Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DOIS ANOS DE FÉRIAS Vol. II / Júlio Verne
DOIS ANOS DE FÉRIAS Vol. II / Júlio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DOIS ANOS DE FÉRIAS

Volume II

 

      Tudo se tinha passado bem em French-den durante a ausência de Gordon. O chefe da pequena colónia estava satisfeitíssimo com Briant, a quem os pequenos testemunhavam verdadeira afeição. Doniphan, se não fosse o seu carácter altivo e invejoso, também teria apreciado - como devia - as qualidades do seu camarada; mas não era assim, e graças ao ascendente que exercia em Wilcox, Webb e Cross, estes ajudavam-no sempre quando se tratava de fazer oposição ao moço francês, tão diferente, nos modos e no carácter, dos seus companheiros de origem anglo-saxónica.

      Briant não fazia caso. Fazia o que julgava o seu dever, sem se preocupar com o que pensavam dele. O seu maior cuidado era a atitude inexplicável de seu irmão.

      Ultimamente, Briant tornara a fazer perguntas a Jaime, sem obter outra resposta além desta:

      - Não... meu irmão... não! Não tenho nada!

      - Não queres falar, Jaime? - dissera ele. - Fazes mal!... Era um alívio, tanto para ti como para mim!... Estás cada vez mais triste, mais sombrio! Vamos!... Eu sou o teu irmão mais velho!... Tenho o direito de saber qual é a causa do teu desgosto!... De que te acusas?...

      - Meu irmão!... - respondeu finalmente Jaime, como se não pudesse resistir a algum remorso secreto. - Queres saber o que fiz?... Tu talvez... me perdoasses.. mas os outros...

      - Os outros?... Os outros!... - exclamara Briant. – Que queres dizer, Jaime?

      Os olhos da criança encheram-se de lágrimas; mas, apesar da insistência do irmão, não acrescentara senão isto:

      - Mais tarde saberás... mais tarde!...

      Depois desta resposta compreende-se a inquietação de Briant. O que haveria, tão grave, no passado de Jaime? Era o que ele queria saber a todo o custo. Assim, logo que Gordon regressou, Briant falou-lhe nas meias confissões que arrancara a seu irmão, pedindo-lhe que interviesse no assunto.

      - Para quê? - respondeu acertadamente Gordon. - É melhor deixar Jaime falar espontaneamente!. Quanto ao que ele fez... foi decerto alguma diabrura cuja Importância exagera!... Esperemos que ele se explique!

      No dia seguinte - 9 de Novembro - os moços colonos puseram-se de novo ao trabalho. E este não faltava. Primeiro que tudo foi necessário atender às reclamações de Moko, que tinha a despensa quase vazia, posto que os laços, armados nas proximidades de French-den, tivessem funcionado por diversas vezes. Na realidade, o que faltava era a caça grossa. Portanto, tratava-se de construir armadilhas bastante sólidas para que as vicunhas, os pecaris e os guaçulis pudessem cair nelas sem custarem um grão de chumbo nem de pólvora.

      Foi a trabalhos deste género que os mais velhos consagraram todo o mês de Novembro - o mês de Maio das latitudes do hemisfério setentrional.

      Logo que chegaram, o guanaco e a vicunha com as duas crias tinham sido instalados provisoriamente debaixo das árvores mais próximas de French-den. Aí, podiam mover-se num certo espaço, o que lhes permitiam as cordas que os prendiam. Isto era suficiente durante o período dos dias grandes; mas, antes que voltasse o Inverno, devia-se estabelecer um abrigo mais conveniente. Assim, Gordon decidiu que se dispusessem imediatamente um alpendre e um cerrado, protegidos por grandes paliçadas, ao pé de Auckland-hill, do lado do lago, um pouco adiante da porta do hall.

      Deitaram-se à obra, e organizou-se um verdadeiro estaleiro dirigido por Baxter. Dava gosto ver aqueles rapazes activos, manejando mais ou menos habilmente as ferramentas que tinham encontrado na caixa de marceneiro da escuna, uns a serra, outros o machado ou a enxó. Se às vezes estragavam a obra, não desanimavam com isso. Algumas árvores de grossura média, cortadas pela raiz e podadas, forneceram o número de estacas necessárias para cercar um espaço onde uma dúzia de animais pudessem viver à vontade. Estes troncos, enterrados solidamente na terra e ligados uns aos outros por travessas, eram capazes de resistir a todas as tentativas dos animais ferozes que diligenciassem derrubá-los ou transpô-los. Quanto ao alpendre, foi construído com as cintas do costado do Sloughi - o que evitou aos moços carpinteiros o trabalho de cortar as árvores em pranchas, trabalho muito difícil nestas condições. Depois cobriu-se com um oleado espesso, a fim de não ter nada a temer das rajadas. Uma cama de boa e espessa palha, erva fresca para alimento, musgo e folhagem, de que se faria boa provisão, não era preciso mais nada para manter os animais domésticos em bom estado. Garnett e Service, encarregados mais particularmente do arranjo do cercado, foram em breve recompensados dos seus cuidados, vendo o guanaco e a vicunha domesticarem-se de dia para dia.

      Além disso, não tardou que o recinto recebesse novos hóspedes. Primeiro foi outro guanaco, que se deixou cair numa das covas da floresta, depois um casal de vicunhas, macho e fêmea, que Baxter agarrou auxiliado por Wilcox,. que também começava a manejar as bolas com muita habilidade. Apanhou-se até um nandu, que “Phann” caçou. Mas viu-se logo que sucederia com este o mesmo que com o primeiro. Apesar da boa vontade de Service, não se pôde fazer nada dele.

      É escusado dizer que, enquanto o alpendre não se acabou, o guanaco e a vicunha iam ficar todas as noites em Store-room. Os gritos dos chacais, os guinchos das raposas e os rugidos dos carnívoros ouviam-se muito perto de French-den, pelo que não era prudente deixar os animais de fora.

      Entretanto, enquanto Garnett e Service tratavam especialmente dos animais, Wilcox e alguns dos seus camaradas não cessavam de preparar armadilhas e laços, que iam visitar diariamente. Além disso, também houve trabalho para dois dos pequenos, Iverson e Jenkins. Efectivamente, as abetardas, as galinhas do campo, as galinhas-da-índia e os tinamus precisavam de uma capoeira, que Gordon fez construir num canto do cerrado, e os dois pequenos foram encarregados de tratar dela - o que eles fizeram com muito zelo.

      Como se vê, Moko tinha agora à sua disposição, não só o leite das vicunhas, mas também os ovos dos animais de penas. E decerto que teria fabricado algum doce da sua invenção se Gordon não lhe tivesse recomendado que economizasse o açúcar. Assim, só aos domingos e alguns dias de festa é que se via aparecer na mesa um prato extraordinário, que Dole e Costar saboreavam com delícia.

      No entanto, se era impossível fabricar açúcar, talvez se pudesse encontrar qualquer matéria susceptível de o substituir. Service - com os seus Robinsons na mão – afirmava que não era preciso mais que procurar. Gordon procurou, portanto, e acabou por descobrir, no meio do mato de Traps-woods, um grupo de árvores, que três meses mais tarde, nos primeiros dias do Outono, deviam cobrir-se de uma folhagem cor de púrpura lindíssima.

      - São áceres - disse ele -, árvores de açúcar!

      - Árvores de açúcar! - exclamou Costar.

      - Não, guloso! - esclareceu Gordon. - Árvores que dão açúcar, é que é! Não mudes o sentido às palavras!

      Esta descoberta era das mais importantes que os moços colonos tinham feito depois da sua instalação em French-den. Dando um golpe no tronco de um dos áceres, Gordon obteve líquido, produzido pela condensação da seiva, e esta seiva, solidificando-se, deu uma matéria açucarada. Apesar de inferior em qualidades sacaríferas ao suco da cana e da beterraba, esta substância não era menos preciosa para as necessidades da despensa, e era melhor, em todo o caso, do que os produtos similares que se tiram da bétula, durante a Primavera.

      Havendo açúcar, não tardou que houvesse licor. Por conselho de Gordon, Moko tratou de fermentar as sementes de trulca e de alfarroba. Depois de terem sido previamente esmagadas numa vasilha por meio de um pesado pilão de madeira, estas sementes produziram um líquido alcoólico, cujo sabor bastaria para adoçar as bebidas quentes, à falta de açúcar. Quanto às folhas colhidas na árvore do chá, reconheceu-se que eram quase tão boas como a odorífera planta chinesa. Assim, durante as suas excursões à floresta, os exploradores nunca deixaram de fazer uma colheita abundante.

      Como se vê, a ilha Chairman dava aos seus habitantes, se não o supérfluo, pelo menos o necessário. O que faltava – e sentia-se muito esta falta - eram os legumes frescos. De modo que era preciso contentarem-se com os legumes de conserva, de que havia um cento de caixas, que Gordon economizava o mais que podia. Briant tentara cultivar os inhames, de que o náufrago francês semeara algumas plantas junto da penedia, e que se haviam tornado bravos. Foi em vão. Felizmente, o aipo - como já dissemos - crescia com abundância nas margens do Family-lake, e, como não era necessário economizá-lo, substituia com vantagem os legumes frescos.

      É inútil dizer que as armadilhas, estendidas durante o Inverno na margem esquerda do rio, tinham sido transformadas em redes de caça quando voltou o bom tempo. Apanharam-se aí, entre outros voláteis, algumas perdizes pequenas que vinham, decerto, das terras situadas ao largo da ilha.

      Doniphan tinha grande desejo de explorar a vasta região dos South-moors, do outro lado do rio Zealand. Mas era perigoso arriscarem-se através daqueles pântanos, cobertos em parte pelas águas do lago, misturadas com as do mar na época das cheias.

      Wilcox e Webb capturaram também um bom número de cutias, do tamanho de lebres, e cuja carne esbranquiçada, um pouco seca, fica entre a do coelho e a do porco. Seria difícil com certeza apanhar estes velozes roedores, mesmo com o auxílio de Phann; mas, quando eles estavam na toca, era bastante assobiar levemente para os atrair ao orifício e agarrá-los. Os moços caçadores apanharam também, por diversas vezes, fuetas, glutões, texugos e zorrilhos, muito semelhantes às martas, com a sua formosa pele preta e riscas brancas, mas que espalhavam emanações fétidas.

      - Como podem eles suportar um tal cheiro? - perguntou um dia Iverson.

      - Ora! Questão de hábito! - respondeu Service.

      Se o rio fornecia o seu contingente de galáxias, Family-lake, povoado de espécies maiores, dava, entre outras, algumas trutas magníficas, que, apesar da cocção, conservavam o sabor um pouco salobro. É verdade que havia sempre o recurso de ir pescar, entre as algas e os sargaços de Sloughi-bay, uma espécie de badejos que se refugiavam ali aos milhares. E depois, quando chegasse o momento em que os salmões tentassem subir o curso do rio Zealand, Moko iria fazer boa provisão desses peixes, que, conservados em sal, seriam um alimento magnífico para a estação invernosa.

      Foi nesta época a pedido de Gordon, que Baxter fabricou arcos com ramos elásticos de freixos, e setas de caniços, armadas com um prego na ponta, o que permitiu que Wilcox e Cross - os mais hábeis depois de Doniphan - matassem, de vez em quando, alguma caça miúda.

      Contudo, apesar de Gordon se opor sempre ao gasto de munições, sobreveio uma circunstância na qual foi obrigado a pôr de parte a sua economia do costume.

      Um dia - foi a 7 de Dezembro - Doniphan chamou-o de parte e comunicou-lhe:

      - Gordon, estamos infestados pelos chacais e pelas raposas! Vêm aos bandos durante a noite, e destroem as nossas redes e a caça que se deixou cair nelas!... É preciso acabar com eles por uma vez!

      - Não se podem armar laços? - sugeriu Gordon, vendo perfeitamente aonde o seu camarada queria chegar.

      - Laços... - respondeu Doniphan, que não perdera o seu desdém por estes vulgares instrumentos de caça. - Laços!... Para os chacais, ainda vá, porque são bastante estúpidos para se deixarem apanhar algumas vezes. Agora as raposas, é outra coisa! São muito espertas e desconfiam, apesar de todas as precauções de Wilcox! Qualquer noite teremos o nosso cerrado devastado, e não acharemos nem uma ave na capoeira!...

      - Bem, já que é necessário - condescendeu Gordon – concedo algumas dúzias de cartuchos. Mas tratem de só disparar com muita certeza!...

      - Podes estar descansado, Gordon! Esta noite emboscar-nos-emos na passagem desses animais, e faremos uma tal matança que desaparecerão por muito tempo!

      Esta destruição era urgente. As raposas destas regiões parecem ser ainda mais astutas do que as suas congéneres da Europa - as da América do Sul, principalmente. Efectivamente, fazem devastações incessantes pelos arredores das haciendas, tendo bastante inteligência para cortar as correias de couro que prendem os cavalos ou o gado nas pastagens.

      Assim, quando anoiteceu, Doniphan, Briant, Wilcox, Baxter, Webb, Cross e Service foram postar-se nas proximidades de um covert - nome que se dá, no Reino Unido, a grandes espaços de terreno semeados de moitas e de sarças. Este covert estava situado próximo de Traps-woods, do lado do lago.

      Phann não acompanhou os caçadores. Podia servir-lhes de obstáculo dando sinal de si às raposas. Não se tratava, além disso, de farejar uma pista. De mais a mais, mesmo quando está aquecida pela carreira, a raposa não deixa rasto algum atrás de si, ou, pelo menos, as emanações são tão ligeiras que os melhores cães não podem reconhecê-las.

      Eram onze horas quando Doniphan e os seus camaradas se puseram de emboscada entre os maciços de urzes bravas que cercavam o covert.

      A noite estava muito sombria. Um profundo silêncio, que não era perturbado pela mais leve aragem, permitia que se ouvisse o deslizar das raposas pelas ervas secas.

      Um pouco depois da meia-noite, Doniphan indicou a aproximação de um bando destes animais, que atravessavam o covert para irem matar a sede ao lago.

      Os caçadores esperaram, não sem impaciência, que estivessem reunidas em número de vinte, pouco mais ou menos - o que levou um certo tempo, porque elas não avançavam senão com prudência, como se pressentissem alguma cilada. De repente, a um sinal de Doniphan, dispararam-se uns poucos de tiros. Todos acertaram. Cinco ou seis raposas caíram no solo, enquanto que as outras, correndo para a direita e para a esquerda, como doidas, foram quase todas feridas mortalmente.

      Quando rompeu o dia, acharam-se dez destes animais estendidos entre as ervas do covert. E, como a matança continuou durante três noites consecutivas, a pequena colónia viu-se em breve livre destas visitas perigosas, que ameaçavam a vida dos hóspedes do cerrado. Além disso, ganharam no fim umas cinquenta peles de um pardo-prateado, muito bonitas, que, ou para tapetes, ou para abafos, seriam muito úteis em French-den.

      No dia 15 de Dezembro, grande expedição a Sloughi-bay. Como o tempo estava muito bom, Gordon resolveu que todos tomassem parte nela - o que foi recebido pelos mais novos com grandes demonstrações de alegria.

      Era provável que, partindo ao romper do dia, pudessem regressar antes da noite. Se houvesse alguma demora, acampar-se-ia debaixo das árvores.

      Esta expedição tinha por objectivo principal uma caçada às focas que frequentavam o litoral de Wreck-coast na época dos frios. Efectivamente, a iluminação, de que muito se usou durante as tardes e as noites deste longo Inverno, estava quase no fim. Da provisão de velas fabricadas pelo náufrago francês já não restavam senão duas ou três dúzias. Quanto ao azeite contido nos barris do Sloughi, e que servia para a alimentação dos faróis do hall, a maior parte dele estava gasto, e Isto preocupava seriamente Gordon.

      É verdade que Moko pudera pôr de reserva uma certa quantidade do sebo que lhe fornecia a caça, ruminantes, roedores ou voláteis; mas esse mesmo esgotar-se-ia rapidamente pelo consumo diário. Ora, não seria possível substituí-lo por qualquer substância que a Natureza desse já preparada, ou pouco menos? À falta de azeite vegetal, a pequena colónia não poderia arranjar uma reserva, por assim dizer infinita, de azeite animal?

      Sim, com certeza, se os caçadores conseguissem matar um certo número daquelas focas, daquelas otárias de peles, que iam folgar para o banco de recifes de Sloughi-bay durante a estação quente. Era preciso, mesmo, andar depressa, porque estes anfíbios não tardariam em ir procurar águas mais meridionais nas paragens do oceano Antárctico.

      Como se vê, a expedição projectada tinha muita importância, e os preparativos fizeram-se de maneira que pudesse dar um bom resultado.

      Havia algum tempo que Service e Garnett se aplicavam com êxito a ensinar os dois guanacos como bestas de tiro. Baxter fabricara-lhes um cabresto de ervas, metidas em pano grosso de velas, e, se ainda não se montava neles, podia-se, pelo menos, atrelá-los ao carro. Sempre era melhor do que atrelarem-se os rapazes a si mesmos.

      Nesse dia, o carro foi carregado de munições, provisões e diferentes utensílios, entre outros, uma grande vasilha de cobre e meia dúzia de barris vazios, que voltariam cheios de óleo de foca. Efectivamente, era melhor despedaçar logo aqueles animais do que trazê-los para French-den, onde o ar seria empestado por cheiros insalubres.

      A partida efectuou-se ao nascer do Sol, e a marcha fez-se sem dificuldade durante as duas primeiras horas. Se o carro não ia muito depressa, era porque o solo desigual da margem direita do rio Zealand não se prestava à tracção dos guanacos. Mas onde se tornou muito difícil a marcha foi quando o pequeno rancho contornou o pântano de Bog-woods, entre as árvores da floresta. As pernitas de Dole e de Costar sentiram-se fatigadas. Por isso, Gordon, a pedido de Briant, permitiu-lhes que tomassem lugar no carro, a fim de descansarem sem se perder tempo.

      Perto das oito horas, enquanto os guanacos costeavam penosamente os limites do pântano, os gritos de Cross e de Webb, que marchavam um pouco adiante, fizeram acudir Doniphan, primeiro, e os outros logo em seguida.

      No meio do lodo de Bog-woods, a uma distância de cem passos, revolvia-se um animal enorme, que o pequeno caçador reconheceu imediatamente. Era um hipopótamo, gordo e rosado. Felizmente para ele, desapareceu debaixo dos montes espessos do pântano antes que fosse possível fazer pontaria. Além disso, para que se havia de disparar um tiro de espingarda tão inutilmente!

      - Que animal é aquele, tão grande? - perguntou Dole, muito inquieto só de avistá-lo.

      - É um hipopótamo - informou Gordon.

      - Um hipopótamo!... Que nome tão esquisito! como quem diz um cavalo-marinho - ensinou Briant.

      - Mas não se parece com um cavalo! - observou Costar.

      - Não - exclamou Service -, parece-me que seria mais razoável chamar-lhe porcopótamo!

      Esta reflexão não deixava de ser acertada e provocou o riso alegre dos pequenos.

      Eram pouco mais de dez horas da manhã quando Gordon desembocou na praia de Sloughi-bay. Pararam junto da margem do rio, no lugar onde se estabelecera o primeiro acampamento durante a demolição do iate.

      Estavam aí umas cem focas, saltando entre as rochas ou aquecendo-se ao sol. Havia até algumas que brincavam na areia, para cá do cordão de recifes.

      Estes anfíbios deviam estar pouco familiarizados com a presença do homem. Talvez até nunca tivessem visto seres humanos, porque, depois da morte do náufrago francês, haviam decorrido mais de vinte anos. Por isso, apesar de ser uma precaução usada pelos anfíbios, ao serem perseguidos nas paragens árcticas ou antárcticas, os mais velhos do bando não estavam de sentinela a fim de escaparem ao perigo. Contudo, era preciso evitar assustá-los prematuramente, pois de contrário desapareceriam daquele lugar rapidamente.

      Primeiro, logo que chegaram defronte de Sloughi-bay, os moços colonos dirigiram o olhar para aquele horizonte amplamente recortado entre American-cape è False-Sea-point.

      O mar estava absolutamente deserto. Podia-se reconhecer uma vez mais que aquelas paragens pareciam estar situadas fora das estradas marítimas.

      Todavia, era possível que passasse algum navio por um ponto donde se avistasse a ilha. Nesse caso, um posto de observação, estabelecido no cume de Auckland-hill ou mesmo no alto do cabeço de False-Sea-point - para o qual se içaria um dos canhões da escuna -, seria melhor para atrair a atenção do que o mastro de sinais. as isso obrigava a permanecer-se dia e noite nesse posto, e, por consequência, longe de French-den. Gordon considerava, pois, esta medida como impraticável. O próprio Briant, que andava sempre preocupado com a questão de regressar à pátria, concordou nisto. Era pena que French-den não estivesse situada deste lado de Auckland-hill, em frente de Sloughi-bay!

      Depois de um almoço rápido, no momento em que o sol do meio-dia convidava as focas a aquecerem-se na praia, Gordon, Briant, Doniphan, Cross, Baxter, Wilcox, Garnett e Service prepararam-se para lhes dar caça. Durante esta operação, Iverson, Jenkins, Jaime, Dole e Costar deviam ficar no acampamento, sob a vigilância de Moko - ao mesmo tempo que Phann, que não convinha largar no meio do bando de anfíbios. Além disso, teriam de vigiar os dois guanacos, que se puseram a pastar debaixo das primeiras árvores da floresta.

      Todas as armas de fogo da colónia, espingardas e revólveres, tinham vindo com munições em quantidade suficiente, que Gordon não regateara desta vez, porque se tratava de interesse geral.

      Era preciso tratar, primeiro que tudo, de cortar a retirada às focas pelo lado do mar. Doniphan, a quem os seus camaradas encarregaram, voluntariamente, de dirigir a manobra, convidou-os a descerem o rio até à embocadura, ocultando-se ao abrigo da praia. Em seguida, feito isto, seria fácil caminhar ao longo dos recifes, de maneira a cercar a praia.

      Este plano foi executado com muita prudência. Os nossos caçadores, espalhados de trinta a quarenta passos uns dos outros, formaram, em breve, um semicírculo entre a praia e o mar.

      Então, a um sinal dado por Doniphan, ergueram-se todos ao mesmo tempo, as detonações ressoaram simultaneamente e cada tiro fez uma vítima.

      As focas que tinham escapado ergueram-se, agitando a cauda e as barbatanas. Em seguida, assustadas, sobretudo com o ruído das detonações, precipitaram-se, saltando, para os recifes.

      Perseguiram-nas a tiro de revólver. Doniphan, todo entregue aos seus instintos, fazia maravilhas, enquanto os seus camaradas o imitavam o melhor que podiam.

      Esta matança durou apenas alguns minutos, posto que os anfíbios fossem perseguidos até ao pontalete das últimas rochas. Os sobreviventes desapareceram para além destas, deixando na praia uns vinte mortos ou feridos.

      A expedição tivera, portanto, bom resultado, e os caçadores, regressando ao acampamento, instalaram-se debaixo das árvores, de maneira que pudessem passar aí trinta e seis horas.

      A tarde empregou-se num trabalho que não deixava de ser muito repugnante. O próprio Gordon tomou parte nele, e, como era uma tarefa Indispensável, todos se entregaram a ela resolutamente. Primeiro foi preciso trazer para a praia as focas que tinham caído entre os recifes. Isto não se fez sem custo, apesar de todos estes animais serem de tamanho regular.

      Durante este tempo, Moko tinha colocado a vasilha de cobre por cima de uma fogueira, estabelecida entre duas grandes pedras. Os quartos de foca, cortados em bocados de cinco a seis libras cada um, foram depositados na vasilha, que se enchera previamente de água doce, tirada do rio, à hora da maré baixa. Alguns minutos foi o suficiente para a fervura produzir um óleo claro, que sobrenadou à superfície, e com o qual se encheram todos os barris.

      Este trabalho tornava-se verdadeiramente insuportável pela infecção que espalhava. Todos tapavam o nariz, mas não os ouvidos - podendo assim ouvir os gracejos que esta operação desagradável provocava. Até o delicado lord Doniphan teve de se resignar a este trabalho, que continuou no dia seguinte.

      No fim do segundo dia, Moko juntara assim muitas centenas de galões de óleo. Esta quantidade pareceu suficiente; porque a iluminação de French-den ficava assegurada para todo o Inverno próximo. Além disso, as focas não voltavam aos recifes nem à praia, e não tornariam, decerto, a frequentar o litoral de Sloughi-bay enquanto o tempo não lhes dissipasse o terror.

      O acampamento levantou-se no dia seguinte, de madrugada - com satisfação geral, podemos afirmar.

      Na véspera, à noite, o carro tinha sido carregado de barris, de ferramentas e de utensílios. Como devia estar mais pesado do que quando viera, os dois guanacos não poderiam puxá-lo muito depressa, porque o solo subia sensivelmente na direcção do Family-lake.

      No momento da partida, não se ouviram senão gritos atroadores de mil aves de rapina, busardos e falcões, que vinham do interior da ilha, atraídos pelos restos das focas, das quais não restaria, em breve, o mais leve vestígio.

      Então, depois de uma saudação à bandeira do Reino Unido, que flutuava no cume de Auckland-hill, depois do último olhar lançado para o horizonte do Pacífico, o pequeno rancho pôs-se a caminho, subindo a margem direita do rio Zealand.

      O regresso não foi marcado por incidente algum. Apesar das dificuldades do caminho, os guanacos desempenharam tão bem o seu papel e os mais velhos ajudaram-nos tanto nas passagens difíceis que entraram todos em French-den antes das seis horas da tarde.

      Os dias seguintes foram consagrados aos trabalhos do costume. Experimentou-se o óleo de foca nas lâmpadas dos faróis e verificou-se que a luz dada por ele, apesar de ser muito medíocre, era suficiente para a iluminação do hall e de Store-room. Portanto, já não havia que recear a escuridão durante os longos meses do Inverno.

      Entretanto, Christmas-day (dia de Natal), festejado tão alegremente pelos Anglo-Saxónicos, aproximava-se. Gordon quis, com razão, que o celebrassem com certa solenidade. Seria como que uma recordação dirigida à pátria, uma saudação do coração para as famílias ausentes! Ah! Se estas crianças pudessem fazer-se ouvir, como gritariam: «Estamos aqui... todos! vivos, com saúde... Tornar-nos-emos a ver!... Deus há-de conduzir-nos ao nosso país!»

      Sim!... Elas podiam ainda ter uma esperança, enquanto que as suas famílias já haviam desistido completamente, lá em Auckland, de tornar a vê-las!

      Gordon anunciou, pois, que nos dias 25 e 26 de Dezembro haveria feriado em French-den. Os trabalhos seriam suspensos durante esses dois dias. Celebrar-se-ia este primeiro Christmas na ilha Chairman como em outros países da Europa se festeja o primeiro dia do ano.

      Imagina-se facilmente como esta proposta foi recebida! É inútil dizer que no dia 25 haveria um banquete aparatoso, para o qual Moko prometia maravilhas. Assim, Service e ele não cessavam de conferenciar misteriosamente a este respeito, enquanto Dole e Costar, cheios de curiosidade, diligenciavam surpreender o segredo das suas deliberações. A despensa estava bem abastecida para fornecer os elementos de um banquete solene.

      O grande dia chegou.

      Por cima da porta do hall, do lado de fora, Baxter e Wilcox tinham disposto artisticamente a série de bandeiras, galhardetes e pavilhões do Sloughi, o que dava um ar de festa a French-den.

      Pela manhã, um tiro de canhão despertou ruidosamente os ecos de Auckland-hill. Era uma peça encostada à canhoneira do hall, que Doniphan acabava de disparar em honra do Natal.

      Os pequenos vieram logo desejar boas-festas, que os outros lhes retribuíam afectuosamente. Houve até um cumprimento dirigido ao chefe da ilha Chairman, recitado por Costar, que se saiu menos mal do caso.

      Todos tinham vestido o seu fato melhor para a circunstância. Como o tempo estava magnífico, antes e depois do almoço houve passeio ao longo do lago, jogos diversos em Sport-terrace, nos quais todos quiseram tomar parte. Eles haviam levado de bordo do iate todos os brinquedos especiais tão usados na Inglaterra. Eram bolas, pélas, bastões, raquetas - para golfe, que consiste em enviar bolas de cauchu para diferentes buracos abertos a grande distância; para o futebol, cuja bola de couro é atirada com o pé; para os bozuls, bolas de bilhar feitas de madeira, que se atiram à mão, e das quais se deve corrigir habilmente o desvio, devido à sua forma oval; e, finalmente, para as fives, que fazem lembrar o jogo da péla atirada à parede.

      O dia foi bem preenchido. Os mais pequenos, sobretudo, não perderam o tempo. Tudo correu bem. Não houve questões nem zangas. É verdade que Briant encarregara-se particularmente de divertir Dole, Costar, Iverson e Jenkins - sem conseguir que seu irmão Jaime se juntasse a eles -, enquanto Doniphan e os seus companheiros do costume, Webb, Cross e Wilcox, faziam rancho à parte, apesar das observações do prudente Gordon.

      Finalmente, quando a hora de jantar foi anunciada por nova descarga de artilharia, os moços convivas foram, alegremente, tomar lugar no banquete, servido no refeitório de Store-room.

      No centro da grande mesa, coberta por uma bela toalha branca, estava uma árvore de Natal, plantada num grande vaso, rodeado de verdura e de flores. Dos ramos estavam suspensas bandeirinhas com as cores reunidas da Inglaterra, da América e da França.

      Moko, realmente, excedera-se na confecção do banquete, e ficou muito orgulhoso com os cumprimentos que lhe foram dirigidos, assim como a Service, seu amável colaborador. Uma cutia estufada, um guisado de tinamus, uma lebre assada, recheada de ervas aromáticas, uma abetarda, com as asas levantadas e o bico para o ar, como um faisão guarnecido, três caixas de legumes de conserva, um pudim - e que pudim! - disposto em forma de pirâmide, com as passas de Corinto tradicionais misturadas com frutos de alfarraba, e que estava metido num banho de brandy havia uma semana; depois, alguns copos de Bordéus, de sherry, de licores, chá, café à sobremesa, era suficiente, parece-me, para festejar condignamente a solenidade do Natal na ilha Chairman.

      Briant fez um toast cordial a Gordon, que lhe respondeu bebendo à saúde da colónia e à das famílias ausentes.

      Finalmente - o que comoveu mais -, Costar levantou-se e, em nome dos mais novos, agradeceu a Briant a sua dedicação por eles, de que tinham recebido tantas provas.

      Briant não pôde deixar de sentir uma comoção profunda, quando os hurras ressoaram em sua honra - hurras que, porém, não acharam eco no coração de Doniphan.

     

      Oito dias depois começava o ano de 1861, e, para esta parte do hemisfério austral, o novo ano começa em pleno Verão.

      Havia perto de dez meses que os moços náufragos do Sloughi tinham sido arremessados à ilha, a mil e oitocentas léguas da Nova Zelândia! É forçoso reconhecer que, durante este período, a sua situação melhorara pouco a pouco. Parecia mesmo que tinham a certeza de poderem satisfazer todas as necessidades da vida material. Mas sempre era o abandono numa terra desconhecida! Os socorros de fora - os únicos que eles podiam esperar - chegariam agora, antes que o bom tempo acabasse? A colónia estaria condenada a sofrer os rigores de um segundo Inverno antárctico? Até aqui, a doença não se fizera sentir. Todos, pequenos e grandes, tinham passado o melhor possível. Graças à prudência de Gordon, que os vigiava rigorosamente – o que às vezes provocava recriminações contra a sua severidade -, não se tinha cometido negligência alguma. No entanto, não se devia contar com as afecções a que raras vezes escapam as crianças desta idade, principalmente as mais novas? Enfim, se o presente era aceitável, o futuro apresentava muitas inquietações. Briant queria deixar a ilha Chairman a todo o custo, e pensava nisso sem cessar! Ora, com a única embarcação que possuíam, com a frágil canoa, como haviam de arriscar-se a empreender uma travessia que podia ser longa, se a ilha não pertencesse a algum dos grupos do Pacífico, ou se o continente mais próximo se achasse a algumas centenas de milhas? Mesmo que dois ou três dos mais ousados se prontificassem a ir procurar uma terra a leste, havia tantas probabilidades de não a alcançarem! Quanto a construírem um navio com o tamanho suficiente para atravessar estas paragens do Pacífico, podê-lo-iam? Não, decerto! Isso era superior às suas forças, e Briant não sabia o que havia de imaginar para a salvação de todos! Portanto, esperar, esperar ainda, e trabalhar para tornar a instalação em French-den mais confortável - não havia outra coisa a fazer. Depois, se não fosse este Verão, porque o trabalho era urgente, prevendo a estação do frio, pelo menos, no Verão próximo, os moços colonos acabariam por reconhecer inteiramente a ilha.

      Todos se puseram a trabalhar com afinco. A experiência já tinha mostrado o que eram os rigores do Inverno nesta latitude. Durante semanas, e até meses, seriam obrigados pelo mau tempo a estar encarcerados no hall, e era prudente precaverem-se contra o frio e a fome - os dois Inimigos mais temíveis.

      Combater o frio em French-den era questão apenas de combustível, e o Outono, por muito curto que fosse, não acabaria antes de Gordon ter armazenado bastante lenha para alimentar os fogões de dia e de noite. Mas não se devia pensar também nos animais domésticos, que estavam no cerrado e na capoeira? Abrigá-los em Store-room seria um incómodo excessivo, e até uma imprudência debaixo do ponto de vista higiénico. Portanto, era necessário tornar o alpendre do cerrado mais habitável, defendê-lo contra as temperaturas baixas, aquecê-lo, conservando lá uma fogueira que pudesse manter sempre o ar interior num grau suportável. Foi a isso que se aplicaram Baxter, Briant, Service e Moko durante o primeiro mês do novo ano.

      Quanto à questão, não menos grave, da alimentação para todo o período invernoso, Doniphan e os seus companheiros de caça encarregaram-se de resolvê-la. Visitavam todos os dias as armadilhas, os laços e as redes. O que não servia para consumo diário ia aumentar as reservas da despensa, em forma de carnes salgadas ou secas, que Moko preparava com grande cuidado.

      Assim, o alimento estava certo, por muito longo e rigoroso que o Inverno fosse.

      Entretanto, tornava-se necessária outra exploração: era a que teria por fim reconhecer, não os territórios desconhecidos da ilha Chairman, mas, pelo menos, a parte compreendida a leste de Family-lake. Compor-se-ia de florestas, de pântanos ou de dunas? Apresentaria novos recursos que pudessem ser utilizados?

      Um dia Briant conferenciou com Gordon a este respeito, encarando-o, além disso, de outra maneira.

      - Posto que o mapa do náufrago Baudoin fosse feito com uma certa exactidão, que pudemos verificar - ponderou ele -, não seria mau tomar conhecimento do Pacífico, a leste. Temos à nossa disposição óculos excelentes que o meu compatriota não possuía, e quem sabe se avistaríamos terras que ele não pôde ver? O seu mapa apresenta a ilha Chairman como isolada nestas paragens, e talvez não o esteja!

      - Continuas com a tua ideia - observou-lhe Gordon – e tarda-te partir?...

      - Sim, Gordon, e tenho a certeza de que pensas como eu! O fim de todos os nossos esforços não deve ser voltar à pátria o mais breve possível?

      - Sim - concordou Gordon - e, já que o desejas, organizaremos uma expedição...

      - E todos tomarão parte nela? - perguntou Briant.

      - Não. Parece-me que seis ou sete dos nossos camaradas...

      - Ainda é muito, Gordon! Sendo tantos, não poderiam fazer outra coisa senão rodear o lago pelo norte ou pelo sul, e isso talvez exigisse muito tempo e muita fadiga!

      - Então o que propões, Briant?

      - Proponho que se atravesse o lago na canoa, partindo de French-den, a fim de chegar à margem oposta, e, para isso, irem só dois ou três.

      - E quem dirige a canoa?

      - Moko - respondeu Briant. - Sabe manobrar uma embarcação, e eu mesmo percebo alguma coisa disso. Com a vela, se o vento for bom, ou com dois remos, se for contrário, podemos transpor facilmente as cinco ou seis milhas que o lago mede na direcção do curso de água, que, segundo as indicações do mapa, atravessa as florestas do leste, e desceremos até à embocadura.

      - Está dito, Briant - decidiu Gordon -, aprovo a tua ideia. E quem acompanha Moko?

      - Eu, Gordon, porque não fiz parte da expedição ao norte do lago. Devo tornar-me útil... é a minha vez... Reclamo-a...

      - Útil! - exclamou Gordon. - Não nos tens prestado mil serviços, meu caro Briant? Não te tens sacrificado mais do que qualquer outro? Não tens já direito ao nosso reconhecimento?

      - Ora vamos, Gordon! Todos nós temos feito o nosso dever! Então está combinado?

      - Está combinado, Briant. Quem escolhes para terceiro companheiro de jornada? Não te proponho Doniphan, porque não se dão bem...

      - Oh! Aceitá-lo-ia de boa vontade! - declarou Briant. - Doniphan não tem mau coração, é corajoso, hábil, e se não fosse o seu carácter invejoso era um excelente camarada. Além disso, corrigir-se-á a pouco e pouco, quando tiver compreendido que eu não quero governar nem humilhar ninguém, e estou certo de que nos tornaremos os melhores amigos do mundo. Mas já pensei noutro companheiro de viagem.

      - Quem?

      - Meu irmão Jaime - declarou Briant. - O seu estado inquieta-me cada vez mais. É evidente que cometeu alguma falta grave que não quer confessar. Talvez, durante esta excursão, estando só comigo...

      - Tens razão, Briant. Leva Jaime, e começa já hoje os teus preparativos de viagem.

      - Não levarei muito tempo - respondeu Briant -, porque a nossa ausência não deve durar mais de dois ou três dias.

      Gordon deu parte, nesse mesmo dia, da expedição projectada. Doniphan mostrou-se muito despeitado por não tomar parte nela, e, queixando-se a Gordon, este fez-lhe compreender que, nas condições em que devia ser feita, esta expedição não exigia mais de três pessoas, e, como a ideia era de Briant, pertencia-lhe a ele pô-la em execução, etc.

      - Enfim - resmungou Doniphan -, as ideias são sempre dele; não é verdade, Gordon?

      - És injusto, Doniphan, injusto para com Briant e até para comigo!

        Doniphan não insistiu, e foi reunir-se aos seus amigos Wilcox, Cross e Webb, com os quais pôde expandir à vontade o seu mau humor.

      Quando o grumete soube que ia trocar momentaneamente as funções de cozinheiro pelas de patrão da canoa, não pôde ocultar o contentamento. Além disso, acompanhar Briant dava-lhe um prazer particular. O seu substituto no fogão de Store-room seria Service, que se regozijava com a ideia de poder guisar a capricho, sem ser ajudado por pessoa alguma. Quanto a Jaime, a proposta de acompanhar o irmão e deixar French-den por alguns dias pareceu agradar-lhe.

      A canoa foi logo posta em estado de servir. A sua armação era a velazinha latina, que Moko envergou e enrolou ao longo do mastro. Duas espingardas, três revólveres, munições em quantidade suficiente, três cobertores de viagem, provisões líquidas e sólidas, capotes de oleado para o caso de chover, dois remos, com um par de reserva, era todo o material necessário para uma expedição que não devia durar muito – não esquecendo a cópia que se fizera do mapa do náufrago, e à qual se acrescentariam novos nomes à medida que se fizessem descobertas.

      No dia 4 de Fevereiro, pelas oito horas da manhã, Briant, Jaime e Moko, depois de se terem despedido dos seus camaradas, embarcaram na represa do rio Zealand. O tempo estava bom - corria uma leve brisa do sudoeste. A vela foi içada, e Moko, colocado na ré, pegou na cana do leme, deixando a Briant o cuidado de dirigir a escota. Posto que a superfície do lago fosse apenas enrugada por sopros intermitentes, a canoa sentiu mais vivamente o efeito da brisa quando se achou um pouco ao largo. A sua rapidez aumentou. Meia hora depois, Gordon e os outros já não distinguiam senão um ponto negro, que ia em breve desaparecer.

      Moko Ia na ré, Briant no meio, e Jaime colocara-se na proa, junto do mastro. Durante uma hora avistaram-se as cristas elevadas de Auckland-hill; depois desapareceram no horizonte. Contudo, a margem oposta do lago não se distinguia ainda, apesar de não dever estar longe. Infelizmente, como acontece de ordinário, quando o sol toma forças, o vento mostrou tendência para abrandar, e pelo meio-dia não se manifestou senão por algumas rajadas caprichosas.

      - É pena - disse Briant - que a brisa não se conservasse durante o dia!...

      - Ainda era pior, Sr. Briant - respondeu Moko -, se ela se tivesse tornado contrária!

      - És filósofo, Moko!

      - Não sei o que essa palavra quer dizer - volveu o grumete.

      - O meu costume é tirar sempre partido de tudo o que sucede.

      - Isso exactamente é que é filosofia!

      - Pois seja filosofia, e vamos aos remos, Sr. Briant. Era bom que chegássemos à outra margem antes da noite. No fim de contas, se não chegarmos, o que há a fazer é ter resignação.

      - Dizes bem, Moko. Vou pegar num remo, tu pegas noutro, e Jaime vai para o leme.

      - Assim mesmo - aprovou o grumete. - E se o Sr. Jaime dirigir bem, faremos boa viagem.

      - Tu ensinas-me, Moko - redarguiu Jaime -, e eu farei por manobrar o melhor que puder.

        Moko amainou a vela, que nem já se movia, porque o vento cessara de todo. Os três rapazes foram comer alguma coisa. Em seguida, o grumete colocou-se na proa, enquanto Jaime se sentava na ré, ficando Briant no meio. A canoa, levada com vigor, dirigiu-se um pouco obliquamente para o nordeste, segundo indicava a bússola.

      A embarcação achava-se então no centro daquela vasta extensão de água, como se estivesse em pleno mar, porque a superfície do lago era limitada por uma linha periférica de céu. Jaime olhava atentamente na direcção de leste, para ver se a costa aparecia do lado oposto a French-den.

