Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
DOZE CASAMENTOS FELIZES
Primeiro Casamento
Nous sommes corrompus, c'est vrai
Mais l'eau corrompue peut redevenir bonne à boire
Michelet (L'Amour)
Já se a gente admira quando encontra um exemplo de felicidade conjugal. Raro marido há aí que, uma vez ao menos em cada dia, se não arrependa de o ser, confirmando o sabido rifão. O casado de ontem vem hoje dizer ao amigo celibatário que não imole sua liberdade no altar do interesse; e menos ainda no da paixão. Virtude, beleza, e até bens da fortuna, tudo é ineficaz para adoçar os azedumes do homem-moço, a chorar-se cativo forçado da mulher que o enfeitiçara com os dons de sua formosura, com a sobre-excelência de suas qualidades, e mais ainda, com as regalias do abundoso património; por onde o dissabor dos lindos nadas, que são relevo e esmalte da existência, revê logo no semblante do moço, que meritoriamente exercita os deveres de bom marido. A toa dizemos que a fria gravidade daquele aspeito denota o juízo que vem de seu com as austeras obrigações de esposo e pai. Nem sempre é juízo, se o tomais no sentido de sisudeza; é mais que muitas vezes o desamorável, se não afligido acordar de um sonho com que a inexperiência acalentara a imaginativa do mancebo, que amou e esperou, como é dado amar e esperar na área angustiada que Deus abalizou com tristes descontos e desenganos. Que, de todo o tempo, a flor fruteou e se feneceu - o coração se desentranhou em delícias de esperança, e desmaiou nas tristezas do fastio, isso mui de fé e experiência o creio, que mo atesta a história de todos os povos, escassamente variada por quase imperceptíveis condições de temperamento e razões de climas, agora, porém, nestes ruins tempos de material e nauseante industrialismo, a fase do coração é curta, o amor vem temporão, e como que apodrece antes de sazonado. De toda a parte, aos ouvidos do mancebo vem a soada do martelar da indústria. A sociedade, aparelhada em oficina, não dá por ele, se o não vê a labutar e mourejar no veio da riqueza. Títulos, glórias, homenagens, regalos, as feições todas da festejada máscara, com que por aqui nos andamos entrudando uns aos outros, só pode ser afivelada com broches de ouro.
Dislates do amor empecem o ir direito ao fim. O coração é víscera que derranca o sangue, se com as muitas vertigens o Vascoleja de mais. Faz-se mister abafar-lhe as válvulas e exercitar o cérebro, onde demora a bossa do cálculo, da empresa, da sordícia gananciosa, e outras muitas bossas filiadas ao estômago, o qual é, sem debate, a víscera por excelência, o luzeiro perene entre as trevas que ofuscam as almas.
O amor, pois, no homem desta idade, aprosada e sensual, não é mais que instinto, muito mais instinto que o rouxinol, que diz cantares de amor em cada estilo, e o da leoa da Numídia, que, a cada ervecer da testada da sua caverna, urra em frenesis de sensação, chamando o noivo amado com a sua ternura feroz. Amor com duradoura poesia, se resta algum, está nos brutos que imodestamente dizemos irracionais. O mundo marcha, diz o estilista francês, que escreve os seus apocalipses não sei em que Patmos dalguma betesga de Paris. Pois se o mundo marcha, de esperar é que os rouxinóis dos nossos sinceirais, e as bestas-feras dos desertos líbicos, venham na correnteza dos séculos a entenderem as contradições económicas de Bastiat; e, depois, de poesias sobre a Terra ficará apenas alguma que por aí anda ritmada, a qual não será melhor percebida que os hieroglíficos do Nilo. Pobre poesia!
Vai estirado o proémio para romance de uma dúzia de páginas.
Principiando, ponderei que já se admira a gente quando topa um exemplo de felicidade conjugal. De mim digo que me enleou um desacostumado espectáculo de ternura, que me deram dous casados - não podiam ser outra cousa - ao cabo de três anos de noivado, segundo depois me disseram. Andavam-se eles passeando naquelas frescas e saudosas carvalheiras de Santo António das Taipas. Nenhum figurava menos de trinta anos. De longe, era ela muito de ver-se, com o seu roupão de cassa branca, chapéu de palha escura, gibão curto de cetim preto com mangas perdidas, braço nu, e pulseiras pretas de vidrilhos. Vista de perto, e examinada no rosto, a donairosa senhora não lucrava, e a imaginação perdia por curiosa.
Chamar-lhe feia seria agravá-la; mas favorecê-la aqui na tela do romance, que nunca mentiu por minha boca, seria defraudar as senhoras formosas. Simpática, isso sim, que era muito: olhos bonitos, e mais ardentes que bonitos; branca, muito, e até em demasia. para os que sabem sentir o belo; rosto curto e redondo; boca tão breve que nem o abrir do riso a fazia regular: aí está o ligeiro debuxo das feições da dama.
Desmereçam-nas, se quiserem; mas os olhos não, que os tem ela de jeito e molde que, se eu não soubesse de outros mais formosos, não sei se levaria o romance todo a escrever daqueles, guardadas com o marido todas as cautelas.
Andavam de braço dado; a espaços curtos paravam; ela, encostando a face direita ao peito do marido, cingia-lhe no pescoço o braço; ele, abraçando-a pela cintura, beijava-a na face esquerda. Isto repetiram-no vezes sem conto, durante a hora que passearam na carvalheira da margem direita do Ave.
Pergunta o leitor cordato, e a senhora pudica, que o é, e o parece, como queria César que fosse a sua, perguntam se não era desonestidade, e até tolice, andarem-se osculando aqueles dous meninos, maiores de trinta anos, ali entre as árvores, sem temor de mofa, e também respeito à pudicícia, de que o decoro pessoal não dispensa propriamente os casados? Em abono do cavalheiro e sua esposa, direi a Vossas Excelências que ninguém passeava, ninguém os via, na carvalheira, salvo eu, que, por sinal, não podia ser visto, acocorado como estava entre a ramagem de uns amieiros, pescando à cana. Aí está o que foi. E tanto assim é que, ao entardecer, avistaram de longe o meu amigo António Joaquim, e para logo puseram ponto nas ternuras expansivas, que me estavam segredando o meigo suspirar amores dos colóquios de Paulo e Virgínia.
Foi o meu amigo cortejá-los, deteve-se alguns minutos, e veio ter comigo quando eles se retiraram.
- Conte-me, amigo António Joaquim - lhe disse eu -, quem e aquela gente?
Aquele amor é uma virtude ou um escândalo? Se é virtude, vou casar-me; se é escândalo, o meu pudor geme.
- E uma virtude - respondeu. - São mulher e marido, que se querem com amor sobrenatural. Você não pode imaginar como aquela gente vive!
- Imagino, imagino. Se forem em casa o que são na rua, o comer para eles há-de ser um suplício, porque um beijo, com os lábios oleosos dos chorumes nutritivos, deve, ser medianamente saboroso! Você faz lá ideia! De três em três passos, era um langor, um requebro, um beijarem-se, uns arroubamentos que não há aí cousa que mais diga.
Tolere este ressaibo do Palmeirim de Inglaterra, porque os bons dos cônjuges deram comigo em idades fabulosas, e você foi causa de eles se retirarem, e de eu dar tino de mim nesta geração viloa em que uma alma de poeta, para entreter-se, precisa de pescar bogas à cana.
António Joaquim, depois de me dizer a terra de D. Cândida de Lima e Luís de Cernache, continuou deste teor:
D. Cândida enviuvou, há cousa de dez anos, de um marido velho, que lhe deixou boa casa, e muitas frescuras de anos, e óptima disposição para se gozar de tudo isto. Era vivo ainda o pai de D. Cândida, grande fidalgo pobre, que mal podia já manter os foros da sua nobre inutilidade, quando o genro morreu, com grande gáudio de toda a família.
O velho chamou para si a filha e os vastos rendimentos; temendo, porém, que ela passasse a segundas núpcias, deu de mão a todas as visitas que podiam inquietá-la. A viúva, contrariada em suas melhores esperanças, veio ás más com o pai, e saiu de casa, como fugida, para um convento, onde tinha cunhadas, irmãs do seu defunto marido. No mosteiro deram-lhe ampla licença de falar no locutório com quem muito do seu gosto fosse; licença que ela usou, amplamente também, namorando, sem quebra da sua dignidade, um ou outro dos mais graúdos requestadores de sua gentileza e haveres, cousas muito de aproveitar. Não será intrigante e abelhuda a crónica se disser que a viuvinha, quando cá vieram os Espanhóis em 1847, sacrificou quantos galanteios tinha, portugueses de lei, a um perro de castelhano bem apessoado, que veio no quartel-general do Concha, o qual perro ficara doente em*** (notem o recato das estrelinhas!...) e se detivera ali quinze dias em convalescença, numa casa que defrontava com o mosteiro.
D. Cândida - honra lhe seja! - perguntou a D. Martim de Fojos se a galanteava para esposa; e, como lhe dissesse que sim, e o boato saísse do convento pelas quatro mil bocas das quarenta mulheres que lá existiam, o pai da viúva entrou em averiguações, e soube que o espanhol era casado e, no tocante a costumes, descendente directo por varonia de D. João Tenório. Estes informes explicavam a freima com que o ajudante-de-ordens se aforçurava na saída da sua futura, antes de ele ir a Espanha legalizar os papéis para o casamento. A viúva, bem que apaixonada, tornou sobre si e pôde ainda sair-se do perigo sem mais moléstia senão a da galhofa dos ociosos e das inimigas conventuais que a invejavam.
Morreu o pai de Cândida em 1850. Ficou a viúva livre dona de si e dos seus bens.
Saiu do convento logo e foi residir em uma das suas quintas nos arrabaldes de ***.
Vivia sozinha com as suas criadas. Lia sempre romances, que mandava ir do Porto, a esmo. Ali era então o amor do imprevisto, aquele devaneado amar quimeras, vultos indefinidos de imagens cismadas ao luar de noite estiva, e ao rumorinho de fonte cujos meandros suspiram entre a folhagem ressequida. Já a poesia rimada lhe refloria espontânea, quando, à sombra do sicómoro do parque ou do castanheiro secular do passeio, se assentava a linda cismadora com um livro de páginas em branco, e o lápis a estilar ternuras, que nem o pintarroxo vizinho as regorjeava mais maviosas.
Depós isto, veio a melancolia, aquela feiticeira melancolia da mulher, que nunca homem viu, que se não deixasse falecer de pura mágoa de a não poder consolar. As criadas, ao vê-la triste assim, taciturna e fastienta de modo que se apenas alimentava de fruta e chá, quiseram fazer aos livros o que a moça do fidalgo da Mancha, emparceirada com o barbeiro e com o cura, fizeram aos miríficos romances do ilustre mentecapto.
Ai! D. Cândida de Lima não valia decerto a alma, aquela galharda e bizarra alma do amador de Aldonça; mas, se a ele visse, como anjo transviado da trilha do céu, que brandos colóquios naquela sua garrafal linguagem lhe não diria!
Quantas vezes, chamada pelo grito convidativo da coruja, a viúva saía ao terraço do seu palacete, e daí conversava a estrela conhecida, perguntando4he em linguagem das estrelas, o nome do anjo que a visitava em sonhos!
Uma vez, transmontava o Sol, bafejavam auras olorosas, enrubescia-se a faixa do ocidente, e vinha de muito longe a toada das pastorinhas que desciam, cantando, os declives da serra.
Soaram três aldrabadas no portão da quinta. Cândida estremeceu, como se do bronze da aldraba saísse um condutor eléctrico a prender ao coração da dama. Aberta a porta, entrou um homem de trinta anos feitos, portador de uma carta que a baronesa de ***, amiga de infância da fidalga, lhe escrevia do Porto. Cândida deslacrou a carta, e leu as seguintes palavras no terceiro período:
O homem que tens diante de ti é um dos maiores entre os grandes talentos de Portugal. Escuta-o cinco minutos e despede-o, se prezas a tua liberdade, minha Cândida... Eu de mim, se não estivesse amortalhada no sobretudo do meu marido, que vou escovar (o sobretudo), era dele, como a borboleta é da chama, e a doninha do... ia chamar-lhe sapo! Que injúria ao que tu já estás sentindo por ele!...
Cândida encarou no homem, que a media de alto a baixo, e disse entre si:
- E este!
Ao mesmo tempo, o sujeito, que também fazia monólogos mentais, disse lá consigo:
- É bonita.
E ficaram nisto por então, e nós também por agora.
- Que fazes tu na província há seis meses? Vais ou não vais para Paris? - perguntou, em carta, de Lisboa para Trás-os-Montes, um sujeito ao personagem quedeixámos em prática mental com a simpática viúva.
Resposta:
Eu estou aqui, há seis meses, a dormir; e, se me demorar aqui setenta anos, só não serei Epiménides para te responder alguma vez.
Não ter coração!... Como isto é bom! Um tio, cuja mesa faria enfiar de inveja Apício; duas tias, que acendem velas a S. Brás, quando eu não como do oitavo prato; uma terra onde eu saio à noite, de chambre de chita e moiras verdes, a beber o ar do Marão, num rancho de morgadas; e... e que mais? Se não fosse este sono, contava-te o mais da minha vida... Vou imolar-me à amizade como Licínio a Bruto, como Alcibíades a Sócrates. Sacrifico-te um quarto de hora desta bestial existência.
A meio quarto de légua daqui mora uma viúva de vinte e oito anos, rica, fidalga dos quatro costados e que não envergonharia o marido entre as mais celebradas mulheres do teu S. Carlos. A baronesa de ***, visitando-a eu no Porto, deu-me uma carta para a viúva. Fui apresentar-lha, prevenido. A baronesa descrevera-ma com assombros de maravilha, no que toca a talento, espírito, erudição, e tudo o mais com que a hipérbole pode enfeitar a mulher, a distância de noventa quilómetros. Só me não disse que era formosa: se tal dissesse, sairia eu suspeito do sexo da baronesa. Qualquer mulher te pode gabar o espírito de outra; mas a matéria... Isso nem a mais sincera e espirituosa.
Demorei-me com a viúva um quarto de hora e despedi-me resolvido a dizer à baronesa que a sua Staël tinha embrutecido cinco minutos antes da minha visita.
No dia seguinte mandou-me ela um bilhete pelo seu lacaio, que chamam cá mochila. Passada uma semana, encontrei-me com ela em casa dos Monterroio Caldeirões, família antediluviana, onde há tradição que um avô, há seis mil anos, escapara, como Deucalião e Pirra, com uma avó ao dilúvio universal sobre a espinha da serra do Marão. Escutei a viúva a bacharelar com senhoras e homens, e admirei a profusão de imagens com que pintava perspicuamente as delícias campestres, e restituí os créditos à crítica da baronesa; falando, porém, comigo, ei-la a responder-me insípidas vulgaridades. Se se apartava de mim, nova explosão de frases rutilantes, já denunciando mistérios do coração da mulher, já amaldiçoando a riqueza que lhe não valia a realização do menos ambicioso sonho da mulher pobre. Ousei replicar-lhe; o auditório animou-a; a vaidade venceu o medo, e a viúva entreteve-me os ouvidos.
Falei desta senhora às minhas velhas tias, que a estimavam em pouco.
Despersuadi-as do conceito injusto e pude aproximá-las dela sob o pretexto de a convidarem a proteger uma associação de beatas. Amiudaram-se as nossas visitas; passei tarde na quinta; cumpri pontualmente os deveres de homem polido, dizendo-lhe que a amava; e convenci-me de que, se algum de nós mentia, era eu só. A gente cá da terra deu-me os parabéns do casamento; a ela davam-lhos também, excepto a família Monterroio Caldeirão, que essa diz que meu oitavo avô era cavalheiro, mas não tinha filhamento, e que na minha genealogia havia muitas quebras de casamentos desiguais.
Acho que é verdade tudo isto. Meu oitavo avô, se não tinha filhamento, devia de ser um grande patife! O caso é que eu já não podia com o fastio, quando esta gente me encarecia ou invejava a felicidade. A viúva ainda me não falou em casamento, nem na sua reputação mareada. Chama-se livre e diz que a sociedade não pode feri-la. Minhas tias é que me vão mortificando, e já duvidam da salvação da minha alma, e eu também.
Isto assim vai mal, porque não há compensação nenhuma. A mulher desconfia e chora.
Se fosse mais soberba, lutaríamos, e era melhor para ela: a humildade das lágrimas move-me escassamente à comiseração. Ninguém teve piedade de mim, quando eu chorava... O pior é ter eu de viver dous anos entre estes getas, porque me sinto com energia para ir a Paris levar ao Moloch da civilização, como feudo, as últimas relíquias do meu património. Depois, bem sabes que dependo destes velhos. Se me lá em Lisboa desquitassem da minha palavra de honra, ia já para aí; todavia, não fales nesta fraqueza, que não vá o Menelau fortificar-se e privar Helena de ir domingo à missa do Loreto. Nesta terra, os Perseus, que salvam dos monstros as Andrómedas, praticada a façanha, expatriam-se! Que país!...
Já sabes a minha vida. Consumou-se o sacrifício. Adeus. Vou jantar, que meu tio já perguntou se o leitão está bem louro e se a cabidela do peru tem talhadas de linguiça. (1)
Teu patriarcal amigo,
F ***
Não há documento algum que reze de sucessos posteriores àquela carta, por espaço de quinze meses. E de presumir que o cavalheiro desterrado continuasse indolentemente a sua intimidade, entre dois bocejos, com a viúva, segundo inferimos da carta. O que de toda a evidência se sabe é que, findo o prazo de dous anos, o Páris, já herdeiro de uma das duas tias, entrou em preparativos de jornada para a capital.
Adivinhou-lhe a viúva o desígnio; sufocou o despeito, a paixão e a ira; nem palavra proferiu de humildade súplica ou senhoril desafronta. O forasteiro admirou-se e maravilhou-se do bom e amigável desenlace de vinte meses de aliança, sendo esta da melindrosa essência daquelas que se não desatam sem repelões de raivosa angústia ou lástimas aflitivas da mulher que deveras ama.
- Dar-se-á o caso - disse entre si o Eneias daquela viúva muito mais simpática em sua abnegação que a outra choramingas de Cartago -, dar-se-á o caso que ela esteja tão enfastiada como eu?
O orgulho ferido respondeu: - Não pode ser.
Na véspera da partida, indo o cavalheiro despedir-se de Cândida, foi recebido sem lágrimas nem vestígios delas.
- Espero voltar, passados seis meses - disse ele.
- Terás duas cartas minhas, todas as semanas. És tão generosa que me responderás a todas, contando-me a vida do coração, que é meu, e mesmo os seus segredos, quando sentires que ele me quer fugir, não é verdade, Cândida?
Luziram lágrimas nos olhos lindos da viúva, as quais não poderiam enternecer coração mais brando ainda que o daquele homem, por causa do sorriso desdenhoso que se abriu com elas.
- Definitivamente vais? - disse ela apertando-lhe a mão.
- Vou.
- Assim como, na vinda de Lisboa - tornou ela com serena melancolia -, apeaste ao meu portal, não te custará amanhã, na passagem, sair da estrada vinte passos e dar-me o último adeus?
- O último, não, Cândida... Vejo-te tão tranquila! Cuidei que te seria mais dolorosa esta separação...
- E não é? - replicou a viúva, sorrindo o riso que diz mais que as lágrimas. – O chorar nada prova, meu amigo. Uma mulher como eu chora uma só vez, porque as
lágrimas são comuns. A minha distinção, que espero, por delicadeza ao menos, não me contradigas, hei-de mostrar-ta com provas mais persuasivas. –Provas mais persuasivas! Que quer ela dizer?! A mulher premeditará uma loucura? O hoc fugiente peris de Ausónio será mais alguma cousa que metade de um delambido verso, nesta idade em que as viúvas bonitas sabem, por lho dizer Michelet, que são muito mais adoráveis que as donzelas, e também sabem, sem lho dizer ninguém, que o sacerdote do seu culto, quando renuncia, passa o turíbulo às mãos do sucessor?
Estas perguntas não são minhas: são do homem que havia de partir no dia seguinte para Lisboa.
1 - Elidem-se algumas linhas, que denotam costumes pouco edificativos do cavalheiro. Pelos modos, o homem fora Páris e entregara a princesa, por não ter um Ílio onde se acastelasse com ela, e aceitara a clausura de exular dous anos.
Às nove horas da manhã desmontou o passageiro à porta da quinta da viúva, e viu no pátio um lacaio aparelhando um cavalo com anojos de feitio que indicava ir a passeio a Ilustre dama. No patamar das duas escadarias assomou D. Cândida de Lima gentilmente entrajada com o roçagante vestido de cavalgar, boné de veludo roxo com pluma azul e luvas de anta até meio do antebraço.
A viúva, como visse de surpresa o homem fatal subindo, retrocedeu, e tão agitada, que houve de sentar-se para não desmentir a coragem da resolução. Seguiu-a ele, apertou-lhe a mão com artificial ternura e disse-lhe:
- Naturalmente, vais comigo até à subida do Marão?... O dia está lindo; mas o sol pode molestar-te.
Cândida, açoutando com o chicotinho a barra do seu vestido de caxemira cor de pinhão, respondeu placidamente:
- Eu não paro na subida do Marão. Vou a Lisboa: quero ver Lisboa, e não posso fazê-lo em melhor e mais querida companhia.
- Vais a Lisboa! - atalhou ele mal-assombrado - A ocasião foi mal escolhida...
- Todas as ocasiões são oportunas, quando as escolhe a mulher, como eu, senhora de suas acções.
O cavalheiro irritou-se com o tom severo da resposta e replicou.
- Então isto, pelo que vejo, tem um certo ar de perseguição!...
D. Cândida levantou-se de ímpeto, deixou cair os braços ao longo dos elegantes refegos do seu majestoso vestido, fitou com soberbo despeito o descaroado homem e disse apenas:
- Enganei-me! A dignidade há-de cicatrizar a chaga. Expressões de insondável angústia!
Saiu da sala, entrou no seu quarto, deu ordens à criada grave, e lançou da cabeça o boné impetuosa.. mente. Depois, com as mãos na testa, circunvagou a vista pelo quarto e fitou os olhos na imagem dum Cristo de marfim. Ajoelhou e falou em espírito.
Alguém poderia ouvir-lhe o soluçar; mas as orações só Deus.
A criada veio à sala e disse ao cavalheiro, que passeava.
- A fidalga manda dizer a Vossa Excelência que a dispense de voltar, porque se recolheu incomodada ao seu quarto.
O façanhudo herói destas páginas, sorrindo e vestindo a luva da mão esquerda, saiu nestas palavras:
- Diga à fidalga que eu parto, fazendo votos para que a convalescença seja tão rápida quanto o foi o incómodo.
Desceu, cavalgou e assobiou árias predilectas das óperas italianas, que lhe sorriam de S. Carlos.
A um quarto de légua, o cavalheiro, assomando a um teso, donde se avistava, pela derradeira vez, a casa de D. Cândida de Lima, parou, torceu-se sobre o selim e contemplou por minutos a melancólica fachada do inferno da pobre senhora, e disse com sincera magoa:
- Marco Aurélio! O amor será uma convulsão apenas; mas a saudade... como a defines tu, ó filósofo?! Pobre mulher! Sou eu que te vingo. Esquecerás a afronta e acharás quem dignamente te queira. Quando estiveres em boa paz com a consciência da tua dignidade, entrará comigo o desprezo de mim próprio.
Transpôs a colina e assobiou o alegro da ária interrompida.
Temos o herói em Lisboa.
Os oito primeiros dias vive-os do entusiasmo convencional de alguns amigos que o visitam e se espantam de o não ouvirem falar galego.
Dous anos na província quase fabulosa de Trás-os-Montes, e saber ainda convidar os seus amigos para a menza, e mandar lançar caravão no fogo!
Quinze dias passados, o benquisto da rapaziada fina bocejava no Marrare, espreguiçava-se no teatro e ia às casas elegantes, onde se jogava, comprar com alguns punhados de libras duas horas de excitação febril.
Um mês corrido, divertia o espírito enjoado, procurando uma, duas, ou seis mulheres que o estimulassem a experimentar se ainda tinha estilo e capacidade no coração para sepultar mais algumas crenças de oito dias.
Ao cabo de dois meses, o leão caíra no torpor sezonático e despertava para arremeter furioso às grades da jaula que lhe vedavam entrada aos somenos e mais desambiciosos gozos da vida.
Resolveu escrever as suas memórias, sob um título vago de romance. Acepilhou três capítulos, compondo frases, embrechando-os de epítetos e nobilitando-os com sentenciosa erudição. Leu e releu a sua obra e viu que não prestava: faltava-lhe coração e interesse. Rasgou o escrito e foi para Sintra, no coração do Inverno, obedecendo a uma fantasia, da natureza daquelas que denotam estreita míngua de fantasia.
Aí lembrou-se de Cândida, que não respondera às suas duas primeiras cartas, e escreveu-lhe terceira. As duas eram de cumprimentos e delicadezas de homem enfastiado, que não há nada mais tedioso e glacial. Era a última amorável, escrita em Sintra, na Penha Verde, com as refegas do. oceano fronteiro a ramalharem os arvoredos nus, que rangiam como ossadas de gigantes a desarticularem-se. Cousas assim, e outras mais puxadas de estilo, dizia ele à viúva, afora as branduras da saudade, e queixumes de seu amor dela, tão depressa olvidado. À terceira carta respondeu a viúva assim:
Pedirei a Deus que o faça feliz, mediante alguma boa alma, cujos merecimentos consigam o que os meus não puderam. Eu também peço a Deus a felicidade para mim, e já a entrevejo à luz da aurora da eternidade.
E mais nada.
Nasceu neste instante o poeta. De lagoa infecta sai às vezes uma borboleta de asas pintadas de ouro e esmeraldas.
Luís de Cernache, ao anoitecer, estava em Lisboa, e três dias depois apeava à porta da quinta da viuva. Bateu. Tarde lhe abriu a porta o velho feitor, e perguntou - Vossa Excelência procura a fidalga?
- Sim... Não está cá?
- Não, senhor; está em
- Em casa das Srªs Monterroios?
- Não, senhor, no Convento de Santa Clara.
- Desde quando?
- Desde que Vossa Excelência foi para a capital; e está muito doentinha a fidalga.
Era já um coração de vinte anos, com a veemência da paixão, com o ansiar de quem premedita um suicídio, se não chega a tempo de salvar a angélica vítima.
Entra na portaria e manda chamar D. Cândida de Lima. Responde a porteira que a senhora está de cama. Insta ele por que se diga à doente que a procura Luís de Cernache.
Milagre.
A viúva nem chama quem lhe dê os vestidos. Veste-se atabalhoadamente. Vai sair: mas retrocede a mirar-se e remirar-se ao espelho, e encobre o desalinho dos cabelos com o toucado mais gracioso dos quinze que tem, indo achá-lo, quase pelo tacto, entre catorze! Oh instinto!
Luís de Cernache está na grade. Entra ofegante a viúva e estende a mão através das reixas à mão convulsa que parece querer trazer-lha aos lábios. Nunca Luís de Cernache foi tão analfabeto! Dizia, com muita sincera graça, o historiador de Frei Bartolomeu dos Mártires: «Os juízes ordinários são idiotas.» Com o correr dos tempos, os juízes ordinários alumiaram-se e fizeram-se idiotas os amantes.
Oh!, que estupidez tão eloquente aquela, menos para romancistas verídicos! Estes, quando sabem do seu ofício, e são modestos como eu, calam-se e acatam a imaginação criadora do leitor. E os que se prezam, e prezam a paciência alheia, sabem ao certo quando a testa do leitor se avinca impaciente.
Aí vai o remate: foi um casamento de estrondo e um paraíso sem um anjo percuciente. Naquele céu azul de quatro anos ainda se não condensou uma nuvem. Luís de Cernache e D. Cândida de Lima, quando alguém os visita, dizem entre si: «Vamos sofrer o mundo: paguemos este tributo à dor.» Depois remuneram-se em beijos do ardor daqueles que eu tive a perdoável indiscrição de denunciar a um público que faz de tudo riso.
Se o Sr. Luís de Cernache comprar este livro, recebam Suas Excelências, na sua bem-aventurança, a saudação respeitosa, que lhes envia, dentre quatro paredes nuas e molhadas de um cárcere, o pescador de bogas do rio Ave.
12 de Fevereiro de 1861
Segundo Casamento
Não é muito de espantar destas mudanças que a fortuna traz consigo.
Francisco de Moarais (Palmeirim de Inglaterra)
Manuel Antunes de Roboredo nasceu, há quarenta e três anos, no seu solar avoengueiro em Roboredo, povoação do Minho nos subúrbios de Guimarães.
Entre os mais egrégios nomes dos primordiais navegantes e descobridores portugueses figura o do fundador do vínculo de Santa Olaia de Roboredo, do qual é Manuel Antunes actual administrador.
Este vínculo, em ano próspero de vinho e pão, rendia seiscentos mil réis, no tempo em que o fidalgo minhoto, superadas as dificuldades intelectuais de uma formatura em Direito, mudou a sua residência para o Porto.
O programa, que o bacharel debuxara na tela da imaginação vesga, era casar rico, dotando-se com as qualidades de sua pessoa, e a dos seus vinte e dous avós conhecidos.
A menina que houvesse de matrimoniar-se com o morgado de Roboredo casava pelo menos com dez gerações de Antunes, que a lima dos séculos viera adelgaçando até à pessoa de seu marido.
Os dons pessoais do Sr. Roboredo eram sobremodo avessos ao prospecto ambicioso que o amor-próprio, desleal conselheiro, lhe incutira.
A análise extrínseca do homem dá que o morgado era criatura rara e plebeia até à repulsão. A natureza, que marca os homens pela altura, estacionou, aos treze anos, em Manuel Antunes, se não é que por uma de suas brincadeiras, que a nomenclatura patológica denomina aberrações, não quis antes encurtá-lo progressivamente, entalando-lhe entre as omoplatas uma cabeça colossal e esférica.
Deixemos crescer a cabeça de Manuel Antunes e procuremos uma criatura simpática e amorável, a ver se o estilo se ameniza e a benquerença do leitor se merece.
Numa aldeia do Alto Minho vivia Ângela, filha de Maria.
Maria nascera de lavradores remediados, que a lançaram de si, quando a culpada filha acusou com lágrimas os sinais de maternidade a sua mãe. Espancada e expulsa, pediu socorro ao pai de Ângela. Era este um fidalgo enfastiado de aventuras análogas àquelas: mandou ao mordomo abrir no orçamento uma verba em favor de Maria, que desde logo passou à grande classe das inactivas.
A esmola era pequena e paga com grandes atrasos. Maria trabalhava em costura grosseira e ensinava as filhas dos lavradores vizinhos para se remediar.
Ângela, orçando por quinze anos, viçou em graças do corpo à competência com as da alma. Tinha belos olhos negros; mas a bondade do coração, que se espelhava neles, realçava-lhe o encanto e a melancólica poesia da inocência infeliz. Apesar do descuido em que trazia os seus tantos dotes ignorados, não tinha Ângela que invejar às mais brancas e mimosas cútis que, nas cidades, se resguardam dos ares molestos ao cetim da pele; mais linda era, porém, que todas quando o escarlate do pejo lhe retingia o rosto.
Então logo se via que era do sangue alvoroçado o corar de Ângela, porque há aí um corar mecânico, cousa muito engenhosa, a que talvez deva chamar-se «talento de corar», o qual serve para cobrir as desgraças da alma, à semelhança do carmim para as do rosto.
Acaso a vira, nessa idade, o pai, volvendo de viajar. Gostou de vê-la assim galante. Liberalizou-lhe algumas palavras afectuosas e dinheiro para vestir-se com mais asseio. Não foi decerto o amor paternal que o instigou àquela dádiva, menos valiosa que os afagos: seria antes a vaidade do artista que se orgulha da sua obra, sem que o coração aquinhoe dos suspeitos entusiasmos da cabeça.
Maria, enganada pelo insólito favor, animou-se a industriar a filha que pedisse ao fidalgo um dote, ou alimentos certos para entrar com sua pobre mãe num recolhimento.
O morgado prometeu uma das duas cousas; morreu, porém, logo depois, sem cumprir alguma. Apossaram-se de tudo os sucessores do vinculo, e encararam impassíveis na filha natural, que fora ajoelhar ao pé da essa de seu pai.
Este nobre porte de Ângela, que não herdara do fidalgo um farrapo, sensibilizou uma prima de seu pai. Após o sentimento, veio a vaidade de se fazer louvada por uma acção aparentemente generosa, e logo o chamar para si a filha de seu defunto primo.
Era de Guimarães a Srª D. Tomásia de Noronha.
Ao primeiro chamamento, perguntou Ângela se sua velha e desvalida mãe havia de ir com ela. Respondeu a fidalga com razões negativas. A órfã agradeceu o benefício, reservando aceitá-lo quando sua mãe compartisse da esmola.
Esta respeitosa e humilde recusa pareceu excitar a mais a caridade da Srª D. Tomásia. Maria foi aceite com a filha. Ainda assim, oscilaram longo tempo na partida, pretextando doenças. E que as não deixava sair a saudade da casinha, onde dezasseis anos tinham vivido no amor, na pobreza, às vezes na penúria, na oração, na esperança e nos desenganos, recebidos com lágrimas, mas lágrimas sem o desesperar e o blasfemar daqueles que, a um tempo, negam Deus e o acusam de injusto.
A mãe de Ângela, sacrificando ao melhor porvir de sua filha a sossegada pobreza a que se afizera, cerrou os ouvidos da alma ao vaticínio de voz íntima que a magoava, e foi para Guimarães, vertendo na soleira da porta da sua casinha as mais sentidas lágrimas que aí chorara, em dezassete anos. Invejavam-lhe o destino as vizinhas que a viam carpir-se, julgando-a louca por deixar chorando uma casa térrea, desaconchegada, onde algumas vezes se não fazia lume, ao passo que as estava esperando um palácio, mesa farta, divertimentos e ocasião de pagarem com mãos largas os favores que tinham recebido delas, vizinhas.
Recebidas em Guimarães em casa da filantrópica senhora (filantrópica chamou o jornal da terra, no dia seguinte ao da recepção, à Srª D. Tomásia de Noronha), deram graças a Deus. Ângela fora acolhida pela prima de seu pai, e filhas desta, com agrado; Maria, porém, fora olhada com ar de glacial desinteresse, se não desprezo. A pobre velha aceitava tudo contente, vendo que a filha era tratada doutro semblante.
Cá nos vem outra vez aprosar a historiazinha o Sr. Manuel Antunes Roboredo.
Era este primo também das Srªs Noronhas e visita frequente, durante a sua residência no solar, onde passava o Verão. Quisera D. Tomásia casá-lo com uma de suas filhas, feias meninas, e estúpidas mais que o tolerável ainda nas galantes. Sobre serem feias e ineptas, eram pobres, porque havia varão na casa, e os bens livres repartidos não davam seiscentos mil réis de capital a cada uma das quatro meninas.
Com astutas evasivas desvanecera o morgado o projecto do casamento, a que ele acedera noutro tempo; mas o despeito lá ficou no ânimo da velha, e ainda pior no da filha, que, desde os catorze anos, se enfeitava para esposa do primo Manuel e se via, aos vinte e cinco, solteira, perdido já aquele viço juvenil que encobre dous terços da fealdade.
Estavam rompidas as relações de Manuel Antunes com as Srªs Noronhas, quando eventualmente as encontrou com Ângela. A curiosidade venceu o pejo e a repugnância.
O morgado visitou as primas, deu explicações, fez reviver as esperanças e reatou o fio da assiduidade nas visitas.
Que feia verdade eu tenho que dizer agora!... Vá!
