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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALMAS EM CONFLITO / Corin Tellado
ALMAS EM CONFLITO / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ALMAS EM CONFLITO

 

Aquele homem tinha um passado amargo, todos sabiam, mas ninguém ousava comentar. Lars Milman era frio, arrogante, ignorava a todos e era temido por todos. Dyan foi trabalhar na casa dele, Lars conseguia desestruturá-la com aquele jeito indiferente. Todos a preveniram contra ele, mas para Dyan já não havia mais jeito, ele a dominava completamente... era impossível viver sem ele.  

  

"Querida Srta. Marie:

Recebi sua carta, na qual expõe sua inquietação por meu silêncio. Realmente, há três meses que me enviou a esta pequena cidade chamada Medicine, e só escrevi uma carta, assim que cheguei aqui. Naquela carta lhe explicava como era isto, a família com a qual vivia e situação deste velho palacete, perto das minas de hu¬lha, das quais é dono o Sr. Milman, o pai de Desi. Não é que tenham ocorrido coisas nestes três meses, mas... não consigo compreender muitas coisas que acontecem.

Primeiro, nunca vi a Sra. Milman. Segundo, o Sr. Milman é um homem fechado, introvertido, frio e calculista. Esse homem passa a vida viajando, ou metido nas minas. É déspota com os empregados, frio com sua filha, indiferente com seu pai e ignora-me por completo. Bem, quanto a isto, não me incomodo, pois vim para cá a fim de educar Desi, e fora disso nada tenho que fazer ou me preocupar. No entanto, vivo num ambiente mudo, distante, como se a cada dia que passa a gente espera que ocorra algo, mas nunca ocorre nada.

O pai do Sr. Milman, Sixto Milman, é bem mais comunicativo que seu filho, mas vive meio longe daqui. Não traba¬lha e mal aparece por aqui, salvo aos do¬mingos, quando vem almoçar, mas não o vejo quase conversar com o filho. A senhorita, quando me falou deste emprego, ao se despedir de mim na estação de Re¬gina, disse-me reiteradamente que a Sra. Milman estava enferma. Eu penso que uma pessoa doente ou sã, morando aqui em casa, devia ser vista alguma vez. Mas tal não ocorre. Perguntei a Desi por sua mãe, e ela só encolhe os ombros, olha para não sei onde e não responde, ou, se o faz, nota-se que a menina não tem idéia de quem é sua mãe.

— Claro que nada disso devia me importar, já que sou apenas a preceptora. Mas creio que sou alegre por natureza. Gosto de ruído, de movimento, de vida. Aqui, todos os dias são iguais. É cansativo, até.

Tenho os domingos livres, mas como fico com pena de Desi, quase não os apro¬veito, porque saio a passear com a menina. Pego o carro que fica à nossa disposição e vou até o centro de Medicine; entra¬mos num cinema ou andamos pelas ruas. Um desses fins de semana, pedirei licen¬ça e irei aí ao colégio, para vê-la. Tenho vontade de trocar impressões com a senhorita sobre esta família. Desde já, quero agradecer-lhe por me proporcionar este emprego, que é tão bem remunerado, embora eu preferisse trabalhar numa esco¬la. Ou um lar mais humano, acolhedor. A única pessoa daqui que merece minha atenção é Desi, a menina. Também o avô, para ser justa. Mas me parece que o velho vive distante moralmente de seu filho.

Noto também que Desi não ama seu pai, e que, aos seis anos, já sofre com a indiferença deste. Passa-se semanas, sem que o vejamos, e quando chega e a menina corre ao seu encontro, ele só diz: "Olá, Desi", e segue seu caminho para o escritó¬rio, como se a filha fosse para ele uma tremenda carga.

Não sei quando irei vê-la, Srta. Marie, mas será tão logo eu possa. Tenho curiosidade em saber coisas desta gente com quem convivo, deste homem ainda jovem, que age como déspota com os empregados e é tão seco com a própria filha.

Um abraço, Srta. Marie. Avisá-la-ei de minha chegada a Regina, lembranças de sua discípula e amiga. Dyan".

Não tornou a lê-la.

Eram sete horas da tarde, tinha tempo para ir ao centro, colocar a carta no cor¬reio.

— Mike, vou dar um pulo no centro — avisou ao mordomo, já no vestíbulo.

Mike se voltou. Olhou-a com inexpressividade.

— De acordo, Srta. Dyan. Mas... não é muito tarde já? Cairá a noite logo.

— Voltarei de táxi. Agora, irei cami¬nhando O ar da tarde me agrada.

— Como queira, senhorita.

   

— Lars, todos os dias subo à mina para vê-lo.

Lars já o sabia. Mas entendia que nada tinha a falar com seu pai.

Quando ele completou vinte e quatro anos, seu pai lhe disse: "Estou cansado, Lars. Casei-me velho, trabalhei muito e tenho intenção de deixar todo este negócio das minas. Acha-se com forças para conduzi-lo?"

Acabava de receber o golpe mais duro de sua vida. Por isso talvez se sentiu com forças para pôr aquele negócio para a frente...

"Claro", foi sua breve resposta.

— Sendo assim — dissera seu pai — retiro-me para minha casinha de campo. Você agora é o dono absoluto de tudo isto.

Na época, a empresa era rica, mas no momento estava riquíssima, graças ao trabalho de Lars.

Lars Milman era um homem alto, firme, nem feio nem bonito. Olhos castanhos, frios. A boca de lábios desdenhosos, nariz aquilino, expressão ausente.

— Lars — disse o pai. — Penso que já é hora de deixar essa frieza de lado.

Lars levantou vivamente a cabeça.

— Compreenda. Você não faz concessões. Não é amável com os empregados... Não escuta queixas...

— Tem alguma de mim? — indagou.

O velho Milman moveu-se inquieto na cadeira.

Era inútil tentar dialogar com seu filho. Em vez de responder, ele fazia breves interrogações.

— Eu não, Lars, mas sou seu pai. Ja¬mais me meti em seus assuntos — e sú¬bito, após uma pausa: — Antes, quando deixei tudo isto em seu poder, você não era assim.

 Lars se levantou. Tirou um charuto da caixa e mordeu sua ponta. Acendeu-o.

— Não falemos do antes — cortou secamente. — Fumo de má qualidade. Terei que trocar de fornecedor.

— Não falo só dos empregados — disse Sixto Milman, — Falo de sua filha, de tudo...

— Falta algo a minha filha?

— Bem... isso não, é claro.

— Tem até uma professora de lín¬guas — cortou Lars, de novo. — Uma moça a instrui de verdade.

— E acha que isso é tudo?

— Tudo! — e, olhando para fora, acrescentou: — Tenho que sair, papai.

E apanhou o chapéu, retirando-se.

O pai seguiu atrás dele. Tentou fitá-lo de frente, mas os olhos frios do filho o desconcertaram.

— Lars... não pode ser assim tão duro.

— Sou como sou — lançou uma olha¬da ao relógio. — Outro dia nos veremos.

— Quando? — alterou-se o pai. — Porque você nunca vai a minha casa. Será que nada o comove? Terei sido um mau pai para você? Só tenho você, Lars. E sem¬pre me senti orgulhoso de ser seu pai. Mas agora...

— Agora?

E a interrogação tinha mais soberba que humildade. O pai já o sabia.

— Agora não. Há muito tempo. Desde que...

Cortou-o, rápido. Com um gesto. Com um olhar severo.

— Até outro dia, pai.

— Lars, escute-me.

— Não, pai. Boa tarde.

Sixto Milman, no transcurso daqueles últimos anos, abordou várias vezes seu filho com o fim de dialogar, para que Lars se abrisse, falasse, desabafasse sua amargura, seu despeito. Mas era inútil.

Desde aquilo... Lars nada entendia.

Ou nada parecia entender. E isso já fazia quatro anos. Sim, porque parecia enten¬der. E isso já fazia quatro anos. Sim, por¬que Desi tinha apenas três quando aquilo ocorreu. E ia fazer sete.

Viu-o sair. Entrar no Jaguar negro e partir.

— É inútil tudo o que fizer, Sixto — disse uma voz atrás dele. Voltou-se.

Seu velho amigo, seu empregado mais fiel, estava ali.

 

— O ditafone estava ligado — expli¬cou Bot. — Ouvi tudo de minha sala — ele mesmo desligou o ditafone. — Ocorre às vezes. Terei que mandar arrumá-lo. Leve isto, Maud. Está estragado.

— Sim, senhor.

— Que mandem outro logo, antes que o Sr. Milman sinta sua falta.

— Claro, Sr. Lazau.

A secretária se foi com o aparelho es¬tragado, e Bot se voltou para seu velho amigo, que parecia uma estátua.

— Lars nada entende — disse. — É inútil o que disser.

— Mas sou o pai dele.

— E eu sou seu conselheiro. Confia tudo a mim, menos seus assuntos particulares.

E, como o velho Sixto nada dizia, Bot acrescentou:

— Vamos tomar algo no bar da empresa.

— Meu filho vai lá alguma vez?

Bot, que tinha mais ou menos a mesma idade de Sixto, olhou para seu amigo com expressão estranha.

— Seu filho, no bar? Nunca.

— Antes, ele ia. Lembra-se?

— Isso foi há muito tempo.

Caminharam os dois pelo corredor, em direção ao elevador.

— Não voltou a ver Daniel, não é?

— O que disse?

— Nada, nada, Bot. Sou um tolo.

— Não pronuncie esse nome aqui.

— Às vezes penso que... devíamos pronunciá-lo todos os dias.

— E todos os dias haveria uma confu¬são. Esqueça isso, Sixto. Foi um tremen¬do golpe para seu filho. Afinal, Daniel era seu melhor amigo. Um cara em quem Lars acreditava.

— Foi odioso, sim.

— Não soube mais dele. Lars devia ma¬tá-lo. Mas, sua frieza para reagir, lhe diz logo que tipo de pessoa ele é. E se é assim e se comporta dessa maneira é que ele, para tais casos, naquela época, era íntegro.

— Não acha que continue sendo?

— Não sei. Quando se recebe um golpe baixo dessa envergadura, não se sabe o que acontece com a pessoa. Entre — acres¬centou suavemente.

Sixto Milman se viu no amplo bar, onde àquela hora havia vários emprega¬dos comendo, outros bebendo algo, ou só fumando.

— Sempre que venho aqui... — co¬mentou Sixto — me lembro de quando meu pai faleceu, e me vi sozinho com tudo isto — sorriu levemente. — Não tive tem¬po para me casar jovem. Por isso... quan¬do meu filho disse que se casava, sendo tão jovem... dei-lhe minha permissão. Não estava muito de acordo, mas ao mesmo tempo tive medo de que ele perdesse a chance, como eu a tinha perdido... Nun¬ca devia ter dado aquele consentimento.

— Devia. Ninguém podia prever que ia dar errado.

Aproximaram-se do bar. O garçom dei¬xou tudo para atender ao Sr. Milman. Todo mundo o saudava. Todos os emprega¬dos tinham algo agradável para dizer-lhe.

— Estou emocionado — sussurrou Sixto.

— Claro. Devia vir aqui mais vezes. Afinal, é uma forma para que os outros desculpem um pouco a ausência de seu filho. Eles não entendem que, tendo tudo ele seja um déspota, nem atribuem tal despotismo e frieza ao passado. Acham que, tendo tanto, já devia ter esquecido. Mas Lars não é dos que esquecem, e faz dos outros umas vítimas de seu ódio.

Sixto assentiu.

— O mais duro, no meu modo de ver, é o pouco carinho que demonstra pela fi¬lha.

— Tem certeza disso?

Olhou Bot, perplexo.

— Você não tem?

— Pois confesso que não. Talvez ele oculte sua ternura sob essa máscara de indiferença. Mas... é real? Estamos se¬guros de que o é?

— Os fatos...

— Não se fie nos fatos.

— Tenho de fiar-me.

Tomou a bebida e acendeu seu cachimbo.

— Bot... estou cada dia mais descon¬certado e, o que é pior, mais desgosto. De¬si é uma menina adorável, cheia de cari¬nho, de afeto...

— Mas é o retrato vivo de... Hayley.

— Cale-se!

— Para quê? Você e eu podemos falar disso.

— Não quero falar — baixou a voz. — Cada dia me horroriza mais pensar nis¬so, que dirá mencioná-lo — passou os de¬dos pelo cabelo. — Bot, aquele foi um tre¬mendo golpe para mim.

E sacudindo a cabeça, para esquecer tudo aquilo, mudou de assunto.

— Bot, jante hoje comigo. Sinto-me muito só. Poderemos falar sobre a mina. Sobre Lars não. Tudo isso que ele está fa¬zendo me aborrece demais. Sei que ele so¬fre, coitado, mas os outros não têm culpa de nada.

— Eu o compreendo, Sixto.

 

Do centro, ao palacete dos Milman, eram só dois quilômetros. Dyan nunca os fez ao entardecer, por isso calculou mal. Pensou que daria tempo de chegar em ca¬sa ainda com luz.

