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A NETA DO ARCEDÍAGO / Camilo Castelo Branco
A NETA DO ARCEDÍAGO / Camilo Castelo Branco

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A NETA DO ARCEDÍAGO

 

    Um berço borrifado de sangue

     Convém, primeiro, saber quem é este cavalheiro, que salta garbosamente de uma carruagem com uma dama vestida de branco, defronte do Teatro de S. Carlos, em Lisboa, em uma noite de Fevereiro de 1838.

     Por não apurar impaciências, diga-se tudo já. Este cavalheiro é Luís da Cunha e Faro. Aquela dama é... Nem tanta bondade! Não se pode dizer, por ora, quem é a dama. Se o leitor é esperto, como suponho, há-de adivinhá-la logo, e, decerto, fica muito contente da sua penetração.

     Luís da Cunha e Faro tem vinte e cinco anos. É um homem feio, segundo a opinião masculina, que se acha em harmonia com a sua. Não era esta, porém, a opinião das mulheres. Algumas que, por capricho, em público, o desdenhavam como feio, desmentiam-se em particular...

     Não digo que fossem todas; mas também não é preciso o sufrágio de todas para a reputação de um homem feio.

     - A que chamam V. Ex.as feio? Feio é o demónio – dizia minha avó. São e escorreito é o essencial - dizem as velhas; quando as ilusões da formosura não têm nada a fazer com elas, nem, por isso mesmo, elas têm direito a optar entre o feio e o bonito.

     Luís da Cunha era trigueiro; tinha a pele bronzeada da cara pegada aos ossos, que lhe saíam, principalmente os malares, em proeminências cadavéricas. Os bordos das órbitas muito salientes contribuíam muito para que o brilho dos olhos negros e grandes luzisse mais na escuridade das cavernas, debruadas sempre de um anel bastante escuro para destacar da cor geral de azeitona.

     O nariz era notável pela ausência total do cavalete.

     A boca não se lhe via, coberta pelo bigode espesso, que se não encaracolava nas guias, e caía em luzentes recurvas sobre ambos os lábios. Ora aqui está o que é um homem feio. Perguntava muita gente a razão fisiológica da cor africana de Luís, tão diversa da alvura inglesa de seu pai

     João Cunha e Faro, que, por esse tempo, contava quarenta e cinco anos, e passava ainda por um dos belos homens de Lisboa.

     Pouca gente respondia fisiologicamente a tal reparo, porque muito pouca sabia que Luís da Cunha era filho de uma mulata.

     Agora é que ninguém poderá alegar ignorância. Eu tenho a honra de responder à curiosidade, que foi longo tempo a mortificação de pessoas muito sisudas.

     Sabia-se geralmente que o nascimento de Luís fora uma das multiplicadas aventuras amorosas do fidalgo, seu pai; mas a outra metade produtora, o complemento da máquina, em que o misterioso artefacto se fabricara, isso é que os amigos íntimos de João da Cunha e Faro ignoravam.

     O leitor não perderia muito ignorando também.

     Ainda assim, se não quiserem passar ao Capítulo segundo, também nada perdem, e ficam sabendo tanto como eu.

     João da Cunha frequentara a Universidade de Coimbra, quando era mania dos fidalgos deixarem medrar seus filhos na ceva opulenta de uma fidalga estupidez.

     Enquanto seu irmão mais velho estudava veterinária para se não deixar enganar em compras de cavalos, João da Cunha estudava matemáticas para se distinguir na carreira militar.

     Cursava o segundo ano, com admirável aproveitamento, quando chegou a Coimbra um moço brasileiro, filho de português, casado com uma mulata, filha de um rico fazendeiro de café, e fabulosamente rica, segundo era a fama.

     A intenção do brasileiro era formar-se em Naturais, para cientificamente explorar os vastos terrenos do México onde seu sogro desenterrara o mais grosso do seu cabedal.

     E, com efeito, matriculou-se, ao mesmo tempo que sua mulher, desejosa de cultivar o espírito, recebia em casa lições de francês e inglês.

     Ricarda chamava-se ela. Não lhes quero dizer que era bonita, porque receio que zombem da minha franca ingenuidade; porém não chegue este Capítulo ao fim, converta-se-me esta pena em sovela, se eu não gostasse da Senhora D. Ricarda, e não a amasse com o delírio de João da Cunha.

     Pois ele ousou?... Ousou... Misérias inerentes ao pecado original! O primeiro homem caiu, e bem forte devia ser esse primeiro homem, saído das mãos do Criador, com toda a substância e rigidez de uma obra perfeita, com todas as harmonias e segredos para desmanchar o sortilégio da tentação!... Como não cairia o académico, degenerado pelas fraquezas de tantas gerações que vieram até ele, desde o Eden?

     Que tinha, pois, Ricarda de sedutora?

     O que ela tinha! Sabem o que é ter um coração de lume, lume que se esconde, enquanto há olhos que o dardejem em lavaredas eléctricas? Sabem o que é o nervo óptico, ferido desse galvanismo da alma, que se lhe coa nas fibras, que se comunica aos músculos, que se injecta na pupila vertiginosa, que se lança fora do corpo em cintilas contagiosas, até vos pegar uma febre que se não cura com a quina? Sabem o que é, voluptuosidade da mulher dos trópicos? Não crêem que o Sol, a prumo, se infiltra nela, e a queima desde os catorze anos, com uma sede insaciável de gozos ternos, mórbidos, e elanguescidos como a requebrada cantinela de uma carioca?

     Ricarda, além de tudo isto, tinha coisas de encantar.

     Dizia uma coisa singela com tantos artifícios de graça, de meiguice e de cansaço, que mais valiam as simples palavras dela, que os beijos mais suavemente chilreados de uma europeia. As pérolas, que tão lindo lhe faziam o sorriso brando, raro se mostravam, porque, se os olhos diziam tudo, o sorriso não lhe vinha auxiliar os gestos.

     E a flexibilidade das formas? Que donaire, que gentileza, que perfeição de estudo, ou que naturalidade tão caprichosa em enriquecê-la!

     Bem haja, pois, João da Cunha, que adorou a omnipotência do Criador, sem perguntar ao abade de Salamonde a gravidade da culpa, adorando a mulher do seu próximo, de mais a mais, seu contemporâneo. Bem haja, digo eu meio resolvido a rasgar este período, se o leitor, por uma sobrenatural revelação, me não diz que bem pode ser que o académico não esteja condenado pela mesma razão que Madalena foi salva. Amar muito! Sem esta virtude, Deus sabe se acta das santas nos faria menção da dedicada galileia!...

     Não quero inculcar a santidade de João da Cunha.

     Creio até que o homem nunca se lembrou destas honras póstumas, e a universidade, conquanto produza grandes doutores para a mitra, ainda não deu um para a igreja.

     O matemático era capaz de renunciar à canonização se lhe pedissem a troco o sacrifício de abjurar o amor, que o trazia tão longe da ciência, e tão avesso às obrigações académicas que, antes da Páscoa, tinha perdido o ano por faltas, e dissera incríveis disparates em duas lições, que o desacreditaram.

     João da Cunha soubera insinuar-se na confiança do brasileiro. Era sua visita em véspera de feriado. Falava francês com Ricarda, e solvia, em matemática, as dificuldades que o obtuso marido não vencia.

     Seria impertinência alongar de sobejo este episódio, que não vem ao essencial da nossa história. O leitor, amigo da concisão, quer que eu lhe diga se aquela mulher de fogo se conservou incombustível, como o amianto, na presença do estudante. Não, senhores. Fosse pelo que fosse, a brasileira parece que não tinha ideias muito claras a respeito dos deveres conjugais. Seu marido, alucinado pela ciência, retirou-se cá de baixo para tão alto que não podia ver a terra onde sua mulher vacilava ao pé de um abismo. Acordou, uma manhã, cismando num x, que o fizera adormecer às duas horas. Chamou sua mulher, que o costumava saudar em francês do quarto próximo.

     Desta vez não ouviu língua alguma das que se entendem no Globo. Entrou no quarto para contemplá-la no sono feliz de quem não estuda matemática. Achou um leito vazio. Correu a casa toda, chamando-a, com sobressalto, que não era ainda o da certeza. Nem a criada encontrou!

     Volveu ao quarto de Ricarda. Reparou que sobre a cómoda não estava um cofre de marfim. Era o adereço de Ricarda: os seus brilhantes, que valiam uma fortuna; os mais ricos diamantes que deram as Minas Gerais; as melhores pedras do Novo Mundo, o valor de quatro dotes opulentos!

     Desde esse dia, o brasileiro não tornou às aulas. Sabe-se que foi curado de uma congestão cerebral. Viram-no, dois meses depois, sair de Coimbra, sem estender a mão aos amigos, compadecidos do seu infortúnio. Passara por entre eles sem os ver. Reputaram-no doudo, e vingaram inutilmente a afronta que o enlouquecera, execrando o infame de João da Cunha, que lhe roubara a mulher.

     Mas um dia, dez meses depois, passara o brasileiro na Rua do Ouro em Lisboa, e vira numa tabuleta de ourives uma anel com uma esmeralda cravejada entre doze brilhantes.

     - Quanto pede por este anel? - perguntou ele.

     - Dois contos de réis.

     - Comprou as pedras separadas, ou o anel?

     - Comprei o anel.

     - Há muito tempo?

     - Há dois meses.

     - O vendedor era português?

     - Creio que sim.

     -      Garantiu-lhe a legítima venda de que era seu? Creio que me não entende... Tem a certeza de que este anel não fosse um roubo?

     -      O cavalheiro que mo vendeu é um fidalgo.

     - Conhece-o?

     -      Conheço, sim...

     -      Desculpe estas perguntas, porque eu quero comprar o anel, e não o faria sem a certeza de que amanhã me fizessem as perguntas que eu lhe fiz.

     Pouco depois, o ourives recebia dois contos de réis por um anel que comprara por cinquenta moedas. Contente da veniaga, esquecera-se da reserva que lhe fora pedida, quando o comprou, a respeito do vendedor.

     A alegria fizera-o indiscreto e expansivo. Dois contos de réis era dinheiro para trinta Judas, e de mais o ourives não sabia o valor do segredo.

     - Visto que me comprou o anel, vou dizer-lhe quem mo vendeu; mas V. S.ª guarde segredo, não porque seja um furto, mas porque é um melindre. Este anel foi-me vendido por um dos primeiros fidalgos de Lisboa; mas o homem pediu o segredo do seu nome, para que o não julguem em más circunstâncias. A V. S.ª posso dizer-lhe o nome...

     - Decerto pode; mesmo porque eu estou em vésperas de embarcar para o Brasil, que é o meu país.

     -      Lá me pareceu logo que V. S.ª era brasileiro... Por cá não há quem dê assim dinheiro por uma obra de gosto... Pois, senhor, o ex-possuidor deste anel foi António da Cunha. e Faro, e quem aqui mo vendeu, com ordem sua, foi seu filho João.

     -      Penso que conheci em Coimbra esse cavalheiro - disse com mal fingida serenidade o marido de Ricarda.

     - Pode ser, porque, segundo ouvi dizer, o tal Senhor João da Cunha estuda em Coimbra.

     -      Pensei que esse sujeito não estava em Lisboa.

     -      Há quinze dias decerto estava; se quer falar com ele para ir seguro do que lhe digo, ainda que eu lhe prometi de não dizer quem me vendeu o anel, pode V. S.ª procurá-lo em casa de seu pai, no Campo Grande.

     - Não duvido da sua palavra.

     O brasileiro passou a noite desse dia encostado às árvores fronteiras do palacete de António da Cunha. De madrugada vira entrar um embuçado, que se lhe afigurou João da Cunha. Ao escurecer desse dia viu sair o mesmo vulto suspeito, e seguiu-o. No Campo Pequeno viu-o entrar numa sege de praça, que desapareceu pela estrada transversal.

     Na noite imediata, a pouca distância da sege que esperava João da Cunha estava um cavaleiro encoberto pelo muro da quinta do conde das Galveias. A sege partiu, e o cavaleiro seguiu-a de longe, para que o tropel do cavalo se não tornasse suspeito.

     A meia légua, na azinhaga de Campolide, parou a sege.

     João da Cunha entrou num largo portão, que se abriu no momento em que ele apeava. Caminhou por debaixo de uma extensa parreira, que formava uma fresca abóbada de folhagem à entrada da casinha campestre em que morava Ricarda.

     O brasileiro decerto não viu a casinha, porque o portão fechara-se nas costas de João da Cunha. O boleeiro entrara com a sege numa cavalariça a cinquenta passos distante do portão. O marido de Ricarda adquirira aquela imperturbável paciência que vem depois dos frenesis da vingança. Quase um ano de meditação e estudo na desforra que mais convinha à sua honra era sobeja reflexão para não perder com uma imprudência a vitória que, tão depressa, lhe deparara o acaso do anel.

     Retrocedeu para Lisboa.

     No dia seguinte passou, a pé, defronte do portão onde entrara João da Cunha. Estava fechado. Circuitou o baixo muro que marcava a pequena quinta. Trepou no lanço que lhe pareceu mais acessível. Não viu alguém. As janelas da casa, à hora do calor, estavam fechadas com persianas verdes interiormente corridas. Desceu para subir outra vez ao muro que fechava a quinta na parte mais remota da casa. Saltou dentro. Os cães de fila, acorrentados, ladraram; mas o aviso não inquietou ninguém.

     O brasileiro embrenhou-se num caramanchão, enxugando o suor que lhe empastava a camisa. Permaneceu ali cinco horas.

     Às nove ouviu o rodar da sege; ouviu ranger os gonzos do portão; ouviu abrir-se, mais perto, a porta e janelas, como se até ali não vivesse ninguém naquela casa, cujo aspecto risonho bem poderia ser mentiroso.

     Minutos depois ouviu passos distantes, que faziam rumorejar a folhagem. E estes passos eram cada vez mais próximos. Viu dois vultos. Eram já distintas as suas palavras:

     -      E quando partiremos, João? - perguntava Ricarda.

     - Logo que eu te veja convalescida de modo que possamos viajar sem perigo.

     - Pois eu não estou boa?

     -      Ainda não. Faz ainda amanhã um mês que sofreste muito... para fazeres completa a minha felicidade... Um filho teu, Ricarda!

     O brasileiro ouviu o ciciar trémulo de um beijo.

     -      Mas que podemos recear agora? Vamos embora de Portugal. Consegui que vá connosco a ama-de-leite do nosso Luisinho. Não nos falta nada... Olha, João, eu não posso assim viver tão fugida do mundo. Não temos necessidade disto. Se queres que eu assim viva, obrigas-me a crer que eu pratiquei um grande crime, pelo qual devo ser proscrita da vida.

     -      E não vivo eu também proscrito da sociedade, para viver contigo só?

     - Não há comparação. De dia vives com os teus, denoite comigo. Eu queria que tu viesses aqui passar sozinho, com o coração cheio de saudades, as horas aborrecidas destes longos dias... Vive sempre ao pé de mim, João, e eu viverei contente em toda a parte.

     -      Pois partiremos, minha filha. Mas é necessário fugir, porque meu pai decerto não me deixa sair de Portugal.

     A morte de meu irmão morgado veio tolher o meu futuro. Meu pai quer entregar-me a administração da casa que me pertence, e eu, habituado a obedecer-lhe desde criança, acho-me preso de braços quando é preciso ser mau filho...

     - Ser mau filho!... - atalhou Ricarda com ressentimento. - Antes ser mau com a pobre mulher que não sentiu os braços presos para ser má esposa... não é assim?

     João da Cunha sentara-se no banco de pedra fronteiro ao caramanchão em que o brasileiro retraía o hálito para não perder uma palavra, enquanto a longa distância lhe não permitisse uma pontaria infalível das pistolas que lhe oscilavam nas mãos convulsas.

     -      Parece-me que estás cansado de mim... - continuou Ricarda, ofendida pelo silêncio de João à última pergunta, que lhe custara a ela uma dor de coração, um desgosto amargo do seu amor-próprio.

     -      Cansado de ti... Não, Ricarda... O amor não se cansa assim. Não tenho tido, desde o primeiro dia em que me viste, uma pequena desigualdade contigo. Tudo o que te prometi foi pouco para o grande sacrifício que me fizeste; mas, se te não dou mais, é porque mais não pode dar o coração. Pudesses tu ser minha esposa... pudesse eu convencer-te...

     - De que me amas? Não é assim que se convence uma mulher... O que eu quero é a tua alma... Não me lembrou nunca ser tua mulher, como se diz da que se dá por obrigação de casamento, para ser assim mais feliz... Não falemos nisto... Essa palavra esteve para ser a minha morte... não poderá nunca trazer-me felicidade. Ainda que eu hoje fosse viúva, não quereria ser tua mulher, João.

     -      Porquê?!

     - Porque me obrigarias um dia a ser criminosa, como fui...

     - De que modo te obrigaria eu a seres criminosa?

     -      Considerando-me apenas uma companheira de casa, a quem não é obrigação fazer carinhos, porque a mulher casada é uma posse sem disputa, é uma roseira que dá flor, e seca para nunca mais reverdecer... Eu sei que fui muito amada, muito estremecida por...

     -      Por teu marido...

     - Sim... mas, dois meses... e, ao cabo de dois anos, esse homem dava-me a importância que se dá a um sócio de uma casa comercial, e dizia-me que não vira ainda as suas lições, quando eu me sentava ao seu lado com receio de ser grosseiramente desprezada com o seu silêncio. Todas as tuas qualidades pessoais me não fariam impressão nenhuma, João, se aquele homem me soubesse ao menos mentir.

     -      Foi preciso que ele te desprezasse para eu te possuir o        coração.

     -      Foi... Pois tu crês que a mulher se degrada por prazer sem que a violentem a isso? Quem faz a mulher desgraçada e desprezível na sua  desgraça é o homem. Tenho pensado muito no que fui para explicar o que sou...

     -      E, se ele te amasse hoje, Ricarda?

     - Se me amasse hoje, desprezá-lo-ia porque não poderia amar outro homem, depois que te conheço.

     - E se eu te desprezasse?

     - Se me desprezasses, morreria, matava-me.

     -      Não morrerás, minha filha...

     João da Cunha abraçou-a com veemente transporte.

     Colou-lhe os lábios ardentes no colo de encantadora nudez, sorvendo-o em beijos deleitosos. Ela deixou-se inclinar para o seio dele, como desmaiada em ebriedade de ternos delíquios. Toda esmorecida e alquebrada, os próprios olhos, sempre fogo, pareciam apagar-se para que a morbidez das pálpebras, pendendo amortecidas, dissessem ao sequioso amante que aqueles olhos se fechavam para não verem o passado, e deixavam ao coração, estreme de remorsos, o gozo das delícias do momento.

     O marido de Ricarda deu um passo para distinguir os vultos entre as frondes da amoreira. O prazer devera tê-los aturdidos para não ouvirem esse passo, e dois que se seguiram. Aqueles braços não se desenlaçavam. O êxtasis poderia ser apenas um êxtasis de dois amantes que se perdem nas altas regiões do puro espírito; mas o brasileiro, na sua fantasia alucinada, imaginou um crime, que deveria deixar-lhe a ele um remorso eterno, se o não interrompesse com a morte.

     Duas balas voaram de duas pistolas. Ouviu-se um grito. Ricarda levara a mão ao seio. João da Cunha correra atrás de um vulto que rompia a direito as murtas do caramanchão em precipitada fuga. Mas, já perto do assassino, sentiu uma dor agudíssima no ombro direito e esvaimentos de cabeça.

     A este tempo, o brasileiro era presa de dois enormes cães, que o filaram no momento que ele lançava a mão a uma viga da parreira por onde descera. Os cães laceravam-no, saltando-lhe ao peito. O indefeso moço arremessara as pistolas inutilmente aos cães, que redobravam de furor.

     Os criados de João da Cunha, ouvindo os tiros, correram na direcção. Encontraram o cadáver de Ricarda, e, alguns passos distante, seu amo, que dizia em voz desfalecida: «Matem esse assassino, que me matou.» Correram onde latiam os cães. Viram um homem encostado ao muro, defendendo-se dos saltos deles com as pernas, que retirava sempre cravejadas por uma nova dentada. Não seria preciso o braço de outro assassino, se a luta se demorasse entre as feras e o brasileiro, quase morto de cansaço e derramamento de sangue. A missão dos cães acabou quando principiou a dos homens. Duas choupadas no peito abriram mais larga fenda ao sangue. Mataram-no sem resistência.

     Eu esbocei com repugnância este quadro. Será demasiada fidelidade dizer-vos que a sepultura do brasileiro foi os oito palmos de terra onde caiu morto? Ainda bem que os cães o não devoraram a pedaços como um passatempo durante a noite. Ricarda foi enterrada no cemitério, de noite, de combinação com o pároco. Os criados conduziram à sege João da Cunha, que não quis retirar-se sem reconhecer o assassino.

     Dizem que beijara as faces mortas de Ricarda, e derramara algumas lágrimas, que lhe fazem muita honra.

     A sege que o conduziu tornou a Campolide para transportar ao palacete do Campo Grande um menino de um mês nos braços da ama.

     António da Cunha beijando o neto que seu filho lhe entregava, na suposição de que o sofrimento era mortal, dizia lá consigo:

     - Parece filho de mulata! Bem me disseram a mim de Coimbra que meu filho fugira com uma!

     João da Cunha foi curado em poucos dias. A bala quebrara-lhe a clavícula direita e saíra sem ferir algum vaso importante. O enfermo deixou-se tratar, e não consta que tentasse romper o aparelho para se escoar de sangue.

     Queria viver para o seu filho. E como ele explicava o desejo da vida.

     Isto passou-se em 1813; e o romance começa em 1838.

     Já sabem que o filho de Ricarda é Luís da Cunha e Faro, que se apeou à porta do Teatro de S. Carlos.

   

    O fruto da semente amaldiçoada

     João da Cunha era, pouco mais ou menos, o que são todos os homens. O seu coração, viúvo do amor de Ricarda, vestiu luto um ano. O choque fora muito forte, para que a mais robusta organização se não ressentisse longo tempo. A convivência com homens que não conheciam os precedentes da sua misantropia, não a procurava. Vivia só, com seu pai, e com seu filho. Recordava a efémera felicidade de alguns dias, rematados por uma hora de sangue. Ora, estas recordações, porque foram muito repetidas, pouco a pouco enfraqueceram, e o coração familiarizou-se com elas. O que primeiro fora terror, veio, depois de um ano, à brandura das reminiscências que não mortificam, porque o tempo é o princípio gerador de imagens novas que desfazem sempre as impressões das velhas. O ferro abre profundos sulcos no córtex da árvore: depois, as fibras da camada, vigorosa de nova seiva, passam por cima, e deixam como sinal uma cisura imperceptível.

     Dois anos depois da catástrofe, João da Cunha não fugia das aventuras que o perseguiam. Riqueza, talento e fidalguia, afora os dotes físicos, autorizavam-no a não deixar aos vinte e dois anos uma carreira que encetara com tão má fortuna.

     Do seu coração, repartido por muitas paixões passageiras, nunca usurpou a seu filho a maior parte. Enquanto ele crescia em corpo e extraordinária penetração, o pai, que não sabia sê-lo, alargava-lhe os desejos, adivinhando-lhos e proibia à ama, aos mestres e ao avô a mais ligeira contrariedade às vontades caprichosas do menino.

     Luís, aos doze anos, era um déspota com os criados, com os mestres, e tratava o pai como se trata um irmão, quando não há a recear a correcção paterna. João da Cunha gostava da desenvoltura do pequeno, e ufanava-se de levá-lo, como maravilha, à sociedade dos homens e mulheres do grande mundo, que lhe achavam muito sal nas suas respostas, e não coravam às galhofeiras liberdades do pequeno Ismael, como lhe chamavam, aludindo à desconhecida Agar, que o sol da África bronzeara.

     Luís era tanto mais caro a seu pai, quanto a sua inteligência, com pequeno esforço, aproveitava nas irregulares lições dos mestres sofredores. Aos quinze anos, o filho de Ricarda era homem, e, como homem, as puerilidades, as folias que o entretinham até aos catorze, trocaram-se em ar reflexivo, em consciência de si próprio, e até em certo respeito ao pai, suposto que este lhe não invectivasse as licenças, que os de fora lhe censuravam.

     -      Eis aqui o que é o espírito! - dizia João da Cunha ao seu capelão, que muitas vezes agourara mal da livre educação dada a Luís. - Assim que chegou à idade da razão, aí está meu filho obedecendo espontaneamente ao instinto dos deveres. Não o vê tão pensador numa idade em que a imaginação trabalha sempre?

     -      Não duvido que pense - respondeu o padre, solenizando a resposta com um sorvo de rapé -, mas, se V. Ex.ª me dá licença, parece-me que seu filho pensa em alguma loucura.

     -      Essa é boa! O padre que razão tem para tanta severidade com meu filho?

     -      Que razão tenho? Ora ouça V. Ex.ª Seu filho namora a filha do merceeiro que mora ao lado.

     -      Deixe-se disso, padre; o meu filho apenas tem dezasseis anos, e ela ainda é mais nova.

     - Isso não é razão, e desculpe-me V. Ex.ª a liberdade de replicar. Deus sabe as intenções com que me intrometo em cousas que não são de todo estranhas ao meu ministério. Eu quando falo é com documentos na mão.

     - Alguma cartinha de namoro... Isso são rapaziadas sem consequência.

     - Não é cartinha de namoro.

     - Algum cordão de cabelo, ou alguns suspensórios com a firma do rapaz... Isso faz rir.

     - Não é cordão nem suspensórios.

     - Então acabe lá com isso, padre! Que é?

     - É uma escada de corda que sobe ao segundo andar daquela casa.

     - E sabe se ele faz uso dessa escada?!

     -      Há quinze noites seguidas que sobe às duas horas da noite e desce às quatro.

     - O rapaz é capaz de quebrar uma perna!

     -      E eu creio que o pai da rapariga seja capaz de lhas quebrar ambas.

     - Nesse caso, encarrego-o de o repreender; mas não lhe diga que eu o sei.

     -      Parece-me que lhe não fará grande abalo, ainda que V. Ex.ª o saiba. Seu filho não o teme, nem lhe reconhece direitos sobre a liberdade de subir e descer escadas de corda. - Está enganado.

     - Oxalá que sim. Eu de mim repreendi-o já, e ele respondeu-me se eu fazia o favor de lhe ir segurar a escada para que ela não balançasse quando ele descia, com grave risco das suas pernas, que ficavam enleadas nas cordas transversais. Aqui está o que é uma zombaria, que não parece de um menino de dezasseis anos! V. Ex.ª ri-se? Ora, queira Deus que não chore ainda...

     - Pois que quer que eu faça, padre?

     - Que o castigue com severidade, ou o faça entrar no Colégio dos Nobres, para ser castigado longe dos seus olhos. V. Ex.ª perde seu filho. Está cavando um manancial de desgostos, que não remediará... Ele aí vem... Se quer, retiro-me, para V. Ex.ª lhe falar.

     -      Pois sim, retire-se.

     Luís entrou apertando a mão ao pai, que lha estendeu com a familiar etiqueta de amigo.

     - Vem cá, Luís. Tu és um homem, e é preciso falarmos como homens. Sei que sobes por uma escada de corda ao segundo andar daquela casa...

     -      Então, decerto sabe também que desço... - atalhou, com sorriso irónico, o filho de Ricarda.

     -      Responda-me com seriedade. Sabe que eu posso fazê-lo retirar desta casa, logo que o menino proceda de modo que mereça ser castigado?

     -      V. Ex.ª pode tudo; mas eu queria saber o que fiz que mereça castigo.

     - Assim é que deve responder-me. Sei que se introduz em casa do merceeiro.

     -      É verdade, meu pai. Não nego senão o que não faço. Foi o padre Joaquim, que lho disse?

     -      Não sei quem foi... E isto verdade?

     -      É verdade; mas o padre Joaquim merece dois bofetões.

     -      O padre Joaquim é seu amigo. Se o menino observar os conselhos dele, há-de ter um proceder exemplar; e, se os não atender, obriga-me a castigá-lo asperamente, bem contra minha vontade. Não quero que se diga que um filho de João da Cunha escala as janelas dos vizinhos. O pior que pode acontecer-lhe, meu filho, é ser surpreendido nessa casa, e olhe que decerto o não respeitam, para o deixarem descer tranquilamente como subiu.

     Pouco depois, Luís da Cunha saiu do quarto de seu pai, e, passando pelo capelão, deu-lhe um abraço, que o fez empertigar-se com a grave compressão das costelas.

     Luís ria-se, e padre Joaquim desencadeava-se o mais prestes que podia dos braços tenazes do seu discípulo de latim.

     As correcções paternas aproveitaram muito, por isso que, na noite desse dia, à hora costumada, Luís da Cunha agatinhou rapidamente a escada, e içou-se para a varanda. Pouco depois que entrara, o lojista, avisado por quem quer que foi, subiu ao segundo andar. Luís da Cunha fugiu precipitadamente, e, quando descia, na altura do primeiro andar, o robusto confeiteiro levantou os ganchos da escada, e deixou-a pender para o centro da terra, em plena condescendência com as leis da gravitação.

     O filho de João da Cunha recuperou os sentidos quando uma patrulha da polícia o entregava ao pai, que, a essas horas, recolhia, e não é bem líquido se também ele debaixo do capote trazia uma escada de corda.

     Luís da Cunha desmanchou algumas articulações, cuja colocação o fez dar ao diabo a filha do confeiteiro. O pai ameaçou com um chicote o seu pundonoroso vizinho; mas, pelos modos, o minhoto não era homem de transigir pelo medo de uma arrogância dos actos dos Sousas e Faros. A rapariguinha nunca mais apareceu na janela, e, no fim da semana imediata, casou com o caixeiro, rapaz dos subúrbios de Guimarães, muito fino, que hoje é capitalista, e não foi ainda codilhado por governo nenhum.

     Já vêem que a filha do confeiteiro não perdeu nada, visto que o marido não a encontrou lesada física nem moralmente. Estes é que são os felizes. Não sabem nada de psicologia, nem de anatomia: não discriminam imperfeições da alma nem do corpo.

     João da Cunha teve assomos de rigidez paterna. Luís desconheceu-o, quando o viu, sombrio e carrancudo, ordenar-lhe que seguisse o padre capelão ao Colégio dos Nobres. Obedeceu sem hesitar um momento. Entrou no colégio, onde os mestres prevenidos trataram de captar-lhe a estima, habituá-lo à casa, para se dispensarem da outra ponta do dilema.

     Luís recebeu alegremente os companheiros que os mestres lhe escolheram. Eram os mais estudiosos e mais ajuizados. Acharam-no dócil, e persuadiram-se que lhe tinham inoculado o amor do estudo, e o esquecimento das liberdades por que fora, aos dezasseis anos, encerrado no colégio.

     João da Cunha, maravilhado da mansidão de seu filho, visitou-o, indemnizando-o com afagos de asperezas que precederam a sua entrada no colégio. Luís não se mostrou magoado com as asperezas, nem lisonjeado com os carinhos. Estava melancólico, e dizia o padre Joaquim, sempre agoureiro, aziago, que o menino meditava uma nova loucura, fosse ela qual fosse.

     Profecia de padre Joaquim era infalível. Nessa noite, Luís cortou em tiras os lençóis e o cobertor. Saltou para a cerca. Partiu a cabeça ao hortelão com um fundo de garrafa dos aguilhões do muro, quando o indiscreto galego lhe agarrou uma perna para a não deixar seguir o destino da outra.

     Luís recolheu-se a casa de José Bento de Magalhães e Castro.

     Este Senhor José Bento é uma pessoa que nós conhecemos de A Filha do Arcediago. É justamente aquele que casou com Rosa Guilhermina, em 1825; que comprara nesse ano o foro de fidalgo, e fizera a sua nova residência em Lisboa, por isso que os invejosos no Porto tinham a petulância de rir-se da pedra de armas que ele fizera lavrar no seu palacete do Reimão.

     Em Lisboa fora bem recebido, particularmente por João da Cunha e Faro, que, segundo dizem, lhe vendera cara a consideração. D. Rosa Guilhermina era bem acolhida na roda que torce o nariz aristocrático aos que chegam sem garantias de algum conspícuo de linhagens.

     A maledicência dizia que João da Cunha não era indiferente à mulher do Senhor José Bento. Tanto não ouso eu dizer, e a calúnia é mancha que não pega nos meus romances. Pecos de imaginação, sim; mas arreados de fantasias que desdouram o meu próximo, isso nunca.

     Luís, sempre aceito com os seus gracejos a D. Rosa, fugindo do colégio, surpreendeu-a com um abraço estouvado. Pediu-lhe que não dissesse nada ao pai, e o deixasse sentar praça em marinha, que era a sua vocação.

     D. Rosa prometeu-lhe tudo, e avisou João da Cunha, que, a essas horas, recebia a fatal nova da fuga do filho.

     A filha do arcediago pedia-lhe uma entrevista, antes de encontrar-se com Luís. O fim era combinarem o meio de o levarem com brandura a entrar em casa, onde decerto a violência o não levaria. João da Cunha anuiu, e o filho de Ricarda foi recebido com afabilidade por seu pai.

     Não era já possível domá-lo com violência nem com afagos. Luís da Cunha tinha um roteiro fixo pelo destino, cuja absurda influência é necessário acreditar na vida trágica de certos homens, que nos compadecem, que nos nausciam, e que nos assombram!

     João da Cunha, certo da sua ineficácia paterna, resumiu a sua autoridade ensinando o filho a salvar as aparências, porque os escândalos eram atroadores, e prometiam-lhe uma vergonhosa expulsão das casas honestas.

     O merceeiro vizinho, não obstante a sua coragem, passou pelo desgosto de curar-se de uma dura carga de pau com que o amante de sua filha, auxiliado por campinos embriagados em noite de tourada, o mimosearam dentro de seu próprio balcão. Toda a importância de João da Cunha foi necessária para torcer a justiça, visto que o lojista era afecto em extremo à política vigente, o que provara mais de uma vez com o cacete na mão. Um outro pai, que ousou repelir de sua casa o fidalgo, chamando-lhe «mulato», perdeu a orelha esquerda nesta honrosa luta, sem por isso, ainda assim, salvar a filha da desonra. Um irmão de uma estanqueira, que morou ao Pote das Almas, pagou com três meses de cadeia, afora as custas do processo, a audácia de quebrar a cabeça ao amante de sua irmã, que lhe viera, em noite de luminárias, recitar debaixo da janela umas copias em que lhe pedia escandalosamente licença de cear com ela.

     Esta classe de mulheres era a menos ponderosa na balança da opinião pública. Algumas destas aventuras faziam rir as mulheres distintas por nascimento e por muitas outras qualidades que não lustravam muito o nascimento...

     Luís da Cunha lá foi entre elas receber os aplausos, e achou que a vereda nova em que se lançara levava mais depressa ao capitólio. O que ele queria era a reputação de conquistador, que principiava a declinar de seu pai, e justo era que não saísse da família.

     O filho de Ricarda era jactancioso. Costumava, com os seus amigos, fixar o dia impreterível de tal ou tal triunfo, e bebia com eles no Isidro à saúde da vítima destinada.

     Se acontecia acharem-se presentes os parentes da vítima ilustre, o impudente não calava o nome, nem respeitava as conveniências do pudor, visto que os seus amigos o não respeitavam.

     O «Ismael» que as damas desdenhavam pela cor, se não fosse o terrível sestro da denúncia, em fins de jantares, poderia enriquecer o seu catálogo com muitas ilustrações do sexo que já nesse tempo era fraco. Mas a fatuidade indiscreta perdeu-o no conceito das menos pundonorosas. Pouco e pouco repelido, Luís da Cunha, aos vinte e cinco anos, era detestado, acolhido com desprezo em todas as casas, excepto na de José Bento de Magalhães e Castro, que, em 1837, era já visconde de Bacelar. Rosa Guilhermina foi a única mulher que exerceu uma sombra de ascendente fraternal sobre o filho de Ricarda. Os seus rogos afastaram-no muitas vezes de abismos em que a sua queda seria mortal. Tinha sido ela quem o salvara de casar-se com a mulher que mais séria impressão lhe fizera, quando se viu arremessado com infâmia de entre tantas que ele pusera no pelourinho da ignomínia.

     Esta mulher era uma infeliz encontrada em um primeiro andar da Rua do Ouro; uma dessas que vêm, com os ombros nus e as tranças enfloradas, pedir-vos da janela com um aceno e um sorriso o preço do espectáculo a que se oferecem, por esse sorriso e aceno voluptuoso.

     Luís da Cunha simpatizara com a libertinagem da mulher que lhe ensinava coisas novas para o coração, não combalido de todo ainda pela podridão do vício. As duas almas compreenderam-se maravilhosamente, porque se encontraram na profundidade do mesmo charco. Luís encantou-se desta mulher. Pediu-lhe o exclusivo da sua alma, e foi feliz na súplica. Liberata, desde esse dia, foi dele exclusivamente, como a filha que foge apaixonada do seio materno. Encontrou uma bem mobilizada (1) aposentadoria, servida de criados, e da opulência que os brilhantes de Ricarda, prodigalizados em último recurso por João da Cunha, lhe permitiam. Aqueles brilhantes reservara-os ele, sem escrúpulo, para o património do filho da sua esquecida amante.

     Envergonhado desta união torpe, João da Cunha admoestou o filho; e, quando esperava despertar-lhe o brio com os tópicos de uma sentimental censura aos seus raros instintos, Luís respondeu-lhe que tencionava salvar Liberata da infâmia, casando com ela.

     O primeiro ímpeto de cólera paterna foi correr sobre o filho e sová-lo a pontapés. Luís estranhou a lisonja, e pôde muito sobre si para não receber o pai na ponta de um punhal.

     Expulso de casa, recorreu à viscondessa de Bacelar, que lhe prometeu reconciliá-lo com o pai, contanto que ele desprezasse essa mulher, que o arrastava com ela ao mesmo abismo de perdição. Luís prometeu não casar; mas desprezá-la, nunca. Se seu pai lhe negasse recursos, disse ele que seria ladrão para sustentá-la, ou morreriam de fome, abraçados.

     João da Cunha, sabendo este heroísmo, reconheceu que seu filho era a víbora que ele trouxera no coração, para o morder com o remorso expiador do seu crime, cujo saldo com a Providência começava vinte e seis anos depois.

     E aceitou a proposta. Continuou a dar-lhe recursos para uma dissipada grandeza com que a libertina se enfatuava, soberba do seu domínio sobre o homem que se não pejava de assentar-se, ao lado dela, na mesma sege e no mesmo camarote.

     Dizia-se que Liberata era fiel ao fascinado moço. Amigos de João da Cunha tentaram vencê-la com promessas, para darem ao desgraçado uma surpresa que o fizesse detestá-la.

     Não o conseguiram. A necessidade não a forçava.

     O ouro servia-lhe prodigamente aos mais esquisitos caprichos. O coração afizera-se-lhe àquele carácter, e a pontualidade do amante não lhe deixava um instante vago para meditar uma traição.

     O leitor decerto avaliou já quem era a mulher que apeou da sege, com Luís da Cunha e Faro, à porta do Teatro de S. Carlos. Agora, se a imaginação lhe não é escassa, afigure-a no camarote 15 da segunda ordem, e verá uma perfeita senhora, adestrada em salas, meneando garbosamente um leque, fitando com requebro airoso o óculo branco nas faces que se retraem envergonhadas, e sorrindo com deslavada alegria ao amante, todo carinho e atenção para ouvir-lhe alguma obscenidade alusiva a qualquer das damas, que não ousam fixá-la de face. Liberata era o que devia ser.

     Hoje é moda regenerar, em romances, estas mulheres.

     A imaginação, cansada de reduzir a virtude ao crime, trata de fecundar a virtude no alcouce.

     Enquanto a mim, as Liberatas não se regeneram. A de Luís da Cunha dançava lubricamente a cachucha, quando lhe falavam em virtude.

     1 - Assim em todas as edições. Certamente uma gralha, em vez de «mobilada»

   

    Açucena

     Consta de A Filha do Arcediago que a filha do memorável Leonardo Taveira, arcediago de Barroso, houvera de legítimo consórcio com Augusto Leite, uma filha chamada Açucena.

     Quando Rosa Guilhermina contraiu segundas núpcias com José Bento de Magalhães e Castro tinha seis anos a criança.

     O filho do retroseiro não se afeiçoou à filha de sua mulher, conquanto a meiga menina o acarinhasse com meiguices, e lhe chamasse pai. Em pouco se conhecia a rude insensibilidade do padrasto. As menores travessuras de Açucena eram para ele o resultado do mimo demasiado que sua mãe lhe dava. A esperteza, que Rosa admirava em sua filha, dizia o Senhor José Bento que era malícia; e, por entre dentes, resmungava que não seria ela quem levasse a água ao seu moinho. Era uma das suas frases favoritas este anexim, que o filho da Senhora Ana Canastreira retivera na memória, rebelde sempre para o imperativo do verbo laudo, como em tempo competente se disse.

     Rosa doía-se da indiferença, ou, melhor, da antipatia de José Bento pela criança. Nunca lhe perguntou a causa desta ingratidão aos mimos de Açucena: é que não contava com a delicadeza de seu marido numa resposta.

     A coacção em que a tinha o carácter brusco do assassino do mestre de Latim, a reserva nada familiar com que um ao outro se tratavam, colocava-os a distância do que vulgarmente se diz «confidências domésticas».

     José Bento não tinha a doçura nem a rusticidade de índole de António José da Silva, o desventurado esposo de Maria Elisa, tão desventurada como ele (já lá estão ambos!). Se aos dezoito anos o aprendiz de lóio anunciava uma bestialidade mitológica, a natureza, modificada pelo dinheiro, enxertara naquela cabeça, hermeticamente fechada, uma finura maliciosa. À primeira vista, o Senhor José Bento parecia um pensador, um homem experimentado, e até um presidente de uma companhia de viação, ou orador gosmento de associações comerciais, que, só muito depois, tiveram Cíceros em patois.

     O capitalista era amigo de Rosa Guilhermina: não podemos duvidar que o era; mas o seu modo de ser amigo era excêntrico. A aproximação dos extremos confundira o pequeno espírito de José Bento com o grande espírito de algum marido fatigado de carícias, anelante de paixões incisivas, e incapaz de se amoldar às fórmulas burguesas da tranquilidade doméstica. O moço fidalgo, no primeiro ano de casado, foi o que seria no quadragésimo, se Rosa Guilhermina não morresse em 1849. Nunca lhe deu mostras de aborrecido, porque também nunca se mostrou entusiasmado com a posse. Teve sempre a constância imperturbável dos felizes alarves. Nenhuma mulher valia mais que a sua, nem a sua mais que as outras.

     Rosa Guilhermina não esperava que sua filha sucedesse na herança do marido, nem, quatro anos depois de casada, tivera ainda um filho, nem depois o teve, que protegesse a sua irmã, habituando-se a considerá-la tal.

     O seu pensamento foi ajeitá-la para tudo o que é trabalho, dotando-a com a educação, cultivando-lhe o espírito, para que a formosura não fosse a única prenda que pudesse merecer-lhe um marido com património.

     Em Lisboa, José Bento não se opôs à entrada de Açucena num colégio. O excelente coração da menina, arrancado ao de sua mãe, compreendeu, em tenra idade, que a sua posição no mundo dependia de si. Dócil às mestras, que lhe adoravam a angélica humildade, o trabalho, a oração e o estudo fizeram-na um modelo entre todas as suas companheiras. A melancolia cismadora que, aos catorze anos, a estremava dos folguedos da sua idade, era um vaticínio de muitas lágrimas que verteria sobre as flores da mocidade, queimando nessas o gérmen que nunca mais lhe desabrocharia outras.

