Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NÃO MATEM AS FLORES 2 / J. M. Simmel
NÃO MATEM AS FLORES 2 / J. M. Simmel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NÃO MATEM AS FLORES

Livro II

 

— Este homem é um monstro, um demônio, um diabo! O senhor só o conhece como encantador, um brilhante interlo­cutor, mas eu lhe digo que é um Satanás, capaz de tudo, um sádico que não recua diante de nada. — Yvonne lutou para poder respirar. Puxava com dedos trêmulos a saia do costume. Estava inteiramente vestida em verde-escuro, a opulenta jóia de esmeralda combinando. Seu rosto estava branco, sombras escuras sob os olhos — dessa vez não era pintura, mas sinais de insônia, nervosismo e medo. Sim, ela tinha medo, minha bela mulher burra e perversa. Yvonne tinha muito medo! E a conhecia realmente bem, e já explicara tudo isso a meu amigo Balmoral em Viena.

— Morra! Morra! Morra! — gritara ela com ódio na mi­nha cara, antes de minha partida para Viena. Depois o avião explodira, e ninguém conseguira identificar meu cadáver. E o medo dominara o pequeno cérebro de Yvonne, com a cons­ciência suja, aquele medo. E ela começara a acreditar que eu ainda estava vivo e queria me vingar de toda a sua infâmia, toda a sua maldade. Sua imensa burrice apoiava aquela idéia, e a cada dia o medo aumentava.

Paul Perrier, sentado ao lado de Yvonne, estava embara­çado, quase um estado permanente seu desde o meu desapare­cimento. E tinha motivos para isso. Ela deixava qualquer um embaraçado. Soaram onze horas na Igreja Notre Dame, que ficava ali perto. Automaticamente o Secretário de Estado no Ministério da Justiça, Philippe Nardonne, sentado diante de Yvonne atrás de uma enorme escrivaninha, olhou o relógio de pulso. Nardonne era um homem bem-vestido, de cinqüenta anos. Tinha um rosto inteligente, de diplomata, agora com uma expressão de irritada perplexidade. Sentia-se derrotado. Fora convidado em nosso palácio por três vezes, uma relação puramente profissional o ligava a mim. Simpatizávamos um com o outro, e era só. Quando Yvonne lhe telefonara há al­guns dias dizendo-lhe que precisava de sua ajuda com urgên­cia num assunto muito premente, falara-lhe como a um velho amigo. Certamente a cortesia impedira Nardonne de recusar, e talvez tivesse marcado o encontro com uma sensação desagra­dável. A sensação desagradável fora totalmente fundada, ele podia ver isso agora. Em que assuntos estava se envolvendo? Yvonne e seu acompanhante tinham-se atrasado mais de meia hora. O motivo era uma cena que Yvonne fizera com o empre­gado, o bondoso, trabalhador e hábil Emile Rachet.

Ele morava na mansarda há dezoito anos, por cima da garagem, nos fundos do grande jardim. Através de um amigo — naquele tempo eu ainda tinha alguns — Emile me fora recomendado, e logo tínhamos gostado um do outro. Por esse motivo minha mulher Yvonne o detestara desde o começo, e desde o começo urdia intrigas contra o bondoso Emile, que era tão grandalhão e tinha mãos tão hábeis. Por isso ele gostava muito de mim, e a notícia de minha morte deve tê-lo golpeado duramente. Eu pensava nele muitas vezes.

Naquela manhã ele tinha lavado o Rolls-Royce e secara-o com couro macio, quando Yvonne e Perrier apareceram. Pri­meiro, ela ralhou com o pobre Emile por causa do carro.

— É isso que chama limpo? Está cego ou totalmente idiota? Não está vendo as manchas no pára-choque?

— Madame, é só uma mancha, que existe desde que temos este carro. Não se consegue tirar, a senhora sabe disso.

— Mas o interior do carro! O interior está um chiqueiro! Ah, que nojo, essa porcaria!

— Madame, limpei o chão e o resto com aspirador de pó. O interior está limpo. Por favor, não diga coisas que não são verdadeiras.

— Olhe, Emile, se você ficar malcriado vai para a rua na hora! E já devia ter ido há dezoito anos, logo depois de ter sido admitido.

— Sim — Emile sorriu. — Sei que a senhora teria gos­tado de me despedir. O pobre monsieur também sabia. Por isso fez um contrato comigo, firmando que só posso me des­pedir quando estiver muito doente ou velho para fazer meu serviço. A senhora sabe bem disso.

— E sei que lhe dei ordens de acabar com aquela sua nojenta horta, e semear grama imediatamente. Quantas vezes já lhe disse isto, Emile? Por que não faz isto? Meu marido não está mais aqui. Agora eu sou sua patroa. Tudo aqui agora me pertence, o jardim também. Estou lhe dando uma ordem, ouviu, Emile, ordem que até esta noite tenha acabado com a sua horta.

— Madame, o patrão me deu de presente aquele peda­cinho de terra.

— Mas não tem contrato sobre isso, tem?

— Nunca pensei que precisaria de um. O patrão, na sua bondade...

— Ora, pare de falar no seu bom patrão! Já basta que eu não possa despachar você e tenha de ver sua cara todos os dias... mas com esse pedaço de terra você não vai conseguir nada, diante de nenhum tribunal. E vou acusar você de deso­bediência, de roubo, se não tirar aquela nojeira lá de trás, e não semear grama. É a última vez que lhe digo isso! Se até a noite não tiver feito o que mandei, vou entregar o assunto ao meu advogado. E veremos se tenho mesmo de suportar você sob qualquer condição. Vamos, Paul!

Ela entrou no carro. Perrier sentou-se atrás do volante. Emile ergueu as mãos.

— Desculpe, madame, se falei meio alto, sinto muito. Mas faço o meu trabalho muito direito. Não pode se queixar de mim. Imploro-lhe, madame, deixe-me meu pedacinho de terra! Por favor, madame!

— Saia do meu caminho! Saia daí, ouviu?

— Deixe meu pedacinho de terra, madame... — Emile tinha lágrimas nos olhos agora.

— Esta noite terá sumido tudo! — gritou minha mulher. Sua voz era aguda e ordinária. — Vamos, Paul! Esse velho burro fede que dá nojo. Estou com náuseas!

Paul arrancou com o carro.

Emile seguiu-os com os olhos por longo tempo.

Já não estava mais chorando.

Agora seus olhos estavam duros e frios, e seus lábios se moviam em silêncio.

Por isso Yvonne e Perrier tinham chegado com meia hora de atraso ao encontro com Nardonne. Yvonne nem pensou em se desculpar. Nem sinal! Com a maior naturalidade senta­ra-se, apresentara Paul como seu melhor amigo, que a apoiava naquele período difícil. Assim fizera até ali em toda parte. Não dizia que o melhor amigo usava meus pijamas, dormia na minha cama. Nardonne beijara a mão dela. E ela tinha mais um de seus grandes papéis a desempenhar. Infelizmente não havia câmera a postos. Ou, por sorte. Yvonne realmente pare­cia muito abalada.

Mal se sentara, e já começou, as mãos esvoaçantes subli­nhando nervosamente o que dizia.

— Caro sr. Nardonne, venho procurá-lo porque nos co­nhecemos tão bem e há tanto tempo. — Era um exagero, e Nardonne fitou Yvonne com rosto imperturbável. Paul Perrier escorregava para lá e para cá na poltrona, e Nardonne viu que gigolôs também têm vida dura.

— Em que posso servi-la, madame? — pigarreou.

— Pode me ajudar a encontrar meu marido. — A língua de Yvonne deslizou sobre os dentes. Desta vez toda a sua postura afetada parecia forçada.

— Seu marido... desculpe, madame, seu marido morreu naquele terrível acidente aéreo...

— Ele não morreu!

— Como?

— Não morreu! — A voz de Yvonne ficou aguda. — Eu já senti isso em Viena, e agora, depois de todas essas semanas, tenho certeza: meu marido está vivo!

— Madame, por favor...

— Não, monsieur Nardonne, escute. Acredite em mim, sei o que estou dizendo. Não sou uma histérica, não sou uma boba que faz teatro e quer aparecer. Estou lhe dizendo com toda a certeza e grande aflição: meu marido está vivo.

Nardonne olhou Perrier, desamparado. Este deu de om­bros, como a dizer que não podia ajudar.

— Mas, madame, como pode estar vivo, se morreu no ataque terrorista?

— Ele não morreu.

— Madame, por favor.

— Estou dizendo: ele não morreu. — Yvonne escandia as sílabas.

Via-se a repulsa do Secretário de Estado quando ele disse:

— Mas ele foi... hum... oficialmente declarado morto, madame.

— O que significa isso? Não significa porcaria nenhuma. Paul, me dê fogo de uma vez! Talvez consiga ao menos uma vez ser educado.

Perrier apressou-se em acender um isqueiro de ouro e segurar debaixo do cigarro que Yvonne tinha entre os lábios. Ela fumava demais. Antes de dar um telefonema, antes de se maquilar, sempre tinha de acender um cigarro. Agora isso piorara ainda mais. Ela não conseguia mais conversar, ler, ouvir, sem estar fumando. E fumava na cama, e com isso não deixava Perrier dormir, pois ele só tinha coragem de pegar no sono depois que ela dormia firmemente e ele se certificar de que nenhum toco de cigarro aceso escorregaria dos lábios dela para os cobertores.

Nardonne ficou impaciente.

— Madame, permita uma pergunta.

— Pois não. — Ela soprou anéis de fumaça no ar.

— Seu marido tinha um seguro de vida em seu favor?

— Sim. — Ela bateu a cinza no valioso tapete. Perrier empurrou-lhe um cinzeiro, mas ela fingiu não notar.

— E o seguro pagou a quantia pela morte dele?

— Sim.

— Bem, madame, então a senhora tem a prova mais certa de que seu marido está morto, e não vive mais, como afirma por motivos que não entendo.

— Como assim?

— Não entendo por que veio me procurar.

— Vou lhe dizer logo. Como, tenho a prova decisiva?

— Porque o seguro pagou. — Podia-se ver que Nardonne estava muito arrependido de ter aceitado os convites para nosso palácio. — O seguro só paga porque seu marido está morto.

— Está vivo! Vivo!

— Então a senhora merece castigo por ter aceito a quan­tia.

— Mas como?

— Pois se está certa de que ele vive...

— Ah, não! Ele é esperto! Ele devolveu a soma! Foi por isso que pagaram. Estão todos mancomunados. E por isso naturalmente aceitei o dinheiro.

Nardonne olhou de novo para Perrier, desta vez com ar horrorizado. Perrier sofria. Deu de ombros, cansado, como se quisesse dizer: por que olha para mim, monsieur? Está ou­vindo essa ladainha pela primeira vez, eu a ouço há semanas, sem parar. E poderia acrescentar: O que é pior para mim, monsieur Nardonne, é que madame diz a verdade, o marido dela vive realmente, eu sei, vi o homem em Viena.

Paul Perrier estava em péssima situação. Embora usasse as minhas abotoaduras de brilhantes na sua camisa de smo­king... mesmo que dirigisse meu carro e gastasse generosa­mente o meu dinheiro.

— Mas pelo amor de Deus, cara sra. Duhamel, isso real­mente está indo longe demais! Seu marido devolvendo toda a quantia do seguro?

— Isso mesmo — disse Yvonne, e fez esvoaçarem as mãos brancas com as unhas longuíssimas, pintadas de ver­melho, e pronunciou em tom queixoso as seguintes palavras: — Aquele homem é um monstro, um demônio, um diabo! O senhor só o conhece como pessoa encantadora, um brilhante interlocutor, mas lhe digo, ele é um Satanás disposto a qual­quer coisa, um sádico que não recua diante de nada!

— Madame, mas por favor! Onde está ele agora?

— Num esconderijo.

— Mas que esconderijo?

— Não sei. Ele é tão astuto, sempre foi astuto. Inteli­gente não, isso não. Nem esperto. Eu é que sou inteligente e esperta. Tenho uma sensação, um instinto, do que é certo. Mas não sou astuta; Charles sempre foi. Sabia assustar pes­soas, atormentar pessoas indefesas, monsieur. Veja o meu es­tado! Sou realmente uma pobre mulher indefesa, agora siste­maticamente levada à loucura por aquele demônio. É isso que ele quer, que eu enlouqueça de medo, e quase conseguiu isso. Estou tremendo ao menor ruído, ao som de qualquer passo estranho, não consigo mais dormir de medo.

— Medo de quê?

— Bem, de ser assassinada, é claro — disse minha mu­lher Yvonne.

 

Você deve ter-se perguntado, meu bem, como sei de tudo isso, como posso lhe descrever cenas que não testemunhei. Bem, descreverei mais dessas cenas. A explicação, sabe, é simples: muito, muito mais tarde encontrei-me outra vez com Paul Perrier, e soube de tudo por ele. E o que não soube por ele me foi contado mais tarde por outro homem, a quem co­nheci quando reencontrei Paul Perrier. Ele sabia de outras coisas sobre as quais também falarei a você. Agora entende por que posso lhe descrever o comportamento de minha mu­lher, sem jamais a ter reencontrado até hoje.

E assim prossigo o meu relato.

 

— Seu marido quer matá-la? — O Secretário Nardonne teve de pigarrear energicamente. A toda hora encarava Paul Perrier, cujos olhos assumiam a expressão de um bezerro doente.

— Foi o que eu disse o tempo todo! Esse é o motivo desse diabólico jogo de esconde-esconde! Ele espreita, no escuro, e me faz tremer, sabe Deus por quanto tempo ainda. E depois vai aparecer de repente, sinistro, de um momento para o ou­tro, e me matar. — Atirou novamente a cinza do cigarro sobre o tapete. E pôs a mão no seio esquerdo. — Meu pobre co­ração, estive no médico e ele diz que não estou doente, mas naturalmente meu marido também está mancomunado com ele. Todos, todos estão. Não, Paul, você não. Só você não.

— E por que monsieur Perrier não está mancomunado com ele? — perguntou Nardonne ironicamente.

— Porque meu marido quer matar monsieur Perrier tam­bém — disse ela com dignidade. — A nós dois. Este é o seu plano. Entendi isso claramente.

— Mas por que quereria matar os dois?

— Vingança — disse Yvonne.

— Como disse?

— Ele quer nos matar por vingança, monsieur Nardonne, sabe, Paul... Monsieur Perrier e eu nos amamos. O senhor é o primeiro a saber disso, até agora ninguém percebeu nada. Depois que meu marido desapareceu, Paul foi de uma dedi­cação comovente para comigo. Pela primeira vez vi que ho­mem ele realmente é. E me confessou que sempre me amara...

As mãos esvoaçaram, o cigarro caiu no tapete, Perrier o ergueu e o esmagou no cinzeiro. Yvonne já pusera outro na boca, e ele apressou-se em lhe dar fogo. Pobre sujeito, esse Paul Perrier, mas com todo o dinheiro que Yvonne tinha agora!

— Porque no meu abandono encontrei um homem a quem posso amar na sua pureza, e que retribui o meu amor de maneira tão inigualável, essa besta humana quer nos aterrori­zar, atormentar até sangrarmos... e no fim, vai nos matar. Ele sempre foi assim, monsieur Nardonne. Estou certa, quando criança ele arrancava as asas das pobres moscas! (Não! lia-se no rosto de Nardonne, se eu não fosse tão bem-educado, botaria essa criatura no olho da rua, e ela só ia parar de voar na Notre Dame de Paris.)

— E é por isso que estou aqui, monsieur.

Nardonne engoliu em seco.

— Aqui? Por que, madame? Não entendo. O que posso eu fazer pela senhora?

— Pode encontrar esse patife antes que aconteça uma desgraça.

— Eu?

— O senhor pessoalmente não, claro. Mas a polícia, os melhores agentes criminais, a uma ordem sua. Se o senhor iniciar uma busca ao meu marido, se ele for procurado e caçado...

— Madame!

— ...então talvez ainda se possa evitar o pior...

— Madame, eu lhe peço!

— ...e serei eternamente grata ao senhor, eu, uma pobre mulher fraca, desamparada diante desse demônio e suas ma­quinações diabólicas. — Yvonne apontou o dedo para Nar­donne. — O senhor tem esse homem fabuloso que sempre é empregado quando se trata de casos bem difíceis e perigosos, o comissário Rolland, todo mundo ouviu falar dele.

— Está pensando sério que o comissário Rolland deveria se ocupar do seu caso?

— Naturalmente! O comissário Rolland! O melhor para este assunto! — exclamou Yvonne.

Nardonne estava farto.

— Madame — disse em voz muito alta —, o comissário Rolland não pode ser posto à sua disposição. Lamento muito. Também não posso ajudá-la de modo algum. Não sou o ho­mem certo. Não está no meu terreno, realmente não.

— Claro que está no seu terreno! Ouça, monsieur Nar­donne, acaso também está mancomunado com aquele demô­nio?

— Madame, por favor.

— Yvonne, realmente... — intrometeu-se Perrier. — Isso é impossível.

— E você, cale a boca! Peço desculpas, monsieur Nardonne, está vendo a que ponto ele me levou. Não sei mais o que digo. Se pudesse adivinhar o medo que sinto, se tivesse que sofrer as minhas noites, uma só delas... Bem, não pode me ajudar, mas um conselho, isso pode me dar, monsieur Nardonne! Suplico-lhe... no meu medo mortal, estou lhe im­plorando...

Com a voz de um velho médico de família, Nardonne disse:

— Dirija-se à opinião pública, madame, jornais, tele­visão, os meios de comunicação de massa...

— Ah, boa idéia! Os meios de comunicação de massa! Paul vai me ajudar. É muito mais hábil do que eu nessas coisas. E afinal, também se trata da vida dele...

Perrier, que tinha vontade de assassinar Nardonne pelo conselho, sabia o que o esperava. Agora teria de convocar o pessoal da televisão, dos jornais, das rádios. Yvonne não daria descanso. Nunca dava descanso.

Perrier sentiu-se extraordinariamente mal.

Naquela noite Emile Rachet aplainara o seu pedacinho de terra nos fundos do parque, e semeara grama.

 

— “Nos velhos tempos em que ainda adiantava ter de­sejos, vivia um rei cujas filhas eram todas belas, mas a mais nova era tão bela que mesmo o sol, que já vira muita coisa, se admirava sempre que brilhava em seu semblante!” — lia a menina sentada numa cadeira enfeitada com papel dourado. Seus braços eram envoltos por punhos de couro com agarra-dores de aço. Com eles podia-se fazer muitas coisas que se fazem quando se têm mãos. Marili não tinha mãos. Mas podia segurar o livro de contos de fadas com aqueles agarradores, e também virar as páginas. Tinha longos cabelos louros e olhos azuis, e parecia uma boneca Kathe-Kruse. Diante dela havia um microfone, e sua voz chegava também ao andar de cima. Trinta e uma crianças e alguns adultos escutavam suas palavras. Era 8 de agosto de 1981, uma hora da tarde, e com a lenda “O Rei Sapo ou Henrique de Ferro”, Marili inaugurava a LIVRARIA OSTERKAMP, PROPRIETÁRIA ANDRÉIA ROSNER, totalmente remodelada: era sábado, e na segunda seguinte começariam as aulas em Hamburgo. Eu pedira para Marili ler o conto de fadas preferido da minha infância. Ah, Strasburgo! Onde estavam minha mãe e o bom Heinz, meu segundo pai? Mortos há muito tempo. Mas eu, louco por li­vros, sempre tão ávido de conhecer a Alemanha, onde estava eu? Em Hamburgo, e numa livraria! E a mulher a quem eu amava era livreira. Que singular, que maravilhoso...

Termináramos a reforma a tempo! As trinta e uma crian­ças estavam sentadas no subsolo: grandes e pequenas, gordas e magras, turcas, iugoslavas e espanholas, católicas, evangé­licas e maometanas, crianças deficientes do lar vizinho. Fi­lhos de pobres e filhos de ricos, dos que votavam no SPD ou no CDU ou no FDP, e também havia um bonito menininho judeu.

A maior parte dos adultos estava sentada na larga escada de concreto enfeitada de tapetes vermelhos que substituía a velha escada em caracol. Essa cômoda escada tinha de um lado uma rampa por onde podiam subir cadeiras de rodas. Do outro lado, junto à balaustrada, havia uma espécie de floreira de concreto, com vasos de dálias anãs amarelas e de um ver­melho luminoso, ásteres brancos e rosas, roxas violetas dos Alpes e begônias de várias cores. A idéia dessa escada florida fora de Andréia.

Tudo no subsolo era agradável e colorido, e novo em folha: as prateleiras, os livros, o chão forrado de um tapete macio, as caixas de bugigangas com brinquedos e livros de colorir, e por toda parte um forte cheiro de cola e madeira fresca, um cheiro bom. O hamster, o coelho e o papagaio da Biblioteca Pública também tinham vindo, como todas as crianças. Havia novas, mas a maioria já se conhecia. Os adultos que não tinham encontrado lugar na escada estavam sentados ou em pé na loja em cima. Por toda parte estava agradavelmente fresco. Tínhamos instalado um aparelho de ar condicionado. Todos agora estavam calados, para poderem entender bem Marili.

— “...e quando ela estava entediada, pegava uma bola de ouro, jogava-a no ar e apanhava-a outra vez: era o seu brinquedo predileto...”

Eu estava sentado no meio da escada ao lado do sr. Rosen, que tinha uma grande loja de tapetes ali perto, e de sua mulher. O pequeno Félix Rosen, com seus belos olhos tristes, estava parado ao lado de Marili, tão excitado quanto Ali, que sabia ler tão bem e estava parado do outro lado de Marili. Aos pés dela estavam uma menina alemã e uma espanhola. Raças, nacionalidades e religiões totalmente diversas estavam ali reu­nidas. Era o espírito de Andréia, que dominara a todos, crian­ças e adultos. Pensei que se os grandes desta terra tivessem só por um dia o espírito de Andréia, haveria paz e alegria por toda parte. Patty estava sentada diante de mim e, ao lado dela, Walter Hernin. Este devia estar pensando coisas pare­cidas com as minhas, pois apoiava a cabeça numa das mãos, e de vez em quando passava a outra sobre os olhos, que já tinham visto tanta coisa mas ainda conservavam o dom da admiração.

Lá em cima, no topo da escada, sentava-se Andréia, e ao redor dela os diretores das três escolas próximas, a diretora do lar de crianças deficientes, uma médica e o presidente do dis­trito. Entre eles, o velho sr. Osterkamp, com roupas solenes e assoando-se a toda hora no lenço.

— “...Ela olhou em volta para ver de onde vinha aquela voz, então viu um sapo que metia fora d’água a sua gorda e feia cabeça. ‘Ah, é você, seu velho chapinhador!’, disse a prin­cesa...”