Pusera a carta no correio. Pensava que, no próximo fim de semana pediria licen¬ça para visitar a Srta. Marie, com quem falaria sobre tudo aquilo.

Tinha vontade de largar tudo, mas tomara afeto pela menina, Desi. Adorava-a, e não entendia como Lars Milman não era carinhoso com ela.

Anoitecia.

Dyan pensou que fora uma estupidez de sua parte ter saído de casa tão tarde. Podia ter chamado um táxi, mas não o fez, e estava agora na estrada escura.

Tomou a pensar em Desi, a quem nada faltava. Tinha roupas finas, brinquedos caríssimos, uma professora particular. Mas lhe faltava carinho, afeto, ternura.

Onde andaria a mãe daquela criança?

Quando a diretora do colégio lhe falou que tinha um bom emprego para ela, vibrou de contentamento.

Morto seu pai, declarada a sua ruína, tinha que trabalhar para viver. Era du¬ro, sim. Fora uma menina rica, estudara em colégios caros, tivera tudo do bom e do melhor. E de repente... tinha que ganhar a vida.

Não conheceu sua mãe, mas tivera muito carinho e compreensão da parte da Srta. Marie, a diretora do colégio...

Súbito, ficou atenta. Um carro ilumi¬nou o caminho. Só podia ser da casa dos Milman, pois era uma estrada particular, aquela.

Estremeceu.  Reconheceu o carro  de Lars Milman.

Ele não podia deixar de vê-la. Se não parasse por vontade própria, não pediria carona, fingiria que não o via.

Lembrou-se do dia em que chegou a Medicine. Um criado, de nome Demetrio, e que nunca mais vira — devia tratar-se do motorista de Lars Milman, que trabalha¬va na mina — a esperava. Levou-a pra o palacete. Ficou dois dias sem conhecer Lars Milman.

Achara tudo principesco, maravilhoso. Desi, um amor de criança, os criados aten¬ciosos, o velho Milman encantador, pois nesse dia ele se achava no palacete.

Dois dias depois, recebeu o recado de uma criada, de que o patrão desejava vê-la.

"É a pessoa enviada pela Srta. Ma¬rie".

Tinha uma voz rouca. Fria. Foi con¬ciso, rápido. Apresentou-se e foi logo di¬zendo o que queria dela.

"Trate minha filha com sobriedade. Não quero uma menina dengosa, nem cheia de sentimentalismos. Quero que lhe ensine os idiomas que conhece. Se não me engano, domina bem o francês e o espa¬nhol".

"Sim, senhor".

"Não dormirá com ela o quarto. Não quero a menina medrosa. Tem que enfrentar a vida, tal como ela é. E sozinha. Portanto, se lhe pedir para dormir com ela, não o faça".

Falava monotamente, quase sem fi¬tá-la.

Ela quis dizer-lhe muitas coisas, mas nada disse. Ele ainda falou:

"A menina, dentro de duas semanas, completa seis anos. Espero que não a con¬verta numa menina manhosa".

E ainda acrescentou:

"Domingo será seu dia livre".

Depois, disse-lhe quanto pagava e deu por terminada a entrevista. Dyan teve vontade de mandá-lo ao diabo, e ir-se em¬bora dali, mas nada fez...

Deteve seu pensamento quando o carro passou por ela, sem se deter.

"Déspota cruel", pensou Dyan, angustiada.

 

Foi dois dias depois, com a certeza de achá-lo em seu gabinete particular, que decidiu pedir-lhe aquela licença.

Na realidade, sentia necessidade de conversar com Marie. De pedir-lhe, até, um outro emprego mais... humano? Pelo menos mais reconhecido.

Amava Desi.

Sentia que a menina necessitava dela, mas... precisava pensar em si, antes de mais nada. Naquela casa, vivia como que traumatizada.

— Gostaria de falar com o patrão, Mike — disse ao mordomo.

O velho a fitou, admirado.

— Pediu-lhe... audiência?

— Não. Quero que fale com ele agora.

— Bem...

— Mike, preciso ver o Sr. Milman — falou com firmeza. — agora.

Mike não queria ser desagradável a Dyan. Era uma moça encantadora e to¬dos a estimavam, mas ele sabia como era o patrão, que não tolerava que o inter¬rompessem.

— Não posso entrar, Mike?

O homem apertou o espanador na mão, com ansiedade.

— É que não foi ele quem lhe pediu para vê-lo.

— Sou eu quem quer vê-lo. Não basta?

Mike respirou fundo.

— Não.

— Então, Dyan, por que não vai dar um passeio com Desi? — e persuasivo: — Eu a estimo muito, mas... Compreenda... não estou autorizado a interromper o pa¬trão.

Dyan também tinha um certo temor de Milman, mas necessitava pedir-lhe aquela licença, por isso armou-se de cora¬gem para enfrentá-lo.

— Está bem, Mike — disse suavemen¬te, compreendendo a posição do velho. — Eu assumo a responsabilidade sozinha. Te¬nho que ver o Sr. Milman, e agora, antes que ele vá para as minas, ou saia em viagem.

— Irá esta mesma noite a Montreal — disse o mordomo. — Em seu avião par¬ticular.

— Mais um motivo para eu me apres¬sar. Saia, Mike. Eu mesma baterei à porta.

Mike não saiu. Estava visivelmente nervoso.

— É que ele — murmurou, trêmulo — não atenderá.

— Não...?

— O Sr. Milman só responde quando marca com alguém. E só dá ordens a mim ou a seu secretário. Quero dizer — notava-se seu nervosismo aumentando — não deixa ninguém entrar em seu escritório, a menos que ele queira ver deter¬minada pessoa, e marque a entrevista por meu intermédio, ou do seu secretá¬rio.

— Isso é absurdo. Sempre foi assim?

Oh, não! Nunca!

Mas agora o era, e não adiantava fa¬lar no passado. Portanto, Mike encolheu os ombros.

— Está bem — disse Dyan, compre¬endendo e aceitando tal discrição — De todo jeito, baterei a esta porta.

— Srta. Dyan...

— Deixe comigo, Mike.

O mordomo se apressou em fugir da¬quele corredor.

 

Arrumava seus documentos na pasta.

Era cansativo viajar tanto, mas tinha de fazê-lo. Tomara conta da mina, tinha que dar duro para vê-la crescer.

Ouviu uma batida na porta. Mas ignorou-a.

Na realidade, naquela porta ninguém podia bater, a menos que ele ordenasse a vinda de determinada pessoa.

Continuou arrumando alguns papéis, quando de repente as batidas se tornaram mais fortes.

Quem se atrevia?

Tomaram a bater com firmeza.

De repente, quando julgou que a pes¬soa tinha ido embora, a porta se abriu.

Lars levantou a cabeça com precipita¬ção.

A Srta. Dyan?

— Bom dia, Sr. Milman — disse ela, entrando.

O assombro e a ira de Lars eram tão grandes, que ele mal podia falar.

Dyan se adiantou uns passos. Parou ante a mesa dele.

Lars nunca reparara nela. Mas naque¬le instante a via. Era bonita. Muito bonita e jovem. Tinha os cabelos de um castanho claro, abundantes, penteados com simpli¬cidade, uma simplicidade que lhe dava uma graça especial. Tinha uns olhos deliciosamente azuis, como turquesas, num rosto de traços irregulares, mas incrivelmente atrativos. Usava calça canela, suéter mar¬rom de gola alta, com um lencinho ama¬relo no pescoço.

Irritava-o aquela perfeição e, mais ain¬da, aqueles olhos azuis. Fixos nele com naturalidade.

— Desejo falar-lhe, Sr. Milman.

Foi grosseiro. Não se levantou. Senta¬do estava e sentado ficou, seus olhos pa¬receram diminuir, e a boca crispar-se.

— Isso para a senhorita parece normal.

Ela levantou uma sobrancelha, descon¬certada.

— Entrar em meu gabinete sem autorização.

Dyan mordeu os lábios.

— Bati à porta — disse, com suavida¬de. — Bati várias vezes. Sabia que o se¬nhor estava aqui.

Tampouco Lars se levantou. Mas sua voz cortante terminou logo com aquela visita inesperada e não desejada.

— Saiba que em meu gabinete só entra quem é chamado. Procure não esque¬cer, no futuro. Se tem algo a falar, pro¬cure meu secretário — e indicou com a mão. — Bom dia.

 

Parecia até que Mike a esperava em al¬gum canto do corredor porque, quando ela passou, furiosa, o mordomo surgiu a sua frente.

— Srta. Dyan... eu avisei.

A jovem se deteve. Custou a poder fa¬lar, tal era sua raiva.

— Acaso o senhor sabe o que ocorreu lá dentro?

Mike fez expressão desolada.

— Não precisava ter presenciado. Já sei — sussurrou. — Eu avisei-a.

— Quem é o secretário dele?

— O Sr. Hamilton. Oscar Hamilton.

— Ah — respondeu. — Esse jovem calado, que entra e sai e não diz uma pa¬lavra.

— É pouco falador, sim, mas a aten¬derá. Para isso está em seu gabinete — es¬tendeu o braço. — Por ali, Srta. Dyan, se tiver algo a dizer ao Sr. Milman, fale com o Sr. Hamilton. É tudo que posso dizer-lhe.

— Mas por que tanto mistério? Tanta rigidez? Parece que somos marionetes, e não seres humanos, às ordens de um homem.

— Para o Sr. Milman, não há outro ser humano, além dele.

— Se não me engano, o senhor já estava aqui quando o Sr. Milman nasceu.

Mike fez cara de bobo. Mas não teve como se negar a falar com aquela jovem meiga e delicada, que tratava a todos com tanta consideração.

— Claro. Naquela época, porém, tudo era diferente, senhorita.

Voltou-se rápido. Como que fugindo. Como se tivesse medo de dizer algo mais.

Mas Dyan foi no seu encalço e o se¬gurou.

— Mike, onde está a Sra. Milman?

Isso, Mike não responderia.

Claro, ignorava-o, mas podia dizer ao menos por que o ignorava. No entanto, disse apressadamente:

— Pedirei licença ao Sr. Hamilton para que a receba.

E se apressou em bater à porta ante ã qual chegava naquele momento.

— Mike...

Mas a voz firme de "entre" salvou mais uma vez Mike de uma situação embara¬çosa.

— Pode entrar, Srta. Dyan — disse.

— Depois o procurarei, Mike.

Ele nada poderia dizer. Era velho de¬mais. Expunha-se a muito, contando o pouco que sabia, mas aquele pouco, para uma pessoa viva como a Srta. Dyan, era mais do que suficiente.

E ele não podia arriscar-se a perder o emprego.

Dyan entrou.

— O que deseja, Srta. Dyan?

— Estive na sala do Sr. Milman...

Oscar levantou uma sobrancelha.

— Ele a convidou...?

— Não. Eu o procurei.

— Ah.

E pareceu desconcertado. Olhava para Dyan com admiração. Porque era bonita, em primeiro lugar, e por¬que se atrevera a visitar seu chefe, sem ter sido convidada.

— O Sr. Milman me declarou — disse Dyan, sem aceitar o convite para sentar-se — que o que eu tivesse e lhe pedir ou dizer... o fizesse por seu intermédio.

— Pode falar.

Era jovem e agradável. Quantos anos? Não mais que vinte e cinco.

Tampouco o Sr. Milman era velho. Apesar de seu semblante carregado, até com algumas rugas e fios prateados nas têm¬poras, ela sabia que não passava dos trinta.

— Preciso de uma licença para o fim de semana.

— Só... isso?

— Só.

— Podia ter-se dito por telefone, em¬bora — um suave sorriso — me agrade muito recebê-la, Srta. Dyan. Diga-me, irá sozinha ou levará Desi?

— Desi? — espantou-se. — Com que fim? Se pensasse levar Desi, não pediria licença.

— Teria que pedir, sim. Mas diga-me, vai levá-la junto?

— Não.

— Vai... longe?

— A Regina.

— E voltará?

Estava farta de tanta pergunta, mas respondeu:

— Voltarei segunda-feira de manhã cedo.

Oscar Hamilton, que estava de pé, cor¬reto e afável, não retrucou em seguida.

— Importa-se que eu responda dentro de... uma hora?

Não pôde se conter. Até ofendida estava.

— Então, além de tudo, é ele quem tem de dar seu consentimento? Como se entende isso?

— Acalme-se, senhorita.

— Sabe o que mais — estava vermelha, sua voz vibrava — terei que pensar se devo voltar ou não a Medicine.

— Desi necessita da senhorita.

— E acha que o pai se interessa em que ela necessite de mim?

— Srta. Dyan...

Não soube o que Oscar ia dizer-lhe, por¬que se dirigiu à porta, acrescentando, cortante:

— Esperarei uma hora. Amanhã eu irei a Regina, com ou sem permissão. Se for sem ela, não voltarei.

E saiu, fechando a porta sem ruído. De boa vontade teria dado com a porta. Mas sua esmerada educação a impediu.

 

Parecia não escutar, mas o fato é que não perdia uma palavra. Não lhe interessava o assunto, mas a personalidade da professorinha despertava sua curiosidade.