     Em 1838, Açucena tinha dezoito anos, e era ainda aluna do colégio para onde entrara aos dez. A viscondessa de Bacelar conseguira de seu marido a influência e os meios para que ela entrasse nas comendadeiras, ordem meio monástica, meio profana, em que a vida retirada se suaviza com todas as magnificências do luxo, e se aproxima da sociedade sem conhecê-la pelo ponto de contacto em que o coração se infecciona.

     Antes de entrar nas comendadeiras, como secular, Açucena veio passar com sua mãe dois meses.

     Aos dezoito anos, estranhava o mais vulgar da sociedade. Lera muito, e, só com sua mãe, dava ideia de não ter desaproveitado o tempo, nem enganado os mestres.

     Na presença de estranhos, o seu acanhamento dava-lhe ares de idiota. Corava às mais simples lisonjas à sua formosura, e folgava todas as vezes que as portas da sala se não abrissem a visitas. A presença dos hóspedes privava-a de expandir-se a sós com sua mãe, que a beijava como se faz a uma criança.

     Açucena era trigueira como seu pai, e não podia chamar-se formosa, senão em verso. A formosura, que não é senão a harmonia rigorosa das formas, é muito rara.

     O que não é raro é a graça, a simpatia, o indizível que vos encanta, sem vos dar tempo a estudar a irregularidade de um nariz, ou o defeito de uma testa.

     Engraçada e simpática era, como nenhuma, a neta do arcediago. O sobrolho cerrado castanho-escuro, e o buço que lhe assombrava o lábio superior, não fino, mas graciosamente arqueado, eram as feições mais distintas depois dos olhos brandos e amortecidos, tão fora do comum em rosto trigueiro. Gentil de corpo, alta como sua mãe, mais flexível que ela, mais delicada de mão, ao longo da qual corria uma penugem que denunciava o braço delicioso, Açucena era a mulher para os sentidos e para o coração; para a voluptuosidade do amor animal e para os arroubamentos do amor do espírito.

     Luís da Cunha e Faro não se recordava já de Açucena, quando a viu, surpreendido, em casa da viscondessa.

     -      Quem é esta mulher? - perguntou ele ao ouvido da viscondessa.

     -      É minha filha.

     -      Sua filha! A menina que eu vi há bons nove anos?

     - A mesma. Não o apresento, porque ela é muito acanhada, e dá de si uma triste ideia, quando a forçam a falar.

     -      É galante senhora! Que olhos, e que sobrancelhas! Aquelas pestanas são divinas! Tem um olhar de santa! E aquele buço? Há-de perdoar-me, Senhora Viscondessa, mas a filha de V. Ex.ª é capaz de me fazer doudo!

     - Não zombe, Senhor Luís da Cunha. A minha Açucena não é capaz de endoudecer ninguém, e principalmente V. Ex.ª, que não pode endoudecer, porque a demência dá ideia do juízo anterior a ela...

     -      Bem a entendo, Senhora Viscondessa. Quer dizer que ninguém perde o que não tem... V. Ex.ª não sabe o que eu sou capaz de sentir. Até hoje tenho usado o mau coração; o bom ainda não entrou em serviço. Vinte e seis anos não é tarde para que eu me regenere. Sonhei esta noite que era virtuoso, e que dava lições de moral no Largo do Rossio a quem me queria ouvir. Depois, tornei a sonhar, e fazia milagres: pus uns dentes à baronesa de Lemos, que está ali mascando com as gengivas quatro frases de assafétida a seu marido, e fui à beira do Tejo conversar com os peixinhos que saltaram ao Terreiro do Paço, passeando em seco pra me darem honras de Santo António.

     -      Comece com as suas impiedades, Senhor Luís da Cunha... Olhe que eu retiro-me daqui... Quando há-de perder o vício da maledicência? Que lhe importam os dentes da baronesa de Lemos?

     - Tem V. Ex.ª razão. Sou um grande malvado, mas permita que eu corrija a sua acusação. Eu não disse que me importava com os dentes da baronesa, que é cousa que ela não tem. Eu sonhei que milagrosamente lhe dava duas ordens de dentes, e lhos dera quase todos molares, porque me consta que ela gosta de tortas, em que os outros se dispensam. Se isto é perversidade, minha amiga, não sei o que é virtude. Deixemos a velha, e falemos na juventude do nosso século. A Senhora D. Açucena fica na sua companhia?

     - Não, senhor. Vai entrar nas comendadeiras.

     - Isso é incrível! Pois V. Ex.ª quer inutilizar aquela criatura, roubando-a à sociedade!! Isto é bárbaro! Declaro que não consinto.

     - É pena que V. Ex.ª não consinta! Eis aí uma dificuldade que eu não tinha prevenido! O seu consentimento é uma fórmula indispensável!

     - Quer que eu lhe diga uma verdade? Estou recebendo uma impressão extraordinária! Sinto por sua filha o que nunca senti! Será ela a redentora desta alma que anda em penas há onze anos? Parece-me que o amor é que me há-de salvar. Ora olhe, eu tenho imaginado que posso ser feliz. V. Ex.ª acredite que tenho sido muito, muito desgraçado...

     - Não o parece.

     - Diz bem... não o parece; mas creia que não tive ainda oito dias de felicidade na minha vida. O mundo julga-me mal. Todas estas vertigens, que aparentemente me dão o carácter de um homem embriagado de felicidade, são misturadas de uma espécie de náusea de mim próprio, de um vácuo de verdadeiros prazeres, e tal que, nestes últimos meses, tenho desejado seguir um outro caminho por onde a verdadeira ventura me foge. E quero persegui-la. Realmente lhe digo que estou cansado deste viver. A sociedade despreza-me, e eu dou razão à sociedade. Decerto lha não dava, se eu me quisesse absolver dos meus desvarios. Aqui entre nós: quem me perdeu foi meu pai. Se me tivesse negado os meios com que se nutrem os vícios, eu não seria vicioso, ou, se o fosse, o trabalho, como preço do vício, ter-me-ia fatigado, há muito. Olhe: se eu tivesse nascido noutro século, se é que todos os séculos não têm os mesmos vícios, seria outro homem. V. Ex.ª bem sabe que na sociedade não se fazem santos. Eu vim por aqui dentro com os braços abertos para receber todas as imoralidades, e vieram-me todas ao encontro, sem eu chamar nenhuma.

     -      Naturalmente - atalhou a viscondessa, sorrindo - foi a filha do merceeiro que o chamou...

     -      Isso não foi imoralidade, minha senhora; ou, se o foi, queixem-se do pecado original, de que tanto me falou aquele pobre padre Joaquim, que, enquanto a mim, foi o único homem virtuoso que não recebeu a herança da culpa de Adão, e morreu intacto como algumas virgens das que se conhecem pelos necrológios. A filha do confeiteiro não soube o que fez, e eu também não. A natureza exerceu sobre nós o seu imortal despotismo, e foi preciso que os homens viessem desmanchar à pancada o que ela fizera com beijos.

     - Foi a natureza que lhe ensinou a botar a escada de corda ao segundo andar?

     - Nada, não, minha senhora. Foi meu pai.

     -      Como seu pai!?

     - Palavra de cavaleiro, o caso foi assim: debaixo da cama de meu pai vi umas cordas, que terminavam por dois ganchos. Fiz o meu raciocínio, porque já nesse tempo estudava em lógica as causas e os efeitos. A escada era o efeito de alguma causa. Sem saber nada de mecânica, calculei a importância social da escada, e mandei fazer uma semelhante ao meu criado do quarto. Ora aqui tem com angélica sinceridade a história da escada de corda. Agora, pergunto eu: desarranjei eu a felicidade da filha do merceeiro? Não a tem V. Ex.ª visto no teatro, ao lado de uma espécie de galego com colarinhos em forma de pano de falua? Esta espécie de galego é marido dela, tem cem contos de réis em inscrições, e não sei quê no Banco Comercial, e tem a comenda da Ordem de Cristo.

     Desse pecado da infância, absolvo-me eu; dos outros é responsável a sociedade.

     - Não diga a sociedade. V. Ex.ª tem zombado de todos os deveres. Tem reduzido seu pai a um estado de tristeza que faz dó. Tem-se divorciado de todas as pessoas de bem. Afronta a opinião pública, apresentando-se nos lugares mais frequentados com uma mulher sem pudor, uma libertina, que nem ao menos o salva de se degradar com ela em público. Se me acha ainda uma constante censora dos seus desatinos, é porque sei a história triste do seu nascimento, simpatizei com os infortúnios de sua mãe, e tomei sobre mim o inútil zelo da honra de seu filho. Não tenho conseguido nada: nada espero conseguir. Deus sabe quantas lágrimas me tem custado este desvelo quase maternal. Por vontade do visconde, já V. Ex.ª não entra nesta casa. Repreende-me todos os dias a familiaridade com que o recebo, e é preciso que eu o traga iludido com a esperança de que um dia será possível a sua reforma de costumes. Senhor Luís da Cunha, pense no futuro. Condoa-se de seu pai, que já não tem ânimo de ouvir pronunciar o nome de um filho que perdeu com o seu amor. Veja que pode ainda remediar o mal que fez... Aparte-se dessa mulher. Viva com seu pai. Convença pelo seu procedimento as pessoas que já não acreditam na possibilidade da sua emenda. Eu também me persuado de que V. Ex.ª deve estar cansado. Creio que deve ter momentos de envergonhar-se; outros de remorso, e outros de esperança. Não cerre os ouvidos ao que a esperança lhe promete. Se o instinto do bem lhe aconselha a virtude, obedeça-lhe, e verá como a vida lhe pode ainda ser agradável. Olhe que a virtude tem consolações incomparáveis com os prazeres momentâneos do vício. Tenho quarenta anos. Sei o que é o mundo. Combino todos os desgostos para os saber afastar de mim, e recebo-os, quando eles são mais fortes, como desvios do errado caminho em que entrei aos quinze anos. V. Ex.ª não sabe que mulher lhe fala, nem imagina o prazer que me daria se me viessem dizer que a virtude não fora repelida desse coração que todo o mundo considera fechado para a luz da honra.

     - Fez-me impressão, Senhora Viscondessa! Tem-me assim falado tantas vezes, e nunca me feriu tanto. Eu não sei bem se o que me aconselha é possível... Creia que vou empregar os esforços. Se o não conseguir, é porque não posso, é porque há em mim um desgraçado condão de força sobrenatural.

     A conversação, neste sentido, foi demorada.

     No dia seguinte, Liberata recebia de Luís da Cunha um bilhete que a eximia dos compromissos de fidelidade, autorizando-a a dispor de tudo que lhe fora dado. O bilhete foi recebido de manhã, e à tarde o lugar de Luís da Cunha estava preenchido pelo primeiro opositor à vacatura. Na próxima noite de teatro, Liberata, no camarote, ria, olhava, requebrava-se do mesmo modo, com a notável diferença de que o seu companheiro era um capitão de marinha inglesa, que acumulava às delícias de uma conquista de tal ordem os gozos de uma solene embriaguez de vinho.

     João da Cunha acreditou na regeneração do filho, quando o viu entrar contrito em casa, tão diverso do que fora, acusando-se por uma tristeza silenciosa, e cativando a benevolência dos familiares com palavras brandas. Por conselho da viscondessa de Bacelar, orgulhosa do seu triunfo, João da Cunha não lhe disse uma palavra de repreensão. O passado não veio nunca irritar o pai, nem envergonhar o filho.

     Os incrédulos riram da súbita mudança do «mulato».

     Os crentes no poder maravilhoso da conversão explicavam o fenómeno por um toque sobrenatural. Não faltou quem dissesse que a reforma do pecador fora obra de um egresso varatojano que operara admiráveis conversões nas casas onde almoçava e jantava. Não sabiam dizer ao certo se também convertera alguém nas casas onde dormia. Eu também não, suposto que acho muito possível o caso afirmativo.

     O que sei de ciência certa é que Luís da Cunha não conhecia o dito egresso melhor que eu e o leitor. Penso que o varatojano perderia o seu latim se tentasse engrossar com a moral franciscana os alicerces fundados pela viscondessa de Bacelar. A emenda do filho de Ricarda não tinha nada com a moral cristã, pelo menos o ateu não sabia que a moral de Jesus é o código por que se rege a honra sobre a Terra, e se conquista no Céu a eterna bem-aventurança que não é exclusivo dos pobres de espírito.

     João da Cunha passava algumas noites com seu filho em casa do visconde de Bacelar. Rosa Guilhermina revia-se na sua obra e agradecia a Deus tê-la feito instrumento da sua vontade, para, com braços débeis, arrancar do abismo um filho, restituindo-o ao amor de seu pai.

     Açucena não se maravilhava do presente de Luís da Cunha, porque não lhe conhecera o passado. Sabia, por meias revelações de sua mãe, que aquele homem desmerecera no conceito do mundo, por causa do seu mau procedimento. Os crimes, as infâmias, as impudências, nem sua mãe lhas explicava, nem ela saberia compreendê-las. O que ela via era um mancebo melancólico, quase sempre calado, fixando-a com frequência, fugindo dela se os olhos se encontravam, trocando palavras de absoluta necessidade, e conversando com viveza, e muitas vezes, com sua mãe, como se ela só lhe merecesse atenções. Andaria aqui um incentivo de vago ciúme? A manifestação inexprimível de um gérmen de simpatia?

     O ressentimento do desdém que Luís da Cunha aparentava por ela?

     Se vos digo que sim, não digo cousa nenhuma do outro mundo, e obedeço à verdade.

   

    Contágio

     Nem eu nem vós sabemos como nasce o amor. Em fisiologia, que é a ciência do homem físico, não se sabe.

     A psicologia também não diz nada a este respeito. Os romances, que são os mais amplos expositores da matéria, não avançam cousa nenhuma ao que está dito desde Labão e Raquel até à neta do arcediago e o filho de Ricarda.

     Dizer que o amor é a sensualidade, além de grosseira definição, é falsidade desmentida pela experiência. Há um amor que não rasteja nunca no raso estrado das propensões orgânicas.

     Dizer que o amor é uma operação puramente espiritual, é um devaneio de visionários, que trazem sempre as mulheres pelas estrelas, ao mesmo tempo que elas, gravitando materialmente para o centro do Globo, comem e bebem à maneira dos mortais, e até das divindades do cantor de Aquiles.

     Eu conheço homens, sem faísca de espírito, que se abrasam, tocados pelo amor, como o fósforo em presença do ar. Eis aqui um fenómeno eminentemente importante. Ele, só, sustenta em tese que o amor não tem nada com o corpo nem com o espírito. Eu creio que é um fluido. É pena, porém, que eu não saiba o que é fluido, para me dar aqui uns ares pedantescos, ensinando ao leitor, mais ignorante que eu, cousas que, decerto, o não privavam de continuar a comer e a dormir.

     A prova de que o amor não está na cabeça, nem no coração, é que Luís da Cunha e Faro tinha uma cabeça incapaz de calcular as consequências de uma acção boa ou má, e um coração desbaratado, verminoso, apodrecido para nutrir em si uma flor das que nascem aromatizando a imagem que o amor lá insculpiu com maviosos traços.

     Açucena, pelo hábito da convivência, perdera a estranheza, e familiarizara-se com o moço tão bem aceite e tão desvelado por sua mãe. O sobrecenho de seu padrasto com o filho de João da Cunha tornara-lhe a ela mais simpático o mancebo. Recordando as asperezas do marido de sua mãe com ela, sua enteada, sempre carinhosa e humilde, achava aí a razão da grosseira indiferença com que Luís era recebido.

     Um dia, acharam-se sozinhos, porque a viscondessa não prevenira o filho de João da Cunha da sua saída à noite, nem proibira, por inadvertência talvez, a sua filha a recepção de visitas.

     Os embaraços de Luís, a sós com ela, eram impróprios de um rapaz de sala, imperturbável falador em todas as conjecturas de que o homem se salva, falando muito, e pronto improvisador de palavras que não deixam nunca descair a conversação nas trivialidades aborrecidas.

     Luís da Cunha imaginou que amava Açucena; e, só com ela, deduziu do seu acanhamento que a amava muito. Açucena já não corava na presença de Luís da Cunha; e, só com ele, percebeu, no ardor da face, que se estavadenunciando.

     Era necessário dizer alguma coisa, esgotadas as primeiras palavras de um cumprimento, cuja elasticidade se não descobriu ainda.

     - Está V. Ex.ª em vésperas de recolher-se às comendadeiras... - disse Luís, cuidando que tinha acertado com a vereda por onde, mais facilmente, chegaria a um vasto assunto.

     - É verdade... - respondeu ela com mimo e tristeza. - De amanhã a quinze dias...

     -      Tão cedo!... E está desejosa de se ver lá, não é assim?

     -      Desejosa, não. Eu antes queria estar com minha mãe...

     -      E ela não lhe faz a vontade?

     -      Por vontade dela nunca eu sairia de casa; mas meu padrasto, não sei porquê, acha que eu sou aqui de mais e mostra-me sempre um modo aborrecido, que me incomoda, e decerto há-de incomodar minha boa mãe.

     -      O Senhor Visconde tem essa singularidade. Por cálculo ou por génio, parece que toda a gente o incomoda, que todos lhe são pesados e suspeitos. Eu tenho sido bem mimoseado com os seus arremessos, como V. Ex.ª terá observado. Se encontro francas as portas desta casa, favor é que devo à Senhora Viscondessa, minha amiga, desde a infância, mais que minha mãe, porque uma mãe deixa muitas vezes perder um filho, e esta nobre senhora, este anjo, que tem sobre mim uma influência celeste, salvou-me.

     -      Tenho reparado que ela é muito sua amiga. Se V. Ex.ª fosse meu irmão, decerto minha mãe lhe não daria mais estima...

     -      E porque me não faria Deus seu irmão? – atalhou Luís com ar infantil e meiguice de sorriso. Açucena baixou os olhos, em silêncio, também desabrochando um ligeiro sorriso, no nácar dos lábios que pouco sobressaía à cor purpurina do pejo.

     -      Esta pergunta - prosseguiu ele, com afectuosa tristeza - fez-lhe uma impressão muito diversa do que eu pensava! V. Ex.ª cora e a pergunta não é das que ferem a susceptibilidade do coração. Magoou-a o meu inocente desejo de ser seu irmão?

     -      Não me magoou...

     - Pois então diga-me o que sentiu, para eu poder convencer-me de que ainda lhe não disse uma só palavra indiscreta...

     -      Não me magoou, Senhor Luís da Cunha... já lho disse... O que eu senti... não foi pesar, nem alegria... Fez-me impressão essa pergunta, porque...

     - Diga, não se arrependa... o seu coração ia falar...

     - Porque muitas vezes tenho perguntado a mim mesma se não seria muito bom que...

     - Eu fosse seu irmão?

     - É verdade...

     - E cora por isso? Um desejo tão puro e tão santo diz-se e não se esconde...

     - Dizer-se... nem a toda a gente. Eu disse-o a minha mãe, e ela perguntou-me coisas estranhas para mim... Se não fosse ela, isto que lhe disse com dificuldade, não teria dúvida em dizê-lo às minhas mestras do colégio, porque não sei onde está o mal deste desejo.

     -      Não tem nenhum... Diga-me, Senhora D. Açucena, sua mãe proibiu-a de manifestar o bom conceito que V. Ex.ª faz de mim?

     -      Não, senhor... Só me disse que me não habituasse a pensar no Senhor Luís da Cunha, porque o coração, em se habituando a fantasias, custa-lhe muito depois a desfazer-se delas quando vem a realidade. E acho que minha mãe tem razão. V. Ex.ª não pode ser meu irmão.

     - Mas amigo, mais que irmão, não poderei também?

     - Amigo... sim... - Açucena corou de novo, e balbuciou estas duas palavras... Luís da Cunha viu-a tremer daquela quase imperceptível oscilação nervosa que denuncia o antagonismo da natureza com a arte, a força expansiva do espírito com os estorvos compressores da educação.

     - Pois então... sejamos - continuou ele -, sejamos o mais que podemos ser... muito amigos, amigos por toda a vida, sim? Porque me não responde? Receia que eu algum dia, se se esquecer de mim, a responsabilize pela promessa? Também não serei capaz de mortificá-la, e, se o fosse, não poderia chamar-me seu amigo. Quando aconteça que a minha amizade lhe seja pesada...

     - Pesada?!

     - Sim; quando se dêem motivos fortes para que me esqueça...

     - Que motivos?!

     - Se lhe derem um marido...

     Açucena levou instintivamente o lenço aos lábios, como para esconder o rubor que lhe assomava.

     Nesse momento, entrou João da Cunha, e surpreendeu ainda o escarlate, que destacava na tez trigueira de Açucena. Experimentado, compreendeu o caso, que não tinha nada de misterioso senão o facto de se acharem sozinhos seu filho e a filha da viscondessa. João da Cunha sentiu o abalo profético de alguma desgraça. A ansiedade não lhe concedia delongas. Como Açucena pediu licença para retirar-se, João da Cunha perguntou ao filho, ainda absorto num silêncio mui significativo para o pai:

     -      Como venho encontrar-te sozinho com Açucena?

     -      Entrei nesta sala, e encontrei-a a receber-me. Se soubesse que vinha encontrá-la sozinha, creia V. Ex.ª que eu não subiria.

     - Tu compreendes, Luís, quanto seria melindroso para a nossa honra um namoro com a filha da pessoa que tão cara nos é, e tanto por ti se tem sacrificado?

     - Compreendo, meu pai. E donde é que V. Ex.ª deduz que eu namore Açucena?

     - Surpreendi-a de um modo que revela emoções que não são as de uma singela conversação.

     -      Acabava eu de pedir-lhe que fosse minha amiga e amiga como pode sê-lo uma irmã.

     -      Luís, esses rogos não se fazem a uma mulher de dezoito anos. Irmãos só os faz a natureza. A arte, que aproxima o homem da mulher com laços fraternais, é uma ficção. Os teus amores têm sido todos fáceis, daqueles que a sedução não precisa mascarar com um título impostor; e, por isso, não sabes ainda prever as consequências desse improvisado parentesco. Eu tive muitas irmãs, como esta que tu adoptas, e todas elas quebraram o vínculo da fraternidade, quebrando primeiro pela honra.

     - Meu pai cuida que fala a seu filho dois meses antes. Eu devo à Providência um novo coração.

     - Quero, devo acreditá-lo: Deus me livre de pensar o contrário. Mas é preciso que meu filho saiba muitas coisas que não aprendeu na vertigem da dissolução em que viveu onze anos. Quando o coração é nobre, também há paixões que principiam nobremente, e acabam pela ignomínia como as outras que começam pela infâmia.

     O amor violento, o amor que desonra, o amor que faz vítimas, não é o infame privilégio dos homens pervertidos. Os de nobre coração também desonram, também pervertem e fazem vítimas. O avarento pode viver uma longa existência sem um remorso, sem roubar o pão do seu semelhante, logo que ele alimente a sua sede de ouro com o seu próprio suor. O general, coberto de condecorações, pode ter sido um bárbaro nas batalhas, matando inermes, e incendiando choupanas que encerram velhos e crianças. E um algoz condecorado, ao qual Deus não pergunta o que fez de seu irmão; é uma consciência tranquila de remorsos, como a lâmina da sua espada está limpa de sangue. O avarento do ouro, e da glória, caminham ambos por estrada desimpedida: um legaliza a posse do ouro com a astúcia e com o trabalho; o outro, com o poder que lhe foi conferido e com a bravura sanguinária. Na sociedade há um homem que vive também de ambições, que aspira também às glórias; mas glórias e ambições do coração, as que ele julga mais inocentes, as que a sociedade lhe não crimina no seu princípio, as que, por fim, se lhe convertem em cilícios de remorso, em apertos de coração, e em tédio de si próprio, no declinar das forças físicas para a sepultura das quimeras. Este homem fui eu, e és tu. O coração perde-nos, Luís. O homem que se dá exclusivamente ao amor cuida que vai sobre alcatifas de flores, e resvala num abismo. Principia, com o propósito de ser honrado, um comércio de sensações brandas; e acaba enfastiado delas, ansioso de outras que não depara. Depois, como indemnização do que perdeu, encontra o desprezo dos outros; como companhia das suas horas solitárias, tem a imagem de uma pobre mulher, que se levanta do charco onde ele a lançou, agarrando-se-lhe aos cabelos; e, como refrigério das sedes que o calcinaram na mocidade, encontra na velhice...  um filho, que lhe encrava uma coroa de espinhos sobre o estigma do crime com que a sociedade o manda à presença de Deus...

     -      Meu pai - atalhou Luís, pasmado da desordenada eloquência. - Eu não sei o que fiz para merecer-lhe admoestações tão severas!

     -      Isto não são admoestações, Luís... Não sei o que disse... Lembra-me que o meu fim era uma cousa muito importante... Não dediques uma afeição perigosa à filha da viscondessa. Pára aqui. Ama uma mulher que possas fazer tua esposa, ou não ames nenhuma, porque eu sei que o teu amor tem o contágio da morte...

     Açucena entrou na sala, desculpando-se da demora, com uma invenção mal fingida. Se quisesse ser verdadeira, diria que estivera no seu quarto, saboreando, sozinha, uma felicidade que principiava por lágrimas.

     As confusas recriminações de João da Cunha não caíram em coração inerte. Luís nunca respeitara tanto seu pai. Suposto lhe não compreendesse as comparações do ambicioso e do general com os afectos do coração, achara uma dor sublime nessa desordem, um gemido de remorso nessa condenação a si próprio, nessa tocante ideia de uma coroa de espinhos, cravada pelo filho, na fronte de seu pai, onde a sociedade gravara o lema da desonra.

     Em casa da viscondessa, Luís da Cunha faltou algumas noites, depois da última em que o vimos, sem grande esforço, erguer o véu do coração de Açucena.

     A causa da falta extraordinária, e sensível para a viscondessa, era o incómodo de João da Cunha, que periodicamente sofria acessos de sangue à cabeça, ameaços de congestão cerebral, que o debilitavam pelas repetidas sangrias, seu alívio único. Luís passava os dias e as noites ao pé de seu pai, pela primeira vez. Em tempos de libertinagem, as doenças do pai eram indiferentes ao filho, e até a formalidade de um cumprimento lhe era pesada.

     - Que diferença! - dizia D. Rosa a sua filha. Quem diria que Luís da Cunha passaria as noites ao pé de seu pai! Onde estava um nobre coração! À vista disto, ninguém deve perder a esperança de salvar um homem abandonado de todos! A sociedade é que atira o desgraçado à miséria...

     - A miséria! - atalhou Açucena.

     - Sim, minha filha. O desprezo com que são repelidos os infelizes que não podem ser bons sem os conselhos de um bom amigo é muitas vezes a causa de se perderem de todo. O mau homem cuida que se vinga, redobrando em malvadez. Deixam-no sozinho, e ele precisa de viver em sociedade. Procura a única que o recebe, a dos abandonados como ele. Aí encontra irmãos mais perdidos que ele, e acha sempre um amigo. Dizia teu pai, minha filha, que o último amigo do criminoso era o carrasco... Não entendes esta linguagem, Açucena... Oxalá que nunca recordes palavras de tua mãe, ditas como um desafogo a quem lhas não entende... Foi talvez com elas que eu salvei Luís da Cunha... Servem só para desgraçados... e tu, filha, és feliz, és inocente, és um anjo.

     - Ele é ainda desgraçado?

     - Pode ser feliz...

     - Eu queria que ele o fosse; mas é tão triste... Ele era assim dantes?

     - Não. Escarnecia de tudo, convertia tudo em galhofa, respondia às minhas admoestações com agradecimentos irónicos, e contava-me os seus desatinos como quem conta acções meritórias. O primeiro dia em que lhe ouvi queixar-se da sua má estrela foi no dia em que te viu...

     - Em que me viu!? - atalhou Açucena, sem poder conter as palavras, que vinham do coração sobressaltado.

     - Porque me fazes esse reparo tão admirada?

     - Admirada... não!... É que...

     - Não te escondas aos olhos de tua mãe, que é inútil, minha filha. Leio em todos os corações, e nunca se me escondeu um só pensamento do teu... Amas Luís da Cunha?

     - Minha mãe!... - exclamou ela, tomando-lhe carinhosamente a mão, e fazendo um aceno negativo.

     -      Não te assustes, Açucena. Eu não crimino essa afeição, que é muito natural. Se o tivesses conhecido há dois meses, decerto o não amarias. Hoje... era quase impossível que o não amasses... Luís tem alguma cousa fatal, que o fez querido a muitas mulheres, que se envergonhavam de lhe apertar a mão em público. Hoje poucas seriam as que lhe recusassem afectos. Mas olha, Açucena... tua mãe vai falar-te como todas as mães deviam falar a uma filha que sai de um colégio aos dezoito anos. Se tivesses vivido cá fora, não era necessário dizer-te que só há uma posição que te convém com Luís da Cunha. Se não fores sua esposa, que poderás tu ser para ele?

     -      Sua irmã.

     - Não há irmãs pelo coração, minha filha. Quererias ser sua esposa?... Responde, Açucena... Faz de conta que falas com a tua única amiga. Agora não sou tua mãe, visto que é de uma mãe que sua filha de ordinário se esconde. Querias ser sua esposa?

     -      Queria...

     -      Que tristes cousas vou dizer-te... Teu padrasto não te daria uma moeda de cobre como dote, e eu não posso também dar-ta, porque sou pobre como tu. Luís da Cunha não tem património, nem pode suceder na herança de seu pai; é pobre como ambas nós, logo que seu pai lhe morra. Vês o que é o mundo? Um casamento entre duas pessoas, habituadas a não proverem com o trabalho às suas precisões, é uma desgraça. Tu serias muito infeliz, quando teu marido te dissesse: «Não temos pão.» Minha filha, eu já soube o que é não ter pão. Já desfiz um meu vestido, para que tu não andasses nua. Já andei sem lençona cabeça, para que tu não tivesses fome. Já me ajoelhei contigo nos braços, pedindo a Deus que nos levasse ambas, antes que tivéssemos de morrer de fome entre quatro paredes. A amiga que nos valeu a ambas é hoje uma desgraçada, não de fortuna, porque eu privo-me de muito, para que ela tenha tudo. É desgraçada... pobre Maria Elisa... porque se deixou arrastar pelos cabelos onde a leva o mau anjo das suas paixões... Coitadinha!, no que deu aquela mulher!...

     - Não chore assim, minha mãe...

     - Deixa-me chorar... eu preciso de chorar alguma vez na tua presença... São mais dolorosas as lágrimas sem testemunhas. Preciso de uma confidente, e, se não o és tu, quem o será? Nos salões é preciso rir sempre. Com meu marido, é necessário ser o que ele é... Contigo, posso ser o que sou... Minha filha, tua mãe vai pedir-te um favor...

     - Favor!... Que quer, minha querida mãe?

     - Esquece Luís da Cunha!

     - Esquecê-lo...

     - Se não podes esquecê-lo... resigna-te, não alimentes esperanças, não lhas dês a ele...

     - Isso sim... isso posso fazê-lo... Quer minha mãe que eu me recolha já hoje ao convento?

     - Nem tanto, meu anjo!, nem tanto!... Irás quando tens de ir...

     - Mas eu não devo vê-lo mais...

     - Porque não? Assim o amas?!

     - Pensei que poderia vê-lo todos os dias. Não queria ser senão sua irmã. Diz a mãe que não posso... não o serei; mas não tenho coragem... não sei como hei-de dizer-lhe que o não sou, porque ele há-de perguntar-me a razão por que não sou sua irmã, sua amiga, e eu não sei o que hei-de responder-lhe.

     - Mas... prometeste-lhe tu essa estima de irmã?...  Coras!... Responde, Açucena.

     - Prometi...

     - Quando?

     - Uma noite que a mãe saiu, ele veio adiante do pai...

     - Porque me não disseste esse encontro, se ele te pareceu inocente?

     Açucena baixou, corrida, os olhos, e limpou duas lágrimas, que lhe tremiam nas pestanas. Ergueu-se impetuosamente, e escondeu a face no seio de sua mãe, que chorava com ela.

     - Foram tardias todas as minhas reflexões, minha filha? - disse a mãe com a voz cortada, procurando ver a face de Açucena.

     -      Não foram... Eu serei o que minha mãe quiser que eu seja; mas não sei porque devo maltratar um homem que lhe merece tantas provas de estima.

     -      Eu não te digo que o maltrates...

     -      Se ele me procurar, não lhe falo.

     - E porque não?

     - Porque... seria pior... seria enganá-lo, porque não posso esquecê-lo.

     -      Desde quando o amas, minha filha?

     -      Tinha eu dez anos, e ele dezassete...

     - Oh filha! - interrompeu a mãe, sorrindo -, isso não era amor!

     -      Não sei o que era... era amizade... nunca o esqueci. E, quando o vi, depois de oito anos, vi tudo que me era mais caro na vida, depois de minha mãe...

     -      E disseste-lho?

     - Nunca... mas, se ele mo perguntasse, dizia-lho. A razão não me crimina deste afecto de irmã...

     -      Quem sabe, filha!... Talvez, mais tarde... outra razão, a da experiência, venha desmentir a que te fala hoje...

     - Penso que não... Hei-de seguir sempre os conselhos de minha mãe. Farei tudo o que posso. Se é possível esquecê-lo, empregarei todos os esforços para isso. Diga-me a mãe quais eles são.

     -      Terrível pergunta! - disse a filha do arcediago, no fundo da sua consciência.

     -      Não me responde, minha mãe?

     -      Não o evites de todo... Recebe-o, se ele te visitar...  Entretanto, pode ser que Deus permita um milagre.

     -      Esquecê-lo?

     - Esquecê-lo, ou poder ser sua mulher. Não é esta a intenção de Luís da Cunha?

     - Não sei. Não temos tido a liberdade de falar nessas cousas. Se ele me tivesse falado nisso, eu dizia-lhe que seria sua esposa, sem me lembrar que é necessário um dote.

     - E sem o consentimento de tua mãe?

     - Minha mãe quer a minha felicidade...

     - Confia-te a mim, Açucena... eu continuo a ser a tua amiga. Hei-de falar hoje com teu padrasto... Agora mesmo que ele aí vem... Retira-te.

     O visconde de Bacelar entrava, com a pena na orelha, e uma carta aberta nas mãos.

     - Rosa - disse ele, franzindo a testa, e tirando os óculos - lê essa carta. É chegada agora do Porto. Basta que leias as últimas linhas. Senão, eu tas leio:

     Enquanto a Maria Elisa, meu caro visconde, sinto dizer-lhe que está uma perdida. Ultimamente adquiriu um amante que lhe consome a generosa mesada que a Senhora Viscondessa lhe dá. Acho prodigalidade despender cinquenta mil réis cada mês, para sustentar dois viciosos.

     Ela tafula, como se tivesse doze contos de réis de renda.

     Os cinco mil cruzados que sua senhora lhe mandou há um ano, dissipou-os em menos de três meses. Não sei, ainda assim, como ela pode fazer tanto com cinquenta mil réis mensais. Disseram-me hoje que ela recebia outros cinquenta; não posso coligir donde venham. Os meus respeitos, etc., etc.

     Rosa Guilhermina estava pálida e fria. As últimas linhas desta carta eram a denúncia do emprego que ela dava às suas economias. O filho da Senhora Ana Canastreira, lida a carta, passeou na sala, dobrando-a, soprando, limpando os óculos, e batendo com a caixa do rapé na palma da mão esquerda.

     - Que dizes tu a isto, Rosa?

     - Que hei-de eu dizer, José! Que Maria Elisa deve muito a Deus, se a levar deste mundo.

     -      Mas, enquanto Deus a não leva, é preciso pôr cobro a isto. Sabes a maneira como?

     -      Diz, meu amigo.

     -      Levantar-lhe a cesta. Os benefícios que lhe deves estão pagos com usura. Enquanto esteve connosco, foi tratada como rainha. Deu-lhe o diabo da asneira na cabeça, e fez tropelias que me obrigaram a sair do Porto.

     Saiu da companhia do S*** C***, deste-lhe uma casa mobilada de tudo, e uma mesada que sustentava uma família. Vendeu casa e móveis, e andou de amante em amante, até que lhe deste cinco mil cruzados para ela comprar uma quinta em Santo Tirso. Qual quinta nem qual carapuça! Gastou os cinco mil cruzados, gasta os cinquenta mil réis, e outros cinquenta, que, naturalmente, são remetidos por ti. Não te ralho, Rosa: o mal feito não tem remédio; mas reprovo de hoje em diante o desfalque da nossa casa, para trazer no galarim uma mulher sem vergonha, uma libertina de quarenta anos. Se lhe queres continuar a mesada, manda-a entrar num convento, onde a não conheçam, e sustenta-a lá. Assim há-de dizer-se que o meu dinheiro serve de alimentar mulheres perdidas e vadias. Não estou para isso.

     -      Eu pensarei no que se há-de fazer: entretanto, peço-te que lhe não suspendas a mesada. Faz isto que te suplica tua mulher.

     - Farei; mas tu não te lembras de fazer economias para essa rapariga que não tem nada de seu?

     - Qual rapariga? Minha filha?

     -      Pois quem?

     - É a respeito dela que eu desejava muito alguns momentos de atenção. Tenho pensado no futuro desta menina.

     - Pois já não queres metê-la num convento?

     -      Quero; mas o convento, sem profissão, não é futuro. Diz-me, meu amigo, tu dás um dote a minha filha?

     -      É a quarta vez que me fazes essa pergunta, e eu respondo o que já respondi. A filha da viscondessa de Bacelar, das duas uma: há-de casar com grande dote, ou não casar. O grande dote não o dou; com pequeno dote não serve senão a algum amanuense de tabelião. Pediu-tatambém em casamento?

     - Não; mas se tu quisesses, poderíamos casá-la, talvez, com...

     -      Com quem?

     - Com Luís da Cunha.

     -      Estás tola! Deus te livre dessa asneira! Pois tu acreditas que ele valha hoje mais do que valia há três meses?!

     -      Acredito; não tem nada do antigo homem.

     -      Não terá; mas, pelo sim, pelo não, sempre te vou dizendo que para tal casamento não sai um pataco da minha gaveta. Tomara eu o que por lá anda por casa do João da Cunha! Cara me tem custado a amizade do tal fidalgo! Já não tem bens livres que cheguem para o pagamento de dez mil e tantos cruzados que me deve, afora a fiança que eu lhe prestei para um título de dívida que o extravagante do filho assinou, de um conto de réis. Tem juízo, Rosa. Não te deixes enganar com aparências. Ali onde o vês com ares de convertido, tudo aquilo é hipocrisia. Agora vou entendendo a razão de tal mudança.

     Queria um dote e uma mulher. O dote gastava-o com a tal dissoluta que levava ao teatro, ou com outra que tal; e a mulher, qualquer dia vinha, com dois pontapés, pedir-te que lhe desses um bocado de pão. Às vezes pareces tão esperta... e cais em cada alhada, que nem uma cozinheira! Querem ver que a rapariga está namorada com o Senhor Luisinho?!

     - Basta, José... Não falemos mais neste assunto. Fiz-te uma pergunta muito simples, e respondeste mais do que era necessário. Ficamos entendidos. Posso contar com a subsistência de Açucena no convento?

     - Paguei hoje seiscentos mil réis de entrada e estabeleci-lhe seis moedas por mês, e uma criada de cozinha, e outra de quarto. Se é necessário mais alguma cousa, é pedir por boca, enquanto está aberto o cofre.

     - Não é preciso mais nada, meu amigo.

     - Poucos padrastos fazem outro tanto...

     -      Tens razão, José.

     -      E, quando lhe apareça um digno marido, não terei dúvida em lhe dar um dote, mas não para Luíses da Cunha, e outros que tais. Ficas zangada?

     -      Porquê? Fico-te de todo o coração agradecida. Tudo que fizeres em bem de minha filha é uma esmola de caridade.

     O visconde desceu ao escritório a descontar letras do governo, e Rosa Guilhermina fechou-se no seu quarto com a filha.

     Antes de anunciar-lhe o que se passara, tinha dito com as lágrimas o mais que poderia dizer-se.

     Açucena, beijando-a meigamente, dizia:

     - Adivinho tudo, minha querida mãe. Não se aflija, que eu, para ser feliz, não preciso do dinheiro de meu padrasto.

     -      Precisas... precisas... - respondia a mãe abrançando-a com frenética ternura.

   

    Um anjo caído

     Luís da Cunha era estranho às apressadas solicitudes da viscondessa de Bacelar com o futuro de sua filha.

     Como a não pedira, nem mesmo significara a alguém intenções de casar-se, da sua parte nenhum esforço punha para vencer as dificuldades do casamento, quando se dessem. Votado inteiramente a velar a convalescença de seu pai, as saudades de Açucena desvaneciam-se-lhe pouco e pouco; mas não tanto que ele não esperasse com impaciência, todos os dias, notícias indirectas de sua «irmã».

     Luís da Cunha quisera iludir-se. O amor que a encantadora Açucena lhe ressuscitara nas ruínas do coração era um sentimento de fantasia, um impotente esforço da vontade. Depois de onze anos de vida aparcelada de reveses na alma, de ignomínias que entram como hábito nas propensões do homem que se crê irresponsável de seus escândalos, acredite-se de boa mente a conversão religiosa como consequência do remorso, como temor de Deus; mas negue-se a reforma do espírito em cousas do amor, em nobreza de afectos, em dedicações fervorosas. É impossível essa reforma. Não renasce o amor no peito cansado; não mais desabrocha no tremedal a flor dos perfumes ideais, que, só no ar puro de um coração juvenil, embelece a vida, e promete a felicidade.

     O amante de Liberata não podia ser o intérprete do coração de Açucena. Um saía da inocência, outro do crime. Luís, depois das paixões impetuosas entrava cansado no amor tranquilo, para o qual é necessário muita alma.

     Açucena, com todo o vigor da juventude, abandonava-se, mais cega do que se imaginava, à paixão impetuosa.

     Se a tivessem educado nas salas, a neta do arcediago, aos dezoito anos, não se apaixonaria por um homem inconveniente, socialmente falando. Aprenderia, desde os catorze, a estremar o aparente do real, o homem que se namora por entreter, e o que se namora para casar. Rodeada de lisonjas, qual delas mais impostora, perderia depressa a memória dos diferentes turibulários, e, ao sentir no coração impressos os traços de uma imagem, outra imagem viria desfazê-los depois. O amor repartido é o amor sem consequências perigosas. A razão conserva sempre o seu domínio. A luta com três é-lhe menos difícil que a de um só; e a donzelinha de faces de leite e rosas, se tiver mãe experimentada, leva a cabo empresas arriscadas com a sisudez que os quarenta anos não têm.

     Antes de amar a realidade, o coração da virgem, na vida erma, no perfume inocente dos colégios de outro tempo, nutria-se, fortalecia-se, e extravasava de um amor sem cálculo, de uma aspiração sem condições.

     Tal fora Açucena.

     As práticas judiciosas de sua mãe poderiam impressioná-la de passagem; mas o amor, que vencera o pejo que se formara em si, e de tal força que nem os desdéns do amante o aniquilariam, esse amor reagiu contra os mesquinhos estorvos de um dote, contra a dependência ignóbil das algibeiras de um padrasto.

     Luís da Cunha, restaurada a saúde melindrosa de seu pai, continuou regularmente as suas visitas à viscondessa.

     O trato grosseiro do visconde era cada vez mais acrimonioso. A afabilidade de Rosa desmerecera um pouco; e as maneiras de Açucena pareciam-lhe, em compensação, mais ternas, mais meigas e insinuantes do que o tinham sido antes da sua declaração.

     E, certo, eram.

