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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM ESTRANHO NA NOITE / Anne Stuart
UM ESTRANHO NA NOITE / Anne Stuart

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM ESTRANHO NA NOITE

 

Quarta-feira à tarde. Começo de outono.

Laura Fitzpawk corria. Estava em pânico, um pânico que fazia seu corpo todo tremer enquanto atravessava a floresta espessa, com os galhos dos pinheiros fustigando-lhe o rosto. Com o coração acelerado, a respiração ofegante, ela sentia o frio da tarde penetrando-lhe os ossos. Precisava diminuir a marcha. Devia andar em lugar de correr, andar calmamente, e voltar para casa. Alguém mais poderia ir à procura de Justine.

Porém ela não conseguiu parar. O medo que lhe varria a alma era terrível. Sabia que a morte a perseguia, que a morte a aguardava.

Em casa, deitado no leito luxuoso, seu pai estava em coma. A irmã mais velha, Justine, fugira para a floresta com as lágrimas cegando-a. Com voz angustiada disse ao sair:

— Não posso ficar aqui sentada presenciando esse sofrimento de nosso pai.

Justine era a mais sensível das duas irmãs. Laura sabia disso e aceitava a situação.

Naquele instante Justine encontrava-se, quase em histeria, no meio dos pinheirais que cercavam a mansão de seu pai, em Taylor, Colorado. Imaginando que Laura pudesse ir procurá-la, dizia a si mesma que se a irmã tivesse um pingo de juízo devia deixá-la em paz.

Alguns minutos depois que Justine fugiu, William Fitzpatrick piorou incrivelmente.

 Estaria morto antes do anoitecer, sem dúvida. Todos tinham consciência disso. E a pobre Justine por certo jamais se perdoaria por não estar presente ao falecimento do pai, mesmo que acompanhasse aqueles minutos penosos com gemidos. Que mais poderia ela fazer?

Ninguém sabia que Laura saíra ao encalço da irmã. Estavam todos com a atenção voltada para o moribundo, e Laura se fora sorrateiramente.

Por certo se perdera na mata. Anoitecia depressa, ventava muito, e a um dado momento Laura teve a impressão de que ouvira os soluços da irmã.

De repente se deu conta de que devia ter mandado Ricky, o marido de Justine, procurá-la. Mas Ricky estava meio bêbado e, se tivesse lhe pedido que fizesse isso, ele teria sacudido os ombros e se servido de mais uma dose de uísque. E que tal Jeremy, seu irmão por afinidade? Ele poderia ir atrás de Justine. Mas Jeremy parecia grudado ao leito do padrasto, e Cynthia, sua mulher, nunca fora lá muito apegada aos parentes por casamento.

Havia também os criados. Por ser Laura uma menina de saúde delicada, os criados vigiavam-na como gaviões, para ter certeza de que ela não faria excessos. Quanto a Laura, não se cuidava muito. E naquele momento Justine precisava dela, e pela primeira vez na vida Laura achou que teria chance de cuidar da própria família, e não permitir que apenas tomassem conta dela.

Surgiu a primeira dor, que a atingiu como um punhal, entre os seios. Laura ajoelhou-se sobre a folhagem, em agonia. Seria um enfarte? Ela se perguntou. Não podia ser seu fim, assim tão repentino. Enquanto o pai estava morrendo também.

A floresta ficou negra de súbito. Bem acima das árvores Laura podia divisar as estrelas cintilando; e podia sentir o aroma dos pinheiros dançando em suas narinas quando as agulhas caíam no solo. Não ouvia mais os gemidos de Justine. Não ouvia nada além dos batimentos de seu próprio coração contra o peito, enquanto lutava desesperadamente para respirar.

Percebeu então que seu coração parava aos poucos.

 Um silêncio completo reinou na floresta. Não havia mais ruídos, batimentos cardíacos, nada de respiração ofegante. Nada, nada. Apenas uma luz brilhante acima de sua cabeça, o esboço de uma porta, e a silhueta de um homem. Quis tocá-lo, mas não conseguia se mover.

Tudo o que pôde fazer foi fechar os olhos com um suspiro suave.

Ele olhou para Laura durante segundos, sem se mexer. Ela estava deitada, os cabelos castanhos em volta do rosto pálido. Os olhos permaneciam fechados e Ele desejou abri-los de novo. Lembrava-se da cor, um lindo e quente castanho que o seduzira quando a menina tinha apenas cinco anos de idade. Ele acocorou-se perto de Laura, tomando cuidado para não tocá-la. Vira-a dez anos atrás, quando ela estava apenas com dezessete anos, e lutava contra as restrições que sua saúde exigia. Fora aquele seu último ato de coragem que quase lhe custara a vida. Laura fugira de casa.

A família a protegia exageradamente e concluíra que ela era frágil demais para ir a uma escola, decidindo então que estudasse em casa. Laura revoltara-se contra o fato e fugira no meio da noite, levando consigo apenas uma mochila que por certo adicionava esforço extra ao seu coração já enfraquecido. Ela pedira carona na estrada, entrando no primeiro carro que parará. E assim fora até a pequena cidade de Austinburg, Nevada, sem dinheiro no bolso e sem perspectivas para o futuro.

O homem que lhe dera carona era um indivíduo perigoso, Billy Joe Nelson. Já matara cinco mulheres jovens. Laura seria a sexta e ninguém encontraria seu corpo.

Mas foi Billy Joe quem morrera, sem que Laura soubesse como estivera perto da morte. Ele se encontrava lá a observando. E apossara-se de Billy Joe antes que o assassino pusesse as mãos nela.

Na verdade, Ele estava lá para levar Laura deste mundo. Já a deixara escapar algumas vezes… Primeiro, quando a menina tinha cinco anos e não podia respirar. Porém a garota fitara-o, sem o menor medo, e isso o fizera hesitar.

Depois, quando ela estava com doze anos e caíra do cavalo. Fora-lhe proibido cavalgar por causa de sua saúde debilitada. Aliás, os médicos duvidavam que ela passasse dos dez anos de idade. Mas, se Ele não tivesse ficado impressionado com os olhos da menina a cada vez que surgia para levá-la, Laura não teria vivido tanto.

O animal era grande demais e atirou-a ao chão. Ela teve uma crise cardíaca e ficou deitada como estava agora, pálida, morrendo.

Ele tomara-lhe a mão e Laura abrira os olhos. Fitara-o com o mesmo olhar de quando tinha cinco anos. Olhar calmo, sem medo.

Tempo não significava nada para Ele. Afinal, não havia necessidade de levá-la naquele instante. Se a tirasse deste mundo, nunca mais a veria. E, por uma razão incompreensível, Ele não queria que isso acontecesse.

Mas… Não pensou em tirar-lhe a vida naquele dia. O pai seria o próximo. O velho já escapara da morte em várias ocasiões, pois o destino pregava às vezes algumas peças. Mas agora Laura Fitzpatrick jazia morta na floresta, e iria ser levada deste mundo juntamente com o pai.

O desconhecido inclinou-se sobre Laura. O coração parou de bater, o tempo parou. A folhagem das árvores estava imóvel, até a brisa sumira naquele fim de tarde. Ele fitou-a e revoltou-se.

Não, dessa vez ainda não. Não agora. Ergueu o rosto para o céu aguardando pela resposta que procurava. E ela veio, silenciosa. Dois dias! Sim, dois dias!

Fechou então os olhos apelando por todo o seu poder, fazendo-o crescer. Quando abriu-os de novo as folhas balançavam nas árvores, uma coruja piava.

E Laura Fitzpatrick abria os olhos.

Ela o conhecia. Tinha a impressão de que sempre o conhecera, mas não sabia bem de onde. Durante minutos encarou-o, desorientada, confusa, tentando enxergar por trás dos óculos escuros que Ele usava, e lembrar-se de onde o vira.

— Você está bem? — perguntou Ele.

Aquela voz não esclareceu nada a Laura. Voz firme, sensual, com um sotaque francês… Seria mesmo francês? Tinha um rosto oval, bronzeado, cabelos escuros e longos.

Laura fez esforço para sentar-se. Ele não a ajudou, nem mesmo a tocou. Apenas agachou-se, fitando-a.

— Estou bem — disse ela. — Acho que desmaiei.

— Você não devia ter vindo até aqui sozinha.

— Procurava por minha irmã.

— Ela já voltou para casa.

—Quem é você? — indagou Laura, agora corando pelo modo rude com que fizera a pergunta. — Eu quis dizer…

— Alex — respondeu Ele. — Alex Mòntemorte. Lamento ter invadido sua propriedade. Estava passeando quando ouvi alguém gritando por socorro.

— Meu pai é o proprietário de toda esta montanha.

— Montanha não muito alta, não acha? — Alex sorriu com sarcasmo. — Estou acostumado com os Alpes.

— Não conheço os Alpes — Laura comentou.

— Eu sei. Mas vocês têm aqui nos Estados Unidos as Montanhas Rochosas. Elas são espetaculares ao seu modo e esta é um pequeno exemplar. Você sabe esquiar, Laura?

A simples pergunta não a perturbou. Ela aprendera a conviver com sua doença, com as restrições impostas pela família.

— Não — respondeu ela. — Você sabe?

— Claro. Por isso estou aqui.

— Mas é muito cedo para esquiar.

— É. Vou aguardar a chegada da neve. Sou muito paciente.

Laura acreditou nele. Alex parecia muitíssimo calmo, disposto a esperar pelo tempo que fosse necessário. Mas achava muito estranho ela conversar com um desconhecido, sentada na floresta ao pôr-do-sol, tendo toda sua dor no peito desaparecido por completo.

— Você talvez possa encontrar trabalho na cidade — disse ela, tentando falar normalmente enquanto se levantava. Alex não a tocou, não lhe estendeu a mão. Mas, apesar da fraqueza das pernas, ela agradeceu a Deus por conseguir se pôr de pé sozinha. Não estava preparada para que um desconhecido a tocasse. — É o que a maioria dos esquiadores que vêm aqui fazem enquanto esperam pela primeira neve.

— Não posso me considerar propriamente um esquiador. — Alex levantou-se pacientemente e encarou-a.

Era bem mais alto que ela. Apesar de ser um belo homem, tinha um aspecto sombrio, como uma criatura do mundo das trevas.

Uma coruja piou na noite escura e um raio de luz cortou o espaço.

— Vamos ter um temporal — Laura disse, com certa surpresa.

— É possível — murmurou Alex. — Deixe-me acompanhá-la até sua casa, miss…

Laura tinha o pressentimento de que Alex sabia seu nome, mas, mesmo assim, falou:

— Laura. Porém não quero que se dê ao trabalho de me acompanhar. Posso encontrar o caminho de volta e assim você chegará em sua casa antes da tempestade.

— Tenho todo o tempo do mundo — observou Alex. — Venha.

Ele estendeu-lhe a mão, mas sem fazer esforço algum para tocá-la, deixando que Laura tomasse a iniciativa. Houve uma espera embaraçosa, como se Alex tivesse curiosidade em saber o que aconteceria.

Laura olhou para a mão estendida, mão de dedos alongados, elegante, bem formada. Tudo o que precisava fazer era segurá-la, e assim a situação ficaria bem mais simples.

— Na verdade — observou ela, tomando-lhe a mão —, talvez seja melhor mesmo que você venha comigo. Este lugar está cheio de guardas armados e de cães amestrados. Papai… Papai… — Ela gaguejou, mas logo sua voz voltou a ficar firme. — Papai sempre se preocupou com nossa segurança.

— Por quê? — Tratava-se de pergunta normal, porém Laura viu-se na obrigação de dizer quem era seu pai.

— Papai é William Fitzpatrick.

— E…?

— Esse nome não significa nada para você? Oh, esqueci-me de que não é daqui.

— Não sou.

— Meu pai é um homem poderoso. E, quando uma pessoa tem dinheiro e influência, possui também muitos inimigos. No decorrer dos anos houve várias ameaças à nossa família, várias tentativas de extorsão. Uma vez até tentaram raptar minha irmã mais velha, Justine.

— E conseguiram?

— Não. Porém ela ficou bastante traumatizada depois do choque. Por isso todos nós cuidamos de Justine.

Laura se perguntava qual o motivo de contar àquele estranho vestido de negro, com óculos escuros, detalhes íntimos de sua vida. Contudo, achava tudo lógico, natural.

— Na sua família um cuida sempre do outro. Concorda? — Alex observou, com voz neutra.

— Concordo. Um pouco demais, às vezes. — Laura não conseguiu disfarçar sua irritação. — Meu irmão por afinidade, Jeremy, é o pior de todos, sempre superprotetor. Mas, de qualquer maneira, você ficará mais seguro caminhando comigo. Não posso entender como chegou até aqui sem deparar com os seguranças. Porém duvido que sua boa sorte continue. Os cães são verdadeiramente ferozes.

— Sou muito bom com animais — Alex observou.

— Não com esses. Foram treinados para matar.

— Não se preocupe, eles não me atacarão.

Essa calma arrogante de Alex deveria tê-la incomodado, mas, em vez disso, achou-a interessante. Ela vira o que os cachorros fizeram com um coelho que invadira as terras de seu pai, e tinha certeza de que fariam o mesmo com qualquer ser humano. Mas, não sabia por que, acreditava que não feririam aquele homem tão estranho.

Clarões riscavam o céu, iluminando a escuridão. A tempestade se aproximava.

— Estou fora de casa há muito tempo já. Meu pai está morrendo. Provavelmente já morreu a estas horas.

Laura teve orgulho da calma de sua voz ao falar sobre a morte. Enfim, vivera com a idéia de morte durante anos, e recusava permitir que o fato inevitável a destruísse.

Olhando ao redor, Alex disse:

— Ninguém morrerá esta noite aqui.

— Acredito em você, mas prefiro voltar para casa logo. Vai comigo?

— Vou. Vou com você.

A mansão dos Fitzpatrick, localizada no topo da colina Taylor, era bastante fortificada, rústica e ao mesmo tempo confortável e com a elegância que só o dinheiro poderia dar. E muito dinheiro. Laura crescera com essa convicção, como crescera com a convicção de que sua saúde era frágil.

O conjunto residencial de seu pai constava da casa propriamente dita, uma enorme construção com meia dúzia de terraços e alas, um maravilhoso conglomerado cheio de charme. Havia outra casa espaçosa, para hóspedes, uma para os empregados, mais uma para os seguranças, estrebarias, e uma garagem que comportava cinco carros. Tudo feito com a mesma madeira dourada dos pinheiros, que combinava lindamente com o verde da vegetação.

Laura não se dera conta de como a noite estava fria até entrar em casa, com Alex ao seu lado. Um enorme fogo crepitava na lareira, lançando ondas de calor na sala onde sua família se reunia.

— Ele já nos deixou? — Laura perguntou.

Justine endireitou-se na poltrona, um copo de uísque na mão trêmula, uma expressão de desafio na face banhada de lágrimas, e perguntou:

— Onde esteve até agora?

Alex se encontrava logo atrás. Laura sentia o calor do corpo dele, embora não a tocasse. Mas a presença daquele desconhecido lhe dava muita segurança.

— Estava procurando por você, Justine — ela respondeu. — Papai morreu?

— Que pergunta mórbida! — Ricky protestou. — Mas, por incrível que possa parecer, meu querido sogro ainda não morreu. Achamos que ele estava pronto para se entregar ao Além, porém com suas duas filhas ausentes, resolveu esperar um pouco mais. — Ricky levantou-se e, ignorando a presença da esposa, estendeu o dedo a Laura, dizendo:

— Embora adivinhe o que andou fazendo, acho interessante perguntar o que aprontou dessa vez a “santa” Laura.

— Por favor, Ricky… — Justine suplicou.

— Ouçam, amigos, vamos parar de discutir? — disse Jeremy do lugar onde se achava, perto da lareira. — Papai não está morto ainda, mas não viverá muito mais, e não queremos que suas últimas lembranças sejam nossas discussões.

— Laura não está discutindo — murmurou Cynthia. A elegante esposa de Jeremy sentava-se na poltrona mais confortável da sala. Ela notou logo o vulto atrás de Laura, e sua expressão mudou do tédio para o súbito interesse. — Quem é esse seu amigo? — perguntou.

— Alex Mòntemorte — respondeu Laura cortesmente. E continuou com as apresentações: — Esta é minha família, Alex. Meu irmão por afinidade, Jeremy, e a esposa dele, Cynthia. Esta é minha irmã mais velha, Justine, e o marido dela, Ricky.

— Mòntemorte — repetiu Ricky, fazendo uma careta. — Montanha da Morte? Que nome desgraçado, meu rapaz. O que você faz para viver? Como consegue um trabalho com esse nome?