— Ela tem um gênio forte, Sr. Milman. Ficou muito ofendida, aborrecida.

Lars continuou fingindo que lia qualquer coisa sobre sua mesa.

— Senhor, ela deseja saber se lhe dá a licença.

— Licença?

E virou outra folha.

Evocou aqueles olhos azuis. Há muito tempo que não prestava atenção nos olhos de uma mulher.

A boca da preceptora era convidativa. Feita para beijar. Talvez ela mesma não o soubesse...

— Diga ao contador para verificar is¬to. Há um engano, e não admito erros.

— Falarei, senhor. Como eu dizia...

— Já sei.

Oscar esperou. Conhecia seu chefe, e sabia que, se insistisse muito junto a ele, a garota seria despedida.

— Pedi informações, antes de contra¬tar essa moça — atreveu-se a dizer, mesmo assim. — O senhor sabe que a Srta. Marie é de inteira confiança... E ela en¬viou-me o melhor que tinha. Uma moça de boa família...

— Cale-se! — gritou, perdendo sua habitual compostura.

Oscar apertou os lábios.

Já sabia por que tinha de calar-se. E por que aquele homem de aspecto rude se descontrolara.

Ele nasceu e se criou em Medicine, e não ignorava o caso do poderoso Milman.

— Desculpe, senhor.

— O que deseja essa jovem?

— Licença para ir a Regina este fim de semana.

— E por quê?

— Não disse. Ela é de lá, senhor. Era uma rica herdeira até há uns dois anos. Educava-se, como sabe, no melhor colé¬gio da cidade... Seu pai se arruinou, se matou e...

— Conheço a história — cortou brus¬camente. — Ela pode ir. E agora, chame-me o contador.

— Sim, senhor.

Oscar saiu, limpando o suor do rosto. Ele  conheceu  homens  amargurados, mas como aquele... nunca.

Bem, era verdade que tinha motivos, mas...

Oscar encontrou Mike no jardim, regando umas plantas.

— Onde posso encontrar a Srta. Dyan, Mike?

— Aqui — disse a jovem, aparecendo.

Oscar olhou-a com admiração. Sabia que era bonita, mas nunca a vira tão de perto.

— O Sr. Milman deu-lhe a licença pedida — disse. — Ele é um homem muito compreensivo.

— Acha mesmo? Bem, não me interessa como é esse senhor. Não gosto do seu modo de ser, e creio que nem o senhor.

Oscar ia dizer algo, mas Mike inter¬veio:

— Preparo suas coisas, senhorita?

A moça olhou-o com simpatia,

— Obrigada, Mike, não é preciso. Pa¬rece que há séculos deixei de ter criados. As vezes, penso que é conveniente um gol¬pe assim, para se dar valor à felicidade e à desconsideração dos outros.

E, já se afastando, acrescentou:

— Pena que essa lição não a recebe um homem como o Sr. Milman.

Oscar e Mike trocaram um olhar elo¬qüente, que Dyan não surpreendeu, pois já subia a escada. O olhar de ambos parecia dizer: "Passou por uma prova muito pior".

 

— Escute, Dyan, não seja tão suscetível.

Dyan Hawn se moveu nervosa na cadeira que ocupava. Tinha a Srta. Marie em frente a ela.

Era uma senhora idosa, de expressão serena, porte majestoso. Dirigia aquele elegante colégio de moças, há quinze anos. Dyan se criara ali desde os cinco anos. Só saía nas férias, e assim mesmo quan-do seu pai, que era diplomata, podia ir buscá-la.

Quando o Sr. Hawn faleceu, deixando dívidas e mais dívidas, a Srta. Marie de¬cidiu que a menina continuaria no colégio. Quando surgiu aquele emprego, aconselhou a Dyan que o aceitasse, pois estaria num ambiente fino, ganharia bem e teria casa e comida.

— Não entendo o que há nessa casa — dizia Dyan nervosamente. — Não consigo entender um homem como o Sr. Milman, por seu despotismo, sua falta de humanidade, sua frieza para com a filha e tudo o que faz com seus empregados, a quem trata como pequenos insetos imun¬dos. Sabe, depois de muito pensar, cheguei a uma conclusão.

— Não estará deixando correr demais sua fantasia, Dyan?

A jovem inclinou-se para a frente e fitou sua amiga e diretora.

— Srta. Marie, a senhora me disse que a mãe de Desi estava doente. Pois eu lhe garanto que naquela casa não há nenhuma mulher doente, nem mesmo presa. Já entrei em todos os aposentos, inclusive no quarto do Sr. Milman, quando ele esteve em Toronto.

Marie nada disse. Deixou que Dyan de¬sabafasse à vontade.

— A única pessoa honesta e afável que encontrei naquela casa é o Sr. Milman pai, que quase não aparece e nenhuma ascendência tem sobre o filho.

— Na realidade, há bastante tempo que o pai cedeu toda a sua parte ao filho.

— Srta. Marie, o que sabe sobre essa família?

Marie não pestanejou.

— Nunca os vi em minha vida. Mas em Regina ninguém ignora que os Milman são poderosos por seus negócios de minas, de fábricas de farinha e outras coisas mais. Aqui, querida Dyan, veio contratá-la um jovem chamado Oscar Hamilton.

— O secretário particular do Sr. Milman.

— Isso mesmo. Aqui se educaram umas primas suas. Uma vez, veio visitá-las, conversamos, disse-me que estava procurando uma moça educada para instruir Desi, e assim foi tudo.

— Srta. Marie — a voz de Dyan vibra¬va um pouco. — A senhora nunca me men¬tiu.

A diretora se agitou.

Na verdade, nunca mentiu, mas teve que calar certas verdades, contadas por Oscar Hamilton, e de modo algum poderia revelá-las a Dyan. Não que não confiasse na jovem, mas é que Hamilton lhe pedi¬ra para jurar que não falaria.

— Claro que não, Dyan...

— Sabe o que ocorreu na casa dos Mil¬man?

— Não.

— Mas me disse que a Sra. Milman estava doente.

— Pode ser que esteja, Dyan.

— Na casa dos Milman, ela não está.

— Eu não disse que estava lá. Isso foi você quem supôs, sendo ela a esposa do Sr. Milman.

— E não lhe causa estranheza que não seja assim?

— Eu não me meto nas vidas alheias, se não for para ajudá-las. Por que não me imita, Dyan?

— Desta vez, encontrei um tipo cruel e desapiedado. Sabe que outro dia, estava eu na estrada às escuras, indo para a casa deles, quando o Sr. Milman passou de car¬ro, me viu e não foi capaz de parar e me oferecer carona.

— Dyan, o que quer que eu lhe diga?

Dyan já não sabia o que queria. Sabia apenas que estava ali há dois dias, o sá¬bado e o domingo, e que devia voltar para Medicine no primeiro trem.

— Antes de ir embora, darei um pulo na casa de minha amiga Vicky. Suponho que ainda more em Regina.

— Sim, mora. Esteve aqui ainda ontem, e me perguntou por você. Disse que viria visitá-la caso você não aparecesse em sua casa. Seu marido Victor viajou para Otawa.

— Irei vê-la — virou-se, antes de sair. — Srta. Marie... não pensa em ajudar-me a esclarecer o que se passa na vida dos Milman?

— E por que pensa que se passa algo?

— O instinto me diz. Um pai que nem sequer ama sua filha...

Saiu sem esperar resposta.

— Não pensava em vir vê-la, Vicky — lhe dizia Dyan, com sua simplicidade habitual. — Tencionava escrever-lhe de Medicine, para lhe dar notícias minhas, pois este fim de semana só pensava dedicar à Srta. Marie. No entanto, de repente, lem¬brei-me que seu marido nasceu em Medi¬cine, é advogado e sabe da vida de todo o mundo.

Vick deu uma risada.

Era uma jovem bonita, moderna. In¬clinou-se para sua melhor amiga e a olhou intensamente.

— Você está inquieta.

— Pudera.

E contou-lhe tudo.

— Mas... o que lhe importa? Por que se preocupa? Está trabalhando ali, ganha bem, adquire experiência para quando fi¬zer algo mais importante.

— Questão de curiosidade  — disse, nervosa. — Escute, ouviu falar algo sobre a vida dos Milman?

— Sei o que todo mundo sabe. Que o Sr. Milman, ou simplesmente Lars, casou muito jovem. Era um homem encanta¬dor, inteligente.

— Nunca o imaginei encantador.

— Mas ele era. E tinha um amigo cha¬mado Daniel. Amigos de infância, amigos do peito.

— Não conheço nenhum Daniel na vi¬da dos Milman.

— Claro. Já não está na vida dos Mil¬man, e ninguém sabe onde anda, embora se acredite que esteja com ela.

— Ela?

— Hayley Road, a esposa de Lars.

— O que disse? Explique-se. Conte-me isso.

— Você critica Lars. Eu não. Quando acontece isso na vida de um homem íntegro... você entende.

— Começo a entender — sussurrou. — Continue.

— Pois bem, como eu dizia, Lars casou jovem e muito apaixonado. A moça era de Medicine, muito bonita e chique. Ha¬via perdido os pais num desastre de avião, ficara com um capital sólido. Casaram-se e pareciam muito felizes. Amavam-se, isto era evidente. Mas Lars vivia mui¬to para os negócios, pouco tempo lhe res¬tando para a esposa. Nasceu Desi e, ao cabo de algum tempo, a esposa de Lars sofreu um aborto, não sei por quê. Parece que Lars ficou muito contrariado, pois queria uma prole grande, com o que Hay¬ley não concordava. Mesmo assim, os dois se compreendiam bem. No entanto, de¬vido à saúde delicada da esposa, Lars viajava sempre sozinho, deixando-a com seu amigo.

— Com seu amigo?!

— Entenda, Daniel era seu amigo de infância, como um irmão muito querido. Quando Lars viajava, era ele quem dis¬traía sua esposa.

— Quanta confiança — comentou Dyan, irônica.

— Nasceram no mesmo lugar, criaram-se juntos, tinham uma cabana perto do rio, onde iam sempre pescar. Hayley os acompanhavam sempre, mesmo quando era noiva de Lars.

— Eram inseparáveis, portanto.

— Exato. Tanto, que Lars só percebeu o que se passava após muito tempo. Um dia, começou a suspeitar. E não por seu amigo, em quem confiava plenamente, e sim por sua mulher, pois já não confiava tanto nela, ultimamente.

— Mas, se existiu algo, a culpa tanto foi de um como de outro.

— Claro. Mas Lars ainda continuou cego. Não podia acreditar no que suspeitava. Assim, um dia fingiu que ia viajar, mas o que fez foi meter-se em sua cabana.

— Por que na cabana?

— Porque a suspeita nascia dali. Quando ele ia em viagem, Daniel e Haley iam para a cabana de pescar, e só regressavam ao anoitecer.

— Pegou-os em flagrante, não?

— Isso mesmo. Imagine, escondendo-se, esperou... e só surgiu quando os dois estavam... você imagina como.

— Isso é terrível.

— Lars. Afinal, tem uma ferida que não creio que cicatrize nunca. Oh, falando, nem se¬quer preparei o chá. Vamos tomá-lo!

— Mas, Vicky, prefiro que continue fa¬lando sobre o que se passou.

— Ajude-me, então. Eu continuarei contando enquanto preparo o chá.

 

— Continue, Vicky.

— Falta pouco a contar. O surpreendente de tudo é que Lars não matou os dois. E agora — perguntou — já compreende um pouco as atitudes de Lars?

— Em parte. Afinal, ninguém teve cul¬pa, não?

— Como não? Acaso um homem que é traído pelo seu melhor amigo pode ser de outro modo? Ele podia odiar toda a humanidade, Dyan, no entanto continua trabalhando. Maltrata alguém? Não. Tra¬ta-o como merecem, e eu creio que em cada ser humano ele vê seu amigo Daniel

— Essa é a sua opinião. Conte-me ape¬nas os fatos, deixe-me tirar as minhas conclusões. Talvez você não saiba como é hoje Lars Milman. Eu o vejo sempre, e não aceito seu modo de agir com todo mundo a sua volta.

— Já se colocou no lugar dele?

— Não — surpreendeu-se.

— Pois então, ponha-se. Imagine-se traída, enganada por seu marido e sua melhor amiga. Já pensou?

— Não, Vicky...

— Bem, como eu dizia, Lars não ma¬tou Daniel, nem sua mulher. Quase não disse nada. Tampouco pediu o divórcio, nem ela o quis. Mas nunca mais ele quis vê-la, ou ao amigo.

— E então?

— Ela se foi no mesmo dia, e Lars fi¬cou dois meses fora da cidade. Quando voltou, era outro. Tornou-se frio, desapiedado, talvez. Creio que odeia os seres hu¬manos, pois vê em todos sua mulher e seu amigo. Por isso, Dyan, creio que deve ser mais indulgente com ele.

— E sobre ela, o que se sabe?

— Pouco. Dizia que anda por aí, com uns e com outros.

— E Daniel?

