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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ENJEITADA / Camilo Castelo Branco
ENJEITADA / Camilo Castelo Branco

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ENJEITADA

 

O incêndio de Santa Maria de Pombeiro

Ó quadra saudosa de patriotismo! ó guerra dos franceses! ó heróico Portugal no tempo em que tu eras tão português, tão inimigo de estrangeiros, tão façanhoso contra franceses e tão roupa deles! Ó tempo, tempo em que nem ainda as francesas se podiam tolerar neste abençoado torrão, de onde pululavam Viriatos, como tortulhos bravos quando chove!

Que fígados tão nacionais saíam pela boca fora da gente, que gritava com ferocidade pulmonar, se a serpente enorme de brilhantes escamas, o exército de Massena ou Junot, de Loison ou Soult coleava as suas roscas de ferro lá em baixo, engolindo aldeias e vomitando-as em lavaredas das entranhas bestialmente francesas!

Tão perto vão de nós esses dias de febril glória! Meio século apenas! Uma escassa vida de homem! Há ainda aí pulsos de aço e músculos de couro de elefante que estrangularam franceses em barda! Nossos pais todos mataram soldados de Napoleão; nossas mães todas mais ou menos tenderam a enxertar-se na genealogia da forneira, que amassava espanhóis como padas de trigo. Isto foi ontem, ontem! - e já hoje todos trajamos à francesa, pensamos francesmente, falamos como pensamos e escrevemos para fazer pensar e rir a posteridade, os nossos bisnetos, uma gente nacionalíssima que não há-de ter nação nenhuma!

Há cinquenta e tantos anos! Cada homem, cada português a pedir um Tucídides e dous Homeros! Uma epopeia para cada osso lusitano, e um Panteão para cada aldeia!

E, depois, a gentalha daquele período de três heróicos anos era uma gentalha que dava pela barba aos gigantes do nosso tempo. Adamastores de pântano que salpicam a gente de vasa quando se remexem.

Que plebe tanto mais furial quanto briosa! Como ela matava os afrancesados e lhes incinerava os cadáveres no brasido das casas incendiadas! Que espora tão penetrante os apóstolos da cristandade portuguesa lhe chegavam aos ilhais!... Desfaziam a cruz de Cristo em dous varapaus e davam a deslombar! Como a Inquisição já funcionava, iam aos armazéns dos instrumentos e traziam as cordas para a forca dos jacobinos!

Quem pudera ter visto aquele frade dominicano, chamado na invasão francesa o Religioso do hábito branco! Que homem, que português! No púlpito, mandava matar; no campo da batalha, matava. E não tinha arma predilecta. Matava a tiro, a cutelo, a espadão, a faca, à pedrada, a malho e a pau! Era o Sant'Iago de Salado e o São Jorge de Aljubarrota! Quando ele passava de hábito branco, matando franceses e bestas (veja a Gazeta de Lisboa, de 28 de Outubro de 1809), o Loison encolhia-se a bater os dentes, o Soult salvava-se a unhas de cavalo!

Não cabiam dous homens na Europa! Napoleão e o domínico português, Fr. António Pacheco!

No dia em que Beresford brindou o frade com uma espada e uma espingarda inglesas, a fortuna, árbitra dos Encélados que se atrevem a esburacar o Olimpo, derribou o tigre corso e levantou o frade à perpetuidade da Gazeta de Lisboa.

Ora este Fr. António, no dia 13 de Março de 1809, depôs na sacristia de uma igreja de Penafiel a espingarda ainda ferrugenta, a espada tingida de sangue, e subiu ao púlpito. Estava presente o general Silveira, a coisa mais redondamente portuguesa, boçal e valente que deu o século.

O frade, também conhecido pelo Mestre-Índio, não orou, espumou sangue. Cada palavra reboava nas naves como artilharia grossa. Quando ele dizia - «morra Napoleão! morra a grã-besta do Apocalipse! Abaixo a estátua de Nabuco!» - o povo urrava, e as peanhas dos Cristos, batidas pelas vibrações do ar revolto daquelas baforadas de patriotismo e vinho, cambaleavam.

Os milicianos e guerrilhas saíram da igreja com fome e        sede de carne e sangue franceses. Queriam ser mártires e antropófagos ao mesmo tempo. O religioso do hábito branco permitia-lhes e aconselhava-lhes, primeiro que o martírio, o cevo na carniçaria, espedaçar franceses a dente quando cansassem as garras.

Abalou o Silveira sobre o inimigo. Lá ia o frade, o alento, a ferocidade da tropa.

No dia 15 travaram-se hostes em demorado fogo.

No 16 até 18 se andaram os dois exércitos disputando posições. No dia 19 fortificou-se o fugitivo Silveira em Amarante, assoberbado pelas forças de Delaborde e Loison. Parte da antiga vila alumiava os dois exércitos com o incêndio das suas casas. No dia 20, travaram-se doze horas de fogo na ponte. O religioso do hábito branco fez proezas, e continuaria a espostejar franceses, se o duque da Dalmácia, no 1º de Maio, não varresse os bravos, incluindo o frade, pela serra do Marão fora.

No dia 9, era sublime o frade já de volta sobre o inimigo. Levantou-se ao mais alto picoto do Marão, quando Silveira dava folga à tropa. Falou, trovejou, era o escândalo de Jeová pelo intuito da imitação do Sinai.

Fora com o sacrílego!

Seguiu-se o ataque de Ovelha no dia 11. O frade foi superior à espingarda inglesa. Matou quanto pôde; matou a pontapés, desventrando os feridos que podiam ter mais de uma vida e sete cabeças como a hidra. O general Loison fugiu para as montanhas de Gatiães. Tinha visto o hábito branco a esvoaçar pintalgado de sangue.

No dia 13, o Silveira e Fr. António lá iam trepando à serra. O general francês desamparava o posto; e, perdido o itinerário de Montalegre, sempre sobranceado da espingardaria dos guerrilhas, foi dar a Santa Maria de Pombeiro, convento de monges bentos, uma légua distante de Guimarães.

A ralé senhorou-se do mosteiro para, bem resguardada, aproveitar as balas. Loison viu caírem alguns de seus ajudantes, atravessados dos pelouros de tão desprezível milícia. Fugiu a desapoderado galope, mandando retinir os toques de retirada.

Um coronel, que cobria a retaguarda, gentil tipo de bravo soldado, na máxima robustez da idade, repelava as barbas, e exclamava:

- Ó soldados de Jena e Marengo! o que é feito de vós!

Olhava em volta de si, via recrutas imberbes, batia com a mão na testa, e murmurava:

- Ó imperador! vê que vergonhosa perdição esta! Vê os teus generais que te desonram!

Os soldados obedeciam às trombetas e não ao coronel que lhes bradava:

- À forma! à forma, covardes!

A fuzilada das escorvas, o troar das descargas, o escabujar dos franceses moribundos era incessante.

O mais mortífero fogo saía do convento.

O coronel chamou a si pelos nomes alguns dos seus mais velhos soldados.

- Ao convento! - gritou ele.

Cem seriam os intrépidos devotados à morte. Romperam as portas a machado, escalaram por sobre cadáveres as paredes, retravaram-se arca por arca, matavam-se peito com peito.

Pouco depois, irromperam línguas de fogo por algumas janelas do mosteiro. Por entre as lavaredas saltavam guerrilhas e franceses promiscuamente, agarrados ainda pelas gargantas e cabelos, para se acabarem de matar à luz do incêndio, porque lá dentro era trevas, noite e fumarada espessa do arder da casa e da espingardaria.

Os que não morreram fugiram. Os frades apagavam o fogo, cortando-o no ponto em que um lanço do edifício pegava com o incendiado. O abade amaldiçoava em nome de Deus a sacrílega plebe que fizera baluarte de guerra no templo do mansíssimo cordeiro, no santuário de Deus vivo! Este abade desadorava o patriotismo do religioso do hábito branco.

Cortada a serpente das chamas, que ameaçavam a completa destruição do mosteiro, o abade foi chamado à cela de um frade.

Entrou e viu prostrado sobre a cama do monge um oficial francês, com o rosto ensaguentado.

- Achei-o ali no dormitório - disse o dono da cela. - Pareceu-me que estava a agonizar... Receei que o acabassem de matar sem sacramentos e trouxe-o para aqui.

- Fez bem - disse o superior.

Acercou-se do oficial e perguntou-lhe:

-           Está muito ferido? Onde se sente mal?

-           Creio que estou a passar... - Rogo - disse o oficial com tardas vozes - que me tomem o meu nome...

- Primeiramente cuidemos em ver o seu estado,

Sr. Oficial. Eu vou chamar quem entenda.

E voltou daí a pouco acompanhado de um médico de Guimarães, suspeito jacobino, que estava escondido nas tulhas do mosteiro.

O médico examinou-lhe as feridas de rosto, peito e braço.

Deteve-se na do braço esquerdo, atravessado por uma baionetada acima do cotovelo, e disse:

- Cortado o braço, Sr. Coronel, responsabilizo-me pela sua cura.

- Não. Deixem-me morrer.

- Isso é impiedade! - acudiu o abade.

O coronel contorcia-se dolorosamente.

- É tempo! - disse o médico - haja quem vá a Guimarães buscar-me o estojo.

- Quem terá coragem de lá ir?! - perguntou o abade.

- Eu! - respondeu o frade que tinha levado em braços o coronel para a sua cela.

Passadas duas horas, o médico, auxiliado pelo boticário do mosteiro, entrou à presença do enfermo e disse-lhe:

- Coronel! se tem mãe, esposa e filhos deixe-se operar, que eu lhe asseguro a vida e porventura ainda a felicidade. O braço esquerdo não meneia a espada.

É uma coisa inútil. Reanime-se...

- Isto não é fraqueza, Senhor! - disse o oficial.

- É fraqueza, não tem outro nome... E querer morrer. Não tem ninguém que lhe chore a vida?...

O coronel, com os olhos, súbito, aguados de lágrimas, sentou-se com violento esforço no leito, pediu que o ajudassem a despir-se, arrancou a empuxões a camisa empastada no sangue, estendeu o braço e disse:

- Corte!

 

Alfredo Gassiot

O coronel, que os frades gasalharam, chamava-se Alfredo Gassiot. Figurava trinta anos pelo muito. Bela presença de guerreiro, tanto em arraiais, como para salões; nos arraiais com a pujança do braço hercúleo, nos  salões com a fulminante magia de olhos. A braveza inferira-se-lhe da desesperada luta com as numerosas e traiçoeiras investidas das guerrilhas; o esforço estava-se mostrando na corpulência, e no estoicismo com que ele se deixava amputar o braço esquerdo e cerrar os rebordos ensanguentados das feridas.

Alfredo falava inteligentemente a língua espanhola porque sua mãe era madrilense. Os frades afeiçoaram-se-lhe porque o ouviam raciocinar prudentemente acerca das calamidades da guerra. Por sobre os prestados benefícios da religião santa, ganharam-lhe amizade, e tanta que choravam todos, quando, em sequência da rebeldia de uma ferida no pulso direito, sobreveio ao enfermo um acesso de febre traumática.

Ao fim de dous meses de cama, levantou-se o francês tão dessangrado e magro que a sua convalescença semelhava ao fenecer-se lento de um ético. Mais de ano se lhe prognosticara a morte. Opresso demais a mais pelo presságio da morte próxima, Alfredo Gassiot entrou-se de tamanha tristeza e aborrecimento da companhia dos beneditinos, que se andava sempre furtando aos desvelos deles, escondendo-se nas brenhas da cerca ou fechando as janelas do seu cubículo, a fim de que o supusessem a dormir.

Alguns fidalgos de Guimarães, aparentados com os frades, vencendo o seu horror a franceses e o receio da pecha de jacobinos, frequentavam a conversação do coronel, e compadeciam-se de o verem finar-se na flor da vida e nas esperanças dela tão temporãmente adiantada em prosperidades. «Coronel aos trinta anos! – diziam eles. - Onde iria dar este rapaz, se a morte lhe não cortasse a carreira.»

Atentos os cavalheiros de Guimarães ao alívio de Alfredo Gassiot, convieram em tirá-lo das tristezas do convento de Pombeiro, logo que as forças o ajudassem a mudar para a vila. Assim queriam eles defendê-lo de alguma injúria do povo, que o andava espiando para o acabar a tiro; e, ao mesmo tempo, desabafar-lhe o espírito no trato com pessoas de aspeito menos sombrio que os monges.

Convidaram-no a transferir-se para Guimarães, e o francês respondeu que tão pesada lhe seria a terra da sepultura no convento como nos templos da vila.

Sobrevieram com instâncias muito afectuosas, e alfim conseguiram removê-lo, sob condição de que os ossos do seu braço amputado seriam removidos também para a cova onde lhe sepultassem o restante do cadáver: cláusula que Alfredo tirou a partido.

Despediu-se dos frades a chorar, andou-se na mata abraçando algumas árvores e escutando os últimos rumorejos das fontes e regatos que sós e únicos lhe tinham os segredos de seu coração e as cogitações acerbas da pátria, e talvez dos amores que iam perdidos com ela.

Um dos fidalgos, que tinha quinta muito aprazível fora do lamacento e escuro berço da monarquia, venceu os outros na satisfação de hospedar o francês, cuja fronte se enrugara ao conspecto da vila retalhada e recruzada de becos e vielas.

Alfredo aceitou com ares de contente um quarto que lhe deram, cuja janela enramada de trepadeiras parecia a graciosa avenida de uma gruta, abobadada externamente de dosséis de hidrângeas e baunilhas.

Ali era a permanente residência do francês, deitado sobre o leito, com a face voltada à janela, por onde lhe entravam as fragrâncias do campo, e porventura também as saudades da pátria e da vida. Rara vez, o fidalgo hospedeiro se consolava de lhe ver os olhos em lágrimas.

Concorriam visitantes à camâra de Alfredo; estimulavam-no a discorrer; e ele o fazia, com muito acordo, sobre a guerra, sem desculpar as desmedidas ambições do novo Alexandre, contrapesadas pelas iniquidades infligidas a nações pacíficas, e mais que tudo pelas incalculáveis desgraças de famílias, infernos obscuros que se acendiam aos milhares por cada instante alegre de Napoleão.

Estes dizeres animaram o fidalgo a inquirir do taciturno hóspede qual família tinha em França; se lá deixara esposa e filhos ou coração de futura esposa que lhe tornasse mais dolorosa a ausência.

Alfredo sorria com a expressão dos lábios que responde a tais perguntas, se as lágrimas não respondem logo.

Um dia, a só com o seu hospedeiro amigo, contou o francês que era pai de dous filhos, um menino de três anos, e uma menina de um, bem que não estivesse sacramentalmente ligado à mãe. Ajuntou que o seu intento era casar com sua parenta, logo que se restabelecesse a paz, e ele, com os salários de sua patente, pudesse sustentar família, sem dependência de seu pai, que vivia pouco afortunado, e do pai de sua prima, o qual, por ser um fabricante opulento, lha não quisera dar, forçando assim a filha a pedir ao crime os honestos bens que a virtude lhe pudera ter dado.

Estas e poucas mais revelações, intermetidas de lágrimas e abafados silêncios, granjearam maior afecto no ânimo do fidalgo e dos seus visitadores. Cada um trazia seu médico ou chamava de longe o mais famoso para atalhar a mortal consumpção do enfermo. Uns davam-no como incurável; outros confiavam na distracção do espírito para ideias que lhe fossem quebrando os espinhos da saudade. Acertaram os segundos.

Alfredo cobrou-se vagarosamente de forças e cor. Já saía aos campos, e se quedava a contemplar os meandros da água com semblante de suave melancolia. As agoureiras rosetas da face esmaiaram-se: antes a palidez que lhe ia volvendo o rosto à graça antiga e aos olhos a branda luz que tinha sido um brilho febril no tempo desesperado de cura.

Pouco afastada, estava uma outra quinta, por igual aprazível, pertencente a um ministro criminal que o povo tinha matado um ano antes, como jacobino. Vivia ali a viúva do magistrado com duas filhas, formosas meninas de quem os vimaranenses diziam que eram as três Graças, não obstante serem duas; porque as duas em si sobreexcediam o total dos dons das três Graças da fábula. Neste dizer, se estava denunciando que em Guimarães existira uma academia de literatos marinistas, gongoristas, quanto quiserem, mas entendidos em Graças mitológicas, e, o que melhor é, em graças genuínas, tangíveis e sinceras graças.

A viúva estava ali como emboscada com suas filhas, aguardando a paz e ensejo de entrar com elas nalgum mosteiro, onde as visse professar, e acabar ela seus dias de viuvez saudosa, no meio das suas duas freiras bentas ou carmelitas.

Acontecia, porém, que Miquelina, a bela de cabelos de oiro e olhos azuis celestes, não queria ser freira de ordem nenhuma; e, por isso, fazia votos pelas vitórias incessantes de Napoleão até se extinguirem os conventos. A outra menina, de olhos negros e lábios nunca ridentes, lia Santa Teresa de Jesus, e passava seu tempo enramilhetando os altares da capela e coroando de grinaldas as santas cabeças das imagens.

Não se davam nem se queriam as duas filhas da viúva.

Se o amor de Deus não fosse graça igual e universal de quantos o amam, dir-se-ia que se andavam desavindos aqueles dois anjos na competência de o amarem.

O hospedeiro de Alfredo Gassiot, uns dias por outros, visitava a solitária viúva, levava-lhe as novidades da guerra, lia-lhe a Gazeta de Lisboa, e contava-lhe o progresso inesperado nas melhoras do francês, contando-lhe maravilhas do juízo, urbanidade e sublime espírito do coronel. Miquelina perguntava como estaria ele triste sem o braço, tão necessário para batalhar. Roberta, a jardineira dos santos, perguntava se ele podia sem o braço ser frade. O interrogado respondia a ambas que sim, e à mãe pedia licença para lhe apresentar o seu amigo logo que ele pudesse aceitar essa honra.

- Se o francês vem cá - exclamou a viúva -, o gentio, que me matou o marido, é capaz de nos pôr fogo à casa! O receio da dama era cordato. Vieram, portanto, em que as visitas do francês se fizessem a resguardo do povo, de noute e com precaução, tão necessária à família mal vista do vulgacho, como propriamente ao coronel.

Vencido o temor da viúva, aprazaram a noute da primeira visita.

 

Milagre de certo doutor

Este capítulo e o seguinte são maus de escrever, e hão-de sair como de rastos e contra vontade.

Quem se deleita na pintura do mal? Pode ser que o talento: o pincel, que se ensopa na mescla de cores, e esponja da palheta chagas vivas esbeiçadas de pus, uma coisa que vos inculcam primor de arte, e vós mo inculcais a mim como tal, embora vos enoje e aflija.

Tais painéis não me detenho a vê-los nem os recomendo.

Mas a verdade usa prerrogativas funestas e irrecusáveis com artistas de índole avessa, qual a minha, às noventa e nova faces que ela nos mostra por cada uma formosa que tem.

Que há-de fazer a gente, condenada a este meu triste ofício, quando a Verdade lhe fila do pulso e brada: «Se escreves de mim, pinta-me qual eu sou no mal; porque, se me favoreces as feições hediondas, não te mostrarei depois as belas.»

- Mas, augustíssima soberana! - acudo eu. – Em honra vossa; em louvor de Deus, cuja filha sois; em lisonja da filosofia que vos está sempre adjectivando epítetos divinos; em glória da humanidade que há centenares de séculos vos anda apalpando o rasto, ora por sobre flores, ora por sobre agulhas de rochedos... não será melhor, mais útil, mais humanitário, ó luminosa coluna deste nosso deserto, que eu vos corrija e endireite os aleijões, de sorte e por maneira que toda a gente vos ache bonita?

- Não. Como hei-de eu, que sou a Verdade, receber de mãos tão indignas as confeições, arrebiques e galanices da mentira? Mente, falseia-me a teu talante e ao sabor dos inocentes que enganas; mas não enxovalhes o meu nome, campeando de inspirado por mim.

E, dito isto, a Verdade, figurada com uma das mais disformes caras que eu lhe conheço, travou-me do pulso e levou-me à quinta de Calvados, onde morava a viúva do magistrado e as duas filhas, Roberta, a namorada dos santos e do claustro, e Miquelina, a namorada dos rouxinóis e... do francês.

Se se usassem meios pontos de admiração, o remate do período anterior devia ser meio ponto. Admiração inteira seria encarecimento. A sã moral escrita manda que se não poupem, em certas e determinadas passagens das novelas, os pontos admirativos, visto que ainda se não inventaram os pontos de indignação; mas a gente de bom juízo dispensa que o romancista lhe decrete o espanto, porque sabe muito bem quando há-de admirar-se. Deixo ao alvedrio de cada leitor pontuar o período à medida do seu pasmo.

Eu também pasmei da repentina mutação de cena que se fez no espírito de Alfredo Gassiot, desde que, numa noute calmosa alumiada pela lua de Julho de 1811, foi conduzido à quinta de Calvados e encontrou sentadas à volta de um tanque a viúva e as meninas.

Triste pensão do pecado! Cria Deus espectáculos sublimes, e o homem quer logo senhorear-se deles e constituí-los teatros de suas perversíssimas figurações!

Aqui é que é o espantarmo-nos e o chorar! Estava o céu cravejado de estrelas, a Lua brilhante, a viração perfumada, os rouxinóis em primorosas competências de seus namorados regorjeios; a bacia da fonte oferecendo à formosura do céu o seu cristalino espelho, à volta dela uma senhora vestida de negro, a viúva consternada a cuidar que a alma do marido a vê; e duas peregrinas formosuras silenciosas, escutando cada uma os dizeres do seu anjo confidente, que lhes falava na sonora queda de água à superfície levemente agitada do tanque.

Eis aqui o espectáculo sublime que Deus criara.

E, logo, Alfred Gassiot, como enleado de tanta beleza e majestade, em vez de altear-se em louvores do Criador de coisas tão surpreendentes, desceu ao mais raso das mundanidades, imaginando as delícias de uma alma de homem que estivesse àquela hora, sendo querido de uma das duas meninas. Triste pensão do pecado!

A serpente do Éden, sempre a maldita! E nos jardins principalmente; porque folga de sub-rojar-se por entre flores, lembrada e saudosa do primeiro teatro da sua maioral façanha.

Alfredo, acolhido com urbanas expressões da viúva e acanhadas mesuras das filhas, falava pouquíssimo como se receasse quebrar com o ruído de palavras profanas a magia daquele silêncio, se não antes daquele longínquo sonido de músicas, vindas de além-mundo. Os ouvidos é de crer que ele os tivesse atentos à harmonia das esferas; mas os olhos tinha-os em Miquelina.

Instado a responder às perguntas da senhora e do amigo, o coronel, mais comovido que eloquente, contou sucessos das suas batalhas, permeando-os de considerações sobre a felicidade dos poucos deste mundo que nasceram e morreram em paz com os homens e com a sua consciência, no berço e supultura de seus avós, em obscuras aldeias por onde nunca passou o calcanhar sacrílego do homem de guerra abrindo praça ao carro triunfal de algum sanguinário ambicioso.

Esta e outras reflexões na mesma toada, ditas por boca de um francês, impressionaram gratamente a viúva para quem francês e impiedade eram sons da mesma corda.

Referiu a dama pelo miúdo a desastrosa morte de seu marido, em Braga, às mãos do povo. Embargada pelos soluços, calou-se cedendo aos rogos do estrangeiro que se acusava de ser o involuntário provocador da referência a tão deplorável sucesso.

Do jardim passaram à sala, onde Alfredo viu em todo o brilho as primorosas graças de Miquelina.

Sendo a gentileza femeal, como teólogos dizem e eu creio, traça e armadilha do inimigo da alma, de ver é que tem muito de fictícia e de por arte; e tão sobre o certo é isto que a mais consumada formosura, vista à luz do dia, tem senões que se desfazem, se a vedes à luz artificial. Ora como não havia de ganhar lindeza, com a mudança do pálido da lua para o brilhantismo do candelabro de dez lumes, a candidíssima face de Miquelina enquadrada em caracóis do oiro de seus cabelos!

Alfredo deteve-se a contemplá-la mais que o razoável. Parecia esquecido. O assombro era justo e até certo ponto justificado como enlevo de artista; mas é bom saber-se, e bom seria sabê-lo também ele, que às contemplações artísticas fornecem os Canovas e os Rafaéis estátuas e retábulos, Psiques e Galateias que não coram como corou Miquelina.

E condão das boas mães folgarem de ouvir dizer virtudes de outras. Alfredo, bem disposto a falar da sua porque poesia, mãe e amor tudo é um -, referiu em termos suaves e às vezes sublimes as suas reminiscências de menino, as primeiras lições de língua espanhola hauridas em beijos dos lábios maternais, as branduras e juízo de seus conselhos na juventude, o desagrado da santa quando ele se alistou nas bandeiras do primeiro-cônsul, os vaticínios de grandes desgraças que lhe ela fez...

- Ai! - balbuciou Alfredo. - O pior de todos me não fez ela! Fui; e, quando voltei condecorado e engrandecido, capitão aos vinte e um anos, radiante de glória, a procurar a minha ovação nos braços de minha mãe, já a não encontrei... Estava morta... Ninguém orava pelos mortos em Paris; mas eu fui ajoelhar sobre um combro de terra, onde meu pai me levou, e orei, e detive-me ali silencioso como se esperasse ouvi-la dizer-me: «Eu te abençoo!»

A viúva e as filhas embebiam nos lenços as lágrimas.

O coronel, arrancou-se do seu recolhimento mudo, exclamando:

- Mau hóspede sou, minhas Senhoras! Ou lhes desperto lembranças amargas, ou as faço sofrer das minhas!... Ainda se não disse palavra alegre... e eu, em verdade, não sei dizê-la...

A tempo foi que o relógio de parede soou as doze horas. Levantou-se o oficial. Inclinou-se profundamente e saiu.

Ao outro dia, o fidalgo de Guimarães e seu hóspede receberam convite para jantar na quinta de Calvados, sob condição de que ninguém diria coisas tristes que salgassem de lágrimas o parco jantar.

Alfredo, sabedor do convite, apertou a mão do seu hóspede e disse-lhe:

- Parece que estou ouvindo a voz de meus filhinhos que me chamam... Quem me dera forças e segurança para passar a França!

- Irá, quando muito a seu salvo possa ir. Restaure-se e espere a oportunidade...

- Mas... a minha pobre prima... – atalhou o francês.

- Quer? - acudiu o fidalgo. - Pensemos no modo de ela vir com os filhos para Portugal.

- Generosa alma é a sua! mas... assim estou eu inválido e inútil para me deixar aqui ficar ao amparo da sua beneficência, meu amigo? Não pode ser. Hei-de ir procurar a minha bandeira onde ela estiver.

- É razoável e nobre esse proceder; mas, se me permite, vou perguntar-lhe que imaginações são essas de o estarem chamando os seus filhos, no acto em que recebemos o convite das nossas vizinhas?

- Não sei que imaginações são, meu amigo; assevero-lhe, porém, que vi e ouvi meus filhos.... Aqui tem!

A pólvora não queima os órgãos das lágrimas... nem a desgraça as esgota...

E chorava falando assim.

O fidalgo, feita uma breve pausa, disse:

- Se o incomoda ir ao jantar, qualquer desculpa nos serve.

- Pois não vamos, e dê-se da falta o verdadeiro motivo: diga V. S.a que eu não quis ir.

- É necessário pagar mais dedicadamente a quem nos convida: será melhor simular a escusa com a sua doença.

O coronel pensou alguns segundos e volveu:

- Vamos.

E daí a pouco, ajuntou:

- Que fraqueza! que ridículos trinta e um anos os meus!

- Então que vem isso a dizer, Sr. Gassiot?! - perguntou o fidalgo, sem necessidade de o perguntar.

E riu-se do silêncio do coronel, apertando e sacudindo-lhe a mão:

- Ah! meu bravo francês! Fica-lhe um braço em

Portugal! Disso é que não há já duvidar. Agora, cautela, que lhe não vá ficar também o coração! Mulheres daquelas têm melhor e mais matadora pontaria que dois batalhões de ordenanças! Diga-me cá: em Paris quantas mulheres viu tão lindas como Roberta?

- Miquelina é mais linda que Roberta e que as mulheres todas do universo... - respondeu com veemência o francês, agitando um braço e o coto do outro.

- A mais linda do universo! - observou o vimaranense. - Bem se vê que o Sr. Alfredo é filho de espanhola! Verdade é que um seu patrício viajante, Virey cuido que era, escreveu que nos arrabaldes de Guimarães vira mulheres iguais às mais formosas de quantas vira na Europa. Leu isto?

- Não li; vi, que é melhor.

- Mas os cabelos e olhos negros de Roberta? Sinceramente, gosta mais de Miquehna?

- É a cabeça de um anjo. As loiras só a Natureza as faz belas. Uns olhos azuis não saem lindos senão das mãos de Deus. Ora o pincel de cada pintor celebrado tem uma e muitas Robertas. Miquelina é aquela que vive e há-de morrer sem retrato.

- Que entusiasmo! E o caso é que está ganhando cores! Se eu o vejo cativo de uma portuguesa, coronel! Se eu o vejo ainda a bater-se contra a França por amor da lusitana fada que o enliçou!... Oxalá que Junot ou Massena a tivessem visto!... Que Circe milagrosa ali tínhamos para transformar feras em...

O fidalgo subtraiu a palavra javardos para não ofender a França. Pouco lido em mitologia, o coronel não deu tento da elisão.

- Então sempre vamos? - disse o cavalheiro.

- Vamos: um francês grosseiro seria a máxima desonra da França.

- E assim, coronel, é assim - tornou sorrindo o fidalgo. - Agora muito a sério lhe digo que me congratulo de o ver assim a viver, a renascer! Vida verdadeiramente é isso que lhe dá rebate no coração!...

- O quê? - atalhou Alfredo com feitiço espanto.

- O amor: pois que há-de ser! A virtude de amar as coisas dignas; a fraqueza que mede a extensão das grandes almas. Sabe que eu amaria Miquelina se não...

- Se não quê?

- Se não amasse Roberta?

- Ah! ama?

- Amo; porém, desesperado! Tenho um rival!

- Um rival?

- Sim!... e invencível rival que ele é!

- Oh! Mais rico? mais gentil? mais fidalgo?

- Mais rico do que Salomão, mais gentil do que Narciso, mais fidalgo que os reis da Tartária, filhos do Sol!

- Está brincando!...

- Isto é mais sério que um túmulo!... o Sr. Gassiot, em lhe eu dizendo quem me contesta a posse de Roberta, assombra-se da minha coragem em disputar-lha!

- E eu conheço?

- Deve conhecer de nome e do retrato.

- Quem é?!

- O seráfico padre S. Francisco.

- Oh! oh! - clamou o francês às gargalhadas.

- Como lhe digo tornou gravemente o fidalgo. - O padre S. Francisco leva-ma ganhada para um dos seus sagrados palácios. A rapariga quer ser freira.

- E Miquelina? - acudiu o francês.

- Não se assuste! Miquelina não leu A Religiosa do seu Diderot; mas detesta os conventos como se lesse e acreditasse o novelista francês. A dos olhos negros vê tudo deste mundo pela cor dos seus olhos; a dos azuis celestes vê tudo da cor do céu e deles. Uma quer a escuridão abafadiça da claustra; a outra sobe aos picos destes montes para ver muita luz e respirar muito ar.

Parece mais francesa do que as francesas, não é assim?... São horas: vamos, que os jantares portugueses, às duas da tarde, principiam a derrancar-se... Agora reparo! - disse impetuosa e jovialmente o fidalgo. O Sr. Gassiot está outro homem! que cor! que olhos! que mavórcio aprumo!... Está curado!... Veja o milagre o doutor?!

- Que doutor?!

- O doutor Cupido! Pois quem havia de ser?!

 

Segredos

Imaginais o que sejam dois convizinhos vulcões que a súbitas repuxam espadanas de lume, golfos de matérias ígneas, as quais se cruzam, travam, confundem e consolidam num mesmo corpo de lava escandecente?

Formai assim muito em sombra uma ideia do repentino amor em que as duas almas de Miquelina e Alfredo se incenderam.

Esta mútua conflagração, anunciada na véspera, irrompeu durante o jantar. Assim foi profanada a hora mais solene da vida!

A viúva, sem impedimento da saudade do seu defunto, comia. Roberta, com o espírito sedento das santas águas do claustro, comia e bebia. O fidalgo, bem que anavalhado pelo desdém da beata, comia à tripa-forra como se carecesse de sucar os músculos para se bater com os patriarcas de todos os conventos da cristandade. Todos comiam, exceptuados os dois Vesúvios, Miquelina e Alfredo.

Dava na vista aquela abstinência! Há amores que entupem. Era de ver o esforço de ambos para deglutirem o bocado, que se lhes atravessava nos gorgomilos como frase alemã, coisa que encerra em si todas as espinhas do reino aquático!

O francês tinha ares de serafim enjoado das vitualhas com que a humanidade se enxundeia. Miquelina parecia a rola gemente obrigada a assistir a um festim de corvos naquela carniça de perus e leitões.

A viúva, como quer que entumecesse bem os laboratórios digestivos, ficou mais esperta e perspicaz. Deu logo nela. Entendeu que sua filha aparava em cheio no coração as setas que o francês despedia dos olhos indiscretos. Isto inquietou-a e encruou-lhe a digestão.

Depois do jantar, passaram ao jardim e do jardim ao bosque. Na revolta de uma álea de árvores, a viúva, apertando o passo, apanhou a filha em flagrante inocência de aceitar da mão de Alfredo um raminho de murta florida.

Fez-se a viúva escarlate e resmoneou o que quer que fosse ao ouvido de Leonor. O fidalgo, que vinha do outro lado da viúva, disse de si para consigo: «O coronel é pouco menos de doudo!»

Daí a pouco, a mãe de Miquelina inventou uma enxaqueca e pediu que lhe perdoassem a necessidade de recolher-se ao seu quarto.

Os hóspedes despediram-se.

A viúva chamou a filha a contas. Não lhas glosou a menina. Confessou que amava Alfredo. Repetiu, sem discrepância de uma, quantas finezas lhe ouvira. E, no tocante à flor da murta, revelou que o francês ao dar-lha, dissera: «Que saudade me faz esta florinha! As noivas em França coroam-se com ela. Aceite-a, que eu lha ofereço com o amor santo dos noivos às companheiras da sua vida.»

- E eu queria lá que esse homem fosse teu marido! - exclamou a viúva. - Um francês!... um herege!...

- Isso é que ele não é - atalhou a menina.

- Não?! quem to disse?

- Foi a mãe.

- Eu?!

- Pois não disse ainda hoje de manhã que ele não era herege porque falava no santo nome de Deus?

- Diria; mas falar em Deus, isso há muito quem se finja lá para os seus fins... Deixemo-nos de razões, Miquelina!... Ora esta! se eu via uma filha de meu marido casada com um estrangeiro! com um maneta! E a graça que tu achaste ao homem! De que te servia aquele aleijado? Sabes lá se ele é filho de algum alfaiate lá da França?... Douda assim! Olha o juízo de tua irmã! Vê se ela fez caso do homem ou de nenhum! Anda aí o morgado de Figueiroa a beber os ventos, e ela sempre na mesma, com um tino que faz mesmo a vaidade de uma mãe!...

Miquelina escutava com abafada indignação os argumentos nem eloquentes nem persuasivos da mãe.

Ao mesmo tempo, Alfredo Gassiot referia ao morgado de Figueiroa lealmente as frases que dissera e as poucas que ouvira de Miquelina.

O fidalgo sisudamente lhe observou que não adiantasse relações de todo o ponto inconvenientes, sendo certo que já não podia nobremente desligar-se da mãe de seus filhos.

O francês, pungido até ao imo do coração, não pôde redarguir. Quedou-se pensativo e disse:

- Tem razão. Não voltaremos à quinta, se nos convidarem.

- Convidarem! parece-me que nunca mais. A mãe de Miquelina começou hoje a padecer de enxaqueca, e não mais se restabelece, enquanto o coronel estiver aqui.

- Pois bem! - acudiu Alfredo. - Amanhã se restabelecerá. V. S.a vai dar-me de esmola uma roupa velha com que eu possa chegar disfarçado às fronteiras de França. Já me sobra vigor para a jornada. De alguma coisa serviu a milagrosa cura do doutor Cupido.

- Pois não vai, enquanto a Península estiver agitada - contraveio o morgado. - Olhe que o matam.

- Eu falo espanhol - atalhou o coronel.

- Um espanhol afrancesado que é lá verdadeiro passaporte para o outro mundo. Não vai; mais facilmente virá para aqui a sua família.

- Não, Senhor. Eu careço da sua generosidade; minha prima e os filhos estão a coberto de privações. Lá está meu pai, que tira da sua oficina de lapidário o bastante para amparo deles. Numa entreaberta de paz, posso mais facilmente passar sozinho do que acompanhado a França. Entretanto, como desejo mostrar-lhe que não receio cair de minha dignidade por me ter afeiçoado a Miquelina, ficarei; muito quisera, porém, eu que ela não padecesse maus tratos por minha causa. Faça V. S.a saber à mãe que o coronel do grande exército é um cavalheiro.

- Basta que eu o saiba. A viúva que pense o que quiser.

- Não é assim. A suspeita de que eu não o sou pode molestar a pobre menina por felicidade de quem o menor e maior penhor que eu posso dar é a minha vida.

O morgado foi à quinta e ouviu as queixas da viúva.

Quis desfazer as suspeitas, argumentando com a probidade do seu hóspede. Não fez nada. A dama desmentiu-o com as próprias revelações da filha; por onde o fidalgo entendeu que Miquelina era párvoa.

Cortadas as relações, a paixão afogueou-se de um lado e de outro. O coronel, quando contrafazia coragem e desprendimento, dava a prova suprema da fraqueza: adoeceu. Miquelina, coligada com a ama que a criara, sabia tudo da despenseira do morgado, mulher azevieira, que andava às escutas para ter que contar e com que ir entretendo a temporada da aldeia. E assim decorreram dez meses tranquilos na aparência.

O fidalgo tinha ido ao Porto, quando a despenseira contou ao francês as inquietações da menina em informar-se de sua saúde. De confidência em confidência, a oficiosa amiga da ama de Miquelina ofereceu-se para passar uma carta. O coronel escreveu, e a resposta veio sem detença. Este diálogo epistolar prosseguiu tão amiudado e salutífero que, na volta do fidalgo, já Gassiot passeava na quinta; e, conforme as denúncias dos criados, saía fora dos muros por noute alta.

Estomagou-se o fidalgo e destemperou em censuras acres à imprudência do hóspede. Defendeu-se froixamente o francês. Faltava-lhe o arnês da inocência.

As denúncias chegaram também à viúva. Passou-se o inferno para Calvados. Miquelina foi fechada no seu quarto; mas, como a janela era baixa, fugiu e foi esconder-se a chorar numa gruta do bosque. Acharam-na as criadas, trouxeram-na desmaiada em braços, e romperam todas a praguejar contra o francês, tirante a ama da menina. Os criados incorporaram-se e perguntaram à fidalga se queria que matassem o herege.

- Isso veremos ainda... - disse a senhora.

E, convocando seus irmãos e os de seu marido, contou-lhes o sucesso.

Miquelina, rodeada de homens de cabelos brancos, e interrogada por todos a um tempo e virulentamente, disse que o coronel Alfredo Gassiot queria casar com ela, e ela não casaria com outro.

Que celeuma! que murros nas tábuas das mesas! Que saltos a dous pés!

Os mais cordatos saíram fora e disseram entre si:

«Mate-se o homem.»

- Mas avise-se primeiro o morgado que ainda é do nosso sangue - emendou o mais civil.

Vieram nisto.

O fidalgo foi avisado e não se irritou grandemente com a conjuração.

- Ponha V. S.a o caso em si! - diziam-lhe os mensageiros.

E ele, pondo o caso em si, condenou o procedimento do hóspede, sem, como devia, se condenar também por ter galhofado de princípio com tais amorfos já encaminhados a funesta saída.

Passou o aviso a Alfredo Gassiot.

O coronel, mais vexado que medroso, disse:

- Será inútil pedir a mão de Miquelina?

- Inutilíssimo. Não lha dá a mãe, nem os tios consentiriam.

- Pois então que me matem! - disse serenamente o coronel.

- E os seus filhos? e sua prima? - objectou o morgado.

Alfredo emudeceu. A consciência estrangulava-o.

Apertaram os avisos e ameaças de um assalto à quinta.

O fidalgo disse peremptoriamente ao hóspede:

- É necessário sair, que eu temo a ira da canalha.

Vêm aqui matá-lo. Eu e meus criados temos de defender a dignidade desta casa: morreremos todos!

- Não! - atalhou Alfredo.