Tudo transcorrera conforme nossos planos. Andréia real­mente ganhara a aposta. Osterkamp vendera a loja por cento e cinqüenta mil marcos. A batalha durara quatro dias, e nesse tempo fui ao Hansa-Hypotheken und Wechselbank abrir uma conta. Depois telefonei a meu amigo Jean Balmoral em Paris, e dei-lhe o nome do banco, o número da conta e o endereço. Ele disse que logo voaria a Zurique. Quinze dias depois che­garam de Buenos Aires para a minha conta em Hamburgo pouco mais de dois milhões e meio de francos suíços em mar­cos alemães.

Fui a um dentista e mandei fazer um pivô, e também a um cardiologista que Langenau recomendara. Chamava-se Dr. Herbert Salzer. Dei-lhe o nome do remédio para tratamento prolongado e o outro para ataques agudos. Os dois por sorte tinham o mesmo nome comercial na Alemanha. O Dr. Salzer examinou-me muito detidamente e disse:

— O senhor sofreu um severo ataque recentemente.

— Sim — confirmei.

— Sabe que terá de tomar aquele remédio de tratamento prolongado até o fim da vida.

Eu disse que naturalmente sabia disso, e sempre tomava uma cápsula de manhã, outra de noite. Era um remédio de efeito retardado, que durava cerca de doze horas. O Dr. Salzer me aconselhou a evitar esforços e excitações, e visitá-lo a cada quatro semanas para controle, e eu lhe pedi:

— Por favor, não diga à minha futura mulher o estado do meu coração. — Depois falei-lhe de Andréia.

— Tenho dever de guardar sigilo — disse ele. — Mas não acha melhor esclarecer tudo à moça?

— Não, doutor.

— Quero dizer, se o senhor tiver um ataque, ela não se assustará tanto.

— Ela vai se assustar de qualquer jeito, mas não quero dizer nada, doutor, pois ela vai se preocupar. Portanto, por favor, quando ela lhe perguntar, faça algum rodeio.

Ele ficou preocupado porque eu poderia me portar juvenilmente demais com uma parceira tão mais jovem que eu. Bem, eu realmente fazia isso, e como o tempo urgia, também trabalhava ajudando na remodelação da livraria; mas não tive ataque algum. Naturalmente Andréia telefonou para o médico e perguntou o que havia com meu coração; por fim ficou sossegada.

— “... Ah, sim”, disse ela, “eu te prometo qualquer coisa se me trouxeres a bola de volta.” Mas pensava: “Conversa fiada desse sapo bobo! Está sentado na água com seus irmãos, coaxando, e não pode ser companheiro de uma pessoa...” — Todos prestavam atenção enquanto Marili lia; só o hamster e o coelhinho faziam ruídos em suas gaiolas. A reforma da livraria seguira um cronograma exato, e os homens tiveram de trabalhar em turnos, o que não saíra barato, mas Andréia não queria de modo algum perder os negócios com os livros esco­lares, e nesse ano as férias em Hamburgo terminariam dia 8 de agosto. Uma firma especializada forneceu móveis pré-fabricados para a instalação da loja, mas Andréia quis aproveitar o máximo possível os móveis do tempo de Osterkamp. Conser­tados e pintados, colaboravam muito para a atmosfera acon­chegante da livraria.

Quando ainda se martelava, furava e construía na loja, Langenau, Andréia ou eu vínhamos a toda hora, para tudo ser feito como queríamos. Certa noite, quando estávamos parados na escada, na sujeira e poeira da construção, Andréia suspi­rou, e eu disse:

— Que foi? Não se sente bem?

— Infinitamente, meu querido — disse ela..

— Infinitamente mal?

— Infinitamente infeliz.

— Mas por quê?

— Um dia você vai pensar: teria sido um amor tão gran­de eu não tivesse tido bastante dinheiro e Andréia não tivesse comprado a loja?

— Já me pergunto isso todos os dias.

— Falo sério — disse ela. — E eu teria amado você do mesmo jeito sem dinheiro algum! Quero dizer: eu nem sabia do seu dinheiro quando me apaixonei por você em Viena, no Schafberg. Embora naturalmente seja maravilhoso você ter dinheiro. E vinte e cinco mil marcos meus estão metidos no negócio, não devo esquecer isso. Pensando assim, não me sinto tão exploradora.

— E então vamos sempre pensar assim — disse eu.

— Você é maravilhoso — disse ela. — Sabe como é ma­ravilhoso?

— “...No dia em que ela se sentara à mesa com o rei e toda a Corte, e comia do seu pratinho de ouro, apareceu, plitsch, platsch, alguma coisa subindo as escadas de mármore, e chegando em cima bateu à porta e chamou: ‘Princesa mais nova, abra a porta!’”

— Todas essas pessoazinhas — disse o sr. Rosen baixi­nho para mim, olhando as muitas crianças a seus pés. — O que ainda espera por elas neste mundo! — E sua mulher sussurrou:

— Uma sorte ninguém se atrever a começar a guerra.

E o sr. Rosen disse:

— Deus as proteja de tudo!

Eu fizera em lugar de Andréia boa parte do trabalho escrito que precedera a inauguração; ela me ditara as muitas cartas em seu apartamento. Sempre usava os grandes óculos redondos, e ficávamos ambos muito excitados, e às vezes tí­nhamos de interromper o trabalho. Mas depois recuperávamos o tempo. Com anúncios no Hamburger Abendblatt, chamamos a atenção do público para o fato de Andréia ter assumido a livraria. Depois houve uma verdadeira contagem regressiva: dez dias para a reabertura, nove, oito...

Além de Langenau, Osterkamp e o jovem aprendiz a quem chamavam Apre, cujo nome era Robert Stark, havia mais uma livreira que agora iria parar porque tinha uma boa aposentadoria. Por fim havia um contador, que iria embora depois de meio ano, porque Andréia dizia:

— O conselheiro de impostos vai receber toda a contabi­lidade, porque ele pode trabalhar muito mais depressa com o Datev, serviço de computação, sabe, Gatão.

— “... ‘Filha do rei, abra a porta! Sabes o que me disseste ontem junto da fresca água do poço?’ chamava o pobre sa­po...”

Também tínhamos distribuído bilhetes manuscritos na redondeza, que começavam: “Queridas crianças, queridos adul­tos!”, e depois pedíamos uma visita, ainda que fosse só para olhar e não comprar, pois de qualquer modo ficaríamos muito contentes.

Os imensos pacotes com livros novos que Andréia e Langenau tinham encomendado chegaram em breve, e primeiro tiveram de ser guardados num depósito, pois ainda se traba­lhava em solda e construção na loja. No caminho para esse depósito Patty disse certa vez, abruptamente:

— Tio Peter, sabe que meu avô gosta muito de você?.

Eu disse que também gostava muito dele, e Patty disse:

— Ele se preocupa tanto porque vou mancar toda a mi­nha vida, você também sabe disso?

Muito embaraçado, eu disse que sabia.

— É verdade, eu vou mancar a vida toda — disse Patty. — Mas você podia dizer ao vovô que isso na minha perna vai ficar bem bom? Ele vai acreditar em você, e não ficará tão preocupado. Olhe, ele está tão velho, certamente vou viver mais do que ele, então ele não vai nem ver como continua a minha vida, você entende?

— Sim, entendo, Patty — respondi. E prometi consolar seu avô e encorajá-lo, porque ele morreria antes dela.

— “...mas quando caiu ao solo ele não era mais um feio sapo, e sim um príncipe com belos olhos amáveis...”

Andréia conseguira que a televisão nos concedesse um pequeno espaço no noticiário noturno, e os jornais escreveram histórias sobre a nova e original livraria da cidade. Com isso conseguimos realmente muita propaganda. Muitas pessoas fo­ram boas e nos ajudaram, e isso me espantou muito, porque eu nem conhecia as pessoas dessa maneira, e Andréia me disse:

— Mas elas são assim, Gatão! A gente só precisa ser também bondoso e solícito com elas.

Também colegas do ramo que conheciam o sonho de An­dréia enviaram felicitações pela reabertura da Livraria Osterkamp. Muitos provavelmente debochavam às escondidas sobre o paraíso das crianças no subsolo, e a ligação original mas tão aconchegante entre coisas novas e antigas, mas tínhamos cer­teza da benevolência dos livreiros de Hamburgo.

E assim chegou o sábado, 8 de agosto, a festiva inaugu­ração da livraria, depois de termos festejado com os operários dias antes. O sr. Osterkamp fez um pequeno discurso, An­dréia respondeu, depois falou ainda brevemente um antigo diretor da Biblioteca Pública, que possibilitara a Andréia ter­minar mais cedo o seu contrato de trabalho. Viera tanta gente que parte precisava ficar do lado de fora, na calçada, mas tudo era transmitido para eles por alto-falante, e também a leitura do “O Príncipe Sapo ou Henrique de Ferro”.

“— ...então ele se virou e disse: ‘Henrique, a carruagem vai se partir!’ ‘Não, senhor, não é a carruagem, é uma fita no meu coração que sofria muitas dores quando ainda eras um pequeno sapo no poço!’ Ouviu-se mais vezes o ruído no cami­nho, e o filho do Rei sempre pensava que a carruagem estava se partindo, mas eram apenas as tiras que se soltavam do coração do fiel Henrique, porque seu senhor agora estava salvo e feliz.”

Marili terminara a leitura da história, ergueu o rosto ra­diante, pois todos aplaudiram e gritavam bravo, e Marili em sua cadeira enfeitada certamente estava tão feliz quanto o fiel Henrique.

Depois as crianças receberam bolos e limonada, e cada uma ganhou um livro de presente. Os adultos tomaram cer­veja, vinho e sucos de frutas, e comeram sanduíches que An­dréia, o Apre e eu tínhamos preparado. Todos falavam ao mesmo tempo, desejando-nos felicidades.

Depois que os primeiros convidados tinham partido, aqueles que esperavam lá fora puderam entrar e visitar tudo. E os adultos começaram a comprar livros, para si e as crian­ças. E embrulhamos os livros em um papel novo, feito espe­cialmente para nós. Quando a nova caixa registradora co­meçou a tilintar, nós livreiros sentimos uma emoção solene. Depois Andréia anunciou o programa restante:

— Todas as crianças podem participar do grande con­curso de desenho, que se chama: “crianças desenham a sua livraria”. Não importa se vão usar lápis de cor ou aquarela. Tragam os desenhos na quarta-feira; no sábado haverá distri­buição de prêmios. Um autor de livros infantis, uma jardi­neira e a médica do lar das Crianças Deficientes vão avaliar os desenhos. Primeiro prêmio: o vencedor pode escolher três li­vros. Segundo prêmio: o vencedor pode escolher dois livros. Terceiro prêmio: o vencedor pode escolher um livro. Os dese­nhos mais bonitos serão expostos aqui na livraria.

Que excitação entre as crianças! Muitas quiseram co­meçar a desenhar imediatamente, ali mesmo, mas reconhe­ceram não ser possível. E na terça-feira, disse Andréia, uma conhecida atriz de televisão viria brincar com elas, e na noite de quarta, um famoso escritor leria trechos de seu novo livro... para adultos.

Já estava escurecendo quando as crianças se foram, e Patty pediu para acompanhar a pequena Marili ao Lar, e sussurrou no meu ouvido:

— Tenho tanta pena dela. Agora vejo como tive sorte com o meu pé!

O sr. Rosen e eu ficamos seguindo as duas com o olhar, e ele disse:

— A gente devia fotografar isso, mas as pessoas diriam, para que precisamos disso? O que precisamos é de mais armas!

Marili disse alto por cima do ombro:

— Foi o dia mais feliz da minha vida! — e Walter Hernin, um pouquinho embriagado, dizia repetidamente:

— Sr. Kent, para onde irei com a minha Patty quando vierem os foguetes? — Ele não conseguia mais pensar em outra coisa.

Por fim, muito tarde, quando todos tinham ido e Langenau e eu ainda trabalhávamos arrumando tudo, levando um monte de lixo para o tonel no pátio, Andréia calculava o caixa e rejubilou-se:

— Qual crise, qual nada! Sabem de uma coisa? Numa tarde tivemos mais movimento do que o velho Osterkamp no último mês. E agora é que a coisa vai estourar de verdade!

E depois, para que tudo estourasse de verdade, tomamos ainda um drinque no Cat’s Corner, agora tão confortável, e apesar do cansaço, ficamos sentados, fumando e fazendo pla­nos para o futuro. E bati na parede para que se concreti­zassem.

— Deus vai nos ajudar — disse Langenau, e exatamente nesse momento, em todas aquelas semanas, lembrei-me do ve­lho tocador de citara, enquanto tomávamos vinho novo em Viena, que lera minha mão dizendo que via um homem muito religioso que representava grande perigo para mim. E pensei que ler a sorte nas mãos não passava de tolice.

Senti-me tão bem no Cat’s Corner que nem queria mais ir para casa; convenci-os a tomarem mais um uísque comigo, e depois mais um, e recostei-me bem na poltrona, copo na mão, pés na mesa, depois de pedir permissão. Ah, era simplesmente maravilhoso, e eu disse isso, e Andréia me pediu:

— Gatão, repita isso! — Ela estava de pilequinho.

— Dizer o quê?

— É simplesmente maravilhoso.

— É simplesmente maravilhoso.

— Mais uma vez! Por favor, Gatão!

— Mas por que, Esquilinha?

— Você diz “maravilhoso” de um jeito tão doce. Não é verdade, sr. Langenau, não acha isso também?

E Langenau, fumando um grande cachimbo pendurado no canto da boca, concordou, e então repeti:

— É simplesmente maravilhoso.

Andréia bateu palmas, e me abraçou tão forte que quase derrubou a cadeira, beijou-me fortemente na boca e aca­riciou meu cabelo. Éramos muito felizes no Cat’s Corner.

De repente o sr. Langenau ficou muito quieto e quando perguntamos o que acontecera, ele disse que gostaria de nos dar um presente para comemorar aquele dia.

— Um presente, que bom! — exclamou Andréia.

Ele abriu um envelope com dois cartões.

— Coleciono provérbios e os anoto — disse ele. — Já reuni uma porção. Esses dois cartões são para vocês. — Então deu um para Andréia e outro para mim. Havia alguma coisa escrita em tinta azul.

— Ah, que bonito! — disse Andréia —, escute, Gatão! — Ela colocou os óculos e leu:

— “Deus, dá-me a imperturbabilidade para aceitar coi­sas que não posso mudar; dá-me coragem para mudar coisas que posso mudar; dá-me sabedoria para distinguir umas coisas das outras.” — Ela beijou Langenau dizendo “Obriga­da!”, e Langenau ficou vermelho. Em meu cartão estava es­crito: “Ajuda-te que Deus te ajudará!”, e fiquei um pouco decepcionado porque a frase de Andréia me agradava mais. Langenau deve ter notado porque disse:

— Esse é meu provérbio favorito, sr. Kent. O primeiro passo a gente mesmo tem de dar, todo o resto se ajusta depois como num mosaico.

— Vamos sempre ajudar um ao outro — disse Andréia —, e Deus vai nos ajudar a todos.

Cinco minutos depois ela e Langenau já estavam envol­vidos em um ardente debate sobre se deviam colocar os livros de bolso ao lado das prateleiras ou diante delas, e aproveitei a ocasião para me servir de mais uma dose de uísque, só com gelo, bebi todo, e desejei todo o bem a todas as pessoas do mundo. As horas no Cat’s Corner foram para mim as mais belas daquele longo e belo dia.

Quando Andréia e eu finalmente fomos para a cama eram duas e meia e, graças a Deus, era domingo. Andréia acariciou meu braço e disse:

— Gatão, tenho mais uma coisa para lhe dizer: estou no segundo mês de gravidez.

Primeiro fiquei mudo, apenas olhando para ela, que con­tinuou:

— Estive no Dr. Kahler, meu ginecologista, sabe, e ele confirmou: segundo mês.

— Minha Esquilinha — disse eu. — Talvez não haja guerra.

— Não aqui, pelo menos não aqui — disse ela, apertou-se bem contra mim e colocou um braço sobre meu ombro.

— Pensamento muito egoísta — disse eu.

— Sim, Gatão, eu sei. Lamento ter dito isso.

— Não precisa lamentar, pensei a mesma coisa.

— Veja, outras pessoas também ganham seus bebês. Na Alemanha, até mais agora do que antes.

— Não!

— Sim, li isso.

— Você sabe que jornais mentem.

— Não li num jornal, mas na sala de espera do Dr. Kahler. Na Revista Médica Alemã. Os alemães estão tendo mais filhos do que jamais tiveram. Tire esse exemplo.

— Sim, preciso. Sou tão covarde.

— E acha que não sou? — perguntei. — Só me controlo mais. “Covarde, pegue a mão de outro covarde!”

— Quem disse isso?

— Não sei, decerto foi um covarde.

— Um como nós — disse ela.

— Quero que seja uma menina — disse ela. — Se for menina não poderá ser soldado. Ora, que bobagem! Na pró­xima guerra será totalmente indiferente ser soldado ou não. Meu Deus, Gato, não devíamos mandar tirar essa criança enquanto dá? O que acha?

— Acho que devemos ter um filho, só depois seremos completos, em três. E teremos sorte, e não haverá guerra.

— Nem você mesmo acredita nisso.

— Eu só queria nos dar coragem — disse eu.

— Ah, meu Gatão querido!

Peguei a mão dela e beijei-lhe todos os dedos, depois a palma da mão, e ela disse:

— Mais sete meses.

— Sim — disse eu, pensando como seriam aqueles sete meses. A coisa podia estourar em qualquer parte, não se sabia onde, isso era o pior. Talvez estivesse correto o que diziam os jornais, que o temor da guerra de dez a vinte anos atrás fora maior do que o de hoje, mas naquele tempo era temor, não medo, temor real de um conflito crescente, da grande guerra do Vietnam, das conseqüências da crise de Cuba. Esse te­mor concreto ainda existia hoje... diante do Afeganistão e Po­lônia. Mas além disso havia agora o medo impalpável, a sen­sação de desamparo e opressão, e a idéia de que num mundo cheio de miséria só há sobra de armamentos, que bastam para num abrir e fechar de olhos transformar a Terra num planeta morto. Mas ainda não bastava: continuavam a armar-se, o medo devia servir de equilíbrio para a paz, o medo crescente devia nos salvar. Medo como garantia de segurança.

— Não devemos esquecer uma coisa — disse eu.

— O quê?

— Nos casar. Pessoas que ganham bebês se casam... ou já são casadas.

— Nem todas. Muitas também se amam bastante sem isso.

— Bem, mas agora que você é mulher de negócios, acho que devíamos nos casar, Esquilinha.

— Acha mesmo?

— Sim.

— Já foi casado alguma vez?

— Não — menti. Eu nem pensara nisso. Estava na imi­nência de me tornar bígamo. — Por quê? — perguntei.

— Porque você não conhece todas as correrias. Já experi­mentei com uma amiga. De um cartório para outro até que todos os documentos estejam prontos. E as testemunhas, e a igreja...

— Hum.

— Eu disse igreja, Gatão.

— Ouvi. E daí?

— Bom, um cara como você... e igreja...

— Não tenho nada contra a igreja; nada. Há muitas bem bonitas.

— Escute, você é um pagão!

— Você vai morrer de rir: sou batizado.

— Você é...

— Batizado.

— Não faça piadas! Com isso não se brinca. Rir da pobre Esquilinha.

— Sou batizado de verdade.

— Você é... mas como?

— E se engolir isso, sou católico. Tecnicamente sou ca­tólico.

— Mas que coisa — disse ela. — Então não tem real­mente nada contra um casamento católico?

— Claro que não — disse eu. Yvonne e eu também nos tínhamos casado na igreja.

— Você diz isso só para me agradar. Pigarreou tão esqui­sito, Gatão. Está dizendo isso por minha causa. Não, casar no civil me basta.

— Não basta — disse eu. — Gato velho conhece mulhe­res jovens. Elas todas querem se casar na igreja. Seu sonho. Toda de branco. Confesse, Esquilinha, você também tem esse sonho. Vejo através de você, como vidro.

— Bom, meu Gatinho, se você realmente não se impor­ta... claro que uma igreja bonita é bem diferente de um car­tório velho e cinzento... especialmente da primeira vez.

— O que significa isso? Acaso você pretende...

— O que está pensando, meu querido? Foi só um jeito de falar. Lapsus linguae. Que me diz disso? Você terá uma mu­lher de cultura universal parcial. Um lapsus linguae é um movimento falso da língua.

— Nada contra — disse eu.

— Fique quieto! Trata-se da hora mais solene de minha vida.

— Toda de branco.

— Pare com essa bobagem de toda de branco! Seus olhos vão saltar da cara quando vir meu vestido. Sei exatamente como será, vi um vestido desses na Vogue, e guardei a revista. Conheço uma costureira que fará um igualzinho.

— E eu, o que vou vestir?

— Seu terno azul-escuro — disse ela. — Naturalmente numa igreja também há lugar para mais gente do que num cartório. Quero dizer... nossos clientes também serão convi­dados, se quiserem. E minha mãe vai ficar tão feliz!

— Está vendo?

— E você tem de conhecer meus pais, Gatão! Santo Deus, a coisa começa a se fechar em círculos. Você se abor­rece muito? São pessoas muito doces, Gato. Você vai se en­tender bem com eles, especialmente meu pai. É só no casa­mento, depois você não precisa mais...

— Ora, pare com isso, Esquilinha. Alegro-me muito por conhecer seus pais.

— Você é fabuloso, Gatão, simplesmente fabuloso. Sabe, se queremos nos casar por eu ser uma mulher de negócios, devíamos fazer isso o mais depressa possível. Pois quando eu tiver uma barriga e parecer um balão com perninhas, terei medo de rir no altar.

— Vamos casar bem depressa — disse eu.

— Enquanto ninguém notar nada, está bem? Ah, queri­do, querido, você também está tão contente com o bebê?

— Sim.

— E pelo amor de Deus agora não se sinta preso. Seria horrível para mim saber que você agora se sente preso. Pense: não poderemos mais nos divorciar mesmo que você quisesse outra mulher. Poderíamos só viver juntos, muita gente faz isso. E eu não poria nenhum obstáculo. Nunca, embora natu­ralmente me doesse muito se você me abandonasse.

— Esquilinha, o que aconteceu com você? Não fale mais essas bobagens.

— Sim, é bobagem mesmo. Bobagem. Com igreja ou car­tório ou tudo, você sempre poderá me deixar.

— Pare com isso já! Você ficou maluca? E se você me deixar um dia?

— Eu?

— Por outro homem.