      Pelas três horas, o grumete pegou no óculo e pôde afirmar que distinguia indícios de terra.

      Um pouco mais tarde, Briant verificou que Moko não se enganara. Às quatro horas apareciam copas de árvores por cima de uma margem muito baixa - o que explicava a razão porque Briant não pudera distingui-la do cume de False-sea-point. Assim, a ilha Chairman não tinha outras elevações além das de Auckland-hill, que a acidentavam entre Sloughi-bay e Family-lake.

      Mais duas milhas e meia ou três milhas e alcançava-se a margem oriental. Briant e Moko manejavam os seus remos com ardor, não sem alguma fadiga, porque o calor era muito. A superfície do lago estava lisa como um espelho. A água, muito límpida, deixava ver a doze ou quinze pés o fundo eriçado de árvores aquáticas, entre as quais se agitavam miríades de peixes.

      Finalmente, pelas seis horas da tarde, a canoa abordou a uma praia, por cima da qual se inclinavam os ramos espessos das azinheiras e dos pinheiros marítimos. Esta praia, bastante elevada, não se prestava a um desembarque, e foi necessário segui-la, durante meia hora, pouco mais ou menos, subindo para o norte.

      - Aqui está o rio que vem indicado no mapa - observou então Briant.

        E apontava um alargamento da praia, por onde corria o excesso das águas do lago.

      - Parece-me acertado pôr-lhe um nome - lembrou o grumete.

      - Tens razão, Moko. Chamemos-lhe o East-river, porque corre ao oriente da ilha.

      - Está dito - aceitou Moko - e agora não nos resta senão seguir a corrente de East-river e descê-la para chegar à sua embocadura.

      - Amanhã faremos isso, Moko. É melhor passar a noite neste lugar. Ao romper do dia, deixaremos derivar a canoa, e poderemos assim reconhecer o território nas duas margens do rio.

      - Desembarcamos?... - perguntou Jaime.

      - Decerto - respondeu Briant -, e vamos acampar ao abrigo das árvores.

      Briant, Moko e Jaime saltaram para a praia, que formava o fundo de uma pequena enseada. Depois de amarrarem a canoa solidamente a um tronco, tiraram de lá as armas e as provisões.

      Acendeu-se uma boa fogueira de ramos secos junto de uma azinheira enorme. Cearam bolacha e carne fria, estenderam os cobertores no solo, e não precisaram de mais nada para adormecer profundamente. As armas tinham sido carregadas, na previsão de qualquer acontecimento; mas, apesar de se ouvirem alguns uivos ao cair da tarde, a noite passou-se sem novidade.

      - Vamos, a caminho! - exclamou Briant, que foi o primeiro a acordar, às seis horas da manhã.

      Em alguns minutos, tomaram todos três os seus lugares na canoa e deixaram-se ir na corrente do rio.

      A corrente era já bastante forte - a maré baixava havia meia hora - para não ser necessário recorrer aos remos. Assim, Briant e Jaime tinham-se sentado na proa da canoa, enquanto Moko, instalado na ré, se servia de um dos remos como leme, a fim de manter a frágil embarcação na corrente.

      - É provável - disse ele - que uma maré seja suficiente para nos levar até ao mar, se o East-river tem apenas cinco a seis milhas, porque a sua corrente é mais rápida do que a do rio Zealand.

      - Deus queira - respondeu Briant. - À volta, parece-me que teremos necessidade de duas ou três marés...

      - Decerto, Sr. Briant, e, se quiser, partiremos sem demora...

      - Sim, Moko - aprovou Briant -, logo que tivermos visto se existe ou não alguma terra nas margens a leste da ilha Chairman.

      Entretanto, a canoa deslizava com uma rapidez que Moko calculava em mais de uma milha por hora. Além disso, o East-river seguia uma direcção quase rectilínea, que foi marcada a es-nordeste, segundo a bússola. O seu leito era mais profundo do que o do rio Zealand e também menos largo – apenas uns trinta pés -, o que explicava a rapidez do seu curso. O receio de Briant era que ele se transformasse em catadupas, em turbilhões, e não fosse navegável até à costa. Em todo o caso, tinham tempo de se prevenir, no caso de aparecer algum obstáculo.

      Estava-se em plena floresta, no meio de uma vegetação muito espessa. Encontravam-se ali as mesmas espécies, pouco mais ou menos, que em Traps-woods, com a diferença de haver mais quantidade de azinheiras, sobreiros e pinheiros. Entre outras - apesar de estar menos familiarizado do que Gordon com as coisas da botânica. -, Briant reconheceu uma certa árvore da qual existem muitos exemplares na Nova Zelândia. Esta árvore, que abria os seus ramos a uns sessenta pés acima do solo, dava frutos cónicos, do comprimento de três a quatro polegadas, agudos na extremidade e cobertos por uma espécie de escama luzente.

      - Deve ser o pinheiro pinhão! - exclamou Briant.

      - Se não se engana, Sr. Briant - volveu Moko. -, paremos um momento. Vale a pena!

      Uma pancada com o remo dirigiu a canoa para a margem esquerda. Briant e Jaime saltaram para a praia. Alguns minutos depois trouxeram uma farta colheita daqueles pinhões, cada um dos quais contém uma amêndoa de forma oval, envolvida numa película ligeira e perfumada como a avelã. Foi um achado precioso para os gulosos da colónia, e também porque estes frutos - o que Gordon lhes disse depois do regresso de Briant - produziam um óleo excelente.

      Também era importante reconhecer se aquela floresta era tão abundante em caça como as outras situadas ao ocidente de Family-lake. Devia sê-lo, porque Briant viu passar por entre o mato um bando de nandus e de vicunhas espantadas, e até um casal de guanacos, que fugiam com rapidez incrível. Quanto aos voláteis, Doniphan, se ali estivesse, poderia disparar alguns tiros de espingarda. Mas Briant absteve-se de gastar inutilmente a sua pólvora, pois a canoa continha provisões em quantidade suficiente.

      Pelas onze horas, era evidente que o maciço de árvores tendia a tornar-se menos espesso. Algumas clareiras arejavam o interior do bosque. Ao mesmo tempo, a brisa impregnava-se de um perfume salino, que indicava a proximidade do mar.

      E, alguns minutos mais tarde, bruscamente, para além de um grupo de azinheiras magníficas, apareceu uma linha azulada no horizonte.

      A corrente ia levando sempre a canoa - com menos rapidez, é verdade. As ondas iam fazer-se sentir no leito do East-river, então da largura de quarenta a cinquenta pés.

      Chegando junto dos rochedos que se erguiam no litoral, Moko impeliu a canoa para a margem esquerda; em seguida, deitando a ancoreta a terra, enterrou-a solidamente na areia, enquanto Briant e seu irmão desembarcavam atrás dele.

      Que aspecto tão diferente do que apresentava a costa a oeste da Ilha Chairman! Aqui abria-se uma baía profunda e exactamente à altura de Sloughi-bay; mas, em lugar de uma grande praia de areia, cercada por um cordão de recifes, limitada pela penedia que se erguia no plano posterior de Wreck-coast, era uma acumulação de rochas, no meio das quais Briant verificou que poderia encontrar vinte grutas em cada uma.

      Esta costa era, pois, muito habitável, e se a escuna tivesse encalhado neste ponto, e o seu desencalhe tivesse sido praticável, ter-se-ia abrigado na embocadura do East-river, num pequeno porto natural, onde não faltava a água, mesmo com a maré baixa.

      Ao princípio, Briant dirigira a vista para o largo, para o extremo horizonte daquela vasta baía. Desenvolvida num sector de quinze milhas, pouco mais ou menos, entre dois cabos arenosos, merecia o nome de golfo.

      Naquele momento, a baía estava deserta - como sempre, decerto. Não se avistava um navio, nem mesmo no seu perímetro, tão claramente recortado no fundo do céu! De terra ou ilha, nem sequer a aparência! Moko, habituado a reconhecer os lineamentos vagos das alturas, que se confundem muitas vezes com os vapores do largo, não descobriu coisa alguma com o óculo. A ilha Chairman parecia estar tão Isolada nas paragens de leste como nas de oeste.

      E eis porque o mapa do náufrago francês não indicava terra alguma naquela direcção.

      Dizer que Briant ficou muito desapontado seria exagerar.

      Não! Já esperava isto. Assim, achou muito simples dar àquela chanfradura da costa o nome de Deception-bay (baía da Decepção).

      - Vamos! - disse ele. - Não é ainda por este lado que podemos voltar.

      - Ora, Sr. Briant - respondeu Moko -, volta-se sempre, ou por um caminho ou por outro! Entretanto, parece-me que são horas de almoçar...

      - Pois sim - concordou Briant -, e depressa. A que horas poderá a canoa subir o East-river?

      - Se quiséssemos aproveitar a maré, devíamos embarcar imediatamente.

      - É impossível! Quero observar o horizonte em condições mais favoráveis e do alto de algum rochedo que domine a praia.

      - Então, Sr. Briant, seremos obrigados a esperar a maré próxima, que não se fará sentir no East-river antes das dez horas da noite.

      - Tens receio de navegar durante a noite? – perguntou Briant.

      - Não, e fá-lo-ei sem perigo - respondeu Moko -, porque temos lua-cheia. Além disso, o curso do rio é tão direito que é suficiente dirigir com um remo enquanto durar a enchente. Depois, quando a corrente descer, far-se-á a diligência para subi-la, ou, se for muito tarde, parar-se-á até romper o dia.

      - Bem, Moko, está combinado. E, como temos umas doze horas diante de nós, aproveitemo-las para completar a nossa exploração.

      Depois do almoço até à hora do jantar empregou-se o tempo todo em visitar aquela parte da costa, abrigada por maciços de árvores, que se juntavam mesmo ao pé das rochas.

      A respeito de caça, parecia ser tão abundante como nos arredores de French-den, e Briant matou alguns tinamus para a refeição da noite.

      O que caracterizava o aspecto daquele litoral era a acumulação de pedaços de granito. Desordem verdadeiramente grandiosa, aquele monte de rochedos gigantescos - espécie de campo de Karnak, cuja disposição irregular não era devida à mão do homem. Viam-se ali escavações profundas, que se chamam “chaminés” em alguns países célticos, e seria fácil instalarem-se entre as paredes delas. Não teriam faltado os halls nem os store-rooms para as necessidades da pequena colónia. Só num espaço de meia milha Briant achou uma dúzia destas escavações confortáveis.

      Por isso Briant perguntava a si mesmo por que motivo o náufrago não se refugiara naquela parte da ilha Chairman. Quanto a havê-la visitado, não podia existir dúvida a esse respeito, porque as linhas gerais daquela costa figuravam com exactidão no mapa. Portanto, se não se achavam vestígios da sua passagem, é porque, provavelmente, Francisco Baudoin tinha escolhido domicílio em French-den antes de levar a sua exploração até ao território de leste, e, achando-se ali menos exposto às tempestades do largo, julgara conveniente ficar lá. Explicação muito plausível, no fim de contas, e que Briant julgou dever aceitar. Perto das duas horas, quando o Sol tinha passado o ponto mais elevado da sua carreira, pareceu ser ocasião favorável de proceder a uma observação rigorosa do mar, ao largo da ilha. Briant, Jaime e Moko tentaram então escalar um maciço penhascoso, que se assemelhava a um urso enorme. Este maciço elevava-se uns cem pés acima do pequeno porto, e não foi sem dificuldade que alcançaram o seu cume.

      Daí, o olhar dominava a floresta que se estendia para o oeste até Family-lake, cuja superfície era oculta por uma vasta cortina de verdura. Ao sul, o território parecia sulcado de dunas amareladas, entrecortadas por alguns pinheiros negros, como nas áridas campinas dos países setentrionais. Ao norte, o contorno da baía terminava por uma ponta baixa, que formava o limite de uma vasta planície arenosa, situada para além da baía. Enfim, a ilha Chairman não era verdadeiramente fértil senão na parte central, onde a água doce do lago lhe derramava a vida, espalhando-se pelos diversos rios das suas duas margens.

      Briant dirigiu então o óculo para o horizonte de leste, que se desenhava, naquele momento, com grande nitidez. Todo o território situado num raio de sete a oito milhas aparecia com certeza através da objectiva do instrumento.

      Nada!... Nada, além do vasto mar, circunscrito pela linha contínua do céu!

      Durante uma hora, Briant, Jaime e Moko não cessaram de observar atentamente, e iam descer para a praia quando Moko deteve Briant.

      - Que é aquilo lá adiante!... - perguntou ele, estendendo a mão para nordeste.

      Briant assestou o óculo sobre o ponto indicado.

      Efectivamente, ali, um pouco acima do horizonte, brilhava uma mancha esbranquiçada que o olhar podia confundir com uma nuvem se o céu não estivesse completamente puro naquele momento. Além disso, depois de a ter observado com o óculo durante muito tempo Briant pôde afirmar que aquela mancha não mudava de lugar e que a sua forma não se alterava de modo algum.

      - Não sei o que possa ser - disse ele. - Talvez uma montanha! Mas, ainda assim, uma montanha não tem semelhante aparência!

      Alguns momentos depois, como o Sol declinava cada vez mais para o oeste, a mancha tinha desaparecido. Existiria algum território elevado, ou aquele colorido esbranquiçado seria apenas uma reflexão luminosa da água? Foi esta última hipótese que Jaime e Moko admitiram, posto que Briant entendesse dever conservar algumas dúvidas a este respeito.

      Terminada a exploração, todos três voltaram para o pequeno porto, na embocadura do East-river, ao fundo do qual a canoa estava atracada. Jaime foi apanhar ramos secos debaixo das árvores; em seguida acendeu uma fogueira, enquanto Moko preparava o seu assado de tinamus.

      Pelas sete horas, depois de terem comido com apetite, Jaime e Briant foram passear para a praia, esperando a ora da maré para embarcar.

      Moko, pelo seu lado, subiu a margem esquerda do rio, onde havia muitos pinheiros pinhões, dos quais queria apanhar alguns frutos.

      Quando voltou para a embocadura do East-river, começava a anoitecer. Ao longe, se o mar estava ainda iluminado pelos últimos raios solares que deslizavam pela superfície da ilha, o litoral já estava mergulhado numa escuridão quase completa.

      No momento em que Moko chegou junto da canoa, Briant e o seu irmão ainda não tinham regressado. Não podiam estar longe, não havia motivo para inquietações.

      Mas, de repente, Moko ficou muito surpreendido ao ouvir gemidos e exclamações. Não se enganava: era a voz de Briant.

      Os dois irmãos correriam algum perigo? O grumete não hesitou em lançar-se para a praia, depois de ter passado as rochas que fechavam o porto.

      Mas, de súbito, o que viu impediu-o de avançar mais.

      Jaime estava agarrado aos joelhos de Briant!... Parecia Implorá-lo, pedir-lhe misericórdia!... Eram esses os gemidos que tinham chegado aos ouvidos de Moko.

      O grumete queria retirar-se por discrição... Era tarde! Ouvira e compreendera tudo! Sabia agora qual era a falta que Jaime cometera, e da qual acabava de se acusar a seu Irmão! E este exclamava:

      - Desgraçado!... O quê, foste tu... tu que fizeste isso!... Tu és então a causa...

      - Perdoa-me... meu irmão... Perdoa-me!

      - Aí está porque te afastavas dos teus camaradas!... Porque tinhas medo deles!... Ah!... É preciso que eles nunca o saibam... Não!... Nem uma palavra!... Nem uma palavra a ninguém!

      Moko teria dado alguma coisa para não saber este segredo. Mas, agora, fingir ignorá-lo para com Briant custar-lhe-ia muito. Assim, alguns instantes depois, quando o achou só junto da canoa:

      - Sr. Briant - disse ele -, ouvi...

      - O quê? Sabes que Jaime?...

      - Sei, Sr. Briant... E é preciso perdoar-lhe...

      - Os outros perdoar-lhe-iam?...

      - Talvez! - admitiu Moko. - Em todo o caso, melhor é que não saibam nada, e tenha a certeza de que me calarei!

      - Ah! meu bom Moko! - murmurou Briant, apertando a mão do grumete.

      Durante duas horas, até ao momento de embarcar, Briant não dirigiu a palavra a Jaime. Este conservou-se sentado ao pé de uma rocha, mais abatido depois de, cedendo às instâncias de seu irmão, ter confessado tudo.

      Pelas dez horas, começando a maré a encher, Briant, Jaime e Moko tomaram lugar na canoa. Logo que a desamarraram, a corrente arrastou-a rapidamente. A Lua, que aparecera em seguida ao pôr do Sol, iluminava suficientemente o curso do East-river, para se poder navegar até à meia-noite e meia hora. A vazante, que começou então, obrigou a pegar nos remos e, durante uma hora, a canoa não subiu mais de uma milha.

      Briant propôs então que se ancorasse até romper o dia, a fim de esperar a maré - o que se fez. Às seis horas da manhã continuou-se a travessia, e eram nove horas quando a canoa entrou nas águas de Family-lake.

      Aí, Moko tornou a içar a vela, e, com uma leve brisa que lhe dava de través, meteu a proa em direcção a French-den.

      Perto das seis horas da tarde, depois de uma travessia feliz, durante a qual nem Briant nem Jaime tinham saído do seu mutismo, a canoa foi avistada por Garnett, que pescava nas bordas do lago. Alguns instantes mais tarde atracava ao dique e Gordon acolhia alegremente o regresso dos seus camaradas.

     

      Briant julgara conveniente guardar silêncio a respeito da cena surpreendida por Moko entre seu irmão e ele - mesmo em relação a Gordon. Quanto à descrição da exploração, fê-la aos seus camaradas, que estavam reunidos no hall.

      Descreveu a costa oriental da ilha Chairman, em toda a parte que circunscrevia Deception-bay, o curso do East-river através das florestas próximas do lago, tão ricas de árvores verdejantes.

      Afirmou que a instalação seria mais cómoda naquele litoral do que no do oeste, acrescentando que isso não era razão para se abandonar French-den. Pelo que dizia respeito àquela parte do Pacífico, não se avistava terra alguma.

      Contudo, Briant mencionou a mancha esbranquiçada que distinguira ao longe, e cuja presença por cima do horizonte não podia explicar. Provavelmente, era apenas uma voluta de vapores, e era conveniente verificá-lo quando se tornasse a visitar Deception-bay. Finalmente, o que parecia muito certo era a ilha Chairman não estar próxima de terra alguma naquelas paragens, e era, com certeza, separada por muitas centenas de milhas do continente ou dos arquipélagos mais próximos.

      Era necessário, pois, recomeçar corajosamente a luta pela vida, esperando que a salvação viesse de fora, que parecia pouco provável que os moços colonos pudessem obtê-la por suas mãos.

      Todos se puseram ao trabalho.

      Tomaram-se todas as medidas para se poder afrontar os rigores do Inverno próximo. Briant aplicou-se a isso com mais zelo do que tivera até ali. Contudo, parecia estar menos comunicativo, e, a exemplo de seu Irmão, mostrava alguma tendência para se afastar dos outros rapazes.

      Gordon, notando esta mudança de carácter, observou também que Briant procurava pôr Jaime à frente todas as vezes que era necessário mostrar coragem, afrontar algum perigo - o que Jaime aceitava imediatamente. No entanto, como Briant nunca disse nada que desse ocasião a ser interrogado, a esse respeito, por Gordon, este guardou silêncio, apesar de suspeitar que tinha havido qualquer explicação entre os dois irmãos.

      O mês de Fevereiro passou-se em trabalhos de diferentes géneros.

      Wilcox descobriu grande número de salmões na água doce de Family-lake, e apanharam-se alguns por meio de redes estendidas de uma margem do rio Zealand para a outra.

      A necessidade de conservá-los exigia grande quantidade de sal. Isto ocasionou muitas viagens a Sloughi-bay, onde Baxter e Briant estabeleceram uma pequena marinha de sal - um simples quadrado, aberto na areia, e no qual se depositava o sal, depois de as águas do mar se terem evaporado debaixo da acção dos raios solares.

      Durante a primeira quinzena de Março, três ou quatro dos moços colonos puderam explorar uma parte da região pantanosa dos South-moors, que se estendia sobre a margem esquerda do rio Zealand.

      Foi Doniphan quem se lembrou desta exploração, e Baxter, aconselhado por ele, fabricou alguns pares de andas, servindo-se para isso de restos do Sloughi. Como o pântano era coberto, em alguns pontos, por uma leve porção de água, as andas permitiam que passassem a pé enxuto até às superfícies sólidas.

      No dia 17 de Abril, pela manhã, Doniphan, Webb e Wilcox, depois de terem atravessado o rio na canoa, desembarcaram na margem esquerda. Traziam as espingardas a tiracolo. Doniphan armara-se até com o espingardão que o arsenal de French-den possuía, pensando que era uma ocasião excelente para se servir dele.

      Logo que os três caçadores chegaram à praia, calçaram as andas, a fim de chegarem às elevações do pântano, que emergiam também do mar alto.

      Phann acompanhava-os.

      Esse não precisava de andas, e não tinha receio de molhar as patas, saltando através das poças de água.

      Depois de terem percorrido uma milha na direcção do sudoeste, Doniphan, Wilcox e Webb chegaram à parte seca do pântano. Tiraram então as andas, a fim de estarem mais à vontade para seguir a caça.

      Daquela vasta extensão dos South-moors, o olhar não via o mar, a não ser a leste, onde a linha azul do mar se arredondava no horizonte.

      Que quantidade de caça à superfície, narcejas, patos, francolins, tarambolas, cercetas e milhares desses patos negros, mais estimados pela plumagem do que pela carne, mas que, preparados convenientemente, dão um manjar muito aceitável!

      Doniphan e os dois camaradas teriam podido atirar a centenas destas inumeráveis aves aquáticas, sem perderem um único grão de chumbo. Mas foram razoáveis e contentaram-se com algumas dúzias de voláteis que Phann rapidamente ia apanhar até ao meio dos grandes charcos do pântano.

      Contudo, Doniphan teve grandes tentações de matar uns outros animais, que não poderiam figurar na mesa de Store-room, apesar de todo o talento culinário do grumete.

      Eram alguns tinócoros, pertencentes à família dos pernaltas e das garças, ornados com um brilhante penacho de penas brancas.

      Se o moço caçador se conteve - pois seria queimar pólvora sem resultado -, não sucedeu o mesmo quando avistou um bando de flamingos, de asas cor de fogo, que têm predilecção pelas águas salobras, e cuja carne não é inferior à da perdiz. Estes voláteis, enfileirados em boa ordem, eram guardados por sentinelas, que deram sinal logo que sentiram o perigo.

      À vista destes magníficos exemplares da ornitologia da ilha, Doniphan entregou-se aos seus instintos. Wilcox e Webb não foram mais prudentes do que ele. Correram, pois, todos três para aquele lado - inutilmente. Ignoravam que, se se tivessem aproximado sem serem vistos, podiam ter morto aqueles flamingos à sua vontade, porque as detonações deixavam-nos estupefactos, mas não os punham em fuga.

      Portanto, foi em vão que Doniphan, Webb e Wilcox tentaram alcançar aqueles soberbos palmípedes, que mediam mais de quatro pés desde a extremidade do bico até ao fim da cauda.

      As sentinelas tinham dado alarme e o bando desapareceu para o sul, antes de ser possível alcançá-lo, mesmo com a espingarda de grande alcance.

      Contudo, os três caçadores voltaram com bastante caça para não terem que lastimar o seu passeio através dos South-moors. Chegando ao limite das poças de água, tornaram a pôr as andas e voltaram para a margem do rio, prometendo renovar uma excursão que os primeiros frios tornariam ainda mais frutuosa.

      Além disso, Gordon não devia esperar que chegasse o Inverno para pôr French-den em estado de lhe suportar os rigores.

      Era necessário fazer boa provisão de combustível, a fim de ter certa a lenha para os currais e para a capoeira. Organizaram-se numerosas visitas para esse fim à entrada de Bog-woods.

      O carro, puxado pelos dois guanacos, desceu e subiu a praia umas poucas de vezes por dia, durante uma quinzena.

      E agora, ainda que o Inverno durasse seis meses ou mais, com uma porção de lenha considerável e a reserva do óleo de foca, French-den não tinha que recear o frio nem a escuridão.

      Estes trabalhos não impediam que se seguisse o programa organizado para a Instrução da pequena colónia.

      Os mais velhos davam lição, alternadamente, aos mais pequenos.

      Durante as conferências que se realizavam duas vezes – por semana, Doniphan continuava a ostentar a sua superioridade – o que não contribuía para que ele adquirisse muitos amigos.

      Assim, à excepção dos seus partidários do costume, não era bem visto pelos outros. E, contudo, antes de dois meses, quando terminassem as funções de Gordon, Doniphan contava suceder-lhe como chefe da colónia. O seu amor-próprio dizia-lhe que tinha direito a esta situação. Não era uma verdadeira injustiça não ter sido eleito na primeira votação? Wilcox, Cross e Webb animavam desastradamente estas ideias; sondavam, mesmo, o terreno a propósito da eleição futura e pareciam estar certos do triunfo.

      Contudo, Doniphan não tinha a maioria entre os seus camaradas. Os mais novos, sobretudo, não pareciam dispostos a declarar-se por ele - nem também por Gordon.

      Este via claramente toda a intriga, e, apesar de ser reelegível, não tinha empenho, como se sabe, em conservar esta situação. Compreendia que a severidade que mostrara durante “o seu ano de presidência” não podia granjear-lhe votos. As suas maneiras um pouco rudes, o seu espírito talvez excessivamente prático, tinham desagradado muitas vezes, e Doniphan esperava que esse desagrado lhe fosse proveitoso. Na época da eleição devia haver uma luta interessante de observar.

      O que os pequenos censuravam, principalmente, a Gordon era a sua economia, muito rigorosa com respeito aos pratos doces. Além disso, repreendia-os quando eles não tinham cuidado no fato, quando entravam em French-den com uma nódoa ou um rasgão, e, sobretudo, com os sapatos esburacados -, o que exigia consertos incessantes e tornava muito grave esta questão de calçado.

      E depois, por causa de botões perdidos, quantas repreensões, e, às vezes, quantos castigos! Esta questão de botões de casaco ou de calção era muito importante, e Gordon obrigava-os a apresentar todas as noites a conta do costume, senão eram privados de sobremesa ou presos toda a noite.

      Briant então intercedia, ora por Jenkins, ora por Dole, e isto adquiria-lhe muita popularidade. Além disso, os pequenos sabiam que os dois funcionários da despensa, Service e Moko, eram dedicados a Briant, e, se este viesse a ser chefe da ilha Chairman, proporcionar-lhes-ia um futuro saboroso em que as gulodices não seriam poupadas!...

      De que dependem as coisas neste mundo! Esta colónia de rapazes não era realmente a imagem da sociedade, e as crianças não têm tendência para se “fazerem homens”, mesmo no começo da vida?

      Briant não se interessava por estas questões. Trabalhava sem descanso, não poupando seu irmão; eram sempre os primeiros a começar e os últimos a acabar, como se ambos tivessem mais particularmente um dever a cumprir.

      Entretanto, os dias não eram consagrados inteiramente à instrução comum. O programa reservara algumas horas para o recreio.

      Uma das condições para ter saúde é fazer uso dos exercícios de ginástica. Pequenos e grandes, todos tomavam parte neles. Trepavam às árvores, içando-se até aos primeiros ramos por meio de uma corda enrolada à roda do corpo. Saltavam grandes espaços com o auxílio de varas compridas. Banhavam-se nas águas do lago, e os que não sabiam nadar aprenderam depressa. Organizavam corridas com prémios para os que chegavam primeiro. Exercitavam-se no manejo das bolas e do lazzo.

      Havia também alguns destes jogos muito usados pelos moços ingleses, e, além dos que já se mencionaram, o cricket, os rounders, nos quais a bola é arremessada por um grande pau em cima de cavilhas de madeira dispostas em cada um dos ângulos de um vasto pentágono regular, e os quoits, que exigem, particularmente, força no braço e golpe de vista.

      Mas é necessário descrever este jogo com mais minuciosidade porque, um dia, foi causa de uma cena lamentável entre Briant e Doniphan.

      Foi o dia 25 de Abril, à tarde. Divididos em dois campos, em número de oito, Doniphan, Webb, Wilcox e Cross, de um lado, Briant, Baxter, Garnett e Service, do outro, jogavam uma partida de quoits no prado de Sport-terrace.

      Na superfície deste terreno plano tinham sido colocadas duas cavilhas, dois hobs, a cinquenta pés, pouco mais ou menos, uma da outra. Cada um dos jogadores estava munido de dois quoits, espécie de rodelas de metal, com um buraco no centro, e mais delgadas na circunferência do que no meio.

      Neste jogo, cada jogador deve atirar os seus quoits sucessivamente e com muita destreza, para eles poderem encaixar-se primeiro na primeira cavilha, e depois na segunda. Se consegue atingir um dos hobs, o jogador marca dois pontos, e quatro se consegue atingir dois. Quando os cuoits chegam apenas a aproximar-se do hob, marca-se dois pontos pelos dois que estão mais perto do alvo, e um ponto se há apenas um quoit colocado em boa posição.

      Naquele dia os jogadores estavam muito animados, e isto pelo facto de Doniphan estar num campo oposto ao de Briant, o que fazia com que todos tomassem um interesse extraordinário pelo jogo.

      Já se tinham jogado duas partidas. Briant, Baxter, Service e Garnett tinham ganho a primeira, marcando sete pontos, enquanto que os seus adversários tinham ganho a segunda com seis, apenas.

      Estava-se então a jogar la belle. Ora, os dois campos tinham chegado ambos a cinco pontos, e faltava só atirar dois quoits.

      - É a tua vez, Doniphan - advertiu Webb -, aponta bem! É o nosso último quoit, e trata-se de ganhar!

      - Não tenhas medo! - respondeu Doniphan.

      E pôs-se em posição de atirar, com um dos pés colocado adiante do outro, a rodela na mão direita, o corpo um pouco inclinado, o busto levemente descaído sobre a ilharga esquerda, a fim de atirar com mais certeza.

      Via-se que o vaidoso rapaz tinha verdadeiro desejo de ganhar, com os dentes cerrados, as faces um pouco pálidas, o olhar vivo e as sobrancelhas carregadas.

      Depois de ter apontado cuidadosamente, balouçando a rodela, projectou-a horizontal e vigorosamente, porque o alvo estava colocado a uns cinquenta pés.

      A rodela não alcançou a borda extrema do hob, e, em vez de se encaixar na cavilha, caiu no chão - o que não deu mais de seis pontos, ao todo.

      Doniphan não pôde conter um gesto de despeito e bateu o pé, encolerizado.

      - É pena - disse Cross -, mas não perdemos por isso, Doniphan!

      - Não, decerto - acrescentou Wilcox -, e, a não ser que Briant encaixe o seu, não se pode fazer melhor.

      Efectivamente, se a rodela que Briant ia atirar - era agora a sua vez - não se fixasse no hob, o seu campo perdia a partida, porque era quase impossível colocá-la mais perto do que a de Doniphan.

      - Aponta bem!... Aponta bem! - recomendou Service.

      Briant não respondeu, não querendo desagradar a Doniphan.

      Não pensava senão numa coisa: ganhar a partida, ainda mais pelos seus camaradas do que por ele.

      Colocou-se, portanto, em posição, e enviou com tanta certeza a sua rodela que esta foi encaixar-se no hob.

      - Sete pontos! - exclamou Service com ar de triunfo. – Está ganha a partida, está ganha!

      Doniphan adiantou-se vivamente.

      - Não, a partida não está ganha! - disse ele.

      - Porquê? - perguntou Baxter.

      - Porque Briant fez trapaça!

      - Trapaça? - respondeu Briant, que empalideceu ao ouvir esta acusação.

      - Sim!... trapaça! - repetiu Doniphan. - Briant não tinha os pés na linha onde deviam estar!... Aproximou-se dois passos!

      - É falso! - exclamou Service.

      - Sim, é falso! - reforçou Briant. - Admitindo, mesmo, que fosse verdade, era apenas um engano da minha parte, e eu não tolero que Doniphan me acuse de ter feito trapaça...

      - Sério!... Não toleras?... - disse Doniphan, encolhendo os ombros.

      - Não - volveu Briant, que começava a não estar senhor de si. - E, primeiro que tudo, vou provar que tinha os pés colocados exactamente na linha...

      - Sim!... Sim!... - exclamaram Baxter e Service.

      - Não!... Não!... - replicaram Webb e Cross.

      - Vejam o sinal dos meus sapatos na areia! - tornou Briant.

      - E, como Doniphan não podia ter-se enganado, foi ele que mentiu.

      - Menti! - exclamou Doniphan, que se aproximou lentamente do seu camarada.

      Webb e Cross colocaram-se atrás dele, a fim de o defenderem, enquanto Service e Baxter se preparavam para auxiliar Briant, no caso de haver luta.

      Doniphan tomara a posição de jogador de murro, com a jaqueta despida, as mangas arregaçadas até ao cotovelo, o lenço enrolado à roda do pulso.

      Briant, que recuperara o sangue-frio, conservava-se imóvel, como se lhe repugnasse bater-se com um dos seus camaradas e dar semelhante exemplo à colónia.

      - Fizeste mal em insultar-me, Doniphan - disse ele -, e agora fazes mal em vires provocar-me!...

      - Efectivamente - respondeu Doniphan, com ar de profundo desprezo -, é sempre tolice provocar os que não sabem responder às provocações!

      - Se não lhes respondo - retorquiu Briant -, é porque não me convém responder!...

      - Se não respondes - replicou Doniphan - é porque tens medo!

      - Medo!... eu!...

      - E porque és um cobarde!.

      Briant arregaçou as mangas e dirigiu-se resolutamente para Doniphan.

      Os dois adversários estavam prontos para começarem o combate, um em frente do outro.

      Em Inglaterra, e mesmo nos colégios ingleses, o jogo do soco faz, por assim dizer, parte da educação. Nota-se, além disso, que os rapazes hábeis neste exercício são mais dóceis e mais pacientes do que os outros, e não questionam a propósito de tudo.

      Briant, na sua qualidade de francês, nunca tivera predilecção por essa troca de murros que se dirigem unicamente ao rosto.

      Achava-se portanto inferior ao seu adversário, que era um pugilista muito hábil, apesar de serem ambos da mesma idade, da mesma estatura e sensivelmente iguais em vigor.

      A luta estava prestes a travar-se e ia realizar-se o primeiro assalto quando Gordon, que acabava de ser prevenido por Dole, correu a separá-los.

      - Briant!... Doniphan!... - exclamou ele.

      - Chamou-me mentiroso!... - explicou Doniphan.

      - Depois de ele me acusar de fazer trapaça e de me chamar cobarde - esclareceu Briant.

      Neste momento estavam todos reunidos em torno de Gordon. Os dois adversários tinham recuado alguns passos - Briant de braços cruzados, e Doniphan na atitude de jogador de soco.

      - Doniphan - disse então Gordon, com voz seca -, eu conheço Briant!... Não foi quem principiou a questão!... Foste tu o primeiro a provocar!...

      - Realmente, Gordon - replicou Doniphan -, bem se vê que estás sempre pronto para tomar partido contra mim!

      - Decerto... quando tu o mereces! - respondeu Gordon.

      - Pois seja! - tornou Doniphan. - Mas, seja quem for o culpado, se Briant recusa bater-se, é porque é um cobarde.

      - E tu, Doniphan - redarguiu Gordon -, és um mau rapaz e dás um exemplo detestável aos teus camaradas! O quê! Na grave situação em que estamos, há um de nós que não pensa senão em fazer discórdia, e ataca sempre o melhor de todos...

      - Briant, agradece a Gordon! - exclamou Doniphan. - E, agora, defende-te!

      - Não! - exclamou Gordon. - Eu, que sou chefe, oponho-me a qualquer cena de violência entre os dois! Briant, volta para French-den! E tu, Doniphan, vai desabafar a cólera para onde quiseres, e não apareças senão quando estiveres em estado de compreender que, não te dando razão, não fiz mais que o meu dever!

      - Sim!... Sim!... - exclamaram os outros, menos Webb, Wilcox e Cross. - Hurra por Gordon!... Hurra por Briant!

      Perante esta quase unanimidade, não havia mais que obedecer.

      Briant entrou no hall, e à noite, quando Doniphan voltou, a horas de dormir, não manifestou desejo algum de dar seguimento à questão.

      Contudo, via-se bem que ele nutria um rancor surdo contra Briant, e que a sua inimizade contra este aumentara com a lição que recebera de Gordon. Além disso, recusou-se às tentativas de reconciliação que este queria fazer.

      Estas dissensões eram muito desagradáveis e faziam perigar o sossego da pequena colónia. Doniphan tinha por seu lado Wilcox, Cross e Webb, que estavam sempre dispostos a auxiliá-lo e a dar-lhe razão a propósito de tudo, e não se devia recear uma cisão para o futuro?

      Em todo o caso, depois deste dia, não se tornou a falar na questão. Ninguém fez alusão ao que se tinha passado entre os dois rivais, e os trabalhos diários continuaram a executar-se, enquanto não chegava o Inverno.

      Este não podia tardar.

      Durante a primeira semana de Maio o frio foi tão intenso que Gordon deu ordem para se acenderem os fogões do hall, e conservarem-se acesos de dia e de noite. Daí a pouco foi necessário aquecer o telheiro do cerrado e da capoeira - o que pertencia às funções de Service e de Garnett, Algumas aves preparavam-se, nesta época, para emigrar aos bandos. Para que regiões iam elas? Devia ser para as regiões setentrionais do Pacífico ou do continente americano, cujo clima era menos rigoroso do que o da ilha Chairman.

      Entre estas aves figuravam, em primeiro lugar, as andorinhas, esses viajantes maravilhosos, capazes de se transportarem rapidamente a distâncias consideráveis.

      Preocupado constantemente com a ideia de empregar todos os meios possíveis para voltar à sua pátria, Briant lembrou-se então de aproveitar a partida destas aves para indicar a situação actual dos náufragos do Sloughi. Foi muito fácil apanhar algumas dúzias de andorinhas, da espécie das “rústicas”, porque elas iam fazer o ninho até no interior de Store-room. Puseram-lhes ao pescoço um saquinho de pano, que continha um bilhete indicando, pouco mais ou menos, em que parte do Pacífico se devia procurar a ilha Chairman, e pedindo para mandar aviso para Auckland, a capital da Nova Zelândia.

      Em seguida, soltaram as andorinhas, e não foi sem verdadeira comoção que os moços colonos exclamaram: - Até à vista! – no momento em que elas desapareciam na direcção do nordeste.

      Era uma probabilidade de salvação bastante modesta, mas, por muito pouco provável que fosse alguém apanhar aqueles bilhetes, Briant sempre tivera razão não a desprezando.

      No dia 25 de Maio apareceu a primeira neve; por consequência, alguns dias mais cedo do que no ano precedente. Desta precocidade do Inverno dever-se-ia concluir que fosse muito rigoroso? Era para recear, pelo menos. Felizmente, a luz, o calor e a alimentação estavam assegurados em French-den durante muitos meses, sem falar no produto dos South-moors, cuja caça descia muitas vezes às margens do rio Zealand.

      A roupa de abafar tinha sido distribuída havia algumas semanas, e Gordon trabalhava para que as medidas higiénicas fossem observadas rigorosamente.

      Foi durante este último período que em French-den se sentiu uma agitação secreta que trazia todos inquietos. Efectivamente, o ano para o qual Gordon fora nomeado chefe da ilha Chairman ia acabar no dia 10.

      Daí conferências, conciliábulos, e até se pode dizer intrigas, que agitavam seriamente a colónia. Gordon, como se sabe, queria conservar-se indiferente a tudo isto. Quanto a Briant, como era francês de origem, não pensava em governar uma colónia de rapazes quase todos ingleses.

      No fundo e sem o dar a conhecer, quem se inquietava mais com esta eleição era Doniphan. Evidentemente, com a sua inteligência pouco vulgar, a sua coragem, de que ninguém duvidava, tinha muitas probabilidades de vencer se não fosse o seu carácter altivo, o seu espírito dominador e os defeitos da sua natureza invejosa.

      Contudo, ou porque tivesse a certeza de suceder a Gordon, ou porque a sua vaidade o impedisse de mendigar votos, fingiu não se importar. Mas o que ele não fez fizeram-no os seus amigos por ele. Wilcox, Webb e Cross trabalhavam, com empenho, para convencer os outros a darem o seu sufrágio a Doniphan - sobretudo os mais pequenos, cujo voto era preciso. Ora, como não se falava em outro nome, Doniphan pôde considerar a sua eleição como certa, e com alguma razão.

      O dia 10 de Junho chegou.

      Era de tarde que se ia proceder ao escrutínio. Cada um devia escrever numa lista o nome daquele em quem queria votar. A maioria dos sufrágios decidiria. Como a colónia se compunha de catorze membros - pois Moko, na qualidade de preto, não podia pretender nem pretendia ser eleitor - sete votos, e mais um, a favor do mesmo nome, fixariam a escolha do novo chefe.

      O escrutínio abriu-se às duas horas, presidido por Gordon, e realizou-se com a gravidade que a raça anglo-saxónica emprega em todas as operações deste género.

      Depois de feita a contagem, os resultados foram os seguintes:

      Briant, 10 votos; Doniphan, 3 votos; Gordon, 1 voto.

      Nem Gordon nem Doniphan tinham querido tomar parte no escrutínio. Quanto a Briant, dera o seu voto a Gordon.

      Ao ouvir proclamar este resultado, Doniphan não pôde ocultar o seu desapontamento nem a irritação profunda que sentia.

      Briant, muito surpreendido por ter obtido o maior número de votos, esteve quase a recusar a honra que lhe faziam. Mas decerto que lhe ocorreu alguma ideia, porque, depois de ter olhado para seu irmão Jaime, declarou:

      - Obrigado, meus amigos, aceito!

      A partir deste dia, Briant era, por um ano, o chefe dos moços colonos da ilha Chairman.

