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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CRIME E CASTIGO / Dostoievski
CRIME E CASTIGO / Dostoievski

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CRIME E CASTIGO

 

Nos começos de julho, por um tempo extremamente quente, saía um rapaz de um cubículo alugado, na travessa de S..., e, caminhando devagar, dirigia-se à ponte de K...

Discretamente, evitou encontrar-se com a dona da casa na escada. O tugúrio em que vivia ficava precisamente debaixo do telhado de uma alta casa de cinco andares e parecia mais um armário do que um quarto. A mulher que lho alugara, com refeição completa, vivia no andar logo abaixo, e, por isso, quando o rapaz saía tinha de passar fatalmente diante da porta da cozinha, quase sempre aberta de par em par sobre o patamar. E todas as vezes que procedia assim sentia uma mórbida impressão de covardia, que o envergonhava e fazia franzir o sobrolho. Estava zangado com a dona da casa e tinha medo de encontrá-la.

E isto não porque fosse covarde ou tímido, pelo contrário; simplesmente, havia algum tempo já que se encontrava num estado de excitação e enervamento parecido com o da hipocondria. Estava a tal ponto apegado ao seu quarto e afastado de todos, que receava encontrar-se com quem quer que fosse e não somente com a dona da casa.

A pobreza deprimia-o; mas havia também já algum tempo que até isso deixara de incomodá-lo. Abandonara por completo os seus trabalhos cotidianos e não queria preocupar-se com eles. Na realidade, não temia a dona da casa, por muito que pudesse tramar contra ele. Agora, ter de parar na escada, escutar todas as tolices daquela mulher, estúpida até o absurdo, e que não lhe interessavam absolutamente nada; todos aqueles disparates a respeito do pagamento, aquelas ameaças e lamentações, e, ademais, ter de falar, desculpar-se, mentir, não, preferia atirar-se como um gato pelas escadas abaixo e deixar-se cair ao abandono, contanto que não visse ninguém. Além disso, dessa vez, o seu receio de encontrar-se com a sua credora acabou por chocá-lo a ele próprio, assim que se viu na rua:

"Por que, diabo, me preocupo eu desta maneira e sofro todas estas inquietações por causa de uma bagatela?", pensou, sorrindo estranhamente. "Hum! Sim, é isso, está tudo ao alcance do homem e tudo lhe vem parar às mãos, simplesmente, o medo... Isto é um axioma... É curioso: de que será que as pessoas têm mais medo? O que mais temem é o primeiro caso, a primeira palavra... Mas parece-me que já estou falando demais. Afinal, não faço mais nada senão falar. Embora também se pudesse dizer que, se falo, é porque não faço nada. A verdade é que durante este último mês deu-me a mania de falar, enquanto me deixo ficar estendido ruminando no meu canto... sobre ninharias. Bem, e afinal, aonde vou eu? Serei capaz disso? Será isso uma coisa séria? Não, de maneira alguma. Divirto-me mas é à custa da minha imaginação, é uma brincadeira! É isso mesmo, uma brincadeira!"

Na rua fazia um calor sufocante, ao qual se juntavam a aridez, os empurrões, a cal por todos os lados, os andaimes, os tijolos, o pó e esse mau cheiro peculiar do verão, conhecido de todos os petersburgueses que não possuem uma casa de campo. Tudo isso junto provocava uma impressão desagradável nos nervos do rapaz, já bastante excitados. Completavam o tom repugnante e o triste colorido do quadro o cheiro insuportável das tabernas, particularmente numerosas naquele setor da cidade, e os bêbados que se encontravam a cada passo (1) apesar de ser dia de trabalho. Um sentimento de profundo desgosto se refletiu por um momento nas feições finas do rapaz. Para dizer a verdade, era um bonito rapaz, com uns magníficos olhos escuros, o cabelo castanho, de estatura acima da mediana, magro, de muito boa figura. Mas não tardou que voltasse a mergulhar numa espécie de profundo indiferentismo e, para sermos mais precisos, num completo alheamento de tudo, de tal maneira que caminhava sem fixar a atenção à sua volta e também sem querer fixá-la. Somente uma ou outra vez murmurava qualquer coisa por entre os dentes, obedecendo ao costume de monologar, que há pouco a si próprio confessara. Agora mesmo teve de reconhecer que, às vezes, os seus pensamentos se confundiam e se sentia fraco; e esse era o segundo dia em que não se alimentava.

Ia tão mal vestido que outra pessoa, ainda que acostumada a essa aparência, não se atreveria a sair à rua, em pleno dia, com aqueles andrajos. Aliás, aquele bairro era de tal natureza que ninguém aí reparava no ves tuário. A proximidade do Mercado do Feno, a abundância de estabelecimentos conhecidos, e sobretudo a população, composta de comerciantes que se aglomeram nessas ruas e ruelas centrais de Petersburgo, punham às vezes notas tão desconcertantes no panorama geral que seria estranho admirar-se de um encontro, fosse ele qual fosse. Mas era tal o maldoso desprezo que se tinha já acumulado no espírito do rapaz que, apesar de toda a sua delicadeza, às vezes muito juvenil, aquilo que menos o preocupava era o pobre vestuário com que ia pelas ruas. Já o mesmo não sucedia quanto à probabilidade de deparar algum conhecido ou algum antigo camarada, com os quais, geralmente, não gostava de encontrar-se. Eis que, de repente, um bêbado, que vá lá saber-se por que razão ou motivo ia naquele momento pela rua com uma enorme tieliega (2) vazia, puxada por um cavalicoque, lhe gritou quando passou: “ó tu, chapelão alemão!", e gritou-lhe isso a plenos pulmões, ao mesmo tempo que apontava para ele com a mão... O rapaz parou e segurou o chapéu, enervado. Era o chapéu alto, redondo, à Zimmermann, mas já usado e surrado, cheio de buracos e amolgadelas, sem abas e descaído para o lado mais deformado.

* (1) Nesse tempo a embriaguez "era um vício crônico na gente pobre", Henry Troyat. (N. do E.)

(2) Carroça de quatro rodas para transporte de cargas. (N. do E.) *

 

Mas não foi a vergonha, e sim outro sentimento, completamente diferente, parecido com o medo, que se apoderou dele.

"Eu bem sabia!", murmurou desgostoso. "Já me tinha lembrado! Isto é mesmo desagradável! É para que veja como uma tolice, o mais vulgar pormenor, pode estragar a melhor das intenções! Sim, o chapelinho dá nas vistas... Ridículo, e é por isso que todo mundo o vê. Com estes farrapos, a única coisa que diz bem é o gorro, mesmo velho, e não este espantalho. Ninguém traz outro semelhante, vê-se a um quilômetro de distância, fica gravado na memória... Sobretudo o fato de não se esquecer é um argumento comprovativo. E o que é necessário, precisamente, é passar despercebido... Pormenores, insignificâncias, é isso o principal... Uma ninharia destas pode deitar tudo a perder de uma vez para sempre..."

Tinha andado pouco; sabia até a que distância se encontrava de sua casa: oitocentos e trinta passos, precisamente. Quantas vezes os contou, no tempo em que fazia projetos! Nesse tempo não dava grande importância aos seus desvarios, apenas se excitava com eles por causa da sua ousadia quimérica mas sedutora. Mas agora, passado um mês, começava já a olhá-los de outra maneira, e, apesar de tudo, dos seus desanimadores monólogos a respeito da sua inércia e indecisão, ia-se acostumando, quase sem querer, a considerar aquele sonho escandaloso como um empreendimento, embora ele próprio não acreditasse nele. Agora ia ali a ensaiar aquele empreendimento e a sua comoção aumentava à medida que ia caminhando.

De coração palpitante e tomado de um tremor nervoso, aproximou-se do imenso edifício que se erguia de um lado sobre o canal, e do outro dava para a rua de... Essa casa compunha-se de pequenos andares, e todos os seus inquilinos pertenciam às classes trabalhadoras: alfaiates, serralheiros, cozinheiros, alguns alemães, mulheres de vida irregular, modestos empregados etc. Os que entravam e os que saíam encontravam-se nas duas portas e nos dois pátios da casa. Havia três ou quatro porteiros. O rapaz estava muito satisfeito por não se ter encontrado com ninguém, e, logo a seguir, deslizou da porta da direita para a escada, que era escura e estreita, negra, mas ele já conhecia muito bem tudo aquilo e lhe agradava aquela disposição; nessa obscuridade não eram de recear os olhares trocistas. "Se agora tenho tanto medo, como seria, de fato, se eu chegasse a levar a coisa a cabo?" Foi o que pensou involuntariamente quando se viu no quarto andar. Aí encontrou alguns carregadores e soldados que estavam tirando móveis de uma casa. Sabia já que naquele andar vivia uma família alemã, cujo chefe era funcionário. "Pode ser que esse alemão saia agora, e pode ser também que no quarto andar, nesta escada e neste patamar, só fique por algum tempo um andar ocupado, o da velha. Isso é que seria bom... em todo caso...", pensou, e bateu à porta do quarto da velha. A campainha deu um som fraco, como se fosse de lata e não de cobre. Nos modestos quartos de semelhantes casas, quase todas soam assim. Já tinha esquecido o som daquela campainha e, de súbito, aquele som pareceu recordar-lhe qualquer coisa e trazer-lha claramente à imaginação... Por isso estremeceu e, dessa vez, sentiu os nervos frouxos. Passado um momento a porta entreabriu-se numa fenda estreita, pela qual a inquilina espreitou o visitante, com modos receosos e deixando ver unicamente os olhos que brilhavam na obscuridade. Mas, quando viu tanta gente no patamar, ganhou coragem e acabou de abrir a porta. O rapaz entrou para uma sala escura, dividida em duas por um tabique, do outro lado da qual ficava a cozinha exígua. A velhinha estava na sua frente, olhando-o em silêncio e interrogativamente. Era pequenina e seca, de uns sessenta anos, olhos vivos e maliciosos, com um narizinho afilado e de cabeça descoberta. Os cabelos alvejantes brilhavam, de besuntados com azeite. Trazia um lenço de flanela no pescoço delgado e comprido, parecido com a pata de uma galinha, e nos ombros, apesar do calor, uma pequena estola de pele, gasta e amarelada. A velhota não fazia mais do que tossir e gemer. Talvez o rapaz tivesse fixado nela um olhar especial, porque nos seus olhos tornou a aparecer a antiga expressão de desconfiança.

- Raskólhnikov (3), estudante; já estive aqui o ano passado - apressou-se a murmurar o rapaz, fazendo uma meia reverência, pois lembrou-se de que era preciso ser mais delicado.

- Já me lembro, bátiuchka (4); lembro-me muito bem de quem se trata - disse a velhota respeitosamente, sem afastar o olhar inquisitorial da cara do rapaz, tal como antes.

- Pois bem; eu vim de novo aqui para tratar de um assunto, coisa de pouca importância - continuou Raskólhnikov, um pouco contrariado e admirado da desconfiança da velha.

"Aliás, pode ser que ela seja sempre assim, e que da outra vez eu não tivesse reparado", pensou com uma sensação aborrecida.

A velha permanecia calada, como se reconsiderasse; depois afastou-se para um lado e, apontando a porta do quarto, disse, empurrando o visitante para a frente:

- Entre, bátiuchka.

O quarto em que o rapaz entrou, forrado de um papel amarelo, com gerânios e pequenas cortinas de musselina na janela, estava nesse instante iluminado pelo sol poente. "Talvez, depois, também faça sol...",

 

* (3) Nome forjado de raskol, cisão. É evidente o propósito simbolista do autor. Criando este nome, quer mostrar, através da significação do étimo, o homem cindido, atormentado pela contradição, entre as exigências que ele faz à vida, à humanidade e a si mesmo, e

a capacidade para realizá-las. Em Crime e Castigo este simbolismo não tem sentido religioso, embora os termos raskol e raskólhnik fossem na época habitualmente aplicados à seita religiosa dos Velhos Crentes, e aos seus adeptos, cindidos da Igreja Ortodoxa e combatidos pelo Poder Central. (N. do T)

(4) Paizinho. Utilizado na linguagem do povo, aplicado ao próprio pai ou a pessoas respeitosas, às quais se quer tratar com consideração e afeto ao mesmo tempo. (N. do E.) *

 

foi a idéia que perpassou rapidamente pela mente de Raskólhnikov, e correu rapidamente os olhos sobre todo o quarto para ficar conhecendo melhor e gravar na memória a sua disposição. Mas nele não havia nada de especial. O mobiliário, muito velho e de madeira amarela, compunha-se tão-só de um divã com grande recosto saliente, de madeira, uma mesa ovalada, colocada em frente ao divã, um toucador com o seu espelhinho encostado ao tabique, algumas cadeiras também encostadas às paredes, mais uns tantos quadrinhos sem valor, em molduras amarelas, representando senhoras alemãs com passarinhos nas mãos... e pronto. Num canto, diante de uma pequena imagem, ardia uma candeia. Estava tudo muito limpo; tanto os móveis como o soalho estavam encerados e reluzentes. "À custa do trabalho de Lisavieta", pensou o rapaz. Nem um só grão de pó se encontraria em todo o quarto. "É sempre assim, em casa das viúvas velhas e más", continuou dizendo para si próprio Raskólhnikov, e lançou um olhar de revés à cortina de indiana que escondia a porta dum segundo compartimento, onde ficavam a cama e a cômoda da velha, e para onde não tinha ainda conseguido deitar nem um só olhar. A casa reduzia-se a esses dois quartos.

- Então, o que deseja? - disse a velha secamente, entrando no quarto e pespegando-se diante dele, como antes, para olhá-lo diretamente no rosto. - Trago uma coisa para empenhar! - e puxou de um velho relógio de prata, de algibeira.

Tinha gravada uma esfera na tampa e a corrente era de aço.

- Está bem, mas não se esqueça de que o prazo do outro empréstimo já acabou há três dias.

- Eu lhe pagarei em breve os juros do mês, tenha paciência.

- Ainda que não queira, meu caro senhor, não tenho outro remédio senão ter paciência ou vender aquilo que me entregou.

- Quanto me dá por isto, Alíona Ivânovna?

- Só me traz ninharias, bátiuchka; isso, fique sabendo, não vale nada. Da outra vez dei-lhe dois rublos pelo anel, mas na joalharia há-os novos por rublo e meio.

- Dê-me quatro rublos; hei de resgatá-lo depois, porque era do meu pai. Por estes dias terei dinheiro.

- Rublo e meio, pagando os juros adiantados, e é se quiser! - Rublo e meio! - exclamou o rapaz.

- Como quiser - e a velhota tornou a entregar-lhe o relógio. O rapaz guardou-o, e sentiu tal coragem que se dispunha já a ir-se embora; simplesmente, em seguida mudou de opinião, lembrando-se de que já não tinha tempo para ir a outro lugar e de que já anteriormente tinha estado em outra parte.

- Dê-mos! - disse com maus modos.

A velhota procurou umas chaves no bolso e depois dirigiu-se para o outro quarto, por detrás da cortina. O rapaz, que ficara só no meio da sala, pôs-se de ouvido à escuta, refletindo. Ouviu a velha abrir a cômoda. "Deve ser no gavetão de cima", pensou.

"Costuma trazer as chaves no bolso da direita... todas no mesmo molho, numa argola de aço... E entre elas há uma maior que as outras, com o palhetão denteado, que não é a da cômoda... Isso quer dizer que também deve haver alguma arca ou cofre-forte... É curioso. Os cofres-fortes têm todos chaves dessas... Mas, enfim, tudo isto... é de somenos importância..." A velhota voltou.

- Aqui tem, bátiuchka; como a um rublo correspondem dez copeques por mês, a rublo e meio cabem quinze copeques por mês, que eu recebo adiantados. Aos outros dois rublos, que lhe dei da outra vez, correspondem, em relação a esta conta, vinte copeques, que também recebo já. Ao todo são trinta e cinco. De maneira que o seu relógio fica por um rublo e quinze copeques. Aqui tem.

- O quê? Então agora é só um rublo e quinze copeques? - É assim mesmo.

O rapaz não estava para questões e aceitou o dinheiro. Olhou para a velha, sem pressa de sair dali, como se quisesse dizer ou fazer alguma coisa e nem ele próprio soubesse o quê...

- Pode ser que eu, Alíona Ivânovna, dentro de uns dias lhe traga outra coisa para empenhar... de prata... boa... uma cigarreira, assim que um meu amigo ma devolva - e, como se atrapalhasse, calou-se.

- Está bem, depois falaremos, bátiuchka.

- Adeus... Mas a senhora vive sozinha? Não tem uma irmã? - perguntou, aparentando despreocupação e dirigindo-se para o vestíbulo.

- Mas que lhe interessa ela, bátiuchka?

- Nada de especial. Perguntei por perguntar. A senhora, depois... Adeus, Alíona Ivânovna!

Raskólhnikov afastou-se dali muito perturbado. E a sua perturbação ia aumentando cada vez mais. Quando saiu da escada parou várias vezes, como se estivesse subitamente preocupado por alguma coisa. E, por fim já na rua, murmurou:

- Oh, meu Deus. Como tudo isto é repugnante! Ah, sim, sim, eu... não; isto é um absurdo, uma estupidez! - acrescentou resolutamente. - E se me acontecesse esse horror? De que porcaria é capaz a minha alma! Isto é que é importante: é sujo, brutal, mau! E eu, durante um mês inteiro... Mas nem com palavras, nem com exclamações, podia exprimir a sua comoção. Um sentimento de imensa repugnância, que começava a oprimir e a mortificar o seu espírito, desde o momento em que fora ver a velha, tomava agora tais proporções e revelava-se tão claramente, que não sabia onde refugiar-se para fugir à sua tristeza. Caminhava pelo passeio como um ébrio, sem reparar nos transeuntes, dando-lhes encontrões e sem saber para onde ia. Quando olhou à sua volta verificou que se encontrava junto de uma casa de bebidas, na qual se entrava descendo uma escadinha que conduzia a uma adega. Os bebedores assomavam à porta, naquele momento, e saíam para a rua empurrando-se mutuamente e barafustando. Sem se deter a pensar, Raskólhnikov desceu pelas escadas. Até então nunca entrara numa taberna; mas agora tinha a cabeça fora do lugar e, além disso, afligia-o uma sede que o fazia tossir. Apetecia-lhe beber aguardente fresca, tanto mais que se sentia esgotado pela sua fraqueza súbita e, enfim, cheio de fome. Sentou-se num canto escuro e sujo, junto de uma mesinha de madeira de tília; pediu aguardente e bebeu com avidez o primeiro copo. Sentiu-se imediatamente aliviado e os pensamentos tornaram-se-lhe mais claros: "Tudo isto é um absurdo", disse, devaneando, "e não devo preocupar-me. É uma simples indisposição física! Um golinho de aguardente, um torrãozinho de açúcar... e o ânimo outra vez volta, as idéias se aclaram e as intenções se afirmam. Oh, como tudo isto é opressivo!"

Apesar dessa conclusão desesperante, sentiu-se alegre como se de repente se tivesse liberto de um peso terrível e, afetuosamente, passou os olhos em redor. Mas até mesmo nesse momento previa já remotamente que toda essa impressionabilidade otimista era também doentia.

Àquela hora havia pouca gente na taberna. Detrás daqueles dois bêbados com que tropeçara na escada saiu um grupo completo: cinco homens, com uma mulher e um acordeão.

Assim que eles saíram ficou tudo em silêncio e em sossego. Restou um só bebedor, que não estava ainda completamente bêbado, de aspecto burguês, sentado diante dum copo de cerveja; ficou também o seu gordo companheiro, enorme, de jaqueta comprida e barba grisalha, muito embriagado, meio adormecido, num banco, e que de vez em quando, de repente, como se despertasse, se punha a bater castanholas com os dedos, esticando os braços e erguendo o peito, sem se levantar do banco, depois do que cantarolava uma copla, esforçando-se por recordar versinhos como estes:

Acariciando-a durante o ano, acarici... ando-a durante todo o ano...

Ou, então, quando tinha um pouco mais de lucidez: Quando atravessei a Podiatchiéskaia,

encontrei a minha amada...

Mas ninguém o acompanhava; o companheiro, silencioso, cada vez que ele parecia despertar mirava-o com olhos hostis e desconfiados. Havia ainda outro tipo, com o aspecto de funcionário aposentado. Estava sentado sozinho, com um copo na frente, e de vez em quando bebia e olhava à volta. Parecia também muito excitado.

 

Raskólhnikov não estava acostumado às pessoas e, como dissemos já, evitava todo convívio, sobretudo nos últimos tempos. Mas, agora, qualquer coisa o impelia para as pessoas. Algo de novo se passava nele e, ao mesmo tempo, despertava-se nele também uma sede de convívio. Estava cansado de todo aquele mês de tristeza solitária e de sombria expectativa, e por isso ansiava por respirar outro ambiente, ainda que só por um momento, fosse qual fosse; e, apesar de toda a sujidade daquele lugar, continuava muito satisfeito na taberna.

O dono do estabelecimento estava em outra dependência, mas aparecia a todo instante na sala principal; para alcançá-la descia uns degraus, o que lhe dava ensejo de mostrar as botas elegantes, muito bem escovadas, debruadas a vermelho. Trazia uma jaqueta, com um colete terrivelmente ensebado, de pano preto, sem gravata, e toda a sua cara parecia besuntada de azeite, tal como um ferrolho. Atrás do balcão encontravam-se um rapaz, de uns catorze anos, e outro rapazinho que servia o que pediam os fregueses. Havia pepinos, biscoitos já enegrecidos e filés de peixe; tudo isso cheirava muito mal. A atmosfera era tão sufocante que não se podia estar ali, e o ar estava a tal ponto impregnado do cheiro de aguardente que poderia quase dizer-se que, só de respirar aquele ambiente, uma pessoa era capaz de ficar embriagada.

Às vezes dão-se encontros, até com pessoas totalmente desconhecidas, que despertam o nosso interesse logo ao primeiro olhar, assim, de repente, de improviso, antes de se ter trocado uma só palavra. Foi essa a impressão que provocou em Raskólhnikov aquele cliente que estava sentado à parte e que tinha o aspecto dum funcionário aposentado. O rapaz havia de recordar isso depois, algumas vezes, e atribuir-lhe até um pressentimento. Observava de alto a baixo o presumível funcionário, que, por seu lado, também não tirava os olhos dele, e percebia-se claramente que desejava entabular conversa. O funcionário olhava para os outros indivíduos que havia na taberna, sem excluir o dono, com o ar de estar já habituado a eles e cheio de tédio, e, ao mesmo tempo, com sua ponta de indolência, como a pessoas de posição e cultura inferiores, com as quais não tinha nada que falar. Era um homem dos seus cinqüenta anos, troncudo e de meia estatura, com alguns cabelos no crânio liso, uma cara com pintas amarelas e até esverdeadas, devido à bebida, as maçãs do rosto salientes, acima das quais brilhavam uns olhinhos estreitos como frestas, avermelhados, e que lançavam olhares cheios de vivacidade. Mas havia nele qualquer coisa de estranho: no seu olhar brilhava também uma espécie de solenidade - de fato, não lhe faltavam idéias nem espírito - e, no entanto, ao mesmo tempo deixava adivinhar algo de loucura. Trazia um velho fraque preto, completamente esfarrapado, com um só botão, que ele metia na casa com o desejo visível de conservar o decoro. Por debaixo do colete de nanquim avultava um peitilho cheio de salpicos e de manchas. Trazia a cara rapada, como os funcionários, mas havia muito que não se barbeava, de maneira que começavam a nascer-lhe nas faces tufos de pêlos rebeldes. Os seus gestos demonstravam também, de fato, uma certa gravidade democrática. Mas neste momento o nosso homem mostrava-se desassossegado, arrepelava os cabelos, e segurava às vezes com tristeza a cabeça entre as mãos, fincando os cotovelos esfarrapados sobre a mesa manchada e gordurenta. Finalmente, olhou para a cara de Raskólhnikov e disse com voz firme e rouca:

- Poderia dar-me licença, cavalheiro, de me dirigir ao senhor, fazendo-lhe uma pergunta correta? Porque, embora o seu aspecto não seja fino, a minha experiência me diz que o senhor é um homem de boa educação

e não está habituado a beber. Eu sempre respeitei a educação, quando se reúne a sentimentos generosos, e, além disso, sou conselheiro titular (1). O meu apelido é Marmieládov... (2) conselheiro titular. Dá-me licença que lhe pergunte se também é funcionário?

- Não, sou estudante - respondeu o rapaz, um pouco admirado, tanto por aquele tom oratório como pelo fato de se ver interpelado assim, tão abruptamente. Não obstante a ânsia que, havia pouco, sentira de falar com alguém, fosse com quem fosse, assim que lhe dirigiram a primeira palavra, tornou a experimentar de súbito o seu habitual sentimento hostil e irritado perante toda a comunicação com gente estranha que tocasse ou mostrasse o desejo de tocar-lhe na personalidade.

- Estudante ou ex-estudante! - exclamou o funcionário. - Era isso mesmo o que eu pensava! Tenho muita experiência, meu senhor, muita experiência! - E, com um gesto amplo e grave, levou um dedo à testa. - Com certeza precisava de ser estudante ou pertencer à classe culta. Mas dê-me licença. - Levantou-se do seu lugar, cambaleou, pegou o prato e o copo e foi sentar-se diante do rapaz, embora um pouco de esguelha. Estava embriagado, mas falava com eloqüência e desembaraço; somente de raro se atrapalhava um pouco e fazia uma grande embrulhada. Dirigia-se a Raskólhnikov com a ânsia de quem já não fala com ninguém há um mês.

- Meu senhor - começou quase com solenidade -, a pobreza não é um pecado, é a verdade. Sei também que a embriaguez não é nenhuma virtude. Mas a miséria, meu senhor, a miséria... essa sim, essa é pecado.

 

* (1) Um dos graus do tchin, isto é, da escala das funções burocráticas do Estado. (N. do E.)

(2) Personagem confusa, insegura, com qualidades indefinidas e misturadas, segundo o simboliza o seu nome, forjado pelo autor do termo comum marmielad. Este revela um caso raro de migração lingüística, desde que só em português, dentre as línguas românicas, o fruto marmelo é chamado segundo a sua origem latina, dele se derivando o de marmelada, o qual, expressando a mesma classe de doce, feito porém de outros frutos, se incorporou às outras línguas, e também à russa, provavelmente através do francês e do alemão. (N. do E.) *

 

Na pobreza ainda se conserva a nobreza dos sentimentos inatos; na miséria não há nem nunca houve nada que os conserve. A um homem na miséria quase que o correm a paulada; afugentam-no a vassouradas da companhia dos seus semelhantes, para que a ofensa seja ainda maior, e é justo, porque na miséria sou eu o primeiro que estou disposto a ofender-me a mim próprio. Acabou-se a bebida! Sim, senhor, há já um mês que o senhor Liebiesiátnikovl bateu na minha mulher; mas eu não sou a minha mulher! Está percebendo? Dê-me licença que lhe pergunte, ainda que seja só a título de curiosidade: já lhe aconteceu passar a noite no Nievá, nas barcas do feno?

- Não, ainda não me aconteceu - respondeu Raskólhnikov. - Que se passa por aí?

- Não, mas eu, há cinco noites...

Encheu o copo, bebeu e ficou pensativo. De fato, tanto na roupa como no cabelo, viam-se-lhe algumas palhinhas de feno. Era muito provável que nem sequer tivesse tirado a roupa do corpo, e que não se tivesse lavado havia já cinco dias. Sobretudo as mãos estavam sujas, gordurentas, avermelhadas, com pintas negras.

Segundo parecia, as suas palavras despertaram a atenção geral, embora não muito viva. Os rapazes, atrás do balcão, puseram-se a rir. Parecia também que o dono descera do quarto de cima só com a idéia de escutar o engraçado, e, sentado a alguma distância, escutava com indolência, mas gravemente. Marmieládov (3) era conhecido ali havia já muito tempo. E a sua inclinação para os discursos oratórios devia ter surgido em conseqüência daquele hábito de entabular conversas freqüentes, na taberna, com os desconhecidos. Para alguns bebedores, esse hábito chega a tornar-se uma necessidade, principalmente para aqueles que são maltratados e corridos da própria casa. Por isso, quando estão em companhia de outros bebedores, esforçam-se por justificar-se e, se for possível, por alcançar também alguma consideração.

- Que espirituoso! - exclamou em voz alta o taberneiro.

- Mas por que não vais trabalhar, uma vez que és empregado?

- Por que não trabalho? - repetiu Marmieládov, dirigindo-se exclusivamente a Raskólhnikov, como se fosse ele quem o tivesse interpelado. - Por que não trabalho? Mas não me dói a alma ver a abjeção em que me arrasto? Quando, há um mês, o senhor Liebiesiátnikov bateu na minha mulher com as suas próprias mãos, e eu estava deitado por causa da bebedeira, não sofri talvez? Dê-me licença, rapaz: já lhe aconteceu alguma vez... hum! vamos, pedir dinheiro sem esperança?

- Já me aconteceu, sim; mas como é isso de pedir sem esperança?

 

* (3) Criando a personagem e o próprio nome dela, Dostoiévski introduziu um neologismo na língua russa, na qual o novo termo liebiesiátnitchetsvo passou a ser usado na acepção de adulação, bajulação, o que caracteriza esta personagem. (N. do E.) *

 

- Ora, é pedir sabendo de antemão que não lho darão. Vejamos: o senhor, por exemplo, sabe de antemão e com toda a segurança que um certo homem, um cidadão bondosíssimo e prestável, por nada deste mundo lhe dará dinheiro, pois, por que motivo, pergunto eu, havia de lho dar? Suponhamos também que ele sabe que eu não lho devolvo. Por compaixão? Mas o senhor Liebiesiátnikov, que está a par das novas idéias, explicou-me, não há muito tempo, que a compaixão, nos nossos tempos, é proibida pela ciência, e que é assim que se procede na Inglaterra, onde existe a Economia Política. Por que, pergunto eu, havia de dar dinheiro? Mas acontece que, sabendo previamente que não o dá, apesar disso se põe a caminho e...

- Mas por que vai lá? - acrescentou Raskólhnikov.

- Mas se uma pessoa não o vai procurar, a quem é que há de acudir? É forçoso que todos os homens vão aonde podem ir. Porque estamos numa época em que é preciso ir a alguma parte. Quando a minha única filha foi matricular-se na polícia pela primeira vez, fui eu que a acompanhei - acrescentou, entre parênteses, olhando com certa inquietação para o rapaz. - Não, senhor, não! - apressou-se a acrescentar tranqüilamente, sem reparar que os rapazes do balcão mal podiam conter o riso, e que o próprio taberneiro sorria também. - Não! A mim, abanadelas de cabeça deixam-me na mesma, porque já toda a gente o sabe, e tudo quanto é mistério fica às claras, e é com serenidade e não com desprezo que o confesso. Seja! Ecce honro! Dê-me licença, o senhor poderia...? Mas não; devo exprimir-me de maneira mais categórica e terminante: o senhor não poderia, sim, o senhor não seria capaz, olhando-me bem de frente, de dizer-me que eu não sou um porcalhão?

O rapaz não respondeu nada.

- Bem - prosseguiu o orador com aprumo e até com grande dignidade, esperando outra vez que se extinguissem as risadas -, bem, admitamos que eu seja um porco e ela uma senhora. Eu tenho figura de animal, ao passo que Ekatierina Ivânovna, a minha mulher... é uma pessoa bem-educada, filha dum oficial superior. Admitamos que eu sou um velhaco e ela uma mulher de grande coração e cheia de sentimentos generosos. Mas, no entanto... oh, se ao menos tivesse pena de mim! Meu senhor, meu senhor, todas as pessoas precisam de ter ao menos um lugar onde sintam pena dela! Mas Ekatierina Ivânovna, apesar de ser uma senhora generosa, não é justa... E, embora eu compreenda que, quando ela se excede comigo, o faz por compaixão (porque, repito-o, e não me envergonho, ela se excede comigo), rapaz - reafirmou, com dignidade dobrada, quando acabaram as risadas -, mas, por amor de Deus! Se ela ao menos uma vez... Mas não! Não! Tudo isso são pormenores de que não é preciso falar! Pois já, e não somente uma vez, se cumpriu esse meu desejo, não foi uma vez apenas, que tiveram pena de mim; mas... esse é um aspecto do meu caráter. Eu, por mim, sou uma besta!

- O quê?! - observou o taberneiro bocejando. Marmieládov descarregou um soco pesado sobre a mesa.

- É o que eu sou! O senhor sabe que até as meias dela eu bebi? Não foram os sapatos, o que sempre seria mais lógico, mas as meias. Bebi as suas meias! Também bebi a sua gola de pêlo de cabra, apesar de ser pro priedade dela, pois já a tinha antes de casada; e moramos num buraco gelado, e ela, este inverno, apanhou uma bronquite e começou a tossir e a cuspir sangue. Temos três filhos pequenos, e Ekatierina Ivânovna trabalha desde manhã até a noite, lava, esfrega e trata das crianças, pois foi costumada à limpeza desde pequena, simplesmente está doente do peito e tem propensão para a tísica, sei-o muito bem. Mas então eu não tenho sentimentos? E quanto mais bebo mais sinto as coisas. É por isso que bebo, porque na bebida encontro o sofrimento... Bebo porque quero sofrer em dobro! - e inclinou a cabeça para a mesa, em um gesto de desespero. - Rapaz - continuou, tornando a erguer-se -, leio uma certa tristeza na sua cara. Reparei nisso assim que entrou, e foi por isso que lhe dirigi a palavra. Pois ao contar-lhe a história da minha vida eu não pretendia apresentar-me com um aspecto denegrido perante esses tratantes, que, por outro lado, já a conhecem; o que eu queria era encontrar um homem sensível e culto. Fique o senhor sabendo que a minha mulher foi educada num instituto de nobres de um distrito importante, e, quando saiu do pensionato, dançou envolta num xale, na presença do governador e das outras personalidades da localidade, e por isso concederam-lhe uma medalha de ouro e um diploma de louvor. A medalha... bom, a medalha vendemo-la já há tempos... Hum! O diploma laudatório ela ainda o guarda na arca e não há muito tempo que o mostrou à dona da casa. E, embora ande sempre às turras com a tal dona da casa, agrada-lhe no entanto pavonear-se perante os outros, falando dos dias felizes do passado. Coisa que eu não lhe censuro, não, senhor, não lhe censuro, porque esses últimos dias felizes ficaram-lhe gravados na memória e tudo o mais se evaporou. Sim, sim, é uma mulher voluntariosa, orgulhosa e destemida. É ela mesma quem esfrega os soalhos e come pão negro; mas não consente que lhe faltem ao respeito. Por isso não quis suportar as grosserias do senhor Liebiesiátnikov, e quando ele lhe bateu, por causa disso, teve de meter-se na cama, não tanto pelas pancadas, como pela ofensa. Já era viúva quando me casei com ela, e tinha três filhos pequeninos. Casou-se com o primeiro marido, um oficial de infantaria, por amor, e fugiu da casa dos pais. O marido gostava muito dela; mas acabou por endoidecer por causa do jogo de cartas, teve de comparecer perante um conselho de guerra, e morreu por causa disso. Por último também tinha dado em bater-lhe; ela não o tolerava, conforme pude comprovar depois por referências e por documentos; mas ainda hoje o recorda com lágrimas nos olhos, e recrimina-me a mim, comparando-me com ele, e eu fico satisfeito, alegre, porque com essas censuras, de certo modo, ela considera-se feliz... Bem; pois quando ele morreu, a pobrezinha ficou com três criancinhas num distrito afastado e selvagem, onde eu também morava, por esse tempo, e estava numa miséria tão desesperada, que eu, que tenho visto tanta coisa, nem me sinto com forças para descrevê-la. Todos os parentes a tinham desprezado. E no entanto era orgulhosa... E eu, então, meu senhor, eu, então, que também estava viúvo e tinha uma filhinha de catorze anos, da minha primeira mulher, propus-lhe casamento por não poder contemplar semelhante dor. Já pode ver até que ponto chegaria a sua miséria, quando ela, uma mulher culta e educada, e de família distinta, assentiu em casar-se comigo. Mas assentiu! Chorando e gemendo, e torcendo as mãos... mas o certo é que assentiu! Porque não tinha para onde ir. O senhor pode compreender o que significa isso de não ter para onde ir? Não, o senhor não pode compreender... Durante um ano inteiro eu cumpri as minhas obrigações, nobre e honradamente, e não toquei nisto - e bateu com o dedo na garrafa - porque sou um homem de sentimentos. Mas nem assim pude satisfazê-la; fui demitido, não por causa da aguardente, mas por mudança de pessoal, e foi então que me entreguei à bebida... Há já um ano que viemos parar, finalmente, depois de muitos cansaços e de muitas aflições, a esta magnífica capital, ornamentada com tantos monumentos. E aqui encontrei um emprego... Encontrei-o para o tornar a perder. Compreende? Desta vez perdi-o por minha culpa, porque o demônio me tentou... Vivemos agora num canto, em companhia da dona da nossa casa, Amália Fiódorovna Lippewechsel, e como é que nós vivemos e pagamos, não o sei ao certo. Além de nós moram ali também muitas outras pessoas... Aquilo é uma Sodoma caótica... Hum! Sim... E entretanto a minha filha foi crescendo, aquela que tive do primeiro casamento, e tudo o que a minha filhinha teve de suportar da madrasta, durante todo esse tempo, é coisa em que não quero tocar. Pois, ainda que Ekatierina Ivânovna seja uma mulher de sentimentos generosos, é pessoa orgulhosa e irritável, e que perde a paciência com facilidade... Lá isso é! Bem, mas não falemos nisso! Educação, já o senhor pode imaginar que não recebeu nenhuma. Há quatro anos experimentei ensinar-lhe geografia e história universal; mas, como eu próprio não estava muito forte nisso e não tinha tido bons professores, e, além disso, com aqueles livros... Hum! Bem, agora já não há desses livros; e a educação dela ficou por aí. Ficamos em Ciro, rei dos persas. Depois, quando era já uma mulherzinha, leu alguns livros de índole romanesca, e há pouco, por intermédio do senhor Liebiesiátnikov, leu com muito interesse um livro de fisiologia, de Lewis... conhece-o? E até nos leu passos dele em voz alta; foi essa toda a sua instrução. Agora, meu senhor, vou fazer-lhe uma pergunta de caráter particular. Acha que uma moça pobre, mas honesta, pode ganhar a vida trabalhando? Se for honesta e não possuir aptidões especiais, nem quinze copeques por dia chegará a ganhar, e isso trabalhando sem parar. Mas o Conselheiro de Estado Klopstock (Ivan Ivânovitch, o senhor está a ouvir-me?) até hoje ainda não lhe pagou pela confecção de meia dúzia de camisas de holanda, e ainda por cima a expulsão de sua casa a pontapés, insultando-a de uma maneira vergonhosa, com o pretexto de que o colarinho duma das camisas não estava na medida e de que a tinha talhado o viés. E, entretanto, as crianças passando fome... E Ekatierina Ivânovna torcia as mãos e dava voltas pela casa, e trazia já umas rosetas encarnadas nas faces: isso é próprio da doença e acontece-lhe constantemente. "Estás lendo? Apre, que comes e bebes conosco, parasita, e não fazes nada!" Mas que podia ela comer e beber, quando havia três dias que as crianças não viam uma côdea de pão! Eu, nessa ocasião, estava deitado; bem, queria lá saber! Estava curtindo a bebedeira, e então ouvi falar da minha Sônia - ela não é respondona, e tem uma vozinha tão fraca... é bonita, com uma carinha sempre pálida, fraquinha, e diz: "Mas, o quê, Ekatierina Ivânovna, é possível que me mande fazer isso?" E, entretanto, Dária Frántsovna, mulher maldosa e bem conhecida da polícia, já por três vezes lhe tinha pregado, por recomendação da dona da casa. " Que tem isso de especial?", respondeu Ekatierina Ivânovna com uma risadinha. "Para que te reservas? Olhem a prenda!" Mas não lhe deite culpas, não a culpo, meu caro senhor; não a culpo. Se estivesse em seu perfeito juízo não teria dito aquilo, foi levada por sentimentos exaltados, por causa da doença e pelos choros dos filhos esfomeados; lá isso foi; disse-o mais para ofender do que por pensá-lo verdadeiramente... Porque Ekatierina Ivânovna tem um tal gênio que, assim que os filhos começam a chorar, ainda que seja de fome, bate-lhes logo. E eu bem vi como Sônietchka se levantou, deviam ser sete horas, pôs uma touquinha, o casaco, saiu do quarto e só voltou às nove. Voltou a essa hora, foi ter com Ekatierina Ivânovna e deitou sobre a mesa, na frente dela, trinta rublos de prata. Não disse sequer uma palavra, pegou o nosso grande xale verde, que tem um desenho do jogo das damas (porque temos um xale com esses desenhos, que serve para todos), tapou completamente a cabeça e a cara com ele, estendeu-se na cama de cara voltada para a parede e só os seus ombros estremeciam com arrepios que lhe sacudiam todo o corpo... E eu continuava deitado, tal como antes, muito sossegado... Foi então, rapaz, que vi como Ekatierina Ivânovna, sem dizer uma palavra, se aproximou da caminha de Sônia e passou a noite toda de joelhos a seus pés, e beijava-lhe os pezinhos e não queria levantar-se, e depois dormiram as duas juntas, abraçadas, as duas... as duas... assim mesmo; e eu... continuava curtindo a bebedeira.

Marmieládov calou-se, como se lhe tivesse faltado a voz. Depois encheu o copo com rapidez, bebeu e limpou a boca.

- Então, meu senhor - continuou, depois de uma pausa -, então, devido à delação de pessoas mal-intencionadas (e para isso contribuiu principalmente Dária Frántsovna, com o pretexto de que lhe tínhamos faltado ao respeito), então é que a minha filha Sônia Siemiônovna se viu obrigada a matricular-se e, por essa razão, já não pôde continuar vivendo conosco. Porque a senhoria, Amália Fiódorovna, não quis tolerar isso (apesar de, antes, se ter servido de Dária Frántsovna), e o senhor Liebiesiátnikov também. Hum! Repare: foi por causa de Sônia aquela história que ele teve com Ekatierina Ivânovna. A princípio era ele quem assediava Sônietchka e, então, de repente, encheu-se de melindres. "Como, eu, um homem tão distinto, viver na companhia desta gente?" Mas Ekatierina Ivânovna não soube proceder: quis manter-se na sua... bom... e atazanou-se... Agora Sônietchka só vem ver-nos quando é já escuro, distrai Ekatierina Ivânovna e traz-lhe bastante dinheiro... Mora em casa do alfaiate Kapernaúmov, ao qual alugou um quarto. Kapernaúmov é coxo e gago, e toda a sua numerosa família é também gaga. E a mulher é também gaga... Vivem todos juntos no mesmo quarto; mas Sônia tem um só para ela, separado por um tabique... Hum! Lá isso é verdade... São pessoas muito pobres e todas gagas... sim... Pois bem, na manhã seguinte, assim que me levantei, vesti os meus farrapos, ergui os braços ao céu e dirigi-me para a casa de Sua Excelência, Ivan Afanássievitch. Conhece Sua Excelência, Ivan Afanássievitch? Não? Pois não conhece uma pessoa de bem! É como cera virgem, cera virgem, perante Deus; e essa cera funde-se... Até se desfaz em lágrimas, depois de se ter dignado a ouvir tudo. "Bem", disse ele, "Marmieládov, já uma vez me causaste uma decepção... Mas tornarei a admitir-te sob minha responsabilidade pessoal”, foi assim mesmo que ele disse. "Lembra-te disto, por amor de Deus, e vai-te embora!" Beijei os seus pés, em pensamento, pois na realidade não mo teria consentido, porque é funcionário de categoria elevada e homem de idéias novas no que respeita às coisas oficiais e à educação: voltei para casa e, quando anunciei que ia ser reintegrado no serviço e receber outra vez ordenado, que rebuliço!

Marmieládov tornou a ficar muito comovido. Neste momento entrou um bando de homens, embriagados, e à porta ouviu-se o som dum realejo ambulante, de aluguel, e a vozinha infantil, guinchona, dum rapazinho de sete anos, que cantava A granja. Estabeleceu-se um rebuliço. O taberneiro e os rapazes receberam os recém-chegados. Sem Lhes dar atenção, Marmieládov continuou a sua narrativa. Parecia já completamente embriagado; mas, quanto mais bêbado estava, mais tagarela se tornava. As recordações de seu recente triunfo no serviço pareciam reanimá-lo e fizeram até afluir-lhe um certo brilho ao rosto. Raskólhnikov escutava-o com atenção.

- Isto aconteceu haverá umas cinco semanas. Sim... Quando as duas o souberam, Ekatierina Ivânovna e Sônietchka, parecia que lhes tinham aberto o reino de Deus. Dantes era só aquilo de "Está ali caído, como uma besta!" Só insultos. Agora andavam nas pontas dos pés e ralhavam com os petizes: "Siemion Zakháritch chega cansado do trabalho, está descansando. Chiu!" Davam-me café antes de ir para a repartição e aqueciam-me a nata para o pão. Arranjavam nata verdadeira, está ouvindo? E onde teriam elas ido descobrir aquele uniforme decente, que valia onze rublos e cinqüenta copeques? Não consigo compreendê-lo! Até botas, gravatas de plastão, de algodão fino, esplêndidas, uniforme: tudo por onze rublos e cinqüenta copeques e em ótimo estado! Levanto-me no primeiro dia de manhã, para ir para a repartição, e que vejo? Ekatierina Ivânovna tinha-me preparado dois pratos para o desjejum: sopa e carne com rábanos... coisa que, até hoje, ainda não consegui explicar. Vestidos, não tinha nenhum, nenhum mesmo, e, no entanto, parecia que estava para receber visitas: estava muito bem-posta, e como se sempre tivesse vestido do bom e do melhor; bem penteada, com uma gola primorosa, mangas compridas, parecia absolutamente outra, e estava rejuvenescida e mais bonita. Foi Sônietchka, a minha querida, quem arranjou o dinheiro. E ela própria me disse: "É melhor eu não vir vê-lo de dia, é preferível vir depois, quando já for escuro, para que ninguém me veja". Está ouvindo, está ouvindo? Eu, depois do almoço, fui dormir, coisa que, em outras circunstâncias, Ekatierina Ivânovna não consentiria, como deve calcular. Havia apenas uma semana que tivera uma zanga terrível com a senhoria, Amália Fiódorovna, mas depois convidou-a para tomar uma xícara de café. Estiveram duas horas juntas conversando em voz baixa: "Sabe? Agora, Siemion Zakháritch está outra vez empregado, ganha um ordenado, e fala com Sua Excelência em pessoa, e Sua Excelência recebe-o e manda os outros esperarem, e vai de braço dado com Siemion Zakháritch à frente de toda a gente, até o seu gabinete!" Está ouvindo, está ouvindo? "Eu, não há dúvida", disse, "Siemion Zakháritch, que me lembro dos seus serviços, e embora sofra dessa triste fraqueza, como o senhor agora me promete emendar-se, e, além disso, como aqui, sem o senhor, as coisas não andam bem (ouça, ouça!), agora", disse, "confio na sua palavra de honra." Mas eu digo-lhe a verdade: isso tudo foi ela quem inventou, mas não o fez por falta de juízo, nem somente por gabolice. Não, ela própria acredita nisso tudo e consola-se com a sua imaginação... Meu Deus! E eu não a censuro; não, não a critico! Quando, há seis dias, recebi o meu primeiro ordenado (vinte e três rublos e quarenta copeques), e lho entreguei todo, chamou-me pequenino, "Meu pequenino!" Estávamos os dois sozinhos, compreende? Pois foi assim, como se eu fosse um rapaz jeitoso e um bom maridinho. Bem, depois ela me deu uma palmadinha na bochecha, dizendo-me: "Meu pequenino!"

Marmieládov parou, por momentos, e parecia que ia sorrir; mas, de repente, o queixo começou a tremer-lhe. No entanto dominou-se. Aquele ambiente de taberna, aquele quadro repugnante, cinco noites passadas nas barcas do feno e a garrafa de permeio em tudo isso, aquele amor doentio pela mulher e pela família deixavam admirado o seu ouvinte. Raskólhnikov escutava, era todo ouvidos, mas com uma sensação de mal-estar. Estava arrependido de ter-se ido meter ali.

- Meu senhor, meu senhor! - exclamou Marmieládov endireitando-se. - Oh, meu senhor! Ao senhor, talvez isso o faça rir, como aos outros, e eu não faço outra coisa senão importuná-lo com a estupidez de todos estes miseráveis pormenores da minha vida doméstica; mas, a mim, não me dão vontade de rir. Porque eu sou capaz de sentir tudo isso... E, durante todo aquele dia paradisíaco da minha existência, e durante toda aquela noite, eu mesmo me entreguei a grandes devaneios; quero dizer que tudo aquilo se ia arranjar, que as crianças teriam roupa, e a ela proporcionar-lhe-ia tranqüilidade, e tiraria a minha única filha da desonra e ela retornaria ao seio da família... E muitas outras coisas, muitas outras coisas! Dê-me licença, senhor... Pois bem, meu senhor... - de súbito, Marmieládov estremeceu, ergueu a cabeça e ficou olhando fixamente para o seu interlocutor. - Pois no dia seguinte, depois de todas essas ilusões (ou seja, precisamente há cinco dias), à noite, eu, com uma artimanha, como um salteador noturno, tirei a chave da cômoda a Ekatierina Ivânovna, apoderei-me do que restava ainda do meu ordenado... não me lembro bem quanto; mas veja isto, veja bem: levei tudo! Cinco dias fora de casa, eles à minha procura, a carreira perdida, e o uniforme em poder dum taberneiro da ponte do Egito, que, em vez dela, me deixou estes farrapos... e acabou-se!

Marmieládov deu a si mesmo um soco na testa, rangeu os dentes, fechou os olhos e fincou com força o cotovelo sobre a mesa. Mas, passado um minuto, transfigurou-se e, com certa malícia forçada e um autodomínio fingido, olhou para Raskólhnikov, sorriu e continuou falando:

- E hoje estive em casa de Sônia e fui pedir-lhe dinheiro para beber. Ah, ah, ah!

- E ela lho deu? - perguntou alguém dos que entravam, e depois desatou a rir às gargalhadas.

- Olhe, esta meia garrafa foi paga com o dinheiro dela - disse Marmieládov encarando Raskólhnikov. - Deu-me trinta copeques, os últimos, tudo quanto tinha, que eu bem vi... Não me disse nada; limitou-se a olhar-me em silêncio... De uma maneira como não se olha na Terra, mas além, no lugar onde têm piedade das pessoas, choram e não insultam. Apesar de que ainda custa mais quando não nos insultam! Trinta copeques, isso mesmo; e a ela, decerto, devem fazer-lhe falta. Não acha, meu caro senhor? Porque veja que ela, agora, tem de andar muito bem-arranjada. E essa apresentação custa dinheiro, está percebendo? Compreende? É que ela tem de usar brilhantina; e saias engomadas, botinas elegantes, justinhas, para fazer sobressair o pezinho quando é preciso atravessar uma poça no meio da rua. Compreende o senhor, compreende o que significa esse esmero? Pois bem, eu, como vê, gastei esses trinta copeques na bebida. E continuo bebendo! E já estou bêbado! Mas bem, quem é que se preocupa com um tipo como eu? Diga! O senhor tem pena de mim ou não? Diga lá, senhor, tem pena ou não? Ah, ah, ah!

Quis encher de novo o copo; mas já não havia nem uma gota; e meia garrafa estava vazia.

Ouviram-se risadas e também insultos. Riam e injuriavam, os que tinham ouvido e os que não ouviram, só de olhar a cara do funcionário demitido.

- Ter pena! Por que haviam de ter pena? - exclamou, de repente, Marmieládov, levantando-se de mão estendida, tomado de uma enérgica exaltação, como se estivesse apenas à espera daquelas palavras. - Mas

por que hão de ter pena de mim? Digam! É assim mesmo. Não há motivo. o que me devem fazer é cravarem-me numa cruz e não terem pena de mim! Mas crucifiquem-me depois de me julgarem e, quando me tiverem crucificado, tenham pena de mim. E então eu próprio irei ter com vocês para sofrer o suplício, pois não é de alegria que eu tenho sede, mas de tristeza e de lágrimas! Imaginas tu, taberneiro, que esta meia garrafa me trouxe a felicidade? Sofrimento, o sofrimento é que eu procurava no seu fundo; tristeza e lágrimas, e encontrei-as realmente; quanto à piedade, há de ter piedade de nós Aquele que de todos se apiedou e tudo compreendeu: Ele, que é o amigo e também é o juiz. Nesse dia Ele há de aparecer e perguntará: "Onde está essa pobre moça que se vendeu por uma madrasta má e tísica e por umas crianças, que lhe não são nada? Onde está essa pobre moça que teve compaixão do pai, bêbado inveterado, sem se assustar com o seu embrutecimento?" E depois dirá: "Anda, vem cá! Eu já te perdoei uma vez. Já te perdoei uma vez. Perdoados te sejam também agora os teus muitos pecados, porque amaste muito". E perdoará à minha Sônia; há de perdoar-lhe, eu sei que há de perdoar-lhe... Foi isso o que senti há pouco no meu coração, quando fui vê-la... E há de julgar a todos e a todos perdoará, tanto aos bons como aos maus, aos prudentes e aos pacíficos... E, depois de julgar todos, inclinar-se-á também para nós: "Vinde cá", dirá, "vós outros, também, vós, os bêbados, vinde cá, impudicos; vinde cá, porcalhões!" E nós aproximar-nos-emos, sem nos envergonharmos, e deternos-emos. E Ele dirá: "Meus filhos! Imagem bestial é a vossa e tendes a sua marca; mas aproximai-vos também". E intervêm os castos, e intervêm os prudentes: "Senhor! Mas vais admitir estes também?" E Ele dirá: "Pois eu os admito, ó castos! Aqui os acolho, ó prudentes! Porque nem um só deles se julgou nunca digno de tal mercê..." E estender-nos-á as suas mãos, e nós outros entregar-nos-emos nelas e romperemos em pranto e compreenderemos tudo... Então, havemos de compreender tudo! E todos hão de compreender... E Ekatierina Ivânovna também compreenderá... Senhor, venha a nós o vosso reino...

E deixou-se cair sobre um banco, esgotado e sem forças, sem olhar para ninguém, como que alheado de tudo o que o rodeava e caído num êxtase profundo. As suas palavras causaram uma certa impressão. Houve silêncio durante um minuto; mas não tardou que se ouvissem os mesmos risos e impropérios de há pouco.

- Já disse a sua sentença!

- Mas que série de disparates! - Funcionariozinho!

E etc., etc.

- Vamo-nos embora daqui - disse Marmieládov de repente, levantando a cabeça e encarando Raskólhnikov -, leve-me... à casa de Kossel ao fundo do pátio. É já ali... vamos ter com Ekatierina Ivânovna...

Havia muito que Raskólhnikov ansiava por ir embora; e também já pensara em ajudá-lo. Marmieládov parecia ter mais dificuldade em mexer os pés do que a língua, e apoiava-se com força ao rapaz. Era preciso percorrer um trajeto de duzentos a trezentos passos. O ébrio sentia cada vez mais medo e mal-estar, à medida que se ia aproximando de casa.

- Eu, agora, já não tenho medo de Ekatierina Ivânovna - murmurava agitado -, nem tenho medo de que ela me venha puxar os cabelos. Que são os cabelos? É um absurdo, isto dos cabelos! Isso mesmo! Até é melhor que nos puxe, pois, a mim, isso não me assusta... Eu... do que tenho medo, é do seu olhar. Sim, do seu olhar... e também das rosetas que lhe aparecem sobre as faces... E, além disso, tenho medo da sua respiração... Já viu como respiram esses doentes quando estão agitados? Também tenho medo do choro das crianças. Porque se Sônia não se lembrou de alimentá-las, não sei o que terá sido delas. Não sei! Mas, das pancadas, não tenho medo. Fique o senhor sabendo que, a mim, essas pancadas não só não me martirizam, como até costumam dar-me prazer. Não poderia passar sem elas. É o melhor. Que me dê uma boa sova, que descarregue os nervos, é o melhor... Mas já chegamos. É esta a casa de Kossel, um serralheiro, um alemão que enriqueceu... Leve-me.

Entraram no pátio e subiram ao quarto andar. À medida que se subia, a escada tornava-se mais escura. Era já perto das onze, e, embora nessa época do ano não haja em Petersburgo noite verdadeira, ali, no alto da escada, estava muito escuro...

A pequena porta, denegrida pelo fumo, que havia ao fim da escada estava aberta. Uma lamparina iluminava um quarto paupérrimo, dos seus dez passos de largura, tão pequeno que se via todo do patamar. Ali tudo era desordem e confusão; viam-se principalmente várias peças de roupa de criança. No canto do fundo, uma cortina cheia de buracos. Atrás dela, ocultar-se-ia a cama, provavelmente. Em todo o quarto havia apenas duas cadeiras e um divã derreado e coberto com um oleado em muito mau estado e, à frente dele, uma mesa de cozinha, de pinho, velha, sem pintura nem nenhuma cobertura. Na ponta da mesa ardia uma vela de sebo, quase gasta, num castiçal de ferro. Marmieládov tinha um quarto só para si, e que não era um simples canto; mas esse quarto era um corredor. A porta de acesso aos outros quartos ou cubículos em que se dividia o andar de Amália Lippewechsel estava aberta. Ouvia-se barulho, sentia-se ali um grande rebuliço. Riam às gargalhadas. Segundo parecia jogavam baralho e tomavam chá. De quando em quando ouvia-se uma ou outra obscenidade.

Raskólhnikov reconheceu imediatamente Ekatierina Ivânovna. Era uma mulher de aspecto extremamente fraco, fina, bastante alta e bem-feita, com um cabelo castanho ainda muito bonito e, de fato, com umas faces muito coradas, como se tivessem duas rosetas vermelhas. Andava de um lado para outro, no quarto, de mãos cruzadas sobre o peito, de lábios franzidos e respirando de uma maneira especial, entrecortada. Os olhos brilhavam-lhe como se tivesse febre; mas o seu olhar era duro e impassível, e os últimos reflexos daquela luz moribunda, que neles se refletiam, davam uma impressão de doença àquele rosto febril de tuberculosa. A Raskólhnikov pareceu-lhe uma mulher de trinta anos e, de fato, não faziam um par harmonioso, ela e Marmieládov. Não os sentiu entrar, nem reparou neles; parecia absorta, parecia que não via nem ouvia. No quarto havia uma atmosfera sufocante; mas ela não tinha aberto a janela; da escada vinha um odor pestilencial; mas também não fechara a porta que dava para ela. Dos quartos interiores, através das portas abertas, chegava também o fumo dos cigarros, e ela tossia, mas não fechava a porta.

A menina menor, de seis anos, dormia sentada no chão, encolhida e de cabecinha apoiada no divã. Um rapazinho, um pouco mais velho, tremia num canto e chorava. Acabara, por certo, de apanhar uma surra. A menina mais crescida, de uns nove anos, esgalgada e de aspecto débil, com uma camisinha em farrapos e uma capa de tecido aos quadrados sobre os ombros nus, que provavelmente lhe arranjaram quando tinha menos dois anos, pois já nem sequer lhe chegava aos joelhos, estava num canto, junto do irmãozinho, a cujo pescoço se abraçava com a sua mão esguia e fina. Parecia consolá-lo; dizia-lhe qualquer coisa ao ouvido, procurava acalmá-lo por todos os meios para que não tornasse a chorar e, ao mesmo tempo, não desviava da mãe os seus grandes olhos escuros, que pareciam ainda maiores naquela carinha afilada e amedrontada. Sem entrar no quarto, Marmieládov pôs-se de joelhos à porta e empurrou Raskólhnikov para dentro. Quando viu o desconhecido, a mulher ficou especada na sua frente, distraída, mas desperta por um momento da sua meditação e como se perguntasse a si própria: "Que virá ele fazer aqui?" Mas, naturalmente, acabou por dizer consigo própria que iria para qualquer dos outros quartos, visto que ali era um corredor. Depois de ter imaginado isso, e sem dar-lhe atenção, dirigiu-se à porta do patamar sem intenção de abri-la e, de repente, deu um grito ao ver o marido à entrada, de joelhos.

- Ah! - exclamou com espanto. - Já voltaste! Criminoso! Monstro! Onde está o dinheiro? Que tens aí nos bolsos? Mostra! E o teu ordenado? Que fizeste do ordenado? Onde estão as moedas? Fala!

E atirou-se a ele, a fim de revistá-lo. Marmieládov ergueu imediatamente os braços com docilidade e humildade, para facilitar a busca, mas, de dinheiro, nem um copeque.

- Onde está o dinheiro? - gritava ela -; ó, meu Deus, gastou tudo na bebida! Doze rublos de prata que eu tinha no baú!

E, de repente, furiosa, agarrou-o pelos cabelos e arrastou-o para dentro. o próprio Marmieládov facilitava o seu esforço, deixando-se levar mansamente, de joelhos.

- Mas, se isto, para mim, é um prazer! Não me magoa, mas é um pra... zer, meu senhor! - exclamava, enquanto o arrastavam pelos cabelos e até o faziam dar uma cabeçada contra o chão.

A garota que dormia acordou e começou a chorar. O rapazinho que estava no canto não pôde conter-se e começou a tremer e a gritar, e cingiu-se contra a irmã, apavorado, como se estivesse quase para sofrer um ataque. A irmãzinha mais velha tremia, colada à parede, como a folha duma árvore. - Foi na bebida! Tudo gasto na bebida! - gritava a pobre mulher, desolada. - E essa roupa também não é a dele! Vão morrer de fome, de fome! - e, torcendo as mãos, apontava para as crianças. - Oh, vida malvada. E o senhor, o senhor não tem vergonha? - disse, de repente, encarando Raskólhnikov. - Na taberna! Ajudava-o a gastar o dinheiro na taberna! Bebeste-o tu também! Fora daqui!

O rapaz apressou-se a desaparecer, sem dizer uma palavra. Entretanto, a porta do fundo tinha-se aberto de par em par e por ela espreitavam alguns curiosos. Assomavam caras cínicas e trocistas, de cigarro ou de cachimbo na boca. Entreviam-se mulheres com roupões desabotoados, com vestidos de verão indecentes, de tão leves, e algumas com cartas na mão. Riram-se com grandes gritos, no momento em que Marmieládov, arrastado pelos cabelos, gritou que aquilo, para ele, era um prazer. Começaram a meter-se no quarto, até o instante em que se ouviu finalmente um grito de indignação, lançado pela própria Amália Lippewechsel, que queria restabelecer a ordem em sua casa e, pela centésima vez, meter medo à pobre mulher com a ameaça terrível de que teria de abandonar o quarto no dia seguinte. Quando ia saindo, Raskólhnikov apressou-se a rebuscar nos bolsos e encontrou qualquer coisa: umas moedinhas de cobre que lhe restavam do troco de um rublo que dera para pagar na taberna; e deixou-as na janela, sem que dessem por isso. Depois, já na escada, pensou melhor e sentiu desejo de voltar atrás.

"Mas que tolice eu fiz!", pensou. "Eles têm Sônia e, a mim, esse dinheiro faz-me falta." Mas, depois de considerar que não era possível recuar, além de que, em última análise, não ia retomar aquele dinheiro, deu um soco no vácuo e dirigiu-se para casa. "A Sônia também lhe faz falta para as suas pinturas", continuou, atravessando a rua e sorrindo sarcasticamente. "A apresentação custa dinheiro. Hum! E Sônietchka, coitada, poderia muito bem apanhar hoje uma decepção, porque não deixa de ter também os seus riscos, e a conquista do velo de ouro... não é nada fácil... Pode ser que todos eles se encontrem amanhã em dificuldades, a não ser que, devido a esse dinheirinho meu... Ah, Sônia! Em que ofício te meteram! Eles se aproveitam. E acabam por habituar-se. Choraram, mas acabarão por acostumar-se. Um patife acostumado a tudo." Ficou pensativo.

"Bem; e se eu tivesse dito uma tolice?", exclamou de repente, involuntariamente. "Sim, de fato, se o homem não fosse um velhaco, todos em geral, isto é, toda a gente, isto é, tudo o mais... eram apenas preconceitos, apenas espantalhos para meter medo, não havia limite nenhum e assim é que devia ser..."

 

No dia seguinte, já tarde, despertou depois de um sonho agitado, e esse sono não fora suficiente para reparar as suas forças. Acordou mal-humorado, azedo, irritável, mau, e passeou com aversão o olhar pela sua pocilga. Era uma espécie de gaiola de uns seis passos de largura, que apresentava um aspecto repugnante com o seu papel amarelo, cheio de pó, a desprender-se da parede por todos os lados, e com um teto tão baixo que um homem alto mal poderia empertigar-se, pois dava a idéia de que iria bater com a cabeça no teto. O mobiliário harmonizava com o ambiente; compunha-se de três cadeiras velhas, desconjuntadas; num canto, uma mesa pintalgada, sobre a qual se viam alguns cadernos e livros, que só da circunstância de se encontrarem cheios de pó poderia deduzir-se o tempo que havia ninguém os folheava, e, finalmente, o grande sofá, também desconjuntado, que ocupava uma parede inteira e quase todo o quarto, o qual anteriormente estivera forrado de indiana, mas que agora era um farrapo e servia de cama a Raskólhnikov. Deitava-se muitas vezes em cima dele, tal como estava, sem se despir, cobrindo-se apenas com o seu velho casaco esfiapado, de estudante, e colocando debaixo da cabeça uma almofada, sob a qual amontoava toda a roupa branca que possuía, limpa ou suja, com o fim de a ter mais alta. À frente do sofá havia uma mesinha.

Teria sido difícil chegar a maior abandono e cair em maior miséria; mas, para Raskólhnikov, na disposição de espírito em que se encontrava, até aquilo lhe era difícil.

Tinha-se retirado resolutamente de todo o convívio, vivia como uma tartaruga na sua concha, e até a cara da criada, que tinha obrigação de servi-lo e de deitar de quando em quando uma vista de olhos pelo seu quarto, lhe provocava mal-estar e convulsões. É o que acontece a alguns maníacos que concentram a sua atenção numa coisa. Havia já duas semanas que a senhoria deixara de fornecer-lhe a comida, e ele não pensara, até então, em ter uma explicação com ela, apesar de se encontrar em jejum. Em parte, Nastássia, cozinheira e criada única da senhoria, sentia-se contente de que aquele hóspede fosse daquela qualidade; tinha também deixado completamente de arranjar-lhe o quarto, e apenas o varria uma vez por semana, quando lhe apetecia. Era ela quem vinha agora despertá-lo.

- Levanta-te! Por que estás dormindo? - gritou-lhe, inclinando-se sobre ele. - Já são dez. Trouxe-te o chá. Queres um pouco de chá? Ou resolveste acabar por aí?

O hóspede abriu os olhos, teve um sobressalto e, por fim, reconheceu Nastássia.

- Esse chá é da senhoria ou não? - perguntou, endireitando-se no divã, devagar, e com cara de doente.

- Claro que é da senhoria!

Colocou na sua frente a chaleira já bastante usada, com as folhas do chá antigo, e ao seu lado pôs dois torrões de açúcar amarelo.

- Olha, Nastássia, pega isto, por favor - disse, metendo a mão no bolso (deitava-se assim, vestido) e tirando dele uma mancheia de cobres -, vai comprar-me um pãozinho. Vai também à salsicharia e traze-me um pouco de salsichão do mais barato.

- O pãozinho, trago-to já. Mas, em vez de salsichão, não queres sopa de couves? Está muito boa, é de ontem à noite. Deixamo-la para ti, simplesmente chegaste muito tarde. Estava tão boa a sopa!

Quando trouxe a sopa e o rapaz começou a tomá-la, Nastássia sentou-se a seu lado no divã e pôs-se a falar pelos cotovelos. Era camponesa e muito tagarela...

- Praskóvia Pávlovna diz que vai queixar-se de ti à polícia - disse. O rapaz franziu o sobrolho.

- A polícia? Por quê?

- Porque nem lhe pagas, nem te vais embora. Creio que é motivo suficiente.

- Ah, a malvada não está satisfeita! - resmungou o rapaz rangendo os dentes. - Não, isso, a mim, agora, não me calha nada bem... É uma idiota! - acrescentou em voz alta. - Irei hoje procurá-la e falar com ela.

- Ela é uma idiota, isso é, como eu também sou; mas tu, que és tão esperto, por que estás aí deitado e nunca ninguém te põe a vista em cima? Dantes dizias que ias dar lições a uns rapazinhos; mas, agora, não fazes nada?

- Faço qualquer coisa... - acrescentou Raskólhnikov, secamente e de má vontade..

- Mas que fazes tu? - Trabalho...

- Em que é que trabalhas?

- Penso em coisas sérias - respondeu o rapaz, depois de uma pausa. Nastássia, quando o ouviu, torceu-se de riso. Era dessas que riem à toa, e quando achava graça a qualquer coisa desatava num riso surdo, que lhe sacudia e fazia estremecer todo o corpo, até que sentia náuseas e se dominava.

- E isso dá muito dinheiro, não? - conseguiu dizer finalmente.

- Sem sapatos não se pode ir dar lições aos rapazes. Embora eu cuspa em cima disso...

- Não cuspas em cima dos sapatos.

- Não dão nada por essas lições. Que se pode fazer com meia dúzia de copeques? - continuou ele de má vontade e como se respondesse aos seus próprios sentimentos.

- Então querias receber uma grossa maquia de uma só vez? - Ele olhou para ela de uma maneira estranha.

- Sim, uma grossa maquia, de uma só vez - respondeu-lhe com firmeza, depois de uma pausa.

- Mais devagar; até me fazes medo; e já tens um olhar feroz! Bem, vou buscar o pão ou não?

- Como quiseres.

- Ah, já me esquecia... Ontem, depois de teres saído, veio uma carta para ti.

- Uma carta? Para mim? De quem?

- De quem, não sei. Tive de dar três copeques ao carteiro. Pagas-mos? - Vai buscá-la... por amor de Deus, vai buscá-la! - exclamou Raskólhnikov, muito comovido. - Meu Deus!

Passado um minuto, a carta apareceu. Não se enganara: era da mãe, vinha do distrito de R... Até empalideceu, quando pegou nela. Havia já muito tempo que não recebia carta; mas agora também lhe doía o coração.

- Nastássia, vai-te embora, pelo amor de Deus! Aqui tens os três copeques; mas, por amor de Deus, vai-te já embora!

A carta tremia nas suas mãos; não queria abri-la; desejava ficar a sós com aquela carta. Assim que Nastássia saiu, levou-a aos lábios e bheijou-a; depois ficou ainda durante muito tempo contemplando o endereço no sobrescrito, com aquela letra miúda e um pouco oblíqua que lhe era tão familiar e conhecida: a letra de sua mãe, que dantes, em outros tempos, o ensinara a ler e a escrever. Fazia-se preguiçoso; parecia até que receava qualquer coisa. Até que finalmente abriu o envelope; era uma longa carta, prolixa, abrangia duas folhas de papel, escritas nas duas páginas: duas grandes folhas de papel de carta, garatujadas, numa letra compacta.

"Meu querido Rodka", escrevia a mãe, "há já dois meses que não te escrevo uma carta, e por isso tenho sofrido muito e até tenho passado algumas noites em claro, pensando. Mas com certeza que tu não vais culpar-me por esse meu involuntário silêncio. Tu bem sabes como eu te quero; tu és o nosso filho único, para mim, e para Dúnia; tu és tudo para nós, toda a nossa ilusão, toda a nossa esperança. Quanto me custou quando soube que havia já uns meses que tinhas deixado a universidade, que não contavas com coisa nenhuma certa para te sustentares e que as lições e todos os outros recursos se te haviam acabado! Que auxílio posso eu prestar-te com a minha pensão de cento e vinte rublos por ano? Os quinze rublos que te enviei há quatro meses, como sabes, pedi-os emprestados ao nosso merceeiro Vassíli Ivânovitch Vakhrúchin, sobre essa pensão. É um bom homem e era amigo do teu pai. Mas, ao reconhecer-lhe o direito de receber a pensão em meu lugar, tive de esperar até pagar a dívida, o que ainda não consegui, de maneira que durante todo este tempo não pude enviar-te nada. Mas agora, louvado seja Deus, parece que já poderei continuar a enviar-te certas quantias, podemos até gabar-nos da sorte, e vou falar-te a propósito disso. Em primeiro lugar, poderás adivinhar, querido Rodka, que a tua irmã há mês e meio vive comigo e não nos tornaremos mais a separar?

"Graças a Deus, que se acaba com este tormento! Mas vou contar tudo por ordem, para que fiques sabendo o que se passou, e que até agora te havíamos escondido. Quando me escreveste, haverá dois meses, contavas que tinhas ouvido dizer, a não sei quem, que Dúnia devia sofrer muito com os maus-tratos que lhe davam em casa do senhor Svidrigáilov e perguntavas-me pormenores acerca disso. Que poderia eu ter-te respondido? Se te dissesse a verdade toda, tu, então, com certeza que deixarias tudo e, ainda que tivesses de vir a pé, aparecerias aqui em casa, porque eu conheço muito bem o teu caráter e os teus sentimentos, pois tu não consentirias que ofendessem uma irmã tua. Eu também estava desesperada, mas que havia de fazer? E, apesar de tudo, nessa altura eu ainda não sabia toda a verdade. O pior era que Dúnietchka, que tinha entrado um ano antes nesta casa como governanta, recebera adiantadamente nada mais nada menos do que cem rublos, com a condição de lhos descontarem depois, todos os meses, do ordenado, de maneira que não podia deixar o lugar sem ter pago primeiro a dívida. Essa quantia (agora já posso explicar-te tudo, querido Rodka) recebeu-a ela sobretudo para enviar-te sessenta rublos de que necessitavas nessa ocasião e que te mandamos o ano passado. Enganamos-te as duas e escrevemos-te dizendo que essa quantia era o dinheiro que Dúnia tinha amealhado; mas ela não tinha nada amealhado e, agora, digo-te a verdade toda, visto que tudo, inesperadamente, mudou para melhor por vontade de Deus, e para que saibas como Dúnia gosta de ti e como é bondosa. De fato, o senhor Svidrigáilov a princípio tratava-a com muita grosseria e teve para com ela várias desatenções e graças de mau gosto, à mesa... mas não quero entrar em todos esses desagradáveis pormenores, para poupar-te comoções inúteis; pois tudo isso já acabou. Em resumo: que, apesar da nobre e bondosa conduta de Marfa Pietrovna, a esposa do senhor Svidrigáilov, e de todas as outras pessoas da casa, Dúnietchka teve muito que sofrer, sobretudo quando o senhor Svidrigáilov se encontrava, conforme os seus velhos hábitos de militar, sob a influência do deus Baco. Mas que se passou, afinal? Imagina que esse maluco havia algum tempo que já sentia uma paixão por Dúnia, mas escondia-a sob o disfarce da grosseria e do desdém. Pode ser que ele próprio se envergonhasse e horrorizasse ao ver-se tão cheio de ilusões, na sua idade e condição de pai de família, e por isso se vingasse de Dúnia. E também pode ser que, com essa conduta, grosseira e trocista, quisesse apenas disfarçar a verdade perante os outros. Até que finalmente não pôde mais dominar-se e passou a fazer propostas claras e diretas a Dúnia, prometendo-lhe várias compensações e, ainda mais, deixar tudo e ir viver com ela em outra terra, ou, em último caso, no estrangeiro. Podes imaginar o que ela teria sofrido! Abandonar imediatamente a colocação não era possível, não só por causa da dívida que ali tinha, como também por consideração para com Marfa Pietrovna, que podia depois criar suspeitas, o que daria origem a desgostos na família. Sim, e para Dúnietchka isso teria sido também uma grande vergonha e as coisas não seriam fáceis de compor. Por tudo isso e ainda por outras razões, não podia Dúnia pensar em abandonar essa casa horrível, senão daí a umas seis semanas. Sabes muito bem como Dúnia é, sabes muito bem como é inteligente e a firmeza de caráter que possui. Dúnietchka é capaz de suportar muitas coisas e de mostrar, até nos piores casos, toda a grandeza de alma necessária para não perder a sua integridade. Apesar de nos correspondermos com muita freqüência, nunca me disse uma palavra acerca disso tudo, para não me assustar. A ruptura deu-se inesperadamente. Marfa Pietrovna veio a surpreender o marido no momento em que este assediava Dúnia no jardim e, interpretando tudo ao contrário, deitou-lhe a ela todas as culpas, pensando que fora ela quem dera ocasião àquilo. Deu-se então entre eles uma cena terrível no jardim: Marfa Pietrovna chegou até a bater em Dúnia; não queria ouvir razões, ficou uma hora inteira a barafustar e, finalmente, mandou logo Dúnia ter comigo à cidade, numa simples tieliega rústica, na qual meteram as suas coisas: a roupa branca, os vestidos, tudo tal como estava, revolvido e misturado. Mas nesse momento começou a cair uma chuva torrencial e Dúnia teve de percorrer dezessete quilômetros de uma só vez, numa tieliega descoberta, em companhia dum camponês. Dize-me agora o que poderia eu escrever-te na minha carta, em resposta à tua, recebida dois meses antes, de que havia de falar-te. Eu própria estava desesperada; não me atrevia a comunicar-te a verdade, porque te tornaria muito infeliz e ter-te-ia posto num estado de grande excitação e desgosto. E que poderias fazer? Correr para a tua perdição, tanto mais que a própria Dúnietchka se oporia a isso; e encher uma carta com insignificâncias e vulgaridades, quando tinha a alma transbordante de amargura, era-me impossível. Durante um mês inteiro correram ditos e contos pela cidade, a propósito deste incidente; e a coisa chegou a tal ponto que eu nem sequer podia ir à igreja com Dúnia, por causa dos olhares de desprezo e dos murmúrios, pois chegaram até ao atrevimento de fazerem comentários diante de nós de maneira que pudéssemos ouvi-los; todas as nossas amizades nos abandonaram. Todas deixaram de nos cumprimentar e vim a saber, de fonte limpa, que os caixeiros e alguns empregados da administração tinham combinado infligir-nos uma terrível afronta, untando de pez a porta de nossa casa (1), até que a senhoria começou a insistir conosco para que nos mudássemos. A causadora de tudo isso fora Marfa Pietrovna, que conseguira inculpar e difamar Dúnia em todas as casas.

 

* (1) Untar de pez a porta da casa de uma moça significava que esta perdera a virgindade. (N. do T.) *

 

Conhece toda a gente aqui, na cidade, e, como é muito mexeriqueira e gosta mesmo de ir com ditos e contos de assuntos da família e, sobretudo, de queixar-se do marido, o que não está nada certo, a história espalhou-se em pouco tempo, não só na cidade como em todo o distrito. Eu fiquei doente; mas Dúnietchka é mais forte do que eu, e se visses como suportava tudo e como me consolava a mim e me infundia coragem! É um anjo! Mas, graças a Deus misericordioso, os nossos tormentos não duraram muito; o senhor Svidrigáilov reconsiderou e arrependeu-se, e, certamente por piedade por Dúnietchka, apresentou a Marfa Pietrovna provas absolutas e concretas de toda a inocência de Dúnietchka: uma carta que Dúnia se vira obrigada a escrever-lhe e entregar-lhe, antes de Marfa Pietrovna surpreendê-la no jardim, com o fim de repudiar explicações supérfluas e as entrevistas secretas que ele lhe pedia, e que, quando Dúnietchka saíra dali, ficara em poder do senhor Svidrigáilov. Nessa carta, ela recriminava-o da maneira mais veemente e com a maior indignação, pela vilania da sua conduta para com Marfa Pietrovna, e lembrava-lhe que era casado e pai de família, e, finalmente, como procedia mal em mortificar e tornar infeliz uma moça, já de si tão infeliz e desprotegida. Enfim, querido Rodka, a carta estava escrita em termos tão dignos e dramáticos, que eu chorava ao lê-la, e ainda hoje não consigo lê-la ainda sem chorar. Além disso os criados puseram-se igualmente em defesa de Dúnia, que observaram, e sabiam muito mais do que aquilo que o senhor Svidrigáilov supunha, como acontece sempre. Isso deixou Marfa Pietrovna muito impressionada, de tal maneira que ficou `”outra vez para morrer', como ela própria nos confessou, mas que, em compensação, pudera ver claramente a inocência de Dúnietchka, e no dia seguinte foi direita à igreja de joelhos à Soberana que lhe desse forças para resistir a esta nova prova e cumprir o seu dever. Depois veio diretamente da igreja a nossa casa, sem deter-se em parte alguma, contar-nos tudo, chorou muito e, arrependidíssima, abraçou Dúnia e pediu-lhe que lhe perdoasse. Ainda nessa manhã, sem que ninguém pudesse impedi-la, foi diretamente da nossa casa, percorreu todas as outras da cidade, e em todos os lugares, com as expressões mais lisonjeiras para Dúnietchka, e desfeita em lágrimas, tornou pública a sua inocência e a nobreza dos seus sentimentos e da sua conduta. E, como se isso ainda fosse pouco, mostrou e leu a todos a carta de Dúnietchka para o senhor Svidrigáilov, e até deixou tirar uma cópia (o que a meu ver era já demasiado). E, assim, durante alguns dias consecutivos andou visitando todas as pessoas da cidade e, como alguns se considerassem arrependidos, pela preferência dada a outros, estabeleceu-se um turno, e toda a gente sabia de antemão que tal dia Marfa Pietrovna estaria em tal lugar para ler a carta, e em cada sessão reuniam-se até os que já a tinham ouvido ler por várias vezes, tanto em sua própria casa como na dos amigos, alternadamente. A meu ver havia nisso muito, muito exagero, mas Marfa Pietrovna é assim. Pelo menos deixou plenamente reabilitado o nome de Dúnietchka, e toda a vergonha do caso veio a recair, como uma mancha inapagável, sobre o marido, visto ser o principal culpado, e por isso eu até sinto pena dele; já se têm portado com demasiada severidade para com esse velho chocho. Começaram imediatamente a convidar Dúnia para dar lições em algumas casas, mas ela se negou. De maneira geral, todos começaram de repente a tratá-la com muito respeito. Tudo isso contribuiu também, de maneira efetiva, para determinar a inesperada circunstância devido à qual todo o nosso destino, pode dizer-se, mudou agora.

"Fica sabendo, querido Rodka, que Dúnia arranjou um noivo e que lhe deu já o sim, o que me apresso a comunicar-te. E, embora o caso se tenha tratado sem te termos consultado a ti, espero que não nos censures, nem a mim nem a tua irmã, pois tu próprio podes ver que não podíamos aguardar nem adiar tudo até receber a tua resposta. E tu, de longe, também não podias apreciar as coisas com exatidão. Aqui tens como as coisas se passaram. Ele é o conselheiro da corte Piotr Pietróvitch Lújin, que deve ser ainda parente afastado de Marfa Pietrovna, a qual teve um grande papel em tudo isto. Começou por fazer-nos saber, por seu intermédio, que tinha muita vontade de conhecer-nos; recebemo-lo conforme mandam as regras da educação; convidamo-lo a tomar café, e no dia seguinte escreveu-nos uma carta na qual nos expunha a sua intenção em termos muito delicados, pedindo-nos uma resposta rápida e decisiva. É um homem prático e cheio de ocupações, que está às vésperas de partir para Petersburgo, e por isso cada minuto lhe é precioso. É claro que nós, a princípio, ficamos muito desorientadas, pois tudo isso fora rápido e inesperado. Ficamos as duas refletindo durante todo esse dia. Trata-se de um homem respeitável - que ocupa uma boa posição, desempenha duas funções ao mesmo tempo e que possui bens. É verdade que tem já quarenta e cinco anos, mas tem boa apresentação e ainda pode agradar às mulheres, e é, além disso, um homem muito sério e distinto; é apenas um pouco carrancudo e orgulhoso. Mas pode ser que tudo isso seja uma primeira impressão. E peço-te, querido Rodka, que, quando te encontrares com ele, em Petersburgo, o que se dará muito em breve, não o julgues levianamente nem apaixonadamente, como costumas fazer com tudo, se à primeira vista houver nele qualquer coisa que não te agrade. Digo isso apenas por cautela, pois estou convencida de que ele há de causar-te boa impressão. Além de que, para conhecer uma pessoa, seja ela quem for, é preciso proceder de maneira prudente e discreta, a fim de não incorrermos em erros nem em juízos precipitados, que depois custam muito a desfazer e a retificar. Mas Piotr Pietróvitch, pelo menos a avaliar por muitos indícios, é uma pessoa muito digna. Na sua primeira visita mostrou-nos logo que é um homem sensato, apesar de que em muitos pontos partilha, segundo ele próprio disse, “das idéias das nossas novíssimas gerações', e é inimigo de todos os preconceitos. Disse ainda mais coisas, porque parece um pouquinho vaidoso e gosta muito que lhe dêem atenção, o que, no fim de contas, não é um defeito. Eu, é claro, não percebi muita coisa, mas Dúnia explicou-me que ele é um homem, embora não muito culto, bastante inteligente e, segundo parece, bondoso. Já conheces o caráter da tua irmã, Rodka. É uma moça firme, discreta, resignada e generosa, embora de coração ardente, conforme já observei várias vezes. Não há dúvida de que, nem pelo lado dela, nem pelo dele, existe amor; mas Dúnia, além de ser uma moça inteligente, é ao mesmo tempo uma criatura digna e há de considerar como seu dever fazer feliz o marido, que, por sua vez, procurará fazer a felicidade da esposa, e, em última análise, até agora não temos grandes motivos para duvidar disso, apesar da precipitação, reconheço-o, com que se resolveu este assunto. Além disso é um homem sensato e prudente, e, com certeza, há de compreender que a sua felicidade conjugal será tanto mais segura quanto mais feliz ele tornar Dúnietchka. E, supondo que existisse alguma desigualdade de caracteres, alguns velhos costumes e até algum desacordo nos pensamentos (o que é impossível evitar, até nos casamentos mais felizes), Dúnietchka já me disse, a propósito disso, que confia em si própria; que não me preocupe com isso, e que é capaz de suportar muito, com a condição de que as relações exteriores sejam honestas e justas. O aspecto exterior da criatura engana muito; a princípio, a mim parecia-me um bocadinho seco; mas isso pode ser devido a ele ser de natureza franca, e com certeza que é. Por exemplo: na sua segunda visita, depois de ter obtido a anuição, disse, em conversa, que antes de conhecer Dúnia já tivera a intenção de casar-se com uma moça honesta, mas sem dote, e que tivesse já também conhecido a pobreza, porque, conforme nos explicou, o marido não deve sentir-se obrigado perante a mulher, e que é muito preferível que a mulher considere o marido um protetor. Acrescento que ele se exprimiu em termos mais delicados e afetuosos do que estes que emprego aqui, porque me esqueceram as suas próprias palavras e apenas retive a idéia, e, além do mais, isso foi dito por ele sem premeditação, no entusiasmo da conversa, e a prova é que, depois, se esforçou por desculpar-se e suavizar as suas palavras, embora, apesar de tudo, a mim me tenha parecido um pouco brusco, o que comuniquei logo a Dúnia. Mas Dúnia respondeu-me, até com uma ponta de aborrecimento, que “do dizer ao fazer vai uma grande distância', e com certeza que ela deve ter razão. Dúnietchka, antes de decidir, passou uma noite inteira em claro e, julgando que eu já estava dormindo, levantou-se da cama e pôs-se a dar voltas no quarto; e, por fim, ajoelhou-se e pôs-se a rezar com muito fervor diante da imagem, e na manhã seguinte disse-me que estava decidida. Disse-te há pouco que Piotr Pietróvitch está para ir a Petersburgo, de um momento para outro. Tem aí muitos negócios e pensa abrir um escritório de advogado. Há algum tempo que se ocupa com a direção de diversas demandas e processos, e ainda há alguns dias ganhou uma causa importante. Entre outras coisas, tem de ir agora a Petersburgo, porque tem aí um assunto importante no Senado. Por isso, querido Rodka, também poderá ser-te muito útil em qualquer coisa, e eu, de acordo com Dúnia, resolvi que a partir de hoje mesmo comeces sem falta a tua carreira e consideres a tua felicidade como infalivelmente assegurada. Oh, se isto se realizasse! Seria de uma conveniência tão grande que não teríamos outro remédio senão considerá-lo como uma mercê que nos faz o Todo-Poderoso. Dúnia não pensa senão nisso. Já nos atrevemos a dizer qualquer coisa sobre isto a Piotr Pietróvitch. Ele se exprimiu com muito tato e disse que, sem dúvida, atendendo a que ele não pode passar sem secretário, sempre seria melhor, naturalmente, pagar um ordenado a um parente do que a um estranho, desde que se mostrasse apto para desempenhar o emprego (pois não, que não seria apto!); mas, ao mesmo tempo, exprimiu também as suas dúvidas sobre se os teus estudos universitários te deixariam tempo para trabalhar no seu escritório. Dessa vez deixamos a coisa por aí; mas, agora, Dúnia não pensa senão nisso; há alguns dias que ela anda entusiasmada com o projeto de que tu hás de ser depois o camarada e companheiro de Piotr Pietróvitch, nos seus trabalhos de advocacia, tanto mais que tu estudas precisamente na Faculdade de Direito. Eu, Rodka, dou-lhe toda a razão e partilho de todas as suas ilusões e projetos, pois acho-os muito verossímeis; e, apesar da reserva, muito compreensível, que até agora tem guardado Piotr Pietróvitch (pois ainda não te conhece), Dúnia está firmemente convencida de que há de conseguir tudo com a sua boa influência sobre o futuro marido. É claro que evitamos falar a Piotr Pietróvitch nesses novos sonhos para o futuro, e o principal é que venhas a ser seu companheiro. Ele é homem ajuizado, e com certeza que não havia de achar graça a estas coisas, podiam parecer-lhe simples devaneios. Seja como for, nem eu nem Dúnia lhe dissemos ainda uma palavra a respeito da nossa firme esperança de que ele há de ajudar-nos a arranjar-te o dinheiro necessário enquanto estiveres na universidade; e não lhe dissemos nada, em primeiro lugar, porque isso, por si só, seria coisa para conseguir com o tempo, e ele com certeza que nos há de oferecê-lo sem palavras supérfluas (era o que faltava, que ele recusasse isso à Dúnia), tanto mais que tu poderás ser o seu braço direito no escritório e receber esse auxílio, não como uma dádiva, mas como um ordenado ganho por ti. É assim que Dúnia quer preparar as coisas, e eu estou completamente de acordo com ela. Em segundo lugar, também não lhe falamos, porque eu quero que, quando se virem pela primeira vez, se possam tratar de igual para igual. Quando Dúnia lhe falou de ti com entusiasmo, ele respondeu-lhe que a princípio uma pessoa tem de ver a outra de perto para poder apreciá-la, e que, até que te conhecesse, não podia partilhar da opinião de Dúnia a teu respeito. Ouve uma coisa, meu querido Rodka: a mim parece-me, a julgar por certas coisas que imagino (que, aliás, não dizem respeito a Piotr Pietróvitch e são antes umas veleidades pessoais e até talvez próprias da velhice), parece-me, dizia, que talvez eu fizesse melhor em continuar vivendo sozinha, como agora vivo, do que ir viver com eles quando se casarem. Estou absolutamente convencida de que ele será tão grato e delicado que me há de convidar e propor que não me separe da minha filha, e que, se até agora ainda não tocou neste ponto, é porque, como pensa fazê-lo, nem vê necessidade de falar nisso. Já por mais de uma vez tenho observado que os genros não sentem grande simpatia pelas sogras, e eu não quero, de maneira nenhuma, ser pesada para ninguém, como também quero viver à minha vontade enquanto contar com um pedaço de pão e com filhos como tu e Dúnietchka. Se for possível, irei viver próximo dos dois, porque, Rodka, deixei o melhor de tudo para o fim da carta: fica sabendo, meu querido, que talvez muito em breve tornemos a reunirmo-nos todos outra vez e a abraçar-nos, depois de uma separação de quase três anos. Já está firmemente resolvido que eu e Dúnia iremos a Petersburgo, embora não saiba ainda ao certo a data certa, mas, seja como for, muito em breve, muito em breve, talvez daqui a uma semana. Tudo depende do que Piotr Pietróvitch resolva; assim que tenha os seus assuntos arrumados em Petersburgo, mandar-nos-á decidir. Por certos motivos ele deseja acelerar o mais possível a cerimônia do casamento e quer que este se realize ainda este mês, se for possível, e, se não puder ser assim tão rapidamente, que seja logo a seguir à Assunção. Oh, como serei feliz quando puder apertar-te contra o meu peito! Dúnia está comovida de alegria com a idéia de te ver, e uma vez disse por graça que, só por isso, valia a pena casar-se com Piotr Pietróvitch. Meu anjo! Agora, ela não te escreve, mas encarrega-me de te dizer que tem muita necessidade de falar contigo, muita mesmo; tanta que, agora, nem consegue pegar na pena, porque em poucas linhas não se consegue dizer nada e só conseguimos ficar excitados; encarrega-me também de enviar-te da sua parte um abraço muito apertado e muitos beijos. Mas, apesar de que é possível que nos vejamos daqui a uns dias, enviar-te-ei dinheiro, o mais que puder. Agora que todos estão já informados de que Dúnia vai casar com Piotr Pietróvitch, o meu crédito aumentou de repente, e eu sei com certeza que Afanássi Ivânovitch me vai dar certas quantias por conta da pensão, até setenta e cinco rublos, de maneira que poderei enviar-te uns vinte e cinco, ou até trinta. Enviar-te-ia mais, mas tenho medo das despesas da viagem, e, embora Piotr Pietróvitch seja tão bom que se tenha oferecido para custear todas essas despesas, encarregando-se de enviar as nossas coisas por sua conta, mais a arca grande (pois tem ali alguns amigos), de toda maneira é preciso contar com a chegada a Petersburgo, onde só é possível conseguir alguma coisa a poder de dinheiro. Eu, além disso, tratei de tudo pormenorizadamente com Dúnietchka, e vemos que a viagem nos vai sair cara. Daqui até a estação da estrada de ferro são apenas noventa quilômetros, mas nós, como se fosse por acaso, já nos pusemos em comunicação com um camponês nosso conhecido, que é cocheiro; uma vez aí, eu e Dúnietchka acomodar-nos-emos muito bem numa carruagem de terceira. Por isso é provável que, em vez de vinte e cinco, possa enviar-te trinta rublos. Mas já chega; escrevi duas folhas e já não tenho mais espaço: toda a nossa história, e quantos acontecimentos não pus eu aqui! Mas agora, meu muito querido Rodka, abraço-te até ao nosso próximo encontro e envio-te a minha bênção de mãe. Ama Dúnia, a tua irmã, Rodka; gosta dela, tanto como ela gosta de ti, e fica sabendo que ela gosta muitíssimo mais de ti do que de si mesma. Ela é um anjo; e tu, Rodka, tu, para nós, és tudo... Toda a nossa ilusão, toda a nossa esperança. Contanto que sejas feliz, também nós o seremos. Ainda continuas a pedir a Deus, Rodka, como dantes, e tens fé na bondade do Criador e nosso Protetor? No íntimo tenho medo de que te tenhas contagiado dessa incredulidade que está agora na moda. Se assim fosse, eu pediria por ti. Lembro-me, meu filho, de como desde criança, ainda em vida de teu pai, balbuciavas as tuas orações sentado nos seus joelhos, e como todos ríamos felizes, então! Adeus, ou melhor... até a vista! Um abraço apertado, muito apertado, e muitos beijos; a tua até a morte,

"Pulkhiéria Raskólhnikova."

Durante quase todo o tempo que Raskólhnikov demorou a ler a carta, logo desde o princípio teve o rosto arrasado de lágrimas; mas quando acabou estava pálido, agitado por um tremor nervoso, e um sorriso pesado, irônico, mau lhe assomava aos lábios. Reclinou a cabeça sobre a leve e suja almofada, e ficou pensativo, meditando durante muito tempo. O coração batia-lhe com força e tinha os pensamentos muito agitados. Finalmente sentiu que sufocava naquele quarto amarelo, que parecia um armário ou um baú. A sua vista e o seu pensamento ansiavam por espaço. Pegou o chapéu e saiu, mas desta vez sem o receio de encontrar-se com ninguém na escada; esquecera-se disso. Caminhou em direção a Vassílievski Óstrov, pelo próspekt (2), como se o levasse aí algum assunto urgente; mas, conforme era seu hábito, caminhava sem reparar no caminho, falando umas vezes em voz baixa, outras em voz alta, o que causava grande admiração nos transeuntes. Alguns pensavam que ia embriagado.

 

* (2) Avenida, rua larga e reta. (N. do E.) *

 

Acarta da mãe tinha-o mortificado. Mas, pelo que respeita ao principal, ao ponto mais importante, nem por um minuto teve dúvida alguma, nem sequer enquanto lia a carta. O assunto capital já ele o tinha resolvido na sua mente, e resolvido de um modo definitivo. "Enquanto eu for vivo, esse casamento não se há de realizar, e esse tal senhor Lújin (1) que vá para o diabo! Porque o caso não oferece dúvidas", murmurava para consigo, sorrindo e festejando de antemão, com altivez, o êxito da sua resolução. "Não, mamacha (2), não, Dúnia, a mim não me enganam as duas! E, além disso, são culpadas por não pedirem o meu conselho e decidirem o caso sem mim! Não faltava mais nada! Elas imaginam que já não é possível escangalhar o arranjinho; mas vão ver se é possível ou não! O argumento é forte: é um homem ativo, apre!, esse Piotr Pietróvitch, tão ativo que não pode casar-se senão pelo trem, para não dizer a vapor. Não, Dúnietchka, eu vejo isso tudo e bem percebo por que é que tens de falar “muito' comigo; também sei aquilo em que estiveste meditando toda essa noite, passeando pelo quarto, e o que pediste à Nossa Senhora de Kazan, que a mamã tem no quarto. Mas a subida do Calvário custa. Hum! Definitivamente decidida... estás muito satisfeita por te ires casar, Avdótia Românovna, com um homem ativo e prudente, que possui bens (que já possui bens, o que é mais sério e importante), que desempenha duas funções e partilha as convicções das nossas novíssimas gerações (conforme a mamãe escreve) e, segundo parece, é boa pessoa, como a mesma Dúnia pensa. Esse “segundo parece' é o melhor de tudo! E essa Dúnietchka vai casar-se por esse “segundo parece'! Magnífico! Magnífico!

"Mas, no entanto, é curioso, por que me escreverá mamacha falando-me das “nossas novíssimas gerações'? Será simplesmente para indicar-me uma característica desse homem ou com alguma outra intenção, a de tornar-me simpático esse senhor Lújin? Oh, que espertalhonas! Também seria curioso explicar outro pormenor: até que ponto terão as duas sido sinceras entre si, nesse dia e nessa noite a que alude, e ainda depois. Teriam verdadeiramente chegado a dizer palavras ou ter-se-iam compreendido as duas nesse dia e nessa noite unicamente pelo coração e pelo pensamento, de maneira que não chegaram a dizer nada por o considerarem desnecessário? Provavelmente terá sido assim, em parte; da carta deduz-se que ele parece um pouco brusco, a mamacha, e a ingênua de mamacha deve ter insinuado a Dúnia as suas observações. A outra, naturalmente, não gostaria de ouvir isso, e respondeu com aborrecimento. Não faltava mais nada!

 

* (1) Literalmente: empoçado. De luja, poça de água. (N. do T.)

(2) Mãezinha. (N. do E.) *

 

Quem não ficaria aborrecido quando o assunto se compreende sem carecerem de perguntas ingênuas e quando já está resolvido, de maneira que já não há nada a acrescentar! E ela a dizer-me: “Ama Dúnia, Rodka, porque ela te quer mais do que a si própria'. Não se dará o caso de que sinta secretos remorsos de consciência por ter obrigado a filha a sacrificar-se? “tu és a nossa esperança, tu és tudo para nós!' Oh, mamacha!"

A cólera apoderava-se dele cada vez com mais intensidade e, se tivesse encontrado o senhor Lújin naquele momento, poderia tê-lo assassinado. "Hum! Lá isso é verdade", continuou, seguindo o turbilhão das idéias que se lhe agitavam no pensamento, "lá isso é verdade, que é preciso 'proceder gradualmente e com tato, para se conhecer uma pessoa'; mas o senhor Lújin não pode ser mais claro! O mais importante é que é um “homem prático' e, “segundo parece', boa pessoa; não dá vontade de rir isso de ele se ter comprometido a encarregar-se das despesas da bagagem e da arca grande? Um homem assim não é bondoso? E as duas, a noiva e a mãe, contrataram um camponês e farão um trajeto numa tieliega coberta com um toldo (eu já viajei assim). Não! São apenas noventa quilômetros, e depois “acomodar-nos-emos ali as duas muito bem, uma carruagem de terceira'; mil quilômetros. Está muito bem; talha-se a capa conforme o pano; que diz a isto, senhor Lújin? Olhe que se trata da sua noiva... E o senhor não sabia que a mãe teve de pedir um adiantamento sobre a sua pensão, para essa viagem? Não há dúvida de que o senhor tem uma maneira de pensar de comerciante; o senhor considera isto uma empresa em que há duas partes que devem participar nos lucros nas mesmas proporções e, portanto, também nos gastos; o pão e o sal juntos, mas o tabaco à parte, conforme diz o provérbio. Simplesmente, o homem prático enganou-nos um pouquinho. O envio da bagagem custará menos e até é possível que o consiga grátis. Dar-se-á o caso de que nenhuma das duas veja isto, ou não quererão vê-lo? O certo é que estão contentes! E pensam que o melhor ainda está para vir! Aqui é que está o essencial, que não é a avareza, nem a tacanhez, o caráter de tudo isto! Será esse o tom que ele há de empregar depois do casamento, pode prever-se desde já... E, afinal, por que se propõe mamacha a fazer essas loucuras? Com que então vai apresentar-se em Petersburgo? Com três rublos de prata ou duas “notinhas', como diz essa velhinha? Hum! E com que pensará então viver em Petersburgo? Porque ela, por certos motivos, já deve ter compreendido que não lhe será possível viver com Dúnia, depois do casamento, nem sequer no princípio. Esse tipo tão simpático com certeza que se deixou descair com alguma, que deve ter dado a entender quem é, embora mamacha tape os olhos com as duas mãos quando diz: “nem também consentiria eu!' Que pensará ela fazer depois, em que confia contando unicamente com cento e vinte rublos de pensão e endividada para com Afanássi Ivânovitch? Passará os invernos fazendo toucas e mitenes, fatigando os seus velhos olhos. Mas penso que, fazendo tricô, apenas acrescentará vinte rublos por ano aos outros cento e vinte. Isso quer dizer que confia nos sentimentos de gratidão do senhor Lújin. “Ele próprio há de propor-me, teimará comigo.' Pois sim, pois sim! É o que acontece sempre a essas boas almas românticas. Vestem as pessoas com penas de pavão real, até o último instante contam com o bem e não com o mal, ainda que imaginem o reverso da medalha, por nada deste mundo dizem de antemão a palavra justa; só o terem de pensar nisso lhes custa; diante da verdade tapam os olhos com as mãos, até que o homem que imaginaram aparece e é ele próprio quem lhes abre os olhos. Mas seria curioso saber se esse senhor Lújin tem alguma condecoração; apostava qualquer coisa em como usa a Santa Ana na lapela e a põe para ir jantar com personagens oficiais ou com comerciantes. Com certeza que há de pô-la também no dia do seu casamento. Mas enfim, que vá para o diabo que o carregue! Quanto à mamacha, Deus tenha dó dela; no fim de contas ela é assim; mas Dúnia? Dúnietchka, minha rica, eu bem te entendo! Eu já tinha vinte anos da última vez que nos vimos, já compreendia o teu caráter. Mamacha diz-me na carta que “dúnietchka é capaz de suportar muito'. Isso já eu sabia. Isso já eu sabia há meio ano apenas, pensará nisso, precisamente nisso, em que Dúnietchka tem muita resignação. Uma vez que pôde suportar o senhor Svidrigáilov com todas as suas conseqüências, é porque, de fato, tem muita resignação. Mas agora ela e mamacha imaginam que vão poder suportar também o senhor Lújin, que disserta teoricamente acerca das excelências das mulheres apanhadas nas malhas da pobreza e que ficam sujeitas aos seus beneméritos maridos, e perora assim, logo no primeiro encontro. Bem, suponhamos que ele descaíra e declarara qualquer coisa, apesar de ser um homem prudente (tanto, que até pode suceder que não tenha dito nada: embora tivesse o propósito de explicar-se depois); mas, e Dúnia, e Dúnia? Ela bem vê como ele é, e vai viver com um homem assim! Não tem mais para comer do que pão negro amolecido em água, mas não é capaz de vender a sua alma (3) nem de trocar a sua liberdade moral pela comodidade; nem por todo o Schleswig-Holstein a trocaria; mas, para o senhor Lújin, já não é a mesma coisa. Não, Dúnia não é dessa categoria, eu bem sei, e... não há dúvida que não deve ter mudado durante este tempo! Que digo eu? Bem custosos de suportar seriam os Svidrigáilovi! Duro seria ter de passar a vida inteira, por duzentos rublos, como preceptora, pelas províncias; no entanto, eu sei que mais depressa a minha irmã se sujeitaria à vida escrava numa plantação, ou como uma pobre leitora em casa dum alemão do Báltico, do que a envilecer

 

* (3) Quer dizer, ficar servo, trocar a ociosidade e a liberdade pela segurança e o trabalho. Na antiga Rússia era expressão comum esta de "almas"para designar os servos. A riqueza dos grandes latifundiários freqüentemente era calculada pelo número de "almas" que eles possuíam. (N. do T.) *

 

a sua alma e o seu sentido moral numa união com um homem ao qual não respeitasse e com o qual nada tivesse de comum... para sempre e só por interesse pessoal! E, ainda que o senhor Lújin fosse feito de ouro puro ou talhado em diamante, também ela nunca consentiria em ser a concubina legal do senhor Lújin! Então por que consente agora? Onde está o enigma? A coisa é clara: pela sua pessoa, para sua comodidade, nem sequer para salvar-se da morte, não se venderia ela; mas, em compensação, por outrem, sim, vende-se! Vende-se por um ser ao qual ama e respeita! Aí está a explicação de tudo: vende-se pelo irmão e pela mãe! Venderá tudo por ela! Oh, sim, quando é preciso, afogamos até o nosso senso moral, a liberdade, a tranqüilidade, a consciência até, tudo, tudo, vendemos tudo por qualquer preço! Adeus, vida! Contanto que os nossos entes queridos sejam felizes! Mais ainda: pensamos com a nossa casuística particular, fazemos como os jesuítas, e, de momento, tranqüilizamo-nos... convencemo-nos a nós mesmos de que tem de ser assim, irrevogavelmente, pois é para um fim nobre. Somos assim e a coisa é clara como o dia. Evidentemente que se trata de Rodion Românovitch, dele e só dele.

“bem, assim, dessa maneira, poderei traçar a sua felicidade, pagar-lhe a universidade, torná-lo depois ajudante notário, resolver todo o seu futuro; e até é muito possível que, com o tempo, venha a tornar-se rico, honrado

e respeitado, e que venha até a tornar-se um homem célebre!' E a mãe? Para ela tudo se reduz ao seu Rodka, e ao seu admirável Rodka, ao primogênito! Por um tal primogênito, como não sacrificar até uma filha sua? Oh, doces e injustos corações! Mas quê? Chegaríamos, inclusivamente, a resignarmo-nos com o destino de Sônietchka! Sônietchka! Sônietchka! Eterna Sônietchka Marmieládova, enquanto o mundo existir! Já mediram ambas, bem, a extensão do sacrifício? E Dúnia terá forças? Será útil? Razoável? Sabes tu, Dúnietchka, que a sorte de Sônietchka com o senhor Lújin não é muito pior do que a tua? “Amor, ali, não pode haver', escreve mamacha. E se não fosse só amor e respeito que não pudesse haver mas, em compensação, houvesse aversão, desprezo, repugnância... E então? Mas o casar-se assim vem a ser o mesmo que manter a apresentação. É assim ou não é? Compreendem, compreendem o que quer dizer essa apresentação? Compreendem que a apresentação lújinesca é absolutamente equivalente à apresentação de Sônietchka, e pode até ser que pior e mais vil, porque vós outras, as Dúnietchkas, pensais, no fim de contas, numa comodidade supérflua, ao passo que no caso dessa outra tratava-se pura e simplesmente de um momento em que se podia morrer de fome? É caro, sai cara essa apresentação, Dúnietchka! E se depois te faltam as forças e te arrependes? Quantas afrontas, desgostos, maldições e lágrimas às escondidas de todos, porque, enfim, tu não és uma Marfa Pietrovna! E o que será de mamãe depois? Nesta altura já ela está inquieta e sofre. Que será, então, quando vir as coisas como elas são? E eu? Sim, o que pensam de mim as duas?

Não quero o vosso sacrifício, Dúnietchka; não quero, mamacha... E isso não há de realizar-se enquanto eu viver, não e não! Não o consentirei!" De repente caiu em si e deteve-se.

"Mas como evitar? Que farás tu para que não se realize? Proibi-lo? Com que direito? Que podes tu prometer-lhes, por tua vez, para teres algum direito? Consagrar-lhes todo o teu destino, todo o teu futuro, quando tiveres terminado os teus estudos e conseguido um emprego? Nós bem sabemos o que isto é: castelos no ar. Mas agora? Agora é que era preciso fazer qualquer coisa, compreendes? Mas que fazes tu agora? Explorá-las também. Esse dinheiro tem de consegui-lo elas por conta da pensão de cem rublos e do crédito que representa a amizade dos Svidrigáilovi e dos Vakhrúchini. Como as defenderás tu, futuro milionário, Zeus, que dispõe da sua sorte? Daqui a dez anos? Mas, dentro de dez anos, a tua mãe poderia estar cega de fazer tanto tricô, e de tanto chorar, e de passar tanta fome. E a tua irmã? Vamos, é preciso pensar o que poderá ser da tua irmã daqui a dez anos ou durante estes dez anos! Não és capaz de adivinhá-lo?"

Afligia-se e irritava-se assim com essas perguntas experimentando também um certo prazer. Aliás, essas perguntas não eram de maneira nenhuma novas, nem repentinas, eram já velhas, dolorosas, antigas. Havia já algum tempo que vinham ferindo-lhe e corroendo-lhe o coração. Muito; havia já muito tempo que se enraizara e crescera nele toda essa tristeza atual; nos últimos tempos se acumularam e reconcentraram, assumindo a forma de uma horrível, bárbara e fantástica interrogação que lhe torturava o coração e a alma, reclamando uma resposta urgente. Agora, aquela carta da mãe viera também feri-lo como um raio. Era evidente que agora não se tratava de ficar triste, de sofrer passivamente, fazendo apenas apreciações acerca da insolubilidade daqueles problemas, mas de fazer impreterivelmente qualquer coisa, imediatamente, o mais depressa possível. Fosse o que fosse, era preciso tomar uma decisão ou...

"Ou renunciar completamente à vida!", exclamou de repente com raiva. "Aceitar o destino docilmente, tal como é, de uma vez para sempre, e abafar tudo no seu íntimo, renunciando a todo o direito à ação, a viver e a amar!

"Compreende, meu senhor, o senhor compreende o que quer dizer isso de não ter para onde ir?", de repente veio-lhe à memória a pergunta que Marmieládov lhe dirigira na noite anterior. "Porque todo homem precisa de ter algum lugar aonde ir!"

De repente, estremeceu; um pensamento, o mesmo da noite anterior, tornou a atravessar a sua imaginação. Mas não estremecera pelo fato de lhe ter ocorrido aquela idéia. Porque sabia, pressentia que ela havia infa livelmente de ocorrer-lhe, e estava à espera dela; demais, essa idéia não datava da noite anterior. Mas havia esta diferença: é que um mês atrás, e até essa noite, era apenas um desvario, ao passo que agora... agora surgia, não como um desvario, mas com uma aparência nova, de certo modo ameaçador e absolutamente desconhecido, e ele próprio o reconhecia... O sangue subiu-lhe à cabeça e os olhos nublaram-se-lhe.

Apressou-se a olhar à sua volta, nem sabia bem à procura de quê. Queria sentar-se e procurava um banco; por isso encaminhou-se para a avenida de K... Via-se um banco ao longe, a uns cem passos. Dirigiu-se para ele com a máxima rapidez; mas, no caminho, sucedeu-lhe uma pequena aventura, que durante uns momentos atraiu toda a sua atenção.

Depois que dera pelo banco, observou à frente dele, a uns vinte passos, uma mulher que passava, à qual, a princípio, não deu a mínima atenção, como não dava a nenhuma das coisas que lhe passavam pela frente. Quantas vezes não lhe acontecera ir, por exemplo, para casa, e não se lembrar de maneira nenhuma do caminho que seguira para chegar até lá e pelo qual estava já acostumado a passar! Mas aquela mulher que passava tinha qualquer coisa de estranho, que saltava logo à vista, e, pouco a pouco, lhe foi prendendo a atenção... A princípio, contra a sua vontade e quase com aborrecimento, e, depois, cada vez com mais força. De súbito, sentiu o desejo de averiguar concretamente o que teria aquela mulher de estranho. Em primeiro lugar devia ser muito nova; ia sem chapéu, com aquele calor, sem sombrinha e sem luvas, e movia os braços de maneira um pouco grotesca. Trazia um vestidinho de seda, leve; mas era um pouco estranho o seu vestido, com os botões mal fechados, e atrás, na cintura, no lugar onde começa a saia, via-se um rasgão; uma tira arrancada pendia, oscilante. À volta do pescoço nu levava um pequeno lenço que lhe saía de um lado. A mulher não caminhava com firmeza, curvada e cambaleando para um e outro lado. Até que por fim aquela visão acabou por atrair completamente a atenção de Raskólhnikov. Cruzara com a moça junto do banco; mas, quando chegou junto deste, ela se deixou cair numa extremidade, apoiou a cabeça no espaldar e fechou os olhos, dominada por um cansaço visível. Percebeu, logo depois de olhá-la, que estava completamente embriagada. Era estranho contemplar aquele espetáculo. Pensou até se aquilo não seria uma ilusão. Tinha na sua frente uma pequena pessoa, extraordinariamente jovem, de uns dezessete anos, até talvez de quinze... pequenina, de cabelo loiro, mas toda afogueada e como que inchada. Segundo parecia, a moça não devia ter a cabeça muito firme; cruzara as pernas, mostrando-as mais do que convinha, e, avaliando por todos os indícios, nem devia perceber que se encontrava em plena rua.

Raskólhnikov não se sentou, mas também não se decidiu a retirar-se; ficou de pé, na frente dela, atônito. Aquela avenida estava sempre deserta, e às duas da tarde, com aquele calor, também não passava por ali quase ninguém. E, no entanto, a um lado, a uns quinze passos, no extremo da avenida, tinha parado um homem, o qual, via-se bem, mostrava a intenção de aproximar-se da moça, sabe-se lá com que fins. Provavelmente também ele a teria visto, de longe, e a seguira; simplesmente Raskólhnikov atravessou-se-lhe no caminho. Lançava-lhe olhares de raiva, esforçando-se no entanto por não chamar-lhe a atenção, e aguardava impacientemente a sua vez, quando aquele incômodo intruso se retirasse. A coisa era compreensível. Aquele cavalheiro devia ter uns trinta anos, era forte, gordo, com uma cara saudável, os lábios rosados, de bigode e vestia com elegância. Raskólhnikov sentia uma indignação enorme; de repente veio-lhe um ímpeto tremendo de ofender de qualquer maneira aquele tipo gordo. Afastou-se da moça num abrir e fechar de olhos e dirigiu-se para ele:

- Mas... o senhor é Svidrigáilov? Que procura neste lugar? - exclamou, fechando as mãos e rindo-se com os lábios franzidos pela cólera. - Que quer dizer isso? - perguntou-lhe seriamente o interpelado, arqueando as sobrancelhas e olhando-o com altivez.

- Que saia daqui já, é o que quero dizer. - Como te atreves, canalha?

E brandiu a bengala. Raskólhnikov atirou-se contra ele com os punhos erguidos, sem dar-se tempo para pensar que aquele homem forte podia muito bem fazer-lhe frente, a ele, ou a outro qualquer. Mas nesse momento sentiu que o seguravam por detrás com força; um guarda tinha-se-lhes interposto.

- Basta, súdar (4); não se atreva a lutar num lugar público. Que lhe aconteceu? Como se chama? - perguntou, dirigindo-se com ar severo a Raskólhnikov e reparando no seu traje em farrapos.

Raskólhnikov olhou para ele com atenção. Tinha uma honesta cara de soldado, com bigodes e costeletas grisalhos, e um olhar inteligente. - Preciso do senhor - disse, pegando-lhe por uma mão. Eu sou o estudante Raskólhnikov... o que o senhor pode ficar também sabendo... mas venha comigo que eu lhe mostrarei uma coisa...

E, puxando o guarda pela mão, levou-o até o banco.

- Aqui a tem, completamente embriagada; apareceu há pouco nesta avenida. Quem sabe de onde ela vem ou quem será? Mas não parece uma profissional. O mais provável é que a obrigaram a beber, em qualquer parte, e abusaram dela... pela primeira vez... compreende? E que depois a tivessem posto na rua. Repare como tem o vestido roto, repare como está vestida; deve ter sido vestida à força, não foi ela quem se vestiu, mas sim mãos de homens, inábeis. É evidente. E agora repare para aquele, para esse janota, com quem eu me preparava para brigar há pouco; não o conheço, vi-o agora pela primeira vez;

 

* (4) Senhor. Termo arcaico, já de pouco uso na época de Dostoiévski, aqui utilizado com intenção irônica. O vocábulo corriqueiro que corresponde a senhor é gospodim. (N. do T) *

 

mas ele, durante a caminhada, reparou na ébria, desorientada, e agora estava com grande vontade de aproximar-se dela e de no estado em que está levá-la sabe-se lá para onde... Deve ser isso, acredite que não estou a enganá-lo. Eu bem vi como ele a observou e vinha atrás dela, simplesmente eu me atravessei no seu caminho, mas ele estava à espera que eu me fosse embora. Tinha-se afastado um pouco e fingia que enrolava um cigarro... Como livrar esta infeliz das mãos dele? Como poderemos levá-la a casa? Que lhe parece?

O guarda compreendeu tudo num instante e reconsiderou. Quanto ao caso do senhor gordo, não havia dúvida de que era aceitável; restava a mulher. O polícia inclinou-se para ela, a examiná-la mais de perto, e no seu rosto refletiu-se uma sincera piedade.

- Ah, que pena! - exclamou, abanando a cabeça. - Ainda é uma criança. Enganaram-na, com certeza. Ouça, menina... - começou, sacudindo-a -, pode fazer o favor de dizer-nos onde mora? - A moça abriu os olhos cansados e enevoados e ficou olhando estupidamente para os que a interrogavam, enquanto agitava as mãos.

- Ouça - exclamou Raskólhnikov -, aqui tem - meteu a mão no bolso e tirou vinte copeques, o que achou. - Tome, chame uma carruagem e leve-a a casa. Mas precisamos de saber onde ela mora!

- Báritchnia, báritchinia! (5) - insistiu novamente o guarda, pegando o dinheiro. - Vou buscar e eu próprio a levarei a sua casa. Onde mora? Ah! Pode fazer o favor de dizer-nos onde mora?

- Deixem-me em paz... Que importunos! - resmungou a moça, tornando a agitar as mãos.

- Ah! Ah! Isso não está certo! Isso é uma vergonha, Báritchnia, uma vergonha! - e tornou a abanar a cabeça, envergonhado, condoído e apiedado. - Vê? Isto é que é o mais difícil! - acrescentou, dirigindo-se a Raskólhnikov, e tornou a olhar para ele dos pés à cabeça. Era evidente que lhe parecia um pouco estranho: ter dinheiro e estar tão esfarrapado. - E encontrou-a longe daqui? - perguntou-lhe.

- Já lhe disse: ia à minha frente, na avenida, cambaleando. Quando chegou ao banco, deixou-se cair.

- Ah, que vergonha se vê hoje no mundo! Senhor! Que desavergonhada, e mais, que bêbada! E com a roupa feita em farrapos... Ah, e que processo há hoje na libertinagem! E até pode ser que pertença a uma boa família decaída... Agora há moças assim... Mas é que parece uma menina fina - e tornou a inclinar-se para ela.

Talvez ele tivesse alguma filha da mesma idade - literalmente, uma menina, e delicada -, com modos de pessoa bem-educada e atenta a todos os caprichos da moda...

 

* (5) Senhorita. Termo arcaico, da mesma raiz de bárin, bárinha; senhor, senhora. (N. do T.) *

 

- O principal - apressou-se a dizer Raskólhnikov - é que esse malandro não a leve! Também poderia abusar dela! Bem sabemos o que ele queria; olhe que não sai dali, o patife!

Raskólhnikov falava alto e apontava-o diretamente com a mão. Ele o ouviu e deu mostras de ficar encolerizado; mas ponderou o caso e limitou-se a lançar-lhe um olhar de desprezo. Depois do que se afastou outros dez passos e tornou a parar.

- Impedir que a leve é possível - respondeu o guarda, depois de ter pensado. - Se ao menos dissesse onde mora... Menina, menina! - e tornou a inclinar-se.

Então, ela abriu os olhos de repente, olhou-o atentamente, como se começasse a compreender alguma coisa; levantou-se do banco e dirigiu-se outra vez para o mesmo lado donde tinha vindo.

- Oh, que desavergonhados! - exclamou, agitando ainda os braços. Caminhava com ligeireza, mas, como antes, cambaleando um pouco. O dandy começou a andar atrás dela, mas pelo outro passeio, sem perdê-la de vista.

- Não se incomode, que não a abandonaremos - disse resolutamente o guarda dos bigodes, e deitou a caminhar atrás dela.

- Ah, até onde chega a libertinagem! - repetiu suspirando. Naquele mesmo momento Raskólhnikov sentiu qualquer coisa, como se alguém o tivesse picado; num abrir e fechar de olhos deu-se nele uma transformação completa.

- Ouça, eh! - gritou atrás do polícia dos bigodes. Este estacou, virando-se.

- Pare! Mas que tem? Deixe-a! Que se divirta com ela! - e apontava para o janota. - Que lhe importa isso?

O guarda não compreendia e olhou-o com uns olhos espantados. Raskólhnikov sorriu.

- Ah! - exclamou o guarda agitando as mãos, e continuou no rastro do janota e da moça, tomando provavelmente Raskólhnikov por louco ou algo pior.

"Os meus vinte copeques voaram", resmungou Raskólhnikov, que ficara sozinho. "Bem, agora vai também extorquir dinheiro ao outro, ele deixa a mulher e acabou-se... Mas para que me meto eu a ajudar os outros? A mim, quem é que me ajuda? Tenho eu o direito de ajudar alguém? Que se comam vivos uns aos outros... Quero lá saber! Como me atrevi a dar-lhe esses vinte copeques? Porventura eram meus?"

Apesar dessas palavras estranhas, o certo é que sentia pena. Tornou a sentar-se no banco abandonado. Os seus pensamentos divagavam... E nesse momento era-lhe também muito doloroso pensar fosse no que fosse. Gostaria de esquecer tudo, adormecer e tornar depois a começar outra vez...

"Pobre moça!", disse, pousando o olhar na extremidade livre do banco. "Há de voltar a si e chorar, e depois a mãe ficará sabendo de tudo... A princípio há de bater-lhe com a mão; depois açoitá-la-á com o chicote, de maneira cruel e humilhante, e acabará por expulsá-la... E, se não a expulsa de casa, de qualquer maneira uma Dária Frántsovna qualquer não deixará de farejar a presa, e a pobre moça começará a andar aos tombos. Depois segue-se o hospital (é o que acontece sempre àquelas que viveram honestamente em casa de suas mães, até o dia em que se escaparam pela calada), e depois irão outra vez para lá... e outra vez para o hospital... a aguardente... a taberna... e outra vez o hospital; passados dois ou três anos estará doente, e com dezoito ou dezenove de idade será tudo o mais... Não as conheci eu assim, por acaso? Mas que me importam elas? Apesar de que sempre me importavam... Ufa! Dizem que tem de ser assim. Segundo dizem, tem de haver todos os anos uma certa porcentagem delas... Diabo! Tem de haver para que as outras possam ostentar louçania e não as incomodem. Porcentagem! Realmente são famosas as palavras que essa gente emprega: são tranqüilizadoras, científicas. Está dito: tem de haver essa porcentagem e é escusado falar muito nisso. Se em vez dessas, empregassem outras palavras... pode ser que fossem inquietantes... E se Dúnietchka vem a cair também dentro dessa porcentagem... Se não dentro desta, na outra... Mas para onde ia eu? Coisa estranha. Se saí foi para alguma coisa. Assim que li a carta saí... Era a Vassílievski Óstrov, à casa de Razumíkhin (6) que eu ia agora... já me lembro. Mas, afinal, que ia eu lá fazer? E por que me ocorreria precisamente agora a idéia de ir ver Razumíkhin? É curioso."

Ficou admirado consigo próprio. Razumíkhin era um dos seus antigos camaradas da universidade. Era curioso que Raskólhnikov, quando andava na universidade, quase não tinha aí nenhum amigo; afastava-se de todos, não se dava com ninguém e não lhe agradava que eles o visitassem. Aliás, não tardou também que eles lhe voltassem as costas. Não tomava parte em coisa nenhuma, nem nas reuniões gerais, nem nas discussões, nem nos recreios. Estudava com afinco, sem ter pena de si mesmo, e por isso o respeitavam, mas não lhe tinham amizade. Era muito pobre, extremamente orgulhoso e nada comunicativo; parecia que escondia qualquer mistério. Na verdade, parecia que encarava alguns dos seus condiscípulos como se fossem crianças, por sobre o ombro, como se estivesse muito acima de todos eles, tanto pela inteligência como pelo saber e pelas idéias, e considerasse as suas convicções e interesses como algo de inferior.

Mas dava-se com Razumíkhin, fosse lá pelo que fosse; isto é, não lhe tinha amizade, mas, ao menos, sentia-se mais franco e comunicativo para com ele. Aliás, com Razumíkhin teria sido também difícil conduzir-se de outra maneira. Era extraordinariamente jovial e expansivo, bom e ingênuo. Embora escondesse profundidade e dignidade por debaixo dessa simplicidade. Era assim que o julgavam os melhores dos seus companheiros e todos gostavam dele.

 

* (6) Literalmente: ajuizado, sensato. De razum, inteligência, juizo, bom senso. (N. do T) *

 

Era muito esperto, embora às vezes o tomassem por ingênuo. O seu aspecto exterior era impressionante: alto, seco, sempre mal barbeado, de cabelo preto. Às vezes mostrava-se um pouco irrequieto e fazia alarde da sua força. Uma noite, em que saíra com os seus camaradas, deitou por terra um guarda de seis pés de estatura. Era capaz de beber sem conta nem medida; mas também era capaz de deixar absolutamente de beber; às vezes permitia-se também graças pesadas; mas era igualmente capaz de abster-se de dizê-las. Razumíkhin era também notável pela circunstância de não desanimar por nenhum fiasco, nem preocupar-se em nenhum transe difícil. Era capaz de viver num patamar de escada, agüentar todas as angústias da fome e o frio mais excessivo. Extremamente pobre, mantinha-se sozinho, fazendo alguns trabalhos que lhe davam dinheiro. Conhecia uma infinidade de expedientes aos quais se pode recorrer sempre, claro que pelo trabalho. Mas houve um inverno inteiro durante o qual nem uma só vez acendeu o fogo, e afirmava que o tinha passado muito bem, porque com o frio se dorme melhor. Na presente época vira-se obrigado também a deixar a universidade, mas não por muito tempo; e esforçava-se o mais possível por melhorar a sua situação, a fim de poder recomeçar os seus estudos. Havia já quatro meses que Raskólhnikov não o visitava, e Razumíkhin, por seu lado, ignorava onde ele morava. Uma vez, havia dois meses, encontraram-se na rua, mas Raskólhnikov voltara-lhe as costas. passando para o outro passeio para que não o visse. E Razumíkhin, embora o tivesse visto muito bem, passou de largo, para não incomodar o amigo.

 

De fato, eu, ainda não há muito tempo, pensava pedir trabalho a Razumíkhin; que me arranjasse lições ou qualquer outra coisa", dizia Raskólhnikov para si próprio, "mas, agora, em que pode ele ajudar-me? Suponhamos que me arranja lições, suponhamos até que me dá o seu último copeque, se é que tem algum, para que eu possa comprar umas botas e procurar trabalho, a fim de apresentar-me decentemente nas lições. Hum! Bem... e então? Mas que vou eu fazer com umas piatáki? (1) Será isso, por acaso, o de que eu preciso agora? Verdadeiramente é ridículo isso de ir visitar Razumíkhin."

Aquela pergunta, acerca do motivo por que iria agora ver Razumíkhin, irritou-o muito mais do que ele próprio pensava; farejava com inquietação algum pensamento mau, naquilo que, no fundo, era uma coisa vulgaríssima.

"Tinha de concordar que eu quisera remediar tudo apelando unicamente para Razumíkhin, e encontrar em Razumíkhin toda a solução", disse para si mesmo, admirado.

Pensava e esfregava a testa e, coisa estranha, inesperadamente, de repente e quase como se fosse espontaneamente, depois de longa deliberação, uma idéia estranhíssima lhe atravessou a mente.

"Hum! Irei visitar Razumíkhin", murmurou de repente, perfeitamente tranqüilo, como se tivesse adotado uma resolução definitiva. "Irei ter com Razumíkhin; irei, está decidido... mas hoje não; irei vê-lo noutro dia, depois disso, quando tudo for já fato consumado e tudo tiver tomado um novo rumo..." E, de repente, voltou a si.

"Depois disso!", exclamou, levantando-se do banco, sobressaltado. "Mas isso chegará a dar-se, por acaso? Chegará realmente a dar-se?"

Deixou o banco e pôs-se a caminhar, quase correndo; teria querido voltar atrás, para sua casa; mas isso de voltar a sua casa pareceu-lhe de súbito terrivelmente aborrecido; ali, no seu canto, naquele horrível cacifro, é que ele meditara durante mais de um mês; por isso pôs-se a andar ao deus-dará.

Um calafrio nervoso lhe percorreu o corpo, que parecia febril; sentia também frio; com o calor que fazia, tiritava. Como se fosse forçadamente, quase sem se aperceber disso, como se cedesse a alguma urgente necessidade íntima, começou a olhar para todos os objetos que encontrava no caminho, como se procurasse à força uma distração; mas não o conseguia completamente e afundava-se em meditações. Quando, estremecendo, tornava a levantar a cabeça e a correr os olhos à sua volta, esquecia imediatamente o que pensara, havia um momento, e até por onde caminhava.

 

* (1) Plural de piatak, moeda de cinco copeques. (N. do E.) *

 

Atravessou assim todo o Vassílievski Óstrov, foi ter ao Pequeno Nievá, atravessou a ponte e voltou a Ostrov. A princípio, aquela verdura e aquela frescura deleitaram os seus olhos cansados, acostumados ao pó da cidade, com o seu gesso e as suas casas enormes, tenebrosas e opressivas. Ali não havia nem angústia, nem mau cheiro, nem tabernas. Mas não tardou que também aquelas novas e agradáveis sensações se tornassem doentias e irritantes. Às vezes parava perto de alguma casa de campo afundada entre a verdura; olhava para o jardim, contemplava os donos nos terraços e varandas, as mulheres ataviadas e as crianças que brincavam no jardinzinho. Fixava sobretudo a sua atenção nas flores: era sempre para elas que mais olhava. Encontrava também pequenas carruagens elegantes, cavaleiros e amazonas; seguia-os curiosamente com o olhar e esquecia-se deles antes que tivessem desaparecido da sua vista. Uma vez parou e contou o dinheiro que levava consigo: cerca de trinta copeques. "Vinte que dei ao guarda, três a Nastássia, pela carta... Além disso, ontem, dei quarenta e sete ou cinqüenta a Marmieládov", pensou, enquanto, sem saber por que, tornava a contar o seu dinheiro; mas não tardou a esquecer-se do motivo por que o tinha tirado do bolso. Só tornou a aperceber-se quando passou em frente duma casa de pasto, uma espécie de taberna, e sentiu apetite. Quando entrou na casa bebeu um copo de aguardente e meteu na boca um pastel recheado com qualquer coisa. Acabou de comê-lo adiante. Havia muito tempo que não provava aguardente, e por isso fez-lhe imediatamente efeito, apesar de ter bebido apenas um copo. De repente sentiu o peso nos pés e também uma grande vontade de dormir. Pôs-se a andar em direção a casa. Mas quando ia já em Pietróvski Óstrov deteve-se, tomado de uma inércia imensa; afastou-se do caminho, meteu-se por entre os maciços de verdura, deixou-se cair sobre a erva e logo adormeceu profundamente.

Num estado doentio os sonhos costumam distinguir-se pelo seu extraordinário colorido e clareza, e pela estranha semelhança com a realidade. Apresentam-nos às vezes um quadro maravilhoso; e o cenário e todo o processo de representação são ao mesmo tempo tão verossímeis e com uns pormenores tão exatos e inesperados, mas em tão artística harmonia com a totalidade do quadro, que seria em vão que o próprio sonhador tentaria evocá-los, depois de desperto, ainda que fosse um artista como Púchkin ou Turguêniev. Esses sonhos, sonhos doentios, ficam sempre gravados na memória por muito tempo e produzem uma forte impressão no organismo alterado e enfraquecido do homem.

Foi um sonho estranho o que teve Raskólhnikov. Sonhou com a sua passada infância, na aldeia. Tinha sete anos e passeava, num dia festivo, ao cair da tarde, com seu pai, para além da aldeia. O céu estava cinzento,

o dia sufocante, e o lugar era exatamente o mesmo cuja visão guardava na sua memória; ainda mais: na sua memória via-o ainda mais apagado do que agora, no sonho. A cidade mostra-se aberta como a palma duma mão; em toda aquela periferia, um salgueiro branco; além, muito longe, quase no extremo do horizonte, negreja o bosque. A alguns passos de distância da última horta da aldeia, há uma taberna, uma grande taberna, pela qual sempre sentira antipatia, e até medo, quando passava em frente dela com seu pai. Havia sempre ali muita gente; vociferavam, riam, diziam impropérios com grande alvoroço, bebiam tão excessiva e imoderadamente e havia nela rixas com tanta freqüência! À volta da taberna viam-se sempre uns tipos completamente embriagados e ferozes, que andavam aos tropeções... Quando se encontrava com eles apertava-se com força contra o pai e todo ele tremia. Próximo da taberna passava a estrada, que verdadeiramente não era mais do que um atalho, sempre empoeirada, com um pó muito negro. A estrada faz uma curva ao longe, e a trezentos passos rodeia o cemitério da aldeia pela direita. A meio do campo-santo ergue-se uma igreja com a cúpula verde, na qual entrava duas vezes por ano com seu pai e sua mãe, para ouvir missa, quando faziam o ofício de réquiem pela avó, que falecera havia pouco tempo, e a qual não chegara a conhecer. Nesses casos levavam sempre consigo um pastel sobre um prato branco, em cima dum guardanapo, e o pastel era de açúcar, arroz e passas, colocadas em forma de cruz. Gostava daquela igreja e das suas velhas imagens, quase todas sem moldura, e do velho sacerdote de cabeça sempre a tremer. Junto do túmulo da avó, sobre o qual se estendia uma lousa, estava a pequena sepultura do irmão mais novo, que morrera com seis meses, e o qual também não chegara a conhecer, e de quem não podia recordar-se; mas disseram-lhe que tinha um irmãozinho, e ele, sempre que visitava o cemitério, persignava-se religiosa e respeitosamente diante da sepultura, fazia uma reverência e depunha sobre ela um beijo. Agora sonhava que ia com seu pai pela aldeia, pelo caminho do cemitério, e passava diante da taberna; ia pela mão do pai, e, cheio de medo, olhava para a taberna. Uma circunstância especial distraiu a sua atenção: parecia que dessa vez se celebrava ali alguma paródia: havia ali uma multidão de burgueses endomingados, de mulheres com os seus maridos e um grupo de pessoas. Estão todos embriagados, entoam canções, e junto da porta da taberna há uma tieliega, mas uma tieliega estranha. É uma dessas grandes às quais costumam jungir-se grandes cavalos de carga, e que se empregam para o transporte de mercadorias e tonéis de vinho. Agradava-lhe sempre contemplar aqueles grandes cavalos de carga, de longas crinas e grossas patas, que caminham tranqüilamente, com um passo manso, e que conduzem uma autêntica montanha sem mostrar o menor cansaço, como se a carga, em vez de esgotá-los, os aliviasse. Mas agora, coisa estranha, àquela tieliega enorme estava atrelado um mísero sendeiro, esquálido, pequeno, desses que os camponeses empregam; um desses cavalicoques aos quais - tinha-o ele visto com freqüência - carregam às vezes com grandes fardos de lenha ou feno, e quando o carro se atola, na lama ou nos sulcos, os camponeses batem-lhes com muita força, muita força, com os chicotes, às vezes até no próprio focinho ou nos olhos; isso fazia-lhe uma pena imensa, tão grande que quase vinham-lhe lágrimas aos olhos, e a mãe vinha então arrancá-lo da janela. Mas eis que, de repente, se travou uma grande escaramuça: da taberna saiu, gritando, cantando e com balalaicas, um bando de camponeses embriagados, embriagadíssimos, com blusas vermelhas e azuis, e a jaqueta sobre o ombro.

- Subam, subam! - grita um deles, ainda novo, com um grosso capote e uma caraça gorda, vermelha como um tomate. Levo-os a todos! Subam! Mas a seguir ouvem-se vozes e exclamações:

- Com esse sendeiro é que ele nos vai levar!

- Mas tu, Mikolka, estarás em teu perfeito juízo? Atrelar uma égua tão ordinária a uma tieliega destas!

- E esse espantalho já deve ter os seus vinte anos bem puxados, meus amigos!

- Subam, que os levo a todos! - tornou Mikolka gritando, e o cocheiro, que foi o primeiro a subir, tomou as rédeas na mão e ergueu-se em toda a sua estatura. - O nosso cavalo baio levou o Matviéi - gritou, já na tieliega -, e esta eguazinha, meus amigos, só serve para me fazer sofrer; mais valia matá-la, pois nem vale aquilo que come. Mas já disse: subam, que eu já a faço andar! E há de ir depressa! - E, brandindo o chicote, dispôs-se a açoitar o pobre animal com prazer.

- Subamos então, vamos! - riam os do grupo. - Já sabem que há de correr a galope!

- Sim, deve haver pelo menos dez anos que não dá uma corridinha. - Vai dá-la agora.

- Não tenham pena dela, meus amigos; cada um pegue o seu chicote: preparem-se!

- Bom, então arreiem-lhe!

Todos sobem para a tieliega de Mikolka com risos e gracejos. Subiram seis homens e ainda havia lugar para mais. Levavam com eles uma mulher gorda e pintada. Vestia uma camisola de indiana vermelha, com um toucado de contas de vidro, botas pesadas nos pés, e descascava nozes e ria. À sua volta todos riam também, e, de fato, o caso não era para menos. Pensar que aquele pobre animal ia puxar a galope um carro tão pesado! Depois, dois dos moços que iam na tieliega brandiram os chicotes para ajudarem Mikolka. Ouve-se um eia! A eguazinha puxa com todas as suas forças, mas não vai a galope; mal consegue mover-se a passo, limitando-se a agitar as patas, arranhar o solo e dobrar-se sob os golpes dos três chicotes, que caem sobre ela como uma saraivada. Os risos redobram na tieliega e fora dela; mas Mikolka enfurece-se e com violência descarrega golpes terríveis sobre a pobre égua, como se acreditasse verdadeiramente que poderia ir a galope.

- Deixem-me subir a mim também, meus amigos! - grita entre a multidão um rapaz ao qual o espetáculo fez inveja.

- Sobe! Que subam todos! - grita Mikolka. - Levo-os a todos! Vou arrear-lhe!

Bate e torna a bater, e já não sabe com que há de fustigar o animal. - Bátiuchka, bátiuchka! - grita ele para o pai. - Bátiuchka, que está ele fazendo? Matam a pobre égua, bátiuchka!

- Vamos, vamos! - diz o pai. - Estão bêbados, não sabem o que fazem. Imbecis! Vamo-nos embora, não fiques aí olhando! - E procura afastá-lo dali; mas ele solta-se da sua mão e, sem perceber o que faz, encaminha-se para o animal. Este já não pode mais; arqueja, pára, torna a puxar e está prestes a cair.

- Arreiem-lhe até que rebente! - grita Mikolka. - Já lhe falta pouco. Espera!

- Mas tu és cristão ou não és, meu bruto? - grita um velho, dentre o grupo.

- Onde é que se viu isso, um animalejo como esse puxar um carro desse tamanho? - acrescenta outro.

- Estás matando-a! - grita um terceiro.

- Não te incomodes. É minha! Posso fazer dela o que quiser. Subam! Subam todos! Hei de fazer com que parta a galope!

De repente ouve-se uma gargalhada geral que abafa a voz de Mikolka: a pobre égua, sem suportar mais as brutais chicotadas, e embora sem forças, pôs-se a dar coices para o ar. Até os mais velhos não se puderam conter e começaram a rir. De fato, aquela égua, imprestável para qualquer serviço, ainda por cima se punha a dar coices!

Outros rapazes do grupo brandiram também os chicotes e dirigiram-se para o animal para lhe fustigarem as ilhargas. Correu cada um de seu lado. - No focinho, nos olhos, dêem-lhe nos olhos! - grita Mikolka.

- Uma canção, meus amigos! - gritou um dos da tieliega, e imediatamente todos lhe fizeram coro. Ouviu-se uma canção indecente, repicou um tambor e todos acompanharam o estribilho com assobios. A mulher descascava nozes e ria.

Ele se dirigiu, correndo, para o animal, avançou e pôde ver como batiam nos olhos do cavalo, nos próprios olhos! Pôs-se a chorar. Sentiu o coração oprimido e as lágrimas saltaram-lhe. Uma das chicotadas roçou-lhe pela cara, mas ele nem a sentiu; erguia as mãos, gritava, voltava-se para o velho de cabelo e barba brancos, que abanava a cabeça, condenando tudo aquilo. Uma mulher pegou-lhe por uma mão e quis levá-lo; mas ele escapou-se e correu de novo para junto do animalzinho, que estava já nas últimas, mas recomeçara a escoicear para o ar.

- Ah, diabo! - gritava Mikolka furioso. Larga o chicote, torna a agachar-se e tira do fundo da tieliega um pau grosso e comprido, segura-o pela ponta com as duas mãos e, com todas as suas forças, descarrega-o sobre a égua.

- Vai matá-la! - gritam à sua volta. - Assim, acaba matando-a!

- É minha! - gritou Mikolka e, erguendo todo o braço, descarregou uma paulada sobre a égua.

- Dá-lhe, dá-lhe! Por que te deténs? - grita uma voz no meio daquela gente.

Mas Mikolka arvorou outra vez o cajado e, com todas as suas forças, deu outro golpe no costado do infeliz animal, que se inclina todo para os quartos traseiros; mas dá um safanão e puxa, puxa, com as suas últimas forças, por todos os lados, para arrastar o carro; mas por todos os lados o atacam seis chicotes, e novamente o pau se ergue e cai pela terceira vez, e depois pela quarta, calculadamente, com toda a força do braço que o brande. Mikolka está furioso por vê-la sucumbir de um só golpe.

- É dura! - gritam à sua volta.

- Vai cair já, sem falta, meus amigos; chegou a sua hora! - exclamou um entusiasta no meio do grupo.

- Com a machada, diabo! Acabemos com ela de uma vez! - gritou um terceiro.

- Vai... para o diabo que te carregue! Afastem-se! - gritava Mikolka, furioso; larga o pau, torna a agachar-se na tieliega, e tira uma alavanca de ferro. - Cuidado! - grita, e, com todas as suas forças, deita outra pancada na sua pobre égua.

O golpe foi certeiro; o animalzinho cambaleia, recua, esforça-se ainda por puxar, mas a alavanca torna a cair sobre o seu dorso, e tomba então finalmente por terra, como se lhe tivessem desconjuntado as quatro extremidades de uma só vez.

- Até que enfim! - exclamou Mikolka, e, fora de si, salta da tieliega. Alguns rapazes, vermelhuscos e também embriagados, pegam o que encontram à mão: chicotes, paus, a tranca, e lançam-se sobre o animal moribundo. Mikolka está de pé ao seu lado e é já em vão que lhe bate com a alavanca no costado.

O pobre animal estende o focinho, respira com dificuldade, e morre. - Rebentou! - gritam no grupo.

- Por que não se deitou ela, correndo a galope?

- Era minha! - grita Mikolka com o pau na mão e os olhos injetados de sangue. Parece pesaroso por não poder continuar batendo em alguém. - Sim, mas tu não és cristão - gritam já, no meio do grupo, muitas vozes.

Mas o rapazinho, lívido, parece tresloucado. Lançando um grito, abre caminho por entre a gente, até a égua, pega-lhe no focinho morto, ensangüentado, e beija-o nos olhos e nos lábios... Depois, de repente, dá um salto e, arrebatado de furor, lança-se com os pequenos punhos cerrados contra Mikolka. Nesse momento, o pai, que havia já algum tempo o procurava, encontra-o finalmente, e tira-o do grupo.

- Vamos, vamos! - diz-lhe. - Vamos para casa!

- Bátiuchka, por que é que eles mataram o cavalinho? - soluça, e as palavras saem do seu peito opresso, transformadas em gritos.

- Estão embriagados, não sabem o que fazem; isso não nos interessa. Vamo-nos! - diz-lhe o pai; mas sente o peito oprimido. Esforça-se por ganhar coragem, dá um grito e desperta.

Acordou banhado em suor, com os cabelos encharcados, arquejando, e endireitou-se na cama, horrorizado.

- Louvado seja Deus, foi apenas um sonho! - exclamou, sentando-se ao pé duma árvore e lançando um profundo suspiro. - Mas que é isto? Estarei com febre? Que sonho tão terrível!

Parecia-lhe que tinha o corpo todo moído, a alma cheia de dor e negrura. Apoiou os cotovelos sobre os joelhos e segurou a cabeça com ambas as mãos.

- Meu Deus! - exclamou. - E se ... e se eu pego de fato na machada, abro-lhe a cabeça e faço saltar os miolos... escorregarei no sangue quente e viscoso; quebrarei a fechadura, roubarei e pôr-me-ei a tremer, esconder-me-ei, todo manchado de sangue... com a machada... Meu Deus, será possível...? Tremia como a folha duma árvore, quando dizia isso.

- Mas que me aconteceu? - continuou a dizer, deixando-se cair outra vez e como se estivesse possuído de um assombro profundo. - Eu bem sabia que não seria capaz de... Portanto, por que me tenho eu atormentado até agora? Ontem, ontem, quando fui fazer aquela... experiência... compreendi perfeitamente que não seria capaz... Mas por que é isto agora? Por que estivera na dúvida até aqui? Ontem, quando descia a escada, eu próprio dizia que isto era vil, bárbaro, reles, reles... Porque, quando penso nisto, em pleno dia, fico revoltado e assombrado... Não, não sou capaz, não sou capaz! Suponhamos, suponhamos mesmo que não haja dúvida alguma em todos estes cálculos, que tudo isto se resolva este mês e se torne claro como o dia, preciso como a aritmética. Meu Deus, pois nem ainda assim me decidiria! Não sirvo para isto, não sirvo! Mas por que é que então, até agora...?

Levantou-se, olhou com espanto à sua volta, como se se admirasse de achar-se ali, e encaminhou-se para a ponte de T... Estava pálido, ardiam-lhe os olhos, o cansaço tomara-lhe todos os membros. Mas, de repente, começou a respirar mais facilmente: sentia que já tinha afugentado de si todo aquele tempo horrível, que havia tanto o acabrunhava, e que a sua alma se sentiu leve e satisfeita.

"Senhor", implorava, "mostra-me o meu caminho e eu libertar-me-ei desses malditos... desvarios."

Quando atravessou a ponte, contemplou o Nievá com um olhar suave, e o radioso poente do sol belo e brilhante. Apesar da sua fraqueza, nem sequer sentia cansaço. Parecia-lhe que o tumor que trazia no coração, que andara a amadurecer durante um mês, lhe rebentara de repente. Liberdade, liberdade! Agora estava livre daquele feitiço, daquele sortilégio, daquela sugestão!

Mais tarde, ao recordar aquele tempo e tudo o que lhe aconteceu durante esses dias, detalhe por detalhe, ponto por ponto, traço por traço, havia sempre uma circunstância que o comovia supersticiosamente, embora, na realidade, não tivesse nada de extraordinário, mas que lhe surgia sempre como uma prefiguração do seu destino.

Era esta: nunca pôde compreender nem explicar a si próprio por que é que, esgotado, magoado, quando lhe teria convindo mais voltar a sua casa pelo caminho mais breve e direto, o fez pelo Mercado do Feno, pelo qual tinha de andar mais. A volta não era grande, mas completamente desnecessária. Não havia dúvida de que isso de regressar a casa, sem se aperceber das ruas que percorria, lhe acontecera já muitas vezes. Mas por que - perguntava ele sempre -, por que é que aquele encontro tão importante e decisivo para ele, e, ao mesmo tempo, altamente fortuito, no Feno (onde não tinha motivo nenhum para ir), se deu então e àquela hora, precisamente nesse momento da sua vida, exatamente naquela disposição de espírito e naquelas circunstâncias, nas quais somente o referido fato podia produzir o efeito mais decisivo e definitivo sobre o seu destino? Parecia mesmo que estivera à sua espera!

Seriam quase dez horas quando se dirigiu para o Feno. Todos os comerciantes de barracas, os vendedores ambulantes, armazéns e lojas, ou encerravam os seus estabelecimentos, ou recolhiam e juntavam as suas mercadorias e regressavam às suas casas, bem como os seus fregueses. Em volta das tabernas subterrâneas, nos pátios sujos e hediondos das casas do Mercado do Feno, e sobretudo nas tabernas, apinhava-se grande número de mendigos esfarrapados, de todo gênero. A Raskólhnikov agradavam-lhe, sobremodo, aqueles lugares, assim como as ruelas adjacentes, quando vagueava sem rumo pela cidade. Aí, os seus farrapos não atraíam sobre si a altiva atenção de ninguém, e era possível deambular com a cara que quisesse, sem provocar escândalo. Na própria travessa de K..., num canto, um comerciante e a mulher vendiam vários artigos em duas mesas: pano, galões, lencinhos de algodão etc. Também eles voltavam já para casa, mas tinham parado para falar com uma amiga que passava. A tal amiga era Lisavieta Ivânovna, ou simplesmente Lisavieta, como toda a gente a chamava, a irmã mais nova da própria velha, Alíona Ivânovna, a usurária em cuja casa Raskólhnikov estivera na noite anterior, com o fim de deixar-lhe empenhado um relógio e fazer a sua "experiência"... Havia já algum tempo que ele sabia tudo quanto dizia respeito à tal Lisavieta, e ela também o conhecia um pouco. Era uma solteirona alta, desgraciosa, tímida e bonacheirona, quase idiota, de uns trinta e cinco anos, que vivia numa autêntica escravidão em casa da irmã, trabalhando ali dia e noite, tremendo na sua presença e até apanhando dela. Naquele momento estava com um pacote na mão, pensativa, em frente do mercador e da mulher, escutando-os atentamente. Aqueles contavam-lhe qualquer coisa com entusiasmo. Quando Raskólhnikov a viu, de repente, uma sensação estranha, parecida com o mais profundo assombro, se apoderou dele, apesar de aquele encontro não ter nada de espantoso.

- A senhora, a senhora, Lisavieta Ivânovna, tem de decidi-lo pessoalmente - disse o comerciante em voz alta. - Venha amanhã às sete. Eles também estarão.

- Amanhã? - exclamou Lisavieta perplexa e repisando as palavras, como se não quisesse decidir-se.

- Mas que medo a senhora tem de Alíona Ivânovna! - guinchou a mulher do comerciante.

- Parece uma menina. Porque, afinal, ela não é sua irmã, parece uma madrasta, tal é a maneira como a trata. Mas, desta vez, não precisa de dizer nada a Àlíona Ivânovna... - acrescentou o marido. - É o conselho que lhe dou: venha ver-nos sem lhe pedir licença. É assunto de interesse. Depois, até a sua irmã há de compreender.

- Então venho...

- Às oito da noite, amanhã. Eles também estarão aqui. Poderá decidir pessoalmente.

- E teremos o samovar preparado - acrescentou a mulher.

- Bem, virei - disse Lisavieta, ainda pensativa, e, lentamente, começou a afastar-se dali.

Raskólhnikov já se tinha retirado e não escutou mais. Caminhava devagar, sem chamar a atenção, esforçando-se por não perder uma palavra. O seu primeiro assombro pouco a pouco foi-se transformando em espanto,

e um calafrio lhe percorreu a espinha. De repente, adquirira uma informação certa; de um modo súbito e totalmente inesperado, soubera que no dia seguinte, às oito em ponto da noite, a irmã mais nova, e única pessoa que vivia com ela, não devia estar em casa e, portanto, às oito em ponto da noite a velha ficaria em casa sozinha.

Dali à sua casa havia alguns passos de distância. Entrou nela tal como um condenado à pena de morte. Não pensava em nada e tinha perdido completamente toda a faculdade de raciocínio; mas, repentinamente, com todo o seu ser, sentiu que não tinha já liberdade de reflexão, nem vontade, e que, de súbito, tudo se resolvera definitivamente.

Não havia dúvida de que, se durante anos inteiros estivera à espera dum encontro parecido, ainda que em tudo tivesse pensado, seria impossível contar confiadamente com um passo tão importante para o êxito da idéia como aquele que acabava agora mesmo de apresentar-se-lhe. Em todo o caso, ter-lhe-ia sido difícil conhecer de véspera e com tanta segurança, com absoluta exatidão e sem o menor risco, sem necessidade de perguntas e investigações perigosas de gênero algum, que no dia seguinte a tal hora a velha que se dispunha a assassinar devia encontrar-se em sua casa completamente sozinha.

 

Pouco depois, Raskólhnikov pôde saber, pouco mais ou menos, o motivo que o comerciante e a mulher tinham para convidar Lisavieta a ir à sua casa. Tratava-se de uma coisa vulgar e que, em si, não tinha nada de particular. Uma família de fora da cidade e que empobrecera vendia várias coisas, vestidos etc. etc.; tudo de mulher. Como não era vantajoso vendê-las no adeleiro, procuravam um freguês, e Lisavieta dedicava-se a isto; era alcoviteira, ocupava-se de informações particulares, e tinha uma grande clientela, pois era muito honesta e dizia sempre o último preço: "É tanto", e assim era. Costumava falar pouco, e, como dissemos, era, além disso, tão tímida e pacífica...

Mas, nos últimos tempos, Raskólhnikov tornara-se supersticioso. Muito tempo depois disso ainda lhe ficaram marcas dessa superstição, marcas quase indeléveis. E em todo este caso propendeu sempre depois a ver algo de estranho, de misterioso, algo de semelhante à presença de certas influências e coincidências particulares. Nesse mesmo inverno aconteceu que um estudante seu amigo, Pokóriev, que partia para Khárkov, lhe deu durante uma conversa o endereço da velha Alíona Ivânovna, para o caso de ele alguma vez necessitar de empenhar alguma coisa. Durante muito tempo nunca a procurou, porque tinha lições e, fosse como fosse, sempre ia arranjando algum dinheiro. Mas, havia mês e meio, lembrou-se do endereço que lhe tinham indicado; tinha dois objetos bons para empenhar: o velho relógio de prata, de seu pai, e um anelzinho de ouro com três pedras vermelhas, que a irmã lhe oferecera como recordação na ocasião em que se despedira dela. Resolveu levar o anel; quando se viu diante da velha, à primeira vista, ainda sem saber nada de particular acerca dela, sentiu uma invencível antipatia; aceitou-lhe as duas cautelas e, já de volta, entrou numa taberna ordinária. Pediu chá, sentou-se e ficou muito pensativo. Um estranho pensamento acabava de nascer na sua cabeça, como um pinto que sai do ovo, e que muito, muito o preocupava.

Quase ao seu lado, em outra mesinha, estava sentado um estudante que lhe era completamente desconhecido, do qual não tinha a mais vaga reminiscência, e um oficial novo. Estiveram jogando bilhar e agora tomavam chá. De repente ouviu que o estudante falava com o oficial a respeito da usurária Alíona Ivânovna, viúva dum assessor de colégio, e lhe dava o seu endereço. Aquilo, só por si, pareceu já bastante estranho a Raskólhnikov; viera de lá, e eis que, aqui, ouvia também falar dela. Não havia dúvida de que era uma casualidade; ainda não se libertara de uma impressão muito extraordinária, e eis que acabavam ainda de vir agravar-lha: o estudante, de repente, pôs-se a contar ao companheiro vários pormenores a respeito da tal Alíona Ivânovna.

- É formidável! - dizia. - Tem sempre dinheiro pronto. É rica como um judeu; pode emprestar de uma só vez cinco mil rublos e não perdoa um de juros. Há muitos dos nossos que vão ter com ela. Simplesmente, é uma tipa horrorosa...

E começou a contar-lhe como ela era má e teimosa: que bastava uma pessoa atrasar-se um dia em resgatar o penhor para que o considerasse perdido. Dava a quarta parte do que valia o objeto, mas cobrava cinco e até seis por cento de juro mensal etc. O estudante falava pelos cotovelos e contou também ao amigo que a velha era pequenina e franzina, mas mesmo assim batia constantemente em Lisavieta, a sua irmã, a qual vivia em autêntica servidão, apesar dos seus seis pés de altura.

- É outro fenômeno! - exclamou o estudante, e pôs-se a rir. Começaram a falar de Lisavieta. O estudante falava dela com certa satisfação pessoal, por entre risos, e o oficial pediu-lhe que lhe mandasse a tal Lisavieta para que lhe tratasse da roupa branca. Raskólhnikov não perdia uma só palavra e ficou assim a par de tudo. Lisavieta era a irmã mais nova, irmã (uterina) da usurária, e já tinha trinta e cinco anos. Trabalhava em casa da irmã dia e noite; fazia as vezes de cozinheira e de lavadeira, ao mesmo tempo, e, além disso, cosia para fora e ia esfregar casas, entregando tudo quanto ganhava à irmã. Não se atrevia a aceitar nenhum encargo ou trabalho sem pedir previamente autorização à velha. Esta fizera testamento, que a própria Lisavieta conhecia, e no qual não lhe deixava nem um groch (1), apenas uns móveis, umas tantas cadeiras etc.; os cabedais legava-os a certo mosteiro, no governo de H..., para eterno descanso da sua alma. Lisavieta pertencia à classe média, e não à burocracia, era solteira e terrivelmente desgraciosa de figura, muito alta, com pés enormes, um pouco metidos para dentro, sempre calçados com uns sapatos cambados, mas de boa qualidade. O que mais fazia rir o estudante era que Lisavieta andava quase sempre grávida...

- Mas não disseste que ela é um monstrengo? - observou o oficial. - Sim, tem uma cor terrosa e parece um soldado disfarçado; mas, olha, não é completamente um monstro. Tem uma cara e uns olhos aproveitáveis. Até bem bonitos. A prova é que... há muito quem goste. É tão caladinha, tão mansa, tão dócil e acomodatícia, que a tudo se presta. E também tem uma maneira de sorrir muito simpática.

- A propósito, a ti também te agrada... - sorriu o oficial.

- Pela sua invulgaridade. Mas não; ouve onde eu queria chegar. Eu, a essa maldita velha, era capaz de a matar e de roubá-la, e juro-te que não teria nem ponta de remorsos - acrescentou o estudante, exaltado.

O oficial tornou a rir-se; Raskólhnikov teve um sobressalto. Que estranho era tudo aquilo!

 

* (1) Antiga moeda russa equivalente a meio copeque. (N. do E.) *

 

- Dá-me licença que te faça uma pergunta a sério? - disse o estudante, ainda um pouco exaltado. - É claro que eu, há pouco, falava de brincadeira, mas olha: de um lado uma velha estúpida, imbecil, inútil, má, doente, que não dá proveito a ninguém, e que até, pelo contrário, a todos prejudica; que nem ela própria sabe para que vive e que amanhã acabará por morrer fatalmente... Compreendes? Compreendes?

- Sim, compreendo - respondeu o oficial olhando atentamente para o seu acalorado companheiro.

- Pois então continua a escutar-me. Do outro lado energias jovens, frescas, que se gastam em vão, sem apoio, e isto aos milhares e em toda parte. Mil obras e boas iniciativas se poderiam fazer com o dinheiro que esta velha deixa ao mosteiro. Centenas, talvez milhares de existências conduzidas ao bom caminho; dezenas de famílias salvas da miséria, da dissolução, da ruína, da corrupção, dos hospitais venéreos... E tudo isso com o seu dinheiro. Matá-la, tirar-lhe esse dinheiro, para com ele se consagrar depois ao serviço de toda a humanidade e ao bem geral. Que te parece? Não ficaria apagada a mancha dum só crime, insignificante, com milhares de boas ações? Por uma vida... mil vidas salvas da miséria e da ruína. Uma morte, mas, em troca, mil vidas... É uma questão de aritmética. E que pesa nas balanças vulgares da vida essa velhota tísica, estúpida e má? Não mais que a vida dum piolho, duma barata, e pode ser que ainda menos, visto que se trata de uma velha malfazeja. Ela se alimenta da vida alheia, é má; ainda não há muito tempo que mordeu de raiva um dedo a Lisavieta; por um pouco quase lho arrancava fora.

- Com certeza que não merece viver - observou o oficial -, mas a natureza é assim.

- Ah, meu amigo, sim; mas a natureza melhora-se e dirige-se, e sem isso afundarmo-nos-íamos em preconceitos! Sem isso não teria nascido nem um só grande homem... Dizem: "O dever, a consciência!" Eu não quero dizer nada contra o dever e a consciência... mas vamos a ver se nos entendemos! Espera, que vou fazer-te outra pergunta. Ouve.

- Não, espera tu, que sou eu quem vai perguntar-te. Escuta. - Está bem.

- Tu, até agora, tens falado e discursado; mas dize-me: matarias tu próprio a velha ou não?

- Claro que não! Eu, segundo a justiça... Mas isso não me diz respeito... - Pois, em meu entender, se tu próprio não te decides, é escusado falar em justiça. Anda, vamos jogar outra partidinha!

Raskólhnikov sentia uma comoção extraordinária. Não havia dúvida de que tudo aquilo era do mais vulgar e freqüente, e que já por mais de uma vez o ouvira, simplesmente, sob outras formas e a propósito de outros temas, em diálogos e raciocínios juvenis. Mas por que havia precisamente de acontecer-lhe agora ouvir aquele diálogo e aquelas idéias, agora que na sua cabeça começavam a germinar exatamente as mesmas idéias? E, sobretudo, por que é que, agora que acabava de afugentar da sua mente o pensamento da velha, havia de ouvir um diálogo referente a ela? Pareceu-lhe singular essa coincidência. Aquele insignificante diálogo de taberna exerceu uma extraordinária influência sobre ele, no desenvolvimento ulterior do acontecimento: parecia que, efetivamente, havia em tudo aquilo um sinal, uma intimação...

De volta do Feno, deitou-se no divã e ficou aí uma hora inteira sentado, imóvel. Entretanto escureceu; não tinha velas; aliás, nem sequer lhe passou pela cabeça acender uma. Mais tarde nunca pôde lembrar se estivera ou não pensando qualquer coisa durante esse tempo. Finalmente tornou a sentir a febre noturna, calafrios, e concluiu com prazer que o divã também lhe podia servir de leito. Em breve um sono pesado, de chumbo, se abateu sobre ele. Dormiu durante um tempo anormalmente longo e sem sonhos. Nastássia, que entrou no quarto no dia seguinte, às oito, teve de despertá-lo à força. Trouxe-lhe o chá e o pão. O chá já fervera uma vez, e também lho trazia na sua chaleira particular.

- Isso é que se chama dormir! - exclamou com desgosto. - Para ele acaba sempre tudo em dormir!

Ergueu-se, a custo. Doía-lhe a cabeça; levantou-se, deu uma volta pelo seu cubículo e tornou a cair sobre o divã.

- Dormindo outra vez! - exclamou Nastássia. - Mas estás doente ou que tens?

Ele não respondeu. - Não queres chá?

- Logo - respondeu ele com esforço; tornou a fechar os olhos e virou-se de cara para a parede. Nastássia inclinou-se sobre ele.

- Pode muito bem ser que esteja doente - disse; deu meia-volta e saiu. Voltou de novo às duas, com a sopa. Ele continuava deitado como antes. O chá permanecia intato. Nastássia zangou-se e pôs-se a increpá-lo, indignada:

- Por que estás tão amodorrado? - exclamou, olhando-o com antipatia. Ele se ergueu e sentou-se, mas sem lhe dizer nada e com os olhos fixos no chão.

- Mas estás doente ou não? - perguntou-lhe Nastássia, que também desta vez não obteve resposta.

- Devias sair - disse ela, depois de um silêncio. - O ar far-te-á bem. Vais almoçar ou não?

- Logo... - respondeu ele debilmente. - Vai-te embora! - e agitou a mão.

Ela tornou a inclinar-se um pouco, olhando-o compassiva, e depois retirou-se. Passados uns minutos ele ergueu a vista e ficou durante muito tempo olhando para o chá e para a sopa. Depois pegou o pão, segurou a colher e começou a comer.