     Açucena despediu-se de João da Cunha na véspera da sua entrada nas comendadeiras. De Luís despediu-se também; mas toda a arte foi vã para esconder as lágrimas do adeus. Os olhos aguados, e as palavras balbuciantes denunciaram-na, não a Luís, que a adivinhava; mas a João da Cunha, que a não imaginava tão frágil à tentação do filho.

     A fantasia de Luís deixou-se outra vez levar do enganoso amor. Era o desejo que o fazia crédulo. Era a pergunta que ele muitas vezes se fizera depois da emenda:

     «Poderei eu ser ainda feliz, amando?»; era essa pergunta que o fazia procurar a resposta no amor de Açucena.

     E sabem, leitores, quanto duram estas ilusões em homem que deu da sua alma tudo quanto podia às puras ou às impuras paixões? É devaneio de um dia: acesso febril que arrefece no dia seguinte: é o mentiroso rejuvenescer de algumas horas.

     «Se eu pudesse lutar com as dificuldades de uma afeição desprezada!... Se houvesse aí uma mulher que me ameigasse para me cativar, e, depois de cativo, me lançasse de si com a ponta do pé, para que ao menos eu sentisse aqui no seio de pedra a tarda palpitação do amor próprio!»

     Há homens que dizem isto, que o dizem e o desejam, que o desejam e não o encontram.

     Para esses de que serve o amor sem rebuço, a dedicação espontânea e descuidosa da mulher que vem procurá-los, sem ser chamada? Pobre dela, se a última cintila de piedade generosa se apagou no coração do seu verdugo amado. E ele que lucraria?... O tédio de si próprio.

     O amor angélico de Açucena fora outra vez recebido por Luís da Cunha, esquecido já das primeiras emoções.

     A filha de Rosa entrara no convento, onde encontrara fáceis amigas que se interessavam em remediar-lhe com conselhos a profunda tristeza. Os conselhos lisonjeavam-na. Jubiladas no amor, as comendadeiras, ilustres em nascimento, e até ilustradas no espírito, olhavam as cousas deste mundo, pouco mais ou menos, como elas são. Menina de dezoito anos, melancólica, sofre de amor: entenderam as mais penetrantes. Conhecido o diagnóstico da enfermidade, era infalível a farmácia, muito acreditada nas beneditinas. A quem penava do coração aplicava-se-lhe amor a grandes doses. Ora a barateza da droga nunca deixou morrer ninguém à míngua de antídoto.

     O que se dizia a Açucena era que amasse, que recebesse no locutório quem quer que fosse, que se não deixasse possuir de uma heróica abnegação, porque o mundo não valia o sacrifício. A sua mais prezada amiga, secular também, que passava três meses no convento, e nove na sociedade, tomou ao seu cargo a voluntária missão de convidar o filho de seu primo João da Cunha a tomar chá na sua grade, em dia dos seus anos.

     Açucena foi surpreendida por Luís da Cunha, que nunca vira tal prima, nem entrara em tal convento. Aceitara o convite, porque desejava mostrar que lhe era grato o pretexto de que Açucena se servira para chamá-lo ao convento.

     A prima de Luís da Cunha era uma senhora desempoada. Na sua desprevenida inteligência, dois e dois eram quatro, e, segundo ela, toda a mulher devia ter um amante, e particularmente aquela que reza vésperas num coro enquanto as outras elegem entre dezenas de vestidos o que há-de realçá-la mais no baile ou no teatro.

     Ei-la, pois, em oposição com os estatutos de todos os patriarcas que apadroaram conventos.

     Desde esse dia, as visitas de Luís da Cunha a sua prima eram quase diárias. Na grade de sua prima, as mais das vezes, quem Luís encontrava era Açucena.

     A viscondessa sabia destas visitas, e não as proibiu a sua filha, desprezando assim as insidiosas prevenções da intriga, que deste modo procurava vingar-se de ódios domésticos a D. Leonor Machado, a prima prestadia de Luís da Cunha. Os reiterados avisos a Rosa Guilhermina saíam do convento. Açucena ignorava-os, porque sua mãe, concebendo os melindres de um amor contrariado, não falava de propósito em Luís da Cunha, nem consentia que sua filha de propósito lhe falasse nele.

     O visconde também teve as suas duas cartas anónimas, a respeito dos escandalosos amores da sua enteada, protegidos pela escandalosa secular Leonor Machado.

     José Bento levou ao conhecimento de sua mulher as informações que recebera, e Rosa, por assentir a seu

     marido, de quem dependia o futuro de Açucena, impôs-se a dolorosa obrigação de proibir a sua filha inteligências com Luís da Cunha.

     Açucena recebeu silenciosa a correcção; mas, em silêncio, se prometia não dar o peso que sua mãe lhe dava. Era tarde para ela, e tarde para o filho de Ricarda, que acabava de convencer-se que o amor, e porventura o património de Açucena, alcançado por astúcia, faria as delícias da sua vida.

     Luís continuou sem obstáculo as suas constantes atenções à prima. O visconde, informado de novo, mostrou ao seu devedor João da Cunha as cartas que recebera.

     João da Cunha, admoestando o filho, encontrou-o um pouco parecido com o que fora em tempo, respondendo-lhe que a reforma dos costumes não consistia na renúncia completa dos mais inocentes prazeres do espírito.

     Como não falou em matéria, o caso não era tão pavoroso como o afiguravam os tímidos informadores do padrasto.

     Luís da Cunha, ressentido das grosserias do filho do retroseiro da Rua das Flores, espaçou as suas visitas a casa dele. Romperam-se, portanto, as hostilidades.

     O visconde ameaçava a enteada de retirar-lhe as mesadas. Luís da Cunha oferecia-se como irmão a Açucena, quando seu estúpido padrasto a desamparasse.

     E tudo isto exacerbava a paixão de Açucena, que, agradavelmente humilde, não sabia resistir ao amante, para obedecer ao tirano da sua alma.

     A prelada do convento recebeu do visconde poderes que nunca, até então, exercera sobre o coração das professas, e muito menos das seculares.

     Animada pela indómita Leonor Machado, a neta do arcediago desobedecia, correndo pressurosa à grade, quando Luís da Cunha apeava no pátio. Ali, a pobre menina aliviava da sua dor opressiva, chorando, e bebia a longos sorvos o bálsamo que o filho de Ricarda, de antemão, trazia preparado em estudadas palavras de esperança.

     Mas qual esperança era essa? Que planos eram os dele?

     Muito comuns, e muito infames.

     Luís da Cunha, invocando o seu eu de outros tempos, encontrou-o. Pediu-lhe conselhos, e recebeu-os. Aventou uma trama, que não é nada extraordinária, porque, não cansam por aí cavalheiros muito probos, e exemplares a todos os respeitos, que a praticaram com próspero resultados.

     O filho de João da Cunha sabia que, morto seu pai, os sucessores do vínculo viriam desalojá-lo do último palmo de terra. O futuro dava-lhe cuidado. Os poucos bens de livre nomeação estavam hipotecados a dívidas enormes, contraídas por sua causa, depois que as preciosas jóias de Ricarda foram desbaratadas em desperdícios do pai e do filho. João da Cunha, segundo o pensar dos médicos, não resistiria a um dos ataques cerebrais que repetidas vezes o ameaçavam com a morte, anunciando-se por uma sombria tristeza, e desordem de ideias, à maneira daquela em que o vimos censurar o amor de filho a Açucena. Luís teve o bom senso de se julgar desvalido apenas seu pai fechasse os olhos. Precisava enriquecer-se e granjear com tempo uma fortuna, empregar para isso esforços e habilidade, embora aconselhado pela desmoralização.

     Entendeu, portanto, que Açucena receberia um bom dote do visconde, quando esse dote lhe fosse imposto como resgate da desonrada filha de sua mulher. Para isso era necessário tirá-la do convento, difamá-la, forçar a viscondessa a influir no dinheiro de seu marido.

     O cálculo parecia-lhe infalível a ele. Açucena prestava-se maquinalmente à vontade do amante, por isso que sua mãe acabava de lhe fazer sentir que o visconde resolvera fazê-la entrar num convento do Minho, em Vairão.

     Era necessário apressar o desfecho. Leonor Machado abundava nas ideias do seu primo, e prometeu coadjuvar Açucena na fuga, pela sua casa, que era paredes meias com o muro da cerca, sobre que se abria por um postigo.

     Luís da Cunha comprou o hortelão, que devia abrir-lhe a porta travessa do pomar. Animou a tímida menina a descer uma escada que lhe foi içada ao postigo. Recebeu-a nos braços, murmurando o vigésimo juramento de nunca desmerecer a confiança que lhe merecia, e entrou com ela na mesma sege em que muitas vezes entrara com Liberata. Desde esse momento, qual das duas teria um melhor futuro?

     Deus! Como presenciais, sereno e tranquilo em vossa majestade tremenda, a precipitação de um anjo em cada dia!?

     Homem, que crês na efectiva vigilância da Providência, responde-me:

     Se Açucena vai inocente a resvalar num abismo, quem lhe dará a consciência do erro? A perdição? Seja. Mas esse remorso tardio que lhe presta? A contrição? Seja. E, se ela morrer, blasfemando? O inferno?

     Valha-nos Deus!           

   

    Anjo caído, mas ainda Anjo

     A fuga de Açucena não admitia conjecturas. As comendadeiras explicaram-na com admirável prontidão menos Leonor Machado que, no auge do seu pasmo, não atinava com a causa de semelhante resolução, nem podia compreender por onde ela fugira! Ingénua criatura!

     A notícia foi depressa à viscondessa de Bacelar. A pobre mãe desmaiou sem ler as últimas linhas da carta que consternada abadessa lhe escrevera. O visconde, encontrando-a desfalecida, lera também a carta, e, passados alguns segundos de surpresa, dera-lhe para rir com estúpida imbecilidade.

     Tal fora o estridor da gargalhada, que Rosa Guilhermina volveu a si para contemplar, com os olhos lacrimosos e absortos, o estranho espectáculo de José Bento, que batia com o pé direito no chão, e com a mão direita na esquerda, exclamando, entre frouxos de riso:

     -      Não to dizia eu? Aí está o convertido Luís da Cunha!... Aí está a inocentinha Açucena! Sou um criado do senhor convertido e da senhora inocentinha! Agora pega-lhe com um trapo quente. E dizem que és esperta! Os espertos caem em cada langará, que não sei o que te diga, Rosa! Ora beija as mãos ao teu Luisinho, que ta pregou na menina-do-olho! Isto havia de acontecer tarde ou cedo! Eu sempre tive quizília com a tua filha e com o mulato; por alguma coisa era.

     -      Está bom, José; tens razão; não me mortifiques mais, porque me matas. Tem piedade de mim, que sou mãe. Não és pai; se o fosses, em vez de gargalhadas, chorarias...

     -      Choraria! Pois não! Se fosse pai, mandava o tal brejeiro de presente ao diabo. Havia-lhe de arrancar o coração pela boca. Se fosse pai - acrescentou o assassino do mestre de Latim, morto a Garfo -, não descansava enquanto os não arrebentasse a ambos. Como não sou, não tenho nem quero ter direito algum sobre tal mulher. Lá se avenha.

     - Lá se avenha! - exclamou Rosa, estendendo-lhe os braços suplicantes. - Lá se avenha... Não é assim, José! Açucena é minha filha, é filha de tua mulher... Sou mãe que tenho de sentir a desonra dessa desgraçada!... Por compaixão, meu amigo, por compaixão não a abandonemos!

     -      Que queres tu agora? Que eu vá buscá-la para casa na minha carruagem?

     - Não... Pelo amor de Deus não zombes com a desgraça...

     - Pois que queres?

     -      Que te unas a mim para fazermos com que Luís da Cunha case imediatamente com ela.

     - E que tenho eu com isso? Eu sou algum padre que os case? Isso é lá com o prior.

     - Jesus! Tu não és tão cruel como estás fingindo, meu querido José... Finges que me não entendes... Paciência! Queres-me morta... pois sim... eu te farei a vontade.

     - Ora percebam este disparate! Que tenho eu com o casamento de tua filha?

     - Não tens nada; mas se falares com o João da Cunha...

     - Falarei. Não queres mais nada?

     - E te compadeceres de minha filha para que ela tenha um bocado de pão...

     - Agora entendi... O tal patife só casará com Açucena dotada...

     - Não sei, José... não sei se casará com ela sem dote; pode ser que sim; mas são ambos pobres: bem sabes que João da Cunha deve tudo que poderia deixar a seu filho... Não a desamparemos.

     -      Digo o que disse, Rosa. Não dou nem um pataco para que ela case com o filho da preta, com o amante das mulheres perdidas, com o infamador de senhoras honestas, e com o perdulário, que dissiparia num ano toda a minha fortuna, se pudesse meter-se em minha casa. É nais fácil eu recebê-la em casa...

     -      Desonrada, infamada, perdida...

     -      Sim; é mais fácil recebê-la assim, que aceitá-la casada com esse desastrado galopim, hipócrita, e infame que desonra a filha da única herdeira que o não repeliu em sua casa. Eu tenho sentimentos... Bem sabes que os tenho desde que estudei latim na travesa do Laranjal...  Sei, há muito, o que é ter nobreza de alma. Açucena não é minha filha; mas que me apareça com esse vil sedutor, e verá quantos dentes lhe ficam na boca.

     O diálogo prolongou-se numa luta de aflição da parte da infeliz mãe, e um imutável propósito da parte do padrasto.

     João da Cunha, contra o seu costume, entrava ao meio-dia em casa do visconde.

     Vinha em miserável estado. As veias da face enturgeciam do sangue que lhe subiu à cabeça em borbotões.

     O mal agravou-se na presença de Rosa, que lhe viera ao encontro, banhada em lágrimas, soluçando palavras inarticuladas. O visconde, impassível, encarava João da Cunha com sobrecenho.

     -      Tem um excelente filho, Senhor Cunha! – disse José Bento, balançando a cabeça com pungente ironia, e solfando no pavimento com o pé direito.

     -      Tenho um desgraçado filho, Senhor Visconde! murmurou João da Cunha, caindo extenuado sobre uma cadeira, e amparando a fronte calcinada na mão ardente como ela.

     -      Eis aí - continuou o inexorável credor - o que é um fraco pai, que deixou crescer seu filho à lei da natureza! Agora regale-se, Senhor Cunha!

     - Não me despedace, Senhor Visconde! Respeite a minha dor! - murmurou o atormentado pai, erguendo as mãos na indescritível ânsia da sua vergonha.

     - E quem é que respeita a dor dessa mãe que está aí chorando ao pé de si?

     - Sou eu, Visconde, sou eu. Somos ambos pais; compreendemo-nos chorando...

     - Agora!... Remedeiam alguma cousa?

     - Venho aqui para combinarmos a maneira de remediarmos esta desventura.

     - De que maneira? - exclamou a viscondessa.

     - Esse desgraçado escreve-me uma carta... Ei-la aqui: visconde... Leia, que eu não posso.

     -      Nem eu! - disse bruscamente o visconde. – Que me importa a mim a carta de seu filho? Não tenho nada com ele: entendam-me de uma vez para sempre.

     - Eu leio... - disse Rosa, tomando a carta com sofreguidão.

     Lendo-a, fechou-a e disse a João da Cunha:

     -      É impossível.

     - Impossível!

     - Meu marido não dota Açucena, e, portanto... minha filha... está perdida!

     - Perdida? Não! - atalhou João da Cunha. – Em minha casa há umas sopas; e, enquanto eu viver, meu filho aprenderá o ofício de sapateiro para não morrer de fome, depois da minha morte. Eu vinha aqui pedir uma esmola para o futuro de Açucena; não venho pedir o preço da reparação da sua honra. É preciso que me entenda, Senhor Visconde. Meu filho é neto dos Cunhas e Faros. Não mercadeja com a desonra das suas amantes; não calculava com as suas migalhas quando arrancou a filha desta senhora aos braços da virtude...

     João da Cunha, alteando cada vez mais a voz, e embaralhando as ideias em desalinhada precipitação, denunciava o ataque periódico de sangue, que se lhe injectava nos olhos, transpirando na testa em frias bagas de suor. Nem o visconde o entendia já, nem ele mesmo seguia com consciência o curso arrebatado dos pensamentos, quando de improviso levou as mãos à cabeça, exclamando:

     - Senhora Viscondessa, se não sou sangrado já, morro, ou endoudeço!

     O visconde condoera-se. Deu ordens prestes, e o facultativo veio rápido. Depois da copiosa sangria, eram pouco sensíveis as melhoras. João da Cunha estava febril, e falava em delírio. Sacudindo os braços vertiginosamente, pedia que lhe afastassem dos olhos o espectro de Ricarda.

     Decorridas horas, progredia mais intensa a febre, mais frenético o delírio. As aflições aglomeravam-se no coração de Rosa, enquanto seu marido curava serenamente dos seus negócios, sem enganar-se no quebrado de uma operação aritmética, em seu prejuízo.

     A crise de vida ou morte passara; mas os médicos disseram que João da Cunha não recuperaria o seu completo juízo por muito tempo, ou talvez por nunca mais. Era o décimo ataque que sofria.

     Entretanto, um criado de Luís da Cunha esperava no Campo Grande, local do palacete dos Cunhas, a resposta. Cinco horas depois, vira descer da carruagem, nos braços de dois médicos, o pai de seu amo. Aproximara-se, para ser reconhecido; os médicos disseram-lhe que; se afastasse, e os lacaios afiançaram-lhe a demência do fidalgo.

     Tal foi a resposta que Luís da Cunha recebeu.

     Nessa mesma noite, o filho de Ricarda entrou no quarto de seu pai. Apertou-lhe a mão, chamou-o três vezes inutilmente, e, à quarta, ouviu as seguintes palavras, que pareciam ditas ao facultativo presente:

     - Diga a meu filho que seja honrado, casando imediatamente com essa menina. Que venha para esta casa, com sua mulher, que será minha filha. Que aproveite os poucos anos da minha vida para se formar em Matemática, e assentar praça depois, que foi essa a mais esplêndida carreira de seus avós, valentes generais, quase todos mortos no campo da honra, sem uma nódoa ignominiosa. Enquanto ele vai estudar, sua mulher poderá mover à piedade o padrasto, e levantar do chão alguma esmola que ele lhe atire como um osso a um cão inoportuno. Se lha não der, nem por isso será menos filha de João da Cunha; porque mais vale ser filha de João da Cunha, que enteada de um retroseiro do Porto. Que venham ambos ver-me.

     - Eu estou aqui, meu pai.

     - E que se não perca em Coimbra, como eu me perdi... - continuou ele, surdo às interrupções incessantes de Luís. - Foi lá que me atirei a este fosso, donde não há saída, nem pela porta da contrição. Não se segue do meu crime a expiação em meu filho. Se causei a morte de Ricarda, não fui eu que a matei; foi seu marido. Se se reconciliaram na presença de Deus, é bem que eu pague o sangue com o sangue: mas meu filho, esse não...

     Luís da Cunha não decifrava das vagas exclamações de seu pai a resposta do visconde. Retirou-se para Lisboa, e entrou em uma casa da Rua do Príncipe. Subiu a um terceiro andar, e recebeu nos braços a inquieta Açucena, que chorava e tremia.

     - Porque choras?

     - Estava sozinha, e muito triste, Luís...

     - A tua criada não te fez companhia?

     - Ninguém ma pode fazer... Ou tu, ou ninguém... Agora, não choro, nem tremo... Que resposta deu minha mãe?

     - Não sei: meu pai está efectivamente doudo. Não compreendi nada do que ele disse; mas, a acreditar o delírio em que o encontrei, o visconde não lhe respondeu do modo que supúnhamos.

     - E então?

     - E então, minha filha, és o que eras para mim. Bem sabes que te não amo por cálculo, nem te adoro menos se os meus planos falharem.

     - Eu bem o sabia, Luís! O dinheiro não faz a tua felicidade nem a minha... - disse ela, abraçando-o com o acanhamento do pudor.

     - Decerto não, Açucena. O caminho que temos a seguir é sempre o mesmo. Rica ou pobre, serás minha esposa.

     O amor não se finge. A tibieza das frases triviais de Luís da Cunha diz-nos que o arrependimento veio, mais cedo do que devia esperar-se, manifestar um entusiasmo sobreposse. Não se acredita, sem ter experimentado, a súbita mudança que transforma o homem, quando a posse absoluta da mulher que se lhe dá é logo misturada de desgostos imprevistos. Um rapto de que se espera um dote é um peso aborrecido, quando a esperança, fugindo, apenas deixa nos braços do raptor uma mulher sem ilusão nem prestígio. E, pior ainda, quando o amor é débil, o coração extenuado não aceita os sacrifícios grandes, que, raras vezes, acrisolam o amor de fantasia, como era aquele de Luís da Cunha.

     Querem vê-lo tal qual era nas primeiras vinte e quatro horas de convivência com a filha de Rosa Guilhermina?

     Chegou a conceber o pensamento de fazê-la entrar no convento enquanto o escândalo não era público!

     Por vergonha, lhe não lhe fez a ela a proposta reparadora da sua virtude! A virtude, portanto, na opinião deste homem era um atributo bem fácil numa mulher!

     Passaram-se alguns dias, sem Açucena desconfiar da frieza do seu amante. A mudez, e os gestos de impaciência que ele, ao quarto dia, não podia esconder, traduziu-os ela como inquietação pela perigosa enfermidade de João da Cunha.

     Luís saía de noite, a visitar seu pai. Não o encontrava nunca nos intervalos lúcidos, e sabia que os acessos eram cada vez mais duradouros.

     Resolveu, sem consultar Açucena, escrever à viscondessa. A carta foi ter às mãos do visconde. O visconde devolveu-lha aberta com estas linhas:

     Em minha casa não há quem responda às infames cartas do Senhor Luís da Cunha. Se quer dinheiro, trabalhe.

     Saiu-lhe errado o seu cálculo. Creia que me não enganou a mim, que tenho experiência para conhecer os patifes.

     O que lhe vale ao senhor é essa mulher não ser minha filha... De hoje em diante, os seus portadores a esta casa serão corridos a chicote.

     Estas linhas provocaram toda a irrascibilidade de Luís da Cunha. A ameaça era feita em termos muito insultantes, e o brio não tinha ainda expirado no filho de João da Cunha. A carta recebera-a ele em casa de seu pai. Nessa noite, não veio à Rua do Príncipe, e mandou um bilhete, desculpando-se com a gravidade da doença de seu pai.

     Açucena viu a sua desgraça a um raio de razão nesse bilhete. Eram apenas decorridos vinte dias, depois da sua fuga! Chorou uma noite inteira, e escreveu a sua mãe uma longa carta, que rasgou.

     Luís da Cunha apeou no Pátio dos Paulistas, esperando o visconde de Bacelar, que era certo às onze horas de passagem para o banco ou para a praça comercial.

     Vendo-o, parou diante da sua carruagem. O boleeiro sustou os cavalos, e o visconde, sem auxílio do criado, saltou da portinhola com resolução.

     O filho de João da Cunha não entreteve o palavreado preliminar nestes conflitos. A sua arma era um chicote, e a do filho da Ana Canastreira eram os braços musculosos. Travou-se a luta. Cada murro bem puxado do visconde, Luís recambiava-lho na face em chicotada, que se repetia sobre o vergão da primeira. Os criados do visconde socorreriam o amo, se não encontrassem de frente os criados de Luís da Cunha. Eram dois os grupos de gladiadores; e o povo, sem ser romano, parecia, pela sua inércia, gozar o espectáculo curioso entre os dois atletas.

     O capitalista fora ferido na face pelo martelo do chicote. Os cabos de polícia e a guarda do correio, suposto que tarde, empregaram a força. O capitalista teve logo aí um fiador, que o salvou de entrar entre baionetas. Luís da Cunha, do corpo da guarda foi à administração, e daí ao Limoeiro, donde saiu afiançado quarenta e oito horas depois. Tudo isto foi ridículo a não poder ser mais! Cada qual explicava o caso com uma anedota. A fuga de Açucena era acontecimento que não passara de uma roda muito restrita; e, portanto, era livre a invenção aos intérpretes do pugilato.

     Passara-se uma noite e um dia de solidão para Açucena. Como seriam entretidas aquelas quarenta e oito horas! Que pressentimentos, que receios, que saudades, que repreensões da consciência atormentariam a pobre menina! Fechada no seu quarto, rejeitara o alimento que a indiferente criada lhe oferecia. A sua dor tinha frenesis que a extenuavam. Todo o seu esforço em resignar-se era baldado, quando a esperança lhe mentia nos passos que subiam a escada e paravam no primeiro ou no segundo andar.

     Depois de quarenta e oito horas, sem notícia de Luís, o desespero fortaleceu-a, resolvendo-a a procurá-lo em casa de seu pai.

     À noite, saiu com a criada, perguntando de rua em rua o caminho do Campo Grande. À porta de João da Cunha estava um criado. Pediu-lhe que chamasse o Senhor Luís da Cunha; respondeu-lhe que não estava lá, que o mais certo lugar onde o encontraria era no Limoeiro.

     - Preso! - exclamou Açucena.

     -      Sim, minha menina; preso pela vigésima vez por causa das suas patacoadas. Não chore, criaturinha, que o Senhor Luís há-de sair brevemente.

     -      E porque o prenderam? - perguntou a criada.

     -      Porque deu umas chicotas no visconde Bacelar, assim como quem não quer a coisa.

     Açucena sentiu-se arrefecer do gelo que começa na alma, e vem em calafrios à sensibilidade exterior. Encostou-se à criada, pedindo-lhe que não perguntasse mais nada. Atravessou sem murmurar um gemido, sem um queixume, parando exausta de forças a cada instante, a grande distância que a separava da rua do Príncipe. Entrando no seu quarto, caíra de face sobre o leito, não para repousar, mas para reprimir os gritos, que podiam ouvir-se no segundo andar.

     E ouviram-se.

     Era meia-noite. A criada adormecera, indiferente aos gemidos da ama, que lhe não aceitava as imbecis consolações. Açucena só e às escuras, porque a vela se extinguira, abrira a janela do seu quarto; mas a noite de Janeiro era tenebrosa e frigidíssima. A filha da viscondessa de Bacelar tiritava de frio, de susto, e até de terror de si mesma. Sentava-se sobre a cama, lançando sobre os ombros o cobertor. Fitava o ouvido a cada tropel remoto de passos. Desenganada, ajoelhava com as mãos erguidas, pedindo a Deus que lhe desse vida até que a luz do dia lhe deixasse procurar Luís. Açucena passava por um desses sofrimentos em que se julga possível a morte instantânea.

     Depois, as trevas da noite romperam-se em relâmpagos sucessivos, e o quarto iluminava-se de clarões azulados. A aterrada menina correu a fechar a janela, quando uma chuva fria lhe açoutou as faces. A dor imensa só tinha expansão nos gemidos. Lançou-se sobre o leito sem reflectir que a escutavam, invocando Maria Santíssima, pedindo compaixão a sua mãe, chamando Luís com alarido de demente, e soluçando de modo que, a distância, simulava uma mulher que se contorce entre os braços que a matam pela asfixia.

     No andar de baixo morava uma devota senhora, que acendia dúzias de velas e rezava dúzias de orações a Santa Bárbara. O quarto dela estava ao pé do de seu irmão, o cónego Bernabé Trigoso, que dormia no quarto cujo tecto era o pavimento do de Açucena.

     Foi ele o primeiro que ouviu os gemidos, os passos, o abrir e fechar da janela, o ranger do leito, e ultimamente os gritos.

     Chamou sua irmã, e disse-lhe que escutasse. D. Perpétua Trigoso aplicou o ouvido, e afirmou que não era ilusão do cónego os estranhos gritos da misteriosa menina que ali morava.

     - Vamos nós lá, Bernabé? - disse ela, quando seu irmão lhe pedia o capote, e a mandava sair do quarto para ele se vestir.

     Subiram ao terceiro andar cada um com a sua vela mística, das que a senhora D. Perpétua acendera à santa das trovoadas, e bateram à porta.

     Açucena, sem pensar nem discernir, como desentorpecida de um letargo, foi apalpando na escuridade, imaginando que era aquele o bater de Luís da Cunha. Abriu com precipitação, e recuou espavorida ao aspecto um pouco fúnebre de Perpétua, que lançara um xaile de caxemira escura sobre a cabeça, franjada na testa por cabelos brancos. A figura magra, macilenta e cadavérica do velho não era menos assustadora, vista ao clarão da vela, que lhe betava de sombra as rugas profundas do rosto.

     - Não se assuste, vizinha - disse o cónego, entrando -; nós somos os moradores do andar de baixo, e, como ouvíssemos gemidos cá em cima, viemos em socorro, se é que podemos servir de algum bem à pessoa que nos cortou o coração com os seus gemidos.

     - Era talvez medo dos trovões... – acrescentou D. Perpétua, dando também um passo para dentro da porta.

     - A menina estava às escuras? - tornou o cónego.

     - Sim, senhor.

     - E não tem criada? - disse a irmã.

     - A criada está a dormir.

     - Quer a menina vir connosco para nossa casa até ser dia? - disse o cónego.

     - Vou... se me concedem esse favor - respondeu, sem titubear, Açucena.

     - Pois então, menina - atalhou Perpétua -; cubra omeu xale, ou vá buscar o seu, que está muito frio na escada.

     - Eu não posso ter mais frio... - disse a filha da viscondessa.

     - Nem mais febre - tornou o cónego, apalpando-lhe as mãos com singular carinho. - Ora venha, venha connosco. Anda lá com ela adiante, Perpétua, que eu fecho a porta.

     Perpétua assentou Açucena no seu esteirão; embrulhou-a em cobertores; e deu-lhe uma chávena de café com um golo de genebra, por conselho de seu irmão.

     Depois sentou-se a par com ela, que não cessava de tiritar. Bernabé veio, melhor forrado contra o frio, sentar-se ao pé delas. As lágrimas de Açucena eram inesgotáveis.

     Perpétua queria consolar, mas não conhecia a dor. O cónego, fixando alguns minutos em silêncio o semblante da pobre menina, fez a sua irmã um gesto significativo, tomou com paternal ternura as mãos abrasadas de Açucena, e perguntou-lhe:

     - Minha filha, porque sofre? Abra o seu coração. Se lhe não pudermos ser úteis, poderemos ao menos conseguir que o seu sofrimento diminua, respirando pelas palavras. Quem sabe se Deus nos aproximou? Diga o que tem: fala com um padre, que é seu pai espiritual.

   

    Perdido sem redenção

     Quando Luís da Cunha era conduzido por dois soldados à administração do bairro, encontrou Liberata em uma sege, e respondeu com um gesto de cabeça à rasgada cortesia que ela lhe fizera.

     A sege de Liberata retrocedera, e vinha a passo lento seguindo Luís da Cunha. Quando os soldados pararam à porta da autoridade, e Luís, sem reparar na sege, desaparecera no interior do pátio, Liberata acenou a um dos soldados, que se chegou à portinhola. Perguntou porque fora preso aquele sujeito, e o soldado informou-a com a minuciosidade que podia. Pagou com um cruzado novo o pequeno serviço do informador, e pediu-lhe que subisse à sala da administração, e dissesse ao ouvido do preso que uma pessoa que ele encontrara, em uma sege, lhe mandava oferecer não só dinheiro, mas até a influência dos seus amigos, se com isso era possível a sua imediata soltura.

     O soldado não conseguira falar ao preso; mas soubera de um oficial de diligências, seu conhecido, que o tal sujeito só podia ser solto com fiança, e não estava presente ninguém que o afiançasse.

     Liberata deu ordens prontas ao boleeiro, e a sege, a grande galope, correu algumas ruas, e parou à porta de um conselheiro, oficial-maior de uma Secretaria de Estado. S. Ex.ª não recolhera ainda da Secretaria. A protectora de Luís da Cunha mandou tocar para o Terreiro do Paço, e fez parar a sua sege a par da do conselheiro. Chamou um correio de ministro que passeava debaixo das arcadas, e mandou-o entregar ao oficial-maior o seu porte-monnaie. O conselheiro veio rapidamente à portinhola. Trocou algumas palavras com Liberata, entrou na sua sege, e partiu para a administração do bairro.

     Perguntou por Luís da Cunha; disseram-lhe que fora remetido ao juiz criminal. Foi ao juiz criminal, quando o preso acabava de sair para o Limoeiro. Declarou o amante de Liberata que vinha afiançá-lo. O juiz aceitou respeitosamente a fiança, e prometeu mandá-lo soltar o mais depressa que se lavrasse o auto. Saía, porém, o conselheiro, quando uma carta de uma notabilidade do Supremo Tribunal recomendava ao juiz que não aceitasse fiança, paliando quanto pudesse a soltura inconvenientíssima de Luís da Cunha, que ameaçava a existência do visconde de Bacelar.

     Liberata, com a certeza da soltura, dada pelo amante, foi à cadeia, procurou Luís da Cunha, que passeava ainda na sala do carcereiro, e contou-lhe rasgadamente os passos que dera. O preso agradeceu-lhos com aviltante submissão, não sentindo a vergonha de ser unicamente protegido por tal mulher. Sem o recriminar, a amante do conselheiro perguntou-lhe, sorrindo, se melhorara de fortuna, despedindo-a do seu serviço. Luís da Cunha teve a sinceridade de confessar que tinha saudades do tempo em que vivera com ela. Liberata disse que também as tinha, e deu como prova não ter sido fiel a nenhum dos seus amantes, depois dele, porque não encontrara rapaz tão perfeito, nem tão despreocupado das asneiras sociais, como Luís da Cunha.

     Recordaram cenas da sua vida de dois anos, dando tempo a que viesse a ordem de soltura. Passaram duas horas, e, como ela não chegasse, Liberata impacientou-se, e saiu, dizendo que, se entretanto a ordem viesse, e ele quisesse fazer-lhe uma visita, depois da meia-noite, a procurasse na Rua de S. Bento n.° 46.

     Luís prometeu-lhe a suspirada visita, e apertou-lhe com estremecida meiguice a mão. Enquanto lhe dava a mão direita, Liberata lançava com a esquerda no chapéus, de Luís o porte-monnaie. Saiu.

     Foi de uma corrida a casa do conselheiro; obrigou-o a sair, a vencer todos os obstáculos, que redobraram desde que o próprio visconde peitara o juiz, e, tais eles eram, que, só no dia imediato à tarde, Luís da Cunha foi solto, e o conselheiro veio alegar a Liberata trabalhosos serviços, que ela pagou com um beijo.

     Imaginam que Luís da Cunha, apenas livre, nem tempo tem de procurar uma sege, e corre à Rua do Príncipe, onde o espera a atormentada Açucena?

     Não foi assim. Saiu placidamente da cadeia. Desceu à primeira estação de seges no Terreiro do Paço. Montou a que lhe pareceu mais bem servida de parelha. Foi jantar ao Mata, no Cais do Sodré. Subiu pela Rua do Alecrim.

     Tomou café no Marrare. Passou na Rua de S. Bento para ver a casa n.° 46; cortejou Liberata que, por dentro das janelas, lhe fitava um pequeno óculo de teatro. Foi ao Campo Grande saber como seu pai estava. Entristeceu-se um momento, quando lhe disseram que passara pior, depois que um imprudente lhe dissera que seu filho batera no visconde de Bacelar. Não apeou, para lhe não irritar os padecimentos. Veio para o Teatro de S. Carlos, e reparou que o encaravam de lado, voltando-lhe as costas, se ele os encarava de frente. Achou-se sozinho no salão, e sozinho no banco em que se sentara. Depois da meia-noite, despediu o boleeiro defronte do Palácio das Cortes, e seguiu a Rua de S. Bento até à casa n.° 46.

     Dos móveis que Luís da Cunha deixara à sua amante, nem uma cadeira existia. A primeira sala, forrada de ricos tapetes, opulenta de luxo e mau gosto, não invejava o aparato da garrida decoração das salas de um brasileiro de torna-viagem, que vos deslumbra com o seu bazar de porcelanas, de relógios, de cães e patos de vidro, de conchas variegadas, de ricas encadernações em marroquim de livros nunca abertos, de globos de luzente cobre, de coxins amarelos e vermelhos.

     A sala de Liberata tinha tudo isto em pródiga profusão. Um americano, antecessor do conselheiro, e sucessor do capitão de marinha inglesa, tinha sido o inteligente coordenador daquela miscelânea em que despendera contos de réis, pequena paga para os carinhos de sua amante. Diziam que Liberata seria esposa desse americano, se o cônsul despoticamente o não mandasse preso a bordo de uma embarcação, que o levou a seu pai, desfalcado em boa parte da sua fortuna.

     O conselheiro, que substituía o americano, sustentava o luxo de Liberata com uma farta mesada, de que ela tirava para todos os seus caprichos, podendo montar sege, sua mais querida ambição.

     Luís da Cunha contemplava estupidamente aquela magnificência, que não era nada, comparando-a à sumptuosidade da alcova, onde foi recebido, como era dever que o fosse, o único homem que a fizera conter-se nos honestos limites de uma fiel amante.

     - Achas que estou muito rica? - disse Liberata, puxando-lhe com meiguice uma orelha.

     - As aparências são disso...

     - Supunhas que nenhum outro homem saberia dar-me valor?

     - Eu bem sabia que te não faltariam adoradores, Liberata. Para que eu me separasse de ti, foi preciso que eu entrasse numa época de demência, que me dura há quatro meses.

     - Que tens tu feito há quatro meses?

     - Tenho envelhecido quarenta anos. Quis-me opor à natureza, fazendo-me homem de bem, e perdi o tempo.

     Acabo de conhecer que era mais feliz quando a minha sociedade eras tu, e os meus cavalos, palavra de honra!

     - Com que então eu e os teus cavalos! O diacho da mistura não é nada amável! Mas conta-me cá... disse-me o conselheiro...

     - Qual conselheiro?

     - O actual... não sabes quem ficou por teu fiador?

     - Pois o conselheiro é o teu amante?

     -      Excelente criatura... Pois foi ele que me disse que uma enteada do visconde de Bacelar fugira das comendadeiras para casar contigo. Já casaste?

     - Não, nem caso.

     -      Nem casas? Então, tenho mais uma companheira...

     Luís sentiu um ligeiro toque de pundonor, ouvindo tamanho ultraje a Açucena, que neste momento se lhe afigurou de joelhos, pedindo a Deus a morte. Esta visão desvaneceu-se como o raio instantâneo de sol em céu revolto de nuvens escuras.

     - Diz-me cá, Luisinho - continuou Liberata, lançando-lhe o braço direito sobre o ombro, e brincando-lhe com os anéis do longo cabelo -, queres ser outra vez meu?

     -      É impossível.

     -      Porquê? Tens lá a tua fidalga das comendadeiras... Já me não lembrava...

     -      Não é por isso.

     -      Pois então?

     -      Não tenho dinheiro... Aquele manancial das jóias de minha mãe esgotou-se; meu pai está doudo, e não me conhece...

     -      E é por isso que querias casar com a enteada do visconde?

     - Adivinhaste; mas o visconde não lhe dá nada, e eu nada tenho que lhe dar como amante, e muito menos como mulher.

     -      Queres tu uma cousa? Não digas a ninguém que és meu amante, e não se te dê que o conselheiro o seja. Queres?

     -      Não; porque terias de me sustentar. A mim o que me convém é sair já, já de Portugal.

     -      Porquê?

     -      Quero ver se a pequena se recolhe a casa do padrasto; e preciso na Africa ou no Brasil mudar de nome, e arranjar uma fortuna.

     - És tolo! Qual África, nem qual Brasil! A pequena, em tu lhe dizendo que nada feito, toma o rumo de casa, e a mãe há-de recebê-la, se a não quiser ver onde vai parar muita gente que também foi honrada. Tu metes-te em casa de teu pai, de dia, e, passada a meia-noite, vens para a tua Liberata. Enquanto eu tiver um anel, tens tu um casaco; em se acabando, fizemos trinta anos à justa. Hás-de crer que sou tua amiga apesar das tuas ingratidões? Deu-me para aqui! Simpatizei contigo, e, se fosse rainha, fazia-te rei. Ora aqui está. Nada de tristezas. Vamos cear, que já ouvi a campainha três vezes. Inda cá tenho os criados que me deste, e não são capazes de dar um pio. Quando souberam que tu cá vinhas hoje, até dançaram a jota... Tu ficas sendo de hoje em diante o dono desta casa, e o conselheiro é o nosso mordomo, sim?

     Luís da Cunha enlaçou o braço pelo de Liberata, que lhe cingia a cintura, e entrou na sala de jantar, onde cintilavam os cristais variegados, pequena parte de uma soberba copa. A ceia era servida por um criado, de gravata e colete branco. Luís respondeu com um abraço familiar à cortesia afectuosa do seu antigo escudeiro de quarto.

     O et cetera é a palavra latina que eu conheço mais útil nos usos sociais. Com um et cetera, ou dous, fica historiada esta noite; mas ainda um terceiro decerto não diria que Luís da Cunha no dia seguinte, quando se aproximava a matinal visita do conselheiro, depois de almoço, recolheu-se ao quarto do criado, onde escreveu a seguinte carta:

     Açucena:

     Não te verei mais. Os obstáculos ao nosso casamento são invencíveis. Uma desordem que tive com teu padrasto obriga-me a sair de Portugal. Escreve a tua mãe, e diz-lhe onde moras, para que ela te procure, e te receba em sua casa. Se eu um dia tiver colhido algum bom resultado dos meus projectos, tornarei a Portugal, e serás então minha esposa, assim como eu o serei teu, toda a vida, pelo coração. Demoro-me escondido em Lisboa alguns dias; mas, por evitar mais amarguras, antes quero não tornar a ver-te. Lembra-te que eu sou muito infeliz, parate resignares na tua infelicidade.

     Luís da Cunha.

     O portador volto dizendo que a carta fora recebida por um velho, que tinha jeito de padre.

     - Quem será este padre?! - dizia Luís da Cunha a Liberata.

    

    Providência ou acaso?

     Açucena contara com pueril ingenuidade a sua vida ao cónego Bernabé Trigoso e a sua irmã. Não lhe ocultou o seu nascimento, nem as menores circunstâncias da sua fuga. Disse quem era o seu amante, e reparou que o cónego, ao ouvir tal nome, exclamara de modo que não queria ser ouvido:

     - Santo Deus!

     A senhora D. Perpétua, virtuosa sem momos de beata, pedia à sua predilecta Senhora das Dores que permitisse a reparação da falta de Açucena. O cónego, crente no remédio do Céu, mas inteligente bastante para se não abandonar inerte às operações invisíveis da Providência, prometeu à sua hóspeda empregar todos os meios possíveis para destruir os obstáculos ao seu casamento.

     - Mas - acrescentou ele -, eu não creio que o Senhor Luís da Cunha recompense o amor que a menina lhe tem.

     - Porquê? Pelo amor de Deus diga-me porquê...

     - Porque não acho muito próprio de um amante o silêncio de quarenta e oito horas, sem lhe dar por escrito, ao menos, a certeza de que vive.

     - Se ele está preso!

     - Mas os presos não estão privados de escrever.

     - Estará doente...

     - Estará... não aventemos explicações, menina.

     O tempo nos dirá tudo. Logo que seja dia, eu vou informar-me do que é feito do Senhor Luís da Cunha. Agora vá descansar um bocadinho no quarto de minha irmã. São quatro horas. Tenha esperança em Deus, que é pai, em mim, que hei-de ser para a menina o que seria para uma filha.

     Quando foram horas de se abrirem os tribunais, Bernabé Trigoso colheu informações de Luís da Cunha.

     Soube que ele na véspera fora solto, afiançado pelo conselheiro Costa e Almeida. Nenhumas outras informações, além das que lhe deu o carcereiro de uma visita, à cadeia, de certa senhora ricamente vestida, que viera em sege sua.

