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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ROSA DE PAPEL / Diana Palmer
ROSA DE PAPEL / Diana Palmer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ROSA DE PAPEL

 

O amor de Cecily por Tate era como uma rosa de papel, que sem um passe de mágica jamais se tornaria real...

Cecily Peterson não era bonita, mas possuía um encanto especial, Inteligente, esperta, corajosa, fazia com que Tate Winthrop se sentisse feliz. Poderia ter se tornado seu mundo, caso ele permitisse. Mas Tate não podia se envolver com uma mulher branca: teria de se casar com alguém da sua tribo indígena, para que a comunidade não se extinguisse.

O amor de Cecily por Tate desconhecia limites. Mas, uma vez que o orgulhoso nativo norte-americano se recusava a considerar um casamento misto, aquela paixão permanecia no vazio. Arrasada pela rejeição, Cecily se viu forçada a deixar o homem de seus sonhos.

Agora ela estava de volta, e destinada a ele. Tate estava envolvido em um enorme escândalo político, e era Cecily quem teria de protegê-lo de um segredo devastador, que poderia destruir a vida dele... Mas como proteger o homem a quem amava com todas as torças sem se deixar levar pelo coração?

 

 

Cecily Peterson enrolou nos dedos uma linda flor de papel vermelho, fitando-a com o olhar triste de quem tem sonhos despedaçados. Amava um homem que nunca seria capaz de retribuir aquele amor. Sua vida era como uma flor de papel, uma imitação da beleza, capturada para sempre num tempo sem idade. Mas era fria. Falsa. Estava morta, mesmo sem jamais ter vivido.

Tate Winthrop trouxera-lhe aquela delicada rosa carmesim do Japão. Na época, o presente a enchera da esperanças. Acreditara que ele um dia aprenderia a amá-la. Mas, à medida que os anos foram passando, e que a esperança foi desaparecendo, finalmente se deu conta do que a flor de papel representava.

Por meio do presente, Tate estava lhe dizendo, da maneira mais gentil possível, que seus sentimentos por ela não passavam de uma imitação da paixão e do amor. Estava dizendo, sem expressar uma única palavra, que a afeição jamais poderia substituir o amor.

E então Cecily se lembrou, de maneira vívida, de como aquele relacionamento turbulento começara...

 

Oito anos antes

Havia poeira na longa estrada que vinha de Corryville,sul do Estado de Dakota. Os olhos negros de Tate Winthrop estreitaram-se quando ele subiu na cerca do curral, para ver a aproximação da caminhonete cinza. Na certa traziam a encomenda que fizera ao armazém Blake Feed.

Tate desceu da cerca. Treinaria a jovem égua em outro momento.

O velho jeans que usava moldava-se com perfeição a seu corpo alto, poderoso. Era um homem elegante, com mãos bem-feitas. O cabelo preto, liso, que caía até a cintura quando solto, estava preso com uma fita escura.

Tirou um charuto cubano do bolso da camisa de cambraia e riscou um fósforo para acendê-lo. Os rapazes da agência sempre lhe perguntavam onde conseguia aqueles charutos, vindos de contrabando. Tate nunca lhes dissera. Manter segredo fazia parte de seu estilo de vida. E de seu trabalho.

A caminhonete pôde por fim ser vista da pequena casa, do estábulo enorme e do curral improvisado, onde uma égua branca como a neve empinava, impaciente, com a crina ao vento.

Uma adolescente magra saiu do veículo. Tinha cabelos loiros, curtos, e olhos verdes. Tate estava muito longe para ver-lhe os olhos, mas os conhecia melhor do que gostaria. Aquela era Cecily Peterson, enteada de Arnold Blake, o homem que herdara Blake Feed. Ela era a única pessoa que tinha coragem de entregar pessoalmente as encomendas de Tate Winthrop.

A poucos quilômetros da reserva sioux Pine Ridge, a fazenda da Tate ficava fora do limite sul de outra reserva sioux, a Wapiti Ridge. A própria cidade de Corryville fora erguida junto ao rio Big Wapiti, entre as Badlands e a reserva.

Leta, mãe de Tate, vivia na reserva Wapiti, a pedra no sapato de Corryville. Ele crescera sem conhecer adiscriminação. Talvez fosse por esse motivo que, ao conseguir recursos, tivesse decidido comprar aquelas terras próximas às reservas da tribo.

Tate Winthrop não gostava da maior parte das pessoas, em especial das mulheres brancas. Mas Cecily tornara-se uma exceção. Era uma garota gentil e educada de dezessete anos, e levava uma vida difícil. A mãe, inválida, morrera havia pouco tempo. Ela agora morava com o padrasto e um dos tios adotivos, homem decente, com idade bastante para ser seu avô. Em contrapartida, o padrasto era um bêbado irresponsável.

Todos sabiam que Cecily fazia a maior parte do trabalho no armazém que fora de seu pai. Arnold o herdara depois da morte da mãe da garota, e, ao que parecia, vinha fazendo tudo o que podia para levar o negócio à bancarrota.

Cecily tinha estatura média e era magra como o junco. Jamais seria bonita, mas possuía uma luz interior que iluminava os olhos verdes e os transformava em dois pequenos sóis.

Tate zombou da imagem que acabara de criar. Cecily era apenas uma criança, e seus contatos com ela limitavam-se às encomendas que fazia ao armazém. Agradava-lhe o fato de a jovem se interessar por seus ancestrais de modo verdadeiro, não como alguns aficionados pelos norte-americanos nativos faziam, vestindo-se como eles e fingindo pertencer àquela terra. Tate não tinha tempo para os "índios de domingo" que vinham da cidade.

Com Cecily, porém, a história era outra. Ela conhecia alguma coisa sobre a cultura dos índios oglala lakota, dos quais Tate descendia, e se interessava pelo assunto. Ele, mesmo sem querer, acabava lhe contando alguns costumes pouco conhecidos pela maioria dos homens brancos.

A ligação entre ambos, porém, só se tornou maisforte quando da morte da sra. Blake. Não fora ao padrasto, ao tio adotivo ou às pessoas da cidade que Cecily recorrera, no dia em que a mãe falecera. Fora a Tate. Chegara ali com os olhos vermelhos e marejados, o rosto molhado, a expressão devastada. E ele, que nunca permitira a proximidade de ninguém, com exceção da própria mãe, acolhera-a e a confortara.

Enxugar-lhe as lágrimas parecera-lhe a coisa mais natural do mundo. Mais tarde, porém, ele começou a se preocupar com o apego da garota. A última coisa que permitiria seria que ela se apaixonasse. E isso não se devia apenas ao tipo de vida que levava, perigoso, nômade e solitário. Era por causa da falta de sangue lakota no mundo. Para preservar seu povo, Tate devia se casar com uma sioux. Isto é, se um dia viesse a se casar...

Olhou para Cecily e voltou ao presente. Mas, deliberadamente, evitou ir ao encontro dela.

A garota notou a atitude e, com um sorriso sem jeito, aproximou-se. Levava uma fatura para ser assinada. Suas mãos tremiam um pouco, graças ao efeito que aquele homem sempre lhe provocava. Porém, apertando-as contra a caneta e o papel, ela seguiu em frente.

Usava botas, jeans e uma camisa masculina. Tate nunca a vira vestir algo mais revelador ou feminino.

Cecily mostrou-lhe o documento, evitando fitá-lo.

—  Meu padrasto disse que você pediu essa encomenda, mas acho melhor verificar se está tudo correto, antes de assinar.

—  Por que Arnold sempre a manda aqui? — ele perguntou, de propósito, enquanto conferia a fatura.

—  Porque sabe que não tenho medo de você. Tate ergueu a vista e a encarou. Às vezes, os olhos masculinos pareciam assustadores. Em outras ocasiões, firmes e atentos, como os de uma serpente.

Quando viu aqueles olhos negros pela primeira vez, Cecily teve vontade de fugir. Agora, porém, eles não a amedrontavam. Tate sempre a tratara com gentileza, mais do que qualquer outra pessoa. Cecily sabia, ao contrário do que acontecia com a maioria dos habitantes da cidade, que havia, em Tate Winthrop, muito mais do que ele costumava mostrar.

— Tem certeza de que não sente medo de mim? Cecily simplesmente sorriu.

— Você não me censura por causa de encomendas erradas ou mal embaladas — respondeu, porque ouvira falar que fora exatamente o que Tate fizera uma vez, quando Arnold negligenciara um de seus pedidos, por causa da nevasca.

Cecily estava certa. Ele nunca a censuraria, fosse qual fosse o motivo. Limitou-se a pegar a caneta e a assinar o papel, antes de devolvê-lo.

— A encomenda está em ordem — afirmou.

— Certo — ela respondeu, alegre. — Vou descarregá-la.

Tate não disse uma só palavra. Apagou o charuto, tornou a guardá-lo no bolso da camisa e a seguiu até a caminhonete.

No momento em que tentou ajudá-la, recebeu um olhar duro.

— Não sou feita de porcelana. Posso perfeitamente descarregar alguns pacotes de comida.

— Sei que pode. — Ele a fitou e um sorriso iluminou os olhos negros por um segundo. — Mas não vai fazer isso. Não aqui.

— Ouça, essa não é sua obrigação. Se meu padrasto estivesse neste lugar, como devia, teria de tirar a encomenda do veículo. Por que eu não posso?

— Porque está fazendo um trabalho que é dele. — Tate deteve-se ao alcançar um pacote pesado de fertilizante e a fitou. — O que aconteceu com seu pescoço?

Cecily levou uma das mãos à gola, sentindo a dor que vinha dali. Elevara o colarinho da camisa e o abotoara, apesar do calor que isso provocava, para esconder as marcas. Não tinha idéia de que seriam percebidas.

Tate tirou as luvas de trabalho, atirou-as na caçamba da picape e começou a desabotoar a blusa de Cecily.

— Pare! — ela exclamou. — Você não pode fazer isso!

Ele, porém, já fizera. Seus olhos ardiam como diamantes negros em fogo. Apertou o tecido quando notou outras marcas na pele delicada, um pouco acima do pequeno sutiã. Marcas impressas por dedos masculinos...

Apertou os maxilares. Enfurecia-o ver manchas naquela pele branca. Era quase tão ruim como constatar o estado das roupas que aquela jovem usava.

Sabia que Cecily não tinha nenhuma peça nova havia muito tempo. Decerto o padrasto a mantinha assim de propósito, para esconder a beleza da moça. Desse modo, nenhum pretendente se aproximaria para levar-lhe a principal ajudante.

Ele a fitou por um longo momento. Cecily estava vermelha, e mordia o lábio.

— Não pretendo deixá-la embaraçada, mas vai ter de me contar se existem marcas como essas em seus seios.

Os olhos verdes se fecharam e lágrimas escorreram pelo rosto pálido.

— Sim, existem — confessou Cecily num murmúrio.

—  Foi seu padrasto?

Ela respirou fundo e assentiu.

— Sim.

—  Fale-me a respeito.

— Ele tentou me tocar... ali. Sempre tentou, mesmo no começo do casamento com mamãe. Procurei dizer isso a ela, que nunca quis me ouvir. Arnold a dominava, e os dois gostavam de beber. — Cruzou os braços sobreos seios. — Ontem à noite, meu padrasto se embriagou e entrou em meu quarto. — A lembrança lhe deu náuseas. — Eu estava dormindo. — Fitou Tate com expressão de repulsa. — Por que os homens agem como se fossem animais? — perguntou, com uma maturidade cínica que não combinava com sua pouca idade.

—  Nem todos são assim — ele respondeu com voz gelada. Tornou a abotoar-lhe a camisa, com uma habilidade que denotava experiência. — Você não tem nem mesmo um sutiã adequado.

Cecily corou.

— Você não devia vê-lo — censurou, com ar rebelde. Tate fechou-lhe o colarinho e descansou as mãos em seus ombros. Eram mãos reconfortantes, magras e escuras e quentes e fortes. Cecily adorou senti-las.

— Você não vai mais se sujeitar a isso. - Ela arregalou os olhos.

— Como?

— Ouviu o que eu disse. Venha. Vamos descarregar essas coisas. Depois conversaremos e tomaremos algumas decisões.

Pouco tempo depois, Tate lhe oferecia uma cadeira e colocava uma xícara de café à sua frente.

Atônita, Cecily acomodou-se e olhou em torno. Nunca entrara naquela casa, e estava surpresa pelo fato de o interior não se parecer em nada com a rusticidade da parte de fora. Havia todo tipo de equipamentos eletrônicos, incluindo computadores e impressoras, telefones e rádios de ondas-curtas.

Havia também um aparelho de radio amador. E, na parede, uma coleção de pistolas e rifles, nenhum deles parecido com os que Cecily conhecia.

A mobília impressionava. Ela se lembrou dos boatos que ouvira sobre aquele homem solitário, um índiolakota vivendo fora da reserva, de passado misterioso e com uma profissão ainda mais misteriosa. Ao contrário dos outros lakotas, vítimas do preconceito, Tate não sofria perseguições. Na verdade, a maior parte das pessoas que viviam na região de Corryville tinham um pouco de medo dele.

Cecily contemplou-lhe o rosto taciturno, perguntando-se por que fora levada até a casa. Tate costumava limitar-se a assinar as faturas e receber as encomendas. Quando se falavam, a conversa se dava lá fora. Não que ele não a observasse como uma águia, quando ia à cidade. No último ano, fizera isso o tempo todo. E, naquele momento, tinha descoberto a verdade sobre sua vida miserável.

Tate sentou-se e recostou-se na cadeira. Jogou o chapéu ao chão e a fitou com intensidade. Soltou um gemido furioso e pegou mais uma vez o charuto.

—  Ontem à noite, seu padrasto... conseguiu o que queria? — perguntou sem rodeios.

Cecily corou violentamente e fechou os olhos. Era inútil mentir.

— Tentou. Bati nele, que então me agarrou. Estava muito bêbado. Ainda bem, porque do contrário eu não teria conseguido escapar. Arnold sempre me aborrece com essas coisas, mas ontem à noite foi pior... — Lançou-lhe um olhar angustiado. — Fiquei escondida na mata até que ele fosse dormir, e depois não consegui mais pegar no sono. Prefiro morrer a deixar que meu padrasto cometa esse tipo de abuso novamente.

Tate a observou em silêncio, enquanto a fumaça do charuto subia. Conhecia-a o bastante para saber que ela jamais abandonava seus deveres, nunca se queixava, nunca pedia coisa alguma. Admirava-a. Um sentimento raro, porque desprezava a maioria das mulheres. Principalmente as brancas. Pensar que Arnoldtentara possuí-la o enfurecia. Jamais desejara tanto vingar-se de um homem.

Bateu o charuto num enorme cinzeiro de vidro e nada disse por um minuto ou dois.

Cecily tomou um gole do café, pouco à vontade. Aquele homem era praticamente um estranho, mas já a vira de sutiã. Aquilo provocava uma sensação nova e estranha, que ela jamais experimentara em relação a alguém. Em especial a um homem.

—  O que pretende fazer da vida, Cecily? — foi a pergunta inesperada.

—  Quero ser arqueóloga. - Ele ergueu as sobrancelhas.

—  Por quê?

— Pouco antes de me formar, tive um professor que era arqueólogo. Trabalha com as ruínas maias, em Yucatán. — Os olhos verdes brilharam de entusiasmo —  Acho maravilhoso descobrir antigas civilizações e mostrar ao mundo como... — A voz sumiu quando ela se deu conta de que aquele era um sonho impossível. Deu de ombros. — Bem, mas não tenho dinheiro para isso. Mamãe deixou algumas economias, mas meu padrasto já as gastou. Ela dizia que Arnold não tinha faro para negócios. Concordo, porque tudo o que ele faz é arruinar o armazém de papai.

— Faz tempo que seu pai morreu?

— Seis anos. Mamãe se casou de novo no ano passado. — Fechou os olhos e estremeceu. — Queixava-se da solidão, e dizia que Arnold lhe dava atenção. Mas a mim ele não enganou. Pude ver, desde o começo, o tipo de homem que é. Por que mamãe não conseguiu fazer isso também?

—  Porque algumas pessoas não têm percepção. — Os olhos negros estreitaram-se enquanto a avaliavam.

— Que notas tirou na escola?

—  A e B. Ia muito bem em ciências. — Naquele momento, uma idéia inesperada a preocupou. — Você vai fazer com que meu padrasto seja preso? Se agir assim, todo mundo vai descobrir a verdade — acrescentou, alarmada.

Tate percebeu-lhe, nos olhos, receio de uma recriminação pública e do sofrimento que isso acarretaria.

— Não acha que um estupro deve ser punido?

— Ele não chegou a esse ponto. Mas você tem razão. Arnold deve ter ficado o dia todo sentado, pensando em como fazer isso. Hoje à noite não terei nenhuma chance. A não ser que me esconda na mata outra vez.

Ele inclinou-se para a frente, um cotovelo apoiado na mesa de cerejeira, e a encarou.

Cecily sentiu-se nauseada. Cruzou os braços sobre os seios e olhou para o nada, tremendo. Aquele era o pior pesadelo que enfrentava em sua jovem vida.

— Tudo bem, não precisa se preocupar — Tate disse por fim, em um tom calmo. Era como se nada o desassossegasse. — Ele não vai pôr as mãos em você, prometo. Encontrei uma solução.

—  Uma solução?

Os olhos verdes se arregalaram, cheios de esperança.

— Você pode ir para a Universidade George Washington — Tate continuou, felicitando-se por mentir com tanta desenvoltura. — Há uma bolsa de estudos que inclui material escolar e hospedagem. É dada apenas em casos especiais. E você está qualificada para isso. Interessa?

Cecily hesitou.

—  Sim, mas... como chegarei lá?

— Esqueça esse detalhe, por enquanto. Não é importante. A universidade oferece um ótimo curso de arqueologia. Você fará o que gosta, e ficará longe de seu padrasto. Se estiver interessada, basta dizer "sim".

— Sim!!! Mas preciso voltar para casa...

— Não, não precisa — Nunca mais. Levantou-se e pegou o telefone. Digitou um número,esperou e começou a falar num idioma diferente.

Cecily convivera com os lakota durante a maior parte da vida, mas nunca ouvira alguém falar o idioma indígena daquela maneira. Musical, remetia a lugares antigos e ao som do vento. Ela adorava ouvir aquela voz profunda.

A conversa terminou logo.

— Venha — ele disse.

— Mas a caminhonete... as encomendas...

— Farei com que sejam devolvidas a seu padrasto, juntamente com uma mensagem — Tate respondeu, sem explicar como faria isso.

— Para onde vou?

— Para a casa de minha mãe, na reserva. Meu pai morreu este ano, e ela está sozinha. Vai adorar sua companhia.

— Mas não tenho roupas!

— Eu as pegarei em sua casa.

— Você faz tudo parecer tão simples...

— A maioria das coisas é simples, se feitas do jeito certo. Aprendi, há muito tempo, a descomplicar a vida. — Abriu a porta. — Você vem?

Cecily levantou-se. Sentia-se livre e cheia de esperanças. Era como se vivesse um milagre, daqueles de que as pessoas falavam todo dia.

— Sim. Eu vou.

 

Oito anos depois.

Washington D. C.

Auxiliares de câmeras jogavam luzes em volta de Cecily Peterson. Microfones eram colocados à sua frente enquanto ela deixava, com passos lentos, o jantar para levantamento de fundos que o senador Matt Holden oferecera.

Atrás dela, um homem alto e de expressão furiosa, com um longo cabelo negro e um casaco sujos de creme de caranguejo, esperava que as coisas se acalmassem para começar a se mover. Os olhos da loira socialite a seu lado, enfeitada com diamantes, praticamente apunhalavam as costas de Cecily, que continuava a andar.

— Isso vai passar no noticiário das onze — murmurou ela, com um pequeno sorriso.

Nem de longe parecia uma mulher cuja existência fora despedaçada no espaço de poucos minutos. Sua vida, na verdade, parecia o casaco de Tate Winthrop. Estava em ruínas. E nada mais seria como antes.

Ela se encaminhou para a caminhonete preta na qual um amigo a levara até ali, a fim de esperá-lo. Os saltos altos dançavam no gramado. Mechas do cabelo loiro se desprendiam do penteado. As luzes da rua e dos carros não passavam de manchas coloridas a seus olhos verdes, uma vez que não estava usando óculos nem agüentava lentes de contato.

Vestia um modelo preto de alças bem finas, mas o xale, também negro, a aquecia. Isso, porém, não importava. Sentia-se entorpecida demais para se incomodar com a friagem noturna ou com o tráfego movimentado de Washington.

Estava furiosa. Acabara de descobrir a verdade sobre sua situação financeira e sobre sua bolsa de estudos. A falsa loira que Tate Winthrop vinha acompanhando pela cidade havia alguns dias lhe contara.

Então pensou num certo dia, dois anos atrás, quando tudo parecera perfeito, quando seus sonhos voavam nas alturas...

 

O aeroporto de Tulsa estava cheio. Cecily carregava sua mala cheia de equipamentos enquanto vasculhava a multidão com o olhar, em busca de Tate Winthrop. Usava o traje habitual de trabalho: botas, terninho cáqui e chapéu, preso às costas por um cordão colorido. Os cabelos loiros se achavam presos no alto da cabeça e, atrás das lentes dos óculos, os olhos verdes piscavam, tamanha a ansiedade.

Não era sempre que Tate lhe pedia ajuda. Aquela, realmente, era uma ocasião rara.

Naquele momento, avistou-o, alto e imponente, com seus traços de índio sioux. O rosto tinha maçãs altas e testa saliente, sob a qual destacavam-se profundos olhos negros. A boca era larga e sexy. O cabelo, liso e comprido, ia até a cintura quando ele não o prendia. O corpo elegante exibia músculos na medida certa.

Tate trabalhava para o serviço secreto do governo.

Cecily, evidentemente, não devia saber disso, nem que ele agora investigava um assassinato em Oklahoma.

— Onde está sua bagagem? — Tate perguntou com sua voz grave e áspera.

Ela lhe dirigiu um olhar atrevido, admirando a elegância do terno de caimento perfeito.

— Onde está seu velho jeans? — devolveu, com a familiaridade obtida ao longo de muitos anos.

Tate a salvara das mãos de um padrasto bêbado quando Cecily tinha dezessete anos. Levara-a para a casa da mãe, na reserva sioux de Wapiti, perto das Montanhas Negras, e lá a deixara até conseguir-lhe uma bolsa de estudos e uma verba para viver. Em seguida a encaminhara à Universidade George Washington, que ficava perto do apartamento que lhe arranjara.

Tate vinha sendo seu anjo da guarda, dos quatro anos de faculdade à pós-graduação em arqueologia, que ela iniciara recentemente. A pouca experiência, porém, já lhe rendera respeito profissional. Sempre fora uma excelente aluna, e tirava as notas mais altas. Não tinha vida social nem sentia falta de namorados, uma vez que seu coração estava todo voltado para Tate.

— Sou o chefe de segurança da Corporação Hutton — disse ele, sorrindo. — Não posso usar jeans nesse cargo, você sabe. Decidi investigar o caso de Oklahoma como um favor a dois velhos amigos.

Cecily fez uma careta.

— Sua roupa está toda empoeirada.

— Que tal limpá-la?

Ela deu um sorriso largo.

— É a isso que chamo de verdadeiro incentivo! - Tate riu.

— Sem brincadeira. A situação aqui é séria.

—  Foi o que me disse ao telefone. — Cecily olhouem torno. — Onde se pega a bagagem, neste aeroporto? Eu trouxe algumas ferramentas de trabalho e equipamentos eletrônicos.

 — Roupas não?

— Por que eu precisaria delas? Trouxe poucas peças. Todas fáceis de lavar, e que vão do varal ao corpo.

— E acha que poderá ir a um restaurante com esse tipo de traje?

— Por que não? Além do mais, quem me levaria a um restaurante? Você nunca fez isso. - Ele deu de ombros.

— Vou pagar esse pecado enquanto você estiver aqui. - Os olhos verdes se iluminaram.

—  Grande! Na sua cama ou na minha?

Tate riu. Cecily era a única pessoa no mundo capaz de fazer com que se sentisse à vontade. Acendia chamas em seu íntimo, embora ele cuidasse de mantê-las sempre escondidas.

— Você nunca desiste, não é?

— Um dia você acordará — ela assegurou. — E estarei preparada para isso. Trouxe algumas lingeries provocantes...

Tate fingiu-se chocado.

— Cecily!

— As mulheres precisam pensar nessas coisas. E já tenho vinte e três anos. Você apareceu em minha vida numa época decisiva e me resgatou. Salvou-me de algo terrível. O que posso fazer se, perto de você, os outros amantes potenciais mais parecem um mar coberto de gelo?

— Eu não a trouxe até aqui para discutir sua vida amorosa.

— Pois eu esperava que fosse se oferecer para me ensinar os segredos do amor. Uma experiência educativa, claro.

— Claro — ele respondeu, sério, enquanto caminhavam para o setor de bagagens.

— Está bem, desisto. Mas só por enquanto. O que quer de mim? — perguntou Cecily em um tom profissional. — Mencionou algo sobre restos de um esqueleto...

Tate olhou em torno antes de responder:

— Temos o palpite de que um assassinato pode ser solucionado se investigarmos um certo local. Vinte anos atrás, um agente duplo estrangeiro desapareceu perto de Tulsa. Levava um microfilme da CIA. Seria embaraçoso se o encontrassem, e ao microfilme.

— O que aconteceria se esse filme fosse mostrado ao mundo?

— Nem diga uma coisa dessas! — ele respondeu, com um sorriso. Então acrescentou: — Não pretendo colocá-la no programa de proteção de testemunhas de crimes. Por isso, tudo o que tem a fazer é me dizer se o corpo que acharam é o do homem que procuramos.

Cecily franziu a testa.

— Pensei que houvesse especialistas na polícia...

— Pois não imagina o tipo de especialistas que temos — foi a resposta irônica. — Além disso, você é discreta. Sei, por experiência própria, que não conta a ninguém aquilo que sabe.

— O que seus "especialistas" disseram sobre o corpo?

— Que é muito velho. Que deve ter milhares de anos! — Tate disse, exagerando a informação.

— E por que pensa que não pode ser assim?

— Porque há uma bala calibre 32 no tal esqueleto.

— Bem, isso prova que não era um caçador do período paleolítico.

— Certamente. Mas preciso que um verdadeiro especialista comprove isso. Do contrário, o caso será sumariamente encerrado. Não sei quanto a você, masnão pretendo que o fantasma de um ex-agente duplo assombre os meus dias.

— Também não sonho com um futuro assim — Cecily respondeu. — Acha que alguém poderia ter estado no local e usado o esqueleto para praticar tiro ao alvo?

Ele assentiu.

— Você poderia estabelecer a idade do esqueleto?

—  Não sei. O teste do carbono é a melhor solução para isso, mas leva tempo. Farei o melhor que puder.

—  Será o suficiente. Especialistas em arqueologia paleolítica não são comuns, hoje em dia. Muito menos na polícia. Você foi a única pessoa em quem pensei.

— Estou lisonjeada.

— Não é um elogio. Você é realmente competente. — Então perguntou, mudando o rumo da conversa: — O que trouxe no lugar das roupas?

— Um computador portátil com fax-modem, um telefone celular, ferramentas para escavações, incluindo uma pá desmontável, e duas obras de referência sobre restos de esqueletos.

— Nossa, mas isso deve pesar um bocado! — exclamou Tate, tirando-lhe a mala das mãos. — Nunca ouviu falar sobre carrinhos de bagagem?

— Já. Tenho três. Estão no fundo do meu armário, em Washington.

Ele a conduziu até uma picape esportiva. Colocou a bagagem na parte de trás e abriu-lhe a porta do passageiro.

Cecily não era bonita, mas possuía um encanto especial. Inteligente, esperta e corajosa, fazia com que Tate se sentisse bem. Poderia ter-se tornado seu mundo, caso ele permitisse. O problema era que Tate tinha nas veias o puro sangue dos lakota sioux. Se viesse a se casar, o que sua profissão praticamenteimpedia, jamais permitiria que seu sangue se misturasse ao dos brancos.

Sentou-se ao lado dela e, impaciente, pegou o cinto de segurança do passageiro, ajeitando-o.

— Você sempre se esquece! — murmurou, fitando os olhos verdes.

Cecily respirou com dificuldade ao sustentar aquele olhar. Tate era atraente, sexy. E ela o amava mais do que a própria vida. Mas sem nenhuma esperança. Aquela adoração não-correspondida deixava um vazio em seu peito. Nunca fora ao menos tocada, nem mesmo do modo mais inocente. Ele apenas a fitava.

— Eu devia fechar minhas portas a você — disse-lhe com certa aspereza. — Recusar a lhe falar, a vê-lo. Levar minha vida. Você é um tormento constante.

Inesperadamente, Tate levantou o braço e encostou a ponta dos dedos no rosto delicado. Depois fez com que deslizassem até a boca cheia, macia, e brincassem com os lábios, do inferior ao superior.

— Sou um lakota — disse com calma. — E você é uma mulher branca.

— E daí? Sabia que existem métodos para o controle da natalidade?

A expressão de Tate era solene e os olhos, estreitados, permaneciam fixos nos dela.

—  Sexo é tudo o que quer de mim? — indagou, zombeteiro. — Filhos, nunca?

Aquela era a conversa mais séria que os dois mantinham. Cecily não conseguia escapar dos olhos negros.

Queria Tate acima de tudo. Mas também desejava filhos. Seu rosto mostrava isso.

— Não, Cecily, sexo não é tudo o que pretende de mim — prosseguiu ele com gentileza. — E não posso lhe dar o que quer. Não temos futuro juntos. Se umdia eu vier a me casar, é importante que seja com uma mulher experiente, e de meu povo. Não desejo viver com uma branca jovem e inocente.

— Eu não seria inocente se você cooperasse — ela respondeu, ultrajada.

Os olhos negros se estreitaram outra vez.

— Se as circunstâncias fossem outras, eu cooperaria — Tate afirmou, e havia algo de quente e perigoso no modo como a fitava e sorria. Algo que fez com que o coração de Cecily disparasse. — Eu adoraria despi-la, atirá-la numa cama e deitá-la sob meu corpo.

— Pare! Vou desmaiar!

E era verdade. Desmaiaria, caso ele continuasse naquele tom.

A mão enorme deslizou para a nuca feminina e a apertou, levando o rosto dela para bem perto. Tão perto que Cecily pôde sentir o aroma de café que vinha da respiração de Tate. Tão perto que seus seios quase lhe tocaram o paletó.

— Você me tenta o tempo todo — ele disse. — E essa brincadeira é mais arriscada do que imagina.

Ela não respondeu. Não conseguia. Estava pulsando, doente de desejo. Em toda a sua vida, apenas aquele homem a fizera, e fazia, sentir-se viva, apaixonada. A experiência traumática que o padrasto lhe impusera não fora capaz de marcá-la a ponto de levá-la a perder, ao menos um pouco, a intensa atração física que tinha por Tate. Jamais sentira isso por outro homem.

Tocou-lhe o rosto liso com dedos frios e guiou-os até a nuca, enfiando-os nos cabelos que ele mantinha sempre presos. Tão preso como suas paixões...

— Você poderia ao menos me beijar — sussurrou, incerta. — Só para ver como é.

Tate ficou tenso. Então levou a boca até os lábiosentreabertos. O silêncio, no carro, era pesado, ansioso, cheio de expectativa e possibilidades. Ele se concentrou nos olhos verdes-claros, enormes, e viu chamas indisfarçáveis. Seu corpo, que sentia a pressão e o calor do dela, começou a reagir, mesmo contra sua vontade.

— Tate... — Cecily suspirou, erguendo o rosto, buscando a boca sensual e bem-feita que prometia o céu, a satisfação total, o paraíso.

Os dedos escuros puxaram-lhe os cabelos loiros. Doeu, mas Cecily não se importou. Seu corpo inteiro doía.

— Sua pequena tola...

Ela abriu ainda mais os lábios, sentindo que Tate fraquejava. Daquela vez, ao menos, estava vulnerável. Cecily poderia seduzi-lo. E então seus sonhos iriam se tornar realidade.

Sentia-lhe a boca, experimentava o sabor, a maciez. Via-o hesitar. Percebia a explosão aguda da respiração masculina contra seus lábios à medida que o famoso autocontrole de Tate desaparecia.

A boca masculina se abriu e a cabeça se inclinou. Cecily queria muito isso. Oh, céus, como queria!

 

O som estridente de uma buzina fez com que ela desse um salto, voltando ao doloroso presente. Estava na noite fria da capital norte-americana, em frente ao restaurante onde fizera uma cena ao atacar Tate Winthrop com uma terrina cheia de creme de caranguejo.

Aprumou-se enquanto deixava que as lembranças do passado desvanecessem.

Uma buzina também a tirara dos braços de Tate, dois anos atrás. Ele se afastara ao ouvi-la, e isso marcara o fim de seus sonhos. Cecily o ajudara a resolver o misterioso assassinato. Tratava-se realmente de um esqueleto paleoíndio, e fora usado para a prática detiro, voltada para um atentado contra um membro pouco popular do Congresso.

O que importava, naquele caso, era que Tate a envolvera nele, e isso lhe dera esperanças. Mas o destino rapidamente se encarregou de levá-las embora, por meio da buzina de um motorista impaciente.

Daquele momento em diante, Tate tratou de manter a maior distância possível. Deixou-a ali, em Washington, durante os dois anos da pós-graduação. A grande amizade que os unia se foi. E aquela noite, em especial, abalara seu mundo.

O doutorado, para Cecily, agora era um sonho distante. Tudo porque finalmente descobrira a verdade. Não, não tinha uma dívida a pagar pela educação, pelo apartamento, pela comida, pela ajuda financeira que recebera durante a graduação e o mestrado.

Tate sempre lhe dissera, ao longo daqueles seis anos, que todas essas despesas eram cobertas, por uma fundação anônima que ajudava mocinhas pobres a conseguir uma boa formação acadêmica. Mas, naquela noite, Cecily descobrira que aquela era uma grande mentira.

Tate pagara essas despesas. Tintim por tintim. Do próprio bolso.

Ela se aconchegou mais no xale ao ver que uma figura alta e esbelta atravessava o estacionamento, em sua direção.

— Você já se tornou famosa — Colby Lane anunciou, os olhos escuros brilhando no rosto magro e com cicatrizes. — Verá a si mesma no noticiário noturno, caso consiga viver para assisti-lo. — Tocou-lhe o ombro. — Tate está vindo para cá.

— Destranque este carro e deixe-me entrar!

— Covarde — ele zombou, abrindo-lhe a porta. No momento em que se sentou atrás do volante eligou o veículo, viu Tate caminhando pelo estacionamento lotado, os olhos falseando.

Cecily lhe enviou um beijo enquanto Colby entrava na avenida movimentada.

— Esta noite você correrá perigo — ele comentou. — Tate sabe onde fica seu apartamento.

—  Claro que sabe. É ele quem paga o aluguel — Cecily disse em um tom áspero, cortante. Abraçou o próprio corpo. — Não quero ir para casa. Posso ficar com você esta noite?

Ela sabia que Colby Lane ainda amava a ex-esposa, Maureen. Não tivera nada com outras mulheres por dois anos após o divórcio. Bebia demais, às vezes, mas não era perigoso. Cecily só confiava nele. Considerava-o um amigo sincero.

— Tate não vai gostar disso. - Ela soltou um suspiro.

— E o que importa, agora?

— Não sei por que aquela socialite, Audrey, decidiu contar-lhe a verdade — Colby murmurou, irritado. — Não era da conta dela.

— Talvez a moça deseje um enorme diamante num anel de noivado, coisa que Tate não pode lhe dar porque me sustenta — foi a resposta amarga.

Colby fitou-lhe o perfil tenso.

— Tate não vai se casar com ela.

— E por que não? Audrey tem tudo... dinheiro, poder, posição social e beleza. Além, claro de um diploma de doutorado.

— Em psicologia — ele acrescentou.

— Vem rodeando Tate há meses.

— Seu amigo anda por aí com um monte de mulheres. E não está disposto a se casar com nenhuma.

— Bem, ao menos isso é verdade em relação a mim. Sou branca.

— Que tal casar-se comigo? Posso cuidar de você. - Cecily fez uma careta.

— Você vai me chamar de Maureen enquanto dorme, e vou atirar o abajur em sua cabeça por causa disso. Não funcionaria -Ele suspirou, apertando as mãos no volante. Uma delas era artificial. Colby perdera um braço na África. Era soldado profissional. Às vezes trabalhava para vários governos, às vezes por conta própria.

Cecily nunca fizera perguntas acerca de suas viagens freqüentes. Eram amigos e saíam ocasionalmente. Parceiros na paixão que nutriam por outras pessoas. Esse ponto em comum levara a uma amizade verdadeira.

— Tate é um grande tolo — ele afirmou.

— Não se sente atraído por mim, essa é a verdade. Não ser uma lakota é uma vergonha.

— Leta Winthrop poderia argumentar a seu favor — Colby propôs com um sorriso divertido. — Vocês não se uniram para conseguir uma audiência no Senado?

—  Nós e muitas outras ativistas. Algumas índias ressentiram-se do fato de ter como companheira de luta uma mulher branca. Fiz o melhor que pude.

—  Eu sei.

— Grata pelo apoio. — Cecily recostou-se no banco. — Foi uma noite terrível. Acho que o senador Holden nunca mais vai querer falar comigo, Muito menos convidar-me para outro banquete político.

— Ele vai adorar a publicidade que você conseguiu, involuntariamente, para o jantar. E creio que tentará persuadi-la a assumir o posto de curadora-assistente no projeto do museu que acabou de inaugurar.

—  Antes fosse verdade. Eu aceitaria na hora. Do contrário, vou ter de parar de estudar.

— Tenho algum dinheiro guardado em bancos suíços. Posso ajudá-la.

— Não, obrigada. Prefiro ser independente.

— Combina com você — ele disse, e a fitou. — Se aceitar o emprego que o senador lhe ofereceu, deixará Tate furioso. Ele e Matt Holden são inimigos ferozes.

—  O senador é contra a instalação de um cassino na reserva Wapiti. Por isso, ele e Tate quase se pegaram duas vezes.

— Ouvi dizer. Mas fiquei sabendo de outras coisas, também. Holden tem feito campanha contra o cassino no comitê de assuntos indígenas.

— Existem outros cassinos sioux em Dakota do Sul — Cecily ponderou. — Mas Holden está contra o de Wapiti. Ninguém sabe por quê. Ele e Tate já tiveram algumas batalhas verbais por causa disso.

— E só uma desculpa. Tate odeia o homem. — Colby tirou uma mecha do cabelo preto e curto da testa, — Eu já disse isso antes, mas sempre é bom repetir: ele não vai gostar de saber que você dormiu em minha casa.

— Eu não me incomodo. Não vou lhe contar onde fiquei. Não é mais da conta dele o que faço ou deixo de fazer.

— Gostaria de descobrir o que Tate fará se souber que você passou a noite em meu apartamento...

Cecily deu um longo suspiro.

— Está bem, não quero causar problemas entre vocês dois. Afinal, são amigos há muitos anos. Leve-me a um hotel, por favor.

Ele hesitou, o que era raro.

—  Posso assumir a responsabilidade de tê-la em casa, se você também o fizer.

—  Não sei se eu conseguiria. Já existem muitas complicações em minha vida. Além disso, Tate me procuraria em seu apartamento, pode ter certeza. E não quero que me encontrem por alguns dias, até ser capazde lidar com minha nova situação e tomar algumas decisões importantes acerca do futuro. Pretendo ver o senador Holden e procurar outro apartamento. Posso fazer tudo isso se estiver hospedada num hotel.

— Você manda.

— Leve-me a um lugar barato — Cecily acrescentou, aborrecida. — Não tenho mais dinheiro. A partir de agora, serei responsável pelo pagamento de minhas próprias contas.

— Você devia ter jogado o creme de caranguejo em outra pessoa.

—  Em quem?

—  Em Audrey Gannon. Ela não tinha o direito de revelar que Tate era seu benfeitor. Agiu por despeito, para provocar esse mal-estar entre vocês. Essa mulher só cria problemas. Um dia Tate vai se arrepender de tê-la conhecido.

— Pois Audrey está durando mais do que os outros casos dele.

—  Você não passou tanto tempo com a moça para saber como ela é. Eu passei. Audrey tem inimigos. Incluindo o ex-marido, que hoje vive num apartamento porque, para concordar com o divórcio, ela lhe tirou a casa, o Mercedes e o dinheiro guardado na Suíça.

— Ahá! Então aqueles belos diamantes vieram daí!

— Os pais de Audrey também eram ricos. Mas gastaram a maior parte da fortuna antes de morrer, num acidente aéreo. Dizem que ela gosta de homens incomuns, e Tate é um homem incomum.

—  Audrey não irá à reserva para conhecer Leta.

—  Claro que não. — Colby parou diante de um semáforo fechado. — Afinal, aquela é uma reserva para norte-americanos nativos — enfatizou, provocando-a.

Cecily mostrou-lhe a língua, em protesto.

— Leta a partiria em duas.

— Ou em três. Muito bem, deixe-me pensar em um bom hotel... Então sairei da cidade, antes que Tate venha atrás de mim!

— Talvez você deva pendurar um caranguejo na porta do apartamento — ela sugeriu. — Isso o manterá afastado.

— Engraçadinha...

Cecily voltou o olhar para as luzes brilhantes da cidade. Sentia frio, solidão e um pouco de medo. Mas tudo daria certo. Sabia que sim. Era uma mulher adulta e podia cuidar de si mesma. Aquela era sua chance de provar isso.

 

O noticiário das onze mostrou Cecily atirando o creme de caranguejo em Tate. O senador Matt Holden riu muito e, quando ela lhe telefonou, confirmou que a queria trabalhando no museu.

Na segunda-feira de manhã, Cecily encontrou um pequeno apartamento, que poderia pagar com o salário que viria a receber, e saiu do imóvel de Tate. Depois, deu como encerrada a pós-graduação e desligou-se da universidade.

Daquele momento em diante, seguiria por sua própria conta. E, um dia, pagaria a Tate, centavo por centavo. Magoada pelo fato de nunca ter sido nada, para ele, além de um caso de caridade, não desejava ter mais nenhuma ligação com o homem que amara por tanto tempo.

A partir daquele dia, Tate não poderia considerá-la uma tutelada. Até aquele instante, devia a ele inclusive a comida que levara à boca. Mas isso não aconteceria mais. Agora, era uma mulher livre. Independente. Sustentaria a si mesma.

Talvez, dali a alguns anos, conseguisse terminar a pós-graduação. Tinha tempo de sobra para isso. Ao menos conseguira um emprego, para atravessar aquela fase difícil.

Viu-se obrigada a usar a pequena poupança paragarantir o novo apartamento, pagar a mudança e comprar alimentos. Estava tão ferida que odiava o mundo inteiro. Não conseguiria nem mesmo falar com Leta.

Seu novo lar era um pequeno e velho apartamento, mas ao menos ela agora era responsável pelo aluguel. Ao contrário do apartamento pago por Tate, aquele não tinha mobília. Cecily improvisou o estritamente necessário.

Por sorte, o imóvel ficava próximo do museu. Para ir ao trabalho, bastava tomar um ônibus. Ou o metro.

Colby foi ajudá-la a desempacotar as coisas. Levou pizza e uma caixa com algumas fitas cassete, como presente pela casa nova. Lancharam enquanto desembrulhavam lâmpadas e pratos.

— Odeio cerveja — ela se queixou, olhando para a única bebida que o amigo levara.

— Se beber bastante, não vai se incomodar com o sabor. - Cecily lançou-lhe um olhar de descrédito, deu de ombros, fechou os olhos, prendeu a respiração e bebeu.

— Credo! Que coisa ruim!

—  Continue tomando.

Ela ingeriu metade do conteúdo da latinha e comeu mais um pedaço de pizza. Alguns minutos depois, como Colby dissera, o sabor da cerveja não lhe pareceu tão ruim.

Ele a viu sorrir e ficou feliz.

— É o primeiro sorriso que você dá há dias!

— Preciso treinar. Afinal, começo a trabalhar na segunda-feira que vem. Mal posso esperar.

— Eu gostaria de estar na cidade, para poder ouvi-la contar sobre o primeiro dia de trabalho, mas tenho compromissos do outro lado do mundo.

A pizza que Cecily levava à boca ficou parada no meio do caminho. Colocando-a de lado, ela encarou o amigo, preocupada.

—  Colby, você já perdeu um braço...

— O que me tornou mais cuidadoso — ele garantiu. — Isso só aconteceu porque eu estava bêbado. Não deixarei que um acidente assim se repita. — Olhou para a lata de cerveja. — A bebida, hoje, não me afeta mais. É apenas uma diversão prazerosa. — Fitou Cecily. — Consegui atravessar a pior fase de minha vida. E pretendo ajudá-la a atravessar a sua. Mas quando voltar.

Ela sorriu.

— Certo. Mas prometa voltar vivo. - Ele piscou.

— Prometido!

 

Durante a ausência de Colby, Cecily comemorou seus vinte e cinco anos com uma fatia de bolo, uma vela e um cartão enviado por Leta, que nunca esquecia a data. Tate, ao que tudo indicava, não se lembrara, ou decidira ignorá-la. Pela primeira vez, naqueles oito anos, Cecily não teve notícias dele.

Entrincheirara-se no museu e fizera de lá a sua vida. Sentia falta da faculdade, dos colegas, mas adorava o trabalho. Adquirir peças do período paleoíndio era parte de suas obrigações como curadora-assistente. Não sentia tanta falta do serviço de campo, como achava que sentiria. Era excitante ter acesso a coleções raras, a peças datadas de milhares de anos, como as ferramentas de pedra moldadas por mãos já desaparecidas.

O número de seu novo telefone não fazia parte da lista. Por isso, Tate ligou para o museu. Cecily colocou o fone no gancho, com gentileza mas determinação, ao ouvir-lhe a voz. E ele não a procurou mais.

Em compensação, o senador Holden o fez.

— Meu aniversário será sábado à noite — disse. — Eu gostaria que você e Colby viessem à minha casa.

— Ele está fora da cidade. Mas eu adoraria ir.

— Ótimo. Então conversaremos sobre alguns outros projetos.

— Verdade?

Cecily sorriu. Sabia como Holden amava o museu. Abri-lo fora idéia dele, grande admirador da cultura nativa. Não era sioux, mas sua mãe fora criada na reserva Wapiti. Como Cecily, ele tinha uma enorme afeição pela nação lakota.

—  Verdade. Falarei sobre isso no sábado. As seis em ponto, certo? Não se atrase. Será um jantar.

— Vou deixar de comer por alguns dias, para aproveitar melhor as iguarias...

Quando desligou, ela se deu conta do que tinha dito. Na verdade, vinha se alimentando de maneira bastante frugal. Isso, porém, não a incomodava. Bastava-lhe não depender da caridade de ninguém. Tinha vinte e cinco anos e se sustentava. Sentia-se bem por isso.

 

Cecily telefonou para Leta, a fim de avisá-la de que planejava voar até Rapid City e ir, de carro, à reserva, para participar das celebrações anuais da tribo. AH, a nação se reunia por três dias, em setembro. Canto e dança faziam parte da programação.

Ela já comprara a passagem e reservara um automóvel, na locadora da cidade. Não deixaria de participar da festa apenas porque não falava mais com Tate. De todo modo, havia a possibilidade de ele não aparecer na reserva.

— Tate não tem telefonado — disse Leta, quando falaram sobre a celebração. — Liguei para o apartamento e aquela moça, Audrey Gannon, atendeu. Informou que meu filho estava fora do país, a trabalho. Foi fazer algum serviço para seu chefe, Pierce Hutton.

Cecily sentiu um aperto na garganta. Respirou fundo antes de comentar:

— Eu não sabia que os dois estavam vivendo juntos.

— Tate gosta de manter segredos, não é, querida? Acho que sente alguma coisa por Audrey — afirmou Leta, sem esconder a irritação. — Ela odeia a origem de meu filho, odeia a reserva, e mal conseguiu ser educada comigo quando eu lhe disse quem era. Se Tate estiver mesmo louco pela moça, como a própria Audrey diz que está, temo que possa se voltar contra seu povo, e até contra mim, por influência dela.

— Audrey não faria isso — Cecily assegurou, procurando tranqüilizar Leta.

—  Ah, faria sim. Ela é contra a soberania nativa —  Houve um momento de hesitação. — Estou feliz por saber que você virá. Sinto sua falta. Desde que nos deixou, para viver em Washington, mal teve tempo de nos visitar.

— Também sinto sua falta, Leta.

— Preciso de alguma coisa que me faça bem à alma. Já perdemos a esperança de conseguir uma ambulância e uma clínica comunitária, porque as verbas que nos foram destinadas desapareceram.

— Desapareceram? Como assim? — perguntou Cecily, alarmada.

— Ninguém sabe. Tom Black Knife, o chefe da tribo, acha que foi um erro de cálculo. Mas não estou certa disso. Há algumas suspeitas por aqui. Especialmente desde que a papelada para a proposta do cassino foi enviada. Será que você poderia convencer o senador Holding a ouvir o nosso lado da história?

— Matt Holden é contra o cassino, apesar de todos os meus argumentos — Cecily explicou com tristeza.

—  E olhe que lhe passei as informações necessárias.

Vou à festa de aniversário dele. Talvez consiga alguma coisa lá.

— Claro. O aniversário do senador. Mas Holden é inflexível quando alguma coisa vai contra seus princípios.

— Você fala como se o conhecesse!

Houve um longo silêncio antes que Leta voltasse a falar. Quando ela o fez, foi com voz tensa:

— E o conheço. Todos, aqui, o conhecem.

— Por que não vem a Washington e conversa pessoalmente com ele? — Cecily propôs. — Pode ficar comigo.

—  Oh! Naquele belo apartamento? — quis saber Leta, animada.

Cecily franziu a testa.

— Eu... mudei de lá. Estou em outro lugar. É menor, meio velho, mas é meu lar. Você gostará. Coloquei um sofá-cama na sala. Posso dormir nele e ceder-lhe meu quarto.

Leta ficou em silêncio por alguns instantes.

— Adorarei vê-la. Mas não posso dizer o mesmo em relação a um avião. Preciso pensar em sua sugestão. Se concordar, você, Tate e eu poderemos passear pela cidade. Vai ser divertido.

Ela hesitou.

— Tate e eu não estamos nos falando — disse, tensa.

— Por que não?

— Porque descobri quem vinha pagando todas as minhas despesas.

— É uma fundação, não é mesmo? — Leta perguntou, com inocência. — E o que isso tem a ver com o fato de vocês dois não se falarem? Quer dizer... quem está por trás da tal fundação? — quis saber, dessa vez em um tom de alerta. — Algum traficante de armas? Um grupo terrorista internacional?

Céus! Leta não sabia que Tate a sustentara por todos aqueles anos!

Bem, aquele não era um assunto para discutir ao telefone. Cecily teria tempo para isso quando fosse para Dakota.

— Eu lhe direi quando estiver aí, prometo. Até logo!

— Está bem. Cuide-se, meu amor.

— Cuide-se também, Leta.

Cecily desligou, preocupada. Tinha certeza de que a boa senhora ficaria magoada quando soubesse o que o filho havia feito.

Franziu a testa, lembrando-se do que ela comentara sobre o desaparecimento dos fundos da tribo. Gostaria muito de saber o que estava acontecendo em Wapiti.

 

Colby voltou ao país no sábado, de maneira inesperada. Desse modo, Cecily o convidou para acompanhá-la à festa do senador Holden. Ele aceitou, mas pareceu solene. Quando apareceu para pegá-la, tinha a expressão cansada.

— Eu não devia tê-lo convidado — ela disse com gentileza, sabendo que era melhor fazer esse comentário do que perguntar-lhe o que havia de errado.

Colby deu de ombros.

— É mais interessante do que ficar em casa, sem fazer nada. — Sorriu debilmente. — Hoje serei uma péssima companhia. Mas prometo dar um jeito nisso.

Quando chegaram à casa do senador, em Maryland, viram-se rodeados de políticos, milionários e outros convidados famosos. Cecily olhou-se no espelho do hall de entrada. Felizmente, pensou, os cabelos loiros estavam brilhando, e o vestido preto, na altura dos joelhos, era adequado ao encontro.

Seus olhos verdes, porém, não paravam um só segundo. Ela se sentia vulnerável, sem os óculos. Mas não queria aborrecer-se com eles. E odiava usar lentesde contato. Na verdade, por que insistir em ver tudo com clareza? Não era preciso tanto, pensou, enquanto saboreava os pratos variados que o serviço de bufê oferecia.

Terminada a refeição, Colby foi buscar o café. E ela desejou que o amigo voltasse logo. Sentia-se pouco à vontade em meio a pessoas cuja conversa girava em torno de investimentos, viagens para o exterior e ações.

Seu círculo social era muito diferente daquele. Sorriu para si mesma enquanto estudava os convidados, aos quais garçons de luvas e casaca brancas ofereciam drinques sofisticados. Afinal, suas companhias mais habituais, nos últimos tempos, vinham sendo esqueletos. Viu uma terrina nas mãos de um dos garçons e experimentou uma certa dor na consciência.

Ajeitou a pequena bolsa de noite no ombro e caminhou em silêncio pela sala, fazendo gestos de cabeça e sorrindo, polida, aos que conhecera na noite daquele primeiro jantar. Sentia-se uma estranha, uma estrangeira solitária em meio àquela gente. Preferia estar em casa ou no museu. Ou na reserva, com Leta.

Holden era senador pelo Partido Republicano de Dakota do Sul. Um homem difícil, belicoso, que fazia inimigos com a mesma facilidade com que dirigia o comitê sobre assuntos indígenas do Senado. Estava envolvido com uma série de casos políticos e particulares. O mais recente era um fundo privado para seu projeto mais querido, o recém-criado Museu Arqueológico e Antropológico Nativo, no qual Cecily trabalhava.

Ao fitá-lo, ela estreitou o olhar. Era um homem atraente, mesmo naquela idade. A esposa falecera um ano antes. Por isso, Holden, com seus belos olhos negros, cabelo prateado e porte elegante, estava na lista de todas as viúvas do país. Naquele momento, por exemplo, duas adoráveis senhoras o cercavam, com seus perfumes caríssimos e decotes ousados.

— Essa cena não lembra um ataque de tubarões? — uma voz murmurou a seu ouvido.

Ela levou um susto e virou-se para Colby.

— Céus, você me surpreende! — disse, caindo na risada.

Colby simplesmente sorriu.

— Eis seu café. Não está mau, diga-se. - Entregou-lhe uma das xícaras e tomou um gole da outra. Ao observá-lo, Cecily se perguntou por que ele e Tate haviam deixado o país na mesma época. Mas, em seguida, decidiu tirar Tate do pensamento. Não permitiria que aquela lembrança lhe estragasse a noite.

—  Você nunca me diz aonde vai — comentou, os olhos voltados para Colby.

Ele mencionou uma guerra civil da África antes de murmurar:

— Se você disser a alguém que lhe contei, eu nego. Ela engoliu em seco. Todos sabiam do conflito e de suas terríveis conseqüências.

—  Oh, aquela pobre gente...

— Amém.

— Aposto como você estava envolvido na captura dos "bandidos" da história.

Colby apenas sorriu. Nunca falava sobre suas missões. Não era um homem bonito, em especial por causa das cicatrizes que marcavam o rosto magro. O cabelo preto, curto e fino, era o que tinha de melhor. Ainda assim, possuía um magnetismo perigoso que, Cecily sabia, não passava despercebido. Infelizmente, ele vivia tão preso ao passado que nem sequer olhava duas vezes para uma mesma mulher.

Fora casado durante cinco anos, e havia dois a esposa o abandonara. Na verdade, trocara-o por outro. Por alguém que permanecia mais tempo em casa,que já tinha dois filhos e cujo trabalho não implicava risco de vida.

Suas bebedeiras, depois da separação, tonaram-se legendárias. A intervenção de Cecily, e de uma psicóloga de Maryland, salvaram-no do alcoolismo. Mas Colby ainda se equilibrava perigosamente na beira do abismo. Uma pena, pensou ela, amar tanto, perder esse amor e ser incapaz de reagir. Quase como o que lhe acontecia, em relação a Tate.

— Tem visto Tate? — perguntou Colby, como se tivesse lido seus pensamentos.

Cecily ficou tensa.

— Não.

Ele então a fitou e deu um sorriso seco.

— Este banquete está muito aborrecido. O anterior foi bem mais interessante. Você virou a estrela da noite. Apareceu em todos os noticiários. Ouvi dizer que um dos mais respeitados jornalistas da televisão fez um longo comentário sobre o que aconteceu.

— Vá em frente! — Cecily convidou, com um gesto. — Pode zombar à vontade.

— Não posso evitar. Acho que foi a primeira vez, na história política dos Estados Unidos, que um ex-agente da CIA foi "batizado" com uma terrina de creme de caranguejo bem diante das câmaras! — Colby teve de fazer um grande esforço para não rir. Tomou um gole do café, disfarçando o sorriso. Antes de conhecer Cecily, jamais imaginara que uma mulher pudesse fazer aquilo com o alto, elegante, atraente Tate Winthrop. — Parece que Matt Holden a perdoou...

Cecily sorriu.

— Ele adorou a cena. Seu jantar ficou famoso. Foi alvo de todos os comentários.

Os olhos de Colby buscaram a figura do senador.

— Mas deve ter gostado, também, porque viu Tate totalmente sem graça e sem ação. Afinal, são inimigos naturais!

Cecily colocou o peso do corpo sobre o outro pé. Os saltos altos torturavam-na cada vez mais. Quase nunca os usava.

— Sei disso. Tate luta pela abertura do cassino em Wapiti. Acha que isso vai elevar as reservas financeiras da tribo, o que ajudará a implantar programas para os adolescentes, tirando-os do alcoolismo e da violência. O senador, por outro lado, se opõe violentamente ao projeto. Os dois já brigaram muito por causa desse assunto. E por muitos outros, todos envolvendo a comunidade lakota.

Colby franziu as sobrancelhas.

— Mas o senador também não é um lakota? - Cecily sorriu.

— Seu pai era de Morocco. Holden não tem um pingo de sangue sioux. Mas parece ter, não é? Talvez seja por isso que consegue os votos da tribo, em todas as eleições. Por isso e porque, segundo ouvi dizer, sua mãe deu aulas na escola da Reserva Wapiti.

Ao pensar nisso, Cecily se perguntou se Leta o conhecera durante a juventude. Os dois tinham quase a mesma idade.

—  Holden conhece a família Winthrop?

— Talvez, mas veio para o Congresso antes de Tate nascer. Foi eleito senador no mesmo ano em que a reserva foi demarcada.

— E você não o conhecia até essa história do museu aparecer.

—  Exatamente. — Ela alisou o vestido e viu, irritada, barro no sapato de camurça. — Droga. Estava chovendo, e tive de andar na grama. Há lama em meus sapatos. E eles são praticamente novos!

—  Não se preocupe. Eu a carregarei, na volta — Colby sugeriu com olhos brilhantes. — Mas terá de ser apenas sobre um ombro, claro — acrescentou, com um olhar seco ao braço artificial.

Cecily franziu a testa ao notar amargura na voz do amigo.

— Ouça, ninguém em sã consciência o julgaria um incapacitado — disse com gentileza e um sorriso caloroso. — De todo modo, já dei à mídia assunto suficiente, no outro jantar. Não quero mais complicações.

Colby a estudou com um sorriso divertido. Era a única mulher de quem gostava sinceramente. Ia contar-lhe isso quando viu, por sobre o ombro de Cecily, que um homem se aproximava.

—  Acho que tão cedo você não vai se livrar das complicações, querida.

—  O que quer dizer?

— Que hoje talvez seja o dia da vingança. Não, não se vire! — pediu, trazendo-a para mais perto. — Continue olhando para mim e finja estar fascinada por meu nariz. Assim, Tate vai ficar enciumado.

Cecily riu, a despeito da pulsação acelerada. Observou o rosto magro, cheio de cicatrizes, do amigo. Não era bonito, mas tinha estilo. Se não fosse por Tate, acabaria se interessando por Colby.

—  Percebo que seu nariz foi quebrado duas vezes — comentou, sorrindo.

—  Três. Mas quem se importa? — Ele ergueu o olhar e viu que Tate chegara bem perto. — Olá, companheiro. Não esperava vê-lo esta noite.

—  Sei disso — veio a resposta, em voz profunda e cortante.

Colby afrouxou o abraço e recuou um pouco.

—  Pensei que você não viesse ao jantar.

Tate parou diante de Cecily, elegante em seu traje de gala. Ela jamais se cansava de contemplar aqueles olhos negros, o rosto marcante, o nariz reto, o queixo erguido. Era o homem mais bonito do mundo.