Comeu pouco, sem apetite: três ou quatro colheradas, maquinalmente. A cabeça doía-lhe menos. Depois de comer tornou a estender-se no divã, imóvel, de bruços, com a cabeça enterrada na almofada. Tudo se lhe trans formava em devaneios, e esses devaneios não podiam ser mais estranhos; o mais freqüente era sonhar que estava em qualquer lugar na África, no Egito, em algum oásis. A caravana descansa à sombra, os camelos deitaram-se; em redor erguem-se palmeiras, formando um círculo; todos se preparam para a refeição. Ele não faz outra coisa senão beber água diretamente da fonte que nasce e borbulha ali mesmo, ao lado. E como o refrescava aquela água maravilhosa, maravilhosamente azul, fria, que manava por entre pedras multicores e de um fundo de areia tão clara, com reflexos dourados! De súbito, ouviu soar distintamente um relógio. Estremeceu, tornou a si, ergueu a cabeça, olhou para a janela, calculou a hora e levantou-se de um salto, como se alguém o tivesse empurrado do divã. Encaminhou-se nas pontas dos pés para a porta, abriu-a devagar e pôs-se a escutar da parte da escada. O coração batia-lhe com força. Na escada tudo estava silencioso, como se toda a gente dormisse... E pareceu-lhe muito estranho e importante o fato de ter podido estar amodorrado em tal inconsciência desde o dia anterior, sem ter feito nada, de maneira que, agora, encontrava-se desorientado... Podia ser que fossem já seis horas... E uma pressa enorme, febril e louca, o assaltou então: depois do sono, era o entorpecimento. No fim de contas, não precisava de grandes preparativos. Concentrou todas as suas forças no objetivo de pensar tudo bem e de não se esquecer de nada; o coração batia-lhe cada vez com mais violência, e com tanta força que lhe dificultava a respiração. Devia começar por fazer um nó corredio e cosê-lo ao casaco, o que era coisa de minutos. Tateou com a mão por debaixo da almofada e encontrou, entre a roupa branca que ali havia, uma camisa velha, suja, que era um autêntico andrajo. Arrancou-lhe uma tira de uns cinco centímetros de largura por trinta e seis de comprimento. Dobrou essa tira, foi buscar um amplo e forte casaco de verão, de um pano de lã grossa - o seu único sobretudo - e pôs-se a coser as duas pontas da tira por dentro e por debaixo do sovaco esquerdo. As mãos tremiam-lhe enquanto segurava a agulha; mas dominou-se e coseu de tal maneira as pontas da tira que, de fora, ninguém poderia notar nada quando ele vestisse o casaco. Arranjara com muita antecedência a agulha e a linha que guardava embrulhadas num papel, dentro da mesinha. O nó era invenção sua, bem engenhosa, e destinava-se à machada. Não se podia ir pela rua com a machada na mão. E, se a levasse por debaixo do casaco, teria de segurá-la com a mão, o que também podia dar nas vistas. Mas, assim, não era preciso mais nada senão meter a machada naquele nó e levá-la pendurada debaixo do sovaco durante todo o caminho. E, metendo a mão no bolso lateral do casaco, podia segurar também a extremidade do cabo da machada para que não balançasse, e como aquele casaco era muito folgado, um verdadeiro saco, ninguém poderia imaginar que estivesse segurando qualquer coisa com a mão metida no bolso. Imaginara aquele nó havia já duas semanas.

Assim que resolveu o caso do nó, meteu os dedos numa pequena fenda que havia entre o divã e o chão, rebuscou no canto da esquerda e tirou o penhor, preparado e metido ali havia muito tempo. De fato, esse penhor não era mais do que um pedaço de madeira, liso, com as dimensões e a espessura duma cigarreira. Encontrara essa tabuinha, casualmente, num dos seus passeios pelo pátio, onde havia uma oficina num lugar anexo. Depois colocou sobre a tabuinha uma fina e lisa lâmina de ferro, provavelmente restos de alguma coisa partida, e que também encontrara na rua. Ambas as coisas - a lâmina de ferro era a menor - tinha-as unido e ligado fortemente com um cordel cruzado; depois embrulhou tudo, com muito cuidado e esmero, num simples papel branco, e apertou tanto que era impossível abri-lo à primeira vez. Fez isso assim para entreter por um momento a atenção da velha quando se pusesse a desfazer o embrulho, e aproveitar assim a ocasião. Tinha posto ali a lâmina de ferro, para fazer peso, a fim de que a velha não adivinhasse de imediato que o objeto era de madeira. Guardava tudo isso, havia muito tempo, debaixo do divã. Mal acabara de tirar o objeto, quando, de repente, se ouviu no pátio este grito: - Já deram sete há muito tempo!

"Há muito tempo, meu Deus!"

Correu para a porta, pôs-se à escuta, pegou o chapéu e começou a descer os seus treze degraus devagarinho, suavemente, como um gato. Restava-lhe fazer o mais importante: roubar a machada na cozinha. Que a coisa devia ser feita com uma machada, havia já algum tempo que o decidira. Tinha também uma faca de jardineiro, de mola; mas na faca, e sobretudo nas suas próprias forças, não tinha ele confiança; por isso optara definitivamente pela machada. Observemos, de passagem, uma particularidade a propósito de todas estas resoluções definitivas, já adotadas por ele sobre este assunto. Possuíam uma propriedade estranha: quanto mais definitivas, tanto mais monstruosas e absurdas pareciam depois a seus olhos. Apesar de toda a dolorosa luta interior, nunca, nem por um instante, chegou a acreditar na realização dos seus projetos em todo esse tempo.

E se tivesse sucedido de maneira que tudo estivesse já previsto e definitivamente resolvido, até nos seus mais ínfimos pormenores, e não houvesse já lugar para dúvida nenhuma... ainda então teria desistido de tudo definitivamente, como de uma estupidez, um absurdo e uma coisa impossível. Mas, no que respeita aos pontos não resolvidos, restava-lhe ainda uma quantidade imensa de dúvidas. No que se refere ao lugar onde devia arranjar a machada, esse pormenor não o preocupava absolutamente nada, pois não havia coisa mais fácil. De fato, Nastássia, sobretudo à noite, mal parava em casa: ou ia para junto das vizinhas, ou ia à loja, e a porta ficava sempre aberta de par em par. A dona da casa andava sempre ralhando com ela, precisamente por causa disso. Portanto, não havia mais nada a fazer, em chegando o momento, do que entrar devagarinho e pegar na machada; e depois, passada uma hora (depois de tudo consumado), tornar a colocá-la no seu lugar. Mas também aqui surgiam algumas dúvidas: suponhamos que ele voltasse passada uma hora para colocá-la outra vez no seu lugar, e que Nastássia voltara durante esse tempo. Não havia dúvida de que teria de passar de largo e esperar que saísse outra vez. Mas se durante todo esse tempo ela precisasse da machada e se pusesse a procurá-la e a gritar... ficaria imediatamente com suspeitas, ou, pelo menos, haveria lugar para suspeitas.

Mas isso eram pormenores, nos quais nem sequer queria pensar, além de que também não tinha tempo para isso. Pensava no principal e os pormenores adiava-os para quando estivesse completamente decidido. Mas isto parecia-lhe definitivamente irrealizável. Pelo menos era o que lhe parecia. Nunca pôde imaginar que alguma vez chegasse a deixar de pensar, se levantasse e... simplesmente, fosse até lá... Até aquela sua experiência recente (ou seja, aquela sua visita com a intenção de inspecionar definitivamente o local), tinha-a feito apenas para experimentar; mas a sério, nunca apenas como quem diz: "Vamos até lá, caramba; irei e experimentarei, visto que se trata apenas de uma fantasia!", e não pôde aceitar a idéia; cuspiu e deitou a correr indignado consigo mesmo. No entanto parecia-lhe que, do ponto de vista moral, a questão podia considerar-se resolvida. A sua casuística era aguçada como uma navalha de afiar, e não encontrava nenhuma objeção na sua consciência. Apesar do que não queria acreditar em si próprio e procurava com uma teimosia asinina objeções exteriores, por tentativas, como se alguém o obrigasse a fazê-lo e puxasse para esse lado. O dia anterior, tão rico em elementos inesperados como decisivos, atuara sobre ele de uma maneira mecânica; era como se alguém lhe tivesse pegado pela mão e o tivesse obrigado a segui-lo irrevogavelmente, cegamente, com uma força sobrenatural, e sem que pudesse opor a menor objeção. Poderia dizer-se que deixara apanhar a ponta da roupa numa roda de engrenagem que começava a puxá-lo.

Em primeiro lugar - já pensara nisso -, preocupava-o sobretudo uma questão: por que é que quase todos os crimes se descobrem tão facilmente e por que se encontram tão facilmente as provas de quase todos os assassínios? Pouco a pouco chegou a conclusões tão variadas como curiosas. A seu ver, o motivo principal residia não tanto na impossibilidade natural de ocultar o crime, como no próprio criminoso; todos os criminosos, sejam eles quais forem, experimentam no momento de cometer o seu crime uma espécie de enfraquecimento da vontade e do raciocínio, estado esse que vem depois a ser substituído por um atordoamento extraordinário e pueril, precisamente no momento em que mais necessárias lhe seriam a razão e a prudência. Esse eclipse do raciocínio, esse desfalecimento da vontade, segundo Raskólhnikov, apoderava-se do homem à maneira de uma doença, desenvolvendo-se progressivamente e alcançando o seu máximo de intensidade momentos antes do cometimento do crime: persistia durante a execução deste último e algum tempo depois, conforme os indivíduos, acabando depois por desaparecer como qualquer outra doença. O problema estava em saber se é a doença que engendra o crime, ou se o próprio crime, por sua natureza, é que é sempre acompanhado de um certo gênero de doença; mas isso era uma questão que ele não se sentia capaz de resolver.

Quando chegou a essas deduções, decidiu que, pelo que lhe dizia respeito, pessoalmente e ao seu projeto, não era possível que se produzissem semelhantes colapsos morais, pois nem a sua razão nem a sua vontade haviam de abandoná-lo durante toda a execução da sua empresa, unicamente pela razão de que aquilo que se propunha levar a cabo não era um crime... Prescindimos do processo mediante o qual chegara a essa resolução suprema, pois já nos adiantamos sobre os acontecimentos... Acrescentamos apenas que as dificuldades práticas, de ordem puramente material, do assunto, não assumiam no seu espírito senão uma importância completamente secundária. "Basta que conserve o domínio da minha vontade e da minha razão para que, chegando o momento, fiquem vencidas todas essas dificuldades quando se trata de tocar nos pormenores mais insignificantes do meu plano..." Mas a execução do seu desígnio ia-se adiando. Cada vez tinha menos fé na possibilidade de as suas resoluções assumirem um caráter definitivo e, chegada a hora, os acontecimentos tomarem um rumo completamente diferente, imprevisto, para não dizer inesperado.

Uma circunstância das mais vulgares colocou-o num beco sem saída, ainda antes de ter chegado ao fim da escada. Quando chegou ao patamar da cozinha, cuja porta estava, como sempre, aberta de par em par, deitou um olhar pelo cantinho do olho, para certificar-se previamente de uma coisa: da ausência de Nastássia. "E a senhoria também não estaria ali, teria a porta de seu quarto bem fechada, não poderia vê-lo quando entrasse para pegar a machada?" Mas qual não foi o seu espanto ao reparar, de repente, que Nastássia estava na cozinha e, além disso, trabalhava, ocupada em tirar roupa branca de uma cesta e a estendê-la sobre umas cordas! Quando o viu, ela suspendeu a sua tarefa, voltou-se para olhá-lo, e assim ficou até ele se afastar. Ele desviara os olhos, como se não tivesse reparado em nada. Mas era assunto arrumado: Não havia machada! Ficou desolado. "Por que é que eu concluí", disse para consigo, ao atravessar a porta de serviço, "por que teria eu concluído que, precisamente neste momento, ela devia estar ausente? Por quê? Por que decidi eu isso com tanta certeza?" Sentiu o desejo de rir-se de si próprio, tal era a sua indignação... Sentia no seu íntimo uma raiva estúpida e bestial. Parou à porta de serviço, indeciso. Sair só por sair, para dissimular, repugnava-lhe; mas voltar para o quarto ainda lhe repugnava mais. "Perdi para sempre uma bela oportunidade!", resmungou, de pé e voltado, sem a menor intenção, para o escuro cubículo do porteiro, que também estava aberto. De súbito, todo o corpo lhe estremeceu. Na portaria, a dois passos dali, sobre o banco da direita, acabava de ver brilhar alguma coisa... Olhou à volta... Ninguém. Aproximou-se do cubículo nas pontas dos pés, desceu os degraus e chamou o porteiro em voz baixa: "Pronto, não está em casa! Se bem que, no entanto, não deve andar muito longe, visto que deixou a porta escancarada". De um salto, lançou-se sobre a machada (era realmente uma machada) e tirou-a de baixo do banco, onde descansava entre dois troços de lenha; em seguida, e sem ter ainda saído da portaria, meteu-a no nó corredio, pôs as mãos no bolso e afastou-se. Ninguém o tinha visto!

"Quando a inteligência fala, o diabo ajuda-a!", pensou, com um estranho sorriso. O acaso que acabava de deparar-se-lhe até lhe fez sentir dores no ventre.

Saiu para a rua devagar e com um ar indiferente, sem se apressar, com receio de levantar suspeitas. Nem sequer olhava para os transeuntes, e até se esforçava por não fixar a vista em ninguém, a fim de passar o mais possível despercebido. Nesse momento tornou a recordar-se do chapéu: "Meu Deus, pensar que anteontem tinha dinheiro e, em vez dele, não comprei antes um gorro!", praguejou intimamente. Deitou uma olhadela para o interior duma loja e viu que eram já sete e dez. Tinha que andar depressa e, ao mesmo tempo, que fazer uma volta; o melhor era entrar pelo outro lado, pela porta traseira. Dantes, quando imaginava tudo isso, pensava que deveria estar muito excitado. Mas agora não o estava absolutamente nada. O que o ocupava, de momento, eram pensamentos estranhos, e não por muito tempo. Enquanto rodeava o Parque lusúpovski, interessou-lhe muito a idéia de que deviam construir umas fontes que refrescassem deliciosamente o ar em volta às praças públicas. Depois, pouco a pouco, chegou à convicção de que a ampliação do Jardim de Verão até o Campo de Marte e a sua reunião com o Jardim do Palácio Mikhailóvski constituiriam uma inovação tão agradável como útil para Petersburgo. E, a propósito disso, a si próprio perguntou por que é que em todas as grandes cidades as pessoas hão de preferir, menos por necessidade do que por gosto, viver naqueles bairros onde não há jardins nem fontes, mas apenas lixo e mau cheiro, e a sujidade reina como dona e senhora. Lembrou-se então do passeio pelo Mercado do Feno e por um instante apercebeu-se da sua situação atual: "Que estupidez", disse, "não, vale mais não pensar nisso!" Deve ser assim, com certeza, que os indivíduos que são levados ao patíbulo se agarram com o pensamento a todos os objetos que encontram pelo caminho. Essa idéia atravessou a sua mente como um relâmpago; mas apressou-se a afugentá-la... E, entretanto, ei-lo já muito próximo, eis aí a casa e ali a porta. E, não se sabe onde, ouviu-se um relógio: "O quê, já serão sete e meia? É impossível, com certeza que deve andar adiantado!"

Mas a sorte foi-lhe favorável quando ia entrando. Como de propósito, uma enorme carroça de feno entrava precisamente diante dele, pela porta-cocheira, ocultando-o completamente no momento em que ele a atravessava, de maneira que, ainda mal a carroça entrara no pátio, já ele se escapulia para a direita. Uma vez aí, ouviu do outro lado da carroça várias vozes que gritavam e altercavam. Mas ninguém o vira, com ninguém se encontrara. Algumas das janelas que davam para aquele imenso pátio quadrado estavam abertas àquela hora; mas ele não levantou a cabeça, pois não tinha coragem para isso. A escada que conduzia ao andar da velha corria mesmo ao lado da porta da direita. Na escada já ele se encontrava...

Contendo a respiração e comprimindo com a mão as pulsações do coração, ao mesmo tempo que apalpava a machada e a endireitava uma vez mais, começou a subir os degraus suavemente, com muito cuidado e apurando o ouvido a todos os instantes. Mas a escada estava completamente deserta naquele momento; todas as portas estavam fechadas; não encontrou ninguém. É certo que no segundo andar havia um quarto por alugar, onde trabalhavam alguns pintores; mas não repararam nele. Parou um momento, reconsiderou e continuou a subir. "Lá isso é verdade, seria melhor que não estivessem aí; mas acima deles há mais andares..."

Agora vai já ao quarto andar; ali está a porta, em frente, o andar está deserto. No terceiro andar, por debaixo do da velha, o mais provável é que também não haja ninguém; taparam o cartão de visita que estava fixado à porta, e isso é sinal de que os inquilinos se mudaram... Sufocava. Por um momento uma idéia atravessou o seu pensamento: "Não seria melhor ir-me embora?" Mas, sem dar resposta a essa pergunta, pôs-se a escutar junto do quarto da velha; reinava aí um silêncio de morte. Apurou ainda o ouvido no alto da escada e escutou atentamente durante muito tempo... Depois deitou uma última olhadela à sua volta e endireitou novamente o cabo da machada: "Não estarei demasiado pálido?", pensou, excessivamente comovido. "Não seria melhor esperar que o meu coração se acalmasse?"

Mas o coração não lhe serenava. Pelo contrário, como se fosse de propósito, cada vez palpitava com mais força... Não pôde conter-se mais; lentamente, estendeu a mão até o cordão da campainha e puxou. Deixou passar meio minuto e tornou a chamar com um pouco mais de força. Nenhuma resposta... Para que tornar a chamar? Tal insistência não seria oportuna. Com certeza a velha estava em casa, e, se estivesse só naquela ocasião, sentiria certamente mais receio. Conhecia, em parte, os costumes de Alíona Ivânovna... e tornou a encostar o ouvido à porta. Seria que os sentidos se lhe aguçaram extraordinariamente (coisa difícil de admitir), ou aquele rumor era na verdade tão bem perceptível? Fosse como fosse, percebeu de repente o roçar duma mão sobre o ferrolho da fechadura, ao mesmo tempo que o roçagar dum vestido contra uma almofada da porta. Alguém invisível estava ali por detrás, escutando como ele, esforçando-se por dissimular a sua presença lá dentro e, segundo parecia, também com a orelha pegada à porta.

Movimentou-se de propósito e resmungou em voz alta, para que não parecesse que se estava escondendo, e depois tornou a chamar pela terceira vez, mas devagarinho, suavemente e sem a menor mostra de impaciência. Mais tarde recordaria aquele momento com toda a exatidão, tal foi a maneira como lhe ficou fielmente gravado na memória. Nunca chegou a compreender como é que foi capaz de empregar tanta astúcia naquela ocasião, pois houve momentos em que se lhe nublou o raciocínio e em que mal sentia o corpo... Passado pequeno momento percebeu que puxavam o ferrolho.

 

Como das outras vezes, a porta abriu-se devagarinho e de novo dois olhos penetrantes e receosos pousaram sobre ele, olhando do fundo da escuridão. Nesse momento Raskólhnikov perdeu o sangue-frio e esteve quase a deitar tudo a perder por sua culpa. Receando que a velha se assustasse por se encontrar sozinha com ele, e não acreditando que a sua cara e o seu aspecto fossem próprios para tranqüilizá-la, segurou a porta e puxou-a atrás de si, para que a velha não caísse na tentação de tornar a fechá-la. Por seu lado, ela não puxou a porta; mas também não a largou; de maneira que por um pouco não se arrasta, juntamente com a porta, até o patamar. Quando viu que a velha continuava no umbral, estorvando-lhe a entrada, caminhou direito a ela. Muito admirada, deu um pulo para trás, quis dizer qualquer coisa mas não conseguiu, e ficou olhando com os olhos muito abertos. - Boa noite, Alíona Ivânovna - começou com o ar mais indiferente, mas com uma voz que já não lhe obedecia, entrecortada e tremente -, trago-lhe um penhor... Mas entremos... vamos para a luz.

E, empurrando-a com um gesto brusco, entrou no quarto sem que ela o tivesse convidado. A velha correu atrás dele e começou a dar à língua: - Meu Deus! Mas que deseja o senhor? Quem é o senhor? O que quer? - Repare, Alíona Ivânovna, sou seu amigo... Raskólhnikov... Ouça: trago-lhe o penhor de que lhe falava ultimamente... - E estendeu-lhe o penhor. A velha ia para examiná-lo; mas tornou a fixar mais uma vez os seus olhos nos do intruso. Contemplava-o atentamente, com uma expressão maliciosa e receosa. Passou um minuto e ele julgou até perceber no olhar da velha qualquer coisa de irônico, como se ela tivesse já adivinhado tudo. Sentiu que perdia a cabeça, que tinha quase medo, e que, se o mutismo da velha se prolongasse meio minuto mais, acabaria por fugir.

- Mas por que me olha tanto, como se não me conhecesse? - disse ele também de repente, com malícia. - Aceite-o, se quiser... senão vou a outro lugar! Não posso perder tempo!

Disse essas palavras sem as ter pensado, como se lhe tivessem escapado de repente.

A velha reconsiderou; era evidente que o tom resoluto do visitante a animava.

- Mas, meu amigo, por que há de isto ser assim, tão de repente? Que é isso? - perguntou, olhando para o objeto.

- Uma cigarreira de prata... Vamos... Já lhe falei dela da última vez que cá estive...

A velha estendeu a mão.

- O senhor está tão pálido! E tem as mãos trêmulas! Estará doente, não? - Tenho febre! - respondeu com uma voz convulsionada. - Como é que não se há de estar pálido, quando não se come! - acrescentou com muito custo. As forças tornavam a faltar-lhe. Mas a resposta parecia verossímil; a velha pegou o objeto.

- Que é isto? - perguntou, olhando outra vez de alto a baixo para Raskólhnikov, e sopesando o objeto na mão.

- Pois esse objeto... A cigarreira... de prata... Mas veja-a!

- Hum! Nem parece prata! Vem muito bem embrulhada. - Enquanto se esforçava por desfazer o embrulhinho, aproximou-se da janela para ver melhor (tinha as janelas todas fechadas, apesar do calor sufocante), e por um momento afastou-se de Raskólhnikov, ficando de costas voltadas. Ele desabotoou o paletó e tirou a machada do nó corredio; mas, sem a tirar completamente, limitou-se a segurá-la com a mão direita por debaixo da roupa. Sentiu uma grande fraqueza nos braços, que lhe intumesciam de minuto a minuto, e que se tornavam pesados como chumbo. Tinha medo de deixar cair a machada. De repente pareceu-lhe que a cabeça lhe voava.

- Mas que idéia fazer um embrulho desta maneira! - exclamou a velha, esboçando um movimento para Raskólhnikov.

Não havia um momento a perder. Tirou completamente a machada de baixo do casaco, brandiu-a com as duas mãos, sem se aperceber do que fazia, e, quase sem esforço, com um gesto maquinal, deixou-a cair sobre a cabeça da velha. Estava esgotado; contudo, mal acabara de dar o golpe e lhe voltaram as forças.

Como sempre, a velha estava de cabeça nua. Os seus escassos cabelos brancos, disseminados e distantes, gordurosos e oleosos, também estavam, como sempre, entrançados em forma de rabo de rato e presos por um dente de pente, formando carrapito sobre a nuca.

Deu-lhe o golpe precisamente na saliência do crânio, para o que contribuiu a baixa estatura da vítima. Continuava ainda segurando o objeto de penhor numa das mãos. A seguir feriu-a pela segunda e pela terceira vez, sempre na saliência do crânio. O sangue brotou como de um copo entornado, e o corpo tombou para a frente, sobre o chão. Ele se deitou para trás para facilitar a queda e inclinou-se sobre o rosto da velha: estava morta. As pupilas dos olhos, dilatadas, pareciam querer saltar-lhes das órbitas; a fronte e o rosto contorciam-se nas convulsões da agonia.

Deixou a machada no chão, ao lado da morta, e começou imediatamente a revistar-lhe os bolsos, procurando não manchar as mãos no sangue que jorrava. Começou pelo bolso da direita, aquele de onde ela tirara as chaves da última vez. Conservava toda a sua lucidez de espírito e já não sentia náuseas nem vertigens; apenas as mãos lhe tremiam ainda. Mais tarde havia de recordar a maneira sensata e prudente como se conduzira, como tivera o cuidado de não se manchar... Tirou as chaves; tal como antes, estavam todas juntas, num molho, por meio de um só aro de aço. Assim que as teve em seu poder, dirigiu-se correndo para o quarto. Era um cubículo pequenino, no qual havia uma redoma grande cheia de imagens e de santos. Em frente, encostada à parede, via-se uma grande cama, muito boa, com uma manta de seda acolchoada, de algodão, feita de retalhos. A cômoda estava no terceiro lado do quarto. Coisa estranha: ainda mal metera as chaves na fechadura desse móvel, apenas sentira o rangido do ferro, quando “uma espécie de calafrio o percorreu todo. Sentiu novamente vontade de deixar tudo aquilo e de escapulir-se. Mas isso durou apenas um momento, pois era já demasiado tarde para sair. Já estava a rir-se de si próprio quando, de repente, outra idéia inquietante o assaltou. Lembrou-se de que podia suceder perfeitamente que a velha estivesse ainda viva e voltasse a si. Deixando as chaves e a cômoda, correu para lá, para junto do cadáver, e levantou outra vez a machada sobre a velha; mas não a golpeou. Não havia dúvida de que estava morta. Agachando-se e contemplando-a outra vez de perto, ficou convencido de que tinha o crânio partido e até um pouco “torcido. Sentiu vontade de apalpá-lo com o dedo; mas retirou a mão; era evidente que não tinha necessidade nenhuma disso. Entretanto, o sangue formara já um charco sobre o chão. De repente, reparou que ela trazia um cordãozinho ao pescoço, e puxou por ele; mas o cordão era forte e não se partiu; além disso, estava empapado em sangue. Experimentou então tirá-lo por debaixo do peito; mas havia qualquer coisa que o estorvava. Cheio de impaciência, ia já a atirar outra vez a machada com o fim de cortar o cordão sobre o corpo; mas não se atreveu e, com grande trabalho, manchando as mãos e a machada de sangue, depois de dois minutos de esforço partiu “o cordão sem tocar com a machada no cadáver e tirou-lho; não se enganara... Uma bolsinha! Do cordão pendiam duas cruzes, uma de madeira de cipreste e a outra de cobre, e, além disso, uma pequena imagem de esmalte; e juntamente com elas havia um porta-moedas gorduroso, besuntado, de pele de gamo e com fecho de aço. O porta-moedas estava cheio; Raskólhnikov guardou-o no bolso sem o examinar. Pôs as cruzes ao peito da velha e, pegando outra vez a machada, voltou de novo para o quarto. Apressou-se terrivelmente, pegou as chaves e de novo voltou a servir-se delas. Mas tudo parecia inútil; não acertava bem na fechadura. Não que as mãos lhe tremessem, mas porque se enganasse sempre; e, embora visse que não era aquela a chave, que não entrava bem, persistia. De repente recordou-se e compreendeu que aquela chave grande, com o palhetão denteado, que estava ali entre outras chaves menores, não devia ser a da cômoda, sem dúvida alguma (conforme pensara anteriormente), mas a de algum cofre, e que talvez fosse nesse cofre que tudo estivesse escondido. Abandonou a cômoda e meteu-se imediatamente debaixo da cama, por saber que, geralmente, as velhas guardam os cofres debaixo da cama. De fato assim era; encontrou aí uma grande arca, de um archin (1) de comprimento, de tampa abaulada, forrada de couro vermelho e pregueada com pregos de aço.

 

* (1) Medida de comprimento equivalente a 0,71 m. (N. do E.) *

 

A chave denteada entrou a primeira vez e abriu-a logo. Na parte de cima, por debaixo dum pano branco, havia uma peliça curta, de lebre, com guarnições vermelhas, e, debaixo dela, um vestido de seda, sobre um xale, e depois, no fundo, segundo parecia, só havia trapos. Começou por limpar as mãos manchadas de sangue sobre a guarnição vermelha: "Como é vermelha, o sangue não se notará sobre ela"; mas, de repente, caiu em si: "Meu Deus! Teria eu perdido o juízo?", pensou, assustado.

Mas, mal acabara de remexer aqueles trapos, de baixo da samarra escorregou um relógio de ouro. Apressou-se a esvaziar o conteúdo do cofre. De fato, entre aqueles trapos havia objetos de ouro escondidos - provavelmente todos eles empenhados, resgatados e por resgatar -, pulseiras, brincos, alfinetes de gravata etc. Alguns guardados nos seus estojos; outros, simplesmente embrulhados em papel de jornal, com muito cuidado e perfeição, em duas folhas de papel, e atados por fora com cordéis. Sem se demorar absolutamente nada, pôs-se a guardá-los nos bolsos da calça, do casaco, sem abrir os estojos nem desfazer os invólucros; mas não teve tempo para apanhar muitos...

De súbito, pareceu-lhe ouvir passos no quarto onde jazia a velha. Ficou quieto e rígido como um cadáver. Mas estava tudo tranqüilo; devia ter sido vítima de uma alucinação. Nesse momento ouviu-se distintamente um leve grito, ou melhor, como se alguém tivesse lançado um gemido surdo e depois tivesse voltado a calar-se. A seguir outro silêncio mortal, de um ou dois minutos. Sentou-se de cócoras junto da arca e aguardou, de alma suspensa, até que por fim se levantou de um pulo, pegou a machada e saiu do quarto correndo!

No meio do quarto estava Lisavieta, com um grosso embrulho nos braços, e olhava estupefata para a irmã morta, completamente lívida, e como se não tivesse coragem para gritar. Quando o viu chegar correndo, pôs-se a tremer como a folha duma árvore, com um tremorzinho leve, e por todo o rosto lhe correram espasmos. Tinha erguido as mãos e aberto a boca; mas no entanto não chegou a gritar e, lentamente, foi recuando à sua frente, para um canto, olhando-o fixamente, com teimosia, mas sem lançar um grito, como se não lhe restasse coragem para gritar. Ele se lançou sobre ela com a machada; os seus lábios contraíram-se tão dolorosamente como os das criancinhas quando se assustam com qualquer coisa, e ficou olhando fixamente o objeto causador do seu espanto, pronta a gritar. E a tal ponto era simplória aquela desditosa Lisavieta, tão pacífica e tímida, que nem sequer se lembrava de levantar as mãos para resguardar o rosto com elas, apesar de ser esse o gesto mais natural e instintivo nesse momento, visto que a machada se lhe arvorava já por cima do próprio rosto. A única coisa que fez foi levantar um pouco o braço direito, que tinha livre, estendê-lo pouco a pouco para ele, como se quisesse afastá-lo. A pancada acertou-lhe em cheio sobre o crânio, e fendeu-lhe de uma vez toda a parte superior até o occipúcio. Tombou também sobre o chão. Raskólhnikov estava completamente fora de si; tirou-lhe o embrulho para largá-lo logo em seguida, e deitou a correr para o vestíbulo.

O medo apoderava-se dele cada vez com mais força, sobretudo depois deste segundo homicídio, completamente inesperado.

Estava ansioso por ver-se longe dali o mais depressa possível. E, se nesse momento tivesse estado em condições de poder ver e considerar; se tivesse pelo menos podido imaginar todas as dificuldades da sua situação, toda a sua desolação, toda a sua vileza e toda a sua estupidez; pensar nisso, e também nos obstáculos que teria de vencer para sair dali e voltar para sua casa, poderia muito bem ter-se dado o caso de que abandonasse tudo e fosse, ele sozinho, correr e denunciar-se, não por medo, mas unicamente por horror e aversão ao que fizera. A repugnância, sobretudo, surgia e crescia nele a cada momento. Por nada deste mundo se teria agora aproximado da arca, nem sequer da sala. Mas começou logo a apoderar-se dele uma certa abstração, uma espécie de ensimesmamento; de vez em quando parecia esquecer-se de tudo, ou, para melhor dizer, esquecia-se do principal para atentar só a insignificâncias. Aliás, ao ver na cozinha um balde meio cheio de água em cima dum banco, pensou lavar aí as mãos e a machada. Tinha as mãos ensangüentadas e viscosas. Primeiro deixou cair a machada a prumo dentro da água; pegou um pedaço de sabão que estava na janela, num prato esbeiçado, e pôs-se a lavar as mãos no mesmo balde. Depois de as ter lavado, tirou a machada, limpou o aço, e ficou lavando o cabo durante muito tempo, por dois ou três minutos, nas partes em que estava ensangüentado, servindo-se também do sabão. Depois limpou tudo muito bem num pano branco que estava pendurado numa corda, estendida através da cozinha, e em seguida pôs-se a observar a machada, vagarosa e atentamente, junto da janela. Já não tinha vestígios, mas o cabo ainda estava úmido. Com muito cuidado, pendurou a machada no nó, por debaixo do sobretudo. Uma vez feita essa operação e até onde lho consentia a luz da cozinha escura, remirou o sobretudo, a calça e as botas. Por fora, à simples vista, não se notava nada; só nas botas é que havia manchas. Pegou um trapo e limpou as botas. Mas apesar disso pensava ainda que podia não ter reparado bem, que podia haver qualquer coisa que saltasse aos olhos, e que ele, no entanto, não notasse. Estava parado e meditando, no meio do quarto. Dolorosos, tenebrosos pensamentos lhe atravessavam a mente... A idéia de que estava louco e de que naquele instante não tinha forças para discernir-se nem defender-se, e que talvez não fosse preciso fazer o que fazia... "Meu Deus! Preciso mais é fugir...", murmurou, e correu para o corredor. Mas aí aguardava-o uma das maiores surpresas da sua vida.

Parou, olhou e não queria acreditar naquilo que os seus olhos viam: a porta, a porta exterior, e que dava para a escada, a mesma em que batera e pela qual entrara, estava entreaberta; nem sequer fechada a chave, nem sequer corrido o fecho, durante todo aquele tempo. A velha não a fechara atrás de si, talvez por precaução. Mas, santo Deus! Não tinha Lisavieta entrado por ela?! E como foi possível ter ele adivinhado que ela por alguma parte devia ter entrado! Mas, evidentemente, com certeza que não entrara pelas paredes!

Dirigiu-se para a porta e correu o trinco dela.

"Mas não, isto também não! O que eu tenho a fazer é ir-me embora, ir-me embora..."

Correu o fecho, entreabriu a porta e pôs-se a escutar do lado da escada. Ficou escutando por muito tempo. Algures, certamente, lá embaixo, gritaram com força por duas vezes; deviam estar brigando e ralhando. "Quem seria?" Esperou pacientemente. Por fim, repentinamente, tudo ficou em silêncio: já se tinham retirado. Ele se dispôs também a sair; mas de repente, no andar de baixo, abriu-se com estrépito uma porta que dava para a escada, e alguém começou a descer os degraus entoando uma cançoneta. "O barulho que fazem!", pensou. Tornou a fechar atrás de si e esperou. Finalmente, tudo ficou silencioso: nem viva alma. Já tinha dado um passo na escada, quando, de repente, se sentiram novas passadas. Soavam muito longe essas passadas, mesmo no princípio da escada; mas ele compreendeu logo, desde o princípio do ruído, quando começou a suspeitar de alguma coisa, que se dirigiam infalivelmente para ali, para o quarto andar, para a casa da velha. Por quê? Seriam assim tão especiais e significativas aquelas passadas? Eram pesadas, certas, calmas. E ele vinha já no primeiro andar e continuava subindo, cada vez se ouvia melhor, cada vez se ouvia melhor! Sentia-se a respiração pesada do visitante. Começava já a subir o lance do terceiro andar... Ah! E, de súbito, pareceu-lhe que ficava petrificado como se aquilo fosse um sonho daqueles em que nos atacam de perto e nos querem matar e parece que estamos pregados ao chão e que nem um braço podemos mexer...

Até que, finalmente, quando o visitante estava já prestes a chegar ao quarto andar, ele estremeceu todo, de repente, e então recuou rápida e destramente do patamar e fechou a porta atrás de si. Depois pegou no trinco e correu-o devagarinho, sem fazer barulho. Valeu-lhe o instinto. Depois de ter feito isso, escondeu-se, sem respirar, acocorando-se junto da porta! O visitante desconhecido já ali estava. Encontravam-se agora os dois, um perto do outro, como ele estivera antes em relação à velha, quando a porta os separava e escutava de ouvido alerta.

O visitante respirou várias vezes afanosamente.

"Deve ser gordo e alto." De fato, tudo aquilo parecia um pesadelo. O visitante puxou pela campainha e chamou com força.

Ainda mal o som fraco da campainha soara e lhe pareceu, de súbito, que alguém se movia na sala. Ficou escutando atento, durante uns segundos.

o desconhecido tornou a chamar, esperou um momentinho e, de repente, impaciente, pôs-se a sacudir o puxador da porta com todas as suas forças. Raskólhnikov via com espanto o trinco saltar na corrediça e esperava com um medo estúpido que ele corresse, sozinho, de um momento para o outro. De fato isso parecia possível, tal era a maneira como balançavam a porta. Lembrou-se de segurar o fecho com a mão; mas o outro podia adivinhar. Sentia que perdia a cabeça, que ela lhe andava às voltas, como antes. "Estou encurralado!", pensou; mas o desconhecido começou a falar e ele reanimou-se imediatamente.

- Mas estarão elas dormindo ou tê-las-iam morto? Malditas! - exclamou, como no fundo de um poço. - Eh, Àlíona Ivânovna, velha bruxa! Lisavieta Ivânovna, beldade sem-par! Abram! Mas vocês estão dormindo, malditas?

E, furioso, pôs-se outra vez a puxar pela campainha, dez vezes seguidas. Não havia dúvida de que era algum homem com autoridade e familiar naquela casa.

Nesse mesmo momento ouviram-se uns passos miúdos, leves, perto dali, na escada. Alguém se aproximava. A princípio, Raskólhnikov nem sequer os ouviu.

- Não estará ninguém? - exclamou ruidosa e alegremente o recém-chegado, dirigindo-se ao primeiro visitante que continuava ainda puxando pela campainha. - Boa noite, Kotch!

"A julgar pela voz deve ser muito novo", pensou Raskólhnikov, de repente. - Não sei que diabo vem a ser isto; por um pouco que não dava cabo da fechadura - respondeu Kotch. - Mas como é que sabes o meu nome? - Essa é boa! Pois se há três dias jogamos juntos três partidas seguidas de bilhar, em casa de Gambrinus! (2)

- Ah... ah... ah...!

- Com que então não estão?! É estranho. Além disso é uma estupidez horrível. Onde hei de encontrar a velha? Precisava de tratar um assunto com ela.

- E eu também!

- Bem. Que se há de fazer? Temos de bater em retirada! Ah... ah! E eu que contava já com o dinheiro! - exclamou o rapaz.

- É claro que temos de nos ir embora; mas então para que marcou ela uma hora? Foi ela mesma, a velha bruxa, que me marcou esta hora. E da minha casa até aqui ainda é uma estirada. Também não percebo aonde teria ela ido! Todo o ano metida em casa, o diabo da velha, a resmungar e a dizer que lhe doem os pés, e de repente some e vai para a paródia!

- E se perguntássemos ao porteiro?

 

* (2) Espécie de cervejaria de estilo alemão, casa de pasto e local para encontros e bate-papos entre homens, com uma sala adjacente para o jogo de bilhar, muito em voga na época. (N. do T.) *

 

- O quê?

- Aonde é que ela foi e quando volta.

- Hum! ó diabo... Perguntar... Mas se ela nunca sai! - e tornou outra vez a sacudir a fechadura. - Que diabo, não temos outro remédio senão irmo-nos embora!

- Espere! - exclamou o rapaz de repente. - Olhe, não vê como a porta cede quando é sacudida?

- E então?

- Isso quer dizer que não têm a chave posta e apenas o fecho corrido! Não sente ranger o fecho? E para ter o fecho corrido é preciso estar em casa, compreende? Donde se conclui que estão em casa mas não querem mais abrir.

- O quê? Isso é possível! - objetou Kotch, admirado. - Com que então estão lá dentro? - e tornou a balançar a porta.

- Espere! - tornou a exclamar o rapaz. - Não puxe dessa maneira! Repare, aqui há qualquer coisa de estranho... O senhor chamou, abanou a porta... e não lhe abrem, o que quer dizer: ou que elas desmaiaram, ou que... - Que o quê?

- Olhe, vamos ter com o porteiro; pode ser que ele as faça despertar. - É verdade! - e deslizaram ambos pelas escadas abaixo.

- Espere! Fique aí enquanto eu vou lá embaixo na portaria. - Mas por que hei de eu ficar?

- Pelo sim, pelo não! - Bem então...

- Olhe, eu ando preparando-me para juiz de instrução! É evidente, e... vi... den... te... que aqui há qualquer coisa de estranho! - gritou-lhe o rapaz com veemência, e pôs-se a correr desabaladamente pelas escadas abaixo.

Kotch ficou em cima, tornou a puxar a campainha, suavemente, e esta deu um toque; depois, devagarinho, como se refletisse e usasse de prudência, pôs-se a sacudir o puxador da porta, sacudindo-a de um lado para o outro, como se quisesse certificar-se bem de que só tinha o fecho corrido. Depois, resfolegando, agachou-se e pôs-se a olhar pelo buraco da fechadura; mas a chave estava posta por dentro, de maneira que não podia ver nada.

Raskólhnikov estava de pé e de machada em riste, quase delirando. Via-se já a atacá-los também quando entrassem. Enquanto eles chamavam à porta e conversavam, por mais de uma vez lhe ocorreu a idéia de sair, de repente, e de acabar com todos de uma vez ou interpelá-los da parte de dentro. De vez em quando sentia impulsos de pôr-se a insultá-los e a discutir com eles assim que abrissem. "Era como isto acabava mais depressa!", foi o pensamento que lhe atravessou a mente.

O tempo passava; um minuto, outro... Ninguém aparecia. Kotch começou a remexer-se.

- No fim de contas... - exclamou de repente, com impaciência, deixando o seu serviço de sentinela.

Correu pelas escadas abaixo, de roldão, e fazendo um grande barulho com as botas. Depois as passadas cessaram.

"Meu Deus, que hei de fazer?"

Raskólhnikov correu o fecho, entreabriu a porta, verificou que não se ouvia nada, e, de repente, sem se demorar a pensar, saiu, fechou outra vez a porta atrás de si o melhor que pôde e correu pelas escadas abaixo. Já tinha descido três lances, quando, de repente, percebeu um grande alvoroço lá mais embaixo... Onde esconder-se? Era impossível esconder-se em qualquer parte. Apressou-se a retroceder para o andar.

- Eh, esse sátiro, esse demônio! Apanhem-no! - Dando um grito, alguém saiu de qualquer andar, e não corria, mas parecia precipitar-se pela escada, gritando a plenos pulmões:

- Mitka! Mitka! Mitka! Mitka! Vai para o diabo... que te carregue! O grito acabou em alarido; os últimos ruídos ouviram-se já no pátio; depois tudo ficou em silêncio. Mas nesse momento, alguns homens, falando em voz forte e alta, começaram a subir a escada no meio de grande alvoroço. Distinguiu a voz vibrante do rapaz: eram eles!

Completamente desesperado, foi e saiu-lhes diretamente ao encontro. "Seja! Se me apanham, está tudo perdido; se me deixam passar tudo está perdido também; hão de lembrar-se de mim." Estavam prestes a chegar; entre eles e Raskólhnikov havia apenas um lance de escada... E, de repente, a salvação! Alguns degraus mais abaixo, à direita, havia um andar por alugar e com a porta aberta de par em par, aquele mesmo quarto no qual os pintores tinham estado trabalhando, os quais, como de propósito, já se tinham ido embora. Deviam ter sido eles que acabavam de sair naquela gritaria. O chão parecia recém-pintado, no meio do quarto via-se um pequeno balde, ao lado uma vasilha com tinta e uma brocha grossa. Esgueirou-se num ápice pela porta aberta e acocorou-se contra a parede: já era tempo; os outros chegavam já ao patamar; depois tornejaram e passaram de largo para o quarto andar, falando alto. Ele esperou, saiu nas pontas dos pés e deitou a correr pelas escadas abaixo.

Ninguém na escada! Na porta-cocheira, também não. Atravessou-a rapidamente e voltou à esquerda para a rua.

Sabia muito bem, perfeitamente que, naquele instante, teriam já chegado ao andar, que haviam de ficar muito admirados ao ver que a porta estava aberta, quando um momento antes ainda estava fechada, que já deviam ter visto os cadáveres e que não tardariam a adivinhar e a supor claramente que o assassino estivera ali um momento antes e não devia ter feito mais do que esconder-se em qualquer lugar, deslizar próximo deles e escapar-se; haviam de compreender também que devia ter-se escondido no quarto vazio, nele ficando até que eles tivessem chegado lá acima. Entretanto, não se atrevia de maneira nenhuma a acelerar o passo, embora lhe faltassem ainda cem desde ali até a primeira embocadura: "Não faria bem em esconder-me debaixo de alguma porta-cocheira e esperar na escada de alguma casa desconhecida? Bolas, não! E largar a machada em qualquer parte? E tomar uma carruagem? Pior, pior!" Os seus pensamentos confundiam-se. Até que finalmente encontrou uma travessa; meteu-se por ela, meio morto; compreendia agora que já estava quase salvo, aí se tornava menos suspeito e, além disso, havia muita gente e ele perdia-se no meio daquele rebuliço como uma agulha em palheiro. Mas todas essas comoções esgotaram a tal ponto as suas forças, que mal podia dar um passo. O suor caía-lhe em bica; tinha o pescoço empapado.

- Meteste-te em boa! - gritou alguém junto dele quando ia saindo ao canal. Naquele momento não tinha a cabeça muito firme; quanto mais avançava, tanto pior. Voltou completamente a si, quando, de repente, che gando junto do canal, se assustou ao ver que havia ali pouca gente, de maneira que quase retrocedera para a ruela. Agora pouco lhe faltava para cair de cansaço; deu uma volta e foi ter a sua casa por um caminho completamente diferente.

Chegou a casa sem estar ainda em seu juízo perfeito; pelo menos ia já pelas escadas acima quando se lembrou da machada. E, no entanto, restava-lhe ainda por resolver uma questão gravíssima: a de tornar a devolvê-la e a colocá-la no seu lugar, sem que dessem por isso. Não havia dúvida de que já não tinha forças para pensar que o melhor teria sido não colocar a machada no seu lugar anterior, mas ir deixá-la, ainda que fosse depois, no pátio de qualquer outra casa.

Mas correu-lhe tudo às mil maravilhas. A entrada da portaria estava fechada, mas não a chave, e o mais provável era que o porteiro estivesse em casa. Mas perdera a tal ponto a capacidade de raciocinar, que foi direito à porta e abriu-a. Se o porteiro lhe tivesse perguntado naquele momento: "Que deseja?", pode ser que tivesse pegado a machada e lha tivesse dado. Mas o porteiro não estava e ele pôde colocar a machada no seu lugar anterior, debaixo do banco; até a cobriu com lenha, como estava antes. Depois não encontrou viva alma até chegar ao seu quarto; a porta da senhoria estava fechada. Quando entrou no quarto atirou-se para cima do divã, tal como estava. Não dormia, mas afundou-se num torpor. Se alguém tivesse entrado então no seu quarto, teria imediatamente dado um pulo e começado a gritar. Sombras e fragmentos de algo semelhante a idéias lhe atravessavam a mente; mas não pôde apreender nem uma única, nem uma só pôde deter, por mais esforços que fizesse...

 

 

Ficou assim estendido durante muito tempo. Sucedia que, às vezes, despertava um pouco e nesses momentos reparava que era já noite cerrada; mas não se lembrava de se levantar. Até que, por fim, notou que clareava já o novo dia. Estava deitado no divã, de rosto para cima, e ainda não se libertara da espécie de letargia que se apossara dele. Vindo da rua, chegava com força até ele um alarido enorme e tristonho, que, aliás, ouvia todas as noites junto da sua janela, às três horas. Também agora o despertavam: "Ah, são os bêbados que saem das tabernas", pensou. "Já são três horas." Súbito, deu um pulo, como se alguém o tivesse feito saltar do divã. "O quê?! Já três horas?!" Sentou-se no divã... e então se lembrou de tudo! De repente, num momento, lembrou-se de tudo!

No primeiro momento pensou que estava louco. Um frio tremendo se apoderou dele, um frio precursor da febre, que havia já alguns instantes sentira durante o sono. Agora, acometia-o também um tremor, os dentes parecia que iam saltar-lhe, e todo o seu corpo se agitava. Abriu a porta e apurou o ouvido; em casa estava tudo num sono profundo. Atônito, mirou-se a si próprio e passou o olhar por todo o quarto, sem compreender nada; como pudera ele entrar na noite anterior, sem ter fechado a porta no trinco e deitar-se no divã, não só vestido, como até de chapéu, o qual resvalara para o chão e ali estava caído, perto da almofada? "Se alguém tivesse entrado, que havia de pensar? Que eu estava embriagado, mas..." Assomou à janela, havia já bastante luz. A seguir pôs-se a examinar-se todo, dos pés à cabeça, todo o vestuário; não teria vestígios? Mas, assim, era impossível; tremia com os calafrios da febre, mas despiu-se e tornou a revistá-lo todo. Observou-o todo muito bem, fio por fio, dobra por dobra, e, desconfiando de si próprio, repetiu a operação por três vezes. Segundo parecia, não havia nada: somente naquele lugar em que as calças, embaixo, formavam um rebordo, já a desfiar, só nesse rebordo é que havia umas espessas manchas de sangue. Pegou uma grande faca dobrável e cortou aquela franja. Pelo menos aparentemente não havia mais manchas. De repente lembrou-se de que o porta-moedas e os objetos que tirara da arca da velha, tudo isso estava guardado no seu bolso. E ainda não se lembrara de tirá-los e de escondê-los! Não se lembrara deles, nem sequer quando, um momento antes, estivera revistando o traje. Como pudera esquecer-se assim! Tirou-os do bolso num instante e lançou-os para cima da mesa. Depois de ter despejado tudo ali e esvaziado os bolsos, para ficar seguro de que já não tinham mais nada, levou tudo para um canto do quarto. Nesse canto, embaixo, havia um lugar donde pendiam tiras de papel da parede do quarto. Escondeu imediatamente tudo nesse buraco, por debaixo do papel: "Já está! Tudo para lá e o porta-moedas também!", pensou com alegria, endireitando-se e olhando rapidamente para o cantinho onde se notava um volume. De repente murmurou, desolado:

- Mas que fiz eu? Estará aquilo escondido, porventura? É assim que se escondem as coisas?

Verdadeiramente, não contara com esses objetos; pensava que tudo se reduzia a dinheiro, e por isso não tinha previamente preparado nenhum lugar. "Mas, agora, agora, por que hei de estar contente?", pensou. "Pode chamar-se a isto esconder? Não há dúvida de que perdi o juízo!" Extenuado, estendeu-se no divã e imediatamente um insuportável tremor o acometeu de novo. Maquinalmente, puxou pelo seu sobretudo de inverno, de estudante, que estava dobrado em cima duma cadeira, embora já todo feito em tiras; cobriu-se com ele e o sono e a febre voltaram a apoderar-se dele. Adormeceu.

Passados cinco minutos tornou a levantar-se de um salto e, atônito, pôs-se a examinar outra vez o traje. "Como é que eu pude tornar a adormecer sem ter feito nada? Mas adormeci, adormeci e ainda nem desmanchei o nó corredio por debaixo da cava! Esqueci-me, esqueci-me disso! Seria um indício!" Tirou o nó e apressou-se a rasgá-lo em pedaços, que escondeu debaixo da almofada, juntando-os à roupa branca. "Tiras de roupa branca não devem levantar suspeitas; pelo menos é o que parece, o que parece!", repetiu de pé, no meio do quarto, e, com uma atenção intensa, quase dolorosa, tornou a passar os olhos à sua volta, sobre o chão e por todos os lados, com medo de que lhe tivesse esquecido qualquer coisa. A convicção de que tudo, até a memória, até o simples discernimento o tinham abandonado... começou a atormentá-lo de maneira insuportável. "Dar-se-á o caso de que comece, de que tenha começado já a expiação? Parece que sim, parece que sim, de fato!" Na verdade, os pedaços que arrancara das calças estavam ali caídos no chão, no meio do quarto, de maneira que qualquer pessoa que entrasse podia vê-los logo. "Mas que me aconteceu?", tornou a exclamar, alheado.

Então, uma idéia estranha lhe atravessou o pensamento: é que podia suceder que toda a peça estivesse manchada de sangue, que talvez tivesse até muitas manchas, mas que ele não as via, nem as notava, porque o seu discernimento estava enfraquecido, nublado... o raciocínio obnubilado... De súbito lembrou-se também de que havia ainda sangue no porta-moedas. "É claro! Tinha de ser, e no bolso também deve haver, pois meti nele o porta-moedas ainda úmido!" Revirou o forro do bolso num instante, e assim era: no forro havia vestígios, manchas. "Parece que ainda não perdi o juízo completamente; parece que ainda conservo o raciocínio e a memória, visto que pensei nisto e acertei", pensou triunfante, respirando profundamente e com gosto, a plenos pulmões; "trata-se simplesmente da fraqueza da febre, de um delírio momentâneo." E arrancou todo o forro do bolso esquerdo da calça. Nesse momento um raiozinho de sol iluminou-lhe a bota esquerda; na ponta que assomava, notavam-se vestígios. Tirou a bota. "De fato, há vestígios. A ponta da bota está toda manchada de sangue." Provavelmente pisara descuidadamente o charco... "Mas que hei de fazer agora de tudo isto? Para onde atirar esta biqueira, esta franja e o pano do bolso?"

Amarrotou tudo isso na mão e ficou de pé, no meio do quarto. "Para o fogão? Mas o fogão será a primeira coisa que hão de ir ver. Queimá-los? Sim, mas com quê? Nem sequer tenho fósforos! Não, o melhor é sair e atirar tudo para qualquer lugar. Sim, é o melhor!", repetiu, tornando a sentar-se no divã. "E imediatamente, agora mesmo, sem perder um minuto..." Mas, em vez disso, a sua cabeça voltou a reclinar-se na almofada; outra vez o acometeu um tremor insuportável; tornou a embrulhar-se no sobretudo. E essa idéia de ir "agora mesmo, sem perder tempo, por aí, a algum lugar, para desvencilhar-me de tudo isso, a fim de me fazer desaparecer da vista de toda a gente o mais depressa possível, o mais depressa possível" tornou a acometê-lo de instante a instante, ainda durante muito tempo, durante algumas horas. Saltou várias vezes do divã, tentou levantar-se, mas já não podia. Até que finalmente veio despertá-lo um forte soco dado na porta.

- Vamos, abre! Estás vivo ou morto? Não fazes mais nada senão dormir! - gritava Nastássia, batendo com os punhos na porta. - Todo o santo dia dormindo como um cão! És um cão! Abres ou não abres? Já são onze!

- Pode ser que não esteja em casa - disse uma voz de homem. "Ora! É a voz do porteiro... Que virá ele fazer aqui?" Ergueu-se bruscamente e sentou-se no divã. O coração palpitava com tal violência que até o incomodava.

- Deve ter o trinco corrido - insinuou Nastássia. - Agora dá-lhe para se fechar! Terá medo que o raptem? Abre, homem, acorda!

"Que querem eles de mim? Por que virá o porteiro? Já se vai ver! Abro ou recuso-me? Caí no laço..."

Endireitou-se, inclinou-se para a frente e abriu o ferrolho.

Todo o seu quarto era tão pequeno que podia abrir o ferrolho sem levantar-se completamente do divã.

Tinha adivinhado: eram o porteiro e Nastássia.

Nastássia olhou-o de uma maneira estranha. Olhou para o porteiro com uma expressão de desafio desesperado. Este lhe estendeu em silêncio um papelzinho cinzento, dobrado e selado com cera de garrafa.

- É uma citação do comissariado - disse ao entregar-lhe o papel. - De que comissariado?

- Comissariado da polícia, está visto. Já se sabe de que comissariado é que se trata.

- Da polícia? Mas por quê?

- Disso, não sei nada. Chamam-no e portanto tem de ir. Examinava o rapaz com atenção; olhou depois à sua volta e deu um passo para se retirar.

- Mas não estarás doente, a sério? - observou Nastássia sem tirar os olhos de cima dele. O porteiro voltou também a cabeça nesse momento. - Ontem teve febre - acrescentou ela.

Ele não respondeu e continuava com o papel nas mãos, sem o abrir. - Se estás, não te levantes - continuou Nastássia condoída, quando o viu tirar os pés do divã. - Se estás doente, não saias; não há de ser assim tanta pressa... Que tens aí nas mãos?

Ele olhou: tinha ainda na mão direita os pedaços do rebordo da calça, que cortara, e o forro do bolso, que arrancara também. Tinha adormecido com eles na mão. Depois, quando pensou nisso, lembrou-se de que, quando se amodorrou, por causa da febre, tivera isso fortemente apertado na mão, e voltara a adormecer assim.

- Olhe os farrapos que arrancou e como ficou dormindo com eles! E Nastássia riu-se com o seu risinho nervoso, doentio. Ele meteu tudo aquilo, num instante, debaixo do sobretudo, e fixou nela um olhar penetrante. Embora naquele momento não pudesse aperceber-se bem das coisas, sentia, no entanto, que não tratam assim uma pessoa quando vêm prendê-la. "Mas... a polícia!"

- Tomastes chá? Tu o queres ou não? Vou buscar-to, espera...

- Não, eu vou; vou agora mesmo - murmurou ele, levantando-se. - Mas se nem sequer podes descer a escada!

- Vou.

- Como quiseres.

Saiu atrás do porteiro. Observou imediatamente à luz a ponta da bota e a franja da calça. "Há uma pequena mancha, que mal se vê; está tudo sujo, esfiapado e desbotado. Quem não souber de nada... nada notará. Com certeza que Nastássia, de longe, não podia ter reparado em nada. Louvado seja Deus!" Depois, tremendo, rasgou o selo da citação e começou a lê-la; ficou a lê-la durante muito tempo, até que finalmente compreendeu. Era a costumada citação do comissariado da polícia distrital para que comparecesse nesse mesmo dia, às dez e meia, nas suas repartições.

"Para que será? Eu não tenho nenhum assunto pendente na polícia. E, além disso, por que há de ser hoje?", pensou com uma incerteza dolorosa. "Senhor, que seja quanto antes!"

Sentiu o impulso de prostrar-se de joelhos e de rezar; mas depois pôs-se a rir, não da reza, mas de si próprio. Começou a vestir-se às pressas. "Se me apanharem, apanharam, tanto me faz. Tenho de pôr esta bota", pensou de repente. "Sujo-a ainda mais com o pó e todos os vestígios desaparecerão." Mas, assim que a pôs, tornou a tirá-la, tomado de medo e de repugnância. Tirou-a; mas, lembrando-se de que não tinha outra, tornou a pô-la... E começou outra vez a rir. "Tudo isto é convencional, relativo; fórmulas apenas", pensou por um momento; foi apenas uma idéia rapidíssima, e todo o corpo lhe tremia. "Tenho de calçá-la. E há de ficar tudo por aqui!" Mas esse seu riso transformou-se depois em desolação.

"Não; não tenho coragem", disse para consigo mesmo. Os pés tremelicavam-lhe. "De medo", murmurou para si. A cabeça andava-lhe à roda e doía-lhe por causa da febre. "Isso é uma treta. Querem apanhar-me numa armadilha e depois demonstrarem-me tudo por surpresa", continuou dizendo para si, enquanto se dirigia para a escada. "É pena eu estar com febre... posso fazer qualquer disparate."

Mas na escada lembrou-se de que deixara todos aqueles objetos assim, daquela maneira, no buraco debaixo do papel, e podia suceder que na sua ausência dessem ali uma busca. Parou um momento a refletir. Mas tal era o seu desespero e, por assim dizer, tal cinismo veio apoderar-se dele de repente, perante a idéia da sua perdição, que fez um gesto de indiferença com a mão e continuou o seu caminho.

"Contanto que seja já!"

Mas na rua havia outra vez um calor insuportável; nem uma gota de chuva durante todos aqueles dias. Outra vez o pó, os tijolos e a argamassa; outra vez o mau cheiro das lojas e tabernas; outra vez os ébrios a cada passo, os moços de esquina finlandeses e as carruagens meio desconjuntadas. O sol feria-lhe os olhos, de maneira que lhe era doloroso olhar, e tinha a cabeça completamente tonta: sensação costumada na pessoa febril, que sai de repente para a rua num dia de sol esplêndido.

Quando chegou à esquina da rua "da noite anterior", numa excitação dolorosa, lançou um olhar para "aquela casa"... mas desviou imediatamente a vista.

"Se me perguntarem, pode ser que diga", pensou, quando chegou ao comissariado.

Este acabava de se mudar para um novo local, para uma nova casa, num quarto andar. Já estivera uma vez no local anterior; mas isso fora já há muito tempo. Quando atravessou a porta, viu uma escada à direita, pela qual descia um camponês com um livrinho na mão. "Deve ser o porteiro, com certeza; deve estar no comissariado." E subiu as escadas. Não queria perguntar absolutamente nada a ninguém.

"Entro, ponho-me de joelhos e contarei tudo...", pensou quando chegou ao quarto andar.

A escada era estreita, empinada e toda cheia de imundícies. As cozinhas de todas as casas dos quatro andares davam para a escada, e permaneciam com as portas escancaradas o dia inteiro. Por isso havia ali uma atmosfera horrível. Para cima e para baixo iam e vinham meirinhos com livros debaixo do braço, agentes da polícia e pessoas de um e outro sexo, visitantes. A porta do comissariado estava também aberta de par em par. Entrou e parou no corredor. Aí aguardavam, também de pé, alguns camponeses. Havia aí, igualmente, uma atmosfera pesadíssima, e, além disso, o cheiro da pintura ainda fresca, do andar pintado recentemente, entrava-lhe pelo nariz e dava-lhe náuseas. Depois de ter esperado um bocadinho, julgou conveniente avançar um pouco mais, até a sala seguinte. Todas as dependências eram pequenas e de teto baixo. Uma impaciência feroz atormentava-o cada vez mais. Mas ninguém reparava nele. Na segunda sala havia alguns empregados, que escreviam, sentados, e que estavam um pouco mais bem vestidos do que ele, mas com uma cara bastante estranha. Dirigiu-se a um deles.

- Que deseja?

Mostrou o boletim do comissariado.

- O senhor é estudante? - perguntou o empregado depois de ter lido a citação.

- Sim, ex-estudante.

O empregado olhou para ele, mas sem a mínima curiosidade. Era um indivíduo completamente desgrenhado e com um olhar fixo.

"Não deve saber nada disto, porque, para ele, tudo lhe é indiferente", pensou Raskólhnikov.

- Dirija-se ali, ao secretário - disse-lhe o homem, e estendeu um dedo indicando-lhe a sala seguinte.

Penetrou nessa sala (que era já a quarta), onde se viam umas pessoas mais bem vestidas do que as das outras saletas. Entre os visitantes havia duas senhoras. Uma, de luto, pobremente vestida, estava sentada junto duma mesa, em frente do secretário, e escrevia qualquer coisa que lhe ditavam. A outra, muito gorda e de cara corada e sardenta, mulher vistosa e um tanto ou quanto espalhafatosamente vestida, com um broche do tamanho dum pires de chávena de chá no peito, estava de pé, a um lado, e parecia esperar. Raskólhnikov apresentou a sua papeleta ao secretário, que lhe lançou uma olhadela e disse: "Queira esperar". E continuou a atender a senhora de luto.

Ele respirou mais livremente. "Com certeza que não é por causa daquilo." Pouco a pouco começou a cobrar ânimo; esforçou-se o mais possível por não se desencorajar e manter serenidade.

"Alguma tolice, a mais leve imprudência, e posso deitar tudo a perder. Hum! É pena que aqui falte o ar", acrescentou, "o ar... A cabeça continua a andar-me à roda... e o juízo também."

Sentia que todo o seu ser estava horrivelmente transtornado. Tinha medo de não poder dominar-se. Esforçava-se por agarrar-se a qualquer coisa e pensar em algo completamente secundário, mas estava muito longe de consegui-lo. Aliás, o secretário interessava-o muito; esforçava-se por adivinhar qualquer coisa acerca dele, deduzindo-o da sua cara, como se quisesse tomar-lhe o gosto de antemão. Era um homem ainda muito novo, de uns vinte e dois anos, embora a sua cara morena e animada o fizesse parecer de mais idade, vestido à moda com certa elegância, com o risco do cabelo até a nuca, muito frisado e untado, com uma enorme quantidade de anéis nos dedos brancos e delicadíssimos, e correntinha de ouro no colete. Trocara também duas ou três palavras num francês muito aceitável com um estrangeiro que ali estava.

- Sente-se, Luísa Ivânovna, sente-se - disse para a senhora do vestido espalhafatoso e de cara corada e sardenta, a qual continuava de pé, como se não se atrevesse a sentar-se, apesar da fila de cadeiras que ali havia.

- Ich danke (1) - respondeu ela, e, devagarinho, sem fazer barulho, deixou-se cair sobre uma cadeira. O seu vestido, azul-celeste, com uma sobre-saia de renda branca, que parecia um balão cheio de ar, afofou-se em volta da cadeira, enchendo quase meia sala. Espalhou-se pelo ar uma lufada de perfume. Mas era evidente que a dama lamentava apanhar metade da sala e exalar uma tal baforada, embora sorrisse tímida e descaradamente ao mesmo tempo, mas com visível inquietação.

A senhora de luto acabou, finalmente, e preparou-se para levantar-se. De repente entrou um oficial, com um certo barulho, muito fanfarrão e movendo os ombros a cada passo; deixou o gorro de roseta em cima da mesa e sentou-se num cadeirão. A dama vistosa levantou-se de um salto assim que o viu e fez-lhe uma reverência com uma certa solenidade especial; mas o oficial não lhe deu a mínima atenção, e ela já não se atreveu a sentar-se na sua presença. Era o ajudante do comissário do distrito, e tinha uns compridos bigodes ruivos, que se esticavam horizontalmente dos dois lados, e umas feições muito finas, mas afinal sem nada de particular, se não falarmos num certo ar de superioridade indescritível. Olhou de soslaio e mal-humorado para Raskólhnikov; o seu traje, só por si, era já bastante repugnante, mas, apesar da sua humildade, não parecia de acordo com a sua indumentária; por inadvertência, Raskólhnikov pôs-se a olhá-lo de frente e durante muito tempo, o que acabou por ofendê-lo.

- Que desejas? - gritou-lhe, com certeza admirado de que semelhante maltrapilho não pensasse sequer em desviar os olhos dele, perante o seu olhar fulminante.

- Fui chamado... com uma papeleta - respondeu Raskólhnikov conforme pôde.

- É o caso do "estudante", por causa de uma reclamação de dinheiro - apressou-se a dizer o secretário, deixando por um momento a sua papelada. - Olhe - e mostrou uma pequena caderneta a Raskólhnikov, apontando-lhe um ponto determinado.

- Leia!

"Dinheiro? Que dinheiro?", pensou Raskólhnikov. "Mas... certamente não devia tratar-se daquilo..." Estremeceu de alegria. De repente sentiu um alívio, um peso saía de cima do seu peito.

- Mas a que hora foi o senhor citado? - gritou o tenente, cada vez mais ofendido e sem saber por quê. - Disseram-lhe às dez e já são onze.

 

* (1) "Muito obrigada", em alemão. (N. do T.) *

 

- Há um quarto de hora que me entregaram a citação - respondeu Raskólhnikov em voz alta e forte, também de repente e inesperadamente, acalorando-se e sentindo até uma certa satisfação. - Muito fiz eu em vir, doente como estou, cheio de febre.

- Faça o favor de não gritar!

- Eu não grito; eu estou falando com uma voz tranqüila; o senhor é quem está gritando; e eu sou estudante e não consinto que me gritem. O ajudante ficou tão furioso com aquilo que, no primeiro momento, não pôde dizer nada, e apenas alguns perdigotos lhe saíam dos lábios. De um pulo, levantou-se do seu lugar.

- Faça favor de se ca... lar! Está no comissariado! Não seria mal... criado! - Também o senhor está sendo - gritou Raskólhnikov -, e, além de gritar, fuma; isto é, falta ao respeito a toda a gente - e, depois de tudo isso, Raskólhnikov sentiu um prazer enorme.

O secretário olhava para ele e sorria. O fogoso oficial estava visivelmente desconcertado.

- Isso não é da sua conta! - gritou, finalmente, com uma voz exageradamente forte. - Faça mas é o favor de prestar a declaração que lhe pedem. Faça favor, Alieksandr Grigórievitch. Peço-lhe desculpa. O devedor não paga e ainda por cima se põe com bazófias!

Mas Raskólhnikov já não o escutava e pôs-se avidamente a ler o documento, procurando o mais depressa possível a solução do enigma. Leu-o uma vez e outra; mas não o compreendia.

- Que quer dizer isto? - perguntou ao secretário.

- Quer dizer que lhe reclamam o dinheiro que deve; é uma reclamação. O senhor fica obrigado a pagar essa quantia, com todas as custas e demais despesas, ou a declarar por escrito quando poderá pagar, e comprometen do-se ao mesmo tempo a não se ausentar da cidade enquanto não tiver satisfeito a dívida e a não vender nem ocultar os seus bens. Quanto ao credor, tem o direito de vender os referidos bens e de conduzir-se para consigo segundo as normas da lei.

- Mas se eu... se eu não devo nada a ninguém!

- Isso já não é conosco. A nós entregaram-nos uma letra de câmbio, cuja data já expirou, protestada, no valor de cento e quinze rublos, entregue pelo senhor à viúva do assessor do colégio, Zarnítsin, há nove meses, e apresentada a pagamento ao conselheiro da corte, Krebárov, pela referida viúva; chamamo-lo para obter a sua declaração.

- Mas trata-se da minha senhoria!

- E que tem que seja a sua senhoria?

O secretário olhou-o com um sorriso de desprezo e de dó e, ao mesmo tempo, com certo orgulho, como um novato que começara a aprender à sua custa o que é ser caloteiro. Parecia querer dizer:

"Hum?! Que te parece?" Mas que lhe importava a ele, agora, a letra de câmbio e a reclamação? Nada disso tinha agora interesse para ele, e nem sequer lhe merecia a mínima atenção. Estava de pé, lia, escutava, respondia, fazia até perguntas, mas tudo maquinalmente. O orgulho de ter escapado, de ver-se livre dos perigos recentes, eis o que absorvia nesse instante o seu ser, sem previsão, sem análise, sem futuros enigmas nem adivinhações, sem dúvidas nem interrogações. Era um momento de plena independência, de uma alegria puramente animal. Mas nesse momento sucedeu no comissariado qualquer coisa tão fulminante como a queda de um raio ou o estampido dum trovão. O tenente, ainda enfurecido por aquela falta de respeito, encolerizado e desejando, pelo visto, recuperar os esforços da sua periclitante altivez, lançou-se com toda a sua ira sobre a infeliz senhora espaventosa, que estivera a contemplá-lo desde que entrara, sem tirar os olhos de cima dele, com um sorriso muitíssimo estúpido.

- És tu, tu - gritou, de repente, com toda a força dos seus pulmões (a senhora de luto já tinha saído). - Podes dizer-me o que se passou ontem em tua casa? Ah! Outra vez dando escândalo e a ser a vergonha de toda

a rua? Outra vez brigas e bebedeiras? Estás interessada em que te mande para uma casa de correção? Pois eu já te disse, já avisei anteriormente por dez vezes que na próxima te poria as mãos em cima! E tu voltas outra vez à mesma!

Raskólhnikov até deixou cair o documento das mãos e ficou olhando para a vistosa senhora a quem ralhavam com tanta sem-cerimônia; mas não tardou a perceber do que se tratava, e depois toda essa história acabou por diverti-lo. Escutava com satisfação e até sentia vontade de rir, de rir... Tinha os nervos numa grande tensão...

- Iliá Pietróvitch - começou o secretário, solícito; mas deteve-se, para dar tempo, pois não era possível conter o enfurecido tenente senão pegando-lhe pela mão, conforme sabia por experiência própria.

Pelo que respeita à senhora vistosa, a princípio pôs-se a tremer perante aquela tempestade; mas, coisa estranha, quanto mais numerosos e violentos se iam tornando os insultos, tanto mais amável e sedutor se tornava o seu sorriso, voltada, como estava, para o iracundo tenente. Requebrava-se, sem no entanto sair do seu lugar, e desfazia-se em reverências, aguardando impaciente que, finalmente, acabassem por deixá-la falar em sua defesa.

- Não houve nenhum rebuliço nem nenhuma briga em minha casa, senhor capitão - exclamou, de súbito, atabalhoadamente e com um forte sotaque alemão, embora falasse russo correntemente -, e nenhum, abso lutamente nenhum escândalo. Simplesmente esse indivíduo apareceu embriagado, eu já lhe conto tudo, senhor capitão; mas eu não tenho a mínima culpa... A minha casa é uma casa decente, senhor capitão, onde toda a gente se porta como deve ser, senhor capitão; eu nunca gostei de escândalos. O que sucedeu foi que ele apareceu ali bêbado, e depois ainda pediu mais três "carrafas", e a seguir levantou um pé e pôs-se a tocar piano com ele;

ora, isso não está certo numa casa decente, deixou-me o piano todo derreado, isso não são maneiras, e então eu lho fiz notar. Ele então pegou uma "carrafa" e pôs-se a bater a toda a gente, com ela, por detrás. E chamei o porteiro e Karl apareceu; ele agarrou Karl e pôs-lhe um olho roxo, e a Henriette também lhe deixou um olho maltratado, e a mim deu-me cinco sopapos na cara. O que não é nada delicado, tratando-se de uma casa decente, senhor capitão, e foi isso o que eu lhe fiz ver. Ele, então, abriu os fechos da janela e pôs-se aí a grunhir como um porquinho, de tal maneira que até era uma vergonha ouvi-lo. Então está certo, isso de pôr-se a grunhir como um porco, à janela que dá para a rua? Quim! Quim! Quim! Karl agarrou-o pelas abas do fraque e tirou-o da janela, e bem, lá isso é verdade, rasgou-lhe uma das abas. Depois ele se pôs a dizer em altos gritos que man muss straff (2), que tinha que ser-lhe pago o seu fraque. É um indivíduo pouco correto, senhor capitão, que só sabe armar escândalos. "Eu", disse-me ele, "posso dar-lhe uma surra publicamente, ao senhor, porque escrevo em todos os jornais."

- Isso quer dizer que é literato...

- Sim, senhor capitão, mas é um indivíduo muito pouco correto, senhor capitão, e não sabe respeitar uma casa decente...

- Bom, bom. Já chega! Eu já te disse, eu já te disse, eu já te disse... - Iliá Pietróvitch! - tornou a dizer o secretário com uma expressão significativa. O tenente lançou-lhe um olhar rápido; o secretário fez-lhe um leve sinal com a cabeça.

- Bem, pois, minha respeitável Lavisa Ivânovna, pela última vez te aviso, pela última - continuou a dizer o tenente -, que, se na tua decente casa tornar a dar-se outro escândalo, serei eu próprio que te farei entrar na linha, como se costuma dizer em linguagem poética. Ouviste? Mas um literato, um escritor ser capaz de aceitar, numa casa decente, cinco rublos de prata pelas abas dum fraque... Esses tipos sempre são duma força! - e deitou o olhar de desprezo a Raskólhnikov. - Há três dias, numa tasca, foi a mesma história: um desses literatos comeu e depois se negou a pagar: "Olhe que posso dar-lhe uma sova nos jornais". Outro também, a semana passada, num barco, ofendeu a respeitável família dum conselheiro de Estado com as piores palavras. Ainda não há muito tempo que tiveram de expulsar vergonhosamente outro desses literatos de uma pastelaria. Por aqui já se vê de que classe são esses escritores, literatos, estudantes, esses insolentes. Ufa! Bem, podes sair! Ficas sob os meus olhos. Por isso tem cuidado. Ouvistes?

Luísa Ivânovna pôs-se a fazer reverências para a direita e para a esquerda, com uma amabilidade solícita, e dirigiu-se para a porta sem deixar de fazê-las;

 

* (2) "Tem que ser punido", em alemão. (N. do T) *

 

aí deparou um altivo oficial de cara franca e fresca, com umas suíças loiras, magníficas, fartas. Era Nikodim Fomitch, o comissário da polícia do distrito. Luísa Ivânovna apressou-se a fazer-lhe uma reverência quase até o chão e saiu com uns passinhos miúdos e saltitantes.

- Outra vez rebuliço, outra vez raios e coriscos, ciclones e furacões - disse Nikodim Fomitch, dirigindo-se, amável e amistosamente, a Iliá Pietróvitch -, outra vez retraído, outra vez encolerizado. Já te ouvia na escada.

- O quê? - exclamou Iliá Pietróvitch com indolência bonacheirona (e nem sequer disse "o quê!", mas "o... quê"), mudando-se com alguns papéis para outra mesa e agitando os ombros, enquanto andava, de uma maneira pitoresca, movendo unicamente os pés e os ombros. - Faça o favor de ver isto, quero dizer, o senhor literato, isto é, estudante, isto é, ex-estudante, não quer pagar o dinheiro que deve; assinou uma letra, nunca mais paga o quarto, recebemos constantemente queixas contra ele e até se permitiu chamar-me a atenção por eu estar fumando na sua presença. Mas olhe para ele: aí o tem, em toda a sua apresentação deslumbrante.

- A pobreza não é nenhuma vergonha, meu caro; mas, enfim, já sabemos que tu és como a pólvora, não podes suportar uma ofensa. Naturalmente, naturalmente o senhor ofendeu-o em qualquer coisa e ele não pôde conter-se - continuou Nikodim Fomitch. - Mas o senhor não teve razão: é o me... lhor dos homens deste mundo, simplesmente é como a pólvora, como a pólvora. Inflama-se, ferve, crepita e... nada! Já passou tudo! Em resumo, é um coração de ouro. No regimento lhe chamavam o tenente Pórokhov... (3)

- Esse também era um regimento... - exclamou Iliá Pietróvitch, muito contente porque o tratassem com tanto carinho, mas ainda não completamente apaziguado.

Raskólhnikov sentiu, de repente, o impulso de dizer-lhe qualquer coisa de extraordinariamente lisonjeador.

- Dê-me licença, capitão - começou num tom à vontade, encarando Nikodim Fomitch -, ponha-se no meu caso... Eu estou disposto a apresentar-lhe as minhas desculpas se o ofendi em alguma coisa. Eu sou um estudante pobre e doente, decaído (disse assim mesmo, decaído) por causa da miséria. Interrompi os estudos porque, agora, não tenho com que sustentar-me; mas em breve receberei dinheiro... Tenho mãe e uma irmã em... No governo de... Hão de mandar-me dinheiro e eu então pagarei. A minha senhoria é uma boa mulher; mas ficou tão aborrecida quando viu que eu perdera as minhas lições e havia já quatro meses que não lhe pagava, que até deixou de me dar de comer... Mas, quanto a essa letra, não compreendo absolutamente nada. Agora ela me exige que lhe pague por meio dessa promissória. Os senhores avaliem...

 

* (3) Literalmente: explosivo, violento. De pórokh, pólvora. (N. do T.) *

 

- Mas isso não é da nossa competência - tornou a observar o secretário.

- Dê-me licença, dê-me licença, eu estou absolutamente de acordo com o senhor, a esse respeito; mas, no entanto, dê-me licença que me explique - insistiu Raskólhnikov, dirigindo-se não ao secretário mas a Nikodim Fomitch, embora esforçando-se também por dirigir-se ao mesmo tempo a Iliá Pietróvitch, ainda que este aparentasse estar exclusivamente atendendo à sua papelada e se esforçasse depreciativamente por não olhar para ele. - Dê-me licença também que eu, pelo meu lado, lhe explique que vivo nessa casa já quase há três anos, desde que vim da província, e que antes disto, antes disto... aliás, não sei por que não hei de dizê-lo também, tinha prometido casar com uma filha dela, promessa verbal, sem nenhum compromisso... tratava-se de uma moça... bem, não me desagradava, embora eu não estivesse apaixonado por ela; enfim, coisas da mocidade; quero dizer, a senhoria tinha-me concedido muito crédito, e eu, em parte, levava uma vida... Eu fui muito estouvado...

- Ninguém lhe pediu que entrasse em tais intimidades, e, além disso, não temos tempo para escutá-lo - interrompeu Iliá Pietróvitch, grosseiramente e com ar altivo; mas Raskólhnikov interrompeu-o impetuosamente, apesar de lhe custar muito falar.

- Mas dê-me licença, dê-me licença, ao menos, que lhe conte tudo... Como é que isso sucedeu e... por minha vez... embora, no fim de contas, concorde consigo em que é inútil contar seja o que for; mas, há um ano, essa moça morreu de tifo, e eu continuei ali como hóspede, tal como antes, e a senhoria, quando eu me mudei para o quarto que agora ocupo, disse-me ... disse-me amigavelmente... que tinha toda a confiança em mim e que tudo... mas que devia dar-lhe uma letra de cento e quinze rublos, que era, segundo ela dizia, a importância da minha dívida. Dê-me licença: ela me disse concretamente que, desde que eu lhe desse esse documento, continuaria a fiar-me tudo o que eu quisesse e que "nunca", "nunca" - foram essas as suas próprias palavras - faria uso da referida letra, até que eu lhe pagasse... E veja: agora que eu já não tenho lições nem de comer é que ela vai e apresenta essa demanda contra mim... Que hei de eu dizer-lhe?

- Todos esses pormenores são lamentáveis, senhor; mas não são da nossa conta - disse Iliá Pietróvitch secamente. - O senhor é obrigado a assinar a sua declaração, comprometendo-se a pagar; mas tudo isso que se dignou contar-nos, a respeito do seu namoro e todas essas coisas trágicas, nos é completamente indiferente.

- Estás sendo... cruel - resmungou Nikodim Fomitch, sentando-se à sua mesa e pondo-se também a garatujar. Parecia envergonhado.

- Escreva - disse o secretário para Raskólhnikov. - Mas o quê? - perguntou ele com mau modo. - O que eu ditar.

Parecia a Raskólhnikov que o secretário o tratava agora com menos delicadeza e desdém do que antes de se ter posto com aquela explicação; mas, coisa estranha, de repente sentiu que lhe era indiferente a opinião que pudessem formar dele, e essa mudança operou-se num instante, num minuto. Se tivesse reconsiderado um pouco, ter-se-ia admirado, sem dúvida, de um momento antes ter podido falar daquela maneira e de tê-los posto até a par dos seus sentimentos. Mas onde teria ele ido buscar esses sentimentos? Agora, pelo contrário, se aquela sala estivesse cheia, não de comissários, mas dos seus mais íntimos amigos, não teria tido para eles nem uma só palavra humana, tal era o vazio que, de súbito, se apoderara do seu coração. Uma impressão mortal de torturante, infinita solidão e alheamento se revelava subitamente à sua consciência. Não era o pudor das suas efusões cordiais com Iliá Pietróvitch, nem a soberba com que o tenente o tratara que perturbavam assim tão inesperadamente o seu espírito. Oh, que lhe importavam a ele, agora, as baixezas pessoais, todas essas soberbas, todos os tenentes, os alemães, as reclamações, o comissariado etc. etc. Se o tivessem condenado a ser queimado vivo naquele momento, não se teria perturbado, e, quando muito, teria escutado a sentença com atenção. Não que compreendesse, mas é que sentia claramente, com toda a sua sensibilidade, que não só não devia ter demonstrações sentimentais como a de há pouco, nem de gênero algum, com aquela gente do comissariado, e que, mesmo que se tratasse de irmãos seus e não de tenentes da polícia, até nesse caso não devia empregá-las, em nenhuma circunstância da sua vida as devia ter; até então nunca experimentara uma sensação tão estranha e incompreensível. E o mais doloroso de tudo... era mais precisamente a sensação que o seu reconhecimento, que a sua compreensão: sensação singular, a mais dolorosa de todas as que experimentara até ali na sua vida.

O secretário começou a ditar-lhe a sua declaração, nos termos do costume, isto é, que não podia pagar; mas que se comprometia a fazê-lo em tal data (uma qualquer), dava a sua palavra de que não se ausentaria da capital, até então, e comprometia-se também a não vender as suas coisas nem a oferecê-las a ninguém etc. etc.

- O senhor não pode escrever, a pena escorrega-lhe das mãos - observou o secretário, olhando para Raskólhnikov com curiosidade. - Está doente? - Sim... Tenho a cabeça tonta... Continue ditando.

- Já está tudo certo; assine.

O secretário pegou o documento e foi atender outras pessoas. Raskólhnikov largou a pena; mas, em vez de se levantar, de se retirar, apoiou os cotovelos sobre a mesa e segurou a testa com as mãos. Parecia exatamente que lhe tinham dado uma martelada na cabeça.

Um estranho pensamento lhe ocorreu de repente: levantar-se imediatamente, aproximar-se de Nikodim Fomitch e contar-lhe tudo o que se passara na noite anterior, tudo, até o mais ínfimo pormenor, e depois levá-lo consigo ao seu quarto e mostrar-lhe todos os objetos que tinha escondidos num canto, naquele buraco. Essa idéia era tão poderosa que chegou até a levantar-se do seu lugar para ir pô-la em prática. "Não estará certo pensá-lo, ainda que seja só por um minuto?", proferiu mentalmente. "não; o melhor é não pensar e deitar este fardo para trás dos ombros." Mas, de repente, parou como se tivesse ficado pregado no seu lugar; Nikodim Fomitch falava acaloradamente com Iliá Pietróvitch, e até lhe chegaram ainda estas palavras:

- Não é possível; serão os dois postos em liberdade. Em primeiro lugar, há muitas contradições; ora veja: para que haviam de ir chamar o porteiro, se fossem eles os autores da façanha? Para se denunciarem a si próprios? Que fizeram isso por manha? Não, seria astúcia demasiada. E, finalmente, o estudante, o estudante Piestriakov foi visto à porta por dois porteiros e por uma mulher, no momento em que entrava; ia em companhia de três amigos e separou-se deles nessa porta, perguntou pela inquilina na portaria, também em presença dos amigos. Teria perguntado pela inquilina se tivesse essa intenção? Quanto a Kotch, antes de subir para ir ter com a velha, esteve lá embaixo meia hora em casa do ourives e deixou-o às oito menos um quarto em ponto, para subir até lá. Já podes fazer uma idéia...

- Mas dê-me licença: como é que caíram em tantas contradições? Eles próprios afirmam que chamaram à porta e que ela estava fechada, e que três minutos depois, quando tornaram a subir com o porteiro, encontraram já a porta aberta.

- Aí, precisamente, é que está a comédia; o assassino fatalmente estava lá dentro, com a porta fechada no trinco; e tê-lo-iam apanhado aí, infalivelmente, se Kotch não tivesse feito o disparate de ir ele também à procura do porteiro. Entretanto, o outro teve tempo de deslizar pelas escadas e de escapulir-se lindamente nas barbas deles. Kotch benze-se, com as duas mãos: "Se eu tivesse ficado lá, de sentinela, teria saído de repente e ter-me-ia liquidado com a machada". Até quer mandar celebrar um ofício religioso, à russa! Ah... Ah!

- E o assassino, ninguém o viu?

- Como é que haviam de vê-lo? Aquela casa é a Arca de Noé - observou o secretário, que ouvira tudo do seu lugar.

- A coisa está clara, a coisa está clara! - repetiu acaloradamente Nikodim Fomitch.

- Não, a coisa está muito escura - encareceu Iliá Pietróvitch. Raskólhnikov pegou o chapéu e dirigiu-se para a porta; mas não chegou até lá...

Quando recuperou os sentidos estava sentado numa cadeira; um indivíduo segurava-o pela direita, e outro pela esquerda, o qual segurava um copo amarelo meio cheio de um líquido amarelado. Nikodim Fomitch estava diante dele e olhava-o atentamente; ele se levantou da cadeira.

- Que tem? Está doente? - perguntou-lhe Nikodim Fomitch num tom bastante rude.

- Quando escrevia a sua declaração, mal podia segurar a pena - observou o secretário, sentando-se no seu lugar e tornando a entregar-se à papelada.

- E já há muito tempo que está doente? - gritou-lhe Iliá Pietróvitch do seu lugar, remexendo também nos seus papéis. Com certeza que também ele se levantara para olhar para o doente enquanto durara o desmaio, voltando em seguida para o seu lugar, assim que ele recuperou os sentidos. - Desde ontem - foi a resposta única de Raskólhnikov.

- Saiu ontem? - Saí.

- Doente? - Doente. - A que horas?

- Às oito da noite.

- Posso perguntar-lhe aonde é que foi? - À rua.

- Breve e claro.

Raskólhnikov respondia de uma maneira brusca e cortante, extremamente pálido e sem baixar os seus olhos negros e inflamados diante de Iliá Pietróvitch.

- Mal se tem de pé, e eu... - quis observar Nikodim Fomitch.

- Isso não interessa! - exclamou Iliá Pietróvitch num tom um pouco grosseiro.

Nikodim ainda tentou dizer mais qualquer coisa; mas, depois de olhar para o secretário, que também o olhou de alto a baixo, ficou calado. De súbito, todos se calaram. Aquilo era curioso.

- Bem, está bem - concluiu Iliá Pietróvitch. - Não o demoramos mais. Raskólhnikov saiu. No entanto pôde ainda perceber que, assim que ele saiu, se travou lá dentro, de repente, uma viva discussão, na qual se notava, acima de todas, a voz de Nikodim Fomitch... Na rua recuperou os sentidos por completo.

"Uma busca, uma busca; agora mesmo, uma busca!", repetia para consigo, apressando-se a chegar a casa. "Bandidos! Vão vasculhar tudo!" O medo do dia anterior tornou a apoderar-se dele por completo, desde os pés até a cabeça.

 

 “E se já tivessem feito a busca? E se eu os encontrasse agora em casa?" Mas ei-lo já no seu quarto. Nada, ninguém; ninguém tinha feito ali busca nenhuma. Nem sequer Nastássia tinha mexido em qualquer coisa. Mas, Senhor... Como é que pudera deixar aqueles objetos, no dia anterior, naquele buraco? Correu direito ao canto, meteu a mão por debaixo do papel e começou a tirá-los, guardando-os nos bolsos. Eram ao todo oito peças: duas caixinhas que continham arrecadas ou qualquer coisa do gênero... não tinha visto bem; mais quatro pequenos estojos de marroquim. Havia também uma corrente simplesmente embrulhada em papel de jornal. E, além disso, ainda outra coisa embrulhada também em papel de jornal, e que parecia uma condecoração...

Guardou tudo isso em bolsos diferentes, no casaco e no bolso direito, único que lhe restava na peça, procurando que não se notassem. Guardou também a bolsinha, com os outros objetos. Depois saiu do quarto; mas dessa vez até deixou a porta aberta de par em par...

Caminhava depressa e com passo firme e, embora se sentisse extenuado, tinha plena consciência de tudo. Temia que o perseguissem, temia que dentro de meia hora, de um quarto de hora talvez, começassem a fazer sindicâncias sobre ele; em todo o caso, era preciso aproveitar o tempo para fazer desaparecer todas as provas. Era preciso andar depressa, enquanto tinha ainda algumas forças e alguma lucidez... Para onde ir? Havia algum tempo que tinha já resolvido: "Lançaria tudo ao canal e assim se afundariam na água as provas e o próprio caso". Já tinha decidido isso na noite anterior, no meio do seu delírio, nos momentos em que - lembrou-se - se levantava e dispunha a sair. "Quanto antes, desfazer-se de tudo, quanto antes." Mas isso, agora, era muito difícil.

Havia já meia hora que vagueava pelo canal de Ekatierínienski, ou até talvez mais, e várias vezes olhara para as escadinhas do canal sempre que passava por ali. Mas era escusado pensar nisso, porque, ou haveria barcos ao fundo dessas escadinhas, e neles lavadeiras que lavavam roupa, ou botes amarrados à margem, e as pessoas formigavam por todos os lados e podiam vê-lo de todas as partes e até das margens; seria de levantar suspeitas que um homem fosse até ali só com o fim de parar e lançar uns embrulhos à água. E se os estojos, em vez de se afundarem, ficassem flutuando? Era o mais certo. Toda a gente os veria. Mesmo sem isso, já toda a gente ficava olhando para ele quando o via passar; ficavam olhando, como se não tivessem mais nada que fazer. "Por que me olham eles assim, ou serei eu, por acaso, que imagino isto?"

Até que finalmente se lembrou de que talvez fosse melhor dirigir-se para os lados do Nievá. Aí havia menos gente, chamaria menos a atenção e, em qualquer dos casos, seria mais fácil e, sobretudo: "Estará mais longe daquele lugar". E, de repente, ficou admirado: como é que pudera passar meia hora de inquietação e de susto, em paragens perigosas, e não se lembrara disso há mais tempo? Mas passara toda essa meia hora numa perplexidade, apenas porque se tratava de uma coisa decidida em sonhos, durante o delírio. Estava a tornar-se muito distraído e esquecido, e a aperceber-se disso. Não havia dúvida, tinha de apressar-se.

Dirigiu-se ao Nievá pelo Próspekt V...; mas, durante o trajeto, ocorreu-lhe outra idéia: "Por que ao Nievá? Por que à água? Não seria preferível ir para qualquer outra parte, muito longe, ainda que fosse para as ilhas (1), para um lugar ermo, para um bosque, e esconder o embrulho ao pé duma árvore... tomando bem nota do lugar escolhido?" E, se bem que sentisse que nesse momento não estava em condições de pensar com toda a lucidez, esse pensamento parecia-lhe infalível. Mas estava escrito que não havia de chegar às ilhas, pois as coisas correram-lhe de outra maneira: quando saiu do Próspekt V... para a praça, reparou, de repente, numa entrada de pátio, à esquerda, rodeada por todos os lados de muros sem janelas. À direita, passada a porta-cocheira, lá adiante, no pátio, erguia-se um paredão por caiar, pertencente a um prédio vizinho, de quatro andares. À esquerda, paralelamente a esse paredão e imediatamente ao lado da porta, havia uma cerca de madeira, a uns vinte passos de profundidade, no pátio, e depois fazia um cotovelo para a esquerda. Era um beco sem saída, onde havia alguns materiais armazenados. Mais além, ao fundo do pátio, via-se, do outro lado da cerca, o ângulo de um alpendre de pedra, de teto baixo e denegrido que, provavelmente, faria parte de alguma oficina. Devia tratar-se de alguma loja de carros, serralharia, ou algo do gênero; viam-se por todos os lados regos negros de pó de carvão. "Atirar tudo para aí e escapulir!", pensou de repente. Como não viu ninguém na porta, entrou e distinguiu então, junto da própria porta, um algeroz (como costuma haver em todos os edifícios em que há fábricas, oficinas e cocheiras), e sobre ele, escrito com gesso, o costumado aviso, próprio desses lugares: "É proibido estacionar aqui!" Tanto melhor: não havia receio de que alguém fosse até ali e se demorasse. "Lançar tudo ali, de uma vez, e fugir!"

Depois de ter olhado bem outra vez, levou a mão ao bolso, mas, de repente, junto do muro exterior, entre a porta e o canal, onde a maior distância era ao máximo de um archin, chamou-lhe a atenção uma grande pedra lisa, talvez de pude (2) e meio de peso, que estava encostada à parede da rua. Do outro lado do muro ficava a rua, o passeio, sentiam-se passar as pessoas, que eram sempre muitas, aí;

 

* (1) Ilhotas fluviais, urbanizadas, as quais ficavam na embocadura do Nievá, bairros de veraneio para os peterburgueses, dentro do perímetro urbano. (N. do T.)

(2) Unidade de peso equivalente a 16,4 kg. (N. do E.) *

 

mas, para além da porta, ninguém podia olhar, a não ser que entrasse alguém da rua, o que, afinal, podia muito bem acontecer, e portanto era preciso atuar depressa.

Agachou-se junto da pedra, pegou-a com toda a força, pela parte de cima, com as duas mãos, fez um esforço e deu-lhe meia volta. Debaixo da pedra ficou a descoberto uma cavidade, não muito grande; lançou imediatamente aí tudo o que levava no bolso. O porta-moedas ficou em cima; mas ainda havia lugar para o resto. Depois tornou a pegar a pedra, deu-lhe outra meia-volta, até colocá-la no lugar de antes, de maneira que ficava apenas um pouco mais alta. Mas raspou terra e pisou-a com o pé contra os bordos. Não podia notar-se nada.

Depois dirigiu-se para a praça. Outra vez uma alegria violenta, quase intolerável, como a de há pouco, no comissariado, tornou a apoderar-se dele por um instante. "Já estão enterradas as provas. E quem, quem é que se lembraria de vir ver debaixo desta pedra? Talvez esteja aí desde que foi construído o prédio, e quem sabe quanto tempo ficará ainda? Mas... mesmo que encontrem tudo, quem há de pensar em mim? Acabou-se tudo! Não há provas!" E pôs-se a rir. Sim, depois lembrou-se de que rira com um riso nervoso, leve, longo, imperceptível, e que ficou a rir-se durante todo o tempo que demorou a atravessar a praça. Mas, quando ia entrando na alameda de K..., onde se encontrara com aquela mulher três dias antes, seu riso extinguiu-se de repente. Outro pensamento lhe passou pela mente. Pareceu-lhe também, de repente, que havia de achar muito pouca graça em passar em frente do banco onde, depois que a moça se afastou, ele se sentara e estivera pensando, e que também não acharia graça nenhuma se tornasse a encontrar o guarda a quem dera dois grívieni(3). "Para o diabo que o carregue!" Caminhava, olhando à sua volta com um olhar distraído e maldoso. Todos os seus pensamentos giravam, nesse momento, em torno dum ponto capital; e ele próprio sentia, com efeito, que era esse o ponto capital, e que, agora, precisamente agora, ficava sozinho em frente desse único ponto capital... e que era a primeira vez que isso lhe ocorria desde há dois meses.

"Tudo para o diabo!", pensou, de repente, num ímpeto de cólera irreprimível. Bem; já começou; pois que comece, e vida nova, que vá para o diabo! Que estupidez! Senhor, é tudo isso! E como menti e me rebaixei hoje! Como me arrastei e humilhei perante esse repugnante Iliá Pietróvitch! Mas, no fim de contas, tudo isso são disparates! Cuspo em todos eles, cuspo também nisso do meu rebaixamento e da minha comédia! Não é nada disso que está em causa! Nada disso!"

De súbito, parou; uma interrogação completamente inesperada e extraordinariamente simples lhe tocou o pensamento, deixando-o estupefato.

 

* (3) Plural de grívien, moeda equivalente a dez copeques. (N. do E.) *

 

"Se, na realidade, tivesses feito tudo isso de um modo consciente e não de uma maneira estúpida; se tu, efetivamente, tivesses tido uma finalidade concreta e firme, como seria possível que, até agora, nem sequer tivesses reparado no que estava dentro do porta-moedas e não saibas sequer quanto apuraste ao todo, nem por que te meteste em tantos trabalhos e cometeste deliberadamente um ato tão vil, bárbaro e selvagem? Até querias atirar o porta-moedas e os outros objetos à água, sem os teres visto sequer... Que significa isso? Sim, de fato, de fato." Aliás, ele já de antemão o sabia, e essa interrogação não o apanhava desprevenido; e, quando na véspera tinha resolvido atirar tudo à água, resolveu-o sem hesitação nem dúvida alguma, mas como se fosse a única coisa que convinha fazer, visto que seria impossível fazer outra coisa... Sim, sabia tudo isso e bem o compreendia; talvez a sua resolução datasse da noite anterior, daquele próprio instante em que se sentara em cima da arca e tirara os estojos dela... Por isso...

"A causa de tudo isso é estar eu doente", decidiu, finalmente, mal-humorado. "Eu próprio me atormento e martirizo, e não sei ao certo o que faço... E ontem, e anteontem, e todo este tempo tenho estado a atormentar-me... Quando me puser bom... deixarei de sofrer... Mas se eu não me ponho bom? Senhor! Como eu já estou farto de tudo isto!" Caminhava sem parar. Sentia uma ánsia feroz de distrair-se, fosse como fosse; mas não sabia que fazer nem que empreender. Uma sensação nova, invencível, se ia arraigando nele cada vez mais: era uma aversão infinita, quase física, por tudo quanto encontrava e via, uma sensação obstinada, maldosa, inflamada. Todas as pessoas se lhe tornavam odiosas, eram-lhe também odiosas as suas caras, a sua maneira de andar, todos os seus movimentos. Cuspir-lhes-ia simplesmente, morderia quem quer que tivesse a intenção de lhe falar...

Parou de repente, depois de ter saído da margem do Pequeno Nievá, na ilha Vassílievski, junto da ponte. "É ali que ele vive, naquela casa", pensou. "E eu, que nunca tomei a iniciativa de ir visitar Razumíkhin! Outra vez a mesma história de antes... E, no entanto, é muito curioso; teria eu vindo já com essa intenção, ou, simplesmente, pus-me a andar e vim ter aqui? Tanto faz; já disse... anteontem... que iria vê-lo no dia seguinte àquilo, por isso, está bem, irei! Como se eu já não pudesse fazer visitas!” Subiu ao quinto andar para ir ver Razumíkhin.

Ele estava em casa, no seu cubículo, e nesse instante escrevia, mas veio ele mesmo abrir a porta. Havia já quatro meses que não se viam. Razumíkhín vestia um roupão esfarrapado, tinha os pés sem meias, metidos numas chinelas, e estava por pentear, barbear e lavar. O seu rosto exprimia assombro.

- Que tens? - exclamou, olhando de alto a baixo o amigo que acabava de chegar; depois calou-se e pôs-se a assobiar. - Será possível que estejas assim tão decaído? Tu, meu caro, bates-me aos pontos - acrescentou, reparando nos farrapos de Raskólhnikov; - mas senta-te, porque deves estar cansado! - e quando ele se deixou cair no derreado divã, que estava ainda em pior estado do que o seu dono, Razumíkhin reparou de repente que o seu visitante estava doente.

- Mas tu estás doente a valer, sabes? - e fez menção de lhe tomar o pulso. Raskólhnikov desviou-lhe a mão.

- Não é preciso - murmurou. - Eu vim... bom, é que não tenho lições... Eu queria... aliás, não preciso de lições para nada...

- Sabes uma coisa? Estás delirando! - declarou Razumíkhin, observando-o atentamente.

- Não, não estou delirando...

Raskólhnikov levantou-se do divã. Quando subiu até a casa de Razumíkhin não pensava que teria de encontrar-se frente a frente com ele. Agora adivinhava num instante, devido à experiência, que não havia coisa que mais o irritasse do que encontrar-se frente a frente com quem quer que fosse neste mundo. Toda a sua bílis se revolvia. Esteve quase para desabafar a cólera consigo mesmo, quando entrou no quarto de Razumíkhin. - Adeus! - disse de repente, e dirigiu-se para a porta.

- Mas espera aí, espera aí, criatura estranha!

- Não é preciso! - repetiu ele, tornando a afastar-lhe a mão.

- Então para que vieste? Enlouqueceste? Olha que isso... é quase uma ofensa. Não te deixo ir assim.

- Bem, escuta: vim procurar-te porque, a não ser tu, não conheço mais ninguém que pudesse ajudar-me... a abrir caminho... e, além disso, porque tu és o melhor de todos, isto é, o mais inteligente e o mais capacitado para julgar... Mas agora vejo que não preciso de nada, sabes? Absolutamente de nada... no que respeita a favores e simpatias alheias... Eu... sozinho... Bem, já chega! Deixa-me em paz!

- Mas espera um minuto, pareces um limpa-chaminés! Estás completamente maluco! Por mim, procede como quiseres! Olha, eu não tenho lições, mas também não quero saber de lições para nada, porque há em Tolkutchka um livreiro antiquário, Khieruvímov, que vale todas essas lições. E agora não o trocaria por cinco lições em casa de comerciantes. Faz algumas edições e publica folhetos sobre ciências naturais... É ver como lhos compram! Só os títulos já valem qualquer coisa! Olha, tu sempre disseste que eu era um estúpido; mas, por amor de Deus, meu amigo, ainda os há mais tolos do que eu! Agora até se mete em literatura; não percebe patavina disso, mas eu, é claro, incito-o. Aqui tens umas folhas de texto em alemão... A meu ver isto é uma charlatanice das mais estúpidas; bastará dizer que nelas se examina a questão de saber se a mulher pertence ou não à espécie humana. Claro que se demonstra vitoriosamente que pertence à espécie humana. Khieruvímov prepara isto por causa do problema feminino; eu estou a traduzi-lo; ele esticará estas duas folhas e meia de maneira que dêem seis, põe-lhe um título atrativo na capa, que abranja meia página, e vendê-lo-emos a cinqüenta copeques cada exemplar. Vai ser um êxito! Pela tradução paga-me seis rublos de prata por página, o que faz ao todo quinze rublos; mas já lhe extorqui seis rublos adiantados. Quando tivermos traduzido isto, meteremos mão a um livro sobre as baleias, e depois investiremos contra a segunda parte das Confissões, traduzindo alguns passos curiosíssimos que nelas assinalamos. Disseram a Khieruvímov que Rousseau é uma espécie de Radíchtchev. Eu, é claro, não o contradigo, vá lá para o diabo! Bem, vamos lá a ver: queres traduzir a segunda página do Pertence a mulher à espécie humana? Se quiseres, aqui tens o texto, pega a pena e o papel, tudo isto é por conta da Administração, e toma três rublos, pois, visto que recebi o meu adiantamento por conta de toda a tradução, da primeira e da segunda páginas, três rublos é o que te cabe pela tua. E quando acabares a página receberás mais três rublos de prata. E não vás julgar que estou a fazer-te algum favor, hem? Pelo contrário, eu estava precisamente pensando que tu podias ser-me útil, quando tu entraste. Em primeiro lugar, a minha ortografia não está nada boa, e, além disso, em alemão sinto-me às vezes bastante fraco, de maneira que acabo por escrever coisas da minha lavra e consolo-me pensando que assim sairá melhor. Mas quem sabe se em vez de melhor não sairá pior... Bem, aceitas ou não?

Em silêncio, Raskólhnikov pegou as folhas de texto alemão e os três rublos, e saiu sem dizer uma palavra.

- Mas tu estás delirando! - exclamou finalmente Razumíkhin, alterado. - Por que representas essa comédia? Até me fazes perder a cabeça. Mas para que vieste, afinal?

- Não preciso... de traduzir - resmungou Raskólhnikov, que já ia na escada.

- Então de quê, diabo, precisas tu? - gritou-lhe Razumíkhin lá em cima.

O outro continuava descendo as escadas em silêncio. - Olha, onde moras?

Não obteve resposta.

- Bem, para o diabo que te carregue!

Mas Raskólhnikov ia já na rua. Na ponte Nikoláievski tornou, mais uma vez, a recuperar a lucidez completa, em conseqüência de um acontecimento muito aborrecido. O cocheiro dum carro particular deu-lhe com o chicote fortemente nas costas, pela simples razão de ter estado quase a ser atropelado pelos cavalos, apesar de o cocheiro lhe ter chamado a atenção duas ou três vezes, com os seus gritos. O chicote irritou-o a tal ponto que saltou de um pulo para o parapeito da ponte (sem saber por que ia pelo meio da ponte, por onde passam os carros e não costumam caminhar as pessoas), apertando e rangendo os dentes de raiva. À sua volta, como era natural, ouviram-se depois várias risadas.

- Foi bem feito!

- Deve ser algum vadio!

- Por certo que se fingiu bêbado e se atirou de propósito para debaixo das rodas para pedir depois uma indenização...

- Há quem viva disso, há quem viva disso...

Mas, exatamente no momento em que ele, de pé contra o parapeito, ainda aturdido e furioso, seguia com a vista a carruagem que se afastava, e esfregava as costas ao mesmo tempo, sentiu que alguém lhe punha dinheiro nas mãos. Voltou-se para olhar; era uma mulher de certa idade, da classe dos mercadores, sem chapéu e com sapatos de pele de cabra, que ia acompanhada duma moça de chapéu e sombrinha verde, e que devia ser sua filha: "Tome, bátiuchka, pelo amor de Cristo". Ele o aceitou e elas continuaram o seu caminho. Deram-lhe dois grívieni. Pela roupa e pelo seu aspecto, podiam muito bem tomá-lo por um mendigo; por um verdadeiro colecionador de grochi na via pública, e não havia dúvida de que era à chicotada do cocheiro, que as fizera apiedar, que devia aquele donativo de dois grívieni.

Guardou a moeda na mão, caminhou para a frente uns dez passos, e voltou o rosto para o Nievá, na direção do palácio. No céu não se via a menor nuvem e a água estava quase azul, o que raramente sucede ao Nievá. A cúpula da catedral, que se contempla melhor daí, da ponte, que fica a menos de vinte passos da capela, do que de qualquer outro ponto, refulgia tão clara que através do ar límpido podia-se distinguir nitidamente cada uma das suas tonalidades. A dor da chicotada foi-lhe passando e Raskólhnikov chegou a esquecer-se dela; uma idéia inquietante e não completamente clara o absorvia agora exclusivamente. Estava parado e olhava longa e atentamente para o longe; conhecia aquele lugar muito bem. Geralmente, sempre que saía da universidade - sobretudo quando voltava para casa -, costumava acontecer-lhe, devia até ter-lhe acontecido muitíssimas vezes, ficar parado precisamente naquele mesmo lugar, contemplando com toda a atenção aquele panorama, verdadeiramente esplêndido, e quase sempre lhe acontecia ficar admirado com uma impressão sua, vaga e persistente. Aquele panorama infundia-lhe sempre uma frialdade inexplicável; uma alma muda e surda animava para ele aquele vistoso quadro... Admirava-se sempre da sua antipática e enigmática impressão e, por não ter confiança em si mesmo, adiava sempre para um futuro remoto a sua explicação. Agora, de repente, recordava-se com toda a clareza dessas suas dúvidas e interrogações de outro tempo, e parecia-lhe que não era por acaso que as recordava naquele momento. Só o fato de ter vindo dar naquele mesmo lugar, como outrora, lhe parecia estranho e singular, como se efetivamente imaginasse que ia ter agora o mesmo pensamento de então e interessar-se pelos mesmos temas e quadros que tinham excitado o seu interesse... havia ainda tão pouco tempo. Esteve quase a ponto de se pôr a rir, apesar de, ao mesmo tempo, sentir uma dor no peito! Parecia-lhe que todo o seu passado e todas aquelas idéias pretéritas, e aqueles enigmas pretéritos, e aqueles temas antigos, e aquelas antigas impressões, e todo aquele panorama, e ele mesmo, e tudo, tudo, estava agora lá embaixo, a seus pés, não sabia a que profundidade... Parecia-lhe que tinha levantado vôo, não sabia para onde, muito alto, e que tudo desaparecera diante dos seus olhos... Depois de ter feito um gesto involuntário com a mão, sentia de repente que segurava ainda a moeda de dois grívieni. Abriu a mão, contemplou a pequena moeda com toda a atenção, balançou-a no ar e atirou-a à água; depois deu meia-volta e regressou a casa. Parecia-lhe que a sua pessoa tinha sido cortada de todos e de tudo, com uma faca.

Chegou a casa já de noite; estivera fora seis horas, ao todo. Por onde e como é que regressou não seria capaz de o dizer. Depois de se despir, todo tremente, como um cavalo esfalfado, deitou-se no divã, puxou o sobretudo e ficou imediatamente amodorrado...

Despertou em plena escuridão, por causa de um grito espantoso. Santo Deus, mas que grito aquele! Um alvoroço tão grande como aquele, gritos, soluços, ranger de dentes, choros, pancadas e insultos como aqueles jamais até então ouvira nem presenciara.

Nem sequer poderia imaginar-se semelhante brutalidade, semelhante barbaridade. Transido de espanto, levantou-se e sentou-se no leito, num grande sofrimento e sufocando a cada momento. Mas a bulha, os choros e os insultos redobraram cada vez com mais força. E, de súbito, reconheceu a voz da sua senhoria. Era ela, e guinchava, gritava precipitadamente, comendo as palavras a tal ponto que não era possível perceber o que ela pedia. Não havia dúvida de que, agora, tinham deixado de bater-lhe, mas havia ainda pouco que a surravam na escada sem dó nem piedade. A voz da castigada era tão espantosa, devido ao furor e à raiva, que até já estertorava, mas o seu carrasco dizia também qualquer coisa, e também muito depressa, de uma maneira ininteligível, atropelando-se e arquejando. De repente, Raskólhnikov pôs-se todo a tremer: conhecia aquela voz; era a voz de Iliá Pietróvitch. Iliá Pietróvitch, ali, batendo na senhoria! Dava-lhe pontapés e fazia-a dar com a cabeça contra os degraus! Era o que se deduzia de todos aqueles choros e pancadas. Mas que seria aquilo? Parecia que vinha a casa abaixo! Percebia-se que em todo aquele andar, em toda a escada se vinha reunindo uma multidão, e ouviam-se vozes, exclamações, subidas e descidas, chamamentos, sacudidelas de portas e correrias.

"Mas por que será tudo isso, como e por que é possível uma coisa dessas?", repetia ele pensando seriamente que tinha enlouquecido completamente. Mas não, ouvia tudo distintamente! Naturalmente, depois, viriam prendê-lo também a ele. Sim, devia ser assim. "Porque... com certeza que tudo isso deve ser por causa daquilo; por causa daquela noite... Senhor!" Sentiu o ímpeto de se fechar, correndo o ferrolho, mas não levantou sequer uma mão... Já não era preciso. O terror envolveu-lhe a alma, como uma camada de gelo, torturou-o, aniquilou-o... Mas, de repente, todo esse burburinho, que durara bem uns dez minutos, foi abrandando pouco a pouco. A senhoria gemia e suspirava. Iliá Pietróvitch continuava ainda a ameaçá-la e a insultá-la... Até que, finalmente, também ele pareceu aplacar-se; já ninguém o ouvia: "Deve ter-se ido embora. Meu Deus!" Sim, fora embora, e a senhoria também, ainda gemendo e chorando... E, de súbito, a sua porta fechou-se bruscamente... E as pessoas que se tinham reunido dispersam-se pela escada e pelos andares... Lançam ais, discutem, chamam-se uns aos outros; estes erguem a voz até o diapasão do grito, aqueles baixam-na até o murmúrio. Devia haver ali muita gente; todas as pessoas do prédio deviam ter acudido ali. Mas, Deus do céu! Isso seria possível? E por que, por que tinha vindo ele?

Extenuado, Raskólhnikov deixou-se cair no divã, mas já não pôde pregar olho; ficou assim estendido uma meia hora, num tal sofrimento, numa tal sensação de espanto infinito, como até então nunca sentira. De repente uma luz clara iluminou o seu quarto; Nastássia entrou com uma vela e um prato de sopa. Depois de contemplá-lo atentamente e de certificar-se de que dormia, pousou a vela em cima da mesa e começou a tirar o que trazia: pão, sal, um prato, uma colher.

- Talvez não tenha comido nada ontem. Andou girando todo o dia e tem uma febre de cavalo.

- Nastássia... por que é que bateram na senhoria? - Ela o olhou de alto a baixo.

- Quem é que bateu na senhoria?

- Ainda há um momento... Há uma meia hora, Iliá Pietróvitch, o ajudante do comissário, na escada... Por que lhe bateu ele dessa maneira? E... por que veio?

Silenciosamente e franzindo o sobrolho, Nastássia pôs-se a mirá-lo de alto a baixo e assim ficou durante muito tempo. Para ele era muito desagradável esse exame quase feroz.

- Nastássia, por que está assim, calada? - perguntou-lhe ele, por fim, timidamente, com uma voz fraca.

- Isso é o sangue! - respondeu ela, finalmente, em voz baixa e como se falasse consigo própria.

- O sangue! Qual sangue? - murmurou ele empalidecendo e voltando a cara para a parede. Nastássia continuava olhando para ele em silêncio. - Ninguém bateu na senhoria - disse outra vez com uma voz cortante e enérgica. Ele olhou para ela, respirando com dificuldade.

- Mas eu ouvi... Não estava dormindo... Estava fora da cama - disse ele com uma voz ainda mais sumida. - Ouvi durante muito tempo... Veio o ajudante do comissário... Acudiram todos à escada, de todos os quartos...

- Não veio ninguém. Isso é o sangue que grita em ti. Quando não encontra saída e começa a acumular-se no fígado, uma pessoa começa também a ter visões... Mas não comes?

Ele não respondeu. Nastássia inclinou-se sobre ele, olhou-o atentamente e não se decidia a ir-se embora.

- Dá-me de beber... Nástiuchka.

Ela saiu e, passados uns minutos, voltava com água num jarrinho de barro branco; mas ele já não se lembrava de mais nada. Recordava-se apenas de como tomou um gole de água fria e de como entornou o jarrinho sobre o peito. Depois perdeu os sentidos.

 

Mas não ficou assim durante todo o tempo da sua doença; era um estado febril, com delírio e semiconsciência. De muitas coisas veio a recordar-se depois. Parecia-lhe que se tinha reunido muita gente à sua volta e que queriam levá-lo não sabia para onde, e que discutiam muito a seu respeito. De repente ficou sozinho no quarto, pois todos se foram embora, cheios de temor, e somente a porta se entreabria de quando em quando e era daí que o olhavam, o ameaçavam, cochichavam entre si, riam-se e censuravam. Lembrava-se de ter visto muitas vezes Nastássia a seu lado; e também tinha visto ali, à sua cabeceira, um indivíduo que lhe parecia bem seu conhecido, mas ao qual não podia identificar... com precisão, o que muito o exasperava e até o fazia chorar. Às vezes parecia-lhe que havia já um mês que estava de cama... Mas outras parecia-lhe que ainda não passara nem um dia. "Daquilo... daquilo" esquecera-se completamente; mas lembrava-se a todo o momento que se esquecera de qualquer coisa de que não era possível esquecer-se... e angustiava-se e afligia-se perante essa recordação; gemia, enfurecia-se ou espantava-se, ficava tomado de um medo indomável. Então erguia-se na cama, queria disparar; mas havia sempre alguém que o dominava à força, e caía de novo na inércia e no torpor. Até que finalmente acabou por recuperar toda a lucidez.

Sucedeu isso uma manhã, aí pelas dez horas. A essa hora da manhã, nos dias bons, o sol projetava sempre um comprido raio de luz ao longo da parede da direita e iluminava um canto junto da porta. À sua cabeceira estava Nastássia e também um homem novo que o olhava com grande curiosidade e que lhe era completamente desconhecido. Era um rapaz de caftã, barbicha e todo o aspecto de um caixeiro. A senhoria espreitava pela porta aberta. Raskólhnikov ergueu-se.

- Quem é, Nastássia? - perguntou, indicando-lhe o rapaz. - Olhem, já voltou a si! - disse ela.

- Já! - repetiu o caixeiro.

Assim que viu que ele voltara a si, a senhoria, que espreitava à porta, apressou-se a fechá-la e desapareceu. Era muito tímida e não podia suportar discussões nem explicações; devia ter uns quarenta anos e era gorda, de sobrancelhas negras e olhos negros, e também bonacheirona por ser tão gorda e indolente, e também muito acomodatícia de seu normal. E exageradamente envergonhada.

- Quem é... o senhor? - insistiu ele, dirigindo-se ao próprio caixeiro. Mas nesse mesmo instante a porta tornou a abrir-se de par em par, e, curvando-se um pouco por causa da sua elevada estatura, Razumíkhin entrou. - Parece um beliche de barco! - exclamou quando entrou.

- Hei de bater sempre com a testa na porta; e é a isto que chamam um quarto! Com que então já voltaste a ti? Foi o que me disse Páchenhka. - Acabou agora mesmo de recuperar os sentidos - disse Nastássia. - Sim, acabou agora mesmo de espevitar- concordou também o caixeiro. - Mas quem é o senhor? - perguntou Razumíkhin de repente, encarando com ele. - Dê-me licença que me apresente: eu sou VRazumíkhin (1), e não Razumíkhin, como costumam chamar-me, estudante, nobre de nascimento, e ele é meu amigo. Agora faça o senhor o favor de nos dizer quem é.

- Eu sou empregado da loja do comerciante Chelopáiev, e vim aqui tratar de um assunto.

- Pois faça o favor de sentar-se nesta cadeira - Razumíkhin sentou-se em outra, ao lado da mesa. - Muito bem, meu amigo, fizeste muito bem em te pores lúcido - continuou, dirigindo-se a Raskólhnikov. - Com hoje, já são quatro dias que levas sem comer quase absolutamente nada e sem beberes sequer uma gota. O que valeu foi te terem dado chá às colherzinhas. E Zósimov veio ver-te por duas vezes comigo. Lembras-te de Zósimov? Observou-te com muita atenção e disse redondamente que isso não era nada... mas que era assim como se tivesses recebido uma pancada na cabeça. "Qualquer desarranjo de nervos ou má alimentação", dizia, "falta de cerveja e de rábanos, mas isso não tem importância e em breve estará bom." Viva o Zósimov! Já começa a tornar-se célebre com as suas curas. Bem, mas eu não quero entretê-lo - e tornou a dirigir-se ao caixeiro. - Faça o favor de me dizer o que deseja. Rodka, participo-te que já é a segunda vez que vêm, da parte dessa loja; simplesmente, da outra vez não foi este quem veio, mas outro, e foi com ele que nos entendemos. Quem foi que veio da outra vez?

- Suponho que isso devia ter sido anteontem, foi isso, exatamente. Então devia ter sido Alieksiéi Siemiônovitch; também é empregado da nossa loja.

- É um pouco mais tagarela do que o senhor, segundo me parece. - Sim, é um homem mais sensato.

- Dou-lhe os meus parabéns; bom, mas continue.

- Pois então ouça: por intermédio de Afanássi Ivânovitch Vakhrúchin, do qual suponho que já deve ter ouvido falar por mais de uma vez, e a pedido de sua mãe, recebeu-se na nossa loja uma encomenda para o senhor - começou o caixeiro, dirigindo-se a Raskólhnikov. - Quando o senhor tivesse já recuperado o conhecimento... entregar-lhe-íamos trinta e cinco rublos, que Afanássi Ivânovitch entregou a Siemion Siemiônovitch, da parte de sua mãe, como da outra vez, do que julgo que já deve estar prevenido, não é verdade?

 

* (1) Deturpação propositada do nome para Vrasumíkhin - ajuizador, derivado da mesma raiz de que se vale Dostoiévski para manifestar a opinião de Razumíkhin sobre ele mesmo. No capítulo dois da quarta parte, o autor recorre a uma outra deturpação do nome desta personagem. (N. do T.) *

 

- Sim... já me lembro... Vakhrúchin... - exclamou Raskólhnikov, pensativo.

- Estão ouvindo? Conhece o comerciante Vakhrúchin! - exclamou Razumíkhin. - Portanto já está em seu perfeito juízo! Além disso, vejo agora que o senhor também é um homem eloqüente. Sempre é agradável ouvir um bom discurso!

- É desse mesmo que se trata, de Vakhrúchin, Afanássi Ivânovitch, e da parte de sua mamã, a qual se serviu do mesmo intermediário da outra vez, e agora, contando com a aquiescência de Siemion Siemiônovitch, encarregou-o de lhe entregar trinta e cinco rublos, enquanto não puder mandar mais.

- Olhe, esse "enquanto não puder mandar mais" foi o que me agradou mais; embora também essa "de sua mamã" não esteja mal de todo. Bem, vamos lá a ver: que lhe parece? Está ou não está em seu perfeito juízo? - A mim tanto me faz... Contanto que ele assine o respectivo recibo... - Há de assinar. Tem aí o recibo?

- Ei-lo.

- Muito bem. Vamos, Rodka, levanta-te, que eu te amparo. Faz a tua assinatura; Raskólhnikov, pega a pena, porque, meu amigo, o dinheiro, agora, é-nos indispensável.

- Não é preciso! - disse Raskólhnikov afastando a pena. - Não é preciso?!

- Não assino.

- Ó diabo, é o recibo!

- Eu não preciso de... dinheiro...

- Não precisas de dinheiro? Vamos, meu caro, tu estás mentindo e eu sou testemunha! O senhor não se preocupe, ele diz isso apenas por... está outra vez delirando. Apesar de que, às vezes, quando está lúcido, também tem destas saídas... Mas o senhor é uma pessoa sensata e nós os dois damos-lhe as mãos e ele assina. Vamos, ajude-me...

- O melhor será voltar noutro dia.

- Não, não. Para que há de incomodar-se? O senhor é um homem sensato... Vamos, Rodka, despacha o visitante... Olha que ele está à espera - e, seriamente, dispôs-se a pegar na mão de Rodka.

- Deixa-me, eu sozinho... - exclamou aquele, e, pegando a caneta, assinou o recibo.

O caixeiro entregou o dinheiro e saiu.

- Bravo! E agora, dize-me cá, queres comer? - Quero - respondeu Raskólhnikov.

- Há sopa?

- A de ontem - respondeu Nastássia, que durante todo esse tempo não arredara dali.

- De batatas e arroz. - De batatas e arroz? - Já sei de cor. Traze-me a sopa e dá-me chá. - Já trago tudo.

Raskólhnikov olhava para tudo profundamente assombrado e com um medo estúpido e absurdo. Decidiu calar-se e esperar. Que mais estaria para suceder? "Parece-me que, agora, não estou delirando", pensava, "parece que é verdade..."

Dois minutos depois Nastássia voltava com a sopa e prevenia que daí a pouco traria o chá. Juntamente com a sopa trazia duas colheres, dois pratos e um serviço completo de mesa: saleiro, pimenteiro, mostarda para a carne e outras coisas que, antes, havia já muito tempo, não costumavam aparecer; até a toalha estava limpa.

- Nástiuchka, seria bem bom se Praskóvia Pávlovna mandasse vir duas garrafas de cerveja.

- Essa não está má... - resmungou Nastássia, e saiu para cumprir a ordem.

Raskólhnikov continuava olhando para tudo, ávida e desconfiadamente. Entretanto, Razumíkhin já se sentara a seu lado, sobre o divã, e, desajeitado como um urso, segurou-lhe a cabeça com a mão esquerda, apesar de ele poder muito bem erguer-se sozinho, e com a direita levava-lhe à boca colheradas de sopa, que às vezes soprava previamente, para que ele não se queimasse. Mas a sopa estava morna, quando muito; Raskólhnikov engoliu sofregamente uma colherada, e a seguir outra e outra. Mas, depois de lhe ter dado assim algumas colheradas, Razumíkhin de repente parou e declarou que, para continuar, seria preciso consultar Zósimov.

Nastássia entrou trazendo as duas garrafas. - E chá, queres?

- Quero.

- Vai buscar o chá depressa, Nastássia, porque quanto ao chá podemos tomá-lo sem consultar a Faculdade. Ora aqui está a cerveja!

Foi para a sua cadeira, serviu-se de sopa e de carne, e começou a comer com tal apetite que parecia ter uma fome de três dias.

- Eu, meu caro Rodka, passarei agora a almoçar todos os dias contigo - disse, com a boca cheia de carne -, e tudo isso se deve a Páchenhka, a tua boa senhoria, que é quem manda tudo isto: está cheia de atenções para contigo. Eu não acho isso nada mal e, é claro, não me oponho. Ora aqui temos a Nastássia com o chá. És uma espertalhona! Queres cerveja, Nástienhka? - Deixa-te de graças!

- E um bocadinho de chá? - Chá, aceito.

- Então serve-te. Mas espera, que te sirvo eu mesmo; senta-te à mesa. E começou logo a servir-lhe o chá; a seguir encheu-lhe outra chávena, e depois deu o almoço por terminado e voltou para o divã. Tal como havia pouco, pegou na cabeça do doente com a mão esquerda, endireitou-lha e começou a dar-lhe colheradas de chá, soprando também continuadamente com todo o cuidado, como se isso de soprar fosse muito importante para o seu restabelecimento, para a sua salvação. Raskólhnikov estava calado e não opunha resistência, apesar de se sentir com forças suficientes para se levantar e sentar no divã sem auxílio alheio, para segurar a colher ou a chávena do chá com a mão, como até para andar. Mas, por uma certa astúcia estranha, parecida com a dum animal, lembrara-se de repente de dissimular a sua força, de fingir, de fazer que não percebia nada, se preciso fosse, e entretanto ia escutando e vendo o que se passava. Aliás, não conseguia vencer completamente a sua repugnância; depois de ter engolido dez colheradas de chá, afastou repentinamente a cabeça, repudiou a colher, caprichoso, e tornou a recostar-se na almofada. Debaixo da sua cabeça havia agora, de fato, uma almofada a valer, de penas, e com a fronha limpa, no que reparou, muito admirado.

É preciso que Páchenhka nos envie ainda hoje doce de framboesa para lhe fazer um xarope - disse Razumíkhin, que voltara para o seu lugar e se atirara outra vez à sopa e à cerveja.

- Mas onde é que ela há de ir buscar framboesa para ti? - perguntou Nastássia, segurando o pires na palma da mão e sorvendo o chá através do açúcar. (2)

- A framboesa, minha amiga, vai buscá-la à loja. Olha, Rodka: aqui sucedeu uma coisa de que tu não estás ainda a par. Quando tu saíste de minha casa, daquela maneira traiçoeira, sem me dares o teu endereço, fiquei tão indignado que jurei procurar-te até te encontrar e castigar-te. Nesse mesmo dia pus-me no teu encalço. Andei para cá e para lá, perguntei e tornei a perguntar. Bom, tinha-me esquecido da tua residência atual, embora, aliás, nunca pudesse lembrar-me dela porque não a sabia. Da tua antiga moradia, só me lembro de que vivias nas Cinco Esquinas, em casa de Kharlámov, mas afinal verificou-se que não era em casa de Kharlámov, mas sim na de Buck. É para que se veja como as palavras podem levar-nos a obras! Bem, eu estava furioso e no outro dia fui, tentando a sorte, ao Registro de Endereços (3), e imagina: em dois minutos deram-me a tua direção. Tu próprio tinhas lá a tua assinatura.

 

* (2) As pessoas do povo introduziam os torrões de açúcar na boca e bebiam depois o chá. (N. do T.)

(3) Todos os habitantes das cidades russas importantes estavam registrados, por bairros, nos arquivos da polícia. Em Moscou e em Petersburgo existia uma repartição policial onde os particulares podiam obter todos os endereços, pessoalmente, e até pelo correio, pagando uma certa quantia por informação pedida. (N. do T.) *

 

- A minha assinatura?

- É assim mesmo; e, para que vejas: em compensação, pelo menos enquanto eu lá estive, não foram capazes de encontrar o endereço do general Kóbieliv. Mas, sobre isso, haveria muita coisa a dizer. Mal me apresentei, puseram-me imediatamente a par de tudo, sobre a tua pessoa, de tudo; sei tudo, e Nastássia é testemunha. Fiquei conhecendo Nikodim Fomitch, lliá Pietróvitch, o porteiro, o sr. Zamiótov Àlieksandr Grigórievitch, o secretário do comissariado do distrito e, finalmente, fiquei conhecendo Páchenhka... Mas isso foi no fim de tudo; Nastássia bem o sabe...

- Puseste-a doce como o mel - murmurou Nastássia com malícia. - Devias era pôr o açúcar no chá, em vez de o beberes assim, Nastássia Nikíforovna.

- Cala-te, malcriado! - gritou Nastássia de repente, e pôs-se a rir. - Eu sou Pietrovna e não Nikíforovna - acrescentou de súbito, assim que acabou de rir.

- Tomemos nota. Ora muito bem, meu caro, para não falar de coisas inúteis, eu gostaria de usar de grandes meios para extirpar de uma vez todos os preconceitos locais; mas Páchenhka foi mais forte. Eu, meu caro, nunca poderia esperar que ela fosse tão... acomodatícia... hem? Que dizes a isto?

Raskólhnikov continuava calado, embora nem por um instante desviasse dele o seu olhar perscrutador, e ainda agora continuava a olhá-lo tenazmente.

- É até muito... - continuou Razumíkhin, sem se incomodar absolutamente nada com aquele silêncio e como se respondesse a uma resposta que tivesse recebido - é até muito como deve ser, sob todos os aspectos.

- Eh! Compadre! - tornou a exclamar Nastássia, à qual tudo aquilo dava evidentemente um prazer inexplicável.

- É pena, meu amigo, que não tenhas sabido compreendê-la desde o primeiro momento. Devias tê-la tratado de outra maneira. É, por assim dizer, o caráter mais inesperado. A respeito disso, do caráter, falaremos depois... Mas... como chegaram até o ponto de ela não te mandar comida? E, por exemplo, esse caso da letra? Mas tu estavas doido quando assinaste essa letra? E isso para não falar sobre essa proposta de casamento, quando ainda era viva Natália legórovna... Eu sei tudo! Embora, no fim de contas, perceba que isto é um assunto muito delicado e que eu sou um burro; desculpa. Mas, já que falamos de disparates, que te parece?... Olha, meu amigo: Praskóvia Pávlovna não é tão tola como pode parecer à primeira vista, não achas?

- Sim... - balbuciou Raskólhnikov, olhando para o outro lado, mas compreendendo que era conveniente suportar aquela tagarelice.

- Então não é? - exclamou Razumíkhin, evidentemente satisfeito por lhe terem respondido. - Mas também é tola, não é verdade? Absolutamente, absolutamente, é o caráter mais desconcertante! Eu, meu caro, até certo ponto, todo eu me derreto, garanto-te... Deve ter quarenta, provavelmente. Ela diz trinta e seis e está no seu pleno direito. Além disso, juro-te que a opinião que formo sobre ela é puramente intelectual, metafísica; neste ponto, meu amigo, começo a fazer uns cálculos mais arrevesados do que os da álgebra. Não percebo patavina! Bom, mas tudo isto é absurdo; e ela, quando viu que tu já não eras estudante, que não tinhas lições nem roupa, e que, falecida a moça, não podia considerar-te da família, ficou assustada, coitada; e como tu, pelo teu lado, ficavas amodorrado no teu canto e não te davas já com ela, como antes, então resolveu pôr-te fora do teu quarto. E havia já muito tempo que ela tinha essa intenção; e isso da letra não lhe agradou nada. Além de que tu próprio lhe garantiste que a tua mãe lhe pagaria...

- Isso dizia-lho eu por pura maldade. À minha mãe pouco lhe falta para pedir esmola... E eu mentia para que não me expulsassem do quarto e... continuassem a dar-me de comer - declarou Raskólhnikov em voz alta e clara.

- Sim, e fazias bem. O pior foi que recorreram ao senhor Tchebárov, conselheiro da Corte e homem de negócios. Sem ele, Páchenhka não teria pensado nisso, porque é muito tímida; mas um homem de negócios não se sente coibido perante nada e, naturalmente, a primeira coisa que fez foi fazer-lhe esta pergunta: se havia esperança de receber a letra. Resposta: "Sim, visto ter uma mãe que, ainda que fique sem comer, não deixará de mandar qualquer coisa ao seu Rodka, dos cento e vinte e cinco rublos da sua pensão, e que a irmã, por ele, será capaz de vender-se como escrava". Era nisto que ele se fundamentava... Por que te estás remexendo dessa maneira? Eu, meu amigo, agora já conheço toda a história, e não foi debalde que tu fizeste confidências a Páchenhka quando ela ainda te tratava como seu parente; falo-te assim pela amizade que te tenho... Bom, o caso é este, um homem honrado e sensível fala com franqueza; mas um homem de negócios escuta e come, e depois continua também a comer. Eis aqui a razão por que ela endossou a letra como paga a esse tal Tchebárov, o qual exigiu, sem contemplação de espécie nenhuma, aquilo que era seu. Eu, quando soube disso tudo, também quis ajudar no que fosse possível, para tranqüilidade da minha consciência, e, como por esse tempo já estávamos em boas relações com Páchenhka, mandei-a suspender a coisa, garantindo-lhe que tu pagarias. Eu respondi por ti, meu amigo, percebes? Mandamos chamar Tchebárov, calamos-lhe a boca com dez rublos de prata, e ele nos entregou a letra, a qual tenho a honra de te apresentar aqui (agora acreditam na tua palavra). Aqui a tens, rasgada e tudo, por mim, como deve ser.

Razumíkhin pôs a promissória sobre a mesa; Raskólhnikov firmou os olhos sobre ela e, sem dizer nada, voltou-se de cara para a parede. Razumíkhin pareceu ficar ressentido.

- Já vejo, meu amigo - disse, passado um instante -, que acabo de fazer um novo disparate. Pensava distrair-te e consolar-te com a minha conversa, mas, segundo parece, não fiz outra coisa senão azedar-te a bílis.

- Eras tu que eu via no meu delírio? - perguntou Raskólhnikov, também depois de um silêncio e sem voltar a cabeça.

- Era eu, sim, e a minha presença provocava-te crises, sobretudo de uma vez que eu trouxe Zamiótov comigo.

- Zamiótov? O secretário? Mas por quê? - Raskólhnikov voltou-se rapidamente e fixou o olhar em Razumíkhin.

- Mas que tens tu? Por que ficaste assim nervoso? Ele queria conhecer-te; foi ele quem se empenhou, visto termos falado tanto em ti. Senão, como podia eu estar tanto a par dos teus assuntos? É um bom rapaz, meu caro; pequenino, extravagante... no seu gênero, naturalmente. Agora nos tornamos amigos, vemo-nos quase todos os dias. Fica desde já sabendo que me mudei para este bairro. Ainda não sabias? Pois mudei; há pouco tempo. Já fomos juntos duas vezes à casa de Lavisa. Lembras-te de Lavisa? Lavisa Ivânovna.

- E eu estava delirando?

- Ai, não! Não sabias o que dizias! - E que dizia eu?

- Essa é boa! Que dizias tu? Ora, as coisas que se costumam dizer quando se delira... Bem, meu amigo, deixemos isso, vamos ao assunto. Levantou-se e pegou o gorro.

- Que dizia eu?

- E ele a dar-lhe! Tens medo de ter deixado transparecer algum segredo? Pois fica descansado que não disseste nada a respeito da condessa, mas falavas não sei de que buldogue, de uns brincos, sim, e também de umas correntes de relógio, e da ilha de Kriestóvski, e não sei de que porteiro, e de Nikodim Fomitch, e de Iliá Pietróvitch, o ajudante do comissário; falaste de tudo isso pelos cotovelos. E, além disso, também mostravas muito interesse pela ponta da tua bota, muito. Gemias: "Dêem-me a ponta da minha bota, só quero isso". Até o próprio Zamiótov se pôs à procura, por todos os cantos, da ponta da tua bota, e entregou-te essa miséria com as suas próprias mãos ungidas de perfumes e enfeitadas de anéis. Então tu ficaste tranqüilo e tiveste nas mãos essa porcaria, durante vinte e quatro horas, tão bem segura que ninguém a podia arrancar de ti. Ainda a deves ter contigo em qualquer lugar, debaixo da roupa da cama. E também perguntavas pela bainha da tua calça, e se visses por entre que lágrimas... Nós até já perguntávamos um ao outro: "Que bainha será essa?" E não havia meio de te entendermos... Mas vamos ao assunto. Aqui tens trinta e cinco rublos; eu levo dez e, dentro de umas duas horas, já os trago para ti. Entretanto informar-me-ei sobre Zósimov, que já devia estar aqui há algum tempo, pois já deu meio-dia. E, Nástienhka, venha vê-lo com freqüência, enquanto eu estiver ausente, e traga-lhe de beber ou qualquer outra coisa de que ele possa precisar... E agora vou despedir-me também de Páchenhka. Até a vista!

- Chama-lhe Páchenhka, o velhaco! - exclamou Nastássia logo que ele saiu. Depois abriu a porta e pôs-se a escutar; mas não pôde conter-se e desceu. Interessava-lhe muito saber o que ele falaria com a patroa, pois era evidente que ele lhe dera volta ao miolo.

Mal ela saiu o doente desvencilhou-se repentinamente do cobertor e saltou da cama como se estivesse meio doido. Esperara com uma impaciência febril que eles saíssem o mais depressa possível, para pôr imediatamente mãos à obra, na sua ausência. Mas que obra? Como se fosse de propósito, agora parecia-lhe que se esquecera. "Senhor, dize-me só uma coisa: eles estarão a par de tudo ou ainda não sabem? Ou já sabem mas fingem não saber, para não me afligirem enquanto eu estou de cama, e depois entrarem de repente e dizerem que já o sabiam há muito tempo? Que fazer agora? Nada, porque, nem de propósito, parece-me que me esqueceu; esqueceu-me de repente, porque ainda há um instante me lembrava."

Estava especado no meio do quarto e, com dolorosa perplexidade, olhou à sua volta; aproximou-se da porta, entreabriu-a e pôs-se a escutar; mas não era disso que se tratava. De repente, como se se tivesse lembrado, foi até o canto, onde havia um buraco debaixo do papel que forrava a parede, e esquadrinhou-o atentamente; mas também não era isso. Dirigiu-se para o fogão, abriu-o e começou a olhar para as cinzas; o pedaço da bainha das calças e as tiras dos bolsos arrancados continuavam ali, tal como ele os deixara, sem que ninguém os tivesse visto. Então lembrou-se também da biqueira da bota, da qual Razumíkhin acabava de falar-lhe. De fato, ali estava, no divã, debaixo do cobertor; mas estava já tão suja e gasta pelas esfregadelas que ele lhe dera que, certamente, Zamiótov não podia ter notado nada nela.

"Oh! Zamiótov! O comissariado! Mas por que me chamaram ali? Onde está a citação? Ora, eu estou fazendo confusão; já foi há tempos que me chamaram. Também já foi há algum tempo que limpei a ponta da bota, e agora... agora estou doente. Mas por que teria vindo Zamiótov? Por que o teria trazido Razumíkhin?", murmurava, extenuado, sentando-se outra vez no divã. "Mas que terei eu? Estarei ainda delirando ou tudo isto é realidade? De fato, parece ser realidade... Ah! já me lembro! Fugir! Sim, mas para onde? Onde está a minha roupa? Sapatos, não tenho. Tiraram-nos! Esconderam-nos! Já entendo. Mas aqui está o meu casaco... Não repararam nele. E em cima da mesa há dinheiro, louvado seja Deus! Aqui está também a promissória... Pego o dinheiro, vou-me embora, mudo-me para outro quarto; não hão de me encontrar... Sim, e a repartição de endereços? Encontrarme-ão! Razumíkhin encontrou-me. O melhor de tudo é fugir para longe... para a América, e cuspir na cara de todos eles. E levar também a promissória... aí poderia ser-me útil. Que hei de levar mais? Eles julgam que eu estou doente. Não sabem que posso sair à rua. Ah, ah, ah! Percebi nos olhos deles que estão a par de tudo. Não preciso de mais nada senão de descer a escada. E se puseram sentinelas, polícias, na escada? Que é isto? Chá? Ah, sim, e também ainda há cerveja, meia garrafa, viva!"

Pegou na garrafa, na qual ainda havia cerveja que chegava para encher um copo, e, com prazer, bebeu-a de um trago, como se quisesse apagar um fogo na sua garganta. Mas ainda não passara um minuto já a cerveja lhe subia à cabeça e pelas costas lhe corria um leve e até agradável calafrio. Deitou-se e cobriu-se com a dobra do cobertor. As suas idéias, já de si doentias e incoerentes, começaram a embrulhar-se cada vez mais e não tardou que um sono leve e agradável se apoderasse dele. Afundou com prazer a cabeça na almofada e embrulhou-se bem no seu macio cobertor de papa, que substituía agora, na sua cama, o velho sobretudo esfarrapado, de outrora; suspirou suavemente e afundou-se num sono profundo, forte, benéfico.

Despertou ao sentir que alguém entrava no seu quarto, abriu os olhos e viu que era Razumíkhin, que escancarara a porta e estava parado à entrada, perplexo: devia entrar ou não? Raskólhnikov ergueu-se apressadamente no divã e ficou olhando para ele, como se se esforçasse por lembrar-se de qualquer coisa.

- Ah, não está dormindo! Bem, então entro, Nastássia, traze cá o embrulhinho - gritou Razumíkhin inclinando-se. - Agora vou dar-te conta de tudo...

- Que horas são? - perguntou Raskólhnikov, olhando à sua volta constrangido.

- Dormiste bem, meu amigo; lá fora já é escuro; devem ser seis horas. Deves ter dormido umas boas seis horas...

- Meu Deus! Mas que tenho eu?

- Ora, que há de ser! É que vais já melhorar. Estás com pressa? Tens alguma entrevista? Agora temos o tempo por nossa conta. Há já três horas que eu estava à tua espera; entrei duas vezes e tu sempre dormindo. Fui à casa de Zósimov por duas vezes, mas não estava! Não faz mal, ele há de vir... Também tratei das minhas coisas. Porque eu me mudei, mudei-me definitivamente, em companhia de meu tio... Fica sabendo que, agora, tenho um tio... Bom, mas para o diabo tudo isso! Dá-me mas é cá o embrulhinho, Nástienhka. Olha, nós... Mas, meu amigo, dize-me primeiro como te sentes.

- Pois bem, já não estou doente... Razumíkhin, estavas aqui há muito tempo?

- Já te disse: há três horas que estou à tua espera. - E antes?

- Antes o quê?

- Há quanto tempo chegaste?

- Mas se eu já te contei tudo em detalhes, ainda há pouco... Não te lembras?

Raskólhnikov ficou pensativo. Como num sonho, lembrou-se de tudo quanto acabava de se passar. Simplesmente não podia lembrar-se de tudo sozinho e olhava interrogativamente para Razumíkhin.

- Hum! - disse este. - Esqueceu-te! Há pouco parecia-me que tu não estavas ainda bem em teu perfeito juízo... Agora, com o dormir, ficaste mais recomposto... De fato, tens melhor aparência. Bravo! Bom, mas vamos ao assunto! Agora hás de lembrar-te. Olha para aqui, meu caro.

Começou a desembrulhar o volume, o qual, segundo lhe parecia, lhe merecia grande apreço.

- Nisto, acredita, meu amigo, tinha eu especial empenho. Porque é preciso fazer de ti um homem. Vamos lá, comecemos pela parte de cima. Vês um gorro? - começou tirando do embrulho um gorro muito bom, mas, ao mesmo tempo, do mais vulgar e barato.

- Queres experimentá-lo?

- Logo, logo - disse Raskólhnikov, repelindo-o com brusquidão.

- Não faças oposição, meu caro Rodka, porque logo será tarde e eu não poderei pregar olho toda a noite ao pensar que me aventurei a comprá-lo sem saber a medida. Está otimamente! - exclamou triunfante, depois de tê-lo posto na cabeça de Raskólhnikov. - Otimamente! No vestir, meu amigo, o mais importante é o adorno da cabeça, é o que nos classifica. O meu amigo Tolstiakov tira sempre a sua carapuça quando entra em qualquer lugar público, onde toda a gente está de chapéu ou gorro. Todos pensam que ele faz isso por um sentimento servil, quando afinal o faz simplesmente porque tem vergonha do seu ninho de cegonhas. É tão pateta! Bom, Nástienhka, aqui tem duas coisas para a cabeça: este Palmerston - e tirava dum canto o amolgado chapelão de Raskólhnikov, ao qual sem saber por que chamava um Palmerston - e este mimo. Vamos ver, Rodka, faze lá um cálculo: quanto pensas que dei por ele? E tu também, Nástiuchka - acrescentou, dirigindo-se a ela ao ver que o outro ficava calado.

- Dois grívieni, pode muito bem ser que tenha dado - respondeu Nastássia.

- Dois grívieni, idiota - exclamou ele, dando-se por ofendido. - Isso nem tu vales! Oito grivieni foi quanto me custou! E isso porque é em segunda mão. Se bem que mo venderam com uma condição: desde que tu

o uses, para o ano que vem dar-te-ão outro de graça. Deus é testemunha! Bem, passemos agora aos Países-Baixos, como dizíamos no colégio. Previno-te de que... me sinto orgulhoso desta calça - e desdobrou à frente de Raskólhnikov uma calça cinzenta, de um tecido leve, de verão. - Nem um buraco, nem uma nódoa, ainda em ótimo estado, embora já muito usada, assim como o colete duma só cor, como é moda. E o fato de já estar usado ainda é melhor: assim fica mais macio, mais suave... Olha, Rodka: para vencer na vida, em meu entender basta obedecer sempre à mudança das estações; se não pedires espargos em janeiro, terás sempre dinheiro; pois o mesmo te digo a respeito desta compra. Agora é temporada de verão, e eu fiz uma compra estival, porque no outono é preciso um tecido mais forte; por isso poderás desfazer-te deste, tanto mais que daqui até lá haverá tempo para ele se desfazer por si, senão por uma forçosa necessidade de luxo, pelo menos por efeito de decomposição interna. Bem, vamos lá ver, faze as contas. Quanto achas que custou? Pois custou dois rublos e vinte e cinco copeques. E repara, também com a mesma condição de há pouco: uma vez que o uses, para o ano que vem dar-te-ão outro de graça. Na loja de Fiediáiev é assim: assim que lhe pagas uma coisa, fica para toda a vida, porque não tornarás lá outra vez. Bem, agora vamos ao calçado. Que calçado! Repara, vê-se muito bem que estas botas já estão usadas; mas ainda poderás fazer muito bem uns dois meses com elas, porque é trabalho estrangeiro e artigo estrangeiro. O secretário da Embaixada inglesa foi vendê-las, a semana passada, a Tolkutchka; só as tinha trazido há uns seis dias; mas andava muito necessitado de dinheiro. Custaram um rublo e quinze copeques. É uma pechincha, não é?

- Mas talvez não lhe estejam na medida - observou Nastássia.

- Não estão na medida? Qual! - e tirou do bolso a bota velha de Raskólhnikov, encarquilhada, toda salpicada de lama seca. - Eu sabia o que fazia e tomaram as medidas exatas por este mostrengo. Correu tudo muito bem. Para a roupa branca, também me entendi com a senhoria. Aqui tem, em primeiro lugar, três camisas de linho com o colarinho à moda. Bem, vamos fazer as contas. O chapéu, oito grívieni; dois rublos e vinte e cinco copeques as outras peças do vestuário, isto é, três rublos e cinco copeques; um rublo e cinqüenta as botas (porque são esplêndidas), total: quatro rublos e cinqüenta e cinco copeques, mais cinco rublos pela roupa interior (porque regateamos bem) fazem ao todo nove rublos e cinqüenta e cinco copeques. Sobraram quarenta e cinco copeques em miúdos, que aqui tens, faze o favor de aceitá-los... E assim, Rodka, contas agora com um traje completo, porque, a meu ver, o teu casaco não só ainda pode servir como tem até um aspecto muito decente. Eis o que significa vestir-se em casa de Scharmer! Quanto às meias e outras coisas, deixo isso a teu cargo; restam-nos vinte e cinco rublozinhos, e quanto a Páchenhka e ao pagamento do quarto, não tens que preocupar-te; já lhe falei: crédito ilimitado. Mas agora, meu amigo, faze o favor de mudares de roupa interior, porque pode ser que toda a tua doença esteja agora na camisa...

- Deixa-me! Não quero! - repudiou-o Raskólhnikov, que escutara de má vontade o relatório que Razumíkhin lhe apresentara da compra daquelas coisas.

- Isto não pode ser, meu amigo. Não havia de ter gasto as minhas solas debalde - insistiu Razumíkhin. - Nástiuchka, não tenhas vergonha e ajuda-me... Isso. - E apesar da resistência de Raskólhnikov, mudou-lhe a roupa interior. Este deixou cair a cabeça na almofada e não disse uma palavra. "Quando é que eles se irão embora?", pensou.

- Com que dinheiro compraste isso tudo? - perguntou finalmente, voltando a cara para a parede.

- Com que dinheiro? Essa é boa! Pois com o teu! Há pouco esteve aqui um caixeiro da loja de Vakhrúchin, por incumbência da tua mãe. Já te esqueceste?

- Agora já me lembro - disse Raskólhnikov, depois dum longo e severo mutismo.

Razumíkhin franziu o sobrolho e ficou olhando para ele, inquieto.

A porta abriu-se e entrou um indivíduo alto e forte que não pareceu completamente desconhecido a Raskólhnikov.

Era Zósimov: um homem alto e gordo, com uma cara cheia e pálida, esmeradamente barbeado: de cabelo loiro, muito claro e cortado rente, com óculos e um grande anel de ouro num dos seus dedos, moles de gordos. Tinha vinte e sete anos. Vestia um casaco folgado e elegante, de meia-estação, e uma calça clara de verão, e, de maneira geral, tudo nele era amplo, elegante e cuidado: a roupa branca, irrepreensivelmente limpa: trazia uma grossa corrente de relógio. Os seus modos eram lentos, quase fleumáticos e ao mesmo tempo, de uma desenvoltura afetada: por muito que o escondesse, o seu preciosismo notava-se sempre. Toda a gente o achava antipático; mas diziam que era bom entendido na sua profissão.

- Fui duas vezes à tua casa, meu caro... Olha, já despertou - exclamou Razumíkhin.

- Bem vejo-te, bem vejo. Então que tal vai isso? - disse Zósimov dirigindo-se a Raskólhnikov, olhando-o atentamente e sentando-se no divã a seus pés, onde, em seguida, tomou um ar despreocupado.

- Está muito suscetível - continuou Razumíkhin. - Há pouco mudamos-lhe a roupa e quase ia chorando.

- É compreensível; teria sido melhor deixar isso para depois, para quando já se levantasse... O pulso está bem. A cabeça ainda lhe dói um pouco, não é verdade?

- Eu já estou bom, completamente bom! - declarou Raskólhnikov com brusquidão e irritação, erguendo-se repentinamente no divã e com os olhos chispantes; mas logo a seguir tornou a recostar-se na almofada e voltou-se contra a parede.

Zósimov não despregava os olhos de cima dele.

- Muito bem... Está tudo como deve ser - disse num tom indolente. - Comeu alguma coisa?

Disseram-lhe o que comera e perguntaram-lhe o que lhe podiam dar de comer.

- Podem dar-lhe tudo... Sopa, chá... Cogumelos e pepinos, é claro que não, nem carne de vaca, nem... Bom, mas temos tanto em que falar! - Trocou um olhar com Razumíkhin. - Nada de xaropes nem de maus remédios! Eu tornarei a passar por aqui amanhã... Talvez hoje já tivesse podido... enfim...

- Amanhã à tarde levo-o a dar um passeio - decidiu Razumíkhin -, ao jardim de Iusupóvski, e depois ao Palácio de Cristal...

- Eu, amanhã, deixá-lo-ia tranqüilo, embora, no fim de contas... um passeiozinho... Bom, depois veremos.

- Ah, que pena! É hoje precisamente que eu inauguro a minha nova instalação, a dois passos daqui. Se ele pudesse vir também... Ainda que fosse só para nos acompanhar, estendido no divã... Mas tu não faltas, hem? - disse Razumíkhin, encarando de repente Zósimov. - Não te esqueças do que me prometeste.

- Sim, talvez possa passar por lá logo. Que arranjaste para nós? - Pouca coisa: chá, aguardente, arenques. Também haverá um empadão; é uma coisa entre amigos.

- Quem mais é que vai... concretamente?

- Vão todos, os do bairro, e quase todos os meus novos conhecimentos, para dizer a verdade... sem falar no meu velho tio; se bem que também seja um novo conhecimento, pois está em Petersburgo apenas desde ontem, veio tratar de uns assuntos. Só nos vemos de cinco em cinco anos.

- Quem é?

- Passou toda a sua vida como chefe de postas num distrito... Recebe uma pensãozinha; sessenta e cinco anos; não vale a pena falar dele... Mas eu lhe tenho amizade. Porfíri Siemiônovitch também virá: é o juiz de instrução do bairro, um jurisconsulto. Mas tu já o conheces...

- Também é teu parente?

- É; mas muito afastado. Mas por que torces o nariz? Só porque discutiram os dois, daquela vez, já não virás?

- Quero lá saber dele para alguma coisa...

- Ora, ainda bem. Bom, e além desses virão também estudantes, professores, um funcionário, um médico, um oficial, Zamiótov...

- Faze o favor de me dizeres que pode haver de comum entre ti e ele - Zósimov apontou com a cabeça para Raskólhnikov - e um Zamiótov qualquer.

- Oh, que desmancha-prazeres! Os princípios! Tu te moves por princípios, como por molas; não te atreves a atuar livremente; mas, para mim, o fundamental é que o homem seja bom. E, francamente, reparando bem, em todas as classes não há muitas pessoas boas. E mais, estou convencido de que não haveria quem desse nem um alho chocho por toda a minha pessoa e a tua juntas.

- Isso é muito pouco; eu, por ti, daria dois...

- Pois eu por ti só dava um, ora toma! Zamiótov ainda é uma criança; eu ainda lhe puxo as orelhas, e por isso é preciso atraí-lo e não espantá-lo. Não é repelindo o homem que ele se corrige; e muito menos um rapaz. Com o rapaz novo é preciso o dobro da prudência. É isso o que vocês, os tolos progressistas, não compreendem. Não respeitam o homem; ofendem-se a si mesmos... E, se queres saber o que há de comum entre nós, digo-te que trazemos os dois um assunto entre mãos.

- Gostava de saber...

- É um assunto relativo ao pintor, quero dizer, ao pintor de paredes... Havemos de acabar por tirá-lo de lá! Embora, por agora, não corra perigo algum. A coisa já está clara, completamente clara. Matamos dois coelhos de uma cajadada!

- Mas que pintor de paredes é esse?

- O quê? Ainda não te contei? Não? É verdade que só comecei a contar-te o princípio... Bom, então ouve: no assassinato da velha usurária, da viúva do funcionário, encontra-se também implicado um pintor...

- Ah, sim! Já te ouvira falar desse crime outro dia e o assunto interessa-me... até certo ponto... por uma casualidade... Li os jornais. Continua. - Também mataram Lisavieta! - exclamou Nastássia de repente, dirigindo-se a Raskólhnikov.

Permanecera durante todo esse tempo no quarto, junto da porta, de ouvido apurado.

- Lisavieta? - murmurou Raskólhnikov, numa voz quase imperceptível. - Lisavieta, sim, a cadela. Não a conhecias? Pois vinha por aqui. Até te passou uma camisa a ferro.

Raskólhnikov voltou-se de cara para a parede, onde, no sujo papel amarelo com florezinhas brancas, escolheu uma destas últimas, muito mal desenhada, toda crivadinha de pequeninas nervuras escuras, e pôs-se a contemplá-la. Quantas folhinhas teria, quantos bicos nas folhas e quantas nervuras? Sentia que as mãos e os pés lhe inchavam como se estivessem a paralisar-se; mas não se esforçava por mudar de posição e continuava com a vista teimosamente fixa na florzinha.

- Bom, e então o que se passa com o tal pintor? - perguntou Zósimov, interrompendo a loquaz Nastássia com certa má vontade especial. Esta deu um suspiro e ficou calada.

- É que também lhe atribuíram o crime - prosseguiu Razumíkhin com veemência.

- Havia provas contra ele? Quais?

- Com mil diabos, que provas havia de haver? E, no fim de contas, quanto a provas só há uma, simplesmente não é uma prova, pois é preciso começar por prová-la. Passa-se o mesmo, com isto, que se passou quando prenderam e deram por implicados no caso esses... Kotch e Piestriakov. Ufa! Como isto está sendo mal conduzido! Sinto vergonha pelos outros! É possível que Piestriakov passe hoje também já por casa... Olha, Rodka, tu já conheces essa história; deu-se antes da tua doença, precisamente na véspera do dia em que tiveste aquele desmaio no comissariado, quando estavam comentando o acontecimento...

Zósimov olhou com curiosidade para Raskólhnikov; este não fez movimento nenhum.

- Sabes uma coisa, Razumíkhin? Estou admirado com o entusiasmo que tomas por este caso! - observou Zósimov.

- Está bem, mas havemos de tirá-lo a limpo - gritou Razumíkhin, descarregando uma punhada sobre a mesa. - Sabes o que mais me irrita em tudo isto? Não é que eles sejam uns imbecis; os enganos podem sempre perdoar-se; o erro é uma boa coisa, porque conduz à verdade. Não. O que é para lamentar é que, além de se enganarem, ainda admirem os próprios erros. Eu, a Porfíri, respeito-o, mas... Olha, por exemplo: o que foi que os desorientou logo desde o princípio? A porta estava fechada e, quando voltaram com o porteiro... encontraram-na aberta. Bem, pois isso quer dizer que Kotch e Piestriakov foram os assassinos. Já vês qual é a lógica deles!

- Não te irrites; a única coisa que fizeram foi prendê-los; não podiam fazer outra coisa... Olha, eu conheço esse Kotch, parece que comprava à velha os objetos que não chegavam a ser resgatados, não era?

- Sim, é um velhaco. Também compra promissórias. É um boa-vida. O diabo que o carregue! Mas não é isso o que me preocupa, compreendes? O que me custa é a rotina dessa gente, essa rotina antiquada, estúpida,

é isso o que me revolta... Porque, repara: pode descobrir-se uma pista nova em todo esse assunto. Fundando-nos só no dado psicológico, pode demonstrar-se como é preciso conduzirmo-nos na perseguição da verdade. "Nós atendemos aos fatos, que diabo!" Sim, mas os fatos não são tudo; pelo menos metade do caso assenta na maneira como se interpretam esses fatos. - E tu sabes interpretar os fatos?

- Sim, não é possível uma pessoa calar-se quando sente, quando sente de um modo palpável que pode ajudar à solução do caso, quando... Ah! Tu conheces todos os pormenores da coisa?

- Estou à espera do que ias dizer-me acerca do caiador!

- Ah, bem! Então ouve a história. Justamente anteontem, passados três dias sobre o crime, de manhã, quando eles ainda estavam às voltas com Kotch e Piestriakov (apesar de estes terem explicado todos os seus passos, que eram evidentes!), aconteceu de repente um fato absolutamente inesperado. Um certo camponês, chamado Dúchkin, dono duma taberna que fica em frente da casa onde se deu o crime, compareceu ao comissariado, depositou ali um estojo de jóias com uns brincos de ouro e contou esta história: "Anteontem à noite, aí pelas nove" (estás reparando no dia e na hora?), "veio procurar-me um operário, um caiador, o qual já anteriormente freqüentava o meu estabelecimento, e que se chama Nikolai, e trouxe-me este estojozinho, que continha uns brincos de ouro, pedindo-me que lhos aceitasse como penhor, em troca de dois rublos; e, quando eu lhe perguntei qual a origem dos brincos, explicou-me que os apanhara na rua. Não lhe perguntei mais nada sobre isso", assim disse Dúchkin, "e dei-lhe uma notinha, ou seja, um rublo (porque calculei que, se eu não lho desse, outro lho daria e, ademais, vinha tudo a dar no mesmo...). Era para a bebida, e mais valia que eu tivesse o objeto em meu poder; assim está mais seguro, tenho-o à mão, e se depois se descobre ou se espalha algum boato, então o apresento". Bem, não há dúvida que isso é uma história da carochinha e que ele mente com quantos dentes tem na boca, porque eu conheço de sobra o tal Dúchkin, que é prestamista e receptador de furtos, e ele não ia ficar com um objeto que vale trinta rublos a Nikolai, para apresentá-lo depois. O caso é que teve medo. Bom, mas tem paciência, continua a ouvir-me; é Dúchkin quem continua falando: "Eu conheço esse camponês, Nikolai Diemiéntiev, desde pequeno, pois é do nosso mesmo governo e distrito, de Zaráisk, e eu também sou de Riazan. Nikolai, sem ser o que se chama um bêbado, gosta de pinga, e todos nós sabíamos que ele trabalhava nessa casa, pintando paredes, juntamente com Mitriéi, que é também seu conterrâneo. Depois de receber a cautela, trocou-a, bebeu dois copinhos, aceitou o troco e foi-se embora; mas nessa altura Mitriéi não estava com ele. No outro dia chegou-nos a notícia de que Alíona Ivânovna e a irmã, Lisavieta Ivânovna, tinham sido assassinadas a machadada, e nós conhecíamo-las às duas, e logo ficamos com a suspeita, por causa dos brincos... porque nos constava que a falecida emprestava dinheiro sobre penhores. Fui procurá-los nessa casa e pus-me a investigar, com muito cuidado; comecei por perguntar: “nikolai encontra-se aqui?' Mitriéi respondeu-me que Nikolai andara na farra na noite anterior e que voltara para casa já de dia, bêbado, e depois de ter estado em casa uns dez minutos voltara a sair; e que ele, Mitriéi, não tornara a vê-lo, e que estava acabando o trabalho sozinho. O trabalho deles era feito um lance de escada abaixo da casa das vítimas, no segundo andar. Depois de ter ouvido aquilo não disse nada a ninguém", continuou dizendo Dúchkin, "mas procurei informar-me de todos os pormenores que pude a respeito do duplo crime e voltei para casa com as suspeitas que já disse. Mas hoje de manhã, às oito, isto é, passados três dias, compreendem?, vejo entrar Nikolai pela minha porta adentro, já um pouco embriagado, mas de maneira que ainda podia seguir uma conversa: senta-se num banco e fica calado. Além dele, nessa manhã estava ainda na taberna um homem desconhecido, e outro, um freguês, que dormia noutro banco, e os meus dois caixeiros: “Viste Mitriéi?', perguntei-lhe eu. “não', respondeu-me ele, “não o vi. ” E tu não estiveste ali?” “Não', respondeu-me, “desde anteontem."E onde passaste esta noite?"Em Piéski', respondeu-me, “com os de Kolomna. “ E onde é que arranjaste esses brincos?' “Encontrei-os na rua', e disse-o de uma maneira estranha, sem olhar para mim. “Mas não ouviste dizer', disse-lhe eu, “isto e aquilo, que, tal noite, a tal hora, na escada tal, aconteceu...?"Não', disse ele, “não ouvi dizer nada', e escutava-me com uns olhos muito abertos e, de repente, fez-se branco como a cal. Então lhe contei tudo, olhei para ele, ele pega o chapéu e dispõe-se a levantar-se. Senti vontade de segurá-lo: “Espera, Nikolai', digo-lhe eu, “não queres beber qualquer coisa?' E, entretanto, faço um sinal ao caixeiro para que segure na porta, saio de trás do balcão; eis senão que ele foge, mesmo nas minhas barbas, sai para a rua, escapole e enfia pela primeira ruela... Mas tive tempo de o ver. Então pus todas as minhas dúvidas de lado, porque o autor do crime é ele..."

- Não há dúvida... - exclamou Zósimov.

- Espera! Ouve o fim! É claro que se lançaram em perseguição de Nikolai com toda a força das suas pernas; prenderam Dúchkin, revistaram-lhe a casa, e a Mitriéi também; também fizeram investigações entre os de Kolomna, e passados três dias encontraram de repente o próprio Nikolai e prenderam-no nas imediações da barreiral de... numa estalagem. Tinha ido para aí, depois de se ter desfeito duma cruz de prata, e pediu em troca um frasco de aguardente, que lhe deram. Passados uns minutos, uma mulher dirige-se ao estábulo e vê por uma fresta que ele atara o seu cinturão a uma viga dum alpendre contíguo e tinha feito um nó corredio, e, encavalitado em cima dum cepo, se dispunha a meter a cabeça por esse nó: a mulher teve a feliz idéia de gritar e acorreu gente. "Que vais fazer?" "Levem-me", disse ele, "a qualquer comissariado, que eu confessarei tudo!" Bem, então levaram-no, com as honras devidas a um comissariado, o deste distrito. Bom, aí começaram com as perguntas de costume: quem era, como foi, que idade tinha (vinte e dois) etc. etc. Perguntaram-lhe: "Quando estavas trabalhando com Mitriéi não viste ninguém na escada a tais e tais horas?" Resposta: "Como toda a gente sabe, entra ali muita gente; mas nós não reparamos em ninguém". "Mas não ouviste nada, nenhum barulho, ou qualquer coisa?" "Não ouvimos nada de especial!" "Mas tu não soubeste, Nikolai, que, nesse mesmo dia e a tal hora, tinham assassinado e roubado uma certa viúva e a irmã?" "Saber, não sabia, e também não o imaginava. A primeira notícia que tive disso foi por Afanássi Pávlitch, quando, passados três dias, lhe ouvi dizer na taberna." "E onde arranjaste os brincos?" "Encontrei-os na rua."