O francês quis escrever a Miquelina; mas a despenseira já tinha sido expulsa, como suspeita medianeira da correspondência.

Pensou em suicidar-se, atirar-se inerme às balas dos assassinos e morrer à vista de Miquelina; mas o Senhor mandou que dois anjos lhe avoejassem diante dos olhos mergulhados na voragem dos criminosos a quem não resta sequer a virtude da expiação. Eram os filhinhos dele. A imagem da mãe não vinha. Essa não a mandara Deus, porque também era pecadora.

Calada a noite, Alfredo Gassiot abraçou os joelhos do seu benfeitor e saiu com um guia. De madrugada estavam em Barcelos, desviando-se de estradas e pontos do Minho mais cortados de guerrilhas. O coronel trajava de almocreve castelhano. O corte cerce das barbas desfigurava-o, e a linguagem não desdizia do trajo. Ao meio-dia descansaram em Ponte de Lima. Aqui deu o criado do fidalgo um embrulho de ouro ao francês.

O coronel, contado o dinheiro, escreveu um recibo em forma de título de dívida que entregou ao criado. Deixou a cavalgadura, e foi pernoitar ao Tizou Dourado.

Que vá com Deus.

Os arcabuzeiros de Calvados recolheram os espias.

Ora, os parentes mais briosos, ao saberem que o francês passara a Espanha, arrepelavam as honradas cãs, envergonhados de o deixarem ir.

- Matá-lo era de mais! - contradizia o chantre do cabido bracarense. - Não vêem que se o matassem difamavam nossa sobrinha, e maliciavam uma inclinação amorosa que não passou de cartas?

- Mas venham as cartas para se verem! – exclamava um capitão-mor. - As cartas é que hão-de dizer...

- Não nas há! Miquelina queimou-as.

A tempestade acabou nisto. Recolheram aos seus solares, conventos e cabidos os parentes.

A viúva serenou. Roberta, escandalizada das cenas tumultuosas que lhe quebravam a sua usual oração em estado de embriaguez e dormitação das potências, como diz Santa Teresa de Jesus, pediu a clamores que a deixassem ir recobrar-se e sossegar no convento das Ursulinas de Braga. Era justo o requerimento. Foi, sossegou e fez vida de Céu.

Ficou Miquelina com sua mãe.

Vivia no seu quarto. Ouvia missa na capela da casa, e ficava horas esquecidas a orar, devoção que não usava dantes. Deus teve pena da sua formosa criatura. Mandou-lhe a fé pela mão da desgraça. Raras vezes deixam de andar unidas.

Correram alguns meses. A reclusa pediu um confessor dos franciscanos de Guimarães, ancião que gozava de conceito de ilustrado e santo.

Foi confissão larga e de muito soluçar.

Volvidos dias, o frade fechou-se com a viúva. Miquelina soube da sua ama que a mãe dava grandes gritos e o frade exclamava: «Perdão, caridade e misericórdia!»

Ao outro dia, a viúva saiu de Calvados, e foi juntar-se à filha, que principiara noviciado nas Ursulinas.

Os criados foram despedidos pelo frade. Na quinta ficaram a filha e sua ama.

Mais tarde, correu o boato de que Miquelina se recolhera ao mosteiro de Lorvão, onde tinha parentas.

Facilmente o creríeis. Nem uma janela aberta das espaçosas casas! Nem viva alma nos arredores da quinta, senão o frade de Guimarães e um leigo, os quais entravam em dias santificados. O povo conjecturou que o frade ia ali dizer missa por alma do magistrado, sendo-lhe obrigatório sufragar no altar da casa.

O que aqui vai de segredos para quem ignora as declarações que Miquelina fez ao seu confessor!

 

Flávia

Às onze horas da noute de dez de Setembro de 1812, dous vultos, vindos da banda de Calvados, entraram em Guimarães e pararam pouco distantes de uma casa alpendrada na rua chamada Sapateira, atentando o ouvido e certificando-se de que não eram seguidos nem espiados.

O vulto mais corpulento era de homem, e de frade leigo dos capuchinhos de Santo António, qualidade de que ninguém lhe assinaria no escuro da noute, por ter ele arregaçados e apertados na cintura os hábitos. De feito, era ele o companheiro e fidelíssimo confidente das virtudes do confessor e pai espiritual de Miquelina.

Era de mulher o outro vulto encapotado num josezinho de mangas, como então se dizia duns capotes que tiveram em Portugal reinado longo.

Pois como assim? As onze da noute, naquele deserto de Guimarães, um leigo capucho a sós com uma criatura femeal de josezinho?! E então certo que se tinha corrompido a religião seráfica no mal lavado berço do primeiro rei?

Não, zelosos peitos, não! Aquela mulher, maior de cinquenta anos, era a ama de D. Miquelina; e o leigo que lhe está ciciando não sei que segredos é a pureza em pessoa, a virtude tão no requinte da simplicidade que chega a dar pela barba do idiotismo: tanta é a semelhança dos louquinhos mansos deste mundo com as altas inteligências engolfadas no seu Criador! Se não, ouçam o que for audível do diálogo:

- E então, irmã, que fazeis agora?

- Agora, Sr. Fr. Joaquim, vou puxar à campainha e deixo a criança na roda.

E, dizendo, buscava a ama enxergar as feições da menina, ao mesmo tempo que lhe achegava dos beiços uma chuchadeira de marmelada.

- Como é lindo o anjinho do Céu - murmurava a ama. - Quer ver, Sr. Fr. Joaquim?...

- Valha-me Deus! - dizia o frade descurioso da lindeza do anjo. - Não estamos aqui bem, Sr.a Custódia! Olhe se se avia quanto antes... Pode vir gente e os tempos vão maus para se andar a tais desoras na rua... Ande depressinha, pelas almas... Leve lá a criança que eu espero aqui.

- E para que há-de V. Mercê esperar? O melhor é ir-se com Deus - disse a Sr.a Custódia ao leigo que tremia de susto e frio nervoso.

- Então eu ao que vim? - tornou ele. - O reverendo Sr. Fr. Lázaro recomendou-me que assistisse à postura da menina no hospício dos enjeitadinhos.

- Pois eu vou já, que ali abaixo naquele alpendre está a roda; mas se V. Mercê lá chegar à beira e alguém o vir e conhecer que dirá?...

- Isso assim é! Diz você muito bem, Sr.a Custódia!

Se me vissem eram capazes de... Credo! nem quero que me lembre!...

- Pois aí está! - volveu a ama de Miquelina. V. Mercê, Sr. Fr. Joaquim, arrede-se para mais longe, que eu vou levar a menina à roda, e de lá vou descansar até à madrugada a casa de uma irmã que tenho na Rua da Infesta.

- Então você não volta já para Calvados?!

- Não, Senhor, que tenho os pés a escorrer sangue. V. Mercê vai?

- Pois valha-me Deus, que remédio tenho senão ir?

As portas do convento não mas abrem agora: e o Sr. Fr. Lázaro ordenou-me que voltasse com a Sr.a Custódia.

- Eu cá de mim não vou. O que posso fazer é pedir a minha irmã que mande um filho acompanhar o Sr. Fr. Joaquim, se tem medo.

- Agora tenho eu medo! A estrada está limpa daqui até à quinta; mas eu sempre quero ver se lá fica na roda a criança; é a ordem que me deu Fr. Lázaro.

Custódia cogitava inventos com que afastar o leigo, quando o acaso lhe acudiu com pronto remédio.

Abriu-se o portal de uma das muitas casas nobres da Rua Sapateira, e por ele saiu um magote de damas e homens que vinham de passar um delicioso sarau no jogo do «Anel» e do «Sr. Abade».

O leigo, quando viu dez criados com vinte lampiões de quatro lumes cada lampião, e uma chusma de boas quarenta pessoas em grilharia de risos e adeuses, despediu a fugir para o escuro de uma viela resmungando:

- Valha-me Deus! valham-me as Três Pessoas!...

A Sr.a Custódia, em vez de segui-lo tomada de susto, escapuliu-se pela Travessa do Anjo, desceu por atalhos à Rua do Bimbal, e daqui à da Calçada por onde entrou na estrada de Braga.

Que afoiteza de velha por aquela escura noute e pedregosos caminhos com uma criancinha aconchegada do bafejo da sua boca!

Alvejava a manhã, quando Custódia chegou a um lugar chamado as Gaias, na freguesia de S. Martinho de Sande. Bateu à porta de uma casa baixa e chamou por Luísa do Canto, que lhe abriu prestes e mandou entrar.

- É rapaz ou cachopa? - perguntou a mulher das Gaias, tomando a criança dos braços de Custódia.

- É uma menina. Já traz água benta, porque a pequenita vem tão enfezadinha que parece ir-se deste para o Céu.

- Já tem nome?

- Flávia.

- Flávia! isso não é nome cristão! Flávia!... que berzabum de nome! Quem lho pôs?

- Foi lá quem quis, não sei...

- Foi a mãe?

- Seria...

- E então vossemecê - disse Luísa, aleitando a criança faminta - não me há-de dizer quem é a mãe desta menina?

- Já lhe disse que nem à custa da salvação o diria: e vossemecê não mo torne a perguntar que perde o tempo; e mais lhe digo que, se eu souber que alguém anda a botar inculcas, tiro-lhe a criança; e, se lha tirar, é uma moeda de ouro que perde cada mês.

- Moeda de ouro! - exclamou como assombrada Luísa. - Então eu ganho uma moeda de ouro?!

- É como lhe digo.

- Então a menina é filha de fidalgo ou fidalga!...

- E ela a dar-lhe!... Que lhe importa?! Ora tome tento no que vou dizer-lhe: vossemecê há-de fazer constar que foi buscar esta menina à roda do Porto, ouviu?

- Ouvi: isso lá não me custa.

- Se lhe perguntarem quem vem aqui vê-la ou quem lhe traz fatinhos, vossemecê diz que é de muito longe que lhe mandam os vestidos; e ainda que acerte de me ver alguém nesta casa, nunca diga que eu venho aqui à conta da menina.

- Esteja descansada.

- Agora aqui tem dous meses de criação, e até breve que eu cá virei trazer-lhe maior enxoval. Este que lhe deixo é para remediar.

Custódia ajoelhou-se a beijar a face da criancinha e saiu apressadamente por caminho oposto ao que levara, a fim de desviar qualquer suspeita de Luísa.

A mulher saiu à porta e disse:

- Ouviu?

- Que é?

- Vossemecê como se chama? Nem me diz o seu nome!...

- Sou Gertrudes.

- Então adeusinho, tia Gertrudes... Vossemecê por onde vai por esse lado?

- Vou para Santo António das Taipas. Fique com Deus.

Luísa cismou alguns minutos e disse consigo:

- A mulher é de Braga... Que me cortem as orelhas, se esta menina não é filha de algum senhor cónego da Sé!... Uma moeda de ouro por mês! Se isto assim for, ainda arranjo dote... Foi Deus que me fez topar esta criatura na feira de Guimarães!

Volvidas duas horas e meia, Custódia entrava na quinta de Calvados.

Foi à câmara de Miquelina. Estava junto do leito dela uma velha de Guimarães, confessada de Fr. Lázaro. Era uma mulher esgrouviada, formidável e apontada ao céu como flecha granítica de catedral. Com os braços cruzados sobre o arcaboiço do peito e os olhos mortiços nas suas cavernas escarnadas, parecia o frade vestido de mulher. Todavia, como toda ela simulava uma silente e feia morte, para congruência do todo, segredo que lhe dissessem caía numa sepultura. Esta mulher, medianeira em obras grandemente caritativas de Fr. Lázaro, sabia do próximo umas misérias de tal tamanho que, por não poder referi-las, eram como cancros que lá dentro lhe roíam as carnes e os ossos até às medulas.

Miquelina fitou os olhos nos de Custódia e abriu um sorriso de alegria em resposta ao da sua ama.

A confessada de Fr. Lázaro saiu fora da alcova, acenou a Custódia e disse-lhe:

- Foi tudo bem com Deus?

- E com a sua Mãe Santíssima - respondeu a ama. - Puxei pela corda, como vossemecê me ensinou, pus a menina na roda e dei-lhe a volta. Daí a nada ouvi lá dentro rebuliço e dei tino de tirarem a menina da roda... Que pena me deixou no coração vê-la ir, Sr.a Maria Eusébia!...

- Pois sim, sim, filha; mas... - disse a medianeira de Fr. Lázaro, afastando-se para mais longe da alcova.

- Uma menina tão fidalga, de tão bom sangue... prosseguiu Custódia.

- Credo!... não diga isso - atalhou a beata. – Lá por parte da mãe o sangue bom é e cristão do melhor; mas do pai não falemos; que sangue de herege que o leve a breca; e de francês então, arreda da minha porta para as profundas do Inferno, Deus me perdoe, e minha boca não peques!

E, dizendo, tapava com a palma da mão direita a boca, penitenciando-se com uma sonora palmada.

- Pois sim... - replicava Custódia; - mas a criancinha que culpa tem?! É tão filha de Deus como vossemecê e eu e todos.

- Apelo eu, Sr.a Custódia; vossemecê não sei; mas eu cá de mim não tenho sangue de herege no meu corpo. A minha geração é bem conhecida; pobre sim; mas de limpeza de sangue, sou como as mais limpas, não no digo por gabação. A criança deixe-a crescer, e verá quem viver como há-de atirar à inclinação do sangue que a gerou. Sabe vossemecê? muito grande favor lhe fazia Deus se a levasse já para o Céu.

- Descanse, Sr.a Maria Eusébia, que o mais certo, é isso - atalhou Custódia; - lá na roda de cem escapam dez enjeitadinhos: e então aquela que era mesmo uma lerquinhas, está ali está ida...

- Pois Deus a tome de sua mão...

- Uma filha da Sr.a D. Miquelina! - prosseguiu a ama, com as mãos postas a trejeitar por maneira de muito lastimada - uma neta do Sr. Corregedor, que Deus tem!...

- Isso agora... - interrompeu Maria Eusébia.

- Isso agora o quê?

- Que Deus tem... resta saber... Vossemecê bem sabe que ele não morreu por bom, se é verdade o que dizem. Por aí rosna-se que ele era jacobino; e, se era, morreu pelos seus justos cabais. Que eu não sei se era nem se não... Cala-te, minha boca.

E esbofeteou os amarelidos beiços com severa caridade.

Depois, continuou:

- Peccatus meus contra mé és sempre, como diz Fr. Lázaro. Veja vossemecê o castigo! Ele pagou-o; e o sangue dele cá o está pagando. A filha está ali sem mãe nem parentes, desamparadinha, a penar os seus pecados. A neta lá está na roda para... Deus sabe o quê. Enfim, o castigo é claro como a luz ao pino do meio-dia!

Não posso, não posso levar à paciência que esta fidalga perdesse os seus créditos com um sevandija imundo lá da França!... Que isto ninguém o sabe senão nós...

Quem no diz bem é o leigo Fr. Joaquim que é um santo. Diz ele que o herege devia ser queimado para aplacar a vingança de Deus. Deixaram-no fugir! Que cabeças estas de senhores parentes desta casa!... Se dessem cabo dele, talvez que Deus perdoasse à pecadora e voltasse para outra parte o raio da sua justiça... Enfim, rezemos muito para que a fidalga se esqueça dele, e confundido seja o Demónio nas profundas do Inferno.

Padre nosso que estais no Céu, santificado seja o vosso nome...

Custódia correu ao quarto de Miquelina, ouvindo-a gemer.

Maria Eusébia foi depois a ama, resmoneando a sua oração.

A enferma, como visse assomar à porta o carão repulsivo da beata, fez um trejeito de enfado e disse:

- Está tu ao pé de mim, Custódia. Vossemecê, Sr.a Maria, se tem de ir à sua vida, vá que eu estou bem com a minha ama.

- Estou às ordens do Sr. Fr. Lázaro - disse Maria Eusébia impertérrita.

- Mas o Sr. Fr. Lázaro que ordens lhe deu?

- Que estivesse aqui à beira da senhora e lhe chegasse os caldinhos.

- Pois cá tenho a minha ama... - acudiu Miquelina agitando-se colérica. - Deixe-me!... Deixe-me morrer em paz!...

Maria Eusébia, com as mãos cruzadas sobre o seio, hirta e dura como o batente da porta a que se encostara, continuou o Padre nosso interrompido, dando de olho a Custódia como se dissesse: «Está impecada! é o Demónio que a está atormentando!»

E, saindo fora, tirou de uma caldeirinha de estanho um ramo de alecrim ensopado em água benta, e entrou a aspergir as paredes da antecâmara e a padieira da porta da alcova, murmurando:

- Vai-te, cão tinhoso, para a tua furna; vai-te onde não faças mal, dragão, perro!

E amesendrou-se à porta da alcova.

A um aceno de Miquelina, inclinou-se-lhe Custódia com o ouvido aos lábios.

- Ficou em Sande? - segredou a menina.

Custódia fez um gesto afirmativo.

Nisto, ambas deram conta de entrar rente com a couçoeira da porta uma coisa que parecia mover-se aérea e lentamente dous palmos acima do soalho: era a cabeça de Maria Eusébia.

Miquelina, incendiada em raiva, sentou-se no leito e exclamou :

- Saia daí! Que fantasma do Inferno!

- É fantasma do Inferno, é... - disse Maria Eusébia sacudindo outra vez o ramalhudo hissope e esconjurando o Demónio com apóstrofes enérgicas e seu tanto ou quanto pavorosas.

 

Coração de mãe

Maria Eusébia valia tanto no ânimo de Fr. Lázaro que vingou convencê-lo da eficácia dos exorcismos na zanga endiabrada que Miquelina lhe tinha a ela. O capuchinho, porém, provocando o suposto Satanás com as palavras que o fazem espinotar dentro dos energúmenos, e vendo que Miquelina as escutava impassivelmente, desistiu das operações demonífugas, e entendeu que a austera virtude da velha fazia repugnância com o espírito juvenil e pecador da dama. Pelo quê, ordenou à sua confessada que saísse de Calvados e fosse entender nuns actos de virtude e préstimo análogos aos que acabava de exercitar.

Aqui é tempo e lugar de dizer aos curiosos investigadores da arte obstétrica em Portugal, e nomeadamente em Guimarães, que Maria Eusébia, quando a ciência de partejar começava a dilucidar-se das trevas do empirismo, já ela se gozava do renome de primeira obstetriz do Minho, e também de confidente de culpas, as quais, denunciadas, cobririam de crepes enlameados os mais arrogantes brasões de algumas famílias sobremodo prolíficas, contra o lícito e decoroso.

Desafogou-se, pois, D. Miquelina de Fr. Lázaro, do leigo Fr. Joaquim e da beata Maria Eusébia. Já podia em todo desassombro conversar com a ama, chorar com ela, desabafar saudades da filha, e até lastimar-se mais desoprimida ao Senhor, pedindo-lhe perdão de seus delitos, ou invocando-o no remédio de sua honestidade e créditos perdidos.

Foi de pouca duração o sossego e liberdade que lhe deixaram.

Os tios cónegos e capitães-mores, sob capa de administrarem os bens da viúva reclusa nas Ursulinas, introduziram em Calvados um capelão também encarregado de feitorizar as quintas e dispor de tudo, sem dependência de Miquelina. Com o padre entraram criadas e criados de sua confiança, bem adestrados em espiarem os actos da senhora. A parentela temia-se de alguma invasão pessoal do francês à quinta, desde que o morgado de Figueiroa, divulgando que Alfredo Gassiot lhe enviara de Madrid um criado com o dinheiro que recebera de empréstimo, propalava o cavalheirismo do coronel, e asseverava que ele viria a Portugal reparar os créditos desdourados de D. Miquelina.

Isto justamente é o que não queriam a viúva, os prebendados e os capitães-mores. A honra deles transigia com o desdouro da parenta, fazendo de conta que a infamada era ela tão-somente; ao passo que o casarem-se os culpados redundava em afronta que ia pelos séculos volvidos a encarvoejar a cândida memória de avós, e entrava aos séculos porvindouros, representada nos descendentes do francês e de Miquelina.

De sorte que, à roda da opressa senhora, formou-se uma jolda de espias que a traziam de olho e a não deixavam, sem testemunhas, falar com pessoa de fora.

Desagradou ao padre feitor a muita intimidade de Miquelina com sua ama. Propôs aos parentes o afastamento da criada suspeita. Os parentes consultaram a viúva. A viúva condescendeu na despedida da velha ama, que tinha vinte e três anos de casa.

Custódia recebeu o aviso de se aprontar para receber suas soldadas e sair. Miquelina ouviu os gritos de sua ama. Soube a causa. Nem leve queixume soltou. Recolheu-se à sua câmara e saiu logo vestida para sair.

Acudiu o capelão, fiado na sua autoridade até então tratada com indiferença, se não menoscabo. Falou com altaneria e provocou a ira, a soberba e destemido arrebatamento da fidalga.

- Hei-de sair com esta mulher! - exclamou ela de fito a fito com o pálido clérigo. - Hei-de sair com esta mulher que me criou ao seu peito. Não tenho outra família. Não tenho outra mãe. Minha mãe é esta. Se me impedirem a saída, podem arrancar-me a vida a pedaços, que eu hei-de romper ainda que se levantem contra mim os criados desta casa!

O capelão esmoreceu. Pode ser que o não enfreassem tanto as razões como a esplêndida beleza de Miquelina colérica. Nem os capelães, digamos isto sem deslouvor deles, são insensíveis aos nervos de uma formosa mulher a faiscarem áscuas eléctricas por lábios e olhos!

Chamou o clérigo a lagrimosa Custódia e disse-lhe que ficasse até nova ordem. Contou o caso aos cónegos; os cónegos ouviram a viúva; e a viúva, sisudamente aconselhada, ordenou que se não despedisse a ama, a fim de evitar que Miquelina, levada da sua desesperação, saísse à luz do mundo com algum maior escândalo.

O chantre conselheiro de bom aviso quebrou o génio furioso da velha, dizendo-lhe que os crimes de Miquelina seriam notórios, se ela, abandonada dos seus, sentisse o impudente prazer de os assoalhar.

Acalmada esta borrasca, os dias de Miquelina correram intercalados de lágrimas e esperanças. O chorar era-lhe tão natural que nem ela poderia viver sem isso; mas o esperar, naquele ser de vida tão sem luz de perto ou longe, não sei eu que esperava ela!

Tirante Custódia, ninguém lhe dizia palavra de Alfredo Gassiot. As coisas, que a ama lhe dizia, nada tinham com o futuro. O fidalgo, que tão amigo fora dele, nunca mais Miquelina o viu; e Custódia, espreitada tanto como a sua senhora, não ousava tentar vê-lo.

Então que esperava Miquelina? Tudo que pode caber de esperanças doces e regozijos realizáveis em coração de mãe.

Esperava sua filha. Que infinitos horizontes para os anelos de uma alma sozinha e sequestrada de outras consolações! Esperar uma filha? Que enchentes de jubilosos anseios? Que exultações concede a benigna misericórdia às condenadas pela nossa jurisprudência!

O mundo, uma cousa que se chama enfaticamente «o mundo», apedreja a pobre, que se empareda para não ser afogada em lama; mas se a precita põe mão no seio esquerdo, e diz «eu queria ter aqui meu filho, Senhor!

Eu sou criminosa; mas sou mãe!», se ela assim dá suas lágrimas a traduzir aos anjos, o Senhor responde: «Espera tua filha!»

E estas palavras são divinas e soam como as outras de Jesus: «Deixai vir para junto de mim as criancinhas.»

Que santo e meritório, pois, não será na mente de Deus o pedirem-lhes as mães seus filhos para as doçuras do seio palpitante delas! Que faz Deus então às que Lhe pedem?

Envia-lhes a esperança.

Aqui está o que eram as intercadências de sossego na vida de Miquelina. Esperar, mas somente esperar sua filha.

De dous em dous meses, Custódia, com astuciosa submissão, pedia licença ao clérigo para ir passar dous dias a Guimarães com sua irmã da Rua de Infesta.

Saía, forrada à mínima suspeita, e, por caminhos trocados, ia a S. Martinho de Sande, e passava algumas horas em casa de Luísa do Canto.

A criança, abrindo cada dia uma pétala formosíssima da flor que havia de ser, tivera a dita de ser confiada a uma boa ama. Custódia, do pouco que D. Miquelina podia dar-lhe e das suas soldadas, pagava generosamente os desvelos de Luísa, com promessas de grandes benefícios ao futuro. Algumas vezes lhe tesoirava uma loira mecha de cabelinhos e os levava à mãe. Miquelina escutava ansiada a descrição por miúdo das feições de Flávia, com os cabelos dela, húmidos de lágrimas, colados aos lábios. Dizia que as feições da filha as via no espelho da sua alma, e que entre mil crianças saberia estremar a sua. Porém, como este ver imaginativo não bastava ao seu amor, a pobre senhora chorava muito e fantasiava desatinos que se desfaziam na validíssima palavra de Deus: «Espera.»

Dos desvarios que a esperança sopeava não era o menor querer ela fugir, senhorear-se de Flávia e ir numa cidade longe servir uns amos que a deixassem nas horas desobrigadas estar com sua filha. Que maviosidade tem isto de serem os instintos fidalgos suplantados pelo amor de mãe!

Custódia, sem o querer, auxiliava o intento, dizendo-lhe que ela trabalharia para sustentar mãe e filha; mas contra estes incentivos do louco fantasiar sobrevinham outras esperanças mais brilhantes e acomodadas a um espírito formado na casa solarenga de Calvados. De si consigo dizia Miquelina: «Minha mãe está velha, e minha irmã professou. A herdeira desta casa hei-de ser eu necessariamente. Assim que minha mãe falecer, estou rica e livre. Minha filha virá então para mim e será recebida no seio da abundância e do contentamento. Estas dores de hoje são fortes, mas não me hão-de matar; as alegrias do futuro serão tamanhas que eu hei-de tornar à mocidade para poder folgar e brincar com a minha filha...»

Nestas alternativas decorreram dous anos.

A viúva continuava a viver.

Mas o pior não era viver. Figurou-se-lhe que a madre Santa Teresa de Jesus ou os patriarcas S. Bento e S. Bernardo deviam de agradecer-lhe muito o reduzir ela Miquelina às celestiais delícias de um convento de franciscanas, de bentas ou bernardas. Quem lhe sugeriu esta devota ideia foi seu cunhado capitão-mor, no intuito de puxar a casa do corregedor, seu irmão, a um filho dele, dado o caso de professarem ambas as sobrinhas.

Chegou a proposta a D. Miquelina, mediante o capelão. A senhora respondeu pronta e redondamente que não tinha tendências para freira, nem chegaria com vida ao convento onde a quisessem matar aos poucos. Sabedora da resposta, a viúva exasperou-se, mas cedeu ante a inutilidade da violência. Ocorria-lhe sempre a ideia tenebrosa de algum enorme escândalo. O facto entre a sua ira e a inobediência da filha quem o fazia era o segredo de ela ser avó.

O capitão-mor, baldada a sua velhacaria, entrou a cismar, como homem de pundonor que era, no teor mais honesto de ajuntar à sua a casa do irmão. De conselho em conselho, parou no mais racional: casar um filho segundo, idiota e aleijado, com Miquelina. A própria viúva se espantou da proposta; mas, em abono do capitão-mor, assevero que o homem não sabia de sua sobrinha senão que entre ela e um francês se trocaram cartas.

A cunhada, ouvida a proposta, passou do espanto ao riso; ela que nunca mais se rira depois que lhe mataram o    marido! Obrigada a explicar o riso, disse a viúva que Miquelina decerto não aceitava um marido que passava o seu tempo a fazer caretas a um espelho e a imaginar que um joelho monstruoso que tinha de nascença era a cabeça de um apóstolo de pau.

O irmão do corregedor não achou graça a isto, nem eu.

Que tinha que o moço carateasse e imaginasse num ou nos dous joelhos cabeças de apóstolos?! Podia ser com tudo isso um óptimo marido.

Daí a dias, voltou o capitão-mor e ofereceu à viúva o primogénito, rapaz bem posto, valentão, que se jactava de ter matado cinco franceses em Pombeiro, não falando em sete feridos que ele fizera queimar vivos no carro que os transportava: feito horrendíssimo que tornara o patriota o mais repulsivo dos homens aos olhos de Miquelina.

Como quer que fosse, a viúva disse que não propunha casamentos a sua filha, escusando-se de declarar os honrados escrúpulos que a impediam. - No entanto, ajuntou ela, não promovo nem embaraço tal casamento.

O capitão-mor determinou entender-se com a sobrinha, por intermédio do padre feitor.

Alegrou-se notavelmente o clérigo com tal mensagem, e deu, sem mais nem menos, como concluído o ditoso enlace. Foi muito jovial à presença da senhora, prefaciou a proposta com desusadas galanterias e graçolas, teve-a suspensa sobre adivinhar a festiva novidade que lhe levava, e finalmente expeitorou a proposta.

D. Miquelina quedou-se um instante meditativa.

O meditar não era reflectir. Era dominar o ímpeto de raiva que lhe aqueceu as faces contra o incendiário dos franceses feridos. Apagado o relâmpago da cólera, disse:

- Não caso!

O clérigo atordoado não atinava com palavras; que ideias boas seria milagre que as ele tivesse então pela primeira vez. Tartamudeou. Mas ela, erguendo-se de salto, repetiu:

- Não caso, já disse!

E saiu.

Foi o capelão emborcar este pedaço de fel nos gorgomilos do capitão-mor, o qual neste acto, para se vingar dignamente do desaire, deu a entender, em frases nada equívocas nem honestas, que sua sobrinha não gozava bons créditos em sentido nenhum.

Vingança briosa!... O padre propriamente, com ser um vilão maior da marca, notou que o fidalgo, antes da negativa da sobrinha, já devia de saber que ela não gozava bons créditos em sentido nenhum.

E foi tão longe a sanha da beliscada honra do capitão-mor que por boca dele, a vómitos de calúnia, regorgitou a notícia de que Miquelina tinha sido apanhada em arranjos de fuga para França em cata de um ateu que os soezes frades de Pombeiro não tinham deixado matar.

Era péssimo o inimigo!

Antes, mil vezes antes, casada com o idiota que tinha no joelho uma cabeça de apóstolo!

 

Um sorriso da traiçoeira desgraça

Afez-se Miquelina a vencer. Tinha levado a melhor na luta com os parentes que lhe queriam tirar a confidente; voltara impunemente as costas ao convento proposto pela mãe; repelira com denodo o primo, filho do capitão-mor. Habituara-se à vitória na resistência. Ganhou ousio e destimidez para abalançar-se a executar uma empresa que a trazia, de muito, alvoroçada: ver a filha.

Flávia tinha vinte e seis meses. Podia passar algumas horas sem a ama, visto que já se não alimentava do seio dela. Custódia, com as cautelas do costume, iria buscá-la à aldeia das Gaias; e por caminhos travessios chegaria à extrema da mata de Calvados, onde Miquelina iria às escondidas pelo mais afogado do bosque.

Hesitou Custódia; mas as carícias lagrimosas da menina puderam tanto no seu amor que não dilatou a condescendência nem a ida.

Foi, enroupou a criança com os seus vestidinhos mais sécios, jurou à ama que, dentro de cinco horas, lha restituiria, e pôs-se a caminho por devesas e tapadas que ela conhecia de sua mocidade de pegureira.

À hora convencionada, Miquelina, como o padre andasse fora e os criados estivessem longe, foi despercebida ao lugar ajustado e esperou breve tempo.

Adivinhou-lha o coração, quando Custódia vinha subindo rente com umas ribanceiras, sem poder ser vista da mãe arquejante. Miquelina tinha as mãos postas sobre o mais alto do seio, e murmurava: «Eu vos agradeço, meu Deus, eu vos agradeço, meu Deus! Sou tão feliz que o não merecia...»

Nisto, assomou Custódia à vista da mata; e logo Miquelina, transpondo o portelo que a separava do caminho, correu para a filha, exclamando:

- Oh! como ela é linda! ai! a minha filha que parece um anjo!

- Fale baixo, menina - disse Custódia, examinando em volta por entre a clareira das árvores. - Ninguém a veria?

- Ó Flávia!... Ó Flávia! - clamava Miquelina, tão embevecida na criança, que não ouvia as perguntas assustadas da criada.

- Ninguém a viu sair de casa? - instava Custódia, puxando-lhe pela manga do vestido, enquanto ela sentada no chão, com a filha no regaço, lhe dava tantos beijos quantas eram as lágrimas de alegria que caíam nas faces da menina algum tanto estranha e assustada.

- E hás-de tu sair dos meus braços outra vez?! exclamava Miquelina. - Ó Custódia! eu vou ficar outra vez sem minha filha!...

- Que remédio, Senhora!

- Ai! não me digas isso, por amor de Deus!... Ó filha! ó inocentinha! pede ao Senhor que te não arranque de mim! Pede-Lhe que me ensine o modo de ter-te sempre nos meus braços!... Ó Jesus! ó Mãe das Dores! ó Maria Santíssima... dai-me esta felicidade de todas as mães, que eu nunca mais levarei aos pés do confessor um pecado que me envergonhe do mundo e me faça cair no vosso desagrado!... Flávia, Flávia!... pedes ao Senhor?

A criança chorava.

Que resposta à maviosa súplica da mãe!... Chorar!

Se a pobre senhora tirasse agouros daquela súbita explosão de lágrimas que lavaram o rosto da criancinha, fita e como espantada nas frenéticas blandícias de sua mãe!...

Custódia passou à mão de Miquelina uns bolinhos que a criança não quis comer.

- Será de sede que chora? - perguntou a mãe.

- Será... mas a água corre lá em baixo tão longe...

Miquelina levantou-se de golpe e desceu acelerada por entre uma vereda de espinheiros e silvas, defendendo a filha com a cabeça e braços para que algum espinho a não ferisse.

Custódia forcejou em vão por contê-la, dizendo-lhe que ia ela. A mãe, que simulava a bela demência do amor maternal, corria como se a perseguissem. Chegou à ourela de um ribeiro; debruçou-se a colher água nas mãos com a qual enchia a boca e a passava aos beiços da criança. A menina bebeu, aquietou-se e quis sentar-se num relvado que a corrente humedecia. Sentou-se ao lado dela a mãe, e quedou-se enlevada a vê-la atirar seixinhos à água.

A criada queria lembrar a D. Miquelina que era tempo de separarem-se; mas o coração não na deixava.

A mãe ia e vinha, sentava-se e logo se levantava, sorria e chorava, com a filha tão vertiginosamente estreitada ao seio, que já a ama lhe dizia:

- A senhora abafa-me a pequenita!...

- Deixa-me... deixa-me que ela já sabe que eu sou sua mãe! Não vês este olhar tão piedoso que ela me lança! Que formosura! como eu quero à ama que tão linda te tem! E gordinha como ela está! não vês, Custódia?... Quando eu for rica, hei-de dar uma casa com uns bens a quem te cria, meu amor!... Bem mo dizias tu que nunca tinhas visto criança tão bonita... E disseste-me que eu era assim em pequenina!...

- Era sim, minha Senhora.

- Não é possível!... Eu não podia ser tão linda... Oh! que lembrança, meu Deus! perdoai-me! não me castigueis... Tende compaixão de minha fraqueza!...

E, dizendo, mudou tão de repente para o torvo da amargura, que parecia a transição do júbilo de louca para a intermitente da tristeza.

- Que tem, menina?! - acudiu a ama. - Que lembrança foi essa?!

- Tenho medo de to dizer... Deus castiga-me...

- Porquê?... pois Deus não é tão bom!... Que é, minha filhinha? que lhe lembrou...

- Que me lembrou?... Sabes o que foi?... Olha... lembrou-me... se ele a visse... se Alfredo visse este anjinho!... Deus não me castigará!? - disse ela com muita ansiedade. - Deus não me castigará?...

- Não, menina, pois que mal faz isso? Pode ser que ele ainda a veja e lhe dê tantos beijos como a senhora lhe deu, e lhos dê até ir na velhice para o outro mundo... - Mas - continuou em tom de susto -, são horas de ir...

- Já!

- Já; se quer que eu lá torne... Não vamos nós com a demora tolher tudo. Deixe-me ir, Sr.a D. Miquelina, que eu lhe prometo de hoje a um mês estarmos à mesma hora juntinhas, sim?

- Que crueldade!... - disse abafada por soluços D. Miquelina.

- Pois eu hei-de ficar sem a minha filha?!...

- Valha-me Nossa Senhora! - lastimou Custódia. - Então a menina faz-me arrepender desta imprudência!... Olhe se acaso passa por aí algum caçador ou algum criado lá de casa!... Que havemos de nós dizer? que há-de ser de nós?...

- Vai! vai! - clamou impetuosamente a mãe, sem largar a filha. - Aí a tens, leva-a, que me levas a alma!... - E cada vez mais a cingia ao seio sem a largar às mãos da criada que lha tirava com força.

E rompeu em alto choro que podia ouvir-se de longe.

Custódia, já enfadada, disse com aspereza:

- Isso não é assim, menina! Se não tinha ânimo, dissesse-mo, que eu não caía nesta! Ora aqui está!... Ficamos aqui até vir gente, que vá dizer a sua mãezinha:

«A Custódia lá estava no ribeiro com a criança que foi lançar à roda e mais com a Sr.a D. Miquelina!» Quer isto assim?

A desgraçada largou a filha, escondeu a face nas mãos, e encostou-as ao tronco de uma árvore para abafar os gemidos.

Custódia sumiu-se na vereda do matagal.

Quando Miquelina entrou em casa, já o capelão a estava procurando nas grutas do jardim e nas avenidas de arvoredo fechado que conduziam ao portal da quinta, ao passo que um criado mais de sua confidência entrara à mata e lhe ia seguindo a pista, denunciada por um pedacinho de folho de vestido, que encontrara preso de uma silva.

Miquelina ignorou estas pesquisas, porque o velhaco solicitador do capitão-mor ordenou ao criado que não dissesse nada do vestígio que encontrara, e espiasse a casa de Figueiroa, a fim de saber se lá estaria algum hóspede. Afigurou-se ao clérigo que o francês andava por perto de Calvados.

Quando Custódia voltou das Gaias, encontrou febril

e na cama D. Miquelina. Falou-lhe muito da filha, reanimou-a, restaurou-a, e todo o dia e noute lhe deu ouvidos às recordações lagrimosas para lhas consolar com muitas promessas e esperanças de completa felicidade no gozo de sua filhinha.

Um dissabor, porém, inquietava Custódia e atribulava Miquelina: e era que, algumas vezes, deram tino de as andar alguém escutando, quando de noute se tinham fechado no quarto. Todavia, como nada ouviram na seguinte noute, vieram em que o medo as enganara, e assim se dissiparam os receios.

O capelão, falando um dia com o capitão-mor, fechou um olho, pôs o dedo indicador sobre a asa esquerda do nariz, e murmurou:

- Meu Senhor! eu ando-lhe na peugada!... Deixe-me cá, que ela ninho atrás da orelha não mo faz. Aqui há o quer que é, seja lá o que for... O porquê desta minha desconfiança, por ora não lho digo, que me não quero enganar; e tenho cá os meus escrúpulos de difamar ninguém sem ter as provas na mão. Mas que eu lhe dou na malhoada, isso é tão certo como estar no Céu quem nos há-de julgar!...

E mais não disse por muito que o capitão-mor lhe quis entrar ao fundamento da suspeita.

Volvido um mês, Miquelina pedia, rogava, suplicava, e Custódia resistia à nova ida em busca de Flávia.

A mãe lembrava-lhe as promessas, os juramentos, a facilidade com que ela tinha ido e voltado, sem causar desconfianças a ninguém.

A ama teimava em desculpar-se e remir-se dos juramentos e promessas, dizendo que uma voz do coração lhe agourava desgraça e desgraça grande.

Não a queria escutar Miquelina. Depois de muito chorar, adoeceu; e, doente, pedia a Deus que a levasse para si e lhe desse lá no Céu a sua filha. Custódia, condoída daquele quadro consternador, e vencida pelas faces lívidas e queimadas de lágrimas da sua estremecida menina, fez calar a voz do coração para escutar outra mais dele que lhe dizia «vai!»

E foi.

 

A denúncia

Miquelina seguiu o mesmo trilho do bosque, esperou no mesmo sítio, e sentiu as mesmas e novas exultações de felicidade maternal. As lágrimas foram menos, e mais os beijos dados com os lábios ridentíssimos da alegria do coração.

Bem que a ama lhe dissesse os seus receios, fundados em ter visto no alto de monte sobranceiro a Calvados um vulto, que se lhe figurara o padre feitor, D. Miquelina dava-lhe pouca atenção e menos crédito ainda sobre ser o padre o homem visto no cume da serra.