Era Manuel Antunes, com a sua masmarra cabeça, um homem perigoso para Ângela, que nunca vira à sua beira outro que se lhe a ele avantajasse em urbanidade, delicadeza e bonitos modos. A familiaridade com que o recebiam, a franqueza provinciana como era aceite às Sr. as Noronhas, desvaneceram o natural assustadiço de uma rapariga vinda do campo, e só vezada ao trato grosseiro dos seus iguais, ou às amabilidades lorpas e atrevidas de algum estudante de clérigo que ia de Braga a férias.
Ângela, no entender de suas primas, era uma pobre idiota, objecto de riso por sua inocência. Aquela, ouvindo falar as meninas, dizia, em segredo, a sua mãe que elas não pareciam educadas na cidade. Não obstante, na presença do morgado, cujos olhos se não desfitavam dela, era Ângela desafiada pelas meninas a conversar sobre assuntos do coração. Estabeleciam-se teses de amor, muito de indústria trazidas para zombaria da aldeã. Riam-se todos da candura da moça, e Manuel Antunes, para não tornar-se suspeito com a sua seriedade, ria-se também contrafeito.
Se aos espertos e amestrados espíritos é impossível, com artifício e cálculo, esconder o coração que todo nos olhos se denuncia, e confessa nas palavras, mal poderia Manuel Antunes, de seu natural asselvajado, esconder às vistas ladinas da prima D. Tomásia o seu amor a Ângela.
Apenas a presuntiva noiva, avisada pela mãe, deu fé da deslealdade do primo Manuel, rebentou logo a conjuração contra Ângela.
Viu ela no semblante de todas o aborrecimento, a zanga, e nas palavras remoques e insultos. Queixou-se à mãe; e esta, estranha à causa de tamanha mudança, recomendava paciência à filha e pedia-lhe que trabalhasse com as criadas para ganhar a amizade das senhoras; porém, nem o trabalho, nem a humildade, conseguiam abrandar a ira das fidalgas.
Maria procurou uma vez D. Tomásia e falou esta linguagem, que tirava das lágrimas toda a sua eloquência.
- Minha senhora, eu e minha filha estamos sendo pesadas nesta casa. Viemos há três meses da nossa cabana, e todos os dias choramos por ela...
- Choram!? - atalhou colérica D. Tomásia. - Isso bom remédio tem: é tornarem para lá, que não deixam saudades.
- E o que nós faremos, se Deus quiser, minha senhora; mas, antes de sairmos, venho eu, se não ofendo Vossa Excelência, perguntar que mal fizemos, eu e minha filha, para merecer o desprezo desta família, que nos recebeu com tanta caridade.
- Se o quer saber, saiba que a sua filha tem pouco miolo, percebe? - redarguiu a fidalga bracejando e trejeitando os mais plebeus ademanes. - Lá porque se viu entre senhoras, entendeu que também era senhora, e entrou a bacharelar como as minhas filhas. Viu aqui o meu primo morgado de Roboredo e entrou-lhe no bestunto a patetice de o namoriscar! Forte pancada!
- Será isso aleive, minha senhora? - disse Maria erguendo as mãos sobre o seio.
- Não me desminta! - bradou D. Tomásia. - Meu primo anda doudo por ela. Há três dias que não vem a esta casa porque sua filha não lhe tem aparecido.
- Mas, se assim é, bem pode ser que a minha Ângela não tenha culpa... Os homens têm lá as suas ideias, e uma rapariga não deve perder só porque caiu em graça deles.
- Você é uma pobre criatura, que não sabe nada do mundo, Srª Maria - tornou a fidalga mofando da velha. - Se quer vê-la confessar, sem querer, chame-a e pergunte-lho.
- Pois sim, minha senhora, eu vou chamá-la, e... Deus me ajude.
Foi Maria ao quarto de Ângela e disse-lhe:
- Vem comigo.
Entraram na sala, onde D. Tomásia de Noronha, refestelada numa otomana, cruzando os braços sobre os empinados seios, bamboava uma perna sobre a outra.
- Ela aqui está - disse Maria-, Vossa Excelência pergunte-lhe o que quiser, porque eu não tomei bem sentido no que me disse.
- Disse-lhe - interrompeu com veemência D. Tomásia - que sua filha, esquecida da humildade e modéstia com que devia receber e agradecer a esmola da consideração que lhe demos, ousou aceitar a corte do primo Roboredo.
Ângela levantou os olhos e fitou-os embaciados de lágrimas nos olhos interrogadores de sua mãe.
- Que respondes, filha?
- Que hei-de eu responder, minha mãe?! A Srª D. Tomásia está enganada – disse Ângela com brandura.
- Estou enganada!? Enganada está você! Cuidou que vinha lograr-me lá do mato?! Talvez não saiba o que é aceitar a corte?!
- Não sei, minha senhora.
- Não sabe!? Olha a inocência em pessoa! Que lhe tem dito meu primo?
- O que Vossa Excelência e mais as meninas têm ouvido.
- E não lhe escreveu?
- Escreveu, sim, minha senhora.
- Vê, Srª Maria! -exclamou a fidalga, erguendo-se de salto. - Vê como ela confessa? Quer ainda a cousa mais clara?
- Pois esse senhor escreveu-te, Ângela!? - disse Maria, pálida e convulsa.
- Escreveu, sim, minha mãe.
- O mariola! O patife! O sedutor! - bradou D. Tomásia gesticulando furiosa. - Que lhe diz ele na carta?
- Não sei, minha senhora. A carta, que me deram há meia hora, não a abri ainda. Ela aqui está: pode Vossa Excelência lê-la. A minha tenção era mandar-lha fechada logo que tivesse por quem; mas, se a senhora quer ler, leia.
Ficou enleada a nobre dama de Guimarães. A brandura de Ângela, oferecendo-lhe a carta, era já como um castigo. Mais indignada contra o primo que contra a moça, tomou a carta com bom modo e disse:
- Eu responderei ao tratante: a menina não tem culpa, que é inocente.
Não pudemos obter cópia autêntica da carta de Manuel Antunes. Apenas, se a memória nos é fiel, podemos eternizar algumas frases que enfureceram D. Tomásia de Noronha. São estas:
Minha prima Tomásia é uma fidalga com menos inteligência que a cozinheira Gertrudes... As priminhas só são úteis ao género humano quando lançam os ovos às galinhas chocas... Ângela, no meio desta família tupinamba, parece um diamante engastado num anel de chumbo... A prima Adélia, que a mãe matreira me queria impingir à força de caretas amáveis, é feia como a parca mais feia e abominável como um dia de Inverno em Guimarães... Eu medito sempre em arrancar o anjo celestial, a minha querida Ângela, do contacto das infernais priminhas... etc..16
Há certa originalidade picaresca neste dizer de Manuel Antunes. E pena não possuirmos completa essa carta, que D. Tomásia mostrava com estúpida sinceridade.
Tendo lido às filhas a carta, chamou ela Maria e Ângela e disse-lhes que não podiam continuar em sua casa a serem causa de que um degenerado parente insultasse os donos dela. Maria respondeu que tornariam a ganhar o pão de cada dia com paz e honra. Replicou D. Tomásia que, à vista de tal carta, Ângela não tinha mais que aceitar o amor de Manuel Antunes, e passaria, de moça pobre, a ser, se não rica, ao menos uma digna morgada de Roboredo.
A isto, romperam todas as meninas numa cascalhada de riso injurioso. Ângela fez-se escarlate de vergonha, e talvez raiva. Maria, encolhendo os ombros como quem diz:
«Soframos com paciência», saiu com a filha da presença das senhoras, que se ficaram regalando longo tempo no chiste argucioso da mãe.
Nesse mesmo dia, as duas criaturas expulsas, com semblante alegre e a pequena bagagem que, três meses antes, haviam trazido para Guimarães, caminhavam para a sua casinha, quando lhes saiu na estrada Manuel Antunes dizendo-lhes que esperassem as cavalgaduras que ele mandara buscar para as conduzir. Maria rejeitou sem altivez o favor e Ângela queria em seu coração aceitá-lo. O morgado adivinhou que a mãe de Ângela sabia da carta e voltou admirado do senhoril carácter da mulher do campo.
Ora, Ângela era em verdade uma criatura para se amar. Que ar tão engraçado sem presunção, que frescura de pele, que olhos tão fagueiros, que boniteza tão da primavera da vida em que as flores da alma emprestam às do corpo os seus perfumes! E quem dirá que no espírito de Antunes havia moldura de poesia onde enquadrassem as ideais imagens, que alinhavam, à míngua de enfeites de arte, o natural mimoso de Ângela! Pois havia e era homem aquele desalinhado Manuel Antunes para amar, e apaixonar-se e esquecer-se do seu programa de casar rico, e doudejar como os espíritos de fina têmpera que sotopõem ao amor de um dia os mais caros e positivos interesses da vida sublunar!
Cuidou, portanto, que o morgado de Roboredo casou com Ângela?
Bom seria isso para regalo das almas generosas, e edificação dos meus nobres amigos acorrentados ao calcanhar de uma velha cotada em cinquenta contos na praça; mas, desse modo, acabava aqui o conto, e os olhos do leitor ficavam enxutos, e a verdade da história era imolada a um sorriso da sã moral.
Vamos entrar numa página em que o leitor decerto se espanta da economia de epítetos vingadores que eu, para eterna memória, vou esculpir no asfalto da testa de Manuel Antunes.
Ângela não mostrou à mãe a segunda carta que recebeu, nem a dádiva que, mui delicadamente oferecida, acompanhava a terceira carta. Era dinheiro. Ângela devolveu-o, dizendo com infantil simplicidade que o aceitaria quando o seu trabalho não bastasse à sustentação da mãe enferma.
O ensejo condicional chegou quando a Providência parecia adormecida. Maria adoeceu. Com a doença entrou a fome: o pouco da casa não valia doze visitas do médico. Tudo se vendeu ao cabo de dous meses de moléstia e desamparo: tudo, salvo a dignidade.
Passava um dia Manuel Antunes à porta de Ângela. Ouviu um grito convulsivo de desesperação e viu saírem e entrarem mulheres enxugando com os aventais as lágrimas.
Maria tinha expirado, e as vizinhas combinavam o repartirem por todas as despesas da sepultura. O morgado entrou no sobrado da órfã, chamou-a com palavras de reanimadora compaixão e quis desabraçá-la do cadáver da mãe. Obedeceu o corpo inerte; mas o espírito fora decerto acompanhar o de Maria às portas de bem-aventurança, e voltou. Voltou para se ver em face de um homem, que lhe dizia: «Deixa esta pobre casa e vem para onde te esperam dias de abundância e contentamento.»
Ângela compreendeu que estava perdida no conceito daquele homem e viu o mundo a um clarão do Inferno. Quem acabou de lhe arrancar a venda da inocência foi, estando ainda sua mãe quente na sepultura, uma amiga desta, que lhe pintava, industriada pelo morgado, as vantagens do viver que ele queria dar-lhe.
Estava Ângela, por uma noite de Dezembro, sozinha em casa, rezando a coroa da Virgem Nossa Senhora. A sua luz única era a da lareira, luz que desenha fantasmas e aumenta os pavores dos ruídos exteriores.
Bateram à porta. Ergueu-se trémula a moça, escutou, e ouviu o tropear de cavalos e a voz do morgado. À terceira pancada, fugiu por um postigo que se abria sobre extensos relvados contíguos à casa. Na extrema desses campos estava um magnífico edifício recentemente construído, e nessa noite havia aí uma festa. O proprietário dele era um brasileiro, que festejava os anos de sua velha mãe e reunira parentes e amigos de algumas léguas em circunferência.
Entrou Ângela na casa do homem rico. Alguns familiares do brasileiro, vendo a moça aflita a pedir que a protegessem de uma desgraça, que não declarava, julgaram-na douda, e chamaram o dono da casa. O brasileiro desceu ao pátio e levou a moça à presença de sua mãe. Esta, mal a enxergou, disse:
- E a filha natural do morgado da capela. Endoudeceu, talvez, com paixão da mãe... Pobre Maria, que tão castigada foi!... Mas a filha que culpa tem? Vem cá, Angelazinha, vem cá... Dêem-lhe de comer, que terá fome.
Quiseram que Ângela falasse. Contou ela, chorando, o motivo da sua fugida.
Correram alguns homens à porta dela e ouviram apenas o tropel remoto de cavalos.
No dia imediato quis Ângela tornar para a sua casinha; mas o brasileiro disse-lhe que o quarto dela era o mesmo de sua mãe. A órfã conhecia dous homens no mundo e cuidou que o segundo era igual ao primeiro. Instou por que a deixassem ir viver do seu trabalho e continuar a ensinar as meninas da freguesia. Unicamente os rogos da mãe do brasileiro a persuadiram a ficar.
Já se disse que Manuel Antunes estava apaixonado, e, em cabeças do tamanho e rigidez craniana da dele, ideia que entre nunca mais saiu. Sabia que Ângela estava em casa do brasileiro. Daí seguiu-se o atacá-lo o ciúme escoltado de fúrias, que o forçavam a vociferar solilóquios desde a blasfémia até à tolice. A ideia do casamento, neste aperto de alma, acudiu-lhe como um recurso salvador. Mandou falar à moça pelo vigário da freguesia, e Ângela respondeu que, enquanto tivera mãe, casaria para lhe dar um fim de vida mais descansado; mas, sozinha no mundo, o fruto do seu trabalho seria que farte alimentação para ela.
Antunes, ouvida a resposta, partiu para o Porto, embarcou no Lusitânia, e foi para Lisboa requerer uma delegacia como distracção. Apaixonou-se por uma bailarina do Teatro de S. Carlos e vendeu a cortinha do Quinchoso para alimentar o fogo sagrado da Vestal, que sofria tentações de infringir os votos quando se via às escuras. Ao cabo de três anos, o bacharel Manuel Antunes de Roboredo arrancou a um ministério moribundo um despacho para uma comarca sertaneja onde se faz justiça de mouro.
Tornemos a Ângela.
Passava eu uma vez numa estrada do Alto Minho e parei defronte de uma casa, cujas portas estavam enfeitadas com arcos de flores e murtas. Perguntei que contentamento se expandia nos zabumbas, e clarinetes, e morteiros que atroavam montes e vales. Disseram-me que casara naquele dia o Sr. João António Francisco, brasileiro muito rico, com a Srª Angelazinha. Estava a pessoa interrogada a mostrar-me, com certo despeito um pouco sarcástico, a casa onde nascera Ângela, quando os noivos, vindos da igreja, se avizinharam de mim com numeroso cortejo. O brasileiro, com bonacheirona franqueza, convidou-me a jantar, logo que lhe eu tirei o meu chapéu e descavalguei para segurar o cavalo que o tiroteio amedrontava.
Assisti ao mais abundante, ao mais português e alegre jantar da minha vida.
Detive-me quatro dias em casa da Ex.ma Srª D. Ângela, e dela e de seu marido ouvi a história que, obtida licença previamente, publiquei, e vou terminar, pedindo ao leitor que, se algum dia for ao Minho, procure a casa do Sr. João António Francisco, peça agasalho, que o há-de ter regalado, e contemple o que é a genuína e desartificiosa felicidade conjugal.
Se, depois, voltar por Guimarães, peça o leitor que o apresentem em casa das Sr.as Noronhas, e verá o que são mulheres tolas e feias.
Lisboa - Abril de 1859
Terceiro Casamento
[...] Em duas palavras: desde que me dispus a casar-me, não se me dá doa remoques com que o mundo zomba do casamento. O homem é um ente mudável e volúvel, e tenho concluído.
Shakespeare (Muita bulha para nada)
Era uma vez uma criatura das que vêm a este mundo fadadas para não serem nada e pensam que o mundo lhes empece a posse dos altos destinos para que nasceram.
Escusado é dizer o sexo da criatura.
Não conheci, nem me consta que haja mulher descontente do que é, inculcando-se vítima de conjuração social que lhe embargue o acesso a glórias culminantes. A mulher também idealiza utopias, povoa de anjos o ar, recompõe o Céu de mais lindas visões que Santa Teresa de Jesus, e Maomet; de tudo isso, porém, que a imaginativa do homem arremeda no verso, e desconhece na visão interior, a mulher, propriamente aquela que não distingue, melhor que Mr. Jourdain, o verso da prosa, constrói um éden à volta do seu coração, e cria para esse eterno maio da sua florida fantasia um perfeitíssimo ente, que é o amor. Quantas maravilhas cisma, quantos mundos alumia com a lâmpada mágica da sua inocência, quantas donosíssimas criações lhe endoudecem de gozo o coração, tudo isso é do seu amor, e para o seu amor o fez.
Se fatalmente não há paraíso sem pomo vedado, no paraíso imaterial da mulher, onde o amor, soberano da criação, se está revendo e glorificando, em tudo o que serve e incensa, o pomo vedado é o primeiro desengano. Chegado este, a lâmpada da inocência apaga-se, entenebrece a manhã da vida, que prometia infinita luz, abre-se um golfão debaixo de cada palácio de Armida em ruínas, e o imaginar falece como na alvorada o luzir frouxo das estrelas. Dessa hora em diante há um fulgor, triste e pavoroso, como o clarão dos círios da essa, no espírito da mulher, que fizera mundos de límpida claridade; e esse fulgor é o do gládio do anjo do desconforto, que defende entrarem no coração as santas esperanças, as puras visualidades da inocência.
E, pois, o idealizar da mulher uma feição, a mais tela e original feição do seu Amor, e mais nada. Extinto este, morre-lhe de pura míngua a faculdade inventiva, e vem o reinado do positivismo na alma devastada, que nem já sequer recorda as fenecidas flores da sua coroa. Nenhuma ambição pequena renasce das cinzas de ambições arremessadas. Não há aí já compensação de baixo egoísmo que lhe acenda a cobiça dos mesquinhos tesouros da vida fantasiosa.
Não é assim o homem.
Tem este uma primavera, com muito festão, muita fragrância, mais ramilhetes que em festa de orago de aldeia. No centro desse jardim põe ele uma colmeia de virgens, e não virgens, umas louras, outras de cetim, outras de alabastro, ídolos de pau, de pedra, carne e osso, e todas corpóreas, porque a mais etérea imaginação de homem materializa para entender e para que a entendam.
Se eles até Deus materializam para nos darem uma ideia de Deus!...
Dissera o Sá de Miranda que poetas tudo punham em flores, e de frutos nada havia que esperar. Duvido eu da sinceridade do amigo de D João III. É fama que os melhores repolhos e cebolas do Minho cultivou-os ele na sua quinta da Tapada, e a mais feia mulher do Norte lhe foi sorteada a ele, e que a egrégia virtude que os biógrafos outorgam à feia e avelhada consorte do doutor é ter sido mui económica e zelosa administradora do casal. Digam lá agora que os poetas tudo põem em flores! O poeta, quero dizer, o que faz da sua vida de dous ou três anos crónica em verso, é como o figurão que, no dia primeiro de Maio, passeia as ruas de algumas vilas de Trás-os-Montes, vestido de giestas em flor brancas e amarelas, cantando as maias, diante das adufas das janelas, por onde a louçã mocinha da casa, lisonjeada nas trovas, lhe atira a moeda de cobre. Ao declinar do Sol, o florido «maio» despe as ramagens com impaciência, chama a contas o tesoureiro das dádivas, e joga com ele o murro, na hipótese quase sempre justa, de que ele indignamente correspondeu à confiança dos outros gaiatos. Liquidado o produto das trovas e das mesuras, o festeiro do mês das flores funde os escassos vinténs numa bodega e faz das giestas vassouras, que ele e os comparsas levam para casa.
Deslindem agora os apreciadores de alegorias as semelhanças do poeta das trovas com o poeta das giestas. O frenesi famélico com que este desata e repele os penachos e as gabelas cingidas à cintura faz-me lembrar o que eu tenho visto, e espero continuar a ver, nos meus amigos poetas, chegada a hora da prosa, a hora formidável em que as leis do estômago insurgem contra as pulvéreas veleidades do espírito. O poeta, se não faz vassouras dos festões de jasmins, rosas e madressilvas com que enfeitava madonas e medusas, alguém se encarrega de fazer prestadias todas essas flores em papel, cujo aroma muitos leitores aspiram pela primeira vez, quando não é a manteiga inclusa que lhes encanta mais o nariz.
E ao cantor, ao modesto cantor que se lhe dá disso?
A essa hora está ele já não em florescência, mas em sazão de frutos. Naquele tempo em que a recendência das flores era visco à virtude das moças, como os eflúvios de mandrágora, e o versista um viveiro de pecados, e um demónio tentador, disse o padre A. Vieira, num sermão de penitência: «Será bom que os últimos dias se passem em flores?»
Devia de ser então o poeta mais poeta, ou o estômago menos estômago. Morriam a cantar como o rouxinol de Bernardim Ribeiro os que traziam o diapasão do céu. Aos vinte, aos quarenta, aos setenta anos, gemia sempre o amor crónico, o amor que ludibriava as dores ciáticas, o amor que se corria de viver no peito paredes meias com a víscera ignóbil em que Vossa Excelência, leitor, e eu, o primeiro dos seus admiradores, capitalizamos os grandes créditos a haver de uma sociedade que duvidou da legitimidade das nossas pretensões.
Isso agora é melhor, acho eu.
Murcham as flores, e lourejam as messes. Despe-se a árvore das louçanias do aroma, e reveste-se dos engodos ao paladar. Evola-se dos horizontes da ideia apaixonada o seio aflante da mulher estremecida, e desenha-se a olho visto, a distância palpável, o respalco de uma cadeira parlamentar, uma escrivaninha em secretaria de estado, na alfândega ou no funcionalismo poético da polícia.
Se a má fortuna se nos atravessa nas aspirações, entramos a bradar contra o mundo que nos não entende, contra a gratidão das gerações que deixaram beber a cicuta a Sócrates, a chave a Gilbert, a zurrapa francesa a Filinto Elísio, e o ar azul do céu azul com brisas azuis a Lamartine, que pede ao mundo que lhe pague as dívidas, a fim de desmentir, com grave dano dos outros poetas, que o poeta é de sua natureza insolvente.
Com a sorte esquerda de Lamartine sempre diante dos olhos, os Lamartines, falidos antes de contraírem dívidas, sacrificam as Elviras na hecatomba do orçamento, e deixam-nas, nas boas horas, tredas e fementidas, em paz com a sua consciência, enquanto eles, esquecidos do seu dicionário de rimas de Cândido Lusitano, vão vociferando em prosa espalmada, prosa de correspondente de gazeta da oposição, contra uma pátria que vê os seus Belisários e Pachecos, os seus Homeros e Camões, desmedrados e entanguidos, perecerem à míngua duma verba.
Se a conseguem; se a pátria envergonhada ou aborrecida do impertinente berreiro dos filhos que a malsinam de madrasta, os chama ao seu regaço (o regaço da pátria, para o poeta, estende-se desde a cadeira nua do amanuense de 2ª classe da alfândega até à poltrona fofa de secretário de Estado), ainda assim, há sempre um destino falsificado para esses génios de condão nefasto, tolhidos pela ignorância das massas, pela malquerença de invejosos, por ciúmes de estadistas encartados, finalmente, pela estrela maléfica, sócia negra do talento em toda a parte.
Ora eu conheço um dos bodes expiatórios que os séculos imolam nas asas iniquíssimas dos Sócrates, dos Sénecas, dos Catões, dos Cíceros, dos Malesherbes, e dos outros que o leitor quiser, se é poeta infeliz, encabeçar na sua colónia de mártires.
Chamava-lhe o mundo um esquisito; e eu, que pertenço à escola de Boileau, chamava-lhe um tolo, e, nomeando-o assim, praticava um acto de justiça e moralidade, que espero me sirva de desconto a algumas injustiças involuntárias.
No artigo «mulheres», era uma coisa impossível João Nunes das Neves. A ser certo o que dizia, só ele à sua parte fizera mais santas com o martírio do seu desdém que os tigres de Domiciano e Nero. Só na letra M tinham morrido, dizia ele, cinco poitrinárias, e duas de congestão cerebral, e assim por diante desde o A até ao X, em que havia uma Ximena, da qual ele contava uma tragédia mais horrível que o nome.
Conheci este homem a passear leites de jumenta em Braga. A enfermidade que lhe ameaçava os dias nessa época era um desfalecimento de alma, complicado com azias de estômago, resultantes de indigestões causadas por insónias, e estas insónias procedentes de vigílias, e estas vigílias consequências de aturadas meditações acerca do seu destino Era uma patologia completa o Sr. João Nunes. O certo é que o leite da jumenta, quer fosse por simpatia de índoles, quer por virtude medicatriz, concertou-lhe o estômago derrancado, e fê-lo dormir. Diga-se de passagem que eu lucrei muito com este segundo benefício.
- Qual é o meu destino? - dizia ele, batendo com três dedos no osso frontal, e enviesando para o céu os olhos cismadores. - Abri em minha alma um santuário para a mulher, que deve encontrar-se comigo na face do globo; e o santuário está vazio; e a mulher, levada pelo furacão da desgraça, que me açoita desde o berço, afastou-se de mim para sempre, e geme talvez como a roda solitária no esgalho seco da árvore da encosta. Tenho abraçado fantasmas, nas minhas sedes calcinantes de Tântalo. Os meus lábios abrasam. Quando roço com eles a fronte da mulher, vejo-a logo a estertorar-se nas agonias da peçonha que lhe côa as artérias. Anseios e tédios, frenesis e paralisias, fúrias apaixonadas de Otelo e friezas súbitas de Saint-Preux, são e têm sempre sido a alternativa da minha atribulada existência!... Qual será o meu destino?
Nunes fazia-me medo com estas e outras explosões. Não era caridade abandoná-lo; porém, inventei motivo para deixar a completa cura deste anjo caído ao leite de jumenta.
Daí a três meses, estava eu num estabelecimento fotográfico do Porto, e entrou ele.
- Por cá?! - disse eu.
- Por cá e por toda a parte, o Ashaverus da lenda, o maldito dos homens!
- E das mulheres, não?
- Oh!, essas!...
E alongou os beiços com um ar de piedade que queria dizer: «Coitadas!...».
- Vem retratar-se? - tornei eu.
- Passava; vi uma tabuleta, subi, e retrato-me.
- Com excelente fisionomia. O Sr. Nunes parece-me bom agora.
- Sou um sepulcro branqueado por fora, e cheio de vermes e podridão.
- Pois o leite de jumenta
- Mas a alma?!... A alma!...-disse ele com ênfase assustador.
Receoso da estopada iminente, furtei-me ao diálogo, mostrando-lhe numa tabuleta medalhas de vários tamanhos para retratos.
- Esta é bonita - disse eu, indicando-lha-, um rosto de anjo enquadrado aqui, e pendente do coração...
- De quem o tiver - disse ele bamboando a fronte sinistra, carregada de electricidade.
João Nunes encostou-se à mesa da tabuleta, apoiou a fronte na palma da mão direita e murmurou:
- A Providência será o acaso?!... Veremos.
«A Providência será o acaso?» - dissera João Nunes das Neves, e ficara silencioso, por espaço de alguns segundos, rufando nos dentes incisivos do queixo superior com a unha do dedo polegar, que se enclavinhava nos outros, formando uma figa. Não era nada graciosa a cara de Nunes com esta visagem, à qual esquisitice de mau efeito estético ele se acostumara. Todas as vezes que o espírito de Nunes, grávido de ideias, entrasse em dores parturientes de algum grande axioma ou descobrimento psicológico, era certa uma figa, uma careta, e um rufo na dentadura esverdeada.
- Sabe no que eu estava pensando? - disse ele, anelando as guias do bigode.
- No insolúvel dos problemas da vida, como sempre, não é verdade?
- O senhor - tornou ele com solenidade - já estabeleceu princípios teóricos de que tirasse, na vida prática, as consequências contidas nesses princípios?
- Não entendi bem.
- Quero dizer: se alguma vez conseguiu chegar por onde toda a gente chega a um dado ponto do mapa-múndi moral.
- Olhe que ainda o não entendi suficientemente, Sr. Nunes... Vossa Senhoria esteve longo tempo nos mundos supralunares, e está ainda falando o idioma desses mundos defesos...
- Ao senhor?! - interrompeu João Nunes. - Isso é impossível! O meu caro senhor é poeta e romancista. Como poeta, tem obrigação de saber...
- Que uma décima tem dez versos, e o soneto catorze, e que o verso pode ter de duas até não sei quantas sílabas, e que o hendecassílabo pode ser sáfico, e que...
- Essa é a porção ignóbil do poeta, permita-me que lho diga. Eu falo do arroubamento, do êxtase, da eterização, dos imponderáveis, da ave celestial do génio, que se pesa em suas asas roçando as nuvens, e perde de vista o baixo esterquilínio deste desterro em que patinham os alarves felizes. Queria eu dizer-lhe que há princípios gerais com infalíveis consequências para o comum da humanidade. Exceptuados há, porém, desta regra, e estes são os grandes desgraçados, que teimam em esperar a felicidade na estação em que o vulgo a espera. Vou dar-lhe um exemplo de estrita e rigorosa verdade.
Qualquer homem, deliberado a identificar-se na alma de qualquer mulher, a associar-se a uma companheira para os serenos contentamentos da família, a repartir com ela a opulência herdada, ou o pão quotidiano do seu trabalho, e a poesia exuberante dos seus ignorados tesouros, o que faz?
- Oferece tudo isso à mulher que se lhe afigura ser a predestinada para dar e tomar o quinhão dessa felicidade.
- Justamente. Das duas, uma: ou a mulher traz de cima a predestinação, e então as esperanças não tombam do seu pedestal; ou o tempo desluz a poesia que alumiara o homem, e a alma, fatigada de ilusões, descansa e revigora para outras.
- É claro.
- Há homens, todavia, que nem sequer experimentaram o intervalo das ilusões; homens que atiram o seu coração a uma pedra, como o ignaro semeador do Evangelho, e querem que ele frutifique; homens contumazes, que voluntariamente se torturam, querendo forçar os olhos a verem na mulher a predestinação, que ela não tem. - Esses são doudos.
- Doudos, não; infelizes, carrascos de si e das vítimas, almas penadas, que cumprem na Terra a sentença de Sísifo, de Prometeu e das Danaides. Para estes não ha o que se chama a lógica da vida, isto é, a cadeia de sucessos metodicamente derivados uns dos outros; ou, quando menos, o bem-estar não procede do bem-pensar, nem a realidade se envasa nas mais naturais formas da teoria. Convencido, pouco há, desta verdade, por um dos inopinados lampejos, que visitam o homem trabalhado na averiguação do seu destino, vou tentar a derradeira experiência, vou abraçar o absurdo, em que acreditava Santo Agostinho, o absurdo azar em que espero fazer, se não bom jogo, ao menos hei-de obter um resultado pelo menos igual aos que tenho obtido empregando o raciocínio, a meditação, o cálculo e a experiência.
Aqui redargui eu:
- O Sr. Nunes acaba de criar alguma coisa, ou eu sou um tolo singular! Posso entrar no segredo da sua ideia e aproveitá-la mesmo para meu uso?
- Venha cá o senhor. Eu volto as costas para todos estes retratos de mulheres que aí estão nessa fileira.
Referia-se João Nunes às provas que o artista expusera com permissão das damas retratadas.
- Veja-as o senhor - continuou ele, e eu reparei. - Conhece-as?
- Conheço quase todas.
- Devem estar aí algumas solteiras.
- Sete conheço eu, solteiras.
- Pode, em poucas palavras, sem me dizer quem são, dar-me uma fugitiva ideia do porte de cada uma?
- Posso: São todas meninas honestas, algumas com bom património em dinheiro, e outras com melhor património em virtudes.
- Não lhe pergunto se são bonitas, porque é de crer que o sejam, aliás não consentiriam que as expusessem. Agora escolha o senhor uma dessas
- Que escolha?! Já vejo que o sistema, sobre ser original, também é agradável!
Resta saber se a minha escolha depende do consentimento da escolhida. A minha vontade era escolher principalmente todas. Aqui é que não frisa o pauci vero electi do Evangelho...
- O senhor está gracejando - replicou João Nunes gravemente - e eu digo-lhe com quanta sinceridade em mim cabe que escolha dessas sete senhoras solteiras a que eu devo julgar, desde já, a mais predestinada.
- Ah! Entendi agora... Se o originalíssimo amigo deixa ao meu alvitre a sua felicidade, espere que eu as examine com a circunspecção que o caso pede. O senhor gosta do rosto oval ou redondo?
- Não me faça perguntas dessas: eu não sei do que gosto. O senhor desse modo quer que eu volva ao sistema do raciocínio e do cálculo. Hei-de vê-la, quando a tiver aceitado da mão do acaso.
- Pois bem: está feita a escolha... Pode vê-la.
Nunes voltou-se com a mais cómica solenidade, fitou-a menos de um segundo e disse:
- Será esta.
- Conhece-a? - disse-lhe eu.
- Não.
- É filha de um pintor; é mais ilustrada que o vulgar das mulheres; tem tido uma vida irrepreensível; e rejeitou duas propostas de casamento com lorpas dinheirosos.
Gosta do tipo?
- Não sei se gosto. Há-de ser minha mulher. Imagino já que a amo há anos. O senhor é amigo do dono desta oficina?
- Conheço-o.
- Poderá obter dele uma cópia deste retrato?
- Duvido; mas pedirei.
Pedi ao artista que me concedesse a cópia, sem receio de indiscrição: recusou, dizendo que a menina retratada, se um dia soubesse que do seu atelier saíra cópia do retrato, sem expresso consentimento dela, não lhe perdoaria o abuso de confiança, porque era uma senhora honestíssima.
Comuniquei a resposta a João Nunes, e ele disse serenamente
- Não importa
Sentou-se na cadeira, defronte da máquina, fez-se retratar, e escolheu das medalhas, que examinara, a mais bonita e portátil.
No dia seguinte enviou o seu retrato a Maria da Luz, que assim se chama a filha do pintor, com a seguinte carta:
O homem que lhe escreve é o original dessa cópia que vê, e mesmo um original sem cópia possível, se Vossa Excelência o entender assim.
Tenho trinta anos e chamo-me João Nunes das Neves. Possuo bens de fortuna sobejos para me terem feito sempre infeliz, porque, sob minha palavra de cavalheiro, lhe juro que nunca pude comprar um prazer, nem ainda enxugar uma lágrima com dinheiro, nem consolar as que o meu dinheiro fez chorar.
Ando, há quinze anos, atrás do amor. A minha história é a dos pássaros que depenicavam as uvas fantásticas de Apeles. Não sei o que é o amor, nem o sinto ainda.
A borboleta, cansada de levar a espiral às anteras da flor contrafeita, cai desfalecida.
Vi o seu retrato, e imaginei a felicidade. Não lhe digo que a amo: ofereço-lhe a minha vida, que é mais alguma coisa.
Se lhe são repulsivas as feições do homem que lhe escreve, rejeite-me; dê-me, porém, um ostracismo à parte do dos argentários, que rejeitou há pouco. Protesto contra o favor de dois companheiros de infortúnio.
Vossa Excelência cuida agora que está a contas com um doido. Sê-lo-ei eu, na verdade?! Puro e perfeitíssimo juízo dos anjos será esta doidice, se por ela chegar a discernir entre a desgraça da solidão e as alegrias da sociedade com uma amiga, mais desvelada que irmã e mais extremosa que mãe. Deus ensandece os que quer perder: é dito das Escrituras Santas; quem sabe se me endoidece a mim para salvar-me?!
Não sei que mais lhe diga.
Dou-lhe oito dias para responder, ou para não responder.