     Recolhendo a casa, sua irmã disse-lhe que Açucena adormecera momentos antes, e era pecado acordá-la daquele dormir, que parecia sereno como o de um anjo.

     -      Creio que a infeliz - disse ele - deve perder a esperança em tal homem. Eu por mim julguei-a perdida desde que ouvi pronunciar tal nome.

     -      Pois quem é ele?

     -      É um flagelo da humanidade... É um homem que tem dado brado com os seus escândalos. Não te recordas das histórias que nos contava o padre Joaquim?

     - O capelão de João da Cunha?

     -      Que é pai de Luís da Cunha... Aqui tens o abutre em cujas garras caiu a pobre pomba. Desgraçada menina! É preciso prepará-la para o desengano...

     -      Quem sabe o que Deus fará?

     - Eu não sei o que Deus fará; mas sei o que os homens são capazes de fazer. Não abandonemos esta vítima do erro. Desculpemo-la, que tem o seu perdão na inocência com que nos contou a sua vida. Se esse homem a procurar, achá-la-á em nossa casa. Se nunca mais a procurar, a nossa casa será o abrigo de Açucena.

     A criada da neta do arcediago desceu ao segundo andar, dizendo que um portador trazia uma carta para a Senhora D. Açucena. O cónego mandou descer o portador, e perguntou de quem vinha a carta; o criado respondeu que era do Senhor Luís da Cunha, e não tinha resposta.

     Redarguiu Bernabé, inquirindo a residência do Senhor Luís da Cunha: o moço respondeu que não tinha ordem de a dizer.

     As suspeitas do cónego fortaleceram-se. Esta carta era uma despedida na sua opinião. Reflectiu se devia entregar-lha, ou lê-la. Perpétua animou-o a abri-la, visto que a intenção era evitar algum desgosto mortal à infeliz menina. O cónego leu a carta; e ficou satisfeito da sua temeridade.

     -      Não se lhe mostra esta infame carta - disse ele.

     -      Era capaz de morrer a desgraçadinha! - acrescentou a irmã. - Mas que dirás, se ela te pedir notícias desse mau homem?!

     -      Digo-lhe... eu sei cá o que hei-de dizer-lhe!... Digo-lhe que se resigne... e pedirei a Deus que lhe dê coragem para o desengano... Veremos... Talvez a possa salvar, servindo-me das palavras dele, que a matariam, se ela as lesse todas...

     Açucena tossira. D. Perpétua foi pé ante pé escutar.

     Ouviu-a soluçar. Abriu a porta, e uma fresta da janela.

     Encontrou-a de joelhos aos pés do leito. Abraçou-se a ela com os olhos húmidos das lágrimas que lhe arrancara seu irmão com as suas, lendo a carta.

     - Sabe-se alguma cousa? - exclamou Açucena.

     - Vamos lá dentro falar com meu irmão, minha filha. Ele já veio, e alguma coisa lhe dirá.

     -      Pois sim, vamos... - disse, correndo impetuosamente meio vestida.

     Entrando na saleta em que o cónego almoçava, D. Perpétua fê-la sentar ao pé da cadeira de seu irmão, enquanto lhe apertava com os ganchos o cabelo em desalinho. Bernabé, risonho e com ares de quem vai dar uma boa nova, deu-lhe a sua chávena de chá, escolheu-lhe a torrada mais apetitosa, e os biscoutos mais torrados.

     Açucena queria rejeitar; mas o cónego teimou com brando afago, e conseguiu que ela sorrisse à pertinácia de um papagaio que, por força, queria participar das sopas de seu amo na mesma xícara.

     Findo o almoço, o cónego, por um gesto, fez sair sua irmã. Açucena não despregava os olhos dos lábios dele, e achava insofrível a demora das informações que lhe prometera.

     - Está ansiosa pela resposta, minha menina?

     -      Estou... Falou-lhe? Viu-o?

     -      Não o vi, nem lhe falei.

     -      Meu Deus!... então?

     - Vi uma carta dele escrita a um seu amigo, que me procurou já hoje...

     -      Para quê?

     Bernabé Trigoso não pensara maduramente nas respostas, e lutava com as dificuldades do improviso.

     - Para quê?... Não se apresse, minha filha. Quero primeiro convencê-la de que tem Deus a seu favor. Açucena não é tão infeliz como se imaginava.

     - Pois diga senhor, diga tudo o que sabe... Ele vem?

     -      Há-de vir, mas por enquanto não. Ora diga-me: qual queria, vê-lo perseguido por seu padrasto, ou salvo da perseguição, longe de si?

     -      Antes longe de mim; mas eu irei viver com ele no fim do mundo.

     - Isso é que é impossível...

     Açucena estava cor da cera. As lágrimas estancaram-se-lhe; e as pálpebras penderam-lhe amortecidas. Já não ouvia as palavras do cónego, depois do impossível. Quisera em vão suster a cabeça no braço trémulo. Cada vez mais coada, até os lábios se fizeram brancos. Um ai, desentranhado do coração, foi seguido de um vágado; o padre recebeu-a nos braços, e chamou sua irmã, para ajudá-lo a levá-la à cama.

     -      Este acontecimento não se evitava - disse o cónego.

     -      Ela sabe tudo?

     -      O mais necessário. Agora resta imaginar a convalescença que é onde está o maior perigo. Se eu pudesse falar à mãe desta menina...

     -      Querias entregar-lha?

     - Não; hoje o meu maior prazer era restituir a felicidade a esta senhora. Queria salvá-la com a presença da mãe.

     -      Poderá ser pior...

     - Não é. O remédio deste mal são as torrentes de lágrimas, e essas só ela as pode verter com fruto no seio de sua mãe... Perpétua, não te separes dela; fala-lhe em sua mãe, e dize-lhe que saí para bem seu.

     Bernabé Trigoso, quando entrou no pátio do visconde de Bacelar, perguntaram-lhe se era o padre que vinha confessar a Senhora Viscondessa. Respondeu que não era o confessor da Senhora Viscondessa, mas era um cónego da patriarcal, que precisava falar com S. Ex.ª.

     Conduziram-no ao quarto dela. Rosa Guilhermina estava de cama, com dois médicos à cabeceira, que retiraram quando o cónego entrou. Um dos médicos, quando se retirava, abraçara o cónego, e disse à viscondessa: «Eis aqui o último homem dos tempos de virtude. Estimo bem vê-lo à cabeceira do seu leito, Senhora Viscondessa!» E ficaram sós.

     -      Não tenho o gosto de conhecê-lo... – murmurou ela com a voz enfraquecida.

     -      Não importava conhecer-me antes deste momento. Decerto eu não poderia evitar os desgostos por que V. Ex.ª está passando...

     - Terminarão brevemente... Estou quase morta.

     - Não morrerá. Deus não nos dá a vida como um instrumento, partido no primeiro estorvo que nos embaraça uma suave carreira. Viemos para trabalhos, Senhora Viscondessa, e o mais sofredor é o mais benemérito aos olhos do Altíssimo. Venho falar-lhe de sua filha.

     - Sim?... Oh! Foi Deus que o mandou!... Onde está minha filha?

     - Na companhia de uma senhora, que é minha irmã, e na minha companhia, que sou um padre.

     - Pois esse homem...

     - Quer-me falar de Luís da Cunha?

     - Sim...

     - Esse homem abandonou-a.

     -      Já!... sem a salvar da desonra!

     -      O que nós queremos é salvá-la da morte.

     -      É mais feliz se morrer! Levai-a, meu Deus, levai para vós!

     -      Deus não se aconselha, Senhora Viscondessa. E vive, porque Deus o quer. Confiou-ma, e eu quero encaminhá-la de modo que Deus a chame, quando a glória do Céu lhe seja dada como um prémio de virtudes na Terra amaldiçoada para os anjos.

     -      Mas... é impossível recebê-la em minha casa...

     -      Eu não quero que a receba em sua casa, minha senhora. Sua filha é como se fosse minha. Debaixo das minhas telhas mora a honra e a abundância. Açucena não precisa senão chorar, para renascer para a felicidade, que eu prometo dar-lhe. Chorar... chora ela sempre; mas preciso que o seu coração se abra às suas lágrimas, para lhe perdoar...

     - Eu perdoo-lhe...

     - Bem... mas o seu perdão há-de ser-lhe dado a ela abraçando-a, convencendo-a de que é possível a sua reabilitação. E, depois, seja um segredo para todo o mundo a existência de sua filha em casa do cónego Bernabé Trigoso.

     - Se eu viver, dar-lhe-ei tudo o que puder para a sua subsistência.

     -      Não precisa de nada sua filha. Se V. Ex.ª consente que ela seja da minha família deixe-me inteiro o cargo de pai. O seu mais preciso sustento é o do espírito. Esse é que eu pedirei a Deus que mo não escasseie, e talvez consiga.

     -      Quer que eu procure minha filha?

     - Suplico-lhe.

     -      Se eu tivesse forças...

     - Experimente, Senhora Viscondessa; parece-me que posso profetizar-lhe que terá forças. Trata-se de salvar uma filha, V. Ex.ª sentir-se-á melhorar quando se convencer de que o anjo caído se levanta, com a dor da sua ignomínia adormecida. Não lhe fale em Luís da Cunha, bem nem mal. Há-de abominá-lo, sem que lhe lancemos em rosto a perfídia desse miserável, que, no fim de tudo, não é menos lastimável, porque o seu fim deve ser triste. Deixemos-lhe a ele o cargo de se fazer detestável. Uma mulher apaixonada só recebe bem as censuras da sua consciência. Iluda sua filha com uma piedosa mentira. Diga-lhe que ninguém fala da sua desgraça, que as poucas pessoas que a sabem se empenham em desmenti-la, fazendo crer que Açucena vive na companhia de uns parentes no Porto. E preciso mesmo que V. Ex.ª faça acreditar que a enviou para alguma quinta longe de Lisboa.

     - Posso dizer que ela está no Minho, onde meu marido comprou uma quinta em meu nome para eu poder legar a quem quisesse por minha morte, e talvez eu conseguisse que meu marido me concedesse dar-lha já; mas ele, depois da desordem com Luís da Cunha, enfureceu-se contra ela, contra mim, contra todos...

     - Já lhe disse, minha senhora, que sua filha não precisa de quintas, se lhe não proíbe ser mais minha filha que sua.

     A conversação prolongava-se, quando foi anunciado o confessor da viscondessa. A enferma, pela súbita animação que o cónego lhe emprestara, e pela desordem de ideias que lhe confundiam o exame de uma confissão geral, mandou dizer ao padre que resolvera adiá-la. Entretanto, Bernabé Trigoso retirava-se, porque a viscondessa lhe pedira que ocultasse de seu marido, se ele entrasse no quarto, a causa da sua vinda àquela casa.

     As síncopes de Açucena repetiram-se na ausência do cónego. D. Perpétua, receosa dos resultados, chamara médico para consultá-lo se devia chamar confessor.

     O médico nem receitou, nem votou pela precipitação dos sacramentos. Coligiu das tímidas informações da virtuosa senhora que a enfermidade de Açucena era uma forte afecção moral.

     O cónego, também assustado, não abandonava o leito de sua filha adoptiva. As consequências eram mais graves do que ele supusera. Açucena já não chorava, nem perguntava nada com referência a Luís da Cunha. Tinha os olhos em êxtasis, e a boca meio aberta respirava aceleradamente. Saíam-lhe do coração gemidos convulsivos como o arfar tremido da criança, quando cessa de chorar mas, ainda animada pelos beijos da mãe, parece queixar-se. Estes períodos duravam uma hora. Se lhe perguntavam o que sentia, respondia com melancólico sorriso «Nada». Se lhe davam consolações, que não podiam deixar de ser fundadas em frouxas palavras de esperança, a filha de Augusto Leite acenava com a cabeça, como se, dissesse: «Não me salvam com a piedosa mentira.»

     Bernabé falava-lhe a linguagem que aconselhava à viscondessa, dizendo-lhe que muita gente se persuadia que Açucena, por causa do namoro de Luís da Cunha, fora tirada das comendadeiras, e conduzida a uma quinta no Minho por ordem de sua mãe.

     Este bálsamo não prestava refrigério algum à ferida.

     Bernabé Trigoso, sabendo muito, não sabia tudo do coração. Estes remédios aproveitam quando a mulher desprezada esquece o amante para se lembrar da sua reputação. Açucena não tinha ainda pensado no que o mundo diria dela. Luís da Cunha era a sua ideia única, e a face torpe desse homem não se voltara ainda, para que a infeliz lha visse pelos olhos da reflexão. O sistema, pois, de Bernabé não era vantajoso, como ele o supunha,

     O sofrimento silencioso aumentava: o pulso impetuoso recaía num marasmo insensível, para depois referver em borbotões de sangue. O médico aconselhava uma qualquer impostura, se não havia consolações verdadeiras que a salvassem. Era possível a morte - dizia ele -, era possível uma loucura; era tudo possível, menos curá-la daquela desesperada situação com remédios da botica. Se é uma paixão por causa de algum amor infeliz - acrescentava o doutor -, mintam-lhe de modo que possamos aliviá-la desta crise, e reduzi-la a estado menos anormal, para que se colha algum resultado das palavras.

     Aproveitou o conselho. O cónego fingiu a recepção de uma carta de um seu amigo, em que se lhe prometia o breve enlace de Luís da Cunha com Açucena. A inocência tem credulidades sem crítica nem senso. A pobre menina, sem discernir quem poderia escrever tal carta a um homem estranho a Luís da Cunha, acreditou-a. Deu-se uma notável alteração nos sintomas. O médico nunca alcançara um triunfo tão barato nem tão útil. Conhecer a alma é, em muitos casos patológicos, a mais prestante medicina.

     No dia imediato, soube o cónego que a viscondessa visitava de tarde sua filha. Preparou-se, felicitando-a por ter merecido a Deus tão excelente mãe. Dissipou-lhe os receios, a vergonha, e até o medo que se lhe incutiu, temendo que sua mãe viesse dissuadi-la do seu casamento.

     -      Sua mãe - dizia o cónego - naturalmente não lhe fala em Luís da Cunha. A menina não deve também falar-lhe nele.

     -      Porquê? Não há-de ele ser meu marido?

     -      E que tem isso? O coração de sua mãe é bondoso; mas não se segue que a bondade desvaneça o melindre natural. Calar tal nome é uma prova de respeito com que deve retribuir a generosa amizade de sua mãe. É provável que ela pouco lhe diga. A sua primeira expansão será de lágrimas. Receba-as, que são, talvez, as que salvam a infeliz senhora da morte.

     Não se enganara o cónego. Rosa Guilhermina fraqueou, quando recebia nos braços Açucena. Desmaiada, pudera reputar-se morta, se o coração não batesse violento no seio da consternada filha.

     Bernabé, amparando-a também, perguntava a Açucena quanto daria por salvar sua mãe.

     - Dou a minha vida! - exclamou ela.

     - E se sua mãe lhe pedisse o coração, e não a vida?

     - Tudo, tudo, senhor!

     - E se ela lhe pedisse que renunciasse o amor de Luís da Cunha?

     - Para salvá-la?

     -      Sim, para salvá-la.

     -      Morreria, mas renunciava...

     - Melhor lhe fora então morrer!... - disse em voz soturna Bernabé, afastando a viscondessa esvaída dos braços da filha, e fixando nesta um olhar de severa repreensão. A neta do arcediago deixou cair os braços, pregou os olhos no chão. Ora o rubor, ora a palidez revezavam-lhe no rosto aflito. Dor e vergonha, amor e arrependimento, esperança e desespero, eram, porventura, as variadas sensações que lhe ocorreram atropelando-se, para lhe fazerem mais difícil a consciência da sua situação. A infeliz não podia combinar as palavras esperançosas do cónego com o repelão e olhar severo que acabava de sofrer.

     - Venha comigo, menina - disse D. Perpétua, receando algum acidente dos que lhe davam depois do dia anterior.

     - Eu não vou sem que minha mãe me fale.

     - Deixe-a tornar a si; depois ficará sozinha com ela.

     Açucena obedeceu. Minutos depois, Bernabé saiu da sala em que ficava a viscondessa, esperando a filha, deitada num canapé.

     O cónego disse quase ao ouvido de Açucena, que entrava na sala:

     -      Perante Deus é responsável pela vida de sua mãe. Ela não lho dirá; mas digo-lho eu. No dia em que a menina se julgar infeliz, amando um infame, matou sua mãe.

     Açucena entrou na sala atordoada por estas palavras, Bernabé Trigoso esfregava as mãos em ar de júbilo.

     -      Porque estás assim contente? - perguntou D. Perpétua, alegrando-se também de antecipação.

     - Contentíssimo! Salvei-as ambas! Aqui a grande dificuldade era salvar a filha! Bendito seja Deus, que nunca me abandonou nestes dificuldades!

     -      Pois então? Como é que salvaste a menina?

     - Pus em luta dois sentimentos fortes. A mãe que morre por sua filha, e o amante que despreza a sua amante. Há-de vencer o mais nobre, que é o primeiro, e tem em seu auxílio um coração ainda puro. Verás, Perpétua. A viscondessa não lhe fala em Luís da Cunha. Este silêncio só de per si é uma pungente acusação à filha.

     A viscondessa dá indícios de uma morte próxima. Açucena começa desde já a sentir o remorso de a ter matado.

     A ânsia de salvá-la há-de vencer a ânsia da saudade. Por fim, é a mãe que triunfa, e não triunfaria se viesse lançar-lhe em rosto a desonra. É Deus que me manda. Creio que salvaria Açucena sem o conselho do médico. Escusávamos, talvez, uma mentira...

     - É verdade, Bernabé! - atalhou, pungida, a Senhora D. Perpétua.

     -      Mas, enfim, Deus sabe as intenções com que a gente mente para tornar menos hediondo o crime do seu semelhante... Não ouves soluçar na sala?

     -      Ouço... São ambas...

     - Bem, bem!

     - Escuta, Bernabé...

     - Que ouves?

     - Palavras... perdão; não me mates... amaldiçoada...  É a mãe que fala...

     - Bem, bem!

     Pouco depois, abriu-se a porta da sala. Bernabé Trigoso, com sua irmã, entraram. Mãe e filha enxugavam as lágrimas. A viscondessa abraçou-se a D. Perpétua, pedindo-lhe que fosse mãe de sua filha, forçando-lhe a mão para aceitar uma bolsa. O cónego reparava na luta silenciosa em que sua irmã parecia aflita e envergonhada.

     Cheio de afabilidade, tomou da mão de Rosa Guilhermina a bolsa, dizendo:

     - Muito obrigada a V. Ex.ª

     Depois, no patamar da escada, entregou-lhe com dignidade a bolsa, solenizando o acto com estas palavras:

     - Aceitei o dinheiro na presença de sua filha, para que ela se persuada que é sua mãe que a sustenta, e não se considere em obrigação a estranhos. É a quarta vez, Senhora Viscondessa, que lhe digo que em minha casa há abundância, e independência, e honra. Espero da si bondade que me não forçará à repetição, porque me desgosta. Outro assunto: que me vaticina?

     - Penso que minha filha se condoeu de mim, e esquecerá o infame... É preciso não a abandonar... Virei, todas as vezes que puder, observar o bom resultado das suas diligências, Senhor Cónego. Se lhe parecer que é útil afastá-la de Lisboa...

     - Não convém... A cura há-de operar-se aqui, se Deus me conceder vida, que será breve, porque a velhice e os padecimentos trazem sempre a gente em redor da sepultura...

   

    Herança de virtude e ouro

     Não era possível tirar um sorriso dos lábios de Açucena.

     Muito era já evitar as ocasiões das lágrimas, no primeiro mês da sua convalescença.

     A recaída era possível à menor tentação de Luís da Cunha. E, por isso, os cuidados do cónego eram solícitos em prevenir um bilhete, ou qualquer meio de que o perverso se servisse, em algum momento de caprichoso desejo. Bem sabia Bernabé Trigoso que Luís da Cunha existia, quase invisível, em Lisboa. As informações eram-lhe dadas por um beneficiado da Sé, seu discípulo em virtudes e em ciência, única pessoa que frequentava sua casa. Para corresponder às recomendações do cónego, o padre Madureira entrara no segredo do viver de Luís da Cunha. Não o vira nunca no teatro, nem nos cafés, nem no Passeio Público; mas soubera casualmente de um boleeiro que uma sege de praça o ia buscar todas as noites, depois das onze e meia, a Campolide. O padre Madureira, que, em pesquisas, teria sido um hábil agente do Santo Ofício, indagou da casa em Campolide, e pôde apenas ver-lhe o portão. Era justamente aquela onde, vinte e cinco anos antes, tinha sido assassinada Ricarda, e enterrado seu marido.

     O perscrutador alapou-se num casebre fronteiro, e viu que, às onze horas e meia, uma sege parava defronte do portão. O padre estava a pé; era necessário segui-la, e, para isso, desceu da sua dignidade sacerdotal às astúcias de gaiato, e sentou-se na tábua. O ímpeto da corrida não dava tempo à desconfiança do sota. A sege parou na Rua do Colégio. O padre apeou primeiro que Luís da Cunha, e sumiu-se na Travessa do Pombal. Depois, seguiu-o de longe, e viu-o entrar em uma casa da Rua de S. Bento, reparando na subtileza com que a porta fora aberta e fechada. O padre não era de meias informações. Queria por força, distinguir à luz azulada da lua o número. Demorara-se nesta dificultosa empresa, sem atender a um vulto que desembocara da Travessa de Santa Teresa, e caminhava para ele, deixando, alguns passos atrás, dois outros vultos, parecidos, pelo capote e chapéu derrubado, com os importantes sicários de qualquer drama e cinco actos.

     O primeiro dos três chegou, ombro com ombro, a par do irreflectido Madureira.

     -      Que quer aqui o senhor?

     -      Não queria nada - respondeu, retirando-se, o observador.

     -      Não quer nada, e está com os olhos espetados naquela janela! Olé! - disse o encapotado para os da reta, guarda! - Conhecem este homem?

     Aproximaram-se os dois, e responderam negativamente.

     - Que está você aqui fazendo? - tornou carrancudo; com voz de tirano, sem descobrir a cara, o interruptor de uma análise inocente.

     -      Responda! - recalcitrou um dos dois. – Quando não meto-lhe quatro polegadas de ferro na barriga.

     O padre não era conivente na proposta, e evitou o melhor que pôde aceitá-la, explicando deste modo a sua paragem naquele sítio:

     - Eu vi aqui entrar um sujeito, e desejava muito saber que casa é esta.

     -      E conhece o sujeito? -perguntou o que tinha certa autoridade, e certa polidez no metal de voz.

     -      Conheço, sim, senhor, mas só de vista.

     - E com que fim quer saber a quem pertence esta casa?

     - Para satisfazer a minha curiosidade.

     - Pois, se está satisfeita, retire-se.

     Madureira estava satisfeitíssimo até com o inesperado desenlace.

     Ainda assim, mudou de propósito, quando ouviu três pancadas na mesma porta onde entrara Luís da Cunha.

     Cobriu-se com a esquina da Travessa Nova, e esperou.

     Ao segundo toque, foi aberta a porta. Um vulto entrara: dois foram postar-se na Travessa de Santa Teresa. Vinte minutos depois, vira sair um vulto, menos volumoso do que entrara. Viu correrem sobre ele os outros dois, ouviu gritos de socorro, e divisou um corpo cambaleando até cair. Duas patrulhas correram ao local do grito. Madureira confiou nas garantias da guarda cívica, e aventurou-se a tirar a última conclusão dos seus princípios.

     Foi, e viu, nos braços dos soldados, Luís da Cunha com as mãos tintas de sangue, que lhe transudava do colete branco, e da gravata. Eram duas punhaladas, pelo menos: uma no peito, e outra no pescoço.

     - O senhor viu como isto foi? - perguntou um soldado ao padre.

     - Não, senhor; eu vinha na Travessa Nova, quando ouvi gritar.

     - Conhece este homem?

     - Nada, não conheço.

     - Quem é o senhor? - perguntaram a Luís da Cunha, que saíra do torpor em que o deixara o abalo.

     - Moro no Campo Grande, no palacete de João da Cunha.

     - Olha que firma! - murmurou um soldado para o seu companheiro de patrulha. - Bem me parecia a mim que o conhecia... Este foi o que jogou o murro com o visconde de Bacelar, nos Paulistas! Desta vez parece que topou com a forma do seu pé...

     Luís da Cunha foi conduzido por dois galegos do chafariz, apenados por cabos de polícia, em uma cadeira, sobre duas trancas de carreto, a casa de seu pai.

     Madureira, apenas luziu a fresta do seu quarto, na Rua das Gáveas, correu à Rua do Príncipe, onde expôs na melhor ordem as aventuras da noite: só não soube dizer que o vulto que o acometera, e desempalara o furão da casa Liberata, fora o conselheiro Costa e Almeida que não e tão excelente criatura como a sua amante o imaginava.

     Deixemos o padre Madureira com Bernabé Trigoso, vamos espreitar mais dentro o que ele não viu, nem sabe contar ao espantado cónego e à espavorida Perpétua.

     O conselheiro fora avisado por cartas da infidelidade de Liberata. À primeira não deu crédito. À segunda deu algum, porque lhe marcava a hora da entrada. Viu com os seus próprios olhos, porque a sua dúvida era tal, tamanha como o pleonasmo da frase. Depois que o viu entrar, quis bater à porta; mas faltou-lhe o ânimo na conjectura de ter de encontrar-se com o rival. Na segunda noite, sem inspirar desconfianças a Liberata entrou armado, fortalecido pelo ciúme. Procurou-o em todos os cantos, com finura e resolução, e não o viu. No dia seguinte recebe a terceira carta anónima: dizendo-lhe que o concorrente saía quando ele entrava. Preparou-se.

     Chamou dois criados, e deu-lhes instruções, que eles desempenharam de um modo que não deixou nada a desejar, porque o julgaram morto, e as instruções eram assim pontualmente executadas.

     Liberata ouvira os gritos de socorro, quando o conselheiro parecia querer distraí-la, vibrando o teclado do piano. O criado, por um aceno, significou-lhe a catástrofe. A enfurecida amante de Luís veio à janela, e perguntou a um grupo de soldados e cabos de polícia o que acontecera. Responderam-lhe que fora ali apunhalado um rapaz de boa família do Campo Grande. Liberata voltou para dentro, entrou no seu quarto, correu desfigurada com um punhal à sala, onde passeava o conselheiro, e desceu-lhe sobre o peito uma punhalada, que ele amparou no braço.

     - Já fora de minha casa - bradou ela -, quando não, grito «aqui-d'el-rei» contra um ladrão, contra um assassino!

     - Cale-se, que eu retiro-me.

     - Já, seu assassino! Amanhã hei-de publicar o seu nome nos jornais, como matador de Luís da Cunha, se ele morrer. Fora de minha casa, patife!

     O oficial-maior coseu-se com o corrimão, mais receoso da língua que do punhal.

     Liberata mandou montar a sege. Era um galopar vertiginoso para o Campo Grande! Encontrou defronte do palácio do conde das Galveias a cadeira que conduzia Luís. Apeou. Chamou-o, beijou-o com frenesi; fê-lo entrar na sua sege; mandou adiante o criado de tábua chamar um médico; deu ordem para que a sege volvesse vagarosamente, e entrou em sua casa com o filho de Ricarda desfalecido nos braços, pela perda de sangue, que ela em vão quisera estancar com os lenços, e até com as meias de seda branca, servindo-se das ligas, e fitas dos sapatos como compressa.

     O médico declarou que as feridas não eram irremediavelmente mortais. Luís da Cunha foi curado com extremo desvelo. Um mês depois dava um passeio de sege, ao escurecer, a par da sua estremecida amiga.

     As indagações da polícia aclararam todo este mistério.

     O conselheiro não foi poupado à irrisão pública, e a dedicação de Liberata era celebrada como um heroísmo incompatível com tal mulher. Alguns literatos prometiam um drama em três actos sobre bases tão dramáticas. Outros escreviam poesias em versos grandes intercalados de pequenos, em que se prometia a reabilitação de todas as Liberatas.

     E, com isto, os pobres rapazes, se fizeram algum mal, foi a eles, porque, desde esse dia, até no Bairro Alto procuraram vítimas a salvar do abismo, e saíram de lá espancados por algum marujo, que entendia melhor de fado e vinho, que de regeneração e amor, e elas também, pelos modos.

     Bernabé Trigoso reduzira Açucena a um entorpecimento moral, semelhante à indiferença. Eram passados quatro meses, depois da sua queda. A infeliz erguia-se sem sensibilidade: parece que perdera, com a esperança, a memória do passado. Ainda assim, Bernabé não se atinha às aparências. Era necessário sondá-la.

     Falou-lhe em Luís da Cunha como incidente numa conversação sobre o seu passado no colégio. Açucena pedira-lhe que não falasse em tal homem. Replicara o cónego, perguntando-lhe se lhe seria então indiferente a vida ou a morte de Luís.

     -      Antes quero que viva.

     - Porque o ama ainda?

     -      Porque me queria vingar...

     -      Vingar-se!...

     -      Sim... vingar-me pelo remorso... É impossível que ele não venha a senti-lo...

     - Isso é do coração?

     -      Do coração, sim, meu querido amigo. Eu tenho hoje ódio a esse homem, porque me vejo amada de todas as pessoas, e aborrecida por ele, depois de me perder... Minha mãe, que devera desprezar-me, ama-me... V. S.a e sua irmã adoram-me como se eu fosse desta casa... Só ele!... é ele o que me esquece... o que me deixou desamparada!...

     -      Desamparada?... E Deus não a acolheu?

     - E sabe ele se eu a estas horas peço uma esmola!

     -      Não... nem lhe importa saber... Quer que eu lhe diga a última aventura desse homem?

     -      Não... não me importa... Onde está ele?

     -      Em Lisboa.

     - Em Lisboa?! Não me disseram que fora para o Brasil?!

     -      Quando foi conveniente dizer-lho. Hoje pode saber que Luís da Cunha vive em Lisboa, debaixo das mesmas telhas com a única mulher digna dele...

     -      Cale-se, por piedade, meu amigo... – interrompeu ela.

     -      Pois quê? Não me disse que lhe era indiferente...

     - Basta-me o ódio que tenho no coração... Não posso com mais...

     - Ódio é muitas vezes demasiada importância ao que é somente desprezível. Eu quero que Açucena se lembre de Luís da Cunha para perdoar-lhe no seu coração, conversando com Deus, se os infortúnios desse homem foram tais que possam atribuir-se a expiação do crime em que Açucena foi a primeira vítima.

     - Perdoar-lhe... eu!

     - Não gosto dessa exaltação de cólera, filha. Enquanto ela existir, não está cauterizada a ferida. Eu vou experimentá-la.

     Bernabé Trigoso contou as cenas observadas por Madureira, e as outras colhidas de informações que eram já do domínio público. Açucena escutou-as com atenção.

     A arte valeu-lhe muito. Manteve silenciosa impassibilidade, quando o cónego esperava alguma comoção. Mas, apenas livre das vigilâncias de Perpétua, fechou-se no seu quarto, e chorou. O seu sofrimento devia ser um tumultuoso acervo de muitas dores: ódio, amor, ciúme, saudade, desesperação, consciência da sua queda nos braços de tal homem, a preferência em que era sacrificada a uma mulher perdida!

     O incidente passou com alguns dias de profundo abatimento. As visitas de Rosa Guilhermina, as diversões domésticas que o cónego lhe dava, despertando-lhe o gosto pela música, pela pintura, prendas em que se distinguira no colégio; e, demais, a enraizada afeição com que pagava pequena parte da amizade que lhe dava esta família, considerada a sua, pareciam torná-la indiferente às reminiscências, se elas existiam, das suas passadas desventuras.

     Assim correram dez meses, que eu deixo passar sem análise, porque em poucas linhas se diz que a viscondessa de Bacelar recuperara, senão um resto de contentamento, que perdera com a desgraça da filha, ao menos um ar de saúde, que os médicos lhe não prometiam.

     O visconde, preocupado com a alta e baixa de fundos, esqueceu a afronta recebida nos Paulistas, e nunca perguntou o destino de Açucena. Luís da Cunha, de quem no próximo Capítulo falarei mais devagar, vivia com Liberata. João da Cunha estava, senão rematadamente doudo, ao menos três partes do dia, fechado no seu quarto, dizia em voz cavernosa cousas ininteligíveis.

     Ao cabo de dez meses, Bernabé Trigoso adoeceu, e profetizou a sua morte, antes que os médicos lha mostrassem numa das pontas do fatal dilema.

     O seu primeiro acto foi um testamento verbal, dito a sua irmã, fechando-se com ela em longa prática. Os fins da sua vida foram suaves, tranquilos, e auxiliados de todos os socorros espirituais. A viscondessa de Bacelar ajoelhou muitas vezes aos pés do seu leito. Açucena, sempre ao lado do enfermo, não podia chorar na presença dele, porque o venerando velho dava visíveis sinais de que lhe era custosa a morte, se via lágrimas inúteis nas faces da que ele chamava a sua coroa de triunfo sobre os vícios da Terra. A filha de Rosa Guilhermina só acreditou na perda do seu benfeitor, quando o moribundo apertou entre as suas, quase frias, as mãos de Perpétua e as dela, dizendo-lhes: «É agora!... », cerrando os olhos sobre tudo que lhe era caro, fechando os lábios com a palavra: «Deus», e aceitando, já no limiar da eternidade, convertidas em flores, as lágrimas, que enxugara aos seus irmãos de exílio.

     O cónego Bernabé Trigoso passava por pobre, atendendo à sua velha chimarra, às suas sempre velhas botas de cano alto, e ao seu arruçado tricorne. O seu espólio, só conhecido de sua irmã, era dinheiro, herança de seu pai, de seus avós, tesouro até preciosíssimo para a numismática, pela variedade de moedas de prata e ouro desde D. Afonso III.

     D. Perpétua não tocou nessa caixa quadrada, com dimensões bastantes para conter uma riqueza que lhe não servia de nada a ela. Mostrou-a, sem abri-la, dias depois da morte de seu irmão a Açucena. «O seu património está aqui, minha filha. Eu fui a depositária, mas a menina é dona. Meu bom irmão não teve ânimo para lhe dar os seus últimos conselhos. Já morreu, já lá está na presença de Deus; mas ele vê e ouve o que fazemos e dizemos.

     Parece-me que bem cedo vou ter com ele. Tenho sonhado todas as noites que meu irmão me chama para si...

     É tempo de cumprir as ordens do nosso amigo. Depois da minha morte, Açucena será também minha herdeira.

     Eu tenho uma quinta no Lumiar, onde fui nascida e criada, e onde desejo morrer. Partirei para lá o mais cedo que possa ser; Açucena vai comigo, porque sua mãe me deu consentimento. Se Deus chamar a contas a minha alma, digo-lhe, em nome de meu irmão, que viva nessa quinta, que fuja desta terra, donde vai fugindo a religião e o temor dos juízos divinos. Tome como director da sua vida o padre Madureira, que aprendeu a ser virtuoso com meu irmão. Com o tempo, a menina há-de entrar na casa de sua mãe, e então estará livre de todas as perfídias do mundo; mas, enquanto o não fizer, viva recolhida com a sua boa alma no seio do Senhor; esqueça-se dos seus desgostos, dando-se ao prazer de dar esmolas sem ostentação, que foi sempre a constante virtude do santo que Deus nos levou para a corte celestial. Há quase um ano que vive nesta casa: já agora há-de fechar os olhos às duas pessoas que mais lhe quiseram, e que a deixam no mundo a pedir ao Senhor pelas suas almas. Nunca se há-de esquecer dos seus amigos, porque meu irmão está no Céu, pedindo por nós, e brevemente pediremos ambos pelo nosso anjo.»

     A singela prática acabou por lágrimas, que a interromperam.

     Os sonhos de D. Perpétua são o inexplicável efeito de uma causa superior ao entendimento.

     Como o seu desejo era morrer onde nascera, a irmã do cónego mudou para o Lumiar, com Açucena e o padre Madureira, constante companhia das duas senhoras, depois da morte do seu mestre e amigo.

     D. Perpétua Trigoso, durante dois meses, foi exemplar em obras de caridade, como se devesse ser a última lição de Açucena.

     Setenta e tantos anos, com todos os achaques de velhice, explicam a rápida consumpção que, nesses dois meses, convenceu Perpétua de que em verdade seu irmão a chamava. Sacramentou-se uma tarde com sintomas ainda de vitalidade para alguns dias. Entregou o seu testamento ao padre Madureira. E fechou o ciclo das suas virtudes, convidando a sua atribulada amiga a presenciar a morte de uma mulher sem a consciência de uma injustiça. Só ela conheceu o seu fim, como se o anjo da bem-aventurança lho segredasse. Morreu, abençoando Açucena, e passando-lhe às mãos a cruz, que não podia já suster no braço hirto pela aridez cadavérica.

     Açucena era herdeira de quarenta mil cruzados.

     Nunca se julgou tão desvalida. Não sabia a significação enciclopédica da palavra «dinheiro».

   

    Como os Anjos se vingam

     Um ano correra também para Luís da Cunha. As duas existências, comparadas entre si, afiguram-se-nos o mito de duas almas: uma tirando para Deus um voo; a outra afundando precipitadamente na região das trevas, na infinita desesperação.

     O rival do oficial-maior da secretaria estabeleceu a sua residência em casa de Liberata, noite e dia. O carinho com que ela o tratara na convalescença dos ferimentos obrigara-o a sentimentos de gratidão, e a tais protestos de retribuir-lha em prémios de inestimável preço, que Liberata, tão incapaz de avaliá-los como quem lhos prometia, ria com cínica desenvoltura da sua reabilitação, projectada por Luís da Cunha.

     O neto dos Faros, durante a sua enfermidade de vinte e tantos dias, entrara na região filosófica dos deveres sociais, e confeccionara certas máximas de alta importância para a sua futura felicidade.

     A sociedade, que nos abomina, não tem direitos ao nosso respeito. Primeira máxima.

     O escândalo, quanto mais estrondoso, mais grato é àquele que o dá, porque assim insulta uma hipocrisia astuciosa com que Tartufo e D. Basílio douram a pílula aos seus parvos admiradores. Segunda máxima.

     Todo o homem tem direito a ser um infame, na opinião pública, quando é feliz na sua particularíssima, e única respeitável. Terceira.

     A felicidade está em nós, não se reflecte dos juizos estranhos. Quarta, muito parecida com outra da sã filosofia: os extremos tocam-se.

     A mulher mais digna de nós é aquela que melhor serve as nossas propensões, quer viva na cripta subterrânea das vestais, quer se ostente de seios nus no estrado do alcouce. Quinta.

     O homem que pede à opinião pública consentimento para amar uma ou outra é um tolo. Sexta.

     Et cetera.

     E, de todas, concluiu que devia casar-se com Liberata, visto que era esta a mulher que mais servia as suas propensões, e mais crédito adquirira sobre o seu reconhecimento.

     Este homem, que tocou da torpeza o extremo em que a compaixão se alia ao nojo, ofereceu-se a Liberata como marido. Esperava vê-la saltar-lhe ao pescoço, fundindo-se em prantos de felicidade, e recebeu em resposta a gargalhada mais estridorosa, mais cómica e mais fulminante! Liberata também tinha as suas máximas, bebidas na fonte impura do seu amante; mas, entre as do seu amante, não se encontravam algumas que eram a base fundamental de todas as outras no catecismo dela. Eram estas:

     Toda a filosofia sem dinheiro é uma tolice.

     Não há nada que se pareça tanto com o mendigo como o filósofo pobre.

     Bolsa vazia, inteligência manca.

     Sem dinheiro não se afrontam os desprezos da sociedade.

     Se não és rico, não sejas corrupto, porque o teu sapateiro não só te despreza, mas dá-te com o tirapé.

     Mulher caída em leito de ouro, levanta-se toucada de brilhantes.

     A desonra que se estorce numa esteira é que nunca se reabilita.

     Reabilitar-se é ser precisa, desejada, invejada e pesada a ouro.

     Estes provérbios explicam a gargalhada de Liberata à muito séria proposta de Luís da Cunha.

     - Estás doudo! - acrescentou ela, batendo as palmas. - Tragam-me uma camisa-de-força para o meu pobre Luís, que endoudeceu, e quer casar comigo!... Tu falas sério?!

     - Falo sério... falo-te com o coração.

     - Pobre coração! Pois ainda tens disso? Não nos fica bem fazermos de crianças... Eu não sou Açucena, meu trampolineiro... - dizia ela, anediando-lhe as guias do bigode. - Que será dessa ilustre menina?

     -      Não sei... dizem que está no Minho em uma quinta do padrasto... Mas diz-me cá, Liberata... Achas disparate o nosso casamento?!

     -      É uma bestialidade... Vou provar-te que nunca se disse mais tremenda asneira. Se casássemos, qual era o nosso futuro? Naturalmente seria, pouco mais ou menos, o que era há dois meses. Eu teria um amante rico para sustentar o meu marido pobre.

     -      Mas hoje não acontece assim.

     -      Se não acontece hoje, acontecerá amanhã. Desde que o conselheiro foi despedido, gasto das minhas economias; mas as economias vão gualdidas. A sege e os cavalos estão à espera de comprador; os brilhantes irão depois da sege; depois dos brilhantes, meu caro Luís, é necessário adquirir outros. Ora agora, imagina tu que és meu marido, e vê lá se te convém ficar atrás da porta, muito caladinho, para não assustar o amante.

     -      Mas eu pensei que renunciarias ao luxo que tens hoje, e te sacrificarias ao amor e à posse de um só homem.

     -      Criancice! A primeira vítima eras tu, e a segunda eu, e a terceira os credores. Pois tu pensas que eu valho alguma cousa se despir este vestido de seda com rendas de Escócia, e vestir um vestidinho de chita de uma costureira?! Parece que não tens gastado cinquenta mil cruzados a teu pai! Não te lembras que, há dois anos, me deste um luxo extravagante para me fantasiares, como tu dizias, uma dessas romanas que pareciam caídas do céu numa nuvem de perfumes? E agora estavas resolvido a pôr um estanque, e mandar-me vender charutos ao balcão!

     -      É porque te amo, Liberata, e não sei como hei-de indemnizar-te.

     -      Não me deves nada: estás recebendo o juro de uma dívida. Sem ti, meu Luís, não era eu nada. Foste tu que me fizeste conhecida, dando-me em espectáculo de que eu lucrei muito, quando dizem que o escândalo faz perder. O americano apaixonou-se por mim no teatro, vendo-me contigo. O capitão da fragata foi um irritante que fez dar saltos o americano. O americano fez dar saltos o conselheiro. Hoje és tu um irritante de muitos; mas, enquanto puder sustentar fidelidade, sou tua cativa. Quando não puder, digo-te adeus por algum tempo.

     - E despedes-me?

     - Que remédio! Mas por ora não. Vamos vivendo sem cuidados, enquanto se não oferece uma conveniência que valha a pena da nossa separação por algumas horas... Deixar-te eu, isso é que nunca. É cá um capricho de mulher perdida, que se parece muito com os caprichos das mulheres aproveitadas...

     Eis aqui a posição social de Luís da Cunha, dois meses depois que fora ferido. Comia e vestia das economias de Liberata. Indemnizava-a com uma permanente convivência, e, muito instado, ao anoitecer, dava sozinho um curto passeio.

     Este viver monótono, e impersistente para a sua inconstância natural, fatigou-o. Liberata conheceu o cansaço do amante, e não se afligiu, porque também ela se sentia marasmada numa continuada repetição das mesmas sensações, cada vez mais arrefecidas. E, depois, o filho de Ricarda habituara-se a julgar comum de dois os cabedais de Liberata. Tomava das gavetas dinheiro, que não trazia de fora, e, se algumas vezes trazia triplicada a quantia que levara, não lhe dava canseira a restituição dos fundos.