— Dedico-me ao esporte do esqui. — A resposta foi fria, mas com um sotaque interessante.

— Um esqui arriscado, penso — disse Jeremy, tentando fazer com que a conversa voltasse ao normal. — E o tipo de esqui sobre penhascos, quando o esquiador reza para não morrer?

— A maioria das pessoas que gosta de esquiar sobre penhascos está preparada para morrer — respondeu Alex, entrando na sala e fechando a porta. Laura teve a impressão de que ele queria tocá-la, pegar-lhe o braço. Mas não o fez.

— Que assunto fúnebre — comentou Ricky. — Já temos muita morte por aqui. Deixe-me preparar um drinque para você, Al.

— Alex — o recém-chegado corrigiu-o. — Conhaque, por favor.

— Pois não. Conhaque — Ricky disse, colocando o próprio copo, vazio, na bandeja do bar. — Soda limonada para você, Laura?

— Ela também vai tomar conhaque — declarou Alex.

Todos o fitaram num misto de choque e curiosidade.

— Laura não bebe — protestou Jeremy. — Não é bom para sua saúde.

— Não vai lhe fazer mal esta noite.

— Pode matá-la — gritou Justine.

— Não esta noite.

Laura entrou na discussão, sentindo-se pouco confortável com o bate-boca. Sorriu e disse:

— Alex determinou que ninguém morrerá esta noite, incluindo papai. Eu, de minha parte, não posso imaginar que o destino ouse não concordar com ele. Por isso vou arriscar tomando um pouco de conhaque.

— Não é aconselhável, minha cara — murmurou Jeremy, agarrando seu copo de uísque.

Laura teve uma sensação agradável enquanto bebericava o conhaque. Álcool era um dos muitos prazeres da vida que sempre lhe fora negado. E achava que jamais perdoaria a sua família por tratá-la com tanta severidade.

Havia sem dúvida algo de reconfortante no fato de sentar-se num macio sofá com um quase desconhecido ao seu lado. Ela observava-o enquanto ele segurava o copo de conhaque com suas mãos de dedos muito longos e elegantes.

— Diga-me uma coisa, Alex — Jeremy pediu, procurando ser afável —, como chegou até aqui? Isto é uma propriedade particular e fazemos o possível para conservá-la como tal.

— Alex é um velho amigo meu — mentiu Laura, sem saber de onde vieram aquelas palavras. Instinto?

— Em que lugar se conheceram? — insistiu Jeremy. — Laura não saiu desta montanha desde que se tornou adolescente.

Alex fitou-a por detrás dos óculos muito escuros que davam um aspecto sombrio ao seu lindo rosto.

— Eu a conheço há anos — ele confirmou.

Laura pactuou com a mentira. Era mentira, claro, mas com jeito de verdade. Ela continuou bebendo o conhaque, muito feliz.

— Estranho, Laura nunca ter mencionado isso — disse Jeremy, com evidente suspeita. — Perdoe-me se pareço rude, mas por que você usa óculos de sol? É noite e a casa não está iluminada com exagero.

— Meus olhos são sensíveis — respondeu Alex. — Mas sinto muito se o incomodo.

— Não preste atenção em meu marido, Alex — interveio Cynthia com voz charmosa. — Ele tem maneiras de estivador e é muito possessivo no referente à irmã caçula. Você vai ficar aqui conosco esta noite, não vai?

Por instantes o mundo pareceu parar para Laura. Ela continuava sentada no sofá, banhada pela luz da lareira, com a família rodeando-a, porém sentindo-se distante, separada de todos, apenas observando-os de longe, de outro plano, de outra dimensão. Esperava pela resposta de Alex.

Isso importava, e muito. Ela não tinha certeza por que, mas queria que ele ficasse. Era uma questão de vida ou morte, pensou, por estranho que pudesse parecer.

Por favor, fique, ela suplicou mentalmente.

Passaram-se segundos, as vozes voltaram, e o pobre coração de Laura começou a pulsar com força.

— Ficarei — disse Alex.

Laura teve a sensação, de súbito, de que sua vida mudara, e sem retorno. Porém não sabia se isso a assustava ou a alegrava. Talvez um pouco de cada.

Olhou para o homem ali sentado. Ele era diferente de todos os outros que conhecia. No entanto, parecia-lhe tão esquisitamente familiar… Uma parte dela mesma, assim poderia defini-lo.

Porém as circunstâncias não mais importavam agora. A sorte fora lançada. Alex ficaria, sua vida mudaria, e para sempre.

 

Ele tinha medo de tocá-la; ele, que não tinha medo de nada. Sentado no macio sofá, com Laura ao lado, podia sentir o perfume dela, juntamente com o aroma do conhaque que exalava de sua boca. Teve vontade de provar o conhaque diretamente dos lábios de Laura. Queria tanto beijá-la!

Mas se controlou. Contudo sabia, melhor que ninguém, que pessoa alguma morria de amor, de saudades, de solidão. As causas da morte eram bem outras.

Um raio forte como que sacudiu as paredes da casa. Todos pularam. Todos, menos Alex.

A presença dele tornava o ambiente pouco acolhedor. Alex pensou em ir embora. Mas, se fosse, levaria Laura consigo. E o velho Fitzpatrick também. Aí, o resto dos Fitzpatrick ficaria livre deles.

— Você leu os noticiários de hoje nos jornais? Há uma notícia muito interessante. — Jeremy comentou, tentando injetar uma nota de normalidade naquela reunião. Jeremy era um homem simpático, de meia idade, que provavelmente ainda viveria muito. Mas não havia nada de especial nele, e Alex estava apenas interessado na irmã. — Um rapaz pulou do último andar do Empire State Building — Jeremy acrescentou.

— Por que acha isso interessante? — indagou Cynthia, naquele mesmo tom de voz cativante. — Há suicídios desde que o mundo é mundo.

— Mas o interessante não é isso. O rapaz que pulou não morreu. Caiu de grande altura, e só Deus sabe por que não morreu. — Jeremy tomou outro gole de uísque.

— Não venha me dizer que o homem sacudiu a poeira e saiu andando — disse Ricky, agora beligerante.

— Não, de forma alguma — declarou Jeremy. — Ele quebrou todos os ossos do corpo, e os órgãos internos estão danificados. Mas ele não morreu.

Um silêncio absoluto reinou na sala. Enfim, Cynthia opinou:

— Você escolheu o assunto mais mórbido do mundo para nossa conversa, Jeremy. Podemos falar sobre outra coisa? Não basta seu pai estar na cama, morrendo? Por que não discutimos sobre o tempo?

— O tempo também está muito estranho. Há tempestades por toda a parte. Ouvi dizer que três pessoas foram atingidas por uma faísca elétrica — comentou Jeremy.

— E viraram torrada? —perguntou Ricky, lançando mão de brincadeira de muito mau gosto, de humor negro.

— Não, não viraram torrada. Não morreram.

— Querem parar com essas histórias tétricas? — pediu Laura. — Não quero ouvir nada mais disso.

— Não precisa se preocupar tanto — disse Jeremy. — Mas de acordo com a Sra. Hawkins, a eletricidade será cortada. Vamos ter de recorrer aos geradores até que tudo se regularize. Os telefones, a televisão, até as transmissões de rádio ficarão fora do ar. Ouvi essa notícia há pouco e será a última, até que tudo volte ao normal.

— Mas isso é ridículo. Podemos receber transmissões radiofônicas do México e do Canadá aqui nesta montanha — protestou Cynthia. — Não me diga que nenhuma dessas transmissões estará chegando até nós!

— Pois bem, não direi — concordou Jeremy. — Mas é verdade. O que me pergunto é o que poderia ter causado isso tudo.

— Tempestades — aventou Alex. — Temporais causam muitos problemas na Europa. E imagino que, quando a tormenta passar, tudo voltará ao normal.

Alex divertia-se ao constatar como as pessoas queriam encontrar explicações convenientes ao inexplicável. Os Fitzpatrick, com toda sua fortuna, não eram diferentes dos demais. Excetuando-se, claro, a mulher sentada ao seu lado.

— Você talvez esteja certo — resmungou Jeremy. — Mas, nesse meio tempo, seria interessante saber o que você e Laura fizeram. Ficamos preocupados quando Justine voltou, e Laura não. Receamos que ela estivesse tendo problemas na floresta.

— Que tipo de problema eu poderia ter tido? — indagou Laura com voz irritada.

A vida dela em família havia sempre sido uma batalha, mas Alex notou que Laura ainda estava disposta a lutar.

— Encontrou alguém inesperadamente. Concorda? — observou Jeremy.

— Concordo. E foi bom ter encontrado — explicou ela.

De súbito, todos prestaram atenção à conversa. Cynthia sentou-se mais perto, ao lado de Alex. Usava um vestido preto de seda, bem decotado, e seu perfume tinha um quê de sensual.

— Você ajudou minha querida cunhadinha? — indagou.

Alex fitou-a atentamente. Seria muito fácil iniciar um romance com ela. Mas, estranho, não sentia atração alguma. Poderia talvez usá-la, mas não teria prazer. Disso ele tinha certeza.

Sorrindo, respondeu a Cynthia:

— Laura caiu na floresta. Tropeçou numa raiz e perdeu o fôlego. Estava mais assustada do que ferida.

— Laura em geral não se assusta. Todos nós é que nos assustamos por causa dela — disse Justine, entrando na conversa.

— Não há razão para vocês se preocuparem tanto comigo — protestou Laura firmemente. — Alex está certo. Eu tropecei, não conseguia respirar, e entrei em pânico. Felizmente ele chegou.

— “Felizmente” é a palavra certa — comentou Jeremy.

— Somos gratos a você, Alex. Estamos prestes a perder nosso pai, e nossa família não poderia suportar a dor se qualquer coisa acontecesse com Laura ao mesmo tempo. Ela é o bebê da casa.

Alex olhou para Laura e notou o rubor de embaraço em sua face. E observou também a reação de cada um. Jeremy, cheio de pompa; Justine, com seus nervos frágeis e olhos arregalados; Ricky, bêbado; e a reação da atraente, da voraz Cynthia. Nenhuma daquelas pessoas tinha a força de caráter e a tenacidade de Laura. Ela era, sem a menor dúvida, a adulta da família, apesar de seus tenros anos.

Alex esboçou um sorriso, desejando ardentemente tocar-lhe a mão que pousava no sofá bem perto da dele. Mas não ousou. Sabia muito bem o que poderia resultar daquele contato. Laura deveria tocá-lo antes, mas Laura não era mulher para essas iniciativas.

Outro trovão sacudiu a casa. As luzes quase se apagaram, mas logo brilharam novamente. Uma empregada idosa, a governanta, apareceu na porta.

— Mandei as meninas para casa, Srta. Laura — disse. — Se não saíssem agora não poderiam descer a montanha com este tempo.

— Tudo bem, Sra. Hawkins. Não quer ir embora também? Somos capazes de atender às nossas necessidades… — ia declarando Laura muito amavelmente quando foi interrompida por Cynthia.

— Fale por você, Laura. Justine está nervosa demais para fazer qualquer coisa, e eu não sei cozinhar.

— Eu posso cozinhar — informou Laura.

— Não nossa frágil Laura — comentou Cynthia com voz caçoísta, propositadamente seca.

— Deixe que minha mulher trabalhe um pouco — interveio Ricky enrolando a língua, tão “alto” já estava. — Talvez ela seja boa em alguma coisa. É péssima na cama, terrível dona de casa, deplorável cozinheira. Nem ao menos teve condições de engravidar!

— Fique quieto, Ricky — ordenou Laura.

— Se Justine não cozinha bem, até que considero isso um elogio — acrescentou Cynthia.

— Chega de discussão! — a Sra. Hawkins exclamou. — Não vou a lugar nenhum esta noite. Não com o Sr. Fitzpatrick em estado tão grave. Não sei se a enfermeira do hospital terá condições de chegar aqui hoje, porém Maria e eu nos revezaremos junto ao leito dele.

— E eu entro nesse revezamento — declarou Laura, levantando-se do sofá. — Serei a primeira. — Ela dirigiu-se a Alex: — Quer vir comigo? Se preferir não me acompanhar, tudo bem. Algumas pessoas não gostam de encarar a morte.

— Se acha que seu pai não se importa… — Alex esboçou um sorriso e levantou-se também.

— Ele está em coma há uma semana já — informou Cynthia. — Duvido que tome conhecimento da presença de alguém no quarto.

— Você se surpreenderia se soubesse como as pessoas têm noção de tudo, na hora da morte — explicou Alex.

Cynthia colocou sua mão de unhas vermelhas no braço dele. Para Alex, foi como um choque elétrico. Cynthia sentiu o mesmo e puxou a mão, abismada.

— Estática — sussurrou ela.

 

William Fitzpatrick estava deitado imóvel no leito, desde que fora trazido do hospital, quando seu estado piorara. Tinha aspecto contrastante naquele enorme quarto com móveis entalhados e rica tapeçaria. Mas William Fitzpatrick parecia ignorar tudo aquilo.

— Pode ir descansar um pouco agora, Maria — ordenou Laura.

A mulher uniformizada levantou a cabeça. Encarou os dois e depois disse, pondo o livro de lado:

—Você tem um aspecto horrível, Laura. Levou algum tombo?

— Não, estou bem, Maria.

— Acho que o médico precisa auscultar-lhe o coração. Não gosto de sua cor. O que andou fazendo? Correu por aí quando sabe muito bem que não pode fazer isso?

— Não me atormente, Maria! — exclamou Laura, mas de maneira amigável. — É suficiente que todos nesta casa se preocupem comigo, como se eu fosse morrer a qualquer minuto.

— E quem disse que não vai? — protestou Maria.

— Ouça, Maria, se uma pessoa pode se atirar do Empire State Building e sobreviver, acho que meu coração agüentará mais alguns dias. Vivi até agora, não vivi?

— Surpreendentemente. E não por causa do cuidado que tomou consigo.

— Eu sei, mas por causa do cuidado que toda minha família toma comigo — Laura falava mais com resignação do que com revolta.

Maria levantou-se, colocou a mão no ombro de Laura e disse:

— Sente-se com ele por algum tempo. — Em seguida, encarando Alex, uma nuvem pareceu obscurecer-lhe o olhar. — Já nos conhecemos, não? — perguntou.

— Acho que não. Meu nome é Alex.

— Desculpe. Esqueci-me de apresentá-lo. Alex é um velho amigo meu — Laura disse, sentando-se na poltrona que Maria desocupara. — Ele acabou de chegar na cidade.

— Eu poderia jurar que já o conhecia — insistiu Maria, examinando-o da cabeça aos pés. — Mas acho que não me esqueceria de sua voz. Sabe, trabalho em hospitais para idosos, e a maioria das pessoas que conheci já morreram.

Alex não falou nada. Limitou-se a sorrir. Maria o conhecia, sem dúvida, porém não podia saber como e nem por que. Sem problemas. Ele não contaria a ninguém quem era até a hora de partir. E pedira dois dias! Perguntava-se, agora, se conseguira mesmo os dois dias.

— Vá jantar, Maria — ordenou Laura, enquanto segurava a mão inerte do pai. — Nós ficaremos com ele.

A conversa cessou depois da saída de Maria. Ouvia-se apenas o ribombar distante dos trovões e o ruído monótono do balão de oxigênio. Alex observava o velho Fitzpatrick com silencioso interesse. Podia sentir a alma dele flutuando, esperando, frustrada pelo atraso do inevitável.

— Ele está assim há mais de uma semana — informou Laura num sussurro, ainda segurando a mão do pai. — Achei que papai ia morrer esta tarde. Por isso Justine fugiu; minha irmã não podia suportar o desenlace. Mas ele ainda está aqui conosco. Ao menos seu corpo, se não a alma.

Alex não falou nada. Ficou esperando. Nesse instante, os cansados olhos do velho se abriram, piscando por causa da forte luz. Emitiu alguns sons, que ambos entenderam.

— Laura — ele sussurrou.

— Oh, meu Deus! Você acordou, papai! Deixe-me contar aos outros!

Laura saiu do quarto correndo, antes que Alex pudesse impedi-la.

Então William Fitzpatrick, o patriarca, o milionário, o político famoso, encarou Alex.

— Tire esses óculos — balbuciou. Alex entendeu muito bem e tirou os óculos. — Venha aqui perto de mim.

Alex não hesitou. Foi para perto da cama e enfrentou o olhar do moribundo.

— Maldito seja você — murmurou William Fitzpatrick. — Veio me buscar, não?