— Ah, querido, nunca te abandonarei! Nunca na vida. Tenho muitos defeitos, mas não sou infiel. E amo você tanto que daria para três vidas. Se não ficar saturado de mim. Mas não vai ficar nunca, não é?

Abracei Andréia com muita firmeza e ela riu:

— O que foi, Gatão?

— Não sei, de repente estou tão excitado. Venha, vamos brincar!

— Espere um pouco — disse ela, saltou da cama e saiu correndo. Logo depois, voltou. — Estou aqui — disse ela. — Agrado-lhe assim, Barão?

— Agrada-me incrivelmente — disse eu, e me debrucei sobre ela. Andréia colocara seus grandes óculos.

 

Nessa noite sonhei com um programa de televisão com crianças polonesas que tínhamos visto alguns dias atrás.

Uma disse chorando para os pais:

— Ninguém quer brincar comigo. As outras crianças per­guntaram quem tem os pais no Solidariedade, e eu disse que vocês não estão, porque são do Partido. E agora ninguém quer brincar comigo.

Outra criança também chorava e dizia à mãe:

— O Marek disse que seu pai não o deixa brincar comigo porque vocês são do Solidariedade. Gente como vocês ainda vai ver, disse ele. Mamãe, por que entraram nesse Solidarie­dade se vai lhes acontecer uma coisa horrível por causa disso?

E uma menina de oito anos perguntou a um homem de televisão:

— É verdade que os tanques vão vir quando estourar a guerra? Muitos, muitos tanques?

— Não vai haver guerra — disse o homem da televisão.

— Vai, sim. As crianças dizem que vai haver com cer­teza. E que então todas as placas com nomes de ruas terão de ser desmontadas.

— Por quê?

— Porque se tirarmos as placas não poderão levar as pessoas embora, não as vão encontrar.

— Encontrar quem?

— Não sei, mas as crianças disseram — respondeu a menininha.

Enquanto eu sonhava ouvi a voz de Andréia e acordei.

— O que foi? — perguntou ela preocupada.

— Por quê?

— Você está muito inquieto no sono, virando-se para lá e para cá, mas não entendi o que dizia.

— Esquilinha — disse eu —, Esquilinha, é você de ver­dade?

— Sim, Gatão. Não está me sentindo? Querido, você teve um sonho ruim?

— Sim — disse eu. — Com as crianças polonesas da televisão.

— Pobre do meu Gato.

— Pobre das crianças.

— É uma coisa tão perversa — disse ela. — Pensamos na Polônia, e temos medo e compaixão. E no Chile e em El Sal­vador ninguém pensa, e ninguém tem medo, e ninguém sente compaixão, embora lá aconteçam coisas horríveis, nessas dita­duras.

— É porque a Polônia é perto, e El Salvador e Chile ficam tão longe — disse eu. — Mas que mundo é este, em que se tem compaixão e medo segundo a geografia? Diga, Esqui­linha, que mundo maldito é este?

— Venha — disse ela. — Me pegue nos braços, me aper­te bem. Amo você tanto, sabe. Agora durma quietinho.

E dormi bem profunda e calmamente, e não sonhei mais com as crianças polonesas.

 

Na primeira semana, na segunda-feira, os negócios foram muito fracos, mas Andréia, Langenau e Robert Stark, o Apre, me disseram que segunda é sempre um dia fraco, tinham razão. A partir da terça-feira mal conseguíamos atender a todos os pedidos. Era realmente um milagre. Todos os dias o movimento aumentava. O auge foi o dia em que a atriz brin­cou com as crianças.

A atriz era maravilhosa. Todas as crianças gostaram dela; por fim as pequenas a abraçaram e beijaram. Então acon­teceu. Ali queria a todo custo dar um presente à mulher. Estava sentado na escada ao lado das flores, e teve uma idéia. Arrancou um grande áster cor-de-rosa e uma begônia branca, e uma dália anã vermelha. Correu com as flores para a atriz... que se chamava Kramer — e estendeu-lhe seu presente com os olhos iluminados.

A srta. Kramer pegou as flores e disse: “Obrigada”, e acariciou o rosto de Ali. No mesmo instante todas as crianças se precipitaram para os vasos de flores ao longo da escada e arrancaram flores, talos e ramos, para dá-los à atriz, que de repente se viu cercada de crianças. Foi tudo tão rápido que não conseguimos evitar. A reação foi imediata: se há pouco ainda tinham gritado, rido e se rejubilado em voz alta, de repente estavam muito quietas e constrangidas, ao verem o que ti­nham feito. Naturalmente a srta. Kramer não conseguia se­gurar todas as flores. Muitas caíram no chão, outras ficaram nas mãos das crianças. Seus rostos há pouco tão felizes mos­travam grande susto, e algumas pequenas começaram a cho­rar. A bela escadaria de flores destruída, potes virados inúteis, terra espalhada, tudo sujo e devastado.

Andréia apareceu no meio das crianças e disse:

— Vocês não deviam ter feito isso. Entendo que queriam dar uma alegria à srta. Kramer, mas agora vejam só a con­fusão! A srta. Kramer nem pode carregar tantas flores de uma vez, e elas vão murchar e morrer. Não se deve quebrar e arrancar flores, são seres vivos... como vocês.

As criancinhas soluçavam, as maiores estavam paradas de ombros caídos, e não se encaravam umas às outras. Aquela tarde maravilhosa tivera um fim triste. O Apre e o sr. Langenau limparam a escada e o chão do subsolo, e ajudei. Var­remos a terra, jogamos numa grande caixa os cacos dos vasos quebrados e os restos de flores, e algumas crianças mais cora­josas nos ajudaram.

A atriz disse:

— Vou guardar esse ramo de begônias como lembrança. Sei que tiveram uma boa intenção, e agradeço muito. Mas por favor, nunca mais façam uma coisa dessas.

E quando a srta. Kramer teve de ir embora, mais flores e ramos foram parar na caixa de papelão. Um motorista veio buscá-la, à noite ela ainda tinha compromissos no estúdio de televisão. Levamos para o pátio a caixa cheia de terra, cacos e flores, e a esvaziamos no tonel de lixo. A escada de flores, devastada, estava horrível, e quando os pais vieram apanhar os filhos, também ficaram tristes. Patty disse:

— Por favor, não fiquem zangados conosco. Estragamos as flores porque não pensamos no que estávamos fazendo.

E os adultos foram embora quietos, com seus filhos ca­lados. Por quatro dias a floreira de cimento na escada ficou sem uma só planta, apenas com terra revolta, e nossos peque­nos visitantes evitavam olhar para lá, muito deprimidos.

No quinto dia chegou um menino, chamado Eugênio, e trouxe um gerânio num vaso.

— Minha mãe me deu — disse ele. — Da nossa sacada. Em troca eu a ajudei a pendurar roupa no varal. Posso colocar na escada?

Claro que podia.

Tiramos a terra da floreira de concreto num degrau e colocamos ali o vaso. Todas as crianças pareciam comovidas; ao menos havia uma flor ali. Depois três crianças trouxeram três vasos com outras flores. Uma menininha trocara uma boneca por um cacto, outra encontrara uma violeta dos Alpes intacta junto da lata de lixo de sua casa, e um menino trouxe uma rosa que ele mesmo plantou, mas não quis dizer de onde. Andréia falou com ele:

— Você tem de dizer, Willi, de verdade.

Willi estava calado, apoiando-se ora num pé ora no outro.

— Ora, vamos, diga!

Willi engoliu com dificuldade.

— Tá bom. Afanei. Do cemitério. Um canteiro enorme, ninguém viu nada.

— Mas você sabe que não se deve afanar coisas — disse Andréia.

— Claro — disse Willi. — Mas não tenho dinheiro, e tem de ter flores na escada outra vez, não é?

As crianças e Andréia debateram longamente se a rosa roubada devia ficar ou não, e a decisão foi positiva, primeiro porque Willi admitira tudo honestamente, segundo porque ha­via tantas rosas no canteiro do cemitério que ninguém notaria nada, e terceiro porque Félix Rosen disse que, falaria com a administração do cemitério e pagaria a rosa com seu dinheiro da mesada.

Nos dias seguintes as crianças ficaram trazendo potes com várias flores. Tinham ajudado a limpar loja e casas de vizinhos para ganhar dinheiro, ou cuidaram de bebês quando seus pais saíam, outras haviam lavado carros.

Agora a floreira estava novamente cheia. Não combina­vam, mas isso tornava tudo particularmente colorido e alegre. Achamos aquela grande confusão mais bonita do que o arran­jo anterior da floricultura, bem planejado em cores cambiantes.

Andréia me disse baixinho:

— Estou muito contente, Gatão.

— Por que, Esquilinha?

— Porque as flores voltaram, mas especialmente porque não fomos nós quem as trouxemos, mas as crianças.

As crianças estavam cochichando entre si, depois pediram uma tampa de papelão grande, e com ela voltaram a um canto do subsolo. Meia hora depois subiram as escadas e Patty e Ali nos mostraram a tampa quadrada, onde estava escrito a lápis de cor, em grandes letras gorduchas:

POR FAVOR, NÃO MATEM AS FLORES!

— Vamos botar o cartaz aqui no começo da escada — disse Patty. — E deve ficar sempre aqui.

— Nunca mais vamos arrancar nada — disse uma criança.

— O cartaz é para os adultos e as outras crianças. E por causa do que a tia Andréia disse.

— O que foi que eu disse?

— Que as flores são seres vivos, como nós.

 

Na quinta-feira dois rapazes trouxeram uma criança em cadeira de rodas, do Lar das Crianças Deficientes. Era um pequeno espástico, que segurava uma longa lista datilografada em suas mãos agitadas. Fora escolhido para comprar livros para as outras crianças. Os acompanhantes traziam o dinhei­ro; eram dois rapazes que tinham se recusado a prestar serviço militar e cumpriam no lar o serviço substituto. A maioria das crianças dissera que livros queria, outros pediam que se esco­lhesse alguma coisa para elas, e só seu nome estava na lista. Langenau e eu carregamos para o Lar os dois imensos pacotes.

A vista das crianças deficientes nos deixou constrangidos no começo, mas uma médica disse que precisávamos nos do­minar e encarar os pequenos com toda a naturalidade. As crianças também reagiram com naturalidade, e quando a mé­dica nos explicou que todas aquelas crianças tinham grande necessidade de carinho, acariciamos as maiores e pegamos as menores no colo. Langenau e eu ficamos quase uma hora no Lar e prometemos voltar.

Naquela noite Andréia estava morta de cansaço, e quando a levei para casa no Volkswagen, adormeceu com a cabeça no meu ombro. Nem acordou mais direito em casa, e despi-a e pus na cama. Meia hora depois tocou o telefone. Era Emanuel Eisenbeiss. Eu lhe telefonara ainda do Atlantic, quando me mudara para a casa de Andréia, e tínhamos combinado que ele nunca me escreveria, mas apenas telefonaria quando hou­vesse algo de importante a comunicar. Para o caso de eu não estar livre para falar na hora, deveria telefonar-lhe mais tarde.

Eisenbeiss disse:

— Já leu os jornais de hoje?

— Não, ainda não tive tempo. Por quê?

— Pode conseguir jornais de hoje, de Viena e Paris?

— Sim — disse eu. — Na estação há uma banca de jornais internacionais.

— Então vá até lá e compre alguns, também grandes jornais alemães. Vai encontrar uma coisa neles. Não sei se é importante e se virá mais coisa, mas assim que souber mais novidades com amigos de Paris, telefonarei novamente. E... Peter?

— Sim.

— Kratchowil morreu.

— O que aconteceu? — perguntei assustado.

— Derrame. Na rua. Nem acordou mais.

De repente me senti muito infeliz.

— Pobre sujeito. Dava a impressão de ser tão saudável. — E lembrei-me de uma coisa. — Ele queria sair de férias com a mulher em setembro.

— Sim, com a sua Marenka.

— Porque ela estava melhor.

— Isso é o pior — disse Eisenbeiss. — Ela está realmente melhor. Quase não anda mais confusa, e entende perfeita­mente que seu marido morreu... e que ela está inteiramente só.

— Horrível.

— Sim, é muito sério. Agora coloquei-a outra vez no hospital, tive de mandar levá-la. Desta vez, na psiquiatria. Depressões graves.

— E como vai continuar isso?

— Em casa ela não tem quem cuide dela. Portanto, um asilo. Mas encontrar um que a aceite! A maior parte dos asilos não aceita casos de enfermagem. E os que aceitam não podem ser levados em conta, são simplesmente indescritíveis. — Ouvi-o suspirar. — Bem, vou encontrar alguma coisa. Kratchowil era meu amigo. Teve tão pouca sorte na vida. Preciso cuidar da sua Marenka. Tchau, Peter.

— Tchau, Emanuel — disse eu, e pensei que sujeito fa­buloso ele era, esse Eisenbeiss. Pensei em Kratchowil, que amara tanto sua mulher e a protegera de todo o mal, e que agora não existia mais.

Alguns minutos depois olhei Andréia no quarto. Dormia profundamente. Escrevi num envelope:

AMIGO TELEFONOU DA ESTAÇÃO, ESTÁ EM HAMBURGO SÓ UMA HORA. FUI ENCONTRÁ-LO E VOLTO LOGO. AMOR, GATO.

Coloquei o envelope obliquamente na mesa de cabeceira, para que Andréia o visse logo ao acordar. Depois saí do apar­tamento sem fazer barulho e parti com o Volkswagen enfer­rujado.

A banca internacional de jornais ainda estava aberta e comprei os mais importantes jornais alemães e parisienses e de Viena, todos os que consegui, e desci a larga escada até os trilhos, sentei-me num banco ao lado da gare 13, e comecei a folheá-los. Duas mulheres sentavam-se de costas para mim, conversando. Logo encontrei um anúncio nos jornais. Era muito chamativo, e mostrava um retrato do meu rosto antigo, com barba, cabelo longo e sem óculos. Encontrei o primeiro anúncio no Figaro, depois no Le Monde e no France Soir. Lá estava em gordas letras:

ESTE É MAÎTRE CHARLES DUHAMEL

E debaixo, em tipos menores:

“Quem conhece este homem? Quem o viu?

Quem sabe onde ele vive?

Quem pode dar algum indício?

Qualquer informação sobre maître Charles Duhamel será generosamente recompensada. Escreva para...”

Nos jornais alemães e austríacos o texto estava em ale­mão. Examinei minuciosamente os anúncios, depois fiquei longo tempo sentado, imóvel, pensando em Kratchowil, que morrera, e na sua pobre mulher, que agora era uma carga para todos, e ouvi o que as duas mulheres diziam atrás de mim.

— Sei que o mundo é uma merda — disse uma delas. — Mas não quero que esfreguem isso no meu pão todo dia. Tam­bém quero rir. Ainda há coisas bonitas.

— Você vai ver isso agora na Itália — disse a outra. — Aí vai entender por que sempre volto para lá. As pessoas não vivem num mar de rosas, mas vai ver como ainda sabem viver, e ser alegres, apesar de tudo. E há muitas pessoas velhas felizes. Aqui, a maioria com quarenta já está envelhecida.

— Ainda nem partimos e já tenho medo de quando tiver­mos de voltar daqui a quatro semanas — disse a primeira. — Eu gostaria de viver numa casa sem portas nem janelas, mas dentro um belo jardim com flores e árvores, só para mim. E só você deveria entrar, Herta. Preciso de um pedaço de espe­rança.

Levantei-me e encarei as duas. Eram bem-vestidas, na casa dos trinta.

— Isso com a casa não dá, eu sei. Temos de trabalhar e viver com os outros — disse a primeira outra vez. — Mas quem é que ainda convive com outros neste país? Isto aqui é um país de forças de trabalho, não de seres humanos.

— Itália, Irene! — disse a outra. — Vai ver como vai gostar da Itália. E vai voltar para lá comigo sempre. Por sorte podemos nos dar esse luxo. Quando tiver estado na Itália, vai agüentar aqui mais um pouco.

Joguei os jornais num cesto de lixo vazio, subi a larga escada e tratei de ir para casa.

Andréia ainda estava deitada como eu a deixara, dor­mindo. Tirei o envelope, tomei banho e vesti um pijama, mas agora estava muito acordado. Deitei-me ao lado de Andréia e refleti no fato de Yvonne andar à minha procura; estava por­tanto convencida de que eu estava vivo. Pensei no que isso significava para mim. Mas não cheguei a nenhuma conclusão, pois como iria saber o que Yvonne fazia ou deixava de fazer?

Não dormi naquela noite.

 

— Ele está vivo — disse Yvonne. — Aquele cachorro maldito está vivo!

— Mas não temos uma só prova aceitável, querida — disse Paul Perrier. — As cartas que chegaram depois do anún­cio eram só bobagem ou maluquice. Esse detetive particular constatou isso.

Cerca de catorze dias depois de aparecer o anúncio, eles estavam sentados no famoso restaurante Tour D’Argent, a 28 de agosto, comendo a especialidade da casa: Pato à l’Orange. Cada pato servido ali tinha um número. Eram patos magní­ficos. Naturalmente dois não conseguem comer um inteiro, parte voltava para a cozinha, mas Yvonne queria pato à l’Orange.

Antes do jantar tinham ido ao teatro. Yvonne precisava se distrair mais uma vez, ou ia ficar louca em casa. Paul Perrier vestira seu smoking novo e minhas abotoaduras de brilhantes. Yvonne usava um vestido de noite justíssimo, azul, com todas as suas jóias de safira, brincos, colar, bracelete e anel. Tinham um camarote, e o espetáculo fora um grande sucesso para Yvonne. Estavam apresentando Mãe Coragem, e quando Yvonne leu no programa que a peça era de Bertolt Brecht, começou imediatamente a portar-se com vulgaridade.

— Por que apresentam em Paris uma peça desse comu­nista alemão?

— Yvonne, por favor, é uma peça famosa no mundo todo.

— De um comunista alemão. Naturalmente, pura propa­ganda.

— Não, Yvonne, é uma peça muito boa.

As pessoas do camarote ao lado começaram a rir dela. Sibilos furiosos soaram de outros camarotes.

— Silêncio! — pediram. — Fiquem quietos.

Aí sim, Yvonne se animou.

— Que há? Acaso não posso mais dar minha opinião? Todos aqui são comunistas de salão, é?

Na sua insegurança e medo, Yvonne ficava cada vez mais desavergonhada.

— Cale a boca ou vá embora! — gritou alguém.

— Cuide das suas porcarias; paguei por este camarote.

A inquietação aumentou até que a atriz que representava Mãe Coragem foi até a beira do palco, ergueu os olhos para o camarote e disse bem alto:

— Senhoras e senhores, só continuaremos o espetáculo quando essa senhora tiver se acalmado.

Isso deixou Yvonne constrangida, e ela apenas repetiu:

— Num país livre certamente se pode expressar a opi­nião individual. Por favor, continue representando.

Naturalmente continuaram, e no intervalo todos da pla­téia e dos outros camarotes encaravam Yvonne, muitas mu­lheres com binóculos de ópera, e comentaram sobre ela. Ela viu tudo, e saboreou o fato, enquanto Paul Perrier só queria estar morto. Apenas o pensamento de que ainda havia muito a ordenhar na fortuna de Yvonne o fazia continuar sentado ao lado dela. Pois não lhe prometera um Lamborghini, o carro mais caro? Yvonne ficou calada depois do intervalo, mas quando a cortina baixou disse alto, antes de irromperem os aplausos:

— Famosa no mundo inteiro? Ora, me dá vontade de rir!

Depois foram ao Tour d’Argent. Estavam sentados lá, e Yvonne disse:

— Tem rolha neste vinho. — Estavam tomando vinho tinto com o pato, um Saint-Emilion Chateau Belair. — Seu idiota — disse ela a Perrier —, você naturalmente não notou nada quando experimentou o vinho. Ou notou? Você não tem boca para nada. Chame o garçom!

Paul Perrier ergueu a mão, infeliz, e fez um sinal ao encarregado dos vinhos, para que se aproximasse.

— Monsieur? — disse ele.

— Experimente o vinho — disse Yvonne. — Tem rolha.

O encarregado dos vinhos experimentou e disse educada­mente:

— Esse vinho não tem rolha, madame. Está excelente.

— Você se atreve a me contradizer? — Yvonne começou a falar alto. Pessoas de outras mesas viraram-se para olhar. — Mas é uma malcriação! Quero falar com o maître d’hotel!

O encarregado dos vinhos chamou o chefe dos garçons, e este também teve de experimentar o vinho e constatar que estava excelente.

— Acha que estou pagando por um vinho tinto ruim? — A voz de Yvonne era um guincho.

— Naturalmente traremos uma nova garrafa. Se madame diz que tem rolha, então tem rolha. — O maître fez uma mesura.

— E pode levar o pato também — disse Yvonne. — Duro como couro. Seu restaurante está cada vez pior. Não ouviu o que eu disse? Tire o meu prato!

— Muito bem, madame.

— Vou contar aos meus amigos que comida servem aqui, e o senhor sabe que tenho muitos amigos.

O maître fez outra mesura.

— Lamento infinitamente que madame não esteja satis­feita. Talvez a casa possa tomar a liberdade de oferecer outra coisa... — Ele estendeu-lhe um grande cardápio.

— Não quero nem olhar — disse ela. — Perdi o apetite. E seus frios também não estavam frescos. Espero não ser ví­tima de um envenenamento. Traga-me uma vodca grande. Mas do legítimo Moskovskaya, não quero Kusnow de modo algum, essa cachaça ordinária feita na França, que dá dor de cabeça.

— Muito bem, madame. Mais alguma coisa? Sobreme­sa? Café?

— À noite, para que eu não possa dormir? Está maluco? Afinal, o que há com este restaurante?

— Está tudo bem com este restaurante — disse o maître.

— Cigarros — disse Yvonne. — Tem Lord Extra?

— Infelizmente não, madame. É uma marca alemã que ninguém pede.

— Achei que este era um restaurante de fama internacio­nal. Fama internacional e não tem Lord Extra?

— Temos trinta e três marcas diferentes de cigarros, ma­dame, quem sabe deseja escolher? Mandarei vir imediatamen­te a moça dos cigarros.

— Eu disse que quero Lord Extra. Mande alguém com­prar. Vai conseguir em qualquer outro restaurante.

— Muito bem, madame.

Entrementes, o encarregado dos vinhos aparecera com nova garrafa de vinho tinto numa cestinha de vime. Derramou um pouco em novo cálice para experimentar.

— Madame, por favor...

— Está maluco? Não bebo vinho tinto antes de vodca!

— Madame encomendou vodca enquanto o senhor estava ausente, não podia saber. Um grande Moskovskaya.

— Kusnow não, de modo algum.

Os dois garçons desapareceram.

