que era, alguém colocou um saco na cabeça, cobrindo-a até os ombros. Seus braços foram amarrados junto ao corpo.

Narda queria fugir, mas percebeu que suas pernas tinham também sido atadas pelos tornozelos, com horror, constatou que estava sendo conduzida para fora da barraca.

Tudo se passou sem o mínimo ruído. Embora Narda tentasse gritar, era impossível, por causa da mordaça em sua boca.

Percebeu que estava sendo carregada por dois homens.

Um terceiro segurava seus pés. Andavam tão silenciosamente que nem se podia ouvir os passos deles.

Narda desconfiou que tanto o Marquês como os condutores dos camelos não tomariam conhecimento do que se passava. Ela estava tão amarrada que não conseguia se mover.

Foi conduzida a uma distância que pareceu bem longa. Enfim, colocaram não no chão, mas dentro de um veículo. Narda tinha dificuldade até de raciocinar. Estava assustadíssima.

Puseram-na sentada no assento traseiro do carro. Cada vez ficava mais difícil a ela respirar, e sentiu grande alívio quando retiraram o saco da cabeça. Seus braços foram desamarrados.

Achou que iria poder enxergar o que se passava, mas a escuridão era completa.  Respirava ainda com dificuldade, pois a mordaça continuava tapando a boca. Então, para seu grande espanto, Narda sentiu que o veículo se punha em movimento.

Ela estendeu o braço na esperança de encontrar algo em que segurar, e notou que tocava no braço de alguém sentado a seu lado.

O choque foi tão grande que Narda se encolheu num canto do carro.

Um segundo mais tarde ouviu uma voz de mulher sussurrando em seu ouvido,

— Fique bem quieta. Não se mova nem faça algazarra. Se o fizer eles a drogarão.

Narda mal podia acreditar que estava de fato escutando uma voz. Porém, os cabelos da pessoa que falara, com certeza uma mulher, tocaram o rosto.

Automaticamente ela obedeceu, e cessou de lutar. Não se moveu mais. De qualquer maneira, não seria fácil com os pés amarrados.  Suas mãos estavam soltas, contudo.

Levantou-as e procurou desamarrar o nó atrás da cabeça, que segurava a mordaça. E com alguma dificuldade, conseguiu soltá-lo. Ao remover a mordaça, aspirou o ar profundamente.

O veículo movia-se cada vez com mais rapidez.  Apesar do barulho, ela ouviu a mulher dizer,

— Você foi raptada, mas procure ficar calma.

— Por que fizeram isso comigo? — sussurrou Narda — Quem são eles?

A mulher ia responder quando, de súbito, a luz de uma lanterna incidiu sobre elas. Vinha do assento dianteiro do veículo, e Narda notou que um homem as fitava.

A mulher ao lado imobilizou-se, e Narda fez o mesmo.

Ela apenas via o contorno da cabeça do homem que, por certo, observava seu comportamento. Teve medo de que ele tomasse a por a mordaça na boca.

Ficou muito quieta e desviou o rosto para que ele não a visse com nitidez.  Mas o homem observou-a por longo tempo.

Depois, desviou a lanterna e a escuridão voltou.

Assustada, Narda segurou a mão da mulher a seu lado. Esta apertou os dedos, o que deu algum conforto.

Narda suplicou,

— Por favor, diga-me o que está acontecendo. Estou com tanto medo!

— Eu também! — confessou a mulher — Mas não ha nada que possamos fazer até chegarmos a Fez.

Aí, Narda concluiu que não era uma mulher idosa que se sentava a seu lado, mas uma jovem, provavelmente da mesma idade que ela.

— Vamos a Fez? — perguntou.

Ela achava um tanto consolador ir a Fez. O Marquês, ao constatar que ela havia desaparecido, iria a Fez em primeiro lugar para procurá-la. A moça que segurava a mão chegou mais perto e disse,

— Ouvi-os dizer que iam raptá-la porque uma das moças do grupo pulou para fora do navio enquanto eles dormiam.

— Por que ela fez essa loucura? — perguntou Narda.

— Porque desconfiou o que aconteceria — respondeu a moça.

Narda apertou-lhe os dedos com mais força.

— O que vai acontecer? — gaguejou.

Houve uma ligeira pausa antes de a moça responder,

— Você ficará assustada, mas é preferível que saiba o pior desde já.

— Conte-me — suplicou Narda.

— Esses homens são caftens, procuram mulheres para os árabes.

Narda deu um suspiro profundo.

Ela lembrava-se de ter ouvido o pai falar, em Constantinopla, que havia um constante tráfico de mulheres européias levadas para a Turquia. Elas povoavam os haréns do Sultão e dos turcos ricos.

Por instantes Narda sentiu-se incapaz de falar.

Mas logo perguntou, com voz trêmula,

— Está mencionando o tráfico de escravas brancas?

— Isso mesmo — replicou a moça — E eu fui apanhada na velha e famosa armadilha.

— Que armadilha?

— Atendi a um anúncio pedindo uma governanta de crianças disposta a viajar.

A moça soluçou antes de continuar,

— Como pude ser tão tola e não adivinhar que havia algo de anormal no fato de um homem me entrevistar, em vez de uma mulher?

Soluçou de novo e disse,

— O homem comunicou que eu fora aceita para o posto, e que a Senhora que me empregara aguardava por mim, juntamente com os filhos, no Marrocos.

— Você não teve idéia de que estava sendo enganada?

— Nem me passou pela cabeça. Meu pai é Pastor de uma paróquia em Gloucestershire, e pareceu-me emocionante conhecer o mundo! Meu nome é Elsie Watson.

— Entendo — concordou Narda — Há outras moças aqui na carroça?

Ela sentava, juntamente com Elsie, na terceira fila de assentos. Narda supôs que houvesse outras moças, embora estivessem em absoluto silêncio.

Elsie explicou,

— Estão todas drogadas. Eu não comi, nem bebi nada desde que cheguei, por isso continuo em boa condição.

— Eles põem droga na comida? — Narda mostrava-se horrorizada.

— Na comida e na bebida — replicou Elsie — Começaram a fazer isso a bordo do navio com as moças que protestavam, especialmente depois que uma delas, desesperada, atirou-se ao mar.

Narda tremia de medo, mas não falou nada. E Elsie prosseguiu,

— Percebi então que, se quisesse escapar, como pretendo, precisava fingir que acreditava no que eles disseram.

— Que disseram eles?

— Que a moça suicida era histérica, e que todas tínhamos emprego esperando por nós em Fez, conforme fora prometido.

— Quantas moças há aqui? — quis saber Narda.

— Éramos nove até você ser raptada. Os homens encarregados de nos raptar estavam apavorados. Haviam sido incumbidos de conseguir dez mulheres. Após a morte de uma das moças, precisavam arranjar uma substituta.

— Eles devem imaginar que a pessoa com quem eu viajo faça queixa à polícia sobre meu desaparecimento.

Narda quase disse "o Marquês", mas lembrou-se a tempo, e apenas falou "a pessoa".

— Talvez.   Percebi logo a armadilha em que caí — explicou Elsie — Os homens falavam em francês a bordo, por isso descobri quem eram eles.

— Que disseram aqui no Marrocos sobre mim?

— Observavam tudo enquanto sua barraca foi armada sob as árvores, e concordaram que você era jovem e bonita, além de ter apenas um homem para protegê-la.

— Mas e os condutores de camelos? — Narda começou a falar.

— Eles jamais interfeririam. Penso que o cabeça desse horrível tráfico é um homem de grande projeção. Acho que os habitantes de Fez não ousariam se opor a ele, por medo de vingança.