     Luís da Cunha jogava num terceiro andar na Rua do Ouro, onde se congregavam em fraternal espoliação alguns negociantes, alguns bacharéis vadios, poucos literatos, e bastantes empregados públicos. Sempre infeliz, o parasita de Liberata recolhia mais vezes colérico da perda, e encontrava a sua amante na cama com a chave corrida por dentro.

     Luís da Cunha, nessas ocasiões, que foram muitas, sentia assaltos da consciência, discutia com eles, e ficava sempre vencido, reputando-se infame. As máximas que forjara na cama, durante o período da cura, não lhe serviam auxílio nenhum nesses combates com o senso íntimo. A devassa filosofia não lhe desviara, com lúbricos esgares, os olhos despertos da alma do ponto negro que a consciência lhe mostrava, lá em baixo, no fundo da voragem.

     Um dia, depois de oito meses de hospedagem, Luís da Cunha teve com Liberata esta importante prática:

     - Meu caro Luís, chegou a ocasião de darmos um saudoso abraço por algum tempo. Há oito meses que temos gasto como se tivéssemos descoberto a pedra filosofal. Feitos os meus cálculos, não podemos assim viver mais quatro meses, sem que eu venda a cama. Cavalos e sege já lá vão; as minhas pulseiras e o meu colar estão empenhados. Tu tens jogado mais de um conto de réis, e sei que deves seis ou sete a um tal Aboim, que vai ser meu amante. Mudemos de rumo, que o barco vai a pique. Já te disse que não simpatizo nada com a honrada miséria, e a miséria a que nos vamos reduzindo é daquelas que têm o inferno da desesperação, embora digam as novelas que uma tranquilidade de consciência, mantida pelo trabalho honesto, é a suprema ventura. Será; mas eu deixo essa ventura à mulher do meu sapateiro; e penso que tu também...

     - Isso quer dizer que...

     - Advinhaste, Luisinho. Não precisas acabar a frase: tens uma penetrante inteligência. Não achas que tenho razão?

     -      Tens...

     -      Agora o que deves é fazer as pazes com teu pai, e vê se ele te faz seu herdeiro, ou se o visconde dá à enteada um bom dote. Logo que eutenha restaurado a minha fortuna, tanto te recebo pobre como rico; ponto é que eu possa prescindir do Aboim, como prescindi do conselheiro.

     -      Vejo que és sempre a mesma mulher!

     -      Não te compreendo bem.

     -      Es a Liberata que eu encontrei na Rua do Ouro.

     -      Justamente a mesma.

     -      Uma certa Liberata, que apareceu no teatro com um novo amante, na mesma noite do dia em que a deixei.

     -      Tal e qual.

     -      A mesma dissoluta.

     -      Essa censura é mais infame que tu. Que queres de mim, Luís? Uma garantia para a tua subsistência?

     -      Não quero nada.

     -      Pois então, vai, que vais pago, e bem pago dos excessos com que me compraste. As nossas contas estão saldadas.

     -      Mas eu tenho sacrificado a ti a minha reputação.

     -      Fora com a hipocrisia! Isto faz nojo! Tu não me sacrificaste nada: quem perdeu fui eu, e perdi tudo, porque, demais a mais, o homem que me queria indemnizar, casando comigo, agradece-me agora com insultos. Se eu não fosse dissoluta, o que seria de ti?

     -      Es muito infame, lançando-me em rosto tais favores...

     - Tu não coras, meu bom amiguinho. A diferença entre nós é toda a meu favor, e, se não há outra, a única que conheço está entre o vestido e as calças. Eu sirvo-te com o meu dinheiro há oito meses. Desejei uma ocasião de mostrar-me grata: encontrei-a, e fui quando pude, e enquanto pude. Tu, nem agora, sabes dizer-me do fundo da escada: «Obrigado, rapariga!»

     -      Hei-de embolsar-te das tuas despesas...

     - Como quiseres.

     - Hei-de atirar-te à cara com essas migalhas.

     - Decerto ma quebravas, porque o volume não será pequeno. Ainda assim, vê se me acertas bem, porque bem sabes que tenho ainda o punhal com que feri por tua causa um homem que teve a pouca-vergonha de me fazer rica, e de me prometer para a velhice a felicidade que tu me destruíste.

     A disputa acalorou-se e a lealdade do taquígrafo não pode, sem desonestidade, progredir. Fiquemos, pois, aqui, sabendo que Luís da Cunha saiu impelido por um forte empurrão, e levou com a porta na cara, quando se voltava para retribuir liberalmente a amabilidade.

     O alvitre de Liberata enquanto ao destino do seu expulso amante era o mais judicioso. Luís procurou a casa paterna, onde não entrara durante oito meses. Encontrou seu pai, passeando numa sala com dois criados de vigia. Estava completamente doudo: não conheceu o filho, suposto se deixasse beijar na mão, com um sorriso de amargo desprezo.

     Os herdeiros presuntivos de João da Cunha, inimigos figadais do filho bastardo, tinham judicialmente assumido a administração do vínculo. Os bens livres foram dados em penhora ao visconde de Bacelar. O doudo estava sujeito à restrita deliberação de uma tutela, que lhe concedera apenas o indispensável para manter uma vida inútil.

     Luís não podia contar com cousa nenhuma daquela casa, a não querer limitar-se aos restos da mesa do pai, e a uma cama, donde seria expulso, logo que o doudo morresse.

     O anel de ferro que o apertava não tinha um elo mal soldado por onde ele se evadisse à desgraça. Não tinha um amigo a quem pedisse um conselho; nem um indiferente que quisesse dar-lho. Procuravam-no os credores unicamente; e desses, alguns eram tão insofridos que se retiravam apelidando-o ladrão, ou fugindo à boca de um bacamarte com que o devedor insolúvel os ameaçava.

     Luís da Cunha, em casa de seu pai, chegou ao extremo de não ter umas botas, e pedi-las emprestadas ao seu criado para ceder a um impulso que o fazia correr sem destino.

     Chegaram-lhe as horas da profunda reconcentração.

     Nessas, a imagem de Açucena era uma brasa de fogo sobre a chaga. O algoz não podia comportar a reminiscência da vítima. Recordá-la não era compadecer-se. Era imputar-lhe a causa das desgraças que o assoberbavam: cerração absoluta de todas as suas esperanças.

     Viveu assim dois meses.

     João da Cunha, quando menos se esperava, morreu da última congestão cerebral. Dizem que fora terrível a última hora lúcida desse homem. O enigma dos dois cadáveres não lho perceberam os circunstantes. Ricarda, todos suspeitavam que fosse a mãe de Luís; mas esse outro cadáver, que lhe pedia contas de sua mulher, ninguém conjecturou quem pudesse ser.

     Seu sobrinho, filho de uma sua irmã, sucessor no vínculo, mandou imediatamente fechar as portas. Luís da Cunha teve oito dias de homenagem para resolver o seu destino, e chorar a morte de seu pai, que foi de todos o menor abalo, que podia sofrer aquela alma entorpecida para todas as impressões. A consciência da desgraça vestira-lhe a sensibilidade nobre de uma crusta impenetrável. Ali não entrava nada naquele coração ossificado. Se alguma emoção estava reservada para animar a pedra, era o dinheiro, o dinheiro com desonra, por todos os meios infames, contanto que pudesse tornar ao mundo e convertê-lo em fel, em escárnio, em vingança.

     Mas esse dinheiro quem lho daria? Nem ao menos a quimera de uma esperança absurda o lisonjeava!

     Luís da Cunha apresentou-se num quartel de cavalaria, disse que queria assentar praça. O comandante conhecia-o, e condoera-se da miséria com que se lhe apresentava um moço que ele vira disputar em luxo e devassidão com os mais distintos da sua fileira.

     Prometeu-lhe proteccioná-lo, e elevou-o logo a cabo, com promessas de furriel, na primeira promoção.

     Luís da Cunha era melindrosamente tratado na recruta; mas, orgulhoso ou incivil, respondia com insultos à menor correcção do preceptor. Um dia travaram-se com palavras estimulantes, e, por fim, com as espadas.

     O mestre de esgrima foi ferido seriamente por traiçoeira cutilada, e Luís da Cunha fugia a cavalo, inutilizando assim a perseguição do momento.

     Sem destino na fuga, achou-se em Vila Franca, a cinco léguas de Lisboa. Aí vendeu o cavalo a um estalajadeiro pela terça parte do valor. Seguiu, Tejo acima, até Santarém. Refez-se de alimento para seguir jornada, e alugava cavalgadura para Coimbra, quando lhe deram voz de preso, à qual tentou fazer uma resistência que lhe custou algumas coronhadas de arma.

     No dia seguinte à tarde entrava no Limoeiro, para ser julgado em conselho de guerra. Desta vez não o socorreram as solicitudes de Liberata. Luís da Cunha pensava no suicídio, e emprazava para ele o momento posterior à deliberação do conselho de guerra. Dizia-se que o mais encarniçado agente contra o desertor era o visconde de Bacelar, que prometera uma comenda da Conceição ao auditor, se conseguisse que o conselho militar condenasse o réu a degredo perpétuo.

     O padre Madureira, com o seu sestro observador, não podia ignorar o essencial deste sucesso. Condoído dos reveses daquele infeliz, contou a Açucena, com sua permissão, os doze meses da vida de Luís da Cunha, desde as punhaladas até à entrada na cadeia. Cedendo à sua boa alma, deixava transpirar a compaixão das palavras, e atribuía a expiação à série de desventuras que o reduziram a assassino, e mais tarde o levariam à forca.

     A compadecida censura do padre tinha um eco no coração de Açucena. Os infortúnios de Luís da Cunha não podiam ser-lhe estranhos. Se, num momento de dolorosa exaltação, ela dissera que queria vingar-se, dez meses tinham decorrido depois, e antes desse momento estavam alguns meses de apaixonado delírio, de cega idolatria ao homem que tão cruel lhe fora. A religião, sucessora de todas as afeições de Açucena, operara em sua alma a maravilha do perdão para todas as injúrias, donde quer que elas viessem. Pensando na maldade de Luís, e, não podendo explicá-la, atribuiu-a ao destino, interpretando assim do pior modo o livre arbítrio do homem remido pelos sacrifícios de Jesus, e salvo pelas suas obras meritórias de recompensa, ou condenado pelas infracções da lei divina. Esta anomalia intelectual é a enfermidade de muitas pessoas dedicadas, sem crítica, às cousas da fé, e descaídas, quando mais intentam levantar-se, nas grosseiras crenças do fatalismo, do destino, do «estava escrito» de Mafoma, e do quo Deus impulerit de César.

     Açucena viera a convencer-se do que tem de ser a respeito de Luís da Cunha. Entendeu que uma vontade, superior à dele, o obrigava a ser mau para os outros, que serviam de instrumento providencial à sua desgraça.

     A Providência era assim insultada pela inocente menina, e não admira que ela incorresse na heresia, que passa em Roma com os foros de sã doutrina.

     Desta conjectura ao perdão era lógica a passagem.

     - Perdoar-lhe para amá-lo - dizia ela na sua consciência -, isso nunca, enquanto a mão de Deus me não desamparar, mas perdoar-lhe para que a justiça divina se aplaque; oxalá que a sua felicidade dependesse do meu

     perdão, que tão recomendado me foi pelos dois anjos que falam do Céu...

     Açucena acreditava no seu consórcio espiritual com as almas do cónego e de sua irmã. Está nessa crença a explicação da fervente súplica que ela, em êxtasis, fizera, depois que o padre Madureira narrara compungido as desventuras de Luís. Não sei se as almas lhe responderam; mas, de todo o meu coração, creio que sim. Não se explicam certos actos que divinizam a criatura, se a não considerarmos tocada de um magnetismo que mana de fonte sobrenatural. Não posso conceber o heroísmo do perdão de Açucena, sem concebê-la sujeita à vontade de um impulso divino, de um condão de predestinada, de uma qualquer força, que não seja esta que imprime o movimento nas acções trivais de cada homem, incapaz de produzir o que outro homem não produz.

     Açucena devia recear-se de abrir sua alma ao padre Madureira. Devia; mas a coragem é o que espanta! Pede-lhe que socorra Luís da Cunha, visto que não tem pai, nem amigos. Oferece-lhe, para que o preso seja solto, o dinheiro que quiser, contando que Luís não saiba nem por sombras que é ela a que o salva. Isto, que pede, pede-o, chorando; e padre Madureira, tocado pelo entusiasmo da caridade, não tem uma só palavra contra.

     Aceita o melindroso encargo, e promete esgotar todos os recursos, suposto se tema de não vencer os inimigos poderosos de Luís.

   

    São muitos os Lázaros; mas um só o Cristo

     O visconde de Bacelar, conquanto não fosse parte contra Luís da Cunha, seu agressor, aguilhoava indirectamente o ministério público. Dificultava-se, portanto, a soltura por fiança, que a lei não concedia na reincidência do delito, agravado, agora, por deserção e roubo, e entregue por isso à sumária jurisprudência militar.

     Padre Madureira, aconselhado, descoroçoou diante dos obstáculos; mas Açucena, como se tivesse um experimentado uso da omnipotência do dinheiro, instou o padre, autorizando-o de novo para todas as despesas.

     O mestre de recruta, seguro de que não morria da cutilada, transigiu por dinheiro com o seu discípulo rebelde, e declinou a acusação. O conselho militar, movido à piedade por não sei que figuras retóricas do agente de Açucena, desprezou a virulenta acusação do auditor, acalorado por sugestões do visconde. O juiz criminal, um pouco indeciso, como o burro de Buridan, entre o

     código e a peita não mesquinha, negociada pelo escrivão do processo, absolveu o réu, dando assim um testemunho da sua moralíssima independência de viscondes.

     O cabo de cavalaria foi militarmente condenado a dois meses de prisão, e baixa de posto a soldado raso. O seu plano de suicídio não vingou, à vista da limitada pena.

     Soubera que um braço poderoso o protegia, aluindo os obstáculos com alavanca de ouro. Conjecturou donde tal protecção poderia vir, e julgou-se ainda debaixo da tutelar influência de Liberata, que não podia deixar de ser o seu anjo valedor, em todas as crises Desvaneceu-se-lhe esta grata certeza, quando o carcereiro o chamou à sua sala, deixando-o só com um homem desconhecido, trajando batina e sapato de fivela.

     - O Senhor Luís da Cunha - disse Madureira deve ter conhecido que alguém o protege. Ignora quem é, e eu, suposto que tenha sido o solicitador da sua soltura, não venho aqui dizer-lhe quem lhe evitou um degredo.

     -      Pois eu não hei-de saber a quem devo tantos favores?!

     -      A pessoa que lhos faz prescinde da sua gratidão, e deseja não ser conhecida. Receba os benefícios, e não queira ver a mão invisível que o protege, porque a não pode ver. Quem quer que é, não limitou ainda a sua caridade com o Senhor Luís da Cunha. Há tenções de lhe dar os meios para que o senhor deixe Portugal, e vá no Brasil, ou na África, tirar algum interesse do capital que se lhe der aqui. Faz-lhe conta aceitar este benefício?

     -      Aceito, cheio de reconhecimento. É o maior favor que me pode fazer esse Deus que me ampara, seja quem for. Mas sou soldado, e preciso que me dêem baixa.

     - Há-de tê-la. O senhor tem dívidas?

     -      Tenho dívidas; mas essas não me inquietam, porque os meus credores são ladrões civilizados. É dinheiro de jogo, que eu não pagaria, ainda que pudesse.

     - Mas alguém quer que o filho do falecido João da Cunha se retire honrado de Portugal, aparentemente ao menos.

     - Isso, meu caro senhor, é obra dificultosa. Eu não sei bem o que devo; mas, por um cálculo aproximado, não pago essas ladroeiras que me fizeram com oito contos de réis; e, se eu tivesse hoje quem me desse quatro, em cinco ou seis anos prometo que os faria chegar a cem.

     - É admirável que o Senhor Cunha com essa finura comercial se arruinasse até ao extremo de ser soldado para não morrer de fome...

     -      Meu amigo, na adversidade é que se fazem os grandes cálculos, e que se traçam os grandes planos.

     - Pelo que vejo, os cálculos e os planos de fazer que, quatro contos produzam cem em cinco ou seis anos só se meditam quando o coração está de todo em putrefacção, e as algibeiras vazias...

     - Parece-me que tem razão, Senhor Padre... Como se chama, meu caro senhor?

     -      Não me convém que o senhor me conheça, nem o meu nome lhe é uma cousa de importância. Queira continuar. Disse que eu tinha razão...

     -      Sim, tem razão; mas não me lembra a que respeito eu disse que o senhor tinha razão...

     -      Também não importa. Sabe o que eu admiro, Senhor Cunha? É a sua presença de espírito!

     - Nunca me faltou. Sou um verdadeiro filósofo, e peço-lhe acredite que nunca estudei filosofia. Há tempos, quando me fizeram a grosseria de me trazer aqui, sem o meu consentimento, resolvi suicidar-me, em certo dia e a certa hora...

     - Que foi o que o conteve?

     -     Foi essa pessoa que me protege, aliviando-me da condenação que me prometiam os meus juízes, sendo um deles um homem que foi criado de meu pai, e é hoje do supremo conselho militar... Isto não vem nada ao caso... O facto é que me não suicidei, como o senhor vê, e desde então entrei nos grandes cálculos, bem longe de sonhar que alguém me queria fazer rico, dando-me um capital, que eu levarei no Brasil a uma cifra fabulosa.

     -      Está, portanto, resolvido a sair?

     -      Se fosse já, era uma fortuna.

     - Há-de primeiro cumprir a sua sentença; há-de aqui receber os recibos dos seus credores, e para isso queira dizer-me quem eles são.

     - Não me recordo... Deixemo-nos de credores, meu amigo...

     - Um anúncio nos jornais convidando-os a apresentarem os seus créditos, será suficiente...

     - Mas não lhe disse eu já que devo mais de oito contos, que são vinte mil e tantos cruzados?!

     - Serão pagos.

     - Mas quem é que se interessa tanto por mim?! O senhor há-de ter a bondade de me dizer a quem devo beijar as mãos. Isto parece-me um lance de novela! Já me lembrou se andaria aqui segredo do meu nascimento!

     - Do seu nascimento?! Pois o seu nascimento é um segredo para alguém?

     - É metade de um segredo, pelo menos para mim. Não sei quem foi minha mãe, porque meu pai, que tinha razões para saber melhor que ninguém quem ela foi, nunca mo disse. Imaginei que essa senhora viveria ainda, e teria mais dinheiro que eu... Não posso atinar com outra pessoa... Não tenho amigos, não sei donde me possa vir esta restituição, não me consta que seja o herdeiro presuntivo de algum capitalista... enfim, aqui anda mistério, que o Senhor Padre pode pôr-me em linguagem portuguesa, e eu prometo guardar inviolável segredo, se for necessário esconder a beneficência como se esconde um crime.

     - Já lhe disse que não denunciava o seu benfeitor.

     - Seu, ou sua?

     - Não tem resposta o reparo. O Senhor Cunha deve ter a polidez de um cavalheiro, não me interrogando mais sobre o assunto.

     - Pois bem: eu respeito o mistério; nem mais uma palavra a tal respeito.

     - Ora diga-me, senhor, não tem pena de si? A sua queda não lhe tem custado horas de uma tormentosa reflexão?

     - Declaro-lhe que abomino o estilo patético, fujo de entrar no sorvedouro da minha consciência; ainda assim, para lhe mostrar que não sou insensível à pergunta, respondo: tenho sofrido; tenho-me espantado da lógica maldita dos meus infortúnios, tenho combinado a minha última desgraça com o meu primeiro crime, tenho desejado morrer; mas, ao cabo de tudo, reconheço que as minhas desventuras são fatais, não as posso encadear não sei preveni-las, sou vítima da minha organização obedeço ao fim para que fui criado, tenho tanto arbítrio no mal como o senhor no bem, represento o crime ao mesmo tempo que outro representa a virtude. Ora aqui tem o que me faz reflectir, estudar, e abrir a golpes o segredo do meu coração. Não consigo nada com isto; e evito o mais que posso os assaltos do pensamento. Que valem torturas de que se não sai com o coração purificado? Antes de assentar praça, tive muitos desses exames de consciência, e fugia deles, e de mim, aterrado. Cheguei a desconfiar que me estava reformando na desgraça; mas o que se não reformavam eram as minhas botas, por que cheguei a pedir a esmola de umas botas a um criado de meu pai. Ora, não há reforma possível em um filósofo descalço. Eu queria ser pessoa de bem; mas entendo que os bons instintos renascem no coração do perverso, quando o terrível assédio das desventuras levanta o cerco. Um rapaz, afeito ao luxo das comodidades, e pervertido nelas, não se divorcia voluntariamente do vício, na indigência. Se meu pai não está doudo nessa ocasião, e me recebe com carinho, e me perdoa sem me repelir da sua amizade, e me não nega o necessário para a decência, parece-me que a minha vida passava por uma súbita transfiguração. Aconteceu o contrário: vi-me abandonado; entendi que não havia Providência para mim, e desobriguei-me de respeitá-la.

     -      E lucrou, desobrigando-se?

     - Não: bem vê que sou desgraçado, e talvez nunca recue neste caminho em que vou.

     - Mas deve recuar...

     -      Crê que é possível? Diga lá como se é honrado.

     - Sendo para os outros o que desejamos que eles sejam para nós.

     -      Os outros têm sido para mim algozes.

     -      Todos?

     -      Todos, sim.

     -      Então o senhor não tem feito vítimas?

     - Dessas vítimas que por aí fazem todos os dias os honrados pelo sufrágio público. Desarranjei o futuro de algumas mulheres; mas penso que todas vivem mais ou menos felizes. O desgraçado sou eu.

     - E sabe que todas vivem felizes? A filha da viscondessa de Bacelar será feliz?

     -      Não sei; mas creio que sim. Dizem que vive numa quinta do infame padrasto, e naturalmente achará, como todas as outras, um marido que não lhe encontre desfalque nenhum no coração. Essa mulher é um exemplo, que eu lhe cito, meu caro senhor, da fatalidade que me persegue. Se ela fugisse com outro homem, o padrasto dotava-a, e ela casaria, fazendo a completa ventura do marido.

     Como fugiu comigo, o padrasto insultou-me, cobriu-me de epítetos afrontosos, obrigou-me a partir-lhe a cabeça...

     -      E a abandonar a pobre menina, que não era responsável pelas antipatias do padrasto...

     -      São cousas ligadas... o abandono explica-se por não poder explicar-se... Digo-lhe sinceramente que não sei o que havia de fazer a essa mulher. Entendi que abandoná-la era restituí-la à mãe; e conservá-la minha amante era obrigá-la a cair comigo no abismo da miséria, fazendo-a testemunha dos esforços criminosos que eu faria para não cair... Não me enganei... Açucena é hoje mais feliz sem mim... Estimo até que ela ignore a minha situação.

     - O senhor conheceu-a?

     - Não a conheci.

     - Conhece a viscondessa?

     - Sim, senhor.

     - Como está essa pobre mulher? Será ela a minha protectora?

     - Não, senhor.

     - Decerto, não, porque o marido não a deixa entrar nos fundos do casal. É um grande patife! Tenho pena de não ser poeta! Queria escrever em verso chulo a biografia do filho de uma tal Ana Canastreira do Porto! O responsável da desgraça de Açucena é ele, que a não quis remir da desonra com o valor de duas dúzias de pretos dos centenares deles que ainda hoje são empilhados por sua conta no porão dos seus navios. Depois, dizem que sou eu o perverso, o escandaloso, o malvado! Fique nisto, meu amigo: os homens fizeram isto que sou. Dêem-me uma independência, e verão que hei-de esforçar-me para ser bom. Os homens hão-de vir destruir-ma, e eu serei forçado a lutar com eles. Como tenho contra mim o destino, hei-de ficar mal na luta desigual, e como vencido, em vez de um ai, receberei um escarro na cara.

     -      Experimente o procedimento da honra, não em Portugal, porque os seus precedentes são péssimos para uma reabilitação. Empregue o capital que lhe derem num ramo de comércio lícito; aspire a independência sem fausto; habitue-se a uma tranquila mediocridade; agouro que voltará um dia a Portugal, cheio de benevolência para o seu próximo, e enojado das tristes recordações do que foi.

     -      Pode ser...

     Os credores de Luís da Cunha receberam, maravilhados da surpresa, os seus créditos, em uma casa comercial indicada pelas gazetas.

     Cumprida a pena, o preso recebeu com o alvará de soltura a baixa, e folha corrida do crime de ferimento na pessoa do visconde.

     Fez a sua residência em uma hospedaria, enquanto se fretava o navio em que devia transportar-se ao Brasil.

     Viveu alguns dias numa violenta coacção à sua vontade, que era mostrar-se numa sege a galope, num camarote, nos cafés, nos passeios e nas praças. O desconhecido padre, porém, dera-lhe como preceito a reclusão no seu quarto, e Luís obedecia, maniatado pela dependência do capital prometido.

     O seu mais forte desejo era seguir o padre para averiguar a morada da pessoa que o protegia. Acreditemos, ainda assim, que não era a ânsia de beijar as mãos ao benfeitor que lhe estimulava uma nobre curiosidade. Era o simples desejo de entrar no segredo da aventura romanesca. Se não obedecia ao desejo, resistindo ao silêncio do agente da misteriosa pessoa, é porque receava perder a beneficência com a sua imprudente e até inútil indagação.

     Chegado o dia do embarque, Madureira conduziu Luís da Cunha a bordo, e aí lhe disse que o capitão do navio lhe entregaria no Rio de Janeiro seis contos de réis, e algumas cartas de recomendação para negociantes portugueses, que deviam dirigi-lo na carreira mais próspera do comércio.

     A essas horas, Açucena, ajoelhada no seu oratório, pedia ao espírito de Bernabé Trigoso que não desamparasse o desgraçado, e lhe alcançasse de Deus para ela a bem-aventurança, quando as suas virtudes a remissem das culpas na balança da divina justiça. A viscondessa de Bacelar entrou nesse momento, a contar à filha o pasmoso procedimento de Luís da Cunha, pagando as suas dívidas, sem que ninguém descobrisse donde poderiam vir-lhe vinte e tantos mil cruzados. Rosa Guilhermina ouvira de seu marido a espantada narração do sucesso, e não pudera ser superior ao pasmo de José Bento. Sem algumas suspeitas, admirou a impassibilidade de Açucena, quando o caso não era para se ouvir sem pasmo.

     - Seria essa mulher com quem ele tem vivido?! perguntava a viscondessa.

     - Qual mulher, minha mãe?

     - Essa dissoluta, que o teve à sua mesa...

     - Não foi, minha mãe... Fui eu.

     - Tu!

     - Fui eu, minha mãe!

     A viscondessa, perplexa alguns segundos, abraçou, a chorar, sua filha, exclamando:

     - É uma lição de virtude que dás a tua mãe.

     - Um segredo eterno, sim? - disse Açucena a tremer.

     -      Sim... sim... um segredo eterno... Esta virtude recebe-se mal... Ficaste pobre, minha filha?

     - Eu nunca posso ser pobre... O espírito do meu benfeitor não me desampara...

     -      E não... Teu padrasto disse que te recebia em casa logo que Luís da Cunha saísse de Portugal.

     -      Não aceito, minha mãe... Não é por ódio que lhe tenha... é que preciso viver sozinha para gozar os poucos bens do espírito que tenho... Quem me tirar da solidão, mata-me...

     - Mas viverás sozinha com tua mãe, no meu quarto...

     -      Não posso entrar nessa casa... Quando me recordo dela, cerra-se-me o coração... não queira que eu sofra mais, minha boa mãe. Se seu marido lhe não proíbe, venha ver-me muitas vezes; mas considere-me sem família, sem apego a nenhuma cousa do mundo, triste e só, por prazer e por necessidade...

   

    Fascinação do abismo

     Raro será o peito de homem onde não bata apressado o coração, que deixa, na pátria, uma infância com recordações suaves, ou uma adolescência alternada por prazeres e amarguras.

     Deve ser-lhe tristíssimo o último adeus dos olhos ao céu do seu berço! Bem digno de compaixão será aquele que lhe vira as costas com as faces enxutas! Esse irá mais duro de alma que o homicida, fugindo do lugar do delito! Esse amaldiçoou-se a si, primeiro que a pátria o amaldiçoasse; e, espedaçando os vínculos que o ligavam aos deveres de homem, não sabe o que é família, não sabe o que é sociedade, sente, com tédio de si próprio, que não tem pátria nenhuma!

     Tal era o filho de Ricarda.

     Enquanto o marinheiro, com o barrete na mão, e os olhos turvos de lágrimas, dizia um mudo adeus às montanhas de Portugal, e orava, com a santa poesia da fé, a súplica de feliz viagem ao Senhor, que faz bramir a tempestade, Luís da Cunha observava com risonha curiosidade as várias fisionomias dos seus companheiros. De tantas nem uma só deparou sem sinais de mágoa. Parece que todos levavam da terra uma recordação saudosa!

     O próprio capitão, de braços cruzados, à popa da galera, absorvido nos longínquos cimos das montanhas cinzentas, não se diferençava, no ar melancólico, do tenro moço, arrancado pela ambição aos braços da mãe, que o deixou ir sem resistência, dando-se como certa a prosperidade em que tornaria a vê-lo.

     Quem mais dava nos olhos, pelo chorar ansioso, era uma senhora vestida em rigoroso luto, com véu preto descido, e com dois meninos, um de dois anos, outro de peito ainda, sentados no colo de uma preta, criada sua.

     -      Aquela dama chora por ela e por mim! - disse, com zombeteiro sorriso, Luís da Cunha ao capitão.

     - E o senhor não leva saudades de ninguém?

     -      Não, senhor. Não levo, nem deixo. Não tenho pátria, nem família. Não sei se fora dos lagos da Alemanha também há ondinas. Se neste mar me namorasse de uma, casava com ela, e viveríamos na mesma concha.

     -      Bem se vê que não deixa em Portugal ninguém que lhe seja caro. A quatro milhas da pátria nunca tive passageiro nenhum que risse de tão boa vontade!

     - Pois alguma vez havia de encontrar o ímpio contra a religião do amor pátrio. Não sei o que é isso, e dou-me os parabéns de o não saber. Aquela mulher porque chora? São saudades?

     - Saudades, sim, do marido, que deixa na sepultura.

     - É o único lugar seguro onde podia deixá-lo. Se for ciumosa, pode ir e tornar, na certeza de que o não surpreenderá numa infidelidade...

     - Não zombe de cousas tão sérias, Senhor Cunha. Cá no mar respeita-se a religião...

     - E, em terra, estes piedosos marinheiros convertem-na em libações de canadal... Vejo que é um bom católico, Senhor Capitão!

     - E o senhor não é católico?

     - Eu não sei o que sou melhor do que o senhor. Sou este homem que vê. Tanto sou em terra como no mar. Não me canso de pensar em cousas superiores ao meu bom senso, e vivo à discrição da fatalidade como este navio à mercê das ondas... Então aquela senhora viúva é brasileira?

     - Sim, senhor. Enviuvou há dois meses e vai ao Brasil tomar conta da administração da sua casa. É uma rica fazendeira de café e cana.

     - Não leva com ela algum parente?

     - Não, senhor. Leva duas criadas, e aqueles dois meninos. Coitada!, como não irá aquele coração! Não há ainda oito meses que ela aqui passou tão contente com o marido, que era doudo por ela! Mal diriam eles! A vida é um engano! Quando penso nos trabalhos que se procuram, para ampliar dois dias de vida, dá-me vontade de viver em descanso com meus filhos, comendo um bocado de pão extreme, e ensinando-os a desprezarem a enganadora ambição de riquezas, que por fim... ali tem o exemplo!... Quanto daria aquela senhora por ter seu marido vivo! Dava de boa mente os trezentos contos que tem...

     -      Trezentos contos! Parece-me muito conto!

     -      Admira-se? Pois tomara eu o que ela tem daí para acima...

     As reflexões melancólicas do capitão, acerca da rapidez da vida, não impressionaram Luís da Cunha: mas o fecho da lamúria filosófica, os trezentos contos, foi um valente encontrão à sua insensibilidade. Se naquele momento fosse possível abrir-lhe o crânio, e analisar-lhe o cérebro, ver-se-ia um arfar vertiginoso nas bossas predominantes daquela máquina! O capitão, sem o pensar, jogara um aríete à alma petrificada do passageiro, e abrira larga brecha por onde iam sair planos de infame cálculo.

     A viúva retirara, quase nos braços das criadas, à sala de ré. Luís da Cunha desceu também, dominado por um pensamento que não suportava delongas. Tão radiosa lhe fulgira a esperança de angariar uma fortuna colossal, e tão susceptível de realizar-se lhe parecera um casamento com a fazendeira de café, que, desde esse momento, o experimentado aventureiro julgou-se protegido pelo diabo coxo de Lesage, e prometeu não perder ocasião de captar a benevolência da viúva.

     Como ela tivesse recolhido ao seu beliche, para esconder dos indiferentes as incessantes lágrimas, Luís meditou devagar o seu plano, estudando o papel adaptado ao carácter da viúva, e afivelando-se uma máscara, visto que todas se ajustavam à perversa flexibilidade da sua fisionomia moral.

     Convindo na conveniência de representar mui seriamente, arrependeu-se das imprudentes facécias com que respondera às graves perguntas do capitão. Entendeu, porém, que a maneira de desvanecer o prejudicial conceito que merecera ao marítimo, era explicar a sua sarcásticas jovialidade como um pretexto para iludir-se de um profundo dissabor, uma dessas pungentes ironias com que o desgraçado imagina vingar-se do verdugo destino que o persegue.

     Entrou em cena, e desempenhou magistralmente.

     O capitão, sincero e rústico, mais conhecedor dos escolhos do mar que dos outros que se topam nas tempestades da vida, condoeu-se da patética narração inventada pelo passageiro, aludindo à perda de um coração que lhe fora caro, à ingratidão de uma aleivosa mulher, que injuriara com a perfídia a sua generosa alma. Por causa dela - dizia o cómico - abandonava o caro berço natal, o céu dos seus amores de moço, cheio de ilusões, mortas, calcadas, perdidas para sempre! E tão grande fora essa dor, tal desespero envolvera de negro a sua alma - prosseguia ele, enrugando a fronte, e correndo por ela a mão com a mais velhaca naturalidade -, que protestara afrontar com o escárnio todos os sentimentos nobres, pois que os seus também o tinham sido por uma traiçoeira mulher, coligada com miseráveis inimigos. E, dito isto, no mais rigoroso ademã do palco, retirou-se, deixando o capitão contristado, e condoído da sorte do pobre moço, que tão cedo perdera o gosto da vida.

     Os passageiros a galera Boa Sorte, informados pelo capitão, olhavam para Luís da Cunha com certo ar de respeito e de triste curiosidade. O silêncio fúnebre de tal homem, sombrio sempre, movera o natural interesse dos

     sinceros companheiros, e não passara despercebido a D. Mariana, suposto que as suas penas fossem de sobra, para se dar cuidado com as estranhas.

     Luís da Cunha felicitou-se do grande passo que dera.

     O que não parece nada, era já muito para ele. Esse interesse, essa espécie de curiosa compaixão, o atencioso silêncio com que duas palavras suas eram escutadas, eram, com efeito, aquisições que lhe valiam, na opinião daquele público, uma consideração que ninguém contrariava.

     Havia um só motivo que descerrasse um ligeiro sorriso nos lábios de Luís: era o menino mais velho de D. Mariana, a criancinha de dois anos, que, atraída pelos agrados do passageiro, lhe dava a preferência nos carinhos. A mãe lisonjeava-se deste acolhimento, e chorava, porque mais vivas a assaltavam as recordações de seu marido, ao qual tão caros eram os afagos do menino.

     Luís, amestrado pelo contínuo estudo, não tratava de mitigar com o bálsamo banal dos seus companheiros a ferida da saudosa viúva. Pelo contrário: dizia-lhe que chorasse, se perdera um ente querido, um extremoso marido, metade da sua alma, o melhor da sua existência, um homem digno dela. Como consolação, apenas lhe dizia que o encarasse a ele, e veria ali enxutos os olhos, que derramaram lágrimas de sangue, e, por fim, mirraram-se, como o coração exangue, árido e ressequido, debaixo da sua lousa. Dizia-lhe que para ela não era impossível a ventura, porque, cedo ou tarde, encontraria em um segundo marido o reflexo das virtudes do primeiro; seria, outra vez, ditosa, porque há anjos privilegiados que o Altíssimo não abandona, mesmo quando os deixa sozinhos na Terra, onde encontrarão um amparo que lhes adoce as saudades de um outro partido sob a lousa da sepultura.

     Este estilo de cabeça não era mesquinho em figuras.

     Os períodos eram artisticamente arredondados, acinzelados, torneados como os ombros de uma estátua. Os discursos, sempre decorados da véspera, não tinham falha que os fizesse tinir mal aos ouvidos de Mariana. Em tudo, e até nos improvisos, havia uma razão de ordem conexa, um rigor lógico de honradez, um espantoso triunfo da corrupção eloquente sobre o gaguejar da ingenuidade sempre boçal e descosida nos seus discursos.

     Luís da Cunha não se escondia para estes ligeiros diálogos com Mariana. Em ocasião de almoço ou jantar, e não sempre, é que se interessava na conversa dos que por delicadeza procuravam consolar a viúva, sempre inconsolável.

     O pequeno Antoninho afizera-se tanto a Luís, que chorava, se o não levavam de manhã ao beliche do seuamigo. Mariana agradecia ao carinho sofredor de seu filho tantos favores, e ficava contente se Luís lhe dizia que era devedor àquele menino dos raros momentos de prazer que Deus ainda lhe concedia por intermédio de um inocente.

     Vejam que estudo!

     E assim passaram vinte dias de viagem. As amarguras de Mariana tinham transigido um pouco com a natureza, que parece não ter sido feita para os sofrimentos duradouros, e desmente sempre os propósitos de um luto perpétuo, variando as sensações com mágica destreza.

     Menos lagrimosa, ou mais resignada, que é o que sempre se diz, a viúva não fugia da mesa, apenas terminava a refeição. Demorava-se na palestra, silenciosa sim comoLuís, mas respondia com um aceno afirmativo às atenções que os brasileiros de torna-viagem lhe davam, nas suas conversas dissaboridas. Luís fazia-se estranho a elas, fingindo-se abstracto em cismadoras tristezas de que o compadecido capitão ou D. Mariana o acordavam com esta ou outra semelhante pergunta:

     - Que tem, Senhor Luís da Cunha? Em que pensa?

     - No nada, minha senhora.

     - Sempre assim! Quando virá o dia de o vermos alegre?

     -      O dia final.

     -      Que ideia tão triste! Então não espera, com vinte e oito anos, tão novo, encontrar nesta vida a felicidade?

     - Não, minha senhora.

     - Não pode ela aparecer-lhe como um acaso?

     - A morte... e essa é certíssima... espero-a com a segurança de quem a vê continuamente diante dos olhos.

     - Não fale na morte... Eu tenho esperanças de o ver feliz... Há-de encontrar no Brasil uma menina, muito linda e inocente, que lhe encha o coração de um novo amor...

     - Não tenho espaço para ele: onde está o demónio, não pode entrar um anjo.

     - Mas Deus pode mais que Satanás - replicou Mariana.

     - Isso é verdade! - confirmaram três brasileiros.

     - Pois Deus realize a sua generosa vontade, minha senhora.

     Luís da Cunha, com esta resposta, lançou a sonda ao coração da viúva. O que ela lá encontrou, não o sei eu; mas que Mariana fez um gesto de ressentimento, isso foi um facto, que não escapava à fina observação de Luís da Cunha, nem à do leitor ou leitora, que são pessoas das muito raras que eu conheço com vista dupla para ler um coração na ruga repentina da testa, ou no ligeiro morder do lábio.

     Seria indiscreta a versão feita por Luís do repentino baixar de olhos da viúva? Não era, não. O desejo que ela afectava de o ver feliz pelo encontro de uma menina linda e inocente, não era, realmente, o seu desejo, se a menina linda e inocente não era ela.

     Como essa pobre mulher, durante um mês de viagem chorou todas as lágrimas que tinha perpetuado à memória do seu marido, isso explica-se pela inactividade das glândulas lacrimais, quando a acção vital se concentra no coração. A sua desesperada angústia, nos primeiros meses de viúva, não podia durar muito. Dor que se expande em soluços, que rejeita consolações impotentes, e não espera nada dos recursos ordinários, mata depressa, ou depressa se desvanece. Ora, a dor de uma viúva de vinte e cinco anos está, mais que nenhuma outra, sujeita àquele aforismo, que não li em Hipócrates, mas nem por isso devem deixar de o aceitar como regra de fisiologia experimental.

     E, depois, quando o aforismo não frisasse com o facto, dou-vos uma razão mais forte, mais experimentada, e menos especulativa que as teorias incertas acerca do coração.

     Fora necessário que Mariana tivesse sempre a seu lado um anjo a segredar-lhe os precedentes de Luís da Cunha, para que ela se não deixasse ilaquear na rede habilmente lançada à sua fraqueza. O aspecto grave, austero e melancólico do cavalheiro, que não faltava à menor cortesia de uma refinada polidez; a veneração com que todos os companheiros de viagem respeitavam a sua tristeza sombria; a bondade que o seu sorriso respirava quando Antoninho, fugindo do colo da mãe, voava com um beijo aos braços dele; a sensatez das suas reflexões a respeito do justo pranto da viúva, que perdeu um bom marido, tão raro entre os pervertidos filhos do século; os seus momentâneos êxtasis, quando a palavra amor lhe roçava fugitivamente os lábios; e, finalmente, a certeza, dada pelo capitão, do ilustre nascimento de Luís, visto que na sua carteira levava uma ordem de seis contos de réis, que lhe fora entregue por um padre, espécie de mordomo ou cousa que o valha do misterioso passageiro: todas estas contingências reunidas, e outras muitas que nem a própria viúva saberia explicá-las, davam a Luís da Cunha um ar de grandeza, de distinção, de simpatia, que, em poucos dias, causara em Mariana vergonha da sua própria fraqueza, e até pesar de ter encontrado tal homem.

     De mais a mais, os olhos de Luís, tão expressivos e ardentes nas suas queixas contra o destino, baixavam-se submissos, se encontravam os olhos dela, em que a curiosidade não era menos significativa que a ternura. E porque se baixavam esses olhos? Mal vai ao coração da mulher, quando esta curiosa pergunta a incomoda! De dia para dia redobra-lhe o desejo de entender esses olhos equívocos, essa modéstia encantadora. Se eles se esquivavam em confessar-se, ou se a palavra tímida os não denuncia, o que era desejo, na mulher já ferida, torna-se em ânsia de resolver o problema. Chega a assustar-se dessa aparente submissão, dessa mudez desamorável. Quem sabe se aquele olhar, fugindo aos olhos dela, quer dizer que o coração foge também? E então entra na empresa o mais forte inimigo da mulher: o amor-próprio, esse conselheiro íntimo, que a salva raras vezes da queda, e, demónio de soberba, impele-a quase sempre à perdição, vendando-lhe os olhos do juízo, e dando-lhe aos do amor vista dupla, o ver penetrante, que, em linguagem do tempo, se chama a razão livre, a santificação do instinto. Era o amor-próprio o que fizera na face de Mariana um sinal de ressentimento. Ainda que Luís da Cunha representasse o papel de atraiçoado amante, extenuado para novas paixões, a viúva, como todas as mulheres nas circunstâncias dela, formosa e rica, tivera uma vez e outra a vangloriosa ideia de ressuscitar aquele homem, que se julgava morto. Que nos perdoem as feiticeiras Horinhas com que o Senhor matizou as agruras da existência; mas uma fragilidade muito sensível, e que muitas vezes as prejudica na sua isenção, é o orgulho de acorrentar a fera que faz estragos desenfreada, ou insuflar uma existência nova no homem que adquiriu nota de cansado.