— Quando Charles ainda vinha comigo eles não se per­mitiam isso, esses sem-vergonhas. Mas uma mulher sozinha...

— Você não está sozinha — disse Paul Perrier, que tentava comer um pedacinho do pato, que estava delicioso. — Estou com você.

— Mas a você eles nem ligam! Você também não abre a boca, não sabe reclamar, tem medo de reclamar. Eu tenho de fazer isso, eu, uma mulher. Isso dá uma impressão muito refinada, muito mesmo!

— Ora, pare com isso...

— Uma vez na vida eu quis sair, porque não agüento mais ficar em casa, e tudo acaba deste jeito! Muito obrigada! Você estragou a minha noite!

— Mas como, eu?

— Ora, cale a boca! Agora estou com medo outra vez. Duas horas não tive medo, e agora tudo voltou. Esse demônio frio, ele vai me levar à loucura! — Ela dissera isso tão alto que mais uma vez muitos clientes se viraram. Alguns falaram sobre ela, outros sorriram. Estava novamente usando jóias de­mais, e excesso de maquilagem.

— Os anúncios não tiveram sucesso porque ele não está mais vivo mesmo, chérie — disse Perrier, falando de boca cheia porque reconhecera que de outro modo não conseguiria mais comer. Um pedacinho de pato caiu na calça do seu smoking, e Yvonne notou.

— Você não sabe nem comer — disse ela. — Isso tem de ser limpo imediatamente com água quente. Garçom!

— Ora, por favor, isso nem se vê!

— E quem foi que mandou fazer o smoking para você? O jeito que cuida dos seus presentes... obrigada! Garçom, traga água quente! O cavalheiro tem uma mancha na calça... do pato!

— Muito bem, madame. Melhor ainda é K2R, um líqui­do muito bom.

— Eu disse água quente! Não preciso de seus conselhos! — O vodca duplo chegou. — Tem certeza de que não é Kusnow? — Ela bebeu. — Podia estar mais gelado. Vamos, traga a água quente! — E continuou no mesmo hausto: — Não termos conseguido pistas não significa nada. Quem sabe qual a aparência de Charles agora. Talvez esteja mudado. Talvez tenha cortado o cabelo e raspado a barba. Está sentado por aí espreitando. Quer que a velha tenha medo, medo, medo... até não saber mais o que faz de tanto medo... aquele demô­nio, aquele diabo! Não engula a comida desse jeito, a gente passa vergonha! — Um garçom trouxe água quente e um guardanapo, e começou a esfregar a diminuta mancha na calça de Perrier, que teve de se levantar, porque o garçom, ajoelhado diante dele, não alcançava a mancha. Agora, o res­taurante inteiro se divertia.

— Novos-ricos! — disse Yvonne em voz alta. — Que clientela tem este restaurante! Incrível! Garçom, o que foi, está dormindo? Não viu que acabei minha vodca? Sirva o vinho! Não tanto, meu Deus! — Ela experimentou. — Muito bem. Por que agora está bom?

— Madame está satisfeita?

Yvonne não percebeu a dura ironia das palavras e ba­lançou a cabeça, benevolente.

— Sirva o cavalheiro também! O que foi? Ora, a mancha não saiu? Eu logo disse, água quente. O senhor com seu K2R! Onde estão meus cigarros?

— Mandamos um rapaz comprar, mais vai demorar um pouco.

— Então chame-o de volta, se demorar não quero fumar mais.

— Não podemos mais chamá-lo, madame.

— Problema seu. — E em voz baixa continuou falando com Perrier: — Você vai voltar às redações dos jornais e dizer que façam entrevistas comigo. Uma entrevista dessas tem mais efeito do que um anúncio, e a gente pode fazer a coisa mais sensacional.

— Desculpe, chérie, mas isso não faz sentido.

— Como sabe disso?

— Eles praticamente me botaram na rua da primeira vez... você sabe disso. Disseram que não estão interessados numa história dessas.

Muito mais tarde Paul Perrier me contou que fora real­mente assim. O pessoal da imprensa detestava Yvonne. Logo depois de sua visita ao Secretário de Estado Nardonne, ela dera uma entrevista ao France Soir dizendo o que dissera a Nardonne. E na sua agressividade insultuosa, fora tão desaver­gonhada que os dois jornalistas que a tinham procurado sem saber foram embora sem se despedir. A entrevista não fora publicada. Desde então, boicotavam-na o tempo todo. O pes­soal de televisão e rádio apoiou seus colegas, que tinham sido atacados por Yvonne. Os anúncios pagos naturalmente foram aceitos pelos jornais, mas enquanto ela se portasse daquele jeito nenhuma entrevista com ela apareceria mais, isso era certo. Perrier contava diariamente com algum boicote dos gar­çons, pois também ouvia muita coisa deles, e pensava energicamente em todos os caros presentes que recebia quando Yvonne estava de bom humor.

E de bom humor estava sempre que ele dormira com ela. E quando podia dizer ao dono de uma loja que era uma por­caria de loja, também ficava de bom humor. Naturalmente Yvonne não esperou pelos cigarros Lord Extra, mas pediu a conta. Pagou, enquanto explicava em voz alta a Perrier que não se envergonhasse como um idiota, pois todo mundo agora sabia que ela o sustentava. Não deu gorjeta. Os garçons a acompanharam até a saída e despediram-se com uma inaba­lável cortesia. Os automóveis estacionavam obliquamente diante da calçada com a roda dianteira sobre a calçada. Ha­via pouco espaço e Yvonne andava um pouco atrás de Perrier, que queria chegar até o automóvel. As grandes árvores atrapa­lhavam a iluminação, e de repente Yvonne sentiu alguém tocar em seu ombro. Voltou-se assustada.

Eu estava parado atrás dela.

Grande, levemente curvado para diante, com cabelo lon­go e barba, inclinava-me para ela e disse com voz disfarçada, rouca, que ela logo reconheceu como a minha.

— Vou te pegar, queridinha, vou te pegar!

Yvonne deu um grito agudo e caiu no chão. Paul Perrier virou-se, horrorizado, e correu até ela, que desmaiara, ten­tando fazê-la voltar a si.

— Yvonne, o que foi? Yvonne!

Chegaram pessoas correndo e olharam para a mulher des­maiada.

De mim não se via nem rastro. Eu desaparecera na es­curidão.

 

Naturalmente não fora eu, mas Yvonne ficou tão nervosa quando despertou que Paul Perrier correu depressa de volta ao Tour D’Argent e pediu que chamassem a polícia. Um carro com luz vermelha e sirene levou os dois à delegacia mais pró­xima, e lá deram um calmante a Yvonne, que tremia tanto que não podia ficar sentada nem em pé.

Os policiais sabiam que eu estivera no avião acidentado e fora declarado morto. Mas Yvonne exigiu que se fizesse regis­tro da ocorrência, e se colocasse ali sua queixa de que eu estava vivo e tocara seu ombro naquela noite de 28 de agosto, por volta das 23h30min, diante do restaurante Tour D’Argent, e dissera: “Vou te pegar, queridinha, vou te pegar!” E des­creveu minuciosamente minha aparência, e exigiu que se es­crevesse no registro da ocorrência: “Madame Duhamel pede à polícia que comece imediatamente e com todos os meios a procura de seu marido Charles Duhamel, ainda vivo.”

O delegado que datilografava piscou disfarçadamente para Paul Perrier e fez um gesto mostrando que considerava Yvonne maluca, mas Perrier sentia-se muito desconfortável, como me disse mais tarde, pois não podia imaginar que Yvonne já estivesse tendo alucinações, nem que eu me disfar­çasse — ele sabia da minha aparência atual —, assumindo minha aparência antiga só para assustar Yvonne. Ficou bas­tante perturbado. A polícia deu um sonífero a Yvonne, e no dia seguinte vieram seu médico e seu psiquiatra. Conversaram entre si e decidiram que Yvonne passaria duas semanas numa clínica fina e discreta em Neuilly, para uma sonoterapia. Com isso conseguiu-se muito pouca coisa, pois não podiam fazer Yvonne dormir até desistir daquela idéia fixa. Paul Perrier, a quem as duas semanas tinham feito um grande bem, logo teve de começar a ouvir as mesmas histórias.

E teria suportado tudo se aquele misterioso homem pare­cido comigo não tivesse voltado.

 

— Acho que temos de ajudar as crianças da Polônia — disse Andréia. Era uma tarde em fim de agosto, no grande subsolo colorido no qual agora estavam expostos os três belos desenhos do concurso. — Perguntem aos seus pais o que está acontecendo na Polônia — continuou ela. — As coisas lá estão ruins, especialmente para as crianças, que quase não têm co­mida nem roupas quentes, agora que vêm o outono e o in­verno, e as criancinhas bem pequenas não têm leite bastante para beber. A televisão mostrou um programa sobre as crian­ças polonesas. Elas desenharam quadros como vocês, mas bem diferentes, tristes. Num deles, uma criança desenhou muitas pessoas diante de uma padaria, olhando um cartaz preso em cima da padaria, onde dizia: NÃO HÁ PÃO NEM HAVERÁ.

Não só as crianças mas também eu, Langenau, o Apre e mais alguns clientes da livraria, escutávamos Andréia, que disse:

— Elas não têm pão! Vocês têm tudo, bombons e pirulitos, todos os bolos que quiserem, chocolate até enjoar. Acho que devíamos mandar coisas de comer para as crianças polo­nesas, e também doces, mas especialmente farinha e arroz, feijão e ervilhas, e coisas para vestir, e também alguns brin­quedos. — Andréia voltou-se: — O que acha, sr. Langenau?

— É uma boa idéia. Todos traremos alimentos e roupas quentes à livraria, depois podemos mandar pacotes para as crianças da Polônia.

— Elas também não têm remédios — disse Andréia. — Vou perguntar se podemos mandar remédios. Médicos podiam escolhê-los, e nós os compraríamos.

— E manteiga! — exclamou Félix Rosen.

— E banha! — exclamou seu amigo Ali.

— E sapatos! — gritou a pequena Marili, que não tinha mãos. — Vou dizer à tia Olga, e nós lá no Lar também vamos juntar coisas.

— E café!

— E chocolate em pó!

— E chá!

— E biscoitos!

Agora todas gritavam ao mesmo tempo, muito excitadas, e Andréia pegou minha mão e colocou os óculos, embora não tivesse de ler nada.

Nos dias seguintes muitos alimentos e roupas quentes se empilharam na livraria. Telefonei à Cruz Vermelha e manda­ram alguns homens buscá-los; disseram que toda a Alemanha agora juntava coisas para a Polônia, os pacotes seriam apa­nhados com grandes caminhões, e representantes da Cruz Ver­melha e das igrejas cuidariam para que fossem parar nas mãos certas.

Um menininho chamado Tommy apareceu dizendo:

— Meu pai manda dizer bom-dia, e que só vai mandar comida para a Polônia quando eles devolverem tudo o que tiraram dos pais dele.

Ficamos constrangidos, e as crianças muito nervosas, querendo saber o que a Polônia tirara dos avós do menino, e Tommy respondeu:

— Não sei. Perguntei ao meu pai e ele disse que sou muito pequeno para saber. Mas me mandou dizer que dele as crianças polonesas não vão ganhar coisa alguma.

A doação mais generosa veio do pai do pequeno Félix Rosen. Ele nos trouxe as coisas no seu carro e disse:

— Meus avós foram mortos a pauladas pelos poloneses num pogrom. Mas que culpa têm essas crianças de hoje?

Durante duas semanas fizemos pacotes diariamente, tantas coisas tinham chegado, e todas as noites um carro da Cruz Vermelha vinha apanhar tudo, ou não teríamos mais lugar na livraria. Muitas vezes era difícil movimentar-se entre as prate­leiras, pois muitas pessoas que compravam livros e sabiam o que pretendíamos voltavam trazendo alimentos, suéteres ou cobertores quentes. E do Lar de Crianças Deficientes che­garam crianças de cadeira de rodas para verem o que seus pais tinham doado.

No Lar havia uma criança chamada Hermínia, com o ape­lido de Hermi, que sofria de freqüentes ataques epilépticos, e por isso usava sempre um capacete protetor. De todas as crianças, era ela quem tinha a letra mais bonita; por isso escreveu a carta que acompanharia as doações, e as outras a invejavam ardentemente por isso.

“Queridas crianças polonesas”, escreveu Hermi, “somos crianças de Hamburgo que queremos ajudar vocês, porque ouvimos contar como as coisas aí estão ruins. Desejamos que logo tudo fique bem outra vez. Meu nome é Hermi, e vou assinar primeiro, depois vão assinar todas as outras crianças que lhes estão mandando coisas. Adeus! Hermi.” E trinta e três crianças escreveram seus nomes em várias folhas de papel. A lista de assinaturas era muito maior do que a carta. Tommy também pôde assinar, as crianças assim decidiram.

A carta foi com nossos pacotes e muitos outros para a sua longa viagem, e para as crianças poderem ver os grandes cami­nhões, eles passaram diante do Lar e da nossa livraria. Os motoristas acenaram e as crianças também, até os caminhões sumirem na esquina.

Patty estava parada encostada em mim, Hernin ao seu lado, quando ela disse:

— Tio Peter, nós aqui estamos tão bem e as crianças polonesas tão mal. Por quê?

Não pude explicar isso a Patty, nem Hernin pôde.

— Tio Peter, se as coisas na Polônia estão tão ruins, por que simplesmente não vai todo mundo para o estrangeiro? — perguntou Patty.

E mais uma vez não obteve resposta.

 

O telefonema foi em 16 de setembro, um dia de tempes­tade. Eu estava com o Apre Robert Stark na parte de cima da loja, e o sr. Langenau estava lá embaixo com as crianças. O telefone ficava no Cat’s Corner. Lá fora o vento zunia e asso­biava. Depois de desligar, Andréia me chamou e disse que havia falado com sua mãe.

— Péssimas notícias, Gato. Meu pai. Foi levado agora mesmo para o hospital. Está na UTI.

— UTI?

— Sim. No começo não sabiam o que havia com ele, mas depois o examinaram e viram que está com a pressão vinte e cinco; não sei o que é isso, mas deve ser altíssima. E disseram que meu pai tem diabetes, o que não se sabia.

— Que horror.

— Minha mãe está totalmente confusa, você pode imagi­nar. Tenho de ir para Frankfurt o mais depressa possível, até dizerem que meu pai está melhorando. Ele não vai morrer, vai?

— Claro que não, Esquilinha — disse eu. Era quase uma pergunta. — Langenau, Stark e eu daremos um jeito aqui na livraria.

— Mas talvez eu tenha de ficar mais tempo em Frank­furt — disse ela. — Uma semana? Dez dias? Quem sabe? Não posso deixar mamãe sozinha enquanto houver perigo. Você não tem pais?

— Não — disse eu, e desta vez não estava mentindo.

— Você já me disse. Estou tão confusa...

Senti-me muito infeliz com a idéia de viver sem Andréia. Especialmente as noites seriam tristes, pensei, sozinho em nossa cama. Fui com ela para casa, ajudei-a a fazer a mala e telefonei para a Lufthansa. Havia lugar ainda no avião das 19h05min. Levei Andréia ao aeroporto, mas chegamos cedo e nos sentamos no bar. Quando o barman veio, lembrei-me de que Andréia não devia beber álcool agora que estava grávida, e pedi duas laranjadas. Enquanto ficamos ali sentados espe­rando, Andréia chorou um pouco, temendo pela vida do pai.

— Vamos telefonar todos os dias, à noite; aí estarei sem­pre em casa de minha mãe — disse ela. — De dia deverei estar no hospital. Se acontecer alguma coisa urgente, telefonarei para a livraria. — Ela me dera o telefone da mãe em Frank­furt, e também do hospital onde seu pai estava internado. Ele tinha sessenta e seis anos, portanto só um mais que Hernin.

— Não faça essa cara, Gato — disse Andréia. — Assim meu coração fica mais pesado ainda.

— Não estou com cara nenhuma — disse eu. — É só... você sabe...

— Claro que sei — disse ela. — Acha que não sinto a mesma coisa? Mas, com meu pai tão doente...

— Espero que ele melhore bem depressa — disse eu.

— Sim, também espero. Bom Deus, protege-o, amém.

A tempestade estava muito mais forte do que à tarde. Seus gemidos nas chaminés, seus puxões nas telhas e zincos, placas e venezianas se ouviam por toda parte. No caminho do aeroporto tínhamos visto como ela obrigava as grandes árvores a se curvarem profundamente, a ponto de quebrarem muitos galhos. Lá no bar silencioso ouvíamos a tempestade uivar alto.

— Não se preocupe — disse Andréia. — São só os pri­meiros e últimos minutos, o resto do tempo voamos por cima da tempestade e das nuvens.

— Minha linda Esquilinha corajosa — disse eu.

— Langenau disse que vai rezar um terço por meu pai — disse ela. — Não é bondade dele?

— Muita — disse eu. — Langenau e você acreditam em Deus, para vocês é mais fácil.

Tentei dissuadi-la de pensar o tempo todo no pai en­fermo, e consegui.

— Sabe — disse ela —, as grandes religiões são certa­mente a melhor coisa que o homem criou, mas todas as religiões são malbaratadas pelos homens. Acredito em Deus como Langenau, só que não demonstro. Acho que não é da conta de ninguém. Da sua, naturalmente, sim. Tudo que é meu é da sua conta, meu Gato. E por que você não acredita Nele?

— Não posso mais, desde a guerra, dos campos de con­centração e dos cinqüenta milhões que morreram na guerra. Podem me dizer o que quiserem, mas um Deus que permite isso não pode impedi-lo ou não quer. Num dos casos é um pobre idiota, no outro, um criminoso.

— O que você disse é muito grave.

— Eu sei. Mas sou assim.

— Não creia Nele se não consegue, mas não O insulte, por favor — disse Andréia. — Também não podemos impedir muitas coisas ruins, e nem por isso somos idiotas ou crimi­nosos.

— Mas Ele sim — disse eu. — É onipotente, não é? Vi muitos filmes e fotos dos campos de concentração, e depois da guerra estive em Auschwitz e Buchenwald. Vi os fornos. Sim­plesmente não posso mais crer Nele, Esquilinha. Não pense que eu não gostaria, mas não dá. Só aqueles fornos já bas­taram.

— Entendo — disse ela.

— Não vamos mais falar Nele — disse eu, e pensei no quanto amava Andréia, e sua nuca, e as linhas macias onde seu cabelo caía.

— Mas se casarmos no religioso, querido, nosso filho será batizado na Igreja católica.

— Claro — disse eu.

— Também acho melhor. É a religião com maior número de adeptos, quero dizer, entre as cristãs. Se nosso filho for da mesma religião que tanta gente, talvez não lhe aconteça nada parecido com o que aconteceu aos pobres judeus.

— Vamos beber laranjada à saúde de nosso filho católico — disse eu.

— Não — disse ela. — Eu queria beber um uísque bem grande à saúde dele, porque posso lhe dizer agora, sempre tenho grande medo nos primeiros minutos depois da deco­lagem e nos últimos antes da aterrissagem.

— Mas com um tempo desses o piloto sempre faz o apa­relho subir bem na vertical.

— Cerveja — disse ela. — O Dr. Kahler disse que devo beber muita cerveja, Gatão. Cerveja dá leite. Cerveja eu posso beber.

— Mas não depois da laranjada — disse eu.

Nisso chamaram o vôo de Andréia. Levei-a até a entrada e vi a tempestade solta lá fora no campo. Segundo a supers­tição dela, não nos despedimos; ela simplesmente desapare­ceu. Pensei que naquela noite ia me embebedar, e a tempes­tade quase me derrubou quando fui até nosso velho Volks­wagen. Até dirigir era difícil por causa da tempestade.

Havia poucas pessoas nas ruas, e sempre se viam telhas caídas ou arrancadas ou galhos quebrados, e ouvi as sirenes dos bombeiros. De repente tive muito medo de que Deus pu­desse se vingar em Andréia por causa das coisas terríveis que eu dissera Dele, e falei alto com Ele, aquele em quem não acreditava, e disse: me mate, faça o que quiser, mas não faça mal a Andréia, não a deixe pagar por mim, por favor. Não deixe que nada de mal lhe aconteça, e se for preciso, que aconteça comigo, por favor.

Cheguei à nossa casa na Alsterdorfer Strasse, e vi que havia alguém comprimindo-se no canto da entrada. Parei o carro, apaguei os faróis, e desci. A tempestade quase me der­rubou novamente. Então vi meu velho amigo Jean Balmoral esperando ali, e de repente soube que algo de terrível estava por me acontecer. Eu não podia dizer como, mas simples­mente sabia.

 

— Jean! — Eu tinha de gritar por causa da tempestade.

— Bon soir, Charles! — gritou ele, e corrigiu-se: — Bon soir, Peter. — Como ele não soubesse alemão, falamos em francês.

— O que foi? Está esperando há tempo?

— Uma hora. Do hotel telefonei à livraria, e soube que você tinha levado sua namorada ao aeroporto. Então está so­zinho.

— Mas uma hora...

— Eu não sabia a hora da partida. Não faz mal. Agora você já chegou.

— Aconteceu alguma coisa? — Tínhamos de gritar con­tra a tempestade.

— Sim. Mas não podemos entrar no apartamento? Eu lhe contarei tudo.

Abri a porta da casa, e subimos os altos degraus ao se­gundo andar. Também no apartamento a tempestade chora­mingava, gania, assobiava e uivava. As cortinas moviam-se com o vento. Balmoral atravessou o quarto.

— Bonito, aqui. — Sentou-se na sala, numa poltrona funda. Jean tinha aspecto ruim, pálido e doentio. Assustei-me quando o vi na luz.

— O que quer beber?

— Nada. Talvez mais tarde. Sente-se!

Sentei-me.

— Então, o que foi? — perguntei.

Ele apertou as pontas dos dedos umas nas outras. Sua voz estava embargada, os olhos inquietos.

— Tive grande azar, meu velho. Quis ajudar um amigo, que é louco por cavalos. Perdeu um monte de dinheiro, e apostara com dinheiro do banco onde trabalhava. Tinha de devolver. Eu mesmo estava meio mal, mas ele estava ameaça­do de prisão, portanto, lhe emprestei dinheiro... dinheiro de clientes meus. Ele jurou que me devolveria em tempo. Merda. Correu de volta ao hipódromo e perdeu tudo. Agora, ele se matou, e estou sem dinheiro. Meu cliente chega da América nos próximos dias, e se eu não tiver o dinheiro estou liquidado. Escândalo, licença cassada, não preciso dizer mais nada.

— Não, não precisa — disse eu lentamente.

Olhei para ele, que desviou o olhar. E a tempestade asso­biava e gemia. Em algum lugar uma janela batia no vento, fazendo um enorme barulho, mas era como se fôssemos ás duas únicas pessoas no mundo.

