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CRIMES NA ALTA RODA / Mary Híggins Clark
CRIMES NA ALTA RODA / Mary Híggins Clark

 

 

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CRIMES NA ALTA RODA

 

- Cuidado com a fúria de um homem paciente - observou tristemente Henry Parker Britland IV enquanto observava a fotografia do seu antigo secretário de Estado. Tinha acabado de saber que o seu amigo íntimo e aliado político tinha sido acusado do homicídio da amante, Arabella Yotíng.

-Então achas que o pobre Tommy a assassinou? -perguntou Sandra O'Brien Britland com um suspiro, enquanto barrava um scone quente, acabado de sair do forno, com doce caseiro.

Era de manhã cedo e o casal estava confortavelmente recostado na cama extra grande em Drunidoe, a propriedade de campo que possuíam em Bamardsville, Nova Jérsia. The Washington Post, The Wall Street Journal, The New York Times, The Times (Londres), L'Osservatore Romano e The Paris Review, todos em estádios diversos de leitura, estavam espalhados, alguns pousados sobre a colcha com flores delicadas, outros atirados para o chão. Directamente em frente do casal encontravam-se tabuleiros de pequeno-almoço iguais, cada um enfeitado com uma única rosa numa jarra de prata.

- Na verdade, não - disse Henry alguns momentos depois, a abanar lentamente a cabeça. - Acho impossível acreditar numa coisa dessas. Tom teve sempre um grande autocontrolo. Foi isso que fez dele um secretário de Estado tão bom. Mas desde que Constance morreu... foi durante o meu segundo mandato... ele não tem parecido o mesmo. E foi óbvio para toda a gente que, quando conheceu Arabella, se apaixonou loucamente. É claro que o que também se tornou óbvio passado algum tempo foi que ele tinha perdido algum daquele controlo de aço... nunca me esquecerei daquela ocasião em que ele se descuidou e chamou "Cachorrinha" a Arabella diante de Lady Thatcher.

- Gostava de te ter conhecido nessa altura - disse Sandra pesarosamente. - Nem sempre concordei contigo, é claro, mas pensava que eras um presidente excelente. Mas, pensando bem, há nove anos, quando iniciaste o teu primeiro mandato, tenho a certeza de que me terias achado maçadora. Que interesse poderia uma estudante de Direito ter para o presidente dos Estados Unidos? Quero dizer, com sorte, ter-me-ias considerado atraente, mas sei que não me terias levado a sério. Pelo menos quando me conheceste como membro do Congresso, pensaste em mim com algum respeito.

Henry virou-se e olhou carinhosamente para aquela que era sua mulher há oito meses. O cabelo dela, da cor do trigo de Inverno, estava despenteado. A expressão dos olhos intensamente azuis conseguia de alguma forma transmitir simultaneamente inteligência, entusiasmo, determinação e humor. E, por vezes, também uma surpresa quase infantil. Sorriu ao recordar a primeira vez que a tinha visto: perguntara-lhe se ainda acreditava no Pai Natal.

Tinha sido na noite que precedera a tomada de posse do seu sucessor, quando Henry tinha oferecido um cocktail na Casa Branca para todos os novos membros do Congresso.

-Acredito naquilo que o Pai Natal representa, Sr. Presidente - replicara Sandra. - O senhor não?

Mais tarde, quando os convidados estavam a sair, ele convidara-a para ficar para um jantar calmo.

- Lamento - respondera ela. - Vou ter com os meus pais. Não posso desapontá-los.

Deixado sozinho na sua última noite na Casa Branca, Henry pensara em todas as mulheres que, ao longo dos últimos oito anos, tinham de boa vontade mudado os seus planos numa fracção de segundo, e apercebeu-se de que, por fim, encontrara a mulher dos seus sonhos. Casaram seis semanas depois.

No começo, a perseguição dos repórteres ameaçou não ter fim. O casamento do solteiro mais cobiçado do país - o ex-presidente de 44 anos - com a bela e jovem congressista, doze anos mais nova do que ele, levou os jornalistas ao rubro. Há muitos anos que um casamento não capturava tão completamente a imaginação colectiva do público.

o facto de o pai de Sandra ser um mecânico do Caminho-de-Ferro Central de Nova Jérsia, de ela ter trabalhado enquanto estudava no St. Peters College e na Faculdade de Direito Fordham, ter sido defensora oficiosa durante sete anos e depois, com uma margem esmagadora, ter conseguido tirar o lugar no Congresso ao seu opositor de Nova Jérsia, já a tinham tornado uma heroína aos olhos das mulheres e também a menina bonita dos órgãos de informação.

O estatuto de Henry como um dos presidentes mais populares do século xx e possuidor de uma fortuna pessoal considerável, combinados com o facto de que ele aparecia com regularidade no topo da lista dos homens mais sensuais da América, tornavam-no igualmente uma fonte de imitação e também objecto de inveja por parte de outros homens que não conseguiam deixar de perguntar a si mesmos por que o teriam os deuses favorecido tão obviamente.

No dia do casamento, o título de primeira página de um tablóide foi o seguinte: LORDE HENRY BRINTHROP CASA COM A NOSSA RAPARIGA SUNDAY, referência à novela radiofónica que em tempos fora extremamente popular e que diariamente, cinco dias por semana, durante anos a fio, colocou a questão: "Poderá uma rapariga de uma cidade mineira do Oeste encontrar a felicidade como esposa do lorde mais rico e mais bonito de Inglaterra, Lorde Henry Brinthrop?"

Sandra tinha ficado imediatamente conhecida para toda a gente, incluindo o seu dedicado marido, como Sunday. No começo detestou o diminutivo, mas resignou-se quando Henry realçou que pensava nela como "um amor de domingo", uma referência à letra de uma das suas canções preferidas.

- Para além do mais - acrescentou - fica-te bem. Tip O'Neil tinha um diminutivo que era perfeito para ele; Sunday é perfeito para ti.

Esta manhã, enquanto observava o marido, Sunday fez uma retrospectiva dos meses que tinham passado juntos, dias que até esta manhã tinham sido quase despreocupados. Agora, ao ver a preocupação genuína estampada nos olhos de Henry, cobriu a mão dele com a sua.

- Estás preocupado com Tommy. Vê-se. Que é que podemos fazer para o ajudar?

- Não muito, infelizmente. É óbvio que vou certificar-me de que o advogado de defesa que ele contratou está à altura da tarefa, mas, independentemente de quem o representar, as perspectivas não parecem muito animadoras. Pensa um pouco. É um crime especialmente perverso, e, quando se analisam as circunstâncias, é difícil não presumir que Tom foi o autor. A mulher foi alvejada três vezes, com a pistola de Tommy, na biblioteca de Tommy, imediatamente depois de ele ter dito a várias pessoas que estava muito triste por ela ter rompido com ele.

Sunday pegou num dos jornais e examinou a fotografia de um radiante Tomm Shipman, com o braço em volta de uma estonteante mulher de 30 anos que o ajudara a secar as lágrimas a seguir à morte da mulher.

- Que idade tem Tommy? - perguntou Sunday.

- Não tenho a certeza. Sessenta e cinco, acho eu, mais ano menos ano.

Observaram ambos a fotografia. Tommy era um homem elegante, magro, com cabelo grisalho que começava a rarear e um rosto sábio. Em contraste, o cabelo dela, penteado de forma selvagem, emoldurava um rosto bonito, e o seu corpo possuía a espécie de curvas que se vêem nas capas da Playboy.

- Uma relação Maio-Dezembro, se é que isso existe - comentou Sunday.

- Provavelmente, dizem isso acerca de nós - disse Henry num tom ligeiro, forçando um sorriso.

- Oh, Henry, não sejas tonto - disse Sunday. Depois pegou-lhe na mão. - E não tentes fingir que não estás verdadeiramente preocupado. Podemos ser ainda recém-casados, mas já te conheço bem de mais para ser enganada.

-Tens razão, estou preocupado -disse Henry em voz baixa. -Quando penso nos últimos anos, não consigo imaginar-me no Gabinete Oval sem Tommy a meu lado. Só tinha tido um mandato no Senado antes de me tornar presidente e ainda estava muito verde em imensas coisas. Graças a ele, passei aqueles primeiros meses sem me espalhar. Quando estava decidido a defrontar os soviéticos, Tommy... com os seus modos calmos e deliberados... mostrou-me como seria errado forçar uma confrontação e depois, publicamente, conseguiu dar a impressão de que fora apenas um ouvinte da minha decisão. Tommy é um verdadeiro homem de Estado, e é também um cavalheiro. É honesto, é inteligente, é leal.

-Mas seguramente é um homem que deve ter tido consciência de que as pessoas troçavam do seu relacionamento com Arabella e de como estava dominado por ela? Depois, quando por fim ela quis romper, ele perdeu a cabeça - observou Sunday. -É assim que vês o que se passou, não é?

Henry suspirou.

- Talvez. Insanidade temporária? É possível.- Pegou no tabuleiro do pequeno-almoço e pousou-o sobre a mesa-de-cabeceira. - No entanto, ele apoiou-me sempre, e eu vou apoiá-lo. Ele teve autorização para sair sob fiança. Vou visitá-lo.

Sunday afastou rapidamente o tabuleiro, e quase não conseguiu apanhar a chávena de café meio vazia antes de esta se entornar em cima da colcha.

- Também vou - disse ela. - Dá-me só dez minutos no jacuzzi, e estou pronta.

Henry contemplou as pernas compridas da mulher quando ela deslizou para fora da cama.

- O jacuzzi. Que ideia esplêndida - disse, entusiasmado. - Vou fazer-te companhia.

 

Thomas Acker Shipman tinha tentado ignorar o batalhão de repórteres acampados lá fora, perto do seu jardim. Quando ele e o advogado pararam diante da casa, ele tinha simplesmente olhado em frente e seguido do carro para casa, tentando desesperadamente não ouvir o rugido de perguntas que lhe gritavam enquanto ele passava. Porém, depois de entrar, os acontecimentos do dia abateram-se sobre ele, e ele ficou visivelmente abalado.

- Parece-me que um uísque não seria má ideia - disse, calmamente.

O advogado, Leonard Hart, olhou-o compreensivamente.

- Eu diria que merece um - disse ele. - Mas primeiro deixe-me garantir-lhe uma vez mais que, se insiste, avançaremos com um acordo para reduzir a pena, mas sinto-me obrigado a dizer-lhe uma vez mais que podíamos construir uma defesa de insanidade muito forte, e gostava que concordasse em ir a julgamento. A situação é tão clara que qualquer júri compreenderia: passou pela agonia de perder uma esposa amada, e enquanto ainda estava a refazer-se apaixonou-se por uma jovem atraente que começou por aceitar muitos presentes seus e depois o rejeitou. É uma história clássica, e tenho a certeza de que seria recebida com compreensão quando conjugada com uma alegação de insanidade temporária.

Enquanto falava, a voz de Hart tornou-se cada vez mais emotiva, como se estivesse a dirigir-se a um júri:

- Pediu-lhe que viesse aqui para falar no que estava a passar-se, mas ela insultou-o e começaram a discutir. De repente, você perdeu a cabeça e, numa fúria cega tão intensa de que nem sequer consegue recordar os pormenores, matou-a. Normalmente, a arma estava guardada, mas esta noite tinha-a tirado porque estava tão perturbado que tinha até pensado suicidar-se.

O advogado interrompeu a descrição, e no momento de silêncio o antigo secretário de Estado olhou para ela, com um ar intrigado no rosto.

- É realmente assim que vê o que aconteceu? - perguntou.

Hart pareceu surpreendido com a pergunta.

- Ora, sim, claro - replicou. - Há alguns pormenores que ainda temos de aprofundar, algumas coisas que ainda não compreendi muito bem. Por exemplo, teremos de explicar como é que conseguiu deixar a Menina Yoting a sangrar no chão e voltou para a cama, onde dormiu tão profundamente que nem ouviu o grito da sua governanta quando ela descobriu o corpo na manhã seguinte. Todavia, baseado naquilo que sei, penso que no tribunal poderíamos alegar que estava em estado de choque.

- Ah, sim? - perguntou Shipman, cansado. - Mas eu não estava em estado de choque. Na verdade, depois de tomar aquela bebida, fiquei com a sensação de estar a flutuar. Mal consigo lembrar-me do que eu e Arabella dissemos um ao outro, por isso nem me dou ao trabalho de recordar o tiro.

Um olhar pesaroso estampou-se no rosto do advogado.

-Acho, Tom, que tenho de lhe pedir para não fazer declarações dessas a ninguém. Promete-me, por favor? E posso sugerir igualmente que no futuro mais próximo não abuse do uísque; obviamente, não tem nada a ver consigo.

Thomas Slúpman manteve-se atrás dos reposteiros enquanto espreitava pela janela, e viu o rotundo advogado tentar fugir ao ataque dos repórteres. "É quase como ver os leões a serem soltos na arena onde se encontra um cristão solitário", pensou. Só que neste caso não era o sangue do advogado Hart que eles queriam. Era o seu. Infelizmente, ele não tinha vocação para mártir.

Felizmente, tinha conseguido entrar em contacto com a governanta, Lillian West, a tempo de lhe dizer que ficasse em casa. Soubera na noite anterior, quando a acusação fora formalizada, que haveria câmaras de televisão instaladas no exterior da casa, para testemunhar e registar todos os passos da sua saída algemado, seguido pelo processo-crime, o registo das impressões digitais, a alegação de inocência, e depois o menos que triunfal regresso a casa nessa manhã. Não, regressar a casa hoje tinha sido como um castigo; não queria que a governanta também fosse sujeita a isso.

No entanto, fazia-lhe falta ter alguém por perto. A casa estava demasiado silenciosa e solitária. Repleta de recordações, a sua mente recuou até ao dia em que ele e Constance tinham comprado a casa, há cerca de trinta anos. Tinham vindo de carro desde Manhattan para almoçar no Bird and Bottle, perto de Bear Mountain, e depois tinham voltado calmamente. Impulsivamente, tinham decidido fazer um desvio pelas encantadoras ruas residenciais em Tarrytown, e fora então que viram o anúncio "VENDE-SE" diante desta casa do fim do século passado com vista para o rio Hudson e para Palisades.

"E, durante os vinte e oito anos, dois meses e dez dias seguintes vivemos num estado de felicidade permanente", pensou Shipman.

- Oh, Constance, se ao menos pudéssemos ter tido mais vinte e oito - disse em voz baixa enquanto se dirigia para a cozinha, depois de ter decidido que era café, e não uísque, a bebida de que precisava.

Esta casa tinha sido um sítio especial para eles. Mesmo enquanto exercera as funções de secretário de Estado e tivera de viajar durante grande parte do tempo, conseguiam passar ali alguns fins-de-semana juntos, e era sempre um tónico para a alma. E depois, uma manhã, há dois anos, Constance dissera: "Não me sinto muito bem, Tom." E momentos depois morrera.

Trabalhar vinte e quatro horas podia ajudar a adormecer a dor. "Graças a Deus que tinha o trabalho para me distrair", pensou, sorrindo para si próprio quando recordou a alcunha que a imprensa lhe tinha dado: "O Secretário Voador". "Mas não me limitei a manter-me ocupado; Henry e eu também conseguimos fazer coisas boas. Deixámos Washington e o país na melhor forma desde há muitos anos."

Chegou à cozinha, mediu cuidadosamente café suficiente para quatro chávenas e depois fez o mesmo com a água. "Afinal, consigo arranjar-me sozinho", pensou. "Só é pena não ter feito mais por isso depois de Constance morrer. Mas depois Arabella entrou em cena. Tão disposta a consolar-me, tão sedutora. E agora tão morta."

Recordou aquela noite, há dois dias. Que tinham dito um ao outro na biblioteca? Lembrava-se vagamente de ficar zangado. Mas teria ficado zangado a ponto de perpetrar um tal acto de violência? E como poderia tê-la deixado ficar a sangrar no chão da biblioteca enquanto voltava para a cama? Abanou a cabeça. Não fazia sentido.

o telefone tocou, mas Shipman limitou-se a olhar para ele. Quando parou de tocar, tirou o auscultador do descanso e pousou-o no aparador.

Quando o café ficou pronto, serviu-se de uma chávena e, com dedos ligeiramente trémulos, levou-a para a sala de estar. Normalmente, ter-se-ia sentado na grande poltrona de couro na biblioteca, mas não agora. Perguntou a si mesmo se conseguiria voltar a entrar naquele aposento.

Quando estava a instalar-se, ouviu gritos no exterior. Sabia que os jornalistas continuavam acampados na sua rua, mas não imaginava qual seria o motivo de tanta agitação. Porém, antes de afastar os cortinados o suficiente para espreitar para a rua, já tinha adivinhado o que causara tanto furor.

O anterior presidente dos Estados Unidos tinha entrado em cena, para lhe oferecer amizade e consolo.

O pessoal dos Serviços Secretos esforçou-se por abrir caminho aos Britland enquanto eles se interravam no meio da multidão de repórteres e operadores de câmara. Com o braço protectoramente em volta da mulher, Henry parou, indicando que estava disposto a fazer, pelo menos, uma breve declaração.

- Como sempre neste país, um homem é inocente até que a sua culpa seja provada. Thomas Shipman foi um secretário de Estado verdadeiramente fantástico e continua a ser um amigo íntimo. Sunday e eu estamos aqui hoje como amigos.

Depois de fazer esta declaração, o anterior presidente virou-se e dirigiu-se para o alpendre, ignorando as inúmeras perguntas que os repórteres lhe gritavam. Quando chegaram ao degrau de cima do alpendre, Tom Shipman destrancou e abriu a porta da frente, e os visitantes entraram sem mais incidentes.

Só quando a porta se fechou atrás dos Britland, e se sentiu envolvido por um abraço forte e animador, é que Thomas Shipman começou a soluçar.

Sunday percebeu que os dois homens precisavam de algum tempo para conversar a sós e dirigiu-se para a cozinha, insistindo, apesar dos protestos de Shipman, que iria preparar o almoço para os três. O antigo secretário não parava de dizer que podia telefonar à governanta, mas Sunday insistiu que deixasse tudo com ela.

- Vai sentir-se muito melhor depois de ter alguma coisa no estômago, Tom - disse ela. - Conversem os dois e depois venham ter comigo. Tenho a certeza de que tem tudo o que preciso para fazer uma omoleta. Estará pronta dentro de alguns minutos.

De facto, Shipman recuperou rapidamente a compostura. De certa forma, a simples presença de Henry Britland, em sua casa dava-lhe a sensação, pelo menos naquele momento, de que conseguiria encarar tudo o que ia ter pela frente. Foram para a cozinha e constataram que Sunday já estava a fazer a omoleta. Os seus movimentos seguros, precisos, na tábua de cozinha trouxeram- lhe uma recordação recente de Palm Beach e de ver outra pessoa preparar uma salada enquanto ele sonhava com um futuro que agora nunca aconteceria.

Olhou para a rua e apercebeu-se de súbito de que a persiana estava subida e de que, se alguém conseguisse esgueirar-se para as traseiras da casa, ali estaria a oportunidade perfeita para tirar uma cândida fotografia dos três. Rapidamente, atravessou o aposento e baixou a persiana.

Virou-se para Henry e Sunday e sorriu tristemente para os dois.

- Sabem?, recentemente convenceram-me a colocar um dispositivo electrónico nos cortinados de todos os outros aposentos, algo que me permitiria fechá-los por meio de um temporizador ou pelo simples toque no comando. Todavia, nunca pensei vir a precisar de uma coisa dessas aqui. Eu não percebo quase nada de cozinha, e Arabella também não era exactamente exímia na arte dos cozinhados.

Calou-se e abanou a cabeça.

- Ora. Agora já não importa. E para além do mais nunca gostei daquelas coisas. Na verdade, os cortinados da biblioteca ainda não funcionam bem. De cada vez que se carrega para os fechar ou abrir, ouve-se um ruído alto e irritante, quase como alguém a disparar uma arma. Estranhamente apropriado, não acham? Quero dizer... já que uma arma foi ali disparada há menos de quarenta e oito horas. Já ouviram falar em acontecimentos que se fazem anunciar? Bem...

Virou-se momentaneamente, e o aposento ficou em silêncio. Só se ouvia o som de Sunday a bater a omoleta para a colocar na frigideira. Depois, Shipman dirigiu-se para a mesa da cozinha e sentou-se em frente de Henry. Lembrou-se quase imediatamente das vezes que tinham estado defronte um do outro na secretária do Gabinete Oval. Ergueu o olhar e fixou-o nos olhos do homem mais novo.

- Sabe, Sr. Presidente, eu...

- Deixe-se disso, Tommy. Sou eu. Henry.

- Está bem, Henry. Só estava a pensar que somos ambos advogados e...

-Também Sunday - recordou-lhe Henry. - Não se esqueça. Ela trabalhou como defensora oficiosa antes de concorrer ao Congresso.

Shipman sorriu com ar triste.

- Então sugiro que ela seja a nossa perita residente. - Virou-se para ela. - Sunday, alguma vez teve de defender um cliente que estivesse podre de bêbado na altura em que o crime foi cometido, durante o qual ele não só alvejou a sua... ah... amiga, três vezes como a deixou estendida no chão a sangrar até à morte enquanto subia as escadas e ia dormir?

Sem se virar do fogão, ela respondeu:

- Talvez não nessas circunstâncias exactas, mas defendi várias pessoas que estavam tão drogadas na altura que nem sequer se lembravam de ter cometido o crime. Porém, tipicamente, havia testemunhas que faziam depoimentos ajuramentados contra elas. Era duro.

- Então eram considerados culpados, evidentemente? - perguntou Shipman.

Sunday fez uma pausa e olhou para ele, a sorrir pesarosamente.

- Estava tudo contra eles - admitiu.

- Precisamente. O meu advogado, Len Hart, é um fulano bom e competente que quer que eu me declare culpado devido a insanidade... temporária, é claro. Mas, da forma como eu vejo a coisa, a minha única hipótese é tentar fazer um acordo na esperança de que, em troca de uma declaração de culpa, o Estado não peça a pena de morte.

Henry e Sunday estavam agora a olhar para o amigo enquanto ele falava, sempre a olhar em frente.

- Vocês compreendem - continuou Shipman. - que eu tirei a vida a uma mulher jovem que poderia ter vivido mais cinquenta anos neste planeta. Se for para a prisão, provavelmente não durarei mais de cinco ou dez anos. O confinamento, por muito tempo que dure, pode ajudar a expiar esta culpa horrível antes de eu ser chamado à presença do meu Criador.

Mantiveram-se os três em silêncio enquanto Sunday acabava de preparar a refeição - fez uma salada, depois deitou os ovos batidos numa frigideira aquecida, juntou-lhe tomates cortados, chalotas e fiambre, enrolou os cantos dos ovos borbulhantes, e por fim enrolou a omoleta. A torrada saltou quando ela fez a primeira omoleta deslizar para um prato aquecido e o colocou diante de Shipman.

- Coma - mandou.

Vinte minutos depois, quando Tom Shipman colocou o último pedaço de salada num canto de torrada e olhou para o prato vazio à sua frente, observou:

- É um embaraço de ricos, Henry, que, com um cozinheiro francês a trabalhar na sua cozinha, tenha sido também abençoado com uma mulher que é perita em culinária.

- Muito obrigada, gentil senhor - disse Sunday com vivacidade -, a verdade é que os talentos que tenho na cozinha começaram durante a época em que trabalhei como cozinheira enquanto estudava em Fordham.

Shipman sorriu enquanto olhava distraidamente para o prato vazio que continuava à sua frente.

- É um talento digno de admiração. E um que Arabella seguramente não possuía. - Abanou a cabeça lentamente de um lado para o outro. - É difícil acreditar que pude ser tão tolo.

Sunday pousou a mão sobre a dele, e depois disse suavemente:

-Tommy, certamente terão de existir algumas circunstâncias atenuantes que funcionarão a seu favor. Dedicou tantos anos ao serviço público, e esteve envolvido em tantos projectos de caridade. os tribunais procurarão tudo o que for possível para suavizar a sentença... presumindo, é claro, que haverá realmente uma. Henry e eu estamos aqui para ajudar em tudo o que pudermos, e ficaremos a seu lado durante tudo o que se seguir.

Henry Britland pousou a mão no ombro de Shipman com firmeza.

- Isso mesmo, velho amigo, estamos aqui por si. Peça o que quiser, e nós tentaremos tudo para que aconteça. Mas, antes de podermos fazer alguma coisa, precisamos de saber exactamente o que aconteceu aqui. Tínhamos ouvido dizer que Arabella tinha rompido consigo, por isso, que estava ela a fazer aqui naquela noite?

Shipman não respondeu imediatamente.

- Apareceu por cá - disse, evasivamente.

- Então não estava à espera dela? - perguntou Sunday rapidamente.

Ele hesitou.

- Hum... não... não, não estava.

Henry inclinou-se para a frente.

- Muito bem, Tom, mas, como Will Rogers disse: "Só sei aquilo que li nos jornais." De acordo com os relatos dos órgãos de informação, naquele dia você tinha telefonado a Arabella e tinha-lhe pedido para falar com ela. Ela tinha vindo cá naquela noite aproximadamente às nove horas.

- Está correcto - replicou ele, sem mais explicações.

Henry e Sunday trocaram olhares preocupados. Claramente, havia algo que Tom não estava a dizer-lhes.

- E quanto à arma? - perguntou Henry. - Francamente, fiquei surpreendido ao saber que tinha uma, e especialmente que estava registada em seu nome. Foi um defensor tão acérrimo da Lei Brady e foi até considerado inimigo pela NRA. Onde é que a guardava?

- Para dizer a verdade, até já me tinha esquecido completamente de que tinha uma arma - disse Shipman num tom monocórdico. - Comprei-a quando nos mudámos para aqui e estava no fundo do meu cofre há anos. E depois, por coincidência, reparei nela no outro dia, logo depois de ouvir dizer que a Polícia da cidade ia fazer uma campanha na qual convidava as pessoas a trocarem as armas por brinquedos. Então, tirei-a do cofre e deixei-a em cima da mesa da biblioteca, com as balas ao lado. Tinha planeado entregá-la na esquadra da Polícia na manhã seguinte. Bem, não há dúvida de que a receberam, mas não da forma como eu havia planeado.

Sunday sabia que ela e Henry estavam a partilhar o mesmo pensamento. A situação estava a começara parecer especialmente má: não só Tom tinha assassinado Arabella como tinha carregado a arma antes da chegada dela.

- Tom, que estava a fazer antes de Arabella chegar? - perguntou Henry.

O casal observou enquanto Shipman considerava a pergunta antes de responder:

-Tinha estado na reunião anual de accionistas da American Micro. Tinha sido um dia extenuante, exacerbado pelo facto de que estava com uma constipação terrível. A minha governanta, Lilian West, tinha o jantar pronto às sete e trinta. Comi pouco e depois fui imediatamente para cima porque continuava a não me sentir muito bem. Na verdade, até estava com arrepios, por isso tomei um duche quente e prolongado; depois deitei-me. Há várias noites que não dormia bem, por isso tomei um comprimido para dormir. Depois fui acordado... de um sono muito profundo, devo dizer... quando Lilian bateu à minha porta para me dizer que Arabella estava lá em baixo para me ver.

- E então veio para baixo?

- Sim. Recordo-me de que Lilian estava a sair quando eu desci e que Arabella já estava na biblioteca.

- Ficou contente ao vê-la?

Shipman calou-se durante alguns instantes antes de responder:

- Não, não fiquei. Lembro-me de que ainda estava tonto por causa do comprimido para dormir e mal conseguia manter os olhos abertos. E também estava zangado porque, depois de ter ignorado os meus telefonemas, ela tinha simplesmente resolvido aparecer sem avisar. Como talvez se lembrem, há um bar na biblioteca. Bem, Arabella já estava a preparar um martini para os dois, como se fosse a dona da casa.

- Tom, onde estava com a cabeça para beber um martini depois de ter tomado um comprimido para dormir? -perguntou Henry

- Sou um idiota - disse Shipman. - E estava tão farto das gargalhadas estridentes de Arabella e da sua voz irritante que pensei que enlouqueceria se não os afogasse com uma bebida.

Henry e Sunday olharam para o amigo.

- Mas eu pensava que você era doido por ela - disse Henry.

- Oh, durante algum tempo fui, mas acabei por ser eu a romper -replicou Shipman. -Porém, como sou um cavalheiro, pensei que seria adequado dizer às pessoas que a decisão tinha sido dela. Obviamente, as pessoas que reparassem na disparidade das nossas idades teriam esperado que tivesse sido assim. A verdade é que, por fim... afinal, só temporariamente... eu tinha ganho juízo.

- Então por que é que andava a telefonar-lhe? - perguntou Sunday. - Não consigo perceber.

- Porque ela tinha começado a telefonar-me a meio da noite, por vezes repetidamente, de hora a hora. Normalmente, desligava logo depois de ouvir a minha voz, mas eu sabia que era Arabella. Por isso tinha-lhe telefonado para a avisar de que as coisas não podiam continuar assim. Mas é óbvio que não a convidei a vir cá a casa.

- Tom, por que é que não contou nada disto à Polícia? Baseada em tudo o que li e ouvi, é claro que toda a gente pensa que foi um crime passional.

Tom Shipman abanou tristemente a cabeça.

- Porque penso que, no fundo, provavelmente foi isso mesmo. Naquela última noite, Arabella disse-me que ia entrar em contacto com os tablóides e que ia vender-lhes uma história acerca de festas loucas que você e eu alegadamente demos juntos durante a sua administração.

- Mas isso é ridículo - disse Henry, indignado.

- Chantagem - disse Sunday suavemente.

- Precisamente. E acha que contar uma história dessas ajudaria o meu caso? -perguntou Shipman. Abanou a cabeça. - Não, mesmo que não fosse o caso, pelo menos há alguma dignidade em ser castigado por assassinar uma mulher porque a amava de mais para a perder. Dignidade para ela e, talvez, até mesmo um bocadinho de dignidade para mim.

Sunday insistiu em arrumar a cozinha enquanto Henry levava Tommy para o andar de cima, para que este descansasse.

-Gostava que ficasse alguém aqui em casa consigo enquanto este assunto não é resolvido, Tommy -disse o ex-presidente. - Detesto deixá-lo sozinho.

- Oh, não se preocupe, Henry, eu estou bem. Para além do mais, não me sinto sozinho depois da vossa visita.

Apesar da garantia do amigo, Henry sabia que ia preocupar-se, o que começou a acontecer logo que Shipman entrou na casa de banho. Constance e Tommy nunca tinham tido filhos, e agora a grande maioria dos amigos que tinham naquela zona estavam reformados e tinham-se mudado, quase todos para a Florida. Os pensamentos de Henry foram interrompidos pelo som do seu eterno bip.

Pegou no telefone celular e respondeu imediatamente. A pessoa que queria falar com ele era Jack Collins, o chefe da equipa dos Serviços Secretos designada para a sua protecção.

- Peço desculpa por incomodá-lo, Sr. Presidente, mas uma vizinha está muito ansiosa para deixar uma mensagem para o Dr. Shipman. Diz que uma grande amiga dele, uma condessa Condazzi que vive em Palm Beach, tem estado a tentar telefonar-lhe, mas ele não atende o telefone e, aparentemente, o atendedor de chamadas está desligado, por isso ela não conseguiu deixar-lhe uma mensagem. Suponho que ficou aflita e insiste que o Dr. Shipman seja avisado de que ela aguarda um telefonema dele.

- obrigado, Jack. Eu vou transmitir a mensagem ao secretário Shipman. E Sunday e eu vamos sair dentro de alguns minutos.

- Muito bem, Sir. Estaremos a postos.

"Condessa Condazzi", pensou Henry. Que interessante. "Quem será?"

A sua curiosidade aumentou quando, ao ser informado do telefonema, os olhos de Thomas Acker Shipman se alegraram e um

sorriso se formou nos seus lábios.

- Bets telefonou, hem? - disse. - Que simpático da parte

dela. - O brilho desapareceu dos olhos e o sorriso desvaneceu-se. - Não se importa de avisar a minha vizinha de que não recebo telefonemas de ninguém? - disse ele. - Nesta altura dos acontecimentos, parece inútil falar com alguém a não ser com o meu advogado.

Mas quase tão rapidamente como tinha aparecido, o secretário desapareceu.

Alguns minutos depois, quando Henry e Sunday estavam a

ser conduzidos pelo meio dos jornalistas, um Lexus encostou no passeio perto deles. O casal observou uma mulher a sair do carro,usando a confusão gerada pela saída deles como diversão. Conseguiu chegar à porta sem ser incomodada, e depois, usando

a sua chave, entrou imediatamente.

- Tem de ser a governanta - disse Sunday, reparando que

a mulher, que parecia ter 50 e tal anos, estava vestida com simplicidade e tinha o cabelo apanhado. - Se não é, parece, e,

para além disso, quem mais teria uma chave? Bom, pelo menos Tommy não vai ficar sozinho.

- Ele deve pagar-lhe bem - observou Henry. - Aquele carro é caro.

Durante a viagem para casa, falou a Sunday acerca do misterioso telefonema da condessa em Palm Beach. Ela não fez qualquer comentário, mas, pela forma como abanou a cabeça de um lado para o outro e franziu a testa, ele percebeu que ela estava perturbada e mergulhada em reflexões.

O carro em que seguiam era um Chevy com 8 anos e sem marcas identificadoras, um dos carros em segunda-mão e especialmente equipados que Henry mantinha para utilização e que eram especialmente úteis para evitarem ser detectados quando assim o desejavam. Como sempre, estavam acompanhados por dois agentes dos Serviços Secretos, um a conduzir e o outro ao lado, armado. Uma grossa divisória de vidro separava o banco da frente do banco de trás, o que permitia a Henry e Sunday terem liberdade para falar sem serem ouvidos.

Sunday quebrou o que para ela era um silêncio prolongado e disse:

- Henry, há alguma coisa errada neste caso. Sente-se nos relatos dos jornais, mas agora, depois de ter falado com Tommy, tenho a certeza.

Henry assentiu.

- Concordo plenamente. No começo, pensei que talvez os pormenores do crime fossem tão horrendos que ele tivesse de os negar até mesmo a si próprio. - Fez uma pausa, e depois abanou a cabeça. - Mas agora apercebo-me de que não é uma questão de negação. Na verdade, Tommy não sabe o que aconteceu. E tudo isto tem tão pouco a ver com ele! - exclamou. - Seja qual for a provocação... ameaças de chantagem ou outra coisa qualquer... não posso aceitar que, mesmo confuso com a mistura de um comprimido para dormir com um martini, Tommy se tivesse descontrolado tanto que tivesse matado a mulher! O simples facto de o ver hoje fez-me compreender até que ponto tudo isto é extraordinário. Na altura tu não o conhecias, Sunday, mas ele era dedicado a Constance. Porém, quando ela morreu, a compostura dele foi assombrosa. Sofreu, sim, mas manteve-se calmo durante toda a provação. - Fez uma pausa, e depois abanou novamente a cabeça. - Não, Tommy não é o tipo de homem que perde a cabeça, seja qual for a provocação.

- Bem, a sua compostura pode ter sido assombrosa quando a mulher morreu, mas depois ficou completamente embeiçado por Arabella Young quando a mulher ainda nem sequer tinha arrefecido na sepultura, e tens de concordar que isso diz alguma coisa acerca do homem.

- Sim, mas talvez uma reacção ao seu estado emocional? Ou negação?

- Exactamente - replicou Sunday. - É claro que por vezes as pessoas apaixonam-se quase imediatamente após uma grande perda e até acaba por resultar, mas a maior parte das vezes não dá certo.

- Talvez tenhas razão. O simples facto de Tommy nunca ter casado com Arabella depois de lhe ter dado um anel de noivado... há quase dois anos, não foi?... diz-me que ele deve ter percebido que era um erro quase desde o começo.

- Bom, tudo isto aconteceu antes de eu entrar em cena, é claro - reflectiu Sunday -, mas mantive-me informada pelos tablóides, que na época especularam imenso sobre até que ponto estaria o sério secretário de Estado apaixonado pela vistosa Relações Públicas que tinha metade da idade dele. E também me recordo de ver duas fotografias dele publicadas lado a lado, uma com ele em público, a abraçar Arabella, enquanto a outra fora tirada durante o funeral da mulher e obviamente o captara num momento em que a compostura tinha desaparecido. Ninguém com um desgosto tão grande poderia estar tão feliz apenas alguns meses depois. E a forma como ela se vestia... não parecia ser o tipo de mulher para Tommy.

Sunday sentiu, mais do que viu, o marido a erguer uma sobrancelha.

- Oh, vá lá. Sei que lês os tablóides de ponta a ponta depois de eu os ler. Diz-me a verdade. Qual era a tua opinião acerca de Arabella?

- Na verdade, pensava nela o menos possível.

- Não estás a responder à minha pergunta.

- Procuro nunca falar mal dos mortos. - Fez uma pausa. - Mas, se queres mesmo saber, achava-a rude, ordinária e insuportável. Era relativamente esperta, mas falava tão depressa e tão incessantemente que o cérebro nunca parecia capaz de acompanhar a boca. E, quando se ria, eu tinha sempre a sensação de que o candelabro ia partir-se.

- Não há dúvida de que encaixa com o que li acerca dela - comentou Sunday. Permaneceu em silêncio durante algum tempo, e depois voltou-se para o marido. - Henry, se Arabella se preparava para fazer chantagem com Tommy, achas possível que já tivesse tentado antes, com outra pessoa? Quero dizer, é possível que, entre o comprimido para dormir e o martini, Tommy tivesse desmaiado e outra pessoa tivesse entrado sem ele saber? Alguém que tinha seguido Arabella e que de repente viu uma oportunidade para se ver livre dela e deixar o pobre Tommy ficar com as culpas?

- E depois levou Tommy para cima e deitou-o? - Henry levantou de novo uma sobrancelha.

Mantiveram-se em silêncio enquanto o carro virava para a Avenida Garden State. Sunday olhou pela janela quando o sol de fim de tarde tornou as árvores, com as folhas cor de cobre e douradas e vermelhas, afogueadas.

- Adoro o Outono - disse ela, pensativamente. - E magoa-me pensar que, no final do Outono da sua vida, Tommy tenha de passar por uma provação destas. - Calou-se. - Muito bem, vamos imaginar outro cenário. Tu conheces bem Tommy. Supõe que ele estava zangado, até furioso, mas também tão tonto que não conseguia pensar com clareza. Põe-te na posição dele naquele momento: que terias feito?

- Teria feito o que Tommy e eu fizemos quando estávamos num estado de espírito semelhante nas cimeiras. Percebíamos que estávamos demasiado cansados ou demasiado zangados... ou ambas as coisas... para conseguirmos pensar bem, e íamos para a cama.

Sunday apertou a mão de Henry.

- É precisamente onde quero chegar. Supõe que Tommy foi mesmo para cima e deixou Arabella no andar de baixo. E supõe que mais alguém a tinha realmente seguido até lá, alguém que sabia o que ela ia fazer naquela noite. Temos de descobrir com quem Arabella poderia ter estado antes. E devíamos falar com a governanta de Tommy. Ela saiu pouco depois de Arabella chegar. Talvez houvesse um carro estacionado na estrada e ela tivesse reparado. E a condessa de Palm Beach que telefonou, que queria falar com Tommy com tanta urgência. Temos de entrar em contacto com ela; provavelmente não é nada, mas nunca se sabe o que ela poderia dizer-nos.

- Concordo - disse Henry, e admirou-a profundamente. - Como sempre, estamos no mesmo comprimento de onda, só que tu estás mais adiantada do que eu. Confesso que não tinha dado muita importância a falar com a condessa. -Colocou o braço em volta de Sunday e puxou-a para si. - Vem cá. Já reparaste que não te beijo desde as 11.10 desta manhã? - perguntou com meiguice.

Sunday acariciou-lhe os lábios com a ponta do indicador.

- Ah, então há algo mais que te atrai para além da minha mente genial?

- Reparaste. - Henry beijou-lhe a ponta do dedo, e depois agarrou-lhe a mão e baixou-a, removendo todas as obstruções entre os seus lábios e os dela.

Sunday recuou.

- Só mais uma coisa, Henry. Tens de te certificar de que Tommy não aceita um acordo antes de nós, pelo menos, tentarmos ajudá-lo.

- E como é que eu devo fazer isso? - perguntou ele.

- Uma ordem executiva, evidentemente.

- Querida, eu já não sou presidente.

- Ah, mas aos olhos de Tommy ainda és.

- Está bem, vou tentar. Mas há outra ordem executiva: pára de falar.

No banco da frente, os agentes dos Serviços Secretos espreitaram pelo espelho retrovisor e depois sorriram um para o outro.

Na manhã seguinte, Henry levantou-se ao nascer do Sol para dar uma volta a cavalo numa parte da propriedade de dois mil acres com o supervisor. De volta às 8 e 30, Sunday fez-lhe companhia à mesa do pequeno-almoço, que dava para o jardim inglês clássico das traseiras da casa. A sala estava decorada para complementar a vista, com uma profusão de gravuras botânicas contra o linho belga às riscas que cobria a parede. Parecia que o aposento estava constantemente cheio de flores, e, como Sunday observava frequentemente, estava a anos-luz do apartamento na casa bifamiliar em Nova Jérsia, onde ela crescera e onde os pais ainda moravam.

- Não te esqueças de que o Congresso se reúne na próxima semana - disse Sunday enquanto bebia a segunda chávena de café. - Para fazer o que for possível para ajudar Tommy, tenho de começar a trabalhar já. A minha sugestão é que eu devia começar por descobrir tudo o que fosse possível acerca de Arabella. Marvin terminou o perfil completo que nós pedimos?

O Marvin a que ela se referia era Marvin Klein, o homem que dirigia o escritório de Henry, que se situava na antiga estrebaria da propriedade. Possuidor de um estranho sentido de humor, Marvin dizia-se o chefe de equipa de um Governo no exílio, referindo-se ao facto de, depois do segundo mandato de Henry Britland, ter havido vozes a defender a urgência da alteração da restrição de dois mandatos para um presidente dos Estados Unidos. Uma sondagem feita nessa altura revelara que 80 por cento do eleitorado queria a proibição emendada para passar a ler-se "não mais de dois mandatos consecutivos". Era bastante óbvio que a maioria do público americano queria Henry Parker Britland de volta à Casa Branca, no n.o 160 da Avenida Pennsylvania.