Uma hora depois, João Nunes recebia no seu hotel este bilhete:.25
Vi-o há cinco meses em Braga. Perguntei o seu nome, e contaram-me parte da sua vida. Primeiro, horrorizei-me depois, compadeci-me. Nenhum homem é, por sua vontade, infeliz; e os espinhos, regados pelas lágrimas que o malfadado faz verter, cercam-lhe a fronte de uma coroa que o não deixa descansar de algum lado. Se não tem irmã, nem mãe, e quer uma amiga, dou-me a si, e aceito o título, com que quiser sagrar esta aliança. Aliança de infelizes, não digo, porque não fui nem sou infeliz. A minha obscura vida é um remanso de água clara e serena, onde nunca chegou a vaga batida das tempestades.
Está escrito que a vida é uma prova. Tem-me parecido que o não é para as pessoas contentes de sua sorte. Se está nas suas mãos o meu cálice, aceito-o.
Maria da Luz
Vi esta carta na tarde desse mesmo dia. Denunciava João Nunes tão sincera alegria que cheguei a acreditar nas maravilhas estupendas de que é capaz um esquisito.
Curvei também o joelho ao absurdo; cheguei até a convencer-me de que o néscio tinha sido eu, sorrindo-me à socapa da teoria que expus, da lavra deles, e com a qual ainda agora me não entendo bem.
A perspectiva desta singularidade de Nunes, que até então me parecera a desgrenhada cabeça de um romance inverosímil, afigurava-se-me agora inclinado para o mais mecânico, prosaico e plebeu dos desenlaces.
Esperava eu que Maria da Luz respondesse, devolvendo-lhe carta e retrato por algum dos irmãos, que se prezavam de cavalheiros, e costumavam provar que o são com lógica de cana-da-índia.
Esperava mais que a desconcertada cabeça do provinciano, causticado pela zombaria dos portuenses, se desarranjasse de todo, ou a extravagância fizesse crise, como se está vendo que faz em gente muito mais tola que ele.
Pasmado da direcção das coisas, por um triz que não fui a casa do fotógrafa escolher umas das outras seis, e ensaiar por minha conta a apologia do disparate.
Dissuadiu-me da tentação a certeza de que tinha sido infeliz em quantos disparates eu quisera trazer à lógica da vida positiva.
Entretanto, não sei que cartas escreveu e respostas obteve João Nunes. O certo, o sabido, o facto, cujos precedentes pouca gente sabe, é que o morgado do Reguengo casou, vinte e sete dias depois, com a Srª D. Maria da Luz.
Se almejam saber a vida íntima de João Nunes das Neves, casado, refaçam-se de paciência para lerem a seguinte carta, de estilo chato e raso, que ele me escreveu passado um ano:
Meu amigo:
Pelo almocreve que levou os presuntos lhe escrevi, dando-lhe parte de que sou pai de um robusto rapaz, que apenas conta um mês, e parece que tem oito! Minha mulher abateu um pouco da sadia nutrição que estava gozando; mas começa a restaurar as forças e cores salubres que se adquirem nestes bons ares e com as puras águas de rocha que por cá se bebem. Eu cuido da lavoura, vou muito à caça e entretenho-me com o pequerrucho, tempo esquecido. A Maricas está toda empregada na criação dos perus e dos patos. Manda-lhe ela perguntar se não é custoso obterem-se amostras de algumas raridades galináceas expostas na exposição agrícola do ano passado. Também o incomodo pedindo-lhe que saiba os preços dos diferentes arados expostos, e bem assim por quanto regula a seda em casulo, e por quanto poderei haver três milheiros de amoreiras para plantio. Bem quisera haver um bácoro da raça dos cevados do Allen; mas não sei se o meu amigo quererá andar metido nestas averiguações suínas. Tenciono mandar à exposição do ano seguinte uma galharda junta de bois barrosãos, criados em minha casa, a uma poldra portuguesa que já temquinze polegadas e três linhas. Não lhe roubo mais tempo. Recados da Maricas e um abraço do seu
Nunes
P. S. - Que tais achou os presuntos? Diga-me se os de Lamego ou Melgaço são mais saborosos!
Ora aí está o que é a felicidade!
Lisboa, 1859.
Quarto Casamento
E viva amore!
Boccacio (Il Decamerone)
O caso foi assim:
O Sr. Hilário Afonso fora avisado, por um vizinho, de que sua sobrinha Inês namorava o filho de um boticário da terra.
Ora o Sr. Hilário, conquanto, no começo da vida, tivesse exercido em Vila Real de Trás-os-Montes o improdutivo mester de botiquineiro, herdara depois grandes cabedais dum parente brasileiro, e trespassadas logo quatro garrafas de licor de canela e amêndoa, e meia dúzia de chávenas sem pires, e dous bules remendados com cintas de arame e bicos de lata, conseguira casar com uma velha fidalga e fidalga velha que tinha duas alimárias rompentes no escudo e uma ave desconhecida no timbre.
Desta fidalga é que era sobrinha D. Inês, formosa e esbelta menina de dezoito anos, nascida e educada em Lisboa, onde ficara órfã, e donde fora enviada como pupila a sua tia D. Hermenegilda Picoa.
Hilário Afonso tinha sido miliciano - sargento, creio eu - e conquistara renome de bravo, se não no fogo, na água mui deveras o merecera, sendo que a sua façanha celebrada fora ter ele atravessado o Douro a nado para ir levar ao general, marquês de Angeja, um ofício importante, quando a passagem para a Régua estava defendida por guerrilhas do Silveira. Hilário encarecia esta proeza, como Byron a sua idêntica do Helesponto; e a jovem Clélia não se empavesara tanto por ter cortado a corrente do Tibre.
O façanhoso sargento não conhecia Byron nem Clélia: era sincera e piramidalmente estúpido. Esta invejável qualidade tornara-o digno de enxertar-se no tronco ilustríssimo de sua mulher, no que toca à fidalga inteligência de ambos. A questão do sangue, porém, essa é outra. O sangue de Hilário, filtrando através dos rolos das peças herdadas, expurgara-se dos glóbulos plebeus, e até judaicos, pelos modos - que os praguentos da terra, afrontados pela soberba riqueza do antigo sargento de milícias, vingavam-se, dizendo que de Bragança descera para Vila Real uma belfurinheira judia, cujo bisneto ele era.
Como quer que fosse, Hilário Afonso zelava o decoro de sua casa e andava no encalço de marido para Inês, presuntiva herdeira de seus tios.
Já D. Hermenegilda trazia de olho o morgado de Lobrigos, que tinha no brasão quatro cabeças de turcos; Hilário, porém, esmiuçando a prosápia do morgado, averiguara que o quinto avô dele casara com a filha do feitor da casa e a terceira avó não lograva boa fama com o capelão da mesma.
Dizem que o Sr. Hilário, recolhendo destas pesquisas, antes de comunicá-las à consorte, parara defronte de quatro roídos retratos dos avós de sua mulher e dissera:
«Nobres bispos e generais!, posto que o vosso sangue me não corra nas veias, sou vosso neto pelo sacramento que me liga à mui nobre dama D. Hermenegilda Picoa Salema Bernardes! Não temais, portanto, que vossa neta e minha sobrinha, a muito nobre Srª D. Inês, manche a vossa linhagem!» E, dizendo, tirou os óculos para limpar, tom o canhão da casaca, duas lágrimas bugalhudas que se lhe penduravam nas pálpebras inferiores Era preciso relatar estes pormenores para dispor quem lê a imaginar de pronto qual seria a indignação. de Hilário Afonso sabendo que o filho de um boticário se atrevia a erguer olhos esponsalícios para sua sobrinha. A fim de poupar a esposa a um insulto apopléctico, não lho disse, e sofreou a paixão iracunda até poder expandi-la num rasgo de justiça em que D. Hermenegilda se desse por desafrontada.
E as revelações eram cada vez mais pavorosas. Dissera-lhe o abelhudo vizinho que, por volta de uma hora da noite, vira sair um vulto do portão, e ajuntou que, seguindo o vulto, reconhecera o filho do boticário.
Hilário abafou ainda o rugido; mas desafogou provisoriamente por um lance digno do final de um acto, como eu ainda não vi. Conduziu Inês pela mão defronte dos retratos, prolongou o braço na atitude estatuária dos patriarcas, alongou o indicador na pontaria de um dos dous bispos de lona, e resmungou com ventríloqua e tétrica entonação:
- Tenha vergonha daqueles heróis, Srª D. Inês Picoa Salema Bernardes!
Inês fitou os seus belos olhos de lustroso azeviche em Hilário Afonso e disse:
- O tio estará doudo!?
Soara uma hora no relógio de S. Pedro.
A Lua passava no céu, serena e meiga, por noite estiva. A viração baloiçava com saudoso soldo as copas dos álamos e acácias e amoreiras que sombreiam a pitoresca alameda de Vila Real. Ao longo do peitoral desse passeio ia e vinha Hilário Afonso, com os olhos fitos sempre no portão da sua casa. Rebuçava-se cautelosamente num capote de camelão de quatro cabeções. Derrubada sobre os olhos, a aba do chapéu braguês projectava-lhe sobre o queixo inferior sombras sinistras. Um palmo acima do ombro saía-lhe o castão amarelo de um grosso pau de choupa. Das arcadas profundas do peito do Sr. Hilário regurgitava, a espaços, um suspiro estrangulado e catarroso, como arremedo ao piar dos mochos, que pareciam carpi-lo das ruínas do próximo convento de franciscanos.
Bateu uma hora, e Hilário deu um sacão formidável: é que vira avizinhar-se um vulto da sua porta. Saiu do passeio e coseu-se com a parede, escondido pelo arvoredo. A Lua, meio velada na gaze de uma nuvem, mostrara o rosto em cheio. O vulto, que parara defronte da porta de Inês, conhece Hilário e retrocede. Este deixa cair o capote e corre sobre o outro encapotado, que pára e espera a pé firme o remetimento furioso.
Era o filho do boticário um moço de melindrosa compleição, já nascido nesta época de espartilhos e lunetas, mártir do verniz das botas, ungido de macáçar, inventor dos pós com que o rosado das unhas se purpureia e doutros pós dentífricos com que o esmalte primitivo se conserva em todo o seu brilhante.
A primeira paulada apanhou-o de ombro; a segunda caiu desamparada no chão, dez braças à retaguarda do alígero farmacopola. Era um fugir incrível e único na história das reiradas felizes!
Hilário Afonso recolhia, soberbo como Aquiles à sua tenda, e viu alguns objectos negrejando sobre a calçada que o luar prateava: eram uma capa, o chapéu e uma clavinarefe do destroçado amador de Inês.
Apanhado o espólio, Hilário subiu a escadaria e entrou pesado, hirto e terrível, como a estátua do comendador, no quarto de Inês. A consternada menina presenciara o brutal ataque, no instante em que tirava subtilmente pelo trinco do portão. Fugindo temerosa ao som cavo que o elástico marmeleiro tirava das espáduas do seu bem, a menina perdera a presença de espírito que inspira os expedientes felizes e fora sentar-se, esbofada e chorosa, numa cadeira do seu quarto. Vendo, porém, Hilário, a raiva restaurou-lhe o ânimo e o escarlate retingiu-lhe a face que o temor amarelecera.
- Que tem que fazer no meu quarto? - exclamou Inês.
- Vergonha das Picoas Salemas! - rugiu Hilário, deixando cair a trouxa do fugitivo.
- Não lhe dou direito de me insultar! - replicou ela com lágrimas de cólera. – O senhor não me é nada! Se devo ser repreendida, só posso sê-lo por minha tia; e, de mais disso, neste quarto só entram mulheres.
- Neste quarto - redarguiu Hilário com gesto assombrado e fúnebre -, neste quarto, Srª D. Inês, morreu sua visavó D. Tomásia Picoa, e sua avó D. Teresa Salema Bernardes, as duas mais nobilíssimas fidalgas desta província, honra e ornamento da sua linhagem, as quais teriam morrido de pasmo se soubessem que uma sua neta havia de... Sufoca-me a vergonha! Tremo que este tecto desabe sobre a sua criminosa cabeça, raça degenerada!... Um boticário!... Um filho do Manuel das Alminhas!... Oh!, vergonha!...
E Hilário Afonso escondera o rosto entre as mãos, como Agamémnon no sacrifício de Ifigénia.
No entanto, D. Hermenegilda, acordada pelo grito das apostrofes, saltara fora do leito, envergara um josezinho de castorina cor de café com leite e, com a lamparina em punho, entrara no quarto da sobrinha.
Hermenegilda ignorava os precedentes deste conflito. A primeira ideia que lhe alvoroçou a cabeça estremunhada não é ideia que se diga, porque o ciúme humano nunca inventou tamanha calúnia.
Quando a velha fidalga entrou com a lamparina na mão, Hilário, ainda arquejante, caminhou para ela, rompeu nestas palavras:
- Srª D. Hermenegilda!, fiz quanto em mim coube por que a senhora não soubesse que sua sobrinha, esquecida do sangue que lhe gira nas veias, dá palestra a um mecânico sevandija, a um plebeu, a um...
- Fale baixinho, Hilário! - interrompeu Hermenegilda, convulsa de terror. – Fale baixo, que não ouçam os servos este escândalo! Que ouvi, Céus! Estarei sonhando?!
- Não sonha, não! - tornou Hilário, erguendo do soalho a clavina e a capa. – Está vingada, senhora! Seus avós devem ter abençoado a minha obra. O pandilha está punido!
- Que pandilha? - exclamou a neta de D. Tomásia Picoa.
- O filho do boticário Alminhas! - bradou soturno e solene Hilário Afonso, escorchando sob o pé colossal o chapéu da vítima.
D. Hermenegilda expediu do peito um ai rouco e caiu nos braços do sargento de milícias.
Rompia a aurora desse dia esquerdo.
Inês fora acordada do seu dormir febril pela guisalhada dos machos duma liteira que parara à porta.
Em seguida, entrou no quarto da menina a sua criada particular, dizendo-lhe que a tia a mandava vestir para fazer uma curta jornada. Inês, alquebrada e sem vigor para resistir, vestiu-se.
Chegou depois a tia, e disse-lhe com agastamento:
- A menina vai hospedar-se numa casa daqui distante duas léguas, enquanto se prepara a sua entrada num convento de Lisboa, para onde vou participar ao conselho de família as vergonhas que a senhora veio trazer ao seio de uma família sem mancha.
- Pois eu manchei a minha família? - disse Inês com humildade dissimulada.
- Ainda o pergunta... Deixa-se amar do filho de um... de um... Oh!... horror!
- Diga, diga, minha tia...
- Não me chame sua tia!
- Não chamaria, não - redarguiu Inês, num ímpeto de veemente cólera. - Se lhe chamar minha tia serei obrigada a julgar meu tio um homem que não foi boticário, mas foi... botiquineiro.
- Já fora de minha casa!... já!... -berrou a velha, levando-lhe os punhos ao rosto.
- Lembro-lhe que meus pais nunca me bateram!... - disse com irónica submissão Inês
- Ameaça-me?
- Não a ameaço; digo-lhe unicamente que as suas mãos nunca mais me hão-de tocar no rosto e que muito tenho que agradecer a Deus por consentir que eu só fosse insultada pelas palavras da botiquineira.
Hermenegilda estava epiléptica: fazia caretas medonhas e contorcia-se como energúmena. Acudiram as criadas; e a próspera intervenção de uma pessoa estranha à família evitou que a velha fidalga, ao recobrar-se dos paroxismos da cólera, se atirasse com unhas e dentes à sobrinha.
Esta pessoa estranha era um padre, amigo da casa, que devia acompanhar Inês ao seu destino.
A melancólica menina entrou na liteira com uma criada que já o fora de sua mãe.
Ao lado da locomotiva soporífera encavalgava o clérigo, cabisbaixo, trombudo, sorvendo pitadas umas após outras, para espancar o sono, que, por vezes, o quisera precipitar do macho trôpego.
- Para onde vamos nós, Sr. Padre Custódio? - disse a criada pela janela da liteira.
- Para onde Deus for servido levar-nos. Daqui a hora e meia já sabe para onde vamos.
- Mas estes sítios são tão feios! - replicou a criada galhofeira. -Acho que nos levam para algum bosque!...
- Todos os lugares são bons, quando a graça do Altíssimo mora connosco - tornou o egresso, intervalando a sentença com o assobio da pitada. - Quer vossemecê saber um remédio eficaz contra a curiosidade, Srª Anacleta? Reze as suas continhas, se as leva; e, se lhe esqueceram, eu empresto-lhe as minhas.
- Muito agradecida, Sr. Padre Custódio; se vamos para algum deserto, não nos há-de faltar tempo de rezar...
- Pois ainda bem, e bom seria que na terra povoada tivessem também rezado, para não trazerem a cabeça no ar...
Isto era alusão clara e pungente a D. Inês, que saiu do torpor, dizendo:
- Fala comigo, Sr. Padre?
- Se lhe serviu a carapuça, menina, a culpa não é minha - respondeu o austero levita, armando os dedos descarregados.
- Com que então, entende Vossa Reverendíssima que eu andava com a cabeça no ar?
- Pudera andar com ela pelo chão! - atalhou a criada. - Pelo chão devia muita gente, que eu cá sei, trazer as mãos...
- Vossemecê é muito malcriada - replicou o egresso.
- Parece que também lhe serviu agora a carapuça, Sr. Padre Custódio - disse Inês sorrindo.
- Tenha juízo, menina! Lembre-se de quem é filha e da vergonha que causou a toda a sua família.
- Pois eu envergonhei a minha família?
- E ultrajou-a aos olhos de Deus e da sociedade..31
- Porquê.
- Faça-se de novas... Não se vexar de ser a namorada do filho do Alminhas, que está aí atrás da porta a pisar as drogas no almofariz!
- Pois a mulher que ama um homem sue trabalha ultraja a sua família aos olhos de Deus!? O Sr. Padre, essa doutrina, se é a do Evangelho, é muito repugnante com a do Evangelho que me ensinou minha mãe. «Amai-vos uns aos outros, porque todos sois filhos do mesmo pai», dizia-me ela que isso era o espírito da lei de Jesus.
- Ai! Boa vai ela! - interrompera Anacleta. - A minha ama a ensinar o padre-nosso ao vigário, e acho eu que ele bem precisa que lho ensinem...
Padre Custódio ficou confundido, tartamudeando sandiamente algumas frases gosmentas, que um tropeção do macho interrompeu.
O desastre propiciou-lhe o rompimento da questão que o embaraçava; foi, porém, fatal para a porção essencialíssima deste santo varão, que era o bucho. A queda do macho foi queda a capricho, porquanto não há aí excepções às leis do equilíbrio que o padre não realizasse. Caindo, como é natural, a cavalgadura adiante do cavaleiro, é cousa absurda, porém certa, que o padre ficou entalado de modo que a cabeça, horrível de ver-se, emergia por entre as espáduas do macho; uma das pernas ficou arqueada na sela à guisa de retranca, e a outra, manifestando talvez a dor da companheira, sacudia-se no ar, com mais destreza que a perna de um arlequim.
Gemia padre Custódio; e Inês, compadecida, sabendo que, a meia légua distante, estava a aldeia para onde iam, apeou da liteira com a criada e fez que o gemebundo clérigo, comprimindo as entranhas deslocadas, se sentasse dentro.
Poucos passos adiante encontraram um galhardo moço, vestido de caçador e ladeado de uma matilha de cães.
Perguntou-lhe o liteireiro se era ainda longe a aldeia de Vila Chã. O caçadorrespondeu, e perguntou que casa procuravam nessa aldeia. Disse padre Custódio que era a casa do D. Abade de beneditinos Frei António da Silveira.
- A essa casa pertenço eu - tornou o caçador. - Frei António é meu tio, e o Sr. Padre Custódio deve conhecer-me.
- Agora conheço perfeitamente; mas desculpe, que eu levo aqui o espinhaço quebrado de uma queda.
- Eu já estava admirado de ver esta senhora a pé - tornou respeitosamente o caçador. - Visto que vão para minha casa, eu retrocedo, e farei quanto possa para tornar a Vossa Excelência menos aborrecida a caminhada.
- Conhece essa menina, Sr. Silveira? - disse o padre.
- Creio que é da casa da Srª Picoa. Tenho-a visto algumas vezes, e creio mesmo que já troquei com Vossa Excelência algumas palavras, há. hoje cinco anos, vindo Vossa Excelência de Lisboa para a província. Talvez se recorde no desembarque do Vesúvio no Porto...
Inês recordou-se e corou ligeiramente.
Este corar tem uma história de doze linhas:
Duarte da Silveira, o sobrinho do D. Abade, ouvira dizer a bordo do Vesúvio, que a peregrina passageira ia para Vila Real, onde tinha parentes. Contemplara-a embevecido durante a fugitiva hora que precedeu o desembarque. Também o ela observara com furtiva curiosidade. Quando afinal Inês, com um relance de olhos, se despedia, Duarte saltou no mesmo bote e, a ocultas das pessoas que a acompanhavam, pôde dizer-lhe:
- Sei que vai para uma terra muito triste.
- Não importa - respondeu ela. - De que me serviria uma terra alegre?
Duarte da Silveira ia recordando este curto diálogo a D. Inês, enquanto o padre, aplacadas as dores, e embalado pelo movimento pendular da liteira, reatava o fio do sono, cem vezes cortado.
D. Inês, lisonjeada pela memória de Duarte, recebia afectuosamente o ar de melancolia com que ele ia poetizando as lembranças daqueles rápidos momentos. O filho do farmacêutico, se a visse nesse momento, daria por malbaratadas as dores que, àquela hora, estava sofrendo nas omoplatas e costelas correspondentes. O próprio leitor, se a examinasse com os olhos da sua razão suspicaz, julgá-la-ia capaz de imolar o filho do Alminhas, se não às aras dos seus ilustríssimos avoengos, ao menos àquelas palavras doces que o romanesco Silveira balbuciara, cinco anos antes, com sentimental meiguice.
As mulheres, se não tivessem estas adoráveis esquisitices pouco mais valeriam que os homens.
Chegaram a Vila Chã.
Enquanto Inês era recebida pela mãe de Duarte, padre Custódio recolheu-se particularmente com o abade e falou assim:
- Esta menina foi-me confiada para que eu a depositasse em casa capaz,
temporariamente, até se lhe preparar em Lisboa um convento Sua tia, a Srª D. Hermenegilda Picoa, não a quer consigo porque se arreceia que ela faça um mau casamento com um pandilha de Vila Real. A ilustre casa de Vossa Reverendíssima é a mais digna que eu conheço, deste depósito, e por isso venho, na certeza de que ma recolhe por alguns dias, pedir-lhe que hospede esta menina até havermos de Lisboa as necessárias ordens.
O D. Abade reflectiu alguns segundos e disse:
- A que chama pandilha o Sr. Padre Custódio?
- A que chamo eu...
- Sim; disse o meu amigo que esta menina queria casar com um pandilha...
- Sim, pandilha... é assim como... filho de boticário, ou cousa que o pareça...
- Ah!, percebi... Esta menina queria casar com o filho de um boticário... Mas... há-de haver vinte anos que, sendo eu rapaz dos meus vinte e cinco, ia tomar umas orchatas e capilés ao botequim de um tal Hilário, que, si rite recordar, é o actual marido da Ex.ma Srª D. Hermenegilda Picoa Salema Bernardes...
- Isso é verdade - retrucou o padre -, mas Vossa Reverendíssima há-de saber que o Sr. Hilário Afonso herdou para mais de duzentos mil cruzados em boas peças de duas caras, e o filho do Alminhas não tem onde caia morto.
- Agora compreendi cabalmente a distinção- tornou com fino sorriso o D. Abade.
- Pois, meu caro Sr. Padre Custódio, eu sinto assaz que o senhor escolhesse a minha casa para tão de preço quanto melindrosíssimo depósito. A neta de avós tão preclaros há-de achar-se apertada entre estas paredes nuas de rases. De mais a mais, o meu bom amigo e Sr. Padre Custódio sabe que eu tenho um sobrinho rapaz, e fatalidade seria que esta menina, confundindo-o um momento com o filho do boticário, horresco referens, o fizesse entrar na classe dos pandilhas, consoante a nomenclatura do meu amigo, quod Deus avertat.
- Assim é; mas vou confiadíssimo em que o meu amigo D. Abade, honrado e cristão como é, não há-de consentir que seu sobrinho desinquiete a moça..
- Decerto, decerto... - replicou com um frouxo de riso António da Silveira. - Farei tudo para que a Srª D. Inês não seja desinquietada. Vá o meu amigo seguro de que em minha casa não se pratica uma acção que não possa desde logo ser sabida por todo o mundo.
Saiu o padre Custódio satisfeito da sua missão; e D. Inês, vinte e quatro horas depois que entrara na casa de Vila Chã, dizia que, depois que seu pai lhe faltara, nunca tivera um dia tão feliz!
A mãe de Duarte era uma santa senhora, cheia de riquezas naturais do coração, toda indulgência e bondade, lida grandemente no seu Relicário Angélico e Retiro Espiritual, cuidando muito no amanho da sua casa, e ralhando com o filho porque este não entendia nem queria entender de lavoura. A boa senhora suspirava sempre por uma filha, e dizia que, amando tanto Duarte, ainda sentia no coração ternura para satisfazer as ambições da mais estremecida filha. E agora, vendo Inês tão linda e terna, dizia, beijando-a: «Se Deus me tivesse dado uma assim! ... ou se meu filho pudesse um dia encontrar uma esposa como a menina, havíamos de reparti-la pelo amor de nós ambos.»
Palavras eram estas que se entranhavam muito no coração de Inês e arrasavam de mal escondidas lágrimas os olhos de Duarte.
O Sol envolvera-se na púrpura dourada da orla ocidental.
As pastoras entravam na aldeia, com as suas cantilenas melancólicas e saudosas, para encurralarem os rebanhos.
Lá mui longe soava aquele triste gemer do carro que em nossa língua, criada nas cidades, não tem expressão bastante imitativa.
As vacas, jungidas ao apeiro, mugiam saudosas dos novilhos, que as chamavam das cortes e quinteiros.
Era a hora do amor, da esperança e da saudade. A hora em que choram os infelizes. A hora em que os maus se encontram e despedaçam. A hora em que o justo ergue fervoroso as mãos, e saúda Maria com as palavras do anjo da Anunciação. A hora, enfim, mais querida dos poetas, poetas de alma, digo; que dos bucólicos, à força de arte, tem sido essa santa hora mui deveras profanada com enjoativas lamúrias e maus versos.
Estavam Inês e Duarte sentados no degrau de pedra bruta que forma o pedestal de uma cruz, no ponto mais elevado da aldeia. A mãe de Duarte acabava de rezar ave-marias e ficara em mudo êxtase, com as mãos cruzadas sobre o regaço, contemplando a estrela Vésper. O abade afagava entre os joelhos um corpulento mastim, que forcejava por lamber-lhe o rosto. A beira do venerando beneditino estava o breviário, que ele fechara pouco antes, concluída a reza de vésperas.
Profundo era o silêncio do Céu e da Terra, quando Inês, como falando consigo, murmurou:
- Sonhei uma vez a felicidade, e parece-me que era assim.
E, como se o arrependimento sucedesse à frase, Inês, com um suspiro trémulo, parecia querer simular que repentinamente acordava de um sonho.
O D. Abade fitou-a silencioso, declinou os olhos sobre a cunhada e disse:
- Ana, ouviste as palavras da tua amiga?
- Ouvi - respondeu a mãe de Duarte sem desfitar os olhos do Céu -; ouvi, e estava pedindo ao Senhor que realizasse o sonho da nossa amiga, da minha Inês.
- Da tua Inês!... - disse risonho o padre. - Como já lhe chamas tua!
- E não sou?! -acudiu Inês. - Não quero outra mãe neste mundo... Se ela morrer primeiro que eu, encontrarei duas no Céu.
Duarte apertou com veemência a mão de Inês e disse:.34
- Seremos então irmãos no Céu?
- Bem-aventurado parentesco na presença do Senhor! - disse o Dom Abade bento, e, erguendo-se, continuou: - Vamos, Duarte. Este ar da noite não é saudável à Srª D. Inês. Ontem ia constipada, quando recolhemos.
- Mas a noite está tão linda... - redarguiu meigamente Inês.
- Pois fiquemos um pouco mais - disse Frei António.
Sentara-se outra vez o padre, quando um criado o chamou, dizendo que viera uma carta de Vila Real.
Inês estremeceu. Duarte encontrou os olhos perplexos dela, como perguntando-lhe o que o coração lhe dizia.
- Será o segundo adeus para nunca mais? - disse Inês, erguendo-se.
Só Duarte a ouvira, e respondera momentos depois:
- Aquele de nós que primeiro se despedir despede-se de um moribundo.
Nesta resposta havia não só estilo, mas também energia, e creio até que verdade.
Era uma carta de padre Custódio, anunciando que, passados três dias, viria buscar D. Inês, para de lá seguir para Lisboa, onde lhe estava disposta a entrada no Convento das Comendadeiras da Encarnação.
O D. Abade leu a carta e fechou-se na sua alcova. Duarte entrou no quarto de seu tio, em cujos olhos ainda luziam resíduos de lágrimas.
- Vem cá, Duarte - disse ele com muita amargura. - Tu amavas Inês?
- Se amava!.., pergunta-me como a amo, meu tio?
- Inês, passados três dias, sai daqui.
- Veja que eu ouço sem empalidecer essa nova.
- Que quer dizer isso?
- Quer dizer que morro quando ela sair de entre nós. Meu tio conhece o meu carácter, e decerto me crê. Sou religioso, e a religião não me basta.
- Não sei nada do coração humano - tornou o abade; penso, porém, que será paixão de fantasia a que lavra tão fundas raízes na alma em menos de mês e meio. Não questiono. Chama Inês e tua mãe.
Entraram ambas, que se tinham abraçado na aflição da mesma suspeita. O abade guardou silêncio alguns segundos.
- Creio que adivinhámos, minha filha - disse D. Ana.
- Que adivinharam? - interrogou o padre.
- Querem tirar-nos Inês.
- Querem - tornou Frei António.
Inês aproximou-se do D. Abade, tomou-lhe a mão, levou-a aos lábios, e disse com maviosa mágoa:
- Tenha compaixão de todos.
- Não se aterre, minha menina - disse o egresso, apertando-a pela cintura com paternal carinho. - Quer ser a esposa de Duarte? Responda sem pejo, ou deixe-me ouvir a resposta do seu coração... Quer. E tu, Ana, sabes que não bastam os carinhos de um marido para a felicidade duma senhora? E preciso que sejas mãe, e não sogra.
D. Ana correu aos braços de Inês, e choraram ambas.
- Vai tu, Duarte - prosseguiu o beneditino -, faz aparelhar o teu cavalo, que hás-de partir esta noite para Braga. Eu vou escrever.
Era uma alegria louca a de toda aquela gente. Todos asseveravam que o não tinham dito; mas soube-se logo em toda a casa que a fidalga casava com o Sr. Duarte.
D. Ana queria sentar Inês no regaço; Inês queria erguer D. Ana ao colo. Eram duas crianças a rirem e a chorarem, vertendo o coração inteiro numa só palavra, furtando-se uma à outra nos beijos o complemento da frase. Oh!, como era linda aquela noite!, as estrelas daquele céu!, o cantar daqueles rouxinóis!, o murmúrio de toda aquela natureza que parecia rir com todos!
Quarenta e oito horas depois, Duarte estava de volta de Braga, portador de uma licença do arcebispo para qualquer pároco poder receber ao sacramento do matrimónio os contraentes Duarte da Silveira e D. Inês Picoa Salema Bernardes.
Vestiu-se Inês singularmente; ia de branco, duas rosas de todo o ano entre as tranças, um cinto de verniz com fivela, um todo de anjo, toda graça infantil do Céu, que parecia voar para lá sem deixar neste mundo uma só pena das suas asas.
Ajoelharam ambos no arco do presbitério. As palavras sacramentais dissera-as o coração primeiro muitas vezes e milhares de vezes as devia ter Deus abençoado.
Não sei dizer como foi aquele dia todo. Sei que, no seguinte, parou a liteira à porta do D. Abade.
Padre Custódio apeou. Inês foi recebê-lo.
- Está preparada, menina? - disse ele chilreando a pitada numa volata nasal.
- Para quê?
- Para se recolher às Comendadeiras.
- Sabe-me dizer se lá há comendadores?
- Que quer dizer na sua? - redarguiu o padre com severidade.
- Que tenho de levar comigo meu marido.
- Seu marido! Isso é caçoada?
- Defina o facto como quiser. Diga a minha tia que é caçoada, se lhe apraz; mas diga-lhe também que casei.
Padre Custódio teve a imprudente tolerância de jantar e beber à saúde dos noivos.
D. Hermenegilda e Hilário Afonso tiveram a fraqueza de fazer herdeira universal sua sobrinha e de morrerem de amor dos netos
E o filho do Sr. Manuel das Alminhas?... Ai!, esse casou-se com a filha do Sr. Francisco Cerieiro; e conta com grande orgulho ter levado uma formidável lombada por causa da fidalga das Picoas. É onde pode chegar o orgulho de um tolo feliz!
Não pude averiguar mais nada a este respeito.
Lisboa, Março de 1859
Quinto Casamento
Voilá une plaisante façon de guérir!
Moliére (L'amour médicin)
Os elegantes da Cidade Eterna, há vinte e cinco anos, seriam oito, quando muito.
O peralta, o casquilho, o petimetre, antes da nobilitação da modesta e laboriosa burguesia, nunca puderam apegar nesta terra. O raro fidalgo de estirpe poderia ser namoradiço, femeeiro, e até imoral, se quiserem; mas era-o lá com a parentela. O lojista e o mesteiral ignoravam os costumes da raça heráldica, cujos primos e primas lá se desenfastiavam, com resguardo, dos tédios da ociosidade no recesso dos seus solares, de modo que o escândalo não revia da baeta armoriada dos reposteiros.
Com o elegante improvisado não acontecia assim. A emancipação das costureiras plebeias fizera-se com estrondo. O rapaz endinheirado achou-se de repente senhor do campo, onde, por espaço de séculos, as flores da virtude tinham viçado e fenecido desapercebidas, como boninas silvestres que o montanhês despreza. Os avós do elegante haviam considerado a mulher como fêmea do homem simplesmente; o neto, porém, aquecido ao sol deste século, entendeu que a mulher era um luxo da civilização Civilizar-se, súbito, o coração, e o nascerem aspirações para o ideal da mulher, nem sequer sonhado antes, isto em homens que pareciam herdar a bruteza dos avós, é cousa de prodígio que os mais previstos explicam com a teoria do progresso universal.
Contestam outros esta racional teoria, negando o progresso da matéria inerte, cuja vitalidade em certos indivíduos se manifesta somente na sobreposição das camadas adiposas. Eu de mim, espectador indeciso destes e quejandos fenómenos, faço o que fazia o padre tempo: admiro-me.
O certo é que a metamorfose se fez no espírito e na matéria simultaneamente.
Formas lerdas e desasadas, corpos desairados tirando a uma genealogia plebeia, apresentaram-se finos de cinta, mimosos de mão e pé, e um todo de fina raça. O desbaste do joanete hereditário é cousa de puro milagre. Para estes peraltas, há trinta anos, o polimento das botas, e o colete de barbas, e o cinto afivelado, deviam ser entalas excruciantes com o leito de ferro do famigerado salteador da Ática. Primeiro que as carnes fofas, à custa de compressas, destilassem os sucos atoucinhados, cruas deviam de ser as angústias da natureza entalada! Asseveram-me que houve aí por 1835 elegante que conseguira desmaiar o escarlate nativo do rosto por meio de jejuns e insónias.
As damas, nesse tempo, liam sofregamente os romances de Arlincourt, cujos protagonistas eram esgrouviados, macilentos e arganazes. A moda então era ser pálido; porém, esta gorda natureza do Norte avermelhava a nediez facial de seus filhos, como se exultasse em ludibriá-los. Duma geração de Sanchos fez-se por arte uma prole de Quixotes. Silenos a gerarem cupidos era por de mais! A disparidade do ventrudo e mazorral progenitor com o aprumo e hombridade do produto filial era cousa de pasmar!