Separaram-se, depois de muitas instâncias e enfados de Custódia. Flávia ia encapotada num gibãozinho de tafefá, que a mãe lhe fizera, para este dia, de uns sobejos de vestido seu, e no pescoço levava um cordão de pérolas com umas relíquias que um padrinho e bispo do Ultramar lhe tinha dado.

Recolheu-se D. Miquelina a casa. Procurou disfarçadamente o padre. Não o viu nem os criados lhe deram novas dele. Assustou-se. Foi à capela e rezou muito.

Decorreram arrastadas quatro, cinco, seis horas, e Custódia não chegava. Era noute cerrada e não vinha.

Eram dez, onze, meia-noute, e nem leve rumor nas portas. O silêncio e a desesperação, o terror, e a alma já sem fé, sem alentos para se confidenciar com Deus e com os santos! Naquelas atormentadas horas, Miquelina dar-se-ia em alma e corpo ao Demónio que em troca lhe desse a certeza de que a sua filha não tivera perigo.

Mas nem Deus nem Santanás. Dir-se-ia que não existia nenhum, se há impiedade que se atreva a tão absurda hipótese.

Eis o que passara lá fora daquele inferno da deplorável senhora.

Verdadeiramente, era o clérigo quem estava no picoto da serra. Era ele: não podia ser outro. Era o homem que não difamava sem provas na mão.

O velhaco, desde o achado do farrapinho esgarçado de vestido, em ocasião que a ama da fidalga tinha saído a visitar a irmã de Guimarães, tratou de concordar, confrontar os factos e tirar deles o fio condutor para futuros descobrimentos.

Esperou o novo requerimento de Custódia; licenciou-a como costumava; emboscou o espia predilecto nos arredores da mata, e saiu ele da quinta para ganhar o ponto mais iminente às avenidas de Cavaldos.

O que ele descobriu lá do alto foi a passagem de Custódia à raiz de um monte, por caminho de pé posto, só trilhado de cabras, sem poder atinar de que lado ela vinha, porque lhe apareceu súbita e logo se sumiu acoberta de uns sarçais.

Desde o sumidouro até à quinta cerrava-se o arvoredo tão fechado que o lince não pôde entrever Custódia nem certificar-se do que é que ela trazia nos braços, se embrulho, se criança, bem que lhe parecesse mais criança que embrulho. Se uma laje da serra lhe não fosse treda, o padre, com o passo que trazia na descida, vingava descer à mata ao mesmo tempo que Custódia entestava com os muros da quinta; porém, como um pé lhe escorregasse no puído da laje, e os lombos topassem matéria mais rija do que eles, ficou o padre boa hora e meia apalpando um por um os ossos da suã, e sondando a posição normal de cada entranha da caixa torácica.

O desastre exacerbou-lhe a bílis contra Miquelina.

- Deixa-te estar, minha relambória! – regougava ele - que tu mas pagarás, ou eu não hei-de ser padre João Nunes da Silva!...

Entrou à quinta, quando Miquelina já estava nos seus aposentos. Inquiriu o criado, e soube que ela entrara no bosque e saíra hora e meia depois; que levara um embrulho debaixo do braço, e voltara sem nada.

- Um embrulho! - disse o padre.

- Sim, Senhor.

- Então a outra também trazia um embrulho...

- Qual outra? - perguntou o criado.

- Que diabos de embrulhos são estes?!... - resmungou meditabundo o capelão. - Que é da Custódia?

- Ainda não veio.

- Estás bem certo disso?!...

- Pois não venho eu de a procurar!

- Então não põe cá mais o pé em casa. Deixa-me ir para o portão da quinta; e tu vem também, que, a querer, ela entrar à força, há-de ser repelida a fueiro.

A hora costumada chegou a ama de Miquelina.

Quando viu o clérigo, tremeu, descorou e denunciou-se.

- De onde vem você? - perguntou padre João.

- De onde hei-de vir?! venho de Guimarães; pois Vossa Mercê não me deu licença?

- Pois, se vem de Guimarães torne para lá, que nesta casa não entra mais.

- Então que mal fiz eu?...

- Que andava você a fazer com um embrulho acolá pela serra?

- Eu!... com um embrulho!... Valha-me a Virgem do Céu!... - tartamudeou Custódia.

- Faça-se de novas, sua recoveira de fidalgas perdidas!... Que criança era aquela que você trazia! Diga aí já!

- Criança!... ai que mentira, Sr. padre João!...

- Você desmente-me! - acudiu ele quase já convicto de que real e positivamente era uma criança o equívoco embrulho. - Há-de dizer; se não, os tios da menina hão-de pô-la a tormentos até você confessar...

- Santo nome de Jesus! - exclamou Custódia sem atinar com a exclamação mais ajustada ao seu aflitíssimo aperto. - Eu não sei o que Vossa Mercê me está dizendo!...

- Que foi fazer a Sr.a D. Miquelina à mata?! Onde se meteu você com a tal criança? Que embrulho levava ela? Diga, diga, se não vai malhar com os ossos numa enxovia! - rebramou o capelão.

- Ó Sr. Padre! Vossemecê está enganado! - retorquiu Custódia sem energia nem atino do que devia dizer e fazer.

- Ó mulher do inferno! pois você quer desmentir o que os meus olhos viram?! - refilou ele. - Vá-se com dez milhões de diabos, que eu já a não vejo! Se for necessário, os quadrilheiros a irão buscar onde você estiver para a fazerem vomitar o que sabe...

- Mas, Senhor! - balbuciou a ama - deixe-me ir ao menos buscar a minha arca...

- Lá lhe irá ter a casa de sua irmã! Fuja-me da vista; se não mando-lhe quebrar os ossos, sua alcofa!

Custódia, cega de lágrimas, desandou vagarosamente, cogitando no turvamento de sua grande angústia em atirar-se ao primeiro poço em que pudesse morrer e esquecer-se da sua infeliz senhora. No propósito de matar-se foi indo, até que a razão a demoveu, lembrando-lhe que poderia ainda ser sua vida muito necessária à criancinha e à mãe.

O padre mandou aparelhar a égua muito em segredo, ordenou que se fechassem todas as portas da quinta e saiu para casa do capitão-mor a contar o sucesso. O tio de Miquelina exultou. Associou a si o padre, e foram para Braga a entender-se com os cónegos e com a viúva. Os prebendados não entendiam ou simulavam desperceber o que fosse a criança que já padre João asseverava ter visto. O capitão-mor, porém, acudindo à ignorância dos irmãos e cunhados, expendeu com superabundante clareza as desconfianças que lhe bacorejavam no coração a respeito da sobrinha e do herege francês.

Segundo ele, a filha de seu irmão, além de estar de todo em todo desacreditada, perdida e incapaz de achar um mecânico que a quisesse para mulher... além de tudo isto, na sua opinião dele, era mãe da criança que o padre vira.

Os cónegos fidalgamente indignados mandaram-no pôr mordaça; e um cunhado, mais brioso de quantos formavam o conciliábulo, ousou cravar-lhe na cara uma afronta das que Deus absolve.

- Admiro - disse ele - que V. S.a quisesse para sua nora a mulher perdida que nenhum oficial mecânico aceitaria!

- Não, que eu - replicou o fidalgo levemente frechado pela injúria - quando falei nisso não sabia disto.

- Disto quê? - redarquiu o chantre.

- Da criança que viu o padre.

- E veria vossemecê uma criança, Sor padre João? - voltou contra o denunciante o defensor de Miquelina.

- Vi.

- Há-de jurar que viu sobre umas horas!

- A falar verdade, parece-me... - gaguejou o feitor de Calvados; - mas depois quem me persuadiu foi a atrapalhação da criada.

- Igual à sua, Sr. padre João! Ora queira Deus que lhe não sejam pedidas contas da calúnia!

- O melhor - tornou o clérigo assanhado, mas apertando a língua com o freio - é fazer prender Custódia e obrigá-la a dizer a verdade do que sabe.

- Isso mesmo! - exclamou o capitão-mor.

- Fora com a estúpida lembrança! - contraveio o chantre. - Os senhores estão aporfiados em tornarem bem pública a desonra de uma parente! Vilíssimos desejos! Eu de mim, irmão de sua mãe, não quero que o nome de Miquelina seja arrastado até às averiguações da justiça, entendem?

O maior número assentiu com um grave bamboar de cabeça.

O chantre prosseguiu:

- Seja consultada minha irmã sobre a conveniência de ser imediatamente recolhida a um convento sua filha.

- Bom! sou também desse parecer! aprovou o capitão-mor expansivamente, como quem de tal obra inferia a favorável contingência de lhe cair na sua a casa de seu irmão.

- E se ela não quiser? - interveio um dos conselheiros.

- Quem?

- A filha.

- Obriga-se! - disse severamente o irmão da viúva. - Obriga-se porque é esse o nosso dever, muito outro e diverso de lhe andarmos fazendo praça de suas culpas, se por desgraça alguma tem. A estar inocente, o tempo a vingará; se delinquiu, a reclusão a purificará. O meu voto é este.

Aprovação unânime.

Ao outro dia, foi informada a viúva dos pormenores do conselho da véspera, congregado para deliberar acerca da denúncia do feitor.

A mãe de Miquelina declinou sobre seu mano o alvitre e a responsabilidade da execução.

Pressuposto isto, encaminharam-se para Calvados um cónego, um tercenário, um arcediago, um chantre e o capitão-mor, que não prescindiu de ter seu quinhão de honra no desagravo de seus avós.

Miquelina estava na cama, incendida da febre.

Avisaram-na de que saísse à sala, onde era esperada por seus tios.

- Perdida!... - exclamou ela, correndo a esconder os cabelos da filha no segredo de um velho contador de pau-santo, que estava a um canto da recâmara. E, além dos cabelos, a esconder também as cartas de Alfredo Gassiot, que estivera lendo, em uma das quais escrevera minutos antes, com tinta diluída em lágrimas, estas palavras: Ó minha Flávia, ó minha querida filhinha, não tornarei a ver-te? Ó meu Deus, dai-me um sinal de que eu não morrerei sem vê-la uma vez, uma só vez vos peço!

Fechada a gaveta contra o espaldar do contador, em que se abria o segredo, Miquelina cobrou ânimo, vestiu-se, e nenhuma ideia lhe atravessara o espírito senão que ia ouvir falar de sua filha. E quaisquer que fossem as circunstâncias imprevistas e muito amargas que lhe saíssem, aquela suposição dava-lhe alma.

Falou o tio que mais seu amigo tinha sido na altercação de Braga. Declarou em brandos termos o fim a que vinha, pedindo-lhe que não quisesse explicações de tal passo. Moralizou difusamente sobre o dever da obediência aos pais. Neste dever filiou todos os outros, dando os pais como subalternos imediatos de Deus. No tocante à entrada em convento, disse que sua sobrinha nem ia professar nem abjurar dos gozos honestos da vida. Pintou-lhe os bens da convivência monástica, onde, embora o contrário dissessem os inimigos das religiões, eram muitos os recreios e divertimentos que se alternavam com os actos piedosos. Encareceu a tristeza de uma menina de vinte e dous anos sozinha num ermo, sem amigas nem parentas que lhe quebrassem o monótono enojo da solidão. Ajuntou que, satisfeita a vontade de sua mãe temporariamente, tornariam a reunir-se na sua casa e acabaria o ajuizar ofensivo de ociosos que andavam farejando crimes e ignomínias numa separação t

 ão repentina quanto inconsiderada.

Miquelina, ouvida silenciosamente a parlenda conceituosa e delicada do tio, perguntou:

- E a ama que me criou vai comigo?

- E ela a dar-lhe com a ama! - parvoejou o- tio capitão-mor.

O chantre enviesou uma olhadela furiosa ao alarve, e respondeu:

- A respeito da ama que te criou, minha sobrinha, falaremos de espaço. Não serei eu quem me oponha à tua vontade, e farei por quebrar a resistência de tua mãe, se resistir.

Mas onde está ela?... a minha ama? - volveu Miquelina.

- Em Guimarães, segundo ouvi dizer.

- Quando foi?

- Quando foi, Sr. padre João? - perguntou o tio.

- Ontem, às três horas da tarde - respondeu o capelão.

- Quem a mandou? - disse com energia Miquelina.

Ninguém respondia. O chantre relançou os olhos entre o padre e a sobrinha, e disse:

- Dispensa tu, menina, de saber quem a mandou embora.

- Foi aquele vilão? - exclamou ela apontando o clérigo. - Foi este infame que veio para esta casa roubar o que é meu e roubar-me a pouca felicidade que Deus me concedia no meu infortúnio? O malvado não ousa levantar os olhos diante de mim!

- Eu bem sei porque não ouso!... - murmurou ele, olhando de esguelha contra o cónego.

- Está bom! - atalhou o tio de Miquelina. - Retire-se, padre João. Já o devia ter feito e ir curar de suas obrigações. Vá ver os jornaleiros, que o seu ofício é esse, nas horas vagas de espia.

Saiu corrido e trespassado do insulto o denunciante.

Miquelina, debulhada em lágrimas, desafogava a sua ira.

Em seguida, achegou-se do tio e balbuciou em tom de maviosa súplica:

- Meu tio, deixe-me ter no convento a minha ama...

Depois, caindo em si, e atentando no desvario da súplica, emendou:

- Não quero tê-la comigo: peço tão-somente que a deixem ir ver-me algumas vezes...

A emenda procedia de lhe acudir logo ao espírito a impossibilidade de ter novas da filha, se Custódia entrasse no convento.

O cónego acenou condescendente aos rogos da sobrinha, e disse:

Tudo se fará com prudência e tempo. Quando podes entrar no convento, menina?

- Vou para as Ursulinas?

- Poderias ir, se quisesses; mas, se me pedes conselho, digo-te que não vás...

- Não, que eu não quero ir! - sobreveio ela.

- Pois melhor, melhor. Tua irmã é esquisita; da tua mãe não me cabe a mim dar-te juízo. E tua mãe é minha irmã. Disse tudo. Se tu quisesses, Miquelina, ias hoje para Braga; pernoitavas em minha casa, e amanhã combinaríamos no melhor recolhimento. Aí fora está uma liteira devoluta. Os teus baús me encarrego eu de levar-tos e entregar-tos. Que eu, a bem dizer, sou de opinião que não leves para o convento senão o urgente. Pelas minhas contas estarás lá... o quê? Dous ou três meses, se muito. Fundo-me em duas razões: primeira, porque os agravos de tua mãe hei-de eu amaciá-los; segunda, porque tens mãe para pouco. Vejo-a cadavérica, desfigurada, e sei dos seus médicos que vai tísica. Portanto, menina, não tardas aqui. Resolves vir na minha companhia e de teus tios?...

- Vou - disse ela prontamente -, mas dispenso na minha companhia o Sr. Cristóvão.

O tio Cristóvão era o capitão-mor.

- Forte peça me pregas! - acudiu o fidalgo, dando meia volta para pegar no chapéu e outra meia para sair porta fora com as ventas a resfolegar fumo e coriscos de simonte.

Miquelina entrou na sua câmara, vestiu-se e abriu a gaveta do toucador para se apossar das cartas de Alfredo e dos loiros cabelos de Flávia. Já tinha entre mãos o maço avultado dos papéis, quando reflectiu no perigo de os levar consigo, tão em risco de darem nos olhos dos tios. Lembrou-se de fechá-los num baú dos seus e esperar que lho mandassem ao convento; mas àquele desígnio sobreveio a encontrada conjectura de que alguém lhe abriria com chave falsa o baú em busca de cartas, que a denunciassem e acabassem de a perder e à sua filhinha.

Final de razões, e animada da esperança de voltar cedo, recolheu outra vez o maço no segredo, depois de beijar o invólucro do cabelinho de Flávia.

Depois saiu à sala e disse com voz trémula num angustiar-se de alma inexprimível:

- Estou às suas ordens, meu tio.

 

Uma sepultura que se abre

Rodaram nos gonzos as ponderosas portadas do Convento da Conceição, e Miquelina entrou com três criadas que lhe deu o bizarro chantre. O recebimento, que lhe fizeram as religiosas, foi cerimonioso e lúgubre.

As alas das claras ao longo do pátio interno da portaria davam a lembrar um saimento de cadáver, no caminho da claustra.

A toda a pressa alfaiaram os aposentos de Miquelina com desusado primor naqueles viveiros de santas. Esmerou-se o chantre; e a mãe contribuiu com quanto lhe pediu seu irmão para grande tença, e liberdade de arbitrá-la maior.

Miquelina, ao despedir-se do tio, beijou-lhe a mão e disse-lhe enternecida a lágrimas:

- Mande dizer à minha ama que venha ver-me, sim?

- Vou tratar disso, menina. Descansa.

Não nos demoremos a contar em miúdos os tédios e temporãos aborrecimentos, as curiosidades e perguntas com que as religiosas cumprimenteiras enfastiaram a nobilíssima secular. Cá fora do convento é -que vai correr-se o pano de um acto muito de dores e compaixão da reclusa.

O padre João Nunes da Silva, afrontado, como viram, pelo chantre e por Miquelina, raivou satanicamente e revessou a sua cólera em confidências com o capitão-mor, também insultado pela sobrinha e pelo chantre.

- Hei-de provar até à evidência... ou morra eu, se o não fizer! - jurava ele.

- Provar o quê? - perguntou o capitão-mor.

- Que Custódia levava uma criança e que a criança é filha da Sr.a D. Miquelina.

- Vossemecê será capaz disso, padre João?! Se tal faz...

- V. S.a verá que faço. Eu não difamo ninguém sem provas na mão! Chamar-me ela a mim... infame!

- E vilão - ajuntou o velhaco interlocutor.

- É verdade: vilão e infame!...

- E ladrão - acrescentou o capitão-mor, arregaçando a queixada inferior, como sinal de seu espanto e mágoa de ver ultrajado um homem de bem.

- Ladrão! Pois ela chamou-me ladrão?! V. S.a engana-se:..

- É como lhe digo. Lá o apregoou bem alto diante de cinco testemunhas: «Que vossemecê lhe roubava o que era dela.» Queria dizer que o Sr. padre João como feitor da casa apanhava o que podia.

- Sabe que mais, Sr. Capitão-Mor! – interrompeu o padre, esmurraçando três vezes uma banca - se esta criatura não fosse sua sobrinha, o que ela é... dizia-lhe eu! O que teve mão de mim não foi o patife do chantre, que é a vergonha do cabido bracarense e é tolerante porque os vícios dele são tantos quantos diabos há no Inferno. Não foi medo do tal chantre que me conteve; foi o respeito que tenho a V. S.a, porque seu paizinho me ajudou à ordenação e V. S.a me tem dado sempre dinheiro a ganhar, dando-me boas esmolas de missas às duzentas e mais. Se não, eu dizia-lhe ali a ambos o que eles foram e são e hão-de ser... Mas, o que se não faz em Santa Luzia, faz-se ao outro dia, como o outro que diz.

Já a eloquência furial do padre se abordava aos anexins, quando o capitão-mor, batendo-lhe mansamente com as duas mãos nas espáduas, lhe disse a meia voz:

- Padre João, vossemecê é meu amigo?

- Para a vida e para a morte!

- Quer ter pão farto para a velhice?

- Pois eu para que trabalho? Para que aturo que me chamem vilão, infame, e...

- E ladrão.

- É verdade! Essa não lhe perdoo a ela, nem com a morte aqui nas campainhas!

Dizendo, o padre materializava a imagem, formando no pescoço uma forquilha com as mãos ambas.

- Pois se quer ter que comer e beber sem trabalhar, daqui a poucos anos... cá pelas minhas contas... Quantos anos tem vossemecê? Nós havemos de regular.

- Tenho cinquenta e quatro feitos.

- É isso: eu levo-lhe mais dous. Pois sabe que mais? Vossemecê, quando tiver os seus cinquenta e oito, está feitor de toda a minha casa, e tem um casal e uma vivenda excelente, que há-de ser propriamente de vossemecê.

- Ó Sr. Capitão-Mor! - atalhou o capelão maravilhado - que serviço posso eu fazer que mereça paga tamanha? Tudo que eu possa operar em seu serviço já está bem pago.

- Não é assim. O que eu quero parece pouco, mas é muito cá para os meus interesses. Sabe o que é? Faça vossemecê com que minha sobrinha não saia mais do convento. Arranje com que lhe falte a protecção de todos os parentes, principalmente do chantre, que aquilo é homem da breca! Se lhe der para aí, tira a rapariga para fora, e prega-nos com ela nas ventas, sem lhe importar o que fez nem o que diz o público. Que lhe parece, padre João? Isso é possível?

O padre recolheu-se por espaço de três minutos, findos os quais, tirou do peito estas palavras:

- Eu já disse a V. S.a que não difamava ninguém sem provas na mão. Protestei provar que a criada trazia no colo uma criança: hei-de prová-lo. A minha religião proíbe-me de publicar os pecados do próximo: não publicarei os de sua sobrinha; mas não posso deixar de confundir com a luz da verdade o chantre que me injuriou, e castigá-la a ela pelas calúnias que me assacou.

Deus manda-nos ser pombas e serpentes ao mesmo tempo, e a razão natural obriga-nos a defender nossa honra e nossas palavras, quando são recebidas como calúnias. Isto é o que eu vou fazer: provar que o embrulho era uma criança.

- E como há-de vossemecê averiguar isso? - perguntou esfregando alegremente as mãos o outro.

- Hei-de pensar; por ora não sei; mas o crime, por mais que se esconda, tem lume de Inferno que fumega sempre. Ora agora, meu fidalgo, isto que faço, em proveito meu e desagravo de minha honra o faço. Não quero outra paga senão a consciência de ter mostrado a minha cara limpa do labéu de caluniador. V. S.a não tem que pagar-me tais serviços, que lhos não faço com intenção de lhe agradar.

- Pois ande! que o mais eu cá sei como há-de fazer-se... - concluiu o capitão-mor.

Convém saber que o capuchinho Fr. Lázaro das Dores, uma vez por outra, ia a Calvados confessar D. Miquelina e esforçar-lhe o propósito de emenda, com paternal e verdadeira unção evangélica. A senhora acolhia-o benignamente, escutava-o e confessava-se, dado que no exame de sua consciência lhe esquecessem muitas espécies importantes de culpa. Sirva de exemplo não lhe revelar ela que tinha sua filha nas Gaias, e não no hospício dos enjeitados. Verdade é que Fr. Lázaro lhe não pedia contas disso, porque mais que muito convencido estava ele de que o leigo Joaquim assistira à exposição da menina na roda.

Padre João soubera ganhar a estima do frade, com quem se demorava a contar e a ouvir histórias da Mística Cidade de Deus de Fr. Pedro de Jesus Maria José tesouro inexaurível de pios logros, dos quais padre João não cria nem um terço, e Fr. Lázaro cria todos, e os mais que o tonsurado feitor inventava.

Como se não fosse isto bastante, assenhorear-se da afeição do frade, muitas vezes padre João Nunes lhe dizia:

- Como Vossa Reverência conseguiu fazer desta senhora uma exemplar virtuosa! O que pode a unção e a santidade de um óptimo director de almas!

- O que pode Deus Nosso Senhor Jesus Cristo! emendava o frade; mas lá no interior regozijava-se e ganhava santos brios para ceifar mais almas e tirá-las ao Demónio e enviá-las ao Céu, de que ele se chamava «humilde seareiro».

Neste ponto de estima estavam os dous ministros do altar, ao tempo dos acontecimentos descritos.

Padre João Nunes, à hora em que D. Miquelina entrava no convento de Braga, chegava à portaria do convento de Fr. Lázaro, em Guimarães.

Chamou o frade e disse-lhe comovido:

- Trago-lhe tristes novas da sua confessada.

- Pois quê?! venceu-a o tentador?! e não me chamaram a tempo?... Valha-me o padre S. Francisco!

- Não a lastimemos por esse motivo: não caiu porque lá estava com ela o espírito de Vossa Reverência.

Inimigos piores do que demónios a perseguem. Saberá Sr. Fr. Lázaro das Dores, que a Sr.a D. Miquelina foi para um convento...

- Bem foi; lá devia estar ela desde muito...

- Mas foi violentada e caluniada...

- Oh! isso foi mau! Reprovo o feito. Violências não ganham almas para Deus; e calúnias fazem chorar os anjos... É preciso desfazê-las.

- É ao que venho.

- E poderei eu esclarecer a verdade?

- Vamos ver. A calúnia é a seguinte: disseram à mãe e parentes da Sr.a D. Miquelina que ela tinha um filho ou filha, e que uma sua criada, de vez em quando, a ia buscar e lha levava a Calvados.

Fr. Lázaro escutava taciturno, e o padre prosseguiu:

- Esta notícia atarantou os parentes, que entraram de roldão pela casa e a levaram para um convento, e agora andam espalhando que ela teve um filho de um herege, e que o tem de sua mão para o fazer herdeiro dos bens de seus honrados e cristianíssimos avós. Ora aqui tem Vossa Reverência a pobre senhora difamada, presa, desacreditada, perdida para todo o sempre; e tão desgraçadinha que não tem quem saia por ela a defendê-la dos caluniadores...

- Saio eu! - exclamou Fr. Lázaro. - Eu a defendo!

- Bem mo quis parecer! - disse o padre com jovial aspeito.

- Boa inspiração me trouxe aqui! Partia-se-me o coração de a não poder justificar... eu! que tanto lhe quero e a respeito, e como venial pecadora e pouco mais a tive sempre! Não a podia eu defender; posto que de sua vida passada sei o que dizem os rumores vagos, e       destes manda a prudência e caridade que acreditemos pouquíssimo, quando as atoardas são para mal e afrontamento do próximo. Entendi sempre que os segredos da vida da Sr.a D. Miquelina quem os sabia era Vossa Reverência; e logo me deliberei a invocar o seu testemunho a favor da inocência dela.

- Veio bem. Veio onde devia vir. Quem são os acusadores e os parentes que a castigam?

- São todos, são todos, Sr. Fr. Lázaro.

- Pois então, eu vou amanhã procurar a mãe de Miquelina e esclarecê-la-ei.

- Vai mal, permita-me dizer-lho. A viúva é a mais implacável inimiga da filha. Quem a ouve acredita que a Sr.a D. Miquelina, em verdade, praticou grande crime.

- Saneou-o com o grande arrependimento – acudiu o frade irreflectido; e o outro exultou como se o visse já meio preso na laçada.

- Justamente: saneou-o com o arrependimento abundou o clérigo. - Quem está livre de delinquir num mundo tão escorregadio?! A inocente deixou-se embair de um malvado que lhe deu talvez a beber filtros ministrados por Santanás; mas, graças ao Céu!, contra o veneno lhe acudiu Vossa Reverência com a triaga da contrição e penitência! Caiu: levantou-se. Que têm que ver as línguas perversas com ela agora?

- Línguas viperinas! a maledicência, filha primogénita de Belzebu! - confirmou Fr. Lázaro.

- Diz bem e santamente Vossa Reverência. A maledicência é o flagelo com que o Demónio se vinga dos que lhe fogem, e o anzol com que pesca mais almas atoladas no charco da calúnia. A este fim, contarei a Vossa Reverência três casos do nosso grande escritor e moralista Fr. Pedro de Jesus Maria José.

E contou os três casos que diziam com a matéria debatida, tabaqueando neles mui de pausa e dramatizando-os onde o diálogo o pedia. Findos os quais, prosseguiu:

- Pois louvado seja o Senhor! Vai Vossa Reverência sair em defesa da infeliz menina...

- Vou.

- Pudesse eu também levantar a minha voz! Mas quê? Assim que eu disse aos parentes que era calúnia ter ela sido mãe, mandaram-me calar, berrando todos:

- «Você está aí negando o que é público e notório!... você...»

- Público e, notório! - interrompeu o frade. Como assim? E falso!

- Não é, perdoe-me o Sr. Fr. Lázaro. Falso será o dito; mas falso não é que todos o dizem. E voz constante que...

- Valha-me Deus!... quem poderia publicá-lo... acudiu, sinceramente aflito, o bonacheirão e simplóriodo frade.

- Vossa Reverência decerto não; mas... é geral o boato; isso é que é verdade. Poderia dizê-lo... quem?... um criado, uma amiga, um cirurgião, um qualquer velhaco que andasse na cata do segredo da separação da mãe e filha... enfim, as paredes onde o Demónio põe ouvidos... E quem sabe? talvez a própria mãe...

- Mas a mãe sabe como as cousas se passaram...

- Ah! ela sabe? Então não posso acreditar que haja mãe capaz de difamar sua filha, demais a mais com uma calúnia mortal... quem poderia ser pois!...

- Estou a pensar nisso... - murmurou o frade, e deteve-se calado e meditativo, provavelmente ponderando as virtudes do leigo Joaquim e da assistente Maria Eusébia. Deste cismar saiu-se com resoluta negativa:

- Não pode ser, não pode ser!

- Mas desgraçadamente sabe-se, Sr. Fr. Lázaro. E os que sabem do triste sucesso, vendo uma criança nos braços da ama de D. Miquelina, deram como certo ser ela mãe e demais a mais mãe pública ou quase pública.

- Mentira! Mentira!... Miquelina não sabe...

E retraiu a língua que trazia na ponta o último verbo, e triunfo completo do capelão.

- Não sabe, isso creio eu - apressou-se o padre -; que ela, tendo um filho, não andaria com ele alardeando seu crime, isso vou eu jurá-lo nas mãos de Vossa Reverência...

- E pode jurá-lo sobre os sagrados Evangelhos.

- Juro; mas quem sabe que ela é mãe e a viu, como de facto viu, ao pé de uma criança, que há-de supor?!

- Mas isso é que é a enorme calúnia, padre João! bradou o frade. - Ninguém a viu ao pé de criança nenhuma, porque não na há, não na tem, não sabe dela.

- Que desgraça! que desgraça! - exclamou o clérigo, mascarando com declamações o prazer que lhe dava cada nova escorregadela do tão bom quanto lerdo fradinho. - Como há-de Vossa Reverência desfazer a calúnia? Quem pode amordaçar os perros do Inferno? Toda a sua virtude, Sr. Fr. Lázaro, e todos os seus créditos adquiridos em cinquenta anos de provada e experimentada santidade serão ineficazes contra a calúnia!

Como se defenderá a minha pobre senhora!? Se o filho veio ao mundo... sim... digo eu... se ela é mãe... como se prova que não pode saber de seu filho!

- Não sabe.

Neste lanço, padre João, como fatigado de esperar a última revelação, achou que era tempo de romper num alvitre decisivo. Abraçou com respeitoso transporte o frade e exclamou:

- Vossa Reverência vai defender a Sr.a D. Miquelina?

- Vou.

- Pois então é certo que há-de declarar a alguém segredos que lhe moram neste honrado peito?

- Não tenho outro remédio.

- Bem! Saiba que os não dirá a ninguém que mais zelo tenha em matar a calúnia. Abra-se comigo; dê-me a consolação de ter pugnado contra a falsidade do boato! Justifique a inocência para que eu possa justificá-la, sem dizer a fonte onde bebi a santa água da verdade!

Fr. Lázaro, após breve pausa, disse:

- Vossemecê é homem de bem e digno ministro da eterna verdade: é justo que a saiba. Em duas palavras lha digo: a filha de D. Miquelina foi enjeitada.

- Oh! que alegria me infunde na alma! Foi enjeitada! - exclamou o padre, abrindo os braços e atirando-os pelo ar acima.

- Um leigo de confiança acompanhou a mulher que a levou ao hospício de Guimarães...

- E vive ainda o leigo?...

- Vive e jura-o, sendo preciso.

- Não é: basta dito por Vossa Reverência. Quem quer que foi deve ter muito gravada na memória a data do dia em que a menina foi exposta, e facilmente se verifica o facto, se alguém o puser em dúvida. Vossa Reverência lembra-se?...

- Tenho-o apontado. Eu vou à minha cela e volto já.

Padre João, no auge do seu contentamento, esfregava os joelhos e os artelhos, quando o frade voltou dizendo:

- Na noute de dez de Setembro de mil oitocentos e doze.

- Dez de Setembro de mil oitocentos e doze – repetiu o clérigo duas vezes, e perguntou: - Quando sai Vossa Reverência a esmagar os caluniadores?

- Amanhã.

- Pois não vá sem que eu lhe traga o documento, a mordaça para a boca dos infames.

- Que documento é esse?

- A certidão de ter entrado no hospício dos enjeitados uma menina recém-nascida na noute de dez de Setembro de mil oitocentos e doze.

- Faz-me muito favor... Lembra vossemecê acertadamente - obtemperou o frade.

 

Três sepulturas que se fecham

Neste mesmo dia, ao escurecer, padre João entrou esbofado na portaria dos capuchos e chamou Fr. Lázaro.

Correu o ancião ao chamamento do padre, sem embargo de estar no coro: tanto era o júbilo com que ele ia apossar-se da certidão valedora de Miquelina.

Achou o feitor com o semblante amargurado.

- Então?

- Então!... desgraça sobre desgraça! – respondeu com pausas de suspiros o sacerdote. - Aqui está a minha grande consternação, Sr. Fr. Lázaro! Aqui está a prova de que os denunciantes não caluniaram a lastimável senhora!

- É possível?! - clamou o afligido capucho, tomando-lhe da mão o papel que tremia na mão convulsa do clérigo.

Abriu. Era a certidão passada pelo fiscal do hospício de enjeitados, atestando que na noute dez de Setembro de mil oitocentos e doze, nem nas duas noutes anteriores nem nas três posteriores entrara criança alguma na roda dos expostos de Guimarães.

- É falso o atestado! - bradou fora de si o frade.

- Falso! - acudiu por sua honra o clérigo. Quem é então o falsário? Eu, Sr. Fr. Lázaro?

- Vossemecê não, valha-me Deus! Quero dizer que há engano e falsidade nesta certidão, ou em quem a passou... Não sei o que digo! Estou doudo, estou doudo!

- E eu como estou, Reverendo Senhor! Eu, que punha as mãos no fogo por ela, e que gritei contra a mãe, contra os tios, contra quantos diziam que a desgraçada tinha um filho a criar, um filho do ímpio, do ateu da França, de um incendiário que mandou pôr fogo ao Convento de Santa Maria de Pombeiro!... Céus! que situação a nossa, Sr. padre-mestre Fr. Lázaro, à vista deste atestado!...

- Isso não pode ser! - volveu o frade. - Vossemecê deixa-me ficar em meu poder até amanhã este papel? Preciso dele para acabar de me convencer, ouvindo o que me diz o virtuoso leigo que acompanhou a enjeitada à roda.

Padre João lamuriou algum tempo ainda por conta da infeliz senhora, e mais consternadas exclamações vociferara, se a sineta não tangesse a fechar portas. Deixou a certidão e foi repousar-se e cobrar-se do cansaço na sua cama em Calvados. Dormiu bem. Quem não provou sono foi o atormentado Fr. Lázaro, depois do seguinte lance.

Chamou à sua cela Fr. Joaquim, o companheiro logrado de Custódia, e disse-lhe:

- Meu amigo, falai verdade no que vou perguntar-vos. Ponde o coração em Deus e respondei: em que noute acompanhastes desde Calvados a Guimarães a mulher que levava a menina ao hospício dos enjeitados?

O leigo deteve-se a recordar e disse:

- Dez de Setembro de mil oitocentos e doze.

- Vistes depositar a criança na roda?

Fr. Joaquim, conturbado e cabisbaixo, murmurou:

- Não vi.

- Então mentistes-me, falso amigo.

- Não menti, Sr. Fr. Lázaro; que Vossa Reverência não mo perguntou.

- Mas mandei-vos.

- É verdade. Se mo perguntásseis, dir-vos-ia que, ao tempo em que me avizinhava da roda, saía muita gente com lampiões de uma casa. Tomei susto de ser visto com o meu hábito e fugi. Custódia caminhou direita para a roda e ao outro dia me jurou pela sua vida que a menina ficara lá.

- Não ficou: ide em paz e saí desta casa amanhã. Um falso, e um inobediente não pode estar na casa da verdade e da submissão. Perdoo-vos para que Deus me perdoe.

O leigo inclinou-se profundamente, saiu da cela, e no dia seguinte do convento.

Padre João, às dez da manhã, estava no alpendre da igreja, esperando que o frade descesse à sacristia.

Fr. Lázaro viu-o, chamou-o, entregou-lhe o atestado e disse com muita dor:

- Enganou-me Miquelina, Deus lhe perdoe. O leigo foi enganado por Custódia. O atestado é verdadeiro. Não tenho que fazer em defesa da mal-avisada senhora. Está pagando a perfídia que praticou com Deus e comigo. O mais que posso é aconselhar o perdão a quem a oprime, se me quiserem para essa e única missão. Em defesa dela, bem o vê, padre, não posso sair.

O clérigo abaixou os olhos contristados e balbuciou:

- Seja pelo divino amor de Deus! Estão, pois, perdidas as últimas esperanças? O leigo confirmou o atestado?

- Já lho disse. O leigo deixou-se enganar. Padre João, adeus. Não me demoro em pensamentos que me afligem e ao mesmo tempo irritam o ânimo. Vou sacrificar. Vá com a Virgem. Se eu puder beneficiar a desvairada senhora, aqui estou.

Foi padre João almoçar à tripa-forra e cavalgou caminho de Braga, volteando meia légua para encontrar-se com o capitão-mor. Mostrou-lhe a certidão, referiu minudenciosamente os ardis com que tirara do estômago do frade todos os segredos, riu às escâncaras enquanto o fidalgo escouceava de júbilo, recebeu um tão arrochado abraço que o devia contar como começo de castigo; e, almoçando segunda vez, continuou caminho, já acompanhado do capitão-mor.

Chegaram a Braga e a casa do chantre.

Padre João entrou humildemente à presença do tio de Miquelina e disse:

- Senhor! eu não difamei sua sobrinha. Ela me injuriou e eu calei-me. V. S.a me ofendeu no mais sensível da honra e eu abaixei a minha cabeça e saí em busca da desafronta. Não me desamparou a justiça de Deus. Aqui está a prova.

E deu a certidão ao chantre, que a leu muito devagar, com visíveis sinais de não entender, e disse:

- Mas que significa isto? Que tenho eu ou que tem minha sobrinha com uma certidão do fiscal do hospício de enjeitados?!

- Tem que a Sr.a D. Miquelina - respondeu serenamente o padre - deu à luz uma menina em a noute dez de Setembro de mil oitocentos e doze. Fr. Lázaro das Dores, o virtuoso capuchinho de Guimarães, confessor e assistente de D. Miquelina, mandou a criança para a roda, segundo tinha ajustado com a mãe. A portadora da criança foi a criada que eu, há três dias, vi com ela no colo. Custódia, que já tinha sido ama da menina, enganou o leigo que a vigiava, como ele propriamente confessou a Fr. Lázaro. A criança existe protegida, criada e reconhecida clandestinamente, por D. Miquelina. Nada mais tenho que dizer a V. S.a. Fui injuriado diante de testemunhas. Desafronto-me sem elas para que os créditos de quem me injuriou não padeçam. Recebo as ordens de V. S.a.

- As ordens que tenho a dar-lhe são simples - disse o chantre. - Vossemecê não entrará mais na casa de Calvados, e na minha encontrará um lacaio com um tagante, se aqui voltar.

- Oh! Senhor! - exclamou padre João.

- Retire-se! - bradou o chantre, levantando-se de repelão e alongando maquinalmente o braço para aferrar de um ponderoso tinteiro de prata, óptimo para medir a extensão facial do clérigo.

Padre João saiu às recuadas.

Escreveu o chantre a sua sobrinha e disse-lhe:

«Socorre-te de Deus que eu não posso valer-te. Os teus infamadores não mentiram. Tenho grande compaixão de ti, mas não posso, como irmão de tua mãe e ministro do altar, prestar-me a instrumento de tuas contumazes culpas. Sei tua vida. Crimino-te e absolvo-te. Sofre para expiação. Contra a justiça de Deus é baldada a misericórdia dos homens. Tua mãe sabia melhor do que eu tuas culpas. Duas vezes solicitei a ida de tua ama ao locutório. O mais que consegui foi exasperar-lhe o rancor, sem lhe arrancar o segredo. Agora que tudo sei, tudo o mais em teu bem me é vedado, salvo aconselhar-te paciência e esperança na bondade divina e nas voltas do tempo, que costumam ser, por influxo divino, prodigiosas. Seja o que for e tenha sido, não me pejo de assinar-me teu tio.»

Encheu-se de religiosas o aposento de Miquelina, cujos gritos, após a leitura da carta, quebraram o silêncio do mosteiro e chamaram as freiras espavoridas.

Ao gritar sem lágrimas sucedeu um desmaio de longas horas.

Recobrado o alento, Miquelina escreveu a seu tio uma confusa mescla de expressões maviosas e irritantes.