Narda sentiu um desânimo profundo. Depois disse a si mesma que o Marquês faria alguma coisa. Ele também era homem de grande projeção, e a salvaria na certa.

Mas, de qualquer forma, horrorizava-se só em pensar que talvez o Marquês não pudesse encontrá-la. E, como poderia ela cooperar na busca, se fosse drogada tal qual as oito moças deitadas em silêncio, na mesma carroça?

— Ajude-me... por favor... ajude-me a sair daqui — sussurrou ela para Elsie.

— Podemos tentar fugir juntas, mas não vai ser fácil.

— Quantos homens há nesta carroça? — indagou Narda .

— São seis ao todo. Mas, o que quer que aconteça, não fuja. Eles a drogarão ou a espancarão. Roubaram você porque tiveram medo da fúria que provocariam no chefe, ao chegar no Marrocos com uma moça a menos.

Narda sabia que fugir da carroça, naquelas circunstâncias, seria impossível. Mas no íntimo sentia que precisava fazer algo. Qualquer coisa seria melhor que sofrer a mesma humilhação das moças que eram levadas à Turquia como escravas. Por ler diariamente os jornais, vira referências ao horror e degradação do tráfico de escravas brancas.

Pensando sobre o caso, recordou-se de como na Austrália haviam acabado com essa vergonha. Os caftens eram condenados, no mínimo, a dez anos de prisão, e flagelados com freqüência enquanto permaneciam encarcerados. No Parlamento inglês, pensava-se em adotar o mesmo sistema. Porém, pelo que Narda sabia, coisa alguma se fizera até aquele momento. Moças inglesas, e provenientes de outros países da Europa, eram continuamente levadas ao mundo árabe.

— Os árabes gostam de mulheres claras, de cabelos louros, assim como você — disse Elsie.

— É, meus cabelos são bem claros — admitiu Narda.

— Os meus também. Por que tive eu de sair de casa, deixando meu pai, para viajar a outro país? — lamentou Elsie.

— É uma crueldade, uma grande maldade sermos aprisionadas dessa maneira! Sendo seu pai um Ministro da igreja, você deve concordar comigo que a única coisa que podemos fazer é rezar.

— É o que tenho feito — confessou Elsie — Peço a Deus e a todos os anjos do céu que me ajudem! Mas ainda continuo a caminho de um triste destino!

— Temos de acreditar em Deus, Elsie!

Com um soluço, Elsie murmurou,

— Tem razão é só com quem podemos contar.

As duas moças permaneceram em silêncio por algum tempo. Elsie foi a primeira a falar,

— Ainda não me disse seu nome, e o que está fazendo no Marrocos.

— Meu nome é Narda, e viajo com meu irmão, que é um arqueólogo. Ele fará tudo para me resgatar.

— Se os homens foram tão espertos ao raptarem você como foram conosco, ninguém terá a mínima idéia de para onde foi ou do que aconteceu.

— Acha que os condutores de camelos não dirão nada a meu irmão?

— Terão medo — explicou Elsie — Os homens que viajam conosco são pessoas de boa classe social. Mesmo assim, percebi, pelo modo como se comportaram quando a moça se afogou, que têm pavor de seu chefe, não importa quem seja ele.

— Será o Sultão? — sugeriu Narda.

— Não iremos saber até sermos levadas diante do homem.

— Gostaria de gritar e gritar! — exclamou Narda — Mas ninguém me ouviria, e seria pior.

— Eles drogarão você, Narda. E, se quisermos aproveitar a menor chance para escapar, precisamos estar prontas e alertas o tempo todo.

— Claro — concordou Narda.

Ela refletiu por um momento, e indagou,

— Acha que posso desamarrar meus tornozelos? A corda está me machucando, é tão apertada.

— Eu faço isso para você. Mas não tente fugir da carroça.  Eles nem perceberão que está livre da corda.

Elsie ajoelhou e desatou o nó da grossa corda que mantinha as pernas de Narda juntas.

Narda agradeceu calorosamente.

— Obrigada, muito obrigada. Se você não estivesse aqui comigo, acho que já teria enlouquecido! É tão confortador poder falar inglês com alguém!

— As outras moças todas são inglesas. Três delas nasceram e foram criadas no interior, e têm mais ou menos quinze anos. Foram a Londres à procura de emprego em casa de gente rica.

— Coitadinhas! — exclamou Narda.

— Duas pretendiam ingressar na carreira teatral. Suponho que, nesse caso, estariam correndo o mesmo perigo. O resto, como eu, atendeu a anúncios de jornais.

— Que diziam esses anúncios? — Narda estava curiosa.

— Que havia ótimos empregos, fora do país, para Governantas, camareiras ou vendedoras em lojas. Elas ainda não têm idéia do que lhes acontecerá assim que chegarem a Fez.

— Quanto tempo acha que levaremos para checar até lá? — perguntou Narda, bem nervosa.

— Pelo que os ouvi dizer, chegaremos amanhã à tarde. Esta carroça é conduzida por quatro cavalos, e anda bem rapidamente.

Narda perdeu as últimas esperanças. Achou que não haveria chance de o Marquês chegar a Fez tão depressa. Aí, admitiu que, talvez, abandonando os camelos, chegasse antes.

Fechou os olhos e concentrou-se nele, dizendo mentalmente onde se encontrava. Mas o Marquês com certeza ainda dormia, e era muito cedo para transmitir um pensamento.

Apenas pela manhã ele veria que ela desaparecera.  Narda emitiu um som de desespero, e Elsie animou-a,

— Coragem! Nós acreditamos em Deus, Ele sabe de nossa situação e ouvirá nossas preces.

— Sei que Ele ouvirá, e meu pai também.

Mas, bem no íntimo, Narda sabia que só o Marquês poderia salvá-la. E tinha de ajudá-lo, de fazer com que ele soubesse de seu paradeiro.

O Marquês dormia há apenas duas horas. Acordou de repente, com um sentimento de perigo. Tinha a impressão de que alguém se achava dentro de sua barraca.

— Quem está aí? — perguntou em francês.

Enxergou, silhuetada na porta que ele deixara aberta, a figura de um homem.

Repetiu a pergunta, dessa vez em berbere.

O homem aproximou-se dele e ajoelhou a seus pés. O Marquês instintivamente pegou o revólver que estava sob o travesseiro.

— Trago más notícias, Senhor, e muito importante — declarou o intruso — Sou pobre e ganho pouco cuidando de cabras.

Era difícil entender o que o homem falava. Mas o Marquês tinha facilidade em lidar com vários dialetos. Disse então,

— Se o que tiver de me comunicar for de fato importante, será bem recompensado.

O homem encheu-se de satisfação e, após segundos, explicou,

— A moça foi raptada. Vi quando a levaram.

O Marquês ficou agitado.

— O que você viu?

— Três homens tirando a moça da barraca e pondo-a numa carroça grande.

— Não entendo o que diz, homem — replicou o Marquês.

Mas, sem perda de tempo, pulou da cama. Saiu de sua barraca na direção da de Narda.

De pronto, enxergou um buraco cortado na lona e concluiu como os raptores haviam entrado na barraca, vazia agora.

O Marquês voltou e apanhou uma bolsa de dinheiro que também se achava sob o travesseiro.  Pegou algumas moedas e as pôs na mão do homem, que não havia saído do mesmo lugar. Sentava sobre, os calcanhares, hábito costumeiro entre eles.

— Os homens carregaram a moça sem fazer barulho algum — explicou ele.