— Talvez viva com ela. Isso não se sa¬be. Mas o que Victor me disse é que ela anda de um braço para o outro, por esse mundo afora. E nada se sabe de Daniel.

— Ou seja, três vidas destruídas.

— Para mim, a de Lars é a pior. Lars é um homem caseiro, que adorava a esposa. Cercava-a de cuidados e presentes. Também era louco pela filha.

— Mas agora a ignora completamente.

— Talvez veja em Desi a lembrança de Hayley. Entenda isso, Dyan.

Começava a entendê-lo. O que não entendia é por que a Srta. Marie não lhe contara essas coisas.

Levantou-se, depois de ter tomado o chá.

— Tudo isso é muito triste, muito deprimente.

— Ainda pensa em deixar a casa dos Milman?

— Não sei. Tenho pena de Desi, e também... dele. Deve ter presente aquela cena em todos os minutos de sua vida.

— Exato. Lars não é homem que se esqueça facilmente. Imagine o que é para ele essa horrível lembrança.

Começava a compreendê-lo.

— Bem, já vou indo, Vick.

— Eu creio que Lars precisa de amigas honestas como você, em sua vida.

Vicky estava louca. Ela, amiga de Lars?

Sacudiu a cabeça. Era tudo muito surpreendente. Bastante inesperado.

Quando se viu novamente diante de Marie, disse apenas:

— Devia ter-me contado.

Marie ficou tensa.

— Vicky?

— Exato. Foi horrível, não?

— Sim, foi. Mas não se deixe impres¬sionar.

— Não posso mais julgá-lo tão dura¬mente.

— Compreendo.

— Tenho pena dele, e, ao me colocar em seu lugar, creio que teria feito pior.

— Vejo que está muito impressionada.

Dyan ficou tensa.

— Nunca estive enamorada. Mas... — e de repente, disse aquilo, sem que ela mesma o entendesse: — Não concebo que se ame Lars Milman e se tenha um amante.

— Está vendo por que eu não queria dizer-lhe?

— Por que?

— Primeiro, porque o Sr. Hamilton me pediu silêncio. Depois... porque você é jovem demais e honesta, e corria o risco de se colocar muito perto, do Sr. Milman. Por favor, minha filha, conserve-se à margem disso tudo.

— Não se preocupe. O Sr. Milman não me deixaria chegar perto demais. Ele odeia a humanidade e não acredita mais em amizade.

— Bem, esqueçamos isto. Que tal se fossemos jantar agora? Tem que acordar muito cedo.

Puxava-a. Mas Dyan não reagia. Esta¬va por demais impressionada.

— Fique calma, Dyan — aconselhou Marie. — Se continua tão... impressiona¬da, serei forçada a tirá-la de lá. Ainda é menor de idade e... de momento, sou sua tutora.

— Não se preocupe — sorriu suave¬mente. — Só posso lhe dizer que, de agora em diante, serei mais amiga de Desi, mais amorosa ante seu desamparo.

Marie passou-lhe um braço pelos om¬bros e a levou para sua sala de jantar privada.

Dyan foi se deitar cedo. Mas não dormiu. Aquele assunto de Lars Milman era como algo obsessivo para ela.

Como era possível que existisse mulher que trocasse Lars Milman por outro?

 

Quando ela desceu do táxi, ele saía.

O Jaguar estava bem ali, e o táxi parou logo atrás. Ela ficou algo tensa, com a maleta na mão.

Vestia calça preta, suéter da mesma cor e um casaco de corte esportivo por cima.

Estava linda. Os olhos pareciam mais azuis do que nunca.

— Bom dia, senhor... — disse, aproximando-se.

 Lars se deteve. Já tinha visto, mas pensou que ela seguiria seu caminho, ignorando-o.

— Bom...

Sua voz era gelada.

— Sinto o ocorrido aquele dia, senhor.

Lars levantou uma sobrancelha.  Já não se lembrava de nada. E se abor¬receu de ser abordado no jardim por uma empregada.

— Na realidade, não sabia que o se¬nhor precisa que lhe anunciem uma visi¬ta... Fui inoportuna.

Lars fez um gesto com a mão, de indi¬ferença.

— Não tornará a acontecer, senhor.

Lars franziu a testa. O que Oscar lhe dissera não parecia real.

Uma garota temperamental? Não dava essa impressão. Parecia até submissa, servil. E não gostava de gente servil.

Teria de falar com Oscar. Não permi¬tiria que uma jovem sem personalidade cuidasse de sua filha.

— Peço-lhe desculpas, senhor.

Lars a fitou uma vez mais.

Era linda, de fato. Sim, apesar de viver desligado de certas coisas, e de detestar as mulheres, não podia deixar de re¬conhecer a beleza daquela jovem. Não se¬ria jovem demais para educar Desi?

Teria de averiguá-lo. Por isso, voltou-se e pisou forte. En¬trou no carro e se foi. Dyan ainda estava ali.

Como se chamava a jovem? Oscar pronunciara seu nome em sua presença. Diana? Não.

Deu de ombros. Afastava-se da casa, Dyan, por sua vez, encaminhava-se pa¬ra a mesma. Encontrou-se com Desi, que saía.

— Srta. Dyan, Srta. Dyan...

Abraçou-a com força, com ternura.

Beijou-a várias vezes.

— Srta. Dyan — sussurrou Desi, surpresa e maravilhada. — Nunca me beijou assim...

Apertou-a mais nos braços e entrou em casa.

— Srta. Dyan — exclamou Mike, aparecendo.

— Olá, Mike.

O mordomo fez cara desolada. E, quan¬do Desi se soltou dos braços de sua pre¬ceptora e saiu correndo, avisando a to¬dos que a Srta. Dyan havia chegado, ele sussurrou:

— Não abrace assim Desi. Nem a beije com ternura. Se o patrão a surpreen¬de, se zangará.

— Por quê?

— O patrão deseja fazer de sua filha uma pessoa real. Detesta o sentimentalismo.

Dyan respirou profundamente. Olhou para Mike sem pestanejar.

— Já sei de tudo — disse — De tu¬do!

Mike abriu muito os olhos. Depois afastou-se depressa, como se temesse sa¬ber o que a jovem descobrira.

 

Foi uma semana depois.

Coisa estranha, ele não pudera esque¬cer o procedimento daquela jovem. Por isso, estava chamando Oscar Hamilton pelo ditafone.

Oscar não trabalhava na mina; seu es¬critório era ali, na residência dos Milman, administrando seus bens alheios às mi¬nas, referentes aos bens internos.

— Bem-vindo, senhor. Não sabia que tinha chegado.

Lars não lhe explicou que acabara de chegar do aeroporto particular. Mandou-o sentar-se.

 E, como era muito objetivo, foi entrando logo no assunto que o fizera chamar o secretário:

— Quero saber coisas dessa moça.

Oscar levantou uma sobrancelha, sem saber a que moça ele se referia. Lars devia ter percebido o embaraço do rapaz, pois tratou de esclarecer:

— A preceptora de minha filha.

— Ah.

— Conte-me o que sabe sobre ela.

— Procurei-a num colégio elegante, senhor. Há apenas dois anos, essa jovem era uma rica herdeira. Seu pai era diplomata e, ao mesmo tempo, jogava na bolsa. Arruinou-se.

— Não me interessa a vida material dela — cortou secamente. Oscar tornou a levantar a sobrancelha. — Refiro-me a sua personalidade.

— É uma moça culta, distinta, educada e digna.

— Admira-a muito? 

— Senhor...

— Isso também não me interessa — disse bruscamente. — Quero saber se essa jovem tem personalidade.

— Sim, não há dúvida quanto a isso.

— Bem, pode retirar-se.

— Algo mais, senhor?

— Teria lhe mandado sair, se tivesse ainda algo a dizer-lhe?

Era assim. E assim tinha que ser acei¬to. Jamais explicava por que perguntava as coisas.

Ao ficar só, refletiu uns segundos.

Se aquela jovem tinha a personalida¬de e a dignidade anunciadas pelo seu se¬cretário, era de se supor que ela havia sa¬bido de sua história sentimental.

Não suportava isso, não admitia intro¬missões nem piedade.

Deixou de pensar e se esqueceu total¬mente daquela jovem preceptora de sua filha.

Em seguida passou a trabalhar como se não tivesse voado quase doze horas se¬guidas.

 

De vez em quando, o Sr. Milman pai aparecia pelas tardes. Brincava com Desi no jardim. Trocava idéias com a precep¬tora de sua neta.

Aquela tarde, Dyan o olhou com ex¬pressão diferente. Com afeto, até.

— Já soube que passou fora o fim de semana, Srta. Dyan.

— Sim. Estive em meu antigo lar.

— Ah... É de Regina?

— Não, senhor. Eduquei-me ali, mas meu pai viveu em Montreal.

— Sim, eu sabia — e sem transição: — Como tem se portado minha neta?

— É encantadora.

— Já sabe, senhorita — apontou-lhe o dedo em riste — não a eduque cheia de dengos.

— É o senhor quem quer isso, ou o pai de Desi?

O velho franziu um pouco a testa.

— Por que o pergunta?

Dyan hesitou.

— Eu penso que os filhos não têm culpa das amarguras dos pais.

O Sr. Milman ficou tenso. E inclinou-se para ela.

— Dyan — disse, suprimindo a "se¬nhorita". — O que sabe acerca de meu filho?

Dyan não tinha muita experiência. Não pensava muito antes de dizer as coi¬sas.

Por isso respondeu:

— Tudo.

O velho olhou para os lados, entre as¬sustado e horrorizado.

De repente, segurou Dyan por um bra¬ço e a levou para um lado, perto do caramanchão, enquanto Desi brincava com seu cachorrinho.

— Dyan... você não sabe coisa alguma — disse, meio sufocado. — Nada! Se quer conservar seu emprego... não sabe de nada.

— Mas...

— É o meu conselho. Esta manhã o se¬cretário de meu filho me contou não sei que coisas que Lars desejava saber da se¬nhorita. Fiquei intrigado. Meu filho nun¬ca se interessa por nada além de seus negócios e, repito, intrigou-me que se inte¬ressasse pela senhorita. Por isso lhe per¬gunto. Disse-lhe algo do que sabe?

— Não, senhor. Mas...

— Pois algo ele viu na senhorita que lhe chamou a atenção.

— No outro dia, não quis receber-me. Saí de seu gabinete indignada. Ao saber do que houve com seu filho, quando vol¬tei, fui vê-lo e me desculpei.

— Foi isso — baixou a voz. — Dyan, me interessa muito que fique com minha neta. Já teve outras preceptoras e não gos¬tei de nenhuma. Você é diferente. É do que Desi necessita. Dá-lhe respeito, ternu¬ra, afeto. Desi a ama. Se tornar a se com¬portar assim ante meu filho, se continuar pedindo desculpas, ou lhe indicar que sabe de algo da sua vida, ele irá despedi-la sem contemplações.

— Mas...

— Meu filho foi muito ferido. Eu o des¬culpo por tudo, mas não lhe digo, enten¬de? É ofendê-lo duplamente, se lhe perdoa o despotismo.

— Compreendo.

— Não esqueça, Dyan — e ainda acrescentou, com amargura: — Ninguém igno¬ra o ocorrido, mas não se pode mencioná-lo ante Lars. É algo que o fere como se a afronta ocorresse naquele mesmo instan¬te.

— Amava-a muito — agitou-se Dyan.

O velho fez um gesto vago.

— Não sei se é ainda amor o que faz meu filho destruir toda a sua compreen¬são anterior. Eu penso que não. Ou não o conheço nada, ou meu filho despreza sua esposa desde o momento em que a encontrou nos braços do amigo. Acho até que, se Lars encontrasse Daniel à morte, e pudes¬se ajudá-lo, não o ajudaria, o deixaria morrer, sem remorsos. E tudo, não por amor à esposa, e sim pela amizade que o unia a Daniel, do qual tinha um con¬ceito altíssimo. Entende? — baixou a voz e apertou o braço da jovem. — Havia duas coisas nas quais Lars confiava como em si mesmo. No respeito, na honestidade e no amor de sua esposa, e na amizade sin¬cera de Daniel. Perdeu as duas coisas ao mesmo tempo, e isso não pode perdoar um homem como Lars — respirou fundo, emo¬cionado. — Não o censure demais, Dyan. Eu o censuro, o critico, mas no fundo sei que se portou estoicamente. Eu, em seu lugar, teria matado minha esposa e meu amigo. Mas Lars os deixou ir. Desprezou-os, a partir de então, e sua vida mudou totalmente.

Soltou o braço de Dyan e passou os dedos pelo cabelo branco, alisando-a.

— Seria doloroso se Desi perdesse ago¬ra o seu afeto. Fique, pela menina, Dyan. Se um dia, por qualquer motivo, tiver que se avistar com Lars, não demonstre sua pena.

— Não tenho pena dele — saltou Dyan, impulsiva.

O velho ergueu uma sobrancelha.

— Admiro-o e o respeito — concluiu a jovem.

— De qualquer jeito... prefiro que continue como até agora, à margem da vida de meu filho.