Abençoava e amaldiçoava a Providência. Pedia-lhe que a não deixasse morrer assim em tão acerbas agonias. Pedia-lhe que a deixasse fugir que ela iria para tão longe que nunca mais sua família soubesse nem se envergonhasse dela. Pedia, enfim, que antes a matassem a ferro ou com veneno os seus verdugos para lhe abreviarem tão horrendos paroxismos.

Não respondeu, mas chorou o chantre.

Miquelina esperou em irrequietas corridas da cela à portaria. Perdida a fé na estima de seu tio e na piedade de Deus, caiu, debateu-se em ânsias que lhe aniquilaram as forças. Quando espertou, delirava em incêndio de febre.

Chamava ela sua filha a brados, dando-lhe às vezes o nome de Flávia, que as freiras não tomavam como nome cristão; outras vezes chamava Custódia; e não raras pronunciava o nome de Alfredo Gassiot.

O médico mandou-a sangrar, receoso de congestão e insânia. O cirurgião dessangrou-a até lhe tirar forças com que resistir à morte, se ela viesse perto. Ficou prostrada, exaurida de alentos por algumas horas.

Ateou-se o fogo febril ao terceiro dia. Voltou o médico e diagnosticou de maligna a febre, como quem dizia no vocabulário de hoje em dia tifo. Os delírios tornaram ao quinto dia; ao sexto acalmaram. Sucedeu o espasmo de olhos como cegos, a imobilidade corporal, a indiferença, uma espécie de letargia de embriagada. Cinco dias permaneceu assim.

Ao décimo terceiro dia ungiram-na com os sacramentos, e viram-na por volta de meia-noute remexer-se ao longo do leito que rangeu em leve convulsão. Era oderradeiro partir-se de fibra vital. Morreu.

Agora saibamos quem é esta mulher de anos adiantados que passa os dias e a maior parte das noutes sentada a tiritar de frio e a desmaiar de fome em frente do Mosteiro da Conceição. É Custódia. Está ali desde o dia em que Miquelina foi fulminada pela carta do chantre. Veio ali dar, quando, em resultado de custosas diligências, soube que a sua menina fora enclausurada naquele convento. Foi à portaria pedir que avisassem a senhora de que estava ali sua ama. A porteira repulsou-a ameaçando-a de a mandar castigar e prender. Eram providências dadas pela viúva.

Custódia sentou-se defronte do convento com os olhos fixos ora numa, ora noutra gradaria das janelas.

Ao segundo dia, uma servente do mosteiro, condoída da pertinácia da velha, chamou-a de parte e disse-lhe que não estivesse ali porque a senhora que ela procurava adoecera e parecia douda.

Custódia ouviu como emparvecida a nova. Não acreditou. Foi sentar-se na pedra da rua com tão descarnado e doentio rosto que os raros transeuntes da Rua dos Pelames lhe atiravam ao regaço esmolas. A velha agradecia com um aceno e dava as esmolas aos mendigos que passavam.

Ao amanhecer do quinto dia, uns caminheiros madrugadores viram ali aquela mulher caída em terra, com as mãos regeladas. Tomaram-na em braços e conduziram-na ao hospital. Estava viva; mas os sons da voz não lhos percebiam. Opinou a ciência que se lhe injectassem caldos, atentos os sintomas de inanição. Engoliu a enferma alguns alimentos ministrados à força. Renasceram as cores em seguida a um demorado delíquio e copiosos suores.

Lampejou-lhe não sabemos que esperança. Custódia aceitava os compassados alimentos que lhe dava uma compadecida enfermeira, conhecida e moça de sua criação em Guimarães.

No fim de alguns dias, pediu à enfermeira que lhe soubesse como estava a Sr.a D. Miquelina de Calvados, secular da Conceição.

A resposta já a enfermeira lha pudera ter dado de antemão. Sabia-se no hospital, desde a madrugada, que a filha do corregedor tinha morrido.

- Morreu esta noute - disse a enfermeira.

- Morreu! - exclamou Custódia, levantando-se inteiriça sobre o catre. Correram a segurá-la; mas o terror que fazia aquele rosto lívido e transfigurado num medonho espasmo, repelia as mais corajosas convalescentes e ajudantes da enfermaria. O galvanismo da súbita angústia cansou depressa. Custódia caiu como cadáver rijo que houvessem desatado de uma prisão, suspensa do tecto.

Vieram os facultativos da enfermaria. Pensaram em sangrá-la. O mais entendido tomou-lhe o pulso e murmurou:

- Aqui não há sangue que se lhe tire, colega...

Deteve-se alguns segundos esperando em vão que o sangue lhe passasse debaixo dos dedos, arregaçou-lhe as pálpebras com a mão esquerda, e disse:

- Está morta. Estão duas sepulturas fechadas no mesmo dia.

A madre Roberta do Menino Jesus rezava muito por alma de sua irmã.

A mãe de Miquelina mandou-lhe sufragar a alma com seiscentas missas.

O chantre rugia abafados gritos.

Cumpre saber, todavia, o que passou antes que sua sobrinha se despenasse desta vida. Ordenou que viesse à sua presença o humilde Fr. Lázaro das Dores e, em nome do Senhor, lhe mandou contasse tudo que dizia respeito a D. Miquelina. O capuchinho, como se Deus o mandasse, tudo declarou a principiar do acto em que foi chamado a confessar Miquelina até à entrega do atestado do hospício de enjeitados que padre João lhe levara. Vociferava urros o chantre, ao passo que o frade lhe referia por miúdos a traça com que o capelão lograra arrancar-lhe o segredo - perfídia que Fr. Lázaro contava com a sua usual boa-fé e crença na compaixão do denunciante.

Despedido o franciscano, recebia o chantre a notícia de que a febre de sua sobrinha assumira péssimo carácter e assustava os médicos. Mandou que a consolassem com esperanças de lhe ser feita completa vontade em seus desejos. Sentia-se o homem pungido de remorsos de ter escrito a carta, e não ter respondido à invocação aflita de Miquelina. Do convento lhe participavam de hora a hora o estado da enferma, até que o aviso da morte lhe chegou no dobre a finados.

Entretanto, que fazia padre João Nunes? A Calvados não voltou. Hospedou-se em casa do capitão-mor, onde estava prelibando as delícias de feitorizar as quintas prometidas e possuir próprios e muito seus os bens estipulados no pacto, se Miquelina ficasse no convento.

Morta, porém, Miquelina, o capitão-mor dizia ao padre:

- Que diabo ganhei eu? A mãe ficou herdeira, e pode deixar a quem quiser os bens livres que é o mais da casa. Se a mãe morresse primeiro, isso é que era pechincha.

Por maneira que o padre, desamparado de jurisconsultos que ajudassem a convencer o capitão-mor do interesse de lhe morrer a sobrinha, perdeu não só a confiança nas quintas para feitorizar, mas também, e por maior motivo, nos bens advindos como propriedade sua. Com o que, deliberou procurar sua vida e aceitar uma capelania que lhe ofereciam os fidalgos de Briteiros. Zangado, porém, com o menospreço do capitão-mor, e nenhuma remuneração de seus serviços, respirou vingando-se em contar tudo quanto sabia de Calvados para dar relevo à ignomínia daquela família, cuja cabeça já tinha pago sua dívida à humanidade e à santa religião, morrendo como herege jacobino às mãos do povo. Do chantre dizia protérvias e calúnias de tal porte que os colegas do cabido lhas fizeram saber ao injuriado a tempo em que ele chorava sua sobrinha morta e morta por efeito da denúncia e pertinaz guerra do padre.

Ora o chantre, se não era mau homem, e tinha melhor coração que todos os seus parentes, também não era um anjo. Quer ele entendesse que o vingar a sobrinha era acto meritório, quer por vingança de sua honra ultrajada pelo capelão de Briteiros o fizesse, o certo é que de uma sua quinta saíram em direcção de Briteiros dois corpulentos homens armados de arcabuzes. Os mensageiros, como encontrassem padre João no alto da Falperra, caminho de Braga, desfizeram-lhe a cabeça com uma boa dúzia de zagalotes, e prenderam-lhe a uma perna as rédeas do macho, que o foi arrastando pelo trilho da casa até que, embaraçado de tal trambolho, se desembaraçou dele a couces.

A sepultura de padre João fechou-se vinte dias depois das outras duas.

 

Granadina

Passou o dia em que Luísa do Canto, com a sua Flávia vestida de seda e enfeitada de pérolas, esperava a costumada Gertrudes. O tempo aprazado entre ambas eram quarenta dias a contar da segunda ida de Flávia... para onde não sabia Luísa dizê-lo.

Decorrido, pois, o dia, despiu a ama a linda criança e esperou o dia seguinte. Passou-se, passaram muitos e a mulher não tornou, nem a mensalidade devida acudiu aos cuidados de Luísa.

Devolvidos seis meses, a ama tinha gastado as suas economias, tinha empenhado as pérolas e as relíquias, entretinha as fomes de Flávia com afagos, e já a criancinha começava a mostrar a carne alvíssima através dos rasgados vestidinhos que, por terem sido de seda, revelavam por maior sua miséria.

As vizinhas de Luísa deixaram de chamar a Flávia a «fidalguinha» e principiaram a chamar-lhe a «enjeitada», desde que a viram amarelida de fome e andrajosa.

Faziam roda à ama e chasqueavam-na por ela ter dito que a sua Flávia, segundo alguém lhe tinha pintado, ainda havia de ser muito rica, e, no fim da vida, lhe daria com que viver regalada e servida de criadas. Luísa chorava mais de raiva que de pena; e então as vizinhas, como arrependidas de zombarem da pobre, lhe aconselhavam que fosse levar a rapariga ao hospício dos enjeitados.

- Isso não! - dizia Luísa, alimpando as lágrimas à saia da pequenina - quando eu for pedir uma esmola hei-de levá-la comigo.

Luísa tornou à vida de jornaleira. Levava consigo Flávia; sentava-a entre os milhos de sacha, ou entre as messes da ceifa, e repartia com ela do seu caldo.

Aconteceu adoecer a ama. Estava para ali sozinha na sua cabana. Ninguém lhe chegava uma sede de água.

A enferma, como não tivesse cibo de pão que desse à menina, disse-lhe:

- Olha, Flavinha, vai aí para a estrada das Taipas, e   pede um bocado de pão ou cinco reizinhos a quem passar.

A criança de quatro anos e meio, descalça, meio nua, com os cabelos arruivascados do sol e a cútis denegrida, foi à estrada e estendeu a mão mendicante. Uns passageiros não a viram, outros não a ouviram, dous lhe atiraram de suas liteiras alguma moeda de cobre.

Flávia levou à ama o seu granjeio de duas horas e naquele dia não se deitou em jejum.

Seguiram-se muitos dias de mendicidade. Flávia já não esperava que a mandasse senão o estímulo da fome.

Às vezes tão pungidora lhe era que chorava pedindo.

Muita gente que a via chorar dizia: «Aquilo é manha!» e não lhe dava nada. Outra gente de melhor fé, menos crítica e mais coração, acercava-se da criança, perguntava-lhe de onde era e quem era sua mãe.

- Sou enjeitada - dizia a pobre -, a ama que me criou é a tia Luísa das Gaias que está doentinha.

Achavam-lhe graça à expressão pueril, acreditavam na sua necessidade de pão e davam-lho em abundância para três dias. Acabada a esmola, Flávia lá estava aconchegadinha de um combro de bouça, umas vezes tremendo de frio, outras ensopada de chuva, alguns dias, muitas horas seguidas, sem que acertasse de passar alguém.

Melhorou Luísa. Voltou à sua vida de dar o dia por casas de lavradores e não consentiu que a enjeitadinha voltasse a mendigar. Às lavradeiras abastadas pedia os fatos velhos das suas meninas para vestir Flávia; ajeitava-lhe uns gibões de pedaços variegados, e assim a ia forrando ao frio e à vergonha da nudez.

Que lágrimas chorava então a ama lembrando-se da limpeza e asseio com que a sua Flávia fora criada! Perguntava-lhe se tinha alguma lembrança de ter tido vestidinhos ricos. A menina encarava muito de fito nela, dando ares de a não perceber. Não se lembrava senão da fome e dos vestidos rotos. A Providência fizera essa mercê ao anjo.

Luísa, sempre persuadida de que os pais da menina eram de Braga, três vezes em três anos seguidos foi àquela cidade, e por lá andou por praças, ruas e travessas a ver se descobria Gertrudes. Queria perguntar, mas não sabia o quê, nem a quem. Contava o caso da sua enjeitada; mas ninguém se interessava no ouvir-lho, e o mais que obtinha, como conselho de gente caridosa, era levar a rapariga à roda, provando primeiro que não era mãe dela. Enfim, deixou de ir a Braga.

Tocava por sete anos Flávia em 1819. Luísa tinha ido levar a Guimarães um carreto de fruta, em que mercadejava com crédito de alguns lavradores. A menina ficara em casa, dobando uma meada que ela já tinha fiado em quatro meses para ganhar trezentos réis.

Ouviu ela grande algazarra de rapazio e saiu à porta.

Viu um arlequim com duas mocinhas vestidas de escarlate e borzeguins amarelos, caminhando para o Largo das Gaias. Despegou a dobadoira e foi na matula dos rapazes. O saltimbanco preparou o seu tablado em frente de uma casa de boa aparência, rufou numa caixa, alvoroçou a aldeia que se abalou toda para o redor dele, e começou suas arlequinadas, levantando as meninas, perpassando-as de mão para mão, torcendo-as, retorcendo-as e arqueando-as; ora formando rodas aéreas; ora recebendo-as de pernas ao ar sobre a cabeça; já sacudindo-as por tal arte que caíam em pé; já alçando-as sobre os joelhos formando grupos de enoveladas posturas que tanto excitavam o dó como o cascalhar da plebe.

Flávia estava enleada, suspensa e douda do que via!

A gente grande calcava-lhe os pezinhos ou a repuxava de repelão; e a pequena, como se todo sentir lhe estivesse no ânimo estupefacto, parecia não dar tino das dores do corpo.

O arlequim, findo o acrobatismo, pediu em espanhol que lhe dessem alguma coisa. Desfez-se instantaneamente a plateia, como se lhe caísse bátega de saraiva. O espanhol aproveitou o azo de insultar a pátria de Nun'Álvares, representada na canalha das Gaias, e foi-se embora negando a tais sovinas o primor do espectáculo que era a dança na corda. Seguiram-no alguns rapazes até à saída da aldeia. Flávia também foi. Os rapazes e raparigas voltaram. Flávia esteve alguns minutos sentada a ver ir as meninas vestidas de escarlate, com seus pandeiros sobraçados, e arcos floridos a tiracolo. Quando elas iam já distantes, levantou-se Flávia, foi de corrida até as pilhar, e caminhou de par com elas.

Ninguém a viu ir.

Perguntou-lhe o arlequim para onde ia a mocinha.

- Vou também - respondeu ela.

- Vais connosco?

- Vou com estas - tornou Flávia apontando nas raparigas.

- E tua mãe deixa-te ir? - perguntaram elas.

Flávia não respondeu.

- De onde és? - tornou o espanhol, reparando mui atento na pequena.

- Sou das Gaias.

- Tua mãe chama-se Gaias?

- Não, Senhor, eu sou enjeitada.

- Que bonita moça se faz daqui! - disse entre si o funâmbulo, examinando e palpando Flávia nos ombros e ancas. - Então não tens mãe? Es enjeitada?

- Sou.

- E queres vir com estas meninas?

Sim.

- Queres andar assim asseada e fazer habilidades com elas?

- Queria, queria!...

O espanhol sentou-se na Fonte dos Três Irmãos, tirou de um cabaz um paio castelhano, pão, borracha, e chamou para a sua beira Flávia.

- Vem merendar connosco.

A menina comeu com vontade e bebeu.

- Como te chamas, menina?

- Sou Flávia.

- Pois hás-de mudar de nome, se quiseres ir connosco. Daqui em diante chamas-te Granadina.

Flávia sorriu-se e disse:

- Pois sim.

Transpuseram a Falperra, não se detiveram em Braga e seguiram caminho de Galiza. Granadina – vamos com a crisma do saltimbanco - desde Braga foi trajada com um fato curto das suas companheiras, no qual se revia com enlevado remirar-se. Para maior regalia de alma e corpo, ia sentada com as duas no largo albardão de um macho, e lateralmente amparada pelos costais da carga.

- E se a mulher que te criou viesse buscar-te agora? - perguntava o arlequim.

- Eu gritava e fugia-lhe...

Dizia isto a mocinha e logo as lágrimas lhe desvidravam os brilhantes olhos.

- Tu choras? então tens saudades dela? queres voltar para lá?

- Não, que a minha ama não tem que me dar e eu comia-lhe metade do que ela ganhava, e tínhamos fome.

- Quando ganhares dinheiro podes dar-lhe também do teu - disse o espanhol.

- Pois sim.

- Daqui a um ano já tu ganhas que chegue para ambas.

- Deus queira.

Entraram em Galiza e descansaram na Corunha, pátria do funâmbulo. A mulher dele, quando viu a galante criança, dava palmas de contente e clamava:

- É perfeita!

Lavaram-na, perfumaram-na, vestiram-na graciosamente.

A formosura de Granadina parecia cousa de magia.

Sobressaía prodigiosamente de cada vez que lhe acrescentavam um enfeite na cintura, nos braços, nos cabelos que já iam ganhando a nativa cor do ouro.

Começou a dançarina, esposa do acrobata, leccionando a discípula. Progressos admiráveis, um quebrar de corpo, um elastério descomunal, uma graça nos trejeitos, um voltear e partir-se de cinta e pescoço que era a inveja das companheiras.

- Zurita! - dizia a mestra ao marido - isto não é peça que se mostre à ralé das praças e aldeias. Criemos a rapariga para maior destino dela e vantagens nossas. Granadina vai dar a Madrid. Tu o verás!

Aos sete meses de lição, a mestra meditou um arrojo.

Chamou a si uma dançarina notável no teatro da Corunha e pediu-lhe que aperfeiçoasse a sua discípula para pisar o palco. A dançarina examinou-a e ficou maravilhada.

- Pouco tenho que lhe ensinar - disse ela -, porque este diabinho com a beleza e graça que tem dispensa a perfeição dos passos, se é que tem alguns imperfeitos.

Industriaram-na particularmente nos boleros. Como aquela criança de sete anos remedava todas as garbosas posturas, gestos, ademanes e volteações de que os menos tolerantes olhos se pagam e alegram, embora o quadro, de nenhum modo edificativo, seja figurado por moças no fogo da mocidade, e sobejamente sabedoras do efeito de suas atitudes!

Anunciaram os cartazes teatrais que a jovem Granadina se estrearia no palco e invocava a benevolência pública.

O público, revestido de benevolência e caridade, esperou o aparecimento. A gente sisuda viu a criança e riu-se.

Granadina tremia, retraía-se, relanceava os olhos marejados para a mestra que a espreitava de entre os biombos da cena.

- Animo, que logo te darão palmas, Granadina! exclamou a mulher do arlequim.

Continuava o público a rir-se, e a menina como a refugir para o fundo da cena. Do tremor do susto passou às convulsões de um insulto nervoso. Perdeu a vista e oscilou sobre o palco vertiginosamente. Correu à cena a mestra a colhê-la nos braços. Então romperam dos camarotes muitas palmas. Estavam lá mulheres; os corações tinham voado a amparar a pobre mocinha, que parecia um anjo naquele momento caído dos coros do Céu a um lugar infernal onde estavam homens que o escarneciam.

Levada para o camarim, recobrou os sentidos e desatou num chuveiro de lágrimas. Animaram-na muitos cavalheiros que tinham ido vê-la, e pediram-lhe que voltasse ao proscénio. Após grande intervalo, preenchido por um acto de comédia, Granadina entrou menos trémula.

Trovejaram as palmas. Retingiu-se-lhe o cetim do rosto. Rompeu como se tirassem por ela coreias invisíveis. Já parecia o anjo que se alava para os seus irmãos no raio de sol por que descera. O pavimento não lhe sentia o leve poisar da planta. As aclamações cobriam o estalejar das palmas; e como se o ar agitado por elas redopiasse no ar a pétala de um lírio, Granadina parecia avoejar entre os impulsos de encontradas ventanias, que lhe sacudiam as espirais douradas dos cabelos.

As damas dos camarotes, desconfiadas da beleza ilusória de Granadina, a mandaram buscar, findo o passo, para de perto a verem. Contemplavam-na embelezadas e diziam:

- Não é tão linda no palco!

 

Obra misteriosa do seu anjo da Guarda

Quando voltou à cena, Granadina era beneficiada.

A mestra e o arlequim deram-lhe a ela os ramos de flores e guardaram a quantiosa ganância de duros e onças.

Granadina, como visse ouro e as companheiras lhe dissessem que ela o ganhara, pediu ao arlequim e à mulher que dessem algum à sua ama. Disseram-lhe que sim.

Passados dias perguntou a mocinha se a sua ama ficara contente. A inocência da pergunta responderam-lhe perfidamente que Luísa ficara danada contra ela por lhe ter fugido; e que estavam a recear que a viesse procurar à Corunha, com o intento de a levar outra vez para a pobreza e miséria.

Granadina magoou-se com tão ingrata recompensa, dizendo:

- Pois não vou!... Ela não é minha mãe...

O funâmbulo mentia quanto pode entender-se de tal sujeito. Lá era ele tolo que se defraudasse de dinheiro em favor da portuguesa das Gaias! Além de quê, se a ama soubesse onde a enjeitada estava em começo de prosperidades, não viria logo buscar o amparo dela?

O que muito lhe convinha ao proprietário da festejada dançarina era delir da memória e saudade da moça lembranças de sua ama, começando por lha figurar ingrata ao bem-fazer e teimosa em torná-la à indigência de onde saíra.

Não obstante, Granadina voltava a pedir por vezes que mandassem dinheiro à sua ama, e eles fingiam cartas em que Luísa do Canto os ameaçava de ir a Espanha queixar-se de lhe terem roubado a sua enjeitada. Estas cavilações desgostavam a menina, em cujo tenro juízo a mestra ia martelando até conseguir dela que deixasse no desprezo a desagradecida mulher.

O empresário do teatro da Corunha obtivera por medianeiros convidar Granadina a desligar-se da tutela do saltimbanco, de quem ela estava sendo desfrutada, podendo desde logo principar a afortunar-se, e tanto que, aos vinte anos, podia ser rica.

A pequena entendeu pouco do que lhe diziam e contou à mestra o que entendeu. Assustaram-se os mineiros daquele veio e cogitaram em mudar de terra.

O empresário, sabedor do desígnio, entrou em averiguações da naturalidade e filiação da dançarina, com o propósito de avisar os parentes de Granadina e movê-los a empecerem ao ginástico os lucros que ele não podia auferir. O previsto espanhol já tinha industriado a moça a trocar sua naturalidade, dizendo-lhe que assim convinha para que a ama nunca lhe soubesse paragem certa.

De modo que, sendo, como foi, interrogada intencionalmente por pessoas insuspeitas, Granadina respondeu que era de Coimbra, filha de pais assassinados pelos franceses e sem outros parentes nenhuns a quem estivesse sujeita. A mentira logrou o efeito de baldar o projecto do empresário.

Ainda assim, decorrido um ano, Zurita, que já não fazia viagens artísticas com o aparelho de acrobata, e se intitulava professor de ginástica - graças aos rendimentos auferidos da discípula da galega, também categorizada em professora de dança -, deliberou passar-se a Madrid, para onde a ulher tinha sempre feita a pontaria da sua ambição.

Em Madrid, posto que as dançarinas gozassem reputação difícil de emparelhar, a jovem Granadina, chamada nos cartazes «prodígio de Terpsícore», conseguiu admirar e prender o espírito das plateias fatigadas de boleros, jotas aragonesas, cachuchas e quejandas invenções que da capital de Espanha saíam para a restante Europa a revelar a arte mais insigne dos Iberos.

As escrituras de Granadina eram pactuadas entre os empresários e o professor de ginástica, o qual se dizia pai da dançatriz - paternidade em que a moça condescendeu de óptima vontade.

Mal se lhe conhecia na linguagem espanhola dela traços de estrangeira. Com dous anos de Espanha, e trato nenhum de portugueses, esquecera de todo o idioma pátrio; e, se as palavras guturais lhe saíam menos bárbaras e ásperas, a falta redundava em mais doce e branda pronúncia. Encantava a dançar e a falar, bastando-lhe para enleio de admiração o deixar-se ver quieta e silenciosa; porque então a filha de Miquelina era a gentileza extrema de graças do Céu que não podia ser maculada por pensamento impuro.

Aos nove anos pediu Granadina que a ensinassem a ler, envergonhada de não ter sabido decifrar os caracteres de uns sonetos que os poetas madrilenses ajuntaram às coroas do seu benefício.

Em frente da casa de sua residência, na Calle de Ia Soledad, via ela muitas meninas e ouvia a leitura delas em comum. Era um colégio. Dizia ela aos seus donos:

- Quem me dera ali!

As meninas saudavam-na e passavam nas janelas as horas feriadas, sorrindo e acenando-lhe. As próprias mestras folgavam de vê-la e diziam:

- Que pena! Uma formosura assim, daqui a quatro anos, é uma criatura perdida! Não ter aquela menina quem a tire da vida de dançarina!

Voltando ao desejo de saber ler, o professor de ginástica não lho contrariou, tomando-lhe mestre que vinha todos os dias leccioná-la. Isto fez que Granadina se descuidasse dos ensaios da dança e entrasse a aborrecer-se das reflexões da mestra; com o quê, os cautelosos exploradores intentaram dissuadi-la de se entregar ao estudo dos livros, menos útil que o das piruetas quotidianas por espaço de uma hora.

Não se deixou persuadir Granadina; e à medida que a inquietavam com admoestações, aumentavam-lhe o tédio do teatro e o propósito de se resgatar de tal ofício.

A professora repreendeu-a brutalmente um dia. A menina chorou.

Aos dez anos as lágrimas já são pensativas e reflectidas. Zurita, como a visse melancólica e reconcentrada, interrogou-a; e qualquer que fosse a resposta, o homem disse à professora de dança:

- Qualquer hora, a rapariga deixa-nos.

Notaram mais eles que a dançarina já os não chamava pai nem mãe. Dava-lhes os seus nomes, e dizia-lhes em resposta ao reparo:

- Eu não tenho pai nem mãe. Escuso de me enganar. Hei-de ser como Deus me pôs neste mundo, sem ninguém. Meu pai é Deus.

No colégio fronteiro continuavam as meninas a cumprimentá-la e a pedir-lhe das muitas flores que lhe viam sobre a cómoda do seu quarto. Uma das educandas, principalmente, pouco mais velha do que ela, distinguia-se das outras em lhe estar sempre que podia fazendo acenos e perguntas infantis. Granadina contava-lhe o que ia aprendendo nas suas lições, e mostrava-lhe as cópias que fazia dos traslados.

A professora de dança muitas vezes ia de má sombra interromper estes colóquios, ordenando-lhe que fosse para os ensaios, se queria não descair da graça do público.

Retirava-se Granadina com os olhos aguados e revelava sensivelmente às plateias que as graças diminuíam ao compasso que os anos aumentavam. De feito, as esperanças de quem a viu aos oito anos ficavam muito aquém. A dançarina, que não ri ao público, escurece por metade o brilho do seu donaire e parece ignorar que a sua obrigação é encantar com o riso permanente e fazer das tristezas, se as tem, sacrifício de lágrimas ocultas sobre o telónio em que os espectadores compraram o direito de se divertirem.

Pelo que, umas noutes por outras, Granadina nem sequer aplaudida era. A mulher do arlequim enfurecia-se a ocultas; e, por não estalar de dor, desabafava com ela prudentemente, visto que Zurita lhe dizia:

- Se a ralas, olha que o pássaro bate as asas. Deixa-a ter mais três anos, que ela, em sabendo que a amam, se fará mais leveira que uma andorinha e mais risonha do que é necessário.

De mal em pior.

Uma noute, Granadina dançou tão contra vontade, tão desairosa, tão sem garbo e pesada de aborrecimento, que os enfadados mostraram sinais de desaprovação, se não foi propriamente o empresário que lhos mandou manifestar como estimulantes.

A menina pateada saiu nem triste nem alegre. Em casa foi repreendida e ameaçada de ficar sem modo de vida, continuando a desprezar a arte em que ela podia ser a primeira de Espanha.

No dia seguinte, após uma noute de vigília, Granadina saiu de seu quarto, atravessou a rua, entrou no colégio e procurou a dona da casa. Foi recebida afectuosamente.

Perguntaram-lhe o que queria.

- Vinha pedir que me recebessem como criada de servir neste colégio.

- Então a Sr.a Granadina...

- Eu não sou Granadina - acudiu ela -, o meu nome é Flávia.

- E quer servir? A sua família dá-lhe licença!...

- Não tenho família. Sou enjeitada e sou portuguesa. Os espanhóis com quem vivo não me são nada. Se as senhoras vêem que eu posso ser criada dos quartos das meninas, peço-lhes que me recebam.

- É Deus que a traz para a tirar da vida da perdição! - disse ao ouvido da irmã uma das senhoras.

- Pois, menina - respondeu a outra -, demore-se um pouquinho que vamos consultar o dono da casa, porque não sabemos se a menina está obrigada por alguma escritura a ser dançarina.

- Obrigada não, que eu não recebo dinheiro nenhum nem assinei nenhum papel.

Apareceu o dono do estabelecimento, sujeito de venerável presença. Decidiu que não tinha dúvida em aceitar a menina, menos pelos serviços que lhe ela podia prestar, mais pelo prazer de a descaminhar da má estrada em que as circunstâncias a puseram.

Quando estavam entretidos em conversar com a galante criatura, anunciou-se o professor de ginástica, perguntando se a sua filha ali estava.

Mandaram-no entrar.

Flávia falou com ânimo destemido, dizendo que não era sua filha nem queria ser dançarina; mas sim era enjeitada e ia ser criada daquela casa. O espanhol alegou, contra a defesa do dono da casa, direitos absurdos, escrituras, despesas de educação e outras razões que o proprietário do colégio lhe mandou formular judicialmente.

O alcaide não aceitou como bons os requerimentos do antigo funâmbulo e elogiou o procedimento da menina. Entrou, pois, a filha de Miquelina no tranquilo exercício de criada de quarto das educandas.

 

O general Gassiot

Estamos em 1822.

Retrocedamos nove anos.

Alfredo Gassiot não é personagem que o leitor haja esquecido.

Deixámo-lo na fronteira da Galiza. Não o sigamos através da Espanha, que seria excursão perigosa, ou quando menos fastidiosa a notícia dos lances arriscados em que se viu entre o exército anglo-luso, entre legiões espanholas e guerrilhas assanhadas com as primeiras vitórias obtidas sobre Soult, o devastador insigníssimo em latrocínio, mais do que em bravura.

Ei-lo finalmente em Madrid: está seguro. Reina ali Joseph Bonaparte que já tinha reinado nas Duas Sicílias. O coronel do exército de Soult apresenta-se ao irmão de Napoleão, explica verosimilmente a causa da sua forçada detença em Portugal, é reintegrado no seu posto, e embolsado dos vencimentos com generosa gratificação. Sem demora, enviou a Portugal um mensageiro com o dinheiro recebido do fidalgo de Guimarães, como já foi dito: mas de Miquelina palavra nenhuma dizia que lhe impusera silêncio a severa despedida do morgado de Figueiroa.

Wellington aproximava-se, meses depois, de Madrid, e Joseph Bonaparte despejava a cidade. Atravessou-se-lhe o inimigo ao norte do Ebro; aceitou a batalha em Vitória, fez rosto aos primeiros recontros e forrou-se aos últimos fugindo à rédea solta para Tolosa, à frente dos franceses mais espavoridos que cortados.

O general Foy susteve o exército, arrebanhou-o nos Pirenéus para o entregar a Soult, que o imperador mandara socorrer o irmão.

Soult imaginou que era chamado pela primeira vez a vencer em Pamplona. Iludiu-se ainda. Estava lá a estrela de Wellington, que lhe abrilhantou a vitória e logo a seguinte de S. Sebastião.

Fortalecera-se o duque de Dalmácia em Bidassoa; e à vista do general inglês desamparou a praça; e, fugindo sempre, perdeu Baiona, Bordéus, Orthez e Tolosa.

Alfredo Gassiot era general de brigada no começo de 1814. Ganhara a patente nas batalhas em que as águias francesas caíam sovadas no chão da Península.

Soult engrandecera o bravo da família dos Titãs de Marengo e Austerlitz, ainda grande à frente dos bisonhos, indisciplinados e covardes soldados que Napoleão mandara afrontar-se com a raça indomável dos Viriatos e Cides, acrescida em sua nativa força pelas proclamações dos frades, que tanto floreavam a cruz como a baioneta.

O duque bandeou-se com a restauração de 1814, entrado em França. Alfredo Gassiot deixou o vilão, e foi em demanda do imperador a Vitry-le-Français. Exultou em Brissac. Pareceu-lhe ver o anjo antigo da vitória.

Seguiu-se Champ-Aubert e Vauchamps. Napoleão expedia os clarões da luz que se debate no vasquejar.

Custava-lhe a extinguir-se. Tinha combustível tenacíssimo de brilhar e arder. Os lampejos finais alumiavam ainda, como relâmpagos formidáveis, grande porção do Globo.

Alfredo acreditou no pulso inquebrantável do imperador até à noute de 20 de Junho de 1815. Desde então à luz do paço Eliseu viu que Napoleão era um homem.

E que a noute do desengano seguira-se ao dia de Waterloo.

O general Gassiot recolheu-se a França. Bem que o governo restaurado não decretasse expatriação, Gassiot emigrou.

Era pobre. Com a morte de seu pai, falira o esteio a que se amparava a prima e os dous filhos. Em Madrid tinha os irmãos de sua mãe, ricos e respeitados. Pediu-lhes auxílio no extremo desesperar de outros recursos sem desdouro. Chamaram-no a si com sua família.

O ex-general encontrou caridade e estima no país talado pelas joldas francesas. De sobra sabiam os madrilenses que nos arrabaldes da cidade vivia o mutilado general com sua família, uma senhora avelhentada de mortificações e dous filhos, um menino de sete anos e uma menina de cinco. Ao invés de o inquietarem, visitaram-no, compadeciam-se dos cabelos brancos e fundos vincos aos trinta e quatro anos, e contemplavam condoídos o semblante de Madame Gassiot, que por todos era considerada esposa do general.

Em 1816, o morgado de Figueiroa foi a Madrid. Casualmente ouviu falar do general francês Alfredo Gassiot, nome que ele tinha lido nos extractos da Gazeta de Lisboa, pertinentes às últimas batalhas do prisioneiro de Inglaterra. Pediu miúdos esclarecimentos acerca de Gassiot. Disseram-lhe que vivia nos subúrbios de Madrid com esposa e filhos, beneficiado pelos irmãos de sua mãe. Procurou-o. Espantou-se de o ver tão acabado no lapso de quatro anos, tardo e pesado no exprimir-se, como se as palavras lhe custassem grande perda de forças. O general, querendo em pouco tempo historiar o seu triste envelhecer, disse:

- Creio que principei a morrer em Waterloo. Mas estas duas crianças não me deixam acabar. Estão muito novas e muito pobres.

O fidalgo de Guimarães desejou cumprimentar Madame Gassiot.

- Vou apresentar-lhe a mãe de meus filhos – disse Alfredo, e apresentou-o como o cavalheiro português cuja beneficência ele tinha encarecido muitas vezes a sua prima. A dama apertou-lhe fervorosamente a mão e pediu-lhe licença para que seus filhos a beijassem.

O morgado comoveu-se a lágrimas e estreitou ao peito os dous meninos.

Despediram-se. Alfredo acompanhou fora da quinta o português.

Ao darem-se o último abraço, o general murmurou-lhe, em segredo, com os olhos a nadarem nas lágrimas:

- Se vir Miquelina, diga-lhe que me encontrou assim velho...

- Se eu a vir?

- Sim.

- Miquelina morreu há três meses.

Alfredo Gassiot segurou-se muito e convulsamente amparado no pescoço do amigo.

Passados instantes, disse, embargado pelas lágrimas:

- Pois morreu?

- No convento onde a família a encerrou. Eu nunca mais a vi desde que lá estivemos juntos. Não sei que tormentos ela suportou nos decorridos três anos. Há segredos nisto que dão azo a conjecturas vagas de que eu nada sei liquidar com certeza. Fala-se no aparecimento de um filho que motivou a resolução violenta dos parentes a matá-la na asfixia de uma cela. O general pode informar-me...

- Eu!... - atalhou enleado Alfredo Gassiot.

- Sim: existiria na sua saída de Portugal a suposição de...

- Existia.

- Pois então alguma base têm os boatos espalhados.

- E a criança vive? sabe-se dela? onde está? - interrompeu Alfredo.

- Nada sei, ninguém sabe, a não serem os personagens da tragédia, os verdugos capazes de um infanticídio, se necessário fosse. O que eu sei é que um padre feitor da quinta de Calvados, onde ela vivia sozinha com a sua ama, era ao mesmo tempo carcereiro e espia da pobre senhora. O padre, depois que ela foi arrastada ao convento, não voltou à quinta, e andou contando aos seus amigos cousas tristes que correm mais ou menos desfiguradas. Eu dispunha-me a procurar o padre para colher alguma notícia das violências que ela sofrera, quando me foram dizer que o homem aparecera morto a tiro na Falperra. Se o mataram os salteadores da serra, se há nesta morte alguma relação com a de Miquelina, nem sei nem será possível averiguá-lo.

O certo é que ela está sepultada, e sepultada foi no mesmo dia a ama que a criou, e unicamente poderia responder às perguntas do general, no tocante ao filho de D. Miquelina.

Alfredo chorava soluçante. O fidalgo de Guimarães compadeceu-se e imputou a si a culpa dos infortúnios consequentes da apresentação do hóspede em Calvados, e da severidade com que o tratara quando lhe cumpria remediar com linimentos uma chaga que o gautério do abandono exacerbara.

Fazia-lhe, portanto, mal o espectáculo do general chorando. Desprendeu-se com promessas de voltar, e não voltou.

 

Sorrisos da sincera felicidade

Passaram alguns dias mais tristes que os acostumados do general. Jaquelina, a mãe dos dous meninos, cismava por adivinhar aquele recréscimo de amargura. Amava-o ela tanto que até se confundiam adoração e respeito nos olhos com que o contemplava. A submissão silenciosa de sua dignidade de mulher à vontade do primo pareceria indiferença de seu estado a quem a não visse chorar.

E ninguém a via; que o seu chorar era escondido. Tinha uma grande testemunha e ao mesmo tempo indeclinável juiz: era Deus. Fugia de ser conhecida e visitada para lhe não darem o título de esposa que não tinha.

Forçada à impostura, sentia mais dentro a lancetada de sua vergonha. Referindo-se a Alfredo nunca disse senão «meu primo». Observavam-lhe que era mais doce dizer «meu marido, meu esposo». Jaquelina sorria, e murmurava: «Ficou-me o costume de chamar-lhe primo.»

Tornando à tristeza extraordinária do general, fácil nos é achar-lhe a causa. Eram parte nela remorsos, pena e o pensar no destino de seu filho. Três penetrantes ferros que a um tempo o trespassavam. O remorso pintava-lhe uma formosa e alegre menina que vira em Calvados. A pena mostrava-lhe uma sepultura. O filho ou filha, até entre os dous que tinha, lhe aparecia com o rosto lívido da fome e os membros denegridos do queimar e girar dos agostos e janeiros horrendos dos enjeitadinhos.

Estremeceu-se a saúde de Alfredo Gassiot, depois de muitas noutes fugidas do lado de sua família e passadas no quietismo da meditação, dilacerante serenidade, mormente se está belo o céu, quando o inferno revoluteia na alma do homem.

Bem que a ciência desatinasse na enfermidade do general, capitulando-a de «nostalgia» - saudades devoradoras da pátria -, para as quais receitavam transferir-se a França, Gassiot rejeitava os recursos oferecidos por seus tios e dizia estar bem onde estava.

Como homem de imaginação apaixonada, entrou-se um dia do receio da morte. Pediu a seus tios que se fechassem com ele, revelou-lhes o segredo de sua aliança com a mãe de seus filhos e pediu-lhes que a não tornassem a ver sem que ele pudesse apresentar-lha sua esposa.

Os tios, em breves dias, lhe colheram de França as certidões necessárias; e, clandestinamente quanto pôde ser, se efectuou o casamento em igreja rural.

Como foi então donoso e aprazível de ver-se o reflorir belezas no rosto de Jaquelina, renascidas ao calor de alma e coração felizes! Ao mesmo tempo, a negridão do espírito de Alfredo se foi dilucidando, e as visões do túmulo e do filho se desvaneceram, com toda a naturalidade própria e costumeira do animal inexplicável, chamado homem.