— Sim, entre outras coisas — respondeu Alex, mas com voz tão baixa que a maioria dos mortais não poderia ouvi-lo. Somente os que ele desejasse.

Um pavor surgiu na face do velho homem, pela primeira vez desde que adoecera. Mas não de medo por ele. Outra faceta interessante do comportamento humano, refletiu Alex. O moribundo preocupava-se sempre mais pelos entes queridos que deixaria neste mundo do que por si próprio.

— Não — o velho sussurrou.

Porém, antes que ele pudesse falar mais, os filhos entraram no quarto, e Alex rapidamente tornou a pôr os óculos e afastou-se da cama.

Toda aquela agitação poderia matar o pobre homem. Contudo, ninguém morreria naquele dia. Nem mesmo uma pessoa corroída pelo câncer. Nem mesmo um suicida que pulasse de grande altura. Nem mesmo as três pessoas atingidas pelo raio, conforme fora noticiado nos jornais. Nem mesmo as trezentas pessoas que estavam no barco que naufragara no Camboja. E nem as vítimas das rebeliões da Irlanda do Norte. Todos tinham de esperar por ele. Todos!

Jeremy empurrara Laura para um lado, ficando ao lado do leito do padrasto.

— Pensamos que tivesse nos deixado para sempre, sir — ele sussurrou, mas Fitzpatrick ouviu.

— Apenas um pequeno atraso — o velho respondeu.

Laura foi para perto de Alex e murmurou:

— Vou lhe mostrar seu quarto. Por enquanto, eles não vão me deixar sozinha aqui.

Alex seguiu-a, mas não sem antes ouvir Fitzpatrick perguntar:

— De onde veio esse rapaz? O que faz na companhia de Laura?

Alex não esperou pela resposta, limitou-se a acompanhar Laura que disse, enquanto subiam as escadas:

— Sinto muito não poder colocá-lo na casa de hóspedes. Mas Jeremy e Cynthia estão aqui há duas semanas já, devido ao estado grave de meu pai. Justine e Ricky chegaram alguns dias depois. Mas há muitos quartos vazios nesta enorme casa. Garanto que vai se acomodar bem.

Quero ficar perto de você, ele pensou. Mas não disse nada. Sabia perfeitamente que não seria necessário.

No topo da escadaria Laura começou a seguir pelo corredor da esquerda, mas logo parou e tomou a direção oposta.

— Vou pôr você ao lado do meu quarto — disse. — Há um grande terraço com vista para as montanhas. É a paisagem mais linda do lugar. A menos que você prefira…

— Não, não, vou gostar da vista — Alex respondeu.

Laura estava ficando cada vez mais agitada, sem que ele soubesse a razão. Alex tomava muito cuidado para não assustá-la, para que ela não suspeitasse de nada. O velho Fitzpatrick o reconhecera. Claro, estivera ao lado dele muitas vezes já para não ser reconhecido.

E Maria o vira também em uma infinidade de ocasiões, embora não tivesse se dado conta disso. Passaram incontáveis noites ao lado de doentes. Mas o caso era que ela prestava mais atenção ao paciente do que a qualquer outro indivíduo presente no quarto.

Quanto à Laura, não desconfiava de nada. Nunca imaginaria quem era verdadeiramente ele. E, se por um acaso desconfiasse, não acreditaria em sua imaginação.

Ela abriu-lhe a porta do quarto. Ao lado havia outra porta, e Alex sabia que era a do quarto de Laura.

A mobília constava de uma cama, uma cômoda, e de um espelho antigo pendurado na parede. Portas-janelas envidraçadas davam para a floresta.

A imagem dos dois apareceu refletida no espelho. Frágil, pálida, lábios suaves, Laura tinha aspecto vulnerável e parecia uma menina. Ele, um vulto sombrio, alto, vestido de negro, com os óculos escuros, tinha aspecto fúnebre. Os cabelos longos estavam presos em sua nuca, os lábios eram finos. Sim, olhando-se no espelho, constatou que era exatamente como imaginara que fosse.

Laura acendeu as luzes, afofou os travesseiros. A cama alta, entalhada a mão, estava coberta com um acolchoado florido. Alex fitou-a, ali inclinada sobre a cama, e uma onda quente o invadiu; e tão forte que o fez estremecer.

Queria que Laura se deitasse na cama, queria beijar cada centímetro de seu corpo, queria descobrir o que a fazia tão diferente das outras mulheres, de todas as outras almas que encontrara no caminho.

O que possuía Laura que o despertava para o amor? Ele, o símbolo da Morte!

Se resolvesse aquele problema, reencontraria a paz. Desapareceria mais uma vez no nada, onde prevalecia a ordem, a calma e a força do destino.

Porém, nos dois próximos dias não haveria ordem nem destino. O mundo iria parar de girar. Nos dois próximos dias ninguém morreria. Nos dois próximos dias ele encontraria respostas a todas as perguntas que o atormentavam há anos.

E, passados os dois dias, levaria Laura Fitzpatrick. Levaria a inocência dela, a virgindade, o corpo…, e a alma.

Mas, no decorrer dos próximos dois dias, a amaria também. Sabia que poderia amá-la, sabia que Laura estava disposta a oferecer-lhe amor. E nada o faria recusar o precioso presente.

No fim, quando estivesse pronto para partir, levaria a vida de Laura também.

 

Alex a fazia nervosa. Laura detestava admitir o fato, mas era a pura verdade. Não podia negar que a presença dele a perturbava de maneira desagradável.

Não podia ver bem os olhos de Alex por trás daqueles óculos escuros, mas achou melhor assim. Nunca o tocara, nunca estivera bastante perto dele para sentir-lhe o calor do corpo. Contudo, estava sempre alerta, viva, consciente da presença de Alex em cada célula de seu próprio corpo. E essa convicção a deixava inquieta e insegura.

Forçou um sorriso. Imaginava coisas, perguntando-se quais seriam os sentimentos que os ligavam. Afinal, Alex era apenas um esquiador, um indivíduo qualquer que aparecera à sua frente em momento oportuno, mas um indivíduo agradável, charmoso e atraente. Um homem de corpo elegante e forte, de rosto bem feito, e boca ao mesmo tempo sensual e cruel.

Ela sorriu, e foi fechar as cortinas.

— O que a diverte? — ele perguntou.

— Estou ficando extravagante em minha idade avançada — Ela confessou, esperando afastar as estranhas emoções que a assolavam. — Nunca fui assim.

— A que tipo de fantasias está se entregando? — indagou Alex, cuidando para que sua voz soasse natural.

Vinda de outro homem, aquela pergunta pareceria uma ousadia, quase um convite ao sexo. Mas, tratando-se de Alex, não. Ele devia estar apenas curioso.

Laura fitou-o, e de súbito desejou tocá-lo. Mas uma coisa lhe dizia que seria perigoso qualquer contato. Porém, perigoso ou não, ela respondeu:

— Fantasias sobre você. É um homem misterioso, sabe, não?

Alex ficou perturbado. Reação estranha num homem tão frio.

— Você gosta de mim, Laura?

Era uma pergunta razoável. Ela atravessou o quarto, consciente do enorme leito atrás dela, consciente do enorme homem diante de si.

— Não de modo especial — respondeu, erguendo a mão. Instinto? Talvez. Mas Alex não se moveu. Ele apenas olhou para a mão estendida, tal qual serpente pronta para o bote.

— Quer que eu vá providenciar seu jantar?

— Não!

— Não está com fome?

— Não, não quero que tenha trabalho comigo.

— Não se preocupe. Gosto de fazer coisas para outras pessoas. Não tenho essa chance com muita freqüência.

— Não vai tocar em mim? — Alex ousou enfim perguntar.

Laura baixou a mão, embaraçada.

— Não planejava tocá-lo. Acho que vou descer para ver se meu pai está bem. Talvez esse seja seu último momento lúcido antes de…

— Ele não morrerá esta noite.

— É uma promessa?

— É.

— Acredito em você.

E, antes que Alex soubesse o que Laura enfim estava planejando, ela abraçou-o, um abraço desprovido de sexo. Depois saiu do quarto sem olhar para trás.

 

O abraço de Laura repercutiu em cada célula do corpo de Alex. Ele ficou assombrado, mais do que supusera ser possível. Laura sorrira, dera um passo atrás, o rosto com expressão tranqüila. Um segundo mais tarde, saía do quarto.

Ela deixara a porta aberta, e Alex ouviu-lhe os passos descendo as escadas. Foi à janela e abriu a cortina para apreciar a violência da noite. Raios cortavam o céu, iluminando as montanhas. Trovões ribombavam no ar. Mas não passaria disso, ele sabia. Como sabia que ninguém morreria. Tudo estaria parado nos próximos dois dias. O tempo continuaria ameaçador, o vento sopraria forte, mas nada de especial aconteceria. A estrada que conduzia à mansão dos Fitzpatrick permaneceria bloqueada pelas árvores tombadas, e ninguém arriscaria, com aquela ameaça de temporal, limpar o caminho. Ninguém nem ao menos saberia do acontecido, com toda a comunicação interrompida. Alex tinha dois dias à sua disposição, sem interferência de fora.

De súbito, ele ouviu o som da respiração dela, sentiu o perfume característico. Virou-se e deparou com Cynthia, já dentro do quarto. Tinha nos braços um acolchoado.

Cynthia iria morrer dali a quatro anos, num acidente de carro, em companhia do amante. Ambos embriagados. Porém, agora, esse futuro pareceu a Alex um tanto incerto, nebuloso. Nada se gravava em pedra; o curso da vida muitas vezes mudava, e o destino nunca era definitivo. Se a morte a levasse antes, seria sem dúvida um bem para o resto da humanidade. Alex observava-a, curioso.

— Você pode apanhar um resfriado — disse ela. — Nunca senti mãos tão frias em toda minha vida. Trouxe-lhe o acolchoado mais pesado que temos em casa e, mais tarde, vou providenciar alguns suéteres para você. O que usa para dormir?

— Como? — Alex falava com extrema cortesia, com certa frieza, pois sabia que isso a irritava.

Cynthia jogou o acolchoado sobre a cama e chegou bem perto dele, tão perto que Alex pôde sentir o hálito de uísque.

— Eu perguntei o que usa para dormir. Parece do tipo de homem que gosta de pijama de seda. Ou talvez prefira dormir nu? — Ela pôs a mão no peito dele e acrescentou: — Você está tão frio! Jamais conheci homem gelado assim. Acho que preciso esquentá-lo.

Alex não se moveu. Cynthia estava tão perto que o odor da pele dela, o brilho do olhar, a vida que lhe corria pelas veias, tudo enfim era forte e estimulante. Pegue o que ela lhe oferece, Alex disse a si mesmo. Talvez seja suficiente.

Cynthia pressionou os seios contra o peito dele, os mamilos duros como pedras. Mas Alex não se perturbou. Tinha consciência de como ele era frio, apesar de qualquer incentivo.

No entanto, Cynthia estava determinada a perseverar, mesmo sem a cooperação do parceiro. Ela abraçou-o pela cintura e perguntou:

— Quer que eu o esquente, Alex? Acho que quer.

Apertou então seus lábios contra os dele e imediatamente Alex ficou excitado. Era isso que significava ser humano?, ele pensou. Mortal? A carne podia reagir mesmo quando o espírito permanecia indiferente? Mas…, até aonde a carne o levaria?

Ele se inclinou para roçar os lábios de Cynthia contra os seus e olhou para a porta. Cynthia não se dera ao trabalho de fechá-la ao entrar e, agora, tinham uma observadora. Laura estava lá, o rosto pálido, agora ainda mais pálido.

Cynthia afastou-se e sorriu.

— Alô, Laura — disse. — Quer tentar sua sorte também?

— Acho que você bebeu demais — sussurrou Laura calmamente.

— Geralmente bebo, querida. Ademais, que outra coisa posso fazer neste lugar horrível, exceto sentar-me e esperar que o velho morra? Não me olhe com essa cara! Não me julgue. Jeremy e eu tivemos um entendimento, e não cabe a você vir aqui e…

— Vá embora! — Alex falou pela primeira vez, com voz baixa e fria.

— Sim, vá embora, cara Laura, e feche a porta. Alex e eu…

— Não! Vá embora você. Laura fica.

As duas mulheres se encararam. Cynthia sorriu e disse:

— Bem, acho que entendi. Não quero interromper algo que talvez já tenha começado.

Ela foi até a porta lançando um olhar sexy para Alex que ficou totalmente imperturbável. Pôs a mão no ombro de Laura e preveniu-a:

— Tenha mais cuidado, menina. Ele é macho demais para alguém como você.

E ela se foi, balançando os quadris. Laura não sabia o que fazer. Estava perplexa, sem jeito, envergonhada.

— Não quis atrapalhar nada — murmurou. — Apenas…

— Feche a porta! — ordenou Alex.

Milhares de emoções tomaram conta dela quando pegou no trinco da porta.

— Naturalmente — disse. — Não quis incomodar você…

— Feche a porta — repetiu Alex, — mas fique do lado de dentro.

Ele se perguntava se Laura lhe obedeceria. Podia ver a revolta nos olhos dela.

— Não gosto que me dêem ordens — Laura protestou, mas com voz calma. — Muita gente tenta governar minha vida. Detesto isso. E não tenho certeza se gosto de você.

Alex não sorriu, mas teve vontade.

— Feche a porta — insistiu ele pela terceira vez. — E venha cá.

Laura foi, claro. Alex quase lhe pediu que trancasse a porta, mas não achou necessário. Ele próprio não se sentia pronto ainda. Embora seu corpo estivesse excitado em conseqüência da sexualidade de Cynthia, não tinha intenção de satisfazer a paixão física com Laura. Apenas a amaria quando estivesse pronto para ela. E era cedo demais.

Laura tinha nas mãos uma pilha de toalhas brancas e as colocou sobre a cama, ao lado do acolchoado que Cynthia levara ao quarto. Ela viu-o e comentou:

— Não está tão frio assim. Não entendo por que Cynthia pensou que você precisasse disso.

— Cynthia procurava uma desculpa para vir aqui.

— Bem — Laura sorriu. — Eu devia ter prevenido você contra Cynthia. Minha cunhada é um tanto…, entusiasmada demais. Ela e Jeremy estão em meio a um processo de divórcio, mas decidiram não falar nada a papai sobre o caso. Ele não o aprovaria e, afinal, morrerá muito breve. Jeremy e Cynthia acharam que não havia razão para tornar seus últimos dias ainda mais penosos.

— E você concorda com isso?

— Não! Odeio mentiras!

— E não gosta de sua cunhada?

— Tenho pena dela. É uma mulher muito infeliz. Cynthia e Jeremy nunca combinaram.

— Então, por que se casaram?

Laura sacudiu os ombros e respondeu:

— Pressões de família. Papai achou que fariam um bom par. Jeremy é filho da primeira esposa de meu pai. Não há, portanto, laços de sangue, e papai não gostava disso. Cynthia é prima nossa. Os Fitzpatrick põem a família acima de tudo.

— E você?

— Até certo ponto, suponho. E tenho sorte. Ninguém pode pretender planejar uma grande dinastia comigo. Ficarei sozinha. E, desde que me comporte bem, posso usar meu tempo como entender.

— Por que isso? — indagou ele.

— Porque vou morrer. Estou vivendo mais do que se esperava. Devia ter morrido aos cinco anos de idade, meu coração é péssimo, e tenho alergia a muitos remédios. Nunca se pôde pensar em transplante, mesmo que meu pai tenha dinheiro para me comprar centenas de corações. Isso por causa de rejeição, em conseqüência da alergia. Não se esperava que eu passasse de meu décimo segundo aniversário e cá estou.

— Cá está você — Alex repetiu.

— Fiquei apavorada na floresta; viu, não? Quando você me encontrou, eu estava desmaiada. Tensão demais, suponho. Preocupações. Perdi a consciência e achei que tinha morrido. Meu coração parecia ter parado. Fiquei em pânico.

— Entendo. Muitas pessoas têm medo de morrer — disse ele.

— Eu não sou como “muitas pessoas”. Vivo familiarizada com a morte há anos. Sei que chegará para mim, mais cedo ou mais tarde. Porém, quando me vi sozinha na floresta, entrei mesmo em pânico. — Laura de súbito sentiu vergonha de sua confissão, e acrescentou: — Não sei por que estou lhe contando tudo isto.

— Por quê? Jamais contaria a um forasteiro?

— Talvez. Contudo, sei o que Maria quis dizer ao pensar que o conhecia. Você também me lembra alguma pessoa, mas não sei quem.

— Vai se lembrar um dia, Laura.