Não era possível...

Dyan se foi com Desi, deixando o Sr. Milman com suas preocupações, das quais ela não tinha idéia.

Anoitecia. Era gostoso andar pelo pra¬do. Cheirava a terra molhada, pelo orvalho que começava a cair. Cheirava a vi¬da...

— Estive muito sozinha estes dias, Srta. Dyan.

Levantou a menina no colo. Caminhou com ela apertada assim. Foi quando o viu.

Montado no puro-sangue, olhando-a intensamente, com os olhos entrecerrados e a boca crispada.

— É... papai — sussurrou Desi, trê¬mula.

O pai tomou outro caminho, afastou-se dela. Mas Dyan seguiu-o com o olhar, até desaparecer.

E logo suspeitou que a coisa não fica¬ria assim, a julgar pelo olhar reprovador do milionário.

Decidiu distrair sua mente conversan¬do com Desi.

— Gosta muito de seu pai?

— Sim — mas a menina não tinha muita convicção.

— Ele lhe dá muitos presentes?

— Vovô me dá. E os criados.

— Seu pai sabe que os criados lhe dão presentes?

Notou o rubor de Desi. Sua vozinha va¬cilante.

— Não... não sabe.

— Se ele lhe perguntar algum dia, o que lhe dirá?

— A verdade — e como se a menina fosse profeta: — Papai odeia a mentira.

Claro. A mentira e a falsidade. Apertou a mão da menina, enquanto dizia:

— Voltemos para casa, Desi.

Notou uma hesitação na menina. Como se quisesse dizer algo, que sem dúvida a inquietava.

— Desi... você quer me dizer algo?

— É que... papai... ele não gosta que me peguem no colo. Vai brigar com você.

— Não vai, não.

— Vai, sim. Ele despediu duas outras, ante de você.

— Por pegá-la no colo?

— Por beijar-me.

— Ah.

Chegaram em casa. Pelo rosto de Mike, viu que o velho tinha algo a dizer-lhe.

— Vá para seu quarto, Desi — disse à menina. — Daqui a pouco irei lá.

A menina correu, como se fugisse de algo que sabia ia acontecer.

— O que foi, Mike?

— Ele... a espera. E não parece na¬da satisfeito. Está em seu gabinete, Srta. Dyan.

— Já imaginava... Ele me viu com Desi no colo.

Mike franziu a testa.

— Temia algo assim. Por que não tem mais cuidado? Sabe quanto a estimamos e quanto Desi necessita da senhorita. Seria péssimo se fosse despedida.

— Mas... — alterou-se um pouco. — Será que ele não ama sua filha? Não vê que ela não é feliz? Que tem sentimentos? Que gosta de mim?

— Ele não quer — sussurrou Mike — sua filha sentimental. Quer que seja dura, firme, real.

— E qual é a realidade de Lars Mil¬man? — agitou-se Dyan.

Mike a fitou com desespero.

— Se soubéssemos, senhorita... saberíamos por onde atacá-lo. Isso não é fácil — girou sobre os calcanhares. — Anunciarei sua chegada.

Em seguida, bateu à porta e anunciou em voz alta o nome da Srta. Dyan Hawn.

 

Dyan estava um pouco pálida. Mas ha¬via algo em seus olhos claros que denun¬ciava segurança.

Esperou que a voz, lá de dentro, desse ordem para ela entrar. Mike empurrou a porta, quando ouviu a ordem, e Dyan pô¬de vislumbrar o escritório muito amplo, a mesa enorme, a lareira do outro lado, apagada, e um abajur de pé, iluminando o ambiente.

— Entre — disse a voz impessoal de Lars.

Dyan controlou suas emoções. Um pou¬co de medo, de ansiedade. Não queria per¬der o emprego, mas não podia se deixar intimidar.

— Vi-a esta tarde — foi dizendo Lars, sem deixar de escrever, lançando um bre¬ve olhar sobre a jovem.

Não precisava determinar o que tinha visto. Dyan o sabia.

— Dei-lhe ordens concretas — prosseguiu Lars, ainda sem prestar-lhe muita atenção — quanto à educação de minha filha. Não quero fazer dela uma sentimental. Nada de beijos e essas tolices — sua voz parecia mais rouca. — Por que deso¬bedece a minhas ordens?

Ao fazer essa pergunta, olhou-a de frente. Seus olhos castanhos pareciam ne¬gros, profundos.

Continuava sentado, e não convidara Dyan a sentar-se.

— Espero sua justificativa — insistiu Lars, já um pouco nervoso.

— Estive fora um fim de semana — disse ela em voz baixa, mas firme. — Isso me fez ter saudades de Desi. E amá-la mais ainda.

— E por que tem de amá-la?

— E por que não a amaria? — quase o desafiou. — Não tenho ninguém a quem amar, e gosto de amar alguém. Desi não tem culpa, nem eu a faço uma sentimen¬tal; mas o senhor não pode me proibir de ser sentimental.

Lars pareceu surpreso.

Ficara de pé e a olhava com insistência.

— Então, confessa ser sentimental.

— E por que não? Acaso isso se her¬da ou se recebe por meio de determinada educação? Eu penso que não. A pessoa ou é, ou não é sentimental... — levantou a ca¬beça com certa soberba. — Eu nasci sen-timental.

— Isso é uma infantilidade — retrucou Lars, espantado com a audácia da¬quela jovem. — Uma tolice.

— Então, sou infantil e tola. Nasci as¬sim.

— Creio que se equivoca — cortou Lars, irritado. — Tudo isso que está dizendo pode se evitar. A educação forma o homem, o molda...

— Não creio que tenha me chamado para falar disso. Se foi para dizer que não devo abraçar nem beijar Desi, muito bem. Evitarei fazê-lo. Mas não pense que me convence a não ser sentimental.

Lars a fitava com crescente curiosida¬de.

Havia se equivocado com ela. Sem dúvida, nada sabia de seu drama íntimo. Por outro lado, descobria nela uma personali¬dade marcante.

Lembrou-se de Hayley, que também era uma sentimental, e mostrou ser uma falsa materialista, que antepunha o sexo a tudo o mais.

Ante tal lembrança, sentiu-se revolta¬do, irado.

— De qualquer jeito, pouco importa sua opinião — cortou seus próprios pen¬samentos. — A próxima vez que a pegar abraçando Desi, a despedirei.

Observou como aquelas últimas palavras surtiam efeito. Viu que os belos seios da jovem arfavam. Que seus olhos piscavam, que suas mãos se apertavam nervo¬samente.

Surpreendeu-o notar que aquela jovem parecia ter uma vida interior nada co¬mum. Sem dúvida alguma era sentimental, como ela mesma reconhecia, doce, apaixonada, emotiva.

Sacudiu a cabeça. Por que devia per¬der tempo analisando-a? Era a primeira vez que se detinha a pensar em determi¬nada mulher, após muitos anos, e isso o incomodava acima da conta.

— Não esqueça — falou secamente — se realmente gosta de Desi. E só não a despeço, justamente pelo afeto que de¬monstra ter pela menina.

— Para o senhor, é tudo assim — não pôde deixar de gritar-lhe.

— O que disse? — perguntou Lars, estarrecido.

Dyan respirou profundamente.

— Digo que, pelo fato de o senhor não ter piedade de nada nem de ninguém, isso não lhe dá o direito de mandar na vida dos outros.

— Como se atreve?...

— Acaso me meto com o senhor? Cen¬suro-o em alta voz, pelo que me parece errado, e quase tudo me parece?

— Mas...

— Saiba que estou aqui porque me pagam bem, e se cumpro o meu dever não tem por que me ameaçar de despedir-me. Aliás, se insistir em me chamar a atenção a toda hora, eu mesma me demitirei.

Era a primeira vez, desde que lhe acontecera "aquilo", que alguém levantava a voz para ele. Por isso Lars ficou tão des¬concertado. E o curioso é que quase não a escutava, limitando-se a contemplá-la com um olhar tão ansioso quanto seu pen¬samento.

Tanto, que teve de desviar os olhos para não cometer uma loucura.

Dyan, alheia às emoções dele, dizia:

— Se o senhor não é sentimental, pou¬co me importa. Mas não tem o direito de marcar um destino para sua filha. Acaso ela pediu para vir ao mundo? — e de repente lhe veio uma idéia genial, que não hesitou em expor, mesmo se arriscando a perder o emprego: — Onde está a mãe de Desi, que a deixa em poder de um homem tão impiedoso quanto o senhor? Se um filho não pede para vir ao mundo, quem são os pais para torcer e violentar os sentimentos normais e naturais desse filho? O senhor pode me dizer para educá-la ri¬gidamente. Que a eduque para ser corre¬ta, agradável, e até com bons modos. O que não pode é evitar que um filho seja ou não sentimental.

Virou-se para sair. Lars gritou, fora de si:

— Espere!

Dyan se deteve. Estava lindíssima em sua ira. Lars deu a volta à mesa e se pôs diante daquela beleza temperamental, que o desafiara.

— Saiba que, por muito menos, já des¬pedi alguns empregados...

Dyan respirou fundo. Sabia a que se arriscava, enfrentando Lars Milman, não podia, porém, voltar atrás. E nem queria.

— Desculpe — disse, por fim. — Desi é sua filha e, se acha que evitar sentimentalismos é o melhor para ela, tem todo o direito de exigi-lo. Mas — de novo desa¬fiante — o que não pode é exigir que eu pense como o senhor.

De repente, Dyan sentiu o dedo dele em seu queixo, obrigando-a a fitá-lo. Foi quando surgiu a pergunta:

— Srta. Dyan, o que sabe da minha vi¬da? O que sabe de minha... Mulher?

Dyan ficou agitadíssima. Não tanto pelas perguntas, mas pelo contato daquele dedo em seu rosto.

Fugiu ao contato, virando as costas pa¬ra Lars. No entanto, sentiu uma pressão em seu ombro. Pressão esta que a forçou a virar-se de novo de frente para ele.

Subitamente assustada, sem entender o que sentia naquele momento, ela saiu dali o mais depressa possível.

Lars, excitado, nervoso, foi se sentar de novo atrás de sua mesa. Queria voltar ao trabalho... mas não pôde.

Mike queria saber o que acontecera dentro do escritório.

Mas Dyan não podia dizer nada. Não sabia o que se havia passado. Não queria saber o que sentia. Lutava contra isso.

Ir-se?

Sim, era o melhor. Mas não podia. E já não era por Desi. Naqueles instantes, Desi passava a um segundo plano.

Começava a temer por si mesma.

— Ele a despediu, Srta. Dyan?

Olhou espantada para Mike. Despedida?

Estranho. Algo lhe dizia que jamais se¬ria despedida por Lars Milman.

— Não, Mike — foi só o que murmu¬rou.

Não desceu para o jantar. À hora de deitar a menina, foi com ela ao quarto. Contou-lhe uma historinha e beijou-a, co¬mo sempre fazia.

No corredor, quando deixou o quarto da menina, avistou-o. Quis virar-se e es¬capulir, mas uma voz a deteve.

— Srta. Dyan...

Estaria equivocada? Iria despedi-la? Ficou parada, esperando. Tremendo.

— Que sabe de minha mulher, Dyan? — voltou a insistir.

Sua voz não era mais... humana? Sim, mais humana.

Dyan sentiu a mão dele segurar-lhe o braço. Depois, algo que quase a fez des¬maiar.

— Dyan...

A voz estava quase em sua boca.

Então, surgiu o beijo. O primeiro de sua vida.

Por que Lars a beijava? Sentiu que tudo girava à sua volta, que toda ela palpitava.

Conseguiu libertar-se como pôde. Lars respirou fundo, como se fosse di¬zer algo. Qualquer coisa seria boa naqueles instantes.

Mas Lars, depois de olhá-la intensa¬mente, virou-se e se afastou, ligeiro. O que se passava com ela? Por que não se sentia ofendida? Correu para seu quarto. Devia pensar em ir-se. Em fugir, em maltratá-lo, nem que fosse por pensamento. Mas nada disso ocorria.

— Meu Deus — sussurrou, desconcer¬tada.

 

Era seu dia livre. Nunca o aproveitava. Mas, àquela tarde, sim. Era uma necessi¬dade.

Quantos dias transcorridos desde aquilo? O que ocorreu depois, quando um dia, no seguinte, o viu?

Nada. Tudo igual ao de antes.

— Bom dia — ouviu-o dizer.

— Bom dia.

Apressadamente. Depois, seguiu o seu caminho.

Dois dias sem vê-lo. Soube por Mike que ele fora a Toronto com seu secretá¬rio.

Foi um alívio, aquela trégua. Mas... uma trégua de quê? O que havia dentro dela?

Por isso resolvera ir ao centro de Me¬dicine. Era como um desabafo.

— Vou até o centro, Mike.

O mordomo olhou-a fixamente.

— Aconteceu-lhe algo, Srta. Dyan?

— Não... não...

— Está mais pálida.

Estava aturdida. Confusa. Apaixonada? Apaixonada por um tipo como Lars Milman?