     

      O que os seus companheiros tinham querido, escolhendo Briant, era fazer justiça ao seu carácter serviçal, à coragem de que ele dava provas todas as vezes que dependia dela a sorte da colónia, à sua dedicação Infatigável pelo interesse geral. Desde o dia em que, por assim dizer, tomara o comando da escuna, durante a travessia da Nova Zelândia à ilha Chairman, nunca recuou diante do perigo ou do trabalho. Apesar de ser de nacionalidade diferente, todos o estimavam, grandes e pequenos, principalmente estes últimos, dos quais ele tratara com tanto zelo e que tinham votado unanimemente por ele. Só Doniphan, Cross, Wilcox e Webb é que se negavam a reconhecer as qualidades de Briant; mas, no íntimo, sabiam perfeitamente que eram injustos para com o mais digno dos seus camaradas.

      Apesar de prever que esta escolha devia acentuar mais a dissidência que existia já, apesar de poder recear que Doniphan e os seus partidários tomassem alguma resolução deplorável, Gordon não poupou as felicitações a Briant. Por um lado, tinha o espírito muito equitativo para não aprovar a escolha dos seus camaradas, e, por outro, preferia não ter já de pensar senão na contabilidade de French-den.

      Contudo, desde este dia, foi visível que Doniphan e os seus três amigos estavam resolvidos a não suportar  este estado de coisas posto que Briant tivesse jurado a si mesmo não lhes dar ocasião para cometerem algum excesso.

      Quanto a Jaime, não foi sem alguma surpresa que viu seu irmão aceitar o resultado do escrutínio.

      - Então, queres?... - disse-lhe ele, sem acabar um pensamento, que Briant completou, respondendo em voz baixa:

      - Sim, quero ter ocasião de fazer ainda mais do que temos feito até agora para resgatar a tua culpa!

      - Obrigado, meu irmão - respondeu Jaime -, e não me poupes!

      No dia seguinte continuou o curso desta existência que os longos dias de Inverno iam tornar tão monótona.

      Antes que os grandes frios suspendessem as excursões a Sloughi-bay, Briant tomou uma medida que não deixava de ser útil.

      Como se sabe, tinha-se erguido um mastro de sinais numa das cristas mais elevadas de Auckland-hill. Ora, já não restavam senão farrapos do pavilhão içado no alto desse mastro, que tinha sido agitado durante algumas semanas pelo vento do largo. Tratava-se, pois, de o substituir por um aparelho capaz de suportar até as borrascas do Inverno. Por conselho de Briant, Baxter fabricou uma espécie de balão, tecido com os juncos flexíveis que eriçavam as bordas do pântano, e que poderia resistir, porque o vento passava através dele. Concluído este trabalho, fez-se uma última excursão à baía, no dia 17 de Junho, e Briant substituiu o pavilhão do Reino Unido por este novo sinal, que era visível num raio de muitas milhas.

      Entretanto, não estava longe o momento em que Briant e os seus “administrados” iam ser aquartelados em French-den. O termómetro descia lentamente, seguindo uma progressão contínua - o que indicava que haveria persistência de grandes frios.

      Briant mandou colocar a canoa em terra, no ângulo do contraforte. Aí cobriram-na com um oleado espesso, para que a secura não fizesse desunir as pranchas. Em seguida, Baxter e Wilcox armaram laços junto do cerrado, e abriram outras covas à entrada de Traps-woods.

      Finalmente, ergueram-se as armadilhas ao longo da margem esquerda do rio Zealand, de maneira a poderem sustentar nas malhas a caça aquática que as brisas violentas do sul arrastariam para o interior da ilha.

      Entretanto, Doniphan e dois ou três dos seus camaradas, em cima das suas andas, faziam excursões aos South-moors, de onde não voltavam nunca com as mãos vazias, mesmo poupando os tiros de espingarda, porque, a respeito de munições, Briant era tão económico como Gordon.

      Durante os primeiros dias de Julho, o rio começou a gelar. Os pedaços de gelo, que se formaram em Family-lake, eram levados pela corrente. Daí a pouco em consequência da sua acumulação um pouco abaixo de French-den, formou-se uma represa, e a superfície do lago já não era mais do que uma espessa crosta gelada. Com a continuação do frio, marcado já por uns doze graus centígrados abaixo de zero, o lago não tardaria em solidificar-se em toda a sua extensão. Efectivamente, depois de um ataque violento de rajadas que tornaram a solidificação mais demorada, o vento virou para sueste, o céu aclarou, e a temperatura desceu a perto de vinte graus abaixo do ponto de congelação.

      O programa da vida invernal começou-se nas condições em que fora estabelecido no ano precedente. Briant dirigia tudo, sem abusar da sua autoridade. Todos lhe obedeciam sem custo, e, além disso, Gordon facilitava-lhe a tarefa, dando o exemplo da obediência. Doniphan e os seus partidários nunca se insubordinavam. Ocupavam-se com o serviço diário das armadilhas e laços, que lhes pertencia especialmente, continuando a viver isolados, conversando em voz baixa, tomando raras vezes parte na conversação geral, mesmo durante as refeições e os serões da noite. Preparavam alguma conspiração? Ninguém o sabia. Enfim, não havia motivo para os censurar, e Briant não foi obrigado a intervir. Contentava-se em ser justo para com todos, guardando quase sempre para si os trabalhos penosos e difíceis, e não poupando seu irmão, que rivalizava em zelo com ele. Gordon pôde até observar que o carácter de Jaime mostrava tendência para modificar-se, e Moko via, não sem prazer, que, desde que tivera a explicação com Briant, o pequeno tomava parte, mais francamente, nas conversas e nas brincadeiras dos seus camaradas.

      Os estudos preenchiam as compridas horas que o frio obrigava a passar no hall. Jenkins, Iverson, Dole e Costar faziam progressos sensíveis. Enquanto os instruíam, os mais velhos não deixavam de se instruir também a si mesmos. Depois das lições, liam-se, em voz alta, narrações de viagens, às quais Service teria preferido a leitura dos seus Robinsons. Às vezes o acordeão de Garnett fazia ouvir uma dessas harmonias insípidas que o desastrado melómano “soprava” com uma convicção lastimável. Outros cantavam em coro algumas cantigas da sua infância. Depois, quando terminava o concerto, iam todos para as suas camas.

      Entretanto, Briant não deixava de pensar no regresso à Nova Zelândia. Era a sua preocupação constante. Nisto diferençava-se de Gordon, que não pensava senão em completar a organização da colónia na ilha Chairman. A presidência de Briant devia ser notada pelos esforços que seriam feitos com o fim de voltar à pátria. Ele pensava muitas vezes na mancha esbranquiçada que se distinguia ao largo de Deception-bay. Não pertenceria a alguma terra situada nas proximidades da ilha? - dizia ele consigo mesmo. E, sendo assim, não seria possível construir uma embarcação com a qual se tentasse chegar a essa terra? Mas, quando conversava a esse respeito com Baxter, este abanava a cabeça, compreendendo bem que semelhante trabalho era superior às forças deles!

      - Ah! Somos umas crianças - repetia Briant. - Sim! Umas crianças, quando devíamos ser homens!

      E era o seu maior pesar.

      Durante estas noites de Inverno, apesar de parecer que se estava em segurança em French-den, houve diferentes sustos. Phann fazia ouvir, por diversas vezes, grandes latidos de alarme, quando alguns bandos de carnívoros - quase sempre chacais - iam vaguear em torno do cerrado. Doniphan e os outros precipitavam-se então pela porta do hall, e, atirando carvões acesos àqueles malditos animais, conseguiam pô-los em fuga.

      Também por duas ou três vezes apareceram pelos arredores alguns casais de jaguares e de cuguardos, sem nunca se aproximarem tanto como os chacais. Aqueles eram recebidos a tiro de espingarda, apesar de não poderem ser feridos de morte, por causa da distância a que se achavam. Enfim, não foi sem custo que se conseguiu preservar o cerrado.

      No dia 24 de Julho, Moko teve ocasião de apresentar novos talentos culinários, no tempero de uma peça de caça, que todos saborearam, uns como entendedores, outros como gulosos.

      Wilcox e Baxter - que o ajudava de boa vontade - não se contentaram em estabelecer armadilhas para os animais, voláteis ou roedores, de espécie pequena. Curvando algumas das árvores que cresciam entre os maciços de Traps-woods, tinham instalado verdadeiros laços de nó corredio para a caça maior. Este género de armadilha é geralmente usado nas florestas, nos sítios onde há pegadas de cabritos monteses, e não é raro produzir bons resultados.

      Em Traps-woods não foi um cabrito, foi um magnífico flamingo que, na noite de 24 de Julho, foi prender-se num daqueles nós corredios, do qual não pôde livrar-se, apesar dos esforços que fez. No dia seguinte, quando Wilcox visitou os seus laços, o animal já estava estrangulado pelo anel com que a árvore, erguendo-se, lhe apertara a garganta. Este flamingo, depenado, limpo, recheado de ervas aromáticas e assado com esmero, foi declarado excelente. Todos tiveram o seu quinhão das asas e das coxas, e até da língua, que é o melhor que se pode comer sob a abóbada celeste!

      A primeira quinzena do mês de Agosto foi assinalada por quatro dias de um frio excessivo. Briant não viu sem apreensão o termómetro descer a trinta graus centígrados abaixo de zero. A pureza do ar era incomparável, e, o que acontece a maior parte das vezes com os grandes abaixamentos de temperatura, nem uma aragem perturbava a atmosfera.

      Durante este período não se podia sair de French-den sem se ser tomado instantaneamente pelo frio até à medula dos ossos. Foi proibido aos pequenos exporem-se ao ar - nem sequer um instante. Até os mais velhos não o faziam senão em caso de absoluta necessidade, principalmente para alimentar dia e noite os fogões do curral e da capoeira.

      Felizmente, estes frios duraram pouco. Perto do dia 6 de Agosto, o vento voltou para oeste. Sloughi-bay e o litoral de Wreck-coast foram então assaltados por borrascas temíveis, que, depois de terem açoutado as costas de Auckland-hill, ricochetearam por cima com uma violência incomparável. Contudo, French-den nada sofreu com isso. Seria preciso nada menos que um tremor de terra para aluir as suas paredes sólidas. As rajadas mais irresistíveis, as que fazem dar à costa os navios de alto bordo, ou derrubam edifícios de pedra, não exerciam influência alguma na penedia. Quanto às árvores derrubadas, e foram muitas, era trabalho poupado aos moços rachadores de lenha, quando se tratasse de renovar a provisão de combustível.

      Enfim, estas borrascas deram em resultado modificar-se profundamente o estado atmosférico, porque puseram termo aos grandes frios. A partir deste período, a temperatura subiu constantemente, e, logo que estas perturbações cessaram, conservou-se na média de sete a oito graus abaixo do ponto de congelação.

      A última quinzena de Agosto foi muito suportável. Briant pôde continuar os trabalhos interrompidos fora de French-den, à excepção da pesca, porque as águas do rio e do lago estavam ainda cobertas por uma espessa camada de gelo. Fizeram-se numerosas visitas às armadilhas, laços e redes, onde a caça marinha caía em abundância, e a despensa nunca deixou de estar fornecida de carne fresca.

      Quanto ao mais, o cerrado recebeu, passados dias, novos hóspedes. Além de ninhadas de abetardas e de galinhas-da-índia, nasceram também cinco vicunhas, às quais não faltaram os cuidados de Service e de Garnett.

      Foi nestas circunstâncias, visto que o estado do lago ainda o permitia, que Briant se lembrou de oferecer aos seus camaradas uma grande partida de patinagem.

      Com uma sola de pau e uma lâmina de ferro, Baxter conseguiu fabricar alguns pares de patins.

      Todos os rapazes estavam mais ou menos acostumados a este exercício, que é muito apreciado na Nova Zelândia, durante a força do Inverno, e ficaram satisfeitíssimos por terem ocasião de mostrar os seus talentos na superfície de Family-lake. Portanto, no dia 25 de Agosto, pelas onze horas da manhã, Briant, Gordon, Doniphan, Webb, Cross, Wilcox, Baxter, Garnett, Service, Jenkins e Jaime, deixando Iverson, Dole e Costar sob a vigilância de Moko e de Phann, saíram de French-den para procurarem um lugar onde a camada de gelo apresentasse uma vasta extensão boa para a patinagem.

      Briant levava uma das cornetas de bordo, a fim de chamar o seu exército no caso de alguns se afastarem para muito longe. Todos tinham almoçado antes de partir e tencionavam estar de volta a horas de jantar. Foi necessário subir a praia durante perto de três milhas antes de se achar um ponto conveniente, porque o Family-lake estava obstruído por bocados de gelo nas proximidades de French-den.

      Atravessando Traps-woods, os moços colonos pararam diante de uma superfície, solidificada uniformemente, que se estendia a perder de vista para o lado de leste.

      Era um magnífico campo de manobras para um exército de patinadores.

      É inútil dizer que Doniphan e Cross tinham levado as suas espingardas, na ideia de matarem alguma caça, se se apresentasse ocasião. Quanto a Briant e a Gordon, que nunca tinham apreciado muito este género de desporto, não acompanharam os outros senão para evitar alguma imprudência.

      Os patinadores mais hábeis da colónia eram, sem dúvida, Cross, Doniphan e Jaime, principalmente este, que excedia todos, tanto pela velocidade com que mudava de lugar, como pela exactidão com que traçava as curvas mais complicadas.

      Antes de dar o sinal da partida, Briant reuniu os seus camaradas e disse-lhes:

      - Não é preciso recomendar-lhes que sejam prudentes e ponham de parte toda a vaidade! Se não há que temer que o gelo se parta, deve-se sempre ter medo de partir um braço ou uma perna! Não se afastem para muito longe e não se esqueçam de que eu e Gordon os esperamos aqui. Quando ouvirem tocar a corneta, devem todos preparar-se para retirarem!

      Feitas estas recomendações, os patinadores arremessaram-se para o lago, e Briant ficou descansado ao vê-los apresentar uma destreza maravilhosa. Ao princípio houve algumas quedas, as quais não provocaram senão gargalhadas.

      Realmente, Jaime fazia maravilhas, atrás, à frente, num pé, nos dois, de pé, de cócoras, descrevendo círculos e elipses com uma regularidade perfeita. E que satisfação para Briant ver o pequeno tomar parte nas brincadeiras dos outros! É provável que Doniphan, o sportsman tão apaixonado por todos os exercícios de corpo, sentisse alguma inveja do sucesso de Jaime, que todos aplaudiam com entusiasmo. Assim, não tardou em afastar-se da praia, apesar das vivas recomendações de Briant. Mas quando chegou a certo ponto, fez sinal a Cross para ir ter com ele.

      - Olá, Cross - gritou ele -, estou vendo um bando de patos... acolá... para leste!... Não os vês?

      - Vejo, sim, Doniphan!

      - Trazes a tua espingarda?... Eu trago a minha!... Vamos a isso!...

      - Mas Briant proibiu!...

      - Ora! não me maces com o teu Briant!... A caminho... e, depressa!

      Num abrir e fechar de olhos, Doniphan e Cross tinham transposto meia milha, perseguindo o bando de aves que esvoaçavam à superfície do Family-lake.

      - Aonde vão eles? - perguntou Briant.

      - Talvez vissem lá adiante alguma caça - respondeu Gordon -, é o instinto de caçadores...

      - Ou, antes, o instinto da desobediência! - replicou Briant.

      - Doniphan sempre que...

      - Parece-te que lhes poderá suceder mal?

      - Quem sabe, Gordon?... É sempre imprudente afastarem-se muito!... Olha como eles já estão longe!

      E efectivamente, levados numa carreira rápida, Doniphan e Cross pareciam dois pequeninos pontos no horizonte do lago.

      Mesmo que tivessem tempo de voltar, porque o dia devia durar ainda algumas horas, era uma imprudência. Naquela época do ano devia-se sempre recear uma mudança repentina no estado da atmosfera. Uma modificação na direcção do vento era suficiente para trazer rajadas ou nevoeiros.

      Assim, imagine-se quais foram as apreensões de Briant quando, pelas duas horas, o horizonte se cobriu bruscamente por uma espessa camada de névoa.

      Neste momento, Cross e Doniphan ainda não tinham aparecido, e os vapores, agora acumulados à superfície do lago, ocultavam-lhes a margem ocidental.

      - Aí está o que eu receava! - exclamou Briant. – Como poderão agora voltar?

      - Dá o sinal... Dá o sinal! - recomendou vivamente Gordon.

      A corneta ressoou três vezes, e o som prolongou-se através do espaço. Talvez lhe respondessem com tiros de espingarda – o único meio de que Doniphan e Cross dispunham para darem a conhecer a sua posição.

      Briant e Gordon escutaram... Não ouviram detonação alguma.

      Entretanto, o nevoeiro já aumentara muito, tanto em espessura como em extensão, e as suas primeiras volutas desenrolavam-se a menos de um quarto de milha da praia. Ora, como subia, ao mesmo tempo, para as zonas elevadas, o lago devia desaparecer antes de alguns minutos.

      Briant chamou então os seus camaradas que estavam mais perto. Alguns momentos depois estavam todos reunidos na praia.

      - Que se há-de fazer?... - perguntou Gordon.

      - Tentar-se tudo para se achar Cross e Doniphan, antes que estejam completamente perdidos no meio do nevoeiro! Se um de nós seguir a direcção que eles tomaram, e procurar chamá-los com a corneta...

      - Estou pronto para ir! - ofereceu-se Baxter.

      - Nós também! - acrescentaram dois ou três dos outros.

      - Não!... Irei eu!... - disse Briant.

      - Hei-de ser eu, meu irmão! - acudiu Jaime. - Com os meus patins, depressa alcançarei Doniphan...

      - Pois vai!... - aceitou Briant. - Vai, Jaime, e repara bem se ouves tiros de espingarda!... Leva esta corneta, que há-de servir para dar a conhecer a tua presença!...

      - Sim, meu irmão!

      Um momento depois, Jaime tinha desaparecido no meio do nevoeiro, que se tornava cada vez mais opaco.

      Briant, Gordon e os outros prestaram o ouvido atentamente ao som da corneta tocada por Jaime; mas a distância extinguiu-o em breve.

      Decorreu meia hora. Não havia nenhumas notícias dos ausentes, nem de Cross ou de Doniphan, incapazes de se orientarem no lago, nem de Jaime, que se dirigia ao encontro deles.

      E que seria feito de todos três se a noite chegasse antes de terem regressado?

      - Ainda se tivéssemos armas de fogo - exclamou Service -, talvez...

      - Armas? - disse Briant. - Há-as em French-den!...

      Não temos um momento a perder!... A caminho.

      Era o melhor partido a tomar, porque, primeiro que tudo, tratava-se de indicar, tanto a Jaime como a Doniphan e a Cross, a direcção que deviam seguir para voltarem à margem do Family-lake. Portanto, o melhor seria regressarem pelo caminho mais curto a French-den, de onde podiam fazer-se sinais por meio de detonações sucessivas.

      Briant, Gordon e os outros percorreram as três milhas que os separavam de Sport-terrace em menos de meia hora.

      Nesta ocasião não se tratava de economizar a pólvora. Wilcox e Baxter carregaram duas espingardas, que foram disparadas na direcção de leste.

      Nada de resposta. Nem tiro, nem corneta.

      Eram já três horas e meia. O nevoeiro tendia a tornar-se mais espesso à medida que o Sol se escondia atrás do maciço de Auckland-hill. Era impossível ver alguma coisa à superfície do lago através daqueles vapores carregados.

      - O canhão! - lembrou Briant.

      Uma das duas peçazinhas do Sloughi - a que estava colocada através de uma das canhoneiras abertas junto da porta do hall, - foi arrastada para o meio de Sport-terrace e dirigida convenientemente para o nordeste.

      Carregaram-na com cartuchos de sinais, e Baxter ia puxar a corda do estopim quando Moko sugeriu a ideia de colocar uma bucha de erva, coberta de sebo, por cima do cartucho. Dizia que isso tornaria mais forte a detonação, e não se enganava.

      O tiro partiu - não sem que Dole e Costar tapassem os ouvidos.

      No meio de uma atmosfera tão serena, era inadmissível que esta detonação não se ouvisse, mesmo a uma distância de muitas milhas.

      Escutaram... Nada! Durante uma hora disparou-se a peça de dez em dez minutos. Era impossível que Doniphan, Cross e Jaime não compreendessem a significação destes tiros repetidos que indicavam a posição de French-den. Além disso, as descargas deviam ouvir-se em toda a superfície do Family-lake, porque os nevoeiros auxiliam muito a propagação longínqua dos sons, e esta propriedade aumenta com a sua espessura.

      Finalmente, um pouco antes das cinco horas ouviram-se distintamente dois ou três tiros de espingarda, ainda afastados, na direcção nordeste.

      - São eles! - exclamou Service.

      E Briant respondeu imediatamente com uma descarga ao sinal de Doniphan.

      Alguns instantes depois desenharam-se duas sombras através do nevoeiro, que era menos espesso perto da margem do que sobre o lago. Daí a pouco vieram novos hurras juntar-se aos hurras que partiam de Sport-terrace.

      Eram Doniphan e Cross.

      Jaime não vinha com eles.

      Imagine-se as angústias mortais de Briant! Seu irmão não pudera encontrar os dois caçadores, que nem sequer tinham ouvido os sons da corneta. Nesse momento Cross e Doniphan, procurando orientar-se, tinham descido para a parte meridional do Family-lake, enquanto Jaime caminhava para leste a fim de ir ter com eles. Os dois, mesmo, não teriam achado o caminho sem as detonações de French-den.

      Briant, todo entregue à ideia de seu irmão perdido no meio da névoa, não pensava em repreender Doniphan, cuja desobediência podia ter consequências tão graves. Se Jaime fosse obrigado a passar a noite no lago, com uma temperatura que ia talvez descer a quinze graus abaixo de zero, como poderia resistir a frios tão intensos?

      - Eu é que devia ter ido em seu lugar... sim, eu! – Repetia Briant, a quem Baxter e Gordon tentavam, em vão, dar alguma esperança.

      Dispararam-se ainda alguns tiros de canhão. Era evidente que, se Jaime estivesse perto de French-den, teria ouvido esses tiros e indicado a sua presença por meio da corneta.

      Mas, quando os últimos ruídos se perderam ao longe, as detonações ficaram sem resposta.

      E, como a noite começava a descer, a escuridão ia envolver toda a ilha.

      Entretanto, ocorreu uma circunstância muito favorável.

      O nevoeiro parecia tender a dissipar-se. A brisa, que aparecera ao sol-posto, como sucedia quase todas as tardes depois das calmarias da manhã, impelia o nevoeiro para leste, limpando a superfície do Family-lake. Em breve a dificuldade de achar French-den seria devida apenas à escuridão da noite.

      Nestas condições só havia uma coisa a fazer: acender uma grande fogueira na praia, a fim de poder servir de sinal. E Wilcox, Baxter e Service já estavam amontoando lenha no centro de Sport-terrace quando Gordon os deteve.

      - Esperem! - disse ele.

      Com o óculo assestado, Gordon olhava atentamente na direcção do nordeste.

      - Parece-me que vejo um ponto - declarou ele -, um ponto que se move...

        Briant pegou no óculo e olhou também.

      - Louvado seja Deus!... É ele!... - exclamou. - É Jaime!... Já o vejo!...

      E todos começaram a gritar com toda a força dos seus pulmões, como se os pudessem ouvir a uma distância que não podia ser calculada em menos de uma milha!

      Contudo, esta distância diminuía a olhos vistos. Jaime, com os patins nos pés, deslizava com a rapidez de uma flecha pela superfície gelada do lago, aproximando-se de French-den. Alguns minutos mais, e teria chegado junto deles.

      - Dir-se-ia que não vem só! - exclamou Baxter, que não pôde conter um gesto de surpresa.

      Efectivamente, uma observação mais atenta deu a conhecer que se moviam outros dois pontos atrás de Jaime, a uns cem pés dele.

      - Que é?... - perguntou Gordon.

      - Homens?... - interrogou Baxter.

      - Não!... Parecem animais!... - disse Wilcox.

      - Talvez carnívoros! - exclamou Doniphan.

      Não se enganava e, sem hesitar, de espingarda na mão, arremessou-se para o lago ao encontro de Jaime.

      Em poucos segundos Doniphan chegou junto do pequeno e disparou dois tiros sobre os carnívoros, que voltaram para trás e desapareceram bem depressa.

      Eram dois ursos, que ninguém esperava ver figurar na fauna chairmaniana! Se aqueles animais temíveis andavam pela ilha, por que motivo nunca tinham achado vestígios deles? Talvez não a habitassem, e, durante o Inverno, ou aventurando-se à superfície do mar gelado, ou embarcando nos pedaços de gelo flutuantes, aqueles ursos se arriscassem até àquelas paragens. E isto não parecia indicar que havia algum continente nas proximidades da ilha Chairman?... Era caso para reflectir.

      Fosse como fosse, Jaime estava salvo, e seu irmão apertava-o nos braços.

      As felicitações, os abraços e os apertos de mão não faltaram ao corajoso rapaz. Depois de ter tocado a corneta debalde, a fim de chamar os seus dois camaradas, estava perdido no meio do nevoeiro espesso, sem poder, de modo algum, orientar-se, quando se ouviram as primeiras detonações.

      - Não pode ser senão o canhão de French-den! - disse ele consigo mesmo, procurando distinguir de onde vinha o som.

      Estava então a muitas milhas da praia, a nordeste do lago.

      Correu imediatamente, com toda a ligeireza dos seus patins, na direcção que lhe indicavam. De repente, no momento em que o nevoeiro começava a dissipar-se, viu-se na presença de dois ursos, que se precipitaram para ele. Apesar do perigo, não perdeu o sangue-frio nem por um instante, e, graças à rapidez da sua carreira, pôde conservar os animais a certa distância. Mas, se tivesse dado uma queda, estaria perdido.

      E, chamando Briant de parte, enquanto voltavam para French-den:

      - Obrigado, meu irmão - disse ele em voz baixa -, obrigado por me permitires...

      Briant apertou-lhe a mão, sem responder.

      Em seguida, no momento em que Doniphan ia transpor a porta do hall, disse-lhe:

      - Proibi que te afastasses, e, como vês, a tua desobediência podia ter causado uma grande desgraça! Contudo, apesar de teres procedido mal, Doniphan, não te agradeço menos o teres socorrido Jaime!

      - Não fiz mais do que o meu dever - respondeu friamente Doniphan.

      E nem sequer tocou na mão que o seu camarada lhe estendia tão cordialmente.

     

      Seis semanas depois destes acontecimentos, pelas cinco horas da tarde, quatro dos moços colonos acabavam de parar na extremidade meridional do Family-lake.

      Estava-se a 10 de Outubro.

      A influência do bom tempo já se fazia sentir. Debaixo das árvores, cobertas de verdura, o solo recuperara a sua cor primaveril. Uma brisa ligeira enrugava levemente a superfície do lago, ainda iluminada pelos últimos raios do Sol, que roçavam pela vasta planície dos South-moors, cercada por estreita cinta de areia. Aves numerosas passavam aos bandos, voltando para os seus abrigos, à sombra dos bosques ou nas anfractuosidades da penedia.

      Alguns grupos de árvores de folhas persistentes, pinheiros, azinheiras e, a pouca distância, um pinhal de alguns acres, eram as únicas coisas que interrompiam a aridez monótona daquela parte da ilha Chairman. A moldura vegetal do lago estava quebrada neste ponto, e para tornar a encontrar o cortinado espesso das florestas seria preciso subir durante muitas milhas uma ou outra das duas margens laterais.

      Neste momento, uma boa fogueira acesa ao pé de um pinheiro marítimo projectava o seu fumo odorífero, que o vento impelia para cima do pântano.

      Diante de um lume crepitante, arranjado entre duas pedras, assava-se um casal de patos.

      Depois da ceia, os quatro rapazes não teriam mais nada a fazer do que embrulharem-se nos seus cobertores, e, enquanto um deles velasse, os outros três dormiriam tranquilamente até pela manhã.

      Eram Doniphan, Cross, Webb e Wilcox, e eis em que circunstâncias eles tinham resolvido separar-se dos seus camaradas.

      Durante as últimas semanas deste segundo Inverno que os moços acabavam de passar em French-den as relações entre Briant e Doniphan tinham esfriado cada vez mais.

      Sabe-se com que despeito Doniphan vira ser a eleição favorável ao seu rival. Isto tornara-o ainda mais invejoso, mais irritável; não se resignava sem custo a submeter-se às ordens do novo chefe da ilha Chairman. Se não lhe resistiu claramente, foi porque a maior parte dos outros não o teria ajudado e ele sabia isso perfeitamente. Contudo, em diversas ocasiões manifestara tão má vontade que Briant não pôde deixar de o repreender. Depois dos Incidentes da patinagem, onde a sua desobediência tinha sido flagrante, ou porque fosse levado pelos instintos de caçador, ou porque quisesse proceder a seu modo, a sua rebeldia não deixara de aumentar, e chegou o momento em que Briant ia ser obrigado a castigá-lo muito rigorosamente.

      Gordon, muito inquieto com este estado de coisas, conseguira até ali conter Briant. Mas este sentia que tinha a paciência gasta, e que, no interesse geral, para manter a ordem, era necessário um exemplo. Gordon tentava, debalde, levar Doniphan a melhores sentimentos. Se outrora tivera alguma influência nele, agora estava completamente perdida. Doniphan não lhe perdoava o ter tomado partido, muitas vezes, pelo seu rival. Assim, a intervenção de Gordon não teve resultado algum, e foi com profundo pesar que ele previu complicações muito próximas.

      Resultava de tudo isto que a boa ordem, indispensável para a tranquilidade dos hóspedes de French-den, estava destruída.

      Sentia-se um mal-estar moral, que tornava a existência em comum muito penosa. Efectivamente, a não ser às horas da comida, Doniphan e os seus partidários, Cross, Wilcox e Webb, em quem ele exercia influência cada vez maior, viviam à parte. Quando o mau tempo os impedia de irem à caça, reuniam-se num canto do hall e aí conversavam todos em voz baixa.

      - Com certeza - disse um dia Briant a Gordon - que combinam alguma coisa...

      - Mas não contra ti, Briant! - respondeu Gordon. – Tentar substituir-te? Doniphan não se atreveria!... Seríamos todos a teu favor, bem o sabes, e Doniphan não o ignora!

      - Talvez Wilcox, Cross, Webb e ele pensem em separar-se de nós?...

      - É provável, Briant, e não me parece que tenhamos direito de os impedir!

      - Não os vês, Gordon, lá ao longe...

      - Talvez eles não pensem nisso.

      - Pensam, com certeza. Vi Wilcox copiar o mapa do náufrago Baudoin, e é, evidentemente, com o fim de levar a cópia...

      - Wilcox fez isso?

      - Sim, Gordon, e, realmente não sei se, para acabar com estas questões, não seria melhor demitir-me a favor de outro... De ti, Gordon, ou mesmo de Doniphan!...

        Acabaria assim toda a rivalidade...

      - Não, Briant! - retorquiu Gordon, com energia. - Não!... Seria faltar aos teus deveres para com os que te nomearam... ao que deves a ti mesmo!

      Foi no meio destas dissensões desagradáveis que acabou o Inverno. Com os primeiros dias de Outubro, os frios tinham desaparecido definitivamente, a superfície do lago e a do rio estavam inteiramente livres. Foi então - na noite de 9 de Outubro - que Doniphan deu a conhecer a sua decisão de abandonar French-den, na companhia de Webb, Cross e Wilcox.

      - Queres abandonar-nos?... - perguntou Gordon.

      - Abandoná-los?... Não, Gordon! - respondeu Doniphan. - Cross, Wilcox, Webb e eu formámos o projecto de irmos residir para outra parte da ilha, nada mais.

      - E porquê, Doniphan?... - inquiriu Baxter.

      - Simplesmente porque desejamos viver a nosso modo e, digo-o francamente, porque não nos convém receber ordens de Briant!

      - Gostava de saber o que tens a censurar-me, Doniphan... - disse Briant.

      - Nada... a não ser o seres o nosso chefe! – respondeu Doniphan. - Já tivemos um americano por chefe de colónia!... Agora, é um francês que nos governa!... Já não falta senão Moko...

      - Não estás falando seriamente, Doniphan? - objectou Gordon.

      - O que é sério - volveu Doniphan, com orgulho - é que, se agrada aos nossos camaradas serem governados por um que não é inglês, isso não me agrada a mim nem aos meus amigos!

      - Seja! - admitiu Briant. - Wilcox, Webb, Cross e tu, Doniphan, têm a liberdade de partir e de levar a parte dos objectos a que têm direito!

      - Nunca duvidámos disso, Briant, e amanhã mesmo deixaremos French-den!

      - Deus queira que não se arrependam da vossa determinação! - acrescentou Gordon, compreendendo que qualquer insistência a este respeito seria inútil.

      Eis agora o projecto que Doniphan resolvera pôr em execução.

      Algumas semanas antes, descrevendo a sua excursão através da parte oriental da ilha Chairman, Briant afirmara que a pequena colónia podia ter-se instalado ali em boas condições.

      Os rochedos da costa continham grande número de cavernas, as florestas a oriente de Family-lake confinavam com a praia, o East-river fornecia água doce em abundância, a caça de pêlo e de pena pululava nas suas margens - enfim, a vida ali devia ser tão fácil como em French-den e muito mais do que seria em Sloughi-bay. Além disso, a distância entre French-den e a costa era apenas de doze milhas em linha recta, seis para a travessia do lago, e outras tantas, pouco mais ou menos, Para descer o curso do East-river. Portanto, em caso de necessidade absoluta, seria fácil comunicar com French-den.

      Foi depois de ter reflectido seriamente acerca destas vantagens que Doniphan decidira Wilcox, Cross e Webb a irem estabelecer-se com ele no outro litoral da ilha.

      Contudo, não era por mar que Doniphan tencionava chegar a Deception-bay.

      Descer a margem do Family-lake até à extremidade meridional, contornar essa extremidade, subir a margem oposta, a fim de atingir East-river, explorando uma região desconhecida ainda para eles, depois seguir o curso de água no meio da floresta até à sua embocadura, tal era o itinerário que ele tencionava seguir.

      Era uma jornada comprida - quinze a dezasseis milhas, pouco mais ou menos -, mas os seus camaradas e ele fá-la-iam como caçadores. Desta maneira, Doniphan evitava embarcar na canoa, que exigia, para ser bem dirigida, mãos mais experientes do que as suas.

      O halkett-boat, que ele queria levar, era suficiente para atravessar o East-river, e, em caso de necessidade, para transpor outros rios, se porventura os houvesse a leste da ilha.

      De mais a mais, esta primeira expedição não devia ter por objectivo senão reconhecer o litoral de Deception-bay, na intenção de se escolher aí o lugar onde Doniphan e os seus três amigos iriam estabelecer-se definitivamente. Assim, não querendo embaraçar-se com bagagens, resolveram levar apenas duas espingardas, quatro revólveres, duas machadinhas, munições em quantidade suficiente, linhas de pesca, cobertores de viagem, uma das bússolas de algibeira, a canoa de borracha e algumas conservas, esperando que a caça e a pesca lhes satisfizessem as necessidades.

      Além disso, esta expedição - julgavam eles - não devia durar mais de seis a sete dias. Quando tivessem escolhido morada, voltariam a French-den para levarem os objectos que provinham do Sloughi e dos quais eram legítimos possuidores, e carregariam o carro com esse material.

      Quando Gordon ou qualquer outro quisessem ir visitá-los, seriam bem recebidos; mas, quanto a partilhar a vida comum nas condições actuais, recusavam-se a isso absolutamente, e não consentiam sequer que se tornasse a discutir a esse respeito.

      No dia seguinte, ao nascer do Sol, Doniphan, Cross, Webb e Wilcox despediram-se dos seus camaradas, que ficaram muito tristes com esta separação. Eles próprios talvez estivessem mais comovidos do que pareciam, apesar de estarem firmemente decididos a realizar o seu projecto, no qual a obstinação tinha grande parte.

      Depois de terem atravessado o rio Zealand com a canoa que Moko conduziu para a represa, afastaram-se sem se apressarem muito, examinando ao mesmo tempo a parte inferior do Family-lake, que estreitava um pouco na extremidade, e a imensa planície dos South-moors, cujo fim não se via nem ao sul nem a oeste.

      Pelo caminho mataram-se algumas aves, mesmo na borda do pântano.

      Doniphan, compreendendo que devia economizar as munições, contentara-se com a caça necessária para o alimento diário.

      O tempo estava encoberto, mas não ameaçava chuva, e a brisa parecia fixar-se no nordeste. Durante este dia os quatro rapazes não percorreram mais de cinco a seis milhas, e chegando, pelas cinco horas, à extremidade do lago, pararam a fim de passarem aí a noite.

      Tais são os factos que tinham sucedido em French-den entre os últimos dias do mês de Agosto e 11 de Outubro.

      Assim, Doniphan, Cross, Wilcox e Webb estavam agora longe dos seus camaradas, dos quais nunca deviam ter-se separado! Sentir-se-iam já isolados? Sim, talvez! Mas, decididos a executar o seu projecto até ao fim, não pensavam senão em criar uma existência nova em qualquer outro ponto da ilha Chairman.

      No dia seguinte, depois de uma noite muito fria, que uma grande fogueira, acesa até de madrugada, tornara suportável, prepararam-se todos quatro para partir. A extremidade meridional do Family-lake formava um ângulo muito agudo na reunião das duas margens, das quais a direita subia quase perpendicularmente Para o norte.

      A leste, o território era ainda pantanoso, posto que a água não inundasse o solo ervoso, erguido alguns pés acima do lago. Era acidentado por algumas tumescências, atapetadas de ervas, sombreadas por árvores pouco frondosas. Como este território parecia formado principalmente por dunas, Doniphan pôs-lhe o nome de Down-lands (terra das Dunas). Depois, não querendo arriscar-se através do desconhecido, resolveu continuar a seguir a margem para chegar a East-river e à parte do litoral já reconhecida por Briant. Mais tarde tratar-se-ia de explorar aquela região das Down-lands até à costa.

      Contudo, os seus companheiros e ele discutiram a este respeito antes de se porem a caminho.

      - Se as distâncias estão marcadas no mapa com exactidão - ponderou Doniphan -, devemos encontrar o East-river a sete milhas, quanto muito, da extremidade do lago, e poderemos chegar lá sem muita fadiga antes da noite.

      - Porque não se há-de voltar para o nordeste, de maneira que se encontre o rio na sua embocadura? - observou Wilcox.

      - Efectivamente, isso poupar-nos-ia uma grande parte do caminho - acrescentou Webb.

      - Sim, talvez - disse Doniphan -, mas para que serve aventurarmo-nos por territórios pantanosos que não conhecemos e expormo-nos a voltar para trás? Pelo contrário, seguindo a margem do lago, há muitas probabilidades de não encontrarmos nenhum obstáculo no caminho!

      - E, depois - reforçou Cross -, temos interesse em explorar o curso do East-river.

      - Decerto - respondeu Doniphan -, porque esse rio estabelece comunicação directa entre a costa e Family-lake. Além disso, descendo-o, teremos também ocasião de visitar a parte da floresta que é atravessada por ele.

      Dito isto, puseram-se a caminho, e a passos largos. Uma calçada estreita dominava, uns três ou quatro pés, de um lado o nível do lago e do outro a grande planície de dunas, que se prolongavam para a direita. Como o solo subia sensivelmente, era de supor que o aspecto do território mudasse inteiramente algumas milhas adiante.

      Efectivamente, perto das onze horas, Doniphan e os seus companheiros pararam para almoçar à borda de uma pequena enseada sombreada por enormes faias. Daí tudo o que o olhar abrangia, na direcção do leste, era uma massa confusa de verdura que ocultava o horizonte.

      Uma cutia, morta naquela manhã por Wilcox, constituiu o prato principal da refeição, preparado, menos mal, por Cross, encarregado entre eles de substituir Moko como cozinheiro.

      Depois de devorarem alguns pedaços de carne, assada a uns carvões ardentes, e de apaziguarem a sede, ao mesmo tempo, Doniphan e os seus companheiros caminharam para a margem do Family-lake.

      Esta floresta, cuja extremidade era seguida pelo lago, era formada das mesmas espécies que os Traps-woods da parte ocidental.

      As árvores de folhas persistentes é que cresciam ali em maior número. Havia mais pinheiros marítimos, mais azinheiras do que bétulas ou faias - todos de dimensões soberbas.

      Doniphan pôde também verificar, com grande satisfação da sua parte, que a fauna não era menos variada naquela parte da ilha. Apareceram guanacos e vicunhas por várias vezes, assim como um bando de nandus, que se afastaram depois de terem matado a sede. As lebres, os tuco-tucos, os pecaris e a caça de pena abundavam na parte mais densa do bosque.

      Pelas seis horas da tarde foi necessário parar. Neste ponto, a margem era atravessada por um rio que servia de escoadouro ao lago. Devia ser, e era efectivamente, o East-river.

      Isto foi tanto mais fácil de reconhecer que Doniphan descobriu, debaixo de um grupo de árvores, ao fundo de uma pequena enseada, vestígios recentes de acampamento, isto é, as cinzas de uma fogueira.

      Fora ali que Briant, Jaime e Moko tinham acampado durante a sua excursão a Deception-bay e passado também a primeira noite.

      Parar naquele sítio, acender os carvões apagados e, em seguida, depois da ceia, estenderem-se debaixo das mesmas árvores que tinham abrigado os seus camaradas, foi o que Doniphan, Webb, Wilcox e Cross tinham de melhor a fazer, e foi o que fizeram.

      Oito meses antes, quando Briant parou naquele lugar, não supunha que quatro dos seus companheiros também iriam ali ter, com o intento de viverem separadamente naquela parte da ilha Chairman!

      E talvez, ao verem-se ali, longe da confortável morada de French-den, onde podiam estar agora, Cross, Wilcox e Webb se arrependessem de ter tomado aquela resolução! Mas agora a sua sorte estava ligada à de Doniphan, e este era muito vaidoso para reconhecer os seus erros, muito obstinado para renunciar aos seus projectos, muito invejoso para consentir em submeter-se ao seu rival.