— Charles, você é meu amigo — agora ele tinha lágrimas nos olhos, o filho da puta. — Há quanto tempo nos conhe­cemos? Quanta coisa você já fez por mim? Deus sabe que estou envergonhado, tão envergonhado... mas você é minha última salvação, depois de você não tenho mais ninguém.

— Quanto? — perguntei, e minha voz soava estranha.

— Quatrocentos mil marcos. São bem mais de oitocentos mil francos. Preciso de oitocentos e cinqüenta mil, imediata­mente. Você pode ir amanhã lá, assim que o banco abrir, e retirar a quantia? Por favor, Charles, e me perdoe.

Eu não dizia nada.

— Você vai me ajudar?

— E sua conta bancária na Suíça?

Ele deu um riso cavo:

— Seis mil francos, nada mais. Tive tanto azar nos últi­mos tempos. Um azar horrível.

— E por que não telefonou de Paris?

— Eu queria ver você quando lhe falasse, e levar logo o dinheiro. Pelo telefone não teria tido chance. Por isso vim de avião. Cheguei esta tarde. Telefonei do hotel para a livraria, e me disseram que você tinha...

— Você já disse. O que teria feito se Andréia estivesse aqui?

— Teria pedido para falar com você a sós. Não o teria traído, meu Deus, Charles, não sou nenhum chantagista!

— Ah, sim. Então foi bom ter visto você. Vou chamar um táxi. Você vai conseguir dinheiro por aí.

— Não! — Ele saltara da poltrona. — Isso não é possí­vel. Você tem de me dar o dinheiro. É o único que pode fazer isso. Trata-se da minha vida, Charles.

— Sinto muito.

— Muito bem — disse ele —, então, se não me der o dinheiro amanhã de manhã, vou rebentar com você. Aqui na polícia. Mas aí a sua vida estará arruinada.

— Mas você não é um chantagista — disse eu, porém ele não respondeu, apenas começou a chorar. Foi o mais nojento na história toda, sabe, meu bem. Ele não era um chantagista profissional. Eu teria preferido um profissional àquele ho­mem. Eu realmente o conhecia há bastante tempo, e sabia que estava dizendo a verdade. E o que mais me enojava era que ele não era um canalha sem-vergonha.

Também me levantei. Ele recuou imediatamente e disse depressa:

— Deixei uma carta fechada com um colega. Se eu desa­parecer de repente ou morrer de maneira inesperada, ele vai abrir a carta. E lá está escrito que você é meu assassino... e está o seu novo nome, o seu endereço e uma descrição exata da sua aparência atual. A carta irá imediatamente para a polícia. Portanto, Charles, não me toque! Estou avisando! Estou de­sesperado, não garanto por mim.

E a tempestade continuava uivando ao redor da casa, sacudindo as janelas e açoitando os galhos das velhas árvores no jardim, e estávamos sozinhos no meio daqueles gemidos e trovões, sussurros e pancadas.

— Então você deixou uma carta dessas — disse eu.

— Precisava me proteger. Não sei o que você vai fazer na sua raiva.

Era de enlouquecer: o porco não era um chantagista de verdade, era diletante, mas muito hábil. Porém sofria real­mente com tudo aquilo.

— Agora eu gostaria de um gole — disse ele.

Servi conhaque em dois copos, muito conhaque. Dei um a ele, e bebemos. O conhaque ardia, e me aqueceu. Pensei amargurado que também estava aquecendo Balmoral.

— Falo sério — disse ele. — Se eu amanhã de manhã não receber o dinheiro... em notas de mil... vou denunciar você. — E então veio a coisa mais louca: — Você tem de me perdoar — disse ele. — Perdoa, Charles?

Não respondi.

— Charles, suplico que me perdoe e me entenda!

— Vá tomar no cu — disse eu, e fui para a cozinha. Ele me seguiu como um cão batido e ficou olhando em silêncio quando preparei presunto com ovos para mim.

— Você também quer? — perguntei.

— Se me der um pouco. Meu Deus, Charles, por que tenho de fazer isso com você! — Ele chorava outra vez.

— Pare de chorar! — disse eu. — Imediatamente, senão não ganha comida, seu canalha de merda. — Limpou as lá­grimas com as costas da mão e deu mais alguns soluços. De­pois ficamos sentados à mesa da cozinha comendo presunto com ovos e bebendo cerveja Pilsner. Ele tinha um apetite enor­me, e tive de voltar ao fogão. Por sorte havia ovos bastantes em casa. A tempestade piorava cada vez mais. Eu comia e pensava que não tinha escolha. Por sorte, ele não pedia mais ainda. Só aquilo que realmente precisava. Sim, pensei, e se da próxima vez ele precisar de um milhão? Afastei meu prato pela metade.

— O que foi? — perguntou ele.

— Sem apetite.

— Então posso... — Devorou ainda aquilo que eu dei­xara. Um tesouro, o meu amigo Jean Balmoral. Bebi uma garrafa de cerveja e fiquei olhando enquanto ele comia. De­pois fomos para a sala, e ele disse que ficaria na minha casa aquela noite, para eu não poder escapar, e eu lhe disse que era mais forte do que ele, e ele disse sim, mas havia aquela carta com seu colega. E o maldito temporal ainda uivava e me dei­xava incrivelmente nervoso; por isso, dei uma surra em Bal­moral. Não o matei, apenas o soquei até ele cair no chão sem poder se levantar, sangrando pelo nariz e pela boca. No ba­nheiro meti uma toalha na água, voltei e joguei-a para ele, que limpou o sangue e se levantou com dificuldade, manquitolando com a toalha até o banheiro. Quando voltou, disse:

— Entendo você tão bem, Charles. — Nisso o telefone tocou, e eu lhe disse que calasse a boca, e fui atender. Era Andréia, que chegara bem em Frankfurt e já estava com a mãe.

— O vôo foi muito ruim? — perguntei.

— Só no começo e no fim, o resto do tempo voamos por cima das nuvens e ainda estava claro, o céu amarelo, verde e vermelho, foi lindo. Pobre Gatão, você está muito solitário?

— Muito — disse eu.

— O que está fazendo?

— Acabei de comer presunto com ovos.

— Gato, eu rezei no avião. Sempre rezo em aviões por­que tenho medo de voar. Mas hoje rezei por meu pai, para que sobreviva, e depois rezei por você, para que não lhe aconteça nenhum mal e você tenha sorte, e alegrias, e nenhum aborre­cimento. E você vai ver como dará certo.

— Sim — disse eu —, com certeza. — E vi Balmoral ali sentado, imóvel.

— Que uivos são esses na linha?

— Tempestade, aqui ainda temos tempestade.

— Sua voz soa tão triste. Também estou triste. Por cau­sa de meu pai e porque estou longe de você. Saia de casa, Gato! Para um cinema ou um bar, onde haja gente.

— Não quero.

— Ah, meu Gato, eu te amo tanto. Durma bem.

— Você também — disse eu. — Cumprimente sua mãe. Boa-noite! — Desliguei e disse a Balmoral: — Vou para a cama. Pode deitar aqui no sofá.

— Não vou pregar um olho — disse ele. — Tenho de cuidar para você não me matar.

— Pois então cuide — disse eu.

— Tomei Pervitin — disse ele. — Não preciso dormir.

— Seu cachorro de merda, miserável.

Senti-me nauseado de raiva e impotência. Tomei banho e atravessei novamente a sala, de pijama. Lá estava ele sentado, pálido e infeliz, e fui para a cama. Adormeci imediatamente, mas duas horas depois acordei com a maldita tempestade, e não consegui mais dormir. Levantei-me e fui ao quarto onde havia uma cadeira de balanço. Ao lado, na sala, Balmoral estava sentado fumando. Sentei-me na cadeira, balancei-me e olhei a tempestade atacando as velhas árvores, baixando suas copas e fazendo voar os galhos. E pensei que Andréia teria gostado de ser árvore, mas que também assim passaria por maus bocados, teria de sofrer muito e defender-se. Teria fi­cado ferida em corpo e alma como aquela árvore da qual, depois da meia-noite, se quebrou um grande galho, com um ruído horrivelmente triste. A tempestade varrera as nuvens, o céu agora estava limpo, e na luz prateada da lua vi o galho jazendo no jardim, e o lugar claro no tronco, onde ele se que­brara. Virei-me e encarei o quadro memento-mori. Eu ainda estava sentado ali na cadeira de balanço quando o céu ficou cinzento e depois sempre mais claro, e fiquei muito impres­sionado com todas as cores nele, antes de se tornar de um azul radiante, e o sol nascer. A ventania continuava.

 

Fui ao banheiro, lavei-me, fiz a barba e me vesti. Quando passei pela sala, Balmoral estava deitado no divã roncando. Apesar do Pervitin! Estava deitado de costas, as mãos cruza­das no peito, boca aberta. Seria bem fácil matá-lo agora, mas de que teria adiantado, com aquela carta no advogado? Por­tanto, apliquei-lhe duas bofetadas; ele se levantou sobressaltado e gritou:

— Não! Não! — Depois olhou para mim e deu uma ri­sada tola. — Alguém me logrou — disse. — O que ele me ven­deu não era Pervitin. Você dormiu bem? — Aquilo era demais. Bati-lhe mais uma vez na cara, mas desta vez com o punho cerrado, e ele não devolveu o golpe, e disse com voz sufocada:

— Fazer uma coisa dessas com meu melhor amigo! Eu sou um porco.

Fui para a cozinha e fiz café para nós. Mais tarde ficamos sentados um diante do outro sem dizer nada, e esperei as oito e meia, telefonei ao meu banco e pedi que separassem quatro­centos mil marcos para mim, em notas de mil. Disseram que em uma hora eu podia passar e pegar o dinheiro.

Pouco depois das nove telefonei à livraria e Langenau atendeu.

— Fala Kent. Tenho visita do estrangeiro e não irei à loja esta manhã. Vou vê-lo no hotel, portanto não estarei em casa.

— Tudo bem, sr. Kent — disse Langenau. — Essa tem­pestade horrível também o deixou tão atacado?

— Sim, muito.

— Tenho uma dor de cabeça terrível desde ontem, e esta noite nem dormi.

— Nem eu. Tome um remédio contra dor.

— Já tomei, não adianta. Até logo, sr. Kent. Fique com Deus.

Procurei uma maleta na qual queria levar o dinheiro, e vesti um sobretudo, porque esfriara com a tempestade. Depois chamei um táxi.

Balmoral disse:

— São nove e quinze. Se você não estiver aqui no máxi­mo às onze, vou à polícia denunciar você. — E chorou nova­mente, tanto sentia por isso.

Quando saí de casa o táxi já estava esperando. O motoris­ta falou durante todo o trajeto, falava sozinho, e parecia estar brigando consigo mesmo, pois falava asperamente. A tempes­tade deixava todo mundo meio maluco.

Quando desci do carro na Jungfernstieg, diante do Banco, vi muitas gaivotas. Estavam pousadas debaixo das pranchas de atracamento da Esquadra Branca, para se protegerem da ventania. Alguns navios amarrados no cais balançavam perto da margem. Não havia navios no Alster, a água estava muito revolta, com cristas de espuma branca... na França chama­vam-nas ovelhinhas.

Paguei o motorista e lutei com a mala, firmando-me con­tra a tempestade, para chegar à entrada do Banco. Lá havia muito movimento, mas o encarregado de minha conta reco­nheceu-me imediatamente. Apontou para uma cabine que só se abria por dentro, e depois que eu atravessara a grande sala, ele abriu a cabine por dentro e me cumprimentou. Vi que na mesa havia dinheiro preparado para mim. Tive de assinar dois recibos, e depois o sr. Vormweg — nome do meu caixa — me ajudou a meter o dinheiro na mala. A mala era do tamanho exato.

Ele perguntou pela minha saúde, e eu disse que estava bem. Contou-me que sua filha fizera exames para a Facul­dade de Farmácia, e eu o congratulei. Abriu a porta outra vez, deixou-me sair para o vestíbulo, e acenou quando saí. Devolvi-lhe o aceno e ele fechou a porta.

Nesse momento, tive o ataque.

 

Caí, e minha mala voou no chão. Procurei o remédio forte, à base de nitro, achei o frasquinho, abri-o e tirei uma cápsula, que mordi. A dor, como sempre, era quase insupor­tável. O torno e a vara de ferro estavam ali. Eu arquejava e gemia de dor, e sufocava.

Lembra-se do ataque de Viena, meu bem? Esse era bem parecido, embora não tão terrível. Quando caí no chão, ge­mendo, algumas mulheres gritaram, e agora reinava pânico no grande saguão das caixas. O sr. Vormweg, com quem eu aca­bara de falar, ajoelhou-se ao meu lado, afrouxou minha gra­vata e falou comigo, mas não entendi o que ele dizia. Muitas pessoas debruçavam-se sobre mim, havia grande zoeira nos meus ouvidos, eram vozes, junto com o reboar da tempestade. Mordi outra cápsula. Mãos estendiam-se para me ajudar, mas ninguém podia fazer nada, por isso dei pontapés, e alguns funcionários do Banco afastaram as pessoas. O chão do sa­guão era de grandes pedras de mármore quadradas, brancas e negras, e nesse imenso tabuleiro de xadrez eu estava deitado, num quadrado preto, todo encolhido, arquejando, gemendo e gritando não sei quanto tempo. De repente escutei, desfeito pela tempestade, o ruído de uma sirene, cada vez mais alto, depois silenciando. Logo chegaram dois homens em uniforme de enfermeiros e um terceiro com avental branco. Este trazia uma maleta de médico; alguém chamara o médico.

Este, um homem jovem, ajoelhou-se ao meu lado, e antes que dissesse qualquer coisa, gaguejei com dificuldade:

— Angina pectoris... tenho de vez em quando... já tomei as cápsulas... logo vai... passar... — E então a dor me arre­batou de novo, e pensei que ia morrer dessa vez. Gritava alto de dor. O médico falava comigo e eu não compreendia nada. Só vi que abria a maleta e tive novamente forças para falar:

— Não... não... não...

— Mas quero ajudar.

— Eu lhe pro...íbo! Não toque... em mim... sabe que não po... não pode tocar em mim se eu não permi...to. — Tudo se diluía em manchas coloridas diante de meus olhos: ponto verde, mancha azul, nuvem cinza, trave vermelha, ver­melho, vermelho, vermelho. Agora tudo preto, neve caindo, preta. E a vara de ferro no meu peito.

Eu tinha de ir para casa! Balmoral estava esperando. Ele não podia saber do meu ataque. Desta vez, com meus do­cumentos novos, eu poderia permitir que o médico me aju­dasse, me tratasse e até me pusesse num hospital, mas às onze Balmoral iria procurar a polícia.

Vi o médico falar com o sr. Vormweg e o gerente do Banco, e um deles apontou para a maleta ao meu lado. Pro­vavelmente lhe explicavam que eu acabava de tirar dinheiro para um negócio particular, pessoal, pois pedira notas usadas. O imposto, não é? E sabe Deus o que diziam ao médico. Para meu infinito alívio senti a dor cedendo. O médico também o notou imediatamente.

— Melhor, não?

Fiz que sim.

— E está com um pouco de cor no rosto. Quando cheguei estava cinzento, os lábios roxos. Espere mais uns minutos, depois pode se levantar.

As pessoas me fitavam com ar de espanto, até repulsa... como a um inseto nojento. Eu as assustara muito. Tentei me refazer, e consegui com esforço.

— Não lhe farei nada — disse o jovem médico. — Sei que não devo tocá-lo, seja quais forem seus motivos... Mas não pode sair correndo por aí sozinho com a maleta... Não quer que ao menos o levemos para casa?

— Sim — disse eu. — Sim, doutor, é muita gentileza sua.

Os dois enfermeiros saíram depressa e trouxeram logo uma maca, na qual me levaram dali. O jovem médico pegou a maleta. O sr. Vormweg e o gerente ainda apertaram minha mão, e uma velha fez um sinal da cruz na minha testa.

Depois fiquei deitado no grande carro vermelho, e segui­mos para a Alsterdorfer Strasse. A ventania uivava em torno do veículo. Quando chegamos eu estava fraco demais para subir escadas, e eles me levaram ao segundo andar. Apontei para a porta do apartamento e o médico tocou a campainha.

Balmoral perguntou em francês, atrás da porta fechada:

— Quem é?

— Sou eu — respondi —, abra, Jean. — Ele abriu a porta e assustou-se vendo-me na maca com aqueles três ho­mens.

— Meu Deus, o que aconteceu?

— Ataque de coração.

— Santo Deus, onde?

— No Banco Hansa — disse o jovem médico, que falava bem o francês. — Monsieur proibiu-me de ajudar, só pudemos trazê-lo para casa. Ele diz que tem esses ataques com fre­qüência.

— Sim, é verdade — disse Balmoral, que se controlara. — Graças a Deus sempre passam depressa. Entrem, senhores! — Ele entrou na sala e apontou para o divã. — Ponham monsieur ali...

Os carregadores da maca entenderam.

— Pode ficar tranqüilo, doutor — disse Balmoral. — Agora ele ficará melhor. Cuidarei dele. Estou de visita e não falo alemão. Meu amigo é alemão, o senhor sabe.

— Sim, entendo — disse o médico, dirigindo-se a mim. — O senhor tem alguma previdência médica?

— Não.

— Mandaremos a conta pelo correio. Em nome de quem?

— Kent — disse eu. — Peter Kent.

Então lembrei-me de que a conta poderia cair nas mãos de Andréia, e paguei logo. Mais tarde fiz o recibo sumir no banheiro.

O médico apertou minha mão e desejou-me boa sorte. Depois foi embora com os dois enfermeiros.

Balmoral me fitou e disse:

— Meu pobre amigo. — E já abria a mala que o médico deixara, remexendo as notas. — Obrigado, você salvou minha vida. Serei eternamente devedor. Nunca poderei compensar você pelo que lhe fiz.

— Jean.

— Sim, Charles.

— Desapareça, seu cachorro sujo! Não posso mais ver seu focinho. — Ele começou a chorar novamente, pegou a maleta e saiu soluçando.

Ouvi a porta do apartamento fechar-se atrás dele.

Balmoral fora embora.

E com ele, quatrocentos mil marcos.

 

A ventania continuava enlouquecida lá fora.

Quando me levantei depois de uma hora, notei que ainda estava com as pernas muito bambas, e a cabeça doía. Na cozinha abri uma lata de sopa de tartaruga e aqueci-a. Continuava muito abalado e fraco, e teria gostado de ficar na cama, mas tive medo de que Langenau se inquietasse e viesse me procurar, e depois também Andréia certamente saberia do meu estado. Portanto, dominei-me ao máximo e à tarde fui à livraria, onde brinquei com as crianças e cuidei das que fa­ziam suas lições.

As crianças perguntavam pela tia Andréia. Langenau lhes contara que ela tivera de viajar porque seu pai estava doente. Agora naturalmente queriam saber o que ele tinha e quanto tempo ela ficaria fora, e eu disse que o pai de Andréia estava no hospital, e que não se sabia ao certo quando voltaria.

Um menininho entrou no subsolo e disse-me:

— Quero o livro O que Nostradamus realmente disse.

— Olhe aqui — disse eu —, quantos anos você tem?

— Nove, mas em dezembro faço dez.

— Isso não é livro para crianças — disse eu.

— Eu sei — disse ele. — Lá tem coisas como por exem­plo quando vai ser a próxima guerra e quem vai morrer e quando será o fim do mundo. E tudo sobre as grandes catás­trofes.

— Como sabe disso?

— Todo mundo fala de Nostradamus. Meus pais tam­bém. Estão sempre com o livro, mas não me deixam ver. Escondem o Nostradamus como seus livros de sexo. Econo­mizei da minha mesada, e agora quero comprá-lo.

— Espere um pouco — disse eu, pois queria pedir conse­lho a Langenau. Como sempre em épocas de crise, o ocultismo entrava em moda, esperanças de salvação, e, por medo, cres­cia o anseio do fim. O livro que o pequeno queria era de um francês que traduzira do latim as profecias do vidente e mé­dico Nostradamus. Tudo o que esse médico dissera tinha até agora dado certo de uma maneira espantosa. Mas, na ver­dade, só olhando como um retrospecto! O futuro só nos reser­vava coisas ruins: o Anticristo viria da Rússia, constelações de estrelas destruiriam a Terra, mais uma vez aproximava-se a última hora da humanidade.

Langenau achava que não se devia vender o livro ao pe­queno, e disse-lhe:

— Você é pequeno demais para isso, entende?

— Não — disse o pequeno. — Tenho idade bastante para lutar com todos os adultos quando vierem os foguetes atô­micos. Então certamente posso me informar do que está por acontecer.

— Por que quer tanto saber? — perguntei.

— Apostei com um amigo — disse ele. — Ele diz que Nostradamus escreveu que em 1999 virá o Rei do Terror, e depois o fim. Mas ouvi dizer que ele escreveu que isso já seria em 1986. Aquele que tiver a data errada terá de dar cinco autógrafos de primeira — nós dois colecionamos autógrafos. Jogadores de futebol e outras personalidades famosas. Cada um de nós precisa ainda de cinco da Seleção Nacional, que o outro tem. Vale uma nota, uma coleção completa dessas. Es­pecialmente para fazer novas trocas. O mais valioso são os mortos. Desses não se pode conseguir mais. Não imagina o que eu ganharia pelo meu Humphrey Bogart! Mas esse não dou não, me custou demais. Dez Bjorn Börgs. Agora sabe por que preciso do Nostradamus. Acha que se não fosse isso eu pagaria tanto por um livro?

— Bom, mas nós não o venderemos — disse Langenau.

— Droga de bodega vocês têm aqui — disse o pequeno. — Então vou no Braun, na Ostrestrasse. — Subiu a escada, virou-se lá em cima, e disse: — E ainda por cima são maus negociantes. Vou contar em toda parte que vocês não vendem os livros mais importantes porque decerto não os têm.

— Bom-dia — disse o papagaio.

Langenau ficou no porão e eu subi para a loja onde o Apre Robert Stark estava atendendo. Ainda nem lhe falei nesse estagiário, meu bem. Era um homem moço e tranqüilo, com vinte e dois anos, cabeleira loura e um rosto amável mas sempre sério. Era muito trabalhador, e simpático. Adorava sua profissão. Tinha aparência excelente, a gente imaginava que todas as moças correriam atrás dele, mas ele nunca ia apanhar nenhuma, nem telefonava, e à noite sempre ia sozinho para casa. Eu gostava tanto dele que há muito decidira me aproximar mais dele, mas por estar apaixonado, até ali eu só tivera tempo para Andréia.