— Os condutores de camelos devem ter visto tudo! — insistia o Marquês.

— Eles dormiam. E não querem saber de problemas.

— Como era a carroça em que levaram a moça?

— Grande, muito grande, e puxada por quatro cavalos.

— Quantos homens havia? — indagou o Marquês.

— Seis ao todo. Três carregaram a moça e três ficaram na carroça.

— Tem idéia de quem são eles?

O homem meneou a cabeça. Mas o Marquês levantou a bolsa de dinheiro e o pastor criou coragem e disse,

— São homens que foram encarregados de buscar dez mulheres na Inglaterra, para trazê-las a Fez.

O Marquês não teve mais dúvidas do que o homem queria dizer, e entendeu logo o que acontecera a Narda. Pagou o informante generosamente pelos novos dados fornecidos. Esperou até que ele desaparecesse de vista, com suas cabras, para não despertar suspeitas entre os condutores de camelos.

Se, por acaso, o pobre pastor fosse identificado e denunciado aos organizadores do tráfico de escravas brancas, não teria muita perspectiva de continuar vivo.

— Minha irmã deve ter se unido a outra caravana — explicou o Marquês vagamente aos homens de seu grupo — Chegará a Fez antes de nós. Preciso partir o mais rápido possível, e vocês me seguirão atrás.

Explicou onde deveriam deixar as malas, e prometeu pagá-los bem.

Pôs sua sela no cavalo de Narda, animal mais jovem que o seu. Não se cansaria tão rapidamente.  Partiu com a idéia firme de resgatá-la. Pensava o tempo todo na maneira mais lógica de conseguir o que pretendia.

Galopou por longo tempo.

Concluiu que, uma vez achando Narda e sabendo quem a raptara, teria ao mesmo tempo a resposta que Lorde Derby esperava dele. Porém, enquanto cavalgava, dizia a si mesmo que era Narda o que mais o interessava, mas só naquele momento admitia a verdade evidente.

"Vou salvá-la", pensou, "nem que seja para matar cada homem de Fez que concorreu para esse rapto!"

 

Já era dia claro quando a carroça enfim parou.

— Que está havendo? — sussurrou Narda.

— Acho que estão fazendo a muda dos cavalos — explicou Elsie — Finja que está dormindo, ou eles a doparão.

Com o coração pulsando com mais força, Narda forçou se a fechar os olhos. Recostou-se no banco como se estivesse dormindo.

Percebeu que um homem surgiu para examinar passageira por passageira. Sabia, como Elsie dissera, que havia mais oito mulheres com elas.

Vira-as à tênue luz que entrava pelas frestas da lona pesada que fechava os lados do veículo. As passageiras sentavam em bancos mais ou menos confortáveis, quatro em cada fileira. Tombavam o corpo para um lado, e estavam tão quietas que Narda classificou a cena como um tanto lúgubre.

Um homem puxou a lona de um dos lados da carroça.

Narda abriu rapidamente os olhos para ver que aspecto tinha ele. Mas foi bastante prudente. Concluía que sua única esperança de fugir estava em fazer tudo que Elsie recomendara.

O homem ficou olhando para dentro da carroça por algum tempo, depois outro homem juntou-se a ele.

— Elas estão bem? — indagou o recém chegado em francês.

— Acho que sim — replicou o primeiro homem.

— Como vai a última moça que chegou? Já foi drogada?

— Não vai ser necessário. Não emitiu um som desde que nós a pusemos dentro da carroça.

Narda segurou a respiração e fechou os olhos. Sabia que ambos a observavam. Foi com grande dificuldade que relaxou o corpo.

— Repare! — exclamou o segundo homem — Ela retirou a mordaça.

— É verdade. Se acordar, dou algo para beber. Não é bom termos problemas na chegada a Fez.

Enquanto eles falavam, uma das moças, sentada na primeira fila, remexeu-se e acordou.

— Onde estou? — disse quase chorando — Para onde estamos indo?

— Cuide dela — falou um dos homens.

O outro pulou de imediato para dentro da carroça.

— Você está bem — declarou ele à moça num inglês rudimentar — Logo chegará a Fez, onde o pessoal do teatro espera por você.

— Estou com medo. Quero voltar para casa! — gemeu a moça.

— Que bobagem! — insistiu o homem — Você será um grande sucesso, todos a aplaudirão. O que precisa é de uma bebida. Beba isto, é delicioso e se sentirá melhor.

Com os olhos semicerrados, Narda percebeu que ele dava de beber à jovem num copo.

— Beba tudo! — encorajou o homem — Vai fazer calor daqui a pouco, e isto fará bem a você.

Ela obedeceu. Em seguida, o homem aconselhou,

— Agora durma e esqueça tudo, exceto que será um sucesso na dança.

A moça murmurou algumas palavras ininteligíveis e caiu no sono.

Depois de esperar alguns segundos para ver se ela de fato dormia, o homem pulou da carroça e fechou a lona. Tudo ficou completamente às escuras. 

Logo que o veículo se pôs em movimento, Elsie disse,

— Ele cuidou do caso com esperteza. Você entendeu, Narda, que se comer ou beber alguma coisa perderá noção de tudo.

— Entendi. Estou com sede — murmurou Narda — Mas reconheço que você tem razão.

 

— Quase não comi nada desde que saí da Inglaterra — declarou Elsie — Assim que percebi o que eles estavam fazendo, lembrei do que meu pai me contou sobre o tráfico de escravas brancas.

Sua voz tremia ao falar.

Narda apertou a mão da nova amiga.

— Garanto que meu irmão nos salvará.

— Vamos esperar que ele consiga — replicou Elsie — Como pode ele saber onde estamos?

Narda não respondeu.  Apenas pedia a Deus que o Marquês conhecesse pessoas a par dos segredos de Fez. Assim sendo, poderia ajudá-las.

Já haviam percorrido grande distância quando ela perguntou a Elsie algo que não saía da mente há algum tempo.

— Se não formos salvas que faremos?

Elsie hesitou, antes de responder,

— Pretendo me matar. Não sei ainda como, mas acharei um meio.

— E eu imitarei você — murmurou Narda.

Apesar de falar dessa maneira, Narda não tinha vontade de morrer.  Queria reencontrar o Marquês, conversar com ele e, acima de tudo, estar com ele.

"Oh, Deus, ajude-me!” rezava ela. "Quero viver. Pois, se morrer ele jamais saberá onde estive e o que aconteceu comigo!"

Quando chegaram a Fez, era noite fechada e tudo estava às escuras. Embora, estando sob a lona, não pudessem ver quase nada, Narda percebeu que chegavam à cidade. . Podia ouvir o barulho das ruas e o tropel das patas dos cavalos nas pedras do calçamento.

Narda notou que Elsie estava tensa. Talvez aquela fosse a hora da fuga. Os cavalos pararam.  Um homem subiu no carro e gritou,

— Acordem, meninas! Chegamos, e há pessoas esperando por vocês!

O efeito do narcótico passava aos poucos. Algumas das mais dopadas não se dispunham a obedecer. Olhavam ao redor, aparvalhadas, sem noção do que ocorria.

Era difícil para Narda vê-las nitidamente. Mas eram todas louras, como Elsie e ela.

Os árabes preferiam as louras, que contrastavam com as mulheres de sua raça, morenas de cabelos negros. Só de pensar nos árabes, Narda se agitou.

O homem que dava as ordens fez as moças se erguerem, uma a uma.