Se usasse a roupa típica da tribo, pareceria um guerreiro lakota do século dezenove. A imagem de Tate, vestido a caráter durante as celebrações, na reserva, invadiu-lhe a mente, deixando-a zonza.

— Audrey gosta de estar entre os ricos e famosos — ele explicou, os olhos negros buscando os de Cecily.

—  Vejo que continua nas graças do senador. Ele já lhe deu jóias?

—  O que há com você? — ela retrucou, com um sorriso gelado. — Está com... ciúme?

Tate não se abalou.

— O que deu a Holden para conseguir o trabalho no museu? — perguntou com malícia.

A insinuação encheu-a de raiva. Sua primeira reação foi atirar-lhe a xícara, que ainda continha um pouco de café, mas Colby segurou-lhe o braço a tempo de impedir o gesto.

— Não cometa o mesmo erro duas vezes — Tate avisou, os olhos faiscando, a voz perigosamente baixa. Era como se suas hostilidades estivessem esperando apenas a chance de se voltar contra Cecily. — Se jogar essa xícara em mim, juro que vou carregá-la até a mesa e atirá-la na tigela de ponche!

— Claro! Você e a CIA! — ela zombou. — Vá em frente! Por que não tenta?

Tate deu um passo na direção dela no momento em que Colby se colocou entre ambos.

— Parem com isso, vocês dois.

Cecily não recuou um só centímetro. Nem Tate, que passara da afeição e da indulgência ao mais duro antagonismo no espaço de algumas semanas. Ultimamente, ficava furioso até ao ouvir-lhe o nome. Mas Colby não contou isso a ela.

— Você não tem o direito de fazer esse tipo de insinuação — Cecily protestou por entre os dentes. — Sabe muito bem que não sou desonesta, e não começaria a ser só porque arranjei um trabalho.

Os olhos negros se estreitaram, mas não a intimidaram. Nunca a intimidariam. Ele observou a xícara, que ainda estava nas mãos femininas, antes de voltar a encará-la.

Sentira muita raiva por ter feito aquele papel ridículo no outro jantar dado pelo senador, e Audrey tornara tudo ainda pior. Mas naquele momento, ao olhar para Cecily, esqueceu a ira. Tinha apenas um imenso vazio no peito. Na alma.

Aquela mulher fora o espinho de sua vida durante muitos anos, desde que um ato impulsivo de compaixão o tornara responsável por ela. Naquela época, Cecily era recatada e doce. Dependia dele. Sua tímida adoração pelo herói que a salvara ainda era um sentimento vago.

Agora, porém, tudo mudara. Ela se transformara numa mulher forte e independente, que não se importava mais com sua aprovação ou, ao que tudo indicava, com sua companhia. Nem mesmo deixara a cidade, para se ver longe dele.

Ainda era como uma filha adotiva para Leta. Tate odiava ter de admitir como se sentira ferido quando Cecily lhe voltara as costas. Nem todo o charme de Audrey fora capaz de atenuar a lembrança da acusação que vira nos olhos verdes, quando da revelação da verdade.

Ele desejou nunca ter confiado na socialite. No começo do relacionamento, falara mais do passado do que deveria. Nunca lhe ocorrera que Audrey contaria a todos as coisas que lhe tinham sido ditas confidencialmente. Espantoso como se deixara enganar por um rosto bonito.

Em todo caso, aprendera a lição. Agora, Audrey só ouvia aquilo que Tate desejava ver chegar à mídia. Mas o estrago já estava feito. Podia ver isso à sua frente, nos olhos verdes furiosos e na mão apertada na xícara.

Além disso, percebia que Colby Lane, seu grande amigo, estava prestes a ter um romance com Cecily...

— Por que está na cidade? — perguntou a Colby.

— Porque não precisaram mais de mim. Aparentemente, meus interrogatórios têm um método muito... forte para alguns de nossos colegas politicamente corretos. Assim, mandaram-me voltar para casa.

— Compreendo. Viu quem ficou responsável pelas investigações?

— Sim — respondeu Colby, terminando o café. — Diga-me, o que aconteceu com os velhos bons tempos, quando a "companhia" contava com homens inteligentes?

— Ah, não — disse Audrey com sua voz rouca ao juntar-se a eles, divina num caríssimo vestido vermelho de cetim. Alta-costura, provavelmente. — Nada de falar sobre trabalho — prosseguiu, pressionando os seios contra o braço de Tate e dirigindo a Cecily um olhar arrogante antes de se voltar para Colby. — Olá, Colby. Faz tempo que não o vejo.

Ele sorriu sem vontade.

— Estive muito ocupado.

— A ponto de não aparecer nem para visitar seu melhor amigo? — Audrey continuou. — Nós o convidamos para jantar duas vezes e você arranjou desculpas em ambas as ocasiões.

Aquelas não passavam de insinuações, de mostras de que ela e Tate estavam vivendo sob o mesmo teto. Cecily, que já sabia disso desde a conversa com Leta,permaneceu calma. Mas só na aparência. Por dentro, torturava-se ao imaginar os dois amantes juntos.

— Estive fora do país por uma semana, treinando o pessoal de um de nossos novos projetos, no mar Cáspio — disse Tate. — Tivemos alguns problemas por lá.

— Ouvi dizer — respondeu Colby. — Brauer tem vários amigos, não é? — acrescentou, referindo-se ao alemão que envolvera o chefe de Tate numa trama de seqüestro. — Acho que até na prisão ele consegue contratar... ahn... "faxineiros".

Tate deu de ombros.

— Pierce e eu podemos lidar com isso. — Sorriu para Audrey.

Cecily colocou a mão livre na de Colby, procurando conforto. Surpresa, percebeu que os dedos do amigo se fechavam em torno dos seus.

— Bem, foi um prazer vê-los — disse Colby, entendendo a mensagem que a mão gelada lhe passara. — Infelizmente, nós precisamos ir embora.

A palavra "nós" não passou despercebida a Tate, que olhou, de maneira curiosa, para os dois. Todos sabiam que Colby ainda era apaixonado pela ex-esposa, mas... Bem, mas ele segurava a mão de Cecily e a tratava de modo protetor!

Tate não gostou disso. Colby ainda era um alcoólatra, embora tivesse melhorado bastante, e poderia arruinar a vida de Cecily. Precisava pensar em uma maneira de lidar com isso. Para o bem dela, claro.

— Ah, finalmente você apareceu! — disse Matt Holden, juntando-se ao grupo. Olhou para Tate e completou, sem rodeios: — Não vou ceder um milímetro quanto ao cassino, se foi isso que veio saber.

—  Você é apenas um homem. Não pode deter o progresso.

— Sim, eu posso — Holden respondeu em um tom hostil. — Não pretendo ver o crime organizado tomar conta da reserva Wapiti.Se não gosta disso, sabe muito bem o que deve fazer.

— Não há nenhuma ligação entre o crime organizado e Wapiti. Você usa isso como desculpa — devolveu Tate. — Mas não manda no governador nem no procurador-geral do Estado. E não tem nenhuma influência na reserva.

—  Deseja mesmo ser sócio de homens que ficam com oitenta por cento dos lucros e matam quem quer que tente detê-los? — Holden indagou. — Não quero ver o crime organizado vivendo à custa dos alimentos, das roupas e dos lares das crianças lakota!

Tate deu um passo na direção do senador.

— Essa é uma conversa estranha para um burocrata de Washington que anda por aí em limusines com chofer e faz suas refeições em pratos de porcelana chinesa! Que diabos você sabe sobre crianças cujos pais não são capazes de providenciar calor no inverno, que vivem numa reserva que não conta nem mesmo com uma ambulância para levar os feridos à clínica mais próxima?

— Sei muito mais do que imagina, meu caro. - Cecily se colocou entre eles e sorriu para o senador.

— No museu, me contaram que você tem uma coleção de pontas de projéteis datadas de milhares de anos — disse. — Será que terei uma chance de conhecê-la?

Por um momento, Holden ainda se viu sob o jugo da raiva, mas, ao contemplar Cecily, relaxou e sorriu.

— E verdade, essa coleção me pertence. Quer mesmo vê-la?

— A arqueologia paleoíndia ainda é meu grande amor — ela respondeu. — Sim, eu adoraria vê-la.

Holden tomou-lhe o braço.

— Vocês poderiam nos dar licença?

Cecily não olhou para trás. Seguiu o senador sala adentro, conversando com animação.

— Por que você faz essas coisas? — Audrey perguntou, olhando em torno e notando que algumas pessoas ainda os observavam, por causa da breve discussão.

— Holden é um homem poderoso. E está certo em relação aos cassinos. — Ajeitou o cabelo, que caía sobre os ombros. — Em primeiro lugar, as reservas nem sequer deveriam existir. Somos todos norte-americanos. E uma bobagem sustentar um grupo de pessoas que prefere viver entre os ursos a morar na cidade. E preciso acabar com as reservas indígenas!

Colby mordeu o lábio e fitou Tate. Disse algumas palavras num idioma que só o amigo entendeu.

—  Por que está saindo com Cecily? — quis saber Tate, em vez de responder à pergunta que Colby lhe fizera na língua lakota.

— Porque é solteira. Como eu. E porque gosto dela.

— Não entendo por que você aceita ser visto com essa garota em público — comentou Audrey, olhando para Colby. — Ela não tem berço, e socialmente é um desastre.

— Bem, Cecily nunca atirou creme de caranguejo em mim... — ele respondeu, lançando a Tate um olhar deliberadamente provocador. — Nem teria jogado a terrina em você se tivesse sabido a verdade desde o começo. Cecily odeia mentiras. Não posso imaginar que você não tenha percebido isso nesses oito anos de convivência.

— Cecily é orgulhosa como o demônio — disse Tate — E nunca teria ido para a faculdade se soubesse que eu pagaria por isso. Mas valeu a pena. Ela mereceu cada centavo.

— A mocinha vai lhe devolver o dinheiro, agora que sabe a verdade, não vai? — indagou Audrey. — Vocênão lhe deve nada. Era muito apegado a ela, mesmo sem ser parente.

— Há coisas sobre minhas obrigações para com Cecily que você não compreende, Audrey — Tate afirmou, vendo-a, ao longe, ainda de braços dados com Holden.

— Que coisas? Não me diga que foram amantes!

—  Claro que não! — foi a resposta irritada. — E isso é tudo o que lhe direi sobre o assunto.

Audrey observou Cecily e Holden com atenção.

— O senador gosta mesmo da moça, não? Poderia sustentá-la, cuidar dela. Afinal, passam muito tempo juntos, por causa do museu.

Isso já ocorrera a Tate, que não gostara nem um pouco da idéia. Holden era muito mais velho do que Cecily.

Colby percebeu a desaprovação no semblante do amigo, mas não fez nenhum comentário a respeito. Levantou a xícara vazia.

— Preciso enchê-la. Com licença.

Deixou-os sozinhos. Audrey encostou-se no peito musculoso com um suspiro.

— Por que você quis vir a esta festa sem graça? — perguntou. — Poderíamos ter ido ao balé, com os Carson.

—  Odeio balé.

—  Mas gosta de ópera.

— Há uma diferença — ele respondeu, ainda de olho na porta por onde Cecily e Holden tinham desaparecido. — O que ela vê no senador?

— Bem, os dois têm algo em comum: gostam das coisas que pertenceram a gente morta! — Audrey comentou com uma gargalhada.

Tate sentiu o calor da raiva subindo ao rosto.

— Ainda estou tentando entender por que você disse a Cecily que paguei por sua educação.

Ela o fitou com ar inocente.

— Oh, mas você nunca me pediu para não dizer. E ela é grandinha o suficiente para cuidar de si mesma. Não precisa de um guardião. Era só uma desculpa para  continuar rodeando você,  intrometendo-se na sua... na nossa vida. Agora, está livre.

—  Livre de quê?

—  Da obsessão que tinha por você. — Audrey acariciou-lhe o braço, ciente da expressão chocada de Tate.

— Todas as jovenzinhas passam por isso. E alguém precisava lhe mostrar que não há espaço para ela em sua vida. — Fitou-o com adoração. — Você agora tem a mim.

Tate a conduziu até a mesa de bebidas, ainda sentindo-se inquieto. Audrey vivia a seu lado, conseguia que o zelador a deixasse entrar em seu apartamento a qualquer hora, até mesmo lhe telefonava no trabalho. Era assustadoramente possessiva.

Tate não entendia por quê. Não se sentia envolvido com ela, que agia como se os dois estivessem casados. Isso não lhe cheirava bem.

— O que a levou a pensar que Cecily estava obcecada por mim? — perguntou, de repente.

— Oh, Colby me disse uma vez, quando estava meio bêbado. Foi antes de os dois começarem a sair juntos. Ele sentia pena de Cecily, mas eu não. Existem muitos homens disponíveis no mundo. — Sorriu. — Ela não é bonita, mas um dia encontrará alguém de seu nível. E talvez esse alguém seja Colby — sugeriu, pensativa.

— Os dois parecem muito íntimos, não acha? Mais do que Cecily e Matt Holden. Talvez seja ela a mulher que irá ajudá-lo a esquecer a ex-esposa...

 

OPow Wou, festa anual da reserva Wapiti, era a celebração predileta de Cecily. Por sorte, daquela vez Tate não estaria presente. Viajara mais uma vez para o exterior, segundo Colby.

Por isso, ela se sentia segura. Ao menos por enquanto. Ainda bem, porque Leta ficaria desolada se não a visse lá. Cecily, por sinal, também ficaria triste. Adotara-a como mãe, e sentia muito a falta da boa senhora.

Suspirando, olhou em torno, admirando os belos trajes típicos, alguns muito antigos. A maioria dos Pow Wow aconteciam nos meses de verão, mesmo que em setembro já se sentisse, no ar, o cheiro do outono.

— Parece que a festa deste ano está mais cheia do que a do ano passado — comentou, deliciando-se com o colorido da multidão.

Estava sentada em torno de um círculo, dentro do qual se desenrolava uma competição de danças, ao som de tambores e cânticos.

— É que este ano a divulgação foi maior — explicou Leta com um sorriso.

Jovem e animada em seus cinqüenta e quatro anos, meio gorduchinha, a índia possuía um rosto muito bonito, olhos castanhos-escuros e fios brancos que lhe davam um charme especial. Usava um vestido típico e botas, complementados por belos ornamentos no cabelo negro. Um deles era um círculo com uma cruz dentro. O símbolo lakota. A representação do círculo da vida.

— Você está maravilhosa — elogiou Cecily. Leta fez uma careta.

— Engordei um pouco. Quanto a você, andou perdendo peso — comentou, estreitando os olhos.

 Cecily espreguiçou-se. Usava camisa azul, saia jeans e botas. Os longos cabelos loiros, presos, formavam uma coroa ao redor da cabeça. Dessa vez, pusera os óculos.

— Lembra-se de quando eu lhe disse, pelo telefone, que havia descoberto a verdade sobre a fundação que pagou minhas despesas durante todos esses anos?

Leta assentiu.

— Claro.

—  Bem, pois não foi uma fundação. — Respirou fundo antes de dizer: — Foi Tate.

A boa senhora surpreendeu-se.

— Tem certeza?

— Absoluta — ela respondeu, fitando a mulher por quem tinha uma profunda afeição. — Descobri isso no meio do jantar do senador Matt Holden. Perdi a cabeça e atirei a terrina de creme de caranguejo em cima de seu filho. A televisão gravou tudo. — Voltou os enormes olhos verdes para os dançarinos. — Fiquei arrasada quando soube que nunca passei de um caso de caridade para Tate.

— Isso não é verdade — disse Leta gentilmente. — Você sabe que meu filho sempre lhe dedicou carinho.

— Exato. O mesmo carinho que um tutor deve ter para com seu tutelado, nada mais. Na verdade, ele era meu dono. — Olhou para a grama a seus pés, pensativa. — Não consegui conter a humilhação, quando descobri isso. Acho que Tate me imaginava incapazde conseguir a bolsa de estudos por conta própria. Eu não era mesmo madura aos dezesseis anos, mas...

— Mas o quê? — encorajou-a Leta.

— Bem, ele devia me ter dito a verdade. Foi horrível saber disso daquele jeito, e na minha idade. — Deu um suspiro profundo. — Eu me desliguei da escola, saí do apartamento que Tate pagava e aceitei o emprego que o senador Holden me ofereceu. Ele é um homem gentil.

Leta desviou a vista, meio preocupada.

— Acha mesmo? — indagou, com voz um tanto tensa.

— Você gosta dele, não gosta? — Cecily disse com um sorriso. — Mas Tate o odeia.

A índia aprumou os ombros, como se estivesse se sentindo pouco à vontade.

— E, eu sei que os dois vivem entrando em atrito. Têm pontos de vista diferentes sobre diversos assuntos relativos aos nativos. Em especial acerca da abertura do cassino, aqui na reserva.

— O senador acredita que o crime organizado tomaria conta do negócio. Eu, pessoalmente, não acho que esse risco exista. Outras reservas sioux, em Dakota, têm bons cassinos. De todo modo, nos outros Estados do país há tribos que vêm recebendo pressão das quadrilhas de jogos.

Leta hesitou.

— Sim, mas ultimamente... — Desistiu de terminar a frase e sorriu. — Oh, mas não vamos nos aborrecer com esses assuntos. Por que não me fala mais a respeito do que pretende fazer, agora que se tornou independente?

— A primeira coisa que vou fazer será guardar dinheiro para pagar a Tate o que devo. Esse é um ponto de honra.

A boa senhora sorriu e tomou-lhe as mãos.

— Você me parece muito ressentida com Tate, e achoque não é só pelo fato de ele ter custeado sua educação. Vamos lá, querida. Pode falar. Mamãe está ouvindo. - Cecily também sorriu. Sim, Leta vinha agindo como uma verdadeira mãe havia oito anos.

—  Não gosto da namorada de Tate — desabafou depois de alguns momentos de silêncio. — E uma mulher bonita. Tem trinta anos, é divorciada e parece uma modelo. Loira, de olhos azuis, elegante e rica.

— Em outras palavras, uma vagabunda — Leta definiu sem rodeios.

Cecily caiu na risada. A índia era mesmo assim. Sincera. Direta. Uma das mulheres mais fortes e educadas que conhecera. Ativista, trabalhava pelas reivindicações da comunidade sioux e implantara programas educacionais para os jovens da tribo. O marido, Jack Yellowbird Winthrop, homem rude, falecera pouco antes de Cecily ir morar na reserva.

— Querida?

—  Sim?

— Ouça, Tate é um homem. Não deve esperar que viva como um recluso. Por causa do trabalho que exerce, precisa participar de vários eventos sociais. Onde a Corporação Hutton for, ele deve ir.

— Eu sei, mas... Bem, issoé diferente — disse Cecily, dando de ombros. — Eu o vi com Audrey semana passada, numa cafeteria próxima ao meu apartamento. Estavam de mãos dadas. Ela o cativou.

— O lakota cativo... — Leta traçou, no ar, uma linha imaginária. — Posso até vê-los, o bravo guerreiro sioux com a pioneira branca. Ela o carrega sobre os ombros, com o pôr-do-sol ao fundo...

Cecily riu ao pensar numa cena assim.

—  Leta!

— O que foi? Você vê a história à sua maneira, não vê? Por que não posso vê-la do meu jeito?

— Os norte-americanos nativos são estóicos e racionais. Nunca se deixam dominar pela emoção. — Ao perceber a expressão de descrédito da índia, ela sorriu.

— Ora, todos os livros dizem isso.

— Como não líamos muitos livros no tempo dos pioneiros, não sabíamos disso — a senhora comentou, e então balançou a cabeça, como se estivesse desolada.

— Mas que estereótipo triste as pessoas fazem de nós... Um povo ignorante, sedento por sangue, que nunca sorri porque está sempre ocupado, torturando gente sobre a fogueira...

— Essa é a tribo errada — Cecily corrigiu. Franziu a testa, pensativa. — Quem agia assim era o povo nativo do noroeste.

—  Ei, quem é a nativa aqui, eu ou você?

— Sou uma norte-americana de origem alemã. Mas uma de minhas avós namorou um índio cherokee. Isso não conta?

Leta a abraçou com carinho.

— Você é minha filha adotiva. É uma lakota, mesmo que não tenha o meu sangue.

Cecily deitou a cabeça no ombro amigo e retribuiu o abraço. Era tão maravilhoso ser amada por alguém...

Depois da morte da mãe, ficara sem família. Era uma vida solitária, a despeito da excitação e das aventuras que o trabalho lhe proporcionava. Afetivamente, não se abrira para ninguém, com exceção de Leta.

—  Céus! Do modo como as coisas vão, o próximo passo será colocá-la no berço e niná-la, à noite! — disse uma voz profunda e desgostosa.

Cecily estremeceu ao reconhecê-la.

—  Ela é a minha garotinha — Leta respondeu ao filho, com um sorriso. — Fique quieto, sim?

Cecily virou-se, um tanto sem jeito. Não esperavapor aquilo. Viu Tate Winthrop em pé, o cabelo solto, fino e liso caindo até a cintura. Usava uma roupa indígena com calça de antílope e mocassins. Em volta da cabeça, havia uma bandana com duas penas e, no rosto, a marca da tribo, que simbolizava a coragem.

Ela desviou a vista. Aquele era o homem mais bonito que conhecera. Desde seus dezessete anos, Tate vinha sendo seu mundo. Felizmente, ele não se dera conta de que seu flerte descompromissado escondia uma emoção verdadeira.

Na verdade, Tate a tratava exatamente da mesma maneira como o fizera quando, em prantos, Cecily o procurara, em busca de conforto, no dia em que a mãe falecera. Ou quando percebera as manchas deixadas pelo violento ataque do padrasto bêbado.

Sim, ela às vezes saía com alguns colegas, mas nunca tivera um namorado sério. Sentia-se aterrorizada só ao pensar em manter contatos mais íntimos. Isso só não acontecia quando fantasiava estar nos braços de Tate. Amava-o muito.

— Por que não se vestiu direito? — ele perguntou, apontando a roupa de Cecily. — Eu lhe dei um traje de antílope de aniversário, não dei?

—  Sim, três anos atrás — ela respondeu, sem se atrever a encará-lo. Não gostava de lembrar que Tate se esquecera da data, nesse ano. — Ganhei peso nesse meio tempo. A roupa não me serve mais.

— Oh! Bem, procure algo de que goste por aqui e eu... - Cecily levantou uma das mãos.

— Não quero que compre mais nada para mim — disse com determinação, e não recuou ao ver uma súbita ameaça nos olhos negros. — Não vou me vestir como uma lakota. Caso ainda não tenha notado, sou loira. Não quero ser confundida com aquela gente quecompra falsos produtos nativos e que tenta atuar como membro da tribo.

— Você pertence ao nosso povo — ele contrapôs. — Nós a adotamos, anos atrás.

—  Você me adotou. — Cecily deu um sorriso triste, ciente de que, para Tate, não passava de uma irmã mais nova. Não era desse modo que desejava ser vista por ele. — De todo modo, jamais parecerei uma lakota, não importa a roupa que use.

—  Poderia ao menos soltar o cabelo — Tate prosseguiu, com ar pensativo.

Ela fez que não com um gesto de cabeça. Apenas o soltava à noite, quando ia para a cama. Talvez o mantivesse preso por puro despeito, só porque Tate gostava de vê-lo solto.

—  Quantos anos você tem? — ele perguntou, tentando se lembrar da idade exata. — Vinte, não é?

— Tive, cinco anos atrás. Diga-se uma coisa... Você costumava trabalhar para a CIA. Se não me engano, cursou a faculdade e se formou em direito. Será que nunca lhe ensinaram a contar?

Tate pareceu surpreso. Onde tinham ido parar todos aqueles anos? Ela ainda parecia aquela jovenzinha que fazia entregas no armazém...

— Onde está Audrey? — Cecily indagou, procurando fingir que o assunto não a magoava nem lhe despedaçava o coração.

A expressão masculina passou por uma alteração. Pareceu, por um breve momento, perturbada.

—  Ela não pôde vir — respondeu, em um tom que não admitia outras perguntas. — Uma de suas amigas está organizando um chá, e Audrey prometeu ajudá-la. Vim sozinho.

Cecily perguntou-se se o motivo da ausência da moçaera aquele mesmo ou se, na verdade, ela não queria ser vista em uma reserva nativa. Tate mencionara, uma ou duas vezes, que Audrey lhe pedira para cortar o cabelo. Logo isso, que fazia parte da herança sioux, ã qual ele era estreitamente ligado.

Bem, ao menos não tinha que se preocupar com um provável casamento entre Tate e Audrey. Apesar de enamorado, ele não misturaria seu sangue lakota ao de uma mulher branca. Queria um filho indígena por inteiro, sem miscigenação. Se um dia viesse a se casar, dizia, seria com uma lakota.

Quando Cecily ouviu isso pela primeira vez, sentiu o coração partir-se. Mas acabou aceitando a idéia. Ao perceber que nunca o teria, decidiu dedicar-se apenas aos estudos. Assim, embora como mulher fosse um fracasso aos olhos de Tate, como arqueóloga era respeitada em seu círculo profissional.

— Cecily tem estado meio quieta desde que chegou — comentou Leta, olhando de um para outro. — Vocês dois andaram se desentendendo, certo? — perguntou, fingindo inocência.

Tate suspirou.

— Ela atirou creme de caranguejo em mim diante das câmeras.

Cecily ergueu-se, furiosa.

— A autopiedade não combina com você! - Leta colocou-se entre ambos.

— Entre os sioux, as guerras terminaram há muito tempo — anunciou.

— Isso é o que você pensa! — protestou Cecily, continuando a encarar Tate.

Os olhos escuros começaram a se estreitar. Ele sentira falta daquela mulher. Mesmo irada, era interessante. Revigorava-o.

Leta passou os olhos pelo amplo círculo gramado, cercado por uma corda grossa. Em volta, estavam dispostas arquibancadas de madeira, algumas cobertas de lona. A primeira competição do dia havia terminado, e naquele momento anunciava-se a atração seguinte.

— É a minha vez — avisou ela. — Preciso me apresentar. Desejem-me sorte.

— Você a terá — disse Cecily, sorrindo.

— Sei que vamos nos orgulhar mais uma vez de você — falou Tate, com ternura.

Leta os fitou com benevolência antes de dizer:

—  Não briguem, hein?

E então, com um aceno, dirigiu-se ao tablado onde se realizavam as danças.

A expressão de granito de Tate suavizou-se. Ver a mãe feliz lhe dava satisfação.

— Ela me disse que mudou muito quando seu pai morreu — Cecily comentou, voltando a sentar-se. — Ainda bem, porque se tornou uma mulher bastante animada.

—  Meu pai era um homem difícil. Se não tivesse passado a maior parte da vida fora, trabalhando, eu provavelmente o teria matado.

Ela estava ciente de que Tate não faria isso. Era apenas força de expressão. Mas sabia que ele chegara a rolar no chão com o pai, depois de uma discussão mais feroz. Fora no dia em que Tate vira a mãe ferida, por ter apanhado de Jack Winthrop.

— Você não gostava muito de seu pai, não é?

— Ele nunca fez questão de que gostassem dele. - Cecily fechou os olhos quando Tate sentou-se a seu lado, saboreando o calor que vinha do corpo masculino. Era estranho, mas ele nunca se aproximava fisicamente das pessoas. Não costumava tocar em ninguém, nem mesmo na própria mãe. Nunca o vira dar-lhe um beijo na testa, um abraço.

Quanto a ela, naqueles oito anos nem mesmo tentara pegar-lhe a mão. Nunca a beijara no rosto nem lhe ajeitara o cabelo. Só naquela vez, quando Cecily desembarcara em Oklahoma, ambos partilharam um momento de intimidade. Mesmo assim, a cena não teve um final feliz.

Ela sempre ansiara por um toque, um carinho, mas sabia que esse não era o estilo de Tate. Por isso, o fato de vê-lo de mãos dadas com Audrey a feriu tão profundamente. Era uma indicação da atração que ele sentia pela moça.

Cecily balançou a cabeça, como para afastar esse pensamento, e concentrou-se em Leta. Sorriu ao vê-la dar os complicados passos da dança indígena. E então, surpresa, ouviu Tate dizer:

— Eu me comportei mal no aniversário do senador. Fiz um comentário tolo a seu respeito. E não tinha esse direito.

Ela alargou o sorriso. Essa era a maneira de Tate pedir desculpas.

— Eu sei — respondeu simplesmente, evitando outro conflito. Estava cansada de discussões.

Tate a fitou, pensativo. Ao falar no aniversário de Holden, lembrou-se de que ignorara o dela de propósito, naquele ano.

Não foi uma lembrança agradável. Deixou-o sem jeito. Pouco à vontade, ele desviou a vista para o tablado, onde Leta ainda se apresentava.

— Está gostando do trabalho no museu?

— Muito. Minha função é comprar peças nativas, e também por esse motivo vim para cá. Quero adquirir alguns potes oglala.

Tate não a fitou ao voltar a falar:

— Como conheceu o senador Holden?

— Ele tem bons amigos, como membro da Universidade George Washington. Certo dia, sem querer, dei-lhe um encontrão, no corredor. Holden me conhecia por causa das audiências...

Cecily se calou. Não contara essa parte de sua vida a Tate.

— Audiências?

Ela cruzou as mãos sobre o colo. O sol batia em seu cabelo.

— Houve uma série de audiências públicas acerca da comunidade nativa. Fui defender a reserva Wapiti perante o comitê de assuntos indígenas do Senado. Holden dirige esse comitê, como sabe. — Lançou um olhar para  o tablado. — Foi idéia de Leta. Disse-me que o senador costumava ouvir os estudantes de antropologia, e eu era a única pessoa nessa condição que ela conhecia.

—  Eu não sabia que você tinha se envolvido com política...

Cecily o fitou secamente.

—  Claro que não. Na verdade, não sabe de muita coisa a meu respeito.

Tate ficou sério enquanto voltava a atenção para o tablado e via a mãe dançar, linda em seu traje de pele de antílope. Sim, ele desconhecia uma série de coisas acerca de Cecily. Mas sabia quão devastada ela ficara ao descobrir quem lhe pagara os estudos. Sentia muito por tê-la ferido. Mas, nos dois últimos anos, vinha se distanciando deliberadamente. E se perguntava por que...

— Jantei com o senador na semana passada — Cecily prosseguiu, tentando irritá-lo. — Ele queria me indicar algumas coleções para o museu.

Tate, a testa franzida, parecia absorto nos próprios pensamentos.

—  Não gosto de Holden — disse.

— Sim, eu sei. Então vai deliciar-se em saber queé plenamente correspondido — ela respondeu, sem se importar com a carranca de Tate. — Holden não recuará um milímetro em sua posição sobre o cassino. Várias vezes apontamos os benefícios que isso traria à tribo, mas nada o convence. Dissemos que poderíamos construir uma clínica enorme, comprar uma ambulância, montar programas recreativos para os jovens, de modo a mantê-los longe da bebida e dos problemas, fazer pré-natais nas futuras mamães...

— Você disse isso a ele? — indagou Tate, fitando-a abertamente.

— Não fiz outra coisa durante meses. Mandei-lhe mensagens eletrônicas, coloquei bilhetes sob a porta de sua casa, deixei recados na secretária eletrônica, enviei pelo correio fitas sobre a pobreza na reserva... Enfim, Holden já me conhece bem.

—  Sei — foi a resposta seca.

— Faz pouco tempo, jantamos num restaurantezinho próximo ao Congresso, entre uma sessão e outra do Senado. Ele me disse que teme a ação do crime organizado. Parece ter algumas suspeitas em relação ao chefe da tribo.

— Tom Black Knife — Tate disse devagar. Conhecia-o, e sabia dos boatos sobre o modo como ele manejava os fundos da comunidade. Uma considerável quantia acabara de ser doada para os projetos da reserva, mas ninguém parecia saber para onde esse dinheiro tinha ido. Parte dele havia simplesmente desaparecido, segundo o comentário feito por um dos primos de Tate, naquele mesmo dia.

Mas Black Knife era um homem bom, com um coração generoso. Era estranho que seu nome estivesse ligado a coisas terríveis como desvios de verba.

— O senador não está levando em conta os benefíciosque o dinheiro conseguido pelo cassino traria à reserva — continuou Tate. — Diversas comunidades nativas montaram casas de jogos. Não sei por que Holden cismou em criar problemas justamente para o nosso projeto. E isso nos prejudica, porque ele conta com poderosos aliados políticos em Pierre e não tem escrúpulos em usá-los contra nós. Um desses aliados é o procurador-geral do Estado.

— Sei disso — respondeu Cecily, os olhos verdes buscando os negros. — Mas ainda não desisti do senador.

Ele nem sequer piscou.

— Não desistiu? Como assim?

"Lá vamos nós outra vez!", Cecily pensou, resignada.

Ergueu as sobrancelhas. Ali estava Tate, agindo como se ela já tivesse seduzido Holden.

Na verdade, por que não estimular a idéia? Cecily riu para si mesma e se inclinou para a frente.

— Bem, primeiro eu o lambuzei de mel e depois comecei a lambê-lo...

Tate disse um palavrão, e ela riu.

— Está certo, foi apenas um jantar. Mas Holden é realmente uma pessoa agradável.

Ele lhe dirigiu um olhar gelado.

— Ouça, Cecily, conquistar um homem com idade para ser seu pai não é a maneira correta de alcançar seus objetivos.

— Meus objetivos? Ora, são os objetivos da tribo!

— É melhor ter amigos do que amantes.

— Sou uma pessoa moderna — ela respondeu com frieza. — Isso significa que tenho o direito de decidir o que fazer com meu corpo. Algumas mulheres, devo acrescentar, acham que devemos usar os homens apenas para satisfação pessoal. Eu, porém, acredito que eles sejam mais úteis do que simples animais de estimação.

Os olhos negros se estreitaram. Tate acenou para a mãe, que, ao vê-los conversando civilizadamente, sorriu de orelha a orelha.

— Seja como for, não gosto de vê-la envolvida com Holden.

— Não me interesso por aquilo que você gosta ou deixa de gostar — Cecily respondeu, sorrindo com suavidade.

Tate odiava aquele jeito de sorrir. Era uma provocação.

— Ouça, criança, você não sabe nada sobre os políticos do Congresso. Muito menos sobre Holden, que protege sua privacidade como um mercenário. Não gosto do senador nem confio nele. Não é uma pessoa transparente. Ao contrário, prefere manter segredos.

— Olhem só quem fala! — ela exclamou. — Você poderia desmontar governos com as coisas que sabe e não conta!

— Com certeza. Mas não sou uma pessoa furtiva.

— Ah, não?

— Bem, um pouco — ele concedeu. — Um homem precisa ter certos segredos.

— Uma mulher também.

— Sinceramente, Cecily, espero que não permita que aquilo que aconteceu em Corryville arruíne sua vida — Tate respondeu, sem encará-la. — Deve namorar homens da sua idade.

— Já tive minha cota de namorados na faculdade. E todos achavam que mereciam ir para minha cama em troca de um jantar agradável. E sabe o que eu ouvia quando me recusava a dormir com eles? Que não era uma mulher "liberada". O que a liberação feminina tem a ver com o fato de rejeitar homens que mais parecem ratos?

— Não pense que vai me ludibriar mudando de assunto desse jeito. Holden não é o tipo de homem de que você precisa. Colby Lane também não é.

O silêncio que se seguiu foi tenso e cheio de raiva. Colby também fora agente da CIA, era um investigador independente que realizava trabalhos para diversas organizações, incluindo o governo. Era quase tão duro como Tate. Mas tinha alguns defeitos mais visíveis.

Cecily ergueu a mão, impedindo-o de prosseguir.

—  Sei que ele teve problemas, no passado...

— Colby não pode manter as mãos longe de uma garrafa de bebida. E ainda não assimilou a perda da esposa.

— Eu lhe recomendei uma psicoterapeuta, em Baltimore — ela explicou. — Hoje, depois do tratamento, Colby só bebe meia dúzia de cervejas nos finais de semana.

—  E o que você lhe deu em troca disso? — foi a pergunta insolente.

Ela suspirou, irritada.

— Ninguém agüenta seu mau humor, sabe? Você não consegue nem mesmo gostar do pobre e solitário senador Holden.

— Gostar dele? Céus, é o único homem de todo o Congresso que eu adoraria ver queimando numa fogueira!

— Ouça, os lakota jamais queimaram alguém — Cecily disse com firmeza. E foi em frente, explicando quem tinha esse hábito, como e por quê.

Tate reparou em seu olhar entusiasmado.

— Você realmente ama a história dos nativos, não é? - Ela assentiu.

— O modo como seus ancestrais viveram por milhares de anos foi bastante lógico. Honravam os homens mais pobres da tribo, porque haviam doado de ai mais do que os outros. Compartilhavam tudo. Davam-se presentes. Nunca bateram numa criança com a desculpa de ensinar-lhe disciplina. Aceitavam as diferenças entre as pessoas, sem condená-las. — Sorriu. — Admiro tudo isso.

— Você é diferente da maioria dos brancos. Eles jamais se aproximam o suficiente para entender nossa cultura — ele comentou.

— Tive você e Leta como professores — Cecily respondeu simplesmente. — Aprendi lições maravilhosas na reserva. E me sinto em paz, aqui. Em casa. Pertenço a este lugar, muito embora não devesse.

Tate assentiu.

— Sim, você pertence a esta tribo — disse, e havia uma nota em sua voz que ela jamais ouvira.

Inesperadamente, Tate segurou-lhe o queixo e a obrigou a fitá-lo. Fitou-a até Cecily sentir que seu coração explodiria de ansiedade. O polegar enorme acariciou os lábios femininos, cobertos de batom rosa-pálido.

O momento era de quase intimidade, e ela não conseguiria interrompê-lo. Abriu os lábios e sentiu que o dedo de Tate os pressionava mais fortemente.

—  Não é interessante? — perguntou ele numa voz baixa e profunda.

— O... o quê? — Cecily gaguejou.

Os olhos negros fixaram-se no pescoço delicado, no ponto onde a pulsação se mostrava, rápida e selvagem. Em seguida Tate levou a mão até ali, sentindo uma reação inesperada. Era como se tivesse voltado a Oklahoma, onde prometera a si mesmo nunca mais tocá-la outra vez. Impulsos, dissera-se com firmeza, eram estúpidos e muitas vezes perigosos. E Cecily não tinha limites.

Retirou a mão e levantou-se.

— Mamãe ganhou um prêmio — comentou, a voz estranhamente trêmula.

Forçou um sorriso indiferente e voltou-se para Cecily. Ao vê-la tremer, desejou jamais tê-la fitado naquele momento. A reação feminina acendia novas chamas dentro dele.

Abaixou-se num impulso e pegou-a pelos braços, erguendo-a, mantendo-a bem perto porque precisava disso. Pôde sentir-lhe a respiração quente, excitada, e apertou-a ainda mais, quase machucando.

O tempo pareceu parar. Tate nem mesmo ouviu os tambores ou os cânticos ou o murmúrio que enchia o ar. Pela primeira vez na vida teve vontade de deitar Cecily ali mesmo e beijá-la.

A idéia o chocou tanto que ele a soltou. Em seguida, deu-lhe as costas e caminhou para o tablado, sem nem mesmo olhar para trás.

Cecily o seguiu com o olhar, as pernas bambas. Devia ter sonhado com aquela cena, disse a si mesma. Não podia ser real. Os longos anos de desejo decerto a estavam fazendo delirar.

Tate nem mesmo se sentia atraído, lembrou-se. Sim, pensou, andando na direção de Leta como uma sonâmbula, fora apenas um sonho. Outro sonho sem esperança.

 

Cecily planejava passar a noite na reserva e voar no dia seguinte para Washington, mas mudou de idéia quando voltou, com Leta, para a pequena casa onde a índia vivia e encontrou Tate muito à vontade na cadeira de balanço, assistindo à televisão colorida que dera para a mãe no último Natal. Bem mobiliada e com aquecimento central, a moradia era a única, na tribo, a contar com essas regalias.

Tate fazia questão de que nada faltasse ali. Mas a história era diferente no resto da comunidade. Pessoas idosas procuravam se manter aquecidas, em temperaturas que chegavam a cinco graus abaixo de zero, com fogões a lenha. E isso em casas cujas paredes, finas,não mantinham o calor, que se dissipava. A reserva era pequena e pobre, a despeito dos esforços de diversos grupos missionários e de alguma assistência oficial.

Para Cecily, a educação era a chave da prosperidade, mas essa era outra dificuldade a superar, ali. Não havia dinheiro para montar uma faculdade nativa, que pudesse manter vivas a cultura e a tradição daquele povo e que lhes desse o conhecimento necessário para sobreviver e vencer num mundo de brancos. Uma faculdade assim era um dos sonhos de Leta.

— Ainda aqui, meu filho? — a boa senhora perguntou com um amplo sorriso.

— Pensei em ficar até amanhã — ele respondeu.

— Quanto a mim, preciso ir embora — Cecily afirmou, cautelosa, pedindo, com o olhar, que Leta não a contradissesse. — Preciso estar de volta ao trabalho na segunda-feira pela manhã.

Ela e Leta sabiam que não era verdade, mas Cecily não podia nem mesmo imaginar ficar sob aquele teto com Tate. Não naquele momento.

—  Que tal um café? — Tate perguntou à mãe enquanto se levantava e desligava a televisão.

— Eu faço — ela se ofereceu, e correu para a cozinha.

Tate então se aproximou de Cecily, atitude que nunca tomara. Jamais quisera tê-la muito perto, ao alcance dos braços. Quanto a ela, ficava nervosa com bem menos do que aquilo.

—  Hoje à noite haverá dança — lembrou. — Nós vamos.

— Acho que Leta já dançou o suficiente. - Ele balançou a cabeça.

— Não me referi a minha mãe. Você e eu vamos. - Cecily ergueu as sobrancelhas, surpresa.

— Não fui convidada.

Sem pensar nas conseqüências, Tate segurou-a pelo rosto e levou a boca até os lábios femininos.

Cecily soltou um gemido que o deliciou e o excitou. Envolveu-a, apertando-a contra o próprio corpo. Então o beijo, antes gentil, tornou-se faminto, exigente, íntimo.

Foi como se deixar levar pela paixão. Foi como se cada sonho de Cecily se tornasse realidade. Os lábios masculinos eram duros, lentos, sensuais. Ela não queria pensar em como Tate ganhara tanta experiência, porque isso a enchia de ciúme. Abraçou-o, procurando corresponder, com entusiasmo e ingenuidade.

Ele experimentou o sabor do paraíso. Percebeu que Cecily abria mais os lábios, num movimento tentador, e que as mãos delicadas apertavam-lhe os ombros, procurando apoio. Anos fantasiando com aquilo, esperando, e, de repente, acontecia! Tate finalmente a beijava.

Ele ergueu a cabeça. Os olhos negros procuraram os verdes.

— Vamos jantar antes de dançar — disse, a voz um pouco rouca.

— O que querem comer? — perguntou Leta, da cozinha.

— Sanduíches, mamãe.

—  Certo. Vou preparar.

Tate tornou a fitar Cecily, que o contemplava, maravilhada. E constatou que, uma vez que perdera a cabeça, poderia perfeitamente perder o restante. Seu corpo ansiava pelo dela. Queria muito mais do que aquilo. Tinha necessidade disso, e que se danassem as conseqüências.

Inclinou-se, levantou-a nos braços como se fosse um tesouro precioso e levou-a ate a poltrona, o coração acelerado. Sentou-se, as mãos acariciando o rosto feminino encostado em seu peito. E beijou-a mais uma vez, antes que ela pudesse fazer perguntas.

Os segundos demoraram a passar. As mãos de Cecily exploravam os cabelos longos, as faces, as sobrancelhas, o nariz. Era como se nunca tivesse tocado em alguém. E era delicioso, proibido, um tabu. Maravilhoso. Gemeu suavemente, incapaz de conter a alegria de estar, por fim, nos braços do homem que amava.

Ao ouvir o doce gemido, Tate aprofundou o beijo. E, de repente, beijar não era o bastante. A mão morena então deslizou em busca dos seios. Ele levantou o rosto, para ver-lhe a expressão enquanto acariciava o busto firme. Receava que a lembrança do padrasto ainda a incomodasse. Sabia que, mesmo depois de anos de terapia, Cecily ainda não se livrara de todos os medos.

—  Está tudo bem — ela falou, lendo a mensagem nos olhos negros, temendo que Tate resolvesse parar.

A culpa o consumia. Não era justo agir assim, em especial porque nada podia lhe oferecer no futuro.

— Você devia impedir que eu fizesse isso — disse baixinho. Em seguida, fez com que ela ficasse em pé, segurando-a pelos ombros até que as respirações se acalmassem. — Vá ajudar Leta na cozinha.

— Covarde — ela o acusou, sem fôlego.

— Milhares de anos de condicionamento não desaparecem do dia para a noite — Tate argumentou, fitando-a, ainda faminto. — Você... ainda carrega aquela reserva de camisinhas aonde quer que vá?

Cecily corou.

—  Não. Desisti de você e as joguei fora há anos. - Os olhos negros estudaram o corpo curvilíneo dealto a baixo.

—  Uma pena.

— Você disse que jamais dormiria comigo, lembra-se? - Ele ergueu uma sobrancelha e apertou os lábios.

Procurava aliviar a própria tensão, mas estar junto de Cecily não ajudava em nada.

—  Lembro.

Ela tremia. Abraçou-se, como se quisesse se proteger, lutar contra a emoção que a consumia. Fitou-o com ar acusador.

— Você adora me atormentar, não é?

— Talvez.

Cecily lhe deu as costas.

—  Estou indo embora esta noite.

—  Não é preciso. Não vou ficar.

Tate a acompanhou até a cozinha e deu um beijo de despedida em Leta.

—  Coma algo antes de ir, meu filho — ela pediu.

—  Comerei.

Leta tocou-o no rosto, triste.

— Teimoso — murmurou, e então sorriu. — Como seu pai.

A menção de Jack Winthrop, Tate ficou furioso.

— Como ele? Nunca! Jamais bati em você, por exemplo. - Ela prendeu a respiração e afastou a mão que o acariciava. Mordeu o lábio inferior.

— Um dia — disse, hesitante — teremos de conversar.

— Mas não hoje — ele respondeu, notando a culpa na expressão materna. — Preciso voltar ao trabalho.

— Você não gosta do senador Holden.

A frase saiu de repente, num impulso. Leta falara sem pensar, exatamente como fizera no comentário sobre o pai de Tate.

Na verdade, ele ainda não sabia quem era seu verdadeiro pai. A boa senhora ainda não tivera coragem de lhe contar.

— Não, não gosto. Ele se engana ao imaginar que sabe o que é bom para a reserva e para nós. Não considera nossos motivos. Não conhece absolutamente nada sobre os lakota.

— Holden cresceu aqui — Leta contou, com voz suave.

—  O quê?

— Holden cresceu aqui — a índia repetiu. — Antes de a mãe enviuvar, deu aulas em nossa escola. Ele fez amigos na reserva, incluindo Black Knife.

—  Você nunca me disse isso. Nem me contou que o conhecia!

— Você nunca me perguntou. Conheço Matt Holden há um longo tempo.

Tate a fitava com ar curioso.

— Se ele sabe como andam as coisas por aqui, por que se opõe à idéia do cassino?

—  Porque odeia jogos — Leta disse simplesmente.

— Não o vejo há muitos anos. Desde que se casou com aquela linda moça branca e foi eleito senador pela primeira vez.

—  Holden hoje é viúvo. - Ela assentiu.

—  Eu sei. Li nos jornais. — Seus olhos buscaram os do filho. — Cecily me contou que você também vive com uma moça branca.

—  Droga! — Tate praguejou por entre os dentes, odiando-se por tê-la tocado e frustrado pela dolorosa atração que não poderia satisfazer. — O que faço ou deixo de fazer não é da conta dela. Nunca foi, e nunca será.

—  Amém — respondeu Cecily, da soleira, um pouco menos confiante por causa do comentário de Tate. — Por que não volta logo para casa, para os braços de Audrey?

—  Não compreendo — interveio Leta, preocupada, estudando o filho. — Você sempre disse que não queria se envolver com uma mulher branca...

— Apenas com as brancas magricelas e sem graça — corrigiu Cecily. — Não é verdade, Tate? Mas Audrey é estonteante!

Apenas naquele instante ele se deu conta de como Cecily se sentia acerca de seu relacionamento com Audrey. Ela achava que não merecia a mesma atenção por não se julgar bonita!

Não era verdade. Tate lhe dera atenção durante muitos anos. Fora responsável por sua educação. Lutava contra a atração que sentia porque acreditava que, do contrário, seria como tirar vantagem da gratidão que Cecily sentia. Como explicar isso sem tornar tudo ainda pior?

—  Não tem nada a ver com beleza — ela disse por fim.

Cecily simplesmente sorriu.

— Eu termino os sanduíches enquanto você acompanha seu filho até a saída — falou, dirigindo-se a Leta.

— Cecily... — Tate começou, hesitante.

—  Todos agimos por impulso uma vez ou outra — ela se apressou em dizer, encarando-o com coragem. — Acontece. — Sorriu, evitando o olhar de Leta, e virou-se para o refrigerador. — Vai comer antes de sair, Tate?

Ele fez uma careta. Então Cecily imaginava que se arrependera por tê-la tocado, hein? Bem, talvez fosse verdade. No fundo, Tate não se lembrava de haver estado tão confuso.

—  Não vou comer nada, obrigado. Faço um lanche no aeroporto.

Leta o acompanhou até o quarto, onde ele pegou a mala. Depois dirigiram-se ao carro alugado, estacionado ao lado daquele que Cecily também alugara. A reserva ficava longe do aeroporto. Por isso, automóveis eram uma necessidade.

— Vocês dois costumavam se dar bem, meu filho..

— É que eu estava cego. Completamente cego.

— Que quer dizer com isso?

Tate contemplou, a distância, as montanhas, queiam se tornando douradas à medida que o outono se aproximava.

— Cecily está apaixonada por mim.

Para Tate, foi um choque ouvir a própria voz dizer essas palavras. Até então, nunca considerara o fato. Mas Cecily caíra em seus braços confiante como uma criança, totalmente entregue. Em seus olhos havia um brilho de prazer, de alegria.

— Não a deixe perceber que sabe disso — Leta o aconselhou, sorrindo. — Cecily é orgulhosa.

— Eu sei. — Tate tocou a mãe no ombro. — Poucos de nós têm sangue sioux puro, você sabe — continuou, perguntando-se por que Leta sorrira.

Talvez esperasse vê-lo casado com Cecily...

—  Sim, sei, e é por isso que você não pretende se casar com uma branca.

Tate assentiu.

— Audrey não significa nada em minha vida, se é o que quer saber.

Leta o encarou, séria.

—  Mas não é só isso. - Ele suspirou.

—  Não, não é. Cuidei de Cecily por oito anos. Sou seu guardião, goste ela ou não. Não posso tirar vantagem do que sente por mim.

—  Claro que não pode — disse Leta, cruzando os dedos. — Não corra na estrada, filho.

Tate tirou um pequeno embrulho do bolso do paletó.

— Dê isso a Cecily, por favor. E seu presente de aniversário. — Sorriu, como raramente fazia. — Como na época não estávamos falando um com o outro, não o entreguei.

— Talvez ela não o queira. - Tate sabia disso. E doía.

— Mesmo assim, tente.

Leta o observou tomar a estrada de terra que levava à rodovia. Sabia que em breve teria de contar-lhe a dolorosa verdade, que escondera durante todos aqueles anos.

Haviam acontecido coisas que Tate desconhecia. Coisas que envolviam Leta, Matt Holden, alguns viciados que apareciam em limusines com motorista, o chefe da tribo...

Coisas das quais ela não se orgulhava nem um pouco.

 

Cecily viveu em um mundo de sonhos por uma semana, enquanto procurava compreender a monumental mudança em seu relacionamento com Tate. Mesmo que ele recorresse ao mau humor para fugir de uma situação potencialmente embaraçosa, deixara claro que sentia alguma coisa.

Entregue naqueles braços, sentindo os beijos famintos, o toque no rosto e no pescoço, ela pôde perceber que Tate a desejava. O mais maravilhoso era que isso não lhe dava medo. Ocorreu-lhe então que a repulsa que experimentara em relação a outros homens não era motivada apenas pelas brigas traumáticas com o padrasto. Parte desse comportamento se devia a seu sentimento por Tate.

Era o único homem do mundo capaz de emocioná-la. Sempre soubera que ele se importava com seu bem-estar. Até ser beijada, entretanto, não fazia idéia de que também era desejada.

Era óbvio, porém, que Tate não sucumbiria a seus sentimentos, a despeito de quão intensos fossem. E Cecily não podia culpá-lo. Haviam tido esse tipo de conversa antes, havia quase dois anos. Naquela época, ao exagerar o que sentia, ela fora capaz de esconder as emoções. Mas agora, depois do encontro na casa deLeta, ele provavelmente descobrira a verdade. Descobrira que era amado. Isso ficara patente em cada reação.

Cecily não estava certa sobre se conseguiria vê-lo tão cedo. Manteve-se distante da cafeteria que Tate costumava freqüentar. Começou a almoçar num novo restaurante de frutos do mar próximo ao museu desde que soube que ele não gostava desse tipo de comida.

Mas, certo dia, viu um rosto familiar. O senador Matt Holden estava em pé junto à entrada do estabelecimento, as mãos nos bolsos e uma expressão feroz. Vasculhava o restaurante com o olhar, como se procurasse por alguém, quando a avistou. Então encaminhou-se diretamente à sua mesa.

Cecily, que levava uma porção à boca, manteve o garfo no ar.

— Oh, olá, senador.

Ele ergueu uma das mãos, puxou uma cadeira para bem perto da dela, sentou-se e inclinou-se, de modo a ficar próximo.

— Ouça, estou com problemas. Preciso lhe falar a sós o mais depressa possível.

Uma confissão assim era rara. Se Cecily pudesse ajudá-lo de algum modo, certamente o faria, embora não conseguisse pensar em como alguém com seu posto seria capaz de auxiliar um poderoso senador da República.

De todo modo, devia-lhe o trabalho no museu. Assim, colocou o garfo na mesa e o seguiu até a limusine, estacionada lá fora.

Ele fechou o vidro que dividia o assento de trás daquele utilizado pelo motorista e recostou-se.

— O que houve? — Cecily perguntou. Holden balançou a cabeça, numa negativa.

—  Pensei que você fosse apreciar uma carona até o museu — disse de modo preguiçoso, como se nãotivesse problema algum. — Preciso falar com seu chefe sobre aquela nova exibição na ala sioux.

— Grata pela carona. Na verdade, gostaria de perguntar-lhe o que achou dos mocassins e das estampas dos tecidos que eu trouxe da reserva Wapiti.

— Adorei! — ele respondeu com um sorriso. Rodaram em silêncio os poucos quarteirões que os separavam do museu. O motorista abriu a porta do carro e recebeu ordens de voltar dali a uma hora. Em seguida, o senador tomou o braço de Cecily e a conduziu, escada acima, ao edifício novo e reluzente, onde alguns trabalhadores, colocando painéis de vidro e papéis de parede, mostravam que o trabalho ainda não havia terminado. O decorador de interiores também se encontrava ali.

Cecily abriu a porta de seu escritório, vendo que Beatrice, sua secretária, deixara um bilhete sobre o teclado do computador. "Fui almoçar", dizia a nota.

O senador Holden passou os olhos pelo pedaço de papel antes de seguir Cecily e fechar a porta. Recostou-se na madeira, observando-a acomodar-se em sua poltrona.

—  Você é rápida — ele comentou com admiração. — Eu não queria falar na presença daquele motorista. Está substituindo o meu, e não confio nele. Na verdade, neste momento não confio em ninguém, senão em você.

—  Estou lisonjeada. O que há de errado?

— Leta mencionou alguma coisa acerca da máfia do jogo que anda rodeando a reserva? — foi a pergunta direta.

Ela franziu a testa.

— Máfia do jogo? - Holden suspirou, furioso.

— Não, ela não mencionou. Talvez nem saiba o que está acontecendo. — Correu os dedos por entre os cabelos e começou a andar de um lado para outro. — Serei condenado se não souber o que fazer! Não posso voltar lá agora. Essa gente é perigosa. E, se não for detida, acabará por dominar a reserva para sempre!

— Senador!

— O pior — ele continuou — é que dei um trabalho extra a Tate Winthrop. Ele está atualizando a segurança de meu escritório, depois do atentado a bala de meses atrás, no Capitólio. Se isso não for feito já, vou ser obrigado a enfrentar um comitê de investigação. Eu teria de colocar Tate fora do trabalho, e ele não entenderia por quê. Mas não posso lhe dizer nada! — Holden notou a expressão confusa de Cecily e sorriu. — Você não faz a menor idéia do que estou falando, não é?

— Não mesmo. Por que não se senta e explica direito o que há?

— Eu enlouqueceria caso ficasse parado.

— Por favor, tente.

Holden hesitou por alguns segundos antes de resignar-se e acomodar-se na cadeira que havia diante da escrivaninha. Inclinou-se para a frente, preocupado.

—  O que você sabe sobre... o pai de Tate?

— Não muito. Só que ele vivia longe da reserva, trabalhando na construção civil. Sei o que Leta me contou. Que era um homem bruto, que bebia em excesso quando estava em casa, que batia em Leta e que odiava o único filho.

— Que mais?

— Bem, Leta disse que Jack atormentava Tate sempre que podia e que, quando ela interferia, apanhava. Até o dia em que Tate chegou inesperadamente e a viu ferida, depois de uma surra. Então, reagiu. A partir daí Jack passou a evitar o filho.

Cecily fez uma pausa, notando que Matt Holden parecia furioso.

— Leta é tão frágil... — ele comentou baixinho, quase para si mesmo. — Não consigo imaginar alguém brutal e cruel a ponto de feri-la.

— Conhece Leta?

— Sim. Minha mãe lecionou na escola da reserva. Cresci junto aos lakota. Na verdade, Tom Black Knife e eu servimos juntos o Exército. — Ficou pensativo por um momento, antes de prosseguir: — Tenho ouvido rumores de que ele está sob suspeita. Não acredito nisso. Black Knife é um dos homens mais honestos que conheço. Quer o cassino, mas jamais usaria de meios escusos para obtê-lo. E nunca desviaria os recursos da tribo.

— O que tudo isso tem a ver com Leta e Tate? — ela quis saber, atônita com o rumo da conversa.

Holden inclinou-se para a frente, assumindo um ar confidencial.

— Você seria capaz de guardar um segredo? Um segredo importantíssimo?

— Se não magoar ninguém...

— Contá-lo iria magoar muita gente — ele assegurou. — Há trinta e seis anos, quando concorri pela primeira vez ao Senado, tive um romance com uma garota lakota. Alguém que conhecia desde menino. Mas havia acabado de me casar, e minha esposa chefiava minha campanha. Eu não poderia vencer a eleição sem ela. — Suspirou e baixou a cabeça. — Entre a paixão e a posição social, fiquei com esta última. E passei a vida inteira me arrependendo disso. — Olhou para Cecily outra vez. — Sabe, mas aconteceu algo mais. Algo que a nativa que eu amava nunca me contou. De nosso relacionamento nasceu uma criança. Entende minha ligação com a reserva?

— Claro!

— E agora há uma máfia de renegados ligada aosbandidos de Las Vegas tentando manter total controle sobre o cassino que vocês pretendem instalar lá. Como Wapiti é pequena, e fica perto de uma cidade que é atração turística, tem potencial para receber milhares de pessoas. Há dinheiro grosso envolvido nisso, e essa máfia tem ligações com algumas das mais sórdidas pessoas do norte do país.

— Céus! Eu não fazia idéia!

— Nem eu, até cerca de um mês atrás, quando comecei a ouvir boatos sobre o assunto. Fiz algumas investigações e consegui o bastante para garantir um inquérito oficial. Mas a tal máfia soube disso, e agora ameaça ir a público, fazer a mais suja confusão, caso eu continue a buscar o responsável pelo desvio do dinheiro da tribo e a impedir a construção do cassino.

— Quanta maldade!

—  A pior parte é que meu filho não sabe nada a meu respeito. Pensa que seu pai é outro homem.

Cecily empalideceu. Ao olhar fixamente para Holden, ocorreu-lhe que ele se referira a Leta. Na verdade, Tate tinha traços que lembravam o senador. Agora, que reparava nisso, percebia que ambos eram muito parecidos.

— Tate... — sussurrou ela.

— É meu filho — completou Holden, com a garganta apertada. — Meu filho! E eu não sabia disso até esta manhã, quando recebi a visita de um emissário da máfia do jogo. Ele fez ameaças. Vai contar tudo à imprensa, caso eu não volte atrás em relação ao cassino.