Naquela tarde havia muito trabalho na livraria. Eu apren­dera o serviço com extraordinária rapidez. Naturalmente não sabia muitas coisas que Andréia, Robert Stark e Langenau sabiam, mas eu lia muito e podia aconselhar as pessoas, e era bom vendedor.

Nisso chegaram o sr. e a sra. Reder. Eu os conhecia porque tinha encomendado uma grande obra ilustrada em dois volumes, que aparecera há vinte anos e que conseguimos para eles na editora... o último exemplar. Os livros de figuras chamavam-se Ascensão do Nada, era a história da recons­trução alemã do ponto zero.

— Seus livros chegaram — disse eu depois de cumpri­mentar os dois, e tirei os volumes de uma prateleira. Os dois folhearam os grandes livros, falando baixinho entre si. Às ve­zes apontavam para uma fotografia e balançavam as cabeças. Os dois estavam no fim dos sessenta, gente calma e pacífica.

— Estou muito contente por o senhor ter conseguido os volumes — disse por fim o sr. Reder, e empurrou-os em minha direção.

Os livros não eram baratos, e pensei que certamente o sr. Reder teria uma boa pensão de aposentadoria.

— Amigos nos falaram dessa documentação — disse ele, quando comecei a embrulhar os livros. E apontou para eles:

— Foi no nosso tempo, foram os nossos anos, hein, mãe?

— Sim, Emil — disse a mulher.

— E agora estamos comprando os livros com medo de que tudo isso seja esquecido — disse o sr. Reder.

Fitei-o, espantado.

— Nossa geração realmente reconstruiu esse país do nada! — disse ele. — Nossa vida se foi, com isso. Como tra­balhamos duro, como sofremos para sair da sujeira. E conse­guimos! Há vinte anos este não era o país, que todo mundo olhava com admiração?

— Certo — disse eu.

— E para que fizemos tudo isso? — perguntou o sr. Reder. — Para nós e nossos filhos, sim, os filhos. — A voz do suave sr. Reder ficou mais alta. — Eles eram adultos e foram embora quando por fim o milagre aconteceu. Casaram e ti­veram belos apartamentos, sempre carros novos, dinheiro no banco, nada de preocupações. Viajaram por aí, todo ano para longe, África, Ásia, sei eu aonde mais. Tiveram muito pouco tempo para nós — naquela época e agora também, quando já têm seus próprios filhos, grandes. Que geração é esta, sr. Kent?

— Sim, que geração! — disse o sra. Reder.

Terminei de embrulhar os dois volumes, e o sr. Reder pagou, enquanto continuava falando.

— São choramingões e preguiçosos. A gente fica contente quando ao menos não são trapaceiros e cobiçosos. E que apa­rência! Nossos netos nem falam conosco! Só nos desprezam, e aos pais. Como sofrem esses pobres pais, sr. Kent! São dois rapazinhos, e o que fazem? Esquivam-se do trabalho sempre que podem, choramingam dia e noite. A gente já nem pode mais escutar. Estão “se matando”, são “frustrados” e es­crevem com spray nas paredes: “no future”. É, meu jovem — voltou-se para Robert Stark —, não precisa me olhar assim, é tudo verdade! Naturalmente há outros, você, por exemplo, com o cabelo cortado decentemente e trabalhando, mas você é a minoria, acredite. Seus pais devem se sentir muito felizes por terem um filho assim.

— É verdade — disse a sra. Reder.

O sr. Reder estava ofegante, e exclamou:

— Naquela época, quando a maldita guerra enfim aca­bou, e o maldito tempo de Hitler, imagine se nos tivéssemos portado como essa gente de hoje!

— Seu coração — lembrou a sra. Reder —, pense no seu coração, Emil!

— Ora, meu coração! — exclamou ele. — Aquilo que eles não conseguiram destruir em Bonn, a juventude de hoje con­seguirá! Eu disse que estávamos comprando esses livros com medo de que tudo fosse esquecido, de que tudo fosse para o buraco. Os russos não vão nos atacar. O que eles poderiam fazer a juventude de hoje já está fazendo; vão conseguir isso em Bonn!

— Emil — disse a sra. Reder. — Emil, por favor!

— Tudo bem, mãe. Sr. Kent, o senhor é mais moço, e você ainda é quase um menino, sr....

— Stark.

— Sr. Stark. Eu só queria dizer: a nossa geração ainda está viva! Agora vemos por que trabalhamos duro. Isso nos dá um ódio frio, é verdade... Já experimentamos uma vez aonde leva tudo isso, e por esse motivo temos tanto medo. Queremos olhar as fotografias desses documentários aí para nos lembrar­mos de como era quando não tínhamos medo, quando ainda não nos consideravam velhos esclerosados e incapacitados im­becis. Desculpem, falei demais. Obrigado, passem bem, tudo de bom para os dois... — E se foi com sua Mãe. Davam passos curtos, as costas curvadas.

Ficamos olhando para eles.

— Pensei que as pessoas só tivessem medo da guerra — disse eu.

— Ora, sr. Kent — disse Robert Stark —, o senhor nem imagina de quantas coisas as pessoas têm medo. Hoje em dia há tantos tipos de medo...

Novos clientes entraram na loja. Eu disse a Robert Stark que tínhamos de continuar nossa conversa e nos conhecer me­lhor, e ele concordou.

Minha cabeça doía das cápsulas de nitro, por isso chamei o sr. Langenau para cima, disse que não me sentia muito bem, que ele me representasse ali. Sentei-me no Cat’s Corner e pensei no sr. e sra. Reder. Tinha um gosto ruim na boca e preparei um uísque puro com gelo, que bebi em pequenos goles, e pensei no meu bom amigo Balmoral; sabia que devia refletir muito sobre ele, mas ainda não estava em condições para isso, tão pouco tempo depois do ataque. Por fim desci ao subsolo.

Verifiquei se as crianças faziam as lições e Félix, com seus olhos tristes, me levou para um canto e disse baixinho:

— Estão indo muito bem, mesmo os que tinham notas ruins. Mais um mês e terei feito deles só alunos nota dez, tio Peter. — E o menino de cabelos louros chamado Harry ouviu isso e me disse:

— Félix disse que é judeu. Todos também queríamos ser judeus.

— Por quê?

— Porque então saberíamos jogar pingue-pongue tão bem quanto ele, que ganha de todo mundo!

Félix disse:

— Não é isso. Apenas tenho mais sorte, é tudo.

Agora tínhamos dois coelhos, e breve teríamos um monte deles. Por isso algumas crianças construíram uma gaiola nova e grande, e um menininho me disse:

— Vai ter um coelhinho católico por causa do tio Conrad. O hamster sempre foi católico por causa da tia Andréia. Quando os coelhos tiverem uma porção de crianças, e minha mãe disse que sempre têm uma porção de uma vez só, um será evangélico para Patty, um maometano para o Ali e seus ami­gos, e um judeu para o Félix. E você o que é, tio Peter?

— Eu não sou nada.

— Então, se tiver um coelhinho sobrando, ele não vai ser nada, para você, tio Peter — disse o menininho. — E se desta vez não der, vai dar na outra. Ah, o Apre também é evangé­lico, vamos batizar um para ele também, depois precisamos de um totox para o Panos. Gregos são totox, não são?

— Quem vai batizar os coelhos? — perguntei.

— Todos nós — disse o pequeno. — Já estamos tão con­tentes. Minha mãe disse que os coelhinhos têm filhos muito depressa.

Naquele dia Walter Hernin chegara cedo, pois levara o carro para a oficina, e por isso ouvira a história dos coelhi­nhos. Agora estava sentado na larga escada, Patty ao lado, acariciando sem parar o cabelo dela. E disse:

— Uma coisa dessas derruba a gente, sr. Kent. Quando se olha o resto do mundo, e depois... isto aqui.

— É tudo Andréia — disse eu. — Junto dela todas as pessoas realmente se tornam irmãs.

— É verdade — disse Hernin, com seu cabelo branco. — Ainda se lembra de nossa conversa aquela vez no táxi, quando o apanhei no aeroporto? Era dia do Congresso Eucarístico, e todos falavam em medo.

— Sim — respondi —, lembro-me muito bem do progra­ma de rádio.

— Sempre penso nisso, sr. Kent. Na minha profissão a gente tem muito tempo para pensar. Escute: o que seria hoje se a primeira bomba atômica tivesse sido lançada sobre Berlim ou Dresden, em vez de Hiroxima e Nagasáqui? Quero dizer, a bomba atômica estava destinada à Alemanha, apenas não fi­cou pronta em tempo, certo?

— Sim, e daí?

— Entre os japoneses, esse povo estóico e altivo, ainda hoje irrompe um pânico nacional sempre que sabem que os submarinos americanos têm armas nucleares a bordo quando chegam numa base japonesa, ou que guardam esse tipo de armas numa base. Na República Federal da Alemanha há mais de seis mil foguetes nucleares. Está vendo, e o senhor perguntou como nós alemães conseguimos considerar suportá­vel e até desejável um estado de coisas que no Japão teria como conseqüência uma crise nervosa coletiva?

— Mas é que nunca experimentamos uma explosão atô­mica.

— É mais profundo ainda, sr. Kent — disse ele. — Acho que a explicação é que nós alemães transferimos a fé em ar­mas milagrosas do tempo dos nazistas para a época das armas nucleares. Essa fé sofreu uma decepção, de outro modo tería­mos nas mãos um meio para deter as chamadas hordas asiá­ticas. Por fim uma arma que mantém a paz na Europa, por­que é tão menos plausível que estoure quanto mais perigosa for... é assim no inconsciente dos alemães.

— Pode ser — disse eu, e pensei no que Robert Stark dissera. Havia realmente vários tipos de medo nesse país.

— Já a fé nos milagres não é tão infantilmente ingênua como parece — prosseguiu Hernin. — É um produto do medo, como foi no último ano da Guerra a fé nas armas mila­grosas, na Alemanha. Naquele tempo ela devia atordoar a consciência do fim iminente. Mas também nos dois últimos decênios tornou-se um método refinado, com o qual as pessoas — especialmente nós, os alemães ameaçados — tentaram es­quecer o verdadeiro perigo do armamento nuclear, negando-o, diminuindo-o, afastando-o da mente e iludindo-se a si pró­prios.

— Boa explicação — disse eu, e vi que Patty o cutucava.

De repente ele ficou embaraçado e remexeu-se no degrau.

— Que foi?

— Ora, nada — disse Hernin. — Só que... porque... bom, o senhor sabe... tenho tanta simpatia pelo senhor, já deve ter notado isso.

— Sim — disse eu. — Também simpatizo muito com o senhor.

— Então, vovô, vamos! — disse Patty.

— Bom, então... como sou mais velho... quero dizer... não podemos nos tratar por você?

— Mas claro — disse eu, e nos abraçamos e apertamos nossas mãos.

— Olá, Peter — disse Hernin.

— Olá, Walter — disse eu.

— Viva! — disse Patty, e alegre nos beijou.

 

— Boa-noite, Esquilinha amada — disse eu.

— Ah, meu Gatão!

— Como vai seu pai?

— Na mesma. Hoje já xinguei Deus porque não está aju­dando.

— Mas ele está ajudando — disse eu. — Seu pai está na mesma. Podia estar pior.

— Sim — disse ela. — É verdade. Estou muito depri­mida, sabe?

— Amanhã seu pai certamente estará melhor — disse eu, querendo consolá-la de qualquer jeito. — Olhe, um dia e uma noite se passaram bem. Vou rezar.

— Você? Você não acredita em Deus.

— Não vou rezar para Ele.

— Mas para quem?

— Para o Nada! — disse eu. — Acredito no Nada. O Nada tem grande força. Muitas vezes rezei para o Nada, e ajudou.

— Ah, meu Gatão. Minha mãe lhe manda lembranças, ela acaba de sair do quarto. Meu Gatão, eu te amo tanto. Também amo muito meu pai. E minha mãe. Mas natural­mente de maneira diferente.

— É claro.

— Sempre que estou muito angustiada penso em você e no nosso amor, e tudo melhora.

— Seu pai ficará bom outra vez, tenho certeza — disse eu. O que mais poderia dizer?

— Você é fabuloso, simplesmente fabuloso. Obrigada.

— Cuide do nosso filho! — disse eu. — Beba cerveja!

— Você só quer desculpas para tomar também.

— Claro.

— Uísque?

— Sim — disse eu. — Uísque é para futuros papais.

— Mas fique em casa quando beber. Não saia à caça de gatinhas.

— Fico em casa — respondi. — Você pode telefonar a qualquer hora.

— Jamais faria uma coisa dessas, Gato!

— Esquilinha, tantas pessoas amam você, hoje vi isso — disse eu. — Mas eu te amo mais que todos.

Comi uma coisa leve, depois deitei-me na cama, tirando casaco e sapatos. Eu pegara soda e gelo na cozinha, e uma garrafa de uísque e um copo na sala. E tomei novamente o uísque com gosto de fumaça, bebia em pequenos goles, e fi­quei refletindo. Estava tudo muito quieto, a tempestade sere­nara.

Pensei em Andréia e no muito que a amava. E depois pensei na criança por nascer, aquela criança que tínhamos desejado tanto. Tudo era harmonioso e pacífico. Tudo trans­correra harmoniosa e pacificamente.

Até ontem.

Até chegar Balmoral.

Então ele deixara uma carta. Uma carta na qual expli­cava que no caso de seu desaparecimento súbito ou sua morte inesperada, eu era seu assassino e agora me chamava Peter Kent. Além disso, na carta constavam a minha aparência atual e meu endereço. Ele dissera, e eu acreditara. Natural­mente deixara essa carta com o colega, era por assim dizer o seu seguro de vida. Mas se realmente lhe acontecer alguma coisa, pensei, se for atropelado por um carro e o motorista fugir, ou se simplesmente tiver morte súbita, e então? Então o advogado abrirá a carta e a entregará à polícia.

Preparei outro drinque e refleti: assim não podia conti­nuar vivendo. Impossível. Alguma coisa podia acontecer a Bal­moral, a qualquer dia. Cada dia tudo poderia acabar, e isso me deixava apavorado.

De repente recordei outra vez o Rei Ricardo de Shakespeare. Talvez nunca mais me livrasse dele. “À noite as som­bras lançavam mais pavores na alma de Ricardo do que o fariam dez mil guerreiros em armaduras de aço...”

Não, era preciso acabar com esse pavor. Acabar definiti­vamente.

Eu estava muito lúcido, embora tivesse tomado meia gar­rafa de uísque, e por fim reconheci a única saída.

Eu precisava dessa carta.

E Jean Balmoral precisava morrer.

 

Reli a última frase, meu bem, e fiquei muito assustado. E Jean Balmoral precisava morrer. Era exatamente o que eu pensava naquela ocasião. Exatamente isso me prometia liber­tação. Ainda hoje não consigo explicar aquela fria decisão de matar um ser humano, mesmo tanto tempo depois. Acaso o trabalho inescrupuloso como advogado de casos escandalosos me roubara a consciência? Acaso o assassinato me parecia o método mais simples e perfeito de conseguir segurança? Não sei. Eu sempre pensara conhecer a mim mesmo, integralmen­te. Ninguém se conhece, nem mesmo cinco por cento de sua natureza verdadeira. É como se o homem da luz e o homem da sombra estivessem reunidos em cada um de nós. Vítima de Balmoral, fiquei disposto a me tornar seu assassino. Pensando no que fiz, tenho horror de mim mesmo. Um grande escritor escreveu que o ser humano é um abismo.

 

Havia um trem com vagão-leito que saía de Hamburgo às 21h40min e chegava em Paris às 7h40min do dia seguinte. Com isso eu me adiantava bastante. Em quatro dias o pai de Andréia melhorou tanto que pôde sair da UTI e passar para um quarto normal. Ficaria mais algum tempo na clínica, pois estava fraco, e os médicos tinham de baixar o teor de açúcar no sangue e estabilizá-lo. Ela estava muito feliz quando me disse que no dia seguinte poderia voltar para casa.

Eu progredira um pouco mais.

— Vou a Frankfurt apanhar você — disse eu ao telefone. — Quero conhecer seus pais... e não só na igreja.

— Ah, mas que bom. Mas não precisa vir, Gato, não precisa mesmo.

— Fique quieta, Esquilinha — disse eu. — Se vamos entrar no sagrado estado matrimonial, preciso conhecer seus pais primeiro, é assim que se faz.

— Eles são realmente muito simpáticos.

— Com uma filha dessas, devem ser.

— Ah, Gato, quando você vem?

— Preciso falar com Langenau, depois telefono.

Eu estava telefonando da livraria, de modo que pude di­zer logo a Langenau que ia apanhar Andréia em Frankfurt.

Eu iria em um avião da manhã e voltaríamos em um outro da tarde.

— Ora, é maravilhoso, sr. Kent.

— Mas não poderei estar na livraria...

— Vamos dar um jeito na loja, não é, sr. Stark?

— Claro, sr. Kent, pode ir despreocupado — disse o Apre.

Telefonei outra vez para Andréia e disse que chegaria no dia seguinte, 22 de setembro, à tarde. Ainda não sabia em que avião viajaria.

— Então venha ao hospital — disse ela. — Minha mãe e eu estamos com meu pai. Ah, Gato, estou tão contente!

— Meu abraço, Esquilinha — disse eu, pensando que com um pouco de sorte já teria matado Balmoral quando visse Andréia outra vez.

Dias atrás eu já reservara uma passagem de vagão-leito numa agência de viagens da Alsterdorfer Strasse, não longe de nossa casa, porque de qualquer modo queria chegar logo em Paris. Quando fui apanhar a passagem tive de esperar, pois a moça estava ao telefone. Foi uma longa espera. Depois que acabou de telefonar, ela se desculpou.

— Vou me casar na semana que vem, o senhor sabe, e há tanto o que fazer.

— Felicidades — disse eu.

— Obrigada — disse ela. — Muito amável. E ainda te­nho muito o que fazer aqui, arrumar a mesa, deixar os regis­tros, e tal. Vou parar de trabalhar.

Mas é quase sorte demais, pensei.

Ela preparara a passagem de vagão-leito. Num desses bi­lhetes nunca consta o nome do passageiro, nem quando vai ao exterior. À noite entregamos ao condutor com o passaporte e de manhã o recebemos de volta, com o passaporte. Assim o viajante não é incomodado na alfândega ou na fronteira. A jovem que ia casar e não trabalharia mais não teria mais interesse em meu nome assim que eu tivesse pago.

Naturalmente, mesmo assim tudo era arriscado. O perigo maior era que Andréia ou Langenau telefonassem e eu não estivesse mais em casa. Mas para esses casos há sempre muitas desculpas. Eu simplesmente dormira e não ouvira o telefone, e de dia já estava a caminho de Frankfurt.

Na noite de 21 de setembro, segunda-feira, fui de táxi do nosso apartamento até a Estação Central. Eram 21hl5min. Levava só a maleta de viagem. Tivemos de parar uma vez a caminho da estação, porque um grupo de bêbados atravessava a rua à nossa frente, dirigindo-se para vários carros. Estavam muito alegres e falavam alto.

— Olhe só esses caras de bundas grandes — disse minha motorista furiosa. — Vão se espantar se se virem com os carros mergulhados no riacho.

O condutor do vagão-leito era discreto e simpático. Não falou muito. Dormi um sono profundo e sem sonhos, até ele . me acordar às 6h40min. Quando me lavei e vesti, tomei café no vagão. Em Paris o sol brilhava, mas o grande calor do verão fora abrandado pela série de tempestades fortes na Eu­ropa.

Muitos tipos estranhos vadiavam pela Gare du Nord, e perguntei a um deles se sabia quem venderia uma pistola. Ele logo disse que sim, muito cortesmente, e perguntou, como numa fina loja de armas, qual a marca e calibre que eu dese­java. Recomendou-me uma Walther 7,35. Depois me reco­mendou dois outros sujeitos, e por fim um quarto desceu co­migo até os banheiros. Fechamo-nos numa cabine, e lá ele me deu a pistola, um coldre de prender no ombro, e três pentes cheios. Fiquei espantado ao ver como tudo isso era barato: cinco mil francos, portanto, pouco mais de dois mil marcos.

Já eram 8h20min. Esperei que Balmoral não tivesse rom­pido hábitos de uma vida toda. Era um noctívago, e não saía da cama pela manhã. Nunca aparecera no escritório antes das 11h, e não saía do apartamento antes das 10. Maître Balmoral levava uma vida descansada.

Fui ao escritório da Air France perto da estação e comprei uma passagem no avião das 14h30min, que chegaria em Frankfurt às 15h35min.

Ao contrário da passagem no vagão-leito, na passagem do avião tem de constar o nome do passageiro. Em vôos nacionais pode-se dar qualquer nome despreocupadamente, pois não há controle. Mas em vôos ao exterior um policial observa a passa­gem e o passaporte numa barreira, e naturalmente os dois nomes têm de combinar. Pelo menos, devia ser assim. Mas muitas vezes não é. Eu tinha experiências, pois por motivos profissionais viajara muito de avião pela Europa. Durante to­dos aqueles anos raramente vira um policial conferir de fato o nome do passaporte e da passagem. Os rapazes de uniforme na barreira sempre olhavam só o passaporte e conferiam o retrato com a cara, nem ao menos abrindo a passagem.

Eu tinha de arriscar, não havia outro jeito.

— Nome, monsieur? — perguntou a bela mocinha na agência da Air France.

— Eugen Leder — respondi.

Eu não podia voar como Peter Kent, meu bem, pois — o que a maioria das pessoas ignora — sempre ficam cópias das passagens de avião. Cada companhia aérea guarda na conta­bilidade central uma cópia de cada passagem comprada. E isso fica em microfilme, por anos.

Mas eu queria viver em segurança absoluta; por isso, a polícia nem teoricamente poderia descobrir que um Peter Kent viajara de Paris a Frankfurt com um avião da Air France em 22 de setembro de 1981.

Portanto, disse “Eugen Leder”. Simplesmente tinha de arriscar.

O motorista de um ônibus da Air France pegou minha maleta e a levou ao aeroporto Charles de Gaulle, comprome­tendo-se a entregá-la a uma aeromoça da Air France no balcão III. Eu teria de ir até lá mandar carimbar minha passagem. Só então a maleta iria para o avião. Se eu não chegasse em tempo ela ficaria no balcão III até eu apanhá-la. Na verdade, eu não precisava da maleta, mas tinha medo de chamar aten­ção sem bagagem nenhuma, e depois de ter matado Balmoral não podia voltar ao guarda-malas da estação de trens. O tempo não dava. Dei cem francos ao motorista e ele ficou muito contente. Eu também. Parecia barato, não ir à prisão por assassinato em troca de cem francos.