— Penso que sim. — Ela fez uma pequena pausa e depois prosseguiu: — Ainda não posso entender a que se deve a súbita recuperação de meu pai. Ele esteve em coma durante semanas e agora fala, e com lógica. Trata-se de verdadeiro milagre.

— Mas esse milagre não vai durar — observou Alex.

— Não, acho que não. Mas ao mesmo tempo penso que, se uma pessoa pode pular do Empire State Building e não morrer, meu pai é perfeitamente capaz de tapear a morte durante mais alguns dias.

— Ninguém tapeia a morte, Laura. As pessoas apenas pensam que tapeiam.

Alex abriu a porta que dava para o terraço. O vento soprava forte, entrando no quarto. Ele adorava o vento, adorava o aroma de umidade da chuva impregnado no ar, adorava o cheiro da terra molhada. Desejou por segundos que Laura se fosse. Queria-a tanto que receava assustá-la com seu desejo. E não tencionava fazer isso, por nada no mundo. Tantas pessoas tinham medo dele! Tantas!

Ela dirigiu-se ao terraço e perguntou, enquanto o vento lhe desalinhava os cabelos:

— O que você pensa da morte? Como é a morte?

A pergunta foi um choque para Alex. Ele cruzou as mãos sobre o peito a fim de não tocá-la, e respondeu com firmeza:

— Não sei. Mas penso que uma nuvem de anjos vêm nos receber, com harpas nas mãos, e, entoando hinos.

— Mesmo? Eu não penso assim. Você acredita em inferno, Alex?

— Definitivamente, não!

— Nem eu. — Um esboço de sorriso pintou os lábios de Laura. — Contudo, não tenho muita certeza da existência do céu, também. E você?

— Tento não pensar em coisas desse tipo. A vida foi feita para se viver. O presente é o que interessa, não a obscuridade do após morte.

— Suponho que eu seja um pouco mórbida. Isso porque venho sendo perseguida pela morte durante toda minha vida.

— Deve ser bem desagradável — murmurou ele.

Laura foi para mais perto de Alex, e o vento fez com que seus cabelos roçassem o rosto dele. Cheiravam a chuva, a terra úmida e a flores, e Alex quis beijá-los. Não, não quis beijar os cabelos, quis beijá-la.

— Sim, é bem desagradável. Porém, às vezes, acho o pensamento da morte confortador. Minha família pensa que sou louca. Todos dizem que a morte não é um amigo.

— Que tal um amante? — ele perguntou em voz muito baixa, mas Laura escutou-o.

Ela surpreendeu-se, como se tivesse pensado no caso pela primeira vez.

— Laura? — Era Jeremy à porta do quarto, com ar de evidente desaprovação. — Queríamos saber por onde andava você.

— Aqui, falando de assuntos filosóficos, sobre a vida e a morte.

Laura sorriu, porém Alex enxergou uma sombra de culpa em seu rosto pálido. E ele teve vontade de acabar com a vida de Jeremy Fitzpatrick na primeira oportunidade que surgisse.

— Você viu Cynthia? — Jeremy perguntou, lançando um olhar de suspeita pelo quarto.

— Acho que ela voltou para a casa de hóspedes.

— Bom — disse Jeremy. — Ricky está muito resfriado, Justine não consegue parar de chorar, e você aqui em cima… você… — Não lhe vieram às palavras exatas.

— Sim — Laura respondeu com muita tranqüilidade. — Estou aqui em cima recepcionando nosso hóspede.

— Desça então — ordenou ele. — A Sra. Hawkins preparou um bufê de café e entradas para nós. Você precisa comer, Laura, pois nunca se alimenta bem. — Jeremy olhou para Alex e acrescentou, com muito pouca amabilidade: — Desçam num minuto!

— Jeremy! — Laura gritou.

— Desça! — ele insistiu.

Laura não se moveu, e Alex se perguntava por que motivo estaria ela de seu lado. E percebeu que sofria por causa da indelicadeza do irmão.

— Não se aborreça — pediu Alex. — Seu irmão apenas deseja obedecer ao regulamento da casa.

— Certo — confirmou Jeremy.

— Ignore-o — Laura sugeriu. — Eu sempre o ignoro.

Os dois homens esperaram até que ela se retirasse. Alex então encarou Jeremy, com um sorriso irônico nos lábios.

— Você não pode tirar esses malditos óculos? — berrou Jeremy. — Quero ver com quem estou falando.

Neste caso específico garanto que não haveria de querer, pensou Alex com sarcasmo.

— Já lhe disse antes, meus olhos são sensíveis demais — ele falou em voz alta, com forçada gentileza.

— Faça como quiser — declarou Jeremy. — Mas pretendo tornar algumas coisas bem claras sobre esta casa.

— Vá em frente e fale.

— Fique longe de Laura.

— E por que motivo? Posso saber?

— Nós todos cuidamos dela de maneira muito especial. Minha irmã não é…, não é como as outras mulheres.

— E por que não?

— Ela é doente. Está morrendo, para ir mais direto ao fato. Qualquer esforço pode matá-la.

— Laura já me falou sobre seu coração.

— Mentiroso! — Jeremy estava chocado. — Ela nunca fala disso com estranhos.

— Mas eu não sou um estranho.

— Não me interesso pelo que diabos você é. Fique longe dela. Há árvores tombadas por toda a parte, bloqueando a estrada. Os telefones não funcionam, e não há nada que possamos fazer agora. Mas até amanhã essa maldita tempestade terá passado, e quero que você saia daqui.

— Sairei assim que a tempestade amainar — respondeu Alex em tom conciliatório, sabendo que não fazia concessão alguma.

— Espero que eu tenha sido claro. Não toque em Laura. Entendeu?

— Entendi. Mas francamente acho que você deveria tomar mais cuidado com sua esposa do que com sua irmã solteira.

— Cynthia sabe em que terreno pisa. Laura, não. Laura é completamente inocente no que se refere aos homens. Compreende o que estou lhe dizendo? Completamente inocente.

Alex bocejou, e ficou satisfeito com o resultado. Disse então:

— Se está tentando me comunicar que ela é ainda virgem, apesar da idade, posso lhe garantir que entendi. Meu domínio da língua é bastante bom.

— E vai continuar sendo virgem.

— Por quê? Interessa-me saber. — A pergunta era simples, porém Jeremy fitou-o, atônito.

— Por que… por que…

— Não importa — Alex interrompeu-o gentilmente. — De qualquer maneira, nunca me interessei por mulheres inocentes, virgens.

— E Laura não se interessa por homens.

Mentira, Alex pensou.

— Naturalmente — ele murmurou com amabilidade.

E seguiu seu beligerante anfitrião até o hall, atravessando corredores escuros.

Jeremy entrou na sala de jantar, elegantemente vestido. Parecia ter engolido sua ira em parte, admitiu Laura. Em parte, apenas. Porém o homem que vinha atrás dele não tinha nem sombra de embaraço.

Oh, Laura imaginava muito bem o que Jeremy dissera a Alex. Que ela era uma coitadinha, uma virgem à beira da morte. Dissera que tocá-la seria o mesmo que matá-la. E ele, seu irmão, não desejava isso, em sã consciência.

Laura presenciara a mesma cena acontecendo várias vezes em sua vida. Tanto o pai quanto o irmão a preveniam constantemente contra os homens. E aos poucos ela foi se acostumando à idéia de fugir deles. E não se importava mais com isso, não.

Naquela noite, porém, tudo lhe parecia diferente, e não tinha muita certeza do motivo dessa mudança. Naquela noite tremia de raiva e de desespero, mas um tipo diverso de desespero, e não queria examinar de perto as razões, por medo do que poderia descobrir.

Contudo, acabara de confessar à Alex que odiava mentiras, e considerava a pior das mentiras mentir a si mesma. Ela aceitava o futuro, ou a falta de um futuro, estoicamente. Aceitava a superproteção de sua família, sabendo não haver escapatória. Mas a mentira, não!

Fitou o homem alto, moreno, sentado perto de Jeremy. Percebeu que ele observava-a por detrás dos óculos escuros. O que estaria vendo? Uma mulher pálida, triste, fadada a uma vida curta?

Não seria necessário que o pai ou o irmão o prevenissem contra ela, pois não haveria razão para Alex ter interesse em uma criatura doente, em especial com Cynthia tentando conquistá-lo com suas curvas voluptuosas. Alex quase beijara sua cunhada, e ela vira tudo da porta, pasma.

Ela não queria que Alex beijasse Cynthia, não queria que ele nem ao menos roçasse os lábios contra os de Cynthia.

Mas, ao mesmo tempo, desejava ver como a beijava, assim poderia imaginar como seria quando a beijasse. Se um dia a beijasse…

A um dado momento, ainda sentados à mesa, Alex lhe disse:

— Você está muito corada.

Jeremy encarou-o com ódio no olhar, porém Alex permaneceu imperturbável.

— Meu rosto está quente mesmo. Posso sentir — ela concordou. — Muita agitação, acho.

— Sabe que isso não é bom para você. — Jeremy entrava na conversa, com voz petulante. — Não devia estar fazendo tanto esforço em favor de nosso hóspede. Creio que seria melhor se fosse à casa de hóspedes e ficasse conosco. Venho tentando levá-la para lá há dias. Justine e Cynthia lhe farão companhia.

— Chega! — Laura protestou. Seu ódio agora era maior que o embaraço. — Está sendo grosseiro demais. Alex não irá se arrastando até meu quarto no meio da noite. Portanto, pare de agir como o irmão mais velho superprotetor. Ok?

Jeremy olhou para o rosto com expressão indefinida de Alex, e depois para o rosto de Laura, este cheio de ódio. Sorriu, mas seu sorriso falso não funcionou. E disse, à guisa de desculpa:

— Acho que estou sendo ridículo; concorda?

— Concordo — Laura respondeu com determinação.

— Perdoe a seu irmão mais velho. É que me preocupo demais com sua saúde. Eu devia saber que você já pode tomar conta de si.

— Sim, devia saber — respondeu ela.

Mas Alex não deu uma única palavra.

 

Jeremy sentava-se sozinho na biblioteca, olhando para as chamas da lareira enquanto bebia seu uísque. Iria matá-los, sim, e a todos.

Parecia-lhe tudo tão simples, tão lógico… Até William poderia ter orgulho dele. Teria orgulho do frágil filho adotivo que não tinha o sangue e nem a audácia dos Fitzpatrick. O velho William lhe dissera havia anos, com ar de piedade, que ele jamais conseguiria levar avante uma obra de monta. Era fraco, maneiroso demais, não tinha nada dos Fitzpatrick que fizeram sua fortuna e seu poder pisando nos cadáveres das pessoas que apunhalavam pelas costas.

Ah, como o velho o subestimara! E pensar que ele conseguiria, melhor que um Fitzpatrick, apunhalar um homem. E com uma diferença: seria mais sutil.

Trabalhava com arte. Com um torcer de braço, e apenas a quantidade necessária de pressão, poderia destruir um inimigo e sorrir enquanto fazia isso.

Estivera preparando seus planos cuidadosamente, sabendo que tinha pouco tempo para isso. Todos os Fitzpatrick precisavam morrer antes que o velho desse o último suspiro. Do contrário, seu esforço seria em vão. Mas acontecia que William era um homem bastante forte e, mesquinho demais para morrer sem luta; contudo, até ele não viveria para sempre. Durante os últimos dias Jeremy dera andamento a seu plano. Teria de ser bem simples. Um vazamento de monóxido de carbono de um aquecedor com defeito levaria sua esposa, sua irmã neurótica, e seu cunhado alcoólatra para o Além.

Ele não estaria lá, claro, mas passando a noite na Casa Grande ao lado do padrasto agonizante. Na sua dor, seria até dignificado. Oh, mas precisava trabalhar bem até o fim.

Quanto à Laura, era crédula, inocente e não tinha idéia do que o irmão adotivo seria capaz. Laura sempre fora poupada na vida por causa de sua saúde precária. Por isso ele não teria necessidade de matá-la junto com os outros. Afinal, Laura não viveria muito depois da morte do pai e não tinha herdeiros diretos. Todo o dinheiro iria, portanto, parar nas mãos de quem merecia, do mais forte deles todos, do homem que fazia o que era preciso e no momento exato. Jeremy Fitzpatrick.

A tempestade se transformara numa bênção. Cortara o acesso da mansão com o resto do mundo e permitiria a Jeremy agir com calma. Ele não gostava do recém-chegado. Odiava os horrendos óculos escuros e o sorriso sarcástico dos lábios dele. Odiava também o interesse que manifestava por Laura.

Mas a presença daquele homem não iria fazer muita diferença. E, pensando bem, embora a tempestade houvesse trazido Alex, conservara outras pessoas longe da casa. Os Fitzpatrick estavam confinados na montanha, com menos criados que os habituais e sem visitantes de forma alguma. Apenas a Sra. Hawkins e Maria estavam na casa, porém ambas ocupadas com o doente para notar qualquer coisa de anormal.

A inesperada melhora de William lhe dava mais tempo, apesar de não ter necessidade desse tempo extra. Olhou para o rosto do padrasto e sorriu, um sorriso filial. Mas o que desejava mesmo era apertar os dedos em torno do pescoço enrugado do velho e tirar-lhe a vida num segundo.

Sim, o tempo de vida da família Fitzpatrick terminava. Ricky e Justine dormiam, Ricky bêbado e Justine dopada por causa do excesso de tranqüilizantes. Cynthia dormia também, com a linda face corada e satisfeita Jeremy dera-lhe o que ela necessitava, uma vez que o forasteiro se negara sucumbir nos braços dela. Ao atingir o clímax, Cynthia derramara sobre ele todo seu ódio e frustração, apesar do prazer que estava tendo. Jamais imaginara que o marido fosse tão fogoso, capaz de tanto!

Que pena Cynthia não haver descoberto antes quão forte ele realmente era.

O monóxido de carbono, àquelas horas, já devia estar enchendo a acolhedora casa de hóspedes. E Jeremy sentia-se orgulhoso pelo modo como ajustara o sistema de aquecimento.

Laura fora à cama, porém ele sabia perfeitamente bem que preferiria não ter ido. Ela estava apaixonada pelo recém-chegado. Jeremy até pensou em encorajá-la a se entregar ao estranho, pois isso acrescentaria uma nota deliciosa ao escândalo. Metade da dinastia Fitzpatrick morria num acidente inesperado enquanto a filha mais moça passava uma noite de paixão nos braços de um quase desconhecido. E o generoso enteado estava junto ao leito do padrasto, ignorando por completo a tragédia que o circundava.

Jeremy sorriu ao pensar nisso, desejando arriscar, desejando convencer a irmã a se entregar a Alex, alegando ter se enganado a respeito do rapaz. Mas não ousou. Os médicos já haviam prevenido que qualquer esforço no coração de Laura a mataria, incluindo passeios a cavalo, danças, e fazer amor. E ele não podia permitir que Laura morresse na mesma noite dos outros. Seria coincidência demais.

Naturalmente que isso despertaria suspeitas sobre o estranho visitante. Mas Jeremy não quis arriscar.

Ele planejara esconder qualquer vestígio. E se um dia, passados anos, alguma pessoa tentasse descobrir algo mais, não conseguiria. Até os corpos das empregadas desapareceriam, enterrados em covas rasas na encosta da montanha.

Sim, ele iria avante com seus planos originais. O velho William talvez sobrevivesse aos filhos. Mas não causaria problemas, apenas sofreria a dor da perda de entes queridos.

Jeremy serviu-se de outro drinque. Bebeu apenas o que achava prudente. Aliás, nunca se excedia no álcool. Controlava seu colesterol, não fumava, e só matava após planejar cada detalhe. Erros apenas aconteciam no paroxismo da paixão, e ele nunca permitiu apaixonar-se.

Foi ao quarto do padrasto. Maria cochilava num canto, tendo recusado abandonar o leito do doente, apesar da melhora. Tudo bem, Jeremy pensou. Ela lhe forneceria um perfeito álibi. Na cozinha, a Sra. Hawkins também dormia. E, em algum lugar no andar superior, Laura tinha sonhos eróticos com o hóspede.

Alex Mòntemorte era o único problema, um risco que Jeremy achou até emocionante. Contudo, preferia não se emocionar. O melhor seria permanecer sentado calmamente no quarto do padrasto enquanto a maior parte de sua família morria. E ele usufruiria o prazer da matança segurando firme às rédeas da tragédia.

Talvez Alex saísse da casa indo à procura de Cynthia. Talvez entrasse na cama com ela. Cynthia estava sempre pronta para mais e mais. Nesse caso, ele seria também encontrado morto na casa de hóspedes.