Cecily recostou-se na cadeira com um suspiro pesado.

— Tate pensa que é um lakota puro. Tem obsessão por isso, e por manter intacto o sangue sioux. Vai enlouquecer quando souber a verdade.

—  Ele não pode saber. Não ainda. — Holden se manteve em silêncio, pensativo, por alguns segundos,antes de se corrigir: — Talvez Tate nunca deva conhecer a verdade, se eu conseguir um jeito de sair desta maldita confusão. — Correu os dedos por entre os cabelos novamente. — Pensei que fosse morrer sem ter um herdeiro, sabe? Minha esposa nunca quis filhos. — Fechou os olhos. — Leta não me contou. Provavelmente teve medo de contar, porque sabia que a carreira política significava tudo para mim. — Fitou-a. — Sabe de uma coisa? Poder e dinheiro são coisas vazias quando não se pode compartilhá-las. Veja bem... tenho um filho e não posso contar isso a ele. Irônico, não acha? — comentou, com uma risada amarga. Cecily franziu a testa.

— Não é justo deixar que Tate continue pensando que Jack Winthrop era seu pai.

— Injusto também seria destruir as ilusões dele. É por isso que tenho de deter aquelas pessoas enquanto ainda é tempo. Preciso de ajuda. E você é a única pessoa a quem posso recorrer. Não posso permitir que Leta e Tate sejam publicamente humilhados por algo que, na verdade, é de minha responsabilidade. Por outro lado, não devo deixar que o crime organizado ponha os pés na reserva.

— É uma situação muito delicada.

— Exato. E creio que a chave esteja na suspeita que eles andam lançando sobre Tom Black Knife. Parece que o estão usando para ficar com a verba que o governo destina à tribo. Você... pode me ajudar?

— Tenho alguma escolha? — ela respondeu, com um sorriso. — Sabe, ao se apaixonar por Leta você provou que tem bom gosto em relação às mulheres...

— Infelizmente, ela não teve bom gosto em relação aos homens. Eu a amava, mas não iria sacrificá-la a ponto de obrigá-la a seguir minha gloriosa carreira. Passei a maior parte dos meus dias casado com umamulher que bebia muito, brigava, falava palavrões e me odiava porque eu não conseguia dar-lhe amor. Atrapalhei a mim e a ela, que se embriagou até morrer.

— Algumas pessoas são autodestrutivas — disse Cecily, séria. — E um fato da vida. A gente faz o que pode para ajudar, mas a verdade é que elas precisam querer ajudar a si mesmas. Se não for assim, não há tratamento que funcione.

Os olhos negros de Holden se estreitaram.

— Tate praticamente a criou, segundo ouvi dizer. Você o ama, não é?

— Sim, amo.

— Ele não terá a desculpa do puro sangue lakota por muito tempo.

— Desisti de esperar por milagres. Parei que desejar o que não posso ter. De agora em diante, ficarei satisfeita com aquilo que a vida me oferece. Tate haverá de encontrar seu próprio caminho.

— Essa é uma decisão amarga.

— Pode acreditar que sim. Bem, o que devo fazer para ajudá-lo?

— Esse é um assunto perigoso — Holden comentou, hesitante. — Não sei se...

— Ora, sou uma arqueóloga. Você nunca assistiu aos filmes de Indiana-Jones? Todos nós, arqueólogos, somos como ele — Cecily respondeu com um sorriso zombeteiro. — Gentis por fora e verdadeiros heróis por dentro.

Ele riu.

— Está bem. Mas com a condição de que me contará se descobrir que corre algum risco.

—  Ligarei para Colby Lane se isso acontecer. Ele não é como Tate, mas chega perto.

O senador a fitou com atenção.

— Tem certeza de que deseja se arriscar a esse ponto?

Ela assentiu.

— Tenho. Qual é o plano?

— Quero que arrume uma desculpa para ir à reserva. Lá, deve vigiar Black Knife. Pretendo saber por que ele está colaborando com os criminosos e o que essa gente está tentando fazer em Wapiti. Procure descobrir onde foi parar o dinheiro da tribo enquanto faço algumas manobras políticas por aqui. Sua presença não vai chamar a atenção, uma vez que visita Leta de vez em quando. Além disso, todos sabem que trabalha em um museu nativo. Se eu conseguir descobrir exatamente quem são essas pessoas e onde se encontram, posso pegá-las antes que mandem publicar o que fiz no passado.

—  É um bom plano — Cecily afirmou, e então vacilou. — O que devo dizer a Leta?

O senador contemplou as próprias mãos, apoiadas na beirada da escrivaninha.

— Não faço a menor idéia. Ela teve um filho meu, e nunca me contou a respeito. — Fechou os olhos, angustiado. — Tenho um filho, e não sabia. E acho que nunca saberia, se essa história com a máfia não viesse à tona. — Suspirou, e por um instante pareceu fragilizado. Então ergueu a cabeça. — O inferno é que meu filho, meu único filho, me odeia!

—  Você também nunca foi exatamente simpático para com ele...

— Tate é esquentado, arrogante e cabeçudo!

— Ah, vejam só que fala! — Cecily comentou com um sorriso maroto.

Holden também sorriu.

— Bem, devo confessar que é bom saber que não vou morrer sem ter tido um filho. — Parou por um segundo, e então acrescentou: — Leta não pode saber de nada disso. Quando, e se, o momento chegar, eu mesmo contarei.

— E quem iria dizer alguma coisa a ela antes disso?

— Você diria?

— Nem em sonhos — Cecily respondeu com um sorriso suave.

— Atravessaremos a ponte quando chegarmos a ela. Quanto a você, tome cuidado, ouviu? Investi um bocado de tempo e de energia conquistando-a para o museu. Não corra o menor risco. Se achar que foi descoberta, saia da reserva e carregue Leta junto, certo?

— Ela tem medo de avião. Nunca voa, a não ser em casos de emergência.

— Então irei até lá, vou colocá-la num carro e levá-la até o aeroporto — ele disse com determinação.

Cecily mordeu o lábio. Holden e Tate eram muito parecidos. Ambos obstinados.

— Espero que faça isso.

Holden dirigiu-se até a porta. Deteve-se com a mão na maçaneta.

— Pedirei à minha secretária que lhe mande a passagem.

— Ahá! Assim você estará diante de um comitê de investigação do Senado mais depressa do que pensa!

— Pagarei com meu dinheiro, não com verba do governo. Eu jamais tiraria vantagem dos fundos públicos. Afinal de contas, não pretendo perder meu halo de santo...

— Desse jeito, um dia você o terá mesmo. - Holden sorriu, divertido.

— Estarei em contato. Até breve.

— Até.

No momento em que ele saiu e fechou a porta, Cecily recostou-se na cadeira e fitou, sem ver, a confusão de papéis sobre sua mesa, dividindo o espaço com algumas peças de artesanato nativo que comprara para o museu.

O senador estava certo de que poderia resolver aquele problema sem revelar a verdade a Tate. Ela, no entanto, não tinha tanta certeza disso. A história viria à tona, mais cedo ou mais tarde, a despeito do que acontecesse com a tal máfia.

A descoberta feriria Tate profundamente. Ele certamente iria se revoltar contra Leta e odiar Holden ainda mais. Também ficaria furioso com Cecily, porque, mesmo conhecendo a verdade, mantivera-a em segredo. Tate odiava mentiras. Tanto quanto ela.

Esperava poder conviver com a raiva que ele lhe devotaria. Tinha certeza de que iria compartilhá-la com os pais de Tate.

E Leta nem mesmo fazia idéia de que Holden sabia de tudo! Que confusão...

De todo modo, ajudaria o senador a resolver o problema. Queria fazer isso antes que os bandidos sórdidos contassem tudo à imprensa. Passara tempo bastante com espiões para saber como agir. Colby lhe contara muito sobre como atuar sem ser descoberto.

Pena que ele não estivesse ali. Seria a pessoa certa para ajudar a desmascarar os criminosos e para descobrir até onde eles pretendiam ir.

 

O senador Matt Holden enviou a passagem no dia seguinte, depois de uma reunião entre a equipe do museu e o curador, Jock Phillips.

O dr. Phillips era alto, calvo e possuía sangue cherokee. De personalidade gentil, tinha uma sincera reverência à cultura nativa. Encantava-se com todas as peças que vinham fazer parte da coleção do museu. Tocava-as, como se o contato físico lhe permitisse absorvê-las. Solteirão convicto, tinha um monte de amigos. Cecily o adorava.

— Matt disse que você fará outra viagem a trabalhoa Dakota do Sul. Mas dessa vez ele tem algo específico em mente — Phillips disse com seus olhos grandes e brilhantes. — Pode dizer a este velho homem do que se trata?

—  De algo incomum — ela respondeu, esperando poder cumprir o plano. — Você irá adorar.

Phillips sorriu de orelha a orelha.

— E quanto essa "coisa incomum" irá me custar?

— Menos do que pensa, garanto. Farei com que a viagem valha a pena.

— Sei disso. Você é muito boa no que faz. É uma bênção tê-la aqui. Tem muito jeito para a arqueologia paleoíndia. Estava perdendo tempo em trabalhos de campo. Esse tipo de coisa corrói a alma da gente.

— Ora, dr. Phillips... — foi tudo o que ela conseguiu comentar, surpresa com aquelas palavras.

— Sei o que digo. Em minha juventude, fui um cientista de campo. Imaginava que fosse um trabalho igual ao dos detetives. E era. Mas a primeira vítima que me vi obrigado a reconhecer foi um amigo desaparecido. Então desisti e me dediquei a uma área menos cruel da arqueologia. — Sorriu tristemente. — É muito mais compensador.

— Para mim também é. Adoro trabalhar aqui.

— Vá até Dakota do Sul e traga alguma coisa que nos torne famosos. Somos muito jovens, lembre-se. Precisamos competir com os grandes museus.

— Farei o melhor que puder — ela prometeu.

 

Naquela noite, Cecily empacotou suas coisas logo após o jantar. Estava tomando café quando ouviu a campainha. Que bom! Colby voltara antes da data esperada!

Foi atender, pensando na própria sorte. Mas, quando abriu a porta, viu Tate do outro lado da soleira.

Ele usava jeans, suéter preto de gola alta e paletó de linho. Parecia muito sofisticado. Em especial diante de uma Cecily descalça, de jeans já desfiado e uma blusa vermelha que, de tão gasta, tornara-se rosada.

— Posso entrar? — ele perguntou. Cecily deu de ombros e saiu do caminho.

— Estou fazendo as malas.

— Vai mudar de novo? — foi a pergunta sarcástica. — Antes era mais fácil seguir seus passos.

— Porque eu vivia num ninho de espiões! — ela o desafiou. Soubera disso havia pouco tempo, por intermédio de Colby. — Você me colocou num apartamento cercado por agentes do governo!

— Era o lugar mais seguro — ele respondeu. — Quando eu não podia vigiá-la, alguém sempre o fazia.

— Eu não precisava ser vigiada!

— Sim, precisava — Tate devolveu, sentando-se em um dos traços do sofá-cama. — Nunca percebeu, mas era o alvo perfeito para todos os que têm algo contra mim. Foi por isso que desisti de trabalhar para o governo e arranjei um emprego no setor privado. — Cruzou os braços sobre o peito largo, vendo-a cada vez mais surpresa. — Um dia havia um inimigo político com uma metralhadora, na semana seguinte um cavalheiro europeu com uma pistola automática...

— Tate!

— É verdade. Mas você nunca soube disso. Se não estivesse morando em um "ninho de espiões", eu já a teria enterrado. E funerais são muito caros — ele acrescentou com um sorriso frio.

Cecily o fitava, incrédula.

— Por que simplesmente não me enviou para Dakota do Sul?

— Para seu padrasto?

Aquele ainda era seu ponto fraco, e Tate sabia disso. Mas não lhe daria o gosto de armar outra discussão. Ele parecia sempre disposto a brigar.

Cecily dirigiu-se à cozinha.

— Quer uma xícara de café?

Tate se levantou e segurou-a pelos ombros.

— Sinto muito. Eu não devia ter dito aquilo. Foi um golpe baixo.

— Apenas mais um de uma série recente — ela respondeu, sem fitá-lo. — Parece que não faço outra coisa senão levá-lo para o caminho errado.

— E sabe por quê? — Tate perguntou, soltando-a. Cecily deu de ombros enquanto pegava uma xícarae um pires.

— Porque quando você fica furioso com alguém, e não é capaz de resolver isso, desconta em mim. Sou sua válvula de escape.

Ele riu.

— Como consegue ler dentro de mim com tanta facilidade? Nem minha mãe chega a tanto.

"Se você pensasse mais a respeito, descobriria como consigo isso", ela pensou, amarga.

— Quem o enfureceu hoje? — perguntou.

— Holden.

— É mesmo?! — Cecily comentou, tentando parecer casual.

— Ele me contratou para atualizar o sistema de segurança de seus escritórios. Mas me telefonou pela manhã e disse que tinha reconsiderado a decisão.

— E você não queria perder o dinheiro desse trabalho, certo? — ela zombou, lembrando-se de que Tate comprara um novo carro esporte e costumava usar ternos de grife.

Ele não contava apenas com o salário que recebiada Corporação Hutton. Fazia uma série de tarefas de espionagem para os serviços de inteligência.

— Errado. Fiquei furioso porque Holden fez isso de propósito, mesmo que não admita. Ele é o tipo de pessoa que costuma guardar ressentimentos. Imagino que ainda esteja se vingando da conversa que tivemos na noite de seu aniversário.

Cecily mordeu o lábio inferior. Matt Holden a colocara numa posição terrível ao contar-lhe aquele segredo.

— Vocês não conversaram, naquela ocasião. Na verdade, gritaram um com o outro.

Ele sorriu e decidiu mudar de assunto:

— Para onde está indo?

Cecily pôs a xícara sobre a mesinha, em frente ao sofá. Sabia que Tate não tomava café nem com leite nem com açúcar. Acomodou-se na poltrona enquanto ele se dirigia ao sofá.

—  Estou voltando à reserva, para ver Leta. Obtive uma pista sobre um artefato antigo, que quero comprar para o museu.

Houve uma longa pausa.

— Essas peças são sagradas para meu povo — Tate disse, irritado. — Não podem pertencer a museus. São parte de nossa cultura.

Ele ainda não sabia que sua ligação com aquela cultura era apenas parcial. A verdade iria feri-lo muito.

— Não me refiro a esse tipo de objeto — Cecily mentiu. Em todo caso, não fazia mesmo idéia do que trazer, ao final da viagem, para satisfazer à curiosidade do dr. Phillips e de Tate e para justificar sua ida à reserva.

— Você esteve em Dakota há duas semanas — ele comentou. — Por que não procurou a peça naquela época?

— Porque ela não estava disponível. — Cecily corou ligeiramente e ajeitou uma mecha do cabelo. — E pare de me interrogar. Tive um dia estafante.

Tate correu os dedos pela própria nuca, sob o rabo-de-cavalo, e a observou colocar os fios desalinhados no lugar.

—  Pensei que você soltasse o cabelo à noite...

—  Só na hora de ir para a cama — ela esclareceu. Os olhos negros se estreitaram.

—  É... Colby tem sorte.

Cecily sorriu. Não lhe daria corda. Mesmo porque, no caso, acabaria prejudicada.

— Ele não vai mudar — insistiu Tate.

— Eu não me importo. Ouça, apreciei tudo o que  você fez por mim, mas minha vida particular não éda sua conta.

— Isso não são modos de falar comigo.

— Discordo. O que lhe dá o direito de emitir opiniões sobre os homens com quem saio?

Essas palavras o enfureceram. Os lábios masculinos se apertaram até formar uma linha fina. Quando estava com raiva, ele ficava ainda mais parecido com o pai.

Terminou o café em um silêncio tenso e levantou-se. Consultou o relógio.

— Preciso ir. Só queria saber como você estava.

— Só queria saber se Colby se encontrava aqui — ela corrigiu, sorrindo quando o viu piscar.

— Você sabe que não o aprovo como seu namorado.

— Como se eu me importasse com isso!

Tate deu um passo na direção dela. Os olhos negros se anuviaram, tomados por emoções conflitantes. Cecily o excitava mais do que qualquer outra mulher conseguira. Bastava fitá-la para sentir isso.

De alguma maneira, ela percebeu a necessidade que Tate negava. Estava irado por Matt Holden ter-lhe tirado o trabalho. Mas não pelo dinheiro, e sim pela ofensa que isso representava.

Na verdade, o senador os estava livrando de umescândalo político. Porque podia ser acusado de nepotismo, ao empregar um parente.

No entanto, havia algo mais profundo na raiva de Tate. Havia a frustração de desejar uma mulher que não poderia ter. Cecily sabia disso, intuitivamente. Percebia que ele pretendia iniciar outra discussão. E não queria isso.

— Colby é uma pessoa doce — disse com gentileza. — É boa companhia, e nunca bebe quando está comigo.

— Mesmo assim, é um alcoólatra — Tate respondeu baixinho, procurando manter a raiva sob controle.

— Eu já lhe disse que ele está em tratamento psicoterapêutico. Colby vem tentando se recuperar.

— Não espere que eu desista do assunto. Não depois do que vi meu pai fazer, a mim e a minha mãe, por causa da bebida.

 

A mágoa mostrou-se na expressão de Tate como algo tangível. Cecily levantou-se e colocou-se diante dele, comovida.

— As pessoas não são naturalmente cruéis — disse em um tom suave e solidário. — Às vezes sentem-se tão feridas por dentro que não conseguem controlar a dor. São incapazes de lidar com as pressões do dia-a-dia, e então se voltam para as drogas ou para o álcool, em busca de conforto.

—  E por que motivo meu pai teria sido ferido por dentro?

"Porque seu filho não era verdadeiramente seu e porque sua esposa amava outro homem", ela pensou.

Fitou-o, vendo com clareza como os anos de tormento e angústia haviam formado o homem que Tate era hoje. O semblante parecia feito de granito, mas cada traço, cada linha, escondia uma ferida emocional do passado.

— Aço moldado pelo fogo — disse Cecily, sem pensar.

—  Sou assim?

Ela sorriu tristemente.

—  E não é?

Tate respirou fundo e soltou o ar lentamente. Então sentiu que um pouco da tensão se dissipara. Contemplou-a de um modo diferente.

— Você me dá paz — falou de maneira inesperada. — Só me sinto assim quando estou a seu lado. Não consigo entender por que, pois, com você, também sinto vontade de explodir como uma bomba.

Cecily sustentou-lhe o olhar, séria.

— Ouça, o senador Holden teve um motivo para dispensá-lo do trabalho. Não vou fingir saber do que se trata, mas o conheço relativamente bem e tenho certeza de que não é como alguns políticos, que mentem quando deviam dizer a verdade. Holden é uma pessoa íntegra. Não guarda rancores nem age pelas costas. E você sabe disso.

Tate fechou ainda mais a expressão.

—  Sim, eu sei. — Os olhos negros se estreitaram — O que você sabe, Cecily?

— Arqueologia — foi a resposta lacônica.

Ele se aproximou e segurou-lhe o queixo delicado.

—  Está me escondendo alguma coisa — disse em um tom de voz baixo e grave. — Não estou certo sobre por que tenho esse pressentimento, mas tenho.

—  O fato é que você acha que sabe tudo a meu respeito — Cecily respondeu, procurando livrar-se do contato. — Não... faça isso — murmurou, segurando-lhe o pulso com dedos trêmulos, tentando se afastar daquele toque.

— Um erro fatal, garota — ele disse com voz rouca, aproximando-se mais, cedendo à fome que o levara ao apartamento de Cecily àquela hora da noite. — Não devia ter me tocado...

Antes que ela pudesse perguntar o que aquelas palavras significavam, sentiu a boca ávida sobre seus lábios.

Tate gemeu e a colocou contra a parede, enquanto o beijo dizia coisas eróticas. Cecily sentiu a coxa poderosa afastando-lhe as pernas à medida que a pressionava sensualmente contra a parede.

Não possuía defesas contra aquilo. Estava em chamas. Queria aquele homem. Levou os dedos às costas  musculosas e cravou as unhas ali, gemendo, entregando-se ao ritmo daquele abraço.

Era uma experiência nova, que espalhava fagulhas de prazer por seu ser e que abria uma fonte de alegria em algum recanto secreto. Uma das mãos enormes deslizou até seus quadris, guiando-a naquela dança. O corpo masculino era o instrumento daquela deliciosa tortura, conduzindo-a para além de toda a realidade palpável.

Tate sabia que ambos estavam perdendo rapidamente a razão. Então recuou, a despeito da dor intensa que isso lhe causava. Seus olhos mostravam-se nublados, ferozes, quando encontraram os dela. Exalou pesadamente, incerto. Olhou para baixo apenas para encontrar o corpo feminino tão próximo que um suspiro mal caberia entre eles.

Estava excitado, e Cecily sabia. Pela primeira vez deixara que ela percebesse isso.

— Você precisa me deter quando começo a agir assim — disse-lhe.

— Se você parasse de me pressionar contra a parede, de modo a me permitir pôr as mãos em algum objeto, eu ficaria feliz em...

Tate a interrompeu com um beijo rápido.

— Não estou brincando — murmurou, movendo a boca de maneira gentil e sensual sobre os lábios delicados.

Sentiu-a estremecer.

—  Isso tudo é... muito novo para mim — Cecily comentou, procurando descontrair um pouco.

—  Não, não é — ele corrigiu. — Eu simplesmente nunca a havia deixado sentir algo assim.

Beijou-a devagar, saboreando a suavidade dos lábios mornos. Levou as mãos por sob a blusa e alcançou os seios, cobertos por um sutiã fino.

Estava passando dos limites. Se os ultrapassasse de uma vez, acabaria por levá-la junto, e isso prejudicaria a ambos. Precisava parar naquele momento, enquanto ainda tinha um pouco de autocontrole.

— É assim que Colby se comporta quando vem vê-la? -— sussurrou com um sarcasmo proposital.

Funcionou. Cecily deu-lhe um pontapé com toda a força. A reação o surpreendeu mais do que o machucou. E, enquanto Tate se curvava, por causa da dor, ela escapava de seus braços, os olhos mais pálidos do que nunca, os cabelos em desalinho. Fitava-o como se fosse uma pantera.

— O que Colby faz ou deixa de fazer não é da sua conta! — vociferou. — Saia já de meu apartamento!

Cecily era magnífica, pensou ele, deliciado, ao observá-la. Não havia homem no mundo capaz de domá-la, de submetê-la à sua vontade. Até mesmo o padrasto, bêbado e brutal, jamais conseguira obrigá-la a fazer algo que ela não quisesse.

—  Ah, como eu odeio esse maldito sorriso de satisfação! — Cecily continuou, furiosa. — Homens, os conquistadores!

— Não era nisso que eu pensava — ele respondeu, a sensatez voltando aos poucos. — Sabe, minha mãe era magra e pequena, quando jovem. Mas sempre se arriscava por minha causa. Colocava-se à frente de meu pai, para me defender, quando ele vinha me agredir. Demorou muito para que eu crescesse o suficiente para protegê-la.

Cecily o fitou, curiosa, ainda trêmula.

— Não entendi. O que isso tem a ver com o que aconteceu nesta casa?

— Você tem um espírito indomável — Tate disse em voz baixa. — Admiro essa qualidade, embora elaàs vezes me exaspere. Em todo caso, isso não será o bastante para salvá-la das mãos de um homem que decida feri-la ou surrá-la. — Respirou fundo. — Você esteve sob minha responsabilidade durante muito tempo — prosseguiu, escolhendo as palavras. — Não importa quantos anos tenha, ainda sinto que devo protegê-la. E assim que sou.

Tate desejava confortá-la, mas suas palavras a magoaram. Cecily conseguiu forçar um sorriso.   

— Posso cuidar de mim mesma.

—  Pode? — ele perguntou com suavidade, fitando os olhos verdes. — Mas em um momento de fraqueza...

— Esses momentos são raros. Além disso, você é o responsável por eles — foi a interrupção mal-humorada. — E então, vai ou não embora? Afinal, teoricamente, era eu que tentava seduzi-lo, não o contrário. Você está quebrando as regras.

Os olhos negros se arregalaram.

— Você desistiu de me seduzir há tempos, lembra-se?

— Mudei de idéia por sua causa. Nenhum orgulho de mulher agüentaria tanta rejeição.

Tate a percorreu de alto a baixo com o olhar, faminto. 

— Não consigo tirá-la da cabeça — murmurou num fio de voz. — O modo como aconteceu, na casa de minha mãe... Nunca desejei tanto uma mulher. E... não é apenas um sentimento físico. — Franziu a testa. — Eu a quero, e me odeio por isso.

— Não está me dizendo nenhuma novidade — Cecily respondeu, fazendo um gesto na direção da porta. — Vá para casa. Espero que passe uma longa noite acordado!

— Provavelmente, é o que vai acontecer — Tate confessou e aproximou-se da saída, hesitante.

—  Boa noite — ela disse com firmeza, imóvel. Tate permaneceu de costas.

—  Posso enumerar meus ancestrais até antes da revolução mexicana, no início de 1800. Puro sangue lakota, sem mistura com os brancos. Há tão poucos de nós, hoje...

Cecily engoliu em seco. Sim, ele sofreria muito quando soubesse a verdade.

— Não precisa me explicar isso. Sei como se sente.

— Não, não sabe. Eu morreria para tê-la, nem que fosse uma única vez. —Virou-se, e em seus olhos brilhava uma chama ardente. — Você também se sente assim.

— E uma corrupção dos sentidos. Você não me ama. E, sem amor, essa atração não passa de algo puramente sexual.

Ele respirou devagar, procurando se acalmar. Não pretendia fazer a pergunta, mas foi incapaz de contê-la:

— E sexo sem amor é algo que você conhece?

— Sim. E algo que conheço — ela mentiu, mantendo a fisionomia séria e um sorriso que, esperava, fosse bem mundano.

Não iria mendigar migalhas, passando horas roubadas na cama de Tate. Os homens tornavam-se verdadeiros demônios quando o desejo os consumia. E Cecily não pretendia dar-lhe a satisfação de saber que jamais houvera outro em sua vida, e que jamais poderia haver.

Percebeu que suas palavras calaram fundo. E atingiram o alvo, porque Tate hesitou apenas por um minuto antes de abrir a porta e sair.

Ela fechou os olhos e agradeceu à Providência por ter-se negado a fazer aquilo que mais desejava no mundo. Lembrou que Tate dissera, certa vez, que o sexo, sozinho, não era suficiente. E tinha razão.

Cecily repetiu a frase várias vezes, como se fosse um mantra, até que seu corpo sedento se acalmasse a lhe permitisse dormir.

Ela chegou à casa de Leta, na reserva Wapiti, no final da tarde seguinte. Trocara de avião, em Denver, para ir até Rapid City, em Dakota do Sul. Dali, fora de carro até a tribo.

Leta aproximou-se do portão acenando e sorrindo, em sinal de boas vindas.

—  Oh, eu mal tive tempo de preparar um jantar gostoso. Você é uma garota má. Devia ter me telefonado ontem à noite avisando de sua chegada, não hoje, do aeroporto!

—  Eu queria fazer uma surpresa.

— Ah, uma surpresa... — comentou Leta, rindo.

— Ei, o que há? — Cecily perguntou ao atravessar o portão.

— Esqueci de lhe dar uma... surpresa. Esta.

—  O quê?

—  Tate deixou seu presente de aniversário comigo, da última vez que estiveram aqui. Coloquei em cima do armário da sala de jantar e esqueci de entregá-lo. Ei-lo!

Cecily sentiu-se nas nuvens apenas ao ouvir o nome dele. Ainda podia experimentar-lhe o gosto, na boca, e a força, contra seu corpo pressionado contra a parede.

— Então ele se lembrou de meu aniversário... — comentou com voz fraca, emocionada.

— Sempre se lembra. Mas disse que, na época, vocês dois não estavam se falando. — Entregou a caixinha para Cecily. — Vamos! — encorajou-a, quando a viu hesitar. — Abra!

Frias e trêmulas, as mãos dela desembrulharam vagarosamente o pacotinho e revelaram uma caixa própria para guardar jóias. Não se tratava de um anel de noivado, claro, Cecily disse a si mesma enquanto abria o tampo. Na certa ele lhe comprara uma...

— Oh, aquele tolo! Como se atreveu?

Leta olhou por sobre os ombros dela e, ao ver o conteúdo da caixa, soltou uma gargalhada.

— Não tem graça nenhuma — disse Cecily, séria.

—  Claro que tem!

Cecily examinou o caranguejo de prata com olhos de rubi e garras de pérola. Então, contra sua vontade, começou a sorrir.

— E bonito, não acha?

Pegou o broche e o estudou mais de perto. Não era de prata. Era de ouro branco. Quanto aos rubis e às pérolas, eram verdadeiros.

Tate não achara a jóia pronta em alguma loja. Encomendara-a só para ela.

Lágrimas encheram-lhe os olhos. Aquele era o tipo de presente que apenas se oferece a alguém muito especial. Lembrou-se dos beijos apaixonados e desejou, de todo o coração, que fossem sinceros.

Colocou o broche na gola da blusa e soube que, a partir daquele momento, era dona de um tesouro. Para toda a vida.

 

—  E então? Vai me contar por que veio à reserva? — indagou Leta enquanto ambas tomavam sopa e bebiam café.

— Vim atrás de uma peça muito antiga. - A índia a fitou.

— Não existem peças muito antigas aqui, com exceção do fardo sagrado. E você sabe muito bem que ele não costuma estar à disposição, a não ser nas cerimônias da tribo. E, se nenhum lakota a deixaria chegar perto do objeto, tampouco lhe permitirá levá-lo para o museu.

Cecily suspirou e bebericou o café.

— Seria muito mais fácil se você acreditasse em minhas mentiras.

Leta sorriu.

— Você não sabe mentir.

— Não posso lhe contar toda a verdade. Mas vou dizer aquilo que for possível. Estou aqui para bisbilhotar.

Os olhos da boa senhora se arregalaram.

— Oh, uma investigação! — ela comentou, entusiasmada. — Ótimo. O que devemos fazer?

—  Ouça, o caso é sério. Existem pessoas más rondando a tribo.

— Indo e vindo em limusines com motoristas, e com placas de outros Estados. E, toda vez que eles vêm ou vão, Tom Black Knife se dirige à casa do sobrinho para embebedar-se de uísque.

Cecily ficou boquiaberta.

—  Como?

Leta lhe lançou um olhar significativo.

— Sei tudo o que está acontecendo. Sei quando algo não vai bem. O dinheiro da tribo desapareceu, e não acredito que Tom o tenha roubado. Ele é meu primo.

— Também é amigo de um homem poderoso de Washington — Cecily disse com cautela. — Um homem que vai mandar para os ares os planos dos bandidos se tiver provas do que eles estão fazendo.

A índia remexeu na comida.

— Essas pessoas não se aproximam pela frente e de cabeça erguida — comentou. — Vêm pelas costas. Armam ciladas, Ameaçam contar seus segredos.

— Não podem fazer isso com você, alguém que não possui segredos — Cecily zombou, de propósito.

Leta ficou em silêncio por alguns momentos antes de perguntar:

— Tem visto Tate?

O coração de Cecily disparou.

— Eu o vi na noite passada.

— Ele está bem?

— Muito. Não gosta que eu continue saindo com Colby Lane.

— Oh! — exclamou a índia, erguendo uma sobrancelha como se achasse que o filho estava com ciúme.

— Não se trata disso. Tate está preocupado comigo. Colby costumava beber muito. Não bebe mais, mas seu filho acha que o álcool é uma influência má. — Deu mais um gole no café. — Julga-se meu irmão mais velho e quer me "salvar".

— Ele se preocupa muito com você.

— Como se eu fosse a irmãzinha caçula, e nós duas sabemos disso. A mulher de sua vida chama-se Audrey, que, por sinal, não dá sinais de querer deixá-lo. Não fosse a obsessão de Tate, de não se casar com uma branca, ela provavelmente já estaria usando uma aliança.

— Essa mulher odeia os nativos — Leta disse com frieza. — Exatamente como outra socialite que conheci certa vez. Já ouvi essas críticas antes... Que somos ignorantes, selvagens primitivos que se acomodam e vivem à custa do governo...

Cecily levantou-se e colocou um braço em volta dos ombros da mulher que ocupara, em sua vida, o lugar deixado por sua mãe.

— Você é linda, inteligente, cheia de habilidades e com um enorme coração! E sabe de uma coisa? Darei um pontapé na primeira pessoa que disser algo diferente!

— Você faz muita coisa por nós, querida. Mais do que imagina. — Estudou a filha adotiva atentamente. — Como foi que arranhou seu rosto? — perguntou, de maneira inesperada. — Aqui, na face?

Cecily lembrou-se do contato com o queixo sem barbear de Tate na noite anterior e corou.

— Bem...

Leta sorriu.

 — Ah, então é isso! Bem que suspeitei. Naquela noite, enquanto eu preparava os sanduíches, percebi que a sala estava quieta demais...

— Oh, pare, por favor — Cecily pediu, voltando a sentar-se. — Para Tate isso não significou nada.

A índia fez que não com um gesto de cabeça.

— Ele a quer. - Cecily suspirou.

— Querer não é o bastante — respondeu com determinação. — Não pretendo me tornar uma simples diversão.

Os olhos negros a fitaram, cheios de amarga sabedoria. 

— É fácil ceder, querida. Mas então tem-se de pagar um preço. E às vezes ele é muito alto.

Leta sabia bem disso. Fora deixada só e grávida por um político ambicioso que se casara para alavancar a carreira. Cecily podia sentir-lhe o sofrimento. Estendeu a mão sobre a mesa e afagou as da mãe adotiva com carinho.

— Talvez seja. Mas existem algumas recompensas. - Leta franziu a testa. Parecia ter parado de respirar.

— O que você sabe? — perguntou, a expressão atormentada, a pele gelando.

Cecily apertou-lhe as mãos.

— Não tenho segredos para você. Mas prometi não dizer nada, e preciso manter minha promessa.

A índia tremia.

— O homem que a enviou aqui... é senador?

— Não posso responder a essa pergunta.

—  Um senador por Dakota do Sul?

— Leta...

— Matt Holden?

Cecily fechou os olhos. Não podia revelar nada. Não iria fazê-lo.

—  Céus! — sussurrou Leta, soltando as mãos. — Então ele sabe! Não é verdade? Por favor, diga-me!

— Sinto muito, mas sim, ele sabe. As pessoas a quem vim investigar conhecem a história toda. E estão ameaçando contá-la à imprensa. Isso destruirá a carreira de Holden, para não falar do que acontecerá a você e a Tate quando a verdade vier à tona.

Leta cobriu o rosto com as mãos e chorou em silêncio. Mais uma vez Cecily ergueu-se da cadeira e foi confortá-la.

— Tudo vai ficar bem. Holden acha que poderemos detê-los a tempo. Basta descobrir quem são, exatamente, e por que manipulam Tom Black Knife. Não estamos derrotadas. Vamos resolver esse problema. Vamos mesmo!

Leta a abraçou.

— Eu quis contar a ele. Quis contar a meu filho e a seu pai verdadeiro. Mas esperei, e então esperei mais um pouco, pelo momento certo, o lugar certo. Mas Matt estava casado e Tate tinha tanto orgulho de sua herança indígena... — Levantou-se e enxugou os olhos. — Jack sabia que eu estava grávida quando nos casamos. Mas jamais descobriu de quem. Disse que me amava o bastante para cuidar de mim e da criança. — Ergueu o rosto sofrido. — Só que não cuidou. Enfurecia-o o fato de saber que outro homem era o pai de meu filho, em especial quando descobrimos que ele era estéril.

— Oh, querida...

— Ele me odiava, e odiava Tate. Nos punia por causa da própria esterilidade. Começou a beber e, de homem gentil, transformou-se em um monstro. E a culpa foi minha. Para tornar as coisas ainda piores, neguei a Matt o direito de conhecer o filho, e neguei a Tate o direito de conhecer o pai. E agora ele descobrirá issopor meio de algum jornal ou noticiário da televisão. Vai me odiar.

— Provavelmente, quando a história vier à tona, ele vá nos odiar. Mas superará isso.

Leta balançou a cabeça e enxugou mais uma vez os olhos vermelhos.

— Não é verdade. Tate é como você, não suporta mentiras. Não nos perdoará.

Cecily sentiu a alma angustiar-se ao ouvir essas palavras. Sabia que eram verdadeiras.

— Não podemos adivinhar o futuro — disse baixinho. — E, se tentarmos, conseguiremos fazer alguma coisa a respeito do assunto. É preciso olhar o lado positivo do caso.

— Existe um lado positivo?

— Claro. Vamos dar uma lição a uma máfia de renegados. Vamos salvar a tribo e o chefe da tribo. Seremos notícia em todos os jornais!

— Mais uma vez... — Leta comentou, desolada, lembrando do escândalo no jantar de Holden.

— Agora será diferente. Será... politicamente correto.

— Como está Matt? — Leta perguntou, sem conseguir evitar a curiosidade.

— Muito atraente. Grisalho e arrogante, teimoso e esquentado. Exatamente como "alguém" que conhecemos... — ela respondeu com um sorriso. — Fala muito bem a seu respeito. Arrependeu-se do modo como agiu. Comentou que fez a escolha errada.

— Ele me odeia por não lhe ter contado sobre Tate, não é?

— Oh, não! Nada disso! Holden se sente culpado em relação ao que você e seu filho sofreram nas mãos de Jack Winthrop. Entende por que você se calou esses anos todos. O problema é que... bem, ele e Tate são inimigos. Isso o deixou chocado.

— Eu o amei — Leta confessou, o olhar suave e sonhador. — Nós dois crescemos juntos. Matt sempre soube o que queria da vida, sempre se dedicou aos lakota. Fiquei fascinada quando começou a flertar comigo. Teria feito qualquer coisa por ele. Então ouvi-o dizer que ia se casar com aquela socialite rica e concorrer a uma vaga no Senado. Discutimos. Mas depois das eleições, antes de ir para Washington, Matt veio me ver mais uma vez. Tínhamos ficado separados por muito tempo, e senti saudade. Começamos e nos beijar e... bem, não conseguimos parar.

Ela corou, embaraçada. Cecily sorriu, compreensiva.

— E então? — encorajou-a.

— Então ele me contou que já estava casado. Sentia-se envergonhado, penalizado, mas eu não. Fiz aquilo que sempre desejei fazer. E, algumas semanas depois, descobri que estava grávida.

—  Ficou feliz?

— Ah, você nem faz idéia de quanto! Eu sabia que nunca poderia lhe contar, mas fiquei feliz mesmo assim. Então Jack Winthrop me ofereceu um lar e aceitei. — Balançou a cabeça, triste. — Eu devia ter pensado melhor. Paguei por isso, e fiz com que Tate também pagasse. Tentei fugir uma vez, mas Jack me deu uma surra tão grande que me impediu até de andar. Ameaçou ferir meu filho caso eu procurasse escapar de novo, e por isso permaneci a seu lado.

— Imagino como deve ter sido difícil — disse Cecily, acariciando-lhe o cabelo.

— Foi muito difícil. As pessoas dizem que é fácil deixar um marido violento e que para isso basta sair de casa. Mas eu sabia que, se saísse outra vez, Jack nos procuraria e nos mataria. Ele mesmo me disse isso. Bêbado, era capaz de tudo. Naquela época nãohavia apoio para mulheres que apanhavam dos maridos. Ninguém nos protegia. Agora, as coisas são diferentes. Mas Tate ganhou diversas cicatrizes. Muito profundas, onde não se pode vê-las. Eu também.

— Você nunca se arrependeu de ter levado adiante a gestação?

— Nunca. Mas fico triste ao saber que Matt descobriu as coisas desse jeito. Ele... contou a Tate?

— Não. Mas disse que eu poderia fazê-lo. Respondi que jamais diria uma única palavra.

— Tate não vai gostar quando souber que lhe escondemos a verdade.

— Já me resignei a isso — mentiu Cecily. — De todo modo, ele nunca me amaria. Mesmo sabendo que também tem sangue branco nas veias. Vivi tempo demais sonhando. Agora chega.

— Se você se afastar, meu filho irá segui-la — Leta disse inesperadamente. — Existe um laço muito forte entre vocês. Um laço que nunca será desfeito.

— Entre nós existe Audrey — Corrigiu Cecily.

— Querida, já houve outras Audreys. Tate nunca as trouxe para casa nem falou sobre elas. Eram relacionamentos frouxos. E não foram muitos, afinal.

— Audrey está com ele há bastante tempo. - Leta fitou os olhos verdes, séria.

— Se Tate está dormindo com essa moça, por que não consegue manter as mãos longe de você?

O coração dela disparou novamente.

— Co... como? — gaguejou.

— E uma questão simples. — Leta sorriu ao ver o embaraço da filha adotiva. — Quando você entrou na cozinha, na noite em que Tate viajou, seus lábios estavam vermelhos e seus olhos não o fitavam. Quanto a ele, estava abalado. Não era preciso ser um adivinho parasaber o que tinha acontecido na sala. Mais do que isso, Tate não costuma brincar com garotas inocentes.

— Ele não acha que sou inocente. Fiz com que pensasse que eu e Colby somos... muito próximos.

—  É mesmo?

Cecily fez uma careta.

— "É mesmo", o quê?

— A única coisa que manteve meu filho afastado todo esse tempo foi o fato de que ele não queria tirar vantagem da sua situação. Se julga que você tem ao menos um pouco de experiência, vai achar um motivo para não se controlar mais. — Acariciou-lhe o rosto antes de prosseguir: — Esse é um jogo perigoso, querida. Seu amor será sua ruína. Sei disso. Ah, como eu sei!

Cecily recusava-se a pensar sobre o assunto. Afastaria Tate do pensamento, e o manteria bem longe.

— Vou me preocupar com isso quando, e se, a hora chegar. Agora, enxugue essas lágrimas e beba mais um pouco de café. Temos de pensar em algumas estratégias. Vamos cercar o inimigo de todas as maneiras possíveis!

    

Nos dias que se seguiram, Cecily foi apresentada a Tom Black Knife, um senhor de olhos negros muito vivos e ótima disposição. Também conheceu outros membros do conselho tribal. Nenhum deles parecia suspeito ou desleal. Cecily tinha quase certeza de que não faziam parte das tramas misteriosas que vinham acontecendo ali. Certa noite disse isso a Leta.

— O único problema é que não vão confiar em mim —  acrescentou, realista. — Eu gostaria que Colby já tivesse voltado. Ele viria para cá, infiltraria alguém na máfia do jogo... Não posso fazer isso.

—  Não olhe para mim — brincou Leta. — Nunca ganhei nem mesmo uma rifa!

—  Vou ligar para Colby — ela decidiu, pegando o telefone que Tate mandara instalar na casa havia anos.

—  Se o encontrar em seu apartamento, sei que virá nos ajudar.

Digitou o número e esperou enquanto a campainha tocava. Estava prestes a desligar quando uma voz grave soou do outro lado da linha:

—  Lane.

— Eu receava que você ainda estivesse fora do país —  Cecily disse, aliviada. — Está tudo bem?

— Ganhei algumas cicatrizes novas, mas foi só. Que tal uma pizza? Passo por aí e...

— Não será possível. Estou em Dakota do Sul.

—  O quê?

— É uma longa história. Leta tem um sofá confortável. Por que não vem para cá agora mesmo?

Houve uma pausa.

—  Se você sente tanto a minha falta, talvez seja melhor se casar comigo.

— Não vou me casar com um homem que atira nas pessoas para viver — ela respondeu com um sorriso.

— Ah, mas só atiro nas pessoas ruins — Colby protestou. — Além disso... Bem, sei o que é forame magno.

— Oh, querido! — Cecily exclamou de maneira teatral. — Pode tirar a licença para o nosso casamento.

Ele riu.

—  Há de chegar o dia em que você me levará a sério. Em que tipo de travessura está metida agora?

—  Em nenhuma. Vim comprar peças nativas para o museu. Mas preciso de você.

— Nesse caso, já estou a caminho. Alugarei um carro no aeroporto. Até breve! — ele prometeu, e desligou.

— Você não vai se casar com Colby Lane — disse Leta, em um tom desaprovador.

— Mas ele sabe o que é um forame magno! — foi a resposta divertida.

— Um... o quê?

— Um forame magno é uma ampla abertura nas vértebras de um esqueleto.

— Grande coisa...

— Não para um arqueólogo. Sabe que podemos identificar uma etnia analisando a dentição de um esqueleto? Os norte-americanos nativos são mongolóides e têm os dentes incisivos em formato de pá.

Essa explicação encheu Leta de curiosidade e a levou a fazer outras perguntas, o que a impediu de pensar muito acerca da proposta brincalhona de Colby.

 

Ele chegou no dia seguinte, com marcas novas no rosto magro e uma nova prótese. Mostrou-a a Cecily quando ela se aproximou do carro, para cumprimentá-lo.

—  Bonita, hein? Não parece mais realista do que a outra?

—  O que aconteceu com a outra?

—  Desapareceu. E não me pergunte onde.

—  Não o farei. Venha. Leta preparou alguns sanduíches.

A boa senhora havia visto Colby apenas uma vez, numa visita a Tate. Foi polida com ele, mas um pouco distante.

—  Leta não gosta de mim — Colby comentou com Cecily mais tarde, quando estavam sentados nos degraus que levavam ao jardim.

— Ela acha que dormimos juntos — Cecily explicou. — Tate também acha.

— Por quê?

— Porque o deixei pensar assim. Colby lhe dirigiu um olhar duro.

— Fez mal, querida.

— Não vou permitir que ele imagine que estou à espera de que note minha existência — Cecily respondeu em um tom gelado. — Tate já está convencido de que o amo, o que já é ruim o bastante. Não posso deixar que saiba que eu... bem, que o amo mesmo. Ainda tenho um pouco de orgulho.

— Estou de acordo, se você fala sério — Colby afirmou. Sorriu, quebrando a solenidade das palavras. — Ou julga que sou incapaz de lidar com isso com um só braço?

Cecily caiu na gargalhada e o abraçou afetuosamente.

—  Adoro você, de verdade. Mas tive uma péssima experiência, quando adolescente. Fiz terapia e tudo, mas para mim ainda é traumático pensar em contatos mais íntimos.

— Até mesmo com Tate?

—  Tate não me quer.

—  Se continuar a dizer isso, ele fará de você uma mentirosa.

— Não entendi.

— Tate foi me visitar ontem à noite. Logo depois de conversarmos por telefone — Colby contou, apontando para o rosto marcado.

Ela prendeu a respiração.

— Pensei que você tivesse conseguido essas cicatrizes do outro lado do mundo!

— Algumas. Mas outras... Bem, você sabe que Tate usa um anel de prata, com uma pedra turquesa. E a tal jóia causa um belo estrago quando atinge as pessoas.

— Ele bateu em você? Por quê?

— Porque você lhe disse que estávamos dormindo juntos. Sinceramente, querida, eu gostaria que conversasse comigo antes de fazer certos joguinhos. Fui pego de surpresa.

— O que Tate fez depois de bater em você?

— Revidei, e, você sabe, uma coisa leva a outra. Minha mesa de café foi destruída. E nem discutimos o que ele fez com o meu melhor cinzeiro.

— Oh, eu sinto muito!

— Tate e eu somos muito parecidos, numa luta. Não que tenhamos participado de muitas. Ele bate mais forte do que Pierce Hutton. — Fez uma careta. — Tem certeza de que Tate não a quer? Não consigo pensar em outro motivo pelo qual ele tentasse martelar o piso lá de casa com a minha cabeça...

— O Grande Irmão Tate ataca outra vez — Cecily comentou,   sentindo-se   miserável.   Deu uma  risada amarga. — Ele acha que você é um perigo.

— E sou.

— Gosto de tê-lo como amigo. - Colby sorriu.

— Também gosto de tê-la como amiga. Não é todo mundo que consegue me agüentar por tantos anos. Quando Maureen me deixou, enlouqueci. Não consegui conviver com tamanha dor, e por isso procurei meios de me anestesiar. — Balançou a cabeça. — Acho que só recuperei certo bom senso depois que você me indicou aquela terapeuta, em Baltimore. — Fitou-a e sorriu. — Sabia que ela cria cobras?

— Todos temos nossas esquisitices.

— Seja como for, ela me convenceu de que não podemos ser donos de ninguém. Maureen não foi capaz de viver com a pessoa que eu era. Agora, está feliz — disse com um traço de amargura. — Seu atual marido é vice-presidente de um banco e tem dois filhos do primeiro casamento. É bem estabelecido. Muito diferente de alguém que leva balas em tiroteios.

— Sinto muito, Colby.

Ele se inclinou para a frente, apoiando os cotovelos nas coxas.

— Eu a amava.

— E eu amo Tate. Mas você, ao menos, tem um casamento de que se lembrar. Quanto a mim, nada possuo.

— Melhor não ter recordação alguma, sabe? — Colby comentou, entristecido. — Tate é um tolo. Não sabe nem quem é.

Cecily levou um susto com o comentário inesperado.

— Por que diz isso?

— Ele põe uma ênfase exagerada na cultura. Temuma postura defensiva a esse respeito. Usa essa desculpa para identificar a si mesmo. A herança é importante, mas não é tudo. Tate vive num mundo de brancos, ganha a vida nesse mundo. Claro que já ocorreu a você que um homem com tal obsessão por suas raízes não seria capaz de viver nesse meio...

Cecily se perguntou se Tate alguma vez pensara nisso. Ela, por exemplo, jamais tinha pensado.

— Você quer dizer que ele na verdade devia morar com Leta, ou perto de seu povo?

— Exato. Algumas pessoas a quem Tate se ligou tornaram-no consciente de seu passado. Fazem com que se sinta pouco à vontade. Lembram-no de que é parte de uma cultura minoritária. Intimidam-no ao mostrar que ele não é sofisticado nem urbano o bastante para se orgulhar disso.

—  Colby!

—  Você é branca. Não tem a menor idéia do que seja fazer parte da minoria, ser tratada como tal. Nunca saberá como é. Embora trabalhe com a comunidade nativa, embora compreenda e admire a cultura do povo de Tate, jamais será parte dela.

Cecily sentiu-se insegura. Nem mesmo Tate chegara a lhe dizer coisas assim. Passou a mão na testa, perturbada com a verdade contida naquelas palavras.

— Você quer saber como sei disso tudo, não é? — ele continuou, e a viu fazer que sim com um gesto de cabeça. — Sou um apache. E difícil notar porque tenho a pele clara, graças à mistura de sangue escocês e germânico, uma geração atrás. Mas sou quase apache puro. Estou qualificado como tal. Posso viver na reserva das Montanhas Brancas, se quiser.

— Você nunca comentou isso!

— Porque antes não a conhecia direito. É uma ironia. Tate tem obsessão por suas raízes, enquanto sinto vergonha das minhas. Nem mesmo visito meu povo. Odeio ver como vivem.

A confissão a desmontou. Não sabia nem mesmo como se dirigir a ele. O Colby que conhecia desaparecera.

— Foi esse o verdadeiro motivo pelo qual Maureen me abandonou. Não foi por causa de meu trabalho, ou porque eu bebia uma vez ou outra. Ela me deixou porque... não queria ter filhos com sangue nativo. Não lhe contei que era um apache quase puro senão depois de um ano de casamento. Algumas gotinhas de sangue nativo são uma coisa excitante, única. Mas um quase puro-sangue... Maureen ficou horrorizada.

A opinião de Cecily sobre a legendária Maureen caiu oitenta pontos. Ela cerrou os dentes, furiosa. Não conseguia imaginar alguém que tivesse vergonha de uma herança tão maravilhosa.

— Posso ouvi-la fervendo de raiva — Colby comentou, e riu. — Não, você nunca teria vergonha de mim. Mas é uma mulher especial. Ajuda sempre que pode. Vê a miséria à sua volta e não levanta o nariz, para evitar respirá-la. Ao contrário, arregaça as mangas e faz o que for possível para aliviá-la. Você me deixa envergonhado.

— Envergonhado? Mas por quê?

— Porque vê beleza e esperança onde só enxergo desolação. — Ele ajeitou o braço artificial, como se o incomodasse. — Tenho quase a metade da quantia que Tate possui, guardada em bancos estrangeiros. Vou começar a usar parte disso em alguma coisa exótica. Uma pessoa pode fazer a diferença. Eu não sabia disso até conhecê-la.

Cecily sorriu e tocou-lhe o braço com gentileza.

— Fico feliz em ouvir isso.

— Você poderia se casar comigo — Colby aventurou-se a dizer, sorrindo. — Eu seria um bom marido. Nunca mais beberia um só gole de cerveja.

— Você precisa de alguém que o ame. Eu não posso lhe dar amor.

— E eu poderia lhe dizer a mesma coisa. Mas posso amá-la, acho, com o tempo.

— Você não é Tate. Jamais seria. - Colby deu um longo suspiro.

—  A vida nunca é simples. E como um quebra-cabeça. No momento em que pensamos que o completamos, as peças voam em todas as direções.

— Hum... quando você começa a filosofar é porque é hora de entrar. Amanhã conversaremos sobre o que está acontecendo por aqui. Há alguma coisa muito suspeita no ar. Leta e eu precisamos de sua ajuda, para descobrir de que se trata.

—  Claro! Afinal, para que servem os amigos?

— Ficarei lhe devendo essa. Um dia farei o mesmo por você.

Ele não respondeu. Cecily não tinha idéia de quão fortemente Tate fora atingido pela insinuação de que ela e Colby eram íntimos. O homem furioso que batera à sua porta na noite anterior mal podia ser reconhecido como o amigo de muitos anos. Tate não conseguira ser coerente.

Ambos ficaram exaustos depois da briga. Talvez o lakota não quisesse se casar cora Cecily, mas morria de ciúme. Não fora tomar satisfações porque achara aquilo um atentado contra a castidade da ex-tutelada. Fora buscar vingança por causa do ciúme que sentia. E sentia por estar perdidamente apaixonado, embora não tivesse consciência disso.

 

Dois dias depois da partida de Cecily, Tate, ainda com alguns arranhões, foi ao museu descobrir por queela fora até Dakota do Sul. Então soube que não havia nenhum artefato antigo ou algo do gênero. Essa fora apenas uma desculpa.

Alguma coisa estava acontecendo. Cecily agira de modo estranho, assim como Colby. Tate precisava verificar o que havia.

Conversou com o dr. Phillips, que lhe disse que Cecily localizara uma peça rara e que por causa disso fora até a reserva. Disse também que o senador Holden  estava tão interessado nesse projeto que até lhe pagara a passagem.

Armado com essas informações, Tate entrou como um furacão no escritório de Matt Holden, assustando a secretária.

— Está tudo bem, Katy — o senador acalmou-a. — Feche a porta, sim?

Foi o que ela fez, mesmo apreensiva. Tate parecia fora de controle.

Era a primeira vez que os dois homens se encontravam depois de Holden ter descoberto a verdade. Estudou o rosto de Tate com atenção, notando, nos olhos negros, no queixo firme e na constituição elegante as semelhanças com o povo sioux. Ele jamais saberia que também tinha sangue francês nas veias, que seu avô paterno fizera parte da realeza e que sua avó fora uma aristocrata francesa.

Tate era descendente de uma linhagem sofisticada, e Holden não podia lhe dizer isso. Se as coisas corressem bem em Dakota do Sul, então ele nunca saberia.

O pensamento entristeceu o senador. Cometera tantos erros na vida...

— Pois não? — Holden perguntou, procurando fazer com que sua voz soasse desafiadora como sempre, a despeito de isso lhe cortar o coração.

— Por que enviou Cecily a Dakota?

O senador prendeu a respiração. Olhou em torno, certo de que o escritório tinha algum sistema de escuta, apesar da varredura sofisticada que havia mandado fazer ali. Por isso, naquele lugar jamais diria uma só palavra comprometedora.

Tate percebeu-lhe o olhar preocupado. Com uma risada breve, retirou um pequeno equipamento eletrônico do bolso, abriu-o, ligou-o e colocou-o sobre a escrivaninha. Então sentou-se e recostou-se na cadeira.

—  Nada como um espião para vigiar outro — comentou. — Pode falar. Essa maquininha distorce as vozes. Se alguém estiver escutando nossa conversa, não conseguirá nada senão uma grande dor de cabeça.

Holden relaxou um pouco.

— Não posso lhe contar muita coisa. É complicado, e há gente inocente envolvida — afirmou.

E o filho era uma dessas pessoas inocentes...

—  Diga-me o que pode dizer.

Tate fitou o interlocutor, achando estranha, nele, aquela hesitação. Mais estranha ainda era a ausência de hostilidade. O senador mudara. Por quê?

Holden recostou-se na poltrona de couro e encarou o filho.

—  Há coisas complicadas acontecendo na reserva. Prometi a alguém que daria uma olhadela nisso. Cecily foi até lá verificar algumas coisas, a meu pedido.

— Esse é um problema que diz respeito à tribo. Por que meteu o nariz onde não foi chamado? — Tate indagou, fechando a expressão e tornando-se ainda mais parecido com o pai. — Você não tem nenhuma influência em Wapiti.

As maçãs do rosto de Holden coraram. Estreitou os olhos escuros e tensionou involuntariamente o queixo.

— Trata-se de um assunto pessoal. De um delicado assunto pessoal. Cecily foi... descobrir algumas coisas para mim. Nada perigoso.

Tate inclinou-se para a frente de imediato, os olhos faiscando de raiva.

— Se queria alguém para espionar, por que não recorreu a mim? Tenho contatos em todos os lugares!

Holden baixou as pálpebras.

— Você não entende. Não posso... envolvê-lo nisso. - Aquilo ficava cada vez mais estranho.

— Por que não?

— Não posso lhe dizer. Vai ter que se contentar com essa informação. Você não pode se meter nisso, nem mesmo de maneira informal.

A carranca de Tate ficou ainda mais sombria.

— Nada disso está fazendo sentido.

— Droga! — Holden afastou da testa uma mecha do cabelo grisalho e correu os dedos pelo rosto. — Tudo bem, vou lhe dizer mais uma coisa: trata-se de uma... ameaça política. — Fez uma pausa antes de prosseguir, escolhendo bem as palavras: — Existe algo em meu passado que ninguém pode saber. Envolve uma mulher inocente, cuja vida pode vir a ser destruída. Algumas pessoas estão ameaçando tornar isso público se eu não fizer... certas coisas.

— Pode contar. Sei ser discreto — disse Tate, perplexo com o que acabara de ouvir.

— Sei disso. — O senador soltou um suspiro carregado de dor. Fitou o filho com preocupação. — Mas não posso colocá-lo nessa história. E não irei fazê-lo. Se você tem algum respeito por mim, honre aquilo que estou lhe pedindo. Quero-o fora disso. Fique o mais longe que puder.

Uma sensação estranha tomou conta de Tate. Sentiu uma súbita simpatia por aquele homem, seu inimigo.

Não entendia por que, mas era quase como se Holden estivesse tentando protegê-lo. E por que motivo ele precisaria de proteção?

— Trabalhei para a CIA — lembrou ao outro. — Sei cuidar de mim.

— Tenho certeza de que sabe. Mas o assunto nada tem a ver com a sobrevivência. — Holden levou mais uma vez as mãos ao rosto. — Nunca estive numa situação como esta. Nunca senti as mãos tão amarradas como agora. Mas mereço. Provoquei essa situação. No entanto, ela não pode pagar por meus erros. Preciso protegê-la, custe o que custar.

Tate jamais imaginara que o senador combativo pudesse ser um homem sensível. Sua voz indicava pânico. E perda.

— Você ainda a ama.

— Claro que sim! — Holden respondeu, levantando a cabeça. — Sempre a amei! Mas fui tão ambicioso... Queria ser poderoso, rico e famoso. Casei-me com o dinheiro e sacrifiquei tudo por meu cargo no Senado. E agora aqui estou, com meus erros me assombrando, esperando o machado cair em minha cabeça. E não tenho a quem culpar por isso, senão a mim mesmo.

Tate o fitou, em silêncio, durante um longo momento.

— Foi por causa desse problema que você me dispensou do serviço que tinha me pedido para fazer?

O senador foi incapaz de encará-lo. Apenas assentiu com um rápido movimento de cabeça.

— Nada disso faz sentido — Tate repetiu.

— E espero que nunca faça — disse Holden em tom solene. Recostou-se na poltrona, apertando os braços do móvel até os dedos ficarem brancos. — Não coloquei Cecily em perigo, garanto. Tenho amigos que estão cuidando dela, lá.

Aquela era uma revelação surpreendente.

— Você tem amigos em Wapiti?

Mais uma vez o senador desviou a vista.