— Voltarei ao anoitecer.

O que pretendia?

De súbito, sentiu que uma pergunta lhe queimava os lábios.

— Morreu... a mãe de Desi?

Mike arregalou os olhos.

— Que eu saiba, não. Não morreu. Ao menos, não se sabe exatamente se morreu, e, se o patrão o sabe, nada comentou com ninguém.

— Claro.

— Mas... por que pergunta, Srta. Dyan?

— Não... sei. Ocorreu-me... de re¬pente.

— Está me deixando preocupado, Srta. Dyan.

Mais preocupada estava ela.

Ninguém podia jamais calcular sua in¬descritível preocupação.

Por isso necessitava sair daquele recin¬to. Daquele palacete. Daqueles contornos onde, de um momento para o outro, po¬dia topar com... Lars Milman.

 

Havia se cansado de andar pela cidade.

Não via nada. Ia como que ausente, inconsciente, mas pisando com energia, com firmeza, como se uma força íntima a em¬purrasse.

Foi ao entardecer, quando já ia tomar um táxi, que o viu, do outro lado da rua, descer de seu elegante Jaguar negro.

Tentou fugir, para não ser vista. Mas Lars já dera com ela, ou talvez a seguis¬se desde que saiu do palacete. Mas isso não era concebível, pois não julgava Lars capaz de seguir uma mulher.

— Imagino que esteja de volta a casa.

Fitava-a sem expressão. Com aqueles olhos estranhos, de um castanho quase negro.

Pensava dizer-lhe que não, que não voltaria ainda. Que tinha muito tempo livre, que ficaria na cidade até de noite.

Mas ouviu-se dizendo:

— Sim.

— Se quiser tomar algo...

Por que aquilo? Por que não a ignorava?

— Aqui perto há uma lanchonete.

Não iria.

Mas se encontrou ao seu lado. Era mais baixa. Mais frágil, Lars nada tinha de elegante, nem de belo.

Era um tipo alto e forte, desenvolto. Um corpo atlético, uma cabeça loura e uns olhos gelados.

— Entre — disse, empurrando-a de le¬ve.

Era o que não podia acontecer-lhe. Que Lars a tocasse. Teria ele esquecido o beijo que lhe deu? Pensaria que ela se deixava beijar por todos os homens que apareciam em seu caminho?

"Escreverei para a Srta. Marie. Contarei a ela o que se passa".

— Podemos nos sentar aqui — disse ele.

Dyan sentia como se todo mundo a olhasse. E que, no dia seguinte, os comentários chegaria aos ouvidos do Sr. Mil¬man pai. Mas a verdade é que ninguém prestava atenção nela. Lars não costuma¬va freqüentar aqueles locais, e poucas pes¬soas o conheciam por ali.

— O que vai tomar?

— Chá.

O garçom chegou e levou os pedidos. Tornaram a ficar sós.

— Fuma? — perguntou Lars, oferecen¬do-lhe a cigarreira aberta.

Fumava, sim. Mas não fumaria ali. Seus dedos tremeriam.

No entanto, aceitou o cigarro. Fumava depressa, evitando olhar para o homem a sua frente.

O garçom os serviu.

— Quantos torrões, Dyan?

O seu nome, pronunciado por ele, cau¬sou na jovem uma sacudida.

— Dois...

— Não é gulosa.

— Não.

— E o que é?

— Nada.

— Ah.

Bebeu o uísque.

— Levo-a para casa?

Dyan respirou fundo. Apagou o cigarro ainda a meio. Sua voz soou estranha. Trêmula?

— Não.

— Não? O que vai fazer? Está anoitecendo.

— Irei em seguida.

— Sozinha?

— Sim.

— Se quiser vir tomar algo comigo em meu apartamento...

Dyan sentiu o coração acelerar.

— Não... não...

— Como queira.

Viu-o ficar de pé.

— Espero-a até as nove.

— Não irei.

— Está bem.

Viu-o beber o que restava no copo e deixar uma nota sobre a mesa.

— Meu apartamento fica do outro la¬do. É o doze da rua paralela.

— Não — era quase um gemido. Temia ir? Temia-o tanto?

— Até outro momento. Se quiser vir...

De repente, Dyan teve medo de si mes¬ma. Daquele homem impassível que a in¬quietava tanto.

Nascia um sentimento. Contra toda a razão, estava nascendo. Ela o sabia. Mas... por quê?

Que poder tinha aquele homem para dominá-la assim, quase sem falar, quase sem fitá-la? E por que, de repente deixara de ignorá-la?

— Irei embora já — disse entre den¬tes.

Saíram juntos. Na porta de vidro, es¬barraram um no outro.

Dyan sentiu o corpo formigar, ante aquele contato ligeiro.

— Espero-a ali — disse ele.

E afastou-se dela.

Dyan respirou profundamente e, quan¬do se viu na rua, aspirou de novo o ar.

Ao passar pelo número doze, indicado por Lars, Dyan parou.

Olhou para trás.

Não devia olhar, mas olhou. Viu-o ali, na metade da rua, firme, rígido, fitando-a.

Virou-se de novo e quase saiu correndo.

Não se deteve no ponto de táxis. Prefe¬ria caminhar. Eram dois quilômetros... Necessitava pensar, ou não pensar, mas pe¬lo menos ver-se a sós ante a natureza.

Foi caminhando em direção ao palace¬te dos Milman.

Súbito, ouviu uma freada.

O Jaguar se detinha ante ela.

— Entre.

Assim. Confiando em que ela não se negaria.

Pensou em fazer isso, mas o fato é que, silenciosamente, débil, indefesa, entrou no carro ao seu lado.

Lars a fitou um segundo. Depois, já sem fitá-la, agarrou-a pela nuca.

— Não — gemeu Dyan.

Lars não disse uma palavra. Beijou-a em plena boca. Apertou-a.

— Não... — voltou a gemer Dyan.

Lars a soltou, depois de beijá-la muito. Olhou em frente.

— Não sabe beijar — disse, com voz sombria. — Não sabe. Mas ela tampouco sabia. Isso pensei eu. Dei-me conta de que sabia, ao apanhá-la com Daniel.

Falava daquilo com naturalidade.

Como se fosse algo que já não existia.

Poderia parecer estranho, mas, depois de dizer aquilo, Lars pôs o carro em mar¬cha e não abriu os lábios em todo o tra¬jeto. Dyan, encolhida no canto, nem se mexia.

Só quando o carro entrou na garagem do palacete é que Lars disse algo.

— Amanhã eu a espero ali, às oito. Não falte.

Dyan saiu correndo, como se não qui¬sesse ouvi-lo.

 

Ali? Onde?

No doze da rua paralela? Deu mil voltas no leito. Escreveria para Marie. Também para Vicky.

Precisava de apoio. De conselho. Consolo. Ajuda. Sim, sim, escreveria para suas amigas. E lhes contaria aquilo. Mas... o que era aquilo?

Passou uma noite horrível, e na ma¬nhã seguinte se levantou como um autômato.

Assomando à janela, viu que o Jaguar não estava ali.

Melhor. Precisava fugir-lhe.

O que pretendia dela?

E por quê, sem nada mudar aparente¬mente, se portava de outra maneira?

Decidiu parar de pensar naquilo. É claro que não iria...

Respirou fundo quando, à tarde, achando-se com Desi brincando no jar¬dim, apareceu o Sr. Milman pai.

Não saberia dizer que coisa tinha aque¬le senhor já idoso, mas o certo é que ela se sentia bem ao vê-lo; trazia-lhe uma paz interna indescritível e uma serenidade que perdera no dia anterior.

— Olá, Dyan.

— Olá, senhor.

— Vovô, acho que já sei jogar tênis.

— Sim, querida?

— Veja...

Saiu correndo atrás da bola, com a ra¬quete na mão. O Sr. Milman acompanhou a neta com o olhar, mas suas palavras foram para Dyan.

— Não torne a se encontrar com Lars na cidade.

Dyan ficou tensa. Interrogou-o com o olhar.

— É perigoso, Dyan.

— Mas...

— Está muito ferido. E você é ingênua. Quantos anos tem?

— Hum...

— Dezoito.

— Não me diga que seu filho é assim tão... ruim.

— Não. Não é ruim. Nunca foi. Mas as circunstâncias... Para ele, todas as mu¬lheres são iguais. É a primeira vez que me dizem tê-lo visto em público com uma moça. E não me agrada que essa moça seja você.

Era quase como se falasse com seu pai. Mas nem seu próprio pai, se vivo fos¬se, conseguiria mudar o seu destino. E al¬go lhe dizia que seu destino era... Lars Milman.

A pergunta surgiu de súbito. Era como um fogo aquela pergunta! Como se ardesse em seus lábios e saísse deles feito chama.

— A mulher dele morreu?

— Dyan!

— Morreu?

Milman se encolheu contra o tronco de uma árvore. Olhou para a jovem com expressão sofrida.

— Dyan... não devia pensar nele. Já disse...

— Morreu?

— Não sei — disse, baixo. — Ninguém o sabe. Já lhe disse que depois daquilo... ninguém voltou a mencionar o assunto. Se ela morreu... Lars o sabe, mas só ele...

— O senhor é seu pai, poderia saber...

O velho a deteve com um gesto vago, como se dissesse: "Como é inocente. Como está iludida". Em voz alta, disse apenas:

— Para isso, sou como um estranho para meu filho. Nunca me atreveria a mencionar o ocorrido, nem creio que ele o permitiria, caso eu falasse.

— Comigo, ele falou.

O avô de Desi tornou a olhá-la com in¬teresse.

Parecia quase espantado.

— Com você... sim?

Afirmou, com um breve gesto de cabeça.

— Quando? Como? Por quê? O que disse?

Contou-lhe tudo em breves palavras, evitando mencionar o beijo. Houve um silêncio.

O velho Milman passou os dedos pelo cabelo.

— Estranho. Muito estranho — e com ansiedade: — Afaste-se dele. Lars não é má pessoa. Mas não acredita em nada. Em nada! Posso quase afirmar que não crê nem em sua filha, nem em mim. Já disse que não posso recriminá-lo. Foi como se o destruíssem para sempre. Um homem como Lars... não esquece isso. Po¬de lutar para esquecer, mas não consegue. Posso quase afirmar que não é responsável por seus atos, quando maltrata uma mulher. É terrível chegar a tal estado, mas não é tão condenável, quando se pas¬sa por um transe como o do meu filho — guardou silêncio, como se refletisse, silêncio que Dyan não interrompeu. — Arranje um pretexto qualquer. Volte para Regina. Eu mesmo a levarei. Diremos qualquer coisa.

Não podia.

Esse era seu propósito, mas já sabia que não poderia ir-se daquela casa, nem do lado de Lars, nem do que agitava seu ser por esse homem...

Escreveu para a Srta. Marie, desabafando-se como pôde. Contou-lhe tudo, no entanto, ao reler a carta, viu que pouco lhe dizia. Notava-se naquelas linhas uma grande inquietude, mas não se sabia de onde procedia.

Por isso a rasgou em mil pedaços.

Era incapaz de dizer o que sentia, pois ela mesma o ignorava. Pensou que, escre¬vendo para Vicky seria mais clara, mais sincera. E talvez, ao escrever-lhe, desco¬brisse, ela mesma, o que lhe ocorria.

Mas tampouco o conseguiu.

Não soube como passou aquelas horas. Nem como, às quinze para as oito, estava no centro de Medicine.

"Agora darei a volta. Entrarei num táxi e regressarei ao palacete dos Milman".

Mas não o fez. Não era capaz de vol¬tar sobre seus passos, nem de dirigir-se ao ponto de táxis.

"O doze da rua paralela".

Era algo obsessivo aquilo. Parecia-lhe ter ainda nos ouvidos a voz inexpressi¬va. A voz forte, breve.

Foi horrível aquela angústia íntima, aquele tentar voltar e não conseguir.

Não soube quando...

Só soube que se viu, qual um fantas¬ma, ante a porta daquele apartamento. Viu as letras douradas e pequenas, pressas à madeira.

"Lars Milman".

Não bateria. Sairia correndo. Não se deteria até chegar à estrada que condu¬zia à residência dos Milman.

Mas seus dedos se ergueram. Tocaram aquela campainha. Ouviu seu som distante, vibrante como se sacudisse todo o apar¬tamento.

Assustou-se e deu a volta. Mas tornou a ficar firme. Então, an¬te o silêncio à sua chamada, sentiu uma ansiedade febril.

Tornou a tocar a campainha, com in¬sistência.

De repente, a porta se abriu e apare¬ceu um senhor de cabelos brancos, olhos cansados.

— Não está — disse aquele homem.

Instintivamente, Dyan olhou o relógio.

Oito e cinco. Tinha que estar...

O homem, ante sua expressão febril, tomou a dizer:

— Vem pouco por aqui. De vez em quando... Esteve outro dia... há tem¬pos.

Voltou-se, por fim. Entrou no elevador e, sem sentir, desatou a soluçar, com o rosto entre as mãos.

O que fizera? O que estava disposta a fazer, indo àquele apartamento? Estará louca?