Balmoral sempre tivera problemas com dinheiro. A única coisa de luxo que lhe caíra nas mãos fora um apartamento na Avenue Foch, uma das mais belas e distintas ruas da cidade. Um tio o deixara de herança. Balmoral não era casado, e todas as manhãs vinha uma empregada que saía à noite. En­trei num bistrô, pedi café, e olhei os operários que faziam seu descanso da manhã tomando uma “branquinha”. E tive uma sensação muito estranha. Estava de volta à minha cidade, na qual vivera e trabalhara tantos anos, voltara a ouvir minha língua materna, e o argot com suas palavras engraçadas, e vi os pães compridos que muitas mulheres e homens levavam para casa embaixo do braço. Mas isso nada tinha a ver com nostalgia ou saudade. Paris e sua gente agora me pareciam irreais, e pensei que estava sonhando.

Não estava. Isso ficou muito claro quando na cabine tele­fônica do bistrô enfiei um pente cheio na pistola e meti a arma no coldre do ombro. Era pesada, mas eu podia andar e sentar-me, e não se notava que eu estava armado. Meu terno não tinha rugas e não aparecia mossa em lugar algum. O bom sr. Kratchowil! Realmente conhecia a sua profissão. Nisso lem­brei-me de que ele não vivia mais, e de que sua mulher estava desamparada. Por um momento quis largar tudo o que plane­jara, tão desgraçado me senti. Depois pensei que só me sentia assim porque não queria fazer o que tinha de fazer; sentia medo. Era tudo verdade, mas eu estava também realmente abalado com a morte de Kratchowil.

Voltei ao restaurante e tomei mais um café; melhorei, voltei à cabine telefônica e liguei para Balmoral.

Disse meu nome e ouvi-o respirar fundo.

— Charles! Onde é que você está?

— Em Paris.

— Em Paris?

— Sim. Tenho trabalho aqui. E queria aproveitar a opor­tunidade para lhe propor um negócio.

— Que negócio?

— Muito dinheiro, muito dinheiro para você.

— Como, muito dinheiro?

— Você está sempre precisando de dinheiro, não está?

— Ouça, se está pretendendo algum golpe... a carta está com meu colega.

Pois então, pensei. E disse:

— Tenho certeza disso. Não seria louco a ponto de tentar um golpe. Ainda por cima em Paris. Seja sensato, Jean. É um negócio no qual nós dois podemos ganhar muito. Entendi mui­to bem que se tratava da sua vida. Você não é um mau sujeito. Não tenho raiva de você. Ao contrário, para lhe mostrar que não tenho ressentimentos, estou lhe oferecendo esse negócio. E é realmente muito dinheiro.

— Quanto?

— Metade do que lhe dei da primeira vez, e pode ter imediatamente.

— Bom, então... vá ao meu escritório.

Eu esperara por isso, e tinha a resposta preparada.

— Não, Jean.

— Por que não?

— Pergunta besta. Como acha que me sinto, aqui na cidade onde a toda hora alguém... você entende.

— Sim, mas e então? Quer vir à minha casa?

— Lá tem a sua empregada.

— E então?

— Vamos combinar tudo no automóvel. O seu. Enquan­to isso ficamos rodando por aí; sugiro o Bois de Boulogne, lá é relativamente calmo e posso lhe explicar tudo.

Ele procurou desculpas ainda por cinco minutos, mas eu falava no dinheiro a toda hora, e por fim isso o fez decidir-se.

— Onde nos encontramos?

— Estarei diante de sua casa às dez em ponto — disse eu. — Assim como você esteve diante da minha. Desça! Onde fica seu carro?

— Ali estacionado.

— Ótimo.

— E lembre-se: a carta está com meu advogado.

— Ora, pára com isso — disse eu, e desliguei.

Meu bem, não quero esconder de você que tudo aquilo estava, como se diz, por um fio, que a qualquer momento tudo podia dar errado, e eu sabia disso. Mas a idéia de não poder mais viver em paz se não fizesse aquilo me dava força. Muita força. Desde que estava “morto”, eu me agarrava muito mais à vida do que antes.

Peguei um táxi até a Avenue Foch, que estava realmente linda com suas casas luxuosas, os jardins bem-cuidados e as velhas árvores dos dois lados, e desci perto da casa de Balmoral. Subindo lentamente a Avenue, pensei mais uma vez no risco. Naturalmente Balmoral podia dizer depressa a uma dú­zia de pessoas, ou só à empregada, o que também bastava, com quem ia se encontrar, e podia dizer ou anotar minha nova cara, meu novo nome, meu endereço em Hamburgo, e colocar em mais alguns envelopes. De outro lado, já deixara aquela carta, e não sabia o que eu ia lhe sugerir. Podia estar seguro com aquela única carta, embora em seu lugar eu não tivesse ficado. Meu bem, eu me sentia incrivelmente mal.

Andei algumas vezes diante da casa onde ele morava, e depois a pesada porta de entrada se abriu e ele apareceu. Demo-nos as mãos e nos cumprimentamos. Ele estava pertur­bado mas curioso, e pensei, pela cara ele não deixou nenhuma outra carta.

Sentamo-nos no carro dele e ele subiu a Avenue Foch para a Porte Dauphine. Não falamos até chegarmos ao Bois de Boulogne. O sol brilhava, o ar estava claro, um ar outonal, muitas flores ainda, e era belíssimo rodar pelas largas ruas do grande parque. Teria sido belíssimo.

Ele foi até a pista de Auteuil, depois parou, desligou o motor e disse:

— E então?

— Então — disse eu —, pensei uma coisa. Veja! Eu amo uma mulher. Ela vai ter um filho meu. Somos felizes. Podía­mos ter a melhor das vidas...

— Como podíamos? Por que não o fazem?

— Por sua causa.

— Minha? — Ele estava sinceramente espantado.

— Sim — disse eu. Nos boxes da pista estavam alguns homens falando com um jóquei muito baixinho, e alguns ou­tros jóqueis treinavam seus cavalos na pista. Os cavalos eram magníficos, majestosos e livres, e pensei: será que o são de verdade? E se não o forem, por que parecem assim?

— Ah — disse Balmoral. — Você tem medo que eu volte.

Seus olhos estavam inquietos.

— Não — disse eu. — Disso não tenho medo.

— De que então?

— De que lhe aconteça alguma coisa — disse eu.

— A mim? — ele estava espantado.

— Sim, a você.

— O que pode me acontecer?

— Jean, cada um de nós pode sofrer um acidente a qual­quer hora! Enfarte! Acidente de carro, telha na cabeça...

— Bem, e daí?

— Santo Deus! — disse eu, e pensei em Andréia e no bebê, e no avião às 14h30min, que eu tinha de alcançar. — Então não entende? Presuma que uma telha caia na sua ca­beça, e você morra. O que vai acontecer? Com sua morte súbita e inesperada?

— Ah — disse ele. — É disso que você está falando! A carta, não?

— Sim, a carta. Seu colega a abre, e lê, e a entrega à polícia... e é o meu fim.

Ele não respondeu, mas ligou o motor do carro e fomos rodando pelas alamedas, passando pelo Hipódromo de Longchamps, e ele ainda não dizia nada. Primeiro, tinha de digerir a idéia. Na Route des Suresnes parou outra vez, e olhei o grande lago com as duas ilhas. A água brilhava ao sol, todas as coisas tinham contornos duros e claros.

— Você quer que eu acabe com a carta — disse Balmoral.

— Sim. Não posso continuar vivendo assim, Jean. Você tem de entender isso. Ninguém poderia viver desse jeito.

— Mas a carta é a minha única proteção.

— Proteção contra mim?

— Sim.

— Você não precisa de nenhuma, Jean. Eu lhe juro. Há muito o perdoei. Nem penso em me vingar. Penso apenas em como evitar que você se vingue.

— Eu?

— Sim, Jean, ininterruptamente, todo dia, toda hora. E se alguma coisa lhe acontecer, atingirá um inocente, pois cer­tamente não terei nada a ver com isso. Você tem de entender, Jean. Eu lhe suplico!

Ele partiu novamente para o Chemin de Ceinture du Lac Inférieur, e ao redor do lago. Não falava nada, e comecei a sentir que não estava mais podendo agüentar aquilo muito tempo. Minhas mãos já tremiam. Cantarolou um pouco, de­pois começou a assobiar, e perguntou enquanto dirigia:

— E se eu retirar a sua carta e a entregar a você, você me dá duzentos mil marcos, é isso?

— Exatamente — disse eu olhando os grandes pássaros voando bem junto da superfície com amplos movimentos de asas.

Às vezes, de súbito uma das aves mergulhava na água e depois subia aos céus. Pegara um peixe.

— Duzentos mil marcos — disse Jean Balmoral. — Bem mais de quatrocentos mil francos. Tanto dinheiro por uma carta.

— Meu Deus, você não entende que é uma carta espe­cial, da qual depende meu futuro? E se você escorregar no metrô e quebrar o pescoço? Me dê a carta! — Agora ele passava pelo Parque Bagatelle, com seu bonito castelinho e o roseiral colorido, e um pouco depois freou de novo. Uma jovem passou por nós cavalgando. Já tínhamos visto muitos ca­valeiros no Bois, mas era a primeira mulher que cavalgava sozinha. Parecia desprezar simplesmente tudo. Era boa ama­zona, e muito bonita, mas simplesmente desprezava tudo. Olhei-a longamente.

— Como pretende me dar o dinheiro? — perguntou Balmoral, e tive vontade de abraçá-lo, mas ele teria sentido a pistola. Mordera a isca. Eu sabia que ele morderia. Dinheiro era o seu fraco, a gente sempre o pegava por ali.

— Com um cheque — disse eu.

— Um cheque do seu banco em Hamburgo?

— Claro.

— Mas você pode mandar embargá-lo imediatamente.

— Não posso. Nesse momento você poderia desvendar minha verdadeira identidade. O cheque é tão seguro quanto dinheiro vivo.

— É verdade — piscava ele. — Você o tem aqui?

— Sim.

— Então mostre!

Ele era mais fraco do que eu, portanto mostrei-lhe o che­que, mas só o deixei ver, não tocar.

— Hum — fez Jean Balmoral. Ele refletia concentrada-mente, e eu soube com absoluta certeza o que ele pensava, isto é, que não queria perder o negócio comigo, mas que, para ter mais segurança, deixaria nova carta assim que nos separásse­mos. No mesmo advogado, ou com algum outro. Seus pensa­mentos podiam ser lidos na sua cara. E no lugar dele eu teria pensado a mesma coisa.

— Tudo bem — disse ele. — Me dê o cheque!

— E quando ganho a carta?

— Depois. Vou pegá-la com meu colega e a entrego a você.

— Não — disse eu. — Assim não dá. Eu lhe disse que entendo e perdôo o que você fez. Mas dar o cheque antes de receber a carta... posso fazer você cair na tentação. Não é por mal, mas preciso pensar em mim. Duzentos mil marcos é muito dinheiro. E não quero que nos separemos antes que a troca seja perfeita. Tenho realmente um medo horrível de que lhe aconteça alguma coisa... e eu esteja liquidado.

— Sim, mas como pretende receber a carta?

Mais um ponto difícil.

— Tenho medo de aparecer na cidade. Especialmente com você. Também não quero deixá-lo sozinho. Telefone para o seu colega e diga que mande um empregado trazer a carta aqui.

— O quê? Aqui no Bois?

— É o mais seguro. Sentamos ali no restaurante, toma­mos um aperitivo, e você manda vir o mensageiro. Ele não precisa me ver. Pode vir ao seu carro... ele o conhece?

— Sim... — disse Balmoral, hesitante.

— Você também não vai querer ser visto comigo — disse eu. — Também há de ter interesse em que esse negócio fique entre nós e não seja comentado. Não esqueça que você foi visto na televisão austríaca, e que aquele médico me viu com você em Hamburgo, aquele que carregava a mala com o dinheiro. Você lhe disse que somos velhos amigos. Portanto, em seu lugar eu teria muito cuidado.

Essas palavras tiveram efeito certeiro em Balmoral.

Desembarcamos e fomos ao restaurante pintado de um amarelo forte. Chamava-se La Rotonde. Havia muitas mesas ao ar livre. Estavam preparando-as para o almoço. Balmoral foi telefonar, e fui com ele, fiquei ao seu lado enquanto ele discava para ter certeza de que não me pregaria uma peça.

Ouvi cada palavra da conversa que Balmoral manteve com o advogado, chamado Leroy. Pediu que lhe mandasse a carta imediatamente com um mensageiro ao Bois de Boulogne. Leroy ficou admirado e tentou obter explicações, mas Balmoral manteve-se firme. Precisava da carta, disse. O men­sageiro devia vir ao restaurante La Rotonde, ele o esperaria lá.

Por fim Leroy cedeu. Quis o número do telefone de onde Balmoral ligara, e este estava no disco. Balmoral disse, e des­ligou. Logo o telefone tocou de novo, e quando ouviu a voz de Balmoral, maître Leroy sossegou. O mensageiro seguiria ime­diatamente.

Voltamos ao ar livre, e perguntei a um garçom se podería­mos tomar um aperitivo, embora fosse cedo para almoçar.

— Claro, monsieur. Na verdade somos uma casa notur­na, mas agora, talvez ainda por um mês, aparecem turistas ao meio-dia. No inverno abrimos só de noite.

Balmoral parecia nervoso. Era a antevisão do dinheiro, eu o conhecia há muitos anos. Era um caráter daqueles! Graças a Deus que era.

Pedimos dois Ricards, e Balmoral disse, depois que o garçom sumira:

— Vai demorar uns quarenta minutos até o mensageiro chegar aqui.

— Você tem pressa?

— Sim.

— Eu também — respondi. — Mas vale a pena esperar. Para nós dois. Depois você me deixa no primeiro posto de táxis. — Eu tinha de me livrar dele o mais rápido possível.

— Então você ainda vai à cidade — disse ele, aspera­mente.

— Não — respondi. — Vou imediatamente ao aeroporto Charles de Gaulle. Sair de Paris, voltar para Hamburgo.

Ele pareceu acreditar em mim.

Passou-se uma hora, e nada de mensageiro.

Eu estava com as mãos úmidas.

Nada de mensageiro.

Era meio-dia.

Meu avião saía às 14h30min.

E eu ainda não tinha a carta.

 

Comemos.

Ainda hoje não sei como consegui engolir um só bocado, mas dez minutos depois do meio-dia começamos a comer.

— Espero que você não tenha me passado a perna — disse eu.

— Como faria isso?

— Não sei como o faria sem prejudicar-se a você mesmo. Mas onde está o mensageiro?

— Também não sei. — Suas mãos tremiam tanto que os bocados lhe caíam do garfo. Eu não estava em condições mui­to melhores.

— Jean, não sei o que você fez, não posso imaginar. Mas se me enganou, Deus tenha pena de você! Talvez seja o meu fim, mas será o seu também, pode ter certeza disso. Será o seu fim também.

Falei assim de propósito, para provocá-lo, era mais fácil descobrir assim se ele fizera alguma trapaça. Mas o único resultado foi que seu rosto começou a repuxar-se e as mãos a tremer ainda mais.

— Não logrei você... Também não sei onde o mensageiro está, que diabos! — Assoou o nariz, depois levantou-se, afastou o prato e voltou ao telefone, e acompanhei-o outra vez. Tudo aquilo daria um magnífico roteiro para um filme vagabundo.

Mais uma vez segui o diálogo e Leroy disse que o mensa­geiro saíra do escritório logo depois do telefonema de Balmoral, com a carta, e que não sabia qual a explicação para o atraso. Disse também que o empregado era de Lille e estava em Paris há apenas dois meses. Quando ele disse isso, nós dois gememos, depois voltamos para nossa mesa e continuamos comendo. Continuamos comendo! Pensando nisso agora, nem posso entender. Chegamos ao café, e eram 12h40min no meu relógio quando apareceu um pequeno Renault que estacionou junto do carro de Balmoral. Um rapaz desembarcou e olhou em torno, como quem procura.

Balmoral largou o guardanapo e saiu correndo até ele. Vi que ralhava com o rapaz, e recebia um envelope dele, e es­condi-me atrás do arbusto para que o mensageiro não me visse ao partir, pois passaria perto de nossa mesa. Balmoral apro­ximou-se da mesa gemendo com o esforço e colocou o envelope fechado à minha frente. Nele estava escrito: EM CASO DE MEU DESAPARECIMENTO OU MORTE SÚBITOS ABRA O ENVELOPE.

— Posso abrir? — perguntei.

— Se me der o cheque.

Ele o recebeu; abri o envelope, tirei o papel de carta, desdobrei e li:

“No caso de eu, supra-assinado, maître Jean Balmoral [seguia endereço] desaparecer ou morrer subitamen­te, declaro aqui que meu assassino é o antigo advogado parisiense maître Charles Duhamel.

Duhamel saiu ileso de um ataque terrorista no avião da Euro-Air em junho de 1981 em Viena, e no momento vive em Hamburgo, Alsterdorfer Strasse, 86, com uma certa Andréia Rosner, que tem uma livraria na Tornquiststrasse, 136. Duhamel possui um passaporte falsifi­cado e outros documentos falsos com o nome de Peter Kent. Sua aparência mudou muito. Não usa mais barba, o cabelo está curto, e usa grandes óculos de aro de tarta­ruga com lentes comuns. Duhamel é perigoso, e como se vê não recua diante de nada. Ele me matou porque, em grande necessidade, eu lhe pedi dinheiro, e ele quis se assegurar de que não o farei outra vez. Foi portanto um ato de vingança.”

Seguia-se assinatura, data: 15 de setembro de 1981.

Era exatamente como eu imaginara.

— Bonito, bonito — disse eu.

— Agora você tem a carta.

— E você, o cheque. Estamos quites. Acredite, Jean, foi melhor para nós dois. Agora tenho de ir depressa para o aero­porto Charles de Gaulle.

Paguei nosso almoço, encaminhamo-nos para o carro dele, e Jean rodou por uma alameda em direção da Porte de la Muette. Dirigia depressa. Queria se livrar logo de mim, via-se isso. Eu estava há tempo segurando a pistola, e quando a alameda fez uma curva fechada num trecho de floresta, e Balmoral teve de frear, tirei depressa a Walther do coldre e atirei na sua têmpora direita; ele tombou para a frente e morreu imediatamente. Tenho pernas compridas, e já quando atirava pusera o pé no freio, pisando até o fundo. Depois agarrei o volante, e o carro derrapou guinchando, e depois parou do lado direito da rua. Jean Balmoral estava deitado sobre o volante. Do ferimento na têmpora saía pouco sangue.

Os minutos seguintes foram os piores. Tive de descer, rodear o carro correndo, e entrar do lado do motorista. Peguei Balmoral debaixo dos braços. Não se imagina o peso de um morto. Por fim coloquei-o no assento do lado. Ainda não pas­sara nenhum carro por nós, nem viera nenhum em nossa di­reção. Exatamente quando liguei o motor e dei a partida, vi um carro pelo retrovisor. O corpo de Balmoral dobrou-se em dois ao meu lado, como um canivete. O carro nos ultrapassou buzinando. Esperei que não tivessem visto Balmoral.

Havia duas moças e dois rapazes no carro, que riram e acenaram para mim, e devolvi o aceno, rindo, enquanto o cadáver de Balmoral caía contra minha mão direita. Eu o vira meter o cheque na carteira, por isso parei de novo e tirei-a do seu casaco. Tirei o cheque, limpei cuidadosamente a carteira, o volante e o painel, e recoloquei a carteira no bolso do casaco de Balmoral. Lá onde eu parara, à direita da rua, descia um barranco íngreme até um pequeno regato, em cujo fundo avis­tei pedregulhos brancos.

Agora vinha o momento mais perigoso. Sempre de lenço na mão, liguei a ignição e coloquei o automático em D. Abri a porta e saltei no momento em que tirei o pé do freio. O carro, com o volante dirigido para o regato, deu um salto para a frente. Cambaleei, porque o carro quase me levou junto, e vi-o despencar na vala. Capotou, depois ficou deitado na água clara do regato, as rodas para cima. A porta esquerda dian­teira se abrira e Balmoral arremessado para fora. Estava dei­tado ao lado do carro, braços e pernas estendidos, olhos e boca abertos, e a água corria em pequenos e rápidos redemoi­nhos ao redor dele. Era preciso chegar muito perto da beira da rua para descobri-lo e ao carro, ali de cima.

Fiquei olhando Balmoral, e fiquei tonto, mas não de medo, e sim porque de repente lembrei que já vira uma coisa daquelas antes: um morto na água de um rio. Sim, eu já vira isso, e não me lembrava onde, quando e como acontecera. Um morto na água...

Eu tinha de ir embora, embora! Olhei em volta, depressa, e não vi ninguém. Não era longe até a Porte de la Muette, portanto fui a pé, e graças a Deus lá havia táxis.

— Aeroporto Charles de Gaulle — disse eu ao motorista, um rapaz novo.

— D’accord! — disse ele. — Tudo bem.

Partiu tão violentamente que fui atirado no estofo do assento de trás. Meu olhar caiu no painel e um dedo gelado passou nas minhas costas. 13h46min. Em pânico, olhei meu relógio de pulso. Ainda 12h40min. Coloquei o relógio no ouvi­do e não escutei nada.

— Seu relógio está certo? — perguntei ao motorista.

— No minuto — disse ele. — Comparei com o noticiário das doze. No minuto, monsieur.

Senti-me tonto e abri a janela. O ar fresco de verão entrou no carro.

Meu relógio parara às 12h40min.

Eu nunca alcançaria o avião das 14h30min. O caminho era longo demais.

 

E foi assim que matei Jean Balmoral, meu bem.

Não lamentei nem por um segundo o que fizera. Tinha de fazê-lo, não havia escolha.

Santo Deus, outra vez essa palavra, esse frio gélido! O ser humano é um abismo, sim, é verdade. Acaso um de nós pode tornar-se assassino com tanta facilidade? Não sei. Apenas ano­to aqui sinceramente o que aconteceu, meu bem. Sou um assassino. Um assassino que tem de ser julgado. Mesmo se matei para me proteger e ao meu amor de um patife?

Mesmo assim?

Assim também?

Não sei. Não sei, meu bem.

 

Cheguei no aeroporto às 14h44min, certo de que meu avião partira e meu álibi fora destruído. Eu arriscara tudo e tudo fora bem, exceto no fim. No fim eu perdera, pois só havia mais um avião para Frankfurt naquele dia, e às 20h40min, tarde demais, portanto. Se eu alugasse um carro levaria mui­tas horas, e como explicaria a Andréia que estava com um carro francês, com placa de Paris? Como explicaria isso mais tarde eventualmente à polícia? Decerto já teriam encontrado o corpo de Balmoral, ou faltava pouco. Portanto, em vão, tudo em vão.