- Tenho-o aqui - disse Henry. - Acabei de o ler. Parece que a falecida Arabella conseguiu enterrar uma grande parte do passado com sucesso. Algumas das partes sumarentas que as fontes de Marvin conseguiram desencantar incluem o facto de ela ter tido um casamento anterior que acabou num divórcio onde houve muita lavagem de roupa suja, e de o seu namorado intermitente de há longa data, Alfred Barker, ter passado algum tempo na prisão por subornar atletas.

- A sério! Ele está fora da prisão neste momento?

- Não só está fora, minha querida, como jantou com Arabella na noite em que ela morreu.

O queixo de Sunday caiu.

- Querido, como é que Marvin conseguiu descobrir isso?

-Como é que Marvin consegue descobrir seja o que for? Tudo o que sei é que ele tem as suas fontes. E, para além disso, parece que Alfred Barker mora em Yonkers, que, como provavelmente sabes, não é longe de Tarrytown. O ex-marido dela parece ter um casamento feliz e não vive nesta zona.

- Marvin soube tudo isto de um dia para o outro? - perguntou Sunday, com os olhos brilhantes de excitação.

Henry assentiu quando Sims, o mordomo, voltou a encher a sua chávena com café.

- Obrigado, Sims. E não só isso - continuou. - Ele também soube que, aparentemente, Alfred Barker ainda gostava muito de Arabella, por muito improvável que isso possa parecer, e que recentemente foi ouvido a dizer a amigos que, agora que ele tinha despachado o velho, ia voltar para ele.

- Que é que Barker faz agora? - perguntou Sunday.

- Bom, oficialmente, possui uma loja de artigos para canalizações, mas as fontes de Marvin dizem que é uma fachada para actividades fraudulentas, que aparentemente ele continua a exercer. No entanto, a minha parte preferida das informações é que o nosso Sr. Barker é conhecido por ter um temperamento violento quando é traído.

Sunday coçou o rosto como se estivesse mergulhada nos seus pensamentos.

- Humm. Deixa-me ver. Ele jantou com Arabella pouco antes de ela aparecer inesperadamente em casa de Tommy. Ele detesta ser traído, o que provavelmente significa que também é muito ciumento, e tem um temperamento terrível. - Olhou para o marido. - Estás a pensar na mesma coisa que eu?

- Exactamente.

- Eu sabia que tinha sido um crime passional! - disse Sunday, excitada. - Só que parece que a paixão não foi de Tommy. Muito bem, então vou ver Barker hoje, e também a governanta de Tommy. Como é que ela se chama?

- Creio que é Dora - replicou Henry. Depois corrigiu-se: - Não, não... essa era a governanta que trabalhou para eles durante anos. Velhota amorosa. Acho que Tommy disse que ela se reformou pouco depois da morte de Constance. Não, se a memória não me atraiçoa, a que tem agora, e que nós vimos ontem de passagem, chama-se Lillian West.

- Isso mesmo. A mulher do cabelo apanhado e que tem o Lexus - disse Sunday. - Então eu fico com Barker e com a governanta. Que é que tu vais fazer?

-Vou de avião para Palm Beach para me encontrar com essa condessa Condazzi, mas estarei em casa à hora do jantar. E tu, minha querida, tens de me prometer que vais ter cuidado. Lembra-te de que este Alfred Barker é claramente um tipo duvidoso. Não quero que fujas aos agentes dos Serviços Secretos.

- Está bem.

- Estou a falar a sério, Sunday - disse Henry no tom calmo e sério que usava tão eficazmente para controlar os membros do seu gabinete.

- Oooh, que homem tão duro - disse Sunday, sorridente. - Está bem, prometo. Vou manter-me junto deles como cola. E espero que tenhas boa viagem. - Beijou-lhe o alto da cabeça e depois saiu da sala do pequeno-almoço a cantarolar. -Saudações ao chefe.

Cerca de quatro horas depois, após ter pilotado o avião a jacto para o aeroporto de Palm Beach, Henry chegou à mansão espanhola que era a casa da condessa Condazzi.

-Esperem no exterior - disse aos funcionários dos Serviços Secretos.

A condessa aparentava ter 60 e tal anos e era uma mulher baixa e elegante, com feições muito belas e calmos olhos cinzentos. Cumprimentou Henry calorosamente e depois foi directa ao assunto.

- Fiquei muito contente por receber o seu telefonema, Sr. Presidente - disse ela. - Li os relatos da terrível situação de Tommy nos jornais e tenho estado muito ansiosa para falar com ele. Sei como deve estar a sofrer, mas ele não responde aos meus telefonemas. Escute, eu sei que Tommy não poderia ter cometido este crime. Somos amigos desde crianças; andámos juntos na escola, incluindo a faculdade, e durante todo esse tempo nunca houve um momento em que ele tivesse perdido tanto o controlo. Mesmo quando os outros à sua volta estavam a ser incorrectos ou desordeiros, como tinham tendência para ser nos bailes de finalistas, e mesmo quando estava a beber, Tommy era sempre um cavalheiro. Tomava conta de mim, e quando o baile acabava levava-me a casa. Não, Tommy não poderia fazer uma coisa destas.

- É exactamente o que eu penso - disse Henry, concordando. - Então cresceu com ele?

- Do outro lado da rua, mesmo em frente da casa dele, em Rye. Namorámos durante toda a faculdade, mas depois ele conheceu Constance e eu conheci Eduardo Condazzi, que era espanhol. Casei-me, e um ano mais tarde, quando o irmão mais velho de Eduardo morreu e ele herdou o título e as vinhas da família, mudámo-nos para Espanha. Eduardo faleceu há três anos. O meu filho é agora conde e ainda vive em Espanha, mas eu achei que estava na hora de voltar para casa. Depois, após todos estes anos, cruzei-me com Tommy quando ele estava de visita a uns amigos aqui para um fim-de-semana de golfe. Foi maravilhoso encontrá-lo novamente. Os anos deixaram de se notar.

"E o amor reapareceu", pensou Henry.

- Condessa...

- Betsy - disse ela com firmeza.

- Muito bem, Betsy, tenho de ser directo. A senhora e Tommy reataram onde pararam há muitos anos?

- Bem, sim e não - disse Betsy lentamente. - Deixei bem claro que gostava muito de o ver de novo, e creio que ele pensou o mesmo acerca de mim. Mas, sabe?, eu também acho que Tommy nunca deu a si próprio uma hipótese de chorar Constance. Na verdade, falámos muito sobre isso. Foi óbvio para mim que o seu envolvimento com Arabella Young foi a sua forma de tentar escapar ao processo de luto. Aconselhei-o a romper com Arabella e depois conceder a si mesmo um período de luto, entre seis meses e um ano. Mas depois, disse-lhe eu, tinha de me telefonar e de me levar a um baile.

Henry estudou o rosto de Betsy Condazzi, o seu sorriso ansioso, os olhos cheios de recordações.

- Ele concordou? - perguntou ele.

- Não completamente. Ele disse que ia vender a casa e que ia mudar-se para aqui permanentemente. - Sorriu. -Disse que estaria pronto para me levar ao baile muito antes de os seis meses se esgotarem.

Henry fez uma pausa antes de fazer a pergunta seguinte:

- Se Arabella Young tivesse ido para os jornais contar uma história acerca de, durante a minha administração e mesmo antes da morte da mulher, Tommy e eu termos dado festas loucas e debochadas na Casa Branca, qual seria a sua reacção?

- Ora, eu saberia que não é verdade - disse ela simplesmente. - E Tommy conhece-me suficientemente bem para ter a certeza de que poderia contar com o meu apoio.

No voo de regresso para o aeroporto de Newark, Henry deixou o piloto assumir o comando. Passou o tempo a pensar. Começava a ser cada vez mais evidente que Tommy estava a ser incriminado. Obviamente, ele estava consciente de que o futuro lhe prometera uma segunda oportunidade de felicidade e que não tinha de matar para salvaguardar essa oportunidade. Não, não fazia sentido ele ter assassinado Arabella Yoting. Mas como iam prová-lo? Perguntou a si mesmo se Sunday estaria a ter mais sorte a descobrir um motivo plausível para o homicídio de Arabella.

Alfred Barker não era um homem que inspirava simpatia instintiva, pensou Sunday quando se sentou à frente dele no escritório da loja de fornecimento de material de canalizações. Aparentava 40 e tal anos e era um homem forte, de peito largo, com olhos muito pestanudos, uma compleição amarelada e cabelo sal-e-pimenta, que penteava dramaticamente a atravessar o crânio num esforço óbvio para tapar uma calvice crescente. Porém, a camisa aberta revelava uma profusão de

pêlos no peito. A única outra coisa distinta em que reparou acerca dele foi uma cicatriz denteada nas costas da mão direita.

Sunday sentiu um momento de gratidão quando pensou no corpo elegante e musculado de Henry, na sua aparência agradável, incluindo o famoso queixo "teimoso" e os olhos castanho-claros que podiam transmitir, ou se necessário o esconder, emoção. E, embora barafustasse frequentemente com os homens omnipresentes dos Serviços Secretos - afinal de contas, nunca tinha

sido uma Primeira Dama, por isso por que é que precisava deles agora? -, naquele momento, fechada nesta sala esquálida com este homem hostil, ficou contente por saber que eles estavam do lado de fora da porta parcialmente aberta.

Tinha-se apresentado como Sandra O'Brien, e era óbvio que Alfred Barker não fazia a mínima ideia de que o resto do nome dela era Britland.

- Então quer falar-me acerca de Arabella? - perguntou Barker, e acendeu um charuto.

- Quero começar por dizer que lamento muito a morte dela

- disse Sunday sinceramente. - Sei que o senhor e ela eram muito próximos. Mas, sabe, eu conheço o Dr. Shipman. - Fez uma pausa e explicou. - Em tempos, o meu marido trabalhou com ele. E parece haver uma versão contraditória sobre quem rompeu o seu relacionamento com a Sr. Yoting.

- Que é que isso importa? Arabella estava farta do velho

cretino - disse Barker. - Arabella gostou sempre de mim.

- Mas ficou noiva de Thomas Shipman - protestou Sunday.

- Pois, mas eu sabia que isso nunca iria durar. Ele só tinha uma carteira bem recheada. Sabe?, quando tinha 18 anos,

Arabella casou com um idiota qualquer que era tão burro que tinha de ser apresentado a ele próprio todas as manhãs. Mas Arabella era esperta. O tipo podia ser estúpido, mas valia a pena agarrar-se a ele porque havia muitos dólares na família. Por isso, ela ficou com ele durante três ou quatro anos, deixou-o pagar-lhe a universidade, pagar-lhe o arranjo dos dentes e muitas outras coisas, e depois esperou até o tio muito rico dele morrer, conseguiu que ele pusesse o dinheiro numa conta conjunta e depois deu-lhe com os pés. Limpou-o no divórcio.

Alfred Barker voltou a acender a ponta do charuto e exalou ruidosamente; depois, recostou-se na cadeira.

- Era uma miúda esperta. Esperteza natural.

-E foi então que começou a sair consigo? -aventou Sunday.

- Certo. Mas depois eu tive um pequeno mal-entendido com o Governo e acabei na cadeia, a cumprir pena. Ela arranjou emprego numa firma janota de relações públicas e quando surgiu a oportunidade de mudar para a filial de Washington, há alguns anos, ela não a deixou escapar.

Barker inalou profundamente o fumo do charuto e depois tossiu ruidosamente.

- Não, era impossível domar Arabella. Não que eu alguma vez o tivesse querido fazer. Quando saí, o ano passado, ela costumava telefonar-me muitas vezes e falava-me sobre aquele idiota, Shipman, mas era bom para ela, porque estava sempre a dar-lhe jóias, e ela estava sempre a encontrar pessoas importantes. - Barker debruçou-se sobre a secretária e disse, significativamente: -Incluindo o presidente dos Estados Unidos, Henry Parker Britland Quarto.

Fez uma pausa e recostou-se uma vez mais na cadeira. Olhou acusadoramente para Sunday.

- Quantas pessoas neste país já se sentaram à mesa e trocaram piadas com o presidente dos Estados Unidos? - perguntou, desafiador.

-Não, não como presidente - disse Sunday com honestidade, lembrando-se daquela primeira noite na Casa Branca quando recusara o convite de Henry para jantar.

- Está a perceber o que quero dizer? - disse Barker, triunfante.

- Bem, obviamente, como secretário de Estado, Thomas Shipman arranjava grandes contactos a Arabella. Mas, segundo o Dr. Shipman, era ele que estava a romper o compromisso. Não Arabella.

- Pois. E então?

- Então por que é que havia de a matar?

o rosto de Barker ensombrou-se, e ele bateu com o punho na

mesa.

- Eu avisei Arabella Para não o ameaçar com aquela coisa dos tablóides. Disse-lhe que desta vez estava a lidar com pessoas diferentes. Mas já tinha resultado antes, por isso ela não me deu ouvidos.

- Já tinha resultado antes! - exclamou Sunday, recordando-se de que este era exactamente o cenário que ela sugerira a Henry. - Quem mais ela tentou chantagear?

- Oh, um tipo com quem trabalhava. Não sei qual é o nome dele. Arraia-miúda. Mas nunca é boa ideia mexer com um tipo que tem a influência de Shipman. Lembra-se do que ele fez a Castro?

- Que é que ela disse acerca dos esforços para o chantagear?

- Não muito, e só a mim. Eu dizia-lhe constantemente para não tentar, mas ela pensou que ia ganhar um punhado de dólares. - Lágrimas inesperadas inundaram os olhos de Alfred Barker. -Eu gostava mesmo dela. Mas ela era tão teimosa. Não quis ouvir-me. - Calou-se, aparentemente perdido em reflexões. - Eu avisei-a. Até havia uma citação que eu lhe mostrei.

A cabeça de Sunday recuou numa reacção involuntária à declaração espantosa de Barker.

- Eu gosto de citações - disse ele. - Leio-as para me divertir e para meditar, quando me apetece, está a perceber?

Sunday acenou afirmativamente.

- O meu marido gosta muito de citações. Diz que contêm sabedoria.

- Sim, é isso que eu quero dizer! Que é que o seu marido faz?

-Neste momento, está desempregado -respondeu Sunday, e baixou os olhos para as mãos.

- É mau. Ele sabe alguma coisa de canalizações?

- Nem por isso.

- Acha que ele é bom para números?

Sunday abanou a cabeça tristemente.

- Não, ele quase nunca sai de casa. E lê muito, e também as citações de que estava a falar - disse ela, a tentar levar a conversa para o que lhe interessava.

- Sim, a que eu li a Arabella adequava-se tanto a ela que era espantoso. Ela tinha uma boca grande. Eu encontrei esta citação e mostrei-lha. Disse-lhe sempre que a boca grande dela havia de lhe arranjar sarilhos, e não há dúvida de que foi isso mesmo que lhe aconteceu.

Barker procurou na gaveta de cima da secretária e depois pegou num pedaço de papel amachucado.

- Aqui está. Leia isto. - Entregou uma página a Sunday que, obviamente, tinha sido rasgada de um livro de citações. Uma entrada na página estava rodeada por um círculo vermelho.

Por debaixo desta pedra, um pedaço de barro,

Jaz Arabella Young,

Que a 24 de Maio Começou a segurar a língua.

-Vem de uma antiga lápide. Assim mesmo! Anão ser a data, é uma coincidência ou não? - Barker suspirou pesadamente e depois afundou-se na cadeira. - Sim, tenho a certeza de que vou sentir a falta de Arabella. Ela era divertida.

- Jantou com ela na noite em que ela morreu, não foi?

- Sim.

- Deixou-a em casa de Shipman?

- Não. Disse-lhe que devia esquecer aquilo, mas ela não me deu ouvidos. Por isso, deixei-a num táxi. Ela estava a pensar pedir-lhe o carro emprestado para voltar para casa. - Barker abanou a cabeça. - Mas não estava a planear devolvê-lo. Tinha a certeza de que ele daria qualquer coisa para evitar que ela falasse para os tablóides. - Calou-se durante um momento. Em vez disso, veja o que ele lhe fez.

Barker levantou-se, o rosto cheio de raiva.

- Espero que o fritem!

Sunday levantou-se.

- A pena de morte em Nova Jérsia é administrada através de uma injecção letal, mas estou a perceber o que quer dizer. Diga-me, Sr. Barker, que é que fez depois de deixar Arabella num táxi?

- Sabe, tenho estado à espera de que me perguntem isso, mas os chuis nem sequer se deram ao trabalho de falar comigo. Sabem desde o começo quem é o assassino de Arabella. Mas, depois de a deixar no táxi, fui a casa da minha mãe e levei-a ao cinema. Faço isso uma vez por mês. às nove menos um quarto estava em casa dela, e na fila para comprar os bilhetes quando faltavam dois minutos para as nove. O empregado da bilheteira conhece-me. O miúdo que vende pipocas no cinema conhece-me. A mulher que se sentou ao meu lado é amiga da minha mãe e sabe que eu fiquei lá durante todo o espectáculo. Por isso, não matei Arabella, mas sei quem o fez?!

Barker deu um murro na mesa, e uma garrafa vazia de gasosa partiu-se no chão.

- Quer ajudar Shipman? Decore a cela dele.

De repente, os guardas de Sunday dos Serviços Secretos estavam ao lado dela, a olhar intensamente para Barker.

- Se fosse a si, não dava murros na mesa na presença de uma senhora - sugeriu um deles, glacialmente.

Sunday reparou que, pela primeira vez desde que entrara no escritório, Alfred Barker estava sem palavras.

Thomas Acker Shipman não tinha ficado contente ao receber o telefonema de Marvin Klein, o assistente de Henry Britland, a informá-lo do pedido do presidente para ele atrasar o processo de acordo. "Que adiantava?", perguntou Shipman a si mesmo, aborrecido por não poder prosseguir. Ir para a prisão era inevitável, e só queria livrar-se daquilo o mais depressa possível. Para além do mais, aquela casa já tinha assumido todos os aspectos de uma prisão. Depois de se chegar a um acordo, a imprensa teria um aumento de interesse por ele, mas a seguir esquecê-lo-iam. e avançariam sobre outro pobre desgraçado. Um homem com 65 anos a ir para a prisão por dez ou quinze anos não dava primeiras páginas empolgantes durante muito tempo.

"A única coisa que os mantém tão agitados", pensou enquanto espreitava uma vez mais para o amontoado de repórteres que ainda estavam acampados no exterior da sua casa, "é a especulação sobre se irei ou não a julgamento. Depois de isso ter sido resolvido, e está claro para mim que vou tomar o meu remédio sem fazer muita fita, eles vão perder o interesse."

A governanta, Lilian West, tinha chegado pontualmente às oito horas da manhã. Ele tivera a esperança de a desencorajar de vir, colocando a corrente de segurança, mas aparentemente só conseguira que ela ficasse mais determinada do que nunca em entrar. Quando a chave não lhe facultara a entrada, ela carregara firmemente na campainha e chamara-o até ele a deixar entrar.

- Precisa que cuidem de si, quer concorde quer não -dissera ela, afastando bruscamente a objecção que ele levantara no dia anterior de que não queria que a vida privada dela fosse invadida pelos órgãos de informação e que, na verdade, preferia ficar sozinho.

E assim dera início às suas tarefas diárias habituais, a limpar aposentos em que ele não voltaria a entrar e a preparar refeições para as quais ele não tinha apetite. Shipman observou-a enquanto ela andava pela casa. Lillian era uma mulher bonita, uma excelente governanta e uma cozinheira de primeira, mas as suas tendências dominadoras faziam-no ocasionalmente pensar com saudades em Dora, a governanta que estivera com ele e Connie durante cerca de vinte anos. Que importava se, de vez em quando, deixava queimar o bacon, uma vez que fora sempre uma pessoa agradável na casa deles.

Para além disso, Dora pertencia à velha escola, ao passo que Lillian acreditava claramente na igualdade entre empregado e patrão. No entanto, Shipman chegou à conclusão de que conseguiria aguentar a atitude possessiva de Lillian durante o curto tempo que passaria naquela casa antes de ir para a prisão. Ia aproveitar ao máximo, tentando desfrutar dos confortos terrenos de refeições deliciosas e vinho servido a rigor.

Shipman reconhecera que não podia isolar-se completamente do mundo exterior e que precisava de estar disponível para o advogado, e tinha ligado o atendedor de chamadas do telefone e começado a atender telefonemas, embora não atendesse os que não eram necessários. Todavia, quando ouviu a voz de Sunday,

atendeu o telefone de boa vontade.

- Tommy, estou no meu carro e vou a caminho da sua casa, vinda de Yonkers - explicou Sunday. - Quero falar com a sua governanta. Ela está aí hoje, ou, se não, sabe onde é que a posso encontrar?

- Lillian está aqui.

- óptimo. Não a deixe sair antes de eu falar com ela. Devo estar aí dentro de -uma hora.

- Não posso imaginar o que ela poderá dizer-lhe que a Polícia não tenha ouvido já.

- Tommy, acabei de falar com o namorado de Arabella. Ele estava a par do plano para lhe extorquir dinheiro e, segundo o que ele disse, parece-me que foi um golpe que ela já tinha aplicado pelo menos a mais uma pessoa. Temos de descobrir quem foi essa pessoa. É muito possível que alguém tenha seguido Arabella até à sua casa naquela noite, e nós esperamos que, quando Lillian saiu da sua casa naquela noite, tenha visto qualquer coisa... um carro, talvez... que não lhe pareceu significativo na altura mas que talvez seja importante. A Polícia nunca investigou outros possíveis suspeitos, e como Henry e eu estamos convencidos de que não foi você o autor do homicídio, vamos procurá-los. Por isso, não desespere! As coisas só acabam no fim.

Shipman desligou e virou-se para ver Lillian West de pé à porta do seu estúdio. Obviamente, estivera a escutar a conversa. Mesmo assim, ele sorriu prazenteiramente.

- A Dr. Britland vem a caminho para falar consigo - disse ele. - Ela e o presidente parecem ser da opinião de que, afinal de contas, eu posso não ser culpado pelo homicídio de Arabella e andam a fazer algumas investigações por conta própria. Têm uma teoria que poderá ser muito útil para mim, e é sobre isso que ela quer falar consigo.

- Que maravilha - disse Lillian West, com voz monocórdica e num tom gelado. - Mal posso esperar para falar com ela.

O telefonema seguinte de Sunday foi para Henry, no avião dele. Trocaram novidades acerca do que tinham sabido até ao momento, ele da condessa e ela de Alfred Barker. Depois da revelação de Sunday acerca do hábito de Arabella de chantagear os homens com quem mantinha um relacionamento amoroso, acrescentou uma nota cautelosa:

- O único problema de tudo isto, independentemente de quem mais pudesse querer matar Arabella, é que provar que essa pessoa entrou na casa de Tommy sem ser detectado, carregou a arma que por acaso estava ali à mão e depois puxou o gatilho vai ser difícil.

- Difícil talvez, mas não impossível - disse Henry, para lhe dar confiança. - Vou mandar Marvin começar a investigar imediatamente os últimos sítios em que Arabella trabalhou, e talvez ele consiga descobrir com quem é que ela esteve envolvida lá.

Depois de se despedir de Sunday, Henry recostou-se e pensou no que tinha acabado de saber acerca do passado de Arabella. Teve uma forte sensação de desconforto, mas não conseguiu definir porquê. Tinha um pressentimento cada vez mais arreigado de que algo estava errado, mas não conseguia perceber o que era.

Sentou-se na cadeira giratória que era o seu local preferido no avião, para além da cabina de pilotagem. Era algo que Sunday dissera, decidiu, mas o que era? Recordou a conversa que tinham tido com precisão quase absoluta. Claro, disse para consigo, fora a observação de Sunday acerca da dificuldade de tentar provar que uma pessoa desconhecida tinha entrado na casa de Tommy, carregado a pistola e puxado o gatilho.

Era isso! Não tinha de ser uma pessoa desconhecida. Havia uma pessoa que podia ter feito aquilo, que sabia que Tommy se sentia doente e extremamente cansado, que sabia que Arabella estava ali, que, na verdade, a tinha deixado entrar. A governanta!

Ela era relativamente nova. Era muito provável que Tommy não tivesse tirado referências, provavelmente nem sequer sabia muito acerca dela.

Rapidamente, Henry telefonou à condessa Condazzi. "Espero que ainda esteja em casa", rezou em silêncio. Quando a voz dela, agora familiar, atendeu, ele não perdeu tempo a ir direito ao motivo do telefonema:

- Betsy, Tommy alguma vez lhe disse alguma coisa acerca da governanta nova?

Ela hesitou antes de responder.

- Bem, sim, mas só em tom de brincadeira.

- Que quer dizer com isso?

- Oh, sabe como é - respondeu ela. - Há tantas mulheres na casa dos cinquenta e dos sessenta que estão descomprometidas, mas tão poucos homens. Quando falei pela última vez com Tommy... foi na manhã do dia em que aquela pobre rapariga foi assassinada... eu disse que tinha uma dúzia de amigas que são viúvas ou divorciadas e que ficariam com ciúmes por causa do interesse que ele manifestava por mim, e que se ele aparecesse por aqui seria o centro das atenções. Lembro-me de que ele disse que, com excepção da minha pessoa, pretendia manter-se afastado de mulheres descomprometidas e que, na verdade, acabara de ter uma experiência muito desagradável por isso mesmo. - Fez uma pausa antes de continuar. - Parece que naquela mesma manhã tinha dito à governanta nova que ia pôr a casa à venda e que se mudaria para Palm Beach. Confidenciou-lhe que tinha rompido com Arabella porque outra pessoa se tinha tornado importante para ele. Mais tarde, quando reflectiu sobre a conversa e a reacção dela, apercebeu-se de que a governanta talvez tivesse ficado com a ideia maluca de que ele se referira a ela. Por isso fez questão de a informar de que, obviamente, não necessitaria dos serviços dela depois de a casa ser vendida e, naturalmente, não a levaria consigo para a Florida. Contou-me que no princípio ela tinha parecido chocada e depois ficara fria e distante. - A condessa calou-se novamente e depois engasgou-se: - Meu Deus, não pensa que ela pode ter alguma a coisa a ver com esta confusão em que Tommy está metido, pois não?

- Infelizmente,. começo a pensar que sim, Betsy - replicou Henry. - Depois telefono-lhe. Tenho de pôr o meu homem a trabalhar nisto imediatamente. - Desligou e marcou rapidamente o número de Marvin Klein. - Marvin - disse. - Tenho um palpite acerca da governanta do secretário Shipman, Lillian West. Faça uma investigação completa sobre ela. Imediatamente.

Marvin Klein não gostava de infringir a lei, como iria fazer ao penetrar em registos informáticos privados, mas sabia que quando o patrão dizia "imediatamente", o assunto tinha de ser urgente.

Foi apenas uma questão de minutos antes de reunir um dossier sobre Lillian West, de 56 anos, incluindo um registo bastante extenso de violações de tráfego e, mais importante, o seu historial de empregos. Marvin franziu o sobrolho quando começou a ler. West tinha um diploma universitário, um mestrado, e ensinara economia doméstica numa série de colégios, o último dos quais fora o Wren College em New Hampshire. Depois, há seis anos, saíra dali e aceitara um cargo de governanta.

Desde essa altura, tivera quatro empregos diferentes. As referências dela - que citavam a sua pontualidade, o seu bom trabalho e o talento para a cozinha - eram boas mas não entusiásticas. Marvin decidiu fazer uma investigação por conta própria.

Menos de meia hora depois do telefonema de Henry, Marvin estava ao telefone com o anterior presidente, que ainda vinha em viagem desde a Florida.

- Sir, os registos indicam que Lillian West, enquanto trabalhou em vários cargos de ensino de nível universitário, teve uma história de relações problemáticas com os seus superiores. Há seis anos, abandonou o último cargo de docente e foi trabalhar como governanta para um viúvo em Vermont. Ele morreu dez meses depois, aparentemente de ataque cardíaco. Depois foi trabalhar para um executivo divorciado, que infelizmente morreu um ano depois. Antes de ir trabalhar para o secretário Shipman, o seu patrão foi um milionário de oitenta anos; ele despediu- a, mas mesmo assim deu-lhe boas referências. Falei com ele. Disse, que, embora a Sra. West fosse uma excelente governanta e cozinheira, era também bastante presunçosa e parecia não ligar ao relacionamento tradicional entre o dono da casa e a governanta. Na verdade, disse que foi quando se apercebeu de que ela se tinha convencido de que ia casar com ele que decidiu mandá-la embora, e pouco depois disso despediu-a.

- Esse homem falou sobre ter alguns problemas de saúde? - perguntou Henry calmamente enquanto interiorizava as possibilidades que eram apresentadas pela história perturbada de Lillian West.

- Ocorreu-me perguntar-lhe isso, sir. Ele disse que agora está de boa saúde, mas que durante as últimas semanas em que

a Sra. West trabalhou para ele, especificamente depois de ele lhe ter dado o pré-aviso de despedimento, sofreu de extrema fadiga, seguida por uma doença não diagnosticada que culminou numa pneumonia.

Tommy tinha falado numa grande constipação e numa fadiga extrema. A mão de Henry apertou o telefone.

- Bom trabalho, Marvin. Obrigado.

- Infelizmente, sir, há mais. Segundo os registos, o passatempo da Sra. West é a caça, e aparentemente ela está muito familiarizada com armas. Por fim, falei com o reitor do Wren College, onde ela exerceu o seu último cargo de docência. Segundo ele se lembra, a Sra. West foi forçada a demitir-se. Ele disse que ela tinha sintomas notórios de estar profundamente perturbada, mas recusou todas as tentativas de aconselhamento.

Henry terminou a conversa com o assistente enquanto era assolado por uma onda de ansiedade. Sunday ia naquele preciso momento ver Lillian West, completamente inconsciente do passado que Marvin tinha posto a nu. Inadvertidamente, ia alertar a governanta para o facto de que estavam a analisar a Possibilidade muito forte de outra pessoa que não Thomas Shipman ter assassinado Arabella Young. Não era possível Prever qual seria a reacção da mulher. A mão de Henry nunca tinha tremido, nem sequer em cimeiras, mas naquele momento os seus dedos mal conseguiam marcar os números que o ligariam ao telefone do carro de Sunday.

O agente dos Serviços Secretos DowIing atendeu.

- Neste momento, estamos em casa do secretário Shipman,

a sir. A Dra. Britland está lá dentro.

- Vá buscá-la - disse Henry secamente. - Diga-lhe que tenho de falar com ela.

- Imediatamente, sir.

Passaram-se vários minutos antes de o agente DowIing voltar ao telefone.

- Podemos ter um problema, sir. Tocámos muitas vezes a campainha, mas ninguém responde.

Sunday e Tommy estavam sentados ao lado um do outro no sofá da biblioteca, a olhar para o cano de um revólver. à frente deles, Lillian West estava sentada muito direita e firme enquanto segurava a arma. O toque persistente da campainha na porta da entrada não a distraiu.

- O seu guarda do palácio, sem dúvida - disse ela, sarcasticamente.

"A mulher é louca", pensou Sunday enquanto fixava os olhos desvairados da governanta. "É louca e está desesperada. Sabe que não tem nada a perder se nos matar, e é suficientemente louca para o fazer."

A seguir, Sunday pensou nos agentes dos Serviços Secretos que a esperavam no exterior. Art DowIing e Clint Carr estavam com ela hoje. Que fariam quando ninguém atendesse à porta? Provavelmente, forçariam a entrada, pensou. "E quando o fizerem ela vai matar Tommy e mata-me a mim também", pensou, cada vez mais alarmada. "Sei que o fará."

- Você tem tudo - disse Lillian West para Sunday, com os olhos fixos na prisioneira, a voz baixa e enraivecida. - É bonita, é jovem, tem um trabalho importante e é casada com um homem rico e atraente. Bem, espero que tenha apreciado o tempo que passou com ele.

- Sim, apreciei - disse Sunday, calmamente. - Ele é um homem e um marido maravilhoso, e quero passar mais tempo com ele.

- É uma pena, mas isso não vai acontecer, e a culpa é sua. isto não seria necessário se tivesse deixado as coisas como estavam. Que diferença faria a ele - Lillian fez uma pausa, e os seus olhos incidiram momentaneamente em Tommy - se fosse para a prisão? Ele não é merecedor do trabalho que teve. Ele não presta. Enganou-me. Mentiu-me. Prometeu que me levaria para a Florida. Ia casar comigo. - Calou-se de novo, desta vez a olhar fixamente para o antigo secretário de Estado. - É claro que não era tão rico como os outros, mas tem o suficiente para viver. Vi os papéis todos e sei. - Um sorriso bailou-lhe nos lábios. - E também é mais simpático do que os outros. Gostei especialmente disso. Teríamos sido muito felizes.

- Eu não lhe menti, Lillian - disse Tommy calmamente. Pense bem naquilo que lhe disse, e vai concordar comigo. Mas gosto de si e acho que precisa de ajuda. Quero ajudá-la a tratar-se. Prometo-lhe que tanto Sunday como eu faremos tudo o que pudermos por si.

- Quê, arranjam-me outro lugar de governanta? - atirou Lillian. - Limpar, cozinhar, fazer compras. Não, obrigada! Troquei o ensino de miúdas parvas por esta porcaria porque pensei que por fim alguém me apreciaria e quereria tomar conta de mim. Mas isso não aconteceu. Depois de os ter servido a todos, continuaram a tratar-me como lixo. -Direccionou novamente o olhar para Tommy. - Pensei que você ia ser diferente, mas não é. É igualzinho a todos os outros.

Enquanto tinham estado a falar, o toque da campainha cessou. Sunday sabia que os homens dos Serviços Secretos estariam à procura de uma forma de entrar, e não tinha dúvidas de que conseguiriam. Depois gelou. Quando Lillian lhe tinha aberto a porta, ligara o alarme.

- Não queremos que um desses repórteres tente entrar sorrateiramente - explicara.

"Se Art ou Clint tentarem abrir uma janela, o alarme é despoletado", pensou Sunday, "e quando isso acontecer Tommy e eu estamos liquidados." Sentiu a mão de Tommy acariciar a sua. "Ele está a pensar na mesma coisa", apercebeu-se. "Meu Deus, que podemos nós fazer?" Já ouvira muitas vezes a expressão "Olhar a morte de frente", mas só neste momento é que se apercebeu de que sabia o que significava. "Henry", pensou, "Henry! Por favor não deixes que esta mulher roube a vida que temos juntos."

Agora a mão de Tommy estava fechada sobre a dela. O seu dedo indicador estava a esfregar insistentemente a mão dela. Ele estava a tentar enviar-lhe um sinal. Mas o quê?, perguntou a si mesma. Que é que ele queria que ela fizesse?

Henry ficou na fila, ansioso para não quebrar a ligação com o agente dos Serviços Secretos que estava no exterior da casa de Tommy Shipman. O agente DowIing estava agora no telefone celular e continuou a falar como ex-presidente enquanto tentava cuidadosamente rodear a casa.

- Todas as cortinas estão corridas, sir, virtualmente em todos os aposentos. Contactámos a Polícia local e eles devem estar a chegar a qualquer momento. Clint está nas traseiras da casa, a trepar a uma árvore que tem ramos fortes e está próxima de algumas janelas. Talvez consigamos entrar por ali, sem sermos detectados. O problema é que não temos forma de saber onde é que eles estão dentro da casa.

"Meu Deus", pensou Henry. "Precisaríamos pelo menos de uma hora para trazer o equipamento especial que nos permitiria seguir os movimentos deles dentro da casa. Mas receio que não possamos esperar esse tempo todo." O rosto de Sunday apareceu indistintamente na sua mente. Sunday! Sunday! Ela tinha de estar bem. A vontade dele era sair e empurrar o avião para o fazer ir mais depressa. Queria mandar avançar o exército. Queria estar lá. Agora! Abanou a cabeça. Nunca se tinha sentido tão impotente. Depois ouviu Dowling praguejar furiosamente.

- Que é, Art? -gritou ele. - Que se passa?

- Sir, as cortinas do aposento do rés-do-chão, do lado direito acabaram de se abrir, e tenho a certeza de que ouvi tiros disparados no interior.

-Aquela estúpida mulher deu-me a oportunidade perfeita - estava a dizer Liilian West. - Eu sabia que o meu tempo estava a esgotar-se, que não conseguiria matá-lo lentamente, como queria. Mas isto também foi bom, a sério. Desta forma, não só o castiguei a si como também àquela mulher horrorosa.

- Então matou mesmo Arabella? - exclamou Tommy.

- Claro que sim - disse ela, impaciente. - E foi tão fácil. Sabe, naquela noite eu não saí. Trouxe-a para aqui, acordei-o, dei as boas-noites, fechei a porta e escondi-me no armário dos casacos. Ouvi tudo. E sabia que a pistola estava ali, pronta para ser usada. Quando você cambaleou para o andar de cima, soube que não demoraria muitos minutos a ficar inconsciente. - Fez uma pausa e sorriu malevolamente. - Os meus comprimidos para dormir são muito mais eficazes do que aqueles a que está acostumado, não são? Têm ingredientes especiais. - Sorriu novamente. - E também uns vírus muito interessantes. Por que é que pensa que a sua constipação melhorou tanto desde aquela noite? Porque não me deixou dar-lhe os seus comprimidos. Se tivesse deixado, nesta altura a sua constipação já seria uma pneumonia.

- Estava a envenenar Tommy? - exclamou Sunday.

Indignada, Lillian West olhou para a mulher mais nova.

- Estava a castigá-lo - disse com firmeza. - Depois virou-se novamente para Shipman. - Depois de você estar em segurança lá em cima, voltei para a biblioteca. Arabella estava a revistar-lhe a secretária e no princípio ficou assustada por eu a apanhar em flagrante. Disse que andava à procura das chaves do seu carro, disse que você não estava a sentir-se bem e que lhe tinha dito para levar o carro para casa e que voltaria com o carro na manhã seguinte. Depois perguntou-me que estava eu a fazer ali, depois de ter dado as boas-noites aos dois. Eu disse que tinha voltado porque tinha prometido entregar a sua pistola numa esquadra da Polícia e me tinha esquecido de a levar. A pobre idiota ficou ali a ver-me pegar na arma e carregá-la. As últimas palavras dela foram: "Não é perigoso carregá-la? Tenho a certeza de que o Dr. Shipman não queria isso."

Lillian West começou a rir, um guincho estridente, quase histérico. Corriam-lhe lágrimas pelos olhos e o corpo tremia, mas manteve sempre a arma apontada a eles.

"Ela está a preparar-se para nos matar", pensou Sunday, apercebendo-se plenamente, pela primeira vez, de que tinham poucas hipóteses de escapar. O dedo de Tommy continuava a esfregar-lhe as costas da mão.

-"Não é perigoso carregá-la?" -repetiu West, mimando as últimas palavras de Arabella, com a voz entrecortada por uma gargalhada alta, rouca. -"Tenho a certeza de que o Dr. Shipman não queria isso!"

Pousou a mão da arma no braço esquerdo, para a firmar. A gargalhada terminou.

- Não se importa de abrir as cortinas? - pediu Shipman. Pelo menos, deixe-me ver a luz do Sol uma vez mais.

O sorriso de Lillian West foi triste.

- Por que é que se preocupa com isso? Vocês estão prestes a ver a luz brilhante ao fundo do túnel - disse-lhe ela.

"As cortinas", pensou Sunday de súbito. Era o que Tommy tinha estado a tentar transmitir-lhe. Ontem, quando ele baixara a persiana da cozinha, tinha comentado que o mecanismo eléctrico que accionava as cortinas neste aposento estava defeituoso, que parecia um tiro de espingarda quando era usado. Sunday olhou em volta cuidadosamente. O comando das cortinas estava em cima do braço do sofá. Tinha de chegar até ele. Era a única esperança que lhes restava.

Sunday premiu a mão de Tommy para lhe indicar que, finalmente, tinha compreendido. Depois, enquanto rezava uma prece, esticou-se e, com um movimento muito veloz, carregou no botão que abriria as cortinas.

O som, alto como um tiro de espingarda, como ele tinha dito, fez Lillian West virar a cabeça. Nesse instante, Tommy e Sunday saltaram do sofá. Tommy atirou-se para o corpo da mulher, mas foi Sunday que bateu na mão de Lillian quando ela começou a puxar o gatilho do revólver. Enquanto lutavam, foram disparados vários tiros. Sunday teve uma sensação de queimadura no braço esquerdo, mas isso não a deteve. Incapaz de tirar a arma à mulher, atirou-se para cima dela e deu um pontapé na cadeira para que esta caísse com os três nela, no

momento em que o quebrar de vidros assinalou a chegada bem-vinda dos elementos dos Serviços Secretos.

 Dez minutos depois, com um lenço bem amarrado sobre o ferimento superficial no braço, Sunday estava ao telefone com um ex-presidente dos Estados Unidos completamente

desanimado.

- Estou bem - disse ela pela décima quinta vez -, muito

bem. E Tommy também está bem. Lillian West está numa camisa-de-forças e a sair daqui. Por isso pára de te preocupares. Já está tudo resolvido.

- Mas podias ter morrido - disse Henry, não pela primeira

vez. Não queria desligar. Não queria deixar que a mulher parasse de falar. Desta vez, tinha sido por pouco. Não conseguia suportar o pensamento de que tinha corrido o risco de não voltar a ouvir a voz dela.

- Mas não morri - disse Sunday com vivacidade. - E, Henry, tínhamos ambos razão. Foi sem dúvida um crime Passional. O único senão é que fomos um pouco lentos de mais a descobrir de quem foi a paixão que causou o crime.

Correram Todos Atrás da Mulher do Presidente

 

- É um telefonema do Gabinete Oval, Sr. Presidente.

Henry Britland IV suspirou. "É preciso ter paciência", pensou Marvin Klein, há muito o seu braço-direito, parecia continuar e ser incapaz de chamar ao seu sucessor, o actual presidente dos Estados Unidos, outra coisa a não ser "o Gabinete Oval".