     Arriscada empresa todos os dias cometida com mau sucesso! A inexorável serpente do éden está sempre assobiando aos ouvidos da eterna Eva. A vaidade, criação contemporânea da primeira mulher, continua a oferecer-lhe em taça de ouro o sumo do pomo, doce na superfície, e fel no fundo. A que intenta prostrar a seus pés o conquistador soberbo, para que a fascinação do seu engodo seja inveja às que não puderam tanto, é sempre vítima, se o homem, que facilmente se dá aos ferros, não tem ainda passado a linha da vida além da qual está o completo cansaço do corpo e da alma, tristes sócios de um tardio desengano. A que intenta restaurar no coração do homem as potências, atrofiadas pela perfídia, não sabe que será ela a oferenda expiatória do crime de outra mulher; não sabe que o traído recupera as forças, convertendo-as em vingança, porque tudo que nessa alma existia nobre e santo, bem pode ser que não sobrevivesse à morte de um primeiro amor galardoado com o desprezo.

     Leitora, não se enfade V. Ex.ª com o longo período que vem de ler, se é que o leu. Não seja ingrata à lhaneza com que se lhe mostra o homem tal qual é, e com que se trazem do insondável da sua alma à luz da análise cousas que V. Ex.ª não vê em si, e muito raras vezes descobre nele.

     Se D. Mariana tivesse encontrado na abundante leitura de romances uma outra Mariana em face de um outro Luís da Cunha, parece-me que saberia resistir aos primeiros assaltos do amor, vitória que alcançou a hábil hipocrisia, adestrada em doze anos de infâmias. Não quero, porém, com isto dizer que D. Mariana sucumbisse, como imbecil, ao prestígio do excêntrico companheiro de viagem.

     O que ela tinha de pior era não ser imbecil. Foi cousa que seu defunto marido não apoiava, a tendência dela para o maravilhoso. A índole, acalorada pelos romances, seu passatempo querido, manifestara-se de um modo assustador para um marido não convencido da sua superioridade a todos os outros homens, perante sua mulher.

     O falecido fazendeiro de café era um homem excelente; mas, a respeito de inteligência, não falemos nisso. O verniz que tinha, pouco ou muito, era obra de Mariana, que sinceramente o prezava, desde que ele entrara como feitor em casa de seu pai. Diga-se de passagem que este homem, aos trinta anos arrebatado por uma febre-tifóide, era nosso patrício, nascera nos Arcos de Valdevez, daí saíra aos doze anos, e aí voltara rico para morrer nos braços dos seus parentes, que tirou da miséria. Tantas virtudes, mantidas pelo trabalho, são sobeja honra à memória do marido de D. Mariana. Não precisamos, mentindo, encarecer-lha com dotes que ele não tinha, e, por isso mesmo, não aprovava em sua mulher.

     Mostrara-lhe, talvez, uma intuição clara que as tendências romanescas de sua mulher a precipitariam. Viu bem.

     Não sei se Mariana tinha sonhado o tipo de Luís da Cunha, como se diz em verso; se o tinha sonhado, encontrou-o na realidade, o que é alguma cousa pior. Os traços do astucioso carácter moral não discordavam do físico. Para a sua fisionomia triste e simpática arranjara-se Luís da Cunha uma alma tão ao natural, que deixara a perder de vista as imperfeições da natureza. A arte, enquanto a mim, pode mais que a sua rival.

     Sem arte não encaminhava Luís da Cunha as cousas a ponto de Mariana ir sentar-se, alta noite, a seu lado, na tolda, contando silenciosa as estrelas do céu, entre as quais dizia o impostor que procurava a fada do seu destino.

     -      Se a vir - dizia Mariana -, peça-lhe que lhe diga o meu.

     - O seu destino posso eu dizer-lho, Senhora D. Mariana.

     - Qual?... Diga, diga.

     -      Há-de ser venturosa, venturosa sempre.

     -      E sou eu venturosa? Sozinha no mundo...

     -      Quem tem o coração povoado de anjos nunca está sozinha... Qual será o homem que a não adore? Pode V. Ex.ª rejeitar o culto, pode julgar-se só enquanto não encontrar uma alma afinada pela sua; mas, enquanto se é adorada, não se pode julgar sozinha...

     - E que valho eu para ser adorada?

     - Vale as mais santas esperanças de um homem com o coração viçoso, ainda rico de todas as ilusões, puro ainda de toda a mancha; vale um preço inestimável; vale uma existência. Tivesse eu esse coração, com esperanças, com vigor, com pureza... não me tivessem vazado nele torrentes de fel que mo queimam...

     - Sem esperança?

     - Nenhuma esperança... tenho-lho dito como uma confidência que se faz a uma irmã...

     - E eu não posso crê-lo... Deus não quer que a sua vida acabe tão cedo... Há-de haver alguém que lhe faça esquecer essa mulher, indigna de si...

     -      Onde encontrarei eu outra?

     -      Onde a encontrará? Talvez no Rio de Janeiro, onde há tantas... e tão sedutoras...

     -      Oh!, que santa profecia é essa!... V. Ex.ª não me conhece... não se conhece...

     -      Não me conheço!... Que quer dizer?

     -      Nada, minha senhora.

     - Diga... não me deixe dar uma má significação às suas palavras.

     - Pois sim, digo; mas que a não vá eu ferir... promete perdoar-me?

     - Pois que me dirá que eu não devia perdoar-lhe?!

     - Não se conhece; porque, se alguma mulher podia dar-me a mão, afastando de sobre mim a pedra sepulcral... Já me compreendeu...

     Mariana baixara os olhos, e estremecera. Subira-lhe às faces o calor do coração. Sentira em si uma confusão de ideias, uma embriaguez de felicidade e receio, uma tal perturbação que, naquele momento, quisera antes não estar ali, suposto que em parte alguma pudesse estar melhor.

     Luís da Cunha encostando a face à mão direita, pusera a mão de modo que os olhos retorcidos não perdessem um movimento de Mariana. - É o que eu tinha previsto - disse ele a si próprio, sorrindo mentalmente. Passados alguns segundos dramaticamente taciturnos, Luís, como de um rapto, saiu do seu êxtasis, e perguntou com a mais artística comoção:

     -      Ofendi-a? Lembre-se que prometeu perdoar-me.

     -      Perdoo-lhe todo o mal que me fez...

     - Vê como sou infeliz?

     - Infeliz!... Qual de nós é mais?

     - Tão infeliz que faço mal a quem eu quisera dar todas as felicidades da Terra, se tivesse omnipotência de Deus.

     - O mal que me fez... poderia converter-se, se Deus o quisesse, em ventura de ambos...

     -      Poderia!... eu bem sei que podia... Sr.ª D. Mariana... eu devera tê-la encontrado no princípio da minha juventude... Éramos hoje tudo o que o desejo pode imaginar de mais feliz, de mais invejável... Segue-se que é mentira aproximarem-se os entes que o destino talhou para se unirem... Quando se encontram, já a desgraça os traz desfigurados; vêem-se, e não se conhecem; falam-se, e não se compreendem; abraçam-se, e sentem-se frios como a pedra de um túmulo, como dois cadáveres, que se levantam, a par, da mesma campa...

     -      E é o que nós somos um para o outro? Julga-me tão mal, Senhor Luís da Cunha!

     O filho de Ricarda ergue-se impetuosamente, dá quatro passeios no tombadilho, afastando os cabelos da testa, e pára defronte da viúva, com a atitude mais ridiculamente sinistra que pode imaginar-se.

     - Senhora D. Mariana!

     Ela fixou-o, erguendo-se também assustada.

     -      Senhora D. Mariana!, ouve uma voz celeste, que a manda salvar-me? É o instrumento sobrenatural do meu anjo de redenção? Responda...

     -      Que posso eu responder-lhe?

     -      Obedeça ao seu coração... Este momento pode marcar uma nova época na minha vida...

     -      Senhor Luís da Cunha...

     -      Responda, Mariana, não receie ferir-me com uma palavra negativa... Eu preciso mesmo do último desengano...

     -      Que hei-de eu dizer-lhe... sem que me tenha dito...

     -      Que a amo?... Não o adivinhou ainda, Mariana?!

     A viúva encostou-se à amurada do navio, e pousou a barba na palma da mão direita, cujo braço tremia em perceptível convulsão. Um raio da Lua reflectiu-se nas lágrimas dela. Luís da Cunha teve desses raros momentos de compaixão, que costumam assaltar o infame: devera então maravilhar-se do mágico prestígio da impudência.

     O capitão subia ao convés, e olhou com indiferença para os dois passageiros, que não eram suspeitos a ninguém.

     Mariana, dizendo-se influxada pelo ar da noite, desceu à câmara, pedindo a Luís da Cunha que se recolhesse também. Era do plano astucioso obedecer.

     Desde o dia imediato, repararam alguns passageiros na frequente conversação da viúva com o homem misterioso. O capitão, prevenido por eles, reparara também que os passeios na tolda eram certos todas as noites. O que eles todos notavam era uma sensível diferença nos estranhos costumes do companheiro. Já não era preciso instar com ele para assistir ao almoço. Acontecia muitas vezes encontrarem-no já com Mariana, conversando em tom que subia uma oitava acima quando entrava alguém. Viam-os, depois do almoço, ao pé da agulha, fugindo da ré, onde se agrupavam os passageiros. Para admirarem o fenómeno magnético do íman com o norte, achavam os críticos que era tempo de mais. Murmurou-se que havia namoro, e censuravam a leviandade de Mariana, que tanto chorara, e tão depressa esquecera o marido. Mas não passava disto a murmuração.

     Com trinta e cinco dias de viagem, chegaram ao seu destino. A bordo da galera vieram os parentes de Mariana. Luís da Cunha, apresentado por ela a seus tios, como pessoa a quem devia muitas finezas, foi convidado para sua casa, e aceitou com arteira dificuldade, que as instâncias convencionadas de Mariana venceram.

     O filho de Ricarda recebeu a ordem de seis contos de réis, fechada num invólucro em branco, qual o padre Madureira a entregara. Dentro desse invólucro, junto à ordem, estava uma carta designada a Luís da Cunha.

     Abriu-a, e leu:

     Luís da Cunha foi remido da ignomínia, do degredo, da fome, e da morte por Açucena. Se esta certeza lhe não valer um arrependimento nobre, sirva-lhe ao menos de vergonha perante a sua consciência.

     A perplexidade do prometido esposo de Mariana durou poucos segundos. Daquela alma já não era possível arrancar vergonha nem remorso. O padre Madureira enganara-se. Queimando a carta, Luís da Cunha entendeu que o segredo voava nas cinzas dela. Estabeleceu tranquilas conjecturas acerca da riqueza de Açucena: donde lhe viriam perto de quarenta mil cruzados?

     Ocorreram-lhe hipóteses, quase todas ignóbeis, e sórdidas. E, como nenhuma era mais provável que as outras, Luís da Cunha resolveu, um dia, embolsá-la desse empréstimo.

     Hospedado em casa de um tio de D. Mariana, a sua vida, posto que inactiva, era regular, e bem procedida.

     Não aceitou apresentações nas salas da boa roda, porque D. Mariana as não frequentava, como viúva. Visitava-a todos os dias em família. Escrevia-lhe todas as manhãs, e recebia de tarde o menino, que era o pretexto para a entrega das cartas.

     Viúva de onze meses, D. Mariana, administradora da sua casa comercial, declarou, por delicadeza, aos parentes, que, passado o luto, casava com Luís da Cunha. Não se opuseram estorvos, que seriam inúteis. O noivo era benquisto: informações de Portugal era tarde para havê-las: o astuto soubera dirigir o plano de modo que se não pedissem a tempo.

     Casaram.

     No dia imediato espalhara-se no Rio que D. Mariana casara com um infame aventureiro, fugido de Portugal, depois que os seus crimes lá não cabiam.

     Esta terrível nova fora levada pelo capitão da galera, que se informara em Lisboa, para saber se Luís da Cunha seria o que parecia no primeiro dia de viagem, ou nos outros.

     Era tarde. O mais que podiam os interessados na felicidade de Mariana era verem desmentida a calúnia, ou confirmado o boato pelo procedimento do marido.

   

    Explosão da infâmia representada

     Eram passados três meses. Não havia razão nenhuma para acreditar a fama, confirmada por ulteriores indagações. Luís da Cunha não desmerecera nada nas esperanças de Mariana, e vivia à mercê da vontade dela, que era a primeira a lembrar-lhe os bailes, o teatro e os passeios, que o bom marido frequentava com ar de aborrecido.

     Os que tinham como certos os escândalos de Luís em Portugal, estavam com ele em suspeitosa guarda, não querendo aceitar como possível a sua emenda. Andava aqui inveja da avultada riqueza que a fortuna da caprichosa lhe dera; o todo, porém, desses cabedais, em terrenos e prédios urbanos, não podia considerar-se propriedade alienável da viúva, que era simples administradora de seus filhos. Ainda assim, a sua meação avaliavam-na em cem contos de réis.

     Como quer que fosse, Luís da Cunha estava rico.

     A administração económica da casa, em poucos anos, podia dobrar o que era legitimamente seu por mútua escritura.

     O marido de Mariana chegou a acreditar na sua regeneração. Sabia das suas íntimas confidências, que de todas as mulheres a que menos amava era a sua; mas também não sentia os imperiosos estímulos de procurar emoções nas outras. A paz, as comodidades, o luxo, a consideração, bem-estar que nunca experimentara, agradavam-lhe. Constavam-lhe as informações idas de Portugal, e queria, até por capricho, desmenti-las. Sinal era de que a opinião pública alguma cousa valia já na sua.

     Este sintoma enganaria o mais sisudo fisiologista do coração, quando o próprio Luís da Cunha acreditava na estranha reforma das suas tendências.

     Basta dizer-vos que D. Mariana chamava-se feliz, e alardeava com soberba a sua boa escolha na presença dos que faziam coro com a maledicência, mordendo a reputação de seu marido.

     Deliciosos três meses!

     Mas ao quarto... Porque não morreu aquela pobre senhora no terceiro? Porque não se aplacou o inexorável destino daquele homem? Porque há-de ser tão brutal, tão déspota a desgraça, atirando abaixo das felizes ilusões a vítima a que deu tréguas de alguns meses?

     Mas, ao quarto, Luís da Cunha viu uma dançarina no teatro, e fixou-a com tal curiosidade que o coração de Mariana palpitou dolorosamente. Quis desviar-lhe a atenção da perigosa mulher, e não pôde. Quis, no dia seguinte, com um subtil pretexto, sair para os arrabaldes da capital, mas seu marido, com pretextos ainda mais subtis, adiou a saída.

     A dançarina era francesa. Tinha a seu favor todos os demónios alados da sedução. Era fresca como um ramalhete de camélias. Tinha os olhos mais maliciosos, mais voluptuosos, mais zombeteiros que podem descender de uma costela do homem, amputado no seu barro primitivo. As pernas tão expostas à avidez da análise, não invejavam a correcção proverbial das de Diana caçadora. Nos braços, de um cetim transparente, destacava-se a rede das veias azuladas, onde o sangue buliçoso vos deixaria suspeitar se eram aqueles os braços roubados à Vénus de Milo. O pé, que nenhuma sevilhana teve nem mais pequeno, nem mais arqueado, obedecia ao frenesi das evoluções, ou encontrava o dente da tarântula, cada vez que tocava o invejado pavimento do palco. Era a Paquita que Asmodeu inventara para Cléofas. Era a criatura de Lúcifer em competência com as criaturas de Deus.

     Luís da Cunha não experimentara ainda as paixões tempestuosas do teatro, a mordedura desses desejos enfurecidos pelo ciúme de muitos concorrentes, essa garganta, que sorve com o ouro as ilusões nobres do coração; enfim, essa vertigem que faz de um amor vendido um triunfo à custa do desdouro em público, e das lágrimas no recinto doméstico.

     Era forçoso ao homem de todas as situações conhecer esta.

     Mariana não precisava de mais provas; eram desnecessários os avisos das suas amigas: uma boa esposa está muito perto do coração de seu marido; a sombra de uma ligeira infidelidade sente-se logo no escurecer da alegria tranquila que se lhe irradia dos olhos enxutos. Vêm logo as lágrimas acusarem o que os lábios não acusam. Vem a pálida melancolia enturvar os sorrisos descuidados da doce paz.

     Era assim que ela se queixava de Luís da Cunha, que parecia estranho a essas tímidas manifestações de ciúme.

     Se os lábios deixavam passar um gemido, ninguém a consolava, porque não queria testemunhas. Luís costumava enrugar a testa com fastiento gesto aos suspiros repetidos de sua mulher.

     Entretanto, o alucinado empregava todos os processos conhecidos para satisfazer a ânsia pertinaz. Fez grandes ofertas de dinheiro, repelidas sempre. Cortejou a bailarina, valendo-se umas vezes da brandura hipócrita, outras da violência natural. Nem de uma, nem da outra maneira. Ao lado da francesa estava um amante, francês também, caprichoso, ciumento, e espadachim. Luís da Cunha fora ameaçado por ele, e conteve-se enquanto as esperanças lhe não faliram.

     Mariana já transigia com a infidelidade; mas não queria ver-se sacrificada, no coração do esposo, ao amor sensual de uma mulher sem alma. Os seus amigos lamentavam-na; os infamadores tenazes de Luís da Cunha batiam as palmas. A infeliz tentou uma dolorosa luta consigo mesma. Advertiu seu marido do que se dizia; pediu-lhe que não desse aos seus amigos o prazer de o apregoarem tal qual as informações de Lisboa o pintavam.

     Luís da Cunha riu-se, dizendo com grosseira altivez que os seus inimigos podiam ser atados em feixe com um chicote, e mandados de presente ao diabo.

     As promessas redobraram, e a bailarina caiu do pedestal do capricho, onde quisera ter-se como em pedestal de virtude.

     Cedeu, e com tanto escândalo que, na noite de próximo teatro, em pleno espectáculo, Luís da Cunha recebeu do rival uma bofetada na face, à qual respondeu com chicotadas, que lhe deram a primazia na luta. Tratou-se um duelo, que Luís da Cunha disse não aceitava, porque era filho de um dos mais nobres fidalgos de Portugal, e não media o seu florete com um troca-tintas da França.

     O francês, dias depois, abandonava o Rio para evitar um assédio de traiçoeiros punhais, comprados por Luís da Cunha.

     A bailarina estava sob o exclusivo domínio do novo amante. O seu fausto centuplicou em grandeza. Prendas de um valor enorme, arrancadas pela prodigalidade do ouro a especuladores astuciosos, eram o preço da escandalosa rival de Mariana.

     Os amigos desta, finda a estação do teatro, expulsaram a dançarina, com artificiosa violência, ou por dinheiro, que Mariana deu como se o restabelecimento da sua ventura dependesse da ausência da francesa.

     Luís da Cunha foi surpreendido pela fuga da segunda Liberata que lhe tocara o coração. Disfarçou a afronta em público; mas, de portas adentro, desforçou-se do ultraje, desprezando Mariana. Esta mulher era sublime!

     Quis convencer a sociedade de que era outra vez feliz, para readquirir o bom nome de seu marido.

     Luís da Cunha compreendeu-a; deu ares de compadecido, fez sobre si um esforço, e convenceu-a do seu arrependimento. Vejamos porquê.

     Dois meses depois, Mariana era outra vez ditosa.

     O detrimento que a sua casa sofrera estava remido. As dissipações com a mulher do teatro, posto que exorbitantes, não doíam no coração da nobre senhora. Esses cálculos deixava-os ela à curiosidade dos mesquinhos louvados dos seus haveres. O que ela queria era o coração de seu marido, e esse capacitou-a ele de que fora sempre seu, até mesmo na embriaguez vertiginosa dessa fatal loucura com a francesa.

     Chegou a Primavera, e Luís da Cunha projectou com sua mulher uma visita às primeiras capitais da Europa.

     Mariana desejava ver Paris, Veneza e Londres. Não queria, porém, tornar a Portugal. O marido conveio da melhor vontade na excepção, e partiram.

     Em Paris, mal se hospedaram, Luís da Cunha saiu a colher informações da dançarina Carlota Gauthier. Fora escriturada para Madrid. Em breves dias viu com sua, mulher os objectos menos notáveis de Paris. A impaciência ralava-o. Inventou uma epidemia para retirar-se, e prometeu a Mariana voltar.

     Em Madrid foi acolhido por Carlota, que não teve pejo de receber o abandonado amante, fantasiando a violência com que fora arrastada a bordo de uma embarcação.

     Luís propôs-lhe abandonar o teatro, a troco de doze contos de réis anuais. O seu desenlace devia ser imediato: nem uma só vez apareceria no palco. Luís da Cunha evitava assim que sua mulher visse a bailarina, e explicasse a viagem à Europa, e a saída precipitada de Paris.

     Carlota aceitou: rompeu as escrituras; e o amante pagou a condenação.

     Mariana não podia compreender as saídas frequentes de Luís, deixando-a só numa hospedaria! Não se queixava para não ser, talvez, injusta com as abstracções de seu marido. Suspeitou um passageiro namoro com alguma madrilense dentre tantas tão sedutoras, e cujo garbo ela não podia invejar. Por necessidade de conviver, relacionou-se com uma família portuguesa, hospedada no mesmo hotel. Fugia de revelar os seus pesares; mas uma das senhoras portuguesas adivinhou-lhos. O marido desta sabia quais eram as distracções de Luís da Cunha. O rompimento da escritura era sabido de todos.

     O amante de Carlota era apontado. Só Mariana ignorava o que em Madrid era matéria de ociosa análise, até ao momento em que a senhora portuguesa lhe aclarou o segredo das frequentes saídas.

     Mariana adoeceu. Luís suspeitou a inutilidade dos seus cuidados em esconder de sua mulher o escândalo que dava a todo o mundo, galardoando-se dele, e guardando-se apenas dela.

     Na incerteza, convidou carinhosamente Mariana a continuarem a sua viagem. A desgraçada, apegando-se ao derradeiro fio da esperança, imaginou que a dançarina ficaria em Madrid.

     A ânsia de sair restabeleceu-a, e partiram; mas, ao dar o último adeus à dama portuguesa, disse-lhe esta ao ouvido: -      Se vão para Paris, saiba, minha amiga, que a dançarina já para lá partiu há dois dias.

     - Não vamos para Paris... - dizia, depois, Mariana a seu marido.

     - Porquê, minha filha?

     -      Porque receio a epidemia.

     -      Sou informado de que já não há peste em Paris.

     -      Há, há...

     -      Como sabes que há?!

     -      Não é só a peste, é também a morte para esta desgraçada mulher, que trazes pelos cabelos a ser testemunha das tuas infidelidades... dos teus desprezos...

     -      Isso é uma calúnia, Mariana.

     -      Não vamos para Paris, meu querido amigo... não vamos, não? Já vi tudo... não quero ver mais nada de lá. Vamos para a Itália... sim?

     -      Iremos; mas é necessário fazer escala por Paris.

     -      Tenho entendido... hei-de ser morta por essa mulher!...

     -      Que mulher?!

     -      Carlota...

     - Ora adeus! Quem zombou assim da tua credulidade? Eu não sei dessa mulher.

     -      Desde que te despediste dela em Madrid?

     -      Tem juízo, minha criança... Tu já sabes que a parte que tens em minha alma não pode ser substituída por ninguém, e muito menos por cómicas...

     -      Desgraçadamente tenho a certeza do contrário.. Queres dar-me uma prova de estima? Fazes-me um favor, que eu te agradecerei de joelhos?

     - Que é, Mariana?

     - Vamos para nossa casa... Vamos ser felizes como temos sido... Eu esqueço-me de tudo; nunca te falarei desta mulher, mas vamos já...

     -      Não tem jeito nenhum esse contra-senso. E um disparate que faria rir os nossos conhecidos!

     -      Pois que riam eles, e não chore a tua amiga. Vamos, Luís?... Fazes-me a vontade?

     -      Não posso.

     - Não podes?! Que maneira é essa de responder-me?! Lançaste-me um olhar que nunca te vi! Santo Deus, que começo a ter medo do teu aspecto! Será possível que tu sejas o homem que se disse?

     - Não sei o que sou: fica naquilo que te parecer.

     -      Pois bem, Luís, manda-me para os meus filhos, e fica tu em Paris.

     -      Não irás, Mariana. Hás-de ir comigo.

     - Hei-de ir já para minha casa... Tenho um pressentimento que morrerei longe dos meus filhos... Desliga-te de mim, faz o que quiseres; mas não sejas tão mau que me obrigues a acompanhar-te nos teus desatinos.

     Esta aflitiva cena passava-se numa estação, onde parara a diligência para os passageiros almoçarem. Luís da Cunha deixara sua mulher, quase de joelhos, e viera para uma janela trautear uma ária. Depois, irritado pelo imperioso hei-de ir já!, voltou-se para dentro com arremesso, cruzou os braços, fez um gesto afirmativo de cabeça, e deu uma destas risadas cortadas que significam desprezo e ameaça.

     Mariana sentiu-se cair desamparada, desvalida, na convicção de que seu marido era um malvado. Vendo-se sozinha, tremeu da sua situação. Forte em todos os sentimentos, tal terror se lhe incutiu, que receou pela vida.

     Como a avezinha, escondendo a cabeça sob a asa para não ver o assassino que lhe mede com a pontaria o coração, Mariana escondeu a face entre as mãos, cambaleou um momento, e recuou sobre um canapé, onde caiu desfalecida.

     Luís da Cunha, vendo de um lance de olhos todos os resultados de um possível divórcio, ou mais ainda, da morte de sua mulher, repreendeu-se da inconveniente aspereza, intentou reconciliar-se com Mariana, e começou o seu novo plano, rapidamente concebido, tomando-a nos braços, chamando-a com ternura, e cobrindo-a de beijos.

     Mariana viu com espanto a doçura dos olhos de Luís, e por pouco não cede ao impulso de abraçá-lo. A que, momentos antes, tremera de medo diante do malvado, ei-la agora, quase perdoando, arrependida do criminoso susto que tivera! Quantas mulheres assim! Quantas transfigurações da mártir que pena, para o anjo que perdoa!

     Quantas lágrimas o homem enxuga com um falso sorriso!

     - Não me tenhas ódio, Mariana... - dizia ele, inclinando-a sobre o braço esquerdo, e anediando-lhe os cabelos.

     - Ódio... não tenho; mas queres que eu não sofra?!

     -      Quero... farei o que tu quiseres... Não queres que vamos a Paris? Não iremos. Vamos para a Itália, sim?

     -      E de lá para nossa casa?

     -      Iremos, filha... tornaremos para Madrid; vamos a Cádis, e de lá embarcaremos para a Itália... queres?

     -      Sim, sim, agradeço-te de todo o meu coração o sacrifício...

     -      Sacrifício! Nenhum, Mariana! Tu não crês que és para mim a primeira mulher, que não tens uma rival que possa mais que a tua vontade?

     -      Queria acreditar; mas tu...

     -      Eu quê? Sou fraco... sou um miserável ludíbrio do destino; mas tu vences esse destino, quando queres... És hoje para mim o que eras há um ano sobre o mar...

     -      Oh!... se eu fosse!...

     -      És, filha. Não me vês arrependido? Queres-me de joelhos a teus pés?

     E o farsista fez menção de ajoelhar, quando Mariana se lhe lançou ao pescoço, beijando-o, banhando-lhe de lágrimas a face soluçando, comprimindo-o com a veemência de toda a sua paixão acrisolada pelo ciúme, e expansiva pelo prazer do triunfo sobre a rival.

     Em Madrid, Luís da Cunha foi tão caricioso que Mariana recordava os primeiros dias do seu noivado, e não os achava mais gratos, mais ligeiros nas suas rápidas horas do delicioso arroubamento.

     Furtando-se poucos instantes à companhia dela, Luís da Cunha escrevera a Carlota, ordenando-lhe que o esperasse em Veneza, mas desconhecida, com um pseudónimo, porque assim convinha à tranquilidade de ambos.

     Quando, pois, D. Mariana, cheia de júbilo, saía para Cádis, a dançarina, nomeando-se Julia Lamotte, chegava a Veneza, e isolava-se num hotel, sacrificando a publicidade, que tão grata lhe era, à prestação anual de sessenta mil francos, dos quais apenas recebera em Madrid cinco mil.

     Em Veneza, um dos primeiros homens que Luís da Cunha encontrou, fixando-o com ar provocador, foi o francês que fugira aos sicários escravos do amante de Carlota. O brigão que partira a cabeça ao visconde de Bacelar e acutilara o mestre de esgrima tinha tanta maldade como bravura. Não se apavorou do gesto ameaçador do francês, rodeado de franceses. Caminhou para eles, com duas pistolas engatilhadas, na presença de sua mulher, que permanecera estupefacta sem atinar com a causa nem com o desenlace deste estranho encontro.

     O grupo dos franceses, os homens mais delicados do mundo, respondera com um sorriso à arrogância de Luís. Um deles aproximou-se de Mariana, com o chapéu na mão, e disse-lhe com afectuosa urbanidade:

     - Sabemos respeitá-la mais que seu marido. Não receie consequências tristes. Os agredidos são cavalheiros.

     Luís da Cunha, depois da ridícula provocação, meteu as pistolas nas algibeiras, deu o braço a sua mulher, e saltaram na gôndola que os esperava.

     Mariana pedira inutilmente a explicação daquele sucesso. O marido evadia-se às perguntas, dizendo que destestava os franceses, e imaginara que um daqueles o escarnecera.

     Deu-se um encontro, que respondeu às apreensões da brasileira.

     A gôndola ia abicar na ilha de S. Lázaro, ao mesmo tempo que desatracava outra gôndola com uma dama, e um jóquei. A perturbação de Luís não foi visível para sua mulher, que não desviava os olhos pasmados da face da dama, que se aproximava na direcção da sua gôndola. Já perto, Mariana fez-se lívida, convulsa, encostou-se, quase esvaída, ao braço do gondoleiro, repelindo o de seu marido, e, ajudada a saltar ao cais, sentou-se, murmurando:

     - Como eu sou desgraçada, meu Deus!

     Acontece que um mau marido, repetidas vezes surpreendido em flagrante por sua mulher, indignado contra a má fortuna dos planos, volta-se contra ela, por não poder vingar-se do demónio invisível que lhos frustra. Esse tal, enquanto uma ardilosa desculpa o pode justificar, transige com as lágrimas da esposa, e finge serenamente a contrição; mas, se a contumácia no crime, todas as vezes descoberto, lhe inutiliza as invenções refalsadas, e o exautora de prometer emendar-se, o que até ali eram brandas desculpas converte-se depois em ódio às algemas, em emancipação do jugo, em crime sem pretexto, nem escusas. E o cinismo que se desmascara. E a impostura que se revolta contra o clarão da verdade.

     Para ser-se tal não importa ser menos perverso que o marido de Mariana. Luís da Cunha, se naquele instante devia odiar a imprudente Carlota, que não evitara tal encontro, irritou-se contra as lágrimas de sua mulher, que não proferira uma só palavra ofensiva, nem sequer, queixosa.

     - Vamos - disse ele com aspereza.

     Mariana ergueu-se, quis aceitar o braço de Luís, e não pôde suster-se.

     -      Não posso. - E sentou-se.

     -      Se não pode, tornemos a entrar na gôndola.

     -      Pois sim... Não te zangues Luís, que não te fiz mal nenhum. Se é a minha presença que te impacienta... pouco tempo te enfadarei... Vamos...

     Estas palavras, quase ditas como um segredo, para que o gondoleiro as não escutasse, não comoveram Luís.

     Pelo que no rosto se lhe via, era mais de crer que lhe exacerbassem a cólera. As contracções da testa, o morder dos beiços, o arfar das asas do nariz; os ímpetos das mãos aos cabelos e ao bigode denunciavam a súbita renascença de toda a perversidade do coração que lhe atirava golfadas de sangue negro à face.

     D. Mariana, como dias antes em Madrid, fugia de encontrar semelhante aspecto. Alguma cousa havia aí que só pode ver-se e imaginar na cara assinalada pela predestinação do patíbulo!

     Os frágeis vínculos de respeito que prendiam marido e mulher estavam partidos. Desde esse dia, Luís da Cunha seria escandaloso sem justificar-se; imporia silêncio a Mariana; fruiria todos os direitos da infâmia sem empecilhos, nem covardes explicações dos seus actos.

     O programa desta nova fase vamos nós ouvir-lho no Albergo di Italia. D. Mariana está encostada ao peitoril de uma janela, com a face apoiada na mão direita, com os olhos, brilhantes de lágrimas, fitos na Lua que se levanta sobre o Lido, purpureada com os arrebóis que bordam o horizonte das montanhas tirobanas.

     Está só. E meia-noite, e seu marido não vem. Depois que a deixou no hotel, saiu, e nem sequer lhe disse que voltava. Há cinco horas que chora, e sente-se menos oprimida; não sabe ela dizer se deve este bem às lágrimas, se às orações. E que orou muito; e, depois, quando levantou da tábua os joelhos, raiou-lhe na sua escuridade uma luz, uma esperança, qualquer cousa divina que não era da Terra.

     E foi sentar-se, às escuras, fitando o céu, com a imaginação mais tranquila, com as palpitações mais serenas, com a face aljofrada de lágrimas suavíssimas. Mas a esperança qual seria? Não sabia ela dizê-la.

     A uma hora entrou Luís da Cunha.

     -      Ainda de pé?! - perguntou ele em tom suave.

     -      E um prazer contemplar este céu - disse Mariana no mesmo tom.

     -      Que lindas noites se gozam em Veneza!

     -      Muito lindas.

     -      Gosto de te ver assim, Mariana.

     -      Assim!... como?

     -      Sem as impaciências terríveis do ciúme.

     -      Ah... Também eu gosto de me sentir assim.

     -      O ciúme é cousa que não existe na boa roda. Em Veneza e em Paris não há ciúme.

     -      E amor?

     -      Um pouco, enquanto dura. A civilização é a liberdade das pessoas e das cousas: bole com tudo, toca em todos os sentimentos, entra nos juízos da cabeça, e enraíza-se nas aspirações da alma...

     -      Não te entendo, Luís...

     -      Entendes, que tens muita inteligência. E queres que te diga? Nenhuma mulher de fina educação pode ser feliz, como esposa, se não estiver possuída de certos sentimentos de tolerância com as faltas do marido.

     - Vou entendendo agora, e admiro a minha ignorância de há pouco... Ora diz, meu amigo, fala, que me encontras em hora de ouvir tudo... Mas olha, Luís... Esta noite não te recorda aquela primeira noite, no mar, quando me dizias: É mentira aproximarem-se os entes que o destino talhou para se unirem: quando se encontram, já a desgraça os traz desfigurados; vêem-se e não se conhecem; falam-se e não se compreendem... Era uma noite assim formosa como esta... Se então nos não compreendemos, Luís, hoje compreenderemos-nos melhor?...

     -      Eis aí um incidente bem romanesco, minha amiga Vejo que em Veneza há-de necessariamente conversar-se em linguagem de romance!... A recordação das minhas palavras o mais que prova é que tens uma feliz memória...

     -      Que tu não tens... bem se vê que as esqueceste...  Creio que vens zombar comigo, Luís.

     -      Não, Mariana; não venho zombar. Estou capitulando contigo. Vamos combinar bases novas sobre que deve assentar a nossa felicidade. Todos os casamentos são felizes, quando entre marido e mulher se dá uma perfeita harmonia de vontades. Negas isto?

     -      Não.

     -      Da desarmonia resultam a desordem doméstica, as contrariedades pequenas, as desavenças constantes, e tudo isto porque se não entendem, nem se combinam.

     Entenderem-se e combinarem-se é fazer uma aliança de se não importarem reciprocamente das suas acções.

     - Não entendi, Luís; ou entendi uma infâmia de que te não considero capaz.

     -      Pois que entendeste, Mariana?

     -      Não ouso dizê-lo.

     - Eu me explico, e bem vês que o faço com toda a serenidade. Serei mui teu amigo, não teremos nunca o menor desmancho no nosso bem-estar, se tu quiseres ser indiferente ao meu procedimento com as outras mulheres.

     -      Serei, Luís, mas com uma condição...

     -      Qual?

     -      Conduz-me a minha casa, e depois torna para aqui, ou faz o que quiseres.

     - E qual é o teu fim?

     Educar os meus filhos.

     - Naturalmente, depois, lembravas-me que a tua casa não podia socorrer as minhas dissipações...

     - Esse receio fica-te bem; mas é vileza que ainda me não lembrou.

     -      E porque não queres tu ser feliz como eu posso sê-lo? Eu pago tolerância, com tolerância.

     -      Isto não se crê, Luís! Dar-se-á caso que tu vens...

     -      Embriagado?

     -      Sim...

     -      Não venho embriagado, Mariana; e a prova de que o não estou é que, se fosses um homem, neste momento, tinhas a cabeça partida nas lajes da rua.

     -      Pois esquece-te que sou mulher, e faz-me essa esmola.

     - Basta! Não lhe sofro nem mais uma palavra, senhora! Recolha-se ao seu quarto!

     Mariana ergueu-se. Tal era a placidez do seu semblante, que nem os gritos brutais de Luís lhe alteraram a palidez. Passou por diante dele com os olhos no chão.

     Entrou no seu quarto, onde encontrou chorando a escrava que a criara, e lhe criara os filhos. Era uma amiga.

     Lançou-se nos braços dela, sufocando os soluços.

     Luís da Cunha saíra.

     - Não se deixe morrer, minha senhora - disse a escrava.

     - Deixava-me morrer, se não tivesse os meus filhos. Quero viver para eles e... é preciso fugirmos, Genoveva.

     - Fugirmos!

     - Sim, senão este homem mata-me, ou eu morro de desesperação.

     - Como há-de a gente fugir? Não conhecemos aqui ninguém...

     - Pela manhã hás-de levar ao correio uma carta para o ministro do Brasil em Viena. Vou escrevê-la. Se vires entrar esse homem, avisa-me...

     A carta para o ministro brasileiro seguira o seu destino.

     D. Mariana, se pudesse reavê-la uma hora depois, sustaria o seu desesperado projecto de fuga. A infeliz iludira-se.

     O coração desta mulher não deixara sair o amor pelas feridas das incessantes punhaladas. Luís da Cunha, o homem de um ano antes, imaginara-o ela sob a influência de algum diabólico prestígio da dançarina. Não podia conceber semelhante mudança! Não podia capacitar-se da ignominosa tolerância que ele lhe oferecera! Amava-o ainda.

     Mas ele não a deixava muito tempo iludida. O seu procedimento parecia um propósito para desenganá-la.

     Indiferença, desprezo, e até abandono de dias inteiros, seguiram-se ao último diálogo que lhe ouvimos. Já não rebuçava a afronta, nem pretextava saídas. A hora do dia, embalava-se com Carlota nas gôndolas de Rialto, e mostrava-se com soberba impudência, ao lado dela, ao fim da tarde, na Ponte dos Suspiros.

     Mariana já não ignorava nada. A preta dedicada, para apressar a fuga, como tábua de salvação para sua ama, espreitava Luís, ou pagava a quem lhe espionasse os passos, que não careciam de espionagem. Caíra extenuada de sofrimento no leito, ao pé do qual seu marido passava o tempo necessário para calçar umas luvas, quando saía de manhã, para vir, se vinha, jantar à noite. Luís da Cunha aconselhava-lhe os passeios, e, para isso, lhe vestira um jóquei que a acompanhasse, e lhe dera plena liberdade de gozar, na sua ausência, não só os prazeres do límpido céu, mas os da terra, que valiam bem a pena de sair dos amuos que a molestavam.

     Uma ironia por consolação! Um escarro nas faces cadavéricas da infeliz!

     Uma tarde, quinze dias depois que D. Mariana escrevera ao ministro brasileiro, chegou a Veneza o primeiro adido daquela embaixada, e procurou no hotel uma senhora brasileira.

     Mariana ergueu-se para recebê-lo, e soube que era ele o encarregado de dispor a sua saída para o Brasil.

     O adido, em poucas horas, colhera acerca de Luís da Cunha as precisas informações: assim lho ordenara o ministro para não anuir imprudentemente ao capricho de uma senhora casada. As informações eram muito piores do que a ultrajada esposa fizera saber ao ministro, velho amigo de seu pai e de seus tios.

     Um navio estava prestes a fazer-se à vela para o Rio de Janeiro. Mariana apenas tinha três dias para preparar-se.

     Na sua situação, três horas seriam de sobejo. O adido devia retirar-se de Veneza, quando o navio tivesse saído.

     Mariana não hesitou, nem pediu delongas.

     Acabava de sair o adido, quando Luís da Cunha entrou. A brasileira estava chorando.

     -      Minha amiga - disse Luís -, tinha tenção de jantar contigo; mas, se me dás molho de lágrimas, retiro-me.

     -      Eu é que não aceito o teu convite. Retira-te, se queres, que eu não janto hoje.

     -      Nesse caso, não jantarei só. Como estás?

     - Boa.

     - Óptimo. Mas essas lágrimas não se esgotam...

     - São lágrimas de alegria.

     - Ainda bem. Vê se te reanimas para irmos a Milão, na semana próxima.

     - Estou reanimada.

     - Melhor. E depois vamos a Turim, a Berlim, a Nápoles, et cetera.

     - Iremos. Estas viagens regalam-me o coração.

     - Estou gostando do teu joco-sério! Vais-me saindo uma pretensiosa faladora.

     - Estarei calada, Luís!

     - E melhor.

     - Mas, se me não levas a mal, sempre te farei uma pergunta...

     - Não há pergunta sem resposta. Venha de lá isso.

     - Como se pode ser homem tão cruel?

     -      Como se pode ser mulher tão impertinente? Respondo, perguntando.

     - Não tenho mais que te diga.

     - Fala, se tens lá mais alguma pergunta de algibeira.

     -      Não tenho nenhuma; contudo... se tens paciência, hás-de ouvir-me. Eu tenho filhos, de cujo património sou administradora.

     -      Já sei.

     - Os meus filhos podem pedir-me contas desta administração.

     -      Não digas mais nada, que eu já te matei a charada no ar. Queres dizer que eu gasto mais do que os rendimentos da tua meação. Dir-te-ei que não consinto que me lances em rosto a minha dependência da tua fortuna. Isso é vil.

     - Sou vil, é o que se segue; mas repara, Luís, que te não lancei em rosto a tua dependência.

     -      A cousa bem traduzida lá vai dar. Queres despedir-me do comércio de bens?

     -      Não: o pior é se te despedem...

     -      Quem?! Que quer isso dizer?... - replicou ele, colérico.

     -      Nada...

     - Minha querida senhora, para não irmos adiante, fiquemos aqui... Até amanhã...

     - Até amanhã, Luís.

     No dia seguinte, o conviva de Carlota Gauthier não veio a casa. A escrava soube que o marido de sua ama saíra para Peschiera com a francesa, que disse, no hotel; voltaria passados três dias.

     O imediato era o dia aprazado para a saída do navio.

     O adido conduzia de madrugada D. Mariana, e sua escrava, a bordo. Genoveva levou sempre sua ama desfalecida nos braços. Dizia-se a bordo que a pobre passageira parecia morta, e não desmaiada.