Sondou ele então o fundo nunca sondado do amor de sua esposa. Foi preciso vê-la remoçada e alegre para entender a força miraculosa do bem que lhe fizera, honrando-a, honestando-a, reabilitando-a. Enquanto ela foi desgraçada e de dia para dia se avelhentava, não a entendeu, não atinou com a chave daquele tesouro de lágrimas e virtudes em vida pecadora. Às vezes lhe fazia ele a grandíssima injúria de supor que sua prima não era mais cuidadosa de sua dignidade, bem que toda humana e convencional, do que muitíssimas francesas bem nascidas, bem educadas e mais que muito indiferentes aos enlaces sacramentais.

Desde este dia de santificada união começou a bafejá-los ar celestial de felicidade.

O rico fabricante, pai de Jaquelina, mandava, volvidos seis meses, no fim de 1817, chamar sua filha e genro a Paris, apressadamente.

Partiram, e deixaram os filhos com os parentes em Madrid.

Quando chegaram, o velho estava entrouxado para a eternidade e dispunha a favor da filha de seus muitos haveres. Morreu satisfeito; mas podia e devia ter morrido satisfeitíssimo se lhe houvesse dado menos ouro na morte e mais coração de pai nos anos que ela e filhos viveram atidos ao esforço mal remediado do artista Gassiot.

Cobrada a herança, voltaram a Madrid a beijar as mãos dos velhos que os tinham agasalhado pobres. Em recompensa dos benefícios feitos, lhes pediram os tios que deixassem na companhia deles um dos filhos, a não serem os dous.

Resistir seria ingratidão; condescender era paga superior aos desvelos de seus parentes. Cederam-lhes Carlota, fingindo-se alegres de a deixarem a quem tanto lha merecia; e levaram Ernesto para entrar em colégio.

Tinha Carlota oito anos, e dez o menino.

Logo que a filha de Alfredo perfez os nove anos, curaram seus tios de lhe dar educação colegial, a prazimento dos pais. À míngua de bons colégios em Madrid, tomaram a seu cargo estabelecer um, dirigido por senhoras de notável virtude, mais apontadas à boa morigeração das educandas do que à cultura intelectual de almas feitas para boas filhas e óptimas esposas - virtudes bastantemente ricas de si para dispensarem opulências e vaidades literárias.

O colégio fundado com o auxílio dos tios de Carlota era pontualmente aquele fronteiro à casa do professor de ginástica.

A educanda, que se estremava das outras nos risos e acenos à dançarina, era Carlota.

E ela entre todas se alegrou grandemente quando soube que a sua vizinha acabava de entrar no colégio, na qualidade de criada das meninas.

Temos, pois, atado o fio dos sucessos ao ano de 1822, em que foi quebrado.

 

As duas amigas

Carlota Gassiot orçava por catorze anos.

Sua mãe, com quanta delicadeza podia, lembrava aos parentes que a menina devia estar educada. Os velhos tergiversavam nas respostas, deixando adivinhar que a demora de Carlota em Espanha procedia de se não poderem apartar dela os corações de seus tios. Bem queriam eles levá-la para si, que no colégio pouco tinha que aprender a senhorita; mas o colégio era o sofisma, a diáfana capa com que a santa gente escondia o furto feito à mãe saudosa de sua filha. Ainda assim levavam-na para casa às temporadas, bem que a educanda se estivesse sempre a lembrar de suas condiscípulas, encobrindo mal a ânsia de se ver com elas. Os velhos não se doíam, antes jubilavam com isto; que assim, diziam eles, a pequena há-de também mostrar aos pais desejos de não ir para França.

Como pessoa mais estimada e regalada no colégio, Carlota foi chamada para ver Flávia e saber a resolução louvável dela.

Flávia corou diante da menina que lhe tinha falado da janela. Corou como envergonhada da sua posição de criada; e abaixou olhos com humildade forçada, digamos verdade.

Pediu Mademoiselle Gassiot às mestras que lhe mandassem Flávia ao seu quarto.

Maravilhou-se a criadinha de se ver afectuosamente tratada e com sua mão apertada na da menina.

- Então vem para cá? - perguntou Carlota.

- Sim, menina... - disse Flávia muito acanhada e retraída aos modos meigos da educanda.

- Faz bem em não querer ser dançarina – tornou Carlota. - A gente cá falava muito na menina e tinha pena de a ver em tal modo de vida. Não sei como seus pais a deixaram...

- Eu não tenho pais... Sou enjeitada.

- Ah! é? Coitadinha!... por isso!... não teve ninguém que lhe desse conselhos... Foi Deus! Olhe que eu sou muito sua amiga, muito... Quando a não via um dia, tinha umas saudades que não faz ideia! E a menina é minha amiga?

- Eu...

- Sim, não é?!

- Pois não vê que...

- Diga...

- Que vim para criada...

- E então isso que tem?

- As criadas não podem...

- Ser amigas? ora essa!... E quem disse à menina que veio para criada? Não veio, não. As suas criadas são também as minhas. Flávia está neste colégio como minha amiga.

Flávia tinha os olhos a desbordar de lágrimas. Carlota, obedecendo a impulsos de muito afecto, abraçou-a e reteve-a cingida pela cintura com a face ajustada à sua.

- É muito minha amiga, não é? - instou Mademoiselle Gassiot. - Diga...

- Eu vim para aqui lembrando-me que a senhora me receberia como sua criada de quarto... Era a minha esperança... - disse Flávia.

- Pois enganou-se. Já lhe disse que a menina neste colégio é uma educanda, e minha amiga e condiscípula.

E, levantando-se, continuou:

- Espere que eu volto já.

Foi Carlota dizer ao proprietário do estabelecimento e às mestras que Flávia ficava pagando como as outras educandas a sua educação.

Assombraram-se os ouvintes de tal despropósito, ao qual o grave dono da casa saiu com certas razões fundadas na indiscrição e puerilidade da menina Gassiot, tanto mais imprudente quanto seus tios não tinham permitido tão desatinada como censurável deliberação.

Carlota escreveu a seus tios imediatamente. Os velhos compareceram. A menina pediu licença para ter à sua custa uma condiscípula, cuja procedência explicou.

Consentiram, quiseram ver a famosa dançarina, deram-lhe os emboras da sua resolução salvadora, e às mestras recomendaram que não contraviessem aos desejos de sua sobrinha, enquanto eles fossem assim louváveisquanto caritativos.

Muito bem podia ser que as mestras e as outras meninas aceitassem de mau ânimo a dançarina na categoria de educanda. Não aconteceu assim. Flávia ganhava corações com sua senhoril docilidade; e então no de Carlota insinuou-se por tal arte que o ver uma era ver a outra, abraçadas, inseparáveis, identificadas em contentamentos sem passageira intercadência de dissabor. Trajavam da mesma cor; eram quase da mesma altura, dado que Carlota se avantajasse em três anos; no feitio de rosto e olhos semelhavam-se; todavia, as feições de Flávia eram mais finas, mais a primor afidalgado, e a transparência da pele, sem embargo dos anos de nudez e fome, mais indicativa de raça adelgaçada e depurada do sangue que avulta as formas corporais.

Progrediu Flávia admiravelmente no processo de sua educação. Tão expedita se mostrou nas prendas de bastidor como no pequeno curso de letras que lhe ensinavam. Aprendeu a língua francesa com a sua amiga, cujas criadas lhe não falavam outra, conforme as recomendações dos pais.

Dizia-lhe Carlota que iriam ambas para Paris, e mostrava-lhe cartas de sua mãe louvando-a da boa acção que praticara, tomando como amiga uma criatura tão carecida do amparo que sua indigna mãe lhe não dera.

O general também se congratulava de ter uma filha dotada, em anos de inexperiência, da generosidade de alma que só o espectáculo da desventura costuma gerar.

Os velhos madrilenses folgavam por igual de a terem em sua casa com a sobrinha, e pediam aos convidados, extasiados nela, que lhe não lembrassem a sua triste vida de dançarina.

Assim correram ladeados de santos prazeres três a quatro anos da existência de Flávia. A bondade, o génio meigo, o juro grande com que ela pagava o amor de Carlota, o exemplo de obedientíssima com que melhorava suas condiscípulas, tudo concorria a deliciar-lhe a consciência de ser querida de todos.

Mas, se eu quisesse inculcá-la como perfeita, não viria aqui dizer que Flávia esquecera Luísa do Canto, a sua pobre ama das Gaias.

Ai! esqueceu-a de todo em todo! Não contava à sua amiga as lágrimas que a desvalida mulher chorava, quando lhe vestia um baju de remendos e lhe dizia a chorar:

- Lembras-te dos teus vestidinhos de seda, minha filha?... Quem te viu e quem te vê!...

 

Pressentimentos

Aos dezasseis anos de idade Carlota Gassiot saiu de vez do colégio para a companhia de seu tio-avô, único restante; que dous tinham falecido com pouco tempo de permeio. O ancião de todo solitário pediu a Alfredo que lhe deixasse em casa a sobrinha até ele cerrar olhos.

Flávia de ver é que foi com a sua amiga, a qual muito concorria com suas amoráveis graças e carícias a minorar as achacosas tristezas do velho.

Dissera ele à filha de sua sobrinha:

- Dispus dos meus bens de fortuna a favor de teu pai, menina; é o mesmo que dar-tos a ti e a teu irmão; ainda assim, verás que me lembrei dos teus alfinetes. Deixo-te a minha terça, e tu reza por alma do teu amiguinho, quando eu tiver passado à presença de Deus.

Carlota enxugou as lágrimas, afagou as cãs do ancião e disse-lhe:

- Para que me deixou a terça, meu tio? Não era melhor deixá-la a quem seja pobre? Rica bastantemente sou eu, segundo vossemecê mo tem dito. Há tanta menina infeliz que não tem nada, nada de seu! Por exemplo: a nossa Flávia!... Que boa esmola faria o tio, se lhe deixasse o que me deixa a mim?...

- Pois tu depois lho darás, Carlota. Cá vos fica tudo... - disse o velho sorrindo à virtuosa abnegação do anjo.

- Pois sim; mas o meu maior prazer seria que elaantes do tio que de mim recebesse o benefício.

- Hei-de pensar nisso... - concluiu o velho.

Daí a horas tinha feito codicilo testamentário em que repartia por igual sua terça entre a sobrinha e a portuguesa Flávia, amiga dela, e com ele moradora em suas casas. Escreveu o velho, desconfiando da brevidade da morte, ao general, pedindo-lhe que se apressasse a ir tomar conta da filha e dos bens, e levasse consigo a esposa e Ernesto, a fim de os ver com a já pouquinha luz de seus olhos.

Alfredo Gassiot, Jaquelina e o filho abalaram-se logo para Madrid. O enfermo, sabendo que estava à porta a caleça de viagem, disse à sobrinha que se deixasse estar à beira dele, e a Flávia que não saísse do outro lado do leito.

- Eles cá virão ter... - disse jovialmente o velho. Quero que vejam como um ancião de noventa anos espera a morte, guardado por dous formosos serafins.

E sorria como se o Céu lhe estivesse mostrando as suas delícias em seguimento das bem-aventuranças e jubilosa consciência de uma vida cheia de caridade e justiça.

As meninas não se demoveram até que a família entrou alvoroçada na câmara cuidando que já encontravam nas agonias o santo varão: tanto era o silêncio da casa.

- Deixastes-me um anjo e eu vos entrego dous! disse o risonho enfermo.

Jaquelina abraçou-se na filha devorando-a com beijos, sem quase dar tento da outra menina a quem Alfredo Gassiot e Ernesto abaixavam a cabeça cortesmente.

- Aqui está a minha Flávia! - exclamou Carlota, levando-lhe aos braços a sua amiga.

- Se é tua - disse a mãe -, é também minha... Que linda amiga tens, Carlota!

- Linda no corpo e na alma... - ajuntou o velho.

Flávia sorriu-se ao risonho dizer do espanhol e abaixou os olhos diante da fixidez com que o general e o filho a fitavam.

Convergiram as atenções para o velho cujas mãos todos beijaram.

Quer se lhe dilatassem os pulmões aviventados por aspirações de contentamento, quer resistisse ainda a derradeira fibra de vida tenacíssima, o velho, volvidas algumas horas, mandou ao seu escudeiro que o vestisse e passasse à sua poltrona de rodas e o conduzisse à antecâmara.

Este inesperado sucesso acrescentou a exultação de Jaquelina, cujo prazer de se abraçar à filha certamente seria desfalcado na saudade do parente morto.

Nas intermitências descansadas das dores de gota, o ancião palestrava com graça e folgava de a ter. Flávia era o brinquedo dos seus chistes.

- Ai! minha feiticeira! - dizia ele - se tu te namorasses dos meus noventa anos, não passava eu pelo desgosto de morrer solteiro! Se querem apostar que eu vivia outros noventa, deposito já quanto tenho, se Flávia quiser ajudar-me a ganhar! Quem aposta?

Como sabiam que o maior prazer do velho consistia em promover a hilaridade, ninguém se eximia ao tributo de uma boa gargalhada, salvo Ernesto Gassiot que algumas vezes se esquecia de rir, de abstraído que era na contemplação de Flávia. Ora, o gracioso que examinava atentivamente se as suas facécias produziam geral efeito, deu tino da abstenção sisuda de Ernesto e disse:

- Ó rapaz! parece que tens ciúmes! Ri tu também, meu pisa-verdes!

Corou Ernesto e sorriu Flávia. A inocência da menina achava a tudo graça ou não percebeu a intenção, nem a palavra. Cuidam - digamo-lo de caminho – os escrutadores do coração que a suprema prova de inocência das meninas é o corar; por isso as fazem logo aos catorze anos corar de quanto se lhes diz mais ou menos contingente do amor. Com estes analistas me desavenho eu. Sou de parecer que a menina que não cora de certos dizeres, porque os não entende, é muitíssimo mais inocente que as outras. Flávia, pois, riu do dizer do velho, porque se afizera a rir com os demais.

Inocência pela qual eu não quebro lanças era a de Ernesto, que se fez vermelho até às orelhas e achou seu tio-avô notavelmente sensaborão.

Entretanto, o velho, animado pelo regozijo público, continuou a galhofar:

- Não te comas de inveja, moço! Eu cá de mim desisto. Cedo-ta por piedade, e já agora irei celibatário para outro mundo. Cá te deixo a pomba mais linda que eu vi desde que abri os olhos até aos noventa em que vou fechá-los. Como ela está a olhar para mim! Querem ver que a deixo enamorada... a doidinha!

Maiores casquinadas, e o rapaz a esconder-se na sombra da saleta, e o general a lançar de invés a vista acintosa à esposa, como quem dissesse: «Ele tem razão...»

Os gracejos continuaram até se fatigar o velho e adormecer quase de súbito como adormecem os que se aparelham para dormir sem fim.

Flávia, nos subsequentes dias, falava a Ernesto desembaraçadamente como ao general, como a Jaquelina e Carlota. O moço não lhe aparava sossegado o lançar de olhos nem ordenava correntia e gramaticalmente o que lhe dizia. Andava como medroso a espreitar e a fugir.

Ia-lhe bem aquele enleio. Saíra do colégio para acompanhar seus pais; não obstante, como vimos, já sabia corar à palavra ciúme.

Dizia Alfredo Gassiot a sós com a senhora:

- Ernesto parece-me apatetado... Não vês?

- Se vejo! Tenho-me rido sozinha, que não fazes ideia!... Pois ele não me perguntou se haveria no mundo menina tão linda como Flávia?

- Tu ris, e eu cismo seriamente... Verás!...

- O quê?!

- Ernesto... apaixona-se.

- Ora!... Criancices!...

- Criancices? - tornou sisudamente o general. Quem pode prever os seguimentos das criancices?

- Ernesto chegado a Paris vai para o seu colégio redarguiu a esposa.

- E estudará?...

- Porque não há-de estudar?! Tens sustos, meu primo! Se o rapaz tem de alvoroçar-se por cada mulher bonita que lhe aparecer, bem aviados estamos!

- Que sabes tu destas cousas?... - disse o general, bamboando a cabeça e dando aos ombros. - O que se faz reparável é o ar descuidado com que lhe ela fala... não notaste, prima?

- Sim... eu vejo que ela tão lhana conversa com ele como contigo.

- Mas... formosíssima é, não é verdade?

- Olha que entusiasmo o teu! - observou rindo Jaquelina. - Quando tu assim te admiras, meu velho, que fará o filho! Diz-me cá: as portuguesas são todas assim galantes?

- Vi muitas e muito formosas nos sítios por onde estive; mas... iguais em correcção de feições às de Flávia, só vi uma ou duas, se muito.

Escureceu-se, por minutos, o espírito de Alfredo Gassiot. Foi porque lhe saiu à vista a casa de Calvados. Há relâmpagos de memória que abrem um vinco na fronte do homem. E a velhice extemporânea de alguns o que é senão o recordarem-se?

Jaquelina murmurou com suplicante pesar:

- Perdoa-me, sim? Lembrei-te aquela terra maldita, meu filho!... Tomara eu que te esqueçam os suplícios que lá padeceste!... Falemos de outra cousa!... Não estás muito contente de ver o nosso velhinho ainda para viver muito?

- Como estás enganada!... Viverá apenas dias!... Os médicos não esperam nada.

- Deixa-os falar... Olha como ele dorme há duas horas e meia!...

- De um destes sonos há-de ir... Que ditoso morrer!...

 

Receios e projectos

Realizaram-se as fáceis previsões dos médicos. O nonagenário adormeceu acalentado pelas palavras amoráveis dos seus e acordou no Senhor. Flávia carpiu como se parenta fosse, e redobrou de pranto, quando se viu herdeira do bastante à sua desambiciosa independência.

Carlota nada lhe tinha dito; nunca lho disse depois. Revelar-lho seria dar-se como causa da esmola e obrigar a sua amiga à gratidão da pobre remediada e quase rica, à proporção de suas modestas aspirações.

Liquidadas as heranças, Alfredo dispartiu grande porção da sua por parentes pobres de Madrid e beneficiou liberalmente as mestras de sua filha.

Depois, voltou para França, despedindo-se com lágrimas da quinta em que passara anos, embora amargurados, de expatriado.

Alfredo Gassiot, sem impedimento do dissabor com que tomava o seu quinhão nos prazeres de Paris, vivia como rico e ombreava em opulência com os generais do império, bandeados na restauração. Os salões dele eram o congresso dos poucos amigos fiéis à memória do Prometeu acorrentado ao rochedo de Santa Helena.

Infundiam majestade aqueles homens que tinham visto as pirâmides, e mostravam em cada cicatriz os lanços em que a morte os tocara e recuara. Fulguravam-lhes ainda, nos olhos, faíscas daquele brilhante e duradouro relâmpago que Napoleão tirava das bocas dos obuses nos dias de Marengo. Pois todo aquele resplendor de figuras tradicionais e história viva de gigantes, por um til não era deslumbrado, assim que aparecia nos salões do general, prendendo atenções, a amiga de Carlota Gassiot, a graça divina inseparável da formosura humana, aquela Flávia que há anos vimos a pedir esmola à saída das Gaias para Santo António das Taipas.

Diziam-se louvores de Carlota em virtude do generoso coração com que mudara as tristes condições e o mais que dava a esperar a vida de Flávia, se a excelente menina a deixasse na humildade de serva e com tantos dons corporais para aspirar a senhora e perder-se como tantas. Germanavam-nas nos gabos: uma era o anjo da beleza, a outra o anjo da caridade; ainda assim, o da caridade, bem que muito para ver-se, dava menos nas vistas que o outro.

As previsões do general, no tocante ao amor nascente do filho, ganhavam razão e força de dia para dia. Mal tinham chegado a Paris, logo Ernesto foi constrangido para o terceiro ano de Matemáticas, e revelou na primeira lição o descuido, se não perda súbita da faculdade inteligentíssima que lhe dera distinções nos anos anteriores. O pai teve notícia da má frequência do filho, e disse à esposa:

- Vês? aqui tens o rapaz como eu to pintei.

- Se for por causa de Flávia, isso passa-lhe com o tempo.

- Não é aos dezanove anos, prima, e na concentração de um colégio que o tempo costuma operar esses benefícios. Eu, vê se lembras, tinha a distracção da guerra e da plena liberdade, e não te pude esquecer...

- O pior é se a paixão o adoenta... - observou a mãe assustada.

- Embrutecê-lo já ela fez... Doença moral não há pior, tirante a loucura.

- A loucura! - acudiu Jaquelina aflita. - Valha-me Deus com as tuas ideias, Alfredo!

- Eu não to prometo louco, prima: não te alvoroces.

Para mim é já bastantíssimo desgosto vê-lo mau estudante e desviado da carreira brilhante que eu tinha previsto. Não nos aflijamos, entretanto. Deixá-lo estudar ou não estudar. Esperemos.

- Mas ele pede-me com as mãos postas que o deixe vir estar oito dias de férias do Natal a casa.

- Diz-lhe que sim. Pior seria dizer-lhe que não. De remédios heróicos, nada.

Ernesto entreviu as delícias do Paraíso naquele fugitivo sonho de oito dias.

À volta para o colégio, despediu-se da mãe; e, como ninguém, senão ela, o via, chorou.

Muito instado a explicar suas lágrimas, disse que desejava morrer e havia de morrer muito cedo.

Jaquelina fingiu-se desentendida, tergiversou, retendo as lágrimas, e contou ao marido o caso, na saída de Ernesto.

- De mal a pior - disse o general. - É tempo de cortar o mal pela raiz.

- Como?

- Que sei eu!... Reparei que Flávia lhe não dava nenhum sinal de o entender...

- Também eu. Tratou-o como dantes com o mesmo descuido e desembaraço. Perguntei a Carlota o que ela dizia de Ernesto, e a pequena respondeu que Flávia o achava mais triste e magro, e se admirava de o ver às vezes a olhar para ela com os olhos húmidos de lágrimas.;.

- Ai principia Flávia a entendê-lo... - atalhou Alfredo. - Isto inquieta-me! Nunca me falta que sofrer! Aqui tens tu os resultados de uma boa acção a antolharem-se-me funestos!... Carlota praticou a virtude de trazer a esta casa, com ares de senhora, uma criada do seu colégio. Flávia afigura-se-me que tem muito juízo, muita inocência, e dignidade para que todos os benefícios lhe quadrem. Pois, apesar dos bons actos de uma e de outra, receio que se nos estejam aparelhando enormes desgostos!

- Não, filho - quis dissuadir Jaquelina, sem dar a razão do seu aviso inverso ao do marido.

- Não? porquê?

- Ainda que se amem, não se seguem daí os enormes desgostos que estás agourando...

- Pois quê! Vá de conjectura... Supõe que teu filho te diz que quer ser marido desta mocinha que foi dançarina em Madrid.

- Ora!... que conjectura!... Estás doudo!

- Mas supõe que teu filho está mais doudo que eu, e te diz que quer casar com Flávia...

- Despersuado-o.

- Com que razões?

- Digo-lhe que a sua posição é diferente da de Flávia, digo-lhe...

- Que mais? Por ora não lhe disseste nada.

- Digo-lhe que não consentimos.

- Ah! essa razão é forte! - disse, sorrindo, o general.

- Pois não é!?

- Muitíssimo forte.

- Pois então?...

- E a razão que teu pai te deu para não casares comigo. E qual foi o resultado?

Jaquelina abaixou os olhos. Não tinha que responder.

- Aí tens - tornou Alfredo. - Se não achas melhores argumentos, concorda comigo que a tempestade se está formando.

- Então que faremos, Alfredo?

- Nada... Esperar desgostos.

- Seria conveniente... Feliz ideia, primo!

- Vejamos essa ideia feliz.

- Se lhe escolhêssemos um marido!... Vem aí tanta gente que a admira!

- Não é de todo desgraçada a ideia; mas está mal enunciada. Devias dizer: «Se ela escolhesse um marido...». Nós não escolhemos maridos... Se ela o não quisesse, e padecesse com a violência, sobrava-lhe razão de se queixar de quem a tirou de criada de servir.

- Isso é assim; mas... olha... queres que eu lhe lembre a conveniência de casar-se, e a mova a entrar nessa diligência com alguma vontade?

- Faz o que quiseres; mas, dado caso que ela ache bonita a lembrança, e a realize com algum dos seus admiradores, crês tu que teu filho fique tão sossegado com a sua paixão como Flávia com o seu marido?

- Com o tempo...

- O tempo chega sempre; mas há casos em que não chega a tempo. Entendes o trocadilho? O rapaz pode parecer-se com os muitos loucos, com os muitos suicidas para quem o tempo chega tarde. Olha que há máximas que se conservam em respeito à antiguidade delas.

Esta do tempo curar as enfermidades da alma devia ter já caído, se a estatística dos dementes e suicidas interessasse em encontrar os anexins de nossos avós. Deves entender, prima, que eu cogito em remediar a doença de meu filho, e sei de mais o que vale a botica ordinária e as mezinhas caseiras com que os pais cuidam que curam... e matam os filhos.

- Desse modo que se há-de fazer? - acudiu a dama ansiada.

- Nada... Esperar.

- Assim, nada concluímos!

- Pois que queres concluir, prima?

- Acabar com estes receios...

- Em todo o caso, eu penso que o melhor era...

- Casá-la?

- Sim.

- Pois anda lá... Dous homens sei eu que a receberiam como se ela caísse do Céu. O coronel Lebrun tem quarenta e seis anos e cinco mil francos de renda. Não são poucos os anos nem muitos os francos; mas ela é nova e sentirá prazer em ser amada como filha; e pelo que respeita a bens de fortuna, dous mil francos de renda tem ela da metade da terça do nosso tio. Podem viver abundamentemente com sete mil francos. O outro admirador é pior: tem doze mil francos de renda, tem vinte e cinco anos, e já gastou metade do património: é o filho do defunto general Lemercier. Ambos usaram comigo a lealdade de declarar que amam a nossa hóspeda, e nenhum deles me perguntou qual seja a procedência dela.

- Flávia não gosta de nenhum - asseverou Jaquelina.

- Bem sei; desgraçadamente sei que não ama nenhum, e por isso mesmo receio que ame teu filho.

- E se ela o amasse...

- Diz o resto.

- Como evitarias as consequências...

- Ernesto iria viajar no Oriente.

- E privavas-me de meu filho?

- Se não entendesses que era melhor Flávia receber os seus quarenta mil francos e mudar-se para a sua pátria...

- Desse modo desgraçavas três pessoas ao mesmo tempo. Esqueces quanto Carlota ama Flávia?

- Esse vínculo é o mais frágil. Carlota...

Alfredo susteve a expressão da ideia, que teimou em manifestar-se num sorriso.

- Carlota... o quê? - perguntou Jaquelina. - Porque sorris?

- Es mulher: tinhas obrigação de me adivinhar. Pergunto: qual das duas te parece mais bela: Carlota ou Flávia?

- Boa pergunta! Não será... mas a mim parece-me mais linda minha filha.

- Pois afirmo-te que toda a gente diz que a mais linda é Flávia, e eu estou com a opinião de toda a gente, porque o amor paternal é sentimento que não me faz cataratas. Ora isto, que toda a gente diz, há-de Carlota conhecê-lo, se o não conhece já. A roda e cortejo que lhe fazem à amiga não pode lisonjeá-la a ela. Obrigam-na a ser testemunha do culto que prestam à outra.

E violenta a posição, se me consentes que a nossa Carlota, sem embargo de suas angélicas qualidades, tem uma que desdiz das outras.

- Qual?

- É ser mulher... e desculpa-me a indelicadeza.

A senhora respondeu com semblante pensativo ao riso de Alfredo. E, corridos momentos, disse:

- Deixá-la ser mais bela... Carlota não se lhe dá disso. A mim me tem ela confessado que nunca viu criatura mais galante que Flávia: e diz isto sem inveja nem despeito. Encarece-lhe a formosura pelo muito que lhe quer. Vou jurar que ainda não sentiu essas diferenças em que tu reparas...

- Ela as sentirá - disse pausadamente o general.

- Pois estou muito certa de que Flávia lhe não há-de tirar os casamentos... - tornou a mãe, despeitada maternalmente.

- Os corações... talvez!

- Vejam que encantos tem a mágica menina! redarguiu a dama simulando o sentimento cioso com trejeitos de gracejo. - Até o meu Alfredo deixa que a brilhante gentileza da estrangeira deslumbre as graças de sua filha!...

- Criança... - atalhou o general, afagando-lhe o rosto. - O mal não está no meu encantamento; está, e terrivelmente, no encantamento de teu filho. Vocês, as mães, sabem tremer, mas não sabem prever. Não dais tino da nuvem que se carrega e escurenta; mas gritais muito quando o raio se desentranha da nuvem.

- Como tu me atormentas - murmurou ela chorando.

- Não te atormento; previno-te.

 

Ciúmes

Jaquelina e as duas meninas, recolhidas de um baile, detiveram-se a palestrar na antecâmara de Carlota, relembrando a compostura e atavios primorosos das mais tafulas damas, e a gentileza e garbo de alguns cavalheiros.

Flávia escutava silenciosa as reflexões da mãe e da filha, ou, interrogada, dizia em breve o seu parecer sobre tal adereço ou adorno de mulher. No que respeitava a homens, calava-se, dava aos ombros ou sorria, se as reflexões saíam engraçadas.

Descendo ao particular intento por engenhosos rodeios, Madame Jaquelina chamou a contas o coronel Lebrun, e disse que nunca vira homem de quarenta e tantos anos tão gentis e amáveis. E, relanceando olhos de ladina graça a Flávia, continuou:

- Nem me consta que ele tenha amado menina alguma, a não ser a nossa... - E tocou-lhe na face com uma pluma do toucado.

- Eu!... - disse enleada Flávia.

- Pois não viu que pertinácia aquela de a não deixar olhar em frente que não visse os olhos dele?

- É verdade... - anuiu Flávia, rindo francamente.

- Pois aí tem. Olhe que a ama.

Aquele velho! - interveio Carlota.

- Velho! - objectou a mãe gravemente. – Velho de quarenta anos!... Pergunta às meninas de tua idade se o coronel Lebrun é velho... Acha-o repulsivo, Flávia?

- Não, minha Senhora... Parece-me um bom homem.

- Que lhe tem ele dito, menina? - volveu Jaquelina, achegando-se dela como quem vai dizer e escutar cousas muito íntimas.

- Diz-me que...

- É muito formosa?

- Sim... - confirmou Flávia com aquele oui sibilado das parisienses por entre um sorriso também francês, cousa que já por cá se contrabandeia.

- E que mais? que mais lhe diz?

- Muitas cousas...

- Muitas galantarias, não é assim?

- Sim, minha Senhora.

- Olhe, mamã - acudiu Carlota sacudidamente. Flávia tem vergonha de contar. Eu conto... deixas, Flávia?

- Ora...

- Conto?

- Como quiseres... - condescendeu a purpurejada menina.

- O velho teve o descoco de querer casar com ela!... Já viu disparate assim?!

- Disparate? - contraveio mui circunspecta a senhora. - Eu não vejo nisto disparate, a não ser o teu em lho chamar! Flávia merece muito mais, é verdade; mas as qualidades excelentes do coronel são dignas desta menina.

- Pois serão - retorquiu Carlota -, mas Flávia não cuida em casar-se nem precisa disso, não é assim?

- E; eu nunca me lembrei de semelhante cousa, e faz-me rir estar a gente a falar em tal – respondeu Flávia.

- A menina está muito nova - tornou Jaquelina. - Ria-se quanto quiser; mas não despreze as boas fortunas, enquanto a sua beleza lhas atrair; porque não há nada menos frágil e durável que a formosura.

Flávia reparou impressivamente na frieza destes conselhos, e deteve-se a ponderá-los não para entrar em negócio de casamento com a sua beleza, mas para entender o motor oculto de tais advertências.

Incitada por Carlota a explicar a razão de sua tristeza quando ficaram sozinhas, disse comovida:

- Tua mãe desejará que eu me case para sair de sua companhia?

- Que injustiça! - acudiu a filha de Alfredo Gassiot, abraçando-a estreitamente. - Pois tu podes imaginar semelhante cousa!...

- Pois não viste que ela estranhou que eu me risse do casamento?

- Vi; mas que tem? São cousas de velha. Amiga tua é ela, Flávia. Diz aquilo, porque pensa que as meninas devem casar cedo. Não anda ela sempre a pregar comigo que trate de ver se algum rapaz me agrada, e lho diga a tempo de pensarmos se me convém, antes que eu me apaixone? E que faço eu? Digo-lhe que sim, e nem penso nisso. Casar-me eu! Separar-me de ti!... Só por morte, minha amiga!... Não te cases, não? Olha... vamos fazer um juramento de viver juntas toda a vida?

- Faço!... - exclamou Flávia.

- E eu também! Quando meus pais morrerem, ficamos nesta casa com o mano Ernesto, e a gente tem muito de seu, pois não tem?! Casar! Ora casar!... Não há tantas senhoras solteiras felizes?

- Sim... - interrompeu melancolicamente Flávia tu dizes isso; mas...

- Mas quê? Duvidas de mim?!

- Não, não duvido; mas o tal Lebrun disse-me no baile que teu pai pensava em casar-te...

- Com quem?

- Com o filho de um conde que me não lembra...

E disse-me ele então que, em tu casando, eu ficaria sem ti.

- Mas quem é esse filho do conde?! Ele vem cá?

É nossa visita? Perguntaste-lho?

- Não: fiquei tão triste que não quis saber de nada...

- Quem será?! - murmurou Carlota meditativa, pondo a rosada unha de um dedo entre os lábios. Não sei quem seja.

- Está-me agora a lembrar que o coronel me disse...

- Que foi?

- Que o tal filho do conde andava a viajar.

- Ah!... já sei... é o filho do conde de Touraille, daquele velho, cego de um olho, que deve muito dinheiro ao papá, e tem um castelo não sei onde...

- Será esse...

- Que me importa que seja?...

Em verdade, era o filho do conde de Touraille quem o general de Napoleão negociava para genro. O conde representava uma das famílias mais antigas de França.

Expatriara-se em 93 e repatriara-se com Luís XVIII em 1815.

Como se aliançaram dous caracteres tão inversos em doutrinas políticas? O camarista de Carlos X como caiu na graça do general de brigada, que dizia ter morrido em Waterloo?

Desconcerto que está na pauta deste mundo, cuja ordem depende daquele e de outros maiores desconcertos.

Alfredo Gassiot, o filho do artista, o republicano do feitio de quase todos os seus correligionários, era rico; e, dado que o fausto lhe não alumiasse as muitas horas escuras, afez-se a ele, e ao trato dos que tinham nascido nele. O conde, com quem eventualmente se encontrou, era o fidalgo solarengo, pompeando galas, estipendiando com mão larga as viagens do filho único, posto que toda a gente dissesse que o velho desmantelara os haveres, a ponto de se referirem a prodígio as despesas grandiosas da sua magnificente equipagem de trens e lacaios. O segredo disto sabiam-no os credores, e Alfredo Gassiot principalmente. Por sua parte, o conde é que de todo em todo ignorava o desfalque de sua casa; porque, inventariando quintas suas, livres e desembaraçadas de hipotecas, era um nunca acabar, afora os privilégios rendosos abolidos pela revolução, dos quais ele se andava reintegrando, com esperanças de ficar mais rico do que tinha sido antes dos revolucionári

 os o desbalizarem: facto verificado em muitos dos seus companheiros de exílio.

Mas a verdade pura e líquida era que o conde de Touraille estava pobre, e que Alfredo Gassiot desejava que sua filha viesse a restaurar os bens dos avós de seu marido, assinando-se condessa de Touraille. Perdoável ambição e louvável intento de salvar do olvido um castelo em Normandia, do qual tinham saído dous grãos-mestres dos cavaleiros do Hospital, e muitos outros parentes e privados dos reis de França.

Entretanto, Alfredo abstinha-se de consultar a filha antes que ela visse Hugo, o futuro conde que viajava e era esperado em Paris. Avisadamente resolvera o pai não inculcar à filha méritos do moço nem vantagens do enlace, sem que Carlota sentisse vontade de ser ela a inculcadora. Aos amigos contava o general os seus projectos, talvez com o propósito de remover propostas de noivos. Uns louvavam-no como delicados; outros estranhavam-lhe o reviramento de ideias; e todos riam da vaidade aristocrática do filho do artista.

Como quer que fosse, Hugo chegou a Paris, e Alfredo Gassiot recebeu-o com um lauto banquete, quando ele lhe foi pagar a segunda visita.

Era o dia da prova, consoante as esperanças de Alfredo.

O filho do conde era rapaz de agradável presença.

Vinha queimado do sol da Ásia. Trazia de lá os olhos ainda vulcanizados. Isto parece que devia assustar Carlota; mas, verdade verdade, não assustou. A menina borboleteava à volta de todo aquele fogo e sentia apenas o suave aquecimento do coração. Escusado é dizer que foi súbita a combustão. É o costume.

Alfredo Gassiot reparava na filha, estudando-lhe nos olhos o alvoroço do sentimento. Fácil estudo. Seria, porém, discreto e preciso que ele estudasse também os olhos de Hugo. Dispensou-se disso, tendo como certo que o futuro conde não vinha escolher, vinha mostrar-se.

Andou errado.

Hugo via Carlota; mas olhava para Flávia. Dous efeitos ópticos muito diferentes.

Flávia é que o não via.

E quem via tudo mais perfeitamente era Ernesto Gassiot.

Vejam que jogo de olhos ali foi naquele jantar!

Hugo de Touraille perguntava ao pai, indigitando-lhe Flávia, se as portuguesas eram raça de Circássia.

O conde respondia:

- Não sei; mas olha que a rica é a francesa.

Alfredo Gassiot perguntava à filha:

- Que te parece Hugo de Touraille?

E acentuava o de enfaticamente.

- Bem... - respondia Carlota.

Ernesto, encostado ao fogão, perguntava à mãe:

- Não reparou ainda no ar de espanto com que o Sr. de Touraille está sempre a olhar para Flávia?

- Reparei... e que te importa isso?

- A mim... nada; mas... acho feio que minha irmã não despregue os olhos dele...

Madame Jaquelina falou de passagem quase ao ouvido do esposo.

Alfredo Gassiot riu-se; e, perguntado sobre a intenção do riso, murmurou:

- Lembra-te do que eu te disse há dias a respeito da amizade de Carlota e Flávia. Carlota reconhece hoje que Flávia é mais linda e tem disso pesar. Após do pesar há-de vir o despeito, e depois o ciúme, e depois... o ódio... Repara nela...

Quando Gassiot mandava reparar, Carlota ouvia de perfil, com mal assombrado rosto, o que Flávia lhe dizia com muita meiguice.

 

Horas de Inferno

Ernesto perdera o ano matemático, mas ganhara prodigioso desenvolvimento da faculdade poética. Tinha relido e decorado as Primeiras e Segundas Meditações de Lamartine. Poetara e enchera cadernos, em cuja fachada escrevera a palavra Flávia. Eram a sua alma confidenciada com as estrelas.

Avaro do tesouro em que o nome inspirador se lia no alto, no meio, no fundo de cada página, Ernesto, ao sair do colégio em férias, levou-o consigo, amando-o, como dantes amava os prémios que depunha no regaço de sua mãe. De seus versos era ele o leitor e ouvinte.

Nem mãos nem olhos de outrem lhos tinham profanado. Recitava-os mentalmente com os olhos fitos em Flávia, se ela o não via; e, assim contemplativo, se arguia de ter cantado tão frouxamente a beleza que a ausência lhe figurava, e a presença dela encarecia com realces novos.

Tudo conspirava a mortificar o moço. O pai encarava-o mal-assombrado, depois de lhe mostrar o atestado da reprovação, dizendo: «Aqui tens o diploma do prémio.» E nunca, no decurso de dous meses feriados, lhe abriu um riso de reconciliação.

A mãe, sob título de consternada pelo sucesso da reprovação, disse-lhe claramente que Flávia, bem que inocente motivo de tamanho desgosto, por causa dele tinha de ser recolhida em algum convento, se não quisesse voltar para Portugal. Carlota, a quem Ernesto contou as suas tribulações com muitas lágrimas, ouviu-o em silêncio e disse-lhe afinal que não tinha remédio em sua mão.

- Eu o acharei! - exclamou Ernesto.

Flávia, no entanto, cismava em descobrir a causa da insólita frieza com que a sua amiga a tratava desde o dia do jantar dado a Hugo de Touraille. Já lho tinha reperguntado, e Carlota respondia com um enfadado «não sei».

Ferida no coração e no amor-próprio, Flávia escondia-se a chorar e a pensar na incerteza do seu destino, dependente das alterações do demudado espírito da sua amiga. Combinava esta mudança com os conselhos de Jaquelina, a respeito do casamento com o coronel, e razoavelmente coligia que desejavam afastá-la sem motivo, nem sequer delicadeza. No semblante de Alfredo Gassiot via Flávia um ar de agrado para Carlota, de severidade para Ernesto e de indiferença para ela. Confrontava estas diversidades e nada sabia inferir. Suplicava a Carlota que lhe abrisse a sua alma e a não deixasse pensar mais tempo na dúvida da sua amizade. Carlota sorria-se violentada e dizia-lhe: «Sou tua amiga como sempre fui.»

Hugo continuava a visitar a família, que o recebia já constrangida e glacialmente cortês. Ernesto quase que lhe retirava a mão. O general acolhia-o com a mais aprumada urbanidade. Carlota não o desfitava; e ele não desfitava sem molestar-se, Flávia.

O conde procurou a sós o seu credor e disse-lhe com sensíveis mostras de magoado:

- Meu filho não ama Mademoiselle Carlota.

- Já sei: ama a enjeitada que é dama de companhia de minha filha - ocorreu pronto o general com um sorriso maldoso.

- Isso não sei. É possível; mas nada me induz a recear consequências funestas de tal afecto, se existe.

- Menos a mim, Sr. Conde. O que eu muito folgava de merecer ao Sr. Hugo de Touraille seria que ele se abstivesse de cortejá-la em presença de meus filhos: é mau exemplo.

O conde repreendeu o filho. Questionaram e reconciliaram-se, pactuando que ele acharia sem grandes delongas mulher rica, mais rica do que a antipática e lorpa neta do artista.

Riram ambos do pundonor de um Gassiot, e assim fidalgamente se despediram, deixando em aberto o saldo de contas.

Na ausência de Hugo, abrandou-se a condição ciosa e soberba de Carlota. Não confessava o pecado de maltratar a amiga contra razão; mas tinha remorsos. Acariciando-a como dantes, tacitamente lhe pedia perdão.

Alfredo, acabado o tempo de férias, ordenou ao filho que voltasse a frequentar o ano lectivo perdido.

Não o contradisse Ernesto.

Na véspera da saída, como Flávia estivesse, ao escurecer, sozinha na sala de música tocando cravo, Ernesto entrou de sobressalto, e tão surdamente pisava o tapete que a menina somente deu tino dele ajoelhado ao pé de si. Levantou-se de golpe, e viu que ele, sem proferir palavra, lhe deixava aos pés um grosso rolo de papéis, e fugia.

Flávia tremeu suspensa e oscilando no que faria. Avizinhava-se gente. Apanhou o rolo e saiu da sala.

Era Carlota que a vinha chamando. Voltou Flávia à sala, e disse-lhe com a lealdade do anjo, para não dizermos com a inocência:

- Teu irmão deixou-me isto...

Já não era inocência: era virtude mais alta. Fidelidade, inteireza, honra, coração subordinado aos ditames da suma probidade.

- E que é isto? - perguntou Carlota.

- Não sei, minha filha.

- Vamos ver.

E fecharam-se no quarto de uma delas.

Desataram a fita negra. Desenrolaram e viram uma carta despegada de um caderno que, na primeira página, dizia Flávia, com esta epígrafe de Lamartine:

Hereuse la beauté que le poète adore!

Hereux le nom qu'il a chanté!

- São versos do mano feitos a ti! - exclamou Carlota. - E a carta?... Leio?

- Lê... porque não? - respondeu Flávia, sentindo-se, súbito, atravessada no seio por uma dor, porventura remorso de se não ter escondido com a carta e versos de Ernesto.

A carta era assim breve: Se eu não sentisse e ouvisse os passos da morte, estas lágrimas não iriam à sua mão, Flávia. Deixo-lhas, que não me resta mais consolação que a certeza de que me há-de chorar. Começou ontem a minha vida, e já gastei a força com que Deus me dotou para o sofrimento. Matou-me o silêncio, a concentração e o vaticínio de que a sua desgraça é amá-la eu mais do que a meus pais. Antes de eu lhe mostrar quanto lhe quero, a paixão santa e homicida com que amo, perdi a estima de meu pai. Amparava-me a esperança de lhe sacrificar tudo; mas não posso viver com a certeza de que a sacrifico. Morro, amando-a; morro pedindo a Deus que lhe dê uma juventude tão ditosa quanto devia ser a minha, se eu a não tivesse encontrado, Flávia, entre o meu coração virgem e a morte dele, entre o meu berço e a minha sepultura. Posso dizer que saí dos braços de minha mãe para os da morte. Morro sem culpas.

Deus me receba no seio da Sua misericórdia e o Céu dos desgraçados receba o pobre moço que lhe beija a mão, Flávia...

Carlota irrompeu em clamores, correndo ao quarto da mãe, a brados:

- Mamã, acuda ao Ernesto que se mata! Acuda ao colégio!

O general saiu ansiado ao encontro da esposa, que o ia procurar esbofada sem poder articular palavra.

Carlota ia depós a mãe com a carta na mão, da qual o aturdido pai se apossou.

Leu-a, e aceleradamente saiu caminho do colégio.

Procurou o filho. Disseram-lhe que não tinha ainda entrado. Volveu a casa, saiu, tornou, percorreu os pontos mais infamados de suicídios sobre o Sena, desandou, entrou de novo no colégio e soube que seu filho chegara momentos antes. Entestou com a porta e bateu. Demorava-se Ernesto em abri-la. O pai conheceu que o ar do quarto estava afumado. Meteu ombro à porta e quebrou a língua da chave. Correu para o filho, que se levantara, espantado do estrondo. Perguntou-lhe o que fazia. Ernesto respondeu:

- Estou queimando papéis.

Alfredo levantou alguns dos que estavam a monte, e leu no topo de uma página Flávia. Encarou mui fito no filho e disse balbuciante, como se um grito das entranhas se lhe cortasse na garganta:

- Ernesto!... meu querido filho!

O moço debulhou-se em lágrimas e escondeu o rosto. Acenou o pai ao director e criados do colégio que se retirassem. Depois aconchegou do seio o filho e murmurou:

- Não me mates, Ernesto! Não mates teu pai!... Sai do colégio; vem para casa; que eu te perdoo as minhas aflições e as de tua pobre mãe!

- Peço-lhe que me deixe ficar... - disse Ernesto. Preciso de estar aqui algumas horas... Depois... irei...

- Vens já.

- Tenho estes papéis aqui espalhados...

- Eu tos ajunto e fecho na tua gaveta, se não os queres levar contigo.

E, dizendo, colhia do pavimento os papéis.

Ernesto abaixou-se apanhando-os, e pediu ao pai que se sentasse por um pouco tempo, que ele o seguiria.

Entretanto, Flávia ajoelhada no seu quarto pedia à Virgem que restituísse o filho à mãe, que por três vezes a tinha ido amaldiçoar, encarregando-a da morte de Ernesto.

- Ó mãe de Deus! - exclamava a atormentada menina - bem sabeis que eu não tenho culpa! Acudi à minha inocência! Vinde em socorro desta desvalida depai e de mãe. Sede-me Vós tudo, ó Senhor dos Aflitos!

Sufocada pelos soluços, cessou de clamar e caiu com o rosto contra o chão.

Volvidos momentos, Jaquelina entrou desesperada no quarto, viu Flávia prostrada, encarou-a com os olhos chamejantes de cólera, e bradou:

- Há-de matar-te o remorso, infame enjeitada.

- Ó minha mãe! - exclamou Carlota - não seja injusta! Flávia não me deixava ver a carta, se estivesse culpada...

A mãe parecera não ouvir a filha. Tinha o ouvido atento noutra parte. Parara uma carruagem à porta.

Saiu pulando as escadas, até avistar no pátio o marido com o filho.

- Vens, meu Ernesto? - perguntou ela.

- Vem - respondeu Alfredo Gassiot.

- Graças, meu Deus! - clamou Jaquelina.

Ora, Deus justiceiro havia de lisonjear-se muito do reconhecimento daquela senhora, que provara sua justiça e paciência vociferando injúrias sobre o corpo caído da infame enjeitada.

 

O pundonor da enjeitada

Carlota sentou-se à beira de Flávia, levantou-lhe a cabeça, depô-la no seu regaço e humedeceu-lha de lágrimas. Dizia ela entre si: «Eu causei a infelicidade desta santa alma!» Recobrado o alento, Flávia levantou-se, fitou primeiro espavorida, e depois docemente Carlota, e perguntou-lhe:

- Teu irmão?

- Já veio.

- Graças, Maria Santíssima!

E ajoelhou de mãos postas.

As graças e louvores daquela, sim, honravam e glorificavam a Divina Providência.

- Não teve perigo nenhum? - tornou Flávia.

- Não. Ainda o não fui ver; mas as criadas disseram-me que viera bom e está no quarto do pai.

Flávia recolheu-se em si. Estava recordando-se.

- Quem me chamou infame enjeitada foi tua mamã? - perguntou ela sorrindo de modo que as lágrimas lhe pareciam fel a amargurar o sorriso.

- Não... ela... não - tartamudeou Carlota.

- Ouvi eu... Não me esqueci... quis Deus que eu me não esquecesse... Olha, Carlota, diz a tua mãe, diz-lho em nome de Deus, juiz de minha alma, que eu sou enjeitada, mas infame não...

- Filha!... - atalhou Carlota - perdoa à mamã, que estava muito angustiada... e perdoa-me a mim que lhe mostrei a carta...

- E fizeste bem... que eu na esperança de salvar teu irmão, também a mostrava, sem pejo, cuidando que cumpria um sagrado dever... Fizeste bem, minha Carlota; mas, se te merece algum favor esta pobre rapariga, visto que teu irmão veio, não mostres os outros papéis, se eles ainda aí estão...

- Olha... tenho-os aqui...

- Pois dá-lhos a ele, e pede-lhe que se compadeça de mim... Que me não faça parecer culpada... que o Sr. Ernesto bem sabe que estou inocente, e nunca, senão agora, soube que era alguma cousa tão funesta na sua vida...

- Pois sim, eu lhe entregarei os papéis.

- Entrega, minha boa amiga; e depois faz-me a esmola de mandar comigo algum dos teus servos à porta de qualquer convento que se abra à chegada de uma infeliz... como poucas.

- Pois sais desta casa!? - exclamou Carlota Gassiot tirando por ela contra o seio. - Deixas-me, Flávia? Podes separar-te de mim? Deixas-me... tu!

- Deixo, amanhã infalivelmente.

- Não sais daqui!

- Lembras-te quando eu era dançarina? Tinha onze anos... e saí... Bem o sabes... Hoje tenho dezassete...

- E para onde vais, louca?

- Iria, como há seis anos, pedir um salário de criada...

- De criada?!

- Sim; mas não irei; porque teu tio me deixou uma esmola; e as pobrezinhas recebem e aproveitam as esmolas como se lhes caíssem dos tesouros de Deus.

A mão já seca de teu benfazejo tio conduz-me a um cubículo de convento e lá me dá umas sopas, não azedadas pelas lágrimas da vergonha...

- Ó Flávia! - tornou Carlota - pois tu podes!... Que ingrata és para mim!... Que paga me dás!...

- Devo-te muito... - voltou logo a filha de Miquelina - mas não posso pagar-te com o despejo, com a indignidade de receber insultos que me fazem lembrar a desconsideração de enjeitada, de criada feita senhora pela tua generosidade...

Carlota saiu do quarto rapidamente e foi contar, chorando, à mãe o que passara com Flávia.

Jaquelina ouviu-a pouco menos de impassível e serena. Finda a narração, curou de consolar a filha, dizendo-lhe que a deixasse ir para o convento, se essa era a vontade de Flávia.

- A mamã não tem pena dela? - arguiu Carlota. Tratou-a tão asperamente...

- Vens repreender-me? - disse a mãe com severidade.

- Não, mamã... - respondeu timidamente Carlota.

- Parece-te bom andar teu irmão perdido do juízo e teu pai atormentado por causa da tua amiga?

- Mas que culpa tem ela?!

- Não sei... Se não estivesse nesta casa essa criatura, vivíamos sossegados e felizes...

- Pois sim... deixá-la ir... coitadinha...

Entrou o general a tempo de ouvir as últimas palavras e, quis que se lhe contassem as primeiras.

- É Flávia que quer ir para um convento e eu acho que faz muito bem - explicou Jaquelina.

Alfredo Gassiot mandou sair a filha do quarto.

- Vai para junto da Flávia e sê amiga dessa menina, que merece a nossa compaixão - disse ele, sentou-se, e prosseguiu: - Prima, é necessária muita prudência.

Flávia tem sido até hoje digna da nossa amizade. Ernesto nunca lhe tinha dito palavra pela qual ficasse ela entendendo que era amada. Não a culpes; porque as injustiças se alanceiam as vítimas, também ferem quem as faz. Além do remorso, tens que temer o supremo infortúnio, que é a loucura ou o suicídio de teu filho... desgraça menor que a loucura. Vês tudo quanto eu previ realizado?... Vês...

- Por isso - interrompeu a dama - digo eu que o melhor é sair ela daqui.

- Remédio inútil é esse...

- Então que queres? Casá-los? - redarguiu ela irritada. - Sim! se não há remédio nenhum senão casá-los, case-se Ernesto com a enjeitada portuguesa!... Falta-me ver isso!

- Ora vamos... - tornou placidamente o general. - Nada de clamores, prima. Conversemos sem levantar a voz. Não quero que Ernesto case com Flávia...

- E ele quer? - disse a esposa sobressaltada.

- Quer.

- Ora essa! Que escuto, meu Deus!

- Que espanto esse! E, se não casar, diz que ninguém o salva do suicídio. O caso já vês que é mais de lágrimas que de espanto...

- Santo nome de Jesus! que fatal mulher Carlota nos trouxe!... Aqui está, aqui está o fruto que se tira de ser bom!...

- Vamos ao que importa e não moralizemos, que é tarde. O que nos convém é contemporizar. Uma negativa formal à vontade de Ernesto seria dizer-lhe que se matasse. Deixei-o agora esperançado. E preciso que te portes em conformidade comigo. Somente assim poderemos iludi-lo até que o tempo, a idade, e outras mulheres o desvairem de Flávia. Para o colégio não volta, nem eu quero que volte. A carreira está cortada. Pouco monta isso. Sobra-lhe de que viva sem habilitações. O que eu quero é a vida de meu filho, seja à custa do que for. Se o casar-se com a enjeitada fosse condição de viver, deixava-o casar.

- Deixavas!? - sobreveio assombrada Jaquelina.

- Deixava.

- Oh!

- Estás hoje mais propensa ao assombro do que pede a razão!...

- Pois tu davas teu filho a uma...

- Enjeitada?

- Sim.

- Dava. Sabes tu se ali está a filha de nobilíssimos pais?! A inferirmos-lhe das qualidades físicas e morais a filiação, temos que na alma é nobre e distinta, e nas formas e compleição denota que procede de organizações muito afidalgadas. Supondo, porém, que seu pai era um comerciante, bem sabes tu que meu avô de Espanha comerciava em lãs; se filha de fabricante, pouco há que vendemos as fábricas de teu pai; se filha de artista, eu não me desonro de ser filho do lapidário João Gassiot. Assim, pois, as ossadas de nossos pais e avós podiam estar quietas, se acaso viéssemos a descobrir a genealogia da mulher de Ernesto. Nada, pois, de filáucias absurdas, prima.

- Sendo assim - volveu ela sorrindo ironicamente -, então, meu amigo, nada de panos quentes: o melhor é casá-los já.

- Por enquanto, não. Folgo, se és sincera, de te ver disposta a consentir em última estância... Agora me ocorre uma esquisita lembrança!... E quem nos diz a nós que ela queira Ernesto!...

- Como?! que lembrança! Pois ela não havia de querê-lo?!

- É possível. Aí estão já dous pretendentes indeferidos, e ambos com bons documentos para ganharem bom despacho, se o requererem de meninas que por aí abundam bem nascidas, bem educadas e com aceitáveis patrimónios. Sabemos nós até onde chegam os altos espíritos de Flávia?

- Isso é fácil: pergunta-lhe se quer casar com meu filho... - disse Jaquelina a rir de irritada e ofendida pela dúvida.

Delongou-se a conversação até alta noute. Jaquelina ia fechar a porta da sua antecâmara, quando Carlota pediu que lhe falasse.

- Venho dizer-lhe antes de me deitar que Flávia teima em sair amanhã.

Alfredo ouviu e perguntou:

- Já está deitada?

- Não, papá.

- Vai dizer-lhe que eu lhe peço o favor de me ir falar à sala.

- Deita-te que precisas de sossego, primo - contradisse Jaquelina. - Quando te ergueres lhe falarás.

- Há-de ser já. Vai, Carlota.

Flávia sem hesitação alimpou a face molhada de lágrimas e foi à sala, onde Carlota a deixou, mandada por um gesto do pai.

- Disseram-me que a menina quer sair desta casa começou o general.

-  Amanhã para entrar num convento.

- E nem sequer pede licença a quem, até certo ponto, lhe tem servido de pai, e a tem considerado como se fosse irmã de minha filha?

- Beijar-lhe-ei a mão com quanto afecto e gratidão...

Sufocaram-na os soluços. O general continuou:

- A menina foi ofendida por alguém desta família?

Ofendeu-a meu filho, minha mulher, ou minha filha?

- Não, senhor... Ninguém me ofendeu.

- Então porque quer sair?

- Porque não posso com a responsabilidade de desgostos de que sou causa inocente.

- Sei que é inocente, sabem-no todos.

- Todos?...

- Porque me pergunta se todos?

- Sr. General! - disse resolutamente Flávia – eu não posso continuar a receber as mercês com que tenho sido aqui tratada. A maior demonstração que eu posso dar do meu reconhecimento é sair.

- Como? Não a entendo, Flávia!

- E sair para que a paz e quietação de pessoas, a quem tanto devo, se restabeleça.

- Isso não é razão.

- Pois se não é...

- Tem outra?

- Sim, Senhor: tenho... A razão é que não posso mais ser feliz aqui.

- Pois se não é feliz, sacrifique-se às pessoas que desejaram dar-lhe todos os bens deste mundo. Deixe-se estar, porque da sua permanência aqui depende a vida de meu filho. Não estima o irmão da sua amiga Carlota?

- Estimo muito, mas... - E fez uma longa pausa.

- Não conclui a sua ideia, menina?

- Não sei o que queria dizer...

- Pois eu lhe desperto a lembrança. Estima meu filho?

- Já disse que sim, Sr. Gassiot!; mas não me exponho a ser maltratada...

- Quem a maltrata, ele?

- Não me faz bem nem mal. A carta, que me escreveu, diga ele se eu fui...

- Já sei que não foi causa provocadora do desatino de meu filho; mas é certo que ele a ama, Flávia; e eu não me oponho a que se amem.

Flávia fitou Alfredo com os olhos brilhantes de uma luz que ele julgou ser um exultar febril de coração.

- Quer-me dizer que o ama também muito? - perguntou ele.

- Não, Senhor.

- Pois não ama meu filho?

- Não, Sr. Gassiot. Sou amiga dele como sou amiga do Sr. General, como seria amiga de um meu irmão.

- E, se ele lhe pedisse o afecto de esposa, não lho daria?

- Não posso dar-lhe mais que o amor de irmã.

- É então insensível à paixão que o levou ao extremo de querer matar-se? Isso é uma crueza que denuncia má alma, Flávia! Ama algum outro homem?

- Não sei o que é amar, Sr. Gassiot. Tenho dezassete anos. A minha vida tem-se passado hora por hora com sua filha. Os meus segredos não são nenhuns; e se alguns tivesse, todos saberia Carlota...

- Pois bem! - tornou o general, depois de passear agitadamente no salão - imponho aos seus dezassete anos o preceito de não sair desta casa, onde ninguém a ofendeu.

Flávia, forçada pela soberania do preceito, levantou o rosto altivamente. Fazia lembrar Miquelina diante do capitão-mor e do padre, no dia em que a levavam ao cadafalso do convento.

Gassiot esperou alguns instantes o que sairia do soberbo altear-se daquela formosa cabeça; e, como ela se demorasse, perguntou:

- Que me quer dizer, menina?

- Que não devo ter a vilania e desonra de aparecer mais diante de quem me chamou infame enjeitada! As enjeitadas são verdadeiramente infames quando não têm vergonha...

- E quem lhe deu esses nomes insultantes? - atalhou o general.

- Insultante é um somente; o outro é o meu nome, pertence-me, sou a enjeitada, que agradece os benefícios e não os contrapesa com as injúrias.

- Mas quem lhe chamou infame? - instou Gassiot.

Flávia apertou a fronte nas mãos e chorou com a respiração convulsa de suspiros. Esteve assim largo espaço, e o general junto dela silencioso.

Neste conflito, saiu debaixo do reposteiro Jaquelina, que provavelmente escutara o extenso diálogo com perdoável curiosidade. Aproximou-se de Flávia e disse-lhe com maviosas falas:

- Eu fui injusta, menina. Lembre-se que sou mãe e cuidava que meu filho estava morto. Perdoe-me a injustiça que lhe fiz pelo amor que lhe tem a sua Carlota.

Flávia beijou a mão da senhora e deixou-se abraçar com veemência de um sincero remorso.

O general cravou uma vista rancorosa nos olhos da mulher. Sentiu-se ela desoprimida do remorso; mas ao mesmo tempo vexada e ferida pela censura muda e humilhante do marido.

Fechou-se ali o lance; mas recolhidos aos seus quartos, os dous esposos, ao nascer do Sol, altercavam tão azedos e desavindos que bem podiam assinalar aquelas horas como as mais infernadas da sua vida.

Para darmos em pouco uma ideia das armas com que Jaquelina sustentava a referta, bastará dizer que uma das suas expansibilidades de cólera toou deste feitio:

- Querem ver que a tal enjeitada ainda levanta guerra entre pai e filho por causa de ciúmes?!

Quando ela assim vociferou, o general saiu e encontrou o Sol doirando o pó das salas... Atirou-se para cima de uma otomana, e lembrou-se então, não sabemos por efeito de quais combinações, de uma mulher, enterrada catorze anos antes, chamada Miquelina.

Sacudiu com força de sobre o coração a pesada lembrança.

A imagem de Miquelina fugiu. São fáceis de soprar e espalhar cinzas de mortos sobre quem pesa a sepultura há catorze anos.

Pouco depois, o general convidou o filho a passear no bosque de Bolonha. Os frisões estavam apostos à carruagem. Partiram.

Era a primeira vez que Jaquelina via sair o marido sem lhe dar conta do seu destino nem despedir-se com o ósculo cerimoniático dos casados de bom tom.

A conversação no bosque passou desta sorte entre pai e filho.

Disse Alfredo Gassiot:

- Vamos a uma prática de irmãos. Aqui não há pai nem filho. São dous amigos. Escuta-me como amigo e também como perito em negócios do coração. Primeiramente, cumpre saber que Flávia não te ama...

- Não...

- Não te ama ainda. O ainda conclui e modifica a ruim notícia. Há-de amar-te, há-de amar-te, sem mínima dúvida. E eu quero que te ame e seja tua esposa.

Ontem dei-te esperanças; hoje dou-te a certeza.

- Oh! meu pai... - exclamou Ernesto, querendo ajoelhar.

- Então? isto é palestra de amigos, ou temos genuflexões dramáticas!? Senta-te, Ernesto. Vamos ao ponto. Flávia não pode nem quer estar connosco...

- Não quer?... - cortou aflito o moço.

- Não... Proíbe-lho a nobre alma que tem. Tua mãe injuriou-a, imputando-lhe a tua morte, quando a estavas dando aos teus poemas. - Sorriu e continuou: Não odeies por isso tua mãe, que por muito amar-te perdeu o juízo, e bastante do bom coração que lhe conhecemos. Flávia está vivamente ofendida e tua mãe por igual indisposta contra ela. Não creio possível reconciliá-las até se prezarem. Nestas circunstâncias, qual é o teu parecer, Ernesto?

- Não sei... O pai quer salvar-me... Delibere por si, que eu...

- Não sabes? Pois então, deixa-me deliberar. O meu aviso é que Flávia se recolha como pensionista ao convento de L'Abbaye-aux-Bois, onde vai encontrar senhoras muito ilustres. Sabes que as recolhidas têm plena liberdade de se avistarem nas grades com quem lhes praz? Não sabias! É um júbilo inesperado que te dou. Vamos à tua opinião...

- E a de meu pai... E quanto tempo há-de ela...

- Lá estar?

- Sim, Senhor.

- O tempo da tua graduação em Engenharia. Faltam três anos. Esperas?

- Três anos... - murmurou o moço levantando aocéu os olhos.

- É muito? queres menos?

- O pai decidiu.

- Não decidi: consultei.

Ernesto beijou-lhe ambas as mãos e exclamou:

- Devo-lhe a segunda vida, meu querido pai!...

E quando vai Flávia?

- Logo que os preparativos da entrada estejam feitos. São fáceis de fazer. Amanhã, o mais tardar.

- Mas... - disse Ernesto, abrindo os olhos espasmódicos como quem recorda a supervenção de uma inevitável calamidade.

- Que é?

- Não me disse o pai que ela...

- Te não amava? Já esperava a pergunta. Disse que ainda te não amava, mas... - este mas é mais alegre que o teu - assim que a visitares três vezes e lhe disseres que teu pai te manda, e quer a ela chamar-lhe mais tarde «filha», verás que mudança! e verás que profeta eu sou.

- Ai! - contrariou o moço - engana-se, meu pai!... Se me ela amasse, mostraria a minha carta a Carlota?

- Não.

- Pois aí tem...

- Aqui tenho o quê? Uma prova de que te não ama? Isso estava dito.

- Nem amará.

- Provas de mais e falsamente, Ernesto. A lógica silogística poderá levar-te para essa errada inferência; mas a lógica experimental dá-me outra. As três visitas, és amado!

 

Separação

Alfredo perguntou a Carlota o que fazia a sua amiga.

- Está no seu quarto, papá.

- E tua mãe?

- Ainda não saiu do dela.

- Já falaste a Flávia? De que intento a achas hoje?

- No mesmo: quer ir para um convento.

- Vai-lhe dizer que eu hoje vou preparar-lhe casa no mais cómodo e recreativo recolhimento de Paris. Vou à Rua de Sèvres, ao elegante convento de L'Abbaye-aux-Bois. Amanhã entrará, se quiser.

Carlota chorou e pediu ao pai que lhe não tirasse a sua companhia de sete anos.

- É forçoso - disse secamente o general. – Não deves querer que a tua amiga sofra os maus ímpetos do génio de tua mãe.

Carlota cumpriu as ordens do pai.

Flávia abraçou-se consternadamente na sua Carlota, e deu-lhe os mais enternecidos nomes do coração apaixonado. Misturavam e bebiam as lágrimas nos recíprocos beijos. Comprometeram-se em amar-se eternamente e viverem unidas, assim que pudessem ajuntar-se de modo que ninguém padecesse por amor delas.

Jaquelina soube a resolução do marido por lha contar a filha. Estimou-a, e ao mesmo tempo doeu-se da desconsideração que Alfredo lhe dava, não a consultando nem prevenindo.

À tardinha, o general chamou à sala Flávia e disse-lhe:

- Minha Senhora, amanhã estão prontos os seus aposentos. As alfaias foram compradas à sua custa. Faço-lhe este aviso para que a menina entre desobrigada na posse do que é seu, e vá certa de que saldou suas contas com toda a gente, e ninguém desta casa poderá considerá-la devedora.

- Devo a todos... - disse Flávia.

- A menina é accionista de oito coupons de cinco mil francos cada um. É a herança que teve em Madrid. Aqui os tem, com os juros vencidos desde a liquidação de metade da terça de meu tio, tirado o que paguei de entrada e decoração dos seus quartos no convento de L'Abbaye-aux-Bois. Queria receber os títulos. Será avisada oportunamente para mandar receber os juros, que perfazem dous mil francos anuais proximamente. Esta quantia é superior à pensão que Flávia tem de pagar à abadessa directora do convento. Ser-lhe-ão dados quaisquer miúdos esclarecimentos por pessoas a quem a recomendo, quando não seja eu que directamente entenda no que lhe for necessário saber.

Flávia hesitava em aceitar os coupons e dinheiro que o general lhe oferecia. Alfredo voltou-se para a filha e disse:

- Põe este dinheiro e acções nalgum baú de Flávia.

Em seguida, abraçou a amiga de Carlota, e, muito abalado e com os olhos lagrimosos, proferiu estas palavras:

- Creia que, se fosse minha filha, não me deixaria maiores saudades. Conserve a nobre alma que tem. Espere, que há-de ser feliz... Não chore assim, Flávia...

E, beijando-lhe a fronte, murmurou-lhe ao ouvido:

- Ame Ernesto; ame-o como irmã, se mais não puder...

O restante do dia correu sem que Jaquelina visse o   marido nem Flávia.

Fechara-se a digerir o seu fel aquela senhora, cuja antiga docilidade degenerara na malíssima e cega paixão do orgulho, piorada por ciúmes que, em vinte e quatro horas, lhe queimaram as entranhas.

Ciúmes da enjeitada!

Ao outro dia, levou-lhe Carlota uma petição da sua amiga, que se queria despedir. Jaquelina respondeu que estava doente e lhe desejava muitas venturas.

Instou Carlota ameigando a mãe. Foi repulsada com desamor.

Flávia espantou-se e disse:

- Que ódio é este? Ainda há dous dias tua mãe confessava a minha inocência e me pedia perdão das injúrias!... que mal lhe fiz depois?... Paciência... Deus sabe que lhe não fiz nenhum...

- É por causa do mano que ainda a não foi ver ao quarto - explicou a seu modo Carlota.

- Mas sou eu culpada?... Teu mano faz mal em não ir vê-la... e a mim também me tem feito quanto mal podia... Tão felizes que éramos, Carlota!... Que disse eu ao Sr. Ernesto para ele ser causa de tudo isto!... Diz a teu irmão que deixe ser minha amiga tua mãe, que tão boa foi para mim...

Lanhava o coração vê-las arrancarem-se dos braços para entrarem juntas na carruagem com Alfredo Gassiot.

E o dilacerante adeus à portaria do convento foi lanço de tamanha lástima que perderia, se eu quisesse dar-lhe cores no pensamento da leitora.

Alfredo, de volta do convento, foi ao pé da cama de sua esposa, e disse acentuando gravemente as palavras:

- A enjeitada já não está aqui. Pode sair do seu laboratório de calúnias, prima. Terei todo o cuidado em que nesta casa não entrem vítimas em que a senhora possa cevar essa ferocidade de ciúmes, assanhada aos trinta e nove anos de idade.

E voltou-lhe costas, quando a prima, já quebrantada e arrependida, principiava a dar explicações de sua imperdoável injustiça.

Como quer que fosse, a peleja entre os dous esposos

começara para toda a vida. O general propriamente, no lapso de bastantes anos, há-de muitas vezes admirar-se de não poder perdoar e esquecer as  calúnias da mãe de seus filhos tão queridos! A congruência de Flávia e Jaquelina neste desgosto interminável poderá ele percebêla; mas a intervenção da imagem de Miquelina, ida para o seu Criador há tantos anos, esquecida de todos e até dele quase nos primeiros seis da sua morte, como há-de explicá-la? Pensará que a velhice, ao vizinhar-se a morte, cobra providencialmente lucidíssimas lembranças dos delitos, para na presença do Juiz Supremo os não denegar?

 

Segredo de um Anjo

As duas meninas escreviam-se diariamente.

A conformidade de Flávia, consoante as cartas a pintavam, era fingida. Assim como, na presença da directora e das mais senhoras, atabafava as lágrimas, esforçava-se também no escondê-las de Carlota, mostrando-se resignada. Excruciavam-na, porém, saudades de Carlota, e um indizível sentimento de afecto ao general, sentimento que nascera, como a súbitas, no momento em que lhe ele disse as últimas palavras: Creia que, se fosse minha filha, não me deixaria maiores saudades.

Estas palavras soavam-lhe contínuas no íntimo seio.

Não podia ir vê-la a sua amiga, porque a mãe adoecera e piorava da moléstia do arrependimento com intermitentes de raiva. Do pai dizia Carlota que saíra para a província a negócios de casa e levara consigo Ernesto. Lastimava-se do reviramento da sua vida, e protestava, assim que o pai chegasse, pedir-lhe licença para também se recolher à L'Abbaye-aux-Bois.

Flávia, dado que se não carpisse, rogava à sua amiga que desistisse do intento e não sacrificasse a sua tão bela e tão florida mocidade às tristezas de um convento, embora as senhoras vivessem de tal feitio que os actos religiosos eram naquela casa pouco menos de extintos.

Contava Flávia que uma senhora viúva, chamada Madame Recamier, moradora numa casa subordinada ao convento, reunia nas suas salas grandes personagens de Paris, não obstante dizer-se recolhida. Ajuntava que Madame Recamier pedira à directora que lhe apresentasse a portuguesa. «Fui, escrevia Flávia, e arrependi-me de não resistir ao pedido da abadessa. Rodearam-me muitos homens de respeitável presença, perguntando-me cousas de Portugal, das quais eu não sabia dar conta. Madame Recamier, sendo eu interrogada por um de seus hóspedes já idosos, levantou a voz e disse: - Menina, sabe quem a interroga? - Não, minha Senhora - respondi. - É Chateaubriand – tornou ela. - Abaixei a cabeça, porque me lembrou as nossas leituras de Atala e René no colégio de Madrid, e do Génio do Cristianismo que tua boa mãe nos lia... Passei três incómodas horas, ou silenciosa, ou obrigada a escutar cousas que não entendo. Madame Recamier fala como os generais

 do império que vão a tua casa. Parece um homem a dizer aquelas cousas com um entusiasmo que nos faria rir, se estivéssemos juntas, e com a certeza de não termos de assistir a outra pregação desta senhora...»

Numa das subsequentes cartas contava Flávia que lhe tinha sido entregue um bilhete-de-visita de Hugo de Touraille, cujo pai ela tinha visto no salão de Madame Recamier. Em seguida, noticiava que o filho do conde a tinha procurado, e ela se escusara de o receber, desculpando-se com a moléstia. Na carta imediata dava parte de lhe ter sido entregue uma carta de letra desconhecida no sobrescrito; a qual carta era de Hugo, com a proposta de a fazer sua esposa. «Não respondi – ajuntava ela -, porque receio que as cartas continuem, e eu me veja obrigada a não as receber. Dou graças a Deus por ter arredado de ti um homem que te não merecia e eu bem cuidei que me roubava o coração da minha Carlota.»

Jaquelina viu esta carta, sorriu-se e disse à filha:

- A tua amiga quer humilhar-te...

- Humilhar-me?!

- Sim. Dá-se como amada e pretendida esposa do homem que teu pai te destinara. É como se te dissesse: - «Eu valho mais do que tu.»

- Ora!... - replicou a menina. - A mamã é injusta...

- Serei... e tu és uma inocentinha... Não sabes nada do que se passa no coração de certas criaturas...

O general, quando voltou da província, viu a correspondência de Flávia; e, lendo a carta caluniada por sua esposa, disse:

- Que excelente, que pura alma a desta menina!...

Carlota referiu-lhe a interpretação que sua mãe dera à carta. Alfredo Gassiot deteve-se a pensar, engoliu as frases que a ira lhe suscitou contra a mulher, e conteve-se com dizer:

- Não creias o que a tal respeito diz tua mãe, Carlota! O antigo discernimento de tua mãe perdeu-se. Ama essa menina, que tem virtudes singulares. Aprende dela. Deus, em paga da boa obra que fizeste, dá-ta como anjo inspirador. Salva-te do remorso de seres menos justa com Flávia, para não experimentares o castigo que eu mereci considerando-a muito menos do que ela me saiu. De Hugo de Touraille estás vingada. Já depois que não vem a esta casa, me pediu a tua mão. Neguei-lha, e não consenti que me apertasse a minha.

Carlota deu sinal de alegrar-se com a sua vingança.

Escreveu logo a Flávia, contando-lha; e Flávia, em resposta, disse que abençoada fosse por Deus a resolução do pai da sua amiga, e concluía protestando não gastar tempo a falar de tal pessoa.

Ernesto foi portador de uma carta de sua irmã para a reclusa.

Flávia recebeu-o com muito agrado e deteve-se no locutório todo o tempo que o moço, ora embelezado nela, ora tartamudo de frivolidades, quis demorar-se.

Não parecia o autor dos poemas que sua irmã entregara à portuguesa, nem o prosador da carta sentimental.

O que ele parecia era o que raros amadores parecem: um moço extremamente apaixonado.

Era o devoto que, em adoração do Senhor, se transporta, mas não ousa articular palavras comuns dos homens. Com Deus e com a mulher adorada como Deus, se não mais, a voz, a expressão é um alhear-se a alma para onde não vá o que é sangue, o que bate no pulso e afogueia a cabeça. A nudez é respeito; as frivolidades são as bugiarias de que é capaz o espírito apagado da luz do coração que deixou de ser válvula de sangue.

Momentos, horas, ou qual seja o nome que deva dar-se-lhes, iguais às de Ernesto Gassiot, não se contam pela pauta cronológica dos actos humanos. Aí há transição de salto aos átrios do Paraíso, onde a contemplação do Sempiterno é gozo sem fim. O amor divino preluz nos instantes arroubados do amor humano. Se são relâmpagos, é o sol eterno que prefulge e apaga-se.

O coração viu-o, creu e não quis mais provas de sua imortalidade.

Melhores, mais levantadas do que estas rasas considerações deviam de volitar as ideias do poeta lamartiniano, do discípulo do apóstolo, do Paulo que pregava a segunda cristandade, a segunda ressurreição das almas: - almas insepultas, errantes na lagoa estígia da filosofia sensual, não conhecendo mais poesia séria que a de Delille, nem mais poesia ridiculosa que a de Béranger, brilhante crisálida de Parny.

O divino instante das três horas foi interrompido pelo tempo, submetido ao relógio do convento. Ernesto saiu. Ia triste, ia vexado da sua timidez.

Flávia dissera de si, do convento, das suas saudades, de tudo que lhe ocorreu, frases bem ordenadas, bem ocasionadas ao assunto, correntes e límpidas. E ele, uma cousa formosa e digníssima disse e foi... que Flávia era a sua querida irmã. Isto... foi um anjo que lho segredou, e ele não o entendeu.

 

Reviramentos

Desconfiado de sua eloquência, Ernesto Gassiot, mediante a intercessão de Carlota, remeteu os poemas a Flávia, e iludiu as ânsias de vê-la, passando horas comtemplativas da noute defronte do convento.

Flávia não leu impassivelmente a insinuante poesia do colegial. O coração estava naquelas páginas. Nem à mulher já enganada e desenganada de poetas seria natural a dúvida; menos pudera duvidar o seio não vulnerado de perfídias. Flávia acreditou-o; mas admirou-o antes de o amar - obséquio de que os poetas amantes devem lisonjear-se quase nada.

Escrevia a reclusa à sua amiga que Ernesto fazia versos sensibilizadores, nos quais revelava muita bondade de coração, e ela os recebia e guardava como prova de um sentimento correspondido com o mais vivo afecto de irmã.

Molestou-se o rapaz desta frieza. O ar temperado do amor aos dezanove anos é o dos vulcões. O poeta começou a desesperar, e acolheu-se desalentado à ciência profética do pai.

- É cedo, filho... E que mais queres tu já? - perguntou o general. - Chama-te irmão: é que à pobre menina sem família o afecto de irmã se figura o mais belo de quantos há. Quando ela estiver bem submissa do amor fraternal, o outro sentimento virá de si.

Ernesto cursava as aulas para comprazer com o pai; todavia, os versos e a meditação levavam a melhor sobre as matemáticas. De quinze em quinze dias, recebia Flávia algum novo e mavioso poema, enviado pela posta interna. Directamente Ernesto não se afoutava a dar-lho em mão nem ousava ir em pessoa compulsar o calor das suas líricas no espírito da menina. Carlota por sua parte, receosa da mãe, também guardava silêncio nas poucas visitas que fazia e nas já raras cartas escritas à sua amiga. De sobejo sabia ela que o desgosto invencível da mãe era o medo de ver Flávia esposa de seu filho, sendo ela a causa do menospreço do marido, triste desordem de sua casa e desatino de Ernesto. Demais disto, acrescia na reserva de Carlota o desconfiar-se da sinceridade de Flávia, efeito de lhe estar Madame Jaquelina continuamente incutindo suspeitas sobre querer ela exaltar-se e abatê-la com a proposta de Hugo de Touraille.

Não há que reparar nem incriminar na versátil Carlota Gassiot. Duas razões a desculpam: uma, a teimosia da mãe que incessantemente laborava em desatar os vínculos de sua filha à enjeitada, não tendo melhor expediente de vingar-se do marido; outra razão era ela ter amado e nunca esquecido o filho do conde, o futuro conde de Touraille, mancebo de quem as gazetas falavam, quando cumpria exemplificar o tipo aprimorado do cavalheirismo.

Cumpria que a menina fosse compleicionada excepcionalmente para não dobrar às insinuações maternas e às mais rijas e imperiosas de seus próprios coração, orgulho e ciúme. Ainda assim, pelejavam-lhe na alma os dous sentimentos adversos. Tinha horas de sentir-se remordida pela consciência da injustiça; outras horas arrependia-se de ter levantado até si a dançarina, que a deslumbrara a olhos do único homem com quem imaginara e esperara a felicidade de esposa... e esposa condessa de Touraille.

Há aqui alguma coisa muitíssimo vil e rasa; mas o nível da humanidade é aquilo.

Flávia conheceu a tibieza do amor de Carlota e escassamente se queixou, para não dar a perceber que a sua amizade exigia grandes desvelos e atenções. A causa deste arrefecimento cuidou ela não poder ser outra senão o dissabor de Jaquelina e porventura de Carlota, resultante da inclinação de Ernesto.

Isto suposto, Flávia, escrevendo à sua amiga, ajeitou ensejo de poder dizer-lhe que a fim de obviar suspeitas da abadessa e outras superioras do convento, lhe pedia recomendasse a seu irmão que lhe não escrevesse pelo correio nem a visitasse desacompanhado de Carlota.

Ernesto leu isto, e escondeu-se para chorar e escrever. Contra a recomendação de Flávia, enviou-lhe uma carta que, segundo ele, devia ser a derradeira. Era de um comprimento só perdoável a amantes. Dizia em prosa o que havia sido redito em verso; mas levava uns realces de sentimentos que os versos não tinham; eram as nódoas das lágrimas.

Flávia também chorou. Respondeu; mas, gastada a comoção, releu a sua resposta e rasgou-a, por não saber como substituir estas palavras: O amor que me dá é bem recompensado: se Deus me desse a conhecer minha mãe, só ela saberia os segredos do meu coração. Havia de contar-lhe o que tenho dito a mim própria; porque verdadeira amiga estou em crer que só pode sê-lo a mulher que é mãe e adivinha as tristezas de sua filha...

Ernesto Gassiot, baldada a esperança da resposta, envergonhou-se de chorar puerilmente diante de seu pai.

Pediu vénia para sair de Paris e furtar-se à continuação inútil dos estudos. Alfredo admirou-se da quantia de dinheiro pedida pelo filho. Perguntou-lhe se ia viajar.

O moço tergiversou enquanto o pai lhe não disse:

- Quero positivamente saber o teu destino. Se ele for digno de ti, não receis que te o estorve. Para onde vais?

- Para o bloqueio de Argel - disse Ernesto.

- Vai. Lá estão mancebos franceses da primeira plana, conjurados na defensão da honra nacional. Vai, e volta homem no coração, igual ao homem que vais no espírito.

Ernesto foi embarcar a Toulon.

O governo francês, no fim de 1827, mandou recolher as naus do assédio, reconhecendo a inutilidade e perigos de tal estratégia.

Após uma ausência de seis meses, Ernesto voltou a Paris e encontrou o pai separado da mãe e filha.

Os cabelos do general estavam todos brancos. Eram cinquenta e poucos mais anos de homem que os passasse no gear das masmorras.

Tinham assim corrido os seis meses: Carlota ligara-se a Jaquelina, evitando quanto podia as carícias e reflexões do pai. Rompera de todo relações com Flávia.

Respondia diariamente a umas cartas que não eram certamente da reclusa. Durante uns dous meses, que o general demorou na província, onde tinha quintas, a casa de Jaquelina ia um cavalheiro a quem Alfredo não apertava a mão.

O conde de Touraille, o novo, porque o pai tinha falecido, recomendando-lhe que não perdesse de vista a filha dos Gassiot, facilmente se insinuara no ânimo de Carlota, escrevendo-lhe, e negando despejadamente que houvesse convidado Flávia a ser sua esposa, para justificação do quê pedia a Carlota que exigisse a carta ou cartas confirmativas de tal injúria à sua linhagem. Seria completa a justificação do conde, a pedir Carlota as cartas. Flávia todas lhe devolvera, quando o instinto lhe ensinou que era essa a praxe. A filha de Jaquelina, aconselhada por sua mãe, não quis outras provas além da palavra do conde.

Referiu ele que a tinha pedido ao pai. Isso já ela o sabia. Esta verdade veio em confirmação da outra calúnia.

Queixou-se o conde da descortesia com que Alfredo Gassiot lhe recusara a mão. Também ela sabia isto que seu pai lhe contara. Ajuntou o gentil-homem de Touraille que teria matado Alfredo Gassiot, se ele não fosse pai de Carlota. A menina relanceou-lhe uns olhos de amorável reconhecimento.

Para se casarem faltava unicamente o consenso paternal.

Jaquelina não escrevia ao marido. Carlota, animada pela mãe, pediu-lhe a licença, fundamentando-a na sua inquebrantável paixão pelo conde.

O general passou em continente a Paris. Lançou em rosto à filha a baixeza de seus sentimentos; o impudor com que aceitara o homem que afrontosamente a desprezara.

Carlota acusou Flávia de caluniadora, exacerbando assim a ira do pai. Saiu Jaquelina em defesa de Carlota.

Recrudesceu a luta e a desordem. A dama rompeu os diques do fel represado, ora em lágrimas, ora em vociferações.

Homem que vira o mundo e palpara as chagas do vício e abrira com seus próprios delitos algumas, o general receando que sua filha, destemida com o amparo da mãe, se abalançasse a algum arrojo, consentiu no enlace com o conde, dotando-a como se casasse a prazimento seu.

Realizado o casamento, o conde partiu para o seu solar no propósito de resgatar os bens empenhados, e levou a sogra, que estipulara não separar-se da filha.

Alfredo Gassiot estava, pois, só e a ver-se no abismo da sua insulação, quando o filho chegou de Argel.

 

Explicações

A desatenção de Carlota e a notícia do seu casamento com o conde de Touraille impressionou de tal sorte Flávia, que não era bem dor nem tristeza o que ela sofria: era as angústias de um afligidíssimo sonho. A fealdade do caso parecia-lhe impossível. Carlota casada com Hugo, o homem que a tinha desprezado, e de quem Flávia referira francamente as pretensões desprezíveis e rebatidas com um desdém igual ao enojo!...

A alma da sua Carlota assim abatida a ponto de envergonhar-se de contar os novos projectos de seu casamento à sua amiga única!...

Desta arte explicava Flávia o rompimento vagaroso e depois o completo silêncio da condessa de Touraille.

Fez-lhe profundo abalo este sucesso: adoentou-lhe o espírito, ensinando-lhe protérvias ignoradas, úlceras da condição humana, que ela nunca vira nem sequer suspeitara.

Não será fácil cousa motivar a quebra que no ânimo de Flávia padeceu ao mesmo tempo o afecto de irmã muitíssimo extremosa, como ela o estava sentindo, ansiada por notícias de Ernesto Gassiot. O melhor do seu coração era de Carlota. Ferida e esmagada nele, Flávia retraiu-se, cobrou pavor do mundo, horrorizou-se da mentira e da ingratidão. Amasse ela com toda a alma, que a deslealdade da amiga não danificaria o amor a Ernesto; mas o que Flávia sentia é o que muitas irmãs, em casos semelhantes, podiam ter no coração: vivas saudades, momentos de lágrimas e desejo ardente de ver o mancebo que devia expatriar-se e procurar esquecê-la nas batalhas, como usam esquecer-se os que morrem.

Alfredo Gassiot tinha ido ao convento poucos dias antes da tornada do filho. De Carlota apenas dissera que ela fingia ser feliz. Do filho contou que a esquadra francesa ia recolher-se. Nem palavra proferiu acerca de sua mulher. Chorava a intervalos, e Flávia sentia fervores de encostar a cabeça encanecida do general ao seio e dizer-lhe: «Ainda tem uma filha! O meu coração chama-lhe pai!»

Ernesto desejou ter morrido em A- trica, ao ver a soledade em que seu pai envelhecia. Todavia, a consternação do pai pungia-o menos do que a sua. Era espectáculo aquele para que o moço, calcando suas mágoas, cuidasse em quebrar alguns espinhos às mortificações do velho. Não o quis assim o egoísmo do coração do homem, a violência do amor que desata ou corta no gume da ingratidão os mais sagrados vínculos. Carpia a desventura de seu pai; porém o ferro que mais o anavalhava era a sua paixão; para si é que o moço queria bálsamos.

Aventurou-se a procurar Flávia, que o recebeu taciturna e triste. Ernesto desembaraçado como homem já feito, ou esporeado pela dor, fez rudes e aspérrimas censuras a sua irmã: a portuguesa escutava-o calada quando lhe não ia à mão, lembrando-lhe que primeiro do que ela escolhera o Sr. General o marido, com quem Carlota vivia talvez feliz e até esquecida de amigos eparentes.

- Os desgraçados, portanto - disse Ernesto -, são meu pai e eu. Os mais todos são felizes. Minha mãe escreveu-me ontem, sabendo que eu voltara do mar...

- E é feliz sua mãe?! - atalhou Flávia.

- Diz-me que tem grande parte do contentamento de Carlota.

- E do Sr. General não tem saudades?

- Não me fala em meu pai; mas eu sei que ela repetidamente lhe escreve, pedindo-lhe que autorize a convidar o genro a passar o Inverno em Paris na nossa casa. Meu pai não responde nem responderá. Aquele homem está morto... Minha mãe... essa vive; ainda pensa no Inverno em Paris; quer mostrar-se mãe da condessa de Touraille. E, pelo conseguinte, feliz. Carlota... escusado é perguntar se o será...

- Quem sabe!...

- Um desconto somente lhe pode agorentar a satisfação: e este será talvez lembrar-se a condessa, no seu castelo senhorial, que um seu avô era fabricante e outro seu avô lapidário. Tirante isto, minha irmã é afortunada como todas as almas do ínfimo lodo... Todos felizes!... Até Flávia, até a minha irmã adoptiva do coração é felicíssima, não é?

- Pudera ser mais e menos do que sou...

- Nada; mais não! Quem pode ver insensivelmente o alheio infortúnio, ignora que há dores. Ignorá-las é não as ter experimentado. Tenho conhecido que os altos espíritos não descem aos estrados húmidos de lágrimas. A divinização da formosura não admite incensos de tão baixo...

- De que modo me está falando, Sr. Gassiot! - interrompeu Flávia.

- Admira-se e estranha-me!

- Muito...

- Ofende-me a sua admiração... Se eu pudesse agora chorar, seria de cólera...

- Meu irmão!... - exclamou abafada de espanto e mágoa a reclusa.

- Não sou seu irmão, Flávia! Nada de títulos que importam nada para consolação do desgraçado que lhe pede menos artifício e mais sinceridade...

- Sr. Ernesto, que motivos...

- Que motivos? Os da minha irremediável perdição - acudiu Ernesto com recrescente veemência, como se o referver do sangue lhe não desse espaço a meditar resposta. - Flávia tem-me atirado aos abismos que me repelem... Não lhe conto a minha vida de um ano de tristeza e dous de desesperação... Olhe que não é isto pesar de lhe compungir a sensibilidade... E pejo de homem... Flávia tem as virtudes todas de um anjo; falta-lhe o dom divino com que Deus dota a mulher; as fibras que estremecem compadecidas, a segunda alma dos afectos, a inteligência apaixonada das lágrimas alheias... Compreende estas?...

Ernesto enxugou os olhos e prosseguiu:

- Que significa, Senhora, essa dureza de coração?...

Que entranhas de ferro poderiam ensurdecer aos brados com que lhe pedi a felicidade... suplicada com tanta precisão de me arrancar ao pensamento do suicídio!...

Quem poderia ler e não responder à carta última que lhe enviei ao passar-me para onde eu cuidei que tinha a sepultura!... Não me queria? era-lhe eu odioso? dissesse-mo! Bastava o suplício de a não merecer; era bastante a afronta do desprezo! Repelido e ultrajado era de mais!

- Que mundo eu estou vendo, meu Deus - murmurou Flávia. - Que cadeia de injustiças!...

- Sou eu também injusto?

- Muito, Sr. Ernesto...

- Quando me deu uma palavra de esperança?

- Esperança... de quê?

- A sua pergunta não pode ser inocente!... Pois que esperanças lhe pedia eu? que lhe diziam as minhas cartas? que explicação tiveram as desordens com minha mãe?

- As desordens com sua mãe - disse animadamente Flávia - explicam o meu procedimento, Sr. Ernesto.

Eu saí de sua casa com alcunha de infame. Bem alto me gritaram aos ouvidos que eu era uma enjeitada. Enjeitadas abafam o coração quando ele aspira ao que não deve sequer sonhar. Fui eu a causa das desavenças de sua família; aceitei e escolhi este convento ou qualquer outro para me não envolver involuntariamente nos desgostos de sua casa. Infame me chamaram; não o era; mas sê-lo-ia depois, se daqui fizesse guerra a sua mãe, que me odiava, e incitasse o Sr. Ernesto a desobedecer-lhe, quando a minha maior ventura nesta vida seria ganhar outra vez a estima de Madame Gassiot...

- Mas...

- Deixe-me dizer-lhe tudo para me justificar,

Sr. Ernesto, ainda que me custe muito. Não li insensível as suas cartas. A última respondi...

- Não recebi...

- Bem sei que não recebeu: rasguei a resposta. Repreendi a demasiada sinceridade do meu coração. Condenei-me ao silêncio, sacrifiquei-me à tranquilidade de seus pais, e pareceu-me que sua irmã me aconselhava esta boa acção, quando me pintava os crescentes desgostos de sua mãe por causa do agrado com que o Sr. Ernesto me escrevia. Que havia de fazer eu sem ninguém que me defendesse das arguições de sua mãe irritada contra mim? Tudo que ela afirmasse era acreditado. Diria toda a gente que uma dançarina, enjeitada, desvalida e beneficiada por uma família caritativa, lhe pagara com a ingratidão de se querer considerar digna de...

Conteve-se.

- Digna de... - repetiu Ernesto.

- Ser esposa do filho do general Gassiot, que é hoje pai da condessa de Touraille...

- Flávia! - exclamou o moço. - Não se justificou...

- Não?! então... não sei... não posso...

- Pode: diga que me não ama. Diga...

- Mentiria. Amo-o com a ternura e dedicação de irmã... e este amor é tanto - prosseguiu ela transportada e incendida de entusiasmo - que eu somente satisfaria a minha alma podendo abraçar a esposa de Ernesto e dizer-lhe: - «Minha irmã, amo-te a ti como a ele; deixa-me viver contigo e com ele!»

Ernesto levantou-se de repelão, encostou as mãos às reixas da grade, e disse com um sorriso irónico:

- Obrigado! A inutilidade do seu arrebatamento!...

- Quê?! - perguntou Flávia.

- As palavras não valiam a pena do entusiasmo! Eu não lhe vim pedir que prezasse minha mulher. Se eu fosse homem de má-fé, cuidaria que a senhora me estava logrando, apoucando-me o entendimento a proporções muito menores do que as dele. Minha Senhora, minha irmã, minha amiga, e amiga de minha mulher continuou ele, tossindo impulsos de contrafeito riso - adeus! seja ditosa, e glorie-se de ter acalcanhado um coração de moço que desde hoje há-de bater no peito de um homem.

Saiu. Flávia, estupefacta, só respirou, quando pôde chorar.

 

Desatinos vulgares

Corria o ano de 1830.

O ministro da guerra Bourmont e o almirante Duperre acaudilhavam nova expedição sobre Argel.

Entre os trinta e cinco mil homens embarcados em Toulon estava Alfredo Gassiot e seu filho Ernesto.

O general do império ia como voluntário, sem distintivo de patente. Ernesto decorava-se com as dragonas de alferes (sous-lieutenant).

No dia 17 de Junho daquele ano, quarenta mil árabes do exército de Ibrahim-Aga, cortados do ferro francês, escreveram com o seu sangue a vitória de Bourmont no campo de Staouéli. O voluntário Gassiot remoçara naquele dia. O fogo da refrega calorificara-lhe o sangue.

Conhecia-se o bravo de Austerlitz. A soldadesca perguntava quem era o maneta, e descobriam a cabeça diante do general de Napoleão.

Ernest saiu ferido levemente. O pai curou-lhe as feridas e disse:

- Vim como teu cirurgião, filho. Achei-me no conflito para entreter o tempo.

Poucos dias depois, os descendentes dos conquistadores de Espanha, abencerrages e zegris, caíram no abismo, de onde apenas lhe será permitido o ressurgimento nas páginas ora gloriosas, ora tristes, e sempre romanescas da história.

Os Gassiot demoravam ainda por Argel quando estalou a revolução de Julho em Paris. Carlos X desobstruíra as escadas do trono para a passagem de Luís Filipe. O marechal Bourmont foi substituído, e voltou para França. O voluntário Gassiot seguiu o general, e Ernesto seguiu seu pai, constrangidamente.

Fez-se uma transformação natural, todavia triste, no viver do alferes Gassiot, em Paris.

A libertinagem engodou-o com as suas primeiras blandícias. O moço arrancou do seio puro o coração, esvaziou-o das lágrimas, atascou-o nas orgias e encheu-o de lama. Acompanhavam-no homens que lhe faziam ter vergonha da sua fraqueza de amador lacrimável e lamartiniano. Ernesto contava a sua vida em tom declamativo, quando não cantava trovas suas, com estribilhos desonestos, e intermeados por coros de gargalhadas. O nome de Flávia era já sabido dos ébrios, e ele por sua parte sabia nomes de meninas mais ilustres e menos respeitáveis.

Acontecia, porém, que Ernesto, nas intermitências lúcidas, se algum sócio lhe metia a riso Flávia, remessava a luva ou metia a mão à espada. Era uma curiosidade originalíssima aquele moço entre os despejados que traziam por lupanares e prostíbulos os apelidos de seus pais e os apelidos das damas de suas relações.

O general indagou do viver do filho, quando lho apearam de uma sege com o rosto acutilado em duelo complementar de uma noute de embriaguez. Então soube os baixos desvarios em que ele trazia enchafurdada a sua mocidade de parçaria com mancebos já expulsos da sociedade honesta e famosos em toda a casta de desvergonha.

- Eis aqui os meus dous filhos no que deram! disse entre si Alfredo Gassiot. - Carlota deu-me com o pé no coração; Ernesto deixou-me sozinho e foi distrair-se na crápula!... Os meus filhos!... As minhas esperanças!...

O general, assumindo o aspeito severo de pai e juiz, repreendeu o filho, depois que as desonrosas feridas cicatrizaram.

- É pena - disse ele - que um militar ferido no

assalto ao forte do imperador em Argel se deixasse cortar pela espada de um devasso embriagado!

Ernesto respondeu com um gesto de enfado. O general replicou:

- Nunca te pus mão de castigo quando eras menino. Hoje, que és homem, se tornares a responder-me com esse ar de desprezo, sovo-te debaixo dos pés. Não duvides; que eu convenço-te depressa.

Passados alguns minutos, parou no seu passear mesurado, e disse:

- Como caíste na desordenada e aviltada vida que levas?

- Como caem todos os desgraçados que precisam suicidar-se lentamente.

- Nem todos os desgraçados são abjectos. Há aí muitos que se enobrecem pela coragem, pela conformidade, pelo esforço. O exemplo sou eu. Aqui estou sozinho, sem tua mãe, sem tua irmã e... sem ti... que estás morto. Alguém me viu nos lupanares? Já me viste levado em braços de patrulhas, atordoado pela virulência?

Desgraçadíssimo fui, quando eras criança... Nunca chovam sobre ti as calamidades que eu comportei sem cuidar no suicídio da embriaguez! Não sabes o que é desgraça, Ernesto!... A suprema sei eu qual é... E uma que está em ti e não a conheces. É a desonra. Era o nome desprezível que, antes de eu o saber, todos te davam. Em seis meses ninguém o ganhava tão notório, tão estrondoso!

- Meu pai! - exclamou Ernesto - despreze-me quanto o mundo me despreza, quanto eu a mim me desprezo propriamente.

- Mas que foi isto? - redarguiu Alfredo. - É Flávia a causa desta perdição em que te vejo?!

- E.

- Como assim? Não me dizem que tu a ultrajas com galhofas, com vitupérios e atrozes zombarias?

Ernesto apertou a fronte nas mãos convulsas e murmurou:

- Como eu me perdi! como eu me perdi!...

E, deixando cair os braços, olhou a fito o pai, e disse com firmeza:

- É certo. Sou um infame! Se meu pai zela o seu nome, se me não quer ver nalgum abismo de desconhecida miséria... mate-me! mate-me que é salvar-me e salvar-se a si...

O general contemplou largo espaço o semblante do filho, e rompeu em pranto desfeito, oferecendo-lhe o seio. Ernesto, antes de lançar-se nele, ajoelhou encostando a face aos joelhos trémulos do velho.

- Queres que eu vá suplicar a Flávia que te salve?

- balbuciou Alfredo.

- Não, meu pai. Resta-me no coração uma fibra incorrupta. Flávia não me ama... E eu... insultei-a...

- Quando?

- Estava ébrio...

- Escreveste-lhe?

- Procurei-a.

- Quando?...

- Há quinze dias.

- E pudeste insultá-la? Um homem de tua educação... Feriste-lhe a sua honra?

- Não, Senhor. Pedi-lhe as minhas cartas e os meus versos; rasguei tudo e atirei-lho à cara. Quando saí do convento ia já atravessado de remorsos. Entrei num café, embriaguei-me, e referi numa roda de conhecidos o acto que praticara. Um deles, menos ébrio que os outros, disse-me que eu praticara um mau feito. Atirei-lhe com um copo ao rosto. Desafiou-me e feriu-me. Aqui tem a história do meu duelo... Que quer meu pai suplicar a Flávia?...

- Dizes bem, que hei-de eu suplicar a Flávia!...

O general saiu vagarosamente do quarto do filho, e fez-se conduzir ao convento de L'Abbaye-aux-Bois.

Perguntou por Flávia. Responderam-lhe que estivera gravemente enferma e começava a convalescer, com ordem de não sair do leito.

O velho escreveu nas costas de um bilhete as seguintes palavras: Um homem que pede perdão de ser pai de E. Gassiot.

Chamou a criada de Flávia, entregou-lhe o bilhete e saiu.

Poucos minutos depois recebia este escrito:

«Lembrava-me do meu bom amigo, e pensava qual seria a razão de me ter abandonado, quando me deram o         seu bilhete. Entendi logo o seu pedido de perdão; e chorei calculando a sua dor. Olhe que não me afligiu do Sr. Ernesto senão o desamor de uma ofensa que eu lhe não merecia. Mas quantos irmãos se ofendem muito mais do que ele me ofendeu? O que foi passou. Creia que o estimo do mesmo modo: sou sempre a irmã extremosa dele, já que não ouso assinar-me a sua filha carinhosa, Flávia.»

O general chamou o filho e deu-lhe a ler a carta. Ernesto releu-a e disse trespassado de angústia:

- Mostra-me isto para me cravar mais dentro o punhal do remorso?

- Não: mostro-te essa carta para que vás diante de Flávia arrancar os espinhos do remorso. Vai, quando ela puder ouvir-te, e chora algumas dessas lágrimas que te descem nas faces.

- Nunca mais a verei... - murmurou Ernesto nunca mais, meu pai!... Esta mulher pode não odiar-me; o que ela não poderá jamais é amar-me!...

Ao outro dia Ernesto Gassiot desligou-se das obrigações militares e saiu de Paris para uma de suas quintas.

Espicaçava-o a vergonha de ser visto nos cafés onde se discutia o facto do duelo, em grande auditório de risadas; porque os discursadores, querendo evidenciar a justiça divina e humana no resultado do desafio, apregoavam o exemplo recente de dous embriagados batendo-se a sabre, e de ter sido ferido na cara um dos dous que atirara com uma bala de poemas, amarfanhados na mão, à cara de uma reclusa de L'Abbaye-aux-Bois. Os trovistas mais salgados e apimentados compunham do caso uns solaus, que alterados os nomes dos personagens, apareceram impressos nos almanaques de 1831.

Alguém se animara a prevenir o general Gassiot da ridícula celebridade do filho: e o vexado pai, relatando a Ernesto as informações recebidas, não lhe impediu, antes afervorou a saída para a província.

- Vai - disse-lhe ele - retempera a tua alma, readquire o vigor de teus brios. Olha que tens vinte e um anos, Ernesto. A corrupção da alma, na tua idade, é um aleijão monstruoso. Volta quando te sentires bom, e digno de aceitares a afeição de irmã que Flávia te dá.

Ernesto interrompeu:

- Que me faz a mim a afeição de irmã! Já me cansa este jogo de palavras que me fariam rir, a não ser eu tão desgraçado!... Meu pai, não entendamos com essa mulher! Deixe-a; que não lhe falarei mais dela. Se eu conseguir desculpar-me alguma vez de a ter ofendido, gostarei que ela me perdoe... e, se não perdoar, bastar-me-á para alívio de remorsos o que padeci antes do insulto e o que hei-de padecer com a consciência da minha desonra.

 

O amor de Flávia e a felicidade de Carlota

Há coisas admiráveis, nisto do amor principalmente.

Ninguém devia já maravilhar-se delas por muito repetidas; mas há sempre quem admire.

Entre muitos sei eu este caso de Flávia, que não é dos raros. Depois que Ernesto, fulminando-a com apóstrofes incendidas de raiva, lhe atirou à face os poemas e as cartas, dá-se o caso de principiar ela a amá-lo com paixão.

Espante-se quem puder.

Quem a visse chorar e adoecer de perigosa febre depois, cuidaria que o insulto a esmagara.

Não era.

Chorava de compaixão dele; adoecia de ânsias do coração que ela forcejava por espedaçar, cada vez que lhe soava dentro uma voz, dizendo-lhe que aceitasse o esposo a despeito de todos e de tudo. E porque não? Que importavam os despeitos de Jaquelina? Que tinha que a mãe de Carlota, condessa de Touraille, a difamasse de enjeitada ingrata? Isto figurava-se a Flávia que era muito; mas a relutância procedia de causa misteriosa, de, para assim o dizer, instintiva repugnância. Porquê?

Não é do foro de homens entender nas secretas operações da Providência.

Todavia, a paixão vulcanizou-se súbita, quando Flávia soube que Ernesto, já então na província, tinha sido acutilado no duelo por adversário que lhe estranhara o feito indelicado. Eram as senhoras informadas do salão de Madame Recamier que lhe levavam as novas. A ideal amada de Chateaubriand sabia tudo, folgava de saber tudo que ocorria desde os recônditos retretes de Luís Filipe até às fumarentas estaminets e ruidosas revelações de escândalos, crónicas declamadas no café Tortoni. Sabia tudo, e rira muito do duelo e das trovas correntes a contar o caso dos dous embriagados, entregando sua causa ao juízo de Deus, à míngua de juízo humano.

Soubera, pois, Flávia os acontecimentos; e, ao sabê-los, sentiu-se amorosíssima até ao transporte de mandar em busca de Ernesto Gassiot.

Disseram os criados do general que Ernesto saíra de Paris. Animou-se Flávia a escrever a Alfredo Gassiot pedindo-lhe novas do filho. O velho foi ao convento e deteve-se largas horas, referindo expansivamente, como quem carecia de desafogar-se, as suas angústias, a terrível soledade do seu viver, a ausência do filho coberto de opróbrio, e a consoladora esperança de ainda o ver reabilitado. Flávia, antes que vencesse os soluços, chorou muito, e, muito instada a dizer a razão de sua ansiedade, balbuciou:

- Chame-o... Diga-lhe que o amo!...

- Então quer salvar meu filho? - exclamou o velho exultando até às lágrimas.

- Quero que ele me perdoe o que tem padecido... Quero ir para a sua companhia, meu querido... Oh!... eu ia chamar-lhe pai!...

- Ó minha amada filha!... - clamou o general dê-me esse nome que me enche de contentamento a alma... Há-de dar-mo sempre... sim? há-de querer que meu filho lhe dê metade do meu coração de pai?...

 

Deu-se pressa o general em chamar o filho a Paris.

Devolveram-lhe fechada a carta, com outra que Ernesto deixara para ser enviada a seu pai, alguns dias depois que tivesse saído da província.

Ernesto Gassiot, após uma longa conta dos tédios e desesperações de sua vida ociosa e mais própria a piorar-lhe os sofrimentos que a extirpar o cancro que lhe desfibrava o coração, deliberara seguir a carreira das armas em reino estrangeiro, e buscar na luta do corpo o entorpecimento da alma. «Esquecer-me ou acabar, é o meu fito. Não levo outra esperança; porque as esperanças que para aqui vieram comigo todas perdi.» Dizia ele, e ajuntava que alguns seus camaradas de Argel iam militar nas fileiras do duque de Bragança, representadas por uns poucos de homens agrupados na Ilha Terceira com destino a conquistar e restaurar a coroa da legítima soberana dos Portugueses. Declarava pois, que ia apresentar-se com sua patente aos generais do imperador; e, terminada de qualquer modo a luta, voltaria a França impetrar o perdão de seu pai, para quem a resolução tomada devia de ser, senão honrosa, perdoável.

E terminava desta forma:

«Releve-me agora, meu querido pai, uma confidência. Não sei dizer-lhe que prazer sinto em ir... talvez morrer na pátria da mulher a quem eu dei as primeiras e      últimas lágrimas. É santo pensamento e sublime a elevação da minha alma, que eu já cuidei de todo incapaz de sobrenadar no seu lamaçal... é doce à minha imaginação pensar que o meu sangue há-de tingir o chão onde a pobre enjeitadinha verteu muitas lágrimas, como ela contava a Carlota. Há nisto ainda um voar da minha antiga alma... Será o derradeiro aspirar alto do poeta, que nasceu influenciado por esse infeliz anjo, que eu... não verei mais...»

O general mostrou esta carta a Flávia.

- Escreva-lhe! - exclamou ela. - Escreva-lhe, meu querido pai! diga-lhe que venha já, que eu não terei vontade que não seja a dele...

Alfredo Gassiot escreveu; mas a sua carta não chegou à Terceira, interceptada plausivelmente pela esquadra do bloqueio. O general, desesperado da resposta, apercebia-se para ir em demanda do filho quando um incidente lhe atalhou o intento.

Madame Jaquelina apareceu-lhe subitamente, quando ele saía de sua câmara. Ajoelhou e de mãos erguidas lhe rogou que aceitasse o arrependimento com que ela se acolhia à sua misericórdia.

Alfredo levantou-a e disse-lhe com brandura:

- Nunca te expulsei desta casa, em que tinhas parte igual à minha. Assim, pois, podias entrar, quando te aprouvesse, sem dependência do meu perdão. É certo que me não trazes a felicidade, que essa acabou às tuas mãos; mataste-a com poucas punhaladas e depressa.

Não importa. Vive triste como eu. Vive sem filhos como eu tenho vivido. Contempla-me neste acabar lastimoso da vida; e, se ainda assim puderes ser feliz, agradece à Divina Providência o que eu já não posso merecer-lhe.

Jaquelina arfava em convulsões de aflita e como aterrada do semblante cadavérico de seu marido.

- Perguntas-me por teu filho? - prosseguiu ele bem pode ser que a esta hora esteja morto. Anda lá fora expondo a vida desastrosa na guerra, porque lhe não deixaste a felicidade e paz do coração. Agora te perguntarei eu: - Tua filha é feliz?

Jaquelina respondeu soluçante:

- Não mo perguntes, Alfredo...

- Compreendo a resposta.

- Eu fugi... - voltou ela com a voz cortada de suspiros ansiosos - fugi para não assistir à desventura da minha pobre filha...

- Covarde fuga! - atalhou Alfredo. - Fugiste da beira do abismo onde a convidaste a descer contigo... e deixaste-a cair... deste-lhe o impulso para a queda...

- Alfredo, tem piedade! - acudiu Jaquelina – não me queiras matar, quando eu venho pedir-te que ampares nossa filha. O conde sabe que ela não tem um pai que a defenda, por isso a maltrata e despreza... Perdoa-lhe à pobre menina, e dá-lhe um quarto nesta casa, onde ela possa chorar livre da flagelação daquele infame homem...

Detiveram-se em comprido diálogo. Basta que, em suma, saiba o leitor que a condessa de Touraille, à imitação do mau filho da parábola de Jesus, invejava o pão de suas criadas.

O conde levava consumidos os últimos milhares de francos do dote de Carlota, em toda a casta de devassidão, como se o jogo de per si não bastasse a empobrecê-lo.

O general autorizou Madame Jaquelina a ir buscar sua filha.

Não viu o conde sair sua mulher. Exultou com a nova que lhe levaram às suas tapadas, onde andava caçando, e maravilhou-se jubilosamente de ver que a nobre condessa deixara os brilhantes com que ele a mimoseara no dia das escrituras nupciais.

 

A Luída das Gaias

Era no dia 25 de Fevereiro de 1834.

No largo da aldeia das Gaias, por volta das nove horas de uma clara mas frigidíssima manhã, estava sentada no degrau único de um casebre, fiando, uma mulher que poderia contar entre cinquenta e cinco e sessenta anos.

Passou um lavrador do lugar e disse-lhe:

- Tia Luísa, vá lá a casa comer o caldo.

- Irei, tio António; Deus lhe dê saúde – respondeu Luísa do Canto.

Passou uma sécia moça e atirou-lhe ao regaço uma abada de castanhas, dizendo:

- Tome lá, tia Luísa; estas são serôdias.

- Deus te console, Maria; vou-me regalar com elas.

Muito gosto de te ver, cachopa! Es da idade da minha Flávia, com diferença de dias. Quando me trouxeram a menina, eras tu que me tiravas o leite. E como tu brincavas com ela por aqui!... Estou a ver-vos!... Lembras-te da minha Flávia?

- Mal me lembro...

- Pois sim, sim; isto já lá vai há que tempos!... Quantos tens, Maria?

- Faço vinte e três no mês do S. Miguel.

- É isso, é. Vinte e três!... parece que foi ontem...

- Adeus, tia Luísa; vá lá comer o caldo à noute disse a moça despedindo-se.

Daí a meia hora Luísa do Canto voltou de comer o caldo esmolado e sentou-se no degrau a comer as castanhas.

Onze horas seriam quando, da banda de Guimarães, desembocou no largo das Gaias uma senhora sentada sobre um macho, guiado por um arrieiro.

- As Gaias é aqui, patroa - disse o arrieiro.

- Aqui?

- Aqui mesmo. Se não, eu pergunto.

E, voltando-se à velha fiandeira, perguntou:

- Ó tiazinha, aqui é o lugar das Gaias?

- E, sim, Senhor.

Flávia retivera as rédeas do macho, e estava circunvagando os olhos pelo largo, olhando em todas as portas, e reparando mais atentamente na casa de Luísa.

- Por quem quer que pergunte, patroa? – disse o arrieiro.

- Por ninguém - respondeu Flávia.

- Vossemecê quem procura? - perguntou a velha.

- Pergunte àquela mulher como se chama - indigitou Flávia.

- Como se chama, tiazinha?

- Sou Luíza, para o servir.

A senhora quedou-se a olhá-la com uma fixidez de amorótica. Apeou-se e perguntou ao arrieiro:

- Aqui há estalagem?

- Há ali fora na estrada das Caldas uma taverna.

- Vá para lá e espere que eu o mande chamar.

O arrieiro saiu do largo.

A viajante deteve-se ainda alguns segundos repassando miudamente os olhos sobre tudo que a rodeava, e firmando-se mais de espaço em Luísa, que parara de fiar contemplando a senhora.

Depois, aproximou-se da fiandeira, e disse-lhe, com pronúncia espanhola, vendo que ela se levantava:

- Deixe-se estar sentada.

- Estou bem, minha Senhora...

- Faz favor de me dizer: haverá por aqui alguma casa que se alugue a uma doente que precisa de ares de campo?

- Aqui não há, Senhora. Lá adiante, em Santo António das Taipas, é que há. A senhora, ainda que eu seja confiada, é estrangeira?

- Sou.

- A modo que é espanhola?

- Sou.

- E anda sozinha por estes reinos!... Benza-a Deus que tão galantinha é!... A doentinha é V. S.a?

- Não.

- Lá me quis parecer!... quer a senhora sentar-se num banquinho?... ele é pobre, mas limpo; pode sentar-se à vontade.

- Se faz favor, sento-me.

Sentou-se e prosseguiu:

- Vossemecê é sozinha?

- Sou, sim, Senhora.

- Não tem filho nenhum?

- Não tenho...

E suspirou como a desafogar-se do apertar do remorso.

- E tem vivido sozinha toda a sua vida? – tornou Flávia.

- Toda a vida, não; estive com meu pai que trabalhava na forja aqui nesta casa; ele ao depois morreu e eu andei a servir até aos trinta e dous anos. Depois, como o outro que diz, vieram os contratempos, e eu por aqui tenho atamancado a vida. Trabalhei enquanto tive pernas; mas o reumatismo tolheu-mas; agora ainda vou dando algum passinho; mas no tempo frio estou para aí encarangada nas palhas...

- E quem a sustenta?

- O bem-fazer dos lavradores; um dá-me o caldo; outro um bocado de broa; outro uma pinga, e assim me vou remediando com a muita paciência que Deus Nosso Senhor me dá.

- Que triste vida! Há tantos anos sozinha nesta cabana! - disse Flávia, cogitando no modo de a fazer falar da sua enjeitada, e ao mesmo tempo suspeitando que não fosse aquela Luísa a sua ama. Continuou: Vossemecê parece-me que já me disse que sofrera desgraças...

- Quem as não sofre, Senhora! Ainda não há uma hora que aqui passou uma rapariga que me deu umas castanhas... Quer a senhora umas castanhinhas muito sãs, que ainda ali tenho duas mãos cheias delas?

- Muito obrigada... Então uma rapariga que passou... - tornou Flávia acudindo à memória da velha.

- Fez-me chorar, porque me traz à lembrança a minha filhinha...

- Ah! vossemecê tinha uma filhinha?...

- Não era minha; mas eu tinha-lhe o amor que Deus sabe, e ela tão mal me pagou... Coitada... era uma criança de sete para oito anos; e eu, se quer que lhe diga, não sei se ela morreu, se fugiu, se que foi... Perdi-a... Há quinze anos que me desapareceu... A senhora perdoe-me pelo amor de Deus estar-lhe eu a moer a paciência com as minhas desgraças... Eu não falo senão nisto... Não me esquece, cem anos que eu viva, a minha Flávia...

A caminhante estremeceu, e, feita uma pausa forçada pela comoção, disse:

- Não me enfada com a sua história, tia Luísa.

Conte-me como foi que se perdeu a sua criança... Era enjeitada, não era?

- Agora era ela enjeitada... - atalhou Luísa.

- Não era!? - exclamou Flávia de modo que poderia alvoroçar pessoa menos bota de sentidos e mais perspicaz do que a velha meio cega e surda.

- Não, Senhora, não era enjeitada. Trouxeram-ma não sei de onde; vestiam-na de ricos vestidinhos; até pérolas tinha! Davam-me pela criar um dinheiro louco; levavam-ma daqui às vezes não sei para onde.

- Não sabe?

- Não, Senhora... Se eu soubesse, não ficaria a menina desgraçadinha quando tinha três anos.

- Então porquê?

- Porque nunca mais aqui apareceu a mulher que me pagava e levava a menina à mãe.

- A mãe?... Então vossemecê sabia que ela tinha mãe?

- Pois ela tinha... mas aonde... isto sabe-o Deus...

Ninguém me tira do juízo que a mãe ou o pai morreram... Fosse lá como fosse, a menina ficou por aqui até aos sete anos a comer e a vestir como Deus era servido... Se eu não tinha para lho dar! Muitas vezes o tireida boca; mas, quando vinha o Inverno, frio e fome não nos faltava, minha Senhora...

A velha referiu as diligências que fizera, e o leitor já sabe, para descobrir em Braga a mulher que ela supunha ser criada de fidalgo ou cónego. Chegou ao caso de vir de Guimarães, onde vendia fruta, e não encontrar a sua menina. Muita gente lhe disse que a vira a folgar com outras raparigas à volta de um saltimbanco e duas raparigas que faziam habilidades; mas ninguém lhe dizia onde ela passasse.

E acrescentou:

- Andei por todos esses poços dos lavradores a espreitar se ela teria caído; mandei botar pregões nos adros de sete freguesias à missa do dia. Nada de novo a respeito da menina. Fiz promessas de ir descalça à Senhora do Porto e de dar duas voltas de joelhos à volta do santuário do Bom Jesus do Monte. Botei inculcas por toda a parte; falei a almocreves de longe, a liteireiros, a senhores que passavam na estrada. Seis anos andei nisto, até que perdi as esperanças...

- E então - interrompeu Flávia - nunca de parte nenhuma lhe vieram novas dessa menina?!

- Não, Senhora; nem uma palavra de ninguém.

Deteve-se Flávia pensando na falsidade do professor de ginástica; e encheu-se de ternura e gratidão à mulher que tanto sofrera, e ela quase odiara, em virtude das impostoras ameaças forjadas pelo espanhol.

- Pois nunca... - tornou a senhora - nunca lhe mandaram de parte nenhuma dinheiro que...

- Dinheiro de quem? pois eu não disse já a V. S.a que não recebi mais nem uma de cinco desde que a menina ia a fazer três anos?

- Sim, disse... mas... depois...

- Depois, quem mo havia de dar?... Mais de um ano andei eu como pasmada, a chorar, a chorar, que até perdi a minha vista! Dizia eu cá para mim: «Se os pais desta menina aparecessem agora que conta lhe daria eu dela? Sim! como lhe havia de eu dizer que a perdi!?»

Ainda eu não disse à senhora que a mulher que ma trouxe - por sinal que se chamava Gertrudes - muitas vezes me disse que a minha menina havia de vir a ser muito rica, porque pelos modos o pai ou mãe eram gente de muitos teres; e também me dizia que eu, quando fosse velhinha, havia de ter uns bens que me rendessem o necessário para a minha mantença e vestido. Ora quem me dizia a mim que o pai ou mãe da minha Flávia ainda podiam estar vivos, e lá por coisas que Deus sabe não podiam cuidar da filha, e mais cedo ou mais tarde viriam por aí em cata dela!? Sim! E eu que lhe havia de dizer? Não é assim, minha Senhora?

- Tem razão...

- Pois aí está.

- E vossemecê não pôde nunca descobrir nada, absolutamente nada do nascimento dessa menina?

- Nada. A Gertrudes dizia-me que se eu cogitasse, tanto como isto, de quem eram os pais da criança, que ma tirava logo. Deu-me ordem para que dissesse que a menina viera do Porto; e eu assim fiz crer, mas agora veio! A Gertrudes levou-a daqui três vezes, e não se demorou mais de quatro para cinco horas. Enquanto a mim, o pai ou mãe vinham de longe vê-la nalguma mata às escondidas, e pouco se demoravam. Ainda lhe não disse que uma vez, já passados dous anos por cima do perdimento da menina, passou aqui um senhor já velho e a modo de fidalgo, e perguntou-me se eu fora a ama de uma rapariga que andava nos pregões do adro de uma igreja aí à beira de Guimarães. Disse-lhe que sim, muito contente, cuidando que a menina aparecera. Esteve ele a perguntar-me, pelo miúdo, que idade tinha e qem ma trouxera. Contei-lhe tudo. Ele ouviu, ouviu, deu-me um cruzado novo de esmola e foi-se embora.

Aconteceu que vinha um lavrador acolá de além para este lado, e depois me disse que aquele senhor era o Sr. chantre de Braga. Daí a seis meses tirei-me dos meus cuidados e fui a Braga a ver se o tal senhor... sim, eu ia ver se ele, dizendo-lhe eu que era a ama da tal mocinha, me dizia alguma cousa; porque eu fiquei com a pedra no sapato...

- E então?

- Ai! minha Senhora! quando lá cheguei já tinha morrido há cinco meses!... Que havia de eu fazer? Fiquei para aqui a pedir a Deus que me não deixasse morrer sem ver a minha Flávia.

- E Deus fez-lhe a vontade! - disse a senhora.

- Que diz V. S.a? - perguntou a velha duvidosa do seu ouvido.

- Que Deus não a deixou morrer sem ver a sua Flávia.

- Aonde? - exclamou Luísa deixando cair o fuso.

- Aqui.

- Pois... pois... - tartamudeou a velha caindo em joelhos por não poder suster-se.

- Sou eu a sua Flávia.

Luísa do Canto rompeu em gritos que pareceriam de grandíssima aflição a quem lhe não visse o rebrilhar dos olhos e os lábios convulsos de riso nervoso.

Flávia tirou-a pelo braço e conduziu-a para o interior da choupana, pedindo-lhe que não gritasse nem dissesse o seu nome. A velha, perdido o alento, mal lhe ouvira a recomendação.

Tomou-a nos braços Flávia, deitou-a sobre a maltrapida enxerga, e sentou-se aos pés da tarima. Relançou os olhos por toda a casa e reconheceu a lareira, a fresta contígua à cama e uma imagem do Bom Jesus do Monte enquadrada em pau-santo.

- A casa da minha infância... - murmurou ela, deixando correr copiosas lágrimas.

Ao abaixar os olhos para o andrajoso lençol que pendia ao chão, viu o espaldar de um berço que devia ter sido rico pelos lavores da madeira de fora. Tirou-o debaixo do catre e disse:

- Seria o meu berço?!

Recobrou alento Luísa. Sentou-se na cama, balbuciando como estrouvinhada:

- Que sonho, meu Deus!...

- Não sonhou, Luísa! Aqui está a sua Flávia...

- Ó Virgem Nossa Senhora! ó minha Mãe do Céu! ó Senhor dos milagres! dizei-me que não morro sem ver a minha Flávia!... - exclamou a velha, crescendo para a senhora, e como receosa de tocar-lhe o vestido de seda preta.

Flávia abraçou-a, beijando-a e dizendo:

- Abrace, abrace a sua enjeitadinha... Eu também não morrerei sem ver o meu berço... É este o meu berço?...

- E, é, minha filha... minha Senhora... É o seu bercinho... Vendi tudo, vendi a camisa, vendi a roupa melhor da cama; mas o bercinho nunca o quis vender!

- Pois há-de vender-mo a mim... Dou-lhe por ele a sua sustentação e todos os regalos da sua vida até à morte. Venho cumprir a promessa que lhe fez a mulher que me entregou ao seu amor. Terá os bens abundantes que lhe prometeram, Luísa.

A velha dava uns saltos de criatura que nunca tivesse tido reumatismo.

 

Encontrou-o

Grandíssimo espanto foi o dos moradores das Gaias, quando viram uma liteira de Guimarães parada à porta de Luísa. Sobreveio o assombro ao espanto quando viram Luísa enroupada num xaile rico entrar na liteira e logo depós ela uma fidalga com um berço debaixo do braço, e a liteira partir. Não há, porém, palavra que exprima a estupefacção, o pasmo do gentio, quando Luísa, alguns passos adiante, mandou parar a liteira à porta de uma choupana mais pobre do que a sua, e disse a uma velhinha que se aquecia à réstia do sol:

- Caetana, tu és a mais pobrinha da aldeia porque pagas renda do teu casebre. Aqui tens a chave da minha casa. Dou-ta com tudo que está nela. Agradece a esmola a esta menina, e pede à Virgem Mãe de Deus que lhe dê saúde.

A liteira partiu caminho de Guimarães.

Ao outro dia, Luísa do Canto vestiu-se com bons vestidos de Flávia; e, entradas novamente na liteira, caminharam para o Porto.

Chegadas à cidade, já desafogada do assédio, Flávia saiu com a sua ama e pediu a um guia que a levasse a casa do negociante francês Pierre Baylac, a quem apresentou uma carta de suas irmãs que viviam recolhidas no convento d'Abbaye-aux-Bois.

A carta pedia esclarecimentos acerca do oficial francês Ernesto Gassiot, empenhado na guerra da restauração do trono de D. Maria II, desde a expedição dos Açores.

O negociante leu e disse prontamente:

- Conheço perfeitamente o capitão Ernesto Gassiot...

- É vivo? - interrompeu com alvoroço Flávia.

- Antes de ontem ainda era vivo, porque o vi sair com o general barão de Pico de Celeiros, comandando uma companhia do Dezoito.

- Para onde foi?

- Seguiram ao Norte: devem estar a caminho de Amarante, segundo dizia a parte do quartel-general de ontem. Foi também com ele outro bravo que faz honra à nossa França, o coronel Pessu, que tem feito proezas. Gassiot não lhe fica à retaguarda! Foi ferido gravemente no dia vinte e nove de Setembro na grande batalha! Morreram muitos oficiais franceses, e lá ficavam todos se não fosse o coronel St. Léger.

- Soube-se isso em Paris - disse Flávia.

- Tornou a ser ferido no dia cinco de Julho nas linhas, ao lado do coronel Du Vergier, que morreu das muitas cutiladas. Desta vez bem cuidámos que o intrépido Gassiot não vencia os mortais golpes que recebeu.

Dizem que o pai, general de Napoleão, foi valente; basta que fosse tanto como o filho! Estarei eu falando com a irmã do Sr. Gassiot?

- Nada, não...

- Ouvi dizer que ele tem uma irmã condessa...

- Não sou eu.

- E também me contaram os camaradas dele que a sua entrada nesta campanha era o resultado de uma paixão amorosa; e que o capitão andava atrás da morte e ela a fugir-lhe... Agora parece-me que adivinhei quem é a senhora...

Flávia abaixou os olhos marejados e murmurou:

- Sou muito amiga do Sr. Ernesto; devo muitos benefícios a toda a família Gassiot.

- Pois, Senhora - tornou Baylac -, o melhor é deixar-se hospedar nesta casa e esperar o fim da luta que está a terminar. A guarnição anda quase toda a limpar as províncias e não pode tardar aqui.

- Não obstante - contraveio Flávia - eu venho resolvida a seguir o exército até onde possa alcançar Ernesto Gassiot.

- Isso é temeridade! - replicou o francês. – Como há-de ir uma senhora de seus anos com uma criada por esses caminhos em que, a cada passo, aparecem guerrilhas miguelistas e ladrões que a podem desfeitear?

- Ninguém me faz mal... - respondeu Flávia. Desembarquei na Corunha e passei sem perigo nem receio...

- Sozinha?

- Às vezes em companhia de outros passageiros, que me trataram benignamente; outras vezes sozinha com um arneiro.

- Que imprudência! Não repita semelhantes afoutezas, minha Senhora...

- Não posso deixar de ir até encontrar o Sr. Gassiot - insistiu Flávia.

- Minhas manas pedem-me que lhe preste o auxílio todo nas suas diligências. Não me recomendam que lhe dê conselhos; ainda assim eu insto em pedir-lhe que não siga a marcha do exército; mas, se a resolução é inalterável, consinta a senhora que eu envie em sua companhia um velho caixeiro de minha casa para ao menos ter consigo quem a tempo a previna e salve dos perigos.

Flávia condescendeu, e logo fez depositário o negociante dos seus coupons e dinheiro, valores excedentes a doze contos de réis, dos quais Pierre Baylac lhe passou título de depósito, e reflexionou:

- E anda pelo mundo sozinha uma senhora de vinte e poucos mais anos com tal quantia de dinheiro em si!... É preciso muita indiscrição, queira perdoar-me!...

- Não sei se sairei mais de Portugal... - disse Flávia. - Onde fizer a minha habitação necessito de meios com que viva...

- Pois a menina não é francesa? Tenciona ficar em país estrangeiro!?

- Estou no meu país.

O comerciante conheceu, por um gesto de Flávia, que as suas averiguações lhe soavam impertinentes. Pediu a Flávia suas ordens, e conveio em enviar no dia seguinte o caixeiro encaminhador da misteriosa senhora.

No dia seguinte, 29 de Abril, saiu Flávia com sua ama em liteira e o caixeiro a cavalo.

Chegaram à noute a Santo Tirso, onde, no dia anterior, as forças do exército libertador, encontrando as avançadas da brigada de José Cardoso, vingaram repeli-las.

O barão de Pico de Celeiros acelerara as marchas sobre o inimigo. Apenas o general passava, cobriam-se de milicianos e guerrilhas dispersos as estradas. O francês teve grande medo e não vingou incuti-lo no ânimo de Flávia.

Os caminhantes prosseguiram no dia seguinte suajornada, na estrada de Amarante; mas o liteireiro temeroso também de que lhe embargassem os machos para a condução da artilharia, retardava o passo, e a cada poisada inventava um acidente no desmancho da locomotiva ou desferramentos dos muares para ficar aquém muito longe do exército.

No dia um chegou a liteira à vista da Lixa, sobre um alto de onde se avistavam acampadas num cerro as forças de D. Miguel. A distância de meia légua, entre Flávia e o exército absolutista, marchavam as tropas do imperador. Flávia ouvia o estridor das carretas, e a espaços o estrondo marcial da música.

Parou a liteira onde lhe era obrigatório ficar, no couce das bagagens, escoltadas de tropa que vedavam a passagem de mulheres.

Na manhã do dia dous rompeu o fogo. O exército liberal formou três colunas. O barão, à frente da coluna central, entestou com a linha, ordenando cargas de cavalaria. A do inimigo seria menos intrépida, mas rebatia mais experimentada. Rechaçada no assalto, quebrou-se-lhe o ímpeto e retirou debaixo das lanças e espadas, até desordenar a reserva. Travou-se a luta desesperada, à queima-roupa. O barão de Pico de Celeiros assumiu, no afogo do encarniçamento, o comando da cavalaria.

Expediu um grito como a chamar a glória que lhe fugia. Cada homem desprezou sua vida, trocando-a pela honra de a perder.

A desesperação disparou na vitória. Cardoso fugiu.

Ergueu-se a celeuma do triunfo; mas nos alaridos, que horrorizavam Flávia, faltavam os brados de noventa e nove homens do exército vencedor. Doze dos mortos eram oficiais.

As bagagens recolheram-se ao exército. A liteira de Flávia caminhou com elas. Ressoavam os vivas à rainha, a D. Pedro, à constituição, por sobre os jubilosos hinos da música.

Ninguém falava nos mortos; e todavia Flávia pedia ao caixeiro que perguntasse se tinham morrido oficiais.

Lá no campo somente poderiam sabê-lo.

Pararam as bagagens e a liteira.

Flávia apeou. A soldadesca, encarregada de amontoar os cadáveres, olhava contra ela e dizia:

- Que mulher é aquela?

Aproximou-se Flávia de um oficial de veteranos, condutor das bagagens, e perguntou-lhe em espanhol onde poderia ela encontrar o capitão francês Gassiot.

- Isso é lá no centro, senhorita. Se procurasse o coronel Pessu já eu lhe dizia que o vi passar numa maca muito ferido.

Flávia tremeu, oscilaram-lhe os joelhos, arrepiaram-se-lhe os cabelos de frio e pediu ao caixeiro que lhe desse o braço.

Dados poucos passos, Flávia tartamudeou:

- Pergunte... pergunte... que medo, meu Deus!...

- Aqui vem um oficial francês... Eu pergunto...

- Não... não! - susteve Flávia. - Meu Deus!... matai-me antes que eu o saiba...

- Tenha ânimo... Sente-se nesta carreta, que eu vou saber e volto já.

- Não... quero ir.

- Morreram oficiais franceses? - perguntou o caixeiro a um soldado do batalhão nacional.

- Dous vi eu cair feridos... O coronel Pessu e o capitão Gassiot...

- Morto? - exclamou Flávia.

- Morto não, ferido.

- Vamos, vamos! - gritou ela. - Onde estão?

- Não sei dizer-lhe. As macas vão pelo caminho da Lixa.

Corriam. O francês ia como arrastado pelo braço dela.

- Morreria? - perguntava Flávia quase asfixiada de correr.

- Não, minha Senhora... Pois não foi ele já ferido tantas vezes?... E quem nos diz que o tal voluntário se enganou!...

- É verdade! - obtemperou ela, ganhando alento.

- Perguntemos a este alferes de cavalaria que aí vem.

O alferes trazia os olhos embelezados no formoso e incendido rosto de Flávia.

- V. S.a pode dizer-nos onde encontraremos o capitão Gassiot?

- Na ambulância, pelo menos o corpo.

- Está morto? - acudiu Flávia.

- Caiu mortalmente ferido.

A senhora pôs as mãos ambas e disse num tom de maviosa súplica, digna do milagre que Jesus fez a Marta:

- Não está morto, não?

E que lágrimas a fio! Como elas se espelharam logo também nos olhos do alferes, que talvez as não tivesse para a sua família, se ele fosse o moribundo!

- Eu vou acompanhá-los à ambulância - disse ele comovido.

Saíram do campo juncado de cadáveres de homens e cavalos mortos. Avizinharam-se de um toldo na encosta do monte que se quebra no lugar da Lixa.

Flávia tremia, e olhava espavorida para a ambulância, onde entravam e saíam oficiais com semblantes contristados, limpando lágrimas.

O alferes adiantou-se, dizendo à senhora que esperasse.

Falou de relance com um camarada que saía, e quedou-se à porta do hospital de sangue, com as costas voltadas para a dama, cuja respiração parecia o ansiar do estrangulado no vasquejar da morte.

- Ele não vem? - disse ela ao caixeiro.

- Vou eu lá... Espere-me... - murmurou o caixeiro.

- Vou também.

Achegaram-se ao alferes.

- Está aqui? - perguntou ela, fazendo menção de entrar.

- Não entre, Senhora! - atalhou o militar.

- Porque não?... Morreu!... - bradou Flávia.

O interrogado não deu resposta.

Flávia soltou um grito estridente, rompeu por entre a chusma de oficiais, e bradou:

- Ernesto! Ernesto!...

Quiseram retê-la. Deixou o xaile nas mãos de quem a segurava. Parecia cega naquele circunvagar de olhos; mas viu, viu um rosto lavado de sangue já coagulado.

Reconheceu-o. Levantou as mãos à fronte. Avançou para o estrado sobre que se estirava o cadáver. Caiu de rosto sobre o seio do morto, e sentiu ainda nos lábios o acre daquele sangue!

Era mavioso de tristeza ver aqueles homens tisnados da polvorada enxugarem os olhos aos punhos das fardas. Fez-se um silêncio sepulcral à volta daquela mulher inclinada sobre o cadáver, cujos braços abertos pareciam querer abraçá-la e esconder-se com ela na vala dos mortos.

 

Onde Deus a levou

Vão passados cinco dias. Flávia não está morta nem insana. Os anjos do Senhor abateram as ânsias daquele seio puro, consumada a providencial catástrofe. As lágrimas, que lhe abriam vincos no rosto, eram de fogo; mas quisera Deus que ela as respirasse assim, para salvá-la. Se querubins se alassem todos da terra, que inferno seria isto? Convinha que Flávia vivesse para algum santo acto de amor, de consolação, de resplandecimento a almas submersas em trevas.

O cadáver de Ernesto Gassiot tinha sido embalsamado por ordem dela. Fechado em um caixão laminado de chumbo, ia ser enviado a França.

No acto do embarque, Flávia quis vê-lo. Osculou-lhe as mãos, e depôs entre elas um escrito que dizia assim:

Ao Sr. Alfredo Gassiot

Meu benfeitor, prometi restituir-lhe seu filho. Envio-lho como o encontrei. Perdoe-me! Deus não me deixa morrer. Se é para expiação que eu vivo, bendita ela seja.

A sua filha do coração, Flávia.

Viu sair o navio para França. Volveu à casa hospedeira, beijou as mãos do velho comerciante, e disse-lhe:

- Vou procurar uma casa de campo onde viva algum tempo. Careço de quietação.

ONDE DEUS A LEVOU!...

Isto era dito de modo que impunha silêncio à contrariedade.

Baylac perguntou-se se queria o seu dinheiro.

- Peço-lhe que mo troque em moeda portuguesa disse ela.

Cambiou-lhe o negociante os coupons e luíses. Viu-a sair com a sua Luísa, e por fim lhe perguntou:

- Onde vai ser a sua paragem?

- Não sei ainda. Fui criada nos arrabaldes de Guimarães. Leva-me para ali o coração... Deixo-me levar.

Parou naquela terra triste; mas folgava de ver as árvores, a moldura magnificente de um painel que infunde amargura e tédio na alma.

Perguntou onde lhe alugariam ou venderiam uma quinta nos subúrbios de Guimarães. Informaram-na de se estar oferecendo uma, que tinha antigamente pertencido a um corregedor assassinado pelos franceses, e depois passara a um capitão-mor, do qual a herdara um filho, façanhoso realista que tinha morrido dous anos antes na batalha do dia de S. Miguel. A viúva vendia a quinta, porque era voz pública de se andar por lá passeando uma alma  enada, a alma do corregedor, provavelmente, assassinado com grande restituição às costas.

Luísa do Canto pedia encarecidamente à sua menina que não comprasse semelhante quinta.

Flávia foi vê-la.

Achou-a sublime de tristeza. As heras marinhavam pelas paredes até enquadrarem e taparem as janelas. Os loureirais enredavam-se de modo à volta da casa que lhe afogavam as portas. O jardim era um silveiral. As estátuas alegóricas, circumpostas outrora no rebordo do tanque, estavam mergulhadas em lodo.

Era a quinta de Calvados.

Luísa a cada rumor imaginário cuidava ver a alma do corregedor ou de quem quer que era.

Entrou Flávia à casa. Quem a mostrava era um antigo caseiro que o era havia quarenta anos. Flávia perguntou a causa de tal abandono de uma propriedade que devia ter sido recreativa.

O caseiro contou que a senhora viúva, desde que um ano depois do tempo dos franceses, se recolhera ao convento, nunca mais tornara e lá morrera, passados oito anos. Disse mais que duas filhas da senhora ambas tinham morrido novas; mas que a Sr.a D. Miquelina fora deste mundo dez anos antes da Sr.a D. Roberta, freira em Braga. Que depois, ajuntou ele, a quinta fora dar como herança a um irmão do Sr. Corregedor, e, morto este, a um filho, que, se não acabasse na guerra, deixava a viúva a pão de pedir.

Luísa do Canto reformou as suas ideias enquanto à alma alojada no edifício, inclinando-se a suspeitar que o espírito penado fosse o do homem que morrera na guerra.

Flávia ouvia sem escutar as observações psicológicas da sua ama.

Dentro da casa estavam uns poucos de trastes antigos, algumas cadeiras de coiro marchetadas, uma cómoda muito velha com semelhança de contador e alguns escanos com brasão pintado na sala de espera.

Disse o caseiro, referindo-se às velhas alfaias, que a viúva do Sr. Capitão-Mor lhe dera ordem de vendê-las, a querer alguém comprá-las.

Flávia entrou em ajuste. Apareceu-lhe o procurador da viúva autorizado. Convieram no preço não discutido pela ajustadora.

Lavrou-se a escritura. De uma parte apareceu a viúva, da outra a compradora, Luísa do Canto.

Coisa admirável! A velha chorava de alegria quando Flávia lhe disse:

- Aqui tem os bens que lhe prometeu Gertrudes em nome de meus pais.

Mas o admirável não está nisto: é que Luísa nunca mais curou de ponderar qual das duas almas suspeitas lhe infestava a sua propriedade.

Trastejada a casa modestamente, entrou a proprietária nela com a sua menina, e trataram de escolher quartos.

Flávia afeiçoou-se a um por onde as trepadeiras incultas entravam mais espessas, através dos caixilhos desvidraçados. Neste quarto é que estava a velha cómoda ou contador, com um espelho incrustado e pendido.

A senhora mandou que removessem dali a cómoda para o próximo quarto que Luísa escolhera.

Alguns jornaleiros cuidaram em arrastar o traste; mas, ao primeiro empuxão, as juntas descoladas gemeram e a tábua do espaldar despegou-se.

Flávia disse que desfizessem a cómoda incapaz de servir e lha tirassem de qualquer modo do quarto. Arrancaram a tábua despegada e tiraram presa nela uma gaveta em que Flávia logo viu papéis.

- Aqui estão papéis! - disse ela.

- Não ponha a mão nisso! - acudiu Luísa gesticulando. - Cautela, que não vá ser feitiçaria!

A senhora tirou o papel mais cimeiro, sacudiu-lhe o pó, e leu mentalmente: Ó minha querida Flávia!...

- Que é isto!? Flávia!... que é isto, meu Deus! disse ela entre si.

E, pegando de tudo quanto a gaveta continha, saiu do quarto aceleradamente e entrou numa sala mais afastada.

Luísa seguiu-a a coxear, clamando:

- Vai aflita! vai aflita, menina!? Não lho disse eu!... bote fora essa papelada...

- Deixe-me!... - disse Flávia arquejante.

E leu de novo as linhas escritas nas costas de uma carta, as linhas que Miquelina tinha escrito dezanove anos antes:

- Ó minha Flávia, ó minha querida filhinha, não tornarei a ver-te? Ó meu Deus, dai-me um sinal de que eu não morrerei sem vê-la uma vez, uma só vez vos peço!

- Ó Luísa! ó Luísa! - exclamou ela.

- Que é, que é, minha Senhora?

- Escuta, escuta isto!...

E leu à ama as palavras.

A velha escancarou a boca até onde os músculos obedeceram ao repuxar do espanto, e disse:

- Jesus! Santo nome de Jesus! isto que é?

Flávia voltou o papel e começou a ler... não leu. Expediu um grande grito e exclamou:

- Esta letra!... esta letra!...

- Que é? que é?...

- Esta letra é de Alfredo Gassiot!

- De quem?... A menina sabe quem é esse? Como se chama?...

Flávia estava lendo uma carta escrita em espanhol, a qual começava assim: Daqui a pouco não terei quem me dê novas tuas, Miquelina. O morgado avisa-me de que eu vou ser assassinado pelos teus parentes e criados! Bem-vinda seja a morte. Não me defenderei, porque já não tenho que perder. O matarem-me é a misericórdia que os homens já agora podem unicamente haver com o teu desgraçado Alfredo.

- É ele! é ele!... Ó Mãe Santíssima, esclarecei-me!

- Quem? - perguntava a velha esbofada, formando um maior pavilhão com as mãos ambas encaneladas sobre os ouvidos.

Flávia continuava a ler, e a soltar ais estrídulos a cada frase surpreendente com que a luz do espírito se lhe ia fazendo.

O papel imediato era um embrulhinho quadrado.

- Não abra! - exclamava Luísa, fazendo o sinal da cruz sobre o embrulho, mas de longe.

Desdobrou Flávia o papel, que continha dous. Um dizia: Os cabelinhos da minha Flávia, quando fez um ano. - Dizia o outro: - Uma trancinha dos cabelos da minha Flávia aos dous anos.

Levantou-se a senhora, correndo pela sala com trejeitos de enlouquecida.

A velha benzia-se.

E Flávia bradava:

- Sou eu! sou eu!

- Que será, meu milagroso S. Torcato! - resmoneava Luísa, começando um credo em cruz.

- Ó Luísa - tornou a louca. - Veja estes cabelos... lembra-se destes cabelos?...

- Cabelos! - murmurou a ama temerosa.

- Sim... alguém lhe pediu estes cabelos quando eu era pequenina?

A velha esfregou freneticamente os olhos, esbugalhou-os muito ao perto das madeixazinhas, e entrou a gritar:

- Ó menina, ó menina, estes cabelinhos dei-os eu à Gertrudes!... Anjo bento! que vejo eu!?

Flávia já não podia com as comoções. Queria ler mais cartas; mas fugia-lhe a luz, azulejava-se-lhe o papel; tomavam-na uns vágados incomportáveis. Atirou-se aos braços da sua ama e exclamou em voz surda:

- Ai! que eu não posso mais!... Tenho medo de morrer agora... Não me deixeis morrer, meu Deus, que eu sei... quem é meu pai!

Pouco depois, acalmou-lhe o arfar do seio, descerrou os olhos esgazeados e murmurou:

- Que foi tudo isto... eu não delirava, Luísa?... Os papéis e os cabelos estão aqui...

E sentou-se no sobrado correndo as mãos pela fronte gotejante de suor. Em seguida apertou as cartas sobre o coração, e murmurou:

- O que Deus me deu!... Como foi que eu mereci à Divina Providência este bem...

Ficou a cismar largo tempo e disse com transporte e angústia:

- Será isto um engano, Luísa? Não serão meus estes cabelos?... não serão?...

- Vou jurar sobre os Evangelhos que são... - confirmou a ama. - Estes mais pequeninos cortei-lhos eu quando a menina tinha um ano; estes maiorzinhos pediu-mos a Gertrudes da primeira vez que ela foi buscar a menina.

- Oh! - tornou Flávia a chorar. - Então minha

mãe beijou estes cabelos!... Pôs aqui os seus lábios... verteu lágrimas neles...

E beijava-os sofregamente, ajoelhando-se neste lanço, com as mãos postas e os dedos achegados à boca.

Extenuada outra vez, sentou-se, e disse:

- Eu morrerei, Luísa!? Parece-me que o sangue me sobe à cabeça... Luísa, minha ama... sabe que eu sei quem é... quem é meu pai?...

- Sabe?! que me diz, meu anjinho do Céu? Sabe quem é seu pai?...

- Sei... Espera... deixa-me ver...

E lançou mão de outra carta, muito desbotada de lágrimas, escrita num papel que vazava a tinta, em muitas linhas apenas inteligível nalgumas palavras. De um período final pudera ela decifrar estas: Guarda-me o tesouro... seio... venha a ser o anjo do teu resgate... Deus nos... pela inocência dele.

No fundo desta carta, escritas por outra letra e tinta, liam-se estas palavras:

10 de Setembro de 1812, dez horas da noute. Flávia.

Gaias, freguesia de S. Martinho de Sande. - Luísa do Canto.

- Agora... Mãe do Céu! - exclamou Flávia – não posso duvidar! Luísa, aqui está o seu nome! aqui está escrito por minha mãe!... Ajoelhemos, agradeçamos a Deus!...

Era uma oração de êxtases o orar de Flávia. Senão quando, de súbito, inclinou cabeça e olhos ao pavimento, amparou a testa nas mãos e murmurou:

- Ernesto... Ernesto!... eras meu irmão!...

 

Lances indescritíveis

Quinze dias andados, depois dos anteriores sucessos, o general Gassiot, encerrado na sua câmara, de onde mais não saíra desde a hora em que recebeu o cadáver de Ernesto, escrevia a Flávia, para lhe ser entregue em Portugal a carta, mediante as irmãs do negociante Baylac. O general pedia a Flávia que o não deixasse ir deste mundo sem ainda lhe ocasionar o prazer de carpir-se na presença de quem soubesse, como somente ela sabia, o que era diluir o coração em lágrimas.

A soledade de Alfredo Gassiot era, na verdade, completa. Carlota, dous meses depois que fugira ao marido, definhava-se de saudades dele; e, comparando a paz da casa paterna com o bulício das suas casas acasteladas de Touraille, arrependia-se de ter obedecido às lástimas da mãe, esquecendo-se de que ela mesma dizia invejar o pão de suas criadas.

Contribuía a entristecer-lhe a vida em Paris a mudança da casa do pai. Não recebia visitas o general nem as consentia à esposa. As carruagens todas foram vendidas. Nem teatros nem saída alguma distractiva. De portas adentro uma quietação monacal, um silêncio de igreja deserta.

O general ou se fechava nos seus aposentos, ou passeava nas salas de onde fugia quando se avizinhavam passos. Entre os dous esposos mal se encontravam as vistas e mais raras vezes as palavras. Jaquelina vivia como envergonhada de si própria; ou, em revolta contra o despego do primo, escondia-se a chorar por já ter perdida a energia para vociferar com justiça e contra justiça, como se dá com todas as pessoas de génio desgraçado para elas e flagelante para os outros.

Este viver, e principalmente o amor de Carlota a Hugo - amor nem deslouvável nem incoerente – deram de si o facto, nem original nem censurável, de escrever ela clandestinamente a seu marido. - O conde pensou uma hora com lucidez e caiu em si, prometendo emendar-se, jurando-o à condessa pelas cinzas de seu pai e pela sua honra, que era menos de cinzas. A lucidez que lhe aclarara o espírito não tinha prodígio que deva espantar-nos. Era a previsão da pobreza e o medo de perder ao futuro a herança presuntiva por morte de seus sogros.

Carlota exultou com a resposta de sua carta. Pareceu-lhe que estava amando mais do que nunca o seu conde. Revelou à mãe o propósito de voltar para o esposo. Jaquelina bravejou contra o despundonor da filha. Da braveza descaiu na humilhação dos rogos.

Fraudou-se-lhe tudo. A sua força moral de mãe acabara, perdera-se desde que ela animara a filha à rebelião contra os brios de seu pai. Estava pagando o terrível saldo que se paga cá em baixo, segundo a taxa misteriosa da inexorável justiça - aparentemente humana, mas, a toda a luz da consciência, divina.

Carlota apresentou-se ao pai, e disse-lhe que desejava tornar para seu marido.

Alfredo encarou nela com mudo assombro; e, volvidos poucos segundos, disse:

- Vai.

A condessa de Touraille quis despedir-se de sua mãe e não foi recebida.

Madame Jaquelina lançou-lhe a sua maldição...

Não lhe podia empecer a maldição nem prosperar a bênção de tal mãe. A santificação dos direitos maternais volve-se em nenhum poderio, quando a mãe deu exemplo da postergação e menoscabo dos deveres.

Deus quer que filha e mãe se tornem como duas mulheres alheias uma da outra.

Jaquelina já incutia compaixão; mas o general tinha sobre si um tamanho peso de cruz que não o deixava levantar olhos para o rosto atormentado de sua mulher.

Deixava-a a só com as agonias dela para que a mulher o deixasse a ele devorar as suas. Não queria assim finar-se a mãe de Carlota naquele arder oculto de raivas à filha e ao marido. Desvairou por aloucadas fantasias, até abraçar a menos desatinada. Escreveu ao marido que mais não vira desde a saída de Carlota. Pediu-lhe recursos para viver em casa sua apartada dele. O general respondeu: Disponha a minha prima de tudo que for seu. E, se entender que tudo é seu, disponha de tudo.

Jaquelina arbitrou uma avultada pensão anual e apartou-se. Deu explicação de tal proceder às antigas relações de sua casa. Levaram-lhe a bem o acto e alcunharam de doudo o general - doudo de amores senis, diziam os comensais de Madame Jaquelina, de uma enjeitada reclusa em L'Abbaye-aux-Bois.

Ora, estas cousas passavam quando Flávia demorava ainda no convento.

Saíra ela para Portugal, e Gassiot ficara naquele quarto do seu palacete, esperando novas do filho, e sorrindo à esperança de o ver entrar esposo da filha do seu coração.

Saiu do quarto para ir ver o cadáver cujas mãos lhe ofereceram o bilhete de Flávia.

Somente, após muitos dias, pôde o velho, que Deus mantinha vivo à beira do túmulo, escrever a Flávia, pedindo-lhe que fosse vê-lo chorar.

Estava escrevendo, quando lhe noticiaram a entrada de duas senhoras à sala de espera. Perguntava o general o nome das senhoras, quando Flávia lhe apareceu no quarto e se ajoelhou aos pés dele.

Alfredo inclinou-se a recebê-la no braço, que tremia.

- Tão mudada! tão magra!... - murmurou o general com as lágrimas a fio. - Cuidou que eu tinha morrido, Flávia? Perdoe não lhe ter respondido. Recebi o cadáver do nosso Ernesto... Mas... ainda agora... veja... estava-lhe escrevendo, e pedia-lhe que viesse ver-me... Olhe como eu estou acabado, olhe que velhice tão desventurada... Nós choramos Ernesto... e eu queria que me chorasse alguém.

- Meu pai... - balbuciou Flávia.

- Dê-me, dê-me esse nome que era a minha alegria, pedida ao Senhor com tanta fé... Chame-me pai, que eu a estou olhando filha do meu coração e viúva do coração morto do meu Ernesto...

- Era impossível!... - atalhou Flávia. – Primeiro separou-nos uma força Divina; depois, foi a morte...

Ernesto não podia ser meu esposo, porque era meu irmão...

O general entendeu como sempre tinha entendido o pertinaz afecto de irmã com que Flávia pagava à paixão de Ernesto.

- Pois não me disse que seria esposa de meu filho? - lembrou Alfredo.

- Não podia ser! Não podia ser! - respondeu ela com energia abraçando-se no pescoço do velho.

- Porquê?

- Porque eu sou sua filha... sou filha de Miquelina, nasci na quinta de Calvados!...

Alfredo Gassiot apenas articulou nuns sons roucos e convulsos estas palavras:

- Que é? que é?... Miquelina!...

E, como se o pavimento balouçasse, o general oscilou aos lados, e amparado nos braços da filha, recuou até embater na parede. Aqui, tomou na mão tremente a face de Flávia, e remirou-a tão de perto, que a filha sentia o hálito afogueado da boca em que parecia estar paralisada a língua. Falava-lhe ela, beijando-o, apertando-o ao seio; e o pai ria-se com umas contracções musculares tão insólitas que amedrontavam.

A esse tempo, assomava à porta a velha Luísa do Canto, que não pudera mais tempo conter a sua ansiedade em esperar a menina, e ousara pedir aos criados que lha mostrassem.       

Alfredo cravou os olhos naquela súbita aparição, e declinou-os dela à filha.       

- É a ama que me criou! - disse Flávia. - Luísa, aqui tem meu pai... Venha cá. Conte-lhe a minha vida até aos sete anos...

O general estava pouco mais de mentecapto; Flávia, porém, temendo-se de que o ar espasmódico de seu pai denunciasse um estado de dúvida sobre a verdade de ser ela sua filha, tirou dum saquinho de veludo um maço de papéis, desatou-os e disse, mostrando-lhe uma carta:

- Esta letra é sua, meu pai?

- E, é!... - exclamou ele.

Flávia voltou a carta, mostrou a página onde Miquelina tinha escrito, e perguntou, mostrando-lha:

- Lembra-se da letra de minha mãe?

- É esta!... aqui está a letra de Miquelina...

- Leia! - tornou ela.

O general proferiu, lendo convulsivamente: Ó minha Flávia, ó minha querida filhinha, não tornarei a ver-te...

Leu tudo, leu duas vezes, e quedou-se numa imobilidade de sonâmbulo.

- Quer ver mais letra de minha mãe? – continuou Flávia.

E mostrou-lhe os embrulhos do cabelo, com as designações escritas por Miquelina.

A crise devia acabar pela elucidação ou morte do espírito.

O general, antes de ver a filha, viu Deus.

Desapertou-se brandamente dos braços dela e ajoelhou.

Palavra não balbuciou nenhuma: as lágrimas, porém, borbulhavam dos olhos, uma após outras.

Daqui avante não me abalanço a descrever o que vejo na minha imaginação. A linguagem humana escassamente vinga esboçar em sombra um terço das sensações da alma. Somos pobríssimos, e eu mais que todos os que se confrangem como desesperados de não poderem exprimir um traço das magnificências da fantasia.

 

Madame Jaquelina Gassiot, avisada da convivência de Flávia com seu marido, numa de suas quintas da província, requereu divórcio, alegando o que usualmente alegam as esposas feridas nos seus direitos. O general requereu ao mesmo tempo a perfilhação de Flávia Gassiot e não contraveio ao libelo da esposa. Destarte, salvava a sua dignidade e da filha.

Flávia desejou apresentar-se a Madame Jaquelina e defender com humildade a honra de seu pai ultrajada e ridicularizada nos tribunais. Não lho consentiu o velho.

Dividido o casal por sentença de divórcio, Jaquelina viveu rodeada de parasitas e morreu, poucos anos depois, ainda rica; mas o general recusou lançar mão da herança de sua mulher.

A condessa de Touraille entrou na graça do pai, que lhe perdoou, lembrando-se que fora Carlota o anjo inspirado que lhe trouxera sua filha Flávia. Coincidiu a reconciliação com a morte do conde  num duelo e a sublevação dos credores em chusma contra a viúva.

A condessa voltou para seu pai.

Tinha vinte e oito anos. Era espectáculo de mover a prantos ver aquela senhora envelhecida por desgostos incessantes, chorando ainda e sempre de saudades do seu verdugo! Como suportara com paciência os efeitos  de sua rebeldia à vontade do pai, estava absolta no juízo divino. Acolheu-se ao seio da irmã que lhe queria com a ternura dos quinze anos.

Luísa do Canto morreu em 1844, legando a Carlota Gassiot a sua quinta de Calvados. Os seus últimos dez anos foram o Céu. Expirou nos braços da menina que, para assim dizer, lhe nascera nos dela.

Alfredo Gassiot ainda vive. Tem oitenta e três anos.

É o último general de Napoleão que a morte não ousa ferir entre duas vidas que o defendem.

A condessa e Flávia são duas senhoras idosas que muitas vezes ajoelham no cemitério do Père-la-Chaise diante de um moimento de mármore negro, cujo epitáfio diz:

O CAPITÃO ERNESTO GASSIOT,

NASCIDO EM 1808

MORTO NAS CAMPANHAS DA RESTAURAÇÃO DE PORTUGAL,

AOS 2 DE ABRIL DE 1834.

AQUI JAZ.

 

                                                                                      Camilo Castelo Branco

 

 

                      

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