O telefonema veio quando Henry estava sentado na sua secretária, na biblioteca de Drumdoe, a casa de campo em Nova Jérsia. O sol de Inverno de fim de tarde era filtrado pelas altas janelas de vidraças e reflectia-se nos painéis acetinados de magnífica decoração gótica revivalista. Tinha começado a trabalhar nas suas memórias, mas apercebeu-se, surpreendido, de que estivera a sonhar acordado. Sunday, sua mulher há menos de um ano, e membro do Congresso, estava em Washington, e Henry tinha dado por si a desejar que os próximos três dias, passassem depressa para ela poder estar aqui com ele novamente

Como sempre, pensava nela com uma profunda saudade. Sunday - seguramente ninguém podia ser assim tão belo, tão inteligente, tão voluntarioso, tão compassivo. Havia alturas em que sentia verdadeiramente que devia ter sonhado com uma pessoa assim e o seu sonho tinha-se tornado realidade. A sua Sunday: a congressista elegante, loura, com quem, num impulso tinha decidido namoriscar durante a última recepção que dera na Casa Branca, pouco antes de abandonar o cargo depois do segundo mandato. Com um sorriso inconsciente, recordou a resposta calma e reprovadora que ela lhe dera.

- Aliam. O Gabinete Oval, Sr. Presidente - insistiu Klein, conseguindo interromper-lhe o sonho.

Henry pegou no auscultador.

- Sr. Presidente - disse, calorosamente.

Podia imaginar Desmond Ogilvey-Des, como era conhecido pelos amigos - sentado na secretária, com uma aparência douta, cabelo branco, o corpo alto e elegante erecto, fato sóbrio azul escuro e gravata.

Sabia que o seu anterior vice-presidente nunca esquecera o facto de que, há nove anos, Henry o tinha tirado da obscuridade relativa de congressista do Wyoming ao escolhê-lo para seu vice. Inicialmente, fora uma decisão contestada pelos órgãos de informação, muitos dos quais afirmaram que era um jogo.

- Para vocês pode ser um jogo - replicara Henry -, mas para mim é um homem que serviu no Congresso durante dez mandatos, que tem sido discretamente responsável por algumas das leis mais eficazes aprovadas nos últimos Congressos. É minha firme convicção que eu sou eleito pelos votantes, e se me acontecer alguma coisa durante o meu mandato, então irei para junto do meu Criador sabendo que o país que amo está nas melhores mãos que eu poderia encontrar para ele.

Henry apercebeu-se de que o silêncio que se seguiu ao seu cumprimento estava a ser invulgarmente longo e falou novamente:

- Des?

- Sr. Presidente - replicou Desmond Ogilvey, mas nada no seu tom deixava adivinhar a jocosidade habitual.

Henry percebeu imediatamente que não era um telefonema social e foi directo ao assunto.

- Qual é o problema, Des?

Nova pausa.

- É Sunday. Sinto muito, Henry.

"Sunday!" Henry deixou de respirar. De repente, sentiu que o coração tinha parado de bater, que todo o seu corpo estava suspenso, gelado naquele momento.

- Henry, não sei como dizer-te isto. Temos uma situação terrível. Sunday desapareceu. Os agentes dos Serviços Secretos que estavam ao serviço dela foram encontrados inconscientes, ainda no carro. A mesma coisa aconteceu à equipa que os seguia. Aparentemente, foi usado um anestésico para os neutralizar, que os imobilizou a todos em ambos os carros. Quando os agentes recuperaram a consciência, Sunday tinha desaparecido.

- Algum motivo aparente? - Henry estava a respirar novamente, tentando manter-se calmo. Estava consciente de que a sua voz estava tensa, de que Marvin estava a olhar para ele, de que estava a carregar na campainha para chamar a equipa dos Serviços Secretos que se encontrava lá fora.

- Pensamos que sim. Foi feito um telefonema para a central telefónica do Ministério das Finanças. A pessoa que telefonou disse que tinha Sunday, ou pelo menos conhecia o seu paradeiro. Tu podes dizer-nos se a chamada é verdadeira. Sunday tem uma nódoa negra com mau aspecto no braço direito, logo abaixo do ombro?

Henry acenou com a cabeça, e depois murmurou:

- Sim.

- Então isso significa que o telefonema é legítimo Aparentemente, ela não tinha mencionado a nódoa negra a nenhum dos seus colaboradores, porque eles dizem não saber de nada.

- Ela caiu do cavalo quando andávamos a montar no sábado passado - disse Henry, e relembrou o medo momentâneo que sentira na altura, contrastando-o com a sensação quase paralisante de mau presságio que sentia agora. Apercebeu-se de que os cinco homens dos Serviços Secretos que estavam de serviço naquele momento estavam alinhados em arco em volta da secretária. Fez um sinal a Jack Collins, o agente-chefe, para que pegasse na extensão na mesa ao lado do grande sofá de pele castanha.

- Collins está a ouvir, Des - disse Henry. - Sunday anda a aprender a montar. Quando ficou com a nódoa negra, disse na brincadeira que, se contasse a alguém, os tablóides começariam logo a chamar-lhe agressor de mulheres. -Surpreso, apercebeu-se de que estava a divagar. Tinha de se concentrar. - Quanto dinheiro é que eles querem, Des? Arranjo-o imediatamente, sem perguntas.

- Quem me dera que fosse dinheiro, Henry. Infelizmente anunciaram-nos que, a menos que libertemos Claudus Jovunet

até amanhã à noite, podemos começar a dragar o Atlântico para encontrar o corpo de Sunday.

Claudus Jovunet. Era um homem que Henry Britland conhecia bem. Um terrorista especialmente sangrento; um antigo mercenário; um assassino profissional. O crime mais recente que lhe era imputado, e que levara, por fim, à sua captura, fora a explosão de um avião da Uranus Oil, uma tragédia que ceifara as vidas dos vinte e dois executivos mais importantes da empresa. Depois de uma carreira que se estendeu ao longo de quinze anos de terror, Jovunet tinha por fim sido julgado e estava agora a cumprir penas de prisão perpétua sucessivas na prisão federal de Marion, Oaio. Embora não tivesse tido um papel activo na captura do assassino, Henry sentira uma satisfação especial por isso ter acontecido durante o seu mandato.

- Quais são as condições da troca? - perguntou Henry, sabendo, quando a pergunta saiu dos seus lábios, que Des poderia não estar disposto a deixar que o Governo fosse manipulado por um terrorista.

- As instruções são para colocarmos Jovunet no novo transporte supersónico. Como sabes, está actualmente em exibição no National, aqui em Washington, antes do voo inaugural. Estipularam que só podem estar dois pilotos a bordo. A única outra instrução é um pouco estranha: dizem que temos de abastecer completamente o porão, mas... vou citar agora... podemos "esquecer o caviar". - O presidente fez uma pausa. - Eles dão... e vou citar novamente... a sua "palavra sagrada" em como, depois de o avião aterrar, os pilotos poderão informar via rádio sobre os pormenores de onde Sunday poderá ser encontrada, cito novamente, "viva e de boa saúde".

- A "palavra, sagrada" deles - disse Henry amargamente. "Oh, Sunday, Sunday!"

Olhou de relance para Jack Collins, que estava a dizer a palavra "armas" em voz baixa.

- Que tipo de armas estão eles a exigir, Des? - perguntou Henry.

-Por estranho que pareça, nenhuma. Se pudermos acreditar

nestas pessoas...

- Podemos acreditar nestas pessoas? - perguntou Henry,

interrompendo-o.

Des suspirou.

- Temos pouca escolha, Henry.

- Quais são os planos? - Henry susteve a respiração depois de fazer a pergunta, com medo do que poderia ouvir.

- Henry, Jerry está comigo - disse Des. Jerry era Jeremy Thomas, Ministro das Finanças.

Henry interrompeu:

- Des, quanto tempo podemos empatar enquanto fingimos estar a fazer o que eles querem?

- Devemos receber outra mensagem num dos Ministérios às cinco horas da tarde. Pensamos que conseguiremos empatar até quinta-feira à tarde, pelo menos. Felizmente, o Washington Post publicou uma notícia esta manhã acerca dos pequenos ajustes que têm de ser efectuados antes de o novo avião poder fazer o primeiro voo, na sexta-feira. - Fez uma pausa. - E, para te sossegar um pouco, podes ter a certeza de que pretendemos avançar com a troca.

O corpo de Henry estremeceu quando ele permitiu a si mesmo respirar fundo ao fim de muitos minutos. Olhou para o relógio. Eram quatro horas da tarde de quarta-feira. Com sorte, teriam vinte e quatro horas.

- Estou a caminho, Des - disse Henry.

Tom Wyman, o segundo agente no comando, quebrou o silêncio que se seguiu ao desligar dos telefones:

- O helicóptero está à espera, sir. O avião está preparado > para partir imediatamente.

Sunday sentiu-se tão confusa e desorientada durante vários longos momentos que quase teve de se recordar do seu nome"Onde estou?", perguntou a si mesma enquanto a mente acordava gradualmente para a percepção de que algo correra terrivelmente mal. A sensação física imediata foi a de estar amarrada. Os braços e as pernas doíam, mas sentia-se também entorpecida. Algo mantinha o seu corpo rígido. Torceu-se ligeiramente, e ocorreu-lhe uma imagem mental de toalhas e lençóis, a bater rigidamente com o vento gelado no telhado do apartamento da avó, em Nova Jérsia. "Corda da roupa", pensou. As cordas duras e abrasivas que a prendiam pareciam cordas da roupa antigas.

Sentia a cabeça tonta e estranhamente pesada, como se estivesse a ser apertada por um bloco de pedra. Obrigou os olhos a abrirem-se mas não conseguiu ver nada. Arquejou levemente e percebeu que algo lhe cobria o rosto e a cabeça, um pano grosso e áspero que não conseguiu identificar e que lhe deixava o rosto quente e com comichão.

Mas o resto do corpo estava frio. Os braços estavam especialmente frios. Mexeu-se um pouco e reparou que não tinha o casaco vestido. O facto de se mexer também a fez aperceber-se de que o braço direito lhe doía onde a corda fazia pressão sobre a nódoa negra que arranjara quando caíra do Appleby.

Sunday avaliou rapidamente a situação em que se encontrava: "Muito bem, tenho um pedaço de serapilheira ou lona na cabeça, e estou amarrada como um peru de Natal", pensou. "E estou num quarto frio, algures. Mas onde? E que aconteceu?" Não se lembrava de nada. Tivera um acidente? Estaria numa sala de operações, amarrada à mesa, a acordar depois de uma cirurgia?

Depois recordou-se: acontecera alguma coisa no carro.

Era isso! Acontecera alguma coisa no carro. Mas o quê?

Forçou-se a tentar lembrar-se, a reviver calmamente os acontecimentos do dia. A Câmara tinha encerrado os trabalhos às três horas. Art e Leo estavam à sua espera, como sempre, a seguir ao vestiário. Não voltara ao seu gabinete, como era costume, porque havia uma recepção na Embaixada francesa a que ela tinha de comparecer, e precisava de ir a casa mudar de roupa. Por isso, tinham-se dirigido para o carro e seguido para a cidade. E depois que é que acontecera?

Sunday tentou afastar o gemido que sentia estar prestes a soltar-se dos seus lábios. Sempre se orgulhara de não ser um bebé-chorão. Irracionalmente, os seus pensamentos recuaram para quando tinha 9 anos e estava a baloiçar num ferro, no recreio da escola, e escorregara. Vira o chão aproximar-se vertiginosamente na sua direcção antes de a testa bater no cimento. Não tinha chorado nessa altura. E não choraria agora. Embora na altura estivessem alguns rapazes por perto e tivessem visto a sua queda e ela não pudesse chorar diante deles e agora estivesse sozinha.

"Não, não desistas", admoestou-se. "Pensa, pensa." Quando é que o acidente tinha acontecido? Reviu mentalmente os passos que tinham dado. Art tinha aberto a porta de trás do carro e esperara até ela entrar. Depois ocupara o assento ao lado de Leo, que estava ao volante. Tinha acenado a Larry e BilI, que aguardavam no carro de apoio atrás deles.

A neve tinha parado de cair, mas as estradas continuavam confusas e traiçoeiras. Tinham passado por vários pára-choques amolgados. Apesar da hora, já estava escuro, e ela acendera a lâmpada de leitura do banco traseiro e estivera a estudar as anotações que tirara durante o discurso que o presidente do Congresso fizera nesse dia, e ouvira um barulho alto, como uma explosão camuflada. Sim, era isso, uma explosão!

E tinha levantado os olhos. Lembrou-se de que tinham passado pelo Centro Kennedy e estavam quase em Watergate. O rosto de Art. Lembrou-se de que ele olhara para ela, depois para detrás dela, pelo vidro traseiro, para o carro de apoio. E tinha gritado:

- Acelera a fundo, Leo! - Mas depois a sua voz tinha enfraquecido. Sunday não se recordava se ele tinha parado de gritar ou se tinha sido ela que deixara de ouvir, porque se lembrava de se sentir subitamente fraca.

Sim, lembrava-se de tentar sentar-se direita porque o carro estava a abrandar para parar. E depois a porta do lado do condutor foi aberta. E não se lembrava de mais nada.

Porém, era suficiente para a fazer compreender que não estava num hospital. Porque não tinha havido um acidente. Não, obviamente, aquilo acontecera de propósito. Tinha sido raptada.

Mas quem o fizera? E porquê?

Onde quer que estivesse, era húmido e gelado. O pano sobre a cabeça desorientava tanto. Abanou a cabeça, tentando aclará-la ligeiramente. O que quer que os raptores tivessem usado para a neutralizar estava a perder o efeito, mas o resíduo estava a deixá-la com uma dor de cabeça terrível. O que sabia é que estava bem amarrada ao que parecia ser uma cadeira de madeira. Estaria sozinha? Não podia ter a certeza. Sentiu que estava alguém nas redondezas, talvez até mesmo a observá-la.

De repente, pensou nos agentes dos Serviços Secretos, Art e Leo. Também estavam aqui? Se não, que lhes acontecera? Sabia que eles teriam feito tudo para a proteger. "Por favor, Jesus, não permitais que eles tenham sido assassinados", disse numa oração silenciosa.

Henry! Sabia que ele devia estar desesperado. "Ou será que ainda nem sabe que eu desapareci? Há quanto tempo foi?" Tanto quanto sabia, podia ser qualquer coisa entre alguns minutos e vários dias desde que tinha sido raptada. "E por que é que isto aconteceu? Que beneficio poderá alguém obter raptando-me?" Se fosse dinheiro, então sabia que Henry pagaria o que fosse preciso. Porém, tinha a sensação de que não era uma questão de dinheiro.

A garganta de Sunday fechou-se. Havia mais alguém ali, no aposento, com ela. Ouvia uma respiração leve, que se aproximava. Alguém estava a debruçar-se sobre ela. Dedos grossos, insistentes, estavam a sentir os contornos do rosto dela através do tecido grosso, a acariciar-lhe o pescoço, a tocar-lhe no cabelo.

Uma voz baixa, rouca, que teve de se esforçar para ouvir, sussurrou:

- Andam todos à sua procura. Tal como eu soube que andariam. O seu marido. O presidente. Os Serviços Secretos. Neste momento, andam a cheirar por todo o lado. Mas são como ratos cegos. Sim, como três ratos cegos. E não vão encontrá-la. Pelo menos não antes de a maré subir, e depois já não terá importância.

Henry não falou durante o voo para Washington. Sentou-se sozinho no compartimento privado do avião, forçando a mente a concentrar-se no que se sabia sobre o rapto de Sunday e no que podia deduzir-se. Tinha de se distanciar do turbilhão emocional que sentia interiormente e forçar o seu cérebro a analisar a situação como analisara dúzias de situações intensamente críticas durante o tempo que passara na Casa Branca. Tinha de ser guiado pela razão, não simplesmente galvanizado pela emoção. Tinha de ser como um cirurgião, analítico e de cabeça fria.

Mas depois, num acesso de tristeza, Henry recordou a si mesmo que, a não ser em casos de emergência absoluta, nenhum cirurgião operaria a própria mulher, com receio de que as suas emoções lhe turvassem o julgamento.

Recordou-se de um excerto de poesia: "Estas mãos mortais por amor se pousaram como música na tua garganta. Mas a música da alma é delicada, remota... " Não fazia ideia da fonte daquele verso, mas soube que, por alguma razão, neste momento era pertinente.

Pensou em Sunday, em como ela adormecia com tanta facilidade, ao passo que ele gostava de ler, por vezes durante horas, depois de ir para a cama. Ocasionalmente, dormitava enquanto estava a ler para ela, ou talvez a criticar em voz alta algo que achava especialmente errado num dos muitos jornais que lia diariamente.

Recordou que no domingo anterior quisera partilhar uma coisa com ela, mas apercebera-se de que ela tinha adormecido. Mesmo assim, tinha-lhe afagado o pescoço com os dedos, na esperança de que não estivesse profundamente adormecida e acordasse para ouvir.

Ela tinha suspirado, e, a dormir, virara-lhe as costas, com as mãos debaixo do rosto, o cabelo louro espalhado à sua volta. Tinha um ar tão encantador que ele se tinha sentado e ficara a contemplá-la pelo menos durante meia hora, embasbacado.

Na manhã seguinte, tinham tomado o pequeno-almoço cedo, antes de ela apanhar o avião para Washington. Henry pensou como a arreliara dizendo que ela o estava a rejeitar. Ela rira e dissera que dormia sempre como uma pedra e que isso se devia a ter a consciência tranquila. "E qual era o problema dele?", perguntara ela com um sorriso malicioso.

E ele replicara que a culpa era dela, que estava tão louco por ela que dormir quando estavam juntos parecia uma perda de tempo. E ela sorrira e dissera: "Não te preocupes, temos todo o tempo do mundo."

Abanou a cabeça, chocado com a ironia das palavras.

"Oh, Sunday, será que voltarei a ver-te?", pensou, cedendo a um raro momento de fraqueza emocional.

"Pára com isso!", admoestou-se. "Não vais recuperá-la a perder tempo. Carregou no botão do braço da poltrona. Segundos depois, Marvin e Jack estavam sentados à sua frente.

Ele queria deixar Marvin Klein em Nova Jérsia, para o caso de haver algum contacto directo dos raptores, mas Marvin implorara para vir e Henry cedera.

- Tenho de estar com o senhor - alegara Marvin. - Sims pode monitorizar os telefones aqui. Pode manter uma linha aberta para nós.

Sims, o mordomo de Drumdoe desde o décimo aniversário de Henry, há trinta e quatro anos, dissera:

- Sabe que pode confiar em mim, sir. - Falara com a calma habitual, embora lágrimas brilhassem nos seus olhos. Henry sabia o quanto Sims gostava de Sunday.

Agora reconheceu que tinha sido boa ideia trazer Marvin consigo. Ele tinha a visão analítica e objectiva dos problemas de que Henry tanto precisava naquele momento. Fora essa mesma característica que, quando Henry fora eleito para o Senado há quase quinze anos, o tinha levado a promover o jovem do centro de voluntariado.

Sem esperar que lhe perguntassem, Klein disse:

- Não houve mais contactos, sir. A telefonista do Ministério das Finanças que recebeu o telefonema foi suficientemente esperta para ir directamente ao topo, por isso a notícia do rapto foi abafada. Até agora não se sabe de qualquer fuga de informação.

Jack Collins, o chefe dos agentes dos Serviços Secretos destacados para Henry, podia passar por avançado de uma equipa de futebol profissional. Era um homem disciplinado, que parecia uma parede sólida, mas também ele tinha um ponto fraco quando se tratava de Sunday. A raiva e indignação subjacentes eram aparentes na sua voz quando relatou a Henry

o que sabia dos acontecimentos até ao momento.

- Ninguém viu o rapto propriamente dito, sir. Aparentemente, o carro de Sunday... quero dizer, o carro da Dra. Britland e o carro de apoio foram sabotados com um dispositivo explosivo ligado a uma lata que continha um gás entorpecedor. Pode muito bem ter sido detonada com um controlo remoto, a julgar pela rapidez com que os raptores chegaram ao local. Apesar da hora, parece que não há testemunhas, mas não admira porque, devido à neve, muitos escritórios e empresas fecharam cedo, por isso o tráfego era escasso.

- Eles pensam que Sunday ficou ferida na explosão? - perguntou Henry.

- Não. Acreditam que, tal como Art e Leo, os agentes que estavam com ela hoje, ficou inconsciente com o gás, mas que a explosão não foi muito forte. Tudo o que aconteceu aos carros foi que abrandaram até parar quando o dispositivo foi accionado, e aparentemente o gás imobilizou toda a gente de imediato. Quando os nossos homens recuperaram os sentidos, só se lembravam de se sentirem tontos e depois apagarem.

-Mas, para começo de conversa, como é que alguém conseguiu chegar ao carro para colocar a bomba de gás? Ele não é guardado num local seguro? - perguntou Henry.

- Ainda não temos a certeza absoluta, sir. Não era um dispositivo muito sofisticado... na verdade, era mais o tipo de coisa que qualquer pessoa pode montar com algumas peças de uma loja de artigos electrónicos. O gás, claro, é outra história. Ainda estão a analisá-lo, por isso não sabemos qual é a sua proveniência. Os dispositivos foram sem dúvida colocados dentro dos carros quando estes se encontravam estacionados no parque vigiado do Capitólio; um simples íman colocou cada um no seu lugar.

- E ninguém viu? - perguntou Henry.

- Até agora, não conseguimos encontrar nenhuma testemunha. Soube-se que o apartamento de um guarda foi assaltado e que o seu uniforme foi roubado. Parte do problema é que o carro da Dra. Britland era tão indefinido que não atraía a atenção, e saiu imediatamente -disse o agente. - Quem quer que estivesse nas proximidades, estava concentrado no carro de apoio com os dois agentes inconscientes.

Henry já sabia que o carro de Sunday com os outros agentes inconscientes tinha sido encontrado perto do LincoIn Memorial, "Claro", disse para si mesmo amargamente, "ninguém prestaria muita atenção a um carro que parecia ter sido comprado em segunda-mão numa loja de veículos de gama baixa e média." A sua pequena piada. Esquece as limusinas, dissera ele. Atraem demasiadas atenções. Não, para Sunday tinha mandado preparar um carro sofisticadíssimo disfarçado de "carro da família"

"As minhas pequenas pretensões", pensou. "Os meus pequenos jogos. Esperto, certo? Errado. Se Sunday tivesse estado numa limusina, seguramente teria chamado a atenção se estivesse estacionada na berma da estrada.

Embora soubesse que a verdade era que Sunday adorava ter aquele tipo de carros. Ter-se-ia recusado a aparecer em casa dos pais numa limusina. Surpreendido, Henry apercebeu-se de que, com a pressa, se tinha esquecido de avisar a mãe e o pai de Sunday. "Tenho de fazer isso daqui a pouco", decidiu. "Eles têm de saber, e deviam saber por mim."

- Liga para os pais de Sunday - pediu a Klein.

Foi o telefonema mais difícil que já tinha sido obrigado a fazer, mas quando desligou, depois de falar com os dois, o pensamento que lhe encheu a mente foi que era óbvio onde Sunday herdara a espinha-dorsal.

O telefone tocou, e o som abrupto interrompeu-lhe os pensamentos. Henry afastou com um gesto a mão estendida de Marvin e pegou ele próprio no auscultador. Era Desmond Ogilvey; foi directo ao assunto.

- Lamento, Henry. A pessoa que raptou Sunday telefonou para a CBS. Dan Rather acabou de pedir confirmação. Tem todos os pormenores com exactidão, por isso sabemos que é dos raptores. Pedimos-lhe que mantenha a história em segredo por enquanto, e ele concordou. Mas avisou que, se houver uma fuga de informação em mais algum lado, avança com a notícia.

- Se o raptor telefonou para Dan Rather, quer publicidade - disse Henry.

- Não, não, segundo o que disse a Rather. Ele disse que estava a "testar a integridade dos órgãos de informação", seja o que for que isso quer dizer.

- Há quanto tempo é que o telefonema foi recebido?

- Eu diria que foi há menos de dez minutos. Telefonei-te imediatamente depois de acabar de falar com Rather. Onde estás?

- A começar a descer para o National.

- Bem, vem directamente para aqui. Temos uma escolta policial à espera.

Vinte minutos depois, ainda acompanhado por Marvin Klein e Jack Collins, Henry estava à porta do Gabinete Oval. Des Ogilvey estava sentado à secretária, com o selo presidencial na parede atrás de si. O ministro das Finanças, o procurador-geral e os directores do FBI e da CIA sentavam-se em semicírculo em volta do presidente. Levantaram-se todos quando Henry entrou

Eram seis e vinte.

- Houve outra comunicação, Henry - disse o presidente. - Aparentemente, os raptores gostam de brincar connosco. Telefonaram outra vez para Rather e disseram que decidiram tornar públicas as suas exigências. Forneceram uma prova da sua sinceridade.

Afastou momentaneamente os olhos de Henry. Depois, fixando directamente os olhos dele, disse:

- A carteira de Sunday e uma madeixa do cabelo dela num envelope de plástico selado foram deixadas no balcão de bilhetes da Delta, no National. - O tom de Desmond Ogilvey baixou. - Henry, o cabelo que estava no envelope está encharcado de água do mar.

Quando Sunday sentiu o capuz ser-lhe tirado da cabeça, primeiro respirou fundo e depois abriu os olhos, na esperança de verbem o captor. Porém, o aposento estava fracamente iluminado, e ela teve dificuldade para ver o que a rodeava. Ele usava um traje monástico, comum capuz que caía para a frente, tapando-lhe a maior parte do rosto.

Desamarrou as cordas que a tinham prendido à cadeira. Depois, puxou-a para a posição de sentada, mas deixou-lhe os pés amarrados frouxamente. Não tinha as botas calçadas, e os pés sentiram frio ao tocar no chão de cimento. Era sete ou dez centímetros mais alto do que ela, reparou Sunday. Teria, portanto, cerca de um metro e oitenta. Os olhos cinzento-escuros, estreitos e fundos, tinham uma expressão astuta, malévola, ainda mais assustadora porque ardiam de inteligência. Sentiu a força das mãos e dos braços dele quando a virou e disse:

- Presumo que gostaria de usar a casa de banho.

Enquanto cambaleava para a frente, lutou mentalmente para avaliar a situação em que se encontrava. Claramente, estava numa cave qualquer. Estava terrivelmente gelada e impregnada do cheiro fétido que as caves sem ar e sem luz parecem adquirir e reter. O chão era de cimento desigual e estalado. O único mobiliário, para além da cadeira, era um televisor portátil, com a antena interior no cimo.

Ele segurou-lhe firmemente no braço enquanto a levava pelo aposento escuro. Sunday estremeceu quando uma ponta especialmente aguçada de cimento partido se espetou na sola do pé. Ele guiou-a para um vestíbulo estreito que dava acesso a umas escadas; pararam no cubículo atrás da escadaria. A porta estava aberta e lá dentro viu uma sanita e um lavatório.

- Pode ter a sua privacidade, mas não tente nada - disse ele. - Eu estou aqui fora, a segurar a porta. É claro que a revistei quando a trouxe para aqui. Sei que por vezes as mulheres escondem uma arma no corpo.

- Eu não tenho nada - disse-lhe ela.

- Oh, eu sei - disse ele, num tom descontraído. - Talvez não tenha reparado, mas aliviei-a do peso das jóias. Devo dizer que estou bastante surpreendido porque, com excepção de uma aliança bastante sólida, as suas jóias não têm o menor interesse. Eu pensava que o nosso rico ex-presidente seria mais generoso com a sua jovem e encantadora esposa.

Sunday pensou fugazmente nas jóias de gerações da família 13ritland que agora lhe pertenciam.

Nem o meu marido nem eu acreditamos na ostentação nem num consumismo desenfreado - replicou ela, encorajada ao perceber que, apesar dos membros entorpecidos e da enorme preocupação com Henry e com o que ele devia estar a passar, o seu temperamento estava a afirmar-se com garra.

Sozinha no minúsculo lavabo, lavou o rosto. Da torneira de água quente saía apenas um pequeno borrifo, mas sentiu-se feliz ao senti-la na pele. Uma única lâmpada suspensa no tecto - não podia ter mais de vinte cinco watts, pensou -dava apenas luz suficiente para ver, no espelho a descascar e coberto por película aderente por cima do lavatório, como estava pálida e desgrenhada. Tinha começado a virar-se quando percebeu que havia mais alguma coisa diferente nela. Que era?

Olhou para o seu reflexo durante alguns segundos antes de perceber que uma madeixa de cabelo tinha sido desajeitadamente cortada do lado esquerdo da sua cabeça, deixando um buraco no que tinha sido um bom corte de cabelo.

"Por que é que ele cortou o meu cabelo?", perguntou a si mesma.

Um arrepio que não tinha nada a ver com a temperatura gélida da sua prisão na cave atingiu a boca do estômago de Sunday. Decididamente, o seu captor tinha algo estranho. Parecia quase um robô, programado para cumprir instruções precisas, inexoráveis. Um robô, mas autoprogramado. "Ele não recebe ordens de ninguém. Quem seria ele e que esperaria ganhar ao fazer isto?"

Ouviu-se uma pancada na porta.

- Sugiro que se apresse, congressista. Dentro de um minuto vai para o ar uma transmissão que, creio, vai achar interessante.

Ela puxou a porta estragada e ela abriu-se. O captor, que Parecia um monge, pegou-lhe no braço num gesto quase cortês de apoio.

- Não quero que caia - disse.

Enquanto se arrastava desajeitadamente pela cave, Sunday teve a impressão de sentir o cheiro de bacon a ser cozinhado. Estaria alguém lá em cima? Quantas pessoas estavam envolvidas nesta operação? Quando chegaram à cadeira, a pressão da palma da mão dele no seu ombro indicou que ela devia sentar-se.

Com movimentos rápidos e hábeis, atou-a novamente às costas da cadeira, mas desta vez deixou-lhe os braços livres.

- São seis e meia - disse ele. - Deve estar a ficar com fome. Mas primeiro quero que veja o noticiário de Dan Rather. Para seu bem, espero que ele tenha seguido as instruções.

O Noticiário da Noite da CBS começou. Um Rather de rosto sombrio deu a notícia de abertura: "A congressista Sandra O'Brien, de Nova Jérsia, mais conhecida por Sunday, a mulher do anterior presidente Henry Parker Britland, foi raptada. O seu captor, ou captores, está a exigir que o terrorista-assassino internacional Claudus Jovunet seja colocado a bordo do novo SST americano para ser levado para um local ainda indeterminado. As instruções estipulam que as únicas outras pessoas que poderão estar a bordo do avião são os dois pilotos. Se estas condições não forem respeitadas, os captores dizem que a congressista será atirada ao oceano Atlântico. Falei com o ex-presidente, Henry Britland, que está no Gabinete Oval com o seu sucessor, Desmond Ogilvey. Ele garantiu-me que as condições vão ser cumpridas e que o Governo está a colaborar para salvar a vida da mulher.

O captor de Sunday sorriu.

- Tenho a certeza de que vão falar muito mais sobre si. Vou deixar a televisão ligada enquanto vou buscar o seu jantar. Divirta-se com o programa.

Sunday concentrou-se na TV quando Rather estava a dizer:

- Vamos passar, ao vivo, para a Casa Branca, onde o ex-presidente fará um apelo pessoal aos raptores da mulher.

Alguns segundos depois, Sunday olhou impotentemente para o medo e desgosto estampados no rosto do marido. O som parecia ter mudado, e ela teve de tentar inclinar-se para a frente para ouvir o que ele estava a dizer. Depois, O som do apelo comovente foi afogado pelo som de canções. Pareciam ser duas vozes, a de um homem e talvez a de uma mulher de idade. Sunday mal conseguia perceber as palavras.

-. ratos - ouviu, e depois compreendeu: - Três ratos cegos... vejam como correm...

"Correram todos atrás da mulher do agricultor", continuou ela mentalmente.

Mas não era isso que estava a ouvir. As vozes eram agora

mais altas, e estavam mais perto, a aproximar-se vindas das escadas.

-... correram todos atrás da mulher do presidente, mas ela tinha-se afogado para os peixes morderem...

A canção acabou abruptamente. Ouviu a voz do captor dizer:

- Foi muito bonito. Agora vá para cima.

Um momento depois estava diante dela, a segurar uma pequena bandeja.

- Com fome? - perguntou, agradavelmente. - A mãe não é grande cozinheira, mas esforça-se.

Afugentando as lágrimas, Henry Britland afastou-se das

câmaras. A sala de imprensa normalmente barulhenta estava invulgarmente sossegada. os olhos das pessoas ali reunidas reflectiam a solidariedade que sentiam.

Jack Collins olhou para ele, pesaroso, e disse para si mesmo

que se havia um único pensamento que toda a gente na sala estava a partilhar, é que Henry Parker Britland IV podia ser um dos homens mais simpáticos, inteligentes, ricos e carismáticos do universo, mas que tudo deixaria de ter significado para ele se perdesse Sunday.

- Nunca vi um tipo tão louco pela mulher - ouviu Collins

um jovem assistente da Casa Branca sussurrar para uma jovem que se encontrava a seu lado. "Tem tanta razão", pensou Jack, "tanta razão. Que Deus o ajude a ultrapassar isto."

O Presidente Ogilvey tinha vindo Para junto de Henry.

- Vamos para a Sala de Reuniões - disse ele, levando o homem mais jovem pelo braço.

Impacientemente, Henry retirou o último vestígio de creme dos olhos. "Tenho de me controlar", pensou. "Preciso de me concentrar, de usar a cabeça para recuperar Sunday. Se não o fizer, terei o resto da vida para a chorar."

Na Sala de Reuniões, sentaram-se em volta da mesa comprida como ele e Des tinham feito em muitas ocasiões durante os seus oito anos de presidência. Agora, todo o Governo se tinha reunido a eles, juntamente com os chefes do Estado-Maior e os directores do FBI e da CIA.

O presidente Ogilvey disse a Henry:

- Todos sabemos por que estamos aqui, Henry. Podes assumir o comando.

- Obrigado a todos por virem -disse Henry com vivacidade. - Por favor, estejam cientes de que eu compreendo os vossos sentimentos como sei que compreendem os meus. Agora vamos ao plano de acção. Quero dizer-vos como estou comovido por o presidente ter concordado em trocar Jovunet pela minha mulher, e também compreendo que temos de nos certificar de que recapturamos imediatamente Jovunet. Este Governo não pode ser colocado na posição de ceder a terroristas e situações de reféns.

Um assistente entrou em bicos de pés, sem incomodar, na sala de conferências, e murmurou ao ouvido do Presidente.

Ogilvey ergueu os olhos.

- Henry, o primeiro-ministro britânico está ao telefone. Expressou a sua grande preocupação e oferece qualquer tipo de ajuda que acharmos que ele poderá prestar.

Henry assentiu. Por um momento, a sua mente recuou até à altura em que ele e Sunday tinham estado em Londres. Tinham-se hospedado no Claridge. A rainha tinha-os convidado para um jantar no castelo de Windsor. Ele sentira tanto orgulho em Sunday. Era a mulher mais encantadora e mais bela de todas. Tinham sido tão felizes...

Sobressaltado, Henry percebeu que Des ainda estava a falar

para ele.

- Henry, Sua Majestade quer falar contigo pessoalmente. O primeiro-ministro diz que ela está extremamente preocupada. Disse-lhe que o que precisam na família, é de uma rapariga como Sunday.

Henry pegou no telefone que lhe estava a ser oferecido, e um momento depois ouviu a voz conhecida da soberana da Grã-Bretanha.

- Majestade... - começou ele.

Outro assistente estava a sussurrar para o presidente Ogilvey

-Sir, nós prometemos que o senhor retribuiria os telefonemas dos presidentes do Egipto e da Síria. Ambos insistiram que não têm conhecimento de quaisquer organizações terroristas nos seus países que tenham alguma coisa a ver com o rapto, e ambos põem à nossa disposição as suas forças especiais de élite para ajudar a resgatar a congressista. Até Saddam Hussein telefonou para expressar a sua indignação e garantir-nos que não faz a menor ideia de quem poderá estar por detrás deste incidente Garantiu-nos mesmo que se Jovunet aterrar no Iraque e Sunday não for entregue viva, então ele certificar-se-á pessoalmente de que o homem é decapitado no local.

- Tivemos telefonemas de muitos outros chefes de Estado, sir - continuou o assessor. - O presidente Rafsanjani até telefonou para dizer que, apesar das conclusões que alguém possa tirar devido ao que Jovunet disse sobre "esquecer o caviar", o Irão não está de forma alguma envolvido neste episódio infeliz. Até agora, Jovunet parece ser um homem sem país. Quem quer que esteja por detrás deste caso ainda tem de avançar e indicar disponibilidade para o receber.

Ogilvey olhou de relance para Henry. Tinham de resolver o assunto; o tempo estava a esgotar-se.

Henry estava a terminar a conversa com a rainha.

- Estou muito grato, Majestade, por ter expressado a sua preocupação e, sim, prometo que dentro de pouco tempo Sunday e eu teremos a honra de jantar novamente com Sua Majestade.

Quando devolveu o telefone a um assistente, Henry olhou directamente para o seu sucessor.

- Des, eu sei o que tenho de fazer. Vou sair imediatamente para falar com Jovunet. Depois vou trazê-lo de avião da prisão de Marion para aqui. Ele é a chave para tudo isto. Talvez até consiga ter uma ideia de quem está por detrás de tudo.

- Uma ideia muito sensata - disse o director do FBI solenemente. - Se bem me lembro, sir, a sua habilidade para negociar é incomparável. - Depois, apercebendo-se de que... especialmente nesta sala... as comparações eram consideradas odiosas, cobriu a boca e tossiu.

O bacon estava tão frito que mais parecia carvão, e estava apenas a um pequeno passo de estar completamente cremado. A torrada, fria e quebradiça, fez Sunday lembrar-se dos péssimos dotes culinários da avó. A avó tinha sempre insistido em usar uma torradeira antiquada, e esperava sempre até nuvens de fumo assinalarem que estava na altura de virar o pão. Depois, quando os dois lados estavam devidamente negros, raspava a superfície queimada para o lavatório e servia alegremente os restos.

Mas Sunday tinha fome, e, por muito má que fosse a comida, pelo menos enchia-lhe o estômago. O lado bom foi que o chá estava muito forte, tal e qual como ela gostava. Com a ajuda da bebida, o seu cérebro tinha começado a aclarar. A sensação de irrealidade estava a passar, e agora começava a aperceber-se da situação precária em que se encontrava. Não era um pesadelo nem uma piada de mau gosto. O homem com fato de monje, sozinho ou com cúmplices, tinha conseguido sabotar o seu carro, que passava virtualmente todo o tempo em que não estava a ser utilizado estacionado numa área vigiada, neutralizar os seus muito experientes agentes dos Serviços Secretos e raptá-la. Ele - ou eles - eram audaciosos e muito espertos.

"Deve ter acontecido muito pouco depois das três horas", pensou ela. "Dan Rather foi para o ar às seis e meia, por isso agora passa pouco das sete", decidiu. "Isso significa que eu estou consciente há menos de uma hora. Então há quanto tempo estou aqui? E que distância é que tivemos de percorrer para chegar a este lugar?" Encaixando todos os dados que tinha, Sunday chegou à conclusão de que ainda devia estar relativamente perto da região de Washington. Dadas as condições meteorológicas, o seu captor só teria conseguido levá-la para os arredores da cidade. "Mas onde estou? E que lugar é este? Será a casa dele? Possivelmente", decidiu. "E quantas pessoas estão envolvidas na operação?" Até agora, tinha visto apenas o homem que vestia o fato de monge, e ouvira a voz de uma pessoa que lhe parecera uma mulher de certa idade. Mas isso não queria dizer que não havia outros. Embora improvável, era possível que ele tivesse levado a cabo o rapto sem ajuda; este fulano era nitidamente muito forte e poderia ter tirado o seu corpo do carro e tê-la

colocado no carro dele sozinho e sem dificuldade.

E depois a pergunta mais importante de todas registou-se na sua mente ainda turvada: "Que vão fazer comigo?"

Baixou os olhos para a bandeja com a chávena e o prato; continuava com ela no colo. Quem lhe dera poder esticar-se e pousá-la no chão. A dor incómoda no ombro estava a piorar, agravada sem dúvida por estar amarrada com corda de cisal numa cave fria e húmida. Também se tinha tornado evidente que sofrera mais do que uma contusão. Gostava de ter deixado Henry levá-la para fazer uma radiografia depois de ter caído do

Appleby. Afinal de contas, talvez tivesse uma fissura...

"Calma! Estou doida", pensou. "Aqui estou eu a preocupar-me com uma fissura no ombro quando poderei não estar viva o

tempo suficiente para ela sarar! Eles não vão libertar-me até aquele terrorista Jovunet ter chegado ao local para onde vai. E, mesmo quando ele estiver a salvo, que é que garante que me libertam?"

- Congressista.

Ela virou rapidamente a cabeça para o lado. O seu captor estava de pé à porta do vestíbulo. "Não o ouvi desceras escadas", pensou ela. "Há quanto tempo é que ele está a observar-me?"

A voz dele tinha um tom divertido quando disse:

- Um pouco de comida opera maravilhas, não é? Especialmente, devido à droga que tive de usar em si. Infelizmente, poderá ter um pouco de dor de cabeça, mas não se preocupe porque não vai durar muito mais tempo.

Aproximou-se dela. Instintivamente, Sunday tentou afastar-se quando ele pousou as mãos nos seus ombros.

Encolheu-se quando sentiu que elas ficavam de novo quase acariciadoras.

- O seu cabelo é realmente muito bonito - disse ele. - Só espero não ter de cortar muito mais antes de convencer aquele seu marido e todos os amigos dele de que as minhas intenções são mortalmente sérias. Agora deixe-me tirar-lhe essa bandeja.

Tirou-a do colo de Sunday e pousou-a em cima da televisão.

- Ponha as mãos atrás de si - disse ele. - E diga-me se as suas pernas começarem a ficar dormentes. Quando o nosso homem estiver em segurança no seu destino, seria uma pena se tivesse de a arrastar para o local onde vou deixá-la, não acha?

- Espere um instante antes de me amarrar os braços atrás das costas - disse Sunday rapidamente. - Você tem o meu casaco. Aqui em baixo está frio de mais. Deixe-me vesti-lo.

Foi como se não a tivesse ouvido. Continuou a puxar-lhe os braços para trás. A corda enterrou-se nos seus pulsos, selando-lhe as palmas das mãos juntas. Sunday cerrou os dentes ao sentir a dor súbita que lhe percorreu o ombro direito.

Era óbvio que, mesmo àquela luz fraca e cheia de sombras, o seu captor tinha visto ou sentido a sua reacção.

-Não quero causar-lhe dor desnecessariamente -disse-lhe. - Vou soltar um pouco as cordas. E tem razão, eu sei que aqui em baixo é muito frio. Vou enrolá-la num cobertor.