— Minha mãe deu aulas lá quando eu era garoto. Cresci na reserva.

Havia alguma coisa estranha naquela confissão. Tate quase conseguia saber por quê. Quase. Talvez algo que tivesse ouvido, algo que...

Naquele momento, Holden pôs-se em pé, interrompendo-lhe o pensamento.

— Não vá a Dakota do Sul — pediu. — Não interfira. Você pode causar danos irreparáveis, se o fizer. É uma situação... delicada.

Tate se levantou, mas não saiu do lugar.

— A mulher que você ama vive na reserva — afirmou de maneira inesperada.

Holden não respondeu.

— Manteve o fato em segredo porque tinha vergonha dela?

— Nenhum homem, jamais, poderia envergonhar-se dessa mulher — o senador respondeu, a voz suave. — Muito ao contrário. Mas fiz escolhas erradas e a perdi.

Tate estava surpreso com o fato de o inimigo confiar-lhe coisas tão íntimas. Isso também não fazia sentido.

Levou uma das mãos à testa. Percebeu que o anel de prata, com a enorme turquesa, chamou a atenção do senador. Engraçado... Era quase como se ele o tivesse reconhecido, de algum lugar.

— Minha mãe me deu este anel depois que Jack morreu — contou a Holden. — Disse que pertencera a meu pai. Deu-o a ele logo que começaram a sair. Eu o odiava. Mas uso a jóia em homenagem a minha mãe.

Matt Holden se lembrava daquele anel. Leta lhe dera um dia antes de ele se vir obrigado a confessarque não teriam um futuro juntos. Ao dizer-lhe a verdade, o senador devolvera a jóia, que hoje via no dedo do filho. Ah, como o passado doía...

Tate estranhou a reação de Holden. Estreitou os olhos.

— Você conhece minha mãe?

O senador o fitou com uma indiferença estudada.

— Cecily fala muito nela. Chama-se Leta, não é?

— Isso mesmo.

— Conheço muita gente da reserva, mas, na minha idade, já não se ligam mais os nomes às pessoas.

— Você não perdeu tempo fazendo campanha em Wapiti...

— Tem razão. Minha esposa não gostava dos nativos. Tinha vergonha de que as pessoas soubessem que minha mãe dera aulas lá. — Os olhos de Holden indicaram que o mau humor já o acometia. — Caso não conheça uma atitude assim, pode perguntar à sua amiga Audrey por que ela não o acompanha nas viagens à reserva. Ou será que você tem medo da resposta?

Tate aprumou-se e fitou o outro com raiva.

— Vá para o inferno!

Holden não recuou um milímetro.

— Fui comandante de batalhão no Vietnã — falou num falso tom suave. — Das forças especiais, meu caro. Não cometa o erro de achar que eu me absteria de lutar com um jovem.

Tate o encarou com curiosidade. Não se intimidou, mas reconheceu algo na postura daquele homem, em seu olhar. Estranhos, esses momentos de intuição. Aquele era seu pior inimigo, mas merecia respeito.

Não, havia mais do que respeito naquilo, embora ele não conseguisse adivinhar o que era.

— Traga Cecily de volta, Holden. Não quero que ela corra riscos, mesmo que sejam mínimos.

— Cuidarei de Cecily — foi a resposta determinada.

— Ela estará melhor longe de você. - Os olhos de Tate se arregalaram.

— O que quis dizer com isso? — indagou, sentindo-se afrontado.

— Sabe muito bem o que eu quis dizer. Deixe-a em paz. É muito jovem para sacrificar-se por um homem que nem mesmo repara em sua existência.

— A paixão mata, senador.

— Sim, mata. Adeus.

— A adoração também — insistiu Tate, sem se mover. — E por isso que, depois de oito anos, Cecily tem um romance atrás do outro.

As palavras, poderosas, atingiram o alvo. Feriram Holden.

— Você é um tolo — disse o senador. — Acha que ela permite que outro homem a toque, senão você? — Foi até a porta e fez um gesto na direção da escrivaninha.

— Agora, saia. E não esqueça seu brinquedinho eletrônico.

— Espere!

Holden, que já tinha as mãos na maçaneta, deteve-se e se virou.

— Sim?

— Misturar duas culturas, quando uma delas está quase extinta, é uma atitude egoísta — disse Tate depois de um momento de silêncio. — Não tem nada a ver com sentimentos pessoais. E uma questão de necessidade. E de sobrevivência de uma civilização.

O senador largou a maçaneta e se postou diante de Tate.

— Se eu tivesse um filho — começou, quase chocado com a palavra —, eu lhe diria que existem coisas mais importantes do que princípios cheios de orgulho. Eu lhe diria que... que o amor é o sentimento mais raroe precioso da vida, e que todos os seus supostos "substitutos" não passam de emoções vazias. - Tate fitou-o diretamente nos olhos.

— Falar é fácil. E você só sabe falar.

A fisionomia do outro mostrou abatimento.

— É verdade — aceitou, virando-se.

Tate se sentiu culpado. Por quê? Não sabia, mas era exatamente como se sentia.

—  Eu não quis dizer isso — falou, irritado com o próprio remorso. — Não posso evitar o modo como me sinto em relação à cultura do meu povo.

— Se não fosse por esse motivo, como você se sentiria em relação a Cecily?

Tate hesitou.

— Isso não mudaria nada. Ela esteve sob minha responsabilidade. Eu a eduquei. O sentimento que me devota não passa de gratidão, mesclada a uma certa veneração. Não posso tirar vantagem disso. Além do mais, ela está envolvida com Colby.

— E você não suportaria ser o segundo homem da vida dela.

O rosto de Tate endureceu. Seus olhos faiscaram.

— Não vou responder a essa afirmação tola. - Holden balançou a cabeça.

— Está se escondendo atrás de desculpas, não é? Sua postura não tem nada a ver com etnia ou cultura. Nem mesmo com o fato de você ter sido o tutor da moça. Na verdade, o que o consome é o medo.

Os lábios de Tate apertaram-se numa linha fina. Ele não respondeu, e o senador continuou:

— Quando se ama alguém, perde-se o controle. É preciso considerar as necessidades, os desejos e os temores do outro. Suas ações afetam esse outro. Existe uma certa perda de liberdade — disse, avançando umpasso. — O ponto a que quero chegar é que Cecily já preenche esse espaço em sua vida. Você ainda a protege, e não importa que haja outro homem. Porque você não consegue parar de cuidar dela. De suas necessidades, vontades e temores. Tudo o que disse neste escritório, hoje, provam isso. — Buscou o olhar perturbado de Tate. — Não gosta de Colby Lane, e isso nada tem a ver com o fato de ele estar envolvido com Cecily. E porque Colby está tão ligado a uma mulher que não consegue se libertar desse amor, mesmo depois de anos de divórcio. Você também é incapaz de se libertar de Cecily. Mas seu amigo está sempre por perto, e ela o satisfaz. Pode até casar-se com Colby, num ato de desespero. O que você faria numa situação assim? Suas nobres desculpas valeriam alguma coisa, Tate?

Ele se virou, abalado por aquelas palavras, e saiu sem nem mesmo olhar para trás. Só muito mais tarde lhe ocorreu que o senador o chamara pelo primeiro nome.

Matt Holden voltou para detrás da escrivaninha, considerando tudo o que acabara de dizer ao filho. Bem, Cecily não seria prejudicada se Tate acreditasse que fora enviada para a reserva a fim de ficar longe dele. Além disso, desviar o assunto para esse campo fizera com que Tate deixasse de fazer outras perguntas sobre o verdadeiro motivo de ela ter ido a Dakota do Sul.

Ainda bem.

 

O sol de outono brilhava, embora o dia estivesse frio. Colby colocara um paletó sobre a camisa para ser apresentado a Tom Black Knife.

— Você tem tido muitos hóspedes — o chefe da tribo comentou com voz suave, fitando Leta com um sorriso.

— Oh, esses dois são muito próximos — ela respondeu, também sorrindo. — Colby está de folga, entre um trabalho e outro. Por isso decidiu passar algum tempo com Cecily, em um local onde meu filho não possa vê-los. Tate protege demais essa menina. Age como um irmão mais velho.

— Eu me lembro — disse Tom, estudando Colby. — Que tipo de serviço você faz?

— Sou croupier — mentiu ele. — Trabalho no cassino cherokee da Carolina do Norte.

O velho índio pareceu pouco à vontade.

— Compreendo.

— Ouvi dizer que estão tentando montar um cassino nesta reserva — disse Colby. — Pensei em me oferecer para trabalhar aqui. Seria uma sorte estar em um lugar onde Cecily passa grande parte do tempo.

Tom mordeu o lábio inferior. Aproximou-se de Colby e segurou-o pelo braço.

— É que... bem, o cassino não vai contratar gentede fora. Isto é, caso seja construído. Você deve ir. Não fique aqui. Nem você — acrescentou, fitando Cecily. — Podem correr perigo.

O olhar de Colby se estreitou.

—  Que tipo de perigo?

— Não posso dizer mais nada — o orgulhoso senhor respondeu, soltando o braço do outro. — Peço orientação aos espíritos de nossos ancestrais, mas nada tenho recebido. E como se todos houvessem me abandonado.

Colby tomou o índio pelo braço e o levou a um canto mais afastado. Falou-lhe no dialeto lakota, bem baixinho, para que ninguém pudesse ouvir.

Os olhos de Tom Black Knife arregalaram-se, surpresos.

— Você fala minha língua!

—  A sua e a minha, o apache. Prometo não dizer nada a Cecily ou a Tate. Conte-me a verdade.

Black Knife contou que o pessoal ligado ao jogo sabia sobre um assassinato cometido na reserva na época dos levantes sioux, nos anos setenta. Poderiam incriminá-lo e levá-lo à prisão. Havia evidências suficientes para isso. Embora a luta tivesse sido justa, ele estava bêbado e se esquecera dos detalhes.

Os homens tinham algumas provas do crime. Haviam-nas conseguido com o neto de Tom, que vendera a idéia do cassino para os mafiosos a fim de salvar a própria vida. Afinal, tinha uma enorme dívida de jogo para saldar. Contou-lhes sobre o passado do avô e sobre a idéia de abrir um cassino ali. Então enviou-os à reserva.

Eles tomaram o dinheiro do fundo da tribo e fizeram ameaças caso Tom abrisse a boca. Já haviam contratado um agrimensor e uma construtora. E tinham começado a fazer jogadas políticas para que o projeto do cassino fosse aprovado.

— Quem são eles? — Colby quis saber.

— Não posso dizer.

—  Certo. Então me avise quando vierem para cá de novo.

— Também não posso. E você não deve estar aqui quando esses homens chegarem. Estão usando nosso dinheiro para fazer contratações. Quando tentei impedi-los, ameaçaram chamar a polícia federal, o FBI.

Colby sabia o terror que esse tipo de ameaça era capaz de causar no coração de um homem que passara a vida inteira em liberdade. Queria pegar aqueles safados.

— Não diga nada a ninguém — pediu. — Vou vigiar. E farei alguma coisa.

Tom Black Knife pareceu ainda mais abatido.

— Você não é um mafioso, imagino.

— Não, não sou.

— É um bom homem.

— Oh, não. — Colby sorriu. — Mas tenho amigos que são. — Interrompeu-se por um momento, pensativo. — Deve haver algum documento, algum registro sobre o dinheiro da tribo...

O velho índio revelou-se preocupado.

— Sim, há, mas estão trancados em meu escritório. Não posso mostrá-los a você. Eles descobririam.

Provavelmente, pensou Colby ao observar Knife se afastar. Mas não o fariam, ao menos até que fosse tarde demais. Tinha uma boa idéia sobre como pôr as mãos nos documentos. E sem que Tom Black Knife precisasse saber disso.

 

— Diga-me! — Cecily insistiu, balançando Colby, com força, pelos ombros.

— Assim você vai arrancar meu braço artificial! — ele disse, brincalhão.

Ela soltou a prótese e segurou o braço verdadeiro com as duas mãos.

— Preciso saber. Ouça, esse trabalho é meu. Você é apenas meu convidado!

— Prometi não contar nada.

— Prometeu sim, mas no idioma lakota. Diga-me, em inglês, o que prometeu em lakota.

Colby cedeu. Contou-lhe parte do que ouvira, mas fez com que Cecily jurasse nada dizer a Leta.

— Precisamos anotar a placa do carro, quando eles voltarem — ela disse. — Posso fazer isso.

— Sinto muito, querida, mas esses homens usam chapas frias. Não sairiam por aí com as verdadeiras. Do contrário, todos saberiam quem são.

— Droga!

Colby sorriu diante de tanta irritação. Estava prestes a revelar seu método alternativo de ação quando um enorme utilitário esportivo avançou pela estrada de terra até parar em frente a casa de Leta.

Tate Winthrop saltou do veículo, usando jeans, jaqueta de couro e óculos escuros. Os cabelos lisos caíam como uma cortina de seda pelos ombros e pelas costas, até alcançar a cintura. Cecily o fitava, entre fascinada e curiosa. Em todos aqueles anos, vira-o raras vezes com os fios soltos.

—  E parece que só falta a pintura de guerra... — disse Colby, resignado, referindo-se aos desenhos que os lakota traçavam no corpo quando iam às batalhas. Ofereceu ao recém-chegado a face que estava pouco ferida. — Vá em frente. Preciso mesmo de umas cicatrizes desse lado, para combinar com o outro.

Tate tirou os óculos e olhou de um para outro com  ar sério.

— Holden não me contou nada. Quero respostas.

— Entre, então — convidou Cecily. — Já estamos atraindo atenção suficiente.

E se dirigiu à casa vazia.

— Onde está minha mãe? — ele quis saber.

— Na cooperativa de artesanato, ensinando novas técnicas às mulheres. Estão fazendo brincos e vestidos de antílope para o museu exibir.

Tate pôs as mãos nos quadris e a fitou. Colby tossiu, clareando a garganta.

—  Vou até a loja de Red Elk comprar bebidas e mantimentos. Querem alguma coisa especial?

Tate fez que não com um gesto de cabeça.

— Cecily?

— Não, obrigada.

— Certo. Voltarei dentro de uma hora — disse Colby, e saiu.

— Quero respostas — Tate insistiu, fitando-a. Cecily caminhou pela sala, evitando a poltrona quedividira com ele naquela noite ardente. Sentou-se na beirada do sofá.

— Terá de buscá-las com Matt Holden. Sei apenas uma pequena parte do que anda acontecendo por aqui. Estava tentando tirar o resto de Colby quando você chegou e o salvou.

Tate colocou os óculos escuros sobre a mesa do café e acomodou-se perto dela.

— O que Colby está fazendo aqui?

— Pedi-lhe que viesse. Precisava de alguém que não fosse conhecido na reserva para... para fingir que era um jogador, e fazer algumas perguntas. Por que deixou o cabelo solto?

— Não se incomode com meu cabelo. Por que ele precisaria desempenhar o papel de um jogador?

— O senador Holden tinha razão a respeito da máfia do jogo. Eles realmente estão tentando entrar aqui. Tom Black Knife sabe muita coisa sobre isso, mas está apavorado. Não falo o idioma de vocês, mas sei ler rostos. Tom contou a história toda a Colby. Em lakota.

— Era essa a história que você tentava tirar dele, então.

—  Isso mesmo.

Tate a fitou de um modo diferente.

— Você pediu ajuda a ele, não a mim. - Cecily baixou o olhar.

— Sim.

Ele nada disse por um momento. Aproximou-se ainda mais, levou as mãos aos cabelos de Cecily, presos em um coque, e começou a soltá-los.

— Tate! — ela exclamou, surpresa, resistindo ao gesto.

— Não lute comigo.

Então desmanchou o coque e tirou os grampos, deixando que os cabelos loiros caíssem até a cintura fina, emoldurando o rosto. Depois, levou as mãos aos óculos e também os tirou, colocando-os sobre a mesinha.

Levantou-se do sofá, ainda olhando para Cecily. Foi até a porta da frente e a fechou. Em seguida, trancou-a.

— Minha mãe saiu faz muito tempo? — perguntou. Cecily mal conseguia falar. O coração lhe saltavano peito.

—  Alguns minutos. Vai almoçar com o grupo de mulheres.

Tate assentiu, os olhos ainda fixos nos dela.

—  E Colby só voltará daqui a uma hora.

Aproximou-se de Cecily de um modo tão sensualque até uma virgem cega lhe adivinharia as intenções. Ela se ergueu e procurou recuar, mas Tate a agarrou e a manteve junto a si.

— Está com medo? — perguntou, os lábios muito perto.

— Eu... não sei — ela respondeu, apoiando as mãos trêmulas no peito largo.

Tate levantou-lhe o queixo, para que pudesse ver-lhe os olhos.

— Eu nunca a obrigaria a nada — disse em tom solene. — Nunca.

A respiração de Cecily se acalmou, mas apenas um pouco. Ela baixou mais uma vez o olhar. Uma mecha dos cabelos pretos quase cobria o bolso da calça masculina. Cecily o tocou, saboreando a textura.

Tate não se mexeu. A postura dela, sua maneira de se comportar, falavam mais do que as palavras.

— Você está com medo de mim.

Cecily aguardou que as palavras lhe viessem aos lábios.

— Não, claro que não.

As mãos morenas pousaram, meio hesitantes, nos cabelos loiros, acariciando-os. A respiração pesada indicava que ele estava ciente do calor daquele corpo junto ao seu.

— Por que me disse que Colby dormia com você?

— Oh, ouça... — ela começou, com raiva.

Tate a calou colocando um dedo sobre seus lábios.

— Bati nele por causa disso. Colby lhe contou?

— Não foi por causa disso. Não sou importante para você.

Ele riu.

— Não faz idéia de quanto.

—  Como vai Audrey? — Cecily fez questão de perguntar.

— Não sei. Não a tenho visto. E nunca dormi com ela.

— Ah, mas que bela mentira!

— Juro.

— Você não tem saído com mais ninguém.

— Pensei que pudesse ter você — Tate revelou em um tom rouco. — Sonho com isso desde que a beijei. Fiz o percurso até aqui louco de desejo, com ciúme de Colby Lane. Imaginei que, mesmo que ele fosse seu amante, eu ainda poderia tê-la. Sem complicações. Sem... culpa. — Respirou pesadamente e a soltou. Foi até a janela e olhou a rua, lá fora. — Devo ter perdidoa cabeça. Devia ter percebido que aquilo que lhe aconteceu é um obstáculo real que a impede de manter relações mais íntimas... com qualquer homem.

Cecily não se moveu. Seus olhos mantinham-se fixos nos dele.

— Meu padrasto sempre tentou me possuir, mesmo quando mamãe era viva. Depois que ela morreu... — Baixou o olhar. — Aquela não foi a primeira vez que ele procurou me forçar a... àquilo. Acho que tive sorte. Não sei o que haveria feito sem sua ajuda. Você me salvou.

Tate virou-se para contemplá-la, o rosto transtornado. Tremia de raiva. Cecily nunca lhe contara aquelas coisas.

— Eu não lhe disse nada porque tive medo do que faria a meu padrasto — ela continuou, como se lesse seus pensamentos. — Não queria que se metesse em problemas com a lei. De todo modo, aquela experiência me ensinou a desconfiar dos homens. Jamais permiti que algum colega chegasse mais perto. Feri um deles, com os golpes que você me ensinou. Depois disso, ninguém mais quis sair comigo. A psicóloga me avisou de que, mesmo com as sessões de terapia, eu levaria algum tempo para confiar em um homem a ponto de permitir que fizesse amor comigo. As lembranças que tenho são terríveis. Eu devia ter fugido de casa logo, antes que as coisas chegassem a esse ponto.

— Pare.

Cecily o fitou quando ouviu a voz áspera, cheia de ódio.

— Você tinha de saber — disse com firmeza. — Não posso falar a mais ninguém sobre isso, nem mesmo a sua mãe. Quando você me beijou, me senti incendiar. Queria tê-lo mais perto do que conseguiria. Adoro quando seu corpo se excita, e sei que é por minha causa. Mas as coisas, entre nós, nunca passaram disso. — Ajeitou o cabelo, que lhe caía no rosto. — Foi divertido vê-lo acreditar que eu dormira com Colby. Mas sinto muito que o tenha surrado por algo que ele não fez. — Sorriu com timidez. — Não sei se um dia serei capaz de fazer amor. Nem mesmo com você.

Tate levou as mãos aos bolsos.

— Você devia ter-me dito essas coisas antes.

— Isso não mudaria nada.

— Talvez não. Mas falar sobre as feridas ajuda a curá-las.

— Você não fala sobre as suas.

Ele se sentou no sofá, encarou-a e inclinou-se para a frente.

— Não é verdade — respondeu, em tom sério. — A você eu falo, sim. Nunca contei a mais ninguém o modo como meu pai nos tratava. É uma questão pessoal muito profunda. Não a divido com ninguém. Não posso fazê-lo. Só compartilhei com você.

— Sou parte da sua vida — Cecily comentou, ajeitando o cabelo. — Nenhum de nós pode mudar isso. Você me confortou quando mamãe morreu, salvou-me quando meu padrasto me magoou. Mas não posso aceitar que continue cuidando de mim. Tenho vinte e cinco anos. Preciso me libertar de você.

— Não, não precisa. — Tate tomou-lhe os pulsos e colocou-a mais perto. Nunca se mostrara tão solene. — Estou cansado de lutar contra isso. Vamos descobrir quão profundas são as suas cicatrizes. Venha para a cama comigo. Tenho experiência suficiente para tornar as coisas fáceis para você.

Ela o fitou, hesitante.

—  Tate... — Tocou-lhe o rosto. Aquele homem lhe oferecia o paraíso. Tudo o que precisava fazer era enfrentar os próprios demônios. — Isso só vai tornar as coisas piores.

— Você me quer — foi a resposta gentil — E eu a quero. Vamos afugentar nossos fantasmas. Se você conseguir vencer o medo, a partir de agora eu lhe serei fiel. E a procurarei quando estiver feliz, triste, quando o mundo parecer ter caído sobre mim. Deitarei em seus braços e a confortarei quando a vir aborrecida, temerosa. Você virá a mim sempre que sentir necessidade de proteção, sempre que precisar de meu apoio. Cuidarei de você.

— E irá se certificar de que eu jamais engravide. — A expressão masculina se tornou tensa.

— Você sabe como me sinto a respeito. Nunca fiz segredo disso. Não posso me comprometer nesse sentido. Nunca.

Cecily acariciou-lhe os cabelos longos, pensando em como ele era bonito, amado. Seria capaz de viver com apenas um lado daquele homem? Seria capaz de um dia vê-lo partir para se casar com outra? Porque Tate faria exatamente isso, caso jamais descobrisse a verdade sobre o pai. E ela nunca iria contar nada sobre Matt Holden, mesmo que isso lhe custasse a felicidade.

Tate a fitou, intrigado com a fisionomia carregada.

—  Serei cuidadoso — garantiu. — E irei bem devagar. Não vou feri-la, de maneira alguma.

— Colby pode voltar...

Ele balançou a cabeça, em uma negativa.

— Não voltará. — Ergueu-se, arrastando-a consigo. Podia ler a indecisão no semblante feminino. — Não pedirei nada que você não possa dar. Se desejar apenas ficar em meus braços e ser beijada, será precisamente o que faremos.

Cecily vasculhou o fundo dos olhos negros e um suave suspiro escapou de seus lábios.

— Eu daria... qualquer coisa... para deixar você meamar. Não fiz mais nada durante esses oito longos anos do que esperar por você.

A boca morena cobriu as palavras dolorosas, calando-as. E Tate se deliciou com a reação imediata. Mesmo sem conhecer toda a verdade acerca da experiência traumática pela qual Cecily passara, às vezes se perguntava se ela seria capaz de viver por inteiro o amor. Preocupara-se com isso, porque alguns homens são insensíveis com as mulheres. Um homem assim a ferira profundamente.

Ele jamais a machucaria. Faria daquele primeiro contato íntimo uma experiência feliz, mesmo que Cecily não conseguisse doar-se por completo.

Sorriu ao sentir os lábios delicados se abrindo sob os seus. Sim, ela o desejava. Era um primeiro passo.

Cecily percebeu o sorriso e se afastou, os olhos grandes revelando ansiedade.

— Há sempre uma primeira vez. Para todos nós — Tate comentou com gentileza, tomando-lhe o rosto nas mãos e fitando-a com ternura.

Em seguida colou os lábios sobre os dela devagar, de leve, brincalhão. Com o polegar, acariciava os cantos da boca feminina, sentindo que os beijos se tornavam mais sensuais à medida que Cecily relaxava.

Os dedos delicados percorriam-lhe os músculos do peito, sobre a camisa. No silêncio da sala, ela se entregava ao caminho lento que os lábios de Tate traçavam sobre os seus.

As mãos morenas deslizaram para os ombros femininos e depois para as costas, trazendo-a, devagar, para mais perto do corpo forte.

Cecily afastou-se um pouco para fitá-lo e percebeu naquele rosto uma rigidez diferente, faminta. Viu calor nos olhos negros. Sentiu que ele não estavamais brincando. Havia um leve tremor no corpo poderoso quando a cabeça se inclinou uma vez mais, procurando-lhe os lábios.

Descendo para os quadris femininos, as mãos a apertaram contra a pélvis, indicando a pulsação urgente. Isso, pensou Cecily, era sedução pura. Mesmo sem ter vivido aquilo antes, conseguia reconhecer os sinais. Gemeu enquanto sensações novas começavam a espalhar-se por seu corpo. Contraiu-se, encostando-se mais e mais, encorajando as mãos enormes a apertá-la com força crescente.

Ficou na ponta dos pés, a fim de prolongar o contato, estremecendo quando a primeira onda de desejo a dominou.

O beijo se aprofundou. Tate podia sentir as batidas do coração feminino. Ouvia-a suspirar, gemer, soluçar. Levou as mãos para dentro da blusa e traçou lentamente o contorno dos seios antes de acariciar os mamilos.

Cecily gemeu mais uma vez e levou os braços para o pescoço masculino, enlaçando-o, puxando-o, implorando. Tate mordeu-lhe bem de leve o lábio inferior e ergueu a cabeça ligeiramente, para contemplar-lhe os olhos. Ela parecia arder em chamas, completamente entregue.

— Se quiser que eu pare, diga-me agora.

Cecily não conseguia raciocinar. Mal podia respirar. Tudo o que sabia era que queria mais, muito mais.

—  Não pare — sussurrou, o corpo trêmulo. — Eu o amo.

Tate soltou um gemido rouco ao beijá-la novamente. Ergueu-a, como se ela fosse feita do cristal mais precioso, e a carregou para o quarto de hóspedes, parando apenas para fechar a porta e trancá-la.

Cecily, deitada sobre a colcha colorida, vibrava com sensações desconhecidas enquanto Tate, em pé, livrava-se das roupas. Então ficou junto à cama, deixando-se observar.

— Você já deve ter visto homens nus em fotografias, imagino — murmurou ao inclinar-se para tirar-lhe as peças.

— Mas nenhum como você — foi a resposta rouca, acompanhada de um olhar curioso.

Tate sorriu.

— Não vai desistir? Nenhum arrependimento de última hora? — perguntou com suavidade, retirando o que restava do traje que cobria o corpo maravilhoso.

— Não.

Cecily observou-o acariciar-lhe a pele e sorrir, enquanto os olhos negros deliciavam-se ao vê-la, pela primeira vez, sem roupas. Não se sentiu embaraçada. Achou excitante.

Tate se inclinou e pressionou os lábios contra o ventre liso, movendo-se na direção da cama enquanto a boca subia até alcançar um seio. O suave grito de prazer que ouviu fez com que se arrepiasse, pelo prazer da antecipação. Sentiu os dedos longos em seus cabelos, apertando-lhe a cabeça, exigindo-lhe que a sugasse mais e mais.

Ele sorriu mais uma vez. Aquela seria uma longa jornada, mas isso não o preocupava mais. Cecily o queria. Tudo daria certo.

Diminuiu o ritmo das carícias para ensinar-lhe como tocá-lo, como retribuir o prazer que lhe proporcionava. Ela se agarrou a Tate, fascinada com a novidade que o prazer físico representava, envolvida pela sabedoria daquelas mãos experientes, que percorriam seu corpo e transformavam aquela cama em um jardim de delícias.

Por fim, ao sentir que Cecily tremia diante de tanta urgência, ao ver o brilho do prazer reluzir nos olhos claros, posicionou-se sobre ela, para finalmente possuí-la.

— Este é um rito de passagem — sussurrou junto aos lábios femininos, movendo os quadris, buscando um primeiro contato mais íntimo. — Não tenha medo. Se sentir que a estou machucando, pararei no mesmo instante. Certo?

Cecily assentiu. E, ao perceber cada vez mais forte a pressão dos quadris, fitou-o. Suas mãos apertaram os dedos masculinos e o corpo ficou tenso no momento em que ele a penetrou.

— Está com medo? — ele perguntou suavemente.

— Oh, não — Cecily sussurrou, surpresa pelo fato de conseguir falar naquele momento de tanta intimidade.

Estremeceu quando sentiu a primeira investida. Era uma sensação inacreditável. Afastou as coxas para acomodá-lo, notando que o rosto moreno se tornava mais rígido a cada doce invasão.

Quando a ouviu ofegar e apertar-lhe as mãos, Tate sorriu. Movimentou-se de modo sensual e sentiu o corpo feminino erguer-se, na direção do seu.

— Assim? Você gosta assim?

—  Eu... oh! — Cecily gemeu.

Ele a beijou, Seus olhos reluziam quando levantou a cabeça e contemplou a cena que se desenrolava na cama.

Cecily gemeu de novo. Não conseguia vê-lo direito, mas percebia que estava feliz. Sentia-o bem fundo, poderoso, bem-vindo, preenchendo o vazio de sua alma faminta. Arqueou o corpo, de maneira sensual, quando notou que as investidas levavam-na ao êxtase. Agarrou-se a ele, soluçando. Não imaginara que um prazer intenso como aquele pudesse existir.

— Nunca me senti tão feliz em toda a minha vida — Tate revelou baixinho, cerrando os dentes ao sentir que o clímax vinha chegando.

Contemplou-a.   Respirava   áspera,   pesadamente.

Acariciou-lhe a coxa macia enquanto aumentava o ritmo dos movimentos. Ao vê-la fechar os olhos e gritar, tomou-lhe os lábios, sentindo que a glória daquele momento o consumia como fogo. Um consumir lento, suave, profundo, como a lava de um vulcão fluindo, fluindo... Começou a tremer. Percebia que Cecily se movia de maneira frenética, procurando, desesperada, a satisfação total, a plenitude. O nome feminino saiu do fundo de sua garganta enquanto os corpos buscavam alívio.

— Cecily... Cecily!

Ela gritou mais alto e não reconheceu a própria voz. O prazer que sentia era indizível. Não queria parar. Não naquele momento. Ergueu-se e abraçou Tate com força, sussurrando, implorando por mais. Seu corpo parecia em ponto de fusão, queimando, queimando... até chegar à explosão.

— Tate!

O nome soou como um grito de triunfo. Era como se tivesse encontrado, de repente, tudo aquilo que sempre estivera procurando. Ondas de prazer subiam por suas pernas, seu ventre. Ondas que a dominavam, que a agitavam. Fitou-o, em um êxtase cego, vendo-o entre brumas, como em um sonho.

Tate gritou enquanto seu corpo enorme arqueava-se violentamente contra o dela. Um som parecido com um soluço acompanhou-lhe os movimentos involuntários. Ele estremeceu, arrepiou-se. Por um segundo seus olhos se abriram, negros como a noite.

— Nunca... foi assim... intenso — murmurou, tremendo ainda mais.— Oh, nunca... senti algo parecido... com isto!

Cecily o abraçou e o confortou enquanto as ondas de prazer o levavam a soltar gemidos roucos. Sussurrou ao ouvido dele, beijou-lhe o rosto, os olhos. E pensou, num repente, que poderiam ter feito um filho. Tate não lhe perguntara se tomava anticoncepcionais. Nem ela o questionara sobre protegê-la de algum modo.

Imaginou que, se tivesse engravidado, não lhe diria nada. Tate jamais saberia disso. Mas em seguida lembrou-se de que Leta também não contara a Holden sobre o filho de ambos, e sentiu o gosto amargo da culpa.

Ele enfim se acalmara. Acariciava-a, explorava. Ergueu a cabeça e lentamente se afastou, admirando-a. Então viu um leve choque, um embaraço, nos olhos claros, e sorriu. Rolou para o lado e deitou-se de costas, estendendo um braço para enlaçá-la pela cintura.

— Venha cá.

Abraçou-a, possessivo. Estava saciado, e, por incrível que pudesse parecer, não sentia nem um pouco da culpa que, pensava, poderia vir a experimentar.

Cecily o amava. E ele a levara a um belo ato de paixão. Naquele dia soubera o que significava amar fisicamente uma mulher. Ficara chocado, espantado, assustado com o êxtase que Cecily lhe dera. Só esperava que ela estivesse tomando a pílula.

Não lhe perguntara nada a respeito. Não quisera perguntar. Fora irresponsável. Engraçado, pensou. Logo ele, tão cuidadoso nesse aspecto, ter um lapso como aquele. E com uma virgem! Sua virgem. Sua mulher.

Deu um suspiro longo, lento, surpreso com o orgulho que sentia. De todos os homens do mundo, Cecily o escolhera. Considerando seu passado traumático, era surpreendente a magnitude do presente que ela lhe ofertara.

— Culpa. Tormento. Pena. Choque. Que mais? — Cecily indagou, a cabeça sobre o peito largo.

— Juro que estou tentando sentir alguma coisa assim — ele respondeu, rindo. — Mas só consigo ter orgulho. Eu a satisfiz por completo, não foi?

— Mais do que isso — ela sussurrou, acariciando-lhe a pele. — Abrace-me com força.

Tate a envolveu com os dois braços e colocou-a sobre seu corpo.

— Eu a seduzi.

Cecily depositou um beijo suave no pescoço largo.

— É mesmo?

Ele prendeu a respiração ao sentir que aquela carícia ingênua o excitara profundamente. Cecily ergueu a cabeça, assustada.

—  Fiz alguma coisa errada?

Ele ergueu uma sobrancelha e assentiu. Depois beijou-a apaixonadamente antes de sentar-se e sair da cama.

— Aonde você vai? — Cecily indagou, atônita. Tate a fitou com ar divertido.

— Um de nós tem que usar a razão, não acha? Colby logo estará de volta.

— Mas ele acabou de sair...

— Saiu há quase uma hora — ele respondeu, fazendo um gesto para o relógio sobre o criado-mudo.

Cecily se sentou, os olhos arregalados pelo espanto.

— Oh, não!

— Oh, sim. Tomei bastante do seu tempo. Não notou? Ela riu.

— Bem, sim, mas não tinha percebido quanto. Tate a tirou da cama e a beijou com ternura.

— Adorei cada momento. Mas eu devia ter sido mais responsável.

Cecily sabia a que ele se referia. Não usara camisinha, e decerto sabia que ela não tomava anticoncepcionais.

— Amanhã vou até a cidade e compro a "pílula do dia seguinte" — mentiu, para confortá-lo.

Tate surpreendeu-se ao perceber que não gostara da idéia. A sugestão ferira algo de muito profundo. Fez uma careta.

— Pode ser perigoso.

— Não é.

Ele tentou raciocinar. Parecia estar em um sonho. Nunca experimentara algo assim ao lado de uma mulher.

Cecily fechou os olhos e aconchegou-se ao corpo másculo.

— Eu jamais teria feito isso com outra pessoa — sussurrou. — Foi muito mais bonito do que em meus sonhos.

O coração de Tate disparou. Era exatamente assim que se sentia. Levantou-lhe a cabeça, para poder ver-lhe os olhos.

— Beije-me — pediu.

Ela o atendeu. Depois disse, ao ver-lhe o semblante atormentado:

— Você não me obrigou a nada, Tate. Foi uma decisão consciente. Fiz uma escolha. Precisava saber se o que aconteceu no passado havia me destruído como mulher. Descobri que não, e da maneira mais maravilhosa. Não estou envergonhada daquilo que fizemos.

— Nem eu. — Ele se virou, o rosto ainda preocupado. — Mas eu não tinha o direito.

— De ser o primeiro? — Cecily sorriu. — Teria que ser você. Eu nunca amei mais ninguém. Nunca.

— Cecily...

Não estou pedindo declarações de amor eterno, nãome iludo. Não sou desse tipo. — Afastou-se ligeiramente. — Você precisa voltar para casa —  Tate pareceu surpreso.

— Mas eu estou em casa!

— Você sabe a que me referi. Depois que Colby me contar o que descobriu, direi às pessoas certas o que elas precisam saber. — Estendeu o braço e acariciou-o no rosto. Sorriu e tocou-lhe a boca com gentileza. — Você me disse que, se possuíssemos um ao outro, haveríamos de caminhar juntos. Que não haveria outra mulher. Que me procuraria quando necessitasse de conforto, de carinho.

— E assim será — ele respondeu, saboreando-lhe a boca macia. — Mesmo que eu não consiga chegar a esse ponto de novo.

— Que ponto?

— Existem vários níveis de prazer, sabe? Às vezes fazer amor é bom, e em outras ocasiões é maravilhoso. E uma vez na vida é sagrado.

— Não compreendo.

— Você era virgem — Tate sussurrou em tom solene. — Mas nós unimos nossas almas. Eu estava dentro de sua alma assim como você se achava na minha. — Sorriu. — Eu me perguntei se um homem pode morrer de amor. Foi tão bom que chegou a doer.

Cecily também sorriu.

—  Sei disso. Eu o amo. — Viu que Tate desviava a vista. — Desculpe-me. Você não quer ouvir esse tipo de coisa. Mas é um fato da vida. Sou incapaz de evitar. Eu não teria ido para a cama com você se não o amasse.

Ele sabia disso. Estava confuso, com medo da paixão que haviam compartilhado. Fora uma experiência fantástica, que o deixara inseguro pela primeira vez na vida.

Cecily o fitou.

— Ouça, você precisa ir. Existe um bom motivo para não ficar aqui.

— Foi o que Holden disse. Por quê? Sei ser discreto. Se alguma coisa está acontecendo na reserva, tenho o direito de ajudar a descobrir o que é.

— Mas...

— Você sabe como me sinto a respeito do cassino — ele prosseguiu, impedindo-a de continuar. — Como pode estar certa de que Holden não armou essa históriada máfia do jogo apenas para evitar a instalação do cassino aqui?

—  Tenho certeza de que não se trata de uma armação. De todo modo, o segredo não é meu, e não posso contá-lo. Só posso dizer que, se você ficar, vai colocar em risco o futuro de uma pessoa inocente.

Tate franziu a testa e colocou as mãos nos bolsos. Parecia mal tê-la escutado.

— Cecily, quando você voltar para Washington, quero que vá viver comigo — disse com súbita determinação.

O coração dela disparou e se aqueceu, mas a cabeça fez um gesto negativo.

— Não.

— Por que não?

— Porque já dependi financeiramente de você por muito tempo. Agora sou uma mulher independente, que cuida da própria vida. Posso tomar conta de mim mesma.

— Acha que fazer amor comigo apenas uma vez foi suficiente? — ele indagou em uma voz rouca e sensual.

Cecily sorriu.

— Não seria suficiente nem se fizéssemos amor quatro vezes ao dia, o resto de nossas vidas. Mas não pretendo ser sua amante.

— Cecily... — ele começou, hesitante.

— Vá para casa e pare de se sentir culpado por algo que nós dois quisemos fazer. Não vou me intrometer em sua vida. Não lhe peço nada. Jamais pedirei. — Ela se pôs na ponta dos pés e beijou-lhe o queixo.

— E não se preocupe com as conseqüências. Não haverá nenhuma. Certo?

Essas palavras acertaram-no em cheio. Afinal, fora ele que a obrigara a isso, com seu fanatismo sobre não misturar seu sangue lakota com o dos brancos. Sabia que Cecily não conseguiria conviver com isso. Não erado tipo que punha os próprios interesses em primeiro lugar, a despeito dos problemas que isso pudesse causar. Terminou de se vestir enquanto a observava arrumar-se. Calado, refletia, preocupado. Quando entraram na sala de estar, não agüentou:

—  Olhe, não vá fazer nada que a prejudique.

—  O que quer dizer?

—  Refiro-me à pílula do dia seguinte. Não gosto da idéia.

Ela sorriu, feliz em ouvir aquilo. Significava que Tate se preocupava com o que lhe acontecesse. Desejou conhecer melhor os homens. Fazer amor fora uma experiência maravilhosa. Tornara-a completa, inteira, mulher. Mas não gostaria que ele suspeitasse de que não tinha a menor intenção de tomar a tal pílula.

—  Vá para casa — pediu, segurando-lhe as mãos. Abriu a porta e levou-o até o carro. — Tudo ficará bem. Não precisa se preocupar com nada.

— Pare de me empurrar para longe daqui! — ele reclamou, bravo.

— Não estou empurrando. Estou suplicando. Vá.

— Não quero ir.

— Às vezes temos de fazer coisas de que não gostamos, e você sabe disso. Estarei bem. Nada vai ocorrer. Não ovulo nessa época do mês — mentiu.

— Verdade? — ele indagou, com um ar vago de desapontamento.

Cecily assentiu e sorriu.

— Verdade. Agora vá, e faça uma boa viagem. — Tate desistiu de argumentar. Entrou no veículo e fechou a porta.

— Uma vez que você não está ovulando, não precisa correr riscos tomando aquele medicamento, certo?

— Certo. Não tomarei.

— Nem fará alguma outra coisa?

— Não farei nada.

Tate sorriu, guardando na memória a imagem que tinha à frente: Cecily com os cabelos loiros soltos, emoldurando o rosto oval.

— Se precisar de mim, chame. Voltarei na hora. Basta telefonar.

— Sei disso.

Ela se aproximou mais, para ver melhor os olhos negros. Havia um brilho diferente neles. Um brilho possessivo, mas não como antigamente.

Tate estendeu a mão e tocou-lhe a gola, onde se via o broche em forma de caranguejo.

— Gostou? — Ela sorriu.

— Muito. Obrigada. É lindo. Eu... ahn... sinto muito por aquela noite. Não devia ter jogado o creme de caranguejo em você.

— Como você mesma pôde comprovar, o creme não provocou nenhum dano. — Viu-a corar e sorriu. — Bem, estou indo. Venha até aqui e me dê um beijo.

Cecily se aproximou e entregou-se ao beijo, saboreando aqueles lábios tão queridos e a textura dos cabelos lisos.

— Tate... por que deixou os cabelos soltos?

— Então não sabe? Pois pergunte à minha mãe. Ou melhor, pergunte a Colby. Ele soube, no instante em que me viu, por que fiz isso. — Seu olhar ficou sério. — Se ele a tocar, vai ganhar novas cicatrizes. Agora você me pertence.

Dito isso, deu partida no carro, acenou uma última vez e saiu. Cecily o observou ir, o corpo ainda experimentando um doce prazer. Tate teria tempo para pensar, e acabaria se convencendo de que não tirara vantagens dela. Ou talvez, com um poucode sorte, perceberia que seria incapaz de viver sem ela. Afinal, propusera-lhe que fosse morar em sua casa, em Washington...

Cecily se virou com um suspiro. Não queria viver com Tate, a menos que se casassem. Era uma decisão meio antiquada, mas quem disse que ela também não era antiquada?

Tate jamais a pediria em casamento. Por um motivo simples: não pretendia ter filhos com ela.

Ao subir os degraus para a varanda, Cecily lembrou-se, de repente, o que o cabelo solto significava para um lakota. Nos velhos tempos, assim como as pinturas na pele, os fios soltos representavam força e proteção... nas batalhas!

Ela riu ao se dar conta do significado do que Tate fizera. Sem precisa dizer uma única palavra, mostrara a Colby que fora até ali lutar pelo que considerava seu.

E vencera.

 

A despeito de tudo o que acontecera na última hora, Cecily estava calma quando Colby voltou.

— Como conseguiu convencê-lo a ir embora? — ele perguntou, divertido.

— Dei-lhe um... golpe de misericórdia.

— Comigo, nunca funcionaria.

— Eu não tentaria, se fosse você — ela respondeu com um sorriso forçado.

Colby também sorriu.

— Nada posso fazer senão concordar, considerando aquele cabelo solto. Foi bom Tate ter deixado claras as suas intenções.

— Suponho que você tenha ultrapassado os limites.

— É o que ele acha. Mas quem decide sou eu. - Colby riu, mas pôde ver, pelo brilho dos olhos claros, que não haveria ninguém senão Tate no coração de Cecily.

Ele compreendia. Tinha seus próprios fantasmas. Em todo caso, era bom saber que o velho amigo finalmente percebera e aceitara a importância daquela mulher em sua vida.

Ela fez um gesto, indicando o sofá.

— Sente-se. E por favor, conte-me tudo o que Tom lhe disse.

— Prometi a ele que não diria. Você só pode saber o que eu já disse: que o homem está sofrendo uma ameaça concreta. Pode perder tudo o que tem.

Tom, o senador Holden, Leta, Tate... parecia que todos tinham algo a perder. Isso provocava em Cecily uma sensação de fúria e de impotência.

— Odeio chantagistas — comentou, entre os dentes.

— Deve haver alguma coisa que possamos fazer!

— E há — Colby garantiu.

— O quê?

— Uma investigação sigilosa. Amanhã vou lhe dar os nomes que quer. E os locais. Certo?

Ela ficou radiante.

—  Certíssimo!

 

Tate tinha uma reunião com Pierce Hutton agendada para um dia depois de voltar de Dakota do Sul. Sua cabeça ainda girava, e o sentimento de culpa o incomodava.

—  Ei, rapaz, você parece longe daqui — comentou Hutton, um homem de ombros largos e cabelo escuro.

— Sinto muito. Tenho estado... meio distraído, nos últimos tempos.

— Percebi. Ouvi dizer que Cecily está hospedada na casa de sua mãe, procurando novas peças para o museu. Por que não tira uns dias de folga e vai até lá?

— Já fui. Ela praticamente me expulsou.

— Garota incrível, hein? Levou-o até a reserva, hein? — Pierce brincou.

Tate lhe lançou um olhar duro.

—  Cecily está metida em alguma coisa arriscada. Não sei o que é. Ninguém me diz nada.

— Provavelmente estão planejando uma festa-surpresa — comentou o chefe, esticando as longas pernas. — Brianne fez isso em meu aniversário. — Sorriu. — Convidou uma grande estrela da ópera e quatro famosos jogadores de basquete, para não falar de um quarteto de cordas e de um cozinheiro francês.

— Mas que coisa decadente! — zombou Tate.

— Apareça, no próximo. E leve Cecily.

— Combinado.

A idéia de sair com ela deixou-o satisfeito. Raras vezes iam juntos aos lugares. Como Cecily dissera em uma ocasião, Tate pedia comida pelo telefone e ambos assistiam à televisão no apartamento dela, nos velhos tempos.

Na verdade, sem Cecily a vida se tornara vazia. Agora, porém, era pior. Antigamente, não havia lembranças eróticas a atormentá-lo. Sentia muito a falta daquela mulher. Mais do que devia.

Pierce recostou-se na poltrona.

—  Muito bem, será que você pode perder algum tempinho comigo agora? Se puder, vou lhe dizer o que é preciso fazer.

Tate inclinou-se para a frente, com um sorriso de desculpas.

—  Certo. Vamos lá.

 

Quando Tate voltou ao apartamento, encontrou-o destrancado. Franziu a testa, abriu a porta e entrou. Audrey estava na cozinha, observando a comida, no forno.

— Oh, aí está você! — comentou radiante, como se aquele relacionamento superficial já não tivesse terminado.

—  Como entrou aqui? — ele quis saber, furioso. Não gostava nem um pouco daquela invasão de privacidade. Em especial porque já substituíra a fechadura.

— O zelador me deixou entrar, como sempre. Venha. Preparei o jantar.

— Já jantei, obrigado. Pode ir.

Ela pareceu chocada, e seus olhos revelaram um brilho estranho.

— Por quê? Ouça, sou uma mulher culta, talentosa, linda e disposta a fazer, na cama, aquilo que você desejar.

Tate a encarou por um momento, o olhar gelado como nunca.

— Éramos amigos, Audrey. Espero que ainda sejamos. Mas não permito que ninguém invada minha privacidade sem convite. E isso a inclui.

Ela desligou o forno. Segundos depois, lágrimas corriam por suas faces.

—  Oh, querido... — murmurou, os lábios trêmulos tentando um sorriso. — Está bravo com a pequena Audrey?

Ele abriu a porta e manteve-a assim. Jamais tocaria de novo aquela mulher, mesmo que de maneira inocente, depois da experiência que vivera com Cecily.

Ao perceber que a trama falhara, Audrey enxugou as lágrimas falsas e deu de ombros.

— Certo, eu vou, mas não pense que desisti — afirmou enquanto vestia o casaco e se dirigia à saída. Fitou-o e sorriu. — Imagine só quantos homens adorariam estar em seu lugar. Sou muito rica.

"A custa da fortuna do ex-marido", ele pensou.

— Também sou. - Ela riu.

— Oh, mas você é apenas um nativo. E nativos nunca são ricos.

— Este aqui é — ele respondeu, sem dar demonstrações de quanto aquelas palavras o tinham ferido.

— Boa noite, Audrey.

— Você não vai me humilhar assim! — ela explodiu. —  Não serei passada para trás por um homem comseu passado! Não sou uma arqueologazinha qualquer, que você descarta quando tem vontade!

Tate amaldiçoou-se pela própria ingenuidade. O que o levara a interessar-se, um dia, por aquela moça fútil?

— Você jamais chegará aos pés de Cecily. — Audrey sorriu com frieza.

Ele não sabia que Cecily telefonara momentos atrás, e que Audrey atendera a ligação, comentando sobre o vestido de noiva que mandara confeccionar e sobre as habilidades de Tate como amante. Não sabia e jamais viria a saber. O orgulho de Cecily não lhe permitiria contar nada a ele.

Tate lhe pertencia. Não ia perdê-lo.

— Quando recuperar o bom senso, querido, pode me procurar. Sei que no fundo não quer que eu saia de sua vida. Vai voltar para mim. Como todos os outros.

Ele fez um gesto, indicando o corredor. Fechou a porta assim que Audrey saiu. Prometeu a si mesmo que no dia seguinte trocaria mais uma vez a fechadura, além de ter uma conversa muito séria com o zelador. Afinal, Audrey agia como uma psicótica obsessiva, e isso era bastante grave. Impossível prever o que ela poderia vir a fazer.

Tate pensou em ligar para a casa da mãe e falar com Cecily. Mas tinha muito trabalho pela frente. De mais a mais, ainda se sentia pouco à vontade com o que acontecera na reserva. De todo modo, haveria tempo de sobra para pensar no relacionamento de ambos.

 

Ao sentar-se à mesa, para o jantar, Leta percebeu que Cecily estava muito quieta. Colby saíra sem dizer para onde fora, ou se voltaria.

— Alguém me contou que Tate esteve aqui ontem. Você não mencionou esse fato.

— Fiz com que ele fosse embora — respondeu Cecily, procurando tirar o telefonema do pensamento.

— Por que meu filho não podia ficar?

— Porque o senador Holden não quer vê-lo envolvido nisso. Receia que Tate descubra alguma coisa.

—  Isso faz sentido — Leta respondeu, baixando a cabeça com ar tristonho. — Mas eu adoraria tê-lo visto. — Olhou para cima. — Você está muito calada esta noite. Há algo errado.

Ela deu de ombros.

— Mais ou menos. Liguei para Washington, a fim de me certificar se Tate chegara em segurança, e encontrei Audrey no apartamento.

— Ela deve viver com meu filho. Mas espero estar enganada.

— Ao que tudo indica, não está.

Cecily lembrou-se de que Tate negara estar mantendo um relacionamento mais íntimo com alguma mulher. Era mentira. Audrey estava ali, preparando-lhe o jantar, e os dois haviam acabado de sair da cama. Isso a deixava tão mal que ela não conseguia nem pensar em comer.

Por que Tate mentira? Apenas para convencê-la a fazer amor? Sabia que ele estava quase obcecado por possuí-la. Isso o conduzira até a reserva. E o levara a enfrentar Colby.

Mas os homens são terríveis quando desejam uma mulher. Será que Tate fora capaz de raciocinar direito? Dissera sentir-se culpado por aquilo, e provavelmente estava mesmo, mas porque traíra Audrey. Nada poderia feri-la mais.

— O que aquela moça disse? — quis saber Leta.

— Que ele chegara em casa são e salvo, que era um amante maravilhoso e que o vestido de noiva já estava sendo feito. — Cecily olhou para a índia. — Que sorte, a sua. Vai ter uma nora muito bonita.

— Tate não vai se casar com Audrey — Leta afirmou, categórica. — E você sabe por quê.

— Ela pensa o contrário. Eu também, quando ele conhecer a verdade. — Fitou os olhos preocupados da outra. — Sinto muito, mas você deve saber que isso virá à tona, mais cedo ou mais tarde. É inevitável que Tate descubra tudo, mesmo que a história não chegue a ser publicada pela imprensa.

— Não gosto de pensar nisso.

— Eu sei.

— Meu filho irá me odiar.

— Não. Ficará aborrecido, furioso, vai desaparecer por alguns dias. Então aceitará o fato e voltará para casa. Você o conhece bem. Sabe que ele fará isso.

— Sim, eu o conheço. — Observou com atenção o semblante de Cecily. — Deve contar a ele como se sente, querida.

— Elejá sabe. Mas isso não muda nada. Continua afirmando que não quer se casar com uma mulher branca. Acho que Audrey é uma exceção.

— Alguma coisa estranha está acontecendo ali.

— Com certeza. E envolve o chefe de uma tribo.

— Cecily!

Ela sorriu com gentileza.

— Não temos tempo para pensar em meus problemas. Precisamos salvar o senador Holden. — Suspirou, amargurada. — Ele ficará furioso quando souber que lhe contei a verdade. Fez com que eu prometesse nada lhe dizer.

— Atravessaremos essa ponte quando chegarmos a ela. Coma seu pudim. Está muito magra.

Cecily sorriu e levou a colher à boca.

 

Colby não demorou a abrir a tranca da escrivaninha de Tom Black Knife e encontrar o que estava procurando. Fotografou os livros-razão, os recibos e uma carta sem assinatura postada em Nova Jérsei. Também fotografou uma caderneta de endereços e telefones. Depois de colocar tudo em seus devidos lugares, fechou a gaveta e voltou a trancá-la.

No dia seguinte, mostrou para Cecily um rolo de filme.

— Aqui está. Entregue a seu contato em Washington, com minhas bênçãos. Este filme contém tudo o que você precisa saber para encontrar as pessoas certas.

— Você é maravilhoso. Virá comigo?

— Vou esperar Tate se acalmar. Estou pensando em visitar uns primos, no Arizona.

Ela sorriu.

— Divirta-se. E obrigada. Nada teríamos conseguido sem a sua ajuda.

— Foi um prazer. Vejo-a em Washington, então.

— Com certeza.

 

Cecily dera um forte abraço em Leta e já avançava pela estrada de terra que levava à rodovia quando se lembrou da relíquia que prometera levar ao dr. Phillips.

Com um aperto no peito, recordou que não poderia pedir nada que pertencesse à tribo, uma vez que os objetos antigos eram sagrados. Seria como pedir a uma pessoa que desse seu próprio coração. Então, teve uma idéia.

Virou o carro na direção do estabelecimento de Red Elk. Conhecia o velho sioux. Talvez ele pudesse sugerir alguma coisa.

— Preciso de algo incomum — disse-lhe, observando um casal descer de uma caminhonete suja de lama. — Uma relíquia. Estamos preparando uma exposição com artesanato e objetos lakota, mas não posso pedir à tribo que disponha de uma peça sagrada.

O homem sorriu.

— Tenho aquilo de que você precisa. Espere um pouco. Foi até os fundos da loja e voltou com uma bolsa de guardar flechas antiga e manchada, com franjas descoradas e um buraco. Entregou-a com ar solene. O casal que saíra da perua, turistas de meia-idade, contemplava a cena, curioso.

— A bolsa pertenceu a meu avô — disse Red Elk. — Não tenho parentes a quem deixá-la, e minha linhagem sioux não tem nenhuma ligação com a tribo de Tom Black Knife. Eu gostaria de manter esta peça em um local seguro. Gostaria que as pessoas pudessem vê-la. Salvou a vida de meu avô. Ele guardava um cachimbo de pedra, ritual e poderoso, dentro da bolsa. A bala de um soldado estourou a pedra, mas não penetrou no peito de meu avô, que se preparava para a batalha — explicou, dando o objeto a Cecily, que o tocou com reverência.

— Posso abri-la?

O velho índio assentiu.

Cecily levantou a aba, excitada. Dentro havia fragmentos de uma pipa moldada em pedra vermelha, ao lado de pedaços de madeira, alguns com velhos pigmentos.

—  Céus! Isso está além de minhas expectativas! Pode pedir o preço que quiser.

— Eu não a venderia. Isso lhe tiraria o valor. Leve para o museu. E coloque o nome de meu avô, Crow Shield, junto a ela, numa placa, dizendo que ele foi um dos bravos guerreiros que participou da batalha de Greasy Grass.

—  Farei isso, prometo. Há algo que possa lhe dar em troca? Algo que você queira muito? — ela ofereceu, uma vez que era costume, ali, dar um presente no mesmo valor daquele que fora recebido.

—  Sim, há — o velho respondeu com um sorriso nostálgico. — Eu gostaria de ter um cachimbo alemão, como o de um homem que esteve aqui. Tinha uma haste curva e um enorme tambor.

Cecily sabia a que Red Elk se referia.

—  Moro perto de uma tabacaria, em Washington. Já vi um cachimbo assim. Vou mandá-lo a Leta War-woman Winthrop, e ela o entregará a você.

— Conheço Leta. Uma mulher e tanto. Descendente de pessoas corajosas.

Cecily apertou-lhe a mão.

— Pilamaya yelo. — Ele riu.

— Pilamaya ye — corrigiu. — Como homem, posso dizer pilamaya yelo. Você, não. Esqueceu-se de que a mulher fala de um jeito, e o homem, de outro?

— Ainda estou aprendendo o idioma.

— É uma aluna aplicada. Faça uma boa viagem.

— Cuide-se, sim? E grata pelo presente.

Saiu da loja, ouvindo-o conversar com a turista. Foi detida pelo homem, que sorria de modo polido.

— Por favor... Não entendi direito o que o índio disse, mas sei que falou algo a respeito de o avô ter lutado em Greasy Grass. Sou estudioso de história, mas nunca ouvi falar nesse lugar.

Cecily sorriu.

— E eu sou antropóloga, com especialização em arqueologia. Greasy Grass é como os sioux chamam o rio Little Big Horn. "Sioux", na verdade, é uma denominação inadequada, porque nessa região os nativos chamam a si mesmos de "lakota". Há várias linhagens lakota, como os minneconjou, os hunkpapa, os oglala.

— E o que você disse a ele, ao se despedir?

— "Obrigada", na língua nativa. Mas usei o gênero errado. — Sorriu. — Ainda estou aprendendo.

— Você leciona?

— Oh, não. Sou curadora-assistente de um novo museu, em Washington, dedicado aos nativos. Vá nos conhecer, quando for à capital. Temos muito orgulho de nosso acervo.

— Claro que irei! — Observou a bolsa que Cecily carregava com tanto cuidado. — É bom poder ver e tocar um objeto histórico. Quando leio algum manuscrito do século dezesseis, preciso usar luvas e máscara.

— Sei disso. Mas proteger o legado do passado é uma responsabilidade enorme. Se todos pudessem tocar as peças, elas não durariam muito.

Ele sorriu.

— Eu sei.

Cecily desejou-lhes boa viagem, entrou no carro com sua preciosa carga e dirigiu até o aeroporto.

 

No museu, mostrou a peça ao dr. Phillips, que quase não coube em si de contente.

— Nosso primeiro artefato histórico verdadeiro! E que artefato! Talvez possamos trazer Red Elk para falar sobre a bolsa quando abrirmos as portas para o público.

— Grande idéia! Tenho outra. Por que não mandar fazer um objeto similar, para que as pessoas possam tocar?

— Ótimo. Pode providenciar isso?

— Vou telefonar para minha mãe adotiva agora mesmo! Porém, antes de ligar para Leta, ela levou o rolo de filme ao escritório do senador Holden e o entregou sem uma palavra.

Ele sorriu de orelha a orelha.

— Fotos da reserva, hein?

— De um artefato antigo e precioso — ela mentiu. — Uma bolsa de guardar flechas que contém um cachimbo sagrado. Salvou seu dono de uma bala da cavalaria, em Little Big Horn.