Outro homem entregou longas capas, as djellabas, usadas pela maioria dos habitantes de Fez. As capas tinham um capuz que cobria a cabeça e quase todo o rosto. Seria impossível saber se a pessoa que as usava era homem ou mulher.

Depois que o homem cobriu moça por moça, fracas demais para fazerem isso por si sós, fez todas descerem da carroça.

Narda foi carregada e posta no chão.

Fora, havia luz vinda de uma lanterna próxima à carroça. Ela viu um homem conduzindo a primeira moça, enquanto outro cuidava da segunda, e assim por diante.

Narda fora uma das últimas a sair da carroça, havia apenas mais uma moça depois dela e de Elsie. Não estava atordoada. Pelo contrário, sentia—se bem lúcida e amedrontada.

O homem, o mesmo que dera de beber à moça que acordará na carroça, colocou a capa nela.

Abotoou a djellaba até seu pescoço.

Segurava-a pelo braço o tempo todo. O grupo seguia por uma rua estreita onde se viam algumas lojas ainda abertas. Passaram também pelo ateliê de um artífice em cobre. Narda viu algumas bandejas expostas na vitrine.

Reconheceu logo aquele tipo de trabalho, já observado antes por ela em suas viagens com o pai. Adiante, as ruas estavam mais cheias de gente.

Ouviam-se os gritos dos vendedores ambulantes. Burros eram conduzidos por homens que berravam,

— Valek! Valek!

Narda compreendeu o que diziam "abram caminho!"

Ela já andara pelas ruas de Constantinopla e do Cairo, onde se usava a mesma linguagem, por isso entendia seu significado. Distinguiu logo o aroma de especiarias e do óleo usado nas frituras árabes.

Todos continuavam caminhando e ela tropeçava o tempo todo nas pedras escorregadias da rua, pois tinha os pés descalços. Enfim, o homem que a conduzia parou abruptamente.

Empurrou-a para dentro de uma casa e fechou a porta logo depois. Estava escuro no interior, mas ele tomou a dianteira.

De repente, Narda encontrou-se num pátio com um chafariz no meio. Por toda parte exalava um perfume de flores.

Ela pode ver, ajudada pela luz de várias lanternas, que o pátio era luxuoso, com chão de mosaicos e mármore, com certeza a casa pertencia a pessoa muito rica.

Os dois atravessaram o pátio, passaram por uma porta e subiram alguns degraus. O homem abriu então uma cortina.

Estavam numa grande sala com divãs e almofadões espalhados sobre tapetes orientais.

As outras moças já se achavam lá, sentadas, parecendo esgotadas demais para permanecerem de pé.  Algumas delas tinham o olhar parado, fixo no espaço.

Narda tentou portar-se da mesma maneira, a fim de não chamar a atenção pelo fato de não ter sido dopada. Deixou que o homem a cargo dela tirasse a djellaba.

Ele a fez sentar-se num divã. Narda ficou imóvel.

Para seu alívio, viu Elsie ser trazida à sala. Por não haver ninguém no divã, Elsie sentou-se a seu lado.

Alguns minutos mais tarde, a última moça, a que estava em pior estado, entrou quase carregada.

Colocaram-na num canto, apoiada em almofadas. Parecia drogada demais para se mover. O homem que a conduziu declarou,

— Aí está o lote todo.

E a pessoa com quem ele falou disse em francês,

— Dê comida e bebida. Vou comunicar ao chefe que elas já se encontram aqui.

Ele saiu da sala e empregados entraram trazendo bandejas com comida.

Havia frangos grelhados, bolos de trigo fumegantes, costeletas de cordeiro, além de vasilhas contendo azeitonas, nozes, iogurte e pão marroquino.

Por estar faminta e sedenta, Narda sentiu água na boca.

— Cuidado! — sussurrou Elsie.

— Não posso comer nada? — perguntou Narda.

 Não olhou para Elsie enquanto falava, mas para o homem em pé no meio da sala.

Ele observava a movimentação dos empregados que colocavam os pratos em mesas compridas e baixas, no centro da sala.

— Frutas, coma apenas frutas — sugeriu Elsie.

Narda, no primeiro instante, não viu fruta de espécie alguma. Mas, logo, um criado trouxe uma enorme cesta contendo figos, romãs e grande variedade de outras frutas típicas do lugar. Terminado o trabalho dos empregados, o homem que cuidava das moças disse, em inglês,

— Aproximem-se! Vocês devem estar com fome. Depois da refeição, serviremos chá de hortelã, uma delícia!

Narda adivinhou que ele guardava o chá para o fim por estar talvez bastante drogado. Não agüentava de vontade de comer. Poderia devorar um frango inteiro e algumas costeletas de cordeiro. Mas seguiu o conselho de Elsie.

Se tivessem chance de fugir, seria quando os homens que cuidavam delas acreditassem que dormiam.  Bem devagar, por estarem ainda atordoadas, as moças foram à mesa.

Narda e Elsie fizeram o mesmo.

— Se fossem árabes, teriam se sentado com as pernas cruzadas. Mas conseguiram apenas se agachar.

Elsie pegou dois figos e duas romãs da cesta. Dividiu as frutas com sua amiga.

Isso ajudou Narda a mitigar a sede. Ela ficou muito com tente ao encontrar também algumas bananas na cesta. Achava impossível que as bananas contivessem drogas.

O homem demonstrava cansaço e bocejava de quando em quando.

Apenas depois que todas haviam comido bastante, ele declarou,

— Agora vou mandar servir o chá. Depois disso, podem dormir até amanhã.

Havia uma nota em sua voz que fez Narda concluir que o dia seguinte seria muito importante. Nesse exato momento, ela ouviu vozes de homens do lado de fora.

— O que houve? — indagou a Elsie.

— Os compradores deveriam vir amanhã — explicou Elsie — Mas talvez alguém tenha vindo hoje.

Os criados tiraram as mesas.

Algumas moças tentaram protestar quando viram os pratos serem levados antes de elas terem terminado. As mesas foram cobertas com toalhas bordadas. O homem que cuidava delas ordenou,

— Arrumem-se um pouco. Há alguém aqui que deseja ver vocês.

Falou em inglês, sempre com um sotaque carregado. As moças encararam—no, cheias de surpresa. Uma delas protestou,

— Estou cansada! Quero ir para a cama!

— Dormirá mais tarde — replicou o homem, de mau humor — Arrume seu cabelo e faça-se apresentável!

A moça fingiu não escutar. Voltou para a almofada onde estivera antes da refeição ser servida.

Elsie conduziu Narda ao divã, na outra extremidade da sala.

Havia, portanto, muitas moças entre elas e a porta. O ruído de vozes do lado de fora aumentava. O homem que falava francês entrou na sala.

Seguia-o um árabe corpulento. Usava um cáftan branco que o cobria como uma djellaba.  Na cintura, carregava um punhal curvo, numa bainha dourada, com o cabo cravejado de pedras preciosas. De espessa barba grisalha, tinha na cabeça um turbante. Calçava babuchas, chinelos de pontas viradas para cima, tipicamente árabes.

Elsie apavorou-se, pois sabia a razão pela qual o homem se achava lá.

Narda fechou os olhos, tão assustada estava.

Aí, ouviu o homem que falava francês saudar, em berbere, o recém chegado.

— Nos sentimos honrados, Abdul-el-Hassan, em recebê-lo.

 Narda não entendeu o que foi dito, mas compreendeu o nome, Abdul-el-Hassan. Isso já era alguma coisa. Notou, ainda, pelo tom de voz diferente do recepcionista, que o árabe era pessoa importante.