Depois baixou-se para apanhar alguma coisa do chão. Sunday virou a cabeça e reprimiu um protesto. Era o terrível capuz que tinha quando acordara neste lugar. Ele estava a ser estranhamente solícito para ela, mas não confiava nele. Algo estava errado. Teve a sensação terrível de que ele estava unicamente a brincar com ela, de que algo verdadeiramente horrível a esperava. O pensamento daquele capuz sufocante na cabeça quase a fez gritar, mas resistiu. Não daria a este homem a satisfação de a ver implorar. Em vez disso, perguntou na voz mais controlada que conseguiu:

- Por que é que eu preciso disso? Aqui não há grandes coisas para ver, e seguramente não vou fazer sinal a um transeunte.

As suas palavras pareceram deliciar o captor.

-Talvez eu goste de a ver desorientada- disse ele, trocista.

- As vendas fazem isso, sabia?

A luz da fraca lâmpada do tecto brilhou nas mãos dele. Instantes antes de o capuz lhe ser enfiado na cabeça, cortando-lhe a visão, Sunday viu o anel que ele usava, de ouro e com o formato de sinete. Era semelhante a muitos outros, a não ser por um pequeno buraco no centro do anel, como se faltasse uma pedra.

Resistiu à vontade de inspirar grandes golfadas de ar e

forçou-se a respirar lentamente enquanto o capuz pousava nos seus ombros. Quando era caloira na Universidade, fizera psicanálise para a ajudar a ultrapassar a claustrofobia que herdara do pai.

Tentou recordar essas sessões, mas infelizmente as lições não

estavam a servir-lhe de nada agora. Não conseguia concentrar-se nelas. A única coisa em que conseguia pensar naquele momento era naquele anel.

Já o vira antes, algures. Mas onde...

 

Eram 9-30 daquela noite quando Henry, acompanhado por Jack Collins e precedido e flanqueado por guardas, percorreu o longo e tétrico corredor que dava acesso à pequena sala de visitas reservada para o contacto pessoal com os criminosos mais perigosos da prisão de Marion.

Marion tinha a reputação de ser a mais dura de todas as prisões federais, e Henry teve a sensação esquisita de que não eram tanto os gritos dos presos mas os das suas vítimas que pareciam permear estas paredes grossas, intransponíveis.

"Sunday é a vítima de Claudus Jovunet", pensou Henry. "E eu também sou vítima dele. Os guardas à sua frente pararam diante de uma porta de aço. Um deles introduziu um código que a abriu.

Jovunet estava sentado a uma mesa de metal num canto da sala. Henry reconheceu-o das fotografias que tinham sido publicadas nos jornais aquando da sua captura e da entrevista que dera no 60 Minutos, uma diatribe de quinze minutos de arrogância narcisista, felizmente balanceada pela inteligência perspicaz de Lesley Stahl, que furou os balões de ego de Jovunet de cada vez que ele tentou pôr um a flutuar. Hoje, vestido com um uniforme castanho-claro da prisão, a anos-luz dos fatos elegantes que usava quando ainda estava em liberdade, e algemado na cintura, mãos e pés, Jovunet conseguia mesmo assim transmitir o efeito de estar à vontade e totalmente confortável. De uma forma estranha, também parecia completamente controlado.

O seu rosto era querúbico, os olhos azul-claros eram calorosos a ponto de serem felizes, os lábios finos de menino do coro eram cor-de-rosa e inclinados para cima nos cantos, como se fossem treinados por sorrisos constantes. Para Henry, era um rosto repugnante.

No avião, a caminho do Oaio, Henry tinha lido um resumo do passado considerável de Jovunet. Ninguém sabia ao certo qual era a origem dele. Actualmente com 56 anos, dizia ter nascido na Jugoslávia. Falava cinco línguas fluentemente, tinha começado a sua carreira na adolescência, a contrabandear armas em África, e depois tinha sido assassino contratado por quem pagasse mais numa dúzia de países, ninguém confiava nele, e tinha a capacidade de mudar radicalmente de aparência. Havia fotografias dele em que parecia ter mais vinte quilos do que noutras; havia fotografias que o mostravam como um soldado, outras como um agricultor, enquanto noutras ainda parecia ser um aristocrata.

A única coisa que não tinha conseguido disfarçarem nenhuma das suas diversas pessoas era o amor que tinha por roupa de marca. Não era uma ironia nada pequena que a sua captura tivesse ocorrido durante uma passagem de modelos de Calvin Klein.

Agora, quando Henry olhou para ele, os olhos de Jovunet abriram-se muito.

- Sr. Presidente! - exclamou, fazendo uma grande vénia, inclinando-se para a frente até onde as algemas lhe permitiram. -Que surpresa maravilhosa. Peço desculpa por não me levantar, mas as circunstâncias actuais não me permitem esse gesto de respeito.

 - Cale-se - disse Henry, bruscamente. As suas mãos

estavam cerradas. Só queria tirar o sorriso do rosto de Jovunet com um murro; queria estrangulá-lo; queria enrolar as mãos em volta do pescoço dele e sufocá-lo até ele dizer onde é que Sunday estava.

Jovunet suspirou.

- E aqui estava eu preparado para o ajudar. Muito bem, desisto. Que quer saber? Sei bem que muitas das minhas actividades passadas continuam escondidas dos olhos até mesmo da vossa imprensa barulhenta. Claramente, não é uma visita social, por isso, obviamente, estão aqui porque precisam de mim. Talvez possa ser-vos útil. Mas que é que obtenho em troca se vos ajudar agora?

- Obtém precisamente aquilo que pediu. Passagem em segurança no nosso novo SST para onde quiser ir. Estamos preparados para fazer todos os preparativos que exigir. Mas tem de aceitar as nossas condições para a troca.

Um olhar de confusão atravessou o rosto de Jovunet.

- Está a brincar? - perguntou. Depois, a sua expressão tornou-se pensativa. - Muito bem, Sr. Presidente. Quais são exactamente as suas condições?

Henry sentiu a mão sólida de Jack Collins tocar-lhe no braço com força deliberada. Era a primeira vez que Collins fazia

uma coisa daquelas.

"Está a dizer-me para me acalmar", pensou Henry. "Tem razão."

- Eu tenho um diploma de piloto e sei pilotar o SST. Eu e apenas eu o pilotarei para o seu destino. Não desembarcará até a minha mulher ter sido libertada e estar em segurança nas mãos dos nossos homens. Se ela não for libertada em segurança e bem de saúde, o avião explode com nós os dois lá dentro. Está entendido?

Jovunet ficou em silêncio durante alguns instantes, aparentemente absorvido em tudo o que acabara de ouvir.

-Ah, o poder do amor! - disse, por fim, e abanou lentamente a cabeça.

Henry olhou para o homem que estava à sua frente e apercebeu-se de que os cantos dos lábios dele estavam a mexer-se. Incredulamente, percebeu que Jovunet estava a rir dele. "E a única coisa que posso fazer é ficar aqui como um mendigo e esperar que ele concorde", pensou ele. Com repugnância, viu que o rosto de Jovunet brilhava com transpiração, embora o pequeno aposento estivesse fresco.

"Onde esconderam Sunday?", perguntou a si mesmo. Teria sido num aposento semelhante a uma cela, como este? Tinha sido um dia extremamente frio. Estaria suficientemente agasalhada?

Henry obrigou-se a concentrar-se no homem que se encontrava à sua frente. Pelo menos Jovunet estava a considerar as condições que ele acabara de colocar. Henry viu isso nos olhos semi-cerrados do homem.

- Há outra consideração - disse Jovunet lentamente.

Henry esperou.

-Tal como o senhor, eu não gostaria que acontecesse alguma coisa à sua mulher. Nunca tive o prazer de a conhecer pessoalmente, mas, tal como todas as pessoas neste país honesto, acompanhei o vosso noivado e casamento de contos de fadas. De tudo o que ouvi acerca dela, diria que é admirável. Porém, como deve calcular, dadas as circunstâncias, uma pessoa na minha posição tem demasiadas coisas para controlar. Posso inquirir a hora exacta a que levantaremos voo?

Henry sabia que tudo dependia de Jovunet acreditar ou não na sua resposta.

- Antes de a minha mulher ter sido raptada esta tarde, o Washington Post noticiou que é necessário efectuar uma série de ajustamentos mecânicos antes do voo inaugural do SST, agendado para sexta-feira de manhã. Será preciso todo o dia de amanhã para os concluir. Em vez desse voo inaugural, você e eu partiremos no SST na sexta-feira de manhã, às dez horas.

Jovunet olhou para ele indulgentemente.

- Imagine só quantas câmaras e dispositivos de escuta vão instalar enquanto fazem esses ajustamentos mecânicos - disse ele, suspirando. - Ah, bom, não faz mal, pois não? - O sorriso descontraiu-se e depois desapareceu. -Insisto em ser transferido para a região de Washington imediatamente. E sei que têm várias casas de alta segurança por lá, por isso quero ser levado para uma delas e não para uma prisão qualquer. Já estou farto deste tipo de sítios, muito obrigado.

- O plano é exactamente esse - disse Henry friamente. - Vai ser gravado em vídeo na casa de alta segurança, e a sua mensagem será um aviso para os seus cúmplices de que a minha mulher não pode sofrer nada. E eles têm de nos mandar um vídeo dela, a mostrar que está bem; o prazo para isso termina amanhã às 3 horas da tarde.

Jovunet acenou distraidamente, e depois olhou com desdém para o uniforme prisional.

- Há mais uma coisinha. Como deve saber, gosto muito de roupas boas. Como todo o meu guarda-roupa, cuidadosamente escolhido, já desapareceu há muito tempo, e como o local para onde vou é, digamos, não propriamente conhecido pela atenção a lojas de marca, quero um guarda-roupa completamente novo. Gosto especialmente de Calvin Klein e Giorgio Armani. Quero um roupeiro completo e cheio das mais recentes criações destes estilistas, e precisarei da presença de vários alfaiates que poderão alterar os fatos segundo as minhas especificações antes da manhã de sexta-feira. Antes de partirmos, o gabinete do director fornecer-lhe-á as minhas dimensões físicas completas. O meu novo guarda-roupa deverá ser transportado para o avião num baú Vuitton e em bagagem a condizer. - Fez uma pausa, e depois olhou firmemente para Henry, com um leve sorriso nos lábios. - Fui claro?

Antes de Henry conseguir recompor-se o suficiente para lhe responder, Jovunet sorriu de novo, desta vez mais abertamente.

- Seguramente, nada disto o surpreendeu. Já se esqueceu das circunstâncias da minha última detenção? A passagem de modelos de Calvin Klein? - Riu, divertido. - Tão embaraçoso, e nem sequer foi um bom desfile. Toda aquela roupa interior! Por vezes, penso que o querido Calvin está a perder o jeito.

Henry sabia que tinha de sair dali. Não podia estar no mesmo aposento que aquele homem nem sequer mais dez segundos.

- Vê-lo-ei em Washington amanhã - disse ele. Sentiu a respiração de Collins no seu pescoço quando saíram. "Ele está com receio de que eu o mate", pensou Henry. "E tem razão. "

Quando a porta de aço estava a fechar-se atrás deles, Henry ouviu Jovunet gritar um último pedido:

- Oh, e não se esqueça do Dom Pérignon e do caviar, Sr. Presidente. Montes de caviar. Mesmo num transporte supersónico, vai ser uma longa viagem.

Desta vez, Jack Collins teve de segurar fisicamente Henry para o impedir de voltar para a sala de visitas. Felizmente, a porta fechou-se com um estalido, escondendo a pessoa e a voz de Claudus Jovunet.

- Sr. Presidente - disse Collins apressadamente. - Se alguma coisa correr mal, juro-lhe que dou cabo dele antes de ter hipótese de voltar a arrastar-se para aqui.

Porém, Henry não estava a escutar.

-Caviar?- disse em voz alta. -Passa-se aqui alguma coisa relacionada com o caviar. Já se sabe alguma coisa daquele que pensamos que será o refúgio dele?

 

Durante a noite, Sunday foi acordada de um sono inquieto por um flash súbito de luz tão brilhante que conseguiu penetrar o tecido grosso que continuava a cobrir-lhe a cabeça.

- Estou só a tirar-lhe o retrato - disse o captor suavemente. -Parece terrivelmente desconfortável. e desamparada. Perfeito. Tenho a certeza de que o coração do seu marido vai ficar despedaçado quando tiver uma percepção visual da sua situação difícil.

Tirou-lhe o capuz da cabeça.

- Agora mais uma, e depois pode voltar a dormir.

Sunday pestanejou numa tentativa de apagar os pontos brancos que a cegaram depois do segundo flash. Apercebeu-se de que, a certa altura nas últimas horas, a luz fraca do tecto fora apagada; agora, quando ele a acendeu de novo, até mesmo aquele brilho ténue lhe feriu os olhos. A sua decisão de aparentar uma calma estóica foi abalada. Olhou para o captor.

- Deixe-me dizer-lhe que quando sair daqui, se sair daqui, é melhor estar no avião com o seu amigo assassino. E, se for apanhado, moverei mundos e fundos para que seja trancado na prisão mais desconfortável que conseguirmos encontrar.

Outro flash que a cegou momentaneamente fez Sunday pestanejar outra vez.

- Desculpe. Não tinha planeado esta, mas não será má ideia o seu marido ver até que ponto você está perturbada -disse ele.

"Não, está enganado", pensou Sunday. "Não estou perturbada, apenas furiosa." Recentemente, Henry vira a sua fúria no auge quando lhe pregara um sermão sobre a desumanidade da caça à raposa. Quando a costela irlandesa dela se manifestava, como ele dizia, podia ser um dínamo.

"Se aquela última fotografia chegar a Henry", pensou, "ele saberá que não estou de rastos", pensou Sunday, reconfortada.

- Parece que o seu marido está a mover céus e terra para garantir a sua segurança - disse-lhe o captor. - Todas as estações de rádio e de televisão estão permanentemente a transmitir avisos de que Claudus Jovunet, está a ser transferido para a região de Washington e que um vídeo com ele será transmitido às 11 horas desta manhã. Também anunciaram que foi exigida uma mensagem sua em vídeo. Querem ter a certeza de que se encontra bem.

Observou as fotografias Polaroid.

- Muito boas. Isto e uma cassete de áudio deverão ser suficientes para convencer o seu marido, e até todo o Governo, de que está viva e de boa saúde, embora em circunstâncias nada confortáveis.

Colocou-lhe novamente o capuz na cabeça. Desta vez, embora tivesse fechado os olhos contra a superfície áspera do tecido, Sunday estava totalmente alerta. Sabia que se quisesse voltar a ver Henry teria de descobrir uma forma de se ajudar. Tinha a estranha sensação de que este tipo estava a jogar um jogo mortal de gato e rato com ela, e também com Henry. Parecia completamente apolítico. Não houvera nenhuma das declarações habituais de ódio contra o Governo por crimes imaginados, nenhuma tentativa para justificar as acções que tinham sido feitas contra ela com o objectivo de libertar Jovunet. Sim, era como um jogo de gato e rato, e Sunday não gostava de ser o rato.

Mas que poderia fazer? Estar amarrada e literalmente às escuras deixava-lhe muito poucas opções. Talvez não pudesse fazer nada fisicamente, mas a sua mente continuava a poder vaguear livremente. Pensou de novo no anel que vira no dedo do captor. Tinha a certeza absoluta de que já o vira antes. Mas onde? Estava no dedo deste homem ou pertencia a outra pessoa?

Milímetro a milímetro mental, começou a analisar todas as pessoas que pudessem ser aquele homem com o anel. Funcionários do Congresso? Ridículo. Para além disso, a recordação parecia recuar mais no tempo. Pessoal de entregas? Algum dos empregados da casa de Nova Jérsia? Não. "Eu só conheço Henry há menos de um ano", pensou Sunday. "E todas as pessoas que trabalham para ele estão ao seu serviço desde sempre."

Então quem era?

"Acabarei por me lembrar", pensou.

É melhor apressares-te, avisou uma voz interior. O teu tempo está a esgotar-se rapidamente.

"Conseguirei sair daqui viva?", perguntou a si mesma. "Voltarei a ver Henry?" Por um longo minuto, Sunday foi abalada até ao âmago do seu ser. Desejou estar em casa, em Drumdoe, com Henry. Tinha descoberto uma receita maravilhosa de galinha com alho num livro de receitas da Provença e pretendia experimentá-la durante o fim-de-semana. O facto de ter de trabalhar como cozinheira eventual para custear os estudos tinha-lhe ensinado a gostar verdadeiramente de preparar alimentos. Tinha estudado culinária no Instituto de Culinária. Agora, pelo menos uma noite do fim-de-semana, o cozinheiro cordon bleu que estava ao serviço de Henry há muito tempo saía e ela ocupava a cozinha.

Esta manhã devia estar na reunião da comissão da Câmara. A lei sobre benefícios de saúde para as crianças que imigravam ilegalmente ia ser debatida novamente. Ficava furiosa por o fulano que estava a liderar a luta para lhes negar benefícios estar sempre a exibir fotografias dos seus netos. Estava a planear atacá-lo com isso.

Mas primeiro tinha de sair dali, ou pelo menos tentar sair! "Deus ajuda aqueles que se ajudam a si mesmos", disse para consigo. Era o adágio preferido do pai.

"E Deus ajuda aqueles que são apanhados em flagrante! Era o que costumava pensar quando estava a tentar safar os meus clientes", pensou Sunday. Depois, inspirou profundamente.

"É isso", pensou, excitada. "Não vi aquele anel em Drumdoe ou Washington. É anterior a isso. Foi quando fui defensora oficiosa. Um dos tipos que defendi usava-o."

Mas qual deles? Qual das centenas e centenas de casos que defendera durante esses sete anos fora aquele em que o acusado usava um anel de sinete com um buraco no centro?

Agora estava completamente acordada, e relembrou todos os casos que lhe tinham passado pelas mãos. Quando o último dos seus cartões mentais de Rolodex passou, abanou a cabeça. Tinha a certeza absoluta de que nunca defendera o seu captor. Mas tinha a certeza acerca do anel. Embora talvez não fosse exactamente aquele anel. Poderia ser um símbolo de um grupo terrorista? "Sei que nunca tive um caso que envolvesse um terrorista.", pensou Sunday, e reflectiu novamente que este homem parecia completamente apolítico. "Muito bem, então ele não é um terrorista, e nunca foi um dos meus 'clientes. Então quem é este homem?"

 

"Onde é que Sunday esteve a noite passada?" perguntou

Henry a si mesmo ao entrar na Sala de Reuniões da Casa Branca

às onze horas da manhã seguinte. Apercebeu-se imediatamente

de que, por impossível que parecesse, a sua disposição estava

ainda mais sombria do que na reunião do dia anterior. Viu que

para além de Des Ogilvey, do Governo em peso e dos directores

da CIA e do FBI, estavam presentes dois recém-chegados: o líder da maioria do Senado e O Presidente da Câmara. "Sempre à

procura de uma oportunidade para darem nas vistas", pensou.

Nenhum dos homens estava especialmente bem colocado na sua

lista de preferências.

Nevara um pouco durante a noite e, de acordo com as previsões meteorológicas, haveria uma grande tempestade antes do fim-de-semana, provavelmente na sexta-feira. "por favor, meu Deus, não permitais que fiquemos em terra", rezou Henry. "Quanto mais tempo Sunday estiver nas mãos deles, maiores são as probabilidades de alguma coisa correr mal."

Recordou o encontro da noite anterior com o odioso Jovunet. Porquê a contradição com O caviar?, Perguntou a si mesmo uma vez mais. Era uma coisa pequena, mas tinha o toque de algo importante - Henry viera directamente da casa de alta segurança, onde Juvonet, rodeado por alfaiates, estava alegremente a empanturrar-se de champanhe e caviar beluga, para a Sala de Reuniões. Não fazia sentido os raptores de Sunday terem referido expressamente que eliminassem o caviar. A Menos, obviamente, que a mensagem deles contivesse um significado oculto. Abanou a cabeça. Apesar dos anos de experiência estes jogos eram novos para si. Estava claro que não havia verdadeiras regras, e tudo era possível.

Henry apercebeu-se de que estava diante da cadeira que lhe fora atribuída e que todos estavam a olhar para ele, expectantes.

- Sr. Presidente - disse - peço desculpa por tê-lo feito esperar.

Desmond Ogilvey, aquele monumento de paciência, o presidente mais vezes comparado ao "calmo" Calvin Coolidge, disse rispidamente:

- Henry, digo isto na presença de pessoas que vão falar aos jornalistas. - Fez uma pausa para olhar para o presidente da Câmara. -... Não me venhas com essa conversa formal a não ser que estejas a brincar. Nasci com o maior respeito pelo Governo e pelo estadismo. Mas foste tu que me ensinaste o que é a presidência.

"E Sunday ensinou-me o que é a felicidade", pensou Henry.

Desmond Ogilvey fechou as mãos sobre a mesa de reuniões na posição exacta que os cartoonistas políticos da nação adoravam caricaturar.

- Creio que estamos todos a par da situação - começou ele.

O SST está a ser equipado com o material mais sofisticado do nosso arsenal. O objectivo, obviamente, é permitir-nos vigiar Jovunet, para que os seus movimentos futuros sejam do nosso conhecimento absoluto. Se tudo correr de acordo com o plano, a partir de sexta-feira, se Juvonet estiver na selva, saberemos em que árvore está e até mesmo qual o ramo. A localização não deverá constituir um problema.

Ogilvey bateu comas mãos fechadas na mesa de conferências.

Porém, é aqui que reside o problema. Apesar de alguns "bubus" significativos... era assim que a minha mãe costumava chamar-lhes... felizmente as nossas duas superagências de detectives estão uma vez mais de acordo. Todos os nossos agentes secretos afirmam. inequivocamente que nenhuma nação, incluindo os nossos maiores aliados e os nossos mais acérrimos inimigos, se disponibilizou para oferecer um paraíso a Jovunet. Na verdade, virtualmente todos indicaram que preferiam que o avião fosse abatido do que deixá-lo pisar o seu solo. Infelizmente, só podemos tirar uma conclusão desta situação. É que agora, em algum país que não esperamos, está a nascer uma revolução que derrubará o Governo existente e que poderá representar uma ameaça real à paz internacional.

Henry escutou com o coração pesado. Era como se estivesse a ver Sunday a tentar nadar contra uma corrente forte e não pudesse fazer nada para a salvar.

- Portanto - continuou Desmond Ogilvey -, temos de concluir que estamos perante uma emergência nacional, que uma nação cujos sinais de aviso foram ignorados está prestes a entrar em erupção. - O olhar que lançou ao director da CIA fez aquele infeliz dignitário empalidecer. Depois, o presidente olhou para o seu antecessor, do outro lado da mesa, e anunciou: - Não sei como dizer isto, mas parece que a tua mulher, a estimada congressista de Nova Jérsia, está nas mãos de um inimigo desconhecido. Infelizmente, até eles se darem a conhecer, podemos fazer muito pouco para além de esperar.

Abruptamente, Henry levantou-se.

- Des, tenho de assistir à declaração que Jovunet está a preparar-se para gravar.

Virou-se para sair da sala mas foi parado momentaneamente pelo abraço de braços reconfortantes.

- Henry - disse Desmond Ogilvey -, nós vamos resgatá-la. Todos os meios de que dispomos estão empenhados para que isso aconteça.

"Não, Des", pensou Henry. "Temos de jogar o jogo desta forma, mas algo dentro de mim me diz que o que estamos a fazer está completamente errado. "

Ele estava a ficar perturbado. Sunday sentiu a mudança súbita da atitude do captor. Do cimo das escadas, tinha-o ouvido gritar para a mulher a quem se referia como "mãe". Aquela mulher seria realmente mãe dele ou era simplesmente outra parte da farsa? "Como o fato de monge", pensou. "Aquele disfarce parece ter sido alugado para uma festa de máscaras."

O barulho do andar superior tinha-a despertado; agora interrogou-se sobre que horas seriam. <Já devem ter passado várias horas desde que ele tirou aquelas fotografias", pensou. Henry já as teria visto? Veria a sua fúria no rosto e saberia que ela continuava a lutar para se libertar? Que não estava, nem por sombras, em vias de desistir?

Disciplinou-se para ignorar a agora medonha dor no braço e no ombro. Por que é que não podiam estar entorpecidos como as pernas, que já não conseguia sentir? "Circulação zero", pensou. "Se Henry estivesse aqui, ele..."

Abanou a cabeça. Não podia pensar nisso. A imagem de Henry a cortar aquelas cordas, a pegar-lhe ao colo, a reactivar

suavemente a circulação nas suas pernas torturadas... era um pensamento maravilhoso demais, e permitir-se esse luxo poderia destruí-la. Tinha de ser forte. Era uma luta, e ela não iria ao fundo sem, de alguma forma, fazer correr sangue.

Na retrospectiva mental que estava a fazer de todos os casos que defendera durante sete anos como defensora oficiosa, já ia no quarto ano. "Todos os casos significativos", corrigiu-se. Miúdos idiotas que puxavam de uma navalha em brigas de bares ordinários não estavam incluídos na sua análise.

"Fui abençoada com uma memória fantástica", disse Sunday a si mesma enquanto abanava a cabeça e tentava soltar o grosso capuz que continuava colado à sua testa. A mãe disse sempre que eu era igual à tia Kate. "Muito observadora, nunca lhe escapa nada." Explicara a mãe a Henry quando estava a descrever-lhe a família. -E metediça. Nunca esquecerei quando Kate me perguntou se tinha novidades para ela, declaradamente a perguntar se eu estava num estado interessante. Meu Deus,

acho que a minha gravidez de Sunday não tinha sequer uma

semana, e eu ainda não queria dizer a ninguém. Pensava que..."

Sunday tinha terminado a frase por ela. "Pensava que é mais delicado a mulher estar no quarto mês de gravidez antes de dar a notícia ao mundo. Talvez a sua tia Kate tivesse uma mente obscena. Parece que é mal de família."

 "Mas eu sou como a tia Kate", Pensou Sunday. "Sou uma

pessoa observadora, concentrada nos pormenores, e aquele anel

é sem dúvida um pormenor em que reparei no tribunal."

Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som de passos nas escadas.. Sunday sentiu um arrepio nervoso percorrer-lhe o corpo. Não sabia bem o que era pior: quando o captor descia silenciosamente ou quando anunciava a sua aproximação com passos pesados, deliberados.

Tinha de ser de manhã. Percebeu que estava com fome. Iria ele alimentá-la? Ele dissera alguma coisa sobre gravar uma cassete. Era isso que ia acontecer? Os passos dele ecoaram no chão de cimento. Sunday sentiu o capuz a ser-lhe retirado da cabeça. A figura de manto estava à sua frente. Ele esticou-se e rodou a lâmpada do tecto, e por vários segundos Sunday foi novamente encandeada pela luz. Quando a visão reajustou, ela olhou de novo para o captor, esforçando-se por ver as feições dele. O rosto continuava na sombra, mas continuou a olhar para ele, a ordenar ao subconsciente que se lembrasse se já o tinha visto antes. Olhos afundados, estrutura facial ossuda. Provavelmente, com 50 e tal anos.

- A mãe devia ter feito um trabalho melhor - disse ele, zangado. - Deixou o leite toda a noite no aparador e agora está azedo. Infelizmente, vai ter de se contentar com cereais e café. Mas primeiro vou levá-la à casa de banho. - Deu a volta à cadeira e começou a desatar os nós.

A mãe devia ter feito um trabalho melhor...

"Aquela voz. Aquele tom. Já a ouvi antes. Ele falou-me assim uma vez", pensou Sunday. "Ele disse que eu devia ter feito um trabalho melhor. "

Como uma fotografia a ser revelada, a recordação tornou-se nítida. Acontecera no tribunal, enquanto ela estava a defender Wallace "Sneakers" Klint, apenas mais um do plantel de perdedores que ela tinha representado naqueles primeiros anos. Sunday tinha decidido ser defensora oficiosa porque era defensora acérrima do conceito segundo o qual toda a gente merecia o seu dia no tribunal. Aquilo significava, é claro, que toda a gente merecia representação jurídica completa. O caso Klint fora um dos que gostara menos. Embora ele fosse acusado de homícídio, ela tinha conseguido convencer o júri a considerá-lo culpado da acusação menor de homicídio de segundo grau, o que significava que daí a vinte anos, quando tivesse 60 sairia da prisão.

O julgamento não tinha sido especialmente longo, em parte, suspeitava, porque a acusação sabia que ela não tinha um caso muito forte. Recordou-se de que o irmão mais velho de Klint tinha aparecido alguns dias no tribunal. Ela ergueu novamente os olhos para o captor. "Não admira que não o tivesse reconhecido", a tentar não transmitir qualquer registo emocional no rosto. Naquela época o irmão de Klint tinha cabelo comprido, oleoso, e barba, e assemelhava-se muito a um hippie a envelhecer. Isso mesmo, ele parecia fazer parte da "contracultura", algo de que ela se lembrava porque houvera alguma polémica quanto a chamá-lo para depor, mas ela tinha achado que, provavelmente, ele seria mais prejudicial do que benéfico para o caso de Sneakers.

 Sunday forçou-se a recordar o dia em que ele falara com ela. Ela tinha saído da sala de audiências, e ele aproximara-se por

detrás quando ela se dirigia para os elevadores. Pousara a mão no ombro dela. Recordou agora que o anel que ele usava lhe arranhara o pescoço e que ela lhe afastara a mão. Fora quando reparara no feitio especial do anel.

Ele tinha dito que o veredicto significava uma pena de morte para a mãe, que ela nunca viveria o suficiente para ver Sneakers novamente em casa. "E foi quando ele me disse que eu devia ter feito um trabalho melhor", pensou ela.

Na altura não tinha soado como uma ameaça. Na verdade,

Sunday pensara que o tipo era um idiota; devia ter-lhe beijado os pés por manter o vadio do irmão fora do corredor da morte. Graças a ela, Sneakers estava agora a fazer placas de matrícula para o Estado de Nova Jérsia.

Então este homem era o irmão mais velho. E a mulher lá em cima tinha de ser a mãe de idade. "Não deixes que ele saiba que

suspeitas", avisou-se Sunday mentalmente.

Mas, enquanto tentava encaixar as peças do que descobrira,

não conseguia encontrar uma lógica em tudo aquilo. "Que tem o irmão de Sneakers a ver com terrorismo internacional", não parava de perguntar a si mesma. O seu rapto parecera tão profissional, mas este tipo à sua frente parecia mais um tarado solitário.

Os braços ficaram finalmente livres. Ela estreitou-os ansiosamente contra o corpo e tentou massajá-los.

O captor estava a desamarrar as cordas que lhe prendiam as

pernas. Quando se levantou, cambaleou. Voltou a rebuscar a memória. O nome dele. Como é que ele se chamava? Estava nos papéis do tribunal. Um nome de baptismo invulgar. Começava com um W.

"Warfield... WooIsy... WexIer? Isso mesmo!", percebeu subitamente.

Wexier Klint. Exibiu um pequeno sorriso vitorioso.

- Vamos, deixe-me ajudá-la - disse WexIer enquanto lhe rodeava a cintura com o braço. Ela esforçou-se para não reagir quando ele pousou na sua anca. Uma vez mais, levou-a para a casa de banho e trouxe-a de volta, e depois repetiu o ritual de a amarrar à cadeira, deixando-lhe as mãos livres até ela acabar de comer aquilo a que ele chamou pequeno-almoço - cereais secos e café.

Permaneceu impassível a vê-la comer. Quando ela acabou, ele pegou na bandeja com os pratos e a colher e depois voltou a atar-lhe as mãos metodicamente atrás das costas. Quando se virou para sair, acendeu a televisão.

-A televisão vai fazer o tempo passar mais depressa -disse ele calmamente. - Jovunet representa o seu papel às onze. - Sorriu ligeiramente. -Você continua a ser a notícia de abertura, sabe? E suspeito de que vai continuar a ser o centro das atenções durante mais algum tempo. Pense que lhe foi garantido um lugar na história, e é a mim que tem de agradecer por isso.

Sunday não respondeu. Estava demasiado ocupada a ver Henry a ser levado para um helicóptero que o aguardava no relvado da Casa Branca.

Uma voz anunciava:

- Correm rumores de que o perturbado ex-Presidente se dirige para as instalações dos Serviços Secretos onde Jovunet está encarcerado. Soubemos que houve uma mudança de planos. Ao invés de uma mensagem gravada, Jovunet vai fazer a sua declaração ao vivo na televisão. Isto serve para garantir aos raptores da congressista Britland que as suas exigências estão a ser cumpridas integralmente.

Sunday observou Henry a chegar ao helicóptero. Subiu os degraus, mas, antes de entrar na cabina, virou-se para olhar para as câmaras. Deram-lhe um microfone.

- Rezem por ela - disse ele.

O captor de Sunday suspirou.

- Que pensamento tão bonito. Mas não servirá de nada, sabe?

- Sr. Jovunet, nós temos de lhe colocar um microfone - disse impacientemente Sydney Green, o produtor executivo dos órgãos de informação para a Casa Branca.

Estavam em Arlington, Virgínia, nos arredores de Washington. A encantadora mansão de estilo federal implantada em hectares de uma propriedade vedada era ostensivamente a casa de um milionário do Médio Oriente. Na verdade, era uma casa de alta segurança para dissidentes políticos de cargos importantes.

A sala elegantemente mobilada estava repleta de carrancudos agentes da CIA e de técnicos de comunicações do Governo. As câmaras estavam focadas numa cadeira ainda não ocupada.

Claudus Jovunet encontrava-se numa alcova contígua ao quarto principal Com um ar de desdém, despachou o produtor.

- Dentro de momentos. Como pode ver, estou ocupado com outra coisa. - Voltou-se para o alfaiate que estava a marcar a manga de um casaco de cerimónia. - Deploro o facto de um artista tão bom como você não ter reparado que o meu braço esquerdo é um centímetro mais comprido que o direito.

- Eu reparei. O meu pai e o meu avô foram mestres alfaiates, sir, e eu também sou. -Apesar de estar ajoelhado e ter alfinetes na boca, o alfaiate conseguiu falar num tom gélido.

Jovunet acenou, aprovador.

- Um homem tem de estar convicto das suas capacidades. Sinto-me confiante por estar nas suas boas mãos. -Acenou para o criado. Dom Pérignon muito gelado borbulhou na sua taça.

- Pouse isso e sente-se, se não estrangulo-o pessoalmente - disse Henry Britland, com a voz mortalmente calma.

Jovunet encolheu os ombros.

- Como queira. - Pousou o copo numa mesa e falou para o alfaiate. - Penso que, para salvaguardar o tempo, terei de o autorizar a fazer as alterações que julgar necessárias neste traje de noite. O resto dos fatos executivos e desportivos não deverão demorar mais do que algumas horas a ficar prontos. Depois disso, temos de examinar cuidadosamente os acessórios adequados. Estou satisfeito por ver que trouxe várias dessas gravatas Belois tão maravilhosamente divertidas.

Amorosamente, pegou numa das que estavam expostas numa mesa comprida e estendeu-a a Henry.

- Pintada com os dedos, mas tão sofisticada.

Reparando na expressão do rosto de Henry, pousou a gravata sobre a mesa.

- Sim, a entrevista!

- Temos de gravar a nossa cassete agora. Diria que o seu marido parece estar a começar a ficar preocupado, não acha? - perguntou WexIer Klint.

Sunday recusou-se a demorar-se na expressão condoída nos olhos de Henry quando, com uma força calma, fizera uma declaração depois de Claudus Jovunet ter confirmado, sorridente, que tinha a promessa dos Estados Unidos de que seria transportado para o destino da sua escolha e seria levado para lá no novo SST, pilotado pelo ex-presidente. Depois seria autorizado a desembarcar logo que a segurança de Sandra O'Brien tivesse sido garantida. Qualquer passo em falso dos raptores seria fatal para ele.

Depois Henry fez a sua declaração, dizendo:

- Tenho de realçar que esta viagem de Claudus Jovunet para a liberdade não começará a menos que receba uma cassete de vídeo a confirmar que a minha mulher ainda está viva e de boa saúde. Se quiserem que a viagem se faça, temos de receber a gravação até às 3 horas da tarde de hoje.

Klint desligou a televisão e virou-se para Sunday. Segurava um microfone que estava ligado a um velho gravador de cassetes. Quase lhe encostou o microfone aos lábios e depois sorriu.

- Diga alguma coisa pessoal que convença o seu marido de que o viu a ele e a Jovunet agora mesmo. Depois peça-lhe para colaborar; diga-lhe que qualquer tentativa de traição custará a sua vida. Não quero ter de repetir isto.

Sunday já tinha reflectido muito sobre o que iria dizer, mas isso fora antes de ter percebido quem era o raptor. Embora ainda não tivesse conseguido compreender qual era o jogo que Klint estava a jogar, sentia-se confiante de que ele não tinha nenhuma intenção de cumprir quaisquer promessas de a libertar. A sua mente moveu-se à velocidade de um raio. Respirou fundo. "Se queres voltar a ver Henry, é melhor fazeres isto bem", disse para si mesma.

Começou a soluçar.

-Acho que não sou capaz de fazer isto - disse a Klint em voz de rapariguinha. - Quando vejo o meu marido? Sinto tanta falta dele. Não quero estar aqui. Quero estar com ele.

A lâmpada pendente projectava sombras escuras pela cave sombria, mas ela conseguiu ver que o gravador já estava ligado. Suspirou, resignada.

- Muito bem, diz que eu tenho de mencionar que o vi agora mesmo na televisão. - Parou e soluçou novamente. Tinha conseguido fazer a voz que iria usar, a voz do bebé-chorão da sua turma em St. Al, o que se desfazia em lágrimas pelo menos três vezes por dia.

- É claro que o vi! - choramingou. - E, Henry, só conseguia pensar como prometeste sempre defender-me. É por isso que sei que não vais deixar que nada me aconteça agora. Vais defender-me, não vais, para eu poder ir para casa? E, Henry, quando te vi reparei que tinhas os mesmos sapatos ingleses que tinhas na primeira vez que me levaste a visitar Drumdoe. Recordas-te querido? Oh, há tantas recordações. E ainda me sinto tão próxima de ti. E preciso tanto de ti, eu... -A voz embargou-se numa torrente de soluços.

Abanou a cabeça e ergueu os olhos para Klint. Tinha conseguido espremer algumas lágrimas dos olhos. - Muito bem, estou melhor. Está pronto para começar?

Ele sorriu-lhe.

-Não, na verdade, já acabámos. Agora pode descansar. Pode demorar algum tempo. Agora não saia daqui - disse ele, a rir, enquanto lhe colocava novamente o capuz na cabeça.

- Vai dizer-me quando Jovunet aterrar em segurança, não vai? Eu sei que Henry e o Governo vão cumprir todas as promessas que lhe fizeram. -Depois mordeu a língua. Estupidamente, tinha usado a sua voz normal.

Porém, Klint pareceu não se aperceber da súbita mudança. Ao invés de uma resposta directa, cantarolou:

- Três ratos cegos; vejam como correm. - Ajustou-lhe o capuz na cabeça e deixou os dedos no pescoço dela durante alguns momentos. Depois, encostou-lhe a boca ao ouvido e sussurrou:

- Sabe quem são os três ratos cegos, não sabe? Não? Então deixe-me dizer-lhe. O primeiro é o seu marido; o segundo é todo o Governo dos Estados Unidos; o terceiro é... - Fez uma pausa. - O terceiro é Claudus Jovunet.

Da casa de alta segurança em Arlington, Henry dirigiu-se directamente para o recém-criado centro de comando na Casa Branca. O ligeiro aceno negativo da cabeça do director da CIA indicou-lhe que não acontecera nada de novo. Até agora, as tentativas para descobrir a origem do dispositivo utilizado para neutralizar os carros e os agentes dos Serviços Secretos tinham-se revelado infrutíferas. E, embora parecessem convencidos de que Sunday ainda se encontrava naquela área, ninguém tinha conseguido encontrar uma pista. O mau tempo tinha limitado o número de pessoas nas ruas, e aparentemente ninguém parecia ter visto qualquer coisa suspeita. A única coisa que tinham até ao momento eram algumas pegadas na neve, perto do local onde o carro de Sunday parara. Não havia certezas, mas pensava-se que tinham sido deixadas pelo raptor. Tinham sido feitos moldes das pegadas, que estavam agora a ser verificados.

Na Casa Branca, com Jack Collins e Marvin Klein junto a si, Henry foi para a Sala de Conferências onde, pela quarta vez, tinha telefonado para o pai de Sunday, que estava na casa bifamiliar dos O'Brien em Nova Jérsia.

Quando desligou, disse apaticamente:

- A mãe de Sunday e todas as tias e tios e primos estão na igreja. O pai dela disse que a sua menina era demasiado esperta até mesmo para um bando de terroristas... E depois começou a chorar.

- Tem de comer alguma coisa, sir - disse Klein calmamente enquanto premia uma campainha por debaixo da mesa.

- Não há dúvida de que Jovunet não perdeu o apetite - disse Collins, amargamente. - Os colegas disseram-me que ele já comeu mais champanhe e caviar do que qualquer dos dissidentes russos que tivemos o prazer de receber. Até tiveram de encomendar mais. E agora contaram-me que ele quer o cozinheiro do Le Lion D'Or para lhe preparar pessoalmente o jantar.

- Por que será que ele precisa de se empanturrar agora? - disse Henry, e a irritação era clara na sua voz. -Tenho a certeza de que vai ser recebido com honras de herói para onde quer que vá. - Fez uma pausa. - Já se sabe para onde vai ser?

- Não, ainda não - replicou Klein. - O Gabinete Oval pode estar certo... que vai dar-se um golpe de Estado algures e o

governo recém-formado vai recebê-lo de braços abertos... mas até ao momento ninguém mostrou disponibilidade para lhe

oferecer um novo lar. Seria bom que o que quer que tem de acontecer se desse rapidamente; estamos a ficar sem tempo.

Pouco antes das três horas, os membros do Governo e outros começaram a regressar à Sala de Reuniões. O presidente Ogilvey e o secretário de Estado foram os últimos a chegar.

-Ninguém, absolutamente ninguém, admite ter arquitectado a fuga de Jovunet - disse o secretário amargamente.

O prazo-limite das três horas que Henry tinha imposto chegou e passou enquanto os homens estavam sentados em silêncio. Dez minutos depois da hora, o apresentador do CBS News, Tom Brokaw, telefonou para a Casa Branca com um pedido urgente para falar com o ex-presidente Britland.