— Quero ver a peça ao vivo.

— Venha até o museu. Teremos prazer em lhe mostrar.

Ele levantou o filme, com ar solene. Assentiu e sorriu. Cecily retribuiu o sorriso. Ao menos alguma coisa, naquela viagem, dera certo.

 

Tate telefonou ao museu.

— Leta me disse que você e Colby partiram de repente — comentou com voz suave. — O que descobriram?

— Esta não é uma linha segura — ela respondeu, seca. Magoava-a ouvi-lo falar naquele tom íntimo depois do que Audrey lhe contara.

— Pare de se comportar como um agente secreto — ele brincou.

— Você está começando a pensar como um deles. De novo. Vejo-o no café, no lugar de sempre.

— Qual "lugar de sempre"?

— Aquele ao qual você costuma ir com Audrey — ela respondeu, séria.

— Só a levei lá uma vez e...

— Em dez minutos, certo? — Cecily propôs, desligando em seguida.

Vestiu o blazer e saiu, dizendo à secretária que tinha uma reunião fora do museu e que estaria de volta em uma hora.

Temia ver Tate de novo. Mas, se conseguisse manter a cabeça no lugar, talvez pudesse se manter indiferente. Entretanto, sentia-se traída.

 

Tate estava sentado, impaciente, a uma mesinha próxima à janela, uma xícara de café nas mãos. Observou-a entrar e pedir uma caneca no balcão. Viu-a pagar pela bebida e caminhar para a mesa, sentando-se à sua frente.

Era difícil fingir que nada havia entre ambos. Cecily o fitava e lembrava-se de estar em seus braços, do calor do corpo musculoso, da força da paixão que os dominara. Ele lhe prometera que não haveria mais ninguém depois daquela noite. Mas Audrey continuava freqüentando seu apartamento.

—  Por que marcou este encontro aqui?

Cecily estudou-o por sobre a xícara. O cabelo estava preso. Ele usava um terno de seda cinza e uma camiseta de gola olímpica. Mostrava-se elegante como sempre.

— Pensei que você gostasse de tomar um bom café — ela respondeu por fim. — Aqui, servem um Blue Mountain jamaicano maravilhoso.

— Gosto de café puro. Sem mistura. — Sorveu um gole, intrigado com a mudança na atitude de Cecily. Haviam feito amor, e agora estavam ali, trocando comentários polidos. Ela parecia distante, e esse comportamento o surpreendia. — Quero saber o que está acontecendo.

— Você saberá.

Tate balançou a cabeça.

— Insinuações, boatos, rumores. Ninguém me dirá nada. É como um código de silêncio.

Cecily notou a frustração na voz grave.

— Colby descobriu algumas coisas. Levei a informação para a pessoa apropriada. Agora é sentar e esperar que tenhamos conseguido o suficiente para evitar um escândalo político.

— Envolvendo Holden, certo?

Ela levantou o rosto, os olhos verdes e brilhantes arregalando-se por detrás das lentes.

— Como tomou conhecimento disso?

— Sabe que tipo de ameaças estão fazendo ao senador?

— Oh, claro. E vou contar a você, que é o pior inimigo de Holden — Cecily ironizou.

— Você não vai acreditar, mas ele mesmo me contou.

Ela ficou mais surpresa ainda. Pareceu apreensiva.

— O senador... lhe disse tudo?

"Ela mordeu a isca", pensou Tate, olhando para o café.

— Como foi que você soube?

Cecily depositou a xícara na mesa com cuidado. Observou a toalha de linho branco, evitando encará-lo. Uma valsa vienense enchia o ar com acordes suaves.

— Matt Holden precisou me contar tudo, para que eu pudesse ajudá-lo. — Levantou a cabeça e o fitou. — Você parece calmo demais em relação aos fatos. Não está com raiva de mim?

Ele sorriu.

— Por que deveria estar?

— Pensei que fosse mais traumático do que isso — Cecily comentou, notando que Tate se mostrava espantado. Estaria sendo enganada mais uma vez? — Creio que vai me dizer o que Holden lhe contou...

— Claro. Revelou que vinha sendo chantageado por causa de uma mulher a quem conheceu no passado, e que vive na reserva. Tiveram um romance quando ele já era casado.

Ela assentiu

— Isso mesmo.

— É...

Tate fez uma careta.

— É o quê?

Então ele não sabia de tudo! Claro. Não teria aceitado a verdade sobre sua origem com tanta tranqüilidade.

— Bem, o senador terá de lhe contar o resto. Já lhe disse tudo o que podia. Por que queria me ver?

Tate estudou-lhe o rosto, curioso.

— Por que seria? — indagou, a voz suave como veludo. — Você agora é parte de mim.

Cecily corou. Foi incapaz de fitá-lo. Tate imaginava que ela não sabia sobre Audrey?

— Lembra-se de que prometeu não mentir?

— Não minto mais do que você o faz para mim.

Bem, então ambos eram mentirosos, Cecily refletiu, olhando para o anel de prata e turquesa que ele usava. Leta tinha um semelhante, mas menor.

Tomou alguns goles da bebida quente. Era difícil conversar com Tate. Não conseguia fazer a travessia entre afeto e intimidade com a facilidade que ele demonstrava. Decerto isso se devia à grande diferença entre experiência e ingenuidade.

Terminaram o café em silêncio. Cecily sorriu de maneira educada e ficou em pé.

— Preciso voltar ao trabalho. Estou montando uma nova vitrine e tenho uma série de telefonemas para dar.

Tate também se levantou, sombrio.

— O que há de errado conosco? — perguntou.

Ela o fitou, os olhos tristonhos.

— Nada.

— Fale comigo, droga!

Cecily soltou um leve suspiro.

— Audrey estava em seu apartamento, preparando o jantar — desabafou, incapaz de esconder a dor que a voz traía. — Disse que já mandara confeccionar o vestido de noiva. E que você é um amante fantástico.

— Maldita Audrey!

Ela deu de ombros.

— Preciso ir — repetiu, notando que Tate não desmentira uma só palavra.

Ele, porém, mal conseguia raciocinar. Alcançou-a na calçada, relutante em deixá-la ir antes que as coisas se esclarecessem.

— Você está no caminho errado — Cecily alertou. — O escritório de Pierce Hutton fica do outro lado.

— Mas o seu fica deste lado. Não irei embora antes que você termine de falar.

Ela se virou para Tate, ajeitando o blazer para se proteger do ar frio.

— Vocês voltaram a namorar.

— Não voltamos.

— Liguei para seu apartamento, e Audrey estava lá.

— Porque pediu ao zelador que lhe abrisse a porta. Quando voltei para casa, encontrei-a lá. E a expulsei do apartamento. Só menti para você sobre uma coisa... A respeito de quem pagava suas contas, na faculdade. Quanto ao resto, sempre fui sincero. Mas, se não acredita em mim, não posso fazer nada.

Cecily então se lembrou de que mentira para ele, por omissão, sobre seu pai verdadeiro.

— Audrey é bonita, não? — comentou, sem jeito.

— As serpentes também são. — Viu-a sorrir. — Ainda temos um longo caminho pela frente. Tem certeza de que não quer vir morar comigo?

— Tenho.

— Que tal um jantar, esta noite? Um teatro, talvez?

— Não é uma boa idéia.

— Eu a quero muito!

— Também o quero. Desesperadamente. — Contemplou-o, furiosa, mas com um olhar de tristeza. — O problema é que você não me quer de modo permanente. Mais cedo ou mais tarde vai se cansar de mim e encontrar outra pessoa. Não é assim que as pessoas fazem? Vivem com alguém até que esse alguém as aborreça, e então simplesmente acham outro amante.

— O que pretende fazer? Afastar-se de mim e fingir que nada aconteceu entre nós?

— Adivinhou. É isso mesmo que pretendo fazer — ela respondeu com calma. — Porque não gosto da idéia de conviver com um homem que não compartilha meus sonhos sobre o futuro.

— Você poderia nos dar uma chance.

— Viverei com um homem quando me casar com ele.

— Ora, vamos, estamos às portas do século vinte e um! Quando duas pessoas desejam morar juntas, não precisam necessariamente se casar. Já lhe disse que não tenho planos em relação ao casamento. E qual é a diferença, se você já dormiu comigo?

— Se você não percebe a diferença, jamais poderei explicá-la — ela disse, e lhe deu as costas.

— Cecily!

— Sim?

— Você... foi ao médico?

Na verdade, Tate queria saber se havia algum risco de gravidez. Sim, havia. Só que ela não procuraria médico algum. Se daquele encontro tivesse resultado um filho, iria tê-lo e o amaria muito. Mas a criança não possuiria o genuíno sangue lakota. Na certa era isso que o atemorizava.

— Não precisa se preocupar — mentiu. — Até qualquer dia.

E se foi.

Tate ficou parado, observando-a partir. Nunca se sentira tão sozinho. Não a queria fora de sua vida. Cecily, porém, fazia exigências que ele não seria capaz de cumprir. O casamento estava fora de cogitação, assim como os filhos. Ela sabia disso. De mais a mais, o que havia de errado no fato de dois adultos consentirem em viver juntos? Em especial duas pessoas que conseguiam compartilhar uma paixão tão intensa? Por que Cecily era tão teimosa?

Então Tate se perguntou o que, exatamente, ela e Colby haviam descoberto em Dakota do Sul. Pensou em ligar para a mãe e tentar saber de alguma coisa. Mas, se Colby nada dissera a Cecily, também não contara a Leta.

Sentiu-se frustrado. Mas havia um outro sentimento em seu coração: curiosidade. Cecily sabia alguma coisa sobre o passado de Holden, algo que, ao que tudo indicava, faria com que ele a odiasse. O que seria?

Teria de realizar uma investigação por conta própria. Quanto a seu futuro com Cecily, precisaria esperar. Ambos eram teimosos, mas talvez ela reconsiderasse a decisão quando se sentisse sozinha.

Tate sabia que seu trabalho, sua herança, seu amor à liberdade tornavam o casamento uma perspectiva ruim. Mas adorava sentir Cecily nos braços. Mesmo que a consciência o estivesse matando aos poucos, acusando-o de tê-la seduzido, desejava-a muito. E não desistiria até conseguir convencê-la a ir morar em seu apartamento.

 

Duas semanas depois, Matt Holden foi ver Cecily em seu apartamento.

— Desculpe o incômodo — ele disse assim que entrou na pequena sala e acomodou-se na poltrona. — Acho que há um sistema clandestino de escuta em meu escritório. Fui obrigado a chamar um estranho para atualizar meu esquema de segurança e acho que ficou pior do que estava. Aqui deve ser mais seguro. Ao menos Tate saberia se este apartamento se encontra "grampeado".

—  Só se ele tiver poderes paranormais — ela respondeu, sombria. — Nunca veio aqui.

O senador suspirou.

—  Creio que você já viu o anel que Audrey anda exibindo por aí.

Cecily quase perdeu o ar.

— Anel?

— Uma cópia daquele que Tate usa. — Holden recostou-se na poltrona e cruzou as longas pernas, parecendo irritadíssimo. — Todos na cidade sabem que ela é uma devoradora de homens. Assim que tiver certeza de que possui Tate, vai procurar outro para conquistar. Na verdade, não pretende se casar com ele. — Inclinou-se para a frente. — Afinal, meu filho é um norte-americano nativo!

Cecily sorriu e se encolheu no sofá.

— Ele me garantiu que os dois não estão mais envolvidos. E que Audrey se encontrava em seu apartamento, na última vez em que telefonei para lá, por um motivo inocente. Mas ontem o jornal de fofocas publicou uma foto de ambos, juntos, em uma reunião beneficente.

— Eu sei. Vi essa fotografia.

— Bem, não me leve a mal, mas... por que está aqui?

— Tenho nomes, lugares, datas e fotos dos livros-razão — disse Holden. — Entreguei-os a um membro de minha equipe em quem confiaria minha própria vida. Ele tem um irmão em uma agência de detetives. Vamos precisar de um pouco mais de investigação, mas já tenho tudo de que necessito. 0 fogo está perto da dinamite. Existe o risco de a mídia publicar a história, a despeito dos cuidados que tomei. Quando eu apresentar esses ratos ao público, sei que partirão para a vingança. Não posso evitar o encontro deles com cada repórter deste país.

— E está preocupado a respeito de como isso afetará Tate e Leta.

Holden assentiu.

— Leta saberá lidar com isso, é uma pessoa forte. Mas Tate vai aprender algumas coisas que irão feri-lo de maneira severa. Acho que seria melhor ele ouvir a verdade dos lábios da mãe. — Suspirou, nervoso. — Liguei para Leta ontem à noite e lhe disse que sabia de tudo. Disse também que ela devia contar a história a Tate antes que isso chegasse a seus ouvidos pelo noticiário noturno. Depois de trinta e seis anos de silêncio, Leta disparou a falar. Chamou-me de um nome que não vou repetir, falou o que pensava a meu respeito, sobre minha carreira, e desligou. Telefonei de novo, e ela não atendeu. — Correu os dedos por entre os cabelos. — O que devo fazer?

— Acho que vou convidá-la para ficar uma temporada comigo. Aí vocês poderão conversar de novo.

—  Não há tempo. — Ele espalmou as mãos sobre as coxas e um ar de tormento dominou o rosto marcante. — Vou ter de contar a verdade a Tate.

Ela franziu a testa.

— Sinto muito. — Holden suspirou.

— Eu também sinto. Ele vai odiar a todos nós por algum tempo. Incluindo Leta. Eu já lhe disse isso. Ela ficou furiosa, mas é o que vai acontecer. Iremos passar por um furacão durante algumas semanas, mas depois o sol voltará a brilhar.

Cecily sorriu.

— Acho que, em vez de furacão, teremos de enfrentar um tornado...

O senador se levantou.

— Bem, eu a manterei informada sobre tudo. Sabe, por um momento pensei que poderia escapar dessa maldita sina. Imaginei salvar Tom Black Knife e expulsar os mafiosos da reserva sem que Tate precisasse saber da verdade. Quanta ilusão! Não se pode mentir para sempre, não é mesmo?

— A verdade vai ferir Tate.

— Também vai feri-la, querida — ele acrescentou com gentileza. — Porque você sabia de tudo e não lhe contou. Ele costuma guardar rancores. E não é muito bom em perdoar. Como a mãe.

— Leta não é assim.

— Não para você, claro. A mim, ela odeia — disse Holden, e pareceu que isso o magoava profundamente. — Mas não a culpo. Eu mesmo me odeio pelo que lhe fiz. Tate terá mais um motivo para ser meu inimigo quando conhecer a história toda. Espero poder encontrar as palavras certas, para minimizar o dano. Leta vai sofrer muito quando o filho lhe virar as costas.

— Você vai se sair bem, tenho certeza. E quanto a Tom?

— Contratei os melhores investigadores dos Estados Unidos para tirá-lo dessa encrenca. Eles descobriram outras duas testemunhas, homens que viram o que aconteceu. Um deles está preso, e precisaremos de muito tato para levá-lo a contar o que sabe. Isso foi o melhor que consegui fazer. Já conversei com Tom. Ele compreende. É um bravo.— Com uma história triste nas costas. Holden caminhou até a porta. — Bem, uma vez que ninguém quer fazer o trabalho sujo, vou ver Tate amanhã e lhe contar quem é seu verdadeiro pai.

— Boa sorte.

Ele estremeceu.

— Temo precisar de mais do que isso, querida.

 

Tate bebia uma cerveja. Quase nunca tomava bebidas alcoólicas, mas ultimamente andava triste e pensativo. Não conseguia ir a uma festa sem encontrar Audrey, pronta a atirar-se em seus braços sempre que um fotógrafo passava por perto. Ela negara ter falado com Cecily, mas mentira. Tate gostaria de ir ver Cecily, mas a conhecia o suficiente para saber que não seria recebido. Ela não queria nada com um homem que não pensava em casamento.

Isso o deixava abatido. Por que negar a ambos o direito ao prazer? Por que aquela teimosia em relação ao casamento?

O toque da campainha o tirou desse pensamento. Ele colocou a cerveja sobre a mesa e caminhou pelocarpete, apenas de meias. Usava jeans e camiseta, uma roupa informal demais para receber visitas. Caso fosse Audrey, nem mesmo abriria a porta. Já trocara a fechadura e ameaçara o zelador com a demissão caso permitisse que a moça entrasse de novo em seu apartamento.

Mas o olho-mágico revelou-lhe uma visita inesperada. O senador Matt Holden se encontrava ali, também de jeans e camiseta. Bem, afinal era domingo. Talvez o homem não gostasse de usar terno nos finais de semana.

Abriu a porta com relutância e uma certa hostilidade.

— Errou o caminho? — perguntou. — O prédio do Senado fica a alguns quarteirões daqui.

Holden o estudou em silêncio.

— Preciso conversar com você. Meu escritório está "grampeado". O pessoal que contratei para fazer a segurança do lugar acabou colocando mais microfones do que os que já existiam ali.

— A culpa não é minha. Eu os teria encontrado e retirado.

— Sei disso. — O senador voltou o olhar para a parede, cheia de objetos simbólicos dos sioux. — Bela decoração.

— Uma dessas peças, o escudo, serve para afastar o demônio — Tate explicou com ironia, permitindo que Holden entrasse. — Mas parece que não funcionou, neste caso.

— Não sou um demônio. Simplesmente fui pego em uma armadilha. Não pude evitar. Quero lhe contar tudo antes que a mídia publique.

— E o que isso tem a ver comigo? De mais a mais, você adora publicidade.

Matt Holden foi até a janela em vez de aceitar a cadeira que Tate lhe ofereceu. Colocou as mãos nos bolsos de trás do jeans e admirou a vista da cidade. O palácio do governo destacava-se, a distância.

— Essa não seria uma publicidade benéfica.

— Cecily me disse que ela e Colby descobriram alguma coisa na reserva Wapiti.

Ele assentiu.

— Encontraram provas da malversação dos fundos da tribo e da ligação entre a máfia do jogo e os planos de montar o tal cassino. — Virou-se, fitando-o. — Entrei em contato com o procurador-geral da República e lhe dei os detalhes. Também conversei com Tom Black Knife e com o conselho da tribo. Todos sabem da história, e tenho evidências de que é possível colocar os criminosos para correr. Mas eles vão partir para a retaliação. Tom pode ir para a prisão, a despeito de meus esforços para salvá-lo. Não porque tenha feito algo condenável, mas por causa de algo que aconteceu no passado, cerca de trinta anos atrás.

Tate sentou-se na beirada da escrivaninha e franziu a testa.

— Então foi esse o argumento que os bandidos usaram para obrigá-lo a cooperar!

— Exato. Fizeram chantagem com Tom. E ameaçaram fazer o mesmo comigo. — Olhou fundo nos olhos do filho. — Procurei convencer sua mãe a lhe contar, mas ela desligou o telefone e recusou-se até mesmo a discutir a possibilidade de vir até aqui. Não quer lhe falar sobre isso. Cecily também não. Desse modo, sou o único membro da família que sobrou para fazer o trabalho. Vou lhe dizer algo que lhe devia ter sido dito muitos anos atrás.

— Que a mulher com quem você teve um romance é minha mãe — concluiu Tate.

Holden piscou.

— Isso mesmo. Como soube?

— Porque esse foi o único motivo pelo qual você quis me deixar fora disso. Para proteger minha mãe. Não que eu espere muito de sua parte, dada a maneira como a tratou — acrescentou com frieza. — Nem mesmo você teria sido pior, como marido, do que meu pai. Mas é claro que o casamento não estava nos seus planos, não é mesmo? Uma índia lakota poderia estragar sua... ahn... linhagem.

— Você está tornando tudo muito pior! — Holden explodiu, correndo os dedos pelo cabelo.

—  Pode dizer a minha mãe que não se preocupe. Todos cometem erros. Eu não a culpo. E farei tudo o que puder para protegê-la da mídia.

— Você é que vai precisar de proteção, droga! — Havia um brilho estranho nos olhos do senador. — Essa história não se resume a um romance do passado! Desse romance, nasceu uma criança! Leta estava grávida quando se casou com Jack Winthrop!

Tate não se moveu. Não respirou. Não piscou. Todas as peças desencontradas do quebra-cabeça de sua vida finalmente se juntavam. O motivo pelo qual Jack Winthrop se entregava à bebida. Por que batia em Leta. Por que o odiava.

—  Jack não era meu pai — ele disse em um tom falsamente calmo.

— Não, não era. — Holden cerrou os dentes. Era mais difícil do que imaginara. — Passei a vida toda pensando que Leta se casara com Jack porque o amava. Quando soube que ela tivera um filho, pensei que finalmente houvesse superado os traumas do passado e fosse feliz. Leta nunca me culpou por ter preferido o dinheiro, por colocar minha carreira acima de sua própria felicidade. Deixou-me partir e não me contou que... estava grávida!

Sua voz falhou. Deu as costas ao filho, incapaz de encará-lo, ou de falar, antes de retomar o autocontrole. Assim, não viu Tate empalidecer.

— Que jeito infernal de saber que tenho um filho! — disse, por fim. — Um membro da máfia do jogo foi até meu escritório e ameaçou provocar um escândalo político com minha amante lakota e meu filho bastardo!

Tate permanecia em silêncio. Procurava assimilar o que o senador dizia, mas não conseguia. Em vez disso, analisava-lhe a aparência, o nariz, os olhos pretos iguais aos seus. A semelhança sempre estivera ali, e de alguma maneira ele sabia disso. Mas não de maneira consciente. Não até aquele momento.

— Você não é um lakota — Tate comentou depois de alguns minutos de tensão.

— Minha mãe era francesa. Meu pai, marroquino. Vieram para os Estados Unidos quando eu tinha três anos e naturalizaram-se norte-americanos.

— O que me torna um nativo de sangue impuro — Tate concluiu, a voz cheia de raiva.

Holden virou-se para fitá-lo.

— Oh, é muito pior. Isso o torna filho ilegítimo de um senador de Dakota do Sul. A mídia irá comê-lo vivo quando a verdade vier à tona. Você, Leta, eu, todos os que nos cercam. Incluindo Cecily.

— Você não terá como encarar os outros senadores.

— Para o inferno com isso! Talvez eu perca o mandato, e daí? Nada importaria, desde que sua mãe falasse comigo! Ela bateu o fone antes que eu pudesse dizer uma frase completa! Não quis vir até aqui e me ajudar a contar-lhe a verdade. Não quer saber de mim!

— Que bom. Foi uma pena ela não ter tomado essa decisão há trinta e seis anos.

Os olhos de Holden tornaram-se sombrios.

— Eu a amava. Ainda a amo. Cometi o maior erro de minha vida quando pensei que dinheiro e poder teriam algum valor ao lado de uma maldita socialiteque poderia me ajudar politicamente. Sua mãe sempre foi muito mais importante, para mim, do que minha ex-esposa. Eu não fazia idéia do inferno que teria de enfrentar até ser obrigado a conviver com o pacto demoníaco que fiz para chegar ao Senado! — Virou-se de novo e sentou-se pesadamente no sofá, reparando na cerveja. — Você não devia beber.

Tate ignorou o comentário. Pegou a bebida, tomou-a e quebrou a garrafa.

— Acho melhor você ir embora — avisou. Holden soltou um longo suspiro.

— E para onde iria? Moro em uma casa vazia, com uma banheira de hidromassagem e dois gatos siameses. Até algumas semanas atrás, pensava não ter nenhum familiar vivo.

Tate quase disse que não se considerava da família de Holden, mas calou-se porque queria saber mais sobre seus ancestrais, seus avós. Permaneceu imóvel, contemplando o homem que acabara de destruir sua vida.

Matt Holden o fitou.

— Um de seus tataravôs era berbere. Andou com Rizouli, um revolucionário em Marrocos, por volta da virada do século dezoito para o dezenove. Tenho um retrato dele em meu estúdio. Conheço o palácio de Rizouli, em Asilah, à beira do rio Tânger. É uma cidadezinha muito bonita.

Tate continuou quieto. Colocou as mãos nos bolsos, sentindo que finalmente voltava a raciocinar com clareza.

— Foi por esse motivo que você voltou atrás no contrato que firmara comigo — disse. — Essa atitude poderia ser acusada de nepotismo.

Holden assentiu.

—  Isso mesmo.

—  Também foi por isso que você não quis me ver em Wapiti.

— Acertou de novo.

— E Cecily sabia de tudo desde o começo, não é verdade? — Tate indagou, lembrando-se de alguns fragmentos de conversas que, até então, não faziam sentido.

O senador levantou-se, parecendo bem mais velho. Daquele momento em diante, tinha certeza, as coisas ficariam ainda mais deterioradas. Precisava ir embora, dar a Tate tempo para assimilar a revelação que tanto o chocara. Lembrou-se de como se sentira quando um estranho lhe contara que tinha um filho. Não acreditara, claro. Fora verificar o registro de nascimento de Tate, e tivera certeza da verdade quando vira que o nome completo dele era Tate Renê Winthrop. Renê era o nome do pai que Holden adorava, e Leta sabia disso. Além do mais, o tipo de sangue do avô, muito raro, era o mesmo do neto. Assim, não houve como duvidar do parentesco.

— Eu queria que você conhecesse a verdade antes de ouvi-la pela mídia — disse o senador ao parar diante da porta e encarar o olhar hostil do filho. — Jamais saberá como me senti quando soube da ligação que existe entre nós. Odiei sua mãe por um instante. Afinal, era pai, e nunca soubera disso. Perdi seus primeiros passos, suas primeiras palavras, perdi toda a sua vida! E enquanto permanecia sentado aqui, em minha nuvem dourada, Jack Winthrop transformava em um inferno a vida da família que não tive. A minha família. Quando me odiar, por favor, pense nisso. Eu poderia ter cuidado de você e de Leta se soubesse a verdade.

Dito isso, abriu a porta e saiu.

Tate pegou outra cerveja. Ainda bem que havia um bom estoque na geladeira. Ergueu a garrafa ao ver a própria imagem no espelho.

—  Para todos os bastardos do mundo! — brindou com sarcasmo.

E bebeu o conteúdo de um gole só.

 

Mais tarde, calmo o suficiente para conseguir usar o telefone, ele ligou para a mãe.

— Adivinhe quem acabou de me fazer uma visita? — perguntou com voz raivosa. — Meu pai.

Houve uma longa pausa.

—  Seu pai... foi até aí? — Leta indagou, chocada.

Quando Matt Holden lhe telefonara, dizendo que contaria a verdade a Tate, ela não acreditara. Agora, sentia doer até o fundo da alma por ter deixado seu filho saber que tivera uma vida de ilusões. Sentia-se culpada, do mesmo modo como acontecera quando escutara a voz grave e adorada de Matt, ao telefone, depois de mais de trinta difíceis anos. Ficara tão perturbada que mal conseguira falar, e no final batera o fone no gancho.

—  Por que você não me contou? — Tate exigiu. — Por quê?

Outra pausa.

— Não posso dizer como me arrependo, mas agora não é o momento de discutir isso. Falaremos no assunto um dia, quando você estiver pronto para ouvir. Telefone quando sair do estado de choque. Por favor, perdoe-me. Eu o amo muito!

E desligou.

Tate discou para casa de novo. Mas Leta não atendeu. Furioso, ele arrancou o fio que prendia o aparelho à parede antes de arremessá-lo ao chão. Perguntou-se, sombrio, qual teria sido a reação do pai quando Leta o deixara falando sozinho.

Seu pai. Pai!

Colocou a cabeça entre as mãos, lutando contra a dor que sentia. Até aquele dia, julgava-se único, membro de uma raça em extinção, de uma tribo em extinção,parte de uma sociedade antiga. Agora, não passava de alguém como milhares, um homem de sangue impuro. Não era único, nem mesmo lakota. Era marroquino, berbere. Filho ilegítimo de um senador. E esse segredo terrível lhe fora revelado porque uma renegada máfia do jogo tentara montar um cassino nas terras sioux! Não fosse isso, passaria o resto da vida sem saber a verdade.

Lembrou-se do temperamento de Jack Winthrop, dos ataques, da bebida, das atitudes furiosas. Não era à toa que o homem o odiava. Isso agora fazia sentido. Mas não importava. Era tarde demais.

Culpa de Leta. Sua mãe. Não que ela também não houvesse sofrido.

Tate inclinou a cabeça e descansou-a na parede. Não queria ter clareza. Não queria pensar naquilo que acabara de saber. Não naquele momento. Era difícil demais. Precisava de um bom sono.

Foi para a cama e dormiu pesadamente, graças à meia dúzia de cervejas que tomara. Como não estava acostumado a beber, o efeito foi rápido. Felizmente.

Na manhã seguinte, acordou com dor de cabeça e com um mau humor terrível. Cecily mentira. Pela primeira vez na vida.

Bem, mas isso não ficaria assim. Iria até o museu e lhe diria algumas verdades!

 

Era meio-dia quando Cecily ergueu a cabeça, assustada com o barulho da porta do escritório, que foi aberta e fechada com um estrondo. Sua secretária estava em horário de almoço. O museu se achava deserto. E um homem de olhos negros furiosos se postara diante da escrivaninha, como se planejasse pegá-la pelo pescoço.

Ela soube o que acontecera mesmo antes de Leta, chorosa, ter lhe telefonado na noite anterior, contandoas últimas notícias. Felizmente a persuadira a ir a Washington e a ficar em seu apartamento antes que a mídia fizesse um escândalo e destruísse sua privacidade em Wapiti.

— Acaso você imaginava que eu não fosse descobrir tudo? — Tate indagou em um tom amargo.

Cecily não tinha certeza sobre como lidar com isso. Ele parecia completamente fora de controle.

— Descobrir tudo o quê? — foi a única frase que conseguiu pronunciar.

— Matt Holden finalmente me contou quem é meu pai — Tate continuou, com um sorriso desagradável.

A voz calma contrastava com o olhar nublado. Impossível fingir inocência. Cecily respirou fundo.

—  Estávamos tentando proteger você — começou. —  Pensávamos que, se conseguíssemos provas suficientes contra os mafiosos, eles não revelariam nada à imprensa. Mas não contávamos com o fator vingança. Esses criminosos armaram uma cilada a Matt Holden porque ele é contrário à idéia do cassino. Então Matt decidiu que seria melhor lhe dizer a verdade. Só ele poderia fazer isso. Sua mãe não quis se intrometer.

— Minha mãe não tinha o direito de manter isso em segredo. Nem ele. Nem você! — Apontou para ela.— Você não tinha esse direito!

— Dei minha palavraao senador, e à sua mãe, de que não diria nada — Cecily falou com calma, levantando-se. Deu a volta na escrivaninha, com passos lentos, aproximando-se devagar, com cautela, como se diante de um animal selvagem. O que não estava muito longe da verdade. Tate vibrava de frustração, choque, dor e fúria. — Eu sabia que seria impossível manter segredo, mas eles quiseram tentar.

— Durante toda a minha vida, eu soube quem era— ele respondeu. — A que lugar pertencia. Qual devia ser meu futuro. Mas, em apenas um dia, fui colocado à deriva. De repente, tornei-me um estrangeiro diante de meu próprio povo. Meus ancestrais são uma mentira. Minha vida... é uma mentira!

— Não exagere — Cecily respondeu com gentileza. — Sua mãe não ousou contar a verdade a seu pai, cuja esposa odiava os nativos. Ela poderia ter magoado Leta e você. Saber de sua existência poderia ter custado a Holden a carreira.

—  Jack Winthrop conhecia a verdade — ele disse, áspero. — Era por isso que nos odiava tanto. Odiava minha mãe por amar outro homem. Odiava a mim por não ser seu filho. Fez com que pagássemos por isso cada dia de nossas vidas, e até ontem eu não sabia por quê!

Ela franziu a testa, sentindo a dor de Tate. Procurou tocá-lo, mas ele recuou um passo.

— Não — alertou suavemente, nos olhos o brilho de emoções conflitantes. — Os céus me ajudem, se você me tocar! Vou possuí-la aqui mesmo, no carpete!

Fez com que aquilo soasse como uma ameaça quando, na verdade, era disso que precisava. Talvez por esse motivo tivesse ido até ali. Necessitava de conforto e fora até Cecily por esse motivo, disfarçando o desejo sob a capa do mau humor.

Quanto a ela, não sentia medo. Amava-o demais para se aborrecer com a raiva dos olhos negros ou com a linha estreita que a boca morena formava. Tate tinha todos os motivos do mundo para estar furioso, ferido. E não precisava das palavras dela. Só Cecily poderia lhe dar aquilo de que ele realmente necessitava. Seria a última vez que Tate a tocaria, fora de controle e sem pensar com clareza.

Ela foi até a porta e a trancou. Depois, voltou, colocou-se na ponta dos pés e, sem uma única palavra, colou os lábios nos dele.

Tate tremeu antes de abraçá-la, erguê-la, apertá-la contra o corpo. A boca a devorava, faminta. Havia um quê de feroz naquela atitude, mas era tão bom ser desejada daquele modo...

Cecily suspirou. Parecia que não o beijava havia uma eternidade.

Para Tate também era assim. Perdia-se naquela mulher, que o seduzia deliberadamente. No fundo, não queria agir daquele modo. Não era direito. Mas a desejava com loucura, precisava dela, ardia por tê-la mais uma vez. Fora até ali em busca de conforto, mesmo que não quisesse admitir isso.

Todas aquelas longas semanas de sofrimento pareceram desaparecer como num passe de mágica. Era como se estivesse diante de um banquete, depois de muito tempo de escassez. E, de algum modo, a raiva transformara-se em uma paixão ardente, intensa, que ele nunca sentira por nenhuma outra mulher.

Claro que simples beijos não foram suficientes. Esquecido do tempo, do lugar, do inundo, Tate a deitou no chão. Não havia pressa nem obstáculos. As mãos buscavam a pele delicada, enchendo-a de calor.

Cecily mantinha os olhos fechados, sentindo nas costas a aspereza do tapete persa. Sua boca correspondia aos beijos profundos, sedentos, e sorria diante da ferocidade dos lábios masculinos. Era febril, selvagem e perigoso fazer amor ali, no escritório, no museu, mesmo com a porta trancada. Mas o perigo tornava a cena ainda mais apaixonante.

Cecily o abraçou, vagamente consciente de que ambos estavam parcialmente vestidos. Mas não importava. Nada importava, senão... o prazer!

Tate cobriu-lhe a boca rapidamente ao perceber, surpreso, o soluço de alegria que precedeu o violento tremor do corpo feminino. Manteve-a segura enquanto o ritmo se tornava mais exigente, mais feroz. Gemeu junto aos lábios femininos quando a fogueira cresceu, brilhou e de repente explodiu em milhares de partículas de prazer, que se espalharam por seu corpo como fogos de artifício.

Tate entregou-se aos espasmos que o sacudiam e sentiu que Cecily o fitava. Gemeu mais uma vez, pela felicidade de saber que ela o observava.

Quando conseguiu respirar de novo, ergueu o rosto e a contemplou, nos olhos negros um ar estranho e turbulento.

—  Você me viu chegar ao clímax — comentou com frieza.

— Sim, vi. — Cecily abriu-lhe os botões da camisa e deslizou as mãos pelos músculos fortes. Podia senti-lo em seu corpo, e se movia de maneira deliberada, ciente de que esses movimentos renovariam a paixão. Abriu os lábios, gemendo. — Dessa vez... você... vai me observar? — sussurrou.

Os olhos negros estavam tão hostis quanto a fisionomia quando ele sentiu, furioso, o desejo voltar. Estremeceu, recomeçando a dança frenética.

— Assim... Isso mesmo — ela falou baixinho, sensualmente. — Faça de novo. Faça pela última vez...

— Maldita Cecily! — ele exclamou, excitado, trêmulo com a nova urgência, movendo-se sobre o corpo feminino com mais rapidez.

Parecia impossível. Inacreditável. Nunca sentira tanta excitação, tanto desejo, tanto fogo.

Ergueu a cabeça, a fim de vê-la atingir o clímax. Ela riu quando sentiu o prazer chegar, fitando-o com amor. E, quando ergueu o corpo, com um grito agudo,os olhos verdes se dilataram e se tornaram mais escuros. Cecily agarrou-se a ele, soluçando. Não mostrava nenhuma inibição. Era como se o passado traumático jamais tivesse existido.

No fundo do coração, Tate sabia que ela nunca reagiria a outro homem daquele modo apaixonado, e isso o perturbava. O rosto transtornado de prazer, os gemidos e os soluços lançavam-no para a beira de um precipício. Ele mergulhou fundo, deixando-se arrastar pela força daquele sentimento, daquelas sensações incontroláveis. Então ouviu a própria voz, em um grito rouco, celebrando o êxtase. E finalmente deixou-se cair, exausto, sobre o corpo feminino.

—  Por que faz isso? — indagou quando se sentiu capaz de falar. — Por que me tira todo o equilíbrio, todo o bom senso?

—  Você sabe por quê — Cecily respondeu suavemente, ajeitando uma mecha de cabelo preto que caíra sobre a testa dele. — Porque precisa de mim, querido.

Tate levantou a cabeça para fitá-la.

— Pois vim aqui disposto a puni-la, sabe? — Cecily ergueu as sobrancelhas e sorriu.

—  É mesmo? Não percebi. Faça de novo, e então prometo prestar atenção ao meu castigo.

Ela sempre conseguia transtorná-lo. Mas o momento era solene demais para brincadeiras. Tate ainda sofria com a revelação sobre sua origem, e com o papel que Cecily desempenhara na história. Além disso, odiava deixá-la saber como ficava fragilizado sem ela.

Fora até ali para lhe dizer que não queria, em sua vida, uma mulher capaz de mentir. Que ilusão... Sabia que não poderia tê-la por perto, depois de semanas de abstinência, e raciocinar direito. Ainda ansiava por Cecily. Mesmo depois de fazer amor com tanta fúria.

O orgulho o corroeu. Afastou-se, sem ousar fitá-la, e se levantou. Não a encarou nem mesmo enquanto ajeitava as roupas, meio envergonhado e cheio de culpa.

Cecily se ergueu do chão com graça, arrumando a saia e a blusa. Fora um interlúdio breve e excitante. Ainda bem que Tate não sabia que ela estava grávida. Seria a gota que faria o copo transbordar. Ele já estava chocado o bastante sem isso.

— Não posso acreditar que agi assim — Tate murmurou, quase para si mesmo. Virou-se, furioso. — Não posso acreditar que você permitiu que eu fizesse isso! Não tem um pingo de orgulho? De vergonha?

Ela se encostou na escrivaninha com um suspiro cansado, mas satisfeito.

— Acho que não. Ambos sabemos que eu seria capaz de rastejar sobre vidro quebrado, se esse fosse seu desejo — respondeu com simplicidade. — Por que está tão chocado com o que aconteceu aqui?

—  Você não quis ir morar comigo porque o casamento não estava nos meus planos. Mas, agora que sabe que parte de meu sangue é branco, acha que aceitarei uma esposa branca. Por isso me seduziu. Para me mostrar o que eu poderia ter caso lhe desse um anel de noivado. Não é assim?

Ela balançou a cabeça, em negativa. A menção ao anel doeu fundo. Lembrou-se de que Holden lhe dissera que Audrey usava um, cópia daquele que Tate possuía. Recordou-se da foto do jornal sensacionalista, que mostrava os dois juntos. Não era tão difícil adivinhar que ele provavelmente se casaria com a moça, apesar de tudo. E não havia nada que pudesse fazer a esse respeito, muito embora Tate não tivesse agido como um homem satisfeito sexualmente.

— Você não está em condições de pensar com clareza — respondeu-lhe. — Matt disse que se sentiria traído e que nos odiaria por algum tempo. Eu compreendo. Está tudo bem.

—  Eu gostaria que vocês três parassem de tentar adivinhar o que vou ou não fazer. Minha mãe desligou o telefone em minha cara. Fez o mesmo com Holden. Acredito que ainda não tenha conversado com ela.

— Engano seu. Eu conversei. Leta está preocupada, sentindo-se miserável. Convidei-a a passar uma temporada comigo, antes que a mídia se apodere da história. Vou pegá-la no aeroporto amanhã.

— Não quero ver minha mãe, nem a Holden. Também não pretendo vê-la, Cecily. Nunca mais.

—  Está bem. — Ela ergueu as sobrancelhas. — O que virá depois? Você vai soltar o cabelo? Usar a pintura de guerra?

Tate ignorou a provocação. Não lhe daria esse gostinho. Ainda se sentia furioso em relação a ela.

— Por que não me contou tudo?

— Porque o segredo não era meu — foi a resposta solene. — Sinto muito que você tenha sido obrigado a saber da verdade desse jeito. Mas poderia ser pior, caso lesse a notícia nos jornais. Era esse o plano, caso seu pai não aceitasse as exigências dos mafiosos. Foi por esse motivo que viajei para Wapiti. E foi por isso que Colby seguiu para lá.

— Ah, você sente muito, hein? Acha que uma desculpa vai resolver as coisas?

Os olhos verdes, calmos, revelavam uma tristeza profunda.

— Não, não acho. Na maior parte do tempo, não fazemos aquilo que gostaríamos de fazer. — Deteve-se por um momento e acrescentou, de maneira inesperada: — No fundo, você sabe que não foi o motivo racialque o levou a negar-se a se casar comigo. Foi porque pretendeu continuar auto-suficiente. Não quer depender das pessoas, porque elas o magoaram muitas vezes. O trabalho que fez para o governo transformou-o em um homem cínico. Distanciou-o de seu povo. Agora, acha que sua própria mãe o traiu com seu pior inimigo. E, claro, me acusa. Também o feri.

Tate não respondeu. Continuou a encará-la.

— Vou amá-lo o resto de minha vida. Mas não posso viver sozinha, trabalhar sozinha, morrer sozinha. Não vou penar por sua causa até meus cabelos se tornarem brancos. Você gosta da solidão. Eu, não. Quero um lar. Filhos. E você não pode me dar isso. Levei muito tempo para perceber por que saía com Audrey, mas agora entendo. É porque ela não faz nenhuma incursão em sua privacidade. Pode se casar com você, mas não pretenderá uma proximidade maior daquela que poderá ter em sua cama. Não é um relacionamento digno do nome, claro, mas quem disse que você quer um? Não tem nada a oferecer. Apenas toma.

As palavras penetraram em Tate com a força de um machado. Ele se virou. Levou a mão à maçaneta e então voltou-se para fitá-la.

— Não serei capaz de esquecer que fui traído por você. Tampouco serei capaz de perdoar.

— Eu sei — Cecily respondeu com uma calma deliberada. Por dentro, queimava. — Você não perdoa ninguém. Era inevitável que encontrasse um motivo para não me perdoar também. É uma boa desculpa para me tirar de sua vida, antes que você sinta que não pode viver sem mim.

—  Não se gabe tanto — ele disse com um sorriso irônico. — Você não foi a primeira mulher de minha vida. E não será a última.

—  Sei disso também — Cecily falou, forçando um sorriso enquanto assimilava o golpe emocional que Tate lhe dera.

Ele ficou irritado ao notar que não conseguia magoá-la. Sabia que agia de maneira errada, mas não podia evitar. Perdera tudo o que valorizava. Cecily o traíra. Mentira. Nada o ferira tanto, nem mesmo o silêncio que Leta mantivera por trinta e seis anos.

Os olhos negros procuraram os dela pela última vez.

— Adeus, Cecily.

Ela continuou sorrindo.

— Adeus, Tate.

Ele saiu e bateu a porta. O sorriso artificial desapareceu do rosto delicado, deixando Cecily sem energia nem emoções. Ela se sentou atrás da escrivaninha e prendeu a respiração. Sua saia estava tão apertada que era impossível fechá-la. Abriu o zíper e respirou um pouco de ar fresco. Levou uma das mãos ao ventre e sorriu com ternura.

Ali estava outro segredo de que Tate não sabia. Esse, porém, era seu segredo. Precioso. Jamais o compartilharia. Mesmo que ele nunca a perdoasse, manteria a seu lado uma pequena parte do homem que amava. Para o resto da vida.

— Está tudo certo — disse ao filho que esperava. — Eu o quero. Amo você. Seremos felizes, viu? Só nós dois.

 

Cecily comprou duas saias novas e alguns suéteres de tamanho grande. Não podia permitir que sua mãe adotiva suspeitasse do motivo de sua cintura larga. Esse era um segredo que não ousava compartilhar.

Ao chegar, Leta se mostrava arrasada.

— Meu filho me odeia — disse com tristeza quando, já no apartamento, ajudava a preparar um jantar leve. — Estava furioso quando me telefonou.

—  Ele odeia todos nós — Cecily lembrou com um sorriso terno. — Mas vai superar isso.

— Fiz tudo errado em minha vida — foi a resposta sombria.

— Sabe por que existem borrachas nas extremidades dos lápis? Porque ninguém é perfeito. Todo mundo erra.

— Sim, mas a maioria não estraga a própria família, como eu fiz.

Não havia o que argumentar quanto a esse ponto. Assim, Cecily limitou-se a fatiar cebolas, tomates e rabanetes sobre as folhas de alface, rezando para que o mal-estar que vinha sentindo nos últimos tempos não aparecesse em uma hora inapropriada. As pessoas que chamavam aquilo de "enjôo matinal" enganavam-se. Para ela, os enjôos ocorriam com maior freqüência à noite.

Além disso, andava exausta. Comprara um teste de gravidez para fazer em casa e procurava reunir coragem para usá-lo. Queria tanto um filho...

—  Cecily! — Leta exclamou de repente, fitando-a com espanto. — Querida, você cortou seu lindo cabelo!

Ela já se perguntara quando a índia notaria a mudança. Na verdade, livrara-se dos longos cachos um dia depois de Tate sair de sua vida. Era como um recomeço. O novo corte lhe caía muito bem. Dava ao rosto oval um ar de maturidade.

Além disso, a maquilagem suave que aprendera a fazer ressaltava-lhe os traços mais marcantes. Como última concessão, decidira usar lentes de contato. Eram modernas, e evitavam problemas nos olhos. Estava com uma aparência tão diferente que Leta devia se achar mesmo devastada para não ter notado antes.

— Digamos que fiz algumas pequenas melhorias — respondeu com um sorriso. Tirou o fetuccine com molho branco e os enroladinhos de maçã do forno. — Oh, sinto muito, mas esqueci de mencionar que teríamos um convidado para o jantar. Você se importa?

— Claro que não. Gosto de Colby.

Esse, ao menos, era um assunto agradável, e salvaria a vida de Cecily por algum tempo. Ela admirou Leta, com sua saia estampada de folhas marrons e o suéter cor de creme. O cabelo estava preso num coque no alto da cabeça. Não demonstrava a idade que tinha. Continuava belíssima, com as maçãs do rosto altas e os olhos escuros cheios de vida, até mesmo quando a tristeza a dominava.

—  Acha que estou bem? — quis saber Leta, preocupada, ao notar o detalhado exame da filha adotiva.

— Maravilhosa. — A campainha soou. Cecily virou-se para o forno de propósito. — Você poderia atender? — indagou com ar inocente. — Não posso abandonar a comida agora.

—  Claro.

Leta dirigiu-se até a porta e a abriu, com um sorriso de boas-vindas a Colby Lane. Mas deparou com os olhos negros de um homem que não via há trinta e seis longos anos.

Matt Holden a fitou atentamente, procurando naquele rosto a imagem da jovem doce e bela que sempre o olhava com adoração. Seu coração batia com uma intensidade desconhecida.

— Cecily disse que... bem... pensei que fosse Colby — ela falou, sem jeito.

—  Estranho. Porque ela me telefonou e perguntou se eu estava livre esta noite. — Os ombros largos moveram-se e um sorriso suave apareceu em seus lábios. — Como estou livre todas as noites...

—  É mesmo? Pois essa não parece a vida que um viúvo playboy gosta de levar — foi a resposta cáustica.

— Minha esposa foi uma espécie de vampiro, sabe? Sugou-me a vida e a esperança. O fato de ela ser alcoólatra me deixava arrasado. Sua morte foi, na verdade, um alívio para nós dois — desabafou o senador, olhando para o vestíbulo. — Vou morrer de frio se ficar aqui fora mais tempo. Além disso, estou com fome. O hambúrguer com fritas da lanchonete da esquina não bastariam para aplacá-la.

—  Pois ouvi dizer que essa é a comida favorita do presidente — disse Cecily, brincando. — Por favor, entre, senador Holden.

— Antes você me chamava de Matt. Será que está sendo formal para conseguir de mim uma enorme doação para o museu?

Ela deu de ombros.

— Quem sabe? Seria um bom motivo,

Holden olhou para Leta, que se mostrava pouco à vontade.

—  Bem, ao menos agora você não pode desligar o telefone em minha cara. Ficará satisfeita ao saber que nosso filho não quer falar comigo. Nem com você, creio. — Fitou Cecily. — Com você também não, suponho.

— Tate me disse adeus depois de me chamar de tola, por pensar que ele se casaria comigo agora que sabe que não é um lakota puro — ela contou, escondendo a angústia que essa lembrança ainda lhe causava.

— Vou dar uma surra nesse menino! — Matt afirmou, sério.

— Não se esqueça de que ele pertenceu às forças especiais do Exército — Leta comentou, numa pálida tentativa de fazer humor. — Tate já nasceu de uniforme. Acho até que o usava no dia em que foi concebido.

— Quanto a você, vestia um modelo de algodão branco — Matt lembrou. — E estava com os cabelos soltos. E por falar em cabelos... — Fez uma pausa, olhando para Cecily. — O que foi que você fez com o seu?

— Como Tate gosta de cabelo comprido, decidi cortá-lo — ela respondeu, venenosa. — Mal posso esperar para que ele me veja assim. Até já pensei em enviar-lhe uma foto!

— Ei, espero morrer seu amigo! — comentou Matt, rindo.

— Assim será. E agora, que tal irmos para a sala de jantar? Já servi a mesa.

O senador revelava-se meio desajeitado. Leta também. Mas, depois de alguns minutos, a comida e o bom vinho os ajudaram a perder a timidez.

— Você não está bebendo? — Matt indagou, virando-se para Cecily.

— Meu estômago se irrita com certa facilidade, sabe? Evito tomar coisas ácidas quando isso acontece, sejam elas vinho ou frutas cítricas.

— Certo. — Ele então voltou os olhos suaves para Leta. — Lembra-se das laranjas que Red Elk costumava vender? Foram as mais doces que experimentei.

— Eu me lembro.

O senador suspirou, triste.

— Sinto muito por tantos anos perdidos. Sinto muito por ter enganado você... e a mim. Eu tinha acabado de voltar da guerra, cheio de medalhas e aspirações, e minha esposa... bem, tinha um pai rico — disse com uma ponta de cinismo. — Casei-me em uma pequena cerimônia e comecei a planejar minha campanha para o Senado. Então vi você de novo e percebi como fora idiota. Quis lhe dizer que estava casado, mas fiquei quieto até que fosse tarde demais. Como agora.

— Tudo isso é passado — respondeu Leta, também entristecida. — Não podemos voltar no tempo e mudar as coisas.

— Você acreditaria se eu lhe dissesse que é exatamente isso que eu desejaria fazer?

Ela sorriu, um pouco mais cordial.

— Sim, mas o alertaria de que não seria uma boa idéia.

Matt tomou-lhe uma das mãos e viu que o anel que lhe dera, anos atrás, ainda se achava em seu dedo.

— Eu... nunca o tirei — Leta explicou, corando. Ele levou a mão delicada até a altura da boca e a beijou com ternura.

— Você deu meu anel ao nosso filho.

— Isso mesmo. As mãos dele são do mesmo tamanho das suas. Mas Tate não sabe a verdade sobre a jóia, assim como não conhecia nada a seu respeito. Sinto muito. Fiz aquilo que achei melhor.

— Sei disso. Engraçado... Eu sempre sentia um certo prazer em ter Tate por perto, até mesmo quando eleme irritava. Discutíamos, mas sempre fomos francos um com o outro. E, na única vez em que ele precisou de ajuda, veio até mim.

— Verdade?

— Sim. Apareceu em meu escritório com Pierce Hutton e a esposa, Brianne, levando um refugiado árabe que temia ver os planos para uma insurreição em seu país transformar-se em uma guerra. Liguei para um amigo e as coisas se resolveram. — Sorriu. — Veja só... Agora me dou conta de que Tate poderia ter tomado outras providências, mas foi a mim que recorreu!

— Ele não gosta de você, mas sempre o respeitou — comentou Cecily. — Julga-o arrogante e teimoso.

— E nós sabemos de quem Tate herdou essas características, não sabemos? — Matt disse, sem esconder o orgulho na voz.

Ninguém o contestou.

Ele permaneceu ali por muito tempo, sentado no sofá, conversando com Leta sobre as pessoas que ambos haviam conhecido e sobre os lugares aonde tinham ido juntos. Comportavam-se como se aqueles trinta e seis anos não tivesse existido.

Minutos depois, já estavam de mãos dadas. Falaram sobre Tate. Cecily os observava, imaginando como fora difícil, para os dois, contar ao filho a verdade. Tocou o ventre de leve e ficou preocupada com seu próprio segredo. A história estava prestes a se repetir, dessa vez tendo-a como protagonista.

— Tate a deixou profundamente magoada — Leta comentou quando Matt tentou, sem sucesso, atrair a atenção de Cecily. — Ela está brava.

— Posso perceber — o senador concordou, sorrindo para Cecily, que finalmente voltava à vida e ria.

— Oh, não, não estou. Quer dizer... não estou terrivelmente brava. Tate recebeu um golpe muito duro. Vai levar algum tempo para superá-lo.

— Mais do que imaginávamos, temo — afirmou Matt, consultando o relógio. Sorriu e se levantou. — Preciso ajudar um colega a enfrentar o inferno que é mexer com um novo orçamento. Desculpem-me, mas só consigo encontrá-lo tarde da noite.

Cecily deu-lhe a mão.

— Grata por ter vindo. Precisamos repetir a dose.

— Vocês duas poderiam ir à minha casa amanhã à noite. Sei cozinhar, mas tenho um chef que prepara uma galinha maravilhosa. Que tal? Posso mandar o carro vir buscá-las.

— Não seria arriscado, logo agora? — quis saber Cecily.

— Nada disso. Eles que façam o que bem entenderem com a informação que possuem. Coloquei gente trabalhando para Tom Black Knife. Seu neto traidor já está atrás das grades. Tate sabe a verdade. Leta e eu podemos agüentar as conseqüências. Não podemos? — indagou a ela, com um sorriso que a envolveu.

Os anos de sofrimento mostraram-se nas linhas de seu rosto, mas o sorriso e o olhar foram calorosos.

— Posso enfrentar qualquer coisa. - Matt assentiu, com orgulho.

— Tenho certeza disso.

— Iremos à sua casa amanhã — garantiu Cecily.

— Levem Colby Lane.

— Não sei por onde Colby anda — foi a resposta. Ela franziu a testa, preocupada, pois não o via há um bom tempo. — Disse-me que iria até o Arizona, mas isso aconteceu pouco antes de eu deixar Wapiti. Creio que não ficaria lá até agora.

— Na certa ele saiu do país — arriscou Matt. — Em todo caso, se aparecer, será bem-vindo à minha casa.

— Obrigada — disse Cecily, e começou a tirar a mesa, fazendo um sinal para que Leta acompanhasse o convidado até a saída.

Matt abriu a porta e, em um impulso, conduziu Leta até o hall vazio. Em seguida, fechou a pesada peça de madeira.

— Matt...

Ele ignorou o protesto. Envolveu-a nos braços e inclinou-se para beijá-la com toda a fome guardada por mais de trinta anos. Leta, como no passado, tinha sabor de néctar. Holden, emocionado, apertava-a contra o corpo, os lábios exigentes.

Ela resistiu por um instante. Em seguida suspirou e entregou-se ao momento de paixão, abraçando-o pelo pescoço.

Quando Matt ergueu a cabeça, as batidas de seu coração eram tão audíveis quando as de Leta. Ele buscou-lhe os olhos, sedento.

— Você me deu um filho — disse com ternura, emoldurando-lhe o rosto com as mãos. — Não foi apenas um romance casual, sabia? Eu a amava!

— Sei disso. — Lágrimas encheram-lhe os olhos. — Eu também o amava. Mas você era casado. O que eu poderia dizer? Sua esposa o teria feito pagar caro pela existência de Tate.

— Ela teria feito vocês dois pagarem caro, além de mim. Perdi muitos anos na vida, querida — ele falou, enxugando-lhe as lágrimas. — Não chore. Está tudo bem. Perdemos um ao outro por algum tempo, mas isso passou. Nenhum de nós está sozinho agora, e ninguém irá magoá-la outra vez. Não enquanto eu estiver vivo.

Leta não conseguia parar. Era engraçado... Até aquele momento, não havia chorado. Prendera bravamente a dor de saber que o filho a odiava. Mas Matta abraçava. Não se achava mais sozinha. Deitou a cabeça sobre o peito largo e deu vazão à agonia de todos aqueles anos de solidão, sem amor.

Ele enxugava-lhe o rosto com um lenço, procurando disfarçar as lágrimas que também lhe inundavam os olhos.

— Você deu a ele o nome de meu pai, Renê. - Leta sorriu debilmente.

— Lembro-me de tê-lo visto uma vez. Julguei que Tate devia ter o nome do avô.

— Ele se mudou para o Marrocos depois que fui eleito senador. Mamãe faleceu naquela época, e meu pai não conseguiu viver comigo, em Maryland. Odiava Mavis, minha esposa. Nunca me perdoou por ter perdido você.

— Remorsos não fazem bem.

— Sei disso. Mas é preciso cauterizar uma ferida antes de curá-la. — Sorriu para ela. — Eu a esperarei amanhã à noite.

— Você... a amou? — Leta quis saber. Precisava saber.

— Não. Cheguei a sentir um pouco de ternura por Mavis. E muita pena. Não nos casamos por amor. Cometi um erro terrível, e nós dois sofremos por causa disso. Agora, também nosso filho está sofrendo. Mas eu não teria sabido da verdade se a situação não chegasse a esse ponto, não é?

Ela deu um longo suspiro.

— Eu queria contar-lhe. Mas tinha medo. Pensei que você fosse me odiar.

Matt balançou a cabeça, em negativa.

— Eu jamais a odiaria. — Fitou-a, sério. — Tenho uma pálida idéia do que houve entre você e seu marido. Chegou a amá-lo?

— Não consegui. Ele sabia que eu estava grávida, embora não soubesse quem era o pai. Disse que me amava o suficiente para aceitar a criança e a mim. Pensou que seu sentimento fosse forte o bastante, mas se enganou. E, quando descobriu que não poderia ter filhos, tornou-se cruel. Odiou a nós dois. Tate teve uma infância difícil.

O rosto do senador mostrava tensão.

— Sinto muito por isso. Mas foi o que fez de Tate o homem que ele é. Somos todos produtos de nossos momentos mais difíceis. O fogo molda o aço, querida.

— É o que dizem. — Leta traçou o contorno do rosto marcante com os dedos, lembrando a textura, o calor. — Eu pensava em você quando me deitava, sozinha, na escuridão. Só Tate me consolava quando eu me sentia perdida e com medo.

— E eu pensava em você — ele confessou, os olhos brilhando de paixão. — Também fui um homem sozinho. Enquanto Mavis estava viva, e depois que ela morreu.

— Que sina, amar uma só pessoa...

Matt a abraçou e a beijou de novo.

— Que bênção amar uma só pessoa e ser amado por ela, mesmo depois de trinta e seis anos!

Meio sem jeito, Leta se desvencilhou e, com um aceno, entrou no apartamento.

— Oh, aí está você. Terminei de arrumar a cozinha. Precisamos descansar, não acha? — disse Cecily.

— Com certeza — ela respondeu, os olhos sonhadores. — Amanhã será um dia maravilhoso.

 

E foi. Leta e Matt percorreram juntos cada cômodo da casa enquanto Cecily tomava café na sala de estar. Negara-se a acompanhá-los, ciente de que os dois precisavam da companhia um do outro.

O primeiro aposento em que ambos entraram foi o quarto de Matt. Tiveram a vaga presença de espírito de trancar a porta antes de deitar-se na cama enorme, enlaçando pernas, braços, corpos.

— Você... fez amor com ela aqui? — Leta perguntou enquanto os lábios de Matt percorriam-lhe a pele.

— Aqui, nunca. Com Mavis, jamais. Com ninguém, na verdade.

Enquanto falava, ele a despia. O corpo feminino continuava belo, macio e bem-vindo, como há muitos anos. E as mãos, sempre delicadas, não paravam, tirando-lhe a roupa.

Beijaram-se, tocaram-se e riram quando notaram estar rígidos demais para tentar as mesmas posições de antigamente. Mas Matt a amou com a doçura do passado, retardando o momento do prazer, provocando-a, levando-a a desejar, faminta e desinibida, viver a plenitude daquela paixão.