   

    Cavar para os outros a sepultura, e para si o Inferno

     Luís da Cunha passeava com Carlota nas margens do lago de Garda, ao pé do pitoresco Míncio. Deliciavam-se em meigos brinquedos, como duas crianças, embebidos um no outro, ao que pareciam, suspirando juntos como a brisa tépida que os arremedava no bulício da ramagem.

     Escurecia, quando divisaram três vultos. O barqueiro que, a distância, os tinha já prevenido contra os perigos do local, ao ver os vultos teimou que entrassem no barco. Luís, instado por Carlota, olhou com saudade para as deleitosas testemunhas de seus prazeres, e foi, como arrastado, na direcção do barco.

     Mas os vultos aceleravam o passo. Carlota e o barqueiro diziam a Luís que fugisse.

     - Fugir a quê? São três, e eu só fujo a trinta.

     - Foge, Luís; que eu suspeito...

     - Que suspeitas?

     - Que algum deles é...

     - O troca-tintas teu patrício? Deixa-me reconhecê-lo.

     Luís da Cunha esperou-os com as pistolas engatilhadas. Os vultos marchavam para ele tão serenos como se tivessem ouvido o tinir do gatilho.

     - Parem, quando não mato-os! - exclamou Luís.

     - Pois atira, miserável! - disse um dos três.

     Os gatilhos bateram duas pancadas surdas. Luís recuou, aperrando-os de novo. As pancadas produziram o mesmo som abafado.

     -      Estou desarmado, covardes! - gritou ele, quando as primeiras pauladas de «cacetes» curtos lhe estalavam na cabeça, nos braços e no peito.

     -      Chama os teus sicários do Brasil! - dizia o antigo amante de Carlota, sovando-lhe a cara de pontapés, quando ele, já em terra, coberto de sangue, perdera o acordo.

     A dançarina presenciava o espectáculo de dentro do barco, que se fizera ao largo, graças à prudência do barqueiro.

     Os franceses retiraram-se a passo moroso, conversando na mais tranquila pacatez de três sócios do Instituto de Belas-Letras, que viessem de descobrir nas margens do Míncio o esqueleto de um ictiossauro.

     Carlota, contra a vontade do barqueiro, chegou-se a terra. Não vendo os vultos, saltou, e viu em terra o amante, que gemia a cada esforço inútil que punha para erguer-se sobre os braços macerados. O barqueiro veio em auxílio da consternada moça. Tomaram-no entre os braços, deitaram-no na proa do barco, e lavaram-lhe a face arregoada de sangue.

     Luís da Cunha foi curado em Peschiera, e, logo que as forças lho consentiram, quis convalescer em Veneza.

     Carlota seguia-o, indemnizando-o com extremosos cuidados do desgosto de uma perigosa sova, por causa dela.

     Em Veneza, Luís da Cunha, que não dera, durante quinze dias, notícias suas a Mariana, conquanto se não doesse muito de tal falta, achou que era prudente procurá-la, que não fosse ela, desesperada, sustar no Brasil a remessa de uma importante quantia que ele exigira.

     No hotel disseram-lhe que sua senhora com a escrava tinham saído numa madrugada, havia treze dias, e não voltaram.

     Entregaram-lhe as chaves dos seus quartos. Luís da Cunha encontrou tudo, menos os baús dela. Nem uma carta sobre as mesas! Cousa nenhuma que o esclarecesse!

     Chamou o criado, que ficara com as chaves, esperando que lhas recebessem:

     -      Com quem saiu a senhora?

     -      Com um cavalheiro.

     - Seria de Veneza?

     - Não, senhor; vi-o aqui entrar uma só vez, antes dela sair com ele.

     -      E os baús, quem os transportou?

     -      Dois homens, que tinham vindo com o tal cavalheiro: pareciam marinheiros.

     Luís da Cunha informou-se. Justamente na madrugada desse dia saíra um navio com carregação de vidros para o Rio de Janeiro.

     A sua situação pareceu-lhe embaraçosa! A primeira ideia foi seguir quanto antes sua mulher. Consultou Carlota, e a carinhosa respondeu ternamente que o não acompanhava, porque não tornava ao Brasil. Ainda assim, renunciando generosamente o amante à esposa, a bailarina aconselhava-o que a seguisse, embora ela ficasse devorada de saudades.

     Esta sublime abnegação impressionou Luís, a ponto de olvidar, surdo aos gritos do pressentimento, as consequências da aparição de Mariana, sozinha, aos seus parentes.

     Contando com a sua astúcia, diferiu a viagem para mais tarde, visto que ainda lhe restava uma ordem de dez contos, e entretanto Mariana, forçada pela saudade, poderia de lá chamá-lo, pedindo-lhe perdão.

     Prosseguiu nas suas viagens com Carlota. Saboreou o ouro e a liberdade, não azedada pelas lágrimas importunas de sua mulher. Gastou francamente, como se uma nova remessa devesse chegar do Brasil, antes de escoar a última libra dos dez contos. Fez, durante quatro meses, pontuais pagamentos à bailarina, de cinco mil francos cada mês. Contava-lhe com ingénua candura a sua vida, os seus haveres, e até desceu à pueril pieguice de lhe dizer que era necessário fazerem economias, enquanto lhe não chegava uma ordem para sacar em Londres um cabedal mais duradouro.

     Carlota, à palavra «economias», sentiu que o coração lhe fazia no peito uma pirueta, e ficava de costas voltadas para o económico amante.

     A maneira do coração, a dançarina resolveu fazer também uma pirueta na primeira ocasião.

     A ocasião veio-lhe ao encontro dos desejos. Um conde austríaco hospedara-se no mesmo hotel em Roma. O locandeiro tinha poderes discricionários para convencer a moça. A proposta foi aceita, estipuladas as condições, e Carlota desapareceu com o conde na estrada que devia conduzi-la a Paris.

     Luís da Cunha - diga-se a verdade - não sentiu muito a ausência da sua companheira de quarto. A paixão diminuíra na razão directa das libras. A sensualidade ia-lhe arrefecendo à maneira que o espírito se lhe ocupava em meditações sobre o futuro. O mais que fez foi estudar os pontos de contacto entre Carlota e Liberata, e viu lu e eram bustos do mesmo molde. Teve a imprudência de chamar Açucena e Mariana a esta galeria, e concordou, o mais racionalmente que pôde, que aquelas duas eram de um estofo muito superior às outras.

     O pior era a pobreza que o ameaçava!

     Os dez contos de réis em oito meses, conquanto economizados, tinham caído na voragem dos brilhantes de Ricarda, dos bens livres de João da Cunha, dos quarenta mil cruzados de Açucena, do incalculável numerário com que saíra do Brasil. Restavam-lhe algumas dúzias de libras, e nenhum amigo, nenhum crédito, nenhuma esperança que lhe não deixasse antever o futuro pela face da indigência. Angustiado no dilema, resolveu abandonar a Europa, que tão cara lhe era, e vestir uma máscara de bronze, como se precisasse de encobrir a vergonha, para lançar-se aos pés de sua mulher, se é que ela lhe não correria aos braços, banhada em lágrimas de alegria.

     O projecto dependia de uma execução imediata, porque as últimas libras urgiam.

     Luís da Cunha, protestando vencer, ainda uma vez, a força diabólica que o empurrava para o abismo da miséria, refez-se de coragem, confiou-se à prodigiosa omnipotência da sua impostura, e embarcou em Civitavecchia num navio de escala para Buenos Aires.

     Nesta viagem, não há memória de alguma aventura digna de menção na biografia do filho de Ricarda. Contaram, porém, os seus companheiros de viagem, que tal homem se fizera repulsivo a todos pelo desprezo com que a todos repelia. Era intratável, e tinha acessos de frenesi assustadores. Corria as cortinas do seu beliche durante o dia, e passeava toda a noite na tolda. Se em noites calmosas os passageiros também subiam a respirar, Luís da Cunha descia com arremesso a isolar-se na sua câmara Vê-se que o cínico não tinha o riso despejado da escola. Sofria; mas não era a suave melancolia do solitário sem os remorsos: era o assomo colérico, o concentrado rancor do algoz, que não pode estalar os grilhões que o condenam a morrer no desespero da imobilidade.

     Pois a hora do remorso não soara para este homem?!

     Ainda não. Talvez nunca. O remorso é o triunfo do anjo bom. Luís da Cunha pactuara uma aliança insolúvel com o Demónio, cuja existência não é para mim uma fábula, quando me vejo impelido ao mal, e cedo com pesar ao impulso, encarando o bem por que suspiro. A luta entre as duas potências existe no coração humano, enquanto a consciência sabe estremar o vício da virtude. Mas, perdidas as noções do dever, raspada de sobre o coração a palavra «honra», a luta já não existe, o anjo bom fugiu espavorido, o remorso é impossível.

     E era-o para Luís da Cunha.

     Esse fugir da sociedade, odiando os homens, era o encovar-se do tigre, sequioso de presas, raivando de fome, e espreitando com olho abrasado a vítima desprevenida.

     Luís contava os dias de viagem com frenética ansiedade. Só, imaginara todas as hipóteses terríveis do seufuturo. Dava-se como possível a vingança de Mariana, privando-se não só da tutela dos enteados para diminuir os réditos, mas negando-lhe a ele o usufruto da sua própria meação. Verificar esta horrível conjectura era o seu desejo: vingar-se de qualquer modo era a sua tenção, se uma bem estudada impostura o não reconciliasse com Mariana.

     Chegou a Buenos Aires, e na lista dos estrangeiros que pernoitavam no mesmo hotel viu o nome de Francisco José de Proença. Saibamos de passagem que Proença era, um oficial do exército português, que seguira as bandeiras de D. Miguel. Em 1833 expatriara-se para o Brasil, Filho de um brigadeiro, visitava-se com João da Cunha e fora da roda de Luís.

     O marido de Mariana encontrara-o no Rio de Janeiro lutando com a adversidade, pobre, sem emprego, vi vendo do trabalho estéril de amanuense de um advogado. Socorreu-o com um empréstimo de dinheiro para tentar o tráfico da escravatura, pensamento dominante de Proença.

     O português fora bem acolhido por Mariana, em respeito a seu marido. Civil, bem morigerado, e prudente; colhera muito na escola da desgraça. Fez-se benquisto, adquiriu proveitosas relações, alcançou aura de honrado, apesar do seu plano de mercadejar com pretos. Este tráfico não desonrava ninguém. Era como qualquer outro um ramo de comércio, que germinou ilustres vergônteas, as quais, transplantadas depois em Portugal, bracejaram copadas sombras, onde se acoutam em tropel as mercês eos sacerdotes da apoteose.

     Tal era o protegido de Luís da Cunha em Setembro de 1840, quando o seu protector, saindo do Rio para a Eu ropa, o recomendava aos tios de sua mulher.

     Foi, pois, bem natural o sobressalto de Luís da Cunha quando viu na lista o nome Francisco José de Proença Guiaram-no ao quarto dele. Proença, com o coração alvoroçado da surpresa, abraçou Luís.

     -      Tu aqui!... - exclamou ele.

     -      Não imaginei encontrar-te fora do Rio!

     -      Vens de lá? Já vejo que não.

     -      Venho da Europa. Há que tempo saíste do Rio?

     -      Há três meses. Tu ignoras tudo, pelo que vejo.

     -      Se ignoro tudo!... Sei que Mariana está lá...

     - Sabes que ela está lá? E sabes como ela está?

     -      Doente, talvez...

     -      Doente, não... morta.

     -      Homem!, isso é extraordinário! Tu não mentes?

     - A brincadeira seria de mau gosto. Não minto, Cunha. Pensei até que o saberias.

     - Isso é incrível! Pois Mariana está morta?!

     -      E sepultada há cinco meses...

     -      Que infernal vida a minha!

     As bagas de suor frio inundavam-lhe a testa. A comoção não se diferençava nada de uma boa alma surpreendida por uma nova terrível.

     -      Infernal vida a tua!, também eu digo, Cunha... Mataste aquela senhora...

     - Matei...

     - Tardio remorso!...

     -      Conta-me tudo.

     -      Pouco tenho que te conte... D. Mariana apareceu no Rio, sem ninguém a esperar. Foi transportada numa rede ao seu leito. Soube-se que tu não vieras, e correu que tinhas morrido. Mariana não recebia visitas, nem dos médicos. Pedi aos tios que me deixassem vê-la, não o consegui. Um deles contou-me os teus desatinos, e disse-me que a infeliz era tão nobre que não pronunciava contra ti uma queixa. Precisava explicar a sua fuga, e o pouco que disse foi mais amplamente contado por cartas do ministro do Brasil na Austria. Levantou-se contra ti um brado de indignação. Contaram-se todos os teus infortúnios de Lisboa. A carga cerrada, os amigos de D. Mariana pediram que lhe fosse tirada a administração da casa de seus filhos, para que tu não viesses continuar a dilapidá-la. Tua virtuosa mulher pediu que a não mortificassem, visto que a sua morte viria breve emancipar os pobres filhos da sua indigna tutela. Empenharam-se todos em distraí-la: o mais que conseguiram foi mudá-la para uma quinta no Botafogo, onde viveu vinte dias. Aqui tens bem simples a história, e realmente te digo que é uma história bem fértil de lances desgraçados... Deste um pontapé na fortuna, Luís, e com esse pontapé arremessaste tua mulher à sepultura...

     -      Pois sim... agora cala-te. As tuas repreensões, além de inúteis, não me soam bem.

     -      Desculpa-me, se te falo com franqueza tão rasgada. O facto de seres meu credor não me humilha até ao silêncio aprovador dos teus crimes.

     -      Os meus crimes... não são meus.

     -      Pois de quem?

     -      De um demónio que me perde... E agora vejo que estou irremediavelmente perdido!

     -      Comparativamente ao que perdeste... estás.

     -      E pobre...

     -      Quase pobre. Tens apenas quatro contos de réis que te devo, e o pouco que tenho acima desse capital à tua disposição.

     -      Minha mulher fez testamento?

     -      Não. Tudo que tinha pertence aos filhos.

     -      Mas uma escritura causa mortis que fizemos?

     - É nula: foi logo anulada. D. Mariana não podia dispor do que era dos filhos: podia apenas legar-te a terça mas não testou. Aconselho-te que não vás ao Rio, muito menos se tentas questionar os direitos dos teus enteados.

     Não vás, que serás morto. O teu nome desperta ódios, naqueles mesmos que recebeste nos teus jantares. Tens um só amigo que se condoa de ti. Sou eu.

     -      E qual será o meu futuro?

     -      O que puderes granjear pelo trabalho; mas, no Rio de Janeiro, não.

     - Em que negoceias?

     -      Negociei em escravos.

     -      Tens sido feliz?

     -      Muito pouco. Tenho repugnância para esta mercadoria.

     -      Queres tentar comigo uma empresa dessas?

     -      Não. Hoje o meu comércio é menos rendoso, mais pacífico, suposto que mais laborioso.

     -      Não sei o que são empresas laboriosas...

     - Tenta; pode ser que a fortuna te dê ainda outro abraço; mas as costas de África estão coalhadas de negreiros.

     -      Que dinheiro dispensas?

     -      Oito contos de réis. Quatro que te devo, e quatro que te dou, ou te empresto... como quiseres.

     -      Posso fazer alguma cousa com esse dinheiro?

     -      Podes, associando-te a algum negreiro, que farei teu conhecido. Apresento-te ao que tem maiores depósitos na praia dos escravos em Guiné.

     Nesse dia foi conduzido ao escritório do negreiro, em Buenos Aires, o adepto com a sua quota-parte de oito contos de réis. Quando tratavam as condições da sociedade, estava presente um mulato bem trajado, com os dedos cintilantes de pedras, e uma grossa cadeia de ouro no pescoço. Ouvira, silencioso, o contrato, e seguira-o até à porta do hotel.

     Pouco depois, Luís da Cunha recebia um bilhete anónimo, que lhe pedia uma entrevista, a sós, atrás da igreja das Mercês, ao escurecer. Recomendava o bilhete um segredo inviolável.

     O temerário foi, sem consultar Proença, e encontrou o homem que vira em casa do negreiro.

     - O senhor quer ser rico? - perguntou o mulato.

     - Quero.

     - Ninguém responde com mais concisão, nem mais depressa. Se quer ser rico, siga outro rumo. A escravatura deu em droga. Metade dos negros morrem no porão: os outros ninguém os quer a cem mil réis fortes por cabeça.

     - Pois que rumo devo seguir?

     - Primeiro; o senhor é capaz de nunca revelar o que eu lhe disser?

     - Sou.

     -      Não o sendo, a sua existência valerá menos que um preto asmático. Segundo: tem coragem?

     - Tenho, penso eu.

     -      Quer entrar comigo num comércio que é um pouco menos infame que o da escravatura? Quer ser pirata?

     - Pirata! O senhor está a zombar comigo?

     -      Não tenho mais que fazer! Chamei-o mesmo de propósito para zombar com o senhor! Ora vamos, quer ou não?

     -      E o senhor assegura-me que se enriquece em pouco tempo?

     - Asseguro-lhe que nos fazemos num momento proprietários da propriedade que outros adquiriram em muitos anos.

     - E os contratempos?

     - Os do mar?

     - Não digo isso: a defesa, que pode ser mais poderosa que o ataque...

     - Ah!, o meu amigo raciocina assim? Já vejo que me não serve... Até à paz geral, meu caro senhor. Segredo, ouviu?

     - Mas ouça, que eu não me deliberei ainda. Não me julgue algum miserável poltrão. Quer o senhor entrar no meu quarto, e falemos lá?

     - Então, entre o senhor no meu, que é mais perto.

     Ceará comigo, e dormirá, se quiser, com a melhor das minhas escravas.

   

    Lógica do infortúnio

     Luís da Cunha aceitara a proposta, a ceia e a escrava.

     Com grande espanto de Proença, fizera a sua aposentadoria em casa do mulato, explicando esta nascente amizade por certo mistério, que ele não dizia, porque não soubera inventá-lo. Proença, suspeitando as intenções de Cunha porque lhe não eram estranhos os boatos que corriam muito desonrosos para o mulato, deu-se pressa em sair de Buenos Aires com a sua carregação de curtumes para a Baía.

     Poucos dias depois, desapareceram Luís da Cunha e o seu recente amigo. Das praias de S. Tiago del Estero, sobre o Atlântico, levantaram ferro dois navios com aspecto mercantil, içando a bandeira da República Argentina. Costearam a província do Rio da Prata até ao Paraguai. Aí fizeram-se ao largo, e arriaram bandeiras.

     Ao nono dia de roteiro indeterminado, reconheceram a bandeira espanhola em dois navios de alto bordo que lhe passavam à proa. A manobra foi rápida. As galeras, auxiliadas pela corrente, procuravam a esteira dos navios, que lhes fugiam. Ao cair da noite, a trombeta do pirata levou uma ameaça de morte aos espanhóis.

     Responderam-lhe com uma bala, que zumbiu nas gáveas.

     Travou-se a luta. Era tenebrosa a noite, e ao clarão da artilharia viam-se de um lado e do outro, como visões fantásticas, as faces enraivecidas de agressores destemidos, e a coragem desesperada nas dos agredidos, resolutos à morte com bravura.

     O mulato dera o tremendo sinal da abordagem.

     A galera que se retirava da luta, capitaneada por Luís da Cunha, não obedecera. É que uma bala lhe fizera à popa um rombo. Os bravos tinham descido ao porão a calafetarem inutilmente a fenda.

     Os piratas recuavam, e os agredidos acometeram com o entusiasmo da vitória. A galera do mulato vomitava lavaredas. Estava incendiada.

     - A abordagem! - bradaram os espanhóis.

     A maruja das galeras gritou que se entregava. Os netos de Cortez não admitiram a proposta. Saltaram entre miseráveis ajoelhados. Alguns venderam cara a vida. Outros foram poupados para puxarem o carro do triunfo. Entre esses estava Luís da Cunha, que não tivera coragem de morrer borrifado do sangue dos contrários, como o seu companheiro, e pedira de joelhos a vida. O extremo da ignomínia encontra a covardia. Sem a força moral da honra, o músculo do infame enerva-se, e a existência, que devia ser-lhe um peso, é-lhe ainda cara! Segredos.

     Os prisioneiros foram levados às Antilhas para serem garrotados. Alguns foram-no logo. Luís da Cunha, que prometera aos capitães o resgate da sua liberdade, pesando-se a ouro, foi posto a ferros em Porto Rico.

     Chegava a nova à Baía, onde Proença negociava. Não se falava em Luís da Cunha; mas dizia-se que um português ou brasileiro, que parecia de educação distinta, fora preso, e demorara com astuciosas promessas o seu processo.

     Proença não tinha ânimo para encarar o suspeito Cunha nesse último grau da infâmia. Apressou-lhe quanto pôde socorros, e, calando o nome do preso, solicitava a sua liberdade.

     Entretanto, Luís da Cunha tramava a fuga. Todos os seus ardis foram descobertos. Parte das autoridades espanholas quiseram desfazer-se dele, pendurando-o num triângulo. Mas o governador não consentira, sem primeiro ouvir esse homem misterioso. Ouvindo-o, admirou-lhe a eloquência astuciosa; arrancou-lhe o segredo de alguns dos precedentes que mais deviam tocar-lhe o espírito um pouco romanesco. Luís da Cunha soubera dar-se prestígio, porque adivinhara a índole da autoridade.

     Foi processado e condenado a três anos de prisão em Porto Rico. Três anos! Mil e noventa e cinco dias e outras tantas noites de ferros para esse homem, desamparado de todos, forçado a pedir uma esmola, como um ladrão, pela grade da enxovia! Não terá ele, ao menos, a coragem do suicídio?!

     Não tinha.

     O governador mandava-lhe umas sopas e umas calças velhas. Uma senhora desconhecida esmolava-lhe um jantar todos os domingos, e mudava-lhe os lençóis da pobre enxerga. O carcereiro, apiedado com a aparente resignação do pirata, arranjava-lhe livros, e dava-lhe para de noite uma candeia.

     Quatro meses deste viver! Eis ali o amante de Açucena!, o marido de Mariana! Aquele homem que tira de uma tigela de barro com um garfo de ferro umas couves é o mesmo que pagava dançarinas a cinco mil francos por mês; é o mesmo que vira fugir-lhe por entre os dedos cem contos de réis. E, contudo, não tem ainda trinta anos! Que futuro!

     Proença vem a Porto Rico, ao quarto mês de prisão de Cunha. Procura o governador, com valiosas cartas de recomendação, e historia-lhe vagarosamente a vida do preso. O governador espanta-se de tanto crime, e crê na mágica influência de Satanás sobre o desgraçado. Uma das circunstâncias que mais o pungem é o ilustre nascimento de Luís da Cunha e Faro! Era fidalgo, sentia a dor colectiva da raça: o vexame e a condolência de uma simpática compaixão. Vencido pelas instantes lamúrias de Proença, quis ser árbitro na liberdade do preso, assim como o tinha sido no imediato garrote que os outros sofreram. Luís da Cunha, com cinco meses de cárcere, é solto: respira o ar da liberdade, é senhor seu: mas a liberdade que lhe importa sem dinheiro, sem socorro, sem incentivo algum às forças que lhe sobejam ainda para cometer dificultosas empresas? Que perversidade nova lhe resta a explorar? A que reservatório do inferno irá ele invocar um outro génio?

     Que lhe falta?

     Luís da Cunha fora chamado, apenas solto, a casa do governador. Entrou numa sala particular, onde encontrou Proença. Não corou: a comoção forte, que um fácil apreciador julgaria vergonha, era o contentamento de encontrar um homem que, decerto, não viera ali para o deixar sem dinheiro.

     O expatriado é que não podia suster as lágrimas. Sentia o vilipêndio de Cunha, como se tirasse dos ombros do infame para os seus o peso da ignomínia.

     - Vieste salvar-me? - disse serenamente o pirata infeliz.

     - Já ninguém te salva... Vim alcançar a tua liberdade para experimentares uma nova posição social. Caíste muito no fundo. Já não há braço que te levante.

     - Parece-me que não. Venho de estudar na solidão da masmorra. Filosofei o melhor que se pode com os meus princípios experimentais. Concluí que sou uma máquina. Não tenho vontade, nem acção. Quero ver onde chega isto! Desejava poder calcular aproximadamente, pelos dados da vida, que morte será a minha. Tenho trinta anos. Proença! Como se pode ser tudo o que eu tenho sido em catorze anos!

     - E que serás tu?!

     - Eu sei!... O mais natural na minha situação é pedir uma esmola.

     - E és capaz de pedi-la?

     - Que dúvida! Morrer de fome é escolher de todas as mortes a mais indecente.

     -      E gracejas!

     -      Pois tu queres que eu receba seriamente a infernal omnipotência que me reduzia a isto?! Zombemos com ela.

     -      Mas não há outro recurso contra a fome senão pedir esmola?

     -      Ou roubar.

     -      E o trabalho?

     -      Ah! sim... não me lembrava do trabalho... mas que trabalho? Eu não sirvo para nada, não tenho força nem vocação.

     -      Adquire-a, Luís. Tu não me conheceste em outro tempo? Imaginaria alguém, há oito anos, que eu viria a ser um amanuense de advogado, e mais tarde um negociante de curtumes? Eu tive fome, Luís. Deitei-me algumas vezes em jejum, e levantei-me sem a certeza do almoço. Não pedi esmola, pedi trabalho. Olha as minhas mãos... não vês estas durezas? Estão calejadas, mas nunca senti aqui o contacto de uma moeda de cobre como esmola. Trabalha, Luís.

     -      Diz-me lá em quê...

     - Vives comigo: tomas uma pequena parte nas minhas ocupações, e recebes uma parte grande dos meus interesses.

     - Não te sirvo de nada, Proença. O que fazes é dar-me uma esmola. Emprestas-me algum dinheiro?

     -      Que farás com esse dinheiro?

     -      Vou para Portugal. Tenho um palpite de que vou ser feliz...

     -      Feliz! Quem fará a tua felicidade em Portugal?

     - Uma mulher.

     -      Como Mariana?

     -      Não me fales em Mariana. Tenho tido horas de inferno pensando nessa infeliz... Eu não sou de bronze, Proença. Vi-me tão aflito uma noite na cadeia, que me pus de joelhos a pedir-lhe perdão, cuidando que a via. Era febre; mas olha que a vi tal qual ela devia ser a expirar... Palavra de honra! Não me fales nela... Bastam-me os meus remorsos...

     -      Tu não tens remorsos, Cunha... Não falemos nela; concordo... O nome dessa infeliz soa mal nos teus ouvidos... e é uma profanação na tua boca... Queres então ir a Portugal procurar uma mulher que te há-de fazer feliz.. Vejo que a desgraça tem contigo momentos de zombaria... Vai. Dou-te o dinheiro necessário para a passagem e, para a subsistência de alguns meses.

     - Es um perfeito cavalheiro. Espero ainda embolsar-te do último real que me emprestas... Ris-te? E porque não sabes os meus planos.

     -      Os teus planos... O que me faz rir é a facilidade com que te iludes, a inexperiência do que és, a intimativa com que te confias a uma esperança imaginária. Que mulher de Lisboa descerá até Luís da Cunha com a sua riqueza? Estou fora de Portugal há oito anos, e conheço tua vida dia a dia; conhecem-na todos no Rio de Janeiro. Quem te não conhecerá em Lisboa? Eu vi uma carta de um tal visconde, escrita ao ministro português no Brasil que te apresentava um prodígio de imoralidades.

     -      Esse visconde era precisamente o visconde de Bacelar.

     -      De Bacelar, justamente.

     -      Isso é um miserável a quem puni com um chicote nos Paulistas.

     - Não sei se é um miserável que puniste com um chicote mas decerto não é caluniador. Todas as informações confirmam as dele. O que será feito de uma menina que fugiu das comendadeiras, e abandonaste no primeiro mês, trocando-a pelos amores da célebre Liberata?

     -      Não falemos nisso... Rapaziadas!... Talvez tu não creias que a mulher que me há-de fazer feliz é justamente a que fugiu das comendadeiras?

     -      Vejo que é grata aos teus benefícios... Deve morrer de saudades por ti... Estará ela ansiosa da tua chegada como Mariana?

     - Estás impertinente, Proença!... Que diabo lucras tu em apoquentar-me?! Mariana morreu; não posso dar-lhe vida; se pudesse, dava-lha... Que mais queres?

     -      Nada, Luís... Que hei-de eu querer? É que não acho natural a tua felicidade proveniente de uma mulher que perdeste.

     - E, se eu te disser que essa mulher me deu obra de quarenta mil cruzados, depois que a abandonei?

     -      Se é verdade o que dizes, espanta-me que o digas sem caíres nesse chão fulminado de vergonha!

     - Vergonha... de quê?

     -      Há em ti um defeito de organização, Luís!... Tu não és o homem moral. Falta-te a consciência, o senso íntimo do bem, o carácter da sociabilidade. Não te posso responsabilizar pelos teus crimes. O tigre tem a ferocidade nativa. Tu és uma aberração, Cunha. Digo-te, com as lágrimas nos olhos, que estás perdido, perdido para sempre... Receio muito que encontres um cadafalso no teu caminho.

     -      Estás fúnebre! Que diabo de profecia! O meu furor todo é desmenti-la... Hei-de reabilitar-me! Desafio todos os demónios para que me combatam.

   

    Tenho fome! Estou há três dias sem pão!

     Em uma tarde de Agosto de 1842, Açucena passeava sozinha entre os renques de loureiros e amoreiras da sua quinta do Lumiar. Abria e fechava com aparente distracção um livro, e, se lia, poucas linhas a fatigavam.

     Veste ainda de luto pelos seus benfeitores, há três anos mortos. Sobre o lenço de gorgorão que lhe cobre o pescoço traz pendente um colar de contas de azeviche com uma pequena cruz de pau-preto, embutida de lavores de madrepérola. Este adorno está em harmonia com o livro em que lê e profundamente medita: é o tesouro de Kempis, a Imitação de Cristo.

     Sentara-se, lendo mentalmente estas linhas:

     «Crê-te indigno da consolação divina; mas sim merecedor de muitas tribulações. Quanto mais se compunge o homem, mais amarga lhe é a sociedade. O bom não depara aí senão incentivo para lágrimas. Ou pense em si ou nos outros, reconhece que sem amargura ninguém vive aqui.

     E tanto mais angustiado se vê, mais dos outros se compadece. As compunções íntimas e a nutrição das dores merecidas são filhas dos nossos vícios e pecados; deslumbrado por eles, não temos vista para contemplar o céu. Se mais vezes pensares na morte que na vida, fervorosa será a tua emenda. Se cismares nas penas do inferno e do purgatório, e do coração as temeres, ser-te-ão leves os trabalhos da vida, e não tremerás de susto.» Fechara o livro, erguera para o céu os olhos lacrimosos, e murmurara:

     -      E serei eu grande pecadora, meu Deus? Não terei eu seguido a vossa santa lei? Terei deixado cair a minha cruz, seguindo-vos?

     Parara uma carruagem.

     -      É minha mãe! - disse alvoraçada Açucena, saindo-lhe ao encontro.

     Rosa Guilhermina vinha triste.

     -      Estranho hoje a sua fisionomia, minha querida mãe! Que é? Teve algum desgosto com o padrasto?

     -      Não, filha... Como estás?

     -      Bem vê que estou boa.

     -      Com lágrimas nos olhos...

     -      Foi de ler o meu querido livro... Faz-me sempre este bem.

     -      Que fizeste ontem, filha?

     -      O que faço todos os dias. Assisti às três missas na capela; dei ao meio-dia o jantar aos pobres; de tarde rezei a via sacra; depois, passei um bocadinho aqui com o padre Madureira; tomámos chá à noite; rezei a coroa de Nossa Senhora, e deitei-me. Hoje fiz o mesmo; esperava minha mãe e o padre...

     -      Minha filha, eu entendo que és muito excessiva nas tuas devoções. Padre Madureira já me disse que te fazia mal tanta religião. Tu queres compreender o incompreensível, e prejudicas o teu espírito... e a tua saúde.

     - Não, mãe. Eu não acho nada incompreensível na religião de Jesus Cristo. Leio muitos livros místicos, porque não tenho outro recreio, nem o quero; rezo muito, porque não devo ser ingrata aos benefícios que Deus me faz, e peço à sua divina vontade continue a fazer-mos. Com isto não sou pesada a ninguém...

     - Mas tudo que é de mais...

     -      Servir a Deus é sempre de menos, minha mãe.

     -      Mas há cousas que denunciam fraqueza de razão.

     - Em mim?

     -      Sim. Sei que vais de noite acompanhar o viático aos enfermos.

     - E será isso fraqueza de razão?

     -      É uma demasia de virtude, que não fica bem a uma senhora de vinte e dois anos.

     -      Porquê?... Todos me tratam com tanto respeito...

     - Mas... não fazes bem: pode-se servir a Deus com suavidade.

     -      Isto não me custa; mas, se a mãe não quer, não tornarei.

     -      E que invenção é essa de trazer as contas por fora do lenço?

     -      Pensei que não importava trazê-las assim, ou de outro modo.

     - Decerto, não importa; mas poderá alguém chamar-te visionária.

     - Alguém! Eu não conheço ninguém. O padre Madureira não me diz nada; a mãe decerto se não ri de mim e os outros, ainda que me vissem, não me envergonhavam com a sua zombaria... A mãe não acaba de crer que me não importa nada o mundo?

     - Não queres que te falem em cousas do mundo?

     - Se me afligem, não... Queria dizer-me alguma cousa?... Vejo-a triste, e quer desabafar comigo... Diga o que tem...

     - Uma aflição que tu não imaginas... e não devo dizer-ta...

     - Se não deve dizer-ma, terrível cousa é! Então, não posso eu consolá-la...

     - Se eu soubesse que te não afligias...

     -      Isso não prometo, mãe; mas, ainda que me aflija, quero sofrer consigo.

     - E se for cousa que tenha mais relação contigo do que comigo?

     -      Se tiver remédio, remedeia-se com o auxílio de Deus; se não tiver, paciência. O senhor há-de dar-me forças e resignação... Mas que pode ser? Alguma calúnia?

     - Ninguém ousa manchar a tua reputação, minha filha. A minha reputação!... Ai!, minha querida mãe se soubesse o mal que me faz quando pronuncia essa palavra...

     - Pois porque não hei-de pronunciá-la?

     - Pelo amor de Deus, calemo-nos... Diga o que é...

     -      Tens ânimo, filha?

     -      Jesus!, que me aterra!

     - Sabes que Luís da Cunha está em Lisboa?

     - Se o sei?... Quem mo havia de dizer!...

     -      Tu descoras, filha?

     - Deus dá-me ânimo... Não é nada, minha mãe...  É isso só que me queria dizer? Deixá-lo estar... Não tenho nada com ele... É feliz?...

     -      Muito infeliz... Vem pobre...

     -      Eu não pergunto se vem rico... Será virtuoso? Terá temor de Deus?

     - Vem cheio de crimes. Dizem-se em Lisboa cousas horríveis deste homem. Casou muito rico.

     -      Isso já eu sabia, que mo disse o padre Madureira.

     -      Mas abandonou a mulher...

     - Coitadinha!...

     - E morreu atormentada.

     -      Compadeceu-se dela o Altíssimo... Foi feliz... Rezemos-lhe pela alma, minha mãe.

     Açucena ergueu as mãos, murmurando o Padre-Nosso. A viscondessa reparou na exaltação religiosa de sua filha, e capacitou-se das suspeitas do padre Madureira. Estas exaltações eram uma ameaça de algum grande desmancho intelectual.

     Açucena obedecia às mais extravagantes preocupações religiosas; abraçava todos os prejuízos populares: desautorizava a razão, calando-a com fanáticos receios. Dera-se na sociedade como incentivo de risos, se fosse possível sustentar a veemência das suas crenças em público.

     Depois da oração, Açucena pediu silêncio à sua mãe,que se retirou maravilhada da impassibilidade da filha; mas segura de que as astúcias de Luís da Cunha não poderiam nada contra ela. E era essa a sua aflição.

     Padre Madureira viera à hora do chá. A neta do arcediago não dissera uma palavra do diálogo com a viscondessa. Porém o padre, com grandes rodeios, ia dar-lhe, dizia ele, uma espantosa novidade. Açucena atalhou, dizendo:

     -      Já sei. Não falemos em tal cousa.

     -      Já sabe!! Mas não sabe tudo, minha senhora.

     - Sei tudo. Vem desgraçado...

     - E tão desgraçado que lhe pede uma esmola.

     -      A mim?!... Santo Deus! Como sabe ele que eu..

     -      Perdão, Senhora D. Açucena. Atenda-me. Eu tive uma imprudência; mas o meu fim era justo e nobre. Quis punir Luís da Cunha, para que a dor da culpa lhe despertasse no coração sentimentos de honra. Fiz que ele soubesse no Brasil, por uma carta minha, quem o salvara da ignomínia e do degredo, reabilitando-o para o futuro com os meios necessários para experimentar uma nova estrada.

     -      Deus lhe perdoe... Senhor padre Madureira... o mal que fez! Eu perdoo-lhe, e Deus Nosso Senhor me receba estas lágrimas em desconto dos meus pecados.

     - Luís da Cunha - prosseguiu o padre -, depois de mil reveses, aparece em Portugal, e encontra-se comigo, quando eu saía do coro. Pergunta-me se V. Ex.ª ainda vive. Vacilo na resposta. Quero até fingir que não conheço tal homem. Insta comigo para que lhe responda. Digo-lhe que Açucena vive; mas não para o mundo. «Quero vê-la - exclama ele -, quero pedir-lhe perdão!»

     É impossível - disse-lhe eu.

     -      Sim, sim, é impossível!... - atalhou Açucena, sobressaltada.

     -      Quer lançar-se-me aos pés... eu tento fugir-lhe... segura-me pela mão, e exclama com desespero: «Tenho fome! Estou há três dias sem pão! Dê-me uma esmola!»

     -      Oh meu Deus! - bradou Açucena, escondendo o rosto nas mãos.

     -      Eram horríveis as visagens daquele infeliz! - continuou o padre. - Disse-lhe que viesse a minha casa; dei-lhe de comer... Saí, deixando-o à mesa. Fui dar ordem numa hospedaria para que o sustentassem, e mandei-o para lá... Que é isto? - interrompeu-se impetuosamente Madureira, tomando Açucena nos braços. Minha filha...

     Estava desmaiada.

     Os haveres da neta do arcediago estavam reduzidos à quinta do Lumiar. Extremas economias permitiam-lhe pagar diariamente duas missas por alma dos seus benfeitores, dar jantar a vinte pobres, e sustentar-se com muito pouco.

     Açucena não aceitara uma única mealha de casa de seu padrasto, remira-se com o seu pouco, embora sua mãe esgotasse todos os subterfúgios para melhorar-lhe as comodidades. Que poderia ela fazer em bem de Luís da Cunha?

     Padre Madureira tinha apenas o seu mesquinho ordenado do cabido, como beneficiado simples. Também não podia.

     - Que faremos? - perguntou ela ao padre.

     - Tenho pensado num meio; e não vejo outro.

     -      Qual foi? Foi Deus que lho inspirou?

     -      Arranjarei quem empreste quatrocentos mil réis, com juros, e o pagamento a prazos, hipotecando esta quinta. Com este dinheiro alcançarei um emprego para Luís da Cunha longe de Lisboa.

     -      Sim, sim, longe de Lisboa.

     -      Dir-lhe-ei que é o mais que posso fazer-lhe.

     -      Sem dizer-lhe que eu concorri para isso...

     -      Farei a sua vontade. É conveniente que ele o ignore.

     Dias depois, era despachado João Maria das Neves, escrivão do juízo ordinário do concelho de Ribeira de Pena, na província de Trás-os-Montes.

     João Maria das Neves equivalia a Luís da Cunha e Faro. O requerente nunca subiu as escadas da secretária.

     O seu agente foram os quatrocentos mil réis da neta do arcediago.

     Na antevéspera da sua saída de Lisboa, Luís da Cunha quis saber o que era feito de Liberata.

     Ao escurecer, porque não saía de dia, foi à Rua de S. Bento, e parou defronte da casa n.° 40. Viu as janelas ocupadas por um rancho de senhoras, e deduziu que Liberata já não morava ali.

     Acendeu um cigarro na vela do tendeiro que morava defronte, e, como por mera curiosidade, perguntou quem morava defronte.

     -      É a família de um empregado.

     -      Aqui há três anos morava lá uma mulher...

     -      Era boa rolha! Chamava-se Liberata.

     - Justamente... Que é feito dessa mulher?

     -      Eu lhe conto o que sei. Depois que aqui à minha porta deram umas facadas num tal Luís da Cunha que morava no Campo Grande, e que lhe comia a ela a mesada que certo figurão lhe dava, a mulher meteu-se com um jogador que a trazia nas pontinhas. Chegou a ter duas seges a bêbeda! Vai senão quando, a mulher adoece, e o tal jogador nunca mais aí veio. Esteve de cama onze meses, vendeu tudo quanto tinha, os trastes até fui eu que lhos penhorei por cento e cinquenta mil réis que me devia do grão para os cavalos, azeite, arroz, etc., etc.

     - E morreu?

     - Qual morreu! A mulher tem sete fôlegos como os gatos. Dali foi para o hospital acabar de se tratar, e não há muito que me disseram que a viram no Bairro Alto; mas mora à porta da rua, para não ter o trabalho de subire descer as escadas. E no que veio a parar a tal matrona das carruagens.

     - Sabe em que sítio ela mora?

     - Eu, graças a Deus, não ando por essas casas, mas quem me disse que a vira foi aquele barbeiro que mora acolá! Se tem muito empenho em sabê-lo, isso é fácil!

     - Faz-me muito favor.

     O tendeiro voltou, dizendo que Liberata morava na Travessa da Água da Flor.

     Respeitemos a fidelidade.

     Luís da Cunha agradeceu cordialmente a indagação, e subia pela Travessa Nova, mais absorvido que nunca na inconsequente trapalhada das cousas humanas.

     Ao voltar na esquina da Rua da Rosa das Partilhas, viu uma mulher de xale vermelho, saia branca, lenço atado na cabeça, com as pontas em grande laço para as costas, saindo de uma taberna abraçada com um marujo.

     Pela voz, decerto era ela, cantarolando um landum que outro marujo harpejava na guitarra. Acabando a cantiga, o marujo filarmónico, fazendo um bordo largo de encontro a Luís da Cunha, grunhiu:

     -      Ponha-se à capa, quando não vai a pique, suparalta!

     Luís da Cunha recuou.

     -      Canta, Liberata... se não queres levar com a banza nos rizes! - tornou o marujo, perfilando-se com o grupo.

     E Liberata cantou outra copla das privilegiadas da Travessa da Água da Flor.

     Ela e os marujos sentaram-se na escaleira de uma porta. Vieram depois outros marujos e mulheres em saia branca batendo as palmas, e saltando às costas dos marinheiros, que as indemnizavam dos carinhos com amáveis pontapés.

     O escrivão do juiz ordinário permaneceu encostado à esquina da Rua da Rosa, até às dez horas. Os marujos debandaram, e Liberata recolheu-se sozinha.

     Luís bateu à porta.

     -      Quem nos honra?

     - Abre.

     - Quem és?

     -      Abre sem receio.

     -      Não conheço flamengos. Diz lá o teu nome... Se és o patavina de ontem, vai-te com o diabo.

     -      Abre, Liberata.

     -      Eu conheço esta voz... - murmurou ela.

     Abrindo a porta, recuou, exclamando:

     -      És tu, Luís?!

     -      Em que estado te encontro!

     -      Que queres? Tornei ao que fui... Nada de lamúrias. Como tu me conheceste, isso é que eu admiro! Pois vês em mim algum sinal da mulher de há três anos?!

     -      Apenas te conheço a voz e os olhos. Que é isso que tens na cara? Parece que te queimaram com vitríolo?