- Passem a chamada - disse Henry rapidamente. Os Brokaw eram convidados para jantar em Drumdoe com frequência.

Brokaw não perdeu tempo com amabilidades.

- Sir, há alguns minutos recebi um telefonema, alegadamente, de um membro daquilo a que chamou Esquadrão de Defesa e Salvamento de Jovunet. Primeiro pensei que era uma partida de mau gosto, mas a informação que recebi do nosso escritório em Washington parece legitimar a chamada. Uma pequena encomenda, embrulhada em papel castanho e endreçada ao senhor, foi, como prometido, encontrada no chão do primeiro banco da Catedral de São Mateus. Todos nós sabemos como tantas pessoas tentam envolver-se neste tipo de situações trágicas, mas isto parece ser verídico. Eles disseram-me que, por debaixo do seu nome no embrulho, está escrito um número de telefone. Vou dar-lho.

- É o número de telefone da nossa villa na Provença - disse Henry. - Apenas um grupo restrito de pessoas o sabem, mas, claro, estaria na agenda que Sunday traz na bolsa. Onde está o embrulho agora?

- Já dei instruções aos nossos seguranças para lho entregarem, para o caso de ser legítimo - disse Brokaw. - Deve estar a chegar à Casa Branca a qualquer momento.

- Tom, você é um verdadeiro amigo. Obrigado por não o abrir - disse Henry, agradecido. Levantou-se e entregou o telefone a Marvin Klein, que se encontrava atrás dele.

- Sr. Brokaw - disse Klein -, sabe que o presidente Britland lhe está imensamente grato. É claro que nos certificaremos de que é informado imediatamente de todos os desenvolvimentos nesta situação terrível.

Henry tinha-se dirigido para a porta, onde esperava impacientemente a chegada do embrulho. "Pelo menos parecem ansiosos para nos dizer que estão a colaborar", disse para si mesmo, esperançoso.

- É uma cassete áudio, sir - disse Collins quando entrou no aposento. - Mas vem com uma fotografia.

A expressão impassiva tinha sido muito útil a Henry durante as cimeiras, mas falhou-lhe agora enquanto olhava para a fotografia. Ver Sunday tão cruelmente amarrada a uma cadeira naquele buraco miserável e escuro era intolerável. Angustiado, reparou como ela tinha os braços esticados atrás das costas. "O ombro tinha de estar a doer-lhe imenso", pensou.

Mas, quando olhou para o rosto dela, sentiu-se quase alegre.

Sentiu algum consolo, é claro, pelo simples facto de a ver, de saber que ainda estava viva. Porém, havia mais alguma coisa, algo na expressão dela que lhe deu esperança. Sunday tinha de estar extremamente desconfortável, mas ainda tinha algum espírito de luta. Claramente, não tinha desistido. Nesta fotografia, estava mais zangada do que Henry alguma vez a tinha visto.

Ergueu os olhos.

- Quero ouvir a gravação.

Inclinado para a frente sobre a mesa, de olhos fechados, escutou a voz soluçante da mulher suplicar-lhe para a defender.

Quando terminou, disse:

- Quero ouvir novamente.

Escutou mais duas vezes e depois olhou para os homens de olhos húmidos que o rodeavam.

- Não percebem? - disse ele, impacientemente. - Sunday está a tentar dizer-nos qualquer coisa. As coisas de que está a falar têm o objectivo de nos conduzir a algum lado. Recordo-me muito bem da primeira vez que a levei a Drumdoe. Estávamos vestidos desportivamente. Eu não tinha sapatos; estava de ténis'. Ela está a tentar transmitir-nos uma mensagem.

- Mas, Henry - disse o presidente -, ela está obviamente perturbada.

- É fita, Des - disse Henry, categórico. - Eu conheço a minha miúda. Podiam apertar-lhe os dedos com um torno que ela não choramingaria assim. -Fez um gesto, frustrado. -Mas o que não sei é o que está a tentar dizer-nos. Deve ser uma espécie de pista ou um código ou alguma coisa desse género. Mas o quê, Em nome de Deus, que é que ela está a tentar dizer-me?

Ainda era quinta-feira à noite ou já era sexta-feira de manhã? Sunday não tinha a certeza. Estava a dormitar quando sentiu as mãos serem desamarradas.

- Estive agora mesmo a ver a CNN - sussurrou WexIer Klint. - Fizeram uma grande reportagem sobre si. Não sabia que tinha sido salva-vidas quando andava na faculdade. Quem sabe? Talvez isso lhe seja útil muito em breve. - Calou-se e amarrou-lhe novamente as mãos, mas desta vez à frente. - Ou talvez não. De qualquer maneira, agora vamos dar um passeio.

Enquanto falava, tirou-lhe o capuz da cabeça. Sunday sentiu um pano ser-lhe posto à volta da boca. O seu protesto zangado foi primeiro abafado e depois silenciado. O capuz foi-lhe enfiado na cabeça outra vez. A seguir, sentiu Klint cortar as cordas que a prendiam à cadeira. Enquanto o fazia, a faca raspou na sua perna direita, e sentiu um fio de sangue quente. Deliberadamente, esfregou a perna na perna da cadeira.

"Kilroy esteve aqui", pensou, recordando a história que o pai costumava contar sobre como os Gl, durante a segunda guerra mundial, escreviam aquela mensagem em zonas de batalha.

Um riso histérico subiu-lhe até à garganta.,<Estás a perder o controlo", pensou. "Acalma-te."

Mas que ia ele fazer com ela?, perguntou a si mesma.

Estava a ser levantada, e depois sentiu que era deitada no duro chão de cimento. O cheiro a humidade era quase insuportável, mesmo através do tecido grosso do capuz. Depois estava a ser embrulhada em alguma coisa, provavelmente o cobertor que Klint tinha colocado sobre ela antes. "Quando tinha sido isso?", perguntou a si mesma. "Há horas? Dias?" Talvez conseguisse calcular, mas apercebeu-se, aterrada, de que se sentia quase completamente desorientada. Tinha de se controlar, se é que queria ter alguma esperança de sobreviver a esta provação.

De súbito, sentiu que estava a ser erguida, e depois transportada. Estava certa; ele era muito forte. Levava-a nos braços como se ela não pesasse nada. Os seus pés rasparam na cadeira, depois no que lhe pareceu ser uma parede. Estaria a levá-la para o andar de cima? Mas ele virou à direita, não à esquerda. Ouviu-o mexer desajeitadamente num fecho. Depois, uma rajada de ar gelado penetrou o cobertor fino. Iam para a rua. Ouviu um motor a trabalhar.

- Receio que o porta-bagagens não seja muito confortável - disse-lhe Klint, - mas terá de servir. É claro que as celas das prisões também não são muito confortáveis. Infelizmente, com as estradas num estado tão mau, vamos demorar pelo menos cinco horas a chegar ao nosso destino. Mas não se preocupe, teremos tempo de sobra para assistir ao drama no Aeroporto National.

Sunday contraiu o corpo quando se sentiu atirada para o porta-bagagens do carro. Ele ajeitou-a até ela ficar enrolada. Quando tentou esticar as pernas, os seus pés encontraram resistência sólida. Sentiu o cobertor ser-lhe retirado e arranjado de forma a cobrir-lhe o corpo todo. O tecido do capuz encostou-se às suas narinas, e o nó atrás da apertada mordaça fazia pressão contra a nuca. O ombro irradiava ondas terríveis de dor. Se alguma vez se tinha sentido mais miseravelmente desconfortável, não se recordava.

Depois, sentiu que estavam a ser atiradas coisas para cima de si. Pelo som e pelo toque, adivinhou que Klint, estava a

arranjar o conteúdo do porta-bagagens para que ela ficasse quase tapada. Mas estava a trabalhar com cuidado e em silêncio, como se tivesse medo de que o ouvissem. "Onde estariam?", perguntou Sunday a si mesma. Talvez num bairro onde alguém pudesse estar a uma janela, a observar? Ali perto ouvia-se um cão a ladrar. "Por favor, meu Deus", rezou, "que alguém esteja a ver este carro agora."

O porta-bagagens foi fechado quase silenciosamente. Um momento depois, o ruído de um motor a ser acelerado foi a prova agonizante para Sunday de que começara a fase seguinte do seu

rapto.

 

- Como sabe, sir, os ténis Milano que o senhor usa são uma marca exclusiva de calçado e o seu preço está muito acima das posses da maior parte das pessoas. - às cinco horas da manhã de sexta-feira, Conrad White, o analista principal da CIA, estava a pôr Henry Britland a par dos esforços para determinarem o significado da referência declaradamente errónea aos sapatos que Henry usava da primeira vez que a levara a Drumdoe. Enquanto escutava, a irritação de Henry aumentou. White conseguia dar a impressão de estar a dar uma lição passo a passo a um aluno burro: Aqui está o problema; aqui estão as perguntas; aqui estão as soluções possíveis.

"Mas estás redondamente enganado", pensou Henry enquanto escutava, desdenhosamente. Piscou lentamente, tentando reduzir o ardor incomodativo que sentia nos olhos.

Conrad White reparou.

- Se me permite uma sugestão, sir, algumas horas de sono seriam vantajosas antes de efectuar o que será seguramente uma longa viagem.

-Não pode "sugerir" - disse Henry rispidamente, virando-se para encarar o homem. - Vá directo ao assunto. Acredito que o que está a tentar dizer-me é que eu não estava a usar sapatos e que os ténis da marca Milano são, obviamente, feitos em Itália. Portanto, o seu palpite é que a referência da minha mulher é de que temos de nos concentrar na Itália para descobrirmos os raptores.

- Ou para uma das seitas que enfernizam actualmente os nossos amigos italianos - corrigiu White. - Possivelmente, a Mafia. Na verdade, provavelmente a Mafia. Eles têm um historial muito longo de raptos e homicídios. Oh, perdão, sir. Não quis dizer...

Mas tinha perdido a audiência. Henry virara-se para Jack Collins e Marvin Klein.

- A Sala Leste - disse, abruptamente.

Subiu as escadas à frente, desde o recém-criado centro de comando até ao andar principal, e depois virou à esquerda para a sala magnífica, onde retratos de George e Martha Washington o olhavam benevolentemente. Por que tinha escolhido esta sala?, perguntou a si mesmo quando se sentou na cadeira que fora a sua favorita quando era o residente principal do número 1600 da Avenida Pennsylvania. Obviamente, algum instinto estava a levá-lo para ali.

Seria por causa da maravilhosa festa que Des e Roberta lhes tinham oferecido a ele e a Sunday algumas semanas depois de estarem casados?, perguntou a si mesmo. "Aperitivos nesta sala, seguidos por jantar na Sala de Jantar Estatal, e depois voltámos para aqui para um pequeno concerto. " Henry recordou aquela noite. Sunday usara um vestido comprido de cetim azul com mangas compridas e a gargantilha de diamantes que o seu bisavô tinha comprado a um marajá. Naquela noite, estava especialmente bela.

Henry quase sorriu ao recordar como as pessoas tinham dito repetidamente que era uma pena ele não ter conhecido e desposado Sunday oito anos mais cedo, porque ela teria sido uma primeira-dama maravilhosa.

"O embaixador britânico disse-nos isso aos dois", pensou Henry. "Depois disse mais alguma coisa e Sunday respondeu-lhe e rimos todos."

Tens de te lembrar, murmurou uma voz no seu subconsciente.

Henry inclinou-se para a frente e bateu as mãos. Talvez White estivesse certo; talvez estivesse cansado. Talvez tudo isto fosse imaginação sua. Abanou a cabeça. "Não, sei que há alguma coisa aqui", disse para si mesmo. "É vital recordar-me daquela conversa. Sei que tem alguma coisa a ver com a mensagem que Sunday estava a tentar transmitir naquela gravação", pensou, com um novo assomo de esperança. "É por isso que todos os meus instintos me disseram para vir para aqui... "

Apercebeu-se de que Collins e Klein estavam de pé, a uma distância respeitosa, e indicou-lhes duas cadeiras à sua frente.

- Estava a deixar a minha mente vaguear. Agora é a vossa

vez. Vamos fazer uma corrente de pensamentos -disse. Era um exercício habitual, algo que os três tinham feito com regularidade quando tentavam resolver um problema.

Collins foi o primeiro.

- Há algo podre no reino da Dinamarca, sir.

Henry sentiu um fluxo de nova energia correr-lhe pelas veias. Instintivamente, compreendeu que isto ia levar a qualquer lado.

- Continua.

- Os tipos da CIA estão a perder tempo; mais importante, estão a perder o nosso tempo. Actualmente, a Mafia está tão atolada de problemas que não vale a pena preocuparmo-nos com aquele código omerta. Eles nunca se meteriam com o Governo dos Estados Unidos raptando a mulher de um antigo presidente. Para além disso, sir, não há absolutamente nenhum grupo terrorista, velho ou novo, que não esteja disposto a jurar com sangue que não está envolvido. Ninguém jamais ouviu falar neste Esquadrão de Defesa e Salvamento de Jovunet. E também, sir, não conseguimos encontrar nenhum registo de um grupo terrorista que usasse a palavra defesa no nome.

Defesa... defender...

De repente, Henry recordou tudo. "Foi aqui, precisamente nesta sala", pensou, perto dos retratos dos Washington. Depois de o embaixador britânico ter dito a Sunday que era uma pena ela e o presidente Britland não se terem conhecido antes, Sunday dissera: "Nessa altura, não creio que Henry me tivesse prestado atenção. Quando ele foi eleito presidente para o primeiro mandato, eu era uma estudante do segundo ano de Direito. Quatro anos depois, quando foi reeleito, eu era defensora oficiosa, a travar uma batalha pelos meus desafortunados clientes, alguns dos quais eram muito merecedores, e outros, infelizmente, não eram cidadãos muito recomendáveis...

Henry pensou: "E a seguir eu disse que, depois das histórias que ela me tinha contado acerca de alguns daqueles casos, eu prometia defendê-la dos clientes desvairados que ela não conseguisse safar."

Levantou-se excitado, com o rosto ruborizado.

- Era o que estava a tentar perceber - disse em voz alta. Voltou-se para os dois companheiros surpreendidos. - Sunday está a tentar dizer-me que alguém de um dos seus casos enquanto era defensora oficiosa está metido nisto! Vamos! Não temos muito tempo.

Sunday sabia que conseguir dormir em todas as circunstâncias era um dom invejável. Só esperava que, desta vez, não funcionasse contra si. Todavia, a viagem acidentada provocou-lhe dores tão fortes no ombro que, depois de cerca de uma hora tinha utilizado as lições de ioga que tivera há anos e forçara-se a esquecer a dor. Surpreendentemente, tinha adormecido.

Mas isso também significava que tinha perdido a noção do tempo. "Há quanto tempo estariam a viajar?", perguntou a si mesma. E para onde iam? Klint mencionara o Aeroporto National, mas como os seus instintos lhe diziam que a casa onde tinha sido mantida se situava na área de D. C., sabia que já lá teriam chegado há muito tempo. Não, iam para mais longe.

Embora não conseguisse ver, estava consciente do som

agradável de outros carros. Aquilo significava pelo menos que tinham de estar numa estrada principal. Adiantaria alguma

coisa tentar bater com os pés na tampa do porta-bagagens?, pensou. Não, não, a menos que parassem para meter gasolina ou coisa do género. Mas, se ela queria aproveitar uma oportunidade dessas, tinha de se manter acordada e suportar a dor.

Daí a muito pouco tempo percebeu que o carro estava a abrandar. Sunday torceu o corpo, tentando posicionar-se para conseguir pontapear a tampa do porta-bagagens. Porém, mal tinham parado quando sentiu o carro começar a avançar outra

vez.

"Uma portagem", pensou. "Mas, em que auto-estrada? Em que Estado? Para onde iam?"

Uma hora depois teve a resposta. Quando Klint abriu o porta-bagagens e a tirou, mesmo através do tecido do capuz e do cobertor, conseguiu detectar o cheiro do oceano.

"Não sabia que tinha sido salva-vidas enquanto andou na universidade. Quem sabe? Talvez isso lhe seja útil em breve." Klint tinha-lhe dito aquilo antes. Agora sabia: ele ia afogá-la.

Enquanto era retirada do porta-bagagens, Sunday começou

a rezar em silêncio: "Perdoai-me por alguma vez me sentir insatisfeita, Senhor. A maior parte das pessoas não tiveram sequer uma hora da espécie de felicidade que conheci com Henry. Cuidai dele, por favor. E cuidai também da mãe e do pai. Ninguém teria podido ser melhor para mim. "

Sentiu Klint mudar o seu peso para um braço e depois ouviu o rodar de uma chave. Uma porta chiou e abriu-se. Momentos depois, estava a ser sentada numa cadeira.

As guinadas contínuas de dor no ombro não tinham diminuído, mas tinham perdido a importância. Agora nada importava a não ser o facto de que lhe tinha sido concedido mais algum tempo de vida. Sunday mudou a oração: "Por favor, Senhor", sussurrou dentro da alma, "que aquele homem da Renascença com quem casei tenha a presença de espírito de que precisa para perceber a mensagem que tentei enviar-lhe. Dizei-lhe, "defender" significa "defensora oficiosa". Dizei-lhe para trocar "sapatos" por "ténis". E depois dai-lhe a força para dar o salto dali para Sneakers Klint e o seu irmão louco. "

Fora preciso mais de uma hora - tempo precioso que não podiam desperdiçar - para juntar as pistas que Sunday dera a Henry, mas, com o apoio dos recursos combinados da CIA e do FBI a ajudar na pesquisa, tinham conseguido determinar a qual dos muitos clientes menos-do-que-recomendáveis de Sunday ela poderia estar a referir-se com as pistas cuidadosamente fraseadas e no entanto frustrantemente obtusas. A utilização da palavra "defender" levou-os a verificar todos os muitos clientes que ela representara enquanto exercera as funções de defensora oficiosa. A referência aos sapatos de Henry fora a que levara mais tempo a ser deslindada. Por fim, recorrendo à lógica invertida, ele conseguiu deduzir que, quando ela falava nos sapatos Gucci que ele não calçara naquele dia, estava na verdade a referir-se aos ténis que ele usava. Foi este salto de compreensão que lhes permitiu descobrir a qual dos muitos clientes Sunday estava a referir-se: Sneakers Klint.

Henry mal acabara de entrar no quarto onde Claudus Jovunet, ressonava audivelmente quando começou a gritar:

-Acorda, assassino miserável. Acabaram-se os jogos. Tens de falar e tens de falar agora!

Jovunet abriu um olho e, instintivamente, procurou debaixo da almofada.

- Não há arma nenhuma aí - murmurou Jack Collins

através de dentes cerrados. -Esses dias acabaram, seu bandalho. - Arrancou Jovunet da cama e empurrou-o contra a parede. - Queremos respostas. Agora!

Jovunet pestanejou e alisou pesarosamente os lados do seu pijama Calvin Klein às riscas.

- Então adivinharam - disse ele, suspirando. - Ah, bom, tenho a certeza de que John Gotti teria feito qualquer coisa para desfrutar deste dia maravilhoso.

Marvin Klein acendeu a luz do tecto.

- Fala - ordenou. - Onde devias ser levado no SST?

Jovunet esfregou o queixo, depois olhou para cada um dos três homens e encolheu os ombros.

- Não sei.

Henry empurrou Collins para o lado.

- Quem raptou a minha mulher? - inquiriu.

Jovunet olhou para ele.

- Quem raptou a minha mulher? - gritou Henry.

Jovunet encolheu-se e sentou-se na ponta da cama, a esfregar

a testa.

- O brande foi definitivamente um erro - disse, e suspirou. - Mas a verdade é que nunca consegui resistir a um Rémy Martin VSOP. E o empregado foi tão generoso comigo ontem à noite. - Olhou Henry nos olhos, e de súbito a sua expressão tornou-se alerta. - Sabe tão bem como eu que ninguém daria um tostão para me ver fora da prisão - disse, enfaticamente. Ao longo dos últimos trinta e cinco anos, não houve uma nação pequena de mais ou um grupo político insignificante de mais

para eu atraiçoar. Não me sinto especialmente orgulhoso disso. Era apenas o que fazia para ganhar a vida. - Fez uma pausa e olhou para os outros dois homens e depois novamente para Henry. - Já agora, posso dizer-vos que quando entrássemos naquele avião amanhã, Sr. Presidente, eu não teria sabido o que dizer-lhe. Não há ninguém lá fora que me queira. Não sei que espécie de jogo alguém está a jogar consigo, mas sei que não tenho sítio nenhum para onde ir. A não ser para a prisão, é claro. Estou plenamente consciente do facto de que estou consideravelmente melhor como residente permanente em Marion do que noutro sítio qualquer do mundo. Este pequeno dia de liberdade foi um grande gozo... especialmente o caviar, que era incrível!... e aproveitei a situação ao máximo porque sabia que tinha de acabar. Sabia que vocês descobririam, e foi o que aconteceu.

Henry olhou para o homem que tinha à sua frente. "Ele não está a mentir", pensou, com o coração oprimido.

- Muito bem, Jovunet, o nome Sneakers Klint diz-lhe alguma coisa?

- Sneakers Klint?-Jovunet pareceu genuinamente confuso. - Absolutamente nada. Deveria dizer?

-Temos motivos para acreditar que ele possa estar envolvido no rapto da minha mulher, ou, mais provavelmente, que o irmão mais velho, WexIer Klint, esteja envolvido. Presentemente, Sneakers Klint está a cumprir uma pena de prisão. O irmão nunca foi condenado por nada, mas pensamos que ele possa ter algum ressentimento contra a minha mulher.

Jovunet abanou a cabeça.

- Lamento desapontar-vos, cavalheiros. Conheci muitos indivíduos nada recomendáveis no meu tempo, mas infelizmente o vosso Sr. Sneakers Klint e o seu irmão não fazem parte deles.

Algumas horas depois, quando o sol matinal lutava para romper as nuvens sombrias que pareciam determinadas em não desaparecer, a atmosfera no interior do centro de comando, no número 1600 da Avenida Pennsylvania, estalava de electricidade.

O presidente, vestido com a sua roupa informal preferida, calças de ganga e uma camisa de ganga Fred Imus Auto-Body Express, tinha acabado de sair dos seus aposentos privados, dois andares acima, e estava ao lado de Henry, que tinha tomado um duche em que alternara água extremamente quente com água gelada, numa tentativa de aclarar a cabeça. Um dos homens dos Serviços Secretos fora ao apartamento que o anterior presidente tinha em Watergate e voltara com o blusão de piloto, uma camisola de meia gola e umas calças. Henry também tinha feito a barba, pela primeira vez em dois dias. A barba feita e roupas limpas eram concessões que só fazia porque não parava de dizer a si mesmo que nesse dia iam encontrar Sunday, e ele não queria estar tão imundo quando fosse ao encontro dela.

Outro analista da CIA tinha-se juntado ao agente Conrad

White, que tinha anteriormente avançado com a teoria da Mafia para explicar o rapto de Sunday. Os dois homens discutiam em voz baixa o modus operandi que deveria ser seguido, quando repararam que o anterior presidente se aproximava.

White, que continuava a defendera sua teoria do envolvimento

da Mafia, virou-se para Henry quando ele chegou junto deles.

- Sir - disse, ansiosamente. - Sneakers Klint esteve sempre relacionado com a Mafia, um bandido insignificante que trabalhava para a organização com frequência. Tenho quase a

certeza de que o irmão dele pode também ter trabalhado para eles. A probabilidade é que eles tenham considerado que WexIer

Klint era demasiado doido para o gosto deles. A sua insistência para que compilássemos o cadastro juvenil foi muito valiosa. Na adolescência, esteve envolvido em muitas rixas. Parece ter adoptado a cultura hippie do fim dos anos 60 e durante algum tempo foi suspeito de envolvimento com os grupos clandestinos mais radicais, embora a nossa impressão seja de que, por não estar ligado a nenhuma universidade na altura, se tornou um anátema para eles, por isso nunca conseguiu ser membro efectivo. Porém, o último ponto do cadastro oficial é o mais significativo. Parece que alguém que se dizia ligado ao SDL... um dos grupos mais violentos da universidade... deixou uma carta no balcão de bilhetes da Pan Am no Aeroporto de Newark, com a ameaça de raptar o presidente da Câmara de Hackensack, Nova Jérsia. Wexler Klint foi um dos suspeitos, mas o caso nunca foi resolvido.

"Depois disso, com excepção de multas de tráfego ocasionais e algumas intimações por perturbar a paz, o nome de Klint, desaparece dos registos públicos. Sabemos, no entanto, que teve inúmeros empregos. O QI dele é quase de génio. Isso, aliado ao facto de em tempos ter trabalhado numa fábrica onde misturava químicos para o fabrico de desodorizante e mais tarde ter trabalhado como mecânico de automóveis, faz-nos pensar que...

- Por que continua assim? - perguntou um Henry Britland. claramente frustrado, com a voz num tom perigoso. - Nada disso importa. Sabemos quem é o nosso homem.

- Mas, sir - interrompeu White -, nós temos de...

- Têm de me ajudar a encontrar a minha mulher. Depois de o fazerem podem analisar a situação enquanto quiserem. Fiz-me entender? Não quero um perfil psicológico; quero um plano de acção. - Fez uma pausa, o rosto agora a apenas alguns centímetros do espantado homem da CIA. -Agora, já chegaram a acordo para uma estratégia comum?

O analista que permanecera em silêncio durante a explicação de White perguntou:

- Apesar de toda a pena que sentimos pela provação da Dra. Britland e pela sua frustração, infelizmente tudo o que podemos fazer é dar-lhe a nossa melhor estimativa do que pensamos que Klint poderá pensar e aquilo a que poderá reagir. - Fez uma pausa e acenou em direcção a White. - O meu colega e eu pensamos que devíamos anunciar à imprensa que sabemos que o homem que procuramos é WexIer Klint, e anunciar ao mesmo tempo a promessa do Governo de que ele terá um tratamento decente quando se render e, obviamente, entregar a sua mulher sã e salva.

- Concordam os dois com isso? - perguntou Henry.

White falou novamente.

- A não ser que eu penso que existe, obviamente, um grande sentido de família entre os irmãos Klint e que devíamos acrescentar que se ele se render pacificamente terá a nossa promessa de que os dois irmãos terão direito de visita nas prisões de ambos.

A sugestão ficou no ar enquanto Henry continuava a olhar para os homens.

Com um olhar que expressava descontentamento e incredulidade, deixou os dois homens e atravessou o aposento para onde o seu sucessor se encontrava a falar com várias outras pessoas.

- Temos de continuar, Des. Tenho a terrível sensação de que não temos muito tempo. Este patife já não dá notícias há horas. Não é possível saber onde Sunday se encontra agora. - Virou-se para Marvin Klein. - Marvin, já se sabe onde é que Klint poderá ter vivido?

-Ainda não, sir. Os nossos homens estão a apertar Sneakers na prisão estadual em Trenton, mas ele continua a insistir que não sabe onde está o irmão. Diz que não o viu nem sabe nada dele desde o último dia no tribunal. Infelizmente, os homens com quem falei lá pensam que ele pode estar a dizer a verdade.

Jack Collins falou.

- O que sabemos é que a família já não vive em Hoboken, onde habitavam quando Sneakers, foi condenado. Descobrimos esse lugar. Parece que aquela gentalha lhes fez a vida negra e tiveram de se mudar. Sneakers disse-nos que a mãe tinha uma irmã doente na área de D. C., e que tinha uma casa, e ele suspeita de que a mãe possa ter-se mudado para lá. Quanto ao irmão, disse que ele teve sempre esquemas grandiosos para se "vingar" do Governo por toda a espécie de males que achava que tinha sofrido e para fazer algo que o colocasse nos livros de história. Ele disse que a mãe deles tinha sido sempre um pouco louca e pensa que o irmão também possa ser assim. - Collins abanou a cabeça. - De qualquer maneira, estamos a verificar a pista de D. C., para ver se encontramos algum registo da irmã e de onde ela poderá viver.

No outro lado da sala ouviu-se um grito de exultação.

- Sir, localizámos a casa da irmã. Aparentemente, ela faleceu há pouco tempo, mas pensamos que a mãe dos irmãos Klint está lá, e muito provavelmente WexIer Klint, também.

- Vamos! - gritou Henry. -Aposto que é lá que encontraremos Sunday.

Vinte minutos depois, um abatido Henry Britland encontrava-se na cave de uma casa degradada em Georgetown. Na mão, segurava o casaco de Sunday. A cadeira em que tinha sido fotografada tinha as pontas das cordas ainda amarradas nos pés e nas costas. Viu o agente que tinha estado a fotografar a área parar de repente a agachar-se ao lado da cadeira.

- Que é? - perguntou Henry.

Angustiado, Henry visualizou o que tinha acontecido. Ao cortar descuidadamente as cordas que prendiam Sunday à cadeira, o raptor tinha-lhe cortado a perna. Com o corpo a tremer de fúria, o anterior presidente afastou-se. "Vou matá-lo", prometeu em silêncio. "Vou encontrá-lo, e mato-o."

Jack Collins examinou a mancha de sangue.

- Eu não me preocuparia muito com isto, sir; dada a pouca quantidade de sangue, a minha suspeita é de que o corte é superficial. Quase parece que ela esfregou intencionalmente o sangue aqui. - Endireitou-se. -São nove horas, sir. Que decidiu fazer?

Henry fechou e abriu as mãos no casaco de tweed que ainda tinha vestígios de um dos perfumes preferidos de Sunday.

- Quero falar com a mãe.

- Não vai conseguir saber muito por ela, sir. Está assustada e confusa. Tudo o que conseguiu dizer-nos foi que o filho trouxe uma senhora para casa, mas que não a deixou descer à cave para a conhecer.

Henry encontrou a mulher de idade sentada num sofá delapidado na pequena sala de estar de uma estreita casa geminada. O seu rosto tinha um olhar vagamente triste e alheado, e ela estava sentada a baloiçar-se enquanto cantarolava em voz baixa.

Ele sentou-se ao lado dela e pegou-lhe na mão. "Rico ou pobre", pensou, "não faz diferença quando o cérebro está a apagar-se." A sua avó tinha sofrido da doença de Alzheimer.

Recordando-se de como falava com a avó, pegou na mão frágil da Sra. Klint.

- Está a cantar uma canção bonita - disse. - Três Ratos Cegos, não é? Por que está a cantar isso?

Ela olhou para ele.

- Estão todos zangados comigo - disse.

-Ninguém está zangado consigo- disse Henry suavemente

Sentiu que a tensão na mão dela começava a abrandar.

- Estraguei o leite. O meu filho disse-me para cantar com ele. Mas depois zangou-se comigo. Eu estraguei o leite.

- Isso não é uma coisa assim tão má. Ele não devia ter ficado zangado - disse-lhe Henry - Onde é que o seu filho está agora?

- Ele disse que ia levar a senhora amiga para nadar.

Henry sentiu a garganta apertada com um medo súbito. O

envelope com o cabelo de Sunday encharcado em água do mar claro, ele devia ter relacionado. Conseguiu perguntar:

- Onde é que ele a levou para nadar?

- Eles vão nadar quando o avião levantar voo. Eu também

queria ir, mas ele disse que era longe de mais. Nova Jérsia é longe de mais? Eu sou de lá, sabia?

- Nova Jérsia - disse Henry. - Sabe onde?

- Eu sei onde. Mas é longe de mais. - Fez uma pausa e olhou

para as mãos. - Long Branch é longe de mais? Eu gostava de

lá. Gostava mais da minha casa de lá do que da que tínhamos em Hoboken. Era perto do oceano. Depois de o avião se ir embora, eles vão nadar. - Fechou os olhos e começou novamente a

cantarolar.

Henry deu uma palmadinha na mão da mulher e levantou-se.

-Sejam gentis com ela-ordenou ao agente que se encontrava

à porta. - E, por amor de Deus, sente-se ao lado dela, não pare de falar com ela e escute-a.

 

Dez minutos antes das dez, a uma distância segura, câmaras de televisão gravaram a procissão de dúzias de agentes dos Serviços Secretos que escoltavam o ex-presidente dos Estados Unidos, Henry Parker Britland, e o terrorista Claudus Jovunet, pela pista até ao SST que os aguardava.

Quando chegaram aos degraus, os agentes recuaram e observaram Britland e Jovunet a subirem os degraus sozinhos e depois a fecharem a porta do avião.

- Jovunet informou o Governo de que não revelará o seu destino até ter tomado um pequeno-almoço reforçado- informou Dan Rather aos telespectadores. - A ementa que exigiu inclui ostras na concha, uma omoleta de caviar, Chateaubriand com espargos e vários bolos, acompanhados por vinhos apropriados, e por fim vinho do Porto. O cozinheiro do Le Lion D'Or embarcou no avião há algum tempo para efectuar os preparativos e, obviamente, desembarcará quando tiver terminado o serviço. O ex-presidente apresentará depois o plano de voo e descolarão. Não soubemos mais nada dos raptores que têm a mulher do Dr. Britland, a congressista Sandra O'Brien Britland, mas as nossas fontes informaram-nos de que se espera que ela seja libertada apenas quando o avião tiver aterrado no destino ainda por anunciar.

 - E, assim - continuou Rather -, o drama continua a

desenrolar-se. Graças à cortesia de um espectador, tivemos a

sorte de receber um vídeo onde a congressista Britland pode ser vista no recital de dança do quarto ano. Temos o maior prazer em partilhá-lo convosco neste momento.

"Oh, meu Deus", pensou Sunday quando se viu a si mesma a dançar num palco, com um tutu verde e uma varinha de condão brilhante na mão. "Só podem estar a gozar."

Ainda tinha a cabeça tapada quando Klint a trouxera para aqui, mas pareciam estar em mais uma cave, apesar de, se é que isso era possível, esta parecer ainda mais pestilenta. Klint tinha trazido consigo a televisão e ligara-a à mesma tomada de onde estava pendurada a lâmpada fraca.

A cadeira metálica a que estava amarrada tinha extremidades enferrujadas, mas ela estava longe de se importar. A única coisa que importava, era se Henry tinha compreendido a sua mensagem.

Tinha a certeza de que não era Henry o homem que tinha o fato-macaco e o blusão de voo. Provavelmente, era o agente que costumava por vezes substituí-lo quando queriam que as pessoas pensassem que tinham visto o presidente a embarcar num helicóptero com destino a Camp David.

Também se apercebeu de que a conversa do pequeno-almoço reforçado era um adiamento táctico. Mas WexIer Klint suspeitaria de alguma coisa? Cuidadosamente, olhou de relance para o lado do aposento onde ele estava estendido num cobertor bolorento, com o fato de monge a seu lado. Tinha vestido um fato impermeável e não parava de puxar impacientemente o material que se lhe colava ao corpo.

Sunday lutou contra a sensação de pânico galopante. "Se

Henry seguiu as minhas pistas e foi aos meus arquivos anteriores, o nome de Sneakers deve ter dado nas vistas", pensou enquanto procurava acalmar-se. "Tenho a certeza de que neste momento ele anda à minha procura. Se não, estaria naquele avião."

A cerca de setenta e cinco quilómetros de distância, o helicóptero particular de Henry estava a andar em círculos sobre Long Branch, Nova Jérsia. Dúzias de agentes pululavam por todos os centímetros de propriedades à beira-mar. Outros

andavam a tocar às campainhas e a procurar todas as casas que pareciam estar vazias.

- Se ela estiver aqui, nós encontramo-la, sir - disse Marvin Klein pela quinta vez em menos de meia hora.

- Mas se havia qualquer réstia de realidade no que aquela pobre velhota disse, então por que não encontramos nenhum registo de eles terem vivido aqui? Não há nenhum registo de uma escritura em nome de Klint em Long Branch, nem sequer

perto - disse Henry, e a sua voz denotava frustração. - Pode ter sido tudo fruto da imaginação dela.

"O tempo está a esgotar-se. O tempo está a esgotar-se", disse vezes sem conta na sua mente. "Não há a mínima prova que indique que isto não passa de um empreendimento inútil. Nesta altura, Klint já a pode ter numa praia num local tão longínquo como a Carolina do Norte. Talvez eles nem sequer tenham possuído uma casa aqui; talvez a tenham apenas arrendado. Ou podem ter usado um nome diferente. Mas não temos tempo para investigar todas as possibilidades. "

- Liga-me para a Prisão Estadual de Trenton. - disse para Klein. - Quero falar novamente com Sneakers.

à medida que o tempo passava sem que acontecesse absolutamente nada, os jornalistas estavam limitados a repetir as partes da crise que conheciam vezes sem conta. A câmara mantinha-se focada no SST, que continuava na pista distante.

- Agora, que é quase meio-dia, o pequeno-almoço reforçado deve estar quase terminado - Tom Brokaw informou os seus telespectadores. - Deveremos ver o cozinheiro a sair do avião a qualquer momento. - O que não disse foi que ele, assim como muitos outros jornalistas experientes, tinha começado a suspeitar de que tudo não passava de uma manobra para ganhar tempo.

- Se aquele avião não descolar até às doze e trinta, não estará por aqui para dizer adeus ao seu marido - disse WexIer Klint, furioso. -Estou farto disto. Estou a começar a pensar que eles estão a brincar comigo. - Levantou-se, dirigiu-se para a porta da cave e olhou para a rua. - Está a ficar novamente nublado. E também está muito vento. Ainda bem. Ninguém vai estar na praia hoje.

Saiu do aposento e voltou com um despertador antiquado. Deu corda ao mecanismo ruidoso e posicionou os ponteiros no lugar certo. Depois, ligou o alarme. Colocou o despertador no chão, à frente da cadeira dela, olhou para Sunday e sorriu.

- às doze e trinta, você e eu vamos nadar.

 

Claudus Jovunet terminou o caviar que tinha trazido consigo para o avião. É claro que não havia nenhum cozinheiro no SST, apenas o substituto do ex-presidente e um punhado de agentes federais, incluindo o que se tinha feito passar por cozinheiro para a imprensa. Mesmo assim, apreciara o repasto que tinha conseguido aproveitar dos restos do dia anterior.

- Ora, ora, ora, como vou sentir a falta da boa vida - disse ele com um suspiro. Olhou com pena para a confortável cabina do avião. Depois, o seu olhar pousou na bagagem Vuitton que continha o seu adorado guarda-roupa novo. Como fazia parte da farsa, os agentes tinham concordado com o pedido dele de que a bagagem o acompanhasse para o avião.

- Acham que quando me levarem para Marion, como sinal de gratidão pela colaboração que lhes dei, eles me permitem ficar com as gravatas Belois? - perguntou ao substituto de Henry.

-Sr. Presidente, eu ajudava-o, se pudesse- disse Sneakers, lamentosamente. - Quero dizer, os guardas aqui nem sempre são as pessoas mais fáceis do mundo, se é que está a perceber. - Fez uma pausa. -Escute, aqui está tudo o que sei. A mãe teve Wex quando tinha quarenta e três anos, e a mim quando tinha quarenta e cinco. O nosso pai? Quem sabe? Eu nunca o conheci,

e a mãe nunca falou sobre ele. Acho que fugiu pouco depois de eu nascer.

- Eu estou a par da história da sua família - disse Henry, ansioso para saber alguma coisa, alguma coisa nova.

- Mas eu quero reiterar outra vez... porque não foi por culpa da mamã. Wex e eu metemo-nos com uma gente duvidosa, mas a mamã tentou. Obrigou-nos a ir à escola, e durante algum tempo Wex até andou com alguns bons alunos. Ele era esperto, mesmo esperto. Mas, ela, que pôde fazer? Certo?

- Escute, a sua mãe alguma vez teve uma casa em Long Branch, Nova Jérsia? - perguntou Henry. - É só isso que eu quero saber.

-Escute, a mamã está quase afazer noventa anos. Deixem-na em paz. Ela nem sabia se eu ia para a prisão ou se ia partir num cruzeiro de férias. Ela está tonta. E o meu irmão também, claro, mas ele não tem a desculpa da idade. Ele é simplesmente um louco varrido.

- Pare com isso - disse Henry, agora quase a gritar. - Eu não me importo! Tudo o que quero saber é se o seu irmão pode ter uma casa em Long Branch.

- Já falou em Long Branch antes. Qual deles? - perguntou Sneakers. - Por acaso, nós costumávamos ir para a ilha de Long Beach. Wex e a mamã gostavam muito do sítio. Tenho estado a pensar. Ele estava sempre a dizer que um dia as pessoas iam saber quem ele era. Tinha sempre esquemas diabólicos para fazer uma coisa que, segundo ele, iria fazê-lo entrar para a história. Uma vez meteu-se em sarilhos porque ameaçou raptar o presidente da Câmara de Hackensack... O nome era... oiça isto... Obie Good. A abreviatura de Obious Good. Que esquisito, não é? Wex tinha uma mnemónica. para esse nome. O- ponto B-ponto Good.

Henry tinha parado de escutar. Ilha de Long Island. "Será

que a Sra. Klint poderia ter cometido o mesmo deslize? Pelo menos ela tem uma boa desculpa", pensou.

A ilha de Long Beach ficava apenas a cerca de setenta e cinco quilómetros para sul de Long Branch, mas podia muito bem situar-se a mil, dado o pouco tempo que lhes restava.

Escrevinhou uma anotação para Marvin Klein. Dizia simplesmente: "Ilha de Long Island. Verificar listagem para O. B. Good."

Dez segundos depois, toda a frota de helicópteros tinha virado para sul, apressando-se para percorrer a distância entre Long Branch e a ilha de Long Island, Nova Jérsia. Eram 12 e 28 da tarde.

Desta vez, Dan Rather estava diante da câmara, com uma imagem do SST num ecrã atrás de si. Claramente, o aparelho continuava parado na pista, e parecia não haver qualquer actividade perto dele. Mexeu em alguns papéis que tinha à sua frente, e depois olhou para a sua direita como se quisesse pedir instruções. Virou-se novamente para a câmara e disse:

- Bem, as informações mais recentes de que dispomos são de que o plano de voo já foi elaborado, mas um problema inesperado nos motores atrasou a partida do avião. O presidente Desmond.Ogilvey prepara-se para fazer um apelo pessoal aos raptores da congressista Britland, para lhes pedir que sejam pacientes e concedam à tripulação de terra tempo para resolver este problema mecânico.

A televisão era agora a única luz no quarto escuro e húmido da cave na costa de Nova Jérsia. O som da voz do presidente Ogilvey fez um som surdo quando ecoou nas paredes do aposento. Não havia ninguém por perto para o ouvir.