"E por que não foste trabalhar com Mitriéi no dia seguinte?" "Porque apanhei uma bebedeira." "E onde apanhaste essa bebedeira?" "Por aí." "E por que fugiste de Dúchkin?" "Porque fiquei cheio de medo." "Mas de que

é que tinhas medo?" "De que me prendessem?" "Como podias ter medo disso, se te sentias completamente inocente?" Bem, quer acredites ou não, Zósimov, mas fizeram-lhe essa perguntazinha, nos mesmos termos em que eu a formulei, e sei-o de boa fonte, pois ma transmitiram textualmente. Que tal? Que tal?

- Não; mas se há provas?

- Eu não estou agora falando-te das provas, mas das perguntas, e de como eles compreendem a sua missão! Que vão para o diabo! Bem, tanto o atenazaram e apertaram, que ele acabou por declarar-se culpado: "Não foi na rua, diacho, que encontrei os brincos, mas no andar onde estávamos trabalhando eu e Mitriéi". "Mas como?" "Tinha estado ali pintando com Mitriéi durante todo o dia, até as oito, e nos preparávamos para nos retirarmos; Mitriéi vai e pega uma brocha e enlambuza-me a cara toda de tinta, deita a correr, e eu atrás dele. Eu o sigo, gritando-lhe coisas, e, ao sair da escada para o pátio, dou de cara com o porteiro e uns senhores, não sei quantos eram; o porteiro vai e insulta-me, e o outro porteiro também, a mulher do primeiro aparece e põe-se também a insultar-me, e um cavalheiro que estava nesse momento com uma senhora pôs-se também a ofender-me, porque eu e Mitka tínhamos rebolado pelo chão e lhe estorvávamos o caminho; eu tinha agarrado Mitka pelos cabelos e dava-lhe uma sova; e Mitka, apesar de estar debaixo de mim, também me agarrava pelos cabelos e me batia; mas não o fazíamos por mal, era por pura amizade, de brincadeira. Mas depois Mitka safou-se e correu para a rua, e eu saí também correndo atrás dele, mas, como não consegui apanhá-lo, fui e voltei para o andar sozinho... porque precisava de arranjar aí as minhas coisas. Pus-me a fazê-lo esperando que Mitka talvez voltasse. E então, no vestíbulo, ao canto da parede, vou e encontro um pequeno estojo. Olho, vejo-o ali no chão, embrulhado num papel. Tiro o papel, vejo uns parafusos muito pequeninos, puxo-os e vejo uns brincos..."

- Atrás da porta! Estavam atrás da porta? Atrás da porta? - exclamou Raskólhnikov, de repente, lançando um olhar vago e assustado a Razumíkhin, e ergueu-se lentamente, apoiando-se sobre a mão, no divã.

- Sim... Por quê? Que tens tu? Que te interessa isso? - e Razumíkhin levantou-se também do seu lugar.

- Nada! - respondeu Raskólhnikov com uma voz quase imperceptível, tornando a recostar-se na almofada e a voltar-se de cara para a parede. Todos ficaram calados durante um momento.

- Devia estar meio adormecido, sonhando - disse finalmente Razumíkhin, olhando inquisidoramente para Zósimov, que lhe fez um sinal negativo com a cabeça.

- Bem... continua - disse Zósimov. - Que mais?

- Que mais? Pois o nosso homem, assim que viu os brincos, esqueceu-se imediatamente do andar e de Mitka, pegou o gorro e deitou a correr para a taberna de Dúchkin, o qual, como já se sabe, lhe deu um rublo por eles; ele lhe pregou uma mentira dizendo-lhe que os encontrara na rua, e, ato contínuo, foi embebedar-se. Quanto ao duplo crime, mantém o que dissera: "Saber, não sabia; estar a par não estava, só três dias depois ouvi falar disso". "Mas por que não apareceste durante todo esse tempo?" "Porque tinha medo." "Mas por que querias enforcar-te?" "Por causa duma coisa." "Que coisa?" "Porque me iam processar." E aqui está a história toda resumida. E agora, sabes o que é que eles concluíram disso tudo?

- Nem sei o que hei de pensar. Seja como for, há provas, fatos. Mas puseram em liberdade o teu pintor?

- Sim, e o que fazem, agora, é imputar-lhe o duplo crime! Sobre este pormenor, já não têm a menor dúvida...

- Tu mentes, estás delirando. Pois vamos lá a ver: e os brincos? Tu próprio hás de reconhecer que, quando nesse mesmo dia e a essa mesma hora, os brincos do estojo da velha vão parar às mãos de Nikolai... tu próprio hás de concordar que de alguma maneira foi. Não será nada despropositada uma investigação sobre esse ponto.

- Como é que aí foram parar? Como é que foram parar? - exclamou Razumíkhin. - Por casualidade, meu caro doutor; tu, que antes de mais nada o que tens é obrigação de conhecer o homem e tens mais oportunidades do que os outros de estudar a natureza humana... não vês, por todos esses dados, que tipo de indivíduo é esse tal Nikolai? Não vês que tudo quanto ele declarou, desde o primeiro instante, em resposta a esse interrogatório, é uma verdade sacrossanta? Foi isso, vieram parar-lhe às mãos, conforme ele disse. Encontrou-os no estojo e apanhou-os rapidamente!

- Uma verdade sacrossanta! No entanto, no entanto, ele próprio confessou que, a princípio, mentira.

- Escuta-me, escuta-me atentamente: tanto o porteiro como Kotch e Piestriakov, e o outro porteiro, e a mulher do primeiro porteiro, e a vendeira que naquele momento se encontrava na portaria, e o conselheiro da Corte, Kriúkov (4), que precisamente nesse momento se apeava de um coche e entrava no pátio pelo braço duma senhora... Todos, isto é, oito ou dez testemunhas, afirmam unanimemente que Nikolai atirara Dmítri ao chão, que estava por cima dele e lhe batia, enquanto ele, por seu lado, segurava-o pelos cabelos e também lhe batia. Estavam os dois caídos transversalmente e estorvavam o caminho; todos os insultavam, como a uns rapazelhos (expressão literal das testemunhas), estavam um em cima do outro, guinchavam, batiam-se e riam, riam a bandeiras despregadas, com as chalaças mais pesadas, e depois perseguiam-se mutuamente, tal como as crianças que correm pela rua. Ouviste? Agora repara: os cadáveres, lá em cima, ainda estavam quentes, estás ouvindo, quentes, como também os encontraram assim! Se tivessem sido eles os criminosos, ou apenas Nikolai, se ele tivesse roubado a arca por arrombamento, ou tivesse simplesmente tomado parte no furto, peço-te o favor de fazeres somente esta pergunta:

 

* (4) Literalmente: enganchador, aproveitador. (N. do T) *

 

serão compatíveis, por acaso, tal disposição de espírito, isto é, esses gritos, essas risotas, essa rixa infantil mesmo à porta... Com a machada, o sangue, e a criminosa astúcia, os cuidados e o roubo? Imediatamente depois de terem cometido o duplo assassinato, uns cinco ou dez minutos depois... assim o confirmam os cadáveres, ainda quentes... deixam os cadáveres e o andar aberto, sabendo que de um momento para o outro entraria ali gente, e, abandonando o seu saque, eles, como umas criancinhas, atravessam-se no caminho, põem-se a retouçar e a rir, chamando assim a atenção de toda a gente, e ainda por cima há dez testemunhas unânimes que dão fé de tudo isso!

- Não há dúvida que é estranho! É mesmo impossível; mas, no entanto... - Não, meu amigo, não há mas nem meio mas. Se os brincos, que nesse dia e àquela hora se encontravam em poder de Nikolai, constituem uma acusação importante contra ele, o que, aliás, as suas declarações explicam muito bem, sendo por conseguinte uma acusação discutível, neste caso é preciso tomar também em consideração os outros indícios favoráveis, tanto mais que são incontrovertíveis. E julgas tu que, pelo que respeita ao caráter da nossa jurisprudência, eles tomam ou são capazes de tomar esse fato, que se baseia só e exclusivamente na impossibilidade psicológica, na disposição de espírito, por um fato indiscutível, que deite por terra todos os fatos acusadores e materiais, sejam eles quais forem? Não, não o consideram assim, e não o consideram assim porque o indivíduo encontrou o estojo e depois quis suicidar-se, coisa que não teria sido possível se ele não se sentisse culpado! Aqui é que está o ponto mais importante, é isso o que me exaspera. Compreendes?

- Bem vejo que te exaspera! Mas espera, esqueci-me de perguntar: como é que puderam provar que o estojo e os brincos procediam do cofre da velha?

- Isso está demonstrado - respondeu Razumíkhin franzindo o sobrolho e como de má vontade -; Kotch reconheceu o objeto e indicou o seu dono, e este declarou redondamente que era aquela.

- Mau. Agora outra coisa: ninguém viu Nikolai enquanto Kotch e Piestriakov subiram, e não seria possível provar tudo isso?

- Aí é que está o quid(5): é que ninguém o viu - acrescentou Razumíkhin, contrariado. - Isso é que irrita; nem sequer Kotch e Piestriakov os viram subir ao andar, embora o seu testemunho não signifique grande coisa. "Vimos", dizem eles, "que o andar estava aberto, que devia lá haver gente trabalhando; mas, quando passamos, não reparamos nisso, nem pudemos ver se, exatamente nesse momento, havia ali operários trabalhando ou não."

- Hum! Em resumo: não há outra justificação para eles senão a de estarem a bater-se mutuamente e a rir.

 

* (5) Em latim: ponto difícil, busílis. (N. do E.) *

 

Admitamos que seja uma prova poderosa; mas... Deixa-me fazer outra pergunta: como explicas tu todo esse fato? O achado dos brincos, como o explicas tu, se, de fato, foram eles que os encontraram, como dizem?

- Como é que eu o explico? Mas há necessidade de explicá-lo? Se a coisa está claríssima! Pelo menos o caminho que segue o juiz de instrução, que superintende no assunto, é claro e terminante, e, sobretudo, é o estojo que o indica. O verdadeiro criminoso deixou cair esses brincos. O assassino estava lá em cima quando Kotch e Piestriakov chamaram à porta, e tinha-a fechada por dentro. Kotch fez uma tolice em descer também; então o assassino saiu e esgueirou-se pelas escadas abaixo, visto que não havia outra saída. Na escada escondeu-se de Kotch, de Piestriakov e do porteiro, no andar desalugado, precisamente no momento em que Dmítri e Nikolai acabavam de sair dali correndo; ficou à espreita atrás da porta, enquanto o porteiro e aqueles subiam; esperou que desaparecesse o ruído dos seus passos e então deslizou pelas escadas abaixo, com a maior tranqüilidade, exatamente no momento em que Dmítri e Nikolai saíam correndo para a rua, e todos se dispersavam e já não havia ninguém na porta. Pode até ter sucedido que o tivessem visto, mas não repararam nele. Entra e sai ali tanta gente! Mas o estojo caiu-lhe do bolso enquanto estava escondido atrás da porta e ele não deu por isso, ele podia lá ter reparado então numa coisa dessas! O estojo demonstra claramente que ele esteve ali escondido. Aí tens como as coisas se passaram!

- Bem imaginado! Não, meu amigo, não se pode negar que não esteja bem imaginado! Admiravelmente inventado!

- Mas por quê, por quê, por quê?

- Porque tudo isso está demasiadamente bem urdido... e combinado... Tal como no teatro.

"Ah!", esteve quase a gritar Razumíkhin; mas nesse momento a porta abriu-se e entrou uma nova personagem, que nenhum dos presentes conhecia.

 

Era um cavalheiro, já não muito jovem, muito empertigado e solene, o rosto reservado e sereno, o qual começou por ficar parado à porta, olhando à sua volta com um espanto que ostensivamente não procurava dissimular, e como se perguntasse com o olhar:

"Onde é que eu me vim meter?" Contemplou com receio, e fingindo até um certo susto e quase despeito, o estreito e baixo "camarote de barco" de Raskólhnikov. Com a mesma estupefação mudou logo a direção do olhar

e fixou-os em Raskólhnikov, que, também imóvel, em trajes menores, despenteado, sem se ter ainda lavado, prostrado no seu divã misérrimo e ensebado, olhava para ele. Depois pôs-se a contemplar com a mesma meticulosidade a descuidada figura de Razumíkhin, por barbear e pentear, e que por sua vez o fixava diretamente nos olhos, de uma maneira impertinente e interrogativa, sem sequer se mover do seu lugar. O aborrecido silêncio prolongou-se por um momento, até que, finalmente, e como era de esperar, se produziu uma leve mudança no cenário. Tendo compreendido certamente, por alguns indícios, aliás bastante claros, que aquela solenidade altiva e severa não se impunha a ninguém naquele camarote de barco, o visitante dulcificou-se um pouco, e com um tom de voz cortês, ainda que um pouco arrastada, dirigiu-se a Zósimov, e, destacando as sílabas da sua pergunta, interrogou-o:

- Ródion Românovitch Raskólhnikov? Um senhor estudante ou exestudante?

Zósimov endireitou-se lentamente, e pode ser que lhe tivesse respondido se Razumíkhin, ao qual não se tinha dirigido, não se tivesse apressado a responder:

- Ei-lo ali, estendido naquele divã! Mas que deseja? -A familiaridade daquele "Mas que deseja"? ofendeu o presumido senhor; esteve quase a encarar Razumíkhin; mas conseguiu dominar-se e voltou-se em seguida outra vez para Zósimov.

- Aí tens Raskólhnikov - disse Zósimov com indolência, apontando com a cabeça para o doente, depois do que bocejou, abrindo desmedidamente a boca e mantendo-a durante um tempo excessivo nessa posição. Depois, lentamente, tirou da algibeira do colete um relógio de ouro, enorme, maciço, levantou-lhe a tampa, viu as horas e, com a mesma lentidão e indolência, tornou a guardá-lo na algibeira.

Por seu lado Raskólhnikov permaneceu durante todo esse tempo estendido, silencioso, virado para cima e olhando o visitante obstinada mas distraidamente. O seu rosto, que acabava de desviar da curiosa florzinha do papel da parede, estava extremamente pálido e exprimia um sofrimento extraordinário, como se tivesse acabado de sofrer uma operação dolorosa e padecer uma tortura. Mas, pouco a pouco, o visitante começou a despertar nele uma atenção cada vez maior; depois uma suspeita, e, finalmente, desconfiança e até medo. Quando Zósimov o apontou dizendo: "Aí tem Raskólhnikov", ergueu-se de repente, quase de um salto; sentou-se no divã e, com uma voz quase arrastada, embora sincopada e fraca, proferiu:

- Sim! Eu sou Raskólhnikov! Que deseja?

O visitante olhou para ele atentamente, e, em tom digno, declarou: - Piotr Pietróvitch Lújin. Estou absolutamente convencido de que o meu nome não lhe deve ser completamente desconhecido.

Mas Raskólhnikov, que esperava algo completamente diferente, continuou a olhá-lo de uma maneira estúpida e cavilosa, e nada respondeu, como se fosse essa a primeira vez que escutava o nome de Piotr Pietróvitch.

- O quê? É possível que não tenha sabido de nada até agora? - perguntou Piotr Pietróvitch um pouco enfadado.

A resposta de Raskólhnikov foi deixar cair lentamente a cabeça sobre a almofada, passar a mão debaixo da cabeça e pôr-se a olhar para o teto. A cara de Piotr Pietróvitch denotava aborrecimento. Zósimov e Razumíkhin observavam-no com grande curiosidade, até que ele, por fim, perdeu visivelmente a calma:

- Eu supunha, contava que... - balbuciou - a carta posta no correio já há mais de dez dias, talvez há duas semanas...

- Mas escute, por que continua aí, à porta, de pé? - interrompeu-o Razumíkhin de repente. - Se tem alguma coisa a explicar, entre e sente-se; agora os dois, o senhor e Nastássia, não cabem os dois aí juntos! Nástiuchka, afasta-te para o lado, deixa passar! Entre de uma vez; olhe, tem aí uma cadeira, aí! Entre sem cerimônia!

Afastou a cadeira da mesa, deixou um espaço entre esta e os seus joelhos, e esperou, numa posição um pouco forçada, que o visitante atravessasse por esse intervalo. O momento era tão crítico que não era possível recusar, e o visitante passou por essa estreiteza, atropelando e tropeçando. Assim que chegou à cadeira sentou-se e ficou a olhar com indignação para Razumíkhin. - Não se preocupe - disse-lhe ele. - Rodka esteve cinco dias doente e três delirando; mas agora já não tem febre e até já comeu com apetite. Este, que aqui vê, é o médico dele, que acabou precisamente agora de observá-lo, e eu sou um companheiro de Rodka, também ex-estudante, e agora, como pode ver, estou a prestar-lhe assistência; por isso não se preocupe conosco, nem esteja com rodeios, e explique o que deseja.

- Muito obrigado. Mas não prejudicarei o doente com a minha presença e a minha conversa? - perguntou Piotr Pietróvitch dirigindo-se a Zósimov... - Não... não! - balbuciou Zósimov. - Até pode ser que o distraia - e tornou a bocejar.

- Oh, há já algum tempo que recuperou a lucidez, desde esta manhã! - continuou Razumíkhin, cuja familiaridade tinha um tal cunho de ingenuidade que Piotr Pietróvitch reconsiderou e começou a ganhar coragem, talvez também, em parte, devido àquele charlatão insolente se ter apresentado como estudante.

- A sua mamã... - começou Lújin.

- Hum! - pigarreou Razumíkhin com força. Lújin olhou-o interrogativamente.

- Não é nada, tenho este costume; continue... Lújin encolheu os ombros.

- A sua mamã, quando eu ainda estava lá, começou a escrever uma carta para o senhor. Quando eu cheguei aqui, deixei passar uns dias, de propósito, antes de vir vê-lo, para ter assim a certeza de que o senhor já estava a par de tudo; mas agora vejo com assombro...

- Já sei, já sei! - exclamou Raskólhnikov, de repente, com uma expressão do maior desgosto. - É o senhor! O noivo! Bem, pois já sei! E basta! Piotr Pietróvitch sentiu-se vivamente ofendido, mas ficou calado. Esforçando por se dominar, procurava compreender que significava tudo aquilo. Houve um minuto de silêncio.

Entretanto, Raskólhnikov, que se voltara levemente para ele, para lhe responder, pôs-se de súbito a examiná-lo outra vez, de alto a baixo, com uma curiosidade especial, como se alguma coisa de novo nele lhe tivesse chamado a atenção, e para isso até se ergueu da almofada. De fato, em todo o aspecto de Piotr Pietróvitch havia qualquer coisa de especial que chocava e, sobretudo, algo que parecia justificar aquela denominação de "noivo" que acabavam de aplicar-lhe, assim de chofre. Em primeiro lugar era evidente, e era até sobretudo notável, que Piotr Pietróvitch se tivesse aproveitado dos poucos dias em que estava na capital para brunir-se e alindar-se, enquanto esperava a sua prometida, o que, afinal, era uma coisa natural e inocente. Até a sua impressão pessoal, demasiado satisfatória talvez, de que nele se operara uma transformação favorável, se podia perdoar-lhe naquela ocasião, visto que Piotr Pietróvitch pertencia à categoria dos noivos. O seu traje era acabadinho de sair do alfaiate, e era impecável, a não ser talvez por ser demasiado vistoso e deixar transparecer com demasiada evidência aquilo a que se destinava. Até o chapéu coco, elegante, novinho mostrava a que se destinava: Piotr Pietróvitch parecia tratá-lo com excessivo respeito e segurava-o na mão com o maior cuidado. Também o magnífico par de luvas lilás, marca Jouvin, autêntica, mostrava o mesmo, embora fosse somente pelo fato de não as ter calçado, e apenas segurar na mão, para vista. No traje de Piotr Pietróvitch predominavam as cores claras e juvenis. Trazia uma bonita jaqueta cor de canela clara, uma calça de verão também clara, com colete igual, uma camisa fina, acabada de estrear, uma gravata de batista finíssima, com listras cor-de-rosa, e o melhor era que tudo isso se harmonizava perfeitamente com a figura de Piotr Pietróvitch. O seu rosto, muito fresco e até bonito, não precisava de nada disso para não parecer os seus quarenta e cinco anos. Umas suíças escuras, em forma de costeleta, punham uma nota agradável na sua cara e alargavam-se graciosamente de ambos os lados da barba, cuidadosamente rapada. Até o cabelo, aliás, já um pouco grisalho, penteado e ondulado pelo cabeleireiro, não apresentava por isso nada de ridículo nem de estúpido, como costuma acontecer sempre com os cabelos frisados artificialmente, pois dão a um indivíduo uma semelhança fatal com um alemão quando vai casar-se. Se havia qualquer coisa de antipático e desagradável naquela fisionomia era devido a outras razões. Depois de ter olhado com o maior descaramento para o senhor Lújin, Raskólhnikov sorriu amargamente, tornou a recostar-se na almofada e pôs-se, como anteriormente, a olhar para o teto.

Mas o senhor Lújin ganhou coragem e, pelo visto, resolveu não reparar por enquanto nessas extravagâncias.

- Sinto muito, muitíssimo, vir encontrá-lo em semelhante estado - começou novamente, interrompendo o silêncio com um esforço. - Se soubesse que estava doente, já teria vindo. Mas os negócios, como sabe... Além disso, tenho agora um assunto importantíssimo da minha profissão forense, no Senado. É escusado falar-lhe desses assuntos, já deve calcular como são. Estou à espera da sua mãe e da sua irmãzinha, de um momento para o outro...

Raskólhnikov movimentou-se e parecia que ia dizer qualquer coisa: no seu rosto refletiu-se uma leve animação. Piotr Pietróvitch fez uma pausa, esperou, mas, como ele não dizia nada, continuou:

- De um momento para o outro. Por agora, já lhes arranjei quarto. - Onde? - perguntou debilmente Raskólhnikov.

- Muito perto daqui, no edifício Bakaliéiev... (1)

- Fica no Próspekt Vosniessiénski - interrompeu-o Razumíkhin. - Aí há dois andares para hóspedes, cujo dono é o comerciante lúchin: eu estive lá...

- Sim, têm quartos mobiliados...

- Tudo quanto há de mais repugnante: sujidade, mau cheiro e, além disso, é uma casa suspeita; passaram-se lá coisas muito feias, e sabe Deus a gente que lá mora... Eu próprio fui lá por causa de uma aventurazinha... escandalosa. No entanto é baratinho, lá isso é...

 

* (1) Os prédios eram designados pelo nome do proprietário. Assim sendo, o autor deu ao dono desta casa este nome, que vem de bakaliéinaia lavka (venda). (N. do T.) *

 

- É claro que eu não podia saber tão bem dessas coisas, sou um estranho aqui - respondeu Piotr Pietróvitch um tanto azedo. - Mas, seja como for, ofereceram-me aí dois quartos esplêndidos e com tanta rapidez... Já escolhi um outro, que há de ser o nosso verdadeiro quarto - e dirigiu-se a Raskólhnikov -, mas, agora, ainda andam a arranjá-lo, e, entretanto, eu também estou hospedado, a dois passos daqui, em casa da senhora Lippewechsel, no andar dum jovem amigo meu, Andriéi Siemiônovitch Liebiesiátnikov; foi ele quem me indicou a casa Bakaliéiev.

- Liebiesiátnikov? - interveio, imediatamente, Raskólhnikov, como se se tivesse lembrado de qualquer coisa.

- Sim, Andriéi Siemiônovitch Liebiesiátnikov, que trabalha no Ministério. Conhece-o?

- Sim... Não... - respondeu Raskólhnikov.

- Desculpe, mas pareceu-me que o conhecia, a julgar pela sua pergunta. Em tempos, eu fui tutor dele... É um rapaz muito novo... e de idéias avançadas... Eu gosto muito de conviver com gente nova; deles, aprendem-se sempre coisas novas - e Piotr Pietróvitch olhou com esperança para todos os presentes.

- Em que sentido diz o senhor isso? - perguntou-lhe Razumíkhin. - No sentido mais sério, por assim dizer, no sentido essencial - encareceu Piotr Pietróvitch, como se tivesse ficado satisfeito com a pergunta. - Havia já dez anos que eu não vinha a Petersburgo. Todas estas novidades, reformas, idéias, tudo isto chega também até nós, os da província; mas para ver as coisas claramente, para ver tudo, é necessário estar em Petersburgo. Bem, e o meu pensamento era que a melhor maneira de observar e aprender era estudar as nossas novas gerações. Eu confesso, fiquei entusiasmado.

- Com quê, concretamente?

- A sua pergunta é muito vasta. Posso estar enganado, mas parece-me que aqui há vistas mais largas, por assim dizer; mais crítica, mais sentido prático...

- Lá isso é verdade - disse Zósimov com indiferença.

- Isso é mentira, esse sentido prático não existe - interveio Razumíkhin. - O sentido prático é difícil de criar, e não cai do céu aos trambolhões. E nós quase há duzentos anos que temos as costas voltadas a tudo quanto é prático... Idéias, sim, pululam - e encarou Piotr Pietróvitch -; o desejo do bem existe, embora sob uma forma pueril, e honestidade também se encontra, apesar de que, visíveis ou encobertos, abundam os velhacos; mas, pelo que respeita a sentido prático, não existe de maneira nenhuma. Quanto a senso prático, nada!

- Não estou de acordo com o senhor - objetou com visível prazer Piotr Pietróvitch -; não há dúvida de que existem exageros, irregularidades; mas é preciso ser indulgente. Os exageros são o testemunho do entusiasmo pelos empreendimentos e do ambiente exterior anormal em que se realizam. Se o que está feito ainda é pouco, não se esqueça de que também ainda tivemos pouco tempo. Nos meios, nem falo. A minha opinião pessoal, se isso não lhe pesa, é que alguma coisa se tem feito; espalharam-se pensamentos novos, úteis; publicaram-se obras novas, úteis, em vez dessas antigas, sonhadoras e fantasistas; e a literatura apresenta um caráter mais amadurecido; arrancaram-se e ridicularizaram-se muitos preconceitos... Enfim, afastamo-nos para sempre do passado, e parece-me que isto já é alguma coisa. - Já trazia isso tudo engatilhado! Para fazer vista! - exclamou de repente Raskólhnikov.

- O quê? - perguntou Piotr Pietróvitch, que não ouvira bem, mas sem obter resposta.

- Tudo isso é verdade - apressou-se Zósimov a observar.

- Então não é? - prosseguiu Piotr Pietróvitch, dirigindo um olhar amigável a Zósimov. - O senhor mesmo há de reconhecer - continuou, dirigindo-se a Razumíkhin, mas já com indícios de uma certa arrogância

e superioridade; e quase acrescentava: "rapaz" - que há um avanço, ou, como se diz agora, um progresso, ainda que seja apenas no terreno da ciência e do direito econômico...

- Isso é lugar-comum!

- Não, não é um lugar-comum! Se a mim, por exemplo, em outro tempo, me tivessem dito: "Ama o teu próximo", e eu o tivesse amado, que teria resultado disso? - continuou a dizer Piotr Pietróvitch, talvez com demasiada pressa. - O resultado seria eu ter rasgado o meu caftã em dois, tê-lo repartido pelo próximo, e ficaríamos os dois desremediados, como diz o ditado russo: "Persegue várias lebres ao mesmo tempo que ficarás sem nenhuma". Mas a ciência diz: "Antes de mais ama-te a ti próprio, porque tudo no mundo está baseado no interesse pessoal. Se te amares a ti próprio farás os teus negócios como deve ser, e o teu caftã permanecerá inteiro". O direito econômico diz-nos que, quanto mais negócios particulares existem na sociedade e, por assim dizer, mais caftãs inteiros, tanto melhor para a firmeza dos seus fundamentos e tanto melhor para a gestão do negócio coletivo. Por isso, cuidando única e exclusivamente de mim, é precisamente a maneira de também cuidar dos outros e fazer com que o meu próximo receba mais qualquer coisa do que um caftã partido em dois, e isso sem ser devido a mercês particulares e únicas, mas como conseqüência do progresso geral. Idéia simplicíssima, mas que, por infelicidade, só demasiado tarde se concebeu e acabou por ser suplantada pelos entusiasmos e pelos sonhos; apesar de que, segundo parece, não é preciso muita esperteza para compreender...

- Desculpe, mas eu também não sou nada esperto - atalhou bruscamente Razumíkhin. - Por isso não continue. Repare que eu comecei falando com uma finalidade concreta; mas, a mim, toda essa facúndia narcisista, todas essas vacuidades, todos esses intermináveis lugares-comuns e todo esse falar por falar me fartaram de tal maneira, durante três anos, que eu juro que me envergonho quando os outros, não eu, se põem a discutir assim na minha presença. O senhor, naturalmente, está ansioso por estender os seus conhecimentos, o que é muito digno, e eu não o censuro. Mas eu, agora, só queria saber quem é o senhor, porque, repare: ultimamente têm-se metido nos assuntos públicos tantos "cavalheiros de indústria", e a tal ponto se entregam à busca de tudo quanto se lhes afigura ser o seu próprio interesse, que, decididamente, deitaram tudo a perder. Bem, mas já chega!

- Com certeza - começou por dizer Lújin com um ar de dignidade ofendida - que o senhor não quer dar a entender, assim, sem mais nem menos, que eu também...

- Por favor, por favor... Eu não seria capaz disso! - respondeu Razumíkhin, e, bruscamente, pôs-se a reatar o seu anterior diálogo com Zósimov. Piotr Pietróvitch parecia ter suficiente inteligência para aceitar como boa essa explicação. Demais, havia já dois minutos que tomara a resolução de retirar-se.

- Espero que esta nossa nascente amizade - disse, encarando Raskólhnikov - se fortaleça ainda mais assim que esteja completamente restabelecido, e em virtude das circunstâncias que já sabe... Desejo-lhe sobretudo saúde...

Raskólhnikov nem sequer moveu a cabeça; Piotr Pietróvitch começou a levantar-se do seu lugar.

- Não há dúvida, quem a matou foi um dos seus clientes - afirmou Zósimov com energia.

- É mais que certo, foi um dos clientes! - concordou Razumíkhin. - A Porfíri, não há ninguém que lhe tire isso da cabeça, mas, no entanto, interrogou os clientes da velha...

- Interrogou os clientes? - perguntou Raskólhnikov em voz alta. - Sim; por que perguntas isso?

- Por nada.

- Mas como é que ele os encontra? - perguntou Zósimov.

- Uns, foi Kotch que os indicou; outros tinham os nomes escritos nos invólucros dos objetos empenhados, e outros também se apresentaram espontaneamente, assim que souberam...

- Bem, mas devia ser um canalha astuto e habituado! Mas que resolução!

- Nada disso! - interrompeu Razumíkhin. - Isso é o que vos desorienta a todos. Mas, para mim... trata-se de um indivíduo inábil, sem prática, e, com certeza, este deve ter sido o seu primeiro passo. Se supuserem que é um canalha astuto, tudo se torna inverossímil. Mas suponham, pelo contrário, que se trata de um indivíduo sem prática; verão logo claramente que foi apenas a casualidade que o livrou de apuros. O acaso pode muito. Até pode ser que ele não previsse o que ia fazer. Rouba objetos que podem valer dez, vinte rublos; guarda-os nos bolsos e põe-se a rebuscar no baú da velha, por entre os trapos... e, entretanto, na cômoda, na gaveta, numa caixinha, havia mil e quinhentos rublos em metal sonante, sem contar com as cautelas! E nem sequer soube roubar, só soube matar! Era o seu primeiro passo, repito-te, o seu primeiro passo; atrapalhou-se! E não foi o cálculo, mas apenas a casualidade que o livrou de dificuldades!

- Pelo visto estão falando do recente assassinato da velha usurária - interveio, dirigindo-se a Zósimov, Piotr Pietróvitch, que já estava de pé com o chapéu e com as luvas na mão, mas que queria dizer algumas frases inteligentes antes de se ir embora. Parecia que se esforçava por impressionar e a vaidade transtornava-lhe o raciocínio.

- Sim; ouviu falar disso?

- Claro que ouvi! Entre os vizinhos... - E está a par de todos os pormenores?

- Não posso precisar; mas, a mim, em tudo isso há outra circunstância que me interessa e que é já, por assim dizer, um problema. Já não quero falar de que a delinqüência, entre as classes baixas, nos últimos cinco anos sofreu um grande incremento; também não falo dos contínuos roubos e incêndios; o mais estranho de tudo, para mim, é que também nas classes elevadas da sociedade aumentou igualmente a criminalidade e, por assim dizer, paralelamente. Aqui é um antigo estudante que assalta uma carruagem de correio em plena estrada; ali, indivíduos de idéias avançadas e que ocupam uma boa posição social... põem-se a fabricar moeda falsa; além, em Moscou, prendem um bando inteiro de falsários que operavam na loteria do último sorteio... e vê-se que um dos principais comprometidos é um catedrático de história universal; noutro lado assassinam um dos nossos secretários no estrangeiro para o roubarem e também por alguma outra obscura razão... E se agora se chega à conclusão de que essa velha prestamista foi assassinada por algum indivíduo das classes elevadas, uma vez que os camponeses não têm objetos de ouro para empenhar, como explicar este desenfreamento duma boa parte da nossa sociedade civilizada?

- A mudança das condições econômicas contribui grandemente para isso - disse Zósimov.

- Mas como explicá-lo? - interveio Razumíkhin. - Pode explicar-se pela nossa excessiva falta de sentido prático.

- Que quer dizer com isso?

- Sabe o que respondeu em Moscou esse catedrático, a que se referiu, à pergunta sobre o motivo por que falsificara notas? "Toda a gente enriquece de várias maneiras, e, por isso, eu também quis enriquecer." Não me recordo das palavras exatas, mas a idéia era essa: enriquecer fácil e rapidamente, e com pouco custo! Estão acostumados a viver com toda a moderação, apelam para os auxílios alheios, comem coisas já mastigadas. Bem, depois, quando lhes chega a hora, cada qual mostra aquilo que é...

- Não há dúvida, mas a moral? E, por assim dizer, as leis...

- Mas por que se preocupa? - interveio Raskólhnikov inesperadamente. - Tudo isso deriva das suas próprias teorias!

- Como das minhas teorias?

- Desenvolva o senhor, até as suas conseqüências, aquilo sobre que acaba de dissertar, e verá como se pode matar toda a gente.

- Por favor! - exclamou Lújin.

- Não, não é isso! - observou Zósimov.

Raskólhnikov estava estendido, pálido, com o lábio superior tremendo, e a respiração ofegante.

- Mas há um meio-termo em tudo - continuou Lújin altivamente -, a idéia econômica não é, no entanto, um convite ao assassinato, e supondo somente...

- Mas é verdade ou não? - tornou a atalhar Raskólhnikov com uma voz trêmula de cólera e que deixava transparecer uma alegria ofensiva. - É verdade que o senhor disse à sua noiva... no próprio instante em que obteve

o seu consentimento, que aquilo que lhe agradava acima de tudo era... o fato de ela ser pobre... porque é preferível casar com uma mulher pobre para ter domínio sobre ela... e poder lançar-lhe em rosto que é nossa protegida?

- Senhor! - exclamou Lújin colérico e irritado, muito vermelho e desconcertado. - Senhor! Desvirtuar assim o meu pensamento! Desculpe, mas eu tenho obrigação de demonstrar-lhe que os boatos que chegaram até os seus ouvidos não têm o menor fundamento, e eu... eu já imagino quem... Numa palavra... Essa alusão... Em resumo: a sua mãe... Mesmo sem falar nisso, ela já tem demonstrado, juntamente com outras indubitáveis boas qualidades, uns certos entusiasmos fantasiosos na sua maneira de pensar... Mas eu estava muito longe de supor que pudesse vir a imaginar as coisas com esse aspecto deformado pela fantasia... E, finalmente...

- Sabe uma coisa? - exclamou Raskólhnikov, endireitando-se na almofada e lançando-lhe um olhar fixo, penetrante e cintilante. - Sabe uma coisa?

- O quê? - Lújin deteve-se e aguardou com uma expressão ofendida e de desafio. Houve silêncio durante uns segundos.

- Que, se para a outra vez o senhor torna a ter a ousadia de dizer uma só palavra... a respeito da minha mãe... irá de roldão por essa escada abaixo!

- Mas que tens tu? - exclamou Razumíkhin.

- Ah, é isso?! - Lújin empalideceu e mordeu o lábio. Escute, senhor - começou depois de uma pausa e reunindo todas as suas energias para se conter, e respirando ofegantemente -, eu, há um momento, desde que aqui entrei, adivinhei a sua antipatia, mas fiquei aqui para o conhecer melhor. Posso perdoar muita coisa a um doente e a um parente, mas agora já... ao senhor... nunca!

- Eu não sou um doente! - exclamou Raskólhnikov. - É pior do que isso...

- Vá para o diabo!

E Lújin saiu sozinho, sem acabar a frase, tornando a abrir caminho dificilmente por entre a mesa e a cadeira; dessa vez Razumíkhin levantou-se para dar-lhe passagem. Sem olhar para ninguém e sem fazer sequer uma inclinação de cabeça a Zósimov, o qual lhe fazia sinais para que deixasse o doente em paz, Lújin retirou-se, levantando por precaução o chapéu à altura do ombro, e teve de agachar-se para atravessar a porta. Até a maneira de dobrar as costas revelava o terrível ressentimento que levava.

- Mas é possível, é possível que tu sejas assim? - disse Razumíkhin, perplexo, movendo a cabeça.

- Deixa-me, deixem-me todos! - gritou Raskólhnikov com fúria. - Deixem-me de uma vez, verdugos! Eu não tenho medo de vocês! E agora já não tenho medo de ninguém, de ninguém! Fora daqui! Quero estar só, só, só! - Vamo-nos! - disse Zósimov fazendo um sinal a Razumíkhin.

- Mas nós podemos deixá-lo assim?

- Vamos! - insistiu Zósimov, e saiu. Razumíkhin refletiu e foi atrás dele.

- Seria pior se não lhe tivéssemos dado importância - disse Zósimov, já na escada. - Não convém irritá-lo...

- Mas que tem ele?

- Se ao menos lhe acontecesse qualquer coisa de agradável! Há pouco estava bem... Não há dúvida que anda apreensivo com qualquer coisa! Qualquer idéia fixa, dolorosa... Tenho muito medo que seja isso, porque, então, já não teria remédio!

- Este senhor Piotr Pietróvitch está metido no caso! Das suas palavras conclui-se que vai casar-se com a irmã, e que Rodka, antes de cair doente, recebeu uma carta sobre o caso...

- Sim, foi o diabo ele ter aparecido agora; pode ser que tenha deitado tudo a perder. Mas já reparaste que ele se mostra indiferente a tudo e está sempre calado, a não ser quando se toca num ponto, que o põe fora de si: esse tal crime?

- Sim, sim! - concordou Razumíkhin. - Eu também já reparei nisso! Fica interessado e assustado. Já no primeiro dia da sua doença ficou assustado, quando estava no comissariado, onde desmaiou.

- Esta noite hás de contar-me isso mais pormenorizadamente, e eu depois também te contarei uma coisa. O caso interessa-me muito! Dentro de meia hora voltarei a vê-lo... Aliás, uma congestão não é de recear.

- Graças a ti! Entretanto eu esperarei por ti com Páchenhka, e estarei a par de tudo por Nastássia!

Quando ficou sozinho, Raskólhnikov olhou com impaciência e aborrecimento para Nastássia; mas esta não se dispunha a sair.

- Queres chá? - perguntou-lhe.

- Depois! Agora, o que quero é dormir. Deixa-me... - Voltou-se convulsivamente de cara para a parede; Nastássia saiu.

 

Mal ela saiu, ele se levantou, fechou a porta, desfez o embrulho que Razumíkhin trouxera e que atara de novo, e começou a vestir-se. Coisa estranha: parecia que, de repente, se apoderara dele uma tranqüilidade absoluta; não se encontrava no estado de semidelírio, como antes, nem de temor pânico, como nos últimos tempos. Era esse o seu primeiro momento de certa, rara e repentina serenidade. Os seus movimentos eram precisos e claros, e neles transparecia uma intenção firme: "Hoje mesmo, hoje mesmo!", murmurava para consigo. Compreendia, no entanto, que ainda estava fraco, mas uma excitação espiritual violentíssima, que raiava pela apatia, pela idéia fixa, infundia-lhe forças e serenidade; quanto ao mais, esperava não cair na rua. Depois de se ter vestido completamente de novo, olhou para o dinheiro que estava em cima da mesa, refletiu um momento e guardou-o no bolso. Eram vinte e cinco rublos. Pegou também todas as moedas de cobre, que constituíam o troco dos dez rublos usados por Razumíkhin na compra do vestuário. Depois, devagarinho, correu o fecho da porta, saiu do quarto, começou a descer as escadas e deitou um olhar para a porta da cozinha, aberta de par em par. Nastássia estava de costas e soprava sobre o samovar da dona da casa. Não deu por ele. E quem é que podia imaginar que ele fosse sair? Um minuto depois já estava na rua. Eram oito horas. O sol declinava já. O calor abafado era o mesmo de antes, mas aspirou com avidez aquela atmosfera malcheirosa, pulverulenta, que emanava da cidade. A princípio, a cabeça começou a dar-lhe algumas voltas, mas uma certa energia selvagem brilhou de repente nos seus olhos congestionados e no seu rosto macerado, de uma lividez amarelenta. Não sabia, nem sequer se preocupava com saber onde é que iria; só sabia uma coisa: que era preciso acabar com tudo aquilo hoje, de uma vez, naquele mesmo instante; que à sua casa não voltaria, pois não queria viver ali. Como acabar? Por que meio acabar? Disso não fazia a menor idéia, e pensar nisso, de maneira nenhuma. Afugentava essa idéia, essa idéia afligia-o. Só sentia e sabia que era preciso que tudo mudasse de uma maneira ou de outra, fosse como fosse, repetia com desolada, imperturbável segurança.

Seguindo um antigo costume, encaminhou-se diretamente para o Mercado do Feno, pelo caminho habitual dos seus antigos passeios. Antes de chegar aí, no passeio, diante duma mercearia estava parado um jovem, tocador de realejo, que tocava uma canção muito sentimental. Acompanhava-o uma mocinha, que estava também parada, devia ter os seus quinze anos, vestida como uma senhora, de crinolina, mantilha, luvas e um chapeuzinho de palha com uma pluma cor de fogo, tudo já velho e usado. Com uma voz de cana rachada e tremente, embora bastante agradável e forte, a mocinha entoava a sua canção, esperando que, na loja, lhe dessem alguns copeques. Raskólhnikov, que parara, juntando-se ao círculo de dois ou três ouvintes, puxou de uma piatak e pô-la na mão da mocinha. Esta, de repente, interrompeu o seu canto na nota mais impressionante e aguda, como se alguém a tivesse degolado; num tom seco gritou para o do realejo: "Basta"!, e ambos seguiram para diante, até a loja próxima.

- Gosta das cantigas de rua? - perguntou Raskólhnikov, de súbito, dirigindo-se a um transeunte que parara junto dele para escutar o realejo e que tinha aspecto de ser um eterno passeante. Olhou para ele assustado

e admirado. - Pois eu gosto - continuou Raskólhnikov, mas de uma maneira que não parecia referir-se às canções de rua -, gosto quando são cantadas ao som do realejo, numa fria, lôbrega e úmida tarde de outono; tem de ser uma tarde úmida, quando todos os transeuntes trazem umas caras de um verde pálido e doentio, ou, para melhor dizer, quando cai a neve derretida, completamente a direito, sem vento, está compreendendo, e através dela brilham as lâmpadas de gás...

- Não compreendo... Desculpe - murmurou o interpelado, assustado tanto pela pergunta como pelo aspecto estranho de Raskólhnikov, e passou para o outro passeio da rua.

Raskólhnikov seguiu para diante, a direito, e foi ter àquele canto do Feno onde tinha a sua pequena loja aquele casal que, da outra vez, estava falando em Lisavieta; mas agora não estava lá. Reconhecendo o lugar, Raskólhnikov parou, deitou uma olhadela para ali e reparou num rapaz de camisa vermelha que bocejava à entrada dum armazém de cereais. - Ouça, que é feito desse comerciante que tem aí o seu lugar, juntamente com a mulher?

- Aqui todos são comerciantes - respondeu o rapaz, olhando para Raskólhnikov por cima do ombro.

- Como se chama?

- Com o nome que lhe deram na pia do batismo. - Tu não és de Zaráisk? De que governo?

O rapaz tornou a medir Raskólhnikov com os olhos.

- O nome, meu senhor, não é governo, mas distrito; era o meu irmão que ia e vinha, enquanto eu não saía de casa; por isso não sei nada. Mil desculpas, senhor.

- Aquilo lá em cima é uma taberna?

- É uma casa de pasto e tem sala de bilhar, até lá vão príncipes... Catita! Raskólhnikov atravessou a praça. Ali, num canto, via-se uma grande multidão, tudo homens. Abriu caminho por entre aquele aperto, examinando as caras. Sem saber por que, sentia vontade de falar com toda a gente. Mas os camponeses nem sequer reparavam nele e falavam uns com os outros, dispersos em grupos. Ele parou, reconsiderou e voltou à direita, no passeio, em direção à Avenida V... Abandonando a praça, meteu-se por uma ruela.

Já antigamente era freqüentador assíduo daquela curta ruela, que fazia um cotovelo e levava da praça à rua Sadóvaia. Nos últimos tempos, até lhe agradava vaguear por todos aqueles lugares, quando o tédio se apoderava dele, para se entediar ainda mais. Agora passava por ali sem pensar em nada. Há aí um grande prédio todo ocupado por tabernas e outros estabelecimentos de comidas e bebidas, de onde saíam continuamente mulheres vestidas como se andassem em casa, descobertas e em saia de baixo. Reuniam-se no passeio em dois ou três lugares, em grupos, sobretudo à porta do andar inferior, onde, subindo dois pequenos poiais, se podia passar para vários estabelecimentos muito divertidos. Num deles ouvia-se nesse instante uma algazarra e um rebuliço que ecoavam por toda a rua; tocavam guitarras, vibravam canções e estavam todos muito alegres. Um grande grupo de mulheres se amalgamava à porta: umas estavam sentadas nos degraus; outras no passeio; outras ainda estavam de pé e conversavam. Ali perto, no passeio, um soldado embriagado, de cigarro na boca, cambaleava e lançava insultos em voz alta, e parecia que queria entrar em qualquer lugar, simplesmente tinha-se esquecido onde. Um andrajoso trocava injúrias com outro andrajoso, e um ébrio que não podia equilibrar-se dava tropeções no meio da rua. Raskólhnikov parou diante duma grande roda de mulheres. Falavam em voz alta; traziam todas saias de baixo de indiana, sapatos de pele de cabra e não tinham nada a cobrir-lhes a cabeça. Algumas passavam já dos quarenta, mas também as havia de dezessete, quase todas com olheiras.

Sem saber por que, atraíram-no as cantigas e todo aquele alvoroço e algazarra que vinha lá de baixo... Percebia-se que, aí, por entre ditos e gritos, acompanhado por uma voz fina de cana rachada e ao som da guitarra, alguém dançava desesperadamente, marcando o compasso com os tacões. Ele, atento, triste e pensativo, ficou escutando junto da porta e espreitando, curioso, do passeio para o interior.

Ó meu lindo soldadinho Não me batas sem motivo,

dizia a voz fina do cantador. Raskólhnikov sentia uma terrível vontade de escutar os que cantavam, como se tudo se resumisse a isso.

"Por que não entrar?", pensou. "Riem de bêbados. Por que não hei de eu beber também até embriagar-me?"

- Não entra, meu caro senhor? - perguntou-lhe uma das mulheres com uma voz bastante clara e ainda fresca. Era uma moça e não tinha nada de repulsivo... A única de todo o grupo.

- És muito bonita! - respondeu ele, endireitando-se e contemplando-a. Ela sorriu; aquele galanteio tinha-a lisonjeado muito.

- O senhor também é! - disse ela.

- Mas está tão fraquinho! - observou outra com voz de baixo. - Saiu agora do hospital, não?

- Parecem filhas de generais, mas nem por isso deixam de ter o nariz esborrachado - disse de repente um camponês que se aproximara do grupo, já um pouco "alegre", com o colete desabotoado e uma careta de esperteza trocista. - Estão muito bem-dispostas!

- Entra, já que estás aqui.

- Pois então, com mil diabos, entro! E entrou.

Raskólhnikov dispôs-se a continuar o seu caminho.

- Escute, meu senhor! - gritou a mulher atrás dele. - O que é?

Ela ficou perturbada.

- Eu teria muito gosto em passar uns momentos com o senhor. Mas, agora, sinto-me envergonhada na sua presença. Vamos, simpático, seis copeques para um copinho.

Raskólhnikov tirou tudo o que achou no bolso: três piatáki. - Ah, que senhor tão bondoso!

- Como te chamas? - Aqui sou Duklida.

- Ora vejam só! - observou de repente outra do grupo, movendo a cabeça. - Não sei como há quem possa pedir assim, dessa maneira! Eu, francamente, morreria de vergonha!

Raskólhnikov olhou com curiosidade para a que falara. Era uma mulher picada de bexigas, de uns trinta anos, toda coberta de vergões, com o lábio superior inchado. Falara e censurara a outra com muita calma e seriedade.

"Onde", pensou Raskólhnikov, continuando o seu caminho, "onde é que eu li aquilo de um condenado à morte que no momento de morrer dizia ou pensava que se o deixassem viver num alto, numa rocha e num espaço tão reduzido que mal tivesse onde pousar os pés - e se à volta não houvesse mais que o abismo, o mar, trevas eternas, eterna solidão e tempestade perene -, e tivesse de ficar assim, em todo esse espaço de um archin, a sua vida toda, mil anos, a eternidade... preferiria viver assim do que morrer imediatamente? O que interessa é viver, viver, viver! Viver, seja como for, mas viver! O homem é covarde!", acrescentou passado um minuto.

Foi ter a outra rua... "Ora! O Palácio de Cristal!" Não havia muito ainda que Razumíkhin falara do Palácio de Cristal.

"Mas para que queria eu ...? Ah, sim, para ler! Zósimov disse que lera nos jornais."

- Há jornais? - perguntou ao entrar numa taberna muito grande e até de agradável aparência, composta de alguns gabinetes, por certo vazios. Dois ou três clientes tomavam chá, e numa saleta mais ao fundo havia um grupo de quatro indivíduos que bebiam champanha. Pareceu a Raskólhnikov que Zamiótov se encontrava entre eles, embora de longe não se pudesse ver muito bem.

"Que me importa?", pensou.

- Quer vodca? - perguntou-lhe o rapaz.

- Traze-me chá. E traze-me também jornais atrasados, de há cinco dias, que eu te dou uma gorjeta.

- Muito bem. Aqui tem os de hoje. E aguardente, também quer? Trouxeram-lhe os jornais atrasados e chá. Raskólhnikov sentou-se à vontade, à procura. "Isler... Isler... Os astecas!... Isler Bártola... Máximo... Os astecas!... Isler... Bártola... Máximo... Os astecas... Isler... Que diabo! Mas aqui estão já os acontecimentos: caída pela escada... Um comerciante carbonizado pelo abuso do álcool... Um incêndio em Piéski... Um incêndio em Petersburgo. Outro incêndio em Petersburgo... Outro incêndio em Petersburgo. Isler... Isler... Isler... Máximo... Ora cá está?"

Encontrou finalmente aquilo que procurava e pôs-se a ler; as linhas dançavam diante dos seus olhos e, no entanto, leu todas as notícias e pôs-se a procurar nos últimos números as informações mais recentes. As mãos tremiam-lhe ao voltar as folhas, com uma impaciência convulsiva. De repente alguém veio sentar-se junto dele, no outro lado da mesa. Ergueu os olhos... e viu Zamiótov, o mesmo Zamiótov e com o seu mesmo aspecto de sempre; com os seus anéis e as suas correntes, o seu risco nos cabelos negros e alisados à custa de cosmético, o seu elegante colete, o seu sobretudo um tanto coçado e a sua camisa um tanto suja. Estava de bom humor, ou pelo menos sorriu com muita jovialidade e com um ar bonacheirão. A sua cara morena estava um pouco afogueada devido às libações de champanha.

- O quê? O senhor aqui? - começou, admirado e num tom que faria crer que eram amigos antigos. - Mas Razumíkhin disse-me ontem que o senhor ainda não recuperara a lucidez! É estranho! Mas olhe, eu estive em sua casa...

Raskólhnikov sabia muito bem que ele havia de aproximar-se. Pôs os jornais de lado e voltou-se para Zamiótov. Nos seus lábios havia um sorrisinho, no qual transparecia uma certa nova e irritante impaciência.

- Já sei que esteve lá - respondeu. - Disseram-me. Foi à procura da biqueira da bota... Mas quer saber uma coisa? É que Razumíkhin disse, levianamente, que o senhor esteve com ele em casa de Lavisa Ivânovna, aquela que o senhor queria defender fazendo sinais ao tenente Pórokhov, que não os percebia, lembra-se? E, no entanto, como é que ele não compreendia? O assunto estava claro, não acha?

- Oh, que furacão! - Quem? Pórokhov? - Não, esse seu amigo, Razumíkhin...

- O senhor Zamiótov leva uma boa vida! Tem entrada livre nos lugares mais agradáveis! Quem é que o convidou para o champanha? - É que... bebemos um pouquinho... Mas por que pensa que me convidaram?

- Isso são os emolumentos. Tudo quanto vem é ganho! - riu-se Raskólhnikov. - E isso ainda não é nada, meu rapaz, nada - acrescentou, dando uma palmadinha no ombro de Zamiótov. - Olhe, não pense que eu

o censure, e digo-o até por afeto, em tom de brincadeira, como dizia o seu operário quando batia em Muka, esse tal do caso da velha.

- Ah! Mas está a par?

- Pode ser que saiba muito mais do que o senhor.

- O senhor é uma pessoa estranha! Com certeza que ainda está doente. Fez mal em ter saído.

- Com que então pareço-lhe estranho? - Sim. Estava lendo jornais.

- Sim, eram jornais.

- Muita coisa dizem a respeito de incêndios...

- Não, eu não leio isso dos incêndios... - e olhou ambiguamente para Zamiótov; um sorrisinho sarcástico voltou a assomar aos seus lábios. - Não, eu não leio isso dos incêndios - continuou, fazendo uma piscadela de olhos para Zamiótov. - Mas confesse, meu caro amigo, que tem uma vontade enorme de saber o que eu leio.

- De maneira nenhuma; perguntei isso por perguntar. Não se pode fazer uma pergunta? Por que é tão...?

- Ouça uma coisa. O senhor é um homem culto, letrado, não é?

- E da sexta classe do ginásio - respondeu Zamiótov com certa dignidade.

- Da sexta classe! Olhem que melro! Penteadinho, com risca e de anéis... Oh! Que rico homem! Que lindo menino! - Quando chegou a esse ponto, Raskólhnikov foi acometido de um riso nervoso, a que deu largas nas próprias barbas de Zamiótov. Este inclinou-se um pouco para trás e não se deu por ofendido, mas mostrou ficar muito admirado.

- Oh, que estranho! - repetiu Zamiótov muito sério. Era capaz de apostar em como está com febre.

- Com febre? Mentes, melro branco! Com que então te pareço estranho? Muito bem; excito a curiosidade, não? Curioso?

- Curioso.

- Bom. Por que quer que eu lhe diga o que estava lendo? Olhe quantos números mandei trazer. É suspeito, não é?

- Diga.

- Tem as orelhas bem espevitadas? - Mas por quê?

- Bem, depois explicarei isso das orelhas; por agora, meu caro, direi... ou melhor: confesso... Não, não é isso; declaro formalmente, e o senhor tomará nota... É esta a fórmula! Bem, pois declaro-lhe formalmente que estava lendo, que me interessava e que procurava... procurava... - Raskólhnikov piscou um olho e esperou - procurava, e para isso vim aqui, notícias do assassinato da velha viúva do funcionário - disse, finalmente, quase a meia voz, aproximando extraordinariamente o seu rosto do de Zamiótov.

Este ficou olhando para ele fixamente, sem se mover e sem desviar a cara da dele. O que pareceu depois mais estranho a Zamiótov foi que durante um minuto inteiro reinasse entre eles o silêncio e que durante esse minuto estivessem olhando um para o outro cara a cara.

- Bem; e que tem que estivesse lendo isso? - exclamou, de repente, perplexo e impaciente. - Que me importa isso a mim? Que tem de especial? - É que se trata dessa mesma velha - continuou Raskólhnikov, com a mesma voz baixa e sem se afastar, diante da exclamação de Zamiótov -, essa mesma da qual, veja se se lembra, estavam falando quando eu desmaiei no comissariado. Compreende agora?

- Bom, e então? Que quer dizer isso de "compreende agora"? - exclamou Zamiótov, quase alarmado.

O rosto imperturbável e sério de Raskólhnikov mudou de expressão num momento, e, de súbito, começou outra vez naquele riso nervoso de há pouco, como se lhe faltassem forças para dominar-se. E, nesse momento, relembrou também, com extraordinária nitidez, aquela sensação recente de quando estava atrás da porta, de machada em riste, e o fecho oscilava, e os outros, ao lado dele, proferiam insultos e socavam a porta, e sentira de repente vontade de se pôr a gritar e a insultar ao mesmo tempo que eles, e puxar-lhes pela língua, a ralhar, e troçar, e rir, rir, rir, rir às gargalhadas.

- Mas o senhor está lou... co? - disse Zamiótov, e deteve-se, como se uma idéia súbita tivesse cruzado o seu cérebro.

-O... quê? Vamos, diga o que tem a dizer!

- Nada! - respondeu Zamiótov furioso. - Isso é um disparate! Ficaram ambos calados. Depois desse repentino e espasmódico ataque de riso, de súbito, Raskólhnikov ficou pensativo e triste. Assentou os cotovelos sobre a mesa e apoiou as mãos na testa. Parecia ter-se esquecido por completo da presença de Zamiótov. O silêncio prolongou-se durante bastante tempo. - Não bebe o chá? Olhe que arrefece! - disse Zamiótov.

- Ah! O quê? O chá? Está bem.

Raskólhnikov bebeu um gole do copo, levou um bocadinho de pão à boca e olhou para Zamiótov como se se compenetrasse e procurasse sacudir o seu abatimento; o seu rosto tornou a adotar, naquele momento, a mesma expressão sarcástica do princípio. Continuou bebendo o chá.

- Agora se dão muitas façanhas dessas - disse Zamiótov. - Ainda não há muito tempo eu li nas Notícias de Moscou que, nessa cidade, tinham detido um bando de moedeiros falsos. Formavam uma verdadeira sociedade. Falsificavam notas.

- Oh! Isso é uma velha história. Já deve haver um mês que li essa notícia - respondeu placidamente Raskólhnikov. - De maneira que, para o senhor, trata-se de bandidos? - acrescentou sorrindo.

- Então que haviam de ser?

- Por quê? Trata-se de fedelhos inexperientes, não de bandidos. Terem-se reunido para isso, nada mais nada menos do que cinqüenta indivíduos! É possível uma coisa dessas? Para uma empresa dessas, três já são demais, e para isso é preciso que cada um esteja mais seguro do outro que de si próprio. Bastaria que um deles, numa ocasião em que tivesse bebido, começasse a dar à língua, para deitar tudo a perder. Tolos! Encomendam a missão de trocar as notas nos bancos a gente indigna de confiança; é possível, para uma coisa dessas, confiar em qualquer? Mas suponhamos que a coisa corre bem, inclusivamente se se tratar de uns incautos; suponhamos que cada um deles consegue passar um milhão. Bem, e depois? Para toda a vida! Cada um deles ficará a depender do outro para toda a vida. Mais vale entregar-se! Mas esses a que me referi nem sequer souberam passar as notas. Um deles foi trocá-las ao banco; deram-lhe cinco mil rublos e as mãos até lhe tremiam. Contou até quatro mil, mas ao quinto milhar recebeu sem contar, à sorte, parecendo-lhe mentira o ir metê-los no bolso e deitar a correr. Por isso despertou suspeitas. De maneira que um só imbecil pôs tudo a perder. Mas acha que isso é possível?

- O quê? Que as mãos lhe tremessem? - respondeu Zamiótov. - Se é possível! Sim, estou absolutamente convencido de que é possível. Às vezes, uma pessoa não pode dominar-se.

- Qual!

- No caso dele, o senhor poderia dominar-se? Pois olhe, eu, não. Por cem rublos de ganho, expor-se a semelhante horror! Apresentar-se com notas falsas... e onde? No guichê dum banco, onde conseguem perceber todos os truques... Não, eu ficava desconcertado. E o senhor desconcertava-se?

A Raskólhnikov tornara a entrar de repente uma vontade terrível de "deitar-lhe a língua de fora". Por momentos um calafrio lhe correu pela espinha. - Eu teria procedido de outra maneira - começou, com ar longínquo. - Veja como eu teria passado as notas: teria contado o primeiro milhar quatro vezes, uma a seguir à outra, olhando muito bem cada nota, e depois teria começado a contar o segundo; teria começado a contá-lo, e depois, ao chegar à metade, teria escolhido uma nota de cinqüenta rublos, ao acaso, e ter-me-ia posto a olhá-la contra a luz, tê-la-ia voltado do outro lado e observado outra vez contra a luz... "Não será falsa? Eu, que diabo, estou muito escaldado; ainda não há muito tempo que uma parenta minha, por causa disso, perdeu vinte e cinco rublos." E ter-me-ia posto a contar essa história. E, assim, até chegar ao terceiro milhar; mas não, desculpe; parece-me que, no segundo milhar, contei mal a sexta centena e tenho as minhas dúvidas. E, assim, deixaria o terceiro milhar e voltaria outra vez ao segundo; e teria feito o mesmo com toda a quantia, até o quinto milhar. E depois de ter acabado, do quinto e do segundo milhar teria tirado ao acaso uma nota do maço, tê-la-ia examinado contra a luz, e outra vez me poria com dúvidas: "Pode fazer o favor de trocar-me esta por outra?" E, contudo, teria feito suar tanto o do guichê, que o homem já não saberia o que havia de fazer para se livrar de mim. Depois de ter, enfim, acabado, sairia, abriria a porta... Não, desculpe, tornaria lá outra vez, perguntaria qualquer coisa, dar-me-iam qualquer explicação... Aí tem como eu procederia!

- O senhor disse coisas tremendas! - exclamou Zamiótov sorrindo. - Tudo isso é garganta, porque, em chegando a ocasião, já seria outra coisa. Garanto-lhe que, nesse momento, não só eu e o senhor, como até o homem mais empedernido e desesperado é incapaz de dominar-se. Para que ir mais longe? Aí tem, por exemplo, o assassinato da velha, que se deu no nosso distrito. Segundo parece, trata-se de um rapaz ousado que, em pleno dia, se expôs a todos os perigos, e só se salvou por um milagre, e ao qual, no entanto, as mãos se lhe puseram a tremer, pois não conseguiu roubar, não pôde dominar-se; são os próprios fatos que o demonstram...

Raskólhnikov pareceu dar-se por ofendido. - Veja o que está dizendo! Pois então veja se é capaz de lhe deitar a mão agora! - exclamou Raskólhnikov olhando Zamiótov por cima do ombro.

- Qual! Já o apanharam.

- Quem? Os senhores? Os senhores apanharam-no? Sim, sim! Para os senhores, o principal é isso, verem se um homem gasta ou não gasta dinheiro. Dantes não tinha dinheiro e, de repente, começa a aparecer com ele: pronto, finalmente que foi esse. Por isso, sempre que os outros querem, os senhores são ludibriados como moços pequenos.

- Mas é que isso acontece sempre - respondeu Zamiótov. - Assassinam com astúcia e conseguem escapar; mas, depois, vão logo para a taberna e aí caem na armadilha. Prendem-nos por causa do que gastam. Nem todos são tão espertos como o senhor. O senhor, naturalmente, não iria à taberna, não é verdade?

Raskólhnikov franziu o sobrolho e olhou fixamente para Zamiótov. - O senhor, naturalmente, tem inveja, e gostava de saber como me conduziria em caso semelhante - perguntou com aborrecimento.

- Lá isso gostava - respondeu aquele em voz firme e séria. Começava a notar-se uma grande seriedade nas suas palavras e nos seus olhares. - Muito?

- Muito.

- Bem, então veja o que eu faria - respondeu Raskólhnikov, tornando a aproximar o seu rosto do de Zamiótov, a olhá-lo fixamente e a falar outra vez em voz baixa, de maneira que ele, desta vez, chegou a estremecer -, veja o que eu faria: pegaria o dinheiro e os objetos, sairia dali imediatamente e, sem entrar em parte alguma, correria direito a um lugar deserto, onde não houvesse senão terrenos e onde não passasse ninguém... a algum jardim ou coisa do gênero. Previamente teria tido o cuidado de escolher uma certa pedra em certo pátio, de pud ou pud e meio de peso, em algum canto, junto dum muro, e que talvez tivesse sido posta aí desde que fizeram a casa; levantaria essa pedra (debaixo da qual devia existir uma cova), e deitaria todo o dinheiro e os objetos nessa cova. Deitá-los-ia aí e tornaria a colocar a pedra no seu lugar, tal como estava antes; depois pisaria a terra com o pé e fugiria daí imediatamente. Durante um ano, durante dois, não a levantaria; passariam três anos e também não... Bem, que procurassem. Que é dele, o ladrão?

- O senhor está doido - declarou Zamiótov num fio de voz, sem saber por quê, e, também sem saber por quê, afastou-se subitamente de Raskólhnikov.

De repente os olhos deste começaram a chispar, empalideceu terrivelmente, e o lábio superior tremia-lhe sem proferir o menor som. Aproximou-se o mais que pôde de Zamiótov e começou a mover os lábios sem articular uma palavra; permaneceu assim meio minuto. Sabia o que fazia, mas não podia dominar-se. Uma palavra feroz aflorava aos seus lábios, como quando estivera atrás da tal porta; quase lhe escapava, estava quase a largá-la, a dizê-la.

- E se fosse eu quem tivesse assassinado a velha e Lisavieta? - exclamou de repente, e... recuperou a sua lucidez.

Zamiótov olhou para ele assustado e ficou lívido. O seu rosto simulou um sorriso.

- Mas será possível? - exclamou com uma voz quase imperceptível. Raskólhnikov lançou-lhe um olhar de ódio.

- Confesse que acreditava - disse por fim, fria e ironicamente. - Ai, não! Ai, não!

- De maneira nenhuma! Agora menos do que nunca! - declarou Zamiótov precipitadamente.

- Acabou por cair na armadilha! O melro branco foi apanhado! Donde se conclui que, se agora não o crê menos do que nunca, é porque, dantes, acreditava nisso.

- Nada disso, nada disso! - exclamou Zamiótov, visivelmente sobressaltado. - Foi o senhor quem me assustou e me levou para esse campo. - Então não acredita? Mas de que se puseram os senhores a falar na minha ausência, quando eu saí do comissariado? E por que é que o tenente Pórokhov me fez aquelas perguntas, depois que voltei a mim, do meu desmaio? Psiu! - chamou o criado, levantou-se e pegou o gorro. - A conta.

- Trinta copeques ao todo - respondeu aquele, que veio logo.

- Então toma mais vinte copeques para a vodca. Oh, tanto dinheiro! - e estendeu a Zamiótov a sua mão que tremia, cheia de notas vermelhas e azuis, vinte e cinco rublos. - De onde vem tudo isso? Donde terá saído também a roupa nova? Porque o senhor sabe muito bem que eu não tinha nem um copeque! Pode ser que já o tenha perguntado à dona da casa... Bom, já chega! Assez cause! (1) Até a vista, terei muito gosto em tornar a vê-lo! - Saiu todo trêmulo, devido a uma violenta comoção histérica, à qual se misturava no entanto um certo prazer, e por outro lado sentia-se triste, esgotado de terrível cansaço. Fazia caretas como se tivesse acabado de ter um ataque. O seu abatimento agravou-se rapidamente. As suas energias despertavam e surgiam de repente, agora, ao primeiro choque, à primeira sensação irritante, mas com a mesma rapidez fraquejava, à medida que a comoção enfraquecia.

Quanto a Zamiótov, depois de ter ficado sozinho continuou por muito tempo sentado no seu lugar, dando voltas à imaginação. Desde o princípio que Raskólhnikov modificara todas as suas idéias a respeito do ponto já sabido e definitivamente assente na sua opinião.

- Iliá Pietróvitch... é um palerma! - decidiu definitivamente. Ainda mal abrira a porta da rua, logo Raskólhnikov deu de cara, mesmo à entrada, com Razumíkhin, que vinha entrando. Ficaram ambos um momento a se medirem com o olhar. Razumíkhin estava no maior espanto. Mas, de repente, cólera, uma cólera verdadeira assomou aos seus olhos, que cintilaram: - Tu aqui! - exclamou em alta voz. - Com que então fugiste da cama! E eu, que andei à tua procura até debaixo do divã! E vens para a taberna! E pensar que estive quase a bater em Nastássia por tua causa! E ele, entretanto, por onde andava! Rodka, que significa isto? Dize-me francamente! Fala! Não ouves?

- Isto quer dizer que vocês todos me importunaram terrivelmente e que quero estar sozinho - respondeu Raskólhnikov muito tranqüilo.

- Sozinho, quando ainda mal te podes ter de pé, quando estás pálido como um morto e respiras tão precipitadamente? Idiota! Que tinhas tu que ir ao Palácio de Cristal? Dize-me imediatamente!

- Deixa-me sair! - disse Raskólhnikov, dispondo-se a continuar o seu caminho. Mas isso acabou de exasperar Razumíkhin, que o segurou com força por um ombro.

- Deixar-te sair? Tu te atreves a dizer-me "Deixa-me sair?" depois do que fizeste? Tu não sabes o que é que eu te vou fazer imediatamente? Pois vou dobrar-te ao meio, fazer de ti um embrulho, levar-te às costas para casa e deixar-te lá trancado!

- Ouve, Razumíkhin - exclamou Raskólhnikov muito baixinho e, segundo parecia, com a maior serenidade -, não compreendes que eu não quero que tu me faças nenhum benefício? Que gosto o teu de fazeres favores a quem... não quer saber disso para nada, a quem, no fim de contas, os acha muitíssimo aborrecidos!

 

* (1) "Já falamos bastante." (N. do T.) *

 

Ora vamos lá a ver: por que foste buscar-me logo que adoeci? Não se podia dar o caso de que me apetecesse morrer? E não te dei eu hoje a entender claramente que estás a atormentar-me, que já estou farto de ti? Mas que gosto esse de torturar as pessoas! Juro-te que tudo isso é um obstáculo sério para a minha cura, por causa das irritações contínuas que me provoca. Não viste como Zósimov saiu para não me irritar? Pois deixa-me tu também em paz, por amor de Deus! E, afinal, que direito tens tu de me reteres? Não vês que, agora, estou falando-te com toda a lucidez? Como, como é que hei de pedír-te que me deixes em paz e não me faças mais nenhum bem? Assim faço figura de ingrato e de mau; mas deixem-me todos, pelo amor de Deus, deixem-me em paz! Deixem-me, deixem-me!

Começara falando tranqüilamente, gozando de antemão todo o desgosto que ia causar, mas acabou agitado e respirando afanosamente, como antes com Lújin.

Razumíkhin ficou um instante imóvel, pensativo, e largou a sua mão. - Vai para o diabo que te carregue! - disse tranqüilamente e até preocupado. - Mas... espera aí! - exclamou de repente, quando Raskólhnikov já se tinha posto a caminhar. - Ouve! Dígo-te que vocês são todos, desde o primeiro até o último, uns charlatães e uns fanfarrões. Quando têm uma dorzinha, pronto... é logo às voltinhas para cá e para lá, como uma galinha que vai pôr um ovo. Até nisso plagiam os autores estrangeiros. Não mostram nem um só indício de vida independente. Vocês são uns molengões e, em vez de sangue, o que lhes corre nas veias é água chilra. Não tenho fé em nenhum de vocês! A primeira coisa, para vocês, quaisquer que sejam as circunstâncias, é não parecerem homens... Pá... ra! - gritou com raiva redobrada, ao ver que Raskólhnikov recomeçava a caminhar. - Ouve-me até o fim. Já sabes que hoje há reunião na minha nova casa, e até pode ser que já lá estejam alguns amigos; deixei lá o meu tio para os receber e vim aqui correndo. Bem, pois se tu não fosses um imbecil, um perfeito idiota, um tolo da pior espécie, uma cópia de estrangeiro... Olha, Rodka, eu reconheço que tu és inteligente; mas és tolo... Bem, como ia dizendo, se tu não fosses idiota, virias passar o serão comigo, em vez de andares gastando as solas por aí. Agora já saíste, o mal já está feito! Eu te arranjava uma cadeira macia, o senhorio tem uma... Uma chavenazinha de chá, companhia, e, se não te sentisses bem assim, estendias-te no sofá... e, fosse como fosse, estarias junto de nós... Zósimov também vem. Então, vens ou não?

- Não.

- Men... tes! - gritou Razumíkhin impaciente. - Queres saber uma coisa? Tu não estás em estado de responder por ti mesmo. E, além disso, não compreendo nada disso... Tem-me acontecido muitas vezes desistir das pessoas e depois correr atrás delas. Uma pessoa envergonha-se... e torna a aproximar-se dos homens. Por isso não te esqueças: casa de Potchinkov, no terceiro andar.

- Segundo me parece, o senhor Razumíkhin seria capaz de consentir que lhe pagassem só para poder ser útil a alguém.

- A quem? A mim? Só de o pensar sou capaz de arrancar o nariz a quem quer que seja. Bem, já sabes, casa de Potchinkov, número quarenta e sete, no andar do funcionário Bábuchkin...

- Não vou, Razumíkhin! - e Raskólhnikov afastou-se dando meia-volta. - Aposto em como vais! - gritou-lhe Razumíkhin, de longe. - Se não fores, se não fores, não faço mais caso de ti. Pára, espera! Zamiótov está lá dentro?

- Está. - Viu-te?

- Viu.

- Falou-te? - Falou.

- De quê? Bem, vai para o diabo, não me digas nada! Potchinkov, quarenta e sete, Bábuchkin, não te esqueças.

Raskólhnikov continuou a caminhar até o Sadóvaia e virou a esquina. Razumíkhin, pensativo, ficou a vê-lo desaparecer. Finalmente fez um gesto com a mão, entrou no estabelecimento, mas parou a meio da escada.

- Raios me partam! - continuou a dizer em voz alta. Fala com lucidez e no entanto parece... Serei eu também um idiota? Por acaso os loucos não falam com lucidez? E, segundo me parece, Zósimov tinha-lhe um bocadinho de medo - bateu com um dedo na testa. - Bem, e se é assim, como deixá-lo agora sozinho? Podia dar-lhe para se atirar ao rio... Ah! Fiz uma tolice! Não é possível! - e deitou a correr em perseguição de Raskólhnikov; mas já não havia rastro dele. Cuspiu e, em passos rápidos, voltou ao Palácio de Cristal com o fim de interrogar Zamiótov o mais depressa possível.

Raskólhnikov continuou andando diretamente até a ponte de P... Parou no meio, junto da amurada; apoiou nela os cotovelos e ficou olhando a distância. Quando se separou de Razumíkhin assaltou-o uma tal debilidade que só com muito custo chegou ali. Sentia vontade de sentar-se ou de estender-se no meio da rua. Inclinado sobre a água, contemplava os últimos reflexos rosados do sol poente; a fiada de casas, escurecidas pela obscuridade progressiva; uma janelinha afastada, ao longe, em qualquer trapeira, na margem esquerda, que brilhava precisamente na flama do último raio que nela batia por um instante; a água do canal, que ia escurecendo e, aparentemente, olhava para essa água com a maior atenção. Finalmente, alguns circulozinhos vermelhos dançaram diante dos seus olhos; as casas foram-se, à deriva; os transeuntes, as margens, as carruagens... tudo aquilo se pôs a dar voltas e a bailar na sua frente. De repente estremeceu, liberto talvez da vertigem por um espetáculo selvagem e horrível. Parecia-lhe que alguém estava a seu lado, à sua direita, ombro com ombro; voltou o rosto e viu

uma mulher alta, de chapéu na cabeça, o rosto amarelo, afilado, vincado, e os olhos inflamados, encovados. Olhava-o nos olhos; mas era evidente que não via nada nem ninguém. De repente, apoiou a mão direita no peitoril, levantou o pé direito e subiu para o gradeamento de ferro, depois do que fez o mesmo com o esquerdo, e atirou-se ao canal. A água suja chapinhou e engoliu a vítima num instante; mas, passado um minuto, a afogada tornou à superfície, a corrente foi-a levando suavemente para baixo, com a cabeça e os pés mergulhados e o tronco para cima com as saías, sopradas e flutuantes, fazendo balão.

- Afogou-se! Afogou-se! - gritaram dezenas de vozes; acudiu gente, as duas margens encheram-se de espectadores; na ponte, à volta de Raskólhnikov, apinhou-se um grande grupo de pessoas que o bloqueavam e empurravam por detrás.

- Bátiuchki, é a nossa Afrossíniuchka! - ouviu-se, perto, um lamentoso grito de mulher. - Salvai-a, bátiuchki! Bátiuchki meus, salvai-a!

- Um barco! Um barco! - gritaram na multidão. Mas já não eram precisos barcos; um guarda descia rapidamente a escada do canal, e, tirando o capote e as botas, lançou-se à água. Não teve grande trabalho: a água trouxera a afogada a dois passos das escadinhas e ele agarrou-a pela roupa com a mão direita, e, com a esquerda, conseguiu atar-lhe uma corda que lhe atirara um companheiro, e assim tiraram-na imediatamente da água. Estenderam-na nas pedras de granito da muralha. Não tardou que ela recuperasse os sentidos, endireitou-se, sentou-se e começou a espirrar e a resfolegar, esfregando inconscientemente as suas roupas encharcadas. Não dizia uma palavra.

- Estava perdida de bêbada, bátiuchki, perdida de bêbada! - aquela voz de mulher soava já junto de Afrossíniuchka. - Já tinha querido enforcar-se e tiraram-na da corda. Eu, agora, tinha ido à loja e recomendei à moça que não a perdesse de vista... e vejam como esta desgraça aconteceu... É nossa vizinha, bátiuchki; vive perto de nós, no segundo prédio, lá ao fundo, ali...

As pessoas dispersaram-se; os dois guardas ficaram cuidando da suicida; alguém falou no comissariado... Raskólhnikov assistia a tudo aquilo com uma estranha impressão de indiferença e desprendimento. Era-lhe desagradável. "Não, é bárbaro... a água... não vale a pena", resmungou para consigo. "Não há de haver nada", acrescentou. "Para que esperar? Pelo que se refere ao comissariado... Mas por que não estaria lá Zamiótov? O comissariado abre às dez."

Voltou-se de costas para a amurada e olhou à sua volta.

"Bem... então? Vamos!", exclamou resoluto, afastando-se da ponte e encaminhando-se para o outro lado, onde ficava o comissariado.

Tinha a alma vazia e insensível. Não queria pensar. Até lhe passara o aborrecimento; nem sequer tinha agora restos da magia de há um momento, quando saíra de casa, decidido a acabar de uma vez com tudo. Uma apatia total se apoderara agora dele.

"Isto também pode ser uma saída", pensou, enquanto caminhava devagar e cambaleando pela margem do canal. "Seja como for, acabarei com isto porque quero... Mas isso será uma saída? Demais, vem tudo a dar no mesmo. À distância de um archin há... EM Mas que final! Mas será esse o final? Digo-lhes isso ou não digo? Ah... diabo! Mas como estou cansado! Preciso de estender-me já ou de sentar-me em qualquer parte! O mais aborrecido de tudo é que isto é muito estúpido. Mas também já não me interessa. Oh, que tolice se me meteu na cabeça!"

Para ir ao comissariado era preciso seguir o caminho a direito e virar à esquerda no segundo cruzamento de ruas; daí eram só dois passos. Mas, ao chegar à primeira embocadura, reconsiderou, meteu-se por aquela ruela e deu uma volta por duas ruas, provavelmente sem nenhum objetivo, e pode ser também que para dar larga a qualquer coisa, ainda que fosse só por um minuto, e ganhar tempo. Caminhava com os olhos fixos no chão. De súbito, pareceu-lhe que alguém murmurava qualquer coisa ao ouvido. Ergueu a cabeça e viu que se encontrava junto "daquela" casa, precisamente junto da portacocheira. Desde "aquela" noite que não estivera nem passara por ali.

Um invencível e inexplicável capricho se apoderou dele. Entrou no prédio, atravessou o portal e depois a primeira entrada à direita, e pôs-se a subir a conhecida escada que levava ao quarto andar. Essa escada, estreita

e empinada, estava muito escura. Parava em cada patamar e examinava tudo com curiosidade. No patamar do primeiro andar faltavam os caixilhos numa janela. "Isso, da outra vez, não estava assim", pensou. "Este é o quarto do segundo andar, onde Nikolachka e Mitka estavam trabalhando. Estava fechado e a porta estava pintada de fresco; por conseguinte, estava para alugar. Já vou no terceiro andar... e no quarto... Aqui!" Uma hesitação tomou conta dele; a porta desse andar encontrava-se aberta de par em par; lá dentro havia gente, ouviam-se vozes; nunca teria esperado isso. Depois de vacilar um pouco, subiu os últimos degraus da escada e entrou na casa.

Também ele estava sendo reparado: havia operários, o que igualmente o chocou muito. Imaginara, sem saber por que, que ia encontrar tudo aquilo exatamente igual à maneira como estava dantes, talvez até com os cadáveres no mesmo lugar, no chão. Ao passo que, agora, as paredes estavam nuas e não havia um único móvel. Que estranho! Caminhou para a janela e sentou-se no parapeito.

Eram ao todo dois operários, dois mocetões; um, já mais velho, e o outro ainda muito novo. Ocupavam-se em forrar as paredes com papel novo, branco com flores-de-lis, em substituição do antigo, que estava amarelo, desbotado e rasgado. Sem que soubesse por quê, aquilo impressionou Raskólhnikov desagradavelmente; olhava para o papel novo com olhos hostis, doía-lhe - esta é a palavra - que tivessem mudado tudo aquilo.

Pelo visto, os trabalhadores estavam já para se retirarem, e começavam a enrolar à pressa as tiras de papel para irem para suas casas. O aparecimento de Raskólhnikov mal lhes chamou a atenção. Falavam de qualquer coisa. Raskólhnikov cruzou as mãos e pôs-se a escutar.

- Ela veio ver-me de manhã, logo de manhãzinha, toda embonecada. "Por que é que", disse eu, "apareces diante de mim tão enfeitada? Por que é que te pões tão garrida para me vires ver?" "De hoje em diante, Tit Vassílitch, eu quero fazer-te a vontade em tudo." Foi assim mesmo. A maneira como ela vinha vestida! Parecia um figurino, tal qual um figurino! - O velhote, mas que vem a ser um figurino? - perguntou o rapaz. Pelo visto era o velhote que o instruía.

- Um figurino, meu rapaz, é uma estampa, uma figura que os alfaiates daqui recebem todos os sábados, pelo correio, da estranja, e no qual se representa como as pessoas devem vestir-se, tanto as do sexo masculino como as do sexo feminino. São estampas. Os homens pintam-nos sempre de jaqueta comprida, e às senhoras põem-nas sempre tão bonitas que eu era capaz de dar por elas tudo e mais alguma coisa.

- E o que é que não há neste Píter? (2) - exclamava o rapaz com admiração. - A não ser companhia de pai e de mãe, tudo se pode ter aqui. - Sim, tirando isso, meu amigo, encontra-se de tudo aqui - concluiu o mais velho em tom decisivo.

Raskólhnikov levantou-se e passou para o outro quarto, onde dantes estavam a arca, a cama e a cômoda; o quarto pareceu-lhe terrivelmente pequeno sem os móveis. O papel das paredes era o mesmo de então; num canto, sobre o papel, ficara bem marcado o sinal do lugar que dantes ocupava o oratoriozinho com as imagens. Passou revista a tudo e depois voltou para a janela. O operário mais velho olhou-o de soslaio.

- Que procura o senhor aqui? - perguntou de repente encarando-o. Em vez de lhe responder, Raskólhnikov levantou-se, saiu do vestíbulo, pegou o cordão da campainha e puxou. A mesma campainha, o mesmo som de cana rachada! Puxou pela segunda e pela terceira vez: ouvia e recordava-se. A sensação anterior, dilacerante e monstruosa, começou a acudir à sua memória, cada vez mais clara e nítida; estremecia a cada campainhada e cada vez sentia maior prazer.

- Mas que deseja o senhor? Quem é? - gritou o operário, saindo à sua procura.

Raskólhnikov entrou outra vez no quarto.

- Quero alugar um quarto - disse -, estava vendo este.

- De noite não se alugam quartos, e quem trata disso é o porteiro. - Limparam o chão? Também vão pintá-lo? (3) - continuou Raskólhnikov. - Não havia sangue?

 

* (2) Abreviação popular de Petersburgo. (N. do T)

(3) Era costume, nesse tempo, na Rússia, pintar os soalhos. (N do T ) *

 

- Sangue? Por quê?

- Porque foi aqui que mataram a velha e a irmã. Havia um grande charco de sangue.

- Mas quem é o senhor? - exclamou o operário, inquieto. - Eu?

- Sim.

- Queres saber? Então vamos ao comissariado que aí o direi. O operário olhou para ele, estupefato.

- Bem, nós temos de nos ir embora, já estamos atrasados. Vamos, Aliochka. Temos de fechar - disse o operário mais velho.

- Pois vamos até lá - respondeu Raskólhnikov, e dirigiu-se ao porteiro, cambaleando pela escada. - Eh, porteiro! - gritou quando chegou à entrada.

Havia algumas pessoas junto da porta do prédio, na rua, que viam passar os outros: os dois porteiros, uma mulher, um operário de bata e mais algumas pessoas. Raskólhnikov dirigiu-se a eles.

- Que deseja? - perguntou-lhe um dos porteiros. - Estiveste no comissariado?

- Estive há um momento. Que deseja? - Ainda estão lá?

- Ainda.

- E o tenente, está lá?

- Há pouco ainda lá estava. Mas que deseja o senhor? Raskólhnikov não respondeu e ficou ali, pensativo.

- Veio ver o quarto - disse o operário mais velho, aproximando-se. - Qual quarto?

-Aquele onde estávamos trabalhando. "Mas por que, diabo, limparam o sangue? Aqui", disse ele, "cometeu-se um assassinato, e eu vim para alugar o andar." E pôs-se a puxar pela campainha de tal maneira que quase a arrancava. "Vamos ao comissariado", disse ele depois, "que, lá, direi tudo", insistia.

O porteiro olhava estupefato e de sobrancelhas erguidas para Raskólhnikov. - Mas quem é o senhor? - exclamou mal-humorado.

- Eu sou Ródion Românovitch Raskólhnikov, antigo estudante, e moro na rua Chilia, aqui, nesta travessa, perto, no quarto número catorze. Perguntem ao porteiro, ele me conhece.

Raskólhnikov disse isso tudo como se estivesse absorto, sem se voltar, de olhos fixos na rua, que se ia já tornando escura.

- Mas para que subiu o senhor até lá acima? - Para ver.

- Mas que tinha que ver ali?

- Agarramo-lo e levamo-lo ao comissariado? - intrometeu-se o operário, de súbito, mas depois calou-se.

Raskólhnikov lançou-lhe um olhar por cima do ombro, contemplou-o atentamente e disse depois, devagar e com indolência:

- Vamos até lá!

- Isso, levem-no! - reforçou o operário entusiasmando-se. - Por que veio ele até aqui? O que é que ele queria?

- Bêbado ou não, sabe-se lá! - resmungou o operário.

- Bem, mas que deseja o senhor? - tornou a gritar o porteiro, que começava já a enfadar-se. - Que procura aqui?

- Tens medo do comissariado? - perguntou Raskólhnikov sarcasticamente. - Por que havia de ter medo? Mas que queres daqui?

- És um malandro! - gritou a mulher.

- Mas para que havemos de lhe dar conversa? - exclamou o outro porteiro, um camponês enorme, com o capote desabotoado e um molho de chaves à cintura. - Fora daqui! Não há dúvida que é um malandro! Fora!

E, pegando em Raskólhnikov por um ombro, pô-lo no meio da rua. Ele deu um tropeção, mas não chegou a cair; endireitou-se, olhou em silêncio para todos os espectadores e continuou o seu caminho.

- Que tipo tão estranho! - disse o operário.

- Hoje toda a gente se tornou estranha! - disse a mulher.

- Por que é que não o levamos ao comissariado? - acrescentou o operário.

- Não vale a pena preocuparmo-nos com um tipo destes - decidiu o porteiro grandalhão. - Se for um malandro, ele mesmo, por si próprio, irá lá ter; isso já é velho; se te apanha, já não te larga! Isso já se sabe!

"Vou ou não vou?", pensou Raskólhnikov, parando no meio da rua, numa encruzilhada, e olhando à sua volta, como se esperasse de alguém uma palavra decisiva. Mas ninguém lhe respondeu: tudo estava surdo e mudo como as pedras que pisava, morto para ele, só para ele... De repente, ao longe, a uns duzentos passos de distância, no fim da rua, na obscuridade cada vez mais densa, descobriu um grupo de pessoas, vozes, gritos... Entre as pessoas estava parada uma carruagem... No meio da rua brilhava uma luzinha.

"Que será aquilo?" Raskólhnikov deu meia-volta à direita e dirigiu-se para o círculo das pessoas. Parecia, na verdade, que queria agarrar-se a tudo; e ria-se friamente ao pensar nisso, porque o caso do comissariado era já uma coisa bem assente, e sabia que daí a um momento tudo acabaria.

 

No meio da rua estava parada uma carruagem, nobre e elegante, puxada por uma parelha de fogosos cavalos cinzentos; não levava ninguém dentro, e o cocheiro, que descera da boléia, estava ali, junto do carro;

segurava os cavalos pelo freio, junto da boca. À volta juntara-se um círculo cerrado de pessoas, com dois polícias na primeira fila, um dos quais tinha uma lanterna na mão, e com ela, agachado, iluminava qualquer coisa na rua, mesmo junto da carruagem. Todos falavam, gritavam e lançavam ais; o cocheiro parecia perplexo e, de quando em quando, repetia:

- Que pena, senhor, que pena!

Como pôde, Raskólhnikov abriu caminho por entre aquele aperto de gente e conseguiu finalmente ver qual era a causa de todo aquele rebuliço e curiosidade. No chão jazia, desmaiado, um homem que acabara de ser atropelado pelos cavalos, muito mal vestido, mas de maneira decente, todo ensopado em sangue, que lhe escorria da cara e dos cabelos; tinha a cara toda machucada, desfigurada, informe. Era evidente que o atropelamento fora grave.

- Bátiuchki - gritava o cocheiro -, como é que eu podia imaginar uma coisa destas! Se eu trouxesse os cavalos a galope, está bem; mas se eu ia a passo, por assim dizer, sem pressa! Todos vêem que eu não estou mentindo. Um bêbado não vê a luz, isso já se sabe... Eu o vi atravessar a rua aos tombos, quase caindo, e então gritei-lhe por uma, duas e até três vezes, e puxei as rédeas aos cavalos; mas ele veio mesmo direitinho meter-se debaixo das patas dos cavalos e caiu no chão. Parece mesmo que o fez de propósito, ou então estava completamente bêbado... Os cavalos são novos, espantadiços... Puxaram pelo freio. Ele deu um grito, os animais espantaram-se ainda mais e assim se deu a desgraça.

- Isso é verdade, foi assim mesmo! - exclamou entre a multidão alguma testemunha do sucedido.

- Ele gritou por três vezes, avisando, isso é verdade! - exclamou uma segunda voz.

- Por três vezes, com certeza, todos nós ouvimos - gritou uma terceira. Aliás, o cocheiro não estava muito aflito nem assustado. Era evidente que a carruagem pertencia a algum potentado ricaço e conhecido, que devia estar à espera dele em alguma casa conhecida; os guardas, não havia dúvida que se preocupavam com a maneira de remediar esta última circunstância. A única coisa que faltava era transportar a vítima ao hospital. Ninguém sabia o seu nome.

Entretanto Raskólhnikov abriu caminho e agachou-se para olhar mais de perto. De repente, a lanterna iluminou em cheio o rosto do infeliz e então ele o reconheceu.

- Eu o conheço, conheço-o! - exclamou, aproximando-se da primeira fila. - É um funcionário aposentado: o conselheiro titular Marmieládov. Vive aqui perto, no edifício Kosel... Um médico, já! Eu pago! Aqui têm!

Tirou dinheiro do bolso e mostrou-o ao polícia. Estava comovido de espanto.

Os polícias ficaram muito satisfeitos quando souberam o nome do atropelado. Raskólhnikov disse-lhes também o seu, deu-lhes o endereço e tratou com o maior interesse da imediata remoção de Marmieládov para o seu domicílio.

- É ali, três prédios mais adiante - dizia -, a casa de Kosel, um alemão riquíssimo... De fato, devia estar embriagado, devia ir para casa. Eu o conheço... era um beberrão... Tem família, filha, uma filha. Daqui até que o levem para o hospital... ao passo que ali, em sua casa, por certo que deve haver um médico. Eu pago, eu pago! Seja como for, aquela é a sua casa, terá logo quem trate dele, ao passo que até chegar ao hospital pode morrer...

Até se apressou a meter uma moeda na mão dum dos polícias, embora o caso fosse claro e lícito e, em último caso, ali perto poderiam prestar-lhe auxílio. Ergueram o ferido e transportaram-no. Houve quem se prestasse a isso. A casa de Kosel ficava apenas a trinta passos dali. Raskólhnikov ia atrás, amparando-lhe a cabeça com muito cuidado e indicando o caminho. - Por aqui, por aqui! Quando subirem a escada é preciso porem-lhe a cabeça para a frente. Voltem-no... Assim! Eu pagarei tudo e ainda ficarei agradecido - murmurava.

Como de costume, assim que teve um momento livre Ekatierina Ivânovna pôs-se a dar voltas para um lado e para outro no quarto exíguo, da janela até o fogão e vice-versa, os braços cruzados e muito apertados contra

o peito, falando sozinha e tossindo. Nos últimos tempos acostumara-se a falar mais freqüentemente com a filhinha mais velha, Pólienhka, que tinha dez anos e que, embora ainda não compreendesse muitas coisas, entendia que era necessária à mãe, e por isso a seguia sempre para todos os lados com seus olhos inteligentes e esforçava-se por imaginar tudo quanto poderia fazer para ajudá-la. Dessa vez, Pólienhka despira o irmãozinho, que estivera adoentado durante todo o dia, para o deitar. Enquanto lhe tirava a camisa, que queria deixar lavada nessa noite, o petiz permanecia sentado na cadeira, em silêncio, com uma expressão séria, direito e imóvel, com os pezinhos estendidos para a frente, os calcanhares juntos e os dedos para cima. Escutava o que diziam a mãe e a irmã, com os lábios abertos, uns olhos dilatados e sem se mexer, como de maneira geral costumam fazer todas as crianças sossegadas quando as despem para deitá-las. A outra irmãzinha, ainda menor, toda esfarrapada, estava de pé, junto do biombo, esperando a sua vez. Tinham aberto a porta que dava para o patamar, para se libertarem, ainda que fosse por pouco tempo, daquela atmosfera de tabaco ordinário que vinha dos outros quartos e que a todos os momentos fazia tossir longa e dolorosamente a pobre tísica. Ekatierina Ivânovna parecia ter emagrecido ainda mais nessa semana e as rosetas vermelhas das suas faces brilhavam agora mais do que antes.

- Tu não podes acreditar, não podes imaginar, Pólienhka - dizia, caminhando no quarto para um lado e para outro -, como era feliz e brilhante a vida em casa do papá, como esse bêbado foi a minha ruína e há de ser a vossa. O papá era funcionário civil, era quase governador, pouco lhe faltava para isso. De maneira que quase todos iam visitá-lo e lhe diziam: "Nós já o consideramos nosso governador, Ivan Mikháilovitch". Quando eu... liam! Quando eu... liam, liam, liam! Oh, maldita vida! - exclamou, expectorando e levando as mãos ao peito. - Quando eu... Ah! Quando no último baile... em casa do marechal da nobreza... a princesa Biesimiélnaial me viu... aquela que depois foi minha madrinha, quando me casei com o teu pai, Pólia... perguntou depois: "Essa linda moça não é a que dançou com o xale, quando saiu do colégio?" (É preciso coser esse buraco; podias pegar já a agulha e arranjares isso como te ensinei... ou então amanhã... liam! amanhã... liam! liam! liam! Já estará maior.) - exclamou, sufocada. - Nesse tempo chegara de Petersburgo o príncipe Chtchególski, que era um pajem e que dançou comigo uma mazurca, e no dia seguinte quis ver-me com qualquer pretexto; mas eu agradeci-lhe as suas frases amáveis e disse-lhe que o meu coração pertencia já a outro homem há muito tempo. Esse outro homem era o teu pai, Pólia: o meu pai ficou muito zangado... A água está pronta? Bem, dá-me cá a camisinha e as meias... Lida - e dirigia-se à filha mais nova -, tu, esta noite, dormes sem camisa e pões as meias de lado... Lavamos tudo junto... Mas quando é que chegará esse desastrado? Bêbado! Está com aquela camisa sabe-se lá há quanto tempo, e toda feita em farrapos... Queria lavar tudo junto para não passar duas más noites seguidas. Senhor... ha, ha, ha! Outra vez! Que será isto? - exclamou, ao ver um círculo de gente no patamar e uns indivíduos que se adiantavam transportando um vulto em direção ao seu quarto. - Que é isto? Que me trazem aqui? Meu Deus!

- Onde é que o pomos? - perguntou o guarda olhando à sua volta, assim que introduziram Marmieládov no quarto, ensangüentado e desmaiado. - No divã! Ponham-no no divã, com a cabeça para este lado! - indicou Raskólhnikov.

- Atropelaram-no na rua, bêbado! - gritou alguém no patamar. Ekatierina Ivânovna estava extremamente pálida e respirava dificilmente. Os petizes estavam assustados. A pequena Lídotchka gritava, apertava-se contra Pólienhka e abraçava-se a ela estreitamente, tremendo toda.

Depois de acomodar Marmieládov, Raskólhnikov olhou para Ekatierina Ivânovna.

- Por amor de Deus, acalme-se, não se assuste! - apressou-se a dizer-lhe. - Ia atravessando a rua e um coche atropelou-o; mas não se aflija: verá como há de recuperar os sentidos. Eu mandei que o trouxessem para aqui; eu, aqui há tempos, já estive em sua casa, não se lembra? Vai ver como recupera os sentidos! Eu pagarei tudo!

- Já o conseguiu! - gritou Ekatierina Ivânovna, desolada, e atirou-se sobre o corpo do marido.

Raskólhnikov reparou então que aquela mulher não era das que desmaiam logo. Colocou imediatamente uma almofada debaixo da cabeça do atropelado, coisa de que ninguém se lembrara; Ekatierina Ivânovna começou a despi-lo e pôs-se a examiná-lo bem, com muito cuidado e sem perder a serenidade, esquecida de si própria, mordendo os lábios trêmulos e contendo os gritos que queriam sair-lhe do peito.

Entretanto Raskólhnikov encarregou alguém dos presentes que fosse em busca do médico. Segundo parecia, este morava numa rua um pouco mais adiante.

- Mandei chamar um médico - disse a Ekatierina Ivânovna. - Não se aflija que eu pago. Não tem água? Dê-me também uma toalha, um pano qualquer, já; ainda não sabem onde está a ferida. Porque ele está só ferido, não está morto, pode ter a certeza... Vamos ver o que o médico diz.

Ekatierina Ivânovna correu à janela com ligeireza; aí, numa cadeira derreada, num canto, havia um grande alguidar de barro cheio de água, que estava preparado para a lavagem noturna da roupa das crianças e do marido. Essa lavagem noturna era a própria Ekatierina Ivânovna quem a fazia, por suas próprias mãos, pelo menos duas vezes por semana, e às vezes até mais freqüentemente, pois encontravam-se em circunstâncias tais que quase não tinham roupa branca para mudar e cada membro da família tinha apenas uma peça.

Ekatierina Ivânovna não podia suportar a sujidade, e preferia passar uns maus momentos, à noite, quando todos dormiam, para poder tirá-la depois, de manhã, do estendedouro, e entregá-la limpa, do que ver sujidade na casa. Atendendo às indicações de Raskólhnikov, pegou o alguidar, mas quase que o deixava cair, de tão pesado. Ele, entretanto, descobrira uma toalha, e ensopando-a em água pôs-se a lavar o rosto de Marmieládov, manchado de sangue.

Ekatierina Ivânovna permanecia de pé, respirando afanosamente e sustendo o peito com as mãos. Também ela precisava de assistência. Raskólhnikov começou a compreender que talvez tivesse feito mal em mandar levar para ali o ferido. Também o guarda se mostrava perplexo.

- Pólia - exclamou Ekatierina Ivânovna -, vai já chamar Sônia! Se não a encontrares em casa, não faz mal; deixa recado de que o pai foi atropelado por um coche e que venha imediatamente assim que chegar. Corre, Pólia! Toma, cobre-te com este lenço!

- Corre ligeira! - gritou-lhe de repente o rapazinho, da sua cadeira, e depois de dizer isso tornou a afundar-se no seu mutismo anterior; continuou muito direito, sentado na cadeira, com os olhos muito abertos, os calcanhares juntos e as pontas dos pés para fora.

Entretanto o quarto enchera-se completamente. Um dos guardas saiu, deixando o outro, o qual se esforçava por dispersar o público que se apinhara no patamar e fazê-lo retroceder para a escada. Depois, dos quartos interiores começaram a sair quase todos os hóspedes da senhora Lippewechsel, os quais se comprimiam à entrada da porta, acabando por entrar no quarto de tropel. Ekatierina Ivânovna ficou estupefata.

- Ao menos deixem as pessoas morrer em paz! - exclamou, encarando aquela multidão. - Querem é espetáculo! E com os cigarros! He, he, he, he! Só lhes falta trazerem o chapéu na cabeça! Olhem, ali está um com a cabeça coberta! Fora daqui! Um cadáver merece respeito!

Deu-lhe um ataque de tosse; mas a admoestação produziu efeito. Era evidente que os outros inquilinos tinham medo de Ekatierina Ivânovna; uns atrás dos outros, retrocederam para a porta, empurrando-se, com essa comoção íntima de satisfação que se observa sempre, até nas pessoas mais chegadas, à vista da inesperada desgraça do próximo, e à qual nenhum homem sem exceção escapa, apesar do mais sincero sentimento de piedade e simpatia.

Aliás, do outro lado da porta ouvia-se falar de hospital e de que não estava certo que se perturbasse assim, escusadamente, a tranqüilidade duma casa.

- O quê? Não está certo que se morra? - gritou Ekatierina Ivânovna, e ia já correndo para abrir a porta e lançar sobre toda aquela gente uma torrente de ralhos, quando esbarrou com a senhora Lippewechsel, que aca bava de ser informada daquela infelicidade e acorria a restabelecer a ordem. Era uma alma enredadeira e indiscreta.

- Ah, meu Deus! - exclamou, erguendo os braços. - Os cavalos atropelaram-lhe o marido, que ia embriagado! Pois então para o hospital! Eu sou a senhoria!

- Amália Liúdvigovna! Peço-lhe que repare no que está dizendo - admoestou-a Ekatierina Ivânovna com altivez (falava sempre com altivez à senhoria, para que ela soubesse o lugar que ocupava), e nem naquele momento conseguiu privar-se dessa satisfação. - Amália Liúdvigovna!

- Já lhe disse por mais de uma vez que não me chame Amália Liúdvigovna, mas sim Amal-Ivan!

- A senhora não é Amal-Ivan, mas sim Amália Liúdvigovna, e, como eu não pertenço a esse grupo de vis aduladores que a senhora tem, como o senhor Liebiesiátnikov, que tem o descaramento de estar aí atrás da porta neste momento - de fato, atrás da porta ouviram-se risos e uma voz que dizia: "Vão-se engalfinhar as duas" -, eu sempre lhe chamarei Amália Liúdvigovna, embora nunca consiga explicar a mim própria por que é que não gosta que a chamem assim. A senhora bem vê o que aconteceu a Siemion Zakháritch, que está morrendo. Peço-lhe que feche imediatamente essa porta e não deixe entrar aqui ninguém. Deixem-no, ao menos, morrer tranqüilo! Senão, previno-a de que amanhã mesmo levarei ao conhecimento do próprio general-governador a sua atitude. O príncipe conhece-me desde pequena e recorda-se muito bem de Siemion Zakháritch, ao qual algumas vezes concedeu alguns favores. Todos sabem que Siemion Zakháritch tinha muitos amigos e protetores, dos quais ele próprio se afastou por um sentimento de nobre orgulho, porque compreendia o infeliz vício que tinha; mas, agora - e apontou para Raskólhnikov -, há um senhor, jovem e generoso, que nos ajuda, que tem meios e relações, e que Siemion Zakháritch conheceu desde pequenino; e pode ter a certeza, Amália Liúdvigovna...

Disse tudo isso com extrema rapidez, que ia aumentando à medida que falava, até que um novo ataque de tosse veio interromper a eloqüência de Ekatierina Ivânovna. Nesse momento o moribundo voltou a si, lançou um gemido e ela correu para o seu lado. O ferido abriu os olhos e, embora ainda sem compreender nem reconhecer ninguém, ficou olhando para Raskólhnikov, que estava de pé à sua cabeceira. Respirava com dificuldade, num ritmo profundo e espasmódico; tinha um pouco de sangue nas comissuras dos lábios; o suor corria-lhe pela testa. Ainda sem ter reconhecido Raskólhnikov, começou a fixar sobre ele olhares inquietos. Ekatierina Ivânovna olhou-o com uns olhos tristes mas severos, dos quais corriam lágrimas.

- Meu Deus! Tem o peito todo esfacelado! Tanto sangue, tanto sangue! - exclamou, desolada. - É preciso tirar-lhe a roupa toda que tem em cima! Levanta-te um pouco, Siemion Zakháritch, se podes - gritou-lhe. Marmieládov reconheceu-a.

- Um padre! - exclamou com voz rouca.

Ekatierina Ivânovna dirigiu-se para a janela, encostou a testa ao vidro e exclamou:

- Ó vida três vezes maldita!

- Um padre! - tornou a pedir o moribundo, depois de um minuto de silêncio.

- Chega! - gritou-lhe Ekatierina Ivânovna.

Ele obedeceu à reprimenda e calou-se. Com uma expressão tímida e triste pôs-se a procurá-la com os olhos; ela voltou para o seu lado e colocou-se à sua cabeceira, de pé. Ele serenou um pouco, mas não por muito tempo. Não tardou que os seus olhos pousassem sobre a pequena Lídotchka (a sua preferida), que tremia num canto como se tivesse um ataque, e que o contemplava com os seus olhos atônitos, infantilmente fixos.

- A... a... - e apontou a menina com inquietação. Queria dizer qualquer coisa.

- Que é? - gritou Ekatierina Ivânovna.

- Descalça! Descalça! - murmurou, apontando com um olhar quase desmaiado os pés descalços da pequena.

- Ca... la-te! - gritou-lhe com repugnância Ekatierina Ivânovna. - Tu bem sabes por que é que ela está descalça!

- Louvado seja Deus! O médico! - exclamou Raskólhnikov com alvoroço. O médico entrou; era já velhinho, um alemão, que olhava com olhos receosos; aproximou-se do ferido, tomou-lhe o pulso, examinou-lhe a cabeça com muita atenção e com o auxílio de Ekatierina Ivânovna desabotoou-lhe a camisa, toda empapada em sangue, deixando-lhe o peito a descoberto. Estava todo machucado, ferido, dilacerado; viam-se algumas costelas quebradas no lado direito. No lado esquerdo, mesmo junto do coração, via-se uma grande mancha, amarelada e negra: o terrível sinal da patada do cavalo. O médico franziu o sobrolho. O polícia contou-lhe que o ferido fora apanhado por uma roda e arrastado uns trinta passos pela rua.

- É espantoso que tenha podido recuperar os sentidos - murmurou o médico em voz baixa, dirigindo-se a Raskólhnikov.

- Que lhe parece? - perguntou-lhe ele.

- Que está para soltar o último suspiro de um momento para o outro. - E não há nenhuma esperança?

- A mínima esperança. Está expirando. Demais, tem a cabeça gravemente ferida... Hum! Talvez se lhe pudesse fazer uma sangria... Mas seria inútil. Não tem mais do que cinco ou dez minutos de vida.

- Sangre-o, senhor doutor.

- Está bem, mas previno-o de que será completamente inútil. Nesse momento ouviram-se passos, o círculo dos curiosos abriu-se, no patamar, e à porta apareceu um sacerdote, um velhinho de cabelos brancos, que vinha trazer a extrema-unção. Atrás dele vinha um polícia, que o escoltara já na rua. O médico cedeu-lhe logo o seu lugar e trocou com ele um olhar significativo. Raskólhnikov pediu ao médico que esperasse um pouco. Aquele encolheu os ombros e esperou.

Todos se afastaram. A confissão foi muito rápida. O moribundo não dava coisa por coisa nenhuma; apenas podia proferir sons entrecortados, indistintos. Ekatierina Ivânovna pegou Lídotchka, levantou o pequenino da cadeira e, retirando-se com eles para um canto, junto do fogão, pôs-se de joelhos e obrigou também as crianças a ajoelharem à sua frente. Lídotchka tremia toda; e o menino, que estava sobre o chão com os seus joelhos nus, levantou maquinalmente a mãozinha, benzeu-se e dobrou-se até tocar no chão com a testa, o que parecia dar-lhe uma grande satisfação. Ekatierina Ivânovna mordia os lábios e reprimia as lágrimas; também ela rezava, arranjando de vez em quando a camisinha do petiz e indo buscar um xale que havia em cima da cômoda e deitando-o por sobre os ombros da menina, demasiado nus, sem se levantar nem deixar de rezar. Entretanto, forçada pelos curiosos, a porta que dava para os quartos interiores tornou a abrir-se.

No patamar amontoavam-se grupos cada vez mais densos de curiosos: inquilinos de todos os andares que, entretanto, não ultrapassavam os umbrais. Só uma lamparina iluminava a cena.

Nesse momento, Pólienhka, que chegava correndo, depois de ter ido avisar a irmã, abriu rapidamente caminho por entre as pessoas. Entrou, quase sem fôlego, da corrida veloz, tirou o lenço, procurou a mãe com os olhos, aproximou-se dela e disse-lhe: - Ela vem! Encontrei-a na rua!

A mãe obrigou-a a ajoelhar-se e reteve-a a seu lado. Uma mocinha deslizou por entre as pessoas, discreta e timidamente; e era estranha a sua presença inopinada naquele quarto, no meio daquela miséria e de todos aqueles farrapos, morte e desolação. Também ela estava modestamente vestida; o seu traje era barato, mas arranjadinho no estilo da rua, ao gosto e segundo as regras que regiam o seu pequeno mundo especial, consagrado a um fim declarado e vergonhoso. Sônia parou no patamar, mesmo junto da porta, mas não entrou e ficou olhando daí, como uma louca, aparentemente sem se aperceber de nada, esquecida até do seu vestido berrante, comprado em quarta mão, de seda, indecoroso em tal lugar, e com uma gola ridícula, e da enorme crinolina que abrangia todo o vão da porta, e das suas botinas de cor, da sua pequena sombrinha, desnecessária de noite, mas que trazia consigo, e do seu grotesco chapelinho de palha, com uma brilhante pena cor de fogo. Por debaixo desse chapelinho, inclinado a um lado, como usam as crianças, assomava uma carinha fria, pálida e assustada, com a boquinha aberta e uns olhos imóveis de espanto. Sônia era de pequena estatura, de uns dezoito anos, delgadinha; mas, no conjunto, era uma loira bastante graciosa, com uns olhos azuis que chamavam a atenção. Olhava o divã, o sacerdote, de alto a baixo; respirava também apressadamente, devido à corrida que dera. Até que finalmente devia ter chegado até junto dela um cochichar, algumas palavras saídas de entre a multidão. Baixou a cabeça, avançou um passo transpondo a entrada e encontrou-se no quarto, mas ainda próximo da porta.

A confissão e a comunhão tinham acabado. Ekatierina Ivânovna tornou a aproximar-se do leito do marido. O sacerdote afastou-se e, ao retirar-se, voltou para dizer duas palavras de auxílio e consolo a Ekatierina Ivânovna.

- E para onde vou eu, agora, com estas crianças? - disse-lhe ela numa voz cortante e irritada, mostrando-lhe os pequenos.

- Deus é misericordioso; confie no auxílio do altíssimo! - começou o sacerdote.

- Ah! Misericordioso, sim, mas não para nós!

- Isso é pecado, isso é um pecado, senhora! - observou o sacerdote, movendo a cabeça.

- E isto não é pecado? - exclamou Ekatierina Ivânovna, apontando para o moribundo.

- Pode ser que aqueles que involuntariamente lhe causaram a morte cheguem a indenizá-la, ainda que seja apenas pela perda dos seus ganhos... - O senhor não me compreende! - exclamou Ekatierina Ivânovna irritada, agitando as mãos. - Por que haviam de indenizar-me, se foi ele mesmo que, embriagado, se foi meter debaixo das patas dos cavalos? Quais ganhos? Não recebia nada dele, só me dava tormentos. O bêbado gastava tudo na bebida! Roubava-nos para ir gastar tudo na taberna. Gastava a vida dele e a minha pelas tabernas. Graças a Deus que morreu, finalmente! É uma despesa a menos!

- Deve perdoar-lhe na hora da morte; e isso é pecado, senhora, esses sentimentos são um grande pecado!

Ekatierina Ivânovna era incansável junto do doente: dava-lhe de beber, enxugava-lhe o suor e o sangue da cabeça, endireitava-lhe a almofada e discutia com o sacerdote, voltando-se de vez em quando para olhar para ele, sem abandonar a sua tarefa. Agora, de repente, dirigiu-se a ele quase com repugnância:

- Ah, bátiuchka! Uma palavra, só uma palavra! Perdoar! Andava sempre bêbado, como é que não haviam de atropelá-lo? Não tinha senão uma camisa, toda rota, ou, para melhor dizer, um farrapo, com a qual havia de dormir esta noite, enquanto eu ficaria até de madrugada com as mãos metidas na água, lavando a sua roupa e a das crianças, e depois havia de ir estendê-la na varanda, e de manhã havia de me ir pôr a passá-la... aí tem o senhor o que teria sido a minha noite! E ainda me vem falar de perdão! Se bem que, afinal, eu já lhe perdoei...

Uma tosse profunda, terrível, cortou as suas palavras. Tossiu sobre o lenço e mostrou-o depois ao sacerdote, apertando dolorosamente o peito com a outra mão. O lenço estava manchado de sangue...

O padre baixou a cabeça em silêncio e não disse nada. Marmieládov estava na agonia; não tirava os olhos do rosto de Ekatierina Ivânovna, que tornara a inclinar-se sobre ele. Queria dizer qualquer coisa e ainda começou fazendo um esforço para mover a língua; mas Ekatierina Ivânovna, compreendendo que o que ele queria era pedir-lhe perdão, gritou-lhe imediatamente com uma voz imperiosa:

- Ca... la-te! Não é preciso! Eu sei o que tu queres dizer!

E o doente calou-se; mas nesse mesmo momento, o seu olhar errante foi pousar-se na porta e viu Sônia.

Até então não reparara nela; estava num canto, encostada à parede. - Quem é aquela? Quem é aquela? - exclamou, de repente, com uma voz estertorante, sobressaltado, apontando espantado para a porta onde estava a filha e esforçando-se por se erguer.

- Deita-te! Deita-te... e... e! - gritou-lhe Ekatierina Ivânovna.

Mas ele, com forças sobre-humanas, conseguiu apoiar-se sobre uma mão. Contemplou durante algum tempo a filha, ansiosa e fixamente, como se não a reconhecesse. Até então, nunca a vira vestida daquela maneira. De repente reconheceu-a, humilhada, abatida e envergonhada dentro dos seus atavios, esperando placidamente que chegasse a sua vez de despedir-se do pai moribundo. Uma dor imensa se refletia no seu rosto.

- Sônia... Filha... Perdoa-me! - exclamou ele, e estendeu-lhe a mão; mas, como perdeu o apoio, resvalou, caiu do divã e rolou de cabeça para o chão; acorreram a levantá-lo, deitaram-no outra vez, mas estava já expirando.

Sônia lançou um pequeno grito, correu para abraçá-lo e nesse abraço ele soltou o último suspiro.

- Acabou! - exclamou Ekatierina Ivânovna ao ver o cadáver do marido. - Bem, agora que se há de fazer? Com que hei de eu amortalhá-lo? E a estes, que lhes hei de dar de comer amanhã?

Raskólhnikov aproximou-se de Ekatierina Ivânovna.

- Ekatierina Ivânovna - começou a dizer-lhe -, a semana passada, o seu falecido marido contou-me toda a sua vida e todas as suas circunstâncias... Pode ter a certeza de que falou da senhora com orgulho respeitoso. Desde essa noite em que eu pude ver até que ponto ele gostava de todos vós, e especialmente da senhora, Ekatierina Ivânovna, a respeitava e amava, apesar da sua lamentável fraqueza, desde essa noite ficamos amigos... Dê-me licença agora... que eu contribua... cumprindo o dever que tenho para com o meu defunto amigo. Aqui tem... vinte rublos, julgo que... e se pudesse ser-lhe útil em qualquer coisa... Enfim, tornarei a passar por aqui... Sim, sim, hei de passar, com certeza. Talvez passe já amanhã... Adeus!

E saiu rapidamente do quarto, abrindo como pôde caminho por entre as pessoas, até a escada; mas no patamar encontrou de repente Nikodim Fomitch, que já tomara conhecimento do desastre, e desejava ser ele a adotar pessoalmente as disposições necessárias. Desde aquela cena no comissariado que não tornara a vê-lo; mas Nikodim Fomitch reconheceu-o imediatamente.

- O quê? É o senhor? - perguntou-lhe.

- Morreu - respondeu-lhe Raskólhnikov. - Veio o médico, veio o padre; correu tudo como devia ser. Não aflija muito a pobre viúva, pois já lhe chega estar tísica. Procure animá-la com qualquer coisa, se puder... Segundo me consta, o senhor é boa pessoa... - acrescentou com um sorriso, olhando-o nos olhos.

- Mas o senhor está todo manchado de sangue! - observou Nikodim Fomitch, reparando, à luz do lampião, numas manchas frescas recentes, que havia no colete de Raskólhnikov.

- Sim, manchei-me... Estou todo salpicado de sangue! - confirmou Raskólhnikov com um gesto especial, depois do que sorriu, fez uma inclinação de cabeça e continuou a descer as escadas.

Descia devagar, imperturbável, mas febril e sem se aperceber disso, tomado de uma comoção nova, transbordante, que, como uma onda de vida “plena e poderosa, o invadia de repente. Essa comoção podia comparar-se com a que experimenta o condenado à morte, ao qual, de súbito e do modo mais inesperado, participam o indulto. Quando ia a meio da escada foi alcançado pelo sacerdote, que voltava para casa; em silêncio, Raskólhnikov deixou-o passar adiante, trocando com ele uma saudação silenciosa. Mas ia já pondo os pés nos últimos degraus, quando sentiu de repente uns passos apressados atrás de si. Alguém se esforçava por alcançá-lo. Era Pólienhka que corria atrás dele e o chamava:

- Escute! Escute!

Voltou-se. A pequenina desceu correndo os últimos degraus e ficou parada na frente dele, um degrau mais acima. Do pátio vinha uma luz fraca. Raskólhnikov contemplou a carinha da menina, vincada mas bonita, que lhe sorria alegre, infantilmente, e o olhava. Tinham-na mandado com alguma incumbência que, entretanto, não devia agradar-lhe muito.

- Escute, como se chama? E onde é que mora? - perguntou com uma voz ofegante.

Ele lhe pôs as mãos sobre os ombros e olhou-a com certa beatitude: era-lhe tão agradável olhar para ela, sem que, no entanto, soubesse por quê!

- Quem é que te mandou vir ter comigo?

- Foi a minha irmã Sônia - respondeu a menina, sorrindo-lhe ainda com mais agrado.

- Já sabia que foi a tua irmã Sônia que te mandou.

- A minha mámienhka também me mandou. Quando a minha irmã Sônia estava a dar-me o recado, a mãezinha chegou também e disse-me: "Corre depressa, Pólienhka!"

- Gostas muito da tua irmã Sônia?

- É a pessoa de quem gosto mais no mundo! - afirmou Pólienhka com uma convicção especial, e, de repente, o seu sorriso tornou-se mais sério. - E de mim, também és capaz de gostar?

Como resposta ela aproximou a sua carinha, com os lábios grossos ingenuamente estendidos para beijá-lo. De repente as suas mãozinhas, extremamente finas, puxaram por ele com força, com muita força, a sua cabeça pendeu sobre o ombro dele e a pequenina começou a chorar mansamente, apertando cada vez mais contra ele a sua carinha.

- Meu pobre paizinho! - exclamou, passado um minuto, erguendo a carinha chorosa e enxugando as lágrimas com as mãos. - Aconteceramnos hoje tantas desgraças! - acrescentou de repente, com esse gesto especialmente sério que as crianças tomam forçadamente quando querem falar com gente grande.

- Papai gostava de vocês?

- De quem ele gostava mais era de Lídotchka - continuou ela muito séria, sem um sorriso, tal como se exprimem as pessoas adultas -, porque é a menor e também porque está doentinha; trazia-lhe sempre uma prenda; a nós, ensinava-nos a ler e a mim ensinava-me gramática e a Lei de Deus - acrescentou com dignidade. - A mãe não dizia nada; mas nós sabíamos que isso lhe agradava e o pai também sabia; a mãe, agora, quer que eu aprenda francês, porque já é tempo de instruir-me.

- E rezar, sabes?

- Com certeza que sabemos! Há muito tempo; eu, como sou mais velha, rezo sozinha; mas Pólia e Lídotchka rezam com a mãezinha; primeiro a Salve-Rainha, e depois uma oração que diz: "Senhor, perdoa e abençoa a nossa irmã Sônia", e depois também: "Senhor, perdoa e abençoa o nosso paizinho", porque o nosso outro pai já morreu, e este de agora é outro, e nós também rezamos por ele.

- Pólietchka, eu me chamo Rodion. Pede também algumas vezes a Deus por mim, pelo seu servo Rodion... só isto.

- Daqui em diante rezarei sempre pelo senhor - disse a pequenina com veemência, e de repente tornou a rir-se, atirando-se contra ele e voltando a abraçá-lo fortemente.

Raskólhnikov disse-lhe o seu nome, deu-lhe o endereço e prometeu-lhe que passaria por ali, sem falta, no dia seguinte. A pequenina separou-se dele cheia de entusiasmo. Eram onze horas quando ele chegou à rua. Passados cinco minutos estava já na ponte, precisamente no mesmo lugar em que a tal mulher se atirara à água.

- Basta! - exclamou com energia e entusiasmo. - Fora com ilusões, com medos absurdos, com visões! Ah, a vida! Não vivi eu, por acaso, há um momento? A minha vida não morreu ao mesmo tempo que a da velha viúva! Ela está no céu e... Já chega, velhota; agora já é tempo de deixar os outros em paz! Que agora comece o reino da razão e da luz, da liberdade e da força, e depois veremos! Vamos ver qual de nós é que ganha! - acrescentou com altivez, como se se dirigisse a alguma força oculta, em atitude de desafio. - Eu já me resignei a viver em um archin de terreno! Neste momento estou muito fraco; mas parece que a doença me passou completamente. Eu já sabia que isto havia de ser assim, quando saí. E a propósito: a casa de Potchínkova fica a dois passos daqui. É infalível que hei de ir ver Razumíkhin e, ainda que não estivesse a dois passos, iria da mesma maneira... Que ganhe a aposta! Que se divirta à minha custa... não há outro remédio! O que é preciso é energia, energia; sem energia não se consegue nada; e a energia obtém-se com a própria energia, eis o que muitos não sabem - acrescentou, ufano e convencido, e, mal podendo mexer os pés, afastou-se da ponte.

A ufania e uma altiva dignidade apoderavam-se dele a cada instante, de tal maneira que, de um momento para o outro, não era já a mesma pessoa que no minuto anterior. Mas que lhe acontecia de especial para ter mudado assim? Nem ele mesmo sabia. Como um náufrago que se agarra a uma tábua, parecia-lhe de repente que também ele poderia viver, que ainda lhe restava vida, que a sua vida não morrera juntamente com a da velha viúva. Pode ser que se tivesse apressado muito a tirar essa conclusão, mas não se detinha a pensar nisso.

"Pelo servo Rodion já eu pedi, apesar de não ter rezado", foi o pensamento que lhe passou pela cabeça. "Bem... quanto a isso... foi por acaso", acrescentou, e sorriu da sua infantil lembrança. Estava numa excelente disposição de espírito.

Foi-lhe fácil encontrar Razumíkhin: na casa Potchínkova conheciam já o novo vizinho, e o porteiro ensinou-lhe imediatamente o caminho do quarto. No meio da escada ouviu logo o burburinho e a animada conversa de uma reunião numerosa. A porta do andar estava completamente aberta: ouviam-se vozes e barulho de discussões. O quarto de Razumíkhin era bastante espaçoso e estavam nele reunidas quinze pessoas. Raskólhnikov parou no vestíbulo. Do outro lado do tabique, dois criados do dono da casa andavam atarefados em volta de dois grandes samovares, com garrafas, bandejas e pratos carregados de massas alimentícias e aperitivos, trazidos da cozinha do dono da casa. Raskólhnikov mandou chamar Razumíkhin. Este acorreu logo, pressuroso. Percebia-se à primeira vista que tinha bebido um pouco a mais e, embora Razumíkhin nunca bebesse até ficar embriagado, dessa vez notava-se um pouco.

- Ouve - apressou-se a dizer-lhe Raskólhnikov -, vim apenas para dizer-te que ganhaste a aposta e que, de fato, ninguém é capaz de saber o que pode acontecer-lhe. Mas entrar, não entro; estou tão fraco que me sinto quase desfalecer. Por isso, saúde e adeus! Mas, amanhã, não deixes de me ir ver.

- Olha, vou acompanhar-te a casa. Se tu próprio dizes que estás tão fraco...

- E os convidados? Quem é esse indivíduo de cabelos loiros que ainda agora estava olhando para aqui?

- Esse? Sei lá! Deve ser um amigo do meu tio, mas também pode ser que tenha vindo sozinho... O meu tio, que é um homem admirável, ficará com eles; é pena que eu não te possa apresentá-lo agora. Mas, no fim de contas, que vão todos para o diabo! Neste momento não me preocupo com eles, e, além disso, preciso de tomar um pouco de ar; chegaste mesmo a propósito: mais dois minutos e ter-me-ia zangado com todos... juro-te! Sempre dizem tais mentiras... Não podes imaginar até que ponto o homem é capaz de mentir. Embora, no fim de contas, nos apercebamos muito bem! Por acaso não mentimos nós também? Bem, pois que mintam; em compensação, depois já não hão de mentir... espera um minuto que vou buscar Zósimov.

Zósimov veio afanosamente ao encontro de Raskólhnikov; notava-se-lhe uma curiosidade especial, e não tardou que o rosto se lhe iluminasse. - Já para a cama - decidiu, depois de examinar o melhor possível o doente. - Seria conveniente que tomasse qualquer coisa durante a noite, não acha? Eu arranjei... um papelinho...

- Ainda que fossem muitos - respondeu Raskólhnikov. Tomou ali mesmo o conteúdo do papelinho.

- Fazes muito bem em acompanhá-lo - observou Zósimov, dirigindo-se a Razumíkhin. - Veremos como é que ele está amanhã, mas, por hoje, a coisa não vai mal, há um progresso notável de ontem para hoje. Um século de vida, um século de aprendizagem...

- Sabes o que me dizia há pouco Zósimov, em voz baixa, quando nós saíamos? - disse-lhe Razumíkhin assim que se viram na rua. - Eu, meu caro, vou dizer-te tudo francamente, visto que eles são todos uns tolos. Zósimov mandou-me que fosse falando contigo pelo caminho e te fosse puxando pela língua, e depois lhe contasse tudo, pois diz que tem uma idéia: que tu estás doido ou pouco menos. Imagina! Em primeiro lugar, tu és três vezes mais inteligente do que ele; e, além disso, uma vez que não estás louco, devias não te importar com essa idéia dele; e, em último lugar, ele é um bruto e cirurgião de ofício, e deu-lhe agora para se intrometer nas doenças mentais e, pelo que te diz respeito, a tua conversa de hoje com Zamiótov desorientou-o completamente.

- Zamiótov contou-te tudo?

- Tudo, e fez muito bem. Agora já compreendo todos os pormenores do assunto, e o mesmo acontece a Zamiótov... Sim, de fato. Em resumo, Rodka, no fundo... Eu, agora, estou um pouco tocado... Mas não importa... No fundo, essa idéia... compreendes?... De fato, tinha-se arraigado neles, compreendes? É claro que eles nunca se atreveram a exprimi-la em voz alta, porque se trata de uma estúpida tolice, e sobretudo, quando prenderam esse pintor de paredes, tudo isso se desfez no ar e acabou para sempre. Mas por que serão eles tão idiotas? Eu, nessa altura (meu amigo, isto fica entre nós), fi-lo dar à língua, não digas isto a ninguém e não te dês por achado perante ele; já reparei que és um bocadinho vaidoso; reparei nisso em casa de Lavisa... Mas hoje, hoje, ficou tudo claro. A principal culpa foi desse Iliá Pietróvitch. A princípio aproveitou-se do teu desmaio no comissariado, mas, depois, ele próprio se sentiu envergonhado: parece-me que...

Raskólhnikov escutava-o com ansiedade. Razumíkhin, na sua bebedeira, falava pelos cotovelos.

- Eu desmaiei por causa da atmosfera pesada e do cheiro de pintura fresca que havia lá - disse Raskólhnikov.

- E ainda estás com explicações! Mas é que não há só a questão da pintura: havia um mês que a congestão estava em incubação, Zósimov pode afiançá-lo! Mas não podes imaginar como ele está abatido, coitado! "Nem sequer chego aos calcanhares dele!" Este "ele" eras tu! Às vezes, meu amigo, aparenta bons sentimentos. Mas a lição de hoje, a lição de hoje no Palácio de Cristal foi o cúmulo da perfeição. Começaste por meter-lhe medo, por fazer com que ele sentisse calafrios. Chegaste quase a obrigá-lo a obstinar-se de novo em todo esse monstruoso disparate e, depois, de repente, escapaste-te e puxaste-lhe pela língua. Vamos, vamos, ó diabo, já o apanhei! Ótimo! Agora está contrafeito, acabrunhado! És um mestre; e é assim que é preciso proceder com essa gente! Oh, por que não estaria eu presente? Esperava-te com uma impaciência horrível. Porfíri também queria conhecer-te...

- Ah! Esse também! Mas... por que se lhes teria metido na cabeça que estou louco?

- Mas eles, verdadeiramente, não dizem que tu estás louco. Parece-me que eu, meu amigo, já dei demais à língua contigo... O que impressionou, fica sabendo, é que, há pouco, tivesses mostrado tanto interesse, unica mente, por esse assunto... Agora já se percebe por que é que te interessavas, uma vez que conhecias todos os pormenores... e como te trouxe enervado e estava relacionado com a doença... Eu, meu caro, estou um bocadinho embriagado, mas só Deus sabe qual é a idéia deles... Repito-te: a esse, deu-lhe para as doenças mentais. Mas tu não lhe ligues e manda-o passear! Ficaram ambos em silêncio por meio minuto.

- Ouve, Razumíkhin - exclamou Raskólhnikov -, eu quero falar-te com a máxima franqueza: há pouco estive numa casa onde falecera certo funcionário... Também lhes dei dinheiro... E, além disso, também aí acabou de beijar-me uma pessoa que, ainda que não tivesse morto ninguém, ainda que, bem, numa palavra, tive oportunidade de ver também aí uma criatura... com uma pluma cor de fogo... Mas, além disso, eu dou o braço a torcer; estou muito fraco, segura-me ... Já estamos na escada?

- Mas que tens tu? Que tens? - perguntou-lhe Razummkhin, alarmado. - Sinto a cabeça um pouco tonta; mas não se trata disso, é que tenho uma tristeza tão grande! Pareço uma mulher... não achas? Olha, que é aquilo? Repara, repara!

- Que dizes?

- Mas não estás vendo? A luz do meu quarto... Não vês? Pela fresta... Estavam já em frente do último patamar, para o qual dava a porta do andar da dona da casa e, de fato, ali debaixo notava-se que a luz estava acesa no cubículo de Raskólhnikov.

- É estranho! Talvez seja Nastássia - observou Razumíkhin.

- Não, ela nunca entra no meu quarto a esta hora e já há muito que deve dormir a sono solto; mas... tanto me faz! Adeus!

- Que tens? Eu te acompanho, entramos juntos!

- Já sei que entramos juntos; mas eu quero apertar-te aqui a mão e despedir-me de ti. Bem, dá-me a mão! Adeus, até a vista!

- Mas que te aconteceu, Rodka?

- Nada. Entremos; tu serás testemunha...

Tornaram a subir as escadas e Razumíkhin pensou, por momentos, se Zósimov não teria razão: "Ah! Dei-lhe volta ao juízo com a minha conversa!", resmungou para consigo. De repente, quando iam já entrando, ouviram uma voz dentro do quarto.

- Quem será? - exclamou Razumíkhin.

Raskólhnikov foi o primeiro que puxou pela porta e a abriu de par em par; abriu-a e ficou parado à entrada, como se tivesse ficado pregado no chão.

A mãe e a irmã estavam sentadas no divã e havia já hora e meia que esperavam por ele. Por que razão era nelas que ele menos pensava, apesar da notícia confirmativa que tivera nesse dia, de que chegariam em breve, de que não tardariam a chegar, de que estariam ali de um momento para outro? Tinham gasto aquela hora e meia interrogando Nastássia, que ainda ali estava junto delas e se tinha apressado a contar-lhes tudo com todos os pormenores. E não conseguiam compreender, de tão assustadas que estavam, quando ela lhes disse que ele tinha escapulido doente, segundo se deduzia da narrativa, em autêntico estado de delírio... "Santo Deus, que lhe teria acontecido?" Começaram as duas a chorar, as duas sofreram um suplício cruciante naquela hora e meia de espera.

Jubiloso, triunfal clamor acolheu a presença de Raskólhnikov. Atiraram-se ambas contra ele. Mas ele ficou parado como um morto: um insuportável, súbito pensamento o feriu como um raio. Nem sequer ergueu as mãos para abraçá-las. Não podia! Mãe e filha apertavam-no fortemente nos braços, beijavam-no, riam e choravam... Ele deu um passo, cambaleou e caiu no chão desmaiado.

Alarma, gritos de horror, lamentos... Razumíkhin, que ficara de pé junto da porta do quarto, entrou como um relâmpago, pegou o doente com seus braços vigorosos e colocou-o rapidamente sobre o divã.

- Não é nada, não é nada! - exclamou, dirigindo-se à mãe e à irmã. - Foi uma vertigem, uma coisa sem importância! Ainda há pouco o médico acabou de dizer que ele já está muito melhor, que já está completamente bom! Água! Eia! Ora vejam como está tornando a si, como recupera os sentidos! E, pegando na mão de Dúnietchka, de uma maneira que quase a desarticulava, fê-la agachar-se para que visse como ele já estava voltando a si. Tanto a mãe como a filha olharam para Razumíkhin como para um fantasma, com espanto e gratidão; elas já tinham ouvido Nastássia contar o que, durante todo aquele tempo da doença, fora para o seu Rodka aquele "rapaz expedito", como lhe chamou nessa mesma noite, em conversa íntima com Dúnia, a própria Pulkhiéria Alieksándrovna Raskólhnikova.

 

 

Raskólhnikov ergueu-se e sentou-se no divã.

Com gesto débil, fez sinal a Razumíkhin para que pusesse fim a toda aquela torrente de incoerentes e fogosos consolos que prodigalizavam a sua mãe e a sua irmã, pegou nas mãos de ambas e ficou dois minutos em silêncio, contemplando ora uma, ora outra. A mãe assustou-se com o seu olhar. Notava-se nele um sentimento enérgico, quase doloroso; mas ao mesmo tempo deixava transparecer qualquer coisa de fixo e até de insensato. Pulkhiéria Alieksándrovna começou a chorar.

Avdótia Românovna estava pálida; a sua mão tremia na mão do irmão. - Voltem para casa... com ele - exclamou com voz entrecortada, indicando-as a Razumíkhin -, até amanhã; amanhã tudo... Já chegaram há muito tempo?

- Esta noite, Rodka - respondeu-lhe Pulkhiéria Alieksándrovna. - O trem estava com um atraso enorme. Mas, Rodka, agora não me separarei de ti, por nada deste mundo! Fico dormindo aqui, junto de...

- Não me atormentem! - exclamou ele movendo a mão com excitação. - Eu fico com ele! - disse Razumíkhin. - Não o deixarei só nem um momento, e os outros, os que estão em minha casa, que vão todos para o diabo! O meu tio que presida à festa.

- Como é que eu lhe poderei agradecer?! - começou Pulkhiéria Alieksándrovna tornando a estreitar a mão de Razumíkhin; mas Raskólhnikov voltou a intrometer-se.

- Não posso, não posso! - repetiu excitado. - Não me atormentem! Já chega, vão-se embora... Não posso!

- Vamos, mámienhka, saiamos do quarto, ainda que seja só por um minuto... - murmurou Dúnia, assustada. - Estamos matando-o, bem se vê. - Mas então eu não posso olhar para ele um pouco, depois de ter estado três anos sem o ver? - gemeu Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Esperem aí! - gritou ele outra vez. - Não fazem outra coisa senão interromper e embrulhar-me as idéias... Viram Lújin?

- Não, Rodka, mas ele já sabe da nossa chegada. Ouvimos dizer, Rodka, que Piotr Pietróvitch teve a amabilidade de fazer-te hoje uma visita - acrescentou Pulkhiéria Alieksándrovna com certa timidez.

- Sim... Teve a amabilidade... Dúnia, há pouco eu disse a Lújin que ia atirá-lo pelas escadas abaixo e mandei-o para o diabo...

- Rodka, tu fizeste isso?... A sério que tu... Não queres dizer que... - começou, assustada, Pulkhiéria Alieksándrovna, mas parou quando olhou para Dúnia.

Avdótia Românovna olhava para o irmão de alto a baixo e esperava que ele continuasse. As duas estavam já a par da disputa, por intermédio de Nastássia, na medida em que esta pudera compreender o que se passara, e sentiam-se perplexas e ansiosas.

- Dúnia - continuou Raskólhnikov com esforço -, eu não quero esse casamento; por isso, amanhã mesmo, assim que começares a falar com ele, terás logo de desdizer-te perante Lújin, para que não torne a ver-lhe nem a sombra.

- Meu Deus! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Irmão, por favor! Vê o que estás dizendo! - interveio Avdótia Românovna em tom vivo, mas conteve-se imediatamente. - Talvez tu, agora, não estejas em condições... estás cansado... - acrescentou suavemente.

- Estou delirando, não é? Não... Tu vais casar com Lújin por minha causa. E eu não quero vítimas. Por isso amanhã vais escrever-lhe uma cartinha... mandando-o passear... De manhã dás-ma a ler e acabou-se!

- Mas eu não posso fazer isso! - exclamou a moça, ofendida. - Com que direito...

- Dúnietchka, tu também estás nervosa; vai-te, por agora... Amanhã... talvez tu não vejas... - disse a mãe inquieta, dirigindo-se a Dúnietchka. - Ah, o melhor que podemos fazer é irmo-nos embora!

- Está delirando! - exclamou Razumíkhin, embriagado. - Se não, como é que ele se atreveria... Mas, amanhã, todos esses disparates hão de acabar... Hoje, de fato, expulsou-o daqui. Assim mesmo. O outro, é claro, ficou aborrecido... Pôs-se a fazer um discurso para pôr em relevo a sua distinção e acabou por sair de orelha murcha...

- Mas isso será verdade? - gritou Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Até amanhã... - disse-lhe Dúnia, compassiva. - Vamos embora, mamã! Adeus, Rodka!

- Já ficaste sabendo - repetiu ele, juntando todas as suas últimas energias. - Eu não estou delirando; esse casamento... é uma vileza. Admitamos que eu seja um malandro; mas tu não tens obrigação... Um só já chega... e, ainda que eu seja um malandro, não quero considerar como tal também uma irmã minha. Ou eu ou Lújin! Vão-se embora!

- Tu perdeste o juízo! És um déspota! - encolerizou-se Razumíkhin, mas Raskólhnikov já não lhe respondeu; pode ser que lhe tivessem faltado forças para isso. Estendeu-se no divã e voltou-se de cara para a parede, completamente extenuado. Avdótia Românovna olhou com curiosidade para Razumíkhin; os seus olhos negros brilhavam; Razumíkhin estremeceu perante aquele olhar. Pulkhiéria Àlieksándrovna estava fora de si.

- Não sairei daqui por nada deste mundo! - murmurou em voz baixa a Razumíkhin, quase desesperada. - Eu fico aqui, em qualquer lugar... Acompanhe Dúnia.

- Olhe que vai deitar tudo a perder! - disse-lhe também Razumíkhin em voz baixa, excitado. - Saiamos daqui, ainda que seja só para o patamar.

Nastássia, uma luz! Juro-lhes - continuou em voz baixa, já na escada - que há pouco quase nos batia, ao médico e a mim! Ora imagine! Ao próprio médico! Este resolveu não irritá-lo e foi-se embora. E, entretanto, eu fiquei lá embaixo, de olho atento, ele apressou-se a vestir-se e a sair para a rua... Agora, se fizer com que ele fique fora de si, também sairá para a rua e talvez até atente contra si próprio...

- Mas que diz o senhor!

- E veja ainda que também não está nada bem que Avdótia Romãnovna vá sozinha para a pensão, sem a senhora! Lembre-se do lugar onde estão hospedadas! Esse velhaco de Piotr Pietróvitch podia ter arranjado um alojamento melhor para as senhoras... Se bem que, no fim de contas, eu estou um tanto ou quanto embriagado, e por isso... é que há pouco o insultei; as senhoras não façam caso...

- Bem, então falarei com a dona da casa daqui - insistiu Pulkhiéria Àlieksándrovna. - Pedir-lhe-ei que nos arranje um cantinho por esta noite, para mim e para Dúnia. Eu não posso deixá-lo assim, não posso!

Com essa conversa ficaram parados na escada, num patamar, precisamente em frente da porta da dona da casa. Nastássia estava com uma luz no patamar abaixo. Razumíkhin estava numa agitação extraordinária. Meia hora antes, quando acompanhou Raskólhnikov a casa, estava um pouco demasiado eloqüente, o que ele próprio reconhecia, mas muito animado e quase desanuviado, apesar da tremenda quantidade de aguardente que ingerira naquela tarde. Agora o seu estado de espírito era também semelhante ao do entusiasmo; mas, ao mesmo tempo, parecia que o álcool que bebera lhe subia de repente à cabeça com dupla energia. Estava parado, junto das duas mulheres; segurava as mãos de ambas e expunha-lhes as suas razões, com uma franqueza espantosa e como se quisesse convencê-las absolutamente de todas as suas palavras; apertava-lhes as mãos com muita força, como num torno, até magoá-las, e parecia devorar Avdótia Românovna com os olhos, sem o menor constrangimento. Por causa da dor, elas retiravam de vez em quando as mãos da mão enorme e ossuda do rapaz; mas este não só não se apercebia disso, como puxava por elas outra vez ainda com mais força. Se elas, nesse momento, lhe tivessem ordenado que, para as servir, ele se atirasse de cabeça para baixo, tê-lo-ia cumprido imediatamente, sem se deter a pensar nem a hesitar. Pulkhiéria Alieksándrovna, aflita com o pensamento no seu Rodka, apesar de notar claramente que aquele rapaz era muito excêntrico e lhe apertava a mão com demasiada liberdade, e que a sua intervenção era também um pouco abusiva, esforçava-se por não reparar em todos esses extravagantes pormenores. E, apesar da sua própria aflição, Avdótia Românovna, se bem que não fosse de caráter medroso, via com assombro e até com certo temor o fogo brilhante e selvático dos olhares do amigo de seu irmão, e só a ilimitada confiança que lhe tinham inspirado as referências de Nastássia acerca daquele homem impetuoso é que a livrava da tentação de deitar a correr e de esconder-se atrás da mãe. Mas compreendia também que talvez já não pudesse fugir dele. Passados dez minutos acabou finalmente por ficar completamente tranqüila. Razumíkhin era de tal natureza que podia revelar-se completamente num momento, qualquer que fosse o estado de espírito em que se encontrasse; por isso todos compreendiam rapidamente com quem estavam lidando.

- Com a dona da casa é impossível, e além disso é uma tolice espantosa! - exclamava, procurando convencer Pulkhiéria Alieksándrovna. - Embora a senhora seja a mãe, ele ficará furioso, e sabe Deus o que pode acontecer! Ora ouça o que eu vou fazer: agora vou dizer a Nastássia que vá até lá em cima ver como é que ele está, e levarei as duas a casa, porque as senhoras não podem andar sozinhas pelas ruas; quanto a isso... Petersburgo... Bem, não falemos nisso!... Depois de deixá-las em casa, voltarei aqui, e dou-lhes a minha palavra de honra de que lhes venho trazer notícias acerca dele, se dorme ou não etc. etc. Depois, escutem, minhas senhoras: depois da casa das senhoras à minha é um pulo; tenho lá convidados, todos já embriagados; pegarei em Zósimov... o médico que o tem tratado, que neste momento está em minha casa e não está embriagado. Esse não está bêbado, nunca está bêbado! Hei de trazê-lo aqui para ver Rodka, e depois irei com ele ver as senhoras, isto é, dentro de uma hora terão notícias dele... da própria boca do médico, compreendem? Do próprio médico, o que não é o mesmo que da minha! Se ele estiver pior juro-lhes que eu próprio as trarei aqui, e, se estiver melhor, as senhoras deitam-se e vão dormir. Eu ficarei de vigia aqui, toda a noite, na escada, de maneira que ele não saberá de nada, e mandarei a Zósimov que passe a noite em casa da senhoria, para estar a postos para o que for preciso. Agora digam-me o que é preferível para ele: o médico ou as senhoras. O médico é-lhe mais útil, muitíssimo útil. E pronto, agora vão para a sua casinha. Ficar com a senhoria é impossível; impossível para mim, impossível para as senhoras; não insistam, porque ela... é uma imbecil. Terá ciúmes de Avdótia Românovna, fiquem sabendo, e da senhora também... De Avdótia Românovna, isso nem tem dúvida. Tem um feitio muito estranho! Embora, no fim de contas, eu também seja um idiota... Não falemos mais nisso! Vamos, então! Já estão convencidas? Estão ou não?

- Vamos, mámienhka - disse Avdótia Românovna -, com certeza que cumprirá a sua promessa. Já lhe devemos a ressurreição de meu irmão, e, se é verdade que o médico vai passar aqui a noite, que mais podemos desejar?

- Veja como a senhora... a senhora... a senhora me compreende, porque a senhora... é um anjo! - exclamou Razumíkhin entusiasmado. - Vamos! Nastássia! Vai já lá acima e fica a vigiá-lo, sem luz; eu estarei de volta dentro de um quarto de hora.

Embora não estivesse completamente convencida, Pulkhiéria Àlieksándrovna deixou de fazer oposição. Razumíkhin pegou nas mãos de ambas e conduziu-as pelas escadas. No entanto ele ainda lhes inspirava desconfiança. "Embora seja tão expedito e bondoso, estará em condições de cumprir o que promete? Porque ele está de uma maneira!..."

- Eu compreendo que as senhoras hão de pensar que, no estado em que me encontro... - disse Razumíkhin, adivinhando-lhes o fio dos pensamentos e pisando o passeio com as suas enormes passadas de gigante, sem perceber que as duas mulheres mal podiam segui-lo. - Tolice! Isto é... eu estou demasiadamente bêbado, é verdade; mas não é de álcool. É que, quando eu vi as senhoras, o sangue subiu-me à cabeça e fiquei transtornado... Mas não façam caso de mim, minhas senhoras! Não reparem nisso; eu sou um trapalhão; não sou digno das senhoras... Nem de longe! Assim que as deixar vou direitinho ao canal, dou dois mergulhos na água e pronto... Se soubessem como eu já gosto das duas! Não se riam nem se aborreçam, minhas senhoras! Aborreçam-se com toda a gente, menos comigo! Eu sou amigo dele e das senhoras também. Aquele desejo... O coração já mo adivinhava... O ano passado houve um momento... Aliás não é uma certeza absoluta que o meu coração mo tivesse adivinhado, porque as senhoras apareceram aqui como se tivessem caído do céu. Vou passar toda esta noite em claro... Há pouco, Zósimov estava com medo de que ele perdesse o juízo... Por isso é preciso não o irritar...

- Que disse o senhor? - exclamou a mãe.

- Mas foi o próprio médico quem disse isso? - perguntou Avdótia Românovna, assustada.

- Não, ele não disse isso, o que disse foi o contrário. E também lhe deu um remédio, uns papelinhos que eu vi, e foi então que as senhoras chegaram... Ah! Teria sido bem melhor que tivessem deixado isso para amanhã! Fizemos muito bem em nos virmos embora. Mas dentro de uma hora o próprio Zósimov as porá a par de tudo. Esse não está embriagado! E eu, então, já estarei desanuviado... Mas por que me teria eu embriagado desta maneira? E por que me teria eu metido em discussões com esses malvados? Jurara não tornar a discutir com eles! Mas dizem uns tais disparates! É impossível não discutir com eles! Deixei lá o meu tio, como presidente... Bem, talvez as senhoras não acreditem, mas eles exigem que o indivíduo não possua personalidade e acham que nisso é que está o mais importante da vida! Uma pessoa não ser ela própria, parecer-se o menos possível consigo mesma! É isso que eles consideram o cúmulo do progresso. E nem sequer procuram mentir com graça; mas...

- Ouça - interrompeu-o timidamente Pulkhiéria Alieksándrovna, sem conseguir outra coisa senão entusiasmá-lo ainda mais.

- Que pensam as senhoras? - exclamou Razumíkhin, elevando a voz ainda mais. - Julgam que eu me ponho assim porque eles mentem? Tolice! Eu gosto que eles mintam! A mentira é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais. Vai mentindo... que depois hás de atingir a verdade! É precisamente por ser homem que eu minto. Nem uma só verdade poderia alcançar se antes não mentisse catorze vezes, e até cento e catorze vezes, o que representa uma honra sui generis; simplesmente, nós nem sequer sabemos mentir com inteligência! Tu me mentes, mas mentes-me de uma maneira especial, e eu ainda por cima te dou um abraço. Mentir com graça, de uma maneira pessoal, é quase melhor que dizer a verdade à maneira de toda a gente; no primeiro caso é-se um homem e, no segundo, não se é mais do que um papagaio! A verdade não anda depressa, mas, à vida, podemos fazê-la correr; há exemplos disso. Ora vejamos: que somos nós presentemente? Todos, todos sem exceção, no campo das ciências, da cultura, do engenho, da invenção, da experiência, em todos os campos, em todos, em todos, não passamos das primeiras letras. Gostamos de nos regalarmos com a inteligência alheia! Da papinha já feita! Não é verdade? Não tenho razão? - exclamou Razumíkhin, exaltando-se e apertando as mãos das duas mulheres. - Não será verdade isso tudo?

- Oh, meu Deus, eu não sei! - declarou a pobre Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Sim, é verdade... se bem que eu não esteja completamente de acordo com o senhor - acrescentou seriamente Avdótia Românovna, e esteve quase para gritar, tal era a força com que Razumíkhin lhe apertava a mão.

- Acha que sim? Disse que também acha que sim? Bem, então, uma vez que pensa assim... a senhora... - exclamou entusiasmado - a senhora é um poço de bondade, de pureza, de inteligência, e... uma perfeição! Dê-me a sua mão, dê-ma! Dê-me a senhora também a sua, que quero beijar-lhas aqui mesmo, agora mesmo, de joelhos!

E pôs-se de joelhos, no meio do passeio, que por acaso estava deserto. - Mas o senhor sabe o que está fazendo? - exclamou Pulkhiéria Àlieksándrovna no auge do espanto.

- Levante-se, levante-se! - disse Dúnia, sorridente e assustada. - Não o farei por nada deste mundo se, primeiro, não me derem as suas mãos! Bem, agora está bem; agora já me levanto e vamos andando! Eu sou uma pessoa muito infeliz, eu não sou digno das senhoras e, além disso, estou embriagado, do que me sinto muito envergonhado... Eu não sou digno de amá-las, mas inclino-me perante as senhoras... que é o que todos deveriam fazer, se não fossem uns idiotas completos! Foi por isso que eu me ajoelhei! Bem, aqui está a sua casa, e, de fato, Rodka teve muita razão para, esta tarde, expulsar o seu Piotr Pietróvitch! Como é que ele teve o atrevimento de hospedá-las nesta casa? É escandaloso! Sabem que gente é que vive aqui? E isto sendo a senhora sua noiva! É de fato noiva dele? Pois, ainda que o seja, eu não tenho nenhum pejo de lhe dizer, depois de ver isto, que o seu futuro marido é um velhaco!

- Ouça, Senhor Razumíkhin, o senhor esquece-se... - começou Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Sim, sim, a senhora tem razão; eu me esquecia e sinto-me envergonhado! - disse Razumíkhin, refreando-se. - Mas... mas... as senhoras não devem ficar zangadas comigo por eu me exprimir assim! Porque eu, ao falar assim, falo com toda a sinceridade, e não porque... hum! Isso seria uma vileza; em resumo: não porque eu, à senhora... hum!... Bem, o fato é que, embora eu não diga a razão, não me atrevo... Mas todos nós compreendemos esta tarde, assim que ele entrou, que esse homem não é dos nossos. Não é pelo fato de ter chegado acabadinho de sair do cabeleireiro, com o cabelo frisado, nem porque se tivesse apressado tanto em mostrar a sua inteligência, mas sim porque é um espia e um especulador, porque é um judeu e um charlatão, e tudo isso salta logo aos olhos. As senhoras pensam que ele é inteligente? Pois olhem que não, é um burro, um asno! Ora, vejam francamente: fará realmente um par condizente com a senhora? Oh, meu Deus! Reparem, minhas senhoras - e parou de repente, quando iam já subindo a escada da pensão -, embora todos os que neste momento se encontram em minha casa estejam embriagados, isso não significa que não sejam todos umas pessoas decentes e, ainda que mintamos (porque eu também minto), mentindo acabaremos por alcançar a verdade, porque vamos por bom caminho, ao passo que Piotr Pietróvitch... não vai por caminho direito. E, embora há um momento eu estivesse a disparatar acerca deles, fiquem as senhoras sabendo que eu os respeito a todos; e até ao próprio Zamiótov, se bem que não o respeite, tenho-lhe amizade, apesar de tudo, porque... é um garoto. Até mesmo a esse idiota do Zósimov, porque... é honesto e sabe do seu ofício... Mas, basta, já está tudo dito e perdoado. Está perdoado, não é verdade? Ora cá estamos! Entremos. Este corredor não me é desconhecido; eu já estive aqui; aqui, no número três, houve uma vez um escândalo... Mas qual é o seu quarto? Que número é? É o oito? Bem, fechem-se a chave por dentro, de noite, e não abram a ninguém. Dentro de um quarto de hora estarei outra vez aqui com notícias e, passada outra meia hora, com Zósimov, vão ver! Então adeus, que vou já num pulo!

- Meu Deus, Dúnietchka! Que irá acontecer? - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna dirigindo-se à filha, cheia de medo e de inquietação.

- Acalme-se... mámienhka - respondeu Dúnia, tirando o chapéu e a mantilha. - Foi Deus quem nos enviou este rapaz, se bem que tenha bebido um pouco a mais. Podemos ter confiança nele, garanto-lhe. Sem falar em tudo o que ele já fez pelo meu irmão...

- Ah! Dúnietchka! Sabe Deus se ele voltará! Mas como é que eu fui capaz de me decidir a abandonar Rodka! Nem de longe imaginava vir encontrá-lo assim! Ficou tão sério... até parecia que a nossa presença o contrariava!

Assomaram lágrimas aos seus olhos.

- Não, isso não é bem assim, mãezinha. A senhora não reparou bem, porque não fazia mais nada senão chorar. É que ele está muito transtornado devido à doença tão grave... É por isso!

- Ah, essa doença! Que irá acontecer, que irá acontecer? E a maneira como ele te falou, a ti, Dúnia! - disse a mãe, olhando timidamente para os olhos da filha, a fim de neles ler todo o seu pensamento, e já meio contente por ver que Dúnia até se punha na defesa de Rodka, e com certeza que lhe perdoava. - Estou convencida de que amanhã já deve ter reconsiderado - acrescentou, esforçando-se por chegar até o fim.

- Também estou convencida de que amanhã até nos falará... daquilo - interrompeu Avdótia Românovna, e sem dúvida isso foi um remate à conversa, pois tinham tocado num ponto do qual Pulkhiéria Alieksándrovna não se atrevia a falar naquele momento. Dúnia aproximou-se da mãe e abraçou-a. Ela a abraçou também com força e em silêncio. Depois sentou-se e ficou à espera, num desassossego, do regresso de Razumíkhin, e com os seus olhos tímidos seguia os movimentos da filha, que, de braços cruzados e também ansiosa, se tinha posto a dar voltas para trás e para diante pelo quarto, pensativa. Esse andar, de uma ponta a outra, meditando, era um costume vulgar de Avdótia Românovna, e a mãe tinha sempre medo de interromper as suas meditações nesses momentos.

É claro que Razumíkhin era ridículo com aquela paixão súbita que, no meio da bebedeira, lhe nascera por Avdótia Românovna; mas muitas pessoas o teriam desculpado se tivessem visto Avdótia Romã novna, sobretudo neste momento em que dava voltas pela sala, de braços cruzados, triste e pensativa, sem se deterem a considerar a extravagância da situação.

Avdótia Românovna era muito bonita, alta, maravilhosamente bemfeita, forte, aprumada, o que se via em todos os seus gestos, e o que, aliás, não era de maneira nenhuma um obstáculo a que tivesse também movimentos ágeis e graciosos. No rosto parecia-se com o irmão, mas podia até dizer-se que era uma autêntica beleza. Tinha os cabelos castanhos, um pouco mais claros que os do irmão; os olhos quase negros, cintilantes, altivos e, ao mesmo tempo, às vezes, de uma doçura invulgar. Era pálida, mas não de palidez doentia; o seu rosto resplandecia fresco e são. Tinha a boca um tanto pequena; o lábio inferior, fresco e vermelho, era levemente saliente, bem como o queixo... o que era a única irregularidade naquele belíssimo rosto, mas que entretanto lhe infundia uma nota especial, e, entre outras coisas, uma certa altivez. A expressão do seu rosto era sempre verdadeiramente mais séria do que alegre, preocupada; mas o sorriso ficava bem a esse rosto; como lhe assentava bem o riso jovial, juvenil, despreocupado! Por isso era compreensível que o impetuoso Razumíkhin, franco, simples, honesto e forte como um homem antigo, que nunca na sua vida vira nada semelhante, perdesse o juízo assim que a viu. Além disso, o acaso, como de propósito, mostrou-lhe Dúnia nesse belíssimo instante de amor e alegria perante a presença de seu irmão. Teve assim ocasião de ver como ela estremecia, amuada, o lábio inferior projetado para a frente, em resposta às indicações bruscas, de uma ingratidão feroz, daquele... e, a partir desse momento, já não se dominou.

Além disso teve razão ao dizer, quando fizera aquela pausa, embriagado, na escada, que a extravagante senhoria de Raskólhnikov, Praskóvia Pávlovna, era capaz de sentir ciúmes, não só de Avdótia Româ novna, mas até da própria Pulkhiéria Alieksándrovna. Apesar de ter já os seus quarenta anos, Pulkhiéria Alieksándrovna conservava ainda vestígios da sua passada formosura, isto sem falar em que parecia ter muito menos idade do que aquela que realmente tinha, como costuma acontecer às mulheres que conservaram a limpidez da alma, a frescura de impressões e o honesto e puro fervor do coração, até as proximidades da velhice. Digamos de passagem que conservar tudo isso é o único meio de não perder a beleza, até na velhice! Os seus cabelos começavam já a tornar-se brancos e a escassear, havia já algum tempo que pequenos pés-de-galinha se lhe desenhavam em volta dos olhos, tinha as faces murchas e vincadas devido às preocupações e aos desgostos e, apesar de tudo isso, o seu rosto era muito belo. Era o vivo retrato de Dúnietchka, simplesmente com vinte anos a mais, e a não ser também quanto ao lábio inferior, que não era proeminente, como o da filha. Pulkhiéria Alieksándrovna era muito sensível, embora não o fosse até a afetação; tímida e condescendente, mas só até certo limite; era capaz de fazer muitas concessões, podia conformar-se com muitas coisas, até com aquelas que eram contrárias às suas convicções, mas havia sempre um limite de honorabilidade, moralidade e convicções íntimas que nenhuma circunstância era bastante forte para obrigá-la a transpor.

Passados precisamente vinte minutos depois de Razumíkhin ter saído, ouviram-se duas pancadas na porta, não muito fortes, mas apressadas; era ele que voltava.

- Não posso entrar, não tenho tempo! - disse atabalhoadamente quando lhe abriram a porta. - Dorme como um anjo, com um sono plácido, tranqüilo, e Deus queira que fique dormindo assim umas dez horas. Nas tássia vela por ele; ordenei-lhe que não se afastasse de lá até que eu volte. Agora vou buscar Zósimov, ele as porá a par de tudo, e depois vão as senhoras dormir; estão cansadas, eu bem vejo...

E, retirando-se, afastou-se pelo corredor.

- Que expedito e que... leal! - exclamou muito contente Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Parece ser uma excelente pessoa! - respondeu Avdótia Românovna com certo entusiasmo, e voltou novamente aos seus passeios pelo quarto, de um lado para o outro.

Passado pouco tempo ouviram-se passos no corredor e outras pancadinhas na porta. Desta vez, as duas mulheres tinham esperado, completamente tranqüilas, o regresso de Razumíkhin, e, de fato, ele conseguira trazer-lhes Zósimov. Este consentira, imediatamente, em deixar o festim e em vir ver como estava Raskólhnikov, mas visitar as senhoras foi de má vontade e com grande receio, desconfiado do bêbado Razumíkhin. Mas ficou imediatamente tranqüilo e até lisonjeado no seu amor-próprio; percebeu que esperavam por ele como por um oráculo. Permaneceu ali dez minutos precisos e conseguiu convencer e tranqüilizar completamente Pulkhiéria Àlieksándrovna. Falou-lhes com a maior simpatia, mas energicamente e até com certa seriedade afetada, como um médico de vinte e sete anos chamado para um caso grave, e sem se afastar nem um momento do assunto, nem mostrar o menor desejo de entrar em relações mais pessoais e freqüentes com as duas senhoras. Como, assim que entrou, reparou imediatamente como Avdótia Românovna era extraordinariamente graciosa, esforçou-se logo, desde o primeiro momento, por não reparar nela durante todo o tempo que durou a visita, dirigindo-se exclusivamente a Pulkhiéria Alieksándrovna, o que acabou por lhe proporcionar uma extraordinária satisfação interior. Referindo-se especialmente ao doente, disse que acabava de encontrá-lo num estado muito satisfatório. A julgar pelas suas observações, aquela doença, além das péssimas condições em que ele vivera durante os últimos meses, obedecia também a certas causas morais, e, por assim dizer, era produto de muitas e complexas influências morais e materiais, desassossego, inquietações, preocupações, certas idéias etc. etc. Como observasse de soslaio que Avdótia Românovna o escutava com especial atenção, alargou-se um pouco mais sobre esse tema. Perante a inquieta e tímida pergunta de Pulkhiéria Alieksándrovna sobre se "tinha algumas suspeitas de alienação mental", respondeu com um sorriso plácido e sincero que haviam exagerado muito as suas palavras; que era verdade que, no doente, se lhe notava uma espécie de idéia fixa, qualquer coisa que parecia denotar uma monomania - tanto mais que ele seguia agora com extraordinário interesse esse setor da medicina -, mas que era preciso ter presente que até quase aquele dia o doente estivera delirando; e... e não havia dúvida de que a chegada das pessoas de família havia de fortalecê-lo, animá-lo e produzir nele um efeito de completo restabelecimento, "desde que lhe sejam evitadas novas comoções", acrescentou de maneira significativa. Depois levantou-se, fez uma reverência, ao mesmo tempo séria e jovial, acompanhado pelas bênçãos, pela veemente gratidão, pelas súplicas e até pela mãozinha de Avdótia Românovna, que lha estendia espontaneamente, e retirou-se muitíssimo satisfeito com a sua visita e, sobretudo, consigo próprio.

- Amanhã falaremos; agora vão já deitar-se! - insistiu Razumíkhin, quando saía em companhia de Zósimov. - Amanhã voltarei por aqui, com notícias, o mais cedo que puder.

- É encantadora, essa Avdótia Românovna! - observou Zósimov, quase zangado, quando iam já na rua.

- Encantadora? Disseste que é encantadora? - exclamou Razumíkhin raivoso, e, de repente, atirando-se a Zósimov, agarrou-o pelo pescoço. -

Como te atreves... Compreendes? Compreendes? - exclamou, sacudindo-o pelo colarinho e encostando-o à parede. - Ouviste?

- Larga-me, bêbado dos diabos! - gritou Zósimov, esforçando-se por se libertar, e, depois que o outro já o tinha largado, ficou a olhá-lo fixamente, e de repente desatou a rir. Razumíkhin, de pé, diante dele, deixou cair as mãos e quedou-se sombrio e pensativo.

- É claro que eu sou um burro - disse, sombrio como uma nuvem -, mas olha... tu também o és.

- Nada disso, meu amigo, nada disso. Eu não penso em disparates. Continuaram caminhando em silêncio, e foi já próximo da casa de Raskólhnikov que Razumíkhin, muito preocupado, cortou aquele silêncio. - Ouve - disse para Zósimov -, tu és um bom rapaz, mas entre outros defeitos tens o de ser um libertino, sim, e dos porcos. És um autêntico crápula, nervoso, um fraco de caráter, um efeminado, um mimalho, que não podes privar-te de nada; é a isso que eu chamo porcaria, porque pode conduzir diretamente a ela. És um tal molengão que, confesso, não chego a compreender como é que, com tudo isso, ainda consegues ser um bom médico e até dedicado. Dormes em cama de penas (tu, um médico!) e levantas-te da cama de noite para ir ver um doente... Dentro de três anos já não te levantarás... Mas, enfim, que diabo! Não se trata agora disso, mas disto: tu, esta noite, vais ficar dormindo no quarto da senhoria (lá a convenci, com muito custo) e eu fico na cozinha; estabelecerão assim intimidade rapidamente. Não é o que tu pensas! Olha, meu amigo, nem por sombras...

- Mas eu não imagino nada!

- Olha, meu amigo, fingimento, silêncio, timidez, uma castidade feroz, e contudo... suspira e derrete-se como cera, completamente babadinha! Livra-me dela, peço-to por todos os santos do céu! Sê complacente, o mais que possas ser! Ficar-te-ei muito agradecido!