Ele a beijou quando a possuiu, ouvindo-lhe os suaves gemidos. Era a primeira vez que Leta se entregava a um homem em muitos anos. Matt ergueu a cabeça, fitou aqueles olhos adoráveis e sorriu.

— Sabia que velhos não fazem amor? — sussurrou enquanto voltava a se movimentar, com mais gentileza. — Li isso em um livro.

Os dedos de Leta acariciavam-lhe a cabeça.

— Pare de ler esse livro.

Matt sorriu e pegou o cabelo negro que caía sobre os ombros macios. Levou-o aos lábios enquanto se movia sensualmente.

Leta beijou-lhe o pescoço, traçando-lhe o contorno com a língua. Sentia o coração masculino acelerado.

— Lembrei que você gostava disso — murmurou, provocante. — E disso...

Matt gemeu.

— E como!

Pele contra pele, ela sentia o corpo forte avançar cada vez mais depressa. Soluçava à medida que recordava as sensações de que já se esquecera.

— Em... minha idade! — Deteve-se, cerrando os dentes à medida que o êxtase se espalhava por seu corpo. — Matt!

O nome saiu em um soluço longo, suave. Ele mal era capaz de conter-se, para satisfazê-la. Leta não fazia idéia de quantos anos se haviam passado desde que estivera com uma mulher. Desde que estivera com ela, a quem amava, a quem sempre amara...

Gemeu à medida que as convulsões o dominavam. Não conseguia respirar. Era como morrer, nascer, navegar pelo fogo. Gritou o nome dela e se entregou ao prazer, perguntando-se se seria capaz de sobreviver a uma emoção tão forte.

Leta riu. Matt ouviu o som como se viesse de muito longe e abriu os olhos. De frente, nu, estava exposto ao exame minucioso que ela fazia.

— Você continua tão maravilhoso como na noite em que geramos nosso filho — Leta sussurrou, inclinando-se para beijá-lo com ternura.

Os dedos grandes traçaram as sobrancelhas escuras, as faces, a boca feminina.

— Eu gostaria que pudéssemos fazer outro.

— Eu também. Mas já passei da idade — foi a resposta triste. Ela deitou a cabeça no peito largo e afagou os pêlos brancos que o cobriam. — Teremos de esperar pelos netos, se é que Tate um dia irá nos perdoar.

Matt a abraçou com força, como se com isso pudesse mantê-la a salvo. Tinha por aquela mulher um sentimento feroz de proteção.

Ela entendeu de outro modo a mensagem daquele abraço. Sorriu e suspirou.

— Não podemos fazer amor de novo. Cecily irá pensar que nós a abandonamos.

— Tenho certeza de que ela sabe onde estamos. — Matt riu. — Cecily a ama muito.

— E gosta de você. Talvez possamos adotá-la.

— Seria melhor se nosso filho se casasse com ela.

Leta assentiu.

— Creio que existe essa esperança. — Sentou-se e se espreguiçou, adorando o modo como ele admirava seus seios ainda firmes. — A última vez que me senti assim foi há trinta e seis anos — confidenciou.

— Eu também — Matt respondeu.

Ela procurou-lhe os olhos, já antevendo a própria partida. Teria de voltar à reserva.

Matt era capaz de entendê-la melhor do que imaginava. Levou a mão delicada aos lábios.

— Sei que é tarde demais, mas quero me casar com você. Esta semana. Tão cedo quanto possível.

Leta se surpreendeu. Não sabia o que responder.

— Eua amo. Nunca deixei de amá-la. Perdoe-me e diga "sim".

Ela considerou a enormidade do que iria fazer. Teria de ser a anfitriã daquela casa. Receber os amigos de Matt. Ir a eventos de todos os tipos. Usar roupas sofisticadas. Agir de maneira sofisticada.

— Sua vida é muito diferente da minha — começou.

— Ah, pode parar com isso. Vi o que esse argumento fez com Cecily quando Tate o usou. Comigo, não funciona. Amamos demais um ao outro para nos preocupar com essas trivialidades. Diga "sim". Cuidaremos dos detalhes mais tarde.

— Haverá festas, levantamentos de fundos...

Ele a abraçou e a beijou com ternura.

— E daí?

— Não conheço muito sobre etiqueta...

Matt a colocou sobre o próprio corpo com gentileza. Pôs uma das pernas entre as dela e a beijou.

—  Oh, Matt... — ela gemeu, enlaçando-lhe a coxa e gemendo quando as juntas protestaram.

— Artrite? — ele perguntou.

— Osteoartrite.

— Não diga! Eu também tenho — Matt revelou, gemendo quando a penetrou. — Podemos tentar outras posições um dia desses. Mas agora... é... muito tarde. Leta!

Ela, que mal conseguia respirar, não conseguiu responder. O prazer se misturava à dor. Ao que tudo indicava, os dois haviam exagerado em posturas não recomendadas a pessoas daquela idade. Mas quem se importava?

 

Cecily soube, antes que eles lhe contassem, que ambos iriam se casar. Estava patente no modo fascinado como olhavam um para o outro.

Leta não voltou para o apartamento, nem Cecily esperava que isso acontecesse. Viu que ela se sentia ótima, e que permaneceria nos braços de Holden até ser levada ao altar. Era comovente.

 

Na manhã seguinte, a campainha soou no momento em que Cecily saía do banho. Apenas um robe fino e semitransparente cobria-lhe o corpo. Ela, porém, não se importou. Abriu a porta, disposta a ouvir o que Leta tinha para contar, mas viu Colby, mais alquebrado do que nunca.

— Oh, entre! — convidou, conduzindo-o para a sala. — Tenho um monte de novidades.

— Também tenho algo para lhe dizer — ele disse, sério. — E temo que você não vá gostar de ouvir.

Cecily o estudou detidamente. Colby parecia arrasado.

— Onde esteve?

— Mais recentemente, na casa de Matt Holden.

— Por quê?

— Andei fazendo um trabalho para ele na reserva,procurando ajudar Tom Black Knife. Consegui uma testemunha. Tom vai se sair bem dessa. — Sorriu. — Eu ficaria para o café, sabe? Do contrário, não teria deixado aquilo no meio.

— Aquilo? No meio? No meio de quê?

— De um confronto entre o senador e um maluco chamado Tate Winthrop.

 

Cecily ajeitou o robe em volta do corpo e sentou-se no sofá.

— Vamos, conte o resto!

— Espere um minuto. — Pegou o equipamento de distorção de voz, ativou-o e colocou-o sobre a mesa. — Melhor prevenir, no caso de este apartamento também se achar "grampeado". Devemos estar preparados.

— Grata, O senador enviou uma pessoa para rastrear meu escritório, no museu. É o único outro lugar em que me sinto segura. — Ela hesitou. — Como está Tate?

Colby deixou-se afundar na poltrona.

— Bem, não é mais o homem que eu conhecia.

Nos olhos de Cecily estampou-se a tristeza.

— Você não sabe por quê, não é mesmo?

— Quer apostar? — ele perguntou com um sorriso torto. — Tate chamou Matt Holden de tudo, menos de homem, e então se voltou contra a mãe. Estava furioso por Leta ter escondido a verdade sobre seu pai durante todos esses anos, e por ter batido o telefone quando ele ligou para ouvir a história dos lábios da própria mãe. Mas ficou ainda mais irado quando descobriu que ela se mudara para a casa do senador, e que ambos estavam vivendo juntos. Chamou-a de um nome que eu não me atrevo a repetir.

— O que aconteceu depois?

— Holden deu-lhe um soco que o jogou sobre o sofá. Leta se interpôs entre os dois e Tate partiu, com mais raiva ainda, jurando que nunca mais dirigiria a palavra a nenhum deles.

Cecily não esperava menos do que aquilo. Sentiu muito por Leta e Matt.

— Sabe aonde Tate foi?

— Ele não disse. E eu não me arrisquei a perguntar. Nós andamos tendo nossas diferenças, ultimamente, e você sabe disso.

— Mas que confusão!

— Vai passar. As pessoas ficam furiosas e depois superam isso.

— Tate não superou ainda.

— Bem, podemos unir a espécie humana, não é mesmo? — ele zombou. — O que está fazendo em casa em plena segunda-feira de manhã?

Cecily puxou um fio solto no robe.

— Apenas um mal-estar matinal. Assim que passar, irei ao museu.

— Mal-estar... matinal?

Ela sustentou o olhar surpreso do amigo.

— Isso mesmo. E então? Não vai me perguntar quem é o pai?

Colby sorriu.

— Acha que sou algum tolo?

Cecily suspirou, ajeitando o cabelo curto.

—  Tate não sabe, e você não vai lhe contar, seja em inglês, apache ou lakota.

Ele assentiu.

— O que vai fazer?

— Não tenho a menor idéia. Usei o teste de gravidez caseiro esta manhã. Deu positivo, como eu já esperava. Preciso arrumar um lugar para morar onde Leta não consiga me observar por algum tempo. Não posso correr o risco de vê-la contar a Tate. — Sorriu. — Onde esteve esse tempo todo?

— Sentado em uma cadeira de balanço, tomando café e procurando me tornar invisível. — Ergueu uma sobrancelha ao notar a expressão de descrença dela.

— Alguém tinha de manter a cabeça no lugar, não é?

— Há um velho ditado que diz que, se você fica com a cabeça fria quando todos a seu redor perderam a razão, não encontrará a chave para resolver o problema.

— Pode ser. Mas meu esporte predileto não é dar a outra face. — Inclinou-se para a frente. — Quer se casar comigo?

— Obrigada, meu amigo, mas não seria a solução para nenhum de nós. Em especial para você.

Ele cruzou os braços e se recostou na poltrona.

— Tudo bem, mas o pedido fica em pé. Adoro crianças, sabe?

— Eu também — Cecily respondeu com ar sonhador.

— Não vai mesmo contar a Tate?

A fisionomia feminina revelou o tumulto que a pergunta provocou.

— Tão cedo, não. Ele não está falando comigo. Disse que jamais vai esquecer, nem perdoar, o fato de eu saber da verdade e me manter calada.

O rosto de Colby tornou-se rígido quando ele considerou a inflexibilidade de Tate.

— Um homem incapaz de perdoar não é humano.

— Diga-lhe isso, se conseguir encontrá-lo. Já falei até ficar rouca. Ele não ouve aquilo de que não gosta. — Levantou-se. — Bem, vou me trocar e fazer algumas torradas. Quer?

— Deixe que eu cuido da comida — Colby se ofereceu, dirigindo-se à cozinha enquanto ela se vestia.

Cecily foi ao seu encontro minutos depois, sentindo-se estranhamente entorpecida. Viu-o cuidando do pão, junto à torradeira. Sobre a pia, o café quente enchia o ar com um aroma delicioso.

— Espero que a bebida esteja forte. É a única coisa que pára em meu estômago.

— Fiz café descafeinado. Não é bom você ingerir cafeína.

— Obrigada, mamãe.

Colby fez uma careta.

— Tate e eu costumávamos dividir tudo. Vou compartilhar também esse filho. Se ele não aparecer, vou me apropriar dessa criança. E de você.

— Acho que essa é a única área em que suas habilidades de comando não vão funcionar, querido — ela respondeu, com afeto. — Gosto muito de você. Pode ser o padrinho de meu filho. Mas eu vou criá-lo.

Padrinho! — Colby repetiu, saboreando a palavra.

Ih... Acho que foi uma péssima idéia. Não quero meu filho envolvido com investigações e revólveres.

— A influência dos padrinhos é sempre benéfica.

— Malas pretas e equipamentos de escuta não são exatamente "benéficos".

— Ei, onde está seu senso de aventura?

— Pendurado no chuveiro, tentando se enxugar. — Cecily serviu café e ambos sentaram-se, com o prato de torradas e a manteiga já à mesa. — Você não faz nenhuma idéia de onde Tate está?

— Sinto muito, mas não.

— Pobre Leta...

— Matt cuidará dela.

— E vice-versa. É possível perceber o que aqueles dois sentem um pelo outro a quadras de distância. Imagine, depois de trinta e seis anos!

— Pois é — Colby respondeu, parecendo preocupado.

— O que foi agora?

— Eu não lhe disse aquilo que pretendia lhe dizer.

— Então diga!

— A história veio a público esta manhã. Estava no noticiário das sete da manhã. Acredito que todos os jornais já a publicaram.

— Você se refere à história do senador Holden?

— Claro. E de seu filho ilegítimo. Foi isso que enraiveceu Tate. Você, mais do que ninguém, sabe como ele odeia publicidade.

Cecily gemeu, deixando cair a torrada.

— Droga!

— Os jornalistas irão encontrá-la, mais cedo ou mais tarde. Você pode se mudar ou ir para um hotel, mas terá de trabalhar e eles a acharão no museu. Melhor fazer alguns ensaios, a fim de preparar-se para as perguntas que serão feitas. — Colby se mostrou sombrio. — Não será uma experiência agradável.

— Ainda bem que não fui procurar o médico...

— Com certeza. A notícia sobre sua gravidez acrescentaria um toque especial ao escândalo. Como acha que Tate se sentiria ao ler, nos jornais da manhã, que será pai?

Ela estremeceu.

— Morda a língua! — Comeu o último pedaço da torrada e bebeu mais um gole do café. — Como acha que Leta e o senador vão lidar com isso?

— Hum... Não vai ser fácil. — Seus olhos mostravam compaixão ao fitar os dela. — Essa foi outra coisa que tirou Tate do sério: descobrir pela mídia que a mãe se mudara para a casa de Holden.

— Uma pena Matt não tê-lo atirado pela janela. Tate merecia uma lição.

— Não pode culpá-lo, querida. O mundo dele está de cabeça para baixo.

— O meu também está. E o dos pais dele. E tudo por causa de uma pequena mentirinha, ou melhor, de uma pequena omissão, trinta e seis anos atrás. Dizem que as indiscrições de nosso passado voltam para nos assombrar. Começo a acreditar que isso seja real. Sempre achei importante dizer a verdade, mesmo quando ela é dolorosa. Veja quanto Tate me magoou ao esconder que era meu benfeitor. Acho que ele se esqueceu disso.

— Pouca gente consegue ver adiante o suficiente, para antecipar as conseqüências daquilo que faz.

O comentário lembrou-a de algo. Tate nunca pensara em tomar precauções quando a levara para a cama. Nem ela, por sinal. Mas tudo bem, porque o amava e adoraria ter um filho dele. Tate levava o tema do sangue puro à beira do fanatismo, e não sabia da verdade quando haviam feito amor pela primeira vez.

Era curioso, para um homem que vivia dizendo não querer se arriscar a ser pai, "esquecer-se" da camisinha... Talvez ele pensasse que Cecily estivesse tomando anticoncepcionais. Ou, o que seria impossível, achasse, como um adolescente, que um filho nunca iria lhe acontecer. Na verdade, Tate simplesmente perdera a cabeça. Ou haveria algum motivo inconsciente pela falta de cuidado? Era uma possibilidade intrigante. Será que, no fundo, sem o saber, queria ter um filho com Cecily?

Então ela se lembrou da frieza nos olhos escuros quando Tate lhe disse adeus, e quando jurou que nunca a perdoaria. Tinha de acreditar nisso.

— Está me escutando? — Colby indagou. — Preciso tomar um avião às seis da tarde e vou ficar fora duas ou três semanas.

— Oh, desculpe-me. Vai viajar de novo?

— Sim, e não posso lhe contar para onde. — Ele terminou seu café. — Leta me pediu para dizer-lhe que ela e o senador irão se casar numa cerimônia simples, em uma igreja católica perto da Casa Branca, às dez da manhã da próxima sexta-feira. Queria ligar para você, mas teme que seu telefone esteja sob escuta.

— Isso não me surpreenderia.

— Vou vasculhar a sala antes de sair. Por enquanto, a maquininha impede que nossa conversa seja ouvida de maneira clara. Agora, que tal outra xícara de café, antes de eu ir embora?

Tomaram a bebida. Depois disso, Colby fez uma busca detalhada no apartamento e encontrou um microfone. Alertou-a contra pessoas que aparecessem alegando consertar alguma coisa ali. Não conseguiu descobrir quem colocara o sistema de escuta ali. A mídia não teria agido com tanta precipitação. Assim, o "grampo" só poderia ter sido obra da máfia do jogo ou de alguma agência responsável pela segurança de Holden.

De um modo ou de outro, perturbava-o o fato de alguém observar ou escutar tudo o que Cecily dizia. Não queria fazer tempestade em copo d'água, mas aconselhou-a a não ir sozinha a lugares desertos. Além disso, ela devia tomar o máximo cuidado para não mencionar a gravidez a ninguém.

 

Cecily viu que a história encontrava-se na primeira página de todos os jornais quando, mais tarde, dirigiu-se ao museu. Alguns davam a notícia de maneira mais sóbria do que outros, mas não havia como negar o fato de que um senador por Dakota do Sul tinha um filho ilegítimo.

Pierce Hutton, ao que tudo indicava, foi capaz de acalmar um pouco Tate ao enviá-lo para fora do país, a trabalho, no dia em que o escândalo estourou. Matt Holden, Leta e Cecily não tiveram a mesma sorte. Nem Audrey, mas a moça pareceu adorar a publicidade, e exagerou quanto pôde seu relacionamento com o filho do senador nos tablóides sensacionalistas.

Quando a mídia procurou Cecily, ela aprendeu como era terrível ver-se na mira do público. Os repórteres desejavam saber qual sua ligação com Tate, Matt Holden e Leta. Quando souberam que Tate financiara seus estudos, concluíram que os dois eram amantes.

Ela viu sua foto na primeira página de um jornaleco de fofocas, como ex-amor adolescente de Tate.

Audrey telefonou para o museu, furiosa, condenando-a por passar informações falsas.

— Não pense que meu noivo iria apreciar isso. Liguei para ele, em Nassau, e contei o que você fez. Tate ficou furioso por ter sido retratado como um sedutor de menininhas. Que maneira patética de chamar a atenção dele!

— Eu não disse nada à imprensa — respondeu Cecily, por entre os dentes. — Não posso dizer o mesmo a seu respeito, srta. Gannon.

— Não preciso distorcer a verdade, uma vez que Tate vai se casar comigo. Pobre Cecily... Realmente pensou que teria alguma chance com ele? Tate sente pena de você, mas ama a mim. E, agora, nunca mais vai me abandonar. O fato de não ser um sioux de sangue puro significa que poderá desposar uma mulher branca. Aliás, ele mesmo é quase branco.

Cecily não conseguiu deixar o comentário preconceituoso passar em branco.

— Você adora pensar assim, não é? Mas, seja lá o que Tate for, sua mãe é uma lakota puríssima!

— Essa mulher é um estorvo. Mas, uma vez que Tate nunca mais lhe dirigirá a palavra, ela não conta. Fique longe dele, ouviu bem? Do contrário, farei com que searrependa! Não lhe telefone, não o visite. Nem espere ser convidada para nosso casamento. Planejamos nos casar no Natal, e a imprensa adorará contar essa história!

E desligou, antes que Cecily pudesse responder.

Então Tate fora mesmo longe demais! Ia realmente se casar com aquela mulher horrível!

Ela cerrou os dentes e bateu o fone com tanta força que machucou a mão.

— Você é o pior castigo que Tate poderia receber, madame! — exclamou, olhando para o aparelho. — Eu não desejaria vê-la no caminho de meu pior inimigo!

Naquele momento, o telefone tocou outra vez. Cecily atendeu de imediato, pronta para dar a Audrey a resposta que a outra devia ouvir. Mas era um jornalista, querendo saber se era verdadeira a história contada pelo tablóide de fofocas, de que Tate era seu amante desde a época do colégio,

— Claro que não é verdade. Mas vou lhe dar uma notícia em primeira mão. Tate Winthrop vai se casar com a socialite Audrey Gannon no Natal. Pode publicar isso, com a minha bênção! — disse, e desligou.

 

A notícia estourou como uma bomba, e Cecily precisou lutar contra as lágrimas sempre que via o lindo rosto de Audrey nas primeiras páginas dos jornais. A única vantagem foi que isso a tirou do cenário. A mídia decidiu, ao ver que Audrey era muito mais fotogênica e estava sempre disposta a falar bastante, que Cecily era notícia velha.

A socialite revelou detalhes íntimos do relacionamento com Tate que deixaram Cecily arrasada. Recusou-se a ler qualquer coisa sobre o casamento dos dois. Tate fizera sua escolha. Teria de viver com ela.

As núpcias de Leta e Matt aconteceram uma semana depois. Colby telefonara para Cecily, oferecendo-se para voltar e assistir ao evento caso Tate reaparecesse.

— Não tenho medo dele, Colby. E duvido muito que pretenda aparecer. Não precisa retornar correndo por minha causa. Mas foi muito gentil de sua parte dispor-se a fazer isso.

— Seja cuidadosa. Não gosto de pensar que alguém colocou um microfone em seu apartamento. Ainda acredito que não foi a mídia. E isso me preocupa.

— Estou bem. Coloquei novas trancas na porta, e chamarei a polícia caso perceba algum problema.

Ele ficou em silêncio por algum tempo.

— Mesmo assim, tome cuidado. Prometa.

— Está prometido. — Ela hesitou. — Colby, você sabe de algo que não está querendo me contar?

Outra pausa.

— Digamos que, se você esperar problemas, é melhor sair de perto. É tudo o que posso lhe dizer por enquanto. Tome cuidado. Tome muito cuidado.

—  Tomarei. Quanto a você, faça o mesmo.

— Ah, sou um pássaro velho e experiente. Do contrário, não estaria vivo. Ouça, coma direito e tome vitaminas.

— Quer parar de agir como se fosse minha mãe?

Ele riu.

— Alguém precisa desempenhar esse papel. Até mais, garota.

— Até mais, meu amigo.

Cecily desligou. Seria solitário ficar sem a companhia de Colby. Sorte que o volume de trabalho a manteria ocupada.

Perguntou-se por onde Tate andaria, e como estaria lidando com o choque que modificara sua vida. Um dia teria de aceitar a verdade e superar o problema.

Mas, a julgar pelas condições em que se encontrava no dia em que aparecera no museu, ainda haveria um longo caminho pela frente.

 

Ela foi ao casamento de Leta e Matt com um vestido azul cujo manequim era um número maior do que aquele que costumava usar. Como estivesse frio, colocou o casacão de couro e um chapeuzinho. O casaco, felizmente, encobria a cintura, cada dia mais larga.

Entrou na igreja procurando não prestar atenção às câmeras e aos jornalistas que, fora do templo, formavam uma verdadeira parede humana.

Uma vez que ela não fora mais ligada diretamente aos envolvidos no escândalo, e uma vez que o casamento de Audrey e Tate já fora anunciado, a mídia deixara de ser tão persistente. Mas ainda lhe telefonavam, em casa e no escritório. Cecily tratava-os com polidez, mas com firmeza. Não diria mais nada a ninguém.

Os noticiários noturnos promoveram uma verdadeira caça ao senador, que, finalmente, decidira contar toda a história, com exclusividade, para um dos mais prestigiados jornais dos Estados Unidos. Depois disso, ficou um pouco mais fácil, para ele, aparecer com Leta em público.

A índia aproveitou a oportunidade para chamar a atenção da opinião pública para os problemas da reserva Wapiti. Foi um exemplo primoroso de como transformar em positiva uma publicidade negativa, usando-a em benefício de uma causa nobre. Cecily estava orgulhosa por isso. Matt também, a julgar pelo amplo sorriso que abria sempre que a observava, diante das câmeras.

Havia pouca gente na igreja. A maioria era composta por amigos do senador e pelos colegas do Congresso que corajosamente o haviam apoiado. Cecily hesitou assim que entrou, mas Leta e Matt se aproximarampara lhe dar as boas-vindas. Ele mal se continha de felicidade, em seu terno formal, e segurava as mãos da amada como se jamais fosse deixá-la se afastar. A noiva, elegante em um conjunto creme, foi logo dizendo, ao ver a filha adotiva:

— Tate não veio. Enviamos um convite, mas ele o ignorou.

Cecily deu-lhe tapinhas afetuosos nos ombros.

— Bem, mas eu vim.

Matt a estudou, com uma expressão igualzinha à do filho.

— Você está bem?

— Tanto quanto possível — foi a resposta breve. — Eu esperava que Tate fosse aparecer. Assim, poderíamos conversar.

— Sem chance — respondeu o senador. — Acho que você já soube o que houve entre nós.

Ela assentiu.

— Você agiu bem. Ele precisava de uma lição.

— Nunca perdi a cabeça daquele jeito — disse Matt, envolvendo a noiva num abraço protetor. — Acabei tornando as coisas piores.

— Elas não poderiam ficar piores do que já estavam — Leta murmurou. — Olhe para fora da igreja e verá o que quero dizer.

— Felizmente a polícia não os deixou entrar — Matt comentou, olhando para o altar e observando o padre tomar seu posto. Sorriu para Leta. — Vamos?

Ela tomou-lhe a mão e voltou-se para Cecily.

— Deseje-nos sorte.

— Não é preciso desejar o que vocês já têm. Estou feliz pelo fato de tudo ter terminado bem entre os dois.

— Ainda não terminou — alertou Matt. — Mas falaremos sobre isso depois. Iremos almoçar no Carlton com alguns membros do Congresso. Faça-nos companhia.

Ela recusou o convite com um gesto de cabeça.

— Grata, mas deixei o trabalho apenas para vir à cerimônia. 0 dr. Phillips está fora da cidade e estou esperando uma delegação, para discutir futuras exposições.

— Não permita que eles a convençam de algo que não deseja, e diga a Phillips que essa recomendação partiu de mim — Matt a instruiu. — Como maior financiador particular do museu, acredito poder opinar sobre os rumos que a instituição tomará.

— Certo — concordou Cecily, sentando-se em um dos bancos dos fundos da igreja enquanto o casal se dirigia ao altar.

Ela não teve certeza de quando foi que percebeu não se encontrar sozinha. Ouviu um murmúrio alto entre a multidão, lá fora, mas não ligou isso ao fato de a porta do templo ter se aberto. Olhou por sobre os ombros e viu Tate em pé, recostado na parede, observando a cerimônia. Havia algo diferente nele, mas Cecily não conseguiu descobrir, de imediato, o quê. Segundos depois, porém, notou-lhe o cabelo curto.

Tate a fitou. Ela decidiu que sustentaria o olhar. Não se viraria, dando-lhe a chance de pensar que tinha receio de encará-lo. Ciente da solenidade da ocasião, levantou-se e reuniu-se a ele.

— Bem, então você veio, com mancha roxa e tudo — sussurrou com um sorriso zombeteiro, olhando para a marca que o soco de Matt Holden lhe fizera no rosto.

Tate a contemplou, os olhos negros turbulentos. Em silêncio, estudou-a, reparando na aparência diferente. Franziu a testa ao notar o cabelo curto.

Em seguida, voltou a vista para o altar. Não disse uma única palavra. Não precisava. Cortara o cabelo, o que, na cultura lakota, significava mágoa profunda. Luto.

Cecily pôde sentir o modo como doía nele saber quefora enganado pelas pessoas a quem mais amava no mundo. Queria lhe dizer que a dor passaria aos poucos, e que era melhor conhecer a verdade do que continuar vivendo uma ilusão. Também desejava falar que pertencer a duas culturas diferentes não era o fim do mundo. Mas, ao vê-lo imóvel como uma estátua de pedra, o queixo rígido, recusando-se a fitá-la, desistiu.

— Parabéns pelo seu noivado — comentou, com um traço de amargura. — Estou muito feliz por você.

Naquele momento, Tate voltou a contemplá-la.

— Não foi o que disse à imprensa — afirmou com frieza. — Estou surpreso pelo fato de você ter ido tão longe comigo.

—  Não entendo o que quer dizer.

— Entende, sim. Você inventou uma história para os tablóides. Eu poderia odiá-la por isso.

"Ah, o caso da paixão adolescente!", ela se lembrou.

— Também poderia odiá-lo, por acreditar que eu seria capaz de algo tão sujo — devolveu.

Tate a encarou mais uma vez. A raiva que sentia era quase tangível. Cecily o traíra de todas as maneiras possíveis. Primeiro, dizendo à imprensa que fora sua amante, quando adolescente. Depois, inventando que ele iria se casar com Audrey no Natal.

Perguntou-se como Cecily conseguia ser tão vingativa. Audrey grudara-se a ele e falava a todos sobre o casamento. Claro que a maioria já lera a notícia nos jornais. Tudo isso o deixava doente.

Ia começar a falar, mas pensou melhor e guardou as palavras. Olhou para o casal, no altar.

Um minuto depois, Cecily retornou ao banco. Não o fitou nem mais uma vez.

Tate permaneceu sozinho nos fundos da igreja, os ressentimentos formando um cordão à sua volta. Odiava o pai verdadeiro. Odiava a mãe, por ter-lhe mentido a vida inteira. Odiava Cecily, por ter tomado parte naquela história. Não sabia nem mesmo por que se achava ali. Simplesmente lhe parecera o melhor a fazer, apesar da raiva que o dominava.

Lançou a Cecily um olhar estreitado. Não reparara, de imediato, que ela cortara o cabelo. Por que agira assim? Tate tinha um motivo, o sofrimento, mas duvidava que Cecily tivesse sentimento semelhante. Vinha passando muito tempo ao lado de Colby.

Imaginá-la com outro homem, depois de tudo o que haviam compartilhado, doía.

Na verdade, nos últimos tempos, tudo era doloroso. Uma parte dele achava bom ter conhecido a verdade sobre o pai, mas a raiva de ter sido traído era maior do que isso. Olhou para o chão enquanto o burburinho entrava em seu ouvido como um zumbido irritante. E se perguntou se algum dia aquela dor iria passar.

Minutos depois, quando o padre declarou Leta e Matt Holden marido e mulher, Cecily tomou o cuidado de não olhar para trás enquanto rumava para o altar, a fim de cumprimentar o casal.

Matt a abraçou. Mas, ao erguer a vista, seu olhar se tornou sombrio.

— Oh, não! Só me faltava essa!

Cecily seguiu-lhe o olhar e sentiu o coração parar quando viu Audrey de braço dado com Tate. Então fora por isso que ele se mostrara tão pouco comunicativo! Esperava pela noiva!

Ela sentiu o chão lhe faltar sob os pés. Agora tinha certeza de que Audrey falara a verdade acerca do relacionamento de ambos, que lançaram um último olhar a Leta e Matt antes de sair da igreja. Tate nem mesmo virou-se para trás. Audrey, porém, o fez, com um sorriso eufórico nos lábios.

— Ao menos ele veio — disse Leta, procurando as palavras certas. — Foi uma atitude gentil, considerando as circunstâncias.

Matt parecia querer comentar alguma coisa, mas se calou. Pegou a mão da esposa e ignorou o que se passava nos fundos do templo.

 

As três semanas seguintes arrastaram-se com incrível lentidão. Ao que tudo indicava, Tate saíra do país mais uma vez. Cecily tampouco tivera notícias de Colby.

Em uma sexta-feira à noite, enquanto recebia uma queixa de um grupo indígena de Montana, ouviu barulho de granizo caindo na grama abaixo da janela de seu escritório.

Sentia-se cada vez mais cansada, à medida que a gravidez avançava. E, depois do almoço, os nativos haviam se reunido em sua sala, em protesto contra uma exposição autorizada pelos membros mais velhos da tribo. Felizmente, ela conseguira argumentar com clareza, prometendo-lhes a tão necessária publicidade quando a exibição fosse aberta.

Isso os surpreendeu. Acostumados aos burocratas oficiais, tinham ido até o museu esperando ouvir as desculpas e a rejeição de sempre. Mas encontraram uma mulher que possuía um amplo conhecimento de seus problemas.

Um dado positivo das últimas décadas era o orgulho renovado que os norte-americanos nativos sentiam por sua herança e pelo legado que seus povos haviam deixado ao país. O ressurgimento desse orgulho tivera, como principal resultado, a luta desses povos em favor da soberania, exigindo mudanças e consideração por parte das agências que tinham jurisdição sobre eles.

Aos poucos, as coisas se tornavam melhores. Cada vez mais os nativos estudavam advocacia, e uma dasorganizações de defesa dos direitos indígenas mostrara-se tão ativa que chegara à presidência de uma das cortes de justiça.

Cecily tinha orgulho em entender os problemas daquela gente, a ponto de falar com autoridade sobre os métodos que deviam ser usados para melhorar as condições das reservas. Fez sugestões que deliciaram o pessoal de Montana.

Um dos nativos mais velhos sorriu no momento em  que saía do escritório.

— Você não é de todo má — murmurou.

Ela retribuiu o sorriso, reconhecendo o comentário como um elogio.

— Grata.

 

As chuvas de granizo começaram a cair com freqüência. Não era um fato estranho para o mês de novembro, em Washington. Mas Cecily não ouvira a previsão do tempo e agora se arrependia disso. Usava sapatos de isola fina e salto alto, o que tornaria ainda mais difícil o percurso até seu carro, no estacionamento do museu. Perguntou-se se Tate ouvira a mensagem que deixara em sua secretária eletrônica, sobre as notícias publicadas pelo jornais. Queria que ele soubesse que não fora responsável por aquelas reportagens sensacionalistas, mas também desejava dizer-lhe que a própria Audrey lhe contara sobre o casamento. Ela simplesmente passara para a frente a novidade que ouvira da socialite.

Na certa isso não faria nenhuma diferença. Mas Cecily queria manter limpo o próprio nome. Jamais faria uma coisa daquelas, em especial sabendo que a privacidade, para Tate, era algo sagrado.

Ao sair para o pátio, notou um carro escuro que nunca vira ali. Não fazia idéia de que o motorista estivera estudando seus movimentos durante a semana inteira.

Enquanto caminhava para seu automóvel, o veículo escuro disparou em sua direção. Distraída, ela o ouviu, mas não se importou. Somente quando o barulho do motor a perturbou foi que ergueu a vista, a tempo de ver o carro se aproximando, os faróis altos cegando-a.

Cecily levantou um dos braços e prendeu a respiração, pulando para o lado exatamente no momento em que o automóvel a alcançaria. Assim, evitou um desastre. No entanto, escorregou no gelo que já se juntara no pavimento. Gritou enquanto caía sobre uma barra de concreto e deslizava pelo pequeno declive que ladeava o estacionamento até se ver no meio da rua, no caminho de um carro que se aproximava.

A última coisa que ouviu foi o som horrível dos pneus, cantando pela freada no chão escorregadio.

 

Quando voltou a si, achava-se no pronto-socorro de um hospital. A primeira coisa que fez foi levar as mãos ao ventre e olhar em volta, em busca de um médico, uma enfermeira, alguém que pudesse ajudá-la.

Uma das assistentes da enfermaria percebeu sua aflição e sorriu.

—  Está tudo bem — disse com gentileza. — Não há nenhum problema com o bebê.

Cecily soltou a respiração, que estivera prendendo. Agradeceu aos céus pelo milagre.

— Mas você tem alguns ferimentos feios e um pulso deslocado — prosseguiu a moça. — O médico quer que fique aqui a noite inteira, para que possamos observá-la. Afinal, sofreu uma concussão.

— Estou com uma dor de cabeça terrível — Cecily murmurou, trêmula.

— O médico acabou de lhe dar um analgésico. Logo fará efeito. O que houve? Escorregou no gelo?

Ela hesitou.

— Mais ou menos.

Não queria contar o que realmente acontecera. Não até ter a chance de falar com Matt Holden. O veículo escuro tentara atingi-la de propósito. Se não tivesse pulado a tempo, teria sido assassinada.

De todo modo, cair no meio do tráfego pesado do fim de tarde também quase lhe custara a vida. Mas estava muito transtornada para discutir aquilo agora.

A enfermeira sorriu.

— Existe alguém com quem possamos entrar em contato e avisar o que aconteceu? Você tem família?

Cecily fechou os olhos, sentindo que as drogas que lhe haviam aplicado começavam a fazer efeito.

— Não, não tenho — murmurou. — Ninguém.

Era verdade, embora Leta ficasse atônita se a ouvisse dizer aquilo. Viria assim que soubesse do acidente. Ela, porém, não iria incomodar a mãe adotiva em plena lua-de-mel. Leta e Matt tinham ido a Nassau, passar alguns dias.

Além disso, pensou Cecily, sua família, agora, era o filho que esperava. Colocou as mãos na cintura larga com um sorriso sonhador, afastando da mente a tragédia que quase a abatera.

Dois dias mais tarde, depois de uma bateria de exames e com um curativo no pulso, Cecily recebeu alta. Felizmente, o problema se dera do lado esquerdo, o que significava que ela poderia voltar de imediato ao trabalho.

Por sorte, nenhum repórter a descobriu no hospital. De todo modo, já havia um novo escândalo estourando em Washington, o que relegava a história do senador Matt Holden ao passado.

Cecily procurou não pensar aonde Tate fora. Provavelmente viajara com Audrey. Comparecera ao casamento dos pais apenas para cumprir o que julgava uma obrigação, ou um princípio. Sempre que pensava nisso, ela se lembrava de que Tate não a perdoaria jamais. E isso a fazia sofrer muito.

Quanto ao que ocorrera no estacionamento, ainda a intrigava. Não sabia o que fazer, a esse respeito. Talvez devesse contar a alguém, porque, se haviam procurado matá-la uma vez, provavelmente tentariam de novo. Os únicos que teriam algum motivo para isso eram os homens da máfia do jogo, cujo líder, já preso, aguardava julgamento. A idéia de que existia alguém disposto a assassiná-la lhe provocava calafrios.

Colocou um agasalho confortável e preparou café sem cafeína. Pegou metade de uma baguete, passou requeijão e começou a comer, enquanto esperava a bebida quente esfriar um pouco. Não estava com muita fome, mas precisava alimentar o bebê.

— Sinto muito, querido — murmurou, olhando para a baguete. — Sei que você prefere vegetais, frutas, peixes ou grãos com bastante proteína. Vou comprar tudo isso amanhã.

Naquele instante, a campainha soou. Colby! Só podia ser ele. Já devia ter voltado da viagem. Poderia contar-lhe o que acontecera, e o amigo cuidaria do assunto. Aliviada, Cecily abriu a porta com um sorriso que se apagou no momento em que viu Tate parado no corredor.

Ele lhe avaliou a palidez, o cabelo curto, os óculos, o traje informal. Uma aparência que contrastava violentamente com seu ar sofisticado.

— Que deseja? — ela perguntou, em um tom que não era de boas-vindas.

— Precisamos conversar.

— Não temos nada a dizer — Cecily respondeu, lembrando-se das ásperas palavras que ele lhe dirigira no casamento de Leta.

— Temos, sim. Você esteve em um hospital. Levaram-na para lá, de ambulância, há dois dias.

Como Tate soubera disso?

— Escorreguei no gelo. Já estou bem.

Ele a fitava com ar preocupado.

— Você afirmou, quando estava internada, que não tinha família a quem avisar sobre o acidente.

— E não tenho. Exceto, talvez, por Leta. Porém, ela e Matt estão em Nassau, passando a lua-de-mel. Eu não quis aborrecê-los.

O comentário incomodou Tate, que se recostou na soleira, franzindo a testa.

— Não importa quantas desavenças tenhamos, para mim você sempre será da família.

Cecily se perguntou como ele se sentira ao ouvir a mensagem que deixara gravada na secretária eletrônica. Pensou em indagar, mas não viu muito sentido nisso. Ergueu o queixo e permaneceu séria.

— Estou cansada. Se você já terminou o que tinha a dizer...

Tate pareceu hesitante.

— Ainda não terminei. E seria mais confortável se conversássemos sentados no sofá. Pode ser?

Ela não o queria ali, no apartamento. Estava exausta, ferida e adoentada. Vê-lo lhe doía demais.

— Por favor, vá embora. Já falamos tudo o que precisava ser dito. Leve sua vida, e deixe-me tentar ter alguma paz para levar a minha.

— Não posso fazer isso — Tate respondeu, a voz mais decidida. Conduziu-a gentilmente para a sala e fechou a porta. — Mantenho um homem vigiando você desde que todo esse escândalo estourou. Por isso, sei que não levou tombo algum. Um carro tentou atropelá-la, e quase conseguiu. Você vai me dizer o que está acontecendo. E agora!

 

Cecily o fitou e desistiu. Ofereceu-lhe o sofá e acomodou-se na poltrona, cheia de ressentimento e dor. Mas procurou não demonstrar suas emoções. Ah, se seu coração se acalmasse um pouco... Se pudesse se esquecer de como era ficar perto daquele homem, ser abraçada por ele...

— Pode começar — pediu Tate, atirando o casaco no encosto do estofado.

— Eu ia pegar meu carro quando vi um sedã escuro vindo em minha direção. Saltei, para ficar fora do caminho, escorreguei, rolei por um gramado e caí na rua, ao que parece bem à frente de um automóvel. Que devia ter freios perfeitos, porque não me feriu muito. Sofri uma concussão e torci o pulso. — Mostrou-lhe o curativo. — Os médicos decidiram me manter no hospital para observar minhas reações. Foi só. Estou ótima.

Era mentira. Ela parecia mais pálida do que nunca e, acima de tudo, preocupada. Tate odiava pensar que, a essa altura, Cecily poderia estar morta.

— Você pediu ao médico que não revelasse a ninguém informações sobre seu estado?

Ela piscou.

— Sim, pedi.

Fizera isso porque temera que Tate descobrisse oque acontecera e começasse a investigar. Não queria que ele soubesse a respeito da criança.

— Por quê?

Cecily o contemplou, procurando não mostrar como se sentia sem jeito.

— Porque isso não interessa a ninguém — foi a resposta enfática. Notou que a expressão de Tate era sombria e acrescentou: — Não corri risco de vida enquanto estive internada, se é isso que o deixa tão preocupado.

Ele relaxou um pouco, mas só um pouco. Inclinou-se para a frente, a fim de estudá-la.

— Quem teria algum motivo para matá-la? - Cecily juntou as mãos e as pousou sobre o colo.

— Não acho que tenha inimigos pessoais. Talvez fosse alguém que quisesse atingir Colby — arriscou, receosa. — Ele faz alguns trabalhos autônomos, e todos sabem que passa a maior parte do tempo aqui.

— Isso é verdade. Passa mesmo — Tate respondeu, com voz gelada. — Em outras palavras, talvez estivessem tentando usá-la para dar uma lição em Colby.

Ela assentiu.

— Mas essa é uma hipótese vaga.

— Não é tão vaga assim — ele contrapôs. — Pode até se tratar de algum interessado em me atingir — acrescentou de maneira irritada, correndo os dedos pelo cabelo. — Ou em atingir Matt Holden.

Cecily mais uma vez assentiu.

— Foi o que pensei. Várias pessoas que vivem à margem da lei perderam muito de seus lucros por causa do senador, e muitas delas estão na prisão pelo que aconteceu em Wapiti. — Ajeitou a calça do agasalho. — Essa gente quer vingança. E não pode pegar Matt ou Leta. Eles vivem sob proteção o tempo todo. Por outro lado, é altamente improvável que persigam TomBlack Knife de novo. E apenas um tolo iria atrás de você. Sou o elo mais fraco dessa corrente. Leta e Matt gostam de mim. Talvez os criminosos tenham decidido me pegar, uma vez que sou um alvo mais fácil.

Tate fez que sim com um solene gesto de cabeça.

— Foi a essa conclusão que eu e o homem que a vigia chegamos.

Ela alisou outra vez o tecido da calça, procurando sentir-se mais à vontade.

— Quais são minhas chances de ficar sob a proteção do programa de proteção a testemunhas?

— As mesmas que tenho de participar do próximo filme do Batman. Você não viu nada que possa testemunhar.

Cecily suspirou.

— Então, se você colocou alguém para me espionar, posso concluir que esse alguém usará uma arma, se necessário?

— Sim. Mas você está sob minha responsabilidade.

— Não, não estou — ela respondeu, com uma voz calma que em nada combinava com a turbulência em seus olhos. — Estive sob sua guarda nos últimos oito anos. Agora, acabou. Vivo sozinha. Em condições normais, posso tomar conta de mim mesma. Somente necessito de alguém que olhe por mim até esse pesadelo terminar e os culpados se acharem todos atrás das grades.

Tate manteve a expressão preocupada.

— Ouça, as pessoas escapam de sentenças de prisão o tempo todo, por causa de erros técnicos nos processos ou de jurados ingênuos. Não há nenhuma garantia. Mesmo que houvesse, os criminosos mantêm uma rede de colaboradores aqui fora. Podem pagar a um deles para acabar com você.

Ela sentiu uma pontada no peito e um calafrio. Tate acabara de lhe mostrar que o pesadelo era pior do queimaginara. Principalmente porque não sabia do filho que gerara. Fitou-o, faminta, desejando poder lhe revelar que estava grávida. Mas a novidade não seria bem recebida. Não ousaria lhe contar sobre a criança.

— Não vou deixá-la sozinha — ele disse com determinação. — Desse modo, ou você se muda para minha casa, ou passarei a dormir aqui. A escolha é sua.

— E onde Audrey vai dormir? — Cecily indagou friamente.

Tate se mostrou ultrajado.

— No apartamento dela.

Cecily sabia que se encontrava sob fogo cruzado. Não podia ficar com Tate, que não era nada tolo e logo perceberia seus enjôos, matinais e noturnos. Não levaria muito tempo para descobrir por que eles aconteciam.

— Posso morar com Leta e Matt — mentiu.

A mãe adotiva saberia da gravidez muito antes de Cecily lhe contar a verdade. Não ousaria ficar com o casal, mas jamais diria isso a Tate.

Ele sabia que Cecily estaria em segurança ao lado de seus pais. Mas feria-o o fato de vê-la tão determinada a impedi-lo de oferecer-lhe proteção. Fora com Audrey ao casamento de Leta e Matt porque não queria enfrentar a situação sozinho. Talvez também tivesse feito aquilo deliberadamente, para ferir Cecily, que lhe escondera a verdade e contara mentiras para a imprensa.

O problema era que Audrey se tornara tão possessiva e ciumenta que ele vinha evitando vê-la desde a cerimônia. Queria revelar isso a Cecily, mas sabia que não seria levado a sério.

E não poderia culpá-la. Já fora muito longe naquele relacionamento falso com Audrey. Brincara com o demônio, e sua falta de visão agora se voltava contra ele.

— Também posso ficar com Colby, que deve retornar logo — provocou-o com um sorriso. — Ele tomará conta de mim.

Os olhos negros se estreitaram.

— Colby mal consegue cuidar de si mesmo. É uma alma perdida. Não pode escapar do passado nem encarar o futuro sem Maureen. Não está pronto para um relacionamento com outra pessoa, mesmo que imagine estar.

Cecily ignorou a provocação.

—  Posso contar com Colby. Ele me ajudará, se eu precisar.

Tate pareceu frustrado.

— Mas não permite que eu a auxilie.

— Colby não está envolvido com ninguém que sinta ciúme do tempo que ele passa comigo. É essa a diferença.

Tate soltou um suspiro furioso e seus olhos começaram a brilhar.

—  Acho que você vai repisar esse assunto até a morte, não é?

Cecily procurou mostrar-se indiferente.

— Você tem sua própria vida, e eu não faço mais parte dela. Deixou isso bem claro, se bem me lembro.

Ele cerrou os dentes.

— Acredita mesmo ser fácil jogar o passado fora?

— Isso é o que você quer fazer — Cecily o lembrou, sentindo um prazer perverso ao vê-lo franzir as sobrancelhas. — Jurou que nunca me perdoaria nem esqueceria o que fiz — acrescentou. — Levei sua palavra a sério. Sempre terei boas lembranças a seu respeito, e a respeito de Leta. Mas sou uma mulher adulta. Tenho uma carreira, um futuro. Você me sustentou durante anos, sem me deixar saber disso. Agora que eu...

— Pare! — ele explodiu, levantando-se e começando a andar de um lado para outro, as mãos nos bolsos. — Eu poderia tê-la enviado à Universidade Harvard caso você desejasse estudar lá, e isso não pesaria em meu bolso!

— Não fuja do assunto — Cecily interpôs, sentindo a náusea subir e rezando para que o mal-estar passasse. — Eu poderia ter trabalhado e financiado meus estudos, além de pagar pelo aluguel do apartamento e por outras despesas. Não me importaria em fazer isso. Mas você gastou comigo uma soma que eu jamais poderei reembolsar!

Tate parou de andar e a fitou.

— E por acaso pedi algum pagamento?

Ela sorriu.

— Você fica muito parecido com Matt quando lança esses olhares ameaçadores. — Viu que os olhos negros se tornavam ainda mais sombrios e levantou uma das mãos. — Certo. Você não pretende falar sobre isso. Desculpe.

—  Infelizmente, todos querem comentar o assunto —  foi a resposta irritada. — Não tenho feito outra coisa senão me afastar dos repórteres desde que a história veio à tona. Que modo infernal de contar a verdade, em rede nacional de televisão!

—  Matt não teve muita opção. Se tentasse colocar panos quentes, a mídia tornaria tudo pior. Ele é um membro poderoso do Senado. Precisou controlar o estrago, ou teria de dizer adeus à carreira.

Tate sabia que era verdade, mas isso não fazia com que se sentisse melhor.

—  Os jornalistas precisam levar ao ar os noticiários quatro vezes ao dia. Têm muito tempo a preencher, e poucas novidades realmente interessantes para publicar.

— Não diga isso a mim. Diga a eles. — Tate estudou-lhe o rosto abatido, pálido.

— Você está doente? — perguntou de modo inesperado.

— Não. Por quê? - Ele se aproximou.

— Seu rosto está branco como papel-arroz.

— Levei um tombo feio. Isso me deixou chocada. Mas estou bem.

Tate não se convenceu disso. Havia alguma coisa diferente em Cecily. Não tinha nada a ver com a queda ou com os ferimentos que isso lhe causara. E ele não conseguia adivinhar o que era.

— Seu olhar está parado — Cecily falou quando o silêncio se tornou desagradável.

— Alguma coisa mudou — Tate respondeu lentamente. — Existe algo diferente em você.

Ela se obrigou a reagir de maneira insuspeita.

— Amadureci. Tenho um trabalho de grande responsabilidade e desacordos constantes com várias pessoas, acerca das exibições. Além, claro, de competir com outro museu nativo que tem mais colaboradores, mais peças e mais espaço do que nós temos. Somos quase supérfluos.

— Vocês são únicos — Tate corrigiu. — O museu pode ser pequeno, mas tem um interesse verdadeiro pelos assuntos nativos. Não se trata de um grupo de burocratas, igual a tantos outros.

— Oh, obrigada! — ela respondeu, surpresa. Tate deu de ombros. Parou em frente à poltrona, pensativo.

— Você está me escondendo alguma coisa — disse, e com tanta convicção que o coração de Cecily disparou.

Sempre houvera um vínculo especial entre ambos. Ele sentia que, agora, esse laço aumentara. E isso não se devia ao fato de terem se tornado íntimos. Havia... algo mais.

Cecily  cruzou  os  braços   e   procurou   parecer despreocupada.

— Não consigo esconder nada de um homem capaz de desmascarar uma mentira.

— Eu não a desmascarei quando você escondeu de mim a verdade sobre meu pai.

Ela fez uma careta. Aquela sempre seria uma ferida aberta, e não havia nada que pudesse fazer para curá-la.

— Você parece se esquecer de que também mentiu — respondeu, enfrentando-lhe o olhar. — Enganou-me desde que eu tinha dezessete anos, e vim a saber da verdade por intermédio de Audrey.

Os lábios morenos formaram uma linha fina.

— Não lhe contei nada para seu próprio bem. — Cecily levantou uma das mãos.

— Exato. Que bem lhe teria feito saber que Matt era seu pai antes de a verdade aparecer?

Ele não respondeu. Dentro dos bolsos, suas mãos se apertaram até doer.

— Matt se afligiu muito ao buscar a maneira mais apropriada de lhe falar — Cecily continuou, a voz mais suave. — Se ele quisesse, teria mantido isso em segredo para o resto da vida. Leta faria o mesmo.

— Por quê?

— Porque você tinha um orgulho enorme de ser um lakota puro. Nada mais lhe importava. Seus pais sabiam como a verdade iria magoá-lo. Leta temia que você a odiasse quando descobrisse a história.

— Jack Winthrop me odiava.

— Sim, odiava. Porque não podia ter seus próprios filhos. Você era uma lembrança constante desse drama. Ele amava Leta, que amava outro homem. Você também lhe evocava isso.

Tate desviou a vista.

— Mas foi uma mentira. E ainda perturba. — Cecily assentiu.

— Até mesmo "boas" mentiras fazem estragos — disse, pensativa.

Tate contemplou a parede por um momento antes de voltar a encará-la.

— Certo. Se você está determinada a permanecer aqui, vou manter dois homens por perto, vigiando-a vinte e quatro horas por dia. — Ergueu a mão quando notou que ela ia protestar. — Colby não entrou em contato com nenhum de nós. Desse modo, ainda deve estar fazendo alguma investigação fora do país. A solução que propus é a única. Não vou permitir que a matem.

— Grata — ela murmurou.

— Mas quero uma resposta direta para uma pergunta. — Cecily refletiu por alguns instantes sobre o pedido.

—  Se eu puder dá-la... — respondeu por fim. Tate chegou mais perto.

—  Por que não quer que eu fique aqui?

Aquela era uma questão complicada, e ela não ousaria falar a verdade. Admirou o rosto atraente, amado.

— Você não me pertence — respondeu, escolhendo as palavras com cuidado. — Está noivo de outra mulher.

Tate franziu a testa. Não era aquela a resposta que esperava. Ia lhe dizer a verdade sobre seu relacionamento com Audrey quando a campainha soou. Virou-se, a mão já na arma calibre 45, e dirigiu-se à porta.

Cecily percebeu que ele esperava problemas e que estava acostumado a lidar com situações mortais. Era a primeira vez que o via fazer isso, a despeito do tempo em que se conheciam. O fato lhe deu uma perspectiva nova e adulta sobre o estilo de vida do homem que amava.

Ele jamais se estabeleceria e formaria uma família. Fora uma tola em pensar assim, mesmo que apenasem fantasias. Tate era uma pessoa acostumada ao perigo e adorava os desafios que isso apresentava. Mantê-lo casado seria como criar um tigre dentro de um apartamento. Cecily suspirou ao ver seu último e esfarrapado sonho de um futuro ao lado daquele homem sumir no ar como fumaça.

Tate espiou pelo olho mágico e soltou a pistola. Fitou-a com uma expressão que ela não soube definir, antes de abrir a porta de maneira abrupta.

Colby Lane entrou, as sobrancelhas erguidas, novas cicatrizes no rosto.

— Colby! — Cecily exclamou, com alegria exagerada. — Bem-vindo ao lar!

O semblante de Tate se anuviou. Foi como se ele tivesse levado um golpe.

Colby notou e sorriu para Cecily.

— Estou interrompendo alguma coisa? — perguntou, olhando de um rosto tenso para outro.

— Não — Tate respondeu em um tom gelado enquanto colocava a arma de volta ao coldre. — Estávamos discutindo opções de segurança. Mas, se você vai estar por perto, isso não será necessário.

— Como?

— Tenho certeza de que o pessoal da máfia do jogo tentou assassiná-la — ele prosseguiu com ar sombrio, olhando na direção de Cecily. — Um carro quase a atropelou, no estacionamento do museu. Ela foi parar em um hospital. E decidiu não contar isso a ninguém — acrescentou com a fisionomia carregada.

— Má notícia, menina — Colby comentou, mal-humorado. — Você poderia ter acabado no cemitério. Eu lhe disse, antes de viajar, para tomar cuidado. Não me ouviu?

Ela o fitou com raiva.

— Não sou uma ingênua. Posso chamar a polícia — respondeu, insultada.

Colby voltou o olhar para Tate.

— Você cortou o cabelo.

—  Cansei de usar tranças e rabos-de-cavalo — foi a resposta seca. — Bem, devo voltar ao trabalho. Se precisarem de mim, estarei por aí. — Parou junto à soleira. — Fique de olho nela — pediu a Colby. — Está correndo perigo.

— Não preciso que um homem forte me proteja. Posso me manter fora de problemas sozinha, obrigada.

Tate lhe dirigiu um olhar longo e doloroso antes de sair e fechar a porta.

Enquanto descia a escada do prédio, não conseguia afastar da memória a maneira como ela se comportara. Havia algo definitivamente errado com Cecily. Precisava descobrir o que era.

Ela preparou mais café. Colby levou a bandeja para a sala antes de sentar-se em frente a Cecily, carrancudo. Colocou a maquininha de distorcer vozes sobre a mesinha, com um sorriso seco.

— Ele ainda não sabe, não é?

Cecily fez que não com um gesto de cabeça, pegando a xícara e acrescentando creme com adoçante.

— Se depender de mim, nunca saberá. — Recostou a cabeça na poltrona. — Talvez eu possa encontrar um emprego longe daqui, em alguma cidadezinha.

— Não acho que você deva sair de Washington — Colby respondeu, acomodando-se no sofá e fazendo uma careta, como se isso lhe doesse.

— O que aconteceu dessa vez, meu amigo?

— Ferimento a bala. O maldito atirador não acertou o braço artificial por alguns milímetros. Odeio gente que não sabe atirar direito.

— Quantos tiros?

— Um só. No ombro. Mas já está bem melhor. — Balançou a cabeça. — Estou ficando muito velho para essas coisas. Tenho tantos ossos quebrados que não posso mais me movimentar com agilidade.

Ela deu um sorriso amplo.

— Um dia você encontrará uma mulher que o fará trocar o perigo por um lar. — O sorriso se apagou. — Você e Tate são iguais. Ele adora esse trabalho. Provavelmente a adrenalina o faz viver. Engraçado... Eu não entendia isso antes. Agora, de repente, tudo se tornou bastante claro. Eu estava me iludindo.

Colby suspirou.

— O que o mantém longe de você é mais do que a herança indígena. Sei disso, mas não consigo lhe explicar. Trabalhos como os nossos exigem sacrifícios. Qualquer tipo de relacionamento pode tirar a concentração de que precisamos quando nos encontramos sob fogo cruzado. Um homem que tem algo a perder não pode ser enviado a missões suicidas. Se ele tirar o objetivo do pensamento durante um minuto, será morto.

— Agora compreendo isso.

Colby dirigiu o olhar para a cintura feminina.

— O que você vai fazer?

— Partir — foi a resposta decidida. — Você precisa me ajudar. Não quero que Leta e Matt saibam do bebê. Tenho de arrumar um trabalho em algum lugar distante, longe o suficiente para que os repórteres não me encontrem.

Ele fez uma careta.

— Não existe nenhum bom local para grávidas solitárias.

— O que apenas prova que Washington também não o é. Se eu ficar em algum lugar inacessível, ao menos terei uma chance maior de não ser assassinada!

— Oh, não. — Colby levou o rosto às mãos. — Querida, essa é uma situação sem saída, sabe?

— Acha que não estou ciente disso? Todas aquelas conversas sobre prevenção que Tate tinha comigo, quando eu era adolescente... e olhe para mim agora!

Ele sorriu, a despeito da gravidade da situação.

— A gravidez combina com você. Há uma luz especial a seu redor.

— A única coisa "especial" que conheço atualmente é o enjôo — Cecily respondeu secamente. — E a azia.

— Mas está com uma aparência saudável.

— Só tomo café descafeinado, milkshake de morango e gelo picado. Ora, vamos, Colby. Precisa me ajudar a encontrar um local para hibernar até isso tudo passar.

— O melhor lugar é ao lado de Tate.

Ela sentiu o coração acelerar.

— Não há nenhum futuro para nós.

Colby deixou sair o ar que prendera.

—  Compreendo como se sente, acredite. Mas fugir é a pior atitude a tomar. Vi um dos homens de Tate na entrada do prédio, quando subi. Você está sendo vigiada o tempo todo. Não pretendo ser o responsável por ajudá-la a se mudar para algum local onde possa correr riscos. E Tate me mataria se algo lhe acontecesse.

— Ele deve tê-lo machucado muito...

— Não estou brincando. Você não entende como ele se sente a seu respeito. Sai do normal quando a vê ameaçada. — Estudou-a por um longo momento. — Diga-me... como acha que Tate ficaria se soubesse que você carrega um filho dele?

O coração feminino quase saltou do peito. Cecily levou uma das mãos ao ventre e suspirou.

— Não sei. Ele... ama pequenos seres — respondeu depois de um momento, lembrando-se de Tate com umasucessão de animais domésticos, ao longo dos anos. — Também adora crianças. Sempre promove uma festa na escola da reserva, por ocasião do Natal, e ajuda a distribuir os presentes. Os meninos o veneram.

— Tate ama as crianças, sim. E quer ter a sua.