      Quando amanheceu, Doniphan propôs que se atravessasse imediatamente o East-river.

      - É trabalho adiantado - disse ele - e o dia será suficiente para chegarmos à embocadura, que está a cinco ou seis milhas apenas!

      - E depois - observou Cross - foi na margem esquerda que Moko fez a sua colheita de pinhões, e nós também faremos provisão deles durante a marcha.

       O halkett-boat foi então desenrolado, e, logo que o deitaram à água, Doniphan dirigiu-se para a praia oposta, deitando uma corda pela ré. Com alguns movimentos dos remos, transpôs depressa os trinta a quarenta pés de largura que o rio media neste lugar. Em seguida, Içando a corda, cuja extremidade seguravam, Wilcox, Webb e Cross puxaram para o seu lado a ligeira canoa, na qual passaram sucessivamente para a outra margem.

      Feito isto, Wilcox, estendendo o halkett-boat, fechou-o como se fosse uma mala de viagem, pô-lo às costas, e continuaram a marcha. Seria menos fatigante, decerto, entregarem-se na canoa à corrente do East-river, como Briant, Jaime e Moko tinham feito, mas a canoa de borracha não podia levar mais do que uma pessoa ao mesmo tempo; por esse motivo, foi forçoso renunciar a este meio de transporte.

      Este dia foi muito penoso.

      A espessura da floresta, o solo, cheio de ervas e semeado de ramos derrubados pelas últimas tempestades, muitos pântanos, que foi necessário evitar a muito custo, atrasaram a chegada ao litoral. Pelo caminho, Doniphan pôde verificar que o náufrago francês não deixara vestígios da sua passagem nesta parte da ilha, como debaixo dos maciços de Traps-woods. E, contudo, devia tê-la explorado, porque o seu mapa indicava o curso do East-river, com exactidão, até Deception-bay.

      Perto do meio-dia parou-se para almoçar, exactamente no sítio onde abundavam os pinhões. Cross apanhou uma boa quantidade desses frutos, que todos saborearam. Em seguida, durante duas milhas ainda, foi necessário  deslizarem através das sarças espessas e até abrir passagem a machado para não se afastarem da corrente.

      Por causa destas demoras só chegaram ao limite extremo da floresta cerca das sete horas da tarde. Como fosse de noite, Doniphan nada pôde reconhecer da disposição do litoral.

      No entanto, apesar de ter visto só uma linha espumante, ouviu o rugido extenso e grave do mar que rebentava no areal. Decidiram parar neste sítio e dormir ao ar livre.

      Decerto que, na noite próxima, a costa lhes daria melhor abrigo numa das cavernas, não muito longe da embocadura do rio.

      Organizado o acampamento, o jantar, ou antes, a ceia, em vista do adiantado da hora, constou de algumas aves que foram assadas numa fogueira de ramos secos e pinhas, apanhados debaixo das árvores.

      Por prudência, tinham convencionado que este fogo seria alimentado até nascer o dia; e, durante as primeiras horas, foi Doniphan quem disso se encarregou.

      Wilcox, Cross e Webb, estendidos debaixo da ramaria de um vasto pinheiro em forma de guarda-sol e muito fatigados por este longo dia de marcha, adormeceram imediatamente.

      Doniphan teve grande trabalho em lutar com o sono. Apesar disso, resistiu; mas quando chegou o momento em que devia ser substituído por um dos seus companheiros notou que todos estavam entregues a um tão profundo sono que não se atreveu a acordar qualquer deles.

      Além disso, a floresta estava tão tranquila nos arredores do acampamento que a segurança ali devia ser tão completa como o teria sido em French-den.

      Por isso depois de ter deitado na fogueira uma porção de madeira, Doniphan estendeu-se aos pés da árvore. Aí fecharam-se-lhe bem depressa os olhos, para não se abrirem senão quando o Sol ia subindo num extenso horizonte de mar que se destacava na linha de contacto com o céu.

     

      O primeiro cuidado de Doniphan, Wilcox, Webb e Cross foi descerem a margem do curso de água até à foz. Daí olharam avidamente para aquele mar que viam pela primeira vez. Não era menos deserto do que no litoral oposto.

      - E, contudo - observou Doniphan -, se, como devemos acreditar, a ilha Chairman não estiver longe do continente americano, os navios que saem do estreito de Magalhães e se dirigem para os portos do Chile e do Peru devem passar a leste! Mais uma razão para nos fixarmos na costa de Deception-bay, e, posto que Briant lhe desse este nome de mau agouro, espero que ela não o justifique por muito tempo!

      Talvez, fazendo esta observação, Doniphan procurasse desculpar-se ou justificar-se do seu rompimento com os seus camaradas de French-den. Além disso, pensando bem, era naquele lado do Pacífico, a oriente da ilha Chairman, que deviam aparecer navios com destino para os portos da América do Sul.

      Depois de ter observado o horizonte com o óculo, Doniphan quis visitar a embocadura do East-river. Do mesmo modo que Briant, ele e os seus companheiros verificaram que a Natureza criara ali um porto pequenino, muito abrigado do vento e das ondas. Se a escuna se tivesse aproximado da ilha Chairman naquele ponto, talvez não fosse impossível evitar que encalhasse e se pudesse conservá-la intacta para os moços colonos regressarem à pátria.

      Por detrás das rochas que formavam o porto acumulavam-se as primeiras árvores da floresta, que se prolongava, não só até Family-lake, mas também para o norte, onde o olhar não encontrava senão um horizonte de verdura. Quanto às escavações feitas nas massas graníticas do litoral, Briant não exagerara. Doniphan não teria outro embaraço senão o da escolha. Contudo, pareceu-lhe conveniente não se afastar das margens do East-river, e achou, em breve, uma chaminé atapetada pela areia fina, com cantos e escaninhos, e não menos confortável do que French-den. Esta caverna seria suficiente até para a colónia toda, porque continha uma série de cavidades anexas, que serviam para quartos separados, em lugar do hall e do Store-room.

      Este dia foi empregado em visitar a costa, na extensão de uma a duas milhas. Entretanto, Doniphan e Cross mataram alguns tinamus, enquanto Wilcox e Webb estendiam uma linha de pesca nas águas do East-river, cem passos acima da foz. Apanhou-se meia dúzia de peixes, do género dos que subiam a corrente do rio Zealand - entre outros, duas percas de bom tamanho. Os mariscos também abundavam nos buracos dos recifes que, a nordeste, resguardavam o porto das ondas do largo. Os mexilhões e as amêijoas eram abundantes e de boa qualidade. Portanto, ter-se-ia sempre à mão, por assim dizer, moluscos, assim como os peixes que deslizavam entre as grandes algas acumuladas junto do banco de recifes, sem que fosse necessário ir buscá-los a quatro ou cinco milhas.

      Não deve esquecer-se que por ocasião de explorar a embocadura do East-river tinha Briant feito a ascensão de uma rocha alta, que se parecia com um urso gigantesco. Doniphan ficou impressionado igualmente com a sua forma singular. Foi por este motivo que, em sinal de posse, deu o nome de Bear-rock-harbour (porto da Rocha do Urso) ao pequeno porto que dominava esta rocha, e é esse nome que figura agora na carta da ilha Chairman.

      Durante a tarde, Doniphan e Wilcox subiram a Bear-rock, a fim de verem em maior extensão a baía. Mas a leste da ilha não lhe apareceram nem navio nem terra alguma. Aquela mancha esbranquiçada, que tinha atraído a atenção de Briant para o nordeste, nem sequer foi por eles vista, quer porque o Sol estivesse já muito baixo no horizonte oposto, quer porque essa mancha não existisse e Briant tivesse sido enganado por uma ilusão de óptica.

      Logo que a tarde chegou, Doniphan e os seus companheiros tomaram a sua refeição debaixo de um grupo de soberbos almezes, cujos ramos baixos se estendiam por cima do curso de água. Depois de comerem, tratou-se da seguinte questão:

      Conviria voltar imediatamente a French-den, a fim de trazer dali os objectos necessários a uma instalação definitiva na caverna de Bear-rock?

      - Eu penso - declarou Webb - que não devemos demorar-nos; só tornar a fazer o trajecto pelo sul do Family-lake levará alguns dias!

      - Mas - observou Wilcox - não seria melhor, quando voltássemos aqui, atravessar o lago, na intenção de tornar a descer o East-river até à sua foz? Porque não faremos nós o que Briant fez já com a canoa?

      - Isso era tempo ganho, e que nos pouparia bastantes fadigas - acrescentou Webb.

      - Que pensas disto, Doniphan? - perguntou Cross.

        Doniphan estava reflectindo nesta proposta, que apresentava vantagens reais.

      - Tens razão, Wilcox - respondeu ele -, se embarcarmos na canoa conduzida por Moko.

      - Com a condição de que Moko consentisse nisso – observou Webb, em tom duvidoso.

      - E porque não havia ele de consentir? - volveu Doniphan. - Não tenho eu, como Briant, o direito de lhe dar uma ordem? Além disso, bastava que ele nos guiasse através do lago.

      - É necessário que ele obedeça! - exclamou Cross. – Se fôssemos obrigados a transportar por terra todo o nosso material, isso nunca teria fim! Além disso, talvez que o carro não achasse passagem pelo meio da floresta. Por isso é melhor servirmo-nos da canoa.

      - E se não nos quiserem dar a canoa?- - objectou Webb, insistindo.

      - Se não quiserem! - exclamou Doniphan. - E quem havia de recusá-la?

      - Briant. Não é ele o chefe da colónia?

      - Briant, recusar!... - repetiu Doniphan. - Essa embarcação pertence-lhe, porventura, mais a ele do que a nós? Se Briant se atrevesse a recusar...

      Doniphan não acabou de expor o seu pensamento; mas percebia-se que, neste ou em qualquer outro ponto, este rapaz imperioso não se submeteria às imposições do seu rival.

      Demais - assim o fez observar Wilcox -, era inútil discutir este assunto. Em sua opinião, Briant facilitara aos seus camaradas a instalação em Bear-rock, e não valia a pena quebrar a cabeça por causa disso. Faltava decidir-se se voltariam ou não imediatamente a French-den.

      - Parece-me impossível - disse Cross.

      - Então, amanhã? - perguntou Webb.

      - Não - respondeu Doniphan. - Antes de partir, desejava passar um pouco para além da baía, para reconhecer a parte norte da ilha. Dentro de quarenta e oito horas poderemos voltar a Bear-rock, depois de termos chegado à costa setentrional. Quem sabe se, nesta direcção, não haverá alguma terra que o náufrago francês não tenha podido ver, nem por consequência, indicar na carta. Seria pouco razoável ficarmos aqui sem sabermos o que havemos de fazer.

      Era justa a observação. Por isso, se bem que esse projecto prolongasse a ausência em dois ou três dias, decidiu-se pô-lo sem demora em execução.

      No dia seguinte, 14 de Outubro, Doniphan e os seus três amigos partiram de madrugada, tomando a direcção do norte e seguindo o contorno do litoral.

      Em uma extensão, pouco mais ou menos, de três milhas, desenvolviam-se entre a floresta e o mar as massas das rochas, não deixando na base senão um areal da extensão máxima de cem pés.

      Foi ao meio-dia que os quatro rapazes, depois de terem passado a última rocha, pararam para almoçar.

      Naquele lugar, um segundo curso de água lançava-se na baía; mas pela sua direcção, de sudoeste para nordeste, era de supor que não saísse do lago. As águas, despejadas por ele numa enseada estreita, deviam ser as que eram recolhidas ao atravessar a região superior da ilha. Doniphan denominou-o North-creek (regato do Norte), e, realmente, não merecia a qualificação de rio.

      Alguns movimentos de remos foram suficientes para o halkett-boat o transpor, e não foi preciso senão costear a floresta, cujo limite era formado pelo limite do rio.

      Pelo caminho, Doniphan e Cross dispararam dois tiros de espingarda, nas circunstâncias seguintes:

      Eram três horas, pouco mais ou menos. Seguindo a corrente do North-creek, Doniphan dirigia-se para o norte mais do que convinha, porque se tratava de chegar à costa setentrional. Ia, portanto, dirigir-se para a direita quando Cross, detendo-o, exclamou:

      - Olha, Doniphan, olha!

      E com a mão indicava uma grande massa avermelhada, que se agitava entre as grandes ervas e os caniços do creek, debaixo das árvores.

      Doniphan fez sinal a Webb e a Wilcox para não se moverem. Em seguida, acompanhado por Cross, dirigiu-se de espingarda ao ombro e sem ruído para a massa em movimento.

      Era um animal de grande estatura, parecido com um rinoceronte se tivesse a cabeça armada de chifres e se o beiço inferior se estendesse demasiadamente.

      Neste momento ouviu-se um tiro de espingarda, que foi logo seguido por outra detonação. Doniphan e Cross tinham disparado quase ao mesmo tempo. Decerto que, a uma distância de cento e cinquenta pés, o chumbo não produzira efeito algum na pele grossa do animal, porque este, saltando para fora dos caniços, transpôs rapidamente a praia e desapareceu na floresta.

      Doniphan teve tempo de reconhecê-lo. Era um anfíbio completamente inofensivo, uma anta, de pêlo escuro, ou, antes, um desses tapires enormes que se encontram quase sempre nas proximidades dos rios da América do Sul.

      Como semelhante animal para nada servia, não houve razão para lastimar a sua fuga - a não ser debaixo do ponto de vista do amor-próprio cinegético.

      As massas verdejantes prolongavam-se ainda, a perder de vista, deste lado da ilha Chairman. A vegetação era prodigiosa, e, como as faias cresciam aos milhares , Doniphan pôs-lhe o nome de Beechs-forest (floresta das Faias), e escreveu-o no mapa, como as denominações de Bear-rock e de North-creek, admitidas anteriormente.

      Quando veio a noite, tinham-se percorrido nove milhas. Com mais outro tanto, os moços exploradores chegariam ao norte da ilha. Era tarefa para o dia seguinte.

      Ao romper do dia continuou-se a marcha. Havia razões para andar depressa. O tempo parecia querer mudar. O vento, que soprava de oeste, manifestava tendências para refrescar. As nuvens já vinham do largo, conservando-se numa zona ainda bastante elevada, é certo, o que fazia esperar que não se resolvessem em chuva. Afrontar o vento, mesmo de tempestade, não era coisa que assustasse rapazes resolutos. Mas a rajada, com o seu acompanhamento de aguaceiros torrenciais, incomodá-los-ia muito, e seriam obrigados a interromper a expedição, a fim de voltarem ao abrigo de Bear-rock.

      Portanto, apressaram o passo, apesar de terem de lutar contra a borrasca, que os atacava de lado. O dia foi extremamente penoso, e anunciava uma noite péssima. Efectivamente, era nada menos do que uma tempestade que assaltava a ilha, e às cinco horas da tarde ouviram-se bramidos do trovão no meio do cruzar dos relâmpagos.

      Doniphan e os seus camaradas não hesitaram. A ideia de estarem perto do seu fim animava-os. Além disso, os maciços de Beechs-forest prolongavam-se ainda naquela direcção, e sempre tinham o recurso de poderem abrigar-se debaixo das árvores. O vento desencadeava-se com muita violência, razão para não temer a chuva. Demais, a costa não devia estar longe.

      Cerca das oito horas ouviu-se o bramido sonoro da ressaca, o que indicava a presença de um banco de recifes ao largo da ilha Chairman.

      Entretanto, o céu, já coberto de vapores espessos, escurecia a pouco e pouco. Para o olhar poder dirigir-se para o longe, no mar, enquanto os últimos clarões iluminavam ainda o espaço, era preciso caminhar depressa. Para além do renque de árvores estendia-se uma praia do comprimento de um quarto de milha, onde as ondas, brancas de espuma, se quebravam, depois de terem batido, embravecidas, de encontro aos recifes do norte.

      Doniphan, Webb, Cross e Wilcox, apesar de estarem muito fatigados, ainda tiveram forças para correr. Queriam, pelo menos, avistar aquela parte do Pacífico enquanto havia alguns clarões do dia. Seria um mar sem limites, ou um canal estreito, que separava aquela costa de um continente ou de uma Ilha?

      De repente, Wilcox, que ia um pouco adiante, parou.

      Indicava com a mão uma massa escura que se desenhava no pontalete da praia. Seria um animal marinho, um desses grandes cetáceos, tais como a baleia ou o baleote, que estivesse encalhado na areia? Não seria antes uma embarcação que estivesse deitada de costado, depois de ter sido arrastada para além dos recifes?

      Sim! Era uma embarcação, deitada sobre o lado de estibordo. E, deste lado, junto do cordão de sargaços enrolados no limite da maré cheia, Wilcox divisou dois corpos estendidos a alguns passos da embarcação.

      Doniphan, Webb e Cross tinham, primeiro, suspendido a marcha. Depois, sem reflectir, correram pela praia fora e pararam em frente dos dois corpos estendidos na areia – talvez dois cadáveres!...

      Foi então que, cheios de susto, não se lembrando, ao menos, de que aqueles corpos podiam ter alguma vida, e que se lhes devia prestar socorros imediatos, voltaram para trás precipitadamente, a fim de se refugiarem debaixo das árvores.

      A noite já estava escura, apesar de ser ainda iluminada por alguns relâmpagos, que não tardaram em extinguir-se. No meio daquelas trevas profundas, os bramidos da tempestade reuniram-se ao estrondo do mar embravecido.

      Que tempestade! As árvores estalavam por todos os lados, o que não deixava de ser perigoso para os quatro rapazes; mas era impossível acampar na praia, onde a areia, arrebatada pelo vento, açoutava os ares como metralha.

      Doniphan, Wilcox, Webb e Cross conservaram-se naquele lugar durante toda a noite, sem poderem fechar os olhos um só momento. O frio fê-los sofrer cruelmente, porque não tinham podido acender uma fogueira, que seria logo apagada se tentassem incendiar os ramos secos acumulados no solo.

      E, depois, a comoção não os deixava adormecer. Aquela barca, de onde vinha?... Aqueles náufragos, a que nação pertenciam?... Havia então algumas terras nas proximidades, visto que a embarcação pudera chegar à ilha?... A não ser que pertencessem a algum navio que tivesse soçobrado naquelas paragens, durante a maior força da tempestade.

      Todas estas hipóteses eram admissíveis, e, durante os raros momentos de calma, Doniphan e Wilcox, chegados um ao outro, comunicavam-nas em voz baixa.

      Ao mesmo tempo, com o cérebro tomado por alucinações, julgavam ouvir gritos longínquos, quando o vento abrandava um pouco, e, aplicando o ouvido, perguntavam a si mesmos se pela praia andariam errantes outros náufragos! Não! Eram vítimas de uma ilusão dos sentidos. Não ressoava grito algum de desespero no meio das violências da tempestade. Agora arrependiam-se de ter cedido ao primeiro movimento de susto!... Queriam dirigir-se imediatamente para os recifes, com risco de serem derrubados pelas rajadas!... Mas, no meio daquela escuridão, numa praia descoberta, varrida pelas ondas da maré cheia, como poderiam achar o sítio onde a embarcação encalhara, o lugar onde os corpos estavam estendidos na areia?

      Além disso, as forças moral e física começavam a faltar-lhes. Depois de estarem tanto tempo entregues a si mesmos, e de se julgarem quase homens, sentiam-se novamente crianças na presença dos primeiros seres humanos que encontravam depois do naufrágio do Sloughi, depois que o mar os arremessara, no estado de cadáveres, àquela ilha!

      Finalmente, recuperando o sangue-frio, compreenderam qual era o seu dever. No dia seguinte, ao romper do dia, voltariam ao pontalete da praia, fariam uma cova na areia e enterrariam os dois náufragos, depois de terem dito uma oração pelo descanso das suas almas.

      Como aquela noite lhes pareceu interminável! Realmente, parecia que o Sol nunca viria dissipar-lhe os horrores! E ainda se pudessem saber o tempo que decorrera, consultando o relógio! Mas foi impossível acender um fósforo – mesmo abrigando-o debaixo dos cobertores. Cross, que tentou fazê-lo, teve de renunciar a isso.

      Wilcox lembrou-se então de recorrer a outro meio para saber pouco mais ou menos que horas eram.

      Dava-se corda ao relógio fazendo com o remontoir doze voltas para vinte e quatro horas - ou uma volta para duas horas. Ora, como ele lhe dera corda naquela noite, às oito horas, não era preciso mais que contar o número de voltas que restavam para o número de horas decorridas. Foi o que ele fez, e, não tendo de dar mais que quatro voltas, concluiu daí que deviam ser, pouco mais ou menos, quatro horas da manhã. O dia não tardaria a aparecer.

      Efectivamente, daí a pouco, os primeiros clarões da manhã desenharam-se a leste. A tempestade não abrandara, e, como as nuvens desciam para o mar, devia-se recear a chuva antes que Doniphan e os seus companheiros tivessem chegado ao cimo de Bear-rock.

      Mas, primeiro que tudo, tinham de prestar os últimos deveres aos náufragos. Assim, logo que a aurora rompeu através da massa dos vapores acumulados ao longe, arrastaram-se no areal, lutando, não sem custo, contra o impulso das rajadas de vento. Por muitas vezes tiveram de agarrar-se uns aos outros para não serem derrubados.

      A embarcação tinha encalhado perto de um pequeno montículo de areia. Via-se, pela disposição do mar, que a maré, aumentada pelo vento, tinha passado para além dela.

      Os dois corpos já não estavam ali... Doniphan e Wilcox avançaram uns vinte passos sobre o areal.

      Nada!... Nem sequer uns sinais, que, além disso, o refluxo da maré teria decerto apagado.

      - Estes desgraçados - exclamou Wilcox - estavam portanto vivos, visto que puderam levantar-se!...

      - Onde estão eles?... - perguntou Cross.

      - Onde estão?... - volveu Doniphan, mostrando o mar, que espumava com fúria. - Estão ali, para onde a maré baixa os levou!

      Doniphan arrastou-se então até à parte mais alta do banco de recifes e estendeu o óculo pela superfície do mar...

      Nem um cadáver!

      Os corpos dos náufragos tinham sido arrastados para o largo! Doniphan tornou a voltar para junto de Wilcox, Cross e Webb, que tinham ficado perto da embarcação.

      Talvez que houvesse algum sobrevivente desta catástrofe!

      A embarcação estava vazia.

      Era uma chalupa de navio mercante, com uma coberta só à proa, e cuja quilha media uns trinta pés. Já não estava em estado de navegar, pois que o lado de estibordo estava arrombado na linha de flutuação pelos choques que tinha sofrido. Um bocado de mastro quebrado, alguns bocados de vela agarrados aos traquetes, restos de cabos, era tudo o que restava. Quanto a provisões, utensílios e armas, nada havia nos cofres nem no castelo da proa.

      À ré, dois nomes indicavam a que navio tinha ela pertencido, bem como o porto de onde viera:  Severn - São Francisco.

       São Francisco! Um dos portos do litoral da Califórnia!... O navio era de nacionalidade americana! Quanto à parte da costa sobre a qual os náufragos do Severn tinham sido lançados pela tempestade, era o mar que lhe limitava o horizonte.

     

      Não se esqueceu em que condições Doniphan, Webb, Cross e Wilcox tinham deixado French-den. Desde que tinham partido, a vida dos moços colonos tornara-se bem triste. Com que profundo pesar tinham todos sentido aquela separação, cujas consequências poderiam ser tão más no futuro! Decerto que Briant nada tinha que censurar a si próprio, e, contudo, pensava mais no caso do que os outros, pois era por causa dele que a cisão se realizara.

      Gordon procurava em vão consolá-lo, dizendo:

      - Eles hão-de voltar, Briant, e mais cedo do que o pensam! Por muito teimoso que seja Doniphan, as circunstâncias hão-de ser mais fortes do que ele! Aposto que eles vêm ter connosco a French-den antes de ter chegado a estação invernosa!

      Briant, abanando a cabeça, não se atrevia a responder. Dizia que talvez algumas circunstâncias pudessem trazer os ausentes; mas que, nesse caso, essas circunstâncias seriam bem graves!

      - Antes de chegar a estação invernosa! - dissera Gordon.

      Estavam, pois, os moços colonos condenados a passar um terceiro Inverno na ilha Chairman? Não lhes chegaria socorro algum antes dessa época? Não seriam estas paragens do Pacífico frequentadas, durante o Verão, por alguns navios mercantes, e não seria visto, por fim, o balão-sinal levantado na crista de Auckland-hill?

      É verdade que este balão, erguido duzentos pés apenas acima do nível da ilha, não devia ser visível senão dentro de um raio bastante restrito. Por isso, Briant, depois de ter lutado debalde com Baxter a fim de delinear o plano de uma embarcação que fosse capaz de ir ao mar, ficou reduzido a procurar o meio de elevar qualquer sinal a maior altura. Falava muitas vezes disso e, um dia, disse a Baxter que não seria talvez impossível empregar para esse fim um papagaio.

      - Não nos falta nem o pano nem a corda - acrescentou -, e, se dermos a esse aparelho as dimensões suficientes, há-de pairar numa zona elevada, a mil pés, por exemplo.

      - Excepto nos dias em que não houver nem uma aragem! - observou Baxter.

      - Esses dias são raros - respondeu Briant - e, em tempo calmo, só teremos de trazer a máquina para terra. Mas, a não ser neste caso, depois de ter sido fixado no solo pela extremidade da sua corda, seguiria ele próprio as variações da brisa, e não teríamos de Inquietar-nos com a sua direcção.

      - É caso para experimentar - disse Baxter.

      - Além disso - insistiu Briant -, se esse papagaio fosse visível durante o dia a grande distância - talvez umas sessenta milhas -, sê-lo-ia também durante a noite se ligássemos um dos nossos faróis à sua cauda ou ao seu corpo!

      Enfim, a ideia de Briant não deixava de ser prática. A sua execução não punha em embaraços uns rapazes que tinham muitas vezes atirado esses papagaios nos prados da Nova Zelândia.

      Por isso, quando foi conhecido o projecto de Briant, foi ele causa de alegria geral. Os pequenos, sobretudo Jenkins, Iverson, Dole e Costar, tomaram o caso pelo lado divertido e rejubilaram com a ideia de um papagaio que devia exceder tudo o que até então tinham visto. Que prazer não seria puxar pela corda bem retesada, enquanto ele se balanceasse nos ares!

      - Há-de pôr-se-lhe um grande rabo! - dizia um.

      - E umas orelhas muito grandes - acrescentava outro.

      - Há-de pintar-se nele um magnífico polichinelo, que fará lindas cabriolas lá em cima.

      - Havemos de lá mandar correios!

      Era uma alegria a valer! A verdade era que, onde as crianças não viam senão uma distracção, havia uma ideia muito séria, e era permitido esperar que essa ideia produziria excelentes resultados.

      Baxter e Briant puseram-se, portanto, em campo no dia seguinte àquele em que Doniphan e os seus três companheiros tinham abandonado French-den.

      - Ora aqui está - exclamou Service -, eles agora hão-de arregalar bem os olhos, logo que virem uma tal máquina! Que pena que os meus Robinsons não tenham tido nunca a ideia de largarem um papagaio no espaço!

      - Poderá ele ser visto de todos os pontos da nossa ilha? - perguntou Garnett.

      - E não só da nossa ilha - respondeu Briant -, como também de uma grande distância, nos arredores.

      - Será visto de Auckland-hill?... - observou Dole.

      - Daí, não - volveu Briant, sorrindo com essa ideia. – No fim de contas, quando Doniphan e os outros o virem, talvez que isso os resolva a voltarem!

      Vê-se por isto que este bom rapaz só cuidava nos ausentes e não desejava senão uma coisa, e era que essa funesta separação acabasse o mais depressa possível.

      Esse dia e os seguintes foram empregas na construção do papagaio, ao qual Baxter propôs que se desse uma forma octogonal. A armação, leve e resistente, foi feita com uma espécie de canas muito rijas que cresciam nas margens do Family-lake. Era bastante forte para resistir ao impulso de uma brisa ordinária. Sobre tal armação mandou Briant estender uns panos ligeiros, cobertos de borracha, que serviam para tapar as clarabóias da escuna, panos tão impermeáveis que o vento não podia passar através do seu tecido. Quanto à corda, devia fazer-se uso de um fio, de dois mil pés pelo menos de comprimento, muito resistente, dos que se empregavam para arrastar a barquinha, e que era capaz de resistir a uma tensão considerável.

      É escusado dizer que o aparelho devia ser enfeitado com uma cauda magnífica, destinada a conservá-lo em equilíbrio quando estivesse inclinado na camada de ar. Em verdade, estava tão solidamente construído que teria podido, sem grande perigo, elevar aos ares qualquer dos moços colonos! Não se tratava, porém, disso, e bastava que fosse sólido bastante para resistir a brisas frescas, bastante vasto para chegar a certa altura, e grande quanto fosse preciso para ser visto num raio de cinquenta a sessenta milhas.

      É escusado dizer que o papagaio não devia ser sustentado à força de braço. Sob a Impulsão do vento teria arrastado consigo todo o pessoal da colónia, mais depressa do que este o quereria. A corda ficaria, porém, enrolada em um dos viradores da escuna. Trouxeram, pois este pequeno cabrestante horizontal para o meio do Sport-terrace e fixaram-no com força ao solo, a fim de resistir à tracção do “Gigante dos ares”, nome que os pequenos admitiram de comum acordo.

      Estando este trabalho acabado no dia 15, pela tarde, marcou Briant para o dia seguinte, à mesma hora, o deitar do papagaio, operação a que deviam assistir todos os seus camaradas.

      Ora, no dia seguinte foi impossível proceder à experiência. Desencadeara-se uma violenta tempestade e o aparelho seria logo feito em pedaços se o entregassem ao vento.

      Esta mesma tempestade era a que assaltara Doniphan e os seus companheiros na parte setentrional da ilha, ao mesmo tempo que arrastava a chalupa e os náufragos americanos contra os recifes do norte, aos quais se deu, mais tarde, o nome de Severn-shores (cachopos do Severn).

      No dia seguinte ao da tempestade - 16 de Outubro - apesar de se ter produzido uma certa calma, a brisa era ainda muito violenta para Briant deixar soltar o seu aparelho aéreo. Mas como o tempo se modificou pela tarde, graças à direcção do vento, que abrandou sensivelmente, passando para sudoeste, guardou-se a experiência para o dia imediato.

      Era o dia 17 de Outubro - data que ia ocupar lugar importante nos anais da ilha Chairman.

      Apesar de ser uma sexta-feira, Briant, que não era supersticioso, não quis esperar para outro dia. O tempo estava bom, com uma leve brisa, constante e regular, própria para sustentar o papagaio nos ares. Graças à inclinação causada pela cauda, elevar-se-ia para terra, a fim de lhe prender um farol, cujo clarão seria visível durante toda a noite.

      A manhã foi empregada nos últimos preparativos, que duraram mais de uma hora depois do almoço. Em seguida, foram todos para Sport-terrace.

      - Que boa ideia teve Briant de construir esta máquina! - repetiam Iverson e os outros, batendo as palmas.

      Era hora e meia. O aparelho, estendido no solo, com a comprida cauda desenrolada, ia ser entregue à acção da brisa. Já não se esperava senão o sinal de Briant, quando este suspendeu a manobra.

      Neste momento, a sua atenção acabava de ser desviada por Phann, que se arremessava precipitadamente para o lado da floresta, dando uivos tão lastimosos, tão extraordinários, que todos ficaram surpreendidos.

      - Que tem Phann? - perguntou Briant.

      - Sentiria algum animal debaixo das árvores? - lembrou Gordon.

      - Não!... Então ladrava de outro modo!

      - Vamos!... - exclamou Service.

      - Não sem armas! - respondeu Briant.

        Service e Jaime correram a French-den, de onde voltaram trazendo cada um uma espingarda carregada.

      - Venham - ordenou Briant.

      E todos três, acompanhados por Gordon, se dirigiram para a entrada de Traps-woods.

      Phann já a havia transposto, e, se já não o viam, ainda o ouviam ladrar.

      Briant e os seus camaradas tinham dado apenas cinquenta passos quando avistaram o cão parado defronte de uma árvore, ao pé da qual estava estendido um corpo humano.

      Era uma mulher, imóvel como uma morta, cujo vestuário – saia de pano grosso, corpete igual, xaile de lã escura, atado à roda da cinta - parecia ainda em bom estado.

      O seu rosto mostrava vestígios de grandes sofrimentos, apesar de ela ser de constituição robusta, não tendo, além disso, mais de quarenta a quarenta e cinco anos. Exausta de fadiga, talvez de fome, tinha perdido os sentidos, mas os lábios exalavam ainda um ligeiro sopro.

      Imagine-se a comoção dos pequenos náufragos à vista da primeira criatura humana que encontravam depois da sua chegada à ilha Chairman!

      - Respira!... Respira!... - disse Gordon em voz alta. – A fome, decerto, e a sede...

      Jaime correu logo para French-den e trouxe de lá um bocado de bolacha e uma cabaça de brandy.

      Briant então inclinou-se para aquela mulher, entreabriu-lhe os lábios, e conseguiu introduzir-lhe na garganta algumas gotas do licor vivificante.

      A mulher fez um movimento, ergueu as pálpebras... Ao ver aquelas crianças reunidas em torno dela, o olhar animou-se-lhe... Em seguida, levou avidamente à boca o bocado de bolacha que Jaime lhe apresentava.

      Era evidente que aquela desgraçada morria de fome, mais que de fadiga.

      Mas quem era ela? Seria possível falar-lhe e compreendê-la?

      Briant ficou sossegado a este respeito.

      A desconhecida erguera-se, e acabava de pronunciar as seguintes palavras, em inglês:

      - Obrigada, meus filhos... Obrigada!

      Meia hora depois, Briant e Baxter tinham-na depositado no hall. Aí, ajudados por Gordon e por Jaime, prodigalizaram-lhe todos os cuidados que o seu estado reclamava.

      Logo que ela se sentiu com bastantes forças, deu-se pressa em contar a sua história.

      Eis o que ela disse, e ver-se-á como a narração das suas aventuras devia interessar os moços colonos.

      Esta mulher, de origem americana vivera muito tempo nos territórios do Far-West, nos Estados Unidos. Chamava-se Catarina Ready, ou simplesmente Kate. Exercia, havia mais de vinte anos, funções de governanta, em casa da família William R. Penfield, que vivia em Albany, capital do Estado de Nova Iorque.

      Havia um mês que o senhor e a senhora Penfield, querendo ir para o Chile, onde vivia um dos seus parentes, se tinham dirigido a São Francisco, o porto principal da Califórnia, a fim de embarcarem no navio mercante Severn, comandado pelo capitão John F. Turner. Este navio ia com destino a Valparaíso; o senhor e a senhora Penfield tomaram passagem nele com Kate, que fazia, por assim dizer, parte da família.

      O Severn era um bom navio e teria feito uma travessia excelente se os oito homens que compunham a tripulação, engajados havia pouco tempo, não fossem uns miseráveis da pior espécie.

      Nove dias depois da partida, um deles, Valston, ajudado pelos seus companheiros, Brandt, Rock, Henley, Cook, Forbes, Cope e Pike, provocou uma revolta, na qual o capitão Turner e o seu imediato foram mortos, ao mesmo tempo que o senhor e a senhora Penfield.

      O objectivo dos assassinos, ao apoderarem-se do navio, era empregá-lo no tráfico da escravatura, que se fazia ainda com algumas províncias da América do Sul.

      A bordo só duas pessoas tinham sido poupadas: Kate, por quem o marinheiro Forbes - menos cruel do que os cúmplices - intercedera, e o mestre do Severn, homem de trinta anos, pouco mais ou menos, chamado Evans, que era necessário aos assassinos para dirigir o navio.

      Estas cenas horríveis tinham ocorrido na noite de 7 para 8 de Outubro, quando o Severn se achava a umas duzentas milhas da costa do Chile.

      Evans foi obrigado a manobrar, sob pena de morte, de maneira a dobrar o cabo Horn, a fim de chegar às paragens do oeste da África.

      Mas, alguns dias depois - nunca se soube qual foi a verdadeira causa -, manifestou-se um incêndio a bordo. Desenvolveu-se com tal violência e em tão pouco tempo que os esforços de Walston e dos companheiros para salvar o Severn de uma destruição completa foram inúteis. Um deles, Henley, morreu ao atirar-se ao mar para escapar ao fogo. Foi preciso abandonarem o navio, depois de meterem na chalupa provisões, armas e munições. A seguir, o Severn soçobrava envolto em chamas.

      A situação dos náufragos era extremamente crítica, porque estavam separados por duzentas milhas das terras mais próximas. Realmente era uma grande justiça a chalupa submergir-se com os celerados que iam dentro se Kate e o mestre Evans não estivessem a bordo.

      Quarenta e oito horas depois desencadeou-se uma furiosa tempestade - o que tornou a situação ainda mais horrível. Mas, como o vento soprava do largo, a embarcação, com o mastro quebrado, a vela em farrapos, foi impelida para a ilha Chairman. Sabe-se como, na noite de 15 para 16, depois de ter rebolado à superfície dos cachopos, ela fora encalhar na praia, com o cavername despedaçado em parte e as cintas do costado entreabertas.

      Walston e os seus companheiros, exaustos de forças por uma luta desesperada contra a tempestade, com as provisões quase consumidas, já não podiam com o frio e com a fadiga. Assim, estavam quase inanimados quando a chalupa chegou junto dos recifes. Um golpe de mar arrebatou então cinco deles, e, alguns instantes depois, os outros dois foram arrojados à praia, enquanto Kate caía do outro lado da embarcação.

      Os dois homens ficaram desmaiados durante muito tempo; Kate, que depressa recuperou os sentidos, teve o cuidado de se conservar imóvel, posto que imaginasse que Walston e os outros estavam mortos. Esperava que amanhecesse para ir procurar socorros naquela terra desconhecida, quando, pelas três horas da manhã, alguns passos fizeram ranger a areia perto da chalupa.

      Eram Walston, Brandt e Rock, que, a muito custo, tinham escapado às ondas, antes que a embarcação encalhasse. Depois de terem atravessado o banco dos recifes e chegado ao sítio onde jaziam os seus companheiros Forbes e Pike, depois de os terem chamado à vida, foram combinar o que deviam fazer, enquanto o mestre Evans os esperava, a uns cem passos dali, guardado por Cope e por Cook.

      Eis as palavras que eles trocaram - palavras que Kate ouviu perfeitamente:

      - Onde estamos? - perguntou Rock.

      - Não sei! - respondeu Walston. - Mas não fiquemos aqui, vamos para leste! Quando romper o dia, veremos o que se vai fazer!

      - E as nossas armas?... - disse Forbes.

      - Estão aqui, com as munições, tudo intacto!... – respondeu Walston.

      E tirou do cofre da chalupa cinco espingardas e muitos pacotes de cartuchos.

      - É pouco - disse Rock - para andar sem medo neste país de selvagens!

      - Onde está Evans?... - perguntou Brandt.

      - Evans está ali - respondeu Walston, apontando para o sítio onde ele estava, guardado por Cope e por Cook. - Há-de acompanhar-nos, quer queira quer não, e, se resistir, eu me encarrego de o fazer obedecer!

      - Que é feito de Kate?... - disse Rock. – Conseguiria salvar-se?...

      - Kate?... - volveu Walston. - Dessa não há que temer! Vi-a cair no mar antes que a chalupa se tivesse submergido, e já deve estar no fundo!

      - Bem bom, afinal de contas!... - respondeu Rock. – Sabia muitas coisas a nosso respeito.

      - Não havia de sabê-lo durante muito tempo! – acrescentou Walston, com ar feroz.

        Kate, que ouvira tudo, estava resolvida a fugir depois da partida dos marinheiros do Severn.

      Alguns instantes depois, Walston e os seus companheiros, segurando Forbes e Pike, cujas pernas ainda não estavam muito sólidas, levavam as armas, as munições e o resto das provisões que havia nos cofres da chalupa - isto é, algumas libras de carne salgada, um pouco de tabaco e duas ou três cabaças de gin. Depois afastaram-se, no momento em que a tempestade atingia a maior violência.

      Kate, logo que os perdeu de vista, ergueu-se. Era tempo, porque a maré cheia já chegava à praia, e daí a pouco a pobre mulher teria sido arrastada pelas ondas.

      Compreende-se agora o motivo por que Doniphan, Wilcox, Webb e Cross, quando voltaram à praia, a fim de prestarem os últimos deveres aos náufragos, acharam o lugar deserto. Walston e o seu bando já tinham descido na direcção de leste, enquanto Kate, tomando a direcção oposta, se dirigia, sem o saber, para a extremidade setentrional do Family-lake.

      Chegou ali no dia 16, à tarde, exausta de fadiga e de fome. Alguma fruta silvestre era tudo o que pudera encontrar. Seguiu então a margem esquerda, andou toda a noite e toda a manhã de 17, e foi cair no lugar onde Briant a encontrara quase morta.

      Tais eram os factos narrados por Kate - factos de extrema gravidade. Efectivamente, na ilha Chairman, onde os moços colonos tinham vivido, até agora, em completa segurança, acabavam de desembarcar sete homens capazes de todos os crimes. Se descobrissem French-den, hesitariam em atacá-la? Tinham grande interesse em se apoderarem do material, em roubar as provisões, as armas, as ferramentas, sobretudo, sem as quais não podiam pôr a chalupa do Severn em estado de se poder lançar à água. E, nesse caso, que resistência podiam opor Briant e os seus camaradas, os mais velhos dos quais tinham então quinze anos, quanto muito, e os mais novos apenas nove ou dez! Estas eventualidades eram aterradoras! Se Walston ficasse na ilha, era de esperar, com certeza, alguma agressão da sua parte! É fácil imaginar com que comoção foram ouvidas as palavras de Kate.

      Briant não pensava senão no seguinte: se o futuro apresentava tais perigos, Doniphan, Wilcox, Webb e Cross estavam ameaçados presentemente. Como podiam eles acautelar-se, se ignoravam a presença dos náufragos do Severn na ilha Chairman, e exactamente na parte do litoral que eles andavam explorando? Um tiro de espingarda, disparado por qualquer deles, não era bastante para revelar a sua presença a Walston? E, nesse caso, cairiam todos quatro nas mãos dos celerados, dos quais não podiam esperar senão o mal!