Tal destes houve aí que, no auge de sua injuriosa vaidade, chegou a julgar-se descendência equívoca daquelas que meramente se legitimam no pater is est quem nuptiae demonstrant do direito romano.
Era Januário Ferraz, em 1837, um dos oito abutres que pairavam sobre as avezinhas incautas deste ninho de virtudes. Enquanto o honrado e laborioso pai, de barrete e sapato de ourela, labutava e moirejava nos armazéns a vida suja de mercador de azeite e sumagre por grosso, Januário, com o subsídio monetário que a mãe lhe dava, e as sangrias extraordinárias à gaveta paterna, passeava de cavalo as ruas da cidade, e nalgumas, três e quatro vezes, puxava do simbólico lencinho branco para assegurar às desveladas vitimas, por meio do simulado defluxo nasal, que as amava ainda.
Nomear uma por uma as cândidas pombas que saíram depenadas das garras deste milhafre seria desgraçar muita sexagenária de boa e ilesa reputação. Já agora é polidez e caridade deixá-las fechar os olhos, sem que vejam abertos os olhos do mundo. Se envelheceram com a sua virtude sempre moça, e pura como as estrelas; se, até hoje, no arcano da sua consciência, puderam rir e pasmar da credulidade pública; se, encorreadas e deformes até ao terror, lhes resta como desafogo a faculdade de exagerarem as virtudes do seu tempo, e recriminarem o desaforo da geração nova, deixá-las em santa paz e às moscas. Seria bárbaro prazer assoalhar culpas em si insignificantes, mas de funestos resultados para a moralização das filhas, impolutas também da maledicência pública. E, a respeito destas, bom é que daqui a vinte anos o cronista dos leões nossos contemporâneos guarde a circunspecção e decoro literário que se lhe dá como exemplo neste romancinho.
Januário Ferraz, ao fim de três anos de vida airada e escandalosa, conseguira derruir a robusta compleição do pai. A pouco e pouco os boatos da libertinagem do elegante chegaram aos ouvidos do velho. Baldadas as repreensões e ameaças de Aniceto Ferraz, e de sua santa mulher, a Srª Eufémia do Espírito Santo, Januário fora expulso de casa num momento de justificada cólera. O azeiteiro cuidara de morrer, quando um credor usurário de oitocentos mil réis se lhe apresentou com uma letra protestada, queixando-se da desonrada palavra do filho.
O elegante em poucos meses esgotou os expedientes de que tirava recursos para sustentar a vadiagem opulenta com que embelezava sorrisos das meninas casadeiras, e a complacência de alguns pais menos escrupulosos, sendo já nessa época ave rara um pai escrupuloso, se o pretendente da filha abonava seus destinos com uma presuntiva herança.
Achou-se Januário quase pobre e em risco de ser expulso da hospedaria, onde vivia a crédito com cavalos e criados. Instâncias e súplicas tinham encontrado contumaz e inabalável a justa indignação do pai. A boa mãe já se havia desfeito do último coração de ouro que trouxera no seu enxoval de noiva, o qual já fora de sua mãe, a Srª Felícia do Quinchoso, rica lavradeira de Santo Tirso. Já suspeita ao marido, achava ela sempre fechadas as gavetas; e o dinheiro para as frugais despesas da cozinha era-lhe dado e ratinhado todos os dias, porque não pudesse cercear alguns vinténs em favor do filho perdulário.
Nesta extremidade, Januário, antes de vender o cavalo e retirar-se para o Brasil, onde tinha um tio materno, tentou eleger de entre as suas namoradas uma que lhe merecesse com seu dote e formosura o sacrifício do casamento.
Tarde alvitrara o indiscreto peralta este meio salvador. Sobre ser já pública a expulsão da casa paterna, dizia-se que o velho, rancoroso até à crueza, tratava de passar em vida todos os seus haveres fraudulentamente a uma filha já casada com outro azeiteiro. Daí procedeu rejeitarem-no os pais da primeira mulher que elegera.
Restavam-lhe ainda sete onde escolher: despediram-no seis. Já desesperado, bateu à porta da sétima.
Era esta uma das muitas que ele catalogara na lista das suas apaixonadas sem consequências sérias. A mãe desta menina, e de mais quatro, todas solteiras, era uma viúva de sessenta e dous anos e chamava-se a Srª D. Caetana Mendes.
Foi Januáno pedir a D Caetana Mendes sua filha Jacinta. Respondeu ela que a sua filha estava às ordens. do pretendente, se ela quisesse casar; mas acrescentou logo que a legítima paterna de cada menina não excedia a dous mil cruzados. Espantou-se Januário da pequenez do dote. Redarguiu D. Caetana que não se espantasse, porque era ela, viúva, a senhora de quase todo o casal, em virtude de condições estipuladas na sua escritura dotal e testamento de seu defunto marido, vindo ela por consequência a poder alienar o melhor de cem mil cruzados, se suas filhas lhe não fizessem a vontade.
Ficou terrificado o elegante. Oitocentos mil réis mal chegariam para ele pagar um terço das suas dívidas. Poderia contar com vinte mil cruzados no futuro por morte da sogra; a sogra, porém, ostentava pujança de vida capaz de fazer morrer de desesperação um herdeiro. O pretendido de tantas mulheres saiu da sala da viúva com o espírito aniquilado e as avenidas da esperança fechadas e escuras.
Finalmente, resolveu vender o cavalo e fugir para o Rio de Janeiro. Nestes arranjos andava o lastimável moço, quando a desgraça lhe quis acrescentar os seus obséquios.
Jacinta, sabedora de que ele a fora pedir, mas ignorante da resposta que dera a mãe, conjecturou que Januário fora despedido e resolveu dar ao seu digno amante uma prova extraordinária de amor e coragem, fugindo de casa e procurando-o na hospedaria.
Eram nove horas de uma noite de Janeiro, quando Ferraz foi sacudido duma espécie de torpor em que o deixara o meditar no seu destino acerbo.
Abriu-se a porta do seu quarto e assomou Jacinta. Ergueu-se ele mal encarado, e, antes de desprender a língua da surpresa, já Jacinta o apertava nos braços com fervente entusiasmo
- Aqui estou - disse ela convulsiva de ternura e susto, aqui me tens, querido! Sou tua esposa, apesar de minha insensível mãe. Endoudeceste-me com a tua fineza, que eu não ousava esperar. Fiz-te a injustiça de te supor volúvel... Perdoas-me, Januário?
O sujeito queria dizer alguma cousa; mas a transportada menina não tomava fôlego, nem lhe desencadeava do pescoço os braços mais lindos e castos que os da Vénus de Médicis.
- A mãe queria o meu infortúnio - prosseguiu ela, arquejante de entusiasta alegria. - Depois que tu saíste, pedi à mana Eduarda que sondasse da mãe a resposta que ela deu. Veio dizer-me que a mãe te tratara de modo que tu, meu amor, saíste da sala sem te despedires. Estive para me ir lançar aos pés dela, mas tu não sabes que furioso génio ela tem! Quando a mana Francisca voltou para casa, depois de ter fugido...
- É o que te há-de acontecer a ti, minha pobre Jacinta... - atalhou Januário.
Jacinta desprendeu-se com repelão e recuou.
- Que dizes tu? - exclamou ela, caindo extenuada num canapé.
- Digo-te que não podes ser minha mulher.
- Porquê?
- Porque não tenho com que possa sustentar-me a mim, e menos ainda com que possa sustentar decentemente minha mulher.
- Isso é impossível!
- É tão possível que eu trato de arranjar dinheiro com que possa transportar-me para o Brasil.
- Mas tu - replicou ela tirando da algibeira um papel - disseste-me nesta carta, duas horas antes de me ir pedir, que... Eu leio:.39
Vais ser minha esposa. Vou finalmente desmentir o injusto conceito que de mim fazias, assacando-me a calúnia de que eu aspirava a mulher rica, e teria a vilania de te sacrificar ao ouro, a ti, minha única paixão. Quero provar-te que não procuro riquezas, porque as desprezo. E o teu coração nobre e carinhoso que eu solicito para a minha felicidade, é...
- Não leias mais - interrompeu Januário, agastado: - eu sei perfeitamente o que escrevi.
- Pois se sabes... como te faltam agora os recursos?...
- Menti. Imagina que empobreci depois que recebeste esse papel. Imagina que é fementida essa carta. Imagina o que quiseres, minha pobre menina; mas vai quanto antes para tua casa, porque não vejo outra saída melhor à imprudência que cometeste sem me consultares.
Jacinta ergueu-se subitamente e ajoelhou-se aos pés de Januário, clamando entre gemidos e lágrimas:
- O meu querido amigo, não me deixes assim abandonada aos martírios que vou sofrer! Decide do meu destino, se não posso ser tua esposa; eu aceito tudo, tudo, menos perder-te e perder a vida.
A situação do filho do azeiteiro era realmente desconsolada! Não sei se o pungiam mais os clamores da infeliz menina, se a vergonha própria! Aquela carta fora escrita na certeza de que D. Caetana dotaria liberalmente a filha e também - não sei por que inépcia - o homem quisera sustentar parvoamente aos olhos da projectada noiva desinteresse fátuo.
Jacinta, alentada pelo silêncio do impassível moço, tirou do coração aflito novas súplicas, a qual mais de enternecer. Cuidava tê-lo apiedado, quando ele, aferrado à ultima prancha salvadora, lhe disse:
- Lembra-me um recurso. Podes ainda ser minha mulher, se anuíres ao que vou propor-te.
- Faço tudo o que mandares, se não for tornar para casa.
- Pois isso é justamente o que precisas fazer. Não chores, minha amiga: escuta. Tua mãe decerto não quer que a opinião pública te infame, depois deste passo que deste. E ela quem provavelmente me chama, e acede às propostas que eu fizer. Tua mãe dá-te oitocentos mil réis, que são a tua legítima paterna, e eu conseguirei que ela te adiante por conta da tua futura herança alguns mil cruzados. Sem isto, não posso nem devo associar-te à minha pobreza. O arrependimento viria quase ao mesmo tempo para nós ambos. A miséria mata o amor e envenena as melhores intenções... Que respondes, meu anjo?
- Respondo que, tendo de morrer sem ti, já me não importa que minha mãe seja o meu algoz. Ofereço-te a minha vida: é quanto posso dar-te e dou-te o que mais desprezo e me esmaga. Sinto-me com forças para perdê-la na tortura lenta. Deus queira que este fácil sacrifício aproveite aos teus desgostos. Nada espero de minha mãe. Se ela desconfiar que eu sou criminosa, mais do que realmente sou, e que só posso reabilitar-me com dinheiro, essa mulher egoísta e sem alma, que odeia as filhas porque são mais novas que ela, lança-me à rua e deixa-me cair no abismo. Não cairei ainda mesmo que ela me repulse. Morrerei sem uma só falta de que me acuse a consciência.
Jacinta prorrompeu em choro cortado de soluços. Januário, mais torturado que compassivo, apertou-a ao seio e articulou duas palavras, que não exprimiam nada do seu pensamento.
- Pobre mulher!... - disse ele.
- Pobre mulher!... - repetiu Jacinta, sorrindo o riso que dói mais que as lágrimas.
- Aqui está o que é a compaixão dos homens! O que os indiferentes dirão de mim, quando souberem a minha desgraça, tu o dizes primeiro, Januário! Pobre mulher!... que piedoso desprezo!
A cena continuava assim violenta, quando à ombreira da porta apareceu D. Caetana com um criado.
A aterrada menina ergueu-se, e Januário fez uma maquinal cortesia à velha, que não podia tugir, ofegante de cansaço, e cólera.
- Este sucesso triste... - balbuciou duas vezes Januário, e ficou nisto.
D. Caetana deu um passo e regougou com voz convulsa:
- Eu logo vi que esta mulher perdida estava aqui... Estás bem aviada comigo...
Jacinta levantou do chão os olhos e relanceou-os para Januário.
- Já para casa! - disse a velha, cerrando os punhos e gesticulando com os braços. - Lá é que se fazem as contas. Não venho aqui altercar numa estala-gem.... Já!
E, voltando-se de rosto, e formidavelmente feia, para o pálido sedutor, continuou:
- O senhor não tem culpa. Eu podia persegui-lo; mas esteja descansado. Os homens, quando encontram destas mulheres...
- Lembre-se que é sua filha... - atalhou Januário.
- Pois, porque é minha filha - replicou a fúria sacudindo-se vertiginosa-mente -, é que eu a hei-de castigar, como já foi castigada outra, que está curada dos ataques do amor.
- Eu não tenho dúvida em esposar esta menina - tornou Januário.
- Não duvido; mas eu é que duvido dar-lhe o consentimento. Antes de ontem, quando o senhor ma pediu, dava-lha com os dous mil cruzados que ela tem; hoje, se a quiser, há-de disputar-me judicialmente. Vamos!
- Eu vou acompanhá-las - disse o elegante tomando o chapéu. - Espero que
Vossa Excelência não rejeite esta prova de consideração que dou à mãe e à filha.
D. Caetana não aceitou nem rejeitou a etiqueta, Januário já na rua, ofereceu o braço à velha, que o recusou. Desde a Batalha até à Rua Formosa não trocaram palavra.
Quando a porta da viúva se fechava, esta, com ares mais brandos, disse:
- Não lhe digo que suba, porque a nossa situação é melindrosa. Hei-de pensar a respeito deste acontecimento, e depois...
D. Caetana, viúva aos cinquenta anos, consumira os oito anos seguintes em anelos cuja pudicícia não gabo nem arguo; é, todavia, de todo o ponto certo que o anjo da virtude não poderia, melhor que ela, conjurar os ímpetos desonestos do pecado. Quatro mulheres assim explicariam exuberantemente a degeneração de duas cidades que a ira de Jeová incendiou com chuva de fogo.
Estão as sensíveis leitoras ansiosas por saberem que flagelos infligiu a descaroada mãe à pobre menina. Vão admirar-se do poder do amor no coração maternal de D. Caetana. Do amor? Sim, do amor, minhas incrédulas damas.
Com que palavras um bom poeta enfloraria neste ponto o painel dos amores de Caetana e Januário? Como hei-de eu, prosador chão, que não me admiro já de nada, nem sei assoprar frases de assombro sobreposse, contar que D. Caetana se enamorou de Januário, desde que ele lhe foi pedir a filha?!
Não acredita muita gente nestas primaveras eternas do coração. O olho observador do anatómico é que vê as cousas como a natureza as fez, e já não se espanta dos fenómenos do amor que movem a riso as pessoas inscientes. Não há rugas no coração, seja qual for a idade. O que lhe entorpece a actividade é a violência da razão nas damas que envelheceram, ou desenganadas, ou distraídas noutros afectos. Se, porém, a compleição, nervosa ou sanguínea - não sei bem qual dos temperamentos é o mais perigoso - resiste à irrisão e às propensões próprias da idade, a mulher aos setenta anos é um coração de vinte.
Foi, pois, o amor que amoleceu as rijas fibras daquele bilioso temperamento, se era bilioso o temperamento de D. Caetana.
Jacinta foi chamada ao quarto de sua mãe, que lhe disse, entre afável e imperiosa:
- Resolvo que entres num convento por alguns meses com uma criada. Obedeces a tua mãe?
- Obedeço, como devo - disse Jacinta, retendo as lágrimas.
- Passados meses, virás para a companhia de tuas irmãs, e terás a minha estima e o meu amor como até aqui. Hoje vem a licença para entrares em Santa Clara; amanhã irei contigo recomendar-te à prelada.
Jacinta, meditando no seu destino, aceitou sem repugnância o convento. Se Januário não queria ou não podia ser seu marido, era-lhe mil vezes mais tolerável a soledade da clausura para chorá-lo, em comparação dos dissabores que a mortificariam em companhia da mãe.
Recolhida ao convento, Jacinta escreveu a Januário uma carta, que era um adeus até ao dia final. Não assevero; mas constava que o filho do implacável azeiteiro fora procurar D. Caetana com a intenção indiscreta de a injuriar. Outros afirmaram que o peralta falido, chamado por D. Caetana, ouvira explicações que o convenceram da prudência toda maternal da velha.
O averiguado é que Januário Ferraz, dous dias depois que Jacinta saíra, foi a casa da viúva Mendes. Esta visita foi seguida de outras, com grande assombro das irmãs de Jacinta, que não eram chamadas para a sala.
Operou-se subitamente uma admirável reforma na fortuna de Januário, e ninguém atinava com as fontes da receita. E certo que o pai continuava inexorável. Os credores antigos davam como insolventes os seus créditos. O cavalo continuava a ser oferecido.
O dono do hotel perseguia com incansável impertinência o hóspede remisso. E, de repente, Januário Ferraz ostentou um bonito tílburi, uma parelha de horsas, camarote de assinatura em 5. João e a maior parte das dívidas pagas!
Este aflitivo estado de dúvidas não podia sustentar-se sem matar de impaciência os velhos amigos de Januário, que ele abandonara, porque os vira sumidos nos dias do infortúnio.
Ao cabo de dous meses, estava o remoçado festejando os anos de uma actriz em alegre banquete no Ponte da Pedra, quando se viu apear uma senhora velha de uma sege. Esta senhora veneranda entrou na loja da estalagem e perguntou se estava ali no jantar um cavalheiro chamado Januário Ferraz. Como lhe respondessem que sim, a senhora mandou dizer ao conviva que estava ali sua mulher a procurá-lo.
Januário perdeu as cores do champanhe e desceu 1 trôpego as escadas. Era a Srª D. Caetana Mendes que o procurava para o surpreender numa infidelidade em que o marido andava suspeito.
Rompeu-se, pois, o sigilo nesse dia. O elegante havia casado dous meses antes com a viúva abastada. As razões que ele intentara para que o facto fosse clandestino, não as sei eu. Se foi a vergonha, lamente-se e desculpe-se o pobre moço. D. Caetana é que não pôde mais tempo com o mistério, logo que a postema do ciúme lhe supurou no coração.
Em conclusão:
São decorridos dezanove anos. D. Caetana Mendes conta hoje os seus oitenta.
Ama, e quer ser amada. Se suspeita alguma inconstância no marido, ainda resmunga, chamejando pelos olhos línguas do cioso lume:
- Januário, lembra-te que temos direitos iguais... Depois não te queixes... Isto são suspeitas - que, a dizer a verdade pura e nua, pagam-se um ao outro em ternura e fidelidade, que se alegra o coração à gente com tal exemplo! É muito de invejar ver o mimo com que ele, todos os anos, afaga, nas Caldas de Vizela, o reumatismo de
D. Caetana, que se cura mais por amor que pelo enxofre dos banhos tépidos. Nem o reumatismo resiste ao fino e santo amor conjugal!
Porto - Outubro de 1859
Sexto Casamento
Mais la femme on lui demande d'être belle... Et, quand elle est belle, on la veut simple.
Houssaye (Les femmes comme elles sont)
Uma vez, descia, ou, melhor direi, escorregava eu das Alturas de Barroso, e cismava nas santas proezas de Bartolomeu dos Mártires, tão singela e devotamente contadas por um frade dominicano, o qual, sempre que o leio, pode tanto comigo, que, pelo muito que lhe quero, perdoo a todos seus confrades, entrando na conta o próprio Torquemada.
Uma a uma, ia eu recordando as mortificações com que o santo macerava e deformava o corpo, para que a alma, anojada dele, toda se desprendesse da envoltura feia, e suspirasse sempre namorada e saudosa do Céu. Tudo me ocorreu e edificou, desde os hortos cozidos, que o predestinado ceou regaladamente na cabana de uma velhinha muito suja, até às exulcerantes rosetas do cilício.
Sobretudo, porém, o que mais assombrou a minha pecadora fraqueza foi o ter ido o arcebispo de Braga às Alturas de Barroso! Se em Roma os cardeais soubessem o que é Barroso; se o Espírito Santo, em seus colóquios com os papas, lhes revelasse notícias topográficas daqueles sítios, Bartolomeu dos Mártires estaria já no Florilégio, e Frei Luís de Sousa dispensar-se-ia de lastimar que os coevos do prelado primaz das Espanhas não autenticassem milagres, sem os quais a canonização é improcedente.
Eu também fiz o milagre de ir às Alturas de Barroso, não pela trilha que lá conduzira o intrépido arcebispo, mas por fraguedos e escarpas, sem mais vestígios de vida senão uma enfezadinha vegetação de urzes tosadas pelas cabras. Ora vejam os meus amigos do Chiado e do Café Martinho por onde eu tenho andado!
Com Bartolomeu caminhava o anjo do Senhor, e, pelos modos, o merendeiro abastecido de modestas vitualhas com as quais, ao abrigo dos penhascos, se refaziam de santo vigor aqueles varões apostólicos da companhia e corte do prelado, os quais – seja dito sem pecha de censura - nem assim andavam contentes e iam resmungando sempre contra as ventanias, e bátegas de água, que lhes faziam torcer o nariz ao aroma dos celestiais jardins.
Comigo não caminhava, talvez, o anjo do Senhor; mas o merendeiro, esse é que decerto não ia.
Subi quatro léguas de encosta em doze horas com a mula à rédea. Era perigoso cavalgar: a cada passo, a mula, açoutada pelo vento da esquerda, voltava a cabeça para a direita, e media com torvo olhar a profundeza dos barrocais. Alguns amigos meus, famosos em poesia e lidos no Byron e no Fausto, tinham-me falado na atracção do abismo, como cousa que explica muitos suicídios de sujeitos melindrosamente organizados.
Ora, é de saber que a minha mulinha se fizera melindrosa de nervos desde que adelgaçara em fibra muscular, por causa dos jejuns aturados a que a forçara o meu espírito andejo por terras em que os muares, à míngua de pastios, têm muito mais espírito e recolhimento. Não o digo com presunção de chiste, mas medo me não faltou de que a mula, melindrada em sua compleição pelas fomes, se despenhasse atraída pelo abismo, e verificasse o que me haviam dito os ledores de Byron e Fausto, menos propensos, talvez, que ela a justificar as crendices dos grandes génios.
Ao entardecer, avistei uma povoação... Agora reparo que, tendo começado a contar a minha saída das Alturas de Barroso, estou com a entrada. Não emendo. Entrem comigo por alguns minutos na aldeia de Cérigo, e sairemos todos logo, abençoando a Providência que nos deixa viver no Rossio, no Mata, em S. Carlos, neste golfão de regalos que Deus não concedeu àqueles selvagens de Barroso, tão malquistos da fortuna que vivem mais quarenta anos que nós, e andam sempre alegres!
A entrada de Cérigo está uma fonte rente com o chão. Ao pé da fonte, emergindo o cântaro, estava uma grossa e corpulenta moça, com a cabeça tosquiada, pés descalços, saia de tomentos curta pelo joelho, as pernas vestidas nuns canudos de lã hirta e negra, e sobre os ombros um mantéu de baeta escarlate.
Perguntei-lhe se naquele povo haveria quem me desse agasalho por uma noite.
- Venha daí comigo - respondeu ela, pondo o cântaro ao ombro e os olhos no chão.
Chegámos defronte de uma casa térrea, como todas: a moça entrou no quinteiro e disse-me:
- Meta a mula naquela corte e entre cá prà cozinha.
Desaparelhei a mula, atei-a pela corda do cabresto a uma forquilha, improvisei uma manjedoura com uma rima de feno, e fui para a cozinha.
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! - disse eu, entrando.
- O Senhor seja louvado! - responderam muitas vozes em toada soturna. - Chegue-se cá prà fogueira -acrescentou uma voz.
O fumo, que nublava a cozinha, enchera-me os olhos de lágrimas. Eu não via ninguém. Luz havia apenas a da fogueira empardecida pelos opacos rolos de fumo. Já tinha o lenço ensopado em lágrimas e não podia ainda fitar os olhos no gentio que rodeava a lareira. Fizeram-me várias perguntas selvagens, e, entre estas, a que me ficou de memória foi se eu era mestre da saúde. Como quer que eu, pela resposta, mostrasse não entender a pergunta, elucidaram a minha ignorância, perguntando-me se eu era barbeiro, que no dizer deles significava cirurgião. Respondi que não era barbeiro, e tive de explicar o para que servia a engenhoca que eu tinha no bolso da jaqueta. A chamada engenhoca era um cachimbo de porcelana. Uma velha, ao ver fumar o cachimbo, disse a outra que estava à sua beira:
- Isto em quanto a mim é herege lá desses remos de por aí além.
Eu tinha fome. Farejei o vapor de dous enormes potes cujo conteúdo fervia a cachões. O quer que era não tinha cheiro que lisonjeasse o meu olfacto. Regalava-se-me, porém, a alma na expectativa de ver sair daqueles potes alguns nacos de presunto, e uma das gordas galinhas que esvoaçaram sobre mim, quando entrei na corte da mula.
Nesta prelibação mal agourada ia eu tolerando as dores acres dos olhos.
- Vamos ao caldo! - disse uma das seis velhas.
Todos saíram da lareira para abancarem a uma longa tábua suspensa em dous cepos, na qual não havia toalha nem garfos. As alfaias únicas eram algumas colheres de pau. Em cada extrema da tábua estava uma broa descomunal.
Seguiu-nos para a mesa uma grandíssima gamela de batatas com a tona, e, ao lado das batatas, uma escudela de sal. Mais de cinquenta dedos, incrustados de lama empedrada, convergiram sobre a gamela. Enxerguei esta cousa suja e ignominiosa à luz de dous paus de urze, que ardiam espetados na parede. Fiquei atónito, quando vi aquela gente rolar as batatas na escudela de sal e comê-las assim!
- Você não come? - disse um dos convivas.
Estendi o braço à gamela e tirei uma batata, que larguei logo, porque me queimava. Riram todos; e alguns, reparando nas minhas mãos, redobraram as gargalhadas, dizendo cousas engraçadas, alusivas à minha magreza. No entanto, estonei a batata, salguei-a, e soube-me que nem manjar de anjos. Em seguida ao apresigo veio o caldo: era de leite. Caldo de leite, meus amigos, que derrancais o paladar e o estômago com pastéis de ostra e croquets de carne revelha, e civets de lebre pútrida, e vol-au-vents de marisco! Não sabeis o que é este sadio, o talvez primeiro alimento de Abraão, de Jacob, de Matusalém, e de Sara, minhas senhoras, de Sara, que tomava caldo de leite e tinha filhos na idade em que Vossas Excelências têm bisnetos!
Cada tigela de caldo era um lago de leite, em que eles formavam, a modo de ilhetas, pirâmides de broa, que comiam e revezavam, e eu também deliciosamente.
Consumida a ceia, erguemo-nos de mãos postas, rezámos a todos os santos conhecidos e a outros muitos que inventou o dono da casa. Sufraguei as almas de toda a parentela daquela família nos três últimos séculos, e, pela devoção com que o fiz, consegui desvanecer o mau juízo de heresia em que me tinham os da casa à conta do cachimbo.
Terminada a reza, pedi licença para deitar-me. Ergueu-se um dos muitos homens, acendeu uma das urgueiras, disse-me que o seguisse, e levou-me ao palheiro contíguo, sem mais divisão que um caniço da corte da mula. Aí fez-me o hospedeiro um ninho de feno, deu-me um lençol de estopa, uma manta de sirgo, e deixou-me às escuras para precaver incêndio.
Dormi, e tão profundamente dormi, que, despertando ao arraiar da manhã, notei que a mula se soltara, e rompera o caniço, e comera a maior porção do meu ninho.
Agradeci a hospitalidade desta boa gente e perguntei a mim mesmo se, porventura, Barroso seria retalho de um país civilizado e se a setenta léguas daquele sertão estaria Lisboa.
Assim pois, vinha eu, de volta das Alturas de Barroso, meditando no muito que devia privar com Deus aquele apostólico arcebispo, que demorara, muitos dias, naquelas brenhas, as quais, no conceito de Frei Luís de Sousa, mais parecem morada de feras e selvagens que de homens capazes de razão e juízo.
Cheguei à margem direita do rio Tâmega, no ponto em que ele extrema as duas províncias do Norte.
A passagem do rio é feita por barcos; se, porém, as chuvas engrossam a corrente, o Tâmega é mais caudal e perigoso que nenhum outro rio de maior pujança.
Quando cheguei à margem, era noite, chovia copiosamente, e a passagem assustava. Pedi ao barqueiro que me indicasse onde me dariam pousada. Ofereceu-me a sua casa, dizendo que não era boa, mas que a não havia melhor na povoação. Fui e encontrei um certo aconchego, que me não parecia de lavrador, e menos ainda de quem se dava ao esforçado trabalho de barqueiro em estação de tamanho perigo. Ao pé de mim veio mui cumprimenteira a mulher do barqueiro, e os filhos bem tratados e vestidos. Destes, o mais velho perguntou-me logo se eu sabia latim e se lhe ensinava o ponto de Tito Lívio.
- Vejo - disse eu ao barqueiro - que dá a este pequeno uma educação que decerto lhe não há-de servir para andar com a barca no rio, levando e trazendo passageiros a vintém por cabeça.
- E quem lhe disse que eu levo dinheiro pela passagem? - acudiu o homem mal-assombrado.
- Já vejo que o senhor nunca passou na minha barca.
- Certo que não.
- Eu tenho mais que o preciso, graças a Deus - continuou em tom de franqueza rude e alguma vaidade à mistura -; tenho que farte em bens e dinheiro para não labutar e ordenar de missa quatro filhos..
- Nesse caso, é bem-fazer que vossemecê dá a sua barca e os seus barcos de graça.
- E como diz. Foi nessa barca que Deus meteu a fortuna da minha gente, há vinte anos, e nela me veio a casa. Já agora o meu dever é agradecer a Deus os bens que me deu, continuando a ser prestável a quem o era antes de ser rico.
- Se eu não receasse ser confiado - redargui com a curiosidade dos dezoito anos, quando, aos dezoito anos, se quer achar um romance e um mistério em tudo o que a trivialidade nos depara -, se eu não receasse ser confiado, pedir-lhe-ia me contasse por que meios extraordinários a Providência o enriqueceu.
- Isso sabe-o toda a gente que me conhece, e o senhor também o pode saber; mas antes dos contos, que não enchem barriga, vamos à ceia, que está na mesa, e depois conversaremos, com o pichel do verdasco à beira e as castanhas na assadeira.
A ceia que me liberalizou o Sr. António da Mó foi uma salvadora reparação às minhas debilidades de quatro dias. Creio que era galinha por cabeça, e um caldo que gelava de gordo na malga, e podia talhar-se à faca.
Finda a ceia e a oração, ergueu-se a mesa, que engonçava no escano, e seguiram-se as libações amiudadas com o excitante das castanhas, que estouravam e lourejavam na assadeira pendente do caniço.
- Agora - disse o Sr. António, desemborcando o bico do pichel dos beiços e passando-mo com patriarcal solenidade - beba mais um trago, e ouça lá a história.
Eu prometo não viciar com louçanias de linguagem a narrativa do Sr. António da Mó. A poesia rústica e nativa que ele, a intervalos, dava ao conto, essa não posso eu dar-lha. O verdadeiro idílio não são os éclogas de Lobo e Quita: é o dizer chão, pitoresco e ao mesmo tempo imaginoso dos que beberam o puro leite da poesia nos seios da natureza.
Em 1832, um ricaço do Alto Douro, de nome Bernardo Pires, fugia à perseguição que o corregedor de Vila Real lhe fazia por ódio político. Em parte alguma pudera ele furtar-se à espionagem dos aguazis. De terra em terra, umas vezes fiado nos amigos, outras com falso nome, fora parar a Ribeira de Pena, terra situada nas fronteiras do Minho e Trás-os-Montes.
Como a justiça de mouro ai mesmo o lobrigasse, resolveu transpor o Tâmega, ganhar as Alturas de Barroso e entornar-se na Galiza por Chaves. Encaminhou-se para isso ao primeiro ponto de passagem, que era aquele onde eu viera ter à margem oposta, e que me lembra agora chamar-se Viela.
Estava do lado dalém a barca. Bernardo Pires chamou algumas vezes o barqueiro.
Ninguém o ouvia; mas dera por ele uma rapariga, irmã do dono da barca e da azenha. A corrente do Tâmega ia grossa de mais para pulso de mulher; mas Teresa era atrevida, e o irmão só a desoras viria acudir à ansiedade do passageiro. Desatracou o barco, arremangou a camisa, cuspiu nas mãos áridas do trabalho, travou da vara, sondou com ela o vau, deu o primeiro impulso à barca, e daí até à margem oposta mais de três vezes se afigurou a Bernardo Pires que a torrente a ia arrastando à açude que se despenhava, cem passos abaixo, com fragor medonho. De cada vez que Teresa fincava o peito à ponta da vara, a barca resistia à torrente que marulhava, e rebentava para dentro dela em tufos de espuma; depois, apertada entre a onda e a vara, gemia pelas junturas; e a possante barqueira, brincando com a morte, ou ignorante do perigo, a cada guinada que a barca dava galgando a torrente, exclamava com alegria: «Salta, minha andorinha!»
Abicando à margem fronteira, viu que o passageiro com o chapéu na mão se aproximava dela. Não afeita a cerimónias, quase que não deu fé do cortejo. Estava Bernardo Pires dizendo palavras de sincera gratidão ao denodo e humanidade com que ela se arriscara aos perigos, quando Teresa, passando-lhe para a mão uma celha de pau, lhe disse:
- Ajude-me a despejar o barco, que, se mete mais água, na ida para lá, podemos ir ambos ao fundo.
Bernardo trajava à moda do campo: chapéu braguês, jaqueta, faixa escarlate, sapatos brancos, e abordava-se a um grosso pau de argola. Este trajar não o dispensava do convite de ajudar a despejar o barco; mas a prostração em que o tinha a febre obrigou a largar a celha apenas começou o serviço.
- Não posso, menina, porque estou muito doente - disse ele.
- Ah!, está? Coitado! Sente-se ali e espere um poucochinho. - E, olhando-lhe casualmente para mãos, ajuntou: - Vossemecê tem mãos de padre. Aposto que nunca fez serviço de lavoura...
- Decerto não fiz, menina; mas não é o mimo das mãos que me priva de a ajudar; é que tenho sezões há seis meses, e estou muito fraco.
- Pois está assim amaleitado e mete-se ao caminho!' Para onde vai vossemecê, ainda que eu seja confiada?
- Nem eu sei para onde vou... Se a menina não viesse cá buscar-me, é natural que eu passasse aqui a noite sobre a areia. Ora diga-me: da parte dalém há alguma estalagem onde eu possa descansar?
- Quem deu lá estalagem! Há aquela casa que lá vê, que e a minha, e mais acima duas ou três casas de lavradores, que não são capazes de matar a fome a um pobre.
- Se assim é, não poderei passar hoje, que é tarde, e volto para a estalagem.
- Lá por falta de pousada não se vá embora. Venha daí que lá se arranjará para vossemecê uma ceia e cama.
- Aceito esse grande favor, e tudo pagarei - disse Bernardo.
Entrou na barquinha e contemplou de perto Teresa.
Era uma moça de vinte anos, de extraordinária altura, pulsos e mãos de homem, espáduas largas, encontros anchos, e desenvolvidos pelo exercício das forças, um complexo de formas viris, salvo no rosto em que havia traços regulares de uma beleza que não era beleza melindrosa e macia da mulher esmerada no enfeitá-la, nem aquele galante descuido da mulher campesina, cujos adornos não são senão liberalidade da natureza. Achar-lhe-íeis demasia de escarlate no rosto, amadores de desmaiada languidez; quiséreis menos brilho e mais resguardo naqueles negros olhos, amadores das pálpebras flácidas; não sei bem o que uns e outros quereríeis; mas o que o Bernardo Pires anelava, se a intermitente da sezão se convertesse noutra que vem dos calores da alma, fora, certo, aquela Teresa, que o transportava, com sereno ânimo, contra a corrente do caudaloso Tâmega.