O árabe disse,

— Meu amo está muito interessado em sua mercadoria.

Falava em berbere, mas com uma entonação toda especial. Narda imaginou ter ouvido aquele sotaque antes.  Não, não podia ser, devia estar sonhando.

"Sim, ouvi essa voz antes!" pensou.

Seus instintos também diziam para ficar alerta.

Mas quando o homem chamado Abdul-el-Hassan falou de novo, ela não teve mais dúvida.

Era o Marquês.

Narda se concentrou nos pensamentos dele e pode, mesmo não sabendo o berbere, entender o que ele falava.

O Marquês perguntava se as mulheres vindas da Inglaterra eram virgens e se não tinham sido tocadas por homem algum.  O encarregado que as trouxera assegurou que nenhuma tivera relações sexuais durante a viagem.

— Homem algum interferiu na vida delas, desde que ficaram a meus cuidados — declarou ele.

— Meu amo é muito exigente nesse particular — Abdul-el-Hassan, disse — Se o Senhor o enganar, ele não patrocinará mais essas viagens.

— Asseguro o que digo, honrado Senhor. Juro que falo a verdade! — exclamou o encarregado do tráfico — Não é mesmo, Idris?

Ele virou-se para o homem que cuidara o tempo todo da carroça.

— Sim, Yussuf, é verdade.

Yussuf apontava moça por moça, enfatizando os dotes físicos de cada uma. Depois chamou uma delas e a fez subir numa das mesas.

Narda percebeu que Yussuf perguntava a Abdul-el-Hassan se queria que a moça se despisse.

Abdul-el-Hassan declarou não ser necessário, e outra moça tomou o lugar da primeira. Muitas foram apresentadas ao comprador árabe.

Este examinava bem de perto as mãos, o rosto delas, e Yussuf chamava a atenção para os bons dentes e a curva suave dos seios das jovens.

Uma de cada vez subia na mesa, ficava lá por algum tempo, e logo outra a substituía. Narda tremia de emoção. Seria a próxima. Por ter sido raptada no meio da noite, usava apenas uma camisola.

Não sofrera frio na viagem, devido ao ar abafado da carroça, principalmente durante o dia. Mesmo depois que tirou a djellaba, ainda sentia calor naquela sala sem ventilação alguma.

Yussuf estendeu a mão para arrastá-la à mesa.

Mas Abdul-el-Hassan impediu-o.

— Posso ver que é jovem e bonita — disse ele.

Seus olhos fixaram-se nos de Narda, que concluiu não estar enganada.

Era mesmo o Marquês.

Fez um esforço para não se atirar nos braços dele e pedir que a salvasse. Em vez disso, apertou as mãos com tanta força que suas unhas penetraram na carne. Abaixou a cabeça simulando timidez.

O Marquês tocou as faces.

— Tem pele de cetim — comentou em berbere.

Uma onda de calor, como um raio, percorreu o corpo todo de Narda. O momento foi tão extático que ela não teve mais dúvida de que o amava.

O Marquês continuou a examinar as moças. Narda queria salvar Elsie, por isso estendeu o braço na direção dela. Foi um gesto discreto, que não chamou a atenção de Yussuf.

Narda só esperava que o Marquês entendesse que Elsie era sua amiga, e que, sendo possível, ele deveria comprá-la também.

Enfim, a última moça foi apresentada ao Marquês.

— É tudo? — perguntou ele.

— Por enquanto, honrado Senhor — replicou Yussuf — Mas teremos novo lote muito em breve.

O Marquês fez um gesto impaciente com a mão.

— Informarei a meu amo. Mas, no momento, interesso-me por essas que estão aqui. Onde podemos nos sentar?

Yussuf conduziu-o à outra extremidade da sala, onde havia almofadões e uma pequena mesa.

Narda sentou novamente no divã, e observava a conversa dos dois homens. Não tinha dúvida de que o Marquês agiria com prudência e muito cuidado.  Ele, por sua vez, esforçava-se por fazer suas atitudes parecerem naturais, e discutiu acerca de todas as mulheres apresentadas.

Queixou-se do preço. Regateou bastante. Disse que uma tinha o pescoço grosso demais, outra, as mãos ásperas.

Narda interpretava tudo, apesar de não conhecer a língua. Os gestos do Marquês ajudavam-na nessa tarefa.

Percebeu que ele não a escolhera logo para não despertar suspeitas.

Enfim, após o que pareceu a Narda um tempo enorme, o Marquês tirou das dobras do cáftan uma bolsa de dinheiro. Ela notou que nela havia muitas moedas de ouro.

O Marquês colocou uma pilha delas sobre a mesa, diante de Yussuf.

Os olhos do homem brilharam de avidez. E ele estendeu depressa a mão para apanhar as moedas. A bolsa do Marquês estava quase vazia quando ele se levantou.

Olhou para Narda e disse qualquer coisa a Yussuf. Isso ela não entendeu.

Idris, que ouvira toda a conversa, encaminhou-se para o lado de Narda. Então, ela entendeu tudo.

— Vocês duas vão com esse homem importante informou-as em inglês — Comportem-se bem, e façam tudo o que ele lhes mandar. Do contrário, serão castigadas.

Idris falava com severidade, mas o coração de Narda dava pulos de alegria.

Quando o Marquês começou a sair, na frente das moças, fingindo pouco interesse, Idris empurrou-as na direção dele.

O grupo desceu os poucos degraus, os mesmos que elas haviam subido ao chegar.

Porém, em vez de passarem pelo pátio, Yussuf encaminhou o Marquês através de vários corredores.

Atravessaram outro pátio, onde havia roupas penduradas num varal. Os ladrilhos do chão estavam quebrados em vários lugares.

Aquela ala da casa devia ser habitada por pessoas de categoria inferior, criados talvez.

O Marquês continuava andando. As duas moças, Yussuf e Idris seguiam-no.

Yussuf abriu uma porta e o ar fresco da noite deu novo ânimo a Narda. Fora, numa rua deserta, havia uma carruagem estacionada. Era majestosa e puxada por dois cavalos.

O Marquês entrou, Yussuf saudou-o, agradecendo profundamente pela compra.

As duas moças foram empurradas para dentro do carro e sentaram-se num pequeno banco com as costas para a boleia. A porta da carruagem foi fechada.

Os dois árabes, que ficaram na calçada, saudavam o Marquês enquanto os cavalos se punham em movimento. A escuridão era quase completa.

A única iluminação provinha de lanternas acesas junto à porta de algumas lojas fechadas.

O Marquês não dizia nada, e Narda manteve-se em silêncio também. Só após haverem percorrido longa distância, Elsie sussurrou,

— Para onde vamos?

— Tudo está bem agora — respondeu o Marquês em inglês — Não tenha medo. Mas estamos ainda na zona de perigo e é melhor falarmos o mínimo possível. Elsie exclamou,

— O Senhor é inglês!

— Sim, sou inglês. E salvei vocês duas. Como é seu nome?

— Elsie Watson.

— Agora ouça, Elsie — disse ele — Muito em breve um homem a conduzirá à Embaixada Britânica. Estará segura lá, e será levada de volta à Inglaterra. Mas, enquanto estiver neste país, sua vida, a de Narda e a minha continuarão em perigo.

— Vai salvar as outras moças? — perguntou Narda.

— Sim, e logo. Depois disso, este lugar vai se tornar um inferno, mas então já teremos colocado muitos quilômetros entre nós e Fez.

A carruagem parou logo após essa troca de palavras. O cocheiro abriu a porta e o Marquês apeou.