Zósimov pôs-se a rir com mais vontade do que antes.

- Estás completamente fora dos eixos! Mas que eu vou fazer com ela? - Garanto-te que não vais ter muito trabalho; bastará que lhe pespegues todas as ingenuidades que te venham à cabeça; basta que te sentes ao lado dela e lhe dês conversa. Além disso tu és médico, por isso podes dedicar-te a curá-la de qualquer coisa. Ela tem piano, e eu, já sabes que canto um bocadinho; cantei-lhe uma cançãozinha russa autêntica: Vertendo estou ardentes lágrimas... Ela é doida por essas canções... Foi por aí que eu comecei; mas tu, para o piano, és um virtuose, um mestre, um Rubinstein... (1) Juro-te que não te vai custar...

- Mas tu prometeste-lhe qualquer coisa? Algum compromisso por escrito? Pode ser que lhe tenhas prometido casamento...

 

* (1) Anton Rubinstein, pianista e compositor russo, autor da ópera Demônio (1829-1894). Fundou o Conservatório de São Petersburgo. (N. do T) *

 

- Nada disso, nada disso; absolutamente nada! Ela também não é dessas; quem anda atrás dela é Tchebárov...

- Então, deixa-a!

- Mas como é que eu posso deixá-la assim, sem mais nem menos? - Mas por que é que é impossível?

- Porque é, e pronto! Olha, meu amigo, há qualquer coisa que me prende.

- Seduziste-a talvez, não?

- Qual o quê! Pode até muito bem acontecer que o seduzido fosse eu, devido à minha inépcia; mas, para ela, tanto lhe faz que sejas tu como eu; pois o que ela quer, com certeza, é ter alguém ao lado de quem possa suspirar. Olha, meu amigo... não posso explicar-to bem. Olha... bem; tu sabes muito de matemática e ainda continuas a interessar-te por ela, bem sei; pois dedica-te a ensinar-lhe cálculo integral. Juro-te por Deus que não digo isso por brincadeira, que falo a sério. Para ela tanto faz; pôr-se-á a olhar para ti e a suspirar, e assim durante um ano. Eu, entre outras coisas, falei com ela durante muito tempo e, durante dois dias consecutivos, do parlamento prussiano; pois de que havia eu de lhe falar? E ela, durante todo esse tempo, não fazia outra coisa senão suspirar e derreter-se. Ah! Mas não lhe fales de amor; a hipocrisia dela leva-a até fingir de arisca; o que deves é dar-lhe a entender que não podes sair de perto dela, é o suficiente. É terrivelmente comodista e, em casa dela, uma pessoa está como na sua própria: lê, senta-te, deita-te, escreve... Até podes beijá-la com cuidado...

- Mas que tenho eu a ver com ela?

- Ah, nunca poderei explicar-te! Olha, é que tu e ela são muito parecidos. Eu já me lembrara de ti... É que é preciso acabar com isto! E tanto me faz que seja mais tarde ou mais cedo. Aqui, meu amigo, terás uma espécie de colchão de penas... Sim, e não só de penas. Ah! Aqui, uma pessoa é amimada, aqui é o fim do mundo, a âncora de salvação, o porto de abrigo, o umbigo da terra, a base do mundo formada por três peixes. São tortas de creme e empadas de peixe, é o samovar da tarde, os suspirozinhos plácidos e os cobertores quentes, as botijas para a cama; enfim, é como se tivesses morrido, mas, ao mesmo tempo, continuasses vivo e gozasses das vantagens de ambos os estados, ao mesmo tempo. Mas, está bem, meu amigo; eu pareço um aldravão de feira e, com os diabos! já são horas de dormir. Ouve, eu costumo acordar de noite, por isso irei ver como é que ele está. Não há nada, é um disparate, vai tudo bem. Sobretudo tu, não fiques inquieto; mas se quiseres sobe também e vai até lá para dares uma vista de olhos. Se notares a mais ínfima coisa, que delira, por exemplo, ou que tem febre, ou outra coisa, seja o que for, venhas logo e acordes-me. Embora, no fim de contas, não seja possível...

 

No dia seguinte, às oito, Razumíkhin acordou preocupado e sério. Muitas e imprevisíveis dúvidas e hesitações o assaltaram de repente nessa manhã. Nem sequer pudera ter imaginado na véspera que havia de acordar assim. Recordava tudo quanto se passara na noite anterior, até os mínimos pormenores, e compreendia que lhe acontecera algo de estranho, que recebera uma impressão completamente nova e que não podia comparar-se a nenhuma das anteriores. Ao mesmo tempo reconhecia com toda a clareza que aquilo era um sonho que germinara na sua cabeça, sem a mínima realidade, a tal extremo irreal, que até se envergonhava dele, e apressou-se a substituí-lo por outras preocupações e cuidados mais positivos, que lhe deixara em herança aquele "três vezes amaldiçoado dia anterior".

A reminiscência mais terrível de todas era a de que se portara no dia anterior como um velhaco e um selvagem, não só pelo fato de estar embriagado, como por se ter posto a troçar, diante daquela moça, do seu próprio noivo, por uns ciúmes estúpidos, aproveitando-se da situação, sem saber sequer das relações e compromissos que entre eles pudessem existir e sem sequer conhecer também o homem a fundo. Isto é: que direito tinha ele de pôr-se a julgar tão leviana e temerariamente? E quem é que o obrigava a formular um juízo? Por acaso, uma criatura como Avdótia Românovna poderia ser capaz de entregar-se a um homem indigno por dinheiro? Se era assim, é porque, com certeza, ele não era indigno. E o caso da pensão? Mas por que é que o homem havia de estar previamente informado da natureza da tal casa de hóspedes? Já lhes arranjara outro alojamento. Livra, e que reles era tudo aquilo! E que desculpa era essa de estar embriagado? Uma desculpa estúpida, que o humilhava ainda mais! No vinho está a verdade e, de fato, a verdade completa saíra à luz, isto é, "aflorara à superfície toda a maldade do seu coração, grosseiramente invejoso". E, por acaso, ser-lhe-ia lícito, tão pouco, de qualquer modo, que um homem como ele, Razumíkhin, acariciasse tais sonhos? Quem era ele, comparado com aquela moça... ele, o bêbado atrevido e fanfarrão do dia anterior? "Mas poder-se-á estabelecer uma comparação tão cínica e grotesca?" Razumíkhin ruborizou-se perante tal pensamento e, de repente, como de propósito, naquele mesmo momento lembrou-se com toda a clareza de como lhes falara na noite anterior, de pé, na escada, dizendo-lhes que a senhoria ia sentir ciúmes de Avdótia Românovna. Só isso era insuportável! Descarregou uma pancada, com toda a força, sobre o fogão da cozinha, magoando a mão e partindo um dos tijolos.

"Não há dúvida", resmungou para consigo próprio, passado um minuto, com um certo sentimento de auto-humilhação, "não há dúvida de que já não há maneira de emendar nem de desfazer todos esses disparates... e, portanto, é preciso não pensar mais nisso. O que eu farei é apresentar-me ali sem dizer nada e... cumprir a minha obrigação... também sem murmurar, e... e não apresentar desculpas nem dizer uma palavra do assunto; e... e também não há dúvida de que já está tudo perdido."

E, no entanto, quando foi vestir-se preocupou-se com o seu traje mais minuciosamente que de costume. Não tinha outra roupa; mas, ainda que a tivesse, é possível que também não a tivesse posto - e seria intencionalmente que não a teria posto. Mas, seja como for, não podia ficar, como um cínico e um grosseirão: não tinha o direito de ferir os sentimentos do próximo, tanto mais que esses próximos necessitavam dele e chamavam-no. Limpou cuidadosamente o traje com a escova. Quanto à roupa interior, tinha-a sempre apresentável: sobre este ponto era muito brioso.

Lavou-se nessa manhã com todo o esmero - encontrara sabão no quarto de Nastássia -, lavou a cabeça, o pescoço e, sobretudo, as mãos. Quando a si próprio fez a pergunta se havia ou não de barbear-se (Praskóvia Pávlovna possuía navalhas magníficas, que conservava ainda de seu falecido marido, Zarnítsin), resolveu-a com certa crueldade, em sentido negativo: ficaria como estava. "Não vá acontecer pensarem que eu me barbeei para... que, com certeza, o imaginariam. Pois, por nada deste mundo!"

E... o mais importante: era tão grosseiro, tão grosseiro; tinha uma maneira de conduzir-se tão ordinária... E suponhamos que ele sabe que também, embora em ponto pequeno, é um homem decente... "Bom: haverá motivo para uma pessoa se orgulhar de ser um homem decente? Toda a gente tem obrigação de o ser, e até mais qualquer coisa; mas, apesar de tudo (lembra-se), pesam-lhe sobre a consciência alguns pecadilhos... não que sejam desonrosos, mas, no entanto... E que intenções não tivera, às vezes! Hum! E pôr tudo isso em comparação com Avdótia Românovna! Mas bom, que diabo! Seja! Continuarei a ser de propósito grosseiro, sujo e ordinário e a cuspir! Ainda hei de fazer pior..."

Foi no meio desses monólogos que Zósimov o foi encontrar, o qual passara a noite na sala de Praskóvia Pávlovna.

Regressava a casa e, ao sair, de passagem, vinha deitar uma vista de olhos ao doente; Razumíkhin informou-o de que ele passara a noite dormindo como um anjo. Zósimov deu indicações para que não o incomodassem até que ele acordasse por si. Prometeu tornar a passar por ali às onze.

- Supondo que o encontre em casa - acrescentou. - Ufa, que diabo! Se não se tem domínio sobre um doente, como é que se há de curá-lo? Não sabes se ele irá visitá-las ou se serão elas que virão vê-lo?

- Elas - respondeu Razumíkhin, compreendendo a intenção da pergunta -, creio que virão, sem dúvida, para tratar de assuntos de família. Eu me retirarei. Tu, como médico, naturalmente, tens mais direito do que eu.

- Eu também não sou nenhum diretor espiritual; irei e sairei logo a seguir: já tenho bastante que fazer, sem contar com isso...

- Só há uma coisa que me inquieta - acrescentou Razumíkhin, franzindo o sobrolho -; ontem, eu, bêbado como estava, pus-me a falar-lhes pelos cotovelos, durante o caminho, e disse uma porção de asneiras... uma chusma delas... Entre outras coisas, disse-lhes que tu receavas que estivesse... com propensão a enlouquecer...

- Também falaste disso ontem, às senhoras?

- Foi uma estupidez, reconheço-o. Se quiseres, bate-me!

Mas dize-me: tu tinhas pensado verdadeiramente nessa possibilidade com alguma insistência?

- Isso é um absurdo, afirmo-te. Uma idéia fixa! Foste tu que mo descreveste como um monomaníaco, quando me trouxeste para o ver... Mas nós, ontem, quer dizer, tu, com essas suposições... a respeito do pintor, deste-lhe volta ao juízo: lindo assunto para conversa... Até é possível que fosse isso que o tivesse transtornado! Se eu tivesse sabido ao certo o que aconteceu no comissariado, e que aí, algum malandro, com essas suspeitas... o ofendera... hum! Não teria consentido que lhe falassem disso ontem. Pois deves saber que esses monomaníacos tomam um mosquito por um elefante e vêem em devaneios as coisas mais fantásticas... Se bem me lembro, ontem concluí claramente metade desse assunto, do relato de Zamiótov. Não tenho dúvidas! Conheço o caso dum neurótico, quarentão, que não era capaz de agüentar diariamente a troça que um rapazinho de oito anos fazia dele, à mesa, e que, por isso, o assassinou. E repara: tão mal vestido, obrigado a suportar as insolências dum polícia, uma doença em princípio, e uma suspeita dessas! Avalia, portanto: um hipocondríaco em último grau e com essa vaidade furiosa, esse amor-próprio! É aqui que pode estar a explicação da doença! Sim, que diabo! No fundo, esse Zamiótov é um bom rapaz, simplesmente... hum!... simplesmente fez mal, ontem, em falar disso. É um terrível tagarela!

- Mas a quem é que ele falou? A mim e a ti! - E a Porfíri também.

- E que importância tem que o tenha contado também a Porfíri? - Dize-me sinceramente: tens alguma influência sobre essas mulheres, a mãe e a irmã? É que é preciso que sejam muito discretas, hoje, com ele...

- Sê-lo-ão - respondeu Razumíkhin involuntariamente.

- E por que é que ele tratou esse tal Lújin daquela maneira? Um homem com dinheiro e que, segundo parece, não lhe desagrada, a ela, e ademais não tendo nada, não é verdade?

- Eu sei lá disso! - exclamou Razumíkhin, irritado. - Eu sei lá se elas têm muito ou pouco! Pergunta a quem quiseres, pode ser que te informem...

- Livra, que te tornas às vezes muito estúpido! Ainda não te passou a bebedeira de ontem... Adeus. Agradece a Praskóvia Pávlovna, da minha parte, pela sua hospitalidade. Tinha a porta do quarto fechada, e quando eu lhe disse bonjour, do lado de fora, não me respondeu; mas às sete levantou-se e levaram-me o samovar da cozinha, passando pelo corredor. Não tive a honra de vê-la...

Às nove em ponto, Razumíkhin apresentou-se na pensão Bakaliéiev. Havia já muito tempo que as duas mulheres o aguardavam com impaciência histérica. Estavam fora da cama desde as sete, se é que não desde mais cedo ainda. Ele entrou sombrio como a noite e fez-lhes um cumprimento sem graça, e depois ficou aborrecido consigo mesmo, por causa disso. Mas não contara com a hóspeda: Pulkhiéria Alieksándrovna dirigiu-se para ele, pegou-lhe em ambas as mãos e por pouco que lhas beijava. Ele lançou um olhar tímido para Avdótia Românovna; mas até naquele rosto altivo havia naquele momento tal expressão de reconhecimento e amizade, um tão delicado e exato respeito pela sua pessoa, em vez de olharzinhos trocistas e desprezo mal disfarçado que, na verdade, se teria sentido mais à vontade se as tivesse vindo encontrar aborrecidas, de tal maneira que, agora, se sentia muito desconcertado. Felizmente que trazia um assunto de conversa já preparado e agarrou-se imediatamente a esse pretexto.

Quando ouviu dizer que o seu filho "ainda não acordara", mas que "ia tudo bem", Pulkhiéria Alieksándrovna deu mostras de grande alegria, "e que tinha muita, mas muita, muitíssima necessidade de falar o mais depressa possível com Razumíkhin". Vieram logo a seguir a pergunta relativa ao chá e o convite para o tomarem juntos: elas ainda não o tinham tomado por estarem à espera dele. Avdótia Românovna chamou; acudiu um rapaz sujo e esfarrapado, e foi a ele que pediram o chá, que acabaram por lhes trazer, mas com um aspecto tão pouco limpo e desarranjado, que as senhoras ficaram muito aborrecidas. De boa vontade Razumíkhin se teria posto a censurar aquela pensão, mas, recordando-se de Lújin, calou-se, atrapalhou-se, e ficou muito contente quando as perguntas de Pulkhiéria Alieksándrovna começaram finalmente a chover sobre ele, umas atrás das outras, sem interrupção.

Enquanto lhes respondia esteve três quartos de hora falando, mas constantemente interrompido e novamente interrogado, e apressou-se a participar-lhes os fatos mais importantes e indispensáveis, os que co nhecia do ano anterior, da vida de Rodion Românovitch, incluindo uma minuciosa exposição de sua doença. É claro que passou muitas coisas por alto: entre outras a cena do comissariado, com todas as suas conseqüências. Elas escutavam o seu relato com avidez; mas, quando ele pensava que já terminara e tinha satisfeito as suas ouvintes, para elas parecia que ainda não começara.

- Diga-me, diga-me o que pensa... Ah, desculpe-me, mas ainda não sei o seu nome! - disse-lhe precipitadamente Pulkhiéria Alieksándrovna. - Dmítri Prokófitch.

- Bem, pois veja, Dmítri Prokófitch, eu tenho muito, mas muito desejo de saber... assim, de maneira geral... como é que ele, agora, encara as coisas; quero dizer, não sei se me faço entender, não sei como hei de exprimir-me... ou, para melhor dizer: o que é que, agora, lhe agrada, e que é que, agora, o aborrece? Está sempre tão excitado! Quais são os seus desejos e, por assim dizer, que ilusões alimenta? Quem é que exerce influência pessoal sobre ele? Numa palavra, eu queria...

- Ah, mámienhka! Mas como é possível responder assim, de repente, a tudo isso? - observou Dúnia.

- Ah, meu Deus, é que eu nem de longe esperava encontrá-lo assim, Dmítri Prokófitch!

- Tudo isso é muito natural - respondeu Dmítri Prokófitch. - Eu sou órfão de mãe; mas o meu tio vem ver-me todos os anos e nunca consegue compreender-me, nem sequer superficialmente, apesar de ser um homem esperto; além disso, durante os três anos que estiveram separados, passou-se muita coisa. Que hei de eu dizer-lhes? Já há meio ano que convivo com Rodka: áspero, severo, altivo e orgulhoso; nos últimos tempos (e pode ser que até já muito antes) tornou-se rabugento e neurótico. Lá generoso e bom é ele. Não gosta de exteriorizar os seus sentimentos e prefere proceder com dureza a revelar por meio de palavras aquilo que guarda no seu coração. Além disso, às vezes não é nada neurótico, mas apenas frio e de uma insensibilidade que toca a desumanidade; é assim mesmo, como se nele altercassem dois caracteres desencontrados, que se manifestassem alternadamente. Às vezes é terrivelmente taciturno. Não tem tempo para nada, toda a gente o incomoda, e fica deitado sem fazer nada. Não ouve o que as pessoas dizem. Nunca se interessa por uma coisa que noutro tempo o interessou. É terrivelmente orgulhoso, admira-se a si próprio e, segundo parece, tem algumas razões para isso. Bem, que mais? Eu creio que a vinda das senhoras há de exercer sobre ele uma influência salvadora...

- Ah, Deus queira! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna, mortificada pelas referências de Razumíkhin acerca do seu Rodka.

Quanto a Razumíkhin, já acabara por olhar com mais atrevimento para Avdótia Românovna. Olhou-a com bastante freqüência enquanto falava, embora de modo fugaz, só por um momento e afastando os olhos em seguida. Avdótia Românovna estava sentada à mesa e escutava atentamente; depois levantou-se e pôs-se a passear novamente, como era seu costume, pelo quarto, de um lado a outro, de braços cruzados, lábios franzidos, formulando de quando em quando uma ou outra pergunta, sem interromper os seus passeios, pensativa. Também tinha o hábito de não escutar o que os outros diziam. Trazia um vestido escuro, de tecido leve, e, atado ao pescoço, um lenço branco com fios dourados. Por vários indícios, Razumíkhin observou imediatamente que a situação das duas mulheres não podia ser mais miserável. Se Avdótia Românovna estivesse ataviada como uma rainha, pensava ele que não lhe teria inspirado nenhum temor, ao passo que assim, talvez precisamente por ter vindo encontrá-la pobremente vestida e reparado em toda aquela desamparada miséria, mais aumentava o espanto no seu coração e temia qualquer das suas palavras ou gestos, o que, não havia dúvida, era inibidor para um homem que não precisava disso para duvidar de si próprio.

- Contou-nos muitas coisas curiosas acerca do caráter do meu irmão e... exprimiu-se imparcialmente, o que está muito bem; eu pensava que o senhor sentia admiração por ele - observou Avdótia Românovna sorrindo. - Eu pensei, e com certeza que deve ser isso, que, de permeio, haverá uma mulher... - acrescentou, pensativa.

- Eu não disse isso, embora, afinal, pode ser que a senhora tenha razão, simplesmente...

- O quê?

- É que ele não ama ninguém e é possível que nunca chegue a amar - disse Razumíkhin.

- Isso quer dizer que ele é incapaz de amar?

- Quer saber uma coisa, Avdótia Românovna? É que a senhora é muito parecida com o seu irmão, quase em tudo - disse-lhe ele, de repente, de uma maneira que para si próprio foi inesperada; mas, recordando-se imediatamente do que acabava de dizer do irmão daquela moça, corou violentamente e ficou completamente atrapalhado. Avdótia Românovna não pôde deixar de sorrir ao contemplá-lo.

- Pode ser que estejam os dois um pouco enganados a respeito de Rodka - interveio Pulkhiéria Àlieksándrovna, um tanto melindrada. - Eu não falo do presente, Dúnietchka. O que Piotr Pietróvitch escreve nessa carta... e o que eu e tu supúnhamos... pode ser falso; mas não pode imaginar, Dmítri Prokófitch, como ele é fantasista, por assim dizer, voluntarioso. Nunca confiou no seu caráter, nem sequer quando tinha quinze anos. Estou convencida de que agora seria capaz de fazer qualquer coisa que nenhum homem pensaria algum dia fazer... E, sem ir mais longe, não sabe que, haverá ano e meio, ele me surpreendeu, desgostou e deixou quase às portas da morte, quando se lembrou de se casar com essa... sim, com a filha dessa Zarnítsina, a senhoria?

- Mas a senhora conhece a fundo essa história? - perguntou Avdótia Românovna.

- O senhor é capaz de imaginar - continuou Pulkhiéria Alieksándrovna com veemência - que nessa altura o teriam detido as minhas lágrimas, as minhas súplicas, a minha doença e até talvez a minha morte, devido à nossa angústia, à nossa miséria? Teria passado por cima de todos os obstáculos com a maior tranqüilidade. Dar-se-á o caso, dar-se-á o caso de que não goste de nós?

- Ele nunca me disse uma palavra acerca dessa história - respondeu Razumíkhin circunspecto -, mas soube qualquer coisa a respeito disso da boca da própria senhora Zarnítsina, a qual, na sua classe, não é das mais mexeriqueiras, e aquilo que lhe ouvi era um tanto estranho...

- E que foi que lhe ouviu? - perguntaram ao mesmo tempo as duas mulheres.

- Não; no fundo não é nada de especial. Só me disse que esse casamento, que já estava combinado e que se não se realizou foi por causa do falecimento da noiva, não era muito do agrado da própria senhora Zarnít sina. Além disso dizem que a tal noiva não tinha nada de graciosa, e afirmam até que era feia e muito fraquinha, e... e estranha... ainda que, segundo parece, tinha algumas boas qualidades. Não há dúvida de que algumas devia ter, pois, de outra maneira, é impossível explicar... Dote também não tinha, de maneira que ele não podia ter criado ilusões sobre esse ponto... Em geral é difícil formar uma opinião sobre estes assuntos.

- Tenho certeza de que devia ser uma moça digna - observou laconicamente Avdótia Românovna.

- Deus me perdoe, mas nessa ocasião fiquei tão satisfeita com a sua morte, embora não saiba ao certo qual dos dois teria ficado a perder com esse casamento: se ele ou ela! - concluiu Pulkhiéria Álieksándrovna, depois do que, com discrição e contínuos olhares para Dúnia, coisa que, evidentemente, era aborrecida para esta, tornou a perguntar pormenores da cena do dia anterior entre Rodion e Lújin. Aquele incidente, pelo visto, inquietava-a mais do que tudo, infundindo-lhe até medo e colocando-a em sobressalto. Razumíkhin tornou a contar-lhe tudo outra vez, com toda a espécie de pormenores; mas dessa vez acrescentou também a sua própria conclusão: culpou francamente Raskólhnikov pelo seu insulto propositado a Piotr Pietróvitch, sem insistir tanto na desculpa da doença.

- Já o tinha premeditado antes de ter adoecido - disse.

- Também me quer parecer isso - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna com uma expressão cansada. Mas ficou muito chocada porque Razumíkhin se exprimisse com aquela discrição e até com certo respeito, a propósito de Piotr Pietróvitch. Também Avdótia Românovna ficou impressionada.

- Qual é a opinião que o senhor tem sobre Piotr Pietróvitch? - perguntou Pulkhiéria Alieksándrovna, sem se poder conter.

- Não posso ter senão uma boa opinião acerca do futuro de sua filha - respondeu Razumíkhin com firmeza e ardor -, e não o digo apenas por motivos de falsa cortesia, mas sim porque... porque... ainda que fosse só porque foi a própria Avdótia Românovna que, por sua livre vontade, se dignou escolhê-lo. Se eu, ontem, me exprimi acerca dele dessa maneira, foi simplesmente porque eu estava vergonhosamente embriagado e até... até tinha perdido o juízo: sim, estava meio tonto, mareado, completamente louco... e hoje me sinto envergonhado.

Corou e ficou calado. Avdótia Românovna ruborizou-se também, mas não interrompeu o silêncio. Não dissera uma palavra enquanto se falou de Lújin.

Entretanto, Pulkhiéria Alieksándrovna, sem se poder reprimir, dava visíveis mostras de impaciência. Até que finalmente declarou, titubeando e sem desviar os olhos da filha, declarou que atualmente a preocupava muito uma circunstância.

- Ora veja, Dmítri Prokófitch - começou -, e vou ser completamente franca com Dmítri Prokófitch, não é verdade, Dúnietchka?

- Claro que sim, mámienhka! - observou Avdótia Românovna sugestivamente.

- Aqui tem do que se trata - disse precipitadamente Pulkhiéria Alieksándrovna, como se lhe tivessem tirado um peso de cima ao autorizarem-na a contar os seus desgostos. - Hoje, muito cedo, recebemos uma carta de Piotr Pietróvitch, em resposta àquela que nós lhe escrevemos ontem, anunciando-lhe a nossa chegada. Ora repare: ontem devia ele ter vindo esperar-nos à estação, como tinha prometido. Em vez disso mandou lá um criado para nos receber, com o endereço da pensão e a incumbência de nos indicar o caminho e participar-nos que ele, Piotr Pietróvitch, viria aqui visitar-nos hoje de manhã. Mas, em vez disso, recebemos hoje, pela manhã, esta carta sua... O melhor é o senhor mesmo lê-la: há nela um ponto, e já vai ver qual é, que me deixa completamente desorientada... Já vai ver qual é e dar-me-á a sua opinião sincera, Dmítri Prokófitch. O senhor conhece melhor do que nós o caráter de Rodka e é o mais indicado para aconselhar-nos. Previno-o de que Dúnietchka já tomou a sua decisão desde o primeiro momento, mas eu é que não sei o que hei de fazer, e... pus no senhor todas as minhas esperanças.

Razumíkhin desdobrou a carta, que tinha data do dia anterior, e leu o seguinte:

 

"Excelentíssima Senhora Pulkhiéria Alieksándrovna:

Tenho a honra de comunicar-lhe que, devido a obstáculos imprevistos que surgiram, não pude ir esperá-las à estação, mas enviei para esse fim uma pessoa conveniente. Da mesma maneira me verei amanhã privado da honra de vê-la, devido a um assunto inadiável no Senado, e a fim de não me tornar um obstáculo para o seu encontro com seu filho e de Avdótia Românovna com seu irmão. Não poderei ter a honra de visitá-las e apresentar-lhes os meus respeitos no seu domicílio senão às oito da noite em ponto, a propósito do que me permito dirigir-lhe um pedido encarecido, e acrescentarei, terminante, o de que na nossa entrevista não se encontre presente Rodion Românovitch, pois ontem me insultou de uma maneira insolente e sem exemplo, na ocasião em que fui visitá-lo por estar doente, e, além disso, porque temos de ter pessoalmente uma explicação indispensável e pormenorizada a respeito desse caso, acerca do qual desejo conhecer a sua opinião pessoal. Ao mesmo tempo tenho a honra de participar-lhe que, se apesar do meu pedido me encontrasse aí com Rodion Românovitch, me veria precisamente obrigado a retirar-me imediatamente e então seriam as senhoras as culpadas. Escrevo isto supondo que Ródion Românovitch, que quando visitei parecia tão doente, poderia curar-se no intervalo de duas horas, sair à rua e ir encontrar-se com as senhoras. Convenci-me disso pelos meus próprios olhos, em casa de certo ébrio atropelado por uma carruagem e que morreu em conseqüência do acidente, e a cuja filha, uma moça de má fama, entregou ontem nada menos do que vinte rublos, com o pretexto de ajudar nas despesas do enterro, coisa que muito me surpreendeu, sabendo quanto lhe teria custado juntar essa quantia. Sem mais, com o testemunho da minha particular estima pela respeitável Avdótia Românovna, peço-lhe que se digne aceitar a expressão dos sentimentos de respeitoso afeto do seu humilde servidor.

P. Lújin".

 

- Que devo eu fazer agora, Dmítri Prokófitch? - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna quase com lágrimas nos olhos. - Como hei eu de avisar Rodka de que não venha? Ele, que ontem exigiu tão altivamente a ruptura com Piotr Pietróvitch, e vir agora este dizer-lhe que não venha! Pois, se ele chegar a saber, há de vir intencionalmente. E que irá acontecer depois? - Faça aquilo que decidiu Avdótia Românovna - disse Razumíkhin tranqüila e imediatamente.

- Ai, meu Deus! Ela disse... Sabe Deus o que ela disse, sem explicar-me o que se propõe! Ela disse que o melhor é dizer, o melhor, não, mas que terá de ser, fatalmente, é que Rodka esteja de propósito aqui às oito e que não tenham ambos outro remédio senão encontrarem-se... Eu, em compensação, estava disposta a não lhe mostrar esta carta e a pôr em prática, contando com o seu auxílio, qualquer estratagema para que ele não viesse, porque é tão irritável! E também não entendo nada a respeito desse caso do tal ébrio que morreu e dessa tal filha, e como é que ele pôde entregar à tal filha o seu último dinheiro, que...

- Que tão caro lhe custou, mámienhka - acrescentou Avdótia Românovna.

- Ele, ontem, não estava no seu perfeito juízo - declarou Razumíkhin, pensativo -; se soubessem o que ele fez ontem em certa taberna, se bem que com inteligência, isso sim, hum! Não há dúvida de que ontem ele me falou de certo morto e de uma moça, sim, de fato, quando vínhamos para casa, simplesmente eu não percebi nada... Se bem que, por outro lado, também eu ontem...

- O melhor é ir a própria mámienhka vê-lo; asseguro-lhe que, assim, poderemos decidir sem rodeios o que se deve fazer. Sim, e devia ser já agora... Meu Deus, onze horas! - exclamou, consultando o seu magnífico relógio de ouro e esmalte, que trazia ao pescoço, suspenso de um delicado fio veneziano, e que destoava terrivelmente do resto da sua apresentação. "Presente de casamento", pensou Razumíkhin.

- Ah, sim; já são horas! Anda, Dúnietchka, anda! - disse Pulkhiéria Alieksándrovna, alarmada. - É capaz de pensar que ainda estamos zangadas por causa do que se passou ontem, se demorarmos a ir vê-lo. Ai, meu Deus!

Enquanto dizia isso deitava o xale apressadamente por cima dos ombros e punha o chapéu. Dúnietchka acabou também de arranjar-se. As suas luvas eram não só velhas, mas até rotas, no que Razumíkhin reparou, e, no entanto, aquela evidente pobreza no vestir conferia às duas mulheres um aspecto de especial dignidade que se encontra sempre nas pessoas que sabem usar um traje pobre. Razumíkhin olhou com admiração para Dúnietchka e sentiu-se orgulhoso por acompanhá-la. "Parece aquela rainha", pensou para consigo, "que lavava as suas meias na prisão, não há dúvida nenhuma, uma verdadeira rainha, parece-o neste momento ainda mais do que no dos seus brilhantes triunfos e na sua coroação."

- Meu Deus! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna. - Como poderia eu imaginar que havia de vir a ter medo de me encontrar com o meu filho, com o meu tão querido Rodka? Pois tenho medo dele, Dmítri Prokófitch!

- Não tenha medo, mámienhka - disse Dúnia, beijando-a. - O melhor é ter confiança nele. Eu tenho.

- Ai, meu Deus! Eu também tenho e não pude dormir durante toda a noite! - exclamou a pobre mulher.

Saíram.

- Olha, Dúnietchka, sabes uma coisa? Esta manhã, quando estava meio adormecida, apareceu-me em sonhos a falecida Marfa Pietrovna... toda de branco... Aproximou-se de mim, pegou-me numa mão, inclinou a cabeça para mim, e estava com uma cara tão séria, tão séria, como se me censurasse... Será um bom agouro? Ai, meu Deus! Dmítri Prokófitch, o senhor ainda não sabe: Marfa Pietrovna morreu.

- Não, não sabia; quem era Marfa Pietrovna? - Morreu de repente! E imagine...

- Depois, mámienhka - interveio Dúnia. - Lembra-te de que ele ainda não sabe de que Marfa se trata.

- Ah! Não sabe? E eu pensando que o senhor já estava a par de tudo... Desculpe-me, Dmítri Prokófitch... Desculpe-me, desde há uns dias que não ando bem da cabeça. Eu o considero verdadeiramente como a nossa providência; por isso estou convencida de que estará a par de tudo. Considero-o da família... Não leve a mal que eu fale assim. Ai, meu Deus, que é isso que tem na mão direita? Magoou-se?

- Sim... - resmungou Razumíkhin, muito satisfeito.

- Eu, às vezes, me deixo levar demasiado pelos meus impulsos, tanto, que Dúnia me corrige... Mas, meu Deus! Em que buraco ele vive! Já estará acordado? Essa mulher, a senhoria, considera isto um quarto? Escute: o senhor disse que ele não gosta de mostrar os seus sentimentos, por isso talvez eu vá aborrecê-lo com os meus... Fraquezas... Não quererá ensinarme, Dmítri Prokófitch? Como devo conduzir-me com ele? Eu, o senhor sabe, estou desorientada.

- Não lhe faça muitas perguntas se vir que ele franze o sobrolho: sobretudo não lhe fale muito acerca da saúde, isso contraria-o.

- Ah, Dmítri Prokófitch, quanto custa ser mãe! Mas aqui está a escada... Que escada tão horrorosa!

- A senhora até está pálida; acalme-se, minha querida mãe - disse Dúnia, acariciando-a. - Ele deve considerar uma felicidade vê-la, e a senhora a martirizar-se dessa maneira! - acrescentou, de olhos faiscantes. - Esperem, que eu, primeiro, vou ver se ele já acordou ou não.

As duas mulheres começaram a andar devagar atrás de Razumíkhin, que subia já as escadas, e, quando chegaram ao quarto andar e passaram diante da porta da senhoria, observaram que ela estava aberta de maneira que deixava uma fresta pela qual espreitavam dois olhos negros e penetrantes, na escuridão. Quando os olhos se encontraram, a porta tornou-se a fechar, de repente, com tal estrépito que Pulkhiéria Alieksándrovna esteve quase a lançar um grito de medo.

 

- Curado! Curado! - exclamou Zósimov alegremente, saindo a receber os que chegavam.

Havia dez minutos que tinha chegado e sentara-se no mesmo canto da véspera, no divã. Raskólhnikov estava sentado no extremo oposto, completamente vestido e até cuidadosamente lavado e penteado, coisa que havia tempo não lhe acontecia. O quarto ficou cheio; mas, fosse lá como fosse, Nastássia ainda lá coube, atrás dos visitantes, para ficar escutando.

De fato, Raskólhnikov estava quase completamente restabelecido, principalmente comparando o seu estado com o da noite anterior, embora estivesse muito pálido, meditabundo e severo. Pelo seu aspecto exterior parecia um homem ferido ou que sofresse de alguma forte dor física: tinha o sobrolho franzido, os lábios apertados e os olhos alucinados; falava pouco e de má vontade, como se o fizesse à força ou para cumprir uma obrigação, e de quando em quando manifestava uma certa inquietação nos gestos.

Só lhe faltava um lenço do braço ao pescoço ou uma ligadura num dedo para que fosse completa a sua semelhança com um indivíduo que, por exemplo, tivesse um panarício ou se tivesse ferido numa mão, ou qualquer outra coisa do gênero.

Aliás, aquele rosto pálido e sombrio iluminou-se num instante como por efeito de uma luz, quando a mãe e a irmã entraram; mas isso não serviu senão para acrescentar à sua expressão, em vez da sua antiga se veridade ensimesmada, algo de dor concentrada. Esse vislumbre não tardou a desaparecer; mas a dor persistiu, e Zósimov, que observava e atendia ao seu doente com todo o ardor juvenil dum médico que está no princípio da carreira, verificou nele, com o espanto conseqüente, à vista da família, em vez de alegria, qualquer coisa como a resolução dolorosa e secreta de suportar um mau bocado... qualquer contrariedade que não podia disfarçar. Mas pôde notar depois como quase cada palavra do diálogo seguinte parecia irritar e acirrar alguma ferida do doente, embora, ao mesmo tempo, se admirasse de vê-lo naquele dia animado do poder de dominar-se a si próprio e ocultar os seus sentimentos de monomaníaco, prontos a estalarem, à menor palavra, num acesso de fúria.

- Sim, eu próprio vejo agora que já estou quase completamente bem - disse Raskólhnikov beijando afetuosamente a mãe e a irmã, o que pôs imediatamente radiante de alvoroço Pulkhiéria Alieksándrovna -, e não digo como ontem - acrescentou, dirigindo-se a Razumíkhin e estendendo-lhe amistosamente a mão.

- Hoje até fiquei admirado por vir encontrá-lo assim - começou Zósimov, muito contente por ver chegar os que entravam, porque em dez minutos já tivera tempo de perder o fio da conversa com o seu doente. -

Daqui a três... ou quatro dias, se isto continuar assim, estará outra vez como antes, isto é, como há um mês ou dois, ou até como há três. Porque ele andava incubando isto já há muito tempo... Confesso agora que até é possível que tenha sido o senhor mesmo quem teve a culpa - acrescentou com um sorriso discreto, como se ainda temesse irritá-lo.

- Pode muito bem ser assim - acrescentou friamente Raskólhnikov. - Digo isso - continuou Zósimov em tom confidencial - porque o seu completo restabelecimento depende agora unicamente do senhor. Agora que já se pode falar com o senhor, desejava dizer-lhe que é preciso investigar as causas primordiais, radicais, por assim dizer, que influíram na efetivação do seu estado mórbido, e será então que se há de curar completamente, pois, de contrário, talvez ainda seja pior. Essas causas primordiais, ignoro-as; mas não tem outro remédio senão conhecê-las. O senhor é um homem inteligente e que sem dúvida alguma se observa a si próprio. A mim parece-me que o começo da sua doença coincidiu, em parte, com a sua saída da universidade. Para o senhor é impossível estar sem fazer nada, e, além disso, tenho a convicção de que o trabalho e a perseguição de um fim concreto haviam de ser-lhe muito benéficos.

- Sim, sim, o senhor tem toda a razão... Vou ver se entro o mais cedo possível na universidade, e então tudo caminhará sozinho... como sobre rodas.

Zósimov, que precipitara os seus sensatos conselhos, em parte para impressionar as senhoras, ficou um tanto desconcertado quando, ao terminar a sua arenga e passear o olhar sobre o seu interlocutor, lhe notou no rosto um acentuado sarcasmo. Aliás, isso durou apenas um momento. Pulkhiéria Alieksándrovna pôs-se imediatamente a exprimir a Zósimov a sua especial gratidão pela sua visita da noite anterior à hospedaria.

- Mas como é que o senhor foi visitá-las de noite? - perguntou Raskólhnikov um tanto inquieto. - Então não descansaram da viagem? -Àh, Rodka, isso foi às duas. Nós, em casa, tanto eu como Dúnietchka, nunca nos deitamos antes das duas.

- Eu também não sei como agradecer-lhe - continuou dizendo Raskólhnikov, que franziu de repente as sobrancelhas e baixou a cabeça. - Tirando a questão de dinheiro (desculpe que eu me refira a isso) - dirigindo-se a Zósimov -, ignoro o que terei feito para merecer da sua parte uma atenção destas. Não compreendo... simplesmente... e isso... até se me torna aborrecido por não o compreender, digo-lhe com toda a franqueza.

- Não se excite - sorriu Zósimov forçadamente. - Lembre-se de que é o meu primeiro cliente, e quando um de nós começa a praticar a sua profissão cria amizade ao seu primeiro doente, como se fosse seu filho,

e alguns ficam quase apaixonados. E eu, já sabe, não tenho grande clientela. - E nem quero falar desse - acrescentou Raskólhnikov, apontando Razumíkhin -, que só tem recebido de mim insultos e aborrecimentos.

- Não mintas! Estarás hoje sentimental? - gritou Razumíkhin.

Se fosse mais perspicaz, poderia ter visto que tal sentimento estava muito longe de Raskólhnikov, e o que existia era completamente diferente. Avdótia Românovna é que o percebeu. Atenta e alarmada, não perdia o irmão de vista.

- Da senhora também não me atrevo a falar, mámienhka - continuou, como se tivesse aprendido nessa manhã uma lição. - Só hoje pude imaginar pouco mais ou menos o que deve ter sofrido aqui ontem, esperando o meu regresso.

Depois de ter proferido essas palavras, de repente, em silêncio e sorrindo, estendeu a mão à irmã. Mas dessa vez deixou transparecer nesse sorriso um sentimento real, autêntico. Dúnia pegou na mão que se lhe estendia e estreitou-a com entusiasmo, alvoroçada e reconhecida. Era a primeira vez que ele se dirigia a ela depois do desgosto do dia anterior. O rosto da mãe iluminou-se de entusiasmo e de felicidade à vista definitiva da tácita reconciliação dos dois irmãos.

- Eia! É por isso que eu gosto dele - murmurou Razumíkhin, que apreciava a cena, recostando-se energicamente na sua cadeira. - Tem uns tais ímpetos!

"Como as coisas correm todas bem com ele!", pensou a mãe para si mesma. "Tem uns impulsos tão nobres, e com que delicadeza simples pôs ponto final a todo aquele mal-entendido de ontem com a irmã: bastou estender-lhe a mão num momento e olhá-la com ternura! E que olhos tão lindos ele tem, e que cara bonita! É mais bonito ainda do que Dúnietchka... Mas, meu Deus, a roupa que ele traz, que mal vestido está! Vássia, o caixeiro da mercearia de Afanássi Ivânovitch, anda mais bem vestido! Oh, que vontade eu tenho de abraçá-lo e... depois punha-me a chorar! Mas não me atrevo, não me atrevo! Como pode isto ser, meu Deus! Embora fale com ternura, tenho medo dele! Mas por que é que eu tenho medo dele?"

- Ah, Rodka, talvez não acredites - disse ela de repente, apressando-se a responder à sua observação - que mau bocado passamos ontem, eu e Dúnietchka! Agora que já tudo passou e se acabou, e todos voltamos a ser felizes... pode-se dizer. Calcula que viemos correndo até aqui para te abraçarmos, viemos correndo quase desde o vagão do trem, e essa mulher... sim, essa...! Bom dia, Nastássia! Vai e diz-nos que tu estavas de cama com uma febre fortíssima e que tinhas acabado de te levantares sem autorização do médico, que tinhas saído para a rua, delirante, e que tinham ido à tua procura. Não podes imaginar o que isso foi para nós! A mim, veio logo à idéia o trágico fim do tenente Potántchikov, nosso conhecido, que era amigo do teu pai... não te lembras dele, Rodka?... que se escapou também de casa com febre e de uma maneira parecida, e foi cair no pátio, num poço, de onde só o puderam tirar no dia seguinte. Mas nós, não há dúvida de que ainda exagerávamos mais as coisas. Queríamos lançar-nos em busca de Piotr Pietróvitch para conseguir a sua ajuda... porque o certo é que nós estávamos sós - acrescentou com voz lastimosa e, de repente, parou, apercebendo-se de que mencionara Piotr Pietróvitch, e que isso era ainda muito perigoso, apesar de "serem já, agora, de novo, todos muito felizes".

- Sim, sim, tudo isso se vê, não há dúvida - resmungou Raskõlhnikov como única resposta, mas com uma cara tão distraída e pouco atenta, que Dúnia até o olhou atônita.

- Não sei o que é que queria... - continuou ele fazendo esforços por recordar. - Sim, olha: mámienhka e tu, Dúnietchka, não vão pensar que eu não tinha intenção de ser o primeiro a ir hoje ver-vos e que estivesse à espera que vocês viessem.

- Por que dizes isso, Rodka? - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna, também estupefata.

"Dar-se-á o caso de que esteja a responder-nos por obrigação", pensou Dúnietchka, "e faça as pazes e peça perdão como quem cumpre uma tarefa ou recita uma lição?"

- Eu, assim que acordei, pensei ir ver-vos, mas não pude por causa da roupa; esqueci-me de o dizer ontem... Nastássia... lava este sangue... Acabei agora mesmo de me vestir.

- Sangue? Que sangue? - exclamou, assustada, Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Este... Não se assuste, mámienhka. É sangue de ontem, de quando saí daqui com febre e encontrei um homem atropelado por um coche... Um funcionário.

- Com febre? Mas se tu te lembras de tudo! - interrompeu-o Razumíkhin.

- É verdade - concordou Raskólhnikov com certa preocupação -, lembro-me de tudo, até o último pormenor; mas espera: por que fiz eu aquilo, onde ia, que dizia? Isso é que não consigo explicar.

- É um fenômeno muito conhecido - interveio Zósimov. - A execução do ato costuma ser magistral, esplêndida; mas a reconstituição dos trâmites é alterada e depende de várias impressões mórbidas. Qualquer coisa de semelhante ao que acontece no sonho.

"No fim de contas, não deixa de estar certo que me tomem pouco mais ou menos por um louco", pensou Raskólhnikov.

- Mas isso também acontece às pessoas sãs - observou Dúnietchka, olhando com inquietação para Zósimov.

- É uma observação absolutamente exata - respondeu aquele. - Neste sentido, efetivamente, todos nós, e com muita freqüência, somos quase dementes, apenas com a diferença de que os doentes estão um pouco mais loucos do que nós, porque, repare, é preciso distinguir. Mas é uma verdade que não existe o homem normal, de maneira nenhuma; talvez entre dezenas, e pode até ser que entre centenas de milhares, apenas se encontre um, e, ainda assim, em exemplares bastante fracos...

Quando ouviu a palavra "loucos", que Zósimov, preocupado com o seu tema favorito, pronunciara indiscretamente, todos franziram o sobrolho. Raskólhnikov continuou pensativo, como se não tivesse dado atenção, e com um sorriso estranho nos lábios. Continuava pensando em qualquer coisa.

- Bem, e que foi feito desse homem atropelado? Interrompi-te! - exclamou Razumíkhin.

- O quê? - respondeu aquele, como se despertasse. - Ah, sim; bom!... É que estava escorrendo sangue quando eu ajudei a conduzi-lo a casa... Para dizer a verdade, mámienhha, eu, ontem, fiz uma coisa imperdoável; de fato, ontem, estava meio tolo. Então não fui e dei o dinheiro que me mandara... à viúva... para o enterro! É claro que se trata de uma pobre mulher tísica; três órfãozinhos, mortos de fome... e a casa vazia... e, além do mais, uma filha... Talvez a mãe também os tivesse dado, se os tivesse... aquela gente... Eu reconheço que não tinha o mínimo direito, sabendo sobretudo quanto lhe custara juntar esse dinheiro. Para socorrer o próximo é preciso começar por ter direito a fazê-lo; se não, crevez chiens, si vous n'êtes pas contents! (1) - e pôs-se a rir. - Não é verdade, Dúnia?

- Não, isso não é assim - respondeu Dúnia com firmeza.

- Ora! Também tu... com opiniões! - resmungou ele, olhando-a quase com ódio e sorrindo sarcasticamente. - Eu devia ter contado com isso... Bem, seja como for, é louvável; para ti será melhor... e, se chegas a um limite do qual não podes passar... serás infeliz; mas, se o transpões... talvez ainda sejas mais infeliz... Embora, no fim de contas, tudo isso seja absurdo! - acrescentou irritado, de mau humor pela sua involuntária franqueza. - Eu só queria dizer que lhe peço perdão, mámienhha - terminou de modo cortante e brusco.

- Basta, Rodka; eu tenho a certeza de que tudo o que tu fazes é bem feito! - exclamou a mãe, alvoroçada.

- Pois não deve ter essa certeza - respondeu ele, e franziu os lábios num sorriso. Continuou em silêncio. Havia qualquer coisa de incomodativo para todos, naquele diálogo, naquele silêncio, naquela reconciliação e naquele pedido de perdão, e todos o sentiam.

"Parece que têm medo de mim", pensou Raskólhnikov para consigo, olhando de soslaio a mãe e a irmã. De fato, quanto mais durava o silêncio, mais se inquietava Pulkhiéria Alieksándrovna.

"Na sua ausência, parecia-me que as amava!", passou pela mente dele. - Ouve, Rodka: sabes que Marfa Pietrovna morreu? - exclamou, de repente, Pulkhiéria Alieksándrovna.

 

* (1) "Rebentem, cães, se não estão contentes'; isto é, cada um que se governe. (N. do T.) *

 

- Qual Marfa Pietrovna?

- Oh, meu Deus! Marfa Pietrovna, a Svidrigáilova! Escrevi-te tantas cartas a respeito dela...

- A... a... ah! Já me lembro... E de que morreu ela? Ah! A sério? - e de repente estremeceu, como se acabasse de perder o equilíbrio. - Com que morreu? De quê?

- Imagina, de repente! - disse primeiro Pulkhiéria Alieksándrovna, encorajada pela curiosidade. - Morreu quando eu estava escrevendo-te aquela carta... morreu nesse mesmo dia! Dizem que foi aquele homem terrível a causa da sua morte! Dizem que lhe dera uma surra enorme!

- Mas eles se davam assim tão mal? - perguntou ele, dirigindo-se à irmã.

- Não, pelo contrário: ele era sempre muito paciente com ela, até carinhoso. Em muitas ocasiões, era até demasiado condescendente com o seu gênio, e assim durante sete anos... Simplesmente, agora, acabou-se-lhe a paciência de repente.

- Sendo assim, não seria tão terrível, visto que suportou sete anos! Mas tu, Dúnietchka, pareces defendê-lo.

- Não, não, era um homem terrível! Eu não posso imaginar nada mais terrível! - respondeu Dúnia quase num tremor, franzindo as sobrancelhas e ficando pensativa.

- Isso aconteceu em casa dele, de manhã - continuou dizendo precipitadamente Pulkhiéria Alieksándrovna. - Depois ela mandou logo atrelar os cavalos para dirigir-se à cidade, assim que tivessem almoçado, porque nesses casos ela ia sempre à cidade; sentou-se à mesa e almoçou, segundo dizem, com muito apetite...

- Depois da sova?

- Aliás, tinha ela sempre esse costume; e logo a seguir, para não atrasar a partida, foi tomar banho... Ela fazia tratamento de banhos, tinha em casa uma fonte fria e todos os dias, regularmente, lá dava um mergulho; e foi assim que ela entrou na água que lhe deu o ataque!

- Com certeza! - disse Zósimov. - E ele batia-lhe até magoá-la?

- Isso tanto faz - respondeu Dúnia.

- Hum! A mãe tem uma predileção especial por certos assuntos! - declarou Raskólhnikov de repente, mal-humorado e quase aflito.

- Ai, meu querido, é que eu já não sabia de que havia de falar! - interrompeu-o Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Mas mamãe tem medo de mim, todos têm medo de mim! - exclamou ele com um sorriso forçado.

- E nisso tem razão - disse Dúnia, olhando franca e severamente para o irmão. - A mámienhka, quando subia as escadas, vinha já a benzer-se de medo...

O rosto dele transtornou-se como se tivesse tido uma convulsão.

- Ah! Mas que disseste tu, Dúnia! Não fiques zangado, Rodka, por favor... Por que disseste isso, Dúnia? - gritou, fora de si, Pulkhiéria Alieksándrovna. - Eu, na verdade, quando vinha para aqui, no vagão do trem, não fazia outra coisa senão pensar no momento em que nos veríamos e poderíamos falar das nossas coisas... Sentia-me tão feliz que nem via o caminho! Era assim que eu vinha! E agora também me sinto feliz... Tu não, Dúnia? Eu sou feliz só por te ver, Rodka...

- Pronto, mãe - murmurou ele perturbado, e, sem olhar para ela, apertou-lhe a mão. - Depois teremos tempo de falar disso!

Após ter pronunciado essas palavras tornou a ficar perplexo e empalideceu; outra vez uma como que nova e terrível sensação de frio mortal lhe correu pela alma; de repente compreendeu claramente que acabava de pronunciar uma horrível mentira, que não só não mais teria oportunidade de falar com ninguém, como jamais teria de que nem com quem falar. A impressão dessa dolorosa idéia foi tão violenta que, num momento, se esqueceu quase por completo de tudo, levantou-se do seu lugar e, sem olhar para ninguém, quase saiu do quarto.

- Que tens? - gritou Razumíkhin, pegando-lhe pelo braço. Tornou a sentar-se e pôs-se a passear silenciosamente a vista à sua volta: todos olhavam para ele atônitos.

- Mas por que é que estão todos tão murchos? - exclamou de repente, de uma maneira completamente inesperada. - Digam qualquer coisa! Afinal, por que é que estão aqui? Vamos, falem! Vamos conversar... Reunimo-nos aqui e não dizemos nada... Vamos, digam qualquer coisa!

- Louvado seja Deus! E eu, que pensava que ia dar-lhe a mesma coisa que lhe deu ontem... - disse Pulkhiéria Alieksándrovna persignando-se. - Que tens tu, Rodka? - perguntou Avdótia Românovna com desconfiança.

- Nada, é que estava lembrando-me de uma coisa - respondeu ele, e, de repente, pôs-se a rir.

- Bom, se é assim, não está mal! Eu também estava pensando... - resmungou Zósimov, levantando-se do divã. - Eu, no entanto, tenho de retirar-me; talvez passe por aqui logo... se puder...

Cumprimentou e saiu.

- Que boa criatura! - observou Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Sim, é muito bondoso, uma ótima pessoa, culta e inteligente... - disse de repente Raskólhnikov com certa ligeireza inesperada e uma animação que, até então, não manifestara. - Eu não me lembro de onde é que o conheço, ainda antes de adoecer... Creio que o conheci em qualquer parte... Mas este também é uma excelente pessoa! - disse, apontando Razumíkhin. - Simpatizas com ele, Dúnia? - perguntou, e, de súbito, sem saber por quê, pôs-se a rir.

- Muito - respondeu Dúnia.

- Tu sempre tens coisas! Ordinário! - exclamou Razumíkhin, terrivelmente perturbado e corado, e levantou-se da cadeira. Pulkhiéria Alieksándrovna sorriu levemente e Raskólhnikov desatou numa gargalhada ruidosa.

- Mas aonde é que vais?

- É que eu também... tenho que fazer.

- Tu não tens absolutamente nada que fazer! Fica! Zósimov foi-se embora e tu também queres ir. Não vás... Mas que horas são? Doze? Mas que relógio tão bonito tu tens, Dúnia! Mas por que é que ficaram outra vez tão calados? Sou só eu que faço a despesa da conversa!

- É um presente de Marfa Pietrovna - respondeu Dúnia.

- E de muito valor - acrescentou Pulkhiéria Alieksándrovna. - Ah... ah... ah! Mas que grande, quase não parece de senhora! - Gosto dele assim - declarou Dúnia.

"Pelo visto não é o presente de casamento", pensou para si Razumíkhin, e, sem saber por que, ficou alvoroçado.

- E eu pensando que era presente de Lújin... - observou Raskólhnikov. - Não, ele ainda não ofereceu nada a Dúnietchka.

- Ah... ah... ah! Mámienhka, lembra-se de que eu estive apaixonado e com a intenção de me casar? - disse ele de repente, olhando para a mãe, que estava impressionada pelo aspecto que tão inesperadamente a conversa estava tomando e pelo tom em que ele proferira aquelas palavras. - Ah, sim, é verdade, meu querido! - Pulkhiéria Alieksándrovna olhou alternadamente para Dúnietchka e para Razumíkhin.

- Hum! Sim! Mas que é que eu ia contar-lhes? Já quase não me lembro. Era uma moça doente - continuou, como se tornasse a mergulhar nos seus pensamentos íntimos e de olhos baixos, perdidos no vago -, gostava de socorrer os pobres e sonhava entrar para um convento, e uma vez pôs-se a chorar quando me falava disso; sim... sim... lembro-me, lembro-me muito bem. Feiazinha... de cara. Nem eu sei, verdadeiramente, por que é que me comprometi com ela; talvez por ela estar sempre doente... Se tivesse sido entrevada ou corcunda ainda gostaria mais dela... - sorriu pensativo. - Isso foi... uma febre de primavera.

- Não, não foi uma febre de primavera - disse Dúnia comovida. Ele olhou para a irmã, atento e perturbado; mas, ou não ouviu ou não compreendeu as suas palavras. Depois, com um ar meditabundo, levantou-se, aproximou-se da mãe, abraçou-a; voltou para o seu lugar e tornou a sentar-se.

- Ainda gostas dela! - exclamou, comovida, Pulkhiéria Alieksándrovna. - Dela? Agora? Ah, sim... está a referir-se a ela! Pois não. Tudo isso, agora, é como se fosse uma coisa de outro mundo... muito afastado. E tudo quanto me rodeia parece que não acontece aqui!

Contemplou todos atentamente.

- A você, por exemplo, é como se a visse a milhares de quilômetros de distância... Mas sabe Deus por que digo eu essas coisas! Quem é que o há de saber? - acrescentou, desgostoso, e ficou calado, pondo-se a morder as unhas e afundado na sua meditação anterior.

- Este quarto é tão feio, Rodka; parece um sepulcro! - exclamou de repente Pulkhiéria Alieksándrovna, interrompendo o doloroso silêncio. - Tenho a certeza de que metade da tua melancolia se deve a este quarto.

- Quarto? - respondeu ele, ensimesmado. - Sim, o quarto contribui muito... Eu também pensava nisso... Mas se soubesse o estranho pensamento que acaba de exprimir, mámienhka - acrescentou de repente, sorrindo de um modo enigmático.

Um pouco mais, e aquela reunião, aqueles parentes, que tornava a ver passados três anos de separação; aquele tom familiar do diálogo, uma vez que não podia fazer nada... tornar-se-lhe-iam, provavelmente, completamente insuportáveis. Mas havia um assunto inadiável, que tinha de ficar irrevogavelmente resolvido naquele dia; era essa a decisão que tomara, havia pouco, quando acordara. Agora, esse assunto era uma saída, e isso alegrava-o.

- Sabes uma coisa, Dúnia? - começou, séria e secamente. - Eu desde já te peço perdão por aquilo que aconteceu ontem; mas acho que é um dever prevenir-te de que, pelo que diz respeito ao principal, não cedo nem um milímetro. Ou eu ou Lújin. Suponhamos que eu seja uma má pessoa; mas tu não o deves ser. Chega um. Se te casares com Lújin deixarei imediatamente de considerar-te minha irmã.

- Rodka, Rodka! Mas, então, insistes no mesmo de ontem? - indagou Pulkhiéria Alieksándrovna com amargura. - Para que hás de tu tomar essa atitude? Não posso suportar isso! Ontem dizias o mesmo...

- Meu irmão - respondeu Dúnia com dignidade e também com secura -, em tudo isso há um erro da tua parte. Passei a noite meditando, à procura desse erro. Consiste tudo em que tu, pelo visto, supões que me entregam a alguém, e com algum fim, na qualidade de vítima. Mas não é assim, de maneira nenhuma. Eu me caso, simplesmente, seguindo a minha inclinação, porque se me torna desagradável continuar solteira; além do mais, não há dúvida nenhuma de que me considerarei feliz se puder depois ser útil aos meus, simplesmente isso não é o principal motivo da minha resolução...

"Mente", pensou ele para consigo, mordendo as unhas quase com raiva. "Orgulhosa! Não quer confessar que está ansiosa por poder dizer que é uma benfeitora! Oh, que péssimos caracteres! Amam como se odiassem! Oh, e como eu... os odeio a todos!"

- Em resumo: casar-me-ei com Piotr Pietróvitch - continuou Dúnietchka - porque, de dois males, escolho o menor. Tenho a honesta intenção de fazer tudo o que ele espera de mim e, por isso, não o engano. Por que sorris dessa maneira?

Também ela corara e pelos seus olhos passou um relâmpago de cólera. - De fazer tudo? - perguntou ele sorrindo com rancor.

- Até certo ponto. Tanto a maneira como a forma com que Piotr Pietróvitch se comprometeu para comigo me demonstraram logo aquilo de que ele precisa. Não há dúvida de que ele tem talvez demasiado amor-pró prio; mas eu espero que também há de apreciar-me, a mim... Por que tornas a sorrir?

- E tu, por que tornas a corar? Tu mentes, Dúnia; mentes descaradamente, por simples teimosia feminina, para pores as coisas a teu gosto perante mim... Tu não podes sentir respeito por Lújin; e eu o vi e falei com ele. Vendes-te com certeza por dinheiro, e não há dúvida de que, seja como for, te conduzes com baixeza; mas estou muito satisfeito porque, ao menos, ainda sejas capaz de corar!

- Não é verdade, eu não estou mentindo! - exclamou Dúnietchka, perdendo toda a sua serenidade. - Não me casaria com ele se não estivesse convencida de que ele sabia apreciar-me e estimar-me. Felizmente, posso certificar-me disso, sem ficar com dúvidas, hoje mesmo. E este casamento não é nenhuma coisa reles, como tu dizes. Mas, ainda admitindo que tu tenhas razão e que eu, de fato, estava decidida a cometer uma baixeza... De toda a maneira, não seria uma crueldade que tu me falasses como me falas? Por que me exiges assim esse heroísmo, que tu talvez não tenhas? Isso chama-se despotismo, coação. Se eu causo a ruína de alguém, é unicamente a minha! Mas eu não matei ninguém! Por que me olhas dessa maneira, Rodka? Que tens? Por que te puseste tão pálido? Rodka, que sentiste? Rodka, meu filho...

- Meu Deus! Quase desmaia! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna. - Não, não! Foi uma tontura! Não é nada! Uma breve vertigem! Não chegou a ser um desmaio... Vocês têm a mania dos desmaios! Hum! Sim... Que é que eu ia dizendo? Ah, já sei! De que maneira pensas certificar-te hoje de que podes ter respeito por ele e de que ele... te aprecia ou não, conforme disseste? Creio que disseste que seria ainda hoje, se é que eu ouvi bem!

- Mámienhka, mostre a carta de Piotr Pietróvitch ao meu irmão - disse Dúnietchka.

Pulkhiéria Alieksándrovna entregou-lhe a carta com mãos trêmulas. Ele a recebeu com grande curiosidade. Mas, antes de abri-la, olhou de súbito para Dúnietchka com certa admiração.

- É estranho - exclamou, ato contínuo, como se de repente uma idéia nova tivesse acabado de assaltá-lo. - Por que me acaloro eu assim tanto? Para que toda esta gritaria? Vai e casa-te com quem quiseres!

Disse isso como que apenas para si, mas em voz alta, e, durante um momento, ficou olhando para a irmã com um ar preocupado.

Finalmente abriu a carta, conservando ainda a expressão de um certo espanto estranho; depois procedeu à leitura, devagar e atentamente, e repetiu-a duas vezes. Pulkhiéria Alieksándrovna estava numa grande inquietação, embora todos os outros esperassem também alguma coisa de especial. - O que para mim é assombroso - começou ele, depois de uns momentos de reflexão e devolvendo a carta à mãe, mas sem olhar para ninguém em especial - é que ele seja advogado, homem de negócios, e se exprima na conversação de uma maneira que é até... amaneirada... e, apesar disso, escreva tão mal.

Houve um movimento geral; não esperavam de maneira nenhuma aquela saída.

- Toda essa gente escreve assim - observou bruscamente Razumíkhin. - Mas tu leste a carta?

- Nós demos-lha a ler, Rodka... Pedimos-lhe conselho... - começou Pulkhiéria Alieksándrovna, muito confusa.

- É um estilo processual - atalhou Razumíkhin. - É assim que redigem todos as folhas processuais.

- Processuais? Sim, é isso: processual, de advogado. Nem demasiado vulgar nem demasiado literato, advocatício!

- Piotr Pietróvitch não esconde que recebeu uma educação de meiatigela, e até se gaba de se ter feito por si próprio - observou Avdótia Românovna, um pouco ressentida pelo novo tom do irmão.

- Pois se se gaba, lá deve ter as suas razões para isso; não digo o contrário. Tu, Dúnia, pelo visto ficaste ofendida por eu ter tomado esta carta como pretexto para uma observação sem importância, e pensas que me pus a falar intencionalmente desses pormenores para te aborrecer. Mas não é nada disso. A mim aconteceu-me, a propósito de estilo, uma observação que não é supérflua no caso presente. Há aí uma frase: "Não culpem mais ninguém, senão a si próprias", que não pode ser mais taxativa e clara, sem contar com a ameaça de se ir imediatamente se eu me intrometer. Essa ameaça de retirar-se... equivale à ameaça de vos abandonar se não fordes obedientes, e de abandonar-vos, agora, que vos fez vir a Petersburgo. Bem, vamos ver o que tu dizes: pode uma pessoa dar-se por ofendida perante essa frase de Lújin, como se fosse aquele que a tivesse escrito - e apontou Razumíkhin - ou Zósimov, ou qualquer outro de nós?

- Não... não! - respondeu Dúnietchka exaltando-se. Eu compreendo muito bem que se trata de uma expressão perfeitamente ingênua e pode ser que tudo se reduza a que ele não sabe escrever... Nisso pensaste bem, irmão. Eu nem sequer esperava...

- Isso está escrito em estilo advocatício, e em estilo advocatício não era possível escrevê-lo de outra maneira, embora talvez lhe tenha saído mais tosco do que ele desejava. Além disso, eu tenho a obrigação de abrir-te um pouco os olhos; nesta carta há também uma calúnia contra mim, e bastante reles. Eu dei ontem aquele dinheiro a uma viúva, tuberculosa e esgotada de trabalhar, e não com o pretexto de ajudar ao enterro, mas muito claramente para o enterro e não por causa da filha... uma moça, como ele escreve, de má fama (e à qual eu nunca na minha vida vira até ontem); dei-o sobretudo a uma viúva. Vejo perfeitamente em tudo isso o confuso desejo de ofender-me e de provocar a discórdia entre nós. Expressão essa também processual; quer dizer, dirigida para um fim evidente e com um cuidado dos mais ingênuos. É um homem com alguma inteligência, mas para proceder com inteligência... é preciso mais qualquer coisa. Tudo isso nos diz quem é esse homem... e parece-me que não deve gostar muito de ti. Falo-te assim, irmã, unicamente para tua orientação, pois desejo sinceramente o teu bem...

Dúnietchka não respondeu; já tomara anteriormente a sua resolução e estava só à espera da noite.

- Bem, e que é que tu resolveste, Rodka? - perguntou Pulkhiéria Alieksándrovna, ainda mais alarmada do que na véspera, pelo súbito e novo tom prático da sua conversa.

- Que é isso de "resolver"?

- É que, repara: Piotr Pietróvitch diz-nos que tu não deverás estar conosco esta noite, e que, em caso contrário, ele se retirará. Por isso... tu pensavas vir?

- Quanto a isso, não há dúvida alguma de que não compete a mim resolvê-lo, mas, em primeiro lugar, a você, se é que essa exigência de Piotr Pietróvitch não a ofende, e depois a Dúnia, se também não ofende a ela. Quanto a mim, farei o que lhes parecer melhor - acrescentou secamente. - Dúnietchka já tomou a sua resolução e eu estou completamente de acordo com ela - apressou-se a afirmar Pulkhiéria Alieksándrovna. - Eu resolvera pedir-te, Rodka, isso mesmo, pedir-te que estivesses presente a essa entrevista, sem falta - disse Dúnia. - Vens?

- Vou.

- E peço também ao senhor que venha ver-nos às oito - acrescentou, dirigindo-se a Razumíkhin. - Mámienhka, eu também quero convidá-lo. - Fazes muito bem, Dúnietchka. Se é isso o que decidiram - acrescentou Pulkhiéria Alieksándrovna -, é isso que há de ser! Isso, para mim, também é um alívio; não gosto de fingimentos nem de mentiras; o melhor de tudo é falar com absoluta franqueza... E agora é lá contigo, Piotr Pietróvitch!

 

Nesse momento a porta abriu-se devagarinho, e, olhando timidamente à sua volta, uma mocinha entrou no quarto. Todos se voltaram para olhá-la com espanto e curiosidade. A princípio, Raskólhnikov não a reconheceu. Era Sônia Siemiônovna Marmieládova. Tinha-a visto pela primeira vez na noite anterior, mas apenas por um instante, num ambiente e com um traje tal, que na sua memória ficara a imagem de uma criatura totalmente diferente. Esta de agora era uma mocinha modesta, e até pobremente vestida, muito nova ainda, quase uma menina, modesta e decentezinha, com uma carinha ingênua, mas um pouco sobressaltada. Vestia uma roupinha simples, caseira; na cabeça um chapelinho velho, fora de moda; mas trazia na mão, como na noite anterior, a sua sombrinha. Ao ver o quarto cheio de gente, contra o que esperava, não só ficou embaraçada como completamente desorientada, corou como uma criança e até fez menção de retirar-se.

- Ah... é a menina? - disse Raskólhnikov profundamente admirado e, de súbito, também ele ficou perturbado.

Lembrou-se imediatamente de que a mãe e a irmã estavam já a par, graças à carta de Lújin, da existência de certa moça de má fama. Havia apenas um momento que protestara contra a calúnia de Lújin, declarando que nunca antes vira a referida moça, e eis que ela, de repente, vinha ter com ele. Tudo isso passou vagamente e durante um segundo pela sua imaginação. Mas reparando mais atentamente, pôde ver que ela era uma criatura humilde, a tal ponto humilde que, de repente, lhe inspirou piedade. Quando a moça fez aquele movimento para se retirar, assustada... qualquer coisa se revelou a ele.

- Não a esperava - disse atropeladamente, detendo-a com o olhar. - Faça favor de se sentar! Deve vir, com certeza, da parte de Ekatierina Ivânovna. Dê-me licença, aí não, aqui; sentem-se todos!

À chegada de Sônia, Razumíkhin, que estava sentado em uma das três cadeiras de Raskólhnikov, mesmo junto da porta, levantou-se para que ela pudesse entrar. A princípio, Raskólhnikov indicou-lhe uma ponta do divã onde estivera sentado Zósimov, mas, reconsiderando depois que o divã era um lugar demasiadamente "familiar", apressou-se a apontar-lhe a cadeira de Razumíkhin.

- Senta-te tu aqui - disse a Razumíkhin, acomodando-o na mesma ponta do divã que tinha ocupado Zósimov.

Sônia sentou-se quase tremendo de medo e olhou timidamente para as senhoras. Era evidente que nem ela própria compreendia como é que podia estar sentada ali, juntamente com elas. Quando pensou nisso sentiu-se tão atemorizada, que de repente tornou a levantar-se, e, completamente desorientada, exclamou, dirigindo-se a Raskólhnikov:

- Eu... eu... vim só por um momento, desculpe ter vindo incomodá-lo - balbuciou. - Foi Ekatierina Ivânovna quem me mandou, porque não tinha outra pessoa de quem se valer... Ekatierina Ivânovna encarregou-me de lhe pedir que não faltasse amanhã ao funeral, de manhã... depois da missa... em São Mitrofan, e depois a casa... a sua casa... comer qualquer coisa... Dar-lhe-á uma grande honra... Mandou-me que lhe pedisse isto muito encarecidamente.

Sônia acabou por ficar completamente confundida e não continuou. - Farei todo o possível, sem dúvida alguma - respondeu Raskólhnikov levantando-se também, e, muito perturbado, não continuou. - Mas faça o favor de se sentar, dê-me licença por dois minutos.

E ofereceu-lhe uma cadeira. Sônia tornou a sentar-se e a olhar timidamente, de soslaio e muito envergonhada, para aquelas duas senhoras, acabando por baixar os olhos...

O lívido semblante de Raskólhnikov ruborizou-se; o rapaz parecia completamente transtornado; os olhos brilhavam-lhe.

- Mámienhka - disse em tom firme e resoluto -, é Sônia Siemiônovna Marmieládova, a filha desse mesmo infeliz senhor Marmieládov, que ontem, na minha presença, foi atropelado por um carro e do qual já lhe falei...

Pulkhiéria Àlieksándrovna lançou um olhar a Sônia e piscou levemente os olhos. Apesar de toda a sua perturbação, perante o firme e reprovador olhar de Rodka, não pôde privar-se desse gosto. Dúnietchka olhou séria e atentamente para o rosto da pobre moça, e ficou a contemplá-la com perplexidade. Sônia, quando ouviu pronunciar o seu nome, tornou a erguer os olhos, mas ficou ainda mais embaraçada do que antes.

- Eu queria perguntar-lhe - disse Raskólhnikov, dirigindo-se a ela rapidamente - como é que passaram hoje. Não as incomodaram? Refiro-me à polícia.

- Não, tudo tem corrido bem... Não vê que se percebia claramente de que é que ele morrera? Não nos incomodaram; os que se queixaram foram os vizinhos.

- Por quê?

- Porque o cadáver esteve ali muito tempo... Porque, o senhor bem vê, como agora faz este calor e está um ar tão abafado... Por isso ainda esta tarde o levam para o cemitério, onde ficará até amanhã, na capela. A princípio, Ekatierina Ivânovna não queria, mas acabou por compreender que não era possível outra coisa...

- De maneira que hoje...

- Por isso pede-lhe que lhe dê a honra de assistir amanhã ao funeral, na igreja, e de passar depois por sua casa para tomar parte no jantar de enterro.

- Mas ela preparou um jantar?

- Sim, qualquer coisa; encarregou-me com muita insistência de exprimir-lhe o seu agradecimento pelo donativo de ontem... Se não fosse o senhor, agora, não teria com que fazer o enterro - e de súbito tremeram-lhe os lábios e o queixo, mas dominou-se, fez-se forte e apressou-se outra vez a fixar a vista no chão.

Durante o diálogo, Raskólhnikov observava-a, atento. Era uma criaturinha magra e pálida, de feições bastante irregulares, com qualquer coisa de agudo em todo o rosto, com um narizinho e um queixo bicudos. Rigorosamente, não se podia dizer que fosse bonita; mas, em compensação, tinha uns olhos azuis tão claros, e, quando se animavam, a expressão do seu rosto assumia uma tal bondade e candura, que cativavam involuntariamente. Havia no seu rosto e em toda a sua figura um traço predominante, característico; apesar dos seus dezoito anos parecia ainda mais nova, quase uma menina, o que transparecia, de uma maneira até cômica, em alguns dos seus gestos.

- Mas como é que, contando com tão poucos recursos, Ekatierina Ivânovna pode pensar em jantares? - perguntou Raskólhnikov, prolongando o diálogo com insistência.

- É que, repare, a sepultura será muito simples... e tudo será simples, de maneira que não sairá caro... Eu e Ekatierina Ivânovna já fizemos a conta e vimos que ainda nos fica qualquer coisa para essa refeição... e Ekatierina Ivânovna tinha o maior empenho em que fosse assim. Ela está... desolada... Ela assim... O senhor já a conhece...

- É compreensível, é compreensível... Claro. Mas por que está olhando tanto para o quarto? Ouça: mámienhka acaba de dizer que ele parece um sepulcro.

- O senhor deu-nos tudo quanto tinha, ontem! - exclamou Sônia, de repente, à maneira de resposta, com um murmúrio forçado e rápido, tornando a cravar os olhos no chão. Tremiam-lhe de novo os lábios e o queixo. Havia um momento que estava confusamente admirada perante o pobre quarto de Raskólhnikov, e agora aquelas palavras escaparam-lhe espontaneamente. Seguiu-se um silêncio. Os olhos de Dúnietchka iluminaram-se um pouco e Pulkhiéria Alieksándrovna olhou para Sônia até com afetuosidade.

- Rodka - disse, levantando-se -, escusado será dizer que almoçamos juntos. Dúnietchka, vamos... Tu, Rodka, podias sair, passear um pouco, depois deitavas-te, descansavas e ias buscar-nos o mais depressa possível... Tenho medo de te termos cansado.

- Está bem, está bem, irei - disse, levantando-se com certa pressa. - Mas suponho que não vão almoçar cada um por seu lado! - exclamou Razumíkhin, olhando com assombro para Raskólhnikov. - Que dizes?

- Que sim, que irei, claro, claro... Mas fica aqui ainda um momento. Não precisa dele agora, não é verdade, mámienhka? Ou estarei eu a açambarcá-lo?

- Oh, não, não! Mas o senhor, Dmítri Prokófitch, podia ter a bondade de vir almoçar conosco!

- Sim, faça-nos o favor de aceitar - pediu Dúnietchka. Razumíkhin fez-lhes um cumprimento e todo ele irradiou uma certa perturbação. Por um momento todos deram mostras de uma confusão estranha.

- Bem, então, adeus, Rodka, isto é, até logo! Não gosto de dizer adeus. Adeus, Nastássia! Ah, lá disse eu outra vez adeus!

Pulkhiéria Alieksándrovna fez também menção de cumprimentar Sônia, mas o seu gesto não chegou a definir-se bem, e saiu do quarto precipitadamente.

Mas Avdótia Românovna, como se esperasse a sua vez, ao passar atrás da mãe por diante de Sônia, fez a esta um cumprimento atento, cortês e completo. Sônietchka ficou envergonhada, correspondeu ao cumprimento com outro, rápido e alvoroçado, e uma espécie de comoção doentia se refletiu no seu rosto, como se a deferência e a cortesia de Avdótia Românovna lhe tivessem sido penosas e mortificantes.

- Dúnia, adeus a ti também! - exclamou Raskólhnikov já no patamar. - Dá-me a tua mão, ao menos!

- Mas eu já a dei a ti, não te lembras? - respondeu Dúnia, dirigindo-se a ele com um modo afetuoso e coibido.

- Mas que importa isso! Dá-ma outra vez!

E apertou com força os seus dedinhos. Dúnietchka sorriu, corou, apressou-se a retirar a mão e correu atrás da mãe, toda alvoroçada, sem saber por quê.

- Ora, assim é que está bem! - disse ele a Sônia quando voltou para o seu lado, e olhou francamente para ela. - Deus tenha os mortos na sua paz, mas que deixe viver os vivos! Não é assim? Não é assim? Não é verdade?

Sônia contemplava quase com espanto o seu rosto subitamente iluminado; ele permaneceu um instante mirando-a de alto a baixo, em silêncio; de repente, toda a história do pai dela lhe acudiu à memória...

- Meu Deus, Dúnietchka! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna assim que chegaram à rua. - Olha, sinto-me bem contente por ter saído dali, mais à minha vontade. Como é que eu podia imaginar ontem, no trem, que até isto havia de alegrar-me!

- Torno a repetir-lhe, mámienhka, que ele ainda está doente. Não reparou? Pode muito bem ser que tenha sofrido por causa de nós e se afligisse. Temos de ser compreensivas, e muito, muita coisa se pode perdoar.

- Pois tu não deste mostras de ser compreensiva! - interrompeu-a Pulkhiéria Alieksándrovna com veemência e aborrecimento. - Sabes uma coisa, Dúnia? É que eu estive olhando para vocês, os dois, e tu és o seu vivo retrato, não tanto na cara como na alma; são os dois melancólicos, os dois arredios e arrebatados, os dois altivos e generosos... Porque não é possível que ele seja um egoísta, não é verdade, Dúnia? E quando penso que há de ir ter conosco esta noite, tenho um pressentimento!

- Não se preocupe, mámienhka, será o que tem de ser.

- Dúnietchka! Mas vê um momento só qual é a nossa situação! E se Piotr Pietróvitch se arrependesse? - exclamou, de repente, indiscreta, a pobre da Pulkhiéria Àlieksándrovna.

- Mas como é que ele vai arrepender-se depois de tudo o que há pelo meio! - respondeu Dúnia em tom cortante e depreciativo.

- Fizemos muito bem em sairmos agora - interrompeu-a atabalhoadamente Pulkhiéria Alieksándrovna -; ele tem de sair para tratar de qualquer coisa, mais não seja para tomar ar... Porque ali, naquele buraco, uma pessoa sufoca... Se bem que onde é que se pode tomar ar aqui? Aqui, nas ruas, está-se como em quartos sem janelas. Meu Deus, que cidade esta... Espera, afasta-te para um lado! Senão esmagam-te... Trazem para aqui não sei o quê! É um piano, afinal... Como empurram essa... Olha, também me inquieta um pouco essa moça...

- Qual moça, mámienhka?

- Essa Sônia Siemiônovna, a que acabou de entrar ali... - E por quê?

- Porque mo adivinha o coração, Dúnia. Bem, quer tu acredites ou não, assim que ela entrou pensei logo que ela é que é a chave de tudo... - Nada disso! - exclamou Dúnia com ar desgostoso. - Lá está a mámienhka com os seus pressentimentos! Ele só a conhece desde ontem, e tanto que, quando ela entrou, nem a reconheceu.

- Pois então deixa ver! Tive um mau pressentimento, vais ver, vais ver! Pareceu-me que ficou cheia de medo; mirava-me e remirava-me com tais olhos que eu não podia estar quieta na cadeira quando ele a apresentou, lembras-te? E o mais estranho para mim é ter Piotr Pietróvitch dito o que ela é, e ele, então, apresenta-a a mim e a ti também! Pelo visto gosta muito dela!

- Se fôssemos fazer caso de tudo o que nos dizem! De mim também falaram e escreveram. Já se esqueceu? Mas eu tenho a certeza de que ela... é muito boa e de que tudo isso são... mentiras!

- Deus queira!

- Piotr Pietróvitch é um vil caluniador - disse Dúnietchka inesperadamente.

Pulkhiéria Alieksándrovna baixou a cabeça. O diálogo foi interrompido.

- Olha, vou expor-te o assunto de que queria falar-te - disse Raskólhnikov, conduzindo Razumíkhin até a janela.

- Então digo a Ekatierina Ivânovna que o senhor irá... - balbuciou Sônia, fazendo um cumprimento de despedida.

- Agora estou consigo, Sônia Siemiônovna; nós não temos segredos, não nos incomoda... Ainda tenho que dizer-lhe umas coisas... Olha - disse, encarando de repente Razumíkhin, sem acabar a frase, e como se a tivesse interrompido. - Tu conheces esse... bem, já sabes a quem me refiro, não é verdade? Como se chama ele, Porfíri Pietróvitch?

- Sim. É meu parente. Mas de que se trata? - acrescentou aquele com uma certa expressão de curiosidade.

- É desse assunto... Bem, daquele crime... de que falamos ontem... e cujo processo ele está organizando, não é?

- Sim... mas... - e Razumíkhin abriu de repente uns olhos enormes. - É que ele anda investigando os nomes dos clientes da usurária e eu também tinha lá objetos, pouca coisa, é claro: um anel que a minha irmã me ofereceu como recordação quando eu vim para aqui, e um relógio de prata, que era do meu pai. Tudo isso valerá ao todo uns cinco ou seis rublos; mas eu tenho essas coisas em grande estima por serem recordações. Que hei de fazer agora? Não queria que esses objetos fossem vendidos, sobretudo o relógio. Há pouco até tremi com medo de que a minha mãe mostrasse desejo de vê-lo, quando a conversa caiu sobre o relógio de Dúnietchka. É a única coisa que nos resta de meu pai. Ela até ficaria doente se o vendessem! Coisas de mulheres! Por isso, dize-me o que hei de fazer! Já sei que há de ser preciso fazer alguma declaração. Mas não seria melhor dizê-lo ao próprio Porfíri? Que te parece? O caso é urgente. É que tu bem vês: é muito provável que mámienhka me faça alguma pergunta à mesa!

- Não é preciso declaração nenhuma, o que é preciso é ir ter com Porfíri! - exclamou Razumíkhin com uma comoção invulgar. - Ah, como eu fico contente! Anda, vamos já lá, é daqui a dois passos: encontrá-lo-emos, com certeza!

- Bem, então, vamos!

- Ele vai ficar muito, muitíssimo, mil vezes contentíssimo por te conhecer. Eu lhe tenho falado muito de ti, em várias ocasiões... Ainda ontem estivemos falando de ti. Vamos então... Com que então conhecias a velha! Esta agora! Olha como as coisas se encadeiam... tão bem! Ah, sim... Sônia Ivânovna...

- Sônia Siemiônovna - retificou Raskólhnikov. - Sônia Siemiônovna, este é meu amigo Razumíkhin, uma excelente pessoa...

- Se precisa sair... - começou Sônia, sem olhar para Razumíkhin, e ainda mais envergonhadinha por isso mesmo.

- Anda, vamos! - resolveu Raskólhnikov. - Eu passarei por sua casa ainda hoje, Sônia Siemiônovna; mas diga-me onde mora.

Não parecia perturbado; mas disse isso depressa e evasivamente e evitando os olhares da moça. Sônia deu-lhe o endereço e, quando o fez, corou. Saíram todos juntos.

- Mas não fechas o quarto a chave? - perguntou Razumíkhin quando saía para o patamar atrás dele.

- Nunca fecho! Além disso, há já dois anos que ando pensando em comprar uma fechadura - disse despreocupadamente. - Felizes aqueles que não têm nada que guardar! - acrescentou, dirigindo-se a Sônia.

E na rua pararam à porta.

- Vai para a direita, não é verdade, Sônia Siemiônovna? E, a propósito, como é que me encontrou? - perguntou, como se quisesse dizer-lhe qualquer coisa completamente diferente. Sentia vontade de olhar os seus olhos plácidos, transparentes, e não conseguia completamente...

- Porque o senhor deu ontem o seu endereço a Pólietchka!

- A Pólia? Ah, sim... Pólietchka! É a sua irmãzinha... mais nova? De maneira que lhe deu a minha direção...

- Parece que já se esqueceu... - Não... estou a lembrar-me ...

- Eu já ouvira falar no senhor ao meu falecido... Simplesmente não sabia o seu nome... e hoje veio... e como já sabia o seu nome desde ontem, perguntei: "Onde mora o senhor Raskólhnikov?" Eu não sabia que o senhor também vivia num quarto subalugado... Mas adeus! Depois direi a Ekatierina Ivânovna...

Estava contentíssima por poder finalmente retirar-se; foi andando para trás, correndo, para que eles a perdessem o mais depressa possível de vista e para poder percorrer rapidamente os vinte passos de distância que havia dali até a primeira embocadura, à direita. Quando finalmente viu-se sozinha, andando ligeira, sem olhar para ninguém nem reparar em nada, pôs-se a pensar, a recordar, a evocar na imaginação todas as palavras ditas, todas as circunstâncias. Nunca, nunca ela sentira nada parecido. Todo um mundo novo, desconhecido e insuspeitado, surgira na sua alma. Lembrou-se de repente de que Raskólhnikov tencionava ir vê-la naquele mesmo dia, talvez naquela mesma manhã, quem sabe se naquele mesmo momento.

"Oxalá não seja hoje, não seja hoje!", murmurava, de coração confrangido, como se implorasse a alguém, à maneira duma criança assustada. "Senhor! A minha casa... àquele quarto... E verá... Oh, meu Deus!"

E não há dúvida de que por causa disso não pôde reparar num cavalheiro, que ela não conhecia, que a seguia de perto e se lhe atravessou no caminho. Vinha-a seguindo desde a própria porta da casa. Precisamente no momento em que os três, Razumíkhin, Raskólhnikov e ela, pararam para trocar ainda as últimas palavras, já no passeio, esse transeunte, ao passar no lugar em que eles estavam, teve um estremecimento quando ouviu no ar as palavras de Sônia: "E perguntei: onde mora o senhor Raskólhnikov?" Rápida, mas atentamente, o homem olhou para os três, sobretudo para Raskólhnikov, ao qual Sônia se dirigia; depois olhou para a casa e reparou bem nela. Tudo isso durou apenas um segundo, e o transeunte não deixou de andar e procurou não chamar a atenção, passou de largo, amortecendo os passos, como se esperasse alguém. Esperava por Sônia; viu que estava já a despedir-se e que Sônia ia seguir outra direção, que ia para sua casa.

"Mas onde viverá ela? Parece-me que esta cara não me é desconhecida", pensava, recordando o rosto de Sônia. "Preciso conhecê-la."

Assim que chegou à embocadura da rua, mudou de passeio, tornou a olhar e viu que Sônia vinha já atrás dele, seguindo o mesmo caminho e sem reparar em nada. Quando chegou à esquina, ela meteu-se também pela embocadura. Ele caminhou atrás sem perdê-la de vista, desde o outro passeio; assim que andou cinqüenta passos, atravessou o passeio onde Sônia ia, alcançou-a e pôs-se a escoltá-la a uma distância de cinco passos.

Era um homem de uns cinqüenta anos, de estatura acima da média, de ombros largos e altos, que o faziam parecer encorcovado. Vestido com elegância e seriedade, parecia um importante cavalheiro. Levava na mão uma bonita bengala, com a qual batia no chão a cada passo, e calçava as mãos numas luvas flamantes. O seu rosto, largo, bochechudo, era bastante simpático, e a cor da pele, fresca, nada petersburguesa. Os cabelos, ainda fartos, eram completamente loiros, e mal começavam a embranquecer; a barba ampla, farta, que lhe pendia como uma pá, era ainda mais clara de cor do que o cabelo da cabeça. Tinha os olhos azuis e o olhar frio, insistente e perscrutador, os lábios muito vermelhos. Era, de uma maneira geral, um homem muito bem conservado e parecia muito mais novo do que era.

Quando Sônia chegou junto do canal encontraram-se os dois no mesmo ponto do passeio.

No momento em que olhou para ela, ele viu o seu ensimesmamento e a sua distração. Assim que chegou a casa, Sônia entrou e ele fez outro tanto atrás dela, e como se sentisse certa estranheza. Já no pátio, ela torceu para a direita, para um canto, de onde a escada partia até o seu andar. "Espere!", murmurou o incógnito cavalheiro, e começou a subir os degraus atrás dela. Foi só então que Sônia reparou nele. A moça subiu o terceiro andar, entrou logo por um corredor e chamou no número nove, em cuja porta estava escrito a giz: "Kapernaúmov, alfaiate". "Espere!", tornou a repetir o desconhecido, espantado com a estranha coincidência, e chamou também o número oito. As duas portas ficavam a uns seis passos uma da outra.

- Mora em casa de Kapernaúmov! - disse ele olhando Sônia e sorrindo. - Ontem, coseu-me um colete. Eu venho a esta outra porta, a casa de madame Reslich, a senhora Kárlovna. O que são as coisas!

Sônia olhou-o atentamente.

- Vizinhos - continuou ele dizendo com um especial bom humor. - Olhe, eu venho à cidade de três em três dias. Bem, até a vista!

Sônia não lhe respondeu; abriu a porta e meteu-se em casa. Sentia vergonha, não sabia de que, e uma espécie de receio.

A caminho da casa de Porfíri, Razumíkhin ia numa disposição de espírito particularmente alegre.

- Isto, meu caro, é formidável! - repetiu várias vezes. - Estou tão contente! Tão contente!

"Por que estará ele tão contente?", pensava Raskólhnikov em silêncio. - Olha, é que eu não sabia que tu também figuravas entre os clientes da velha... E... e... há muito tempo que estiveste pela última vez em casa dela?

"Mas que tolo tão ingênuo!"

- Há muito tempo? - e Raskólhnikov parou a refletir. - Há uns três dias antes da sua morte, creio que foi. Aliás, não vou levantar os objetos neste momento - fez notar com certa pressa e como se eles o preocupassem muito - porque estou outra vez apenas com um rublo de prata... por causa desse três vezes maldito delírio de ontem...

Referiu-se ao delírio de uma maneira especialmente sugestiva.

- Bem, sim, sim, sim - concordou Razumíkhin apressadamente e sem saber por quê. - Foi por isso que, daquela vez... a mim, em parte, chocou-me... Sabes uma coisa? No meio do delírio tu também falavas de umas correntes e de uns anéis! Era isso, era isso! Agora está tudo claro, claríssimo!

"Olá! Com que então já lhe tinha vindo isso à idéia! É um homem capaz de se sacrificar por mim e, no entanto, é ver como ele está tão contente por já poder explicar, agora, que eu, no meu desvario, falasse de correntes! Essa idéia devia ter-se arraigado em todos eles!"

- Mas encontrá-lo-emos? - perguntou em voz alta.

- Encontramos, encontramos - respondeu Razumíkhin, pressuroso. - É um homem formidável, meu caro, vais ver. Um pouco tolo; quero dizer, é um homem mundano, lá isso é; mas eu chamo-o tolo noutro sentido. Um rapaz inteligente, mesmo muito inteligente, simplesmente, tem uma maneira de pensar um pouco extravagante... Desconfiado, cético, cínico... Gosta de enganar, isto é, de enganar, não, mas de atrapalhar as pessoas... É materialmente agarrado aos velhos métodos... Embora saiba do seu ofício, lá isso sabe... Foi ele quem descobriu o ano passado o autor daquele crime cuja pista se perdera completamente. Tinha muito, muito desejo de conhecer-te.

- Mas por que tem ele esse desejo assim tão grande?

- Não é porque... Olha, nos últimos tempos, quando tu caíste doente, eu falava de ti a cada momento... Pois bem; ele me ouvia... e, como sabia que não tinhas podido terminar o teu curso de Direito, em virtude de determinadas circunstâncias, disse: "Que pena!" Donde eu concluí... bem... é tudo isso junto e mais alguma coisa. Ontem, Zamiótov... Olha, Rodka, eu, ontem, quando estava bêbado, pus-me a contar-te uma história qualquer, quando íamos para tua casa, e tenho medo, meu amigo, que tu exageres as coisas, estás ouvindo?

- Mas a que propósito vem isso? Talvez me tomem por louco... Sim, e é possível que tenham razão.

E soltou um riso forçado.

- Sim, sim... isto é, ufa! Não... Bem, tudo isso que acabo de dizer... (e o resto também) era tolice e efeito da bebida.

- Mas por que te desculpas? Já estou tão farto disto tudo! - exclamou Raskólhnikov com um aborrecimento exagerado. Se bem que, além de tudo mais, estivesse, em parte, fingindo.

- Bem sei, bem sei, compreendo. Podes ter a certeza de que compreendo. Até tenho vergonha de falar nisso...

- Então, se tens vergonha, não fales!

Ficaram ambos calados. Razumíkhin estava mais que entusiasmado e Raskólhnikov reparava nisso com repugnância. O que o outro lhe disse acerca de Porfíri acabou por desassossegá-lo.

"A este também é preciso inspirar dó", pensou, empalidecendo e confrangido, "e inspirar-lho com toda a naturalidade. O mais natural de tudo seria não lho inspirar, dominar-me para não lho inspirar. Não; isso de dominar-me já não seria natural... Bem; já se vai ver o aspecto que as coisas têm ali... Farei bem ou mal em ir até lá? A borboleta, é ela própria que voa para a chama. Sinto o pulsar do coração; sinal de que não faço bem."

- É nesse prédio cinzento - indicou Razumíkhin.

"O mais importante de tudo é o fato de Porfíri saber que eu estive ontem no andar daquela bruxa e perguntei pelo sangue. É preciso adivinhá-lo num momento, desde o primeiro olhar; ler-lho na cara, assim que entrar, de contrário... sou um homem perdido, bem sei..."

- Sabes uma coisa? - disse, encarando de repente com Razumíkhin e sorrindo maliciosamente. - Eu, meu amigo, já notei, desde esta manhã, que te encontras num estado de comoção invulgar. É verdade ou não?

- Que comoção? Estás absolutamente enganado - rebateu Razumíkhin. - Não, meu amigo, vê-se. Estavas sentado na cadeira de uma maneira como nunca te sentas, quase mesmo à beira, e parecia que tinhas convulsões. Remexias-te para um lado e para outro. Tão depressa te aborrecias, como, sem se saber por quê, ficavas com uma cara muito derretida. Até coravas; sobretudo quando te convidaram para almoçar, puseste-te terrivelmente corado.

- Nada disso. Tudo isso é mentira! Por que me dizes isso? - És tímido como um colegial! E lá tornaste tu a corar! - És um porcalhão!

- Mas por que ficas assim, tão atrapalhado! Romeu! Deixa estar que ainda hoje o hei de dizer num certo lugar. Ah, ah, ah! Vou fazer com que mámienhka se ria, e outra pessoa também.

- Ouve, ouve, ouve, olha que isso não é para brincadeiras, olha que... Que irá ele fazer, ó diabo?! - gritou finalmente Razumíkhin, transido de espanto. - Mas que vais tu contar-lhes? Eu, meu amigo... Sempre és um porcalhão!

- És simplesmente um botão de rosa primaveril. Se tu soubesses como isso te fica bem! Um Romeu com dois metros de altura! E como te arranjaste hoje, estás um primor. Mas quando é que se viu uma coisa destas?! Se até pôs brilhantina! Ora deixa lá ver, baixa a cabeça!

- Porcalhão!

Raskólhnikov riu-se com tal vontade, que parecia não se poder conter, e, rindo assim, entraram ambos no quarto de Porfíri Pietróvitch. Era isso que Raskólhnikov desejava: que, no quarto, pudessem ouvi-los entrar a rir, com um riso que se prolongava até a entrada.

- Nem uma palavra, ali, senão... faço-te em papa! - disse Razumíkhin, em voz baixa e furioso, a Raskólhnikov, puxando-lhe pelo ombro.

 

Entraram no quarto. E ele fê-lo com o aspecto de quem se esforça ao máximo por reprimir o riso. Atrás dele, com a cara completamente crispada pelo furor, vermelho como um tomate, desajeitado, ia Razumíkhin. Tanto o seu rosto como toda a sua pessoa eram naquele momento verdadeiramente grotescos e justificavam os risos de Raskólhnikov. Este, antes que tivessem dado por ele, fez uma reverência, parando no meio da sala, e ficou olhando interrogativamente para o seu dono enquanto lhe estendia a mão, esforçando-se no entanto, aparentemente, por conter a sua hilaridade. Mas, mal tivera tempo de pôr uma cara séria e murmurar alguns sons, quando, de repente, como se fosse involuntariamente, tornou a fixar os olhos sobre Razumíkhin, e não pôde reprimir-se: o riso contido brotou tanto mais irreprimível quanto mais esforço fizera até então para dominar-se. A extraordinária indignação que aquele riso "cordial" infundia em Razumíkhin comunicava à cena um caráter de franca alegria e, sobretudo, de naturalidade. Razumíkhin secundava-a intencionalmente.

- Ufa, que diabo! - exclamou iracundo, gesticulando e dando uma pancada num pequeno candeeiro sobre o qual havia um copinho de chá. Caiu tudo ao chão ruidosamente.

- Mas para que é tanta algazarra, meus senhores? Isso significa uma perda para o Estado - exclamou Porfíri Pietróvitch jovialmente.

A cena corria desta maneira: Raskólhnikov, com as suas risadas, esquecera a sua mão na do dono da casa; mas, consciente da sua ação, aguardava o momento de acabar o cumprimento da maneira mais rápida e na tural; Razumíkhin, que acabara por ficar completamente atrapalhado com a queda do candeeiro e com a quebra do copo, contemplou os cacos com uma expressão sombria, cuspiu e afastou-se logo em direção à janela, onde ficou de costas para os amigos e de sobrolho ferozmente carregado, olhando para fora mas sem ver nada. Porfíri Pietróvitch pôs-se a rir, e ria com vontade, embora fosse evidente que lhe era indiferente ouvir uma explicação. Num canto, sentado na sua mesa, estava Zamiótov, que se levantara um pouco quando viu entrar os visitantes e esperava, de boca aberta num sorriso, mas contemplando a cena com perplexidade e até receoso, e a Raskólhnikov, com uma evidente curiosidade. A inesperada presença de Zamiótov causou-lhe uma desagradável impressão.

"Eis aqui uma coisa que deve ser tomada em conta", pensou.

- Queira desculpar - começou Raskólhnikov, fingindo-se embaraçado. - Ora essa! Tenho muito prazer, os senhores entraram de uma maneira muito engraçada. Mas quê? Nem ao menos nos quer dar os bons dias? - e Porfíri Pietróvitch apontou Razumíkhin com um gesto.

- Por amor de Deus, não sei por que te puseste assim comigo! A única coisa que eu lhe fiz foi dizer-lhe durante o caminho que ele parecia um Romeu e... demonstrar-lho, e, que eu saiba, não se passou mais nada. - Porco! - respondeu Razumíkhin sem se voltar.

- Isso quer dizer que ele tem sérias razões, quando se aborrece, assim, só por uma palavrinha - observou Porfíri rindo.

- Bem, tu, juiz de instrução... Vão todos para o diabo que os carregue! - exclamou Razumíkhin, e, de repente, pondo-se também a rir, com a cara mais alegre deste mundo, como se nada se tivesse passado, aproximou-se de Porfíri Pietróvitch. - Trocista! Vocês são todos uns imbecis. Vamos ao que interessa: aqui tens o meu amigo Rodion Românovitch Raskólhnikov, o qual, antes de mais, me ouviu falar de ti e tinha muita vontade de conhecer-te, e, além disso, precisa de falar-te num assunto. Olá, Zamiótov! Então estás aqui? Mas, então, conhecem-se? Desde quando?

"Mais esta!", pensou Raskólhnikov.

Zamiótov pareceu ficar um tanto perturbado, mas não muito.

- Conhecemo-nos ontem em tua casa - disse com despreocupação. - Isso significa que Deus não dorme; desde a semana passada que não fazia outra coisa senão insistir comigo para que to apresentasse, Porfíri, e afinal não precisaram de mim para se conhecerem... Onde tens o tabaco? Porfíri Pietróvitch estava em traje caseiro: de roupão, roupa interior muito limpa, e chinelos. Era um homem de uns trinta e cinco anos, de estatura um pouco abaixo da média, um tanto cheio e até com o ventre proeminente, de cara completamente rapada, sem bigode nem suíças, com o cabelo cortado rente na sua cabeça grande e redonda, que formava uma protuberância muito arredondada, sobretudo no cachaço. A cara, cheia, redonda e um pouco achatada, era de uma cor doentia, amarelo-escura, mas muito viva e até risonha. Se não fosse a expressão dos olhos de um certo brilho aquoso, cobertos por umas pestanas quase brancas, sempre em movimento, como se estivesse piscando os olhos a alguém, poder-se-ia qualificá-la de bonacheirona. O olhar desses olhos formava um contraste estranho com toda a sua figura, em que havia algo de feminino, e comunicava-lhe uma seriedade maior do que, à primeira vista, se podia esperar. Assim que ouviu dizer que o visitante tinha um assunto a tratar consigo, Porfíri Pietróvitch pediu-lhe imediatamente que se sentasse no divã, sentando-se ele na outra ponta, e ficou olhando para ele, na expectativa imediata da exposição do assunto, com essa atenção forçada e demasiado séria que é até aborrecida e perturba pela primeira vez, sobretudo a um desconhecido, e, principalmente, se aquilo que se tem a dizer não tem importância proporcional com a deferência que se lhe empresta. Mas Raskólhnikov expôs-lhe o assunto em frases breves e despreocupadas, com toda a clareza e precisão, e ficou tão satisfeito consigo próprio que até teve tempo para reparar muito bem em Porfíri. Porfíri Pietróvitch também não afastou dele a vista nem uma só vez, durante todo esse tempo. Razumíkhin, que se colocara em frente deles na mesma mesa, seguia com ardor e impaciência a exposição do assunto, passeando alternadamente o olhar de um para o outro, o que, de certa maneira, era inconveniente.

"Imbecil", murmurou Raskólhnikov para consigo.

- Deve participar à polícia - respondeu Porfíri com o ar mais objetivo deste mundo -, comunicando-lhe que, estando a par desse acontecimento, ou seja, desse crime... pede, por sua vez, que seja comunicado ao juiz de instrução, encarregado do processo, que tais e tais objetos lhe pertencem e que os deseja reaver... ou então... mas depois lhe escreverão.

- O pior é que, agora, neste momento - objetou Raskólhnikov, fazendo o possível por parecer inquieto -, ando muito mal de dinheiro... e nem sequer essa insignificância poderia... Eu, repare, só queria, por agora, apenas fazer constar que esses objetos são meus, e quando tiver dinheiro... - Isso é indiferente - respondeu Porfíri Pietróvitch, acolhendo com toda a frieza aquela declaração financeira -; além disso, se assim o desejar, o senhor pode escrever-me a mim, diretamente, nesse sentido, dizendo que, estando a par do caso, como esses objetos lhe pertencem, pede...

- Em papel comum? - apressou-se a interrompê-lo Raskólhnikov, tornando a mostrar interesse pelo aspecto financeiro do assunto.

- Oh, em qualquer! - e, de repente, Porfíri Pietróvitch ficou olhando-o com certo sarcasmo, pestanejou e pareceu piscar-lhe os olhos. Se bem que isso pudesse ter sido uma ilusão de Raskólhnikov, porque foi apenas uma coisa de um segundo. Mas, pelo menos, houve qualquer coisa. Raskólhnikov era capaz de jurar que ele lhe piscara os olhos, sabia-se lá por quê. "Sabe tudo!", passou-lhe pela mente, num relâmpago.

- Desculpe ter vindo incomodá-lo por esta ninharia - continuou, um tanto apressado. - Os referidos objetos valerão, no máximo, cinco rublos; mas eu tenho uma estima especial por eles, porque são recordações daqueles que mos ofereceram e, francamente, quando soube daquilo, tive muito receio... - Ah! Por isso ficaste tão impressionado quando eu disse ontem a Zósimov que Porfíri andava investigando quais eram os clientes da velha! - disse Razumíkhin intencionalmente.

Aquilo já era insuportável. Raskólhnikov não pôde conter-se e assestou sobre ele os olhos, fulgurantes de cólera. Mas em seguida dominou-se. - Meu caro, pelo visto, tu queres troçar de mim - disse, encarando-o numa excitação habilmente fingida. - Concordo que talvez eu tenha demonstrado excessiva inquietação por causa dessas velharias; mas, por causa disso, ninguém me pode acusar, nem de egoísta nem de cobiçoso, pois essas insignificâncias podem muito bem não sê-lo a meus olhos. Disse-te há pouco que esse relógio de prata, que não vale mais do que um groch, é a única coisa que me resta de meu pai. Podes rir-te de mim; mas veio da minha mãe - e encarou, de repente, Porfíri -, e, se ela soubesse - apressou-se a dirigir-se a Razumíkhin, esforçando-se sobretudo por fazer com que lhe tremesse a voz - que eu me tinha desfeito desse relógio, garanto-te que teria um desgosto enorme. Mulheres!

- Mas não é nada disso, não foi essa a minha intenção, muito pelo contrário! - gritou com amargura Razumíkhin.

"Teria eu dito isso com naturalidade? Não terei exagerado?", disse Raskólhnikov para si mesmo. "Por que disse eu isso de “mulheres?"

- De maneira que a sua mãe veio visitá-lo? - perguntou Porfíri Pietróvitch, por qualquer motivo.

- Veio.

- E desde quando aqui se encontra? - Desde ontem.

Porfíri ficou calado, como se refletisse.

- Os seus objetos não se encontram nesse caso e não podem ser vendidos - continuou a dizer, tranqüila e friamente. - Havia já muito tempo que eu esperava vê-lo aqui.

E, como se não tivesse dito nada, aproximou com cuidado o cinzeiro de Razumíkhin, que deixava cair sem cuidado algum a cinza do cigarro sobre o tapete. Raskólhnikov estremeceu; mas Porfíri parecia nem sequer olhar para ele, de tão preocupado com o cigarro de Razumíkhin.

- O quê? Já o esperavas? Mas, por acaso, sabias tu que ele tinha ali objetos empenhados? - exclamou Razumíkhin.

Porfíri Pietróvitch encarou diretamente Raskólhnikov.

- Os dois objetos que lhe pertencem, o anel e o relógio, tinha-os ela embrulhados num papelinho, e nesse papelinho estava escrito o seu nome, muito claro, a lápis, bem como o dia do mês em que os empenhara...

- É curioso como o senhor repara em tudo! - disse Raskólhnikov, sorrindo desajeitadamente e lutando, sobretudo, por olhá-lo diretamente nos olhos; mas não pôde conter-se e em seguida acrescentou: - Há um momento eu imaginava que os clientes deviam ser muitos, com certeza... e que lhe devia ser muito difícil recordar-se de todos... O senhor, em compensação, tinha-os a todos afetuosamente no pensamento e... e... - interrompeu-se. "Estúpido! Fraco! Por que terei eu acrescentado isto?", pensou.

- Conhecemos já quase todos os clientes, de maneira que o senhor é o único que ainda não apresentou a sua reclamação - respondeu Porfíri com uns assomos, quase imperceptíveis, de zombaria.

- Eu não estava bem de saúde.

- Sim, ouvi falar nisso. Disseram-me também que o senhor estava muito excitado não sei por que motivo. Neste momento parece-me que também está um pouco pálido.

- Nada disso, pelo contrário, estou completamente restabelecido - disse Raskólhnikov, grosseira e hostilmente, mudando subitamente de tom. Fervia em cólera e não podia conter-se. "Vou denunciar-me com esta cólera!", tornou a pensar. "Mas por que me martirizam?"

- Completamente bom não está - contradisse Razumíkhin.

- Ainda ontem estava quase sem conhecimento, delirando... Mas queres acreditar, Porfíri... assim que pôde ter-se de pé, e assim que nós saímos dali, eu e Zósimov, ontem, vestiu-se, escapou-se e foi não sei onde, e por lá andou quase até de madrugada, e isso no mais completo estado de delírio, garanto-te. Portanto já podes imaginar. É um caso interessante! - Disseste no "mais completo estado de delírio?" Faze o favor de falar - e Porfíri moveu a cabeça num gesto um pouco feminino.

- Oh, é um disparate! Não acredite nele! Se bem que não é preciso ser eu a dizer-lhe que não acredite - e Raskólhnikov deixou transparecer já uma ira excessiva. Mas Porfíri procedeu como se não tivesse ouvido essas estranhas palavras.

- Mas como é que tu podias sair de casa se não estivesses delirando? - insistiu Razumíkhin. - Por que saíste? Para quê? E, sobretudo, por que saíste às escondidas? Ora vejamos: estarias tu em teu perfeito juízo? Agora que o perigo já passou, posso falar-te francamente.

- É que ontem todos me aborreceram - disse Raskólhnikov dirigindo-se a Porfíri com um sorrisinho indolente de censura, e eu saí de casa com a intenção de procurar outro quarto onde não pudessem dar comigo e levei a mão cheia de dinheiro. Ali está o senhor Zamiótov, que viu o dinheiro. Ora vamos lá a ver, senhor Zamiótov: eu, ontem, estava em meu perfeito juízo ou estava delirando? Vamos, decida o senhor sobre esta questão!

Dir-se-ia que, nesse momento, de boa vontade teria estrangulado Zamiótov. O seu olhar e o seu silêncio desagradaram-lhe completamente. - Em meu entender, o senhor falava muito sensatamente e até com malícia, simplesmente estava muito excitado - opinou secamente Zamiótov. - Mas hoje Nikodim Fomitch informou-me - interveio Porfíri Pietróvitch - que, ontem, já bastante tarde, o encontrou em casa de certo funcionário, atropelado por um carro.

- Isso mesmo, a propósito desse funcionário - interpôs Razumíkhin. - Só isso bastaria! Não te portaste aí como um tolo? Deste à viúva tudo quanto tinhas contigo para o enterro. Porque, está bem, se querias socorrê-la... podias ter-lhe dado quinze rublos, vinte rublos, mas ficando ao menos com três para ti; mas tu, zás, entregaste-lhe nada mais nada menos do que vinte e cinco rublos.

- Mas tu não sabes que é possível que eu tenha encontrado um tesouro? Foi por isso que, ontem, me mostrei tão liberal... Olha, o senhor Zamiótov sabe que eu encontrei um tesouro... Mas desculpe - disse, encarando de lábios trêmulos com Porfíri -, há já meia hora que estamos entretidos com tolices. Estamos a aborrecê-lo, não é verdade?

- Nada disso, pelo contrário. Se soubesse como me interessa! É curioso vê-lo e ouvi-lo... e, confesso-lhe, congratulo-me muito porque se tenha resolvido, finalmente, a reclamar...

- Mas dá-nos ao menos um pouco de chá! Já temos a garganta seca! - exclamou Razumíkhin.

- Ótima idéia! Fazemos-te todos companhia. Mas não quererás também qualquer coisa de mais substancial antes do chá?

- Claro que sim.

Porfíri Pietróvitch afastou-se para pedir o chá.

As idéias entrechocavam-se num redemoinho, no cérebro de Raskólhnikov. Estava terrivelmente excitado.

"O mais importante é que não procurem esconder-se e não andem por portas travessas. E a propósito de que, se não me conhecias, falaste de mim com Nikodim Fomitch? Pelo visto nem sequer pretendem ocultar que me seguiam a pista, como sabujos. Com que franqueza me cospem na cara!", e tremia de raiva. "Pois bem: batam de uma vez e não andem a brincar como o gato com o rato. Isso não é delicado. Porfíri Pietróvitch, olha que pode acontecer que eu não consinta! Levantar-me-ei e direi toda a verdade, na tua cara, a verdade toda, e verão como os desprezo a todos", respirava precipitadamente. "Mas se isto tudo fosse uma ilusão minha, se tudo isso fosse uma simples miragem, e eu estivesse enganado, e me enfurecesse pela minha inexperiência, e não soubesse sequer desempenhar o meu ignóbil papel? Pode ser que tudo isto não seja intencional! Todas as suas palavras são vulgares, mas encerram qualquer coisa... Tudo isso pode dizer-se sempre; mas, no entanto, há qualquer coisa. Por que disse diretamente “ela'? Por que é que Zamiótov acrescentou que eu falara “com malícia'? Por que falam nesse tom? Aí é que está, no tom... Ora vejamos, Razumíkhin: por que não acha ele chocante nada disto? A esse simplório não há nada que o choque! Outra vez a febre! Foi realidade ou não o piscar de olhos que há pouco me fez Porfíri? Mas seria verdadeiramente absurdo que ele me piscasse os olhos. Serão os nervos ou querem eles irritar-me, exasperar-me? Será tudo isto uma miragem ou realmente sabem? Até Zamiótov se mostra insolente... Mostra-se insolente, Zamiótov? Zamiótov passou a noite numa apreensão. Eu nem calculava que havia de ser assim! Ele está aqui como em sua casa, e eu é a primeira vez que venho. Porfíri não o considera uma visita: senta-se voltando-lhe as costas. Entendem-se os dois! É infalível que se entendam a meu respeito! Deviam estar falando de mim quando nós chegamos. Devem saber do caso do andar. Ah, quanto eu daria por sabê-lo agora mesmo! Quando eu disse que saíra de casa com a intenção de procurar quarto, eles não disseram nada... Foi uma bela idéia eu ter falado no quarto, pode vir a ser-me útil. A delirar, com mil diabos! Ah, ah, ah! Esse tipo está informado de tudo quanto se passou ontem à noite. Da chegada da minha mãe não sabia... Com que então aquela bruxa tinha apontado a data a lápis! Mentira... essa eu não engulo não! Nada disso também é realidade, uma pura ilusão. Não, vocês tomam tudo isso como fatos. Mas isso do quarto não é um fato: é delírio. Eu sei o que hei de dizer-lhes. Saberão alguma coisa a respeito do quarto? Não sairei daqui sem averiguá-lo. Mas por que vim eu? Vejamos: o eu estar agora aborrecido será um fato também? Oh, e como estou excitado! Embora possa suceder que não me fique mal: faço o papel de doente... Vão espicaçar-me. Far-me-ão perder a cabeça. Por que viria eu?"

Tudo isso passou num relâmpago pela sua mente.

Porfíri Pietróvitch voltou passado um segundo. De repente pareceu ficar alvoroçado.

- Olha, meu amigo, desde a tua festa de ontem que tenho a cabeça... Ainda me sinto tonto - começou num tom completamente diferente, dirigindo-se a Razumíkhin.

- O quê? A reunião esteve boa? Por acaso tive que deixar-vos no ponto mais interessante... Quem é que levou a melhor?

- Ninguém, naturalmente. Agitavam as eternas questões, exaltavam-se. - Imagina, Rodka, o que chegaram a discutir: se o crime existe ou não. Fartaram-se de disparatar.

- Que tem isso de extraordinário? É uma questão social vulgar - respondeu Raskólhnikov com ar distraído.

- Não foi assim que eles puseram a questão - observou Porfíri. - É verdade - concordou logo Razumíkhin, atrapalhando-se e exaltando-se, conforme o seu costume. - Olha, Rodka, primeiro escuta, e depois dá a tua opinião. Gostava que o fizesses. Eu, ontem, estava numa ansiedade, à tua espera, tinha-lhes prometido que tu irias... A coisa começou pelo ponto de vista dos socialistas. Já se sabe qual é: o crime é um protesto contra a anormalidade do regime social... isso é só isso, e é escusado procurar-lhe outras causas... Acabou-se!

- Mentira! - exclamou Porfíri Pietróvitch. Era notório que se entusiasmava, e sorria a cada instante, olhando para Razumíkhin.

- Qual mentira! Hei de mostrar-te livros; segundo eles, todos os crimes se devem ao ambiente deletério, e nada mais. Magnífica frase! De onde se deduz, diretamente, que, se a sociedade estivesse normalmente constituída, então acabariam imediatamente todos os crimes, visto que já não haveria contra que protestar e todos passariam instantaneamente a ser inocentes. Quanto à natureza, não a tomam em consideração, puseram-na no olho da rua, não toleram a natureza. Para eles não é a natureza que, desenvolvendo-se de um modo histórico, vivo, até o fim, acabará por transformar-se ela própria numa sociedade normal, mas, pelo contrário, será o sistema social que, brotando de alguma cabeça matemática, procederá em seguida a estruturar toda a humanidade e, num abrir e fechar de olhos, a tornará justa e inocente, mais depressa do que qualquer processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico e natural. Por isso eles sentem instintivamente aversão pela história: nela só se encontra monstruosidade e estupidez; deitam todas as culpas para cima da estupidez. E por isso também não amam o processo "vital" da vida; não querem nada com a "alma viva". A alma viva da vida tem exigências; a alma viva não obedece mecanicamente; a alma viva é suspicaz; a alma viva é retrógrada. E, embora cheire a mortos, eles podem construir com a alma de borracha... que não será viva, nem terá vontade, será uma escrava e não se revoltará... E chegam ao resultado de idealizar um simples amontoado de tijolos, sim, a distribuição de corredores e quartos do falanstério. O falanstério está pronto; mas a vossa natureza ainda não o está para o falanstério; anseia pela vida, o processo vital ainda não terminou, ainda é cedo para a cova. É impossível saltar com a lógica apenas por cima da natureza. A lógica pressupõe três casos, ao passo que há milhões deles. Pois façam tábua rasa desses milhões e reduzam tudo ao simples problema do conforto! Essa é a solução mais fácil do enigma. Duma clareza sedutora, e evita o incômodo de pensar. Porque o essencial é isso: não ter que pensar. Todos os mistérios da vida podem compendiar-se em duas folhas de papel impresso.

- Ei-lo no seu elemento! É preciso ter mão dele! - gracejou Porfíri. - Imagine seis pessoas metidas num quarto e, além disso, previamente encharcadas em álcool... Já pode fazer uma idéia! Não, meu amigo, tu mentes: o meio significa muito na criminalidade, isso afirmo-te eu.

- Eu também sei que influi muito; mas dize-me: um quarentão desonra uma menina de dez anos; foi o meio que o induziu a isso?

- Pois sim; no estrito sentido da palavra, pode dizer-se que foi o meio - observou Porfíri com uma grave firmeza -; pode explicar-se o crime, em grande parte, pela menina, e, em grande parte também, pelo meio. Razumíkhin ficou furioso.

- Bem, pois, se quiseres, eu demonstrar-te-ei - disse, entusiasmando-se - que, se tu tens as pestanas brancas, é simplesmente porque Ivan, o Grande, tinha trinta e cinco sajénhi (1) de estatura, e demonstrar-to-ei de um modo claro, exato, progressivo, e até com os seus laivos de liberalismo. Vamos? Queres apostar?

- Aposto! Venha daí essa demonstração!

- Irra, não faz outra coisa senão jogar com as palavras, que diabo! - exclamou Razumíkhin fora de si, e saltou da cadeira gesticulando. - Vale a pena falar contigo? Faz isso tudo intencionalmente, tu ainda não conheces, Rodka. Ontem pôs-se ao lado deles, só para gozá-los. E as coisas que ele disse ontem, meu Deus! E todos tão satisfeitos a ouvi-lo! E é capaz de continuar com a gracinha durante duas semanas. O ano passado quis convencer-nos a todos de que, por certos motivos, ia fazer-se frade; trouxe-nos dois meses nessa convicção! Há pouco tempo lembrou-se de vir com a patranha de que ia casar-se e que já estava tudo pronto para o casamento. Até mandou fazer um terno novo.

 

* (1) Plural de sajenh, medida russa de comprimento equivalente a 2,13 m. (N. do E.) *

 

Nós já tínhamos começado a dar-lhe os parabéns. Pois bem: era tudo mentira, nem sequer a noiva existia, era tudo chalaça.

- Mentes! O terno, mandei-o fazer antes. Foi precisamente o terno novo que me sugeriu a idéia dessa brincadeira.

- E, afinal de contas, por que é o senhor tão brincalhão? - perguntou Raskólhnikov naturalmente.

- Mas pensava que eu não o era? Deixe estar que também há de cair na minha rede... Ah, ah, ah! Não; olhe, vou dizer-lhe toda a verdade. A propósito de todas essas questões de crime, o meio, a pequena, veio-me agora à memória (aliás, sempre me interessou) um artigo seu: "Acerca do crime...", ou qualquer coisa do gênero, não me lembro bem do título. Tive a satisfação de lê-lo há dois meses na Palavra periódica.

- Um artigo meu na Palavra periódica? - perguntou Raskólhnikov assombrado. - De fato, há coisa de um ano, ao deixar a universidade, escrevi um artigo a propósito de um livro; mas levei-o à Palavra semanal e não à Periódica.

- Pois foi parar à Periódica.

- Mas se a Palavra semanal deixara de publicar-se e o meu artigo ficou inédito!

- É verdade: mas, quando deixou de publicar-se, a Palavra semanal fundiu-se com a Palavra periódica; foi por isso que o seu artigo se publicou, haverá coisa de dois meses, na Palavra periódica. Mas não estava a par? Efetivamente, Raskólhnikov não sabia de nada.

- É que podia reclamar-lhes a importância do artigo! Curioso, o seu caráter! Faz uma vida tão solitária que nem sequer vê as coisas que mais diretamente lhe dizem respeito. É um fato positivo.

- Bravo, Rodka! Eu também não sabia! - exclamou Razumíkhin. - Ainda hoje hei de passar por um gabinete de leitura para pedir um número. De há dois meses? Mas que número? Não faz mal, procurarei. Bela partida! E não dizia uma palavra!

- Mas como é que soube que o artigo era meu? Eu só assinava com as iniciais.

- Ah! Por casualidade e há apenas uns dias somente. Foi pelo diretor, é meu amigo. Interessou-me muito...

- Eu analisava, lembro-me, o estado psicológico dum criminoso no momento de cometer um crime.

- Isso mesmo; e afirmava que o ato de cometer o crime ia sempre acompanhado de um estado mórbido. Muito... muito original, mas... se bem que não foi esta a parte do seu artigo que mais me interessou, mas sim algumas idéias que expunha, no final, mas que o senhor expunha, e é pena, de uma maneira pouco clara, sob a forma de alusões... Em resumo: se se recorda, havia lá uma certa alusão ao fato de existirem no mundo alguns indivíduos que poderiam... isto é, não se trata de poderem, mas antes que teriam completo direito de cometerem toda a espécie de atos desonestos e de crimes, e para os quais a lei não existisse.

Raskólhnikov sorriu perante aquela forçada e laboriosa explicação da sua idéia.

- Como? Que vem a ser isso? O direito ao crime?! Mas não será por culpa do ambiente deletério! - perguntou Razumíkhin um pouco assustado. - Não, não; não é nada disso - respondeu-lhe Porfíri. - O quid está em que no seu artigo o senhor divide os homens em ordinários e extraordinários. Os homens vulgares deviam viver na obediência e não têm direito a infringir as leis, pelo próprio fato de serem vulgares. Mas os extraordinários têm direito a cometer toda a espécie de crimes e a infringir as leis de todas as maneiras, pelo próprio fato de serem extraordinários. Se não estou enganado, parece-me que era isso o que o senhor dizia.

- Mas que é isso? Isso não pode ser! - resmungou Razumíkhin, perplexo.

Raskólhnikov tornou a sorrir. Compreendia finalmente do que se tratava e por que queriam fazê-lo falar; lembrava-se do seu artigo. Decidiu aceitar o desafio.

- Não era precisamente isso o que eu dizia - declarou com simplicidade e em voz alta. - Se bem que, reconheço-o, o senhor expôs a minha idéia quase fielmente e, se quiser, até com absoluta fidelidade... - Parecia que lhe agradava reconhecer essa fidelidade absoluta. - A diferença está só em que eu nem de longe afirmava que os homens extraordinários estejam obrigados ou tenham infalivelmente de cometer sempre todo gênero de atos desonestos, segundo o senhor diz. Parece-me até que a censura não o teria deixado passar. Eu me limitava simplesmente a insinuar que os indivíduos extraordinários tinham direito (claro que não um direito oficial) a autorizar a sua consciência a saltar por cima de certos obstáculos, e unicamente nos casos em que a execução do seu desígnio (às vezes salvador, talvez, para a humanidade) assim o exigisse. O senhor entendeu por bem dizer-me que o meu artigo não estava claro; eu estou disposto a explicar-lho até onde puder.

"É provável que eu não me engane supondo que é esse o seu desejo. A meu ver, se as descobertas de Kepler e de Newton, em conseqüência de certas circunstâncias, não tivessem chegado ao conhecimento dos homens de outra maneira senão mediante o sacrifício da vida de um, dez, cem ou mais homens, que se opusessem a essa descoberta ou se atravessassem no seu caminho como obstáculos, Newton, então, teria tido o direito e até o dever... de eliminar esses dez ou esses cem homens, a fim de que as suas descobertas chegassem ao conhecimento de toda a humanidade. Disso não se conclui, no entanto, de maneira alguma, que Newton tivesse qualquer direito de assassinar quem muito bem lhe parecesse, à toa, nem de ir todos os dias roubar na praça pública. Lembro-me também de que eu, no meu artigo, desenvolvia a idéia de que todos... digamos, por exemplo, os legisladores e os fundadores da humanidade, começando pelos mais antigos e continuando por Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão etc. etc., todos, desde o primeiro até o último, tinham sido criminosos, mais não fosse senão porque, ao promulgarem leis novas, aboliam as antigas, tidas por sagradas pela sociedade e pelos antepassados, e certamente que não se teriam detido perante o sangue, sempre que isso (derramado às vezes com toda a inocência e virtude, em defesa das velhas leis) pudesse ser-lhes útil. Também é significativo que a maior parte desses benfeitores e fundadores da humanidade fossem uns sanguinários, especialmente ferozes. Em resumo: eu concluía daqui que todos os indivíduos, não só os grandes, como também aqueles que se afastassem um pouco da vulgaridade, isto é, também aqueles que são capazes de dizer qualquer coisa de novo, teriam a obrigação, pela sua própria natureza, de serem infalivelmente criminosos... em maior ou menor grau, naturalmente. De outro modo, ser-lhes-ia difícil saírem da vulgaridade, e eles não podem conformar-se a ficar nela, até pela mesma razão da sua natureza e, a meu ver, têm até a obrigação de não se conformarem. Em resumo: como o senhor vê, até aqui, isto não tem nada de particularmente novo. Isto já se imprimiu e foi lido milhares de vezes. Pelo que diz respeito à minha distinção entre homens vulgares e extraordinários, concordo em que é um tanto arbitrária; mas eu não citava números exatos. Eu só tenho fé na minha idéia essencial, que é aquela que consiste em dizer concretamente que os indivíduos se dividem, segundo a lei da natureza, em duas categorias: a inferior (a dos vulgares), isto é, se me permite a expressão, a material, que unicamente é proveitosa para a procriação da espécie, e a dos indivíduos que possuem o dom ou a inteligência para dizerem no seu meio uma palavra nova. É claro que as subdivisões são infinitas, mas os traços diferenciais de ambas as categorias são bem nítidos: a primeira categoria, ou seja, a matéria, falando em termos gerais, é formada por indivíduos conservadores por natureza, disciplinados, que vivem na obediência e gostam de viver nela. A meu ver têm a obrigação de ser obedientes, por ser esse o seu destino e não ter, de maneira nenhuma, para eles, nada de humilhante. A segunda categoria é composta por aqueles que infringem as leis, os destrutores e os propensos a sê-lo, a julgar pelas suas faculdades. Os crimes destes são, naturalmente, relativos e muito diferentes; na sua maior parte exigem, segundo os mais diversos métodos, a destruição do presente em nome de qualquer coisa de melhor. Mas se necessitarem, para bem da sua idéia, de saltar ainda que seja por cima de um cadáver, por cima do sangue, então eles, no seu íntimo, na sua consciência, podem, em minha opinião, conceder a si próprios a autorização para saltarem por cima do sangue, atendendo unicamente à idéia e ao seu conteúdo, repare bem. É só neste sentido que eu falo no meu artigo do seu direito ao crime. (Lembre-se, o senhor, que partimos de uma questão jurídica.) Embora, no fim de contas, não haja razão nenhuma para se ficar demasiado assustado;

quase nunca a massa lhes reconhece esse direito, e até os castiga e os manda enforcar (mais ou menos); e assim, com absoluta justiça, cumpre o seu destino conservador, o que não é obstáculo para que, nas gerações seguintes, essa mesma massa erga os castigos sobre pedestais e se incline diante deles (mais ou menos). A primeira categoria é sempre a verdadeira dominadora: a segunda é... a futura dominadora. Os primeiros conservam o mundo e multiplicam-no matematicamente; os segundos movem-no e conduzem-no para a sua finalidade. Tanto uns como outros têm perfeito direito de existir. Em resumo: para mim, todos têm o mesmo direito, e... vive la guerre éternelle!... até a nova Jerusalém, naturalmente..."

- Mas, o senhor, apesar de tudo, crê na nova Jerusalém?

- Creio - acrescentou firmemente Raskólhnikov; quando disse isto, e durante toda a sua parlenda, teve os olhos fixos no chão, depois de ter escolhido um ponto do tapete.

- E... e... e... acredita em Deus? Desculpe a curiosidade.

- Acredito - respondeu Raskólhnikov, erguendo os olhos para Porfíri. - E... e na ressurreição de Lázaro, acredita?

- Creio. Mas a que propósito vem tudo isso? - Literalmente: acredita?

- Literalmente.

- Então... era só por curiosidade. Desculpe. Mas dê-me licença, e, voltando ao assunto: nem sempre esses homens extraordinários são castigados; alguns, pelo contrário...

- São festejados em vida? Sim, é verdade: alguns chegam a triunfar na vida, e então...

- Começam eles também a atormentar os outros?

- Se lhes for necessário, sim; e repare: é isso o que acontece na maior parte das vezes. A sua observação foi muito aguda.

- Muito obrigado. Mas diga-me uma coisa: em que se diferenciam esses homens extraordinários dos vulgares? Pelo nascimento ou por qualquer sinal especial? Parece-me que seria necessário mais exatidão, por assim dizer, mais distinção no exterior: desculpe em mim a natural inquietação dum homem prático e bem intencionado, mas não seria possível, por exemplo, que usassem um traje especial, algum distintivo, alguma insígnia, qualquer coisa, enfim, que os desse a conhecer? Porque há de concordar, no caso de se dar um engano e algum indivíduo julgar-se pertencente a qualquer dessas categorias, pertencendo afinal à outra, e de se pôr a eliminar toda a espécie de obstáculos, como o senhor disse, numa expressão muito feliz, que sucederia então?

- Oh, isso acontece com muita freqüência! A observação que acaba de formular ainda é mais aguda do que a anterior...

- Obrigado...

- Não tem de quê; mas não se esqueça de que esse engano só é possível em indivíduos da primeira categoria, isto é, nos indivíduos vulgares (segundo, talvez muito impropriamente, eu os designo). Apesar da sua propensão inata para a obediência, por alguma travessura da natureza, do que nem uma vaca está livre, muitos deles imaginam-se seres avançados, destrutores, e correm atrás da palavra nova, e isso com absoluta sinceridade. Na realidade, e com muita freqüência, não sabem distinguir os novos e até os olham com desdém, como a pessoas atrasadas e que pensam baixamente. Mas, a meu ver, isso não é motivo sério para inquietação, e o senhor, verdadeiramente, não deve sentir o menor desassossego, pois esses indivíduos nunca vão longe. Sem dúvida que poderiam ser castigados uma vez, pela sua presunção, a fim de recordar-lhes qual é o seu lugar; mas, para isso, nem sequer é preciso incomodar o verdugo: são eles mesmos que se flagelam, porque possuem uma elevada moralidade; alguns prestam-se mutuamente esse serviço e outros açoitam-se por suas próprias mãos... além disso, impõem-se diversas penitências públicas... o que é belo e edificante, e em suma, o senhor não deve sentir a menor inquietação... É essa a regra.

- Muito bem; pelo menos, a este respeito, tranqüiliza-me um pouco; mas veja outra coisa: pode dizer-me se são muitas essas pessoas que têm direito a assassinar os seus semelhantes, se são muitos esses homens "extraordinários"? Eu estou, desde já, disposto a inclinar-me perante eles; mas há de concordar comigo em que causa um certo arrepio pensar que podem ser muito numerosos!

- Oh, não se assuste também por causa disso! - continuou Raskólhnikov no mesmo tom. - De maneira geral, indivíduos com idéias novas, inclusivamente de algum modo capazes de dizerem algo de novo, nascem pouquíssimos, são de uma escassez verdadeiramente estranha. A única coisa certa é que a ordem de geração dos indivíduos de todas essas categorias e divisões deve estar fixamente marcada e definida por qualquer lei natural. Esta lei, claro, até agora nos é desconhecida; mas eu creio que existe e que, portanto, poderemos chegar a conhecê-la. A enorme massa de indivíduos, a material, vem ao mundo apenas para, finalmente, por meio de algum esforço, em virtude de algum processo até agora ignorado e mercê de algum cruzamento de raças e de espécies, engendrar e trazer ao mundo, ainda que seja só na proporção de um por mil, um homem verdadeiramente independente. E, com uma independência superior, talvez só nasça neste mundo um indivíduo por cada dez mil (isto, por alto, naturalmente). E, com uma independência ainda maior, só um por cada cem mil. Homens geniais surgem um entre milhões, e os grandes gênios, os fundadores da humanidade, talvez ao longo de muitos milhões de milhões de seres sobre a Terra. Em resumo: eu não pude ver a retorta em que tudo isto se prepara. Mas não há dúvida de que deve haver uma determinada lei; isso não pode ser obra do acaso.

- Mas estão os dois de brincadeira, ou quê? - exclamou, finalmente, Razumíkhin. - Estão os dois troçando mutuamente, fingindo elogiarem-se? Sentaram-se aí para troçar um do outro? Falas a sério, Rodka?

Em silêncio, Raskólhnikov ergueu para ele o seu pálido rosto, quase lúgubre, e não respondeu nada. E pareceu estranho a Razumíkhin aquela cara tranqüila e triste e, ao mesmo tempo, a cara franca, provocante, irritada e severa de Porfíri.

- Bem, meu amigo; se isso é a sério, então... Não há dúvida nenhuma que tu tens razão quando dizes que nada disso é novo e que é parecido com aquilo que temos já mil vezes lido e escutado; mas o que, de fato, é original em tudo isso... e, positivamente, te pertence a ti, com horror da minha parte o vejo, é tu chegares a dizer que se pode "em consciência" derramar sangue, "conscientemente", e desculpa-me, mas até com certo fanatismo... É possível que a idéia principal do teu artigo se resuma a isto. Mas essa autorização para derramar sangue conscientemente, isso, a meu ver, é mais feroz do que a decisão oficial e legal de verter sangue...

- Perfeitamente... é mais feroz... - concordou Porfíri.

- Não, tu, nisto, vais demasiado longe! Isso é um erro. Hei de ler-te... tu exageras! Não é possível que tu penses assim... Hei de ler...

- No artigo não há nada disso, apenas há insinuações - declarou Raskólhnikov.

- De fato, assim é, assim é - concordou Porfíri -, agora já percebo como é que o senhor deve considerar o crime, mas... desculpe a minha insistência... (estou a incomodá-lo muito e já tenho remorsos!) mas veja uma coisa: há pouco tranqüilizou-me a respeito dos casos errôneos de confusão entre as duas categorias, mas agora tornam a inquietar-me alguns casos concretos. E se um dia, a um homem já feito e refeito, ou a um rapaz, lhes desse para se julgarem um Licurgo ou um Maomé... futuro; naturalmente, e começassem a eliminar todos os obstáculos que se lhes atravessassem? "Que diabo, tenho de fazer uma grande viagem e, para uma viagem destas, é preciso dinheiro..." Bom, e começasse a fornecer-se para a viagem... Compreende?

De súbito, Zamiótov espirrou, no seu canto. Raskólhnikov nem sequer ergueu os olhos para ele.

- Não tenho outro remédio senão concordar que, de fato - respondeu muito tranqüilo -, se hão de dar casos desses. Especialmente os imbecis e os vaidosos costumam incorrer nesses erros, sobretudo os jovens...

- Ora, já vê! E então?

- Mas, ainda que seja assim - disse Raskólhnikov sorrindo -, a culpa não é minha. É assim e sempre há de ser assim. Aí está aquele - e apontou Razumíkhin -, que acaba de dizer que eu autorizo a efusão de sangue. E então? Para isso está a sociedade de bem defendida mediante as deportações, as prisões, os juízes, os presídios... Para que hão de afligir-se? É correrem atrás do ladrão!

- Bem; e se o apanhamos? - É porque o merece!

- Ao menos, o senhor é lógico. Mas e quanto à sua consciência? - Que lhe interessa isso?

- Sim, interessa-me por humanidade.

- Quem a tem sofre ao reconhecer o seu erro. É essa a sua expiação... sem contar com o presídio.

- Seja, quanto aos verdadeiramente geniais - exclamou Razumíkhin franzindo o sobrolho. - Mas aqueles aos quais se concede o direito de assassinar não deverão sofrer, de maneira nenhuma, inclusivamente por causa do sangue derramado?

- A que propósito vem isso de "deverão"? Neste campo não há permissão nem proibição. Sofrerão, se sentirem piedade pela vítima... O sofrimento e a dor são inerentes a uma ampla consciência e a um coração profundo. Em minha opinião, os homens verdadeiramente grandes devem padecer neste mundo uma grande dor - acrescentou, de repente, pensativo, quase num tom diferente do diálogo.

Ergueu os olhos, olhou para todos com ar meditabundo, sorriu e pegou no seu gorro. Sentia-se muito tranqüilo, em comparação com o que estava há pouco, quando entrou, e não o escondia. Todos se levantaram.

- Bem, quer me censure ou não, se aborreça ou não comigo, o certo é que eu não posso conter-me - declarou novamente Porfíri Pietróvitch. - Dê-me licença que lhe faça ainda uma pergunta (já o incomodei tanto!), uma única pequena pergunta, só para não esquecer...

- Bom, diga-me do que se trata - e Raskólhnikov, sério e pálido, parou diante dele, na expectativa.

- Pois fique sabendo... Na verdade não sei como hei de exprimir-me menos desajeitadamente... Trata-se de uma idéia demasiado chistosa... psicológica... Pronto, vou dizer-lhe: quando o senhor escreveu esse artigo... com certeza que... he... he... he... se considerava a si mesmo... ainda que fosse só um pouquinho... um desses seres extraordinários e que dizem uma palavra nova... Quero dizer, no sentido que o senhor dá a esta frase... Não é verdade?

- É muito provável que assim fosse - respondeu depreciativamente Raskólhnikov.

Razumíkhin fez um gesto.

- Sendo assim, então, é porque o senhor também se julga com direito... no caso de contratempo e dificuldades na vida ou para acelerar o progresso da humanidade... a saltar por cima de todos os obstáculos... como, por exemplo, a matar e a roubar?

E, de repente, tornou a piscar-lhe o olho esquerdo e a rir-se de uma maneira imperceptível, exatamente como há um momento.

- Se eu saltasse por cima dos obstáculos, com certeza que não lho diria - respondeu Raskólhnikov com desdém, provocante e altivo.

- É claro que não... Eu apenas lho perguntei com o objetivo de compreender melhor o seu artigo, num sentido pura e exclusivamente literário... "Oh, que palpável e claro é tudo isto!", pensou Raskólhnikov com repugnância.

- Dê-me licença de esclarecer - replicou secamente - que eu não me tenho por nenhum Maomé nem Napoleão... nem por nenhuma dessas personagens, e por isso não podia, não sendo nenhuma delas, dar-lhe uma explicação satisfatória da maneira como me conduziria...

- Ora! Quem é que agora, entre nós, aqui, na Rússia, não se tem por um Napoleão? - disse Porfíri com uma terrível familiaridade; até na entonação da sua voz havia, dessa vez, qualquer coisa de especialmente claro.

- Não terá sido algum futuro Napoleão que, na semana passada, matou a nossa Alíona Ivânovna a machadada? - lançou, inesperadamente, Zamiótov, do seu canto.

Raskólhnikov ficou calado e fixou um olhar atento, firme, em Porfíri. Razumíkhin franziu lugubremente as sobrancelhas. Havia já um momento que começava a suspeitar de qualquer coisa. Olhou, amuado, à sua volta. Decorreu um minuto de desconfiado silêncio. Raskólhnikov deu meiavolta para retirar-se.

- Já se vai embora? - perguntou afetuosamente Porfíri, estendendo-lhe a mão com extraordinária amabilidade. - Estou muito contente, muito contente, por tê-lo conhecido. E, quanto ao seu pedido, não se preocupe. Mas escreva da maneira que lhe indiquei. E o melhor será vir pessoalmente entregar-me a petição... um dia destes... pode ser amanhã mesmo. Eu estarei aqui, sem falta, aí pelas onze. E trataremos de tudo... O senhor, como um dos que ultimamente estiveram lá, talvez pudesse dizer-nos qualquer coisa... - acrescentou com um ar muito bonacheirão.

- Deseja interrogar-me oficialmente, com todas as formalidades de praxe? - perguntou-lhe Raskólhnikov com rudeza.

- Para quê? Até agora não tem sido preciso. O senhor não compreendeu bem. Eu, olhe, não quero perder a ocasião e... e já falei com todos os clientes... de alguns dos quais obtive indicações... e o senhor, como é o último... Olhe a propósito! - exclamou, subitamente alvoroçado por qualquer coisa. - A propósito: agora me lembro de uma coisa; veja como eu sou! - disse, voltando-se para Razumíkhin. - Tu, ontem, atroaste-me os ouvidos por causa desse Nikolachka... Bem, pois eu também sei, estou informado - disse, encarando Raskólhnikov - que o pobre rapaz está inocente, mas que se há de fazer? Também foi preciso meter um susto a Mitka... Tudo se reduz a isto: quando subia a escada naquele momento... deixe-me fazer-lhe uma pergunta: esteve ali às oito?

- Às oito - respondeu Raskólhnikov sentindo desagradavelmente nesse mesmo instante que podia não ter dito isso.

- E, quando subiu a escada, às oito, não viu no segundo andar, naquele que está aberto, lembra-se? uns operários ou, ao menos, um deles? Estavam pintando, não reparou? Isto é muito importante para eles, importantíssimo!

- Pintor de paredes? Não, não vi nenhum... - respondeu Raskólhnikov lentamente, e como se fizesse esforço para se lembrar, enquanto todo o seu ser ficava numa tensão e palpitava na ânsia de descobrir o mais depressa possível a que é que se resumia a armadilha e não cair nela. - Não, não os vi, nem também reparei que houvesse algum andar aberto... mas olhe, no quarto andar - já tinha percebido qual era a armadilha e rejubilava com o seu triunfo -, lembro-me bem de que um funcionário saiu do quarto... fronteiro ao de Alíona Ivânovna... estou a lembrar-me... estou a lembrar-me muito bem: uns soldados transportavam um divã e obrigaram-me a encostar-me à parede; mas, pintores, não me lembro de ter visto nenhuns... não; nem também havia aí qualquer andar aberto, que eu me lembre. Não; não havia...

- Mas que dizes tu? - exclamou de repente Razumíkhin, como se puxasse pela memória e reconsiderasse. - Se os pintores estiveram trabalhando lá no dia do crime e ele estivera três dias antes! Por que lhe perguntas isso?

- Ah! Fiz confusão! - disse Porfíri dando uma palmada na testa. - Raios me partam, ainda hei de acabar louco por causa deste processo! - exclamou, dirigindo-se a Raskólhnikov com ar de desculpa. - É que, repare, seria tão importante para mim comprovar se alguém os viu às oito no andar, que me lembrei de pensar se o senhor não poderia dizer-me qualquer coisa a esse respeito... mas que grande confusão!

- É preciso ter mais atenção! - observou Razumíkhin, mal-humorado. As últimas palavras foram já ditas no vestíbulo. Porfíri Pietróvitch acompanhou-os a ambos mesmo até a porta, com muita amabilidade. Saíram os dois, amuados e desgostosos, e durante algum tempo não disseram uma palavra. Raskólhnikov lançou um profundo suspiro...

 

- Não acredito! Não posso acreditar! - repetia Razumíkhin, preocupado, esforçando-se com toda a energia por refutar os argumentos de Raskólhnikov. Iam chegando à pensão de Bakaliéiev, onde estavam instaladas Pulkhiéria Alieksándrovna e Dúnia; havia já bastante tempo que os esperavam. Razumíkhin parava a cada momento durante o caminho, no calor da discussão, perturbado e comovido pelo fato de ser a primeira vez que ambos falavam "daquilo" com toda a clareza.

- Pois não acreditas! - acrescentou Raskólhnikov com um sorrisinho frio e indiferente. - Tu, segundo o teu costume, não reparaste em nada, mas eu ia pesando cada uma das suas palavras.

- Tu és melindroso e, por isso, é que as pesavas... Hum! De fato, concordo que o tom de Porfíri era bastante estranho e, sobretudo, esse pulha de Zamiótov. Tens razão, parecia que havia um subentendido... Mas por quê? Por quê?

- Devia ter passado a noite pensando nisso.

- Pelo contrário, pelo contrário! Se eles tivessem essa estúpida idéia, então procurariam dissimulá-la com todas as suas forças e esconder o seu jogo para te apanharem depois... Mas isso agora... é absurdo e imprudente!

- Se eles dispusessem de fatos, isto é, de fatos positivos, ou as suas suspeitas tivessem o menor fundamento, nesse caso esforçar-se-iam, efetivamente, por esconderem o seu jogo, na esperança de tirarem depois maiores proveitos (embora, no fim de contas, já tenha havido tempo para fazerem uma busca). Mas, como eles não contam com um fato, nem com um só, e têm apenas miragens, tudo resulta ambíguo e só têm uma idéia vaga, por isso procuram apanhar-me descaradamente numa contradição. Pode ser que ele mesmo esteja furioso ao ver que não há provas e se deixe levar pelo despeito. Pode ser também que abrigue alguma intenção... Pelo visto é um homem esperto... Talvez queira meter-me medo, deixar-me suspeitar que sabe... Aí tens a sua psicologia, meu amigo! Mas, no fim de contas, é uma banalidade explicar isso! Deixá-lo!

- E, além disso, é ofensivo, ofensivo! Compreendo-te! Mas... já que estamos falando com toda franqueza, o que principalmente me agrada é que, finalmente, falemos disto com clareza; e digo-te, francamente, que há já algum tempo que eu lhes venho notando isto, essa idéia; durante todo este tempo, naturalmente, somente de maneira quase imperceptível, como uma insinuação; mas por que, mesmo como insinuação? Como é que têm esse atrevimento? Onde, onde é que eles a fundamentam? Se tu soubesses como me fazem enfurecer! Qual! Lá porque um pobre estudante, angustiado pela miséria e pela hipocondria, em vésperas de uma cruel enfermidade, talvez já com os começos da febre (repara bem!), irritável, com o seu amor-próprio, imbuído da apreciação de si próprio, e depois de levar sete meses num buraco sem ver ninguém, com um traje esfarrapado e umas botas sem solas... comparece perante uns policiais e suporta os seus vexames, e de repente lhe metem pelos olhos uma suspeita inesperada, uma promissória protestada, do conselheiro da Corte, Tchebárov, e tudo isso junto ao cheiro da pintura fresca, a uma temperatura de trinta graus, numa atmosfera viciada, com muita gente, e à história dum crime ocorrido no dia anterior, e tudo isso... com a barriga vazia! Como é que uma pessoa não havia de desmaiar! E é só nisso que eles se fundam? Vão para o diabo que os carregue! Eu compreendo que isto seja desagradável, mas, no teu lugar, Rodka, eu pôr-me-ia a rir diante deles, na sua cara, ou, ainda melhor, cuspir-lhes-ia a todos na cara e, não contente com isso, escarrar-lhes-ia em plena cara uns escarros bem grossos, pois assim é que era preciso tratá-los, e pronto, tudo se acabava. Cospe-lhes! Tem coragem! É vergonhoso!

"Nisto tem ele razão", pensou Raskólhnikov.

- Cuspir, é fácil de dizer! E amanhã outra vez interrogatório! - exclamou com veemência. - Será preciso que eu tenha uma explicação com eles? Já me custa ter-me rebaixado perante Zamiótov na outra noite, na taberna!

- O diabo que os carregue! Irei eu mesmo procurar Porfíri! Falar-lhe-ei como a um parente, não te preocupes; ficarei sabendo tudo, tudo! Quanto a Zamiótov...

"Até que enfim adivinhou!", pensou Raskólhnikov.

- Espera! - exclamou Razumíkhin, segurando-o de repente por um ombro. - Pára! Tu estás delirando! Já reconsiderarei; tu deliras! Ora vejamos: onde é que está essa armadilha? Tu dizes que a pergunta a respeito dos trabalhadores era uma armadilha! Pensa; se tu tivesses feito "aquilo", iria dizer que tinhas visto que estavam pintando o andar... e os pintores? Pelo contrário, não teria visto nada, ainda que os tivesses visto! Quem é que faz declarações contra si mesmo?

- Se fosse eu que tivesse feito a coisa, teria infalivelmente dito que sim, que tinha visto pintar o quarto e os trabalhadores - respondeu Raskólhnikov de má vontade e com visível repugnância.

- Mas por que havias de fazer declarações contra ti próprio?

- Porque somente os camponeses e os mais inexperientes novatos mentem descaradamente e teimosamente nos interrogatórios. Em compensação, qualquer homem que tenha um pouco de inteligência e de prática esforçar-se-á infalivelmente o mais possível para reconhecer todos os fatos exteriores que é impossível de pôr de parte; simplesmente atribuí-los-á a outras causas, apontar-lhes-á alguma nota especial e inesperada, que lhes empreste outro significado e lhes mostre a outra luz. Porfíri podia contar imediatamente que eu havia de responder-lhe assim e de dizer-lhe, sem dúvida alguma, o que tivesse visto, por causa da verossimilhança, ainda que introduzisse também algum pormenor à guisa de explicação.

- Mas ele ter-te-ia dito depois que dois dias antes não podiam os pintores estar ali e, portanto, não tinhas outro remédio senão teres estado ali no dia do crime, às oito. Ter-te-ia apanhado com uma ninharia!

- Mas contaria também que eu não tinha tempo de me demorar a refletir e que me apressaria a responder da maneira mais verossímil e esqueceria o pormenor de que os operários não podiam ter estado ali dois dias antes...

- Mas como esquecer isso?

- É facílimo! É com essas coisas insignificantes que se apanham mais facilmente os indivíduos mais espertos! Quanto mais astuto é o indivíduo, menos receia que o vão apanhar com essas bagatelas. É precisamente ao homem mais esperto que é preciso apanhá-lo com a coisa mais simples. Porfíri nem de longe é tão tolo como tu imaginas!

- Nesse caso é um velhaco!

Raskólhnikov não pôde deixar de rir. Nesse momento pareceram-lhe estranhos o deleite e o gosto com que expusera a explicação anterior, tanto mais que tinha vindo a conduzir o diálogo até ali com notória aversão, somente em atenção ao fim proposto, por ser indispensável.

"Irei eu tomar gosto por estas questões?", disse para consigo.

Mas quase nesse mesmo momento sentiu-se assaltado por súbita inquietação, pois lhe ocorrera uma idéia inesperada e assustadora. E a sua inquietação crescia cada vez mais. Estavam quase à entrada da pensão Bakaliéiev.

- Entra tu sozinho - disse-lhe, de repente, Raskólhnikov - eu já venho. - Mas aonde vais? Se cá estamos já!

- Não tenho outro remédio, não tenho outro remédio; é um assunto... Dentro de meia hora estarei de volta... Dize isso a elas.

- Faze como quiseres, mas eu vou atrás de ti!

- Mas por que te empenhas em me mortificar? - exclamou ele com amarga írritação, com tal desolação no olhar que Razumíkhin deixou cair os braços.

Permaneceu ainda uns momentos à entrada e viu tristemente como o outro se dirigia rapidamente para a sua ruela. Por fim, rangendo os dentes e cerrando os punhos, jurando a si próprio que nesse mesmo dia havia de espremer Porfíri como a um limão, subiu até o quarto para tranqüilizar Pulkhiéria Alieksándrovna, que já estava assustada com a sua longa ausência...

Quando chegou a casa... Raskólhnikov levava as fontes banhadas em suor e respirava com dificuldade. Subiu as escadas a toda a pressa, entrou no quarto, que estava aberto, e correu imediatamente o fecho. Depois, assustado e como louco, foi direto a um canto, àquele buraco por baixo do papel da parede, onde guardara os objetos, meteu nele a mão e ficou um momento explorando minuciosamente, sondando todas as fendas e todos os refegos do papel. Como não encontrou nada, levantou-se e lançou um fundo suspiro. Quando, havia um momento, chegara ao pátio de Bakaliéiev, ocorreu-lhe de repente que algum objeto, alguma pequena corrente, algum botão ou até o papel em que tinham estado embrulhados com a correspondente nota, do punho e letra da velha, podia ter resvalado e ficado no fundo de alguma greta, e depois surgir diante dele como prova inesperada e irrefutável.

Estava como que afundado numa meditação, e um sorriso estranho, humilde e quase inconsciente vagueava sobre os seus lábios. As idéias confundiam-se-lhe. Meditabundo, atravessou a porta da rua.

- Olhem, aqui está! - gritou uma voz forte; ele ergueu a cabeça. O porteiro estava parado diante do seu cubículo e apontava francamente para um indivíduo, que lhe era desconhecido, baixinho, com uma cara de operário, que vestia uma espécie de bata, com colete, e que, de longe, se parecia muito com uma mulher. A cabeça, coberta por um gorro sebento, pendia-lhe para baixo, e todo ele parecia corcovado. A sua cara decrépita, enrugada, indicava mais de cinqüenta anos; os olhos pequeninos, encovados tinham um vislumbre agastado, severo e descontente.

- Que há? - perguntou Raskólhnikov aproximando-se do porteiro. O operário olhou-o de soslaio e ficou a mirá-lo de alto a baixo, sem pressa, depois do que deu meia-volta e devagarinho, sem proferir uma palavra, saiu do pátio da casa para a rua.

- Mas de que se tratava? - perguntou Raskólhnikov.

- É que esse indivíduo veio perguntar se morava aqui um estudante com o seu nome e apelido, e com quem vivia. Foi nesse momento que o senhor apareceu, eu lhe indiquei, e ele se foi. Mais nada!

O porteiro estava também um pouco hesitante, embora a sua perplexidade tenha durado pouco, porque, depois de ter pensado no que aconteceu mais uns momentos, deu meia-volta e entrou outra vez no seu tugúrio.

Raskólhnikov pôs-se a andar atrás do operário e viu imediatamente que ele atravessava para o outro passeio, com o mesmo andar compassado e lento de antes, os olhos fixos no chão e como se pensasse em qualquer coisa. Não tardou a alcançá-lo; mas foi-o seguindo durante algum tempo, até que, finalmente, emparelhou com ele e olhou-o de soslaio no rosto. O outro deu imediatamente por ele, lançou-lhe um olhar rápido, mas tornou imediatamente a fixar os olhos no chão, e assim andaram durante um minuto um ao lado do outro e sem dizerem uma palavra.

- O senhor perguntou por mim... ao porteiro? - disse, finalmente, Raskólhnikov, mas em voz não muito alta.

O homem não respondeu e nem sequer olhou para ele. Continuaram outra vez em silêncio.

- Com que então o senhor... vai perguntar por mim... e agora cala-se... Que significa isto? - e a voz de Raskólhnikov era entrecortada, poderia dizer-se que as palavras não queriam sair-lhe da boca.

Dessa vez o homem ergueu os olhos e fixou em Raskólhnikov o olhar mais sombrio e colérico.

- Assassino! - exclamou de repente, numa voz calma, mas clara e distinta.

Raskólhnikov ia andando ao seu lado. As pernas fraquejaram-lhe de repente, terrivelmente, um arrepio lhe correu pelas costas e pareceu-lhe que o coração lhe ia parar num instante, como se o tivessem arrancado do seu lugar. Caminharam assim uns cem passos, um junto do outro, e outra vez em silêncio.

O homem não olhava para ele.

- Mas por que diz o senhor... que...? Quem é assassino? - murmurou Raskólhnikov numa voz quase imperceptível.

- O assassino és tu! - disse o outro numa voz ainda mais clara e enérgica, e, com um certo sorrisinho de ódio triunfante, tornou a olhar para o pálido rosto de Raskólhnikov e para os seus olhos agonizantes.

Chegaram ambos ao mesmo tempo a uma encruzilhada. O homem entrou pela rua da esquerda e não voltou os olhos. Raskólhnikov ficou parado no seu lugar e seguiu-o durante muito tempo com a vista. E viu como o outro, depois de ter andado uns cinqüenta passos, dava meia-volta e ficava a olhar para ele, que continuava ainda imóvel no mesmo lugar. Teria sido impossível distingui-lo bem, mas a Raskólhnikov pareceu que o outro sorria também dessa vez com o seu sorriso de ódio frio e de triunfo.

Com passos lentos, inseguros, de joelhos trêmulos e tremendo todo de espanto, Raskólhnikov fez meia-volta e dirigiu-se para o seu buraco. Tirou o gorro, colocou-o sobre a mesa e durante dez minutos permaneceu de pé, imóvel. Depois, sem forças, deitou-se sobre o divã e, como um doente, estendeu-se sobre ele com um fraco gemido; os olhos fecharam-se-lhe. Devia ter ficado assim deitado uma meia hora.

Não pensava em nada. Vinham-lhe apenas fragmentos de idéias, visões sem ordem nem coerência... Caras de pessoas que tinha visto em criança ou encontrara em qualquer parte apenas uma vez e que nunca recordara; o campanário da igreja de V...; o bilhar de certa taberna e certo oficial junto do bilhar, cheiro de tabaco de alguma loja de venda a varejo, num saguão, a escada negra de algum estabelecimento de bebidas, completamente às escuras, toda manchada de águas sujas e semeada de cascas de ovos, enquanto ao longe se ouvia o badalar dos sinos dominicais... os objetos mudavam e sucediam-se num torvelinho. Alguns lhe eram agradáveis e tentou agarrar-se a eles, mas eles extinguiam-se e, de maneira geral, qualquer coisa o oprimia por dentro, embora não muito. Às vezes, até se sentia bem... Uma ligeira tremura não o deixava e até essa sensação se lhe tornava agradável.

Ouviu os passos apressados de Razumíkhin e a sua voz; fechou os olhos e fingiu que dormia. Razumíkhin entreabriu a porta e permaneceu uns momentos à entrada, indeciso. Depois, entrou devagarinho no quarto e aproximou-se do divã com muito cuidado. Ouviu-se um murmúrio de Nastássia:

- Não o acordes; deixa-o dormir; comerá depois... - Tens razão - respondeu Razumíkhin.

Saíram ambos com muito cuidado e fecharam a porta. Decorreu outra meia hora. Raskólhnikov abriu os olhos e deixou-se cair outra vez sobre o divã, segurando a cabeça por detrás, com as duas mãos.

"Quem seria? Quem seria esse homem saído do chão? Onde estava e que viu? Viu tudo, disso não há dúvida. Mas onde é que estava e de onde é que olhava? E por que só agora é que surgiu de debaixo da terra? E que podia ele ter visto... por acaso era possível ver alguma coisa?... Hum!", continuou Raskólhnikov tiritando e estremecendo, "e o estojo que Nikolai encontrou atrás da porta, seria isso possível? E as provas? Basta esquecermo-nos de uma insignificância... e a prova transforma-se numa pirâmide egípcia! Nem uma mosca voando podia ter visto! Deve ser isso!"

E sentiu de repente, com aborrecimento, que desfalecia, mas com um desfalecimento físico.

"Eu devia saber", pensou com um amargo sorriso, "e como me atrevi, sabendo como sou, pressentindo-me, a brandir a machada e a derramar o sangue? Eu tinha a obrigação de saber antecipadamente... Ah! Mas eu já o sabia de antemão!", balbuciou, desolado.

Por um momento, ficou imóvel perante certa idéia.

"Não, esses indivíduos não são feitos desta massa; o verdadeiro dominador, ao qual tudo é permitido, bombardeia Toulon, assola Paris, esquece o seu exército no Egito, aniquila meio milhão de soldados na retirada de Moscou

e livra-se de dificuldades com um trocadilho em Vilna; e, no entanto, depois de morto levantam-lhe estátuas... Segundo parece, tudo lhe era permitido. Não, esses seres, pelo visto, não são feitos de carne e osso, mas de bronze!" De súbito, uma idéia secundária quase o fez sorrir.

"Napoleão, as pirâmides, Waterloo... e uma imunda e estúpida viúva de assessor, uma velhinha, uma usurária, com um cofre vermelho debaixo da cama... Como fazer tragar isso, mesmo a um Porfíri Pietróvitch? Como podiam tragá-lo? Até a estética o impedia. Um autêntico Napoleão ir-se-ia meter debaixo da cama duma velhota? Ora, fora daqui, porcalhão!" Havia momentos em que lhe parecia delirar: caía numa disposição de espírito triunfal.

"Isso da velha é um absurdo!", pensava com veemência, de vez em quando. "Isso da velha é um erro, não pode tratar-se dela. A velha estava simplesmente doente... Eu não queria mais nada senão passar o mais de pressa possível por cima do obstáculo... Eu não matei nenhuma pessoa humana; apenas matei um princípio. Um princípio, foi o que eu matei;

mas saltar o obstáculo, não saltei; fiquei do lado de cá... Não soube fazer mais nada senão matar. E nem sequer isso soube fazer, segundo parece. Um princípio? Por que é que, há pouco, esse imbecil do Razumíkhin recriminava os socialistas? São pessoas que gostam do trabalho e são comerciantes... “ocupam-se da felicidade universal'... Não; a mim dão-me uma só vida e não terei outra; eu não quero esperar pela felicidade universal. Eu quero viver, eu, senão mais vale não viver. Qual! Eu não queria passar em frente de uma mãe famélica, apertando na mão o meu único rublo, à espera da felicidade universal. Acarretarei, que diabo! uma pedra para a felicidade universal, e assim gozarei a paz do coração. Ah, ah! Por que se esqueceram de mim? Reparem que só tenho uma vida e que quero vivê-la... Ah, eu sou um piolho estético, e nada mais..." Pôs-se de repente a rir como um demente. "Sim, eu sou, de fato, um piolho", continuou, apoderando-se com uma alegria maliciosa dessa idéia, esquadrinhando-a, jogando e divertindo-se com ela, "em primeiro lugar, só pelo fato de estar discorrendo, agora, a propósito disso (de que era um piolho), e, em segundo, porque durante um mês inteiro andei incomodando a Providência, que é infinitamente boa, tomando-a por testemunho de que eu não urdia tramas nem planos para meu proveito, que diabo! mas apenas com os olhos postos num fim magnífico e simpático... Ah, ah! Além disso, em terceiro lugar, porque, com a maior justiça possível, me propus guardar uns certos limites: de todos os piolhos escolhi o menos útil, e quando o matei apenas lhe tomei exatamente aquilo de que eu precisava para dar o primeiro passo, nem mais nem menos (o resto iria parar ao mosteiro, conforme o seu testemunho)... Ah, ah, ah! Depois, porque sou realmente um piolho", acrescentou, rangendo os dentes, "porque talvez eu mesmo seja um piolho ainda mais repugnante e indigno do que o piolho assassinado, e já de antemão tinha o pressentimento de que havia de dizer a mim próprio tudo isto depois de ter assassinado. Mas há alguma coisa que possa comparar-se com este horror? Oh, vulgaridade! Oh, baixeza! Oh, e como eu compreendo o profeta, com a sua espada, a cavalo: é Alá que o manda, e inclina-se a trêmula criatura e... livra-te de desejar... porque isso não é da tua conta! Oh, por nada deste mundo, por nada deste mundo perdoarei à velhota!"

Tinha os cabelos encharcados em suor, os lábios trêmulos e secos, o olhar fixo apontando para o teto.

"Minha mãe, minha irmã, como vos amei! Por que lhes tenho ódio, agora? Sim, odeio-as, de um ódio físico; não posso suportá-las ao meu lado... Há pouco me aproximei e beijei a minha mãe, recordo-me... Abraçá-la e pensar que se ela soubesse... E se eu lhe tivesse dito tudo, nessa altura? Seria muito próprio de mim... Hum! Ela deve ser como eu", acrescentou, pensando com esforço, como se lutasse contra o delírio que se ia apoderando dele. "Oh, e que ódio eu tenho agora à velhota! Creio que se ressuscitasse tornaria outra vez a matá-la! Pobre Lisavieta! Por que teria ela aparecido ali? Mas é estranho que eu me lembre tão pouco dela, como se não a tivesse assassinado... Lisavieta! Sônia! Pobres, ingênuas, com uns olhinhos tão doces! Simpáticas! Por que não choram? Por que não se queixam? Dão tudo... olha mansa e docemente... Sônia, Sônia! Doce Sônia!"

Perdeu os sentidos; pareceu-lhe estranho não compreender como é que conseguira chegar à rua. A tarde ia já avançada. As sombras adensavam-se, a lua cheia resplandecia cada vez mais radiante; mas no ambiente havia uma espécie de incandescência sufocante; as pessoas iam em grupos pelas ruas; operários e homens atarefados voltavam para as suas casas, outros passeavam; tudo cheirava a cal, a pó, a água estagnada. Raskólhnikov ia triste, pensativo; lembrava-se muito bem de que saíra de casa com qualquer intenção, que tinha de fazer qualquer coisa e apressar-se, simplesmente... que se tinha esquecido. De repente parou e viu que do outro lado da rua, no passeio, estava parado um homem que fazia sinais com a mão. Dirigiu-se para ele atravessando a rua; mas, de repente, o indivíduo deu meia-volta e afastou-se, como se não tivesse dado por nada, de cabeça baixa, sem voltar os olhos e sem dar o menor sinal de o ter chamado.