"T. S. Eliot escreveu que o mundo não acaba com um estrondo mas com uma choradeira", pensou Sunday enquanto era empurrada e arrastada pela praia em direcção ao ominosamente cinzento oceano Atlântico, "mas diabos me levem se vou chorar agora!" Tinha os braços amarrados à frente do corpo, e, apesar de os pés ainda se encontrarem atados, a corda tinha folga suficiente para lhe permitir arrastar-se pela areia. A empurrá-lo estava WexIer Klint, agora com o fato de mergulho todo vestido, complementado com a máscara e a bilha de oxigénio. Tinha o braço à volta dela e levava-a rapidamente para a beira da água.

"Ali tem de estar um frio de rachar", pensou Sunday. "Mesmo que tivesse uma hipótese, não teria hipótese nenhuma. Vou acabar com hipotermia. Ou será hidrotermia? Oh, Henry, eu pensei que ia fazer alguma coisa significativa com a minha vida. Pensei que faria coisas boas para pessoas que merecessem e depois voltaria para casa, para ti. Teria sido tão maravilhoso, e tenho pena de ter perdido isso."

Tinham chegado à beira da água, e sentiu a rebentação a molhar-lhe os pés.

"Oh, meu Deus, está tão fria", pensou, cada vez mais alarmada.

Uma onda bateu-lhe nos joelhos.

"Desde pequenina, sempre gostei do oceano", recordou-se, pensando fugazmente em quando era uma menina na costa de Nova Jérsia, sempre a ir para a água. "A mãe costumava dizer que precisava de olhos na parte de trás da cabeça para não me perder de vista na praia", pensou. "Quem me dera que esses olhos estivessem a ver-me agora. Adeus, mãe; adeus, pai."

Já estava com água até à cintura; a corrente começava a puxar-lhe os pés. "Amo-te, Henry", disse para si mesma.

Com os olhos distantes e mecanicamente frios, Klint continuou a forçar Sunday a fastar-se cada vez mais da margem. O carapuço apertado do fato de mergulho e o ruído da água impediram-no de ouvir o leve rugido que se aproximava desde o extremo norte da praia e que aumentava de segundo a segundo.

O plano de WexIer Klint tinha sido arrastar Sunday para águas profundas, afogá-la longe da margem e depois levar o corpo dela para um local onde pudesse ser arrastado pela corrente. Seria encontrado daí a alguns dias, ou um mês, mas que diferença faria? Estaria morta, e era a única coisa que importava. Nem sequer se importava se acabasse por ser apanhado. Teria cumprido o seu objectivo. Teria um lugar garantido nos livros de história.

 

- Sir, à esquerda! Olhe!

Henry apressou-se a ir para o outro lado do helicóptero. Com os binóculos, viu uma figura dentro de água, pelo menos a vinte metros da margem. Focou a imagem, para tentar obter uma visão mais nítida. A figura parecia estar a segurar alguma coisa em baixo. Não conseguia perceber o que estava a acontecer, talvez fosse apenas um pescador solitário a tentar apanhar a sua presa a qualquer custo. O tempo era precioso de mais para ser desperdiçado na coisa errada.

Estavam a aproximar-se. Ajustou a imagem uma vez mais; e depois, por fim, viu: cabelo louro, a flutuar na superfície revolta da água. "Sunday!", pensou. "Tem de ser Sunday!"

- Mergulhe! - gritou.

O helicóptero começou a descer a grande velocidade.

Firmemente presa por Klint, Sunday estava a debater-se, mas não conseguia manter a cabeça à superfície. "Adeus, Henry", pensou.

Foi então que Klint ouviu o ruído dos helicópteros que se aproximavam, ergueu os olhos e percebeu o que estava a acontecer. Freneticamente, apertou as mãos em volta do pescoço de Sunday e empurrou-a para debaixo de água. Ainda tinha tempo para acabar com ela. Mesmo que fosse apanhado, teria o seu lugar nos livros de história. Mostraria àqueles cretinos o quanto os odiava.

Aqueles cretinos em Washington.

Foi o último pensamento de WexIer Klint antes de acordar alguns minutos depois, firmemente preso.

O mergulho bombástico de Henry para o oceano permitiu-lhe subir imediatamente à superfície. Agarrou Sunday com um braço.

Com o outro, arrancou a máscara de Klint e torceu-lhe o pescoço num golpe paralisante. "Espero que se afogue", pensou Henry. Os helicópteros deixaram um esquadrão de agentes na água à volta dele.

-Meu amor, meu amor-disse Henry vezes sem conta para Sunday enquanto nadava pela rebentação, rebocando-a a seu lado.

-Henry, querido- sussurrou uma gelada Sunday enquanto punha os braços em volta do pescoço dele. - Não te atrevas a beijar-me antes de eu ter tido oportunidade de lavar os dentes.

Em toda a sua vida, Henry Parker Britland IV poucas vezes tinha mandado alguém calar-se, mas naquele momento esteve perigosamente perto de o fazer. Estava também perigosamente à beira das lágrimas quando chegou à praia e rolou para a areia, com a sua amada Sunday aninhada nos braços. Ignorando o pedido dela, beijou-lhe os lábios e sussurrou:

- Por favor está quieta, querida. - Foi recompensado com

uma pequena gargalhada que emergiu através de dentes que tremiam.

Olhou-a nos olhos. "Histérica", pensou.

- Não te contenhas - disse ele, acariciando-a. - Passaste por uma provação terrível. - Depois acrescentou, incrédulo: - Meu Deus, tu estás a rir!

- Oh, não é de ti, querido - disse ela, enterrando o rosto no pescoço dele quando uma onda passou por cima deles. -Só estava a pensar que é uma altura do ano idiota para estarmos a brincar de Burt Lancaster e Deborah Kerr.

- De que estás a falar? - perguntou Henry, assombrado.

- Daqui até à Eternidade.

Saudações, "Columbia"!

 

THE NEW YORK TIMES. 8 de Novembro.

O ex-presidente Henry Parker Britland IV adquiriu o iate Columbia, recuperando a propriedade para a sua família. Construído para a família Britland e baptizado em 1940, o Columbia foi vendido em 1964 ao falecido Hodgins Weatherby. Pouco antes dessa venda, o barco tinha sido palco do misterioso e ainda por resolver desaparecimento do primeiro-ministro de Costa Barria, Garcia del Rio.

Durante as três décadas em que esteve fora das mãos dos Britland, o iate ganhou a fama de estar assombrado, em parte devido a desaparecimento do Sr. Del Rio e em parte devido ao comportamento bastante excêntrico e por vezes controverso do seu proprietário mais recente.

Maior e declaradamente muito mais luxuoso do que o em tempos iate presidencial oficial Sequoia, o Columbia foi um refúgio muito apreciado por presidentes desde FDR ao general Ford

Na Sala Eduardiana do Hotel Plaza de Manhattan, Congor Reuthers, um homem magro e musculado na casa dos 50 , cumpriu, a tremer, as ordens para ler a notícia do jornal em voz alta e depois ergueu os olhos para a patroa, com medo.

Estavam sentados a uma mesa junto da janela que dava para Central Park, e as carruagens puxadas por cavalos do outro lado da estrada faziam chegar até ao quarto de uma elegância discreta o som de cascos a bater no chão. Enquanto esperava

uma reacção, Reuthers recordou-se fugazmente da sua primeira caçada à raposa. Era rapaz e tinha pensado como se sentiria a raposa quando fosse encurralada. Agora sabia.

Nem sequer as lentes de contacto azuis conseguiam esconder a fúria galopante nos gelados olhos pretos dela. Como sempre, Angelica estava a viajar incógnita. Presentemente, estava a utilizar o seu disfarce de Lady Roth-Jones, com as lentes azuis, uma austera peruca loura, um fato de tweed e sapatos baixos.

Quando continuou a olhar para ele, Reuthers baixou os olhos.

- Lamento - balbuciou, e depois desejou ter mordido a língua.

- Lamentas. - O tom dela era controlado. - Eu esperava uma resposta mais apropriada. Onde estava Carlos?

- Estava lá, conforme lhe ordenaram.

-Então porque não fez uma oferta pelo iate? Não, não oferta; por que é que ele não comprou o iate?

- Teve medo de que um dos homens dos Serviços Secretos o reconhecesse. Ninguém sabia que Britland estava a planear ir lá. Não tínhamos previsto a concorrência. Carlos saiu rapidamente para mandar Roberto fazer a oferta. Quando Roberto conseguiu passar pela segurança, o presidente Britland tinha triplicado o preço-base de licitação. O lucro da venda destinava-se a obras de caridade...

A patroa olhou-o em silêncio durante vários momentos, e depois perguntou:

- Quais são os planos de Britland para o iate?

Desta vez, Reuthers teria preferido engolir a língua a ter de responder.

- Diz-se que vai ser levado imediatamente para a sua marina particular em Boca Raton, na Florida. Ele tem uma licenciatura em Arquitectura, como sabe, e consta que pretende redecorar todo o interior pessoalmente e depois presentear novamente o Governo com ele para que se torne, uma vez mais, um refúgio para chefes de Estado em visita. Com a oferta, haverá, aparentemente, uma doação de monta para manutenção.

- Nós sabemos o que isso significa.

Reuthers acenou, mudo.

- Carlos e Roberto não têm mais utilidade para mim.

Dedos que anteriormente tinham segurado a delicada chávena de porcelana ficaram de súbito convulsivos enquanto apertavam o tampo da mesa.

- Seguramente...

Reuthers cerrou os lábios para camuflar o protesto.

- Seguramente? - Um sussurro maldoso troçou dele. - Tem cuidado para não ires fazer companhia aos teus amigos. para que me serves? Tu tinhas de ter sabido que Britland estava a pensar adquirir o Columbia. - Os olhos duros fixaram Reuthers com uma frieza de fazer parar o coração. - Desaparece da minha vista!

-Henry, querido, ainda nem consigo acreditar - suspirou Sunday enquanto se encostava à amurada do Columbia, esticando-se para ver o princípio de Belle Maris, a propriedade à beira-mar que os Britland possuíam na Florida. Esticou o pescoço e afastou o cabelo cor de trigo, que, impelido pela brisa, bloqueava a vista dos seus brilhantes olhos azuis.

"Minha bela, minha esposa, minha última descoberta, o último e melhor presente divino, meu permanente novo encanto!", pensou Henry Parker Britland IV enquanto erguia o olhar da cadeira de descanso onde estava esticado a estudar as plantas

do Columbia. Desde o recente rapto de Sunday, estas palavras ternas de Milton tinham-lhe vindo frequentemente ao espírito.

- Por que não acreditas? - perguntou ele, afectuosamente.

- Porque quando tinha nove anos li um livro acerca do Columbia e tentei imaginar como teria sido quando o presidente Roosevelt e Winston Churchill desceram o Potomac nele. Podes imaginar as conversas que tiveram? E o presidente Truman costumava tocar piano para os convidados quando ele e Bess davam uma festa aqui. E os Kennedy e os Johnson adoravam este barco, e sabias que o presidente Ford costumava praticar as tacadas na coberta da proa?

- Uma vez atingiu o comandante - observou Henry secamente. -Na verdade, contava-se a anedota de que o pessoal recebia subsídio de risco quando o presidente Ford pegava nos tacos de golfe.

Sunday sorriu.

- Devia ter percebido que tu estás a par de toda a história do Columbia. Praticamente, cresceste nele. - A sua expressão tornou-se séria. - E sei que nunca esqueceste a noite em que o primeiro-ministro Del Rio desapareceu. E, posso compreender isso. Ainda continuamos a viver com as ramificações do seu desaparecimento.

- Eu tinha doze anos - disse Henry sombriamente. - E fui a última pessoa a falar com ele antes de ele sair para a coberta para fumar um cigarro. O homem mais encantador que já conheci. Tinha-me pedido para o acompanhar.

Sunday, viu que os olhos do marido se tornaram nublados e tristes. Dirigiu-se para a espreguiçadeira e sentou-se numa ponta.

Henry afastou as pernas para lhe dar mais espaço e pegou-lhe na mão.

- Como eu era o único elemento desta geração de Britlands, o meu pai incluía-me em todas as ocasiões possíveis. Meu Deus, até viajei com ele de avião para visitar o xá, durante o apogeu da monarquia no Irão.

Sunday nunca se cansava de ouvir as histórias de Henry acerca das suas aventuras enquanto criança e adolescente. Era tão completamente diferente da sua própria experiência de crescer na cidade de Jérsia como filha de um mecânico da Central de Nova Jérsia.

Agora, embora gostasse de saber o que acontecera quando Henry visitara o xá, Sunday estava mais interessada em saber o que tinha acontecido no Columbia naquela noite.

- Não sabia que tinhas sido a última pessoa a falar com o primeiro-ministro Del Rio - disse, calmamente.

- O jantar tinha sido muito agradável - disse Henry. - O primeiro-ministro tinha anunciado o plano do pai de enviar a sua empresa de engenharia para construir uma série de pontes e túneis e estradas em Costa Barria, e metade do custo seria oferecido por ele ao País. Teria melhorado drasticamente a economia. Toda a gente naquele salão se apercebeu de que o florescimento económico significaria que Del Río poderia ficar com a maioria absoluta e impedir, assim, que Costa Barria voltasse a ser subjugada por uma ditadura.

- Del Rio e os seus parceiros deviam estar extremamente felizes - disse Sunday. - Acreditas que é possível que ele se tenha suicidado? - Reparou que o semblante do marido se toldou subitamente e acrescentou: - Henry, querido, acho que sei até que ponto é doloroso para ti falar no assunto. Por isso, não hesites em mandar-me dar uma volta.

Henry ergueu os olhos.

- Minha querida, se fosses dar uma volta, terias muito que nadar antes de chegar a terra. E, embora não tenhas mencionado o assunto... sim... sei que não decidiste qual vai ser o teu voto no Congresso que retomaria a ajuda a Costa Barria.

Defensivamente, Sunday, disse:

- Sei que acreditas que seria melhor continuar a manter o embargo, mas é difícil ignorar uma ilha com oito milhões de habitantes, muitos dos quais vivem na pobreza e precisam desesperadamente da nossa ajuda.

- Bobby Kennedy deu uma versão desse argumento em relação à abertura da China.

- Em 1968, não foi? - perguntou Sunday.

- Junho de 1968, para ser mais exacto - replicou Henry. - Quanto ao primeiro-ministro, era um grande amigo do meu pai e fazia- nos visitas regulares. Tenho orgulho em dizer que ele gostava de mim, e como eu me tinha empenhado em aprender tudo o que fosse possível acerca do país dele, incluindo a situação política e económica, ele gostava de me fazer perguntas. Naquele último dia, ele e eu tínhamos estado a nadar juntos na piscina exterior. Estava uma tarde muito bonita, mas ele parecia melancólico. E depois disse uma coisa muito estranha. Bastante sombriamente, disse-me que por algum motivo as últimas palavras de César andavam a atormentá-lo.

- "Et tu, Brute?" Por que diabo é que ele diria uma coisa dessas? Não sei. É claro que ele vivia coma possibilidade de assassinato. Era uma constante. Mas no Columbia tinha-se sentido sempre seguro. Porém, eu sei que ele estava sujeito a acessos de depressão, e, pelo que sei agora, essa apreensão constante pode tê-lo afectado naquela noite.

- É possível - concordou Sunday.

- Como já disse, o jantar foi bastante agradável e terminou às dez e um quarto. Madame Del Rio retirou-se imediatamente, mas o primeiro-ministro ficou para trás, para agradecer. Depois, quando estava a sair do salão, apareceu ao meu lado e convidou-me para dar uma volta pela coberta. Eu disse-lhe que a minha mãe esperava que eu lhe telefonasse às dez e trinta. A mãe estava a receber uma velha amiga, a rainha Juliana, dos Países Baixos, que visitava Nova Iorque naquela semana. Depois, ao olhar para o rosto dele, apercebi-me de que, por debaixo daqueles modos geniais, Del Rio estava profundamente perturbado. Disse-lhe rapidamente que a mãe ficaria muito honrada por eu aceitar o convite e acompanhá-lo.

- Então, não podes culpar-te - insistiu Sunday.

Henry olhou para o mar.

- Recordo-me de que ele me deu uma pancadinha no ombro e disse que eu não devia desapontar a minha mãe, que talvez eu tivesse feito a melhor escolha para ambos. Disse que precisava de ficar sozinho, que tinha de reflectir sobre uma coisa muito urgente. Depois abraçou-me e, no mesmo gesto sub-reptício, tirou um envelope do bolso e enfiou-o no meu. Num sussurro, pediu-me que lho guardasse até ele mo pedir.

"E, assim - continuou ele -, eu desci para o meu camarote e telefonei à mãe para lhe contar o que tinha acontecido nessa noite, e depois fui acordado de manhã com o grito histérico de Madame Del Rio. E, o que quer que tivesse acontecido, eu soube que talvez o tivesse podido evitar.

- Ou talvez tivesses partilhado o destino de Del Rio ao tentar salvá-lo - disse Sunday rispidamente. - Não me admiraria nada se mergulhasses atrás dele. Achas que um rapaz de doze anos, até mesmo tu, poderia ter mudado o que aconteceu? Estás a ser duro de mais contigo.

Henry abanou a cabeça.

-Acho que tens razão. Mas não paro de reviver aquela noite, e sei que talvez tenha observado alguma coisa e não a tenha compreendido naquela época.

- Oh, vá lá, Henry - protestou Sunday. - Pareces algumas das pessoas que representei enquanto era defensora oficiosa: "O tipo que deu um tiro na minha mulher foi por ali."

- Não - contradisse Henry. - O que tu não compreendes, querida, é que o meu pai me tinha pedido para anotar todas as minhas impressões sobre aquela noite, como fazia em todos os acontecimentos importantes em que eu estava presente. O meu diário era um dossier com folhas soltas, para que no futuro pudesse agrupar aquele capítulo com outros de carácter semelhante. Que, evidentemente, é o que estou a fazer agora, que estou a escrever as minhas memórias.

- O meu diário era um caderno de espiral - disse-lhe Sunday.

- Gostaria muito de o ler.

- Nem sonhes. Mas, de qualquer maneira, que é que estás a dizer-me?

- Depois de ter falado com a mãe... embora estivesse extremamente cansado... forcei-me a escrever tudo pormenorizadamente. Deixei o diário na minha escrivaninha, com o envelope do primeiro-ministro em cima. Durante a noite, essas páginas, bem como o envelope, desapareceram enquanto eu dormia.

Sunday olhou para ele, surpresa.,

- Queres dizer que uma pessoa desconhecida entrou no teu quarto enquanto estavas a dormir e roubou o envelope e as tuas impressões acerca daquela noite?

- Sim.

- Então, Henry, querido, uma palavra vem-me à cabeça

- Chegaram, Sims - disse Marvin Klein, parado defronte das janelas da frente do salão de Belle Maris a observar

elegante iate a lançar a âncora.

Sims atravessou imponentemente a sala onde tinha estado a compor as flores na mesa do café.

- Pois chegaram - disse calorosamente. - E tenho o prazer de dizer que está tudo em ordem para os receber. Meu Deus, o Columbia é um barco lindo, não é? Viajei nele várias vezes, - Suspirou. - Até àquele último acontecimento terrível.

- Estava a bordo do Columbia naquela noite? - exclamou Marvin.

- Sim. Encontrava-me ao serviço da família ainda nem sequer há dois anos. O Sr. Henry Parker Britland Terceiro teve a bondade de me achar atencioso nas pequenas coisas que fazem um bom serviço e levava-me sempre no iate quando havia ocasiões especiais, como foi o caso daquele fim-de-semana. O presidente não passava de um rapazinho, mas recordo-me de que ficou extremamente perturbado com o desaparecimento do primeiro-ministro. Naturalmente. Na verdade, esteve bastante doente nos dias seguintes. Ao seu jeito juvenil e entusiasta, tentou descobrir o que acontecera, mas o pai mandou encerrar o assunto.

O olhar pensativo de Sims desapareceu e ele permitiu-se um sorriso contido quando viu Henry e Sunday a descer para a lancha.

- Ainda bem que os caranguejos de pedra estão quase perfeitos - disse para Klein. - Sei que o presidente vai ficar encantado.

- Tenho a certeza de que sim - concordou Marvin. - Mas só uma pergunta, Sims. Diz que o assunto do desaparecimento do primeiro-ministro foi encerrado. Mas deve ter havido uma grande investigação?

- Houve, de facto, especialmente porque o corpo do primeiro-ministro nunca foi encontrado. Mas que se podia dizer? Tinham sido tomadas todas as medidas de segurança possíveis. Como verá, a suite maior está acima das outras e tem um convés privado. Naquele fim-de-semana, o Sr. Britland tinha-a cedido ao primeiro-ministro. Os guarda-costas do ministro estavam posicionados ao fundo das escadas que davam acesso à suite. Naturalmente, o iate tinha sido exaustivamente revistado antes de partir, e toda a gente que se encontrava a bordo, desde a tripulação até aos funcionários particulares, estava acima de qualquer suspeita. O primeiro-ministro também tinha quatro elementos da sua guarda pessoal.

- E a mulher dele estava lá?

- Sim. Na época, eles eram recém-casados, e ele nunca viajava sem ela.

-Pelo que compreendi, ela tornou-se uma durona -observou Klein.

- Bastante. Sucedeu a Garcia del Rio no cargo. O Sr. Henry Parker Britland Terceiro nunca pensou que ela conseguisse aguentar-se, mas ela usou habilidosamente o amor que o povo

sentia pelo falecido marido e acabou por consolidar o seu poder. Tinha conseguido anular a maior parte da oposição dizendo que os inimigos do marido tinham-no conduzido à morte. Agora, claro, é uma ditadora virtual.

Marvin Klein pareceu pensativo.

- Conheci-a há sete anos, quando o presidente Britland teve uma reunião das nações da América Central. Ela tinha acabado

de fazer cinquenta anos na altura e continuava uma beldade. O presidente Britland chamava-lhe "Madame Castro". Mas acrescentava sempre que, se o marido dela não tivesse morrido,

a sua vida teria sido completamente diferente.

Sims suspirou.

- Que é, obviamente, um dos motivos por que o presidente Britland se culpou sempre. Tenho a certeza de que ele sente que, se tivesse acompanhado o primeiro-ministro na coberta, naquela noite, poderia de alguma forma ter conseguido impedir a morte dele.

Ouvi dizer que o primeiro-ministro tinha um sonho recorrente de que seria assassinado.

- Muito lincolnesco, não era? - comentou Sims. - E talvez ele se tenha antecipado aos seus inimigos suicidando-se, como o presidente acredita. Quem sabe? Agora, se me dá licença, Sr. Klein, tenho de cumprir os meus deveres. A lancha que transporta o presidente e a Sra. Britland está a aproximar-se da doca.

 

Congor Reuthers hospedou-se no Hotel Boca Raton, e aos olhos de toda a gente parecia um golfista de férias. O casaco de linho azul-claro caía informalmente sobre calças de ganga brancas de corte impecável. Um saco de golfe com uma aparência suficientemente usada estava encostado ao porta-fatos duplo Boyd. Como toque final, tinha um estojo de couro com uma máquina fotográfica ao ombro, mas, ao invés de uma máquina fotográfica, transportava um telefone celular ultramoderno e ultrapotente.

O saco de golfe e os bonitos tacos eram reais mas nas mãos de

Reuthers não passavam de simples adereços para o seu disfarce

de turista. Na verdade, os tacos tinham em tempos pertencido

a um industrial de Costa Barria que cometera o erro de criticar Madame Del Rio em público, e tinha deixado virtualmente todas as suas posses terrenas quando fugira da ilha.

Reuthers apercebeu-se de que o recepcionista estava a falar para ele. "Que é que o fulano está a palrar?", perguntou a si mesmo, irritado. Alguma coisa acerca de golfe.

- Sim, sim - disse rapidamente. - Espero conseguir aperfeiçoar as batidas de golfe. Adoro o jogo, sabe?

Inconsciente da gaffe, virou-se imperiosamente e seguiu o carregador para a suite de onde tencionava dirigir a operação de que fora incumbido, à procura do Columbia.

às quatro horas, o telefone tocou.

A pessoa que estava do outro lado da linha era Lenny Wallace, também conhecido por Len Pagan, mas cujo nome verdadeiro era Lorenzo Esperanza, o espião que Reuthers conseguira infiltrar na tripulação do Columbia.

Com satisfação, Reuthers lembrou-se do rosto de bebé do homem, completo com um sorriso angélico, penugem no lábio superior, sardas no cano do nariz e orelhas grandes. Lenny era quase igual a Mickey Rooney quando jovem, como ele estava no

antigo papel cinematográfico de Andy Hardy.

Na verdade, era um assassino com um enorme sangue-frio.

- Não vai ser fácil - disse Len, lentamente.

Reuthers mordeu o lábio, recordando a si mesmo que este

rapaz insolente era um dos preferidos da primeira-ministra Angelica del Rio. Depois, recordou a si mesmo que ela nunca

deixava de punir o fracasso.

- Por que não? - perguntou secamente.

- Porque a mulher do presidente Britland é metediça, anda

sempre a meter o nariz onde não é chamada. E também anda a fazer muitas perguntas acerca do que aconteceu naquela noite.

Reuthers sentiu que as palmas das mãos começavam a

transpirar.

- Que perguntas?

- Eu fingi estar a polir uma coisa na sala de jantar quando ela e Britland estavam lá. Ouvi-os falar sobre o jantar com Del Rio; ela estava a perguntar-lhe onde cada pessoa se tinha sentado.

-Na época, ele tinha apenas doze anos -protestou Reuthers.

- De que poderia ele lembrar-se que fizesse diferença para nós agora?

- Ela disse algo como nunca o ter ouvido, quero dizer, ao marido, falar tanto sobre estar cansado. Ela disse algo como: "Tu estavas cansado, o primeiro-ministro estava cansado, o teu pai estava cansado. Que comeram de sobremesa naquela noite, Valium?"

Reuthers fechou os olhos, ignorando a visão maravilhosa do Sol a iniciar a sua descida majestosa. O seu pior pesadelo acabara de se concretizar. Estavam a aproximar-se de mais para o gosto dele.

- Temos de encontrar esses papéis - ordenou.

- Escute, o local está cheio de agentes dos Serviços Secretos. Vou ter uma oportunidade, e apenas uma, por isso é melhor a sua informação estar correcta. Tem a certeza de que escondeu os papéis no camarote A?

- Seu rufião cretino, é claro que tenho a certeza - disse Reuthers secamente.

A recordação daquela noite fê-lo estremecer. Depois de ter revistado o casaco do primeiro-ministro, constatara que o envelope tinha desaparecido. "Eu sabia que o rapaz tinha sido o último a falar com ele. Sabia que ele devia ter-lhe dado o envelope. Tive de encontrar o camarote dele na mais profunda das escuridões. O miúdo estava no camarote A. Com o meu péssimo sentido de orientação, abri a porta errada. E se estivesse alguém no camarote B? "

Reuthers ainda sentia suores frios ao recordar como tinha entrado na cabina do rapaz em bicos de pés, a rezar para que o criado de quarto não voltasse, encontrasse a luz do corredor apagada e investigasse. Depois, com uma pequena lanterna, tinha-se dirigido para a secretária e pegara no envelope de Del Rio. Graças a um golpe de sorte, reparara no diário aberto. Ao lê-lo, apercebera-se do que continha e arrancara a última folha do dossier.

Mas depois ouvira o fecho da porta girar e o rapaz começara a mexer-se. Rapidamente, escondera-se no armário. Sentindo-se encurralado, tinha procurado às escuras uma escapatória possível. Em vez disso, encontrara um buraco aberto na parede. Com receio de ser descoberto e revistado, tinha enfiado as páginas do diário e a carta de Del Rio pela abertura.

De dentro do armário ouvira alguém entrar, dirigir-se para junto da cama, e depois voltar-se e sair. Porém, quando fora buscar os papéis não conseguira alcançá-los. Durante quase uma hora tinha lutado para enfiar a mão pela abertura, e sentia os dedos na ponta do envelope, mas não conseguia apanhá-lo. Depois, de acordo com o combinado, Madame Del Rio dera o alarme. "Quase não tive tempo de sair do quarto antes de o miúdo acordar", recordou. "Os berros dela eram ensurdecedores." Soube que no dia seguinte tinham sido instalados cofres em todos os camarotes. Era para isso que o buraco tinha sido preparado na parede do armário.

- Isto vai ser complicado - estava Len a dizer. - Os tipos de Britland dos Serviços Secretos são espertos. Têm olhos na parte de trás da cabeça, esse tipo de coisa. O chefão já gritou comigo duas vezes por entrar na sala de jantar quando os Britland se encontravam lá.

- Isso não é problema meu!- disse Reuthers rispidamente. - Deixa-me pôr as coisas desta forma. Se conseguires recuperar aqueles papéis sem problemas e escapares, receberás o agradecimento sincero de uma patroa poderosa. Se estragares tudo a tua mãe idosa e as oito irmãs dela serão despachadas para o outro mundo.

A voz de Len tornou-se suplicante.

- Adoro a minha mãe e as minhas tias.

- Então, sugiro que recuperes aqueles papéis, fazendo o que for necessário para o conseguires. Compreendes? Aquele buraco estava na parede porque o cofre ia ser instalado no dia seguinte. A remodelação prevista poderá fazê-los aparecer. Arromba a madeira do fundo do armário do camarote A. Eles estão lá! Não me interessa como o fazes, mas fá-lo, e não cometas erros.

 

-Henry, quando contaste ao teu pai sobre os papéis perdidos, que é que ele fez? - perguntou Sunday enquanto bebericava champanhe no salão envidraçado do Columbia. Um aposento semicircular na parte de trás do navio, o salão tinha capacidade para dez pessoas sentadas com todo o conforto, e, como Henry explicara, era um local da preferência de muitos dignitários para conversa, leitura ou simplesmente para observar o horizonte.

- Infelizmente, com a calamidade do desaparecimento do primeiro-ministro, o pai não ficou muito interessado na minha história dos papéis perdidos. O primeiro-ministro tinha o hábito de escrevinhar em ementas de jantares ou discursos impressos, e eu sei que o pai pensou que, possivelmente, ele me tinha dado uma coisa desse género por brincadeira.

- E que tinhas escrito no teu diário?

- Ele disse-me para voltar a escrever tudo quando me sentisse melhor. Eu tinha acordado com uma dor de cabeça, um vírus qualquer, presumo, e é claro que o iate estava um verdadeiro pandemónio. Helicópteros pululavam pelas redondezas à procura de sinais do corpo. Barcos, mergulhadores da Marinha e muito mais.

-Acreditas que Del Rio te deu uma coisa sem importância naquele envelope?

- Não, não acredito.

- Fizeram uma busca para tentar encontrar os teus papéis desaparecidos?

- Para ser justo com o pai, sim, houve uma busca. Seguindo ordens do meu pai, Sims revistou o meu camarote para ter a certeza de que eu não tinha feito confusão acerca de ter deixado o envelope com o diário em cima da mesa. Mas não descobriu nada.

- E, claro, como tinhas escrito num dossier de folhas soltas, não podias provar que tinham sido arrancadas páginas do teu diário.

- Exactamente. - Fez uma pausa e olhou para a mulher, e a afeição era notória nos seus olhos. Sorriu e depois disse: - Se por acaso os teus constituintes pudessem ver-te agora, nunca votariam em ti. Pareces ter doze anos.

Sunday usava uma saia comprida às flores, de amarrar, com uma T-shirt branca e sandálias. Ergueu uma sobrancelha.

-Neste momento posso não parecer um membro do Congresso - disse ela, com dignidade -, mas, para tua informação, estas perguntas não são causadas por curiosidade fútil e infantil, nem sequer, querido, porque sei que ficaste muito perturbado naquela noite. Sinto precisamente o mesmo que tu em relação a Madame Del Rio. Gostaria de ver Costa Barria ter a oportunidade de conseguir um Governo justo e não opressivo. Mas seria preciso muito para enfurecer as pessoas a ponto de tomarem medidas contra ela, e, a menos que aconteça alguma coisa dramática, ela vai vencer aquela eleição. Certo como dois mais dois serem quatro.

- Pois vai.

- E enfurece-me pensar que um dos elementos do grupo de Garcia del Rio possa ter roubado a sua carta de suicídio, se era disso que se tratava, do teu quarto enquanto tu dormias. Não há forma de saber, mas poderia ter mudado tudo.

- Enfurece-me ainda mais pensar que talvez pudesse ter salvo a vida do primeiro-ministro se tivesse ido passear com ele na coberta. Na verdade, foi por esse motivo que comprei o Columbia. Com excepção desse incidente, tem uma história grande e distinta. Eu quero arranjar uma forma de apagar essa mancha.

Sims entrou discretamente no aposento com uma bandeja de bolinhos de queijo. Ofereceu-a a Sunday. Ela aceitou um e perguntou-lhe:

- Já esteve neste iate antes, Sims?

- Sim, minha senhora.

- Como é que lhe parece?

A testa de Sims franziu-se.

-Não há dúvida de que está muito bem conservado, madame, mas, se me é permitida uma observação, é bastante chocante que nada tenha mudado. Estou a referir-me aos papéis de parede, às camas, aos estofos, aos cortinados. Durante os trinta e dois anos em que o Columbia pertenceu ao Sr. Hodgins Weatherby, é claro que ele o tratou como um santuário.

Henry soltou um riso abafado.

- Eu posso explicar isso: Weatherby não era marinheiro. Na verdade, o simples facto de ver uma onda um pouco mais alta era uma tortura para ele. Pagou uma fortuna para dragar o porto para poder caminhar pela doca até bordo, e, para além do pessoal da manutenção, ninguém podia subir a bordo a não ser ele e o seu médium. Ele sentava-se sempre aqui - Henry bateu no braço da cadeira em que se encontrava sentado e depois apontou para aquela onde Sunday estava apoiada: - e o médium ali.

- Não te disse, querida, mas estás na cadeira de Sir Winston Churchill. Segundo o que o meu pai me contou, quando FDR lhe pediu o iate para levar Churchill a dar um passeio, ele sentou-se imediatamente nessa cadeira. Através do médium, o velho Weatherby dizia ter tido conversas com o primeiro-ministro, assim como com FDR, de Gaulle e Eisenhower, para referir apenas alguns. Todavia, sei que se recusou a falar com Estaline.

- Tratava o barco apenas como um mirante exótico - disse Sunday. - Percebo por que é que a família de Weatherby se disponibilizou tão prontamente a doá-lo para o leilão de caridade quando ele morreu.

- Eu também. Mas claro que foi isso que levantou a especulação de que o navio estava assombrado. Aparentemente, o médium era um mímico bastante bom.

Bateram à porta. Marvin Klein entrou, hesitante.

- Sr. Presidente, eu não queria interromper, mas o secretário de Estado está em linha.

- Tony? - disse Henry. - Deve ter acontecido alguma coisa. - Tirou o telefone da mão de Klein e depois sussurrou: -Não te vás embora, Sims. Dá-me alguns desses bolinhos de queijo.

Engoliu um rapidamente e depois falou calorosamente para o telefone:

- Olá, Tony. Espero que Ranger esteja a manter-te ocupado.

Ranger era o nome de código dos Serviços Secretos para o chefe do executivo.

O secretário de Estado Anthony Pryor tinha sido nomeado para a posição mais elevada do Governo pelo sucessor de Henry, o presidente Desmond Ogilvey. Amigo de Henry desde os dias de Harvard, Pryor adorava deixar de lado a linguagem formal quando falava com ele.

- Henry, estou mais ocupado do que uma raposa num galinheiro - disse ele -, mas tu sabes isso. Escuta, compraste novamente o Columbia, e agora queremos que nos ajudes com uma coisa. Vais receber um telefonema do pessoal de Miguel Alesso. Ele quer ver-te. Ranger quer que o vejas.

-Alesso? Ele está a concorrer contra a primeira-ministra de Costa Barria.

- Isso mesmo. E está em Miami, incógnito. Jura que Angelica del Rio arquitectou a morte do marido, há trinta e dois anos, e que os agentes dela estavam a tentar comprar o Columbia no leilão, mas tu ultrapassaste-os.

- Como é que ele sabe uma coisa dessas? - perguntou Henry, calmamente.

- Porque a viúva de um dos homens que não conseguiu concretizar a compra na semana passada telefonou-lhe. A questão é que Ranger pensa que tu és a pessoa mais indicada para detectar falhas na história de Alesso. Se pensares que mete água, será um bom indicador de qual será a nossa posição nas próximas eleições. Embora tenham passado trinta e dois anos, Garcia del Rio é considerado praticamente um santo no seu país. Não te esqueças de que Angelica del Rio vem cá numa visita de Estado para garantir a observância dos direitos humanos e a libertação de dissidentes. Ranger não quer correr o risco de a apoiar e depois alguém provar que foi ela que arquitectou a morte do marido.

- Queres dizer que Des pensa que pode ser uma táctica para impedir que a primeira-ministra del Rio obtenha a nossa aprovação mesmo antes das eleições?

- Percebeste. Meu Deus, Henry, estes malditos países pequenos conseguem dar-nos cabo da paciência, não é verdade?

- Não mais do que os grandes - lembrou-lhe Henry. Claro que vou encontrar-me com Alesso. Amanhã de manhã, aqui no Columbia.

- óptimo. Vamos tratar de todos os preparativos.

Henry entregou o telefone a Marvin Klein e olhou para Sunday.

- Minha querida - disse ele -, pode ser que, como sempre, tenhas razão.

- Acerca de quê?

- Acerca da morte de Garcia del Rio.

Congor Reuthers tinha aprendido há muito tempo que até um homem sob pressão precisa de alimento. Era segunda-feira. Lenny tinha mandado dizer que os Britland tinham um voo marcado para Washington na quarta-feira de manhã, altura em que a congressista Sandra O'Brien precisava de estar no Capitólio para o debate final sobre a ajuda a Costa Barria. Depois de os Britland saírem do barco, todos os membros extra da tripulação, incluindo Lenny, seriam dispensados. Isso significava que o tempo estava a esgotar-se. Lenny tinha de se introduzir no camarote A no dia seguinte.

Porém, por enquanto, Reuthers não podia fazer mais nada. A não ser comer. Como tinha gostado especialmente do ambiente do restaurante do último andar do Hotel Boca Raton, decidiu comer lá. Seguramente, alguns martinis e uma lagosta refrescar-lhe-iam o espírito. Pegou no telefone, marcou o número do restaurante e exigiu imperiosamente uma mesa à janela, uma mesa de onde se avistasse o canal do interior.

Quando chegou à secretária do maitre d', ficou furibundo ao constatar que não poderia ter a mesa que pedira. Forçado a decidir entre ir-se embora intempestivamente ou aceitar o destino, permitiu ao estômago que tomasse a decisão.

- Tenho a certeza de que compreenderá por que tivemos de alterar os lugares, sir- disse o maitre d' com um sorriso nervoso enquanto conduzia Reuthers para uma mesa onde o único vestígio próximo de água era num jarro. - Está a ver por que é que tivemos de manter algumas mesas desocupadas - sussurrou, apontando para a parede de janelas.

O coração de Reuthers deu um pulo. Sentados, sozinhos, bronzeados e sorridentes, estava o casal preferido da América, o ex-presidente dos Estados Unidos e a sua esposa congressista.

Reuthers meteu a mão no bolso para tirar a cigarreira que escondia o seu equipamento de escuta. Casualmente, pousou-a sobre a mesa e apontou-a na direcção dos Britland. Como se estivesse a coçar a cabeça, inseriu o receptor minúsculo no ouvido e foi recompensado ao ouvir Henry Parker Britland IV dizer:

- Terei interesse em me encontrar com Alesso amanhã.

"Alesso!", pensou Reuthers. "Alesso!" Por que é que Britland

iria encontrar-se com ele?

Tapou o ouvido para bloquear os murmúrios das mesas que o rodeavam, e depois percebeu que estavam a falar para ele.

- Desculpe, sir, mas está numa zona de não fumadores. - Reuthers ergueu os olhos para ver o franzir desaprovador do rosto do chefe dos empregados de mesa e percebeu que tinha perdido algo que Sunday Britland dissera acerca de "Alesso trazer provas..."

- Eu não estou a fumar - replicou Reuthers. O empregado Olhou severamente para a cigarreira aberta.

- Só a mantenho aberta para testar a minha força de vontade - declarou Reuthers.

- Então, sir, com sua licença... - O empregado afastou a cigarreira até esta ficar quase escondida entre o arranjo floral e o cesto do pão que tinha acabado de ser colocado na mesa. - Agora pode espreitar para ela, mas os outros clientes não a verão nem ficarão com a impressão de estar numa zona para fumadores. Não se esqueça de que pode não ser o único que está a resistir à tentação. Valha-me Deus, não seria uma desgraça? Já alguma vez pensou em reduzir a necessidade de nicotina com pastilhas elásticas, sir? Ajuda muito.

"Sai daqui, seu estúpido. Britland está a olhar para ti."

Reuthers deu um salto quando uma voz familiar lhe entrou no ouvido com uma fúria incontida.

"Ele pode reconhecer-te, grande imbecil."

Reuthers olhou em volta, e os seus olhos perscrutaram ansiosamente a sala. Que disfarce teria Angelica adoptado nesse dia? Só podia estar desesperadamente preocupada, para ter vindo aqui ao invés de seguir directamente de Nova Iorque Para Costa Barria. Avistou uma comensal solitária de cabelo grisalho, com um cotovelo em cima da mesa, a olhar para o copo de vinho. Ali estava ela, Wilma Solitária, outra das personagens de Angelica. O seu olhar perscrutador passou de seguida para uma mesa junto da janela, onde se deparou com o olhar intenso do anterior presidente dos Estados Unidos. Tinham-se conhecido há trinta e dois anos. Reuthers, estivera na viagem fatídica, ostensivamente como um dos guardas pessoais de Garcia del Rio e, teoricamente, tinha sido executado com o resto do seu pessoal por incúria, por terem fracassado no dever de proteger o primeiro-ministro.

Conseguiria Britland reconhecê-lo ao fim de todos aqueles anos?

Com receio de correr o risco de ser descoberto, Reuthers levantou-se apressadamente e virou as costas ao anterior presidente.

- Não quero jantar aqui - resmungou, e abandonou rapidamente a sala de jantar.

Estava no elevador quando o chefe de mesa o alcançou.

-Esqueceu-se da cigarreira, sir- disse. - Continue no bom caminho, a resistir à tentação. Coragem!