Caminhou como um autômato, e não se deu conta de que subia em um táxi, dando a direção da casa dos Milman.

Ninguém a viu entrar. Foi para seu quarto e se atirou na cama.

Chorava com tanto desespero, como se realmente Lars estivesse no apartamento, e ela se tivesse entregado a ele.

Às nove e meia, Mildred, a criada, ba¬teu à porta do quarto.

— Srta. Dyan... Desi a espera para o jantar.

Desi! Havia se esquecido de Desi. De todos aqueles servidores leais que a esti¬mavam. Que diriam aquelas pessoas se soubessem que ela era tão débil, tão fácil, tão... inconsciente?

— Já... vou, Mildred...

 

Foi depois, quando Desi dormia, que ela desceu ao salão e deparou com Mike.

O mordomo, com seu ar cansado, seu olhar ausente, sua cabeça branca.

Ela precisava saber por que Lars não fora esperá-la. Nem o via pela casa, nem ninguém o mencionava.

— Pensei que já estava dormindo, Dyan — disse-lhe Mike, parando diante dela.

— Acabo de deitar Desi.

— Ah.

— Desi — mentiu — me perguntou pe¬lo pai. Acho que não o viu em todo o dia.

Mike alçou uma de suas brancas sobrancelhas.

— A menina, perguntando pelo pai? Estranho. Muitas coisas a senhorita lhe ensinou.

— Ensinei-a...?

— A gostar do pai.

— Ah... — e após rápida transição: — Sim, é meu dever, mas não sei por que o diz...

— Porque Desi nunca pergunta pelo pai, como ninguém nesta casa pergunta.

Não lhe dizia o que ela desejava sa¬ber.

Por isso insistiu:

— Mas eu lhe faço a pergunta.

— Certamente — suspirou. — Ele se foi para Nova Iorque hoje, ao meio-dia.

— Ah.

— Sozinho, como sempre. Não se sabe quando regressa. Talvez amanhã, talvez dentro de um mês.

Não pôde evitar a pergunta, e não se dava conta de que era a terceira vez que a formulava a diferentes pessoas:

— Morreu, a esposa dele?

Era como se Mike tivesse já esquecido da existência da mãe de Desi.

— Esposa? Que esposa?

— A do... Sr. Milman.

— Ah — um silêncio. — Não sei. Isso não se saberá nunca.

— Por que não? — era uma agonia aquela incerteza.

Mike tornou a fitá-la com estranheza.

— Dyan — sua voz era um sussurro. — O que há?

— Nada — reagiu. — Simples curiosi¬dade.

— Domine sua curiosidade, menina.

Era o conselho que dava a si mesma, porém difícil era segui-lo.

— Diga-me...

Mike a fitou uma vez mais, com des¬concerto.

— Que lhe diga algo referente à espo¬sa do Sr. Milman? Mas se eu ignoro... Saiu daqui, não se soube mais dela.

— E dele? De... Daniel.

— Tampouco — sufocou-se, assustado quase. — Querida menina... deixe de pensar nisso. Nunca deviam contar-lhe nada. Fizeram mal.

Foi para seu quarto e ficou apoiada na porta. Olhava tudo como se espantada.

Todos tinham razão. Todos lhe diziam o que ela pensava, sem saber, porém, o que era, de fato.

Atirou-se no leito e desatou a chorar.

Foram dias intermináveis, os que se seguiram.

Ainda se pudesse falar sobre Lars com alguém... Saber coisas, perguntar. Mas ali, naquela mansão, ninguém o mencio¬nava. Inclusive, tentou falar sobre ele com Desi, mas a menina parecia ignorar tudo relacionado com sua mãe, e até se diria que não gostava de mencioná-la.

Dois dias, três, seis dias...

 

No sétimo dia, uma certa manhã, ao assomar à sacada, viu o Jaguar em fren¬te à garagem. Fazia um dia cinzento. O céu estava encoberto.

Dyan estremeceu e cruzou os braços sobre o peito, como se uma desolação ab¬soluta a agitasse. Pensou que devia deixar Medicine, mas não para voltar a Re¬gina, e sim para deixar de vez o Canadá. Afinal de contas, que diferença fazia tra¬balhar num lugar ou em outro? Ir-se para Nova Iorque, Espanha, França...

Mas sabia que não era possível. E não porque algo ou alguém a impedisse, e sim porque nela mesma estava a rebeldia, por¬que sabia que, por muito que se propu¬sesse, uma força íntima a impediria.

Depois de se arrumar ligeiramente, foi até o quarto de Desi. Ajudou a menina a vestir-se. Esta falava pelos cotovelos, di¬zia coisas, mas nenhuma daquelas coisas se relacionava com seu pai.

Por isso tentou cortar sua tagarelice, dizendo:

— Seu pai chegou.

Desi a fitou, admirada.

— De onde?

— Não sabia que seu pai tinha viaja¬do?

Desi desatou a rir alegremente. Como se a ausência de seu pai fosse tão natu¬ral como beber e comer.

— Como sempre, está viajando — dis¬se, despreocupadamente.

Quis saber mais junto à menina.

— Desi, você não gosta de seu pai?

— Gosto. Mas... — deu de ombros.

— Mas... o quê?

A menina parecia nervosa. Andava pe¬lo quarto procurando suas coisas. A bola de tênis, a raquete...

— Papai não precisa que os outros gos¬tem dele — disse, como se fosse mais ido¬sa. — Papai é forte, é muito sério — sor¬riu de novo, com nervosismo. — Fala tão pouco. Beija tão pouco... A senhorita sabe.

— O que devo saber?

— Que papai é assim.

Insistiu muito, mas Desi não soube ex¬plicar o significado do que ela dizia, che¬gando Dyan à conclusão de que era até crueldade falar naquilo com uma criança que pouco conhecia seu pai.

Saiu com ela ao jardim. O Jaguar já não estava ali.

Deram seu passeio, como faziam todos os dias. Internaram-se pelo vale, e Dyan olhou para o alto, onde se erguiam as mi¬nas de hulha.

— Ande — mostrava a menina para sua jovem preceptora. — Está vendo aque¬la cabana de caça?

Dyan procurou com os olhos a mencio¬nada cabana.

Erguia-se por entre o matagal. Era de madeira por fora e pedra bruta, natural, misturada com o cimento que um dia foi pintado de branco, mas que naquele momento já era quase pardo, coberto de hera.

Tinha duas janelas e um pórtico.

— O que é isso?

— Papai vai lá algumas tardes. Caça, sabe? E, com a espingarda, mete-se pelos bosques.

— Ah.

A menina corria pela campina. Chega¬ram mais perto da cabana.

— Quer vê-la? Por dentro, quase não tem nada. Um sofá, umas cadeiras e mui¬tos livros pelas estantes. Quando papai quer ficar sozinho, vem aqui.

Instintivamente, aproximava-se de uma das janelas. Desi cantarolava em torno dela.

— Quem lhe disse que seu pai vem aqui?

— Eu o vi. Não me aproximo dele, sabe? Papai não sorri. Tenho medo, por isso fico de longe. Mas o vejo.

Dyan já estava assomando à janela da casa rústica.

 De fato, havia um grande sofá, duas cadeiras, muitas almofadas pelo chão. Ao fundo, uma mesa de bilhar, e nas paredes uma infinidade de livros, espingardas de caça, de todas as cores e formas.

— É o refúgio de... seu pai.

Dizia-o sem perguntar.

Desi deitou a correr, gritando:

— Sim. Vamos ver quem corre mais, Dyan?

Dyan correu atrás da menina, mas seus olhos ainda observavam aquela cabana perdida no mato. Já a vira algumas vezes, mas não lhe prestara atenção.

Ao cabo de um longo passeio, voltaram para casa.

Era quando Dyan aproveitava para descansar um pouco, ou para escrever suas cartas, que raramente enviava, ou se distraia lendo ou arrumando suas gavetas.

Aquele dia, ao ver-se só, não fez nada disso.

O Jaguar de Lars estava ali, em frente à garagem, e também o carro do secre¬tário, indicando que os dois estavam na mansão.

Ficou observando da janela, por alguns segundos.

Era como se não pertencesse a si mesma, como se por fora uma força estranha, íntima, a mantivesse ali.

De repente, sentiu algo dentro de si.

E se desse um passeio?

Anoitecia. Ninguém a procuraria até as nove e meia, quando jantava com Desi.

Sempre comiam sozinhas, e depois ela deitava a menina, indo para seu quarto estudar, ler ou pensar.

Olhou o relógio. Eram sete horas. Naquela época do ano, escurecia depressa. Decidiu dar um passeio antes que escure¬cesse completamente.

 

Não soube quando se viu em frente à cabana.

Era algo obsessivo, que não podia do¬minar. Aproximou-se do pórtico e empur¬rou a porta. Havia teias de aranha pelo teto. Como uma sonâmbula, Dyan avan¬çou. O resto da casa estava limpo.

Naquele instante, ela vestia uma cal¬ça marrom, um suéter bege e calçava mocassins marrons. Um pouco trêmula, andou pela cabana.

Não havia mais do que um aposento, e neste se resumia tudo. Almofadas, ca¬deiras, livros, espingardas... O que fazia ali?

Tentou ligar a luz.

Virou-se. E foi quando seus olhas depararam com a alta figura masculina.

— Oh...

Foi como um grito.

Levou as mãos ao peito. Depois, apertou com elas a boca.

Lars estava ali. Vestia calça azul, ca¬misa branca e um blusão esporte, azul co¬mo a calça. Parecia uma sombra. Algo in¬tangível. Mas, ao mesmo tempo, algo tremenda e perigosamente real.

— Olá — saudou.

A porta estava aberta, e a forte, figura masculina quase a tapava por completo. Assustada, sem saber o que dizer, Dyan só olhava. Observou como as mãos de Lars fechavam aquela porta.

— Devo... ir-me — sussurrou, com um fio de voz, e logo, Justificando sua presença ali: — Vim para... para..

Lars se aproximava. Passo a passo. Seus olhos a fitavam como se lhe tirassem cada peça de roupa.

Mas se aproximava. Sem pressa. Com aquele seu andar indolente.

Dyan juntou as mãos de novo.

— Eu... já... estava... saindo.

Lars não disse nada. Era uma agonia, para Dyan, aquele silêncio. Aquele avan¬çar inexorável.

Lars já estava ao seu lado, dominando-a com sua estatura, inclinando-se e fitan¬do-a como se quisesse devassá-la.

— Devo... devo ir-me...

E deu um passo à frente.

Lars estendeu o braço. Atraiu-a para si.

Nem uma palavra. Apenas aquele jeito dominador, possessivo.

Súbito, beijou-a com ansiedade. Na bo¬ca.

— Não — gemeu Dyan, angustiada. — Não...

Mas não fugia.

Não desejava ir-se? Sim, sim, mas se oprimia instintivamente contra ele, e obe¬decia ao movimento dos lábios masculi¬nos, que tentavam abrir os seus.

Foi assim que a levou para aquele lu¬gar...

Era horrível aquela evidência. E, do fundo de sua ansiedade, de seu medo e de seu prazer, se perguntou, angustiada, como podia existir uma mulher que tro¬casse Lars por outro homem.

Não o via. A noite caíra completamen¬te, mas sentia sua força, sua paixão...

— Por favor — gemeu. — Por favor...

Fugia dele. De seus braços.

Lars não a retinha. Dir-se-ia que lhe dava medo aquela garota sensível e ingê¬nua.

Lars devia dizer algo. Qualquer coisa, e, se quisesse, poderia dizer muitas, mas não falou. Ficou ali, como se perdido em si mesmo, vendo como aquela coisa frá¬gil, sensível e trêmula se afastava.

Tudo era diferente. Mas Lars, ainda que o pensasse, não o admitia. Mas o cer¬to é que aquilo era diferente.

Acabava de chegar, quando Mildred bateu à sua porta.

— Desi a espera para jantar, Sra. Dyan.

Não iria. Não podia...

Olhava para dentro de si mesma, procurando uma justificação para tudo aqui¬lo.

Por quê?

Como pôde ela...

— Srta. Dyan...

— Não vou descer, Mildred — disse, tentando parecer serena. — Estou com muita dor de cabeça. Diga a Desi que irei deitá-la depois.

— Sim, senhorita.

Ouviu seus passos. E também escutou o louco bater de seu coração.

O que ocorreria quando ele a visse de novo?

Que lhe diria?

"Sou uma moça honesta — disse a si mesma, obsessiva. — Sou, sim. Mas... por que não o fui com ele? O que tem esse homem? O que me fez? Acaso me pediu al¬go?"

Nada. Não lhe pedira coisa alguma. Deitou-se na cama. Toda a sua roupa cheirava a loção fina para homem.

Cobriu o rosto com as mãos. Estava morta de vergonha, e não sabia como o enfrentaria.

— Dyan — ouviu a voz de Desi chamando-a.

Correu para o banheiro e lavou depres¬sa o rosto.

— Dyan... posso entrar?

— Entre... entre, Desi.

— Ainda está com dor de cabeça?

— Já... já passou. Irei deitá-la.

— Está bem.

Saiu do banheiro. Seus olhos ainda bri¬lhavam.

A menina, sem perceber nada, correu para ela, dizendo;

— Tive medo. Medo de que ficasse doente.

— Ora, queridinha, acalme-se.

E apertou-a contra si.

— Se papai nos visse abraçadas assim... — sussurrou a menina.

Soltou a menina, como se esta quei¬masse.

Seu pai! O que fizera seu pai com ela?

— Ande, Desi — disse, apanhando a mão da menina — vamos deitar.

— Está ainda doente?

Estaria para o resto da sua vida. Tudo era horrível. Como pôde ela perder a ca¬beça dessa maneira? E Lars Milman? Por quê?

— Vamos, Desi — quase gemeu. E a menina se foi com ela.

Foi ao sair do quarto da menina, após adormecê-la, que ao cruzar o salão ouviu aquela voz...

 

— Se quiser tomar algo...

Voltou-se, como se mil demônios a es¬petassem.

Estava ali.

Igual a uma hora antes. Firme, imó¬vel. Com aquela expressão quieta nos olhos... Tinha, um copo na mão.

— Entre — convidou.

Outra vez? Para quê? Acaso ia descul¬par-se?

Mas... teve ele toda a culpa? Não foi ela quem o procurou? Pelo menos, quem foi à cabana, com a íntima esperança de vê-lo, de conhecê-lo mais, de esclarecer aquele mistério que envolvia a personali-dade de Lars Milman...

Não entraria. Claro que não. Fugiria. Não só para seu quarto, mas para fora daquela casa, para longe dele. Levando con¬sigo aquele trauma moral, aquela entre¬ga total...

— Entre — tornou a ouvir aquela voz, inexpressiva.

E, coisa estranha, ela que tinha o firme propósito de seguir em frente, entrou no salão onde ele estava.

Olhou em torno. Estava certa de que não via nada.

Uma tênue luz partia de um canto. Um carrinho-de-chá, repleto de garrafas e copos.

— Toma algo?

Dyan teve medo de gritar. De dizer-lhe que estava apaixonada por ele?

— Uísque?

Nada.

A voz de Lars era... mais humana?

Por que não falava daquilo?

Por que não se desculpava ou lhe di¬zia... algo, qualquer coisa, que lhe afu¬gentasse aquela dor, aquela humilhação?

— Deve preferir licor.

Veneno. Era o que preferia.

— Não... quero nada.

— Desi dormiu?

Por que se interessava pela filha, se ja¬mais o fez? Só para não falar do que tinha de falar?

— Com certeza, você esteve em meu apartamento, na minha ausência — disse, sem esperar resposta.

Dyan se agitou.

Estava colada à parede, com as mãos para trás, vermelha de vergonha, de hu¬milhação, de ansiedade.

Ele sorriu.

Um sorriso diferente.

— Vá lá amanhã.

A voz de Dyan saiu num soluço:

— Não... não. Mil vezes não.

Lars fez um gesto.

— Não gosto que chore... Não vale a pena.

— O que pensa? Que sou assim para todos? Diga, é isso que pensa?

Parecia enlouquecida.

Lars a fitava, em silêncio. E, sem deixar de fitá-la, levou o copo aos lábios. Bebeu devagar.

— Tenho certeza de que sua mulher está viva. Não tem pena... de mim? O que pensa que eu sou?

— Muito... apaixonada — disse ele, sereno.

Não podia mais. Voltou-se e correu para a porta.

Lars não a reteve. Continuava ali, imó¬vel, com o copo, pela metade, na mão.

Dyan subiu as escadas na maior carreira. Mike, que a vira sair do salão, sacudiu a cabeça, desolado.

 

Viveu febril todo o dia. Quase não sa¬bia o que fazia.

Ao chegar as oito, ficou tentada a cor¬rer. Oh, se tivesse asas!

Não foi, é claro. E não foi porque agora estava mais calma, com a cabeça mais no lugar.

Foi quando saía do quarto de Desi que ouviu a voz às suas costas.

— Devia ter ido...

Virou-se.

Por que antes quase não o via, e agora o encontrava a toda hora?

— Venha — disse Lars, estendendo a mão.

Dyan fugiu daqueles dedos. Se ele a tocasse... iria, faria e diria o que ele qui¬sesse.

— Vamos, venha.

Puxou-a pela mão para um pequeno salão particular. Dyan tremia dos pés à cabeça.

— Devia ter ido — repetiu, levantando-lhe o queixo.

Dyan tinha os olhos úmidos.

Afastou-se dele. Com força, com deci¬são. Ficou de costas, porém Lars se acer¬cou mais e a envolveu com os braços for¬tes.

— Esperei-a.

— Não... não irei... mais.

— Gosto que vá.

— Não irei.

— Por que foi à cabana?

Soltou-se dele como pôde. Foi fácil, pois Lars não a forçava.

Ao virar-se para ele, foi mais forte do que pensou que poderia ser.

— Estou apaixonada por você. Não vai rir?

Lars continuava fitando-a com expres¬são calma.

— É muito... jovem.

— Que importa isso? Para... cometer a fraqueza de amá-lo, sou quase velha. Por que não zomba de mim?

— Vou lhe dar algo para beber.

Disse isso e se aproximou do bar. Dyan apertava o peito com as mãos juntas.

— Vai se sentir bem — disse Lars, aproximando-se.

Dyan deu meia volta. Estava lívida.

— Não se ri? — gritou. — Diga, não se ri?

— Não — disse Lars, deixando o copo sobre uma mesa e tomando-a nos braços.

Dyan não fugiu dele. Não podia.

Lars procurou-lhe a boca e a beijou demoradamente. Foi um beijo quase reverencioso. Talvez nem ele o tenha notado, mas ao mesmo tempo esse beijo continha toda uma emoção íntima, que jamais sentira.

Dyan abriu os lábios, correspondendo àquele beijo. Estava à mercê de Lars.

Súbito, ele a soltou.

— Saia — disse.

— E ontem? Diga, e ontem?

Lars passou os dedos pelos cabelos.

— Ontem não me mandou sair. Devia ter mandado. Sabe que é... o primeiro ho¬mem. Isso me aterra. Por quê? Por que fez isso comigo?

— Saia — gritou-lhe. — Saia.

Assustada ante aquele grito, Dyan virou-se e saiu correndo.

 

Seis horas, sete, vinte para as oito. Iria.

Não podia suportá-lo. Ninguém lhe dis¬se para ir.

Ninguém sabia nada. Mas ela julgava ver nos olhos de todos, que o sabiam, que a tinham visto, que nada ignoravam do que se passava.

— Vai sair, Srta. Dyan?

Voltou-se como se a surpreendessem nos braços de Lars Milman.

Olhou para Mike. E o viu triste.

O que sabia Mike? O que pensava o velho amigo?

— Vou... vou até o centro. Tenho algo a fazer ali.

Mike pigarreou.

— É... é perigoso — baixou a voz.

Dyan pensou em seu pai.

— Vá para Regina.

Sabia-o? Adivinhava-o?

— Dyan... vá para Regina — insistiu. — Hoje.

Antes pudesse, ou tivesse vontade pa¬ra fazê-lo. Não pôde deixar de perguntar:

— Ela morreu, Mike? Diga, morreu?

— Ninguém o sabe. Pergunte a ele. É perigoso esse jogo, Dyan. Você não sabe quanto. Está amargurado. Viva ou morta, ele não é dos que esquecem... É... co¬mo uma tortura o amor de uma mulher para ele. Por favor, Dyan, parta antes que seja tarde demais.

Mike não sabia. Claro, como ia saber! Já era tarde demais.

— Dyan...

Não queria ouvi-lo. Dizia o que ela pensava e não queria ouvir a si mesma.

Por isso foi andando.

— Dyan...

— Vem um táxi apanhar-me — disse, com voz apagada. — Veja, já está me esperando...

— Dyan... pelo amor de Deus.

Voltou-se para ele, da porta. Fitou-o com desespero, como desesperada era sua voz.

— Já não posso, Mike. Já não posso!

Mike tinha razão. Era preciso fazer algo. Por isso, ela, expondo-se a tudo, estava ali.

Tocou a campainha com firmeza. A porta se abriu logo. Esperava por ela?

Milman pai entrou, ante o assombro de seu filho.

— Você...

— Pelo visto, esperava outra pessoa...

Lars era assim. Nunca se escondia de nada. Responsabilizava-se por tudo, mas aquilo, para Milman pai, era bem dife¬rente.

— Sim, esperava outra pessoa.

— Dyan.

Não o negou.

O pai se agitou. Fitou-o de frente. Ele apreciava Dyan. Sabia quanto ingênua ela era.

— Está destruindo uma vida.

Lars não se alterou.

— Podia dizer-lhe que antes, sem pie¬dade, destruíram a minha.

— Mas... não o diz.

— Não. Não tenho necessidade.

— Lars... não sente piedade?

— Não. Sinto outra coisa — disse Lars, com sua inexpressividade habitual.

O velho juntou as mãos.

— Escute, Lars, você sabe que nunca me meti em suas coisas. Vi-o atuar e o vi desapiedado muitas vezes. Mas sabia com que mulheres se enfrentava. Esta é diferente. Contaram-lhe sua história, e, como é uma sentimental, apaixonou-se por você. Não se pode brincar com sentimen¬tos puros. Não se deve. E depois, pode você dispor de sua vida? Onde está sua mu¬lher?

Lars não parecia impressionado.

À força de viver, de sofrer e de dominar-se, em seu rosto não se refletia emo¬ção alguma.

— Morreu há dois anos.

O velho Milman estremeceu.

— Morreu? De quê? Quem lhe disse?

Outra vez a impassibilidade de Lars.

— Fui a seu enterro. Morreu como vi¬veu. Num acidente. Coisa passada...

— E... Dyan? O que é Dyan para você?

Lars meteu a mão no bolso. Tirou dele uns papéis.

— Caso-me com ela esta mesma noite. Eu a estou esperando.

— Lars... como pode dizer as coisas assim? Assim, como se dissesse que está chovendo.

— E por que devo dizê-las de outra ma¬neira, papai? São coisas naturais.

— Mas os sentimentos... não se do¬minam.

— Eu dominei a dor e a humilhação, saber ocultá-las.

Ouviu-se um leve toque de campainha.

— É Dyan — disse Lars, com natura¬lidade, indo abrir a porta.

O velho ficou como que cravado no solo.

Nunca compreendeu bem seu filho. Naquele instante, tampouco o compreendeu.

— Entre, Dyan — ouviu-o dizer. — Papai está aqui.

Dyan, que já entrava, deteve-se. Pen¬sou morrer de vergonha ao dar de cara com o velho Milman.

— Olá, Dyan. Estava falando com meu filho... Diz que vão se casar agora mes¬mo. Fico contente, Dyan. Sim — acrescen¬tou, vendo a expressão de assombro da jovem. — É viúvo. Sua mulher faleceu há tempos...

— Oh.

Lars, com sua habitual inexpressividade, passou-lhe um braço pelos ombros.

— Vamos logo, Dyan. Faremos uma curta viagem. — Olhou para seu pai. — Cuide de Desi. Instale-se na casa, até que voltemos. Diga a Desi que eu e Dyan nos casamos. Ele vai gostar.

Assim decidiu Lars o seu destino. Sem que lhe vibrasse a voz, sem que seus olhos brilhassem mais que o normal.

Dyan estava sem reação. Só sabia que sentia o braço de Lars em seus ombros, e que aquele contato era reconfortante.

— Sejam felizes — desejou-lhes o ve¬lho Milman.

E beijou Dyan na testa.

— Estou muito contente, Dyan. Você sabe.

Não sabia nada. Era tudo tão inespe¬rado! Tão surpreendente!

— Não se explica — dizia Dyan — não entendo nada, Lars.

— O que é que não se explica?

— Que seja assim.

— Assim... como?

— Tão intenso, tão apaixonado e ao mesmo tempo tão sério, tão calado...

— Não lhe demonstro?

— Mas eu lhe digo que o amo. Digo-o mil vezes.

— E deseja que eu o diga também.

— Vai acreditar em mim toda a vida? Diga.

— Sim, em você é fácil acreditar. Em você há o que acreditar.

— Quando começou a amar-me?

— E como posso saber!

— Diga-me, Lars. Diga-me dez vezes, por cada cem que eu lhe digo.

— Que ingênua você é.

— Você está me tornando o contrário.

Dyan falava, com os olhos brilhantes.

A felicidade escapava-lhe por eles.

— Amo-a, tolinha. Concebe um homem como eu, casado sem amor? Não se dá conta? É que sou assim, e assim há de en¬tender-me.

— Mas gosto de ouvir você dizer que me ame.

— Como é ardente, querida... 

— Não gosta? Diga, não gosta?

Gostava, necessitava dela. Necessitava, como a vida, daquela paixão, e Dyan ficava meio louca quando estava a seu lado.

 

                                                                                            Corin Tellado

 

 

                      

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