      - É preciso ir socorrê-los - disse Briant -, devem estar prevenidos antes de amanhã...

      - E trazê-los para French-den - acrescentou Gordon. - Devemos estar reunidos, agora mais do que nunca, a fim de nos defendermos contra um ataque daqueles malfeitores.

      - Sim! - apoiou Briant. - E, como é necessário que os nossos camaradas voltem, hão-de voltar! Vou buscá-los!

      - Tu, Briant?

      - Eu, Gordon.

      - Mas como?

      - Embarcarei na canoa com Moko. Em poucas horas teremos atravessado o lago e descido o East-river, como já fizemos. Temos todas as probabilidades de encontrar Doniphan na foz...

      - Quando tencionas partir?...

      - Esta noite - respondeu Briant -, quando a escuridão permitir que atravessemos o lago sem sermos vistos.

      - Vou consigo, meu irmão?... - perguntou Jaime.

      - Não - declarou Briant. - É indispensável que voltemos todos na canoa, e já há-de custar a arranjar lugar para seis!

      - Então, está decidido?... - perguntou Gordon.

      - Está! - respondeu Briant.

      Realmente, era o melhor partido a tomar - não só para bem de Doniphan, Wilcox, Cross e Webb, mas também para interesse da pequena colónia, Quatro rapazes, e dos mais vigorosos, não eram para desprezar no caso de haver agressão. Por outro lado, não havia uma hora a perder se queriam estar todos reunidos em French-den antes de vinte e quatro horas.

      É inútil dizer que já não se pensava em deitar o papagaio ao ar. Seria grande imprudência. Não era aos navios – se passassem alguns defronte da ilha - que ele indicaria a presença dos moços colonos; era a Walston e aos seus cúmplices. Briant lembrou-se, até, de deitar abaixo o mastro de sinais, elevado no cume de Auckland-hill.

      E, até à noite, estiveram todos encerrados no hall. Kate ouviu-os narrar as suas aventuras. A excelente mulher já não pensava em si, pensava só nos pequenos. Se ficassem juntos na ilha Chairman, ela queria ser sua criada, tratar deles e estimá-los como sua mãe. E aos mais pequeninos, a Dole e a Costar, já dava o nome acariciador de papooses, com que se designam os babies ingleses nos territórios do Far-West.

      Service propôs que, como recordação dos seus romances predilectos, se chamasse Sexta-feira a Kate - como Crusoé fizera ao seu companheiro, de imorredoura memória - porque foi exactamente numa sexta-feira que Kate chegou a French-den.

      Em seguida acrescentou:

      - Esses malfeitores são os selvagens de Robinson! Há sempre um momento em que aparecem os selvagens, e sempre se consegue dar cabo deles!

      Às oito horas estavam acabados os preparativos da partida. Moko, que não recuava diante de nenhum perigo, regozijava-se por acompanhar Briant nesta expedição.

      Embarcaram ambos, levando algumas provisões, dois revólveres e duas facas de mato. Depois de dizerem adeus aos seus camaradas, que os viram afastar-se com o coração oprimido, em breve desapareceram no meio das sombras de Family-lake. Ao romper do Sol erguera-se uma pequena brisa, que soprava do norte, e, se se conservasse, auxiliaria a canoa, tanto na ida como na volta.

      Em todo o caso, conservou-se favorável durante a travessia de oeste para leste. A noite estava muito escura - circunstância feliz para Briant, que queria passar despercebido. Dirigindo-se pela bússola, tinha a certeza de chegar à margem oposta, que bastava subir ou descer, conforme a embarcação abordasse a ela para cima ou para baixo do curso de água. A atenção de Briant e de Moko dirigia-se toda para esse lado; e receavam avistar algum lume - o que decerto indicaria a presença de Walston e dos seus companheiros, porque Doniphan devia ter acampado no litoral, na embocadura do East-river.

      Percorreram seis milhas em duas horas. A canoa não sofrera muito com a brisa, posto que esta tivesse refrescado um pouco. Chegou ao lugar onde aportara a primeira vez e teve de costear a margem durante meia milha, a fim de chegar à enseada estreita por onde as águas do lago corriam para o rio. Isto levou muito tempo. Como o vento era contrário, foi necessário servirem-se dos remos. Tudo parecia tranquilo debaixo das árvores, inclinadas por cima da água. Não se ouvia um uivo nem um gemido nas profundezas da floresta, nem se via lume algum debaixo dos negros maciços de verdura.

      Contudo, cerca das dez horas e meia, Briant, que estava sentado na ré da canoa, agarrou no braço de Moko. A algumas centenas de pés do East-river na margem direita, uma fogueira quase apagada deitava uma claridade moribunda através da sombra. Quem acampara ali... Walston ou Doniphan... Era preciso reconhecê-lo antes de se meterem na corrente do rio.

      - Vou desembarcar, Moko - disse Briant.

      - Não quer que o acompanhe, Sr. Briant - perguntou o grumete em voz baixa.

      - Não; prefiro ir só! É menos fácil ser visto!

      A canoa aportou à praia, e Briant saltou em terra, depois de ter recomendado a Moko que o esperasse. Levava a faca de mato na mão e o revólver à cinta, decidido a não se servir deste senão em último recurso, a fim de evitar o ruído.

      Depois de ter subido a praia, o corajoso rapaz meteu-se debaixo das árvores.

      De repente, parou. A vinte passos dali, à claridade da fogueira, pareceu-lhe distinguir uma sombra, arrastando-se por entre as ervas, como ele próprio fazia.

      Neste momento, ouviu-se um rugido formidável. Em seguida uma massa saltou para a frente.

      Era um jaguar enorme.

      Ouviram-se logo estes gritos:

      - Socorro!... Socorro!...

      Briant reconheceu a voz de Doniphan. Era ele, efectivamente. Os seus companheiros tinham ficado no acampamento estabelecido junto da margem do rio.

      Doniphan, derrubado pelo jaguar, debatia-se, sem poder fazer uso das armas.

      Wilcox, atraído pelos gritos, correu, com a espingarda ao ombro, pronto para fazer fogo...

      - Não dispares!... Não dispares!... - recomendou Briant.

      E antes de que Wilcox o tivesse visto, Briant precipitou-se sobre o carnívoro, que se virou contra ele, enquanto Doniphan se erguia prontamente.

      Por felicidade, Briant pôde saltar para o lado, depois de ter ferido o jaguar com a faca de mato. Isto foi feito com tanta rapidez que nem Doniphan nem Wilcox tiveram tempo de intervir. O animal, ferido mortalmente, caíra, no momento em que Webb e Cross corriam a auxiliar Doniphan.

      Mas a vitória podia ter saído cara a Briant, que ficara com um dos ombros a escorrer sangue, rasgado pelas garras do jaguar.

      - Como vieste aqui? - exclamou Wilcox.

      - Sabê-lo-ão mais tarde! - respondeu Briant. - Venham!... Venham!...

      - Não sem te agradecer, Briant! - disse Doniphan. - Salvaste-me a vida...

      - Fiz o que tu farias no meu lugar! - retorquiu Briant. - Não falemos mais nisso, e segue-me!...

      No entanto, posto que a ferida de Briant não fosse grave, foi necessário ligá-la muito bem com um lenço, e, enquanto Wilcox fazia isto, o corajoso rapaz pôde pôr os seus camaradas ao facto da situação.

      Assim, aqueles homens que Doniphan julgara mortos e levados pela maré estavam vivos! Vagueavam pela ilha! Eram malfeitores, manchados de sangue! Vinha uma mulher com eles, na chalupa do Severn, e essa mulher estava em French-den!... Agora, já não havia segurança na ilha Chairman!... Aí está porque Briant gritara a Wilcox que não fizesse fogo, com medo de que a detonação se ouvisse, e se servira da faca de mato para ferir o jaguar!

      - Ah! Briant, tu vales mais do que eu! - exclamou Doniphan, muito comovido e num ímpeto de reconhecimento que foi mais forte do que o seu carácter orgulhoso.

      - Não, Doniphan, não, meu amigo - respondeu Briant - e, já que me dás a mão, não a largo enquanto não consentires em vir comigo...

      - Sim, Briant, irei! - afirmou Doniphan. - Conta comigo! Daqui para o futuro, serei o primeiro a obedecer-te! Amanhã... ao romper do dia... partimos...

      - Não, imediatamente - recomendou Briant -, para podermos chegar sem que nos vejam!

      - E como?... - perguntou Cross.

      - Moko está ali! Espera-nos com a canoa! Íamos tomar a direcção do East-river, quando distingui o clarão de uma fogueira, que era esta.

      - E chegaste a tempo para me salvar!... - repetiu Doniphan.

      - E também para te levar Para French-den!

      Agora, por que razão tinham Doniphan, Wilcox, Webb e Cross acampado naquele sítio e não na embocadura do East-river? A explicação foi dada em algumas palavras.

      Depois de terem deixado a costa dos Severn-shores, voltaram ao porto de Bear-rock na noite de 16. No dia seguinte de manhã como estava combinado, subiram a margem esquerda do East-river até ao lago onde tinham acampado, esperando que amanhecesse para regressarem a French-den.

      Alguns momentos depois, Briant e os seus camaradas tinham embarcado, e, como a canoa era muito pequena para seis, foi preciso manobrar com cuidado.

      Mas a brisa era favorável, e Moko dirigiu a embarcação tão habilmente que a travessia fez-se sem acidente algum.

      Com que alegria Gordon e os outros receberam os ausentes, quando estes, pelas quatro horas da manhã, desembarcaram na represa do rio Zealand! Se os ameaçavam grandes perigos, ao menos estavam todos reunidos em French-den!

     

      A colónia estava, pois, completa, e até aumentada com um novo membro - aquela boa Kate, arremessada, em consequência de um terrível drama marítimo, às praias da Ilha Chairman. E, depois, a harmonia ia agora reinar em French-den – harmonia que, para o futuro, nada devia perturbar. Se Doniphan sentia ainda algum pesar por não ser o chefe dos moços colonos, ao menos voltara amigavelmente para junto deles. Sim, aquela separação de dois ou três dias tivera bons resultados. Já algumas vezes, sem dizer nada aos seus camaradas, sem querer confessar o seu erro, quando o amor-próprio ainda tinha mais força nele do que o interesse, compreendera que a sua obstinação o levara a fazer uma tolice. Por outro lado, Wilcox, Cross e Webb sentiam a mesma impressão. Por isso, depois da dedicação de que Briant dera provas, Doniphan entregara-se aos seus bons sentimentos, que nunca mais deviam abandoná-lo.

      Além disso, perigos muito sérios ameaçavam French-den, exposta aos ataques de sete malfeitores, vigorosos e armados. O interesse de Walston era, decerto, tentar abandonar a ilha Chairman o mais depressa que pudesse; mas, se ele viesse a suspeitar da existência de uma pequena colónia, bem fornecida de tudo o que a ele faltava, não recuaria perante uma agressão em que todas as probabilidades eram a seu favor. Os moços colonos foram obrigados a tomar precauções rigorosas, a não se afastarem do rio Zealand, a não se aventurarem sem necessidade pelos arredores do Family-lake, enquanto Walston e o seu bando não tivessem deixado a ilha.

      E, primeiro, tratou-se de saber se, durante o seu regresso dos Severn-shores a Bear-rock, Doniphan, Cross, Webb e Wilcox não tinham notado coisa alguma que lhes fizesse suspeitar a presença dos marinheiros do Severn?

      - Nada - respondeu Doniphan, que acrescentou:

      - É verdade que, para voltarmos à embocadura do East-river, não seguimos o caminho que havíamos tomado quando subimos para o norte.

      - Contudo, é certo que Walston se afastou na direcção de leste! - observou Gordon.

      - De acordo - admitiu Doniphan -, mas deve ter caminhado ao longo da costa, enquanto nós voltámos directamente por Beechs-forest. Peguem no mapa e verão que a ilha forma uma curva pronunciada por cima de Deception-bay. Há aí um vasto território onde aqueles malfeitores podem ter-se refugiado, sem se afastarem muito do lugar onde deixaram a chalupa. Talvez Kate soubesse dizer-nos, pouco mais ou menos, em que paragens está situada a ilha Chairman?

      Kate, que já tinha sido interrogada a este respeito por Briant e por Gordon, não pudera responder-lhes. Depois do incêndio do Severn, quando o mestre Evans tomou a direcção da chalupa, manobrou de maneira que fosse ter directamente ao continente americano, do qual a ilha Chairman não podia estar muito longe. Ora, ele nunca pronunciara o nome desta ilha onde a tempestade o arremessara. No entanto, como os numerosos arquipélagos da costa deviam estar a uma distância relativamente pequena, havia razões muito plausíveis para Walston querer alcançá-los, e, enquanto não o fazia, devia ter Interesse em ficar no litoral de leste. Efectivamente, no caso de pôr a embarcação em estado de navegar, não lhe custaria muito a dirigir-se para alguma terra da América do Sul.

      - A não ser - observou Briant - que Walston, chegando à embocadura do East-river, e encontrando aí vestígios da tua passagem, Doniphan, não se lembrasse de levar as suas pesquisas mais longe!

      - Que vestígios? - volveu Doniphan. - Um montão de cinzas apagadas? Que se podia concluir daí? Que a ilha é habitada? Nesse caso, aqueles miseráveis só pensariam em esconder-se...

      - Decerto - replicou Briant -, se não descobrirem que a população da ilha se reduz a um punhado de crianças! Não façamos, pois, nada que possa indicar-lhes quem somos! A propósito, Doniphan, não tiveste ocasião de disparar algum tiro durante o regresso a Deception-bay?

      - Não, e até admira - respondeu Doniphan, sorrindo -, porque eu nunca desprezo essas ocasiões! Quando abandonámos a costa, íamos bem fornecidos de caça, e nenhuma detonação revelou a nossa presença. Ontem, durante a noite, Wilcox esteve quase a disparar sobre o jaguar, mas, felizmente, tu chegaste a tempo de o impedir, Briant, e de me salvar a vida, arriscando a tua!

      - Repito-te, Doniphan, fiz apenas o que tu farias no meu lugar! E, agora, nem um único tiro! Cessemos, até, as visitas a Traps-woods, e muita cautela!

      É inútil dizer que, logo que chegou a French-den, Briant recebeu todos os cuidados que a sua ferida exigia, cicatrizando esta em poucos dias. Ficou-lhe apenas uma certa impressão no braço, impressão que em breve desapareceu.

      Entretanto, o mês de Outubro findara, e Walston ainda não dera sinal da sua presença nos arredores do rio Zealand. Teria partido, depois de consertar a chalupa? Não era impossível, pois eles deviam possuir um machado - Kate lembrava-se disso - e podiam também servir-se das facas que os marinheiros trazem sempre consigo; madeira não faltava nas proximidades dos Severn-shores, Em todo o caso, como não tinham certeza alguma a este respeito, a vida teve de ser modificada. Acabaram-se as excursões ao longe, excepto no dia em que Baxter e Doniphan foram deitar abaixo o mastro que se erguia no cume de Auckland-hill.

      Desse ponto, Doniphan percorreu com o óculo as massas de verdura que se arredondavam a nascente. Posto que o olhar não pudesse abranger o litoral, oculto por Beechs-forest, se se elevasse algum fumo no ar ter-se-ia distinguido com certeza - e isso indicaria que Walston e os seus tinham acampado naquela parte da ilha. Doniphan não viu nada nessa direcção, nem tão-pouco ao largo de Sloughi-bay, cujas paragens estavam desertas.

      Desde que as excursões estavam proibidas, e que era preciso deixar as espingardas em descanso, os caçadores da colónia tinham sido obrigados a renunciar ao seu exercício predilecto. Felizmente, as armadilhas e os laços, armados nas proximidades de French-den, forneciam caça em quantidade suficiente. Além disso, os tinamus e as abetardas tinham-se multiplicado de tal modo na capoeira que Service e Garnett foram obrigados a sacrificar bom número deles. Como se fizera abundante colheita de folhas da árvore do chá, assim como da seiva do bordo, que se transforma tão facilmente em açúcar, não foi preciso ir até ao Dike-creek a fim de renovar as provisões. E, mesmo que o Inverno chegasse antes que os moços colonos recuperassem a liberdade, estavam suficientemente fornecidos de azeite para as lanternas, de conservas e de caça para a despensa. Teriam apenas de renovar o combustível, acarretando a lenha cortada nos maciços de Bog-woods, e seguindo a margem do rio Zealand, sem se arriscarem muito.

      Nesta época, o bem-estar de French-den foi aumentado com uma nova descoberta.

      Esta descoberta não foi devida a Gordon, posto que ele fosse muito entendido em botânica. Não! As honras dela pertenceram a Kate.

      No limite de Bog-woods havia um certo número de árvores que mediam cinquenta a sessenta pés de altura. Se o machado as poupara até ali, é porque a madeira, muito fibrosa, não alimentaria bem os fogões do hall e do cerrado. Tinham folhas de forma oblonga, que se alternavam com os nós dos ramos, e cuja extremidade era armada de uma ponta coriácea.

      A primeira vez - no dia 25 de Outubro - que Kate avistou uma destas árvores, exclamou:

      - Olhem!... A árvore-vaca!

      Dole e Costar, que a acompanhavam, deram uma gargalhada.

      - O quê, a árvore-vaca? - disse um.

      - Então as vacas comem-na? - perguntou outro.

      - Não, meus papooses, não - respondeu Kate. - Chama-se assim porque dá leite, e leite melhor do que o das vicunhas!

      Voltando para French-den, Kate participou a sua descoberta a Gordon. Este chamou logo Service, e foram ambos, acompanhados por Kate, à entrada de Bog-woods. Depois de examinar a árvore em questão, Gordon pensou que devia ser um desses galactodendros que se desenvolvem em grande número nas florestas do Norte da América, e não se enganava.

      Que preciosa descoberta! Efectivamente, bastava fazer uma incisão no tronco daqueles galactodendros para sair de lá um suco de aparência leitosa, com o gosto e as propriedades nutritivas do leite de vaca. Além disso, quando se deixa coagular este leite, forma uma espécie de queijo excelente, e ao mesmo tempo produz uma cera muito pura, comparável à das abelhas, e com a qual se podem fazer velas de boa qualidade.

      - Muito bem - exclamou Service -, se é uma árvore-vaca, é preciso mungi-la!

      E, sem o saber, o alegre rapaz acabava de empregar a expressão de que se servem os índios, os quais dizem naturalmente: - Vamos  mungir a árvore.

      Gordon fez uma incisão no tronco do galactodendro, do qual saiu um suco que encheu um jarro trazido por Kate para esse fim.

      Era um belo leite de cor esbranquiçada, de aspecto muito apetitoso, e contendo os mesmos elementos que o leite de vaca. É até mais nutritivo, mais consistente, e tem um sabor mais agradável. O jarro foi despejado logo que chegaram a French-den, e Costar enlambuzou a boca, como um gato pequeno. Lembrando-se de tudo o que ia fazer com esta nova substância, Moko não ocultou a satisfação que sentia: De mais a mais, não era necessário poupá-la. O “rebanho” de galactodendros que fornecia abundantemente aquele leite vegetal não estava longe!

      Realmente, a ilha Chairman podia satisfazer as necessidades de uma colónia numerosa. A subsistência dos rapazes estava assegurada, mesmo por muito tempo. Além disso, a presença de Kate, os cuidados que podiam esperar dessa mulher dedicada, a quem inspiravam uma afeição maternal, tudo se reunia para lhes tornar a vida mais fácil!

      Mas a segurança estava agora perturbada na ilha Chairman! Quantas descobertas Briant e os seus camaradas teriam feito, organizando explorações às partes desconhecidas da ilha, e às quais tinham de renunciar! Ser-lhes-ia dado continuarem alguma vez as suas excursões, receando apenas o encontro de alguns carnívoros - menos perigosos, com certeza, do que os outros carnívoros com figura humana, contra os quais deviam acautelar-se noite e dia!

      Em todo o caso até aos primeiros dias de Novembro não apareceu vestígio algum suspeito nos arredores de French-den. Briant perguntava a si mesmo se os marinheiros do Severn ainda estariam na ilha. E, contudo, Doniphan verificara com os seus próprios olhos o mau estado em que se achava a chalupa, com o mastro partido, o velame em farrapos, as cintas do costado arrombadas pelos recifes! É verdade que - o mestre Evans não devia Ignorá-lo -, se a ilha Chairman estava próxima de um continente ou de um arquipélago, talvez a chalupa, calafetada e arranjada melhor ou pior, tivesse sido posta em estado de fazer uma travessia relativamente curta! Portanto, era admissível que Walston tivesse deixado a ilha!... Sim, e isso é que convinha saber, antes de continuarem o modo de vida habitual.

      Briant lembrara-se muitas vezes de ir explorar a região situada a leste do Family-lake. Doniphan, Baxter e Wilcox tê-lo-iam acompanhado de boa vontade. Mas correr o risco de cair em poder de Walston e, portanto, fazer-lhe ver quão pouco temíveis eram os seus adversários, podia ter consequências muito desagradáveis. Por isso, Gordon, cujos conselhos eram sempre atendidos, convenceu Briant a abandonar a ideia de se aventurar nas profundezas de Beechs-forest.

      Kate fez então uma proposta que não apresentava perigo algum para os moços colonos.

      - Sr. Briant - disse ela uma noite, estando todos os rapazes reunidos no hall -, dá-me licença que os deixe amanhã, ao romper do dia?

      - Quer deixar-nos, Kate?... - perguntou Briant.

      - Quero! Não podem estar mais tempo nesta incerteza, e ofereço-me para ir ao lugar onde fomos arremessados pela tempestade, a fim de ver se Walston ainda está na ilha... Se a chalupa estiver ainda lá, é porque ele não partiu... Se não estiver, não têm nada a recear dele!

      - Isso que quer fazer, Kate - declarou Doniphan -, é exactamente o que Briant, Baxter, Wilcox e eu queríamos pôr em prática!

      - Decerto, Sr. Doniphan - admitiu Kate. - Mas o que é perigoso para os senhores não o é para mim...

      - Contudo - objectou Gordon -, se tornar a cair nas mãos de Walston?...

      - Nesse caso - respondeu Kate - ficarei na situação em que estava antes de fugir, nada mais!

      - E se aquele miserável se desembaraçar de Kate, o que é muito provável?... - observou Briant.

      - Já fugi uma vez - replicou Kate. - Porque não hei-de fugir segunda, agora então que conheço o caminho de French-den? E se conseguisse fugir na companhia de Evans - a quem contaria tudo o que lhes diz respeito -, o bom mestre ser-lhes-ia muito útil!...

      - Se Evans pudesse fugir - retorquiu Doniphan -, não o tinha já feito?... O seu interesse não é deixá-los?...

      - Doniphan tem razão - disse Gordon. - Evans sabe o segredo de Walston e dos seus cúmplices, que não hesitarão em matá-lo quando já não precisarem que ele dirija a chalupa para o continente americano! Portanto, se ainda não conseguiu escapar-lhes, é porque está guardado à vista...

      - Ou talvez já pagasse com a vida uma tentativa de invasão! - lembrou Doniphan. - Por isso, Kate, se a apanhassem outra vez...

      - Creia - assegurou Kate - que farei toda a diligência para não me deixar apanhar!

      - Decerto - concordou Briant -, mas nós é que nunca a deixaremos correr esse perigo! Não! É melhor procurar outro meio para sabermos se Walston está ainda na ilha Chairman!

      Tendo-se rejeitado a proposta de Kate, o que havia a fazer era apenas evitar que se cometesse alguma imprudência. Evidentemente, se Walston estivesse em condições de deixar a ilha, partiria antes do Inverno, a fim de chegar a alguma terra onde ele e os seus fossem recebidos como se recebem sempre os náufragos, de qualquer parte que venham.

      Afinal, admitindo que Walston ainda estivesse ali, não parecia ter ideias de explorar o interior. Muitas vezes, em noites sombrias, Briant, Doniphan e Moko percorreram o Family-lake, na canoa, e nunca surpreenderam o clarão de uma fogueira suspeita, nem na margem oposta, nem debaixo das árvores que se agrupavam próximo do East-river.

      Contudo, era muito penoso viver em tais condições, sem sair do espaço compreendido entre o rio Zealand, o lago, a floresta e a penedia. Por isso, Briant pensava constantemente no meio de se certificar da presença de Walston e de descobrir, ao mesmo tempo, o lugar onde ele estabelecera o acampamento. Talvez não fosse preciso mais do que elevar-se a uma certa altura durante a noite.

      Era essa a ideia de Briant, ideia que não o deixava um instante. Infelizmente, a não ser a penedia cuja crista mais elevada não excedia duzentos pés de altura, a ilha Chairman não tinha outra colina de alguma importância.

      Doniphan e dois ou três dos outros tinham subido muitas vezes ao cume de Auckland-hill; mas desse ponto nem sequer avistavam a outra margem do Family-lake. Portanto, nem fumo nem clarão podiam aparecer a leste, por cima do horizonte. Seria necessário subir mais algumas centenas de pés para que o raio visual pudesse chegar às primeiras rochas de Deception-bay.

      Foi então que ocorreu a Briant uma ideia de tal modo arrojada - podíamos até dizer insensata - que ele, ao princípio, repeliu-a. Mas perseguia-o com tal obstinação, que acabou por se lhe incrustar no cérebro.

      Como dissemos, a operação do papagaio tinha sido interrompida. Depois da chegada de Kate, trazendo a notícia de que os náufragos do Severn vagueavam pela costa oriental, fora necessário renunciar ao projecto de lançar nos ares um aparelho que seria visto de todos os pontos da ilha.

      Mas, uma vez que o papagaio não podia ser empregado como sinal, não seria possível utilizá-lo para operar aquele reconhecimento, tão necessário para a segurança da colónia?

      Sim! Era nisso que se obstinava a imaginação de Briant. Lembrava-se de ter lido num jornal Inglês que, no fim do século passado, uma mulher tivera a audácia de se elevar nos ares, suspensa de um papagaio fabricado especialmente para aquela ascensão perigosa (A ideia de Briant ia realizar-se em França. Alguns anos depois. um papagaio, medindo vinte e quatro pés de largura sobre vinte e sete de comprimento, de forma octogonal, pesando sessenta e oito quilos de madeira e quarenta e cinco de tela e de corda - ao todo cento e treze quilos -, levara facilmente pelos ares um saco de terra que pesava perto de setenta quilos.).

      Pois um rapaz não se atreveria a tentar o que uma mulher conseguira fazer? Pouco importava que a tentativa apresentasse alguns perigos. Os riscos não eram nada em comparação com os resultados que se poderiam obter! Tomando todas as precauções que a prudência exigia, havia muitas probabilidades de que a operação tivesse bom êxito. Era por isso que Briant, apesar de não saber calcular matematicamente a força ascensional que era precisa para um aparelho daquele género, repetia consigo mesmo que o aparelho estava pronto, que bastava dar-lhe maiores dimensões e fazê-lo mais sólido. E então, no meio da noite, elevando-se algumas centenas de pés nos ares, talvez conseguisse descobrir o clarão de uma fogueira na parte da ilha compreendida entre o lago e Deception-bay.

      Não encolham os ombros à ideia deste valente e audacioso rapaz! Perseguido por este pensamento constante, chegara a julgar o seu projecto, não só praticável - a esse respeito não há dúvida -, mas até menos perigoso do que parecia à primeira vista.

      Tratava-se apenas de fazê-lo adoptar pelos seus camaradas.

      E no dia 4, à noite, depois de ter pedido a Gordon, Doniphan, Wilcox, Webb e Baxter que fossem conferenciar com ele, expôs-lhes a sua ideia de utilizar o papagaio que tinham fabricado.

      - Utilizá-lo?... - estranhou Wilcox. - Como?... Deixando-o ir pelos ares?

      - Já se vê - respondeu Briant -, pois foi para isso que ele se fez.

      - De dia? - interrogou Baxter.

      - Não, Baxter; de dia não podia escapar aos olhos de Walston, enquanto que de noite...

      - Mas se lhe prenderem uma lanterna - observou Doniphan -, atrai a atenção de quem o vir, da mesma maneira.

      - Pois não haverá lanterna.

      - Então para que serve?... - perguntou Gordon.

      - Para ver se os marinheiros do Severn ainda estão na ilha!

      E Briant, não sem recear que o seu projecto fosse recebido por movimentos de cabeça pouco animadores, expô-lo em poucas palavras.

      Os seus camaradas não riram. Tinham pouca vontade disso, e, à excepção de Gordon, talvez, que não sabia se Briant falava seriamente, todos os rapazes pareceram muito dispostos a darem a sua aprovação. Sim! Todos eles estavam tão acostumados ao perigo, que uma ascensão nocturna, feita naquelas condições, pareceu-lhes muito praticável.

      Além disso, estavam seriamente resolvidos a empreender tudo o que fosse necessário para lhes restituir a segurança de outrora.

      - Contudo - observou Doniphan -, o peso de qualquer de nós não será excessivo para o papagaio que construímos?...

      - É, decerto - respondeu Briant. - Assim, há-de ser preciso aumentar e consolidar a nossa máquina.

      - Resta saber - disse Wilcox - se o papagaio poderá resistir...

      - Isso pode, com certeza! - afirmou Baxter.

      - E já houve quem o fizesse - acrescentou Briant.

        E citou o caso da mulher que, uns cem anos antes, tentara a experiência com resultado.

      Em seguida:

      - Tudo depende - explicou ele - das dimensões do aparelho e da força do vento no momento da ascensão.

      - Briant - perguntou Baxter -, a que altura te parece que será necessário subir?...

      - Imagino que, subindo seiscentos ou setecentos pés - respondeu Briant -, se avistaria uma fogueira que acendessem em qualquer ponto da ilha.

      - Muito bem! Vamos a isso - exclamou Service -, e sem demora! Já estou farto de não poder andar por onde quero, e à minha vontade!

      - E nós de não podermos visitar as nossas armadilhas! - acrescentou Wilcox.

      - E eu de não me atrever a disparar um único tiro! – ajuntou Doniphan.

      - Então, será amanhã! - declarou Briant.

      Depois, quando ficou só com Gordon:

      - Pensas seriamente nesta ascensão? - perguntou-lhe este.

      - Quero experimentar, pelo menos, Gordon!

      - É uma operação perigosa!

      - Talvez não seja tanto como parece!

      - E qual de nós consentirá em arriscar a vida nessa tentativa?...

      - Tu mesmo, Gordon - respondeu Briant -, se a sorte te indicar!

      - Então é à sorte, Briant?

      - Não, Gordon! Aquele que se sacrificar, deve fazê-lo por sua livre vontade!

      - Já escolheste, Briant?

      - Talvez!

        E Briant apertou a mão de Gordon.

     

      Na manhã de 5 de Novembro, Briant e Baxter puseram-se à obra. Antes de darem dimensões mais consideráveis ao aparelho, quiseram saber que peso ele poderia levar tal como era. Isso permitiria que lhe dessem pouco mais ou menos, à falta de fórmulas científicas, a superfície suficiente para suportar - não compreendendo o seu - um peso que não devia ser inferior a cento e vinte ou cento e trinta libras.

      Não foi preciso esperar que anoitecesse para fazer a primeira experiência. A brisa soprava de sudoeste, e Briant pensou que não haveria inconveniente em aproveitá-la, com a condição de conservarem o papagaio a pouca altura, de maneira que não pudesse ser visto da margem oriental do lago.

      A operação deu óptimo resultado, e verificou-se que o aparelho, com um vento ordinário, erguia um saco que pesava vinte libras. Uma balança romana, pertencente ao material do Sloughi, permitira que se soubesse este peso com exactidão.

      O papagaio foi então puxado para terra e deitado no solo de Sport-terrace.

      Baxter, em primeiro lugar, fez-lhe a armação extremamente sólida, por meio de cordas que se prendiam a um nó central, como as varetas de um guarda-chuva ao anel que corre pelo cabo. Em seguida aumentou-lhe a superfície, com um suplemento de armação e uma adjunção de tela nova.

      Kate foi de muita utilidade para este arranjo. As agulhas e a linha, que estavam nas caixas do iate, não faltavam em French-den, e a hábil governanta era muito entendida em trabalhos de costura.

      Se Briant ou Baxter fossem mais fortes em mecânica, teriam considerado, na construção do aparelho, os elementos principais, que são o peso, a superfície plana, o centro de gravidade, o centro de pressão do vento - que se confunde com o centro da figura - e, finalmente, o ponto onde se devia ligar a corda. Depois, estabelecidos estes cálculos, teriam deduzido qual era a força ascensional do papagaio e a altura a que podia chegar. O cálculo ter-lhes-ia também indicado a força que a corda devia ter para resistir à tensão – condição muito importante para aumentar a segurança do observador.

      Felizmente, a linha fornecida pela barquinha da escuna, e que media, pelo menos, dois mil pés de comprimento, era muito conveniente. Além disso, mesmo com uma brisa muito fresca um papagaio puxa com moderação, quando o ponto em que se prende a corda é escolhido judiciosamente. Era necessário regular cuidadosamente esse ponto de prisão, do qual depende a inclinação do aparelho e a sua estabilidade.

      Com este novo destino, o papagaio não devia ter cauda no apêndice inferior - o que foi causa de grande despeito da parte de Costar e Dole.

      Era inútil, e o peso que levava impedi-lo-ia de cair de cabeça para baixo.

      Depois de muitos ensaios, Briant e Baxter observaram que convinha prender o peso ao terço de armação, fixando-o a uma das travessas que sustentavam a tela à largura do aparelho. Duas cordas, amarradas a essa travessa, segurá-lo-iam de maneira que ficasse suspenso a uns vinte pés de altura.

      Quanto à corda, preparou-se uma de mil e duzentos pés, pouco mais ou menos, que, deduzindo a curva, permitiria que se elevasse a setecentos ou oitocentos pés acima do solo. Enfim, para evitar quanto fosse possível os perigos de uma queda, no caso de esta se produzir por uma rotura da corda ou uma fractura da armação, combinou-se que a ascensão seria feita por cima do lago. A distância horizontal a que se efectuaria esta queda nunca seria bastante considerável, em todo o caso, para que um bom nadador não pudesse alcançar a margem do oeste.

      O aparelho, depois de concluído, apresentava uma superfície de setenta metros quadrados, em forma de um octógono, cujo raio tinha perto de quinze pés e cada um dos lados perto de quatro. Com as suas armações sólidas, a sua tela impermeável, devia levantar facilmente um peso de cem a cento e vinte libras.

      Quanto à barquinha destinada ao observador, foi adaptado um simples cesto de vime, que têm diferentes usos a bordo dos iates. Era bastante funda e espaçosa a fim de que o observador se pudesse abrigar e movimentar à vontade, possuindo larga abertura para, em caso de necessidade, sair dela rapidamente. Este trabalho não se fizera em um dia, nem mesmo em dois. Começou-se no dia 5 de manhã e não ficou pronto senão na tarde do dia 8. Adiou-se, pois, para a noite a experiência preparatória que ajudaria a conhecer a força ascensional do aparelho e o seu grau de estabilidade no ar.

      Durante estes últimos dias nada modificara a situação. Os moços colonos iam muitas vezes à penedia, onde se conservavam em observação durante muitas horas. Não tinham visto nada suspeito, nem a norte, entre o começo de Traps-woods e French-den, nem a sul, para além do rio, nem a oeste, do lado de Sloughi-bay, nem no Family-lake, que Walston podia ter querido visitar antes de deixar a ilha. Não se ouvira detonação alguma nas proximidades de Auckland-hill. No horizonte não aparecera o mais leve fumo.

      Briant e os seus camaradas poderiam, pois, esperar que aqueles malfeitores tivessem abandonado definitivamente a ilha Chairman? Ser-lhes-ia dado retomarem com segurança os hábitos de outrora Era o que a experiência projectada ia permitir que se verificasse.

      Agora, outra questão: o rapaz que fosse na barquinha como faria sinal para a puxarem para terra, quando o julgasse conveniente?

      Aqui está o que Briant expôs, quando Doniphan e Gordon o interrogaram.

      - Um sinal luminoso é impossível - ponderou Briant -, porque depois podia ser avistado por Walston. Assim, Baxter e eu recorreremos ao seguinte meio: um cordel do mesmo comprimento que a corda do papagaio, depois de ter sido enfiado numa bola de chumbo furada no meio, será preso na barquinha por uma das extremidades, e a outra ficará em terra nas mãos de um de nós. Basta deixar escorregar a bola ao longo do cordel para se saber que se deve puxar o papagaio.

      - Bem imaginado! - aprovou Doniphan.

      Estando tudo assim combinado, não foi preciso mais do que proceder a uma experiência preliminar. A Lua só devia aparecer pelas duas horas depois da meia-noite, e soprava uma brisa agradável de sudoeste. As condições pareciam particularmente favoráveis para começar nessa mesma noite.

      Às nove horas, a escuridão era profunda. Algumas nuvens, bastante espessas, corriam através do espaço num firmamento sem estrelas. Qualquer que fosse a altura a que subisse o aparelho, não podia ser distinguido nem sequer dos arredores de French-den.

      Todos deviam assistir a esta primeira experiência, e, visto que se tratava apenas de uma operação “a seco”, como se costuma dizer, as diversas peripécias seriam seguidas com mais prazer do que comoção.

      O molinete do Sloughi tinha sido instalado no centro do Sport-terrace, e fixado solidamente na terra, a fim de resistir à tracção do aparelho. A comprida corda, enovelada cuidadosamente, foi disposta de maneira que se desenrolasse sem esforço, ao mesmo tempo que o cordel destinado a dar o sinal. Briant colocara na barquinha um saco de terra que pesava exactamente cento e trinta libras - peso superior ao do mais pesado dos seus camaradas.

      Doniphan, Baxter, Wilcox e Webb foram postar-se junto do papagaio, estendido no chão, a cem passos do molinete.

      A uma ordem de Briant deviam erguê-lo a pouco e pouco, por meio de cordas, que estavam presas nas travessas da armação. Logo que o aparelho tivesse cedido ao vento segundo a sua inclinação determinada pela disposição do balancim, Briant, Gordon, Service, Cross e Garnett, encarregados da manobra do molinete, iriam desenrolando a corda à proporção que ele se elevasse nos ares.

      - Atenção! - gritou Briant.

      - Estamos prontos! - declarou Doniphan.

      - Vá! O aparelho ergueu-se a pouco e pouco, estremeceu debaixo da acção da brisa e inclinou-se sobre o leito do vento.

      - Desenrolem!... Desenrolem! - ordenou Wilcox.

      E o molinete girou imediatamente sob a tensão da corda, enquanto o papagaio e a barquinha subiam lentamente através do espaço.

      Apesar de ser imprudente, soltaram-se hurras quando o “gigante dos ares” deixou o solo. Mas, quase em seguida, desapareceu na sombra, com grande desapontamento para Iverson, Jenkins, Dole e Costar, que não queriam perdê-lo de vista enquanto ele se balouçava por cima de Family-lake. Kate disse-lhes então:

      - Não se desconsolem, meus papooses!... Em outra ocasião, quando já não houver perigo, largar-se-á o gigante em pleno dia, e, se tiverem juízo, podem enviar-lhe postilhões!

      Apesar de já não se poder distinguir o papagaio, sentia-se que subia regularmente, prova de que a brisa estava bem estabelecida e soprava nas zonas elevadas, e que a sua tracção era moderada, prova também de que o balancim estava disposto como devia ser.

      Briant, querendo que a experiência fosse tão completa quanto as circunstâncias o permitiam, deixou a corda desenrolar-se até à extremidade. Pôde então apreciar o seu grau de tensão, que não tinha nada de anormal. O molinete desenrolara mil e duzentos pés de corda, e o aparelho devia ter-se elevado a uma altura de setecentos a oitocentos pés. Este trabalho não levara mais de dez minutos.

      Feita a experiência, todos deram, alternadamente, às manivelas, a fim de enrolar a corda. Esta segunda parte da operação foi muito mais longa, e foi preciso quase uma hora para enrolar os mil e duzentos pés de corda.

      Do mesmo modo que para um aeróstato, a acção de puxar um papagaio para terra é sempre a manobra mais delicada, quando se quer que desça sem choque. A brisa, porém, era tão constante, que tudo foi bem sucedido. O octógono depressa tornou a aparecer na sombra, e foi cair brandamente no solo, pouco mais ou menos no ponto de onde partira.

      A sua chegada foi recebida por hurras, os mesmos que o tinham saudado à partida.

      Agora tratava-se apenas de conservá-lo em terra, para que não fosse levado pelo vento.

      Baxter e Wilcox ofereceram-se para tomarem sentido nele até amanhecer.

      No dia seguinte - 9 de Novembro -, à mesma hora, realizar-se-ia a operação definitiva.

      E agora esperavam-se só as ordens de Briant para se regressar a French-den.

      Briant não dizia nada, e parecia estar absorto nas suas reflexões.

      Em que pensava? Nos perigos que apresentava a ascensão tentada em condições tão excepcionais? Na responsabilidade que assumia, deixando um dos seus camaradas arriscar-se naquela barquinha?

      - Voltemos para casa - aconselhou Gordon. - É tarde...

      - Gordon, Doniphan, esperem um momento... – respondeu Briant. - Tenho uma proposta a fazer-lhes!

      - Fala - convidou” Doniphan.

      - Acabamos de experimentar o nosso papagaio. – prosseguiu Briant -, e esta experiência teve bom resultado porque as circunstâncias eram favoráveis; o vento está regular – nem muito fraco nem muito forte. Ora, quem nos diz que amanhã está o mesmo tempo e que o vento consente que o aparelho se conserve por cima do lago? Parece-me melhor não adiar a operação!

      Era o mais razoável, efectivamente, logo que estavam resolvidos a fazê-la.

      Contudo, ninguém respondeu a esta proposta. No momento de correr tais perigos, a hesitação era natural - mesmo da parte dos mais arrojados.

        E, não obstante, quando Briant acrescentou:

      - Quem quer subir?...

      - Eu! - disse Jaime, vivamente.

      E quase em seguida:

      - Eu! - exclamaram ao mesmo tempo Doniphan, Baxter, Wilcox, Cross e Service.