Monóxido de carbono. Um gás inodoro e incolor. Letal, não perceptível. Tudo muito, muito triste, Jeremy pensou, forçando um ar de tristeza. Mas depois sorriu.

 

Alex esticou as pernas na cadeira do terraço, observando a chuva. A temperatura iria baixar, ele suspeitou, embora não tivesse tomado conhecimento do fato antecipadamente. A garoa fraca transformara-se em tempestade, e ele sentia um prazer misto de dor em tudo aquilo. A vida era um processo doloroso, parecia-lhe. Contudo, não estava acostumado a ver as intempéries interferindo em seus planos, pois estes obedeciam sempre a suas ordens.

Como também as pessoas. A reação de Laura Fitzpatrick ao seu comando o divertiu. Laura parecia recusar fazer o que ele queria, um fato que o surpreendeu. Não tinha dúvida de que poderia obrigar qualquer pessoa a obedecer-lhe, sem questionar. E talvez Laura ficasse dócil se ele pusesse em ação seu poder. Mas não a queria dócil.

Um raio cortou o céu. Alex sentiu-se subitamente inquieto, como se precisasse fazer alguma coisa.

Naturalmente que precisava fazer alguma coisa. Devia ter seguido seu caminho, pegando as almas prontas para partir. Em vez disso, ignorara os chamados, disposto uma vez ao menos a satisfazer apenas seus desejos egoístas.

Uns chamados ficavam mais e mais imperiosos e mais próximos, e ele se perguntava de onde viriam. O velho William também o chamava, com sua voz fraca, mas persistente. Uma das vozes seria de Laura?

Se Laura o chamasse, iria ao encontro dela imediatamente. Daria um fim à sua permanência na terra, a levaria e nunca mais se separaria dela.

Ah, mas não tinha escolha! Mesmo uma criatura poderosa como ele tinha suas limitações. Poderia levá-la consigo, claro, mas depois a perderia para sempre, e ela seguiria o próprio destino.

Não, não era a voz de Laura. E Alex não queria ouvir nenhuma outra voz naquele instante. Apenas a de Laura e a sua.

Mas…, teria ele uma alma? Duvidava muito que tivesse. Isso sempre o intrigara, porém no momento não desejava uma resposta à sua dúvida.

Levantou-se indo até o gradil do terraço, e ficou apreciando a mata cerrada. Olhou para a esquerda, para a pequena casa de hóspedes, e apertou as pálpebras. Vozes vinham daquela direção. Que interessante, pensou, franzindo a testa. Algo inesperado está acontecendo, algo fora do programa.

Sua camisa ficou logo ensopada, e ele entrou no quarto. A lareira estava acesa, e o acolchoado estendido sobre a cama. Ele quase tirou o acolchoado; não precisaria daquilo. Mas talvez Laura precisasse, pensou, quando fossem dividir a cama.

Despiu a roupa molhada e jogou-a sobre uma cadeira. Examinou o próprio corpo. Era o mesmo ao qual estava acostumado, forte, esbelto, sem gordura extra e nem sombra de fraqueza. Era um corpo que tanto homens como mulheres achavam atraente, sua arma para persuadir as pessoas a irem com ele. Isso no caso dos que necessitavam de persuasão.

Alex não tinha muita certeza sobre Laura. Não sabia se ela precisaria de força, de persuasão, de sedução, ou se um simples estalar de dedos bastaria.

Apenas tinha certeza de que a desejava, de que precisava dela tanto, a ponto de seu controle emocional ficar quase reduzido a frangalhos.

As vozes que clamavam por ele teriam de esperar.

 

Deitada na cama, Laura ouvia ruídos. Percebeu que Alex estava no terraço e precisou se esforçar para não jogar longe as pesadas cobertas e correr ao encontro dele. Fazia frio lá fora, e desejou trazê-lo para dentro, aquecê-lo, e tentar descobrir que tormentos se escondiam por trás daqueles óculos escuros.

Mas não fez nada disso, naturalmente. Sabia muito bem o que Jeremy dissera a ele, com sua voz malévola. Se Alex tivera algum interesse por ela, esse interesse teria desaparecido no instante em que Jeremy revelara seu estado de saúde. Mas…, ela já lhe contara isso, e Alex não parecera chocado. Seu pai sempre a prevenira contra homens sem escrúpulos que a procurariam, tentando seduzi-la, tentando casar-se, sabendo que ela morreria logo e que herdariam milhões dos Fitzpatrick. Talvez Alex fosse um desses homens. Afinal, o que sabia dele? Um viajante francês que aparecera de repente nas terras de seu pai. Ela achou que o conhecia.

Nos últimos dias estivera terrivelmente estressada por causa da doença de seu pai e da fraqueza que sentia. Pensou que fosse morrer naquela mesma noite, sozinha na floresta. Sentira dor, falta de ar. E, ao olhar para o alto, vira uma luz muito clara, branca. E vira Alex, estendendo-lhe a mão. Ela não segurara essa mão. Quisera, quisera muito, mas não a segurara.

Em lugar disso abrira bem os olhos, pusera-se de pé sozinha e convidara-o para ir à sua casa.

O que faria Alex se ela se levantasse agora e fosse ao quarto dele? Será que a receberia com prazer? Esperaria da parte dela alguma experiência avançada no ato do amor? Seria ela capaz de lhe dar prazer? Morreria em seguida? Jamais encontraria resposta a essas suas indagações, pois faria sempre o que a família esperava dela. Morreria mais cedo ou mais tarde, virgem, sem nunca ter conhecido os segredos do sexo e os arrombos da paixão. Continuaria sendo uma boa menina, como insistiam que fosse. Ela virou-se na cama, tentando dormir.

 

— Você se levantou cedo hoje.

Laura serviu-se de uma xícara de chá, procurando ignorar o aroma do café recém preparado. Os médicos lhe haviam proibido essa bebida e o cheiro convidativo era para ela um tormento quase maior que o ruído de Alex virando-se na cama.

Jeremy bocejou e esfregou os olhos.

— Adormeci ao lado do leito de papai — ele disse. — Graças a Deus Cynthia não é do tipo de mulher que se preocupa com minha ausência.

Laura olhou pela janela. O tempo continuava hostil, o vento sacudia as árvores, os trovões estrondeavam no ar.

— Seu casamento vai muito mal, não vai, Jeremy? — perguntou ela pegando uma torrada sem manteiga e sentando-se ao lado do irmão.

Jeremy sorriu, segurando uma xícara de café.

— Bem, na verdade, conversávamos ontem sobre nosso futuro.

— Futuro?! — Laura exclamou. — Um futuro? Você quer dizer, uma reconciliação? Achei que não haveria mais possibilidade disso. Há anos vocês têm problemas de vida conjugal.

— A vida é mesmo cheia de imprevistos, não acha? — Jeremy sacudiu os ombros. — Em uma manhã como esta, sinto-me incrivelmente vivo. Tenho impressão de que poderia conseguir qualquer coisa que quisesse.

Laura olhou mais uma vez pela janela, observando a violência da natureza. Em seguida, disse ao irmão:

— Acho que você deveria ir à casa de hóspedes para dormir um pouco. Sei por que ficou aqui na Casa Grande a noite toda, e isso me aborrece.

A expressão dos olhos azuis de Jeremy mudou imediatamente. Ele pareceu aterrorizado.

— Como assim? — perguntou, quase fora de si.

— Quis me vigiar, não foi? Pensou que eu pudesse ir para a cama com um desconhecido, com um aventureiro, e não teve confiança na força de suas palavras ofensivas para afastá-lo de mim.

A tensão de Jeremy desapareceu na mesma velocidade com que veio. E ele murmurou:

— Você afirmou que ele era um velho amigo, não um desconhecido.

Laura não costumava mentir. Na realidade, ela não sabia como pusera essa mentira em seus lábios. Mas…, seria mesmo uma mentira? Não sentia como se Alex fosse um estranho. Na verdade, e de maneira inexplicável, sentia-o ligado a ela, ao seu passado, ao seu futuro. E agora, de súbito, ao seu presente também.

— Não tive certeza se você acreditara em mim — disse ela, surpreendida em como podia de repente mentir com tanta facilidade.

Jeremy pegou a mão da irmã. A mão dele era macia, sem calosidades, mão que nunca experimentara um só dia de trabalho braçal na vida. E ele falou com falso carinho:

— Somos uma família, Laura. Se não pelo sangue, pelo afeto que nos une. Somos todos Fitzpatrick. Nunca mentimos um ao outro.

Laura não se moveu. Teve vontade de puxar a mão e estranhou sua reação. Contatos físicos eram tão raros em sua família que ela sempre os acolhera bem, quando aconteciam. Por isso deixou que a mão ficasse onde estava, e sorriu.

— Seria maravilhoso se você e Cynthia se entendessem — disse, ainda não muito certa se achava mesmo maravilhoso.

— Tenho esperança — confessou Jeremy. — Bem, agora acho que vou tomar um banho e me barbear. Prefiro fazer isso aqui na Casa Grande. A casa de hóspedes tem seu próprio gerador, mas não é tão possante como o daqui. De qualquer maneira, é melhor que eu deixe a água quente para os outros.

Ele levantou-se com expressão afável, mas que mudou repentinamente ao ver alguém na porta.

Laura não precisou virar a cabeça para saber quem era. Sentira a presença dele minutos antes, revelada por uma sensibilidade na pele, um disparar de coração, um rubor no rosto.

— Bom dia — disse Alex, com a mesma voz firme e ligeiro sotaque francês.

— Você se levantou cedo. — Grande parte do bom humor de Jeremy sumira. — Pensei que os franceses dormissem até tarde.

— Cada francês dorme tanto quanto deseja. Eu, pessoalmente, não tenho necessidade de muitas horas de sono.

A tensão na sala tornou-se penosa, e Laura decidiu mudar o clima do ambiente.

— Além disso, Alex é esquiador — disse. — Os esquiadores levantam-se cedo para aproveitar a manhã, as melhores horas para esse tipo de esporte. Pelo menos foi o que ouvi dizer.

Deus, que coisa incrivelmente idiota para ser apresentada como razão, Laura falou a si mesma, corando até a raiz dos cabelos.

— Pura verdade, ma chère — sussurrou Alex.

Laura fitou-o. Ele estava vestido todo de preto, os cabelos negros penteados para trás, os óculos escuros firmemente no lugar, apesar do claro do dia.

Jeremy continuava ali em pé, rígido, imóvel, com a xícara vazia na mão, relutante em deixar os dois sozinhos. Laura limpou a garganta, mas seu irmão permanecia com os olhos fixos no homem que acabara de entrar.

— Posso me servir de uma xícara de café? — perguntou Alex.

— Claro, esteja à vontade — declarou Laura. — Você não ia tomar banho, Jeremy?

— O banho pode esperar — disse Jeremy, teimosamente.

— Não acha que Cynthia pode estar preocupada, não tendo visto você ontem à noite?

— Tem razão, minha irmã. Vou até lá, mas volto logo.

Se Alex percebeu algo de advertência na voz de Jeremy, não demonstrou. Sentou-se ao lado de Laura segurando com seus elegantes dedos uma xícara de café. Pôs outra xícara diante dela.

— Eu não tomo café. — Laura encarou-o, mordendo o lábio.

— Não gosta de café?

— Adoro. Mas meu coração não aceita café. Os médicos dizem que café é muito estimulante para mim.

— Mas você gostaria de poder tomar?

— Muito.

— Então, tome-o.

Laura pegou a xícara pela asa, e sentiu logo que a mão se aquecia. Achou que seu desejo por café era quase igual ao que tinha por Alex.

— Está querendo me matar? — indagou ela, tentando fazer com que a pergunta soasse como brincadeira.

— Nada fará mal a você hoje. — Alex sacudiu a cabeça, olhando com tristeza para o rosto pálido de Laura.

Ela acreditava em Alex. Tomou um gole de café, e o gosto amargo dançou deliciosamente em sua língua. E, quando colocou a xícara sobre a mesa, sentiu que uma energia impressionante corria-lhe pelas veias.

Alex acariciou-lhe o rosto com cuidado, como se tivesse medo de feri-la. Laura sorriu, e ele murmurou:

— Viu? Nada lhe fará mal hoje.

Ele aproximou os lábios dos dela, e logo os pressionou.

— Abra a boca para mim, Laura — ordenou.

Não era um pedido. Laura obedeceu. A boca de Alex cobriu a sua, agora entreaberta, úmida. Após segundos, ela não tinha certeza se devia afastar-se dele ou não. Mas Alex segurava-a pelos cabelos, aprofundando o beijo numa longa carícia de língua, dentes, lábios, coração e alma. Tentava seduzi-la até que ela o beijasse também, perdendo-se nos lábios dele.

Assim que se separaram, Laura perguntou:

— É a isso que chamam de beijo francês?

Alex riu muito e quis saber:

— Você gostou?

— Gostei.

— Quer mais?

— Quero.

A resposta de Laura soou sibilante na quieta manhã. E Alex beijou-a de novo.

Naquele instante, um grito de horror ecoou pela casa toda. Laura afastou-se dele, derrubando a xícara de café sobre a toalha branca e sobre seus jeans, queimando-se.

— Oh, Deus — ela gemeu. — Alguém deve ter morrido.

— Duvido — comentou Alex, segurando-lhe a mão. — Vamos ver o que houve?

 

Jeremy estava no hall, o rosto cor de cinza. Olhava para a porta da entrada com expressão de pavor. Mas as três pessoas que entravam, discutiam tanto que nem prestaram atenção a ele.

— Esse maldito sistema de aquecimento — resmungava Ricky, furioso. — Quase morri gelado durante a noite toda. Por que essa porcaria decidiu funcionar mal justamente ontem, não posso entender.

— Ao menos você tinha alguém em sua cama — comentou Cynthia com segunda intenção, olhando para o marido. — O calor de um corpo deve fazer enorme diferença.

— Faria se eu estivesse dormindo com uma pessoa que não fosse Justine — comentou Ricky. — Ela é como um pedaço de gelo. — Olhou para Jeremy e perguntou: — O que há com você, homem? Parece um fantasma!

— Deve ser por causa de papai — gemeu Justine. — Ele morreu, não?

Laura passou o braço em volta da cintura da irmã, dizendo:

— Papai está bem, Justine. Fui vê-lo antes do café. Maria disse que ele passou bem à noite.

— Então, o que há com você, Jeremy? — indagou Cynthia, aproximando-se do marido.

— Nada — respondeu ele. — Estou um pouco irritado. Detesto me sentir confinado aqui.

— Confinado? — repetiu Ricky.

— Claro. Árvores caídas bloqueiam a estrada. O rádio e o telefone não funcionam. Isso sem falar na televisão. Estamos isolados nesta montanha e a situação me deixa nervoso. Vou agora tomar banho e trocar de roupa. Passei à noite sentado no quarto de papai. Vou à casa de hóspedes para ver se descubro o que houve com o sistema de aquecimento.

— Não temos empregados para fazer isso? — indagou Ricky.

— Todos os empregados ficaram do outro lado das árvores caídas — observou Jeremy de mau modo.

— O mais engraçado é que Jeremy sempre detestou trabalhos mecânicos — comentou Laura, procurando minorar a atmosfera pesada. — Papai costumava dizer que isso era uma prova de que… — Ela parou de falar, achando-se rude.

— Sim — murmurou Jeremy, com voz amarga. — Ele costumava dizer que isso era uma prova de que eu não carregava nas veias o glorioso sangue dos Fitzpatrick. “Pensando bem, se minha mãe não tivesse se casado com ele, talvez eu até pudesse ter tido uma vida muito feliz como encanador.”

— Sabe que eu não quis ofender você, Jeremy — observou Laura.

— Não se preocupe, minha irmã. Parei de me ofender com as críticas de meu padrasto há anos.

Talvez fosse a atmosfera carregada. Mas o fato era que o estranho tempo, com raios e trovoadas fora da temporada de chuvas, aumentava a tensão de todos.

Laura olhou para Alex. Ele permanecia silencioso, meio separado do grupo, observando, como um cientista observaria uma tribo de interessantes selvagens.

— Bem, então decida, vá ou fique — disse Cynthia. — Decida logo. Quanto a mim, estou gelada. — Ela lançou um olhar a Alex. — Nesse meio tempo, cabe a você, Alex, me distrair. Tenho certeza de que Ricky só pensa em tomar uísque em vez de café, sem que ninguém veja. Justine tem medo até da própria sombra. Nós dois poderemos nos divertir à nossa moda.

Laura segurou a respiração, esperando. Queria que Alex ficasse com ela, não com a sedutora Cynthia.