Narda notou que fora havia dois cavalos e dois homens cuidando deles.

Favian tomou a mão e conduziu a uma cabana de madeira. Elsie seguiu-os.

Estrelas brilhavam no céu e, por causa do luar, Narda pode perceber que estavam fora dos muros de Fez.

A carruagem partiu. Dentro da cabana havia um pequeno quarto iluminado por uma lanterna. As janelas estavam fechadas.

— Há comida para as duas — informou o Marquês — E café forte também. Rezei para que você não estivesse drogada, Narda.

— Elsie preveniu-me contra esse perigo! — exclamou Narda.

— Sou grato a você, Elsie — declarou o Marquês — Prometo que será bem cuidada, mas quero que parta logo. É muito importante que ninguém saiba onde estamos, ou o que houve, até que o resto das moças seja resgatado. Entende?

— Sim, claro — concordou Elsie — E muito, muito obrigada!

Pela primeira vez, desde que Narda a conhecera, Elsie chorou. Lágrimas corriam copiosamente pelas faces. Eram lágrimas de alívio e felicidade, pois fora salva e não precisava mais se suicidar.

— Narda e eu nos comunicaremos com você assim que chegarmos à Inglaterra — explicou o Marquês — Mas, considerando que cada minuto que estivermos aqui representa perigo, prefiro que você vá já embora.

Narda abraçou e beijou Elsie.

— Obrigada muito obrigada — sussurrou Elsie, ainda chorando.

Teve dificuldade em falar mais, devido às lágrimas. Um homem entrou na cabana.

— Trazia no braço um albornoz, grande manto de lã com capuz, usado por todas as mulheres árabes.

O Marquês tomou-o das mãos do homem e colocou-o na cabeça de Elsie.

— Caminhe ao lado dele — recomendou o Marquês — Ande arrastando os pés como uma marroquina, e não abra a boca até chegar à Embaixada.

Elsie acenou com a cabeça, mostrando que entendera. Não conseguia falar. Enrolando-se bem no albornoz, saiu, e o Marquês fechou a porta em seguida.

— Agora depressa, Narda! — ordenou ele — Pode comer enquanto se veste.

— Posso fazer tudo agora estando com você! — replicou Narda.

Ela foi até a mesa e pôs um pouco de comida na boca. Viu, sobre uma cadeira, algumas roupas. Principiou a desabotoar a camisola.

Ao fazer isso, notou que o Marquês virara-se de costas para ela.

Vestiu-se rapidamente.

O Marquês providenciara tudo, roupa de baixo, saia de montaria, uma jaqueta e uma blusa branca. Havia também um par de botas de cano curto, como as que ela usara ao desembarcar no Marrocos. Não eram as suas, como suas não eram as demais peças de roupa.

Porém, serviam muito bem, exceto as botas, que ficaram ligeiramente grandes.

Ao dirigir-se à mesa a fim de pegar mais alguma coisa para comer, viu que o Marquês se descartara da barba e do resto de seu disfarce.

Usava o mesmo traje de montaria com que viajara de Kenitra para Fez.

— Beba um pouco de café — disse ele.

— Preciso mesmo de alguma bebida — replicou Narda — Estou com muita sede, mas Elsie disse que não bebesse nem comesse nada.

— Temia que você chegasse drogada, Narda. Não imaginei que encontrasse pessoa tão sensata como Elsie para recomendar o que fazer.

— Ela foi muito, muito boa para mim. E eu receei que você não a resgatasse.

— Todas as moças serão resgatadas logo — prometeu o Marquês — a menos que algo errado suceda. Mas venha depressa!

Narda tomou o resto do café de um gole só, apesar de preferir outro tipo de bebida mais refrescante. Porém, café era o único líquido existente na cabana.

Depois, ela e o Marquês saíram.

Os cavalos continuavam à porta, e Narda ficou muito satisfeita ao constatar que o Marquês providenciara uma sela feminina. Os animais estavam ariscos e pareciam felizes por poderem enfim, galopar.

O Marquês pôs uma boa quantia de moedas nas mãos dos homens que cuidaram das montarias.

Ele e Narda partiram. Favian, obviamente, conhecia o caminho.

No começo, cavalgaram por entre cabanas do mesmo tipo da que tinham abandonado havia poucos minutos. Depois, mais rapidamente do que Narda julgara possível, os muros de Fez ficaram cada vez mais distantes. Entraram em campo aberto. Os animais galopavam sem haver necessidade do uso do chicote.

Narda mal podia acreditar que tudo aquilo fosse verdade. Parecia impossível que o Marquês fosse tão esperto, pois resgatara-a do que ela considerava um inferno indescritível.  Naquele instante, não tinha mais receio de que pudessem ser perseguidos ou impedidos de tomar o iate.  Sabia que suas preces haviam sido atendidas.

Deus mandara o Marquês para salvá-la, conforme ela pedira. E os dois seguiam depressa, sem olhar para trás.  Quando os primeiros raios de sol apareceram no céu, chegaram a um oásis desabitado.

Era muito similar àquele onde haviam acampado na primeira noite no Marrocos. Enquanto cavalgavam entre as tamareiras, Narda viu cavalos esperando por eles, seguros por dois cavalariços. Havia também comida e bebida sobre uma esteira.

Narda alegrou-se por poder desmontar. Ela e o Marquês comeram, depois beberam chá de hortelã.

O Marquês enfim falou, após longo silêncio.

— Como ainda temos muito chão a percorrer, quero que você mastigue um pedaço da raiz de uma planta que eu trouxe da China. Por milhares de anos os chineses a têm usado para agüentar longas jornadas sem sentir exaustão.

Em seguida, deu a Narda uma raiz que se assemelhava a uma cenoura seca.

— Que é isso? — perguntou ela.

— Chama-se ginseng — explicou o Marquês — e, embora não tenha um sabor agradável, é de grande utilidade e fornece muita energia. Ponha um pedaço na boca e mastigue.

— Faço tudo o que você me mandar — concordou Narda.

— Precisamos nos por a caminho agora — declarou o Marquês de súbito.

Ele colocou a xícara de chá no chão e ajudou Narda a montar. Ordenou aos cavalariços que dessem de beber aos cavalos cansados que ele e Narda haviam usado na viagem até aquele ponto. E mandou que deixassem os animais descansar o tempo necessário.

Os homens prometeram obedecê-lo.

Narda e o Marquês partiram.

"O ginseng está funcionando", pensou ela ao sentir que o cansaço se dissipava.  Antes de pararem outra vez, o sol já estava a pino.

Narda não pode deixar de admitir que se sentia exausta de novo. Outra muda de cavalos esperava por eles naquele local.

Ao partirem mais uma vez, o Marquês disse,

— Temos ainda de percorrer muitos quilômetros, mas preciso confessar, Narda, que tem se portado muito bem, com uma coragem inacreditável.

— Alguns minutos atrás tive medo de... desmaiar de cansaço. Por favor dê-me um pouco mais de ginseng.

O Marquês fez o que ela pediu e Narda mastigou a raiz milagrosa pelo caminho. Cavalgaram durante longo tempo. Enfim, ela não conseguiu mais esconder seu cansaço. Achou que cairia da sela.

O Marquês percebeu seu estado e, sem dizer uma palavra, tomou as rédeas e aproximou sua montaria da dela.

Agora Narda segurava com ambas as mãos a frente da sela, a fim de evitar uma queda.

"Não posso dar-me por vencida!", dizia a si mesma.

Finalmente, quando achou que ia suplicar ao Marquês para que parassem ao menos por alguns minutos, ele declarou,

— Lá está o mar, o Dolphin nos espera.