Ela baixou a cabeça e suspirou.

— Talvez. Ou talvez isso o faça sentir-se pego em uma armadilha. — Apoiou a cabeça nas mãos. — Que grande confusão! Não sei o que fazer.

— Nesse caso, não faça nada.

Cecily sorriu.

— Bom conselho.

O que não queria dizer que pretendia segui-lo, pensou, uma hora depois, enquanto arrumava a mala. Não contara seus planos a Colby porque tivera medo de que ele os revelasse a Tate. Pelo mesmo motivo, tampouco poderia falar sobre isso a Leta e a Matt. A única solução seria tomar um trem, um ônibus, um avião e simplesmente desaparecer. E era exatamente isso o que iria fazer.

 

Um avião teria sido a melhor escolha, mas Cecily solicitara e conseguira uma vaga em um pequeno museu comunitário de uma cidade do Tennessee que não tinha aeroporto. Assim, precisaria ir de ônibus até Nashville e alugar um carro para chegar a Cullenville. Era mais fácil do que esperar o único veículo da única companhia que servia a cidade.

Ela já empacotara a maior parte de suas coisas. Incluindo os eletrodomésticos. Levaria apenas as roupas de que necessitaria, além dos livros e documentos mais importantes. Era um tanto complicado carregar a bagagem com o pulso deslocado, mas seus companheiros de viagem se mostraram atenciosos e gentis.

Fora difícil deixar o trabalho no museu, em especial antes da volta de Leta e Matt. Mas era a melhor solução. Tate desconfiara do motivo de ela ter pedido ao hospital que mantivesse seu estado em sigilo. Não gostava de mistérios, e possuía um excelente faro para elucidá-los. Cecily não permitiria que ele descobrisse sobre o bebê. Isso faria com que todo o seu esforço fosse em vão.

Era bom saber que Tate se preocupava com sua segurança, mas, no fundo, esse não passava de um velho hábito. A longo prazo, a mudança seria para melhor.

Não conseguiria evitá-lo morando na mesma cidade. Com o tempo ele acabaria se reconciliando com Leta e com Matt, e Cecily seria obrigada a ouvir falar em Tate e Audrey o resto da vida. Fugir era mais interessante do que isso.

Colby ficou furioso quando ela telefonou da estação rodoviária de Washington, mas sem contar onde se encontrava, e o informou de que estava saindo da cidade. Ele suplicou que lhe dissesse para onde ia, mas não foi atendido. Cecily simplesmente desligou o aparelho.

A viagem de ônibus foi longa e difícil por causa da náusea, que agora parecia ser sua companhia mais constante. A primeira coisa a fazer, ao chegar, seria procurar um obstetra. O museu lhe garantira o aluguel de uma casinha mobiliada, e ambos ficavam a apenas duas quadras um do outro. Seu trabalho, ali, seria mexer com artefatos paleoíndios do vale do Tennessee. O museu não era grande, nem o salário, mas bastaria para uma vida quase confortável. Além disso, essa era sua área de especialização. Tivera sorte em encontrar um serviço assim tão depressa.

No fundo, porém, temia estar colocando a criança e a si mesma em perigo. Mas, se tomasse o cuidado de não deixar rastros a ponto de Colby não a achar, provavelmente a máfia do jogo também não a encontraria. Quanto a Tate, bem, julgaria seu desaparecimento um alívio. Poderia tocar a vida sem problemas.

 

Tate Winthrop estava mantendo uma longa e relutante conversa telefônica com Audrey, que se convencera de que iria se casar com ele no Natal.

— Não haverá casamento algum. Eu já lhe disse isso.

— Cecily declarou aos jornais — a socialite respondeu em tom áspero. — Você deve ter-lhe falado. Opior, porém, foi ela haver contado à imprensa sobre aquele episódio horrível da adolescência. Céus, essa moça deve odiá-lo muito para embaraçá-lo dessa maneira em público!

Tate pensava do mesmo modo. Enfurecia-o o fato de Cecily não atendê-lo ao telefone, nem no apartamento, desde o último encontro. Ele descobrira que sentia sua falta a ponto de não poder dormir nem concentrar-se no trabalho. Estava preocupado com sua segurança, mesmo mantendo um vigia no prédio. Não precisava ter discutido com ela. E devia ter-lhe dito a verdade sobre Audrey. Mas, obviamente, nesse caso Cecily cavara a própria cova. Noticiara um casamento que nem sequer existiria.

— Fui cruel com ela — disse Tate, procurando defendê-la. — Mas, a despeito da história contada pelos tablóides, não tenho nenhum plano em relação ao casamento. Você sabe disso. Fomos amigos, saímos juntos. Nunca houve nada além disso.

Houve uma pausa.

— Não pense que essa fulaninha irá tê-lo de volta — Audrey afirmou em um tom venenoso. — Eu lhe disse que você não a queria, e que jamais se casaria com ela. Disse-lhe também que saísse de sua vida e o deixasse em paz.

Tate prendeu a respiração.

— Você disse o quê?

— Cecily sabe que você a odeia. Nem mesmo argumentou. Que tola! É tão apaixonada que seria capaz de tudo para fazê-lo feliz, até mesmo vê-lo casado com outra. Quando lhe contei que iríamos nos casar, e que eu já mandara confeccionar o vestido, ela nem mesmo questionou o fato. Também não fez perguntas quando lhe falei que estávamos vivendo juntos, depois de você voltar de Dakota do Sul.

Foi então que Tate começou a se dar conta do tamanho da ferida que Audrey abrira. Não era à toa que Cecily o tratara daquela maneira. E ele nem ao menos esclarecera as coisas!

— Se você não se casar comigo — continuou a socialite, em tom de ameaça — sua reputação estará arruinada. Darei aos jornais de fofocas uma história muito melhor sobre você e Cecily, quando ela era apenas uma adolescente. Posso descobrir coisas. Sou rica. Vou contratar um detetive particular para averiguar o passado.

— Se você a magoar, seja como for, pagará por isso. Deve se lembrar do que fiz para viver antes de trabalhar para Pierce Hutton. Se houver algo de escandaloso em sua vida, pode estar certa de que lerá a história completa nos mesmos jornais que usar para me prejudicar.

— Você não faria isso!

— Vá em frente e verá.

Dito isso, Tate desligou, mal conseguindo conter a raiva. Telefonou para um repórter que conhecia. Era a hora da vingança. Audrey leria sobre o "cancelamento" do matrimônio em todos os jornais, no dia seguinte.

Em seguida, ligou para Cecily mais uma vez. E escutou uma mensagem da companhia telefônica, avisando que aquele número estava desativado. Bateu o fone, furioso.

Correu os dedos por entre os cabelos e refletiu sobre a reviravolta em sua vida desde que Cecily lhe atirara a terrina com o creme de caranguejo. Perdera a herança lakota, descobrira que seu pai verdadeiro não era Jack, seduzira Cecily, voltara-se contra a própria mãe, fora crucificado por Audrey na mídia...

E, para terminar, a mulher que tanto desejava não queria nada com ele. Com razão, por sinal. Não conseguia encontrar um único motivo pelo qual Cecily haveria de querê-lo. Principalmente depois de terem se tornado íntimos, e de Tate iludir-se com a tola certeza de que ela estaria disposta a viver a seu lado. Tratara-a muito mal nos dois últimos anos. Em especial nos dois últimos meses.

Observou seu sofisticado apartamento com um olhar indiferente. Tinha seu trabalho, de algum modo chegaria a um bom termo com o pai e voltaria a viver em paz com Leta. Mas causara um dano irreparável a seu relacionamento com Cecily. O medo de amar a mantivera fora de sua vida. Não a quisera por perto por temer que isso não bastasse. Recebera tão pouco amor na vida... Quer dizer, além da mãe, ninguém lhe dera afeto.

Na verdade, não acreditava nesse sentimento. Principalmente por ter visto o que Leta passara ao lado de Jack, e por sua atormentada infância. Se aquilo era amor, preferia não vivê-lo.

Mas então lembrou-se dos braços suaves de Cecily enlaçando-o, de sua generosidade no momento em que ele precisava tão desesperadamente de conforto, e gemeu. Cecily desejava amá-lo por anos e anos, mas fora rejeitada. Até mesmo quando a seduzira, ele fora movido por motivos egoístas. Chegara a culpá-la por ter fabricado histórias para os jornais sensacionalistas quando, no fundo, sabia que Audrey se achava por detrás de tudo aquilo, com sua obsessão por tirar Cecily do caminho.

Cometera tantos erros... Tantos malditos erros! E agora teria de enfrentar uma existência sem Cecily e sem Leta, as duas únicas mulheres no mundo que realmente amava. O pai verdadeiro o odiava. Bem, mas não podia culpá-lo por havê-lo socado, depois de tudo o que dissera à mãe.

Tate deu um sorriso triste. Matt tinha um temperamento selvagem. E sabia utilizar muito bem os punhos. Lembrou-se do que ele dissera sobre o Marrocos. Então, em um impulso, ligou o computador, conectou-se à Internet e começou a buscar informações sobre aquele país distante. Enquanto navegava pela rede mundial, procurando também alguma coisa acerca dos berberes, odiou a si mesmo por estar tão interessado na terra natal do pai.

Naquele momento, o telefone tocou. Imaginando tratar-se de Audrey, ele ignorou o chamado. Por outro lado, estava tão fascinado pelo Marrocos que não queria ser interrompido.

Mas o telefone continuou tocando. Uma, duas, dez vezes. Bem, talvez fosse Pierce Hutton. Talvez fosse melhor atender. Irritado, levantou-se e pegou o aparelho.

—  Sim? — indagou, impaciente.

Houve uma pausa do outro lado da linha.

— Você seria incapaz de acreditar quanta gente tive de subornar para conseguir seu novo número. Mas não pensei que fosse atender, sabe? — disse Colby, relutante. — O fato é que não sei como lhe dar uma certa noticia.

— Você e Cecily vão se casar — Tate respondeu com sarcasmo, odiando a idéia e procurando não demonstrar isso. — Não posso dizer que seja uma surpresa. Mais alguma coisa?

Outra pausa.

—  Cecily não vai se casar comigo.

— É mesmo? — Tate jamais admitiria como aquela afirmativa o deixara aliviado. — E...

Colby soltou um riso amargo.

— Cheguei a pensar que essa fosse a melhor coisa a fazer. Mas agora já não tenho tanta certeza disso.

— Ouça, não me interessa conhecer os detalhes dos seus romances — foi a resposta seca, dada com voz gelada. Mas então Tate hesitou. Sentiu o coração disparar, e o sangue gelar, ao se dar conta de que poderia haver um motivo muito sério por detrás daquela ligação. — Alguma coisa aconteceu a Cecily?

— Ela não está ferida, se é o que o preocupa. É que não fui capaz de encontrá-la. — E acrescentou, quase como se falasse consigo mesmo: — Bem, mas talvez o pessoal da máfia do jogo também não seja.

Tate sentiu um aperto no peito. Saiu da Internet e desligou o computador.

— O que está acontecendo? — perguntou no mesmo tom que costumava usar nos velhos tempos, quando era grande amigo de Colby.

— Cecily desapareceu. Partiu, e não consigo achá-la. Acredite, lancei mão de todos os contatos que pude usar ou comprar. Ela não deixou pistas.

Tate quase parou de respirar.

— Ela... partiu?

— Ao que tudo indica, sim. Seu telefone foi desligado, e o administrador do apartamento disse que ela pagou o aluguel dos dois próximos meses, período em que deve mandar buscar o resto da mudança.

— Ah, não! Não sabemos onde Cecily está e o pessoal do jogo ainda anda atrás dela! Contou-lhe isso?

— Contei. Ela então falou algo sobre sair da cidade, mas não a levei a sério. Achei que fosse apenas uma hipótese. Disse-lhe como seria perigoso ir a lugares onde não pudesse contar com proteção, e que, se os mafiosos já a haviam ameaçado uma vez, fariam isso de novo. Mas parece que não fui ouvido.

— Céus! — Tate exclamou em um tom estrangulado, imaginando todos os perigos que Cecily corria. Eradevastador pensar nela sozinha em alguma cidade estranha. Por que não lhe ocorrera que o telefone fora desligado por motivo de mudança de endereço? — Talvez ela tenha ido até Nassau, para ver Leta.

— Não foi. Chequei a informação no aeroporto. Investiguei as listas de passageiros de todos os vôos.

— E Wapiti? Quem sabe Cecily tenha decidido ir até a reserva...

— Também não está lá. Pediu demissão do museu, abandonou o apartamento. E não deixou o novo endereço.

— Há quanto tempo ela partiu?

— Aí é que está o problema. Não faço a menor idéia. Tive de realizar um trabalho rápido, que me manteve fora da cidade por uns tempos. Droga, Tate, pensei que você a estivesse vigiando!

— E estava! Mantive um homem observando o apartamento por mais de uma semana!

— E por que esse homem não notou que Cecily se foi?

— Vou verificar e depois entrarei em contato. Você está em casa?

— Sim.

Tate desligou. Decidiu não perder tempo e telefonou para o segurança que vigiava Cecily. Mas não obteve resposta, o que era intrigante. Tentou outro número, o de um ex-associado.

— Onde está Wallace? -— indagou, sem preâmbulos.

— Espere um pouco. Vou perguntar ao pessoal daqui. Ei, alguém viu Wallace? — Ouviu-se uma resposta ao longe. — Droga! Por que não disseram antes? E por que ninguém se incomodou em nos avisar? — esbravejou o homem, falando com alguém no escritório.

— O que houve? — Tate quis saber, impaciente.

— Sinto muito, mas Wallace teve um infarto fulminante há três dias. Não posso acreditar que nenhum de nós desconhecesse o fato! Mas... Ei! Alô?

Tate já desligara o telefone. Passou os dez minutos seguintes suando frio, ligando para velhos colegas, fazendo o possível para descobrir aonde Cecily fora. Tudo em vão.

Telefonou para Colby.

— Não descobri coisa alguma, mas já acionei a rede de investigadores. Vou encontrá-la.

— O problema é que ela não deseja ser encontrada. E isso não vai tornar as coisas mais fáceis.

Tate não queria perguntar, mas foi incapaz de resistir:

— Por que Cecily não quer ser encontrada?

— Porque você vai se casar com Audrey no Natal — Colby respondeu simplesmente.

— Não vou me casar com Audrey. Nunca pretendi fazer isso. Ela me deu uma rasteira enquanto eu servia de banquete para a mídia.

— Bem, mas Cecily não sabe disso.

— Grande! Saí do país e, quando voltei, recebi a notícia de que ficara noivo de uma mulher que jamais pretendi ter, a nenhum preço!

— Esse não foi o único motivo pelo qual Cecily partiu —  Colby acrescentou. — Ela também sabia que você não iria perdoá-la por não lhe contar a verdade sobre Matt Holden.

Tate correu os dedos por entre o cabelo.

— As últimas semanas foram terríveis, para mim.

— Para ela também.

— Cecily devia ter me contado sobre Leta e Holden!

— Ela prometeu não contar e manteve a palavra. Não há muita gente neste planeta que faça isso. Cecily jurou ao senador que não lhe diria coisa alguma.

O senador. Seu pai. Tate começou a andar de umlado para outro, procurando pensar nas cidades a que ela poderia ter ido.

— Cecily deve ter contado a Leta para onde foi.

— Aposto tudo o que tenho como não contou — respondeu Colby, — Ela não quer ser encontrada por você.

Tate parou de caminhar. Fez uma careta.

— Não quer que eu a encontre?

— Na verdade, pretende manter distância de todos nós. Mas principalmente de você.

Ele estreitou os olhos, pensativo.

— Há algum motivo para isso que eu desconheça?

— Oh, céus! — Colby vociferou antes de continuar: — Acho que não devo lhe dizer. Mas, se alguma coisa acontecer a ela...

— Droga, diga logo!

Colby respirou fundo para tomar coragem.

— Certo. Cecily está grávida. Foi por isso que fugiu.

— Seu... seu filho da...

O telefone foi batido com tanta força que Colby estremeceu ao ouvir o barulho. Colocou o fone no gancho com uma careta. Não devia ter revelado o segredo de Cecily. Porém, o que mais poderia fazer? Ela estava grávida, sozinha, e um atentado contra sua vida já fora cometido. Se não tivesse contado a verdade a Tate, e Cecily acabasse ferida, ou perdesse o bebê, nunca se perdoaria por isso.

 

Tate jamais se sentira tão traído. Primeiro pela mãe, depois por Cecily e agora por Colby. Cecily engravidara e fugira. Por que Colby não a acompanhara, para ter certeza de que estaria bem?

Parou de atirar os móveis de um lado para outro, procurando aplacar a raiva. Respirou fundo, franzindo a testa ao se lembrar do encontro apaixonado que ambos tiveram em Dakota do Sul. Não usara preservativo. E o que dizer então do ardente interlúdio no carpete do escritório dela, no museu? Também naquela ocasião Tate não se preocupara em protegê-la, na hora de fazer amor.

O filho que Cecily esperava podia ser seu!

Prendeu a respiração. Claro que podia. Era seu. Cecily o amava. Não fugira por causa de outro homem.

No entanto, achava que ele iria se casar com Audrey. Por isso, decidira se afastar. Partira para ter o filho sozinha, de modo a não lhe criar embaraços. Estava agindo com ele do mesmo modo como Leta agira com Matt Holden, trinta e seis anos atrás. Acreditava fazer aquilo pela felicidade do homem que amava.

Pela primeira vez, Tate se deu conta de como seu pai devia ter se sentido. E isso o atingiu profundamente.

Cecily carregava um filho seu, e alguém tentara assassiná-la. Isso o deixava doente. Sentou-se, terrificado com as coisas que lhe dissera, pelo modo como a tratara. Por isso ela desaparecera sem deixar vestígios. Casos assim aconteciam todos os dias. As pessoas sumiam por um motivo ou por outro, e nunca mais eram encontradas. E se isso acontecesse com Cecily? Aí, ele jamais conheceria o filho. E nunca mais a veria.

O telefone tocou mais uma vez. Tate atendeu no primeiro toque.

— É Tate Winthrop quem fala? — indagou uma voz desconhecida.

Ele gelou.

— Isso mesmo.

— Trabalho para um conhecido seu. Quero lhe falar sobre a srta. Peterson.

— Cecily? — Tate perguntou, surpreso.

— Sim. Sei quem tentou atropelar sua ex-protegida. Quis impedir, mas meu carro estava do outro lado do estacionamento. Não tive tempo para agir.

— Entendo. E quem tentou matar Cecily?

— Um certo sr. Gabrini, que trabalha para uma facção dos controladores do jogo cuja base fica em um Estado próximo. Ele está fora da prisão, embora condenado por fraude, chantagem e lavagem de dinheiro. Quer se vingar do senador Holden, que o levou aos tribunais. A srta. Peterson é amiga de Holden e um alvo fácil. — Fez uma pausa. — Também devo lhe dizer que o sr. Gabrini contratou um detetive particular para "grampear" o apartamento dela. Eu só soube disso hoje, quando finalmente peguei o tal detetive.

Tate soltou a respiração que até então prendera.

— Onde está Gabrini?

 — Não sei. Mas, se eu fosse você, procuraria ter certeza de que a srta. Peterson está sob proteção vinte e quatro horas por dia. Gabrini não tem nada a perder.

— Quem é você?

O outro riu por entre os dentes.

— Micah Steele. Trabalhamos juntos dez anos atrás. - Tate procurou na memória e lembrou-se do loiro cheio de cicatrizes, do tamanho de uma casa, que falava quatro idiomas e era um gurmê de primeira linha.

— Eu me recordo de você.

— Estava trabalhando em um caso quando o nome de Gabrini veio à tona, e comecei a investigá-lo.

— Ele terá sorte se viver o suficiente para ser preso. Se eu o encontrar antes disso...

— Sei como se sente. Bem, deve contar isso à srta. Peterson, para que ela fique de olhos bem abertos.

— Eu adoraria — Tate respondeu, acrescentando silenciosamente: "Se conseguisse encontrá-la".

— Se precisar falar comigo, estou no Departamento de Justiça.

— Obrigado, Steele.

— Você me fez um favor no passado, embora talvez tenha se esquecido disso. Estou apenas retribuindo. Boa noite.

— Boa noite.

Tate desligou e ficou ali, parado, sentindo-se um tigre enjaulado. Então o pessoal da máfia do jogo estava mesmo buscando vingança, hein?

Ele fechou os punhos, furioso. Gabrini iria pagar por aquilo, de um jeito ou de outro. Mas, no momento, sua única preocupação era Cecily, que estaria em perigo enquanto Gabrini continuasse solto.

Onde ela estaria? E como encontrá-la? Isso levaria tempo, mesmo que recebesse a ajuda de todos os seus contatos. Pensou no homem da máfia do jogo, que devia ter conexões próprias. Precisava achá-la antes dele. E procuraria não pensar em sua condição de grávida. Do contrário, enlouqueceria.

 

O museu era encantador. Cecily comemorou o Natal com uma arvorezinha minúscula, em sua nova casa. Convidou os vizinhos, um casal idoso, para um café e uma torta na véspera do dia santo. Os Martin eram pessoas gentis e tinham muita simpatia pela futura mamãe que perdera o marido em uma plataforma de petróleo.

Cecily sentia-se culpada pela mentira, mas precisava pensar no futuro. Aquela era uma comunidade rural pequena e unida. Seu filho não começaria a vida sob o estigma de um escândalo.

A maior parte de suas tarefas, no museu, dizia respeito à guarda das peças. Mas já tivera algumas idéias para ajudar no objetivo de aumentar o acervo e atrair mais turistas. Discutira-as com o curador principal, que se empolgara com elas. Seu chefe era um viúvo muitos anos mais velho, de maneiras agradáveis e sorriso simpático.

Cecily estava otimista quanto às possibilidades de reconstruir sua vida ali em Cullenville. Já tivera problemas demais, principalmente nos últimos tempos. Esperava ao menos que seu perseguidor não soubesse onde encontrá-la. Ter ido para aquela cidadezinha fora um risco calculado. Era tão distante que nem Tate nem Colby puderam seguir seus passos. Talvez o tal perseguidor, fosse ele quem fosse, finalmente desistisse da caçada.

Ela levou a mão ao ventre e sonhou com o Natal seguinte, quando já teria a filha, ou o filho, a seu lado. Seria maravilhoso ter alguém a quem amar.

 

Era quase Ano-Novo quando Tate, impaciente, conseguiu rastrear pistas e encontrar um motorista de ônibus que cumpria uma licença por doença e que se lembrava de ter visto uma jovem com um curativo no pulso e uma mala. A descrição conferia com Cecily.

O homem, de meia-idade, sorriu.

— É difícil esquecer aquele curativo. Ela era orgulhosa demais para pedir ajuda, mas todos se ofereceram para auxiliá-la. Disse a um rapaz que a mala estava pesada porque continha muitos livros, e que isso se devia ao fato de ela estudar a história dos norte-americanos nativos.

O coração de Tate deu um salto.

— E para onde essa moça foi?

— Para Nashville. Tive de lhe mostrar o caminho, no terminal, porque seria preciso trocar de ônibus. Deixe-me lembrar... aonde mesmo ela desejava ir? Clarksville? Não. Parecia uma cidadezinha ainda menor do que essa. — O homem refletiu por um momento, enquanto Tate aguardava com impaciência contida. — Cullenville! Isso mesmo. Ela ia trabalhar no museu de lá. Garota inteligente. Sabia tudo sobre os primeiros nativos que habitaram aquelas montanhas.

Tate agradeceu a informação, deu ao homem uma nota de vinte dólares e voltou a seu apartamento, para reservar um lugar no primeiro vôo que saísse para o Tennessee.

Antes disso, foi visitar Audrey, para deixar a situação clara como cristal. Surpreendentemente, ela admitiu que um problema com drogas lhe tirara o juízo crítico. Desculpou-se por ter inventado as notícias sobre a sedução de Cecily, na adolescência, e sobre o falso noivado. Até mesmo ofereceu-se para defendê-lo diante de Cecily. Tate a colocou em contato com uma psicóloga e a ajudou a encontrar um centro de tratamento para adictos.

Esperava que a moça permanecesse ali por algum tempo. Culpava-a pela partida de Cecily, embora soubesse que uma grande porção da responsabilidade lhe pesava sobre os ombros. Agora, precisava enfrentar o fato de que agira assim apenas para evitar que ela percebesse como se sentia.

Conseguiu também levantar a ficha de Gabrini. O homem tinha problemas com a lei desde a adolescência, e fora capaz de livrar-se de dois indiciamentos por assassinato. Tinha um temperamento violento e fama de vingativo. Diziam que nunca sossegava enquanto não terminava aquilo que começava. Tate temia pela segurança de Cecily.

Com impaciência, começou a ligar para o aeroporto, a fim de fazer uma reserva para Nashville. Foi então que percebeu que não saberia o que dizer quando a encontrasse. Isso o deteve por um minuto, não mais. Ela estava em perigo por causa de Gabrini, e não fazia idéia disso. Assim, ele teria de pensar em uma desculpa durante a viagem.

Reservou um lugar para a manhã seguinte. Depois, sentou-se e avaliou os últimos acontecimentos.

Pensou no filho e seu coração disparou. Perguntou-se se seria parecido com o pai ou com a mãe, se seria menina ou menino. Seu olhar se suavizou quando ele se lembrou de quanto Cecily amava as crianças, de quão terna e amorosa seria com seu próprio filho. Ela o amava havia tanto tempo...

Gemeu. Provavelmente Cecily não o amava mais. Amargurado, levantou-se e caminhou de um lado para outro, desejando saber o que lhe falar. Então lhe ocorreu que o personagem central daquela maldita confusão devia ter algumas sugestões sobre o assunto. Afinal, persuadira uma mulher a voltar para seus braços depois de trinta e seis anos de ausência e muito ressentimento...

 

Tate ligou para a casa do senador Holden e foi informado de que o casal chegara na noite anterior. Não pediu para falar com a mãe ou com Matt. Mas precisava de conselhos, e achava que o mais lógico seria pedi-los ao pai, a despeito do conflito que ambos viviam. Dirigiu-se a Maryland, o pensamento voltado para Cecily e o filho, preocupado sobre se conseguiria convencê-la a voltar a Washington.

Porém, estava mais preocupado ainda com Gabrini e sua tentativa de vingança. Arrepiava-se só em pensar que o criminoso poderia encontrá-la.

A governanta de Matt o deixou entrar com um sorriso.

— Não se preocupe. Hoje vim em missão de paz. Sou inofensivo — Tate foi logo avisando enquanto a funcionária o conduzia ao estúdio contíguo à entrada, onde o senador se encontrava.

— Certo. Você e duas estranhas espécies de cobra — Matt murmurou com sarcasmo, fitando o filho com expressão surpresa. — O que quer? Um soco do outro lado do rosto, para combinar com o primeiro?

Tate levantou ambas as mãos.

— Não comece — pediu.

Matt avançou com certa relutância e fechou a porta do estúdio.

— Sua mãe foi fazer compras — avisou.

— Ótimo. Não vim falar com ela.

As sobrancelhas do senador se ergueram, em sinal de perplexidade.

— Não?

Tate acomodou-se na cadeira em frente à enorme poltrona do pai.

— Preciso de um conselho.

Matt levou a mão à testa.

— Não posso acreditar que uma única dose de uísque tenha sido capaz de me provocar alucinações! — comentou.

Tate o contemplou de modo furioso.

— Você não é uma de minhas pessoas favoritas, mas ultimamente parece conhecer Cecily melhor do que eu.

— Ela o ama — o senador respondeu simplesmente.

— Não é esse o problema. — Tate inclinou-se para a frente, as mãos espalmadas sobre os joelhos. — Mas devo dizer que fiz tudo o que estava em meu poder para que ela desistisse desse sentimento.

Matt ficou em silêncio por um ou dois minutos.

— O amor não morre assim facilmente — disse por fim. — Sua mãe e eu somos um exemplo disso. Não nos vimos por trinta e seis anos, mas, no momento em que nos encontramos, esse tempo pareceu não existir. Éramos jovens e apaixonados de novo.

— Não posso esperar trinta e seis anos — ele afirmou. Olhou para as mãos e então soltou um longo suspiro. — Cecily está grávida.

O senador se manteve quieto por tanto tempo que Tate ergueu a vista, percebendo a raiva contida na fisionomia do pai.

— O filho é seu? — foi a pergunta direta.

Ele o fitou com ar ameaçador.

— Que tipo de mulher acha que ela é? Claro que o filho é meu!

Matt sorriu. Recostou-se na poltrona e olhou para o filho, avaliando as semelhanças e diferenças entre os traços de ambos. Sentiu-se feliz ao notar que as semelhanças eram muitas.

— Somos muito parecidos — Tate comentou, adivinhando o porquê daquela análise detalhada. — Engraçado, mas eu jamais havia notado isso.

— Provavelmente porque nunca nos demos muito bem.

— Ambos somos teimosos, inflexíveis.

— E arrogantes.

Tate deu um riso seco.

— Talvez.

— Ouça, eu disse algo a Leta que também devo dizer a você. Sinto muito por tudo o que teve de passar quando menino...

— Não é preciso. Nenhum de nós pode mudar o que já aconteceu — ele respondeu em tom calmo. — Foi quase um alívio saber que Jack Winthrop não era meu pai. Isso me ajudou a compreender por que ele me odiava tanto. Não culpo você, Holden. Minha mãe sabe mesmo guardar segredos, não acha?

— Concordo. Mas desejaria que este, em especial, ela não tivesse guardado — afirmou Matt, desviando a vista. Era difícil falar aquelas coisas. Elas, porém, precisavam ser ditas. — Se eu tivesse ao menos uma vaga idéia de que você era meu filho, teria varrido o chão com aquele seu maldito padrasto!

Tate tocou o rosto onde o pai o acertara e sorriu.

— Entendo o que quer dizer. Não posso subestimá-lo por causa da idade. Seu golpe é forte e certeiro.

— Reagi a uma provocação — lembrou-o Matt.

— Sim, eu sei, Eu estava fora de mim. Sinto muitopor ter dito aquilo a minha mãe. Quando ela estiver disposta a me ouvir, vou pedir desculpas por todas as palavras.

— Leta não está com raiva — foi a resposta mansa. — Compreendeu que você passava por um momento difícil. Eu também compreendi.

Tate alisou a calça, sem jeito.

 — Tornei a vida de todos um inferno. Inclusive a de Cecily.

— Ela não merecia. Envolveu-se nessa história apenas porque não queria vê-lo magoado. Teria feito o impossível para poupá-lo.

— A vida nos fere muito. Não existe nenhum modo de evitar essa dor.

— É o que dizem.

— Soube que Cecily esteve internada?

Matt inclinou-se para a frente, com ar sombrio.

— O quê?

— Um carro tentou atropelá-la no estacionamento do museu.

— Céus! Quem foi o responsável por isso?

— Um homem chamado Gabrini, membro da máfia do jogo — Tate respondeu, mal contendo a fúria.

— E Cecily está bem?

— Teve uma concussão e um deslocamento no pulso, mas está se recuperando. — Encarou o pai. — Disse aos funcionários do hospital que não possuía família —  acrescentou, baixando o olhar, que revelava a dor causada por essa lembrança. — Ela e o bebê poderiam ter morrido e nenhum de nós ficaria sabendo.

Matt entendeu por que aquilo era tão sofrido. Afinal, agindo assim, Cecily renegara Tate. A todos eles, por sinal.

— Você foi visitá-la? — perguntou.

—  Claro. Mas então não sabia a respeito do bebê. — Fitou o carpete. — Ela pediu demissão, saiu do apartamento e mudou-se para o Tennessee sem contar a ninguém, exceto a Colby. Demorei para localizá-la. Agora que sei onde se encontra, não faço a menor idéia do que lhe dizer e como convencê-la a voltar. Não quero assustá-la contando sobre Gabrini, mas Cecily corre perigo. Não posso protegê-la se estiver aqui, de longe. Mas nem mesmo sei se ela quer me ver. Pensei que você pudesse ter alguma sugestão de como devo agir.

Matt ficou profundamente tocado pelo fato de o filho o ter procurado naquele momento difícil. Mas não demonstraria isso. Tinha seu orgulho.

—  Entendo.

Tate se levantou e colocou as mãos nos bolsos, caminhando até a janela e admirando a paisagem campestre.

—  Não sei o que fazer. Cecily saiu daqui certa de que eu me casaria com Audrey.

O senador virou-se na cadeira.

— Acho que agora você sabe que Audrey deu à imprensa falsas informações sobre Cecily e o tal "casamento". E estava usando um anel igual ao seu.

Com um longo olhar para a jóia, Tate franziu as sobrancelhas.

— Você comentou sobre ele certo dia, em seu escritório. Por quê?

— Porque sua mãe me deu esse anel uma noite antes de eu lhe contar que havia me casado. Eu o devolvi. Leta usa um igual, você sabe.

Então era esse o mistério que cercava a peça! Não fora à toa que chamara tanto a atenção de Matt.

— Cecily sabe que Audrey usava uma cópia desse anel — acrescentou o senador. — E é difícil esquecer que você foi fotografado ao lado dela diversas vezes, nos últimos tempos.

— Audrey tramou quase todas essas fotos. Eu era o centro das atenções, e ela funcionou como salvadora do meu ego. Agora sinto ter me envolvido com essa mulher. É persistente como o diabo. Principalmente depois que me tornei notícia.

— Você e nós — Matt completou com um longo suspiro. — Foi um pesadelo, não foi? Mas acho que valeu a pena. Afinal, todos os criminosos estão enfrentando processos. E Tom Black Knife voltou a ser respeitado. O dinheiro que o pessoal da máfia tirou da tribo foi confiscado pelo governo e será devolvido à reserva. No entanto, a situação de Tom ainda é um tanto delicada. Ainda não sei onde Colby encontrou as testemunhas que viram aqueleantigo assassinato e que podem esclarecer o caso.

— Não me pergunte. As fontes são dele.

— Vocês costumavam ser bons amigos.

— Sim, éramos. Até ele começar a rodear Cecily. Mas agora minha animosidade diminuiu. Entretanto, parece que Colby precisa das mulheres como se fossem muletas, para amparar seu lado emocional.

— Não necessariamente. Às vezes uma boa companheira pode salvar um homem difícil. É um velho ditado, que às vezes dá certo. Colby vivia em um inferno quando conheceu Cecily. Ela lhe deu uma direção, um rumo. O que esse rapaz sente é gratidão. Na verdade, vive um conflito entre lamentar a perda da ex-esposa e encontrar alguém que possa substituí-la. Sinto pena dele. É homem de amar uma mulher só. O problema foi que a perdeu.

Tate voltou à poltrona e sentou-se no braço do móvel.

— Colby não terá Cecily. Ela é minha, mesmo que não queira admitir isso.

Matt o fitou atentamente.

— Você não sabe nada sobre mulheres apaixonadas, certo?

— Não muito. Evitei-as durante a maior parte da vida.

— Em especial, evitou Cecily. Ela é como uma sombra. Você só sentiu sua falta quando deixou de vê-la.

— Cecily está fugindo de mim. Não sei como me aproximar. Sei que ainda sente alguma coisa por mim, mas não quis ficar e lutar. — Ergueu os olhos para o rosto sério do pai. — Ela carrega um filho meu. Quero a ambos, não importa o que tenha de fazer por isso. Cecily é a única mulher que realmente desejo.

— Essa é uma confusão da qual não posso ajudá-lo a sair. Se ela o ama, cedo ou tarde voltará. Se eu fosse você, iria a seu encontro e lhe diria como me sinto de verdade. Acredito que Cecily o ouvirá.

Tate fitou os sapatos. Não conseguia encontrar palavras que definissem com exatidão como se sentia.

— Ouça, meu fi... meu caro. Você teve que lidar com problemas demais nos últimos meses. Dê a si mesmo um tempo. Não apresse as coisas. Sabe, descobri que a vida costuma pôr ordem em tudo. Ela mesma oferece as oportunidades.

Os olhos negros se ergueram para o senador.

— Talvez seja verdade. — Fez uma longa pausa antes de continuar: — Descobri que ter um pé em duas culturas, dois mundos, não é tão mau como eu pensava. Estou me acostumando a isso.

— Lembre-se, porém, de que essas duas culturas lhe deixaram um legado único. Nem todos os homens têm como ancestrais revolucionários berberes e guerreiros lakota.

— Diga-me uma coisa... Meu segundo nome, Renê... de onde vem?

— Era o nome de meu pai — Matt respondeu com orgulho. — Tem laços de sangue com a família real marroquina. E minha mãe é neta de um membro da aristocracia francesa.

— Você... tem fotos deles?

— Dois álbuns cheios — o senador disse com um sorriso. — Quando sua mãe veio a esta casa pela primeira vez, nós os olhamos juntos. — Mordeu o lábio. — Encontre Cecily e traga-a para casa. Talvez ela também goste de ver esses álbuns.

Tate hesitou.

— Preciso ir ao Tennessee.

— Sei que vai. Quer um pouco de café?

— Claro que sim.

Ele apreciou o fato de o pai não ser insistente. E gostava do modo como ele reagia às provocações. Na verdade, admirava a maneira como o senador lidava com a própria vida.

Estava começando a sentir orgulho do pai. Mas não percebeu que Matt também se orgulhava dele.

Ambos conversavam e tomavam café quando Leta chegou. Ela parou junto à soleira, uma sacola de compras nas mãos, e hesitou.

Ao levantar-se para cumprimentá-la, Tate observou que a mãe mudara muito. Parecia feliz, radiante, anos mais nova. Até aquele momento, ele não se dera conta da diferença que Matt Holden fizera na vida de Leta.

— Vim para o jantar — mentiu, sorrindo.

Ela colocou a sacola no chão e olhou para Matt, que também sorria.

— É bom tê-lo aqui, meu filho — disse por fim. Tate segurou-lhe as mãos pequenas, notando que estavam frias. Cumprimentou-a em lakota e inclinou-se para beijar-lhe o rosto.

— Sempre fico feliz quando a vejo, mamãe.

Leta começou a chorar e o abraçou com força.

— Pensei que nunca mais fôssemos nos falar!

Tate precisou lutar contra as lágrimas, que ameaçavam inundar-lhe os olhos. Intensificou o abraço e beijou-a com ternura. Aquela mulher fizera tudo por ele. Jamais poderia retribuir tanto amor, tanto sacrifício. Estava profundamente sentido por tê-la tratado de maneira tão grosseira.

— Ainda preciso me acostumar à idéia de ser quem sou. Mas chegarei lá. Está tudo bem. A partir de agora, tudo ficará muito bem.

— Exceto por Cecily, que está longe de nós e... grávida — disparou Matt Holden, sorrindo diante do olhar exasperado do filho e da expressão perplexa de Leta.

— Grávida? — ela repetiu. Então deu uma palmada no braço de Tate. — Seu monstro! Como pôde fazer isso?

— Ei, como sabe que fui eu? — brincou ele.

— Quem mais poderia ser? Acha que minha filhinha permitiria que outro homem a tocasse? Pensa que iria para a cama com alguém que não fosse você? Está louco?

Tate, na verdade, parecia envergonhado, e havia um novo brilho em seus olhos. Quanto a Matt, observou mãe e filho por alguns minutos e tomou o caminho da cozinha, deixando-os a sós pela primeira vez depois que aquela tempestade começara.

Tate levou as mãos aos bolsos e admirou a beleza madura da mãe. Sorriu.

— Até que enfim estamos juntos de novo, hein?

— A decisão foi sua — ela respondeu com gentileza. — Você precisava de tempo para se acostumar à verdade.

— Não foi fácil, sabe? Mas isso esclareceu muitos pontos obscuros do passado. Nunca consegui amar Jack Winthrop, que por sua vez tampouco foi capaz de me aceitar. Agora entendo por quê.

Leta suspirou.

— Você sempre foi um bom filho. Eu quis lhe falar sobre Matt antes, mas sabia o que pensaria de mimquando soubesse a verdade. — Baixou o olhar. — Seu verdadeiro pai o teria amado muito.

Tate não conseguia achar as palavras certas para falar. Isso, aliás, vinha lhe acontecendo com freqüência ultimamente. Abraçou a mãe pelos ombros e beijou-lhe o alto da cabeça.

— Não conte a Matt o que vou lhe dizer agora, porque elejá é muito arrogante sem isso. Mas eu também o teria amado.

Leta o estreitou com força.

— Como é mesmo aquele ditado sobre vidas entrelaçadas como tramas?

Tate deu um sorriso de puro alívio.

— Dizem que acabamos presos nelas. Ei, como é ser esposa de um senador?

— Eu me casei com Matt Holden. Ainda tenho de me acostumar ao senador. Mas agora, quando falo em reuniões ou diante dos comitês do Congresso, todos me escutam! — ela exclamou, rindo. — E, vivendo aqui, posso fazer um monte de coisas em prol de nosso povo.

Ele caiu na risada.

— Por acaso meu pai sabe que você pretende usar seu nome de casada com essa finalidade?

— Seu pai... — ela repetiu mansamente. — Você não se importa mais em saber quem ele é, não é verdade?

Tate fez que não com um gesto de cabeça.

— Eu sempre o admirei, mesmo quando pensava que não gostava dele. Matt mal me conhecia quando tudo isso veio à tona, mas fez o que estava a seu alcance para me proteger. Eu me sinto orgulhoso em ter um homem assim como pai. Por isso, a verdade não importa mais. Juro.

Matt, que entrava na sala, ouviu essas palavras e precisou voltar à cozinha até que as lágrimas secassem.

O filho não o odiava. Era muito mais do que merecia, com certeza. Em seu coração, agora, havia aconchego e ternura onde, semanas atrás, só existia angústia.

— Fico feliz em saber que você não tem mais raiva de mim — Leta disse ao filho. Ficou na ponta dos pés e tocou-lhe os cabelos curtos, fazendo uma careta. — Você e Cecily acabaram com aquelas lindas cabeleiras!

— Estou vivendo um momento difícil — ele respondeu simplesmente.

— Ela também. Você não a tratou de maneira honrada. Eu sei, melhor do que ninguém, o que significa casar com um homem e esperar um filho de outro, a quem se ama. — Fitou os olhos perturbados do filho. — Colby quer se casar com Cecily.

O olhar dele endureceu.

— Nem em sonho! O único homem com quem ela pode se casar sou eu.

— É mesmo? — Leta estava a um só tempo feliz e surpresa. — Audrey contou a ela sobre o anel e o vestido de noiva...

— Eu já disse a Audrey, e à imprensa, que não pretendo me casar com ela. Audrey tem problemas, e levei algum tempo para descobrir por que se comportou daquele modo. Vai passar uma temporada em um centro de tratamento de viciados em drogas. Talvez as pessoas de lá possam ajudá-la. Tenho pena dela, mas suas atitudes realmente complicaram as coisas para mim.

Leta sentiu um imenso alívio.

— Cecily pensou que, quando você conhecesse a verdade sobre sua família, não acharia tão desastroso casar-se com uma mulher branca. Julgou que Audrey fosse essa mulher, porque é culta e bonita.

Tate estremeceu.

— E... Cecily me disse algo assim quando lhe conteique não vinha me encontrando com Audrey. Meteu na cabeça que eu não a queria porque não se acha bonita. E isso não é verdade. Sabe de uma coisa? Acho que cometi um monte de erros.

— Sim, cometeu. Por isso Cecily está só. E grávida.

— A situação é ainda pior. Ela quase foi atropelada quando vocês estavam fora da cidade, em lua-de-mel —  ele revelou, a voz rouca de emoção.

—  Oh! Quando? E... minha filhinha está bem?

— Sofreu uma concussão média e torceu o pulso. Os médicos a mantiveram internada por duas noites, em observação. Ela lhes disse que não possuía família. — Deu um longo suspiro, acompanhado de um sorriso amargo. — Você não pode imaginar como isso dói.

— Posso, sim — respondeu Leta, caminhando até o sofá e acomodando-se no assento. — Vocês já estão se falando?

Tate sentou-se em uma poltrona ao lado da mãe

— Cecily fugiu — disse por entre os dentes. — Pensou que eu fosse me casar com Audrey. Abandonou tudo e saiu de Washington imaginando que assim nem ela nem o bebê atrapalhariam minha vida. — Contemplou a mãe. — Isso não lhe soa familiar?

Leta escondeu o rosto nas mãos.

— Minha pobre filhinha!

— A parte trágica da história é que, para mim, Audrey nunca passou de uma espécie de curativo, alguém que eu podia usar para...

— Para? — Leta insistiu, enxugando os olhos. Tate fitou as mãos espalmadas e o enorme anel que um dia fora do pai.

— Cecily é tudo o que me importa. Preciso encontrar um jeito de mantê-la por perto. Ela começou a se distanciar quando passei a sair com Audrey.

A expressão de Leta revelava preocupação.

— Pobre querida...

— Sempre fui livre para fazer aquilo que me agradava. Viagens, trabalhos perigosos, riscos... Nunca levei ninguém em consideração, exceto a mim mesmo. Fui independente durante a maior parte da vida adulta. Assumi a responsabilidade por Cecily, mas fiz isso de longe. Não queria dividir minha vida com ninguém.

— Você sempre seguiu os próprios desejos — ela disse com ar de desaprovação.

— Mas agora não é mais assim. Não me importo em abrir mão dos serviços mais arriscados ou de minha suposta "independência". Só Cecily importa, e pretendo encontrar um modo de fazer com que ela compreenda isso. Preciso saber o que dizer quando a encontrar. Há muita coisa em jogo.

Levantou-se, cansado, preocupado, e foi até a janela.

Matt entrou naquele momento, seguido pelo mordomo, que carregava uma bandeja de prata com um aparelho completo de café.

— Hora do intervalo — anunciou, conduzindo Tate de volta à poltrona, — Um cafezinho costuma resolver a maioria dos problemas. Fiz um bule cheio.

Acomodou-se no sofá, ao lado da esposa, e inclinou-se para beijá-la com visível afeição.

Tate sentou-se, embora relutante. Sentia-se perdido.

O pai o contemplou com satisfação, observando mais uma vez as semelhanças entre ambos. Sentia pela infelicidade do filho, mas sabia que esse era um problema pessoal e que devia ser resolvido por ele mesmo. Podia aconselhar, mas não ajudar de maneira efetiva.

— Já decidiu o que vai fazer? — perguntou-lhe. Tate aceitou a xícara que a mãe lhe estendia e balançou lentamente a cabeça, em uma negativa.

— Ainda não.

— Você precisa de um plano de batalha, sabe? Durante a guerra, nunca deixei minha base sem um conhecimento detalhado do que vinha pela frente e sem uma estratégia traçada para a luta. Foi por esse motivo que voltei para casa vivo.

Tate sorriu, apesar da tristeza.

—  Cecily é uma mulher, não um inimigo armado até os dentes.

— Isso é o que você pensa — Matt continuou, apontando-lhe a colher antes de levá-la à xícara e mexer o café. — As mulheres, em sua maioria, são inimigas poderosíssimas — acrescentou, com um olhar furtivo à esposa sorridente. — É preciso tomá-las de assalto de modo apropriado.

— Bem, parece que disso Tate entende bastante — comentou Leta com sarcasmo. — Do contrário, não estaríamos esperando um neto. — Engoliu em seco e olhou para o marido. — Nosso neto! — enfatizou, feliz como uma criança.

Matt contemplou Tate.

— Isso muda completamente as coisas, meu filho  — disse, e a palavra "filho" saiu tão naturalmente que nem mesmo os surpreendeu.

— Vá ao Tennessee e peça Cecily em casamento — instruiu Leta.

— Certo — Tate respondeu de maneira sombria. — Depois de todos os problemas que lhe causei nas últimas semanas, tenho certeza de que ela mal pode esperar o momento de ser levada ao altar — zombou.

— O mel atrai mais as abelhas do que o vinagre — Matt o advertiu.

— Pois se eu viajar levando mel, voltarei para casa cheio de abelhas.

Leta riu.

— Vai desistir? — Matt provocou.

Tate balançou a cabeça, indicando que não.

—  Não posso. Tenho de encontrá-la antes que Gabrini o faça, embora ache que ele não tem a mais vaga idéia de onde Cecily está. Só tenho de pensar em um modo de convencê-la a voltar para casa.

Bebeu mais um gole de café e olhou para os pais. E, pela primeira vez na vida, sentiu que pertencia a uma família. Uma onda de ternura o invadiu quando percebeu quanto aqueles pessoas lhe eram queridas. O pai, pensou, era quase um amigo. Mas não lhe diria isso. O homem já era orgulhoso demais. Não precisava de elogios.

 

Tomar a decisão de ir ao Tennessee buscar Cecily foi fácil. Difícil foi colocá-la em prática. Tate pediu uma semana de folga a Pierce Hutton, porque esperava que o trabalho seguinte da corporação só fosse começar quando voltasse a Washington.

Mas Hutton lhe deu um sorriso divertido e o avisou de que era preciso atualizar as informações de segurança do equipamento de petróleo localizado junto ao mar Cáspio.

— Quer dizer então que você finalmente decidiu tomar alguma atitude em relação a essa moça, hein? Já era tempo. Eu já estava começando a me acostumar com essa sua carranca.

Tate lhe lançou um olhar seco.

— Imaginei estar fazendo o melhor ao mantê-la a distância. Mas não consegui. — Sorriu. — Ela está grávida.

Pierce sorriu.

—  É... Para quem pretendia se manter afastado, você, com perdão do trocadilho, foi longe demais. Quando será o casamento?

O sorriso de Tate desapareceu.

—  Pensar nisso é muito prematuro. Ela fugiu. Só agora fui capaz de localizá-la. Mas ainda precisarei convencê-la de que minha vontade de me casar não se deve apenas à existência do bebê.

—  Não o invejo — Pierce respondeu, os olhos cintilando. — Também tive de percorrer uma estrada difícil até chegar ao casamento, lembra-se?

— Como está seu filhinho?

O homem riu, deliciado.

— Quer saber de uma coisa? Jamais imaginei que a paternidade fosse provocar tantas mudanças em mim e em minha vida. — Balançou a cabeça, o olhar satisfeito. — As vezes tenho medo de que isso seja apenas um sonho, e que acabe quando eu acordar. — Aprumou-se, sem jeito. — Pode tirar sua folga. Mas quem poderá fazer seu trabalho enquanto você estiver fora?

— Pensei em indicar Colby Lane. — Levantou as mãos quando Pierce se mostrou aborrecido. — Ele parou de beber. Cecily o convenceu a fazer terapia. Não é mais aquele homem perdido de antes.

— Tem certeza? - Tate sorriu.

— Certeza absoluta.

— Está bem, então. Mas, se ele me acertar outro golpe, vou revidar.

— Não se preocupe. Isso não vai acontecer. Ligarei para Colby antes de deixar a cidade.

 

Mais do que surpreso, Colby ficou chocado quando encontrou um Tate sorridente à sua porta, na manhã seguinte. Esperava mais uma briga, depois da conversa que haviam tido pelo telefone.

— Vim lhe oferecer um trabalho.

Os olhos escuros de Colby se estreitaram.

— Junto com uma cápsula de cianureto?

Tate lhe deu um tapinha no ombro.

— Sinto muito pelo modo como o tratei. Não estava conseguindo raciocinar direito. Devo-lhe um favor por ter-me contado a verdade sobre Cecily.

—  Imagino que saiba que o filho é seu...

— Sim, eu sei. Estou indo para o Tennessee, a fim de trazê-la para casa.

Colby piscou.

— Ela sabe disso?

— Ainda não. Pretendo fazer uma surpresa.

—  Imagino que você vá ter uma surpresa. Cecily mudou bastante nas últimas semanas.

— Reparei nisso. — Tate encostou-se na parede próxima à porta. — Há um trabalho à sua espera.

— Quer que eu também viaje ao Tennessee? —Colby indagou secamente.

—  Só em seus sonhos, parceiro. Não, não se trata disso. Eu gostaria que você dirigisse minha equipe de segurança enquanto fico fora.

Colby olhou em torno.

— Bem, acho que estou tendo uma alucinação...

— Você e meu pai — Tate murmurou, balançando a cabeça. — Ouça, eu também mudei.

— E se transformou em quê?

— Ei, estou falando sério! Agora, preste atenção. O trabalho é bom e o horário, regular. Você poderá dormir sossegado, sem uma arma debaixo do travesseiro. E não vai mais correr o risco de perder o outro braço. — Então, pensativo, acrescentou: — Tenho sido um mau amigo. Estava com ciúme de você.

— Mas por quê? Ouça, Cecily é muito especial. Não houve um único dia, desde que a conheci, que ela não tenha amado você. Jamais negou esse sentimento.

Tate sentiu que um calor agradável se espalhava por seu corpo.

— Transformei a vida de Cecily em um inferno. Acho que ela não me ama mais.

— Não podemos matar o amor — Colby respondeu, sombrio. — Sei disso. Tentei.

Tate sentiu pena do outro, mas não soube o que dizer para animá-lo.

Colby Lane deu de ombros.

— Mas aprendi a conviver com meus fantasmas, graças à psicóloga que Cecily me indicou. — Fez uma careta. —A moça cria cobras, pode imaginar? Quando bêbado, eu costumava ver algumas saindo das garrafas de uísque, mas as dela são de verdade.

— Talvez ela seja alérgica a pêlos e por isso não possa ter outros animais de estimação.

— Quem pode saber? — Ele sorriu. — Quando começo a trabalhar?

— Hoje. — Tate tirou o celular do bolso e digitou um número. — Alô? Estou lhe enviando Colby Lane. Será meu substituto enquanto eu estiver fora. Se você tiver algum problema, conte com ele. —Assentiu quando a pessoa do outro lado da linha respondeu. Em seguida, desligou. — Tudo bem, Lane. Deixe-me explicar o que você vai precisar fazer...

 

Duas horas depois, ele se achava em um avião, a caminho de Nashville. O vôo atrasara por causa da neve e da chuva de granizo, o que o deixou impaciente. Sua irritação já passara dos limites quando finalmente desembarcou, no Tennessee. Foi direto para uma locadora de automóveis e alugou uma caminhonete com tração nas quatro rodas. Então rumou, em meio à neve, para Cullenville.

Foi fácil encontrar o museu. Ficava no centro da cidadezinha, depois de um dos dois únicos semáforos do lugar. Lá, perguntou por Cecily e foi informado que ela vivia em uma casa alugada, a duas quadras dali. A secretária do museu o fitou com assombro.

— Você é parente do falecido marido dela? — perguntou.

Os olhos escuros se arregalaram.

— Como?

— Deve ser muito difícil estar grávida e ficar viúva — a mulher de meia-idade prosseguiu. — Todos fazemos o possível para vê-la feliz. O curador, sr. Johnson, também é viúvo. E tem muito carinho por Cecily. Oh, mas estou falando demais. Você deve estar ansioso por vê-la. Posso telefonar e avisar-lhe que tem visita?

— Oh, não, obrigado — ele respondeu com uma polidez forçada. — Quero fazer uma surpresa.

Então saiu do museu, deixando o veículo onde estava enquanto caminhava pela calçada cheia de neve e olhava os carros derraparem na rua. Aquela camada de gelo não era nada comparada ao tamanho dos montes que a neve construía na reserva.

Quanto ao "marido morto" de Cecily, pensou enquanto subia os degraus que levavam à casinha de tijolos aparentes onde ela vivia, estava prestes a fazer uma surpreendente ressurreição.

Bateu à porta e esperou.

Ouviu um murmúrio um tanto irritado e o som da chave girando na fechadura. A porta então se abriu e uma Cecily atônita o fitou.

Tate tratou de entrar e pegá-la no colo antes que ela reagisse. Colocou-a no sofá, acariciando-lhe os cabelos desalinhados.

A náusea subiu-lhe à garganta, mas felizmente parou por ali. Ela o fitou, deliciada, desejando poder esconder o que aquela presença amada lhe provocava depois de tantas semanas vazias e solitárias.

Ele permaneceu em silêncio. Tocou-lhe o cabelo, a testa, os olhos, o nariz, a boca com dedos que pareciam desejar memorizar cada traço. Então suas mãos deslizaram para o robe amarrado com cuidado sobre a camisola de algodão e o soltou. Afagou-lhe o ventre, radiante ao notar que a gravidez já começava a se mostrar.

— Quando nós o fizemos? — perguntou, sem preâmbulos.

Cecily sentiu seu mundo se dissolver. Tate sabia sobre o bebê. Claro. Era por esse motivo que fora até ali.

Ele a fitou. Reparou que havia hostilidade e uma amarga desilusão em seu olhar. Pressionou-lhe o ventre.

— Eu teria vindo mesmo que não soubesse sobre nosso filho.

— O filho é meu.

— E meu.

— Audrey não vai colocar aquelas mãos avarentas em minha criança!

Tate a manteve sentada quando notou que ela queria se levantar.

— Não estou casado com Audrey. Jamais o faria. Ela está em um centro de tratamento. Quase se destruiu, usando drogas. Confessou que contou todas aquelas histórias aos jornais e depois a culpou por isso.

— O... o quê? — Cecily gaguejou, terrificada.

Ele soltou um longo suspiro.

— Audrey está totalmente desequilibrada. Espalhou mentiras e a mídia tratou de publicá-las. Nunca fiz planos de me casar com ela, a despeito do que levei você a pensar. Rejeitei-a, e Audrey decidiu se vingar. Não foi mais do que isso.

A mão enorme parecia estranha junto ao ventre macio. Cecily ia começar a falar, mas naquele mesmo instante o bebê se mexeu.

Tate afastou a mão, perplexo. Fitou, horrorizado, a barriga, que se movia de novo.

Ela caiu na gargalhada.

— Isso... é normal? — ouviu-o perguntar.

— Claro! São os movimentos do bebê. Ele se mexe, chuta... Não muito, por enquanto, mas, à medida que crescer, vai se tornar mais forte.

— Mas eu nunca pensei... — Tate suspirou e colocou novamente a mão sobre o ventre crescido. — Diga uma coisa, dói quando ele... — Hesitou, os olhos negros se arregalando. — Ele?

Cecily fez que sim com um gesto de cabeça.

— Sim, ele.

— Os médicos podem ter certeza, assim tão cedo?

— Podem. Fizeram uma ultra-sonografia.

Os dedos masculinos a afagaram. Um filho. Ia ter um filho! Respirou fundo. Não havia pensado nisso antes, mas agora se dava conta de que logo mais teria uma miniatura de si mesmo e de Cecily. Uma criança que incorporaria os traços de todos os seus ancestrais. Todos. Isso o tornou mais humilde.

— Como me encontrou? — ela quis saber.

— Foi complicado. Demorei a localizar o motorista que a trouxe a Nashville. Ele estava de licença, e foi apenas esta semana que as pessoas se lembraram de que trabalhara durante o Natal.

— Eu não queria ser encontrada.

— Percebi. Mas foi, e vai voltar para casa. Vou me amaldiçoar para sempre se a deixar aqui, à mercê de pessoas que não conseguem dirigir seus carros sem derrapar sobre uma pequena camada de neve!

Ela se sentou, afastando-lhe a mão. Estava perto demais daquele homem perturbador. Assim, colocou as pernas para fora do sofá e se levantou.

— Não vou a lugar nenhum com você! Comecei a construir uma nova vida aqui e vou ficar!

— Isso é o que você pensa!

Tate se pôs em pé e dirigiu-se ao quarto. Encontroua mala de Cecily minutos depois, abriu-a sobre a cama e passou a enchê-la de roupas.

— Eu já disse que não vou a lugar algum com você. Pode fazer a mala. Pode até levá-la, junto com todas as minhas roupas. Mas eu não irei. Não existe mais lugar para você em minha vida.

Ele se virou. Estava furioso.

— Caso não saiba, garota, está esperando um filho meu!

Vê-lo era um martírio. Cecily o amava, queria, precisava daquele homem. Mas sabia que fora até ali apenas por causa do senso do dever, e talvez até pela culpa que experimentava. Tinha conhecimento de que ele não desejava laços nem compromissos. Dissera isso à exaustão. Não a amava, tampouco. E isso era o que mais doía.

— Colby me pediu em casamento, por causa do bebê — contou em um tom amargo. — Talvez eu deva aceitar.

— Só se for por cima de meu cadáver.

Cecily estremeceu.

— Era por esse motivo que eu não queria que você soubesse sobre a criança. Está agindo exatamente da maneira como imaginei. Mais uma vez não passo de uma responsabilidade, um dever, uma obrigação!

Ela nem mesmo conseguia chorar normalmente, pensou Tate ao notar as lágrimas silenciosas que rolavam pelas faces pálidas. Parou de mexer na mala e postou-se à sua frente, procurando pelas palavras certas para explicar por que se encontrava ali.

Cecily mordeu o lábio inferior, em um esforço vão de conter as lágrimas.