— Por que vocês duas não ajudam a Sra. Hawkins? — sugeriu Jeremy. — Com a estrada fechada, ela precisará de alguém para ajudá-la.

Cynthia lançou um olhar mordaz ao marido antes de protestar:

— Sinto muito, querido, mas Laura está ainda mais chateada do que eu. A pobre menina vive como uma freira, e tudo o que sabe aprendeu em livros. Não temos nada em comum.

— Absoluta verdade — resmungou Ricky. — Você nunca leu um livro em toda sua vida e aposto que já era uma aventureira quando tinha doze anos de idade.

— Chega, não, Ricky? — Cynthia observou, porém nada perturbada com os insultos. — Sinto muito, mas nunca me interessei por livros. Nem mesmo quando tinha doze anos. — Com um macacão de veludo muito justo, que punha em evidência suas curvas, ela foi para perto de Alex. Sua cabeleira loura chegava quase até a cintura. — Você gosta de jogar, Alex? — perguntou.

Laura continuava tensa, ansiosa por saber o que aconteceria. Mas…, que homem poderia resistir aos encantos de Cynthia?

— Depende do tipo de jogo — respondeu Alex, dando a suas palavras um tom erótico.

— Que maravilha! — Cynthia exclamou. — Não se importa se eu roubar seu amigo para um jogo; se importa, Laura? Aposto que você tem milhares de coisas a fazer, não?

— Claro. Tenho milhares de livros para ler — respondeu Laura com muita calma.

Ela tomou o caminho da porta. Seus olhos começaram a se encher de lágrimas e não queria que todos a vissem chorar, em especial Alex.

No caminho, a mão de Alex roçou na sua e esse breve contato foi como uma carícia para Laura. Teria o toque sido acidental? Um pedido de desculpas? Uma promessa de que tudo estava bem?

Porém Laura não queria desculpas, promessas. No entanto, tanto as desculpas como as promessas entraram em seu subconsciente através daquele contato, e ela não conseguiu lutar contra sentimento tão forte. Teve vontade de voltar, de pegar na mão de Alex e de levá-lo consigo. E de ordenar a Cynthia que se afastasse para sempre.

Mas isso era infantil e absurdo. Limitou-se então a sorrir e a dizer:

— Há café para todos na sala de jantar. Vou ver como está papai.

Cynthia, agarrada no braço de Alex, respondeu:

— Não se preocupe com nosso hóspede, Laura. Prometo que o manterei entretido.

 

Alex não tinha muita certeza sobre o que esperava daquela mulher. Cynthia, por seu lado, sentia a indiferença dele, mas não lhe largava o braço.

Alex sabia agora que uma das vozes que ouvira à noite, chamando-o, fora a de Cynthia. Por qualquer razão que ele desconhecia, o encontro dela, com a morte, fora adiado. E ele se perguntava o que teria causado a mudança. Mas isso não era de grande importância no momento. Quando chegasse a hora de ele voltar, levaria consigo as almas que estivessem prontas.

Cynthia conduziu-o a uma sala que ele não conhecia ainda, à biblioteca. Fechou a porta e acendeu a luz. Alex notou que a claridade estava muito fraca e concluiu que era devido a algum problema com o gerador. Tudo bem, mas lembrou-se de que Laura não gostava de escuridão.

Laura… Devia estar furiosa, pensou. A emoção como que brotara dos poros de sua pele ao ouvir o convite de Cynthia, e ele só tivera tempo de tocar-lhe a mão, tentando fazê-la entender que aquilo não era amor.

Cynthia lhe serviria como experiência. Talvez lhe fornecesse as respostas que procurava, talvez pudesse aquietar o vazio existente dentro de si. E Laura poderia esperar um pouco mais.

Cynthia colocou as mãos nos quadris. Tinha mãos delicadas, adornada de anéis valiosos. Mãos de mulher experiente. Alex deitou-se no sofá e ficou observando-a para ver até onde aquela criatura pretendia chegar.

— Adoro jogos perigosos — disse ela, aproximando-se mais. Seu perfume era erótico. — Ninguém se incomodará com nosso jogo. Com exceção de Laura, claro. Sabe que ela gosta de você, não sabe? Isso me surpreende muito porque a “santa” Laura jamais se interessou por paixões humanas. Mas você é um homem muito interessante, Alex; faz com que nós, pobres mulheres, lancem para o ar todas as precauções. — Cynthia ajoelhou-se junto ao sofá, e Alex podia ver os mamilos rijos sob o tecido do macacão.

— Você está tão frio! — ela sussurrou. — Deixe-me aquecê-lo. — Foi quando Cynthia juntou a sua boca na dele. Com muita prática, sem dúvida.

Alex podia apreciar a técnica usada, tanto com a boca como com as mãos. O corpo dele aceitava tudo, tal qual um corpo normal, porém aquela parte obscura, silenciosa, permanecia intocada. Ele poderia puxar Cynthia para o sofá e possuí-la. Ela gemeria de prazer, e por certo bem alto para que Laura a ouvisse, naturalmente.

Poderia fazer isso. Porém machucaria Laura e ele recusava chegar a esse ponto.

Tocou os seios firmes de Cynthia e a fez estremecer. Um sorriso triunfante desenhou-lhe os lábios.

— Achei que você iria gostar — disse ela, abrindo o zíper do macacão com dedos trêmulos e deitando-se no sofá. — Tire esses malditos óculos. Quero ver seus olhos enquanto estivermos fazendo amor.

Ela baixou o macacão até a cintura, desnudando por completo os seios. Alex fitou-a através dos óculos e tentou se convencer de que a desejava.

Mas não a desejava.

Tirou então os óculos e empurrou-a do sofá. O ruído da queda de um corpo no chão foi amortecido pelo felpudo tapete oriental. Cynthia encarou-o, assustada. Desmaiou em seguida. Ela estava ridícula ali no solo, com o macacão meio aberto expondo-lhe o corpo. Se ele tivesse um pingo de carinho, poria as roupas dela em ordem e a carregaria de volta ao sofá para que recuperasse a consciência.

Mas não sentia carinho por Cynthia. Levantou-se, colocou os óculos. E, pisando no corpo inerte, foi à procura de Laura.

 

O estranho de tudo aquilo era que Laura nunca se sentira tão viva como nas últimas horas. Na véspera, na floresta, lutando para respirar, olhara para cima e vira uma luz brilhante, muito branca, e soubera. Soubera que a Morte, que sempre a rodeara, a alcançara. Escapara dessa mesma Morte tantas vezes já…

Mas, em vez da Morte, lá estava Alex, olhando para ela através dos óculos escuros. E sua vida voltara, e de maneira vibrante.

Agora ela sentia-se bem mais forte. Invulnerável. Sem medo. Nada poderia feri-la. Sentia-se segura, protegida. E tinha certeza de que era Alex, o forasteiro, quem a protegia.

Movimentara-se vagarosamente por entre os pinheirais. Acima, o céu estava escuro e ameaçador, e o topo das árvores era sacudido pelo vento forte. Teriam um inverno muito frio e longo. Mas naquele momento, em volta dela, havia ainda flores.

Laura não conseguira ficar dentro de casa nem um minuto sequer. Conhecia Cynthia muito bem. Se ela ainda não tivesse conseguido seduzir Alex, seria apenas uma questão de tempo para atingir sua finalidade. E não importava que Alex talvez não fosse o tipo de homem que pudesse ser seduzido pelas maquinações de Cynthia. Ele fora com ela de livre e espontânea vontade.

Laura parou à sombra de um álamo. As folhas amareladas caíam, porém algumas ainda se agarravam teimosamente aos galhos, resistindo ao vento forte. Ela olhou para a montanha dourada, brilhante contra o céu tempestuoso, e respirou fundo. Sempre adorara o outono. Não fazia mal que o inverno se aproximasse com sua longa, interminável escuridão. Para ela, sempre houvera mais esperança e beleza no outono do que na primavera.

Sacudiu a cabeça. Não podia se esquecer de que nada era como parecia ser. Não com Alex e nem com sua família. Muito menos consigo própria. Sentia-se forte, invulnerável, pela primeira vez na vida. Porém sabia que há apenas doze horas atrás estivera mais perto da morte do que nunca.

Ouviu de repente um barulho à distância e ficou tensa, os seus instintos subitamente alerta. Qualquer pessoa que estivesse se aproximando da casa devia ser perigosa. Alex era o único estranho no lugar, mas não podia ser ele. Inclinou-se então contra uma árvore, apavorada.

Jeremy apareceu, e ela deu um suspiro de alívio e de surpresa. Não era o perigo que se aproximava, afinal.

— Você me assustou — ela disse.

— Jamais imaginei ter esse efeito nas pessoas. O que está fazendo aqui, Laura?

— Vim dar um passeio. Quis sair um pouco de casa. Havia muita gente por lá.

— Sei o que quer dizer. Cynthia nunca mudará. Acho que não haverá um futuro para nós dois, conforme pensei.

— Jeremy…

— Mas não foi por esse motivo que vim até aqui. Preocupo-me com você, Laura. Não confio naquele homem. Não me agrada o fato de ele ter surgido não sei de onde. E agora fica se arrastando atrás de você.

— Se arrastando atrás de mim? Não seja ridículo! Ninguém está se arrastando atrás de mim. Será que seus sentimentos sobre Cynthia escurecem tanto assim seu julgamento?

— Não acha meio esquisito ele ter aparecido aqui justamente quando estamos isolados do resto do mundo?

— Ele não controla o tempo, Jeremy.

— Mas algo estranho está se passando. Posso sentir. Essas constatações de que ninguém morreu nestes dias… Nem papai. Estranho, não? Não gosto disso.

— Não gosta do fato de que ninguém tenha morrido? — repetiu Laura. — Isso não faz sentido para mim. Algo de errado está acontecendo com você, Jeremy. Conte-me o que há, por favor.

— Nada, nada, estou apenas sendo um tanto melodramático. E o que sucede quando se fica isolado do resto do mundo. Além disso, passei a noite toda acordado. Falta de horas de sono faz isso.

— Por que não vai dormir um pouco agora? — Laura sugeriu.

— Talvez eu vá. Mas quero que me prometa uma coisa. Fique longe desse homem. Tenho má impressão dele. Será um problema para você, Laura; um problema para todos nós.

— Não seja ridículo, Jeremy. O homem é inofensivo. É um esquiador com muito charme e pouco dinheiro. Não faz mal a ninguém.

— Você o acha charmoso? Eu não.

Laura pôs-se a pensar sobre o caso. Sobre o frio, hipnótico poder que emanava de Alex, e que parecia ser dirigido especialmente a ela. Pensou sobre o gosto dos lábios dele contra os seus. Alex a fazia sentir-se viva. Na presença dele seu coração pulsava como nunca pulsara antes.

— O tempo vai clarear, Jeremy — Laura disse para acalmá-lo. — Alex irá logo embora, e você e Cynthia poderão até tentar uma reconciliação. E não se preocupe comigo. Já aceitei o fato de que viverei pouco, e nesse tempo que me resta não haverá interlúdios de paixão com estranhos, nem filhos e nem chalés com cercas floridas. Já aprendi a aceitar meu destino. Quando Alex se for, tudo voltará a ser como antes.

— E se ele pedir para você ir junto?

— Alex não vai pedir. Não há razão para ele arcar com o ônus de uma mulher doente, que morrerá logo.

— Quando essa mulher é candidata à herança de um terço das propriedades de seu pai, ele pode arcar com esse ônus, pode ter certeza.

— Por que fala em herança? Acha impossível um homem sentir-se atraído por mim, Jeremy?

— Não, não acho. Ele se sente atraído por você?

— Não — Laura mentiu, lembrando-se do beijo.

— Você não tem aparência de mulher doente, de mulher que vai morrer logo — Jeremy acrescentou. — Tem melhor aparência agora do que há semanas atrás.

— Deve haver qualquer coisa no ar.

— E penso que essa qualquer coisa é o que está mantendo papai vivo.

— Está mantendo mais gente viva, Jeremy. Mas não vai durar, você sabe. Não vou viver muito, e namorar um desconhecido não fará com que eu morra mais cedo.

— Confessa, então? — indagou Jeremy.

— Que estou namorando? Só um pouco. Estou me divertindo, e isso é bom.

— Quero que me prometa que ficará longe dele. Não confio nesse rapaz.

— Jeremy — ela declarou com imensa paciência —, não vou-lhe prometer nada, exceto que cuidarei de mim. Só isso você tem o direito de me pedir.

— Se não ficar longe dele, terei de tomar certas providências.

Laura encarou-o e foi o mesmo que olhar para um estranho. O rapaz alegre que conhecera durante toda sua vida transformara-se num homem irritado, com olhos fora da órbita e veias salientes. Parecia à beira de um abismo e não seria preciso muita força para jogá-lo precipício abaixo.

— Jeremy — ela falou gentilmente —, vá dormir um pouco.

— Estou só te prevenindo, Laura.

Ele deu um passo à frente, furioso, e, Laura teve vontade de fugir. Não, Jeremy não ousaria tomar medidas drásticas. De mais a mais, correr numa superfície plana como a da noite anterior já quase a matara. E mesmo subir a rampa devagar seria forçar muito seu coração. Como fugir, então?

Ela deu meia volta para sair da vista do irmão. Esperou alguns segundos a fim de recuperar o fôlego e aguardar pela dor quase sempre presente em seu peito. Mas a dor não veio e o ar entrava livremente nos pulmões. O sangue era bombeado para o coração como se não houvesse órgãos danificados em seu corpo.

Ela começou a andar mais depressa. O vento soprava forte sacudindo nas copas das árvores, e a umidade do outono a animava. Laura corria sem parar, com os cabelos voando; sem esforço subiu a colina, e uma gargalhada saiu de seus lábios, ecoando pelo campo.

Viu-o então, em pé na beirada de uma clareira, observando-a. Esperava por ela e a luz do dia se refletia em seus óculos escuros. Esperava por ela sozinho, sem Cynthia.

Laura parou a alguns passos de distância, um pouco sem fôlego, porém corada. Ficou apreensiva. Lembrou-se da ameaça do irmão.

Mais uma vez um fato importante veio-lhe à mente. Ela conhecia aquele homem, mas não podia se recordar de onde ou quando o vira.

Sabia apenas uma coisa sobre ele. Não havia razão para temê-lo. Alex não a magoaria. Se isso acontecia em relação a qualquer pessoa, ela não poderia dizer. Mas o homem de negro ali em pé, jamais lhe faria mal.

— Você acredita em amor à primeira vista? — perguntou ela, ainda ofegante.

— Deveria me perguntar se acredito em amor, em primeiro lugar — falou Alex suavemente.

— Acredita?

— Não tenho muita certeza. Talvez para algumas pessoas, sim. E em determinadas circunstâncias. Se for uma pessoa feliz, nascida para encontrar o amor.

— E você é uma dessas pessoas felizes?

— Não — Alex respondeu. — E nem você.

Foi como um tapa que Laura recebesse no rosto. Fitou-o atentamente e viu traços do batom de Cynthia no colarinho dele. A dor no peito que sobreveio de repente não teve nada a ver com um coração doente. Tinha a ver com uma alma doente.

— Entendi — declarou Laura. — Mas agora, vou ver meu pai.

Ela começou a se retirar, e Alex tentou segurá-la. Mas não conseguiu. Apenas teve tempo de perguntar:

— Receia que seu pai tenha morrido enquanto você passeava?

Laura parou junto à porta, e disse:

— Não. Ninguém morrerá por enquanto. Concorda?

Alex resolveu mentir, e respondeu após uma pausa:

— Como posso ter certeza?

— Sou boba mesmo — murmurou ela. — Você não tem nada a ver com isso. Tem?

Alex esboçou um sorriso pálido, frio, mas gentil.

— Eu…

Ele segurou-a pelo cotovelo. Então, uma corrente elétrica pareceu uni-los.

— Quem é você, afinal? — sussurrou Laura, incapaz de se mover.

Alex aproximou-se ainda mais, e ela ergueu o rosto, desejando o contato dos lábios dele mais uma vez. Precisava disso.

— Enfim encontrei-a, Srta. Laura. — Era a Sra. Hawkins, com um pano de pratos na mão. — Seu pai mandou chamá-la. Ele está muito agitado, e Maria pediu-me que a encontrasse o mais depressa possível.

— Ele piorou?

— Não me pareceu. Mas quer lhe falar. Vá, e eu servirei ao Sr. Alex uma xícara de café. Não há francês que resista a um bom café.

Laura pensou que Alex fosse protestar. Mas ele não disse uma palavra. Largou-lhe o braço, e ela ficou de repente gelada.