"Mas vamos lá a ver, o senhor não me chamou?", pensou Raskólhnikov, e, no entanto, lançou-se no seu encalço. Ainda não tinha dado dez passos quando, de repente, o reconheceu e ficou assustado: era o mesmo operário de antes, com a mesma bata e a mesma corcunda. Raskólhnikov seguia-o a distância, o coração pulsava-lhe: chegaram a uma ruela... o homem não se voltou.

"Pode ser que não se tenha apercebido que eu vou atrás dele", pensava Raskólhnikov. O homem atravessou o portão de uma grande casa. Raskólhnikov apressou-se a alcançar a porta e ficou olhando; não voltaria para olhá-lo e não o chamaria? De fato, depois de ter atravessado o portão e entrado no pátio, o homem voltou-se e pareceu outra vez chamá-lo com a mão. Raskólhnikov atravessou imediatamente o portão; mas o homem já não estava no pátio. Com certeza devia ter entrado imediatamente e começado a subir o primeiro lance da escada. Raskólhnikov lançou-se atrás dele. De fato, dois lances mais acima ainda se ouviam os passos lentos, cadenciados, de alguém. Coisa estranha: parecia-lhe que conhecia aquela escada. Aquela é a janela do primeiro andar: triste e misteriosa, filtra-se pelos vidros a luz da lua; já estão no segundo andar. Ah! Este é o mesmo andar em que trabalhavam os pintores... Como é que não o reconheceu imediatamente? Os passos do homem que iam à frente sumiram-se. "Naturalmente parou ou escondeu-se em qualquer lugar. Este é o terceiro andar; continuemos. Que silêncio... É até espantoso..." Mas ele continuou andando. o ruído dos seus passos assustava-o e sobressaltava-o. "Santo Deus, que escuridão! o homem escondeu-se, com certeza por aí, em qualquer canto. Ah! a porta do quarto está escancarada." Refletiu um pouco e entrou. o vestíbulo estava muito escuro e deserto; nem viva alma, como se tivessem levado tudo; devagarinho, nas pontas dos pés, entrou na sala; todo o quarto estava iluminado pelo brilho da lua; estava tudo como antes; as cadeiras, o espelho, o divã amarelo e os quadros nas suas molduras. Uma lua enorme, redonda, de um vermelho acobreado, espreitava diretamente pela janela. "Todo este silêncio é por causa da lua", pensou Raskólhnikov, "com certeza que ela deve estar decifrando algum enigma." Parou e esperou, esperou durante muito tempo; e quanto mais silenciosa estava a lua, com mais força lhe palpitava o coração, até o ponto de incomodá-lo. E tudo em silêncio. De repente ouviu-se um pequeno ruído seco, instantâneo, como se tivesse saltado uma estilha de lenha, e outra vez tudo voltou a ficar mergulhado em silêncio. Uma mosca desequilibrada chocou-se, de súbito, no seu vôo, com o espelho, e cambaleou, ferida. Nesse momento, num canto, entre o armário e a janela, distinguiu uma espécie de capa de mulher, pendurada na parede. "Que fará aqui esta capa?", pensou. "Dantes não estava aqui." Aproximou-se devagarinho e adivinhou que atrás daquela capa se escondia alguém. Cautelosamente, afastou a capa com a mão e viu que havia ali uma cadeira, e na cadeira, num cantinho, estava sentada uma velhinha, toda feita num novelo e com a cabeça baixa, de maneira que ele não podia ver-lhe a cara; mas era a mesma. Ficou parado diante dela. "Tem medo", pensou. Tirou devagarinho a machada do nó corredio e descarregou-a sobre a velha, na sombra, uma e outra vez. Mas, coisa estranha: ela nem sequer estremecia debaixo dos golpes, tal como se fosse feita de pau. Ele se assustou, agachou-se mais e pôs-se a olhar para ela; mas ela, por sua vez, agachou também a cabeça. Então ele se pôs completamente de cócoras no chão, e, de baixo, olhou-a no rosto; olhou-a e ficou hirto de espanto: a velha continuava sentada, e ria-se... retorcia-se num riso abafado, inaudível, esforçando-se por todos os modos por que não a ouvissem. De repente, pareceu-lhe que a porta do quarto se abria suavemente e que também ali dentro soavam risos e murmúrios. A raiva apoderou-se dele: pôs-se a bater na cabeça da velha com todas as forças; mas, a cada machadada, mais e mais fortes soavam os risos e os murmúrios no quarto, e a velha continuava a retorcer-se toda de riso. Deitou a correr mas o vestíbulo já estava cheio de gente; a porta do andar, aberta de par em par, e, no patamar, na escada e lá embaixo, tudo cheio de gente, cabeça contra cabeça, todos a olharem, mas todos escondidos e esperando em silêncio... Sentiu o coração oprimido, os pés paralisaram-se-lhe, deitaram raízes na terra... Quis gritar... e acordou...

Respirou ruidosamente; mas, coisa estranha, parecia-lhe que continuava sonhando: a porta do quarto estava aberta de par em par e junto dos gonzos estava parado um homem que lhe era completamente desconhecido e que o mirava de alto a baixo. Raskólhnikov mal tivera tempo para abrir completamente os olhos; mas voltou a fechá-los. Estava estendido de boca para cima e não se mexeu.

"Continuará o sonho?", disse, e, pouco a pouco, com muito cuidado, foi erguendo outra vez as pestanas para olhar: o desconhecido permanecia no mesmo lugar e continuava olhando-o. De repente, transpôs diretamente o limiar da entrada, fechou a porta atrás de si, com muito cuidado, aproximou-se da mesa, esperou um minuto sem deixar de olhá-lo todo esse tempo, e, devagarinho, sem ruído, sentou-se numa cadeira, junto do divã; pôs o chapéu de lado, no chão, e colocou as duas mãos no pomo da bengala, apoiando depois o queixo sobre as mãos. Era evidente que se propunha esperar muito tempo. Tanto quanto era possível ver através das pálpebras descidas, verificava-se que aquele homem já não era jovem, mas era forte e tinha uma barba espessa, loira, quase branca...

Decorreram dez minutos. Ainda havia luz mas a noite estava já próxima. Reinava um silêncio absoluto no quarto. Na escada também não se sentia o menor ruído. Apenas voltejava e zumbia por ali um moscardo, que se chocava com o espelho nos seus volteios. Até que isso acabou por se tornar insuportável. De súbito, Raskólhnikov ergueu-se e sentou-se no divã.

- Bem, diga, o que deseja?

- Eu já sabia que o senhor não dormia, mas que fingia estar dormindo - respondeu o desconhecido de maneira estranha, sorrindo placidamente. - Dê-me licença que me apresente: Arkádi Ivânovitch Svidrigáilov...

 

 

Contínuará o sonho?", tornou a pensar Raskólhnikov. Cauto e receoso, olhava para o visitante inesperado.

- Svidrigáilov? Que absurdo! Não pode ser! - exclamou finalmente em voz alta, perplexo.

Segundo parece, aquela exclamação não surpreendeu o visitante.

- Vim vê-lo por dois motivos: primeiro, porque desejava conhecê-lo pessoalmente, pois há algum tempo que ouvi contar coisas muito curïosas e interessantes a seu respeito, e segundo, porque tenho a convicção de que não se negará a prestar-me o seu auxílio num caso que afeta diretamente a sua irmã Avdótia Românovna. Sozinho e sem nenhuma recomendação, eu teria probabilidades de ser posto por ela na rua, ao passo que, em conseqüência de certos preconceitos, graças ao seu auxílio, eu conto, pelo contrário, que...

- Não conte com isso - atalhou Raskólhnikov.

- Elas chegaram ontem mesmo, desculpe-me a pergunta... não é verdade?

Raskólhnikov não respondeu.

- Foi ontem, eu sei. Olhe, eu também só estou aqui há dois dias. Bem, repare no que eu tenho de dizer-lhe a esse respeito, Rodion Românovitch; mas dê-me licença que lhe pergunte: que há de especialmente criminoso, do meu lado, em tudo isto, quero dizer, apreciando sem preconceitos, atendendo só à razão?

Raskólhnikov continuou a contemplá-lo em silêncio.

- Eu sou aquele que perseguiu, na sua própria casa, uma moça indefesa, e que a ofendeu com as suas feias propostas... Não é assim? (Eu mesmo me antecipo.) Mas bastará que o senhor leve em conta que eu sou homem et nihil humanum... enfim, eu também sou capaz de apaixonar-me e de amar (o que, não há dúvida, não acontece por nossa vontade), de maneira que tudo se explica assim muito naturalmente. Aqui tem o senhor o problema: sou eu o verdugo ou sou a vítima? Mas que vítima? Repare que eu, ao propor à minha adorada que fugisse comigo para a América ou para a Suíça, é possível que o tivesse feito animado dos sentimentos mais respeitosos e pensasse até que, assim, fazia a felicidade dos dois. A razão, já vê, está ao serviço da paixão; faça-me a justiça de pensar que era possível que fosse eu aquele que ficasse a perder mais...

- Não era disso que se tratava, de maneira nenhuma - atalhou Raskólhnikov com repugnância -, mas, simplesmente, de que, tenha ou não razão, o senhor é antipático, e que eu não quero conviver com o senhor, e que vou expulsá-lo neste momento; por isso vá-se...

De repente, Svidrigáílov desatou numa gargalhada.

- Não há quem faça nada com o senhor! - exclamou, pondo-se a rir francamente. - Eu pensava valer-me da astúcia das meias palavras; mas o senhor acertou em cheio de uma só vez.

- Mas até neste mesmo instante o senhor continua a empregar a astúcia. - O quê? Que diz o senhor? - respondeu Svidrigáilov, rindo às escâncaras. - Olhe, isto é bonne guerre (1), o que se chama uma astúcia legítima... Mas o que é certo é que o senhor me interrompeu. E insistirei de novo em que nada de aborrecido se teria passado se no jardim não se encontrasse, por acaso, Marfa Pietrovna...

- Segundo dizem foi o senhor também quem matou Marfa Pietrovna - atalhou Raskólhnikov, mal-humorado.

- Mas ouviu dizer isso? Embora, afinal, como não ouvi-lo? Bem, a essa sua primeira pergunta, francamente, não sei como responder, ainda que tenha a consciência muito tranqüila sobre o caso. Isto é, não vá o senhor pensar que eu corro qualquer perigo por causa disso; tudo se fez na maior ordem e com absoluta exatidão: a investigação médico-legal declarou uma apoplexia em conseqüência dum banho frio, tomado depois duma refeição abundante, durante a qual sorveu uma garrafa quase inteira de aguardente; não foi possível demonstrar mais nada, mais nada... Não; repare no que eu dizia a mim mesmo, durante o caminho, sentado no vagão do trem: "Não teria eu contribuído para toda essa... desgraça, moralmente, com algum desgosto ou com qualquer outra coisa do gênero?" Mas acabei por chegar à conclusão de que também não podia tratar-se disso, de maneira nenhuma.

Raskólhnikov pôs-se a rir. - Vontade de emendar-se?

- Por que se ri o senhor dessa maneira? E imagine que eu só lhe bati duas vezes com um chicote, de maneira que não lhe ficaram sinais... Faça o favor de não me tomar por um cínico; eu sei muito bem que isso foi mal feito, ou pior ainda; mas também sei de certeza que Marfa Pietrovna estava muito contente com esse meu divertimento, chamemos-lhe assim. Ela espalhou essa história a respeito de sua irmã por toda a cidade. No terceiro dia Marfa Pietrovna teve de ficar em casa: não tinha com que apresentar-se na cidade e, além disso, tinha-os aborrecido a todos com aquela sua cartinha. (Não ouviu falar da leitura dessa carta?) E, de repente, essas duas chicotadas caíram como chovidas do céu. A primeira coisa que fez foi mandar atrelar a carruagem... E isto para não dizer que há certas ocasiões em que à mulher agrada muito, mas muito, que a ofendam, apesar de todo o seu aparente aborrecimento. Todas elas passam por transes semelhantes; ao homem, de maneira geral, também lhe agrada muito, muito, que o ofendam: não tem reparado? Bem, mas isso agrada sobretudo às mulheres. Até se pode dizer que é só assim que conseguem matar o tempo.

 

* (1) Uma guerra justa. (N. do T.) *

 

Houve um momento em que Raskólhnikov pensou em levantar-se, deitar a correr e dar assim por terminada a entrevista. Mas retiveram-no a curiosidade e até uma certa intenção.

- Gosta de manejar o chicote? - perguntou com ar distraído.

- Não, nem por isso - respondeu Svidrigáilov tranqüilamente. - Mal me servi dele, com Marfa Pietrovna. Nós nos dávamos muito bem e ela estava sempre satisfeita comigo. Em sete anos de casados só devo ter-lhe aplicado o chicote umas duas vezes (para não falar de um terceiro caso, aliás, bastante ambíguo): a primeira vez, foi depois de dois meses de casados, assim que chegamos à aldeia, e a outra, esta última, a de agora... Mas o senhor imagina que eu era um monstro, um retrógrado, um partidário da escravatura? Ah, ah! E a propósito, não se lembra, Rodion Românovitch, que há uns anos, ainda nos tempos da bendita liberdade de imprensa, difamaram pública e literariamente a um nobre (cujo nome me esqueci) por ter batido numa alemã, num carro do trem? Não se lembra? Nessa altura, no mesmo ano, deu-se esse "horrível incidente do século" (bem, as Noites egípcias, leitura pública, lembra-se?) Olhos negros! Oh! Onde estás, tempo áureo da nossa mocidade? Bem; pois ouça a minha opinião: por esse cavalheiro que surrou uma alemã, não tenho eu a menor simpatia, porque, realmente, no fundo, por que hei de tê-la? No entanto, ainda assim não posso deixar de reconhecer que às vezes se vêem umas alemãs tão provocantes, que afirmo não existir um só progressista que pudesse considerar-se seguro. Não era deste ponto de vista que as pessoas olhavam então as coisas; mas, no entanto, é o verdadeiro ponto de vista humano, não é verdade?

Depois de ter falado assim, de repente, Svidrigáilov irrompeu numa gargalhada. Raskólhnikov compreendeu claramente que aquele homem estava firmemente decidido a qualquer coisa e que saberia consegui-la.

- Com certeza deve já haver alguns dias seguidos que o senhor não fala com ninguém, não é verdade? - perguntou-lhe.

- Quase. Mas está, de fato, admirado com a minha complacência? - Não, não me admira que a tenha em demasia.

- Isso é porque eu me dei por ofendido perante a grosseria das suas perguntas? É por isso que o diz? Sim, mas por que há de ofender-se? Eu lhe respondi de acordo com as suas perguntas - acrescentou, com uma surpreendente expressão de bonacheirice. Ora veja: a mim, pessoalmente, nada me interessa, juro-o por Deus - continuou, como se meditasse. - Particularmente, agora, quase não me ocupo de nada... Aliás, o senhor está no seu direito de pensar que eu procuro lisonjeá-lo, tanto mais que comecei por dizer-lhe que tenho um assunto para tratar, a respeito da sua irmã... Mas confesso-lhe, francamente, sinto-me muito aborrecido. Sobretudo nestes três dias, e fiquei muito contente por tê-lo encontrado... Não se aborreça, Rodion Raskólhnikov, mas o senhor, não sei por que, parece-me terrivelmente estranho. Diga o que quiser, mas sucedeu-lhe qualquer coisa e, concretamente, agora, quer dizer, não propriamente neste momento, mas de maneira geral agora... Bem, bem; não continuarei, não continuarei, não franza o sobrolho. Olhe que eu não sou nenhum urso, como posso parecer. Raskólhnikov olhou para ele sombriamente.

- Pode ser que, realmente, o senhor não seja um urso - disse. - A mim até me parece que o senhor é uma pessoa de boa sociedade, ou que pelo menos saberia, em certas circunstâncias, portar-se como uma pessoa distinta.

- Não se esqueça de que a opinião dos outros não me interessa - respondeu Svidrigáilov secamente e até com um acento de altivez. - E por que não há de uma pessoa ser vulgar, quando estas maneiras são tão convenientes para o nosso país e... sobretudo, quando, por inclinação natural, uma pessoa tem já propensão para mostrá-las? - acrescentou, pondo-se outra vez a rir.

- Mas eu ouvira dizer que o senhor tinha aqui muitas amizades. O senhor não é o que se diz um homem sem relações. Por que é que, sendo assim, o senhor veio procurar-me, se não é com um objetivo?

- Nisso tem o senhor razão: eu tenho os meus amigos - concordou Svidrigáilov, deixando sem resposta o ponto mais importante. - Já os encontrei; ando há três dias passeando pelas ruas; reconheço os outros, e eles, pelo visto, também me reconhecem. Não há dúvida de que ando bem vestido e passo por pessoa endinheirada; repare: a reforma agrária respeitou-me, ainda me restam bosques e prados, que ainda me dão um certo rendimento, mas... não reatarei antigas relações; já dantes estava farto delas; já vou no terceiro dia e não me dei a conhecer a ninguém... Para isso é esta cidade boa! É capaz de dizer-me como é que ela se formou? Cidade de empregados e de seminaristas de todo o gênero! Para dizer a verdade, eu não reparei muito bem quando estive aqui, haverá uns oito anos... Mas agora todas as minhas esperanças se resumem na anatomia, felizmente.

- Em qual anatomia?

- Refiro-me a esses clubes, a esses restaurantes e, além disso, ao progresso... Bem; isso será quando já tivermos morrido - continuou, outra vez sem dar importância à pergunta. - Mas, no fim de tudo, é um gosto fazer trapaça no jogo!

- Mas o senhor também é trapaceiro?

- Ai, não! Formávamos todos um grupo notável, haverá uns oito anos; passávamos o tempo, e repare, éramos todos pessoas finas: poetas, capitalistas. De maneira geral, entre nós, os russos, os modos mais finos têm-nos aqueles que levaram pancada... Já reparou nisso? Olhe, eu me aproximei agora um pouco do povo. Mas, nesse tempo, um certo grego de Nietchin quis meter-me na prisão por caloteiro; foi então que Marfa Pietrovna apareceu, a qual teve de entrar em contato com o meu credor e me resgatou da minha dívida por trinta mil rublos de prata (eu devia sessenta mil ao todo). Uni-me a ela por legítimo matrimônio e ela levou-me imediatamente consigo para a aldeia, como se eu fosse algum tesouro. Era mais velha do que eu cinco anos. Gostava muito de mim. Durante sete anos não saí da aldeia. E repare que ela toda a vida guardou o documento contra mim, noutro nome, no valor de trinta mil rublos, para o caso de que eu me lembrasse alguma vez de sacudir o jugo e poder logo deitar-me a mão. E tê-lo-ia feito! Nas mulheres estas coisas dão-se todas ao mesmo tempo. - Mas se não fosse esse documento o senhor ter-se-ia escapado?

- Não sei como lhe responder. Aquele documento não me preocupava grandemente. Eu não tinha vontade de ir para nenhum lugar, e isso apesar de Marfa Pietrovna, vendo que eu me aborrecia, me ter oferecido por duas vezes uma viagem ao estrangeiro. Mas quê! Eu já estivera no estrangeiro e sempre me aborreci lá muito belamente. Não que me aborrecesse verdadeiramente, mas depois de uma pessoa já ter visto o nascer do sol, o golfo napolitano, o mar, apodera-se de nós uma certa tristeza. E o mais desagradável é que, de fato, por que há de uma pessoa entristecer? Não, na nossa terra está-se melhor; aqui, ao menos, deita-se aos outros a culpa de tudo e uma pessoa sente-se justificada. Eu, agora, de boa vontade iria ao Pólo Norte, porque n’ai le vin mauvais (2), a aguardente não me agrada e, excluída a bebida, já nada mais me resta. E a propósito: dizem que Bug subirá no domingo num globo enorme, no jardim de Iusúpovski, e que admitirá passageiros por uma determinada quantia. Será verdade?

- O quê? O senhor estaria disposto a subir?

- Eu? Não... sim... - murmurou Svidrigáilov, como se de fato estivesse afundado em meditações.

"Mas qual será, no fundo, a sua idéia?", pensou Raskólhnikov.

- Não, esse documento, a mim, não me preocupava - continuou Svidrigáilov, pensativo. - É que eu não queria deixar a aldeia. Além disso, haverá coisa de um ano, Marfa Pietrovna, por ocasião do meu aniversário, entregou-me o documento com o dobro da quantia nele declarada. Porque fique sabendo o senhor que ela possuía cabedais. "É para que vejas a confiança que tenho em ti, Arkádi Ivânovitch", disse-me ela tal qual. Não acredita que ela tivesse dito isso? Pois olhe que eu era um honrado proprietário na aldeia; conheciam-me nos arredores. Também encomendava alguns livros. A princípio, Marfa Pietrovna não se importava; mas depois chegou a ter medo que eu me enfronhasse demasiado no estudo.

- Mas, segundo parece, a perda de Marfa Pietrovna deixou-o muito aborrecido.

- A mim? Talvez. Pode ser que, de fato, assim fosse. E a propósito: o senhor acredita em aparições?

- Em que aparições?

- Nas aparições! Em quais havia de ser? - E o senhor, acredita nelas?

 

* (2) Não me dou bem com vinho. (N. do T.) *

 

- Talvez não acredite, pour vous plaire... (3) Isto é, não digo que não. - Já teve alguma?

Svidrigáilov ficou olhando-o de uma maneira estranha.

- Marfa Pietrovna digna-se visitar-me - declarou, franzindo a boca num sorriso estranho.

- Digna-se visitá-lo?

- Sim; já me apareceu três vezes. A primeira foi no próprio dia do seu enterro, uma hora depois de eu ter voltado do cemitério. Foi na véspera da minha vinda para aqui. A segunda vez foi há três dias, no caminho, ao amanhecer, na pousada da Málaia Víchiera, e a terceira foi há coisa de duas horas, no quarto onde tenho ficado; estava sozinho.

- Acordado?

- Completamente. Estava acordado, dessas três vezes. Chega, fala-me um momento e sai pela porta, sempre pela porta. Até parece que a sinto. - Eu sempre tinha razão em supor que deviam acontecer-lhe coisas desse gênero! - exclamou Raskólhnikov de repente, e no mesmo momento ficou espantado por tê-lo dito. Estava muito comovido.

- O quê, o senhor supunha isso? - perguntou Svidrigáilov espantado. - Deveras? Eu não lhe disse já que nós tínhamos qualquer coisa de comum? - O senhor não disse nada disso! - respondeu Raskólhnikov com brusquidão e veemência.

- Não disse? - Não.

- Pois, a mim, parecia-me tê-lo dito. Há pouco, quando entrei e o vi estendido com os olhos fechados e fingindo que dormia... disse logo para comigo: "É ele mesmo!"

- Que é isso de "é ele mesmo"? A que se referia o senhor? - exclamou Raskólhnikov.

- A quê? De fato, não sei... - respondeu Svidrigáilov com franqueza e como se tivesse ficado confuso.

Ficaram em silêncio durante um minuto. Olhavam um para o outro com os olhos muito abertos.

- Tudo isso é um absurdo! - exclamou Raskólhnikov mal-humorado. - E que lhe diz ela quando aparece?

- Ela? Pois imagine: diz as coisas mais vulgares, e veja como as coisas são: isso, a mim, põe-me de mau humor. Da primeira vez (quer saber? eu estava cansado: as cerimônias religiosas, a missa de réquiem, o enterro, o almoço fúnebre... até que, finalmente, me deixaram só no meu gabinete, acendi um cigarro e pus-me a pensar) entrou pela porta: "Olhe", disse ela, "Arkádi Ivânovitch, hoje, com tanto que fazer, esqueceu-se de dar corda ao relógio da casa de jantar".

 

* (3) Para lhe agradar. (N. do T.) *

 

De fato, durante sete anos fui eu quem teve o encargo de dar corda a esse relógio, e quando me esquecia ela lembrava-me sempre. No dia seguinte ponho-me a caminho para aqui. Ao clarear do dia, entro na pousada (eu estava cansado da noite, moído; os olhos fechavam-se-me), tomo um pouco de café, olho... e vejo Marfa Pietrovna sentada junto de mim, com um baralho de cartas na mão. "Não queres que deite as cartas por causa da viagem, Arkádi Ivânovitch?" Ela era mestra nisso de deitar as cartas. Bom, nunca perdoarei a mim próprio não lhe ter dito que sim. Pus-me a correr, assustado, e, além disso, era verdade que a campainha já se ouvia, a dar o sinal da partida. Hoje, estava eu sentado, descansando, depois dum péssimo almoço numa casa de pasto, com o estômago pesado... estou sentado, fumando... e, de repente, outra vez me aparece Marfa Pietrovna, toda arrebicada, com um vestido novo de seda verde e uma cauda compridíssima: "Bom dia, Arkádi Ivânovitch. Que tal achas, para teu gosto, o meu vestido? Aniska não sabia fazê-lo assim". (Aniska era a sua modista lá na aldeia; vinha dos antigos servos e aprendera o ofício em Moscou; era uma moça bastante jeitosa). Pára, dá uma volta diante de mim. Eu examino o vestido, depois olho-a atentamente, na cara. "Mas que vontade a tua", disse eu, "Marfa Pietrovna, de me vires incomodar com essas ninharias!" "Ah, meu Deus, bátiuchka, nem sequer se pode fazer-te uma pergunta!" Então eu lhe disse para arreliá-la: "Marfa Pietrovna, eu quero casar-me". "Fique sabendo, Arkádi Ivânovitch, que não lhe fica muito bem que, com a mulher enterrada ainda há tão pouco tempo, torne já a casar-se. E, ainda que escolhesse acertadamente, nem a ela nem ao senhor isso ficaria bem: o senhor havia de ser sempre o bobo de toda a gente." Disse isso e desapareceu, e a mim pareceu-me sentir o rumor da sua saia. Que absurdo, não é verdade?

- Mas não podia dar-se o caso de que tudo isso fosse mentira? - insinuou Raskólhnikov.

- Raramente minto... - respondeu Svidrigáilov, pensativo, e como se não tivesse, de maneira nenhuma, reparado na grosseria da pergunta. - E, antes de agora, nunca teve aparições?

- Também... Não, só uma vez na minha vida, haverá uns seis anos. Foi com Filhka, um servo nosso; mal ele acabara de ser enterrado, gritei, num momento de distração: "Filhka, o cachimbo!"; ele entrou e foi direito ao armário onde eu guardava os cachimbos. Eu continuei sentado e disse para comigo: "Isto é uma vingança", porque um pouco antes da sua morte tivéramos uma briga séria. "Como é que te atreves", disse-lhe eu, "a apresentar-te diante de mim com os cotovelos rotos? Fora daqui!" Deu meia-volta, saiu e não voltou mais. Eu não disse nada a Marfa Pietrovna. Ainda tive a intenção de mandar dizer uma missa por alma dele, mas mudei de idéia. - Devia consultar um médico.

- Ainda que o senhor não me dissesse, eu compreendo muito bem que isto é doentio, embora, para dizer a verdade, não sei por que, em minha opinião eu tenha mais saúde do que muita gente. Como o senhor. Eu não lhe perguntei se acreditava ou não que os espíritos apareçam, mas sim se acredita ou não nos espíritos.

- Não, nem por sombras! - exclamou Raskólhnikov, até com certa cólera. - Que costumam dizer, de maneira geral? - murmurou Svidrigáilov, como para si mesmo, olhando de soslaio e baixando um pouco a cabeça. - As pessoas dizem: "Não há dúvida que tu estás doente; isso que tu imaginas ver é um desvario fantástico". Mas, reparando bem, isso não é rigorosamente lógico. Concordo que os fantasmas só apareçam aos doentes; mas isso só demonstra que os fantasmas não podem aparecer senão aos doentes, mas não que não existam.

- Com certeza que não existem! - insistiu Raskólhnikov excitado. - Não? Acha que não? - continuou Svidrigáilov, examinando-o lentamente. - Bem, e se raciocinássemos desta maneira (Vamos, ajude-me o senhor!): "As aparições são, por assim dizer, pedaços ou fragmentos de outros mundos, o seu princípio. É claro que o homem são não tem motivo para vê-las, porque o homem são é o homem mais terreno, e deve viver uma vida terrestre, atendendo à harmonia e à ordem. Mas quando adoece, ou quando a ordem terrena se altera no organismo, começa imediatamente a mostrar-se a possibilidade de outro mundo, e, quanto mais doente, tanto mais em contato se encontra com esse outro mundo, de maneira que, quando morre completamente, o homem vai direto para esse mundo". Já há muito tempo que medito nisso. Se o senhor acredita na outra vida, pode acreditar também nesse raciocínio.

- Eu não creio na outra vida - disse Raskólhnikov. Svidrigáilov parecia pensativo.

- E se nela não existissem senão aranhas ou outra coisa do gênero, nada mais? - disse de repente.

"Está doido!", pensou Raskólhnikov.

- Para mim a eternidade é uma idéia impossível de compreender, algo de enorme, imenso. Mas por que há de ser precisamente enorme? E, de repente, em vez disso, imagine o senhor que existe aí um quarto, no gênero duma sala de banho em pleno campo, negra de fumo e com aranhas por todos os lados, e que a isso se resumisse a eternidade. Olhe, eu imagino-a muitas vezes assim.

- Mas diga-me, diga-me: não pode imaginar nada de mais consolador e justo? - exclamou Raskólhnikov com um sentimento doentio.

- Mais justo? Quem sabe, talvez, se não será isto o justo? Olhe, eu tê-lo-ia feito assim, infalivelmente, com toda a intenção - respondeu Svidrigáilov com um vago sorriso.

Um certo frio se apoderou de repente de Raskólhnikov, perante aquela resposta monstruosa. Svidrigáilov ergueu a cabeça, ficou olhando para ele de alto a baixo e, de repente, soltou uma gargalhada.

- Não, o que o senhor pensa é isto - exclamou -; ainda há meia hora não nos tínhamos visto um ao outro, tínhamo-nos por inimigos, entre nós estava um assunto por resolver, e pusemo-lo de lado e metemo-nos a falar de literatura... Bem, não tinha eu razão quando lhe disse que éramos frutos da mesma terra?

- Faça-me o favor - continuou Raskólhnikov irritado. - Permita-me que lhe peça que me explique o mais depressa possível e comunique a que devo a honra da sua visita... e... suponha que estou com pressa, que não disponho de tempo, que tenho de sair...

- Muito bem, muito bem. Sua irmã, Avdótia Românovna, vai-se casar com o senhor Lújin, com Piotr Pietróvitch?

- Não poderia evitar perguntas a respeito da minha irmã e não pronunciar o seu nome? Eu próprio não compreendo como é que se atreve a mencioná-lo diante de mim, se é, na verdade, o senhor Svidrigáilov!

- Mas se eu vim precisamente para lhe falar dela, como é que não hei de pronunciar o seu nome?

- Bem, fale, mas seja breve.

- Tenho a certeza de que já formou a sua opinião acerca desse senhor Lújin, meu parente por parte de minha mulher, contanto que o tenha visto pelo menos meia hora ou tenha referências seguras e exatas acerca da sua pessoa. Avdótia Românovna não faz um par conveniente com ele. A meu ver, Avdótia Românovna, neste assunto, sacrifica-se muito generosa e desinteressadamente por... pela família. A mim pareceu-me, depois de tudo o que me disseram a seu respeito, que o senhor, por seu lado, se consideraria muito feliz se realmente se conseguisse desmanchar esse casamento sem prejuízo das conveniências. Agora que já o conheço pessoalmente, estou certo disso.

- Tudo isso é muito ingênuo da sua parte; desculpe: quero dizer insolente - disse Raskólhnikov.

- Isso significa que eu tenho cuidado com a minha bolsa. Não se preocupe. Rodion Românovitch: embora eu zelasse pelos meus interesses, não ia deixá-lo transparecer assim, do pé para a mão, pois de tolo não tenho nada. Quero expor-lhe uma singularidade psicológica, a este respeito. Há pouco, justificando o meu amor por Avdótia Românovna, disse que eu próprio era uma vítima. Bem; pois fique sabendo que agora não sinto nada de amor, a tal ponto que até a mim mesmo me parece estranho, visto que, de fato, chegara a sentir algum...

- Isso é devido à libertinagem e à corrupção - atalhou Raskólhnikov. - De fato, sou um pervertido e um libertino. Mas, no fim de contas, a sua irmã reúne tantas boas qualidades, que não pôde deixar de impressionar-me. Mas tudo isso é um disparate, como eu próprio vejo agora.

- Já há muito tempo que verificou isso?

- Já o notara antes, mas fiquei definitivamente convencido antes de ontem, quase no próprio momento da minha chegada a Petersburgo... Aliás, ainda em Moscou, imaginava que iria alcançar a mão de Avdótia Românovna e rivalizar com o senhor Lújin.

- Desculpe interrompê-lo, mas faça-me o favor: não poderia abreviar e ir direto ao fim da sua visita? Estou com pressa, tenho de sair.

- Com o maior prazer. Uma vez aqui, e como resolvi empreender uma certa... viagem, quis tomar as disposições prévias indispensáveis. Deixei os meus filhos com a tia: são ricos e não precisam de mim. Além disso, eu sou um bom pai! Fiquei apenas com o que me deixou há um ano Marfa Pietrovna. É o suficiente para mim. Desculpe, que eu vou já entrar no assunto. Antes da viagem, que é possível que não se realize, quero eu resolver o caso do senhor Lújin. Não é que eu não tenha muita coragem para suportá-lo, mas é que foi por culpa dele que eu tive aquele desgosto com Marfa Pietrovna, quando soube que fora ela quem urdira esse casamento. O que eu queria, agora, era obter um encontro com Avdótia Romãnovna, por seu intermédio, e se assim o entendesse, na sua presença, para explicar-lhe que do senhor Lújin não pode esperar nem a mais pequena utilidade, e que, pelo contrário, com certeza lhe hão de vir amargos dissabores. Isso, em primeiro lugar; depois queria pedir-lhe perdão de todas essas recentes contrariedades, e, finalmente, pedir-lhe o seu consentimento para oferecer-lhe dez mil rublos e suavizar dessa maneira a ruptura com o senhor Lújin, ruptura que ela própria, tenho a certeza, provocaria com gosto, se fosse possível.

- Mas o senhor não estará verdadeiramente, verdadeiramente louco? - exclamou Raskólhnikov, mais indignado do que surpreendido. - Como é que o senhor tem o descaramento de falar dessa maneira?

- Eu já sabia que o senhor havia de ficar espantado com isto; mas, em primeiro lugar, embora eu não seja rico, disponho com toda a liberdade desses dez mil rublos, isto é, não me fazem falta absolutamente nenhuma. Se Avdótia Românovna não os aceitar, talvez eu os gaste mais tolamente. Isto em primeiro lugar. Em segundo, tenho a minha consciência completamente tranqüila; ofereço-lhos sem nenhum interesse particular, quer acredite ou não; mas depois hão de saber que de fato assim era, tanto o senhor como Avdótia Românovna. Tudo se resume a que me sucedeu provocar-lhe um certo desgosto, algum dissabor à sua respeitabilíssima irmã; talvez movido de sincero arrependimento, desejo cordialmente... não compensar, não pagar-lhe esses dissabores, mas simplesmente fazer algo de proveitoso a seu favor, fundamentando-me em que, no fundo, não tenho o privilégio de praticar somente o mal. Ainda que no meu oferecimento houvesse um milionésimo de interesse, não iria agora oferecer-lhe dez mil, quando haverá ainda apenas umas cinco semanas lhe ofereci mais. Além de que é muito possível que, em breve, muito em breve, eu me case com uma moça, e assim toda a suspeita de que eu tento seduzir Avdótia Românovna fica destruída. Para acabar, dir-lhe-ei que, quando se casar com o senhor Lújin, Avdótia Românovna receberá essa mesma quantia, simplesmente por outra via... Mas não se aborreça, Rodion Românovitch; pense com serenidade e sangue-frio.

Quando disse isso, o senhor Svidrigáilov estava muitíssimo tranqüilo e indiferente.

- Peço-lhe que acabe - disse Raskólhnikov. - Em todo caso, isto é de uma insolência imperdoável.

- Nada disso. Dar-se-á o caso de que o homem só poderá fazer mal ao próximo, neste mundo, e nem uma mostra de bem, por causa de umas tantas inúteis formalidades convencionais? Isso é absurdo. Repare bem: se eu, por exemplo, morresse deixando à sua irmã essa quantia no meu testamento, negar-se-ia ela, então, a aceitá-la?

- Podia muito bem ser que isso acontecesse.

- Não acredito. Mas ainda que assim fosse! Simplesmente... dez mil rublos... não são para desprezar. Em todo caso, peço-lhe que transmita o que acabo de dizer-lhe a Avdótia Românovna.

- Não faço tenção disso.

- Então, Rodion Românovitch, ver-me-ei obrigado a ter uma entrevista pessoal com ela, e provavelmente a incomodá-la.

- E se eu me prestasse a comunicar-lhe as suas palavras, o senhor desistiria dessa entrevista pessoal?

- Verdadeiramente, não sei o que dizer-lhe. Desejava muito vê-la ao menos uma vez.

- Não conte com isso.

- Isso custa-me. Além do mais, o senhor não me conhece. Olhe, olhe: talvez possamos conhecer-nos mais a fundo.

- O senhor pensa que havemos de chegar a conhecer-nos mais a fundo? - E por que não? - e o senhor Svidrigáilov sorriu, levantando-se e pegando o chapéu. - Repare: eu não quis incomodá-lo e, quando vim aqui, não tinha muitas ilusões, embora, no fim de contas, a sua cara me tenha impressionado, esta manhã...

- Onde é que o senhor me viu esta manhã? - perguntou Raskólhnikov inquieto.

- Por acaso... Tenho a impressão de que o senhor tem qualquer coisa de parecido comigo... Além disso, não se preocupe, eu não sou nada incomodativo: tenho convivido com patifes, e para o príncipe Svirbiéi, meu parente afastado, um grande senhor, eu não era aborrecido, e escrevi uns versinhos dedicados à madona de Rafael no álbum da senhora Prilúkova, e vivi sete anos com Marfa Pietrovna sem tentar escapar-me, e dormi em tempos na casa Viásiemski junto do Mercado do Feno, e é possível que suba no balão de Bug.

- Bem, dê-me licença que lhe faça uma pergunta: pensa pôr-se já a caminho?

- A caminho de quê?

- Referia-me a essa viagem... Foi o senhor quem falou nisso.

- Viagem? Ah, sim... De fato falei-lhe numa viagem... Mas isso é uma questão muito importante... Se o senhor soubesse a pergunta que me fez! - acrescentou, e, de repente, desatou num riso ruidoso e breve. - Podia ser que, em vez de viajar, me casasse; apareceu-me uma noiva.

- Aqui? - Sim.

- Mas já teve tempo para isso?

- No entanto desejo ardentemente ver Avdótia Românovna. Suplico-lhe com toda a seriedade. Bem, até a vista! Ah, sim! Já me esquecia! Rodion Românovitch, diga a sua irmã que Marfa Pietrovna lhe deixou no seu testamento um legado de três mil rublos. Isso é absolutamente exato. Marfa Pietrovna fez testamento uma semana antes da sua morte e na minha presença. Daqui a duas ou três semanas, Avdótia Românovna pode receber essa quantia. - O senhor está falando sério?

- A sério. Diga-lhe. Pronto, às suas ordens. Olhe, eu não estou longe daqui.

Quando saiu, Svidrigáilov encontrou Razumíkhin à porta.

 

São já cerca de oito horas; encaminham-se os dois depressa para a pensão Bakaliéiev, com o fim de chegarem lá antes de Lújin.

- Bem, mas quem era esse tipo? - perguntou Razumíkhin, assim que se viu na rua.

- Era Svidrigáilov, esse tal burguês, em cuja casa ofenderam daquela maneira que te disse a minha irmã, quando ela fazia lá serviço como preceptora. Por causa dos assédios amorosos dele é que ela teve de sair da casa, expulsa pela mulher, Marfa Pietrovna. A tal Marfa Pietrovna pediu depois perdão a Dúnia, e agora sucedeu que ela morreu de repente. Já tinham dito isso quando se referiram a ela. Não sei por que, mas inspira-me muito receio esse homem. Veio cá, imediatamente depois do enterro da mulher. É um homem muito estranho e com certeza que traz qualquer intento... Parece que sabe qualquer coisa... É preciso defender Dúnia dele... Olha, queria dizer-te isto a ti, ouves?

- Defender! Mas que pode ele fazer contra Avdótia Românovna? Bem, Rodka, agradeço-te que me fales dessa maneira... Defendê-la-emos, defendê-la-emos! Onde mora ele?

- Não sei.

Por que não lhe perguntaste? Oh, que pena! Bom, não faz mal, informar-me-ei!

- Tu o viste? - perguntou Raskólhnikov depois de um breve silêncio. - Claro que sim; reparei nele; reparei bem.

- Viste-o bem? Viste-o perfeitamente? - insistiu Raskólhnikov.

- Claro que sim, lembro-me muito bem dele; reconhecê-lo-ia entre mil, eu sou bom fisionomista.

Ficaram outra vez calados.

- Hum! É que... - balbuciou Raskólhnikov. - Sabes uma coisa? É que me lembrei... parece-me... que tudo isso podia ser apenas uma fantasia. - Que dizes? Não te compreendo bem.

- Olha, vocês todos - continuou Raskólhnikov franzindo os lábios num sorriso - andam dizendo que eu estou louco; pois a mim também me parece agora que pode ser que eu estivesse louco e só tivesse visto um fantasma. - Mas que estás tu dizendo?

- Sim, quem sabe! Podia ser que eu estivesse declaradamente louco e que tudo quanto aconteceu nestes dias fosse unicamente obra da imaginação... - Ah, Rodka! Já te transtornaram outra vez! O que te disse ele e que queria?

Raskólhnikov não respondeu; Razumíkhin ficou um momento pensativo. - Bem, ouve o que te vou contar - começou. - Estive em tua casa: dormias. Depois almoçamos e a seguir fui ver Porfíri. Zamiótov está sempre em casa dele. Eu queria começar, mas não me ocorria nada. Nunca posso falar de uma maneira positiva. Eles, é como se não me compreendessem, e não podem compreender, mas não se atrapalham de maneira nenhuma. Levei Porfíri até junto da janela e comecei a falar-lhe, mas não atinava com as palavras apropriadas; ele olhava para um lado e eu para outro. Até que finalmente lhe assentei um punho no queixo e disse-lhe que havia de lho partir, como parente. Ele ficou olhando para mim e nada. Eu dei uma cuspidela e me vim embora, e não se passou mais nada. Uma estupidez completa. E não dei uma palavra a Zamiótov. Mas olha, pensava eu que deitara tudo a perder, quando, já na escada, me ocorreu uma idéia, que foi um autêntico bálsamo: por que é que tu e eu havemos de andar metidos nestes trabalhos? Se tu corresses algum perigo ou se intrometesse qualquer coisa do gênero, então sim, com certeza. Mas a ti, que te importa tudo isto? O que tu tens a fazer neste assunto é dá-los a todos ao desprezo: e depois divertirmo-nos ambos à sua custa; eu, no teu lugar, gozaria troçando deles. Havia de envergonhá-los! Ao desprezo, que depois já podemos chegar-lhes com força, e, por agora, o melhor é rirmos.

- Pois claro! - respondeu Raskólhnikov. "Que dirás tu quando souberes?", disse para consigo. Coisa estranha: até ali, nem uma só vez sequer esta idéia lhe passou pela cabeça. "Que dirá Razumíkhin quando souber?" Depois de ter pensado isso ficou olhando para ele de alto a baixo. A descrição que Razumíkhin acabava de fazer da sua visita a Porfíri interessava-o muito pouco; tinham-se passado tantas coisas e continuavam a passar-se ainda agora!

No corredor encontrou-se cara a cara com Lújin; este apareceu às oito em ponto e pôs-se à procura do número, de maneira que entraram os três ao mesmo tempo, mas sem olharem uns para os outros e sem se cumprimentarem. Os rapazes passaram à frente, e Piotr Pietróvitch, para se distinguir deles, entreteve-se um pouco no vestíbulo, tirando o paletó. Pulkhiéria Alieksándrovna veio imediatamente ao seu encontro. Dúnia trocava saudações com o irmão.

Piotr Pietróvitch entrou e inclinou-se perante as senhoras com muita amabilidade, se bem que ainda com maior gravidade. Aliás, parecia um tanto confuso e como se não tivesse ainda serenado completamente. Pulkhiéria Alieksándrovna, um pouco aturdida também, apressou-se a fazê-los sentar a todos em volta do velador em que fervia o samovar. Dúnia e Lújin acomodaram-se um em frente do outro, nas extremidades da mesa. Razumíkhin e Raskólhnikov ficaram em frente de Pulkhiéria Alieksándrovna. Razumíkhin junto de Lújin, e Raskólhnikov junto da irmã.

Houve um silêncio momentâneo. Sem se apressar, Piotr Pietróvitch puxou do seu lencinho de batista, que exalou uma onda de perfume, e assoou-se com o ar dum homem bonacheirão, se bem que ofendido na sua dignidade e que está firmemente resolvido a pedir explicações. Tinha-lhe ocorrido uma idéia no vestíbulo: não tirar o paletó e ir-se embora, castigando assim severamente as duas mulheres, e dar-lhes tudo a entender de uma vez. Mas não foi capaz de se decidir. Além disso era homem que não gostava de mistérios e precisava de uma explicação: se não atendiam às suas ordens de uma maneira tão ostensiva, era porque havia qualquer coisa de permeio; por isso era preferível tirar as dúvidas o mais depressa possível; havia muito tempo para dar-lhes o castigo e tinha-o na sua mão.

- Espero que tenham feito uma boa viagem - disse, dirigindo-se oficialmente a Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Graças a Deus, Piotr Pietróvitch.

- Ainda bem. E Avdótia Românovna, não estará cansada?

- Sou nova e forte, não me canso. A mamãe é que se ressentiu com a viagem - respondeu Dúnietchka.

- Que havemos de fazer! Os nossos caminhos de ferro nacionais são tão longos... É grande a nossa "mãezinha Rússia"... como diz o povo. Eu, apesar de todo o meu desejo, não tive tempo para vir visitá-las ontem. Espero, entretanto, que não tenham tido nenhuma dificuldade maior!

- Ai, não, Piotr Pietróvitch! Vimo-nos muito aflitas, muito aflitas - apressou-se a confessar Pulkhiéria Alieksándrovna com uma entonação especial -, e, se não fosse Deus ter-nos enviado ontem Dmítri Prokófitch, não teríamos sequer sabido como resolver o caso. Aqui tem o senhor Dmítri Prokófitch Razumíkhin - acrescentou, apresentando-o a Lújin.

- Já tive o prazer... ontem - murmurou Lújin olhando de revés para Razumíkhin; depois do que franziu o sobrolho e calou-se. De maneira geral, Piotr Pietróvitch pertencia a essa classe de indivíduos que se mostram extraordinariamente amáveis em sociedade e têm grandes pretensões de sê-lo, mas que, quando uma coisa não lhes interessa, perdem imediatamente todos os seus recursos e ficam mais parecidos com sacos de farinha do que com cavalheiros desenvoltos que amenizam uma reunião. Tornaram todos a ficar calados: Raskólhnikov conservava um silêncio obstinado; Avdótia Românovna não se decidia a rompê-lo extemporaneamente; Razumíkhin não tinha nada para dizer e tudo isso voltou a inquietar Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Marfa Pietrovna morreu, já sabia? - começou acudindo ao seu recurso principal.

- Sim, já sabia. Soube-o pelos primeiros boatos, e, além disso, queria agora informá-los a todos de que Arkádi Ivânovitch Svidrigáilov se pôs a toda a pressa a caminho de Petersburgo imediatamente depois do enterro da mulher. Pelo menos é o que se conclui de notícias exatíssimas que recebi.

- De Petersburgo? Vem para cá? - perguntou Dúnietchka inquieta, e trocou um olhar com a mãe.

- Parece que sim, e, naturalmente, escusado será dizer que cheio de razões, dadas a precipitação da viagem e, de maneira geral, as circunstâncias precedentes.

- Meu Deus! É capaz de não deixar Dúnietchka em paz! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna.

- Parece-me que nem a senhora nem Avdótia Românovna têm motivo para ficar muito assustadas, uma vez que não tencionem travar com ele nenhuma espécie de relação. Pelo que me respeita, ando-lhe na pista e a ver se consigo indagar onde é que ele está hospedado...

- Ah, Piotr Pietróvitch, não é capaz de calcular até que ponto me deixou assustada! - continuou Pulkhiéria Alieksándrovna. - Eu, a esse homem, só o vi umas duas vezes, e pareceu-me horrível, horrível! Estou convencida de que é ele o culpado da morte de Marfa Pietrovna.

- A respeito desse assunto, não se pode chegar a nenhuma conclusão. Tenho informações exatas. Não discuto se ele não teria podido contribuir para acelerar o curso dos acontecimentos, por assim dizer, com a influência moral da ofensa; mas, pelo que respeita à sua conduta, e, de maneira geral, às características morais da criatura, sou, em tudo, da sua opinião... Não sei se, atualmente, ele será rico, nem sei ao certo o que lhe teria deixado Marfa Pietrovna; disto informaram-me muito à pressa; mas uma vez aqui, em Petersburgo, não há dúvida de que, se dispuser de dinheiro, tornará imediatamente a fazer das suas. É o homem mais pervertido e vicioso de todos os indivíduos dessa laia. Tenho grandes fundamentos para supor que Marfa Pietrovna, que teve a infelicidade de apaixonar-se por ele e de pagar-lhe as suas dívidas, há sete anos, lhe prestou ainda outro grande serviço noutro ponto: graças unicamente aos seus esforços e sacrifícios ficou interrompido logo no início um processo criminal de caráter bestial e, por assim dizer, de uma crueldade fantástica, que poderia muito bem, mesmo muito bem, levá-lo direitinho à Sibéria. Se queriam conhecê-lo, aí têm quem é esse homem.

- Ah, meu Deus! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna. Raskólhnikov escutava atento.

- É verdade que tem informações exatas acerca disso? - perguntou Dúnia, séria e com ênfase.

- Eu só digo aquilo que me contou em segredo a falecida Marfa Pietrovna. É preciso reparar que, no ponto de vista jurídico, esse assunto é muito obscuro. Vivia aqui e continua ainda vivendo, segundo parece, uma tal Resslitch, estrangeira e, além disso, usurária em pequena escala, que também tratava de outros assuntos. O senhor Svidrigáilov andava há algum tempo metido em relações muito íntimas e secretas com essa tal Resslitch. Morava com ela uma parenta afastada, uma sobrinha, segundo parece, surda-muda; uma mocinha dos seus quinze anos, e talvez não tivesse mais de catorze, à qual a tal Resslitch tinha um ódio infinito, lançando-lhe em rosto até a mais pequena côdea de pão que ela comia; era desumana. Um dia encontraram-na enforcada na água-furtada. Julgaram que se tratava de um suicídio. Depois das diligências próprias do caso, deu-se o assunto por terminado; mas, no entanto, depois, recebeu-se uma denúncia, segundo a qual a mocinha fora objeto de... de um insulto cruel por parte de Svidrigáilov. De fato, tudo isso era um tanto turvo; a denúncia vinha de outra alemã, uma mulher de má fama, que não merecia a mínima consideração; finalmente, na realidade, também não houve denúncia; graças aos cuidados e ao dinheiro de Marfa Pietrovna, ficou tudo reduzido a um boato. Mas, no entanto, o tal boato era bastante significativo. A senhora, Avdótia Românovna, com certeza que ouviu falar em casa deles dessa história a respeito do tio Filip, que morreu em conseqüência de maus-tratos haverá seis anos, ainda no tempo da escravatura.

- Pelo contrário, ouvi dizer que o tal Filip se enforcou.

- De fato, assim foi, simplesmente foi obrigado ou, para melhor dizer, foi compelido a matar-se por causa do constante sistema de perseguição e vexames posto em prática pelo senhor Svidrigáilov.

- Não sabia disso - respondeu Dúnia secamente. - Só tinha ouvido contar uma estranha história a respeito do tal Filip, que ele era um hipocondríaco, uma espécie de filosofastro, do qual as pessoas diziam que tinha lido demasiado e que se enforcara mais por causa das troças do que das pancadas do senhor Svidrigáilov. Mas este, durante todo o tempo em que eu estive em casa dele, tratava toda a gente muito bem, e todos lhe tinham até amizade, embora, de fato, o culpassem da morte de Filip.

- Vejo que a senhora, Avdótia Românovna, se sente desde já inclinada a justificá-lo - observou Lújin franzindo a boca num sorriso ambíguo. - De fato, para as senhoras ele é um homem esperto e sedutor, e disso poderia dar um lamentável testemunho Marfa Pietrovna, que acaba de morrer de uma maneira tão estranha. Eu só queria fazer-lhes um favor, à senhora e a sua mãe, com o meu conselho, por causa das suas novas e sem dúvida eminentes proezas. Pelo que me respeita, estou absolutamente convencido de que esse homem há de vir parar outra vez inevitavelmente à prisão, devido às suas tramóias. Marfa Pietrovna nunca teve a menor intenção de deixar-lhe qualquer coisa dos seus rendimentos, por causa dos filhos; e, supondo que lhe tenha deixado qualquer coisa, devia ter sido o mais dispensável, pouca coisa, algo de efêmero, que apenas chegará para um ano a um homem dos hábitos dele.

- Piotr Pietróvitch, peço-lhe - disse Dúnia - que deixe o tema do senhor Svidrigáilov. Faz-me pena.

- Há pouco, ele veio visitar-me - disse Raskólhnikov de repente, interrompendo o silêncio pela primeira vez.

Ouviram-se exclamações em todos os lados; todos se voltaram para ele. Até Piotr Pietróvitch deu sinais de comoção.

- Haverá hora e meia, quando eu estava dormindo, entrou no meu quarto, acordou-me e apresentou-se-me - prosseguiu Raskólhnikov. - Mostrava-se bastante despreocupado e alegre, e está muito certo de que havemos de ser amigos íntimos. Entre outras coisas, pede e procura ter um encontro contigo, Dúnia, e pediu-me que eu servisse de contato para essa entrevista. Deseja fazer-te uma proposta, que já me expôs a mim. Além disso comunicou-me terminantemente que Marfa Pietrovna, uma semana antes da sua morte, teve tempo de deixar-te a ti, Dúnia, no seu testamento, três mil rublos, quantia esta que poderás receber dentro de pouquíssimo tempo.

- Louvado seja Deus! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna, e persignou-se. - Reza por ela, Dúnia, reza!

- De fato, isso é verdade - deixou escapar Lújin.

- Bem, bem. E que mais? - disse Dúnietchka apressadamente.

- Depois disse-me que não é rico e que deixa todos os seus bens aos filhos, os quais se encontram atualmente com a tia. Depois disse que está instalado perto de mim, simplesmente, onde... não sei, não mo perguntem...

- Mas que é isso, que é isso que ele quer propor a Dúnietchka? - perguntou Pulkhiéria Alieksándrovna, assustada.

- Ele te disse? - Sim, disse-me. - Então que é?

- Depois te direi. - Raskólhnikov calou-se e aplicou-se a beber o seu chá.

Piotr Pietróvitch puxou do relógio e consultou-o.

- Não tenho outro remédio senão ir tratar de um assunto; por isso não me demoro - disse com certo ar ofendido, e levantou-se do seu lugar. - Deixe-se ficar, Piotr Pietróvitch - disse Dúnia. - Olhe, nós tencionávamos passar a tarde em sua companhia. Além disso, foi o senhor mesmo quem nos disse que desejava ter uma explicação com mámienhka acerca não sei de quê.

- De fato assim é, Avdótia Românovna - declarou Piotr Pietróvitch com ênfase, tornando a sentar-se, mas sem largar o chapéu da mão. - Efetivamente, eu queria ter uma explicação, tanto com a senhora como com a sua respeitabilíssima mãe, e acerca de pontos importantíssimos. Mas, visto que o seu irmão não pode ser mais explícito na minha presença a respeito das propostas do senhor Svidrigáilov, também eu não quero nem posso ser mais explícito... diante de outras pessoas, a respeito de certos assuntos importantíssimos. Além do que ninguém teve em conta esse meu pedido, tão importante e categórico...

Lújin fez um gesto de desconsolo e ficou num silêncio solene.

- O seu pedido, acerca de que o meu irmão não estivesse presente à nossa entrevista, não foi atendido unicamente devido à minha insistência - disse Dúnia. - O senhor, quando me escreveu, dizia-me que o meu irmão o ofendera; eu penso que é preciso aclarar imediatamente esse ponto e que os dois devem fazer as pazes. E, se de fato Rodka o ofendeu, então "tem a obrigação de pedir-lhe e pedir-lhe-á perdão".

Piotr Pietróvitch recuperou logo o seu ar digno.

- Avdótia Românovna, há ofensas que, por maior que seja a nossa boa vontade, não é possível esquecer. Há em tudo um limite que é perigoso transpor, porque, uma vez transposto, já não há processo de voltar-se atrás.

- Eu não estava falando-lhe precisamente disso, Piotr Pietróvitch - interrompeu-o Dúnia com certa impaciência. - O senhor há de compreender perfeitamente que todo o nosso futuro depende agora de se aclarar e de se arranjar tudo o mais depressa possível ou não. Eu desde já lhe digo francamente: não posso ver as coisas de outra maneira, e se o senhor me estima por pouco que seja, ainda que lhe custe, toda essa história deve ter seu fim hoje. Repito-lhe que, se o meu irmão é culpado, lhe pedirá perdão.

- Admira-me que ponha a questão nesses termos, Avdótia Românovna - Lújin estava cada vez mais excitado. - Estimando-a e, por assim dizer, adorando-a, eu posso muito bem, ao mesmo tempo, não sentir o menor apreço por nenhum dos seus parentes. Aspirando à felicidade da sua mão, eu posso, ao mesmo tempo, não suportar obrigações incompatíveis...

- Ah, deixe-se de todos esses melindres, Piotr Pietróvitch! - disse-lhe Dúnia sinceramente - e seja o homem inteligente e digno por quem sempre o tive e quero continuar a ter. Eu lhe fiz uma grande promessa: sou sua noiva; tenha confiança em mim neste assunto e creia que hei de esforçar-me por julgar imparcialmente. Que eu tivesse de assumir o papel de árbitro, foi uma surpresa, tanto para o meu irmão como para o senhor. Quando eu hoje o convidei, depois da sua carta, para que assistisse sem falta ao nosso encontro, não lhe disse nada das minhas intenções. Veja se compreende que, se não se reconciliarem, então ver-me-ei obrigada a escolher entre os dois: ou o senhor ou ele. Foi assim que foi posta a questão pela sua parte e pela dele. Eu não quero nem devo enganar-me na escolha. Por sua causa tenho de cortar relações com o meu irmão; por causa do meu irmão tenho de romper com o senhor. Eu quero e posso saber agora a que ater-me: ele é ou não meu irmão? Quanto ao senhor, gosta de mim, aprecia-me, é meu marido?

- Avdótia Românovna - proferiu Lújin em tom de ressentimento -, as suas palavras são para mim muito dignas de meditação; e digo mais: são até ofensivas, dada a posição que tenho a honra de ocupar nas minhas relações com a senhora. E isto para não dizer nada sobre essa insultante idéia de colocar-me num mesmo plano com... com um rapaz despreocupado, pois as suas palavras deixam transparecer a possibilidade de uma ruptura da promessa que me fez. A senhora disse: "Ou o senhor ou ele", com o que está demonstrando já o pouco que eu significo para a senhora... Eu não posso tolerar isso, dadas as relações... e os compromissos que existem entre nós.

- O quê? - e Dúnia corou. - Com que então eu ponho o seu interesse no mesmo plano que tudo quanto até agora tem sido para mim de mais valor nesta vida, que até agora tem constituído a minha vida inteira, e o senhor ofende-me assim, de um momento para o outro, dizendo que lhe tenho pouca amizade!

Raskólhnikov sorria sarcasticamente, em silêncio; Razumíkhin encolhia-se no seu lugar; mas Piotr Pietróvitch não admitia réplicas; pelo contrário, tornava-se mais arrogante e irritado a cada palavra, como se se sentisse muito à vontade.

- O amor ao futuro companheiro de toda a vida deve antepor-se ao amor fraterno - disse sentenciosamente -, e seja como for, eu não posso colocar-me no mesmo plano... Embora eu tivesse declarado anteriormente que, na presença de seu irmão, não podia explicar tudo quanto é preciso e para o que vim, no entanto tenho a intenção, agora, de dirigir-me à sua respeitabilíssima mãe, em busca de explicação para um ponto muitíssimo importante e que, para mim, considero ofensivo. Seu filho - disse, encarando Pulkhiéria Alieksándrovna -, ontem, na presença do senhor Rassúdkin... (1) (é assim? desculpe, esqueci-me do seu nome) - e fez uma amável referência a Razumíkhin - ofendeu-me ao censurar uma idéia minha, que eu lhe comunicara à senhora havia tempos, numa conversa particular, depois de termos tomado o café, ou seja, disse que contrair matrimônio com uma menina pobre que já tivesse conhecido as amarguras da vida era, a meu ver, mais conveniente para as relações conjugais do que se casar com uma menina que as não tivesse conhecido, por ser mais útil no que respeita à moral. O seu filho exagerou intencionalmente o sentido das minhas palavras até o absurdo, ofendendo-me ao atribuir-me desígnios maldosos, e, em minha opinião, apoiando-se na sua aprovação pessoal. Considerar-me-ia feliz, Pulkhiéria Alieksándrovna, se pudesse convencer-me do contrário, ficaria muitíssimo tranqüilo com isso. Diga-me a senhora os termos exatos em que reproduzia as minhas palavras na sua carta a Rodion Românovitch!

- Não me lembro - respondeu, aturdida, Pulkhiéria Alieksándrovna. - Eu dizia isso à minha maneira. Não sei como é que Rodka lho repetiu... Talvez tenha exagerado qualquer coisa.

- A não ser por sugestão sua, não podia ter exagerado nada.

- Piotr Pietróvitch - protestou com dignidade Pulkhiéria Alieksándrovna -, a prova de que nem eu nem Dúnia supusemos mal as suas palavras é nós estarmos aqui.

- Muito bem, mámienhka! - disse Dúnia, encorajando-a.

- De maneira que, assim, sou eu o culpado! - disse Lújin ressentido. - Escute, Piotr Pietróvitch: o senhor deita todas as culpas sobre Rodka, e o senhor mesmo ainda não há muito nos dizia coisas injustas acerca dele na sua carta - acrescentou Pulkhiéria Alieksándrovna, ganhando coragem. - Não me recordo do que diria nela de injusto para ele.

 

* (1) Literalmente: sensato, ponderado. De rassúdok: inteligência, juízo, bom senso. Note-se o evidente propósito do Autor, nessa deturpação que faz do nome Razumíkhin, de manifestar opinião outra a respeito desta personagem. Já no capítulo três da parte segunda recorreu Dostoiévski a uma outra deturpação do nome da mesma personagem. (N. do T.) *

 

- Pois dizia - declarou bruscamente Raskólhnikov, sem se dirigir a Lújin - que eu, ontem, dera uma quantia, não à viúva de um funcionário atropelado, como de fato aconteceu, mas à filha dela (à qual até ontem nunca vira na minha vida). E o senhor dizia isso com o objetivo de indispor-me com a minha família, e, ainda com o mesmo fim, acrescentava algumas declarações grosseiras acerca da reputação dessa moça, à qual não conhece. Tudo isso é calúnia e maldade.

- Desculpe-me, senhor - respondeu Lújin tremendo de cólera -, eu, na minha carta, demorava-me acerca das suas qualidades e defeitos unicamente para responder às perguntas que as suas próprias mãe e irmã me fizeram na sua; falava da maneira como o encontrara e da impressão que me fizera. Pelo que respeita ao que exprimia na minha carta, demonstre-me o senhor que há nela uma só linha injusta, ou seja, não ser verdade que o senhor deu ali dinheiro, e que nessa família, por muito desgraçada que seja, não há uma pessoa de conduta indigna.

- Em minha opinião, o senhor, com toda a sua dignidade, não vale o dedo mínimo dessa infeliz moça à qual atira pedras.

- Ora vejamos: dar-se-á o caso de que tenha resolvido introduzi-la no convívio de sua mãe e da sua irmã?

- Se lhe interessa saber isso, digo-lhe que, isso, já o fiz. Já a fiz sentar hoje junto de mámienhka e de Dúnia.

- Rodka! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna. Dúnietchka corou; Razumíkhin franziu o sobrolho. Lújin sorriu, sarcástico e altivo.

- Faça o favor de me dizer, Avdótia Românovna - disse -, se é possível algum acordo! Espero que, agora, este assunto ficará esclarecido e concluído de uma vez para sempre. Vou retirar-me para não estorvar o andamento ulterior de uma reunião e comunicação de segredos familiares - levantou-se e pegou o chapéu. - Mas, antes, permito-me fazer notar que, daqui por diante, espero poder considerar-me a salvo de semelhantes encontros e, por assim dizer, compromissos. É especialmente à senhora, respeitabilíssima Pulkhiéria Alieksándrovna, que dirijo este pedido, tanto mais que era à senhora e a mais ninguém que era dirigida a minha carta. Pulkhiéria Alieksándrovna mostrou-se um pouco ressentida.

- Mas o senhor quer ter-nos agora nas suas mãos completamente, Piotr Pietróvitch? Dúnia expôs-lhe o motivo por que não atendeu o seu desejo: procedeu nisso com boa intenção. Mas o senhor escrevia-me como se me desse ordens. Considerará o senhor ordens cada um dos seus desejos? Pois então digo-lhe que, pelo contrário, o senhor devia mostrar-se agora para conosco especialmente delicado e benévolo, uma vez que nós deixamos tudo e por sua causa viemos para aqui, e assim estamos quase à sua mercê.

- Isso não é completamente exato, Pulkhiéria Alieksándrovna, e sobretudo neste momento em que acabam de anunciar-lhe que Marfa Pietrovna lhes deixa três mil rublos no seu testamento, os quais, segundo parece, não podiam ter vindo mais a propósito, a avaliar pelo novo tom que empregam para me falar - acrescentou Lújin sarcástico.

- A julgar por essa observação, não temos outro remédio senão supor, de fato, que o senhor contava com o nosso desamparo - observou Dúnia irritada.

- Mas pelo menos, agora, não posso contar com isso e, sobretudo, não desejo ser um estorvo para a comunicação das propostas secretas de Arkádi Ivânovitch Svidrigáilov, a respeito das quais deu plenos poderes a seu irmão, e que, segundo vejo, têm para a senhora uma importância capital e talvez muito agradável.

- Ah, meu Deus! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna. Razumíkhin não podia estar quieto na sua cadeira.

- Não te sentes agora envergonhada, irmã? - perguntou Raskólhnikov. - Sinto sim, Rodka - disse Dúnia. - Piotr Pietróvitch, saia daqui! - intimou, pálida de cólera.

Pelo visto, Piotr Pietróvitch não esperava semelhante desenlace. Confiava demasiado em si próprio, no seu poder e no desamparo das suas vítimas. E ainda não queria acreditar. Pôs-se lívido e contraiu os lábios.

- Avdótia Românovna, desde o momento em que eu transponha esta porta com uma despedida destas... fique sabendo... que será para nunca mais voltar! Pense bem! A minha palavra é firme.

- Que descaramento! - exclamou Dúnia levantando-se rapidamente do seu lugar. - Se sou eu que desejo que nunca mais volte na sua vida! - O quê? O quê? - exclamou Lújin, fazendo resistência até o último momento em acreditar neste desfecho e, além disso, completamente fora de si. - Mas como é possível? Fique sabendo, Avdótia Românovna, que eu poderia protestar!

- Que direito tem o senhor para falar-lhe dessa maneira? - exclamou com veemência Pulkhiéria Alieksándrovna. - Contra que é que o senhor vai protestar? Qual é o seu direito? Aquele de nós termos dado a um homem como o senhor a minha Dúnia? Vamos, saia e deixe-nos em paz! Nós é que somos as culpadas por nos termos metido numa história como esta, e eu sou a principal culpada!

- No entanto, Pulkhiéria Alieksándrovna - disse Lújin furioso -, a senhora me dera a sua palavra e agora retrata-se... e, finalmente... finalmente, eu me metera, por assim dizer, em despesas...

Esta última alegação ajustava-se tão bem ao caráter de Lújin, que Raskólhnikov, pálido de cólera e incapaz de conter-se, não pôde mais e, de repente... largou uma gargalhada. Mas Pulkhiéria Alieksándrovna parecia desvairada.

- Em despesas? Mas que despesas foram essas? Refere-se talvez ao nosso baú? Mas se o condutor o trouxe gratuitamente... Meu Deus, tê-loíamos comprometido! Reconsidere, Piotr Pietróvitch, e verá que não fomos nós, mas o senhor, quem nos atara de pés e mãos!

- Basta, mámienhka... por favor, basta! - pediu Avdótia Românovna. - Piotr Pietróvitch, faça favor, vá-se embora!

- Irei, sim; mas uma última palavra! - disse; perdera já quase completamente o domínio de si próprio. - A sua mãe, pelo visto, esquece-se completamente de que eu decidira tomá-la por esposa, depois do boato que se espalhara por toda a comarca, acerca da sua reputação. Ao desafiar a opinião pública por sua causa, e ao reabilitar a sua boa fama, eu podia, sem dúvida alguma, contar com uma indenização e até exigir a sua gratidão... Eu tinha os olhos fechados! Mas agora vejo bem que talvez tivesse cometido um erro enorme ao desafiar a voz do povo...

- Mas o senhor está interessado em que lhe rachem a cabeça ao meio? - exclamou Razumíkhin, saltando do seu lugar e dispondo-se já a acometê-lo.

- O senhor é um homem vil e cruel! - disse Dúnia.

- Nem uma palavra, nem um gesto! - gritou Raskólhnikov, contendo Razumíkhin; depois, aproximando-se de Lújin, que ia já quase à porta: - Faça o favor de sair de uma vez! - intimou-o com uma voz surda, mas audível - e nem uma palavra mais; senão...

Piotr Pietróvitch ficou olhando-o durante uns segundos com a cara lívida e contraída de cólera; depois, deu meia-volta e saiu, e não há dúvida de que seria difícil encontrar quem levasse no seu coração tanto ódio como

o daquele homem contra Raskólhnikov. Era a ele e só a ele que lançava a culpa de tudo. E atentemos em que, quando descia a escada, continuava imaginando que as coisas talvez se pudessem ainda arranjar, no que respeitava às duas mulheres, que tudo era ainda muito reparável.

 

o mais importante era que até o último momento não foi capaz de suspeitar de tal desenlace. Fez-se forte até o último extremo, sem supor sequer a possibilidade que duas pobres e desamparadas mulheres pudessem sacudir o seu domínio. Para essa convicção contribuíram muito a sua vaidade e essa confiança em si próprio que devia antes chamar-se amor-próprio. Piotr Pietróvitch, saído do nada, tinha um amor doentio por si mesmo, tinha em grande estima a sua inteligência e as suas aptidões, e até às vezes as solas dos seus sapatos; apaixonava-se pela sua cara ao espelho. Mas acima de tudo neste mundo amava e estimava o seu dinheiro, juntado à custa de trabalho e de todos os meios: punha esse dinheiro ao nível de tudo quanto considerava superior.

Ao recordar-se agora de Dúnia, com amargura, e que decidira casar-se com ela apesar dos boatos prejudiciais para a sua reputação, Piotr Pietróvitch falava com absoluta sinceridade e sentia até uma profunda indignação perante tão negra ingratidão. E, no entanto, quando se tinha posto em relações com Dúnia, estava absolutamente convencido da estupidez daquelas calúnias, publicamente desmentidas pela própria Marfa Pietrovna, e que havia muito tempo já não se ouviam na povoação, onde todos estimavam muito Dúnia. Mas por nada deste mundo teria reconhecido agora que tudo isso já ele o sabia então. Pelo contrário: punha muito alto a sua resolução de levantar Dúnia à sua altura e considerava isso uma façanha. Havia um instante, ao falar disso a Dúnia, punha a claro um pensamento secreto que já há mais tempo o assediava, no qual já por mais de uma vez se tinha comprazido, e não podia compreender como é que as outras pessoas não podiam divertir-se com essa sua proeza. Quando, dessa vez, visitou Raskólhnikov, entrara em casa dele com o sentimento do protetor que se dispõe a colher os frutos do seu bom procedimento e a escutar os mais lisonjeiros cumprimentos. E agora também, sem dúvida, ao descer a escada, considerava-se altamente ofendido e incompreendido.

Dúnia era-lhe imprescindível; renunciar a ela, não podia, nem sequer podia pensá-lo. Havia já algum tempo, alguns anos, que vinha pensando com delícia em casar-se, enquanto ia amealhando dinheiro e esperava. Sonhava com embriaguez, no mais profundo do seu íntimo, com uma mocinha decente e pobre (tinha fatalmente de ser pobre), muito nova, muito graciosa, boa e instruída, muito pacata, que tivesse passado grandes dificuldades na vida e se encontrasse completamente desamparada perante ele, de maneira que toda a sua vida houvesse de considerá-lo... o seu salvador e se mostrasse submissa, dócil e cheia de admiração para com ele e só para com ele. Quantas cenas, quantos doces episódios representava na sua imaginação acerca deste tema sedutor e gracioso, quando descansava das suas ocupações! E eis que o sonho de tantos anos se tinha já quase realizado; a beleza e a educação de Avdótia Românovna impressionaram-no; a sua situação de desamparo ainda mais o interessou. Oferecia-se-lhe até mais do que aquilo que sonhara: aparecia-lhe uma moça digna, enérgica, virtuosa, com mais experiência e cultura do que ele próprio (assim o pensava ele), e era uma criatura assim que haveria de ficar-lhe agradecida durante toda a sua vida em atenção ao seu gesto heróico, e de humilhar-se docilmente perante ele, podendo ele dominá-la ilimitada e plenamente... Como se fosse de propósito, algum tempo antes disso, depois de longos sonhos e muitas expectativas, decidira, por fim, mudar definitivamente de rumo e entrar num círculo de atividades mais amplo e, ao mesmo tempo, pouco a pouco, ir abrindo caminho numa sociedade mais elevada, com a qual havia já algum tempo sonhava com prazer...

Enfim, decidiu tentar fortuna em Petersburgo. Sabia que por meio das mulheres pode conseguir-se muito. O prestígio que irradiava uma mulher honrada e culta podia aplanar-lhe prodigiosamente o caminho, gran jear-lhe simpatia, criar-lhe uma auréola... e eis que, agora, tudo desabava! Aquela ruptura imprevista, brutal, produzia-lhe o mesmo efeito que um raio. Aquilo era uma farsa absurda, uma estupidez! Ele não tinha feito mais nada senão mostrar um pouquinho de impertinência, mal tivera tempo de exprimir-se. Não fizera mais do que gracejar; distraiu-se um momento, e como acabara tudo tão seriamente! E, além disso, ele amava Dúnia à sua maneira, via-a já dominada nos seus sonhos... e, de repente... Não! Amanhã mesmo, amanhã mesmo é preciso pôr outra vez o problema, procurar um remédio, emendar e, o mais importante... aniquilar esse rapaz insolente que era o culpado de tudo.

Lembrava-se também involuntariamente de Razumíkhin, com uma sensação dolorosa... se bem que, no entanto, não tardasse em tranqüilizar-se a este respeito: "Era o que faltava, pô-lo em pé de comparação consigo!" Mas quem no seu íntimo temia seriamente era Svidrigáilov. Em resumo, esperavam-no muitas dificuldades...

- Não! Eu sou a mais culpada! - dizia Dúnietchka abraçando-se à mãe e beijando-a. - Deixei-me seduzir pelo seu dinheiro; mas juro-te, meu irmão... Não podia imaginar que fosse um homem tão indigno! Se tivesse compreendido isso antes, por nada deste mundo lhe teria dado atenção... Não me culpes, irmão!

- Deus me livre disso! Deus me livre! - murmurou Pulkhiéria Alieksándrovna, um pouco inconscientemente, como se ainda não tivesse compreendido bem o que acontecera.

Todos ficaram mais alegres e, passados cinco minutos, até já se riam. Somente Dúnietchka empalidecia de quando em quando e franzia o sobrolho, lembrando-se do que acontecera. E mal podia supor Pulkhiéria Alieksándrovna que ela própria havia de alegrar-se também; ainda nessa manhã a ruptura com Lújin se lhe afigurava como uma terrível desgraça. Mas Razumíkhin estava contentíssimo. Não se atrevia a manifestar o seu alvoroço; mas todo ele tremia como se estivesse com febre, como se lhe tivessem tirado uma tonelada de cima do coração. Agora já lhe tinha direito a consagrar-lhes toda a vida, a servi-las... tudo o mais já não lhe importava! Mas, no fundo, repelia ainda com mais temor pensamentos ulteriores e receava que eles se lhe impusessem. Raskólhnikov era o único que continuava no mesmo lugar, quase mal-humorado e até ensimesmado. Ele, que era quem mais insistira para que Lújin fosse afastado, parecia, de todos, o que menos se interessava pelo sucedido. Sem querer, Dúnia pensava que ele continuava zangado com ela e Pulkhiéria Alieksándrovna olhava-o timidamente, de soslaio.

- Que te disse Svidrigáilov? - perguntou-lhe Dúnia aproximando-se. -Ah, sim, sim! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna. Raskólhnikov levantou a cabeça.

- Que tem o maior interesse em te oferecer dez mil rublos e exprime ao mesmo tempo o seu desejo de ter uma entrevista contigo na minha presença. - Uma entrevista! Mas para quê? - exclamou Pulkhiéria Àlieksándrovna. - E como se atreve ele a oferecer-nos dinheiro?

Depois, Raskólhnikov contou-lhes (muito secamente) a sua conversa com Svidrigáilov, passando por alto no caso das aparições de Marfa Pietrovna, para não se demorar muito, e sentindo repugnância em repetir no seu diálogo o que não fosse absolutamente indispensável.

- E tu, que lhe respondeste? - perguntou Dúnia.

- Primeiro disse-lhe que não te diria nada, a ti. Ao que ele me respondeu que, nesse caso, procuraria por todos os meios ter um encontro contigo. Que está convencido de que a paixão que tu lhe inspiraste, em outros tempos, foi uma tolice, e que, presentemente, não sente nada por ti. Não quer que te cases com Lújin... De maneira geral, exprimia-se em termos vagos...

- Que idéia tens tu acerca desse homem, Rodka? Como o achas tu? - Confesso que não o compreendo bem. Oferece dez mil rublos e diz que não é rico. Diz que tem a intenção de ir não sei para onde e, passados dez minutos, já se esquecia do que dissera. De repente, começa também a dizer que se quer casar e que já tem noiva... Não há dúvida que tem qualquer objetivo e, com certeza... mau. Mas, nesse caso, também é estranho que se conduza tão estupidamente, se abriga contra ti más intenções. Eu recusei decididamente esse dinheiro em teu nome. De maneira geral, pareceu-me estranho e... até com certos indícios de alienação mental. Mas pode ser que eu esteja enganado: talvez se trate apenas de uma artimanha sua. Parece que a morte de Marfa Pietrovna o tocou...

- Que o Senhor tenha a sua alma em descanso! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna. - Enquanto eu for viva, hei de pedir a Deus por ela! Que seria agora de nós sem esses três mil rublos? Meu Deus, vêm mesmo caídos do céu! Ah, Rodka! Esta manhã tínhamos ao todo apenas três rublos de prata e eu e Dúnia já tínhamos pensado empenhar o relógio para não termos de pedir nada a Lújin, já que ele, por si, não compreendia a nossa situação!

Dúnia parecia ter ficado muito impressionada com o oferecimento de Svidrigáilov. Estava pensativa.

- Anda tramando alguma coisa terrível! - declarou, quase num fio de voz, para si mesma, quase tremendo.

Raskólhnikov reparou naquele medo exagerado.

- Naturalmente terei ainda oportunidade de vê-lo - disse-lhe Dúnia. - Temos de nos pôr no seu encalço! Fá-lo-ei eu! - exclamou Razumíkhin. - Não o perderei de vista! Rodka não se oporá a isso. Ainda há pouco me dizia: "Vela pela minha irmã!" A senhora também mo consentirá, não é verdade, Avdótia Românovna?

Dúnia sorriu-se e estendeu-lhe a mão; mas a preocupação continuava visível no seu rosto. Pulkhiéria Alieksándrovna olhava para ela com timidez; aliás, aqueles três mil rublos pareciam tê-la tranqüilizado.

Durante um quarto de hora mantiveram todos um diálogo animadíssimo. Até Raskólhnikov, se bem que não tomasse parte na conversa, seguiu-a com interesse durante algum tempo. Razumíkhin esbanjava eloqüência.

- Mas por que hão de ir-se embora? - dizia com exaltação, na sua veemência oratória. - Que vão fazer nessa aldeola? O principal é estarmos todos aqui reunidos e precisarmos todos uns dos outros... e até que ponto precisamos uns dos outros... não sei se me faço entender. Bom, ainda que seja só por algum tempo... A mim podem considerar-me seu companheiro, seu amigo, e tenho a certeza de que vamos fazer uma boa sociedade. Escutem-me, vou explicar-lhes tudo pormenorizadamente... todos os meus projetos. Esta manhã, quando ainda não se passara nada disso, ocorreu-me uma idéia... Aqui têm do que se trata: eu tenho um tio (já o apresentei a vocês, é um velhinho muito bondoso e respeitável), e este meu tio tem um capital de mil rublos e, além disso, vive de uma pensão; de maneira que não precisa de dinheiro. Há dois anos que me vem incitando a aceitar esses mil rublos e que eu lhes pague depois a seis por cento. Eu estou vendo o jogo: o que ele quer é, muito simplesmente, ajudar-me; o ano passado não precisei deles; mas este ano só estava à espera de que ele viesse para pedir-lhos. De maneira que, se vocês todos acrescentarem depois outros mil rublos, dos seus três mil, já teríamos o bastante para começar e poderíamos associar-nos. Que poderíamos nós fazer?

Nesta altura Razumíkhin começou a apresentar um projeto e falou durante muito tempo e desenvolvidamente dos nossos livreiros e editores, dos quais poucos ou nenhuns conhecem o seu ofício, e, além disso, costumam ser maus editores, ao passo que o negócio editorial, bem conduzido, pode, às vezes, dar um lucro considerável. Era com o comércio editorial que Razumíkhin sonhava, havia já dois anos que trabalhava para outros e conhecia muito bem três línguas européias, apesar de seis dias antes ter dito, em alemão, a Raskólhnikov que estava fraco, com o fim de convencê-lo a aceitar metade do seu trabalho de tradução, e para que ganhasse assim três rublos; nessa ocasião mentia e Raskólhnikov bem o sabia.

- Sim, por que, por que havíamos de perder a ocasião, se temos afinal um dos principais elementos: dinheiro próprio? - dizia Razumíkhin entusiasmado. - É certo que é preciso trabalhar duramente; mas trabalharemos, a senhora, Avdótia Românovna, eu, Rodka... Há edições que dão agora um lucro formidável. Mas a base principal da edição assenta em sabermos o que é preciso traduzir. Traduziremos e editaremos, e estudaremos ao mesmo tempo. Agora posso ser útil, porque já tenho experiência. Reparem que há já dois anos que convivo com editores e conheço bem o negócio; não é nada do outro mundo, acreditem. E por que, por que é que não havíamos de experimentar? Eu conheço e tenho em meu poder duas ou três obras, que só pela idéia de traduzi-las e editá-las podia pedir cem rublos por exemplar, e uma delas nem por quinhentos a daria. E que pensam? Se eu o propusesse a algum deles, apesar disso diriam que não, tal é a maneira como são imbecis. E pelo que diz respeito ao trabalho de impressão, ao papel, à venda, isso fica a meu cargo. Conheço todos os meandros. Começaremos pouco a pouco, iremos alargando depois o negócio; pelo menos ganharemos a vida e, em qualquer dos casos, não perderemos. Os olhos de Dúnia brilhavam.

- Tudo isso que diz me agrada muito, Dmítri Prokófitch - disse. - Eu, repare, é claro que não entendo nada - concordou Pulkhiéria Alieksándrovna. - Mas acho isso tudo muito bem; no entanto, Deus é quem sabe. É uma coisa nova, desconhecida. Com certeza que temos de ficar aqui, ainda que seja só por algum tempo...

Lançou um olhar a Rodion.

- Que pensas tu, irmão? - disse Dúnia.

- Penso que ele teve uma excelente idéia - respondeu. - Com uma casa editorial em ponto grande, é claro que não pode sonhar; mais cinco ou seis livros, de fato, podem editar-se com indubitável êxito. Eu também conheço uma obra que havia de ter um êxito infalível. Pelo que respeita à sua capacidade para dirigir o negócio, não há a menor dúvida, conhece o assunto. Aliás, depois teremos oportunidade de continuar falando disso.

- Viva! - gritou Razumíkhin. - Agora esperem; há aqui uma parte de casa, neste mesmo prédio, dos mesmos senhorios. É independente, à parte, não comunica com estes e alugam-na mobiliada, por um preço módico; tem três divisões. Podem instalar-se aí, logo. Eu vou amanhã empenhar-lhes o relógio, trago-lhes o dinheiro e tudo se há de arranjar. O principal é poderem viver os três juntos, contando com Rodka... Mas, Rodka, onde é que vais?

- Mas que é isso, Rodka? Já te vais embora? - perguntou também Pulkhiéria Alieksándrovna, inquieta.

- Logo nesta altura! - exclamou Razumíkhin.

Dúnia olhou para o irmão com um espanto receoso: estava com o gorro nas mãos, pronto a partir.

- Parece que estão para ir ao meu enterro ou que estão despedindo-se de mim para sempre - disse de uma maneira um pouco estranha. Pareceu sorrir-se; mas aquilo não era um sorriso.

- E, afinal, quem sabe se não será a última vez que nos vemos! - acrescentou num tom desolado.

Pensara isso para consigo, mas escapara-lhe em voz alta. - Mas que tens tu? - exclamou a mãe.

- Onde vais, Rodka? - perguntou Dúnia de um modo singular.

- É que não tenho outro remédio - respondeu ele com um ar vago, como se hesitasse a respeito daquilo que desejava dizer. Mas no seu pálido rosto notava-se uma resolução decidida.

- Eu queria dizer, quando vim aqui... Eu queria dizer-lho, mámienhka... e a ti também, Dúnia, que será melhor não nos vermos durante algum tempo. Não me sinto bem, não estou tranqüilo... Eu próprio virei depois, eu próprio virei quando... for possível. Lembrar-me-ei de vocês e amo-as... Mas deixem-me em paz! Deixem-me sozinho! Era isso que eu já resolvera. Seriamente que já o decidira... Aconteça-me o que acontecer, quer eu me perca ou não, quero estar só. Esqueçam-se de mim completamente. É o melhor... Não procurem saber de mim. Quando for preciso, eu próprio virei ou lhes mandarei chamar. Pode ser que tudo ressuscite... mas, por agora, se me querem bem, deixem-me, deixem-me... Senão, criar-lhes-ei ódio, bem o sinto... Adeus!

- Meu Deus! - exclamou Pulkhiéria Alieksándrovna.

Mãe e filha sentiam um medo horrível e Razumíkhin também.

- Rodka! Rodka! Reconcilia-te conosco, sejamos como éramos dantes... - exclamou a pobre mãe.

Ele se dirigiu lentamente para a porta e lentamente saiu do quarto. Dúnia correu atrás dele e alcançou-o.

- Irmão! Que estás tu fazendo à nossa mãe? - murmurou com um olhar esgazeado de indignação.

Ele a fitou longamente.

- Não é nada, eu já volto, eu já volto! - murmurou ele em voz baixa, como se não se apercebesse perfeitamente do que queria dizer, e saiu do quarto. - Egoísta, insensível, mau! - exclamou Dúnia.

- Louco é que ele é, e não insensível! Louco! Mas não estão percebendo? A senhora é que é insensível - murmurou ardentemente Razumíkhin aos seus ouvidos, ao mesmo tempo que lhe apertava a mão com força.

- Eu já venho! - exclamou, dirigindo-se à pobre Pulkhiéria Alieksándrovna, e saiu do quarto correndo.

Raskólhnikov esperava-o no fim do corredor.

- Eu já sabia que tu havias de vir atrás de mim. Volta para lá e fica perto delas... Fica também com elas amanhã... e para sempre. Eu... talvez venha... se puder. Adeus!

E afastou-se dele sem estender-lhe a mão.

- Mas para onde vais? Que te aconteceu? Será possível que procedas assim? - murmurou Razumíkhin completamente atônito. Raskólhnikov tornou a parar.

- De uma vez para sempre, não me perguntes mais nada, porque nunca te daria a resposta... Não vás visitar-me. Talvez eu passe por aqui... Deixa-me a mim, e não as deixes a elas. Estás percebendo?

O corredor já estava escuro; eles tinham parado perto da luz. Por um momento, olharam-se os dois um ao outro, em silêncio, e Razumíkhin recordou depois toda a sua vida naquele momento. O ardente e fixo olhar de Raskólhnikov parecia tornar-se mais forte a cada momento, penetrar na sua alma, na sua consciência. De repente, Razumíkhin recuou. Parecia que qualquer coisa de estranho se passara entre eles... Uma idéia, como

que uma insinuação, lhe passara pela cabeça, algo de horrível, de monstruoso e de subitamente compreensível para ambos... Razumíkhin ficou pálido como um morto.

- Compreendes agora? - disse de súbito Raskólhnikov, com o rosto

dolorosamente crispado. - Volta, fica perto delas - acrescentou de repente, e, girando com rapidez sobre os calcanhares, saiu do prédio...

Não me demorarei a descrever o que se passou nessa noite em casa de Pulkhiéria Alieksándrovna, quando Razumíkhin voltou para o lado das duas mulheres; tentou tranqüilizá-las; garantiu-lhes que era preciso deixar Raskólhnikov ir apanhar um pouco de ar livre, visto que estava doente, e

que com certeza ele havia de vir vê-las todos os dias, todos os dias; que ele estava muito cansado, mesmo muito cansado, e que ninguém o irritasse; que ele, Razumíkhin, não havia de perder-lhe a pista, procurar-lhe-ia um bom médico, o melhor, que lhe faria um exame completo... Em resumo: desde essa noite, Razumíkhin passou a ser para elas filho e irmão.

 

Quanto a Raskólhnikov, encaminhou-se diretamente para a casa, junto do canal, onde morava Sônia Siemiônovna. Era um prédio de três andares, velho, pintado de verde. Perguntou ao porteiro e este deu-lhe umas vagas indicações sobre a morada de Kapernaúmov, o alfaiate. Depois de procurar num canto do pátio a passagem para a escada escura e estreita, subiu finalmente até o segundo andar e foi dar a uma galeria que a rodeava pelo lado do pátio. Enquanto procurava no escuro, cheio de hesitação, onde é que poderia ser a entrada do andar de Kapernaúmov, de súbito, a três passos de distância dele abriu-se uma porta onde ele assomou, maquinalmente.

- Quem é? - perguntou, inquieta, uma voz de mulher.

- Sou eu... que vinha visitá-la - respondeu Raskólhnikov, e entrou pelo estreito corredor. Aí, sobre uma mesa descambada e num candeeiro amolgado, ardia uma vela.

- Mas é o senhor? - exclamou Sônia com voz fraca, e ficou petrificada. - Por onde é que se entra? Por aqui?

E Raskólhnikov, esforçando-se por não olhar para ela, entrou para o quarto. Um minuto depois Sônia entrava também com uma luz; pousou-a e ficou parada na frente dele, estupefata, tomada de uma indescritível comoção e visivelmente assustada com aquela inesperada visita. De súbito o sangue subiu-lhe ao rosto pálido e aos seus olhos chegaram até lágrimas... Sentiu uma sufocação, uma vergonha e uma doçura... Raskólhnikov afastou-se bruscamente e sentou-se numa cadeira, junto da mesa. Num momento abrangera com um olhar todo o quarto.

Era um quarto espaçoso, mas com um teto baixíssimo, o único que os Kapernaúmovi tinham alugado, e cuja porta, fechada, ficava na parede do lado esquerdo. À frente, na parede da direita, havia outra porta, sempre hermeticamente fechada. Havia ali também outro quarto, contíguo, que tinha outro número. O quarto de Sônia parecia, de certa maneira, um alpendre; tinha a forma dum triângulo irregular, o que o tornava muito feio. A parede, com três janelas que davam para o canal, cortava o quarto a viés, e por isso um dos ângulos, terrivelmente agudo, sumia-se lá no fundo, de tal maneira que, quando havia pouca luz, não se lhe via bem o fim; o outro ângulo, em compensação, era excessivamente obtuso. Em todo esse quarto espaçoso, quase não havia móveis. Num canto, à direita, via-se uma cama; junto dela, próximo da porta, uma cadeira. Na mesma parede, junto da qual estava a cama, pegada à porta que dava para o outro quarto, havia uma simples mesa de pinho branca, coberta com um pano azul; junto da mesa, duas cadeiras de palha. Depois, na parede oposta, perto do ângulo agudo, havia uma simples cômoda de pinho, como se estivesse abandonada num deserto. Eis aqui tudo quanto havia no quarto. O papel que forrava as paredes, amarelecido, defumado e gasto, estava escuro em todos os cantos; com certeza que devia haver ali umidade e fuligem no inverno. A miséria era evidente; a cama nem sequer tinha cortinados.

Sônia contemplava em silêncio o visitante, o qual passava revista ao seu quarto, atenta e despreocupadamente, e, por último, até tinha começado a tremer de medo, como se se encontrasse diante de um juiz que fosse decidir a sua sorte.

- Cheguei tarde... Já são onze horas? - perguntou ele sem levantar os olhos para ela.

- Já - balbuciou Sônia. - Já são, já! - disse atabalhoadamente, de repente, como se aquilo lhe parecesse uma escapatória.

- Acabaram de dar agora mesmo no relógio do senhorio... Eu ouvi... Já deram.

- Venho vê-la pela última vez - continuou Raskólhnikov, severo, apesar de ser aquela a primeira. - É possível que não torne mais a vê-la... - Vai-se... embora?

- Não sei... amanhã...

- Então, amanhã, não vai visitar Ekatierina Ivânovna? - e a voz de Sônia tremia.

- Não sei. Tudo depende de amanhã... Mas não se trata disso; eu vim para dizer-lhe uma coisa...

Ergueu para ela o seu olhar pensativo, e de repente reparou que, enquanto ele estava sentado, ela continuava de pé, diante dele.

- Mas por que está de pé? Sente-se - disse ele com uma voz que, de repente, se tornara suave e afetuosa.

Ela se sentou. Ele a contemplou por um momento com afabilidade e quase compassivamente.

- Está tão magra! Que mãozinhas tão transparentes! Estes dedinhos parecem os duma morta.

Pegara-lhe numa mão. Sônia sorriu debilmente. - Fui sempre assim - disse.

- Quando vivia na sua casa também? - Também.

- Está se vendo mesmo! - disse ele com rudeza, e a expressão do seu rosto e o timbre da sua voz mudaram de repente. Tornou a passar novamente a vista à sua volta.

- São os Kapernaúmovi que lhe alugam isto? - São.

- E eles vivem aí, atrás dessa porta? - Sim... o quarto deles é como este. - Vivem só num quarto?

- Só num.

- Eu teria medo num quarto destes, à noite - observou ele com ar sombrio.

- Os senhorios são muito bons, muito amáveis - respondeu Sônia como se reconsiderasse e não estivesse ainda refeita -, e todos os móveis, e tudo... é tudo dos senhorios. São muito bons, e os petizes também vêm aqui muitas vezes.

- São gagos?

- São. Ele é gago e, além disso, também é estrábico. E a mulher também... Ela não é verdadeiramente gaga, mas custa-lhe muito pronunciar as palavras. Também é muito bondosa. Ele foi servo. E tem sete filhos, todos rapazes... só o mais velhinho é que é gago, os outros estão todos doentes, mas não têm esse defeito... Mas como é que os conhece? - acrescentou, um pouco admirada.

- Foi o seu pai que me contou tudo... também me falou de você... E contou-me que saíra uma tarde às seis e voltara a casa às nove, e que Ekatierina Ivânovna se lançou de joelhos aos pés da sua cama.

Ficou desorientada.

- Eu ainda hoje o vi - murmurou indecisa. - A quem?

- A meu pai. Tinha ido à rua, aí ao lado, à esquina, às dez, e pareceu-me mesmo que ele passou diante de mim. Era tal qual ele. Eu até já queria ir à casa de Ekatierina Ivânovna...

- Fora dar um passeio?

- Sim - balbuciou Sônia rapidamente, tornando a ficar perturbada e baixando a cabeça.

- Ora diga-me: Ekatierina Ivânovna não lhe batia, em casa de seu pai? - Ah, não! Que diz o senhor? Como é que pode pensar isso? Não! - e Sônia olhou para ele com uma certa inquietação.

- Gosta muito dela?

- Dela? Sim, muito - exclamou Sônia condoída, e, num impulso de piedade, juntou de repente as mãos. - Ah! Se o senhor, se o senhor a conhecesse... Olhe, é absolutamente como uma criança... Parece que não está completamente boa da cabeça... faz pena. E era tão inteligente! Tão generosa! Tão boa. O senhor não a conhece, o senhor não a conhece, não a conhece de maneira nenhuma... Ah!

Sônia disse isso em tom desesperado, comovida e apiedada, juntando as mãos. As suas faces pálidas coraram, os olhos exprimiram sofrimento: era evidente que estava terrivelmente comovida, que sentia uma grande vontade de exprimir, de dizer qualquer coisa, de se pôr em defesa da madrasta. Uma compaixão insaciável, se é lícito exprimirmo-nos assim, transpareceu subitamente em todas as suas feições.

- Que me batia... Mas que disse o senhor? Que me batia! E então, se me batesse? O senhor não sabe nada, não sabe nada... É tão infeliz, ah, tão infeliz! E doente... Procura sempre em tudo a justiça. É pura. Pensa que a justiça deve reinar sempre em tudo e reclama-a... E, ainda que alguém a fira, não comete uma injustiça. Não compreende que não é possível que as pessoas sejam sempre justas, e irrita-se... É como uma criança, uma criancinha! Ela é justa, justa!

- Mas quem lhe vai valer? Sônia interrogou-o com o olhar.

- A menina é a única coisa que lhes resta. É certo que já antes era o mesmo: estavam todos a seu cargo, e até o falecido, quando se embriagava, ia pedir-lhe dinheiro, a você. Mas agora, que vai ser de vocês?

- Não sei - proferiu Sônia tristemente. - Eles continuam ali?

- Não sei. Estavam endividados para com a senhoria; esta disse-lhes hoje mesmo que têm de abandonar o quarto e Ekatierina Ivânovna respondeu-lhe que também ela não queria ficar ali nem mais um minuto.

- Mas como é que ela consegue manter-se, assim, tão corajosa? Talvez esteja fiada na senhora...

- Ah, não, não fale assim! Nós vivemos as duas como se fôssemos uma só - e Sônia tornou outra vez a ficar agitada e até irritada, tal como um canário ou qualquer outro passarinho quando se irrita. - Mas como

é que ela havia de ser? De que outra maneira havia de ser? - perguntou, exaltando-se e comovendo-se. - Como ela tem chorado hoje! Está transtornada do juízo, não reparou? Está transtornada: tão depressa se sobressalta como uma criança, para que amanhã não falte nada, até aperitivos, como torce as mãos, expectora sangue, põe-se a chorar e, de repente, começa a dar cabeçadas contra a parede e a chorar, desesperada. E depois consola-se, deposita todas as suas esperanças no senhor; diz que o senhor, agora, é o seu amparo, e que vai pedir a alguém uma quantia e voltará para a sua terra comigo, e abrirá aí uma pensão para meninas e que me porá a mim como vigilante e começará para nós uma nova e linda vida, e beija-me e abraça-me e consola-me e, veja lá, acredita nisso tudo. Acredita nessas fantasias! Será possível contradizê-la? Passou hoje o dia inteiro esfregando o chão, lavando e passando a roupa a ferro; fraca como está, mudou a banheira e teve uma sufocação, até que se deixou cair esgotada sobre a cama; e, além disso, de manhã saímos as duas para comprar uns sapatinhos a Pólienhka e a Liena, porque os que tinham já estavam todos rotos, mas o dinheiro não chegava, ainda nos faltava muito, entretanto ela escolheu uns sapatinhos muito engraçados, porque é uma mulher de gosto, o senhor não sabe... Olhe, pôs-se a chorar ali mesmo, na loja, porque o dinheiro não chegava... Ah, como fazia pena vê-la!

- Sim, depois disso compreende-se que a menina... viva assim - disse Raskólhnikov com um sorriso amargo.

- Mas, ao senhor, não lhe faz pena? Não lhe inspira dó? – exclamou Sônia outra vez. - Mas se eu sei que o senhor lhe deu tudo quanto lhe restava, e isso antes de saber! Que faria se soubesse! Oh, quantas vezes a fiz eu chorar! Ainda a semana passada, para não ir mais longe. Na semana antes da morte do meu pai. Portei-me cruelmente. E quantas, quantas vezes procedi eu assim! Ah, como me custa agora recordar todo esse dia!

Sônia juntou as mãos perante essa evocação. - Portou-se cruelmente?

- Sim, eu, eu! Um dia - continuou ela, chorando -, o meu pai disse-me: "Lê-me um pouco, Sônia, porque me dói a cabeça... lê-me qualquer coisa... olha, aqui tens o livro". Era um livrinho que, entre outros, lhe emprestara Andriéi Siemiônovitch Liebiesiátnikov, que mora ali, e lhe emprestava esses livrinhos engraçados. E eu respondi-lhe: "Tenho de me ir já embora". Não queria ficar a ler-lhe porque eu fora lá, principalmente, para mostrar umas golas a Ekatierina Ivânovna; porque Lisavieta, a mascate, trazia-me golas e punhos muito baratos, bonitos, novinhos e com bordados. Ekatierina Ivânovna gostou muito dessas golas, experimentou-as e foi ver-se ao espelho com elas: agradavam-lhe muitíssimo. "Por que não mas dás, Sônia? Faze-me esse favor, faze-me esse favor", dizia, porque estava realmente interessada. Mas com que vestido havia ela de pô-las? É assim: nunca se esquece dos bons tempos antigos. Olha-se ao espelho, admira-se, e não tem, mas é mesmo o que se diz não ter, roupa para vestir, nem uma coisa bonita para pôr há já tantos anos... E por nada deste mundo pede qualquer coisa a alguém; como é orgulhosa, até era mais capaz de dar a última coisa que tivesse do que ter de pedir uma a alguém; mas, nesse momento, pedia, tal era a maneira como as golas lhe tinham agradado! Mas, a mim, custava-me dá-las. "Para que as quer", digo-lhe eu, "Ekatierina Ivânovna?" Foi isso o que eu lhe disse, e não o devia ter feito. Olhou-me de uma maneira e sentiu aquilo tanto, tanto, que fazia pena vê-la! E não era por causa das golas, mas porque eu lhas negara, via-se bem. Ah, se eu pudesse agora mudar tudo isso, voltar atrás, apagar essas palavras! Oh, eu... mas para quê, se tudo isto lhe é indiferente?

- Conhecia Lisavieta, a mascate?

- Conhecia... E o senhor também a conhecia? - interrogou-o Sônia por sua vez, com um certo espanto.

- Ekatierina Ivânovna está tuberculosa em último grau, não tarda que morra - disse Raskólhnikov depois de uma pausa e sem responder à pergunta. - Oh, não, não, não! - E Sônia, inconscientemente, pegou-lhe nas mãos, como se lhe implorasse que isso não acontecesse.

- Sim, no fim de contas, é preferível que ela morra!

- Não, não é melhor, não é melhor! - exclamou ela assustada e inconsciente.

- E os filhos? Que vai fazer deles, se não os pode ter consigo?

- Oh, não sei! - exclamou Sônia quase desesperada e levando as mãos ao rosto. Era evidente que aquela idéia lhe passara pela cabeça já muitas vezes e que ele não fizera mais do que acordá-la.

- Além disso, se a menina cair doente, ainda que Ekatierina Ivânovna continue viva, se a levarem para o hospital, por exemplo, que sucederá então? - insistiu ele, inexorável.

- Ah! Que diz o senhor, que diz o senhor? Isso não é possível! - e o rosto de Sônia contraiu-se numa careta de espanto horrível.

- Não é possível? - prosseguiu Raskólhnikov com um sorriso cruel. - Tem algum seguro contra a doença? Que será deles então? Irão parar todos de uma vez ao meio da rua, e ela há de pôr-se a tossir, e a suplicar,

e a dar cabeçadas contra a parede, como fez hoje, e as crianças a chorar... E acabará rolando sobre o chão, e apanhá-la-ão e levá-la-ão ao comissariado, e para um hospital, onde morrerá, e os filhos.

- Oh, não! Deus não há de permitir que assim seja! - foi o grito que saiu finalmente do oprimido peito de Sônia.

Tinha-o escutado em silêncio, de olhos fixos nele e mãos juntas numa prece muda, como se tudo dependesse dele.

Raskólhnikov levantou-se e começou a passear pelo quarto. Decorreu um minuto. Sônia continuava de pé, de testa e mãos baixas, sofrendo angustiosamente.

- E não há maneira de amealhar, de guardar para os dias negros? - perguntou ele parando, de repente, diante dela.

- Não - balbuciou Sônia.

- Claro que não! Mas já experimentou? - acrescentou ele quase com um sarcasmo.

- Já experimentei, sim.

- E não lhe deu resultado, naturalmente! Para que perguntar? E pôs-se outra vez a passear pelo quarto. Passou outro minuto. - Não ganha qualquer coisa todos os dias?

Sônia ficou ainda mais confusa do que antes e tornou outra vez a corar. - Não - murmurou, fazendo um esforço doloroso.

- Com certeza que Pólietchka vai ter a mesma sorte - disse de repente. - Não! Não! Não é possível, não! - exclamou Sônia em voz alta, num desespero, como se, de repente, a tivessem atravessado com um punhal. - Deus, Deus não há de permitir tamanho horror!

- Para outras permitiu.

- Não, não! A ela, Deus há de protegê-la, Deus! - repetiu Sônia fora de si.

- Sim, mas até é possível que Deus não exista - respondeu Raskólhnikov com uma espécie de alegria maldosa; pôs-se a rir e ficou olhando para ela.

O rosto de Sônia mudou de repente de uma maneira terrível; parecia ter convulsões. Fixou nele os olhos cheios de censura; quis dizer qualquer coisa, mas não conseguiu dizer nada, e a única coisa que fez foi romper em soluços, cobrindo a cara com as mãos.

- A menina diz que Ekatierina Ivânovna está quase doida; pois com você está quase a passar-se o mesmo - disse, depois de um certo silêncio. Decorreram cinco minutos. Ele continuava dando grandes passadas de um lado para o outro, em silêncio e sem olhar para ela. Finalmente, aproximou-se dela: as suas pupilas brilhavam. Pôs-lhe as mãos sobre os ombros e olhou-a diretamente nos olhos assustados. O olhar dele era sanguinário, agudo, e os lábios tremiam-lhe com força... De súbito agachou-se rapidamente e, ajoelhando-se no chão, beijou-lhe os pés. Sônia, assustada, afastou-se dele como de um louco. E, de fato, ele tinha todo o aspecto dum demente.

- Que faz o senhor, que faz o senhor diante de mim? - balbuciou ela, depois de ter empalidecido, e, de repente, sentiu que o coração se lhe apertava dolorosamente.

Ele se ergueu imediatamente.

- Eu não me ajoelhei diante de ti, mas diante de toda a dor humana - disse ele num tom estranho, e retirou-se para junto da janela. - Escuta - acrescentou, voltando para junto dela, passado um minuto -, eu, há pouco, disse a um desavergonhado que ele não valia nem o que vale o teu dedo mínimo... e que eu tinha dado uma honra à minha irmã ao sentá-la ao teu lado.

- Ah! Mas o senhor disse-lhe isso? Diante dela? - exclamou Sônia assustada. - Sentar-se ao meu lado? Uma honra! Mas se eu... olhe... eu estou desonrada... Ah, o que o senhor lhe disse!

- Não foi pela desonra nem pelo pecado que eu disse isso de ti, mas pelo teu grande sofrimento. Que tu és uma grande pecadora, é verdade - acrescentou quase com solenidade -, mas o pior de tudo, aquilo em que mais pecaste foi por te teres entregue e sacrificado em vão. Não é um horror, não é um horror que tu vivas neste lodo que eu tanto odeio, e ao mesmo tempo tu própria saibas (não precisas de mais senão de abrir os olhos) que não és útil a ninguém, com isto, e que não salvas ninguém de nada? Mas dize-me finalmente - continuou, como num paroxismo - como é possível que coexistam em ti tanta baixeza e vileza e outros sentimentos opostos e sagrados? Teria sido muito melhor, mil vezes melhor, atirar-se à água e acabar de uma vez!

- E que seria deles? - perguntou Sônia com voz fraca, olhando-o dolorosamente, mas, ao mesmo tempo, como se a proposta não lhe causasse grande admiração.

Raskólhnikov olhava-a de uma maneira estranha. E compreendeu tudo nesse olhar. Com certeza que essa idéia já passara pela cabeça dela. Talvez até muitas vezes, e com toda a seriedade, tivesse pensado, no seu desespero, em acabar de uma vez, e por isso, agora, aquelas palavras dele já não a admiravam. Nem sequer reparava na crueldade da sua linguagem (não havia dúvida que não reparara no sentido das suas censuras e na sua maneira especial de considerar a sua desonra), foi o que ele notou. Mas Raskólhnikov compreendia perfeitamente até que ponto de monstruoso suplício a torturava, a ela, já algum tempo, a idéia da desonra e da vergonha da sua situação. "Que será, que será", pensava ele, "que tem podido conter até agora a sua resolução de acabar de uma vez?" E só então se apercebeu cabalmente do que significavam para ela aqueles pobres orfãozinhos e aquela lamentável Ekatierina Ivânovna, meio ensandecida, com a sua tísica e as suas cabeçadas contra as paredes.

Mas, ao mesmo tempo, também compreendia claramente que Sônia, com o seu caráter e a educação que recebera, não podia, de maneira nenhuma, continuar assim. Fosse como fosse, o problema surgia diante dele: como pudera ela continuar tanto tempo naquela situação sem perder o juízo, visto que lhe faltara coragem para se atirar à água? Era certo que ele compreendia que a situação de Sônia representava um fenômeno acidental na sociedade, embora, infelizmente, estivesse longe de ser único e exclusivo. Mas essa mesma acidentalidade, essa sua vaga educação e toda a honestidade da sua vida teriam podido matá-la de um golpe ao primeiro passo daquele repugnante caminho. Que a sustinha, então? Não seria o gosto da libertinagem? Toda aquela vergonha, que era evidente, só a roçava a ela de um modo maquinal; da verdadeira corrupção ainda não chegara ao seu coração nem uma ponta, era bem evidente.

"Há três caminhos", pensava Rodion, "atirar-se ao canal, ir parar a um manicômio ou... ou, por fim, atirar-se ao vício, embrutecendo a alma e petrificando o coração."

Este último pensamento pareceu-lhe o mais repugnante de todos, mas ele já era cético, era novo, indiferente e talvez cruel, e não podia acreditar que esse último recurso, isto é, o vício, fosse o mais provável.

"Mas e se fosse certo", murmurou para si, "se inclusivamente esta criatura, que ainda conserva a sua pureza de alma, se lançasse conscientemente nesta terrível e hedionda cloaca? E se já tivesse começado essa queda, se ela só pudesse ter agüentado até agora aquela vida, porque o vício não lhe parecia tão repugnante? Não, não, isso não pode ser", exclamava ele, como Sônia, há pouco. "Não, do canal tem-na afastado até agora a idéia do pecado, e eles também... Se até agora não endoideceu... Mas quem é que disse que ela não perdeu já a razão? Estará, por acaso, em seu perfeito juízo? É possível, por acaso, falar como ela fala? É possível estar sentado assim, à beira dum abismo, precisamente em cima de um fétido cano de esgoto, no qual começou já a afundar-se, e a agitar as mãos, e a tapar os ouvidos, quando se ouve falar de perigo? Que milagre espera ela? Naturalmente, algum. E não será tudo isso um indício de loucura?"

Aferrava-se a essa idéia, com teimosia. Agradava-lhe mais essa saída do que as outras. Pôs-se a considerá-la com mais atenção.

- Rezas muito a Deus, Sônia? - perguntou-lhe. Sônia permanecia calada; ele estava de pé ao seu lado e esperava a resposta.

- Que seria de mim sem Deus? - balbuciou ela rápida, energicamente; fixou nele por momentos os seus olhos brilhantes e, pegando-lhe na mão, estreitou-a fortemente entre as suas.

"Lá isso é verdade!", pensou ele.

- Mas que é que Deus faz por ti? - perguntou, levando mais longe a sua experiência.

Sônia ficou muito tempo calada, como se não pudesse responder. O seu peito fraco tremia de comoção.

- Cale-se! Não me pergunte! O senhor não é digno! - gritou, de repente, lançando-lhe um olhar severo e colérico.

"É verdade, é verdade!", repetia ele, teimoso, para consigo.

- Faz muito! - murmurou ela rapidamente, tornando a baixar a cabeça. "Aí está o recurso! Aí está a explicação do recurso!", decidiu ele mentalmente, olhando-a com uma curiosidade ávida.

Contemplava com uma sensação quase doentia aquela carinha pálida, vincada e de feições irregulares e angulosas, com aqueles olhinhos pequeninos, azuis, capazes de lançar tais cintilações, de brilhar com uma expressão tão austera e enérgica; aquele corpinho frágil, que tremia ainda de indignação e de cólera, e tudo aquilo lhe parecia cada vez mais estranho, quase impossível. "Louca, louca!", concluiu no seu íntimo.

Sobre a cômoda havia um livro. Cada vez que lhe passava em frente, nos passeios de um lado para o outro, fixava os olhos sobre ele; agora pegou-lhe e examinou-o. Era o Novo Testamento, na sua versão russa. Era um livro velho e engordurado, encadernado em couro.

- De onde vem isto? - gritou-lhe, através do quarto. Ela continuava de pé, imóvel no mesmo lugar, a três passos da mesa.

- Trouxeram-no - respondeu ela, como se o fizesse de má vontade e sem olhar para ele.

- Quem é que to trouxe?

- Foi Lisavieta, a meu pedido. "Lisavieta? É estranho!", pensou ele.

Tudo quanto dizia respeito a Sônia lhe parecia cada vez mais estranho e assombroso. Aproximou o livro da luz e pôs-se a folheá-lo.

- Onde é que está a passagem sobre Lázaro? - perguntou de repente. Sônia olhava obstinadamente para o chão e não respondeu. Estava um pouco afastada da mesa.

- O lugar em que fala da ressurreição de Lázaro? Procura-mo, Sônia. Ela olhou para ele de soslaio.

- Não procure aí... é no quarto Evangelho... - murmurou com dureza, sem dar um passo para ele.

- Procura-mo e lê-mo - disse ele.

Raskólhnikov sentou-se, pôs os cotovelos em cima da mesa, segurou a cabeça com as mãos e inclinou-se um pouco de lado para escutar. "Dentro de três semanas, para o manicômio! Também eu, provavelmente, irei para aí, senão para outro lugar pior!", murmurou para consigo. Sônia aproximou-se, indecisa, da mesa, escutando com receio o desejo de Raskólhnikov. Mas pegou o livro.

- Mas não o leu? - perguntou, olhando para ele do outro lado da mesa. A sua voz era cada vez mais dura.

- Há muito tempo... Na escola... Lê! - E na igreja não leu?

- Eu... não vou à igreja. E tu, vais muitas vezes? - Não! - balbuciou Sônia.

Raskólhnikov pôs-se a rir.

- Compreendo... E amanhã, não vais ao enterro do teu pai?

- Hei de ir. Já lá estive a semana passada. Mandei dizer um responso. - Por quem?

- Por Lisavieta. Foi morta a machadadas.

Ele sentia os nervos cada vez mais crispados. Começou a sentir a cabeça andando à roda.

- Eras amiga de Lisavieta?

- Sim... Ela era muito boa... Vinha visitar-me... de quando em quando... Não podia. Líamos as duas e... falávamos. Ela irá para o céu. Soavam de uma maneira estranha aos seus ouvidos aquelas palavras livrescas; e outra vez a novidade: aquelas entrevistas misteriosas com Lisavieta, e as duas... umas tresloucadas.

"Também eu hei de acabar assim. É contagioso!", pensou. - Lê! - exclamou, de repente, imperativo e excitado.

Sônia continuava indecisa. O seu coração batia com violência. Não se atrevia a ler para ele, que contemplava quase com pena aquela pobre louca. - Mas para que hei de eu ler-lhe seja o que for? Se o senhor não acredita! - balbuciou em voz baixa e anelante.

- Lê! Quero que leias! - insistiu ele. - Não lias a Lisavieta? Sônia abriu o livro e procurou a passagem. As mãos tremiam-lhe, a voz não lhe saía. Começou a leitura por duas vezes e não chegou a articular claramente nem a primeira palavra.

- "Estava então enfermo um certo Lázaro, de Betânia..." - proferiu finalmente, fazendo um esforço; mas, de súbito, à terceira palavra a sua voz vibrou aguda e quebrou-se, como uma corda demasiado tensa. Faltava-lhe a respiração e o peito oprimia-se-lhe.

Raskólhnikov compreendia, em parte, por que é que Sônia não se decidia a ler-lhe, e quanto melhor compreendia, tanto mais grosseiramente e com maior nervosismo insistia para que ela lesse. Compreendia perfeitamente que aqueles sentimentos constituíam, efetivamente, de certo modo, o seu segredo, talvez desde a sua adolescência, quando vivia ainda com a família, junto de seu desgraçado pai e da madrasta, enlouquecida de amargura, entre umas criaturinhas famélicas, gritos e imprecações monstruosos. Mas, ao mesmo tempo, reconhecia, e reconhecia decididamente, que, ainda que ela agora estivesse aflita e tivesse um medo horrível de começar a leitura, por qualquer motivo, sentia no entanto uma ansiedade dolorosa de fazê-lo, apesar de toda a sua tristeza e inquietação, e sobretudo para ele, para que escutasse agora, infalivelmente... acontecesse depois o que acontecesse... Era isto o que ele lia nos olhos dela e deduzia da sua comoção tão séria... Ela fez um esforço, dominou o aperto da garganta, que lhe cortara a voz, e continuou a ler o capítulo XI do Evangelho de São João. Chegou assim ao versículo XIX:

- "E muitos dos judeus tinham vindo para junto de Marta e de Maria, para consolá-las por causa do irmão. Então Marta, como ouviu que Jesus vinha, saiu ao seu encontro; Maria ficou em casa. E Marta disse a Jesus: “senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não estaria morto. Mas também sei agora que tudo o que pedires a Deus, Deus to dará..."' Então tornou a parar, pressentindo, envergonhada, que a voz tornava a tremer-lhe e a ficar entrecortada...

- "... Disse-lhe Jesus: “O teu irmão ressuscitará'. Marta disse-lhe: “Eu sei que ressuscitará na ressurreição, ao último dia'. Disse-lhe Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida; aquele que acreditar em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá eternamente. Acreditas nisso?' Disse-lhe..."

E, como se dolorosamente lhe faltasse o alento, Sônia leu distintamente e com energia, como se estivesse fazendo a sua profissão de fé:

- "... Sim, Senhor, eu acreditei que Tu eras o Cristo, o Filho de Deus, que veio ao mundo...”

Fez uma pausa, lançou um olhar rápido aos olhos dele, mas em seguida dominou-se e continuou a leitura. Raskólhnikov escutava-a sem fazer um movimento, sem se voltar, de cotovelos sobre a mesa e olhando de soslaio. Ela chegou ao versículo XXXII:

- "... E, como Maria tivesse vindo para o lugar onde estava Jesus, lançou-se a seus pés, dizendo-lhe: “senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não estaria morto'. Como Jesus a visse chorar, a ela e aos judeus que tinham vindo juntamente com ela, comoveu-se em espírito e perturbou-se. E disse: “Onde o pusestes?' Disseram-lhe: “senhor, vem e vê'. E Jesus chorou. Disseram então os judeus: “Olhai como o amava'. E alguns deles disseram: “não podia Este, que abriu os olhos do cego, fazer com que este homem não morresse?..."'

Raskólhnikov voltou-se para ela e contemplou-a comovido. "É isso mesmo." Toda ela tremia como se estivesse com febre. Era o que ele esperava. Ela se aproximava da narrativa do maior e mais inaudito milagre, e um sentimento de grande solenidade a possuía. A sua voz tornou-se vibrante, metálica; o entusiasmo e a alegria ressoavam na sua voz e apoiavam-na. As linhas confundiam-se diante dos seus olhos, porque estes se lhe nublavam de lágrimas; mas ela sabia de cor o que ia lendo; quando chegou ao último versículo: "Não podia Este, que abriu os olhos do cego?", baixando a voz, ela exprimiu ardente e apaixonadamente a dúvida, a censura e a maldade dos incrédulos, dos torpes judeus, que logo a seguir, um minuto depois, apenas, como feridos por um raio, iam tombar por terra, romper em soluços e acreditar... "E ele, ele também, cego e incrédulo, também ele ouvirá imediatamente e também acreditará, sim, sim. Agora mesmo!", sonhava ela, e tremia na sua jubilosa expectativa.

- ..."E Jesus, comovendo-se outra vez no seu íntimo veio até o sepulcro. Era uma cova, que tinha uma pedra em cima. Jesus disse: “tirem a pedra'. Marta, a irmã do morto, disse-lhe: “senhor, vede que está já de quatro dias...” E pronunciou intencionalmente a palavra "quatro".

- "... Jesus disse-lhe: “não te disse eu que, se acreditares, verás a glória de Deus?' Então tiraram a pedra da cova onde o morto tinha sido posto. E Jesus, erguendo os olhos ao alto, disse: “Pai, dou-Te graças por me teres ouvido. Eu sabia que Tu me ouves sempre, mas disse-lhe isto por causa do povo que está à minha volta, para que acreditem que foste Tu que me enviaste'. E, depois de ter dito isso, gritou em voz muito alta: “Lázaro, sai...' E aquele que estava morto saiu..."

Ela lia com voz forte e solene, tremente e transida de frio, como se tivesse visto tudo aquilo com os seus próprios olhos.

- "... tinha as mãos e os pés ligados com ataduras, e o rosto envolvido num sudário. Disse-lhe Jesus: “desatem-no e deixem-no ir'. Então muitos dos judeus que tinham vindo ter com a casa de Maria e viram o que Jesus fizera acreditaram nele."

A leitura ficou por aqui, pois ela já não podia continuar, e, fechando o livro, levantou-se rapidamente da cadeira.

- Isto é tudo o que há a respeito da ressurreição de Lázaro - murmurou com voz cortante e dura, e ficou imóvel, meio voltada de costas, sem se atrever a erguer os olhos para ele, como se estivesse envergonhada. Continuava ainda a agitá-la um tremor febril. A luzinha que, havia já algum tempo, começara a consumir-se no candeeiro iluminava vagamente naquele mísero quarto um assassino e uma prostituta, estranhamente reunidos para ler o livro eterno. Decorreram cinco ou mais minutos.

- Vim para te dizer uma coisa - declarou Raskólhnikov de repente, com voz rouca e franzindo o sobrolho; levantou-se e aproximou-se de Sônia. Esta ergueu os olhos para ele, em silêncio. Os dele estavam especialmente severos e denunciavam como que uma selvagem resolução.

- Abandonei hoje a minha família - disse -, a minha mãe e a minha irmã. Não tornarei para junto delas.

- Por quê? - perguntou Sônia, assombrada. O seu encontro recente com a mãe e com a irmã dele lhe deixara uma impressão extraordinária, embora confusa para si própria. Escutou a notícia da ruptura quase com espanto.

- Eu, agora, não tenho mais ninguém senão tu - acrescentou ele. - Passemos a viver juntos. Venho buscar-te. Se somos os dois malditos, unamo-nos então!

Os olhos cintilavam-lhe: "Parece um louco!", pensou Sônia por sua vez. - Mas para onde vamos? - perguntou ela, assustada, e, involuntariamente, retrocedeu.

- Sei lá! Só sei que havemos de seguir um mesmo caminho, isto é que eu sei... Apenas isso! Um mesmo fim!

Ela olhava para ele e não compreendia. Compreendia unicamente que ele era terrível, infinitamente desgraçado.

- Nenhum deles te compreenderá nunca se lhes falares - continuou -, mas eu te compreendo. Tu me eras necessária, por isso vim buscar-te. - Não compreendo... - balbuciou Sônia.

- Depois hás de compreender-me. Não fizeste tu, por acaso, o mesmo que eu? Tu também infringiste a norma... Foste capaz de infringi-la. Tu levantaste a mão contra ti própria, perdeste para sempre a tua vida... A tua (tanto faz!). Tu podias ter vivido pelo espírito e pela razão e vieste parar ao Mercado do Feno... Mas tu não te podes manter e, se ficas sozinha, acabarás por perder o juízo, como eu. Já estás meio louca; nós os dois devemos caminhar juntos pelo mesmo caminho. Vamos!

- Por quê? Por que diz isso? - exclamou Sônia, estranha e violentamente comovida por aquelas palavras.

- Por quê? Por que é impossível ficarmos assim... Por isso! Acaba por ser necessário julgar as coisas reta e seriamente e não chorar e gritar como crianças, porque Deus não o consentirá! Porque vamos ver, afinal: que será de ti se amanhã te levam para um hospital? A outra está transtornada e tísica, e não tardará a morrer. E os pequenos? Não irá Pólietchka cair na perdição? Não vês por aqui, pelas ruas, crianças que as mães mandam pedir esmola? Eu sei muito bem onde vivem essas mães e em que tugúrios. Aí não é possível que as crianças se conservem crianças. Aí há prostitutas e ladrões de sete anos. E, bem sabes, as crianças são a imagem de Cristo: delas é o reino de Deus. Mandou que as honrássemos e amássemos; elas são a futura humanidade...

- Mas que hei eu de fazer? - repetia Sônia com um choro histérico e torcendo as mãos.

- Que fazer? Romper de uma vez para sempre, só isso, e suportar a dor. O quê? Não me compreendes? Hás de compreender-me depois... Liberdade e poder, sobretudo poder! Sobre toda a criatura que treme e sobre todo o formigueiro! É esse o objetivo! Vê se compreendes! É esse o testamento que eu te deixo! Talvez eu esteja falando contigo pela última vez. Se não vier ver-te amanhã, hás de saber tudo por ti mesma, e então recorda-te das palavras que agora te digo. E talvez algum dia, passados anos, ao longo da vida, chegues a compreender o que elas significam. Se vier amanhã dir-te-ei quem matou Lisavieta. Adeus!

Sônia tremia de medo.

- Mas sabe quem a matou? - perguntou, transida de espanto e olhando para ele assombrada.

- Sei e hei de dizer-to... A ti, só a ti! Escolhi-te a ti. Não virei pedir-te perdão, mas simplesmente dizer-to. Há já algum tempo que te escolhi a ti para to dizer, desde que o teu pai me falou de ti, e quando Lisavieta ainda era viva já o pensara. Adeus! Não me dês a mão. Até amanhã!

Saiu. Sônia seguiu-o com a vista, como a um louco; e ela própria também se sentia como louca. A cabeça andava-lhe à roda.

"Senhor! Como pode ele saber quem é que matou Lisavieta? Que quererão dizer aquelas palavras? Que horrível é tudo isto!" Mas, no entanto, aquela idéia não lhe passava pelo pensamento. "Nunca! Nunca! Oh, deve ser espantosamente infeliz! Abandonou a mãe e a irmã. Por quê? Que se teria passado? Quais serão as suas intenções?" Que lhe dissera ele? Beijou-lhe os pés e disse-lhe... disse-lhe (sim, isso disse-o com bastante clareza) que não podia viver sem ela... "Oh, Senhor!"

Passou toda a noite com febre e delirando. Às vezes sobressaltava-se, chorava, torcia as mãos; depois voltava a amodorrar-se numa sonolência febril e sonhava com Pólietchka, com Ekatierina Ivânovna, com Lisavieta, com a leitura do Evangelho, e com ele... Com ele, com o seu rosto pálido e os seus olhos de fogo... Beijava-lhe os pés, chorava... Oh, Senhor!

Do outro lado da porta da direita, daquela mesma porta que separava o quarto de Sônia do de madame Kárlovna Resslich, havia um quarto contíguo que já há muito tempo estava vazio, pertencente ao andar da senhora Resslich, que esta alugava, tendo posto um cartãozinho na porta da casa e escritos nas janelas que davam para o canal. Havia algum tempo que Sônia se acostumara a considerar esse quarto desabitado. E, no entanto, durante todo esse tempo, por detrás da porta do aposento vazio, o senhor Svidrigáilov estivera espreitando e escutando. Quando Raskólhnikov saiu ele continuou no seu posto, meditando, e depois voltou nas pontas dos pés para o seu quarto, que ficava pegado a esse que estava desabitado, pegou uma cadeira e, sem fazer barulho, encostou-a à porta que dava para o quarto de Sônia. O diálogo tinha-lhe parecido interessante e significativo, e muito a seu gosto... tão de seu gosto que levou para ali a cadeira a fim de, para a outra vez, no dia seguinte, por exemplo, não ter de suportar novamente o incômodo de estar de pé uma hora inteira e instalar-se comodamente, para poder estar a seu gosto, em todos os sentidos.

 

Quando na manhã seguinte, às onze em ponto, Raskólhnikov entrou no comissariado, na seção do juiz de instrução, e pediu que anunciassem a sua visita a Porfíri Pietróvitch, ele próprio se admirou que demorassem tanto a recebê-lo; decorreram pelo menos dez minutos até que o mandassem entrar. Segundo os seus cálculos deviam tê-lo feito entrar imediatamente. E, no entanto, ali estava ele no vestíbulo e pela sua frente passavam indivíduos que, evidentemente, não reparavam na sua presença. Na sala contígua, que tinha aspecto de repartição, havia alguns escriturários de pena em punho, e era evidente que nenhum deles fazia a menor idéia de quem fosse um tal Raskólhnikov. Ele seguia com olhos inquietos e desconfiados tudo quanto se passava à sua volta, inspecionando; "Não haverá por aqui perto algum guarda, algum olhar secreto encarregado de espiar-me, para que não fuja?" Mas não havia nada disso, havia apenas as caras dos empregados, muito atentos ao seu trabalho, e algum ou outro indivíduo, nenhum dos quais nem reparava nele sequer, ainda que percorresse os quatro cantos da sala. Cada vez se firmava com mais força na idéia de que se, de fato, aquele homem enigmático do dia anterior, aquele fantasma saído de debaixo do chão, soubesse tudo e tivesse visto tudo... havia de deixá-lo à solta, como o estava deixando? E, além disso, não o teriam esperado tranqüilamente até as onze, até que lhe tivesse apetecido apresentar a sua declaração... Concluía-se que, ou aquele homem não tinha vindo ainda acusá-lo, ou ... ou, simplesmente, que também ele não sabia de nada, nem vira nada pelos seus próprios olhos (e como podia tê-lo visto!), e que tudo o que lhe sucedera, a ele, Raskólhnikov, no dia anterior, não fora mais que uma aparição, avultada pela sua imaginação excitada e doente. Esta explicação já no próprio dia anterior, no momento do seu maior medo e desolação, começara a criar raízes dentro de si. Depois de pensar em tudo isso, agora, e quando se preparava para uma nova luta, sentiu de repente que estava tremendo... e até ferveu de indignação só com a idéia de que podia tremer de medo perante aquele odioso Porfíri Pietróvitch. O mais terrível para ele era ter de ver-se outra vez em frente daquele homem; sentia por ele uma aversão sem limites, infinita, e até temia que esse ódio pudesse fazê-lo atraiçoar-se de qualquer maneira. E a sua indignação era tão veemente que o seu tremor cessou imediatamente; preparou-se para entrar com um aspecto sereno e altivo, e a si próprio jurou que havia de limitar-se, na medida do possível, a calar-se, a olhar, e que dessa vez pelo menos, acontecesse o que acontecesse, havia de dominar o seu temperamento, doentiamente irritável. Precisamente nesse instante chamaram-no da parte de Porfíri Pietróvitch.

Por acaso, nesse momento, Porfíri Pietróvitch encontrava-se só no seu gabinete. Este era uma sala de tamanho razoável, na qual havia uma grande mesa-escrivaninha diante de um divã forrado de oleado encerado, um bureau, um armário num canto e algumas cadeiras, tudo móveis do Estado, de madeira amarela, e que começavam já a perder o verniz. Num canto, na parede do fundo, ou, para melhor dizer, no tabique, havia uma porta fechada; aí, do outro lado do tabique, devia haver, provavelmente, outras salas. Quando Raskólhnikov entrou, Porfíri Pietróvitch fechou imediatamente a porta por onde ele entrara e ficaram os dois absolutamente sozinhos. Aparentemente acolheu o seu visitante da maneira mais jovial e amável, e só passados alguns minutos Raskólhnikov, em virtude de certos indícios, lhe notou uma certa ansiedade... como se o tivessem vindo distrair de repente ou o tivessem apanhado em qualquer atitude muito íntima e secreta.

- Olá, meu caro! Já o temos aqui... nos nossos domínios... - começou Porfíri, estendendo-lhe as duas mãos. - Bem, sente-se, bátiuchka! Ou talvez não queira que lhe chame meu caro nem... bátiuchka... assim, tout court. Não leve isto à conta de familiaridade... Para aqui, venha para aqui, para o divãzinho.

Raskólhnikov sentou-se sem tirar os olhos de cima dele.

"Nos nossos domínios"; aquela desculpa por causa da familiaridade, aquela frasezinha francesa tout court etc. etc., tudo aquilo eram sinais característicos. "Mas, no entanto, estendeu-me as duas mãos e não chegou a dar-me nenhuma; retirou-as a tempo", pensou, desconfiado. Vigiavam-se mutuamente, mas, quando os seus olhares se cruzavam, ambos os desviavam com uma rapidez fulminante.

- Trago-lhe um documento referente ao relogiozinho... Aqui tem. Está bem redigido ou será preciso fazê-lo outra vez?

- O quê? O documento? Sim, sim, não se preocupe, assim está bem - disse Porfíri Pietróvitch, como se tivesse pressa de qualquer coisa, e, dizendo isso, pegou o papel e deitou-lhe uma vista de olhos. - Sim, é isto, precisamente. Não é preciso mais nada - afirmou com a mesma precipitação nas palavras e deixou o papel em cima da mesa. Depois, passado um minuto, falando já de outra coisa, tornou a tirá-lo dali e colocou-o no seu bureau.

- O senhor, segundo me parece, disse-me ontem que desejava interrogar-me... oficialmente... acerca do meu conhecimento com essa... mulher que foi assassinada - disse Raskólhnikov retomando o diálogo. "Mas vamos ver, a que propósito veio isto de “segundo me parece'?", foi a idéia que lhe passou pela cabeça, como um raio.

E de repente sentiu que a sua irritabilidade, só ao contato com Porfíri e apenas perante aquelas duas palavras e dois olhares, se tinha já expandido num instante em proporções assombrosas... e que isso era terrivelmente perigoso; os seus nervos crispavam-se e a sua agitação aumentava cada vez mais. "Mau! Mau, mau! Vou outra vez dar com a língua nos dentes!" - Sim... sim... sim! Não se preocupe! Temos tempo, temos tempo - murmurou Porfíri Pietróvitch dando voltas em torno da mesa, mas sem objetivo algum, dirigindo-se ora para a janela, ora para o bureau, voltando outra vez para junto da mesa, evitando o olhar desconfiado de Raskólhnikov e ficando outras vezes parado e a olhá-lo fixamente no rosto. A sua figura pequenina, gordalhufa e redonda como uma bola que parecia rolar em várias direções, e embater de seguida contra todas as paredes e todos os cantos, ficava assim muito estranha. - Temos tempo, temos tempo! Fuma? Tem cigarros? Então aqui tem um - continuou, oferecendo um cigarro ao seu visitante. - Olhe, recebo-o aqui, mas tenho a minha instalação particular ali, do outro lado do tabique... casa fornecida pelo Estado; mas, agora, de momento, tenho uma casa noutro lugar. Era preciso fazer umas obras aqui. Agora já estão quase prontas... Moradia à custa do Estado, sabe? É uma grande coisa, não é verdade? Não lhe parece?

- Lá isso é, é uma grande coisa - respondeu Raskólhnikov olhando-o quase com sarcasmo.

- Uma grande coisa, uma grande coisa... - repetia Porfíri Pietróvitch como se, de repente, se tivesse posto a pensar em qualquer coisa de completamente diferente. - Sim, uma grande coisa! - exclamou gritando qual se, para terminar, fixando subitamente o olhar sobre Raskólhnikov e parando a dois passos dele. Essa monótona e estúpida reiteração, de que a moradia à custa do Estado era uma grande coisa, contrastava demasiadamente pela sua vulgaridade com o olhar sério, preocupado e enigmático com que fulminava agora o seu visitante.

E isso veio agravar ainda mais a cólera de Raskólhnikov, o qual não pôde dominar-se e proferiu um desafio sarcástico e bastante imprudente: - Sabe uma coisa? - perguntou de repente, olhando-o quase com insolência e como se encontrasse prazer nessa insolência. - Segundo parece, há uma regra jurídica, um procedimento jurídico aplicável a todos os processos possíveis, que é o de começar de longe, por pormenores ou por qualquer coisa séria mas completamente secundária, com o fim de, por assim dizer, animar; ou, para melhor dizer, distrair o interrogado, adormecer a sua vigilância e, depois, de repente, da maneira mais inesperada, fazer-lhe de chofre uma pergunta fatal e perigosa. Não é assim? Parece que este processo continua a mencionar-se religiosamente em todos os manuais e textos, não é verdade?

- Assim é, de fato, assim é... Mas o senhor pensa que eu lhe falei da moradia do Estado para... hem? - e depois de dizer isso Porfíri Pietróvitch fez uma careta e piscou os olhos; as rugas miúdas da sua testa tornaram-se mais visíveis, mas apagaram-se logo a seguir, os olhos tornaram-se ainda menores, as feições dilataram-se-lhe e, de repente, desatou num riso nervoso, longo, ao mesmo tempo que retorcia todo o corpo e olhava Raskólhnikov de frente, nos olhos. Este começou também a rir-se um pouco, fazendo para isso um esforço sobre si mesmo; mas quando Porfíri, ao ver que ele também se ria, sofreu um tal acesso de riso que ficou quase completamente vermelho, então a repugnância de Raskólhnikov ultrapassou repentinamente toda a prudência; deixou de se rir, franziu o sobrolho e ficou olhando longa e rancorosamente para Porfíri, sem tirar a vista de cima dele, enquanto durava aquele riso prolongado, que intencionalmente parecia não desejar dominar. Aliás, a imprudência era visível nos dois; era como se Porfíri se risse na própria cara do visitante, ao qual aquele riso ficava tão mal, e não se perturbava de maneira alguma por semelhante circunstância. Este último fato era muito significativo para Raskólhnikov; este compreendia que Porfíri Pietróvitch também não se atrapalhara, e que, pelo contrário, era ele, Raskólhnikov, quem se deixara cair na armadilha; que com certeza havia até de permeio qualquer coisa que ele ignorava, qualquer intenção; que talvez estivesse tudo preparado, e que logo a seguir, naquele mesmo instante, acabasse por revelar-se e ficar a claro...

Foi imediatamente direito ao assunto, levantou-se do seu lugar e pegou o gorro:

- Porfíri Pietróvitch - disse resolutamente, mas bastante excitado. - O senhor, ontem, exprimiu o desejo de que eu viesse aqui para me fazer não sei que interrogatório - acentuou especialmente a palavra "interrogatório". - Aqui estou, e, se quiser interrogar-me, pode começar já; senão, permita que me retire. Não posso perder tempo, tenho de ir tratar de um assunto... Tenho de assistir ao enterro desse funcionário atropelado por uma carruagem, que o senhor... já sabe... - acrescentou, e imediatamente ficou aborrecido consigo próprio por causa daquela declaração, excitando-se depois ainda mais. - A mim, tudo isto já me aborrece, sabe o senhor? E já há muito tempo... e pode ser que, em parte, a minha doença seja por causa disto tudo; em resumo: queira interrogar-me ou deixe-me sair... agora mesmo; mas, se me interrogar, faça-o de acordo com a lei. De outra maneira não me presto a isso e, entretanto, adeus, pois agora não temos nada que fazer os dois.

- Senhor! Mas que lhe aconteceu? Sobre que hei eu de interrogá-lo? - exclamou Porfíri mudando inteiramente de tom e de aspecto e acabando com o seu riso num abrir e fechar de olhos. Mas não se preocupe, por favor - encareceu, solícito, tornando a passear agitadamente de um lado para o outro e parando de repente para fazer sentar Raskólhnikov. - Há tempo de sobra, há tempo de sobra, e tudo isto são apenas pormenores! Eu, pelo contrário, estou muito contente porque tenha vindo visitar-me... Considero-o um hóspede. E por causa desse maldito riso, o senhor, meu caro Rodion Românovitch, desculpe-me... É Rodion Românovitch? É este o seu nome? Sou muito nervoso e o senhor fez-me rir com a agudeza da sua observação; às vezes, é verdade, ponho-me a rebolar como uma bola de borracha e fico assim uma boa meia hora... Gosto de rir. Tenho medo de uma paralisia, dado o meu temperamento. Mas sente-se ... que tem? Faça favor, meu caro, senão hei de pensar que está aborrecido...

Raskólhnikov conservava-se calado, escutava e observava, cada vez mais iracundo. Aliás, sentou-se sem largar o gorro das mãos.

- Vou dizer-lhe uma coisa a meu respeito, meu caro Rodion Romãnovitch, para explicar-lhe, por assim dizer, o meu caráter - continuou Porfíri Pietróvitch, dando voltas pela sala e parecendo, como há pouco, querer evitar que o seu olhar se cruzasse com o do visitante. - Eu, repare, sou solteiro, sou desconhecido e também não conheço ninguém, e, além disso, sou um homem acabado, um homem endurecido, que se deixou ficar na sua concha e... e... e não sei se já reparou, Rodion Românovitch, que entre nós, aqui, na Rússia, e sobretudo no nosso ambiente petersburguês, que, quando se encontram dois homens inteligentes, que ainda não se conhecem bem, mas que, por assim dizer, se respeitam mutuamente, como sucede conosco neste caso, ficam uma meia hora sem acharem um tema para a conversa... e ficam muito hirtos um em frente do outro, atrapalhados. Toda a gente tem um assunto para conversar; as senhoras, por exemplo... e as pessoas da alta sociedade, nunca lhes falta sobre que falar, c'ést de rigueur; mas os indivíduos da classe média, como nós, ficam atrapalhados e não conseguem dizer nada... Quero eu dizer com isto que são tímidos. A que será devido isto, meu caro? Será que não teremos interesse pelos assuntos sociais ou será que somos muito honestos e não nos queremos enganar uns aos outros? Eu não sei. Que lhe parece? Mas deixe o gorro, assim parece que está disposto a ir-se já embora; faz-me verdadeiramente pena vê-lo assim... Eu, pelo contrário, estou tão contente...

Raskólhnikov largou o gorro e continuou calado, sério e sombrio, escutando o vazio e incoerente palavreado de Porfíri. "Dar-se-á o caso de que a sua verdadeira intenção seja a de distrair a minha atenção com a sua estúpida loquacidade?"

- Café, não lhe ofereço, não é lugar para isso; mas por que não há de passar cinco minutos com um amigo, para se distrair? - continuou Porfíri sem interrupção. - E já sabe, todos esses deveres de cortesia... Olhe, meu caro, não se ofenda por eu andar às voltas de um lado para o outro; desculpe-me, bátiuchka; tenho muito medo de ofendê-lo, mas este exercício é-me imprescindível. Estou sempre sentado e para mim é uma alegria poder estar cinco minutos em movimento... as hemorróidas... tenciono tratá-las por meio da ginástica; dizem que homens de Estado, e até conselheiros secretos saltam corda regularmente; repare, é o que a ciência quer, no nosso tempo... é assim mesmo... Mas, quanto a esses deveres daqui, interrogatórios e outros requisitos... repare, meu caro, foi o senhor quem se referiu a isso há pouco; de fato, foi o senhor quem falou disso... e veja uma coisa: na realidade, esses interrogatórios, às vezes, desorientam mais o que interroga do que o interrogado... A este respeito já o senhor, meu caro, fez há um momento uma observação tão justa como aguda. - Raskólhnikov não tinha feito tal observação. - É um engano! Um autêntico engano! Porque, afinal, continua tudo na mesma, tudo na mesma, como a lesma! Mas qualquer dia temos aí a reforma e, pelo menos, hão de tratar-nos de outra maneira, he... he... he! Mas, pelo que respeita aos nossos costumes jurídicos (segundo a sua exata expressão), estou absolutamente de acordo com o senhor. Mas vamos lá a ver, diga-me uma coisa: qual dos nossos acusados, inclusivamente o mais lorpa, não saberá que a princípio deverão interrogá-lo acerca de coisas secundárias (conforme a sua feliz expressão), para depois, de repente, assestar-lhe uma machadada em cheio, na cabeça, he, he, he. Segundo o seu acertado símile. He... he! De tal maneira que, por causa disso, o senhor, no fundo, chegou a pensar que eu lhe falava da moradia por conta do Estado... He, he! É um trocista. Bem, não faço nada com o senhor! Ah, sim, de fato, uma palavra chama outra, um pensamento sugere outro! Foi o que o senhor disse ontem também, referindo-se à forma dos interrogatórios, não sei se sabe, dos interrogatórios... Mas que importa a forma! A forma, em muitos casos, fique sabendo, representa um absurdo. Às vezes dá mais resultado conversar amigavelmente. A forma nunca desaparecerá; a respeito disto posso eu responder-lhe; mas que é a forma, na realidade?, pergunto-lhe eu. Não é possível manietar a cada passo o juiz de instrução por causa da forma. A função do juiz de instrução é, por assim dizer, uma arte livre, no seu gênero, ou qualquer coisa do gênero... He... he... he!

Porfíri Pietróvitch parou um momento para tomar alento. Falava sem parar, atirando à toa frases ocas, e de repente soltava algumas palavras enigmáticas para, ato contínuo, continuar a despropositar desatinadamente. Agora eram já verdadeiras corridas que ele dava pelo gabinete, movimentando cada vez mais depressa as suas pernas gordalhufas, de olhos fixos no chão, com a mão direita encarapitada nas costas e agitando sem cessar a esquerda em múltiplos gestos que, de maneira espantosa, nunca correspondiam às suas palavras. Raskólhnikov observou de repente que, enquanto corria assim pela sala, parou duas vezes junto da porta, mas apenas por um momento e com a intenção de escutar... "Estará à espera de alguém?"

- Olhe, o senhor, de fato, tem razão - encareceu de novo Porfíri, alegremente, olhando para Raskólhnikov com um ar extraordinariamente bonacheirão, que o fez estremecer e ficar imediatamente desconfiado. - O senhor tem, de fato, razão em se rir das fórmulas jurídicas com tanta graça... He, he! Porque não há dúvida de que algumas das nossas fórmulas, com as suas pretensões de profundidade psicológica, são sumamente risíveis, sim senhor, e, além disso, inúteis no caso de nos coibirem demasiado. Lá isso é... Voltando novamente às fórmulas, vamos ver: suponhamos que eu reconheço ou, para melhor dizer, suspeito deste, daquele ou de outro indivíduo, como culpado de um crime, cujo processo me foi confiado... O senhor estudava Direito, não é verdade, Rodion Românovitch?

- Sim, estudava...

- Bem; pois aqui tem um pequeno exemplo que poderá ser-lhe útil no futuro... Isto é, não vá supor que eu me proponho dar-lhe lições, ao senhor, que escreveu aquele artigo sobre os crimes! Não se trata disso, mas apenas de apresentar-lhe um fato, como um pequeno exemplo... Assentemos em que eu passei a ter suspeitas deste, daquele ou daqueloutro, por me parecer que é o autor de um crime; vejamos: por que hei de eu ir incomodá-lo antes do tempo, embora possua algumas provas contra ele? Umas vezes vejo-me obrigado, por exemplo, a mandar prender um indivíduo urgentemente; mas, outras, a pessoa em questão é de outro caráter, e, de fato, por que não havia eu de dar-lhe tempo a que passeasse todavia um pouco pela cidade? He... he! Não, o senhor, eu bem vejo, não está compreendendo o que eu lhe digo, e por isso vou explicar-lho com mais clareza: se eu o mando prender demasiado cedo, presto-lhe, por assim dizer, um auxílio moral. He... he! O senhor ri-se - Raskólhnikov nem de longe pensava em rir-se, pelo contrário, rangia os dentes, não afastando o seu olhar inflamado dos olhos de Porfíri Pietróvitch. - E, no entanto, é assim, sobretudo tratando-se de alguns indivíduos, porque são tipos muito diferentes e, com eles, só a prática é que vale. O senhor há de dizer-me: e as provas? Suponhamos que as provas existam; mas repare, bátiuchka, as provas são, na sua maior parte, armas de dois gumes, e eu sou juiz de instrução, um homem fraco, reconheço-o; o que uma pessoa desejaria era estabelecer os resultados do seu processo com uma exatidão, por assim dizer, matemática; desejaria encontrar uma prova de tal natureza, qualquer coisa de gênero dois e dois são quatro. O que uma pessoa quereria seria uma prova clara e incontestável! E veja, se o prendo antes do tempo, embora eu esteja convencido de que é "ele", sou eu próprio que acabo por privar-me do meio de desmascará-lo mais à vontade; e como? Porque dessa maneira lhe destino uma posição, por assim dizer, definida; defino-o psicologicamente e tranqüilizo-o, e ele escapa-se-me e mete-se na sua concha; compreende, finalmente, que está preso. Dizem que em Sebastópol, quando do caso de Alma, algumas pessoas inteligentes temiam que o inimigo atacasse a povoação declaradamente e a tomasse de um golpe; mas, vendo que o inimigo iniciava um assédio segundo todas as regras e abria a sua primeira trincheira, as tais pessoas inteligentes alvoroçaram-se e tranqüilizaram-se; pelo menos durante dois meses a coisa dilatar-se-ia, até que a tomassem por um assalto em regra! Ri-se outra vez, duvida outra vez? Sim, é claro; também tem razão nisto. Tem razão, tem razão! Tudo isto são casos particulares, concordo com o senhor; o caso que lhe apresentei é, de fato, um caso particular. Mas repare, meu muito excelente Rodion Românovitch, é preciso lembrar-se de uma coisa; o caso geral, esse que apresenta todas as fórmulas e regras jurídicas, o que os livros consideram e escrevem, não existe na realidade, pela simples razão de que cada assunto, cada crime, por exemplo, assim que se deu na realidade, passa imediatamente a converter-se num caso particular; e às vezes em circunstâncias tais que não se parecem em nada com o anterior. Às vezes acontecem casos muito cômicos, nesse gênero. Bem; eu deixo o homem completamente só; não o prendo nem o incomodo, mas de maneira que fique sabendo, em todas as horas e em todos os minutos, ou pelo menos suspeite que eu sei tudo, que sei tudo ponto por ponto, que lhe sigo a pista dia e noite, inutilizo as suas cautelas, e viva numa eterna suspeita e medo de mim, e de tal maneira o envolvo, juro-o, que ele próprio me há de vir ter às mãos ou fará qualquer coisa que será já muito parecida com o dois e dois são quatro, isto é, que tenha uma aparência, por assim dizer, matemática... Isso é que é agradável. Isto pode dar-se com um pacóvio, mas também se dá com o nosso irmão, com um homem perfeitamente inteligente e até culto na sua especialidade, e ainda há pouco tempo se deu! Porque, caríssimo, é uma coisa muito importante saber sobre que é que uma pessoa é culta. E depois há os nervos, os nervos, de que o senhor se esquece! Porque todos eles andam hoje doentes, débeis, excitados! E a bílis, todos eles têm tanta bílis! Olhe, sou eu quem lho diz: em chegando a ocasião, pode ser esse o filão! Que pode importar-me a mim que ele ande à solta pelas ruas? Que passeie tudo o que lhe apetecer; eu não preciso de mais para saber que ele é a minha pequena vítima e que não há de escapar-me! Pois para onde poderia ele fugir? He, he! Para o estrangeiro? Para o estrangeiro poderá fugir um polaco, mas não "ele", tanto mais que eu lhe sigo a pista e tomei as minhas medidas. Iria fugir para os confins do país? Mas aí vivem os camponeses verdadeiros, autênticos russos, e um homem imbuído de cultura contemporânea há de preferir sempre ir para o presídio a suportar o convívio com uma gente que lhe é tão estranha, os nossos camponeses, he... he... he! Mas tudo isto são absurdos e superficialidades! Que vem a ser isso de fugir? Isso é pura fórmula; o essencial não é isso; não só ele não me escapa por não ter para onde fugir, como também não me escapa por razões psicológicas, he... he! Esta frasezinha, hem? Não me escapa pela lei da natureza, ainda que tivesse para onde fugir. Já reparou numa borboleta à volta da luz? Bem; pois da mesma maneira se porá ele a dar voltas e voltas em meu redor, como em torno de uma vela; a liberdade deixará de ser-lhe agradável, começará a matutar, a viver numa inquietação, a ficar preso nas suas próprias redes e a sofrer angústias mortais... E isso ainda não é tudo: ele próprio, espontaneamente, me proporcionará alguma prova matemática, do gênero de dois e dois são quatro... assim que eu lhe consinta um intervalo mais longo... E não fará mais do que traçar círculos e mais círculos cada vez mais apertados à minha volta, até que... pumba! Num desses vôos me virá cair na boca e eu engoli-lo-ei com todo o gosto, he... he! Não lhe parece?

Raskólhnikov não respondeu: continuava sentado, pálido e imóvel, contemplando com a mesma atenção concentrada o rosto de Porfíri. "Boa lição!", pensava, transido de frio. "Isto já não é nem mesmo o jogo do gato com o rato, como ontem; e não iria demonstrar-me inutilmente a sua força e... sugerir-me... é demasiado esperto para isso... Não há dúvida de que persegue outro objetivo, mas qual? Ah, é absurdo, meu caro, que tu queiras assustar-me e valer-te de estratagemas para comigo! Tu não tens provas e o homem de ontem não existe! O que tu queres é unicamente atrapalhar-me; o que queres é irritar-me adiantadamente e, uma vez que eu caia nessa disposição, deitar-me as garras; mas estás enganado, estás enganado, não hás de levar a melhor! Mas por quê, por que me espremerá ele até este ponto? Contará com os meus nervos doentes? Não, meu caro, não, estás enganado, apanhas uma desilusão, embora andes tramando alguma. Bem, vamos lá a ver o que é que andavas tramando."

E fez um esforço, juntando todas as suas energias, preparando-se para uma terrível e imprevista catástrofe. Às vezes sentia uma grande vontade de dar um salto e estrangular Porfíri ali mesmo. Já quando entrou sentira medo desses impulsos. Sentia que a boca lhe secava, que o coração lhe palpitava e que aos lábios lhe subia espuma. Mas, no entanto, decidiu calar-se e não falar senão quando chegasse a ocasião propícia. Compreendia que era essa a melhor tática dada a sua situação, porque, assim, não só se comprometia, como também, pelo contrário, incitava o adversário com o seu silêncio, e talvez ele soltasse alguma palavra imprudente. Pelo menos era o que ele esperava.

- Não; o senhor, eu bem vejo, não acredita, pensa que tudo o que eu lhe digo são graças inocentes - insistiu Porfíri tornando-se cada vez mais alegre e satisfeito e começando outra vez a dar voltas pelo seu gabinete. - O senhor, sem dúvida, tem razão, no seu ponto de vista; a mim, Deus deu-me até uma figura que só inspira aos outros idéias cômicas; sou um bobo; mas digo-lhe e repito-lhe que o senhor, Rodion Românovitch, deve perdoar-me, pois é um jovem na primeira juventude, por assim dizer, e eu sou um velho, e além disso deve perdoar-me também, visto que aprecia acima de tudo a inteligência humana, como todos os jovens. A sutileza da inteligência e as deduções abstratas da razão seduzem-no. E veja como é igual, sem tirar nem pôr, ao antigo Hofskriegsrat (1) austríaco, por exemplo, tanto quanto eu posso julgar das coisas da guerra; no papel eram eles que batiam Napoleão e o faziam prisioneiro, e ali, no seu gabinete, entregavam-se da maneira mais sutil aos seus cálculos, mas eis senão quando o general Mack se rende com todo o seu exército, he... he... he! Já vejo, já vejo, meu caro Rodion Românovitch, que se ri de mim por ser um civil e ir procurar exemplos à crônica militar. Mas que se há de fazer? É o meu fraco: morro por assuntos marciais e perco a cabeça por ler descrições de guerras... Não há dúvida de que errei a minha carreira. Devia ter ido para o Exército, é verdade. Pode ser que não tivesse sido nenhum Napoleão;

 

* (1) Conselho militar da Corte. (N. do T.) *

 

mas teria sido major, isso sim, he... he... he! Bem, pois agora, meu filho, vou dizer-lhe com todos os pormenores toda a verdade acerca do caso particular; a realidade, e a natureza também, meu caro senhor, são coisas importantes, e de vez em quando os cálculos mais sagazes falham por culpa dela. Ah! Escute um velho, que estou a falar-lhe sério, Rodion Românovitch, quando digo isto. - Porfíri Pietróvitch, apenas com trinta e cinco anos, todo ele parecia envelhecer de repente; até a voz mudara e todo ele pareceu encurvar-se. - Além disso sou um homem franco... Sou franco ou não sou? Que lhe parece? Não tem outro remédio senão reconhecê-lo; estou confiando-lhe tantas coisas desinteressadamente e sem pedir por isso recompensa alguma, he... he! Bem, continuemos; a inteligência, a meu ver, é uma coisa magnífica; é, por assim dizer, uma beleza da Natureza e uma consolação na vida; podem fazer-se com ela muitas travessuras e desorientar um pobre juiz de instrução, que, além disso, se deixou levar pela sua fantasia, como costuma acontecer sempre, pois, e aí é que está o mal, é homem! Mas o pior é que a Natureza vem em auxílio do pobre juiz! E é isso o que o jovem compreende, deslumbrado pela sua sagacidade, que salta por cima de todos os obstáculos (segundo o senhor disse ontem numa frase agudíssima e sutilíssima). Suponhamos que ele mente, refiro-me a esse indivíduo, a esse caso particular, ao desconhecido, e que mente da maneira mais astuta e sábia; qualquer pessoa poderá dizer que triunfou e se regozija com os frutos da sua esperteza, quando, de repente, catrapus! no lugar mais interessante, mais escandaloso, vai e desmaia. Admitamos que está doente, que às vezes há uma atmosfera irrespirável nas salas... Mas, apesar de tudo, apesar de tudo, isso dá que pensar! Soube fingir de uma maneira sem precedentes, mas, no entanto, não contou com a Natureza! Foi aí que veio ter toda a sua astúcia! De outra vez, seduzido pela sagacidade da sua inteligência, põe-se a troçar do homem que suspeita dele; empalidece como se fosse de propósito, ou de brincadeira; mas empalidece com demasiada naturalidade, demasiadamente a sério, e dá outra vez que pensar. Embora tenha enganado a primeira vez, durante a noite reconsidera a pergunta se não terá cometido alguma tolice! Isso acontece-lhe a cada passo! Que digo? Ele próprio toma a dianteira, começa a meter-se onde não foi chamado, põe-se a falar pelos cotovelos daquilo de que, pelo contrário, não deveria falar, atreve-se a formular hipóteses... he... he! Ele próprio se apresenta e começa a perguntar: "Por que demorarão tanto a prender-me?" He... he... he! E isto, repare bem, pode acontecer ao homem mais esperto, com as suas pretensões de psicólogo e literato. A natureza é um espelho, um espelho, e o mais transparente! Olhe para ele e veja-se, é assim mesmo! Mas por que se pôs tão pálido, Rodion Românovitch? Falta-lhe o ar, quer que abra a janela?

- Oh, não se preocupe, por favor! - exclamou Raskólhnikov, e, de repente, pôs-se a rir. - Não se incomode!

Porfíri parou diante dele, esperou um momento e, de repente, também ele, imitando-o, desatou numa gargalhada. Raskólhnikov levantou-se do divã e reprimiu de súbito aquele riso, absolutamente convulsivo.

- Porfíri Pietróvitch! - disse numa voz forte e sonora, embora mal se agüentasse sobre as pernas trêmulas. - Até que enfim vejo claramente que o senhor suspeita decididamente de mim como autor do duplo assassinato dessa velha e de Lisavieta. Aviso-o de que, por meu lado, há já muito tempo que estou farto de tudo isto. Se julga que tem o direito de perseguir-me legalmente, ou de prender-me, faça-o. Mas não lhe consentirei nem mais um momento que se ria na minha cara.

De repente, os lábios tremeram-lhe, os olhos cintilaram-lhe de raiva e quebrou-se-lhe a voz, que até ali mantivera firme.

- Não lho consinto! - exclamou, de repente, dando sobre a mesa um soco com toda a força. - Ouviu bem, Porfíri Pietróvitch? Não lho consinto! - Ah, senhor! Mas que tem, outra vez? - exclamou Porfíri Pietróvitch, aparentemente assustado. - Caríssimo Rodion Românovitch! Bátiuchka! Pai! Que lhe aconteceu?

- Não lho consinto! - tornou a gritar Raskólhnikov.

- Bátiuchka, mais baixo, que podem ouvi-lo e aparecem por aí! E depois, que lhes vai dizer? - murmurou com espanto Porfíri Pietróvitch, aproximando a sua cara da de Raskólhnikov, até roçá-la.

- Não lho consinto, não lho consinto! - repetia Raskólhnikov maquinalmente, mas de repente, também, em voz baixa.

Porfíri deu rapidamente uma meia-volta e correu a abrir a janela. - É preciso ar fresco! E também lhe convinha beber um pouquinho de água, meu querido amigo; isso é um ataque! - e correu para a porta em busca de água, embora ali mesmo, num canto, houvesse uma garrafa com ela.

- Bátiuchka, beba um gole - murmurou, aproximando-se dele com a garrafa -, talvez lhe faça bem... - o susto e a compaixão de Porfíri Pietróvitch eram tão naturais que Raskólhnikov ficou calado e a olhá-lo com uma curiosidade verdadeiramente ávida. Mas não provou a água. - Rodion Românovitch! Meu amigo! Vamos lá a ver! Parecia mesmo que perdera o juízo, afirmo-lhe! Ai, ai! Beba um golinho de água! Beba, nem que seja só um golinho!

Obrigou-o a segurar o copo de água na mão. Ele o levou aos lábios maquinalmente; mas, apercebendo-se a tempo, pousou-o com repugnância sobre a mesa.

- Foi isso mesmo, tornou a dar-lhe o ataque! O senhor, meu amigo, tornou a recair na sua doença - ponderou Porfíri com afetuosa simpatia, mas com um ar altivo. - Meu Deus! Mas é possível deixar-se arrebatar dessa maneira? Olhe, também Dmítri Prokófitch esteve a ver-me ontem... Concordo, concordo que tenho um caráter mau, antipático. Mas é preciso vermos o que ele concluiu daí! Meu Deus! Veio ver-me ontem, depois de o senhor se ter ido embora; estávamos jantando, e pôs-se a falar, e eu não podia fazer mais nada senão abrir os braços, espantado; bem, mas eu penso... Ah, meu Deus! Não viria da sua parte? Mas sente-se, bátiuchka, sente-se por amor de Cristo!

- Não, da minha parte, não! Mas sabia que ele ia vê-lo, e também por que motivo - respondeu Raskólhnikov com brusquidão.

- Sabia?

- Sabia. Que tem isso de especial?

- Vamos, meu caro Rodion Românovitch, como se eu não conhecesse também todos os seus passos! Estou informado de tudo! E para que veja: sei que foi alugar um quarto, e quase de noite, ao escurecer, e que se pôs a puxar pela campainha, e que perguntou pelo sangue, e que irritou os trabalhadores e o porteiro. Olhe, eu compreendo o seu estado de espírito naquele momento... Mas, apesar de tudo, o senhor expõe-se, simplesmente, a perder o juízo! Por amor de Deus! Olhe que pode endoidecer! A cólera arde dentro do senhor com demasiada violência, por causa das ofensas recebidas, primeiro do destino e depois dos polícias, e o senhor sonhava com obrigá-los a todos a falar, e acabar assim de uma vez, porque já está farto de todas essas parvoíces e de todas essas suspeitas. Não é verdade? Adivinhei o seu estado de espírito? Simplesmente, com isso, não só se expõe à loucura, como nos expõe ao mesmo a nós, a Razumíkhin e a mim; muito bom já é ele para que isso não lhe suceda; o senhor bem o sabe. O senhor está doente; mas ele é bom, e essa doença podia pegar-se-lhe... Olhe, bátiuchka, quando estiver mais tranqüilo, hei de contar-lhe... Mas sente-se, pelo amor de Cristo! Faça favor, descanse um pouco, está transtornado, sente-se.

Raskólhnikov sentou-se; um calafrio lhe percorreu todo o corpo. Escutava com a maior estupefação Porfíri Pietróvitch, que, assustado e solícito, o obrigava a sentar-se. Mas não acreditava em nenhuma das suas palavras, embora sentisse uma estranha inclinação para acreditar nelas. Sobressaltou-se com a inesperada alusão de Porfíri ao aluguel do quarto: "Como é possível que ele saiba isso do quarto?", pensou de repente. "Foi ele próprio quem me falou isso!"

- Sim, senhor, já uma vez encontrei um caso semelhante, psicológico, na minha vida judicial, um caso assim doentio - prosseguiu Porfíri, falando atabalhoadamente -, também se tratava de um indivíduo que se acusara de um crime. E de que maneira se acusara! Era vítima de um autêntico estado alucinatório, apresentou fatos, referiu todos os pormenores, despistou-os e deixou toda a gente desorientada. E, afinal, ele apenas fora, em parte, só em parte, o causador absolutamente involuntário de um crime, e quando soube que dera azo ao assassino ficou impressionado, começou a pensar, a pensar, desorientou-se e acabou por acreditar que tinha sido ele o verdadeiro criminoso. Até que o Tribunal de Cassação interveio no assunto e absolveu o infeliz, submetendo-o a uma observação. Graças ao Tribunal de Cassação! E então... então... e... e... que diz o senhor a isto, meu caro?

É que uma pessoa até pode apanhar uma febre quando tem os nervos fracos e começa a ir de noite puxar pelas campainhas e perguntar pelo sangue! Eu, repare, aprendi toda esta psicologia na prática. As vezes acontece a um indivíduo sentir a tentação de se atirar de uma janela ou do alto de uma torre, e essa sensação tem algo de sedutora... Pois pode dizer-se o mesmo disso de puxar pelas campainhas... É uma doença, Rodion Românovitch, uma doença! O senhor descuidou excessivamente a sua doença. Devia ter consultado um médico experimentado e não esse tipo gordo... O senhor está delirando! Tudo o que se passa é apenas o efeito do delírio!