     - Estas nódoas vermelhas?

     -      Sim.

     -      Eu sei cá o que isto é? Está bom... não falemos em mais nada, senão meto uma faca no peito. Eu já fujo de abrir a porta a ociosos que me vêm falar na minha formosura, e nas minhas carruagens! Acabou... Nem carruagens, nem formosura. O diabo o deu, diabo o levou. Tu também estás acabado! Disseram-me que estavas rico, é verdade?

     -      Não: apenas tenho um bocado de pão para cadadia.

     -      Não te faças pobre, que eu não te peço nada.

     -      Pois, Liberata, eu venho pagar-te uma dívida do pouco que posso, assim como a contraí do muito que podias. Depois de amanhã vou empregado para a província, queres vir comigo?

     -      Pois tu querias-me lá assim?

     -      Quero... serei o teu enfermeiro.

     -      Olha lá o que dizes!

     -      Não me desdigo.

     - Eu tenho este vestido que vês.

     - Comprar-te-ei o que for da primeira necessidade.

     -      Pois tu ainda gostas de mim neste infeliz estado em que me vês?!

     -      Gosto. Há uma única pessoa que se parece comigo neste momento pela desgraça. És tu. Quero viver contigo. Quero ver se a reabilitação é possível para ambos nós.

     -      Agora creio que é. Olha, Luís, toda a minha filosofia desapareceu. Eu não to dizia que sem dinheiro não há filosofia? Sabes tu que tudo isto me parece um sonho!...

     Há mais de um ano que me embriago todos os dias para me esquecer... Hei-de contar-te a minha vida... Eu não esperava ver-te mais; mas vê tu o que é o pressentimento... Ainda não há quatro horas que eu dizia: «Que impressão faria eu neste estado a Luís da Cunha!»

     O que são as cousas desta vida!... Até parece que recuperei o som da palavra, falando com o meu amante dos tempos felizes! Ai!, quem me dera ser bela para te agradar ainda! Diz-me cá: esta máquina não terá conserto?

     - Veremos.

     - Eu era ainda bela se me tirassem da cara estas manchas vermelhas. Sinto ainda a robustez dos trinta anos; o que me falta é o fogo da alma... Vê se fazes de mim outra mulher, que eu prometo de fazer a tua felicidade... Não me vês a chorar? Isto é galante! Cuidei que chorara pela última vez quando entrei no hospital, pobre, e abandonada do infame que me reduziu a este estado...

     - Não chores, Liberata... Vamos ver o que é o futuro. Até amanhã.

     - Pois deixas-me?! Vou contigo já.

     - Não. Preciso iludir alguém.

     Luís da Cunha deixara alguns cruzados novos sobre uma banqueta de pinho, e saiu.

     Liberata não provou sono. As lágrimas incessantes eram-lhe de um sabor novo. Nunca ela fora tão infeliz como nessa noite. Havia no seu sofrimento alguma cousa que disputaria à alma do cínico um momento de compaixão. Naquela degradação não diremos que as lágrimas regeneram; mas por isso mesmo que são inúteis, como o orvalho sobre a flor arrancada e seca, a mulher que as chora, é bem que nos apiedemos dela, mostrando-a como exemplo, mas que a infeliz não veja que é mostrada com escárnio!

   

    As primeiras e as últimas lágrimas de Luís da Cunha

     E dez dias depois, João Maria das Neves tomava posse do cartório de escrivão do juízo ordinário do concelho de Ribeira da Pena. É escusado dizer-vos que Liberata o acompanhara, e, ao décimo dia de convivência com Luís da Cunha, eram visíveis os melhoramentos naquela fisionomia macerada. Passado um mês, raiavam-lhe da tez, ainda mosqueada de betas cor de açafrão, uns longes da descomposta formosura. Luís tinha soberba de poder tanto no espírito daquela mulher, única no mundo para ele, única pessoa que o não repelira, que se confiara à sua vontade, entregando-se-lhe sem condições.

     O homem abandonado, só, desatado de todos os liames sociais, revoca as potências da sua alma para consubstanciar-se no coração da única pessoa que o não abomina. Há exemplos de afeições ferventes do salteador de estrada para a mulher que o recebe nos braços; do que aguarda na enxovia o dia do patíbulo do assassino por ofício para a mulher que a chorar lhe dá esperanças de perdão. O instinto do sangue não adultera o da sociabilidade. A ânsia de uma afeição recresce, quando o opróbrio vem de todas as bocas pedir o exílio do execrado de entre os homens.

     Assim se explica o enlace de Luís com Liberata. Não há hipocrisia no afã com que a procura, em todas as horas vagas do trabalho. Sucedem-se os dias sem um vislumbre de fastio. Vêm as longas noites do Inverno, sem outra convivência, encontrá-los sentados ao fogão, contando-se mutuamente lances de duas biografias, que muitas vezes são saudadas com estrepitosas gargalhadas.

     Feitos para se encontrarem no mesmo atoleiro, é necessário que aí se amem, que aí se reconheçam, aí se centralizem na mesma aspiração, e não tenham de que se envergonhar um ante o outro, de infâmias passadas.

     Reconheceram-se, e amaram-se.

     Pois não seria amor a sofreguidão daqueles beijos?

     Não seria amor a ansiedade de Liberata, procurando-o, se lhe tardava vinte minutos mais, nos Paços do Concelho? Não seria amor o orgulho com que Luís da Cunha falava de sua esposa aos cavalheiros da terra?

     Devia acontecer que Luís da Cunha ignorasse os mais triviais rudimentos dos processos judiciários. Valera-se de um velho amanuense que tomara sobre si a administração do cartório. Entretanto, o proprietário não curava de estudar, e cedia ao regente uma boa parte dos seus proventos, que eram poucos.

     Luís da Cunha conhecera um contrabandista de Chaves, que lhe picara o desejo de tentar fortuna pelo contrabando. Liberata não se opunha ao arbítrio do seu amante. As tentativas foram prósperas, e o audacioso contrabandista aventurara os seus capitais, e outros contraídos de empréstimo em arrojadas empresas.

     - Se a fortuna não encravar a roda - dizia ele a Liberata -, em dois anos iremos viver em Paris.

     E, com efeito, a roda da fortuna girava com a velocidade dos seus caprichos. O escrivão não curava do ofício, e raras vezes pedia contas ao regente. As suas continuadas excursões tornaram-se suspeitas; mas, no concelho, ninguém zelava os interesses do fisco, e Luís da Cunha sortia das melhores sedas os arredores por preços módicos, e enviava para o Porto e Braga valiosas carregações. No fim de dois anos, o contrabandista celebrava os anos de Liberata com um rico adereço comprado em Madrid e adiava a sua saída de Portugal por mais um ano, visto que não achava doze contos dinheiro suficiente para de Paris meter, em grande, o contrabando em Portugal.

     Tentara uma arriscadíssima entrada de sedas, quando os guardas-fiscais, logrados sempre, velavam as fronteiras desde Monção a Verim. Encravou-se a roda da fortuna. As cargas foram tomadas, e o contrabandista preso.

     Luís da Cunha para remir-se gastou tudo o que possuía.

     Liberata foi a Chaves com o precioso pecúlio a salvar o amante. Choraram, abrançando-se no cárcere? Não.

     A antiga amante do conselheiro dizia a Luís, sorrindo:

     - Vamos para Paris? Parece-me que faz neste mês seis anos que eu te fui buscar ao Limoeiro. É fado meu! O pior é não termos um conselheiro, que nos dê a sege...  O mais tudo vai bem. Temos feijões em casa, e muito amor para prato de meio.

     As autoridades queixaram-se ao governo, alegando que o funcionário público João Maria das Neves era o primeiro contrabandista. Os jornais de Lisboa reproduziram a acusação. Ia ser demitido, quando o ministro se achou coacto por um dos seus amigos que lhe citou uma história de uns quatrocentos mil réis...

     O escrivão continuou funcionando. Vendeu o adereço de Liberata, e tentou novas aventuras em pequena escala.

     A sorte sorriu-lhe outra vez, conquanto as denúncias o rodeassem de perigos. Liberata acompanhava-o galhardamente nas empresas. Montava com varonil perfeição.

     Grudava um bigode com gracioso arreganho; vestia uma jaqueta de peles: cruzava com a perna em brunida bota de água um bacamarte, e lançava com um piparote para a nuca o chapéu sevilhano.

     - Era esta a mulher que eu devia ter encontrado aos quinze anos! - dizia o filho de Ricarda.

     Em 1845 o escrivão estava remido do preço com que comprara a liberdade dois anos antes. Resolvera dar o último assalto à vigilância dos guardas. Eram doze cargas de panos de alto preço, que podiam aumentar seis mil cruzados ao seu pecúlio. Deviam entrar por Almeida..

     Luís da Cunha apresentou-se aí com a corajosa Liberata.

     As cargas pisaram algumas milhas de território português, quando os guardas a cavalo, a toda a brida, lhe vinham no alcance. Os almocreves aperraram os bacamartes, com o contrabandista à frente. Liberata não se afastara de ao pé do seu amante. Travou-se um vivo tiroteio. Aumentaram os guardas. As cargas foram tomadas; dois almocreves morreram. Luís da Cunha fugiu, e a destemida cavaleira, com a clavina despejada, esporeava ao lado dele.

     -      Estás salvo - disse ela -, mas eu estou ferida.

     -      Ferida! Aonde?

     - No peito... e creio que morrerei!

     - Não digas tal... Apeia-te.

     - Não, que ouço ainda o tropel de cavalos. Quero que te salves... Se eu cair, não me levantes, que me não ás vida.

     Galoparam alguns minutos. Pararam. Já se não ouvia o ruído dos cavalos nas extensas veigas de Pinhel.

     - Apeemos - disse Luís.

     -      Pois sim... Estou quase morta, Luís... Desaperta-me este colete... Vês?

     -      Vejo sangue...

     -      E no coração que eu sinto a bala. Isto não tem remédio...

     - Vamos a Pinhel... Torna a montar, minha filha.

     - Não posso, nem me importa de morrer aqui ou em Pinhel.

     - Isto é atroz!... Não te posso salvar!...

     - Salvaste-me, Luís. Morro contente assim... Agora é que as nossas contas estão saldadas. Tu tiraste-me da morte a alma, e eu quis defender-te da morte do corpo. É um bom fim o meu. As mulheres virtuosas... raras são as que assim morrem... Se me não encontrasses perdida de todo, não poderias nada sobre mim... Fogem-me os sentidos, Luís... E a vida... Deixa-me expirar bem perto do teu coração... Como é bom morrer-se com o perfeito juízo para se conhecer a pessoa que se deixa... com tanta saudade... Que dor! O pior é deixar-te pobre... e... só... no mundo.

     Liberata expirou.

     As primeiras e as últimas lágrimas de Luís da Cunha caíram sobre as faces mortas dessa mulher...

     São quatro horas da madrugada.

     Bateram à janela do pároco da matriz de Pinhel.

     O padre vem à janela e vê um vulto disforme na escuridão.

     - Quem é?

     - Um passageiro que pede a V. S.ª licença para poder enterrar o cadáver de um seu companheiro de jornada, morto de repente.

     - Eu não concedo que se enterre ninguém sem ordem da autoridade civil. Não conheço o senhor, e não sei se se trata de esconder algum crime debaixo das telhas sagradas. Espere que seja dia para se lavrar auto, e depois falaremos.

     O compassivo pastor deu-lhe com a janela na cara, e retirou-se instado por uma voz roufenha de mulher que lhe recomendava carinhosamente que se não constipasse, que estava suado.

     Era saber muito!

     Luís da Cunha pousou o cadáver na parede do adro.

     Ouviu passos. Eram jornaleiros que saíam para o trabalho. Chamou dois com a promessa de boa paga. Mandou-os abrir uma sepultura no adro. Desceu a depositar o cadáver. Beijou-o na face. Assistiu ao enterro. Pagou aos operários, e montou o cavalo de Liberata, que farejava o sangue de sua dona.

     - Ainda me não venceste, demónio! Hei-de vingar-me da sociedade, que me quebrou o último amparo!

     Hei-de vingar-te, Liberata!

     Era como um rugido facinoroso esta exclamação.

   

    A luz do amor nas trevas da demência

     Desde Agosto de 1842, época da aparição de Luís da Cunha em Lisboa, Açucena caiu numa tristeza inconsolável, num ansioso desejo de morte que, continuamente, pedia a Deus, apesar dos seus princípios de resignação, e abandono à vontade divina.

     Nem Rosa Guilhermina nem o padre Madureira podiam nada contra a misantropia da neta do arcediago.

     Receavam-lhe a demência, porque, muitas vezes, eram desconexas as suas ideias e incompatíveis até com a sua religiosidade. Tentaram sair com ela, por consentimento do visconde condoído, a uma distracção em viagem.

     Açucena recusava-se, e rejeitava com enfado as oportunas instâncias de sua mãe.

     Queriam adivinhá-la, e não achavam vereda que os guiasse. Sabiam que a sua devoção era cada vez mais fervente, e descobriram os cilícios com que cingia a cintura, e as disciplinas que lhe arrancavam gemidos alta noite.

     As admoestações não aproveitavam nada. Esperavam todos os dias encontrá-la douda, e o que decerto lhe faltava, para que assim julgassem, era alguma acção pecaminosa, que desmentisse a rigidez do seu ascetismo.

     Nunca perguntou por Luís da Cunha, mas pedia sempre à Virgem Mãe que fosse a protectora dele, e o remisse da condenação eterna, descontando-lhe os sofrimentos deste mundo.

     E seguiram-se assim; sem alteração para Açucena, os dias de seis anos. Em 1848 morreu a filha do arcediago quase repentinamente; mas desde muito que o seu testamento estava feito. Açucena era herdeira de uma quinta no Minho, única disposição que a mulher de José Bento podia legar.

     Este golpe confirmou as conjecturas do padre Madureira. Açucena teve passageiros acessos de demência.

     Convalescida, ordenou ao padre que lhe trouxesse um tabelião. À solenidade e bom tino da súplica, não resistiu o padre desconfiado.

     Açucena dava o usufruto da sua quinta ao beneficiado Madureira, enquanto vivo, com a condição de ele fazer cumprir o legado de três missas diárias: uma por alma do cónego Bernabé Trigoso; outra por alma de D. Perpétua Trigoso; e outra por D. Rosa Guilhermina, sua mãe. Por morte do padre, a quinta passaria à Santa Casa da Misericórdia com as mesmas condições para sempre.

     Madureira, sabendo, nas vésperas da partida, que Açucena se retirava para a sua quinta de Caldelas, na província do Minho, admoestou, suplicou, mas não conseguiu demovê-la do propósito.

     -      A minha saída desta casa - dizia ela - é o maior sacrifício que eu posso fazer. Deus mo aceitará, porque no serviço de Deus me sacrifico. Preciso ser grata aos benfeitores mortos, e ao vivo: os sufrágios para os mortos, e a posse desta quinta, meu purgatório e paraíso, para o meu benfeitor.

     - E deixa o seu benfeitor com tamanha presença de espírito, Senhora D. Açucena!

     -      Deixo-o com a mais violenta dor de coração. É o cilício com que martirizo o meu espírito. Deus me levará em conta esta renúncia de convivência com o meu bom amigo.

     Madureira não podia constrangê-la, receando abreviar uma loucura irremediável.

     Acompanhou-a ao Minho, na Primavera de 1849. Estiveram alguns dias no Senhor do Monte, onde a melancolia de Açucena parecia desoprimi-la, alargando-lhe o coração pela amplitude do céu, que, naquele local, convida a um cismar suavíssimo, a uma santa saudade de outra existência, que deve ter precedido a das dores terrenas.

     A quinta de Caldelas é um éden. As águas prateadas do rio Homem banham-lhe as orlas verdejantes. Por entre as franças das acácias, e nastradas no salgueiro, suspira a viração rescendente do perfume das flores maninhas.

     Em antigos tempos, o génio bucólico de um possuidor criara ali tudo que a invenção pode realizar de mais viçoso, de mais límpida frescura, de mais poético devaneio.

     O edifício é antigo, dessa pitoresca arquitectura, sem escola, respigada em todos os modelos, e acinzelada pela fantasia do que aí quisera eternizar debaixo desse formoso céu os prazeres inocentes de outras eras, de outros idílios que raros corações concebem hoje.

     Aos lados da majestosa entrada, erguem-se os ciprestes seculares, outrora confidentes de segredos que a mão do amor lhes entalhara na casca, perecedoura como tudo em que o homem quer perpetuar-se.

     É essa a herança da neta do arcediago. Aí fugiram três meses em deliciosos instantes ao padre Madureira.

     Chamavam-no a Lisboa as suas obrigações clericais, e o           quase abandono em que deixara a quinta do Lumiar.

     Fora, prometendo à lacrimosa Açucena vir aí passar todos os estios. Deixara-a acariciada pela velha serva que já o          fora do cónego Trigoso. Dispôs o arrendamento da quinta, para evitar à nova possuidora canseiras de administração. Aflitivo fora aquele adeus! Açucena dos braços dele correra a lançar-se aos pés da cruz.

     E, depois, o oratório, a capela, as devoções eram a sua vida. Ninguém a encontrava fora dos muros da quinta.

     Os próprios caseiros viam-na apenas através de um véu negro, no coro da capela em dias santificados.

     Os sintomas de um transtorno intelectual eram sensíveis cada vez mais, não para ela que, toda absorta em Deus, não tinha ensejo de comparar-se com os moradores da terra; mas para a consternada velha, que, de perto, lhe observava os gestos, os temores pueris, as visões beatíficas, e até a imaginária convicção de que o cónego, em forma de querubim, a visitava em sonhos.

     E, se acontecia descer, à tarde, às margens do rio, sentia refrigerar-se no coração, respirava alto, sorria-se aos gratos risos da natureza, punha a mão no seio, que se agitava em estranhas comoções de um sentimento incógnito, de uma saudade inexprimível. E, de repente, ao risosucediam as lágrimas; à instantânea frescura das rosas da face a palidez do susto. Açucena fugia, dizendo que ofendera o Senhor com pensamentos mundanos. Fechava-se no seu quarto, soluçando a cada vergoada que se abria no corpo com as disciplinas.

     Em 1850, padre Madureira veio ao Minho, e viu que a moléstia progredia. Empregou uma religiosa severidade para arrancá-la à mística exaltação; mas era tarde. O disparate principiava nas devoções de Açucena. Não queria entrar na capela, sem aspergi-la com água-benta, por isso que vira erguer-se um homem amortalhado sobre o carneiro onde dormia o sono de duzentos anos o fundador daquela casa.

     Um hábil confessor não pudera aclarar o espírito enturbado da misteriosa senhora. Imaginando-a em luta com alguma paixão desditosa, franqueava-lhe as portas do mundo, para que se não perdesse na região das quimeras. Açucena respondia com lágrimas ao confessor, e, apertada pela explicação das lágrimas e do silêncio, gritava pela misericórdia divina.

     Madureira, despedindo-se dela no Outono de 1850, foi seguro de que não tornaria a vê-la senão douda.

     Previra bem.

     Quando, em 1851, voltou foi recebido com uma gargalhada. Açucena estava vestida com o seu chambre de cassa branca, e sapatos de duraque em fitas cruzadas nas pernas. Eram trastes dos dezoitos anos, conservados ainda nos seus baús de educanda. O padre respondeu com o pasmo e com as lágrimas à gargalhada.

     - Porque chora? - disse ela, com tristeza.

     - Porque choro? Oh, minha filha!... não me pergunte porque choro...

     -      Também eu chorei, meu amigo, quando me disseram que o desgraçado tinha fome...

     - Quem?

     -      Pois, quem!? Luís da Cunha, esse verme que todos pisam, desde que me mordeu no coração. Se eu lhe perdoei, para que o perseguem? Deixem o infeliz! A desonrada, a infamada, a mártir, fui eu... Não quero que ninguém me vingue...

     - Açucena!

     - Se eu fosse outra, procurava-o na cadeia... Fui eu que o abandonei primeiro... quando o meu padrasto o pôs a ferros... Que me importava a mim a sociedade!

     Quem me vem consolar das torturas que me tem custado este abandono!?...

     -      Isto parece incrível, meu Deus! - exclamava o padre, voltando a face dos olhos abrasados de Açucena.

     - Não me fuja, senhor padre Madureira. O senhor não tem culpa nos meus infortúnios. Há-de sempre lembrar-me que levou o dinheiro ao desgraçado e que lhe deu um bocado de pão, quando ele disse que tinha fome... Ouça-me... Onde está Luís?

     -      Não sei, senhora.

     -      Pois eu quero vê-lo para perdoar-lhe...

     - O seu perdão não melhora os infortúnios dele, Deus é que perdoa...

     - Sim, sim, Deus...

     Açucena fugira da sala impetuosamente, bradando:

     «Deus! Deus!» Madureira seguiu-a, e encontrou-a no seu quarto, de joelhos, com os lábios colados no pavimento, diante do oratório.

     Levantou-a, e viu-lhe os olhos embaciados daquela névoa cinzenta da gota-coral. Sentou-a ao pé de si, e disse-lhe com voz trémula de compunção:

     -      Minha filha... Venha comigo para Lisboa...

     - Deus me livre! Ele há-de aqui vir ter.

     - Luís da Cunha?

     - Sim.

     - Viu-o alguma vez nestes sítios? - perguntou o padre suspeitoso.

     - Vi... passou, há um ano, na estrada. Estava eu no portão pela parte de dentro. Espreitei, quando ouvi o tropel de um cavalo. Era ele.

     - Falou-lhe?

     - Não; nem ele podia ver-me... Tem as barbas até à cintura; vestia uma jaqueta de peles, e ia tão triste, tão macilento!... Teria ele fome?

     - E se ele lhe pedisse de comer?

     - Dava-lhe tudo quanto tenho! Para que quero eu esta casa, esta quinta, estas cadeiras, esta camisa, se eu morro muito cedo?! Que venha, e eu dou-lhe tudo! Não quero que o persigam, já disse! Hei-de acusar diante de Deus quem o matar!

     Padre Madureira viveu na quinta de Caldelas alguns meses. Quando se retirou, deixou Açucena aos cuidados de um egresso, vindo de Lisboa por escolha dele. Era irremediável a demência. Açucena recusava receber facultativos, e irritava-se em frenesis quando lhe pediamque se deixasse visitar por um médico. Se fugia à vigilância do egresso, ia ao portão fitar o ouvido; ouvindo tropel de cavalo, espreitava; desenganada da sua louca esperança, sentava-se na pedra, chorando com mavioso mimo, com infantil ressentimento, até que o seu guarda, inventando promessas, a conduzia a casa.

     E nunca a tão bela alma daquela mulher ressurgiu das trevas !

     Aos longos dias da desgraça seguiu-se a longa noite da demência!

   

    Um veio novo a explorar

     E Luís da Cunha?

     Deixara Liberata na sua última paragem, e fora ao concelho de Ribeira de Pena exercer o seu ofício. Os lucros de dois anos de contrabando perdera-os na fatal tomadia.

     Estava, outra vez, pobre: faltava-lhe a coragem animadora de Liberata; caiu num estupor moral, em que o pensamento do suicídio muitas vezes lhe esvoaçou sobre o cabo do punhal, sem poder entrar com ele no coração.

     Luís da Cunha não podia aniquilar-se.

     Os jornais gritaram contra o empregado público, de novo contrabandista. O ministro, que já não era o mesmo que o despachara, demitiu-o. Demitido, desencadearam-se contra ele as malevolências do concelho, ondenunca praticara erro de ofício, que não dirigia, nem extorsão, que não precisava. Retirou-se para o Porto, onde chegou na memorável noite da resistência à contra-revolução de 9 de Outubro de 1846. Associou-se ao motim popular que prendera o duque da Terceira. Deu morras ao ministério reaccionário, indicando-se vítima dos Cabrais.

     Entrou no serviço da junta governativa, foi tenente quartel-mestre de um batalhão de artistas, alcançou o despacho de director de uma alfândega da raia, e distinguiu-se com bravura em Torres Vedras e Valpaços.

     Quando os espanhóis interventores entraram em Valença, o tenente quartel-mestre arrostou com impotente heroísmo o colosso. Meteu-se debaixo das balas, e as balas, cruzando-se-lhe em redor, respeitaram aquele homem, que parecia ter o selo invulnerável do primeiro assassino, a prerrogativa de Caim.

     Desarmada a junta suprema, Luís da Cunha ficou no Porto, vivendo de pequenos empréstimos que alguns amigos políticos lhe faziam, e de pequenas esmolas que algum membro da junta patrioticamente lhe dava. Assim viveu até 1850, na água-furtada de uma estalagem da Rua de S. Sebastião, donde foi expulso porque não pagava. Casualmente, deparou um seu conhecido camarada que servira a junta, como sargento de cavalaria. Convidado por ele, foi ser seu hóspede aí para os sítios do Marco de Canaveses.

     Luís da Cunha conheceu que o seu hospedeiro amigo era um homem também misterioso. O ex-sargento de cavalaria, nos primeiros dias, teve a delicadeza de não catequizar o seu hóspede aos princípios da comunidade, sem as teorias socialistas. Fartava-o regaladamente à sua mesa; levava-o de patuscada a casa da sua amásia; punha à sua disposição uma rica égua de raça para passeios, e ensinava-o a matar perdizes com finíssima pontaria.

     Uma noite acabavam de cear, e Luís da Cunha historiou o mais sentimentalmente que podia a morte da heróica Liberata. José do Tabuado (era a graça do hospitaleiro), entusiasta pela glória, propôs uma ovação à memória de Liberata, a qual, como todas, foi freneticamente recebida pela Senhora Joaquina Vesga, íntima do proponente, e bem aceita ao hóspede enternecido.

     - Meu caro Neves! - disse, depois, José do Tabuado -, acabemos com isto! Queres ser dos meus?

     - Se quero ser dos teus?

     - Franqueza, e viva amizade! Sabes quem sou?

     - Sei que és excelente amigo...

     - Dos meus amigos. Mas inimigo dos ricos. Eu sou chefe de uma quadrilha de salteadores. Tira o chapéu na minha presença!

     - Cá estou descoberto... - disse Luís, sorrindo-se, e descobrindo-se.

     - Agora cobre-te. Enche esses copos, Joaquina...  À tua saúde, Neves! À saúde do meu chefe de estado-maior! Aceitas?

     - Aceito!

     - Toca!

     E deram-se as mãos com vertiginoso transporte.

     - Serás rico em pouco tempo... .- continuou o chefe. - Para que diabo queres tu as excelentes forças que tens? Como é que cumpres o protesto de vingança que fizeste, quando te mataram Liberata, porque roubavas a fazenda nacional?

     - Tens razão...

     Dias depois os jornais do Porto pediam força para debelar uma poderosa quadrilha de ladrões que assaltavam as casas famosas em dinheiro. Citaram a morte de uma senhora, rica proprietária do Douro; a de um padre muito rico das circunvizinhanças de Vila Real; e vários assaltos em forma a casas inutilmente defendidas. Um destacamento de infantaria dera caça aos salteadores que resistiram com intrepidez admirável. Contava-se o heroísmo do chefe, que saltava valados com um ferido no arção da sela. O ferido era Luís da Cunha.

     Não obstante a escaramuça, a coorte estendia por longe o terror. Proprietários isolados refugiavam-se nas povoações, e as povoações velavam armadas com os olhos fixos nas fogueiras que os ladrões acendiam nas quebradas das serras. Ninguém, porém, ousava desalojá-los das suas tendas. As almenaras ardiam até ser dia; as roldas e sobrerroldas velavam durante a noite, e Luís da Cunha, abraçado à sua clavina de dois canos, dormia tranquilo com a face sobre os aparelhos da sua égua fiel.

     José do Tabuado não mentira. O filho de João da Cunha e Faro tinha ouro, muito ouro; podia retirar-se com um passadio honesto, e adquirir até uma reputação honrada. O seu pensamento era passar à Africa em 1853, com o louvável intuito de comerciar em géneros lícitos com a metrópole. José do Tabuado prometera-lhe acompanhá-lo, e, para isso, liquidava os últimos saldos com alguns proprietários, incursos na condenação de Proudhon.

     O filho de Ricarda tinha quarenta e um anos. Julgá-lo-iam de cinquenta; mas os cabelos brancos não tinham nada com o vigor feroz da alma. O seu fito era voltar a Lisboa, rico, alardeando a passada infâmia, contanto que arrastasse com correntes de ouro após si o respeito público. Desejava lançar aos pés de Açucena esse dinheiro que ela lhe emprestara. Desejava levantar no cemitério público um faustoso monumento a Liberata, como insulto às mulheres do «grande mundo». Quatro anos de fortuna, e o seu sonho seria visto à luz da realidade!

     A sua fama teria alguma cousa de horrível heroísmo.

     O seu nome, partido o braço vingativo, seria levado aos vindouros como a tradição de um meteoro que abrira um rasto de fogo entre os homens.

     José do Tabuado, que não se alteava às concepções arrojadas do camarada, admirava-o como um grande homem, gostava de ouvi-lo, e dizia que a sua linguagem não parecia de um simples escrivão do juízo ordinário. Levava-o a casa de cavalheiros de nome, que hospedavam afavelmente o salteador (não importa explicar o disparate), e os cavalheiros maravilhavam-se do estilo puritano do suposto Neves, e mais ainda da vasta notícia que ele dava de países estrangeiros, dizendo, ao mesmo tempo, que nunca os vira.

     Encontraram-se uma noite em casa de um fidalgo de Basto, onde concorreram outros, discutindo linhagens.

     Excepto os presentes, que eram todos representantes de ilustres governadores das possessões portuguesas, todos os outros eram netos de almocreves, de lavradores, e até de ciganos, afora os eivados de sangue judeu, que eram muitos.

     Um dos detractores citou, como em distracção, seu tio João da Cunha e Faro. Luís, agitado por tal nome, prendeu astutamente o incidente do parentesco à conversação,     dizendo que conhecera João da Cunha e Faro, em Lisboa, onde fora caixeiro, em 1838. Perguntou se morrera.

     -      Morreu doudo - respondeu o Senhor Bernardo de Malafaia e Alvim de Castro e Leite Pereira de Meneses e Sá de Correia de Sepúlveda e Cunha e Faro, etc., etc. Morreu doudo. Foi o malvado bastardo que o matou.

     -      O bastardo?! - atalhou Luís.

     -      Sim: o filho de uma mulata que ele roubou em Coimbra...

     -      Sabes se já morreu esse homem? - perguntou um senhor com quinze apelidos.

     - Não sei; mas é de crer que sim. Ainda vos não contei a passagem dos ossos?

     - Já; mas conta-a ao amigo Neves, que é romântica.

     -      Pois lá vai. Haverá sete anos que eu fui a Lisboa e hospedei-me em casa de meu primo Inácio da Cunha, que sucedeu no vínculo de meu tio João da Cunha. Era no Verão, e resolvemos passar alguns dias numa bonita casa de campo que meu primo tem em Benfica. Foram connosco o primo Álvaro de Castro, o primo conde de Santa Justa, o primo D. Pedro de Malafaia, o primo D. António de Alvim, o tio monsenhor Meneses, etc., etc., etc. Estávamos sentados debaixo de um caramanchão, e disse o primo João da Cunha, apontando para a álea das amoreiras: «Ali foi que morreu a amante de meu tio João.» Contou-nos que um velho criado, morto alguns meses antes, lhe contara tudo, e lhe dissera o sítio onde fora enterrado o marido e assassino dessa tal Ricarda, porque os criados deram cabo dele.

     Quando ouvimos isto, tivemos, todos à uma, desejos de procurar os ossos do tal marido. No outro dia viemos cavar no sítio, e, com efeito, demos com os ossos, e o primo D. António de Alvim, mexendo na terra, encontrou um riquíssimo anel de brilhantes com uma enorme esmeralda. Procurámos mais, a achámos a folha de um punhal com as letras que diziam «Rio de Janeiro». Não topámos mais nada. O que eu posso dizer-lhe, Senhor Neves, é que o anel foi vendido por duzentas moedas, por sinal que o primo Inácio da Cunha as perdeu todas contra um valete, em casa do primo D. José de Castro e Alvim.

     - É uma interessante história! - disse Luís da Cunhaem abstracta meditação. - E a tal brasileira onde foi enterrada?

     - Na igreja, é o que disse o tal criado.

     - E o filho dessa brasileira era o tal bastardo que matou o pai!

     - Justamente.

     - E não acha que o pai foi bem morto pelo filho?

     - Homem! Essa é de cabo-de-esquadra!

     - Se o tio de V. Ex.ª, o Senhor João da Cunha, foi causa da morte da mulher desse homem, não era justo que o filho de tamanho crime fosse o verdugo do pai, a viva reminiscência desses dois cadáveres, o aguilhão constante do remorso que o enlouqueceu?

     - O nosso amigo está muito razoável nos seus discursos... Essas doutrinas são de bons tempos...

     - E o caso é que ele diz bem! - atalhou um fidalgo, depondo as cartas do voltarete. - O filho foi o instrumento com que a Providência castigou o pai.

     - Então, nesse caso, muita gente pagou inocentemente - replicou o Senhor Bernardo de Malafaia, etc.

     - O tal bastardo foi o açoute da humanidade. Perdeu umas poucas de mulheres, matou outras, esteve preso nas Antilhas por pirata... fez o diabo.

     - E, por fim, é natural que se suicidasse... – disse Luís da Cunha.

     - É o que ele devia ter feito há muito - concluiu o expositor da cena dos ossos.

     O filho de Ricarda projectou ajuntar às suas futuras obras um monumento a sua mãe.

   

     São 24 de Setembro de 1853.

     É meia-noite

     Açucena pergunta ao egresso inseparável:

     - Que barulho é esse que fazem lá dentro?

     - Já disse a V. Ex.ª que os caseiros, sabendo que uma quadrilha de ladrões aparecera ao anoitecer na freguesia de S. Vicente, recearam que esta casa seja atacada porque dizem lá por fora que vive aqui uma senhora muito rica.

     - Eu muito rica! Já fui... agora não tenho nada...

     - Pois sim; mas os ladrões não se persuadem disso, equem sabe se virão cá? Os caseiros, à cautela, chamaram gente, e tratam de se pôr em defesa no caso que eles ataquem. V. Ex.ª, ainda que ouça tiros, não tenha medo.

     - Mas de que serve matá-los?! Se quer, eu vou dizer-lhes que não tenho nada, e eles vão-se embora.

     - As cousas não correm assim, minha senhora. Salteadores não acreditam na palavra das damas. O melhor é defender-se cada qual, e eu estou certo que eles, em lhes zunindo o chumbo pelos ouvidos, vão pregar a outra freguesia.

     O ruído de passos e vozes aumentou na sala. O egresso chamou a criada ao pé de Açucena, e foi juntar-se ao povo.

     - Que temos, rapazes? - perguntou ele.

     - Os homens aí estão.

     - Quem os viu?

     - Nós. Ouvimos estropear cavalos, e depois rugiu a ramada do portão, e vimos um homem, ou o diabo por ele, que saltava do muro para dentro. Depois buliram na tranca e abriu-se a porta... Qué-los ver?... Olhe... Senhor Frei António... olhe aqui por entre estas faias... Eles lá vêm... Ó rapazes, aqui é que se conhecem os homens! Quando eu disser «fogo», é fazer de conta que se acaba aqui o mundo... Deixa-os vir... Olha... quatro já eu lobrigo... Ali!... ali não se perde um quarto... Deixa-os chegar mais... E agora!... Fogo!

     Despejaram-se doze espingardas ao mesmo tempo; e à detonação sucedera uma infernal algazarra dos defensores.

     - Leva arriba, rapazes! - gritava o regedor aos seus. Cerca, tem mão, por esse lado...

     E desceram ao pátio, animados pelo recuar dos salteadores. A sineta da capela dava àquela infernal orquestra de berros e tiros um tiple horroroso. Os ladrões recuavam, sustentando o fogo: acometiam com denodo, um momento; mas a população que os cercava não cedia aos ímpetos da coorte, militarmente organizada em batalha à voz do chefe.

     A sineta chamava chusmas de povo que afluíam disparando as armas. A quadrilha conheceu o perigo, e retirou acelerada, mas nem todos retiraram: um tinha caído, e não se erguera mais. Em redor deste cadáver aglomerou-se a multidão. Aproximaram-lhe da cara um archote de palha, e viram-lhe uma fenda de bala sobre a orelha direita.

     Não era menos infernal o alarido do triunfo! Pegaram no cadáver e levaram-no para debaixo das janelas, depositando-o sobre um banco de pedra. O egresso veio ao quinteiro, viu-lhe a cara, e murmurou:

     - Pobre homem! Morreu sem sacramentos!... Oxalá que tivesse um momento de contrição! E não está mal trajado... Deixem-no aqui ficar até amanhã, porque é necessário que o administrador o mande levantar...

     Entrou no quarto de Açucena, que batia os dentes como um tremor de catalepsia.

     -      Não tenha medo, minha senhora.

     -      Mataram alguém?

     -      Ficou um; mas lá vão os outros, que eram bastantes.

     - Rezemos por alma desse que morreu...

     -      Pois sim, rezemos - disse o egresso, ajoelhando ao pé dela.

     - Poderá salvar-se? - disse ela, interrompendo a oração.

     - Deus é pai de misericórdia.

     - Quem sabe se ele roubava por ter fome... Vá ver se ele não estará morto... poderemos ainda curá-lo.

     -      Aquele está bem morto, minha senhora.

     - Então rezemos: Padre nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome... Não posso... Reze, Senhor padre Joaquim... eu estou muito aflita... Quero tomar ar... Ana... quero-me vestir... Traz-me o meu vestido de seda preto de manga curta; os meus canhões de veludo preto; o meu lenço de ramos amarelos; a minha saia de renda; o meu xale de casimira vermelho...

     -      Está com o acesso; não traga nada - murmurou o padre ao ouvido da criada.

     - Não ouves, Ana? Então! Também tu me desobedeces! Ora vamos!

     - Vá, vá dar-lhe essas cousas - tornou o egresso; e saíra para que ela se vestisse.

     Açucena colocou-se diante do espelho.

     - Como são grandes estes cabelos!... - disse ela, puxando dois graciosos pincéis de cabelos, que lhe saíam dos ângulos da maxila inferior. Procurou ansiosa uma tesoura, e aparou-os.

     - Agora sim - disse ela com risonha satisfação. Assim estou mais bela para o noivado.

     A criada ajudou-a a vestir. Vestida, olhou-se outra vez ao espelho, enfeitando na cabeça desgrenhada o lenço dos florões amarelos e puxando para a garganta a grade preta do afogado no vestido.

     - Agora, vamos.

     -      Onde, minha querida senhora?!

     -      Vamos passear no jardim... Quero esperá-lo.

     -      Esperá-lo... a quem?

     - És tola! Pois não sabes que Luís da Cunha vem receber-me esta noite?

     -      Oh, minha Mãe Santíssima, compadecei-vos dela!

     -      Que estás a dizer? Vens, ou vou só?!

     O egresso entrou, chamando por Ana.

     - Que é?! Onde vai?! - perguntou ele a Açucena espavorida.

     -      Vou esperá-lo.

     -      Não saia daqui... Sente-se nesta cadeira.

     -      Não quero! Vou sozinha, sem medo nenhum.

     O meu Luís é valente...

     -      É melhor acompanhá-la... - murmurou o padre.

     E saíram pela porta do jardim.

     -      Que linda noite! - disse ela, saltando entre os buxos.

     - Está muito fria a noite, Senhora D. Açucena.

     -      Fria! Ora essa! Calor tenho eu de mais no coração!

     Quantos anos tenho eu? Dezoito... Queriam que eu tornasse para as comendadeiras! Isso sim!... Quem conheceu uma vez Luís da Cunha, nunca mais o esquece...  morre por ele... Sou sua mulher... Jurou-mo nos braços dele quando eu fugia... Porque estou eu aqui? Prenderam-me... fizeram bem! O amor violentado vence ou mata. Eu me desforrarei em risos de esposa das lágrimas que tenho chorado neste desterro... Ele não tarda, e depois fujam os meus inimigos! Sim, fujam, que o meu esposo é muito valente!

     - Recolha-se, minha senhora.

     - Recolher-me?! Às comendadeiras?

     - Ao seu quarto...

     - Não quero... Deixem-me respirar... Vamos ao portão esperá-lo.

     O egresso seguiu-a.

     Ao passarem pelo quinteiro onde estava o cadáver, com a fogueira do costume ao lado, Açucena perguntou:

     - Que é aquilo?!

     -      É o corpo do ladrão que morreu - disse o padre, querendo afastá-la.

     -      Quero vê-lo... coitadinho!

     -      Não veja, Senhora D. Açucena... A vista não é agradável.

     -      Quero vê-lo... não tenho medo aos mortos...

     E forçou a desprendê-la o braço do padre. Levantou um tição da fogueira, aproximou o clarão azulado da face do cadáver... soltou um grito que se não descreve, nem se imagina, deixou cair o lume, correu num ímpeto vertiginoso, com as mãos agarradas à cabeça pela quinta abaixo, na ladeira que conduzia ao rio Homem.

     É ocioso dizer-vos de quem era o cadáver. O primeiro momento de repouso para Luís da Cunha principiava ali.

     Foi abençoada a bala que o salvou do patíbulo.

     O egresso não podia alcançar Açucena na carreira...

     Gritou por socorro, por ela, por Deus, por Maria Santíssima. Tinha-a já perdido de vista, quando ouvia o chofre de um corpo que baqueava na água.

     No Brás Tisana, de 24 de Setembro de 1853, lê-se o seguinte:

     «Um cadáver. - No rio Homem, acima da ponte de Caldelas, apareceu o cadáver de uma mulher de trinta e seis a quarenta anos; tinha vestido de seda preta, e parece ser pessoa de consideração.»

     No mesmo jornal, de 28 do referido mês e ano, lê-se o seguinte:

     «Sinais de um cadáver. - A mulher que apareceu morta acima da ponte de Caldelas tinha os sinais seguintes: idade trinta e seis a quarenta anos; cabelo castanho e sobrolho castanho-escuro; boca e nariz regular; rosto redondo; lábios grossos; e no queixo de uma e de outra parte alguns cabelos que mostravam ter sido aparados; um pequeno buço; vestido de seda preta com pouco uso; manga curta; canhões de veludo preto; grade preta no afogado do mesmo vestido, e o corpo forrado de paninho entrançado, cor de flor de alecrim e vermelho, com três espartilhos no peito; xale de caxemira vermelho em meio uso, com franja em volta, barra, e ramos pretos; na cabeça um lenço grande azul, com ramos amarelos, de algodão, e barra da mesma cor; saia de morim branco em bom usb com uma estreita renda em volta; saiote de beata de seda branca com cinco panos quase novo, e um pente a fingir tartaruga rendilhado e moderno; camisa de paninho com manga curta. Ainda se não sabe quem seja.»

     Lê-se no Portuense, de 10 de Novembro de 1853:

     «Há dois meses anunciaram os jornais do Porto a aparição de um cadáver de uma senhora num dos rios de Braga ou Guimarães. Tornaram os jornais a falar neste cadáver, dando as mais minuciosas informações de vestidos, de fisionomia, de idade, e até de conjecturas sobre o género de morte que sofreria a suposta senhora. Seguiu-se a isto um profundo silêncio, e nem ao menos respirou a notícia de menor acto administrativo na investigação deste acontecimento. Pode ser que se desse um drama muito misterioso, com peripécias muito horríveis, mas o público tem direito a perguntar se a senhora ou a mulher foi assassinada ou se se suicidou.»

     A resposta ao Portuense é um livro.

 

                                                                                     Camilo Castelo Branco

 

 

                      

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