O agente-chefe dos Serviços Secretos Jack Collins mexeu-se, inquieto. Estava sentado a uma mesa um pouco afastada da do ex-presidente Britland, e aquela voz interior que o avisava do perigo estava a gritar-lhe agora.

Passava-se alguma coisa. Os seus olhos moveram-se, inquietos, pelo aposento, a observar os ocupantes com grande intensidade. Os comensais eram obviamente ricos - muitos casais de idade, alguns grupos de famílias com crianças pequenas. Estavam todos bronzeados, descontraídos e sorridentes. Um grupo de homens contava histórias.

"Provavelmente, estão aqui para uns dias de golfe que serão debitados à empresa como se se tivesse tratado de um encontro de negócios", pensou Collins sombriamente.

Observou um homem com uma postura muito direita, cada parte do corpo a revelar aborrecimento, a abandonar o restaurante, quase colidindo com quatro senhoras muito bem vestidas na casa dos 60 anos. Collins observou as senhoras seguirem o maitre pela sala, e depois registou o desagrado evidente quando ele as escoltou para uma mesa na parte de trás, situada no meio dos grupos familiares. "Se tivessem um homem com elas, aquilo não aconteceria", pensou ele.

Reparou numa mulher que ocupava a mesa junto à janela mais pequena, a olhar pensativamente para a água. Cabelo grisalho, óculos de sol simples, uma expressão alheada, parecia uma pessoa que ficara recentemente de luto.

Os olhos de Collins olharam para além dela, para a outra fila de mesas. Não gostava das vibrações que estava a receber. Alguma coisa parecia estar errada. Sentiu um grande alívio quando, uma hora depois,, os Britland se levantaram para sair.

Quando passavam pela secretária das reservas, o ex-presidente virou-se para Collins.

-Jack - disse ele -, um fulano que estava na sala de jantar saiu abruptamente sem comer. Reparaste nele? Tinha algo familiar. Vê o que consegues descobrir.

Collins assentiu. Fez sinal aos quatro agentes, que os escoltavam para se manterem junto dos Britland e mandou-os seguir enquanto parava junto à secretária.

Quando voltou para Belle Maris, uma hora depois, já tinha providenciado vigilância permanente a um hóspede do hotel registado com o nome de "Norman Ballinger". A história do chefe-de-mesa acerca da cigarreira aberta, seguida pela descrição divertida do recepcionista dos planos de Ballinger para aperfeiçoar as "batidas de golfe" - "não admira que os meus instintos estivessem alerta", pensou.

O beeper soou segundos depois de ele ter entrado na mansão.

-Descobriste alguma coisa, Jack- informaram-no da sede.

Ballinger é na verdade Congor Reuthers, a única pessoa próxima de Angelica del Rio. Está sempre na sombra da vida política, mas diz-se que continua a merecer a confiança dela por lhe resolver as dificuldades.

- Que está ele a fazer aqui em Boca Raton? - perguntou Collins.

- Pensamos que ele sabe que Alesso está aí e quer manter-se a par dos movimentos dele. Vamos mantê-lo vigiado, mas fica atento. Reuthers não suja as mãos. Pode ter outros com ele.

Collins desligou o telefone e desejou conseguir afastar a sensação agoirenta de que Henry Parker Britland IV não devia ter comprado o Columbia.

Na terça-feira de manhã, Lenny Wallace estava dolorosamente consciente da segurança reforçada no Columbia.

às sete horas da manhã, tinha falado para Reuthers e fora informado de que Miguel Alesso, o líder dissidente que ia opor-se à primeira-ministra nas eleições da semana seguinte, ia almoçar com o ex-presidente Britland no iate.

-Tens de recuperar aqueles papéis - tinha-lhe dito Reuthers rispidamente. - A primeira-ministra está pessoalmente envolvida nisto. Fracasso não é uma opção.

Depois deu instruções a Lenny para descobrir uma forma de entrar na sala de jantar para tentar ouvir o que estava a ser dito durante o almoço.

Lenny fez um esforço supremo para não dizer a Reuthers que só um imbecil acreditaria que um marinheiro que trabalha no convés, a menos que fosse invisível, poderia entrar numa sala onde estivesse a decorrer uma reunião altamente confidencial ao mais alto nível. Em vez disso, pensou na mãe e nas tias e prometeu que faria todos os possíveis.

Referiu, no entanto, que quando o ex-presidente estava a bordo do Columbia, o seu agente sénior dos Serviços Secretos, Jack Collins, também se encontrava lá, e parecia ter a capacidade de saber até quando alguém no barco espirrava.

Reuthers teve uma última palavra:

-Devias saber que a tua mãe e as irmãs dela estão sob prisão domiciliária... apenas temporariamente, tenho a certeza. Faz o que achares melhor.

Precisamente ao meio-dia, Lenny estava no convés da tripulação, com binóculos encostados aos olhos, a observar uma limusina que estacionara na doca. Viu dois homens e uma mulher saírem do veículo e embarcarem na lancha: os Britland e, com eles, o líder da oposição de Costa Barria, Miguel Alesso.

Uma possibilidade ainda não explorada passou pela mente de Lenny: Alesso estava a ganhar popularidade. Onde quer que aparecesse, as pessoas ficavam enlouquecidas. "E se eu não consigo encontrar os papéis? Podia limitar-me a desaparecer. Se, por um acaso inesperado, ele vencer as eleições, eu podia entrar em contacto com ele, contar-lhe o que me mandaram fazer. Depois, podia dizer-lhe onde estão enterrados os corpos. Talvez ele me recompensasse."

Mas não, não podia fazer isso. Sabia que era impossível. Quando as eleições terminassem seria tarde de mais para a sua mãe e para as suas tias, aquelas mulheres maravilhosas que eram conhecidas como as "Irmãs do Alfabeto". A mãe, a mais velha, chamava-se Antonella, a irmã a seguir chamava-se Bianca, a terceira Concetta, e por aí adiante até à mais nova, lona.

Lorenzo Esperanza, que tinha o nome de guerra Lenny Wallace, teve uma sensação de dever renovado enquanto limpava as lágrimas dos olhos.

A aura da verdade", pensou Sunday. "Emana dele." Ela e Henry estavam sentados com Miguel Alesso no salão. Henry tinha sugerido a Alesso que ocupasse a poltrona preferida de Sir Winston.

- Estou fora da minha liga - disse Alesso com um leve sorriso -, embora de certa forma possa comparar o estado precário do meu país com o da Inglaterra durante a segunda guerra mundial.

Sunday sabia que Alesso tinha pouco mais de 30 anos, mas o seu ar de séria maturidade, o cabelo escuro já muito grisalho e a expressão sábia e ao mesmo tempo triste dos olhos cor de avelã combinavam-se para que parecesse ser pelo menos uma década mais velho.

Agora inclinou-se para a frente, a expressão intensa.

-Angelica del Rio planeou e levou a cabo o assassinato de um homem verdadeiramente bom - disse, arrebatadamente. - O pai dela, como sabem, era o comandante do Exército de Costa Barria. Ela casou com o primeiro-ministro por ordem do pai, sempre... estou convicto... com a intenção de o eliminar. Ela era na época, e ainda é, uma grande beldade e também bastante carismática. E, afinal de contas, como diz o ditado, um homem é um homem...

Encolheu os ombros pesarosamente.

- Ela mudou os guarda-costas pessoais dele, substituiu-os pelos bandidos que o traíram, incluindo o primo inglês afastado, que é agora conhecido por Congor Reuthers.

"Segundo as informações que consegui recolher, ela drogou o marido e também o seu pai e o senhor, sir, com a sobremesa especial que o cozinheiro pessoal dela preparou. Foi ela que pôs Garcia del Rio inconsciente. Os guarda-costas dele, liderados por Reuthers, encheram o corpo dele de pesos e deitaram-no borda-fora. Deve ter descido até ao fundo do oceano.

"Os guarda-costas esperavam ser recompensados. E foram. Depois de regressarem a Costa Barria com a viúva inconsolável, foram executados por faltarem ao seu dever... todos com excepção, obviamente, de Reuthers.

- Continuo sem compreender por que é que ela escolheu aquela noite, neste iate - observou Henry.

Sunday estudou o marido. Ele estava sentado, muito direito, na sua cadeira de comandante, o queixo pousado na mão esquerda, todo o seu ser concentrado em Alesso. Quase conseguia sentir o som de "Saudações ao Comandante" a flutuar no ar.

- Angelica tinha recebido um telefonema do pai, o general, que lhe contara que o marido estava a par de uma tentativa de assassinato iminente em que estavam envolvidos os seus guarda-costas. Ele também a informou de que Del Rio estava consciente dos milhões de dólares que ela tinha desviado das obras de caridade que liderava. Estava a planear mandá-la prender quando regressassem a Costa Barria. Não lhe restava outra opção. Tinha de agir imediatamente.

"Faz sentido", concordou Sunday em silêncio.

- O plano deles era que o pai de Angelica assumiria o governo. Mas o general sofreu um ataque cardíaco na semana seguinte e ela aproveitou a oportunidade para agarrar o poder. ocupou o lugar que pertencera ao marido no Governo e depois, aproveitando-se do amor que o povo tinha por ele, conquistou o poder absoluto.

- Que provas há de tudo isto? - perguntou Henry. - O senhor falou em provas.

Alesso encolheu os ombros.

- A prova está no envelope que Garcia del Rio lhe passou quando o senhor era um rapaz de doze anos.

- E como é que sabe tudo isto? - perguntou o anterior presidente.

- Um dos guarda-costas tentou subornar um dos guardas prisionais para que o deixasse escapar da execução -replicou Alesso. -Falou ao guarda sobre o assassinato de Del Rio e disse que Reuthers tinha revistado o corpo de Del Rio à procura de um envelope antes de ele ser atirado borda-fora. O envelope continha uma declaração de Del Rio, a que ele planeava fazer, a acusar a mulher. Ela tinha conseguido vê-la fugazmente, mas não tivera tempo para a tirar do casaco dele antes de irem jantar.

- Por que é que nunca se soube nada disto? - perguntou Sunday.

Alesso pareceu espantado com a pergunta.

- O guarda prisional teria assinado a sua sentença de morte se tivesse admitido que sabia que o primeiro-ministro tinha sido assassinado - disse ele. - Mas, quando ficou mais velho e começou a beber um pouco mais de vinho, começou a falar. Acabou por falar de mais. Depois desapareceu.

- E agora, todos estes anos depois, o quebra-cabeças foi finalmente concluído - reflectiu Henry.

- Não, sir - corrigiu Alesso -, o quebra-cabeças não estará concluído enquanto esses papéis, se é que existem, não forem localizados. Mas, no presente imediato, peço-vos a ambos que apoiem a minha candidatura. Peço-lhe, congressista Britland que não vote a favor do auxilio ao meu povo enquanto Angelica del Rio estiver no poder. Apoiá-la é apoiar a opressão.

Sunday foi incapaz de aguentar o olhar intenso do homem. Afastou os olhos, com medo de que ele visse a indecisão estampada neles.

- E ao senhor - disse Alesso, olhando para Henry -, imploro-lhe que peça ao chefe executivo dos Estados Unidos que cancele quaisquer planos para homenagear Angelica del Rio com um jantar de Estado. A credibilidade da vossa grande nação não deve ser usada para fortalecer o poder de um tirano.

Lenny sabia que não havia forma de conseguir ir à coberta superior enquanto estivesse a decorrer o encontro. Mas soube que, depois do almoço, os Britland iam voltar para Belle Maris, onde permaneceriam até à partida para Washington, no princípio da manhã seguinte. Isso queria dizer que os omnipresentes Serviços Secretos estariam a guardar a mansão, não o iate.

Segundo a escala de serviço, Lenny terminava o seu turno às cinco horas da tarde. Sabia que pareceria estranho se não partisse imediatamente para terra. Enquanto esfregava a coberta de teca, teve uma ideia. Ninguém esperaria que uma pessoa com uma intoxicação alimentar saísse da sua cabina.

Uma hora depois, apresentou-se ao comissário de bordo. Tinha o rosto perlado de transpiração, as pálpebras meio fechadas e mal conseguia manter-se de pé.

- Foi alguma coisa que comi - queixou-se, a apertar o estômago.

Dez minutos depois estava na sua cabina, na coberta da tripulação, deitado no seu beliche e a arranjar coragem para se esgueirar até ao camarote A. Mas isso teria de esperar até mais tarde, a coberto da escuridão da noite e da segurança menos apertada.

"Os acontecimentos futuros lançam as suas sombras antes", pensou Henry naquela noite, enquanto bebia um café.

Ele e Sunday estavam a jantar no terraço profusamente florido de Belle Maris. Velas finas enviavam chamas bruxuleantes para a lua cheia, que banhava o Columbia numa misteriosa imponência.

- Estás tão calado, querido - observou Sunday enquanto indicava a Sims que podia encher-lhe a chávena de café duplo.

- Nem sequer tu vais conseguir dormir depois de todo esse café - admoestou-a Henry brandamente.

- Tu conheces-me, Henry. Eu até adormecia em cima de uma vedação de arame farpado. É a minha consciência tranquila que opera esse milagre. - Bebeu um gole e estalou os lábios. - Como se costuma dizer, "homem, isto é que é café".

A expressão dela tornou-se séria.

- Henry, ainda não te perguntei, mas vou perguntar-te agora. Acreditas na história de Alesso, não acreditas?

- Sim, acredito, por mais de uma razão. A noite passada, no restaurante, vi bem aquele homem que me parecia tão familiar. Como sabes, eu tinha razão. Já o tinha visto antes. É o braço direito de Angelica del Rio. E estava no Columbia naquela noite, há trinta e dois anos. Estava perto do primeiro-ministro e de mim quando Del Rio me passou o envelope. Logicamente, quando não o encontrou em Del Rio, suspeitou de que eu o tinha. Se ele sabe que Alesso descobriu a verdade, vai mover mundos e fundos para recuperar aquele envelope. Se pudesse desmontar o iate peça por peça, fá-lo-ia. Mas esteve fora das nossas mãos durante trinta e dois anos. Quem sabe se algum criado não o encontrou enfiado em algum lado e o deitou fora!

- Vais sugerir a Des que cancele a visita de Estado de Madame Del Rio? - perguntou Sunday.

As visitas de Estado não são canceladas facilmente, querida, a não ser por motivos graves. Se Madame Del Rio vencer as eleições na próxima terça-feira e assinar o acordo de direitos humanos, as histórias que estão a ser veiculadas pelos seus oponentes serão desprezadas. Sem provas, não podem simplesmente ser consideradas credíveis. E, a partir de agora, Alesso tem zero hipóteses de a vencer.

Sunday olhou para o Columbia.

- Sabes uma coisa, Henry? Gostaria de passar mais uma noite no iate. Adoro dormir lá. Importas-te?

Henry sorriu.

- Presumo que estou a ser incluído no plano. Acho que vou gostar de ser embalado pelo oceano, meu amor. É claro que vamos. Quem sabe?, talvez o Columbia nos revele os seus segredos. Não seria uma maravilha?

às nove horas, antes de sair da cabina para ir buscar os papéis perdidos, Lenny arranjou o beliche de forma a dar a impressão de uma forma adormecida em cima dele.

Tinha observado muitos cúteres em volta do Columbia e lembrou a si mesmo alegremente que, embora eles conseguissem garantir que ninguém entrava nele, ele já lá estava!

Agora, que chegara o momento de fazer o trabalho, tinha os nervos à flor da pele. O perigo era chegar ao camarote A. Depois de se encontrar lá dentro, estaria à vontade. Não havia motivo nenhum para alguém sequer espreitar para o camarote nessa noite.

A parte mais difícil seria cortar uma parte da grossa parede de carvalho sem fazer barulho. Reuthers tinha dito que o envelope e as páginas do diário tinham sido enfiadas no buraco feito para o cofre, por isso, não poderiam ter caído mais do que até ao chão, e ele encontrá-los-ia ali, atrás dos painéis de madeira.

Por isso, fazia sentido começar pelo fundo, pensou. Seria mais fácil procurar de baixo para cima se os papéis estivessem presos no interior da parede.

Equipado com um serrote, um pequeno martelo e uma broca que roubara na sala de equipamento, saiu cautelosamente dos aposentos da tripulação.

As duas primeiras cobertas estavam desertas. Obviamente,

os guardas encontravam-se na doca ou nos barcos. Na coberta superior, quase chocou com um homem dos Serviços Secretos posicionado nas escadas que levavam à suite privada que os Britland usavam.

"Que desperdício de efectivos", pensou Lenny, "porque eles

estão em casa." Mas aquele incidente preocupou-o. "Eles estavam em casa, não estavam?", perguntou a si mesmo.

Três lancinantes minutos depois, infiltrou-se no camarote A. Não se atreveu a acender a luz, mas felizmente a noite estava clara e a lua cheia iluminava tudo. O camarote era vinte vezes maior que o cubículo que lhe tinham dado; tinha uma cama dupla com anteparo, uma secretária embutida, cómodas embutidas, um sofá e cadeiras - tudo de forma a garantir que, num mar revolto, o ocupante não seria incomodado.

O armário era fundo. Depois de se encontrar lá dentro, Lenny fechou a porta; só depois é que acendeu a lanterna em segurança. Lá estava ele na parede do fundo, o cofre! De forma redonda para se assemelhar a uma vigia, a porta pintada para parecer um mar tranquilo, a antiquada fechadura de segredo semelhante a uma bússola, ocupou toda a atenção de Lenny.

Passou os dedos pelo cofre, reflectindo que nenhuma pedra preciosa alguma vez fechada ali dentro teria metade do valor do que estava escondido abaixo dele.

Sentou-se no chão e bateu no painel de madeira para medir

a sua espessura. "Grossa", pensou, "muito grossa! Muitas árvores morderam o pó para construir este barco", pensou, e antecipou a longa noite de trabalho. Claro que se

tivesse um grande machado e uma serra eléctrica - e quisesse atrair a atenção de todos os guardas e membros da tripulação que se encontravam a bordo - podia trabalhar mais depressa, mas não era isso que estava nos seus planos. Cuidadosamente, começou a fazer um buraco a poucos centímetros do chão.

Parava para descansar de quinze em quinze minutos. Quase duas horas depois, quando estava a esticar-se, pareceu-lhe ter ouvido um leve clique. Apagou a lanterna e abriu uma frincha da porta do roupeiro. Os olhos esbugalharam-se de alarme.

De pé no quarto sossegado, de costas para ele, com a luz do candeeiro da secretária a iluminar-lhe o corpo elegante coberto por uma camisa de dormir, a congressista Sandra OBrien, estava a tirar a colcha. Enquanto Lenny observava, incrédulo, ela enfiou-se na cama e apagou a luz.

"Como sempre, Henry tem razão", pensou Sunday com um suspiro enquanto tentava acomodar-se depois de ter deixado o marido profundamente adormecido na suite da coberta superior. Demasiado café. O seu cérebro estava a trabalhar a uma velocidade alucinante. Mas não era só o café. Havia algo que Henry lhe dissera acerca daquela noite que passara naquela mesma cabina há trinta e dois anos que lhe martelava no subconsciente. Que era?

"Se aqueles papéis fossem encontrados" pensou ela. "Se Alesso está certo, uma mulher assassinou o marido neste iate e a prova pode ter sido roubada da secretária deste camarote."

Claramente, o sono estava fora de questão. Normalmente, era Henry quem lia durante várias horas depois de ela adormecer, mas esta noite tinha adormecido profundamente no momento em que a sua cabeça pousara na almofada.

Acontecia tão raramente que ela tinha decidido sair em bicos de pés para a sala de estar da suite em vez de ficar deitada a virar-se de um lado para o outro e correr o risco de o perturbar. Mas depois tinha-se lembrado de descer para esta cabina. Afinal de contas, fora ali que ocorrera o roubo.

Henry tinha-lhe dito algo importante acerca do que acontecera neste quarto na noite em que Del Rio desaparecera. Mas o quê? Tinha de ser alguma coisa aparentemente trivial que todos tinham ignorado.

Tinha pensado que, se viesse para a cabina onde acontecera o que acontecera, isso talvez ajudasse a trazer à superfície factos elucidativos. Antes de sair da suite, tinha escrevinhado um bilhete para Henry e deixara-o sobre a almofada. "Ele preocupa-se demasiado comigo", tinha pensado ao deixá-lo lá, resistindo ao impulso de lhe aconchegar a roupa. Possivelmente, acordava-o. E ele podia não querer que ela saísse dali.

Art, o agente dos Serviços Secretos posicionado ao fundo das escadas, tinha ficado surpreendido ao vê-la, mas acenara afirmativamente quando ela lhe dissera onde estaria.

"Espero que não pense que Henry e eu tivemos uma discussão", tinha pensado, divertida, ao perceber que nunca discutiriam. "Só debatemos coisas de vez em quando, nada mais. Discussões intelectuais", pensou. "Mas, seguramente, não são discussões."

Sunday desistiu de dormir, esticou-se e acendeu novamente a luz. Sentando-se, afastou o cabelo do rosto e ajeitou as almofadas atrás de si. Sims tinha dito que o mobiliário do navio não tinha sido mudado. Ela imaginou Henry sentado à secretária, a escrever uma descrição pormenorizada, muito embora, como lhe tinha dito, estivesse tão cansado que mal conseguia manter os olhos abertos.

"Será, que quando uma pessoa está muito cansada, não escreve no espírito ao invés de pensar conscientemente?", considerou Sunday. "Oh, bom", pensou, suspirando, "isto não está a levar-me a lado nenhum. É melhor tentar dormir."

Apagou novamente a luz. Estava tudo tão calmo.

"Henry disse-me que não guarda grandes recordações daquela noite, mas sim impressões. De alguém no quarto e de alguém debruçado sobre ele. Sabemos que o pai veio ver se ele estava bem. Mas poderia ter havido mais alguém?", perguntou a si mesma. "Que mais é que ele me contou que não consigo recordar? Por que é que tenho uma sensação arrepiante acerca de tudo isto?"

O silêncio foi quebrado por um ligeiro ranger quando a

oscilação do navio começou a aumentar. Seguiu-se outro rangido, este menos generalizado, e muito mais próximo. A cabeça de Sunday virou-se instintivamente para a parede do armário.

Tinha ouvido um som, como algo a deslizar pelo chão. E

parecia vir de dentro do roupeiro. Parecia que estava alguém no interior. Tinha a certeza disso. Cautelosamente, deslizou a mão pela mesa-de-cabeceira à procura do botão que chamaria ajuda, mas ao fazê-lo a porta do corredor abriu-se, a luz acendeu-se, e ela viu o olhar preocupado do marido.

"Quem quer que está dentro do roupeiro não estava à minha espera", pensou. "Anda à procura de alguma coisa."

- Sunday! - exclamou Henry. - Que te passou pela cabeça

para....?

- Oh, querido - interrompeu ela, em voz mais alta do que era habitual. -Já estou pronta para ir para cima. Afinal, parece que também não consigo dormir aqui.

- Eu avisei-te quanto ao café - admoestou-a Henry.

- Eu sei, querido, tu tens sempre razão. É por isso que te elegeram para presidente.

Sunday saltou para fora da cama, pegou no roupão e quase atirou Henry para fora da porta, fechando-a atrás deles com um clique determinado.

No corredor, tapou-lhe a boca com a mão quando ele ia começar a perguntar-lhe o que se passava.

- Encurralei o nosso homem - sussurrou ferozmente. - Ele está ali dentro, no roupeiro. Eu tinha acabado de perceber quando tu entraste. Aposto dez para um em como anda à procura dos papéis que desapareceram naquela noite, e deve saber que eles estão algures no armário. Vamos deixá-lo encontrá-los para nós.

Uma hora depois, Lenny ainda estava a serrar um buraco cada vez maior na parede do fundo do roupeiro do camarote A. "Reuthers devia estar a sonhar", pensou, com uma frustração crescente e à beira da histeria. "Aqueles papéis não estão aqui. Não estão aqui! Mamã! Minhas tias! Tia Bianca, tia Concetta, tia Desdemona, tia Eugenia, tia Florina, tia Georgina, tia Helena, tia Iona..."

Lágrimas de frustração começaram a descer pelas faces de Lenny. Os papéis não se encontravam aqui, e ele seria responsabilizado. Teria de engendrar uma forma de salvar a vida de todos, incluindo a sua, mas por agora tinha de voltar para o seu beliche. Era impossível saber se alguém voltaria para a cabina.

Saiu do armário, fechando cuidadosamente a porta atrás de si; dirigiu-se em bicos de pés para a porta exterior e abriu-a com mil cuidados. E depois gelou.

Estava a olhar para os olhos imponentes do agente sénior dos Serviços Secretos Jack Collins.

-Mostra-nos o tesouro enterrado - ordenou Collins enquanto outros agentes prendiam os braços de Lenny.

Por insistência de Collins, Henry e Sunday estavam ao fundo do corredor, separados da acção por quatro agentes corpulentos. Quando ele fez sinal, um deles disse para o ex-presidente:

- Se desejar, sir... - E deu um passo para o lado.

Collins empurrou Lenny para dentro do camarote.

- Obviamente, ele andava à procura de alguma coisa, sir - disse ele, apontando para o fundo destruído do armário. - É um dos marinheiros da coberta. Um lapso deplorável da segurança.

- Não se preocupe com isso agora - interrompeu Henry. - Ele encontrou os papéis desaparecidos?

- Não há papéis com ele, sir.

Lenny sabia que a sua única escapatória era fazer um acordo, e rapidamente.

- Conto-vos o que quiserem - implorou -, mas, se o fizer, podem impedi-los de fazer mal à minha mãe e às minhas tias?

- Podemos tentar - prometeu Henry. - Fala!

- Sr. Presidente, o seu roupão, sir - disse Sims, que tinha assomado à porta.

"O homem não perde a dignidade nem sequer em trajes de dormir", pensou Sunday. Sims tinha chegado com um fraque por cima do pijama, meias de seda pretas e sapatos de fivela pretos

- Só um momento, Sims. - Henry olhou Lenny nos olhos

- Eu disse para falares.

-...E então Reuthers sabe que o senhor vai desmantelar o barco para o remodelar. Sabe que, se encontrasse o envelope e as páginas do seu diário daquela noite, estaria tudo acabado para Angelica del Rio. O povo linchá-la-ia. Ele disse que os papéis estariam por detrás da parede do roupeiro, abaixo do cofre, mas está enganado. Os papéis devem ter-se evaporado. Não estão ali.

Sunday viu o seu próprio desapontamento reflectido no rosto do marido.

- O seu roupão, sir - disse Sims. - Vai apanhar uma constipação enorme. - De repente, estremeceu. - Valha-me Deus! Déjà vu! Isto recorda-me aquela noite terrível há trinta e dois anos. Depois do desaparecimento do primeiro-ministro, eu trouxe-lhe o roupão e levei-o para a suite do seu pai...

- Espere um momento! - exclamou Sunday. - Que acabou de dizer?

- Disse que trouxe o roupão ao Menino Henry... era assim que lhe chamava naquela época... e depois...

- É isso que quero saber - disse Sunday. - Trouxe-lhe o roupão. Por que é que ele não estava no seu camarote?

O sobrolho de Sims franziu-se e depois aclarou.

- É claro. É claro. Foi como as coisas aconteceram. Eu tinha-lhe trazido pessoalmente o leite e as bolachas, sir, e viera verificar se estava tudo em ordem. Notei que havia uma goteira muito irritante no chuveiro do camarote A e decidi alojá-lo no camarote B durante aquela noite.

Sims franziu a testa, pensativo.

- Sim, lembro-me claramente. Trouxe o seu pijama para o camarote B, abri a cama. Transferi o seu leite e as bolachas. E como sabia que podia querer escrever no seu diário, também trouxe o diário e a caneta para a secretária do B.

- É claro! - exclamou Henry - A porta estava aberta, tu estavas aqui e eu estava tão zonzo que nem reparei que estava a entrar no camarote B.

Sunday voltou-se para Jack Collins.

- Jack, leve um machado para o armário da porta ao lado.

Quinze minutos depois, o ex-presidente dos Estados Unidos ergueu os olhos das páginas amarelecidas que acabara de ler.

- Está tudo aqui - disse, emocionado. - Jack, traz-me o telefone especial. Preciso de falar imediatamente com o presidente Ogilvey.

Três minutos depois, Henry estava ao telefone com o seu sucessor no Gabinete Oval, a ler-lhe as últimas palavras de Garcia del Rio:

É com o coração triste que ordeno a prisão da minha esposa, a Senhora Angelica del Rio, e do pai desta, o generalíssimo José Imperate, sob as acusações de traição e roubo qualificado.

Soube que vai haver um atentado contra a minha vida na próxima terça-feira. O informador não tem a certeza se terá lugar quando eu sair do palácio para me dirigir ao nosso Congresso, ou mais tarde, num jantar particular que oferecerei aos líderes partidários. O cozinheiro novo que a minha mulher escolheu pode estar a planear envenenar-nos a todos. Creio que a minha mulher e o pai dela podem ter assegurado a minha falta de protecção com acusações forjadas sobre os homens bons e honestos que me protegem há anos. Substituíram-nos pelos seus próprios bandidos, liderados por um homem que agora sei que é primo afastado de Angelica, um tal Congor Reuthers, que foi educado em Inglaterra.

Numa acusação separada, acuso a minha mulher do crime de roubo qualificado. Ela roubou milhões de dólares de fundações de caridade que dirige, dólares que foram doados com o objectivo de ajudar os pobres do nosso país. Para provar essa acusação, incluo agora uma lista das contas numeradas que ela tem na Suíça.

- É isto, Des - concluiu Henry. - No registo do meu diário consta que, quando o meu pai se levantou para falar, ao jantar, Garcia del Rio trocou sub-repticiamente o prato pelo da mulher. O meu palpite é que, embora não estivesse à espera de ser envenenado naquela noite, estava sempre alerta. Depois, fiz uma observação acerca do crème brúlée que o cozinheiro pessoal dela, que ela insistira que a acompanhasse, tinha preparado... que me sabia vagamente a remédio. Penso que fomos todos drogados com um remédio para eles terem a certeza de que ninguém viria ajudar Del Rio. Eu reparei que ela não tocou na sobremesa. Mas que, por insistência, ele provou a dela.

Henry fez uma pausa e suspirou.

- Obviamente, ele ficou abalado, embora tivesse comido muito pouco. E agora, meu amigo, a bola está do teu lado.

Entregou o telefone a Jack Colins e virou-se para Sunday.

- Está terminado, querida.

-É realmente maravilhoso, não é? - perguntou Sunday emocionada quando, uma semana depois, ela e Henry viram o recém-eleito primeiro-ministro, Miguel Alesso, acenar para as multidões que o aplaudiam em Costa Barria.

- Vai dar um óptimo líder - concordou Henry. - E concretizará o sonho que Garcia del Rio tinha para o seu país... direitos humanos, um governo democrático, uma economia forte, oportunidades educacionais.

Encontravam-se na biblioteca em Drumdoe, a ver a reportagem especial das eleições após o noticiário das onze horas.

Sunday pegou na mão de Henry.

- Agora estás convencido de que não terias conseguido mudar o que aconteceu, mesmo que tivesses ido passear com Del Rio na coberta naquela noite?

- Sim, estou convencido - aquiesceu Henry. - Mas estou muito grato por, naquele último momento, um impulso o ter levado a enfiar aquele envelope no meu bolso. Se não fosse isso, nunca teríamos sabido.

- E pelo menos Angelica e o primo pagarão pelos seus crimes -

disse Sunday. - Não me parece que aquela senhora vá gostar de prisão perpétua.

- Tenho a certeza de que não gostará. - Henry sorriu. - Vamos dar mais um passeio no Columbia antes de terem início as remodelações?

- Gostava muito - concordou Sunday.

- Mas desta vez tenta ficar no camarote comigo. Não gosto de andar à tua procura a meio da noite.

- Eu fico quieta. Nunca se sabe quem se poderá encontrar num roupeiro daquele iate, não é verdade?- perguntou Sunday, com um sorriso.

Feliz Natal / "Joyeux Noêl"

 

- Amontoem mais lenha! o vento está gelado; Mas deixemo-lo assobiar à vontade, Pois o nosso Natal não deixará de ser de felicidade.

A congressista Sandra O'Brien ergueu os olhos para ver o marido declamador de poesia, o ex-presidente dos Estados Unidos, que se encontrava de pé à porta do seu aconchegante escritório em Drumdoe, a casa de campo que possuíam em Bernardsville, Nova Jérsia.

Ela sorriu afectuosamente. Mesmo com uma camisola de gola alta, calças de ganga e botas velhas pelo tornozelo, Henry Parker Britland IV não deixava de parecer uma pessoa distinta. Os toques de cinzento no cabelo castanho-escuro e as rugas de expressão na testa eram praticamente os únicos sinais de que Henry se aproximava do quadragésimo quinto aniversário.

- Com que então estás a citar Tennyson - disse ela enquanto se desenrolava do sofá onde estivera a ler o aparentemente interminável material sobre legislação pendente. - Parece-me que o "Melhor em Todos os Aspectos" está a planear alguma coisa.

- Não é Tennyson, amor. Sir Walter Scott, e podes ter a certeza de que te penduro pelos polegares se voltares a chamar-me "Melhor em Todos os Aspectos".

Mas a revista People acaba de te eleger pela quinta vez seguida. É um verdadeiro recorde. Muito em breve vão ter de criar um troféu de "Melhor Eterno" e retirar-te da lista de candidatos.

Ao ver o olhar trocista ameaçador no rosto de Henry, Sunday disse apressadamente:

- Está bem, está bem. Era só a brincar.

- O seu serrote, Sr. Presidente. - Sims, o mordomo, apareceu à porta com um serrote reluzentemente novo nas palmas das mãos. Entregou-o a Henry com a mesma reverência com que lhe teria mostrado as jóias da Coroa.

- Em nome de Deus, para que é tudo isto? - exclamou Sunday.

- Que te parece, querida? - inquiriu Henry enquanto o observava cuidadosamente. - Bom trabalho, Sims. Acho que este vai dar bem conta do trabalho.

- Estás a pensar cortar-me ao meio? - perguntou Sunday.

- Orson Welles e Rita Hayworth tiveram muito êxito a representar essa cena. Não, meu doce amor, tu e eu vamos interrar-nos nos bosques. Esta manhã, quando andava a montar a cavalo, vi um pinheiro magnífico que será perfeito para a nossa árvore de Natal. Está no extremo norte da propriedade, a seguir ao lago.

- E vais cortá-lo tu? - protestou Sunday. - Henry, estás a levar este assunto do Natal "em todos os aspectos" demasiado a sério...

Henry levantou a mão livre.

- Nada de discussões. Ouvi-te dizer há várias semanas que uma das tuas recordações mais felizes é de sair com o teu pai para comprar a árvore de Natal e depois ajudá-lo a trazê-la para casa e enfeitála. Este ano, tu e eu vamos começar a nossa tradição.

Sunday prendeu uma madeixa de cabelo louro atrás da orelha.

- Estás a falar a sério, não estás?

- Absolutamente. Vamos atravessar a neve para os nossos bosques. Vou cortar a árvore, e vamos arrastá-la juntos para cá.

Henry irradiou satisfação ao descrever o seu plano.

- Amanhã é Véspera de Natal. Se trouxermos a árvore e a montarmos hoje, podemos começar a enfeitá-la esta noite e acabamos amanhã. Sims traz as caixas da arrecadação, e podes escolher os ornamentos que te apetecer.

- Temos muitas coisas, minha senhora - disse Sims. - No ano passado os decoradores de Lanning vieram como sempre e fizeram o efeito azul e prateado. Muito bonito. No ano anterior, tínhamos tido um Natal branco. Ah, sim, foi muito admirado.

- Lanning deve estar a ter um ataque cardíaco por não teres usado os serviços dele este ano - observou Sunday. Colocou os dossiers e o bloco de apontamentos de lado e levantou-se. Dirigiu-se para Henry e rodeou-lhe a cintura com os braços. - Consigo ver através de ti. Estás a fazer isto por mim.

Escondeu o rosto com as mãos.

- Tu tiveste algumas semanas muito más. Acho que vamos organizar exactamente o Natal de que precisas. Todos os criados, com excepção de Sims, estão de folga, os agentes dos Serviços Secretos estão em casa com as famílias. Seremos apenas nós os dois e Sims.

Sunday engoliu em seco e formou-se-lhe um nó na garganta. A mãe tinha feito um bypass triplo de emergência há três semanas. Estava agora a convalescer na propriedade dos Britland nas Baamas como pai

de Sunday junto dela. Mas durante algum tempo tinha estado em perigo de vida, e o medo de perder a mãe tinha abalado Sunday profundamente.

- Se a senhora não se importar que eu fique... - disse Sims, com um tom de interrogação, a voz dignificada, o comportamento sempre imponente.

- Esta casa é a sua há mais de trinta anos, Sims - disse Sunday. - É claro que queremos que fique.

Apontou para o serrote.

- Eu pensava que os lenhadores usavam machados.

- Quem leva o machado és tu - disse Henry. - Lá fora está frio. Põe o gorro de esqui.

Atrás do tronco grosso de um carvalho centenário, Jacques moveu cautelosamente a cabeça para observar o homem alto que estava a cortar a árvore. A senhora estava a rir e parecia tentar ajudar enquanto o outro homem, que era um pouco parecido com o grand-père, estava ali parado a olhar.

Jacques não queria que o vissem. Podiam entregá-lo a Lily, e Lily assustava-o. Na verdade, assustava-o desde a primeira vez que viera tomar conta dele enquanto a mamã e Richard estivessem em viagem.

A mamã e Richard tinham casado na semana anterior. Jacques tinha gostado muito do novo papá, até Lily lhe ter dito que a mamã e Richard tinham telefonado para dizer que já não o queriam e lhe tinham dito para o levar para longe. Depois, tinham ido para o carro de Lily e tinham andado durante muito tempo. Jacques lembrava-se de que vinha a dormir quando um estrondo o acordara, e o carro rodopiou e depois saiu da estrada. A porta ao lado dele abriu-se e ele fugiu.

Por que é que a mamã não o dera ao grand-père, se já não o queria? O grand-père voltara para Paris ao princípio da manhã. Quando saíra, o grand-père dissera a Jacques que estava muito feliz por ele ir viver neste sítio lindo chamado Darien, na casa nova de Richard. O grand-père prometeu que ele poderia passar um mês na sua casa de campo em Aix-la-Provence no Verão seguinte, e entretanto mandaria a Jacques muitas mensagens através do computador.

Embora fosse fazer 6 anos dentro de pouco tempo e a mamã estivesse sempre a chamar-lhe "o seu homenzinho", era complicado de mais para Jacques compreender. Tudo o que sabia era que a mamã e Richard não o queriam e que ele não queria estar com Lily. Se ao menos pudesse falar com o grand-père, talvez o grand-père viesse buscá-lo. Mas e se o grand-père dissesse que ele tinha de ficar com Lily? "É melhor não falar com ninguém", pensou Jacques.

à frente dele, a grande árvore caiu com um estrondo. O homem alto e a senhora e o homem que parecia o grand-père começaram a aplaudir, e depois pegaram todos nela e começaram a arrastá-la.

Jacques seguiu-os em silêncio.

- Um pinheiro muito interessante, sir - comentou Sims -, Mas talvez pudesse ficar apenas um bocadinho mais centrado.

- Não está completamente direito - observou Sunday. - de facto, é um pouco torto. É por isso que parece não estar centrado.

Ela estava sentada de pernas cruzadas no chão da biblioteca, a inspeccionar as caixas onde os ornamentos de Natal se encontravam muito bem acondicionados.

- Porém - acrescentou -, tendo em conta a energia que vocês dois dispenderam a colocar a árvore no vaso, eu sugeria que a deixássemos ficar como está. Vai ficar bem.

- É isso mesmo que pretendo - disse Henry. - Que conjugação de cores vais usar?

- Nenhuma - disse-lhe Sunday. - Tudo misturado. Uma verdadeira obra caseira. Lâmpadas multicoloridas. Fitas prateadas. Quem dera que tivesses alguns ornamentos gastos, de quando eras miúdo.

- Melhor do que isso, tenho os teus ornamentos gastos - disse-lhe Henry. - Antes de os teus pais terem partido para Nassau, o teu pai deu-no-los.

-Vou buscar a caixa onde estão guardados, sir- ofereceu-se Sims -, e talvez o senhor e a senhora queiram uma taça de champanhe enquanto decoram a vossa árvore.

- Por mim, acho bem - disse Henry enquanto esfregava as palmas das mãos calejadas uma na outra. - Estás pronta para umas bolhinhas, não estás, querida?

Sunday não respondeu. Estava a olhar para um ponto para além do pinheiro.

- Henry- disse ela pausadamente-, por favor, não penses que estou doida, mas por um segundo pareceu-me ver um rosto de criança colado à janela.

 

Richard Dalton olhou de relance para aquela que era sua

esposa há sete dias enquanto saíam da Avenida Merritt, no Connecticut, e viravam para a estrada que levava a Darien. Em francês fluente, disse:

- Devo-te uma lua-de-mel verdadeira, querida.

Giselle DuBois Dalton aninhou a mão por debaixo do braço do marido e respondeu um inglês com um forte sotaque:

- Lembra-te, Richard, de hoje em diante só deves falar comigo em inglês. E não te preocupes. Teremos uma lua-de-mel verdadeira mais tarde. Sabes que não quero deixar Jacques sozinho com uma baby-sitter estranha durante mais do que algumas horas. Ele é tão tímido.

-Ela fala francês fluentemente, querida, e isso foi importante. A agência deu as melhores referências dela.

- Mesmo assim. - A voz de Giselle parecia perturbada. Foi tudo tão apressado, não foi?

"Foi apressado", pensou Dalton. Ele e Giselle tinham planeado casar em Maio. Mas a data tinha sido antecipada quando lhe tinha sido oferecida a presidência da All-Flav, a empresa multinacional de refrigerantes. Antes disso, tinha sido director da CoIl-ette, a empresa francesa que era a principal concorrente da All-Flav. Tinham concordado que ninguém com apenas 34 anos recusaria um cargo daqueles, especialmente quando vinha acompanhado por um bónus de aceitação substancial. Giselle e ele tinham casado na semana anterior e, alguns dias depois, tinham vindo para a casa que a empresa arrendara para eles em Darien.

Na sexta-feira à noite, a governanta, Lily, que lhes tinham dito que só poderia começar a trabalhar para eles depois do Natal, aparecera inesperadamente. Por isso, no sábado de manhã, o pai de Giselle, Louis, convencera-os a irem passar um curto fim-de-semana de lua-de-mel a Nova Iorque.