Por um momento, tudo se pôs a dar voltas em torno de Raskólhnikov. "E se, e se", foi o que passou pela sua cabeça, "tudo isso fosse fingido? É impossível, é impossível!", e repudiava esse pensamento, sentindo antecipadamente até que extremos a raiva e o furor podiam conduzi-lo, sentindo que se pode até enlouquecer de puro ódio.

- Eu não estava delirando, eu estava em meu perfeito juízo! - exclamou, empregando toda a capacidade da sua inteligência para ver claro no jogo de Porfíri. - No meu juízo, no meu juízo! Está ouvindo?

- Sim, compreendo e ouço. Também o senhor dizia, ontem, que não estava delirando e insistiu especialmente nesse ponto, em que não delirava! Compreendo tudo quanto o senhor possa dizer. Ah! Mas escute também, Rodion Românovitch, meu amigo, ainda que seja um só pormenor. Suponhamos que, no fundo, o senhor era de fato culpado, ou que tivesse intervindo de qualquer forma neste maldito assunto. Poderá o senhor, faça favor de mo dizer, afirmar que não tinha feito tudo isso num estado de delírio, mas, pelo contrário, em seu perfeito juízo? Mais ainda: afirmar especialmente, afirmar com essa especial teimosia... seria isso possível, seria isso possível, compreende? Mas veja: eu afirmo redondamente o contrário. Se o senhor se sentisse culpado, de qualquer modo, então, o que lhe conviria afirmar seria precisamente que, sem dúvida alguma, que diabo! estava delirando. Não é assim? Não tenho razão?

Algo de insidioso transparecia na pergunta. Raskólhnikov atirou-se para trás, para o recosto do divã, evitando Porfíri, que se inclinava para ele e o olhava perplexo, em silêncio e tenazmente.

- Agora, quanto ao senhor Razumíkhin, isto é, quanto a pôr a claro se ele veio ver-me ontem espontaneamente, por sua livre vontade ou por mandado seu, o que o senhor devia dizer era que tinha vindo espontanea mente e não por recomendação sua. Mas repare que não o disse! O senhor afirma precisamente que veio por mandado seu.

Raskólhnikov não afirmara tal coisa. Um arrepio lhe percorreu as costas. - Isso é tudo mentira - declarou lenta e debilmente, com um sorriso crispado e doloroso nos lábios. - O senhor está outra vez a querer-me demonstrar que percebe o meu jogo, que conhece de antemão todas as minhas contestações! - Ele próprio sentia que as palavras já não lhe saíam como desejava. - O senhor quer meter-me medo... e está simplesmente troçando de mim.

Continuou olhando-o fixamente enquanto dizia isso e, de súbito, nos seus olhos tornou a brilhar uma cólera imensa.

- Tudo quanto disse é mentira! - exclamou. - O senhor sabe muito bem que, para um criminoso, o melhor recurso é dizer a verdade, na medida do possível. Não acredito no que disse.

- Mas que cara o senhor faz! - riu Porfíri. - Com o senhor, meu caro, não é possível uma pessoa entender-se, o senhor é um monomaníaco. Com que então não acredita em mim? Pois eu lhe digo que acredita, que já acredita em mim um quarto de archin e hei de fazer com que acredite um archin inteiro, porque lhe tenho sincera amizade e desejo verdadeiramente o seu bem.

Os lábios de Raskólhnikov tremiam.

- Sim, lá isso é, gosto do senhor, digo-lho francamente - continuou, pegando leve, amistosamente, um braço de Raskólhnikov, um pouco acima do cotovelo -, digo-lho francamente: trate da sua doença. Além do mais, foi para isso que veio a sua família, e lembre-se dela. Tranqüilizar as pessoas da sua família e tratá-las com todo carinho é que é preciso; mas o senhor não faz outra coisa senão assustá-las...

- E, ao senhor, que lhe importa isso? Como o sabe? Segue-me a pista e pretende demonstrar-mo?

- Meu caro! Mas se eu sei tudo, pelo senhor mesmo! Por acaso não se apercebe de que no meio da sua comoção começa a dizer tudo diante de mim e dos outros? Pelo senhor Razumíkhin, Dmítri Prokófitch, soube também alguns pormenores interessantes. Não, o senhor nega, mas eu devo dizer-lhe que, devido à sua irritabilidade, apesar de toda a sua astúcia, o senhor chega até a perder a noção das coisas. Porque, vamos lá ver, embora tenhamos de voltar outra vez ao tema das campainhas: uma preciosidade dessas, um fato dessa importância (porque isso é, afinal, um fato), sou eu, o juiz de instrução, que lho revelo assim, com toda a franqueza! E o senhor não vê nada nisso? Se eu suspeitasse decididamente do senhor, conduzir-me-ia desta maneira. A mim, pelo contrário, o que me competia era começar por adormecer as suas desconfianças e não dar a entender que tinha conhecimento desse fato; procurar distraí-lo pelo lado contrário, e, de repente, aniquilá-lo com uma machadada na cabeça (segundo a sua expressão): "Olá, cavalheiro! Ora vamos ver: que era que o senhor tinha a fazer no quarto da assassinada às dez e tal da noite, quase às onze? E a que propósito veio isso de tocar a campainha e de perguntar pelo sangue? E por que procurou depois desorientar os porteiros e disse que o levassem ao comissariado, à presença do tenente?" Aí tem o senhor a maneira como eu devia ter procedido, se tivesse contra o senhor a mais leve suspeita. Devia tê-lo submetido a um interrogatório em forma, efetuar uma busca em sua casa e, além disso, mandá-lo prender... Uma vez que me conduzo de um modo tão diferente, é sinal de que não suspeito do senhor de maneira nenhuma. O senhor perdeu a noção das coisas e não vê nada de nada, repito-lhe.

Todo o corpo de Raskólhnikov estremeceu, de tal maneira que Porfíri o notou claramente.

- Tudo quanto diz é mentira! - exclamou. - Não sei qual o fim com que o faz; mas não faz mais nada senão mentir... Há pouco, não me falava dessa maneira, e eu não devo estar enganado... O senhor mente!

- Eu minto? - insistiu Porfíri, exaltando-se aparentemente, mas sem perder o seu aspecto jovial e brincalhão e sem se preocupar absolutamente nada com a opinião que dele pudesse fazer o senhor Raskólhnikov. - Eu minto? Vamos lá a ver como é que eu (eu, o juiz), há pouco, me conduzi para com o senhor, indicando-lhe e proporcionando-lhe todos os meios para a sua defesa e apontando-lhe todas essas demonstrações psicológicas: doenças... que diabo! o delírio, o amor-próprio ofendido, a melancolia, e, para cúmulo, todos esses polícias... e tudo o mais. Não foi isto? He, he, he! Embora, no fim de conta (não lho ocultarei), todos esses meios psicológicos de defesa, pretextos e subterfúgios sejam muito inconsistentes e semelhantes a espadas de dois gumes. "Doença, ó diabo! delírio, sonhos, tive uma alucinação, não compreendo...", tudo isto está muito bem; mas vamos lá ver: por que é que, meu caro, admitindo embora a doença e o delírio, lhe sucedeu ter precisamente essas alucinações e não outras? Porque, afinal, podia ter tido outras. Não é assim? He, he, he!

Raskólhnikov lançou-lhe um olhar orgulhoso e de desprezo.

- Em resumo - disse com altivez e em voz forte, levantando-se e dando, ao fazê-lo, um pequenino empurrão a Porfíri -, em resumo, eu quero saber: reconhece-me definitivamente fora de toda a suspeita ou não? Fale, Porfíri Pietróvitch, fale redonda e categoricamente, e já, neste momento!

- Mas que trabalho! Mas que trabalho que o senhor me dá! - exclamou Porfíri com uma cara perfeitamente jovial, insidiosa e sem ponta de inquietação. - Mas que quer o senhor saber, que quer o senhor saber com tanto empenho, se ainda não começaram a maçá-lo? Olhe, o senhor é como uma criança brincando com fogo. Mas por que se preocupa tanto? Por que me fez essa pergunta e com que razão? Hem? He, he, he!

- Repito-lhe - exclamou Raskólhnikov com veemência - que não posso suportar mais...

- Mas o quê? A incerteza? - interrompeu-o Porfíri.

- Não me exaspere! Não quero! Digo-lhe que não quero! Não posso nem quero! Ouça bem! Ouça-me bem! - gritou, tornando a descarregar um soco sobre a mesa.

- Mais baixo, mais baixo! Olhe que podem ouvi-lo! Previno-o seriamente. Domine-se. E não estou brincando! - declarou Porfíri em voz baixa; mas, dessa vez, o seu rosto não tinha aquela expressão efeminada, bonacheirona e açodada de há pouco, e, pelo contrário, agora mandava severamente, franzindo o sobrolho e como se descobrisse de uma só vez todos os seus mistérios e todas as suas ambigüidades. Mas isso durou apenas um instante.

O encolerizado Raskólhnikov ia entregar-se a um verdadeiro acesso de furor; mas, coisa estranha, voltou outra vez a obedecer à intimação de falar baixo, apesar de se encontrar em pleno paroxismo.

- Eu não me deixo torturar! - murmurou de repente, como há pouco, apercebendo-se imediatamente, com dor e cólera, de que não pudera deixar de se submeter àquela ordem, pensamento que aumentava a sua fúria. - Mande-me prender, efetuar uma busca em minha casa; mas faça tudo isso segundo as regras, em vez de brincar comigo! Não se atreve, vai...

- Não se preocupe com as formalidades - atalhou Porfíri com o mesmo sorriso insidioso de antes e como se derretesse em ternura para com Raskólhnikov. - Eu, meu caro, convidei-o agora de uma maneira absolutamente familiar, amistosa.

- Eu não quero a sua amizade, cuspo em cima dela. Está ouvindo? Olhe, pego o gorro e vou-me embora. Que diz o senhor a isto, se tem a intenção de me prender?

Pegou o gorro e dirigiu-se à porta.

- Mas o senhor não quer, talvez, ter uma surpresa? - exclamou Porfíri rindo às gargalhadas e tornando a segurá-lo um pouco mais acima do cotovelo e parando mesmo junto da porta. Segundo parecia, conservava-se jovial e gracejador como antes, o que acabou de exasperar Raskólhnikov. - Qual surpresa? De que se trata? - perguntou, parando e olhando para Porfíri com medo.

- Uma surpresa que tenho preparada aí, do outro lado da porta. He, he, he! - apontou com o dedo a porta fechada do tabique que conduzia à sua residência oficial. - Até a fechei a chave para que não fugisse.

- Mas quem? Onde está? De que se trata?

Raskólhnikov aproximou-se da porta e tentou abri-la; mas estava fechada. - Está fechada; mas aqui tem a chave.

E, de fato, mostrou-lhe uma chave, que tirara do bolso.

- Tudo isso são patranhas! - gritou Raskólhnikov, já sem poder conter-se. - Estás mentindo, maldito polichinelo!

E atirou-se sobre Porfíri, que se retirava em direção à porta, mas sem dar o menor sinal de medo.

- Agora já compreendo tudo, tudo! - disse-lhe ele. - Tu mentes e irritas-me para que me entregue...

- Mas se já não é possível entregares-te mais, bátiuchka Rodion Românovitch! Olhe, o senhor está desesperado. Não grite, senão terei de chamar. - Mentes, nada se passará! Pois chama e que venham! Tu sabias que eu estava doente e querias excitar-me até me ver colérico para que eu me entregasse, era este o teu objetivo. Mas não: arranja provas! Eu compreendia tudo! Tu não tens provas, tu só tens conjeturas porcas, miseráveis, as que Zamiótov te sugeriu... Tu conhecias o meu caráter, querias lançar-me no desespero e depois me pores em poder dos popes e dos delegados... Estás à espera deles? Eh! Por que esperas? Onde é que estão? Que venham!

- Mas de que delegados está falando, meu caro? Os homens sempre têm muita imaginação! Mas se não é possível proceder de acordo com as formalidades, como diz... Olhe, meu caro, o senhor não sabe... Mas as for malidades não hão de faltar, como verá... - murmurou Porfíri, escutando à porta.

Efetivamente, naquele momento, junto da porta da outra sala ouviu-se um ruído.

- Já aí vêm! - exclamou Raskólhnikov. - Mandaste-os chamar por minha causa... Estavas à espera deles! Contavas com... Bem, pois que venham todos; delegados, testemunhas, tudo o que quiseres... Que venham. Estou pronto! Pronto!

Mas então sucedeu uma coisa estranha, algo tão inesperado no curso vulgar dos acontecimentos, que não há dúvida alguma de que nem Raskólhnikov nem Porfíri Pietróvitch podiam imaginar tal desenlace.

 

Eis a recordação que esta cena deixou no espírito de Raskólhnikov. Aquele ruído que ouvira na sala contígua cresceu rapidamente e a porta pouco a pouco entreabriu-se.

- Quem é? - perguntou Porfíri Pietróvitch contrariado. - Mas eu recomendara...

A resposta demorou; mas percebia-se perfeitamente que do outro lado da porta se encontravam vários homens que pareciam esforçar-se por afastar alguém.

- Mas que vem a ser isso? - repetiu Porfíri Pietróvitch alarmado. - Trazemos o preso, Nikolai - disse alguém.

- Não é preciso! Vão-se embora! Esperem! Mas para que o trouxeram para cá? Mas que desordem! - exclamou Porfíri, precipitando-se para a porta. - É que ele... - tornou a dizer a voz de há pouco, e depois calou-se. Durante uns segundos travou-se uma pequena batalha; depois, de repente, pareceu que tinham conseguido afastar alguém por meio da violência, e depois, finalmente, no gabinete de Porfíri entrou um homem muito pálido. O aspecto daquele indivíduo, à primeira vista, não podia ser mais estranho. Olhava para a frente, mas sem ver ninguém. Uma decisão brilhava nos seus olhos, mas, ao mesmo tempo, uma palidez mortal cobria o seu rosto, como se o conduzissem ao suplício. Os lábios tremiam-lhe, completamente descoloridos.

Muito novo ainda, trajava como as pessoas do povo; era de estatura mediana, magro, com o cabelo cortado em redondo, de feições finas e um tanto secas. O homem ao qual ele escapara entrou na sala atrás dele e conseguiu segurá-lo por um ombro: era um guarda; mas Nikolai estendeu o braço e conseguiu escapar-se novamente.

Juntaram-se alguns curiosos à porta. Alguns esforçavam-se por entrar. Tudo o que acabamos de contar sucedeu rapidamente.

- Saiam daqui! Ainda é cedo! Esperem que os chamem! Por que o trouxeram tão cedo? - murmurava Porfíri Pietróvitch, extremamente contrariado e como se estivesse fora de si. Mas, de repente, Nikolai ajoelhou-se no chão.

- Que é isso? - exclamou Porfíri estupefato.

- Eu sou o culpado! A culpa é minha! Sou eu o assassino! - declarou inesperadamente Nikolai, como se lhe faltasse o fôlego, mas com uma voz bastante firme.

O silêncio prolongou-se durante dez segundos, como se todos tivessem caído em catalepsia; até o guarda deixou cair os braços e afastou-se para a porta, onde ficou imóvel.

- Mas que estás dizendo? - exclamou Porfíri Pietróvitch, saindo do seu espanto momentâneo.

- Que eu... que eu é que sou o assassino... - repetiu Nikolai, depois de um breve silêncio.

- o quê? Tu? Quem é que tu mataste?

Porfíri Pietróvitch estava visivelmente desconcertado. Por um momento, Nikolai tornou outra vez a ficar calado.

- Àlíona Ivânovna e a irmã, Lisavieta Ivânovna... eu... Fui eu quem as matou... com a machada. Não estava em meu perfeito juízo... - acrescentou de repente, e novamente ficou calado. Continuava de joelhos.

Porfíri Pietróvitch permaneceu mudo uns segundos, como se refletisse; mas, de repente, estremeceu violentamente e gesticulou com a mão, afugentando os curiosos. Estes desapareceram logo e a porta voltou a fechar-se. Depois olhou para Raskólhnikov, que permanecia a um canto, de pé, olhando avidamente para Nikolai, e de repente fez o gesto de correr para ele, mas entretanto deteve-se, ficando a olhá-lo; pousou depois a vista sobre Nikolai e, de súbito, como se cedesse a um impulso, tornou a dirigir-se para Nikolai.

- Queres arranjar já de antemão uma desculpa com isso de que não estavas em teu juízo? - interpelou-o, quase colérico. - Eu não te fiz perguntas; estivesses ou não no teu juízo... fala. És tu o assassino?

- Sou eu o assassino... Posso prová-lo... - disse Nikolai. - Ah! Com que é que cometeste o crime?

- Com a machada. Tinha-a levado.

- Ah, estás com muita pressa! Sozinho? Nikolai não compreendeu a pergunta.

- Se foste tu sozinho quem cometeu o crime?

- Sozinho. Mitka está completamente inocente, não tomou parte em nada. - Mas para que tens tanta pressa de falar em Mitka, hem? Mas, vamos ver, dize-me a mim: como é que conseguiste fugir pela escada? o porteiro não os viu, aos dois?

- Fiz isso para despistar... Depois corri atrás de Mitka - disse Nikolai, como se estivesse a confundir-se e disposto de antemão a tudo.

- Pois sim! - exclamou Porfíri colérico. - Trazes a lição bem decorada! - murmurou Porfíri como se falasse consigo próprio, e de repente tornou a fixar os olhos em Raskólhnikov.

Aparentemente ficara tão entretido com Nikolai que até chegou, por um momento, a esquecer-se de Raskólhnikov. Agora, de repente, tornava a recordar-se dele e até parecia envergonhado.

- Rodion Românovitch, bátiuchka! Desculpe - disse-lhe.

- Não é possível, na verdade... Faça favor... o senhor, aqui, não é preciso para nada... Eu mesmo... Veja que surpresa! Faça o favor...

E, pegando-lhe por um braço, indicou-lhe a porta.

- Pelo visto, o senhor não esperava isto? - disse Raskólhnikov, de fato sem compreender nada ainda, mas apressando-se a cobrar ânimo.

- Não, nem o senhor tampouco o esperava, meu caro. Olhe como o seu braço treme! He... he...

- Sim, e o senhor também está tremendo, Porfíri Pietróvitch. - Sim, eu também estou tremendo. Não esperava isto!

Já tinham chegado à porta, Porfíri esperava impacientemente que Raskólhnikov passasse.

- E aquela surpresa, de que falava, não quer mostrar-me? - perguntou Raskólhnikov, de repente.

- O senhor fala dos outros, mas até os dentes lhe batem! He... he! É um trocista! Bem, até a vista!

- Pela minha parte, adeus!

- Será o que Deus quiser, o que Deus quiser! - murmurou Porfíri com um sorriso contrafeito.

Quando passou pela sala da repartição, Raskólhnikov reparou que muitas pessoas o olhavam curiosamente. Por acaso viu, no vestíbulo, no meio das outras pessoas, os dois porteiros "daquela casa", aqueles aos quais desafiara para que o levassem ao comissariado na tal noite. Estavam de pé e pareciam esperar qualquer coisa. Mas mal chegara à escada quando ouviu outra vez às costas a voz de Porfíri Pietróvitch. Voltou-se e verificou que ele corria afanosamente para alcançá-lo.

- Uma palavrinha, Rodion Românovitch: quanto ao passado, será o que Deus quiser; no entanto, para cumprir as formalidades, terei de interrogá-lo... Por isso tornaremos a ver-nos em breve!

E Porfíri parou diante dele, sorrindo. - Em breve - tornou a acrescentar.

Dir-se-ia que ainda tinha mais qualquer coisa para dizer, mas que não conseguia fazê-lo.

- Porfíri Pietróvitch, desculpe-me aquilo que há pouco... Excitei-me - começou Raskólhnikov, já completamente reanimado, sentindo até vontade de gracejar.

- Não fale mais disso, não fale mais disso - insistiu Porfíri, quase alvoroçado. - Eu também... Maldito caráter o meu; confesso-o, reconheço-o! Bem, ficamos em que nos tornaremos a ver. Se Deus quiser, havemos de voltar a ver-nos muitas vezes!

- E acabaremos finalmente por nos conhecermos bem - acrescentou Raskólhnikov.

- E acabaremos finalmente por nos conhecermos bem - concordou Porfíri Pietróvitch, e, piscando um olho, ficou depois olhando fixamente. - E agora, vai a um aniversário?

- A um enterro.

- Ah, é verdade, a um enterro! Acautele-se, acautele-se!

- Eu, pelo meu lado, não sei o que lhe hei de desejar - acrescentou Raskólhnikov, que começava já a descer a escada e, de repente, voltou-se para Porfíri. - Eu lhe desejo muitos êxitos, pois, de fato, a sua profissão é bem cômica!

- Cômica, por quê? - e imediatamente Porfíri, que já dera também meia-volta para se retirar, aguçou o ouvido.

- Porque, bem vê: a esse pobre Mikolka deve o senhor tê-lo torturado e mortificado psicologicamente, à sua maneira, até que ele confessou; deve ter estado a dizer-lhe dia e noite: "És o assassino, és o assassino..." Bem, mas, agora que ele já confessou, vai o senhor tornar a moer-lhe os miolos, dizendo-lhe: "Mentes, estupor; tu não és o assassino! Não é possível! Tu repetes uma lição decorada!" É capaz de me dizer, depois disto, que a sua profissão não é ridícula?

- He... he... he! Mas o senhor reparou nisso que eu disse a Nikolai, que ele repetia uma lição decorada?

- Como é que não havia de reparar?

- He... he! É engraçado, é engraçado. O senhor repara em tudo! É um grande pândego! E sabe escolher as notas mais cômicas... He... he! Ouça, dizem que Gógol, o escritor, possuía essa qualidade em alto grau. - Sim, Gógol.

- É isso, Gógol... até o nosso próximo agradabilíssimo encontro. Raskólhnikov foi direito a sua casa. Estava a tal ponto cansado, esgotado, que logo que lá chegou estendeu-se no divã e assim esteve um quarto de hora, descansando simplesmente e esforçando-se por coordenar de qualquer maneira as suas idéias. Acerca de Nikolai, nem sequer formava qualquer juízo; era simplesmente espantoso; na confissão de Nikolai havia qualquer coisa de obscuro, de assombroso, qualquer coisa que, nesse momento, não conseguia explicar. Mas a confissão de Nikolai era um fato positivo. As conseqüências de tal fato apareceram-lhe imediatamente com clareza: a mentira não poderia manter-se e então voltar-se-iam outra vez contra ele. Mas pelo menos até então estava livre, e devia, sem dúvida alguma, fazer qualquer coisa que lhe fosse útil, visto que o perigo estava iminente.

Mas, no entanto, até que ponto? A situação começava a aclarar-se. Quando recordava, a posteriori, em grandes traços, a recente cena com Porfíri, não podia deixar de estremecer de espanto. É certo que ignorava ainda todas as intenções de Porfíri e não podia adivinhar todos os seus últimos planos. Mas o jogo estava descoberto, em parte, e podia já compreender, sem dúvida, melhor do que ninguém, como era terrível para si aquela vaza no jogo de Porfíri. Um pouco mais e encontrar-se-ia no terreno dos fatos. Conhecendo o aspecto mórbido do seu caráter, e tendo-o adivinhado desde o primeiro olhar, Porfíri procedia, se bem que com demasiada decisão, de um modo certeiro. É preciso andar depressa. Raskólhnikov também andava depressa, e agora acabava de comprometer-se demasiado; não no terreno dos fatos, mas pouco faltara, tudo é relativo. No entanto, como, como interpretaria ele tudo isso agora? Não estaria enganado? A que resultado teria chegado atualmente Porfíri? Teria, de fato, preparado qualquer coisa? O quê, concretamente? Não estaria deveras à espera de qualquer coisa? Como se teriam separado hoje os dois se não tivesse sobrevindo aquela inesperada catástrofe provocada por Nikolai?

Porfíri descobrira quase todo o seu jogo; não há dúvida de que se arriscava, mas tinha-o descoberto, e (tudo isto era o que afigurava a Raskólhnikov), se efetivamente houvesse mais qualquer coisa, também a teria descoberto. Que surpresa seria aquela? Alguma brincadeira? Significaria qualquer coisa ou não? Poderia esconder-se debaixo dela qualquer coisa parecida com um fato, com uma acusação categórica? O homem da véspera? Onde estaria ele hoje? Porque, se Porfíri contava com qualquer coisa de concreto, não havia dúvida de que isso devia estar relacionado com o homem da véspera...

Sentou-se no divã, deixando pender a cabeça, com os cotovelos sobre os joelhos e ocultando a cara com as mãos. Um tremor nervoso agitava ainda todo o seu corpo. Finalmente levantou-se, pegou o gorro, parou um momento a refletir, e depois encaminhou-se para a porta.

Tinha o pressentimento de que, pelo menos aquele dia, podia considerá-lo com toda a certeza isento de perigo. De súbito, sentiu uma espécie de alvoroço; desejava ver-se o mais depressa possível em casa de Ekatierina Ivânovna. Já era tarde para ir ao enterro, mas chegaria ainda a tempo para o banquete fúnebre, e aí, dentro de um momento, veria Sônia. Parou, reconsiderou, e um sorriso doentio assomou aos seus lábios. "Hoje! Hoje!", repetia para consigo. "Sim, hoje mesmo... Devo fazê-lo..." Preparava-se para abrir a porta, quando, de repente, ela se abriu sozinha. Deu um pulo e retrocedeu. A porta abriu-se lenta e suavemente, e logo apareceu a figura... do homem da véspera, daquele que saíra "de debaixo da terra"...

O homem parou à entrada, examinou Raskólhnikov em silêncio e adiantou uns passos dentro do quarto. Era precisamente o mesmo da véspera; a mesma figura, o mesmo traje; mas no seu rosto e no seu olhar notava-se uma grande mudança; agora parecia mortificado e, parando por um momento, lançou um fundo suspiro. Só faltou, nesse instante, levar a palma da mão à face e inclinar a cabeça para um lado, para que parecesse completamente uma mulher.

- Que tem? - perguntou Raskólhnikov meio morto.

O homem ficou calado e, de súbito, inclinou-se perante ele profundamente, quase até tocar o chão. Pelo menos roçou o chão com o anel da mão direita.

- Que faz o senhor? - exclamou Raskólhnikov. - Sou culpado - disse o homem em voz baixa. - De quê?

Olharam-se ambos um ao outro.

- Estava ressentido. Quando o senhor quis ir até lá, naquele dia, talvez embriagado, e desafiou os porteiros a que o levassem ao comissariado e perguntou pelo sangue, eu me senti ofendido quando vi que eles não faziam caso das suas palavras e que o tomavam por um bêbado. Fiquei tão incomodado que nem pude dormir nessa noite. Mas, como me lembrava da sua morada, viemos aqui ontem e perguntamos pelo senhor...

- Quem é que veio? - interrompeu-o Raskólhnikov, que começava a lembrar-se naquele momento.

- Eu queria dizer que o ofendi. - Então o senhor é daquela casa?

- Estava lá também à porta, com os outros, não se lembra? Tenho ali a minha oficina há algum tempo. Sou peleiro estabelecido, trabalho em minha casa; mas, de tudo, o que mais me revoltou...

E então Raskólhnikov recordou toda a cena de há três dias atrás da porta; calculava que, além dos porteiros, haveria ali também alguns homens e mulheres. Lembrava-se de uma voz que tinha proposto que o levassem diretamente ao comissariado. Da cara daquele que dissera isso não se podia lembrar, nem seria capaz de reconhecê-la agora; mas lembrava-se de ter-lhe respondido qualquer coisa então, encarando-o...

Pode assim ver-se, por aqui, em que vinha dar todo aquele terror da véspera. O mais terrível de tudo era pensar que, de fato, estivera quase a perder-se por causa daquele insignificante incidente. Via-se agora que, tirando o caso do aluguel do quarto e a pergunta sobre o sangue, aquele homem nada mais poderia contar. Donde se inferia que Porfíri também nada mais tinha em seu poder senão aquele delírio, mas não tinha nenhum fato, a não ser esse, psicológico, que é uma arma de dois gumes, de maneira nenhuma categórico. E assim, desde que não viessem a revelar-se mais fatos (e já não deviam vir a revelar-se, não deviam, não deviam!), que podiam fazer-lhe? Como poderiam acusá-lo de culpado, ainda que o prendessem? E, além disso, havia apenas um momento que Porfíri acabava de saber aquilo do quarto, coisa que, até aí, ignorava.

- O senhor disse hoje a Porfíri... isso de eu ter estado ali? - exclamou, assaltado por uma idéia súbita.

- A qual Porfíri?

- Ao juiz de instrução.

- Disse. Os porteiros não foram, mas eu me apresentei. - Hoje?

- Um minuto antes de o senhor ter entrado. E ouvi tudo, a maneira como ele o torturou...

- Onde? Como? Quando?

- Ali mesmo, atrás do tabique, estive todo o tempo sentado.

- O quê? Era essa então a surpresa? Mas é possível que tenha sido assim? Por favor!

- Quando eu vi - começou dizendo o outro - que os porteiros não queriam atender a minha indicação de irem ao comissariado, alegando que já era tarde e que, além disso, haviam de censurá-los por não terem ido antes, aborreci-me, deixei de dormir e pus-me a pensar. E, de acordo com o que pensei, fui lá hoje. A primeira vez... não estava lá. Voltei lá passada uma hora... Não me receberam; mas voltei terceira vez e... mandaram-me entrar. Pus-me a contar-lhe tudo o que acontecera, e ele começou a dar passos rápidos pela sala e a dar socos no peito: "Que pretendes tu fazer comigo, bandido?", dizia. "Se sei isso, mandava-o trazer com um guarda." Depois saiu correndo, chamou não sei quem e pôs-se a falar com ele a um canto, e depois veio outra vez ter comigo para me fazer perguntas e insultar-me. Fazia-me uma porção de censuras; eu lhe contei tudo, disse-lhe que o senhor não se atrevera a responder às minhas palavras do dia anterior e que não me reconhecera. E então ele começou outra vez com as suas correrias e os seus socos no peito, e vociferava e corria, e quando vieram anunciá-lo ao senhor... "Vamos", disse ele, "mete-te atrás do tabique, senta-te ali e não te mexas, ouças o que ouvires"; e ele próprio me levou uma cadeira e deixou-me ali escondido. "Pode ser", disse ele, "que te interrogue." E só me libertou quando trouxeram Nikolai, depois de o senhor ter ido embora; e ainda me disse: "Preciso de ti, hei de interrogar-te..."

- E a Nikolai, interrogou-o na sua presença?

- Quando mandou sair ao senhor, também me despediu a mim e começou a interrogar Nikolai.

O homem parou, e de repente tornou a fazer outra reverência, roçando o chão com o anel.

- Desculpe-me a minha delação e o mal que lhe causei.

- Que Deus te perdoe - respondeu-lhe Raskólhnikov, e, mal acabara de o dizer, logo o homem fez outra reverência, não já até o chão, mas de meio corpo para cima, deu lentamente meia-volta e saiu do quarto. - Tudo tem, agora, dois aspectos, tudo tem, agora, dois aspectos - afirmou Raskólhnikov, e, mais animado do que nunca, saiu do quarto.

"Agora podemos continuar lutando", disse com um sorriso malicioso, já na escada. Essa malícia era dirigida contra si próprio; recordava com desprezo e vergonha a sua pusilanimidade.

 

 

A manhã seguinte à explicação, para ele fatal, de Piotr Pietróvitch com Dúnietchka e Pulkhiéria Alieksándrovna provocou também em Piotr Pietróvitch uma ação libertadora. Com grande contrariedade viu-se obrigado pouco a pouco a reconhecer o fato como consumado e irrevogável, aquele mesmo fato que na noite anterior lhe parecera um acontecimento quase fantástico, e, embora desorientador, algo impossível. Toda a noite a negra serpente do amor-próprio ferido lhe mordeu o coração. Quando se levantou da cama, Piotr Pietróvitch foi imediatamente olhar-se ao espelho. Receava ter tido durante a noite um derramamento de bílis. Mas, para já, quanto a isso ia tudo bem, e quando olhou para o seu rosto digno, branco e um pouco tumefacto nos últimos tempos, Piotr Pietróvitch consolou-se quase instantaneamente, com a plena convicção de que encontraria noiva em qualquer outro lugar, sim, e até talvez de melhor posição social. Mas em seguida caiu em si e cuspiu energicamente um esguicho de saliva, com o que provocou um silencioso, mas sarcástico sorriso no seu jovem amigo e vizinho de quarto, Andriéi Siemiônovitch Liebiesiátnikov. Piotr Pietróvitch notou esse sorriso e pô-lo na conta, havia já algum tempo, muito pesada, daquele rapaz. A sua cólera redobrou quando compreendeu de repente que não devia ter dito nada a Andriéi Siemiônovitch, no dia anterior, acerca dos resultados daquela noite. Era essa a segunda tolice que cometera naquela noite, no seu arrebatamento, por causa da sua excessiva expansividade, devido à sua excitação...

Depois, durante toda essa manhã, como de propósito não fez outra coisa senão sofrer contratempo atrás de contratempo. Até no Senado o esperava um certo revés num assunto com o qual tivera muita preocupação. Irritou-o especialmente o dono da casa por ele alugada por causa do seu próximo casamento, e reparada à sua custa; o referido senhorio, um operário alemão que enriquecera, não queria de maneira nenhuma modificar o contrato que tinha sido assinado há tão pouco tempo, e exigia o cumprimento de tudo quanto nele fora combinado, em todas as suas cláusulas, apesar de Piotr Pietróvitch desejar devolver-lhe o quarto quase todo renovado. Também o armazém de móveis não se prestava, de maneira nenhuma, a devolver-lhe nem um só rublo dos que abonara para pagamento dos móveis, que ainda não tinham sido mudados para o andar: "Não hei de ir agora casar-me à força por causa dos móveis!", vociferava Piotr Pietróvitch para consigo, e, ao mesmo tempo, com uma esperança desesperada: "Mas é possível que tudo isto tenha ficado em nada, acabado irrevogavelmente? Não se poderia tentar ainda qualquer coisa?" A lembrança de Dúnietchka voltou a comovê-lo com um sedutor encanto, e não há dúvida de que se lhe tivesse sido possível, nesse momento, suprimir Raskólhnikov do mundo dos vivos só pela força da vontade, imediatamente Piotr Pietróvitch teria formulado esse voto.

"Cometi também outro erro em não lhe ter dado nenhum dinheiro", pensou, quando regressou tristemente ao tugúrio de Liebiesiátnikov. "Mas por que, o diabo me carregue, fui eu tão avarento? Nem sequer se tratava de uma questão de interesse! Eu queria mantê-las na miséria negra, depois levá-las, para que me considerassem a sua providência, e elas, em troca... Ufa! Não, se eu, durante todo este tempo, lhes tivesse dado, por exemplo, mil e quinhentos rublos para o enxoval de noiva, e algum pequeno presente, umas tantas caixinhas, estojos com objetos de toucador, jóias de cornalina, bagatelas, tudo arranjado em casa de Knop ou no armazém inglês, a coisa teria ficado mais clara e... mais séria! Não me teriam repudiado, assim, tão facilmente! Essa gente é de tal natureza que se teriam julgado infalivelmente obrigadas a devolver, em caso de ruptura, os presentes e o dinheiro, e o devolver ambas as coisas tornar-se-lhes-ia muito duro e doloroso! Além disso teriam ficado com remorsos de consciência. Que diabo, como haviam de mandar passear assim, sem mais nem menos, um homem que, até então, fora tão generoso e tão delicado! Hum! Fiz uma tolice!" E, rangendo outra vez os dentes, Piotr Pietróvitch a si mesmo se chamou imbecil... no seu íntimo, é claro.

Quando chegou a essa conclusão voltou para casa mais furioso e irritado do que quando saiu. Os preparativos para o repasto fúnebre em casa de Ekatierina Ivânovna despertaram um tanto a sua curiosidade. Já no dia anterior ouvira dizer qualquer coisa a respeito de tal repasto fúnebre, parecia-lhe até lembrar-se de que também tinha sido convidado; simplesmente as suas ocupações particulares tinham absorvido toda a sua atenção. Apressando-se a informar-se pessoalmente junto da senhora Lippewechsel, que, na ausência de Ekatierina Ivânovna (que nessa altura estava para o cemitério), se encarregara de pôr a mesa, ficou sabendo que o tal festim havia de ser solene, que quase todos os inquilinos tinham sido convidados, inclusivamente aqueles que não tinham convivido com o falecido, e que até o próprio Andriéi Siemiônovitch Liebiesiátnikov, apesar do grande aborrecimento que tivera com Ekatierina Ivânovna, e que, finalmente, ele mesmo, Piotr Pietróvitch, não só estava também convidado, como até o esperavam com grande impaciência, como ao hóspede de mais categoria. A própria Amália Ivânovna estava também convidada com muita honra, apesar dos aborrecimentos passados, e agora fazia as vezes de dona de casa e lidava, quase com prazer; além disso estava toda ataviada, embora de luto, com um vestido de seda novo, com grandes flores estampadas, de que se mostrava muito ufana. Todos esses pormenores e as informações que colheu sugeriram a Piotr Pietróvitch uma certa idéia, e dirigiu-se para o seu quarto, isto é, para o quarto de Andriéi Siemiônovitch Liebiesiátnikov, um tanto preocupado. Tudo isso porque acabava de ouvir dizer que Raskólhnikov pertencia também ao número dos convidados.

Fosse lá pelo que fosse, Andriéi Siemiônovitch não saíra de casa toda a manhã. Piotr Pietróvitch mantinha umas relações um tanto estranhas com este cavalheiro, embora naturais, de certo modo; Piotr Pietróvitch desprezava-o e aborrecia-o desmesuradamente, quase desde o próprio dia em que se instalara em sua casa; mas, ao mesmo tempo, ele lhe inspirava um certo receio. Veio hospedar-se em casa dele, quando chegou a Petersburgo, não por simples motivo de economia, embora esta fosse a razão principal, mas porque havia ainda outro motivo. Já na província ele ouvira falar de Andriéi Siemiônovitch, seu antigo pupilo, como um dos jovens progressistas mais avançados, e que desempenhava um papel importante em alguns círculos muito curiosos e já lendários. Isto impressionou Piotr Pietróvitch. Esses círculos desavergonhados, que sabiam tudo e desprezavam e denunciavam toda a gente, havia já algum tempo que metiam um certo medo a Piotr Pietróvitch, aliás um medo vago. Porque, quando estava ainda na província, não pudera de maneira nenhuma formar uma idéia justa, ainda que apenas aproximada, de tudo quanto fosse daquela índole. Ouvira dizer, como toda a gente, que existiam, sobretudo em Petersburgo, progressistas, niilistas, planeadores de reformas etc. etc.; mas, à semelhança de muitas outras pessoas, exagerava e deturpava até o absurdo a intenção e o significado de tais designações. O que maior terror lhe infundia, desde há alguns anos, era a denúncia pública, e era esse o fundamento do seu constante, exagerado desassossego, sobretudo pelo que dizia respeito aos seus sonhos de mudar as suas atividades para Petersburgo. A esse respeito estava, como costuma dizer-se, amedrontado, como se encontram às vezes as crianças. Sucedeu-lhe ter conhecimento, alguns anos antes, na província, nos começos da sua carreira, de dois casos de pessoas importantes que sofreram cruelmente por causa dos denunciadores, e dos quais tomara a defesa e fora depois recompensado com a sua proteção. Um desses casos terminou de um modo bastante escandaloso e deu muito que fazer. Eis aqui o motivo por que Piotr Pietróvitch decidira, à sua chegada a Petersburgo, averiguar imediatamente ao certo de que se tratava e, caso fosse necessário, antecipar-se aos acontecimentos e apressar-se a ganhar as simpatias das nossas novas gerações. Para isso confiava em Andriéi Siemiônovitch, e, por exemplo, quando visitou Raskólhnikov, sabia já desembaraçar-se, melhor ou pior, com algumas frases aprendidas de cor...

É claro que não tardou a considerar Andriéi Siemiônovitch um homem vulgar e ordinário. Mas isso de maneira nenhuma dissuadiu ou desencorajou Piotr Pietróvitch. Embora estivesse convencido de que os progressistas eram todos uns imbecis, nem por isso ficava mais sossegado. Pessoalmente não lhe interessavam absolutamente nada essas teorias, idéias e sistemas (com que Andriéi Siemiônovitch lhe atroava os ouvidos). A única coisa que lhe interessava esclarecer imediatamente era: "Que se passava ali? Tinham força esses indivíduos ou não tinham? Havia sobretudo razão para receio ou não havia? Se se metesse em qualquer coisa, denunciá-lo-iam ou não? E, se denunciavam, por que, concretamente, e por que, em particular, costumavam denunciar agora?" Mas isso era pouco: "Não haveria maneira de fingir perante eles e de enganá-los, se tivessem realmente força? Era necessário fazê-lo ou não? Não poderia, por exemplo, valer-se deles para prosperar na sua carreira?" Em resumo, tinha uma quantidade de problemas.

Aquele Andriéi Siemiônovitch era um homem achacado e escrofuloso, baixinho, e fora funcionário em qualquer lugar; era de um louro claro, com suíças em forma de costeleta, de que se orgulhava muito. Além disso tinha quase sempre os olhos doentes. Tinha um caráter demasiado brando, mas, às vezes, falava com muita dignidade e até com grande altivez... o que, dado o contraste com a sua pequena figura, o tornava quase sempre ridículo. E em casa de Amália Ivânovna era considerado um dos hóspedes mais distintos, visto que não se embebedava e pagava pontualmente. Apesar de todas essas boas qualidades, Andriéi Siemiônovitch era, de fato, um imbecil. Aderia ao progresso e à nova geração... apaixonadamente. Pertencia a essa inúmera e variada legião de indivíduos medíocres, de fracassados vulgares que não aprenderam nada a fundo, que aderem de um momento para o outro às idéias que estão na moda, para logo em seguida a degradarem e desacreditarem e, num abrir e fechar de olhos, ridicularizarem tudo quanto anteriormente apoiaram, ainda que fosse da maneira mais sincera.

Aliás, Liebiesiátnikov, apesar de ser muito bonacheirão, começava já também a não poder suportar o seu companheiro de quarto e antigo tutor, Piotr Pietróvitch. Fora, dos dois lados, algo de inicial e recíproco. Por muito ingênuo que Ándriéi Siemiônovitch fosse, começava, no entanto, a ver que Piotr Pietróvitch estava a enganá-lo e que, no seu íntimo, o desprezava, e que não era de maneira nenhuma o homem que aparentava. Tentou expor-lhe o sistema de Fourier e a teoria de Darwin; mas Piotr Pietróvitch, sobretudo desde há algum tempo, costumava escutá-lo com uma expressão demasiado sarcástica, e, ultimamente... até começara a contradizê-lo. O caso era que ele, no fundo, começara a compreender instintivamente que Liebiesiátnikov não só era um tipo vulgar, grosseiro, como era também um embusteirozinho que estava muito longe de possuir relações de importância, mesmo no seu próprio círculo, e que até apenas sabia as coisas por vias indiretas; e, como se isso ainda fosse pouco, não compreendia, além disso, como devia ser a sua missão de "propagandista", porque às vezes descaía-se, e portanto... como poderia ser tomado por denunciador?

A propósito: note-se, de passagem, que Piotr Pietróvitch durante essa semana e meia aceitara com gosto, sobretudo ao princípio, os mais estranhos elogios de Ándriéi Siemiônovitch, isto é, não fazia objeções, por exemplo,

e ficava calado quando Andriéi Siemiônovitch lhe atribuía a capacidade de contribuir para a futura e rápida organização da nova comuna em qualquer parte da rua Miechtchánskaia, ou, por exemplo, a capacidade de não levantar dificuldades nenhumas a Dúnietchka, se esta tivesse o capricho de arranjar um amante logo no primeiro mês de casada, ou de não batizar os seus futuros rebentos etc. etc., e outras coisas do gênero. Segundo o seu costume, Piotr Pietróvitch não punha objeção alguma a essas qualidades que lhe atribuíam, e deixava-se lisonjear inclusivamente dessa maneira... A tal ponto todas as lisonjas lhe eram agradáveis.

Piotr Pietróvitch, que por qualquer razão trocara nessa manhã vários títulos de cinco por cento, estava sentado à mesa contando maços de notas e de papéis de crédito. Andriéi Siemiônovitch, que por essa altura não tinha quase dinheiro nenhum, passeava no quarto de um lado para o outro e parecia olhar todos esses maços com indiferença e até com desprezo. Por nada deste mundo Piotr Pietróvitch teria acreditado que Andriéi Siemiônovitch fosse capaz de olhar com indiferença todo aquele dinheiro; por seu lado, Andriéi Siemiônovitch pensava com amargura que, no fundo, Piotr Pietróvitch era muito capaz de pensar isso dele e até talvez de alegrar-se por poder fazer-lhe inveja e humilhar o seu jovem amigo com aqueles maços de valores ali exibidos, recordando-lhe a sua insignificância e toda a distância que existia entre os dois.

Aconteceu, porém, encontrá-lo dessa vez nervoso e desatento mais do que nunca, apesar de ele, Andriéi Siemiônovitch, se ter posto a desenvolver na sua presença o seu tema favorito, a organização da nova comuna especial. Objeções bruscas e certas observações lançadas por Piotr Pietróvitch, enquanto ia fazendo mover as bolinhas do seu ábaco, deixavam transparecer o mais aguerrido e intencionalmente grosseiro sarcasmo. Mas o "humanitário" Andriéi Siemiônovitch atribuía essa disposição de espírito de Piotr Pietróvitch à impressão que na noite anterior lhe deixara a ruptura com Dúnietchka, e ardia no desejo de tocar o mais brevemente possível no assunto; tinha umas palavras a dizer a esse respeito que servissem de consolo ao seu estimado amigo e redundassem infalivelmente em proveito da sua evolução ulterior.

- Que preparativos de festim fúnebre são esses que fazem aí... no quarto da viúva? - perguntou, de repente, Piotr Pietróvitch, interrompendo Andriéi Siemiônovitch no passo mais interessante.

- O quê?! Não sabe? Mas eu não lhe falei ontem desse tema e não lhe expus as minhas idéias acerca de todas essas cerimônias? Pois olhe que ela também o convidou, segundo ouvi dizer. Além disso, o senhor esteve ontem falando com ela...

- Nunca eu imaginaria que a imbecil dessa pobretona fosse capaz de gastar tanto dinheiro nessa comezaina, dinheiro que talvez lhe tenha dado esse outro palerma do Raskólhnikov. Há pouco, até fiquei admirado, quando passei; mas que preparativos... até vinhos caros! Convidaram algumas pessoas... Sabe-se lá quem! - continuou Piotr Pietróvitch, que fizera aquela pergunta e entabulara este diálogo com alguma intenção. - O quê? Que me diz? Que eu também fui convidado? - acrescentou, de repente, erguendo a cabeça. - Quando é que foi isso? Não me lembro. Aliás, não irei. Que tenho eu a fazer ali? Ontem falei com ela, de passagem, da possibilidade de que lhe dessem, na sua qualidade de viúva pobre dum funcionário, um ano de ordenado a título de gratificação única e definitiva. Seria talvez por isso que ela me convidou... He... he!

- Eu também não tenciono ir - disse Liebiesiátnikov.

- Era o que faltava! Depois de lhe bater com as próprias mãos! Compreende-se que esteja ofendida, he... he... he!

- Quem é que lhe bateu? A quem? - interveio Liebiesiátnikov com vivacidade, e até se ruborizou.

- O senhor, a Ekatierina Ivânovna, haverá um mês. Soube disso ontem... Ora veja lá, com as suas idéias! É assim que os senhores resolvem a questão feminina. He... he... he!

E Piotr Pietróvitch, como se tivesse ficado consolado com isso, embrenhou-se outra vez nas suas contas.

- Tudo isso é um disparate e uma calúnia! - replicou furioso Liebiesiátnikov, que tinha muito medo de que lhe trouxessem à luz esta história. - Não se passou nada disso! Foi uma coisa muito diferente... O senhor não compreendeu bem. Intrigas! A única coisa que eu fiz, simplesmente, foi defender-me. Foi ela a primeira a atirar-se sobre mim, com unhas e dentes... Arrancou-me um cabelo inteiro. Parece-me que todas as pessoas têm o direito de defender o seu físico. Além disso, eu não autorizo ninguém a empregar comigo a violência... É uma questão de princípio. Porque isso é um despotismo. Que havia eu de fazer, ficar quieto? O que eu fiz foi apenas repeli-la...

- He... he... he! - continuou Lújin com um risinho maldoso.

- O senhor está querendo pegar comigo, assim, porque está aborrecido e de mau humor... Mas isso é um absurdo e não tem absolutamente, absolutamente relação nenhuma com o problema da mulher. O senhor ouviu mal; eu até pensava que, se era uma coisa já admitida que a mulher é igual ao homem em tudo, até na força, segundo afirmam, então não há outro remédio senão aceitar também a igualdade nesse terreno. É claro que depois há de vir a compreender que, na realidade, esse problema não deve existir, pois não deve haver lutas, e não devemos pensar que venham a existir na sociedade futura... de onde se vê que é um pouco estranho procurar a igualdade numa peleja. Eu não sou tão tolo... embora, aliás, lutas, se as há... isto é, depois não hão de existir, mas, por agora, ainda as há... Ufa! Que diabo! Uma pessoa, com o senhor, fica estonteada! Não seria por ter havido entre nós esse pequeno aborrecimento que eu deixaria de ir ao banquete. Não vou simplesmente por uma questão de princípio, para não tomar parte nesse indigno preconceito dos banquetes fúnebres, e nada mais! Se bem que, no fim de contas, ainda pode ser que vá, ainda que seja só para me rir um pouco. Mas é pena que não venham popes. Nesse caso é que eu iria infalivelmente.

- Isto é, ia comer o pão e o sal alheios e cuspir em cima deles, e ao mesmo tempo naqueles que o convidaram, não é?

- Cuspir, não, nada disso, mas protestar. Eu persigo um fim útil. Eu posso, de uma maneira indireta, contribuir para a evolução e para a propaganda. Todos nós temos obrigação de fomentar a cultura e a propaganda, e talvez quanto mais rudemente, melhor. Eu posso semear a idéia, a semente... Dessa semente brotará o fato. A quem ofendo eu com isso? A princípio dar-se-ão por ofendidos, mas depois eles mesmos hão de ver que eu lhes trago qualquer coisa de proveitoso. Bem vê, a Tieriébieieva foi acusada (aquela que pertence agora à comuna) de sair de casa e... de se entregar a um homem, de escrever aos pais dizendo que não queria viver no meio de preconceitos, de se casar só pelo civil, e de que isto era tratar com demasiada dureza os pais, e diziam que podia tê-los tratado com mais consideração e escrito em termos mais suaves. A meu ver, tudo isso são disparates, e não havia absolutamente nenhuma razão para ela lhes escrever com mais brandura, até pelo contrário, até pelo contrário, visto que se tratava de protestar. Repare: a senhora Varents viveu sete anos com um homem, abandonou os dois filhos e terminou de uma vez com o marido escrevendo-lhe isto: "Reconheço que não posso ser feliz com o senhor. Nunca lhe perdoarei o ter-me enganado, escondendo-me que existia outra organização social: a comuna. Soube disto há pouco tempo por um homem generoso, ao qual me entreguei, e, juntamente com ele, fundarei uma comuna. Falo-lhe francamente, porque considero pouco honesto enganá-lo. Arranje-se como puder. Não espere ver-me voltar para o seu lado, pois é demasiado reacionário. Desejo-lhe felicidades". É assim que se escreve esse gênero de cartas!

- Essa Tieriébieieva é a mesma de que o senhor me contou uma vez que contraíra três uniões livres?

- Não passou da segunda, se virmos as coisas como devem ser. Mas ainda que tivesse chegado à quarta, ainda que tivesse chegado à décima quinta, tudo isso são disparates! E, se alguma vez eu senti pena por meus pais já não serem vivos, foi por certo agora. Algumas vezes imagino que se eles ainda fossem vivos havia de lhes apresentar um protesto. E havia de fazê-lo intencionalmente... Até haviam de ficar banzados! Eu lhes mostraria... É pena que já não estejam mais aqui!

- Para ficarem banzados? He... he! Bem, o senhor pode fazer o que lhe apetecer - acrescentou Piotr Pietróvitch -, mas ouça, diga-me uma coisa: conhece essa moça, a filha do falecido, essa magricela? É verdade o que dizem dela?

- E então? Segundo a minha opinião pessoal, a sua situação é a situação mais normal que existe para a mulher. Por que não havia de sê-lo? Isto é, distinguons (1). Na sociedade atual, não há dúvida nenhuma que não é absolutamente normal, porque é uma situação forçada, mas na sociedade futura será completamente normal, porque será livre. Mas, mesmo agora, estava no seu direito; sofria, e isso constitui, por assim dizer, os seus fundos, o seu capital, do qual tinha o pleno direito de dispor. É claro que na sociedade futura não existirá o capital; mas a sua profissão poderá ser designada por outro nome e regulada de maneira racional e normal. Pelo que se refere pessoalmente a Sófia Siemiônovna, nos tempos atuais, eu considero o seu procedimento um enérgico e concreto protesto contra a estrutura da sociedade, e respeito-a profundamente por isso; até sinto alegria em olhá-la!

- Pois a mim contaram-me que o senhor, quando ela começou, fez com que a expulsassem daqui!

Liebiesiátnikov fez-se vermelho de cólera.

- Isso é outro mexerico! - gritou. - Nada disso, de maneira nenhuma, de maneira nenhuma! Tudo isso foi obra de Ekatierina Ivânovna, porque não compreende nada! Se calhar fiz alguma vez a corte a Sófia Siemiônovna, não? Eu apenas procurei instruí-la, de uma maneira completamente desinteressada, esforçando-me por despertar nela a atitude de protesto... O meu único fim era o protesto, e a própria Sófia Siemiônovna compreendeu muito bem que não podia continuar aqui.

- Destinava-se à comuna, não é verdade?

- O senhor faz chacota de tudo e de maneira que não vem nada a propósito, deixe que lhe diga! O senhor não percebe nada! Na comuna não existe essa profissão. A comuna funda-se para que não haja essa profissão. Na comuna essa profissão perde todo o seu significado, e o que aqui é uma coisa estúpida, ali é inteligente, e o que aqui, nas circunstâncias atuais, é antinatural, ali é qualquer coisa de naturalíssimo. Tudo depende do ambiente, do meio em que o homem se encontra; tudo consiste no meio; o homem, em si mesmo, não é nada. Dou-me agora muito bem com Sófia Siemiônovna, o que deve servir para demonstrar-lhe que ela nunca me considerou nem seu inimigo nem seu ofensor. Aí é que está! Agora procuro atraí-la para a comuna, mas com outro objetivo, absolutamente, absolutamente. Por que se ri? Nós queremos estabelecer a nossa comuna especial, mas sobre bases mais amplas que as anteriores. Nós vamos mais longe! Se Dobrolíubov pudesse levantar-se do túmulo, teria muito que ver! E Bielínski também teria de nos ouvir! Mas, no momento, continuo a instruir Sófia Siemiônovna. Tem uma belíssima alma, belíssima!

- Claro; e o senhor aproveita-se dessa alma belíssima... não? He... he!

 

* (1) Distingamos. (N. do T.) *

 

- Não, não! Oh, não! Pelo contrário!

- Bem; pelo contrário! He... he... he! É ele quem o diz!

- E pode acreditar-me! Por que razão havia eu de andar com segredinhos para com o senhor, não quer fazer o favor de me dizer? Pelo contrário, eu próprio acho isso estranho: ela se conduz para comigo de maneira um pouco forçada, mostra-se tímida e envergonhadinha!

- E o senhor, naturalmente, vai instruindo-a... He... he! Trata de demonstrar-lhe que todos esses pudores são absurdos!

- Nada disso! De maneira nenhuma! Oh, desculpe, mas que grosseria, quão estupidamente compreende o senhor a palavra instruir! O senhor não percebe nada! Oh, meu Deus, como o senhor está ainda mal preparado! Nós procuramos a liberdade da mulher, e o senhor só pensa numa coisa... Pondo de parte a questão da castidade e do pudor femininos, como coisas inúteis e até preconceituosas, eu compreendo plenamente, plenamente, a sua reserva para comigo, porque... essa é a sua vontade e está no seu direito. Claro que se ela própria me dissesse: "Quero que sejas meu!", eu, então, consideraria isso um grande triunfo, porque a moça agrada-me extraordinariamente; mas, até agora, até agora, pelo menos nunca ninguém a tratou com mais deferência e respeito do que eu, com mais consideração pela sua dignidade... Eu aguardo e espero! Eis tudo!

- O senhor devia oferecer-lhe de vez em quando algum presentezinho. Ia jurar que o senhor nunca se lembrou disso...

- O senhor não percebe nada, repito-lhe! Claro que a sua situação é de tal índole, mas... isso é outra questão! Completamente diferente! E o senhor despreza-a, simplesmente! Referindo-se a um fato que erroneamente considera digno de desprezo, o senhor está a negar consideração humana a um ser humano. O senhor ainda não conhece a sua natureza! A única coisa que me custa é que nos últimos tempos ela tenha deixado de ler e já não me peça livros. Dantes emprestava-lhos. Também tenho pena que, apesar de toda a sua energia e resolução para protestar, que já uma vez revelou, sofra ainda de uma certa falta de firmeza, por assim dizer, de falta de independência, de pouca decisão para romper de uma vez com todo gênero de preconceitos... e de estupidez. Mas, apesar disso, ela compreende muito bem algumas questões. Compreende magnificamente, por exemplo, a questão do beija-mão, isto é, que um homem ofende moralmente uma mulher ao beijar-lhe a mão. Essa questão foi muito discutida entre nós e eu expus-lha logo a ela. Escutou também com muita atenção tudo quanto respeita às associações operárias da França. Agora ando a explicar-lhe a questão referente à entrada livre nos quartos da sociedade futura. - Que questão é essa?

- Uma questão que tem sido ultimamente muito discutida: se um membro da comuna deve ter ou não o direito a entrar a qualquer hora no quarto de outro membro, homem ou mulher... Acabou por ficar decidido que sim, que tinha...

- Mesmo que nesse preciso instante se entregassem a alguma necessidade imprescindível? He... he!

Andriéi Siemiônovitch acabou por ficar aborrecido.

- O senhor vem sempre com essas malvadas "necessidades"! - exclamou, mal-humorado. - Arre! E que raiva me dá e como me contraria que, ao expor-lhe o sistema, lhe mencionasse antecipadamente essas mal ditas necessidades! Raios me partam! Essa é a pedra de toque para todos os que se parecem com o senhor, e o pior de tudo... é que se põem a falar antes de se terem informado do assunto a fundo! Quem o ouvisse havia de dizer que tem razão! E ficam todos ufanos, como se tivessem razão! Ufa! Eu já afirmei várias vezes que toda esta questão não se pode expor aos noviços, mas sim aos mais antigos de todos, quando se tenham formado já em homens bem informados e convictos. Além disso, será capaz de me dizer o que encontra, assim, de tão vergonhoso e desprezível nas latrinas? Eu sou o primeiro que está disposto a limpar as latrinas todas que o senhor quiser. Nisso não há o menor sacrifício! Isso é, simplesmente, um trabalho, uma atividade honesta, útil à sociedade, tão digna como qualquer outra e até mais elevada do que a de um Rafael ou Púchkin, visto que é mais útil. - E mais nobre, mais nobre... He... he!

- Que é isso de mais elevada? Eu não compreendo tais expressões aplicadas a um determinado trabalho do homem. "Mais nobre, mais generoso"... Tudo isso são absurdos, tolices, velhas palavras preconceituosas que eu abomino! Tudo o que é útil à humanidade nobre. Eu só compreendo uma palavra: útil! Ria-se o que quiser, mas é assim!

Piotr Pietróvitch ria-se a bandeiras despregadas. Já acabara de contar e guardar o dinheiro, embora houvesse ainda um resto sobre a mesa. Aquela questão das latrinas já por várias vezes fora motivo de ruptura e de desentendimento, apesar da sua vulgaridade, entre Piotr Pietróvitch e o seu jovem amigo. A estupidez do caso estava em que Andriéi Siemiônovitch chegava a ficar zangado a sério. Lújin, pelo contrário, aliviava assim o espírito, e presentemente sentia uma vontade especial de irritar Liebiesiátnikov.

- O senhor está assim, tão mal-humorado, por causa do seu insucesso de ontem - exclamou finalmente Liebiesiátnikov, o qual, para falar em termos gerais, apesar de toda a sua "independência" e de toda a sua atitude de protesto, parecia não ousar fazer frente a Piotr Pietróvitch e ainda lhe guardava algum daquele respeito que noutro tempo lhe tivera:

- Deixe lá essas coisas e diga-me - interrompeu-o Piotr Pietróvitch altivamente e com mau modo - se poderia... ou, para melhor dizer, se efetivamente tem tanta amizade com essa moça a que há pouco se referiu, pedir-lhe que venha aqui um momento... Segundo parece, já regressaram todos do cemitério... Ouvi barulho de passos... Convinha-me muito falar com essa criatura.

- O senhor, por quê? - perguntou Liebiesiátnikov assombrado.

- Sim, tenho necessidade. Tenho de me ir embora, ou hoje ou amanhã, e desejaria comunicar-lhe... Aliás, pode assistir ao nosso encontro. Até será melhor. Sabe Deus o que o senhor pode imaginar...

- Eu não imagino absolutamente nada... Só lhe pergunto se o deseja realmente, porque, nesse caso, nada mais fácil do que trazê-la aqui. Eu venho já. Pode ficar descansado que não os incomodarei.

De fato, cinco minutos depois já Liebiesiátnikov ali estava outra vez com Sônietchka. Esta entrou, muito espantada, e, segundo o seu costume, no maior sobressalto. Ficava sempre muito sobressaltada nestes casos e tinha sempre muito medo de encontrar caras novas e novos conhecimentos; desde a infância que os temia, e agora mais do que nunca... Piotr Pietróvitch dispensou-lhe um acolhimento afetuoso e cortês, embora com certos laivos de familiaridade alegre, que em sua própria opinião ficava muito bem a um homem tão respeitável e sério como ele, no trato com uma pessoa tão nova e, em certo sentido, tão interessante como aquela. Apressou-se a animá-la e fê-la sentar junto da mesa, em frente dele. Sônia sentou-se e olhou em redor, fixando a vista... em Liebiesiátnikov, no dinheiro que ficara em cima da mesa, e depois tornou outra vez a pousá-lo em Piotr Pietróvitch, e já não desviou os olhos dele, como se alguma coisa os fixasse sobre a sua figura. Liebiesiátnikov fez menção de se dirigir para a porta. Piotr Pietróvitch levantou-se, fez sinal a Sônia para que continuasse sentada e fez parar Liebiesiátnikov, que ia saindo.

- Está aí um tal Raskólhnikov? Veio? - perguntou em voz baixa. - Raskólhnikov? Sim, está aí. Por quê? Sim, ali o tem... Chegou apenas há um momento; já o vi... Mas por que pergunta isso?

- Bem, peço-lhe que fique aqui conosco e não me deixe a sós com essa... moça. Trata-se de um assunto sem importância, mas sabe Deus o que seriam capazes de dizer. Não quero que Raskólhnikov vá para ali dar à língua... Está percebendo?

- Estou, estou! - de súbito, Liebiesiátnikov adivinhou. - Sim, tem razão... Em minha opinião o senhor leva as suas apreensões longe demais, mas... no entanto, tem razão. Fico, com sua licença. Fico aqui, junto da janela, e não os estorvo... A meu ver, o senhor tem razão...

Piotr Pietróvitch voltou para o divã, sentou-se em frente de Sônia, olhou-a atentamente e, de repente, tomou um ar seríssimo e até um tanto severo: "Ó diabo, que pensarás tu de tudo isso, moça?" Sônia acabou por ficar completamente alvoroçada.

- Em primeiro lugar, há de pedir desculpa por mim, Sônia Siemiônovna, perante a sua respeitabilíssima mamã... É assim, não? Ekatierina Ivânovna faz as vezes de sua mãe, não é verdade? - começou Piotr Pietróvitch muito seriamente, mas, aliás, bastante afetuoso. Era evidente que estava animado das melhores intenções.

- Faz, sim, senhor; faz, sim, senhor, é como se fosse minha mãe - respondeu Sônia à pressa e sobressaltada.

- Bem, pois há de pedir-lhe desculpa, por mim, perante ela, visto que, por circunstâncias que não dependem de mim, me vejo obrigado a não assistir à reunião que ela dá... isto é, ao repasto fúnebre, apesar do amável convite da sua mãe.

- Está muito bem, eu digo-lhe; vou já dizer-lho - e Sônia levantou-se do seu lugar, pressurosa.

- Ainda não lhe disse tudo - continuou Piotr Pietróvitch fazendo-a parar e sorrindo da sua simplicidade e da sua ignorância das conveniências. - Bem se vê que ainda não me conhece, amabilíssima Sônia Siemiônovna, se julga que eu ia incomodar e fazer vir aqui uma pessoa como a senhora apenas por um motivo insignificante, que só a mim diz respeito. As minhas intenções são outras.

Sônia sentou-se logo. As notas de banco de várias cores, que ainda continuavam sobre a mesa, tornaram a atrair o seu olhar, mas depois afastou imediatamente os olhos delas e ergueu-os para Piotr Pietróvitch; pareceu-lhe de repente terrivelmente indecoroso, sobretudo tratando-se dela, pousar os olhos sobre dinheiro alheio. Pousou, pois, o olhar sobre as lunetas de ouro de Piotr Pietróvitch, que este tinha na mão esquerda, e também num grande anel maciço, muito bonito, com uma pedra amarela, que ostentava no dedo anelar da mesma mão; mas também afastou daí a vista subitamente, e, sem saber já onde havia de pousá-la, acabou por fixar outra vez os olhos no rosto de Piotr Pietróvitch. Depois de uma pausa, agora ainda mais sério do que antes, aquele prosseguiu:

- Tive ontem oportunidade de trocar, de passagem, duas palavras com a infeliz Ekatierina Ivânovna. Duas palavras que foram suficientes para compreender que ela se encontra numa situação... antinatural... se é lícito exprimir-me assim.

- Sim, sim... - apressou-se Sônia concordando.

- Embora fosse mais breve e claro dizer... mórbida. - Sim, sim... mais breve e claro... pois é... mórbida.

- Pois bem; levado por um sentimento de humanidade... e... e, por assim dizer, de compaixão, eu desejaria, pela minha parte, ser-lhe útil em alguma coisa, pois vejo a sorte inevitavelmente desgraçada que ela vai ter. Segundo parece, essa misérrima família, agora, só conta consigo.

- Dê-me licença que lhe faça uma pergunta - interpôs Sônia, de repente -; foi o senhor quem ontem se dignou falar-lhe da possibilidade de uma pensão? Porque ontem mesmo me disse ela que o senhor se oferecera para procurar obter-lhe uma pensão, é verdade?

- Não é bem isso e, em certo sentido, isso é até uma tolice. Eu me limitei a falar-lhe da possibilidade de obter-lhe um socorro, por uma vez, para a viúva de um funcionário falecido no ativo, desde que ela pudesse contar com pessoas influentes; mas, segundo parece, o seu falecido pai não só não serviu o tempo necessário, como ultimamente abandonara completamente o serviço. Em resumo: ainda que possa haver esperanças, são muito inseguras, porque, na realidade, não tem nenhum direito a socorro no caso presente, e até pelo contrário... E ela já contando com a pensão, he, he, he! A senhora é desembaraçada!

- Sim, com a pensão... Porque é muito crédula e muito boa, e por ser tão boa é que acredita em tudo e... e... e... tem esse feitio... É verdade... E o senhor desculpe - disse Sônia, e dispôs-se outra vez a retirar-se.

- Dê-me licença, ainda não acabei.

- É verdade, ainda não acabou - balbuciou Sônia. - Por isso sente-se.

Sônia ficou terrivelmente sobressaltada e tornou a sentar-se pela terceira vez.

- Vendo a situação em que ela se encontra, com filhinhos pequenos, infelizes, eu desejaria... conforme disse já... ser-lhe útil em qualquer coisa, na medida das minhas forças; isto é, apenas na medida das minhas forças

e nada mais. Poderia, por exemplo, organizar uma subscrição em seu benefício, ou, por assim dizer, uma loteria... ou alguma coisa do gênero... como nestes casos costumam fazer as pessoas chegadas e até as estranhas, que desejam ajudar o próximo. Era precisamente acerca disso que eu queria falar com a senhora. Isso podia fazer-se.

- Lá isso é; está muito bem... Deus o ajude por isso... - balbuciou Sônia, olhando fixamente Piotr Pietróvitch.

- A coisa é viável, mas... depois falaremos disso; isto é, poder-se-ia começar hoje mesmo. Esta noite encontrar-nos-emos, trocaremos impressões e lançaremos, por assim dizer, os fundamentos. Venha aqui esta noite às sete. Espero que Andriéi Siemiônovitch esteja também presente... Mas há uma circunstância de que é preciso tratar previamente com toda a atenção. Foi por isso que a incomodei precisamente, Sônia Siemiônovna, ao pedir-lhe que passasse por aqui. A minha opinião concreta... é que é impossível e também perigoso entregá-lo nas mãos de Ekatierina Ivânovna; a prova disso... é esse mesmo ágape que hoje se realiza. Não conta, por assim dizer, com uma côdea de pão para o dia seguinte, e... nem sequer com um par de meias, mas hoje comprou rum da Jamaica e, segundo parece, até vinho Madeira e café. Vi tudo isso quando passei. Amanhã todos voltarão a ficar a seu cargo e terá de prover a todas as suas necessidades, arranjar-lhes até o último pedaço de pão, o que é um absurdo. Por esse motivo, em minha opinião pessoal, a subscrição deverá fazer-se de maneira que a pobre viúva, por assim dizer, não tome conhecimento da sua existência, e seja, por exemplo, a menina a única pessoa a sabê-lo. Acha bem?

- Eu não sei. Ela só fez isso hoje... uma só vez na vida... Tinha muita vontade de honrar a memória do falecido... e é muito inteligente. Mas eu farei o que o senhor me disser e ficar-lhe-ei muito, muito, muito... e todos lhe ficarão muito... e Deus também... e os orfãozinhos...

Sônia não conseguiu acabar de falar e começou a chorar...

- Bem, não se esqueça do que acabamos de dizer; e agora queira aceitar esta quantia, pela primeira vez, para sua mãe, o que representa a minha contribuição pessoal para a subscrição. E desejaria muito que não se fizessem referências ao fato. Aqui tem... Como tenho também os meus encargos, não estou em condições.

E Piotr Pietróvitch estendeu a Sônia uma nota de dez rublos bem aberta. Sônia pegou nela, corou, balbuciou umas palavras e apressou-se a fazer-lhe uma reverência. Piotr Pietróvitch acompanhou-a até a porta com muita solenidade. Ela saiu finalmente daquele quarto, muito comovida e admirada, e voltou para junto de Ekatierina Ivânovna na maior perturbação. Durante todo o tempo que esta cena durou, Andriéi Siemiônovitch ou permanecia junto da janela ou dava voltas pelo quarto para não interromper o diálogo; assim que Sônia saiu, aproximou-se imediatamente de Piotr Pietróvitch e estendeu-lhe solenemente a mão.

- Ouvi tudo e vi tudo - disse, acentuando a última palavra de maneira especial. - Isso é nobre, isto é, humano. O senhor queria evitar a gratidão que eu bem vi. E, confesso-lhe, se bem que, por princípio, não admita a caridade privada, porque não só não extirpa radicalmente o mal como até o fomenta, não posso, no entanto, deixar de reconhecer que vi o seu procedimento com satisfação... Sim, senhor, foi uma coisa simpática.

- Tudo isso é absurdo! - murmurou Piotr Pietróvitch um tanto comovido e como se olhasse com certo receio para Liebiesiátnikov.

- Não, não é absurdo. Um homem que, ofendido e amargurado, como o senhor, por causa do que aconteceu ontem, ainda é capaz de pensar na desgraça alheia... um homem assim, ainda que com a sua conduta cometa um erro social... no entanto... é digno de respeito! Eu de nenhuma maneira esperava isso do senhor, Piotr Pietróvitch, tendo em conta as suas idéias, oh! e quanto o prejudicam ao senhor essas idéias! Como o perturbou aquele insucesso de ontem! - exclamou o bonacheirão do Andriéi Siemiônovitch, sentindo outra vez renascer a sua amizade por Piotr Pietróvitch. - Mas por que, por que é que o senhor, meu bom Piotr Pietróvitch, tinha tanto interesse nesse casamento legal? Por que havia o senhor de exigir infalivelmente essa legalidade no casamento? Bem, se quiser, bata-me; mas estou tão contente, tão contente, porque isso tenha falhado, porque o senhor continue a ser livre e não seja um homem completamente perdido para a humanidade... Pronto, já desabafei!

- Pois fique sabendo que é por isto: não quero que me ponham os cornos com esse tal amor livre, nem quero manter filhos alheios; por isso é que eu exijo o casamento legal - disse Lújin, para responder qualquer coisa. Estava muito preocupado e pensativo.

- Filhos? O senhor falou em filhos? - exclamou Andriéi Siemiônovitch dando um pulo como um cavalo de guerra que ouve um clarim bélico. - Filhos! Eis aí um problema social e um problema de capital importância, concordo; mas esse problema dos filhos resolve-se de outra maneira. Alguns não só repudiam essa idéia de ter filhos, como toda e qualquer alusão à família. Mas deixemos os filhos para depois e vamos agora aos cornos. Confesso-lhe que esse é o meu ponto fraco. Essa repugnante expressão, própria de hussardos e tão peculiar a Púchkin, também não terá sentido algum no dicionário do futuro. Que vêm a ser os tais cornos? Oh, que deturpação! Que é isso de cornos? E por que, precisamente, cornos? Que absurdo! Pelo contrário, no amor livre não os haverá. Os cornos são simplesmente a conseqüência natural de todo matrimônio legal, são o seu corretivo, por assim dizer, o protesto, de maneira que, neste sentido, não têm nada de humilhantes... E se eu alguma vez (suposição absurda) me chegar a casar legalmente, até terei muita honra nesses malvados cornos; nesse caso, direi à minha mulher: "Minha amiga, até hoje, a única coisa que sentia por ti era amor; mas, agora, também te respeito, pois tiveste coragem para protestar". O senhor ri-se? Isso é porque não tem coragem para se desprender dos preconceitos. Raios me partam, mas eu vou explicar em que consiste precisamente o aspecto desagradável de se ser enganado no casamento legal; mas isso é simplesmente a vil conseqüência dum ato reles, no qual são ambos humilhados. Quando os cornos se trazem à luz do dia, como no amor livre, então não existem, são uma coisa sem sentido e até perdem o nome de cornos. Pelo contrário, a sua mulher demonstrar-lhe-á lindamente quanto o respeita ao julgá-lo incapaz de se opor à sua infelicidade, e bastante culto para não se vingar dela lá porque tenha arranjado um novo esposo. Raios me partam, mas às vezes sonho que, se me dessem uma mulher, livra! se me casasse (dentro do amor livre ou legalmente, tanto faz), eu próprio levaria um amante a minha mulher, se ela não se decidisse a procurá-lo. "Minha amiga", havia de dizer-lhe eu, "eu te amo, mas, além disso, quero que tu me estimes... é assim mesmo." Está certo ou não está?

Piotr Pietróvitch pôs-se a rir, enquanto o escutava, mas sem nenhum prazer especial. Não lhe tinha dado até uma grande atenção. De fato, parecia pensar em outra coisa, e o próprio Liebiesiátnikov acabou por reparar nisso. Tudo isso veio Andriéi Siemiônovitch a recordar mais tarde.

 

Seria difícil apontar com precisão as razões pelas quais na alterada cabeça de Ekatierina Ivânovna se arraigou a idéia daquele disparatado festim. De fato, nele se foram quase dez rublos dos vinte que Raskólhnikov lhe entregara precisamente para o enterro de Marmieládov. Talvez Ekatierina Ivânovna se sentisse na obrigação de honrar a memória do falecido como devia ser, para que todos os vizinhos, a começar por Amália Ivânovna, ficassem sabendo que o falecido não só não era de classe inferior à deles, mas até muito superior, e que ninguém ali tinha direito de se dar ares. Também pode ser que, em grande parte, tivesse obedecido a esse orgulho especial que faz com que em algumas cerimônias sociais, obrigatórias para todos, dentro dos nossos costumes de vida, muitos pobres esgotem as suas últimas forças e até o último copeque apenas com o fim de não fazerem pior do que os outros e de que os outros não façam má opinião acerca deles. É também muito provável que Ekatierina Ivânovna desejasse nessa ocasião, precisamente nessa ocasião em que, segundo parecia, ficara só no mundo, demonstrar a todos aqueles insignificantes e antipáticos vizinhos que ela não só sabia viver e receber as pessoas, como até fora educada para aquela vida, pois fora criada numa casa nobre, e podia até dizer-se aristocrática, em casa dum coronel, e, portanto, não nascera para esfregar chãos e lavar à noite os trapinhos dos seus filhos. Estes paroxismos de vaidade costumam acometer as pessoas mais pobres e desvalidas, e às vezes tornam-se uma necessidade irritante, irresistível. Mas Ekatierina Ivânovna não era pessoa que se deixasse abater: as circunstâncias podiam oprimi-la, mas abatê-la moralmente, isto é, amedrontá-la e subjugá-la à dor, nunca. Além disso, conforme Sônietchka dissera com muito acerto, ela estava meio transtornada. É certo que isso não era coisa que pudesse desde já afirmar-se de maneira categórica; mas era verdade que, desde há algum tempo àquela parte, a sua pobre cabeça sofrera tanto que não tivera outro remédio senão ressentir-se até certo ponto. A violenta evolução da tísica, como os médicos diziam, contribuíra também para a perturbação das suas faculdades mentais.

Vinho em abundância e de marcas variadas, não havia; Madeira, também não; tinham exagerado; mas havia vinho, de fato. Também havia vodca, rum e Porto, tudo de classe inferior, mas em quantidade suficiente. E quanto a iguarias, além da torta de arroz, havia três ou quatro pratos (entre outros, um de filhós), tudo preparado na cozinha de Amália Ivânovna, e além disso viam-se também, dispostos em fila, dois samovares para servir chá e ponche depois do repasto. Os aperitivos tinham sido preparados pela própria Ekatierina Ivânovna, ajudada por um dos hóspedes, um certo polaco famélico que só Deus sabe o motivo por que vivia em casa da senhora Lippewechsel, e que se ofereceu logo para tudo a Ekatierina Ivânovna, e que durante o dia anterior e toda aquela manhã andara numa correria, abanando a cabeça e de língua de fora, esforçando-se, especialmente, segundo parecia, para que esse último pormenor não passasse em claro. A propósito de qualquer minúcia ia logo consultar Ekatierina Ivânovna e corria até a buscá-la ao Gostíni Dvor, e chamava-a a todo instante pani joruntchina (1), acabando finalmente por chegar a maçá-la terrivelmente, embora ao princípio ela tivesse dito que, se não fosse aquele homem prestável e bondoso, não sabia como se teria arranjado. Era próprio de Ekatierina Ivânovna pôr-se imediatamente a pintar a primeira pessoa que lhe saía ao caminho com as cores mais belas e simpáticas, a elogiá-la com um exagero que às vezes desconcertava a pessoa em questão, a inventar para a louvar diversos pormenores que de fato não existiam, acreditando com a mais absoluta boa-fé na sua realidade, e depois, de repente, ficava desiludida, desdizia-se, condenava-a ao desprezo e expulsava do seu convívio essa pessoa que ainda umas horas antes lhe inspirara uma verdadeira adoração. Era por natureza uma criatura de gênio alegre, jovial e aprazível; mas, devido às suas contínuas infelicidades e decepções, a tal ponto se entregara à idéia de querer e exigir ardentemente que toda a gente vivesse em paz e alegria, que a mais leve desarmonia na vida, o mais insignificante contratempo logo a afundavam no desespero, e logo a seguir, às mais brilhantes ilusões e fantasias, começava a acusar o destino, a partir e a estragar tudo quanto lhe caía nas mãos e a dar cabeçadas contra as paredes. Amália Ivânovna inspirara também repentinamente, a Ekatierina Ivânovna, uma certa idéia de invulgar prestígio e estima, talvez apenas por se ir realizar este festim e por Amália Ivânovna se ter oferecido com a maior boa vontade para tomar parte nos preparativos; ela se encarregara de pôr a mesa, de fornecer a toalha, a baixela e tudo mais, e de preparar as iguarias na sua cozinha. Ekatierina Ivânovna deu-lhe todos os poderes e deixou-a em casa enquanto foi ao cemitério. De fato, ficou tudo arranjado otimamente; a mesa foi até posta com muito esmero; a louça, os garfos, as facas, as taças, os copos, não há dúvida de que tudo isso era desirmanado, de formas e tamanhos vários, emprestados pelos vizinhos, mas, à hora marcada, estava tudo no seu lugar; e Amália Ivânovna, sentindo que se desempenhara bem da sua função, veio receber, até com certo orgulho, toda ataviada, com uma touca de fitas pretas e com um vestido de luto, os que voltavam do cemitério. Esse orgulho, embora merecido, por qualquer razão desagradou a Ekatierina Ivânovna: "Afinal, havia de parecer que, se não fosse Amália Ivânovna, não havia ali quem pusesse aquela mesa". Também não lhe agradou a touca com as fitas novas.

 

* (1) Senhora tenenta, em polonês. (N. do T) *

 

"Lá porque é a senhoria e porque, por caridade, se dignou prestar o seu auxílio a uns pobres inquilinos, é capaz de estar toda orgulhosa, esta estúpida alemãzeca, que não serve para nada! Por compaixão! Ora vejam! Quando em casa de meu pai, que era coronel, e esteve quase para ser governador, se punha às vezes uma mesa para quarenta pessoas, de tal maneira que, a uma Amália Ivânovna qualquer, ou, melhor, Liúdvigovna, nem sequer a teriam admitido na cozinha..." Aliás, Ekatierina Ivânovna, por então, resolveu não deixar transparecer o que sentia, se bem que decidira também intimamente que não havia outro remédio senão dar uma lição a Amália Ivânovna ainda naquele dia e recordar-lhe o seu verdadeiro lugar; senão, sabe Deus o que ela seria capaz de imaginar; mas, para já, limitar-se-ia a conduzir-se friamente para com ela. Outro contratempo contribuiu também, em parte, para irritar Ekatierina Ivânovna: que, no cemitério, dos vizinhos convidados para o funeral, além do polaco, que também se apressou a ir até lá, correndo, não estava quase ninguém; para o festim, isto é, para a comezaina, só apareceram os mais insignificantes e pobretões, alguns sem sequer se terem arranjado, todos esfarrapados. Os mais antigos e mais respeitáveis, todos eles, como se estivessem de acordo, tinham-se abstido de ir. Piotr Pietróvitch, por exemplo, que podia considerar-se o mais importante, não apareceu, e, no entanto, ainda no dia anterior, à noite, a própria Ekatierina Ivânovna se apressara a informar a toda a gente, isto é, a Amália Ivânovna, a Pólietchka, a Sônia e ao polaco, que ele era um homem muito bondoso, muito generoso, com relações muito importantes, e pessoa de posição, que fora amigo de seu primeiro marido e freqüentara a casa de seu pai, e que lhe prometera fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para arranjar-lhe uma boa pensão. Note-se que, quando Ekatierina Ivânovna pensava nas relações e na posição social de alguém, o fazia sem interesse algum, sem nenhum cálculo pessoal, de maneira completamente desinteressada, com o coração transbordante de satisfação, por assim se dizer, por poder gabar as pessoas e encarecer ainda mais os méritos de elogio.

Além de Lújin, provavelmente, levado pelo seu exemplo, também não assistira ao repasto fúnebre aquele antipático libertino do Liebiesiátnikov. "Mas que teria imaginado esse indivíduo? Se o convidamos foi apenas por caridade e também por ser companheiro de quarto e amigo de Piotr Pietróvitch." Também não apareceu certa dama importante, com uma filha solteirona que, apesar de haver apenas duas semanas que vivia em casa de Amália Ivânovna, já por várias vezes se queixara do burburinho e da gritaria que se ouvia no quarto dos Marmieládovi, sobretudo quando o falecido voltava embriagado para casa, o que Ekatierina Ivânovna sabia, pela própria Amália Ivânovna, quando esta, ralhando com ela e ameaçando-a de expulsá-la de sua casa, dizia em altos gritos que eles estavam incomodando "uns hóspedes muito distintos aos calcanhares dos quais estavam muito longe de poder chegar".

Ekatierina Ivânovna resolvera agora intencionalmente convidar essa tal senhora e a filha, aquelas aos calcanhares das quais estava muito longe de poder chegar, tanto mais que, até então, todas as vezes que se encontravam casualmente, aquela lhe voltara as costas altivamente... para que ficassem também sabendo que ela pensava e sentia mais dignamente e que a convidava sem se importar com o mal recebido, e para que vissem ainda que Ekatierina Ivânovna não estava habituada a viver em semelhantes tugúrios. Resolvera com toda a decisão ter uma explicação com ela à mesa e falar-lhe também de seu falecido pai, o governador, e, ao mesmo tempo, dar-lhe a entender, de passagem, que isso de voltar-lhe as costas não servia para nada, e que ela o considerava até uma ingenuidade. Também não apareceu aquele obeso tenente-coronel (de fato, capitão reformado), mas veio a saber-se que desde a manhã do dia anterior não se podia levantar. Em resumo: compareceram apenas o polaquinho, um empregadeco achacado e sardento, que não falava, com um fraque ensebado, sujo e malcheiroso, e um velhote surdo e quase cego que em outros tempos trabalhara nos Correios, e ao qual alguém, desde tempos imemoriais e sem que se soubesse por que, pagava a pensão em casa de Amália Ivânovna. Veio também um tenente reformado, embriagado (na realidade era um simples empregado da Administração Militar), que não fazia outra coisa senão rir-se às gargalhadas de uma maneira indecente e estrepitosa e - calculem! - sem colete! Um desses convidados sentou-se diretamente à mesa, sem cumprimentar sequer Ekatierina Ivânovna. E, por fim, apareceu outro em roupão, pois não tinha um traje capaz de vestir; mas aquilo era já tão vergonhoso que Amália Ivânovna e o polaquinho juntaram os seus esforços para correrem com ele. O polaquinho, por sua vez, levou consigo outros dois polaquinhos, que nunca tinham vivido em casa de Amália Ivânovna nem ninguém vira nunca na pensão. Tudo isso irritou extraordinariamente Ekatierina Ivânovna: "Afinal, para quem é que eu estive fazendo todos estes preparativos?" Para arranjar mais espaço até deixara de sentar as crianças à mesa, que, mesmo sem elas, ocupava todo o quarto, e puseram a deles num canto, em cima duma arca, junto da qual se sentaram os dois mais pequenos num banquinho, e ficando Pólietchka, por ser a mais velhinha, encarregada de atendê-los, de lhes dar de comer e de lhes assoar os narizinhos, como a meninos de boa família. Em suma, Ekatierína Ivânovna, quer quisesse, quer não, teve de recebê-los a todos com a maior gravidade e até com soberbia. Olhava alguns com especial severidade e foi com altivez que os convidou a sentarem-se à mesa. Como imaginasse que Amália Ivânovna era a culpada de os outros não terem vindo, começou de súbito a tratá-la com a maior indiferença, a tal ponto que ela o notou logo e ficou altamente ofendida. Semelhante começo não prometia um bom fim. Até que se sentaram.

Raskólhnikov entrou quase no mesmo instante em que regressavam do cemitério. Ekatierina Ivânovna ficou contentíssima quando o viu, em primeiro lugar por ser o único conviva bem-educado, e, além disso, porque, como já se sabia, daí a dois anos havia de ocupar uma cátedra na universidade, e, em segundo lugar, porque veio imediatamente pedir-lhe desculpa, com o maior respeito, por não ter podido, contra sua vontade, comparecer ao funeral. Ela se ocupou logo dele, obrigou-o a sentar à mesa ao seu lado, à sua esquerda (à direita sentava-se Amália Ivânovna), e, apesar da sua contínua vigilância e cuidado para que as iguarias fossem devidamente distribuídas e chegassem junto de todos, apesar da tosse que a afligia e que a obrigava a cada momento a interromper-se, sufocada, e que, segundo parecia, se agravara nos dois últimos dias, dirigia-se constantemente a Raskólhnikov e apressava-se a desabafar com ele em voz baixa todos os sentimentos que naquele instante a possuíam e toda a sua justa indignação pelo fracasso do repasto fúnebre, indignação que se transformava logo a seguir num riso alegre e irreprimível, à vista dos comensais ali reunidos, sobretudo à vista da senhoria.

- A culpada de tudo é aquela. Não sei se percebe a quem me refiro: é a ela, a ela! - e Ekatierina Ivânovna piscou um olho, assinalando a senhoria. - Olhe para ela: está arregalando os olhos, percebe que estamos falando dela; como não pode compreender, abre os olhos! Livra! É mesmo uma coruja! Ah... ah... ah! Hi... hi... hi! Não sei o que ela parece com aquela touca! Hi... hi... hi! Já reparou? O que ela quer é que todos fiquem pensando que ela me protege e me dá uma grande honra em sentar-se à minha mesa. Como é natural, eu pedi-lhe que convidasse umas certas pessoas, que tivessem sido amigas do falecido, e veja que espécie de gente ela me trouxe: camponeses e mendigos! Olhe para aquele, nem sequer lavou a cara; parece um animalzinho sobre duas patas! E aqueles polaquinhos? Ah... ah... ah...! Hi... hi... hi! Ninguém, nunca ninguém os viu aqui, nunca os vi na minha vida! Ora vamos lá a ver, para que teriam eles vindo, é capaz de me dizer? Estão sentados em fila, muito cerimoniosamente. Pan (2), escute - exclamou de repente, dirigindo-se a um deles -, já comeu filhós? Coma mais! Cerveja, beba cerveja! Não quer vodca? Ora repare: levantou-se e cumprimenta; dir-se-ia que estavam mortos de fome, os pobrezinhos! Não fazem outra coisa senão mastigar. Mas, ao menos, não fazem barulho; simplesmente... simplesmente, para dizer a verdade, tenho medo, por causa das colheres de prata da senhoria... Amália Ivânovna - disse, de repente encarando-a e quase em voz alta -, se por casualidade lhe roubarem as colheres, fique sabendo que eu não me responsabilizo por elas, já a previno. Ha... ha... ha! - riu, dirigindo-se outra vez a Raskólhnikov, piscando outra vez o olho para indicar a senhoria e muito contente da sua esperteza. - Não deu por nada. Continua sentada, de boca aberta; olhe, parece um mocho, um autêntico mocho, com a sua touca de fitas novas... Ha... ha... ha!

 

* (2) Senhor, em polonês. (N. do T.) *

 

Mas, de repente, aquele riso transformou-se numa tosse irreprimível que durou cinco minutos. Apareceu-lhe um pouco de sangue no lenço e corriam-lhe grossas gotas de suor pela testa. Em silêncio, mostrou o sangue a Raskólhnikov e, respirando com dificuldade, tornou a falar-lhe ao ouvido, extraordinariamente agitada e com rosetas vermelhas nas faces:

- Ora veja: eu lhe confiei a missão, bem delicada, de convidar essa senhora e a filha... percebe a quem me refiro? Para isso era preciso empregar maneiras muito corretas, proceder com a maior habilidade; mas ela se portou de tal maneira que a burra dessa forasteira, essa velha carga de ossos, essa insignificante provinciana, que não passa de viúva dum major e veio aqui tratar duma pensão e varrer as antecâmaras com a cauda do vestido, e que com cinqüenta e cinco anos ainda pinta o cabelo, se empoa e põe carmim (toda a gente o sabe)... essa velha, como lhe disse, não só não se dignou vir, como nem sequer me mandou pedir desculpa, uma vez que não podia vir, como manda a mais elementar cortesia para estes casos. Também não consigo compreender como é que Piotr Pietróvitch não veio. Mas onde está Sônia? Ah, foi lá dentro. Olhe, aqui está, finalmente. Que foi isso, Sônia? Onde é que foste? É estranho que também tu tenhas sido tão pouco pontual ao enterro de teu pai. Rodion Românovitch, ela fica ao seu lado. Aqui tens o teu lugar, Sônia. Serve-te do que quiseres. Come peixe, é o melhor. Os filhós já vêm... E aos meninos, deram filhós? Pólietchka, tens aí de tudo? Hi... hi... hi! Bem, bem. Vê se tens juizinho, Liena, e tu, Kólia, não mexas assim os pés; senta-te como um menino bem-educado. Que dizes, Sônietchka?

Sônia apressou-se a transmitir-lhe as desculpas de Piotr Pietróvitch, esforçando-se por falar alto, para que todos pudessem ouvir, e, escolhendo as palavras, as mesmas que empregara Piotr Pietróvitch e que ela acentuava ainda mais. Acrescentou que Piotr Pietróvitch a encarregara especialmente de dizer que logo que lhe fosse possível viria ali para tratar de certos "assuntos" a sós e ver o que se poderia tentar fazer dali para diante etc...

Sônia sabia que aquilo aplacaria o mau humor e tranqüilizaria Ekatierina Ivânovna, que a lisonjearia e, o que era mais importante, satisfazia o seu orgulho. Estava sentada junto de Raskólhnikov, ao qual fizera um leve cumprimento e lançara um olhar breve e curioso. Mas, durante todo o resto do tempo, evitou olhá-lo e falar-lhe. Estava também com um ar pensativo, embora olhasse de frente Ekatierina Ivânovna, para lhe agradar. Nem ela nem Ekatierina Ivânovna estavam de luto, por não terem a roupa necessária; mas Sônia trazia um vestido cinzento-escuro, e Ekatierina Ivânovna o único que tinha, de indiana, escuro e com rigor. A notícia de Piotr Pietróvitch correu célere. Depois de ter escutado gravemente Sônia, Ekatierina Ivânovna perguntou-lhe com a mesma gravidade:

- Como está de saúde Piotr Pietróvitch? - Depois, devagar e quase em voz alta, "sussurrou" a Raskólhnikov que, de fato, teria parecido estranho num cavalheiro tão respeitável e digno, como Piotr Pietróvitch, pôr-se ao lado daquela gente tão estranha, apesar de todas as ligações com a sua família e da velha amizade com seu pai.

- Já pode ver como eu lhe agradeço, a você muito especialmente, Rodion Românovitch, por não ter recusado a minha hospitalidade, apesar do ambiente - acrescentou, quase em voz alta -, embora, afinal, eu tenha

a certeza de que foi apenas a sua especial amizade pelo meu falecido marido que o levou a cumprir a sua palavra.

Depois tornou outra vez a correr os olhos, com altivez e dignidade, pelos convivas e, de repente, perguntou num tom especialmente preocupado e em voz forte, ao velhote surdo:

- Não quer mais carne assada? Deram-lhe vinho do Porto? - O velhote não respondeu e demorou muito a compreender aquilo que lhe perguntavam, até que os seus companheiros de mesa lhe explicaram, para se divertirem. Deixou-se ficar olhando, com a boca muito aberta, o que aumentou ainda a hilaridade geral.

- Mas que mono! Repare, repare! Mas por que o teriam trazido? Quanto a Piotr Pietróvitch, nunca duvidei - continuou a dizer-lhe Ekatierina Ivânovna -, e é claro que não se parece... - e falando assim, com uma voz rude e forte, e com uma cara muito severa, encarou Amália Ivânovna de tal maneira que esta ficou assustada - que não se parece com essas tipas emproadas, de rabona, que em casa do papá nem como cozinheiras seriam aceitas, e às quais o meu falecido marido fez uma honra em receber, e isso apenas devido à sua grande bondade.

- Sim, gostava de beber, era um apaixonado pela bebida - exclamou, de repente, o oficial reformado, esvaziando o seu duodécimo copo de vodca. - O meu falecido marido, de fato, tinha esse fraco, toda a gente o sabe - respondeu, de repente, Ekatierina Ivânovna. - Mas era uma pessoa boa e séria, que gostava da família e a respeitava. O mal estava em que, na sua bondade, confiava demasiado em indivíduos reles e sabe Deus os companheiros que arranjava para a bebida, alguns dos quais não valiam nem a ponta do seu dedo mínimo. Calcule, Rodion Românovitch, que lhe encontramos no bolso um pequeno galo de pão de especiarias; andava meio morto, na sua bebedeira, mas lembrava-se dos filhos.

- Um galo? Disse um ga... lo? - exclamou o oficialzinho. Ekatierina Ivânovna não se dignou responder-lhe. Por qualquer motivo ficou pensativa e suspirou.

- O senhor há de pensar com certeza, como toda a gente, que eu era demasiado severa para com ele - continuou, dirigindo-se a Raskólhnikov. - Mas olhe que não era. Ele me estimava muito, estimava-me muito. Era uma boa alma! E que pena eu tinha algumas vezes! Sentava-se num canto e começava a olhar para mim, e eu tinha muita pena dele e vontade de acarinhá-lo, mas depois pensava para comigo: "Dá-lhe carinhos que ele torna logo a embebedar-se". Só com a severidade se podia conseguir qualquer coisa dele.

- Sim, às vezes acontecia que eu o puxasse pelos cabelos, isso acontecia - tornou a dizer a mesma pessoa de há pouco, enchendo um copo de vodca. - Para alguns brutamontes não só seria conveniente puxar-lhes os cabelos como também sová-los com pau de vassoura. Fique sabendo que não estou a referir-me ao falecido! - disse Ekatierina Ivânovna.

As rosetas vermelhas das suas faces tornavam-se cada vez mais vivas; o peito arquejava-lhe. Um minuto mais e estaria pronta a armar um escândalo. Muitos puseram-se a rir, outros deram mostras de se divertirem com aquilo. Começaram a atiçar o oficial reformado e a sussurrar-lhe qualquer coisa ao ouvido. Parecia que queriam excitá-lo.

- Dá-me licença que lhe pergunte a quem se refere... - começou o ex-oficial - isto é, a que propósito... não me diz? Embora, no fim de contas, não seja preciso. Isso é um absurdo! Como se trata de uma viúva, de uma pobre viúva! Desculpo-lhe... vá lá! - e tornou a encher o copo de vodca. Raskólhnikov continuava sentado e escutava em silêncio e com repugnância. Por delicadeza fingia comer as iguarias que a cada momento Ekatierina Ivânovna lhe punha no prato, e apenas para não a desgostar. Olhava para Sônia com muita atenção. Mas Sônia estava muito inquieta e preocupada: tinha o pressentimento de que o festim fúnebre não iria acabar bem e seguia com receio o crescente nervosismo de Ekatierina Ivânovna. Sabia que, entre outros motivos, o principal, que levara as tais duas senhoras de fora a recusarem tão depreciativamente o convite de Ekatierina Ivânovna, fora ela, Sônia. Ouvira dizer à própria Amália Ivânovna que a mãe até se ofendera com o convite e que fizera esta pergunta: "Como seria possível sentar ela a sua filha ao lado “daquela moça'?" Sônia pressentia que Ekatierina Ivânovna devia estar mais ou menos a par daquilo, e a ofensa que lhe tinham feito a ela, Sônia, significava para Ekatierina Ivânovna mais do que se a tivessem ofendido a ela pessoalmente, aos seus filhos, ou ao marido; enfim, aquilo era uma ofensa terrível e Sônia sabia bem que Ekatierina Ivânovna já não ficaria sossegada enquanto não tivesse demonstrado àquelas duas mulheres que elas eram... etc. etc. Houve alguém que, do outro extremo da mesa, enviou a Sônia um prato no qual pusera dois corações de pão negro atravessados por uma flecha. Ekatierina Ivânovna ficou vermelha e declarou imediatamente em voz forte que aquele que fizera aquilo era com certeza um bêbado estúpido. Amália Ivânovna, que também pressentia qualquer coisa de desagradável, e ao mesmo tempo estava ofendida até o mais profundo da sua alma pela altivez de Ekatierina Ivânovna, pôs-se a contar, de “repente, sem vir nada a propósito, com o pretexto de distrair a aborrecida disposição de espírito dos convivas e de fazer, também, vista perante eles, que um certo amigo seu, Karl, o moço da farmácia, tomara certa noite uma carruagem e que "o cocheiro quisera matá-lo, que Karl pedira muito, muito, que não o matasse, e que se pusera a chorar, e se assustara, e o coração lhe rebentara de medo". Ekatierina Ivânovna ainda se riu; mas logo a seguir fez notar a Amália Ivânovna que ela não tinha jeito para contar anedotas em russo. Ela ficou ainda mais ofendida e respondeu-lhe que o seu Vater aus Berlim era uma personagem de muita, mesmo muita importância, e que andava sempre de mãos metidas nos bolsos... A trocista da Ekatierina Ivânovna não pôde conter-se e desatou numa tremenda gargalhada, a tal ponto que Amália Ivânovna acabou por perder a paciência e só com muito custo conseguiu reprimir-se.

- Olhe para aquela coruja! - tornou a murmurar Ekatierina Ivânovna ao ouvido de Raskólhnikov, quase com alegria. - O que ela queria dizer era que o pai trazia as mãos metidas nos bolsos dos outros... Hi... hi... hi! Não sei se já reparou bem, Rodion Românovitch, que todos esses estrangeiros que há aqui, em Petersburgo, principalmente os alemães, que vieram sabe Deus de onde, são todos mais grosseiros do que nós? Porque há de concordar comigo que não é possível uma pessoa pôr-se a contar isso de que a "Karl, o moço da farmácia, lhe rebentou de susto o coração", e que ele (mostrengão!), em vez de bater no cocheiro, "juntou as mãos, pôs-se a chorar e pediu-lhe muito"... Ah, que azêmola! E ainda se julga muito engraçada, sem perceber que é uma tola! Parece-me bem que esse oficialzinho reformado é mais inteligente do que ela; pelo menos vê-se bem que é um vadio que afogou toda a inteligência no copo, ao passo que esses... Olhe para eles, como estão ali pespegados, tão sérios... Olhe para os olhos que ela abre! Está arreliada! Está arreliada! Ha... ha ... ha! Hi... hi... hi!

Já de bom humor, Ekatierina Ivânovna pôs-se a enumerar um nunca acabar de pormenores e, de repente, começou a dizer que, assim que recebesse aquela pensão que andavam a arranjar-lhe, fundaria, por certo, na cidade onde nascera, T..., um internato para meninas nobres. Disso ainda Ekatierina Ivânovna não falara a Raskólhnikov, e pôs-se a descrever-lhe imediatamente o seu plano, com os pormenores mais sedutores. O certo é que, sem se saber como, apareceu de súbito nas suas mãos aquele diploma, do qual o falecido Marmieládov já falara a Raskólhnikov, na taberna, ao explicar-lhe que Ekatierina Ivânovna, sua mulher, quando saíra do instituto, dançara com um xale "em presença do governador e de outras personalidades". Esse diploma devia agora, pelo visto, servir de justificação para o direito que tinha Ekatierina Ivânovna de fundar o referido colégio; mas, no fundo, a sua finalidade era outra: a de reduzir definitivamente ao silêncio aquelas duas fúfias, se, por acaso, tivessem vindo ao jantar, demonstrando-lhes com toda a clareza que Ekatierina Ivânovna era originária duma casa muito digna, podia mesmo dizer-se aristocrática; era filha dum coronel e, portanto, valia mais do que muitas aventureiras que abundavam tanto havia já algum tempo. O diploma andou em seguida pelas mãos dos convivas embriagados, ao que Ekatierina Ivânovna não se opôs, pois, de fato, nele estava escrito, com todas as letras, que ela era filha dum conselheiro da corte, dum cavalheiro, o que equivalia quase a ser filha dum coronel. Entusiasmada, Ekatierina Ivânovna começou em seguida a expor todas as circunstâncias da sua futura e plácida existência em T..., dos professores do liceu, que convidaria para dar lições no seu internato; de um respeitável ancião, o francês Mangot, que ensinara a sua língua à própria Ekatierina Ivânovna no instituto, e que vivia ainda em T..., e que, com certeza, ela poderia contratar por módica quantia. Chegou a vez de falar de Sônia, "que havia de mudar-se para T..., juntamente com Ekatierina Ivânovna, e que a ajudaria ali em tudo". Mas, nesse momento, houve alguém que deixou escapar um risinho contido, no outro extremo da mesa. Embora se esforçasse por fingir não ter notado aquele risinho sufocado na outra ponta da mesa, Ekatierina Ivânovna apressou-se a elevar a voz, pôs-se a falar comovidamente das indubitáveis aptidões de Sônia Siemiônovna para servir-lhe de auxiliar, "da sua suavidade, da sua paciência, abnegação, bondade e cultura", e, enquanto dizia isso, deu umas palmadinhas nas faces de Sônia e, levantando-se, abraçou-a por duas vezes. Sônia corou e Ekatierina Ivânovna começou de repente a chorar, afirmando que era "uma tola fraca de nervos, que estava muito cansada e já era tempo de acabar com aquele jantar e, visto que a comida já se acabara, trariam a seguir o chá". Nesse mesmo instante, Amália Ivânovna, profundamente ressentida por não ter podido falar, e também por antes não a terem escutado, lançou-se de repente numa última tentativa e, com uma certa angústia interior, permitiu-se comunicar a Ekatierina Ivânovna uma observação muito prática e sensata: que no seu futuro pensionato deveria conceder uma atenção especial ao asseio da roupa branca das meninas, e que "haviam de precisar, infalivelmente, duma senhora séria para tratamento da roupa branca", e também "a fim de vigiar as moças, para que elas não lessem romances à noite". Ekatierina Ivânovna, que de fato estava cansada, nervosa, e farta do jantar de enterro, "fechou logo a boca" a Amália Ivânovna, dizendo-lhe que "só lhe ocorriam disparates e que não entendia nada do que ela queria dizer; que isso da roupa branca era da competência da despenseira e não da diretora do internato e, quanto à leitura de romances, tratava-se simplesmente duma inconveniência e pedia-lhe que se calasse". Amália Ivânovna corou de cólera e fez-lhe notar que ela "apenas velava pelo seu bem e que lhe desejava as maiores felicidades" e que "havia já algum tempo que ela não lhe dava ogeld que lhe devia pelo quarto". Ekatierina Ivânovna caiu-lhe imediatamente em cima, dizendo-lhe que ela mentia ao afirmar que "velava pelo seu bem", visto que, para não ir mais longe, na noite anterior, quando o defunto estava ainda sobre a mesa, a tinha vindo afligir por causa do quarto. Amália Ivânovna respondeu muito oportunamente dizendo que ela "convidara aquelas senhoras, mas que elas não foram porque eram senhoras de boa família e não podiam conviver com quem não o era". Ekatierina Ivânovna sublinhou em seguida que ela era uma qualquer e não podia avaliar o que era a verdadeira distinção. Amália Ivânovna não pôde suportar isso e declarou imediatamente que o seu Vater aus Berlin era uma pessoa muito importante e andava com as mãos nos bolsos, dizendo sempre pufl puf! e, para dar ainda uma idéia melhor do que era o seu pai, Amália Ivânovna saltou da cadeira, meteu as duas mãos nos bolsos, encheu as bochechas de ar e começou a fazer uns vagos ruídos com a boca, semelhantes a pufl puf!, por entre as gargalhadas gerais de todos os hóspedes, que excitavam intencionalmente Amália Ivânovna com o seu aplauso, calculando que daí a pouco estariam puxando pelos cabelos uma da outra. Mas Ekatierina Ivânovna não se pôde conter e declarou imediatamente, de maneira que todos ouvissem, que Amália Ivânovna nunca tivera pai, e que era simplesmente Amália Ivânovna, uma finlandesa de Petersburgo, uma bêbada, que, antes, devia ter sido cozinheira em algum lugar, se é que não fora qualquer coisa de pior. Amália Ivânovna ficou vermelha como um tomate e levantou a voz dizendo que aquilo talvez se pudesse aplicar a ela, Ekatierina Ivânovna, porque "de certeza que não tivera Vater, ao passo que ela tivera um Vater aus Berlin, que usava uns sobretudos muito compridos e que estava sempre fazendo pufl pufl puf!". Ekatierina Ivânovna fez notar, num ar de desprezo, que a sua origem era bem conhecida de todos, e que naquele diploma que acabavam de ver constava, em letra de forma, que o pai era coronel, ao passo que o pai de Amália Ivânovna (supondo que tivesse tido pai) devia ter sido com certeza algum finlandês de Petersburgo, algum leiteiro, embora o mais certo de tudo era que não o tivesse tido, pois ainda não se sabia como se chamava Amália Ivânovna por parte do pai, se era Ivânovna ou Liúdvigovna. Quando ouviu isso, Amália Ivânovna, já fora de si, deu um soco sobre a mesa e começou a gritar que o seu Vater "se chamava Ivan e que era burgomestre", ao passo que o Vater de Ekatierina Ivânovna "nunca fora burgomestre na sua vida". Ekatierina Ivânovna levantou-se do seu lugar e, com uma voz severa e aparentemente tranqüila (embora estivesse pálida e lhe arfasse o peito), respondeu-lhe que se ela se atrevesse "a pôr outra vez no mesmo nível o porco do seu Vater e o seu pai, ela, Ekatierina Ivânovna, tirar-lhe-ia então a touca da cabeça e pisava-a a seus pés". Quando ouviu aquilo, Amália Ivânovna começou a correr pelo quarto, gritando com todas as forças que ela era a senhoria e que Ekatierina Ivânovna "tinha que abandonar o quarto naquele mesmo instante"; depois pôs-se a tirar as colheres de prata da mesa. Armou-se um grande burburinho e uma grande algazarra: as crianças puseram-se a chorar; Sônia correu a amparar Ekatierina Ivânovna; mas, quando Amália Ivânovna fez uma alusão a respeito do boletim amarelo (3), Ekatierina Ivânovna afastou Sônia bruscamente e atirou-se a Amália Ivânovna para cumprir imediatamente a sua ameaça de arrancar-lhe a touca. Nesse momento a porta abriu-se e à entrada apareceu inesperadamente Piotr Pietróvitch Lújin. Ficou ali parado e percorreu com um olhar severo e perscrutador toda a assistência. Ekatierina Ivânovna foi ao encontro dele.

 

* (3) Boletim de matrícula das prostitutas. (N. do T.) *

 

- Piotr Pietróvitch! - gritou. - Defenda-me o senhor, ao menos! Faça ver a essa estúpida criatura que não tem o direito de tratar desta maneira uma senhora de boa família que se encontra na desgraça; lá estão os juízes... Eu, ao general governador... Há de prestar contas... Lembre-se da hospitalidade de meu pai, defenda uma órfã!

- Dê-me licença, minha senhora! Dê-me licença, minha senhora! - balbuciou Piotr Pietróvitch. - Como sabe, não tive o prazer de conhecer o seu pai... Dê-me licença, minha senhora! - Alguém se pôs a rir em voz alta. - E não faço tenção de tomar parte nas suas contínuas discussões com Amália Ivânovna... Eu vim para tratar de um assunto preciso... e quero ter imediatamente uma explicação com sua enteada, Sófia... Siemiônovna... Julgo que é esse o seu nome, não é? Faça o favor de me deixar passar.

E Piotr Pietróvitch, passando por detrás de Ekatierina Ivânovna, dirigiu-se para o canto oposto, onde estava Sônia.

Ekatierina Ivânovna ficou no mesmo lugar em que estava, como se tivesse sido atingida por um raio. Não podia compreender como é que Piotr Pietróvitch negava a hospitalidade do seu papacha. Depois de ter inventado isso da hospitalidade, ela própria acabara por acreditá-lo. Ficou também impressionada com o tom decidido, seco e até com uma ponta de desdém e ameaça, de Piotr Pietróvitch. E, além do mais, quando ele apareceu, todos se tinham calado a pouco e pouco. Aliás, aquele homem decidido e sério estava em franca desarmonia com o resto dos presentes, além de que era evidente que ele fora ali por causa de alguma coisa importante, que algum motivo extraordinário o levara a misturar-se com semelhante gente, e que, de um momento para o outro, havia de suceder, de acontecer alguma coisa. Raskólhnikov, que estava de pé ao lado de Sônia, afastou-se para um lado para o deixar passar; aparentemente, Piotr Pietróvitch nem sequer reparou nele. Passado um minuto surgiu também à porta Liebiesiátnikov; não chegou a entrar; mas parou também ali com curiosidade especial, quase espantado, e, segundo parece, ficou durante muito tempo sem entender nada do que se passava.

- Desculpem, se venho talvez interrompê-los; mas é que se trata de um assunto bastante importante - observou Piotr Pietróvitch, sem se dirigir especialmente a qualquer pessoa -, e fico até contente porque seja tratado em público. Amália Ivânovna, peço-lhe encarecidamente que, como senhoria do quarto, preste especial atenção à conversa que vou ter imediatamente com Sófia Siemiônovna. Sófia Siemiônovna - continuou, dirigindo-se a Sônia, que estava assombrada e assustadíssima -, de cima da mesa do quarto do meu amigo, Andriéi Siemiônovitch Liebiesiátnikov, imediatamente depois de sua visita desapareceu uma nota de cem rublos que me pertencia. Se for capaz de me dizer, seja lá como for, onde é que essa nota se encontra neste momento, dou-lhe a minha palavra de honra, e tomo todos por testemunhas, de que daremos o assunto por terminado. De outro modo ver-me-ei na contingência de tomar medidas muitíssimo sérias, e então... deite as culpas sobre si própria!

Reinava o maior silêncio no quarto. Até as crianças, que estavam chorando, se acalmaram. Sônia empalideceu mortalmente, olhava para Lújin e não sabia que responder. Parecia que também não conseguia compreender. Decorreram alguns segundos.

- Bem, vamos ver, o que me diz? - perguntou Lújin olhando-a de alto a baixo.

- Eu não sei... Eu não sei nada... - declarou Sônia, finalmente, com uma voz fraca...

- Não? Não sabe nada? - respondeu Lújin, e ficou ainda calado por uns segundos. - Pense bem, mademoiselle - começou severamente, mas como se advertisse -, veja se se lembra: é de boa vontade que lhe concedo ainda algum tempo para que reconsidere. Faça favor de reparar nisto; se eu não tivesse a certeza, então, é claro, dado a minha experiência, não me teria arriscado a acusá-la diretamente, pois que de uma acusação deste gênero, direta e terminante, mas que fosse falsa ou simplesmente errônea, eu teria, de certa maneira, que ficar responsável. Não o ignoro. Esta manhã negociei, para atender às minhas necessidades, alguns títulos de cinco por cento, por um valor nominal de três mil rublos. Tenho a conta anotada num livrinho. Quando voltei a casa, e Andriéi Siemiônovitch é testemunha disso, tratei de contar o dinheiro e, pondo de parte dois mil e trezentos rublos, guardei-os numa carteira, que pus no bolso de lado do meu sobretudo. Em cima da mesa ficaram cerca de quinhentos rublos em notas, e, entre elas, três de cem rublos. Nesse momento chegou a menina (fui eu que a mandei chamar), e, durante todo o tempo que ali esteve, mostrou-se muito agitada: tanto que, durante metade da conversa, por três vezes se levantou para se ir embora, não sei por quê, apesar da conversa ainda não ter acabado. Andriéi Siemiônovitch é testemunha de tudo quanto eu digo. Com certeza que a mademoiselle também não se negará a confirmar e corroborar que eu a chamei, por intermédio de Andriéi Siemiônovitch, única e exclusivamente para lhe falar da orfandade e da desamparada situação de sua madrasta, Ekatierina Ivânovna (a cujo jantar não pude assistir), e de como seria conveniente abrir uma subscrição a seu favor e organizar uma loteria ou qualquer coisa do gênero. A senhora agradeceu-me e até chorou (eu conto tudo, tal como se passou; em primeiro lugar, para ajudá-la a lembrar-se e, além disso, para demonstrar-lhe que, na minha memória, não se apagou nem o mais pequeno pormenor). Depois tirei da mesa uma nota de dez rublos e dei-lha para contribuir pessoalmente para a subscrição a favor da sua madrasta, e a título de primeiro socorro. Tudo isso foi presenciado por Andriéi Siemiônovitch. Depois acompanhei-a até a porta; a menina continuava muito agitada, como antes, e depois disso, quando fiquei só com Andriéi Siemiônovitch, conversando uns dez minutos... ele saiu, e, então, dirigi-me outra vez para a mesa e para o dinheiro que lá ficara, com a intenção de contá-lo e de pôr depois uma quantia de parte, como já decidira. Com grande espanto verifiquei que, das notas de cem rublos, faltava uma. Faça favor de ver: suspeitar de Andriéi Siemiônovitch serme-ia impossível; só de pensá-lo me envergonho. Que me tenha enganado na conta também não é possível, porque, um minuto antes de a menina ter entrado, já eu acabara a contagem e verificara que o total estava exato. Há de concordar que, ao recordar a sua perturbação, a sua pressa de se ir embora, e que durante algum tempo teve as mãos em cima da mesa e, por último, levando em conta a sua situação, de modo geral, e os costumes a ela inerentes, eu me vi obrigado, por assim dizer, com horror e até contra minha vontade, a conceber uma suspeita... cruel, sem dúvida, mas... justa! Acrescento e repito que, apesar de toda a minha aparente segurança, compreendo que, no entanto, há nesta minha acusação um certo risco para mim. Mas como vê, eu não hesitei um minuto: revoltei-me e vou dizer-lhe por quê: unicamente, minha senhora, unicamente por causa da sua ingratidão! Como não? Então eu a chamo por causa da sua pobre madrasta, dou-lhe eu mesmo um auxílio de dez rublos, e a senhora, a senhora, imediatamente, vai e paga-me com semelhante procedimento! Não, isso não está certo! Repare bem: apesar de tudo, como um amigo sincero (porque melhor amigo do que eu não pode a senhora ter neste momento), peço-lhe que considere! Se não, serei inexorável! Portanto, vamos lá a ver: que responde?

- Eu não tirei nada do seu quarto - balbuciou Sônia, horrorizada. - O senhor deu-me dez rublos, aqui os tem, fique com eles. - Sônia tirou um lenço do bolso, procurou o nó que lhe tinha dado, desatou-o, tirou a nota de dez rublos e estendeu a mão para Lújin.

- De maneira que não reconhece o caso dos outros cem rublos? - perguntou ele em tom recriminativo e insistente, sem aceitar a nota. Sônia olhou à volta. Todos a fitavam com caras terríveis, severas, sarcásticas. Lançou um olhar a Raskólhnikov... que estava de pé junto da parede, de braços cruzados e a contemplava com olhos de fogo.

- Oh, meu Deus! - deixou escapar Sônia.

- Amália Ivânovna, é preciso chamar a polícia e, entretanto, peço-lhe encarecidamente que vá chamar o porteiro - disse Lújin em voz baixa e até afetuosa.

- Gott der barmherzige! (1) Eu já sabia que ela era uma ladra! - exclamou Amália Ivânovna esfregando as mãos.

- Já sabia? - sublinhou Lújin. - Com certeza deve ter tido algum motivo para pensar assim, antes disto. Pois então lhe peço, respeitável Amália Ivânovna, que não se esqueça das palavras que acaba de pronunciar diante de testemunhas.

De todos os lados se ergueu uma forte vozeria. Todos se agitavam. - O quê? - gritou Ekatierina Ivânovna, caindo em si, de repente, como se lhe tivessem carregado uma mola, e atirando-se a Lújin. - O quê? Com que então a acusa de roubo? A Sônia? Ah, malvados, malvados! - e, dirigindo-se a Sônia, apertou-a nos seus braços descarnados, como num torno.

- Sônia! Como te atreveste a aceitar-lhe esses dez rublos! Oh, minha tonta! Dá-lhos já! Dá-lhe agora mesmo esses dez rublos! Tome lá!

E, tirando a nota a Sônia, Ekatierina Ivânovna, depois de amarrotá-la entre as mãos, atirou-a à cara de Lújin. A bolinha acertou-lhe um olho e foi depois rebolando pelo chão. Amália Ivânovna agachou-se para recolher o dinheiro. Piotr Pietróvitch ficou furioso.

- Segurem essa doida! - gritou.

Nesse momento, ao lado de Liebiesiátnikov apareceram algumas pessoas, entre elas as duas senhoras de fora.

- O que, que vem a ser isso de doida? Com que então eu estou doida? Idiota! - gritou Ekatierina Ivânovna. - Tu é quem és um idiota, um advogado sem causas, um malvado! Sônia, Sônia tirava-lhe agora o dinheiro! Sônia, uma ladra! Se ela ainda tem que te dê a ti, imbecil! - e Ekatierina Ivânovna desatou num riso histérico. - Já se viu maior idiota do que isto? - disse, encarando todos e apontando Lújin. - O quê? Também tu? - disse, ao ver a senhoria, de repente - também tu, ignorante, afirmas que ela é uma ladra, reles prussiana, que pareces uma galinha choca com crinolina! Ai de ti! Ai de ti! Se ela não saiu do quarto e, assim que veio de lá de dentro, sentou-se logo ao lado de Rodion Românovitch! Reviste-a! Uma vez que ela não foi a parte nenhuma, ainda deve ter o dinheiro com ela! Procura, procura, procura! Se não encontrares nada, golubtchik (2), então, hás de pagá-las! Ao soberano, ao soberano, será ao próprio czar que eu recorrerei, porque é misericordioso, e lançar-me-ei a seus pés, agora mesmo, hoje mesmo! Eu... uma órfã! Hão de deixar-me entrar! Julgas que não me deixarão passar? Pois estás enganada, que hei de entrar! Hei de entrar! Contavas com a timidez dela? Era nisso que punhas as tuas ilusões? Pois eu, em compensação, meu caro, sou ousada! Tens que te haver comigo! Vamos, procura, procura, procura!

 

* (1) “Deus misericordioso", em alemão. (N. do T.)

(2) Pombinho, querido. (N. do E.) *

 

E Ekatierina Ivânovna, enfurecida, sacudia freneticamente a Lújin e arrastava-o para junto de Sônia.

- Eu estou disposto a isso, eu responderei... mas veja se se acalma, veja se se acalma! Eu vejo muito bem que a senhora é ousada! É... é... isso - balbuciou Lújin - é com a polícia... Embora, no fim de contas, haja bastantes testemunhas... E eu estou disposto a isso... Mas, em todo caso, para um homem é difícil... por uma questão de sexo... Só com a ajuda de Amália Ivânovna... Embora, aliás, não é assim que se fazem as coisas... Que hei de eu fazer?

- Escolha quem quiser! Quem quiser que a reviste! - gritou Ekatierina Ivânovna. - Sônia, mostra-lhe o forro dos bolsos. Isso mesmo! Olha, mostrengo, está vazio, era aqui que estava o lenço, o bolso está vazio! Estás vendo? Agora o outro bolso: aqui está, aqui está! Vês, vês?

E Ekatierina Ivânovna não ficou satisfeita enquanto não virou do avesso os dois bolsos. Mas, do segundo, do da direita, voou de repente um papelzinho que, descrevendo no ar uma parábola, foi cair aos pés de Lújin. Todos o viram; muitos soltaram uma exclamação. Piotr Pietróvitch agachou-se, apanhou do chão o papelzinho com os dedos, ergueu-o à vista de todos e desdobrou-o. Era a nota de cem rublos, dobrada em oito partes. Piotr Pietróvitch passeou a mão à volta, para que todos vissem a nota.

- Grande ladra! Fora desta casa! A polícia, a polícia! - gritou Amália Ivânovna. - Deviam ser mandadas para a Sibéria! Fora!

De todos os lados se ergueram exclamações. Raskólhnikov estava calado, sem tirar os olhos de Sônia e lançando de quando em quando rápidos olhares a Lújin. Sônia continuava no mesmo lugar, alheada. Quase nem dava mostras de espanto. De súbito, todo o seu rosto se ruborizou; deu um grito e cobriu a cara com as mãos.

- Não, eu não sou isso! Eu não roubei! Eu não sei nada! - exclamou com uma voz entrecortada pelos soluços e lançou-se nos braços de Ekatierina Ivânovna. Esta recebeu-a e estreitou-a com força, como se quisesse defendê-la de todos contra o seu peito.

- Sônia! Sônia! Eu não acredito! Olha, eu não acredito! - gritava ainda Ekatierina Ivânovna, embalando-a nos braços como se fosse ela uma criancinha, dando-lhe muitos beijos, acariciando-lhe e beijando-lhe também as mãos, como se as sorvesse. - Diz que tu o tiraste! Mas que gente tão estúpida! Oh, meu Deus! São todos uns imbecis, uns tolos! - gritava, encarando com todos. - Não sabem que coração ela tem, que mulher ela é! Ela não tirava nada, ela... Pois se ela é capaz de se desfazer do seu último vestido, vendê-lo e andar descalça para dar tudo a vocês, se precisarem! Ela é assim! E se tem o boletim amarelo foi porque os meus filhos morriam de fome! Foi por nós que ela se vendeu! Ah, homem que já estás morto, homem que já estás morto! Ah, homem que já estás morto, homem que já estás morto! Estás vendo? Estás vendo? Olha o jantar fúnebre que tiveste! Góspod! (3) Mas defendam-na! Que fazem aí todos parados? Rodion Românovitch! Por que não a defende? Também acredita nisso? Todos juntos, todos, todos, todos, todos, não valem nem o seu dedo mínimo! Góspod! Mas defendam-na...

O choro da pobre Ekatierina Ivânovna, tísica, desprotegida, pareceu produzir finalmente uma grande impressão sobre os presentes. Havia tanto sofrimento, tanta dor naquela cara contraída pelo sofrimento, vincada pela tuberculose; naqueles lábios descorados, salpicados de sangue; naquela voz estertórica, naquele pranto entrecortado de soluços parecido com o choro duma criança; naquela imploração ingênua, infantil, e, ao mesmo tempo, desolada, de defesa, que todos pareceram condoer-se da infeliz. Piotr Pietróvitch compadeceu-se também a seguir.

- Senhora! Senhora! - exclamou com ênfase. - Não é nada contra a senhora! Ninguém se atreveu a culpá-la, nem de má intenção nem sequer de conivência, tanto mais que foi a senhora mesma quem pôs a coisa a claro, ao esvaziar-lhe os bolsos; com certeza que a senhora não supunha nada! Eu estou disposto a ter piedade pela senhora, por assim dizer, pois foi a miséria o motivo que impulsionou Sófia Siemiônovna. Mas por que não quis a menina confessar logo? Tinha medo da vergonha? Mas foi este o seu primeiro passo nesse caminho? Naturalmente não estava boa da cabeça! Compreende-se. Mas, no entanto, por que se deixou chegar a esta situação? Meu Deus! - Encarou todos os presentes. - Meu Deus! Como tenho pena e estou, por assim dizer, condoído, sinto-me, no entanto, disposto a perdoar, apesar da ofensa que recebi. Mas olhe, menina, que esta vergonha lhe sirva de lição daqui para diante - disse, dirigindo-se a Sônia -, e eu considero o assunto terminado e não o levarei para a frente. Já chega.

Piotr Pietróvitch lançou, de soslaio, um olhar a Raskólhnikov. Os seus olhares encontraram-se. O olhar esbraseado de Raskólhnikov parecia querer pulverizá-lo. Enquanto tudo isso se passava, Ekatierina Ivânovna dava mostras de não conseguir entender nada; estava abraçada a Sônia e beijava-a loucamente. As crianças tinham-se também agarrado a Sônia por todo lado, com as suas mãozinhas, e Pólietchka - embora não compreendesse claramente o que se passava - tinha-se posto a chorar, com todo o corpo sacudido pelos soluços e escondendo a sua linda carinha, intumescida pelo choro, sobre um ombro de Sônia.

- Que maldade! - gritou, de repente, uma voz forte, à porta. Piotr Pietróvitch voltou-se rapidamente para olhar.

- Que baixeza! - repetiu Liebiesiátnikov, olhando-o nos olhos. Piotr Pietróvitch deu um pulo. O que não passou despercebido a nenhum dos presentes. Lembraram-se disso, depois. Liebiesiátnikov entrou no aposento.

 

* (3) "Senhor! Meu Deus!", em alemão. (N. do T) *

 

- Como se atreve a tomar-me como testemunha? - disse, aproximando-se de Piotr Pietróvitch.

- Que quer dizer isso, Andriéi Siemiônovitch? A quem se refere? - resmungou Lújin.

- Quer dizer que o senhor... é um caluniador, aí tem o que significam as minhas palavras! - declarou Liebiesiátnikov com veemência, olhando-o severamente com os olhinhos míopes. Estava terrivelmente zangado. Ras kólhnikov parecia beber os seus olhares, como se estivesse ansioso por compreender e pesar cada palavra sua. Piotr Pietróvitch parecia também transtornado, principalmente no primeiro momento.

- Se o senhor, a mim... - começou, balbuciando. - Que lhe importa isso? O senhor perdeu o juízo?

- Não, ainda o tenho todo. O senhor é que é... um canalha. Ah, e que vil! Eu ouvi tudo e esperava de propósito para ver se conseguia compreender, porque, confesso-lhe, até mesmo agora, ainda não vejo a lógica do caso... O que não consigo explicar é... para que é que o senhor fez isso... - Mas que é que eu fiz? Veja se deixa de falar por enigmas! Se calhar bebeu...

- Você, seu velhaco, é que deve ter bebido, e não eu! Eu nunca provo vodca, porque mo proíbem as minhas convicções! Calculem os senhores que foi ele, ele mesmo, quem, por sua própria mão, deu essa nota de cem rublos a Sônia Siemiônovna... Vi-o muito bem, sou testemunha disso, e declará-lo-ei diante de todos os juízes. Ele, ele - repetia Liebiesiátnikov, dirigindo-se a todos em geral e a cada um em particular.

- Mas você está maluco, seu pateta! - gritou Lújin. - Mas se ela, aqui mesmo, na sua frente, na sua cara... ela mesma aqui, há um momento, declarou... que, além desses dez rublos, eu não lhe dera nada! Como é que, então, eu lhes podia ter dado?

- Eu vi, eu vi! - gritou e afirmou Liebiesiátnikov. - E ainda que tenha de ir contra as minhas convicções, estou disposto a declará-lo agora mesmo perante o juiz que escolher, porque vi muito bem como o senhor lho entregava dissimuladamente! Simplesmente eu, grande tolo, julgava que o senhor procedia assim por bondade! À porta, ao despedir-se dela, quando ela se voltou, o senhor, enquanto lhe apertava uma mão, com a outra, com a esquerda, metia-lhe muito dissimuladamente a nota no bolso. Eu vi! Vi!

Lújin empalideceu.

- Isso é mentira! - exclamou em voz cortante. - Como é possível que você, que estava junto da janela, pudesse distinguir a nota? Você fez confusão... por causa dos seus olhos míopes. Você está delirando!

- Não, eu não fiz confusão! Embora estivesse um pouco afastado, vi tudo, tudo, tudo, e embora seja de fato difícil distinguir uma nota da janela, e nisso o senhor tem razão, eu, neste caso, pude saber muito bem que se tratava, sem dúvida nenhuma, de uma nota de cem rublos, porque, quando o senhor deu a outra nota de dez, vi muito bem que tirava de cima da mesa uma nota de cem rublos (nessa ocasião eu estava perto da mesa e depois ocorreu-me uma idéia; de maneira que, por isso, não me esqueci que tinha essa nota na mão). O senhor pegou nela e teve-a apertada na mão durante todo o tempo. Depois esqueci esse pormenor; mas, quando se levantou, passou-a da mão direita para a esquerda, quase feita numa bolinha; e então voltei a lembrar-me, porque me tornou a ocorrer a idéia anterior, ou seja, que o senhor queria dar-lhe essa quantia sem que eu soubesse. Já pode ver qual não seria a minha curiosidade... e realmente vi muito bem como a metia, à socapa, dentro do bolso dela. Eu vi, eu vi, e estou disposto a declará-lo.

Liebiesiátnikov estava quase arquejante. De todos os lados começaram a ouvir-se várias exclamações que, na sua maior parte, exprimiam assombro; mas também se ouviam algumas que exprimiam um tom de ameaça. Todos se aglomeraram em redor de Piotr Pietróvitch e Ekatierina Ivânovna correu para Liebiesiátnikov!

- Andriéi Siemiônovitch! Eu estava enganada a seu respeito! Defenda-a! O senhor é a única pessoa que a defende! Ela é uma órfã; foi Deus quem o enviou! Andriéi Siemiônovitch, bom amigo, bátiuchka!

E Ekatierina Ivânovna, como se estivesse transtornada, lançou-se de joelhos a seus pés.

- Tolices! - exclamou Lújin, furioso. - Você não diz senão disparates. "Esqueci-me, lembrei-me, tornei-me a esquecer!" Que quer dizer isso? Se calhar quer dizer que eu lhe meti o bilhete no bolso intencionalmente? Com que fim? Com que fim? Que há de comum entre mim e essa...?

- Para quê? É isso, precisamente, o que eu não consigo explicar; mas o que eu acabo de contar é um fato certo, irrefutável! E tenho a tal ponto a certeza de que não estou enganado, seu reles canalha, que me lembro muito bem de que, ao ver aquilo, a mim próprio fiz imediatamente esta pergunta, enquanto o felicitava e lhe apertava a mão: "Por que a teria ele metido à socapa no bolso dela? Isto é, por que havia de tê-lo feito às furtadelas?" Pensei que o fazia para querer ocultar de mim esse gesto, visto saber que eu professo convicções opostas e sou inimigo da beneficência privada, que não resolve nada de uma maneira radical. Pois bem: eu pensei, eu concluí que, ao senhor, de fato, lhe custava oferecer essa quantia, e que também, supus igualmente, lhe quisesse fazer uma surpresa a ela, deixá-la admirada quando encontrasse no bolso nada mais nada menos do que cem rublos (porque eu sei que há muitas pessoas que gostam de praticar as suas obras caritativas dessa maneira). Depois também pensei que o senhor queria experimentá-la: isto é, ver se ela, quando tornasse a encontrá-lo, lhe agradecia! Pensei ainda que queria evitar os agradecimentos e, bom, para fazer como se costuma dizer: que a tua mão direita... não saiba... enfim, qualquer coisa dessas. Bem, pela minha cabeça passaram então muitos pensamentos, sobre os quais resolvi refletir depois com mais vagar; mas o certo é que me pareceu pouco delicado dar-lhe a entender que tinha surpreendido o seu segredo. Mas, no entanto, também fiz a mim próprio outra pergunta: "E se Sófia Siemiônovna acabasse por perder o dinheiro, antes de dar por ele?" Foi esse o motivo que me fez vir até cá, para chamá-la e avisá-la de que lhe tinham metido cem rublos no bolso. Mas antes passei pelo quarto da senhora Kobiliátnikova para lhe levar a Apreciação geral do método positivo e recomendar-lhe especialmente um artigo de Piderit (e, é claro, o de Wagner também); e depois venho aqui e encontro toda esta história! Bem, vamos lá a ver: poderia eu, de fato, ter tido todas essas idéias e perplexidades, se não tivesse visto que o senhor lhe metera os cem rublos no bolso?

Quando Andriéi Siemiônovitch acabou os seus loquazes raciocínios, conduzindo com tanta lógica a sua demonstração até o final, ficou muito cansado e até lhe corria o suor pelo rosto. Mas, infelizmente, não sabia explicar-se corretamente em russo (e também não conhecia nenhuma outra língua); por isso disse aquilo tudo de uma assentada e até parecia ter enfraquecido quando acabou aquela proeza de advogado. Mas nem por isso a sua arenga deixou de causar uma extraordinária impressão. Exprimira-se com tanta propriedade, com tal convicção, que, via-se bem, todos o acreditavam; Piotr Pietróvitch percebia que o seu caso tomava mau aspecto.

- Que tenho eu a ver com que lhe passassem pela cabeça essas perguntas estúpidas? - exclamou. - Isso não prova nada, de maneira nenhuma! Tudo isso podia o senhor ter sonhado, e foi o que deve ter sido! Eu afirmo que mente, súdar! (4) Mente e calunia-me, levado por algum ressentimento contra mim; isto é, para falar claro, tem-me raiva por ver que eu não adiro às suas idéias socialistas, de livre-pensador e ateu! Essa é que é a verdade!

Mas essa tergiversação não foi de nenhuma utilidade para Piotr Pietróvitch. Pelo contrário, por toda a parte se ouviram murmúrios.

- Olha o que foste buscar! - exclamou Liebiesiátnikov. - Mentes! Chama a polícia que eu farei a declaração sob juramento! Só há uma coisa que não consigo explicar! Por que praticou ele uma ação tão reles? Oh, que miserável, que vil!

- Eu posso explicar-lhe por que é que ele se lançou em semelhante baixeza, e, se for preciso, farei também a declaração sob juramento! - disse Raskólhnikov com voz firme, dando um passo para a frente.

Aparentemente estava sereno e tranqüilo. Todos compreenderam, ao olhá-lo, que, de fato, sabia do que se tratava e que o desenlace da história estava iminente.

 

* (4) Senhor. Termo arcaico russo. (N do E.) *

 

- Agora já compreendo tudo - continuou Raskólhnikov encarando diretamente Liebiesiátnikov. - Logo, desde o princípio do incidente, eu suspeitei de que devia tratar-se de um enredo vil; essa suspeita nasceu devido a certos pormenores particulares, que só eu conhecia, e que vou agora mesmo explicar a todos. Foi o senhor, Andriéi Siemiônovitch, com a sua valiosa declaração, quem acabou por explicar-me tudo! Peço a todos, a todos, que me escutem. Este cavalheiro - e apontou Lújin - estabeleceu relações, há pouco tempo, com uma jovem, falando claramente, que é minha irmã, Avdótia Românovna Raskólhnikova. Mas, quando há três dias chegou a Petersburgo, no nosso primeiro encontro entrou logo em disputa comigo e eu o expulsei de minha casa, do que posso apresentar duas testemunhas. Trata-se de um indivíduo mau... Ainda há três dias eu ignorava que ele estava aqui hospedado, nesta pensão, em sua companhia, Andriéi Siemiônovitch, e, no mesmo dia em que nós tivemos aquela altercação, sucedeu que ele assistiu à entrega que eu fiz de dinheiro, para o enterro, à viúva do falecido senhor Marmieládov, Ekatierina Ivânovna. Ele escreveu imediatamente uma carta a minha mãe participando-lhe que eu dera dinheiro, não a Ekatierina Ivânovna, mas a Sófia Siemiônovna, e, nessa carta, falava nos termos mais reles acerca do... caráter de Sófia Siemiônovna; isto é, aludia à índole das minhas relações com Sófia Siemiônovna. Tudo isso, como devem compreender, fazia-o ele apenas com o fim de indispor-me com minha mãe e minha irmã, dando-lhes a entender que eu esbanjava, para fins censuráveis, os últimos cobres com que elas me ajudavam. Ontem, diante de minha mãe e de minha irmã, e na sua presença, empenhei-me em demonstrar a verdade, isto é, que dera aquele dinheiro a Ekatierina Ivânovna, para o enterro, e não a Sófia Siemiônovna, e que, três dias antes disso, ainda eu não conhecia Sófia Siemiônovna nem nunca a vira. E acrescentei que ele, Piotr Pietróvitch, com toda a sua soberbia, não valia sequer o dedo mínimo de Sófia Siemiônovna, da qual falava tão mal. E quando ele me perguntou se eu seria capaz de sentar Sófia Siemiônovna ao lado de minha irmã, respondi que já o fizera naquele mesmo dia. Furioso por ver que nem a minha mãe nem a minha irmã queriam indispor-se comigo, apesar das suas intrigas, pôs-se a dizer-lhes grosserias imperdoáveis. Deu-se a ruptura e expulsaram-no de casa. Tudo isso se passou ontem. Agora peço a vossa especial atenção: imaginem que ele conseguira provar agora que Sófia Siemiônovna... era uma ladra: em primeiro lugar teria demonstrado à minha mãe e à minha irmã que tivera razão nas suas suspeitas, que era com razão que se aborrecera por eu ter posto ao mesmo nível a minha irmã e Sófia Siemiônovna; e que ao pôr-se contra mim não fizera mais do que defender e velar pela honra de minha irmã, da sua noiva. Em resumo: com toda esta intriga podia indispor-me com a minha família e tinha assim a ilusão de que ganharia de novo as suas boas graças. Sem contar que também se vingava, assim, pessoalmente, de mim, já que tem motivos para supor que a honra e a felicidade de Sófia Siemiônovna me são muito caras.

Aí tem o senhor os cálculos que ele fazia! É assim que eu explico toda esta história! É essa a razão e não pode haver outra.

Com essas ou semelhantes palavras pôs Raskólhnikov fim ao seu discurso, a cada passo interrompido pelas exclamações dos presentes, que o escutavam, atentos. Mas, apesar de todas essas interrupções, ele se tinha exprimido com dignidade e tranqüilidade, com palavras exatas, claras e firmes. A sua voz vibrante, o seu tom de convicção e o seu rosto severo produziram em todos extraordinária impressão.

- É isso, é isso! - concordou Liebiesiátnikov, entusiasmado. - Há de ser isso, com certeza, porque, assim que Sófia Siemiônovna entrou no nosso quarto, perguntou-me se o senhor estava aqui, se eu não o vira entre os convidados de Ekatierina Ivânovna. Levou-me à janela de propósito para isso e fez-me ali a pergunta em voz baixa. Pelo visto estava muito interessado em que o senhor estivesse aqui! É isso, assim fica tudo explicado!

Lújin sorria em silêncio, com uma expressão de desprezo. Mas estava muito pálido. Parecia meditar sobre a maneira de se livrar daquele aperto. É possível que de boa vontade tivesse deixado tudo e largado a correr; simplesmente, naquele instante, tal coisa teria sido impossível, pois equivaleria a reconhecer-se culpado da dupla acusação e a confessar que, de fato, caluniara Sófia Siemiônovna. Além disso, os que estavam presentes tinham já bebido à mesa e estavam muito excitados. O oficial reformado, embora, no fundo, não tivesse chegado a compreender tudo muito bem, era o que mais gritava e propunha a adoção de medidas muito desagradáveis para Lújin. Mas havia alguns que não estavam embriagados, e até tinham acudido, reunindo-se nos quartos. Os três polaquinhos estavam terrivelmente excitados e gritavam continuamente: pan laidak(5), resmungando ao mesmo tempo algumas ameaças em polaco. Sônia escutara com custo e parecia também não ter compreendido tudo, e dir-se-ia que acabava de sair de um desmaio. A única coisa que fazia era não afastar os olhos de Raskólhnikov, sentindo que nele se resumia todo o seu amparo. Ekatierina Ivânovna arquejava, num estertor, e dava mostras de estar completamente esgotada. A mais comprometida de todas era Amália Ivânovna, que estava ali de boca aberta e sem compreender nada. Só via que Piotr Pietróvitch dera um mau passo. Raskólhnikov tornou a pedir que o deixassem falar, mas não lhe deram tempo de acabar; todos gritavam e se amontoavam à volta de Lújin, insultando-o e ameaçando-o. Mas Piotr Pietróvitch não se intimidava. Quando viu que o caso de acusação de Sônia estava definitivamente perdido, apelou para o recurso do espalhafato:

- Façam favor, gospodá! (6) façam favor; não empurrem dessa maneira e deixem-me passar! - disse, abrindo caminho por entre a assistência. -

 

 * (5) Senhor canalha, alcoviteiro, em polonês. (N. do T.)

(6) Senhores, em alemão. (N. do T) *

 

E façam também o favor de não ameaçar; afianço-lhes que não acontecerá nada, que vocês não hão de fazer nada, pois eu não sou nenhum menino tímido de dez anos e, pelo contrário, hão de responder por terem encoberto um crime pela violência. O roubo está mais que provado e não levarei o assunto por diante. Os juízes não são tão cegos... nem tão bêbados, e não hão de acreditar nesses dois ateus convictos, rebeldes e livres-pensadores que me acusam por motivos de vingança pessoal, o que eles mesmos, apesar de serem estúpidos como são, reconhecem... Bem, vamos, dêem-me licença!

- Que o meu quarto fique imediatamente livre do seu hálito; faça o favor de sair e, desde este momento, tudo acabou entre nós! E pensar que eu cansei a voz a reclamar-lhe...

- Não se esqueça que eu mesmo lhe disse que havia de ir-me embora antes que a senhora me expulsasse; agora acrescento unicamente que você é uma azêmola. Desejo-lhe que cure a sua alma e os seus olhinhos míopes! Dêem-me licença, gospodá!

Abriu caminho por entre aquele aperto; entretanto, o oficial não esteve pelos ajustes de deixá-lo passar, assim, sem mais nem menos, só com insultos, e, pegando um copo que estava sobre a mesa, atirou-o contra Piotr Pietróvitch, mas o copo voou em direção a Amália Ivânovna. Esta guinchou, e o oficialzinho, que tinha perdido o equilíbrio naquele lance, rebolou e foi parar debaixo da mesa. Piotr Pietróvitch foi para o seu quarto, e meia hora depois já tinha saído do prédio.

Sônia era tímida por natureza e sabia muito bem que, a ela, podiam persegui-la mais facilmente do que a ninguém, e que quem quer que fosse podia ofendê-la sem se expor a ser castigado. Mas, no entanto, até aquele mesmo momento parecera-lhe que se podia afastar a desgraça com prudência, humildade e submissão para com todos. É certo que pudera suportar tudo com paciência e quase sem abrir a boca... até aquilo. Mas, a princípio, custou-lhe muito. Apesar do seu triunfo e da sua reabilitação, quando lhe passou o primeiro susto e o primeiro espanto, quando pôde compreender e ver tudo claramente, um sentimento de desamparo e de vergonha lhe oprimiu dolorosamente o coração. Teve um ataque de histerismo. Finalmente, não podia mais; saiu do quarto correndo e dirigiu-se para sua casa. Isso sucedeu quase logo depois de Lújin se ter retirado. E Amália Ivânovna, quando, por entre as risadas sonoras dos presentes, se viu atingida pelo copo destinado a Lújin, também não pôde conter-se e, dando um grito, lançou-se furiosamente contra Ekatierina Ivânovna, considerando-a culpada de tudo:

- Saia de minha casa! Agora mesmo! Marche! - e, enquanto dizia isso, começou a apanhar tudo quanto encontrava ao alcance da mão e pertencia a Ekatierina Ivânovna, e atirá-lo para o chão.

Ekatierina Ivânovna, que até sem isso já estava extenuada e arquejava penosamente, e tinha o rosto lívido, saltou da cama (na qual se deixara cair, esgotada) e lançou-se contra Amália Ivânovna. Mas a luta era muito desigual: aquela sacudiu-a como a uma pena.

- O quê? Como se ainda não chegasse essa impiedosa calúnia contra a outra... vem agora esta tipa meter-se comigo! O quê! Expulsar-me do quarto no próprio dia do enterro de meu marido, depois do meu jantar, pôr-me na rua com os meus órfãos? Mas para onde vou eu? - gritava, soluçava e arquejava a pobre mulher. - Meu Deus! - gritou de repente, de olhos chamejantes. - Não existirá a justiça? A quem defendes tu, se não defendes os órfãos? Mas já se vai ver! Há no mundo juízes e justiça, irei ter com eles! Agora mesmo, bruxa, atéia! Pólietchka, fica tomando conta dos meninos, por um momento, que eu já volto. Esperem por mim ainda que seja na rua! Vamos ver se há ou não justiça neste mundo!

E, lançando pela cabeça aquele mesmo lenço verde aos quadrados, ao qual o falecido Marmieládov se referia, Ekatierina Ivânovna abriu caminho por entre o desordenado e embriagado grupo dos vizinhos, que continuavam ainda apinhados no quarto, e por entre choros e soluços correu para a rua com a vaga intenção de ir a qualquer parte, imediatamente, fosse onde fosse, ao encontro da justiça. Pólietchka, assustada, acocorou-se num canto com as crianças, em cima da arca, onde, abraçando-se aos dois irmãos, a tremer, ficou à espera do regresso da mãe. Amália Ivânovna andava no quarto de um lado para o outro; guinchava, esbravejava, atirava ao chão tudo quanto apanhava à mão e dizia insolências. Os vizinhos falavam aos gritos e desatinadamente. Alguns diziam o que tinham compreendido do incidente, outros discutiam e insultavam-se; alguns cantavam...

"Agora é a minha vez", pensou Raskólhnikov. "Vamos ver, Sófia Siemiônovna, que me diz a isto tudo?"

E encaminhou-se para casa de Sônia.

 

Raskólhnikov se fizera ativo e corajoso advogado de Sônia contra Lújin, apesar de ele próprio sentir um horror e uma dor especiais no seu íntimo. Mas, depois de ter sofrido tanto naquela manhã, era como se recebesse com alegria a oportunidade de mudar de impressões, que se lhe tinham tornado insuportáveis, sem saber quanto havia de pessoal e cordial no seu impulso para defender Sônia. Além disso pensava no seu próximo encontro com Sônia, e isso afligia-o, às vezes, mais que tudo; tinha de explicar-lhe quem é que matara Lisavieta e pressentia que isso seria para ele uma terrível tortura; quase se sentia já sem força nos braços. Por isso, quando, ao sair de casa de Ekatierina Ivânovna, lançou aquela exclamação: "Bem, vamos ver agora o que diz a isto tudo, Sófia Siemiônovna?", encontrava-se ainda debaixo da influência do estado de excitação interior da sua corajosa, justa e recente vitória sobre Lújin. Mas sucedeu-lhe uma coisa estranha. Quando chegou ao andar de Kapernaúmov sentiu-se de repente desanimado e assustado. Parou à porta, pensativo, formulando esta estranha pergunta: "Mas será realmente necessário revelar quem assassinou Lisavieta?" A pergunta era estranha, porque ele, de repente, ao mesmo tempo sentia que não só era impossível não revelá-lo, mas que, além disso, era impossível também demorar esse momento, por pouco que fosse. Não sabia ainda por que seria impossível; apenas o sentia, e essa dolorosa confissão da sua covardia perante o imprescindível quase o sufocava. Para não se perder em meditações e para não se torturar, apressou-se a abrir a porta e logo à entrada procurou Sônia com os olhos. Ela estava sentada, de cotovelos sobre o velador, e ocultava o rosto nas mãos; mas, quando viu Raskólhnikov, levantou-se logo e correu ao seu encontro, como se estivesse à espera dele.

- Que teria sido de mim sem o senhor? - exclamou, pressurosa, regressando com ele para o centro do compartimento. Via-se bem que foi isso o que lhe ocorreu mais rapidamente dizer-lhe. Depois ficou à espera.

Raskólhnikov aproximou-se da mesa e sentou-se numa cadeira, na mesma que ela acabava de deixar. Ela estava de pé diante dele, a dois passos de distância, tal como no dia anterior.

- Então, Sônia? - disse ele, e, de repente, sentiu que a voz lhe tremia. - Veja bem: todo este enredo assentava na sua posição social e costumes a ela inerentes. Não lhe pareceu?

O sofrimento refletia-se no rosto da moça.

- Não venha falar-me como ontem! - interrompeu-o. - Por favor, não comece já com isso. Já sofri bastante...

E em seguida sorriu, como se tivesse receio de que aquela censura não fosse do agrado dele.

- Saí dali quase tonta. Como é que acabou aquilo? Há um momento estive tentada a voltar, mas pensei que... o senhor havia de vir.

Ele contou como Amália Ivânovna os expulsara do quarto e como Ekatierina Ivânovna desarvorara para a rua, em busca da justiça.

- Ai, meu Deus! - exclamou Sônia. - Vamos lá imediatamente. E pegou o xale.

- É sempre a mesma coisa! - exclamou Raskólhnikov, mal-humorado. - Só os tem a eles, no seu pensamento! Fique aqui um pouco comigo! - Mas... e Ekatierina Ivânovna?

- Ekatierina Ivânovna não pode passar com sua ausência: ela mesma virá buscá-la, visto que saiu de casa - acrescentou bruscamente. - Se vier e não a encontrar, a culpa é sua...

Sônia sentou-se na outra cadeira, numa indecisão dolorosa. Raskólhnikov estava calado, de olhos fixos no chão, e parecia refletir.

- Admitamos que não era isso o que Lújin queria... - começou, sem olhar para Sônia. - Mas se o tivesse desejado e isso tivesse entrado nos seus cálculos... teria podido metê-la na prisão, se não fôssemos nós, eu e Liebiesiátnikov, não é verdade?

- É! - concordou ela com voz fraca. - É! - repetiu, pensativa e assustada.

- De fato, podia ter sucedido eu não estar lá! Quanto a Liebiesiátnikov, foi uma casualidade ter voltado.

Sônia estava calada.

- Bem; e vamos lá a ver, se a tivessem metido na prisão, que teria sucedido então? Lembra-se do que lhe disse ontem?

Ela também não respondeu. Ele ficou à espera.

- Eu pensava que ia já pôr-se a gritar: "Ah, não fale assim, não continue!" - disse Raskólhnikov sarcasticamente, mas um pouco forçado. - O quê? O silêncio continua? - perguntou, passado um minuto. - Olhe que é preciso falar de qualquer coisa. Eu tinha um interesse especial em saber como é que resolveria essa questão, como diz Liebiesiátnikov. - Começou já a ficar amuado.

- Não, no fundo eu falei-lhe seriamente. Imagine, Sônia, que conhecia todas as intenções de Lújin antecipadamente, que teria sabido (isto é, de certeza) que esse tipo ia causar a perdição de Ekatierina Ivânovna e dos seus filhos, e a sua também, indiretamente (já sei que nunca se lembra dela mesma; por isso digo indiretamente). E a de Pólietchka também... porque também ela há de seguir esse caminho. Ora, bem, aí está: se, de repente, estivesse na sua dependência resolver tudo isso, se era ele ou os outros que deviam continuar neste mundo, isto é, se Lújin devia continuar vivendo e cometendo más ações, ou Ekatierina Ivânovna morrer, qual teria sido a sua decisão, qual deles condenaria à morte? É o que eu lhe pergunto.

Sônia fixou sobre ele um olhar inquieto; percebia qualquer coisa de especial naquelas palavras inseguras e que lhe lembravam vagamente qualquer coisa.

- Eu já calculava que havia de perguntar-me qualquer coisa desse gênero - disse, olhando para ele com curiosidade.

- Está bem, seja; mas qual seria a sua resolução?

- Por que me pergunta aquilo que é impossível? - disse Sônia com uma expressão aborrecida.

- Naturalmente optava por consentir que Lújin vivesse e continuasse a fazer canalhices. Não tem coragem de o dizer?

- É que eu não posso conhecer os segredos da Providência Divina... Mas por que me faz perguntas sobre um caso impossível? Como poderia suceder que a existência dum homem dependesse da minha resolução, e quem é que me incumbiu de ser juiz para decidir quem deve viver ou não? - Quando se trata da Divina Providência já não consigo nada - exclamou Raskólhnikov, mal-humorado.

- Diga com toda a franqueza o que deseja! - exclamou Sônia, magoada. - Com certeza que anda urdindo alguma... Veio aqui só para atormentar-me? Não pôde conter-se e, de repente, pôs-se a chorar. Olhou para ele sombriamente triste. Passaram cinco minutos.

- Olha, tens razão, Sônia - disse ele finalmente, em voz baixa. E, de súbito, mudou de expressão: aquele seu tom de fingida insolência e provocação impotente desapareceu. Até a voz se lhe tornou mais fraca. - Já te disse, ontem, que não tinha vindo para te pedir perdão; mas, com isso, já começara quase a pedir-to... Isso de Lújin e da Providência dizia eu para mim... Por isso é que eu pedia perdão, Sônia!

Tentou sorrir; mas havia qualquer coisa de desalentado e de incompleto no seu pálido sorriso. Baixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.

E, de repente, um estranho e inesperado sentimento, uma espécie de ódio amargo a Sônia se ergueu no seu coração. Como se tivesse ficado admirado e assustado por esse sentimento, levantou de repente a cabeça

e olhou-a de alto a baixo; mas encontrou o olhar da moça, que estava aflitivamente inquieta e preocupada: ali havia amor; o seu ódio desapareceu como um fantasma. Não era o que ele pensava; tomara um sentimento por outro. Isso só significava que o momento chegara.

Tornou a cobrir o rosto com as mãos e baixou a cabeça. De súbito empalideceu, levantou-se da cadeira, ficou olhando para Sônia e, sem dizer nada, sentou-se maquinalmente no seu leito.

Aquele minuto era terrivelmente parecido com aquele outro em que estava atrás da velha, quando já tirara a machada do nó corredio e sentia que já não havia um momento a perder.

- Que tem? - perguntou Sônia, terrivelmente assustada.

Ele não pôde responder. A sua intenção não fora de maneira nenhuma, de maneira nenhuma, explicar aquilo, assim, e nem ele mesmo poderia dizer o que se passava. Ela, devagarinho, aproximou-se dele, sentou-se na cama, ao seu lado, e esperou, sem tirar os olhos dele. O seu coração batia fortemente. Aquilo era insuportável; ele voltou o rosto para ela, mortalmente pálido; os seus lábios crispavam-se, sem forças, esforçando-se por dizer alguma coisa. Sônia sentia um autêntico pavor.

- Que tem? - repetiu, afastando-se um pouco dele.

- Nada, Sônia. Não tenhas medo. Tolices. De fato, se pensarmos nisso... - balbuciou, com o aspecto dum homem que não percebe que está delirando. - Por que teria eu vindo afligir-te? - acrescentou, de repente, olhando para ela. - Sim, por quê? É a pergunta que a mim próprio faço constantemente, Sônia.

É possível que tivesse feito essa pergunta um quarto de hora antes; mas agora falava no maior abatimento, quase sem se dar conta do que dizia e sentindo um contínuo tremor em todo o corpo.

- Oh, como sofre! - disse ela, compassiva, olhando para ele.

- Tudo isso é absurdo! Ouve uma coisa, Sônia - sorriu de repente, por qualquer motivo, pálido e exangue, durante alguns segundos -, lembras-te daquilo que eu queria dizer-te ontem?

Sônia aguardava, inquieta.

- Quando me despedi, disse-te que talvez me despedisse de ti para sempre; mas que, se hoje voltasse, te diria... quem matou Lisavieta. Todo o corpo dela se pôs a tremer, de repente.

- Pois bem, vim para to dizer.

- De fato... o senhor, ontem... - balbuciou ela com dificuldade. - Mas como é que sabe isso? - perguntou rapidamente, como se se apercebesse de repente.

Sônia começava a respirar com dificuldade. Tinha o rosto cada vez mais pálido.

- Sei.

Ela ficou calada por um minuto.

- Encontraram-no? - perguntou timidamente. - Não, não o encontraram.

- Então como é que sabe? - tornou a perguntar com uma voz quase imperceptível e também passado um minuto de silêncio.

Ele se voltou para ela e ficou a olhá-la fixamente, fixamente.

- Vê se adivinhas - disse com o mesmo sorriso crispado e cada vez mais fraco.

Era como se uma convulsão lhe percorresse todo o corpo.

- Mas por que me assusta... a mim... por que me... assusta dessa maneira? - exclamou ela, sorrindo como uma criança.

- Pode ser que eu seja muito amigo dele... visto que sei - prosseguiu Raskólhnikov, e continuou a olhá-la no rosto, como se não tivesse coragem para afastar, os olhos. - Ele... a Lisavieta... não queria matá-la... Matou-a só por desespero... Era a velha que ele queria matar... quando estava sozinha... e foi... Mas nesse instante chegou Lisavieta... Ele estava ali... e matou-a... Decorreu um minuto espantoso. Olharam-se ambos um ao outro.

- Então não consegues adivinhar? - perguntou ele de repente, com a mesma sensação que experimentaria se se lançasse de uma torre, de cabeça para baixo.

- Não... não - balbuciou Sônia com uma voz quase imperceptível. - Pensa bem.

E mal pronunciara estas palavras quando, outra vez, aquela sensação já conhecida lhe gelou a alma de repente; olhou para ela e, de súbito, pareceu-lhe ver o rosto de Lisavieta no rosto dela. Lembrava-se claramente da expressão da cara de Lisavieta quando ele se aproximou dela com a machada e ela se afastou recuando até a parede, estendendo a mão, com um medo completamente pueril, no rosto, tal como uma criancinha quando, de súbito, começam a assustá-la com qualquer coisa e quando, de uma maneira tenaz e inquieta, fixa os olhos no objeto do seu terror, recua e, estendendo a mãozinha para a frente, se põe a chorar. Pois pouco mais ou menos era o que se passava agora com Sônia; esteve olhando para ele durante algum tempo, com o mesmo desamparo, com o mesmo pavor, e, de repente, estendendo de leve a mão esquerda para diante, como se lhe apontasse com os dedos para o peito, pouco a pouco foi-se levantando da cama e afastando-se cada vez mais dele, com o olhar imóvel, fixo nos seus olhos. O pavor dela contagiou-se imediatamente a Raskólhnikov, um espanto semelhante se refletiu no seu rosto; ficou também olhando para ela fixamente e quase também com aquele mesmo sorriso pueril.

- Adivinhaste? - balbuciou finalmente. - Meu Deus!

E um terrível soluço escapou do peito dela. Desfalecida, tombou sobre a cama, de braços sobre a almofada. Mas, passado um momento, ergueu-se rapidamente, correu ligeira para ele, pegou nas duas mãos dele e, apertando-lhas com força, como numa tenaz, com os dedinhos finos, fitou-o novamente com um olhar fixo, insistente. Com esse derradeiro e desolado olhar esperava ela descobrir algum último motivo de esperança. Mas já não havia esperança: era impossível duvidar; tudo tinha sido assim. Inclusivamente depois, mais para diante, quando ela recordava aquele momento, parecia-lhe estranho e singular, precisamente porque ela vira assim, de um golpe, que já não havia nenhuma esperança. Poderia ela dizer também que pressentira algo de semelhante? E, no entanto, agora, ainda mal ele dissera aquilo, logo lhe pareceu, de repente, que já antes o pressentira. - Basta, Sônia, basta! Não me aflijas! - implorou ele, dolorido.

Não pensara de maneira nenhuma, de maneira nenhuma, fazer-lhe assim a revelação; mas foi assim.

Ela saltou da cama com uma expressão de alheamento e, juntando as mãos, dirigiu-se para o meio do quarto, mas voltou-se logo rapidamente e tornou a sentar-se ao lado dele, quase ombro com ombro. De repente, estremeceu, deu um grito e, transfigurada, lançou-se a seus pés, de joelhos.

- Que fez, que fez contra sua pessoa? - clamou, desolada, e, levantando-se da sua prostração, atirou-se ao pescoço dele, abraçou-o e cingiu-o com muita força, com as suas mãos.

Raskólhnikov retrocedeu e olhou-a com um triste sorriso.

- Como és estranha, Sônia! Abraças-me e beijas-me, quando acabo de dizer-te isso. Tu não me compreendes.

- Não, não; é que tu, agora, és mais desgraçado do que ninguém neste mundo - exclamou ela, transtornada, sem atender às suas observações. E, de súbito, começou a chorar de um modo entrecortado, como se estivesse com um ataque de histerismo.

O sentimento da dor, que de há muito lhe era já desconhecido, penetrou na sua alma e abrandou-lha imediatamente. Não lhe opôs resistência; duas lágrimas brotaram dos seus olhos e ficaram suspensas das suas pestanas.

- Então não me abandonarás, Sônia? - disse, olhando-a quase sem esperança.

- Não, não; nunca e em parte alguma! - exclamou Sônia.

- Irei atrás de ti, seguir-te-ei para todos os lados! Oh, meu Deus! Oh, e como eu sou infeliz! Mas por que, por que não te conheci eu antes? Por que não terias vindo? Oh, meu Deus!

- Aqui estou.

- Agora! Oh, que fazer, agora! Juntos, juntos! - repetia ela, alheada, e tornando a abraçá-lo. - Irei contigo para a prisão.

De repente ele pareceu sentir uma dor aguda e o sorriso odioso e quase altivo, de antes, assomou aos seus lábios.

- Eu, Sônia, apesar de tudo, é possível que não queira ir para a prisão - disse ele.

Sônia lançou-lhe um olhar rápido.

Depois da primeira compaixão dolorosa e lacerante pelo infeliz, outra vez a horrível idéia do crime voltava a horrorizá-la. Na mudança de tom da voz dele reconhecera, de repente, o assassino. Olhou para ele, espantada. Ela ainda ignorava por que, como e para que ele se tornara um criminoso. Agora todas essas perguntas se amontoavam de súbito na sua consciência. E outra vez lhe custou a acreditar: "Ele, ele, assassino? Mas isso é possível?"

- Mas que é isto? Onde estou eu? - exclamou, na maior perplexidade, como se ainda não tivesse voltado a si. - Mas como é que o senhor, sendo como é, pôde decidir-se a isso? Por que foi?

- Foi para roubar! Não continues, Sônia! - respondeu ele com um certo cansaço e um certo aborrecimento.

Sônia estava aterrada; mas, de repente, exclamou:

- Tinhas fome! Tu... para ajudar a tua mãe... Não foi?

- Não, Sônia, não - murmurou ele, voltando-se e deixando cair a cabeça. - Não tinha assim tanta fome... Eu, de fato, queria ajudar a minha mãe; mas... isso também não é completamente verdade... Não me atormentes, Sônia!

Sônia juntou as duas mãos.

- Mas é possível que tudo isso seja verdade? Senhor, que verdade! Quem poderia acreditá-lo? E como, como é que o senhor, que dá tudo quanto tem, matou para roubar? Ah! - tornou a exclamar de repente. - Esse dinheiro que deu a Ekatierina Ivânovna... esse dinheiro... Meu Deus, sim, esse dinheiro...

- Não, Sônia - apressou-se ele a interrompê-la. - Esse dinheiro não era... está descansada. Esse dinheiro foi a minha mãe quem o enviou, chegou-me às mãos quando eu estava doente, no mesmo dia em que os dei... Razumíkhin viu; também lhe dei algum. Esse dinheiro era meu, meu particularmente, verdadeiramente meu.

Sônia escutava-o perplexa e juntava as forças para concentrar os seus pensamentos.

- Quanto ao tal dinheiro... eu, no fim de contas, nem sequer sei se havia lá dinheiro - acrescentou ele em voz baixa e como se falasse para si. - O que eu levei foi um porta-moedas de camurça que estava cheio...

e não vi o que tinha dentro, não tive tempo, com certeza... Bem, e algumas jóias, quase tudo botões de punho, correntes... todos esses objetos deixei-os no pátio duma casa qualquer, juntamente com o porta-moedas, no Próspekt, enterrados debaixo duma pedra, na manhã seguinte... Ainda lá deve estar tudo...

Sônia escutava-o corajosamente.

- De maneira que foi para... o senhor mesmo disse que foi para roubar, e não levou nada? - perguntou ela rapidamente, amparando-se a uma ombreira.

- Não sei... Ainda não decidi se ficarei ou não com esse dinheiro... Tornou-se a calar, pensativo, e, de repente, caindo em si, sorriu irônica e rapidamente:

- Ah, mas que disparates acabo de dizer!

Pelo pensamento de Sônia passou uma idéia: "Não estará ele louco?" Mas imediatamente afugentou essa idéia. Não; aquilo era outra coisa. Não, não conseguia compreender aquela intriga!