António, irmão de Teresa, quando a barca abordou, já lá estava dalém, pronto para atirar um cabo, se houvesse perigo. A moça, saltando em terra, deu a mão ao passageiro e disse ao irmão:
- Este homem está doente e fica connosco até amanhã. Atraca a barca, que eu vou guiá-lo a casa.
- Mata-lhe a galinha pedrês - disse o Sr. António.
Bernardo Pires deitou-se na melhor cama da casa, que era a de Teresa. Esta passou a noite à lareira, suprindo com a fogueira a falta da cama. Na madrugada do dia seguinte, o hóspede quis erguer-se para seguir jornada, e não pôde suster-se nas pernas.
Chamou o dono da casa e disse-lhe:
- Sinto-me bastantemente adoentado; preciso da sua caridade, por alguns dias: espero que me deixe descansá-los aqui, porque em nenhuma outra parte posso estar com mais segurança. Aqui tem o Sr. António algum dinheiro. Preciso de um médico; mande-mo chamar, qualquer que seja a distância. Posso contar com a sua bondade?
O barqueiro fitava com espanto três peças de ouro que o hóspede lhe pusera na palma da mão e ouvia com igual espanto a linguagem do homem, que, até então, ele imaginara apenas um lavrador remediado, ou contratador de gado barrosão.
- Vossemecê - disse o barqueiro - há-de perdoar, se eu não sei com quem falo. Bacoreja-me que vossemecê é pessoa que anda fugida por causa dos governos, e anda assim vestido para disfarce!...
- Tudo pode ser, meu homem, e o seu rosto afiança-me que o seu carácter é bom e honrado. O que eu lhe peço é que não diga a alguém que em sua casa está pessoa desconhecida; e o médico que vier, será bom que seja de longe e se persuada que eu sou seu parente.
- Não se atrigue - disse António -, vossemecê está aqui tão seguro como se estivesse na igreja.
O barqueiro partiu para Vila Pouca de Aguiar, três léguas distante, a chamar o médico. Teresa, os intervalos que tinha livres da barca e da azenha, passava-os ao pé da cama do enfermo. De duas em duas horas trazia-lhe uma farta malga de caldo de galinha, e retirava-se melancólica se Bernardo não bebia dele algumas colheres.
- Que trabalho eu vim causar-lhe, Teresinha! - disse o doente. - Talvez não saiba que, de todas as boas obras, a que mais agrada a Deus, deve ser decerto o bem que se faz a um desconhecido nas minhas tristes circunstâncias. Se eu estivesse em minha casa, teria à volta de mim muitas pessoas, que me estremecem e me estão a esta hora chorando... Mal sabem elas em que desamparo eu vivo...
Teresa levou aos olhos o seu branco avental de estopa, limpando as lágrimas.
- Porque chora, Teresinha? - disse Bernardo com doçura.
- Tenho pena de o ver assim, e não sei o que hei-de fazer para vossemecê se não lembrar de que está desamparado... Tenha paciência por alguns dias. Deus e Nossa Senhora dos Remédios hão-de melhorá-lo.
Veio o médico.
A doença de Bernardo, além das sezões, era maligna de maus sintomas. Nove dias esteve em risco de morte, e o médico a visitá-lo diariamente.
Em poder de António estava, recheado de ouro, o cinturão do seu hóspede.
Teresa velava as noites febris de Bernardo. Dormia escassamente alguns minutos com a face encostada à arca sobre a qual estavam as garrafas dos medicamentos.
Despertava sobressaltada mal o enfermo gemia. Outras vezes, ajoelhava aos pés do catre e rezava a coroa de Nossa Senhora da Guia, à qual votara uma romagem, dando vinte voltas de joelhos em volta da sua capela, se o hóspede não morresse.
Entrou Bernardo em convalescença. .Fez reparo nas desmaiadas feições de Teresa.
Dias depois, consoante ia recuperando forças e saúde, notou que o rosto da bela mocetona reverdecia em graças e purpureava-se de rosas.
- Daqui a dias - disse ele intencionalmente - sigo a minha triste peregrinação.
- Vai-se já embora, o Sr. Bernardo? - disse ela com tristeza.
- Pois hei-de aqui ficar, Teresa?
Não respondeu a moça. Embaciaram-se-lhe os olhos e crisparam-se-lhe os beiços daquele tremor que é presságio de lágrimas. Saiu do quarto do hóspede, foi à azenha e atirou-se chorando aos braços do irmão, exclamando com inocente desafogo:
- Não o deixes sair de nossa casa; diz-lhe que lhe temos amor como se fosse nosso, e dá-lhe o dinheiro para ele não pensar que precisamos de paga. Se te for preciso dinheiro, eu vendo o meu ouro, António.
Bernardo estava ouvindo tudo, porque seguira Teresa até ao tabique erguido entre a vivenda e a azenha.
António respondeu:
- Tu és tola, rapariga! Pois este senhor é fidalgo enquanto a mim, e rico, que basta ver as peças que traz no cinturão, e querias que ele ficasse aqui metido nesta choupana! Valha-te Deus! Tu não vês que ele não é pessoa da nossa igualha? Lá se nós tivéssemos outra casa, e melhores arranjos, inda vá em paz; mas tu bem vês que não há senão dous quartos, e tu há vinte e dois dias que dormes no escano. O que se podia fazer, se ele quisesse cá ficar, era fazer mais um ou dous sobrados ali para o lado da horta...
- E eu vendia o meu ouro para eles se fazerem -acudiu Teresa muito contente, batendo as palmas.
Bernardo apareceu-lhes de golpe e disse:
- Hão-de fazer-se os quartos necessários, sem Teresa vender o seu ouro.
António abraçou-o, clamando:
- Pois o Sr. Bernardo quer ficar com a gente?
- Ficarei mais algum tempo.
Teresa apenas murmurou:
- Ouviu-me a minha Mãe Santíssima.
Ao outro dia foi chamado o mais acreditado e imaginoso mestre pedreiro daqueles arredores. Quando António da Mó lhe estava dando o seu plano de dous quartos contíguos aos outros que já existiam, o arquitecto riu-se dizendo:
- E você manda-me chamar para isso que qualquer pedreiro de socalcos podia fazer-lhe?!
- O que o Sr. António quer é uma casa feita por este plano - disse Bernardo, mostrando-lhe um lineamento que fizera a lápis.
Era uma casa com fachada de doze janelas, portão de carro, portas laterais, pátios, tulhas, enfim, uma fábrica que assombrou o alvanel, a ponto de se ele outra vez cuidar objecto de mofa.
- Se o Sr. António - continuou Bernardo - quiser esta casa concluída de alvenaria em três meses, quantos oficiais são precisos?
- Com trinta oficiais dou-a pronta, que a pedra basta tombá-la da serra cá para baixo.
- Trabalhe desde hoje, e aqui tem o sinal - disse Bernardo, passando-lhe quantia com que o mestre se poderia dar por bem pago da obra.
- O senhor, pelos modos - disse o pedreiro -, é brasileiro parente cá do António...
- Sou, sim senhor.
Espalhou-se logo, por dez léguas em circunferência, que havia chegado um brasileiro parente do barqueiro de Viela. Estava salvo o homiziado político dos funestos resultados da suspeita.
Decorreram seis meses.
Estava concluída de pedreiro e carpinteiro a casa. Previamente tinham ido do Porto as alfaias para guarnecê-la. Na comarca não se falava de outra cousa. Dizia-se até que o brasileiro mandara abrir numa sala duas cisternas onde despejava o dinheiro aos alqueires. Os mais abastados lavradores esquadrinhavam oportunidade de oferecerem as filhas ao parente do barqueiro. Os morgados circunvizinhos esperavam que se ele aposentasse na casa nova para o irem visitar e saberem com que juro emprestaria o seu dinheiro sobre vínculos três vezes hipotecados.
Entretanto, abrem-se as linhas do Porto, vencem as ideias liberais de Bernardo Pires, o corregedor de Vila Real é espingardeado, e os parentes do fugitivo correm à Ribeira de Pena para o levarem em triunfo para a sua terra.
- Deus é bom e justo - disse Bernardo. - A minha alegria é completa. Começo hoje a viver.
Era num dia de Agosto, romagem da Senhora da Guia, cuja capela alveja na chã que se aplana na quebrada da serra do Alvão.
Teresa foi lá cumprir a promessa das vinte voltas de joelhos em redor da capela.
Com ela foram o irmão, e Bernardo, e parentes e amigos deste, entre os quais estava um padre.
A moça deu as vinte voltas. Posto que robusta, às dezoito bateu com a face no lajedo do adro. Quis erguê-la Bernardo; mas ela continuou, quase a rojo, afincando já os cotovelos na pedra.
Por fim, foi Bernardo quem a levantou nos braços, e entrou com ela na capelinha.
- Será bom que almoces agora, rapariga - disse António à irmã.
- O Sr. Bernardo disse que havia de confessar-se hoje, e eu também me queria confessar - replicou Teresa.
E foi ajoelhar aos pés do sacerdote, primo de Bernardo, enquanto este se confessava também. Depois, comungaram ambos; e espalhou-se logo no arraial que havia um casamento na capela, e muitas cachopas, conhecidas de Teresa, estavam atónitas do que viam e ouviam, porque, já a esse tempo, o Sr. Bernardo era tido na conta de quem era, e de toda a parte os fidalgos corriam a cumprimentá-lo.
António da Mó chegou ao ouvido de sua irmã e disse-lhe:
- Olha que andam a dizer por aí que te vais receber com o Sr. Bernardo... Vê tu que gente tão bruta!
Neste comenos, o fidalgo do Alto Douro, aproximando-se de Teresa, disse-lhe:
- Quando fizeste o voto a Nossa Senhora pela minha saúde, a Virgem concedeu-me a vida para ser tua. Vem ser minha esposa, Teresa. Não te dou a minha mão como favor; dou-ta como recompensa.
A este quadro simplicíssimo não ajustam grandes palavras, porque ele é singelinho como o de Rute e Booz.
Teresa recebeu a mão que se lhe oferecia e foi ajoelhar no primeiro degrau do altar-mor. Quando o ministro lhe fez as perguntas sacramentais, Teresa, sufocada pela alegria, que desabafa por lágrimas e soluços, não podia responder.
Um mês depois D. Teresa Pires foi com seu marido para o Douro, feita doação da casa com tudo o que ela continha, e mais alguns mil cruzados, a seu irmão e cunhado.
Nesta casa é que eu pernoitei, e saciei, à tripa forra, a fome de três dias, quando vinha das Alturas de Barroso.
Lisboa - Março de 1859
Sétimo Casamento
Prendisti portus.
Stacio (Silv.)
Não era poeta, nem imaginário, nem sequer romântico, Bernardo Pires. Um ano, cinco, dez anos depois de casado, amava ainda, ou amava mais, sua mulher.
Nunca pôde fazer-se perfeitamente senhora a irmã do barqueiro do Tâmega. O que ela queria era trabalhar, e dotar-se, para assim dizer, com os acrescentamentos que o seu sistema económico ia dando à grande casa de seu marido.
Bernardo era assim feliz, e não se lhe dava que as fidalgas de Ribadouro dissessem, por chiste, que a vara e o remo deixaram nas mãos de Teresa umas excrescências calosas, que se não podiam apertar sem moléstia.
Raros hóspedes interrompiam o monótono contentamento daquela invejável família. E a natureza, sempre liberal para os que bem sabem saborear-se nela das alegrias modestas e duráveis, a natureza, sinónimo de Providência e Deus, como a entende o autor das Harmonias e de Paulo e Virgínia, dera-lhes uma filha como para convencer-nos de que há neste mundo perfeita felicidade, se os prazeres, onde a buscamos, não custam desgostos a outrem, nem carecem de desculpar-se com a cegueira das paixões.
Maria da Piedade era o nome da menina. Não parecia filha de Teresa, aos catorze anos. Era o mórbido e suavíssimo molde. da mulher que vulgarmente denominamos «aristocrata», como se nas famílias fidalgas nos não deparasse a natureza muita senhora troncha e repolhuda. O azulado das veias, a pequenez da mão e pé, a brevidade da cintura, o oval pálido do rosto, a flacidez das pálpebras, o roxo-violeta que tingia um meio círculo abaixo dos olhos amortecidos, eram feições de todo avessas às de Teresa.
Quando a menina, fatigada de um curto passeio ao pomar da quinta, se encostava esmorecida ao braço do pai, a robusta mãe praguejava contra o chá e o café que tinham feito sua filha um pelém. Outra zanga era o vê-la com livro na mão. Não queria, dizia ela, que sua filha puxasse pelas memórias. Ora, o livro único de Maria da Piedade era o Manual do Sr. Emílio Aquiles de Monteverde, livro inocente, o mais inocente de quantos conheço, pela saudável ignorância em que deixa as educandas. No entender de D. Teresa, o chá, o café e o Manual haviam de dar cabo de sua filha, que até aos cinco anos fora escarlate e roliça como serafim de altar-mor de aldeia. Razões ajuizadamente contra-postas por Bernardo não desvaneciam sua mulher do ódio ao chá, que ela chamava «tisana», e à leitura, que abominava, com a cordialidade de uma dama legitimamente portuguesa e sensata.
Aos catorze anos, Maria da Piedade foi pretendida por muitos cavalheiros à competência, como linda, e única herdeira de grande casa. Sobressaíam entre todos um visconde de antiga linhagem, senhor de pequeno morgadio, e um tal Afonso Rodrigues, filho de um capitão-mor de além-Tâmega, que fora pedi-la com carta abonatória do Sr. António da Mó, seu vizinho e, como sabem, tio da menina.
Pendia Teresa para o fidalgo do antigo capitão-mor, que, sobre ser abastado, era lá vizinho dos seus, e sabia de lavoura, e mostrara, com orgulho de um «rei Bamba», as mãos calejadas pelo arado. Optava, porém, Bernardo pelo visconde, cujos costumes se conformavam mais à índole de sua filha. Maria da Piedade não escolhia nem rejeitava algum.
Apertava o Sr. Afonso Rodrigues pelo remate do dito arranjo, como se ele expressava em repetidas cartas. Instava também o visconde, apertado pelo amor e pelos credores, quando em Covas do Douro, residência de Bernardo Pires, apareceu um homem fatal para o Sr. Afonso e para o Sr. Visconde.
Era o meu amigo Tomás de Abreu este homem, revolucionário demagogo, que se aventurara na revolta de Almeida e fora acutilado na serra do Marão, com um bando de patriotas, por um troço de cavalaria, representante dos princípios ordeiros.
Achou-se Abreu em Covas do Douro por um desses caprichosos desvios que só conhece quem foge. Como procurasse um cirurgião que lhe saneasse as feridas, estancadas com tiras do lenço, encontrou na rua Bernardo Pires, que o conduziu a sua casa e o agasalhou com a dupla caridade de quem já tinha fugido à sanha dos políticos e encontrou guarida e bem-fazer dos estranhos.
Foi Tomás de Abreu caridosamente tratado, e convalesceu.
Durante quinze dias passara na cama, não viu Maria da Piedade; sabia, apenas, que na casa havia uma menina, que todos os dias perguntava ao cirurgião pelo estado do enfermo.
Quando, porém, a viu, amou-a. Viu-o também ela; e, se o pai a não chama para apresentá-la, fugiria. Nestas fugidas é frequente ficar o que devera fugir primeiro que os olhos - o coração.
Era Tomás um gentil moço. Trinta anos teria. Paixões, conhecera só uma – o patriotismo. Creio eu que se chama patriotismo a cousa. Aparecia Tomás onde quer que o ódio político levedasse uma conspiração. Armava-se até aos dentes e batia-se com carniceira bravura. Matava, se podia, o adversário político, cujo condiscípulo fora, ou com quem jantara quinze dias antes. Isto chama-se patriotismo, e desta paixão se fizeram os Codros na Grécia, os Cévolas em Roma e os regedores de paróquia em Portugal.
Paixão fora aquela que não deixara na alma requeimada de Abreu oásis onde verdejassem esperanças que não fossem ambição de ser secretário do Governo Civil da sua terra. Flor de serenos factos e simpatias generosas nem uma só a amenizar-lhe o aspérrimo fadário da política. Dê-se embora como cousa corrente que o homem a tudo se abalança, tudo cobiça e disputa para muito ser e valer aos olhos da mulher. Homens há que não. Para Tomás, todas as mulheres eram Dalilas e todos os namorados – raça degenerada dos velhos brios portugueses - filhos descaroados, que tripudiavam em volta da esteira da mãe-pátria nas agonias do trespasse.
Tomás teve medo de si ao ver Maria da Piedade. Sentiu lá dentro o fremir surdo do vulcão. Quis fugir, e despediu-se. Pediu-lhe Bernardo Pires que se detivesse até esfriarem os ódios civis, que se cevavam ainda no cacete, o qual é, nas capitais das províncias, o precursor benquisto das amnistias, quando não protesta contra elas, depois de decretadas. D. Teresa pediu-lhe também que ficasse. Maria da Piedade relanceou-lhe um olhar em que não havia lágrimas; mas tão suplicante devia ser, que Tomás ficou. D. Teresa, lembrada dos prelúdios do seu casamento, muitas vezes disse ao marido:
- Queira Deus...
E Bernardo respondia:
- Tomás, além de não pensar senão em revoluções, é um perfeito cavalheiro. Ele já sabe que Maria está destinada, e ela não tem por ora vontade sua, nem sabe o que é amor.
O Sr. Afonso Rodrigues, cansado de esperar resposta definitiva, foi a Covas e brindou a noiva com um cabaz de trutas fritas. Bernardo, já resolvido por sua mulher a favor de Afonso, apresentou-o ao hóspede como futuro genro. Estava presente Maria, e, ouvindo a final sentença do seu destino, fitou os olhos no chão, fez-se cor de cera, estendeu o braço para encostar-se e caiu desfalecida.
No dia imediato, Bernardo Pires saiu ao pomar com Tomás de Abreu e disse-lhe com gesto afectuoso:
- Eu não conheço o coração de minha filha. Interroguei-a; mas há lá segredo que não consegui tirar-lhe. Talvez que o senhor possa esclarecer-me, se quiser ser sincero.
Vossa Senhoria é amado por minha filha?
- Nunca lhe dei a ela ensejo de me fazer semelhante revelação - disse o meu amigo. - A filha do cavalheiro que me recebeu em casa, a rica herdeira que os abastados pretendem, pode ser um anjo como ela, que eu nunca me erguerei diante dos seus pretendentes, e menos ainda diante da vontade de seus pais. Sou tão independente como pobre. Do meu orgulho não poderei cair nunca nos braços de uma mulher, ainda que ela possa cobrir-me com as suas asas de ouro.
Bernardo não teve que redarguir a isto, que, demais a mais, tinha estilo.
Na madrugada do dia seguinte, Tomás escreveu uma carta ao dono da casa, colocou-a sobre a cómoda do seu quarto e saiu a pé, caminho de Vila Real, onde tinha parentes. A carta continha um protesto de eterna gratidão e o seguinte período:
Não sacrifique sua filha. Se Deus lhe concedeu o tesouro de pérolas, que pressa tem de o lançar ao javardo que me apresentou como seu genro? Terrível amor de pai o que mata o coração de sua filha!... Indulte-me deste atrevimento, e adeus.
Perguntei eu ao meu amigo a razão desta carta, podendo ele despedir-se como se despede toda a gente. Convenceu-me com as seguintes razões:
- Algumas horas antes de eu escrever a carta, seria uma hora da noite, ouvi passos no corredor vizinho do meu quarto, e logo um cauteloso bater à porta que me deu a intuição de algum episódio romanesco. Abri a porta a medo e vi a mestra de costura de Maria. Era feia mais que o admissível esta pessoa. Fez-se em mim de repente um José da corte do Faraó, e por pouco lhe não deixo, além da capa, dous pares de peúgas e duas camisas que tinha no quarto. Entrou a Srª Quitéria e sentou-se na minha cadeira, limpando as lágrimas, que a punham no supino da fealdade.
- O senhor há-de desculpar - disse ela tartamudeando -; faz-me tanta pena a pobre menina que vive aqui...
Os soluções embargavam-lhe as palavras; e eu, desvanecida a hedionda suspeita de aventura que me desvirtuaria aos próprios olhos da minha vaidade, atalhei:
- Sei o que vem dizer-me. Quer a Srª Quitéria que eu fale ao pai da menina a respeito deste desgraçado casamento; e o dissuada de forçar a pobre criança a semelhante desgraça, não é isso?
- Não, senhor. Eu venho dizer-lhe que a menina ama muito a Vossa Senhoria. Está sempre a chorar e diz que o senhor a não ama, porque nunca lho disse, nem ontem se importou de a ver cair desmaiada.
Quitéria falou muito tempo e acabou por me dizer que a menina estava resolvida a fugir comigo, se eu desse palavra de a receber como esposa, o mais cedo que pudesse ser.
Respondi que amava muito a Srª D. Maria da Piedade; mas que me não casaria com ela nem com outra, e muito menos o faria contra vontade de seus pais. Que entrara ferido naquela casa, recebera paternais cuidados do dono dela, e não queria sair com labéu de ingrato e infame. Que o meu amor era, e seria sempre, escravo da razão, e que, em nome da razão, aconselhava a Srª D. Maria a implorar de seu bom pai a desistência de tal casamento com o Sr. Afonso; e a ela pedia se esquecesse de um homem que não podia dar-lhe a felicidade, sem primeiro esmagar a consciência da honra e o orgulho de a ter. E à Srª Quitéria incumbi eu de falar esta linguagem à sua discípula.
Não sei se a mestra de Maria me entendeu. Saiu como vexada do mau êxito da sua irreflectida compaixão; e eu resolvi desde logo sair, como saí, porque me sentia fraquejar de ânimo, e a tal minha consciência de honra não estava longe de transigir com a chamada honra do coração.
Com isto satisfez o meu amigo Tomás de Abreu a minha curiosidade.
Fiquei admirado!
Bernardo Pires lera a carta de Tomás, chamara a filha e dissera-lhe:
- Está sossegada, menina. Não casarás com Afonso, nem casarás sem que o teu coração aceite a vontade de teu pai. Em compensação da minha generosidade contigo, fala-me com desassombro: amas Tomás de Abreu?
Maria tomou as mãos ambas do pai e escondeu nelas o rosto, beijando-lhas e regando-lhas de lágrimas.
D. Teresa assistiu a esta cena tocante e chorou também.
No dia seguinte, uma carta de Bernardo Pires procurava Tomás em Vila Real.
Esteve a carta muitos dias no correio sem que alguém a procurasse, até que o fidalgo de Covas soube que o seu hóspede apenas se demorara algumas horas naquela vila e saíra ocultamente, receoso do cacete do Governo Civil.
Decorreram dous anos. A revolução popular de 1846 rebentou no Minho. Tomás de Abreu lá surgiu, incitando a populaça a queimar os impressos do cadastro, e foi nomeado, depois, governador civil de um distrito de Trás-os-Montes. Veio a contra-revolução de Outubro. Tomás militou nas legiões da Junta Suprema, bateu-se em Torres Vedras e Valpaços e consumiu os últimos cartuchos em desesperada peleja contra os Espanhóis, que entraram por Valença do Minho.
Depois do convénio de Gramido, ficou no Porto, reorganizando a Carbonária e armazenando armas para uma nova tentativa.
Uma noite, estava ele no Teatro de Camões. Alguns bandos de caceteiros haviam ali concorrido, por saberem que os Guedes da casa da Costa, briosos e valentes caudilhos das forças populares, tinham a petulante bravura de se não esconderem.
Travou-se a luta quando Tomás de Abreu entrava no pórtico do teatro. Os agredidos punham peito ao ataque dos sicários, como o puseram no campo ao exército disciplinado. Abreu, perseguido por três punhais, e defendendo-se com um estoque, recuava no corredor da 1ª ordem, quando um braço robusto, tirando por ele, o fez entrar num camarote. Os caceteiros retrocederam, e Abreu viu a pessoa que o salvara: era Bernardo Pires. Ouviu um ai de aflição: era de Maria da Piedade, que desmaiara nos braços da mãe. «Desmaiada ou morta?», pudera ele dizer, vendo-a tão outra do que fora a pobre menina!
O anjo da morte beijara as faces de Maria e no alvor, onde pusera os lábios, deixara como sinal duas manchas escarlates.
- Já a não conhece? - disse Bernardo Pires. - Matou esta criança, Sr. Abreu; mas não o culpo; matou-a involuntariamente. Agora, nem para si, nem para nós.
Maria da Piedade, cobrando alento, saiu do camarote, passou para a carruagem, sentiu o apoio da mão de Tomás, quando subiu, e chorou.
Nessa mesma noite, Bernardo procurou o meu amigo no seu hotel e disse-lhe:
- Não se casa por comiseração. A generosidade, que move um homem a sacrificar sua vida a uma mulher doente, deve ser muitas vezes ferida pelo arrependimento. No entanto, saiba que a minha pobre filha, ao cabo de dous anos de paixão superior a tudo que um pai inventa para salvar sua filha única, morre, e morre amando-o. Já lhe disse que o não culpo, Sr. Abreu. Admiro-lhe a probidade; mas muito mais admiro a frieza do seu coração. Não teve, em parte alguma, vagar de nos falar de si? Escrevi-lhe para Lisboa, e não me respondeu...
- Eu não vivi em Lisboa. Estive em Inglaterra, dous anos, cumprindo uma comissão política. Voltei quando era forçoso obedecer à minha paixão fatal. Recebi de Vossa Excelência uma carta em Bragança, cujo distrito governei. Apenas me dizia Vossa Excelência que a sua filha estava enferma, em risco. Doeu-me a triste notícia; mas a vaidade não me arguiu de verdugo dela. Aqui me tem agora, Sr. Bernardo Pires, pedindo-lhe Maria da Piedade. Agora peço-lha porque não há paixão alguma que ma dispute ao coração. Morreu-me a fé nos princípios e nos homens. Não há quem salve Portugal. Envergonho-me de ser português, e falece-me a coragem de Bruto nesta cafraria de negros sem honra nem alma. Agora sou senhor de mim: peço-lhe sua filha, e prometo salvá-la; salvá-la para a felicidade de nós ambos, de todos nós, nesta família no seio da qual o meu talher não será oneroso para Vossa Excelência, nem vilipendioso para mim.
- Prometo salvá-la - disse ele!
E salvou-a!
Em 1858 a vi eu a banhos de mar em S. João da Foz. Dos tais beijos do anjo da morte nem sinal! O anjo da vida é que viera acrescentar à de Maria três existências, três lindas crianças, robustas e sadias como as crianças dos noticiários do jornalismo, muito parecidas com sua avó, virtuosa e ditosa senhora, para quem o Céu é inesgotável de contentamentos.
Sirva este casamento de conforto e esperança às meninas tísicas, de aviso aos pais e de estudo aos redactores da Gazeta Médica.
Lisboa - Maio de 1859
Oitavo Casamento
On peut essayer de rabaisser l'amour à n'être plus que l'union des sexes, comme chez les animaux; on peut demander la communauté de» femmes et la dissolution de» mariages par le divorce, on peut tenter de justifier les écarts de la passion en soutenant qu'elle anéantit le ressort de la volonté; mais, si l'on regarde aufond de son coeur, on sera forcé de reconnaître que la nature est contraire à toutes ces théories, et qu'elle nous a faits, non pour de» amours de hasard, mais pour le mariage indissoluble, solennisé par la société humaine, et sanctifiée par la bénédiction de Dieu.
Jules Simon (Le Devoir)
Fui um dia à feira das Boticas e, na volta, pernoitei em Vila Pouca de Aguiar. Aos desmemoriados da topografia do seu país não será prolixidade dizer que aquelas povoações pertencem à província transmontana. A primeira é convizinha daquele sertão de Barroso, de cujo policiamento deixei de fugida alguns traços ligeiros no sexto casamento deste livro. A outra é uma terra situada a meio caminho de Vila Real para Chaves.
Cheguei a Vila Pouca a tempo de não se falar de outra cousa senão na morte violenta do juiz de direito da comarca, o qual tinha sido na véspera daquele dia assassinado a tiro. Assisti ao funeral do magistrado e vi os assassinos, pelo menos os indigitados pelo povo, postados serenamente em suas janelas a contemplarem o pequeno préstito que seguia o caixão. Evidenciou-se, depois, que a voz do povo era eco da Providência; os homicidas, porém... Ora a história destes homicidas do juiz de direito é que não tem que ver com o conto. O leitor, se quiser averiguar o que é a justiça naquelas terras, de que Deus o livre, requeira traslado do processo, e verá que em Vila Pouca de Aguiar morrer de uma anasarca ou de uma descarga é a mesma cousa, em face do Código Penal, mormente se a vítima é o juiz do crime.
O meu quartel era uma taverna de boa e pobre gente que me deu o mais aconchegado quarto e a mais fina e branca roupa do seu bragal. Eu tive, ainda assim, a grosseria presunçosa de me queixar do enxergão, que era de palha, e do travesseiro, que era impalpável e subtil como uma quimera. A Tia Eufémia, dona da albergaria, depois que me ouviu com seráfica paciência os queixumes, disse-me isto brandamente:
- Bom era vossemecê para dormir como o Sr. Padre João de Pençalves, quando cá vem!...
- Pois como é que dorme o padre João de Pençalves? - repliquei irritado com o despropósito da comparação.
- Dorme com o corpo nas tábuas estremes e o breviário debaixo da cabeça.
- Faz ele muito bem; mas eu é que não tenho o corpo nem a cabeça do seu padre João.
- Pois, filho - tornou ela com muito afável sombra -, oxalá que vossemecê tivesse a alma do Sr. Padre João de Pençalves, que é um santo.
- Lá me parece... - redargui, apalpando pela quarta vez o enxergão, cujos colmeiros rompiam o sirgo em pontas espessas como sedeiro. - Vossemecê não sabe que os santos transformam milagrosamente um leito de laje em cama de penas?
A Srª Apolinária não respondeu a esta sensaboria e Continuou.
- Um santo que tanta alminha tem levado à glória! Ainda cá esteve a noite passada, e olhe que ele adivinhou a morte do Sr. Juiz de Direito.
- Adivinhou?! Conte-me lá isso, Srª Apolinária.
- O Sr. Juiz passou ali fora por ele, e disse-lhe: «Padre João, o mundo não se endireita», e o santinho respondeu: «Sr. Doutor, a cruz do Divino Mestre é que não se entorta com o mundo. Ponha Vossa Senhoria os olhos nela e verá o caminho da eterna pátria chão como a palma da sua, mão. E ai daqueles que estão a dois passos do fim, e ainda escorregam nas ladeiras da culpa!» Foi o que ele lhe disse. Isto é adivinhar-lhe a morte ou não é? Diga vossemecê.
- Isso é um bocado de sermão, Srª Apolinária, que tanto servia para o juiz, como para vossemecê, como para mim. Ora conte-me lá mais alguns milagres do padre João de Pençalves.
- Não se ria do servo do Senhor, que o não castigue Deus - disse em tom de afectuosa repreensão a estalajadeira.
- Eu não me rio, mulherzinha: desejo na verdade saber com que virtudes esse padre alcançou fama de santo.
- As virtudes dele são visitar com palavras e esmolas os pobres; é dono de uma casa rica, e dá tudo quanto tem. Se encontra um pobrezinho doente com os pés a escorrer sangue, dá-lhe os seus sapatos. Muitas vezes chega a casa sem capote, porque o deixa a cobrir algum velho, que encontrou a tremer com frio. Se há desordens no concelho, vai ele, antes de o chamarem, falar com os da pendência, e sana tudo. Raparigas infelizes, logo que ele sabe onde as há, vai ter com os sedutores, que as perderam, e faz as despesas para se casarem. Todos os dias vai dizer missa a cada uma das capelas do concelho, à vez, e confessa, e faz uma missão antes do romper do dia. Por onde ele passa, faz vir as lágrimas aos olhos ver a gente como todos os caminhantes, que o conhecem, lhe ajoelham, e ele abraça-os, e chora com eles, mas ao mesmo tempo tem um riso, que parece cousa do Céu. Aqui tem vossemecê porque nós cá temos em conta de santo o padre João de Pençalves.
- E em razão - disse eu sinceramente abalado pela singela narração da Srª Apolinária. - É longe daqui a Pençalves?
- Uma légua pequena.
- Quero ver o padre João.
- Pois vá, vá com o Senhor, que a gente parece que sente a graça de Deus só de vê-lo.
Eu não dormi. A minha imaginação voejou toda a noite em volta do apostólico vulto, que muitas impressões concorriam a vestir da majestade e auréola da religião.
Ao aclarar a manhã do dia seguinte abalei para Pençalves, e sentia em mim, naquele dia, desejo tão veemente de ver o padre que o tomei à conta de influxo já sobrenatural.
Rompia o Sol quando cheguei à porta, de carro, do padre João de Pençalves. Bati, e falou-me um ancião de venerável aspecto.
- Está em casa o Sr. Padre João? - perguntei.
- Não, senhor: foi dizer missa a Soutelo.
- Pode dizer-me se virá a casa cedo?
- Não lhe posso dizer. As vezes, acerta de ir, e voltar passados dias - tornou o velho. - Vossemecê é de longe?
- Sou de longe; mas irei por Soutelo.
- Não vá sem comer alguma cousa. Entre para aqui, eu cá lhe recolho a cavalgadura, e vossemecê vá por essa varanda fora, e entre lá adiante na sala que está aberta.
O velho tirou-me as rédeas da mão e eu encaminhei-me à sala. Vi uma grande mesa de pau preto, com a cercadura e os pés torneados. Sobre esta mesa estavam breviários, ripanços e papéis. Adornavam o restante espaço da sala algumas cadeiras baixas de couro lavrado, sujas de pó e gretadas de velhice. Num dos ângulos estava também uma pequena e grosseira estante de castanho com livros. Por sobre a lombada dos que enchiam o último lote pendiam teias de aranha, entre as quais se passeavam as suas tranquilas moradoras, e arquitectavam ciladas às moscas, tecendo para os frisos do tecto os astuciosos fios, em que dobavam as preias convulsivas.
Veio ter comigo o velho e disse-me:
- Hoje é sexta-feira: não é bom dia para hóspedes; mas há-de haver um bocado de bacalhau demolhado e um caldo de cebola.
- Não se incomode, que eu não tenho vontade alguma de comer.
- Comer e coçar é principiar. Descanse, que eu volto logo.
Deitei-me sobre duas cadeiras; porém, a moleza do estofo era pouco suave.
Sentei-me, e cismei assim: que vim eu fazer aqui, a falar a verdade? Venho ver o padre João de Pençalves. Que hei-de eu dizer ao padre João e que me faz a mim conhecer o padre João? Isto parece-me uma singularidade, que não entrava no espírito de outro rapaz de dezassete anos! Se o padre me disser: «A que veio você?», tenho de responder-lhe a verdade: «Disseram-me que o senhor era santo, e eu quis ver um santo, porque não sei se em toda a minha vida terei ocasião de ver outro.»
Nestas e noutras semelhantes reflexões correu o tempo necessário para se cozinhar o bacalhau e o caldo. Fui chamado à cozinha, onde achei posta a mesa. Sentou-se defronte de mim o ancião, e serviu-nos o repasto uma mulher de boa idade, bonita, bem feita e alegre:
- Esta moça é minha filha - disse o velho - e o padre João é meu filho.
Fiquei maravilhado, porque me fizera a imaginar o padre um homem de semblante arrugado e cabelos brancos.
- Então seu filho que idade tem? - perguntei eu.
- Trinta e cinco, é mais velho cinco anos que a minha Luísa.
- Tão novo e já com fama de santo!...