      Depois houve um momento de silêncio que Briant não teve pressa de interromper.

      Jaime foi o primeiro que falou:

      - Meu irmão, sou eu que devo sacrificar-me!... Sim... sou eu! Peço-te que me deixes ir!...

      - Porque hás-de ser tu, e não eu... ou qualquer dos outros? - perguntou Doniphan.

      - Sim!... Porquê?... - insistiu Baxter.

      - Porque é o meu dever! - respondeu Jaime.

      - O teu dever?... - disse Gordon.

      - Sim!

      Gordon agarrou a mão de Briant, como para lhe perguntar o que seu irmão queria dizer, e sentiu-a tremer na dele. E, se a noite não estivesse tão sombria, teria visto o seu camarada empalidecer e baixar as pálpebras sobre os olhos húmidos de lágrimas.

      - Então, meu irmão?... - inquiriu Jaime, em tom resoluto, surpreendente numa criança da sua idade.

      - Responde, Briant! - disse Doniphan. - Jaime diz que tem o direito de se sacrificar!... Mas esse direito não o temos nós, também?... Que fez ele para o reclamar?...

      - O, que fiz? - respondeu Jaime. - Vou dizer-lhes!

      - Jaime! - exclamou Briant, que queria impedir seu irmão de falar.

      - Não - replicou Jaime com voz entrecortada pela comoção. - Deixa-me confessar!... Já não posso mais!... Gordon, Doniphan, se estão aqui... todos... longe das vossas famílias... nesta ilha... a culpa é minha... só minha!... Se o Sloughi foi levado pelas ondas... foi porque eu, por imprudência... não!... por brincadeira... desatei a amarra que o prendia ao cais de Auckland!... Sim!. Foi uma brincadeira, uma travessura!... E depois, quando vi o iate desviar-se, perdi a cabeça!... Não chamei quando era tempo ainda!... E uma hora depois... no meio da noite... no mar alto!... Perdão, meus camaradas, perdão!...

      E o pobre pequeno soluçava, apesar de Kate tentar, debalde, consolá-lo.

      - Bem, Jaime! - disse então Briant. - Confessaste a tua culpa, e agora queres arriscar a vida para reparares... ou pelo menos para resgatares, em parte, o mal que fizeste?...

      - Pois ele não o resgatou já? - exclamou Doniphan, entregando-se à sua generosidade natural. - Não arriscou a vida tantas vezes para nos auxiliar?... Ah! Briant, compreendo agora por que motivo apresentavas sempre teu irmão quando havia algum perigo a afrontar e porque estava ele sempre pronto para se sacrificar! Aí está porque foi procurar-nos, a mim e a Cross, no meio do nevoeiro!... com risco de morrer!... Sim! Jaime, perdoamos-te de boa vontade, não tens necessidade de reparar a tua falta!

      Todos cercavam Jaime, pegavam-lhe as mãos, e, contudo, ele não deixava de soluçar. Compreendiam, agora, por que razão aquela criança, a mais alegre do Colégio Chairman, e também uma das mais travessas, se tornara tão triste, fugindo dos seus companheiros!... Depois, por ordem de seu irmão, e por sua própria vontade, arriscara-se todas as vezes que se oferecia ocasião para isso!...

      E julgava não ter feito ainda bastante!... Queria sacrificar-se ainda pelos outros!... E, logo que pôde falar, disse:

      - Bem vêem, sou eu, eu só, que devo partir!... Não é verdade, meu irmão?...

      - Bem, Jaime, muito bem! - repetiu Briant, afagando o irmão.

      À vista da confissão que Jaime acabava de fazer e do direito que ele reclamava, foi debalde que Doniphan e os outros diligenciaram intervir. Não tinham nada a fazer senão deixá-lo entregar-se à brisa, que mostrava certa tendência para refrescar.

      Jaime apertou a mão dos seus camaradas. Depois, antes de entrar na barquinha, que já fora desembaraçada do saco de terra, voltou-se para Briant. Este estava imóvel, alguns passos atrás do molinete.

      - Deixa-me abraçar-te! - pediu Jaime.

      - Sim!... Abraça-me! - respondeu Briant, reprimindo a comoção. - Ou antes... sou eu que te abraço... porque sou eu que vou partir...

      - Tu? - exclamou Jaime.

      - Tu?... - repetiram Doniphan e Service.

      - Sim... eu. Que a falta de Jaime seja reparada por ele ou por seu irmão, pouco importa! Além disso, imaginam que, quando eu tive esta ideia, foi porventura para que outro a realizasse?

      - Meu irmão - insistiu Jaime -, peço-te!...

      - Não, Jaime!

      - Então reclamo eu - disse Doniphan.

      - Não, Doniphan! - redarguiu Briant, em tom que não admitia réplica. - Eu é que quero ir!

      - Já o tinha adivinhado, Briant. - afirmou Gordon, apertando a mão do seu camarada.

      Alguns minutos depois, Briant introduziu-se na barquinha, e logo que se instalou convenientemente deu ordem para deixarem subir o papagaio.

      O aparelho, inclinado sobre a brisa, subiu, primeiro, muito devagar; depois, Baxter, Wilcox, Cross e Service, colocados junto do molinete, desenrolaram a corda, enquanto Garnett, que segurava o cordel do sinal, o fazia passar por entre os dedos.

      Em dez segundos, o “gigante dos ares” desapareceu na sombra, não no meio dos hurras que tinham acompanhado a sua partida de ensaio, mas no meio de profundo silêncio.

      O intrépido chefe da pequena colónia, o generoso Briant, desapareceu com ele.

      Entretanto, o aparelho elevava-se com lentidão regular. A constância da brisa conservava-o numa estabilidade perfeita. Balouçava-se, apenas, de um lado para o outro.

      Briant não sentiu oscilação alguma que tornasse perigosa aquela situação. Conservava-se imóvel, com as duas mãos agarradas às cordas de suspensão da barquinha, levemente agitada por um movimento de balouço.

      Ao princípio, Briant sentiu uma impressão extraordinária quando se viu suspenso, no espaço, daquele grande plano inclinado, que estremecia sob o impulso da corrente aérea! Parecia-lhe que era levado por uma fantástica ave de rapina, ou, antes, debaixo das asas de um morcego enorme. Mas, graças à energia do seu carácter, pôde conservar o sangue-frio que a experiência exigia.

      Dez minutos depois de o papagaio deixar o solo de Sport-terrace, um pequeno abalo indicou que o seu movimento ascensional terminara. Chegando à extremidade da corda, ergueu-se ainda, não sem algumas sacudidelas, desta vez. A altura atingida verticalmente devia ser de seiscentos a setecentos pés acima da ilha.

      Briant, muito senhor de si, entesou, primeiro, o cordel enfiado na bola; em seguida, preparou-se para observar cuidadosamente o espaço. Com uma das mãos segurava-se à corda de suspensão, e com a outra segurava o óculo.

      Por baixo dele a escuridão era profunda. O lago, as florestas, a penedia formavam uma massa confusa, da qual não se podia distinguir particularidade alguma. Quanto à periferia da ilha, recortava-se sobre o mar que a cercava, e, do ponto que ocupava, Briant estava em condições de abranger todo o conjunto.

      E, realmente, se ele fizesse aquela ascensão em pleno dia e dirigisse o olhar para o horizonte banhado de luz, talvez avistasse outras ilhas, ou mesmo um continente, se existisse algum num raio de quarenta a cinquenta milhas - que a sua vista devia abranger, com certeza.

      Se, para o oeste, para o norte e para o sul o céu estava muito enevoado para se poder distinguir alguma coisa, não sucedia o mesmo na direcção de leste, onde um cantinho do firmamento, momentaneamente limpo de nuvens, deixava brilhar algumas estrelas.

      E, exactamente desse lado, um clarão muito intenso, que se reflectia até nas volutas inferiores dos vapores, atraiu a atenção de Briant.

      - É o clarão de uma fogueira! - disse ele. – Walston estabeleceria o seu acampamento naquele lugar?... Não!... Este clarão é muito afastado, com certeza muito para além da ilha!... Será um vulcão em erupção, e haverá alguma terra nas paragens de leste?

      E lembrou-se de que, durante a sua última expedição a Deception-bay, distinguira uma mancha esbranquiçada.

      - Sim - pensou ele -, era daquele lado... E aquela mancha seria o reflexo de alguma geleira?... Para leste deve haver uma terra muito próxima da ilha Chairman.!

      Briant assestara o óculo para aquele clarão que a escuridão da noite contribuía para tornar ainda mais aparente. Devia existir ali alguma montanha ignivoma, próximo da geleira, e pertencendo a um continente ou a um arquipélago, cuja distância não media mais de umas trinta milhas.

      Neste momento, Briant sentiu nova impressão luminosa. Muito mais perto dele, a cinco ou seis milhas pouco mais ou menos, e por consequência à superfície da ilha, brilhava outro clarão entre as árvores, a oeste do Family-lake.

      - Desta vez é na floresta - pensou ele -, e mesmo à entrada, do lado do litoral!

      Mas aquele clarão parecia ter aparecido para desaparecer logo em seguida, porque, apesar de observar atentamente, Briant não conseguiu tornar a vê-lo.

      Sim! O coração batia-lhe com violência, e a mão tremia-lhe a ponto de não poder fixar o óculo com a exactidão suficiente!

      No entanto, tinha a certeza de que havia ali uma fogueira de acampamento, a pouca distância da embocadura do East-river! Briant vira-a, e em breve tornou a verificar que o clarão se reflectia de novo no maciço de árvores.

      Assim, Walston e o seu bando tinham acampado naquele lugar, próximo do pequeno porto de Bear-rock! Os assassinos do Severn não tinham abandonado a ilha Chairman! Os moços colonos estavam, portanto, expostos às suas agressões e não havia já segurança em French-den!

      Que grande decepção, a que Briant sentiu! Evidentemente, vendo-se na impossibilidade de consertar a chalupa, Walston tivera de renunciar a lançá-la ao mar a fim de se dirigir para uma das terras próximas. E, contudo, havia-as naquelas paragens. Não podiam existir dúvidas a este respeito.

      Briant, tendo concluído as suas observações, julgou inútil prolongar aquela exploração aérea. Preparou-se para descer. O vento refrescava sensivelmente. As oscilações, que eram maiores, imprimiam à barquinha um balanceamento que ia tornar a chegada à terra bastante difícil.

      Depois de se ter certificado de que o cordel do sinal estava convenientemente distendido, Briant deixou escorregar a bola, que chegou, alguns segundos depois, à mão de Garnett.

       A corda do molinete começou logo a puxar o aparelho para terra.

      Mas, ao mesmo tempo que o papagaio descia, Briant olhava ainda na direcção dos clarões descobertos por ele. Tornou a ver o da erupção, e depois, mais perto, no litoral, a fogueira do acampamento.

      Como é fácil imaginar, Gordon e os outros esperavam o sinal de Briant com a maior impaciência. Como lhes pareceram longos aqueles vinte minutos que ele passara nos ares! Entretanto, Doniphan, Baxter, Wilcox, Service e Webb faziam girar, vigorosamente, as manivelas do molinete. Também tinham notado que o vento se tornava mais forte e soprava com menos regularidade. Sentiam-no pelos empuxões da corda, e pensavam, cheios de angústia, que Briant devia sentir a repercussão.

      O molinete funcionou, pois, rapidamente, a fim de enrolar os mil e duzentos pés de corda. O vento continuava a refrescar, e, três quartos de hora depois do sinal de Briant, soprava com violência.

      Nesse momento, o aparelho devia estar ainda a mais de cem pés acima do lago.

      De repente, sentiu-se um puxão violento. Wilcox, Doniphan, Service, Webb e Baxter, aos quais faltou o ponto de apoio, estiveram quase a ser precipitados no solo. A corda do papagaio quebrara-se.

      E, no meio de gritos de terror, repetiu-se este nome vinte vezes:

      - Briant!... Briant!...

      Mas alguns minutos depois Briant saltava para a praia e chamava com voz forte.

      - Meu irmão!... Meu irmão!... - exclamou Jaime, que foi o primeiro a abraçá-lo.

      - Walston ainda está na ilha!

      Foram as primeiras palavras de Briant, quando os seus companheiros o cercaram.

      No momento em que a corda se partiu, Briant sentiu-se levado, não numa queda vertical, mas oblíqua e relativamente vagarosa, porque o papagaio fazia uma espécie de pára-quedas por cima dele. O que havia a fazer era sair da barquinha antes que ela chegasse à superfície do lago.

      No momento em que ia mergulhar, Briant atirou-se de cabeça para baixo, e, bom nadador como era, não lhe custou a alcançar a praia, distante quatrocentos a quinhentos pés, quanto muito.

      E, durante esse tempo, o papagaio, livre do seu peso, desaparecera para os lados do nordeste, levado pela brisa, como uma ave gigantesca.

     

      No dia seguinte, depois de uma noite durante a qual Moko estivera de guarda a French-den, os moços colonos, fatigados pelas comoções da véspera, acordaram muito tarde. Logo que se levantaram, Gordon, Doniphan, Briant e Baxter foram para Store-room, onde Kate andava entretida com os trabalhos do costume.

      Aí, conversaram acerca da situação, que, realmente, era pouco tranquilizadora.

      Efectivamente - assim como o observou Gordon -, já havia mais de quinze dias que Walston e os seus companheiros estavam na ilha. Portanto, se as reparações da chalupa não estavam ainda feitas, era porque lhes faltavam as ferramentas indispensáveis para um trabalho daquele género.

      - Deve ser isso - disse Doniphan -, porque, afinal, aquela embarcação não estava muito deteriorada. Se o nosso Sloughi não tivesse ficado bastante maltratado já o tínhamos posto em estado de navegar!

      Contudo, se Walston ainda não partira, também não parecia ter ideias de se estabelecer na ilha Chairman, pois, nesse caso, já teria feito algumas excursões ao interior e visitado French-den.

      E, a propósito disso, Briant falou do que observara durante a sua ascensão com respeito às terras que deviam existir a pouca distância dali, a leste da ilha.

      - Devem lembrar-se - disse ele - que, por ocasião da nossa expedição à embocadura do East-river, avistei uma mancha esbranquiçada, um pouco acima do horizonte, e que não sabia como havia de explicar a sua presença...

      - Contudo, Wilcox e eu não avistámos nada que se parecesse com isso - observou Doniphan -, apesar de procurarmos muito...

      - Moko viu-a tão claramente como eu - respondeu Briant.

      - Pode ser! - replicou Doniphan. - Mas o que te leva a crer, Briant, que estamos próximos de um continente ou de um grupo de ilhas?

      - O seguinte - informou Briant. - Ontem, enquanto observava o horizonte naquela direcção, avistei um clarão muito visível fora dos limites da Ilha, e que só pode ser causado por um vulcão em erupção. Concluo daí que existe uma terra próxima nestas paragens. Ora, os marinheiros do Severn não podem ignorá-lo, e hão-de fazer toda a diligência para lá chegarem...

      - Com certeza! - concordou Baxter. - Que ganhavam eles em ficar aqui? Se não estamos livres da sua presença é porque ainda não puderam calafetar a chalupa!

      O que Briant acabava de participar aos seus camaradas era extremamente importante. Certificava-os de que a ilha Chairman não estava isolada - como eles julgavam - naquela parte do Pacífico. Mas o que agravava as coisas é que, segundo indicava a fogueira do acampamento, Walston estava agora nos arredores da embocadura do East-river. Depois de ter abandonado a costa de Severn-shores, aproximara-se uma dúzia de milhas. Agora, bastava-lhe subir o East-river para avistar o lago, e rodear este pelo sul para descobrir French-den.

      Briant teve, pois, de tomar as maiores precauções em vista desta eventualidade. As excursões foram reduzidas ao estritamente necessário, sem mesmo chegarem, na margem esquerda do rio, até aos maciços de Bog-woods. Baxter ocultou as paliçadas do cerrado debaixo de uma camada de ervas bravas, assim como as entradas do Hall e de Store-room. Finalmente, foi proibido aparecer na parte compreendida entre o lago e Auckland-hill!. Realmente, terem de submeter-se a precauções tão rigorosas, eram bastantes contrariedades a acrescentar às dificuldades da situação!

      Nesta época houve ainda outros motivos de inquietação. Costar foi atacado de febres que lhe puseram a vida em perigo. Gordon teve de recorrer à farmácia da escuna, não sem receio de cometer algum erro! Felizmente Kate fez pelo pequenito o que a mãe dele teria feito. Tratou-o com a afeição prudente que é como que um instinto das mulheres, e não se afastou dele noite e dia. Graças à sua dedicação a febre acabou por ser debelada, e a convalescença, tendo-se declarado francamente, seguiu o seu curso com regularidade. Costar tinha estado em perigo de morte? Seria difícil emitir opinião a esse respeito. Mas, se não fossem os cuidados inteligentes de Kate, talvez a febre tivesse prostrado o pequeno enfermo.

      Sim! Se Kate não estivesse ali, quem sabe o que teria sucedido? A excelente criatura concentrava nos pequenos da colónia toda a ternura do seu coração bondoso, e nunca lhes regateava carícias.

      - Sou assim, meus papooses! - dizia ela. - O meu génio é trabalhar, arrumar e cozinhar!

      E, realmente, quase todas as mulheres são assim!

      O que mais preocupava Kate era conservar o melhor possível a roupa branca de French-den. E estava bem usada essa roupa, que servia havia perto de vinte meses! Como haviam de substituí-la quando ela já não pudesse servir de modo nenhum? E o calçado, apesar de o pouparem quanto podiam e de ninguém se importar de andar descalço quando o tempo o permitia, também estava em muito mau estado! Tudo isto preocupava a previdente mulher.

      Na primeira quinzena de Novembro houve aguaceiros frequentes. Depois, a partir do dia 17, o barómetro marcou bom tempo fixo, e o período do calor estabeleceu-se com bastante regularidade.

      Árvores, arbustos, toda a vegetação era verdura e flores. Os moradores habituais dos South-moors tinham voltado em grande número. Que desgosto profundo para Doniphan ver-se privado das suas caçadas através dos pântanos, e para Wilcox, impossibilitado de não poder armar laços, com receio de que fossem vistos das margens inferiores do Family-lake! Aqueles voláteis não só abundavam naquele lado da ilha, mas alguns até caíram nas armadilhas, nas proximidades de French-den.

      Um dia Wilcox achou, entre estes últimos, um dos que, no Inverno, se tinham dirigido para os países desconhecidos do Norte. Era uma andorinha, que trazia ainda o saquinho preso debaixo da asa. O saco conteria algum bilhete dirigido aos moços náufragos do Sloughi? Não!... O mensageiro voltava sem resposta!

      Quantas horas desocupadas se passavam agora no hall! Baxter, encarregado do jornal quotidiano, já não tinha incidente algum a relatar. E, antes de quatro meses, ia começar o terceiro Inverno para os moços colonos da ilha Chairman!

      Podia-se, pois, observar, não sem profunda ansiedade, o desânimo que se apoderava dos mais enérgicos - à excepção de Gordon, sempre absorvido nos pormenores da sua administração. Briant também às vezes se sentia abatido, apesar de empregar toda a sua energia para não o dar a conhecer. Tentava reagir excitando os seus camaradas para continuarem os estudos e fazerem conferências e leituras em voz alta. Recordava-lhes constantemente o seu país, as suas famílias, afirmando-lhes que as tornariam a ver! Enfim, fazia o que estava ao seu alcance para os animar, mas sem o conseguir, e o seu maior receio era que o desespero o vencesse. Não sucedeu assim. Além disso, factos extremamente graves obrigaram todos a arriscar as suas pessoas.

      No dia 21 de Novembro, pelas duas horas da tarde, Doniphan estava entretido a pescar nas margens do Family-lake quando os gritos dissonantes de algumas dúzias de pássaros que esvoaçavam por cima da margem esquerda do rio lhe atraíram a atenção. Se aqueles voláteis não eram corvos - com os quais se pareciam um pouco -, mereciam pertencer a essa espécie voraz e grasnadora.

      Doniphan não se teria preocupado com o bando se as maneiras dele não o surpreendessem. Efectivamente, aquelas aves descreviam grandes órbitas, cujo raio diminuía à medida que se aproximavam da terra; depois, reunidas num grupo compacto, precipitaram-se para o solo.

      Aí, os seus gritos redobraram; mas foi em vão que Doniphan procurou distingui-las no meio das altas ervas entre as quais tinham desaparecido.

      Lembrou-se então de que naquele lugar devia existir algum cadáver de animal. Por Isso, com curiosidade de saber o que era, voltou para French-den e pediu a Moko que o transportasse com a canoa para o outro lado do rio Zealand.

      Embarcaram ambos, e dez minutos depois introduziam-se por entre os maciços de ervas na praia. Os voláteis fugiram Imediatamente, protestando, por meio de gritos, contra os importunos que iam assim perturbar-lhes o repasto.

      Naquele lugar jazia o corpo de um guanaco pequeno, morto havia poucas horas, pois ainda não perdera todo o calor vital.

      Doniphan e Moko, com poucos desejos de aproveitarem para a despensa os restos dos jantares dos carnívoros, dispunham-se a abandonar-lhos quando se apresentou uma questão: como e porque caíra o guanaco à entrada do pântano, longe das florestas de leste, que os seus congéneres não costumavam abandonar? Doniphan examinou o animal. Tinha, na ilharga, uma ferida ainda ensanguentada - ferida que não tinha sido feita pelos dentes de um jaguar ou de outro carnívoro.

      - Este guanaco foi morto com um tiro! - observou Doniphan.

      - Aqui está a prova! - confirmou o grumete, que, depois de ter revolvido a fenda com uma faca, fez sair de lá uma bala.

      Esta bala era mais do calibre das espingardas de bordo que do das espingardas de caça. Não podia ter sido disparada senão por Walston ou algum dos seus companheiros.

      Doniphan e Moko abandonaram o corpo do guanaco aos voláteis e voltaram para French-den, onde conferenciaram com os seus camaradas.

      Que o guanaco tinha sido ferido por um dos marinheiros do Severn não admitia dúvida, pois nem Doniphan nem nenhum deles disparara um tiro de espingarda havia mais de um mês. O que era preciso saber era em que momento e em que lugar recebera o guanaco aquela bala.

      Examinadas todas as hipóteses, pareceu admissível que o facto se tivesse dado cinco ou seis horas antes - lapso de tempo necessário para o animal, depois de ter atravessado os Down-lands, poder chegar a alguns passos do rio. Por consequência, naquela manhã, um dos homens de Walston devia ter caçado aproximando-se da ponta meridional do Family-lake, e o bando, depois de ter atravessado o East-river aproximava-se a pouco e pouco dos lados de French-den.

      De maneira que a situação agravava-se, ainda que o perigo talvez não fosse iminente, pois ao sul da ilha estendia-se aquela vasta planície, cortada por regatos, salpicada de lagos e de dunas, e onde a caça não devia ser bastante para a alimentação diária do bando. Portanto, era provável que Walston não se tivesse aventurado através dos Down-lands. Além disso, não se ouvira nenhuma detonação suspeita, que o vento poderia levar até Sport-terrace e havia razão para esperar que a posição de French-den ainda não tivesse sido descoberta.

      Contudo, foi necessário tomarem novas precauções, ainda mais rigorosas. Para haver alguma probabilidade de se poder repelir uma agressão, era necessário que os moços colonos não fossem surpreendidos fora do hall.

      Três dias depois as apreensões foram aumentadas por um facto mais significativo, e reconheceu-se que a segurança estava mais comprometida que nunca.

      No dia 24, pelas nove horas da manhã, Briant e Gordon dirigiram-se para além do rio Zealand, a fim de verem se não seria conveniente erguer uma espécie de paredão através do atalho estreito que circulava entre o lago e o pântano. Doniphan e os melhores atiradores podiam assim emboscar-se rapidamente no caso de descobrirem a tempo a chegada de Walston.

      Estavam ambos a trezentos pés além do rio quando Briant pôs o pé em cima de um objecto, que esmagou. Não fez caso, pensando que era um dos milhares de mariscos lançados pelas grandes marés, quando invadiam a planície dos South-moors. Mas Gordon, que ia atrás, parou e disse:

      - Espera, Briant, espera!

      - O que há?

      Gordon curvou-se e apanhou o objecto esmagado.

      - Olha! - disse ele.

      - Não é um marisco, isso - respondeu Briant -, é...

      - É um cachimbo!

      Efectivamente, Gordon tinha na mão um cachimbo enegrecido, cujo tubo fora partido rente ao pipo.

      - Visto que nenhum de nós fuma - disse Gordon -, este cachimbo foi perdido por...

      - Por um dos homens do bando - concluiu Briant -, a não ser que pertencesse ao náufrago francês, que nos precedeu na ilha Chairman...

      Não! Aquele pipo, cujas fracturas eram recentes, nunca podia ter pertencido a Francisco Baudoin, morto havia mais de vinte anos. Devia ter caído recentemente naquele lugar, e o tabaco, que ainda aderia a ele, demonstrava-o de maneira indiscutível. Portanto, alguns dias antes, algumas horas talvez, um dos companheiros de Walston, ou ele mesmo, tinha avançado até àquela margem do Family-lake.

      Gordon e Briant voltaram imediatamente para French-den.

      Aí, Kate, a quem Briant mostrou o pipo do cachimbo, afirmou que o tinha visto nas mãos de Walston.

      Assim, era evidente que os malfeitores haviam tomado a extremidade do lago. Talvez mesmo, durante a noite, tivessem avançado até à margem do rio Zealand. E se French-den tinha sido descoberto, se Walston sabia qual era o pessoal da colónia, não era natural que se lembrasse de que havia ali ferramentas, instrumentos, munições, provisões, tudo o que lhe faltava a ele, ou quase tudo, e que a sete homens vigorosos não metiam medo uns quinze rapazitos - sobretudo se conseguissem surpreendê-los? Em todo o caso, a verdade era que o bando se aproximava cada vez mais.

      Perante estas eventualidades ameaçadoras, Briant, de acordo com os seus camaradas, resolveu organizar uma inspecção mais activa. Durante o dia, estabeleceu-se um posto de observação permanente no cume de Auckland-hill, a fim de que qualquer aproximação suspeita, do lado do pântano, do lado de Traps-woods ou do lado do lago, fosse assinalada imediatamente.

      Durante a noite, dois dos mais velhos deviam ficar de guarda à entrada do hall e de Store-room, para espiarem os ruídos do exterior. As duas portas foram consolidadas por meio de espeques, e podia-se barricá-las num momento com grandes pedras que se amontoaram no interior de French-den. Quanto às janelas estreitas, abertas na parede, e que serviam de canhoneiras aos dois canhões pequenos, uma defendia a fachada do lado do rio Zealand e a outra a do lado de Family-lake. Além disso, as espingardas e os revólveres estavam prontos para se dispararem ao mínimo alarme.

      Kate aprovava todas estas precauções, está claro. Esta mulher enérgica não dava a conhecer as suas inquietações – bem justificadas, infelizmente! - quando pensava nas incertezas de uma luta com os marinheiros do Severn. Conhecia-os, a eles e ao chefe. Não tinham armas suficientes, é verdade, mas não podiam surpreendê-los, apesar da maior vigilância? E que adversários encontravam? Alguns rapazes, o mais velho dos quais ainda não tinha dezasseis anos! Realmente era um partido muito desigual! Ah! Porque não estava o corajoso Evans com eles? Porque não seguira Kate? Talvez soubesse organizar melhor a defesa e pôr French-den em estado de resistir aos ataques de Walston.

      Infelizmente, Evans devia estar guardado à vista, se os seus companheiros não se tivessem já desembaraçado dele, como de uma testemunha perigosa, da qual já não precisavam para conduzir a chalupa às terras vizinhas! Assim reflectia Kate. Não era por ela que temia, era por aquelas crianças, que velava constantemente, secundada por Moko, cuja dedicação igualava a sua.

      Estavam a 27 de Novembro. O calor era de abrasar, havia dois dias. Sobre a ilha passavam grandes nuvens, carregadas, e alguns bramidos longínquos anunciavam a tempestade. O storm-glass indicava a luta dos elementos.

      Naquela noite, Briant e os seus camaradas entraram no hall mais cedo do que de costume, depois de terem tomado a precaução - o que faziam agora todos os dias - de puxar a canoa para o interior de Store-room. Em seguida fecharam bem as portas, e esperaram a hora do descanso, depois de rezarem em comum e pensarem nas famílias que estavam longe.

      Cerca das nove horas e meia a tempestade estava em toda a sua força. O reflexo intenso dos relâmpagos iluminava o hall, penetrando através das janelas. As detonações dos raios propagavam-se sem interrupção e o maciço de Auckland-hill parecia tremer, repercutindo aqueles ruídos atroadores. Era um desses meteoros sem chuva nem vento, que são os mais terríveis, porque as nuvens imóveis descarregam no mesmo lugar toda a matéria eléctrica acumulada nelas, e às vezes uma noite inteira não é bastante para esgotá-la.

      Costar, Dole, Iverson e Jenkins, encolhidos dentro das camas, sobressaltavam-se ao ouvir aqueles estalidos formidáveis de pano rasgado que indicam a proximidade das descargas. E, contudo, não tinham nada a recear naquela caverna inabalável. O raio podia ferir mil vezes o cume da penedia, mas não atravessaria nunca as paredes de French-den, tão impermeáveis ao fluido eléctrico como inacessíveis às tempestades. Briant, Doniphan ou Baxter levantavam-se de tempos a tempos, entreabriam a porta, e fechavam-na logo, meio cegos pelos relâmpagos, depois de lançarem um olhar rápido para o exterior. O espaço estava abrasado, e o lago, reflectindo as fulgurações do firmamento, parecia desdobrar uma enorme toalha de chamas.

      Das dez para as onze horas, os relâmpagos e os trovões seguiam-se sem descanso. Só um pouco antes da meia-noite é que principiaram a abrandar. Intervalos cada vez maiores separavam os trovões, cuja violência diminuíra com a distância. O vento ergueu-se então, espalhando as nuvens que se tinham aproximado do solo, e a chuva começou a cair em torrentes.

      Os pequenos sossegaram, então, um pouco. Duas ou três cabeças, escondidas debaixo dos cobertores, atreveram-se a aparecer, embora fossem horas de dormir. Briant e os outros, depois de tomarem as precauções do costume, iam meter-se na cama quando Phann manifestou sinais de inexplicável agitação. Levantava-se sobre as patas traseiras, corria para a porta do hall e soltava grunhidos surdos e contínuos.

      - Phann ouviria alguma coisa? - disse Doniphan, tendo sossegado o cão.

      - Já em muitas circunstâncias - observou Baxter - lhe temos notado esta agitação singular, e o inteligente animal nunca se enganou!

      - É preciso saber o que isto significa, antes de nos deitarmos - declarou Gordon.

      - Sim - aprovou Briant -, mas não deixemos sair ninguém, e estejamos prontos para a defesa!

      Cada um pegou na sua espingarda e no seu revólver. Em seguida, Doniphan encostou-se à porta do hall e Moko à de Store-room. Ambos encostaram o ouvido às gretas, mas não surpreenderam ruído algum, apesar de Phann continuar com a mesma agitação, e começar até a ladrar com tal violência que não foi possível sossegá-lo. Era uma circunstância muito desagradável. Se, nos momentos de calma, era possível ouvir o ruído de passos na praia, com mais razão se ouviria lá fora o ladrar de Phann.

      De repente, ouviu-se uma detonação, que não se podia confundir com o estrondo dos trovões. Era um tiro que acabava de ser disparado a menos de duzentos passos de French-den.

      Todos se conservaram na defensiva. Doniphan, Baxter, Wilcox e Cross, armados de espingardas e colocados junto das duas portas, estavam prontos para fazer fogo sobre quem tentasse arrombá-las. Os outros começavam a especá-las com pedras acumuladas para esse fim, quando uma voz gritou de fora:

      - Socorro!... Socorro!...

      Estava ali um ser humano, em perigo de morte, com certeza, e pedindo auxílio...

      - Socorro! - repetiu a voz, e desta vez a poucos passos da caverna.

        Kate, junto da porta, escutava...

      - É ele! - exclamou.

      - Ele?... - disse Briant.

      - Abram! Abram!... - repetia Kate.

      A porta abriu-se e um homem, escorrendo água, precipitou-se no hall.

        Era Evans, o mestre do Severn.

     

      A princípio, Briant, Doniphan e Gordon ficaram imóveis com esta aparição tão inesperada. Depois, por um movimento instintivo, correram para o mestre como ao encontro de um salvador.

      Era um homem de vinte e cinco a trinta anos, de ombros largos, tronco vigoroso, olhar vivo, fronte descoberta, fisionomia inteligente e simpática, andar firme e resoluto, rosto cercado por uma barba inculta, que não era aparada desde o naufrágio do Severn.

      Apenas entrou, Evans voltou-se e foi encostar o ouvido à porta, que fechara rapidamente. Não ouvindo nada, avançou para o meio do hall. Aí, olhou, à luz da lanterna suspensa da abóbada, para aquela sociedade que o rodeava e murmurou estas palavras:

      - Crianças!... Só crianças!...

      De repente, o olhar do mestre animou-se, o rosto brilhou de alegria, os braços abriram-se...

      Kate dirigia-se para ele.

      - Kate!... - exclamou Evans. - Kate viva!

      Pegou-lhe nas mãos, como para se certificar de que não eram de uma defunta.

      - Sim! Viva como o senhor, Evans! - respondeu Kate. – Deus salvou-nos, e é Ele quem o envia para socorrer estas crianças!

      O mestre contava com a vista os moços colonos, reunidos em torno da mesa do hall.

      - Quinze - disse ele - e apenas cinco ou seis capazes  de se defenderem!... Não importa!

      - Estamos então em perigo de sermos atacados, mestre Evans? - perguntou Briant.

      - Não, não, meu rapaz, pelo menos agora! - respondeu Evans.

      Compreende-se que todos tivessem pressa de saber a história do mestre, e principalmente o que se passara desde que a chalupa fora arremessada aos Severn-shores. Nem os mais velhos nem os pequenos poderiam adormecer ; antes de ouvirem aquela narração, tão importante para todos eles.

      Mas, primeiro, era preciso que Evans despisse aquele fato encharcado e comesse alguma coisa. Vinha a escorrer, porque atravessara o rio Zealand a nado. E vinha exausto de fadiga e de fome, porque não comia desde as onze horas, e desde pela manhã ainda não pudera descansar um momento.

      Briant fê-lo entrar logo em Store-room, onde Gordon pôs boa roupa de marinheiro à sua disposição. Em seguida, Moko deu-lhe carne fria, algumas xícaras de chá a ferver e um copo de brandy.

      Um quarto de hora depois, Evans, sentado à mesa do hall, narrava os factos sucedidos desde que os marinheiros do Severn tinham ido parar à ilha.

      - Alguns momentos antes de a chalupa se avizinhar da praia, - disse - eu e mais cinco tripulantes tínhamos sido arremessados às primeiras rochas dos recifes. Nenhum de nós ficara muito magoado no encalhe. Algumas contusões, apenas, mas feridas não havia nenhuma. O que não deixou de ser difícil foi livrarmo-nos da ressaca, no meio da escuridão e com um mar furioso, que descia contra o vento do largo.

      «Contudo, depois de muitos esforços, Walston, Brandt, Rock, Cook, Cope e eu conseguimos chegar sãos e salvos, fora do alcance das ondas. Faltavam dois: Forbes e Pike.

      Teriam sido levados por alguma onda, ou ter-se-iam salvo quando a chalupa alcançou a praia? Não sabíamos. A respeito de Kate, julgava que tinha sido arrastada pelas ondas, e não pensava que havia de tornar a vê-la.

      Dizendo isto, Evans não procurava ocultar a comoção nem a alegria que lhe causava o encontro da corajosa mulher, salva, como ele, dos assassinos do Severn! Depois de terem estado à mercê daqueles bandidos, encontravam-se agora ambos, por enquanto, fora do seu poder, se não estavam livres dos seus ataques para o futuro.

      Evans continuou:

      - Quando chegámos à praia foi-nos preciso algum tempo para acharmos a chalupa. Devia ter atracado pelas sete horas da tarde, e era perto da meia-noite quando a avistámos deitada na areia. Primeiro tínhamos descido ao longo da costa de...

      - Severn-shores - disse Briant. - É o nome que lhe deram alguns dos meus camaradas, que descobriram a embarcação do Severn mesmo antes de Kate nos narrar o naufrágio...

      - Antes?... - respondeu Evans, surpreendido.

      - Sim, mestre Evans - confirmou Doniphan. - Chegámos àquele lugar na própria noite do naufrágio quando os seus dois companheiros estavam ainda estendidos na areia!... Mas, ao romper do dia, quando íamos prestar-lhes os últimos deveres, tinham desaparecido.

      - Sim - replicou Evans -, vejo como tudo isso se liga! Forbes e Pike, que julgávamos mortos, e prouvera a Deus que o estivessem, eram dois tratantes de menos!, tinham caído a alguns passos da chalupa. Foi aí que Walston e os outros os encontraram, reanimando-os com alguns goles de gin.

      «Felizmente para eles, e infelizmente para nós, os cofres da embarcação não se tinham quebrado, nem lhes entrara água dentro. As munições, as armas, cinco espingardas de bordo, e o resto das provisões, embarcados precipitadamente durante o incêndio do Severn, tudo isto foi tirado da chalupa, porque era de temer que a maré próxima a demolisse. Em seguida, abandonámos o lugar do naufrágio, seguindo a costa na direcção do leste.

      «Nesse momento, um dos bandidos, Rock, creio eu, observou que Kate não tinha aparecido. Ao que Walston respondeu: Foi levada por uma onda!... Estamos livres dela! Pensei então que, se eles se alegravam por se verem livres de Kate, que já não lhes servia de nada, aconteceria o mesmo com o mestre Evans, quando já não precisassem dele. Mas onde estava, Kate?

      - Estava perto da chalupa, do lado do mar - respondeu Kate -, no lugar onde tinha caído depois do encalhe... Não podiam ver-me, e eu ouvi tudo o que se passara entre Walston e os outros... Depois de todos partirem, Evans. ergui-me e, para não tornar a cair nas mãos de Walston, fugi, dirigindo-me para o lado oposto. Trinta e seis horas depois, quase morta de fome, fui recolhida por estas crianças e conduzida a French-den.

      - French-den?... - repetiu Evans.

      - É o nome que tem a nossa casa - explicou Gordon – em memória de um náufrago francês que a habitara muitos anos antes de nós!

      - French-den?... Severn-shores?... - disse Evans. - Vejo que têm posto nomes às diversas partes da ilha!

      - Sim, mestre Evans, nomes muito bonitos - tornou Service -, e ainda há mais: Family-lake, Down-lands, South-moors, rio Zealand, Traps-woods...

      - Bem!... Bem!... Depois me dirão isso tudo... amanhã!... Agora vou continuar a minha história. Lá fora não se ouve nada?...

      - Nada - disse Moko, que estava de guarda à porta do hall.

      - Bem! - declarou Evans - continuo:

      «Uma hora depois de abandonarmos a chalupa chegámos junto de um maciço de árvores, onde acampámos.

      No dia seguinte, e durante alguns dias, voltámos ao lugar onde a embarcação tinha encalhado e tentámos consertá-la, mas, não havendo outras ferramentas além de um machado, foi impossível substituir as cintas do costado despedaçadas ou pô-las em estado de aguentar o mar, mesmo para uma travessia pequena. Além disso, o lugar era muito incómodo para um trabalho deste género.

      «Partimos, pois, a fim de procurarmos outro acampamento numa região menos árida, onde a caça pudesse dar-nos o alimento diário, e, ao mesmo tempo, próximo de um rio onde achássemos água doce, porque a nossa provisão estava inteiramente esgotada.

      «Depois de seguirmos a costa durante umas doze milhas chegámos a um rio pequeno...

      - O East-river! - disse Service.

      - Pois seja o East-river! - admitiu Evans. - Aí, no fundo de uma vasta baía...

      - Deception-bay! - informou Jenkins.

      - Vá lá, Deception-bay - disse Evans, sorrindo. - No meio das rochas havia um porto...

      - Bear-rock! - exclamou, por sua vez, Costar.

      - Pois seja Bear-rock, meu petiz! - volveu Evans, aprovando com um sinal de cabeça. - Não havia nada mais fácil do que instalarmo-nos nesse lugar, e, se pudéssemos levar para lá a chalupa, que a primeira tempestade acabaria de demolir no sítio onde ela estava, talvez fosse possível calafetá-la.

      «Fomos, portanto, buscá-la, e depois de a alijarmos tanto quanto possível foi deitada à água. Em seguida, apesar de ter água até à amurada, conseguimos alá-la ao longo da margem e conduzi-la ao porto, onde está agora em segurança.

      - A chalupa está em Bear-rock?... - perguntou Briant.

      - Está sim, meu rapaz, e parece-me que não seria impossível consertá-la se por acaso houvesse as ferramentas necessárias...

      - Mas nós temos essas ferramentas, mestre Evans! - declarou, vivamente Doniphan.

      - Foi isso que Walston supôs, quando o acaso lhe fez saber que a ilha era habitada e por quem era!

      - Como puderam eles saber?... - perguntou Gordon.

      - Deste modo - respondeu Evans. - Há oito dias, Walston, os seus companheiros e eu, pois nunca me deixaram só, tínhamos ido fazer uma expedição através da floresta. Depois de três ou quatro horas de marcha, subindo o curso do East-river, chegámos às margens de um grande lago, do qual saía aquele curso de água. E calculem a nossa admiração ao vermos aí um aparelho singular, caído na margem... Era ele uma espécie de armação de canas, forrada de panos de velas...

      - O nosso papagaio! - Exclamou Doniphan.

      - O nosso papagaio que tinha caído no lago – acrescentou Briant -, e que o vento empurrou até ali!