— Por favor, vá embora — sussurrou. — Deixe-me em paz.

Ele ficou ainda mais sério.

— Querida...

— Por favor, vá para casa e esqueça que sabe onde estou. Já desfiz todos os meus laços com Washington. Aquilo é passado. A partir de agora, somos apenas o bebê e eu.

—  Você, o bebê e um falso marido morto. O que preciso fazer para convencê-la?

— Não há nada a ser feito. Você não faz idéia das limitações a que um filho nos obriga, como isso pode mudar nossa vida. É um homem solitário. Não divide com ninguém sentimentos, medos ou sonhos. Vive sozinho e gosta disso. Crianças choram o tempo todo, precisam ser assistidas constantemente. Você vai odiar o barulho, o constrangimento, a falta de privacidade. — Deu-lhe as costas. — Com o tempo, vai nos odiar por atrapalharmos sua vida.

Tate sentiu que afundava em um pesadelo enquanto a via dirigir-se para a sala. Seguiu-a até lá.

— Acha que não a quero, nem a meu filho?

Ela riu sem vontade.

— Tudo o que você disse e fez nos oito últimos anos foi me mostrar que não pretendia manter nenhum relacionamento sério com uma mulher. Especialmente comigo.

Tate colocou as mãos nos bolsos e franziu a testa, ainda procurando as palavras certas.

—  Você sabe muito bem por que a mantive a distância — começou, com calma. — Não foi apenas porque vínhamos de mundos diferentes, como pensei a princípio. Eu era seu tutor. Seria como tirar vantagem de um afeto que você não conseguia evitar.

Cecily olhava, pela janela, a neve caindo lá fora. As costas estavam rígidas.

— Nunca fui bonita o suficiente para você.

Nada poderia feri-lo mais do que aquela lembrança simples, dolorosa e honesta. Fitou-a, sem saber o quefalar. Para ele, Cecily era a mulher mais linda do mundo, por fora e por dentro. Principalmente assim, grávida. Ela se virou com um sorriso triste.

— Se está preocupado com a pessoa que tentou me matar, sossegue. Não tive problemas desde que cheguei. Não creio que haja outros atentados contra minha vida. Pode me deixar aqui. É seguro. Sou feliz neste lugar. Entrarei em contato quando nosso filho nascer. Claro que poderá vê-lo sempre que quiser.

As portas estavam se fechando. Cecily construía muros impenetráveis a seu redor. Tate cerrou os dentes, em um sinal de fúria impotente.

— Eu a quero — falou de modo forçado, porque não era apenas aquilo que queria dizer.

— Mas eu não o quero — foi a resposta. Cecily não queria se tornar mais uma vez uma obrigação. — Grata por ter vindo me ver. Ligarei para Leta quando ela e Matt voltarem de Nassau.

— Já voltaram. Fiz as pazes com eles.

— É mesmo? — Cecily sorriu. — Fico feliz por isso. Fico muito feliz. Leta estava com o coração partido por você não lhe dirigir mais a palavra.

— Como acha que ela vai reagir quando souber que você não vai se casar com o pai de seu filho?

Cecily prendeu a respiração.

— Leta... já sabe?

— Ela e Matt sabem. E não vêem a hora de festejar com você. — Tate virou-se para a porta, com o orgulho ferido e um enorme sentimento de rejeição. — Pode ligar para minha mãe e dizer que não vai voltar comigo. Que prefere viver sozinha nessa terra distante. Desejo-lhe sorte. — Voltou-se e a fitou, os olhos negros faiscando. — Quanto a mim, não pretendo vê-la nunca mais. Nem se o inferno congelar!

Saiu e bateu a porta. Cecily permaneceu imóvel, quieta, o coração disparado. Por que ele sentira tanta raiva pelo fato de ter sido desobrigado a responsabilizar-se pela criança? Claro que, se não fosse pelo bebê, Tate jamais iria querê-la. Se sentisse alguma coisa por ela, já a teria pedido em casamento há muitos anos.

Lágrimas rolaram por seu rosto. Levou a mão ao ventre e lembrou-se, angustiada, da expressão terna de Tate ao afagar-lhe a barriga. Mas, afinal, mandara-o embora porque queria vê-lo feliz! Aquela demonstração de raiva não passava de orgulho ferido.

Era bem melhor que ele não tivesse aparecido. Seria muito difícil viver ali agora. Iria vê-lo em cada canto da casa. Seria perseguida pela dolorosa lembrança daquela presença adorada na sala, no quarto, no corredor. Tate nunca mais voltaria. Ela cortara definitivamente os laços que existiam entre os dois. E nada mudaria essa triste realidade.

 

Tate chegou junto ao veículo e deu um soco no teto. Perdera a paciência, e essa era a última coisa que poderia ter feito. Principalmente com uma mulher grávida que já se sentia rejeitada e nada atraente.

Respirou fundo, procurando se acalmar. Olhou para a casa de tijolos aparentes. Não poderia perturbá-la mais do que já o havia feito. Ao menos, não naquele dia.

Assim, decidiu alugar um quarto no hotelzinho da cidade, ajeitar seu equipamento e voltar até ali a pé. Tinha a impressão de que Cecily corria perigo iminente, e que Gabrini estava à espreita. E precisava confiar em seus instintos, uma vez que eles já o haviam salvado a vida inúmeras vezes.

Não sairia de Cullenville até que Cecily estivesse em segurança. Ela e o bebê.

Tate se perguntava se seu sexto sentido poderia ter-se enganado enquanto se encolhia dentro de uma enorme caixa de papelão colocada em posição estratégica. A neve voltara a cair. Fazia muito frio, e aquele espaço limitado lhe provocava cãibras.

Olhou em torno, para as ruas cobertas de flocos de gelo, e imaginou como se sentiria se perdesse Cecily. Seu coração quase parou de bater. Ela fora parte de sua existência por tanto tempo que seria impossível viver sem ela.

Naquele momento, um ruído chamou-lhe a atenção. Na verdade, nem era um ruído, e sim um som fraco, de passos sobre a neve. Levou a mão ao revólver automático. Tirou-o do coldre lentamente. A máscara preta de lã que lhe cobria o rosto e a lata de lixo ajudavam-no a esconder-se.

Um homenzinho vestido de preto, e usando uma máscara igual à sua, aproximava-se da casa de Cecily, a essa hora já às escuras. Levava algo nas mãos. Um objeto que só poderia ser um revólver.

O homenzinho era bom no que fazia, pensou Tate, furioso. Movia-se como um animal, com passos tão leves que não teriam chamado a atenção nem mesmo de um urso, em plena floresta. E olhou à sua volta, com muita cautela, antes de se esconder em meio às sombras. Esse modo de agir comprovava que aquela não era a primeira vez que ele fazia aquilo. Quantas pessoas já teria matado?

Tate reparou que o homem nem se incomodou em forçar a porta dos fundos. Foi até a janela baixa da cozinha e, ainda atento ao que acontecia ao redor, afastou a tela e, com um pé-de-cabra, destravou a tranca. Naquela noite sem lua, em que os flocos de neve mal conseguiam refletir a parca luz da rua, o desconhecido parecia invisível.

O coração de Tate batia com violência. A adrenalina , corria por cada veia, tensionando os músculos. Queria atirar, impedir, de qualquer maneira, que o homenzinho tentasse ferir Cecily. Mas precisava de provas. E, até o momento, o outro não fizera nada além de forçar uma janela. Precisaria esperá-lo entrar na casa para poder agir.

E teria de agir depressa. Do contrário, a vida de Cecily estaria em jogo. O pensamento o tornou ainda mais determinado. Todo o treinamento que recebera ao longo da vida, todas as suas habilidades, haveriam de ajudá-lo, naquele breve espaço de tempo, a salvar a mãe de seu filho. Não podia falhar. Tenso, aguardava, esperando o momento de entrar em ação.

Dentro da casa, já na cama, Cecily mantinha os olhos abertos, vermelhos de tanto chorar. Tate conseguira encontrá-la e, quando ela pensava que finalmente haveria uma chance para ambos, ouvira-o admitir que se achava ali simplesmente por causa do senso do dever. Ele não a amava. Talvez quisesse a criança, e sentisse que amparar Cecily fosse uma questão de honra.

A velha história se repetia. Tate jamais a amara. Nunca se permitira esse sentimento. Arranjara desculpa após desculpa, e por fim aceitara o fato de que não desejava compartilhar sua vida. Com ninguém. Isso não mudaria nunca, e quanto antes ela se desse conta de...

Franziu a testa ao ouvir um ruído. Parecia o de um pedaço de madeira quebrado. Sentou-se na cama, o coração acelerado. Tate teria voltado? Levantou-se e caminhou suavemente pelo chão coberto de linóleo, rumo ao corredor. Parou para escutar, mas não ouviu nada. Então percebeu passos bem leves, como se houvesse alguém se mexendo na escuridão.

Sentiu o coração bater ainda mais depressa, em especial ao lembrar-se do desconhecido que tentara atropelá-la, em Washington. Seria alguém da máfia do jogo, sedento por vingança? Mas como a teriam encontrado?

Bem, se Tate a localizara, algum membro bem treinado do crime organizado também conseguiria fazê-lo.

Prendeu a respiração. A mão deslizou para o ventre. Preocupada com o que poderia acontecer, pensou que jamais deveria ter deixado o orgulho dominá-la a ponto de agir daquela maneira. Nunca fugira de nada, em toda a sua vida. Devia ter permanecido onde estava, onde podia receber proteção.

Em circunstâncias normais, seria capaz de cuidar de si mesma. Mas não tinha nenhuma ilusão de que conseguiria safar-se das mãos de um criminoso profissional. Se tivesse uma arma, poderia atirar, tentar defender-se. Mas não tinha. Tate lhe ensinara um pouco de caratê, mas a advertira de que, diante de um revólver ou uma faca, esse conhecimento de nada adiantaria.

Cecily fechou os olhos, tremendo. Procurou aguçar os ouvidos ao máximo, para escutar outros ruídos. Em último caso, pensou, poderia gritar, ou correr. Mas como evitaria levar um tiro, caso o criminoso estivesse armado?

A essa altura, Tate devia estar a caminho de Washington. Ele a teria protegido, e à criança. Cecily, porém, o enfurecera a ponto de vê-lo partir cheio de raiva. Por que agira assim? Que bela manchete os jornais do dia seguinte estampariam... "Ex-amante adolescente morta pela máfia do jogo! Motivo: vingança."

Deixou escapar um suspiro, ainda à escuta. Ouviu alguma coisa rolar. Era como se o intruso tivesse batido na mesinha do telefone, que ficava no hall que ligava a sala de estar à de jantar. Outro barulho fraco ecoou pela casa, como o de algo sendo arrancado. O fio do telefone! O desconhecido o desconectara! Que fazer agora?

Não possuía nada que pudesse usar como arma. A mobília, antiga e pesada, mal saía do lugar. Se contasse ao menos com um pedaço de pau, talvez tivesse uma chance.

Estava encostada na parede, ao lado de uma das janelas amplas e baixas que a tinham incomodado um pouco quando se mudara. Olhou para a tranca da janela do quarto, que fora improvisada em casa. Como a peça original, de ferro, se quebrara, o proprietário da casa cortara um pedaço de um cabo de vassoura e improvisara um fecho, de modo que a janela não fosse aberta do lado de fora.

Se ela conseguisse pegar o cabo depressa e silenciosamente, talvez pudesse usá-lo. Bateria com força na mão do intruso, que, com a dor, soltaria a arma. Precisava tentar. Estava à mercê da própria sorte. Tinha de ajudar a si mesma. Ser forte.

Engolindo a náusea, deslizou para a janela e alcançou o cabo. Puxou-o e, aliviada, viu que ele saía com facilidade.

O fato de sentir o pedaço de madeira nas mãos encheu-a de confiança. Era grosso, pesado. Se utilizado adequadamente, poderia salvar-lhe a vida.

Voltou para a porta e mordeu o lábio inferior, para manter o pânico sob controle. Ouviu passos suaves no corredor, cada vez mais próximos. Atrás da porta do quarto, que se achava completamente aberta, Cecily sentia o coração bater tão depressa, e tão alto, que teve medo de que o criminoso pudesse escutar-lhe o ruído. Fechou os olhos, respirou fundo e cerrou os dentes. Haveria de se salvar. Claro que haveria!

Uma sombra se moveu no corredor. Então hesitou. Enquanto aguardava, Cecily procurava manter a clareza. Suas mãos tremiam ao segurar o bastão. Nãopoderia permitir que seus nervos a traíssem. Sentia a boca seca, e mal conseguia respirar. Suava frio.

A sombra voltou a se movimentar. Chegou mais perto.

Ela levantou o cabo de vassoura na altura do ombro, esperando, esperando...

A ponta de um revólver apareceu de repente e ela agiu sem nem mesmo pensar. Abaixou o bastão tão depressa, e com tanta força, que a arma voou para longe. Ouviu um grito de dor, um palavrão, e viu a própria mão ser agarrada sem piedade, enquanto o cabo lhe era arrancado dos dedos e erguido.

Naquele momento, uma sombra escura voou na direção do agressor, golpeando-o e levando-o ao chão. Em um átimo, porém, o homenzinho se pôs em pé, apenas para levar outro soco. Dessa vez, com tanta ferocidade que Cecily entendeu que seu fim havia chegado. Havia dois criminosos atrás dela. E nada poderia fazer para deter o outro.

Gritou, trêmula, já sem energia nem coragem. Fechou os olhos, disposta a enfrentar a morte.

—  Cecily!

Oh! Aquela voz! Aquela maravilhosa, adorada voz!

Ela estremeceu, de alívio e horror, ao ser ver abraçada ao corpo musculoso, forte. Estava salva, Salva! Começou a chorar.

— Tate! — sussurrou, entre lágrimas. — Tate!

Ele a beijou, faminto, os lábios gelados pelas horas passadas lá fora, sob a neve.

— Tive medo de não chegar a tempo. Sou maior do que esse rato, e precisei forçar a janela. Ela emperrou. Céus, que pontaria! Você o desarmou!

— Bati no braço dele com um pedaço de pau — Cecily explicou, em choque. Estremeceu de novo. — O homem estava armado.

— Sim, eu sei.

Tate procurou o interruptor, e a luz iluminou o quarto. No chão, o homenzinho, as mãos contra o peito, o corpo curvado, gemia.

Abaixando-se, Tate pegou a arma automática do criminoso, que estava sob o linóleo. Depois, tirou o celular do bolso e digitou o número do serviço de emergência. Pediu também uma ambulância antes de desligar.

— Será que eu quebrei o pulso dele? — perguntou Cecily, atônita, os braços protegendo o corpo, o olhar voltado para o intruso.

— Provavelmente — Tate respondeu em uma voz de aço. — Mas chamei a ambulância porque quebrei vários ossos deste maldito canalha.

Agachou-se e arrancou a máscara do homem, revelando um rosto magro e comum, contorcido pela dor.

— Você acha que eu seria tolo o bastante para trazê-lo até aqui e em seguida ir embora? — perguntou, irado. — Investiguei no aeroporto e na agência de aluguel de carros. Não é todo mundo que aluga automóveis e pergunta aonde fica Cullenville.

— Maldito! — o homem falou em uma voz estrangulada. — Ela... arruinou tudo. Tudo! Tínhamos... tudo planejado! — Gemeu mais uma vez. — Acabaríamos... com a moça... e com... você!

Tate ergueu-o pelo cabelo e Cecily sentiu as mãos frias ao notar como ele encarava o inimigo.

— Conhece Marcus Carrera?

O desconhecido tentou manter silêncio por um momento. Claro que conhecia Carrera. Todos o conheciam. Era um chefão poderoso, uma lenda viva entre o crime organizado. Perto dele, Gabrini parecia um batedor de carteiras.

— Sim, conheço Carrera.

— Ele sabe onde você mora.

O rosto do homem, já pálido, ficou totalmente branco.

— Ei, você não pode...

— Posso, sim. Preciso. — Soltou-lhe o cabelo. Tinha o semblante rígido. — Se alguém arrancar um único fio de cabelo de Cecily, você já sabe o que vai lhe acontecer, certo? Diga a seus amigos que andei investigando outros membros da máfia.

— Você está blefando.

Tate permaneceu com o olhar fixo no homenzinho.

—  Muita gente me deve favores. Muitos estão na prisão. Outros, não. Você nunca saberá quem são, nem os verá se aproximando. Você ou qualquer outro de seus malditos comparsas.

— Você é só... um nativo... maluco. Trabalha... para uma... construtora. Não pode... fazer nada... contra nós.

— Espere e verá — disse Tate, levantando-se.

— Meu nome... é Gabrini. Tenho gente... em todos... os lugares!

Tate inclinou-se para Cecily, a fim de verificar se ela estava bem.

— Também tenho — respondeu, observando-a. Cecily ainda tremia. Deixou que ele a abraçasse até que a tremedeira passasse.

 

A ambulância chegou junto com a viatura policial. Com elas veio um homem de terno preto, com a aparência de um agente federal. Cecily não ficou surpresa pelo fato de ele ter ido diretamente até Tate, levando-a a um canto.

Enquanto um paramédico a examinava, Gabrini, já amarrado em uma maca, era vigiado por dois policiais.

Tate voltou para junto dela enquanto o agente se dirigia aos guardas e ao enfermeiro.

— Podem levá-lo ao hospital. Mas depois disso nós o transportaremos para Nova Jérsei, sob a custódia de dois federais.

—  Federais! — exclamou Gabrini.

—  Isso mesmo — o agente respondeu. — Parece que você é procurado em Nova Jérsei por vários crimes graves, meu caro.

— Não, lá não! Há outras acusações contra mim em Washington.

— Ah, mas você também será levado a Washington. No momento certo.

O mafioso suplicou proteção do governo, mas ninguém lhe prestou muita atenção. Foi carregado à ambulância, que saiu dali seguida pela viatura. Cecily e Tate preencheram os relatórios policiais entre xícaras de café, na cozinha. Depois da segunda caneca, ele a fitou com orgulho.

— Você conseguiu manter a calma — disse. — Estou orgulhoso pelo modo como se defendeu. Teve medo?

Ela sorriu.

— Muito. Mas eu não sabia que você ainda se encontrava na cidade. Pensei que tivesse ido para Washington. Obrigada por ter me salvado.

— Você ajudou muito.

— Gabrini tem medo de você.

— Deve ter. Possuo alguns contatos que ele desconhece. Não vai tentar mais nada contra você.

Cecily sorriu.

— Grata.

— O perigo acabou. Mas ainda prefiro vê-la em Washington, onde posso mantê-la sob vigilância.

Ela hesitou. Tate a salvara. Preocupava-se com seu bem-estar. No entanto, se voltasse para Washington, sabia que Tate se sentiria na obrigação de cuidar desua segurança. Sabia o que ele pensava do casamento. Sabia que vivia sozinho e que gostava disso. Naquela noite, tivera um bom exemplo de como era o inundo daquele homem. Um mundo de violência, de gente perigosa. Tate não o abandonaria. Que tipo de vida, então, ela e o bebê teriam?

Claro que ele amaria o filho, mas um dia conheceria uma mulher a quem amar. E a deixaria.

—  Prefiro ficar aqui.

Tate soltou um suspiro, ainda sob o efeito da adrenalina e ainda furioso por tanta rejeição. Encarou-a.

— Meus pais desejam que você volte para que possam estar perto do primeiro neto.

Cecily ergueu as sobrancelhas.

— Bem, esse é um novo ângulo da questão. Você está me cercando por todos os lados, é?

— Não pense que não posso viver sem você. Mesmo que esteja carregando um filho meu.

Ela deu de ombros, sem demonstrar a tristeza.

— Nunca pensei assim — respondeu, com uma gentileza forçada. — Como pode uma mulher competir com investigações e riscos?

— Não faço mais esse tipo de coisa.

— Faz todos os dias. Fez trinta minutos atrás. É muito bom nisso, viu? Eu nunca soube quanto até vê-lo em ação. Você vive para sentir essas descargas de adrenalina. Jamais o vi tão feliz como quando voltou do Oriente Médio, onde resgatou Pierce Hutton e a esposa. Isso é muito diferente da rotina de Washington. Você jamais abandonará esse mundo para se casar comigo.

—  Casar com você!

Cecily notou-lhe a surpresa no olhar e a entendeu mal.

— Desculpe-me. Sei que não faria isso. Na verdade, nem eu. Mas, mesmo vivendo separados, não quero que meu filho cresça em uma zona de combate, comassassinos espreitando nossa porta todas as noites. Aqui, em Cullenville, eu me sinto segura.

Tate ficou intrigado pelo modo como ela descartara o casamento. Sempre desejara isso. Por que logo agora, que estava grávida, desistia da idéia?

— Pensei que você quisesse se casar.

— Engano seu — Cecily respondeu sem fitá-lo. — Estou feliz assim. Vou amar muito nosso filho. Você poderá vê-lo sempre que quiser e... Tate?

Ele saiu da casa antes que Cecily completasse a sentença. Fechou a porta da frente com força e a trancou. No momento em que ela a alcançou, viu-o junto ao meio-fio, conversando com um policial e indicando, com um gesto, a moradia de tijolinhos aparentes. O outro assentiu. Ao que parecia, os guardas a manteriam sob vigilância.

Voltou para a cozinha e a limpou. Bem, Tate agora tinha o que queria: uma desculpa para não se casar. Cecily se sentia sozinha e vazia, mas não o obrigaria a agir contra a vontade, levando-a ao altar e cuidando de um filho que ele não planejara ter. Seria uma vida solitária, sem dúvida. Mas haveria o bebê.

Tate seria livre pela primeira vez em oito anos. Com ela fora do caminho, e em segurança, poderia tocar a vida sem problemas.

 

Na manhã seguinte, o policial reapareceu, levando um técnico em telefonia que consertou o aparelho. Disse que o sr. Winthrop viajara na noite anterior, mas antes contratara uma empresa de segurança para cuidar dela.

Cecily não se surpreendeu pelo fato de ele ter partido sem dizer adeus. Não esperava que isso acontecesse. Pensou nos anos que a esperavam, longos e solitários. Esperava ao menos que o trabalho e o filho preenchessem o vazio em seu peito. E compensassem o amor que havia perdido. Dessa vez, para sempre.

 

Colby Lane e Pierce Hutton conseguiram convencer o zelador do prédio onde Tate morava a abrir a porta do apartamento do amigo. Sabiam que ele voltara do Tennessee, e que salvara Cecily das mãos do perigoso Gabrini, mas ninguém o via há quase uma semana. Os telefonemas eram atendidos pela secretária eletrônica, permanentemente ligada. Ninguém respondia às batidas à porta ou aos toques da campainha. Alguma coisa certamente acontecera. Colby e Pierce ficaram ainda mais preocupados quando o viram deitado entre uma floresta de latas de cerveja e caixas de pizzas. Tate parecia não se ter barbeado, nem tomado banho, desde o retorno do Tennessee.

— Céus! — exclamou Pierce, perplexo.

— É uma cena familiar — comentou Colby. — Ele está agindo como eu agia há algum tempo.

— Espero que seja passageiro — disse Pierce, dirigindo-se ao sofá e sacudindo Tate. — Acorde!

Ele nem mesmo abriu os olhos.

—  Ela não vai voltar — gemeu. — Não vai voltar. E me odeia...

Então, voltou a dormir pesado.

Pierce e Colby trocaram olhares. E, sem dizer umapalavra, arregaçaram as mangas e começaram a trabalhar. Primeiro, no apartamento. Depois, em Tate.

 

Na manhã seguinte, de robe, estendido na cama, ele percebeu que o som da porta da entrada penetrava em sua mente. Havia um maldito tumulto lá fora e sua cabeça ainda latejava, apenas do banho, das muitas xícaras de café forte e de algumas aspirinas a que fora obrigado a tomar por dois homens que, julgava, eram seus amigos. Na verdade, ele não queria ficar sóbrio. Nunca mais. Somente desejava esquecer que Cecily não o amava mais.

Arrastou-se para fora da cama e dirigiu-se à sala no momento em que a porta foi fechada.

Cecily e sua mala encontravam-se no hall. De vestido, botas, casaco e chapéu, ela estava corada e dizia palavras que Tate nunca a ouvira usar.

— Como entrou aqui?

— Seu patrão me trouxe! Ele, aquele vira-casaca do Colby e dois seguranças, um dos quais era a versão feminina de Ivã, o Terrível! Eles me obrigaram a me vestir, fizeram minhas malas e voaram comigo até aqui no avião particular do sr. Hutton. Quando me recusei a descer do carro, o segurança masculino me ergueu nos braços e me carregou até aqui! Vou matar algumas pessoas assim que conseguir respirar direito, e vou começar por você!

Tate se recostou na parede, ainda sonolento e com os olhos injetados. Ela estava maravilhosa com aquele corpo de futura mamãe, os lábios trêmulos de raiva e os olhos verdes brilhantes.

Foi só naquele instante que Cecily percebeu que Tate não parecia o mesmo.

— Ei, o que há com você? — perguntou.

Ele não respondeu. Simplesmente levou uma das mãos à cabeça.

— Está bêbado! — ela exclamou, chocada.

— Estive — ele corrigiu. — Por uma semana, acho. Ontem, Pierce e Colby convenceram o zelador a deixá-los entrar. — Sorriu debilmente. — Andei lhe fazendo algumas ameaças caso permitisse que alguém viesse até aqui, depois que ele abriu a porta para Audrey. Creio que o homem acreditou, porque Colby precisou mostrar sua antiga carteira funcional para demovê-lo. Nada intimida mais as pessoas do que uma credencial da CIA, mesmo com o prazo de validade vencido.

— Você esteve bêbado? — Cecily perguntou, aproximando-se um pouco. — Mas nunca... nunca bebe!

— Agora bebo. Afinal, a mãe de meu filho não quer se casar comigo.

—  Ouça, eu disse que você poderia ver a criança quando quisesse e...

Os olhos negros percorreram o corpo feminino como se o afagassem. O fato de vê-la, apenas vê-la, o acalmava.

— Sim, você disse.

Cecily se perguntou por que se sentia culpada. Procurou recuperar o ar ultrajado.

— Fui seqüestrada!

— Aparentemente, foi. Mas não olhe para mim. Até hoje, estive embriagado o bastante para não conseguir nem mesmo erguer a cabeça. — Olhou em torno. — Acho que eles jogaram no lixo as caixas de pizza e as garrafas de cerveja. Uma pena. Acho que ainda havia um pedaço de marguerita. — Suspirou. — Estou com fome. Não como desde ontem.

— Desde ontem!

Imaginar Tate arrasado e bêbado fez com que a raiva desaparecesse. Cecily tirou o casaco e rumou para a cozinha. Abriu a geladeira e fez um inventário visual do que havia nela. Então fez uma careta.

— O leite está vencido, o pão tem mofo e acho que você pode iniciar uma colônia de bactérias com as que existem nas torradas...

— Peça uma pizza — ele sugeriu. — A pizzaria da esquina ainda me deve dez caixas. Paguei adiantado.

— Você não pode comer pizza no café da manhã!

— Por que não? Fiz isso durante uma semana.

— Mas é capaz de cozinhar, não?

— Apenas quando estou sóbrio.

Ela o fitou e voltou ao inventário:

— Bem, é possível aproveitar apenas os ovos e uma lata fechada de patê de bacon. Vou fazer uma omelete.

Ele se deixou cair em uma cadeira enquanto Cecily preparava café fresco e quebrava os ovos.

— Assim, você parece... domesticada — Tate comentou com um sorriso fraco. — Depois do café, que tal vir até a cama comigo?

Cecily lhe lançou um olhar chocado.

—  Estou grávida, lembra-se?

Tate assentiu e riu.

—  Sim, eu me lembro. O que, por sinal, é muito excitante.

A colher que ela levava à frigideira parou no ar.

—  O quê?

—  Ei, os ovos estão queimando.

Cecily os virou rapidamente e juntou o bacon, que cozinhava em outra panela. Então aquele maluco julgava a gravidez sexy? Não podia acreditar. Ele não estava falando sério.

Mas, ao que tudo indicava, estava sim, porque a fitava com tamanha intensidade, enquanto matava a fome, que parecia nem saber o que estava comendo.

— O sr. Hutton disse ao curador do museu do Tennessee que eu não voltaria e pediu que o aluguel deminha casa fosse desfeito. Agora não tenho nem mesmo um lar para...

— Ah, tem sim. Eu sou seu lar. Sempre fui.

Ela baixou os olhos para o prato e odiou as lágrimas que começaram a encher-lhe os olhos. Fechou as mãos.

— Lá vamos nós, de novo...

— Para onde?

Um longo suspiro antecedeu a resposta:

— Você está me colocando outra vez sob sua responsabilidade. É seu senso do dever.

Ele se recostou na cadeira. O robe escorregou pelo peito moreno e largo.

— Dessa vez não é assim — disse com voz suave, que a tocou direto no coração. — Dessa vez é por amor.

Cecily piscou e depois arregalou os olhos. Duvidou do que acabara de escutar. Não podia ter ouvido Tate dizer que queria cuidar dela porque a amava.

Mas ele não estava brincando. Sua expressão era séria.

— Sei que você não acredita, mas é verdade — insistiu, encontrando os atônitos olhos verdes. — Eu a amo desde que você tinha dezessete anos, mas achava que não tinha nada a lhe oferecer, a não ser um romance. — Suspirou. — E os motivos que eu lhe dava para não querer me casar eram falsos. Na verdade, fiquei traumatizado com a experiência de minha mãe. Foi necessário todo esse escândalo para que eu percebesse que um bom casamento nada tem a ver com aquele que cresci observando. Precisei ver minha mãe e Matt juntos para compreender o que vem a ser um casamento de verdade.

—  Sua infância foi terrível, não foi?

— A sua também. Eu nunca lhe disse que dei uma surra em seu padrasto depois que a levei para a reserva, disse?

Ela mordeu o lábio.

— Não. Mas não sei o que teria sido de mim sem sua ajuda. Depois da morte de mamãe, minha vida se tornou um pesadelo.

Tate brincou com a xícara de café, os olhos faiscando pelas lembranças dolorosas.

— Naquela primeira noite, enquanto você dormia, abri seu pijama e vi o que seu padrasto havia feito com você. Depois disso, fui até o armazém e quase o matei. Se ele não tivesse começado a gritar e a suplicar que eu parasse... — Soltou um suspiro pesado. — Foi quando me dei conta do que sentia por você — acrescentou. — Um homem quer proteger aquilo que considera seu. A verdade se revelou a mim naquela noite.

Surpresa, ela nem sabia o que dizer.

— Você... abriu meu pijama e me olhou? - Tate assentiu, o olhar estreitado.

— Seus seios eram os mais lindos que eu já vi — disse com voz rouca. — E estavam cobertos de arranhões. Quis beijar cada ferimento, levá-la para minha cama e abraçá-la, apenas abraçá-la, a noite toda, para que se sentisse segura. Mas não ousei seguir esse impulso, claro — continuou com um toque de humor, o primeiro desde que acordara. — Minha mãe teria me expulsado de casa.

— Eu... não podia imaginar...

— Sempre fui conhecido pelo autocontrole. Mas era uma agonia estar a seu lado. Quanto mais você crescia, mais a sensação piorava. Era inevitável que eu um dia perdesse a cabeça e a levasse para a cama. Mas a parte mais infernal da história foi saber que tudo o que eu tinha a fazer era tocá-la. A partir daí, você me deixaria fazer o que bem entendesse.

— Eu o amava.

— Sei disso.

Havia um mundo de sofrimento naquelas palavras. Cecily fitou os olhos negros e viu emoção neles.

— Você nunca me disse.

— Não podia. Até muito recentemente, não tinha certeza de poder pensar em casamento. E não era para manter uma linhagem pura — esclareceu, com uma risada de satisfação. — Leta não lhe falou porque eu a fiz jurar que não falaria. Mas um de meus tataravôs casou-se com uma loira, por volta da virada do século. Era membro dos Bigfoot.

Cecily ficou boquiaberta.

— A tribo que foi dizimada em 1890! - Ele assentiu.

— Depois disso, meu tataravô foi para Chicago. Negou sua cultura por um tempo e se tornou detetive. Procurou esconder a origem lakota vivendo como um branco. Mas depois resgatou o orgulho e tornou público seu passado. Casou-se com a filha de um médico que tinha cuidado dele depois do massacre. Essa moça lhe deu uma filha e um filho. Falava lakota como uma nativa, montava e atirava como uma guerreira. O sobrenome que ela recebeu, depois de casada, é o mesmo de minha mãe: Warwoman.

— Então quer dizer que... bem, a linhagem não tem sangue puro!

Ele balançou a cabeça.

—  Era uma desculpa que eu usava, como todas as outras. Gostava da minha vida como era. Não queria laços, em especial do tipo que já tinha com você. — Admirou-a com um olhar de puro desejo. — Sabia que, se nos tornássemos íntimos, não haveria volta. E estava certo. Como respiro, durmo e sonho com você. Principalmente agora, quando meu filho cresce em seu ventre.

Cecily buscou-lhe os olhos como alguém que desperta de um pesadelo para um mundo de fantasias.

Ele se levantou e se livrou do robe sem um pingo de inibição, deixando-se observar pela segunda vez durante aquela turbulenta relação. Cecily estava tão deliciada que mal se deu conta do que Tate fazia até ver-se nua. Ele então a pegou nos braços e levou os lábios, suavemente, à barriga onde se encontrava seu filho. Depois a carregou para a cama.

Havia preocupação nos olhos verdes quando Tate a colocou sobre o colchão e ajoelhou-se a seu lado.

— Tomarei cuidado — sussurrou, beijando-lhe a boca. — Não há pressa. Temos o resto de nossas vidas para usufruir desse amor.

Sim, era amor. Cada beijo, cada carícia eram uma prova do que ele sentia. Entre afagos e delícias, Tate a conduziu ao mais maravilhoso dos mundos. Cecily o sentia tremer para manter o controle e permitir-lhe o máximo do prazer.

—  Oh, Tate! — gemeu com voz rouca, forçando os quadris.

— Não — ele pediu, os lábios junto à boca feminina. — Quero que isto fique como está, devagar, suave, doce e profundo. Como deve ser. Tão terno... que você vai soluçar... quando terminar.

Cecily não tinha certeza sobre se poderia sobreviver àquilo. O prazer veio lentamente, em um enorme pulsar de sensações, como ondas quebrando-se na praia. Agarrou-se aos braços do homem que amava e estremeceu pela tensão que dominava seu corpo.

Tate soltou um som rouco quando encontrou-lhe o olhar vidrado.

— Sinta até onde posso ir — sussurrou, o queixo rígido enquanto os movimentos iam se tornando maisselvagens. — Sinta... como posso... preenchê-la... completamente... — Fechou os olhos e soltou um grito. — Cecily! Oh, céus, como eu a amo!

Ela também soluçou, sentindo, como Tate, o êxtase que explodia em ondas, estremecendo os corpos suados, exaustos, felizes.

"Vou morrer", pensou ao gritar o nome do homem adorado.

Quando finalmente conseguiu ouvir os últimos, suaves ecos do prazer intenso que dominava seus pontos mais secretos, ela chorou. Tate a abraçou, acariciou-lhe os cabelos, confortou-a com palavras e beijos ternos.

— Foi... assustador — Cecily sussurrou.

— Muito assustador — ele concordou, perplexo diante da violência daquele clímax. — Não machucamos nosso filho, não é? — perguntou, atordoado.

— Não. Ele já está dentro de mim há quase cinco meses. E este ato de amor não foi rude. Foi...

— Profundo — ele completou.

— Sim. Muito.

Tate a abraçou com mais força, tomado por um súbito temor. Se viesse a perdê-la...

Era esse seu medo verdadeiro, que estava camuflado, por baixo de todas as desculpas que dava para mantê-la a distância. Era o medo de sentir-se assim, de perdê-la, que o levara a fugir daquela mulher.

— Tate? — ela sussurrou, surpresa com o tremor dos braços fortes. — Estou bem. De verdade.

A respiração masculina começou a voltar ao normal, mas o medo permaneceu. Tate se lembrou de Gabrini e de como chegara perto de perdê-la, naquela noite. Isso o vinha assombrando desde então, fazendo até mesmo com que bebesse. Não temia nada no mundo, exceto perder aquela mulher. Ainda de olhos fechados, apertou-a contra o corpo.

— Não posso perdê-la, querida.

— Isso nunca vai acontecer — foi a resposta terna. Cecily se afastou um pouco e fitou os selvagens olhos pretos. Tocou-lhe o rosto com suavidade. — Amo você mais do que minha própria vida. Jamais poderei deixá-lo.

— Mas me deixou. Fugiu de mim.

— Porque eu não sabia que você também me amava. Apenas queria vê-lo feliz. Decidi sair do seu caminho...

Sua voz falhou quando a lembrança daquelas semanas angustiantes voltaram.

— Isso não me faria feliz. Minha vida ficou vazia. Parte de mim morreu, sem sua companhia. E então soube que você carregava um filho meu, e que estava em perigo... mas não conseguia encontrá-la! Ah, eu te amo tanto! Tanto!

— Mas acabou me encontrando, meu amor. Salvou-me a vida. E eu também o amo. É mais forte do que tudo.

—  Estarei a seu lado quando nosso filho nascer. Não vou deixá-la nem por um instante.

— Minha saúde é ótima, e a do nosso filho também. Se houver algum problema, qualquer um, eu direi. Mas não há. Exceto...

Tate a fitou, preocupado.

—  Exceto?

Cecily sorriu.

—  ...que estou com sono — completou.

Ele também sorriu. Cobriu os dois corpos e começou a relaxar.

— Pensando em quê? — quis saber, beijando-lhe a testa.

— Em como estou feliz por ter esperado por você.

— Isso também me faz feliz. O modo como fizemos amor pela primeira vez foi quase sagrado. Nosso filho foi gerado ali?

— Sim — ela murmurou, tocando-lhe o peito, adorando o calor que vinha da pele morena. — Eu sempre soube que você seria um excelente amante. E estava certa.

Tate beijou-lhe a testa com ternura.

— Ora, obrigado! Mas, se quiser me possuir de novo, terá de se casar comigo — respondeu, colocando uma das pernas entre as dela.

A frase a tirou do estado sonolento. Ergueu-se, para vê-lo.

— O quê?

— Você me ouviu. Não pretendo ser seduzido e abandonado. Você me arruinou. Agora tem de se casar comigo.

Cecily começou a rir.

— Pois você não parece nem um pouco arruinado — murmurou, admirando o corpo musculoso. — Na verdade, é perfeito!

— Elogios não vão resolver a questão. Estou arrasado, juro. Você precisa se casar comigo e salvar minha reputação.

Ela hesitou, ciente de que Tate a devorava com o olhar, dos seios à leve protuberância do abdome.

— Eu quero me casar com você. Mas não tenho certeza.

— Sei disso, querida. Conte-me por que está em dúvida.

— Você é um solitário. Nosso filho e eu iremos impor algumas restrições a seu estilo de vida.

Ele deu de ombros.

— Isso já aconteceu — disse com um sorriso. — Já avisei Pierce Hutton de que será preciso achar alguém para assumir as missões perigosas. Continuarei dirigindo a segurança, mas estou fora dos casos arriscados. Contratei Colby — acrescentou, alargando o sorriso ao ver-lhe a expressão de surpresa. — É o tipo detrabalho que nosso amigo adora, e oferece menos riscos do que a espécie de serviço que ele andava fazendo.

— Gosto muito de Colby.

— Eu também, agora que sei que ele é apenas seu amigo.

Cecily ergueu as sobrancelhas.

— Como soube disso?

— Entre outros motivos, porque você estava faminta até minutos atrás.

— Você também estava.

Ele riu.

— Sempre sinto fome de você, querida. — Espreguiçou-se, ergueu o corpo e a colocou sob o peito, afagando os cabelos loiros e curtos. — Eu a quis desde que a conheci. Mas era seu guardião. Não podia tirar vantagem disso, nem do que você sentia por mim.

— Já sabia que eu o amava? Desde aquela época?

— Sim — Tate respondeu, levando uma das mãos às costas delicadas e nuas. — No começo, ignorei. Mas no dia em que a recebi, em Oklahoma... Não percebeu que eu quase a possuí ali mesmo, no carro?

— Não.

— Se não estivéssemos em um local público, eu não seria capaz de parar. Era perigoso brincar comigo, mas você não sabia disso.

— Que desperdício!

— Não, não foi. Nós dois precisávamos de tempo para nos adaptar às mudanças que esse amor traria às nossas vidas. Tudo o que eu tinha era a ilusão de um legado indígena e um trabalho que qualquer dia poderia me custar a vida. Achava que era isso que queria.

— E não era? - Ele a abraçou.

— Eu queria você. Inventei um monte de motivos para não tê-la, porque não queria... pertencer a ninguém.

— Você jamais pertencerá. Mas pode ser parte daspessoas.

— É a mesma coisa. Aprendi desde cedo que, quando mostramos nossos sentimentos, somos atormentados por eles. Meu pai... quer dizer, meu padrasto... sabia que eu amava minha mãe. Punia a mim batendo nela até que eu estivesse crescido o bastante para detê-lo.

— Matt não se conforma com o que vocês dois passaram.

— Sei disso. Mas o fato é que ele não conhecia nosso relacionamento. Minha mãe cometeu uma injustiça ao tentar nos proteger da verdade.

— Leta só queria livrá-lo de aflições e embaraços.

— Também sei disso. Mas mentir não traz benefícios a ninguém, sejam quais forem os motivos.

Cecily passou o rosto no peito largo.

— Onde vamos morar?

Houve uma pausa. Em seguida, Tate riu.

— Imagino que vamos precisar de uma casa. Nosso filho vai querer aqueles balanços vistosos e horríveis quando for grande o suficiente para brincar. Para não falar naqueles brinquedos de plástico colorido.

— São mais seguros do que os de metal ou madeira.

— Vamos ver o que poderemos conseguir em Maryland, perto de Leta e Matt. — Afagou uma mecha de cabelo loiro. — Eles já estão comprando o enxoval do primeiro neto. Vão ficar muito felizes ao nos ver juntos.

Cecily fechou os olhos e sorriu.

— Nosso filho só precisa de nós.

— Precisa me dizer isso?

— Às vezes.

— Eu sabia que você me amava. Não levaria muito tempo para ter um pouco de bom senso.

— Você vai se aborrecer trabalhando no escritório de Hutton — ela comentou, preocupada.

— Não, não vou — Tate respondeu, rolando na cama até colocá-la sobre seu corpo. — Serei um homem de família, com novas responsabilidades. — Buscou os suaves olhos verdes e sorriu. — Eu a amo. Precisa se casar comigo o mais depressa possível. Não posso perder a chance de vê-la acordar, uma manhã dessas, e perceber como pode ser feliz ao lado de um marido.

O coração feminino pareceu parar, e em seguida disparou. Cecily precisou desfazer o nó em sua garganta antes de falar:

— Eu não poderia me casar com mais ninguém. Você me ama de verdade?

Tate traçou o contorno do rosto oval com um dedo.

— Pensei que já soubesse disso...

— Talvez. Você sabia que eu não era experiente e não se preocupou em tomar precauções quando me levou para a cama pela primeira vez. Isso me pareceu um bom indicador. — Sorriu. — De todo modo, sempre houve um laço muito forte entre nós.

— Sim, é verdade. Eu gostaria de mudar o passado, mas não posso fazer isso. Você fugiu por minha causa. Meteu-se em problemas. Gabrini poderia tê-la matado.

— Você me salvou. Na verdade, vem me salvando há muitos anos. Até de si mesmo.

Ele também sorriu.

— Você me ajudou a salvá-la.

— Porque tive um bom professor — Cecily respondeu, acompanhando a linha das sobrancelhas escuras. — Tomara que nosso filho tenha seus olhos. São tão bonitos...

— Ele será uma mescla de guerreiros e nobres. Alguns de meus ancestrais eram berberes. Outros pertenceram à nobreza francesa.

Havia uma nota de orgulho em sua voz.

— Matt lhe contou isso?

Tate assentiu.

— E adorará contar também ao neto.

— Leta vai amar esse neto. Poderá lhe ensinar tudo sobre as tradições e a cultura lakota.

Ele beijou-lhe as pálpebras cerradas.

— Fui procurá-los para pedir conselhos antes de viajar ao Tennessee. Foi quando fizemos as pazes. — Ergueu a cabeça. — Por falar nisso... nunca me pediu desculpas por ter atirado uma terrina de creme de caranguejo diante das câmeras de televisão! Isso não foi jeito de tratar seu futuro marido, filho de uma militante nativa e de um senador dos Estados Unidos!

— Você está certo. Ouça, sinto muito mesmo por aquilo.

O coração masculino começou a bater mais forte antes mesmo de ela deslizar uma perna macia e nua entre as suas.

— Quanto você sente?

Cecily sorriu e colou o corpo ao dele, sentindo a reação imediata ao ato sedutor.

—  Assim, veja... — sussurrou, recomeçando a fazer amor.

 

No dia seguinte, Tate e Cecily foram à casa de Leta e Matt. Havia uma camada de gelo na estrada. Por isso, ele dirigiu devagar, com cuidado, e ao chegar carregou-a no colo até a entrada. Embrulhou-a no casaco de couro preto que lhe dera no Natal do ano anterior e elevou o capuz, cobrindo-lhe a cabeça.

— Toque a campainha — pediu, roçando o nariz no dela.

— Não.

Cecily sorriu, divertida, provocadora. Estava de óculos naquele dia, e por trás das lentes os olhos verdes pareciam brilhar ainda mais.

—  É uma chantagem? Então está bem. Eu aceito — Tate respondeu, beijando-a apaixonadamente. — Pronto. Agora você poderia tocar a campainha?

Ela o enlaçou pelo pescoço e lhe deu outro beijo. Dessa vez, com tanto entusiasmo que o levou a gemer. Nenhum dos dois ouviu a porta se abrir.

— Não preferem fazer isso sentados? — disse uma voz brincalhona.

Eles se afastaram e caíram na gargalhada. Matt lançou um olhar significativo ao filho antes de voltar a atenção para Cecily, examiná-la com curiosidade e tornar a fitar Tate.

— Parece que você tem alguma novidade para contar à sua mãe e a mim...

—  Tenho, sim. Nós vamos nos casar.

— O quê? — Matt exclamou, surpreso, abrindo a porta por inteiro. — Lembra-se de quando eu lhe disse para fazer um plano de batalha, filho? Sempre funciona!

— Alguns — respondeu Tate. — Fui ao Tennessee para trazê-la a Washington, mas Cecily não quis vir comigo. Assim, fui para casa e me embriaguei até cair. Quando acordei, Pierce Hutton a tinha deixado em meu apartamento, como presente de Natal.

—  Mas que patrão gentil! — Matt comentou com uma risada. Virou-se para dentro da casa. — Leta, temos visitas!

Tate carregou Cecily para a sala de estar. Estava perto do sofá quando Leta apareceu, vinda da cozinha.

— Minha menina! — exclamou, abraçando a filha adotiva assim que Tate a colocou no chão. — Minha pobre criança... Você está bem?

Tanta preocupação, tanto carinho emocionaram-na. Ela rompeu em lágrimas.

— Oh, mas que confusão! — disse entre soluços. — E que felicidade!

Leta contemplou o filho e ambos sorriram, de pura alegria.

 

Tate contou a história da captura de Gabrini, enfatizando o orgulho que sentiu por Cecily ter-se defendido sozinha. Depois disso, Leta e Matt deixaram-nos a sós à mesa, com a torta de maçã e o café, enquanto recebiam um visitante inesperado, colega de Holden no Senado.

Ele a fitou, fascinado, e Cecily baixou o olhar.

— Assim você me deixa sem jeito...

— A gravidez é uma experiência mística para um homem, sabe? Simplesmente me hipnotiza.

Cecily sorriu.

—  Percebi.

— Toda aquela conversa sobre evitar misturas culturais... para nada! Na primeira vez que a possuí nem mesmo pensei em fazer alguma coisa para evitar um filho. Não lhe pareceu uma atitude um tanto irresponsável?

— Sim, pareceu. Mas você não sabia que eu era virgem.

— Oh, sabia sim — ele respondeu com calma, fitando-a. — Tinha absoluta certeza disso.

Cecily corou, relembrando as sensações que vivenciara ao lado daquele homem, na cama. Arrepiou-se inteirinha.

— Sabe de uma coisa? Aquela primeira vez foi uma revelação — Tate prosseguiu. — Fico excitado sempre que me lembro dela. E depois, no chão de seu escritório... Ainda não consigo acreditar que fizemos aquilo. — Franziu as sobrancelhas. — Você já estava grávida, na época. Eu poderia tê-la machucado. E ao bebê.

— Mas não machucou. E, caso não se recorde, eu o seduzi. Mesmo sob aquelas circunstâncias, foi uma experiência inesquecível.

Tate suspirou.

— Ainda fico meio envergonhado ao me lembrar. Tratei-a sem delicadeza, e não apenas daquela vez. Você poderia ter-se cansado de mim.

— Bobagem. Valeu a pena. Não me arrependo de nada.

— Eu gostaria de poder dizer o mesmo. — Tate cruzou as mãos atrás da cabeça e a observou com atenção. — Você fica muito sexy com essa barriguinha.

Cecily fez uma careta.

— A gravidez não existe para ser sexy.

— Mas é. Você está radiante. Brilha. — Sorriu. —Fico feliz em saber que você deseja esse filho. Eu também desejo, e muito. Desculpe-me por tê-la feito sofrer. Meu mundo deu uma reviravolta, e eu não estava preparado para isso. Tudo deixou de ser como eu acreditava que era. Minha vida toda pareceu-me uma grande mentira. Foi difícil me adaptar à realidade.

— Sei disso, querido. Nenhum de nós queria magoá-lo. Mas simplesmente não havia um modo fácil de dizer-lhe a verdade. — Encontrou os olhos negros, profundos, e suspirou. Será que o filho de ambos teria olhos assim belos? — Mentiras são perigosas. Mesmo as contadas com a melhor das intenções.

Tate assentiu e sorriu lentamente.

—  Eu me pergunto com qual de nós o bebê vai se parecer...

— Pois eu estava pensando a mesma coisa. Olhos negros são dominantes. Tomara que sejam como os do pai. Seus cabelos são pretos e os meus, loiros. Assim, provavelmente o de nosso filho serão castanhos. Espero que seja alto como você.

— Tem certeza de que será um menino?

— Absoluta. A ultra-sonografia mostrou. Considerando que seu pai tinha dois irmãos, uma menina seria mais do que bem-vinda. Mas terá de ficar para outra ocasião. — Sorriu. — Matt lhe contou sobre os irmãos?

— Não...

— É uma história interessante. Um deles, Phillippe, era muito mais velho e morreu durante a Segunda Guerra Mundial. Michel sofreu um infarto fulminante três anos atrás. Eram os únicos parentes de Matt. Ou melhor... ele achava que eram — ela acrescentou com um sorriso. — De todo modo, nesta família nascem mais homens do que mulheres. E são os genes do pai, não da mãe, que determinam o sexo dos filhos.

— Não me importo nem um pouco com o sexo. Só quero que a criança seja saudável. — Contemplou-lhe o ventre crescido. — Falei sério quando pedi que nos casássemos logo. Não creio que esses arranjos modernos e informais sejam o melhor caminho quando há um bebê envolvido na história. De todo modo, eu me casaria com você mesmo que esse filho não existisse. — Fitou-a de modo apaixonado. — Nosso bebê merece um sobrenome e dois pais que o amem e o vejam crescer. Como já dissemos, nada fiz para evitá-lo. — Deu um sorriso largo. — E não me arrependo disso.

— Nem eu. Certo, então. Podemos nos casar quando você achar melhor.

Tate deu um suspiro de alívio.

— Vou conversar com o padre que celebrou o casamento de meus pais. Mas podemos nos unir apenas no civil.

— Não. Prefiro que nos casemos também na igreja.

— Está bem. E quanto mais cedo, melhor.

 

A cerimônia aconteceu uma semana depois, com Leta, Matt e Colby Lane como testemunhas. Pierce Hutton, a esposa Brianne e o filho, de menos de um ano, também estavam presentes. Todos pareciam radiantes.

Cecily olhou para Tate quando ele levantou o véu cor de creme que combinava com o tailleur de seda e viu um brilho novo ali. Ele sorriu para a esposa e então se inclinou para beijá-la, enquanto lágrimas rolavam pelas faces femininas.

A recepção, longa e concorrida, aconteceu na casa de Matt Holden. Brianne Martin Hutton, com o filho adormecido nos braços, aproximou-se de Cecily.

— Está vendo aqueles dois homens de terno escuro? — perguntou, indicando-os. — São do governo. Aqueleslá, junto ao ponche, são ex-mercenários. O loiro alto é Micah Steele. A moça magra e de cabelos castanho-claros, do outro lado da sala, é sua irmã adotiva. Ambos não se dão muito bem. Por isso estão tão longe um do outro.

— Isso me soa tão familiar... — Cecily comentou, com um olhar travesso ao marido.

— Aconteceu também com você? — Brianne perguntou.

— Exatamente. Tate me evitou durante anos.

Ela contemplou a barriga crescida e sorriu.

—  Imagine só, um homem capaz de fazer isto a distância!

As duas começaram a rir e se dirigiram ao sofá. Cecily pegou o garotinho nos braços. Tate aproximou-se e admirou a cena com um sorriso.

— O nome dele é Edward Laurence, mas nós o chamamos apenas de Laurence — contou Brianne. — E se parece muito com o pai.

—  É verdade — Tate murmurou, sonhando com o próprio filho.

O senador Matt Holden reuniu-se ao grupo, colocando um braço em volta dos ombros de Tate com afeição.

— Que criança linda! — comentou, fitando Laurence. — Sorte que a minha criança também é — acrescentou. — Não sei a quem puxou...

— Pode parar com isso. Sou uma cópia melhorada de você — disse Tate com um sorriso.

— Melhorada?

— E com um temperamento mais tranqüilo.

— Depende da ocasião.

— É bom ver vocês dois assim, tratando-se tão bem. Não acha, Cecily? — perguntou Leta, aproximando-se e dando o braço ao marido.

— Claro que é. Já estou me acostumando a essa paz, essa calma...

— É mesmo? — zombou Tate. — Então verá o que vai acontecer quando ele souber que estamos finalizando o processo da abertura do cassino, em Wapiti.

— Pode finalizar o diabo, se quiser, mas lutarei com unhas e dentes contra essa maldita idéia! Até a última trincheira! — devolveu Matt.

— Dessa vez a máfia não está envolvida, e fizemos um plebiscito na reserva. Você não pode ir contra isso.

— Acha que não, filho? Pois farei um protesto do lado de fora da reserva, levando tantas pessoas quantas conseguir arregimentar! Na verdade, eu...

— Parem com isso — pediu Leta. — Esta é uma ocasião especial. Vocês dois podem deixar essa discussão para outro dia.

Pai e filho entreolharam-se, em desafio.

— Eles não ficam ainda mais parecidos quando se encaram desse jeito? — Leta comentou, sorrindo.

— Tem razão — respondeu Cecily, tocando o marido. — Tate? — chamou, devolvendo o bebê a Brianne e levantando-se.

Ele a fitou, assim como Matt. A discussão pareceu encerrada, ao menos no momento.

—  Preciso falar com Steele — desculpou-se Tate.

—  Não o conheço, mas também preciso falar com esse moço.

Retiraram-se, deixando Cecily com a mãe adotiva, que a abraçou.

— Não se preocupe. Ambos estão lutando por aquilo em que acreditam. Vamos ver quem vence. Em todo caso, creio que vamos conseguir instalar o cassino. Mesmo porque não terá roletas nem máquinas eletrônicas. Será pouco mais do que um grande bingo. E dessa vez só a tribo está envolvida no projeto.

— Que notícia boa! É um bom presente de casamento.

Leta sorriu.

— Matt e eu vamos contratar uma babá para você querida, quando se mudarem para aquela casa maravilhosa que compraram, no fim da rua.

— Podemos tomar café juntas todas as manhãs e discutir novas campanhas para a comunidade — Cecily propôs com um sorriso. — Afinal, agora somos realmente uma família!

Leta suspirou.

— Uma família — concordou com amor antes de ir fazer companhia ao marido.

Brianne olhou para Cecily.

— Espero que perdoe Pierce por tê-la "seqüestrado". Ele e Colby Lane não tinham nada que fazer aquilo com você, principalmente por causa da gravidez.

— Senti-me ultrajada. Fui trazida a Washington e entregue, com bagagem e tudo, na casa do pai de meu filho. — Suspirou ao fitar o marido, no outro extremo da sala. — Mas valeu a pena. Pierce Hutton deveria ser eleito o cupido do ano!

Brianne sorriu.

— Tate está muito animado com o filho, não é? Ouvi-o dizer a Pierce que já está procurando pelos melhores colégios.

— Ele será um bom pai. E um ótimo marido.

— Quem diria... Tate sempre foi uma pessoa muito contida. Acho que nunca podemos dizer que conhecemos a fundo alguém, não acha?

Cecily balançou a cabeça.

— É parte da brincadeira descobrir as pequenas surpresas que nos tornam seres tão complexos. Quanto mais o tempo passa, mais percebo quão pouco conheço meu marido. É uma pessoa muito fechada.

— Pierce também é. Mas quer saber de uma coisa? Os homens estão além de todos os problemas que nos causam.

Cecily riu, deliciada.

—  Pode apostar nisso!

 

O bebê nasceu no verão, justamente no dia mais quente do ano. Tate mal conseguiu levar Cecily ao hospital a tempo. O pequeno Joseph Matthew Winthrop veio ao inundo no momento em que sua mãe foi levada à sala de parto.

Pierce Hutton confidenciou à esposa que todos os departamentos do governo sediados em Washington mandaram representantes à maternidade. Leta e Matt dividiam um banco com Colby Lane, que contava que Gabrini fora condenado à prisão perpétua depois de fazer uma inesperada confissão sobre o escândalo envolvendo a máfia e a reserva.

Uma enfermeira interrompeu a conversa ao aparecer à porta e anunciar a Matt Holden e a Leta que eles acabavam de se tornar avós. O menino nascera sadio, grande, e assim que a sra. Winthrop fosse levada ao quarto todos poderiam dirigir-se ao berçário para ver o novo membro da família.

Em um quarto particular, uma Cecily cansada e feliz observava o marido segurar o filho no colo. Ela pensara que a expressão de felicidade de Tate, no dia do casamento, jamais se repetiria. Mas, quando a enfermeira apareceu com o menininho, e o entregou ao pai pela primeira vez, a expressão não apenas se repetiu como se superou.

Foi indescritível. Lágrimas rolaram dos olhos negros. Ele segurou o pequenino em uma das mãos enormes, morenas, admirando os dedinhos perfeitos, o rosto minúsculo, procurando por semelhanças.

— Gerações e gerações de nossas famílias estão aqui, nesta fisionomia — comentou com suavidade. Fitou a esposa com olhos úmidos. — Este é o nosso filho!

Ela enxugou as próprias lágrimas e convidou o marido a se sentar a seu lado.

— Ele não é lindo? — Tate continuou, ainda embalando a criança. — Da próxima vez, vamos providenciar uma menina — disse com ternura. — Para que se pareça com você.

Cecily sentiu o coração pleno de felicidade ao contemplar aquele rosto tão amado.

— Meu coração se alegra quando o vê — falou em lakota.

Ele sorriu.

—  O meu também se alegra ao vê-la — respondeu em inglês.

Cecily estendeu a mão e a colocou sobre a do marido. Na mesinha a seu lado havia um buquê de rosas vermelhas, que exalavam um suave perfume. Ela as admirou, lembrando-se da primeira rosa que Tate lhe dera, quando tinha dezessete anos. Uma linda rosa vermelha de papel, que ele trouxera do Japão.

Agora, as rosas eram verdadeiras, não simples imitações. Assim como seu amor por ele se tornara real, tangível, concreto.

Tate franziu a testa ao observar-lhe a expressão sonhadora.

— O que houve?

— Eu estava me lembrando da rosa de papel que você trouxe do Japão logo depois de eu ter ido morar com Leta...

— Pois agora você está coberta de rosas de verdade.

Cecily assentiu, satisfeita ao notar que o marido sabia a que ela havia se referido. Oh, mas isso era comum. Os dois sempre pareciam ler o pensamento um do outro. Em especial a partir daquele dia, com o bebê como prova viva daquele grande amor.

— Sim... Agora as rosas são de verdade.

Lá fora, a chuva torrencial jogava pingos prateados nas folhas verdes dos arbustos. No quarto, ninguém notou isso. O bebê dormia e seus pais, embevecidos, o fitavam, os olhos cheios de sonhos bons.

 

                                                                                            Diana Palmer

 

 

                      

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