- Deus sabe quem são os santos... - tornou o dono da casa. - O meu João é um bom padre, isso é, e cumpre as suas obrigações como se quer; mas de ser bom a ser santo, não basta só dizê-lo o povo, que tanto põe em chamar santo a um homem como demónio...
- Credo!, santo nome! - atalhou Luísa. - Ó meu pai!... Vossemecê que diz?
- Ó rapariga!, não te atrigues tanto! O Demónio não vem sempre que ouve o seu nome... E, se vier, faz-se o sinal da Cruz...
O Sr. Bento Gonçalves disse isto com um sorriso de inteligente ironia e continuou:
- Quando eu estive na Rússia...
- Vossemecê já esteve na Rússia? - atalhei eu.
- Estive, sim, senhor. Eu fui soldado de Napoleão. Quando estive na Rússia, ouvi dizer que o capitão da minha companhia tinha pacto com o Diabo...
- Abrenúncio! - disse o moço, com a malga do caldo suspensa na mão esquerda e benzendo-se com a direita.
- E diziam lá - prosseguiu o velho - que ele trazia num canudo de folha uns besouros, que eram os demónios, encarregados de executarem as ordens dele. Fiquei com a pedra no sapato e curioso de ver a cara aos tais besouros, que os meus camaradas diziam que ele trazia ao pescoço, à laia de bentinhos..59
- Minha Mãe Santíssima! - tornou Luísa, com a digestão do caldo já perturbada.
- O senhor há-de saber - tornou o veterano de Napoleão - que o imperador deu com as canastras na água em Waterloo?
- Sim, senhor, sei.
- Pois o capitão da minha companhia morreu logo no princípio da batalha, e eu vi-o cair morto, e nunca mais tirei a vista dele. Assim que pude desembaraçar-me do fogo, e de dous prussianos que me carregavam à baioneta calada, fui ao pé do capitão, desapertei-lhe a farda e dei fé do volume. «Eles cá estão», disse eu. Tirei-lhe do pescoço a fita, e saiu-me assim uma caixinha de prata que parecia um relicário. Cheguei-a ao ouvido a ver se ouvia os besouros a zunirem, e, a falar-lhe a verdade, tremiam-me as pernas mais do que no fogo, e nas pontas das baionetas dos Prussianos. A caixinha tinha um botão, e eu, sem querer, pus-lhe o dedo, e a tampa saltou. Que hei-de eu ver? Uma mulher boa de uma vez, linda, linda!, mas em retrato, entende-se. E vai eu depois disse cá com os meus botões, a rir: «Se isto é o Demónio, acho que o Demónio não é tão feio como o pintam!...»
O soldado de Waterloo soltou uma casquinada de riso com intervalos de tosse crónica, e eu ri também do ar de assombro com que Luísa parecia estar enleada no entendimento da história.
- Então, pelos modos - disse ela -, os besouros tinham-se mudado em mulher!?
Seria ela moura encantada, meu pai?!
- Havia de ser isso - respondeu o velho, continuando a rir e a tossir -; havia de ser isso, rapariga... Olha se nos dás aquela pinga que está no garrafão empalhado... é do que faz assentar o bolo no bucho e dá forças à gente para resistir aos feitiços das mouras encantadas... Se Napoleão tivesse levado uma dúzia de pipas deste para a Bélgica, não perdia a batalha de Waterloo e seria hoje o senhor da Europa.
Eu estava quase tão enleado como a singela Luísa; mas era outra a causa.
Empreendi a cismar num certo desconcerto entre o velho jovial, franco, desempoado, e o filho, como se me ele antolhava, taciturno, concentrado, e escrupuloso em dizer e ouvir palavras que destoassem do tom apostólico. Cuidava eu que o pai de padre João devia, no fim do almoço, pedir as camândulas, e não o garrafão empalhado, e atribuir o desastre de Waterloo à irreverência de Napoleão com o papa, e não à falta de doze pipas de vinho velho do Douro. Comecei a desconfiar do fruto pela árvore. Crítica tola de rapaz.
Quando saímos da cozinha para a sala, entrava padre João no quinteiro.
Era um homem alto, ossudo, airoso, e bem posto com a sua batina, e chapéu de três ventos. Foi o primeiro chapéu daquele feitio que eu vi na província.
Trazia debaixo do braço um embrulho que devia ser a sobrepeliz.
Viu-me o sacerdote na sua varanda e cortejou-me em silêncio. Desci ao fundo das escadas e gaguejei estas palavras:
- Foi o desejo de conhecer uma pessoa virtuosa que me trouxe a esta casa.
Conheci que este panegírico de golpe e abrupto embaraçou o padre. Deu-me ele a sua mão e murmurou:
- Faz favor de subir.
Dirigiu-se ao pai e beijou-lhe a mão. Luísa beijou-lhe a mão a ele. Isto é um lance que não impressiona o leitor; mas a mim comoveu-me.
Fui indo a par com ele para a sala, e não atinava com expressões ajustadas à minha situação. O padre incutia-me uma reverência que não era ordinária, nem meramente natural. E, todavia, o seu semblante era aberto, lúcido e risonho.
- Queira sentar-se - disse-me ele, depondo a trouxinha e o chapéu.
Sentei-me, e ele sentou-se também, e encostou o cotovelo à mesa dos livros.
- O senhor é destes sítios? - perguntou o padre.
Disse-lhe a minha residência e o nome da família com quem estava aparentado.
Nesta família havia um sacerdote, conhecido de padre João.
- Escusava de sair de sua casa para conhecer um padre digno deste nome – disse ele.
Prossegui, contando que estivera em Vila Pouca e ali me inflamara o louvável desejo de não passar adiante sem conversas com o ministro evangélico, de quem tão edificantes actos se contavam.
Esta insistência afligia visivelmente o padre; não obstante, a graça do semblante a custo deixava rever a dor que eu lhe estava causando inocentemente.
O homem de Deus fitou-me com os seus olhos magnéticos e disse-me:
- Em que posso ser-lhe útil? Haverá nos seus verdes anos algum desgosto que a religião possa remediar? Eu tenho conseguido algumas vezes suavizar as aflições dos meus irmãos de desterro, não com as minhas palavras, não com a minha virtude, mas com as palavras que aprendi na lei de Nosso Senhor Jesus Cristo, nas quais é que está a virtude, e tão miraculosa e divina que não perde a sua santíssima essência, proferida pela boca do homem. Aqui está o que eu sou: um discípulo da escola de Jesus. Crucificado, um crente na divindade da sua vida e morte e o pregoeiro da felicidade temporal e da bem-aventurança infinita aos infelizes e aos falsos afortunados do mundo, quando os vejo esquecidos delas, uns na embriaguez da peçonha, outros no abatimento da atribulação. Não sou mais que isto, nem posso sem dor ser tido noutra conta. Repito a pergunta: posso ser-lhe útil e pagar-lhe de algum modo a mercê desta visita?
- Pode - respondi eu, enternecido até às lágrimas -, pode ser-me muito útil, ensinando-me as veredas menos custosas da vida.
O padre recolheu-se alguns segundos e disse:
- Amarás a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Aqui tem a estrada amplíssima. As margens desta estrada são esmaltadas de flores. Aqui e além erguem-se cruzes entre as flores. São as paragens donde o peregrino avista a pátria. Aí é que o homem se reconhece em Deus; ai é que está a fonte do resgate, e o quinhão da última ceia do Salvador em que todo o género humano tem o seu prato.
Padre João ergueu-se, deu duas voltas na sala, e eu esperei-o de pé, com o intento de beijar-lhe a mão e despedir-me.
- Eu retiro-me por meia hora - disse ele, tomando o breviário - e voltarei.
Entretanto, ali tem alguns livros naquela estante: aligeire os enfados da solidão com a leitura de algum.
- Eu ia despedir-me - respondi eu.
- Se não tem pressa - redarguiu o sacerdote -, fique até à tarde, que tem tempo de sobra para chegar a casa; mas, se quer retirar-se, vá com Deus.
- Ficarei da melhor vontade. Sinto-me aqui bem.
- Pois fique, que me obriga com isso
Disse, e saiu.
Fui à livraria e li os rótulos de alguns livros de teologia dogmática e história eclesiástica. Subi a uma cadeira para examinar os mais altos e vi entre estes um cujo letreiro corria em todo o comprimento da lombada e se intitulava: Obras de Gil Vicente.
Desacomodei as aranhas, que marinhavam para o tecto como apavoradas do insólito ataque à sua propriedade de teias e moscas.
Tirei a custo o livro e sentei-me a examinar com admiração os caracteres góticos que eu nunca tinha visto: era a primeira edição.
No alto da segunda página estavam escritas, a letra de mão estas palavras: «Este foi o livro da morte.»
Quando o padre voltou de rezar, estava eu ainda sem poder desfitar os olhos daquela misteriosa nota. Levantei-me, com o livro aberto, e disse ao padre João:
- Tenho estado a cismar com isto: Este foi o livro da morte!... Será indiscreta curiosidade perguntar o segredo destas palavras?
- Eu vou contar-lhe a significação dessas palavras, começando pela história desse livro - disse o clérigo, sentando-se na sua cadeira, e encostando ambos os cotovelos à mesa, e o rosto às mãos. - Repare na última página, e verá aí outra inscrição curiosa.
Observei, e li o seguinte: «Este Gil Vicente é do marquês de Vila Real, o qual lhe foi dado por seu primo arcebispo D. Sebastião de Matos e Noronha, em 1638.»
- Um irmão de meu quarto avô - prosseguiu o padre - era o presbítero Manuel Rodrigues, mordomo da casa de Vila Real, na época em que o Sr. Marquês foi condenado à morte por ter conspirado contra o Sr. D. João IV. Os bens da casa de Vila Real passaram à coroa, e o mordomo despediu-se do serviço, logo que seu amo padeceu a decapitação juntamente com seu filho o Sr Duque de Caminha. O meu antepassado naturalmente trouxe consigo esta obra, e algumas que ali tenho da mesma época, como a Vita Christi, de Fr. Bernardo de Alcobaça, e a segunda edição d'Os Lusíadas.
Agora, vamos à explicação da nota em que o senhor com justa causa reparou.
Em 1808, meu pai, que então era rapaz de poucos anos, amava honestamente uma rapariga pobre desta: aldeia, filha de um homem de mau coração, que voltara do degredo de África, onde fora cumprir sentença por tentativa de morte. Os trabalhos não lhe adoçaram a índole ruim. Voltou tal qual era, bulhento, temível e impenitente. Meu pai temia-o, e acautelava-se muito dele, quando acertava de falar furtivamente a Rosa, que era o nome da moça. Uma vez, porém, não pôde fazê-lo tanto em secreto que o pai os não visse.
Estava então meu pai sentado no portelo duma nossa cortinha com este livro na mão, e Rosa estava à beira do caminho conversando. Nisto, o homem irado, com os olhos raiados de sangue, saltou doutro campo a estrada e correu sobre meu pai com uma fouce roçadoura. O rapaz fugiu com dois golpes nos braços; mas o perseguidor não estava satisfeito. Meu pai parou já de cansado e disse-lhe que o não matasse porque a sua intenção era casar com Rosa. Nem com isto aplacou a cólera do homem sanguinário. Os golpes eram cada vez mais repetidos, e a ira do agressor recrudescia com eles. Estava já o pobre moço banhado de sangue, quando o instinto da salvação lhe acudiu. Meteu-se às pancadas da fouce, cingiu-se arca por arca com o pai de Rosa, e caíram juntos. Ao pé deles estava esse livro. Meu pai tal pancada deu com ele numa das fontes do inimigo que lhe tirou os sentidos e a vida.
Fugiu o moço, na suposição de que não era um homicida. Principiava a curar as feridas, que eram muitas, quando ouviu gritar que estava morto o pai de Rosa. Fugiu de casa apavorado e foi para a serra, onde esteve alguns dias.
Nesta ocasião, vinham os franceses fugidos depois da batalha de Vimeiro, e estavam em Montalegre, para passarem à Espanha. O rapaz foi ter com eles, alistou-se no exército de Soult e seguiu a sorte das armas francesas.
Entretanto, os parentes do morto levantaram-se contra a casa de meu avô, e não lhes foi difícil ajuntarem a freguesia contra nós e trazerem ao seu bando a soldadesca desenfreada, que vinha na cola dos franceses. Incendiaram-nos a casa, depois que a esbulharam de todo o precioso; feriram de morte dous velhos que tinham ficado nela e tomaram conta, sem processo algum, das melhores terras.
Rosa, quando estas maldades se praticavam, andava em procura de meu pai para o seguir. Já o não encontrou, e voltou, mas não para aqui. Foi servir uns lavradores de Carrazedo de Montenegro, e, de vez em quando, mandava perguntar a meu avô por notícias do filho, que nunca mais tornaram senão com ele.
Em 1815 voltou meu pai. Não o conheciam já na aldeia: vinha negro das batalhas e extenuado de fome e fadigas.
A esse tempo já meus avós estavam apossados da sua casa e os inimigos tinham sido chamados a contas com a justiça de Deus. Desta família vivia somente Rosa, servindo ainda e gozando de muito bom nome. Fora ela a própria a desistir dos bens que não lhe pertenciam, dizendo que fora ser criada de servir para não ter parte nos bens que seus parentes haviam roubado à nossa casa.
Meu pai, depois que abraçou os velhos, loucos de alegria, perguntou se Rosa era viva. Minha avó, a chorar, fez o elogio da moça e pediu ali logo ao filho que lhe desse uma tença para ela não precisar de servir.
Meu pai, que é este venerando velho que vem agora entrando...
O Sr. Bento Gonçalves chegou neste ensejo, enchendo de tabaco a pipa do seu requeimado cachimbo de barro, e disse todo riso:
- Não me chames velho para me chamares venerando, meu rapaz!... Velhos são os trapos.
O padre continuou, sorrindo:
- Meu pai respondeu a minha avó que ia falar com o vigário a respeito da tença de Rosa.
- E tua avó - atalhou o velho - disse-me que não era mister falar ao vigário para isso; mas eu sempre teimei por ir ao vigário, que era um santo homem, que abria o Céu a toda a gente, menos aos Franceses e aos amigos dos Franceses. Ralhou-me muito e confessou que ele à sua parte matara dous...
- Está bom, meu pai - interrompeu padre João -, perdoemos aos mortos...
- Pois sim, o vigário e os franceses lá estão em cima... ou em baixo, Deus sabe onde eles estão... O caso é que...
O tabaco do cachimbo não ardia, e o Sr. Bento Gonçalves sorvia no tubo, e comprimia com o dedo o brasido pouco reluzente da pipa, operação que o demorava no remate da história, que padre João concluiu assim:
Meu pai arranjou os seus papéis e foi a Carrazedo de Montenegro buscar a criada dos lavradores, com quem casou, e de quem sou filho, eu e aquela moça que o senhor veria na cozinha.
Aqui tem a história, que veio a propósito deste livro, que meu pai decerto nunca mais viu desde o dia...
- 9 de Abril de 1809 - disse, profundamente pensativo, o velho.
Fitei nele os olhos e vi-o chorar.
- Pesa-me de ser a causa involuntária dessas lágrimas... - disse eu, consternado da súbita mudança que fizera o semblante do ancião.
- Estas lágrimas - disse ele - são frequentes nos meus olhos. Estou que a minha Rosa as vê do Céu e diz ao coração de meus filhos que mas enxuguem!
A este tempo, padre João tinha as mãos erguidas sobre o seio e os olhos no espaço azul do céu que se via através da janela. Orava, talvez, à santa que lhe dera no leite a sua nobre alma.
E eu sentia uns calafrios de religioso entusiasmo, como ainda agora os sinto, recordando esta cena dos meus dezassete anos.
Saí à tarde de Pençalves; e, do alto da serra do Mezio, muitas vezes voltei o rosto para aquela montanha e disse comigo: «Se eu tivesse nascido no seio daquela família!...»
Porto-Junho de 1861
Nono Casamento
Ter um olho no Céu, outro na Terra.
P. Manuel Bernardes (Silva)
Em 1557, vizo-reinava na Índia Martim Afonso de Sousa, antecessor de D. João de Castro.
Naquele tempo, os mouros do reino de Balagate, acaudilhados por Acedacan, o mais grado da corte do Idalxá, amotinaram-se, conclamando rei o príncipe Meale, que vivia desterrado em Cambaia, por sentença do usurpador, sobrinho dele.
Os conjurados deputaram embaixador ao nosso vizo-rei a proporem-lhe as vantagens que adviriam às possessões portuguesas se o governador recebesse em Goa o príncipe mouro e o coadjuvasse na restauração do reino usurpado.
Fez-se logo de vela uma bem equipada fusta, que trouxe para Goa o Meale e sua família.
O Idalxá, cônscio da protecção, negociou com os portugueses residentes na corte dele a deslealdade do vizo-rei, oferecendo, em troca do príncipe, as terras de Salsete e Bardês.
Debatida foi em conselho a infamante proposta. «Era muito indigna a entrega da fidelidade portuguesa», diz o cronista Francisco de Sousa (2), «e assim se acordaram em que o Idalxá largasse as terras prometidas e o governador pusesse o Meale em parte onde não pudesse ocasionar receios.»
Conchavou-se o mouro, entregando Salsete e Bardês, com o seu rendimento anual de cinquenta mil cruzados. O governador, porém, velhaqueando com a mestria em que primaram na Ásia os Portugueses, andava com o príncipe de passeio entre Goa e Cananor, ameaçando assim, segunda vez desleal, a seguridade do rei intruso. Instava este, no entanto, pelo cumprimento da palavra, e o vizo-rei tergiversava, explorando a ganância da sua deslealdade, até que enfim o Idalxá insofrido prendeu os portugueses que demoravam por Balagate.
Neste conflito, Martim Afonso, fraco para desforçar-se briosamente, socorreu-se de novo à perfídia diplomática, prometendo enviar o Meale para Malaca, o que nunca fez, e ficaram nossas as terras, Deus sabe com que direito.
De muitas destas proezas nos herdaram nossos avós a glória. A opulência, auferida delas, essa sumiu-se, tocada pelo dedo da Providência.
Acabou o enfadoso exórdio deste romancinho, que vai agora entrar por história mais sua, mais do seu jeito e do sabor das senhoras, que, certo, não apuram a sua cortesia à condescendência de virem aqui reler o que já conhecem do seu João de Barros e Lucena.
Tinha uma filha o príncipe sarraceno. Seria linda ela? Ai!, se linda! Como não seria linda, se era agarena e princesa? Donzela de galharda presença e subtil engenho, a diz o jesuíta croniqueiro. E o mais que podia dizer o santo varão.
Que nome tinha a moura não reza o padre.
Seria Leila, como a de Giaour?
Zuleika, como a filha de Giaffir?
Medora ou Gulnara, como as infaustas amantes de Conrad?
Zaíra ou Alzira, como as espirituais criações de Voltaire?
Não se sabe. Devia de ter um nome de musical sonido, um nome daqueles muitos que, só no Oriente, articulam lábios aromatizados pelo incenso do nardo e do beijoim.
Era a casa do rei mouro contígua ao Colégio dos Jesuítas.
À hora em que os catecúmenos saíam do colégio, entoando antífonas, assomava na gelosia a peregrina cabeça da princesa, que toda se alheava nos arroubos da melopeia sagrada. «Ao som da música», diz o cronista, «lhe foi o Espírito Santo, como divino encantador das almas, penetrando suavemente o entendimento; e, começando ela a reflectir sobre a significação das palavras, enxergou, como por vislumbres, alguma cousa maior naquelas cantigas do que achava no seu alcorão.»
Não concordo com o padre, e logo se verá o porquê. Com o Espírito Santo colaborou um outro espírito, cuja essência, as mais das vezes, no jargão dos casuísticas, é a armadilha de Satanás.
Lá vamos.
Do outro lado do palácio morava uma Srª D. Maria Toscana, matrona de grandes partes e muito fervor em reconduzir ao coro dos serafins a formosíssima princesa, que se lhe afigurava a ela um anjo desgarrado. Neste intuito, azando-se-lhe ensejo de falar do balcão à moura, praticava com ela, a ocultas, matérias religiosas conducentes à catequese e baptismo; porém, a seu pesar, confessa o padre: «Como na discípula havia mais subtileza para duvidar que na mestra sabedoria para resolver.., foram-se dilatando por espaço de um ano as esperanças de uma e os desejos da outra.»
De ver é o que o fogo do Espírito Santo não entrou muito adentro no coração da moura, senão a Srª D. Maria Toscana argumentaria com razões teológicas de força, e tais que as fábricas do profeta de Medina não embicassem nas claríssimas verdades do nosso dogma.
Tinha a fidalga goana um irmão, capitão de Cananor, chamado Jorge Toscano.
Mui gentil de sua presença devia ser o moço, que operou no ânimo revel da sarracena a mudança religiosa que o doutor angélico e o argutíssimo Scoto não vingariam com a sua formidável dialéctica. Piamente cremos que a divina graça não se desdenha de tomar como instrumento de suas vitórias sobre o espírito das trevas um bizarro, valente e aventureiro galã, e até mesmo um pouco desempoado, como devia de ser um capitão de Cananor.
A Srª D. Maria Toscana, com a sua virtude sempre de olho à salvação da alma da sua real vizinha, é bem de crer que cedesse ao mano o balcão nos momentos furtivos, em que lhe era dado praticar com a moura. As noites em que se avistavam, o apóstolo e a catecúmena, eram as noites de Junho, as mais lindas e aromáticas da Ásia, noites de cismar e amar, de elanguescer e sentir que a natureza é mestra de muitas sensações maviosas, que muitos naturalistas imputam ao Demónio, e eu também.
Foi o caso que, na vigésima oitava noite de Junho, a neta de Agar resolveu fugir de casa para baptizar-se. Deu-se traça à descida da princesa por uma escada de corda, a flui de passar da rua logo à igreja. Foi avisado o reitor do colégio, discreto jesuíta, que não aprovou o alvitre, por muito arriscado, menos decente e bastante atentatório do respeito devido à casa de el-rei. Acordaram em que a moura mandasse ao governador uma jóia, para que este a mostrasse ao príncipe, como sinal de que sua filha requeria o baptismo. Recebeu a vizinha a jóia, e com ela recado ao governador, dizendo «que ela, filha dum rei e prometida por mulher a outro rei, lhe mandava aquela jóia em prenda de seu amor para com Jesus Nazareno e para que a pudesse apresentar a el-rei, seu pai, em testemunho e fé de como resolutamente queria e com muitas instâncias pedia o santo baptismo».
Piedosa mentira! A princesa começou o seu acto de fé por uma travessura, que, a juízo das tolerantes leitoras, se lhe deve perdoar, para que Deus nos perdoe. Aquele grande amor a Jesus Nazareno, consoante o ela disse, ou o cronista por ela, não resistiria decerto à averiguação de algum céptico estouvado que quisesse corrigir a crónica, emendando para «Jorge Toscano» onde diz «Jesus Nazareno». Eu para mim tenho que o verdadeiro Deus está com o verdadeiro amor; que é de ambos a alma anelante de um; e que só o padre Francisco Rodrigues, reitor do Colégio de S. Paulo, podia duvidar disto, e o leitor também, se quiser.
O governador, como recebesse a prenda, tirou do dedo um diamante preciosíssimo, o qual remeteu à moura, protestando «que não era recompensa da sua jóia, mas um seguro de como, em nome de el-rei de Portugal, seu senhor, a recebia debaixo da sua protecção para a servir, defender e tratar com o respeito devido à soberania do seu sangue».
Decorridos poucos dias, apeou o vizo-rei, com grande e luzido préstito, à porta do Meale. O mouro, maravilhado da honrosa visita, desceu ao pátio a recebê-lo. Feitas as cortesias, disse o vizo-rei clara e concisamente:
- O motivo da minha vinda é levar a princesa que de sua livre vontade quer ser cristã. Siga Vossa Senhoria o bom exemplo de sua filha, ou deixe de a impedir, porque será baldada qualquer diligência.
O rei de Balagate, temperando a dor com a cortesia, respondeu:
- Não posso acabar de crer como Vossa Senhoria saiba mais da tenção de minha filha que eu mesmo, que sou pai. Pela fidelidade portuguesa lhe rogo que me não tire uma prenda tão cara, com as mesmas mãos de que vim valer-me, debaixo de toda a confiança, para recobrar a coroa.
Dito isto, rompeu em pranto desfeito.
Prosseguiram num diálogo em que a ternura e direitos paternais iam de vencida pelo direito da força, enquanto D. Maria Toscana e outras graves matronas entravam nos aposentos da princesa.
Vem agora uma cena cómica desluzir a gravidade de tudo isto.
2 - Oriente Conquistado, parte 1ª.
Logo que as matronas entraram na recâmara da princesa, saiu esta de corrida arrebatada e lançou-se arquejante nos braços da Toscana.
Depós ela veio a rainha, com as suas damas, formoso cortejo de mouras, qual delas mais guapa e mais pálida de espanto ou escarlate de ira.
Um criado entrou a segredar à rainha o debate em que ficavam o rei e o governador.
Palavras não eram ditas, que a velha as interrompeu em gritos, e lançou-se à filha, tirando por ela raivosamente dos braços da vizinha, que se viu entre a cruz e água benta com os repelões da sarracena.
Isto tudo eram carícias em comparação dos trabalhos que estavam guardados às portuguesas naquela casa de infiéis, cuja sanha lhes estava dentro assoprando o cão tinhoso de Mafoma.
Eis que uma caterva de mouras, com os punhos cerrados e os olhos a fuzilarem coriscos, entra na sala. Aqui foram elas! As portuguesas, conquanto dignas irmãs das intrépidas matronas de Diu, eram só quatro, e as mouras muitas. Num abrir e fechar de olhos, a Srª D. Maria Toscana não tinha bocado de capa, nem laço no toucado. As outras espirravam sangue pelo nariz, e uma já se debatia nas agonias do trespasse, afogada entre as mãos varonis duma corpulenta açafata da rainha de Balagate!
Desta vez o estandarte das quinas invencíveis foi sovado aos chapins do femeaço mourisco; mas que lindas não deviam ser aquelas inimigas! Como o profeta se enamorou delas naquela hora! Quantas Brites de Aljubarrota, homicidas brutais e tredas, eu trocaria por uma daquelas valentes mocetonas da região do fogo!
Ouviu-se o alarido nos pátios do paço. O governador acudiu à sala, e a muito lidar pôde subtrair as quatro fervorosas e atagantadas damas debaixo das ismaelitas, que à porfia as esfarrapavam e espezinhavam.
Neste comenos, a princesa lutava com a mãe, que a levava a rojos para dentro; e logo que pôde, com a chegada do vizo-rei, desapressar-se das garras maternas, fugiu escada abaixo, e amesendou-se a suar num riquíssimo palanquim. As escalavradas portuguesas fizeram o mesmo, e a comitiva partiu, abrindo passagem por entre as massas do povoléu.
Um grupo de mourinhas corria com doridos clamores atrás da sua princesa. Iam as coitadinhas dizendo que também queriam baptizar-se com a sua senhora; mas os pajens, que as não percebiam, mimosearam-nas com os contos das lanças, afugentando-as, excepto duas e um mouro de tenros anos, os quais também se baptizaram.
O vizo-rei ia cortejando a princesa, a pé, rente com o seu palanquim.
Entrou o préstito em casa da Toscana, onde a catecúmena foi depositada. Diz o cronista que se não podia buscar aia mais virtuosa nem mais fiel depositária; e, por outra parte, pondera o padre, não podia ser pior a eleição da casa, que, pela grande vizinhança com a de el-rei, pôs a donzela em manifesto perigo de se perder, se Deus com a eficacíssima graça a não despisse de qualquer outro afecto que não fosse o, da própria salvação.
Eu também creio naquela graça eficacíssima, mediante o galhardo Jorge Toscano, que a Providência interpusera às lamentações da rainha moura e aos ouvidos embelezados da amorosa princesa. Debalde a afligida mãe vinha aos balcões do palácio; cortados os cabelos e o rosto ferido, invocar a filha com os mais maviosos epítetos da sua ternura. Nem ainda lhe valeu a comovê-la o cair mortalmente enferma, nem a desesperada deliberação de suicídio lento, que tomara o consternado pai. Tudo inútil para disputar à graça eficacíssima, como diz o padre, o coração de uma filha, que apenas «chorava por ver a incurável cegueira de seus pais tão obstinados na maldita seita de Mafamede».
O venerável Francisco Rodrigues, reitor do colégio, ia diariamente instruir a princesa nos mistérios da nossa fé, a tempo que na cidade se faziam os preparativos para a solenidade do baptismo. Arvoredos e flores, riquíssimas telas, arcos triunfais, bandeiras, estandartes, tudo se combinou em opulência e gosto para o realce da festa. A fidalguia goana liberalizou-se em pompas e gastos. Tudo quanto o engenho pôde explorar dos ricos veios do Oriente aí compareceu e deslumbrou os aparatosos festins dos príncipes asiáticos. Cada fidalgo pompeava à compita na comitiva dos pajens, qual deles mais lustroso no variado e riqueza das librés.
Após um real banquete dado pelo vizo-rei, saiu processionalmente a catecúmena para o templo. Na frente iam soando coros de música, intervalados por festivo instrumental de guerra. Seguia-se a princesa num vistoso palanquim, trajada à portuguesa, e com insígnias de rainha; porém, reza a crónica, «não quis levar sobre si os colares e jóias que furtivamente levou de casa de seus pais, como Raquel os ídolos de ouro de casa de Labão, por serem de lavor mourisco, e julgava que mais lhe podia servir de desar que de ornato».
No que toca a jóias e colares, temos a articular que os Jesuítas eram muito menos escrupulosos em matéria de furto, que o nosso actual código penal. Porquanto, Provará: 1º - que a princesa de Balagate fugiu da casa paterna, levando consigo jóias e colares de que não podia dispor sem consentimento de seus pais; e, além disso, Provará: 2º - que D. Maria Toscana, recebendo a fugitiva com as jóias roubadas, constituiu-se receptadora de furto; sendo que: Provará: 3º - que bela ansa para formar a reputação dum jurisperito garraio não dava o libelo!
Se fosse hoje, o rei de Balagate querelava necessariamente. A Srª Toscana ficava pronunciada. Agravava para a Relação e tinha de dar os colares e as jóias à justiça para ser despronunciada. E era. Mas, como o delito não é dos que têm fiança, tinha a respeitável matrona de suspirar muitas vezes na cadeia por aqueles tempos de sã virtude em que as filhas, protegidas pela moral da Companhia de Jesus, podiam fugir aos pais e roubá-los impunemente de acordo com as vizinhas.
Ate-se o fio.
Entrou a procissão no adro dos Jesuítas. Desmontaram os cavaleiros, e saíram ao mesmo tempo do seminário alas de meninos com as cabeças grinaldadas de flores, e ramos de palmas na mão, à frente da triunfal procissão, entoando os versos que os de Jerusalém cantaram a Judite, nos áditos de Betúlia:
Tu gloria Jerusalem! Tu laetitia Israel! Tu honorificentia populi nostri! Quia fecisti viriliter, et confortatum est cor tuum.
Aqui, de verdade, havia só a última frase da cantoria. Que a princesa trazia o coração menos mal confortado, isto é, de fé, e até de razão, que são coisas em si tão desconcertadas como o confronto da moura com a meiga criatura que degolou Holofernes, pobre homem, que não oferecia mais resistência que um odre de vinho do Porto.
Saíram também os jesuítas com os santos óleos e o ritual. O patriarca D. João Nunes Barreto vinha na frente e ministrou o Sacramento à catecúmena. A rainha dos anjos foi a madrinha, e padrinho o vizo-rei. Puseram-lhe o nome D. Maria de Além-Mar, nome de tanta graça e poesia que nunca eu o vi mais lindo! Faz não sei que saudade o pronunciá-lo!
Finda a solenidade, houve grande algazarra de artilharia, campainhas, charamelas, atabales, buzinas, sacabuxas e muitos outros instrumentos de sopro que só de enumerá-los se arrepiam os nervos.
Daí voltou D. Maria de Além-Mar para casa da Srª Toscana, e saiu logo ao balcão para ver na rua o vizo-rei jogando as canas com os demais fidalgos, e as outras variadas folias que a gente miúda executava. Daí a pouco mandou o vizo-rei cumprimentar a afilhada com um título de mil pardaus de tença, que orçaria por trinta mil réis da actual moeda. Não era pouco para o estado de uma rainha. Ao príncipe dos poetas daquele tempo foi-lhe depois taxada em menos de metade a paga dos serviços de vinte anos, de um olho, e d'Os Lusíadas. A casa da princesa foi alfaiada a expensas dos fidalgos de Goa, com todos os primores das artes daquele tempo.
E muito de notar-se a concisão do cronista na mais aparatosa cena do drama da princesa moura. Diz ele: «Casou com Jorge Toscano, irmão de Maria Toscana, que foi capitão de Cananor.»
Enquanto a mim, o padre Francisco de Sousa sabia melhor que eu o enredo da história; mas entendeu que o contá-la exactamente era desluzir a graça eficacíssima e dar ao Demónio o galardão de ter cooperado para tal desfecho, por intermédio do amor, seu lugar-tenente em muitas das conquistas que ele faz para o reino escuro.
Jorge Toscano não ganhou vantagens com o entroncar-se na real estirpe de Balagate: viveu e morreu capitão de Cananor; mas feliz como o não tinham sido os reais avós da sua sempre querida e extremosa princesa.
A Companhia de Jesus fez uma valiosa, conquista ocasionada pelas festas deste baptismo. Foi o caso que, na corrida das canas, um fidalgo por nome Luís de Mendanha caiu do cavalo, e tal peso houve do desar, que entrou na Companhia, tomando como castigo de cima aquela correcção à sua prosápia e vaidade: e bom foi assim, que morreu santamente. Por qualquer cousa se fazia um frade e um santo naquele tempo. Hoje, da queda de um cavaleiro o pior que pode resultar é uma perna quebrada - acontecimento muito menos prejudicial que um jesuíta.
Porto - Maio de 1861
Décimo Casamento
...Des jeunes gens comme il faut.
E. Souvestre (La Goutte d'eau)
O brigadeiro Jácome Pimentel, convencionado de Évora Monte, retirou-se para o seu solar de Vale Escuro, um quarto de légua ao sul de Ponte de Lima.
Como a desgraça, às vezes, se deleita em verter fel nas chagas que abre, o brigadeiro enviuvou, quando no coração da esposa julgava ter achado porto onde salvar-se do naufrágio da política.
Restava-lhe ainda um filho de cinco anos. Concentrou na criança o amor que não tinha saído nas lágrimas. Abraçou-se ao tenro esteio, como quem perdeu esperanças noutro. Fugia para ele quando o terror de sua soledade o perseguia. Era, ao mesmo tempo, sublime e melancólico ver o militar de barbas e cabelos já arraiados de branco aconchegando ao peito o filho e, na mudez sombria com que o fitava, pedir-lhe amparo à vida e vigor ao coração desfalecido.
Júlio chegou aos dez anos, com escassas lembranças de sua mãe; e, dos dez anos em diante, nenhumas. O pai cessou também de falar-lhe nela com os olhos húmidos.
Fizera o tempo seu providencial oficio, que, em tantos casos, mais parece milagre que natural efeito. O menino esqueceu a mãe quando o pai se calou; o viúvo esqueceu a esposa quando o hábito da solidão lhe deu segunda existência, não feliz, mas revezada de dissabores e alegrias. Cinquenta anos teria nesta época o brigadeiro.
Filho criado sem mãe, afeito a gozar-se em seus caprichos pueris, raro contrariados pelo afecto ou pela indolência do pai, Júlio, aos dez anos, reagia ao mando, já não com lágrimas comoventes, mas com repelões e muitas vezes com desprezos. «A culpa foi minha», dizia a si mesmo Jácome Pimentel. «Devera torcer a vergôntea a tempo. Agora é preciso encaná-la com jeito, que não vá ela quebrar...» Este estilo de arborização não vingou em Júlio. Cada vez se rebelava mais, cada vez puxava mais ao pendor contrário daquele que o pai lhe queria dar com brandas inflexões.