— Vá vê-lo, Laura. — disse Alex. — Talvez seu pai tenha as respostas às suas perguntas.

Mas Laura não tinha muita certeza se queria mesmo ouvir essas respostas.

 

William Fitzpatrick estava deitado na cama e o único ruído que se ouvia no quarto era o das máquinas que o auxiliavam a respirar. Laura foi para o lado do pai, tomando cuidado para não perturbá-lo. O velho encarou-a fixamente, com os mesmos olhos que a aterrorizaram tanto na infância. Ainda a faziam sentir-se muito jovem e insegura.

— Por que o trouxe aqui? — perguntou ele à filha, com voz fraca.

— Encontrei-o na floresta, papai — respondeu ela. — Eu tinha caído e estava com medo de morrer. Então…, ele apareceu. E trouxe-me de volta a casa. Em vez de você e Jeremy ficarem tão irritados com ele, deveria agradecer-lhe.

— Agradecer-lhe? Agradecer-lhe? — repetiu William com uma risada nervosa. — Ainda está por vir o dia em que farei isso. Não sabe quem ele é? O que ele deseja?

Laura pôs a mão na testa do pai. Estava quente, febril, e os olhos brilhantes encerravam determinação, algo próximo à loucura.

— Alex não é ninguém de importância — ela murmurou, afagando o rosto do pai. — Um esquiador aventureiro. Ele não quer nada além de um abrigo até passar a tormenta.

— Você é quase tão ingênua quanto sua irmã — William declarou, com um traço de sua usual severidade. — Esse homem enganou você, mas não me engana. Eu conheço o indivíduo, já lutei contra ele muitas vezes. E não vou permitir que vença agora.

Laura correu o olhar pelo quarto e nem sinal de Maria e a mente de seu pai estava perturbada. Delirava terrivelmente, embora o corpo estivesse ainda bastante forte.

— Ele não vai vencer, papai.

— Não o defenda. Acha que estou delirando, não é? Posso estar morrendo, mas isso não significa que esteja louco. Sei quem ele é, posso lhe garantir. Sei o que ele quer.

— O que ele quer, papai? — perguntou Laura calmamente.

— Você. Veio para matar você.

— Não imagino por que. Ele nem ao menos me conhece!

— Você não entende, Laura! — William ficava cada vez mais agitado. — Foi isso que veio fazer. Ele é…

— O que está havendo por aqui? — Maria entrava no quarto, apressada. — Acalme-se, Sr. Fitzpatrick, e não fale mais nenhuma palavra! Está se agitando muito e, se não quiser que sua filha fique aí em pé vendo-o morrer, acalme-se.

— Vou morrer, de qualquer jeito. — William acomodou-se melhor na cama. Estava pálido, ou melhor, acinzentado, a imagem própria da Morte.

— Todos nós vamos morrer, mais cedo ou mais tarde — protestou Maria. — Mas não há necessidade de apressar a morte. E se o bom Deus lhe está dando mais alguns dias de vida, aceite e fique grato.

— Ora, ora, não pense que o bom Deus tenha alguma coisa a ver com isso.

— Nem mais uma palavra, Sr. Fitzpatrick. Laura, por que não vai tomar uma xícara de chá? Deixe este velho rabugento descansar.

William abriu mais os olhos e sussurrou:

— Sim. Vá, Laura, e não se preocupe. Não vou morrer sem avisar. Afinal, não estou ainda pronto. Prometo que lhe darei tempo para segurar minha mão e chorar sobre meu cadáver. A menos que seu novo amigo tenha outros planos.

— Há ocasiões, papai, em que você fica impossível — observou Laura com irritação afetuosa, beijando a testa enrugada do velho pai. — Voltarei quando decidir parar de me atormentar.

— Conhecendo-o como o conheço, pode levar muito tempo para isso acontecer — Maria resmungou.

A sala de jantar estava deserta. Laura perdera a noção do tempo e teve um choque ao constatar que já eram duas horas da tarde. Os restos do almoço ainda continuavam sobre a mesa, e ela foi direto ao bule de café. Afinal, tomara uma xícara pela manhã e sobrevivera. Deu-se conta de que todos os batimentos acelerados de seu coração provinham de Alex, e não da cafeína.

Serviu-se de uma xícara e levou-a para a sala de estar, à procura de sua família.

Deixara Jeremy na floresta, mas não tinha idéia de por onde andavam os outros. Ricky provavelmente bebendo, Justine chorando. E Cynthia? Que estaria Cynthia fazendo?

A porta da biblioteca estava fechada, e Laura parou do lado de fora. Se tivesse um pouco de bom senso levaria sua xícara de café para o quarto sem pensar no que havia do outro lado daquela porta.

Porém, nunca fora covarde. E não se deu ao trabalho de bater. Girou o trinco e entrou.

As luzes estavam apagadas e a luz de fora penetrava fracamente através das cortinas. De início ela pensou que a sala estivesse vazia. Mas depois viu Cynthia encolhida num canto, com os braços envolvendo os joelhos, o rosto pálido e molhado de lágrimas, a maquiagem manchada.

Laura esqueceu-se de todo o seu ciúme. Colocou a xícara de café sobre a mesa e, em segundos, ajoelhou-se no chão junto dela, abraçando-a com carinho.

— O que houve, Cynthia? — perguntou.

A sala estava quente, abafada. Mas o corpo de Cynthia, gelado. Ela tremia tanto que Laura quase não podia segurá-la nos braços. Os dentes rangiam e mal conseguia falar.

— Alguém machucou você? — insistiu Laura. — Foi Alex?

Cynthia gemeu, enterrando a cabeça no ombro de Laura.

Momentos mais tarde alguém acendeu a luz. Era Jeremy que entrava na sala com expressão sombria no olhar.

Cynthia deu um pulo e ficou mais perto de Laura, como a lhe pedir proteção.

— Algo aconteceu aqui, Jeremy — informou Laura. — Alguma coisa a assustou.

— Posso imaginar o que foi. Ou melhor, quem foi. Agora acredita no que lhe disse, Laura? Que esse homem é perigoso?

— Não seja ridículo, Jeremy. Não foi ele que a machucou.

Jeremy aproximou-se da trêmula esposa. Cynthia tentou resistir, mas ele simplesmente a fez levantar-se, empurrando Laura para o lado.

— Ela vai ficar boa logo — disse. — Vou levá-la à casa de hóspedes e dar-lhe uma xícara de chá. Depois que dormir um pouco ficará boa. — E, dirigindo-se à esposa: — Não se preocupe. Tomarei conta de você.

Cynthia olhou para o marido de mais de dez anos e a expressão dela foi de verdadeiro horror. Antes que Laura pudesse intervir, Jeremy praticamente arrastou-a para fora da sala.

Laura observou-os saindo e sentiu-se insegura, assustada e confusa. Tudo lhe parecia estranho nos últimos dias naquela casa. O pai, a imoral Cynthia, o dependente irmão Jeremy.

E o forasteiro, que surgira na floresta quando o resto do mundo estava fechado para eles, tornava a vida dos Fitzpatrick bastante agitada.

Laura fechou a porta de seu quarto e trancou-a. Não tinha idéia de onde se encontrava Alex, e nem queria saber. Fechou também as portas que davam para o terraço que comunicava com o quarto de Alex e deitou-se, cobrindo-se com o acolchoado. Um ar frio permeava a casa toda; as luzes eram fracas, e o temporal aumentava de intensidade. Era como se o mundo fosse acabar.

 

Veneno era muito mais perigoso, Jeremy pensava calmamente enquanto punha a tigela de chá com arsênico nas mãos trêmulas de Cynthia. Haveria uma autópsia e qualquer toxicólogo descobriria logo que existia uma quantidade enorme de veneno no sistema circulatório da vítima.

Porém, ele achou que não podia se dar ao luxo de esperar, arriscando assim fazer outro cálculo errado.

Tivera muita sorte por Cynthia haver entrado em estado de histeria na frente de Laura. Não sabia a razão, e nem se preocupava em saber. Faria tudo parecer um suicídio, Cynthia andava bebendo demais e tivera uma crise de nervosismo na presença de sua frágil cunhada. Além disso, o tempo estranho, a solidão, a melancolia devido ao casamento que chegava ao fim, eram mais do que suficientes para levá-la a tomar uma dose maciça de veneno.

De qualquer maneira, refletia Jeremy, haveria menos dinheiro para ele. Se Justine e Ricky tivessem morrido como planejara, tudo seria seu. Mas a situação não era tão desesperadora. Laura morreria logo, e ele ficaria com o quinhão da parte dela. E providenciaria para que alguma desgraça acontecesse a Justine e a Ricky dentro de um ano ou pouco mais.

E então, tudo seria seu. O dinheiro, as propriedades. Porém mais importante ainda era a certeza de que fora mais forte, mais determinado do que todos os Fitzpatrick juntos. Sua única mágoa era que não teria a chance de jogar essa vitória na cara do velho padrasto.

— Beba tudo, querida — Jeremy insistia, calmo e confiante.

As coisas chegavam ao fim, ele dizia a si mesmo. O velho duraria mais algumas horas, e o que Cynthia herdasse seria dele.

A um dado momento teve a impressão de que Cynthia sabia o que iria lhe acontecer. A terrível expressão do olhar dela era como se adivinhasse o futuro e antevisse sua morte. Ela pegou a tigela de chá e bebeu tudo; depois se deitou e fechou os olhos.

Jeremy saiu do quarto. Não tivera tempo de escrever uma nota de suicídio, mas cuidaria disso mais tarde e se fosse necessário. Levou a bandeja do chá para a cozinha, cantarolando.

 

Quando Laura acordou, o quarto estava em completa escuridão. Ela ouviu um pequeno ruído, uma ligeira pancada na janela e levou algum tempo para concluir que devia ser a chuva. Girou o interruptor para acender o abajur, mas…, nada de luz. Com certeza o gerador enfim entrara em colapso. Ela pôs os pés no chão e quase voltou para a cama. O quarto estava gelado.

Só esperava que o gerador auxiliar ainda funcionasse para manter em funcionamento as máquinas que auxiliavam seu pai a respirar,

Resolveu descer a fim de ver se todas as lareiras estavam acesas. Dariam um pouco de calor, embora fossem mais decorativas que práticas.

Queria também ver se o pai continuava vivo e se Cynthia se recuperara da crise nervosa. Tinha igualmente de verificar se a Sra. Hawkins precisava de auxílio e se alguma nova tragédia atingira sua família. Mas sabia que não poderia fazer nada para evitar.

Apanhou uma lanterna na gaveta da cômoda e tentou acendê-la. Nada. Esquisito, ela havia posto pilhas novas há uma semana apenas. Encontrou uma vela e uma caixa de fósforos ao lado da lareira. Acendeu a vela.

O tempo todo o vento soprava cada vez mais forte e partículas minúsculas de gelo batiam contra a vidraça.

Ela ajoelhou-se e, com o auxílio da claridade fornecida pela luz da vela, acendeu a lareira. E as chamas começaram a aquecer o quarto.

Um raio riscou o céu iluminando tudo por segundos. Um trovão violento sacudiu a casa. Ela derrubou a vela, assustada.

Mais um raio, e, Laura o viu fora, no terraço, com os cabelos molhados grudados na cabeça e a camisa ensopada. Ele se apoiava no gradil e observava a noite, fascinado e desesperado ao mesmo tempo, parecendo fazer parte daquele caos. Laura imaginou que ele fosse se atirar no abismo da escuridão e ficou apavorada.

Abriu então a porta para fazê-lo entrar.

Alex encarou-a. Ela estendeu-lhe a mão e levou-o para dentro do quarto, fechando a porta em seguida.

Tentou fazê-lo despir a camisa molhada, mas Alex a impediu, segurando-lhe a mão. As mãos dele pegavam fogo.

— Você nunca devia ter me feito entrar aqui — sussurrou. — Mande-me embora.

Por segundos, Laura achou que seria muito fácil fazer o que ele sugeria. Alex a deixaria, e ela não teria mais nada a temer. No entanto, indagou:

— Por quê?

— Porque, se não me mandar embora, levarei você comigo. E não haverá retorno.

Ela ouviu as palavras, a ameaça, a promessa, com o coração e a alma. Escutou a ruidosa sensualidade. E algo mais.

Alex não levaria apenas seu corpo. Não levaria apenas sua inocência, seu amor, sua paixão. Levaria muito mais do que isso. Levar-lhe-ia a alma.

Corra. A ordem ecoou em sua mente. Fuja, depressa. E Laura sentiu que as palavras vinham não apenas dela, mas também dele. Contudo disse, insistindo em tirar-lhe a camisa:

— Não posso mandá-lo embora. Esperei demais por você. Eu te amo, Alex.

Dessa vez ele permitiu que Laura lhe desnudasse o tórax, ficando imóvel nas mãos dela. As chamas da lareira refletiam na lente de seus óculos. Laura abraçou-o com força, o coração aos pulos.

— Quem é você? — ela enfim perguntou.

— Um sonho mau. Um pesadelo. — E beijou-a.

O gelo do rosto dele derretera, como também o dos lábios, dos cabelos. Alex beijou-a com um furor que em circunstâncias normais a teria aterrorizado. Porém Laura passara já da fase do terror. Quis beijá-lo, porém não sabia como. Alex percebeu a indecisão e segurou-lhe o queixo com os polegares; gentilmente abriu-lhe a boca.

Ele usou a língua como fizera naquela manhã e ensinou-a a fazer o mesmo, a dar enquanto recebia. Quando aprofundou o beijo, os joelhos de Laura cederam.

Sem esforço ele carregou-a em seus fortes braços e continuou beijando-a, descendo com a língua até o pescoço, levou-a, passando pelo terraço escuro e enfrentando a chuva de gelo, até seu próprio quarto, e colocou-a no enorme leito, deitada de costas, Laura encarava-o estupefata enquanto ele inclinava-se sobre ela, a visão da sua silhueta na escuridão do quarto cuja única claridade provinha dos raios que de quando em quando iluminavam o céu. Quentes como as chamas do inferno, as mãos dele deslizaram até a frente de seu suéter à procura dos botões.

Laura observava-o enquanto ele a despia, com eficiência, e tendo em vista uma única finalidade. Sentiu que era algo que ele precisava fazer, mesmo que mais tarde lamentasse o fato.

A excitação de Laura era grande que mal se deu conta de que estava nua. Alex fitou-a, extasiado.

De repente, ela voltou à realidade e preocupou-se. Não por estar nua, mas por se considerar magra demais, pouco feminina para agradá-lo, para…

Como se pudesse ler os pensamentos dela, Alex cobriu-lhe o corpo nu com o seu.

— Eu devia ter lhe contado… — Laura começou a falar, mas Alex pôs a mão nos seios dela, a mão de longos dedos, e a sensação foi tão forte que a voz não passou de um gemido. — Eu devia explicar… — ela se pôs a falar mais uma vez, porém os dedos longos contornaram-lhe os mamilos e Laura, nesse instante, sentiu entre as pernas um calor violento que aumentava de intensidade rapidamente. — Eu devia ter lhe contado… — ela repetiu, numa tentativa final. Mas os lábios de Alex fecharam-se num dos mamilos túrgidos, e Laura deixou escapar um gemido suave e prolongado.

Ela tentava manter parte de sua mente intacta enquanto Alex posicionava-se entre suas pernas. Laura afagou-lhe o tórax e percebeu que Alex se divertia com seu atrevimento.

Ele ergueu-se então e, ajoelhando, abriu a braguilha.

— Você queria me contar o quê, Laura? — perguntou.

Ela engoliu em seco, subitamente em pânico. E disse:

— Que eu sou… Quer dizer, que eles tinham medo…

— Que você é virgem — Alex terminou a frase. — Eles tinham medo de que, se fizesse amor, morreria. É isso?

— É.

Alex deslizou as mãos sobre o peito de Laura, cobrindo-lhe os seios, e a sensação dela foi um misto de prazer e de dor.

— Você tem medo da morte, Laura? — Alex sussurrou, boca contra boca.

— Não! — ela respondeu, sem hesitar. — Não tenho medo da morte.

— Então, deixe-me mostrar-lhe a vida. — E, movendo-se mais para baixo, pôs a boca entre as pernas dela.

A reação de Laura foi tão imediata, tão poderosa, que ela tentou pular para o lado. Mas Alex segurou-a pelas nádegas e usou sua boca, sua língua, seus dentes, conduzindo-a a um caminho completamente desconhecido.

Laura começou a tremer. Agarrou os ombros dele enterrando os calcanhares no colchão, numa série de sensações que varreram todo seu corpo. Estava quase sem fôlego, sentia um nó na garganta, e uma necessidade de algo mais. Porém não sabia o quê.