- Olha, Sônia - disse ele, de repente, com uma espécie de inspiração -, repara no que eu te vou dizer: se eu tivesse matado apenas por ter fome - continuou, acentuando cada palavra e olhando-a de uma maneira enigmática, mas sincera -, então, agora... seria feliz. Fixa bem isso... Mas a ti, que te interessa, que te interessa? - exclamou ele, passado um momento, olhando-a com uma espécie de desespero. - Que te interessa a ti que eu acabe por concluir que procedi mal? A que propósito vem esse estúpido triunfo sobre mim? Ah, Sônia, por que teria eu vindo ver-te agora? Sônia tentou outra vez dizer qualquer coisa, mas ficou calada.

- Eu, ontem, te convidei a vires comigo, porque és a única coisa que me resta.

- Para onde me querias levar? - perguntou Sônia timidamente. - Nem para roubar, nem para matar, não te preocupes, não era para nada disso - sorriu amargamente. - Nós somos seres diferentes... E olha, Sônia, até este momento, até há um momento, eu ainda não consegui compreender para onde é que queria levar-te ontem. Ontem, quando te convidava para vires comigo, nem eu mesmo sabia para onde era. Chamava-te só para uma coisa, só tinha vindo para uma coisa: para que não me abandonasses. Não me abandonarás, Sônia?

Ele lhe apertou a mão.

- Mas por quê, por que o terei eu dito a ela, por que o terei revelado? - exclamou ele, desesperado, passado um minuto, olhando-a com infinita ternura. - Tu esperas de mim uma explicação, Sônia; estás aí e esperas, eu bem vejo; mas que hei eu de dizer-te? Porque, vê: tu não compreenderias nada e não farias mais do que sofrer profundamente por minha causa. Bem, já estás outra vez chorando e a abraçar-me... Ora, vamos lá ver, por que me abraças? Porque eu mesmo não pude agüentar mais e vim desabafar com outrem: "Sofre tu também, porque, assim, tudo se tornará mais leve para mim". E tu podes amar um homem tão reles?

- Mas tu também não sofres? - exclamou Sônia. Outra vez o sentimento de dor atravessou a sua alma e imediatamente a abrandou.

- Sônia, eu sou mau, lembra-te, e isso pode explicar muitas coisas; foi por isso que vim, porque sou mau. Muitos outros não teriam vindo. Mas eu sou covarde e vil. Mas... bom! Não é disto tudo que se trata... Agora é preciso falar e não sei por onde começar...

Deteve-se e reconsiderou:

- Ah, nós somos seres diferentes! - exclamou outra vez. - Não fazemos um par igual. Mas por quê, por que teria eu vindo? Nunca me perdoarei.

- Não, não; não há mal nenhum em teres vindo - exclamou Sônia. - Foi melhor que eu ficasse sabendo. Muito melhor!

Ele olhou para ela dolorosamente.

- De fato, assim é - disse ele, pensativo. - Assim tinha de ser. Ouve uma coisa: eu queria ser um Napoleão... Foi por isso que matei... Pronto, compreendes agora?

- Não... Não! - balbuciou Sônia, ingênua e timidamente. - Mas fala, fala! Eu compreendo, cá para comigo compreendo tudo! - pediu-lhe. - O que é que tu compreendes? Bem, está bem; já vamos ver. Conservou-se em silêncio e ficou pensativo. - O fato foi este: eu, uma vez, fiz a mim mesmo esta pergunta: "Se Napoleão, por exemplo, se encontrasse no meu lugar e não tivesse tido, para começar a sua carreira, nem Toulon, nem o Egito, nem a passagem de Mont-Blanc, e em vez de todas essas coisas belas e monumentais tivesse tido simplesmente uma ridícula velhota, viúva dum assessor, à qual fosse preciso matar para lhe tirar o dinheiro que tinha na arca (para fazer a sua carreira, compreendes?), vamos lá a ver, que teria ele feito, então, se não tivesse outro recurso? Não teria tido vergonha de que aquilo não fosse demasiadamente pouco monumental e delituoso?" Pois bem, eu te confesso que essa questão me atormentou horrivelmente durante muito tempo, e que senti uma vergonha atroz quando adivinhei finalmente (como se fosse de repente) que ele não só não teria tido vergonha, como nem sequer lhe teria passado pela cabeça que aquilo não era monumental... e até não teria de maneira alguma compreendido por que é que havia de ter vergonha. E, visto que não tinha outro recurso, teria estrangulado sem a menor hesitação, sem se deter a refletir. Bem; pois eu... afugentei as minhas considerações... e matei, como teria feito a autoridade. E isso foi exatamente como eu te digo. Parece-te ridículo? Sim, Sônia; pode ser que o mais ridículo de tudo seja o fato de que tenha sido precisamente assim...

Sônia estava muito séria.

- Seria melhor que me falasse francamente, sem exemplos - pediu ela com mais timidez ainda e com uma voz quase imperceptível.

Ele se voltou, olhou-a tristemente e pegou-lhe numa mão.

- Também tens razão, agora, Sônia. Tudo isto é um absurdo, é quase falar por falar. Olha, tu sabes que a minha mãe quase não tem nada. A minha irmã recebeu alguma educação por casualidade, e vê-se condenada

a trabalhar como preceptora. Todas as suas esperanças se resumem unicamente em mim. Eu andava estudando, mas não podia continuar pagando a universidade e tive de abandoná-la por algum tempo. Supondo ainda que tivesse continuado lá, ao fim de dez anos, ao fim de doze (se, por acaso, as coisas me tivessem corrido bem), teria podido colocar-me como professor ou empregado com mil rublos de ordenado... - falava como quem recita uma lição. - Mas, entretanto, a minha mãe teria ficado reduzida à pele e aos ossos, à força de preocupações e de desgostos, e eu não teria podido proporcionar-lhe o sossego; quanto à minha irmã... bem... à minha irmã poderia ter-lhe acontecido qualquer coisa ainda pior. Olhem que prazer passar a vida desejando as coisas e a privar-se de tudo, abandonar a mãe e suportar a desonra da irmã... Para quê? Para, depois de elas terem morrido, poder fundar outro lar... com mulher e filhos e deixá-los depois também sem um groch e sem um pedaço de pão? Ora, ora! Por isso decidi apoderar-me do dinheiro da velha, servir-me dele nos primeiros anos da minha carreira, não fazer sofrer a minha mãe com a minha saída da universidade... e fazer tudo dentro de uma certa amplitude, de maneira radical, de modo que pudesse arranjar uma nova carreira e caminhar por um caminho novo, independente... Bem, bem; e foi isso... É claro que matei a velha, naturalmente... Fiz mal; mas... já chega!

Chegou ao final da sua narrativa um pouco deprimido e baixou a cabeça. - Oh, não é isso, não é isso! - exclamou Sônia desgostosa.

- Talvez pudesse ser assim... Não, não é assim, não é!

- Tu mesma vês que não é assim... Mas olha: eu te disse a verdade, com toda a sinceridade.

- Mas que verdade é essa? Oh, meu Deus!

- Mas repara: eu só matei um piolho, Sônia, e um piolho inútil, repugnante, prejudicial.

- Esse piolho era um ser humano!

- Eu bem sei que não era piolho - respondeu ele, olhando-a de modo estranho. - Aliás, estou mentindo, Sônia - acrescentou -, há muito tempo que minto... Não era isso, tu tinhas razão. Havia outras razões completamente, completamente diferentes... Já há muito tempo que eu não falava com ninguém, Sônia... Agora me dói muito a cabeça.

Os olhos brilhavam-lhe com um ardor de febre. Estava quase delirando; um sorriso inquieto errava sobre os seus lábios. Para além do seu estado de excitação psíquica transparecia um terrível esgotamento. A ela, também a cabeça lhe começava a andar à roda. E ele falava de maneira tão estranha... Podia perceber-se alguma coisa, mas... "Que seria? Que seria aquilo? Oh, Santo Deus!" E deixava cair os braços, desolada.

- Não, Sônia, não é isso! - começou ele outra vez, erguendo a cabeça, como se um novo surto do seu pensamento o surpreendesse e tornasse a reanimá-lo. - Não era isso! Mais vale supor... (assim, de fato, mais vale!) supor que eu sou orgulhoso, invejoso, mau, reles, vingativo, sim, e, além disso, também um tanto propenso à loucura. (Admitamos tudo isso de uma vez. Foi devido à loucura que eu falei há pouco da maneira que falei. Eu sei.) Bem; eu te dissera que não podia continuar pagando os estudos na universidade. Pois olha, talvez pudesse tê-lo feito... A, minha mãe mandava-me o suficiente para continuar lá, e para o calçado, para a roupa e para a alimentação poderia eu ganhar, com certeza. Apareciam-me lições; ofereciam-me um poltínik(1). Razumíkhin também trabalhava. Mas eu ficava amuado e não queria. "Amuado" (é esta a palavra exata). E, como uma aranha, metia-me no meu canto. Tu já estiveste no meu cubículo, viste-o... E tu sabes, Sônia, que os quartinhos de teto baixo e estreitos oprimem a alma e o espírito? Oh, e que ódio eu tinha a esse cacifro! E, no entanto, não queria largá-lo. Passava vinte e quatro horas consecutivas sem sair, e não queria trabalhar nem comer. Só queria estar deitado. Se Nastássia me levava qualquer coisa, comia; se não me trazia nada, passava assim o dia inteiro; não lhe pedia nada, por ódio. Durante as noites, não tinha lume: estava deitado na escuridão e nem para me alumiar eu me esforçava. Precisava de estudar e vendera os livros, e, em cima da mesa, sobre os apontamentos e sobre os cadernos havia pó da altura de um dedo. Preferia estar estendido, pensando. Não fazia outra coisa senão meditar...

 

* (1) Moeda que vale um rublo. (N. do E.) *

 

E os meus pensamentos eram como sonhos, sonhos estranhos e diferentes. Que sonhos! Mas foi então que me comecei a lembrar de que... Não, não foi assim. Já estou outra vez desfigurando a verdade! Olha, eu, por essa altura, não fazia outra coisa senão perguntar a mim próprio: "Pois se eu vejo a estupidez dos outros, por que não procuro ser mais inteligente do que os outros?" Porque eu sabia, Sônia, que, se estivesse à espera de que os outros todos se tornassem inteligentes, tinha muito que esperar... Além disso reconhecia que os homens não mudam e não há quem seja capaz de mudá-los, e que não vale a pena uma pessoa incomodar-se em vão. Sim, é assim mesmo! É essa a lei... é a lei, Sônia! É assim mesmo! E agora sei também, Sônia, que quem é forte de alma e inteligência domina sobre eles. Quem se arrisca a muito é que tem razão, para eles. Quem é capaz de desprezar muitas coisas é que é para eles o legislador, e o que for mais atrevido de todos, é esse o que tem mais razão. Tem sido assim até hoje e assim será para sempre! Só o cego é que não o vê!

Enquanto dizia isso, embora continuasse olhando para Sônia, Raskólhnikov já não se preocupava com o fato de que ela pudesse ou não compreendê-lo. A febre apoderara-se completamente dele. Parecia tomado de um sombrio entusiasmo. (De fato, havia já muito tempo que não falava com ninguém.) Sônia compreendia que aquela lúgubre catequese era nele sincera, que era a sua verdade.

- Então adivinhei, Sônia - continuou com entusiasmo -, que o poder apenas se entrega a quem se atreve a inclinar-se e a apanhá-lo. Só é preciso uma coisa, só uma coisa: atrevimento para o fazer. Então me ocorreu, pela primeira vez na minha vida, um pensamento que anteriormente nunca me acontecera. Nunca! De repente tornou-se-me claro como a água, surgiu-me em toda a evidência que, até hoje, ninguém se atrevera, nem se atreveria, ao passar junto a toda essa estupidez, a pegar-lhe simplesmente pelo rabo e a atirar com ela para o diabo. Eu... eu queria atrever-me, e matei... a única coisa que eu queria era atrever-me, Sônia: aí tens a verdadeira razão.

- Oh, cale-se, cale-se - exclamou Sônia juntando as mãos. - O senhor tinha-se afastado de Deus, e Deus feriu-o, entregou-o ao poder do diabo! - Mas dize-me, Sônia; quando eu estava ali, deitado na escuridão e imaginava tudo isso, era o diabo que me tentava? Hem?

- Cale-se! Não se ria, não blasfeme, que não percebe nada, nada! Oh, meu Deus! Nada, não compreende absolutamente nada!

- Fica calada, Sônia, eu não estou a rir-me. Olha, eu mesmo sei que foi o diabo que me arrastou. Cala-te, Sônia, cala-te! - repetiu, sombria e teimosamente. - Eu sei tudo. Já pensei nisso tudo, e a mim próprio o disse quando estava estendido, ali, no escuro... Tudo isso discutia eu comigo mesmo, até os seus mínimos pormenores, e sei tudo, tudo. E como me aborrecia, como me aborrecia a mim, então, todo esse palavreado! Eu queria esquecer tudo e começar de novo, Sônia, e deixar de pensar disparates. Julgas tu que eu cheguei até onde cheguei como um imbecil, como quem vai bater com a cabeça numa parede? Eu cheguei até lá pelo raciocínio e foi isso que me perdeu. Imaginas tu, por acaso, que eu não sabia que, por exemplo, se começasse a perguntar a mim próprio e a examinar: "Tenho ou não o direito de possuir o poder?", era porque então, provavelmente, não tinha esse direito? Ou que, se fizesse a pergunta: "É um piolho ou um ser humano?", então, com certeza que o ser humano já não seria para mim um piolho, mas só para aquele a quem isso não tivesse passado pela imaginação e que fosse direito até lá, sem fazer essas perguntas? Quando eu levei tantos dias neste tormento: "Napoleão faria isto ou não?", já eu compreendia claramente que não era um Napoleão... Todo, todo o suplício desse palavreado o sofri eu, Sônia, e foi tudo isso que eu quis sacudir de cima dos ombros; Sônia, eu queria matar sem casuística, matar para mim, para mim só. Não queria mentir nisto, nem a mim próprio! Não foi para ajudar a minha mãe que eu matei... Que absurdo! Também não foi para me tornar um benfeitor da humanidade, uma vez que dispusesse já de meios e poder, que eu matei. Que absurdo! Matei, simplesmente; matei só para mim, para mim apenas, e, se em conseqüência disso eu me tivesse podido tornar um benfeitor, ou tivesse passado toda a vida, como a aranha, apanhando presas na teia e alimentando-me dos seus sucos vitais, para mim tudo isso teria sido indiferente... E também não precisava de dinheiro, nem isso era o principal, Sônia; quando matei, precisava mais de outra coisa do que de dinheiro... Tudo isso o sei eu agora... Vê se me compreendes; pode ser que, se tivesse de percorrer as mesmas pegadas, já não tornasse a repetir o crime. Eu precisava de conhecer outra coisa, outra coisa me puxava pelo braço: então, eu precisava de saber, e de saber o mais depressa possível, se eu também era um piolho, como todos, ou um homem. Estava capacitado para transgredir a lei ou não estava? Tinha ousadia para ultrapassar os limites, para tomar este poder, ou não? Era eu uma criatura trémula ou tinha o direito?

- De matar? Se tinha o direito de matar? - exclamou Sônia, juntando as mãos.

-Ah, Sônia! - exclamou ele irritado, e parecia ir-lhe objetar qualquer coisa, mas calou-se, despeitado. - Não me interrompas, Sônia. Eu queria mostrar-te uma coisa: é que foi o diabo que me impeliu; mas depois disso explicou-me que eu não tinha o direito de me lançar naquilo, porque eu era precisamente um piolho como os outros e nada mais. Riu-se de mim, e aqui me tens; vim ver-te agora. Recebe o hóspede! Se eu não fosse um piolho teria vindo procurar-te? Escuta: quando eu fui à casa da velha, fi-lo apenas para provar... Fica sabendo!

- E matou! E matou!

- Mas que é isso de matar? É, porventura, assim que se mata? É assim que as pessoas vão matar, como eu fui? Hei de contar-te um dia os pormenores... Matei eu a velha? Eu me matei a mim mesmo, eu não matei a velha! Matei-me ali, de uma vez para sempre! Quem matou a velha foi o diabo e não eu... Basta, basta, Sônia, basta, basta! Deixa-me! - exclamou, de repente, num desespero de aborrecimento. - Deixa-me!

Deixou cair a cabeça sobre os joelhos e pegou-lhe com as duas mãos, como com duas tenazes.

- Que sofrimento! - deixou Sônia escapar, por entre um doloroso soluço. - Mas vamos, dize-me, que fazer agora? - perguntou ele erguendo de súbito a cabeça e olhando-a no rosto com uma monstruosa experiência de desolação.

- Que fazer? - exclamou ela levantando-se, de repente, do seu lugar, e os seus olhos, até ali afogados em lágrimas, brilharam. - Levanta-te! - pegou-lhe por um ombro; ele se endireitou, olhando-a, estupefato. - Agora mesmo, neste mesmo instante, irás ter a uma encruzilhada, ajoelhar-te-ás, beijarás primeiro a terra que manchaste, e depois ajoelhar-te-ás perante todo o mundo, perante os quatro pontos cardeais, e dirás para toda a gente, em voz alta: "Eu matei!" Então Deus tornará a dar-te a vida. Vais, vais? - perguntou ela, tremendo toda, como se estivesse com um ataque; puxou-o com as duas mãos, apertou-o com força entre as suas e ficou olhando para ele com olhos ardentes.

Ele ficou atônito, até irritado, por aquele ataque súbito.

- Estás-te referindo ao presídio, Sônia? Queres que eu vá apresentar-me? - perguntou ele sombrio.

- Aceitar o sofrimento e redimir-se por meio dele: aí tens o que é preciso fazer.

- Não, não me apresentarei, Sônia!

- Mas, então, como é que vais viver, como é que vais viver? De que viverás? - exclamou Sônia. - Por acaso isso é já possível? Como é que ousarás falar a tua mãe? (Oh! Que vai ser delas, delas, agora?) Mas que digo eu? Se tu já abandonaste a tua mãe e a tua irmã! Oh, meu Deus! - exclamou. - Se ele próprio já sabe tudo isto! Mas vamos lá a ver: como é possível viver sem ninguém? Que vai ser de ti agora?

- Não sejas criança, Sônia - disse ele com voz mansa. - De que sou eu culpado perante eles? Para que hei de eu ir até lá? Que hei de dizer-lhes? Tudo isto é apenas uma alucinação... Eles mesmos degolam milhões de seres e consideram-se virtuosos. São uns reles velhacos, Sônia! Não vou. E que iria eu dizer-lhes? Que matei, que não me atrevi a ficar com o dinheiro e que o escondi debaixo duma pedra? - acrescentou com um sorriso amargo. Com certeza que eles próprios se ririam de mim e me diriam: "Imbecil, por que não ficaste com ele? Covarde e idiota!" Nada, não compreenderiam nada, Sônia; até são indignos de compreender. Para que hei de eu ir? Não vou. Não sejas criança, Sônia.

- Vais sofrer, vais sofrer! - repetia ela num desespero implorativo, estendendo-lhe as mãos.

- É possível que eu me tenha caluniado a mim próprio - observou ele sombriamente, como se reconsiderasse. - Talvez eu, apesar de tudo, seja um homem e não um piolho, e me tenha julgado com demasiada precipitação... Apesar de tudo hei de lutar...

Um sorriso escarninho assomou aos seus lábios.

- Que tormento tão grande vais tu sofrer! Toda a vida, toda a vida! - Acostumar-me-ei! - declarou ele, severo e pensativo. Escuta - começou, passado um minuto -, já chega de lágrimas; é tempo de começar a atuar; eu vim para te dizer que andam à minha procura, agora, que me vão prender...

- Ah! - exclamou Sônia assustada.

- Bem, a que propósito vêm essas exclamações? Eras tu mesma quem queria que eu fosse entregar-me ao presídio e agora assustas-te? Ouve bem isto: eu não hei de render-me. Ainda hei de lutar com eles e não hão de poder fazer nada. Não têm nenhuma prova terminante. Ontem corri um grande perigo e cheguei a considerar-me perdido; mas, hoje, as coisas já se arranjaram: todas as provas que eles têm são espadas de dois gumes, isto é, posso pegar nas suas acusações e pô-las a meu favor, compreendes? E pô-las-ei, porque agora já estudei o caso... Mas hão de acabar por me mandar para a prisão. Se não fosse um acaso, é muito possível que já me tivessem enviado hoje, e pode ser que ainda me mandem hoje... Simplesmente, isso não tem importância, Sônia; se lá entrar, hão de ter que me soltar... porque eles não possuem nem uma prova autêntica, nem hão de tê-la, palavra! E, com aquilo que possuem, não é possível encarcerar um homem. Mas já chega! Isto era só para que ficasses sabendo... Com respeito à minha mãe e à minha irmã, hei de fazer qualquer coisa para convencê-las e para não as inquietar... A minha irmã, aliás, segundo parece, encontra-se agora a salvo da necessidade; a minha mãe, com certeza que... Bem, é tudo. Mas sê prudente. Queres vir comigo para o presídio, se me mandarem para lá?

- Oh, sim, sim!

Estavam os dois sentados, um junto do outro, tristes e extenuados, como se tivessem sido lançados, depois de uma tempestade, para uma margem deserta. Ele olhava para Sônia e sentia quanto amor havia nela e, coisa estranha, de repente tornou-se-lhe doloroso que ela o amasse tanto. Sim, era um sentimento estranho e espantoso! Quando se encaminhava para casa de Sônia sentia que era nela que se cifrava toda a sua esperança e todo o seu amparo; pensava libertar-se, ainda que fosse apenas de parte dos seus tormentos, e, agora que o coração dela se voltara completamente para ele, sentia e reconhecia de repente que era muito mais infeliz do que antes.

- Sônia - disse -, é melhor que não me acompanhes quando eu for para o presídio!

Sônia não respondeu; chorava. Decorreram alguns minutos.

- Trazes alguma cruz contigo? - perguntou ela inesperadamente, como se se tivesse lembrado daquilo de repente.

Ele, a princípio, não compreendeu a pergunta.

- Não trazes, pois não? Então toma esta, de madeira de cipreste. Ainda tenho outra, de cobre, que era de Lisavieta. Eu troquei uma cruz com Lisavieta, que me deu uma imagenzinha. A partir deste momento passarei a trazer a de Lisavieta, e esta é para ti. Toma... que é minha! Que é minha! - implorou ela. - Sofreremos os dois juntos, levaremos juntos a cruz!

- Dá-ma! - disse Raskólhnikov. Não queria desgostá-la. Mas depois retirou a mão, que já lhe estendia.

- Agora, não, Sônia. É melhor depois - acrescentou para tranqüilizá-la. - Sim, sim, é melhor, é melhor - concordou ela, admirada. - Quando partirmos para o sofrimento, então, hei de pô-la. Virás ter comigo e eu hei de pôr-ta; rezaremos e partiremos.

Naquele momento alguém chamou por três vezes à porta.

- Sófia Siemiônovna, pode-se entrar? - disse uma voz conhecida e afetuosa.

Sônia dirigiu-se para a porta, assustada. A cabeça loura do senhor Liebiesiátnikov lançou um olhar ao aposento.

 

Liebiesiátnikov parecia assustado.

- Venho vê-la, Sófia Siemiônovna. Desculpe... Bem me queria parecer que havia_ de encóntrá-lo aqui - disse, dirigindo-se de repente a Raskólhnikov. - Isto é, não pensava nada... neste gênero... Mas pensava... Ekatierina Ivânovna está ali, como louca - disse logo depois para Sônia. Sônia deu um grito.

- Pelo menos é o que parece. E... nós não sabemos o que havemos de fazer, esse é que é o caso! Voltou... Parece que a expulsaram não sei de onde, e até é possível que lhe tenham batido... Pelo menos é o que parece... Foi procurar o chefe de Siemion Zakháritch e não o encontrou em casa; fora convidado para comer em casa não sei de que general... Calcule que ela, então, dirigiu-se à tal casa para onde ele fora convidado... Foi à casa desse general, e imagine... Tanto teimou que queria ver o chefe de Siemion Zakháritch, que, segundo parece, o obrigou a levantar da mesa. Já pode calcular o rebuliço que teria havido. É claro que correram com ela; mas ela disse que o cobriu de insultos e que até lhe atirou não sei com que à cabeça. É muito provável... O que eu não percebo... é como não a prenderam! Agora está ali contando tudo a toda a gente, até a Amália Ivânovna, mas custa a entendê-la, e grita e estrebucha... Ah, sim! Diz e grita que, já que todos a abandonam, que pegará as crianças e se lançará à rua, e que há de arranjar um realejo, e as crianças cantarão e dançarão, e ela também, e assim arranjará dinheiro, e que há de ir todos os dias cantar debaixo da janela do general... "Para que vejam", disse, "como os honestos filhos dum falecido funcionário têm que andar pedindo esmola pelas ruas!" Bate nos filhos e eles choram. Ensina Liena a cantar a Pequena herdade; ao rapazinho, ensina a dançar, e a Pólina Mikháilovna também, e rasgou-lhes os vestidinhos para lhes fazer uns gorros como os dos palhaços; e transportará uma frigideira para fazer com ela uma musicata... Não liga importância nenhuma ao que lhe dizem... Já pode ver o que ali vai! Está, simplesmente, impossível de se aturar!

Liebiesiátnikov teria ainda continuado a falar; mas Sônia, que o escutara de respiração suspensa, pegou de repente o xale e o chapéu e saiu do quarto correndo, vestindo-se enquanto corria. Raskólhnikov saiu atrás dela e Liebiesiátnikov atrás dele.

- Está completamente doida! - dizia para Raskólhnikov, quando iam os dois já na rua. - Simplesmente, eu não queria assustar Sófia Siemiônovna e foi por isso que disse "segundo parece", mas sobre isso não tenho dúvida; dizem que aos tísicos se lhes costumam formar tubérculos na cabeça; é pena eu não saber medicina. Além disso tentei dissuadi-la, mas ela não fez caso.

- Falou-lhe dos tubérculos?

- Não disse uma palavra a respeito disso. Não meteria compreendido. O que eu quero dizer é isto: se conseguirmos convencer uma pessoa por meio da lógica de que, na realidade, não tem motivos para chorar, ela deixará de chorar. Isso está-se mesmo vendo. Que lhe parece?

- Nesse caso, a vida seria muito fácil - respondeu Raskólhnikov. - Dê-me licença, dê-me licença; não há dúvida de que Ekatierina Ivânovna teria muita dificuldade em compreender, mas sabe o senhor que, em Paris, se têm realizado já sérias experiências a respeito da possibilidade de curar os loucos valendo-se unicamente da persuasão lógica? Um professor dessa cidade, recentemente falecido, pensava que eles se poderiam curar dessa maneira. A sua idéia fundamental era a de que no organismo do louco não existe nenhum transtorno especial, e que a loucura é, por assim dizer, um erro de lógica, um erro no raciocínio, uma visão falsa das coisas. Ia refutando as palavras do doente, paulatinamente, e, imagine! dizem que obtinha resultados. Mas, como, para esse efeito, se servira de argumentos psicológicos, os resultados desse tratamento sugerem dúvidas, indubitavelmente... Pelo menos é o que parece...

Havia já algum tempo que Raskólhnikov não o escutava. Quando chegou junto da sua casa fez uma inclinação de cabeça a Liebiesiátnikov e entrou. Liebiesiátnikov caiu em si, deitou um olhar à sua volta e depois começou a correr.

Raskólhnikov subiu ao seu tugúrio e parou no meio dele:

"Para que teria eu voltado?" Passou os olhos por aquele papel das paredes, amarelado e rasgado, por todo aquele pó, pela sua tarimba... Do pátio subia um ruído seco, insistente; parecia que, em qualquer parte, alguém pregava pregos... Assomou à janela, pôs-se nas pontas dos pés e, durante muito tempo, ficou contemplando o pátio com um ar muito atento. Este estava deserto e não se via quem é que dava aquelas marteladas. À esquerda, nos prédios desse lado, havia umas janelas abertas; no peitoril viam-se vasos com uns gerânios murchos. Das janelas pendia roupa estendida... Tinha tudo isso gravado na memória. Deu meia-volta e foi sentar-se no divã.

Cinco minutos depois ergueu a cabeça e sorriu de um modo estranho. Tinha-lhe ocorrido um pensamento extraordinário: "Pode ser que, de fato, se esteja melhor no presídio", foi o que pensou de repente.

Nunca, nunca, até então, se sentira tão espantosamente só... Sim, sentia mais uma vez que podia acontecer, de fato, que viesse a sentir ódio por Sônia, e sobretudo agora, que a tornara mais infeliz. "Por que teria eu ido vê-la, implorar as suas lágrimas? Por que havia eu de ter envenenado a sua vida? Oh, que malvadez! Ficarei só, disse, de súbito, resolutamente. Ela não há de ir para o presídio!"

Perdeu a noção do tempo que levava já no seu cubículo, com a cabeça alvoroçada de vagos pensamentos. De súbito, a porta abriu-se e entrou Avdótia Românovna. A princípio deteve-se e ficou olhando para ele, à entrada, como um pouco antes ele fizera com Sônia; depois avançou e sentou-se em frente dele, numa cadeira, no mesmo lugar do dia anterior. Ele estava calado e parecia olhá-la sem pensar em nada.

- Não fiques aborrecido, meu irmão; vim só por um momento - disse Dúnia.

A expressão do seu rosto era pensativa, mas não severa. O seu olhar, claro e tranqüilo. Ele percebia que também ela se aproximava dele com amor. - Irmão, eu, agora, já sei tudo. Dmítri Prokófitch explicou-me e contou-me tudo. Perseguem-te e atormentam-te por causa de uma estúpida e ignóbil suspeita... Dmítri Prokófitch disse-me que tu não corres perigo nenhum e que é escusado levares isso tão a sério. Eu não penso assim, e compreendo perfeitamente como tudo isso te deve ter transtornado, e que essa tua indignação pode deixar-te uma marca para toda a vida. Disso é que eu tenho medo. Quanto ao motivo por que nos abandonaste, não te julgo nem me atrevo a julgar-te, e desculpa-me por te ter censurado. Eu sinto por mim mesma que, se me visse num transe tão amargo, também me afastaria de toda a gente. Não direi nada disto a mamãe, mas hei de falar-lhe constantemente de ti e dir-lhe-ei, da tua parte, que não tardarás a voltar. Não te preocupes por causa dela; eu tranqüilizá-la-ei, mas tu não a aflijas... vem ver-nos, nem que seja só uma vez, lembra-te de que é a tua mãe! Eu, agora, vim só para te dizer que - Dúnia começou a levantar-se -, se por acaso precisares de mim para alguma coisa... toda a minha vida, seja o que for... não deixes de chamar-me que eu virei. Adeus!

Deu bruscamente meia-volta e dirigiu-se para a porta.

- Dúnia! - chamou Raskólhnikov, levantando-se e indo ao seu encontro. - Esse Razumíkhin, Dmítri Prokófitch, é um bom rapaz.

Dúnia pareceu ruborizar-se.

- E então? - perguntou, depois de ter esperado um momento.

- É um homem ativo, trabalhador, honesto e capaz de amar a valer... Adeus, Dúnia!

Dúnia corou fortemente, e depois, de repente, mostrou espanto:

- Mas que queres dizer com isso, irmão; parece que nos vamos separar em breve, para sempre, uma vez que... me fazes semelhante testamento... - Vem a ser o mesmo... Adeus!

Deu meia-volta e, afastando-se dela, aproximou-se da janela. Ela continuava de pé, olhando para ele, inquieta, e, finalmente, saiu alarmada. Não, não se mostrara frio para com ela. Houve um momento (o último) em que sentiu um ímpeto terrível de abraçá-la e de despedir-se dela e de lhe dizer tudo; mas nem sequer se atreveu a dar-lhe a mão:

"Talvez depois estremecesse ao lembrar-se de que eu a abraçara agora e dissesse que eu lhe roubei esse abraço!"

"Mas resistirá a outra, ou não?", acrescentou para si, passados uns instantes. Não, não resistirá; essas, assim, não resistem! Essas nunca o suportam!" E pensou em Sônia.

Entrava uma brisa fresca pela janela. No pátio havia já menos luz. De repente pegou no gorro e saiu.

Não havia dúvida nenhuma que não queria nem podia preocupar-se com o seu estado doentio. Mas todo aquele incessante alarma e todo aquele terror espiritual não podiam deixar de ter conseqüências. E se não estava já deitado com autêntica febre, pode ser que fosse por causa daquela inquietação interior, contínua, que o mantinha de pé e ainda lúcido, mas de uma maneira artificial, por algum tempo.

Perambulou sem rumo fixo. O sol já se punha. Uma tristeza especial se apoderara dele nos últimos tempos. Não tinha nada de especialmente agudo ou azedo; mas emanava dele algo de constante, de eterno; fazia pressentir anos sem refúgio, dessa dor fria, mortal; fazia pressentir toda uma eternidade num espaço de um archin. Essa sensação costumava afligi-lo com mais força ao cair da tarde.

"Como há de uma pessoa não fazer disparates, com estes estúpidos desfalecimentos, puramente físicos, dependentes do pôr-do-sol! Não só hás de ir ver Sônia, como também Dúnia", murmurou, mal-humorado. Chamaram-no. Olhou à volta; Liebiesiátnikov corria para ele.

- Calcule, estive em sua casa, à sua procura! Calcule que fez aquilo que dizia e saiu para a rua com as crianças! Encontramo-los com muito custo, eu e Sófia Siemiônovna. Ela se põe a bater uma frigideira e obriga os pequenos a dançar. Os petizes choram, fá-los parar nas encruzilhadas e à porta das lojas. Atrás deles corre uma multidão de papalvos. Vamos até lá.

- E Sônia? - perguntou Raskólhnikov, alarmado, estugando o passo atrás dele.

- Está doida, simplesmente. Quero dizer, quem está transtornada não é Sófia Siemiônovna, mas Ekatierina Ivânovna, embora, no fim de contas, Sófia Siemiônovna também o esteja. Asseguro-te que a outra perdeu completamente o juízo. Vão levá-la ao comissariado. Pode calcular a impressão que isso lhe fará... Agora estão eles no canal, na ponte de..., muito perto da casa de Sófia Siemiônovna. É já ali.

No canal, perto da ponte, e apenas duas casas mais longe do lugar onde vivia Sônia, apinhara-se um círculo de pessoas.

Corriam para lá, sobretudo, rapazes e moças. A voz rouca, entrecortada, de Ekatierina Ivânovna ouvia-se já na ponte. E, de fato, era um espetáculo digno de interesse para a população do bairro. Ekatierina Ivânovna, com o seu vestido esfiado, com aquele xale aos quadrados e com o seu amassado chapelinho de palha, todo de banda, parecia verdadeiramente alheada. Estava esgotada e arquejava com dificuldade. O seu vincado rosto de tísica parecia agora mais dolorido do que nunca (pois na rua, ao sol, os tuberculosos parecem sempre mais doentes e desfigurados do que em casa); mas o seu estado de excitação estava na mesma e mostrava-se cada vez mais nervosa, de momento para momento. Corria para os filhos, dava-lhes gritos, ralhava com eles, ensinava-lhes ali mesmo, diante das pessoas, a maneira como haviam de dançar e de cantar, e punha-se a explicar-lhes por que é que tinham de fazer isso, desesperava-se perante a incompreensão deles e batia-lhes... Depois, ainda antes de ter acabado, dirigia-se ao público; assim que via algum sujeito bem vestido, que tivesse parado para olhar, aproximava-se imediatamente dele e punha-se a explicar-lhe que podia ver ali, que diabo!, o extremo a que tinham chegado os filhos "duma família distinta e até aristocrática". Ouvia-se no círculo algum risinho ou alguma palavra mal soante? Logo ela notava o engraçado e ralhava com ele. Alguns, de fato, riam-se; outros abanavam a cabeça; de maneira geral, para todos se tornava curioso ver aquela louca, com os filhinhos assustados. A frigideira, de que Liebiesiátnikov falara, não existia; pelo menos Raskólhnikov não chegou a vê-la, mas, à falta de frigideira, Ekatierina Ivânovna punha-se a bater palmas com as suas esquálidas mãos quando obrigava Pólietchka a cantar e Liena e Kólia a dançar, e, além disso, punha-se ela também a cantarolar em voz baixa, embora tivesse de interromper-se logo à segunda nota, por causa da maldita tosse, o que tornava a exasperá-la, fazendo-a amaldiçoar aquela sua tosse, até que se punha a chorar. O que mais a enfurecia era o choro e o medo de Kólia e de Liena. De fato, tentara vestir os pequenos com trajes semelhantes àqueles que usavam os cantores e cantoras da rua. O rapazinho trazia na cabeça uma espécie de turbante vermelho e branco, para que imitasse um turco. Para Liena o pano já não chegara, e apenas lhe pusera na cabeça um gorro encarnado, de pêlo de camelo (ou, para melhor dizer, o gorro de dormir do falecido Siemion Zakháritch), e no referido gorro prendera um resto duma pluma branca de avestruz, que pertencera à avó de Ekatierina Ivânovna e que esta guardara até ali, numa arca, como relíquia de família. Pólietchka trazia o mesmo vestidinho de sempre. Olhava para a mãe com olhos tímidos e alheados, sorvendo as suas lágrimas, adivinhando a sua loucura e olhando inquieta à sua volta. A rua e as pessoas infundiam-lhe um susto enorme. Sônia seguia de perto Ekatierina Ivânovna, chorando e suplicando-lhe insistentemente que voltasse para casa. Mas Ekatierina Ivânovna era inexorável.

- Deixa-me, Sônia, deixa-me! - gritava atabalhoadamente, à pressa, respirando afanosamente e tossindo. - Tu não sabes o que estás pedindo, pareces uma criança! Já te disse que não voltarei para junto dessa bêbada alemã. E quero que toda a cidade de Petersburgo veja como andam pedindo esmola os filhos dum pai honesto, que toda a sua vida serviu lealmente e com fidelidade o Estado, e que, pode dizer-se, morreu ao serviço - Ekatierina Ivânovna apressara-se em forjar para ela mesma essa fantasia e a dar-lhe crédito. - Que o veja, que o veja esse antipático generalzinho. Mas tu estás tonta, Sônia? Que vamos nós comer agora, não me dizes? Já te exploramos bastante, a ti, não quero continuar assim! Ah, é o senhor, Rodion Românovitch - exclamou, ao ver Raskólhnikov, e dirigiu-se a ele. – Pois faça o favor de fazer ver a esta tolinha que isto é a coisa mais acertada que eu podia fazer! Até os tocadores de realejo tiram alguma coisa, e, a nós, hão de distinguir-nos imediatamente, pois hão de ver que eu sou uma pobre órfã, de boa família, que se vê reduzida à miséria, e até esse generalzinho há de ficar com a carreira arruinada! Havemos de nos pormos todos os dias embaixo da janela dele, e quando o imperador passar hei de prostrar-me a seus pés, de joelhos, empurrarei estes à minha frente e dir-lhe-ei: "Protege-os, pai!" Ele é o pai dos órfãos. Ele é misericordioso e há de protegê-los, vai ver; mas esse generalzinho... Liena! Tenez vous drotte! (1) Tu, Kólia, vamos lá dançar outra vez. Por que choramingas? Outra vez chorando? Mas vamos lá a ver: de que é que tens medo, meu tolo? Senhor! Que hei de eu fazer com eles, Rodion Românovitch? Se soubesse como são tontinhos! Que hei de eu fazer com eles?

E, ela própria, também quase chorando (o que não era um óbice para a sua atabalhoada e incessante loquacidade), apontava-lhe os filhos, que lamuriavam. Raskólhnikov tentou convencê-la a que voltasse para casa, e até lhe disse, pensando assim feri-la no seu amor-próprio, que não era nada decente isso de andar pelas ruas como tocadora de realejo, uma vez que tencionava ser diretora dum pensionato para meninas...

- O pensionato, ha, ha, ha! Castelos no ar - exclamou Ekatierina Ivânovna depois de umas risadas, interrompidas pela tosse. - Não, Rodion Românovitch; os sonhos desvaneceram-se! Todos nos abandonaram! E esse generalzinho... Olhe, Rodion Românovitch, eu cheguei a atirar-lhe com um tinteiro à cabeça... Havia lá um, no vestíbulo, estava em cima da mesa, junto duma folha de papel, no qual os visitantes escreviam o seu nome e onde eu também escrevera o meu; pois atirei-lho e deitei a correr. Oh, que canalhas, que canalhas! Metem-me nojo; pois, agora, quem dá de comer a estes sou eu e não terei de inclinar-me diante de ninguém! Já abusamos bastante dela! - e apontava para Sônia. - Pólietchka, quanto é que recolheste? Dize-me quanto! Dez copeques ao todo? Oh, que avarentos! Não nos dão nada, não fazem mais nada senão vir atrás de nós a deitar-nos a língua de fora! Olhe como esse estúpido se ri! - e apontou para um do círculo. - Este tonto do Kólia é quem tem a culpa de que se riam de nós! Que te aconteceu, Pólietchka? Fala em francês: parlez-moi français. Olha que eu te ensinei e tu sabes algumas palavras! Não sendo assim, como hão de vocês dar-lhe a entender que são de boas famílias, crianças bem-educadas, e não como esses tocadores de realejo? E também não vimos para a rua com "Pietruchka" (2), mas com canções nossas, de bom-tom.

 

* (1) Põe-te direita! (N. do T)

(2) O Autor escreve este nome entre aspas por ser o mesmo o nome tradicional da personagem principal do guignol, o polichinelo, como seria o equivalente em português no teatro de marionetes; e para caracterizar a personagem dostoievskiana assim chamada de engraçada. (N. do T.) *

 

Ai, não! Que havemos de cantar? Vocês não fazem senão interromper-me, e eu... repare, Rodion Românovitch, nós paramos aqui para escolhermos o que havemos de cantar. Alguma coisa própria para Kólia cantar, porque, bem vê, encontramo-nos nesta situação inesperadamente; é preciso ficarmos todos de acordo para ensaiarmos tudo perfeitamente, depois iremos ao Próspekt Niévski, onde há muita gente importante, e hão de logo reparar em nós. Liena canta a Hospedaria... Simplesmente ela transforma tudo em Hospedaria e mais Hospedaria, e não sabe cantar mais nada. Nós temos de cantar qualquer coisa de mais distinto... Vamos ver: que pensas tu, Kólia? Se tu, ao menos, ajudasses um bocadinho a tua mãe... Memória, memória, é coisa que eu não tenho, porque, se a tivesse! Não poderíamos cantar o Hussardo apoiado à sua espada? Ah, vamos cantar em francês Cinq sous! Foi isso o que eu vos ensinei, o que vos ensinei, sim. E o mais importante é que, como está em francês, não têm outro remédio senão compreender imediatamente que nós somos nobres, e assim hão de comover-se mais... Também poderíamos cantar aquilo de Marlborough s'en vat-en guerre!, que é uma canção infantil e se canta em todas as casas aristocráticas para embalar as crianças:

Marlborough s én va-t-en guerre, ne sait quand reviendra...

Começou ela a cantarolar.

- Não, é melhor os Cinq sous. Vamos ver, Kólia: mãos nas ancas, imediatamente, e tu, Liena, volta-te para o outro lado, que eu me ponho a trautear e a bater palmas com Pólietchka!

Cinq sous, cinq sous,

pour monter notre ménage...

- Hi... hi... hi! - e a tosse cortou-lhe a voz. - Arranja a roupa, Pólietchka, está a cair-te dos ombros - observou, no meio dos acessos de tosse, respirando dificilmente. - Agora devem, mais do que nunca, fazer por se portarem bem e com distinção, para que toda a gente veja que sois meninos nobres. Eu já disse que essa blusa devia ter sido cortada mais comprida e com o dobro da largura. Tu é que foste a culpada, Sônia, com os teus conselhos: "mais curta, mais curta", do mal que ela fica a esta petiza... Bem, vamos lá a começar tudo outra vez! Mas que têm vocês, tolinhos? Vamos lá a ver, Kólia, começa já, já... Oh, que criança insuportável!

Cinq sous, cinq sous...

- Outra vez o guarda! Mas tu julgas que és cá preciso? De fato, por entre as pessoas abrira caminho um guarda urbano. Mas, ao mesmo tempo, um senhor com uniforme e capote, um respeitável funcionário de uns cin qüenta anos, com uma condecoração ao pescoço (este último pormenor agradou-lhe muito e influiu no guarda), aproximou-se e, em silêncio, entregou a Ekatierina Ivânovna uma nota esverdeada de três rublos. O seu rosto exprimiu sincera compaixão. Ekatierina Ivânovna aceitou o donativo e fezlhe uma vênia cortês e até cerimoniosa.

- Muito obrigada, senhor - começou com uma expressão de altivez -, há motivos que nos obrigam... Toma o dinheiro, Pólietchka. Oh, ainda existem no mundo pessoas nobres e generosas, sempre dispostas a ajudar uma senhora nobre, caída na pobreza. Estes que aqui vê, cavalheiro, são orfãozinhos de uma família distinta e, pode dizer-se até, ligada a linhagens muito aristocráticas... Mas aquele generalzinho estava ali sentado, comendo perdizes... e a bater com os pés no chão; dizia que eu tinha ido incomodá-lo... "Excelência", disse-lhe eu, "proteja uma órfã, já que conheceu bem o falecido Siemion Zakháritch e a sua filha legítima; o mais vil entre os vis permitiu-se caluniá-la no próprio dia da morte dele..." Outra vez aquele guarda! Proteja-nos! - exclamou, dirigindo-se ao funcionário. - Por que tem tanto interesse em chegar até mim? Já tivemos de fugir de um, além, em Miechtchánskaia... Bem, vamos lá a ver, perdeu aqui alguma coisa, seu azêmola?

- É proibido fazer isso na rua. Faça favor de não armar burburinho! - Tu é que estás fazendo burburinho! É a mesma coisa que se eu trouxesse um realejo; a ti, que te importa?

- Quanto ao realejo, é preciso tirar licença; e só com essas coisas já estão atraindo pessoas. Diga-me o seu endereço...

- Com que então é preciso licença - trovejou Ekatierina Ivânovna. - O meu marido foi hoje sepultado; aí tem a licença!

- Senhora, senhora, senhora, acalme-se - começou o funcionário. - Vamos, eu a levo... Aqui, no meio das pessoas, não está bem, não está bem... A senhora está doente...

- Senhor, senhor, o senhor não sabe nada! - exclamou Ekatierina Ivânovna. - Nós vamos a Niévski... Sônia, Sônia! Mas que é que vocês têm? Kólia, Liena, onde é que vocês estão? - gritou de repente, assustada. - Oh, que crianças tão tolas! Kólia, Liena, onde é que vocês se meteram?

Sucedeu que Kólia e Liena, assustados com a presença da multidão da rua e com os disparates da mãe enlouquecida, quando, por fim, viram um guarda que queria apanhá-los e levá-los não sabiam para onde, de repente, como se se tivessem posto de acordo, deram as mãozinhas e deitaram a correr. A pobre Ekatierina Ivânovna, com soluços e choros, lançou-se em sua perseguição. Era horrível e triste vê-la correr, chorando, sufocada. Sônia e Pólietchka foram também correndo atrás dela.

- Trá-los, Sônia, trá-los! Oh, que crianças tão tolas e tão más! Pólia! Apanha-os! Eu lhes direi...

Na sua correria tropeçou e caiu.

- Está toda ensangüentada! Oh, meu Deus! - exclamou Sônia inclinando-se sobre ela.

Todos correram e se apinharam à volta. Raskólhnikov e Liebiesiátnikov foram os primeiros a acudir; o funcionário apressou-se também e, atrás dele, o guarda, que resmungava "Ah!" e agitava os braços, pressentindo que o incidente lhe ia dar que fazer.

- Afastem-se! Afastem-se! - dizia dispersando as pessoas, que tinham formado círculo.

- Está morrendo! - gritou alguém. - Enlouqueceu! - disse outro.

- Senhor, salva-a! - exclamou uma mulher, benzendo-se.

- Não deram com as crianças? Sim, ali os trazem, uma velhinha conseguiu apanhá-los... Seus malandréus!

Mas, assim que examinaram bem Ekatierina Ivânovna, viram que não estava deitando sangue devido à pedra em que tropeçara, conforme Sônia pensara, mas que o sangue que encharcava o pavimento saía às golfadas dos seus pulmões.

- Eu já sabia, já via que isso havia de acontecer - murmurou o funcionário dirigindo-se a Raskólhnikov e a Liebiesiátnikov. - Está tísica: por isso o sangue corre assim e a sufoca. Ainda não há muito tempo que eu presenciei isto numa parenta minha, deitou copo e meio de sangue, e de repente... Mas que se há de fazer! É que não tardará a expirar!

- Aqui, aqui, em minha casa! - gritou Sônia. - Eu moro ali! Olhem, nessa casa, é a segunda, ali... Já, já para minha casa! - dizia para todos. - Corram à procura dum médico... Oh, meu Deus!

Graças aos esforços do funcionário tudo se arranjou, e até o guarda ajudou a transportar Ekatierina Ivânovna. Levaram-na quase morta para casa de Sônia e estenderam-na na cama. A hemorragia continuava, mas parecia que ela ia recuperando já os sentidos. No quarto entraram logo, além de Sônia, Raskólhnikov e Liebiesiátnikov, o funcionário e o guarda, depois de ter dispersado previamente os curiosos, alguns dos quais foram a escoltá-los mesmo até a porta de casa. Pólietchka entrou, trazendo pela mão Kólia e Liena, que tremiam e choravam. De casa dos Kapernaúmovi acudiu também gente; ele, coxo e estrábico, homem de cara estranha, com os cabelos da cabeça e com as patilhas hirsutas e tesas como os pêlos duma escova; a mulher, que parecia estar sempre assustada, e alguns filhos, com caras de pau e bocas escancaradas. Entre toda essa assistência apareceu também Svidrigáilov. Raskólhnikov olhou para ele espantado, sem perceber de onde é que ele teria saído, pois não se lembrava de tê-lo visto entre as pessoas.

Houve quem falasse de um médico e de um padre. O funcionário, apesar de ter dito ao ouvido de Raskólhnikov que o médico já não era preciso, mandou chamá-lo. Foi o próprio Kapernaúmov quem se encarregou disso.

Entretanto, Ekatierina Ivânovna tinha-se tranqüilizado; a hemorragia parara. Pousou o seu olhar fixo e penetrante na trêmula e pálida Sônia, que, com um lenço, lhe secava gotas de suor sobre a testa; por fim pediu que a soerguessem. Levantaram-na sobre a cama, amparada de ambos os lados.

- E as crianças, onde estão? - perguntou com voz fraca.

- Trouxeste-os, Pólia? Oh, que tolinhos... Vamos lá a saber: por que fugiste? Oh!

Tinha ainda os lábios ressequidos salpicados de sangue. Olhou à volta, com um olhar perscrutador.

- Então é aqui que tu moras, Sônia? Nem uma só vez tinha estado em tua casa... Agora é que...

Contemplou-a, apiedada.

- Exploramos-te, Sônia! Pólia, Liena, Kólia, venham cá... Bem, aqui os tens todos, Sônia; toma-os... Nas tuas mãos... que para mim já chega... Acabou-se o fadário! Ah! Vão-se todos embora, deixem-me ao menos morrer em paz...

Tornaram a recliná-la na almofada.

- Que é isto? Um padre? Não é preciso... Tem um rublo que não lhe faça falta? Eu não tenho nenhum pecado! Deus tem obrigação de perdoar sem necessidade disso... Ele bem sabe o que eu sofri! Mas se não perdoar, tanto pior!

Um delírio desassossegado se ia apoderando dela cada vez com mais força. Estremecia de vez em quando, olhava à volta, reconhecendo-os a todos por um minuto; mas voltava logo a perder a consciência, no seu delírio. Respirava difícil e dolorosamente; parecia que qualquer coisa lhe fervia na garganta.

- Eu lhe conto, Excelência! - exclamou ela, parando para respirar, a cada palavra. - Essa Amália Ivânovna! Ah! Liena, Kólia! Nas pontas dos pés, imediatamente, imediatamente, glissez, glissez, pas de basque! Batam com os pés... Isso, com graça, filho!

Du hast Diamanten und Perlen... (3)

Então, que tal? Vocês deviam cantar...

Du hast die schõnsten Augen, Mãdchen, was willst du mehr?...

Mau, não é assim! Was willst du mehr... Isso é o que pensa o imbecil! Ah, sim, aqui está outro:

No ardor da sesta, no vale de Daguestão

Ah, como eu gostava disso! Gostava loucamente desta romanza, Pólietchka...

 

* (3) Este e os dois versos seguintes pertencem a um poema de Heine: Tens diamantes e pérolas,/ Tens os mais lindos olhos./Mocinha, que mais queres? (N. do T.) *

 

Olha, o teu pai, quando ainda era apenas meu noivo, cantava-a... Oh, que dias aqueles! Isso, isso é que nós devíamos cantar! Vamos lá a ver como! Vamos ver... Como! Já me esqueci! Lembram-se como era?

Estava extraordinariamente agitada e esforçava-se por se endireitar. Finalmente, com uma voz terrível, entrecortada pelo estertor, começou, gritando e sufocando a cada palavra, com uma expressão de espanto crescente:

No ardor da sesta... No vale de Daguestão Com chumbo dentro do peito! (4)

- Excelência! - exclamou de repente com um soluço dilacerante e chorando. - Proteja estes órfãos! Em memória do pão e do sal que provou em casa do falecido Siemion Zakháritch! Pode até dizer-se aristocrática! Ah! - estremeceu, recuperando de repente a memória, olhou para todos com certo terror, e, tendo reconhecido Sônia nesse momento: - Sônia, Sônia! - exclamou tímida e carinhosamente, como se estivesse muito admirada de vê-la ali, na sua frente. - Sônia, querida, tu também estás aqui?

Tornaram a soerguê-la.

Tens diamantes e pérolas, Tens os mais belos olhos. Mocinha, que mais queres?

- Chega! Já é tempo! Adeus, pobrezinha! Derrearam a pileca! Rebenta! - gritou desesperadamente, com raiva, e deixou cair a cabeça na almofada. Tornou novamente a ficar amodorrada, mas esse último torpor não durou muito. O seu rosto, lívido e descarnado, caiu para trás, a boca abriu-se-lhe, as pernas esticaram-se-lhe convulsivamente. Lançou um fundo, fundo suspiro, e expirou.

Sônia lançou-se sobre o cadáver, agarrou-se a ele com as duas mãos e ficou com a cabeça reclinada no peito encovado da morta. Pólietchka ajoelhou-se aos pés da mãe e pôs-se a beijá-los, sem deixar de chorar. Kólia e Liena, que ainda não tinham chegado a compreender o que acabava de acontecer, mas pressentiam qualquer coisa de tremendo, colocaram as mãos nos ombros um do outro e ficaram a olhar-se mutuamente, até que, de repente, abriram os dois a boca ao mesmo tempo e começaram a gritar. Conservavam ainda os seus trajes cômicos: um, o turbante; a outra, o gorro com a pluma de avestruz.

E como é que aquele diploma de honra se veio a encontrar na cama, ao lado de Ekatierina Ivânovna? Estava ali, junto da almofada; Raskólhnikov viu-o.

Aproximou-se da janela. Não tardou que Liebiesiátnikov aparecesse. - Expirou! - disse.

 

* (4 Verso inicial de um poema de Liérmontov. (N. do T.) *

 

- Rodion Românovitch, preciso de lhe dizer duas palavras - anunciou-lhe Svidrigáilov, aproximando-se. Liebiesiátnikov cedeu-lhe imediatamente o lugar e retirou-se discretamente. Svidrigáilov levou Raskólhnikov, que estava muito admirado, para um canto da sala.

- Toda esta trapalhada, quero dizer, o funeral e tudo mais ficam por minha conta. O senhor sabe que tudo isto há de custar dinheiro e já lhe disse que tenho bastante. A esses dois franguinhos e a Pólietchka, havemos de metê-los em qualquer bom asilo de órfãos e depositarei por cada um, até a sua maioridade, mil e quinhentos rublos, para que Sófia Siemiônovna possa ficar tranqüila. E, a ela, também a hei de tirar da lama, visto que é uma boa moça, não é verdade? Suponho que poderá dizer a Avdótia Românovna a maneira como eu empreguei os seus dez mil rublos.

- Com que fim se dedica o senhor a tais generosidades? - perguntou Raskólhnikov.

- Ah! Que homem desconfiado! - sorriu Svidrigáilov. - Já lhe disse que esse dinheiro não me faz falta. Bem, mas diga lá, o senhor não acha que eu procedo humanamente? Olhe, aquela não era um piolho - e apontou com o dedo para o canto onde jazia a morta - como qualquer velhorra usurária. Bem, há de concordar comigo: o que será melhor, que Lújin continue vivendo e cometendo canalhices, ou que ela morra? E, se eu não os ajudo, Pólietchka, então, há de ir pelo mesmo caminho.

Dizia tudo isso com o ar de um velhaco de bom humor, que piscava os olhos sem os afastar de Raskólhnikov. Este empalideceu e gelou ao escutar as suas expressões pessoais, aquelas que ele dissera a Sônia. Retrocedeu rapidamente e olhou avidamente para Svidrigáilov.

- Como é que sabe isso? - balbuciou, quase sem poder respirar. - Olhe, porque eu estou instalado aqui, paredes-meias, em casa de madame Resslich. Aqui mora Kapernaúmov e ali madame Resslich, uma minha antiga e leal amiga. Vizinhos.

- O senhor?

- Eu - continuou Svidrigáilov retorcendo-se a rir. - E posso afirmar-lhe, sob palavra de honra, querido Rodion Românovitch, que o senhor me inspira muito interesse. Olhe, eu disse-lhe que ainda havíamos de conviver, disse-lho com antecedência... já vê como acertei. E vai ver como eu sou um homem dúctil. Vai ver como se pode conviver comigo...

 

 

Começou então para Raskólhnikov uma estranha época; era como se uma bruma se tivesse erguido de repente diante dele, envolvendo-o numa solidão irrespirável e densa. Ao evocar mais tarde este tempo, chegou a compreender como trouxera a consciência obnubilada, e que esse estado se prolongou, com leves intervalos, até que sobreveio a catástrofe definitiva. Estava firmemente convencido de se ter enganado em muitos pontos, por exemplo, na data e duração de certos acontecimentos. Pelo menos, depois, quando recordava e se esforçava por explicar o que evocava, não eram poucas as vezes que se reconhecia guiando-se por testemunhos alheios. Confundia, por exemplo, um acontecimento com outro; ou considerava-os conseqüência de acontecimentos que só tinham acontecido na sua imaginação febril. De quando em quando apoderava-se dele uma grave e dolorosa inquietação, que chegava a degenerar em terror pânico. Mas lembrava-se também de que tinham existido minutos, horas e até dias, talvez, cheios de uma apatia que se apoderava dele como por reação contra o passado espanto; uma apatia semelhante a esse estado de alma de doentia indiferença de alguns moribundos. De maneira geral, naqueles últimos dias esforçara-se por se convencer de que compreendia clara e plenamente a sua situação; certos fatos vulgares que necessitavam de uma dilucidação imediata causavam-lhe uma preocupação especial; mas como teria ficado contente se pudesse libertar-se e evitar algumas precauções, cujo esquecimento, aliás, constituía na sua situação uma ameaça de realizada e irreparável rotina...

Era Svidrigáilov quem especialmente o assustava; poderia até dizer-se que, agora, a sua grande preocupação era Svidrigáilov. Desde que Svidrigáilov lhe dissera aquelas palavras, tão ameaçadoras para ele e demasiadamente explícitas, no quarto de Sônia, por ocasião da morte de Ekatierina Ivânovna, parecia que o curso habitual das suas idéias se interrompera. Mas, apesar de esse novo fato o inquietar sobremaneira, Raskólhnikov não tinha a mínima pressa de esclarecer o assunto. Às vezes, quando se via de súbito em qualquer bairro solitário e afastado da cidade, em qualquer tasca miserável, sozinho, sentado a uma mesa, ensimesmado e sem perceber quase como é que fora para ali, recordava-se de repente de Svidrigáilov; e logo reconhecia claramente, e com inquietação, que era preciso falar o mais depressa possível com aquele homem e, se fosse possível, pôr um remate no assunto. De uma vez, em que passeava pelos arredores, chegou até a imaginar que Svidrigáilov estava à espera dele ali e que tinham combinado um encontro naquele lugar. De outra vez acordou ao romper do dia, prostrado no chão, sobre a erva, e quase não conseguia explicar a si próprio como é que fora parar ali. Aliás, nos dois ou três dias que se seguiram à morte de Ekatierina Ivânovna, encontrou-se umas duas vezes com Svidrigáilov, quase sempre no quarto de Sônia, onde ia sem objetivo, mas constantemente. Trocavam umas breves palavras e nem uma só vez sequer tocaram no ponto capital, como se entre eles existisse uma combinação tácita para não falarem daquilo por então. O cadáver de Ekatierina Ivânovna ainda não tinha sido retirado. Svidrigáilov encarregara-se do funeral e andava muito atarefado. Sônia também estava muito ocupada. No seu último encontro com Svidrigáilov, este comunicou a Raskólhnikov que tratara, e bem, do caso dos filhos de Ekatierina Ivânovna: que, graças a certas amizades, conseguiu chegar até certas pessoas com a ajuda das quais se podiam internar imediatamente os três orfãozinhos numa instituição muito indicada para esse fim, para o que também contribuíra muito o dinheiro que lhes doara, pois colocar órfãos que possuíam algum capital sempre era mais fácil do que colocar órfãos pobres. Também lhe falou de Sônia; prometeu que iria visitá-lo daí a dias, a sua casa, e avisou-o de que queria pedir-lhe uns conselhos; que era muito necessário conversarem, que se tratava de um certo assunto... Tiveram esse diálogo no patamar, já na escada. Svidrigáilov olhou para Raskólhnikov de alto a baixo e, de súbito, depois de uma pausa, perguntou-lhe em voz baixa:

- Mas que lhe aconteceu, Rodion Românovitch? Não parece o mesmo! Ouve e olha, mas parece que não compreende nada do que ouve e vê. Ganhe coragem. Olhe, temos de falar; é pena eu ter tantos assuntos alheios para tratar e não ter tempo para tratar dos meus... Ah, Rodion Românovitch - acrescentou de repente -, toda a gente precisa de ar, de ar, de ar! Isso antes de mais!

De repente afastou-se para deixar passar o padre e o sacristão, que subiam a escada. Iam rezando um responso. Conforme as indicações de Svidrigáilov, diziam-lhe dois responsos por dia, escrupulosamente.

Svidrigáilov foi à sua vida. Raskólhnikov ficou pensativo e entrou atrás do padre no quarto de Sônia.

Parou junto da porta. O rito, tranqüilo, solene e triste, começara. A idéia da morte e a comoção da presença de um morto sempre lhe tinham infundido uma espécie de sufocante e místico espanto, já desde a infância, e, além disso, havia já muito tempo que não ouvia um responso. Mas havia ainda outra coisa, de muito terrível e inquietante. Olhava para as crianças; estavam todas de joelhos, junto do caixão. Pólietchka chorava. Atrás deles Sônia rezava em voz baixa e timidamente chorosa. "Durante estes dias nem sequer olhou para mim uma só vez, e nem uma só palavra me disse", pensou Raskólhnikov. O sol iluminava claramente o aposento; a fumarada do incensário erguia-se em redemoinhos; o sacerdote lia: "Dai-nos a paz, Senhor!" Raskólhnikov assistiu a todo o responso. Quando deitou a bênção e se despediu, o sacerdote olhou à sua volta com um ar estranho. Terminada a cerimônia, Raskólhnikov aproximou-se de Sônia. Esta, de súbito, segurou-se a ele com as duas mãos e reclinou a cabeça sobre o seu ombro. Esse simples gesto afetuoso deixou Raskólhnikov perplexo; tinha também algo de estranho. O quê? Nem a menor repugnância, nem o menor espanto, nem o mais leve tremor na sua mão! Aquilo era já o cúmulo da abnegação pessoal. Pelo menos era o que lhe parecia. Sônia não disse nada. Raskólhnikov apertou-lhe a mão e saiu. Sentia um abatimento espantoso. Se lhe tivesse sido possível ir naquele momento a algum lugar e ficar aí completamente sozinho, ainda que fosse para toda a vida, ter-se-ia considerado feliz. Mas o certo era que, nos últimos tempos, embora estivesse quase sempre sozinho, não podia sentir-se só. Sucedia-lhe sair para os arredores, até a estrada, e, de certa vez, até se meteu por entre um arvoredo; mas, quanto mais deserto estava o lugar, mais vivamente ele sentia a seu lado como que uma presença inquietante, não a de nenhum estranho, mas antes qualquer coisa já de muito esperada, de tal maneira que acabava por regressar logo à cidade, e misturar-se entre as pessoas, entrava em alguma casa de pasto ou numa taberna, ia até Tolkútchi, ao Mercado do Feno. Aí sentia-se mais à vontade e mais só. Numa pequena taberna, à tardinha, cantavam canções; deixou-se ficar aí sentado uma hora inteira, ouvindo, e recordava-se de que isso lhe agradara muito. Mas, por fim, acabara por se levantar repentinamente, num desassossego; fora como se tivesse começado a ser atormentado por remorsos de consciência.

"Esta agora! Estou sentado, ouvindo canções; mas é isto, porventura, o que eu devo fazer." Aliás, adivinhava que não era só isso o que o inquietava, mas algo que reclamava uma resolução urgente e acerca do que não era possível pensar nem dizer uma palavra. Tudo girava num torvelinho. "Não, o melhor seria uma disputa franca. O melhor seria outra vez Porfíri... ou Svidrigáilov... Um novo desafio, um novo ataque, o mais depressa possível... Sim, sim!", pensava. Saiu quase correndo da pequena taberna. A recordação de Dúnia e da mãe tornou a infundir-lhe de repente, sem que soubesse por quê, um terror pânico. Nessa mesma noite, antes de amanhecer, despertou também entre o arvoredo da ilha Kriestóvski, todo a tremer, cheio de febre; regressou a casa já de manhã, muito cedo. Passadas algumas horas de sono, a febre cessou-lhe, mas acordou já tarde, às duas horas.

Lembrou-se de que o enterro de Ekatierina Ivânovna estava marcado para aquele dia e ficou satisfeito por não ter assistido. Nastássia levou-lhe comida; comeu e bebeu com grande apetite, quase com sofreguidão. Tinha

a cabeça mais aliviada e sentia-se mais tranqüilo do que nos últimos três dias. Até se admirou, por um momento, do seu terror pânico anterior. A porta abriu-se e Razumíkhin entrou.

- Ah! Estás comendo, portanto não estás doente - disse Razumíkhin pegando uma cadeira e sentando-se à mesa, em frente de Raskólhnikov; vinha muito excitado e não fazia esforços para o dissimular; falava com visível aborrecimento, mas sem se atrapalhar nem levantar a voz de maneira especial. Poderia pensar-se que trazia alguma intenção pessoal e quase exclusiva. - Ouve -, disse resolutamente, - pessoalmente, desejo que vás para o diabo; pelo que vejo agora, percebo perfeitamente que não sou capaz de compreender nada; mas, por favor, não vás imaginar que te venho interrogar. Quero lá saber disso! Sou eu quem não quer! Agora já podes dizer-me tudo, todos os teus segredos, que eu talvez nem me demore a escutá-los, vire as costas e me vá embora. Vim apenas com o objetivo de saber de uma maneira terminante e definitiva se é verdade, em primeiro lugar, se tu estás doido ou não. Tu bem sabes que há quem esteja convencido (quem, não sei ao certo) de que tu estás completamente doido ou que pouco te falta para isso. Confesso-te que eu também me sinto muito inclinado a aceitar essa opinião, em primeiro lugar, a avaliar pela tua estúpida e, até certo ponto, sórdida conduta (absolutamente inexplicável), e, além disso, levando também em conta a tua última maneira de te portares para com a tua mãe e a tua irmã. Só um homem reles e indigno, não se tratando de um louco, poderia conduzir-se para com elas como tu te conduzes; portanto, estás louco...

- Há quanto tempo estiveste com elas?

- Agora mesmo. Mas tu não tornaste a vê-las até agora? Por onde tens andado? Dize-me, por favor, pois já vim aqui por três vezes, sem nunca te encontrar. A tua mãe desde ontem que está muito doente. Queria vir ver-te; Avdótia Românovna não a deixa; mas ela não atende a razões. "Se ele está doente", diz a tua mãe, "se perdeu o juízo, quem poderá tratá-lo melhor do que eu?" Por isso viemos todos até aqui, para não a deixar sozinha. Estivemos a pedir-lhe que se tranqüilizasse até o momento de chegarmos mesmo aqui, à porta. Entramos; tu não estavas. Olha, foi neste lugar que ela esteve sentada. Esteve dez minutos sentada; eu estava de pé, ao seu lado, sem falar. Até que ela se levantou e disse: "Se saiu para a rua é sinal de que está bom e se esqueceu da sua mãe; por isso não é muito decente, é até um pouco vergonhoso que uma mãe esteja aqui, à sua porta, mendigando a sua amizade, como uma esmola". Voltou para casa e deitou-se; agora está com febre. "Afinal, para ela, tem tempo." Supõe que "ela" é Sófia Siemiônovna, tua noiva ou amante, ou lá o que é. Eu fui imediatamente procurar Sófia Siemiônovna, porque queria tirar as coisas a limpo, meu amigo; mas, assim que chego, deparo um caixão e duas criancinhas chorando. Sófia Siemiônovna estava provando-lhes uns vestidinhos de luto. Tu não estavas lá. Deitei uma vista de olhos naquilo tudo, apresentei as minhas desculpas e fui contar tudo a Avdótia Românovna. Não havia dúvida de que tudo aquilo era mentira, tu não tinhas nenhuma "ela", e o mais provável era que tu estivesses louco. Mas agora chego aqui e encontro-te muito bem sentado, a devorares o teu assado, como se não comesses há três dias. É claro que os loucos também comem; mas, neste mesmo instante, e sem precisar que tu me digas nada, declaro que... tu não estás louco. Juro-o! De maneira nenhuma, não estás louco. Por isso, vão todos para o diabo; aqui deve haver algum mistério, algum segredo; e eu não tenho a mínima vontade de quebrar a cabeça com os teus enigmas. Vim apenas para te censurar - concluiu, levantando-se -, para aliviar a alma, e agora já sei o que tenho a fazer.

- Então que vais fazer agora?

- A ti que te interessa o que eu vá fazer agora? - Olha, tu bebes demais.

- Quem to disse?

Razumíkhin ficou calado por um momento.

- Tu foste sempre um rapaz muito ajuizado e nunca estiveste louco - observou, de repente, com veemência. - Mas agora vou beber. Adeus! - e dispunha-se a partir.

- Há três dias, se não me engano, falei de ti à minha irmã, Razumíkhin. - De mim? Como é que tu lhe falaste há três dias? E Razumíkhin parou imediatamente, corando até um pouco. Era visível que, devido àquilo, tivera imediatamente um palpite.

- Foi ela quem veio aqui, sozinha, esteve aí sentada conversando comigo. - Sozinha?

- Sozinha, sim.

- Mas que é que tu disseste... a meu respeito?

- Disse-lhe que tu eras um bom rapaz, honesto e capaz de amar a valer. Que tu gostas dela, isso não lhe disse, porque já o sabe.

- Já o sabe?

- Claro! Para onde quer que eu vá, aconteça-me o que acontecer... fica junto delas, serve-lhes de anjo da guarda. Eu as entrego a ti, por assim dizer, Razumíkhin. Falo assim porque sei perfeitamente que gostas muito dela e estou convencido da pureza do teu coração. Também sei que ela, pelo seu lado, pode gostar de ti e até é possível que já goste. Agora já podes decidir, visto que já estás melhor informado, se deves ou não deves beber.

- Rodka... Olha... Ora esta! Ah, malandro! Mas para onde é que tu tencionas ir? Olha, se isso é um segredo, está bem. Mas eu... eu conheço o segredo... E estou convencido de que se trata, com toda a certeza, de algum absurdo e de alguma insignificância, e que tu exageras tudo. Embora, no fundo, sejas um excelente rapaz... um excelente rapaz?

- Eu queria dizer também, quando tu me interrompeste, que pensavas muito bem, há pouco, ao dizeres que não querias conhecer estes mistérios e estes segredos. Deixa-me em paz por agora, não me perturbes. Hás de saber tudo a seu tempo, sobretudo quando for preciso. Ontem um indivíduo disse-me que o homem precisa de ar, ar, ar. E eu quero ir imediatamente à sua procura para que ele me explique o que é que queria dizer com isso.

Razumíkhin continuava de pé, pensativo e comovido, pensando em qualquer coisa.

"Deve ser um conspirador político! Com certeza! E no dia anterior deve ter dado qualquer passo decisivo, não há dúvida. Não pode ser outra coisa... e... e Dúnia sabe...", pensou, de repente.

- De maneira que Avdótia Românovna veio aqui ver-te - disse, acentuando as palavras - e tu queres avistar-te com um indivíduo que diz que o ar é necessário... O ar, e... provavelmente aquela carta... também deve ser do mesmo - concluiu intimamente.

- Qual carta?

- Uma que ela hoje recebeu e que a deixou muito perturbada. Muito. Talvez até demasiado, talvez. Eu me referi a ti... Ela me pediu que me calasse. Depois... depois disse-me que talvez nos tivéssemos de separar muito em breve. Depois pôs-se a agradecer-me encarecidamente, não sei o quê; finalmente foi para o quarto e fechou-se por dentro.

- Então recebeu uma carta? - perguntou Raskólhnikov pensativo. - Sim, uma carta; mas não sabias? Hum!

Ficaram ambos calados.

- Adeus, Rodka! Eu, meu amigo... houve um tempo... mas nada, adeus! Eu também tenho de me ir embora. Mas não vou beber. Agora já não é preciso... tu mentes...

Saiu rapidamente; mas, depois de ter saído e até quase fechado a porta, voltou outra vez e disse, olhando de soslaio:

- A propósito, lembras-te daquele crime, bem, daquele que superintende Porfíri, o assassinato da tal velha? Pois bem, fica sabendo que já deram com o criminoso e este confessou redondamente e apresentou toda a espécie de provas. Calcula que é um daqueles operários pintores, lembras-te? E eu a defendê-los tão acaloradamente! Toda aquela cena de briga e das risotas pela escada, com os seus companheiros, quando chegaram os tais indivíduos, o porteiro e as duas testemunhas, foi medida para despistar! Que astúcia, que presença de espírito em semelhante complicação! Custa a acreditar, mas ele confessou-o, e com todos os pormenores! Que te parece? A meu ver trata-se simplesmente de um gênio da imaginação e da dissimulação, de um gênio do álibi jurídico... embora, no fundo, talvez não haja razão para nos admirarmos. Não poderá haver desses gênios, por acaso? E o fato de não ter sido suficientemente firme para resistir e confessar é mais uma razão para que eu o creia. Torna-se mais verossímil... Mas como, como é que eu me deixei enganar, naquela altura! Era capaz de ter posto as mãos no fogo por causa deles!

- Peço-te que me digas: quem é que te disse e por que te interessas tanto por isso? - perguntou Raskólhnikov, visivelmente comovido.

- Essa é boa! Por que é que me interesso? Que pergunta! Soube-o por Porfíri, entre outros. Embora fosse ele quem me contasse quase tudo. - Porfíri?

- Porfíri.

- E que... que é que ele disse? - perguntou Raskólhnikov com receio. - Explicou-me tudo muito bem. Explicou-me psicologicamente à sua maneira.

- Foi ele quem to explicou? Ele próprio?

- Ele próprio! Ele próprio! Adeus! Depois te darei mais pormenores, porque agora tenho que fazer. Dantes... houve um tempo em que eu pensava... Mas não; depois... Para que hei de eu ir beber agora? Tu é que, sem vinho, me embriagaste. Estou tocadinho, Rodka. Até sem vinho, já estou embriagado; bem, vamos lá, adeus. Eu passarei por aqui em breve. Saiu.

"É um conspirador político, com certeza, com certeza", decidiu definitivamente Razumíkhin para consigo, enquanto descia a escada devagar, "também deve ter metido a irmã nisso, é muito provável, é muito provável, com o caráter de Avdótia Românovna. Tiveram um encontro... Ela já mo deu a entender. A avaliar por muitas das suas palavras... e palavrinhas... e alusões... não há dúvida, deve ser isso. Se não fosse isso, como é que se poderia explicar toda esta embrulhada? Hum! E eu que supunha... Oh, meu Deus, o que eu cheguei a pensar! Sim, foi uma alucinação, e agora sou culpado para com ele. Foi ele, naquela noite, junto da lâmpada, no corredor, quem me provocou essa alucinação! Livra! Que repugnante, estúpido e reles pensamento o meu! Ainda bem que Mikolka confessou! E como se explicam agora todas as coisas anteriores! Aquela doença dele, de há tempos, aquelas suas estranhas maneiras de conduzir-se e até aquele seu estranho caráter sombrio, sempre severo, já de muito antes, de quando andava ainda na universidade... Mas que quererá dizer agora aquela carta? Deve haver aí qualquer coisa escondida. De quem será? Faz-me suspeitar... Hum! Não, hei de pôr tudo isso a claro..."

Não fazia outra coisa senão lembrar-se de Dúnietchka e pensar nela, e o coração batia-lhe com força. Conseguiu finalmente sair dali e deitou a correr. Assim que Razumíkhin saiu, Raskólhnikov levantou-se, aproximou-se da janela, pôs-se a passear de um lado para o outro, como se estivesse esquecido da estreiteza do seu tugúrio... e depois tornou a sentar-se no divã. Parecia cheio de novas energias: ia outra vez começar a luta, isto é, encontrara uma saída. "Sim, isso quer dizer que encontrei uma saída!" Um meio de escapar à situação terrível que o asfixiava, o oprimia dolorosamente e começara a provocar-lhe vertigens. Desde aquela cena anterior entre Mikolka e Porfíri que se vinha sentindo asfixiado, com falta de ar, em lugares acanhados. Depois do caso de Mikolka, nesse mesmo dia tinha sido aquela cena em casa de Sônia, que ele não conduziu nem terminou tal como imaginara previamente; fraquejou; isto é, fraquejara até muito, radicalmente. Fora de uma vez! Porque tinha finalmente reconhecido então, de acordo com Sônia, ele próprio tinha reconhecido, e reconhecido sinceramente, que não lhe era possível viver sozinho com aquele peso sobre a alma. E Svidrigáilov? Svidrigáilov adivinhara... Não havia dúvida de que Svidrigáilov o inquietava, mas não por esse lado. Era possível que tivesse ainda que manter uma luta com Svidrigáilov. Talvez que Svidrigáilov fosse também outra saída; mas com Porfíri, o caso era diferente.

De fato, fora o próprio Porfíri quem explicara as coisas a Razumíkhin, explicara-lhas psicologicamente. Lá começava ele outra vez a persegui-lo com a sua maldita psicologia! E Porfíri podia lá acreditar, por um instante que fosse, que era Mikolka o culpado, depois do que se passara entre os dois, depois daquela cena, dos dois, a sós, até a chegada de Mikolka, cena que apenas podia ter uma explicação racional, uma só! (Em todos esses dias, Raskólhnikov recordara por mais de uma vez, fragmentariamente, toda aquela cena com Porfíri, a cuja evocação completa não seria capaz de resistir.) Então tinham-se trocado tais palavras entre eles, realizado tais gestos e movimentos, trocado tais olhares, dito algumas coisas num tal tom de voz e chegado a tais extremos, que, depois daquilo, Mikolka (no íntimo do qual Porfíri penetrara desde a primeira palavra e do primeiro gesto), Mikolka não podia já abalar os fundamentos da sua convicção.

Mas como! Razumíkhin também já começara a suspeitar! A cena do corredor, junto da lâmpada, não se dera em vão. Porque ele se precipitara em ir ao encontro de Porfíri... Mas por que começaria ele a enganá-lo? Com que fim pretendia desviar para Mikolka o olhar de Razumíkhin? Não, andava tramando qualquer coisa, com certeza; havia ali alguma intenção; mas qual? Verdadeiramente, já passara muito tempo desde aquela manhã... muito, muito, e de Porfíri não havia a menor notícia. O que, evidentemente, não era bom sinal...

Raskólhnikov pegou o gorro e, depois de reconsiderar um instante, saiu do quarto. Era o primeiro dia, durante todo aquele tempo, em que, pelo menos, se sentia num estado de perfeita lucidez. "É preciso arrumar as coisas com Svidrigáilov", pensou, "seja como for e o mais depressa possível; ele parece também estar à espera de que eu vá procurá-lo." E nesse momento ergueu-se de repente tal ódio no seu cansado coração, que é possível que nesse instante tivesse morto algum dos dois, Svidrigáilov ou Porfíri. Pelo menos sentia que, se não fosse naquele momento, estaria depois em condições de fazê-lo. "Veremos, veremos", repetia para consigo.

Mas ainda mal abrira a porta quando deu de cara com o próprio Porfíri. Este vinha precisamente procurá-lo. Raskólhnikov ficou estupefato por um momento, mas apenas por um momento. Coisa estranha: não se admirou muito de ver ali Porfíri e não sentiu quase medo algum. Teve apenas um leve sobressalto, do que se refez imediatamente. "Talvez seja agora o tal desenlace! Mas como é que ele veio tão devagarinho, como um gato, de tal maneira que eu nem o senti? Terá estado à escuta?"

- Não esperava a minha visita, Rodion Românovitch? - exclamou Porfíri Pietróvitch, sorrindo. - Há já algum tempo que tencionava vir vê-lo. "Irei até lá" pensava, "por que não hei de estar com ele uns cinco minutos?" Mas onde é que ia? Não quero entretê-lo. É só tempo de fumar um cigarrinho, se me dá licença.

- Mas sente-se, Porfíri Pietróvitch, sente-se - pediu Raskólhnikov ao visitante, com um ar aparentemente tão satisfeito e amistoso, que até ele próprio teria ficado admirado se pudesse ver-se.

As suas impressões anteriores esfumaram-se. Acontece às vezes que um homem suporta meia hora de susto mortal com um bandido e, quando este lhe põe, finalmente, o punhal sobre a garganta, passa-lhe o medo de repente. Sentou-se em frente de Porfíri e, sem pestanejar, ficou olhando para ele.

Porfíri piscou um olho e pôs-se a acender lentamente o cigarro. Vamos, fale, fale, de boa vontade lhe teria gritado Raskólhnikov, do fundo do coração. "Vamos! Que é isso? Então por que não falas?"

 

- Estes cigarros! - disse finalmente Porfíri, que acabara de acender o seu e tinha lançado uma fumaça. - Um veneno, um autêntico veneno, e, no entanto, não posso deixá-los. Tusso, tenho pigarro na garganta e começo a sofrer de asma. Olhe, eu estou muito apreensivo e ainda não há muito tempo que fui consultar o doutor B..., que observa cada doente pelo menos durante meia hora... "O senhor", disse-me ele, entre outras coisas, "deve abster-se do tabaco. Tem uma leve dilatação dos pulmões." Mas vamos lá ver: como é que eu hei de deixar o tabaco? Por que hei de substituí-lo? É pena eu não saber beber... he... he... he! Aí é que está o mal, é eu não beber... Olhe, tudo é relativo, Rodion Românovitch; tudo é relativo.

"Pensará ele voltar às suas trapaças", pensou Raskólhnikov com aversão. Toda a cena recente do seu último encontro lhe veio à memória, e o sentimento de ira de então tornou a agitar-lhe o coração.

- Não sabe que vim procurá-lo anteontem? - perguntou Porfíri, passando revista ao quarto. - Estive aqui, aqui mesmo. Tal como hoje, também passei por aqui, e disse para comigo: "Por que não hei de fazer-lhe uma visita?" Subi e encontrei o quarto aberto; olhei... esperei e saí sem dizer o meu nome à sua criadinha... Mas não costuma fechar a porta? O rosto de Raskólhnikov tornava-se cada vez mais sombrio. Porfíri pareceu adivinhar o seu pensamento.

- Vim para lhe dar uma explicação, meu caro Rodion Românovitch, para lhe dar uma explicação. Tenho a obrigação, o dever de lhe dar uma explicação - continuou com um sorrisinho, e até deu uma leve palmadinha nos joelhos de Raskólhnikov. Mas no mesmo instante o seu rosto tomou uma expressão séria e preocupada e pareceu até condoído, com espanto de Raskólhnikov. Nunca lhe vira essa expressão, nem podia suspeitar que ele pudesse fazer semelhante cara. - Foi uma estranha cena aquela que se passou entre nós da última vez, Rodion Românovitch. Também da primeira vez em que nos vimos se passou entre nós uma cena estranha; mas então... Enfim, tanto faz. Olhe, eu vou dizer-lhe do que se trata. O fato é que eu me considero culpado para com o senhor: é o que eu sinto. Lembra-se da maneira como nos separamos? O senhor estava nervoso e as pernas tremiam-lhe; eu também tinha os nervos crispados e as pernas também me tremiam. E olhe: houve também qualquer coisa de irregular entre nós, algo de impróprio de um gentlemen. E, no entanto, nós somos gentlemen, isto é, seja em que circunstâncias for e acima de tudo gentlemen; não nos devemos esquecer. Bem, o senhor deve lembrar-se até onde é que as coisas chegaram... até a incorreção.

"Mas onde é que ele quererá chegar, por quem me toma ele?", perguntou a si próprio Raskólhnikov, estupefato, erguendo a cabeça e olhando Porfíri de alto a baixo.

- Reconsiderei que, agora, é melhor procedermos com franqueza - continuou Porfíri Pietróvitch, inclinando um pouco a cabeça e desviando os olhos, como se não quisesse mais inibir a sua antiga vítima e como se desprezasse agora os seus antigos lemas e artimanhas. - Porque, de fato, essas suspeitas e cenas semelhantes não podem prolongar-se por muito tempo. Mikolka veio interromper-nos nessa ocasião; mas, se não fosse isso, não sei até onde teríamos chegado. Esse maldito operário tinha-se posto a escutar em minha casa, do outro lado do tabique... Já sabia, não é verdade? O senhor com certeza que já o sabe; e eu também não ignoro que, depois, veio vê-lo; mas daquilo que o senhor então supunha não havia nada; eu não mandara chamar ninguém, nem tomara ainda disposição nenhuma. Há de perguntar por que é que eu não tomara disposição nenhuma. Mas que hei eu de dizer-lhe? Tudo isso, então, me desorientara. E ainda bem que mandei chamar os porteiros (o senhor teria visto entrar os porteiros?). Então me ocorreu uma idéia, rápida como o relâmpago; repare: eu estava então convencido, Rodion Românovitch. "Ora..." pensava eu, "ainda que o deixe à solta, por agora, a qualquer dos outros, em compensação, apanho-os pelos fundos das calças, e a este, quanto a este, pelo menos, não o largarei." O senhor é muito irritável por natureza, Rodion Românovitch, até excessivamente, e isso a par de todas as outras propriedades fundamentais do seu caráter e do seu coração, que eu me gabo de conhecer um pouco. Bem; eu, não há dúvida de que, então, não podia ainda deixar de dizer a mim mesmo que nem todos os dias acontece isso de vir um indivíduo que se põe a contar a uma pessoa tudo o que tem na alma. Embora isso aconteça algumas vezes, sobretudo quando se lhe esgotou a paciência, seja como for, não é freqüente. Eu não podia deixar de compreender isso. "Não", penso eu, "concedam-me nem que seja apenas um só pequeno ponto de apoio. Por muito pequenino que seja e ainda que seja um apenas, mas de tal gênero que o possa agarrar com as mãos, que seja uma coisa e não apenas psicologia. Porque (dizia eu para comigo), se o indivíduo é culpado, já se pode, sem dúvida alguma, esperar dele algo de real, e até é lícito contar com o resultado mais imprevisto." Eu contava com o seu caráter, Rodion Românovitch, apenas com o seu caráter. Nessa altura tinha muitas ilusões a seu respeito!

- Mas... a que propósito vem tudo isso? - resmungou finalmente Raskólhnikov, até sem pensar na pergunta. - "A que se referirá ele?", dizia para consigo, embrenhando em suposições. "Dar-se-á o caso de que ele, no fundo, me considere culpado?"

- A que propósito lhe digo eu tudo isto? É que vim dar-lhe uma explicação que, por assim dizer, considero um dever sagrado. Quero explicar-lhe tudo, com todas as letras; como se passou toda essa história dessa, por assim dizer, dessa miragem de então. Eu o fiz sofrer muito, Rodion Românovitch. Mas eu não sou nenhum monstro. Fique sabendo que compreendo até que ponto tudo isso pode afetar um homem, abatido pelo destino, mas altivo, dominante e impaciente; sobretudo, impaciente. Eu, no entanto, considero-o uma excelente pessoa, até com lampejos de grandeza de alma, embora não concorde consigo nas suas convicções, do que considero dever meu informá-lo, antes de mais nada, francamente e com a maior sinceridade, porque, acima de tudo, não quero enganá-lo. Quando o conheci, senti pelo senhor uma grande simpatia. Pode ser que se ria ao ouvir as minhas palavras. Tem razão para isso. Sei que, para o senhor, desde o primeiro momento lhe fui antipático, porque realmente não tenho nada de simpático. Mas, pense o que pensar, eu, agora, por meu lado, devo desfazer essa má impressão por todos os meios e demonstrar-lhe que eu também sou um homem de coração e de consciência. Estou a falar-lhe com toda a sinceridade.

Porfíri Pietróvitch fez uma pausa e tomou um ar digno. Raskólhnikov sentia-se profundamente admirado. A idéia de que Porfíri o considerava culpado começou, de repente, a assustá-lo.

- Contar-lhe tudo pela ordem em que tudo aconteceu então, julgo que não é necessário - continuou Porfíri Pietróvitch -, e até o considero supérfluo. E, além disso, não vejo como poderia fazê-lo. Porque, como havia eu de explicar-lhe circunstanciadamente? Em primeiro lugar, surgiram boatos. Onde tiveram origem esses boatos, quem, quando e a que propósito é que vieram a pensar em si especialmente... também é escusado referir. Pelo que me respeita a mim, a coisa começou casualmente, por um acaso dos acasos, que tanto podia ser como não ser, absolutamente... Qual? Hum! Julgo que também será escusado falar disso. Tudo isso, boatos e casualidades, se fundiu então, em mim, numa só idéia. Confesso-lhe francamente, já que estamos na hora das confissões, e é preciso haver uma confissão geral, que... o primeiro a reparar no senhor, então, fui eu. Aquelas anotações da velha nos objetos etc. etc., tudo isso é um absurdo. Pormenores como esses podem encontrar-se às centenas. Tive também então oportunidade de conhecer a cena do comissariado, com todos os pormenores, por pura casualidade, e não levianamente, mas da boca de uma testemunha minuciosa que, sem o suspeitar, fixara maravilhosamente a cena. Olhe, meu caro Rodion Românovitch, todas essas coisas, todas essas coisas se foram ligando umas às outras, umas às outras. Bem; estando as coisas nesse pé, como não havia eu de me inclinar para certo lado? "De cem coelhos, nunca se faz um cavalo; de cem suspeitas, nunca se faz uma prova", diz um provérbio inglês, e veja quanta cautela encerra; mas as paixões... experimente lutar contra as paixões, porque o juiz também é homem. Lembrei-me então igualmente do seu artigo naquele jornal, recorda-se? do qual já me falou pormenorizadamente, na sua primeira visita. Eu, então, me ri, mas foi para o levar a falar. Repito-lhe que o senhor é muito impaciente e irritável, Rodion Românovitch. Tive também ocasião de verificar que era temerário, arrebatado, e que sentira, sentira já muito, e tudo isso eu o sabia já muito anteriormente. Eu já conhecia todas essas sensações e li o seu artigo como qualquer coisa que me era familiar. Fora concebido em noites de insônia e de desespero, com palpitação e baques de coração, com um entusiasmo reprimido. Como é perigoso esse entusiasmo reprimido, orgulhoso, na juventude! Eu, então, troçava; mas agora lhe digo que me agrada muitíssimo, de maneira geral (falo como apaixonado), esse primeiro ensaio juvenil, fogoso, da sua pena. Vapores, brumas, a corda vibra por entre as névoas... O seu artigo é absurdo e fantástico; mas palpita nele a sinceridade, há nele orgulho juvenil, indomável, respira-se ali a ousadia do desespero; é sombrio o seu artigo; mas está bem-feito. Li-o, pu-lo de lado, e... quando assim procedi, pensei: "Um homem destes não se contenta com isto!" Por isso diga-me agora: como é que, após um tal começo, não podia eu, depois, augurar a continuação? Ah, meu Deus! Mas estou eu dizendo alguma coisa? Afirmo eu alguma coisa, porventura? Por então, limitava-me a observar. "Que haverá em tudo isto?", pensava. "Pois, em tudo isto, não há nada, simplesmente nada, é provável que não haja absolutamente nada." E lançar-me nessas deduções, eu, um juiz, era até altamente indecoroso. Então caiu nas minhas mãos Mikolka, e já contava com fatos... aí, diga-se o que se disser, havia fatos. E recorri também à psicologia, era preciso pensar, pois tratava-se de um assunto de vida ou de morte. Mas por que lhe explico eu agora tudo isto? Para que o fique sabendo e, na sua inteligência e no seu coração, me considere culpado pela minha má conduta de então. Não procedia de má-fé, digo-lhe sinceramente, he... he! Que pensava o senhor? Que eu não iria fazer uma busca em sua casa? Pois sim; houve-a, houve-a... he, he! houve-a, quando o senhor estava doente, na cama. Não oficialmente, e na sua própria cara; mas houve-a. Examinamos até a última insignificância que havia no seu quarto, como primeira diligência; mas... mas... umsonst (1). Então eu pensei: "Agora esse indivíduo há de aparecer, ele mesmo se apresentará, e muito em breve; desde que seja culpado, não deixará de aparecer. Outro não viria, mas este, sim, há de vir". E lembra-se de como o senhor Razumíkhin se pôs a censurá-lo? Tínhamos imaginado isso para o incitar, a si, à revolta porque eu fiz correr intencionalmente o boato para que ele ralhasse consigo, pois o senhor Razumíkhin é um homem incapaz de dominar a sua indignação. O que chocou o senhor Zamiótov, em primeiro lugar, foi a sua cólera e a sua evidente ousadia; sobretudo aquilo que o senhor lhe atirou à cara, de repente, na taberna: "Eu matei!" Demasiado audaz, demasiado brusco, e, se é culpado, acho que é um tremendo campeão! O que eu disse para mim mesmo, então, foi isto: "Esperarei!"

 

* (1) Em vão, em alemão. (N. do T) *

 

E esperava-o com o maior ardor, aopasso que, a Zamiótov, o senhor tinha-o deixado simplesmente aterrado... E olhe, o caso é este: a culpa, quem a tem é essa maldita psicologia de dois gumes. Bem; eu fico à sua espera; olhe, foi Deus quem mo entregou. Veio! Eu sempre tinha um pressentimento! Ah! Bem; por que veio o senhor, então? Aquelas suas risadas quando entrou, aquelas risadas, lembra-se? Adivinhei tudo através delas como de um cristal; mas se eu não estivesse à espera, como estava, não teria notado nada. Por aqui já pode ver o que significa estar de sobreaviso. Mas o senhor Razumíkhin, nessa altura, lembra-se? Ah, ah! E daquela pedra, daquela pedra... daquela pedra autêntica, debaixo da qual estão enterrados os objetos? Eu estou a vê-lo, ali, no pátio... porque o senhor falou primeiro de pátio a Zamiótov, e depois falou-me a mim pela segunda vez. Mas quando começamos a discutir o seu artigo, quando o senhor se pôs a explicar... cada uma das suas palavras continha um duplo sentido, como se debaixo delas houvesse outra coisa. Aqui tem o senhor, Rodion Românovitch, a maneira como a minha convicção se firmou pouco a pouco, e depois, quando tinha já a certeza, caí em mim: "Não", disse para comigo, "mas que faço eu? Para que hei de querer tudo isto, até o último pormenor?", disse, "tudo isto pode explicar-se de outra maneira e até será mais natural". Que suplício! "Não", pensei, "convinha-me muito mais uma provazinha." E então, quando soube das tais tocadelas de campainhas, quase fiquei cheio de tremores. "Vamos", disse para comigo, "já tenho a prova! Já tenho uma..." Porque eu, então, nem me detinha a refletir, não queria. Nesse momento seria capaz de dar mil rublos do meu bolso particular somente para ter podido vê-lo com os meus próprios olhos, quando andou aqueles cem passos juntamente com o operário, depois de ele lhe chamar assassino na sua própria cara, sem se atrever, durante esses cem passos que andou com ele, a perguntar-lhe o motivo por que ele o apostrofava assim... E esse tremor na espinha? Aquelas tocadelas de campainha foram obra da doença, do estado de quase delírio em que se encontrava! Vamos lá a ver, ora diga-me, Rodion Românovitch, por que é que havia de admirar-se, depois disso, que eu lhe dissesse umas gracinhas? E por que se apresentou espontaneamente naquele instante? Poderia dizer-se que alguém o impelira, e juro que se não tivessem chegado a levar-me ali Mikolka... então, lembra-se de Mikolka, nesse dia? lembra-se bem? Aquilo foi um autêntico raio que tivesse caído das nuvens, uma faísca de tempestade. - A maneira como eu o recebi! Não acreditei nem um pouco nesse raio, e bem o viu. E, além disso, depois, quando o senhor se retirou e ele começou a contar mais e mais concretamente alguns pontos, eu próprio fiquei admirado e não acreditei patavina do que ele disse. É isso que significa tornar-se duro como uma pedra. "Não", disse para comigo, "morgen früh (2). Ora este Mikolka!"

 

* (2) "Até amanhã de manhã", em alemão. Equivalente a "ora, vai passear". (N. do T.) *

 

- Razumíkhin acabou de dizer-me que o senhor, agora, considerava Nikolai culpado, e até convencera disso o próprio Razumíkhin.

Faltou-lhe a respiração e não acabou. Ouvira com inexprimível comoção desdizer-se o homem que lhe adivinhara as intenções. Através de palavras ainda ambíguas, procurava avidamente captar algo de mais preciso e importante.

- O senhor Razumíkhin! - exclamou Porfíri, como se tivesse ficado contente com aquela pergunta de Raskólhnikov, que estivera calado até então. - He, he, he! Era conveniente não metermos nisto o senhor Razumíkhin; com dois, dá gosto; três, são demais. Com o senhor Razumíkhin, o caso é outro; é um homem estranho; veio procurar-me, muito pálido... Bem; Deus o proteja. Para que havemos de metê-lo nisto? Quanto a Mikolka, quer saber que espécie de homem é, de que maneira é que eu o compreendo? Em primeiro lugar é um rapazinho, ainda menor, e não é nenhum covarde, é assim uma espécie de artista. Digo isto a sério, não se ria por eu defini-lo dessa maneira. É um inocente, que fica impressionado com qualquer coisa. Tem coração e imaginação. Canta e dança, e conta histórias de tal maneira que até vêm pessoas de outras partes para o ouvir. Quando andava na escola, perante a mais insignificante brincadeira, caía no chão, rebolando-se de riso, e bebe até perder os sentidos, não por vício, mas às vezes, quando o fazem beber, por criancice. Já houve tempo em que roubou; mas ele não se apercebe disso, porque apanhar uma coisa do chão não é roubar. E sabe que ele é raskólhnik? Não é bem raskólhnik, mas simplesmente dissidente: na família dele houve desses a quem chamam vagabundos, e ele próprio ainda há pouco tempo viveu no campo durante dois anos inteiros, sob a direção espiritual de um stáriets (3). Sei tudo isso pelo próprio Mikolka e pelos seus conterrâneos de Zaraisk. Mas há mais: queria ir viver para o deserto. Estava num estado de ardente fervor: implorava Deus durante a noite, lia e relia velhos livros, verdadeiros. Petersburgo causou-lhe grande impressão, sobretudo o belo sexo... bom, e há o álcool também. Deixou-se influenciar e esqueceu-se do stáriets e de tudo. Consta-me que havia aqui um artista que lhe ganhara amizade e se interessava por ele, quando, de repente, eis que surge este incidente. Bom, ficou colérico, furioso! Fugir! Mas que fazer, dada a idéia que as pessoas têm da nossa justiça? Para alguns, isso da justiça parece-lhes uma palavra tremenda. Quem é que tem a culpa disso? Esperemos que a nova jurisprudência arranje tudo. Oh, Deus o queira! Ora, bem, agora, na prisão, deve ter-se lembrado, provavelmente, do stáriets, e a Bíblia também deve ter influído. Sabe o senhor, Rodion Românovitch, o que significa sofrer para essa gente, e não sofrer por algo determinado, mas, simplesmente, que é preciso sofrer? Significa aceitar o sofrimento, e, se for da parte do poder, tanto melhor.

 

* (3) Monge de grande reputação por sua sabedoria. (N. do E.) *

 

Houve no meu tempo um preso muito pacífico, que passou um ano inteiro na prisão, e à noite, encarapitado no fogão, lia e relia a Bíblia, e não se cansava de lê-la, até que, quer saber, um dia, sem vir a propósito, foi e pegou um tijolo e atirou com ele ao diretor, sem ter recebido deste a menor ofensa. E como é que ele o atirou? Intencionalmente, de um archin de distância, para não lhe fazer mal nenhum. Pois bem, o senhor deve saber qual é o fim que espera o preso que atenta com armas contra os seus superiores; mas aquele queria precisamente aceitar a dor (4). Pois, agora, eu suspeito também de que Mikolka o que quer é aceitar a dor, inclusivamente é uma convicção apoiada em fatos. Simplesmente, ele ignora que eu o sei. O senhor julga que entre essa gente não há também indivíduos fantásticos? Pois é muito freqüente. O stáriets deve ter começado agora a influir nele, sobretudo quando se lembrar de que se quis enforcar. Mas, além disso, ele próprio há de acabar por me contar tudo. Imagina que não o fará? Aguardemos a ver quem é que se retrata! Espero, momento a momento, que ele venha desdizer a sua declaração. Eu tenho simpatia por esse Mikolka, e estudo-o a fundo. E que pensa? Em alguns pontos respondeu-me muito concretamente, deu-me os pormenores que me faziam falta; pelo visto estava preparado; mas, sobre as outras questões, deixou uma lacuna, simplesmente: não sabe absolutamente nada, não dá pormenor algum, e nem sequer suspeita que não os deu. Não, bátiuchka Rodion Românovitch, não pode ser Mikolka. Isto é antes um assunto fantástico, lúgubre, um assunto contemporâneo, um episódio do nosso tempo, em que o coração do homem anda tão torturado, em que se cita essa frase de que o "sangue remoça"; em que toda a vida se consome numa luta pelo bem-estar. Aqui, trata-se de... sonhos livrescos, de algum coração desesperado; aqui é notória a resolução de dar o primeiro passo, mas uma resolução de índole especial... e decidiu-se, sim, mas como quem se despenca por uma montanha abaixo ou se atira de cabeça, de uma torre, e pode dizer-se literalmente que não foi levado ao crime pelos seus próprios pés. Esqueceu-se de fechar a porta atrás de si, e matou, matou duas pessoas, mas para pôr a sua teoria em prática. Matou; mas não conseguiu apoderar-se de dinheiro, e aquilo que conseguiu apanhar foi escondê-lo debaixo de uma pedra. O menor tormento, para ele, ainda devia ter sido quando estava atrás da porta e começaram a sacudi-la e a puxar pela campainha... Não, depois, já no quarto vazio, quase em delírio, ao recordar aquela campainha devia ter sentido outra vez calafrios na espinha... Bem, suponhamos que isto fosse devido à doença; mas repare também nisto: matou; mas tem-se por um homem honesto, despreza as pessoas e quer fazer-se passar por santo... E esse não foi Mikolka, meu caro Rodion Românovitch, esse não é Mikolka!

 

* (4) Este episódio é mencionado por Dostoiévski na obra Memórias da casa dos mortos. (N. do T.) *

 

Estas últimas palavras, depois de tudo quanto foi dito anteriormente, tão semelhantes a uma retratação, eram muito inesperadas. Raskólhnikov tremia dos pés à cabeça.

- Então... quem... é o assassino? - perguntou, sem poder conter-se, com uma voz ansiosa.

Porfíri Pietróvitch deitou-se para trás na sua cadeira, como se essa pergunta o apanhasse também de imprevisto e o deixasse estupefato.

- Quem é o assassino? - repetiu, como se não acreditasse no que acabava de ouvir. - Pois o assassino é o senhor, Rodion Românovitch! É o senhor o assassino! - acrescentou, quase em voz baixa, num tom de absoluta convicção.

Raskólhnikov saltou do divã, permaneceu de pé uns segundos e tornou a sentar-se sem dizer uma palavra. Uma leve convulsão lhe correu, de súbito, por todo o rosto.

- Aí está o seu lábio tremendo como da outra vez - murmurou Porfíri Pietróvitch, quase compassivo. - Parece-me que o senhor, Rodion Românovitch, não me compreendeu - acrescentou, depois de um silêncio -, e foi essa a causa do meu espanto. Eu vim precisamente para lhe dizer tudo e ventilar o assunto claramente.

- Eu não sou o assassino - balbuciou Raskólhnikov, tal qual uma criança assustada, quando é apanhada em flagrante.

- Sim, é o senhor, Rodion Românovitch; é o senhor e só o senhor - exclamou Porfíri com voz severa e convicta.

Ficaram ambos em silêncio, e esse silêncio foi de uma duração extraordinariamente longa, pois prolongou-se durante dez minutos. Raskólhnikov apoiou os cotovelos sobre a mesa e pôs-se a revolver a cabeleira com os dedos. Porfíri Pietróvitch estava sentado e aguardava. De repente, Raskólhnikov olhou com desprezo para Porfíri.

- Voltou outra vez com as mesmas cantigas, Porfíri Pietróvitch! Tudo isto está de acordo com as suas máximas. Como é que, no fundo, isso não acaba por aborrecê-lo?

- E deixe-se disso! Que têm que ver, agora, as minhas máximas? Se houvesse testemunhas seria outra coisa; mas repare que estamos os dois falando sozinhos! O senhor bem vê que eu não vim à sua casa para tirá-lo da sua toca e caçá-lo como uma lebre. Quer o reconheça, quer não, a mim, neste momento, tanto me faz. Eu, para mim, estou convencido, embora o senhor negue.

- Então, se é assim, para que veio? - perguntou Raskólhnikov, nervoso. - Torno a fazer-lhe a pergunta da outra vez: se me considera culpado, por que não me prende?

- Olhem que pergunta! Mas vou responder-lhe ponto por ponto; em primeiro lugar, porque não me convém mandá-lo prender, ao senhor, do pé para a mão.

- Não lhe convém! Se o senhor está convencido, é esse o seu dever!

- Ah, que importa que eu esteja convencido? Até agora, tudo isto são fantasias minhas. E por que havia eu de mandá-lo para lá, para "descansar"? O senhor bem o sabe, visto que o pergunta. Se eu trouxesse, por exemplo, o tal operário, para fazer declarações contra a sua pessoa, o senhor podia responder-lhe: "Mas tu não estarás bêbado? Quem é que nos viu juntos? Limito-me a tomar-te simplesmente por um bêbado, e, de fato, estavas bêbado..." Que poderia eu objetar a isso, tanto mais que a sua resposta resultaria mais verossímil que a dele, visto que as suas declarações não teriam outro fundamento senão a psicologia, ao passo que o senhor teria acertado no alvo por toda a gente saber que esse animal bebe como uma esponja! Não lhe confessei eu ao senhor, sinceramente, por mais de uma vez, que essa psicologia tem dois gumes e que o segundo oferece mais verossimilhança do que o primeiro, e que, além disso, eu não disponho, por agora, de nada de positivo para alegar contra o senhor? Mandá-lo-ei prender, sem dúvida, e, embora eu tenha vindo (contra todas as regras) avisá-lo disso, declaro-lhe, no entanto (também contra as regras), que não me convém fazê-lo. Em segundo lugar, vim para...

- Por que em segundo lugar? - Raskólhnikov continuava a ouvi-lo ainda arquejante.

- Já disse: porque lhe devo explicações; não quero que o senhor me tome por um monstro, tanto mais que, quer acredite, quer não, tenho as melhores intenções a seu respeito. Por conseguinte, e esse é o terceiro ponto, vim fazer-lhe uma proposta franca e sem segunda intenção: exorto-o a que faça rebentar o tumor indo o senhor mesmo denunciar-se. Para o senhor, será infinitamente mais vantajoso, e também o será para mim, porque me verei livre deste peso. Então? Não sou bastante franco? Raskólhnikov refletiu ainda um instante.

- Olhe, Porfíri Pietróvitch, foi o senhor mesmo quem o disse: em tudo isto não há mais do que psicologia, e, no entanto, o senhor invoca a matemática. E se estivesse enganado neste momento?

- Não, Rodion Românovitch. Seja como for, por outro lado, eu, a partir deste momento, já não tenho o direito de contemporizar; devo prendê-lo e prendê-lo-ei. Por isso, pense; agora já pouco me importa a sua atitude e só o faço atendendo ao seu interesse. Ponho Deus por testemunha, Rodion Românovitch, o melhor é o senhor mesmo ir denunciar-se. Raskólhnikov riu-se maquinalmente.

- De fato, isto já deixa de ser ridículo, para ser simplesmente insolente. Ainda que eu fosse culpado (declaração que eu não fiz, de modo nenhum), por que havia eu de ir entregar-me, uma vez que foi o senhor mesmo quem me disse que lá, na prisão, eu descansaria?

- Eh, Rodion Românovitch, não tome as minhas palavras à letra! Isso está muito longe de ser um descanso. Trata-se simplesmente de uma teoria pessoal, que eu sustento. Mas que autoridade sou eu para o senhor?

Talvez eu, neste momento, lhe esconda qualquer coisa. O senhor não pode ter a pretensão de receber de uma vez todas as minhas confidências e utilizá-las a seu bel-prazer. Quanto ao segundo ponto: que vantagem trará isso para o senhor... faz uma idéia da comutação de pena que poderia alcançar assim? Pense nisso. Se for outro a tomar conta do assassinato e a dar um novo aspecto à causa... Pelo que me respeita, juro perante Deus que hei de tomar tais disposições e hei de mexer-me de tal maneira que o senhor há de sair o melhor possível deste passo, sem sequer o suspeitar. Poremos de lado todos estes suportes psicológicos. Reduzirei a nada as suspeitas que se levantaram contra o senhor, de maneira que o seu crime pareça o resultado de uma obsessão, visto que, no fim de contas, foi isso, uma obsessão. Eu sou um homem honesto, Rodion Românovitch, e cumprirei a minha palavra.

Triste e silencioso, Raskólhnikov baixou a cabeça, refletiu longamente e, por fim, sorriu de novo, mas com um sorriso doce e melancólico.

- Não é preciso - disse, sem pensar sequer em fingir perante Porfíri. - Não vale a pena, não preciso da sua indulgência!

- Era isso, precisamente, o que eu receava! - exclamou Porfíri com impetuosidade involuntária. - Era isso o que eu temia: que não quisesse aceitar a minha indulgência.

Raskólhnikov lançou-lhe um olhar triste e penetrante.

- Não tenha esse desgosto de viver - continuou Porfíri - porque ainda tem um longo caminho à sua frente! Como é que não há de ter necessidade de indulgência, como é que não há de tê-la? O senhor é muito exigente!

- Que perspectiva me espera?

- A vida! O senhor é profeta para saber tantas coisas? Procure que encontrará. Pode ser que Deus esteja lá à sua espera. A prisão não será perpétua. - Haverá diminuição de pena... - disse Raskólhnikov sorrindo.

- O quê? Seria possível que o coibisse uma falsa vergonha burguesa? Pode ser que assim seja, sem o senhor o compreender, porque é novo. Mas o senhor não devia ter medo nem sentir vergonha de confessar o mal que o corrói.

- Eu cuspo em tudo isso! - exclamou Raskólhnikov com nojo e desprezo, e sem parecer decidido a falar. Fez até menção de se levantar, como se pensasse em sair; mas tornou a sentar-se, visivelmente desesperado.

- Cuspa, se quiser! O senhor é desconfiado e pensa que eu estou tentando levá-lo de uma maneira grosseira. Mas é possível que já tenha vivido tanto? Que sabe o senhor de todas essas coisas? Imaginou uma teoria e está muito envergonhado por ela ter falhado, e por verificar que o que dela resultou é muito pouco original! Bem pior é o que ela lhe fez; mas o senhor, apesar de tudo, não é um velhaco sem remédio! O senhor não é nenhum patife, de maneira nenhuma. O senhor, pelo menos, não hesitou; pôs as cartas todas na mesa, desde o primeiro momento. Sabe o que é que eu penso do senhor? Considero-o um desses homens que antes se deixariam cortar às postas do que serem abatidos, e olhariam sorrindo para os seus verdugos, contanto que possuíssem uma fé qualquer ou acreditassem em Deus. Pois bem: encontre estas coisas e viverá. Em primeiro lugar, há muito tempo já que o senhor precisa de mudar de ares. O sofrimento também é uma boa coisa. Sofra. Talvez Mikolka tenha razão em querer sofrer. Eu sei que o senhor não acredita em nada. Mas não queira ser tão radical. Abandone-se francamente à corrente da vida, sem raciocinar; afugente as inquietações, que ela mesma o conduzirá diretamente à margem, e tornará a pôr-se de pé. Que margem será essa? Como hei de eu sabê-lo? Eu acredito unicamente que ainda tem muito que viver. Já sei que tudo isto que neste momento lhe digo soa aos seus ouvidos como um sermão aprendido de memória; mas talvez mais tarde venha a repetir para si mesmo estas palavras, que então poderão ser-lhe proveitosas; é por isso que as digo. Ainda foi uma grande sorte não ter morto senão uma velha má. Se lhe tivesse ocorrido outra teoria, teria cometido uma ação mil vezes pior... Talvez ainda deva dar graças a Deus... Quem sabe? Pode ser que Deus o tenha reservado para qualquer coisa. Eleve o seu coração e não seja tão covarde. Sente medo da grande tarefa que tem a cumprir? Seria vergonhoso sentir esse medo! Já que passou a fronteira, não pense em retroceder. Há aqui uma questão de justiça... Realize aquilo que a justiça exige. Já sei que não me acredita; mas ponho Deus por testemunha de como a vida há de ser mais forte. Não tardará a tomar-lhe apego. Hoje, aquilo de que precisa é apenas de ar. Precisa de ar, ar!

- Mas quem é o senhor - exclamou - para adotar esse tom de profeta? Desde o alto de que Sinai está o senhor a lançar-me essas sentenças?

- Quem sou eu? Sou um homem acabado, nada mais. Um homem sensível, simplesmente, e que sente compaixão; não completamente farto de saber, mas completamente gasto. Quanto ao senhor, é outra coisa. Deus reserva-lhe a vida (e quem sabe se tudo isto não se desvanecerá da sua memória, como uma fumarada, sem deixar rastro?). Que importa que agora forme parte de outra categoria de pessoas? Com um caráter como o seu, irá o senhor sentir a falta das comodidades? Ou será o estar preso muito tempo, longe de todos os olhares? O tempo, em si mesmo, não é nada; quem importa é o senhor mesmo. Transforme-se num sol e todo o mundo o verá. O sol deve ser, antes de tudo, sol. Por que outra vez esse sorriso? Pensa que eu estou recitando Schiller? Era capaz de apostar qualquer coisa em como imagina que eu estou querendo levá-lo com lisonjas! Juro que é muito possível, he, he, he! Pois bem, Ródion Românovitch, não creia em mim pelas minhas palavras, nem acredite absolutamente nada do que eu lhe digo; eu cumpro o meu dever, estou de acordo; mas quero apenas acrescentar uma coisa, que é esta: compete ao senhor avaliar se eu sou um homem honesto ou um patife.

- Quando é que pensa prender-me?

- Ainda posso deixá-lo passear livremente durante um dia e meio ou dois dias. Reflita, meu amigo; vá pedindo a Deus, que com ele ficará a ganhar, afirmo-lhe eu, ficará a ganhar.

- E se eu fujo? - perguntou Raskólhnikov, sorrindo com um ar estranho. - Não, o senhor não fugirá. Fugiria um camponês, um partidário das idéias em voga, lacaio do pensamento alheio, porque basta pôr-lhe a mão em cima uma vez para que acredite em tudo quanto uma pessoa quiser. Mas vamos lá a ver: o senhor também acredita nas suas teorias? Portanto, como é que havia de fugir? E, como fugitivo, que existência levaria? A vida do fugitivo é indigna e penosa, e o senhor precisa, primeiro que tudo, de uma vida tranqüila, ordenada, de uma atmosfera que seja sua, e, algures, no estrangeiro, não estaria no seu ambiente. Se partisse, voltaria. Não poderia passar sem nós. Quando eu o tiver metido na prisão, passado um, dois, suponhamos, três meses, as minhas palavras hão de voltar-lhe à memória, confessar-se-á consigo próprio e talvez no instante em que menos o espere. Uma hora antes ainda o senhor não saberá que está maduro para essa confissão. Estou até convencido de que acabará por aceitar o sofrimento. Nesse momento não acredita no que eu lhe digo; mas há de chegar a sua hora. A dor, Rodion Românovitch, é, de fato, uma grande coisa. Não se admire de me ouvir falar assim, eu, um homem que conta com o bem-estar; sei muito bem que isto faz sorrir; mas há um sentido na dor e Nikolai tem razão. o senhor não fugirá, Rodion Românovitch.

Raskólhnikov levantou-se do seu lugar e pegou o gorro. Porfíri levantou-se também.

- Tenciona dar um passeio? Vai fazer uma tarde bonita desde que não se levante uma tempestade. Embora, no fim de contas, talvez fosse melhor, pois refrescaria a atmosfera.

Pegou também o seu gorro.

- Porfíri Pietróvitch - insistiu Raskólhnikov em tom duro -, seria bom que não se lhe metesse na cabeça que eu, hoje, lhe fiz confissões. o senhor é tão estranho, que eu estive a escutá-lo por pura curiosidade. E não lhe confessei absolutamente nada. Não se esqueça disso.

- Bem sei, bem sei, e não me esqueço. Mas veja como está tremendo. Não se preocupe, meu amigo, respeitaremos a sua vontade. Vá dar um passeíozinho; mas não vá muito longe. De toda a maneira, tenho de fazer-lhe um pequeno pedido - acrescentou, baixando a voz -; é uma coisa delicada, mas tem a sua importância: no caso de ter a intenção, embora eu não o creia, considero-o incapaz disso, mas é bom prever-se tudo; no caso de lhe ocorrer a idéia, durante estas quarenta e oito horas, de acabar com a existência e atentar contra a sua vida (desculpe-me esta suposição absurda), deixe então uma cartinha suficientemente explícita. Apenas duas linhas, duas simples linhazinhas, indicando onde se encontra aquela pedra; isso será mais cavalheiresco. Bem, vamos lá... até a vista... Queira Deus que lhe ocorram bons pensamentos e que os ponha em prática.

Porfíri saiu. Poderia dizer-se que o seu corpo se dobrava, que evitava olhar para Raskólhnikov. Este foi até a janela e esperou com impaciência febril o momento em que, segundo os seus cálculos, o juiz de instrução já teria saído e se afastado suficientemente. Depois saiu também do quarto, a toda a pressa.

 

Era-lhe urgente ver Svidrigáilov. O que podia esperar desse homem, nem ele mesmo o sabia. Mas esse homem exercia sobre ele um poder misterioso. A partir do momento em que compreendera isso, deixara de ter sossego, e, além disso, já chegara o momento de pôr tudo a claro.

Durante o caminho houve uma pergunta que, sobretudo, o torturava: teria Svidrigáilov falado com Porfíri? Tanto quanto ele podia perceber... não tinha. Raskólhnikov era capaz de jurar que não. No entanto, Raskólh nikov evocou ainda a visita de Porfíri, e ia sempre parar a esta conclusão: não, Svidrigáilov não se encontrara com o juiz de instrução, não, com certeza! Mas, se Svidrigáilov ainda não tinha ido, iria ou não procurar Porfíri? Pelo menos de momento, parecia-lhe que essa visita não se realizaria. Por quê? A razão disso, não a sabia; mas, se lhe fosse possível explicá-lo, também não cansaria a cabeça por causa disso. Tudo isso o torturava, mas, ao mesmo tempo, esse ainda era o mais pequeno dos seus cuidados. Coisa estranha e até difícil de acreditar: a sua sorte atual, imediata, só muito fracamente o preocupava, e pensava nela distraidamente. O que o atormentava era outra coisa, algo muito mais grave e excepcional, que só a ele dizia respeito, mas que era diferente e de capital importância. Experimentava, além disso, uma enorme lassidão moral, apesar de nessa manhã se encontrar em melhores condições para raciocinar que nos dias anteriores. E, além disso, depois de tudo quanto acabava de acontecer, que necessidade tinha ele agora de procurar vencer todas essas míseras dificuldades que de novo surgiam no seu caminho? Valia a pena, por exemplo, procurar enredar com Svidrigáilov para que este não fosse procurar Porfíri, perder tempo a desmascarar e desarmar um Svidrigáilov qualquer? Já estava farto de tudo isso. E, no entanto, corria em busca de Svidrigáilov; não poderia dar-se o caso de haver qualquer coisa de novo a esperar dele, alguma indicação, algum meio de acabar com aquilo tudo? Às vezes sucede-nos agarrarmo-nos a uma palha! Não se daria o caso de o destino ou o instinto os impelir um para o outro? Talvez no caso de Raskólhnikov se tratasse simplesmente de cansaço, de desespero; talvez tivesse necessidade, não de Svidrigáilov, mas de outra pessoa; se se valia deste era porque não tinha outro recurso. E Sônia? Mas por que havia de ir ver Sônia naquele momento? Para mendigar de novo as suas lágrimas? Além disso, Sônia inspirava-lhe espanto. Sônia representava a sentença irrevogável, sem apelação. Ir vê-la era abdicar. Naquele instante, sobretudo, não se sentia capaz de suportar a sua presença. Portanto, não valia mais tentar a sorte com Svidrigáilov? Por que não, afinal? Não podia deixar de reconhecer no fundo de si mesmo que, havia já muito tempo, aquele homem lhe era necessário. Mas, no entanto, que podia haver entre eles de comum? Inclusivamente aquele homem tinha algo de extraordinariamente antipático; era, evidentemente, um libertino consumado, cauteloso e manhoso com toda a segurança; talvez até um refinado malandro. Corriam acerca dele muitas histórias desse gênero. É certo que tomara a seu cargo os filhos de Ekatierina Ivânovna; mas sabia-se lá com que intenção? Um homem da sua laia com certeza que andava tramando qualquer coisa.

Havia já vários dias que um certo pensamento assaltava e obcecava Raskólhnikov, o qual tentava em vão afugentar, tão doloroso lhe era. Às vezes dizia para consigo: "Svidrigáilov anda sempre a dar voltas junto de mim e, neste momento, está a rondar-me; Svidrigáilov descobriu o meu segredo; Svidrigáilov teve intenções sobre Dúnia. E se agora ainda as tivesse? Pode-se quase afirmar que sim, sem receio de engano. Agora que conhece o meu segredo e me tem na mão, de certa maneira, irá servir-se disso como de uma arma contra Dúnia?"

Essa idéia às vezes até em sonhos o perturbava, mas a primeira que se lhe mostrou à consciência, com toda a clareza, foi no momento em que se dirigia para a casa de Svidrigáilov. Bastou esse pensamento para lhe provocar um surdo ataque de raiva. Em primeiro lugar, a situação mudava por completo, até mesmo naquilo que pessoalmente o afetava; não tinha outro remédio senão revelar o mais depressa possível o seu segredo a Dúnia. Não faria bem em ir ele próprio denunciar-se, com o fim de pôr Dúnia a salvo de algum passo imprudente? E aquela carta? Dúnia recebera nessa mesma manhã uma carta? Quem é que, em Petersburgo, poderia escrever-lhe? Seria de Lújin essa carta? É certo que Razumíkhin era uma boa sentinela, mas Razumíkhin não sabia de nada. Não faria bem em ser franco com Razumíkhin? Mas, perante essa idéia, Raskólhnikov experimentou uma sensação de espanto.

"Seja como for, é preciso ir imediatamente procurar Svidrigáilov", decidiu finalmente. "Graças a Deus, os pormenores têm aqui menos importância do que o fundo do assunto; mas se for capaz disso... desde que Svidrigáilov intente a menor coisa contra Dúnia, nesse caso..."

Raskólhnikov estava tão esgotado por aquele longo mês de lutas e comoções que não se sentia capaz de resolver questões semelhantes senão com estas palavras de frio desespero: "Nesse caso, matá-lo-ei". Um doloroso sentimento lhe oprimia o coração, parou no meio da rua e girou os olhos à sua volta. Que caminho seguira? Onde é que se encontrava? Encontrava-se na Avenida de X..., a trinta ou quarenta passos do Mercado do Feno, que atravessara. O primeiro andar do prédio da esquerda era completamente ocupado por uma taberna. Todas as janelas estavam abertas de par em par. A taberna, a avaliar pelas figuras que assomavam às janelas, estava apinhada. Da sala, onde tocavam clarinete e violino, ao compasso de um repique de tambor, chegava um rumor de canção. Ouviam-se gritos agudos de mulher. Estava Raskólhnikov quase decidido a voltar atrás, a si mesmo perguntando por que tomara o rumo da Avenida de X... quando, de súbito, numa das janelas do estabelecimento, descobriu Svidrigáilov, de cachimbo na boca, sentado a uma mesa de chá(1). Sentiu um grande assombro, mesclado de terror. Svidrigáilov observava-o e contemplava-o em silêncio, e o que acabou de deixar Raskólhnikov estupefato foi que lhe pareceu ter notado que Svidrigáilov queria levantar-se e escapulir-se suavemente antes que ele o visse. Raskólhnikov fingiu não o ter visto e olhou para o outro lado com o ar perplexo, embora sem o perder de vista pelo canto do olho. O coração pulsava-lhe de angústia. Era isso, sem dúvida, Svidrigáilov queria passar despercebido. Tirou o cachimbo da boca e procurou esconder-se, mas ao levantar-se para afastar a cadeira reparou, provavelmente, que Raskólhnikov o tinha visto e o estava contemplando. Passou-se entre ambos qualquer coisa semelhante à cena do seu primeiro encontro em casa de Raskólhnikov, no momento em que este dormia. Um sorriso de velhacaria assomou ao rosto de Svidrigáilov, que, aliás, se pavoneou. Um e outro se sabiam mutuamente espiados. Até que por fim Svidrigáilov rompeu numa estrepitosa gargalhada.

- Vamos, vamos! Entre, se quiser, eu aqui estou! - gritou da janela. Raskólhnikov subiu à taberna.

Encontrou Svidrigáilov num pequeno gabinete traseiro, contíguo a um salão, onde, diante de umas vinte mesinhas, uma multidão de comerciantes, de funcionários e de pessoas de todos os gêneros tomava chá por entre a horrível algazarra dos cantadores, que berravam em coro. De qualquer lugar chegava um barulho de bolas de bilhar entrechocando-se. Svidrigáilov tinha na sua frente, em cima da mesa, uma garrafa de champanha e um copo meio esvaziado. Havia também nesse pequeno gabinete um rapazinho que tocava realejo, acompanhado de uma cantora, uma mocetona de uns dezoito anos, bochechuda e corada, embrulhada numa saia listrada, de mangas arregaçadas e com um chapéu tirolês de fitas. Cantava umas coplas vulgares, apesar do coro ruidoso que se elevava do salão vizinho, acompanhada pelo realejo, com uma voz de contralto, muito casquinada.

- Vamos! Já chega! - interrompeu-a Svidrigáilov, quando Raskólhnikov entrou.

A moça suspendeu a cantoria e ficou aguardando numa atitude respeitosa. Até quando estava cantando aquelas brejeirices com acompanhamento de música, também conservava no rosto essa mesma expressão de respeito e gravidade.

- Eh, Filip, um copo! - gritou Svidrigáilov. - Eu não bebo vinho - disse Raskólhnikov.

- Como quiser, mas não estava chamando por sua causa. Vamos, Kátia, bebe e vai-te embora! Já não preciso de ti.

 

* (1) Nas tabernas servia-se também chá, uma das bebidas nacionais russas. (N. do T) *

 

Ofereceu-lhe um copo de vinho e meteu-lhe na mão uma pequena nota. Kátia bebeu o vinho como as mulheres costumam fazê-lo, sem tirar os lábios do copo, em vinte golinhos; depois pegou a nota, beijou a mão de Svidrigáilov, que a deixou beijar com o ar mais sério deste mundo, e abandonou a sala, seguida do rapaz do realejo. Eram ambos filhos da rua. Svidrigáilov estava apenas há oito dias em Petersburgo, mas já se encontrava aí tão à vontade como na aldeia. O moço da sala, Filip, era já seu conhecido, e arrastava-se de um modo servil. Uma volta de chave na porta e Svidrigáilov estava ali como em sua casa, seria até possível que passasse ali dois dias inteiros. Aquela taberna suja, reles, nem sequer de segunda categoria podia classificar-se.

- Ia à sua casa e andava à sua procura! - começou Raskólhnikov. - Mas, não sei por que, de repente torci para a Avenida de X..., ao sair do Mercado do Feno! Nunca passo nem venho por aqui. Volto sempre à direita do Mercado. Este também não é o caminho para ir à sua casa. E ainda mal dera a volta, eis senão quando o vejo; é estranho!

- Por que não diz o senhor, simplesmente, que é um milagre? - Porque pode ser que não passe de casualidade.

- Que tipos tão engraçados! - disse Svidrigáilov pondo-se a rir. - Ainda que estejam intimamente convencidos do milagre, não querem reconhecê-lo! O senhor é o próprio a dizer que pode ser que não se trate senão de uma casualidade. E como são covardes a respeito das suas opiniões; o senhor não pode fazer uma idéia, Rodion Românovitch! O senhor possui uma opinião pessoal e não teve medo de tê-la. Foi precisamente por isso que despertou a minha curiosidade.

- Só por isso?

- E já é bastante!

Era visível que Svidrigáilov se encontrava num estado de excitação, mas não muito acentuado; não bebera mais do que meio copo de vinho. - Tenho a impressão de que o senhor veio ao meu encontro ainda antes de saber se eu tinha ou não aquilo que chama uma opinião pessoal - insinuou Raskólhnikov.

- Nessa altura era diferente. Cada um procede à sua maneira. Pelo que respeita ao milagre, dir-lhe-ei que lhe noto uma cara como se tivesse estado a dormir durante estes dois ou três últimos dias. Eu próprio lhe indicara esta taberna, por isso não é nada estranho que tivesse vindo direito aqui. Eu lhe dissera o caminho que devia seguir, o lugar em que fica e as horas a que podia encontrar-me aqui. Não se lembra?

- Esquecera-me - respondeu Raskólhnikov surpreendido.

- Acredito; disse-lhe por duas vezes. O endereço devia ter-se-lhe gravado maquinalmente na memória e maquinalmente deve o senhor ter-se encaminhado para aqui, sem se lembrar já bem ao certo do endereço. Aliás, eu não tinha a menor ilusão de que estivesse a escutar-me enquanto eu lhe falava. O senhor é demasiado distraído, Rodion Românovitch. E, além disso, estou convencido de que há muitas pessoas, em Petersburgo, que andam pelas ruas falando sozinhas. Isto é uma cidade de gente meio doida. Se nós tivéssemos um pouco de ciência, alguns médicos, juristas e filósofos poderiam fazer as observações mais interessantes, nas suas respectivas especialidades, em Petersburgo. Será difícil encontrar outra terra onde atuem sobre a alma humana influxos tão tenebrosos, tão intensos e tão estranhos como em Petersburgo. Talvez seja a ação do clima! Mas, como é o centro administrativo do país, o seu caráter deve refletir-se na Rússia inteira. Mas não é disso que se trata agora: o que eu lhe queria dizer era que tenho observado por mais de uma vez; quando sai de casa leva a cabeça erguida. Mas, apenas dá vinte passos, logo abaixa e cruza as mãos atrás das costas. Olha, e percebe-se muito bem que não vê nada, nem do que se passa à sua frente nem ao seu lado. Até que acaba por se pôr a mexer os lábios e a falar sozinho; além disso gesticula muito enquanto fala, e depois pára de repente no meio da rua e aí fica parado durante muito tempo. Isso não está certo. Poderiam outras pessoas observá-lo e, francamente, isso não é conveniente. No fundo, a mim tanto me faz, e não seria eu quem pretenda curá-lo desse mau costume, mas espero que me compreenda.

- O senhor sabe se estou sendo espiado? - perguntou Raskólhnikov, olhando-o com curiosidade.

- Não, não sei nada disso - respondeu Svidrigáilov espantado.

- Bem, bem, não falemos mais no caso - resmungou Raskólhnikov franzindo o sobrolho.

- Muito bem, não falemos mais.

- O melhor seria que me dissesse como é que, vindo eu aqui para beber e tendo-me indicado por duas vezes este lugar para que viesse procurá-lo, por que é que, agora, quando eu olhava da rua para a janela, o senhor se escondeu e quis escapulir-se... Reparei muito bem.

- He, he! E o senhor, outro dia quando eu estava à entrada da sua porta, não se deixou ficar de olhos fechados, no seu divã, fingindo dormir, embora estivesse perfeitamente acordado? Eu também percebi isso muito bem. - Podia ter... as minhas razões... O senhor bem sabe.

- Pois também eu podia ter as minhas razões, que o senhor não sabe. Raskólhnikov apoiou o cotovelo direito sobre a mesa, segurando o queixo com a mão, e olhou fixamente para Svidrigáilov. Havia um minuto que contemplava aquela cara, que sempre o chocara. Era uma cara singular, que parecia uma máscara: branca, vermelha, com uns lábios de vermelhão, uma barba de um louro avermelhado e o cabelo branco, ainda bastante espesso. Tinha os olhos demasiado azuis, de um olhar muito parado e fixo. Havia algo de terrivelmente antipático naquele belo rosto, que se conservara, apesar dos anos, incrivelmente jovem. Svidrigáilov trazia um traje de verão, de um tecido fino e leve, e distinguia-se sobretudo pela roupa interior. Um grande anel, com uma pedra preciosa, brilhava num dos seus dedos.

- Irá o senhor dar-me ainda preocupações? - perguntou Raskólhnikov de repente, indo direito ao assunto com febril impaciência. - Embora o senhor seja talvez o mais perigoso dos homens, se se decidir a fazer o mal, não procurarei dissimular por mais tempo e vou demonstrar-lhe agora mesmo que eu não ando querendo esconder-me. Fique sabendo, portanto, que eu vim para lhe dizer que, se persiste nos mesmos propósitos a respeito da minha irmã e pensa tirar partido do segredo que surpreendeu há pouco, matá-lo-ei antes que tenha tido tempo de mandar-me para a prisão. Acredite no que eu lhe digo, já sabe que sou capaz de cumpri-lo. Além disso, se tem alguma confidência a fazer-me, e já há muito tempo me parece que o senhor tem qualquer coisa para me dizer, apresse-se, porque o tempo é precioso e talvez muito em breve seja demasiado tarde...

- Mas para que tanta pressa? - perguntou Svidrigáilov olhando-o com curiosidade.

- Todos nós temos os nossos assuntos a tratar - respondeu Raskólhnikov impaciente e com um ar sombrio.

- O senhor acaba de convidar-me a ser franco e desde a primeira pergunta que evita responder - observou Svidrigáilov sorrindo. - O senhor julga sempre que eu trago entre as mãos certos projetos e por isso me olha com olhos desconfiados. No fim de contas, quando uma pessoa se encontra nas suas circunstâncias, é perfeitamente compreensível. Mas, por mais que eu deseje viver em boas relações com o senhor, não me darei ao trabalho de tirá-lo desse erro. Meu Deus, isso não valeria a pena e, além do mais, eu não tinha a intenção de falhar-lhe de maneira particular.

- Então por que é que eu lhe era tão necessário? Por que é que o senhor não deixa de rondar-me?

- Simplesmente por curiosidade, como objeto de observação. Interessa-me o lado fantástico do seu caso. Aí tem o porquê. Além disso o senhor é irmão de uma pessoa que me interessava muito e, finalmente, a essa pessoa ouvi eu, em tempos, falar muito amiúde do senhor, de onde pude deduzir que exerce sobre ela uma grande influência; ainda lhe parece pouco tudo isso? He, he, he! Além disso confesso-lhe que a sua pergunta é demasiado complexa e é-me muito difícil responder-lhe. Ora vejamos, por exemplo: não teria o senhor vindo agora mais para comunicar-me algo de novo do que para falar-me de qualquer assunto? Não será isso? Não será isso? - insistiu Svidrigáilov com um sorriso ladino. - Imagine, depois disto, que eu próprio, quando vinha ainda a caminho para aqui, no trem, tinha a ilusão de que o senhor havia de revelar-me qualquer coisa de novo e que eu havia de conseguir tirar de ti (2) algum proveito. Já vês como nós somos, nós, os ricos.

- Tirar algum proveito? De que maneira?

 

* (2) Svidrigáilov passa assim do tratamento de senhor para o de tu, no texto. (N. do T) *

 

- Como explicar-lho? Sei-o eu, porventura? Olha, eu passo a vida nas tabernas e encontro prazer nisso; quero dizer, não o faço tanto por gosto, como porque é preciso estar sentado em qualquer lugar. Ainda que apenas com essa pobre Kátia... Viu-a? Bem, se eu fosse, por exemplo, um glutão, um gastrônomo de clube, mas olhe para o que eu posso comer! - estendeu o dedo para um canto onde, em cima de uma mesinha redonda, numa travessa de latão, se viam restos de um horrível bife com batatas. - E, a propósito, já almoçou hoje? Eu já comi um pouco e não quero mais. Vinho, por exemplo, também não bebo, a não ser champanha, e deste apenas um copo numa tarde, e até isso me faz doer a cabeça. Se o pedi, hoje, foi para me animar, porque tenho de ir a um lugar e preciso de ter uma certa disposição de espírito. Há pouco escondi-me como um colegial, porque julguei que o senhor vinha roubar-me tempo; mas, pelo visto (puxou o relógio), ainda posso dedicar-lhe uma hora; sabe que são já quatro e meia? Ainda se eu fosse alguma coisa! Bem, proprietário ou pai de família, fotógrafo, jornalista... Mas nada, não tenho nenhuma profissão determinada! Às vezes aborreço-me. Eu pensava, de fato, que o senhor me traria novidades.

- Mas quem é o senhor e por que veio até aqui?

- Quem sou eu? O senhor já sabe: um nobre que serviu dois anos na cavalaria, e depois veio para aqui, para Petersburgo, dar voltas pelas ruas, e, finalmente, casou-se com Marfa Pietrovna e foi viver no campo. Aí tem o senhor a minha biografia resumida!

- Segundo dizem, o senhor é jogador. - Jogador, não. Trapaceiro...

- Trapaceiro? - Acho que sim. - E então nunca lhe deram uma sova? - Algumas vezes. E então?

- É que podiam provocá-lo para um duelo... e, em geral, isso põe uma certa animação na vida.

- Não lhe digo que não, e neste ponto não sou forte em filosofias. Confesso-lhe que, acima de tudo, vim aqui por causa das mulheres.

- Logo depois da morte de Marfa Pietrovna?

- Claro! - respondeu Svidrigáilov com subjugadora franqueza. - Que tem isso de especial? Não acha bem que eu fale, assim, das mulheres? - Isso significa perguntar se eu condeno o vício?

- O vício! Deixe-se disso! Mas vou responder-lhe ordenadamente a respeito das mulheres, primeiro em termos gerais; repare, eu tenho inclinação para falar. Diga-me: por que havemos de virar as costas às mulheres se elas nos agradam? Ao menos é uma ocupação.

- De maneira que, então, o que o trouxe aqui foi apenas o vício. - Seja, visto que insiste, chamemos-lhe vício. Admitamo-lo. Ao menos, a sua pergunta, franca, agrada-me. É o principal. Neste vício, pelo menos, há qualquer coisa de positivo, inclusivamente baseada na natureza e não preparada pela fantasia, algo que persiste como uma brasa acesa no sangue e que nem debaixo do peso dos anos se extingue facilmente. Há de concordar comigo que esta é uma ocupação, à sua maneira!

- Não é caso para felicitá-lo. Isso é uma doença, e perigosa.

- Que diz? Eu estou convencido de que isso é uma doença como tudo o que ultrapassa os limites, e aí ultrapassa-se infalivelmente. Mas repare: em primeiro lugar, cada qual tem os seus limites, este tem um, aquele outro, e, além disso, em tudo é preciso ter comedimento, embora isto seja um cálculo reles; mas que se há de fazer? Se procedermos de outra maneira, não nos resta mais nada senão darmos um tiro na cabeça. Concordo que o homem morigerado tem obrigação de aborrecer-se, mas, apesar de tudo... - E o senhor seria capaz de dar um tiro na cabeça?

- Qual! - respondeu Svidrigáilov com repugnância. - Faça favor de não falar dessas coisas - apressou-se a acrescentar, agora sem ponta dessa fanfarronice que deixava transparecer nas palavras anteriores; até mudou a expressão do seu rosto. - Reconheço que se trata de uma fraqueza imperdoável, mas que se há de fazer? Tenho medo da morte e não me agrada nem que falem nela. o senhor não sabe que eu tenho um pouco de místico?

- Ah, sim! As aparições de Marfa Pietrovna! Ainda continua a aparecer-lhe?

- Ah, não me faça lembrar dela! Em Petersburgo, ainda as não tive; que vão para o diabo! - exclamou com uma certa irritação. - Não, não falemos disso... mas, aliás... Hum! Já tenho pouco tempo, tenho pena de não poder continuar com o senhor! Tinha uma coisa para lhe contar.

- Mas por que está com essa pressa? Por causa de alguma mulher? - Sim, é uma mulher; um caso completamente inesperado... Não me refiro a isto.

- Mas a vileza de todo este ambiente não o impressiona? o senhor já não tem forças para se dominar?

- o senhor faz-se forte, não? He, he, he! o senhor deixa-me admirado, Rodion Românovitch, embora eu soubesse já de antemão que havia de ser assim. É o senhor que me vem falar, a mim, de vício e de estética? o senhor... um Schiller! o senhor... um idealista. Mas, de fato, tudo isto tem a sua razão de ser, e o que era para admirar era se não fosse assim, embora, apesar de tudo, seja um tanto estranho, na realidade... Ah, é pena eu não ter mais tempo, porque o senhor é um indivíduo muito curioso! E, a propósito, o senhor aprecia Schiller? Eu sou doido por ele.

- o senhor sempre é um grande gabarola! - disse Raskólhnikov com uma certa repugnância.

- Juro-lhe que não sou! - respondeu Svidrigáilov rindo. Embora, no fim de contas, não o discuta, admitamos que seja um gabarola; mas por que não há de uma pessoa gabar-se quando não ofende ninguém? Eu vivi anos na aldeia com Marfa Pietrovna, e depois, quando me encontrei agora com um homem inteligente, como o senhor... inteligente e extremamente curioso, pus-me a falar, simplesmente por alegria, sem contar com o que bebi, aliás só este meio copo de vinho e já me subiu um pouquinho à cabeça. Mas o principal foi uma certa circunstância que me produziu um grande alvoroço, mas da qual... não direi nada. Onde é que vai? - perguntou de repente Svidrigáilov com receio.

Raskólhnikov pôs-se de pé. Custava-lhe e parecia ter cometido uma vileza em ir ali. Estava convencido de que Svidrigáilov era o malandro mais vazio e insignificante do mundo.

- Ah! Sente-se, sente-se! - pediu Svidrigáilov. - Mas, ao menos, peça que lhe tragam chá. Vamos, sente-se, não julgue que vou contar-lhe disparates, isto é, continuar a falar-lhe de mim. Vou contar-lhe uma coisa. Vamos, fique, que eu vou contar-lhe como é que uma mulher, empregando a sua linguagem, me salvou. Com isso responderei também à sua primeira pergunta, visto que essa mulher é... a sua irmãzinha. O quê? Posso contar-lho? Vamos e mataremos assim o tempo.

- Conte; mas espero que...

- Oh! Não se preocupe! Até ao homem mais abjeto e depravado, como eu, Avdótia Românovna só pode inspirar o mais profundo respeito.

 

- É possível que o senhor saiba (e, além disso, eu próprio lhe contei) - começou Svidrigáilov - que eu estive aqui preso por dívidas, dívidas enormes, e que não tinha meio nenhum de pagá-las. É escusado contar-lhe com todos os pormenores como é que Marfa Pietrovna veio resgatar-me. Sabe até que grau de loucura podem apaixonar-se, às vezes, as mulheres? Esta era uma mulher honesta, muito esperta, embora sem a mínima cultura. Pois imagine que essa ciumenta e honesta mulher decidiu-se a assinar, depois de muitas cenas e censuras, a assinar comigo um contrato que cumpriu escrupulosamente durante todo o tempo que estivemos casados. No fundo, ela era muito mais velha do que eu, e, além disso, mascava constantemente cravinho-da-índia. Eu tinha uma alma bastante baixa e, ao mesmo tempo, era honesto à minha maneira e, para falar-lhe com toda a franqueza, não podia ser-lhe absolutamente fiel. Esta confissão deixou-a estupefata; mas, segundo parece, a minha rude franqueza foi-lhe simpática, de certo modo. "Que diabo, isso é sinal de que ele não quer enganar-me, visto que começa por dizê-lo", e, vamos lá, para uma mulher ciumenta, isso é o principal. Depois de muitos choros ficou combinado entre nós um contrato verbal deste teor: primeiro, que eu nunca abandonaria Marfa Pietrovna e seria sempre seu marido; segundo, que nunca me ausentaria sem a sua permissão; terceiro, que nunca teria a mesma amante; quarto, que, em troca disso, Marfa Pietrovna me autorizava a brincar uma vez por outra com as nossas criadas, mas informando-a sempre, em segredo; quinto, que Deus me livrasse de me apaixonar por uma mulher da nossa classe; sexto, que, se por acaso (Deus me livrasse disso) eu chegasse a apaixonar-me a sério, ficava obrigado a comunicá-lo a Marfa Pietrovna. A respeito desta última cláusula, Marfa Pietrovna esteve sempre completamente tranqüila; era uma mulher inteligente, por conseguinte, não podia considerar-me de outro modo senão um ser corrompido, um libertino incapaz de amar seriamente. Mas uma mulher inteligente e uma mulher ciumenta... são duas coisas diferentes, e aí, precisamente, é que está o mal. Aliás, para julgar imparcialmente certas pessoas é preciso desprendermo-nos primeiro de certos hábitos cotidianos, abstermo-nos de julgarmos os indivíduos e os objetos que costumam rodear-nos. Eu tenho razão ao confiar mais no seu juízo do que no das outras pessoas. É possível que eu lhe tenha descrito Marfa Pietrovna como uma mulher ridícula e tola. De fato, tinha alguns costumes muito ridículos; mas digo-lhe, francamente, que eu deploro com toda a sinceridade os inumeráveis desgostos que lhe dei. E, vamos lá, creio que isso já é bastante como decentíssima oração fúnebre do mais carinhoso marido para a sua amantíssima esposa. Na ocasião das nossas contendas, eu me calava, geralmente, e não me zangava, e essa conduta de gentleman produzia quase sempre efeito; influía nela e até lhe agradava; às vezes até se mostrava orgulhosa de mim. Mas, à sua irmã, apesar de tudo, não pôde suportá-la. Mas como foi possível que ela se tivesse atrevido a meter em casa uma beldade daquelas como preceptora! Eu explico isso calculando que Marfa Pietrovna era uma mulher inflamável e sensível, e que se apaixonou, simplesmente (essa é a palavra), pela sua irmã. Além disso foi Avdótia Românovna quem deu o primeiro passo. Não acredita? E não quero crer também que Marfa Pietrovna chegou até o extremo de se zangar comigo, a princípio, por causa do meu eterno silêncio a respeito da sua irmã e por eu me mostrar tão indiferente perante os seus contínuos e apaixonados elogios de Avdótia Românovna? Eu não sei o que ela pretendia! É claro que Marfa Pietrovna deve ter posto Avdótia Românovna a par da minha maneira de ser. Ela possuía um hábito infeliz: o de ir contar a toda a gente os nossos segredos conjugais e de queixar-se constantemente de mim a toda a gente. Como não havia ela de fazê-lo também com uma nova e tão bonita amiga? Calculo que as duas não deviam ter outro tema de conversa que não fosse eu, e sem dúvida que todos esses sombrios e misteriosos boatos que corriam a meu respeito... deviam ter chegado ao conhecimento dela: aposto em como o senhor também deve ter ouvido qualquer coisa do gênero.

- Ouvi. Lújin acusava até o senhor de ter sido a causa da morte de uma pequenina. É verdade?

- Faça favor de deixar em paz todas essas vilanias - respondeu Svidrigáilov com repugnância e brusquidão -; se o senhor tem de fato empenho em conhecer a fundo todo esse disparate, talvez alguma vez lhe conte, mas, agora...

- Também falou de certo criado seu da aldeia e de que o senhor também tivera a culpa não sei de quê.

- Por favor, já chega! - atalhou Svidrigáilov com impaciência colérica. - Não será o tal criado que, depois de morto, lhe foi buscar o cachimbo, conforme o senhor mesmo me contou? - insistiu Raskólhnikov com irritação crescente.

Svidrigáilov olhou firme para Raskólhnikov, e a este pareceu-lhe que naquele olhar houve por um momento um brilho fulminante, mau; mas Svidrigáilov conteve-se e respondeu com muita delicadeza: - É esse mesmo. Vejo que isso também lhe causa muita impressão, e considero um dever satisfazer a sua curiosidade com toda a espécie de pormenores na próxima oportunidade. Que vão para o diabo! Vejo que, de fato, posso passar por uma personagem de novela romântica. Portanto, sendo assim, veja até que ponto eu tenho obrigação de agradecer a Marfa Pietrovna ter já contado à sua irmã tantas coisas secretas e curiosas a meu respeito. Não me atrevo a avaliar a impressão; mas, em todo caso, isso, para mim, foi-me muito proveitoso. Apesar de toda a sua natural repugnância pela minha pessoa, e apesar do meu eterno aspecto sombrio e repelente, Avdótia Românovna acabou por chegar a sentir compaixão por mim, compaixão pelo homem vicioso. E quando o coração duma mulher começa a apiedar-se, isso, para ele, é, evidentemente, o mais perigoso. Então há de sentir infalivelmente anseios de salvar e de regenerar, de ressuscitar, de guiar para fins mais elevados, de chamar a uma nova vida e a uma nova atividade... bem, já sabe o que se pode imaginar dentro deste teor. Eu compreendi imediatamente que a borboleta andava rondando a chama e, por meu lado, pus-me de sobreaviso. Mas parece que o senhor franze o sobrolho, Rodion Românovitch. Não é caso para isso, porque, como sabe, a coisa não foi além disso. (Raios partam o vinho que eu bebi!) Olhe, fique sabendo que, desde o primeiro momento, eu sempre lamentei que o destino não tivesse feito nascer a sua irmã no segundo ou terceiro século da nossa era, em qualquer parte, filha dum poderoso príncipe ou de algum governador ou procônsul da Ásia Menor. Não há dúvida nenhuma de que teria sido uma daquelas mulheres que sofriam o martírio, e certamente teria sorrido quando lhe dilacerassem o peito com tenazes em brasa. Ter-se-ia oferecido para isso espontaneamente, e, nos séculos quarto ou quinto, ter-se-ia retirado para o deserto do Egito e aí teria vivido trinta anos alimentando-se de raízes, de fé e de visões. O que ela deseja e pede é unicamente sofrer o mais depressa possível um martírio por alguém, e, desde que lho façam sofrer, é possível que se atire da ponte abaixo. Ouvi dizer qualquer coisa a respeito de um certo Senhor Razumíkhin. Segundo dizem, é rapaz sensato (o que o seu nome já indica; provavelmente é um seminarista). Pois bem, ele que vele pela sua irmã. Em resumo: eu julgo tê-la compreendido, com o que muito me honro. Mas, naquela altura, quero dizer, quando se conhece uma pessoa, a princípio, o senhor bem sabe que se fica sempre um pouco desorientado e incorremos sempre em incompreensão, não somos muito clarividentes, vemos aquilo que não existe; tentei tirar partido, além do mais ela era tão bonita! Eu não tinha a culpa! Em resumo: desde o primeiro momento inspirou-me uma paixão irresistível. Avdótia Românovna é terrivelmente casta, de maneira inaudita e nunca vista. (Repare que eu digo isso da sua irmã como uma realidade. Ela é casta, talvez até a um grau doentio, apesar de toda a sua largueza de espírito, e isso prejudica-a.) Lá em nossa casa havia uma moça, Paracha, a Paracha dos olhos negros, que tinham enviado da outra aldeia como aia, e a qual eu não vira até então; uma moça muito engraçada, mas extraordinariamente estúpida; era muito chorona, enchia a casa de gritos e até provocou um escândalo. Uma vez, depois do jantar, Avdótia Românovna foi intencionalmente procurar-me a sós numa alameda do jardim, e exigir-me, com olhos faiscantes, que deixasse Paracha em paz. Foi essa a nossa primeira conversa a sós. Eu, é claro, considerei uma honra aceder ao seu desejo e esforcei-me por fingir-me contrariado, mortificado; numa palavra: desempenhei muito bem o meu papel. Devido a isso estabeleceram-se entre nós certas relações, diálogos secretos, lições de moral, admoestações, pedidos e até lágrimas... pode acreditar, até lágrimas. Veja o senhor onde a paixão pela catequese conduz algumas moças. Eu, é claro, deitei a culpa de tudo ao meu destino; pintei-me como um homem ávido de luz, deitei mão do meio mais poderoso e infalível para apoderar-me do coração duma mulher, um meio que nunca falha e que produz efeito em todas elas, desde a primeira à última. Esse meio, como toda a gente sabe, é a lisonja. Não há no mundo coisa mais difícil do que a sinceridade e mais fácil que a lisonja. Se à sinceridade se mistura a mais pequena nota falsa, surge imediatamente a dissonância e, atrás dela... o escândalo. Ao passo que a adulação, ainda que seja falsa até a última nota, torna-se simpática e ouve-se com satisfação: com satisfação grosseira, sim, mas com satisfação. E, por muito tosca que seja a lisonja, metade dela, pelo menos, parece sempre verdadeira. E isso para todos os graus de cultura e hierarquia social. Até a uma vestal seria possível seduzir com a lisonja. E nem é preciso falar das pessoas vulgares. Não posso deixar de sorrir quando me lembro de como seduzi uma vez uma mulher casada, com filhos e virtuosa, e que além disso gostava muito do marido. Como aquilo foi divertido e me deu tão pouco trabalho! Mas, de fato, a senhora era extremamente virtuosa, à sua maneira. Toda a minha tática se reduziu unicamente a mostrar-me sempre como se me sentisse esmagado pela sua castidade e cheio de adoração perante ela. Eu a adulava de uma maneira descarada, e apenas conseguira segurar-lhe na mão ou deter um olhar, logo me punha a recriminar-me a mim próprio por ter conseguido aquilo à força, porque ela não o queria; e não o queria a tal ponto que eu, se não fosse tão vicioso, provavelmente nunca teria conseguido nada; ela, na sua inocência, não pressentia sequer o mal e entregou-se inconscientemente, sem saber... sem suspeitar etc. etc. Enfim, consegui dela tudo, e a boa da senhora estava convencida de que era inocente e pudica, e que cumpria todos os seus deveres e obrigações e que caíra de um modo inesperado. E como ela ficou zangada comigo quando eu, no fim de tudo, acabei por explicar-lhe com toda a sinceridade que estava plenamente convencido de que ela, em tudo aquilo, procurara tanto o prazer como eu. A pobre Marfa Pietrovna também se rendia terrivelmente à lisonja, e, se eu o tivesse desejado, não há dúvida de que, se ainda fosse viva, me teria cedido todos os seus bens. (Mas eu estou bebendo e falando à doida.) Espero que não irá ficar agora admirado por eu lhe dizer que esse mesmo efeito começou a manifestar-se em Avdótia Românovna. Simplesmente eu fui parvo e impaciente e deitei tudo a perder. Antes disso já algumas vezes (e sobretudo uma certa vez) uma terrível expressão dos meus olhos a impressionara pessimamente, quer acreditar? É que neles fulgurava cada vez com mais violência e clareza um fogo que a assustava e que acabou por se lhe tornar odioso. Não quero contar-lhe pormenores; mas zangamo-nos. E então tornei a cometer outra estupidez. Pus-me a troçar, da maneira mais grosseira, de toda aquela catequese e conversão; Paracha tornou a entrar em cena e não ela apenas... Numa palavra, eu começava a levar uma vida infernal! Oh, se o senhor, Rodion Românovitch, tivesse visto, ao menos uma vez na vida, como os olhos da sua irmã brilhavam em certas ocasiões! Não é por eu estar agora embriagado e ter bebido um copo de vinho que estou dizendo-lhe a verdade. Afirmo-lhe que esse olhar não me deixava dormir; por fim, já nem sequer podia suportar o rumor da sua saia. Era precisamente como se fossem dar-me ataques de epilepsia; nunca imaginara que pudesse chegar a ver-me em tal estado de embevecimento. Em resumo: era absolutamente necessário obter uma reconciliação, simplesmente isso era já impossível. E imagine o que eu fiz então. Até que grau de estupidez a raiva pode levar um homem! Nunca faça nada quando estiver furioso, Rodion Românovitch. Pensando que Avdótia Românovna, no fundo, era uma pobre... (ah! desculpe-me, eu não queria... mas que importa a expressão, sempre que designe a idéia?) enfim, que vivia do trabalho das suas mãos... que tinha de prover o sustento da mãe e de si mesma (oh, diabo, lá vai ficar outra vez aborrecido!), resolvi oferecer-lhe todos os meus capitais (trinta mil rublos era quanto eu podia arranjar nessa altura) se ela quisesse fugir comigo e vir para aqui, para Petersburgo. É claro que eu lhe jurava amor eterno, felicidade etc. etc. Será capaz de acreditar que eu, então, estava tão louco que, se ela me tivesse dito "Envenena Marfa Pietrovna ou corta-lhe o pescoço e casa-te comigo", imediatamente o teria feito? Mas tudo acabou numa catástrofe, como o senhor já sabe, e pode calcular também até que ponto eu teria ficado furioso quando soube que Marfa Pietrovna fora buscar esse velhaco do Lújin e andava preparando um casamento... que, no fundo, teria sido o mesmo que eu lhe propunha. Não é assim? Não é assim? Não será verdade? Reparo que me escuta com muita atenção... é um rapaz interessante!

Impaciente, Svidrigáilov descarregou um soco sobre a mesa. Estava vermelho. Raskólhnikov via claramente que aquele copo ou copo e meio de champanha que ele bebera sem dar por isso, aos golinhos, lhe fazia mal... e decidiu aproveitar-se dessa circunstância. Svidrigáilov inspirava-lhe um grande receio.

- Muito bem... tudo isso me faz crer que o senhor veio a Petersburgo com intenções a respeito da minha irmã - disse a Svidrigáilov, francamente e sem a mínima dissimulação, para irritá-lo ainda mais.

- Ah, basta! - disse Svidrigáilov, como se se apercebesse de repente - já lhe disse... E, além disso, a sua irmã não me pode suportar.

- Disso estou eu certo; mas não é disso que se trata agora.

- Está certo de que ela não pode suportar-me? - Svidrigáilov piscou um olho e sorriu com sarcasmo. - Tem razão, ela não gosta de mim; mas nunca ponha as mãos no fogo quando se trata de coisas entre marido e mulher ou entre apaixonados. Há sempre aí um cantinho, que permanece ignorado para toda a gente, e que só eles, os dois, conhecem. É capaz de afirmar que Avdótia Românovna me olha com aversão?

- A avaliar por algumas frases e palavras que pronunciou durante a nossa conversa, pude concluir que o senhor mantém intenções, e das mais prementes, sobre Dúnia, intenções, naturalmente, vis.

- o quê? Eu pronunciei algumas frases e palavras? - e Svidrigáilov manifestou um terror muito ingênuo, mas sem dar a menor atenção ao epíteto atribuído às suas intenções.

- Acabou agora mesmo de pronunciá-las. Mas por que tem esse medo? - Eu tenho medo? Eu estou com medo? Eu, ter medo do senhor? o senhor é que deve ter medo de mim, mon cher. Ora esta! Além do mais, estou bêbado, bem vejo! Por pouco que não dava outra vez com a língua nos dentes. Raios partam o vinho! Vou mas é beber água!

Pegou a garrafa e, sem mais cerimônia, atirou-a pela janela.

- Tudo isso são disparates - continuou Svidrigáilov, molhando um guardanapo que aplicou nas fontes. - Posso desenganá-lo com uma só palavra e reduzir a pó todas as suas suspeitas. o senhor, por exemplo, sabe que eu estou para casar?

- Já me dissera isso outro dia.

- Já lho dissera? Pois já não me lembrava. Mas nessa altura ainda não lho devia ter dito de uma maneira definitiva, porque ainda não vira a minha futura noiva; a coisa não passava de uma intenção. Mas, agora, já tenho noiva e o assunto está decidido, e, embora não se trate de nenhum assunto urgente, vou já agarrá-lo e levá-lo a vê-la sem falta... porque quero pedir-lhe a sua opinião. Oh, diabo! Só temos dez minutos! Olhe para o relógio; aliás, já lhe vou contar, porque, no seu gênero, o meu casamento é uma coisa interessante... Mas que faz o senhor? Quer outra vez ir-se embora?

- Não, já não vou.

- Não vai? Sério? Vejamos. Eu hei de levá-lo até lá, de certeza, para que conheça a minha futura esposa; mas agora não, porque agora o senhor está com pressa. o senhor vai para a direita; eu, para a esquerda. Conhece essa tal Resslich? Essa mesma Resslich em cuja casa estou hospedado... hem? Já ouviu falar dela? Mas em que está o senhor pensando? É aquela que é acusada de ter provocado o suicídio de uma moça, neste inverno... Bom; já ouviu o seu nome? Já ouviu falar dela? Bem; bem, pois foi ela quem me sugeriu essa idéia: "Olha", disse-me ela, "tu andas aborrecido; precisas de te distraíres". Porque eu, não sei se sabe, sou um homem triste, cheio de tédio. Pensava que eu era alegre? Não, sou um homem sombrio; mas não faço mal a ninguém; fico sentadinho num canto e, às vezes, não digo uma palavra durante três dias. Mas essa cabra da Resslich, é claro, digo-lho francamente, tem o seu fim em vista: eu hei de aborrecer-me, abandonarei a minha mulher, e então ela tomará conta dela e explorá-la-á no nosso meio ou noutro mais elevado. Dizem que tem um pai decrépito, funcionário aposentado, que passa a vida sentado numa poltrona e fica três dias sem daí arredar pé. Dizem que também tem mãe, uma senhora muito decente, a sua mamacha. Além disso o filho faz serviço não sei onde, em qualquer governo, simplesmente não os ajuda. Uma filha casou-se e não sabem dela; mas tomaram conta de dois sobrinhos pequenos (como se já não tivessem bastantes bocas a sustentar); a outra filha, a mais nova, ainda só daqui a um mês é que faz os dezesseis anos, o que significa que daqui a um mês já a podem casar. É esta que me destinam. Fomos ver essa gente. Que ridículo aquilo tudo! Eu me apresento: proprietário, viúvo, um nome conhecido, com relações, com dinheiro... Ora! Que importa que eu tenha já cinqüenta anos e ela ainda não tenha feito dezesseis? Quem é que repara nisso? Então eu não sou um bom partido? Hem? Eu não sou um bom partido, hem? Ha... ha! Havia de me ter visto falando com os pais dela! Impagável! Ela aparece, senta-se (bom, já pode imaginar, com as saias ainda pelo joelho, uma flor ainda em botão), cora, ruboriza-se como a alvorada (deviam tê-la enchido de recomendações). Eu não sei o que o senhor pensa quanto a mulheres; mas parece-me que esses dezesseis anos, esses olhares ainda infantis, essa timidez e essa vergonha, que chega até as lágrimas... são para mim qualquer coisa de superior à beleza, isto para não dizer que, neste sentido, ela é também uma autêntica estampa. Cabelo louro-claro, fino, ondulado, com caracolinhos; lábios carnudos, vermelhos, e uns pezinhos... um encanto! Bem; pois ficamos amigos; eu informo que, por certas razões domésticas, tenho pressa, e no dia seguinte, isto é, anteontem, já éramos oficialmente noivos. Desde então, sempre que vou até lá sento-a nos joelhos e não a largo... Ela, é claro, fica corada como uma romã; mas eu beijo-a a todos os momentos; a mãe, naturalmente, faz-lhe ver que "para isso, que diabo! é que ele é teu marido; assim é que é"; enfim, uma pérola! E esta situação atual, de noivo, talvez seja verdadeiramente melhor que a de marido. Isto é o que se chama la nature est la vérité (1). Ha... ha! Eu devo ter falado com ela umas duas vezes... e a pequena não é tola: às vezes olha-me de uma maneira, às furtadelas... e põe-se toda vermelha. Olhe, tem uma carinha que parece tal qual uma Madona de Rafael.

Porque a Madona da Sistina tem uma cara fantástica, uma cara de paixão louca, não o impressionou? Bem; pois ela é desse gênero. Assim que ficamos noivos, eu, no dia seguinte, fui até lá e levei-lhe presentes no valor de mil e quinhentos rublos: um adereço de brilhantes, outro de pérolas, uma caixinha de prata para o toucador... olhe... assim, grande, com tudo quanto é preciso para que também a ela, como à Madona, se lhe transfigure a carinha. Ontem à noite sentei-a nos joelhos e, como pode calcular, sem estar com cerimônias... e ela se pôs toda encarnada e derramou umas lagrimazinhas, não queria render-se, toda ela ardia.

 

* (1) A natureza é a verdade. (N. do E.) *

 

Todos se retiraram por um momento, de maneira que ficamos os dois a sós, e, de repente, ela atira-se-me ao pescoço e abraça-me com as suas mãozinhas, e beija-me, e jura-me que me será obediente, fiel e boa esposa; que me fará feliz, que me consagrará toda a sua vida, cada minuto da sua vida; que se sacrificará completamente, e que, em troca disso, apenas deseja de mim unicamente estima e "nada mais", disse ela, "nada, não preciso de nada, de presente nenhum". Há de concordar comigo que escutar semelhante declaração, a sós, dos lábios de um anjo como este, de dezesseis anos incompletos, corada pelos rubores virginais e com lagrimazinhas de entusiasmo nos olhos... há de concordar comigo que é bastante sedutor. Não é para arrebatar qualquer homem? Não vale qualquer coisa? Bem; ouça... há de vir ver a minha noiva... mas hoje...

- Em resumo: ao senhor, essa enorme diferença de idade e de experiência produz voluptuosidade. Mas pensa casar-se de fato?

- E que tem isso? Certamente... Toda a gente se arranja como pode e, de todos, aquele que melhor vive é o que melhor sabe iludir-se a si próprio... Ah... ah! O senhor, afinal, é um homem sério! Tenha piedade de mim, papacha, que sou um pecador. He, he, he!