«Veremos o que faz a disciplina do colégio», disse o brigadeiro; e mandou, a grande pesar seu, Júlio para um colégio do Porto, recomendado aos mestres a possível indulgencia com os vícios da educação, que ele, cego do seu amor a um filho único, julgara ser, se não boa, ao menos sem funestos resultados.
Cuidava Júlio que o colégio era um congresso de meninos que comiam, dormiam, jogavam o murro e rasgavam as jaquetas. Quando o mestre de primeiras letras o quis aperfeiçoar na leitura para o passar à gramática, o educando estranhou a imperiosa sem-cerimónia com que foi chamado à lição; mas, ainda assim, tomou o caso em brincadeira, e provou-o no dia seguinte, não sabendo mesmo dizer a que página do «D. João de Castro» estava a sua lição. Repreendeu-o o mestre, e esperou o efeito da primeira admoestação, suave a não poder mais. Ao outro dia, o menino, chamado a dar conta do seu estudo, foi, todo risos, perguntar ao mestre que lhe explicasse - naquele mapa, que o leitor recorda, onde vêm delineadas as fortificações de Diu - o que era aquilo. Reparou o professor, e viu que D. João de Mascarenhas tinha os olhos furados e o rosto crivado a alfinete.
- Para que fez isto, Sr. Júlio? - perguntou o mestre severamente.
- Foi a ver como parecia - respondeu o menino.
- E parece-lhe bem?
- Também fiz o mesmo ao Coge Sofar... - tornou Júlio.
- Fique entendendo que eu costumo premiar estas habilidades com uma palmatória, Sr. Júlio. Não caia noutra... Vamos à lição.
Júlio fez-se escarlate, depôs o livro sobre a banca e meteu as mãos nas algibeiras, com trejeitos desabridos.
- Estudou? - disse o mestre, oferecendo-lhe o livro com arremesso.
- Não, senhor - disse o aluno, sacudindo a cabeça.
- Amanhã - redarguiu o mestre-, se me não der a lição dobrada, tem o menino três dias de castigo. Não sairá do seu quarto à hora que os seus condiscípulos forem brincar. Vá sentar-se.
Na tarde desse dia, Júlio fugiu do colégio, e vagou toda a noite nas ruas do Porto.
As duas horas da manhã, uma patrulha o encontrou dormindo nas escadas do Hospital de Santo António. Interrogado, respondeu dizendo de quem era filho e queria ir para seu pai. Foi recolhido Júlio à próxima estação e depois conduzido à autoridade, que o hospedou em sua casa, até receber resposta do brigadeiro. O aflito pai foi imediatamente ao Porto, agradeceu a hospedagem à autoridade; e, convencido da inutilidade de o forçar ao colégio, levou consigo o filho para casa.
Dos onze aos dezasseis anos melhorou o temperamento de Júlio, segundo o modo de ver de seu pai. Estimulado pelo exemplo doutros meninos nobres das vizinhanças, que se preparavam para cursarem a Universidade, Júlio aceitou mestres e estudou o necessário para fazer exames e matricular-se em Filosofia, por ser a faculdade menos exigente de preparatórios. Logo desde o começo do primeiro ano lectivo o filho do brigadeiro se fez distinto pela desordem da vida e desprezo absoluto dos livros. Em compensação, deu de si um primoroso tocador de viola, um bailarino de bordel, onde era o primeiro em trejeitos lúbricos, e tais que lhe deram um nome, que orçava por uma glória, na academia.
Claro é que, no fim do ano, apareceu Júlio Pimentel em casa sem exames, nem livros, nem camisas. Depós ele chegaram, subscritadas ao pai, cartas do negociante que lhe dera fiado o pano para três uniformes académicos, do estalajadeiro que o tivera em casa, do alquilador que lhe alugara cavalos, do boticário que lhe fornecera as tisanas, e finalmente do sapateiro, a queixar-se não só do descaminho de dez pares de sapatos, mas também da filha, moça honesta, que o estudante seduzira e abandonara.
Confluíram de chofre todos estes desgostos sobre o pai, e adoentaram-no.
Repreendeu ele sem aspereza o filho por causa das coisas menores; mas, ao receber a carta do sapateiro, indignou-se e exprobrou-lhe amargamente a libertinagem, obrigando-o a declarar a verdade sobre tal sucesso. Júlio contou o que tinha sido, sem desmentir o credor de dez pares de sapatos. A moça, segundo ele, fugira ao pai, e, desamparada do amante, saíra de Coimbra para Cantanhede, onde estava servindo. Jácome encarregou o seu correspondente em Coimbra de embolsar o sapateiro, chamar a filha e dar-lhe duzentos mil réis, para começar modo de vida. Os quais duzentos mil réis entraram com a filha pródiga em casa do pai, que não matou o novilho mais gordo, mas fez – ensopar um capão da Cochinchina, e bebeu algumas garrafas do da Bairrada para celebrar a reconciliação: tanto pôde a natureza nele, e os duzentos mil réis também, se havemos de dar ouvidos aos vizinhos invejosos dele e às vizinhas invejosas dela. A moça, poucos dias depois, casou; mas este não é o casamento que se vai aqui historiando.
Vivia Jácome Pimentel entranhadamente desgostoso e já malquisto de Júlio. Não desafogava em queixumes nem censuras; mas, na mudez da sua dor, lá se ia elaborando na alma uma lenta aversão, que o rapaz, por sua parte, acirrava a toda hora. Umas vezes ia para Ponte, e lá ficava dias e semanas, em camaradagem de moços fidalgos estragados. Outras passava à Galiza e contrabandeava em charutos, caprichando em iludir a vigilância do fisco, ou resistir-lhe a braço armado, bandeando-se com homens já peritos naquelas perigosas empresas. E o velho, vexado pelos avisos que recebia, a tal ponto de ira subiu uma vez que espancou o filho. Júlio estranhou o feito e pasmou no pai olhos em que fuzilava a cólera. O brigadeiro compreendeu-o e duplicou a sova. O moço fez um gesto defensivo, que parecia ofensivo também. O militar enfureceu-se, transfigurou-se, e de tal sanha arremeteu ao filho que o teria retalhado com uma espada se ele se não lançasse por uma janela.
Nesse mesmo dia, Jácome chamou alguns parentes próximos para parlamentarem com o rebelde. Mandou-lhe, por eles, entregar a legítima de sua mãe, que era uma quinta a meia légua distante e alguns valores em baixela de prata e jóias de subido preço. Feito isto, contra os prudentes juízos da parentela, Júlio saiu da casa de seu pai e achou-se bem na de sua mãe.
As lágrimas que o velho chorou, contemplando o retrato de sua esposa, estagnaram-se quando o coração, esvaziado delas, parecia encerrar apenas o sedimento do tédio da vida, em que se gera a peçonha que mata.
Supunha todo o mundo que Júlio dissiparia, em pouco tempo, o património de sua mãe. A lógica das más cabeças não anda sempre às ordens de todo o mundo. O filho do brigadeiro, aos vinte e dois anos, conservava a sua quinta desonerada, a sua baixela e as suas jóias.
Expliquemos a maravilha.
Sabem que ele se iniciara no contrabando dos charutos e gostara mais os prazeres do perigo que o lucro da mercancia. Depois, instalado em sua casa, continuou a contrabandear, mas não em tabaco: aventurou-se a maior ganância, e tirou-se a limpo e prosperamente, na passagem de sedas, veludos, fitas, panos, quinquilharias, tudo que podia haver de Espanha e França. Desde as praias de Caminha até Leça da Palmeira, Júlio Pimentel tinha estações de desembarque e catraias com homens de sua confiança para abordarem o navio conhecido. O foco, porém, do seu tráfico era o Porto. Aqui residia ele o mais do tempo, e deste consumia o máximo na convivência de famílias de primeira plana, e o restante na veniaga tão astutamente cautelosa que nunca se lembrou algum dos seus amigos das duas Assembleias, ou do botequim da Batalha ou S. Lazaro, ou dos mais aristocratas salões do Porto, que o filho do oficial-general legitimista fosse o mais fidagal inimigo das alfândegas.
No Porto se namorou ele duma menina, que não vira nos bailes, mas encontrara em modesta obscuridade na companhia de seu pai, o tenente-coronel Tavares, também convencionado em Évora Monte. Vivia o empobrecido oficial numa quinta de empréstimo, uma légua distante do Porto, ao sopé duma montanha, onde alveja a capelinha de S. Gião, entre dous pinheiros bravos, que parecem sentinelas ali postas por Deus ao lado do humilde tabernáculo duma cruz grosseira, adorada dos corações também grosseiros que têm fé com ela.
O tenente-coronel concorrera casualmente com o filho do seu antigo amigo, o brigadeiro Pimentel, em casa de um fidalgo amigo de ambos. Pensou Tavares que o filho do amigo devia ser honrado como o pai o tinha sido na juventude e convidou-o a passar um dia no seu campestre refúgio. Foi Júlio à quinta de S. Gião, e viu Sofia, vestida de branco, com o seu chapéu de palha, arrancando ervas dum canteiro, em que vinham abrolhando os bolbos das suas túlipas e floresciam jasmineiros.
Belos vinte e cinco anos os de Sofia Tavares! Tinha a elegância das compleições delicadas, mas vivazes. Alvíssima, sem fibra rosada nas faces. Olhos azuis, não do azul sereno do céu, mas vivacíssimos como o azulado da flama. Ondeavam-lhe até ao anel da cintura os cabelos negros e lustrosos. Tinha tudo que falta às belezas estatuárias, em que se pascem os olhos do homem, mais artista que apaixonado. E tinha, além de tudo, o que eu não sei se mulher alguma já teve: a adorável ignorância da sua formosura.
Está dada a razão por que Júlio amou Sofia. E preciso dizer agora o que foi causa de Sofia amar Júlio. Essa é mais singela ainda: amou-o porque não tinha amado alguém.
Um poeta diria que ela amava a memória de sua mãe, que amava as suas flores, que amava o anjo pudico dos seus sonhos virginais. Eu sou de parecer que a poesia faz bem em dizer isso; mas se os poetas, desde Horácio, venceram o pleito de mentir livremente e usar todas as liberdades conducentes ao belo, deixem aos prosadores o alvedrio de dizerem a verdade, sem ofensa das ilusões do pudor.
Sofia orava por alma de sua mãe, acariciava ternamente seu pai, esmerava-se no cultivo das suas flores, tinha sonhos alegres e tristes como toda a gente; mas amar, só amava Júlio. Desde então, desde aquela primeira visita, é que as flores e os sonhos lhe lembravam Júlio; tudo lhe era simbólico; tudo vestira de gala para ela, ou o seu coração voltara uma face nova para tudo.
Apaixonou-se Júlio da mulher, e da novidade. Em pouco está o regenerarem-se os espíritos que funcionam na vitalíssima especialidade do amor. Não é a mulher; muitas vezes são as circunstâncias que fazem o milagre. Sofia, numa sala, seria um ornato da sociedade; na solidão, entre as suas flores, era uma jóia da natureza. Nas festas estrondosas poderia ser rainha; no ermo silencioso, aos olhos do homem aturdido e enjoado devia de parecer, não direi anjo - que está desconceituada a imagem pelo abuso das profanações -, mas... mulher, sim, mulher como eu queria que todas elas fossem, para ser lindo o mundo, e aceitável um só ano do céu de Mafoma, em compensação de cem anos do inferno dos teólogos romanos.
Amiudaram-se as visitas, e o tenente-coronel quis sustá-las. Júlio adivinhou-lhe a vontade e antecipou-se a aquietar-lhe os sustos, pedindo-lhe a filha. Ora o velho, conquanto ambicionasse riquezas para Sofia, tinha o perdoável egoísmo de não querer empobrecer-se de todo por amor da filha: a sua riqueza era ela. Pensar em perdê-la, antever a solidão, era morrer. Negou-lha, portanto, com lágrimas suplicantes de pai - não era bem negar-lha, era antes pedir-lha para a sua velhice, porque bem sabia ele que Sofia amava Júlio.
Mas a predestinada - sem que a devamos culpar por isso - não entendeu o amor do pai, nem o achou racional. Até a paixão dos vinte e cinco anos, e a primeira, se atreve a negar razão a um velho de sessenta anos!
Deixou Júlio de ir a S. Gião, de modo que a luz do dia pudesse testemunhar a malícia dos seus projectos. De noite é que ele ia. Abriam-se-lhe as portas. O mais sagrado asilo daquela casa não lhe era defeso. Os passos do crime rumorejavam debaixo daquele tecto, que até então estivera como protegido pelos anjos. E o velho dormia serenamente com a fronte encanecida sobre o regaço da suposta inocência de sua filha.
Decorreram dois meses. As flores do jardim depereceram de sede e mirraram-se nas suas hastes. A alvura de Sofia demudou-se em palidez. As auras das tardes de Agosto não brincaram mais com os anelados cabelos da sua amiga. As avezinhas, que a conheciam e lhe saltitavam às migalhas da sua mão, chamavam-na pousadas sobre as laranjeiras do jardim. E ela não vinha, e ninguém havia que a chamasse para o amor das suas aves. Nem o velho mais abriu a janela do seu quarto, enramada com um docel de maracujás. E que num leito se finava o pai e noutro se deixava morrer Sofia. E que o velho tivera a evidência do crime e Sofia o extremo desafogo da confissão, depois de abandonada.
O tenente-coronel Tavares morreu abraçado à penitente.
Estas descrições são rápidas, porque as grandes desgraças, quando vêm, são assim.
O brigadeiro Jácome Pimentel recebera estas linhas de Tavares:
Teu filho, protegido com o teu nome, entrou em minha casa e matou-me diante da minha única filha desonrada. Tu sabes como eu amava a minha filha. Não tens que admirar a minha fraqueza de morrer. Queria viver para ampará-la; mas amanhã morrerá ela. Um tal filho infama o teu nome, Já come. Deus nos vingara... a mim que lhe confiei a minha honra, e à pobre menina, que não conhecia o mundo.
Partiu no mesmo ponto o brigadeiro para o Porto e chegou a S. Gião, quando o pobre saimento do seu camarada entrava na igreja. Foi à casa do morto e viu Sofia entre algumas aldeãs, que choravam com ela. Chamou-a de parte e disse-lhe:
- Não conhece decerto Jácome Pimentel, o camarada de seu pai.
Sofia enfiou e recuou tremente.
- Não me fuja, menina: abrace-me, que o seu segundo pai sou eu.
A infeliz inferiu destas palavras um pensamento loucamente celestial, e ergueu as mãos e dobrou os joelhos diante do venerando amigo de seu pai. Era tão natural cuidar ela que ser filha do brigadeiro era ser esposa de Júlio!...
- Hoje mesmo - continuou Jácome Pimentel - há-de sair daqui, pernoitar no Porto e seguir amanhã para minha casa.
Assim se fez.
Ousou Sofia perguntar ao brigadeiro por Júlio.
- Não sei de quem fala - disse ele.
- Pois Vossa Excelência - acudiu ela alvoroçada - não é o Sr. Brigadeiro Pimentel, pai de Júlio!
- Tive um filho com esse nome; mas não o repita que me envergonha, senhora!
E o brigadeiro mostrou a Sofia a carta de seu pai.
- Mas que destino vai ser o meu? - exclamou ela.
- Já lhe disse que era minha filha. Não me pergunte mais nada do seu destino.
Os mais graciosos e adornados quartos do palacete do brigadeiro foram dados a Sofia. As criadas receberam-na como um ente misterioso e respeitaram-na como se ali a vissem nascer. Aos amigos da casa, Sofia era apresentada pelo brigadeiro como filha do seu camarada Heitor Tavares, que lha deixara como herança, e ele a recebia como mimo da Providência dos desamparados. Mas Sofia, dous meses depois que chegou à quinta do Vale Escuro, fechou-se na sua antecâmara com o brigadeiro. A revelação que lhe fez era entrecortada por gemidos, e os olhos do velho choraram oito dias e oito noites. E nunca mais Sofia saiu à luz do dia; passeava de noite encostada ao braço de Jácome.
Saiu então do Inferno a maledicência, e disse torpes conceitos da infeliz, e enxovalhou o velho com a irrisão.
Mandou o brigadeiro pela quarta vez indagar da residência do filho. Disseram-lhe que ele chegara a Lisboa, vindo de Paris, casado com uma costureira, que se intitulava bastarda de um príncipe alemão. Como este casamento se fez não nos importa, que é outro o casamento de que se trata.
Quando tal soube, o brigadeiro disse entre si: «Das esperanças mortas nascem as grandes resoluções.»
O brigadeiro possuía as duas melhores quintas do Alto Minho. Escolheu um dos muitos que as pretendiam e vendeu-as por muito mais que o seu valor, estipulando possuí-las enquanto vivesse. Liquidou um capital cujos juros bastariam à opulência duma senhora. Comprou inscrições em nome de Sofia Tavares e entregou-lhas. Sofia lagrimosamente se recusava aceitá-las, e o brigadeiro lançou-as sobre uma colcha de linho adamascado que cobria um berço onde dormia uma criancinha de dous meses.
- São para o meu neto, para o filho da minha filha - disse ele.
A difamação já tinha um cevo onde medrar-se. Souberam da existência da criança.
A boa sociedade de Ponte de Lima dizia que o velho brigadeiro tratara de aumentar a herança que lhe deixara o seu camarada, ou lhe viera directamente, como ele dizia, da Providência dos desamparados.
Suspeitou isto Jácome Pimentel, e sofreu angústias sem nome. Seguiram-se a estas outras. Os próprios inimigos de Júlio diziam, como soubessem da venda das quintas e da compra das inscrições, que eles, sendo preciso, iriam jurar sobre a mancebia irrisória, para que Júlio, o legítimo e forçoso herdeiro, não fosse defraudado pela amante de seu pai.
Pensou o velho, e saiu para longe a aconselhar-se. Voltando, disse à mãe do seu neto:
- E preciso salvar o futuro de seu filho e a sua honra. E preciso que perante o mundo seja minha esposa. É preciso que essa criança me chame pai, perante as leis.
Sofia cuidou que sonhava: «Esposa do pai de Júlio!...» - disse ela, cuidando que a não ouviam.
- Não me compreenderia?! - tornou o brigadeiro.
- Não... - balbuciou ela.
- Esperemos - disse o velho.
E, depois deste «esperemos», passaram dous anos, e nunca mais o brigadeiro avivou memórias do curto diálogo que tivera com aquela que a sociedade chistosa denominava: a herança acrescentada.
«Não me compreenderia...», dizia ele em si, «e eu teria pejo de me explicar, não a podendo erguer à altura da minha boa intenção.»
Nesse longo espaço, uma vez única ouvira Sofia falar de Júlio. Os criados tinham sido prevenidos pelo amo de não proferirem tal nome; e obedeceram, sem vislumbrarem o segredo.
Acaso ouviu Sofia uma conversação entre duas criadas desapercebidas da aproximação da senhora. Falavam do casamento do Sr. Júlio com uma francesa, e uma das duas dizia que ouvira à criada de certa fidalga que sua ama recebera de Lisboa carta, contando-lhe o casamento de Júlio com a filha dum rei; mas que, pelos modos, era tão filha de rei como ela que contava o conto. Já se vê que a mulher acrescentava um ponto, como rigor do anexim se exige.
Afastou-se Sofia para desviar suspeitas, e logo ao outro dia enfermou com maus sintomas.
O brigadeiro averiguou a causa da recaída e ouviu de Sofia o que ele de si mesmo quisera esconder; mas, como a mentira seria inútil, o velho confirmou o que as criadas disseram e concluiu admoestando a pobre senhora a que soubesse ser mãe para ter aos olhos de Deus um merecimento, que lhe seria desconto nas faltas.
Sensibilizou-a a austeridade da exortação. A criança sorria-lhe, e amaciava-lhes as faces, e enxugava-lhe aos cabelos as suas mãozinhas humedecidas das lagrimas dela.
Isto tudo era pedir-lhe a vida.
E viveu como vive a árvore corroída de vermes, e com desbotada verdura nas vergônteas que só dão folhagem.
Jácome Pimentel viu uma funesta notícia numa correspondência de Paris impressa no Nacional de Lisboa, tocante a seu filho. Pediu esclarecimentos e soube o seguinte:
«Júlio detivera-se alguns meses em Lisboa, e voltara a Paris, onde o ocupavam negócios comerciais. Um antigo amante de sua mulher, por escárnio ou despeito, perguntara-lhe, diante de testemunhas, como estava madame la princesse in partibus infidelium. Esta mescla de línguas quer dizer que o francês fazia irrisão da real bastardia de Madame Elisa Pimental de Lippe-Schauenbourg, como se ela assinava sem rubrica nem guarda.
O português, grande contrabandista, não o era nas frases: queria que elas passassem pelo mais rigoroso fisco duma crítica ilustrada. A força de esmerilhar a intenção da ironia, apurou a análise até ao duelo, e bateu-se com o chocarreiro, que tinha tão fina graça como pontaria. Soma total de tudo é que a princesa de Lippe-Schauenbourg ficou viúva, para poder continuar a enxertia de moços de mediana prosápia no tronco dos príncipes alemães.
Recebia Jácome esta triste nova, contada com a discrição e seriedade que eu não soube dar-lhe, e, ao mesmo tempo, a Fazenda Nacional mandava tomar conta de todos os bens de Júlio, incurso nas mais graves penas de contrabando. As miudezas deste tardio descobrimento é que eu não sei contar, nem o leitor as quer saber.
O fúnebre de tudo isto é que o brigadeiro, já de muito levado a empurrões para a borda da sepultura, conheceu que a derradeira fibra esperava o derradeiro golpe.
Chamou à beira do seu leito Sofia e disse-lhe:
- Júlio morreu, Sofia... Morto estava para nós e para a dignidade... «Deus me vingará», disse seu pai... Não há vivo alguém que conheça as suas relações com Júlio. Caiu já uma sepultura sobre as duas pessoas que podiam apregoar o seu infortúnio, Sofia. Agora, saiba que está difamada, porque tem um filho, e porque vive na minha casa. Não há altivez honrosa de ânimo que aceite a rosto sereno a difamação. Quero salvá-la, e preciso justificar-me, confirmando a aleivosia. Bem vê que estou morto, Sofia. Agora é tempo de lhe explicar que eu quis ser seu marido para remediar a culpa que lhe fazia a sociedade e segurar o património do meu neto. O património do seu filho está seguríssimo hoje; mas o seu nome e o meu ficam aí expostos aos enxovalhos e vaias da libertinagem, que só perdoa aos desgraçados depois que os cobre e sepulta na lama das suas injúrias. Quer Sofia apertar a mão do seu velho amigo e dizer depois ao mundo que é viúva de Jácome Pimentel?
Sofia ajoelhou à cabeceira do leito e beijou e orvalhou de lágrimas a mão do velho.
Ao outro dia, o cura, chamado para confessar o moribundo, recebeu em artigo de morte os contraentes Jácome Pimentel e Sofia Tavares.
Sofia foi casada duas horas e deu o primeiro beijo nupcial na face já morta do seu marido.
Pergunta o leitor:
«E há-de chamar-se a isto um casamento feliz?!» Porque não? Devemos reputar felizes aqueles casamentos que se presumem abençoados pela Divina Providência.
E, se este o não foi, contem-me lá os casamentos que sabem mais dignos de serem prova para a santificação dum marido!
Porto - Outubro de 1861
Undécimo Casamento
Centuplum accipiet.
Por um receberá cem.
Evangelho
Na cadeia de Vila Real deu entrada, em 1829, um moço de vinte anos, natural de Murça. O crime do preso era ter um tio afecto às doutrinas da liberdade, afeição esta que obrigara a refugiar-se em asilo que lhe dera, no Porto, uma família liberal. O corregedor de Vila Real não contava os réus de lesa-majestade pela identidade das pessoas; tinha um sistema mais sumario: satisfazia-se com o número das cabeças.
Encontrou Francisco da Cunha na sala única da cadeia um preso de temerosa cara, olhar refalsado e minacíssimo e uma boca nunca descerrada ao riso, e raras vezes às palavras, entre um espesso bigode já ruço e tisnado em partes pelo fogo do cigarro.
- Quem é este homem? - perguntou o preso de Murça a outros do seu conhecimento.
- E o famoso ladrão de Anta. Nunca ouviste falar no Tibúrcio de Anta?
- Ouvi - respondeu Cunha, observando-o de revés. - Eu cuidei - acrescentou - que os presos políticos não estavam misturados com os ladrões.
- Mas fala mais baixo, que, se te ele ouve, faz de ti uma péla e espatifa-te contra as grades.
- O que decerto não era o melhor modo de me livrar do corregedor – tornou Francisco da Cunha.
Tibúrcio passeava dum para o outro lado naquele quadrado de vinte e cinco pés.
Ninguém lhe falava; e, sendo quarenta e dois os presos, todos lhe deixavam uma clareira para ele passear.
Francisco da Cunha encostou-se aos ferros duma janela, e dali remirava o salteador, com mais piedade que asco. Duma feita, aproximou-se da mesma janela Tibúrcio e cravou os olhos no novo preso. Francisco não pôde encará-lo muito tempo; voltou disfarçadamente o rosto e meditou nos despropósitos que um temperamento sanguinário pode causar.
- Este homem já fez mal aqui a alguem? - perguntou Cunha ao seu correligionário.
- Quase nada. Entrámos aqui dez duma assentada, estando ele cá sozinho. Hesitámos em aceitar tal companhia e requeremos ao corregedor. O corregedor mandou aqui um esbirro dizer-nos, em voz alta, que nós não éramos melhor gente que o Tibúrcio de Anta. Palavra que tal disseste, o ladrão tira a bengala da mão ao esbirro e pega a gritar que não queria tal canalha no seu quarto e saíssemos imediatamente daqui. Nós olhávamos uns para os outros, quando ele começa a distribuir bengaladas de tal pulso que, a não vir pronto o socorro dos milicianos, seria preciso que tivéssemos três cabeças cada um para ficarmos com uma para todos. Já vês que o homem é um cordeiro e nunca faz mal a ninguém, que eu saiba.
Esta notícia, modestamente contada pelo companheiro das nove vítimas, não modificou o parecer de Francisco da Cunha acerca dos despropósitos dos temperamentos sanguinários. Não tinha, porém, ele a mania frenológica desenvolvida ao ponto de querer estudar o homem, nem espreitar-lhe as bossas. O que ele fazia era desencontrá-lo simuladamente, para se forrar ao encontro dos olhos fuzilantes.
Todos receberam o jantar às suas horas, excepto Tibúrcio de Anta.
- Ele não come?! - perguntou Francisco ao seu conhecido.
- Come, quando tem.
- E não pede nada?
- Nunca.
- E quem lhe dá de comer, quando come?
- É uma irmã que pede esmolas lá na sua aldeia, ou trabalha em casa dos lavradores. Mas o que eu lhe tenho visto comer é alguma batata sem molho e algum bocado de pão negro e duro, molhado em água.
- Coitado! - murmurou Francisco da Cunha.
- Coitado! - acudiu o amigo. - Que o leve o Diabo! Se te ele tivesse sacudido o forro da camisa, não serias tão compadecido!
- Não achas tão triste - replicou o moço - estar ali aquele homem a cair de fome e a sentir o cheiro das nossas comidas?! Repara que ele nem para cá olha!
- Se te parece, oferece-lhe do teu jantar!...
- Não sei porque não!...
- Mas sempre te aconselho que leves a cara escudada com este prato de estanho.
- Ora deixa-te disso! O homem poderia rejeitar, mas não me ofendia.
- Fia-te nisso...
- Hei-de fazer a experiência. Se o homem me bater, é um estudo que eu faço.
- Um estudo!... Olha lá se o teu amor destes estudos te aperfeiçoa até ao grau de bacharel em bofetões!...
Francisco da Cunha ergueu-se, avizinhou-se de Tibúrcio de Anta e disse-lhe com voz trémula:
- O senhor faz-me o favor de jantar comigo?
Tibúrcio voltou o rosto vagarosamente, encarou no preso e disse:
- Janto, sim, senhor.
Estavam os quarenta e tantos presos pasmados no movimento de Francisco da Cunha, quando o viram tomar o cesto do seu jantar e colocá-lo entre si e o salteador.
- Falta mesa - disse Tibúrcio - mas arranja-se aqui.
E, dizendo, despejou o cesto, voltou-o de fundo ao ar e estendeu a toalha, enquanto o seu comensal despejava nos pratos o conteúdo das caçoulas.
Tibúrcio comeu com apetite e bebeu à proporção. Esvaziado o prato da última iguaria, fez o elogio do cozinheiro e louvou também a caridade do seu benfeitor. Depois ergueu-se e continuou a passear sozinho.
- Cá estou com a cara inteira e o coração contente! - disse Francisco da Cunha ao companheiro timorato.
- E tencionas fazer teu conviva o famoso ladrão, condenado à forca?
- Que dúvida?!
- Arriscas-te a trocar a convivência das pessoas de bem pela do Tibúrcio.
- Não sei porque as pessoas de bem me hão-de repelir, se eu reparto o meu pão com um homem que tem fome! Se a justiça humana o condenou à forca, a sociedade não está sobejamente vingada? Que razão há para o regozijo desta gente, se o condenado passar pelas agonias da fome antes de morrer no patíbulo? Eu sentirei muito que estes cavalheiros deixem de me falar, mas sentirei mais que o Tibúrcio tenha fome, podendo eu saciar-lha.
- Isso é extremamente caritativo - atalhou o cavalheiro -, mas eu já te contei que ele espancou dez dos teus correligionários políticos, e temos razões para supor que o fez muito a bel-prazer do corregedor, e que repetirá a dose quando o corregedor lho ordenar, e que tu serás o primeiro mimoseado, se o corregedor quiser.
- Eu não creio que o corregedor o mandasse, meu amigo. Se o Tibúrcio fosse o carrasco, autorizado pela política, teria almoço, jantar e ceia por conta da Fazenda Nacional. Eu compreendo as bengaladas que ele vos deu, sem a influência do corregedor. Vocês repeliram de si o homem, por ele ser celerado; e o celerado, para desforra, intimou-os para saírem da casa em que ele era o primeiro inquilino...
- Daqui a pouco fazes a apologia do herói! -interrompeu com desabrimento o interlocutor, aplaudido por algumas das nove vítimas.
- Isto não é apologia, nem mesmo satisfação - replicou Francisco da Cunha -, é dizer o que penso e deixar a cada um a liberdade de pensar o que quiser.
Ninguém redarguiu: era que Tibúrcio de Anta parara a dois passos do grupo e aplicara o ouvido com dissimulada indiferença, desfazendo na palma da mão esquerda as aparas do tabaco de rolo, que ia cortando com a larga e luzente lâmina duma navalha espanhola. Amortalhado o cigarro, ia o salteador petiscar fogo, quando Francisco da Cunha lhe ofereceu o seu cigarro. Tibúrcio não aceitou, dizendo:
- Muito obrigado: eu só aceito o que não tenho: fogo ainda há, graças ao Diabo, que tem o Inferno às suas ordens e dá lume a todo o mundo.
E continuou passeando, fumando e afagando as barbas grisalhas nunca aparadas em trinta anos.
Francisco da Cunha, conquanto os presos o afastassem de suas práticas, mostrando-lhe bem sensível a repulsão por causa do Tibúrcio, continuou o seu meritório bem-fazer. Comiam juntos. E, uma vez que o condenado recebeu, de caridade oculta, uma esmola de salpicões, Francisco da Cunha comeu metade dos salpicões do seu camarada de panela, e disse que os saboreava em delícias, como se os tivesse aquinhoado da mesa dum príncipe ou dum santo.
Ao cabo de dous meses de cadeia em Vila Real, foram os presos removidos para o Porto, e, à mistura com os políticos, entrou na leva Tibúrcio de Anta, que tinha agravo na Relação.
Logo à saída da cadeia, os malhados sofreram da plebe insultos de palavras, menos afrontosas que os projécteis de lama, de cebolas e gatos em putrefacção. A tropa, por amor da disciplina ou da piedade, afastava a ralé a coronhadas de armas; mas a fúria do altar e do trono reagia às baionetas. Um dos gatos mortos, que já por vezes tinha sacudido os vermes nas caras dos presos, foi bater em cheio na de Francisco da Cunha.
Tibúrcio de Anta saltou dum repelão fora da escolta, fez um salto de tigre à mulher que expedira o gato, travou-lhe da garganta com ambas as mãos e sacudiu-a. contra asgrades da enxovia. A mulher silvou um guincho estrídulo, e dali foi talvez ao reino escuro. A populaça ficou petrificada, murmurando: «E o Tibúrcio!»
O salteador entrou serenamente na escolta e disse ao comandante:
- Eu faço as suas obrigações e as minhas, Sr. Capitão.
Marchou a escolta, protegida pelos olhos coriscantes de Tibúrcio. A soldadesca ia contente da façanha do preso e o capitão não lhe levara em mal o arrojo e a ironia.
Durante o caminho, o condenado e Francisco da Cunha só puderam falar-se nas estações em que comiam ou pernoitavam. Na cadeia do Porto foram alojados na sala do Carmo, mediante a avultada quantia que o moço de Murça deu ao carcereiro para que o salteador não fosse para a enxovia.
A Francisco da Cunha sobravam os recursos, ministrados pelo tio, que vivia escondido no Porto. De sua casa nada tinha o moço, que os poucos bens de sua família estavam em sequestro.
Como os presos concluíssem aos centenares para os cárceres do Porto, houve ordem de remover para Almeida os malhados transmontanos. Tibúrcio de Anta, que figurava no catálogo dos presos políticos de Vila Real, seguiu a leva para Almeida.
Quando lá chegou ia tão doente de febre maligna, e tão ao desamparo da ciência, que mostrou logo sinais de morte, e ele mesmo a conheceu e saudou com feroz alegria.
Horas antes de morrer chamou ele muito em segredo Francisco da Cunha e falou-lhe assim:
- Já sabe que a minha aldeia é Anta, na serra, a duas léguas de Vila Real. Á saída do povo está uma capela e num outeirinho, à esquerda, está um cardenho. Vive lá minha irmã Maria. O senhor, se algum dia tiver liberdade, vá a Anta e levante uma lousa do lar, que é onde assenta a trempe de pedra. Há-de lá achar um caixote, cavando obra de três palmos. Dou-lhe o que lá está dentro, em paga do bem que me tem feito. Se minha irmã for viva, dê-lhe alguma cousa para ela ir vivendo, que o que lá está dá para ambos à vontade.
Tinha-se-me cá metido na cabeça que eu alguma vez havia de sair dos ferros; mas do fosso do castelo em que daqui a pouco me hão-de atirar é que eu não torno a sair, e, por isso, é seu o que lá está, e não se lhe importe saber donde veio.
- Sr. Tibúrcio - disse Cunha, compungido -, não seria melhor que vossemecê me declarasse a quem esses valores pertencem para lhos eu restituir? A esta hora deve ser tão grato a Deus o seu arrependimento!...
O moribundo soltou uma áspera e medonha cascalhada de riso e apertou a mão do amigo, murmurando:
- O senhor ainda é de bom tempo!... Guarde o que lá está e deixe-me cá a mim a contas com os santos.
Horas depois morreu o condenado.
Abriram-se as cadeias, três anos depois, já quando Francisco da Cunha se alimentava do pão esmolado, porque o seu protector tinha morrido em 1832 e os filhos do seu tio, então emigrados, esqueceram o primo, que vivia nas cadeias.
Francisco da Cunha seguiu o exército libertador para o Sul; e, finda a guerra, pediu um modesto emprego, em vez do qual lhe deram uma brilhante esperança, nunca realizada.