E Alex penetrou-a.

A primeira onda a atingiu, num espasmo que a fez enxergar estrelas dançando ante seus olhos. A segunda onda veio, mais forte, e ela ouviu um gemido distante. Era seu próprio gemido.

Antes que os tremores passassem, Alex beijou-a, na certeza de que rompera a frágil barreira da inocência. E com a mão tapou-lhe a boca, amortizando o gemido.

Ouviram-se passos do lado de fora, passos vagarosos, regulares. Os dois continuaram quietos na cama, o corpo de Alex cobrindo o dela, até que o som dos passos desaparecesse.

Alex começou a se levantar, mas Laura agarrou-se a ele, em desesperado apelo mudo. E Alex penetrou-a de novo, dessa vez devagar, profundamente, conduzindo-a a um segundo orgasmo, devastador. E Laura achou que nada mais importava no mundo além daquela experiência que acabava de viver.

Alex penetrava-a de tal forma que ela sentiu o estremecimento que agitou o corpo dele. E essas ondas a atingiram com a força de uma absurda eternidade, uma pulsação, uma explosão tão violenta que ela achou que iria ficar reduzida a pedaços. Quis gritar, porém Alex cobriu-lhe a boca com a mão. E ela mordeu-a, enquanto seu corpo enrijecia.

A realidade e o tempo pareciam desaparecer num redemoinho louco. Laura continuou deitada, ouvindo os batimentos de seu coração que devia ter explodido cinco minutos atrás; ouvindo sua respiração que aos poucos voltava ao normal. Ergueu a mão e afagou o rosto de Alex. Os óculos haviam sumido, mas estava escuro demais para ela ver-lhe os olhos. Porém podia sentir a umidade das faces, o movimento do músculo que esboçava um sorriso. Sentia o amor de Alex, forte, seguro, silencioso. Um amor que não tinha necessidade de palavras.

— Machuquei você? — ele murmurou, com os lábios nos dela.

— Só por um segundo. Oh, meu Deus, mordi sua mão!

Alex sorriu e disse:

— Foi bom, sabe?

Laura suspirou, acomodando-se melhor embaixo dele, com as nádegas servindo-lhe de berço e os braços envolvendo-lhe a cintura. Alex continuava excitado, preso nos braços dela.

— Imagino que isso é o que chamam de orgasmo. É? — Laura perguntou, com voz calma.

— É. Na França chamam-no de la petite mort. A pequena morte.

— Bem — disse ela com toda a simplicidade —, se isso é a pequena morte, posso imaginar o que seja a grande morte.

E um súbito silêncio reinou no quarto, enquanto as chamas da lareira morriam lentamente.

 

As vozes aumentavam de intensidade, chamando-o, vozes chorosas, e ele sabia que seu tempo terminava. Laura permanecia deitada em seus braços dormindo profundamente, satisfeita, o coração pulsando com regularidade. E ele teve vontade de abraçá-la com mais força.

Mas tinha de deixá-la ir. Soubera disso por uma eternidade. O Tempo tinha pouco significado para ele. Laura sempre existira em alguma parte de seu ser, pelo que podia se lembrar. E continuaria sendo uma parte dele para sempre.

Mas estava na hora. Saiu da cama com cuidado para não perturbá-la. Ela devia estar exausta.

Laura acordaria mais tarde, sozinha. Um amante carinhoso não faria isso, mas ele não tinha outra escolha. Aquela era sua última noite, e fizeram amor repetidas vezes, em cada uma provocando reação mais forte que a anterior. Unira-se a Laura de corpo e alma. Mas no fim, sabia muito bem, não ficaria com nada.

Aquela longa noite teria de ser o suficiente para ele. A recordação permaneceria para sempre em sua memória. Mas a mesma recordação desapareceria da mente de Laura. Ela partiria para uma nova vida, cheia de saúde. Na nova vida, longa, seria forte e abençoada, coisa aliás que merecia. Seu encontro com a morte não seria nada mais que um sonho erótico que a perseguiria, talvez, em noites de tempestade.

O gelo derretera, mas o vento continuava forte, sacudindo os pinheirais. Quando a próxima tempestade chegasse, ele estaria longe. Contudo, experimentara a vida, embora ele fosse a Morte. Jamais se esqueceria disso de novo, de que era a Morte.

Vestiu-se no escuro, no terraço. Não diria adeus a Laura. Ela choraria sem nunca saber a verdade.

As vozes continuavam a chamá-lo. O velho Fitzpatrick, morrendo, há muito passara de sua hora. Outra voz, mais forte agora. Era uma voz de mulher, e bem próxima. Ele reconheceu-a e surpreendeu-se.

Deu-se conta de que teria de voltar ao seu trabalho. Tivera já uma breve amostra do paraíso. Precisava retornar à escuridão onde governava como chefe supremo. Iria embora, e sem volta.

 

Laura acordou de repente. A luz penetrava pelas janelas, e ela estava na cama de Alex. Sozinha.

Ergueu a cabeça olhando ao redor na esperança louca de que ele ainda estivesse lá. Mas sentiu, em cada célula de seu corpo, que Alex se fora.

Sentou-se na cama, tentando ouvir as batidas de seu coração. Mas o bem-estar que experimentara antes começava a desaparecer.

Saiu então da cama depressa, tomou um rápido banho e desceu à procura de Alex.

Ele estaria tomando café, sem dúvida. Ela precisava provar-lhe que não morrera na última noite. Ao contrário, conhecera o paraíso.

Não sentiu o aroma do café recém coado, sinal de que algo estava muito errado na casa. Já eram mais de sete horas. A Sra. Hawkins levantava-se sempre às cinco horas e as sete já servia o segundo café.

A sala de jantar estava deserta e fria. As lâmpadas de querosene haviam consumido o combustível, e ninguém as preenchera. A lareira não tinha lenha, e o silêncio era agourento.

Sua primeira idéia foi ver o pai. Ele continuava deitado na cama, respirando com dificuldade. Vivia, apenas vivia. Ou melhor, vegetava. Estava sozinho, nem sinal de Maria ou de membros da família.

— Sra. Hawkins! Maria! — Laura gritou enquanto se dirigia à cozinha.

A cozinha estava também vazia, escura e fria. Ela ouviu vozes à distância, mas, antes que tivesse chance de procurar de onde vinham, um raio iluminou a floresta.

Viu-os então no desfiladeiro. Jeremy arrastava uma mulher pelo barranco abaixo, mulher essa que só poderia ser Cynthia. E um vulto alto, vestido de preto, seguia-os. O vulto parecia flutuar.

Laura correu para o local. No meio do caminho sentiu que perdia as forças. Na véspera pôde correr sem dor; naquela manhã seu coração doía no peito, e respirava com dificuldade. Ofegava.

Mas prosseguiu correndo e viu que Cynthia lutava, gritando, porém sem condições de vencer Jeremy. E o vulto que os acompanhava de perto não dizia e nem fazia nada.

Laura caiu uma vez na terra fria e levantou-se. Quando chegou na beirada do barranco viu Jeremy com as mãos no pescoço de Cynthia enquanto ela esperneava desesperadamente.

— Você não morrerá por meios pacíficos! — Jeremy gritava, sacudindo o corpo dela com fúria. — Nada mata você. Nem o monóxido de carbono, nem o veneno. Por isso vou estrangulá-la com minhas próprias mãos e depois jogá-la no abismo. Garanto que não sobreviverá a isso, sua bruxa. Não vai ficar com meu dinheiro, sofri muito para ganhá-lo. Passei uma vida inteira adulando o velho, sendo um bom filho, fazendo tudo o que ele me ordenava. Mas chega! Tudo será meu, mais cedo ou mais tarde. E não lhe darei chance de se atravessar em meu caminho.

— Jeremy! — Laura gritou. — O que, por Deus, está fazendo? Solte-a!

Jeremy não obedeceu. E berrou:

— O que você quer, sua idiota? Vou matá-la também. Esperei muito pela sua morte, mas agora também chega!

Ele jogou Cynthia no solo. Laura não tinha idéia se a cunhada estava viva ou morta. Tudo o que sabia era que Jeremy se adiantava para ela, com a morte estampada no olhar.

Alex lá estava, envolvido pela neblina, obscuro, observando, não dizendo nada, não tomando nenhuma atitude para impedir o que estava acontecendo.

— Vai ficar aí em pé, sem fazer nada? — indagou Laura, afastando-se um pouco do irmão assassino. — Não vai impedi-lo que faça isso?

— Com quem está falando? — perguntou Jeremy, irritado.

— Ele por acaso faz parte do plano? — insistiu Laura. — Trouxe-o aqui para me conquistar, para me manter ocupada enquanto assassinava qualquer pessoa que estivesse em seu caminho, a fim de conseguir o dinheiro de meu pai?

Jeremy acompanhou o olhar da irmã e não viu nada de estranho.

— Não entendo o que está dizendo. Muito breve não haverá mais ninguém vivo aqui além de mim e você.

Como para desmenti-lo, Cynthia gemeu, e Jeremy apenas sacudiu os ombros.

— Ela não vai sobreviver depois que cair no abismo — disse. — E ninguém pode desconfiar de nada. Direi que minha mulher estava desesperada e que você apareceu tentando salvá-la de um suicídio. Na luta entre as duas, ambas caíram. Acho que isso funcionará muito bem.

Laura dirigiu-se a Alex:

— Não pode segurá-lo? — gritou.

— Não! — respondeu Alex com voz soturna.

A resposta de Alex chamou a atenção de Jeremy, e este se deu conta do que não vira antes.

— Há quanto tempo está aqui? — perguntou, quase em pânico.

— Desde o início. — Foi Laura quem respondeu. — Não vê que não pode prosseguir com isso? Mesmo que seja bastante forte para jogar Cynthia pelo barranco abaixo, mesmo que tente me matar, eu lutarei, lutarei até o fim, ainda que para tanto adquira cicatrizes…

— Já tem cicatrizes — berrou Jeremy. — Cortesia de seu amigo aqui presente. Ele já lhe disse que não poderá me segurar, embora eu não saiba a razão. Talvez imagine que eu possa ser generoso caso seja apontado como o maior suspeito do crime.

— Por que não o impede de praticar crimes, Alex? — perguntou Laura. — Quer que Jeremy me mate?

Ela receava um pouco pela resposta. Alex estava esquisito, diferente, ali meio oculto pela neblina, quase imaterial. Laura não podia adivinhar-lhe a expressão do olhar através dos óculos escuros.

— Ele não matará você — declarou enfim Alex.

— Com os diabos, é claro que a matarei — insistiu Jeremy. Laura estava tão perturbada pelo pânico que não viu Alex se mover. Num momento ele estava perto da clareira. No momento seguinte já punha a mão no ombro de Jeremy, suavemente.

Um raio iluminou o céu. Ela cobriu os olhos e à distância ouviu um grito abafado seguido de violento trovão.

Caiu de joelhos no solo úmido, apavorada, tremendo, enquanto o trovão sacudia a terra. Bem devagar, abriu os olhos.

Jeremy jazia a seus pés, os olhos abertos, mas com um ricto de morte nos lábios. Ela não teve dúvida de que o irmão estava morto. Fitou-o e notou que Jeremy não se movia.

— Você o matou — disse ela a Alex. — Como?

— Levei-o — Alex explicou. -— E não importa como. É melhor que você cuide da viúva agora.

Cynthia estava encolhida junto à grade baixa, tremendo, e respirando fundo para provar a si mesma que estava viva. Laura ajoelhou-se ao lado dela e tomou-a nos braços, afagando-lhe os cabelos.

— Tudo bem, Cynthia — sussurrou. — Ninguém a atacará mais. Acabou.

Cynthia arregalou os olhos, horrorizada. E gemeu:

— Jeremy queria me matar…

— Ele está morto agora, Cynthia. Não poderá mais atingi-la.

Cynthia virou o rosto e viu um vulto na clareira. Gritou, apavorada:

— Não! Não deixe que ele se aproxime de mim. — Ela agarrou o braço de Laura.

— Cynthia, já lhe disse, Jeremy está morto. Não a incomodará mais.

— Não é Jeremy — Cynthia falou com voz embargada.

— É… essa coisa. — Ela encarava o vulto escuro, sombrio, de Alex.

— Laura!

Laura ouviu a voz do pai do terraço acima de sua cabeça, e também uma confusão de vozes, pois Maria e a Sra. Hawkins discutiam a alguns passos de distância.

Ela largou o braço de Cynthia e olhou fixamente para o homem ao lado dela. E se deu conta, pela primeira vez, de como Alex possuía pouco de humano.

— Quem é você, Alex? Acho que o conheço há anos. Por quê?

— Não deixe que ele a toque! — William berrou do terraço. Laura ergueu a cabeça para ver melhor o frágil pai apoiado no gradil, sacudindo um dedo para Alex. — Essa maldita criatura não pode levá-la, Laura!

— Quem é você? — insistiu Laura.

Alex afastou-se, como se tivesse medo de que ela o tocasse. Estranho, pensava Laura, todos achavam que ela é que deveria ter medo.

— Não sabe quem é esse homem? — gritou Cynthia. — Não o reconhece? É a Morte! E veio para buscá-la!

Laura encarou Alex. Por incrível que pudesse parecer, sentiu imenso alívio. Ela o conhecia há muito, sim. Nos momentos tenebrosos de sua vida, Alex estivera presente, mas confortando-a. Era parte dela, e agora sabia por que a confortara sempre.

— Não, não vou levá-la — ele disse com voz firme.

— Não minta para minha filha — William ordenou. — Leve-me em lugar dela. Sou um velho, já vivi minha vida.

— Não vou levá-la — repetiu Alex.

— Por que não? — Laura perguntou.

— Alguém mais virá buscar você, quando sua hora chegar — declarou ele, porém Laura pôde sentir o desespero naquelas poucas palavras.

— Por que não você? — ela insistia, dando um passo ao encontro dele.

— Porque sou apenas um mensageiro, nada mais que isso. Se a levar, será apenas para passá-la adiante.

— E se eu não quiser ir?

— Não sabe o que está falando, Laura.

— E se eu quiser ficar com você, Alex?

— Laura, não! — William gritava, porém a filha o ignorou.

— E se eu quiser ir com você, ficar com você para sempre? — ela prosseguia insistindo.

— Não seja tola — Alex também insistia. — Não estamos falando de um condomínio no mundo dos mortos. Estamos falando da eternidade, de uma interminável escuridão, de um vazio.

— Não será vazio — ela contestou com simplicidade — uma vez que você estará lá.

— Não tem idéia do que me pede, Laura — disse ele.

— Ouça-o, Laura — Cynthia suplicou — e afaste-se desse homem.

— Não! — Laura estendeu a mão a Alex.

— Não deixe que eu a toque — pediu Alex. — Se o fizer, você morrerá.

— Mas você me tocou antes.

— O problema é que agora voltei a ser o que realmente sou.

— E o que você é agora?

— Sou o Poder, a Energia, a Morte.

— E o Amor — ela acrescentou.

— Não se trata de um conto de fadas, Laura! — Alex exclamou, com voz cheia de desespero.

— Você me ama, eu sei.

— Que sabe a Morte sobre o amor? — ele arrancou os óculos do rosto. — Olhe para mim, e diga-me que não tem medo.

Laura ouviu Cynthia gritar, ouviu as preces das mulheres, ouviu o gemido do pai. Nada disso a perturbou. Via os olhos de Alex pela primeira vez.

Eram escuros, profundos, e ela entendeu por que tantas pessoas tinham medo dele. No fundo daqueles olhos Laura se enxergou claramente e enxergou seu futuro. Uma noite sem fim que não tinha nada além de Alex.

— Por que hei de ter medo? Você sempre esperou por mim, sempre esperará, a menos que eu o deixe ir.

— Laura! — William gritou, mas era tarde demais. Laura atirou-se nos braços vigorosos de Alex.

Uma luz muito clara, branca, apareceu no céu, quase a cegando. Um raio cortou o espaço, um trovão sacudiu a terra. E Alex abraçou-a com força.

Ficaram assim, agarrados, no meio de um verdadeiro furacão. Laura ergueu o rosto e não viu nada de monstruoso nos olhos de Alex. Viu neles apenas o venturoso poder do amor.

— Você acabou de perder tudo — disse Alex, quase num sussurro. — Você me deu a eternidade.

Laura sorriu e respondeu:

— A eternidade com certeza será tempo suficiente para nós.

Em seguida ela fechou os olhos enquanto Alex a beijava.

A eternidade apenas começava...

 

                                                                                            Anne Stuart

 

 

                      

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