      - Oh! era um papagaio? - perguntou Evans. - Pois não fomos capazes de o perceber, e tal máquina intrigava-nos muito! Em todo o caso, fosse o que fosse, alguém a havia feito!... Tinha sido fabricada na ilha!... Não havia que duvidar a esse respeito!... Portanto, a ilha era habitada!... Por quem?... Era o que Walston queria saber. Eu, desde esse dia, resolvi fugir. Quaisquer que fossem os habitantes desta ilha, ainda que fossem selvagens, não podiam ser piores do que os assassinos do Severn! Mas, desde essa ocasião, fui guardado à vista, de dia e de noite!...

      - E como descobriram French-den? - perguntou Baxter.

      - Já lá vamos - respondeu Evans. - Mas, antes de prosseguir a minha narração, digam-me, meus rapazes, para que lhes serviu aquele enorme papagaio? Porventura era um sinal?

      Gordon contou a Evans o que se tinha feito, e com que fim, como Briant arriscara a vida para a salvação de todos, e de que maneira se pudera certificar de que Walston estava ainda na ilha.

      - É um valente, meu amigo! - afirmou Evans, pegando na mão de Briant e apertando-a com grande entusiasmo.

      Em seguida continuou:

      - Compreendem que Walston, desde então, não pensou senão em saber quem eram os habitantes desta Ilha, para nós desconhecida. Se fossem indígenas, talvez pudesse entender-se com eles. Se fossem náufragos, talvez possuíssem as ferramentas que lhe faltavam. Neste caso, não lhe recusariam auxílio para consertar a chalupa, de maneira a poder deitá-la à água.

      «Começaram, pois, as pesquisas, com muita prudência, devo confessá-lo. Avançámos a pouco e pouco, explorando as florestas da margem direita do lago, para nos aproximarmos da extremidade do sul. Mas não avistámos um único ser humano, nem se ouviu detonação alguma nesta parte da ilha.

      - Isso era porque nenhum de nós se afastava de French-den - disse Briant - e porque era proibido disparar um único tiro!

      - Apesar disso, foram descobertos! - replicou Evans. – E como não havia de ser assim? Foi na noite de 23 para 24 de Novembro que um dos companheiros de Walston chegou a avistar French-den da margem meridional do lago. A má sorte quis que, num certo momento, esse homem distinguisse um clarão que passava pelas paredes das rochas, decerto o clarão da lanterna que a porta, entreaberta durante um momento, tinha deixado passar. No dia seguinte, o próprio Walston dirigiu-se para este lado, e durante uma parte da noite esteve escondido entre as ervas, a alguns passos do rio...

      - Já o sabíamos - disse Briant.

      - Sabiam-no, como?

      - Gordon e eu achámos nesse lugar os fragmentos de um cachimbo que Kate afirmou ser de Walston!

      - É verdade! - confirmou Evans. - Walston perdera-o durante a excursão, o que, no regresso, pareceu contrariá-lo em extremo... Mas então já ele conhecia a pequena colónia. Enquanto esteve escondido nas ervas viu-os quase todos andarem pelas margens do rio... Eram rapazes muito novos, crianças, que não podiam resistir a sete homens! Walston foi dar parte do que tinha visto aos seus companheiros. Uma conversa que surpreendi entre Brandt e ele deu-me a conhecer o que se preparava contra French-den...

      - Monstros! - exclamou Kate. - Não teriam compaixão destas crianças?

      - Não, Kate - respondeu Evans -, assim como não a tiveram do capitão e dos passageiros do Severn! Monstros!... Diz bem, e monstros comandados pelo mais cruel deles, aquele Walston, que não há-de escapar ao castigo dos seus crimes, estou certo!

      - Enfim, Evans, conseguiu fugir, graças a Deus! – concluiu Kate.

      - Sim, Kate. Haverá doze horas, pouco mais ou menos, aproveitei uma ausência de Walston e dos outros, que me tinham deixado guardado por Forbes e Rock. A ocasião pareceu-me boa para me safar.

      «Quanto a fazer perder a pista àqueles dois celerados, ou, pelo menos, afastá-los, se conseguisse tomar-lhes alguma dianteira, isso era comigo!

      «Eram pouco mais ou menos dez horas da manhã quando me precipitei através da floresta. Quase em seguida, Forbes e Rock deram por isso e correram atrás de mim. Iam armados com espingardas... Eu não tinha senão a minha faca de marinheiro para me defender e as pernas para correr como um contrabandista!

      «A perseguição durou todo o dia. Cortando obliquamente, no bosque, cheguei à margem esquerda do lago. Era preciso rodear a extremidade, porque, segundo a conversa que ouvira, sabia que os moços colonos estavam estabelecidos nas margens de um rio que corria para oeste.

      «Realmente, nunca tinha corrido tão bem em toda a minha vida, nem durante tanto tempo! - perto de quinze milhas percorridas naquele dia! Com mil diabos! Os marotos corriam tão depressa como eu e as suas balas voavam mais depressa ainda. Assobiaram-me aos ouvidos diversas vezes. Imaginem! Eu sabia o segredo deles! Se fugisse, podia denunciá-los! Era preciso agarrarem-me de qualquer modo! Dou-lhes a minha palavra que, se eles não tivessem armas de fogo, tê-los-ia esperado a pé firme, com a minha faca na mão! Matava-os ou era morto por eles!... Sim, Kate! Preferia morrer a voltar ao acampamento com aqueles bandidos!

      «Contudo, esperava que aquela perseguição acabasse quando fosse noite!... Não foi assim. Já tinha passado a extremidade do lago, e subia pelo outro lado, mas sentia ainda Forbes e Rock correndo atrás de mim. A tempestade, que se anunciava havia algumas horas, rebentou.

      Ainda me foi mais difícil fugir, porque aqueles velhacos podiam distinguir-me à luz dos relâmpagos entre os caniços da praia. Finalmente, já estava a uns cem passos do rio... Se conseguisse pô-lo entre mim e aqueles tratantes estava salvo! Eles não se atreveriam a transpô-lo, sabendo perfeitamente que estavam nas vizinhanças de French-den.

      «Continuei a correr, e ia chegar à margem esquerda do rio quando um último relâmpago iluminou o espaço.

      «Ouvi então uma detonação...

      - A que nós ouvimos, também?... - interrogou Doniphan.

      - Com certeza! - replicou Evans. - Roçou-me uma bala pelo ombro... Saltei e precipitei-me no rio... Em algumas braçadas alcancei a outra margem e escondi-me entre as ervas, enquanto Rock e Forbes, que chegavam à margem oposta, diziam:

      «- Tens a certeza de que acertaste?

      «- Tenho, sim!

      «- Então, está no fundo?

      «- Decerto, e a estas horas morto e bem morto!

      «- Que fortuna!

      «E voltaram para trás. Sim! Que fortuna... para mim e para Kate! Ah! Tratantes! Verão se estou morto!... Alguns instantes depois saí das ervas e dirigi-me para o ângulo da penedia... Ouvi ladrar. Chamei... A porta de French-den abriu-se... E agora - concluiu Evans, estendendo a mão na direcção do lago - é preciso acabarmos com aqueles miseráveis, livrar deles esta ilha.

      E pronunciou estas palavras com tal energia que todos se ergueram, prontamente, para lhe obedecerem.

      Contaram então a Evans o que se tinha passado naqueles vinte meses, explicaram-lhe em que condições o Sloughi deixara a Nova Zelândia, a sua travessia do Pacífico até à ilha, a descoberta dos restos do náufrago francês, a instalação da colónia em French-den, as excursões durante a estação quente, os trabalhos durante o Inverno, e como a vida estivera relativamente calma e isenta de perigos antes da chegada de Walston e dos seus cúmplices.

      - E nesses vinte meses não passou por aqui nenhuma embarcação? - perguntou Evans.

      - Não; pelo menos, não a avistámos - respondeu Briant.

      - Não tinham sinais?

      - Tínhamos um mastro erguido na parte mais alta da penedia.

      - E não foi visto?...

      - Não, mestre Evans - respondeu Doniphan. - Mas é verdade que o tirámos de lá há seis semanas, a fim de não atrair a atenção de Walston.

      - E fizeram bem, meus rapazes! É verdade que aquele patife já sabe muito mais do que era preciso! Devemos estar prevenidos de dia e de noite.

      - Que infelicidade - observou Gordon, - tratar com semelhantes miseráveis em lugar de pessoas honradas, que auxiliaríamos de tão boa vontade! A nossa pequena colónia não perdia nada com isso, pelo contrário! Assim, daqui para o futuro espera-nos uma luta para defendermos a vida, um combate, cujo resultado só Deus sabe qual será!

      - Deus, que os tem protegido até agora, meus filhos - interveio Kate -, não os abandonará! Enviou-lhes este corajoso e honrado Evans, e com ele...

      - Evans!... Viva Evans!... - exclamaram os moços colonos ao mesmo tempo.

      - Contem comigo, meus rapazes - declarou o mestre -, e prometo-lhes que todos juntos havemos de nos defender bem!

      - E contudo - objectou Gordon -, se fosse possível evitar esta luta, se Walston consentisse em deixar a ilha?...

      - Que queres dizer, Gordon?... - Perguntou Briant.

      - Quero dizer que os seus companheiros e ele já tinham partido se pudessem servir-se da chalupa! Não é verdade, mestre Evans?

      - Com certeza.

      - Pois bem! Se entrássemos em negociações com eles, se lhes fornecêssemos as ferramentas de que precisam, talvez eles aceitassem?... Bem sei que deve ser repugnante travar relações com os assassinos do Severn. Mas, para nos livrarmos deles, para impedir um ataque que deve custar muito sangue, talvez!... Enfim que diz a isto o mestre Evans?

      Evans ouvira Gordon com atenção. A proposta do americano indicava um espírito prático, que não fazia alguma coisa sem reflectir, e um carácter disposto a encarar todas as situações com serenidade.

      Pensou - e não se enganava - que devia ser o mais ponderado, e a sua observação pareceu-lhe digna de ser discutida.

      - Efectivamente Sr. Gordon - respondeu ele -, todos os meios seriam bons para nos livrarmos da presença daqueles malfeitores. Se eles consentissem em partir, depois de terem consertado a chalupa, era muito melhor do que travar uma luta cujo resultado pode ser duvidoso. Mas fiarmo-nos em Walston é impossível! Não será ele capaz de aproveitar as relações connosco para surpreender French-den, e se apoderar de tudo o que lhes pertence? Não pode imaginar que salvaram algum dinheiro do naufrágio? Acreditem-me, aqueles malvados só procurarão fazer-lhes mal em troca dos seus serviços! Naquelas almas não há lugar para a gratidão! Entrar em negociações com eles é entregarem-se...

      - Não!... Não!... - exclamaram Baxter e Doniphan que os seus camaradas acompanharam com uma energia que agradou ao mestre.

      - Não!... - acrescentou Briant. - Não queremos negócios com Walston e com o seu bando!

      - E depois - prosseguiu Evans -, eles, além de ferramentas, precisam também de munições! É certo que têm ainda bastantes para tentarem um ataque!... Mas quando se tratar de percorrer outras paragens à mão armada a pólvora e o chumbo que lhes restam não serão suficientes!... Hão-de pedir e talvez exigir o que lhes falta... Estão dispostos a dar-lho?

      - Não decerto! - respondeu Gordon.

      - E eles farão a diligência para o obterem à força! Não se evitará o combate, e este dar-se-á em piores condições para nós!...

      - Tem razão, mestre Evans! - concordou Gordon. - O melhor é estarmos prevenidos e esperarmos!

      - Sim, é o melhor partido!... Esperemos, Sr. Gordon. Além disso, há uma razão, mais forte do que qualquer outra, que nos obriga a esperar.

      - Que razão é?

      - É a seguinte: Walston, como sabem, não pode deixar a ilha senão na chalupa do Severn.

      - Com certeza! - aprovou Briant.

      - Ora, essa chalupa pode perfeitamente ser consertada e se Walston renunciou a pô-la em estado de navegar foi por não ter ferramentas...

      - A não ser isso - disse Baxter -, já estaria muito longe daqui.

      - É verdade, meu rapaz. Portanto, se proporcionarem a Walston os meios de reparar a embarcação, admitindo que ele abandone a ideia de saquear French-den, partirá imediatamente, sem querer mais importar-se com os que ficam.

      - Prouvera a Deus que ele já o tivesse feito! – exclamou Service.

      - Com mil diabos! Se ele já o tivesse feito - exclamou Evans - como Poderíamos nós fazê-lo, visto que a chalupa do Severn ia com eles?

      - O quê, mestre Evans - perguntou Gordon -, conta com aquela embarcação para deixar a ilha?...

      - Conto, sim, Sr. Gordon.

      - Para voltar à Nova Zelândia, para atravessar o Pacífico? - acrescentou Doniphan.

      - O Pacífico?... Não, meus rapazes - respondeu -, para chegarmos a uma estação pouco distante, onde esperaremos a ocasião de regressar a Auckland.

      - Pois é possível? Está falando a sério, Sr. Evans? - exclamou Briant.

        E, ao mesmo tempo, dois ou três dos seus camaradas começaram a fazer perguntas ao mestre.

      - Como pode essa chalupa aguentar uma travessia de muitas centenas de milhas? - observou Baxter.

      - Centenas de milhas? - volveu Evans. - Não! Umas trinta, apenas!

      - Então não é o mar que se estende em torno da ilha? - perguntou Doniphan.

      - A oeste, é! - esclareceu Evans. - Mas ao sul, norte e a leste são apenas canais, que se podem atravessar facilmente em sessenta horas!

      - Assim, não nos enganávamos pensando que existiam terras apouca distância daqui?

      - Decerto que não, e são até muito vastas as que se prolongam a leste.

      - Sim!... a leste!- exclamou Briant. - Aquela mancha esbranquiçada, e depois o clarão que avistei nesta direcção...

      - Uma mancha esbranquiçada? - replicou Evans. - Deve ser alguma geleira, e o clarão é a chama de um vulcão que deve estar marcado nos mapas. E, a propósito, onde julgam os senhores estar?

      - Numa das ilhas isoladas do oceano Pacífico! – respondeu Gordon.

      - Uma ilha... sim!,... Isolada é que não! Pertence a um dos numerosos arquipélagos que cobrem a costa da América do Sul!

      - E já sei que deram nome aos cabos, às baías e aos rios da sua ilha, mas ainda não me disseram como denominam esta?

      - A ilha Chairman, o nome do nosso colégio – explicou Doniphan.

      - A ilha Chairman!... - repetiu Evans. - Pois bem, nesse caso tem dois nomes, porque ela chama-se a ilha Hanovre!

      Depois disto, tendo-se procedido às medidas de vigilância habituais, foram todos descansar, depois de arranjarem uma cama no hall para o mestre. Os moços colonos estavam sob a influência de uma impressão dupla, que devia perturbar-lhes o sono: por um lado, a perspectiva de uma luta sanguinolenta, e, por outro, a possibilidade de regressarem à pátria.

      Evans adiara para o dia seguinte o fim das suas explicações, o qual consistia em indicar no atlas qual era a posição exacta da ilha Hanovre, e, enquanto Moko e Gordon velavam, a noite passou-se tranquilamente em French-den.

     

      Um estreito, com trezentas e oitenta milhas de comprimento pouco mais ou menos, e cuja curva se desenha de oeste para leste, desde o cabo das Virgens, no Atlântico, até ao cabo dos Pilares, no Pacífico - emoldurados em costas muito acidentadas, dominado por montanhas de três mil pés acima do nível do mar, com baías no fundo das quais se multiplicam os portos de refúgio, rico em aguadas, onde os navios podem, sem custo, renovar a sua provisão de água, ladeado de florestas espessas onde a caça é abundante, ressoando com o estrondo das cascatas que se precipitam aos milhares nas suas enseadas numerosas, apresentando aos navios que vêm de leste ou de oeste uma passagem mais curta do que a de Lemaire, entre a Terra dos Estados e a Terra de Fogo e menos açoutada pelas tempestades do que a do cabo de Horn -, tal é o estreito de Magalhães, que o ilustre navegador português descobriu no ano de 1520.

      Os Espanhóis, os únicos que visitaram as terras magalânicas durante meio século, fundaram, na península de Brunswick o Porto da Fome. Aos Espanhóis sucederam-se os ingleses, com Drake, Cavendish, Chidley e Hawkins. Depois os holandeses, com de Weerth, de Cord, de Noort, com Lemaire e Schouten que descobriram, em 1610, o estreito deste nome.

      Finalmente, de 1696 a 1712, apareceram lá os Franceses, com Degennes, Beauchesne-Gouin e Frezier, e desde essa época aquelas paragens abriram-se aos navegadores mais célebres do fim do século, como Anson, Cook, Byron, Bougainville e outros.

      Desde então, o estreito de Magalhães tornou-se um caminho frequentado para a passagem de um oceano para outro - sobretudo desde que a navegação a vapor,, que não conhece vento desfavorável nem correntes contrárias, permitiu que o atravessassem em condições de navegação excepcionais.

      Tal é, pois, o estreito que - no dia seguinte, 28 de Novembro - Evans mostrou, no mapa do Atlas de Stieler, a Briant, a Gordon e aos camaradas destes.

      Se a Patagónia - a última província da América do Sul -, a Terra do Rei Guilherme e a península de Brunswiick formam o limite setentrional do estreito, ao sul é este cercado pelo arquipélago magalânico, que compreende vastas ilhas, a Terra de Fogo, a Terra da Desolação, as ilhas Clarence, Hoste, Gordon, Navarin, Wollaston, Stewart e muitas outras menos importantes, até ao último grupo das Hermittes, a maior das quais entre os dois oceanos é apenas o último cume da cordilheira dos Andes e chama-se o cabo Horn.

      A leste, o estreito de Magalhães alarga-se por uma ou duas embocaduras, entre o cabo das Virgens, da Patagónia, e o cabo Espírito Santo, da Terra de Fogo. Mas não sucede o mesmo a oeste - o que Evans fez observar. Desse lado, ilhotas, ilhas, arquipélagos, estreitos e canais misturam-se sem limites. É por um canal situado entre o promontório dos Pilares e a extremidade meridional da grande ilha da Rainha Adelaide que o estreito desemboca no Pacífico. Por cima desenvolve-se uma série de ilhas, caprichosamente agrupadas, desde o estreito de Lord Nelson até ao grupo dos Chonos e dos Chiloe, limitando a costa chilena.

      - E agora - acrescentou Evans - vêem, para lá do estreito de Magalhães, uma ilha separada por simples canais da ilha Cambridge, ao sul, e das ilhas Madre de Deus e Chatam, ao norte? Pois essa ilha, a cinquenta e um graus de latitude, é a ilha Hanovre, a que os senhores chamam a ilha Chairman, e onde vivem há mais de vinte meses!

      Briant, Gordon e Doniphan, inclinados sobre o atlas, olhavam cheios de curiosidade para essa ilha que tinham julgado afastada de todas as terras e que tão próxima estava da costa americana!

      - Pois quê! - disse Gordon - não estamos separados  da Patagónia senão por alguns braços de mar?

      - Sim, meus rapazes - informou Evans. - Mas entre a ilha Hanovre e o continente americano não há senão ilhas tão desertas como esta. E quando tivéssemos chegado ao dito continente ter-nos-ia sido necessário atravessar centenas de milhas antes de alcançar os estabelecimentos do Chile ou da República Argentina! E quantas fadigas sem contar os perigos, porque os índios Puelches, que andam errantes por meio dos Pampas, são pouco hospitaleiros! Julgo, portanto, que mais lhes valeu não abandonarem a sua ilha, visto que estava aí certa a existência material, e que, com a ajuda de Deus, espero que poderemos deixar juntos!

      Assim, esses diversos canais que rodeiam a ilha Hanovre não excediam em certos sítios quinze a vinte milhas de largura, e Moko com bom tempo teria podido atravessá-las sem custo só com a sua canoa.

      Se Briant, Gordon e Doniphan, por ocasião das suas excursões ao norte e a leste, não tinham visto essas terras, é porque elas são absolutamente baixas. Quanto à mancha esbranquiçada, era ela uma das geleiras do interior, e a montanha em erupção um dos vulcões das regiões do arquipélago de Magalhães.

      Além disso... - outra observação feita por Briant ao examinar atentamente a carta -, o acaso, que presidira às suas excursões, tinha-os precisamente conduzido para os pontos do litoral que mais se afastavam das ilhas próximas.

      Quando Doniphan chegou ao Severn-shores, talvez que tivesse podido ver a parte meridional da ilha Chatam se nesse dia o horizonte, escurecido pelos vapores da borrasca, não fosse visível senão em pequena parte. Quanto a Deception-bay, que escava profundamente a ilha Hanovre, da embocadura do East-river e das alturas de Bear-rock, nada se pode ver da ilhota, situada a este, nem da ilha da Esperança, que está para trás umas vinte milhas.

      Para distinguir as terras próximas teria sido preciso ir ou ao North-cape, de onde a extremidade da ilha Chatam e da ilha Madre de Deus são visíveis além do estreito da Concepção, ou ao South-cape, de onde se podem ver as pontas das ilhas Rainha, Rainha Adelaide ou Cambridge, ou, finalmente, no litoral extremo dos Down-lands, que dominam os vértices da ilha Owien ou as geleiras das terras de sueste.

      Ora, os moços colonos nunca tinham levado os seus reconhecimentos até esses pontos afastados. Quanto à carta de Francisco Baudoin, não pôde Evans explicar por que razão essas ilhas e essas terras não estavam aí indicadas.

      Visto que o náufrago francês tinha podido determinar com bastante exactidão a configuração da ilha Hanovre, é porque tinha dado volta à roda dela. Seria preciso pois, admitir-se que as brumas tivessem restringido o alcance da vista a menos de algumas milhas? Por fim, isto era admissível. E agora, no caso de Briant e os seus camaradas chegarem a apoderar-se da chalupa do Severn e a consertá-la para que lado a dirigiria Evans?

      Foi a pergunta que lhe dirigiu Gordon.

      - Meus rapazes - elucidou Evans -, não procurarei subir nem para o norte nem para o este. Quanto mais caminho por mar fizermos, melhor será. Evidentemente, com uma boa brisa, a chalupa poderia conduzir-nos para qualquer porto chileno, onde nos fariam bom acolhimento. O mar é, porém, forte em extremo nestas costas, enquanto que os canais do arquipélago nos oferecerão sempre uma travessia muito fácil.

      - Com efeito, é assim - concordou Briant. - Mas acharemos nós estabelecimentos nestas paragens? E, nesses estabelecimentos, o meio de voltarmos à pátria?

      - Não duvido disso - respondeu Evans. - Olhem, vejam a carta. Depois de termos atravessado as paragens do arquipélago da Rainha Adelaide, aonde chegaremos pelo canal de Smith? Ao estreito de Magalhães, não é verdade? Pois bem, quase à entrada do estreito está situado o Porto Tamar, que pertence à Terra da Desolação, e aí estaremos já no caminho de volta.

      - E se não encontrarmos aí nenhum navio - perguntou Briant -, esperaremos que ele passe?

      - Não, Sr. Briant. Siga-me mais longe, através do estreito de Magalhães. Vê esta grande península de Brunswick? É aqui, ao fundo da baía Fortescue, no Porto Galante, que os navios vêm muitas vezes arribar. Será preciso ir além e dobrar o cabo Forward, ao sul da península? Aqui está a baía São Nicolau, ou baía de Bougainville, onde faz escala a maior parte dos navios que atravessam o estreito. Enfim, para alem ainda, aqui está o Porto da Fome e, mais ao norte, Punta Arena.

      O mestre tinha razão.

      Uma vez entrados no estreito, a chalupa teria numerosos pontos onde entrar.

      Nestas condições estava, pois, seguro o regresso à pátria, sem falar no encontro dos navios que se dirigem para a Austrália ou Nova Zelândia. Se Porto Tamar, Porto Galante e Porto da Fome oferecem poucos recursos, Punta Arena, pelo contrário está provida de tudo o que é necessário à existência. E este grande estabelecimento, fundado pelo Governo chileno, forma uma verdadeira vila, edificada no litoral, com uma linda igreja, cuja flecha se ergue entre as soberbas árvores da península de Brunswick. Está em plena prosperidade, enquanto a estação do Porto da Fome é agora, somente, uma aldeia em ruínas.

      Decerto, na época actual, existem - mais ao sul outras colónias que são visitadas por expedições científicas – tais são a estação de Liwyia, ao cimo da ilha Navarino, e principalmente a de Ooshooia, no canal de Beagle, abaixo da Terra de Fogo. Esta última, graças à dedicação dos missionários ingleses, auxilia muito o reconhecimento destas regiões, onde os Franceses deixaram numerosos vestígios da sua passagem, do que dão testemunho os nomes de umas, Clouén Pasteur, Chanzy e Grévy, dados a certas ilhas do arquipélago de Magalhães.

      A salvação dos moços colonos seria, portanto, certa se chegassem a alcançar o estreito.

      Para o alcançar, é verdade, seria preciso consertar a chalupa do Severn, e, para isto, apoderar-se dela - o que não seria possível senão depois que Walston e os seus cúmplices o não pudessem impedir.

      Ainda se essa embarcação tivesse ficado no sítio em que Doniphan a tinha encontrado, na costa do Severn-shores, talvez que fosse possível apoderarem-se dela. Walston, presentemente instalado a quinze milhas daquele ponto, ao fundo de Deception-bay, sem dúvida que nada teria sabido desta tentativa.

      Evans teria podido fazer o mesmo que ele tinha feito, isto é, conduzir a chalupa, não à embocadura do East-river, mas à do rio Zealand, ou mesmo, subindo o rio, até à altura de French-den. Aí, as reparações podiam ser feitas em melhores condições, sob a direcção do mestre. Em seguida, a embarcação aparelhada e cheia de munições, provisões e alguns objectos que não se deviam abandonar ter-se-ia afastado da ilha antes que os malfeitores tivessem podido atacá-la.

      Por desgraça, este plano não era exequível. A questão da partida não podia ser decidida senão pela força ou tomando a ofensiva ou ficando na defensiva. Nada havia a fazer enquanto não se pudesse vencer a equipagem do Severn.

      Evans, contudo, inspirava uma confiança absoluta aos moços colonos. Kate tinha-lhes falado tanto dele e em termos tão calorosos! Desde que o mestre tinha podido cortar o cabelo e a barba, a sua fisionomia ousada e franca, serenava completamente os ânimos. Se era bravo e enérgico, era igualmente bom e dotado de um carácter resoluto, capaz de todas as dedicações. Na verdade, como o tinha dito Kate, era um enviado do Céu que acabava de aparecer em French-den, um homem, enfim, no meio daquelas crianças.

      Em primeiro lugar, quis o mestre saber quais os recursos de que poderia servir-se para a resistência.

      Store-room e o hall pareceram-lhe convenientemente dispostos para a defensiva. Pelas suas posições, um dominava a margem e o curso do rio, e o outro o Sport-terrace até à margem do lago. As seteiras permitiriam atirar nestas direcções, ficando-se sempre a coberto. Com as suas oito espingardas, os assaltados poderiam conservar os assaltantes a distância, e metralhá-los com as duas peças pequenas se eles se aventurassem a ir até French-den.

      Quanto aos revólveres, machados e facas de bordo, todos saberiam servir-se dessas armas no caso de chegar-se a um combate corpo a corpo.

      Evans aprovou a ideia que Briant tivera de ter amontoado no interior as pedras necessárias para impedir que as duas portas pudessem ser arrombadas. Se, da parte de dentro, os defensores eram relativamente fortes, de fora, seriam fracos.

      É necessário não esquecer que eles eram apenas seis rapazes de treze a quinze anos contra sete homens vigorosos, habituados a manejar as armas e audaciosos até ao ponto de não recuarem perante o assassínio.

      - Considera-os então como malfeitores temíveis, mestre Evans? - perguntou Gordon.

      - Sim, Sr. Gordon, e muito temíveis.

      - Excepto um deles, que talvez não esteja perdido de todo! - declarou Kate -, esse Forbes que me salvou a vida...

      - Forbes? - volveu Evans. - Eh! Com mil diabos! Quer ele tenha sido levado por maus conselhos, quer por medo dos seus companheiros, é certo que não deixou de cooperar no morticínio do Severn! Além disso, não foi esse patife que se lançou em minha perseguição, juntamente com Rock? Não foi ele que atirou sobre mim como se eu fora um animal feroz? Não foi ele que se felicitou por julgar que eu me tinha afogado no rio? Não, minha boa Kate, receio bem que ele não valha mais do que os outros! Se a poupou, é porque bem sabia que esses velhacos tinham ainda necessidade dos seus serviços, e não ficará atrás quando se tratar da marcha contra French-den!

      Entretanto, passaram-se alguns dias. Nada de suspeito tinha sido notado pelos moços colonos que observavam os arredores do alto de Auckland-hill. Não deixava isto de surpreender Evans. Conhecendo os projectos de Walston e sabendo o interesse que ele tinha em se apressar, perguntava a si mesmo a razão por que desde 27 de Novembro nenhuma demonstração tinha sido ainda feita.

      Veio-lhe então à ideia que Walston procuraria. sem dúvida, empregar a astúcia em lugar da força, a fim de penetrar dentro de French-den. E disso preveniu Briant, Gordon, Doniphan e Baxter, com os quais mais frequentemente conferenciava.

      - Enquanto estivermos encerrados em French-den – ponderou ele -, Walston não poderá forçar esta ou aquela porta se ninguém lhas abrir! Pode, portanto, tentar os meios astuciosos...

      - E como?... - inquiriu Gordon.

      - Talvez do modo que me veio à ideia - respondeu Evans. - Bem sabem, meus rapazes, que só Kate e eu é que podíamos denunciar Walston como sendo o chefe de um bando de salteadores, cujos ataques a pequena colónia teria de recear. Ora, Walston não duvida de que Kate tenha morrido no naufrágio. A meu respeito, julga ele que eu me afoguei no rio, depois dos tiros de Rock e de Forbes - e não ignoram que até o ouvi felicitar-se por tal motivo. Walston deve, pois, julgar que de nada estão prevenidos - nem mesmo da presença dos marinheiros do Severn nesta ilha, e que, se um deles se apresentasse em French-den, seria acolhido como qualquer náufrago. Ora, uma vez que o velhaco estivesse cá dentro, ser-lhe-ia muito fácil introduzir os seus companheiros - o que tornaria toda a resistência impossível!

      - Pois bem - respondeu Briant -, se Walston ou qualquer outro do bando vier pedir-nos hospitalidade, recebê-los-emos a tiro!

      - A não ser que seja de mais esperteza recebê-lo com cumprimentos! - observou Gordon.

      - E talvez, Sr. Gordon - admitiu o mestre. - Talvez seja isso melhor! Astúcia contra astúcia. Por isso, no momento próprio, veremos o que se deve fazer!

      Sim! Convinha proceder com a maior circunspecção. Com efeito, se as coisas levassem bom caminho, se Evans conseguisse apoderar-se da chalupa do Severn, podia-se julgar que não estava muito afastada a hora da libertação.

      Mas quantos perigos havia ainda! E, além disso, estariam ainda vivos todos quando fossem a caminho da Nova Zelândia?

      A manhã do dia seguinte passou-se sem novidade.

      O mestre, acompanhado por Doniphan e Baxter, subiu durante meia milha na direcção de Traps-woods, escondendo-se atrás das árvores agrupadas na base de Auckland-hill.

      Nada viu, porém, de anormal, e Phann, que o seguia, não teve ocasião de o fazer desconfiar.

      Pela tarde, contudo, um pouco antes do pôr do Sol, houve um alarme. Webb e Cross, que estavam de sentinela sobre o rochedo, tinham descido precipitadamente, indicando a aproximação de dois homens, que avançavam pela margem meridional do lago, do outro lado do rio Zealand.

      Kate e Evans, não querendo ser reconhecidos, entraram sem demora em Store-room. Depois, olhando através de uma das seteiras, observaram os homens indicados. Eram dois dos companheiros de Walston - Rock e Forbes.

      - Evidentemente - observou o mestre -, querem empregar a astúcia, e vão apresentar-se aqui como marinheiros que acabam de escapar a um naufrágio!

      - Que devemos fazer? - perguntou Briant.

      - Fazer-lhes bom acolhimento - aconselhou Evans.

      - Bom acolhimento a esses miseráveis! - exclamou Briant. - Nunca poderei...

      - Eu me encarrego disso - ofereceu-se Gordon.

      - Muito bem, Sr. Gordon! - aprovou o mestre. - E, sobretudo, é necessário que eles não suspeitem da nossa presença. Kate e eu mostrar-nos-emos quando for oportuno!

      Evans e a sua companheira foram, então, esconder-se no fundo de um dos redutos do corredor, cuja porta se fechou sobre eles.

      Alguns instantes depois, Gordon, Briant, Doniphan e Baxter corriam à borda do rio Zealand.

      Ao vê-los, os dois homens fingiram extrema surpresa, à qual Gordon correspondeu também com surpresa não menor.

      Rock e Forbes pareciam estar cheios de fadiga; e logo que chegaram junto do rio trocaram-se, de uma a outra margem, as seguintes palavras:

      - Quem são?

      - Somos náufragos que acabamos de nos perder ao sul da ilha, com o navio Severn.

      - São ingleses?

      - Não; americanos.

      - E os seus companheiros?

      - Morreram! Só nós escapámos do naufrágio, e estamos extenuados de forças! Fazem-nos o favor de dizer quem são?

      - Os colonos da ilha Chairman.

      - Pois tenham piedade de nós e façam-nos bom acolhimento, que estamos sem recursos.

      - Os náufragos têm sempre direito ao auxílio dos seus semelhantes - respondeu Gordon. - Serão bem-vindos!

      A um sinal de Gordon, Moko saltou para a canoa, que estava amarrada perto do pequeno dique, e, dentro em pouco, trouxe os dois marinheiros para a margem direita do rio Zealand.

      É verdade que Walston não pudera escolher, mas é preciso confessar que a fisionomia de Rock não inspirava confiança - nem mesmo a crianças, por muito pouco habituadas que elas estivessem a decifrar uma fisionomia humana.

      Apesar dos esforços para parecer um homem de bem, que tipo de bandido o deste Rock, com a fronte estreita, a parte de trás da cabeça larga e as mandíbulas inferiores muito pronunciadas! Forbes - aquele que possuía ainda alguns sentimentos de humanidade, segundo o que dissera Kate - apresentava melhor aspecto. Por esse motivo é que, provavelmente, Walston o mandara com o outro.

      Ambos representaram então o seu papel de náufragos. Contudo, temendo provocar suspeitas, se tivessem de responder a perguntas muito precisas, fingiram-se mais exaustos de fadiga que de fome, e pediram que os deixassem descansar e passar a noite em French-den. Foram logo conduzidos para lá.

      Quando entraram - o que não escapou a Gordon - não puderam deixar de dirigir olhares bastante investigadores para a disposição do hall. Pareceram até surpreendidos ao verem o material defensivo que a colónia possuía - sobretudo a peça assestada através da canhoneira.

      Por consequência, os moços colonos - a quem isso repugnava muito - não tiveram de continuar o seu papel, visto que Rock e Forbes tinham pressa de se deitar depois de terem adiado para o dia seguinte a narração das suas aventuras.

      - Não precisamos senão de um feixe de ervas - disse Rock. - Mas, como não queríamos incomodá-los, se tivessem outro quarto sem ser este...

      - Temos - respondeu Gordon - o que nos serve de cozinha; podem instalar-se aí até amanhã!

        Rock e o seu companheiro entraram em Store-room, cujo interior examinaram num relance de olhos, depois de terem verificado que a porta dava para o rio.

      Realmente, o acolhimento feito aos pobres náufragos não podia ser melhor!

      Os dois bandidos deviam pensar que, para se desembaraçarem daqueles inocentes, não era preciso grande esforço de imaginação!

      Rock e Forbes estenderam-se num canto de Store-room. Não ficaram sós, é verdade, porque era aí que Moko dormia; mas eles não se preocupavam com o grumete, muito decididos a estrangulá-lo num segundo se ele se lembrasse de dormir só com um olho.

      À hora combinada, Rock e Forbes abririam a porta de Store-room, e Walston, que rondava na praia com os seus quatro companheiros, tornar-se-ia logo senhor de French-den.

      Cerca das nove horas, quando Rock e Forbes fingiam dormir, Moko entrou e deitou-se em cima da cama, pronto para dar sinal.

      Briant e os outros tinham ficado no hall. Em seguida, depois de fecharem a porta do corredor, Evans e Kate foram ter com eles.

      Tudo se passava como o mestre tinha previsto, e havia a certeza de Walston estar nas proximidades de French-den.

      - É preciso estarmos acautelados! - disse ele.

      Contudo, decorreram duas horas, e Moko perguntava a si mesmo se Rock e Forbes teriam adiado a sua maquinação para outra noite quando lhe chamou a atenção um leve ruído que se produzia no interior de Store-room.

      À luz mortiça da lanterna suspensa da abóbada viu então Rock e Forbes deixarem o canto onde estavam estendidos e arrastarem-se para o lado da porta.

      Essa porta estava fortalecida por um montão de pedras enormes - verdadeira barricada que seria difícil, para não dizer impossível, derrubar. Os dois marinheiros começaram a tirar as pedras, uma a uma, arrumando-as à parede da direita. Em alguns minutos a porta ficou completamente livre. Faltava só tirar a barra de ferro que a segurava pelo lado de dentro para que a entrada em French-den fosse a coisa mais fácil do mundo.

      Mas no momento em que Rock, depois de tirar a dita barra, ia a abrir a porta, sentiu alguém segurar-lhe o braço. Voltou-se e reconheceu o mestre, em quem a luz da lanterna dava em cheio.

      - Evans! - exclamou ele. - Evans aqui!

      - Acudam, meus rapazes! - gritou o mestre.

      Briant e os seus camaradas precipitaram-se imediatamente em Store-room. Aí, Forbes, agarrado pelos rapazes mais vigorosos, Baxter, Wilcox, Doniphan e Briant, ficou impossibilitado de fugir.

      Quanto a Rock, repelira Evans com um movimento rápido, erguendo a faca, que feriu o mestre levemente no braço esquerdo. Em seguida, abriu a porta e correu para fora. Ainda não tinha dado vinte passos quando se ouviu uma detonação.

      Era o mestre que acabava de disparar um tiro de espingarda sobre Rock. Mas, segundo todas as aparências, a bala não acertara no fugitivo, porque não se ouviu o mais pequeno grito.

      - Com mil diabos! Errei o tiro! - exclamou Evans. – Quanto ao outro... sempre é um de menos!

      E com a faca de mato na mão ergueu o braço para Forbes.

      - Perdão!... - gritou o miserável, que os rapazes conservavam imóvel, no chão.

      - Sim! Perdão, Evans! - repetiu Kate, lançando-se entre o mestre e Forbes. - Perdoe-lhe, porque ele salvou-me a vida!...

      - Seja - respondeu Evans. - Perdoo-lhe, Kate, pelo menos nesta ocasião!

      E Forbes, amarrado solidamente, foi depositado num dos armazéns do corredor.

      Em seguida, a porta de Store-room foi fechada e barricada, e todos estiveram alerta até amanhecer.

     

      No dia seguinte, apesar da fadiga daquela noite sem sono, ninguém pensou em descansar, nem sequer  um momento. Agora havia a certeza de Walston empregar a força, visto que a astúcia não dera bom resultado. Rock, em quem o tiro do mestre não acertara, devia ter ido encontrar-se com ele, e informá-lo de que os seus planos tinham sido descobertos e não podia entrar em French-den sem lhe arrombar as portas.

      Logo ao amanhecer, Evans, Briant, Doniphan e Gordon saíram do hall com a maior cautela. Com o nascer do Sol, os nevoeiros matinais condensavam-se a pouco e pouco, descobrindo o lago enrugado por uma leve brisa de leste.

      Nas proximidades de French-den tudo estava tranquilo, tanto do lado do rio Zealand como do lado de Traps-woods. No interior do cerrado os animais andavam de um lado para o outro, como de ordinário. Phann, que corria em Sport-terrace, não dava o mínimo sinal de inquietação.

      Evans tratou de ver, primeiro que tudo, se o solo tinha vestígios de passos. Efectivamente, descobriu muitos - sobretudo perto de French-den. Cruzavam-se em sentidos diversos, e indicavam que, durante a noite, Walston e os seus companheiros tinham avançado até ao rio, esperando que lhes abrissem a porta de French-den.

      Quanto a manchas de sangue, não viram nenhuma na areia - prova de que Rock não havia sido ferido pelo tiro do mestre.

      Mas havia uma questão a decidir: Walston viera, como os falsos náufragos, pelo sul do Family-lake, ou chegara a French-den descendo pelo norte? Neste caso, Rock devia ter fugido para os lados de Traps-woods, a fim de ir ter com ele.

      Ora, como era conveniente esclarecer este facto, decidiu-se que se interrogaria Forbes no intuito de se saber que caminho Walston tinha seguido. Forbes consentiria em falar, e, se falasse, diria a verdade? Despertaria nele algum sentimento bom, lembrando-se de que Kate lhe tinha salvo a vida? Esqueceria que tinha pedido hospitalidade aos habitantes de French-den unicamente para traí-los?

      Querendo ele mesmo interrogá-lo, Evans entrou no hall, abriu a porta do armazém onde Forbes estava encerrado, alargou as cordas que o amarravam e conduziu-o para fora.

      - Forbes - disse Evans -, o ardil que tu e Rock puseram em prática não teve bom resultado. Preciso saber quais são os projectos de Walston, e tu deves conhecê-los. Queres responder?

      Forbes curvara a cabeça e, não se atrevendo a erguer os olhos para Evans, para Kate e para os rapazes que o cercavam, conservava-se silencioso.

      Kate interveio.

      - Forbes - disse ela -, já mostrou alguma compaixão impedindo que os seus companheiros me matassem, por ocasião da mortandade do Severn. Não quer agora salvar estas crianças de morte ainda mais horrível?

        Forbes não respondeu.

      - Forbes - prosseguiu Kate -, eles perdoaram-lhe quando merecia a morte! Vamos, a humanidade não pode estar completamente extinta na sua alma! Depois de ter feito tanto mal, pode ainda fazer bem! Lembre-se do crime horrível de que ia ser cúmplice!

      Forbes soltou um suspiro, meio abafado.

      - Mas que posso eu fazer? - Respondeu ele confuso.