- Eu fico aqui com Jacques até segunda-feira ao meio-dia. E depois Lily poderá certamente tomar conta dele durante algumas horas até ao vosso regresso, na segunda-feira à tarde, depois do almoço da empresa - dissera.

Mas o almoço de Natal da empresa demorara mais do que o previsto, e agora, à medida que se aproximavam da casa de Darien, Richard sentiu que a tensão de Giselle aumentava.

Compreendeu a preocupação dela. Ficara viúva aos 34 anos, com um filho pequeno, e começara a trabalhar no departamento de publicidade da Coll-ette; fora ali que se tinham conhecido, há um ano.

Também tinham pensado viver indefinidamente em Paris. Mas depois, passadas apenas algumas semanas, ela tivera de mudar os planos do casamento e de ir viver para outro país. Todavia, Richard sabia que a maior preocupação de Giselle era que a mudança - um pai novo, uma casa nova - fosse demasiado abrupta para Jacques. Para além disso, ele mal tinha começado a aprender inglês.

- Lar, doce novo lar - disse Richard alegremente quando conduziu o carro pelo longo caminho de acesso à casa.

Antes mesmo de ele travar, Giselle já estava a abrir a porta do lado do passageiro.

- A casa está tão escura - disse ela. - Por que é que Lily não acendeu as luzes?

O comentário que Richard ia fazer de que Lily era obviamente uma poupada senhora francesa morreu-lhe nos lábios. A casa tinha um aspecto deserto que até ele considerou agoirento. Embora estivesse quase escuro, não havia uma única luz a brilhar em qualquer janela.

Apanhou Giselle junto à porta da entrada. Ela estava a revolver a bolsa à procura da chave.

- Eu tenho-a, querida - disse-lhe ele.

A porta abriu-se para revelar um átrio escurecido.

- Jacques - chamou Giselle. - Jacques.

Richard premiu o interruptor. Quando a zona ficou clara, viu um pedaço de papel pousado sobre a mesa do átrio. Dizia N-appelez pas Ia police. Attendez nos instructions avant de rien faire."

Não chamem a Polícia. Aguardem instruções.

 

- Como se sente, Menina LaMonte?

Ela abriu os olhos lentamente e viu um solícito polícia de trânsito a olhar para ela. "Que tinha acontecido?", perguntou a si mesma. Depois, foi inundada por recordações vívidas. Um pneu tinha rebentado, e ela perdera o controlo do carro. Este saíra da estrada e descera a ribanceira. Ela tinha batido com a cabeça no volante.

O rapaz. Ele tinha-lhes contado o que ela lhe fizera? Que diria? Iria para a prisão.

. Sentiu uma mão no ombro. Apercebeu-se de que o médico estava do outro lado da cama.

- Calma - disse ele, tranquilizador. - Está na sala de urgências do Hospital Central de Morristown. Deu uma grande pancada com a cabeça, mas não tem mais nada. Tentámos notificar a sua família, mas ainda não obtivemos resposta.

Notificar a família dela? Claro. Ela ainda tinha a carteira com cartões que Peter tinha roubado, juntamente com a carta de condução, registo, seguro de saúde e cartões de crédito.

Apesar de uma dor lancinante na cabeça, a habilidade de Betty Rouche para mentir voltou com a velocidade de um relâmpago.

-Na verdade, ainda bem. Vou ter com a minha família para passar o Natal, e não gostaria de os assustar com um telefonema.

Onde é que diria que ia ter com eles? Onde estava o rapaz?

- Estava sozinha no carro?

Uma vaga impressão da porta do passageiro a abrir filtrou-se pela sua memória turva. "A criança deve ter fugido."

- Sim - sussurrou.

- O seu carro foi rebocado para a bomba de gasolina mais próxima, mas, infelizmente, precisa de grandes reparações - disse-lhe o polícia de trânsito. - É capaz de ser melhor não contar com ele.

Betty tinha de sair dali. Olhou para o médico.

- Depois peço ao meu irmão para vir cá e tratar do carro. Posso sair agora?

- Sim, acho que sim. Mas tenha cuidado consigo. E vá ao seu médico na próxima semana.

Com um sorriso tranquilizador, o médico saiu do cubículo.

- Tenho de assinar o relatório do acidente - disse-lhe o polícia. - Vem alguém buscá-la?

- Sim. Obrigada. Vou telefonar ao meu irmão.

- Bem, boa sorte. Podia ter sido muito pior. Uma pancada sem airbag... - o polícia não terminou o raciocínio.

 Dez minutos depois, Betty estava num táxi a caminho de uma agência de aluguer de automóveis. Vinte minutos depois disso, ia a caminho de Nova Iorque. O plano era levar o rapazinho para a casa do primo Pete em Somerville, mas nem pensar que poria já os pés agora.

Esperou até estar em segurança, fora da cidade, antes de parar numa bomba de gasolina para telefonar. Agora, que estava mais segura, tinha de descarregar a fúria que sentia no primo, que a convencera a entrar naquele esquema maluco.

- É canja - dissera-lhe ele -, o tipo de oportunidade que aparece uma vez numa vida inteira. - Pete trabalhava para a agência de empregos A Melhor Escolha, em Darien. Dizia-se

formador, mas Betty sabia que as funções dele iam desde fazer recados até cortar os relvados das propriedades que a agência

tinha para arrendar.

Tal como ela, ele tinha 32 anos; tinham crescido em casas contíguas e, ao longo dos anos, tinham-se metido em muitos sarilhos juntos. Ainda se riam quando recordavam como tinham

vandalizado o liceu, uma aventura pela qual tinham sido culpabilizados outros miúdos.

Mas ela devia ter percebido que Pete não estava bom da cabeça quando lhe propusera este esquema maluco.

- Escuta - tinha-lhe dito ele - na agência ouvi tudo sobre

eles, este casal com o miúdo. Este tipo, Richard Dalton, acabou de depositar um cheque de seis milhões de dólares; o bónus por aceitar o cargo, disseram. Eu até já trabalhei na casa onde eles vão viver. Outro executivo esteve lá há seis meses. E conheço Lily LaMonte. Já trabalhou para outras pessoas, por intermédio da agência, e é a única que têm adequada para este trabalho* Eles precisam de uma ama que fale francês fluentemente. Bem, por acaso eu sei que ela vai passar o Natal ao Novo México. Por isso, ocupas o lugar dela. És parecida com ela e tens a mesma idade, e falas bem francês. Quando o casal sair, levas o miúdo para a minha casa em Somerville. Eu trato da recolha do resgate

- tudo isso. Vai ser uma troca. Recebemos um milhão de dólares

- dividimo-los entre nós.

- E se eles chamarem a Polícia?

- Não vão chamar, mas, se o fizerem, qual é o problema?

Ninguém te conhece. Porquê suspeitar de mim? Não vamos fazer mal ao miúdo. Para além disso, estarei numa posição que me permite observar o que está a acontecer. Parte do meu trabalho é manter os acessos da propriedade limpos e desimpedidos. Vamos ter mais neve. Por isso, saberei se há sinais de chuis por lá. Vou telefonar a Dalton e dizer-lhe para deixar o dinheiro na caixa do correio deles amanhã à noite, e o miúdo estará em casa para o Natal. Se chamarem os chuis, nunca mais terão notícias nossas.

- E se eles chamarem os chuis, que fazemos com a criança?

- A mesma coisa que se recebermos o dinheiro. Aconteça o que acontecer, deixamos o miúdo numa igreja em Nova Iorque. As orações deles serão ouvidas.

Betty achou que seria como quando tinham vandalizado o liceu e se tinham safado. Pete não seria capaz de magoar o miúdo, e ela também não. Da mesma forma que nunca lhes teria passado pela cabeça pegar fogo ao liceu. Não teriam feito isso.

Quando ele atendeu o telefone, a voz de Pete estava alterada.

- Pensei que estarias em Somerville há horas.

- É o que teria acontecido se tivesses verificado se a porcaria do teu carro tinha pneus decentes - disse Betty rispidamente.

- Que queres dizer com isso?

Sentiu a voz erguer-se enquanto lhe ia contando o que tinha acontecido.

Ele interrompeu-a.

- Cala-te e ouve-me. O negócio acabou. Esquece o dinheiro. Não contactamos mais com eles. Onde está o miúdo?

- Não sei. Acordei num hospital. Aparentemente, o rapaz tinha fugido antes de os chuis me encontrarem.

- Se ele começar a falar, vão relacioná-lo contigo. Eles sabem que ias alugar outro carro?

- O motorista do táxi sabe.

- Está bem. Abandona o carro e desaparece. E não te esqueças de te manter escondida. Lembra-te de que não há nada que nos ligue ao miúdo desaparecido.

- Claro que não -exclamou Betty amargamente e desligou bruscamente o telefone.

- Sir, ainda não houve nenhuma notificação de um miúdo perdido - disse o polícia a Henry. - Mas eu levo o rapaz para a esquadra; um representante dos Serviços de Apoio a Menores irá lá buscá-lo senão aparecer ninguém nas horas mais próximas. No entanto, o mais certo é que algumas pessoas extremamente preocupadas andem à procura dele neste exacto momento.

Estavam reunidos na biblioteca em Drumdoe. O aposento era dominado pela árvore de Natal enorme, ligeiramente inclinada e ainda por adornar, que permanecia precisamente onde estava quando Sunday avistara o rosto de Jacques na janela. Ao aperceber-se de que fora detectado, o rapazinho tinha tentado fugir, mas Henry saíra a tempo de o apanhar. Quando as perguntas suaves que lhe fizeram não tiveram qualquer resultado anão ser silêncio, Henry tinha telefonado para a Polícia enquanto Sunday desapertava e tirava o blusão da criança. Suavemente tinha-lhe esfregado os pequenos dedos gelados até estes aquecerem, sem parar de falar, na esperança de conquistar a confiança dele, angustiada por ver o terror estampado naqueles olhos azul-esverdeados.

Agora o polícia agachou-se diante da criança.

- Cerca de cinco ou seis anos, não acha, sir? É a idade do miúdo da minha irmã, e ele é mais ou menos deste tamanho. - Sorriu para Jacques. - Eu sou polícia e vou ajudar-te a encontrara tua mãe e o teu pai. Aposto que neste momento eles andam à tua procura por todo o lado. Vamos dar um passeio no meu carro até ao sítio onde eles podem ir buscar-te. Está bem?

Pousou a mão no ombro de Jacques, e começou a puxar o rapaz para si. Com o rosto contorcido pelo medo, Jacques recuou e virou-se para Sunday, agarrando-lhe a saia com as duas mãos como se estivesse a implorar que o protegesse.

-Ele está terrivelmente assustado - disse Sunday. Ajoelhou ao lado do rapaz que tremia e abraçou-o. - Sr. Guarda, não pode deixá-lo aqui? Tenho a certeza de que vai receber um telefonema por causa dele dentro de pouco tempo. Enquanto esperamos, ele pode ajudar-nos a decorar a árvore. Não podes, amiguinho?

Sunday sentiu o rapazinho encolher-se contra si.

- Não podes? - perguntou suavemente. Como ele continuava a não responder, ela disse: - Creio que talvez ele não oiça.

- Nem fale - concordou Henry. - Sr. Guarda, creio que a minha mulher tem razão. Sabe que ele está quente e em segurança aqui. Nós damos-lhe jantar; certamente, nessa altura já saberão quem ele é e a quem pertence.

- Infelizmente, não posso fazer isso, sir. Terei de o levar para a esquadra. Precisamos de lhe tirar uma fotografia e de fazer uma descrição física exacta para o alerta de teletipo que vamos difundir. Depois, ele será entregue ao Serviço de Apoio a Menores, e só eles é que podem decidir se ele pode ficar com os senhores até o reclamarem.

A mamã tinha-lhe ensinado há muito tempo que, se se perdesse, devia dirigir-se a um gendarme e dizer-lhe o nome e a morada e o número de telefone. Jacques tinha a certeza de que este homem era um gendarme, mas não podia dizer-lhe o seu nome, morada ou número de telefone. A mamã e Richard tinham-no dado a Lily, e ele não queria que ela viesse buscá-lo, nunca.

Esta senhora fazia-lhe lembrar a mamã. O cabelo dela era da mesma cor e a forma como lhe sorria era igual à forma como a mamã sorria. Ela era gentil. Não como Lily, que não sorria e o obrigara a vestir aquelas roupas desconfortáveis e apertadas que tinha agora. Jacques estava com fome e cansado. E com muito medo. Queria estar em Paris, em segurança com a mamã e o grand-père.

Daí a pouco, seria la Fête de Noêl. No ano passado, Richard tinha ido a casa deles e levara-lhe comboios. Jacques, lembrava-se de que, juntos, tinham ligado os carris e montado a estação e as pontes e as casinhas ao longo dos carris. Mas Richard tinha-lhe mentido.

Jacques sentiu que lhe pegavam ao colo. Iam levá-lo para longe dali, para junto de Lily. Aterrorizado, enterrou o rosto nas mãos.

Duas horas depois, quando Lily não tinha aparecido e o gendarme o trouxe devolta para a casa grande, Jacques percebeu que a sensação de medo começava a desaparecer. Sabia que Lily não estava nesta casa. Aqui estaria em segurança. Lágrimas de alivio escorreram-lhe pelo rosto. A porta abriu-se e o homem que era parecido com o grand-père deixou-os entrar e levou-os para a sala que tinha a árvore de Natal. O homem alto e a senhora estavam lá.

A criança foi examinada - disse o polícia para Henry e Sunday. - O médico diz que ele está de boa saúde e parece ter sido bem tratado. Ainda não falou e recusou-se a comer fosse o que fosse, mas o médico diz que é cedo de mais para dizer se é um problema físico ou se ele está apenas assustado. Temos a fotografia dele e a descrição no teletipo. O meu palpite é que vão reclamá-lo dentro de pouco tempo, mas entretanto os Serviços de Apoio a Menores concordaram que ele ficasse com os senhores.

Jacques não sabia o que o gendarme tinha dito, mas a senhora que parecia a mamã ajoelhou-se e abraçou-o. Percebeu que ela era boa; sentia-se seguro com ela, um pouco como se sentira quando a mamã o amava. O nó gigante que tinha na garganta começou a desfazer-se.

Sunday sentiu-o tremer contra si.

- Não faz mal chorar - murmurou ela enquanto lhe acariciava o sedoso cabelo castanho.

Richard Dalton observou, impotente, a mulher sentada a olhar para o telefone. Giselle estava claramente em estado de choque. As suas pupilas estavam enormes, o rosto inexpressivo. à medida que as horas passavam e não tinham notícias dos raptores de Jacques, todos os seus instintos lhe diziam que deviam chamar a Polícia. Mas, quando fez a sugestão, Giselle ficou quase histérica.

-Non, non, non, não podes, não vais fazê-lo. Eles vão matá-lo. Temos de aguardar as instruções.

Ele devia ter percebido que alguma coisa estava errada quando aquela mulher aparecera inesperadamente, disse para si mesmo, amargamente. A agência informara-os de que ela ia passar o Natal fora e que só poderia começar a trabalhar no dia vinte e sete. "É óbvio que devíamos ter verificado", pensou. "Teria sido muito simples telefonar para a agência e confirmar." Mas como é que a mulher que tinha dito que era Lily LaMonte soubera chegar àquela casa? Obviamente, tinha sido tudo planeado; ela iria raptar Jacques na primeira oportunidade. Fora o pai de Giselle que os convencera a aceitar a mulher que dizia ser Lily LaMonte e que os convencera a ir passar o fim-de-semana em Nova Iorque. E também era irónico, porque ele ficaria devastado se acontecesse alguma coisa a Jacques. "Não, a culpa não é dele", pensou Richard. "Provavelmente, nós também teríamos confiado Jacques àquela mulher hoje, quando fomos ao almoço da empresa. " Abanou a cabeça. "Talvez, talvez não", pensou. "Agora é tarde de mais para pensar nessas coisas."

No entanto, tinha de fazer alguma coisa. A inactividade estava a dar consigo em doido. Tinha de acreditar que tudo isto era por causa de dinheiro e que amanhã teriam Jacques de novo com eles.

Amanhã.

Véspera de Natal!

Suspirou. Talvez não fosse tão rápido. O seu avultado bónus tinha sido muito publicitado. Era lógico que o raptor presumisse que ele poderia dar-lhe seis milhões de dólares. Mas seguramente ninguém esperaria que ele conseguisse todo aquele dinheiro a curto prazo. O máximo que poderia retirar numa máquina eram algumas centenas de dólares.

O raptor ou raptores tinham de estar a planear ficar com Jacques durante a noite. Se telefonassem de manhã, ele poderia ir buscar dinheiro ao Banco. Mas quanto? Quanto é que eles pediriam? Se pedissem milhões, precisaria de alguns dias para reunir essa quantia. Nenhum banco tinha tanto dinheiro para ser levantado imediatamente. E grandes levantamentos implicavam perguntas.

Giselle estava agora a chorar, lágrimas que lhe corriam silenciosamente pelas faces. Os lábios estavam a formar o nome do filho. Jacques. Jacques.

"A culpa é minha", pensou Jacques. "Giselle e Jacques vieram comigo de boa vontade, e veja-se o que eu lhes fiz." Não conseguia suportar a inactividade durante mais tempo. Tinha prometido a Jacques que montariam a pista de comboios antes do Natal. Olhou para a sala. As caixas encontravam-se num canto da sala de estar familiar onde estavam naquele momento.

Richard levantou-se, aproximou-se das caixas e sentou-se no chão. Os seus dedos fortes arrancaram o selo da primeira caixa e ele tirou as peças da pista. No ano anterior, na Véspera de Natal, quando Jacques abrira os pacotes embrulhados em papel brilhante em casa do grand-père, Richard tinha explicado que o Pai Natal tinha deixado este presente mais cedo para que ele pudesse ajudar Jacques a montá-lo. Quando os carris e os comboios e as pontes e as casas ficaram completamente montados ele tinha mostrado um interruptor a Jacques.

- É isto que faz tudo mover-se - explicara. - Experimenta.

Jacques tinha ligado o interruptor. As luzes das casinhas brilharam, os apitos soaram, as passagens de nível desceram, e, enquanto ele abria cautelosamente a boca, a antiga locomotiva Lionel com seis carruagens acopladas começou a mover-se e depois avançou rapidamente.

O olhar de assombro no rosto de Jacques tinha sido indescritível.

"Vá lá, Jacques", rezou Richard, "eu vou montar novamente esta pista de comboios, e tu tens de voltar para brincar comigo."

O telefone tocou. Ele deu um salto e tirou-o das mãos de Giselle antes de ela ter hipótese de falar.

- Richard Dalton - disse friamente.

Uma voz, baixa e áspera, obviamente para não ser reconhecida, perguntou:

- Quanto dinheiro tem em casa?

Richard pensou rapidamente.

- Cerca de dois mil dólares - disse.

Pete Schuler tinha mudado de ideias. Talvez, afinal de contas, conseguisse sacar alguns dólares.

- Telefonaram para a Polícia?

- Não, juro que não telefonámos.

- Está bem. Deixe o dinheiro na caixa de correio agora. Depois, feche todas as persianas. Não quero que olhem para a rua, compreendido?

- Sim, sim. Faremos tudo o que disser. Jacques está bem? Quero falar com ele.

- Vai falar com ele muito em breve. Ponha o dinheiro onde eu lhe disse e amanhã à noite o miúdo vai estar a enfeitar a árvore com vocês.

- Cuide dele. Tem de cuidar dele.

- Cuidaremos. Mas não se esqueça de que, se houver algum sinal de Polícia, ele vai para a América do Sul para adopção. Percebeu?

"Eles não ameaçaram matá-lo", pensou Richard. "Pelo menos, não ameaçaram matá-lo." Depois, ouviu um clique. Pousou o telefone e abraçou Giselle.

- Vai ser-nos devolvido amanhã - disse.

A janela do quarto central do primeiro andar dava directamente para a caixa do correio no passeio. Foi nesta janela que Richard estabeleceu o seu ponto de observação, espreitando através de uma fenda nos cortinados. O telefone, que tinha um fio muito comprido, estava posicionado a seu lado. Sabia que Giselle podia não compreender as instruções que a pessoa de voz camuflada desse. Estava nitidamente à beira de um colapso, mas ele tinha conseguido deitá-la na cama perto da janela e tapara-a com um xaile de lã. O último preparativo fora ajustar a câmara para poder funcionar com condições mínimas de luz.

Enquanto pegava no relógio, Richard apercebeu-se, desesperado, de que não conseguiria saber muito sobre a pessoa que fosse buscar o dinheiro. A rua não estava iluminada, e o céu coberto de nuvens pesadas, ameaçadoras. Já teria muita sorte se conseguisse determinar a marca do carro que a pessoa guiava. "Devia telefonar para a Polícia", pensou ele. "Provavelmente, é a única hipótese que teríamos de seguir a pessoa que vem buscar o dinheiro."

Ele suspirou. Mas se ele notificasse a Polícia e depois algo corresse mal, nunca conseguiria perdoar-se, e sabia que Giselle nunca lhe perdoaria.

A sua mente recuou até à época em que tinha nove anos e às lições de piano que a mãe o obrigara a ter. Uma das poucas canções que conseguira aprender sem erros era Durante a Noite. Recordou que, por vezes, a mãe se sentava junto dele no banco do piano e cantava a letra enquanto ele tocava:

Dorme, meu filho, dorme em paz

Durante toda a noite.

Deus mandará Anjos da Guarda

Durante toda a noite.

"Que os anjos da guarda protejam o nosso menino", rezou Richard em silêncio enquanto ouvia o soluçar baixo de Giselle.

Um fragmento final da canção veio-lhe à ideia: "E eu manterei a minha vigília de amor, durante toda a noite."

O jantar foi simples: salada, pão francês, massa com manjericão e molho de tomate. A criança sentou-se com Henry e Sunday à mesa na pequena sala de jantar. Ele pegou no guardanapo que estava ao lado do prato e colocou-o no colo, mas não olhou para Sims quando ele lhe ofereceu pão e não tocou na comida.

- Ele tem de ter fome - disse Henry. - São quase sete e meia. - Comeu um pouco de massa e sorriu para Jacques. Humm... delicioso.

Jacques olhou para ele, muito sério, e depois desviou o olhar.

-Talvez uma sanduíche de manteiga de amendoim e geleia? - sugeriu Sims. - Como o senhor gostava quando era rapaz, sir.

- Vamos ignorá-lo durante alguns minutos para ver o que acontece - disse Sunday. - Penso que ele está horrivelmente assustado, mas concordo, ele tem de ter fome. Se não começar a comer dentro de alguns minutos, vamos mudar a ementa. Sims, se experimentarmos a sanduíche de manteiga de amendoim e geleia, substitua a Coca-Cola por leite.

Enrolou a massa no garfo.

- Henry, não achas muito estranho a Polícia não ter tido notícias de alguém que ande à procura de uma criança perdida? Quero dizer, se ele fosse de uma casa das redondezas, qualquer pai normal teria telefonado imediatamente para a esquadra, para relatar o desaparecimento dele. A minha dúvida é a seguinte: como chegou ele aqui? Achas que ele poderá ter sido deixado deliberadamente à nossa porta?

- Não posso acreditar nisso - disse Henry. - Qualquer pessoa que planeasse deliberadamente deixar a criança aqui teria de ser médium para saber que demos folga ao pessoal dos Serviços Secretos durante alguns dias. Se assim não fosse, teriam sido vistos e interrogados nos portões. Acho que é mais provável que, por um motivo incrível, ainda ninguém tenha notado que ele desapareceu.

Sunday olhou de relance para Jacques e depois novamente para Henry.

- Não olhes agora - disse ela rapidamente -, mas um certo rapazinho está a começar a comer.

Sunday e Henry conversaram durante toda a refeição, ignorando ostensivamente Jacques, que comeu toda a massa e salada que tinha no prato e bebeu a Coca-Cola.

Sunday reparou que ele estava a olhar para o pão, que se encontrava longe do seu alcance. Casualmente, empurrou

o cesto para junto dele.

- Outra observação - disse ela. - Ele queria o pão mas não podia pedir, e não conseguia alcançá-lo. Não sei se reparaste ou não, Henry, mas esta criança tem muito boas maneiras à mesa

Depois do jantar, voltaram para a biblioteca para acabar de enfeitar a árvore. Sunday apontou a última caixa cheia de ornamentos a Jacques e ele começou a dar-lhos. Ela reparou no cuidado com que ele os retirava, um a um, dos separadores de cartão. "É mais uma coisa que ele já fez antes", decidiu. Mais tarde, apercebeu-se de que os olhos dele estavam a começar a fechar-se.

Quando o último ornamento foi tirado da caixa e pendurado na árvore, ela disse:

- Acho que há uma pessoa que precisa de ir para a cama. A questão é onde o pomos!?

- Querida, existem pelo menos dezasseis quartos nesta casa.

- Sim, mas onde é que tu dormias quando tinhas o tamanho deste menino?

- No quarto de crianças.

- Com a tua ama por perto?

- É claro.

- Exactamente.

Sims estava a empilhar as caixas vazias.

- Sims, acho que vamos deitar o nosso amiguinho no sofá na nossa sala de estar - disse Sunday. - Assim, podemos deixar a porta do quarto aberta para ele nos ver e ouvir.

- Muito bem, minha senhora. E roupa para dormir?

- Uma das T-shirts de Henry servirá.

Mais tarde, durante a noite, Sunday acordou com uma ligeira agitação no aposento ao lado. Saltou imediatamente da cama, atravessou a carpete e chegou à porta da sala de estar adjacente.

Jacques estava à janela, o rosto erguido para o céu. Um ligeiro ruído chamou-lhe a atenção. Estava a passar um avião. "Ele deve tê-lo ouvido", pensou ela. "Que será que significa para ele?"

Enquanto o observava, o rapazinho voltou para o sofá, enfiou-se debaixo dos cobertores e enterrou o rosto na almofada.

A véspera de Natal amanheceu seca e clara. Uma camada de neve que caíra antes de o dia nascer deixara uma superfície brilhante e fresca em relvados e campos já brancos. Henry, Sunday e Jacques saíram para dar um passeio matinal.

- Sabes que não podemos ficar com ele indefinidamente, querida - disse Henry. Um veado correu nos bosques, e Jacques correu à frente deles para ver aquela corrida veloz.

- Eu sei, Henry.

- Tinhas razão em mantê-lo perto de nós a noite passada. Acho que estou a começar a perceber como será quando tivermos filhos nossos, querida. Vão dormir todos no sofá da sala de estar?

Sunday riu.

- Não, mas também não vão ficar noutra ala da casa. Já terminaste o teu postal de Natal para a Internet?

- Sim, já terminei. Este ano, escreveram-nos tantas pessoas de todo o mundo que penso que chegou a altura de lhes transmitirmos os nossos votos de felicidade e a nossa gratidão.

- Também acho. - Depois, a voz de Sunday mudou. - Henry, olha!

Abruptamente, Jacques tinha parado de correr e estava agora a olhar sonhadoramente para o céu.

Muito acima, ouvia-se o ruído de um avião.

- Henry - disse Sunday lentamente -, outra pista: acho que o rapazinho andou de avião recentemente.

 

Pete Schuler não se sentiu consolado ao pensar que tinha dois mil trezentos e trinta e três dólares no bolso, embora a herança inesperada significasse que podia tirar o resto do Inverno de férias e ir esquiar para um sítio qualquer. Mas várias questões ainda o perturbavam.

Onde estava o miúdo? Por que é que não tinha aparecido? A sua estúpida prima, Betty, tinha-o perdido algures em Nova Jérsia. Por que seria que nenhum cidadão bom e preocupado o tinha encontrado e entregue aos chuis? E se o miúdo tinha sofrido um acidente? Fazia estas perguntas a si mesmo vezes sem conta, com os nervos em franja.

Betty estava na casa de uma amiga em Nova Iorque, aquela pocilga em East Village. Pete marcou o número. Betty atendeu. Tinha a voz rouca.

- O miúdo já voltou para casa? - perguntou.

- Não. Onde diabo o perdeste?

- Bernardsville. Era o nome da cidade. Achas que ele foi atropelado ou coisa parecida?

- Como queres que eu saiba? Foste tu que o perdeste. - Pete hesitou, pensativo. - Tenho quase a certeza de que os pais não telefonaram para a Polícia. - Não estava disposto a contar a Betty que conseguira algum dinheiro. - Mas precisamos de saber o que está a passar-se. Para o caso de eles andarem à procura dele, apanha o autocarro para Nova Jérsia, telefona para a polícia de Bernardsville de uma cabina telefónica e pergunta se lhes entregaram um miúdo com cinco anos. Percebeste?

- De que serve isso? Que achas que eles me vão dizer? - perguntou Betty.

"Por que é que me meti nisto?", estava a pensar. "Se aconteceu alguma coisa ao miúdo, posso passar o resto da vida na prisão."

- Faz o que te digo. Agora! Mas tem cuidado. Se eles tiverem o miúdo, vão fazer-te imensas perguntas - disse Pete bruscamente.

Ás duas horas Betty telefonou-lhe novamente.

- Não tenho a certeza se têm o miúdo ou não - disse ela. Pediram-me para descrever a criança. Eu desliguei rapidamente.

- Isso foi estúpido - disse-lhe Pete secamente.

Desligou. Se os Dalton ainda não tinham ido à Polícia, era certo que o fariam muito em breve, especialmente se ele não lhes dissesse mais nada. Conduziu o carro até uma bomba de gasolina em Southport e fechou-se na cabina telefónica. Teria de ser ele a dar o passo seguinte.

Atenderam o telefone ao primeiro toque.

- Richard Dalton.

- Houve um atraso - disse Schuler com a mesma voz semi-disfarçada que tinha utilizado antes, a falar com um lenço no auscultador, da forma que vira ser feito nos filmes. - Não entrem em pânico. Percebeu? Não entrem em pânico!

Richard Dalton ouviu o clique quando a pessoa desligou. Algo tinha corrido mal, pensou. "A pessoa que levou o dinheiro veio a pé", apercebeu-se. Fora por isso que não vira ninguém. Tinha ficado acordado a noite inteira, atento a um carro que descesse o quarteirão. Não tinha visto. Mesmo assim, de manhã o dinheiro tinha desaparecido. Estranhamente, não tinha visto a pessoa que o levara.

O telefone tocou novamente. Dalton agarrou-o, identificou-se, escutou e depois cobriu um bocal com a mão.

- É o teu pai - disse ele. - Ele quer falar com Jacques.

- Diz-lhe que Jacques e eu saímos para fazer as últimas compras de Natal - sussurrou Giselle. O seu rosto era uma máscara de medo e dor. Richard mal conseguia suportar olhá-la nos olhos.

- Louis, eles saíram para fazer compras - disse Richard. Amanhã falaremos certamente consigo.

Quando pousou o auscultador, Giselle gritou:

- Diz-lhe que Jacques e eu estamos a fazer compras de Natal.

Caiu para o chão, desfalecida, e atingiu acidentalmente o interruptor do comboio eléctrico. As luzes acenderam-se, as

passagens de nível desceram, a locomotiva começou a fazer barulho, depois moveu-se.

Dalton atravessou a sala, desligou o interruptor e depois embalou a mulher nos braços.

Ás cinco horas, na véspera de Natal, o chefe da Polícia de Bernardsville telefonou e pediu para falar com Henry.

- Sr. Presidente - disse -, estão a ser distribuídos cartazes com o rapaz por todas as áreas das redondezas. O gabinete de campo do FBI e todos os cinquenta Estados têm a fotografia e a descrição dele. Verificámos no Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas. Até agora, não conseguimos absolutamente nada. No entanto, posso dizer-lhe que hoje recebemos um telefonema estranho, em que uma pessoa nos perguntava se nos tinha sido entregue um rapaz com cinco anos. Isto está a começar a parecer uma situação de criança abandonada. Ele já disse alguma coisa?

- Nem uma única palavra - admitiu Henry.

- Então, penso que é melhor assumirmos a custódia do rapaz. Temos de o levar para o hospital e mandá-lo examinar exaustivamente para ver se ele não pode realmente falar ou se está apenas traumatizado.

- Só um momento, chefe, por favor.

Sunday tinha mandado Sims ao Toys-R-Us local, e ele regressara carregado de presentes. A maior parte dos presentes ainda estavam embrulhados. Porém, tinham aberto alguns, incluindo uma grande caixa de pesados blocos de construção de encaixar, em plástico, com os quais ela e Jacques estavam a construir uma sofisticada torre. Ela escutou, desolada, quando

Henry lhe repetiu a mensagem.

- Henry, é véspera de Natal. Este rapazinho não pode acordar num hospital amanhã.

- E nós não podemos ficar com ele indefinidamente, querida.

- Diz-lhes que o deixem ficar até quinta-feira. Pelo menos, deixem-no passar o Natal. Ele sente-se bem aqui, eu sei que sim. E mais uma coisa, Henry. Sims comprou-lhe algumas roupas novas. As coisas que ele tinha vestidas parecem novas mas não lhe servem. Passa-se alguma coisa estranha. Eu não acredito que ele tenha sido abandonado; acho que a família não sabe onde procurá-lo. Diz isso à Polícia.

Jacques não sabia o que é que a senhora simpática, que se parecia um pouco com a mamã estava a dizer. Sabia que estava contente por estar com ela, e também com o simpático homem alto e o homem de idade que era parecido com o grand-père. Se fosse um menino muito bem comportado, talvez o deixassem ficar com eles. Mas também queria estar em casa com a mamã e Richard. Por que é que eles o tinham mandado embora? De súbito, não conseguiu conter mais a tristeza. Pousou o pequeno bloco que se preparava para colocar no cimo da torre e começou a chorar - lágrimas silenciosas, sem esperança, solitárias, que nem sequer a senhora simpática que o embalava nos braços conseguiu impedir.

Naquela noite não conseguiu comer. Esforçou-se, mas a comida não passava pela garganta. Mais tarde, voltaram para a sala da árvore de Natal, e ele só conseguia pensar na pista de comboios que ele e Richard iam montar na casa nova em Darien.

Sunday sabia em que é que Henry estava a pensar. Na verdade, não estavam a ajudar o rapazinho. Ele tinha um desgosto, um desgosto silencioso, persistente, que nem todos os brinquedos do mundo fariam passar. Talvez o seu lugar fosse num hospital, onde teria ajuda profissional.

Teve a mesma sensação de impotência que sentira enquanto esperava, com Henry e o pai, durante a operação da mãe.

- Em que estás a pensar, amor? - perguntou Henry, calmamente.

- Apenas que é melhor deixarmos os profissionais tomarem conta dele amanhã. Tinhas razão. Não lhe estamos a fazer bem nenhum em mantê-lo aqui.

- Concordo.

- Não parece muito uma véspera de Natal - disse Sunday, tristemente. - Uma criança perdida... Não consigo acreditar que não ande ninguém à procura dele. Consegues imaginar como te sentirias se o nosso rapazinho estivesse desaparecido?

Henry começou a responder, depois esticou a cabeça.

- Escuta. Os cantores de Natal estão a chegar.

Dirigiu-se para a janela e abriu-a. Quando o ar gelado invadiu a sala, os cantores aproximaram-se da casa. Estavam a cantar God Rest You, Merry Gentlemen.

"Não deixes que nada te assuste", pensou Sunday. Cantarolou suavemente com eles enquanto passavam para as comoventes palavras que tão bem conhecia de Silent Night.

Ela e Henry aplaudiram quando o grupo passou para Deck

the Halls with Boughs of Holly.

Depois, o líder dos cantores aproximou-se da janela e disse:

- Sr. Presidente, aprendemos uma canção especial para o senhor, porque lemos que era uma das suas preferidas quando andava na escola. Se nos permite...

Soprou a gaita de foles e o grupo começou a cantar suavemente,

Un flambeau, Jeannette Isabelle, Un flambeau, courrons au berceau.

C'est Jésus, bonnes gens du hameau Le Christ est né...

Atrás de si, Sunday ouviu um som. Jacques tinha ficado debruçado na cadeira defronte do sofá, onde estavam sentados quando os cantores tinham aparecido. Enquanto observava, ele endireitou-se. Os olhos semifechados abriram-se muito. Os

lábios moveram-se em sintonia com os cantores.

- Henry - disse ela em voz baixa -, olha. Estás a ver o mesmo que eu?

Henry virou-se.

- A que estás a referir-te, querida?

- Olha!

Sem parecer observar Jacques, Henry olhou intensamente para ele. "Ele conhece aquela canção. " Aproximou-se e pegou no menino ao colo.

-Outra vez, por favor - pediu, quando os cantores pararam. Mas, quando eles cantaram a canção novamente, Jacques selou os lábios.

Depois de os cantores terem partido, Henry voltou-se para o rapazinho e começou a falar em francês.

- Comment t'appelles-tu? Où habites-tu?

Mas Jacques limitou-se a fechar os olhos.

Henry olhou para Sunday e encolheu os ombros.

- Não sei que mais poderemos fazer. Ele não me responde, mas creio que compreende o que estou a perguntar-lhe.

Sunday olhou pensativamente para Jacques.

- Henry, deves ter reparado como o nosso amiguinho ficou fascinado quando viu um avião no céu esta tarde.

- Tu chamaste-me a atenção.

- E a noite passada aconteceu a mesma coisa. Supõe que esta criança acabou de chegar de outro país, Henry. Não admira que ninguém tenha notificado o desaparecimento do menino. Sims trouxe um dos cartazes com a fotografia e a descrição, não trouxe?

- Sim.

- Henry. Tu ias colocar um postal de Boas Festas na Internet, não ias?

- A minha mensagem anual. Sim. à meia-noite.

-Faz-me um favor, Henry. -Sunday apontou para Jacques. - Este ano coloca também o cartaz com a fotografia e a descrição dele e pede às pessoas em França ou outros países de expressão francesa que reparem especialmente na fotografia dele. E a partir de agora fala para mim em francês. Eu posso não conseguir compreender grande coisa, mas talvez consigamos chegar até ele.

Passavam quinze minutos das seis da manhã em Paris quando Louis de Coyes, de café na mão, se dirigiu para o seu estúdio e ligou o computador. A manhã de Natal sozinho era uma perspectiva infeliz. Pelo menos, iria jantar a casa de amigos. A casa estava solitária sem Jacques e Giselle, mas Louis estava muito satisfeito com o homem que a filha escolhera para marido. Richard Dalton era o tipo de homem com quem qualquer pai gostaria de ver a filha casada.

E estava confiante de que eles viriam visitá-lo com frequência. Eles tinham prometido que as aulas que ele tinha começado a dar a Jacques na Internet continuariam. Um dia, que não viria muito longe, ele e o neto poderiam comunicar um com o outro por correio electrónico. Entretanto, agora já era quase meia-noite na costa leste dos Estados Unidos, e ele queria ler a mensagem de Natal que Henry Parker Britland IV ia enviar a todos aqueles que lhe tinham desejado Boas Festas. Louis tinha estado uma vez com o anterior presidente numa recepção na Embaixada americana em Paris e ficara impressionado com a sua grande inteligência e simpatia genuína.

Cinco minutos depois, um incrédulo Louis de Coyes estava a olhar para a fotografia do neto, que o ex-presidente descrevia como uma criança desaparecida.

Seis minutos depois, Richard Dalton, enquanto preparava uma desculpa qualquer para Giselle não atender o telefone e falar com o pai, gritava:

- Oh, meu Deus, Louis, oh, meu Deus.

às duas horas da manhã a campainha soou. Henry e Sunday estavam à espera dos pais de Jacques.

- Ele está a dormir lá em cima.

Jacques estava a sonhar, mas desta vez era um sonho muito bom. A mamã estava a beijá-lo e a sussurrar: "Mon petit, mon Jacques, mon Jacques, je t'aime, je t'aime."

Jacques sentiu que estava a ser levantado, cobertores enrolados à sua volta. Richard estava a apertá-lo com força, estava a dizer:

- Pequenino, vamos para casa.

No sonho, Jacques dormiu nos braços da mamã, num carro, durante muito tempo.

Quando acordou, abriu os olhos lentamente e a sensação de medo voltou. Mas não estava num sofá na casa grande. Estava na sua cama. Como tinha vindo parar aqui? O sonho afinal não era um sonho? A mamã e Richard tinham-no ido buscar porque o amavam?

- Mamã! Richard! - chamou Jacques ansiosamente quando saltou da cama e correu para o corredor.

- Cá em baixo, Jacques - chamou a mamã. E depois ouviu outro som a flutuar do andar de baixo. O trabalhar dos seus comboios, e o apito a soar para as cancelas descerem. Os pés ansiosos de Jacques mal tocaram nos degraus enquanto os descia velozmente.

-Não dormiste muito a noite passada - observou Henry quando ele e Sunday voltavam da igreja de carro.

- Não, não muito - concordou Sunday, feliz. - Vou sentir a falta daquele rapazinho.

- Também eu. Mas dentro de pouco tempo, espero, teremos um... ou dois... nossos.

- Espero que sim. Mas não é incrível como a vida é frágil? Quero dizer, aquele telefonema acerca da minha mãe no mês passado?

- Ela está bem.

- Sim, mas quase a perdemos. E o pequeno Jacques. Supõe que aquela mulher que o levou não tinha o acidente aqui mesmo na cidade! Só Deus sabe se teria ou não entrado em pânico e se lhe teria ou não feito mal. Espero que a apanhem depressa. Estamos todos pendurados por um fio.

- Pois estamos - concordou Henry, calmamente. - E para alguns de nós esse fio vai ser cortado muito em breve. Não te preocupes, a Polícia não vai ter problemas para encontrar aquela mulher e o cúmplice. Aparentemente, foram ambos muito descuidados a esconder o seu rasto.

Entraram nos portões abertos de Drumdoe e desceram a longa alameda até à casa. Henry estacionou o carro à frente dos degraus. Sims estava obviamente à espera deles, porque a porta abriu-se mal eles atravessaram o alpendre.

- O pequeno Jacques está ao telefone, sir. A mãe disse-me que ele tem estado toda a manhã a brincar com os comboios. Ele quer agradecer-vos a vossa bondade. - Sims rejubilou. - Ele deseja oferecer-vos un joyeux Noêl.

Quando Henry se precipitou para o telefone, Sunday sorriu para Sims.

- O seu francês é quase tão mau como o meu - disse.

 

                                                                                        Mary Híggins Clark

 

                      

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