Voltou o paciente moço a Murça a restaurar os retalhados bens de seus pais, e dali foi a Anta, onde muita gente honrada teria ido primeiro.
Anta é um paraíso terreal onde os lobos passam pelos habitantes e os habitantes passam pelos lobos, como nós pelos cãezinhos de regaço.
Lá estive eu no dia 20 de Agosto de 1860, comendo de meias com o meu cavalo um vintém de pão negro que um lavrador me vendeu compadecido, por me ver a fome estampada no rosto e o cavalo arqueado e melancólico como um chorão de cemitério.
A esse mesmo cardenho, iria, talvez, parar Francisco da Cunha, vinte e seis anos antes de mim. Ali, ou noutra parte, perguntou ele se ainda vivia uma irmã do célebre Tibúrcio.
- Já morreu - disse o serrano - e deixá-la ir, que era de má casta! Está aí a casota dele, e ninguém a quer de graça, porque anda lá cousa ruim. Eu fui um dos que arranchei à montaria que lhe fizemos. Andava ele, e mais dous aí da Campeã, que morreram a tiro lá para Mondim. O roubo que eles fizeram é que nunca se soube o caminho que levou.
- E sabe vossemecê as miudezas desse roubo? - disse Francisco da Cunha.
- Isso já lá vai há catorze anos; mas o que me lembra é que uns fidalgos de Basto iam de jornada para Vila Flor com uma riqueza muito grande e foram roubados ao subirem de Mondim para o Marão. Os criados, que vinham atrás,. deram sobre os três ladrões e mataram dous; mas o Tibúrcio fugiu com o roubo e não se sabe onde o sumiu. Vieram aqui ter os fidalgos, já com muito povo dessas aldeias, e estendemos uma corda de homens daqui até Lamas de Olo e alto da Campeã. Foi então que se agarrou o Tibúrcio escondido em Ermelo, mas o que primeiro lhe botou as unhas pão comeu mais pão. Quisemos matá-lo; mas os fidalgos disseram que o não fizéssemos sem ele confessar onde tinha o roubo. Isso nem à mão de Deus-Padre o ladrão confessou! Depois foi condenado à forca, e não se sabe se já foi enforcado, ou se morreu na cadeia.
Perguntou Francisco da Cunha, ouvida a história, se havia muita caça de pena naqueles montados. O lavrador respondeu que as perdizes eram tantas como a praga e os coelhos, de velhos, já tinham musgo no focinho. Mostrou o forasteiro desejo de demorar-se alguns dias por ali a caçar, e, mediante uma insignificante espórtula, obteve hospedagem em casa do lavrador.
Nesse mesmo dia examinou ele o cardenho de Tibúrcio e viu quatro paredes de lousa sobrepostas, com algumas ripas já descolmadas, e o pavimento coberto de moitas de ortigas, urzes e silveiras.
Ao outro dia, como ninguém o visse, entrou na mateira e espreitou o local do lar, e viu, por entre os retorcidos troncos das silvas, a pedra que servia de trempe. A noite escondeu na bolsa encourada de caça uma enxada sem cabo e uma fouce, tirada duma rima de instrumentos agrícolas.
À hora do calor, em que os trabalhadores sachavam os milhos e se não via na aldeia fôlego vivo, Cunha entrou numa bouça e chapotou um cabo, que encabou no olho da enxada. Roçou o mato, cortou cerce o silvedo, arrancou a pedra sobreposta à lousa, quebrou esta e cavou até encontrar uma caixinha de pau preto, que teria um palmo de largura sobre outro de comprimento. Estava fechada, e mal se via o espelho da fechadura sumido na ferrugem. As lâminas de cobre ou prata que o cintavam também estavam oxidadas. Com o mato roçado cobriu o fosso, escondeu na bolsa o caixote e recolheu-se à casa do palheiro, que era o seu aposento.
Aí, abriu o caixão com o gume da fouce, e encontrou um estojo de brilhantes, composto de pente, brincos, colar e pulseiras, com outras miudezas. No fundo do caixão estava uma carta, com nódoas roxas da humidade, mas legível na maior parte.
Era a carta sobrescrita a D. Mariana Taveira de Lencastre, sem indicação de terra.
Dizia assim o que era inteligível:
Minha amada sobrinha. Teu primo é o portador da prenda do noivado que te envia a mais carinhosa tia. A ti dou tudo, porque a ti dei meu filho único, a mais preciosa jóia, cujo preço só tu saberás avaliar e tu só és digna de possuir. Sê tão boa esposa como eu fui mãe de meu filho. A felicidade é de três, e a mais ditosa serei eu.
Estas jóias enfeitaram tua tia no dia das suas venturosas núpcias; mal diria eu então que enfeitariam a esposa de meu filho!
[...](3) só pode consolar-me a certeza de que [...] (4) encontrará os carinhos de mãe nos da esposa.
Seguiam-se algumas linhas imperceptíveis e finalizava a carta por expressões de muito afectuosa despedida, com a assinatura: Maria Ermelinda.
Francisco da Cunha, ao outro dia,, despediu-se do lavrador e foi caminho de Vila Flor, seguindo as incertas indicações do montanhês.
Em Vila Flor perguntou se ali havia uma senhora chamada D. Mariana Taveira de Lencastre.
- É a fidalga da Igreja - respondeu o estalajadeiro.
Cunha bateu à porta da fidalga da Igreja. Foi recebida a desconhecida visita pelo dono da casa, que disse cerimoniosamente:
- Não sei a quem tenho a honra de falar.
- Sou portador de uma carta para a Ex.ma Srª D. Mariana Taveira de Lencastre.
- É minha mulher: eu vou chamá-la. De quem vem a carta?
- De sua tia, a Ex.ma Srª D. Maria Ermelinda.
- O fidalgo abriu os olhos, abriu a boca, abriu as asas do nariz, abriu os braços, e exclamou:
- O senhor virá do outro mundo?! A tia de minha mulher era minha mãe, e minha mãe morreu há doze anos.
- Tudo é possível... Conhece Vossa Excelência esta letra?
- Perfeitamente! É de minha mãe!
- Queira perdoar a indiscrição de quem abriu a carta. É de supor que as cartas vindas do outro mundo sejam abertas nas barreiras que separam o tempo da eternidade.
- Eu não posso acreditar que isto seja uma brincadeira!... - atalhou o cavalheiro.
- Decerto não é... Com os mortos não se brinca... Se Vossa Excelência me dá licença, é a sua senhora que eu quero entregar a carta.
Entrou D. Mariana à sala, e, sabedora do estupendo caso, abriu a carta, tremendo.
Leu-a, e, passando-a ao marido, exclamou:
- Vê isto, Fernando! Que mistério é este?
Fernando leu, e pasmou os olhos no rosto risonho de Francisco da Cunha.
- Queira explicar-se! - disse ele.
- A explicação e a entrega dos objectos mencionados na carta
E, tirando do bolso interior das «honras de Miranda» em que se envolvia o caixote, depositou nas mãos da estupefacta senhora, que hesitava em recebê-lo.
- Aceite, minha senhora, que são as jóias de sua tia.
Fernando abriu o caixão e reconheceu-as.
- São as jóias de minha mãe! - exclamou ele. - É o caixote que me foi roubado no Marão. Que é isto, senhor?! E uma restituição?!
- Certamente - disse Francisco da Cunha-, mas não é o ladrão que restitui.
E contou a história, como a eu contei ao leitor; e recebeu abraços como o leitor lhos daria, ainda agora, se o conhecesse, abraços de entusiasmo e sobressaltos no coração, como eu lhos dei, quando me ele contou a sua vida.
A este lance assistia uma menina de dezasseis anos, filha de Mariana. A menina ora olhava para as jóias, ora para o portador; mas, a falar a verdade, olhava mais tempo para o portador, que era um gentil mancebo, como se a formosura da virtude lhe não bastasse.
Contou-se logo o sucesso em todas as casas de Vila Flor. Correram as famílias da terra a verem o adereço e a criatura maravilhosa que o trouxera. Os velhos, que não acreditavam em virtudes nos últimos cinquenta anos, abraçavam o moço, e faziam-no repetir a história três vezes. Alguns antigos senhores donatários estiveram quase a crer que era possível existir um sectário das doutrinas liberais com acções boas. As damas, se lhes desse a escolher, tomariam o rapaz e deixariam as jóias. Era aquilo um entusiasmo como se aparecesse em Vila Flor o padre Santo António em pessoa a descobrir jóias perdidas!
Hospedou-se quinze dias Francisco da Cunha na casa da Igreja: foram quinze dias de festa, jantares e bailes. Ao décimo sexto deu o hóspede as suas despedidas, dizendo que ia a Lisboa requerer de novo um emprego que lhe fora prometido.
Fernando ficou pensativo. Mariana fitou os olhos no marido. Ana sai da sala para que a não. vissem chorar.
E, então, o fidalgo tomou a mão de Francisco da Cunha, levou-a ao coração e disse-lhe:
- Seja nosso.
Francisco da Cunha emudeceu na perplexidade da resposta conveniente.
- Seja nosso - continuou Fernando. - As jóias de minha mãe já minha mulher as não pode usar. Queira ver como elas ficam em minha filha. Faça de conta que a alma de minha mãe lhe disse: «Leve estes enfeites a minha neta, e diga-lhe que se adorne com elas para ser sua esposa.»
Francisco da Cunha levou aos lábios a mão de Fernando e não proferiu um monossílabo. Mariana foi dentro com a celeridade do seu entusiasmo, trouxe. a filha pela mão e disse:
- Aqui a tem, Sr. Cunha. Ela estava a chorar de saudade; e agora queremos vê-la chorar de alegria. Aqui a tem.
E Francisco da Cunha encarou em Ana com os olhos turvos de lágrimas e viu que ela era um anjo e que as palavras de Jesus «por um receberás cem» eram infalíveis.
Porto - Outubro de 1861.
3 - Esta separação, talvez.
4 - O meu filho (?).
Último Casamento
Mirad, discreto Basilio, opinión fué do no sé qué sabio que no habia en todo el mundo sino una sola mujer buena, y daba por consejo que cada uno penasse y creyese que aquella sola buena era la suya, y as viviria contento.
M. Cervantes (D. Quixote)
Chamei o meu amigo António Joaquim é pedi-lhe que me ouvisse ler os onze casamentos, que aí ficam a disputar a sua imortalidade ao tempo e ao infinito.
- Que tal acha isto? - disse eu, com uma visagem de modéstia, ao meu amigo, concluída a leitura. - Notou alguma inverosimilhança nestas fiéis narrativas de acontecimentos que, na maior parte, eu posso confirmar com o testemunho dos próprios heróis e heroínas?
- Eu não acho aí nada inverosímil - disse António Joaquim. - Pela fidelidade do primeiro casamento fico eu, que lho contei nas Taipas, quando você andava pescando bogas à cana. Se os outros forem assim verdadeiros como o primeiro, o seu livro, conquanto não abone grandemente a imaginação do autor, fica sendo um bom livro de moral.
- De moral! Eu não sabia que tinha escrito um livro de moral!
- Escreveu, sim senhor. Pintar sem falsas cores uma galeria de painéis de felicidade conjugal que é senão moralizar? A família, meu amigo, é a base fundamental da sociedade; e é refúgio das virtudes acossadas pelas paixões dos que vagabundeiam de escolho em escolho; é a arca santa que alveja no dorso empolado das tormentas do coração e do espírito. «Sem família, qual seria o destino da mulher?», pergunta Legouvé. «Sem a família, o que seria o homem? Só a família pode moralizar o rico e o pobre. Pela família e na família se organiza não só a vida material, que nutre o corpo, senão que a fecundadíssima vida do coração que ama, da inteligência que se desenvolve, do carácter que se acrisola com o devotar-se e de toda essa existência íntima que se desentranha em aspirações ao bem e ao belo.»
- Com que então - atalhei eu, contente de mim -, escrevi um livro que pode moralizar...
- Moralizar excitando à conquista do bem-estar matrimonial os espíritos destragados por leituras corruptoras de sofistas, as quais adquiriram celebridade ridicularizando o casamento, e rindo assim na face de sua própria mãe, que não teve outra culpa senão a de gerar no seu seio a víbora que havia de instilar a morte no seio da família.
António Joaquim estirou um discurso que eu daria aqui na sua íntegra se o meu amigo não tivesse, quando fala, o defeito de intumescer as frases em demasia, exprimir as suas ideias de feitio que não frisam em folhas de romance, cujo autor, por mais que lhe digam, não está bem convencido da moralização da sua obra.
- Mas - tornei eu - disse você aí que estes romances não abonam a minha imaginação! Se assim é, merecimento literário não há aqui nenhum.
- Já lhe disse que você escreveu um livro de moral, uma triaga contra a Fisiologia do Casamento, de Balzac, e os filtros do celebrado Beyle, e as drogas venenosas que por aí andam derramadas em centenares de volumes franceses. Que outro merecimento quer o meu amigo para os onze casamentos, se eles podem fecundar, como a semente da boa doutrina, cento por um?! O senhor cuida que o seu livro não há-de ser causa de se casar muita gente que não pensava em tal, antes de o ler?
- Pois acha sinceramente que o meu livro vai fazer com que os párocos se vejam abarbados a casar os meus leitores com as minhas leitoras?
- Aposto! Deixe correr o livro dous meses, espere que os espíritos façam digestão das boas doutrinas que superabundam nesses onze casamentos; e, passados os dous meses em que devem ser consumidas quatro edições do seu livro, veja você a estatística dos matrimónios nos jornais, e então falaremos. Meu amigo, o seu livro há-de produzir casamentos como o Werther, de Goethe, produziu suicídios e o Antony, de Dumas, pataratas afeminado e o Dom João, de Byron, femeeiros de criadas de servir. Tolere o confronto, meu caro senhor. Eu bem sei que o seu livro, à luz da moral, não sofre parelhas com as torpitudes dos escritores citados. Você elogia o amor puro, a aliança sacratíssima da família, librando-se com os generosos instintos da sua alma no alto ambiente onde não há partícula impura das evaporações pútridas do coração do homem; os outros rebalsaram-se no tremedal das sensações 'brutais, e endeusaram o celibato, escoltado de escândalos, e o amor material, com todas as suas impuridades. Ora aí tem.
- Verá que não me acreditam... - tornei eu.
- Porque o não acreditam?
- Dirão que inventei tudo isto.
- Não se inventam cousas tão naturais.
- Há verdades inverosímeis, meu amigo.
- Diz bem; isso é assim. Há mentiras que se vestem melhor que a verdade aos olhos da credulidade pública. No número das verdades inverosímeis sei eu que está a história dum casamento que eu sei...
- Dum casamento!... Conte, meu amigo, conte, que eu preciso de doze, porque o livro fica pouco volumoso com os onze.
- Mas olhe que se arrisca a negarem fé aos onze por causa do duodécimo.
- Não importa: talvez que seja esse o desenjoativo para os outros. Tem ele moral?
- Tem, porque é um casamento feliz... Ora escute, e vá tirando os seus apontamentos.
Eu conheci em Lisboa dous homens muito esquisitos. Eram ambos energúmenos do mesmo demónio - o TÉDIO, que, a juízo de Helvetius, é o característico único da nossa distinção de todos os outros animais.
Paulo de Almeida, para dulcificar as azias do seu tédio, bebia a longos sorvos a água tofana dos falsos gozos da sociedade licenciosa, que lhe apagava as sedes.
Pedro de Castro, como tivesse já o estômago chagado da peçonha e descresse da eficácia do cinismo para convalescer-se, fugia da sociedade.
Ambos orçavam pela mesma idade, entre trinta e cinco e quarenta anos, cuido eu.
O primeiro escassamente conhecia o segundo. No princípio da vida haviam-se encontrado na mesma atmosfera impura; depois, cada qual seguiu o seu caminho, posto que ambos os caminhos confluíssem para o mesmo ponto: o fastio.
Paulo de Almeida cortejou uma viúva, senhora ainda formosa aos trinta anos, com superiores espíritos e primorosa educação, com alguns bens de fortuna e muito respeito da sociedade, que a conhecia.
Carolina é como ela se chama: os apelidos manda a minha proverbial discrição calá-los.
Carolina amou, e apaixonadamente, o homem que a fama lhe definira antes com repugnantíssimos predicados. Como isto se faz não sei. Exemplos há tanto aí de casos análogos, que nem eu atino já a discernir qual é a regra. Creio que a eloquência do amor é toda artificial. Os mestres de retórica andam feitos com os homens sem alma nem fé.
A estes o condão da metáfora e da hipérbole que seduz e embriaga o espírito da mulher.
Ao moço de coração, a florejar e recender eflúvios de amor honesto e imaculado como o Céu o empresta aos seus anjos, a esse a incorrecção, a pieguice, a toleima, e tudo o mais que desgosta e repele o ânimo da doce, e misteriosa, e absurda, criatura a que S. Paulo e muitos outros santos chamaram «monstro». Já um poeta disse:
Un pauvre amant dit ce qu'il pense
Sans trop penser à ce qu'il dit.
Le désordre est son éloquence;
Quand le coeur parle, adieu l'esprit (5).
Isto é assim. O sangue-frio é tudo em todas as situações da vida. O exemplo é Alexandre, é César, é Napoleão, é Paulo de Almeida. Eu coloco na mesma plana de dificuldades a vencer Arbela, Farsália, Austerlitz e o coração da viuva: Paulo venceu.
Vencedor, contemplou os troféus, como um justo contemplaria as esplêndidas misérias desta existência, e disse: «Isto não é nada, em comparação do que anseia o meu insaciável espírito.» O justo, porém, quando assim diz, fita os olhos no Céu e entrevê os resplendores do bem infinito, ao passo que Paulo de Almeida raiava contra o seu tédio e ia cavando na lama um esconderijo onde pudesse furtar-se ao seu demónio.
Apesar disso, o homem era delicado, tinha a virtude da delicadeza, que não é atributo muito vulgar. Se Carolina, pressentindo o esfriar dos mecânicos entusiasmos do seu amante, se mostrava melancólica, era contar com o estilo caricioso de Paulo e a cura pronta.
Mas a delicadeza, afinal, embica também no tédio, e depois nem essa virtude subalterna fica, como virtude inválida, no coração derruído do homem.
Paulo denunciou em termos equívocos o seu aborrecimento. Disse à viúva que ia dar um passeio no Minho, fatigar o corpo na agitação e esperar que o espírito recobrasse o vigor extenuado pela monotonia e quietação da vida.
A viúva não tinha que responder a isto. Recebeu o projecto como um insulto ao seu amor. Em verdade, um homem que vai ao Minho procurar o seu espírito não tem mesmo espírito para inventar uma causa não ofensiva à mulher que o ama.
Carolina chorou com as suas amigas, todas senhoras discretas, que tinham na sua dignidade o antispasmódico destas síncopes do abandono. O que elas, portanto, disseram à sua amiga foi:
- Não desças à humildade inútil das lágrimas. Tem dignidade. A mulher que se chora abandonada de um homem indigno dá uma triste ideia do seu merecimento e baixa à extrema fraqueza. Deixa-o ir, e, quando ele voltar do Minho, diz-lhe tu que vais ao Algarve procurar também o teu espírito.
Isto foi um vesicatório no coração da viúva.
Paulo de Almeida partiu por terra, e pernoitou em Vila Franca. Dali escreveu a Carolina uma breve carta, onde ia este período:
A natureza tem sorrisos que me entristecem. Não ouço nem entendo estas harmonias. Devem existir, e melodiosas, e dulcíssimas, no coração feliz. Mas devo um favor não pequeno a estas árvores e àquela faixa de prata que corta o Tejo, onde se está espelhando a Lua. Astro da saudade lhe chamam os poetas. E é! Aquele clarão sereno e pálido vi- te eu agora, Carolina, e tive saudades. Adeus. Demoro-me quatro dias em Alenquer, onde tenho um amigo de infância, que não vejo há anos.
Estas linhas reacenderam a flama no peito ainda requeimado da viúva.
- Paulo ainda me ama! - exclamou Carolina, em prática íntima com a sua criada grave. - Eu devo segui-lo, que é infeliz.
E escreveu a Paulo para Alenquer, dizendo-lhe que a esperasse aí três dias, que ela ia com ele ao Minho.
5 - Demoustier, Lettres à Emilie.
Paulo de Almeida procurou o seu amigo e soube que ele tinha ido à caça para o Alentejo e se demorava quinze dias.
Foi para a estalagem e encontrou, no quarto imediato ao seu, Pedro de Castro.
Reconheceu-o, cumprimentaram-se e tomaram juntos chá.
- Há muito que o não vejo em Lisboa, Sr. Castro - disse Paulo.
- Eu estou aqui há três meses.
-Aqui?! Corno pode o senhor estar três meses em Alenquer? Perdoe a indiscreta curiosidade... Só por um 'fio do coração pode estar-se atado a esta terra.
- Não, senhor... Estou aqui justamente porque o coração não tem fio nenhum.
Lisboa nem sequer dá à gente ar puro e água limpa. É atroz realmente que nem sequer água e ar seja permitido respirar e beber ao homem-vegetal! Graças à Providência, o vegetal move-se e vai enraizar-se noutro torrão. É o que eu fiz.
- E eu vou fazer também no Minho. Ah!, o senhor vai para o Minho?
- Vou; venha também, verá que céu, que natureza...
- E a água?
- Água excelente, água de rocha viva... E do Porto, as de Viana, as de Guimarães!
- Com que então diz-me o Sr. Almeida que há no Minho boa água, bom ar...
- E as mulheres mais bonitas de Portugal. Se o senhor visse as camponesas da Maia, as padeiras de Valongo e Avintes, as lavradeiras de S. Cosme e Fânzeres, as varinas de Espinho e Ovar! Não leu em Virey que as mulheres mais lindas que ele vira nas suas viagens foram as de Guimarães?
- Nada, não li isso, nem me aproveito da notícia. Não me fale em mulheres, Sr. Paulo de Almeida. Eu saí de Lisboa para não ver mulheres e deixo de ir ao Minho porque não as quero ver. As suas informações assustam-me.
- Desse modo - tornou Paulo-, o meu amigo é um sujeito que cumpre na Terra a sua missão procurando bom ar e água pura. E uma questão toda de oxigénio, hidrogénio e carbónio a sua existência!
- É picaresca a observação; mas também é verdadeira - disse mui serenamente Pedro de Castro. - Se me dá licença, aventuro uma pergunta, que transpõe os limites das nossas relações...
- Pode perguntar o que quiser, mesmo se eu sou doudo.
- Não, senhor: pergunto se as mulheres o entusiasmam.
- Se me entusiasmam?!... E conforme... Tenho temporadas. O meu coração tem marés como o oceano.
- Isso é bom - disse secamente o Castro.
- Parece-lhe que é bom?
- Eu acho que isto é péssimo, porque não amo o tempo necessário para saborear a doçura de ser amado.
- Então é péssimo, decerto. Todavia, vai o meu amigo a Espinho, à Maia, a Guimarães, entusiasmar-se...
- Vou ver se é possível recompor-me; e o Sr. Castro fica a beber água e ar puro...
Franqueza! - continuou com súbita exaltação o poeta das senhoras do Minho. - O Sr. Pedro de Castro está a estalar de tédio por todas as fibras do coração. Amou muito, e agora...
- Conheço agora - atalhou Castro - que eu amava de boa-fé; mas não amei. Não amei, e pagava amargamente o artifício. Era castigado pela mentira, sofrendo os efeitos do capricho, como os sofreria se o meu amor fosse uma sincera e profunda paixão. Isto durou catorze anos assim. Quando dei fé da enfermidade lastimosa da minha alma, achei que tinha igualmente os pulmões e o estômago derrancados. Não fiz caso da alma, cuja moléstia é incurável: dei-me todo à restauração das importantes vísceras que funcionam sem dependência do espírito. Com ar bastante oxigenado, e água pura de sais calcários, tenho fé na cura deste segundo eu subjectivo, composto de cavidades, repletas de órgãos admiráveis, e mormente o estômago, que já teve as honras de salvar Roma e reconduzir do Aventino a canalha, quando inspirou o sabido apólogo de Menénio Agripa... Recorda-se?
- Perfeitamente... Pois, meu caro senhor, eu sinto os seus incómodos de estômago: os do coração não me doo deles, porque me não sobra sensibilidade do muito que padeço também.
- Pois padece?!
- Mas tenho fé na cura.
- O senhor deve ser da minha idade, pouco mais ou menos. Conheço-o da casa da marquesa de ***, e da condessa de ***, há bons treze anos. Ora eu tinha então vinte e três... Vinte e três com treze são trinta e seis, salvo erro...
- Vamos à conclusão dessa aritmética.
- A conclusão é óbvia... Parece-me que o Sr. Almeida deve ser tão velho como eu.
- Isso é claro; mas o coração? O coração de trinta e seis anos, de quarenta, de cinquenta, quando o outono dos frutos não chegou ainda?
- Quer dizer o meu amigo que há um eterno Maio no seu coração?
- Não, senhor. Quero dizer que até aqui a minha vida tem sido um tédio continuado, um enojo perene à mesa das mais apetitosas iguarias. E racional acreditar que devo ter um quinhão da felicidade comum. Procuro-a, espero-a, e, ao mesmo tempo, bebo água pura e respiro ares sadios como o Sr. Castro.
- Estimo que encontre o seu quinhão. Eu cá fico em Alenquer. E boas noites.
Pedro de Castro, recolhendo-se ao seu quarto, ia dizendo entre si: «E um doudo incurável.»
Paulo madrugou, vacilando entre seguir o seu caminho ou ficar mais um dia em Alenquer, para estudar o seu companheiro de estalagem, que ele tinha em conta de curiosíssimo extravagante.
Nesta perplexidade, recebeu a carta da viúva. Leu-a com semblante mal-assombrado e exclamou em solilóquio:
- Isto só a mim é que acontece! Ora vejam que destino o meu!
- O Sr. Paulo de Almeida faz monólogos?! - disse Pedro, entrando no quarto do seu conhecido.
- Quer o senhor ver? Ouça lá isto.
- Paulo leu a carta de Carolina e declamou enfaticamente:.90
- Que me diz? É uma perseguição declarada! Esta mulher a querer seguir-me, e eu a fugir-lhe!
- O meu amigo não pode com a felicidade! - disse, sorrindo, o apologista da água pura.
- O senhor chama a isto felicidade?!
- E consoante!... Não sei, quem é a dama; mas é natural que seja uma criatura estimável; se é, não sei que outro nome tenha o facto, senão exuberância de felicidade.
- O Sr. Castro decerto conhece a D. Carolina ***? - perguntou o fátuo, anelando as guias do bigode.
- De vista. E bela mulher, goza boa fama.
- Pois aqui tem o que as mulheres bem-afamadas...
- São frágeis; mas essa fragilidade é nobre, é do coração, é a extrema prova.
- As provas perdem o seu valor quando não são pedidas, meu amigo – replicou Paulo de Almeida.
- A máxima é verdadeira na sua questão... E o meu amigo que faz?
- Vou-me embora.
- Mas escreva-lhe, primeiro; diga-lhe que não sonha.
- Diz bem.
Paulo escreveu a Carolina e partiu em direcção das Caldas da Rainha.
Ficou Pedro de Castro, no seu quarto, pensando na viúva. Tinha ele um volumoso álbum, em que escrevia as suas impressões quotidianas. Espreitemos o que ele está escrevendo agora:
Maio 23, de 1854.
Eu vi Carolina em Sintra, faz no mês que vem cinco anos. Fui-lhe apresentado em casa do Monte Crista. Tornei a vê-la na Pedra de Alvidrar. Vestia de negro, como o anjo da melancolia. Creio que lho disse, e ela escutou-me com irónica atenção. Onde a vi eu terceira vez? Em Paço de Arcos. Falámos uma hora. Contei-lhe as minhas impressões daquele dia; pedi-lhe uma palavra das que revelam um coração amigo e compadecido. Que me respondeu ela? Uma graciosa vulgaridade: «Não faça romances.» Não tornei a vê-la. Hei-de vê-la amanhã, ou depois, aqui, no encalço de um homem que a desprega! Pobres mulheres! Com que bárbaro escárnio vos acusamos!
Cuspimos para o ar, e aparamos na face a saliva. Deus não vos fez assim. Fui eu, foi aquele homem que te foge, Carolina; será outro que há-de chamar infame àquele e me chama infame a mim.
Que flores queremos nós encontrar no coração da mulher, se lhas arrancamos de lá pelas raízes, com as unhas de bestas-feras?! Fizemos assim a sociedade e fugimos-lhe amaldiçoando-a!... Pobre Carolina! Como tu eras linda aos olhos de todos e pura aos meus! Pura te vejo ainda, e a sociedade não te perdoará. Quando a diabólica mão que te sopesa te largar, vime flexível, tornarás a erguer para o Céu a tua face. A vergonha não reabilita, aniquila; mas o desgosto restaura e depura.
Aqui termina a página.
Há muito que esperar do homem que pensa e escreve assim. Aí nessas linhas há coração e luz crepuscular dum novo dia para o espírito quebrantado e escurecido. Não posso atribuir ao ar puro e à água de Alenquer estes prenúncios de reforma moral. A meu ver, Pedro de Castra não está corrompido. Se o souberem guiar, levá-lo-ão à Trapa, se quiserem, e daí ao Céu.
Isto disse eu ao meu amigo António Joaquim, o qual, tomando fôlego, continuou assim:
- No dia seguinte, às onze horas da manhã, estava Pedro de Castro a escrever a página daquela manhã, quando o criado da estalagem lhe anunciou uma senhora que o procurava.
- Isso há-de ser engano - disse Pedro.
Nisto apareceu Carolina, e, vendo o sujeito à porta do quarto, disse com sobressalto:
- Não é este cavalheiro que eu procuro.
- Decerto não sou, minha senhora. Vossa Excelência naturalmente perguntou por uma pessoa que devia aqui estar. O criado entendeu precipitadamente a pergunta e não soube dizer-lhe que o cavalheiro Paulo de Almeida saiu daqui ontem.
- Saiu!... - exclamou Carolina.
- Abra a sala para esta senhora descansar - disse Pedro ao criado.
A viúva entrou na sala, sentou-se no canapé, arrancou dos ombros e da cabeça o mantelete e o chapéu, e ensopava o lenço em suor da fronte.
Pedro de Castro colou o ouvido à porta, e as únicas palavras que lhe ouviu foram estas:
- A minha dignidade!
- Não me consta que mulher alguma vergasse ao ultraje do abandono, se a chaga que mais lhe dói é a do orgulho ferido - disse eu a António Joaquim.
- É que o meu amigo não conhece todas as espécies - replicou ele. - A vaidade vilipendiada abate mais que o amor desprezado. Carolina vergou, e tanto que adoeceu.
Quis naquele mesmo dia voltar para Lisboa e não pôde. Caiu de cama.
Na hospedaria não havia uma mulher que a servisse! A viúva mandara o seu escudeiro a Lisboa buscar uma de suas criadas; antes, porém, que esta chegasse, entrou uma senhora no quarto da doente.
- Não tenho o prazer de conhecer Vossa Excelência - disse a viúva.
- Sou irmã dum companheiro que Vossa Excelência tem nesta hospedaria. Meu mano é Pedro de Castra.
- Pedro de Castra?! Está aqui?! Ah!, seria um cavalheiro que eu vi ontem?
- Certamente.
- Está tão mudado! Vi-o há três anos... Porque se não deu ele a conhecer?...
- Talvez melindre...
- E Vossa Excelência veio visitar seu mano?
- Não, minha senhora, vim chamada por ele para assistir à enfermidade de Vossa Excelência.
- Que bondade! - murmurou Carolina, com os olhos turvas de lágrimas. - Eu hei-de erguer-me hoje, para lhe agradecer.
Os nervos duma senhora operam maravilhas! Nesse mesmo dia levantou-se a viúva, pálida, mas formosa, mas encantadora de quebrantamento e tristeza.
Pedro de Castra foi chamado por sua mana.
- Peço a Vossa Excelência perdão - disse ele à viúva - de ter tão mal cumprido os deveres de relação, que me honra de ser, de Vossa Excelência, e companheiro de casa.
Não lhe pedi licença para apresentar-lhe minha irmã; porém, agora o faço, e não lhe inculco outra boa qualidade dela senão a de boa enfermeira, tanto para as doenças do corpo como da alma.
Carolina estendeu-lhe a mão, apertou a que se lhe ofereceu tremente e balbuciou:
- Lembra-me agora a Pedra de Alvidrar e Paço de Arcos.
- Há que tempos, minha cara senhora!... Fazia eu romances então... e que belos romances!...
Carolina recordou até as suas palavras e corou. Doía-lhe o pesar de ter mofado com suas amigas das lamentações do Antony, como ela denominava Pedro de. Castra.
- O meu amigo, prosseguiu António Joaquim - tem a suma benevolência de poupar-me a inventar os diálogos que se seguiram. Invente-os você, se quiser, que para isso lhe pagam. Não deixe, porém, de notar nos seus apontamentos que Pedro de Castra nunca proferiu o nome de Paulo de Almeida, nunca distraidamente articulou palavra alusiva ao desastre que sofreram a dignidade da viúva.
A carta que Almeida lhe escrevera a ela de Alenquer trouxe-lhe a criada. A pobre senhora, com a pressa de responder à saudade pérfida do viandante, nem esperara a volta do correio, e correra para surpreendê-lo, antes do prazo designado.
Carolina, lendo a carta mentalmente, na presença da irmã de Pedro, apertou-a com frenesi, acendeu uma vela, queimou-a, sacudiu com o lenço as cinzas, e disse por entre dentes cerrados:
- Agora, nem cinzas do coração que foi... Estou salva, e... feliz!
- E feliz?! - disse D. Ermelinda de Castra.
- Feliz, sim, minha amiga. A infâmia não é para aqueles que a sofrem...
Viveram as duas senhoras sempre juntas, na hospedaria de Alenquer, quinze dias.
Pedro de Castra ia com elas a passeio e lia-lhes o seu 'álbum, menos a página de 23 de Maio, que estava coberta e lacrada nas orlas. A viúva adivinhou que estava ali o seu nome. Seduziu D. Ermelinda, e, na ausência de Castro, rompeu o sigilo, como quem conta remediar a falta com a confissão da fraqueza. Leu e chorou. Tirou com a mão convulsa um lápis da sua carteira e escreveu no fundo da página estas linhas: Alma pura, Deus te depare uma mulher digna de ti, ou ela desça imaculada de entre os anjos, ou se purifique com lágrimas na Terra.
Ermelinda confessou ao irmão a sua cumplicidade no crime de lesa-álbum. Pedro de Castra nem tempo teve para indultar ou condenar. Foi ver a página, e leu muitas vezes as linhas, que denunciavam o tremor do pulso.
Depois disto, o encontro da viúva e Pedro devia ser muito para ver-se. O homem enfastiado nunca sentira tanto a necessidade do ar e da água, porque tinha os beiços em brasa e os pulmões abafados. A viúva disputava o carmim ao ramalhete de cravos que Ermelinda lhe oferecia. Estes cravos foram o Deus ex machina, para não caírem todos no mais desgracioso silêncio.
- Será necessário dizer-lhe que se amavam?
- Não, senhor, não é necessário mais nada - respondi eu ao meu amigo António Joaquim.
- Nem mesmo precisa saber se casaram?
- Isso sabia eu já, e o leitor também o adivinha antes de lho eu dizer, quando o romance vier a lume. Diga-me singelamente agora se foram felizes.
- Tão felizes, meu caro amigo, que Pedro de Castra esteve doudo, quando sua esposa foi condenada à morte pela medicina, durante o contágio da cólera em Lisboa.
Causa espantosa! O homem da água pura e dos ares sadios vive hoje gordo e forte, respirando o mau ar e bebendo a má água de Lisboa. O coração é muito e a felicidade doméstica é tudo.
Camilo Castelo Branco
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