      - Podes dizer-nos -- replicou Evans - o que tencionavam fazer esta noite, e mais tarde. Esperavas Walston e os outros, que deviam introduzir-se aqui logo que uma das portas se abrisse?...

      - É verdade! - Confessou Forbes.

      - E estas crianças, que te receberam tão bem, deviam morrer?...

      Forbes curvou ainda mais a cabeça, e, desta vez, não teve forças para responder.

      - Por que lado vieram Walston e os outros ter aqui? - perguntou o mestre.

      - Pelo norte do lago - respondeu Forbes.

      - E Rock e tu vieram pelo sul?...

      - Viemos!

      - Visitaram a outra parte da ilha, a oeste?

      - Ainda não.

      - Onde devem estar agora?

      - Não sei...

      - Não podes dizer mais nada, Forbes?

      - Não... Evans... não!...

      - E julgas que Walston voltará?

      - Parece-me que sim!

      Era evidente que Walston e os seus, assustados pelo tiro do mestre, e compreendendo que o seu plano estava descoberto, tinham achado prudente conservar-se afastados, esperando alguma ocasião mais favorável. Evans, vendo que Forbes não sabia mais nada, conduziu-o para o armazém, cuja porta foi fechada pelo lado de fora.

      A situação continuava a ser extremamente grave. Onde estava agora Walston? Estaria acampado debaixo das árvores de Traps-woods? Forbes não pudera ou não quisera dizê-lo. E, contudo, era importantíssimo saber a verdade. Por isso ocorreu ao mestre a ideia de fazer uma exploração para aqueles lados, apesar dos perigos que isso apresentava.

      Perto do meio-dia, Moko foi levar algum alimento ao prisioneiro. Forbes, muito abatido, quase que não lhe tocou. Que se passava na alma deste desgraçado? A sua consciência ter-se-ia aberto ao remorso? Não se sabia.

      Depois do almoço, Evans informou os moços colonos do seu Projecto de avançar até Traps-woods, tal era o desejo que tinha de saber se os malfeitores ainda estavam nos arredores de French-den. Esta proposta foi aprovada sem discussão, e tomaram-se precauções para prevenir qualquer eventualidade desagradável.

      É certo que Walston e os seus companheiros eram apenas seis, depois da captura de Forbes, enquanto que a pequena colónia se compunha de quinze rapazes, sem contar Kate e Evans - ao todo dezassete. Mas deste número deviam eliminar-se os mais novos, que não podiam tomar parte directamente em uma luta. Portanto, decidiu-se que, enquanto o mestre operasse o reconhecimento, Iverson, Jenkins, Dole e Costar ficariam no hall, com Kate, Moko e Jaime, protegidos por Baxter. Quanto aos maiores, Briant, Gordon, Doniphan, Cross, Service, Webb, Wilcox e Garnett, acompanhariam Evans. Oito rapazes para lutarem com seis homens na força da idade era uma partida desigual. É verdade que cada um deles tinha uma espingarda e um revólver, enquanto que Walston possuía apenas cinco espingardas, que pertenciam ao Severn. Por isso, nestas condições, um combate a distância parecia apresentar probabilidades mais favoráveis, visto Doniphan, Wilcox e Cross serem bons atiradores e muito superiores, nisto, aos marinheiros americanos. Além disso, as munições não lhes faltariam, e Walston, segundo dissera o mestre, devia estar reduzido a alguns cartuchos apenas.

      Eram duas horas depois do meio-dia quando o pequeno exército se formou, dirigido por Evans. Baxter, Jaime, Moko, Kate e os pequenos entraram imediatamente para French-den, cujas portas fecharam; mas não as barricaram, a fim de que, sendo preciso, o mestre e os outros pudessem abrigar-se rapidamente.

      Afinal não havia que temer do lado do sul, nem mesmo de oeste, pois para seguir essa direcção era preciso que Walston chegasse a Sloughi-bay para subir o vale do rio Zealand – o que levaria muito tempo. Além disso, a julgar pela resposta de Forbes, ele descera pela margem oeste do lago e não conhecia essa parte da Ilha. Evans não devia, pois, recear ser surpreendido. Um ataque só podia vir do lado do Norte.

      Os rapazes e o mestre avançaram prudentemente, costeando a base de Auckland-hill. Para diante do cerrado, as moitas e os grupos de árvores permitiam-lhes que alcançassem a floresta sem se descobrirem muito.

      Evans caminhava na frente - depois de ter reprimido o ardor de Doniphan, sempre pronto para ir adiante. Quando passou o outeirinho que cobria os restos do náufrago francês, o mestre julgou oportuno cortar obliquamente, a fim de se aproximar da margem do Family-lake.

      Phann, que Gordon diligenciava conter, mas em vão, parecia escutar, de orelha fita e o nariz no solo, e em breve pareceu ter achado uma pista.

      - Atenção! - recomendou Briant.

      - Sim - disse Gordon. - Não é a pista de um animal! Vejam as maneiras de Phann!

      - Vamos devagar por entre as ervas - aconselhou Evans -, e o Sr. Doniphan, que é bom atirador, se algum daqueles bandidos aparecer a distância conveniente não erre o tiro! Nunca uma bala seria tão bem empregada!

      Alguns momentos depois todos tinham chegado aos primeiros grupos de árvores. Aí, no limite de Traps-woods, havia ainda vestígios de paragem recente, ramos meio consumidos, cinzas ainda quentes.

      - Foi aqui, com certeza, que Walston passou esta noite - observou Gordon.

      - E talvez estivesse aqui há poucas horas! - sugeriu Evans.

      - Parece-me que é melhor descermos para a penedia...

      Neste momento ouviu-se uma detonação, à direita. Pela cabeça de Briant roçou uma bala, que foi cravar-se na árvore à qual ele estava encostado.

      Quase em seguida ouviu-se outro tiro, seguido por um grito, enquanto que uma massa disforme caía por detrás de uma das árvores, a cinquenta passos dali.

      Era Doniphan que acabava de disparar na direcção do fumo do primeiro tiro.

      O cão precipitou-se então para aquele lado, ladrando furiosamente.

      - Aqui, Phann, aqui! - gritou Gordon.

      Mas o cão não obedeceu, e Doniphan, não podendo conter-se, correu atrás dele.

      - Avante! - disse Evans. - Não podemos deixá-lo ir só!...

      Um momento depois, tendo-se reunido a Doniphan, paravam todos diante de um corpo estendido no meio das ervas, e que já não dava sinal de vida.

      - Este é Pike! - informou Evans. - Morreu, o patife. Não se perdeu nada. É um de menos!

      - Os outros não podem estar longe! - observou Baxter.

      - Não, decerto, meu rapaz! Por isso não nos descubramos!... De joelhos!... De joelhos!...

      Ouviu-se terceira detonação, desta vez partindo da esquerda. Service, que não curvou a cabeça a tempo, sentiu uma bala roçar-lhe pela fronte.

      - Feriu-te?... - exclamou Gordon, correndo para ele.

      - Não é nada, Gordon, não é nada! - respondeu Service. – É uma arranhadura!

      Neste momento, era conveniente que não se separassem. Com a morte de Pike, restavam Walston e quatro dos seus companheiros, que deviam estar a pequena distância, atrás das árvores. Por isso, Evans e os outros, agachados entre as ervas, formavam um grupo compacto, pronto para a defensiva, de qualquer lado que partisse o ataque.

      De repente, Garnett exclamou:

      - Onde está Briant?

      - Não o vejo - respondeu Wilcox.

      Efectivamente, Briant tinha desaparecido, e como naquele momento Phann começou a ladrar com violência, era possível que o corajoso rapaz estivesse nas mãos de alguns homens do bando. - Briant!... Briant!... - gritou Doniphan.

      E sem reflectirem correram todos, seguindo as pegadas de Phann. Evans não pudera contê-los. Iam de árvore em árvore, ganhando terreno.

      - Cuidado, mestre, cuidado! - gritou de repente Cross, deitando-se de bruços no chão.

      O mestre curvou a cabeça instintivamente, no momento em que uma bala passava algumas polegadas acima dele.

      Em seguida, erguendo-se, avistou um dos companheiros de Walston, que fugia através do bosque.

      Era exactamente Rock, o que lhe escapara na véspera.

      - Sentido, Rock! - gritou ele.

      Fez fogo, e Rock desapareceu, como se o solo se tivesse aberto, de repente, a seus pés.

      - Erraria outra vez o tiro?... - exclamou Evans. - Com mil diabos! Já era infelicidade!

      Tudo isto se passara em alguns segundos. Neste momento ouviu-se ladrar o cão perto dali. Quase em seguida ouviu-se a voz de Doniphan.

      - Coragem, Briant!... Coragem! - gritava ele.

      Evans e os seus amigos dirigiram-se para aquele lado e viram Briant lutando com Cope, a vinte passos dali.

      O miserável deitara o rapaz por terra, e ia feri-lo com a faca de mato quando Doniphan, que chegou a tempo de desviar o golpe, se atirou a Cope, antes de ter podido agarrar no revólver.

      A faca acertou-lhe em cheio no peito... O rapaz caiu sem soltar um grito.

      Cope, vendo que Evans, Garnett e Webb procuravam cortar-lhe a retirada, fugiu na direcção do norte, perseguido por muitos tiros, que foram disparados simultaneamente. Desapareceu, e Phann voltou sem ter podido alcançá-lo.

      Logo que pôde erguer-se, Briant correu para Doniphan, amparando-lhe a cabeça e tentando reanimá-lo...

      Evans e os outros tinham Ido ter com eles, depois de tornarem a carregar as armas.

      Realmente a luta começara com desvantagem para Walston, visto que Pike estava morto, e provavelmente Cope e Rock deviam estar fora de combate.

      Infelizmente, Doniphan tinha sido ferido, e mortalmente, segundo parecia. Com os olhos fechados, o rosto branco como a cera, não fazia um movimento, nem ouvia Briant, que o chamava.

      Entretanto, Evans curvara-se sobre o corpo do pobre rapaz. Desabotoou-lhe o casaco e rasgou-lhe a camisa, que estava banhada em sangue. Uma ferida triangular vertia sangue, na altura da quarta costela, do lado direito.

      A ponta da faca tocara-lhe no coração? Não, visto que Doniphan ainda respirava. Mas devia-se recear que tivesse chegado ao pulmão, porque a respiração do ferido era extremamente fraca.

      - Transportemo-lo para French-den! - disse Gordon. - Só aí é que podemos tratá-lo...

      - E salvá-lo! - exclamou Briant. - Ah! meu pobre camarada!... Foi por mim que expuseste a vida!

      Evans aprovou a proposta de levarem Doniphan para French-den - mesmo porque naquele momento a luta parecia ter um intervalo. Provavelmente, Walston, vendo que as coisas corriam mal, tomara o partido de bater em retirada para as profundezas de Traps-woods.

      Contudo, o que inquietava Evans era ele não ter avistado Walston, nem Brandt, nem Cook, e estes não eram os menos temíveis do bando.

      O estado de Doniphan exigia que o transportassem sem o agitarem. Assim, Baxter e Service formaram rapidamente uma padiola de ramos, onde estenderam o ferido, que não tornara a si. Depois, quatro dos seus camaradas ergueram-no suavemente, enquanto os outros o rodeavam, de espingarda armada e revólver em punho.

      O cortejo seguiu directamente a base de Auckland-hill. Era melhor do que seguir a margem do lago. Costeando os rochedos, não era preciso tomar sentido senão no lado esquerdo e no de trás. Esta marcha penosa não foi perturbada pelo mínimo incidente. Às vezes, Doniphan soltava um suspiro tão doloroso que Gordon fazia sinal para suspenderem a marcha a fim de lhe escutar a respiração, e, um momento depois, continuavam a caminhar.

      Três partes do caminho foram feitas nestas condições. Restavam apenas oitocentos ou novecentos passos para chegarem a French-den, cuja porta ainda não se podia avistar, oculta como estava por uma saliência de rochedos.

      De repente, ouviram-se gritos do lado do rio Zealand. Phann correu nessa direcção.

      Era evidente que French-den estava sendo atacada por Walston e pelos seus dois companheiros.

      Efectivamente, eis o que se passara - como se soube depois.

      Enquanto Rock, Cope e Pike, emboscados detrás das árvores de Traps-woods, entretinham o pequeno bando do mestre, Walston, Brandt e Cook tinham subido Auckland-hill, atravessando o leito seco da corrente de Dick-creek. Em seguida, depois de percorrerem rapidamente o planalto superior, desceram pela garganta que ia ter à margem do rio, perto da entrada de Store-room.

      Chegando aí, conseguiram arrombar a porta, que não estava barricada, e invadiram French-den.

      E, agora, Evans chegaria a tempo de evitar uma catástrofe?

      O mestre tomou o seu partido rapidamente. Enquanto Cross, Webb e Garnett ficavam junto de Doniphan, que não se podia deixar só, Briant, Gordon, Service, Wilcox e ele precipitaram-se na direcção de French-den, pelo caminho mais curto.

      Alguns minutos mais tarde, logo que puderam avistar Sport-terrace, o que viram tirou-lhes toda a esperança!

      Walston saía, naquele momento, pela porta do hall, arrastando uma criança para o rio.

      Esta criança era Jaime. Kate, que se precipitara sobre Walston, diligenciava, debalde, tirar-lha.

      Um momento depois aparecia o segundo companheiro de Walston, Brandt, que se apoderara do pequeno Costar, levando-o para o mesmo lado.

      Baxter correu para Brandt; mas, repelido violentamente, caiu no solo.

      Quanto às outras crianças, Dole, Jenkins, Iverson, não apareciam, da mesma maneira que Moko. Já teriam sucumbido no interior de French-den?

      Entretanto, Walston e Brandt dirigiram-se rapidamente para o rio. Podê-lo-iam atravessar sem ser a nado?

      Decerto, pois Cook estava lá, junto da canoa, que tinha ido buscar a Store-room.

      Logo que chegassem à margem esquerda estavam livres de perigo.

      Antes que pudessem cortar-lhes a retirada, chegariam ao acampamento de Bear-rock, com Jaime e Costar, que serviriam de reféns!

      Evans, Briant, Gordon, Cross e Wilcox corriam sem tomar fôlego, esperando chegar a Sport-terrace antes que Walston, Cook e Brandt estivessem em segurança do outro lado do rio. Não podiam servir-se das espingardas porque isso seria exporem-se a ferir Jaime e Costar ao mesmo tempo.

      Mas Phann estava lá. Acabava de se atirar a Brandt e agarrava-o pela garganta. Este, não podendo defender-se, teve de largar Costar, enquanto Walston arrastava Jaime para a canoa.

      De repente, um homem saiu precipitadamente do hall.

      Era Forbes.

      Iria juntar-se aos seus antigos companheiros de crime, depois de ter arrombado a porta do armazém? Foi o que Walston pensou.

      - Ajuda-me, Forbes!... Depressa!... Depressa!... – gritou ele.

      Evans parou e ia fazer pontaria quando viu Forbes atirar-se a Walston.

      Walston, surpreendido por esta agressão inesperada, foi obrigado a deixar Jaime, e, voltando-se, deu uma facada em Forbes.

      Este caiu aos pés de Walston.

      Isto passou-se em tão pouco tempo que, neste momento, Evans, Briant, Gordon, Service e Wilcox estavam ainda a uns cem passos de Sport-terrace.

      Walston quis tornar a apoderar-se de Jaime, a fim de o levar até à canoa, onde Cook o esperava, com Brandt, que conseguira desembaraçar-se do cão., Não teve tempo para isso. Jaime, que tinha um revólver na mão, descarregou-lho no peito. Walston, ferido gravemente, arrastou-se com muito custo para junto dos seus dois companheiros, que lhe pegaram e embarcaram, impelindo vigorosamente a canoa.

      Nesse momento ouviu-se uma detonação violenta. As águas do rio foram açoutadas por uma descarga de metralha.

      Era a peça, que o grumete acabava de disparar através da canhoneira do Store-room.

      E agora, à excepção dos dois miseráveis que tinham desaparecido debaixo dos maciços de Traps-woods, a ilha Chairman estava livre dos assassinos do Severn, arrastados para o mar pela corrente do rio Zealand.

     

      Agora começava uma era nova para os moços colonos da ilha Chairman. Depois de terem lutado para defenderem a existência em condições muito críticas, iam trabalhar com a ideia de saírem dali e tornarem a ver as suas famílias e o seu país.

      Depois da excitação causada pelos incidentes da luta, produzia-se neles uma reacção muito natural. Estavam fatigados pelo sucesso, no qual não podiam acreditar. O perigo parecia-lhes ainda maior do que quando andavam excitados pela luta. É certo que, depois do primeiro encontro à entrada de Traps-woods, tinham mais probabilidades a seu favor. Mas sem a intervenção de Forbes, Walston, Cook e Brandt ter-lhes-iam escapado! Moko não se atreveria a enviar aquela descarga que teria morto Jaime e Costar ao mesmo tempo que os seus raptores!... Que se teria passado depois disso?... O que seria necessário fazer para salvar as duas crianças?

      Assim, quando Briant e os seus camaradas puderam encarar friamente aquela situação, sentiram-se dominados por uma espécie de terror retrospectivo, que durou pouco, apesar de não saberem o que era feito de Rock e de Cope.

      Quanto aos heróis da batalha, tinham sido felicitados como mereciam; Moko, pelo seu tiro de canhão, disparado tanto a propósito através da canhoneira de Store-room; Jaime, pelo sangue-frio que mostrara disparando o revólver sobre Walston, e Costar, enfim, que «teria feito o mesmo», disse ele, «se tivesse uma pistola!» Mas não a tinha! Até Phann recebeu uma boa parte das carícias, sem contar um magnífico osso com tutano que Moko lhe deu como gratificação por ele ter atacado às dentadas o celerado que arrastava o rapazinho.

      É Inútil dizer que Briant, depois do tiro de canhão de Moko, voltara a toda a pressa para o lugar onde os seus camaradas guardavam a padiola. Alguns minutos depois, Doniphan tinha sido depositado no hall, sem ter recuperado os sentidos, enquanto Forbes, erguido por Evans, era estendido na cama de Store-room. Durante toda a noite, Kate, Gordon, Briant, Wilcox e o mestre velaram à cabeceira dos dois feridos.

      Doniphan estava ferido muito gravemente, não havia que duvidar. Contudo, como ele respirava com muita regularidade, era porque a faca de Cope não lhe perfurara o pulmão. Para lhe pensar a ferida, Kate recorreu então a certas folhas muito usadas no Far-West, e que foram tiradas de alguns arbustos das margens do rio Zealand. Eram folhas de amieiro, as quais, esfregadas e dispostas em compressas, são muito eficazes para Impedir a supuração interna, pois todo o perigo estava nisso. Mas não se dava o mesmo caso com Forbes, que Walston ferira no ventre. Ele sabia que a ferida era mortal, e quando voltou a si, enquanto Kate curvada sobre a cama lhe prodigalizava cuidados, murmurou:

      - Obrigado, boa Kate! Obrigado!... É inútil!... Estou perdido!

      E as lágrimas corriam-lhe dos olhos.

      O remorso tinha então despertado o que havia ainda de bom no coração daquele desgraçado!... Sim! Arrastado, sobretudo, pelos maus conselhos e os maus exemplos, se tomara parte nos crimes do Severn todo o seu ser se revoltara perante a sorte horrível que ameaçava os moços colonos, e arriscara a vida por eles.

      - Tem esperança, Forbes! - disse-lhe Evans. - Resgataste os teus crimes... Hás-de viver...

      Não! O desgraçado devia morrer! Apesar dos cuidados de que o cercaram, o agravamento do mal tornava-se mais visível de hora para hora. Durante os poucos momentos de descanso que a dor lhe concedia, dirigia o olhar inquieto para Kate, para Evans!... Derramara sangue, e o dele corria para expiar a sua existência passada...

      Cerca das quatro horas da manhã Forbes expirou. Morreu arrependido, com o perdão dos homens e o de Deus, que lhe evitou uma agonia demorada, e foi quase sem sofrimento que exalou o último suspiro.

      Enterraram-no no dia seguinte numa cova aberta próximo do lugar onde repousava o náufrago francês, e duas cruzes indicam agora o lugar dos dois túmulos.

      Contudo, a presença de Rock e de Cope constituía ainda um perigo, e a segurança não podia ser completa enquanto eles não estivessem impossibilitados de fazer mal.

      Evans resolvera, portanto, acabar com eles antes de ir ao porto de Bear-rock.

      Gordon, Briant, Baxter, Wilcox e ele partiram nesse mesmo dia, de espingarda ao ombro e revólver à cinta, acompanhados por Phann, pois era muito acertado confiarem no seu Instinto para descobrir uma pista.

      As pesquisas não foram difíceis nem demoradas e, devemos acrescentar, nem perigosas. Já não havia nada a recear dos dois cúmplices de Walston. Cope, que tinha deixado sinais de sangue no meio dos arvoredos de Traps-woods, foi encontrado morto a uns cem passos do lugar onde lhe acertara uma bala. Achou-se também o cadáver de Pike, morto no princípio da luta. Quanto a Rock, que desaparecera tão inopinadamente como se a terra o engolisse, Evans obteve depressa a explicação desse facto: o miserável caíra numa das covas abertas por Wilcox, depois de ter sido ferido mortalmente. Os três cadáveres foram enterrados nessa cova, que serviu de túmulo. Em seguida, o mestre e os seus companheiros foram dar à colónia a boa notícia de que já não tinham nada a temer.

      A alegria seria completa em French-den se Doniphan não estivesse ferido tão gravemente! Os corações, agora, abriam-se à esperança.

      No dia seguinte, Evans, Gordon, Briant e Baxter discutiram os projectos que deviam ser realizados o mais cedo possível. O que convinha, primeiro que tudo, era entrar na posse da chalupa do Severn. Isso exigia uma viagem e até uma estada em Bear-rock, onde se procederia aos trabalhos que fossem necessários para pôr a chalupa em estado de aguentar o mar.

      Assim, ficou decidido que Evans, Briant e Baxter iriam lá pelo caminho do lago e do East-river. Era o mais seguro e o mais curto ao mesmo tempo.

      A canoa, que foi encontrada num remoinho do rio, não sofrera nada com a descarga de metralha, que lhe passara por cima. Meteram-lhe dentro as ferramentas para o conserto, provisões, munições, armas, e, com um bom vento largo, partiu, na manhã de 6 de Dezembro, sob a direcção de Evans.

      A travessia do Family-lake fez-se rapidamente. Nem foi preciso alargar ou retesar a escota, tão igual e constante era a brisa. Antes das onze horas e meia, Briant indicava ao mestre a pequena enseada por onde as águas do lago desaguavam no leito do East-river, e a canoa, ajudada pela baixa-mar, desceu entre as duas margens do rio. Perto da embocadura, a chalupa, posta a secar, estava estendida na areia de Bear-rock.

      Depois de um exame muito minucioso dos consertos que deviam ser feitos, Evans disse o seguinte:

      - Meus rapazes, nós temos ferramentas, mas falta-nos com que consertar o cavername e as cintas do costado. Ora, em French-den há pranchas e curvas que provêm do casco do Sloughi, e se pudéssemos conduzir a embarcação para o rio Zealand...

      - Era nisso que eu pensava - respondeu Briant. – É impossível, mestre Evans?

      - Parece-me que não - replicou Evans. - Visto que a chalupa veio bem dos Severn-shores até Bear-rock, também pode ir de Bear-rock até ao rio Zealand. Aí, o trabalho podia fazer-se mais facilmente, e partiríamos de French-den em direcção a Sloughi-bay, onde embarcaríamos.

      Se este projecto fosse realizável, não se podia imaginar outro melhor. Assim, decidiu-se aproveitar a maré do dia seguinte para subir o East-river, rebocando a chalupa com a canoa.

      Primeiro que tudo, Evans tratou de tapar as fendas da embarcação com rolhas de estopa, que trouxera de French-den, e este primeiro trabalho não terminou senão a horas muito adiantadas.

      A noite passou-se tranquilamente no fundo da gruta, onde Doniphan e os seus companheiros tinham escolhido domicílio por ocasião da sua primeira visita a Deception-bay.

      No dia seguinte, ao amanhecer, pôs-se a chalupa a reboque da canoa, e Evans, Briant e Baxter partiram com a maré a encher. Manejando os remos, enquanto a maré se fez sentir, foram andando menos mal. Mas logo que a vazante tomou força, a embarcação, tornando-se mais pesada por causa da água que lhe entrava dentro, foi rebocada com muito custo. Por isso, eram cinco horas e meia da tarde quando a canoa chegou à margem direita do Family-lake.

      O mestre achou prudente não se exporem, nestas condições, a uma travessia nocturna.

      Além disso, o vento tendia a abrandar com a noite e, provavelmente, o que acontecia durante o bom tempo, a brisa tornava a refrescar com os primeiros raios do Sol.

      Acamparam naquele sítio, comeram com apetite, dormiram profundamente, com a cabeça encostada ao tronco de uma faia enorme e os pés diante de uma fogueira, que esteve acesa até de madrugada.

      - Embarquemos! - foi a primeira palavra que o mestre pronunciou logo que os clarões matinais iluminaram as águas do lago.

      A brisa do nordeste voltara com o dia. O mestre não podia desejar um tempo mais favorável para se dirigirem a French-den.

      A vela foi içada e a canoa, arrastando a pesada embarcação, que estava cheia de água até à amurada, seguiu em direcção a oeste.

      Não houve incidente algum durante esta travessia do Family-lake. Evans, por prudência, ia sempre pronto para cortar a corda que prendia a canoa à chalupa, no caso de esta ir a pique, porque arrastaria a canoa consigo. Grave apreensão, esta! Efectivamente, se a embarcação se submergisse, a partida ficava adiada indefinidamente, e talvez se vissem obrigados a estar ainda muito tempo na ilha Chairman!

      Os cumes de Auckland-hill apareceram finalmente a oeste pelas três horas da tarde. Às cinco horas, a canoa e a chalupa entravam no rio Zealand e ancoravam ao abrigo da pequena enseada. Evans e os seus companheiros, que não eram esperados tão cedo, foram recebidos por hurras.

      Durante a sua ausência, o estado de Doniphan melhorara um pouco. O corajoso rapaz pôde corresponder aos apertos de mão do seu camarada Briant. Respirava mais livremente, porque o pulmão não tinha sido atacado. Apesar de ter uma dieta muito severa, as forças começavam a voltar-lhe, e com as compressas de ervas, que Kate renovava de duas em duas horas, a ferida não tardaria a fechar. É verdade que a convalescença devia ser muito demorada; mas Doniphan tinha tanta vitalidade que a cura completa era apenas questão de tempo.

      No dia seguinte empreenderam-se os trabalhos do conserto da embarcação. Primeiro foi preciso empregarem grande esforço a fim de trazerem a chalupa para terra. Com trinta pés de comprimento e seis de largo na viga mestra, devia chegar para os dezassete passageiros de que se compunha então a colónia, contando com Kate e o mestre.

      Terminada esta operação, os trabalhos seguiram o seu curso regularmente. Evans, tão bom carpinteiro como marinheiro, entendia-se com o negócio, e pôde apreciar a habilidade de Baxter. Os materiais não faltavam, nem tão-pouco as ferramentas. Com os restos do casco da escuna puderam consertar-se as curvas, as cintas do costado desunidas e as barras quebradas; finalmente, a estopa velha, molhada em seiva de pinheiro, permitiu que as costuras do casco ficassem hermeticamente fechadas.

      A chalupa, que tinha coberta na proa, recebeu-a então até aos dois terços, pouco mais ou menos - o que era um abrigo contra o mau tempo, pouco temível durante aquele segundo período do Verão. Os passageiros podiam estar debaixo dessa ponte, ou em cima dela - conforme quisessem. O mastro da gávea do Sloughi serviu de mastro grande, e Kate, com as indicações de Evans, conseguiu formar um traquete com a carangueja sobressalente do iate, assim como uma rebeca para a ré e um cutelo para a proa. Com este aparelho ficava a embarcação mais equilibrada e aproveitava todos os ventos.

      Estes trabalhos, que durariam trinta dias, não ficaram concluídos antes do dia 8 de Janeiro. Restava apenas terminar algumas particularidades de apropriação.

      O mestre quis que tudo fosse feito com o maior cuidado. Era preciso que a chalupa ficasse em estado de navegar através dos canais do arquipélago magalânico,  percorrer, sendo necessário, algumas centenas de milhas, e no caso de ser preciso descer até Punta Arena, na costa oriental da península de Brunswick.

      Deve-se mencionar que, neste lapso de tempo, o Natal fora celebrado com certo aparato, assim como o primeiro de Janeiro daquele ano de 1862-que os moços colonos esperavam não acabar na ilha.

      Nesta época, a convalescença de Doniphan estava bastante adiantada para ele poder sair do Hall apesar de estar ainda muito fraco. O ar livre e um alimento mais substancial restituíram-lhe as forças. No entanto os seus camaradas não tencionavam partir enquanto ele não estivesse capaz de suportar uma travessia de algumas semanas sem ter de recear uma recaída.

      Entretanto, a vida habitual, interrompida pela aparição de Walston e dos outros, continuava agora em French-den.

      As lições e as conferências é que foram mais ou menos abandonadas. Pois Jenkins, Iverson, Dole e Costar não se consideravam em férias? Wilcox, Cross e Webb continuaram as suas caçadas, ou nas margens dos South-moors ou nos arvoredos de Traps-woods. Agora desprezavam as armadilhas e os laços, apesar dos conselhos de Gordon, económico em munições. Por isso, ouviam-se detonações de diferentes lados, e a despensa de Moko enchia-se de caça fresca - o que permitia que guardassem as conservas para a viagem.

      Realmente, se Doniphan pudesse continuar as suas funções de primeiro caçador da colónia, com que ardor ele perseguiria aquela caça de pêlo e de pena sem ter de economizar os tiros!

      Era um desgosto profundo, o dele, por não poder juntar-se com os seus camaradas! Mas era preciso resignar-se e não cometer imprudências.

      Finalmente, durante os últimos dez dias de Janeiro, Evans procedeu ao carregamento da embarcação. Briant e os outros tinham vontade de levar tudo o que se salvara do naufrágio do Sloughi... Era impossível, por falta de lugar, e foi necessário fazer uma escolha.

      Em primeiro lugar, Gordon pôs de parte o dinheiro que fora recolhido a bordo do iate, e que talvez fosse preciso aos moços colonos para voltarem à pátria. Em seguida, Moko embarcou provisões de boca em quantidade suficiente para o sustento de dezassete passageiros, não só prevendo uma travessia de três semanas, ou mais, como também para o caso de serem obrigados por algum acidente marítimo a desembarcar em uma das ilhas do arquipélago, antes de chegarem a Punta Arena, Porto Galante ou Porto Tamar.

      Depois, o resto das munições foi colocado nos cofres da chalupa, assim como as espingardas e os revólveres de French-den. Doniphan pediu que não abandonassem os dois canhões pequenos do iate. Se carregassem muito a embarcação, podiam desfazer-se deles no caminho.

      Briant embarcou também a roupa, a maior parte dos livros da biblioteca, os principais utensílios que haviam de servir na cozinha de bordo - entre outros, um dos fogões de Store-room - e os instrumentos necessários para a navegação, relógios marítimos, óculos, bússolas, barquinhas, faróis, sem esquecer o halkett-boat. Wilcox escolheu, entre as redes e as linhas, os aparelhos que podiam servir para a pesca durante o caminho.

      Quanto à água doce, depois de a tirarem do rio Zealand, Gordon mandou-a meter numa dúzia de barris pequenos, que foram dispostos regularmente ao longo da sobrequilha, no fundo da embarcação, sem esquecer o resto de brandy, de gin e de outros licores fabricados com os frutos do trulca e da alfarroba.

      No dia 3 de Fevereiro tudo estava pronto. Faltava só marcar o dia da partida, se Doniphan se sentisse em estado de suportar a viagem.

      Sim! O valente rapaz respondia por si mesmo! A ferida cicatrizara completamente e o apetite voltara, não tendo de se acautelar senão em evitar comer de mais. Agora, apoiado ao braço de Briant ou ao de Kate, passeava em Sport-terrace durante algumas horas.

      - Vamos!... Vamos!... - disse ele. - Tenho pressa de embarcar!... O mar há-de curar-me de todo!

      Marcou-se definitivamente o dia 5 de Fevereiro para a partida.

      Gordon, na véspera, dera liberdade aos animais domésticos. Guanacos, vicunhas, abetardas e toda a família de pena, pouco reconhecidos pelos cuidados que lhe tinham prodigalizado, fugiram, uns correndo à desfilada, outros voando, tão irresistível é o instinto da liberdade.

      - Ingratos! - exclamou Garnett. - Depois das atenções que tivemos com eles!

      - O mundo é assim! - respondeu Service com tanta seriedade que esta reflexão filosófica foi recebida com uma gargalhada geral.

      No dia seguinte, os moços passageiros embarcaram na chalupa, que levava a canoa a reboque.

      Mas antes de largar a amarra, Briant e os seus camaradas quiseram reunir-se mais uma vez defronte das sepulturas de Francisco Baudoin e de Forbes. Ajoelharam e rezaram com recolhimento em memória daqueles desgraçados.

      Doniphan colocara-se na ré da embarcação, junto de Evans, encarregado de governar. Na proa, Briant e Moko iam nas costas das velas, apesar de se dever contar mais com a corrente para descer o rio Zealand do que com a brisa, cuja direcção era muito incerta por causa do maciço de Auckland-hill.

      Os restantes, assim como Phann, tomaram lugar na parte anterior da ponte, onde ficaram perfeitamente à vontade.

      Desatou-se a amarra e os remos bateram na água.

      Três hurras saudaram então aquela morada hospitaleira que, durante tantos meses, oferecera um abrigo tão seguro aos moços colonos, e não foi sem comoção - principalmente da parte de Gordon, que ia muito triste por deixar a sua ilha - que viram Auckland-hill desaparecer por detrás das árvores da praia.

      A chalupa, descendo o rio Zealand, não podia ir mais depressa do que a corrente, que não era muito rápida.  E além disso, cerca do meio-dia, à altura do pântano de Bog-woods, Evans teve de ancorar.

      Efectivamente, naquele ponto do rio o leito era pouco profundo, e a embarcação, muito carregada, corria o risco de encalhar. Era melhor esperar e partirem quando a maré começasse a vazar.

      A paragem durou seis horas pouco mais ou menos. Os passageiros aproveitaram-na para comer com apetite, indo depois Wilcox e Cross atirar a algumas narcejas, à entrada dos South-moors.

      Mesmo de dentro da chalupa, na ré, Doniphan pôde matar dois tinamus soberbos, que esvoaçavam por cima da margem direita. Decididamente, estava curado.

      Era muito tarde quando a embarcação chegou à embocadura do rio. Por isso, como a escuridão não permitia que se distinguisse por entre os canais do recife, Evans, como marinheiro prudente, quis esperar pelo dia seguinte para continuar a viagem.

      A noite foi o mais serena possível. O vento caía com a noite, e quando as aves marinhas, as procelárias e as gaivotas entraram nos buracos dos rochedos, reinou um silêncio absoluto em Sloughi-bay.

      No dia seguinte, como a brisa vinha de terra, o mar devia estar bom até à extremidade dos South-moors. Era preciso aproveitar essa circunstância para transpor umas vinte milhas, durante as quais a ressaca seria dura se o vento viesse do largo.

      Evans, logo ao amanhecer, fez içar a vela de mezena, o cutelo e a bujarrona. Em seguida, a chalupa, dirigida pela mão segura do mestre, saiu do rio Zealand!

      Nesse momento, todos os olhares se dirigiram para o cume de Auckland-hill, e, depois, para os últimos rochedos de Sloughi-bay, que desapareceram ao voltar o American-cape. Então disparou-se um tiro de canhão, seguido de três hurras, enquanto o pavilhão do Reino Unido se desenrolava no topo da embarcação.

      Oito horas depois, a chalupa chegava ao canal cercado pelas praias da ilha Cambridge, dobrava South-cape e seguia os contornos da ilha Adelaide.

      A extremidade da ilha Chairman acabava de desaparecer no horizonte do norte.

     

      É inútil relatar minuciosamente esta viagem através dos canais do arquipélago magalânico. Não houve incidente algum importante. O tempo conservou-se sempre bom. Além disso, naqueles canais, de seis a sete milhas de largura, o mar não teria tempo de se erguer ao sopro de uma tempestade.

      Todos esses canais estavam desertos, e, de mais a mais, era melhor não encontrarem os indígenas daquelas paragens, os quais nem sempre são de génio hospitaleiro. Durante a noite viam-se clarões de fogueiras no interior das Ilhas, mas não apareceu nenhum Indígena nas praias.

      No dia 11 de Fevereiro, a chalupa, que sempre tivera vento favorável, desembocava no estreito de Magalhães pelo canal de Smith, entre a costa oeste da ilha da Rainha Adelaide e as elevações da Terra do Rei Guilherme.

      À direita erguia-se o pico Sant’Ana. À esquerda, no fundo da baía de Beau-fort, viam-se algumas dessas geleiras magníficas, a mais elevada das quais tinha sido avistada por Briant a leste da ilha Hanovre - à qual os moços colonos davam sempre o nome da ilha Chairman.

      A bordo tudo ia bem, e parece que o ar, carregado de perfumes marinhos, era excelente para Doniphan, porque ele comia e sentia-se com força para desembarcar se se apresentasse ocasião de continuar com os seus camaradas a sua vida de Robinsons.

      No dia 12, a chalupa chegou em frente da ilha Tamar,  na Terra do Rei Guilherme, cujo porto ou, antes, a enseada, estava deserta naquele momento. Assim, sem parar, depois de ter dobrado o cabo Tamar, Evans tomou a direcção do sudoeste através do estreito de Magalhães.

      De um lado, a Terra da Desolação desenrolava as suas costas planas e áridas desprovidas da vegetação verdejante que revestia a ilha Chairman. Do outro, desenhavam-se os dentes da serra, caprichosamente recortados, da península Crooker. Era por aí que Evans tencionava procurar os canais do sul, a fim de dobrar o cabo Forward e subir a costa leste da península de Brunswick até ao estabelecimento de Punta Arena.

      Não foi preciso ir tão longe.

      Na manhã do dia 13, Service, que estava de pé na proa, exclamou:

      - Fumo a estibordo!

      - Fumo de alguma fogueira de pescadores? - perguntou Gordon.

      - Não!... Parece-me que é fumo de vapor! - replicou Evans.

      Efectivamente, naquela direcção as terras estavam muito afastadas para se poder ver o fumo de um acampamento de pesca.

      Briant subiu imediatamente aos aparelhos do mastro de traquete, chegou ao cimo e, alegremente, exclamou também:

      - Navio!... Navio!...

      A embarcação não tardou a aparecer. Era um paquete de oitocentas a novecentas toneladas, caminhando com uma velocidade de onze a doze milhas por hora.

      Da chalupa partiram hurras e tiros de espingarda.

      A chalupa fora avistada, e dez minutos depois chegava junto do paquete Grafton, que se dirigia para a Austrália.

      O capitão do Grafton, Tom Long, foi posto ao facto das aventuras do Sloughi, Além disso, a perda da escuna tinha dado que falar, tanto em Inglaterra como na América. Tom Long recebeu logo a bordo os passageiros da chalupa: Ofereceu-se até para os conduzir directamente á Auckland - o que o desviava um pouco do seu caminho, visto que o Grafton ia com destino a Melburne, capital da província de Adelaide, ao sul das terras australianas.

      A travessia foi rápida, e o Grafton foi ancorar na enseada de Auckland, no dia 24 de Fevereiro.

      Tinham decorrido dois anos, mais dia menos dia, desde que os discípulos do Colégio Chairman tinham sido arrastados a mil e oitocentas léguas da Nova Zelândia.

      Devemos renunciar a descrever a alegria daquelas famílias, vendo as crianças que todos julgavam tragadas pelo Pacífico. Não faltava nem um dos que a tempestade levara até às paragens da América do Sul.

      A notícia de que o Grafton trazia os moços náufragos espalhou-se com rapidez por toda a cidade. A população correu a aclamá-los quando eles caíram nos braços das famílias.

       Todos queriam saber minuciosamente o que se passara na ilha Chairman! A curiosidade foi, em breve, satisfeita. Primeiro, Doniphan fez algumas conferências a esse respeito - conferências que obtiveram verdadeiro sucesso, com que o rapaz ficou um pouco orgulhoso. Depois, o jornal de French-den, escrito por Baxter, foi impresso, e foram precisos milhares de exemplares para contentar os leitores da Nova Zelândia. Os jornais dos dois mundos reproduziram-no em todas as línguas, pois não havia ninguém que não se interessasse pela catástrofe do Sloughi. A prudência de Gordon, a dedicação de Briant, a coragem de Doniphan, a resignação de todos, pequenos e grandes, tudo foi igualmente admirado.

      É inútil insistir na recepção feita a Kate e ao mestre Evans. Não se tinham ambos consagrado à salvação daquelas crianças? Por isso fez-se uma subscrição pública para dar ao corajoso Evans um navio de comércio, o Chairman, do qual foi capitão e proprietário ao mesmo tempo, com a condição de ter o porto de partida em Auckland. E quando as viagens o traziam à Nova Zelândia era sempre recebido com a maior cordialidade pelas famílias dos rapazes.

      Quanto à boa Kate, foi solicitada, disputada pelos Briant, pelos Garnett, pelos Wilcox e por muitos outros. Afinal fixou-se em casa de Doniphan, a quem salvara a vida com os seus cuidados.

      E como conclusão moral. eis o que se deve deduzir desta narração que justifica, parece-nos. o seu título de Dois Anos de Férias.

      Os alunos de um colégio nunca, decerto, estarão expostos a passarem as férias em tais condições. Mas - é bom que as crianças o saibam - com ordem, zelo e coragem não há situações de que se não possa sair. E não esqueçam, sobretudo, quando pensarem nos moços náufragos do Sloughi, experimentados pela dura aprendizagem da existência, que, à volta, os pequenos eram quase grandes e os grandes quase homens.

 

                                                                                            Júlio Verne

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades