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IVAN O PRÍNCIPE RUSSO / Barbara Cartland
IVAN O PRÍNCIPE RUSSO / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 IVAN O PRÍNCIPE RUSSO 

 

   As descrições que se fazem do czar Alexandre III (1881‑1894) são absolutamente autênticas: ele foi, de facto, um dos mais desagradáveis e cruéis governantes que a Rússia já teve.

   Seu primeiro ato, ao se tornar imperador, foi o de rasgar o manifesto, ainda por assinar, que estava junto ao leito de morte de seu pai, o qual previa uma forma limitada de governo repre­sentativo a nível nacional.

   O czar iniciou suas actividades governamentais com uma per­seguição aos judeus sem precedentes na história, até o advento, cinquenta anos mais tarde, de Adolf Hitler, na Alemanha.

   Foi promulgada uma lei, segundo a qual um terço dos judeus da Rússia deveria morrer, um terço emigrar e um terço ser assimilado,

   O czar usava suas roupas até que ficassem completamente gastas, seus filhos passavam fome e a Lista Civil foi reduzida com o rebaixamento dos nobres. Não foi surpresa, portanto, o facto de o obscurantismo ter perdurado tanto na sua corte.

   A polícia secreta, instigada por Nicolau I e conhecida como a III Secção, aterrorizou o país. Era sem compaixão, corrupta e crudelíssima.

 

 

   (1887)

   O secretário bateu timidamente à porta do escritório do mi­nistro de Relações Exteriores. Houve uma pausa antes de o marquês de Salisbury responder:

   ‑ Entre.

   Ele estava trabalhando, sentado à sua grande escrivaninha, e levou alguns segundos para encarar o secretário, que esperava à porta, não muito à. vontade.

   ‑ Que há?

   ‑ Desculpe incomodá‑lo, excelência, mas uma jovem senhora insiste em vê‑lo.

   ‑ Uma jovem senhora?

   ‑ O nome dela, excelência, é Senhorita Anstruther.

   ‑ Será possível!? Mande‑a entrar.

   ‑ Pois não, excelência.

   O secretário fechou a porta suavemente e voltou alguns mi­nutos depois para anunciar:

   ‑ Senhorita Vida Anstruther, excelência.

   O marquês ergueu‑se devagar quando a visitante veio ao seu encontro.

   Era muito jovem, mas sua pose e sua autoconfiança faziam com que ela aparentasse mais idade.

   Era muito bonita também, e o marquês, estendendo a mão para cumprimentá‑la, disse:

   ‑ Acho que a senhorita deve ser a filha de Sir Harvev Anstruther.

   Ela sorriu, e foi como se um raio de sol invadisse repentinamente o sombrio escritório.

   ‑ Vim, justamente, para falar com o senhor sobre ele.

   ‑ Suspeitei que essa fosse a razão de sua visita. Queira sentar‑se.

   Indicou‑lhe uma cadeira do outro lado da escrivaninha, e ela sentou‑se devagar, mas de maneira decidida, surpreendente numa pessoa tão jovem.

   O marquês de Salisbury, primeiro‑ministro, era, de facto, um homem um tanto amedrontador. Mesmo seus colegas da Câma­ra dos Lordes o olhavam com certo medo.

   Era também muito talentoso, e sabia que tanto a rainha como o gabinete tinham plena confiança nele.

   ‑ Gostaria de lhe perguntar, excelência, o que aconteceu a meu pai ‑ disse ela, e sua voz suave demonstrava preocupação.

   ‑ Tenho conjecturado sobre isso desde que recebi uma comunicação há alguns dias, dizendo que ele estava desapare­cido. Mas tenho absoluta certeza, considerando o lugar onde ele está, de que é um tanto cedo para a senhorita se preocupar com isso ‑ respondeu o marquês.

   ‑ Creio que esteja equivocado, excelência. Na verdade, tenho motivos para estar muito preocupada. Pelo que me disse, só nas últimas semanas o senhor ouviu falar sobre o desapare­cimento de meu pai. contudo, não tenho notícias dele há quase dois meses.

   O marquês recostou‑se na cadeira e disse, em tom sério:

   ‑ Há tanto tempo? Surpreende‑me que a senhora não me tenha comunicado isso antes.

   ‑ Não o fiz porque, como o senhor deve saber, papai detes­ta qualquer interferência quando está viajando a serviço do país.

   Ela fez uma pausa e depois continuou:

  ‑ Mas espero que o senhor saiba por que ele foi à Hungria. Ele disse aos amigos que tiraria umas férias, depois de tantos anos de trabalho extenuante, e aproveitaria essa viagem para visitar a família de minha mãe.

   ‑ Conheço a razão da viagem, e seu pai me contou o que iria dizer aos amigos, antes de partir. ‑ Vida não retrucou, e ele Continuou. ‑ Ele me disse que pretendia ir à Rússia. Deve estar na pista de alguma coisa muito importante, e, se esse for o caso, não deverá voltar logo. Pode ser também que tenha decidido seguir para o sul, até Odessa, voltando para casa por outra rota.

   ‑ Isso me soa muito razoável, excelência, mas tenho absoluta certeza de que papai está em perigo! ‑ Ela achou que o marquês se mostrava descrente, e insistiu. ‑ isso pode lhe parecer estranho, mas, pelo facto de papai e eu sermos tão unidos, principalmente depois que mamãe morreu, cada um de nós sabe o que o outro está pensando. Meu sexto sentido me diz que, ou os russos o detiveram, ou que ele está escondido e com dificuldade de voltar para casa.

   ‑ Entendo seus sentimentos, mas o que a senhorita está me dizendo não passa de mera suposição, e não há fundamento algum para suas suspeitas ‑ disse o marquês após alguns minutos.

   ‑ O que salvou a vida de meu pai muitas vezes foi sem dúvida esse seu dom de se comunicar quando está em perigo.

   Houve um silêncio na sala. Depois, como se o marquês tivesse sido convencido pela certeza de sua interlocutora, disse:

   ‑ Penso que deve estar ciente, Senhorita Anstruther, de que, mesmo que esteja certa disso, não há nada que possamos fazer.

   ‑ Sei disso, e é por essa razão que resolvi agir por minha conta.

   O marquês retesou‑se:

   ‑ Espero que não esteja falando a sério!

   ‑ Estou falando muito seriamente. Pretendo procurar papai, e preciso de sua ajuda.

   ‑ Se está pensando em ir à Hungria e depois à Rússia, posso apenas dizer‑lhe que se trata de um acto de loucura que seu pai certamente desaprovaria. Farei o possível para que mude de idéia.

   ‑ Não conseguirá, excelência. Já pensei sobre isso com muito cuidado, e pretendo contar a todos que vou me encontrar com papai na Hungria e que tudo havia sido combinado antes da saída dele ‑ replicou Vida com aspereza.

   Encarou o marquês como se o estivesse desafiando. Como ele não lhe respondesse, continuou:

   ‑ Tudo o que eu preciso de Vossa Excelência é um pas­saporte com um nome falso sob o qual eu possa viajar. Seria muita ingenuidade de minha parte, pensando que papai está em perigo, arriscar‑me a ser reconhecida como sua filha ao sair do país.

   O marquês achou a idéia razoável, mas não tinha intenção de ceder com facilidade.

   ‑ Deixe‑me fazer‑lhe uma sugestão, Senhorita Anstruther. Man­darei um de meus homens de confiança procurar seu pai. Já tenho notícia de que ele chegou são e salvo à Hungria e de que foi recebido pela família de sua mãe.

   ‑ E o que soube depois disso?

   ‑ Informaram‑me que seu pai foi a uma caçada que pode tê‑lo levado para dentro do território russo, mas que ele não voltou. O relatório revelava certa ansiedade pelo que pudesse ter acontecido.

   Furiosa, Vida perguntou:

   ‑ E o senhor ficou satisfeito com esse relatório?

   ‑ Claro que não, mas há muitas razões para o desapareci­mento de seu pai. A última coisa que ele gostaria que se fizesse seria que alguém o procurasse, revelando, dessa forma, sua identidade. Isso lhe traria embaraços e talvez pusesse sua vida em perigo.

   Ele falou com rispidez, porque concluiu que a jovem à sua frente não tinha a mínima idéia das dificuldades pelas quais o pai estaria passando, dos riscos que poderiam advir se a situa­ção fosse tratada por pessoas inexperientes.

   Vida respondeu no mesmo tom que o marquês usara:

   ‑ Naturalmente, estou consciente disso. Porém, esqueceu‑se de que, nos últimos cinco anos, estive com papai nos lugares mais estranhos, e às vezes em circunstâncias bem difíceis. Por essa razão o senhor deve confiar em mim. Vou procurá‑lo, e não farei nenhuma tolice!

   O modo como ela falou fez com que o marquês se sentisse culpado, levando‑o a dizer:

   ‑ Devo admitir, Senhorita Anstruther, que não podia imaginar que a senhorita fosse tão ligada a seu pai. De facto, tinha cer­teza de que, quando ele estava "viajando", como diríamos, a senhorita sempre ficava na embaixada em que ele estivesse lo­tado na ocasião.

   ‑ Nunca permiti a meu pai viajar só, e posso assegurar‑lhe que ele sempre me considerou muito útil. Quando eu era crian­ça, as pessoas nunca achavam muito importante ter cautela em comentar certas coisas na minha presença, e, sendo eu fluente em várias línguas, podia com frequência passar a meu pai infor­mações de extrema importância ‑ replicou Vida.

   O marquês pensou que, se o que a Senhorita Anstruther lhe con­tara fosse verdade, ela era de facto uma espia, e uma espia muito atraente.

   Pena que o Ministério de Relações Exteriores não pudesse fazer uso de seus predicados.

   De qualquer forma, ele tinha perfeita consciência de que era seu dever dissuadi‑la de se insinuar em tão perigosa situação.

   A rainha Vitória tinha descrito o comportamento do czar da Rússia como vergonhoso. Alexandre III era um monarca im­previsível e extremamente desagradável. Gostava de agir como se fosse um camponês, mas era realmente muito astucioso. Na verdade, embora ninguém o soubesse na ocasião, ele foi o pri­meiro líder da história de um grande país a travar uma organi­zada "guerra fria" contra os países vizinhos.

   Sob suas ordens, os russos provocavam dificuldades aos regi­mes estabelecidos nos Bálcãs pelo Tratado de Berlim de 1878; agentes secretos se faziam passar por vendedores de imagens sagradas, e sob esse disfarce vagavam pela Sérvia, organizando movimentos subversivos; funcionários da embaixada russa envolviam‑se nas multidões para criar motins. Na Bulgária, russos sequestraram o príncipe Alexandre de Battenberg e forçaram‑no a abdicar, sob ameaça de arma.

  O clamor na Europa foi estrondoso, mas o novo monarca da Bulgária, o príncipe Ferdinando de Coburg, era assistido por um forte patriota, Stambulov, tão hostil à Rússia como o fora o antigo governante.

   Os agentes russos estavam, por isso, nesse momento, empe­nhados em assassiná‑lo.

   Além de tudo o que acontecia na Europa, o que incomodava aos britânicos era que o Exército do czar estava invadindo a ásia, infiltrando‑se pelo Afeganistão e ameaçando a índia.

   Como as informações chegadas desse país fossem incertas e escassas, Sir Harvey Anstruther se oferecera para tentar desco­brir o que estava de facto acontecendo na Rússia.

   A visita à família de sua falecida esposa, que vivia no leste da Hungria, muito perto da fronteira russa, lhe fornecia um bom motivo para realizar a viagem.

   ‑ Alguns primos de sua mãe casaram‑se com russas ‑ dis­sera Sir Harvey a Vida antes de partir ‑, e posso descobrir alguma coisa por intermédio deles, e também das famílias hún­garas da vizinhança. A menos que tenham mudado muito nos últimos anos, os húngaros não só não gostam dos russos como não confiam neles.

   Vida sorrira.

   Ela conhecia o patriotismo dos húngaros, e sabia que eles desaprovavam a maneira como os aristocratas russos maltrata­vam os servos, e o sistemático terrorismo que era parte inte­grante da vida russa.

   Quisera ir com o pai, mas ele a dissuadira disso:

   ‑ Combinei com a duquesa de Dorset que ela a apresenta­ria à sociedade num dos mais importantes salões de Londres. Não vou me demorar, querida, e, quando voltar, espero vê‑la como a beldade da temporada, recebendo as homenagens da corte de St. James.

   Vida cedera, porque sabia como o pai estava ansioso para vê‑la tomar o lugar que lhe competia na sociedade.

   E quando ele partiu, num dia frio do começo de fevereiro, ela o abraçou e disse:

   ‑ Prometa‑me que vai tomar cuidado, papai. Sabe muito bem como sua vida é importante para mim. Não posso perdê‑lo. Volte logo, por favor.

   ‑ Serei cuidadoso por sua causa, porque você é tudo o que eu tenho ‑ ele respondeu, abraçando‑a, comovido.

   Mais tarde, porém, concluiria que aquela viagem fora um erro.

   Na verdade, ela se achava um tanto velha para debutar, pois tinha quase dezanove anos. Mas no ano anterior, época ade­quada para que ela fosse apresentada à sociedade, seu pai era embaixador em Viena, cargo que o Ministério de Relações Exte­riores considerava demasiado importante para lhe permitir que voltasse.

   Vida ficara com ele, e, justamente agora que ele requisitara uma licença antes de tomar posse da embaixada em Paris, lhe haviam pedido que se encarregasse de uma missão especial.

   ‑ Por que não o deixam em paz, papai? O senhor já fez tanto por eles, e recebeu tão pouco de volta!

   ‑ Não quero agradecimentos. Tudo o que faço é para ajudar meu país, onde e quando ele precisa de mim, e não posso simu­lar, sem falsa modéstia, que não esteja qualificado para essa missão ‑ dissera seu pai com calma, O que ele deixara de dizer, porém, era que ninguém, nem de longe, se igualava a ele no domínio perfeito de várias línguas estrangeiras.

    Além disso, apesar de sua alta posição, ele se disfarçava quando necessário, o que nenhum outro embaixador faria sem constrangimento, e chegava até a divertir‑se com isso, pois tinha um senso de humor excepcional.

   Fazia a filha rir muito, contando histórias de como havia regateado, fingindo ser vendedor de tapetes, ou um guia be­duíno de pessoas de alta classe, sem que eles tivessem a mínima idéia de quem ele era.

   Antes de partir para a Hungria, ele lhe confessara, aliviado, que pela primeira vez em anos viajaria sob sua verdadeira identidade, podendo, graças a isso, usufruir de todo o conforto e privilégio de sua posição diplomática. Vida percebera, con­tudo, que ele estava tentando sossegá‑la. Ela tinha absoluta cer­teza de que, após chegar à Hungria, ele atravessaria a fronteira fingindo ser um russo, ou usando algum outro disfarce sob o qual nem a mais astuta polícia secreta do czar o descobriria.

   Há dois meses ela começara a sentir que Sir Harvey corria perigo. Mas era impossível convencer o marquês de Salisbury de sua clarividência em relação a tudo o que acontecia com o pai.

   Vida saía do Palácio de Buckingham quando sentiu uma vibração que lhe pareceu um sinal de advertência de que seu pai estava em perigo. Ela acabara de descer as escadas da sala do trono e entrava na carruagem, quando isso aconteceu. Por um momento pensou que fosse o efeito do champanhe que tomara após ter saudado a rainha, o príncipe e a princesa de Gales.

   Mas depois percebeu que se tratava de coisa muito diferente, e assustou‑se. Era como se seu pai estivesse falando com ela. Pensando nele e concentrando‑se da maneira como ele lhe ensi­nara, ficou tão quieta e silenciosa que, enquanto a carruagem seguia pelo Mall e virava a St. James Street, a duquesa disse:

   ‑ Você está bem? Espero que não vá desmaiar. Estava muito quente e abafado na sala do trono.

   ‑ Estou bem, obrigada ‑ disse Vida, mentindo.

   Na verdade, estava desesperada, pois intuía que algo de errado se passava com o pai.

  

          Então, olhando para a escrivaninha do marquês de Salis­bury, Vida disse com firmeza:

   ‑ Tudo o que lhe peço, excelência, é que me providencie um passaporte com um nome falso que assumirei assim que esteja fora do país. Não quero ameaçá‑lo, excelência, mas, como o senhor deve saber, não é impossível obter passaportes falsos. Contudo, prefiro recorrer ao senhor a dirigir‑me a pessoas que habitualmente agem contra a lei.

   ‑ Claro que não! Seria uma tolice fazer isso!

   ‑ Então, por favor, atenda ao meu pedido, excelência.

   Como percebesse que nada do que pudesse lhe dizer a demo­veria de suas idéias, o marquês, após uma pausa, disse, re­lutante:

   ‑ Muito bem. Não posso recusar, mesmo achando que isso é uma insensatez.

   Tomou um pedaço de papel e perguntou:

   ‑ Que nome quer usar?

   ‑ Como já tivesse pensado em tudo antes de ir ao ministé­rio, Vida respondeu:

   ‑ Condessa Vida Karólzi.

   O marquês franziu a testa:

   ‑ Nome russo?

   ‑ É mais prático, e ao mesmo tempo pode passar por um nome húngaro, se se puserem os acentos nos lugares certos.

   O marquês não pôde evitar um sorriso.

   ‑ Antes que me pergunte por quê, vou explicar‑lhe que resolvi conservar meu nome de baptismo porque papai sempre me aconselhou a não mentir, quando não houver necessidade para tal ‑ continuou Vida.

   O marquês riu outra vez.

   ‑ A senhorita é incorrigível, Senhorita Anstruther, e, embora esteja me pedindo para ajudá‑la a fazer algo que desaprovo, não sei como negar‑lhe isso.

   ‑ O que não me surpreende, porque eu o faria mesmo sem a sua ajuda. Entretanto, seria muito útil se, numa emergência, eu pudesse recorrer a alguma pessoa de sua confiança para me auxiliar em caso de necessidade ‑ sugeriu Vida.

   O marquês hesitou novamente antes de escrever um nome num pedaço de papel, que lhe entregou, dizendo:

   ‑ Como digna filha de seu pai, a senhorita deve saber que a vida deste homem está nas suas mãos. Memorize o nome e destrua o papel. E prometa‑me que, só em perigo de vida, a senhora se porá em contacto com ele.

   ‑ Prometo que serei muito cuidadosa, não se preocupe.

   ‑ É só o que lhe peço. E, agora, vamos tratar de seu pas­saporte.

   O marquês tocou uma sineta, e, quando a porta se abriu, disse:

   ‑ Peça ao Sr. Tritton que venha aqui.

   O Sr. Tritton era um homem de meia‑idade e rosto preocupa­do, devido ao peso da responsabilidade dos segredos de Estado que carregava, segredos esses que nunca poderiam ser revela­dos fora do Ministério.

   O marquês entregou‑lhe o pedaço de papel em que estava escrito o nome que Vida escolhera para o passaporte, e, quando a porta se fechou após a saída dele, disse:

   ‑ É melhor a senhorita levar o passaporte agora, pois seria mais prudente não voltar aqui. Nunca se sabe quem nos espreita.

   ‑ Por certo. A única coisa que posso dizer é que lhe sou muito grata por sua cooperação, excelência ‑ disse Vida, sor­rindo.

   ‑ Cooperação dada com muita relutância!

   ‑ Sei que sua mãe era húngara ‑ ele disse. ‑ A senhorita alguma vez visitou a família dela, quando seu pai estava em Viena?

   Sacudindo a cabeça, Vida respondeu:

   ‑ Nunca tínhamos tempo, mas alguns parentes, os mais jo­vens, foram ver‑nos quando vivíamos lá.

   ‑ É verdade que a senhorita domina vários idiomas, como o seu pai?

   ‑ Ele me ensinou todas as línguas que conhece. Além disso, foi‑me muito útil ter uma avó russa.

   O marquês aprumou‑se, surpreso.

   ‑ Não fazia idéia disso.

   ‑ Vovó morreu antes de eu nascer, por isso não a conheci ‑ explicou Vida. ‑ E, sendo o russo a língua mais difícil de se aprender, com exceção talvez do chinês, considero um benefício inestimável poder dominá‑la quase como se fosse minha língua materna. Com franqueza, não a acho nada complicada.

   ‑ Realmente, trata‑se de um trunfo inestimável. Mas deixe‑me pedir‑lhe uma coisa, Senhorita Anstruther... Não cometa a insensatez de tentar ir à Rússia, a menos que seja para uma visita cordial. Como deve saber, há uma grande animosidade entre nós e o czar, e eu não estaria revelando um segredo de Estado ao lhe dizer que quase tivemos uma guerra por causa do Afeganistão. Tenho também absoluta certeza de que o czar não tem nenhum sentimento de simpatia para com os ingleses.

   ‑ Papai estava certo de que ele ficou furioso por não ter conseguido se infiltrar na índia, nem mesmo nas províncias do noroeste.

   O marquês não respondeu, e Vida concluiu que ele não achava prudente discutir esse assunto com ela. Com tacto, acres­centou:

   ‑ Há alguém que poderia ser‑me útil na Hungria. ou na fronteira, com quem eu pudesse entrar em contacto?

   Enquanto falava, lia o pensamento do marquês. e sabia que ele relutava em lhe dar mais essa informação. Ele encarou‑a, e Vida sentiu que titubeava entre confiar ou não em uma mu­lher tão jovem e inexperiente.

   ‑ Por favor, juro por tudo o que me é sagrado que papai está em perigo ‑ ela insistiu. ‑ Não esconda nada que possa ajudá‑lo!

   A sinceridade com que a jovem pronunciou essas palavras ajudou‑o a se decidir.

   ‑ Muito bem. Vou lhe dizer alguma coisa sobre um homem de vital importância, embora as informações que tenho sobre ele sejam variadas.

   ‑ Quem é ele?

   ‑ O príncipe Ivan Pavolivski. É um homem estranho, enig­mático, que talvez até seja realmente o que aparenta.

   ‑ Que quer dizer com isso?

   ‑ Como muitos russos da nobreza, ele vem à Europa oci­dental para se divertir e passa todos os anos algum tempo em Monte Cano, onde tem, como muitos nobres russos, uma vila. É muito conhecido em Paris, e esteve em Londres no ano passado.

   Vida não viu nada de estranho nisso, pois os aristocratas russos, por serem generosamente hospitaleiros e possuidores de enormes fortunas, eram bem recebidos em qualquer lugar.

   ‑ O que nos intriga no príncipe Ivan é que ninguém sabe, com certeza, a quem dedica sua lealdade.

   Vida se mostrou intrigada, e ele explicou:

   ‑ Ele tem muitos amigos na Hungria que o consideram um grande desportista e acolhem suas visitas com entusiasmo. Mas, de acordo com os relatórios que tenho recebido, ainda que insu­ficientes, é também persona grata junto ao czar, o que, no nosso ponto de vista, o torna um tanto suspeito.

   ‑ Então, o senhor não acredita que ele seja um playboy?

   ‑ Tenho absoluta certeza de que ele é bastante inteligente. Imagino, também, que esteja profundamente envolvido em polí­tica. Admito que, quando o conheci, considerei‑o um enigma. Ele pode ser apenas o que aparenta externamente, ou ser o centro das conspirações que estamos tentando prever e dos enig­mas que tentamos deslindar. Não sei mesmo.

   Vida tomou fôlego e disse:

   ‑ Obrigada. Talvez o príncipe possa dizer‑me onde papai está.

   O marquês levantou as mãos num gesto de advertência.

   ‑ Por favor, não confie nele a menos que esteja absoluta­mente certa de que possa fazê‑lo. Talvez eu não devesse ter‑lhe falado nele. Tem a reputação de ser irresistível com as mulheres. Se a senhora se deixar levar pelo seu charme, poderá inadvertidamente estar escrevendo a sentença de morte de seu pai.

   ‑ Não sou louca, nem irresponsável, excelência ‑ disse Vida com frieza ‑, e posso lhe assegurar que, depois de sua advertência, não farei nada que possa pôr em perigo a vida de meu pai, ou de qualquer outra pessoa a seu serviço.

   Ela falou com tanta seriedade que o marquês apenas res­pondeu:

   ‑ Obrigado, isso me deixa sossegado.

   Nesse momento a porta se abriu e o Sr. Tritton entrou com o passaporte. Vida colocou‑o logo na bolsa, e quando ficou a sós com o marquês, levantou‑se, dizendo:

   ‑ Só posso dizer‑lhe muito obrigada, do fundo do meu co­ração! No momento em que papai estiver a salvo, eu me comu­nicarei com o senhor.

   ‑ Seu pai saberá como fazê‑lo, sem que ninguém desconfie de nada.

   ‑ Sim, eu sei que papai conhece os códigos secretos.

   ‑ Não sei se devo aprovar, ou não o facto de Sir Harvey confiar tanto na senhora.

   ‑ Posso assegurar‑lhe que papai e eu sempre trabalhamos juntos. Sei agora que deveria ter ido com ele nessa viagem. Não posso imaginar nada que signifique tanta perda de tempo e seja tão fútil como assistir a uma recepção no salão do Palácio de Buckingharn ‑ replicou Vida, de maneira tão sarcástica que fez com que o marquês a olhasse com curiosidade.

   Ele sabia que, para muitas jovens, esse era o momento má­ximo da vida, um privilégio de que nunca se esqueceriam.

   Nesse momento, Vida Anstruther estendeu‑lhe a mão, e ele a tomou, dizendo:

   ‑ Posso apenas pedir‑lhe, minha cara, que tome cuidado. A senhorita é muito jovem e bonita para se envolver numa situa­ção tão desagradável como essa.

   ‑ Ao mesmo tempo, o senhor tem de admitir que é muito mais excitante e compensador do que comparecer a chás e aos bailes na companhia de homens fúteis, cujo único assunto são os cavalos de corrida de Ascot.

   Ela falou com desprezo, e, ao fazê‑lo, parecia tão graciosa que o marquês sorriu e disse, acompanhando‑a à porta:

   ‑ Está solapando os alicerces da vida social inglesa, Senhorita Anstruther! Cavalos e corridas são uma instituição nacional...

  

   Ao entrar na confortável carruagem que a aguardava, Vida pensava com entusiasmo que havia conseguido atingir seu obje­tivo, e poderia partir no dia seguinte para encontrar o pai. Tive­ra receio de que o marquês lhe recusasse, sem rodeios, o pas­saporte requerido. Isso a obrigaria a ir a certo lugar não muito agradável, onde havia um homem que já cumprira pena de prisão por falsificação de documentos. Ele poderia forjar um passaporte falso que nem mesmo a mais astuta autoridade pode­ria detectar.

   Essas coisas, no entanto, sempre tomam muito tempo, além de custarem bastante dinheiro.

   Vida deu um tapinha na bolsa, num gesto satisfeito, sabendo que aquele passaporte lhe permitiria não só fazer uma viagem de investigação, como também salvar o pai.

   Naturalmente, não fora ao Ministério sozinha. Sentada na carruagem, via‑se uma governanta já de certa idade, contratada pela duquesa de Dorset para acompanhá‑la, enquanto estivesse hospedada em sua casa. A duquesa, parente distante de Sir Har­vey, consentira em apresentá‑la à corte e iniciá‑la na vida social.

   Embora, na aparência, isso fosse feito em nome da amizade, Vida sabia muito bem que seu pai havia pago um bom dinheiro pelos vestidos usados por ela e pela duquesa, além de cobrir as despesas do baile que ela lhe oferecera em sua casa.

   Ele havia providenciado também os cavalos da carruagem, animais muito superiores aos da estrebaria da duquesa.

   Felizmente, Sir Harvey herdara uma fortuna considerável do pai, investindo parte dela num negócio muito bom. Dobrara suas posses nos últimos quatro anos, o que lhe permitia apo­sentar‑se quando o desejasse. Poderia levar uma vida confortá­vel no campo, dedicando‑se a seus cavalos de corrida.

   Entretanto, sempre lhe aprouvera viver perigosamente. E sua maior ambição consistia em coroar sua carreira diplomática como embaixador em Paris.

   Descobrira que não poderia permanecer inactivo, permitindo que inimigos da Grã‑Bretanha florescessem.

   ‑ Não são os soldados e marinheiros que devemos temer, querida, porque sabemos a quem eles servem ‑ dissera muitas vezes a Vida. ‑ O perigo provém das serpentes que se insi­nuam na confiança dos governantes; dos camaleões que trocam de cor conforme convém; dos lobos com pele de cordeiro que têm prazer em derramar sangue, sem incorrer em perigo.

   Falara de modo tão violento que Vida se surpreendera.

   Mas à medida que ela crescera e começara a entender as intrigas políticas dos países da Europa e da ásia, compreendeu que seu pai tinha razão em dizer que aqueles que trabalhavam dissimuladamente, em movimentos secretos, constituem uma ameaça contra a qual homens decentes e comuns estão comple­tamente desprevenidos.

   Ela sabia que o que mais motivava Sir Harvey era dar o justo castigo aos homens que minavam o poder britânico.

   ‑ Vou desmascará‑los, nem que seja a última coisa que eu faça ‑ ouvira o pai dizer.

   O que mais a surpreendera em tudo isso era que ele mesmo conseguia não despertar suspeitas ao se disfarçar perante o inimigo.

   Mas ela sempre temera que o pai algum dia fosse descoberto, e não entendia como isso ainda não acontecera. Ele rira da sua preocupação.

   Então, ela se convenceu de que ter medo tornava as pessoas vulneráveis antes mesmo de ir à luta.

   "Tenho de confiar na vitória, como papai sempre fez", pen­sou ela.

   Ao aproximar‑se da casa da duquesa, antevia a cena que inevitavelmente aconteceria, quando lhe informasse que parti­ria na próxima semana para a França.

   A duquesa, sentindo‑se insultada, ficou furiosa, e perguntou:

   ‑ Como pode se comportar de maneira tão ridícula? Você se tornou um sucesso da noite para o dia. Há trinta e quatro convites esperando por sua resposta!

   ‑ Desculpe, prima Alice, mas quando prometi aos parentes de minha mãe que passaria o verão com eles, não tinha idéia

   de que a senhora insistiria na minha permanência aqui por mais tempo.

   ‑ Você pode ir mais tarde ‑ replicou a duquesa, com voz irritada.

   ‑ Acho que seria muito rude, considerando que estão espe­rando por mim há muito tempo e fizeram preparativos para me receber. E, naturalmente, papai estará aguardando para voltar junto comigo; portanto, não retornarei só. Ele ficará muito irritado se eu o deixar esperando por mim, tendo tanto o que fazer aqui na Inglaterra ‑ inventou Vida para justificar sua atitude.

   A duquesa respondeu, zangada:

   ‑ Isso é grande desconsideração da parte de seu pai. Ele deveria ter pensado nisso antes de ir espairecer na Hungria. Pessoalmente, sei que o príncipe de Gales o admira muito. Na verdade, Sua Alteza me perguntou por ele, e quis saber quando poderá vê‑lo outra vez.

   ‑ Tenho certeza de que muito breve ‑ Vida respondeu, desejando estar certa.

   Quando finalmente se pôs a caminho da Estação Vitória, pensou com alegria que se saíra muito melhor do que poderia esperar.

   A duquesa fizera um estardalhaço por achar que ela iria viajar sozinha. Vida lhe explicou que levaria uma dama de companhia muito experiente em viagem, que estivera com ela na embaixada em Viena, além de um acompanhante de viagem da confiança de seu pai.

   Margit, a governanta, não era inglesa, mas meio austríaca e meio francesa, e uma de suas avós era grega. E, em virtude de sua ascendência, era fluente em várias línguas. Tinha mais de sessenta anos de idade, e achara Londres uma cidade triste, embora tivesse apreciado o prestígio de servir a duquesa.

   ‑ Os criados parecem todos retardados mentais! Só pensam em tomar chá e lutar pelo direito de seus lugares à mesa ‑ dissera ela em húngaro a Vida, para que eles não a enten­dessem.

   Vida rira.

   ‑ Isso é a Inglaterra para você! O protocolo aqui é muito mais severo do que em qualquer das embaixadas em que nós já vivemos.

   ‑ Já percebi. E, por ser estrangeira, eles me tratam como se eu fosse uma idiota ‑ complementara Margit com tristeza.

   ‑ Os ingleses são muito reservados ‑ observou a jovem, e Margit bufou, contrariada.

   Vida considerou uma bênção o facto de ela não se importar de empreender uma viagem tão longa, considerando‑se sua idade.

   Mas, logo que atravessaram o Canal da Mancha, Margit pare­ceu remoçar, e empreendeu a constante luta para obter o melhor carro e o melhor leito no expresso, exigindo toda a atenção que um viajante calejado espera dos atendentes.

   Como Margit estava ciosa de sua atitude protectora e cheia de dinheiro para gorjetas, Vida teve certeza de que não sofreria incómodo algum na viagem.

   Na verdade, estava tão entusiasmada quanto a governanta.

   Só depois de haverem passado pela França e Alemanha e já terem percorrido metade da Austria ela chamou Margit e o acompanhante à sua cabine, e disse com muita calma:

   ‑ Tenho alguma coisa a comunicar‑lhes, e é muito impor­tante que de agora em diante não cometamos nenhum engano. Daqui para diante não serei mais Senhorita Anstruther. Nós nos comportaremos como se nunca tivéssemos ouvido falar de Sir Harvey Anstruther nem dos parentes de mamãe.

   ‑ Está querendo dizer que não vamos mais para o castelo de sua mãe? ‑ Margit perguntou, bastante surpresa.

   ‑ Não, não vamos. De agora em diante sou a condessa Vida Karólzi, e estou a caminho de Sarospatak.

   Ao falar, percebeu que Margit e o acompanhante a ouviam com atenção. Eles tinham viajado com ela e o pai antes, e ambos sabiam que Sir Harvey muitas vezes se disfarçara. Entre­tanto, Vida nunca o fizera, e sabia que Margit a estava desa­provando, embora nada dissesse.

   ‑ Vamos viajar de trem tanto quanto possível, mas assim que chegarmos a Sarospatak, espero conseguir uma carruagem, e então lhes direi exatamente aonde iremos ‑ disse Vida, enca­rando o acompanhante, enquanto falava.

   Este último disse, com voz resignada:

   ‑ Espero, Senhorita Vida, que não faça nada perigoso. Sinto‑me responsável pela senhorita perante seu pai.

   ‑ Meu pai, infelizmente, está morto. Ele era russo, e desde que nasci, passou muitos anos na Europa, viajando de uma cidade para outra. Por ser viúvo, preferia Paris, cuja vida nocturna é muito interessante. Eu sempre quis visitar a terra de meus pais no sul da Rússia, mas só agora tive essa oportunidade.

   Ela sorriu ao notar a preocupação dos dois, e prosseguiu:

   ‑ Tenho vinte e três anos e sou viúva de um francês da alta sociedade, que morreu ao bater‑se em duelo. Estou usando o meu nome de solteira, e tento esquecer minha desventura viajando. Esse é o resumo da minha vida; acrescentarei mais alguns detalhes durante a viagem. Penso não ser importante insistir em que todos nós devemos nos ater à mesma história.

   ‑ Naturalmente, senhora ‑ disse o acompanhante em russo, o que fez Vida sorrir.

   ‑ Você está certo. Henri, falando russo, pois, como uma Karólzi, preciso praticar meu russo. Daqui por diante falaremos sempre essa língua, e você também, Margit ‑ disse Vida.

   ‑ Detesto russo, e não falo bem esse idioma ‑ Margit respondeu, de mau humor.

   Vida continuou, indiferente:

   ‑ Bem, você precisa falar melhor. Agora, Henri, troque as etiquetas da bagagem. Se os guardas estranharem esse procedimento, dê gorjetas generosas para que não abram a boca. E você, Margit, esclareça tudo com o atendente. Ele me conhece como Senhorita Anstruther, portanto, diga‑lhe que me casei secretamente com o conde Karólzi e vou me encontrar com ele na Rússia.

   ‑ Mentiras, mentiras. Só mentiras. Não sei o que sua mãe diria se soubesse o que a senhorita está fazendo ‑ Margit retrucou.

   Vida respondeu, usando lógica:

   ‑ Mas, como ela nunca poderá saber, não há razão para se preocupar sobre como ela se sentiria. Penso não ser neces­sário dizer a vocês o porquê de tudo isso. Tenho medo que alguma coisa ruim tenha acontecido a papai.

   A expressão de seus olhos, enquanto falava, fez com que ambos os empregados tivessem pena dela. Eles sabiam que Sir Harvey já devia ter voltado há semanas.

   ‑ Não se aborreça tanto. Não é bom para a senhorita, e quando encontrar seu pai se divertindo, verá que adquiriu algu­mas rugas por nada ‑ disse Margit, brincando.

   O modo como falou fez Vida sorrir e acrescentar com sua­vidade:

   ‑ Obrigada aos dois. Vocês sabem que eu não poderia fazer nada sem o auxílio de ambos, e o que importa agora é termos sucesso.

 

   Budapeste era a estação terminal do trem expresso que os trouxera da França, e o lugar onde tinham de baldear. Fora uma longa viagem, mas muito confortável.

   Pouco antes de chegar à capital da Hungria, para poder assumir seu novo nome, Vida modificou a aparência.

   Margit colocou na mala as roupas simples que ela usara na viagem. A jovem começou a usar vestimentas mais sofisticadas, cosméticos no rosto, enfim, tudo que poderia contribuir para que ela não tivesse a aparência de uma jovem inglesa.

   Naturalmente, sob o disfarce, ela ficou parecendo mais velha, mas, ao mesmo tempo, mais atraente. Sua única preocupação era comportar‑se de acordo com a nova personalidade.

   Lembrou‑se de que seu pai sempre dissera que o mais im­portante num disfarce era a pessoa que o usava se convencer do papel que representava. Só assim poderia convencer os outros.

   Eles tinham de esperar algum tempo em Budapeste antes de tomar um trem mais vagaroso, que os levaria à parte leste da Hungria.

   Havia um restaurante na estação, dividido em duas secções, uma para pessoas de maior poder aquisitivo e outra mais barata para aqueles que não podiam pagar muito por uma refeição. A secção mais exclusiva era separada da outra por samambaias e vasos de flores, e tinha toalhas brancas nas mesas e cadeiras estofadas.

  Vida foi encaminhada para a melhor mesa, e pediu uma refeição completa e uma garrafa de vinho local.

   Os garçons foram muito atenciosos.

   Havia apenas duas ou três pessoas comendo na mesma sala, cheia de mesas disponíveis. Por isso Vida se surpreendeu muito quando um homem bem‑vestido aproximou‑se dela e disse:

   ‑ Espero, madame, poder sentar‑me à sua mesa.

   Ela olhou‑o e notou que ele tinha a aparência de um cava­lheiro. Apesar disso, havia nele qualquer coisa de estranho.

   Depois de uma pequena pausa, ela respondeu:

   ‑ Não posso, é claro, impedi‑lo de sentar‑se onde desejar, mas, na verdade, apreciaria poder comer sozinha.

   ‑ Não acredito ‑ disse ele e com um ar de conquistador, puxou uma cadeira e sentou‑se ao lado dela. ‑ A senhora vai perdoar a minha curiosidade, mas não parece húngara. Estou tentando adivinhar sua nacionalidade ‑ ele disse depois de algum tempo.

   ‑ Não sei por que diz isso ‑ respondeu Vida.

   Conversavam na língua do país, mas ela achava que o homem não parecia húngaro: havia nele qualquer coisa que não condi­zia com os húngaros que ela havia conhecido quando estivera em Viena, com o pai.

   ‑ Eu a vi desembarcar do trem expresso que acabou de chegar, e, por ser tão elegante, achei que tinha vindo de Paris.

   ‑ Vida agradeceu o elogio com a cabeça, mas não deu resposta, e ele continuou: ‑ Penso que deva me apresentar. Sou Vladímir Demidovski.

   Exatamente como havia pensado. Pelo seu comportamento, ela podia garantir que se tratava de um dos muitos agentes rus­sos que interrogavam pessoas que julgassem suspeitas, em qual­quer dos países balcânicos.

   Ela continuou a comer, e Vladímir Demidovski disse, após alguns segundos:

   ‑ Agora que já me apresentei, a senhora não gostaria de fazer o mesmo?

   Falou num tom persuasivo, e Vida achou que ele estava deliberadamente tentando cativá‑la.

   Contudo, a jovem suspeitara de sua atitude assim que o vira, e convenceu‑se mais uma vez de que seu instinto a estava aju­dando e de que deveria tomar muito cuidado.

   ‑ Desculpe, monsieur, mas acabei de chegar de Paris. A viagem deixou‑me exausta, e não estou em condições de ser uma companhia agradável.

   Era uma boa resposta, e Vida percebeu que ele ficara irritado, pois ajeitou‑se na cadeira de maneira um tanto exasperada.

   Então, chamou o garçom e pediu uma garrafa de vinho.

   ‑ Talvez eu possa ajudá‑la a sentir‑se melhor, se lhe ofere­cer um vinho que é a especialidade local. Tenho certeza de que o achará delicioso ‑ disse ele, procurando ser gentil.

   ‑ Muito obrigada, mas já tomei vinho. Se beber mais, fica­rei com dor de cabeça.

   Vladímir se aborreceu com a sua atitude, e ela imaginou, divertida, que talvez fosse a primeira vez que uma mulher boni­ta o recusasse.

   Continuaram em silêncio por alguns minutos, e depois ele disse:

   ‑ Se a senhora não conhece a Hungria, tenho certeza de que poderei ajudá‑la, indicando‑lhe o que deve ver e apresen­tando‑a a algumas pessoas da sociedade.

   ‑ O senhor é muito amável, mas vou visitar amigos que, com certeza, farão isso por mim.

   Ela chamou o garçom, pagou a conta, deixando uma boa gorjeta, e levantou‑se. Vladímir fez o mesmo, dizendo:

   ‑ Por favor, madame, não me deixe dessa forma, sem me dizer onde vai ficar. Entristece‑me pensar que não a verei nunca mais.

   ‑ O senhor é muito lisonjeiro, monsieur, mas estou certa de que há muitas mulheres bonitas em Budapeste que ficariam felizes se tivessem uma chance de consolá‑lo.

   Sorriu para compensar sua maldade e saiu, sabendo que ele a acompanhava com o olhar.

   Vida estava certa de que Vladímir ficara frustrado e aborreci­do por não ter conseguido descobrir nada a seu respeito.

   Henri e Margit já tinham acabado de comer na outra secção do restaurante, e esperavam por ela.

   ‑ Quem era aquele homem que falava com a senhorita? ‑ perguntou Margit discretamente, para que ninguém a ouvisse.

   ‑ Um agente russo ‑ respondeu Vida.

   Os dois ficaram muito assustados.

   ‑ Como pode saber? ‑ indagou Henri.

   ‑ Ele tentou conquistar‑me para ver se descobria minha identidade, mas não deixei escapar nada. Tenho a impressão de que se trata de uma pessoa suspeita.

   ‑ Por que haveria de sê‑lo? ‑ Margit perguntou, em tom hostil.

   ‑ E os agentes russos não o são, por acaso? Mas de uma coisa estou certa.

   ‑ De quê?

   ‑ Seria um erro irmos para um hotel em Sarospatak, como eu havia planejado.

   ‑ Eu a preveni de que nenhum hotel nessa parte do país seria confortável ‑ disse Henri.

   ‑ Tem razão; por isso, aproveitaremos a tradicional hospi­talidade dos húngaros.

   ‑ Quer dizer que vamos ao castelo?

   ‑ Exactamente. Você precisa investigar quem está morando lá agora. Devem conhecer de nome a família de mamãe, mesmo que não tenham amizade com meus primos.

   ‑ Pensei que não fosse dizer que sua mãe era uma Rákoczi ‑ disse Margit.

   ‑ Direi que tenho uma relação remota com a família, que, aliás, é muito grande. Há centenas deles espalhados por toda a Hungria, e podem nos ser úteis...

   Dirigiram‑se então à estação de trem, e Vida ficou andando pela plataforma até a chegada do trem que os levaria para o leste da Hungria.

   Não era um trem tão confortável como o que os havia trazido de Paris, mas as cabines eram limpíssimas.

   O atendente era muito amável, sorridente e ansioso por agradar, principalmente depois que Margit lhe dera uma boa gorjeta.

   Vida estava consciente de que o russo que tinha falado com ela no restaurante a observava ao tomar o trem, e tinha certeza de que ele notara as etiquetas das malas.

   Ela, contudo, fingiu não o ter visto, e ficou muito contente quando o comboio partiu, deixando‑o para trás.

   Por ser modelo antigo, o trem não tinha carro‑restaurante, parando a cada duas ou três horas em alguma aldeia, em cuja estação houvesse restaurante.

   Esse procedimento, é claro, tornava a viagem mais demorada, e eles só chegaram a Sarospatak depois de dois dias.

   A aldeia ficava no limite da fronteira e em frente aos montes Zemplen.

   Durante a viagem, Vida tentara lembrar o que sua mãe lhe havia contado sobre o antigo castelo, construído em 1207.

   Por sentir‑se muito saudosa de seu país, ela ensinara à filha, desde tenra idade, a história da Hungria.

   Vida aprendera que o príncipe Aspad, líder de sete tribos de cavaleiros húngaros, havia descido até a bacia hidrográfica, formada pelas vertentes dos montes Cárpatos, à procura de uma terra rica em vegetação e água.

   A mãe contou‑lhe, também, como toda a terra ao sul do Danúbio tinha sido conquistada pelos romanos, e com a queda do império, os eslavos, os longobardos e os hunos usurparam essas terras e se estabeleceram por lá.

   Relatou‑lhe também todas as superstições e as lendas sobre os deuses pagãos. Eles honravam o fogo, o ar e a água como sagrados, e cantavam hinos de louvor à terra. Adoravam um deus chamado Isten, a quem sacrificavam cavalos, bois e car­neiros e, ocasionalmente, até seres humanos.

   Pelo facto de ter uma parte de sangue húngaro, Vida se sentiu motivada a continuar seus estudos de história da Hungria.

   Como o pai também estivesse muito interessado na história dos povos balcânicos, juntos estudaram e procuraram enten­der todas as diferentes nacionalidades que o haviam formado, cada uma com suas crenças, suas ambições e seus inimigos.

   Vida estava ciente de que seu próprio antepassado, Rákoczi, fora uma das grandes figuras românticas da história húngara. Seu castelo e as propriedades de Sarospatak tinham sido con­fiscados quando ele fora exilado, e posteriormente alugados a vários nobres da corte imperial.

   Não foi difícil descobrir, através do atendente do trem, a quem pertencia o castelo agora.

   Era propriedade da família Bartik. Vida imaginou que eles devessem conhecer outras grandes famílias da Hungria que também não gostassem dos austríacos e dos russos.

   Desde tempos imemoriais, era considerado de mau agouro recusar hospedagem a qualquer viajante que a pedisse, não im­porta em que circunstâncias.

   Ao desembarcarem, alugaram uma carruagem. Depois de um breve percurso, chegaram ao castelo. Belo, imponente, era grande o bastante para abrigar um regimento.

   Majestoso, com aspecto bem húngaro, tinha um encanto difí­cil de definir em palavras.

   Os criados que vieram à porta eram velhos, mas fortes, e usavam magníficas librés.

   Quando Vida perguntou se poderia ver o conde Bartik, foi levada por longos corredores. Através das janelas envidraçadas, viam‑se jardins ornamentais que se estendiam até o estreito e escuro rio Bogrog, cuja correnteza era tão lenta que o fazia parecer um lago.

   O conde e a condessa Bartik cumprimentaram‑na alegre­mente, e, quando ela pediu hospitalidade por uma noite, eles concordaram, sem manifestar nenhuma surpresa pelo pedido.

   ‑ Ouvi falar dos senhores ‑ Vida disse com voz suave ‑ por intermédio de meus parentes, os Rákoczi.

   A condessa deu um grito de alegria.

   ‑ É parente dos Rákoczi? Que maravilha! São velhos ami­gos meus e de meu marido, mas, como vivemos num lugar afas­tado, não os vemos há muito tempo. Imagino que os membros mais jovens da família nos julguem velhos e pouco interessantes.

   ‑ Não sou parente próxima ‑ disse Vida depressa, temendo que eles esperassem que ela soubesse mais sobre os Rákoczi ‑,     mas tenho muito orgulho de meu sangue húngaro.

   ‑ Claro que deve ter, querida ‑ respondeu a condessa, como se fosse impossível alguém sentir o contrário.

   Deram a Vida um quarto encantador, com vista para o jardim, e Margit disse, quando ficaram sozinhas:

   ‑ A senhorita vai ter muito conforto aqui, e, se tiver juízo, ficará o maior tempo possível.

   Vida sacudiu a cabeça.

   ‑ Você sabe que temos de ir à Rússia. Não estamos numa viagem de recreio, Margit!

   A velha empregada suspirou e não discutiu. Ajudou Vida a se preparar para jantar com os condes, vestindo‑lhe traje bonito, mas simples.

   Quando Vida desceu para o jantar, pensou que talvez pudes­se seguir o conselho de Margit e ficar mais algum tempo no castelo, a fim de conhecer a parte leste da Hungria, como sempre desejara.

   Mas ela sabia, por instinto, que era muito urgente procurar o pai, e isso não podia ser adiado.

   Sentia, de uma forma inexplicável, que o tempo estava se escoando, e que tinha de agir rápido.

   "É como procurar agulha em palheiro", pensou, com deses­pero. "A Rússia é um país tão grande!"

   É verdade que o marquês lhe havia dito que o príncipe Ivan poderia ajudá‑la, mas ele também poderia impedi‑la de encon­trar o pai.

   "Preciso usar de muita habilidade em tudo isso", pensou.

   Quando, após uma agradável noite com o conde e a condessa, ela foi dormir, orou com fervor e um certo desespero para não falhar em seu intento.

   Havia sido tão encantadora com seus anfitriões que eles lhe suplicaram que ficasse mais e adiasse sua viagem à Rússia.

   Vida agradeceu‑lhes, mas disse que era imperativo chegar ao seu destino o mais depressa possível.

   Fora bastante hábil na noite anterior na tentativa de obter uma ligeira informação sobre o príncipe Ivan Pavolivski.

   ‑ Eu o acho um homem muito agradável, mas meu marido não gosta de russos, e não faria uma excepção a ele ‑ comentou a condessa.

   ‑ Ele é rico e poderoso demais para meu gosto!   explicou o          conde.

   ‑ Poderoso em que sentido? ‑ quis saber Vida.

   ‑ Ele é proprietário de enormes glebas de terra, é consider­ado fabulosamente rico e...

   O conde fez uma pausa.

   ‑ Continue, por favor.

   ‑ Ia dizer que me parece estranho o facto de ele ser tão importante na própria Rússia.

   ‑ Que quer dizer com isso? ‑ indagou Vida, interessada.

   ‑ É difícil de explicar ‑ replicou o conde. ‑ Pavolivski descende de uma família tradicional, mas não há nada de espe­cial na sua história. No entanto, o príncipe parece ter uma influência desproporcional à sua origem e a seu título, tanto em São Petersburgo como aqui.

   A condessa riu.

   ‑ Temo que meu marido suspeite de cada russo. O príncipe cuida muito bem de suas propriedades, e disseram‑me que é mais bondoso para com os servos do que muitos nobres.

   ‑ Pensei que não houvesse mais servos lá desde o governo de Alexandre II ‑ disse Vida.

   ‑ Ostensivamente, não, mas eles têm de trabalhar para viver e ganhar dinheiro para comer, e infelizmente alguns pro­prietários de terras os tratam com ignomínia ‑ replicou a condessa.

   ‑ Há muita coisa vergonhosa na Rússia, a começar pelo próprio czar ‑ disse o conde em tom severo.

   A condessa olhou nervosa para todos os lados, e recomendou:

   ‑ Cuidado, meu caro, as paredes têm ouvidos, e você sabe muito bem que a polícia secreta está em toda a parte.

   ‑ Deveríamos ser livres para falar em nosso próprio país ‑ murmurou o conde.

   ‑ Realmente! ‑ concordou sua esposa. ‑ Mas, ao mesmo tempo, às vezes acontecem coisas inexplicáveis ao nosso povo, e vivemos perto da fronteira.

   Percebendo que ela estava assustada com a conversa, Vida não insistiu mais.

   Mas, ao partir na manhã seguinte, pensou ser muito triste alguém sentir medo dos vizinhos, estando na sua casa e no seu país.

   Ao chegar ao castelo, Vida instruíra Henri para que com­prasse os melhores cavalos e uma carruagem, que os levaria, atravessando a fronteira, ao castelo do príncipe, que ficava a apenas vinte e cinco milhas dali.

   Henri fora sensato o suficiente para consultar o chefe da cavalariça do conde,. e, com o auxílio dele, comprou um mag­nífico par de animais, exatamente como Vida desejava.

   A carruagem era um tanto obsoleta, mas tinha bom molejo e uma capota conversível.

   Mas não foi fácil atravessar as montanhas. A entrada do desfiladeiro era acidentada e pedregosa, e foi só quando che­garam à Rússia e alcançaram a planície que puderam fazer maior progresso.

  

          E, após muitas horas de viagem, viram o Castelo Pavolivski, cercado por uma floresta e tendo à frente um grande lago.

   Era de uma arquitectura incrivelmente rebuscada, e parecia muito mais novo, ou conservado, do que o outro que haviam deixado.

   Suas torres e suas cúpulas resplandeciam ao sol da tarde, e parecia a Vida que milhares de janelas brilhavam como dia­mantes num imenso espaço verde.

   Tinha, na verdade, um aspecto de conto de fadas, e parecia quase irreal.

   Contudo, era tão lindo que a encheu de ânimo, fazendo diminuir um pouco sua preocupação com a situação do pai.

   "Tenho certeza de que o príncipe me ajudará", pensou ela consigo mesma, apesar de não poder estar segura de nada.

   Passaram sob altos arcos e por um enorme portão que ante­cedia o pátio.

   Um majestoso lance de escadas de pedra os levou a uma impressionante porta de entrada, com pilares, urnas e lindas estátuas esculpidas, algo assustadoras, não obstante sua beleza.

   Henri apeou para perguntar se Sua Alteza receberia a con­dessa Karólzi. Esperaram algum tempo até que o empregado, elegante em sua libré cor de vinho ornamentada de alarmares dourados, voltou para dizer:

   ‑ Sua Alteza receberá a condessa.

   Na última paragem, Vida se demorara algum tempo para re­compor a aparência.

   Escurecera ainda mais os já escuros e longos cujos, usara um creme rosado nos lábios e empoara o nariz rectilíneo. Um chapéu de plumas dava‑lhe um aspecto um tanto teatral.

   Seu cabelo não era do tom vermelho chama tão frequentemente associado às mulheres da Hungria, mas possuía o matiz castanho‑avermelhado que as vienenses reivindicavam como de sua raça, e que era, na realidade, de origem húngara.

   Além disso, sua pele era de uma qualidade rara, tão branca que chegava a parecer translúcida como as pérolas.

   ‑ Precisamos ser muito cuidadosos em tudo o que fizermos ‑ dissera Vida a Margit e Henri, pouco antes de chegarem. Subiu com dignidade as escadarias da porta principal.

   O empregado saudou‑a e acompanhou‑a pelo castelo luxuo­samente mobiliado, com tesouros que ela nunca imaginara en­contrar, nem mesmo na Rússia.

   Um olhar rápido fê‑la perceber que todos os quadros eram de pintores famosos. Mas o que mais a impressionou foram as lareiras de mármore esculpido, os tetos pintados, as tapeçarias das paredes e, onde não havia tapeçaria, brocado aplicado em madeiras de todos os tipos.

   Andaram por algum tempo sobre tapetes persas, até que o lacaio, que seguia na frente, abriu uma grande porta.

   Entrando numa sala com janelas que iam quase até o teto, a jovem viu, em pé, no fundo da sala, ao lado de uma lareira de beleza inigualável, o príncipe.

   Tudo o que ouvira contar sobre ele a tinha preparado para encontrar uma pessoa de personalidade marcante, mas, quando o viu, notou que era não somente mais jovem do que havia imaginado, como também muito mais atraente.

   Seu cabelo escuro, penteado para trás, deixava a descoberto uma testa ampla; os traços aristocráticos eram normais numa pessoa de sua estirpe, mas sua expressão era diferente da de qualquer outro homem que já conhecera.

   Seus olhos negros pareceram penetrar em Vida quando ela o fitou.

   Estava vestido de maneira impecável. Ao mesmo tempo, era de uma masculinidade irresistível, e de físico bem forte.

   Quando Vida aproximou‑se dele, percebeu que o príncipe a olhava com uma ligeira expressão de surpresa.

   ‑ Espero, Alteza, que me perdoe por incomodá‑lo ‑ disse em francês ‑, mas venho invocar a velha tradição de hospita­lidade que existe na Hungria e, espero, na Rússia, pedindo tecto por uma noite.

   ‑ Meu castelo está à sua disposição, mas estou curioso em saber por que está aqui e para onde vai.

   ‑ É mais simples do que parece. Estou a caminho de Odessa. Passei a última noite no Castelo de Sarospatak. ‑ Vida sorriu e acrescentou: ‑ Infelizmente atrasei‑me um pouco, e o facto de a estrada pelas montanhas ser muito mais difícil do que esperava, impede‑me de chegar à minha próxima paragem para pernoitar, antes que fique muito tarde e muito escuro para en­contrar o caminho.

   ‑ Entendo. A estrada pelas montanhas é sempre uma sur­presa, e as quedas de rochas a fazem com frequência intrans­ponível ‑ concordou o príncipe.

   ‑ Meus cavalos estão cansados, e eu também.

   ‑ Podemos remediar isso, condessa ‑ disse ele, tocando a seguir uma sineta.

   Na mesma hora a porta se abriu e um serviçal entrou.

   O príncipe, falando rapidamente na sua língua, deu instru­ções para que os cavalos da condessa fossem levados à estre­baria, e a bagagem dela ao quarto. Pediu também uma garrafa de champanhe.

   Enquanto ele falava, Vida atravessou a sala e olhou pela janela.

   Não a surpreendeu ver um lindo jardim planeado de ma­neira semelhante à dos jardins de Châteaux, na França.

   Havia nele um grande chafariz de pedra jorrando suas águas iridescentes para o céu, e muitas estátuas de mármore.

   Quando o príncipe terminou de dar suas ordens, juntou‑se a ela.

   ‑ Seu castelo parece ter saído de um conto de fadas!

  ‑ Está às suas ordens, condessa. Agora sente‑se e conte‑me por que está viajando sozinha pela Rússia, o que me parece uma loucura.

   ‑ Sou capaz de cuidar de mim mesma, e, na verdade, não tenho ninguém que me possa acompanhar desde que meu marido morreu.

   ‑ É viúva? Tão jovem...

   ‑ Sim, mas voltei a usar meu nome de solteira, o que me ajuda a não me sentir muito infeliz.

   Falou, esperando ter posto um tom triste na voz e sem olhar para o príncipe, embora sentisse que ele a observava.

   ‑ Conte‑me algo mais. A senhora não pode ter se materia­lizado de repente, vindo da Hungria como se fosse Afrodite erguendo‑se da espuma.

   ‑ Na verdade, vim de Paris ‑ Vida sorriu.

   ‑ E a senhora é russa?

   Vida fez um gesto com as mãos e disse:

   ‑ Em parte, mas também tenho sangue húngaro nas veias.

   ‑ Uma mistura muito curiosa. Eu também tenho uma mis­tura de sangue nas veias.

   ‑ Verdade?

   ‑ Sim, minha mãe era meio inglesa e meio francesa.

   Vida arregalou os olhos com surpresa. Ninguém lhe dissera isso, e ela o imaginara cem por cento russo.

   "Talvez seja essa a razão", pensou ela, "pela qual, além de sua paixão pelo jogo, ele vai a Monte Carlo todos os anos. Também já visitou a Inglaterra

   ‑ Em que país o senhor se sente mais em casa?

   ‑ Acho difícil responder a essa pergunta, e penso que seja bastante simbólico o facto de eu morar na fronteira, apesar de ter um nome e um lar russos.

   A resposta evasiva frustrou suas expectativas de descobrir algo mais, o que a fez rir e dizer:

   ‑ Não posso imaginá‑lo com outra nacionalidade que não seja a russa.

   ‑ Por quê?

   ‑ Por tudo o que soube do senhor.

   ‑ Agora a senhora me intriga. O que soube de mim?

   Vida sorriu.

   ‑ Que é muito poderoso, temido por muita gente e adulado pelo sexo oposto.

   O príncipe riu e disse:

   ‑ Sinto‑me lisonjeado, condessa, por ter provocado o seu interesse. Só gostaria de saber se lhe informaram a verdade.

   ‑ Espero que sim, porque isso faz com que fique muito mais... interessante conhecê‑lo.

   Ela fez uma pausa antes da palavra "interessante", porque estava a ponto de dizer "emocionante», mas achou que seria muita ousadia.

   Por um piscar de olhos do príncipe, Vida percebeu que ele lera seus pensamentos, adivinhando o que ela estivera prestes a dizer.

   Nesse instante, alguns criados entraram com champanhe e caviar, e depois de ter bebido um pouco, Vida disse:

   ‑ Já que tive a honra de ser convidada para jantar com Vossa Alteza, penso que seria uma boa idéia trocar minhas empoeiradas roupas de viagem.

   ‑ Não me parecem empoeiradas ‑ respondeu o príncipe ‑, mas talvez a senhora queira descansar um pouco. Não há pressa, pois dormimos tarde, e não gostaria que se retirasse cedo demais.

   ‑ Isso depende da extensão de minha viagem amanhã.

   ‑ A senhora não pode partir amanhã. Primeiro, seria cruel para os cavalos, e segundo, para mim.

   ‑ Preciso pensar sobre isso ‑ Vida replicou sem mostrar muito interesse.

   Quando deixou o príncipe, pensou que certamente estava fazendo progressos em seu plano.

   Estava no castelo, encontrara o príncipe e já tinha sido convidada a ficar mais tempo do que o exigido pelas leis da hospitalidade.

   Margit a aguardava no quarto, suntuoso como o resto do palácio.

   A cama ficava num nicho, com cortinas de seda que desciam de um trabalhado dossel colocado quase no teto. Havia tapetes brancos de pele de urso de cada lado da cama e por todo o quarto.

   Os móveis eram estilo Luís XIV, e as telas, de Fragonard. Era tudo lindíssimo e ao mesmo tempo majestoso, e, enquan­to Vida olhava ao redor, Margit disse:

   ‑ Este lugar não pode ser real. Se eu de repente acordar e perceber que estive sonhando, não me surpreenderei.

   Vida riu e concordou.

   ‑ É o que sinto também.

   Margit estava tirando da mala os vestidos e colocando‑os no armário. Ao fazer isso, perguntou:

   ‑ Que vai usar hoje à noite? Sei que haverá uma grande festa.

   ‑ Uma festa!? ‑ exclamou Vida, surpresa.

   Tendo encontrado o príncipe sozinho, imaginara que jan­tariam sem nenhuma companhia, num delicioso tête‑à‑tête.

   ‑ O mordomo me disse que há sempre de vinte a trinta pessoas hospedadas na casa de Sua Alteza, e que raramente vão dormir antes da madrugada ‑ explicou Margit.

   ‑ Nesse caso, vou deitar‑me e descansar. Quero estar bem alerta hoje à noite.

‑ Estou de pleno acordo ‑ concordou Margit prontamente.

Ajudou Vida a se despir, fechou as cortinas pata impedir que a claridade a perturbasse e saiu do quarto.

   Eram mais de nove horas quando Vida desceu para jantar, usando uma das roupas muito trabalhadas e um tanto teatrais que havia comprado especialmente para essa visita.

   Pensara que, sendo o castelo do príncipe tão isolado, não haveria competição alguma.

   Mas agora via como fora tola por não ter previsto que, com sua reputação, o príncipe devia entreter‑se em todas as horas do dia e da noite, não tendo sequer um momento de tédio.

   Em Monte Cano, ele organizava festas como as que os grão‑duques davam em suas vidas, com bailes, jogos e profusão de mulheres bonitas. Fora ingénua ao pensar que ele se compor­taria de outro modo na Rússia.

   Vida escolhera o vestido mais sofisticado dentre os que havia comprado. Brilhava ao menor movimento que fizesse, tornan­do‑a ainda mais sedutora.

   Depois de pronta, ela começara a ficar preocupada, pensan­do que talvez fosse mais prudente comportar‑se como uma jovem inexperiente que necessitasse da protecção de um homem forte.

   Agora, porém, era tarde demais. Estava pronta para o papel que iria representar, e não havia caminho de volta.

   Seu vestido verde, bastante decotado, com babados em volta da bainha, era uma moldura perfeita para os cabelos averme­lhados e a pele branca.

   Usava um colar de esmeraldas que fora de sua mãe e, na cabeça, uma tiara com as mesmas pedras.

   ‑ Vestida desse modo, a senhorita aparenta mais idade ‑ disse Margit quando acabou de prepará‑la ‑, e espero que saiba o que está fazendo. Poderá envolver‑se em problemas sérios, se não for cuidadosa.

   A recomendação era tão típica de Margit que Vida riu:

   ‑ Você não é muito animadora!

   ‑ Bem, não vou interferir, mas tome cuidado em tudo o que se refere ao príncipe. Tenho ouvido muitas coisas sobre ele, e Henri me disse que se fala muito sobre seu "harém"!

   Vida prendeu a respiração, e disse a si mesma que o facto de o príncipe ser mulherengo tornava seu trabalho ainda mais fácil. Nada lhe importava, a não ser saber onde estava o pai e conseguir ajuda.

   Mas, enquanto seguia o serviçal que a escoltava ao salão onde iriam jantar, seu coração batia mais forte e seu nervosismo era quase incontrolável.

   Então, ergueu a cabeça para criar coragem.

   "Por que devo ter receio?", ela se perguntou. "Se ele não me puder informar o que quero saber, sairei daqui o mais depressa possível!"

   O que a horrorizava nesse caso era que não tinha a mínima idéia sobre o que fazer em seguida, e, quando chegou à porta do salão, seus pensamentos se dirigiram ao pai.

   "Ajude‑me, papai! Ajude‑me!", ela disse baixinho. "Não posso manobrar tudo isto sem você. Você precisa me ajudar!"

 

   Quando desceu as escadas, Vida foi acompanhada no hall por um lacaio. Ouviu risadas e vozes vindas do salão, antes mesmo que a porta se abrisse. Assim que entrou, encantou‑se com a beleza e a elegância dos hóspedes do príncipe.

   Todos falavam francês, como ela esperava, e não se podia imaginar que qualquer das senhoras presentes estivesse vestida por um costureiro que não fosse de Paris.

   Seu pai comentara muitas vezes como a corte russa presti­giava a França, não somente falando sua língua mas também dando professores franceses a seus filhos.

   Todos os nobres viviam em função de Paris, como se aquela cidade fosse um paraíso especial criado para eles.

   Era óbvio que Worth havia vestido as lindas mulheres que rodeavam o príncipe, e Vida ficou contente por seu vestido, que antes lhe parecera um pouco exagerado, não ser deselegante nesse cenário altamente competitivo.

   Enquanto se adiantava pelo salão, sob os enormes lustres de cristal, o príncipe dirigiu‑se a ela, magnífico e irresistível em suas roupas de gala.

   Beijou‑lhe as mãos, e, admirando com o olhar as esmeraldas de seus cabelos e do colar, disse:

   ‑ Meus hóspedes estão ansiosos por conhecê‑la, condessa, e não é necessário dizer‑lhe que está encantadora.

   Vida já esperava pelo cumprimento, mas, em francês, esse elogio teve uma suavidade que ela sentiu ser mais cortês que pessoal.

   Ela fitou‑o, sorrindo provocadoramente.

   Quando seus olhos se encontraram, teve um certo receio de que, com sua percepção, o príncipe pudesse concluir que ela não passava de uma farsante.

   Apesar disso, estava contente por conhecer os amigos dele, receber elogios dos cavalheiros e olhares invejosos das senhoras.

   O príncipe explicou aos convivas como ela achara difícil a passagem pelas montanhas e, em consequência, a razão de a viagem ter levado mais tempo que o esperado.

   Em meio a exclamações de compaixão, Vida teve a incómoda sensação de que o príncipe estava bem ciente de que ela plane­ara ficar no castelo e de que nada houvera de acidental em seu encontro.

   Mas depois, convenceu‑se de que não necessitava ficar tão apreensiva, pois não havia motivo para pensar que ele pudesse ter dúvidas quanto à pessoa que representava ser.

   Pelo facto de ela ser uma hóspede recém‑chegada, o príncipe anunciou que a acompanharia à mesa.

   Dirigiram‑se à sala de jantar, majestosa e bem decorada, e Vida foi colocada à mesa ao lado direito do anfitrião, mesmo havendo na recepção grande número de senhoras de categoria social mais elevada que a sua.

   Ninguém lhe perguntou nada de embaraçoso, até que o cava­lheiro ao lado indagou:

   ‑ Não posso me lembrar de ter conhecido alguém com o nome Karólzi. De onde vem sua família?

   ‑ Sinto muito dizer‑lhe que há poucos representantes de minha família actualmente. Eles viviam no Cáucaso, perto da fronteira com a Geórgia. Meu pai me dizia que era uma região muito bonita, mas, infelizmente, não pude conhecer o lugar onde meus antepassados foram tão influentes.

   O cavalheiro respondeu:

   ‑ É uma triste situação, comum entre muitos russos. Seu pai preferiu viver na Europa ocidental?

   ‑ Ele gostava de viajar, e, quando não o fazia, o senhor não se surpreenderá de ouvir que preferia as delícias da vida de Paris.

   ‑ Um lugar de que também gosto muito, e onde a maioria de meus amigos encontra tudo o que um homem possa desejar.

   Vida olhou para as senhoras sentadas à mesa e concluiu nunca ter visto, em conjunto, em nenhum lugar do mundo, tanta beleza.

   Como se adivinhasse o que ela pensava, o príncipe, que esta­va à sua esquerda, comentou:

   ‑ Como vê, sou um grande conhecedor tanto da beleza atual como de antiguidades.

   Vida respondeu, prontamente:

   ‑ Essa é a sua reputação, e o senhor certamente a confirma. Já que é tão amável, permitindo minha estada até amanhã, espero poder ver seus tesouros.

   ‑ Já estou antecipando o prazer de mostrá‑los, mas acho que seria interessante fazermos um piquenique num agradável local de minha propriedade que, penso, é o mais lindo de toda a Rússia.

   ‑ É‑me difícil recusar o convite ‑ ela respondeu, sorrindo.

   ‑ E eu não o permitiria.

   Vida sentiu que o príncipe estava tentando dominá‑la, e convenceu‑se de que deveria ser muito, muito cuidadosa.

   A comida e o vinho servidos à mesa eram tão bons como os melhores que havia experimentado em Paris.

   Quando terminou a refeição, foram para uma outra sala, que não era a mesma onde se haviam reunido antes do jantar.

   Havia uma pista para dançar no centro, e uma orquestra de cordas tocava uma música suave e romântica, que convidava a valsar.

   Sem mesmo lhe perguntar, o príncipe deu‑lhe o braço, con­duzindo‑a ao lugar destinado ao baile.

   Então, quando começaram a dançar, a melodia, antes deli­cada e sedutora, transformou‑se num convite ao amor, ao qual era impossível resistir.

   Vida parecia estar rodeada de flores, e chegava a sentir seu aroma, a tal ponto a imaginação a empolgava, fazendo‑a sen­tir‑se como se estivesse vivendo num conto de fadas.

   Ela era a princesa acompanhada do Príncipe Encantado, no País das Maravilhas, onde nada de desagradável poderia acon­tecer.

   Como o príncipe também sentisse o mesmo, embora ela não o soubesse, ele puxou‑a mais para perto de si, e dançaram em silêncio, como se qualquer conversa pudesse interromper a magia do sonho que viviam.

   Quando terminaram de dançar, ele a levou a um jardim de inverno, contíguo ao salão de baile.

   Estava cheio de flores exóticas, todas iluminadas de uma maneira surpreendente, que seu pai lhe descrevera como peculiar ao Palácio de Inverno de São Petersburgo.

   Havia lâmpadas atrás das folhas das orquídeas e dos lírios, o que as fazia parecer transparentes; luzes iluminavam flores que cresciam no chão e pendiam do teto.

   Tudo parecia tão viçoso e encantador, que fez Vida sentir‑se outra vez como se vivesse um conto de fadas.

   Olhando as flores, bateu palmas e disse:

   ‑ É tão lindo que acho que só pode ser um sonho.

   ‑ Como a senhora o é! ‑ sussurrou o príncipe. ‑ Só temo que desapareça da mesma maneira incrível como surgiu.

   ‑ Não o farei, até ver tudo neste castelo mágico!

   ‑ Obrigado. E agora, venha ouvir um pouco da música de nossos vizinhos. Vai apreciá‑la.

   A orquestra de cordas tinha sido substituída por um con­junto musical cigano da Hungria.

   O conjunto era muito colorido, com as mulheres de saias vermelhas rodadas e corpetes de veludo, e os homens de faixas brilhantes, que prendiam armas cravejadas de pedras preciosas.

   Vida sempre soubera que os russos apreciavam música cigana, e eram, de facto, os mais generosos com os ciganos.

   Percebeu logo que eles eram particularmente talentosos não só na música como na dança, e sabia que as mulheres poderiam com­petir com qualquer bailarina, por mais famosa que pudesse ser.

   A animação da festa cresceu com as melodias ciganas. A dança ficou selvagem, e o coração de Vida começou a bater tão depressa, que ela sentiu uma emoção incontrolável.

   Apesar de tê‑la deixado dançar com dois ou três outros cavalheiros, o príncipe, praticamente, a monopolizara.

   Vida tentou ignorar os olhares irritados de uma senhora em especial, muito bonita e charmosa.

   Foi apenas quando o príncipe a levou mais uma vez ao jardim de inverno, para apreciar as flores iluminadas, que aquela senho­ra os seguiu e exclamou:

   ‑ Pretende me abandonar por toda a noite, Ivan? Não posso entender como pode ser tão cruel, quando vim de tão longe só para vê‑lo.

   ‑ Desculpe, Eudóxia, se pareço negligente ‑ respondeu o príncipe alegremente ‑, mas não posso permitir que uma nova convidada que não conhece ninguém na festa se sinta aban­donada.

   A princesa Eudóxia lançou um olhar de despeito a Vida, que imediatamente disse ao príncipe:

   ‑ Acontece, Alteza, que eu estava a ponto de lhe pedir que me desculpasse, pois preciso me retirar. Tive um dia longo e exaustivo, e mal consigo manter os olhos abertos.

   ‑ Nesse caso, devo tentar não insistir para que fique. Ade­mais, há sempre um amanhã ‑ respondeu o príncipe.

   ‑ Claro. Estou antecipando o prazer do piquenique.

   Ele a acompanhou ao pé da escada, e tomando a mão dela nas suas, disse:

   ‑ Prometa‑me não desaparecer durante a noite, voltando ao Olimpo, ou a qualquer outro lugar de onde tenha vindo, sem me permitir vê‑la amanhã.

   ‑ Prometo.

   Ela riu. Por um momento, olharam‑se, e depois, ele incli­nou‑se e beijou‑lhe a mão.

   Não foi um gesto mecânico, e Vida pôde sentir os lábios firmes e sensuais em sua pele.

   De súbito, temendo que os sentimentos a traíssem, puxou a mão e subiu as escadas correndo, sem olhar para trás.

   Margit esperava‑a no quarto.

   ‑ Não devia ter me aguardado até esta hora, Margit. Com certeza, está muito fatigada!

   ‑ Vou pô‑la na cama e assegurar‑me de que trancou a porta, Senhorita Vida ‑ disse Margit em inglês.

   ‑ Cuidado! ‑ disse Vida baixinho. ‑ E não se esqueça de me tratar de milady.

   ‑ Não há ninguém aqui que fale inglês, eu lhe garanto!

   ‑ Não podemos ter certeza de nada. É melhor ter cuidado.

   Quando Vida falou, sabia que não podia estar certa de nada que se referisse ao príncipe. Na verdade, tinha medo dele.

   Teve a mesma sensação outra vez quando, na manhã seguin­te, tendo‑se levantado tarde porque Margit lhe dissera que os hóspedes não acordavam cedo, encontrou‑o esperando por ela.

   Fora, na porta da entrada, havia um conjunto de carruagens de todos os tipos, conduzidas pelos cavalos mais magníficos que ela já vira. Eram de raça tão pura e de porte tão elegante, que a jovem não pôde deixar de admirá‑los um por um. Notou que quase todos eram originários da Hungria, que possuía os melhores cavalos da Europa.

   O príncipe, que a acompanhava com um sorriso nos lábios, como que se divertindo com seu entusiasmo, disse:

   ‑ Agora que a senhora admirou estes, precisa ver os outros cavalos das minhas estrebarias. Talvez apreciasse montá‑los.

   ‑ É possível que eu não esteja aqui amanhã.

   ‑ Depois falaremos sobre isso.

   Os outros convidados foram chegando aos pares, e Vida ficou todo o tempo com o príncipe.

   Não havia sinal da princesa Eudóxia, e Vida concluiu que, ou ela ficara em casa por estar de mau humor, ou deixara o castelo.

   Teve, no entanto, bastante tacto para não tocar no assunto, e seguiram na excursão. As mulheres pareciam, à luz do sol, uma colecção de aves exóticas, com seus chapéus de penas, ou flores, e roupas de Paris.

   Todas usavam protectores contra o sol.

  Viajaram por quase uma hora, usando um caminho aberto através de um pinheiral cerrado, e chegaram, de repente, a um pequeno lago rodeado de árvores, excepto em um dos lados, onde havia uma cascata prateada, vinda das montanhas que os circundavam.

   Vida pensou que aquela paisagem parecia uma pintura místi­ca que não podia ser real.

   O contraste entre as árvores verde‑escuras, os montes acima, com resquícios de neve, e a cascata jorrando suas águas no lago era espectacular.

   Os canteiros ao redor do lago tinham sido plantados com uma profusão de íris douradas, roxas e brancas, todas floridas, tão maravilhosas quanto as orquídeas que apreciara na noite anterior, no jardim de inverno do príncipe.

   Havia entre as árvores uma grande cabana de madeira, cons­truída com troncos rústicos.

   Pararam à beira do lago, onde uma mesa fora preparada para o piquenique.

   O almoço foi extremamente requintado. Havia empregados de libré para servi‑los, e pratos tão deliciosos como os do jantar da noite anterior.

   Beberam champanhe francês em taças douradas, e, depois dos pratos salgados, pilhas de frutas locais foram postas na mesa: morangos, pêssegos, amoras, nectarinas, melões e, num contraste original, maracujás e romãs.

   ‑ Meu maior problema é não poder comer mais ‑ disse Vida, sorrindo.

   ‑ Vejo que gostou da comida, e isso me agrada ‑ respon­deu o príncipe.

   ‑ Por quê?

   ‑ Porque prova que ainda é jovem e não se preocupa, como muitas mulheres, com o problema peso.

   Vida se sentiu culpada pelo descuido, revelando que era mais moça do que fingia ser.

            Mas, ao mesmo tempo, pensou que talvez ele apenas a esti­vesse elogiando, e não se preocupou mais.

   ‑ Acho que o ar da Rússia me faz ficar faminta!

   ‑ Penso que também lhe fez muito bem. Não parece tão preocupada como ontem à noite.

   ‑ Preocupada? Conforme lhe disse, estava só muito cansada.

   ‑ E preocupada, ou talvez nervosa ‑ insistiu o príncipe.

   Ela assumiu um arzinho petulante, replicando:

   ‑ Não posso saber por que imagina tais coisas. Se estava preocupada, era por temer que não fosse bastante hospitaleiro para me receber, e me dissesse que o castelo estava lotado e que, se quisesse, eu poderia dormir na estrebaria.

   O príncipe riu. Mas ela concluiu que devia ser mais cuida­dosa, pois ele era muito observador.

   O almoço foi agradável. Todos falavam e riam animada­mente, e Vida achou‑o muito mais interessante do que um jantar formal.

   Quando terminaram de comer, o príncipe lhe perguntou:

   ‑ Quer ver a paisagem do outro lado da cascata?

   ‑ Posso?

   ‑ Venha comigo.

   Andaram devagar ao redor do lago, até chegarem à cascata, onde não se podiam ouvir vozes, devido ao barulho das águas.

          Então, o príncipe tomou Vida pelas mãos e a conduziu a lugar que se assemelhava a uma fenda na rocha.

   Por um minuto, eles ficaram na escuridão, e a única coisa que Vida podia fazer era deixar que ele a guiasse, confiante na força de seus dedos.

   Sentia que, quando ele a tocava, havia um doce magnetismo nesse contato, o que constituía nova experiência para ela.

   A passagem escura terminou, e eles se encontraram numa enorme caverna, tendo à frente a cortina prateada das águas, que se arrebentavam ao cair, do alto das montanhas, no lago abaixo.

   Era tudo tão lindo, essa trémula parede de prata e o barulho que amortecia os sentidos de tal forma, que Vida ficou impos­sibilitada de pensar. Pareceu‑lhe que sua alma abandonara o corpo para fazer parte da beleza e do som das águas.

   Só então percebeu que, enquanto olhava a cascata, o prín­cipe a fitava.

   Havia qualquer coisa nos olhos dele que a deixou nervosa, e, sem falar, dirigiu‑se para a entrada da gruta.

   Virou‑se para trás e viu que ele não se movera, e ainda tinha os olhos fixos nela.

   Enquanto o esperava, sentiu que ele a chamava, quase como se a estivesse hipnotizando, para fazê‑la voltar.

   Por uma fracção de segundo, teve vontade de retornar. Mas, num esforço ao mesmo tempo mental e físico, come­çou a andar devagar pelo escuro túnel.

   Com ambas as mãos servindo de guia, chegou à luz do sol, antes que o príncipe a alcançasse.

   Afastaram‑se da cachoeira, e, tentando ser o mais natural possível, Vida falou:

   ‑ Obrigada, foi uma experiência extraordinária!

   ‑ Achei que gostaria ‑ respondeu o príncipe simples­mente.

   Juntaram‑se aos outros e voltaram ao castelo.

   Lá, foi servido um chá à moda russa, e sanduíches de caviar com vários acompanhamentos.

   Havia champanhe e outras bebidas para os homens.

   Vida percebeu que as senhoras iriam descansar antes do jantar, e então fez o mesmo. Quando chegou ao quarto, Margit a esperava.

   Para sua surpresa, enquanto a ajudava a despir‑se, Margit disse, quase num sussurro, parecendo muito nervosa:

   ‑ Não me diga, milady, mas não há segurança neste quarto!

   Vida fez um sinal com a cabeça, mostrando que com­preendera.

   Enquanto descansava na cama, tentou adivinhar o que Margit teria descoberto, e como poderia conversar a sós com ela para ficar sabendo.

   "Talvez possamos ir ao jardim juntas", pensou, lembrando que seu pai sempre dissera que era mais seguro falar ao ar livre do que em ambientes fechados.

   Vida dormiu um pouco, e quando Margit veio chamá‑la, não havia tempo para nada além de se vestir para o jantar.

   Apenas quando já estava quase pronta para descer à sala de jantar, levou Margit para perto da janela e falou baixinho no seu ouvido:

   ‑ Que descobriu?

   ‑ Não muito ‑ respondeu Margit em inglês ‑, mas o su­ficiente para me preocupar! Hoje à noite tentarei falar com o camareiro de Sua Alteza.

   ‑ Boa idéia! Mas não me espere acordada, pois posso me despir sozinha.

   ‑ Tem certeza?

   ‑ Absoluta.

   Vida estava acostumada a cuidar de si, e, pelo facto de Margit já ter certa idade, não lhe permitia esperá‑la acordada, como era o costume das camareiras.

   ‑ É demais para você ‑ disse ela quando Margit protes­tou. ‑ Há muito para fazer no decorrer do dia, e quero sua cooperação. Vá dormir, e arranjarei uma maneira de falar com você amanhã de manhã.

   Margit acenou com a cabeça, mostrando ter compreendido, e disse rapidamente:

   ‑ Vai trancar a porta?

   ‑ Claro.

   Ela tinha certeza de que o príncipe não se aproximaria dela. Mas não custava tomar precauções. E lembrou‑se de como sua mãe sempre lhe dissera para trancar as portas num hotel, ou mesmo em casas particulares, por causa dos ladrões.

   Mais uma vez, o príncipe a acompanhou ao jantar, e conver­saram agradavelmente sobre os tesouros coleccionados, na Rússia, por Catarina, a Grande.

   Discutiram também sobre os objectos valiosos que o príncipe possuía naquela e em suas outras propriedades.

   Falaram sobre os ciganos e suas danças, e Vida encontrou especial interesse e prazer nesse assunto.

   ‑ Fico contente em saber que a senhora aprecia dança, pois tenho um divertimento diferente para esta noite ‑ declarou o príncipe.

   ‑ Que é?

   ‑ Providenciei um balé no meu teatro particular, e, como as bailarinas vêm de Moscovo, creio que o achará excepcional.

   ‑ Nunca imaginei uma surpresa como essa! ‑ exclamou Vida com entusiasmo.

   O teatro particular do príncipe era pequeno, mas lindo, com poltronas estofadas e muito confortáveis.

   As cortinas do palco eram de brocado de excelente quali­dade, e por toda parte havia entalhes dourados executados por artesões de rara habilidade.

   Logo que todos se sentaram, a orquestra iniciou uma ouverture, e, já ao se abrirem as cortinas, Vida pôde ver que o prínci­pe não exagerara em afirmar que as bailarinas eram realmente excepcionais.

   Ela não se lembrava de ter visto um balé tão maravilhoso, mesmo tendo assistido representações em Viena e Paris.

   Vida se esqueceu do príncipe e de tudo, seguindo atentamente a história representada por mímica, e apreciando a beleza da música dançada por profissionais de alto gabarito.

   Apenas quando a cortina baixou é que notou que os olhos do príncipe estavam fitos nela e não no palco.

   Deu um profundo suspiro, como se acabasse de voltar de outro planeta, e disse:

   ‑ Foi maravilhoso!

   ‑ Achei que você tomou parte na dança com eles.

   ‑ Claro que sim! E também na história que narravam!

   ‑ Eu sabia. Seus olhos, seu rosto... São muito expressivos, e revelam muita coisa.

   ‑ Espero que não tudo!

   ‑ Por que não?

   ‑ Dizem que "os olhos são a janela da alma", e não quero que ninguém penetre em minha alma, devassando uma parte de mim que considero estritamente íntima.

   ‑ Mas não pode evitá‑la. Posso dizer‑lhe uma coisa? Acho sua alma tão fascinante como tudo o mais sobre a senhora.

   Pareceu‑lhe que o tom da voz dele era diferente ao pronunciar essas palavras, mas deduziu que o príncipe estava apenas sendo cortês ao lhe fazer esse elogio, cortesia essa que qualquer jovem lhe faria.

   Ainda assim, não tinha muita certeza disso.

   Sabia que os russos tinham um temperamento diferente dos outros povos.

   Os russos consideravam a alma como parte de si mesmos e falavam ou pensavam nela como se fosse uma coisa familiar e muito preciosa.

   Não se acanhavam com isso, e, enquanto os ingleses sentiam[ com o coração, os russos sentiam com a alma, e suas emoções vinham, portanto, do fundo do ser.

   Após o teatro, serviram‑se de refrescos numa outra sala onde podiam dançar.

   Essa noite, como se a beleza encantada do balé ainda persistisse entre eles, havia uma orquestra de cordas que tocava valsas de Offenbach, que haviam cativado os corações de toda a Paris.

   Para surpresa de Vida, a orquestra parou de tocar mais cedo que de costume, e o príncipe tornou óbvio, ainda que sem palavras, que esperava que seus hóspedes se recolhessem.

   ‑ Vossa Alteza deve estar planejando alguma coisa muito interessante para nós amanhã ‑ comentou um dos cavalheiros.

   ‑ A que horas devemos levantar‑nos?

   ‑ Mais cedo que o habitual, mas serão chamados com tempo suficiente para se vestirem e tomarem café com calma.

   ‑ Estou curioso ‑ observou o convidado.

   ‑ o que espero que aconteça ‑ replicou o príncipe, sorrindo.

   Ele levou Vida até as escadas, mas, essa noite, por estar ela acompanhada, cumprimentou‑a sem beijar‑lhe a mão.

   Em vez das jóias que lhe haviam dado um aspecto esplendo­roso na noite anterior, ela usava uma coroa de camélias na cabeça, e as mesmas flores lhe decoravam o vestido, que era branco e prateado.

   No pescoço, tinha um colar de pérolas de cinco voltas, que fora de sua mãe; nas orelhas, brincos também de pérola, e, para completar o conjunto, uma aliança de pérolas.

   O príncipe não comentou nada sobre sua aparência, mas ela percebeu, por seu olhar, que a achara linda.

   Quando entrou no quarto e fechou a porta à chave, como prometera a Margit, pensou que nunca se divertira tanto na vida.

   Mas, em compensação, não havia progredido nada no seu plano, desde que entrara na Rússia, para descobrir o paradeiro do pai.

   Então, resolveu não adiar mais sua decisão. Precisava resol­ver se iria ou não confiar no príncipe, e, caso decidisse que sim, pedir a ajuda dele.

   "Ele deve ser digno de confiança", pensava consigo mesma, apesar disso, tinha medo.

   Vida sentira durante todo o dia, mesmo na cachoeira, como se, subconscientemente, uma dor dentro dela, quase física, lhe dissesse que o pai estava em perigo.

   "Não posso continuar assim", pensou, ao tirar da cabeça a coroa de camélias e guardar o vestido no armário.

   Já deitada, dirigiu os pensamentos ao pai, pedindo‑lhe que a ajudasse.

   "Posso confiar no príncipe, papai?", perguntou ela. "Ousa­rei dizer‑lhe a verdade, o porquê da minha estada aqui?"

   Por estar tão agitada, acendeu duas velas ao lado da cama, e pegou uma pequena Bíblia que sempre levava nas viagens.

   Sua mãe a dera quando Vida completara dez anos, aconse­lhando‑a:

   ‑ Quando tiver alguma preocupação, querida, se precisar de uma resposta a qualquer problema, ainda que complexo, leia a Bíblia.

   ‑ Assim, ao acaso, mamãe?

   - Eu faço da seguinte maneira: primeiro, rezo, depois, abro‑a com os olhos fechados e ponho o dedo num versículo. Pois bem, é raro não obter uma resposta.

   "Isso é o que farei", decidiu a jovem.

   Pegou a Bíblia, fechou os olhos e, quando o fez, ouviu um ruído.

   Ao abrir os olhos, para seu espanto, viu que, na parede oposta à cama, um painel se abria... e o príncipe entrava!

   Por um momento ela o fitou, assustada, imaginando não ter trancado a porta.

   O príncipe dirigiu‑se a ela com um sorriso nos lábios, e Vida notou que usava um roupão de veludo quase até os pés, o que o fazia parecer maior e mais ameaçador.

   Ela colocou a Bíblia ao lado e perguntou:

   ‑ O que... o senhor... deseja?

   ‑ Pensei não ter deixado dúvidas quanto à minha intenção. Quero estar sozinho com você, Vida, e acho que já percebeu como a desejo ‑ respondeu o príncipe com um débil sorriso.

   ‑ O senhor não quer dizer...

   E, como se de repente entendesse tudo, exclamou:

   ‑ Não, não! Claro que não! O senhor deve se retirar imediatamente!

   O príncipe sentou‑se na cama, encarando‑a:

   ‑ Por que devo fazer isso? Você é tão linda! Não posso acreditar que pretenda chorar a morte de seu marido pelo resto da vida.

   Por causa da profundidade da sua voz quando falou, e por ele parecer tão irresistivelmente atraente à luz de vela, Vida, por um momento, achou difícil responder.

   Não podia imaginar que, com os cabelos avermelhados caindo sobre os ombros, contrastando com sua pele branca, e usando uma camisola tão diáfana que era quase transparente, se asseme­lhasse a uma ninfa saída de um sonho.

   ‑ Você me conquistou desde o primeiro momento em que a vi ‑ Continuou o príncipe. ‑ Tudo em você a torna irresis­tível, e, penso, a menos que esteja muito enganado, que exerço também alguma atracção sobre você.

   Uma vez mais Vida sentiu‑se como se ele a estivesse hipno­tizando, fazendo‑a ir em sua direcção, pois, embora ele não se tivesse movido, ela já estava em seus braços, e ele a apertava.

   Ficou tão assustada que ergueu as mãos à frente dizendo:

   ‑ Por favor... não fale comigo assim... não aqui.. Va­mos esperar até amanhã!

   ‑ Por que amanhã? Por quê?

   Enquanto falava e quase sem que Vida percebesse, os lábios dele tocaram os dela.

   Por um segundo, não pôde acreditar que ele a beijava, mas, quando sentiu os lábios dele, firmes e insistentes, nos seus, con­cluiu que precisava lutar.

   Mas ele já a havia feito deitar‑se, e estava inclinado sobre ela. Então, foi impossível reagir.

   Tentou forçá‑lo para trás, mas os lábios dele se tornaram ainda mais insistentes e apaixonados.

   Vida sentiu‑se presa a ele, privada de vontade e de pensa­mentos próprios.

   Então, teve sensações que nunca imaginara existir, como se fosse carregada aos céus e se tornasse parte das estrelas.

   Mas, de repente, lembrou‑se do pai, e, forçando a cabeça para um lado, disse:

   ‑ Por favor... por favor... o senhor não deve fazer isso... Não vou deixar!

   - Acredita mesmo que pode me impedir? Você me quer, meu amor, como eu a quero!

   ‑ Isso não é... verdade ‑ sussurrou Vida.

   Mais uma vez ele a beijou apaixonadamente, com a intensi­dade de uma chama.

   Ela teve medo, medo como nunca tivera em toda a sua vida.

   ‑ Por favor.., deixe‑me... ‑ Então, quando os lábios do príncipe tocaram seu pescoço, ela suplicou: ‑ Ouça‑me... por favor... O senhor está me assustando ‑... e não há ninguém aqui para me ajudar.

   ‑ Por que está assustada?

   ‑ Há um motivo que me fez vir aqui... Queria pedir‑lhe um favor... mas não sabia que o senhor se comportaria assim... e agora não tenho certeza se posso confiar no senhor ‑ balbuciou.

   Por estar tão apavorada, falava de maneira incoerente, mas, mesmo assim, teve certeza de que o príncipe a entendera.

   ‑ Desejo‑a desesperadamente! Deixe‑me amá‑la primeiro, depois conversaremos.

    ‑ Não, não! Eu sei que é errado... o senhor me amar... assim.. e eu não esperava que o fizesse.

   ‑ Por que não? Você já me contou que ouviu falar sobre minha reputação, e não pode ser tão inocente a ponto de ignorar que me atrairia.

   Ela não respondeu e, após um momento, ele insistiu:

   ‑ Isso é o que queria, não é? E a razão que a trouxe aqui!

   Ela conteve a respiração e falou:

   ‑ Sim... é verdade... mas... tranquei a porta.

   Ele não pôde evitar um sorriso:

   ‑ Devia saber que nos castelos há sempre portas secretas e paredes ocas.

   ‑ Eu não pensei nisso. Por favor... seja bondoso.. Fui ingénua por não aquilatar o perigo que estava correndo.

   O príncipe levantou‑se devagar e, num tom de voz diferente, perguntou:

   ‑ Que está dizendo?

   Com medo, Vida respondeu:

   ‑ Eu vim aqui para lhe pedir uma coisa muito importante para mim... Mas agora não tenho certeza... se devo fazê‑lo.

   Quando ele a fitou com aquele olhar penetrante, Vida pensou que, se tomasse uma decisão errada e ele não fosse de con­fiança, poderia, de acordo com o marquês, estar "assinando a condenação de seu pai".

   Estava tão apreensiva que tremia ao dizer:

   ‑ Por favor.., não me toque mais! ‑ Dê‑me tempo... para pensar.

   ‑ Eu não entendo ‑ insistiu o príncipe. ‑ O que está ten­tando me dizer?

   Vida respondeu:

   ‑ Talvez possa explicar‑lhe amanhã... mas não agora.

   ‑ Por que não agora?

   ‑ Não posso pensar com clareza., quando me toca.

   ‑ Quando a beijo, você quer dizer.

   ‑ Sim... quando me beija.

   ‑ E já se perguntou por quê?

   Vida não respondeu, e ele continuou:

   ‑ Penso que não ignora que há alguma coisa irresistível entre nós, que nos liga um ao outro. Não pode negar isso.

   Ele inclinou‑se para ela, continuando:

   ‑ Deixe‑me amá‑la, Vida, e, depois disso, não haverá mais problemas nem dificuldades.

   Passou pela cabeça dela que, se eles se amassem e se esse amor desse a mesma sensação de seus beijos, tudo seria mara­vilhoso. Ela não apenas tocaria as estrelas, como se tornaria parte delas, envolvida por sua luz.

   Mas, nesse momento, pensou no pai, e concluiu que nada era tão importante como salvar a vida dele.

   ‑ Por favor... por favor.., dê‑me algum tempo para que eu possa pensar com clareza. O que tenho a decidir não con­cerne... só a mim.

   ‑ Tudo o que você me diz me intriga muito, e me confunde cada vez mais.

   ‑ Entendo que isso pareça complicado, mas tenho de fazer as coisas a meu modo... Por isso, tente, por favor, *com­preender..

   Ela lhe suplicava, e ele notou que estava muito tensa.

   ‑ Você está criando uma situação difícil para mim. Pensei, por um momento. quando a beijei e antes de você lutar contra mim, que juntos tivéssemos atingido o portões do paraíso.

   Era verdade, pensou Vida, desvairada, mas precisava esque­cer tudo, excepto o pai e a razão que a levara até ali.

   ‑ Conte‑me seu segredo agora ‑ implorou o príncipe.

   ‑ Não posso... não ousaria! Mas... amanhã pode ser que seja diferente.

   Ela pensava que talvez no dia seguinte Margit tivesse des­coberto alguma coisa que lhe desse mais certeza de estar agindo certo.

   O magnetismo que o príncipe exercia sobre ela era uma rea­lidade, como também todas as sensações que ele despertava nela.

   Ainda podia sentir os lábios dele em seu pescoço, um por um. No momento, pensou que qualquer consequência que pudesse advir valeria aquele êxtase, aquele encantamento.

   Mas, lembrando‑se do pai, gritou:

   ‑ Saia! Saia... e deixe‑me! Preciso pensar! Preciso ter certeza!

   Estendeu a mão e, por acaso, encostou na Bíblia que tinha posto ao lado da cama. Tomou‑a e disse.

   ‑ Quando o senhor entrou, eu estava rezando, pedindo uma orientação. Achei que a Bíblia me poderia dá‑la.

   ‑ Estava rezando?! ‑ exclamou o príncipe em voz abafada.

   ‑ Achei que apenas... Deus poderia me ajudar.

   O príncipe adquiriu uma expressão enigmática. Depois, para surpresa dela, levantou‑se da cama e disse:

   ‑ Muito bem, Vida, dar‑lhe‑ei o tempo necessário para que se decida, mas continuarei pensando em você, desejando‑a e perguntando‑me onde é que errei.

   Vida respondeu:

   ‑ O senhor está sendo bondoso e compreensivo. Não houve erro algum de sua parte.

   O príncipe sorriu, e em tom de zombaria, disse:

   ‑ Boa noite. Espero que obtenha a resposta certa na sua Bíblia, do contrário, ficarei muito, muito desapontado mesmo.

   Ele teria saído imediatamente, mas Vida estendeu‑lhe a mão, num gesto espontâneo:

   ‑ Muito obrigada por mostrar‑se tão compreensivo.

   O príncipe não se moveu, e disse:

   ‑ Não vou tocá‑la, porque, se o fizer, cessarei de fazer o que me pediu e agirei a meu modo.

   Vida colocou a mão sobre o seio, num gesto de protecção

   Ele olhou‑a por longo tempo e disse:

   ‑ Você fechou os portões do paraíso... hoje à noite, pelo menos.

   Então, atravessou o quarto e desapareceu da mesma maneira como entrara, pelo painel da parede.

   Vida suspirou, aliviada, mas, ao mesmo tempo, sentiu como se tivesse perdido algo muito precioso, que talvez nunca mais reencontrasse.

 

   Quando o príncipe saiu, Vida ficou deitada por algum tempo com os olhos fixos no espaço, tentando analisar o que ele lhe havia dito e o que sentira.

   Mas estava tão confusa, que não conseguia se decidir sobre o que fazer.

   De repente, achou que a melhor coisa seria falar com Margit, para saber o que ela havia descoberto.

   Margit, mais que qualquer outra pessoa, com seu senso prático sobre os problemas da vida, poderia ajudá‑la a apagar a sensação de êxtase que sentira quando o príncipe a beijara.

   Sabia que Margit não devia estar longe, e, àquela hora, o príncipe já estaria recolhido.

   A criada lhe dissera, na véspera:

   ‑ A governanta foi muito amável, e por ser o castelo tão grande e por sermos novas aqui, ela me pôs no mesmo andar que ela, para ficarmos juntas.

   ‑ Muito conveniente ‑ murmurou Vida.

   ‑ Estou no fim do corredor, depois da suíte do príncipe, num quarto muito confortável, que dá para o pátio.

   Disse isso com um orgulho que divertiu Vida. Ela sabia que Margit sempre apreciara ter uma posição privilegiada em relação aos outros serviçais.

   ‑ óptimo, Margit. Saberei onde encontrá‑la, se precisar.

   ‑ Estarei lá quando necessitar de mim ‑ disse Margit com decisão.

   Vida sentiu que deveria falar com Margit logo, e no quarto dela. Seria mais fácil lá, já que não podia sentir‑se segura no seu próprio quarto.

   Pôs um roupão e abriu a porta de mansinho.

   Espiou e viu que o corredor não estava completamente às escuras.

   Não havia ninguém, e ela começou a andar sobre os tapetes espessos.

   Era uma boa distância, pois havia vários quartos entre o dela e a suíte do príncipe.

   Quando chegava perto da imponente porta que levava aos aposentos de Sua Alteza, ouviu vozes.

   Instintivamente, temendo ser vista, escondeu‑se à sombra de uma porta.

   Ao fazê‑lo, viu um homem surgir do que julgava ser uma escada de serviço que desembocava perto do quarto do príncipe.

   O homem era alto, e, no escuro, sua figura chegava a impressionar.

   Então, sem bater, abriu a porta dos aposentos do príncipe, e a luz incidiu no rosto dele.

   Ao observá‑lo, Vida ficou rígida como pedra, pois o homem que acabara de entrar na suíte do príncipe era Vladímir De­midovski.

   Por um segundo, pensou estar sonhando.

   Então, concluiu que agira certo e que, em nenhuma circuns­tância, devia confiar no príncipe.

   Vladímir Demidovski desapareceu, mas via‑se uma réstia de luz pela fresta da porta que ele deixara entreaberta.

   Percebendo que essa era a oportunidade de alcançar Margit sem ser vista, Vida adiantou‑se nas pontas dos pés, até o fim do corredor.

   Porém, ao passar pela suíte do príncipe, ouviu Vladímir Demidovski dizer em russo:

   ‑ Foi difícil fazê‑lo falar, alteza.

   ‑ Mas, conseguiu?

   ‑ Fui um pouco violento com ele.

   ‑ Quer dizer que o matou?

   Não houve palavras em resposta, mas Vida teve certeza de que Vladímir afirmara com a cabeça.

   ‑ Disse‑lhe o que queremos saber?

   A pergunta do príncipe foi directa.

   ‑ Sim, alteza, Sir Harvey está no mosteiro de Santo Onutri, em Lvov.

   Vida prendeu a respiração.

   Apressando‑se, foi ao quarto de Margit.

   No escuro, entrou no quarto, fechou a porta e chamou‑a em voz baixa:

   ‑ Margit! Margit!

   ‑ Que foi? O que deseja? ‑ respondeu Margit, com voz sonolenta.

   Então, percebendo que se tratava de Vida, sentou‑se na cama e acendeu uma vela. Vida já estava ao seu lado, sussurrando:

   ‑ Levante‑se, Margit! Temos de sair já daqui! Descobri onde papai está, e precisamos salvá‑lo!

   Estava apavorada, pois, agora que o príncipe sabia onde seu pai estava, informaria a polícia secreta, e seria uma questão de tempo que ele fosse posto na prisão, ou assassinado, conforme pressentira desde o início da viagem.

   ‑ Rápido! rápido! Vamos logo, Margit!

   ‑ Calma, Senhorita Vida ‑ disse Margit devagar. ‑ Não po­demos sair antes da madrugada, mas avisarei Henri para que apronte a carruagem.

   O seu modo calmo de falar sossegou Vida.

   Por um momento, ela deixara de ser a jovem esperta, con­fiante em seus planos para salvar a vida do pai. Era apenas uma menina que queria ser protegida.

   ‑ Agora vá vestir‑se, Senhorita Vida.

   A jovem inclinou‑se, beijou a empregada na face e disse:

   ‑ Ninguém poderia ser tão maravilhosa quanto você, numa emergência!

   ‑ Não fale quando estiver em seu quarto ‑ recomendou ‑ Margit.

   ‑ Eu sei, as paredes têm ouvidos.

   Não acrescentou que havia uma entrada secreta, pois, se o dissesse, Margit poderia adivinhar o que acontecera.

   Espiou o corredor e viu, com alívio, que a porta do quarto do príncipe estava fechada.

   Isso podia significar que Vladímir Dernidovski fechara a porta, ou que, tendo dado a informação esperada, saíra.

   Vida atravessou o corredor mal iluminado o mais rápido pos­sível, como um fantasma.

   Chegando ao seu quarto, estava sem fôlego.

   Ficou por um momento com as costas apoiadas contra a porta, tentando acalmar o tumulto que lhe ia dentro do peito.

   Então deu‑se conta de que, se não conseguira ajuda, ao menos havia descoberto onde estava o pai. E, como de costume, dirigiu seus pensamentos para ele.

   Ela tentava contar‑lhe, por vibrações da mente, que ia ao seu encontro, e, se fosse humanamente possível, encontraria um meio de resgatá‑lo.

  

   Mais tarde, quando já se haviam distanciado do castelo, Vida mal podia acreditar que tivesse conseguido sair sem dificuldade.

   Já tinha se vestido quando Margit chegou, começando a pôr as coisas na mala, que, por sorte, estava guardada num quarto ao lado.

   Margit usava sua roupa de viagem, e parecia tão firme, im­pecável e segura, que Vida teve vergonha do pânico que sentira.

   Ela não falou, a empregada apenas tirou os vestidos do armá­rio. dobrou‑os e colocou‑os na mala.

   Mal fechara, Henri entrou, acompanhado de um lacaio. Era um rapaz um tanto simplório, e Vida imaginou que Henri o escolhera por esse motivo, pois obedeceria às ordens sem questioná‑las.

   Ele e Henri carregaram a mala ao longo do corredor, e, evi­tando a escada principal, desceram pela de serviço, que os levou a uma porta no andar térreo. Daí saíram para o pátio, nos fundos do castelo.

   Começava a amanhecer, mas os raios do sol ainda não haviam surgido no horizonte.

   [ As estrelas estavam empalidecendo, e o início do novo dia era como o prelúdio de um concerto grandioso.

   Os cavalos, inquietos e bem descansados agora, pareciam ansiosos por partir.

   O cocheiro estava na boleia, e a mala de Vida, amarrada atrás. Assim que Vida e a governanta entraram na carruagem, Henri sentou‑se ao lado do cocheiro, e partiram.

   Só quando olhou para trás e não viu mais o castelo foi que Vida teve uma sensação de alegria, como se tivesse vencido um difícil obstáculo numa corrida de cavalos.

   Estendeu a mão a Margit, dizendo:

   ‑ Obrigada, Margit. Ninguém senão você poderia ter me ajudado com tanta eficiência.

   ‑ Agora, diga‑me com exactidão o que ouviu, Senhorita Vida!

   Vida contou‑lhe que vira Vladímir Demidovski. o mesmo homem que a abordara em Budapeste, e o que tinha ouvido da conversa entre ele e o príncipe.

   ‑ A senhorita suspeitou que ele fosse um agente russo ‑ comentou Margit.

   ‑ Sim, e agora sabemos que o príncipe não é de confiança, e que também está contra papai.

   Havia um tom triste em sua voz, mas Margit não o notou. Vida tentava convencer‑se de que o êxtase que o príncipe lhe despertara fora provocado pela sua imaginação.

   Como podia sentir‑se atraída por uma pessoa que estava prestes a assassinar seu pai, da mesma maneira que Vladímir Demidovski assassinara um homem?

   Ela sabia que a distância entre o castelo e a aldeia de Lvov era muito maior do que a da Flungria ao castelo.

   ‑ A estrada, por felicidade, era boa e plana, e os cavalos faziam excelente progresso.

   Quando chegaram à primeira estalagem, todos, excepto Vida, estavam famintos.

   Sua agitação era tal que lhe parecia nunca mais ser possível sentir fome.

   De qualquer forma, a comida não era convidativa, mas o chá do samovar era excelente e revigorante.

   Ela entendeu então por que os russos nunca se separam do seu samovar.

   Os cavalos foram alimentados com aveia da melhor quali­dade, que Henri, bastante esperto, instruíra o cocheiro a roubar das estrebarias do príncipe.

   Em seguida, reiniciaram a viagem. Vida imaginou que a estrada continuaria boa como até ali, mas logo percebeu que não havia razão para tal optimismo.

   Mais tarde, no fim do dia, a estrada se tornou ainda mais acidentada, esburacada e cheia de pedras. Para evitar o perigo de um eixo da carruagem quebrar‑se, foram obrigados a andar mais devagar.

   Ela quase chorou de aborrecimento, mas nada havia a fazer para apressar a viagem.

   Só podia rezar com fervor para que seu pai estivesse seguro no mosteiro, e para que pudessem salvá‑lo, antes que o prínci­pe e seus servos chegassem lá.

   Mas depois convenceu‑se de que, pelo facto de Sua Alteza constituir um enigma para o governo britânico e mesmo para pessoas astutas como seu pai, talvez ele não quisesse se envol­ver pessoalmente no que aconteceria dali para a frente.

   Provavelmente, passaria as informações aos membros da polí­cia secreta do czar, e eles fariam o resto.

   Tremeu ao lembrar os terríveis crimes que tinham cometido, e os horrores perpetrados na Rússia, desde que Alexandre III subira ao trono.

   Seu reinado começara com a perseguição aos judeus, jamais igualada na história até então.

   Lembrou‑se de o pai ter lhe contado que quase trezentos mil judeus tinham sido forçados a sair da Rússia com destino à Europa ocidental, completamente destituídos de seus bens.

   ‑ Eles que carreguem seu veneno para onde quiserem ‑ dis­sera o czar.

   Ele praticara milhares de outras ações vergonhosas, que Vida tentava afastar do pensamento, sem conseguir, pois não saíam de sua cabeça e a deixaram ainda mais nervosa.

   Quando terminaram de atravessar a região montanhosa, co­meçava a escurecer.

   No momento, a única coisa a fazer era passar a noite na aldeia mais próxima, onde a acomodação existente para viajantes era suja e desconfortável.

   Ela e Margit, juntas, ocuparam um pequeno quarto, e como quase de certeza que as camas tinham insectos, dormiram vestidas sobre os tapetes da carruagem que Henri trouxe para elas.

   O jantar consistia numa sopa de cheiro desagradável e sabor ainda pior, e fatias de pão preto.

   Vida não conseguia deixar de pensar nos pratos deliciosos que lhe tinham sido servidos na noite anterior.

   Mas a fome, a noite maldormida e o cheiro dos quartos sujos não eram importantes, pois estava mais perto do pai do que nunca.

   Ao menos, sabia onde ele se encontrava, e isso era a única coisa que lhe interessava no momento.

   Mais uma vez, partiram de madrugada. Naquela região, a estrada era muito melhor, embora ainda não pudessem seguir tão depressa como Vida desejaria.

   Chegaram ao seu destino, depois de um longo e cansativo dia, com fome e sentindo‑se incrivelmente empoeirados e sujos da viagem.

   O mosteiro, construção do século XVII, ficava perto da cidade, cercado por uma alta muralha. O campanário erguia‑se bem acima dela, e a iluminação era tão fraca que mal se podia ver a pesada porta de ferro que Vida imaginou ser a única entrada.

   Desesperada, Vida já conjecturava qual a maneira de entrar em contacto com o pai, mas, como era muito tarde, a única coisa sensata a fazer era procurar um lugar para descansar.

   A jovem preocupava‑se não apenas consigo mesma, mas com Margit, que parecia muito abatida.

   Surpresos, descobriram que ali havia um hotel que, sem ser luxuoso, era limpo e confortável.

   Tinha sido construído nos últimos cinco anos, e era usado, principalmente, por caixeiros‑viajantes, que iam de cidade em cidade vendendo suas mercadorias. Era também uma parada para os que se dirigiam ao sul.

   A comida que serviam era simples, mas nutritiva, e as camas, apesar de duras, eram muito boas, comparadas com as da noite anterior.

   ‑ Agora, Senhorita Vida, vá para a cama e tente dormir! ‑ comandou Margit com firmeza. ‑ Não adianta se preocupar com seu pai até amanhã de manhã. Henri vai encontrar um meio de entrar em contato com ele. Até lá, lembre‑se: "Uma mente cansada é uma mente inútil".

   Vida riu, pois não podia fazer outra coisa, e exclamou:

   ‑ Você é maravilhosa, Margit! Não sei como lhe dizer o que significa tê‑la comigo!

   ‑ Se eu não conseguir dormir ‑ continuou Margit ‑, vou lhe dizer uma coisa, Senhorita Vida: deixarei meus ossos na Rússia!

   Vida riu outra vez. Então, quando Margit saiu, deitou‑se.

   Uma vez apagadas as velas, rezou primeiro para que a mãe a ajudasse; depois, tentou com a força do pensamento, enviar uma mensagem para o pai, a fim de que soubesse que ela esta­va perto e que tinha vindo para salvá‑lo.

  

   Vida caiu num sono profundo e sem sonhos, acordando so­bressaltada quando as cortinas do quarto foram abertas. Pensou que Margit tivesse vindo chamá‑la.

   Mas, ao abrir os olhos, percebeu que quem estava de pé contra a pálida luz vinda da janela não era Margit, mas um homem.

   Prendeu a respiração ao reconhecer o príncipe.

   Por um momento ficou sem movimento e sem fala, fitando‑o de olhos arregalados. Não podia acreditar que ele estivesse lá, mas, se isso fosse verdade, então a viagem teria sido em vão, e seu pai estava condenado.

   O príncipe, percebendo que Vida acordara, dirigiu‑se à cama, onde se sentou, olhando para ela.

   ‑ Você fica muito bonita de manhã ‑ disse ele no mesmo tom que usava quando estavam juntos no castelo.

   ‑ Por que o senhor está aqui?!

   Sabia a resposta, mas queria ouvi‑la.

   Achou que, se ele lhe dissesse o que pretendia fazer, a única coisa que lhe restaria era morrer com o pai.

   Ele notou que seus olhos estavam aterrorizados e seus lábios tremiam de pavor, e então perguntou:

   ‑ Por que não confiou em mim?

   ‑ Confiar no senhor? Como poderia fazê‑lo.., quando...

   Ela fez uma pausa, sem saber como pôr em palavras o que queria expressar.

   ‑ Se você me tivesse dito o que estava pretendendo fazer, teria evitado uma viagem sem conforto e uma agonia de apreensões.

   ‑ Não sei o que o senhor quer dizer...

   Vida tentava adivinhar se ele havia descoberto sua verda­deira identidade.

   "Ele deve estar tentando me apanhar», pensou ela, apa­vorada.

   ‑ Agora que está aqui, talvez possa me contar como pre­tende salvar seu pai ‑ disse o príncipe.

   ‑ Oh! Como sabe que isso é o que quero fazer?!

   ‑ Quando soube que você era Vida Anstruther, tudo o que me intrigava a seu respeito ficou esclarecido.

   ‑ Como descobriu? Oh, mas é claro! Foi Vladímir Demi­dovski quem lhe contou!

   ‑ Naturalmente! Presumo que o tenha visto no castelo. Ele me disse que falou com você e, imprudentemente, se deu a conhecer em Budapeste.

   ‑ Eu tive medo dele. Pensei que fosse... um agente russo.

   ‑ Ele é meu agente, e muito eficiente.

   Sorrindo, continuou:

   ‑ Eu sabia que seu pai estava sendo perseguido pelos ho­mens do czar. Vladímir descobriu para mim o esconderijo dele, e me relatou também que conhecera em Budapeste uma jovem muito bonita, que se apresentava como condessa Vida Karól­zi ", mas que tomara o trem expresso de Paris como Vida Anstruther.

   ‑ Quer dizer que agora sabe de quem sou filha?

   ‑ Sim, sei ‑ respondeu ele,

acariciando‑lhe o rosto.

   Ela estremeceu, como se uma chama a tocasse, e se assustou quando o príncipe perguntou:

   ‑ Como pôde se comportar de maneira tão ridícula, fingin­do ser viúva?

   ‑ O senhor não acreditou em mim?

   ‑ Descobri isso depois que a beijei.

   Vida corou e disse:

   ‑ O que.., descobriu?

   ‑ Que nunca fora beijada antes, e foi por essa razão, te­souro, que a deixei em paz ‑ respondeu ele ternamente.

   Vida fitou‑o, assustada.

   Então, ele falou, em tom de voz diferente:

   ‑ Agora, vai me dizer como pretende tirar seu pai daqui,

   ‑ Eu não sei. Só sei que está em perigo.

   Com um soluço, acrescentou:

   ‑ Por favor.., por favor.., ajude‑me!

   ‑ Isso é o que tenciono fazer, e já tenho um plano. Espero que dê certo.

   Vida sentiu uma onda de entusiasmo ao ouvir essas palavras.

   Sentou‑se na cama e estendeu ambas as mãos para ele.

   ‑ Por que fui tão boba? Devia saber por instinto que o senhor iria me ajudar a encontrar papai.

   ‑ Um dia ‑ disse o príncipe com voz grave ‑ vou fazer você me pedir desculpas por suspeitar que eu poderia cometer um acto indigno. Mas, primeiro, temos de nos concentrar em tirar seu pai do país, pois o tempo urge.

   Vida apenas olhou para o príncipe, com os olhos muito abertos à espera de sua explicação.

   ‑ Primeiro, ele tem de sair do mosteiro ‑ disse o príncipe ‑, e tenho um plano para isso.

   ‑ Como? Como poderá fazer isso?

   ‑ Você chegou aqui muito cansada da viagem, e, durante a noite, caiu muito doente. Está, portanto, ansiosa para ver seu confessor, que, no momento, encontra‑se no mosteiro de Santo Onutri.

   Vida estava tão ansiosa que segurou a mão do príncipe e prendeu‑a na sua, como se temesse que, após terminar a expli­cação do plano, ele desaparecesse. Então, sentiu como se um raio de sol a atingisse, quando os dedos dele se fecharam sobre os seus com tanta força que quase a machucaram.

   ‑ Vou mandar seu acompanhante, Henri, ver o abade no mosteiro ‑ continuou o príncipe. ‑ Ele dirá que você veio do meu castelo, o que o impressionará, mas não contará que também estou aqui.

   ‑ Tenho certeza de que é um plano inteligente.

   ‑ O facto de não sabermos que nome seu pai está usando no momento torna as coisas mais difíceis, mas Henri explicará que você se encontra adoentada, sem condições de responder a qualquer pergunta. Sua empregada, que vive com você há muitos anos, sabe que a única pessoa capaz de ajudá‑la é seu confessor, que conhece a família desde que você nasceu.

   ‑ Papai não sabe que estou usando outro nome! ‑ disse Vida rapidamente.

   ‑ Pensei nisso, mas Henri pode dizer que você é a condessa Vida Karólzi, e não posso acreditar que seu pai, cujo raciocínio é tão ligeiro, não o compreenda.

   ‑ O senhor conhece papai?

   ‑ Claro que o conheço! E sou grande admirador dele! Ape­sar disso, creio que foi insensato vir à Rússia sabendo que a polícia secreta esperava por ele.

   ‑ Eu preveni papai de que ele era um homem marcado.

   ‑ Mas ele não a ouviu ‑ retrucou o príncipe ‑, e agora acredito que, pelo resto da vida, a Rússia seja um território proibido para ele.

   ‑ Mas, primeiro, temos de tirá‑lo daqui!

   ‑ Isso é essencial, e nós o faremos, eu e você, Vida!

   Os olhos de ambos se encontraram, e foi difícil desviá‑los.

   Então, fazendo grande esforço para se concentrar no que era realmente importante, o príncipe continuou:

   ‑ Vou procurar Henri agora e instruí‑lo para que vá ao mosteiro o mais depressa possível. Os monges levantam‑se cedo, e logo que o serviço religioso terminar, ele terá a oportunidade de ver o abade.

   ‑ Se pudéssemos saber que nome papai está usando!

   ‑ Ele dará a Henri uma resposta a essa pergunta.

   Levantou‑se da cama, sorriu para Vida e dirigiu‑se à porta. Então, olhou‑a e disse com suavidade:

   ‑ Como já lhe disse, você fica muito bonita de manhã...

   Cinco minutos depois, Margit foi ter com ela, e disse com severidade:

   ‑ Isso é para ensiná‑la a não fazer julgamentos apressados sobre as pessoas daqui por diante! Sua Alteza acabou de entrar em meu quarto. Eu ainda estava deitada, e quase desmaiei. Ele me contou tudo. Nem mesmo Sir Harvey poderia ter arqui­tectado um plano tão bom!

   ‑ Ele é maravilhoso! Mal pude acreditar quando abriu as cortinas do meu quarto. Pensei que fosse você.

   ‑ Enquanto ele dá ordens a Henri, preciso fazê‑la parecer doente. Se ficar aí deitada com esses olhos brilhando como o arco‑íris, ninguém acreditará que está mal, mas, sim, vendendo saúde e felicidade!

   Margit escovou os cabelos de Vida e amarrou‑os para trás. Depois, pôs um pano na testa como se estivesse embebido em água de colónia, ou em qualquer outra loção refrescante.

   Empoou o rosto dela para torná‑lo bem pálido, e depois, disse:

   ‑ Vou pedir chá, pois é a única coisa que Sua Alteza acha que deve tomar na refeição da manhã. Mas pedirei algum ali­mento mais substancial para mim em meu quarto. Você tam­bém comerá, para não ficar com fome.

   ‑ Estou feliz demais para sentir fome!

   ‑ Ficarei feliz quando sair deste lugar detestável! ‑ disse Margit.

   Em seguida, saiu do quarto, deixando Vida com seus pen­samentos.

   Mesmo que seu pai saísse do mosteiro usando o disfarce de um confessor, ainda teria de fugir da Rússia.

   Nem mesmo o príncipe poderia impedir a polícia secreta de aprisioná‑lo, antes que ele atravessasse a fronteira da Hungria.

   De súbito a felicidade abandonou‑a, e mais uma vez ela ficou desesperadamente ansiosa.

   Talvez fosse um erro tirar seu pai da segurança do mosteiro, onde encontrara refúgio.

   Gostaria de ter pedido mais detalhes ao príncipe, mas estava consciente de que aquele não era o momento adequado. Faria isso mais tarde.

   Agora, era hora de agir, e depressa.

   Alguém bateu à porta, e ela imaginou que fosse a empregada com o chá.

   Com o rosto pálido e o pano atado à testa, fechou os olhos e deitou‑se, esperando ter aspecto doentio.

   Bateram outra vez. Escutou Margit dizer, em russo:

   ‑ Entre. A senhora está tão doente que não pode falar. Ponha a bandeja na cama, e eu a servirei às colheradas.

   Vida percebeu a empregada entrar e pôr o chá no samovar.

   ‑ Pobre senhora! É jovem demais para sofrer esse golpe! ‑ Vida escutou‑a dizer.

   ‑ É a vontade de Deus ‑ respondeu Margit solenemente.

   ‑ Ele sabe o que faz ‑ concordou a empregada.

   Ela saiu do quarto, e Margit trancou a porta.

   ‑ Agora, sente‑se e tome o chá. Mais tarde, trarei torradas e mel, que a sustentarão até sairmos deste lugar.

   ‑ Como vamos fugir daqui, Margit?

   ‑ Sua Alteza me disse que tem um plano para isso também. Tenho certeza de que podemos confiar nele.

   ‑ Sim, podemos confiar nele! ‑ exclamou Vida, com sa­tisfação.

   Bebeu o chá, depois Margit pôs o samovar fora do quarto, e puseram‑se a esperar.

   Pareceu‑lhes que haviam esperado uma eternidade, mas, na verdade, só se havia passado uma hora quando ouviram passos na escada.

   Por um minuto, Vida ficou apavorada, julgando que fosse a polícia secreta.

   Então, a porta abriu‑se, e a primeira pessoa que ela viu foi Henri. Ele olhou por todo o quarto, antes de se afastar para que o monge, que estava atrás dele, entrasse.

   No princípio, Vida pensou que estivesse sonhando, mas, de­pois, viu que se tratava mesmo de seu pai.

   Pulou da cama e abraçou‑se a ele, murmurando:

   ‑ Oh! Papai! Papai! É você! É você mesmo! Oh! graças a Deus!

   Lágrimas rolavam de seus olhos, enquanto ele a abraçava com força.

   Então, chorando e rindo ao mesmo tempo, Vida disse:

   ‑ Não posso acreditar que esteja aqui, querido papai! Nun­ca poderia reconhecê‑lo com essa barba!

   Ele não respondeu, apenas beijou‑a. Depois, perguntou:

   ‑ Como pôde pensar numa coisa tão inteligente, tão bri­lhante, como esse plano de me fazer passar por um confessor?

   ‑ Foi o príncipe... ‑ Vida começou a dizer. Então, ouviram uma suave batida na porta, e Margit destra­vou‑a. Sir Harvey olhou nervosamente para a entrada, e colo­cou o capuz na cabeça.

   Era o príncipe, que entrou, dizendo:

   ‑ Graças a Deus o temos aqui. Ao menos, foi um bom começo.

   ‑ Deveria ter adivinhado, Alteza, que o senhor me salvaria!

   ‑ Sir Harvey falou, comovido.

   De repente, Vida se deu conta de que, ao sair da cama, usava apenas a camisola transparente com que ele a havia visto na noite que entrara em seu quarto, no castelo.

   Depressa, foi à cama e cobriu‑se. O príncipe disse a seu pai:

   ‑ Temos muito pouco tempo. Precisamos tirá‑lo de Ivov antes que o abade perceba que não voltará ao mosteiro.

   ‑ Diga‑me qual é o seu plano ‑ pediu Sir Harvey.

   ‑ Meu plano é o seguinte..

   Enquanto o príncipe falava, pareceu a Vida que ele estava envolvido em luz, como se fosse São Miguel Arcanjo, que viera, com seus anjos, para salvá‑los.

 

   Quarenta minutos mais tarde, Vida saiu por uma porta late­ral que a levou ao pátio, onde se encontrava a magnífica car­ruagem do príncipe, puxada por seis cavalos.

   Estava uniformizada como cavaleiro da comitiva, e seus cabe­los avermelhados haviam sido cobertos por uma peruca branca e um quepe pontudo de veludo.

   Usava uma jaqueta curta de libré cor de vinho, com alarmares dourados ‑ a mesma usada pelos servos do castelo ‑, calças brancas de couro e botas muito lustrosas.

   Ela se sentiria embaraçada se qualquer dos outros cinco cavaleiros olhasse para ela, mas, logo que apareceu, eles montaram os cavalos que tinham sido trazidos da estrebaria.

   Vida montou um magnífico puro‑sangue de extracção húngara. Logo que todos estavam a postos, a carruagem se dirigiu do pátio para a frente do hotel, e toda a cavalgada esperou.

   Vida ficou tensa, pois não duvidava de que esse fosse o mo­mento mais perigoso do embuste, e que em algum lugar, embo­ra não se pudesse ver, estavam sendo observados por homens que, sem dúvida, reportariam a um dos agentes do czar o que se estava passando.

   O sol quente lhe queimava a face, e os cavalos se impacien­tavam. Logo em seguida, porém, pela porta do hotel, saíram dois homens carregando um fardo envolvido em cobertores, se­guidos de Margit e Henri.

   Com muito cuidado, os homens ergueram o corpo enrolado e o puseram no assento traseiro da carruagem; Margit, seguran­do um lenço, um leque e várias outras coisas que podiam ser necessárias, ocupou o assento oposto.

   A porta da carruagem, com o desenho do brasão do príncipe, foi fechada, e só então Sua Alteza apareceu.

   Nesse momento, um garanhão preto foi trazido por dois ra­pazes da cavalariça.

   O garanhão era indócil, empinava as patas dianteiras e pino­teava, tendo os empregados dificuldade em segurá‑lo.

   Logo que o príncipe o montou, a carruagem se moveu, junta­mente com os cavaleiros da comitiva, três de cada lado.

   Foi só quando chegaram ao fim da estrada principal da aldeia e estavam já no campo, que Vida deu um suspiro de alívio.

  

          O plano do príncipe era simples, mas muito engenhoso: Sir Harvey se faria passar pela mulher doente que pedira a visita do confessor, enquanto ela iria ao lado da carruagem, como um dos cavaleiros. Vida mal pudera acreditar que tudo pudesse ser tão fácil.

   Então, mesmo sem perceber o que estava acontecendo, seu pai saíra do quarto e Margit a vestira com a libré que tinha sido trazida pelo camareiro do príncipe.

   ‑ Sabia que teríamos problemas na Rússia ‑ dissera Mar­git em voz baixa.

   ‑ Cuidado! ‑ suplicara Vida. ‑ O que importa é que papai seja salvo.

   Depois de vestir Vida, Margit dissera, com um suspiro:

   ‑ Deus nos proteja, Senhorita Vida! Precisamos de sua protecção!

  Vida sorrira e, andando com cuidado, pois as botas eram grandes demais para ela, descera as escadas.

   Em vez de sentar‑se de lado na sela, tivera de montar como um rapaz, o que, aliás, achou muito fácil, mesmo considerando que não fazia isso desde criança.

   A carruagem seguia muito depressa, levantando uma nuvem de pó.

   A comitiva ia ao lado, e o príncipe, na frente.

   Nas três horas que se seguiram, Vida só pensou que o pai se distanciava mais e mais do mosteiro.

   Certamente indagariam a razão de ele não ter voltado, mas isso só aconteceria muito mais tarde.

   Depois do meio‑dia, pararam numa clareira na floresta, e o príncipe ordenou que o almoço fosse servido para todos.

   Quando Vida apeou, começou a cogitar se iria ou não con­tinuar com os cavaleiros. Então, Henri se dirigiu a ela, dizendo, em russo, para que os outros pudessem entender:

   - Sua Alteza deseja falar com você.

   Vida deu‑lhe as rédeas do cavalo e, por entre as árvores, dirigiu‑se ao lugar onde havia posto uma mesa, rodeada de cadeiras desmontáveis.

   Seu pai estava ao lado do príncipe, juntamente com Margit. Caminhando ao encontro do grupo, Vida notou que o prínci­pe a observava, e acanhou‑se por estar usando traje masculino. Ao mesmo tempo, estava bem consciente de que não devia preocupar‑se com ninharias, quando a vida do pai estava em perigo.

   Sir Harvey estava elegante como sempre, apesar das circunstâncias. Havia raspado a barba, e parecia bem mais magro.

   Preocupada, a jovem lhe perguntou:

   ‑ Você está bem, papai?

   Achou que ele talvez tivesse sido torturado, ou ferido.

   Mas ele sorriu:

   ‑ Estou muito bem, querida. Mas acho que um homem faminto precisa de algo mais nutritivo do que peixe e pão preto.

   ‑ Vamos remediar esse problema ‑ replicou o príncipe.

   Vida notou que os cavaleiros da comitiva estavam servindo o almoço.

   Havia, claro, caviar, esturjão, frango frio com patê de foie gras e muitas outras coisas que sabia que seu pai iria apreciar.

   A jovem não sabia se devia almoçar com eles, ou permanecer com os cavaleiros, por causa da maneira como estava vestida. Percebendo seu embaraço, o príncipe lhe disse:

   ‑ Sente‑se, Vida! Todas as pessoas que trabalham aqui são de absoluta confiança. Não se preocupe.

   Ela obedeceu, dizendo em seguida:

   ‑ Papai, conte‑me o que aconteceu.

   ‑ Depois, querida. No momento, a única coisa em que posso pensar é que estou faminto, pois saí do mosteiro antes do café da manhã.

   Mas Vida estava nervosa por ainda estarem em solo russo.

   ‑ Para onde vamos? ‑ perguntou ao príncipe.

   ‑ Para a fronteira da Hungria; esta noite ficaremos com amigos de confiança, em Pololia.

   ‑ E amanhã? ‑ Vida inquiriu.

   ‑ Com sorte, estaremos na Hungria.

   ‑ Como podemos agradecer‑lhe?

   ‑ Poderá fazê‑lo quando seu pai estiver a salvo. Mas não podemos retardar‑nos. Cada minuto que permanecermos na Rússia constitui grande risco para nós.

   ‑ Pensei muito, enquanto estava no mosteiro, em como in­formar ao senhor sobre meu esconderijo ‑ disse Sir Harvey.

   ‑ O senhor me proporcionou muitas noites e dias de ansie­dade ‑ disse o príncipe calmamente.

   ‑ Não ousava confiar no abade. Foi nomeado pelo czar, e vários monges estavam curiosos a meu respeito.

   ‑ A curiosidade deles será plenamente justificada quando perceberem que não voltou; por isso, quanto mais depressa partirmos, melhor.

   Após beber alguns copos de vinho, Sir Fiarvey se recuperou de sua palidez, e Vida comentou:

   ‑ Eu adoro você, papai! Acho que não aguentaria sofrer essa agonia outra vez.

   ‑ Tem razão, querida. Este foi o meu "canto de cisne" no que se refere à Rússia, mas acho que o marquês de Salisbury vai apreciar o que tenho a lhe contar.

   O príncipe interrompeu a conversa, dizendo:

   ‑ Vida viajará na carruagem, e o lacaio da boleia cavalgará no lugar dela.

   Sorriu para ela, continuando:

   ‑ Quando chegarmos a Pololia, você não usará seu nome verdadeiro. Será identificada pelo nome que consta no seu pas­saporte. Não podemos cometer enganos, caso sejamos inter­rogados.

   ‑ E papai?

   ‑ Seu pai passará por um velho amigo húngaro que vamos levar de volta a seu país. Ele tem um passaporte com o nome da família de sua mãe, Rákoczi.

   Os cavaleiros já tinham tirado a mesa e recolhido as cadei­ras, quando Vida e o pai entraram na carruagem.

   Assim que partiram, Margit desembrulhou as roupas de Vida que estavam num lençol, e explicou que Sir Harvey as tinha carregado com ele ao sair do hotel, para que ninguém descon­fiasse de nada, o que poderia acontecer se levassem mais uma mala.

   ‑ Foi idéia de Sua Alteza! Ele pensa em tudo! ‑ disse Margit com orgulho.

   Vida trocou as roupas de cavaleiro por um bonito vestido que Margit escolheu.

   Pelo facto de ter de assumir novamente a identidade de con­dessa Karólzi, ela pintou o rosto, enquanto o pai a observava, divertido.

  ‑ Você escolheu um disfarce atraente, querida. Não me sur­preende que o príncipe a tenha achado linda, pressionando‑a para que fosse sua hóspede.

   ‑ Eu concordei porque achei que, fazendo isso, poderia descobrir se ele era ou não nosso inimigo.

   ‑ O príncipe Ivan é um velho amigo com quem trabalho há muitos anos.

   ‑ Gostaria de ter sabido disso, papai.

   ‑ Não lhe contei simplesmente porque nunca pensei que viesse à minha procura. E, nesse tipo de aventura, quanto me­nos se fala, melhor.

   ‑ Sei muito bem disso, papai. Mas confesso que tive muito medo de confiar no príncipe, pois não sabia de que lado ele estava.

   Contou ao pai como Vladímir Demidovski falara com ela em Budapeste e como, depois, vendo‑o nos aposentos do príncipe, tinha julgado que Sua Alteza não fosse pessoa de confiança, decidindo, portanto, sair do castelo.

   ‑ Compreendo, querida, e acho que você foi muito valente. Mas é muito penoso para mim vê‑la envolvida numa situação que poderia ter tido resultados desastrosos.

   ‑ Ainda não estamos seguros ‑ disse Vida com a voz trémula.

   ‑ Eu sei, filha. Ao mesmo tempo, a fada da boa sorte sem­pre esteve comigo, e não posso acreditar que me abandone agora.

   ‑ Tenho certeza de que não!

   Mesmo assim, Vida estremeceu, pois ainda não se sentia muito confiante.

   Continuou a conversar com o pai durante a tarde, enquanto Margit dormia.

   Havia tanto a contar, e tanto a ouvir!

   Ela soube que, logo ao entrar na Rússia, Sir Harvey fora seguido por toda a parte.

   Depois de, por várias vezes, ter sido quase capturado pela polícia secreta do czar, ele decidiu, em desespero de causa, entrar no mosteiro, na qualidade de monge viajante.

   Dissera ao abade que estava a caminho de Odessa, mas que se sentira muito doente para continuar.

   O abade acreditou na história e cuidou da saúde dele, insis­tindo para que não tivesse pressa de prosseguir viagem e que ficasse no mosteiro o tempo necessário.

   ‑ Que sorte a sua, não, papai?

   ‑ Foi muita sorte estar lá quando você e o príncipe Ivan chegaram. Mas eu já começava a me entediar com o facto de passar os dias em contínua prece, fechado naquele mosteiro.

   Vida riu, concordando.

   ‑ Tenho certeza de que estranhou cada minuto que passou lá.

   ‑ Senti muito a sua falta, querida. Além disso, estou muito acostumado ao conforto para poder habituar‑me àquele estilo de vida ‑ admitiu Sir Harvey.

   ‑ Eu também senti muito a sua falta, papai.

   Uma coisa que Vida não contou ao pai foi como o príncipe tinha entrado em seu quarto, tentando conquistá‑la, por acre­ditar que ela fosse viuva.

   Achou que isso o aborreceria e estava tão grata ao príncipe que só desejava falar bem dele.

   Estava tão curiosa sobre o que havia acontecido com os Outros hóspedes do castelo. Resolveu só perguntar ao príncipe sobre isso quando tivesse uma oportunidade de ficar a sós com ele, depois que estivessem a salvo.

   Chegaram a Pololia ao anoitecer.

   Os cavalos não se haviam fatigado muito, mas, devido à poeira e ao calor, Vida podia garantir que tinham sede, pois ela também desejava tomar um pouco de água.

   Ela pensava que o príncipe decidisse parar durante a viagem, mas ele resolveu que era melhor continuar sempre em frente, e ninguém protestou.

   Pololia era uma cidade pequena, pouco maior que uma aldeia.

   No alto de uma colina, protegida por árvores contra o vento frio do norte, havia uma grande casa.

   Tratava‑se de uma construção antiga e sólida, que dava a impressão de ter servido de fortaleza, no passado.

   O príncipe mandou um dos cavaleiros na frente, para pre­venir o dono da casa da sua chegada.

   Foram acolhidos calorosamente por um senhor idoso, de ca­belos brancos, e por sua esposa, bem mais jovem que ele. Pelo modo como esta olhou para o príncipe e se dirigiu a ele, Vida percebeu que a jovem senhora o achava muitíssimo atraente.

   Enciumada, ela ficou muito satisfeita por estar outra vez trajada como uma condessa, com um vestido que poderia com­petir com qualquer um dos que haviam sido usados pelas hóspedes do príncipe, no castelo.

   Ela ocupou um quarto grande e confortável, no primeiro andar, e o pai, um aposento ao lado. O príncipe ficou no outro extremo do corredor. Apesar de a casa não ser tão grande como o castelo, havia muitos empregados para servi‑los.

   O que Vida mais adorou foi poder tomar um banho. Depois de mergulhar na água perfumada por certo tempo, disse a Margit:

   ‑ Agora me sinto melhor! Algum dia poderei contar esta emocionante aventura a meus filhos, se os tiver!

   ‑ Não estamos ainda fora de perigo, Senhorita Vida ‑ disse Margit.

   Falou em inglês, e Vida imediatamente a preveniu:

   ‑ Cuidado!

   Margit exclamou:

   ‑ Sempre me esqueço! Quero agradecer a Deus pelo facto de o patrão estar de novo connosco!

   ‑ É o que tenho feito ‑ Vida disse com um sorriso. ‑ Mas lembre‑se, Margit, de continuar a tratar‑me como con­dessa. Só amanhã, na Hungria, é que poderei voltar a ser eu mesma.

   Por felicidade, não havia ninguém mais na casa, e o jantar foi delicioso, regado a bom vinho e acompanhado de uma conversa muito agradável.

   O príncipe fê‑los rir com as histórias de suas viagens em diferentes partes do mundo e das personagens estranhas que encontrara em Monte Cano. Vida notou, porém, que ele tomava muito cuidado em não falar sobre o czar, ou São Peters­burgo, ou mesmo sobre coisas que se passavam em seu cas­telo.

   ‑ Levamos uma vida muito sossegada aqui, Alteza, e não pode imaginar como é emocionante recebê‑lo em nossa casa ‑ disse a anfitriã.

   ‑ Tenho sido muito relapso por não ter vindo visitá‑los nos últimos cinco anos ‑ replicou o príncipe. ‑ Mas, logo que voltar para casa, terei muito prazer em recebê‑los.

   Vida notou, pela expressão do olhar da anfitriã, o prazer que ela sentira com o convite do príncipe.

   De repente, achou que as reacções que ele provocava nas mu­lheres que conhecia eram sempre fortes e perturbadoras.

   Felizmente, as luzes da sala de jantar eram veladas, pois ela começou a achar difícil sorrir, e muito menos rir.

   "Ele faz amor com qualquer mulher que o atraia", pensou consigo mesma. "Depois que nos deixar na Hungria, não o ve­remos nunca mais."

   Quando subiu para o quarto, sentia um nó na garganta, que persistiu mesmo depois de dizer boa‑noite ao pai e de repetir muitas vezes para si mesma como era feliz pelo facto de ele estar dormindo no quarto ao lado.

   ‑ Estou antegozando o prazer de uma boa cama ‑ disse Sir Harvey. ‑ Asseguro‑lhe que os monges têm um catre tão incómodo e duro como o caminho do céu.

   Vida riu.

   ‑ Oh, papai, eu lhe prometo que daqui por diante sempre terá um colchão de plumas confortável como uma nuvem.

   ‑ Assim espero, filha!

   Beijou Vida e disse:

   ‑ Estou muito comovido e orgulhoso, querida, do que fez para me salvar. Mas nunca mais a deixarei assumir um em­preendimento dessa natureza.

   ‑ Então, não se exponha mais a perigos, papai, do contrá­rio, sempre tentarei salvá‑lo, não importa a que riscos eu pre­cise me expor.

   ‑ Agora você está me chantageando! ‑ protestou Sir Har­vey, beijando‑a outra vez, antes de ir para seu quarto.

   Vida dispensou Margit, por achar que ela estava muito can­sada, e despiu‑se sozinha. Escovou os cabelos, pôs uma cami­sola guarnecida de rendas e se aconchegou entre os lençóis de linho.

  

          Estava tão fatigada, depois do longo dia entremeado de medo e emoção, que dormiu como uma pedra, e só acordou quando o pai entrou no quarto, na manhã seguinte.

   Ele usava um roupão de seda, emprestado pelo príncipe, e disse:

  ‑ Ainda é muito cedo, querida, mas sei que Sua Alteza quer que saiamos logo depois do café da manhã, e preciso ter uma conversa com você agora.

   ‑ Sobre o quê, papai?

   Ele sentou‑se ao lado da cama e disse, um tanto embaraçado:

   ‑ Bem, é sobre o príncipe.

   Vida sentou‑se no leito, encostando‑se nos travesseiros.

   Houve uma pausa, e ele começou a falar:

   ‑ Você é muito jovem, Vida, e, embora tenhamos feito muitas coisas juntos e viajado por muitos países, eu sei que nunca conheceu um homem como o príncipe Pavolivski, sim­plesmente pela razão de que ele não tem similar.

   ‑ Concordo, papai.

   ‑ Por ser ele tão especial, um dos mais inteligentes e fascinantes homens que já conheci, tenho receio de que você se apaixone por ele...

   Não era o que Vida esperava ouvir o pai dizer, e, quando olhou para ele, surpreendida, aborreceu‑se por perceber que suas faces coravam.

   ‑ E você acha que.., é o que está acontecendo? ‑ ela perguntou em atitude defensiva.

   ‑ Sim, porque é o que acontece com todas as mulheres que o príncipe vem a conhecer. Há um certo magnetismo nele, e nunca encontrei uma mulher que não o achasse irresistível.

   Era o que Vida pensava sobre ele, mas não queria admitir.

   ‑ Ontem mesmo eu estava pensando, papai, que é muito improvável que tornemos a vê‑lo depois que chegarmos à Hungria.

   ‑ Pode ser... Mas é bastante óbvio que ele a admira. Por isso eu lhe suplico, querida, que não se deixe levar por essa atracção e se lembre de que ele passará por sua vida como um meteoro que atravessa o céu e desaparece rapidamente.

   Havia tanta preocupação na voz de Sir Harvey que Vida resolveu tranquilizá‑lo:

   ‑ Entendo muito bem o que está dizendo, papai, e prometo que serei cuidadosa e estarei sempre alerta.

   ‑ Espero que não se importe com o que estou lhe falando, minha querida. É o que sua mãe faria, se fosse viva. Mas não posso suportar que você seja infeliz por causa de um homem que nunca poderá representar nada em sua vida.

   ‑ Claro, papai. Mas o senhor pode ficar tranquilo, pois ele é russo, e de qualquer forma nunca mais poderei voltar para este país.

   Ela pensou, enquanto falava, que poderiam encontrar o prín­cipe em Monte Carlo, Paris ou talvez Londres. Mas convenceu‑se de que isso era pouco provável.

   Seu pai estava certo. O príncipe era um meteoro, e quanto mais depressa o esquecesse, melhor.

   Mas, apesar de todo o seu esforço, ela se perguntava:

   "Como é possível esquecer o primeiro beijo?"

   Depois de ter aconselhado a filha, Sir Harvey falou sobre outros assuntos, sugerindo a ela irem visitar seus parentes ma­ternos que atravessassem a fronteira da Hungria.

   Oh, papai, acho que é uma idéia maravilhosa!

   Vida estava falando quando a porta se abriu e o príncipe entrou, dizendo em voz baixa:

   ‑ A polícia secreta está aqui. Entre no armário, Sir Harvey

   Havia um enorme guarda‑roupa de madeira entalhada no quarto, e, com a ligeireza de um homem acostumado a enfren­tar o perigo, Sir Harvey desapareceu dentro dele.

   Então, para surpresa de Vida, o príncipe despiu o roupão de seda e deitou‑se na cama, ao lado dela.

   Antes mesmo que pudesse olhar para ele a fim de perguntar a razão de sua atitude, ele aproximou‑se dela e abraçou‑a. Quan­do a porta se abriu, beijou‑a.

   No começo, Vida ficou horrorizada com o que estava acon­tecendo. Mas, ao sentir a pressão da boca do príncipe na sua e a proximidade de seu corpo, preocupou‑se mais com isso do que com o perigo iminente.

   Após alguns segundos, como se de repente percebesse o que se passava, o príncipe levantou a cabeça e olhou para a porta.

   Em pé, na entrada do quarto, havia três homens, e Vida, olhando para eles, concluiu que, não importa onde os visse, não duvidaria que fossem agentes secretos. Com lábios finos, feições astutas e olhos suspeitosos, pareciam uma caricatura exagerada de polícias.

   Sem deixar de abraçar Vida, o príncipe disse, em russo, entre atónito e irritado:

   ‑ O que significa isso? Como ousam entrar aqui?

   Um dos homens se aproximou da cama e reconheceu o prín­cipe.

   ‑ Alteza!

   ‑ Respondam! Quero saber como ousam entrar num dormi­tório particular dessa maneira tempestuosa!

   ‑ Estamos procurando um homem, Alteza.

   ‑ Como podem ver, não está aqui. Façam o favor de ir investigar em outro lugar!

   Como se tivesse sido instruída sobre como agir durante essa troca de palavras, Vida escondeu o rosto no ombro dele, en­vergonhada.

   Tudo o que os agentes secretos puderam ver foi que uma mulher estava nos braços do príncipe. Não distinguiram suas feições, apenas seu cabelo avermelhado caindo sobre os ombros.

   ‑ Perdão, Alteza ‑ desculpou‑se um dos homens ‑, mas fomos informados de que o homem que procuramos estava aqui, com uma senhora doente.

   ‑ Bem, estão enganados. Minha acompanhante goza de per­feita saúde.

   ‑ Posso ver que tem razão. Por favor, perdoe‑nos, Alteza.

   ‑ Não há outro homem no meu grupo, a não ser meus servos, que são de confiança, e o conde Rákoczi, um velho amigo que estou levando para sua casa, na Hungria. Seus papéis estão aqui, se quiser vê‑los.

   ‑ Não é necessário, Alteza. Não estamos procurando um húngaro ‑ replicou o homem nervoso e constrangido.

   O príncipe disse:

   ‑ Muito bem. Talvez possamos ficar a sós agora.

   Ao saírem, um dos homens sussurrou alguma coisa ao ouvi­do do outro. imediatamente, este último voltou e disse:

   ‑ Perdoe‑me, Alteza, mas...

   O príncipe, que havia se virado para Vida outra vez, como se tivesse esquecido o episódio, perguntou, irritado:

   ‑ Que há agora? Com franqueza, pensei que tivessem um pouco de tacto!

   ‑ Peço‑lhe desculpas mais uma vez, Alteza, mas esqueci uma coisa Importante.

   ‑ De que se trata? Fale de uma vez!

   ‑ Recebemos instruções de nosso superior, ontem à noite, para que, se encontrássemos Sua Alteza na vizinhança, lhe dés­semos uma mensagem em nome de Sua Majestade Imperial, o czar.

   ‑ Que mensagem? Por que não a deram antes? ‑ pergun­tou o príncipe, mais irritado ainda.

   ‑ Nós... não esperávamos encontrá‑lo aqui, Alteza, e por um momento me esqueci dessa incumbência.

   ‑ Qual é a mensagem?

   ‑ Sua Majestade Imperial está em Kiev, e pede a Sua Alte­za que se dirija para lá imediatamente, levando consigo a condessa Karólzi. Sei que um mensageiro já seguiu com o mesmo recado para o castelo.

   ‑ Obrigado, informe a seu superior que certamente obedece­rei à ordem de Sua Majestade Imperial, e estarei com ele o mais depressa possível.

   ‑ Obrigado, Alteza.

   Os três homens curvaram‑se numa saudação respeitosa.

   A porta fechou‑se, mas o príncipe não se moveu. Vida sabia que ele estava ouvindo o ruído dos passos que se afastavam gradativamente. Ela também permaneceu imóvel, esperando até não os ouvir mais.

   Sir Harvey não saiu do armário.

   Foi só quando deixou a cama e pôs o roupão, que o príncipe exclamou:

   ‑ Isso é intolerável! Absolutamente intolerável!

   Nesse momento, o guarda‑roupa se abriu e Sir Harvey apa­receu, dizendo:

   ‑ Que sorte Sua Alteza ter visto os homens chegando!

   ‑ Como não pediram para vê‑lo, penso que ficaram satis­feitos, mas nunca se pode saber ao certo.

   ‑ Não eram os mesmos homens que nos estavam observan­do em Ivov.

   ‑ Não, parece que não ‑ retrucou o príncipe. ‑ Mas o relatório deles chegará aos ouvidos de algum superior, como os ouviu dizer, e não podemos nos arriscar a que o senhor seja interrogado antes de sair do país.

   ‑ Oh! por favor ‑ gritou Vida ‑, temos de tirar papai daqui! Não podemos perdê‑lo agora!

   O príncipe olhou para ela e disse:

   ‑ Só há um meio de salvá‑lo.

   ‑ E qual é?

   ‑ Que você me acompanhe a Kiev. Se eu for só, depois de ter recebido uma ordem imperial para me apresentar em sua companhia, eles terão certeza de que há alguma coisa suspeita, não somente sobre seu pai, como também sobre você.

   - Não vejo motivo.. ‑ começava a dizer Sir Harvey, que em seguida reflectiu melhor, continuando:

   ‑ Sim, tem razão. Vida passa por russa, e não poderia estar tão interessada num amigo húngaro.

   Os três ficaram por alguns instantes em silêncio, pensando no que havia sido dito, e Vida foi a primeira a falar, dirigindo‑se ao príncipe:

   ‑ Acho que devo ir com o senhor para Kiev, se isso assegurar a fuga de papai para a Hungria.

   O príncipe aproximou‑se da janela e disse:

   ‑ Os três homens estão partindo numa tróica. Espero que levem algum tempo para entrar em contacto com o superior deles. O senhor, Sir Harvey, precisa cruzar a fronteira antes que eles mudem de idéia e voltem para procurá‑lo.

   ‑ Entendo ‑ disse Sir Harvey, concordando prontamente.

   ‑ O meio mais rápido é o cavalo. Seria demais para o senhor?

   Sir Harvey piscou os olhos e disse, com bom humor:

   ‑ Não pior que uma longa caçada.

   O príncipe riu.

   ‑ Muito bem. Mandá‑lo‑ei em um dos meus melhores e mais ligeiros cavalos, acompanhado por dois homens muito efi­cientes para qualquer emergência. Se o senhor viajar em linha recta, na medida do possível, estará na Hungria muito mais depressa do que seguindo pela estrada, que é cheia de curvas e especialmente difícil quando se atingem as montanhas.

   ‑ Vou me aprontar. E confio‑lhe minha filha, que como sabe, é muito preciosa para mim.

   ‑ Logo que tivermos apresentado nossos respeitos ao czar, voltaremos ao castelo. De lá, levarei Vida a Sarospatak.

   ‑ Ficarei com a família Rákoczi até que atravessem a fron­teira. Eles são muito hospitaleiros, e tenho certeza de que me acolherão.

   ‑ Então, estamos combinados, e, pelo amor de Deus, apres­se‑se. Vida e eu iremos com calma à estação mais próxima da estrada de ferro.

   O príncipe e Sir Harvey saíram do quarto sem falar mais com Vida, que continuou na cama, imaginando o que reserva­ria o futuro. Mas estava tão amedrontada por causa do pai, que nada mais parecia importante.

   Contudo, não podia deixar de pensar, com certa satisfação, que não se separaria do príncipe tão cedo, como julgara, mas ficaria com ele mais alguns dias, talvez muitos.

   "Preciso não esquecer o que papai me disse", repetia ela para si mesma, mas sabia que não seria fácil.

   Estava começando a se vestir quando Sir Harvey voltou. Usava traje de montaria, e Vida correu ao encontro dele, abra­çando‑o.

   ‑ Prometa‑me que vai cavalgar o mais depressa possível. papai, pois, só após cruzar a fronteira, os homens do czar não lhe poderão fazer mal.

   ‑ É o que pretendo fazer. Seria terrível perda de tempo e esforço se eu falhasse agora.

   ‑ Tenho certeza de que mamãe o estará protegendo ‑ disse Vida com ternura ‑, e eu ficarei rezando pela sua segurança.

   ‑ Só lamento tê‑la envolvido nessa confusão. Mas Sua Alte­za tem razão: seria arriscado você viajar comigo. Além disso, irei mais rápido se estiver sozinho.

   ‑ Eu me encontrarei com você o mais depressa possível, e então nunca mais voltaremos a este lugar horrível e ameaçador. Mas, diga‑me uma coisa, papai, como é possível que a polícia secreta possa entrar em residências sem permissão?

   ‑ Eles fazem coisas muito piores que essa, mas falaremos sobre isso em outra ocasião. Agora, preciso ir, querida.

   ‑ Tem tudo o que necessita?

   ‑ Tudo, menos você. Seja cuidadosa, e faça o que Sua Alte­za mandar. Ele é bastante hábil, e goza da simpatia do czar. Assim, não estará em perigo.

   ‑ Não, claro que não, papai!

   Sir Harvey beijou‑a e, quando saiu do quarto, ela o ouviu falar com o príncipe, que o acompanhou até à porta.

   Foi à janela e viu o pai montar um magnífico garanhão, o mesmo que o príncipe cavalgara na véspera.

   Sabia que o pai era bom cavaleiro, e que iria ter muito prazer em viajar montado naquele excelente animal.

   Os dois acompanhantes também montavam cavalos tão bons que não poderiam ser ultrapassados por nenhum outro daquelas redondezas.

   ‑ A menos que a polícia secreta tenha asas, papai não será alcançado ‑ disse ela a Margit, que acabara de entrar, dirigindo‑se também à janela.

   ‑ Não desafie a sorte, dá azar ‑ replicou Margit.

   Vida observou o pai com ansiedade. Quando os três vultos desapareceram na estrada poeirenta, voltou para se vestir.

   ‑ Agora, preciso encontrar o czar ‑ disse ela em voz alta. Mas, sabia que seu coração dizia coisa diferente. De facto, estava dizendo que iria se encontrar com o príncipe, e que esse era o seu mais ardente desejo, embora tivesse medo de admiti‑lo.

 

   Depois de tomar o café da manhã no quarto, pronta para a viagem, Vida desceu ao encontro dos demais.

   O príncipe, na companhia dos anfitriões, esperava por ela. Não passou despercebido a Vida como a bonita dona da casa sorvia as palavras de Sua Alteza, insistindo em repetir como estava feliz em poder visitá‑lo algum dia no castelo.

   O príncipe beijou‑lhe a mão de uma maneira elegante, como só os cavalheiros autênticos sabem fazer.

   Depois, agradecendo ao casal mais uma vez pela hospitali­dade, ajudou Vida a entrar na carruagem.

   Ela esperava que Margit viajasse com eles, mas, para sua surpresa, a governanta, Henri e o camareiro do príncipe segui­ram em outra carruagem, levando a enorme bagagem de Sua Alteza.

   Vida reconheceu que ele precisaria de trajes adequados para a visita ao czar, e esperava que as roupas que Margit lhe puse­ra na mala estivessem à altura da ocasião e não o envergonhassem.

   ‑ Bem, Vida, eu lhe prometi que salvaríamos seu pai, e penso que já o fizemos ‑ ele falou, sorrindo.

   ‑ O senhor o salvou. Se não tivesse tomado providências por ocasião da visita dos agentes da polícia secreta, tudo estaria perdido.

   ‑ Isso me deu oportunidade de tê‑la em meus braços ‑ observou o príncipe com suavidade.

   Quando se lembrou do modo como ele a beijara, Vida sentiu‑se corar. Depois, concluiu que estava sendo tola em pensar que uma atitude de emergência pudesse ter alguma coisa de pessoal.

   Como se estivesse lendo o pensamento dela, o príncipe con­tinuou:

   ‑ Você é muito linda, e acho que a aprecio mais como jovem, inocente e intocada.

   Enfatizou essas palavras, e Vida ruborizou‑se outra vez. Não sabia o que dizer, e, depois de um momento, Sua Alteza prosseguiu:

   ‑ Percebo agora que foi ao castelo com a intenção de me cativar, idéia, aliás, muito inteligente. Mas acho que teria sido mais sagaz, do ponto de vista de despertar minha curiosidade, se se tivesse apresentado como você mesma.

   Vida respondeu, indignada:

   ‑ Como poderia fazer isso se nem ao menos sabia se seria seguro dar‑me a conhecer? As coisas talvez ficassem mais peri­gosas do que já eram!

   ‑ Claro, não poderia saber, e, assim, você me confundiu e, como planejara, me cativou.

   Vida exultou ao ouvir essas palavras.

   Mas lembrou‑se dos conselhos do pai e tentou se convencer de que o príncipe russo a estava apenas cortejando, como faria com qualquer mulher bonita nas mesmas circunstâncias.

   Perturbada, tentou mudar de assunto:

   ‑ Diga‑me alguma coisa sobre a região pela qual estamos passando agora. Sei que é a Ucrânia, e que é bem diferente do resto da Rússia.

   ‑ É verdade. Através da história os ucranianos sempre tive­ram características distintas das nossas, e uma língua própria.

   Sabendo que ela estava realmente interessada, ele lhe expli­cou como era Kiev, lugar onde iam encontrar o czar, a primeira cidade cristã da Rússia.

   ‑      O príncipe de Kiev fizera todo o povo ser baptizado no rio Dnieper, no ano 908 d. C.

    Por ter muito interesse em história, Vida ouviu‑o com a mesma atenção que uma criança prestaria a um conto de fadas.

   Durante a viagem, ele mostrou‑lhe florestas extensas cobertas de carvalhos e faias.

   Depois, chegaram a uma região sem árvores, de solo escuro, muito fértil.

   Por considerar o príncipe como um mágico, que conseguia tudo com um simples aceno de mão, Vida não se surpreendeu quando, ao chegarem à estação, encontraram o seu trem particular, que os levaria a Kiev.

   Chegando a uma aldeia, pararam para almoçar numa atraen­te estalagem, onde uma sala reservada tinha sido encomendada por ele, por intermédio de um cavaleiro enviado com antece­dência para lá.

   Comeram pratos especiais e beberam óptimo vinho, rece­bendo tratamento muito diferente do que foi dado aos outros viajantes.

   Era tão emocionante estar sozinha com o príncipe, poder falar com ele e observar seus olhos escuros e penetrantes fixos nos dela que, depois de algum tempo, Vida disse a si mesma que, prevenida ou não, iria usufruir o prazer dessa oportunidade enquanto pudesse.

   Tentava apenas não ser tão tola a ponto de pensar que os elo­gios que ele lhe fazia, ou a maneira sedutora como falava com ela, fossem sinceros. Mas, apesar de todo o empenho, seu cora­ção palpitava cada vez mais.

   "Ele tem um magnetismo que atrai todas as mulheres. Papai me preveniu disso. Por que hei‑de ser eu a única a resistir?"

   E, mesmo sabendo estar errada, desejava com ardor que ele a abraçasse e beijasse outra vez.

   Rememorava aqueles momentos em que os beijos dele a haviam transportado às nuvens; queria sentir de novo aquele fogo que a consumira.

   "Estou me iludindo", pensou ela quando terminaram a refeição.

   Quando o príncipe se sentou ao lado dela na carruagem e acomodou melhor a coberta sobre seus joelhos, ela estremeceu de prazer.

   A carruagem estava aberta, e Vida sabia que era porque o príncipe achava que todo mundo poderia vê‑los. Ele apenas obedecia às ordens do czar.

   Ela pensou também, embora não comentasse nada a esse respeito, que ele talvez imaginasse que seu pai já deveria estar se aproximando da fronteira.

   A menos que alguma coisa muito sinistra acontecesse, em duas ou três horas ele chegaria à Hungria e estaria a caminho do castelo dos Rakóczis.

   Como se adivinhasse o que ela estava pensando, o príncipe disse:

   ‑ Não se preocupe. meu sexto sentido me diz que seu pai chegará são e salvo.

   ‑ Esse é um sentido de que também faço uso, mas algumas vezes tenho medo de estar enganada.

   ‑ Mas o seu sexto sentido não a orientou bem a meu res­peito ‑ disse o príncipe sem se alterar.

   Achando que ele a censurava, Vida respondeu, após um instante:

   ‑ Na verdade, quis confiar no senhor, e juro que quase me convenci de que poderia fazê‑lo, até que vi Vladímir Demidovski entrar no seu quarto.

   ‑ Ele não deveria ter agido de maneira a fazê‑la suspeitar dele, em Budapeste. Vou repreendê‑lo por causa disso.

   Mas Vida desculpou‑o:

   ‑ Se eu fosse uma viajante comum, sem nada a ocultar, talvez pensasse apenas que ele procurava tirar vantagem de uma mulher desacompanhada. Mas, por causa de papai, eu des­confiava de tudo.

   ‑ Está sendo bondosa, mas espero perfeição em tudo o que se refere a mim.

   Vida riu e retrucou:

   ‑ Com que frequência se decepciona?

   ‑ Com muita. Em particular quando a situação envolve mulheres.

   Vida encarou‑o, curiosa, e ele pôs a mão sobre a dela, dizendo:

   ‑ Não me desaponte. Você é quase perfeita demais para ser real. Não vejo falhas em você.

   ‑ O senhor está pedindo muito.

   ‑ Acha?

   Vida não deu resposta, e desviou o olhar para os campos férteis pelos quais passavam. Uma hora mais tarde, chegaram a Kishineu.

   O trem do príncipe era luxuoso e muito confortável.

   Pintado de branco e vermelho, tinha o seu brasão nas portas, como nas carruagens.

   Os atendentes usavam o mesmo uniforme cor de vinho e dourado.

   O carro‑restaurante era ricamente decorado, e o quarto de Vida, onde deveria passar uma noite, ainda que pequeno, era luxuosamente mobiliado.

   O vagão, trabalhado com madeiras de árvores locais, era pintado e decorado de maneira incomum.

   O estofamento das poltronas e as cortinas eram de veludo.

   ‑ É tudo tão bonito ‑ Vida exclamou ‑, que acho que o senhor poderia morar aqui!

   O príncipe sorriu:

   ‑ Tenho tantas casas que não vejo necessidade disso.

   Vida provocou:

   ‑ O problema com o senhor é que é muito mimado! Sua Alteza tem tudo o que deseja. Agora mesmo pensei que o senhor é como um mágico: assim que expressa um desejo, ele é logo satisfeito.

   ‑ É o que aconteceu em relação a você ‑ replicou ele. ‑ Desejei‑a por muito tempo. Agora, quando quase havia perdi­do toda a esperança, aqui a tenho.

   Apesar de não querer levá‑las a sério, Vida não pôde deixar de se entusiasmar com aquelas palavras. Por felicidade, não precisou de responder, pois, nesse momento, os empregados come­çaram a servir champanhe e caviar.

   Nas proximidades de Kiev, havia muito a se observar pelas janelas. Mas Vida achou difícil desviar o olhar do rosto do príncipe, ou ouvir outra coisa que não fosse a música de sua voz profunda.

   Trocaram de roupa para o jantar, como se estivessem no castelo.

   Margit quis tirar da mala um dos vistosos trajes escolhidos para a viagem, mas ela protestou, dizendo:

   ‑ Dê‑me um dos meus. Um branco! Hoje quero ser eu mesma. amanhã, em Kiev, voltarei a ser a condessa Karólzi.

   Margit observou:

   ‑ Não sei o que sua mãe diria sobre tudo isso. O príncipe é um homem fino, não o nego, e foi um milagre o modo como salvou seu pai. Mas sabe muito bem que devia ter sempre junto de você uma dama de companhia.

   ‑ Pois posso lhe dizer que, quando chegarmos a Kiev, Sua Majestade, o czar, me fornecerá uma, e bastante eficaz!

   Mas Margit, em tom de repreensão, disse:

   ‑ Ouça uma coisa, Senhorita Vida. Tome cuidado com o prín­cipe. Ele já despedaçou muitos corações, e não quero que a senhorita seja mais uma vítima dele.

   Vida sentiu uma onda de ciúme, e quis responder a Margit que o conselho vinha um pouco tarde demais. O príncipe já aprisionara seu coração!

   Mas, apesar de tudo, tentava não se deixar influenciar pelo encanto dele, pelos elogios que lhe fazia e pela chama de seus olhos escuros.

   "Não posso esquecer", pensava, tentando convencer‑se, "que, quando tudo isso acabar, voltarei para a realidade de uma vida normal, e nunca mais o verei

   Quando entrou no carro‑restaurante, onde Sua Alteza a espe­rava, percebeu, pela expressão dos olhos dele, que conseguira agradar‑lhe.

   Com seu vestido branco, um leve toque de pó na pele ima­culada e, como único ornamento, uma rosa branca que tirara dum arranjo do quarto, ela parecia muito jovem, e estava lindíssima.

   O príncipe levantou‑se para recebê‑la, dizendo baixinho:

   ‑ Agora você não é mais um sonho. Tornou‑se realidade. Eu a

verei, assim, em minha imaginação, por muitos anos.

   Vida quis responder na mesma linguagem, mas ele era tão superior ao amante imaginário de seus sonhos, que a única coisa que pôde fazer foi encará‑lo, extasiada.

   Achava que nenhum outro homem poderia ser tão maravi­lhoso, tão atraente!

   Sentaram‑se lado a lado no sofá, para o usual champanhe e os deliciosos canapés.

   O jantar foi servido em grande estilo. Todos os detalhes eram perfeitos, como o príncipe exigia.

   Mais tarde, Vida não conseguiu se lembrar do que comera ou bebera, nem do tema da conversa.

   Estava apenas consciente de que o príncipe se achava perto dela, e de que as vibrações dele eram tão fortes que não só as sentira, mas quase chegava a vê‑las.

   Quando terminaram de jantar e finalmente ficaram a sós, o príncipe disse:

   ‑ Você teve um dia cansativo, por isso deve ir para a cama mais cedo, porque quero que esteja linda amanhã, quando che­garmos a Kiev.

   ‑ A que horas vamos chegar? ‑ perguntou Vida com ligeiro tremor na voz.

   Teve medo de que ele dissesse: 'Muito cedo", mas, em vez disso, com um sorriso, o príncipe respondeu:

   ‑ Acho que nenhum de nós dois quer passar mais tempo do que o necessário com Sua Majestade Imperial, e como a comida nos seus palácios é sempre incrivelmente ruim, determinei que nos servissem o almoço aqui, antes de entrarmos em contato com o czar.

   Curiosa, Vida quis saber por que a comida nos palácios reais era assim desagradável.

   ‑ O czar é tão frugal que chega às raias da miséria‑ explicou o príncipe. ‑ Desde sua ascensão ao trono, cortou todo entretenimento, e faz economias notáveis na comida e no vinho. Ordenou que o sabão e as velas fossem consumidos até ao fim, e que não se trocassem as toalhas de mesa todos os dias.

   ‑ Parece impossível! ‑ ela disse, rindo.

   ‑ Mas é verdade. E a comida preferida do czar é repolho com angu! Embora ele não imponha esses pratos aos seus con­vidados, todas as pessoas que vão ao Palácio de Gatshina quei­xam‑se de que a comida é intragável!

   ‑ Não posso acreditar ‑ disse Vida, pensando na enorme fortuna dos grão‑duques russos e nas extravagâncias deles quan­do viajavam pela Europa.

   ‑ A melhor coisa que podemos fazer é comermos tudo o que desejarmos, antes de nosso encontro com o czar.

   ‑ Mas é em seu próprio palácio que Sua Majestade Imperi­al fica, em Kiev?

   ‑ Não, o palácio pertence ao príncipe de Kiev, que é um homem muito liberal, mas, como qualquer súbdito que acolha imperador de todas as Rússias, não é tolo a ponto de exibir a própria fortuna.

   Vida sorriu.

   ‑ O que o senhor quer dizer é que, se ele fizesse, seria na certa taxado em impostos ainda maiores do que os que já paga.

   Desta vez, foi o príncipe quem riu.

   ‑ Posso ver que você não só entende o que está acontecend­o na Rússia, como também percebe que as coisas são diferentes depois de Alexandre II, o bondoso rei que o ante­cedeu.

   Vida ia perguntar sobre Alexandre II, quando ele acresc­entou:

   ‑ Ele era humano e compreensivo, porque amava. Amava uma mulher profundamente, e seu romance com ela asseme­lhava‑se a uma novela.

   ‑ Papai já me tinha falado sobre isso...

   Ela estava a ponto de perguntar ao príncipe se esse era o tipo de amor que ele procurava. Mas lembrou‑se que o czar Alexandre II tivera uma esposa ciumenta e infeliz, por causa desse amor que ele dedicava à sua amante.

   Era um assunto que Vida não queria discutir nesse momento, por isso, disse depressa:

   ‑ Conte‑me mais sobre o czar Alexandre III. Ficarei amed­rontada com ele?

   ‑ Ele assusta a maior parte das pessoas... incluindo a mim.

   ‑ Pensei que não tivesse medo de ninguém, nem de nada! disse Vida provocando‑o.

   ‑ Tenho medo de tudo o que concerne ao czar ‑ acresce­ntou o príncipe com seriedade ‑, porque ele é imprevisível. - Silenciou por um momento, depois continuou: ‑ Descrevi o czar de uma maneira preconceituosa. Mas, como o avô, ele é um homem devotado à esposa e aos cinco filhos, e é bondoso para com todos os membros de sua família.

   Vida pensou que isso não servia de consolo, se se considerassem os horrores que o czar havia perpetrado contra os judeus, ou contra qualquer de seus súditos que tivesse caído em desgraça.

   Contudo, não achou prudente falar sobre isso, e resolveu indagar do príncipe sobre os parentes dela, os Rákoczis, que ele conhecia melhor do que ela mesma.

   ‑ Sei que vão adorar ver seu pai. ‑ Depois, com a per­cepção que era sua característica, acrescentou: ‑ Noto que está cansada, apesar de se esforçar por não o demonstrar. Teve um dia muito difícil, mas, a estas horas, seu pai está salvo, e você poderá dormir em paz, sem medo.

   Obedecendo‑o, Vida levantou‑se; o príncipe fez o mesmo,. dizendo:

   ‑ Boa noite, meu sonho transformado em realidade. Quando estivermos viajando em uma direcção diferente da que seguimos agora, terei muito a lhe dizer. Mas vamos remover nossas dificuldades, uma a uma.

   Vida sorriu, e ele, impulsivamente, abraçou‑a.

   Por um momento, olhou fixamente para ela, como para gravá‑la na memória. Depois, perguntou:

   ‑ Como pode ser, além de tudo, tão bonita interiormente? É como se o seu coração falasse ao meu, sua alma à minha alma. Não posso perdê‑la!

   Sem esperar por uma resposta, beijou‑a apaixonadamente..

   O êxtase de seus beijos a levaram às estrelas, e Vida concluiu que nada do que dissessem a respeito dele poderia impedi‑la de amá‑lo.

   Poderia parecer loucura, mas seu coração lhe pertencia.

  

   O trem do príncipe estacionou num desvio da estação de Kiev, um pouco antes do meio‑dia. Lá, eles saborearam um delicioso esturjão, pescado no rio Dnieper naquela manhã.

   Havia também outros pratos, diferentes dos que tinham sido servidos até então.

   Quando Vida perguntou ao príncipe como isso era possível, ele explicou que dera instruções para que o chefe de cozinha, fosse ao mercado, para comprar tudo o que julgasse do gosto dos passageiros.

   ‑ Adoro tudo! Está delicioso!

   ‑ Acho que uma das coisas que aprecio em você é que, ao contrário de mim, não é nada mimada.

   Ela riu, e ele acrescentou:

   ‑ Como pôde supor que alguém pudesse tomá‑la por uma mulher vivida, quando se diverte com tudo como uma colegial, quando sua risada é tão jovial como o canto dos pássaros ao romper da aurora?

   ‑ O senhor diz coisas tão lindas e poéticas sobre mim, que quero tomar nota de tudo para que um dia, quando ficar velha, possa lê‑las e me lembrar de cada momento.

   ‑ Haverá outros dias a serem lembrados, meu tesouro.. Mas a carruagem está esperando, e é melhor seguirmos para o palácio, com a esperança de que Sua Majestade Imperial esteja de bom humor!

   O modo como ele falou, deixou Vida apreensiva.

   Mas achou que não era importante que ela viesse ou não a gostar do czar.

   Ele não significava nada para ela, apesar de o príncipe, como cidadão russo, ter de render‑lhe submissão.

   Lembrou‑se de que seu pai havia dito que ele era o favorito do czar, e achou muito hábil, da parte dele, manobrar as situa­ções contra as ordens de Sua Majestade, sem que este descon­fiasse de nada.

   O czar jamais suspeitaria que o príncipe tivesse ajudado pessoas como seu pai, assim como a muitos judeus que tinham sido banidos da Rússia de maneira cruel e odiosa, sem permis­são para levar nem mesmo objectos pessoais.

    O palácio era velho, e tinha sido em parte restaurado por vários príncipes de Kiev, que se haviam sucedido desde os primórdios da história russa.

   Enquanto seguiam na carruagem, Vida observou que a pequena cidade se espraiava de ambos os lados do rio Dnieper, sendo que, na margem esquerda, o terreno era acidentado, enquanto na margem direita havia uma extensa planície.

   ‑. Kiev é uma das cidades mais interessantes de nosso país. Nas crónicas, é descrita como a "mãe das cidades russas".

   ‑ É, na verdade, muito bonita mesmo!

   Finalmente chegaram ao palácio, de construção impressio­nante, bela e majestosa.

   Andaram por longos corredores até chegarem à entrada de um salão enorme, com piso de mármore e quadros e móveis magníficos.

   Foram recebidos por um lacaio, que os anunciou em voz imponente:

   ‑ Sua Alteza, o príncipe Ivan Pavolivski e a condessa Vida Karólzi!

   Quando o príncipe de Kiev se adiantou ao encontro deles para cumprimentá‑los, ela olhou de relance, pela primeira vez, para Sua Majestade, Alexandre III, o imperador de todas as Rússias.

   O pai lhe dissera que Alexandre era um gigante, e tinha orgulho de sua força física.

   ‑ Ele podia rasgar um baralho ao meio ‑ comentara Sir Harvey ‑, dobrar uma barra de ferro nos joelhos e esmagar um rublo de prata com as mãos.

   Vida rira e brincara:

   ‑ Não são qualidades muito úteis para um imperador!

   E agora, olhando para ele, concluiu que esses atributos bem simbólicos da força e da crueldade de um homem aterrorizava o país que governava.

   Com quarenta e dois anos de idade, o czar já era calvo. Tinha os olhos inexpressivos e se movia sem elegância.

   Mesmo considerando que quase todo o seu sangue era Alexandre tinha o obstinado e enigmático aspecto de um russo.

   Mas, ao cumprimentar o príncipe Ivan, ele sorriu, e quando Vida lhe foi apresentada e se curvou em amável saudação, é que sua expressão mudou e ela notou uma cruel crispação de lábios, cuja razão não pôde entender.

   O príncipe de Kiev, um jovem ansioso por ser perguntou ao príncipe Ivan sobre a viagem.

   ‑ Vim, assim que recebi ordens de Sua Majestade Imperial ‑ explicou Ivan.

   Olhou para o czar, esperando aprovação, e, ao fazê‑lo, entrou na sala. Vida reconheceu a princesa Eudóxia, que encontrara no castelo.

   Estava muito bonita, ainda mais bonita do que na última vez em que a vira.

   Usava um vestido feito na França, acompanhado de um colar de várias voltas de pérolas avantajadas e brincos de pérolas também. Era como se quisesse provar sua importância. Primeiro, saudou o czar, beijando‑lhe a mão e a face, e só então cumprimentou o príncipe.

   ‑ Que prazer vê‑lo outra vez, Ivan ‑ disse, apertando‑lhe a mão. ‑ Sinto‑me muito feliz por você ter podido chegar tão depressa.

   O modo como falou fez com que o príncipe a olhasse, sur­preso. Então, o czar disse:

   ‑ Eudóxia, que é uma Romanov, além de ser minha afilhada, me contou o quanto vocês significam um para o outro.

   Vida conteve a respiração. O príncipe retesou o corpo, en­quanto o czar continuava:

   ‑ Portanto, com muito prazer, eu lhes dou meu consenti­mento para que se unam em matrimónio.

   Ele falou de maneira que pareceu ser sincera. Os olhos de Eudóxia e de Vida se encontraram por um momento, e esta viu que esse fora o meio usado pela princesa para consumar sua vingança.

   Depois das palavras do czar, houve silêncio, até que o prín­cipe de Kíév falou:

   ‑ Caro amigo, não tinha idéia de que isso fora planejado! Parabéns! Desejo‑lhes a maior felicidade!

   Virou‑se para o czar, acrescentando:

   ‑ Majestade, conseguiu juntar duas das mais atraentes pes­soas que já conheci! No casamento deles, vai ser difícil saber quem os convidados apreciarão mais: o noivo ou a noiva!

   Riu de sua própria piada, sendo acompanhado pelo czar. Então, com uma expressão de malevolência inconfundível nos olhos, a princesa Eudóxia dirigiu‑se a Vida e estendeu‑lhe a mão.

   Quando a jovem a saudou, ela disse:

   ‑ Tenho certeza, condessa, de que me dará os parabéns. É bom vê‑la outra vez, depois de nosso encontro no castelo Ivan!

   Vida pôde ver então quem planejara tudo isso, e teve de admitir o plano fora muito bem arquitectado.

   Eudóxia, furiosa pelo facto de o príncipe a ter monopolizado no castelo, devia ter se retirado imediatamente, e, indo ao encontro do czar, pedira‑lhe permissão para que ela e Ivan se casassem.

   Mas, para uma mulher ofendida, isso não seria suficiente.

   Ela se propusera também a se vangloriar perante Vida, pois percebera o interesse do príncipe pela moça, e não duvidava de que eles fossem amantes.

   Forçando um sorriso, mesmo sentindo‑se como se o mundo estivesse desabando, Vida disse:

   ‑ É verdade, Alteza, que será a mais linda noiva que a Rússia, ou qualquer outro país, já viu. Naturalmente, desejo‑lhe felicidades, agora... e para sempre!

   Não pôde evitar um pequeno tremor de voz ao pronunciar as últimas palavras.

   Mas a princesa apenas esboçou, triunfante, o sorriso de uma mulher que se vingara, transformando o que parecia uma der­rota numa grande vitória.

   O príncipe Ivan ainda não tinha dito nada, e, como se pressentisse algo errado, o czar disse sem rodeios:

   ‑ Sempre gostei muito de você, meu filho, e já está na hora de estabelecer uma família. Eu já estava casado quando tinha a sua idade.

   O príncipe continuou calado, e o czar prosseguiu:

   ‑ Vai se casar, é claro, em São Petersburgo, e proporcionar uma recepção no Palácio de Inverno.

   ‑ É muita generosidade sua, Majestade ‑ disse o príncipe finalmente, com voz firme.

   Vida achou que a voz dele, para todos, excepto para ela, soara calma e normal.

   Mas o seu sexto sentido lhe dizia que ele estava zangado, furioso mesmo, por ter sido apanhado nessa armadilha.

   Mas o imperador da Rússia ordenara, e o príncipe tinha de obedecer!

   Apenas quando Vida subiu para o quarto, onde Margit a esperava, foi que o sorriso que parecia grudado em seu rosto se desvaneceu.

   Logo que a governanta a acompanhou ao quarto e fechou a porta, todo o seu corpo pareceu se desmantelar, como se a vida que o mantinha o abandonasse de repente.

   Com passos inseguros, aproximou‑se de uma chaise‑longue que estava aos pés da cama e sentou‑se. Margit exclamou, apreensiva:

   ‑ Que houve, Senhorita Vida? Está doente?

   Como Vida não conseguisse responder, Margit repetiu:

   ‑ Se acha que vai desmaiar, vou lhe buscar um cordial.

   ‑ Não.. não... Estou bem ‑ Vida esforçou‑se em dizer.

   Tirou o chapéu e disse, numa voz que não parecia ser a sua:

   ‑ O czar acaba de anunciar o casamento do príncipe Ivan com a princesa Eudóxia!

   Margit encarou‑a por um momento, como se não tivesse en­tendido. Depois, enquanto apanhava o chapéu de Vida, observou:

   ‑ É, na verdade, uma surpresa, mas esse acontecimento não devia preocupá‑la.

   ‑ Claro que me preocupa! Ele não quer se casar com ela!

   ‑ Então, não devia ter iludido essa moça ‑ Margit retor­quiu. ‑ Ouvi dizer, quando estávamos no castelo, que uma das hóspedes do príncipe saíra de maneira precipitada na manhã seguinte à nossa chegada. A governanta achou muito estranha essa atitude, pois ela devia permanecer lá no mínimo uma semana! A dama de companhia teve de partir também, e estava muito aborrecida por isso.

   ‑ A princesa teve ciúmes das atenções que o príncipe me outorgava.

   ‑ Bem, não adianta nada chorar sobre o leite derramado, e, se quer minha opinião, quanto mais cedo sairmos daqui, tanto melhor! Não se pode confiar nesses russos!

   ‑ Concordo com você, Margit. A princesa pediu‑me que acompanhasse o príncipe aqui, simplesmente, para se vanglo­riar de sua vitória.

   Estavam falando em inglês, e Vida temeu que alguém pudes­se entender o que Margit falara e suspeitasse que ela não era russa.

   Pôs os dedos nos lábios para prevenir Margit de que estava sendo indiscreta, e a velha empregada, entendendo o sinal, disse em francês:

   ‑ Eu não deveria ser rude com suas patrícias, não é? Mas espero que não tenha esquecido que prometeu ficar com seus parentes na Hungria, logo que voltarmos.

   ‑ Não esqueci, e tudo o que quero é ver meus amigos outra vez.

   Estava, é claro, pensando no pai. Imaginava que, quando lhe contasse toda a história, ele entenderia e não a culparia.

   Ao pensar no pai e nos seus conselhos, disse a si mesma que, se tivesse algum resquício de orgulho, não deixaria a princesa, ou o príncipe Ivan saberem o que estava sentindo.

   De qualquer maneira, foi uma tola em acreditar em tudo o que ele dissera no trem, porque, mesmo naquele momento, não havia nada definido sobre o futuro deles.

   Tinha absoluta certeza de que a idéia de um casamento com ela jamais passara pela cabeça do príncipe, e, assim como tenta­ra conquistá‑la no castelo, ela suspeitou de que, ao voltarem para lá, ele tentaria de novo fazer o mesmo.

   "Eu teria muita dificuldade em resistir a ele", pensou, e teve vergonha de ser tão fraca a ponto de, por um momento que fosse, pensar em trair os princípios nos quais fora educada.

   Haviam‑lhe ensinado que era errado permitir que um homem a beijasse, a menos que tencionassem se casar.

   Mas, apesar disso, quando o príncipe a beijara, tivera uma sensação diferente de qualquer outra que já imaginara em sonhos, no entanto, isso não lhe parecera errado, mas antes uma coisa divina.

   "Como posso questionar alguma coisa que me parece vinda de Deus?", ela se perguntou.

   Mas sabia que estava sendo punida pelo que fizera, e não devia queixar‑se.

   Pôs os pés na chaise‑longue, deitou‑se nas almofadas e fechou os olhos.

   Sem perceber, começou a apelar para aquele poder da mente que ela e o pai usavam.

   Sempre que se encontravam numa situação difícil, sendo impossível lançar mão de outro tipo de comunicação que pudesse revelar sua identidade, Sir Harvey e Vida usavam o poder da mente.

   Mas o que acontecera na Rússia fora muito mais perigoso, muito mais assustador do que qualquer outra experiência por que já passara.

   Se a polícia secreta tivesse capturado seu pai, como preten­dia fazer, ele seria torturado até que revelasse as informações desejadas.

   Depois disso, provavelmente seria exterminado.

   Entretanto, ele estava salvo, mas, para Vida, o preço fora alto: ficara perdidamente apaixonada por um homem que já atraíra dúzias de mulheres antes dela e, por certo, atrairia outras dúzias no futuro. Não havia esperança de que seu amor fosse correspondido.

   Agora, esse homem seria obrigado a pagar seu pecado, por ser um cortejador irresponsável.

   A princesa Eudóxia se vingara com tanta habilidade que o fizera seu prisioneiro pelo resto da vida.

   Vida conhecia a Rússia bastante bem para saber que a pala­vra do czar era lei; qualquer súbdito que lhe desobedecesse seria mandado para o patíbulo ou, na melhor das hipóteses, para a Sibéria.

   Ouvira muitas histórias sobre os horríveis sofrimentos dos russos que tinham contrariado o czar de uma maneira ou de outra. Nem os nobres escapavam. Eram levados acorrentados

   . para as minas de sal, seus bens confiscados, e suas famílias, lançadas na miséria.

   Mas não aconteceria nada disso ao príncipe Ivan. Ele se casa­ria com a linda Eudóxia, e ficaria ainda mais íntimo do czar.

   Vida sabia que ele prezava a liberdade. Haveria outras mu­lheres em sua vida, por certo, mas a princesa Eudóxia era muito possessiva e ciumenta. Ele não poderia mais ostentar abertamente seus casos de amor.

   "Castigo bem merecido! ", pensou Vida consigo mesma.

   Mas esse consolo não ajudava a minorar a sua dor.

  

          Depois de banhada e vestida num dos exóticos modelos que trouxera para usar no castelo, Vida decidiu não demonstrar sua perturbação pelo que tinha ocorrido.

  Mas, por sentir‑se fraca, pediu a Margit uma colher de co­nhaque, que elas sempre levavam nas viagens, como remédio.

   Depois dessa providência, achou que seus olhos ficaram mais brilhantes e menos pisados.

   Pôs ruge nas faces, escureceu os cílios e colocou na cabeça uma tiara que havia pertencido à mãe, e que julgava ser tão valiosa quanto as jóias da princesa Eudóxia. Depois, desceu para a sala da ceia.

   Um lacaio esperava‑a no grande saguão, para conduzi‑la à sala onde todos se haviam reunido antes do jantar.

   Ao entrar, Vida ficou contente por ver que se tratava de uma grande festa.

   Alguns convidados, segundo Margit, estavam hospedados no castelo, outros tinham vindo somente para a ceia.

   Os homens, muito elegantes, usavam decorações nos seus trajes de rigor ou fardas.

   Mas o príncipe se destacava, com a faixa de São Miguel atravessada no peito e inúmeras condecorações de diamantes na sua roupa de gala.

   As mulheres ofuscavam, em seus trajes de noite, mas Vida sentiu‑se à altura delas.

   Quando o anfitrião a apresentou, ela se esforçou em ser agradável, elogiando as mulheres e sorrindo de maneira provo­cante para os homens.

   Todos conversavam alegremente, quando o czar entrou na sala; então, um repentino silêncio caiu como uma névoa sobre o grupo reunido.

   Todos ficaram alinhados formalmente para recebê‑lo. Foi nessa hora que Vida notou o príncipe Ivan ao lado dela.

   Por um momento, os dois se fitaram, e ela percebeu expressão de dor nos olhos dele.

   Desviando o olhar, tentou se convencer de que devia preocupar com o seu sofrimento, e não com o dele. Para bem, devia tratar de esquecê‑lo. Mas uma força invisível atraía para ele, inexoravelmente.

   Sem querer, olhou para ele novamente, e, apesar de todo o esforço para evitá‑lo, Vida sentiu aquela fagulha de emoção dentro de si, que sempre vinha um segundo antes de ele abraçá‑la.         

   Porém, enquanto tentava impedir que essa emoção transbor­dasse e chegasse ao coração e aos lábios, a princesa Eudóxia atravessou a sala e passou o braço pelo de Ivan.

   Ao fazê‑lo, jogou a cabeça para trás e, num gesto sensual, encostou seu lindo rosto no tecido escuro do casaco do príncipe.

   Lábios entreabertos, olhos apaixonados, ela parecia querer anunciar, em altos brados, o quanto o desejava.

   Foi então que, em vez do êxtase, Vida sentiu ódio no cora­ção e se assustou com a violência de suas emoções.

 

   Vida dormiu chorando, e acordou sentindo‑se infeliz e com uma terrível dor de cabeça.

   Permaneceu deitada na penumbra, desejando não ter acor­dado e poder voltar à inconsciência.

   Margit entrou no quarto para abrir as cortinas, dizendo:

   ‑ Está na hora, Senhorita Vida. Fui informada de que vamos partir hoje.

   Vida esforçou‑se em abrir os olhos.

   Na véspera, pensara que seria obrigada a suportar uma longa e terrível noitada. Mas o czar retirou‑se logo depois da meia‑noite, e a festa terminou.

   Vida sabia que Sua Majestade Imperial não gostava de per­manecer acordado até altas horas, e, quando estava no Palácio de Inverno, ele perambulava desajeitadamente pelos salões de recepção, até que, às duas horas da madrugada, começava a olhar no relógio.

   ‑ As festas russas ‑ explicara Sir Harvey ‑ não costu­mam terminar antes do café da manhã, às seis horas. Mas o czar tem o embaraçoso hábito de dispensar as figuras da orques­tra, uma a uma. Quando o conjunto fica reduzido ao pianista e ao violinista, até o mais entusiasta convidado sente que é hora de voltar para casa!

   Lembrando‑se do comentário do pai, Vida não ficou sur­preendida com o comportamento do czar na noite anterior, embora nessa eventualidade ele não fosse o anfitrião.

   Ele conversou com uma pessoa de cada vez, uma após outra, e mal terminava uma conversa antes de começar uma nova.

   O czar se dirigiu a ela também, logo que saíram da sala de jantar.

   ‑ Não me lembro de seu nome de família, condessa ‑ disse ele de maneira abrupta, como se a acusasse de men­tirosa.

   ‑ Sinto dizer‑lhe, Majestade, que a maior parte de meus parentes já morreram - replicou Vida. ‑ Os que estão vivos são muito idosos, e raramente viajam.

   Ele a examinou como se ela fosse um cavalo que ele quisesse avaliar. Então, disse:

   ‑ Soube que é viúva. Presumo que procure um marido.

   Vida tentou responder de maneira suave.

   ‑ Espero, Majestade, encontrar alguém que me ame e a quem eu possa corresponder.

   ‑ Amor? ‑ exclamou o czar com aspereza. ‑ O que quer, mulher tola, é segurança e um homem que a proteja!

   ‑ Espero ter a sorte de encontrar um, Majestade ‑ res­pondeu ela.

   Ele afastou‑se, como se continuar a conversar com ela fosse perda de tempo.

   Fazendo esforços desesperados para não olhar na direcção do príncipe Ivan, Vida trocou palavras com uma senhora de idade que estava sentada num sofá perto dela.

   Quando as visitas que tinham vindo de fora começaram a se retirar, ela viu o príncipe só, no outro extremo da sala, e pensou em dirigir‑se a ele.

   Como se tivesse sentido as vibrações do pensamento de Vida, Ivan virou‑se para ela, e seus olhos se encontraram. Mas, antes que ela pudesse saber o que ele estava sentindo ou pensando, ele desviou o olhar e dirigiu‑se para perto da Eudóxia, que nesse momento se despedia dos con­vidados.

   Vida achou que, com essa atitude, ele procurara demonstrar que nada mais tinha a ver com ela.

   De repente, sentiu‑se fraca, e percebeu que ia desmaiar.

   Mas o orgulho a salvou, e ela pegou um copo que estava sobre uma mesa e bebeu o seu conteúdo, sem saber se era água, vinho ou veneno, pois isso pouco lhe importava agora.

   Quando se sentiu melhor, achou mais prudente ir para o quarto.

   Passou por algumas pessoas que se despediam do anfitrião, à porta.

   Quando chegou perto do príncipe de Kíev, preparando‑se para pedir‑lhe desculpas por se retirar tão cedo, a princesa Eudóxia dirigiu‑se a ela, dizendo:

   ‑ Ouvi dizer, condessa, que vai partir amanhã, e desejo despedir‑me.

   Vida saudou‑a:

   ‑ Adeus, Alteza.

   ‑ Espero que seja mesmo um adeus ‑ replicou ela em voz baixa, para que apenas Vida pudesse ouvir. ‑ Farei qualquer esforço, condessa, para que nunca mais nos encontremos.

   Havia veneno na sua voz e em seu olhar, e Vida não respondeu.

   Saudou‑a de maneira um pouco mais exagerada que antes, sarcasticamente, e em seguida despediu‑se do anfitrião.

   Quando chegou ao quarto, sentiu‑se como se o tecto estivesse desabando sobre sua cabeça. Para ela, o futuro não mais interessava.

   Só quando começou a se despir é que as lágrimas lhe cor­reram pelas faces, como se cada uma fosse uma gota de sangue.

  

   Surpreendida pelo que Margit lhe dissera, Vida perguntou:

   ‑ Quem disse a você que partiríamos hoje?

   ‑ Um dos empregados do palácio ‑ replicou Margit. ‑ Ele me disse que uma carruagem nos levaria à estação da estra­da de ferro à uma hora. Informou também que um almoço será preparado para nós ao meio‑dia. Mas, como vamos viajar no trem de Sua Alteza, creio que é melhor almoçarmos lá, pois a comida é muito melhor do que a deste palácio!

   Vida arregalou os olhos, perguntando:

   ‑ Como sabe que vamos viajar no trem do príncipe Ivan?

   ‑ O camareiro dele me disse.

   ‑ Disse mais alguma coisa?

   ‑ Sim, ele disse que o czar, o príncipe e a princesa Eudóxia iriam ao Mosteiro das Cavernas, e não voltariam para almoçar.

   Vida sabia que o Mosteiro das Cavernas era uma das curiosi­dades da região, e que todos os príncipes de Kíev eram enter­rados na antiquíssima igreja, anexa a ele.

   Estava muito grata ao príncipe por ter‑lhe providenciado, ainda que não tivesse mais interesse nela, uma viagem de volta confortável. Ele lhe dissera que tinha muitas coisas para lhe contar, quando retornassem.

   Mas agora, voltaria sozinha, ao passo que ele iria de Kíev para São Petersburgo, com sua linda noiva.

   "Ele é apenas um meteoro que passou flamejante em minha vida, como papai me disse", lembrou‑se Vida, "e fui muito tola em imaginar que um meteoro se demoraria tempo suficien­te... para me dizer... como te amo, Vida!".

   Lágrimas recomeçaram a correr em seu rosto, e ela recostou‑­se nos travesseiros.

   Preocupada com seu silêncio, Margit chegou perto da cama e perguntou:

   ‑ Agora, o que a aborrece, Senhorita Vida? Se for Sua Alteza, procure esquecê‑lo!

   Vida fechou os olhos e não respondeu.

   Margit continuou:

   ‑ O camareiro dele me contou que a princesa Eudóxia estava com a idéia fixa de casar‑se com ele, e perseguiu‑o como se ele fosse um animal de caça.

   ‑ Não quero mais ouvir falar nisso ‑ murmurou Vida.

   ‑ Muito bem, faça como quiser. Mas qualquer nobre de alguma importância, nesse país, não pode se casar sem o con­sentimento do czar, e se Sua Majestade decidiu que ele deve se casar com determinada pessoa, não há como evitá‑lo ‑ continuou Margit.

   ‑ Eu sabia disso.

   Falou como se sua voz viesse de muito longe.

   Mais tarde, levantou‑se, e depois de ter tomado um banho, sentiu‑se melhor.

   Maquilhou‑se, usando os cosméticos habituais da condessa Kárólzi, achando que o faria pela última vez.

   Não se vestiu com um dos vistosos trajes que usara na chega­da, mas com um de seus graciosos vestidos, e um chapéu de flores, em vez de plumas.

   ‑ Um vestido simples como esse não combina com essa maquilhagem exagerada ‑ observou Margit.

   ‑ Eu sei. Mas, logo que tomarmos o trem, lavarei o rosto e voltarei a ser eu mesma. Estou cansada de disfarces e mentiras, e de ter medo de falar.

   ‑ Eu também ‑ concordou Margit. ‑ A melhor coisa que temos a fazer, Senhorita Vida, é voltarmos para a Inglaterra e fazermos Sir Harvey se comportar bem, para que não crie mais problemas.

   Vida riu.

   ‑ Temos de nos esforçar para conseguir isso! Não se esque­ça, Margit, de que ele vai ser embaixador em Paris, o que sig­nifica que moraremos numa cidade cheia de vida e, sem dúvida, cheia de ciladas.

   Margit torceu o nariz.

   Mas ela sabia que a França era muito diferente da Rússia, e ao menos não teriam medo de encontrar, a cada momento, a polícia secreta.

   Momentos depois, desceram e entraram na carruagem que as esperava.

   Um dos representantes do príncipe de Kíev estava presente, e ela pediu‑lhe que agradecesse a Sua Alteza pela hospi­talidade.

   Em seguida, dirigiu‑se à estação. Henri esperava‑as na pla­taforma com alguns funcionários do palácio, acompanhado do usual número de criados de libré do príncipe Ivan.

   Tudo tinha sido preparado para proporcionar a Vida uma viagem confortável, e assim que ela se acomodou no carro‑restaurante, ofereceram‑lhe champanhe e caviar, que ela recusou.

   Como estivessem demorando para partir, Henri explicou que, sendo o trem do príncipe especial, tinha de esperar uma vaga na linha ferroviária.

   Finalmente, o trem começou a se locomover, e os empregados do palácio saudaram‑nos em despedida.

   Vida foi ao quarto que usara antes, para tirar o chapéu. Aproveitou a oportunidade para lavar o rosto e retirar a maquilhagem. Ao fazê‑lo, sentiu‑se como se estivesse eliminando todos os vestígios da aventura que a levara à Rússia para tentar salvar o pai.

   Vencera, claro, vencera, mas à custa de perder o coração para uma pessoa que estragara toda a sua vida.

   Ela sabia agora que nunca mais poderia voltar a se apai­xonar.

   "Acho que nunca mais me casarei", pensou, "porque não me casarei sem amor".

   O trem ganhou velocidade distanciando‑a cada vez mais do príncipe.

   Devia estar muito pálida e abatida, pois Margit insistiu para que se deitasse e descansasse, dizendo:

   ‑ Não há nada a fazer, além de olhar pela janela, e a paisa­gem é a mesma que nós vimos ontem, quando viemos.

   ‑ Só ontem? ‑ murmurou Vida.

   Ela achava que séculos se haviam passado desde que se sentara nesse mesmo trem com o príncipe, sentindo‑se entusias­mada com tudo o que ele dizia e experimentando aquela emoção intensa ao contato da mão dele.

   ‑ Sim, vou me deitar, Margit ‑ respondeu, achando que encontraria um pouco de paz no sono.

   Mas foi impossível dormir, pois, de olhos fechados, via o. príncipe na sua frente e ouvia‑lhe a voz.

   Recordou‑se de cada palavra que ele lhe dissera.

   Sentiu os lábios dele nos seus, e perguntou‑se com raiva por que tinha sido tão tola a ponto de mandá‑lo retirar‑se do quarto, quando ele queria fazer amor com ela.

   "Ao menos, teria alguma coisa de que me lembrar", pensou.

   Mas envergonhou‑se por esquecer os princípios em que fora educada, os ensinamentos que a mãe lhe dera e a noção do certo e do errado.

   Ouvia o ruído do trem, como se as rodas lhe dissessem:

   "Acabou! Acabou! ", repetindo essas palavras para que ela as gravasse para sempre na memória.

  

          Vida acordou com Margit ao seu lado, dizendo‑lhe que os empregados queriam saber se estava pronta para jantar.

   ‑ É assim tão tarde, Margit?

   ‑ Está ficando tarde, e se quer um conselho, coma alguma coisa e volte para a cama. Temos uma longa jornada a vencer, segundo os atendentes.

   Vida teve vontade de perguntar para que cidade da Hungria iriam.

   Sabiam que os trens russos não chegavam a Sarospatak. Se o fizessem, teria tomado um deles para ir ao castelo do prín­cipe, em vez de viajar de carruagem.

   Mas não valia a pena dar‑se ao trabalho de fazer tal indaga­ção, por isso, seguiu o conselho de Margit e foi ao carro‑restau­rante para jantar.

   Os empregados do príncipe serviram‑lhe uma refeição deliciosa.

   Não estava com fome, mas, para não desapontar o chefe da cozinha, que fizera todo o possível para agradar‑lhe, comeu um pouco de tudo o que lhe foi oferecido.

   A noite caiu, e logo as cortinas foram fechadas. Por isso, Vida não pôde mais olhar através das janelas, ficando sem saber por onde estavam passando, se pelas florestas, ou pelas férteis planícies que o príncipe lhe mostrara na viagem de ida.

   De qualquer forma, nada disso conseguia interessá‑la.

   Foram para o quarto. Margit ajudou‑a a se despir, vestindo‑lhe uma linda camisola. Em seguida, sentou‑se ao lado da cama, dizendo:

   ‑ Agora durma, Senhorita Vida. Também vou para meu quarto, pois, se não está cansada, eu estou!

   Vida entendeu e insistiu:

‑ Você parece fatigada, Margit. Não se preocupe comigo. Para variar, pense um pouco em você e não em mim.

‑ Farei isso quando estivermos são e salvos, fora da Rússia! Mas, por estranho que pareça, quando a empregada se reti­rou, Vida não foi para a cama. Vestiu um néglige, voltou ao carro‑restaurante e sentou‑se no sofá.

Havia ficado ali durante horas com o príncipe, e sentia nesse momento como se ele estivesse a seu lado e ela pudesse contar‑lhe tudo o que sentia.

Mais uma vez rememorou as horas felizes que tinha passado com ele e os sentimentos que ele lhe despertara. Só depois de estar nesse devaneio por algum tempo é que percebeu que o trem tinha parado.

Supôs que estivessem esperando outra vez espaço na linha para continuar a viagem, ou que um trem indo para Kíev tivesse de passar antes deles.

Com a parada do comboio, não mais foi perseguida pelo som das rodas nos trilhos, que lhe falava com aquela linguagem martirizante.

O carro‑restaurante estava na penumbra, pois os empregados haviam diminuído a intensidade das luzes quando todos se recolheram, mas ainda se podia ver o bom gosto e o luxo com que fora decorado.

"É parte da perfeição que ele ama", pensou Vida com um esboço de sorriso.

Foi nesse momento que ouviu um galope de cavalos, e achou estranho que alguém estivesse com tanta pressa àquela hora.

O som se aproximava, e parou de súbito, bem perto dela. Com uma sensação de pavor, Vida pensou que a polícia secre­ta tivesse chegado.

Seria possível que a princesa Eudóxia, por causa de seu ciúme devorador, tivesse descoberto que ela não passava de uma impostora?

Teria a polícia secreta decidido submetê‑la a um daqueles terríveis interrogatórios de que ela tanto ouvira falar?

O terror tomou conta de Vida como um raio fulminante. Ouviu vozes, mas não pôde se mover. De qualquer maneira, se quisesse se esconder, não saberia onde, pois não havia nenhum lugar para ir. Apertou as mãos até as juntas ficarem lívidas.

   Ouviu a porta externa do trem se abrir e passos que se aproximavam pelo corredor, que levava ao carro‑restaurante.

   Alguém entrou, mas Vida não ousou olhar, nem mesmo respirar.

   Mas, como se impelida por uma força estranha, virou a cabe­ça e deu uma olhada em volta.

   Em pé, olhos fixos nela, estava o príncipe!

   Por um segundo, achou que sonhava. Quando ele se encami­nhou na direcção dela, Vida deu um grito surdo, como se alguém a estivesse estrangulando.

   Ele se aproximou mais, e só então, como se revivesse, Vida levantou‑se e tentou balbuciar, numa voz que não parecia a sua:

   ‑ Por que veio? Aconteceu alguma coisa?

   Passou pela sua cabeça que talvez ele tivesse vindo para lhe dizer que Sir Harvey fora capturado.

   Mas ele sorria, e abraçou‑a, apertando‑a contra o peito.

   ‑ Meu amor, vim por sua causa! ‑ disse ele apaixonada­mente, e colou os lábios nos dela.

   Vida não podia entender nada, mas uma onda de emoção percorreu todo o seu corpo.

   Um selvagem e irresistível êxtase surgiu como uma chama que se queimava contra o calor dos lábios do príncipe.

   Ele a beijava e a abraçava, todo o seu corpo se confundia com o dela!

   Quando o trem começou a se pôr em movimento outra vez, o príncipe levou‑a ao sofá, sempre apertando‑a nos braços.

   Somente quando a beijou no pescoço foi que ela disse:

   ‑ Por que está aqui? Oh, Ivan o que aconteceu?

   ‑ Querida, meu amor! Meu coração, minha vida! Você pensou por um minuto que eu a perderia?

   ‑ O que está dizendo?

   ‑ Digo, meu tesouro, que estou pondo em risco a sua vida e a minha, num jogo louco, e podemos começar a rezar para não sermos apanhados.

   Vida empurrou‑o de leve, colocando as mãos em seu peito, e suplicou:

   ‑ Diga‑me, explique‑me... O que significa tudo isso?

   Ele sorriu e disse:

   ‑ Há só uma coisa a ser explicada: eu amo você! Adoro!

   - Eu também te adoro! E achei que nunca mais nos veríamos.

   ‑ Tinha certeza de que você estava pensando isso, minha jóia preciosa, mas não havia um meio de pedir‑lhe que confiasse em mim.

   Ele tentou beijar Vida outra vez, mas ela disse:

   ‑ Ainda não entendo...

   O príncipe abraçou‑a, dizendo:

   ‑ Estamos fugindo, meu amor, e, como já lhe disse, preci­samos rezar para alcançarmos a fronteira sem ser reconhecidos.

   ‑ Quer dizer que.. vai comigo?

   ‑ Quero dizer que vou casar‑me com você, assim que sair­mos da Rússia.

   Vida olhou‑o, perplexa, como se não acreditasse no que ouvia.

   ‑ Casar‑se... comigo?

   ‑ Você deixou as coisas muito claras, demonstrando que não aceitaria meu amor a menos que nos casássemos ‑ disse o príncipe com um leve sorriso.

   ‑ Mas não vai se casar com a princesa Eudóxia?

   ‑ Isso era idéia dela, não minha.

   ‑ Bem... e o czar?

   ‑ O czar vai ficar furioso, muito irritado mesmo! Porém, quando estivermos fora do país, não há nada que ele possa fazer.

   Vida encarou‑o, espantada, e exclamou:

   ‑ Mas ainda não entendo... pois com certeza ele confis­cará seu castelo e suas propriedades, não é mesmo?

   ‑ E que faça bom proveito de tudo! A única coisa que quero, minha alma, é você!

   ‑ Não pode estar falando sério!

   ‑ Sim, muito sério! Seríssimo!

   Os olhos de Vida encheram‑se de lágrimas. Perguntou, titubeando:

   ‑ Como pôde agir assim tão altruisticamente? Não posso deixá‑lo fazer isso por mim!

   ‑ Não vai conseguir me impedir.

   ‑ Eu te amo, e você sabe disso. Mas suponhamos que se arrependa de ter desistido de suas posses, de sua fortuna?

   O príncipe olhou‑a demoradamente, e perguntou:

   ‑ Tem medo de ser pobre em minha companhia?

   ‑ Não... claro que não! ‑ protestou Vida. ‑ Eu amo você com tanta paixão que, se tivéssemos de viver numa tenda nas estepes da Hungria, ou numa casinha na Inglaterra, seria para mim uma perfeita bem‑aventurança, que eu adoraria... dividir com você.

   Ela falou com uma sinceridade tão apaixonante na voz que provocou uma expressão de ternura imensa nos olhos do prín­cipe, que poucas pessoas já tinham tido a oportunidade de ver.

   ‑ Acredito em cada palavra do que você disse.

   ‑ Sabe que penso assim! Mas você nunca foi pobre, e, embora papai tenha economizado alguma coisa para mim, terá de se privar do luxo em que vive. E... não posso acreditar que qualquer mulher valha esse sacrifício.

   ‑ Qualquer mulher não valeria isso! A única coisa de que não desistirei é de você. Você é diferente, amor, e levaria uma existência para lhe contar a que ponto.

   ‑ Mas penso que ainda não entendeu...

   ‑ Não entendi o quê?

   ‑ Que, se você tiver de viver como uma pessoa comum não será um homem importante como é agora, e não usufruirá da perfeição que sempre procura. Tenho de fazê‑lo pensar nisso, antes que faça alguma coisa irremediável, da qual possa se arrepender mais tarde.

   Afastou‑se um pouco do príncipe e continuou, sem olhar para ele:

   ‑ Já pensou o que seria a vida ‑ sem muitos emprega­dos... sem seus cavalos... sem seu trem particular?

   Ela tomou fôlego e prosseguiu:

   ‑ Sempre pôde receber seus amigos num luxo sem limites, viajar para onde quisesse e realizar milhões de coisas que faziam você, como já lhe disse uma vez, se assemelhar a um mágico das Mil e Uma Noites.

   Baixou um pouco a voz, antes de perguntar:

   ‑ Você tem certeza de que eu valho a perda de tudo isso?

   O príncipe fê‑la virar‑se para ele, tocando‑a de leve.

   ‑ Olhe para mim, Vida! Olhe dentro dos meus olhos!

   Emocionando‑se com o contacto das mãos dele, ela lhe obe­deceu.

   Quando os olhos de ambos se encontraram, suas vibrações se uniram de uma forma magnética e inexplicável.

   ‑ Eu amo você... ‑ o príncipe disse com voz grave ‑ e você me ama! Acha que alguma coisa no mundo pode ser mais importante do que o sentimento de um pelo outro?

   ‑ Não... de minha parte... ‑ sussurrou Vida.

   Ele não falou mais. Limitou‑se a puxá‑la com firmeza, bei­jando‑a com um calor que percorreu todo o seu corpo.

   Era como mergulhar na chama ardente do sol! Beijou‑a até que ela concluiu que, mesmo morrendo naquele instante, já teria atingido a perfeição da vida, e nada mais, emo­cionalmente, poderia ser superior a esses momentos.

   O príncipe afastou‑a e disse:

   ‑ Não discuta mais comigo! Não quero ouvi‑la! Sei o que quero, sei o que pretendo conseguir, e é você!

   ‑ Como eu te amo... Eu te adoro, eu te venero!

   Ele beijou‑a e, envolvendo‑a nos braços, disse:

   ‑ Repita isso muitas vezes. É só o que quero ouvir!

   Por um segundo, Vida fechou os olhos, comovida com a grandiosidade desse amor. Depois, perguntou:

   ‑ Diga‑me exatamente como escapou, e o que está aconte­cendo agora.

   ‑ Só quero beijá‑la mais e mais ‑ respondeu o príncipe ‑, mas entendo que esteja curiosa.

   ‑ Muito curiosa ‑ sussurrou Vida. ‑ É difícil acreditar que você está aqui de corpo e alma.

   ‑ Sim! Estou aqui! Não sou mágico, nem duende! Sou real! Estou aqui!

   Com os lábios dirigindo‑se às faces dela, disse:

   ‑ Quando nos casarmos, provarei a você o quanto sou real; então, não terá mais dúvidas.

   Beijou‑a no lindo e perfeito nariz, em cada canto da boca, mas quando tentou beijá‑la nos lábios, ela impediu‑o, tapando‑lhe a boca com a mão e insistindo:

   ‑ Ainda estou curiosa.

   Mesmo enquanto pronunciava essas palavras, o príncipe per­cebeu que ela tremia; então, sorriu e respondeu:

   ‑ Está tentando me impedir de fazer o que mais desejo, isto é, beijá‑la.

   Mas, achando que já a havia feito esperar o suficiente, explicou:

   ‑ Quando o czar me disse que eu deveria me casar com Eudóxia, percebi que ela havia me preparado uma armadilha, e fiquei furioso!

   ‑ Imaginei que sim.

   ‑ Ela tencionava casar‑se comigo já há algum tempo, mas, totalmente, não a levei a sério.

   ‑ Quer dizer... tantas mulheres já quiseram se casar com você... que, por isso, não achou a situação digna de im­portância'

   ‑ Nunca desejei me casar com ninguém ‑ replicou ele ‑... até encontrar você.

   ‑ Oh! Ivan!... você, na verdade, queria casar‑se comigo?

   ‑ Vi, desde o primeiro instante, que você era diferente de qualquer outra mulher que eu conhecera, e que me atraíra de maneira irresistível.

   Sorriu para ela e continuou:

   ‑ Se tivesse sabido de quem era filha, acho que a teria pedido em casamento na primeira noite que passou no castelo!

   ‑ Mas, em vez disso... sugeriu uma coisa diferente!

   ‑ Foi culpa sua, fingindo ser viúva, mulher experiente, ainda que meu instinto me dissesse o contrário. Isso me dava a liberdade de fazê‑la minha, sem outros compromissos.

   ‑ Mas por que não tenta isso, agora?

   ‑ Porque você é meu sonho transformado em realidade, a mulher que eu sempre quis, a mulher à qual, por mais estranho que pareça, quero ser fiel o resto de minha vida.

   O modo como Ivan falou fez com que Vida se sentisse envol­vida por aquela luz divina que já vira em volta dele antes.

   A única coisa que pôde fazer foi dar um suspiro de felici­dade e encostar a cabeça no ombro dele.

   ‑ Quando você fechou os portões do paraíso para mim, percebi que não ia perdê‑la.

   ‑ Então, quando fugi... você me seguiu.

   ‑ É verdade. Eu também queria salvar seu pai. A par de adorá‑la e beijar o chão em que você pisa, tenho também muito orgulho, honra mesmo, de me casar com a filha de um homem que admiro mais que a qualquer outro que conheço.

   Os olhos de Vida encheram‑se de lágrimas, e ela perguntou.

   ‑ Como pode dizer coisas tão bonitas, tão maravilhosas e que me fazem tão feliz?

   O príncipe beijou‑lhe a testa e continuou:

   ‑ Lutei milhões de batalhas por você. Não posso lhe des­crever o que senti, quando o czar anunciou a permissão de meu casamento com Eudóxia.

   ‑ Não achou que devia casar‑se com ela?

   ‑ Sabia que isso era uma coisa que eu não tinha a mínima intenção de fazer ‑ respondeu o príncipe categoricamente. ‑ Mas, meu tesouro, minha única chance de escapar e, por sinal, a sua também, era fingir que concordava, e tentar agradar a Eudóxia, pois, como uma Romanov, ela é muito vingativa e perigosa.

   Vida teve um arrepio de medo.

   ‑ Quer dizer que ela pode nos fazer mal?

   ‑ Se ela admitisse a possibilidade de eu estar aqui neste momento, mandaria, sem dúvida, alguém matar você, e eu esta­ria a caminho da Sibéria! ‑ disse o príncipe com dureza.

   Vida deu um grito de horror, e perguntou:

   ‑ Suponhamos... suponhamos... que isso aconteça a você agora?

   ‑ Pois é o que vamos evitar ‑ disse ele com mais calma.

   ‑ Diga‑me, então... Qual é seu plano?

   Vida estava apavorada, não por ela, mas pelo príncipe.

   No momento, pensava só nele, morrendo nas minas de sal, ou sendo torturado pela polícia secreta do czar.

   Achava que desistir dele quando o amava tanto era um sa­crifício enorme, mas que isso devia ser feito a qualquer preço. para salvá‑lo. Então, disse:

   ‑ Não posso permitir que se case comigo!

   ‑ É muito tarde para impedir‑me agora. Como deve ter notado, o trem que devia levá‑la saiu da estação de Kíev. Isso foi necessário para que os funcionários do palácio vissem que você havia partido, e pudessem contar a Eudóxia. O ponto onde nos encontramos fica apenas cinco milhas fora da cidade.

   ‑ Então, você veio até esse lugar... Ninguém o viu sair do palácio?

   ‑ Meus homens me aguardavam, conforme o combinado, e disseram aos empregados da estrebaria que tinham recebido ordens minhas para realizarem manobras especiais, à noite, a fim de serem testados, juntamente com os cavalos.

   Vida ouvia com atenção, e o príncipe prosseguiu:

   ‑ Quando me juntei ao grupo, envolvido numa capa de mi­litar, parecia ser um deles, e os lacaios nunca poderiam ima­ginar que eu não fosse apenas mais um soldado.

   ‑ E veio ao meu encontro.

   ‑ Dei instruções quanto ao lugar em que o trem deveria esperar por mim, um local isolado, difícil de ser visto por qual­quer pessoa.

   Vida suspirou.

   ‑ Você faz tudo parecer muito simples, mas o que aconte­cerá agora?

   ‑ Agora, estamos indo para Cernauti que é a cidade estran­geira mais próxima de Kíev.

   ‑ Mas é na Roménia!

   ‑ E que importa onde fica, desde que seja fora da Rússia? A menos que tenhamos algum imprevisto, deveremos atraves­sar a fronteira amanhã, mais ou menos ao meio‑dia, e tenho uma vantagem de no mínimo sete ou oito horas, antes que alguém descubra que não dormi no palácio.

   ‑ Oh! querido! Estou rezando para que seu plano tenha pleno êxito, como todos os outros. Só que este é o mais im­portante.

   ‑ Muitíssimo mais importante ‑ concordou o príncipe.

   - Quando chegarmos à Roménia, para onde iremos?

   ‑ Eu lhe direi, mais tarde, o que vamos fazer para cruzar a fronteira. Depois disso, iremos a outro de meus castelos, que, espero, apreciará muito. É no centro da Hungria, de onde vêm meus cavalos.

   Vida fitou‑o e disse:

   ‑ Tinha me esquecido que tem outras propriedades! Lembro‑me agora que tem uma vila em Monte Cano.

   ‑ É verdade. E tenho um castelo na Hungria, que é, ou será em muitos aspectos tão bonito quanto o que estou aban­donando na Rússia.

   O príncipe adivinhou o que ela estava pensando, sem que ela o dissesse, e acrescentou gentilmente:

   ‑ Está feliz por saber que não serei tão miserável como julgou?

   ‑ Muito. muito feliz!

   ‑ Vou lhe contar um segredo. Esperava que isso aconte­cesse, mais cedo ou mais tarde.

   ‑ Verdade?

   ‑ Não que tivesse esperança de me casar com uma mulher tão maravilhosa, nem tão bonita, nem tão perfeita como você, meu anjo, mas sempre houve grande perigo, no curso de minhas actividades com seu pai, ou com outros homens como ele, de que eu fosse descoberto e apanhado.

   Fez uma pausa, e Vida perguntou:

   ‑ O que fez depois?

   ‑ No momento em que o czar me comunicou que eu devia contrair núpcias com Eudóxia, mandei uma mensagem para que se iniciasse a retirada de meus tesouros do castelo, numa ope­ração há muito planejada.

   Vida arregalou os olhos, e ele continuou:

   ‑ Carros transportadores trabalharam o dia inteiro, levan­do tudo para a Hungria, através da fronteira.

   ‑ Não posso acreditar!

   O príncipe sorriu:

   ‑ Mas é verdade. Claro, nem tudo pôde ser salvo, e espero ter conseguido tirar as pinturas mais valiosas, os ícones, os marfins e as porcelanas, e os pratos e as taças de ouro que estão na minha família por gerações.

   Vida gritou de emoção:

   ‑ Que bom! Essa atitude é bem sua, e estou muito, muito feliz! Não me sentirei tão culpada por permitir‑lhe fugir comigo.

   ‑ Também não me sinto nada culpado. Acho, meu te­souro, que é um modo emocionante de começarmos a vida juntos, uma aventura de que sempre nos lembraremos com emoção.

   ‑ Sempre me recordarei de que desistiu de tudo por minha causa ‑ disse Vida com meiguice.

   Achando que o príncipe não entendera, continuou:

   ‑ Você é russo, e está abandonando a terra que ama e sua posição na corte, que é de grande importância no seu mundo.

   ‑ E, na verdade, bastante importante, apenas com uma excepção.

   ‑ E qual é?

   ‑ O amor é mais importante que tudo, o amor que todo russo procura, mas raramente encontra.

   E continuou, grave:

   ‑ Meu amor por você é completamente diferente de qual­quer sentimento que já senti por outra mulher. E, como sabe, houve muitas em minha vida. Gostei delas, senti atracção por elas, agradaram à minha vista, à minha mente e, às vezes, a meu coração. Mas, nenhuma, e isso é verdade, minha adorável Vida, tocou‑me a alma! ‑ sorriu e acrescentou: ‑ Cheguei a pensar que isso era impossível, e que nunca encontraria a mu­lher cujo amor me faria sentir como se ela estivesse envolvida em luz divina, por vir de Deus.

   Vida sentira a mesma coisa por ele, e o que ele acabara de dizer fê‑la tão feliz que a única coisa que pôde fazer foi levan­tar os braços e puxar a cabeça dele para junto da sua,

   Mais uma vez Ivan beijou‑a, conduzindo‑a às estrelas.

   Depois disso, ele insistiu para que ela fosse dormir.

   ‑ Temos muito a fazer amanhã, e precisamos estar com nossas faculdades mentais bem alertas. Precisa descansar, meu tesouro.

   ‑ Não quero deixá‑lo... ‑ disse Vida baixinho.

   ‑ Uma vez casados, o que faremos amanhã à noite, ou, o mais tardar, depois de amanhã, você nunca mais me deixará, nem por um momento. Vá dormir por algumas horas, meu amor, e sonhe comigo, como sonharei com você.

   Levou‑a ao quarto, esperou que ela se deitasse, ajeitou‑lhe as cobertas na cama, beijou‑a com suavidade nos lábios e disse:'

   ‑ Eu te amo! Eu te adoro! Agora e por toda a eternidade.

  

   Vida foi acordada por Margit, que trazia uma xícara de café, dizendo:

   ‑ Sua Alteza está esperando por você no carro‑restaurante.

   ‑ Por que não me disse antes? Poderia estar com ele há mais tempo!

   ‑ Ele também estava dormindo, Senhorita Vida! ‑ respondeu Margit. De repente, vieram‑lhe lágrimas aos olhos.

   ‑ Oh! Senhorita Vida, Sua Alteza me disse que vão se casar! Mal posso acreditar!

   ‑ Sim, vamos nos casar, e estou feliz, muito feliz mesmo, Margit!

   ‑ Nunca imaginei que isso pudesse acontecer, de forma alguma! Mas ele é tudo o que uma mulher possa desejar, não há dúvida sobre isso.

   ‑ É verdade, Margit, e jamais tive dúvidas! ‑ riu Vida.

   Levantou‑se, banhou‑se e, quando procurava uma roupa para usar, a governanta lhe trouxe um vestido de camponesa.

   Vida encarou‑a, surpresa, e Margit explicou:

   ‑ Sua Alteza pediu que você vestisse isso, e vou penteá‑la com duas tranças, para que pareça uma jovem de dezasseis anos.

   ‑ Mas não entendo a razão.

   ‑ Sua Alteza lhe explicará o plano que arquitectou para que possamos atravessar a fronteira.

   Vida teve medo mais uma vez.

   Eles poderiam ser impedidos de sair da Rússia, ou poderiam ser mantidos em custódia, até que chegassem instruções da po­lícia secreta do czar.

   Vestiu as roupas de camponesa, que, por sinal, não eram novas. Tinham remendos em vários lugares, e a blusa havia sido cerzida nas mangas.

   Nos ombros, colocou um xale um tanto descorado, que pare­cia ter sido lavado muitas vezes.

   Nos pés, calçou sapatos rústicos e meias grossas de aldeã.

   Sentiu‑se envergonhada, parecendo outra pessoa, quando foi ao encontro do príncipe no carro‑restaurante.

   Quando a viu, ele esboçou um sorriso e levantou‑se. Vida correu para ele, dizendo:

   ‑ Por que tudo isso? Por que razão devo vestir‑me assim?

   Ele fê‑la sentar‑se no sofá ao seu lado e explicou:

   ‑ Estamos progredindo muito bem, meu amor. De facto, nun­ca pensei que meu trem pudesse desenvolver tanta velocidade. Mas temos de ter cuidado, como pode entender.

   ‑ Claro, mas que vamos fazer?

   ‑ Depois do almoço, chegaremos a uma pequena estação, que fica mais ou menos cinco milhas da fronteira. Desembar­caremos lá e esperaremos pelo trem de carreira que passa à tarde e vai a Cernauti. Entraremos nesse trem. Mais tarde, já na Roménia, meu trem, que estará esperando num desvio, nos seguirá. Quando for revistado, o que com certeza vai ocorrer, não encontrarão ninguém a bordo, a não ser os atendentes.

   ‑ Acha que deixarão que eles prossigam?

   ‑ Com certeza! Não há motivo para não o fazer, pois dirão que foram mandados por mim para apanhar convidados que se hospedarão no meu castelo.

   ‑ Parece um plano muito bem arquitectado ‑ concordou ela, apesar de ainda se sentir amedrontada.

   Depois achou que não havia razão para nervosismo, pois o plano parecia muito bom.

   Um quarto de milha antes da estação à qual ele se referira, que estava situada na parte arborizada da cidade, o trem do príncipe parou, e dele saíram um velho sitiante, Henri, sua esposa, Margit, e a filha deles, Vida.

   Caminharam até a estação, parecendo um tanto fatigados, de volta de uma viagem do lado russo, onde tinham ido visitar parentes.

   Ao chegarem à plataforma da estação, viram um grupo de hussardos húngaros voltando da Rússia, num trem que atra­vessara o norte da Roménia e se dirigia à Hungria.

   Os hussardos usavam fardas um tanto gastas, mas o oficial deles parecia muito elegante, com o casaco, como era tradicio­nal entre os militares húngaros, jogado sobre um dos ombros.

   Tinha bigode preto, e Vida teria dificuldade em reconhecê‑lo, se não tivesse sentido as mesmas vibrações que sempre toma­vam conta dela na presença do príncipe.

   Os soldados riam, conversavam e contavam piadas, e os poucos russos encarregados da estação não tomaram conheci­mento da presença do sitiante, sua esposa e filha, sentados num banco de madeira, esperando a chegada do trem.

   Quando este chegou, já estava cheio de passageiros de várias procedências: ucranianos, russos e alguns búlgaros.

   Os soldados se amontoaram no vagão mais barato, que estava superlotado.

   O oficial viajou sozinho, e a família do sitiante tomou o pró­ximo vagão, um pouco melhor do que aquele que os soldados haviam ocupado.

   O trem partiu, e em menos de uma hora chegavam à fronteira.

   Havia alguns militares do lado russo inspeccionando os do­cumentos dos passageiros, mas, sendo na maioria ucranianos, olharam‑nos sem maior interesse.

   Mas, mesmo assim, ela ficou tensa e com medo, até que Henri entregasse os documentos ao soldado e os tivesse de volta. Então, o encarregado desceu do trem e bateu a porta.

   Alguns minutos depois, atravessaram a fronteira.

   A inspecção na Roménia foi muito breve; os soldados inspeccionaram os passageiros apenas olhando pelas janelas do trem, e nem ao menos lhes pediram os documentos.

   Quando a locomotiva ganhou velocidade, Margit recostou‑se, exclamando:

   ‑ Graças a Deus! Estamos livres, e eu não voltaria a esse país mesmo que alguém me desse um milhão de libras!

   Vida segurou as mãos da empregada, comentando:

   ‑ Você foi maravilhosa, Margit querida, e agora tudo o que temos a fazer é encontrar papai e vivermos felizes para todo o sempre.

   Quando, meia hora mais tarde, ela reencontrou o príncipe, na plataforma da estação de uma pequena cidade, sentiu‑se como se ambos estivessem envolvidos por um raio de luz.

   Não falaram muito. Ele ficou ao lado dela, e dez minutos mais tarde o trem branco e vermelho, com um imponente bra­são, entrou na estação, soltando fumaça.

   Quando entraram no carro‑restaurante e o trem partiu, o príncipe arrancou o bigode, jogou no chão o chapéu hussardo e abraçou Vida.

   Depois beijou‑a selvagem e apaixonadamente, com uma inten­sidade que provou a ela que, apesar da confiança e calma que sempre demonstrara, tinha tido muito medo de que seu plano não surtisse o efeito esperado.

   ‑ Vencemos! Vencemos! ‑ dizia o príncipe, eufórico. ‑ A única coisa realmente importante, meu tesouro, é que você esteja salva, e, se não for possível nos casarmos hoje à noite, nós nos casaremos amanhã de manhã, quando chegarmos ao castelo.

   ‑ Temos de informar a papai que estamos aqui.

   ‑ Já lhe mandei um telegrama para pedir‑lhe que se junte a nós, fique sossegada.

   ‑ Você pensa em tudo, meu amor!

   ‑ Penso em você, e como seus desejos são também os meus, não há dificuldade em adivinhá‑los - disse ele, e beijou‑a outra vez.

  

    O   jantar foi delicioso. Quando terminaram, sentaram‑se no sofá. Vida pôs a cabeça no ombro de Ivan, dizendo:

   ‑ Como tudo isso pôde acontecer? Se eu não tivesse desa­fiado o marquês de Salisbury para poder ir à Rússia procurar papai, nunca nos teríamos encontrado.

   ‑ Acho que essas coisas estão determinadas, minha flor. Estávamos destinados um ao outro desde o começo dos tempos. amanhã seremos uma só pessoa, e nada, nada mesmo, nos sepa­rará outra vez.

   ‑ Você tem certeza disso? Mesmo agora tenho medo de que, no último momento, alguma coisa aconteça.

   ‑ E muito tarde para medos, dúvidas, ou qualquer outro sentimento que não seja amor.

   Segurou‑a contra ele e disse:

   ‑ Como eu te amo! Meu Deus, como te amo! Se tentar fugir de mim novamente, acho que morrerei!

   ‑ Nunca poderia abandoná‑lo. Cuidarei de você e impedi­rei que se envolva em missões perigosas, e, claro, tentarei fazê­‑lo feliz.

   ‑ Isso é tudo o que quero ouvi‑la dizer. Por enquanto, começaremos nova vida na Hungria, ou, se preferir, podemos ir à França.

   ‑ Não estou interessada em suas propriedades...

   ‑ Estou apenas me gabando um pouco de minhas casas, castelos e mansões ‑ brincou o príncipe.

   ‑ Serão úteis quando tivermos filhos. Um dos filhos terá um castelo na Hungria, outro, em château na França, e um ter­ceiro uma casa na Inglaterra!

   O príncipe riu outra vez, e, com olhos brilhantes, perguntou:

   ‑ E o que acontecerá se tivermos quatro filhos e algumas filhas?

   ‑ As filhas se casarão, sem dúvida, com homens quase tão atraentes como você, e o quarto filho poderá ficar com a vila de Monte Carlo, mesmo que se transforme num jogador!

   ‑ Isso é o que sou! Joguei tudo o que possuía, e nunca me esquecerei, tesouro, de que você estava preparada para ser pobre comigo.

   Vida confessou:

   ‑ Nunca sonhei, quando me sentia tão infeliz na noite ante­rior à saída de Kíev, que você viria a ter comigo. Oh! Ivan querido, querido Ivan, como posso lhe dizer o quanto sou feliz agora?

   ‑ E precisa?

   Os lábios do príncipe tocaram os dela, enquanto falava. Beijou‑a insistentemente e com violência, demonstrando como temera pela vida dela.

   Vida notou que agora havia algo diferente em seus beijos.

   O amor que o príncipe lhe estava dando vinha das profun­dezas da alma e do coração, pois ela era a esposa perfeita que ele sempre procurara em sonhos.

   Era a mulher que lhe abrira os portões do paraíso e do céu também.

   Deus os havia guardado, protegido e trazido, através de mui­tos perigos, à salvação, ao amor e à paz!

 

                                                                                            Barbara Cartland

 

                      

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