- No entanto, o senhor tomou a seu cargo os filhinhos de Ekatierina Ivânovna. Se bem que, no fim de contas... no fim de contas, também deve ter tido as suas razões para isso... e agora já compreendo tudo...

- As crianças, de maneira geral, agradam-me, agradam-me muito as crianças - disse Svidrigáilov rindo às gargalhadas. - A propósito disso posso até contar-lhe um episódio muito curioso, que se prolonga ainda até agora. No próprio dia em que cheguei pus-me a percorrer todos estes bordéis; havia sete anos que não os freqüentava. O senhor, provavelmente, já notou que quando estou ao seu lado não tenho pressa de ir ver as minhas antigas amizades e conhecimentos. Não, e até faço o possível por evitar o seu encontro. Repare numa coisa: com Marfa Pietrovna, lá na aldeia, era para mim um suplício mortal lembrar-me de todos estes lugarezinhos secretos, nos quais sabe lá as coisas que se podem encontrar. Raios me partam! A gente de baixa condição embriaga-se; a juventude instruída, devido à ociosidade, consome-se em sonhos e desvarios imprecisos, excita-se com teorias; de todos os lados acorrem os judeus, escondem o dinheiro, e os restantes entregam-se ao vício. Por isso, desde o princípio que esta cidade me enjoou. Aconteceu ir parar a uma soirée dançante, como lhe chamam: um lupanar horrível (e a mim agradam-me precisamente os lupanares sujos); é claro que se dançava aí um cancã tão descarado como em nenhum outro lugar e como até no meu tempo não se dançava. Nisto, sim, houve progresso. De repente, olho e vejo uma mocinha dos seus treze anos, muito bem vestida, dançando com um virtuose e com outro à frente, como seu vis-à-vis. A mãe estava sentada numa cadeira, junto da parede. Já pode ver que espécie de cancã era esse. A moça sobressalta-se, cora, e por fim dá-se por ofendida e desata a chorar. O virtuose segura-a e começa a obrigá-la a dar voltas e a fazer piruetas diante dela, e toda a gente à volta se ri e... Nesses momentos agrada-me a sua sociedade, ainda que seja a do cancã: ri e grita: "Assim é que é, assim é que se faz! Ou, então, não tragam para aqui meninas". A mim, é claro, tudo aquilo repugnava; mas, com lógica ou sem ela, a gente vai-se divertindo. Deixei imediatamente o meu lugar, dirigi-me para junto da mãe e disse-lhe que eu também não era da cidade, que ali eram todos muito indelicados, que não sabiam contribuir para a educação da moça ensinando-lhe o francês e a informei de que era um homem de dinheiro; convidei-a a subir para a minha carruagem, levei-a a casa e tornamo-nos amigos (elas estavam instaladas numa casa de hóspedes, pois tinham acabado de chegar à cidade). Confessaram-me que tanto ela como a filha não podiam considerar a minha amizade senão como uma honra; puseram-me a par de que se encontravam sem eira nem beira e que tinham vindo a Petersburgo tratar não sei de que assunto numa repartição do Estado. Ofereço-lhes os meus serviços, o meu dinheiro; dizem-me que tinham ido cair naquela soirée por engano, pensando que, de fato, ensinavam a dançar; ofereço-me, por meu lado, para contribuir para a educação da rapariga ensinando-lhe o francês e a dança. Aceitam, entusiasmadas, consideram isso uma honra e ficamos amigos até hoje. Se quiser, iremos até lá... mas, agora, não.

- Acabe, acabe com as suas mesquinhas e vis anedotas, homem corrompido, velhaco e sensual!

- Mas será o senhor Schiller, o nosso Schiller? Schiller! Oà la vertu va-t-elle se nicher! (2) Mas ouça uma coisa: eu lhe contei tudo isso intencionalmente, para ouvir as suas recriminações. Um prazer!

- Era o que faltava, que eu lhe servisse de motivo de riso, ao senhor, neste momento! - resmungou Raskólhnikov mal-humorado. Svidrigáilov pôs-se a rir a plenos pulmões; finalmente chamou Filip, pagou e pôs-se de pé.

- Vamos, que eu já estou bêbado! Assez causé (3).

- Era o que faltava, que eu não reagisse! - exclamou Raskólhnikov levantando-se também. - Naturalmente não é um prazer para um libertino consumado falar de coisas semelhantes, tendo em perspectiva qualquer intenção monstruosa do gênero... sobretudo em tais circunstâncias e diante de um homem como eu? Isso excita-o!

- Pois bem, sendo assim - respondeu Svidrigáilov até com certo espanto examinando Raskólhnikov -, sendo assim, o senhor saiu-me um cínico de marca. Matéria para isso tem-na o senhor e grande.

 

* (2) Onde a virtude se foi esconder. (N. do T)

(3) Chega de conversa. (N. do T) *

 

O senhor é capaz de imaginar muitas coisas... vamos lá... e também de fazê-las. Mas já chega. Só lamento que a nossa conversa tenha sido tão breve. Mas não se vá já... Espere um momento... - Svidrigáilov saiu da taberna. Raskólhnikov correu atrás dele. Apesar de tudo, Svidrigáilov não estava muito embriagado; o vinho tinha-lhe subido à cabeça apenas por um momento e a embriaguez passava-lhe de minuto para minuto. Parecia preocupado com alguma coisa muito grave e franzira o sobrolho. Era evidente que se encontrava em qualquer expectativa que o agitava e inquietava. Pareceu mudar de repente de atitude para com Raskólhnikov, nos últimos momentos, e tornava-se cada vez mais grosseiro e trocista. Raskólhnikov observara tudo isso e estava também desassossegado. Svidrigáilov levantava-lhe muitas suspeitas; resolveu segui-lo. Saíram juntos para a rua.

- O senhor pela direita e eu pela esquerda, ou, se preferir, ao contrário... Adieu, mon plaisir! Até o próximo agradável encontro! - e dirigiu-se, pela direita, para o Mercado do Feno.

 

Raskólhnikov pôs-se a segui-lo.

- Que é isso! - exclamou Svidrigáilov, voltando-se. - Parece-me que já lhe disse...

- Isto quer dizer que, agora, não o largarei... - O quê?

Pararam ambos e olharam-se mutuamente, como se se medissem. - De todas as suas histórias de meio-bêbado - disse bruscamente Raskólhnikov - concluí categoricamente que o senhor não só não abandonou as suas baixíssimas intenções a respeito de minha irmã, como até são elas que mais o preocupam. Sei que a minha irmã recebeu esta manhã uma carta. O senhor, durante todo este tempo, não fez outra coisa senão agitar-se, num desassossego. Pode ser que, entretanto, o senhor tenha descoberto qualquer mulher, mas isso não quer dizer nada. Eu quero convencer-me pessoalmente... Teria sido difícil para Raskólhnikov precisar o que desejava naquele momento e de que é que desejava ao certo convencer-se pessoalmente. - Não há dúvida! O senhor, pelo visto, quer que chame já um polícia! - Chame-o!

Pararam novamente por um momento um em frente do outro. Finalmente o rosto de Svidrigáilov mudou de expressão. Depois de se ter convencido de que as suas ameaças não assustavam Raskólhnikov, adotou, de súbito, um semblante muito jovial e amistoso.

- O senhor é de força! Eu não quis, intencionalmente, falar-lhe do seu caso, embora me torture a curiosidade. É um caso fantástico. Queria deixar isso para outra vez; mas o senhor, de fato, é capaz de irritar um morto... Seja, iremos! Simplesmente, antes, vou dizer-lhe uma coisa: tenho de ir a casa, ainda que apenas por um momento, buscar dinheiro; depois fecho o quarto, chamo uma carruagem e vou passar a tarde nas ilhas. Que empenho tem em seguir-me?

- Porque eu também tenho de ir, não ao seu quarto, mas ao de Sófia Siemiônovna, pedir desculpas por não ter assistido ao enterro.

- Como quiser; mas Sófia Siemiônovna não está em casa. Foi levar os pequenos a uma senhora, a uma senhora de idade, minha conhecida, uma antiga amiga que dirige certas instituições para órfãos. Essa senhora ficou encantada comigo quando eu lhe levei o dinheiro correspondente aos três pequeninos de Ekatierina Ivânovna, e além disso dediquei também uma quantia à instituição e, por fim, contei-lhe a história de Sófia Siemiônovna em todos os seus pormenores e sem esconder-lhe nada. Produziu um efeito extraordinário. E foi assim que indicaram a Sófia Siemiônovna que se dirigisse hoje mesmo diretamente ao Hotel de..., onde se encontra atualmente a referida senhora, de regresso do seu veraneio.

- Não faz mal; seja como for, irei.

- Como quiser, simplesmente eu não posso acompanhá-lo. Que tenho eu a fazer ali? Olhe, já chegamos à minha casa. Ora diga-me: eu tenho a certeza de que o senhor me olha com suspeita pela simples razão de eu ter sido tão delicado, que, até agora, não o importunei com perguntas... compreende? Ao senhor, isso parece-lhe um pouco extraordinário; era capaz de apostar qualquer coisa em como é assim. É a paga das delicadezas!

- E pôs-se a escutar atrás das portas!

- Ah, era por isso! - e Svidrigáilov desatou a rir. - Já estava admirado de que, no fim de tudo, se esquecesse dessa observação. Ah, ah! Eu já percebia qualquer coisa daquilo que o senhor então... ali... dizia a Sófia Siemiônovna; mas, no entanto, não cheguei a compreender tudo. Talvez eu seja um indivíduo atrasado e incapaz de compreender o que quer que seja. Explique-mo, por amor de Deus, meu amigo! Esclareça-me com as novíssimas idéias! Não é disso que eu estou falando, não é disso que eu estou falando (embora, aliás, tenha ouvido alguma coisa), não; ao que eu me quero referir é que o senhor está sempre a queixar-se, sim, a queixar-se. O Schiller que há em si atormenta-o a todos os momentos. E vem o senhor dizer-me, agora, que não escuta atrás das portas. Mas nesse caso vá imediatamente ao comissariado e explique, com mil demônios! que isto e mais aquilo, aconteceu-me uma coisa, a mim, um leve erro nas minhas teorias filosóficas. Se tem a certeza de que não se pode escutar atrás das portas, mas que se pode matar à mão armada uma velha que cai nas unhas, então fuja o mais depressa possível para qualquer parte da América. Corra, rapaz! Pode ser que ainda vá a tempo. Falo-lhe com toda a sinceridade. Tem dinheiro russo? Dar-lho-ei para a viagem.

- Nem de longe penso numa coisa dessas - respondeu Raskólhnikov enfadado.

- Compreendo (e aliás, não se preocupe; se não quiser, não fale); compreendo os problemas que deve ter; morais, não é verdade? Problemas respeitantes ao homem e ao cidadão, não é verdade? Mas o senhor não os pôs já de lado? Por que se preocupa agora com eles? He, he! Além disso, que significa afinal isso de cidadão e de homem? Se assim fosse não devia ter-se metido nessa embrulhada; ninguém deve lançar-se em nenhuma empresa superior às suas forças. Olhe, meta uma bala na cabeça. O que, não quer?

- Pelo que vejo, o senhor deseja excitar-me, para que eu me vá embora e o deixe em paz...

- Que homem tão singular! Mas se cá já estamos! Venha e suba a escada. Olhe, aqui tem a entrada do quarto de Sófia Siemiônovna. Vê como não está ninguém? O que, não acredita? Então pergunte aos Kapernaúmovi: ela lhes deixa sempre a chave. Aqui está a senhora Kapernaúmova em pessoa. Quê? (É um pouquinho surda.) Saiu? Onde foi? Aí está! Ouviu? Saiu e só voltará para casa ao fim da tarde. Então não quer vir? Bem, já estamos em minha casa. A senhora Resslich também não está. É uma mulher que anda sempre de cá para lá; mas é uma boa pessoa, afianço-lhe... talvez lhe fosse útil, se o senhor tivesse juízo... Vamos... dê-me licença por um momento; entro, tiro um título de cinco por cento do bureau (olhe quanto me resta ainda!), e que ainda hoje mesmo há de ser trocado em dinheiro-moeda. Viu? Agora já tenho o tempo por minha conta. Fecho o bureau, fecho o quarto, e cá estamos outra vez na escada. Bem; quer que tomemos uma carruagem? Olhe, eu vou para as ilhas. Não lhe agradaria dar um passeio de carruagem? Olhe, vou tomar essa caleche, que me levará a Ieláguin, quer? Não quer? Está farto? Venha, que daremos um passeiozinho. Parece que vamos ter chuva; mas não tem importância, levantaremos a capota.

Svidrigáilov já subira para a caleche. Raskólhnikov pensou que as suas suspeitas, pelo menos naquele momento, não tinham fundamento. Sem responder uma palavra deu meia-volta e retrocedeu em direção ao Mercado do Feno. Se ao menos tivesse voltado a cabeça no caminho teria podido ver como Svidrigáilov, depois de fazer um trajeto de cem passos apenas, pagou ao cocheiro e apeou-se. Mas não viu nada e voltou à esquina. Uma profunda repugnância o impelia a afastar-se de Svidrigáilov.

"Que podia eu esperar, nem que fosse por um momento, desse tipo ordinário, desse vicioso, sensual e velhaco, exclamou involuntariamente. De fato, Raskólhnikov pronunciou esse seu juízo demasiado depressa e levianamente. Havia qualquer coisa na maneira de conduzir-se de Svidrigáilov que, pelo menos, lhe conferia certa originalidade, para não dizer mistério. Pelo que em tudo isso respeitava a sua irmã, Raskólhnikov ficou convencido, apesar de tudo, de que Svidrigáilov não a deixaria em paz. Mas como se lhe tornava aborrecido e insuportável pensar em tudo isso!

Conforme o seu costume, assim que se encontrou só e andou vinte passos, afundou-se em reflexões. Quando chegou à ponte, parou junto do peitoril e pôs-se a olhar para a água. E, entretanto, Avdótia Românovna chegara junto dele.

Esbarrou com ela à entrada da ponte; mas passou de largo, sem a ver. Dúnietchka nunca o encontrara assim, na rua, e ficou desorientada e até assustada. Parou, sem saber se havia de chamá-lo ou não. De súbito, descobriu Svidrigáilov, que vinha muito ligeiro do lado do Feno.

Mas ele, pelo visto, aproximava-se misteriosa e cautelosamente. Não entrou pela ponte e parou a um lado, no passeio, esforçando-se o mais possível para que Raskólhnikov não o visse. A Dúnia havia já algum tempo que a vira e fazia-lhe sinais. Parecia à moça que, com aqueles sinais, ele lhe pedia que não chamasse o irmão e o deixasse em paz, aproximando-se, por outro lado, do lugar onde ela estava.

Foi o que Dúnia fez. Devagarinho, passou por detrás do irmão e aproximou-se de Svidrigáilov.

- Saiamos daqui o mais depressa possível - disse-lhe Svidrigáilov em voz baixa. - Não quero que Rodion Românovitch saiba deste nosso encontro. Informo-a de que acabo de estar com ele, perto daqui, numa taberna, onde ele foi procurar-me, e que tive de desprender-me dele quase à força. A senhora, com certeza, não lhe disse nada. Mas, se não foi a senhora, quem poderia ter sido?

- Já volteamos a esquina - interrompeu-o Dúnia -; agora, o meu irmão já não nos pode ver. Aviso-o de que não irei até mais longe na sua companhia. Diga-me tudo aqui; tudo isso pode dizer-se também em plena rua.

- Em primeiro lugar, é impossível falar disto na rua, e, além disso, temos de ouvir Sófia Siemiônovna; e, finalmente, tenho de mostrar-lhe alguns documentos... Bom, em resumo: se não consente em vir à minha casa, negar-me-ei a todas as explicações e ir-me-ei agora mesmo. Peço-lhe, a propósito, que não se esqueça de que um segredo curiosíssimo do seu queridíssimo irmão se encontra em meu poder.

Dúnia parou indecisa e fixou em Svidrigáilov um olhar penetrante. - Mas de que tem medo? - observou aquele tranqüilamente. - Aqui não é a aldeia. E, na aldeia, faz-me a senhora mais mal a mim do que eu à senhora; por isso...

- Sófia Siemiônovna está prevenida?

- Não; eu não lhe disse nem uma palavra e, além disso, não tenho a certeza se ela estará em casa neste momento, embora esteja, provavelmente. Hoje teve que tratar do enterro da madrasta; não é um dia muito adequado para ir visitá-la. Por agora não quero falar disto a ninguém, e até já estou arrependido, de certa maneira, de ter sido franco. Neste campo, a mais leve imprudência equivale a uma delação. Olhe, eu, eu moro aqui, nesta casa em frente. Esse é o porteiro do prédio; o porteiro conhece-me muito bem; olhe como está já a cumprimentar-me. Vê que venho acompanhado duma senhora e com certeza que já deve ter fixado a sua cara, o que lhe é favorável, uma vez que tem tanto medo e suspeita de mim. Desculpe falar-lhe com tanta franqueza. Eu sou inquilino da casa. Sófia Siemiônovna e eu vivemos paredes-meias; e também está subalugada. Em todos os andares há subaluguéis. Mas por que tem medo, como uma criança? Eu inspiro assim tanto medo?

A cara de Svidrigáilov contraiu-se num sorriso indulgente, mas que não chegou a definir-se completamente. O coração pulsava-lhe e faltava-lhe a respiração. Falava com voz forte de propósito para disfarçar a sua comoção crescente; mas Dúnia não pôde notar essa agitação especial: estava irritada por aquela observação sua de que ela tinha medo como uma criança e de que ele lhe inspirava terror.

- Embora saiba muito bem que o senhor é um homem... desonesto, não tenho medo do senhor, de maneira nenhuma. Vá à frente - disse, aparentemente tranqüila, embora o seu rosto estivesse muito pálido.

Svidrigáilov parou diante do quarto de Sônia.

- Deixe-me ver se ela está em casa. Não. Que fiasco! Mas eu sei que não tardará a regressar. Saiu unicamente para ir ver uma senhora, por causa dos orfãozinhos. Morreu-lhes a mãe. Eu entrei no assunto e tomei providências. Se Sófia Siemiônovna não tiver regressado dentro de dez minutos, mandá-la-ei hoje mesmo à sua casa, se quiser. Bem; aqui está o meu número. Aqui estão os meus dois aposentos. Atrás dessa porta vive a minha senhoria, a senhora Resslich. Agora olhe para aqui, porque vou mostrar-lhe os meus principais documentos; a porta do meu quarto de dormir conduz a dois quartos que estão completamente vazios, que estão para alugar. Estas são... mas é preciso que repare com mais atenção...

Svidrigáilov alugara dois quartos mobiliados, bastante espaçosos. Dúnietchka examinou-os, desconfiada, mas não observou nada de particular, nem no mobiliário nem na disposição dos quartos, embora tivesse podido muito bem reparar em qualquer coisa, por exemplo, que o quarto de Svidrigáilov ficava entre outros dois, quase completamente desabitados. A entrada não se fazia diretamente pelo corredor, mas por dois quartos pertencentes à senhoria e que estavam quase vazios. Do seu quarto de cama, Svidrigáilov, abrindo uma porta fechada com uma chave, mostrou a Dúnietchka aquele quarto desocupado, que estava para alugar. Dúnietchka ficou parada à entrada sem compreender por que a convidava ele a olhar; mas Svidrigáilov apressou-se a explicar-lho.

- Venha, olhe para o lado de lá, para esse outro quarto grande. Repare nessa porta; está fechada a chave. Junto da porta está uma cadeira, que é o único móvel existente no quarto. Fui eu quem a levou para aí, do meu quarto, para escutar mais comodamente. Olhe, Sófia Siemiônovna tem a sua mesa logo atrás da porta e sentou-se aí e pôs-se a falar com Rodion Românovitch. Eu, aqui, sentadinho na minha cadeira, estive a escutá-los durante duas noites seguidas, durante duas horas... e é claro que alguma coisa fiquei sabendo, não lhe parece?

- Esteve escutando?

- Sim, estive escutando; agora venha para os meus aposentos; aqui não há onde sentar-se.

Levou outra vez Avdótia Românovna para o seu primeiro quarto, que fazia as vezes de sala, e ofereceu-lhe uma cadeira. Ele se sentou na outra extremidade da mesa, pelo menos a uma sajenh de distância; mas nos seus olhos brilhava aquele mesmo fogo que tanto assustara Dúnietchka noutro tempo. Esta estremeceu e tornou a olhá-lo cheia de medo. O seu gesto foi involuntário: era evidente que não queria deixar transparecer a sua desconfiança. Mas a solidão do quarto de Svidrigáilov acabou por impressioná-la. Quis perguntar se a senhoria estava em casa, mas não o fez... por orgulho. Além disso, outro sofrimento, incomparavelmente maior do que o medo por si mesma, dilacerava o seu coração. Sentia uma tortura insuportável.

- Aqui está a sua carta - disse, colocando-a em cima da mesa. - É porventura possível aquilo que nela escreve? O senhor alude a um crime que o meu irmão teria cometido. Alude a isso com demasiada clareza; não vai ter o atrevimento de negá-lo. Sabe que antes disso chegara até mim essa estúpida história e que não acreditei nem uma palavra acerca dela? Essa suspeita é reles e ridícula. Eu conheço essa história, como e quem a inventou. Não é possível que o senhor tenha alguma prova da sua veracidade. Prometia demonstrar-mo, então fale! Mas fique sabendo desde já que não lhe darei crédito. Não lhe darei!

Dúnietchka disse tudo isso precipitadamente e de afogadilho e, por um instante, as cores afluíram ao seu rosto.

- Se não o acreditasse, como seria possível que se tivesse atrevido a vir comigo até aqui? Por que veio? Por simples curiosidade?

- Não me torture! Fale, fale!

- Escusado será dizer que é mulher corajosa. Garanto-lhe que eu imaginava que a senhora havia de pedir ao senhor Razumíkhin que a acompanhasse até aqui. Mas não o vi nem ao seu lado nem perto da senhora,

e olhei com atenção; está bem; isso significa que está empenhada em salvar Rodion Românovitch! Aliás, na senhora, tudo é divino... Que hei de eu dizer-lhe, a respeito de seu irmão? A senhora mesma acabou de o ver. Então, que tal?

- Mas é nisso, unicamente, que o senhor se funda?

- Não, não é nisso, mas nas suas próprias palavras. Olhe, veio ali duas noites seguidas visitar Sófia Siemiônovna. Já lhe mostrei o lugar onde eles conversam. Ele lhe fez uma confissão integral. É um criminoso. Matou uma velha, viúva dum funcionário, usurária, à qual levava coisas a empenhar, e matou também a irmã dela, uma adeleira, chamada Lisavieta, que entrou inesperadamente na casa quando ele acabara de assassinar a outra. Matou as duas com uma machada com que ia prevenido. Matou-as para roubá-las e roubou; ficou com o dinheiro e com uns objetos... Tudo isso o contou ele mesmo, palavra por palavra, a Sófia Siemiônovna, que é a única que sabe o segredo, mas que não teve a menor participação no crime, nem por palavras nem por ações, e até pelo contrário, a ela causou-lhe o mesmo horror que à senhora, agora; esteja tranqüila, ela não o denunciará.

- Isso não pode ser! - balbuciou Dúnietchka, pálida, de lábios exangues, respirando afanosamente. - Isso não pode ser, não existe nenhuma, nem a mínima razão, motivo algum... Isso é mentira! Isso é mentira!

- Roubou e essa é toda a razão. Ficou com dinheiro e com objetos. Segundo ele próprio confessou, não se aproveitou nem do dinheiro nem dos objetos, mas foi enterrá-los em qualquer parte, debaixo de uma pedra, onde continuam ainda. Mas é porque não se atreveu a tirar proveito deles.

- Mas será possível que ele tenha sido capaz de roubar, de fato? Não teria a idéia dele sido outra? - exclamou Dúnietchka saltando do seu lugar. - O senhor conhece-o, falou com ele? É possível que seja um ladrão? Parecia implorar Svidrigáilov; todo o seu medo desaparecera.

- Nisso, Avdótia Românovna, há milhares e milhões de combinações e categorias. Há ladrões que roubam e sabem que cometem uma ação baixa; mas ouvi falar de um indivíduo decente que assaltara um correio; e, quem sabe, pode ser que ele mesmo acreditasse, no fundo, que praticara uma ação digna! É claro que, comigo, se a senhora mo visse dizer, ter-se-ia passado a mesma coisa, não o acreditaria. Mas, nos meus ouvidos, não tenho outro remédio senão acreditar. Ele explicou também os motivos a Sófia Siemiônovna; mas ela, a princípio, também não queria dar crédito aos seus ouvidos, até que acabou por dá-lo aos seus olhos, aos seus próprios olhos. Ele lho contou pessoalmente.

- Mas quais foram... as causas?

- É uma longa história, Avdótia Românovna. Trata-se, não sei como explicar-lhe, de uma teoria especial, de sua invenção, pela qual eu posso, por exemplo, considerar lícito um só crime, desde que tenha um bom objetivo. Um só crime e cem ações boas! Não há dúvida, também é humilhante para um jovem, com méritos e com incomensurável amor-próprio, saber que, se tivesse três mil rublos, toda a sua carreira, todo o seu futuro, a sua vida inteira, tomaria outra direção; e, no entanto, não ter esses três mil rublos... acrescente a isso o mau humor causado pelo frio, o cubículo estreito, os farrapos, o reconhecimento claro da sua brilhante posição social e, além disso, da posição da mãe e da irmã. O pior de tudo é a vaidade, o orgulho e a vanglória, embora, no fim de contas, Deus é quem sabe a verdade; é possível que ele tenha boas inclinações... Porque fique sabendo que eu não o culpo a ele, não vá imaginar... isso não me compete. Há também de permeio uma teoria sua, pessoal, a sua teoria, segundo a qual os homens se dividem em seres materialistas e em seres especiais; isto é, em indivíduos para os quais, pela sua alta posição, a lei não foi escrita, antes pelo contrário, são eles que ditam a lei aos outros homens; isto é, aos materialistas, ao povo. Essa é a sua teoria, contra a qual nada há a dizer; une théorie comme une autre (1). Napoleão atrai-o enormemente; quer dizer, encantava-o especialmente que uns tantos seres geniais não se detivessem perante um só crime e passassem por cima dele sem se demorarem a pensar sobre o fato. Pelo visto ele imaginou que era um desses homens geniais... Isto é, acreditou nisso durante algum tempo. Sofreu muito, e agora sofre também ao pensar que soube escrever a sua teoria, sim, mas que não é capaz de saltar a barreira sem se deter a pensar sobre o caso; isto é, que não é nenhum homem genial. Bom, isto, para um rapaz com amor-próprio, é também humilhante, sobretudo no nosso tempo.

 

* (1) Uma teoria como outra qualquer. (N. do E.) *

 

- E os remorsos da consciência? Dar-se-á o caso de que lhe negue todo o sentimento moral? Será ele assim?

- Ah, Avdótia Românovna! Agora anda tudo revoltado, embora, no fundo, nunca tenha havido tanta ordem. Os russos, de maneira geral, são gente de vistas amplas, como a sua terra, e muito propensos para o fantástico, para o desordenado; mas, infelizmente, trata-se de uma amplitude sem generalidade especial. E lembre-se das vezes em que falamos destas coisas e destes temas, sentados à noite no terraço do jardim, depois do jantar. E mais: a senhora mesma me censurava, a mim, essa tal amplitude. Quem sabe se, enquanto nós falávamos ali dessas coisas, ele aqui, deitado sobre o divã, estava meditando sobre a sua teoria! Entre nós, sobretudo nas classes cultas, não existe uma tradição sagrada, Avdótia Românovna; há quem a encontre nos livros... ou tire algo desse gênero da História. Mas isso costumam ser os eruditos e, repare, são tão antiquados que as pessoas comuns até os acham indecentes. Aliás, já sabe a minha opinião, em termos gerais: eu não culpo absolutamente ninguém. Eu vivo na ociosidade e não passo disso. Mas já falamos desse assunto por mais de uma vez. Até tive a sorte de interessá-la com as minhas opiniões... Mas está muito pálida, Avdótia Românovna!

- Conheço essa teoria dele. Li-a num artigo que ele publicou numa revista acerca dos indivíduos aos quais tudo é permitido... Foi Razumíkhin quem me deu a ler.

- O senhor Razumíkhin? Um artigo do seu irmão? Numa revista? Com que então tinha escrito um artigo! Pois não sabia. Olhe, deve ser curioso! Mas aonde vai, Avdótia Românovna?

- Vou ver Sófia Siemiônovna - disse Dúnia com voz fraca.

- Por onde é que se vai ao quarto dela? Pode ser que já tenha voltado; tenho de vê-la sem falta, imediatamente. Talvez ela...

- Sófia Siemiônovna só voltará à noite. É o que eu suponho. Ou vinha muito cedo ou muito tarde.

- Ah, como tu mentes! (2) Agora vejo que mentiste! Tudo o que disseste é mentira! Eu não acredito em ti! Não acredito em ti! Não acredito em ti! - gritou Dúnietchka, verdadeiramente desorientada, completamente fora de si.

Quase desmaiada, deixou-se cair numa cadeira, que Svidrigáilov se apressou a aproximar dela.

- Que lhe aconteceu, Avdótia Românovna? Veja se se apercebe! Aqui tem água... Beba um golinho.

Salpicou-a com água. Dúnietchka estremeceu e voltou a si.

"Ficou muito impressionada", murmurou Svidrigáilov, franzindo o sobrolho. - Avdótia Românovna - disse em voz alta -, sossegue, sossegue! Olhe que ele tem amigos.

 

* (2) Nesta altura, conforme o texto, Dúnietchka passa a tratar Svidrigáilov por tu. (N. do T) *

 

Havemos de salvá-lo, havemos de salvá-lo para... bem. Quer que o leve comigo para o estrangeiro? Eu tenho dinheiro; em três dias arranjo-lhe um passaporte. E, quanto ao fato de ter matado ou não, ainda pode realizar muitas boas ações e tudo ficará compensado; tranqüilize-se. Ainda pode ser um grande homem; mas, vamos, que lhe aconteceu? Como se sente?

- Homem malvado! Ainda se ri. Leve-me daqui... - Para onde? Para onde?

- Até ele. Onde é que ele está? Onde é que ele está? Para onde dá essa porta fechada? Entramos aqui por essa porta e agora está fechada a chave. Como é que teve oportunidade de fechá-la a chave?

- Não era conveniente que, dos outros quartos, ouvissem a nossa conversa. Eu não estou a rir-me, de maneira nenhuma; a mim, só falar disto me aborrece. Mas vamos lá a ver: onde é que a senhora vai, assim? Quer entregá-lo às autoridades? Ficará furioso e irá ele próprio entregar-se. Não sabe que já o seguem, que já não lhe perdem a pista? A única coisa que a senhora conseguirá é que o entreguem. Olhe, eu acabei de vê-lo e de falar-lhe; ainda é possível salvá-lo. Espere, sente-se; pensaremos os dois juntos. Foi precisamente para isso que lhe pedi este encontro, para falarmos disto a sós e pensarmos melhor no caso. Mas sente-se!

- Mas como é que o senhor pode salvá-lo?

Dúnia sentou-se. Svidrigáilov sentou-se junto dela.

- Tudo depende da senhora, da senhora, e só da senhora - começou, de olhos chamejantes, quase em voz baixa, precipitadamente e até sem atinar, algumas vezes, com as palavras.

Dúnia, assustada, afastou-se um pouco dele. Além disso, ele tremia todo. - Da senhora! Uma palavra sua e ele está salvo! Eu... salvá-lo-ei! Eu tenho dinheiro e amigos. Resolverei isso imediatamente e arranjo também um passaporte... e à sua mãe... Que lhe interessa Razumíkhin? Eu a amo tanto... Amo-a infinitamente. Deixe-me beijar, ao menos, a fímbria da sua saia, deixe! Não posso suportar o barulho que ela faz. Diga-me: "Faze isto!", que eu o farei logo. Farei o impossível. Naquilo que a senhora acreditar, eu acreditarei. Tudo, farei tudo! Não me olhe, não me olhe dessa maneira! Não sabe que me mata...

Começava até a delirar. De súbito foi como se lhe tivesse subido qualquer coisa à cabeça. Dúnia saltou da cadeira e correu para a porta.

- Abram! Abram! - gritou, de dentro, chamando as pessoas e batendo na porta com as mãos. - Abram! Mas não haverá aqui ninguém? Svidrigáilov levantou-se e se apercebeu de tudo. Um sorriso maldoso e trocista assomou imediatamente aos seus lábios ainda trêmulos.

- Não está ninguém em casa - disse em voz baixa e lentamente. - A senhoria saiu e é escusado gritar assim. Nada mais conseguirá senão agitar-se em vão.

- Onde está a chave? Abra imediatamente, seu canalha!

- Perdi a chave, não consigo encontrá-la!

- Ah! Com que então apela para a violência! - exclamou Dúnia. Empalideceu como uma morta e atirou-se para um canto, onde se entrincheirou atrás de um velador que se encontrava à mão. Não gritava, mas fulminava o seu verdugo com os olhos e seguia todos os seus movimentos com atenção. Svidrigáilov também não se mexia do seu lugar e estava de pé, em frente dela, no outro extremo do quarto. Parecia dominar-se perfeitamente. Mas o seu rosto estava tão pálido como há pouco. O seu sarcástico sorriso não o abandonara.

- A senhora, Avdótia Românovna, acaba de falar em violência; sendo assim, a senhora mesma poderá calcular como eu devo ter tomado bem as minhas providências. Sófia Siemiônovna não está nesta casa; os Kaper naúmovi estão muito longe daqui, com cinco quartos fechados de permeio. Finalmente eu sou mais forte do que a senhora e não tenho medo de nada, porque a senhora, depois, não poderá denunciar-me, pois não há de querer provocar, assim, a perda de seu irmão. Além de que ninguém acreditaria na senhora. "Ora, para que foi essa mulher, sozinha, com um homem, à sua casa?" Por isso, ainda que causasse a perdição de seu irmão, nada provaria: é muito difícil provar a violência, Avdótia Românovna.

- Canalha! - balbuciou Dúnia com indignação.

- Como quiser; mas lembre-se de que eu falo apenas por hipótese. Segundo a minha convicção pessoal, penso que a senhora tem razão de sobra; a violação... é uma vileza. Só queria dizer que, em sua consciência, não teria nada a censurar-se, se bem que... de boa vontade, conforme lhe propus. Nada mais teria acontecido, senão que a senhora, simplesmente, se teria rendido perante as circunstâncias, perante a força, se é que quer teimar em manter esta palavra. Pense nisto: o destino do seu irmão e o da sua mãe estão nas suas mãos. Eu serei seu escravo... toda a vida... Por isso, repare: estou aqui, à espera...

Svidrigáilov sentou-se no divã, a oito passos de Dúnia. Esta não podia já ter a menor dúvida a respeito da sua inflexível decisão. Além disso, conhecia-o... De repente puxou de um revólver, carregou-o e apoiou a mão que segurava o revólver em cima do velador. Svidrigáilov saltou do seu lugar. - Ah! Então é isso! - exclamou, assombrado, mas sorrindo malevolamente. - Então o caso toma outro aspecto. Tira-me um peso de cima de mim, Avdótia Românovna! Não seria o senhor Razumíkhin que lhe deu? Ah! Mas é o meu revólver! Um velho amigo! E tanto que eu o procurei! Pelo visto, as lições que tive a honra de dar-lhe na aldeia deram os seus resultados.

- Não é o teu revólver, mas o de Marfa Pietrovna, que tu assassinaste, bandido! Tu não tinhas nada teu naquela casa. Fiquei com ele quando comecei a suspeitar daquilo de que eras capaz. Atreve-te a dar um passo e juro que te mato!

Dúnia estava desorientada. Empunhava o revólver carregado.

- Bem; e o seu irmão? Pergunto-lho por curiosidade - perguntou Svidrigáilov ainda imóvel no seu lugar.

- Denuncia-o, se quiseres! Não te mexas! Não avances! Envenenaste a tua mulher, eu o sei; tu também és um assassino.

- Tens a certeza de que eu envenenei Marfa Pietrovna?

- Foste tu! Tu próprio me falaste de um veneno... Sei que andaste à procura dele... Tinha-o preparado... Foste tu e só tu... Canalha!

- Supondo que isso fosse verdade, teria sido por tua causa... Tu é que serias a culpada.

- Mentes! Eu nunca te pude ver, nunca...

- Ai, Avdótia Românovna! Pelo visto já te esqueceste de como te inclinavas para mim, no entusiasmo da catequese, toda embevecida... Vi-o nos teus olhos; lembras-te daquela noite de lua em que até cantava um rouxinol?

- Mentes! - O furor brilhava nos seus olhos. - Mentes, caluniador! - Minto? Bem; suponhamos que minto. Sim, menti. Às mulheres, não convém recordar-lhes certas pequenas coisas - e pôs-se a rir. - Já sei que és capaz de disparar sobre mim, minha linda ferazinha! Vamos, então, dispara!

Dúnia ergueu o revólver, e, mortalmente pálida, o lábio inferior tremente, com os seus grandes olhos negros que chispavam como brasas, apontou e ficou à espera do primeiro movimento do homem. Nunca ele a vira tão bela. O fogo que os seus olhos expediam no momento de erguer o revólver atingiu-o como uma queimadura e o coração confrangeu-se-lhe de dor. Adiantou um passo e ouviu-se um disparo. A bala passou roçando-lhe os cabelos e foi dar atrás das suas costas, na parede. Ele parou a sorrir tranqüilamente.

- A vespa picou-me! Tinha-me apontado à cabeça... Mas que é isto? Sangue! Tirou o lenço para enxugar o sangue que lhe corria num fio finíssimo, pela fronte direita; provavelmente, a bala devia ter-lhe arranhado a pele do crânio. Dúnia largou o revólver e ficou olhando para Svidrigáilov, não com medo, mas com intensa perplexidade. Parecia não compreender o que acabava de fazer, nem o que acontecera.

- Bem, falhou! Atire outra vez, fico aqui à espera - disse tranqüilamente Svidrigáilov, sem deixar de sorrir, mas com uma expressão um tanto sombria. - Senão, terei tempo para agarrá-la, antes que carregue a arma!

Dúnietchka estremeceu, carregou à pressa o revólver e ergueu-o de novo ao alto.

- Deixe-me! - disse desolada. - Juro-lhe que torno a disparar... Eu... o mato!

- Vamos... a três passos de distância é impossível não matar. Mas se não me matar... então... - Os seus olhos brilhavam e adiantou dois passos. Dúnietchka disparou, mas o tiro não saiu.

- Carregou mal! Não importa! Ainda tem uma bala. Arranje-o, que eu espero.

Estava parado diante dela, a dois passos de distância: esperava-a e olhava-a com uma selvagem decisão, com os olhos inflamados de paixão, fixos. Dúnia compreendeu que ele antes morreria do que a deixaria. "E... e não tinha dúvidas de que o mataria, agora que o tinha a dois passos..." De repente, largou o revólver.

- Largou-o! - exclamou Svidrigáilov, atônito, e respirou profundamente. Parecia que qualquer coisa se lhe tirara de súbito de sobre o coração, e isso seria talvez mais do que o simples peso do terror da morte, embora fosse provável que se apercebesse disso naquele instante. Era a libertação de outro sentimento, mais lúgubre e sombrio, que ele mesmo não conseguia definir, por mais que se esforçasse.

Aproximou-se de Dúnia e, suavemente, cingiu-lhe a cintura com a mão. Ela não se opôs, mas, tremendo como a folha de uma árvore, olhou-o com olhos implorativos. Ele quis dizer qualquer coisa, mas não fez mais do que crispar os lábios, como se não fosse capaz de articular um som.

- Deixa-me! - disse Dúnia implorante. Svidrigáilov estremeceu; aquele "tu" foi pronunciado de maneira diferente da anterior.

- Então não me queres? - perguntou-lhe com medo. Dúnia moveu negativamente a cabeça.

- E... não poderás? Nunca? - balbuciou ele com desespero. - Nunca! - murmurou Dúnia.

Houve um momento de espanto e muda batalha na alma de Svidrigáilov, que olhou para a mulher com uma expressão indescritível. De repente deixou cair a mão, deu meia-volta, dirigiu-se rapidamente para a janela e ficou parado diante dela. Decorreu um instante.

- Aqui tem a chave! - Tirou-a do bolso esquerdo do casaco e colocou-a atrás de si, em cima da mesa, sem se voltar nem olhar para Dúnia. - Tome-a e saia imediatamente! - Olhava teimosamente para a janela. Dúnia aproximou-se da mesa para pegar a chave.

- Imediatamente! Imediatamente! - repetia Svidrigáilov sem fazer um movimento e sem se voltar.

Mas percebia-se que naquele "imediatamente" vibrava uma entoação quase terrível. Foi o que pareceu a Dúnia, que pegou a chave, correu para a porta, abriu-a rapidamente e saiu do quarto.

Passado um minuto, como louca, sem se compreender a si mesma, pôs-se a correr para o canal e dirigiu-se à ponte.

Svidrigáilov permaneceu ainda de pé junto da janela, durante três minutos, até que, por fim, devagarinho, voltou-se, relanceou a vista à sua volta e, tranqüilamente, levou a mão à testa. Um estranho sorriso lhe contraiu o rosto, um pobre sorriso, triste, desesperado. O sangue, que já coagulara, ficou-lhe empapado sobre a mão; olhou para o sangue com ódio; depois molhou um lenço e estancou a fronte. De súbito, o revólver que Dúnia largara e que estava ali tombado, junto da porta, chamou-lhe a atenção. Apanhou-o e pôs-se a examiná-lo. Era um revólver pequeno, de bolso, de três tiros, de fabricação antiga; ainda lhe restavam dois carregadores e uma bala. Ainda podia disparar uma vez. Refletiu um momento, guardou o revólver no bolso, pegou o chapéu e saiu.

 

Nessa noite andou vagueando por várias tabernas e espeluncas, de uma para outra. Numa delas encontrou Kátia, a qual cantava outra canção própria da gente servil, alusiva a alguém mau e tirano que tinha ousado beijar Kátia.

Svidrigáilov deu de beber a Kátia e ao rapaz do realejo, e aos cantores, aos criados e a dois escriturariozinhos. Entabulara conversa especialmente com esses dois escriturariozinhos porque tinham o nariz torto: um tinha-o torcido para a direita e o outro para a esquerda, o que impressionou Svidrigáilov. Até que por fim o levaram a um jardim divertidíssimo, onde ele lhes pagou a entrada. Nesse jardim havia, ao todo, um pequeno abeto muito delgado, de uns três anos, e três arbustos. Além disso havia aí um lugar chamado vauxhall (1), mas que na realidade era uma taberna, onde também se podia tomar chá, e havia ainda algumas mesinhas e candeeiros pintados de verde. Alegravam o público um coro de repugnantes cantadeiras e um ou outro alemão de Munique, embriagado, com tipo de camponês, de nariz vermelho, mas, sem se saber por que, muito triste. Os escriturários começaram a envolver-se em discussões com outros escriturários que por ali encontraram e produziu-se uma grande algazarra. Svidrigáilov foi escolhido por eles como árbitro. Julgou-os num quarto de hora, mas eles gritavam tanto que não havia meio de averiguar nada ao certo. Um deles roubara qualquer coisa, vendera-a a um judeu; mas, depois de ter vendido isso, não queria repartir a importância com o companheiro. Verificou-se, finalmente, que o objeto vendido era uma colherzinha de chá que pertencia à casa. Apanhara ali e o caso começava a tomar proporções aborrecidas. Svidrigáilov abonou o valor da colher, levantou-se e abandonou o jardim. Eram cerca de dez horas. Durante todo esse tempo não bebera nem uma gota de vinho, e no vauxhall só tinha tomado chá e apenas por obrigação. Estava uma noite pesada e sombria. Às dez horas começavam a levantar-se por todo lado nuvens terríveis; o trovão ribombou e começou a chover caudalosamente. A água caía, não em grossas gotas mas já sob a forma de verdadeiras torrentes que se precipitavam sobre a terra. Os relâmpagos brilhavam a cada momento e podia contar-se até cinco durante o tempo que durava cada um deles. Molhado até os ossos, encaminhou-se para casa, entrou, fechou a porta, abriu o bureau, tirou dele todo o seu dinheiro e rasgou dois ou três papéis.

 

* (1) Local público de Londres para bailes e concertos, muito em voga no século XVIII, posteriormente imitado em Paris e outras cidades da europa. O termo é empregado aqui no sentido restrito de casa de jogo, cassino. (N. do T.) *

 

A seguir meteu o dinheiro nos bolsos, começou a mudar de roupa, mas, depois de ter olhado a janela e ouvido a tempestade e a chuva, deixou cair as mãos, pegou o chapéu e foi-se, sem fechar a porta. Encaminhou-se diretamente para o quarto de Sônia, que estava em casa. Não estava sozinha; à sua volta estavam os quatro filhinhos da Kapernaúmova. Sófia Siemiônovna tinha-os convidado a tomar chá. Viu entrar Svidrigáilov em silêncio e respeitosamente; reparou, com espanto, no seu traje encharcado, mas não disse uma palavra. Os petizes fugiram todos, apavorados. Svidrigáilov sentou-se à mesa e pediu a Sônia que se sentasse a seu lado. Ela se preparou timidamente para escutá-lo.

- Eu, Sófia Siemiônovna, é possível que vá para a América - disse Svidrigáilov -, e, como, por conseguinte, é muito provável que esta seja a última vez que nos vejamos, vim visitá-la para deixar concluídas algumas disposições. Então foi hoje visitar a tal senhora? Já sei o que ela lhe disse, por isso escusa de contar-mo. - Sônia fez um gesto e corou. - Já sabemos como essa gente é. Quanto aos seus irmãozinhos o caso está arrumado, de fato, e o dinheiro foi posto em nome de cada um, e já o entreguei, contra recibo, onde devia, em boas mãos. Além disso a senhora deve ficar com esses recibos, pode precisar deles. Aqui os tem, guarde-os! De maneira que este assunto já está arrumado. Aqui tem três títulos de cinco por cento; ao todo, três mil rublos. Isto dou-lhe eu à senhora, só à senhora, e não diga nada a ninguém, que ninguém chegue a saber disto, por mais coisas que possa ouvir. Esse dinheiro é-lhe necessário, porque viver como até aqui, Sônia Siemiônovna... é horrível, e agora não é preciso.

- Fico-lhe muitíssimo grata, bem como os pequeninos e a falecida - disse Sônia apressadamente -, e, se até agora ainda não lhe agradeci devidamente... não pense que...

- Ah, pronto, pronto!

- Oh, este dinheiro, agradeço-lho muitíssimo, Àrkádi Ivânovitch, mas, de fato, agora, não preciso dele. Eu, para mim sozinha, sempre terei o suficiente; não leve isto à conta de ingratidão; mas, já que é tão bondoso, este dinheiro...

- É para a senhora, para a senhora, Sônia Siemiônovna, e prescinda de mais cumprimentos, pois, além do mais, não tenho muito tempo. Há de ser necessário. Rodion Românovitch tem à sua frente dois caminhos: ou mete uma bala na cabeça ou raspa-se para Vladímirka (2). - Sônia olhou para ele avidamente e estremeceu. - Não se preocupe, eu sei tudo, da sua própria boca, e não sou tagarela; não o direi a ninguém. O melhor que ele podia fazer seria apresentar-se pessoalmente e confessar tudo. Atenuar-lhe-iam a pena. Bem, vamos lá a ver: como é que hão de ir para Vladímirka? Ele primeiro e a senhora depois? Assim? Dessa maneira?

 

* (2) Expressão idiomática: mandar às galés. Dava-se esse nome à condenação aos trabalhos forçados na Sibéria. Talvez topônimo derivado de algum policial de nome Vladímir. (N. do T.) *

 

Bem, se for assim, isso quer dizer que hão de precisar de dinheiro. Hão de precisar de dinheiro para ele, compreende? Dá-lo à senhora é o mesmo que entregá-lo a ele. Além disso, a senhora tinha-lhe prometido pagar a sua dívida a Amália Ivânovna, segundo ouvi dizer. Mas como é que a senhora, Sófia Siemiônovna, toma tais compromissos e deveres tão levianamente? Porque quem devia a essa alemã era Ekatierina Ivânovna e não a senhora; por isso podia mandar passear a alemã. Assim não se pode viver neste mundo. Bem; agora, escute: se alguém lhe perguntar um dia por mim ou a meu respeito, amanhã ou depois de amanhã (e hão de perguntar, com certeza), não fale nesta visita que eu lhe fiz, nem mostre a ninguém o dinheiro que acabo de dar-lhe. E, agora, até a vista - levantou-se da cadeira. - Os meus cumprimentos a Rodion Românovitch. E, a propósito, dê o dinheiro a guardar até o momento oportuno, ainda que seja ao senhor Razumíkhin. Conhece o senhor Razumíkhin? Com certeza que deve conhecê-lo. É um bom rapaz. Leve-lho amanhã, ou quando tiver tempo. Mas entretanto guarde-o bem.

Sônia levantou-se também e olhou para ele assustada. Queria dizer-lhe alguma coisa, perguntar-lhe alguma coisa; mas nos primeiros momentos não se atrevia nem sabia como havia de começar.

- De maneira que... Como é que o senhor vai sair, assim, com esta chuva? - Ora! Então eu vou partir para a América e havia de ter medo da chuva, he, he! Adeus, caríssima Sófia Siemiônovna! Tenha muita saúde e viva muitos anos, porque há de ser muito útil a toda a gente. A propósito... diga ao senhor Razumíkhin que eu lhe mando cumprimentos. Diga-lhe assim: "Arkádi, vamos, Ivânovitch Svidrigáilov apresenta-lhe os seus cumprimentos". Não se esqueça.

Saiu deixando Sônia estupefata, assustada e possuída de uma vaga e aborrecida suspeita.

Sucedeu depois que nessa mesma noite, à meia-noite, fez ainda Svidrigáilov outra excêntrica e inesperada visita. Ainda não parara de chover. Todo molhado, dirigiu-se à meia-noite ao mesquinho cubículo onde viviam os pais da noiva, na ilha Vassílievski, na Terceira Linha, no Próspekt Máli. Chamou em voz alta e, a princípio, provocou grande alarma; mas Arkádi Ivânovitch, quando queria, era um homem de modos sedutores; de maneira que a primeira suspeita (aliás muito justificada), dos pais da noiva, de que Arkádi Ivânovitch se tinha provavelmente embriagado em qualquer lugar e já não sabia o que fazia... acabou por se desfazer automaticamente. A condescendente e discreta mãe da noiva ofereceu a poltrona do marido paralítico, e conforme era seu costume, começou a dirigir-lhes perguntas indiretas. (Essa senhora nunca fazia perguntas francas, e começava sempre por sorrir e esfregar as mãos, e depois, se precisava de informar-se de qualquer coisa de maneira certa e precisa, por exemplo, para quando pensava Arkádi Ivânovitch marcar a data do casamento, começava a fazer perguntas cheias de curiosidade e até prementes acerca de Paris e da vida da alta sociedade parisiense, e depois ia-se aproximando gradualmente da Terceira Linha da ilha Vassílievski.) Tudo isso, noutra ocasião, teria inspirado, sem dúvida, um grande respeito; mas naquele momento Arkádi Ivânovitch parecia particularmente impaciente e manifestara imediatamente o desejo de ver o mais depressa possível a sua noiva, embora lhe tivessem dito que já estava deitada. Escusado será dizer que ela apareceu logo. Arkádi Ivânovitch participou-lhe, sem rodeios, que precisava de ausentar-se por algum tempo de Petersburgo para tratar de um assunto importantíssimo, e por isso deixava-lhe quinze mil rublos, sob várias formas, e pedia-lhe que os aceitasse a título de presente, já que pensara oferecer-lhe essa bagatela antes do casamento. Não havia relação lógica entre o presente, a viagem iminente e a necessidade imprescindível de aparecer ali, com aquela chuva, e à meia-noite; mas ninguém lhe fez a mínima objeção. Até os inevitáveis oh! e ah! perguntas e espantos foram muito comedidos e discretos; em compensação demonstrara-lhe a sua gratidão nos termos mais calorosos e exaltados e não faltaram nem mesmo as lágrimas da discreta mãe. Arkádi Ivânovitch levantou-se e pôs-se a rir, deu à noiva um beijo e uma palmadinha na face, afirmou-lhe que não tardava a estar de volta e, apercebendo nos seus olhos uma espécie de curiosidade infantil, e ao mesmo tempo uma séria e tácita interrogação, reconsiderou um pouco, tornou a beijá-la e lamentou sinceramente que o pequeno presente que acabava de dar-lhe fosse parar imediatamente às mãos da discreta mamã, que o guardaria a chave, muito bem guardado. Saiu deixando todos num estado de extraordinária agitação. Mas a compassiva mamacha resolveu imediatamente, em voz baixa e sem pensar, algumas dúvidas gravíssimas e, sobretudo, considerou que Arkádi Ivânovitch era um homem importante, um homem que tinha negócios, negócios, relações ricas... Sabe Deus o que ele teria resolvido lá para consigo; devia ter pensado bem e partia, considerava isso oportuno e deixava aquele dinheiro, o que, com certeza, não tinha nada de extraordinário! É verdade que era estranho ele ter-se apresentado ali todo encharcado, mas os ingleses, por exemplo, ainda eram mais excêntricos, e isso para não falar nessas pessoas da alta sociedade que não se preocupam com o que possam dizer delas e não estão com cerimônias. Era até muito provável que se tivesse apresentado intencionalmente ali, daquela maneira, para demonstrar que não tinha medo de nada. Mas o mais importante era não dizer uma palavra a ninguém, pois só Deus sabia como é que tudo aquilo viria ainda a acabar; quanto ao dinheiro, o melhor era ir fechá-lo imediatamente a chave, e era uma sorte que Fiedóssia estivesse lá para a cozinha e, sobretudo, era preciso não dizer absolutamente nada do que se passara à Resslich etc. etc. Ficaram acordados tagarelando em voz baixa até as duas. Aliás, a noiva foi dormir muito mais cedo, admirada e um pouco triste.

Quanto a Svidrigáilov, atravessava às doze em ponto a ponte de..., em direção ao lado petersburguês. A chuva parara, mas o vento zunia. Começou a tremer e, por um instante, com certa curiosidade e até de um modo interrogativo, olhou para as águas do Pequeno Nievá. Mas a seguir pensou que apanhava frio estando assim parado em cima da água; deu meia-volta e encaminhou-se para o Próspekt... Caminhou bastante tempo pelo interminável Próspekt; cerca de meia hora, tropeçando na escuridão por mais de uma vez, no piso de madeira, mas sem deixar de procurar com curiosidade qualquer coisa no lado direito da avenida. Ao longe, no fim da avenida, notara ao passar por ali, não havia muito, uma estalagem de madeira, mas ampla, e o seu nome, tanto quanto podia recordar, era qualquer coisa assim como Adrianopol. Não se enganara nos seus cálculos: aquele hotel, que ficava no extremo dum bairro, era um ponto tão visível que se podia distinguir até no meio da escuridão. Era um grande edifício, comprido, de madeira, denegrido, no qual, apesar da hora avançada, havia ainda luz e se notava certa animação. Entrou e pediu um número – isto é, um quarto - ao criado que veio recebê-lo. O criado olhou Svidrigáilov de alto a baixo, espreguiçou-se e conduziu-o a um quarto afastado, abafado e pequeno, ao fundo do corredor, a um canto, ao pé da escada. Não havia outro; estavam todos ocupados. O criado ficou a olhá-lo interrogativamente.

- Há chá? - perguntou Svidrigáilov. - Pode-se arranjar.

- Que mais há?

- Carne assada, aguardente, aperitivos. - Traze-me carne assada e chá.

- Não deseja mais nada? - perguntou o criado com certa perplexidade. - Mais nada, mais nada!

O homem afastou-se completamente desiludido. "Deve ser um lugar magnífico", pensou Svidrigáilov. "Como é que não havia de conhecê-lo! Naturalmente devo ter o ar dum homem que regressa de algum café-concerto

e teve alguma aventurazinha pelo caminho. No entanto será curioso saber que espécie de gente vem aqui dormir à noite!"

Acendeu a vela e inspecionou mais demoradamente o aposento. Era um cacifro tão pequeno que Svidrigáilov quase batia com a cabeça no teto, e tinha apenas uma janela; uma cama muito suja, uma mesa simples, pintada, e uma cadeira ocupavam quase completamente o espaço do quarto. As paredes pareciam formadas de sólida madeira, forradas de papel velho e desbotado, a tal ponto cheio de pó e esfrangalhado que mal se podia adivinhar a sua cor (amarelo), e, quanto ao desenho, era impossível distingui-lo. Uma parte da parede e do teto era inclinada obliquamente como os das águas-furtadas, e por cima desse declive passava a escada. Svidrigáilov deixou a luz, sentou-se na cama e ficou pensativo. Mas um estranho e contínuo murmúrio, que às vezes chegava quase a transformar-se num grito, acabou por prender-lhe a atenção. Esse murmúrio não cessara um momento desde que ali entrara. Pôs-se à escuta, ouviu alguém que censurava e, quase chorando, invectivava outra pessoa, mas só se ouvia uma voz. Svidrigáilov levantou-se, cobriu a vela com a mão, e imediatamente uma frincha brilhou na parede; aproximou-se e olhou. Naquele quarto, um pouco maior do que o seu, havia dois hóspedes. Um deles, sem sobretudo, com uma cabeça muito desgrenhada e uma cara vermelha e congestionada, estava de pé, numa atitude oratória, de pernas excessivamente abertas para manter o equilíbrio e, dando socos no peito, censurava pateticamente o outro, dizendo-lhe que era miserável, que nem sequer tinha um ofício, que ele o tirara da lama, e, quando quisesse, poderia atirá-lo outra vez para lá, e que de tudo isso só Deus era testemunha. Aquele que era recriminado estava sentado numa cadeira e mostrava o aspecto dum homem que tem muita vontade de espirrar e não pode. De quando em quando pousava uns olhos mortiços e compungidos no orador, mas era evidente que não percebia nada do que aquele queria dizer e mal o escutava. Em cima da mesa acabava de consumir-se uma luz e viam-se aí também uma garrafa de aguardente, quase vazia, copos pequenos, e um serviço de chá, que já tinha sido utilizado. Depois de observar atentamente aquele quadro, Svidrigáilov afastou-se da frincha com indiferença e sentou-se outra vez na cama.

O criado, quando voltou com o chá e com a carne, não pôde conter-se e tornou a perguntar-lhe se não queria mais nada; e, como ouvisse outra vez uma resposta negativa, afastou-se definitivamente. Svidrigáilov atirou se ao chá, para se aquecer, e bebeu um copo; mas não conseguiu comer absolutamente nada por ter perdido completamente o apetite. Começava a sentir febre. Tirou o casaco e a samarra, embrulhou-se no cobertor e deitou-se. Estava contrariado. "Era muito melhor sentir-me bem, agora", pensou, e sorriu com sarcasmo. O ar do quarto era pesado; a luz ardia mortiça; mas lá fora o vento soprava, em qualquer lugar sentia-se bulir um rato, e todo o quarto cheirava a ratos e a couro. Estava deitado e delirava completamente; passava de um pensamento para outro. Parecia que queria fixar na imaginação alguma coisa especial. "Ali, debaixo da janela, deve haver um jardim", pensou, "sente-se o farfalhar das árvores; não me agrada nada o barulho das árvores à noite, quando há tempestade e escuridão; que impressão tão antipática..." E lembrou-se de como, ao passar pouco antes pelo Parque Pietróvski, sentira quase repugnância. Lembrou-se também, a propósito disso, da ponte de... e do Pequeno Nievá, e tornou outra vez a sentir frio, como há pouco... quando parara a olhar a água. "Nunca na minha vida gostei de água, nem sequer na paisagem", pensou outra vez, e tornou-se logo a rir, sarcasticamente, perante um estranho pensamento. "Agora, pelo visto, quanto a estética e comodidade, tudo devia ser-me indiferente, e, no entanto, ponho-me com esquisitices, como o animal que tem de procurar infalivelmente o lugar para o seu ninho... num caso destes. O que eu tinha feito bem era dirigir-me antes para Pietróvski. O céu estava escuro, fazia frio, he! he! Aquilo de que necessitava era precisamente de sensações desagradáveis... E a propósito: por que não apago eu a vela?", e apagou-a. "Os vizinhos já se deitaram", pensou, uma vez que já não viu luz pela fresta. "Pronto, Marfa Pietrovna! Agora podes vir recriminar-me; está tudo às escuras, o lugar não pode ser mais adequado, e o momento tem a sua originalidade. E, no entanto, será precisamente agora que tu não hás de aparecer..."

De súbito, sem saber por quê, lembrou-se de que, havia pouco, antes de ter ido ao encontro de Dúnietchka, recomendara a Raskólhnikov que a entregasse à guarda de Razumíkhin. "No fundo disse-lhe isso por pura fanfarronice, conforme Raskólhnikov calculou. Mas que velhaco, apesar de tudo, é esse Raskólhnikov! Sempre fez uma! Pode ser que, com o tempo, venha a ser um grande homem, quando lhe tiver passado a loucura; mas, por agora, que ânsias tem de viver! Quanto a isso, todos esses tipos são... uns covardes. Mas bem, o diabo que o carregue e que faça o que quiser! E eu?"

Não podia dormir. Pouco a pouco, a imagem recente de Dúnietchka começou a surgir na sua frente, e de repente correu-lhe um tremor por todo o corpo. "Não, deixemos isso, por agora", pensou num instante de lucidez, "é preciso pensar em qualquer outra coisa. Coisa estranha e ridícula; nunca tive tanto ódio a ninguém e nunca tive idéias de vingança, e isso é mau sinal, mau sinal. Também nunca gostei de disputas nem de acalorarme... outro mau sinal. E as promessas que eu lhe fiz... livra, que vá para o diabo! No fim de contas, quem sabe se não teria feito de mim outro homem..." Tornou a calar-se e a ranger os dentes; a imagem de Dúnietchka, tal como era na realidade, apareceu-lhe outra vez, como se fosse ela mesma, quando, ao disparar sobre ele pela primeira vez, sofreu um susto tremendo, atirou fora o revólver e, meio morta, ficou olhando para ele, de tal maneira que ele tivera tempo para apoderar-se dela por duas vezes e ela não teria levantado uma mão para se defender, se ele não a tivesse despertado. Lembrava-se da pena que lhe inspirou naquele instante, de como se sentira confrangido... Ah, que fosse para o diabo! Outra vez essas idéias! É preciso afugentar, afugentar tudo isso!

Finalmente, quedou-se amodorrado; a tremura da febre diminuiu, de repente, pareceu-lhe que qualquer coisa lhe corria por debaixo do cobertor, por cima da mão e da pele. Estremeceu. "Livra, que diabo! Seria um rato?", pensou. "Como deixei a carne em cima da mesa..." Repugnava-lhe muito ter de se destapar, levantar e apanhar frio; mas, de súbito, algo de desagradável lhe fez cócegas na pele; atirou com o cobertor e acendeu a vela. Tremendo de febre, agachou-se para examinar a cama... não havia nada; sacudiu o cobertor e, de repente, sobre a cama, saltou, lépido, um rato. Correu para apanhá-lo; mas o rato não corria por cima da cama, ziguezagueava por todos os lados, esgueirava-se-lhe de entre os dedos, escapulia-se-lhe pela mão acima e, de repente, ia e metia-se por debaixo da almofada. Puxou da almofada, mas por um momento sentiu que qualquer coisa lhe saltara sobre o ventre, lhe fazia cócegas por todo o corpo e até pelas costas, por debaixo da camisa. Começou a sentir um tremor, enervou-se e pôs-se alerta. O quarto estava às escuras e ele estendido no leito, embrulhado, como há pouco, no cobertor; junto da janela assobiava o vento. "Que nojo!", pensou com aborrecimento.

Levantou-se e sentou-se na beira da cama, de costas para a janela. "O melhor é não dormir", resolveu. Demais entravam frio e umidade pela janela; sem se levantar do seu lugar, puxou pelo cobertor e embrulhou-se nele. Não acendera a luz. Não pensava nem queria pensar em coisa alguma; mas os sonhos sucediam-se uns atrás dos outros, e pelo seu cérebro deslizavam fragmentos de idéias, sem princípio nem fim, e sem coerência. Parecia que tinha caído num meio torpor. O frio, o aspecto lúgubre daquele quarto, o vento que zunia e sacudia as árvores junto da janela, tudo isso lhe infundia uma propensão e um desejo tenazes e fantásticos... mas, afinal, só via flores. A sua imaginação mostrou-lhe uma paisagem admirável; um dia claro, tépido, quase quente, um dia de festa, o dia da Trindade. Uma chácara no campo, rica, luxuriante, de estilo inglês, toda rodeada de túrgidos viveiros de flores e de platibandas que davam volta à quinta; a pequena escada, afogada em trepadeiras e coberta de rosas; na escada principal, clara e fresca, atapetada com uma passadeira, havia em cada degrau jarros chineses com flores raras. Reparou especialmente nuns vasos com água, que havia nas janelas, e que tinham narcisos brancos, que se inclinavam sobre os seus longos caules, esguios e vaporosos, de forte aroma. Não queria afastar-se deles, mas subia a escada e entrava num grande salão, de teto alto; e aí também havia flores por todos os lados, junto das janelas e em volta da porta aberta sobre o terraço, e no próprio terraço. O chão estava todo atapetado de erva recém-cortada e cheirosa; as janelas abertas; um ar fresco, leve, penetrava no salão; os passarinhos gorjeavam junto das janelas e no meio do aposento, em cima da mesa, coberta com uma toalha branca de cetim, havia um caixão. Esse caixão estava forrado de tecido branco de Nápoles, guarnecido com uma ruché. E rodeado de grinaldas de flores por todos os lados. Dentro dele jazia, completamente envolvida pelas flores, uma moça toda vestida de branco, com as mãos cruzadas sobre o peito, como se fossem esculpidas em mármore. Mas tinha os cabelos, de um louro claro, revoltos e molhados; uma coroa de rosas lhe cingia a fronte. O severo e já rígido perfil do seu rosto parecia também esculpido em mármore; mas o sorriso dos lábios pálidos deixava transparecer uma certa tristeza infantil, uma vaga e grande dor. Svidrigáilov conhecia aquela moça; em volta do caixão não havia imagens sagradas nem brandões, e não se ouvia o rumor das orações. Aquela moça matara-se... afogando-se. Parecia não ter mais de catorze anos; mas já tinha os sentimentos formados e perdera-se, ofendida por uma afronta que enchera de horror e de assombro a sua terna, infantil consciência, tinha repleta de imerecida vergonha a sua alma de angélica pureza, arrancando-lhe um supremo grito de desolação que ninguém ouvira, mas que ressoara agudamente na noite escura, nas trevas, no frio, no úmido degelo, quando o vento soprava.

Svidrigáilov acordou, levantou-se da cama tateando, abriu a janela do quarto. O vento irrompeu impetuoso no seu apertado tugúrio e, como um sopro glacial, açoitou-lhe o rosto e o peito, unicamente coberto pela camisa. De fato, por debaixo da janela devia haver qualquer coisa semelhante a um jardim, e, segundo parecia, de recreio; provavelmente durante o dia entoariam ali canções e serviriam chá nas mesinhas. Agora, das árvores e dos arbustos caem grossas gotas de chuva na janela; a noite era um poço de escuridão, a tal ponto que mal podiam distinguir-se algumas manchas informes, indicativas dos objetos. Svidrigáilov agachou-se e, apoiando os cotovelos no parapeito, ficou olhando uns cinco minutos, sem poder afastar os olhos daquela escuridão. No meio do nevoeiro e da noite ouviu-se um estampido de canhão, e depois outro.

"Ah, é o sinal! As águas crescem" (3), pensou, "quando amanhecer infiltrar-se-ão por ali, onde a terra está mais baixa; estender-se-ão pelas ruas, inundarão os porões e as covas, farão sair as ratazanas dos porões, e, no meio da chuva e do vento, as pessoas, coitadas, pôr-se-ão a lançar insultos, todas molhadas, enquanto mudam os móveis para os andares mais altos... Mas que horas serão neste momento?" E ainda mal o dissera quando, num relógio de parede que devia haver por ali perto, soaram as três, como se estivessem com muita pressa. "Ah, dentro de uma hora amanhecerá! Para que esperar mais? Sairei já e seguirei direito a Pietróvski; ali, em qualquer lugar, escolho um grande maciço de verdura todo regado pela chuva, de maneira que, assim que o roce com o ombro, milhões de gotas orvalhem a cabeça duma pessoa..."

Afastou-se da janela, acendeu a vela, pôs o colete e o casaco, enfiou o chapéu e saiu com a vela para o corredor, à procura do criado, que dormia num cubículo, entre toda espécie de trastes e de velhos utensílios, para entregar-lhe a conta do quarto e despedir-se do hotel. "É este o melhor momento; não podia escolher melhor."

 

* (3) Na Fortaleza de Pedro e Paulo a subida das águas do Nievá era anunciada por disparos de canhão. (N. do T.) *

 

Caminhou durante bastante tempo por todo o comprido corredor, ainda dentro de casa, sem encontrar ninguém, e dispunha-se já a chamar com voz forte, quando, de repente, descobriu um estranho objeto entre um velho armário e a porta, qualquer coisa que parecia viva. Agachou-se com a vela na mão e viu com espanto que era uma criança, uma pequenina de uns cinco anos no máximo, embrulhada num vestidinho todo molhado, como um pano de cozinha, trêmula e chorosa. Parecia não ter medo nenhum de Svidrigáilov, mas olhava-o com os seus grandes olhos negros, de profundo assombro, e de quando em quando soluçava como as crianças que choraram muito mas que, embora se tenham já calado e até distraído, ainda não se aquietaram completamente e soluçam de quando em quando. A carinha da menina estava pálida e tinha um ar cansado; estava transida de frio; mas... "Como teria ela ido parar ali? Provavelmente ter-se-ia escondido aqui e não deve ter dormido durante toda a noite." Começou a fazer-lhe perguntas. A pequenina, então, animou-se e, muito depressa, disse-lhe qualquer coisa na sua linguagem infantil. Falava de mámassia e de que a mámassia lhe bateria por culpa de uma tigela que ela tinha partido. A garota falava sem parar; podia calcular-se, por toda aquela tagarelice, que se tratava de uma pequenina que não queriam em casa, à qual a mãe, alguma cozinheira, eternamente embriagada, provavelmente daquele mesmo hotel, batia e metia medo; que a pequenina partira uma tigela da sua mamacha e que ficara tão amedrontada que fugira de casa naquela tarde; com certeza que devia ter estado escondida em qualquer lugar, no pátio, suportando a chuva, e, finalmente, ter-se-ia vindo meter ali, escondendo-se atrás do armário, e ali teria passado a noite inteira, chorando, tremendo de frio, de medo da escuridão, e de que agora lhe batessem também por tudo aquilo. Pegou-lhe na mão, levou-a para o seu quarto, sentou-a na cama e começou a despi-la. Os sapatos rotos da menina, nos seus pés sem meias, estavam tão molhados como se ela tivesse passado a noite deitada num charco. Após tê-la despido, deitou-a na cama e cobriu-a dos pés à cabeça com a manta. Depois disso tornou a pensar, mal-humorado:

"Eu não estou, agora, para tomar compromissos!", decidiu de repente, com uma impressão de contrariedade e de cólera. "Que absurdo!" Aborrecido, pegou na vela com o fim de encontrar o criado a todo o custo e sair dali logo a seguir. "Ora, ainda está nos cueiros!", pensou, soltando uma praga. E já abrira a porta quando tornou a olhar outra vez para a pequenina, para ver se dormia e como dormia. Com muito cuidado, levantou a manta. A criancinha dormia com um sono profundo e plácido. Aquecera-se debaixo do pano e as cores tinham já afluído à sua carinha pálida. Mas, coisa estranha: aquelas cores eram mais ardentes e intensas do que costumam ser as cores das crianças. "É o ardor da febre", pensou Svidrigáilov, "mas parece mesmo... o rubor do vinho; dir-se-ia que bebeu um grande copo. Os lábios vermelhos ardem-lhe, deitam fogo; mas que é isto?" De repente pareceu-lhe que as suas compridas e negras pestanas se punham a tremer e a palpitar, como se se erguessem, e por debaixo delas escapava-se um olhar malicioso, trocista, nada infantil, como se a pequenina estivesse fingindo que dormia. Sim, é isso: os seus lábios estremecem num sorriso, as comissuras tremem-lhe, como se ainda se reprimisse. Mas eis que deixou já completamente de reprimir-se; e agora o riso brotou já, um riso sarcástico. Algo de insolente, de provocante, brilha naquele rosto, que nada tem de infantil; é o vício, é o rosto de uma camélia (4), o descarado rosto de uma camélia francesa. Sem estar já com fingimentos, abriu os dois olhos, que lançam o seu olhar inflamado e impudico, o chamam, sorriem... Algo de infinitamente monstruoso e afrontoso havia naquele sorriso, naqueles olhos, em toda aquela vileza num rosto de menina. "O quê?! Aos cinco anos!", balbuciou Svidrigáilov espantado. "Mas... será possível?" E eis que ela se voltou já para ele, com toda a sua carinha afogueada, e lhe estendeu os braços. "Ah, maldita!", chama Svidrigáilov com horror, erguendo a mão sobre ela... Mas nesse instante acordou.

Achou-se na sua cama, enrodilhado no cobertor: a vela já estava gasta e na janela branqueava a luz do novo dia.

"Toda esta noite foi um autêntico pesadelo!"

Levantou-se de mau humor, sentindo o corpo todo moído; doíam-lhe os ossos. No pátio havia ainda uma grande escuridão e não distinguia nada. Eram perto de cinco horas; dormira demasiado. Levantou-se, pôs o colete e o casaco, ainda úmidos. Apalpou o revólver no bolso, tirou-o e pôs-lhe uma bala; depois sentou-se, tirou um pequenino caderno do bolso e, sobre a mesa de cabeceira, escreveu rapidamente algumas linhas na folha mais visível. Releu-as, ficou pensativo e apoiou os cotovelos na mesa. O revólver e o caderninho estavam ali, debaixo do seu cotovelo. As moscas, que tinham já despertado, atiravam-se à travessa do assado, que ali ficara intato também, em cima da mesa. Olhou-as durante muito tempo e, finalmente, pôs-se a ver se apanhava uma mosca com a mão direita, que tinha livre. Esforçou-se durante muito tempo por ver se o conseguia, mas em vão. Por fim, ao dar consigo próprio naquela interessante ocupação, tornou a si, estremeceu, levantou-se e saiu resolutamente do quarto. Um minuto depois estava na rua. Uma névoa densa e leitosa pesava sobre a cidade. Svidrigáilov dirigiu-se ao escorregadio e sujo piso de madeira, com rumo ao Pequeno Nievá. Em imaginação via as águas do Pequeno Nievá, que crescera durante a noite, a ilha Pietróvski, os carreirinhos molhados, a erva úmida, as árvores e os arbustos molhados e, finalmente, aquele maciço... Contrariado, pôs-se a olhar para as casas com o fim de pensar em qualquer outra coisa.

Em toda a avenida não se via nenhuma carruagem, nenhum transeunte.

 

* (4) Alusão à Dama das Camélias. (N. do T) *

 

As pequenas casas de madeira tinham uma aparência insignificante e suja, de um amarelo-claro, com as suas janelas fechadas. O frio e a umidade deixavam-lhe o corpo transido e começou a tiritar. De quando em quando parava diante das vitrinas das lojas de comestíveis, ou das casas de frutas, e punha-se a vê-las com toda a atenção. "Até que enfim se acabou o passeio de tábuas!" Estava junto dum grande prédio de pedra. Um cãozinho sujo, tiritando, de rabo entre as pernas, cruzou o seu caminho. Alguém, perdido de bêbado, embrulhado num capote, jazia caído de bruços e atravessado no meio do passeio. Olhou-o um momento e seguiu para diante. À esquerda surgiu uma torre alta. "Ora!", pensou. "Aqui também há lugar. Para que hei de ir até Pietróvski? Pelo menos há uma testemunha oficial..." Esteve quase a rir-se daquele novo pensamento, e voltou à esquina da Rua de ... Erguia-se aí um alto edifício com uma torre. À porta fechada da casa encostava-se um homenzinho baixo, que vestia um casaco cinzento de soldado e cobria a cabeça com um aquileu capacete de bronze. Quando Svidrigáilov passou, olhou-o de soslaio com olhos sonolentos. Notava-se no seu rosto essa eterna melancolia que tão acentuadamente se imprime, sem exceção, em todos os rostos de raça hebraica. Contemplaram-se ambos, Svidrigáilov e Akhiles, durante um momento, em silêncio, mutuamente.

Até que aquele indivíduo acabou por parecer um tanto estranho a Akhiles, que, embora não estivesse embriagado, se especara diante dele, olhando-o a três passos de distância e sem dizer nada.

- Que procura por aqui? - disse, sem se mexer e sem mudar de posição. - Eu, nada, meu caro. Bom dia - respondeu Svidrigáilov.

- Isto não é lugar...

- Eu, meu amigo, vou para o estrangeiro. - Para o estrangeiro?

- Para a América. - Para a América?

Svidrigáilov puxou do revólver e pôs uma bala no tambor. Akhiles franziu o sobrolho.

- A que propósito vem essa gracinha? Isto não é lugar. - E por que não é lugar?

- Porque não.

- Bem, meu amigo, tanto faz. É um bom lugar; se te perguntarem, dirás, com mil diabos, que fui para a América.

Apoiou o revólver sobre a fronte direita.

- Ah, isso não, aqui não é lugar! - gritou Akhiles, abrindo cada vez mais os olhos. Svidrigáilov deu ao gatilho...

 

Nesse mesmo dia, mas já perto da noite, Raskólhnikov foi ver a mãe... naquele mesmo quarto, na casa de Bakaliéiev, que Razumíkhin lhes arranjara. A escada começava logo da rua. Raskólhnikov principiou a subir, retendo no entanto os passos e como se titubeasse. Entraria ou não? Mas não voltou atrás; a sua resolução estava tomada. "Além disso, tanto faz; elas não sabem nada", pensou, "e já estão acostumadas a olhar-me como um ser estranho..." Tinha a roupa num estado deplorável, toda suja, enrugada e esfarrapada por ter passado a noite inteira debaixo de chuva. O rosto quase desfigurado pelo cansaço, pelo mau tempo, pela fadiga física e por aquela luta de quase vinte e quatro horas consigo mesmo. Passara toda essa noite sozinho, sabe Deus onde. Mas pelo menos tomara uma resolução.

Chamou à porta; foi a mãe quem veio abrir. Dúnietchka não estava em casa e a criada também não. A princípio, Pulkhiéria Alieksándrovna ficou muda de alegre espanto; depois pegou-lhe na mão e puxou-o para dentro do quarto.

- Ah, és tu! - exclamou, balbuciando de pura alegria. - Não fiques aborrecido comigo, Rodka, por te receber assim, tão tolamente, de lágrimas nos olhos; mas é porque estou-me rindo e não a chorar. Julgas que estou chorando? É de alegria, tenho este costume tão tolo: saltam-me as lágrimas. Isto acontece-me desde que o teu pai morreu, por qualquer coisa fico logo chorando. Mas senta-te, querido, que deves estar cansado, eu bem vejo. Ah, e como estás sujo!

- Apanhei uma chuvarada ontem, mamacha - disse Raskólhnikov. - Não, não! - exclamou Pulkhiéria Àlieksándrovna interrompendo-o. - Tu julgas que eu vou pôr-me a fazer-te perguntas segundo o meu antigo costume de bisbilhoteira, mas não; fica sossegado. Eu, agora, sabes, compreendo tudo, compreendo tudo; agora já me habituei a isto, aqui, e vejo muito bem que é o melhor. Tomei esta resolução para comigo mesma: "Para que hei de meter-me a adivinhar-te os pensamentos e pedir-te contas de tudo?" Sabe Deus os problemas e os planos que tu terás na cabeça, os pensamentos que andarás amadurecendo. Para que havia eu de obrigar-te a dizeres aquilo em que pensas? Qual! Porque, olha, eu... Ah, meu Deus! Mas por que hei de andar eu a esbracejar para aqui e para ali, como se me sentisse asfixiada? Rodka, fica sabendo que li o teu artigo no jornal três vezes seguidas; foi Dmítri Prokófitch que mo trouxe. Lancei um grito de surpresa quando o vi, porque eu, tonta que sou, pensava: "Olha, vê no que ele se ocupa: aí tens a explicação de tudo. Acontece o mesmo a todos os sábios. Pode ser que ele ande revolvendo novas idéias na sua cabeça neste momento, que esteja a amadurecê-las, enquanto eu o importuno e distraio". Li o teu artigo, meu querido, e é claro que não compreendo muitas coisas que há nele, e, aliás, é assim mesmo. Como é que eu havia de compreender tudo?

- Mostre-mo, mamacha.

Raskólhnikov pegou o jornal e lançou uma vista de olhos ao seu artigo. Por muito que estivesse em contradição com a sua situação e estado atuais, experimentou um estranho sentimento de acre doçura, como experimenta todo o autor que vê pela primeira vez impressa qualquer coisa sua; além disso tinha vinte e três anos. Isso durou apenas um instante. Depois de ler algumas linhas, franziu o sobrolho e uma tristeza horrível se apoderou do seu coração. Toda a sua luta espiritual dos últimos meses lhe veio de uma vez à memória. Atirou com o artigo para cima da mesa, com repugnância e aborrecimento.

- Mas olha, Rodka, por muito ignorante que eu seja, consegui compreender que, dentro de pouco tempo, tu serás uma das primeiras figuras do nosso mundo literário. E esses a pensarem que tu tinhas enlouquecido. Ah, ah, ah! Tu não sabes que eles chegaram a pensá-lo? Coitados! Como poderiam compreender que tu tinhas tanto talento? E olha, fica sabendo que até Dúnietchka, até Dúnietchka estava quase a dar-lhes razão. Que dizes a isto? O teu falecido pai também enviou por duas vezes coisas aos jornais: primeiro, versos (ainda conservo um caderninho, hei de mostrar-to um dia), e depois uma novela completa (eu própria lhe pedi que me deixasse copiá-la), e, apesar dos grandes esforços que nós fizemos para que as publicassem... não quiseram. Eu, Rodka, há seis ou sete dias que andava ralada pensando na roupa que trazes, na maneira como tu vives, no que comerás e por onde andas. Mas agora vejo bem como fui tola, porque, agora, tudo quanto tu quiseres hás de consegui-lo facilmente com o teu talento e a tua inteligência. Simplesmente, por agora não desejas nada e dedicas-te a coisas muito mais importantes...

- Dúnia não está em casa, mamacha?

- Não, Rodka. Agora não pára muito em casa, deixa-me sozinha. Dmítri Prokófitch, Deus lhe pague, vem fazer-me companhia, e não faz outra coisa senão falar-me de ti. Não quero falar da tua irmã, visto que ela me trata agora com muita indiferença. Mas não julgues que me queixo. Ela tem o seu feitio, e eu, o meu; ela guarda os seus pequenos segredos, e eu não tenho nenhuns para vocês. Claro que eu estou convencida de que Dúnia é muito sensata, e que além disso gosta de nós dois; mas no entanto não sei em que acabará tudo isto. Deste-me uma grande alegria por teres vindo, Rodka, porque ela saiu; quando voltar digo-lhe: "Esteve aqui o teu irmão e não te encontrou. Por onde é que andaste?" Tu, Rodka, não te contraries por minha causa; se puderes, vens, senão... não venhas, não te preocupes, que eu esperarei. Eu já sei que tu gostas de mim e é quanto me basta. Lerei as tuas obras, ouvirei falar de ti a toda a gente, ainda que não, não... irei eu mesma informar-me, é o melhor. Agora vieste para consolar a tua mãe, não julgues que não compreendo...

E, de súbito, Pulkhiéria Alieksándrovna rompeu a chorar.

- Lá estou eu outra vez com isto! Não faças caso, eu sou uma tola! Ah, meu Deus, então não estou eu aqui sentada? - exclamou, saltando do seu lugar. - E tenho aqui café e não to ofereço! É para que se veja o egoísmo dos velhos! Eu já venho, eu já venho!

- Deixe, mámienhka, que eu já me vou embora. Não vim por causa disso. Olhe, faça favor de me escutar.

Pulkhiéria Alieksándrovna aproximou-se dele timidamente.

- Mámienhka, aconteça o que acontecer e ouça de mim o que ouvir, e digam-lhe de mim o que disserem, querer-me-á sempre o mesmo que agora? - perguntou ele de repente, impetuosamente, como se não se apercebesse das suas palavras nem se detivesse a pesá-las.

- Rodka, Rodka, que tens tu? Como é possível que me perguntes isso? Quem é que me há de dizer mal de ti? Eu não acreditaria em ninguém, fosse quem fosse, expulsá-lo-ia simplesmente de minha frente.

- Vim para lhe afirmar que sempre gostei da senhora e que estou contente por tê-la encontrado agora sozinha e por Dúnietchka não estar em casa - continuou no mesmo ímpeto. - Vim para dizer-lhe com toda a sinceridade que, por muito infeliz que seja, fique certa de que o seu filho a ama mais do que a si mesmo e que tudo isso que a mãe pensava de mim, que eu era um degenerado e não a queria, não era verdade. Eu nunca deixei de amá-la... E pronto, já chega; pareceu-me que devia fazer isto e começar por aqui...

Pulkhiéria Alieksándrovna abraçou-o em silêncio, apertou-o contra o seu peito e chorou brandamente.

- Não sei, Rodka, o que se passa contigo - disse finalmente. - Pensei durante todo este tempo que tu estavas simplesmente farto de mim; mas vejo agora, a avaliar por todos os indícios, que te atingiu algum grande desgosto e que te traz abatido. Já há muito o pressentia. Desculpa que to diga, mas não faço outra coisa senão pensar nisso e, durante a noite, não consigo dormir. A tua irmã também passou esta noite muito inquieta, falava sonhando e dizia o teu nome. Eu ouvi algumas coisas que ela dizia, mas não compreendi nada. Esteve toda a manhã como se a esperasse um suplício, à espera de não sei que, cheia de pressentimentos, e olha... aí está ela. Rodka, Rodka, que te aconteceu? Pensas partir daqui?

- Sim, penso.

- Era isso mesmo que eu supunha! Mas, olha, eu também posso ir contigo, se precisares. E Dúnia também; ela te ama, ama-te muito, e até Sófia Siemiônovna também poderá ir conosco, se for preciso; olha, eu teria muito gosto em perfilhá-la. Dmítri Prokófitch ajudar-nos-á a reunir-nos... Mas... aonde pensas... ir?

- Adeus, mámienhka.

- O quê? É já hoje? - exclamou ela, como se fosse perdê-lo para sempre.

- Não posso demorar-me; já são horas, é indispensável... - E não posso ir contigo?

- Não, mas ajoelhe e suplique a Deus. Talvez a sua prece chegue até Ele.

- Deixa-me persignar-te, abençoar-te! Assim, assim. Oh, meu Deus, que nos teria acontecido!

Sim; ele estava muito satisfeito, estava muito satisfeito porque ninguém estivesse presente, por se encontrar sozinho com a mãe. Era como se depois de todo aquele tempo horrível se lhe abrandasse de repente o coração. Caiu de joelhos, beijou-lhe os pés e choravam os dois abraçados. E, agora, ela já não mostrava nenhum espanto nem lhe fazia pergunta nenhuma. Havia já algum tempo que compreendia que qualquer coisa de horrível se passava com o seu filho e que aquele era para ele um instante decisivo.

- Rodka, meu querido, meu primeiro filho! - disse soluçando. - Agora é como se fosses pequenino, quando vinhas para junto de mim e me beijavas; então ainda o teu pai era vivo, e, quando tínhamos algum desgosto, tu nos servias de consolo por estares conosco e, já depois de o teu pai ter morrido, quantas vezes choramos os dois abraçados, como agora, sobre a sua sepultura! E se eu, há um tempo para cá, choro tanto, é porque o adivinhava o meu coração de mãe, tu bem vês. Assim que te vi a primeira vez naquela noite, lembras-te? Quando acabávamos de chegar de viagem, só de olhar para ti adivinhei tudo, de tal maneira que estremeci toda por dentro, e agora, quando te abri a porta, quando te vi, disse para comigo: "Pronto! Já chegou a hora fatal". Rodka, Rodka, não te vás já, assim, tão depressa.

- Não.

- E virás visitar-me? - Sim... hei de vir.

- Rodka, não te aborreças, porque eu não me atrevo a perguntar-te. Sei que não me atrevo; mas dize-me ao menos duas palavrinhas. Vais para muito longe?

- Para muito longe.

- Mas que te leva para lá? Tens algum fim, é o teu futuro, que é? Dize-me!

- Será o que Deus quiser... Limite-se a pedir por mim... Raskólhnikov dirigiu-se para a porta; mas ela fê-lo parar e ficou a olhá-lo nos olhos com uma expressão desolada. Tinha o rosto transtornado de assombro.

- Basta, mámienhka - disse Raskólhnikov, profundamente arrependido da idéia que tivera de ir ali.

- Não há de ser para sempre! Não há de ser para sempre, não é verdade? Porque tu virás, virás amanhã, sim?

- Virei, virei, adeus! Finalmente, afastou-se. Estava uma tarde fresca, suave e clara; o mau tempo cessara desde a manhã. Raskólhnikov dirigiu-se para sua casa e ia apressado. Queria terminar tudo antes do cair da tarde. Até então não queria encontrar-se com ninguém. Quando subia até o seu quarto reparou que Nastássia, ao retirar o samovar, não tirava os olhos dele e seguia todos os seus gestos. "Não teria estado aqui alguém?", pensou. Lembrou-se de Porfíri com aborrecimento. Mas, ao dirigir-se para o seu quarto e abri-lo, ficou surpreendido por encontrar Dúnietchka. Ela estava ali completamente sozinha, profundamente meditativa, e, segundo parecia, havia já muito tempo que o esperava. Levantou-se do divã, assustada, e parou diante dele. O seu olhar, teimosamente fixo sobre ele, exprimia horror e uma dor infinita. E bastou aquele olhar para ele compreender imediatamente que ela sabia tudo.

- Devo entrar ou ir-me embora? - perguntou ele, receoso.

- Passei todo o dia com Sófia Siemiônovna; estivemos as duas à tua espera. Pensávamos que, com certeza, irias até lá.

Raskólhnikov entrou no quarto e deixou-se cair sobre uma cadeira, assustado.

- Estou um pouco fraco, Dúnia; muito cansado; e queria, neste momento, ter pleno domínio sobre mim próprio.

Olhou rapidamente para ele, desconfiada. - Onde estiveste toda a noite passada?

- Não me lembro bem; olha, minha irmã, eu queria acabar, e por mais de uma vez me aproximei do Nievá; só disso é que me lembro. Queria acabar ali para sempre; mas... faltou-me a coragem... - balbuciou, tornando a olhar para Dúnia, receoso.

- Louvado seja Deus! Era isso que nós receávamos, eu e Sófia Siemiônovna! Afinal, ainda acreditas na vida; louvado seja Deus, louvado seja Deus! Raskólhnikov pôs-se a rir sarcasticamente.

- Eu não acreditava em nada disso; mas ainda há pouco estive abraçado à mãe, a chorar juntamente com ela; e pedi-lhe que rezasse por mim. Talvez Deus saiba o que isto significa, porque eu não o compreendo.

- Estiveste com a mãe? E disseste-lho? - exclamou Dúnia horrorizada. - Tiveste coragem para lhe dizer?

- Não, não lho disse... por palavras; mas compreendeu, em parte. Ouviu-te delirar esta noite. Tenho a certeza de que já sabe metade, pelo menos; é possível que eu tenha feito mal em ir vê-la. Nem sequer sei por que fui. Eu sou vil, Dúnia.

- És vil e estás disposto a suportar a dor! Porque é o que tu vais fazer, não é verdade?

- É. Agora mesmo. Sim, para evitar esta vergonha é que eu queria atirar-me à água, Dúnia; mas quando já estava mesmo à beira dela pensei que, se até agora me considerei forte, também não hei de morrer por causa da vergonha - disse, erguendo-se. - Será isto orgulho, Dúnia?

- É orgulho, Rodka.

Uma espécie de fogo brilhou nos seus olhos encovados; lisonjeava-o aquilo de conservar ainda o seu orgulho.

- E não vás imaginar que era a água que me fazia medo - exclamou, olhando-a no rosto com um sorriso indolente.

- Oh, Rodka, basta! - exclamou Dúnia com amargura. Houve dois minutos de silêncio. Ele estava sentado, de cabeça baixa e de olhos fixos no chão; Dúnietchka falava-lhe de pé, no outro extremo da mesa, e contemplava-o com dor. De repente, ele se levantou.

- Esta tarde, chegou o momento. Vou agora mesmo denunciar-me. Mas não sei por que terei de o fazer.

Grossas lágrimas correram pelas faces dela.

- Tu choras, minha irmã, e queres ajudar-me? - Tens dúvidas?

Ele a abraçou com força.

- Então, ao te entregares ao castigo, não lavarás já metade do teu crime? - exclamou ela sem deixar de abraçá-lo e de beijá-lo.

- Crime? Qual crime? - exclamou ele de repente, como se tivesse sido acometido de um furor súbito. - O de ter morto um asqueroso e daninho piolho, uma velha usurária, que não fazia falta a ninguém, cuja morte pode perdoar tantos pecados, e que se alimentava do sangue dos pobres? É isso um crime? Eu não creio que o seja, nem penso em lavá-lo. Porque hão de gritar-me todos, por todos os lados: "É um crime, é um crime!"? Só agora vejo claramente toda a estupidez da minha pusilanimidade, agora que decidi já enfrentar essa vergonha escusada! Foi simplesmente pela minha vileza e fraqueza que tomei essa decisão, e talvez também por conveniência, como supunha esse... Porfíri!

- Irmão, irmão, que estás dizendo? Mas tu não derramaste o sangue? - exclamou Dúnia desolada.

- O que todos derramam - insistiu ele, como se estivesse fora de si -, o que se verte e sempre se há de verter no mundo como uma torrente, o que corre como champanha e pelo qual se coroam no Capitólio e chamam depois benfeitores da humanidade. Bastava que abrisses bem os olhos e olhasses! Eu também queria o bem das pessoas, e teria feito cem, mil boas ações em troca dessa única estupidez, que nem sequer foi estupidez, mas simplesmente uma inépcia, visto que todas essas idéias nunca são tão estúpidas como parecem depois, quando se malogram... (No fracasso tudo parece estúpido!) Com essa estupidez queria eu fixar-me numa posição independente, dar o primeiro passo, arranjar recursos, e então tudo teria ficado compensado com uma utilidade relativamente incomparável... Mas eu, eu não posso agüentar o primeiro passo porque sou... reles! Aí tens tudo! E, no entanto, não posso ver as coisas com os mesmos olhos que tu; se houvesse triunfado, ter-me-iam cingido a coroa, ao passo que, assim, caí por terra!

- Mas isso não é assim, de maneira nenhuma! Irmão, que dizes tu?

- Ah! Não é esta a forma, não é uma forma esteticamente boa! Pronto, não há dúvida de que não consigo compreender! Por que é que prostrar as pessoas com granadas, manter um cerco em forma há de ser uma coisa mais honrosa? A preocupação da estética é o primeiro sinal da impotência! Nunca, nunca reconheci isto mais claramente do que agora, e menos do que nunca compreendo agora o meu crime! Nunca estive tão forte e tão convencido como agora!

As cores tinham subido ao seu pálido e vincado rosto. Mas, ao proferir a última exclamação, os seus olhos encontraram-se com os olhos de Dúnia e percebeu nela tanta, tanta dor que, involuntariamente, dominou-se. Sentia que, apesar de tudo, tornava desgraçadas aquelas duas pobres mulheres. E que, entretanto, ele era a causa disso.

- Querida Dúnia... Sim, eu sou culpado, perdoa-me. Se bem que, a mim, não é possível perdoar-me, desde que eu seja culpado. Adeus! Não vamos agora zangar-nos! Já é tempo, está entardecendo. Não me sigas, peço-te. Ainda tenho de ir... Tu, vai já ter com a mãe. Peço-te! É este o último e o maior favor que te peço! Nunca te separes dela; eu a deixei numa inquietação que lhe há de ser difícil de suportar: ou morre ou enlouquece. Fica a seu lado! Razumíkhin acompanhar-vos-á; foi o que ele disse... Não chores por minha causa; hei de procurar ser corajoso e honesto toda a vida, embora seja um assassino. Pode ser que ouças falar no meu nome alguma vez. Não servirei para vos envergonhar, vais ver; ainda hei de mostrar... mas, por agora, até a vista - apressou-se a concluir, pois observara outra vez uma estranha expressão nos olhos de Dúnia ao proferir as últimas palavras e promessas. - Mas por que choras dessa maneira? Não chores, não chores; olha que não nos separamos para sempre! Ah, sim! Espera, já me esquecia!

Aproximou-se da mesa, pegou um volumoso e poeirento livro, abriu-o e tirou de entre as suas páginas um pequenino retrato a aquarela sobre marfim. Era o retrato daquela filha da senhoria que fora sua noiva e morrera de febres, daquela estranha moça que desejara ser freira. Contemplou por um momento aquele rosto expressivo e dolente, beijou o retrato e entregou-o a Dúnietchka.

- Olha, eu falei muito disso com ela - disse pensativo. - Confiei-lhe muitas coisas a respeito disso que depois me correu tão mal. Não te preocupes - disse, voltando-se para Dúnia -, ela não estava de acordo comigo, como tu também não estás, e estou contente porque ela já não exista. O mais importante, o mais importante, nisto, é que tome agora um novo rumo e que tudo mude - exclamou de repente, recaindo na sua tristeza. - Tudo, tudo. Mas estarei eu preparado para isso? Desejá-lo-ei eu? Dizem que isso há de ser para mim uma experiência necessária! Mas para que, para que todas estas absurdas experiências? Por que hei de eu ver melhor as coisas depois do que as vejo agora, abatido pelos sofrimentos, pela idiotice, pela impotência física, depois de vinte anos de presídio, e para que hei de eu viver depois disso? Por que concordo eu em viver desse modo? Oh, eu não sabia que era covarde, quando esta manhã, ao clarear o dia, me encontrava à beira do Nievá!

Finalmente saíram os dois. Isto custava a suportar a Dúnia; mas ela gostava dele. Caminhou para a frente, e ainda mal andara cinqüenta passos, quando se voltou novamente para olhá-lo. Ao chegar à embocadura de uma rua ele voltou-se também, e os seus olhos encontraram-se pela última vez; mas, quando reparou que ela o olhava, agitou a mão com impaciência e até com aborrecimento, para que ela se fosse embora, e virou rapidamente a esquina.

"Sou mau, bem vejo!", pensava, envergonhando-se, passado um minuto sobre o seu último gesto de aborrecimento para com Dúnia. "Mas por que me amam elas tanto se eu não o mereço? Oh, se eu fosse sozinho e ninguém gostasse de mim e eu também não amasse ninguém! Não aconteceria nada disto! Mas será curioso ver se nesses futuros quinze ou vinte anos a minha alma terá já serenado, ao ponto de eu me pôr a choramingar de enternecimento perante as pessoas e a chamar-me canalha a mim próprio. Sim, é isso, é isso! É para isso que eles me deportam agora; é disso que eles precisam... Eles caminham todos pelas ruas, para um lado e para o outro, e são todos uns canalhas e uns bandidos por natureza; ou pior ainda: são uns idiotas! Mas tenta evitar o presídio e todos eles se sentirão possuídos de uma piedosa indignação! Oh, como eu os aborreço a todos!"

Quedou-se profundamente meditativo, pensando nisto: "Como seria possível que ele acabasse finalmente por se reconciliar com todos eles, sem segunda intenção, se se reconciliasse por uma autêntica convicção? E por que não? Com certeza que tinha de ser assim. Dar-se-ia o caso de que vinte anos de contínua servidão não domariam uma pessoa definitivamente? A água acaba por romper a pedra.

"Mas por que, por que viver depois disso, para que ir para lá agora, quando eu próprio sei que tudo isto haverá de ser precisamente assim, como num livro, e não de outra maneira?" Seria talvez a centésima vez que fazia aquela pergunta desde a noite anterior; mas, no entanto, foi até lá.

 

Quando entrou em casa de Sônia, já escurecia. Sônia estivera todo o dia à espera dele, numa agitação extraordinária. Esperou-o juntamente com Dúnia. Esta fora vê-la de manhã, pois lembrava-se das palavras que ouvira a Svidrigáilov no dia anterior: "Que Sônia sabia tudo". Não nos demoraremos a contar pormenorizadamente o diálogo e as lágrimas das duas mulheres e até que ponto se sentiam irmanadas nos mesmos sentimentos. Nesse encontro Dúnia obteve pelo menos a consolação de saber que o irmão não estava só; para ela, para Sônia, antes de que para qualquer outra pessoa, tinha ido ele com a sua confissão; nela tinha procurado o ser humano quando este lhe fez falta, e agora também ela o acompanharia a ele, conforme o destino ordenasse. Não lhe perguntara; mas sabia que seria assim. Olhava para Sônia até com certa veneração, e, a princípio, esta até se sentira incomodada com esse sentimento devoto com que era tratada. Sônia esteve quase a ponto de chorar; por seu lado, considerava-se indigna mesmo de olhar para Dúnia. Ficara-lhe gravada para sempre na alma, como uma das visões mais belas e sublimes da sua vida, a maneira tão gentil como Dúnia a acolhera no seu primeiro encontro, em casa de Raskólhnikov, saudando-a com tanta deferência e respeito.

Até que Dúnia acabou por não poder suportar mais e deixou Sônia para ir esperar o irmão em sua casa; pensava que seria aí o primeiro lugar onde ele havia de dirigir-se. Quando ficou sozinha, Sônia começou imediatamente a afligir-se com o receio que lhe inspirava a idéia de que, com efeito, ele se tivesse suicidado. Era o mesmo que Dúnia receava também. Tinham ambas passado o dia inteiro a procurarem convencer-se mutuamente, com todo o gênero de razões, de que isso não era possível, e sentiram-se mais tranqüilas enquanto estiveram juntas. Mas agora, assim que se separaram, tanto uma como a outra não faziam mais do que pensar nisso. Sônia lembrava-se de que no dia anterior Svidrigáilov tinha dito que a Raskólhnikov só restavam dois caminhos: Vladímirka ou... Além disso conhecia o seu orgulho, a sua altivez, o seu amor-próprio e a sua incredulidade. "Dar-se-ia o caso de que a falta de coragem e o medo da morte pudessem obrigá-lo a viver?", pensou finalmente, desolada. Entretanto, já o sol se tinha posto. Ela continuava de pé, triste, diante da janela, olhando atentamente para fora... mas daquela janela só podia ver-se o grande paredão denegrido da casa em frente. Até que finalmente, quando estava já convencida da morte do infeliz... ele entrou no quarto.

Um grito de alegria se lhe escapou do peito. Mas, quando olhou atentamente o rosto dele, empalideceu de súbito.

- Bem! - disse Raskólhnikov sorrindo sardonicamente -, venho por causa das tuas cruzes, Sônia. Foste tu mesma quem me disse que fosse ter a uma encruzilhada; que tens tu, agora que tudo vai acabar? Terás medo?

Sônia olhou para ele estupefata. Parecia-lhe estranho aquele tom; um tremor frio lhe correu por todo o corpo, mas compreendeu imediatamente que tanto aquele tom de voz como aquelas palavras eram fingidos. Além disso ele falara-lhe olhando a um canto, e parecia evitar falar-lhe francamente em rosto. - Olha, Sônia, eu pensei que, de fato, talvez isto seja o mais vantajoso. Há uma circunstância... Mas isso demoraria muito a contar, e, além disso, para quê? A mim, fica sabendo, só há uma coisa que me custa. Incomodam-me essas visões estúpidas, bestiais, que vão rodear-me agora, fixar sobre mim os seus olhos fosforescentes, oprimir-me com as suas perguntas tolas, às quais não terei outro remédio senão responder... e apontar-me com o dedo... Apre! Olha, não penso ir ter com Porfíri, estou farto dele. Prefiro dirigir-me ao meu amigo Pórokhov, que ficará espantado e conseguirá um triunfo na sua classe. Mas será preciso ter mais sangue-frio; tenho tido demasiadas birras nestes últimos tempos, acreditas? Há pouco quase ameacei a minha irmã com o punho, só porque ela se voltou para me olhar. É uma porcaria este estado de espírito! Ah, até onde eu cheguei! Bem, vamos lá ver, onde é que estão as cruzes?

Parecia alheado. Nem sequer podia estar um momento sossegado no seu lugar, nem fixar a atenção em nada; os seus pensamentos entrecruzavam-se, confundiam-se; as suas mãos tremiam levemente.

Em silêncio, Sônia tirou duas cruzes de uma caixinha, uma de madeira de cipreste e a outra de cobre, persignou-se, persignou-o a ele, e depois pendurou-lhe ao pescoço a cruz de cipreste.

- Isto é um símbolo, quer dizer que hei de trazer esta cruz em cima de mim, he, he! Como se não tivesse já sofrido bastante até aqui! De madeira de cipreste; isto é, para o povo; de cobre... esta era de Lisavieta, que a trazia... Mostra-ma, deixa-me vê-la! Trazê-la-ia posta naquele momento? Eu também conheço duas cruzes semelhantes: uma de prata, e outra, que tem uma imagenzinha. Nessa altura atirei com elas ao peito da velha. Afinal, também me deviam pôr agora aquelas ao pescoço... Mas, no fim de contas, não faço mais nada senão divagar, esqueci-me do motivo que me trouxe, estou distraído! Olha, Sônia... eu vim com o fim especial de prevenir-te, para que fiques sabendo... Olha, é tudo... Foi só por isso que vim. Hum! No entanto eu queria dizer mais qualquer coisa. Olha, tu própria querias que eu fosse até lá; pois bem, irei para o presídio e cumprir-se-á o teu desejo; mas por que choras? Que te aconteceu? Pronto, já chega; oh, como tudo isto me custa a suportar! - No entanto, um sentimento se ia formando nele; o coração confrangia-se-lhe quando olhava para ela: "Mas por que esta, esta?", pensou para si. "Que sou eu para ela? Por que chora, por que se dispõe a proceder comigo como a minha mãe e Dúnia? Vai ser a minha ama!"

- Persigna-te, reza, ainda que seja apenas uma vez - implorou Sônia com voz trêmula, tímida.

- Oh, todas as vezes que quiseres! E da melhor vontade, Sônia, da melhor vontade! Aliás, queria dizer qualquer outra coisa.

Persignou-se várias vezes. Sônia pegou o lenço e pô-lo na cabeça. Era um lenço verde, aos quadrados, provavelmente o mesmo a que Marmieládov tinha aludido daquela vez, o lenço da família. Essa idéia passou pela cabeça de Raskólhnikov; mas não perguntou nada. De fato, ele próprio sentia que estava muito distraído e que era presa de uma perturbação anormal. Isso assustava-o. De súbito, sentiu-se impressionado por que Sônia quisesse sair ao mesmo tempo que ele. - Que é isso? Onde vais tu? Onde vais tu? Fica aqui, fica aqui! - exclamou com rancor e, quase colérico, dirigiu-se para a porta. - Não preciso de escolta! - resmungou ao sair. Sônia ficou parada no meio do quarto. Ele nem sequer se despediu dela; tinha-a esquecido; uma dúvida dolorosa e teimosa se agitava na sua alma.

"Mas isto tem de ser assim, tudo isto há de ser assim?", tornou a pensar, enquanto descia a escada. "Não seria possível deter-se ainda e arranjar tudo de novo... não ir até lá?"

Mas, apesar de tudo, foi. De repente sentiu, de maneira definitiva, que não havia motivo para fazer perguntas. Quando se viu na rua lembrou-se de que não se despedira de Sônia, que esta ficara no meio do quarto com o seu lencinho verde, sem ousar mexer-se perante a sua intimidação, e parou por um momento. Nesse instante, de súbito, um pensamento se lhe tornou claro... Parecia que estivera à espera até então para acabar de transtorná-lo.

"Mas, vamos lá a ver: para que teria eu ido vê-la agora? Eu lhe disse que tinha ido por causa de uma coisa; mas que coisa? Afinal, nenhuma! Dizer-lhe que “ia para lá'; seria para isso? Mas para que era preciso? Amála-ei eu? Não, não! Não acabo de sacudi-la agora como a um cão? A cruz... Mas precisava eu, por acaso, que ela ma desse? Oh, que baixo eu caí! Não, do que eu necessitava era das suas lágrimas; o que eu precisava era de ver o seu medo, ver como o coração lhe doía e se despedaçava! Eu precisava de agarrar-me a qualquer coisa, de pactuar, de contemplar um ser humano! E tinha-me a resumir em mim mesmo tantas ilusões, e sonhar tantas coisas de mim, eu, que sou um mendigo, insignificante e reles, reles!"

Ladeava o cais do canal e já lhe faltava pouco. Mas quando chegou à ponte parou, e de repente voltou para o lado e dirigiu-se ao Feno. Olhou avidamente para a direita e para a esquerda, contemplando com esforço todos os objetos e sem conseguir concentrar em nada a atenção; tudo se lhe escapava. "E pronto, dentro de uma semana, dentro de um mês, conduzir-me-ão, sabe-se lá para onde, dentro de um desses carros de presos, por esta mesma ponte. Como olharei eu então este canal? Lembrar-me-ei disto?", foi o pensamento que lhe atravessou a mente. "Ali está a vitrina dessa loja: como lerei eu então estas mesmas letras? Ali diz: “companhia'; bem, lembrar-me-ei eu, depois, daquele “a”, da letra “a”, e olharei, dentro de um mês, esse mesmo “a”; como o verei então? Que sentirei e que pensarei então? Meu Deus, como tudo isso tem de ser reles, todas estas minhas atuais... preocupações! Não há dúvida de que tudo isto deve ser curioso... no seu gênero... Ha, ha, ha!, as coisas que eu penso! Estou a tornar-me criança, a dar ares de corajoso perante mim mesmo; mas vamos lá a ver; por que hei de eu sentir vergonha? Hum! Sempre dão cada encontrão a uma pessoa! Ali vai esse gorducho... deve ser um alemão... que acaba de dar-me um encontrão. Como é que ele podia saber a quem é que deu o empurrão? Uma velha com uma criança pede-me esmola e é curioso pensar que há de considerar-me mais feliz que ela! E não deixa de ser engraçado eu ter-lhe dado esmola! Olhem, resta-me apenas um piatak no bolso, de onde viria isto? Vamos, vamos... tome lá mámienhka!

- Deus te guarde! - disse a voz chorosa da mendiga. Entrou no Feno. Era-lhe muito desagradável, de fato, acotovelar-se com as pessoas, mas, no entanto, dirigiu-se precisamente para o lugar onde havia mais gente. Teria dado tudo para se ver sozinho; mas sabia muito bem que nem um momento sequer poderia ficar só. Por entre as pessoas havia um ébrio que fazia algazarra; esforçava-se por dançar, mas acabava sempre por cair de costas. Tinha-se formado um círculo à sua volta. Raskólhnikov abriu caminho por entre as pessoas, contemplou o bêbado por momentos, e de repente desatou num riso breve e entrecortado. Um minuto depois já se tinha esquecido dele e nem sequer o vira, apesar de o ter olhado. Afastou-se, finalmente, sem se ter sequer apercebido do lugar em que se encontrava; mas, quando saiu do meio daquela praça, operou-se de repente nele um movimento, apoderou-se dele subitamente uma sensação que o invadiu todo, no corpo e na alma. De repente lembrou-se das palavras de Sônia: "Vai ter a uma encruzilhada, faz uma reverência às pessoas, beija a terra, porque também pecaste perante ela, e diz a toda a gente em voz alta: “sou um assassino!"' Todo ele tremia ao recordar isso. E a tal ponto se apoderou dele o sofrimento sem desabafo e o alarma de todo aquele tempo, e sobretudo o das últimas horas, que se rendeu a toda aquela sensação, nova, plena. Uma espécie de ataque o acometeu de repente; acendeu-se na sua alma uma centelha e, subitamente, como um fogo, envolveu-o todo. De repente, tudo se enterneceu nele e as lágrimas saltaram-lhe. Estava de pé, e assim, tal como estava, tombou sobre a terra...

Pôs-se de joelhos a meio do terreno, fez uma vênia à terra e beijou essa terra suja com prazer e felicidade. Levantou-se e tornou a ajoelhar-se outra vez. - Olhem para o que lhe deu! - observou um rapazinho ao seu lado. Ouviram-se risos.

- Naturalmente vai a Jerusalém e está despedindo-se dos filhos e da pátria, e saúda toda a gente, a capital de São Petersburgo e o seu chão - acrescentou um operário meio embriagado.

- O rapaz ainda é novo! - respondeu um terceiro. - E é de boa família! - observou um, com voz séria.

- Hoje já não se distingue quem é de boa família e quem não é. Todos esses comentários e ditos coibiam Raskólhnikov, e a frase "sou um assassino", já pronta talvez a brotar da sua boca, nela se extinguiu. Mas suportou tranqüilamente todos esses dichotes e, sem olhar para ninguém, pôs-se a andar ao longo da ruela, em direção ao comissariado. E uma só visão lhe vinha à mente pelo caminho; mas não lhe causava espanto. Já calculava que assim tinha de ser. Quando, no Feno, se prostrava perante a terra pela segunda vez, quando se voltou para a direita, viu com assombro Sônia a cinqüenta passos de distância. Ela estava escondida dele atrás de uma das barracas de madeira que havia na esplanada; e assim, portanto, ela o acompanhava em todo o seu calvário. Raskólhnikov sentia e compreendia naquele instante, talvez de uma vez para sempre, que a partir de então Sônia estaria com ele eternamente e iria atrás dele nem que fosse até o fim do mundo, aonde o destino o enviasse. O coração pulsou-lhe num rebate violento... Mas... já chegara ao lugar fatídico.

Atravessou o portão com bastante coragem. Era preciso subir até o terceiro andar. "Por agora, subamos", pensou. De maneira geral tinha a impressão de que dali até o momento fatal ainda faltava bastante, que ainda tinha muito tempo à sua frente - que ainda podia pensar em muitas coisas.

Outra vez a mesma sujidade de então, os mesmos restos na escada de caracol; outra vez as portas dos andares abertas de par em par; outra vez as mesmas cozinhas das quais se exalavam vapores quentes e baforadas. Desde a outra vez que Raskólhnikov não voltara ali. Os pés fraquejavam e pareciam faltar-lhe, mas continuava caminhando. Parou um momento para respirar, para cobrar ânimo, para entrar como um homem. "Mas para quê? Para quê?", pensou, de repente, reparando no seu movimento, "visto que tenho de esgotar este cálice, tanto faz! Quanto mais repugnante, melhor." Pela sua imaginação passou naquele momento a figura de Iliá Pietróvitch, o Pórokhov. "Mas irei ter com esse, de fato? Não podia dirigir-me a outro? Não podia dirigir-me a Nikodim Fomitch? Dar meia-volta de repente e ir ter com o próprio chefe do comissariado em sua casa? Pelo menos a coisa seria tratada em família... Não, não! Com o Pólvora, com o Pólvora! Visto que é preciso esgotá-lo, esgotemo-lo de uma vez..."

Empurrou a porta do comissariado, transido de frio e quase de maneira inconsciente. Mas, dessa vez, havia aí pouca gente, somente o porteiro e um ou outro homem do povo. A sentinela nem sequer o olhou da sua guarita. Raskólhnikov passou à segunda sala.

"Talvez ainda seja possível não falar", lembrou-se. Aí, um indivíduo pertencente à classe dos empregados, vestido à paisana, escrevia qualquer coisa no seu bureau. A um canto estava também sentado outro escriturário. Zamiótov não estava. E Nikodim Fomitch também não devia estar.

- Não está ninguém? - perguntou Raskólhnikov encarando o indivíduo do bureau.

- A quem procura?

- A... a... ah! Com o ouvido não ouvi, com os olhos não vi, é uma alma russa... conforme dizem num conto... de que já me esqueci. Os me... us respeitos! - gritou de repente uma voz conhecida.

Raskólhnikov estremeceu. Diante dele estava o Pólvora; saíra, de repente, da terceira sala. "É mesmo o destino", pensou Raskólhnikov; "por que havia ele de estar aqui?"

- A mim, a quem? - exclamou Iliá Pietróvitch; era evidente que se achava em excelente disposição de espírito e até um tanto inspirado. - Se é para tratar de algum assunto, então, ainda é cedo... Eu estou aqui por casualidade... Mas em que posso...? Confesso-lhe que... O quê? O quê? Desculpe...

- Raskólhnikov.

- Sim, isso mesmo! Raskólhnikov! Mas o senhor pensava que eu me tinha esquecido? Suponho que não vai julgar-me capaz de... Rodion Ro... Ro... Rodiónitch, não é assim?

- Rodion Românovitch.

- É isso, é isso, é isso! Rodion Românovitch, Rodion Românovitch! Era isso que eu queria dizer. Até tenho perguntado muitas vezes pelo senhor. Eu confesso-lhe que fiquei sempre lamentando ter tido aquele incidente com o senhor... Depois explicaram-me, vim a saber que o senhor era um jovem literato e até um sábio... que, por assim dizer, fizera a sua estréia... Oh, meu Deus! E qual é o literato ou o sábio que, a princípio, não tem as suas extravagâncias! Eu e a minha mulher gostamos os dois da literatura, e a minha mulher, essa, tem mesmo uma autêntica paixão. A literatura e a arte! Tirando a nobreza, tudo o mais se pode adquirir com o talento, a ciência, a razão, o gênio! O chapéu... ora vejamos, é um exemplo; que significa o chapéu? O chapéu é uma carapuça, eu os compro em casa de Zimmermann, mas aquilo que se esconde debaixo do chapéu, e com o chapéu se cobre, não posso eu comprá-lo! Eu, confesso-lhe, até pensei em ter uma explicação com o senhor, simplesmente reconsiderei e pensei que talvez o senhor... Mas, com isso tudo, não lhe perguntei: precisa de alguma coisa? Dizem que a sua família veio visitá-lo...

- Sim, a minha mãe e a minha irmã.

- Tive também a honra e a sorte de conhecer a sua irmã... Pessoa culta e encantadora. Confesso-lhe que lamentei ter-me excedido então com o senhor daquela maneira. Que fiasco! Mas o fato de lhe ter dirigido um certo olhar, por causa do seu desfalecimento... explicou-se depois cabalmente. Crueldade e fanatismo! Compreendo a sua indignação. Tenciona mudar de casa por causa da chegada da sua família, não?

- Não... não, eu, simplesmente... Eu vinha para perguntar... Pensava que encontraria aqui Zamiótov.

- Ah, sim! Com que então, fizeram-se amigos? Ouvi dizer isso. Pois não, Zamiótov não está... aqui, não o encontra. Olhe, ficamos sem Alieksandr Grigórievitch! Desde ontem que deixamos de tê-lo aqui... Foi transferido... e, quando saiu, até se zangou com todos... Chegou até esse ponto a sua descortesia... Não passa de um cabeça-de-vento, esse rapaz; ainda chegou a fazer alimentar esperanças, mas qual, vá lá uma pessoa fiar-se na nossa brilhante juventude! Quer fazer o exame de não sei que, só para se tornar importante e vangloriar-se perante nós por ter feito o exame! Olhe, não é nada parecido com o seu amigo Razumíkhin, por exemplo! A sua carreira é científica e o senhor não se deixa abater pelas derrotas! Para o senhor, de todos estes atrativos da vida pode-se dizer: Nihil est (1); o senhor é um asceta, um monge, um retraído... Para o senhor, os livros, a pena atrás da orelha, as investigações científicas... É a isto que aspira a sua alma! Eu também, até certo ponto... Leu as memórias de Livingstone?

- Não.

- Pois eu as li. Aliás, agora, abundam muito os niilistas; muito bem, é compreensível; é capaz de dizer-me que tempos são estes em que vivemos? Se bem que, no fim de contas, eu consigo... Porque suponho que não será um niilista! Responda-me com toda a franqueza, com toda a franqueza!

- N...não!

- Não; olhe, o senhor, comigo, pode falar francamente, não se retraia, como se estivesse a sós consigo mesmo! Uma coisa é o serviço e outra... o senhor imaginava que eu ia a dizer a "amizade"; pois não, não acertou! Não se trata da amizade, mas do sentimento de cidadão e do homem, do sentimento da humanidade e do amor do Altíssimo. Eu, por muito personagem oficial que possa ser, por muito funcionário que seja, sinto-me sempre, sempre obrigado a sentir em mim o cidadão e o homem e a comunicá-lo... O senhor dignou-se falar de Zamiótov. Zamiótov ama escândalos à maneira dos franceses, em estabelecimentos indecorosos, quando tem no corpo um copo de champanha ou de vinho do Don... É para que veja quem é o seu Zamiótov! Em compensação, eu ardo em zelo e sentimentos elevados, e, além disso, tenho um nome, um cargo, ocupo um posto. Tenho mulher e filhos. Cumpro o dever de cidadão e de homem, ao passo que ele, quem é? Deixe que lhe pergunte. Eu me conduzo para com o senhor como para um homem enobrecido pela ilustração. Olhe, as parteiras diplomadas multiplicaram-se excessivamente...

Raskólhnikov arqueou interrogativamente as sobrancelhas. As palavras de Iliá Pietróvitch, que, via-se bem, acabara de levantar-se da mesa, soavam e passavam na sua frente como ruídos vagos. No entanto, com preendia qualquer coisa de tudo aquilo; olhava interrogativamente e não sabia em que iria acabar o caso.

 

* (1) Que nada significam. (N. do T.) *

 

- Refiro-me a essas mulheres de cabelo cortado - continuou o tagarela do Iliá Pietróvitch. - Eu lhes pus o nome de parteiras e acho que é uma denominação muito apropriada. He, he! Introduzem-se na Academia, estudam anatomia; ora vamos lá a ver, diga-me: se eu adoecer, chamarei uma moça para que me trate? He, he! - Iliá Pietróvitch pôs-se a rir, muito satisfeito da sua esperteza.

- Suponhamos que se trata de uma ânsia intensa de se instruírem; mas que se instruam e pronto. Para que abusar? Por que ofender as pessoas decentes, como faz aqui esse vadio do Zamiótov? Por que há de ele ofender-me, a mim, não quererá dizer-me? É preciso vermos como tem aumentado o número dos suicidas... Nem pode imaginar. Toda essa gente gasta até os últimos cobres e depois mata-se. Moças, rapazes, velhos... Ainda esta manhã recebemos uma comunicação referente a certo cavalheiro recém-chegado a Petersburgo. Nil Pávlitch, parece-me... Nil Pávlitch! Como se chamava esse gentleman do qual nos anunciaram há pouco que dera um tiro na cabeça, no velho Petersburgo?

- Svidrigáilov... - responderam da outra sala com a voz forte e indiferente.

Raskólhnikov teve um sobressalto.

- Svidrigáilov! Svidrigáilov matou-se? - O quê? Mas conhecia Svidrigáilov? - Sim... conhecia... Chegara há pouco...

- Ah, sim, chegara havia pouco. Perdera a mulher, era um homem de conduta licenciosa e, de repente, vai e mete uma bala na cabeça, e de maneira tão escandalosa que não é possível fazer uma idéia... Deixou no seu livro de apontamentos algumas palavras declarando que morria no uso pleno das suas faculdades e pedindo que ninguém fosse culpado da sua morte. Dizem que tinha dinheiro. Com que então conhecia-o?

- Sim... conhecia... a minha irmã esteve em casa dele como preceptora... - Ah, ah, ah! Então, o senhor podia dar-nos pormenores acerca dele. Não lhe levantara nenhuma suspeita?

- Vi-o ontem... Bebera... Eu não sabia nada. - Raskólhnikov sentia que qualquer coisa lhe caíra em cima e o oprimia.

- Parece que o senhor tornou a empalidecer. Temos aqui uma atmosfera tão abafada...

- Sim, estou com pressa - balbuciou Raskólhnikov. - Desculpe ter vindo incomodar...

- Oh, de maneira nenhuma, tive muito prazer! Deu-me muito gosto e sinto-me contente por manifestar-lhe...

E Iliá Pietróvitch até lhe estendeu a mão.

- Eu queria unicamente... Vim para ver Zamiótov... - Compreendo, compreendo, mas tive muito prazer.

- Eu... Tive muito gosto... Até a vista - disse Raskólhnikov com um sorriso.

Saiu; cambaleava. A cabeça andava-lhe à roda. Já nem sabia como é que se mantinha ainda de pé. Começou a descer a escada, apoiando a mão na parede. Pareceu-lhe que um porteiro, com um livrinho na mão, lhe deu um empurrão quando cruzou com ele, ao entrar no comissariado; que um cãozinho ladrava em qualquer lugar, no andar inferior, e que uma mulher lhe atirava uma pedra e lhe gritava. Conseguiu chegar lá abaixo e descer a escada. Já na cava, quando ia saindo, verificou que Sônia estava ali, pálida como uma morta, e que o olhava na maior ansiedade. Parou diante dela. O seu rosto exprimia algo de doloroso, lancinante e desolado. Ergueu os braços. Um vago sorriso perdido assomou aos lábios dele. Ficou parado, riu sarcasticamente e voltou para cima, outra vez para o comissariado. Iliá Pietróvitch estava sentado e remexia nuns papéis. À frente dele estava o mesmo camponês que acabava de dar-lhe aquele encontrão quando se encontrou com ele na escada.

- Ah... ah... ah! É o senhor outra vez! Esqueceu-se aqui de qualquer coisa? Que deseja?

Raskólhnikov, de lábios desmaiados, com o olhar fixo, aproximou-se devagar, aproximou-se até junto da mesa dele, apoiou uma mão sobre ela, quis dizer qualquer coisa e não pôde: apenas se ouviram alguns sons incoerentes.

- O senhor está maldisposto: uma cadeira! Aqui... sente-se nesta cadeira, sente-se. Água!

Raskólhnikov deixou-se cair na cadeira, mas sem afastar os olhos da cara desagradavelmente surpreendida de Iliá Pietróvitch. Olharam-se um ao outro por um momento e ficaram à espera. Trouxeram a água.

- É que eu... - começou Raskólhnikov. - Beba a água.

Raskólhnikov desviou a água com a mão e devagar mas distintamente disse:

- É que fui eu quem matou aquela velha viúva dum funcionário e a sua irmã Lisavieta, com uma machada, para roubá-la.

Iliá Pietróvitch abriu a boca. De todos os lados acudiu gente. Raskólhnikov repetiu a sua declaração...

 

 

Sibéria. Na margem de um rio, ampla e deserta, ergue-se uma cidade, um dos centros administrativos da Rússia; na cidade, uma fortaleza, um presídio. Há já dois meses que nele está preso o deportado da segunda classe, para as galeras, Rodion Raskólhnikov. Decorreu já cerca de ano e meio desde o dia do seu crime.

O curso do seu processo não teve grandes dificuldades. O criminoso manteve firme, clara e exatamente a sua declaração, sem omitir nenhum pormenor nem atenuá-los a seu favor, sem falsear os fatos nem esquecer a menor circunstância. Contou até aos mais insignificantes pormenores toda a preparação e execução do crime, aclarou o mistério do "penhor" (aquela tabuinha de madeira com o pedacinho de metal) que encontraram na mão da assassinada, referiu minuciosamente como tirou as chaves da morta, que descreveu, assim como descreveu também a arca e aquilo que continha; até enumerou alguns dos vários objetos que nela se guardavam; explicou o enigma do assassinato de Lisavieta; expôs a maneira como Kotch chegou e bateu à porta, e, a seguir a ele, o estudante, repetindo tudo quanto disseram entre si; como ele, o criminoso, saiu depois para a escada e ouviu os gritos de Mikolka e de Mitka; como se escondeu no andar vazio e voltou depois para casa, e, para terminar, indicou a pedra daquele pátio do Próspekt Vosniessiénski, debaixo da qual se encontraram os objetos e o porta-moedas. Em resumo: o caso estava esclarecido. Entre outras coisas, os instrutores do processo e os juízes ficaram assombrados porque ele tivesse escondido os objetos e o porta-moedas debaixo de uma pedra, sem se aproveitar de nada, e, sobretudo, porque não só não se lembrasse com precisão de todos os objetos que roubara, como até se enganasse quanto ao seu número. A circunstância especial de que nem uma só vez tivesse aberto a bolsinha nem chegasse a saber ao certo o dinheiro que continha pareceu-lhes inverossímil (na bolsinha apareceram trezentos e dezessete rublos de prata e três moedas de dois grívieni; devido a terem estado muito tempo debaixo da pedra, as notas de cima, as maiores, estavam muito deterioradas). Isso deu muito que pensar. Por que seria que o réu mentia precisamente neste único pormenor, quando, em tudo o mais, as suas afirmações eram verdadeiras e espontâneas? Finalmente, alguns (principalmente entre os psicólogos) chegaram até a admitir a possibilidade de que, de fato, ele não tivesse revistado o porta-moedas, ignorando, portanto, aquilo que continha, e, sem o saber, o tivesse metido debaixo da pedra; mas disso mesmo concluíam que o crime não podia ter sido cometido senão num estado ocasional de loucura, por assim dizer, sob a ação de uma mórbida monomania de homicídio e de roubo, sem projetos ulteriores nem cálculos de lucro. Invocou-se a esse respeito a novíssima teoria, que então estava na moda, da alienação mental temporária, a qual freqüentemente se esforçam por aplicar, nestes nossos tempos, a alguns delinqüentes. Além disso, o recente estado de hipocondria de Raskólhnikov foi terminantemente testemunhado por muitos, pelo doutor Zósimov, pelos seus antigos camaradas, pela senhoria e pela criada. Tudo isso contribuiu grandemente para a conclusão de que Raskólhnikov não era de maneira nenhuma um assassino, um bandido ou um ladrão vulgar, mas que era preciso ver nele uma coisa diferente. Com enorme contrariedade por parte dos que sustinham esta tese, o próprio criminoso quase não fazia nada por defender-se, e até às perguntas terminantes como: "O que o teria, concretamente, inclinado ao homicídio e que foi que o induziu a cometer o roubo?", respondeu com toda a clareza e com a mais brutal precisão que a causa de tudo fora a sua tristíssima situação, a sua miséria e desamparo, o desejo de iniciar os primeiros passos na vida com o auxílio, pelo menos, de três mil rublos, que esperava encontrar em casa da vítima. Decidira também o crime devido ao seu desorientado e fraco caráter, irritado também pelas privações e pelos fiascos. À pergunta sobre o motivo por que se sentira impelido a denunciar-se, respondeu que o fizera por um sincero arrependimento. Tudo isso era quase brutal...

No entanto, a sentença foi mais benigna do que poderia esperar-se, tendo em conta o gênero de crime cometido; e talvez por o réu não ter querido justificar-se, mostrar até desejo de agravar a sua culpa. Todas as circunstâncias estranhas e especiais do caso foram tomadas em consideração. A situação patológica e a miséria do criminoso, antes do cometimento do crime, não se prestavam à mais leve dúvida. Por não ter ele aproveitado do roubo, atribuiu-se em parte aos efeitos do arrependimento sentido, e em parte ao mau estado das suas faculdades mentais na época em que cometeu o crime. A circunstância do assassinato não premeditado de Lisavieta serviu também de exemplo, que veio corroborar a última hipótese; o homem comete os dois assassinatos e, ao mesmo tempo, esquece-se de que deixou a porta aberta. Finalmente apresenta-se para denunciar-se, quando o assunto se tinha já embrulhado extraordinariamente em conseqüência da falsa declaração dum fanático alucinado (Nikolai), e quando, além disso, não se tinham provas claras contra o verdadeiro culpado, e apenas quase só suspeitas (Porfíri Pietróvitch cumprira a sua palavra); tudo isso contribuiu definitivamente para aliviar a sorte do réu. Além disso aclararam-se outras circunstâncias completamente inesperadas, que favoreciam muito o processado. O ex-estudante Razumíkhin foi arranjar testemunhas, sabe-se lá onde, e trouxe provas de que o criminoso Raskólhnikov, no tempo em que esteve na universidade, ajudou à sua custa um condiscípulo pobre e tuberculoso, mantendo-o quase completamente em tudo quanto ele necessitava, durante quase meio ano. E quando ele morreu foi buscar-lhe o pai, que ainda era vivo, mas era já velho e estava entrevado (o filho tinha-o sustentado e mantido com o seu trabalho quase desde os treze anos), fez pedidos e obteve o seu internamento num hospital, e, quando ele morreu, pagou-lhe o enterro. Todos esses testemunhos exerceram a sua influência na decisão dos magistrados. Até a senhoria, a mãe da falecida noiva de Raskólhnikov, a viúva Zarnítsina, testemunhou também que, quando viviam ainda na outra casa, nas Cinco Esquinas, Raskólhnikov, por ocasião de um incêndio, de noite, retirou de um andar já atingido pelas chamas duas crianças pequeninas, sofrendo ele também queimaduras. Esse fato foi comprovado, muitas testemunhas o afirmaram. Em suma: o caso terminou por condenarem o réu a trabalhos forçados de segunda classe, apenas por oito anos, levando em consideração o haver-se denunciado ele próprio e algumas circunstâncias atenuantes da sua culpa.

A mãe de Raskólhnikov adoeceu logo desde o princípio do processo. Dúnia e Razumíkhin encontraram maneira de tirá-la de Petersburgo durante todo o tempo que durou o julgamento; Razumíkhin escolheu uma cidade junto do caminho de ferro e a pouca distância de Petersburgo, a fim de ele poder seguir regularmente todos os incidentes do processo e, ao mesmo tempo, ver-se o mais amiúde possível com Avdótia Românovna. A doença de Pulkhiéria Àlieksándrovna era uma enfermidade um pouco estranha, nervosa, e era acompanhada de uma espécie de alienação mental, senão completa, pelo menos parcial. No regresso da sua última entrevista com seu irmão, Dúnia encontrou a sua mãe já muito doente, com febre e delirando. Nessa mesma noite, a moça e Razumíkhin combinaram o que haviam de responder às perguntas da mãe a respeito do irmão, e até imaginaram entre si uma história completa para lhe contar acerca da ida de Raskólhnikov a algum ponto afastado, nas fronteiras da Rússia, onde ia desempenhar uma função especial, que acabaria por trazer-lhe dinheiro e fama. Mas ficaram impressionados porque nem então, nem depois, Pulkhiéria Alieksándrovna lhes perguntasse qualquer coisa sobre o assunto. Pelo contrário: ela própria inventou uma história completa acerca da súbita partida do filho; contava com lágrimas que ele estivera a despedir-se dela e que lhe dera a entender, nessa ocasião, de maneira indireta, que ela era a única a conhecer as suas razões muito importantes e particulares, e que, por causa dos muitos e poderosos inimigos que ele, Rodion, tinha, se via obrigado a esconder-se. Pelo que se referia à sua futura carreira, sem dúvida que a tinha por indubitável e brilhante, desde o momento em que desaparecessem algumas circunstâncias hostis; afirmava a Razumíkhin que, com o tempo, o seu filho havia de vir a ser um senhor muito importante, conforme podia dizer-se do seu artigo e do seu brilhante talento literário. Lia continuamente esse artigo, e às vezes lia-o também em voz alta, pouco faltando para que dormisse com ele, e, no entanto, nunca perguntava onde é que Rodka se encontrava agora, apesar de ser notório que todos evitavam falar-lhe sobre isso... o que poderia ter despertado suspeitas. Até que por fim começaram a ficar inquietos por causa do estranho silêncio de Pulkhiéria Alieksándrovna a respeito de certos pontos. Por exemplo, nem sequer se queixava de não receber cartas dele, ao passo que dantes, quando vivia na aldeia, quase poderia dizer-se que vivia da ilusão e da esperança de receber o mais breve possível carta do seu queridíssimo Rodka. Esta última circunstância tornava-se já inexplicável e inquietava muito Dúnia; chegou a pensar se a mãe pressentiria algo de horrível no destino do seu filho, e receava fazer perguntas para não vir a saber qualquer coisa ainda de mais horrível. Em todo o caso Dúnia via claramente que Pulkhiéria Alieksándrovna não estava em seu perfeito juízo.

Aliás, aconteceu por duas vezes que ela própria deu tal rumo à conversa que se tornou impossível, ao responderem-lhe, não lhe dizerem onde se encontrava atualmente Rodka; quando as respostas tinham forçosamente que se tornar pouco satisfatórias e suspeitas, ela se punha de repente muito triste, severa e taciturna, o que se prolongava durante muito tempo. Dúnia viu, finalmente, que era difícil mentir, e reconsiderou, chegando à conclusão definitiva de que era melhor fazer silêncio sobre certos pontos; mas cada vez se tornava mais claro, até a evidência, que a pobre mãe receava algo de horrível. Entre outras coisas, Dúnia lembrou-se das palavras do irmão, a respeito de que a mãe a ouvira delirar durante a noite, antes daquele dia fatal, depois da sua cena com Svidrigáilov. Não teria ouvido então alguma coisa? Às vezes, passados alguns dias e até semanas de arredio e desconfiado silêncio, e de lágrimas tristes, a doente tomava freqüentemente uma animação histérica e começava de repente a falar em voz alta, quase sem parar, sobre o seu filho, das suas ilusões, do futuro... Em certas ocasiões as suas fantasias tornavam-se muito estranhas. Consolavamna, davam-lhe razão (é possível que ela própria compreendesse que lhe davam razão para consolá-la); mas, apesar de tudo, continuava falando...

A sentença contra o réu foi proferida cinco meses depois da sua apresentação às autoridades. Razumíkhin ia vê-lo à prisão sempre que lhe era possível. Sônia também. Até que finalmente chegou a hora da separação. Dúnia jurou ao irmão que a sua separação não seria eterna; Razumíkhin também. Na jovem e fogosa cabeça de Razumíkhin tinha-se enraizado firmemente o projeto de, depois de juntar algum dinheiro, ir estabelecer-se na Sibéria, onde a terra é rica sob todos os aspectos e há falta de trabalhadores, gente e capital, ainda que fosse só no começo da sua futura carreira; estabelecer-se-ia aí, na mesma povoação em que se encontrasse Rodka e... todos juntos, começariam uma nova vida. À despedida, todos choraram. Raskólhnikov nos últimos dias mostrou-se muito pensativo; perguntava muito pela mãe; estava constantemente em desassossego por causa dela. Preocupava-se mesmo muito, o que assustava Dúnia. Quando soube pormenores sobre a doença da mãe, ficou muito sombrio. Fosse pelo que fosse, com Sônia esteve muito pouco comunicativo durante todo o tempo. Graças ao dinheiro que lhe deixara Svidrigáilov, havia já algum tempo que Sônia se preparara e apetrechara para seguir a leva de presos em que ele havia de ir. Nisso nunca ela e Raskólhnikov tinham tocado; mas sabiam ambos que assim seria. Na última despedida ele sorriu de uma maneira um tanto estranha perante a ardente convicção de sua irmã e de Razumíkhin a respeito da felicidade que havia de ser o seu futuro quando ele saísse do presídio, e teve o pressentimento de que a doença da mãe havia de ter em breve um triste desenlace. Até que finalmente ele e Sônia se puseram a caminho.

Dois meses depois Dúnia casava-se com Razumíkhin. A boda foi triste e íntima. No número dos convidados estavam Porfíri Pietróvitch e Zósimov. Nos últimos tempos, Razumíkhin tomara o aspecto dum homem de forte decisão. Dúnia acreditava cegamente, como não podia deixar de acreditar, que ele havia de levar a cabo todas as suas intenções; naquele homem notava-se uma vontade de ferro. Entre outras coisas, tornou a seguir as aulas na universidade, com o fim de acabar os seus estudos. Faziam ambos, a cada passo, planos para o futuro; contavam ambos firmemente emigrar, ao fim de cinco anos, para a Sibéria. Até lá, confiavam em Sônia.

Alvoroçada, Pulkhiéria Alieksándrovna felicitou a filha pelo seu casamento com Razumíkhin, mas, depois disso, começou a mostrar-se ainda mais triste e preocupada. Com o fim de proporcionar-lhe um momento agradável, Razumíkhin comunicou-lhe, entre outras coisas, o fato relativo ao estudante e ao seu pai paralítico, assim como esse outro fato de Rodka ter sofrido também queimaduras e até ter tido que ficar na cama, no ano anterior, por causa de ter salvo da morte dois pequeninos. Essas duas notícias puseram o já transtornado juízo de Pulkhiéria Alieksándrovna num estado de entusiasmo frenético. Falava constantemente disso e entabulava conversação, a esse respeito, com qualquer pessoa, em plena rua (embora Dúnia a acompanhasse constantemente). Nos carros, nas lojas, sempre que encontrasse alguém que a escutasse, conduzia a conversa sobre o seu filho, o seu artigo, a maneira como ajudara um estudante e se queimara num incêndio etc. Dúnia já nem sabia como contê-la. Porque, além do perigo de tal entusiasmo, da sua exaltação doentia, havia também o risco de que alguém pudesse recordar o nome de Raskólhnikov por causa do processo recente e trazê-lo à baila. Pulkhiéria Alieksándrovna chegou até a informar-se da moradia da mãe das duas crianças que tinham sido salvas no incêndio e queria a todo o custo dirigir-se a ela. A sua intranqüilidade chegou finalmente a limites extremos. De repente punha-se a chorar, e entrava com freqüência num delírio que se agravava. No entanto, de manhã anunciava, sem mais nem menos, que, segundo os seus cálculos, Rodka já não tardaria a chegar, pois lembrava-se de que, quando se despedira dela, lhe dissera que seria preciso esperar precisamente nove meses. Começava a arranjar a casa para que tudo estivesse pronto à sua chegada, e a preparar-lhe o quarto que lhe estava destinado (aquele que era seu), a limpar os móveis, a lavar e a pôr cortinas novas etc. Dúnia enchia-se de inquietação; mas calava-se e até ajudava a arranjar o quarto para a chegada do irmão. Depois de um dia desassossegado, houve uma noite em que adoeceu, e na manhã seguinte estava com febre e delirava. Duas semanas depois morria. No seu delírio escapavam-lhe palavras das quais se podia concluir que suspeitava mais da horrível sorte de seu filho do que os outros supunham.

Raskólhnikov esteve durante muito tempo sem saber da morte da mãe, apesar de se ter iniciado a correspondência com Petersburgo desde o próprio início da sua partida para a Sibéria. Realizava-se por intermédio de Sônia, a qual escrevia escrupulosamente todos os meses para Petersburgo, para a morada de Razumíkhin, e recebia a resposta de Petersburgo. A princípio, as cartas de Sônia pareceram a Dúnia e a Razumíkhin um tanto secas e pouco satisfatórias; mas, por fim, concordaram ambos que até era impossível escrever melhor; porque, por aquelas cartas, no fim de contas, faziam uma completa e exata imagem da sorte do seu infeliz irmão. As cartas de Sônia respiravam a mais concreta realidade, a mais simples e clara descrição de todo o quadro da vida de Raskólhnikov como presidiário. Mal afloravam nelas as suas esperanças pessoais, não se demorava a interrogar os enigmas do futuro nem a descrever os seus sentimentos pessoais. Quanto às tentativas de explicação do estado moral dele e, em geral, de toda a sua vida interior, só havia fatos, isto é, palavras de Rodka: notícias pormenorizadas do seu estado de saúde, daquilo de que se queixara na sua visita, o que lhe pedira, aquilo de que a encarregara etc. Comunicava estas notícias com todo o gênero de pormenores. Até que a imagem do infeliz irmão acabava por se destacar e se tornava precisa e clara; não podia haver engano, porque se tratava de fatos verídicos. Mas Dúnia e seu marido pouca consolação puderam tirar dessas notícias, sobretudo a princípio. Sônia dizia sempre que ele estava constantemente sombrio, taciturno, às vezes sem demonstrar sequer interesse pelas notícias que ela lhe comunicava, das que recebia por carta; outras vezes perguntava-lhe pela mãe, e quando ela, ao ver que ele já quase adivinhava a verdade, lhe anunciou, por último, a sua morte, verificou, com grande assombro da sua parte, que já não lhe fazia grande impressão, pelo menos foi o que lhe pareceu, a avaliar pelo seu aspecto exterior. Comunicava, entre outras coisas, que, apesar de aparentemente estar tão absorvido em si próprio e como que fechado para toda a gente... adaptava-se, simples e francamente, à sua nova existência; que compreendia claramente a sua situação, que não esperava tão depressa nada de melhor, que não abrigava loucas ilusões (como costuma ser próprio nesse estado), e quase não se espantava de nada no novo ambiente que o rodeava, tão pouco semelhante a todas as coisas anteriores. Dizia também que a sua saúde era satisfatória. Saía para trabalhar em tarefas que não repudiava nem pedia. Mostrara-se indiferente perante a alimentação, que, tirando os domingos e os dias de festas, era tão má que por fim acabara por aceitar dela, Sônia, com prazer, algum dinheiro para fazer chá todos os dias; quanto a tudo mais, pedia-lhe a ela que não se preocupasse, afirmando-lhe que todas essas inquietações por causa dele não serviam senão para aborrecê-lo. Mais adiante comunicava Sônia que a sua situação no presídio era a mesma de todos; ela não vira o interior dos alojamentos, mas calculava que seriam estreitos, imundos e insalubres; que ele dormia nas esteiras, colocando um pedaço de feltro por debaixo e sem desejar mais comodidade. Mas o fato de viver tão tosca e pobremente não obedecia a nenhum plano ou intenção premeditados, mas simplesmente a um descuido e indiferença pela sua sorte. Sônia dizia francamente que ele, sobretudo a princípio, não só não se interessava pelas suas visitas, como até quase se mostrava aborrecido com ela, estava sombrio e até grosseiro; mas que, por fim, essas visitas tinham-se transformado num hábito, quase numa necessidade, de maneira que ficava muito triste se acontecia algum dia ela estar doente e não poder visitá-lo. Encontrava-se com ele nos dias de festas às portas do presídio ou no corpo da guarda, onde o chamavam por uns minutos; nos dias úteis, no lugar do trabalho, onde ela ia ter com ele, ou nas oficinas, nas olarias ou nos telheiros, nas margens do Irtich. De si mesma, Sônia anunciava que tinha conseguido fazer alguns conhecimentos e obtido algumas proteções; que trabalhava na costura, e que, como na cidade não havia modistas, ela tornava-se indispensável em muitas casas; mas não dizia que graças a ela o diretor da prisão aliviava a Raskólhnikov os trabalhos do presídio etc. Finalmente chegou a notícia (Dúnia também tinha notado uma comoção e inquietação especiais nas suas últimas cartas) de que ele se afastava de todos, de que não era estimado no presídio; de que passava dias inteiros sem falar e se tornara muito pálido. De repente, Sônia escrevia na sua última carta que ele tinha caído gravemente doente e se encontrava no hospital, na enfermaria dos presos...

 

Havia muito tempo que estava doente; mas nem os horrores da vida do presídio nem os trabalhos, nem o rancho, nem a cabeça rapada, nem as roupas miseráveis conseguiram abatê-lo. Oh, que lhe importavam a ele todos esses tormentos e mortificações! Pelo contrário, o trabalho proporcionava-lhe até uma alegria. Esgotado pelo trabalho físico, conseguia, pelo menos, algumas horas de sono tranqüilo. E que significava para ele a comida... aquelas simples sopas de couves com baratas? Sucedera-lhe muitas vezes nem isso ter, na sua vida anterior, quando era estudante. Os seus agasalhos eram adequados ao seu gênero de vida. Mal sentia as cadeias. Teria de envergonhar-se por ter a cabeça rapada e usar casaco de duas cores? Perante quem? Perante Sônia? Sônia temia, e, diante dela, não tinha por que envergonhar-se.

Embora, no fim de contas... também se envergonhasse diante de Sônia, a qual fazia sofrer com a sua conduta depreciativa e grosseira. Mas não se envergonhava da cabeça rapada nem das cadeias; o seu orgulho estava muito exasperado e caiu doente deste orgulho exasperado. Oh, e como teria sido feliz se pudesse ter-se inculpado a si próprio! Teria suportado tudo, então, até a vergonha e a desonra. Mas julgava-se severamente e a sua rígida consciência não sentia nenhum horror particular no seu passado, a não ser talvez, simplesmente, no fracasso, que teria podido acontecer a qualquer um. Sentia sobretudo vergonha de que ele, Raskólhnikov, inábil e absurdamente, devido a uma sentença do destino cego, se visse obrigado a conformar-se e inclinar-se perante o absurdo dessa sentença, se, de qualquer maneira, desejava estar tranqüilo. Uma inquietação sem objetivo nem finalidade, no presente e no futuro, apenas um ininterrupto sacrifício que a nada conduziria... eis o que lhe restava no mundo. E que importava que dentro de oito anos ele tivesse apenas trinta e dois anos e pudesse de novo começar a sua vida? Para que viver? A que aspirar? Para que esforçar-se? Viver só para viver? Mas mil vezes antes já ele tinha estado disposto a dar a sua vida por uma idéia, por uma ilusão, até por um sonho. A simples existência sempre tinha significado pouco para ele; sempre aspirara a mais. Talvez só pela força do seu desejo chegara a sentir-se então um homem ao qual era permitido mais do que aos outros.

Ainda se o destino, ao menos, lhe tivesse enviado o arrependimento... um arrependimento lancinante que lhe devorasse o coração e lhe tirasse o sono, um arrependimento desses perante cujos espantosos sofrimentos uma pessoa pensa em enforcar-se ou atirar-se à água, oh, como se teria, assim, alegrado! Torturas e lágrimas... isso também era vida! Mas ele não se arrependia da sua culpa.

Quando muito teria podido encolerizar-se pela sua estupidez, como se enfurecera antes pelas suas inábeis e desajeitadas ações, que o tinham levado ao presídio. Mas, agora que tinha já caído em si, pôde de novo, com toda a liberdade, entregar-se a julgar e a rever todos os seus atos anteriores, e não os encontrou de maneira nenhuma tão inábeis e estúpidos como se lhe tinham afigurado outrora, no tempo fatal.

"Em que, em que", pensava, "era a minha idéia mais estúpida que outras idéias e teorias que correm e se entrechocam pelo mundo, e assim farão, enquanto o mundo existir? O que é preciso é encarar o caso com olhos completamente independentes, amplos e livres de influências cotidianas, para que a minha idéia não pareça já tão... absurda. Oh, negadores e sábios do valor de um piatak de prata! Por que parais a meio do caminho? Ora vejamos: por que é que a minha conduta vos parece tão ignominiosa?", dizia ele para consigo. "Por que fui um... criminoso? Que significa a vossa criminalidade? A minha consciência está tranqüila. É certo que se consumou um crime de pena capital; é certo que se infringiu a letra da lei e se derramou o sangue; pois bem... Tomem a minha cabeça pela letra da lei... e basta! É certo que, nesse caso, até muitos benfeitores da humanidade, que não receberam o poder por herança, mas o conquistaram, teriam merecido castigo desde os seus primeiros passos. Mas esses indivíduos seguiram para diante e depois tiveram razão, ao passo que eu não resisti e, portanto, não tinha direito a dar esse passo." Era unicamente nisto que ele se reconhecia culpado: em não ter persistido e em ter ido denunciar-se.

Sofria também perante esta idéia: "Por que não se suicidara então? Por que estivera ali, à beira da água, e optara por ir denunciar-se? Dar-se-ia o caso de que o desejo de viver fosse tão forte e fosse tão difícil vencê-lo? Mas Svidrigáilov, que temia tanto a morte, não o vencera?"

Fazia com dor essa pergunta e não podia compreender que já então, quando estava à beira do rio, pressentisse talvez em si mesmo e nas suas convicções um erro profundo. Não compreendia que aquele pressentimento podia ser o anúncio duma futura crise na sua vida, da sua futura ressurreição, da sua futura nova maneira de ver a vida.

Preferia ver nisso simplesmente o peso cego do instinto, do qual não pudera desprender-se, e que também não tinha forças para rebaixar (devido à sua fraqueza e insignificância). Olhava para os seus companheiros de presídio e ficava espantado. Como todos eles amavam a vida, como a apreciavam! Parecia-lhe até que no presídio ainda a amavam e estimavam mais do que quando estavam livres. Quantos sofrimentos terríveis e mortificações não suportavam alguns deles, por exemplo, os vagabundos! Mas significaria assim tanto, para eles, um pequeno raio de sol, um bosque calmo, uma fonte fresca, além, na espessura, vislumbrada três anos atrás, e com a visita da qual o vagabundo sonha como com um encontro com a sua amada, e a vê em sonhos com a erva verde à volta e um passarinho cantando numa árvore! Continuando as suas explorações, descobria exemplos ainda mais inexplicáveis.

No presídio, no ambiente que o rodeava, não reparava certamente em muitas coisas, e até não queria, de maneira nenhuma, reparar nelas. Vivia como de olhos baixos; olhar era-lhe repugnante e odioso. Mas por fim muitas coisas começaram a causar-lhe admiração, e ele, quase sem querer, começou a reparar naquilo que, antes, nem sequer suspeitara. De maneira geral, o que mais o assombrou foi o tremendo, intransponível abismo que havia entre ele e todos os outros. Era como se todos eles fossem de outra nação. Ele e eles olhavam-se entre si com desconfiança e antipatia. Ele sabia e compreendia as razões gerais de semelhante desacordo; mas nunca teria pensado antes que essas razões fossem tão verdadeiramente fundas e fortes. No presídio havia também uns exilados polacos, criminosos políticos. Estes consideravam toda aquela gente uma reles população e olhavam-na por cima do ombro; mas Raskólhnikov não podia olhá-la assim: via claramente que aquela população, sob mais de um aspecto, era muito mais inteligente que os próprios polacos. Havia ali também russos que desprezavam igualmente aquela gente: um ex-oficial e dois seminaristas. Raskólhnikov percebia claramente o seu erro. A ele, não o queriam e todos o evitavam. Acabaram até por odiá-lo... Por quê? Não sabia. Desprezavam-no, riam-se dele, riam-se do seu crime aqueles que eram mais criminosos do que ele.

- És um fidalgote! - diziam-lhe. - Não estava certo que saísses para a rua com uma machada! Isso não é próprio dum senhor!

Na segunda semana da quaresma calhou-lhe a vez de fazer as suas devoções juntamente com os do seu alojamento. Foi à igreja e rezou em conjunto com os outros. Mas, sem que soubesse a propósito de que... armou-se uma briga! caíram todos, com raiva, sobre ele.

- Tu és um ateu! Tu não acreditas em Deus! - gritavam-lhe. - Temos de te matar.

Nunca falara com eles acerca de Deus nem da fé; mas queriam matá-lo por ateu; ele se calava e não lhes objetava. Um dos presos atirou-se a ele, furioso; Raskólhnikov esperou-o tranqüilamente e em silêncio; não arqueou as sobrancelhas e nem sequer uma das suas feições se contraiu. A sentinela conseguiu intervir a tempo entre ele e o seu agressor... Se não fosse isso, teria havido sangue.

Havia outro ponto que se tornara insolúvel para ele: por que amavam todos tanto a Sônia? Ela não lhes procurava a simpatia; eles encontravam-na apenas de vez em quando, só nos pontos de trabalho, quando ela ia vê-lo apenas por um minuto. E no entanto já todos a conheciam; sabiam que ela fora para lá, seguindo-o, a ele; sabiam como e onde vivia. Ela não lhes dava dinheiro, nem lhes fazia serviços especiais. Somente uma vez, pelo Natal, levou um donativo para todo o presídio: pastelinhos e empadões. Mas, pouco a pouco, entre eles e Sônia foram-se estabelecendo relações um pouco mais estreitas; ela lhes escrevia cartas para os seus pais e deitava-as no correio. Quando os pais ou as mães vinham à cidade, deixavam, por indicação deles, os objetos e até o dinheiro que lhes traziam nas mãos de Sônia. As mulheres deles e as noivas conheciam Sônia e visitavam-na. E quando ela aparecia nos campos de trabalho, à procura de Raskólhnikov, ou se encontrava com a leva de presos que iam para o trabalho... todos lhe tiravam os gorros, todos se inclinavam. "Mátuchka, Sófia Siemiônovna, és a nossa mãe, terna e delicada!", diziam aqueles presidiários brutais, estigmatizados, à frágil e delicada criatura. Ela sorria. E todos achavam graça à sua maneira de andar e se voltavam para olhá-la, seguindo-a com os olhos, enquanto caminhava, e dirigiam-lhe galanteios. Galanteavam-na até por ser tão pequenina, elogiavam-na sem eles mesmos saberem por quê. Iam ter com ela, até para que os tratasse.

Ele ficou no hospital todo o final da quaresma e a semana da Paixão. Quando já estava restabelecido, recordou os seus sonhos dos momentos em que estivera com febre e delirando. Sonhou, durante a sua doença, que o mundo todo estava condenado a ser vítima de uma terrível, inaudita e nunca vista praga que, originária das profundidades da Ásia, cairia sobre a Europa. Todos teriam que perecer, exceto uns tantos, muito poucos, escolhidos. Surgira uma nova triquina, ser microscópico que se introduzia no corpo das pessoas. Mas esses parasitas eram espíritos dotados de inteligência e de vontade. As pessoas que os apanhavam tornavam-se imediatamente loucos. Mas que nunca, nunca se consideraram os homens tão inteligentes e perseverantes na verdade como se consideravam estes que eram atacados pela moléstia. Nunca foram considerados mais infalíveis nos seus dogmas, nas suas conclusões científicas, nas suas convicções e crenças morais. Aldeias inteiras, cidades e povos inteiros foram contagiados e enlouqueceram. Todos estavam alarmados e não se entendiam uns aos outros; todos pensavam ser os únicos senhores da verdade, e só sofriam ao verem a dos outros e davam socos no peito, choravam e ficavam de braços caídos. Não sabiam a quem nem como julgar; não podiam pôr-se de acordo sobre o que fosse bom e o que fosse mau. Não sabiam a quem inculpar nem a quem justificar. Os homens agrediam-se mutuamente, impelidos por um ódio insensato. Armavam-se contra os outros em exércitos inteiros; mas os exércitos, uma vez em marcha, começavam de repente a destroçarem-se a si mesmos, as fileiras desfaziam-se, os guerreiros lançavam-se uns contra os outros, mordiam-se e devoravam-se entre si. Nas cidades passava-se o dia inteiro tocando a rebate; todos eram chamados; mas quem os chamava e para que os chamavam ninguém sabia, e todos andavam assustados. Abandonaram os ofícios mais comezinhos, porque cada qual preconizava a sua idéia, os seus métodos, e não podiam chegar a um acordo; a agricultura também foi abandonada. Em alguns lugares, homens reuniam-se em grupos, faziam certas combinações e juravam não se zangarem... Mas começavam imediatamente a fazer outra coisa completamente diferente da que acabaram de combinar, punham-se a inculpar-se mutuamente, brigavam e degolavam-se. Houve incêndios, fome. Tudo e todos se perderam. E essa tal peste crescia e cada vez avançava mais. Somente alguns homens conseguiram salvar-se em todo o mundo, homens puros e escolhidos, destinados a dar início a uma nova linhagem humana e a uma nova vida, a renovar e a purificar a Terra, mas ninguém via esses seres em parte alguma, ninguém ouvia a sua palavra e a sua voz.

Raskólhnikov aborrecia-se porque esse absurdo delírio perdurasse tão triste e dolorosamente nas suas recordações, que demorasse tanto a apagar-se a impressão desses desvarios febris. Decorreu a segunda semana depois da Páscoa; vieram dias tépidos, claros, primaveris; na enfermaria dos presos abriram a janela (gradeada, debaixo da qual passavam as sentinelas). Durante todo o tempo da sua doença, Sônia só pôde vê-lo duas vezes na enfermaria; era sempre preciso pedir autorização, e isso era difícil. Mas ela costumava vir ao pátio do hospital, por baixo da janela, sobretudo ao escurecer, e às vezes unicamente para estar ali um minuto e olhar, ainda que de longe, a janela da enfermaria. Uma vez, ao cair da tarde, Raskólhnikov, já quase completamente restabelecido, dormia: quando acordou, aproximou-se inesperadamente da janela, e, de súbito, viu Sônia ao longe, à porta do hospital. Estava ali e parecia esperar alguém. Houve qualquer coisa que pareceu agitar-lhe o peito naquele instante; estremeceu e apressou-se a retirar-se da janela. No dia seguinte Sônia não foi, nem no outro; e percebeu que a esperava com ansiedade. Finalmente deram-lhe alta. Quando voltou ao presídio soube pelos presos que Sônia Siemiônovna estava doente de cama e não podia sair de casa.

Ficou num desassossego e mandou perguntar por ela. Não tardou a saber que sua doença não era de cuidado. Por sua vez, Sônia, ao saber que ele estava triste e se inquietava por causa dela, escreveu-lhe uma carta, garatujada a lápis, na qual lhe participava que já estava muito melhor, que fora uma simples constipação, e que em breve, muito em breve, iria vê-lo no campo de trabalho.

Tornou a fazer um dia morno e claro. Na manhã seguinte, às seis, ele encaminhou-se para o trabalho, na margem do rio, onde, debaixo dum telheiro, estava instalado o forno para o calcário, ao qual o tinham destinado. Enviaram para ali, ao todo, três operários. Um dos presos foi com a sentinela ao forte, buscar uma ferramenta; outro pôs-se a preparar a lenha para aquecer o forno. Raskólhnikov saiu do telheiro e dirigiu-se para a margem, sentou-se numa viga estendida ao longo do muro e ficou olhando o rio longo e deserto. Da margem elevada descobria-se um vasto espaço. Da outra margem longínqua mal chegava o eco duma canção. Ali, na estepe infindável, banhada pelo sol, apareciam pontos negros quase imperceptíveis, as tendas dos nômades. Para além havia liberdade e viviam outras pessoas, completamente diferentes das de aquém; ali era como se o tempo tivesse parado e não tivesse passado o século de Abraão e dos seus rebanhos. Raskólhnikov permanecia sentado e olhava fixamente, sem desviar os olhos; o seu pensamento transformou-se num desvario, numa contemplação; não pensava em nada, mas uma certa tristeza o comovia e afligia.

De repente, Sônia apareceu junto dele. Aproximou-se com um passo quase imperceptível e sentou-se ao seu lado. Ainda era muito cedo; corria ainda a frescura matinal. Ela trazia uma pobre e velha capa e um lencinho verde. O seu rosto mostrava ainda sinais da doença, emagrecera, estava pálida, de feições vincadas. Sorriu-lhe afetuosa e alegremente, mas, conforme era seu costume, estendeu-lhe timidamente a mão. Estendia-lhe sempre a mão com timidez, às vezes nem chegava quase a dar-lha completamente, como se receasse um insucesso. Ele lhe aceitava sempre a mão como se o fizesse de má vontade, parecia sempre acolhê-la com contrariedade, às vezes conservava um silêncio obstinado durante todo o tempo da sua visita. E então ela tremia diante dele e partia profundamente entristecida. Mas, agora, as suas mãos não se soltaram; ele lhe lançou um olhar rápido; não disse nada e baixou os olhos. Estavam sós; ninguém os via. A sentinela tinha-se afastado naquele momento.

Como aquilo foi, nem eles próprios o sabiam; mas, de repente, houve qualquer coisa que pareceu apoderar-se dele e fez com que ele se deitasse aos pés dela. Chorava e abraçava os seus joelhos. No primeiro momento ela ficou muito assustada e o seu rosto tornou-se parecido com o de uma morta. Saltou do seu lugar e, toda a tremer, ficou olhando para ele. Mas compreendeu tudo, imediatamente, naquele mesmo instante. Nos seus olhos brilhou uma infinita felicidade; compreendia, e para ela já não havia dúvida de que ele a amava, a amava infinitamente, e que chegara finalmente o momento.

Quiseram falar, mas não lhes foi possível. Havia lágrimas nos seus olhos. Estavam ambos pálidos e abatidos; mas naqueles rostos doentios e pálidos brilhava já a aurora de um renovado futuro, de uma plena ressurreição para uma nova vida. O amor ressuscitava-os, o coração de um encerrava infinitas fontes de vida para o coração do outro. Resolveram esperar e ter paciência. A ele, ainda lhe faltavam sete anos; e, até então, quantos sofrimentos insuportáveis e quanta felicidade infinita! Ele ressuscitara e sabia-o, sentia-o em todo o seu ser renovado, e ela... ela vivia unicamente da vida dele! Na noite desse mesmo dia, quando já tinham fechado os alojamentos, Raskólhnikov estava deitado nas esteiras e pensava nela. Nesse dia até se lhe afigurava que todos os presos, que antes tinham sido seus inimigos, o olhavam já com outros olhos. Até falava com eles e lhes respondia afetuosamente. Agora recordava-o, mas não teria de ser assim: não deveria talvez, agora, mudar tudo? Pensava nela. Lembrava-se de como a mortificara continuamente, destroçando-lhe o coração; recordava o seu rostozinho pálido, mas, agora, essas recordações quase não o afligiam; sabia com que infinito amor ia recompensar agora as suas dores. E que eram agora todos, todos aqueles sofrimentos do passado? Tudo, até o seu crime, até a sua condenação e deportação lhe pareciam agora, nesta primeira exaltação, um fato exterior, alheio, como se não tivesse relações com ele. Aliás, nessa noite não podia pensar longa e fixamente em nada, concentrar o pensamento em qualquer coisa; tampouco poderia resolver, então, conscientemente, o que quer que fosse; a única coisa que fazia era sentir. Em vez da dialética surgia a vida, e já na sua consciência devia elaborar-se algo de totalmente distinto.

Tinha o Evangelho debaixo da almofada. Pegou-o maquinalmente. Aquele livro era dela, pois era o mesmo em que ela lera a passagem da Ressurreição de Lázaro. Nos primeiros tempos do presídio pensava que ela havia de importuná-lo com a religião e que se poria a falar do Evangelho e a aborrecê-lo com o livreco. Mas, com o maior assombro da sua parte, nem uma só vez ela lhe falou nisso, nem uma vez sequer lhe tinha proposto o Evangelho. Fora ele quem lho pedira, um pouco antes de ter adoecido, e ela levou-lho em silêncio. Até então ele nem sequer o abrira. Agora também não o abriu, mas ocorreu-lhe um pensamento: "Poderia, por agora, a sua crença, não ser a minha também? Pelo menos os seus sentimentos, as suas aspirações..." Ela esteve também comovida todo aquele dia e, à noite, voltou a ficar doente. Mas era feliz a tal ponto que quase a assustava a sua felicidade. Sete anos, só sete anos! No princípio da sua felicidade, houve alguns momentos em que tinham estado dispostos a considerar aqueles sete anos como sete dias. Ele nem sequer sabia que a vida nova não lhe seria dada gratuitamente, mas que ainda teria de comprá-la caro, pagar por ela uma grande façanha futura...

Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova narrativa... mas a nossa presente narrativa termina aqui.

 

                                                                                            Dostoievski

 

                      

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