O sol declinava e a sombra projetada pelas poucas árvores do lugar denunciava que logo iria anoitecer. Mais uma vez estava em terreno árido, o mesmo por onde passaram na ida, ao saírem de Kenitra.

Narda procurou pelo porto, mas não o viu.

Enxergava apenas o mar azul e um barranco, na base do qual ela constatou haver uma saída arenosa.

Assim que se aproximaram do barranco, dois homens apareceram. O Marquês foi ao encontro deles, e Narda se deu conta de que vencera mais aquela prova.  Haviam fugido de Fez! Ela podia já ver o Dolphin ancorado na baía.

O Marquês fez ambos os cavalos pararem. Quando notou que Narda estava prestes a tombar da sela, tomou-a nos braços.

Narda gemeu, encostou a cabeça no ombro dele e dormiu quase que imediatamente.

O Marquês fitou-a sorrindo, um sorriso terno.

Agradeceu aos dois homens que se incumbiram de levar os cavalos de volta.

Ele desceu o barranco carregando Narda até a baía. O pequeno barco que devia conduzi-los ao iate aguardava com dois remadores.

O Marquês entrou no barco e, ainda com Narda nos braços, sentou—se na popa.

Narda dormia profundamente enquanto os homens remavam até o Dolphin. Seus cílios escuros contrastavam com o rosto muito pálido.

O Marquês admitiu que mulher alguma poderia ser tão valente ou enfrentaria tantos percalços sem protestar. A viagem que fizeram a cavalo teria sido exaustiva mesmo para um homem! Que diria para uma mulher? Porém Narda estava salva, pensou ele, e só isso importava.

Chegaram ao Dolphin.

O Marquês carregou-a, ainda dormindo, e colocou-a na cabine. Disse a si mesmo que não a perderia nunca mais!

Narda moveu-se no leito e virou a cabeça. Teve noção do barulho dos motores, logo abaixo, e percebeu que alguém abria a porta da cabine.

— Acordou Senhorita?

Narda abriu os olhos.

— Estou no iate! — sussurrou ela — Estou salva!

— Isso mesmo, Senhorita! — confirmou Yates, entrando na cabine — Mas eu já tinha começado a pensar que a Senhora era a Bela Adormecida, e que não acordaria por mais cem anos.

Narda sorriu.

— Por quanto tempo dormi?

— Uma noite e um dia inteiro — informou Yates — Se está com fome e disposta a se levantar, Sua Senhoria gostaria que jantasse com ele.

O convite pareceu a Narda tão familiar que ela sorriu.

— Agradeça a Sua Senhoria — falou — E diga que estou encantada com o convite!

— Acho que a Senhora apreciaria tomar um banho antes — sugeriu Yates, prático como sempre — Está tão cheia de pó que daria para encher dois baldes!

Ele foi apanhar as toalhas num canto da cabine.

— Vou preparar seu banho — disse — Quer água quente ou fria?

— Qualquer temperatura serve — respondeu Narda— Sinto-me sujíssima, como você bem se expressou.

Dessa vez foi Yates quem riu.

Um pouco mais tarde, no banho, Narda pensava na delícia de estar de volta ao Dolphin. Mas não era verdade que só a volta ao Dolphin representava toda sua felicidade.  Queria mesmo era ver o Marquês e confessar como ele havia sido maravilhoso ao resgatá-la.

"Eu o amo", pensou, "e, embora ele nunca venha a me amar, a aventura que vivemos juntos será algo de que me lembrarei pelo resto da vida. E contarei toda a história a meus filhos, se os tiver um dia."

Ela saiu do banho e viu que Yates trouxera uma taça de champanhe.

— Sua Senhoria disse que isto abriria o apetite — comentou o empregado — E o chef está preparando um banquete digno de reis.

— Espero que Sua Senhoria não fique desapontado, porque acho que não conseguirei comer muito!

— Ainda está bastante abatida, Senhorita! — observou Yates — Mas quem não estaria, nas mesmas circunstâncias?

E era a pura verdade.

Ao mesmo tempo, Narda desejava se fazer bonita para o Marquês. Pôs um dos vestidos mais belos que trouxera consigo.

Não teve grande dificuldade em arrumar os cabelos. Depois de pronta, constatou que ainda era cedo para o jantar. 

Não obstante, Yates apareceu dizendo que o Marquês a esperava no escritório.

O Dolphin singrava as águas calmas do oceano. com facilidade, ela atravessou o longo corredor até o escritório de Favian.

Abriu a porta, sem bater. O Marquês, que achava-se ao lado de uma estante pondo um livro na prateleira, virou-se naquele momento e a viu parada na porta.

Sem dizer uma palavra, Favian estendeu os braços.

Narda deu um suspiro. Depois, não teve muita certeza de quem dera o primeiro passo. A única coisa que sabia era que estava nos braços de seu querido Favian.

Ele abraçou-a com força e beijou-a.

Beijou-a com grande carinho e emoção.

A mesma sensação que a invadira quando ele tocou as faces, em Fez, voltou com toda a violência. Mas esse momento foi ainda mais extasiante, mais maravilhoso que qualquer coisa que já experimentara na vida.

O Marquês beijou-a até que ela se sentisse conduzida às estrelas.

 

Não habitavam mais a terra, e sim o céu. O luar, penetrando pelas vigias, os envolvia em sua luz de prata. Uma luz vinha de dentro deles também.

Quando o Marquês levantou a cabeça, Narda balbuciou,

— Eu amo você. Eu amo você. Como pode ser tão magnânimo e me salvar? Pensei que estivesse fadada a morrer!

— E imaginou que eu a perderia? — interrogou o Marquês.

Beijou-a de novo.

Narda não podia entender como uma pessoa conseguia experimentar tamanha sensação de êxtase e continuar viva.

Muito mais tarde, Narda sentou-se no sofá e o Marquês passou o braço em torno de sua cintura. Ela recostava a cabeça no ombro dele.

— Como descobriu tão depressa o que havia acontecido comigo? — indagou Narda.

Na verdade, o que realmente se passara não a interessava, exceto que estava salva e ali junto dele.  Mas, de qualquer forma, queria conhecer essa parte dos acontecimentos daquela história extraordinária.

— Achei que só de manhã você descobriria que eu não estava na barraca — observou Narda.

— Podia ter sido assim — concordou o Marquês — se não fosse pelo pastor de cabras. Ele viu o que se passou e, como quisesse dinheiro, foi me contar que a moça da barraca ao lado havia sido raptada.

— E você desconfiou logo que era obra dos mercadores de escravas brancas?

— Concluí pelo que o pastor disse. E aquela era a rota normal que esses homens seguiam levando para Fez as infelizes mulheres trazidas da Inglaterra ou, como me informaram, de outros países da Europa.

— E você poderá sustar esse tipo de comércio?

— Com o relatório que apresentei às autoridades, e também com o testemunho de Elsie, garanto que essa gangue passará o resto da vida na prisão.

— Fiquei muito, muito assustada — confessou Narda.

O Marquês apertou-a mais em seus braços.

— Esqueça de tudo. Isso jamais acontecerá com você novamente.

— Não paro de pensar como fui tola em pretender ir a Fez sozinha.

— Por esse motivo trouxe-a comigo no Dolphin.

 Ela fitou-o e disse,

— Arrependeu-se por ter me trazido?

— Só posso responder a essa pergunta boba dizendo que a amo, e que o destino permitiu que você viesse a mim pedir auxílio e também castigar o homem que roubou seu colar.

Narda deu uma exclamação de surpresa,

— Refere-se ao Sheik?!

— Descobri, quando cheguei a Fez — explicou o Marquês — desesperado por ter perdido você, que o homem atrás desse tráfico era o próprio Sheik Rachid Shriff. Ele é o homem que nos causou toda essa ansiedade.

— Ele será preso? — indagou Narda.

— Com toda certeza! Deixei uma descrição de seu colar na Embaixada Britânica. Tudo vai ser feito para que a jóia seja recuperada.

Narda pressionou o rosto de encontro ao ombro do Marquês.

— Agora lan não ficará tão zangado comigo — sussurrou ela.

— Ninguém mais ficará zangado com você. E, se ficar, eu, como seu marido, cuidarei do caso.

Narda arregalou os olhos.

O Marquês fitou-a com um sorriso nos lábios.

— Não vai me dizer, Narda, após revelar que me ama, que não quer se casar comigo! Já decidi que nos casaremos em Gibraltar.

— Em Gibraltar?

— Não tenciono tê-la outra vez longe de minha vista. Outra coisas terríveis podem acontecer a você. Pensei também que, uma vez aqui, gostaria de fazer um cruzeiro pelo Mediterrâneo, em nossa lua-de-mel, e talvez visitar a Grécia e alguns outros lugares sobre os quais você tanto leu!

— Não posso imaginar nada mais emocionante — murmurou ela — que casar com você.

— Eu a farei muito feliz! — prometeu Favian, beijando-a.

Embora Narda protestasse, ele mandou-a para a cama logo, dizendo que a queria linda e descansada no dia do casamento.

Levou-a até a cabine. Narda então perguntou,

— Vamos mesmo nos casar amanhã ou estou sonhando?

— Ficará certa disso quando eu puser a aliança no dedo. E ninguém, ninguém a tirará de mim outra vez!

O modo como ele falava provou a Narda que sofrera um grande choque ao descobrir que ela fora raptada.

Apesar do Marquês haver relatado um pouco sobre as dificuldades com que se deparara, ela concluiu que não apenas as boas amizades o ajudaram. O sucesso dele deveu-se muito à própria determinação e habilidade. E não somente a salvara, como também às outras infelizes moças inglesas, vítimas do tráfico de escravas brancas.

— Não pense mais sobre as horas de horror por que passou — aconselhou o Marquês — Prometo, meu amor, que farei tudo em meu poder para acabar com esse nefando comércio!

— Assim que voltarmos à Inglaterra, precisamos agradecer a Elsie mais uma vez — sugeriu Narda — Ela impediu-me de ser drogada. Eu estava com tanta sede que teria bebido qualquer coisa que me dessem. Ela não deixou!

— Acharemos um emprego para Elsie — declarou o Marquês —Talvez eu possa dar ao pai dela uma das paróquias em minhas propriedades. Meus párocos recebem bons salários!

— Tudo que você faz é maravilhoso! — exclamou Narda — Acho ainda difícil acreditar que serei sua esposa!

O Marquês beijou-a, a pôs dentro da cabine e fechou a porta.

Ao se dirigir para seus aposentos, ele concluiu ter encontrado a mulher de seus sonhos. Narda o faria feliz pelo resto da vida!

"Ela é perfeita!" disse a si mesmo, ao deitar-se.

No dia seguinte, Narda e o Marquês casaram-se, logo depois do almoço, em cerimônia simples, numa pequena capela anglicana em Gibraltar.

O Marquês comprara, na cidade, uma aliança para Narda.

Ao ouvir as bonitas palavras pronunciadas pelo pastor, Narda teve a impressão de escutar também o canto dos anjos.

Seus pais deviam estar junto dela!

"Como pude pensar, por um segundo, que minhas preces não seriam ouvidas?", ela se questionava.

As sirenas do Dolphin apitavam quando eles voltaram a bordo.

O Capitão deu os parabéns, e toda a tripulação aclamou-os. Havia um enorme bolo, preparado às pressas pelo chef.

Quando Narda foi para a cabine de Favian, que agora também pertencia, encontrou-a cheia de flores que Yates comprara enquanto eles estavam se casando.

Assim que o iate zarpou, o Marquês conduziu Narda a seu escritório.

— Nada mais nos preocupa no momento a não ser nós mesmos — disse ele — vou começar a contar, querida, como a amo! E levará muito tempo!

— Eu também amo você! Como poderia supor, indo a uma festa que com certeza chocaria meu irmão por causa da presença do Sheik, que todas essas coisas extraordinárias aconteceriam?

— Apavorei-me ao pensar que você pudesse ser vendida! Foi uma questão de horas eu chegar antes dos árabes compradores, que consideram as mulheres louras muito atraentes.

Ele suspirou e prosseguiu,

— Felizmente possuo bons contatos, e deduzi que ninguém me reconheceria em meu disfarce, a não ser você, minha querida.

 

— Leio seus pensamentos. Tão logo entrou na sala e o ouvi falar, percebi que pensava em mim.

— Pensava em você, sim, e tive um medo horrível, como nunca senti em toda minha vida, de que não conseguisse resgatá-la.

— Mas conseguiu! — murmurou Narda.

— E agora você é minha! Contudo, meu amor, acho que após termos passado por tantos perigos, precisamos descansar. Não aqui, mas na cabine que Yates decorou para nós!

Narda enrubesceu.

— Eu gostaria também, mas e se você se decepcionar comigo? Afinal, não me queria a bordo do Dolphin, e o Major Ashley me recomendou, com bastante veemência que não causasse transtornos.

— Você permaneceu quase o tempo todo longe de minha vista, Narda, porém não longe de seus pensamentos. Pensei em você sem parar, depois da noite em que nos conhecemos. Por isso, meu tesouro, quero confessar que estivemos sempre juntos!

Ele sorriu e continuou,

— Ainda estamos juntos, mas não é apenas porque somos casados que você é minha! Temos os mesmos pensamentos, sentimos as mesmas emoções, desejamos as mesmas coisas. E eu quero você!

Ele a fez levantar e ambos se dirigiram à cabine, que se assemelhava a um buque de flores. Quando o Marquês abraçou-a, ela gaguejou,

— Tenho tanto medo de fazer algo errado! Não quero que fique zangado comigo!

O Marquês riu com ternura.

Em toda sua experiência com mulheres, jamais deparara com uma tão jovem e inocente acerca do amor quanto Narda.

Ele perguntara ao encarregado do tráfico de escravas brancas se elas eram virgens e intocadas. Pois bem! Encontrara uma mulher nessas condições!

E agora ela era sua esposa!

 

Ele ensinaria tudo sobre o amor, e a faria conhecer a glória e a beleza desse sentimento. E despertaria nela a chama ardente do desejo. Seria uma das mais interessantes experiências de sua vida!

— Vou ser paciente e cuidadoso com você, meu amor. Mas a desejo muito! Não somente meu coração anseia por você, mas meu corpo também!

— Eu amo você! Eu amo você! — repetia Narda — Por favor me ensine a amá-lo!

Então, enquanto o sol lançava seus raios através das escotilhas do Dolphin, que se movia lentamente pelas águas azuis do Mediterrâneo, Favian fez de Narda sua mulher.

O amor levou-os às nuvens.

Eles encontraram o paraíso, que consiste na perfeição do amor, o amor com que Deus presenteou a humanidade.

É o que todos os homens procuram. No entanto, é necessário ser persistente, lutar e acreditar nele, para que o obtenham.

 

                                                                                            Barbara Cartland  

 

                      

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