Entrei devagar no saguão até o balcão III da Air France. Estava completamente perturbado. Num momento queria me entregar, no outro queria fazer tudo para não ser apanhado como assassino. Talvez conseguisse voar a tempo para Ham­burgo e arranjar um álibi mentiroso. Tinha de sair de Paris, isso era o mais importante. Era só o que conseguia pensar. Você vai ter uma idéia, pensava eu, sem grande confiança. Naturalmente tinha de fazer desaparecer a maleta que o mo­torista gentil trouxera de manhã. Era por isso que eu ainda me dirigia ao balcão da Air France.

Uma aeromoça ruiva e bonita sorriu para mim.

— Sr. Leder, Eugen Leder? — ela falava alemão.

— Sim.

— Lamento — disse ela.

Eu também, pensei.

— Mais meia hora — disse ela —, terá de esperar meia hora até seu avião partir.

Segurei-me no balcão, tonto.

— Meia hora — repeti como um idiota.

— Sim, e é uma grande sorte sua, Sr. Leder. Ou não teria alcançado o avião.

— Sorte...

— Sim — disse ela. — Um pequeno defeito, uma das luzinhas não acende. O defeito logo será consertado.

— Consertado — repeti como um imbecil, enquanto en­tregava à aeromoça ruiva a minha passagem para carimbar. Então o avião para Frankfurt não partira. Eu estava salvo, tudo estava bem.

Engoli com dificuldade.

— Aqui estão a passagem e o cartão de embarque, sr. Leder. Vá logo ao posto de controle de passaporte e alfân­dega. — Ela pegou minha maleta e deu-a a um negro de jaqueta forrada. — Sua bagagem. Foi trazida de manhã.

— Sim — disse eu, sentindo-me como se estivesse com­pletamente bêbado. — Eu sei. Obrigado, mademoiselle.

— Por nada, sr. Leder. Boa viagem!

E já ela falava com outro homem.

Encostei-me à parede enquanto meu coração pulsava feito louco, e esperei dois, três minutos, até minhas pernas poderem me conduzir outra vez. Depois saí do edifício e joguei pistola, coldre e pente em várias grades de bueiros. E de cada vez fingi ter de amarrar um cadarço de sapato, mas ninguém prestou atenção em mim. Com o cheque, envelope e carta fiz o mes­mo, depois de rasgar tudo em pedacinhos. Só então fui até o controle de passaporte e alfândega. Estava bem calmo quando mostrei o passaporte a um jovem policial. Segurava a passa­gem na outra mão. O funcionário abriu o passaporte, olhou o retrato, olhou para mim, disse “merci”, e devolveu o passa­porte. Nem se interessou pela passagem. Tudo acontecia como tantas vezes. Só que desta vez eu conseguira um álibi indes­trutível para um assassinato.

Fui à sala de espera de passageiros para Frankfurt. Mais meia hora e nosso vôo foi anunciado. Quinze minutos depois, portanto às 15h30min, o avião partiu. O piloto subiu vertical­mente no céu azul. Naturalmente eu outra vez não prendera o cinto de segurança, e quando o avião voava na horizontal e o letreiro Por Favor Não Fume apagara, fiz um sinal à aeromoça e pedi um uísque triplo. Tomei um gole bem grande, depois outros bem pequenos. Pensei que estava salvo, e que Andréia e eu ficaríamos juntos, e que Jean Balmoral não podia mais me fazer mal algum.

Esperei algum tempo, depois pedi outro uísque, desta vez duplo. Era um vôo bom, calmo, o sol brilhando pelas janelas. Quando olhei para fora, vi grandes florestas lá embaixo. Pare­ciam magníficas. Depois, brilhou um rio largo. Atravessáva­mos o Reno. Eu estava novamente na Alemanha.

 

O pai de Andréia estava no Nordwest-Krankenhaus, e era um bom pedaço de táxi até lá. Passamos por autopistas, dian­te de grandes edifícios e gramados.

O Nordwest-Krankenhaus era um edifício imenso. Per­guntei ao porteiro numa cabine de vidro onde estava o sr. Rosner, e ele explicou tudo direitinho. Tive de subir de eleva­dor até o terceiro andar, depois seguir por corredores nos quais linhas coloridas indicavam para onde se ia. Uma linha azul me levou à enfermaria do pai de Andréia. Ele estava num quarto de duas camas, a segunda estava vazia, e sobre ela sentavam-se Andréia e sua mãe.

Andréia levantou-se de um salto, e me abraçou e beijou muitas vezes, depois apresentou-me a seus pais. Logo na che­gada ao aeroporto eu comprara um grande ramo de flores, que Andréia deu ao pai. Este tocou a campainha chamando a enfermeira para que trouxesse um vaso com água e admirou as flores. Era uma enfermeira muito simpática.

— Então, é ele — disse Andréia. — Olhem bem para ele! Não lhes agrada?

— Muito — disse a mãe, uma mulher esbelta de cabelo grisalho e olhos escuros. Achei Andréia inacreditavelmente parecida com ela, e mais tarde ficaria assim. A mãe teria a minha idade. O pai estava muito pálido devido à doença. Tinha cabelos pretos, olhos alegres e ruguinhas de riso ao redor da boca. Primeiro a conversa foi meio difícil, como sem­pre que se conhecem pessoas pela primeira vez, e Andréia contou de que modo singular nos encontráramos em Viena, embora certamente seus pais já soubessem disso. Depois falou de nossa livraria, e venceu maravilhosamente os primeiros minutos difíceis e constrangidos, até que conversamos de ma­neira bem normal. Falamos sobre a dieta especial que o pai de Andréia teria de seguir agora, e um remédio sintético para controlar a insulina, e depois falamos do bebê.

— Sempre quis tanto que Andréia tivesse um — disse a mãe. — Ela já tem idade.

— Sim, vinte e nove, horrivelmente velha — disse An­dréia.

— Quando eu tinha essa idade você nascera há muito, minha filha. E naturalmente eu estava casada.

— Mas nós vamos casar, mamãe — disse Andréia —, por causa de você e porque Peter diz que é melhor para uma mulher de negócios. O que pensariam as pessoas, não é?

— O senhor é um homem sensato, sr. Kent — disse a mãe, e Andréia piscou para mim.

— Mas por que casar? — disse o pai. — Nesses tem­pos... quantas pessoas têm filhos e não são casadas? É apenas um hábito tolo.

Ele disse isso para provocar a mulher, e também piscou para mim enquanto a mãe de Andréia começava a citar grave­mente todas as vantagens do casamento. Logo fizemos um bom contato. O pai era o tipo social, desinibido; a mãe levava tudo muito a sério.

Andréia e eu dissemos que só queríamos esperar que o pai saísse do hospital e estivesse forte, depois casaríamos imediatamente. E quando a mãe de Andréia ouviu que o bebê seria batizado na religião católica, ficou muito feliz.

A enfermeira trouxe chá e biscoitos, mas de modo algum quis aceitar dinheiro. Ria muito. Via-se que gostava do pai de Andréia. Era certamente um bom paciente.

Da janela do quarto via-se um amplo prado, com muitas ovelhas pastando. Dois viadutos cruzavam-se ali, e nos pilares havia uma grande superfície de concreto onde estava escrito com spray:

4,6 BILHÕES DE PESSOAS NÃO QUEREM

SE DEIXAR LANÇAR NA MORTE ATÔMICA

POR 200 VELHOS!

A tinta negra brilhava no sol da tarde.

 

Pegamos o vôo noturno da Lufthansa para Hamburgo e às onze estávamos em casa. Na cama tudo foi tão excitante como da primeira vez, e Andréia achou que de vez em quando podíamos nos separar por uns dias se isso tinha aquele efeito no reencontro. Como ficamos com sede, fui à cozinha, peguei duas garrafas de cerveja da geladeira e levei dois copos.

— Ah — fez Andréia depois de beber, e respirou fundo. — Coisa boa. O sr. Langenau sempre me diz do primeiro gole de cerveja: “Isso tem de chiar”.

— Os tiroleses são os maiores bebedores de cerveja.

— Não quero brigar com você agora, Gato, mas não são, você está confundindo. Não são os tiroleses, são os bávaros. Os dois têm calções curtos e barbichas de cabra nos chapéus, mas a bela Hofbräuhaus fica em Munique.

— Os belgas também tomam muita cerveja — disse eu.

— Mas que conversa arrebatadora!

— Beba — disse eu. — Pense na criança, querida.

— Sim, tenho de fazer isso — disse ela. — O Dr. Kahler não disse apenas que cerveja é bom; é importante também que você faça amor comigo até bem perto da hora, pois facilitará o parto.

— Disse o Dr. Kahler.

— Disse o Dr. Kahler.

— Pode ficar despreocupada.

— Vai me amar mesmo quando eu estiver redonda como uma pipa?

— Sempre tive vontade de fazer amor com uma pipa.

— Você é fabuloso — disse ela, com um pouquinho de espuma no lábio superior, que limpei. — E tão encantador!— Andréia me beijou. — É como com alho: quando os dois bebem cerveja, podem se beijar. Você impressionou muito os meus pais, Gato, especialmente minha mãe. Ela ficou louca por você.

— Que bom.

— Barão, o senhor foi finíssimo, finíssimo.

— A senhora também, Condessa.

— Mas não fiz nada.

— Não falei de Frankfurt, falo daqui.

— Ah, meu nobre senhor, essa é uma coisa da qual a gente nunca se cansa, não é? — Ela me encarava. — Em que pensa, meu amo?

— O amo está pensando no bebê — disse eu. — E no Dr. Kahler. Acho que devemos tomar mais cerveja.

 

No dia seguinte já se lia no Welt.

Como sempre, tomávamos o café da manhã num nicho da grande cozinha, e acabava de passar das oito. As janelas da­vam para o jardim e estavam abertas, para eu poder ouvir os pássaros. Tínhamos assinatura do Welt, que estava todas as manhãs diante da porta do apartamento. No café Andréia pegava uma parte e eu a outra, depois trocávamos. E líamos um para o outro passagens importantes ou engraçadas.

Essa eu não li para Andréia:

ASSASSINADO CONHECIDO ADVOGADO DE PARIS

Paris (do corresp.) — Pessoas que passeavam de bi­cicleta descobriram ontem à tarde no Bois de Boulogne o cadáver do eminente advogado Jean Balmoral (47). Seu carro caíra duma alameda em um regato que corre para­lelo à rua. O morto estava na água, ao lado do carro, certamente lançado para fora do veículo na queda. O advogado, que não deixa família, foi morto por um tiro de pistola na têmpora direita. Segundo a polícia, Bal­moral almoçara com um desconhecido no restaurante La Rotonde no Bois de Boulogne. Procura-se por esse desconhecido. Até agora não há pistas. O assassinato do conhecido advogado causou grande repercussão em Paris.

Se já havia tanto sobre o crime no Welt, os jornais de Paris deviam ter dado mais espaço ainda ao crime. Os jor­nais de bulevar certamente deviam ter usado a notícia como manchete de primeira página. Era preciso que eu me infor­masse sobre tudo o que diziam os jornais parisienses. Mas Andréia não podia saber disso. Então pensei em Walter Hernin, e achei que encontrara o caminho. Não sabia se era bom.

Mas tinha esperança.

Estava calmo na livraria naquela quarta-feira, e Patty andava outra vez pensativa à tarde. Desta vez pegara Langenau.

— Tio Conrad, leões entram no céu?

— Não, Patty.

— Tio Conrad, pastores evangélicos entram no céu?

— Sim, Patty, claro.

— Mas tio Conrad, e se um leão engolir um pastor?

Não sei como Langenau se safou dessa, pois Andréia e eu fugimos para o Cat’s Corner, onde rimos alto, mas de repente parei de rir, porque pensei em Jean Balmoral.

Quando Walter Hernin chegou às cinco e meia, não havia movimento na livraria, por isso eu lhe disse que ia andar um pouco na rua para respirar ar fresco, e se ele não queria vir comigo. Patty e Félix jogavam pingue-pongue.

Passeamos lá fora diante da livraria, e eu disse:

— Walter, aconteceu uma coisa grave.

— Grave?

— Muito grave — disse eu. — Você é a única pessoa que vai entender.

Hernin me encarou longamente, depois perguntou:

— Então, você sabe a meu respeito?

Fiz que sim, e contei-lhe toda a minha história, tudo, realmente, desde o começo...

Ele andava de um lado para o outro, o rosto sério, e quando me encarava era com muita compaixão. Quando ter­minei, ele disse:

— Como você sabe, na guerra também tive de matar um homem, Peter. Tive de fazer isso exatamente como você, para que outras pessoas não corressem perigo.

— Sim, mas para você era perigo de morte certa para muita gente — disse eu. — Comigo foi só medo por Andréia e por mim, e de que minha existência fosse destruída.

— Esse Balmoral era um chantagista. Naturalmente você tem razão, comigo tratava-se da morte ou vida para muitos. Mas eu teria agido exatamente como você em seu lugar, des­truindo um mundo inteiro.

— Como?

— Quem mata uma pessoa destrói um mundo todo, Pe­ter. Por isso jamais poderei esquecer o que fiz. Nem você poderá esquecer...

— Ah, sim — interrompi eu. — Não me arrependo de nada. Vou esquecer.

— Você acha — disse ele. — Não vai esquecer nunca. Como posso ajudá-lo, Peter?

— Tenho de saber sem falta o que está acontecendo em Paris agora, e como a polícia está progredindo. Preciso de jornais parisienses, de cada dia. Você pode consegui-los na banca de jornais internacionais da Estação Central. Não posso apanhá-los, pois chamaria a atenção de Andréia e de Langenau. Por isso peço que compre esses jornais todos os dias antes de vir apanhar Patty. Andréia me disse que você fala fluente­mente francês. Por favor, olhe tudo para poder me dizer o que está acontecendo e o que tenho de ler. Você me faria esse fator, Walter?

— Mas claro — disse ele. — Que pergunta! Escute, mas então já precisa dos jornais de hoje.

— Sim, seria bom.

— Quer que os traga ainda hoje?

— Basta que os entregue amanhã, com as edições do dia.

— Tudo bem — disse Hernin. — Então no caminho de casa passo pela estação e dou qualquer desculpa a Patty, e a partir de amanhã apanho os jornais antes de vir buscá-la. Mas quando vai lê-los, e onde?

Nesse momento Andréia saiu da livraria, rindo.

— Então, vocês dois aí, grandes segredos?

— Terríveis — disse eu. Ela despediu-se de Hernin, deu-me um beijo dizendo “Até logo, Gato!”, depois entrou em seu velho Volkswagen enferrujado e partiu acenando, e acenamos também.

— É assim, está vendo, Walter — disse eu. — Andréia sempre vai para casa vinte minutos ou meia hora antes, para cuidar da comida. Depois Langenau me leva para casa. Assim tenho tempo de ler. Veja se consegue vir sempre às cinco e meia. Caso alguma vez não possa me dar os jornais discreta­mente, você me diz o que havia neles. Podemos fazer isso também sempre que forem notícias sem importância. Nunca traga jornais inteiros, só as páginas em que haja alguma coisa sobre o crime. Temos que tomar cuidado, mas não será coisa permanente. — Parei, olhei para ele e disse: — Não há outro jeito. A verdade toda, assim como contei a você, a minha segunda vida, os papéis falsificados, eu não poderia contar a Andréia de jeito nenhum, nunca. Isso a destruiria totalmente. Pense que ela vai ter um filho!

— Estou pensando nisso o tempo todo — disse ele. — Quando amamos uma pessoa, sempre lhe podemos contar apenas pedacinhos da verdade.

— Sim, é certo — disse eu.

— E onde pretende ler o jornal?

— Aqui no banheiro, ou em casa. Tudo muito repulsivo, mas não tenho outra escolha. Preciso também dar sumiço nas folhas.

— O melhor é que me devolva as velhas quando eu trou­xer as novas. Tem uma pasta?

— Sim.

— Ponha-a no Cat’s Corner num canto ou junto do sofá. Que todos a vejam. Como naquele conto de Edgar Allan Poe, em que se procura uma chave. Lerei as folhas novas lá, quan­do der, e tirarei as velhas da pasta. Andréia não a abrirá nunca, e se abrir, direi que um cliente a esqueceu. E Peter...

— Sim?

— Fico muito contente por você me contar tudo e eu poder ajudar.

— Agora entendo por que Langenau é tão bom católico — disse eu.

— Por quê?

— Ora, ele pode se confessar. Quando a gente se con­fessa, tudo não é mais tão terrível. Na minha profissão anti­gamente era a mesma coisa. Muitos criminosos no fim tinham quase compulsão de confessar tudo, e depois voltavam a dor­mir bem. Gente sensata, esses católicos.

 

Na tarde seguinte Hernin já chegou antes das cinco e meia e trouxe os recortes de jornal debaixo do casaco. Mais tarde fui ao Cat’s Corner e lá estavam na minha pasta. Le­vei-os para o banheiro, debaixo da camisa. Eram páginas do Le Matin, Le Monde, do Figaro, do Quotidien, e do France-Soir. Hernin tirara muitas páginas, pois as notícias eram mui­to extensas. Havia também fotos do local em que tinham en­contrado o cadáver, e uma de Balmoral morto no regato, e uma vez só seu rosto — uma foto de passaporte. Os ciclistas que tinham encontrado o morto e o carro caído no barranco contaram sua história. Eram duas mocinhas e um rapaz, na­turalmente seus nomes estavam ali, e fotos também. Depois descobri uma foto do restaurante La Rotonde, e uma seta indicava a mesa onde eu almoçara com Balmoral. Cada um dos dois garçons que nos tinham servido dava uma extensa descrição da minha pessoa, uma bem diferente da outra, como costuma acontecer: eu vira isso muitas vezes como advogado. Um garçom me descreveu como atarracado, um velho de ses­senta anos, baixo, cabelos pretos, bastos e compridos, rosto redondo e lábios estreitos. O outro dizia que eu era de altura normal, cabelo ralo e grisalho, talvez beirando os quarenta, e cabeça estreita. Eu sabia quantas vezes a polícia se enganava devido a essas descrições. Os dois retratos-falados feitos se­gundo a descrição dos dois garçons eram completamente di­ferentes. Os garçons diziam que eu falava francês como um parisiense, e que certamente era de lá, como Balmoral. Não falaram nos meus óculos, que eu tirara. Portanto, por esse lado não havia perigo.

Maître Pierre Leroy ocupava abundantemente os jornais, o homem com quem Balmoral deixara aquela carta, com a recomendação de abri-la caso lhe acontecesse alguma coisa. Havia também uma foto de maître Leroy, um homem gordo e idoso, bem como do mensageiro que levara a carta ao Bois. Este disse que nem me enxergara, o que era verdade. Leroy disse que a carta lhe fora entregue por Balmoral a 15 de setembro, mais não sabia, exceto que Balmoral telefonara na manhã do dia 22 de setembro pedindo que mandasse a carta ao Bois de Boulogne, restaurante La Rotonde. Pela voz pa­recia que Balmoral tinha pressa, mas não parecia assustado. Leroy disse que por segurança pedira o número do aparelho, e ligara, e Balmoral realmente atendera ao telefone.

Naturalmente todos os jornais faziam o maior mistério em torno da carta; todos indicavam muito corretamente que era uma carta de medida de segurança, mas ninguém tinha a menor idéia da pessoa a quem a carta acusaria. O desconhe­cido? Mas então por que Balmoral retirara a carta? Devia ter-se sentido inteiramente seguro, pensavam os repórteres, e muitos suspeitavam que o desconhecido devia ser um conhe­cido ou mesmo amigo de Balmoral. Mas desde quando co­nhecidos ou amigos queriam matar a gente?

Os jornais apresentaram a hipótese de um terceiro ho­mem, o que tornava a situação ainda mais confusa, mas para mim era ótimo. Também se fotografara uma Walther calibre 7,35 mm, e a polícia perguntava quem vira ou vendera tal arma. Os caras da Gare du Nord certamente se tinham apre­sentado.

Também se mencionava que as portas dianteiras, o vo­lante, a alavanca do automático e o painel não tinham im­pressões digitais, e a polícia deduzia que o assassino limpara essas partes, pois no resto do carro encontraram muitas impressões.

Três jornais disseram que Balmoral vivera muito discreta­mente e que raras vezes aparecia em sociedade. Seu melhor amigo, escreviam, fora maître Charles Duhamel, conhecido advogado sensacionalista que morrera em junho, no ataque terrorista do avião da Euro-Air em Viena.

Guardei novamente as páginas debaixo da camisa, para colocá-las na pasta no Cat’s Corner. Depois de ter puxado a descarga, saí do banheiro. Andréia já fora para casa, muitos pais vinham buscar as crianças, Langenau fazia o balanço do dia. Saí com Hernin para a rua, ele ponderou que com aquelas notícias de jornais de dois dias eu devia estar satisfeito; con­cordei.

— Nunca vão pensar em você — disse Hernin.

— Toi, toi, toi — disse eu, batendo na testa.

— Sério — disse ele. — Teria de acontecer algo inacre­ditável.

Bem, minha querida, pois algo inacreditável acabou acon­tecendo.

 

No grande salão do pequeno palácio da Alameda Pilatre de Rozier no qual eu vivera tantos anos com Yvonne, os fotó­grafos e cameramen se comprimiam em torno de minha mu­lher, que, toda de branco e coberta de diamantes, estava entronada num divã. Fazia muito calor no salão, pois o pes­soal da televisão trouxera seus holofotes muito intensos. Havia também uns vinte jornalistas — de jornais parisienses e outros jornais franceses e de grandes revistas.

Yvonne obedecia aos pedidos dos fotógrafos, obediente como uma modelo, olhava as câmeras, olhava para cá e para lá, apontava com um dedo coberto de diamantes uma man­chete que abordava o assassinato de Balmoral, e estava muito excitada. Paul Perrier, de terno escuro, várias vezes fotogra­fado com ela, já dera dez miligramas de Valium a Yvonne, porém ela ainda se portava como uma maníaca.

Isso foi a 28 de setembro de 1981, às 15h.

Desfez-se a primeira confusão no salão. Os fotógrafos re­cuaram e assumiram posições fixas, como os câmeras. Os en­trevistadores sentaram-se ou ficaram em pé, a maioria com gravadores na mão. Tinham escolhido como porta-voz um re­pórter do Le Matin, chamado Henri Arronge, por ser o mais velho na profissão e porque não podiam falar todos ao mesmo tempo. Arronge, com fundas olheiras debaixo dos olhos cin­zentos e cabelos grisalhos e bastos, estava sentado em frente de Yvonne. Paul Perrier estava agora parado atrás dela. Dava a impressão de muita solenidade, e naturalmente devia estar num estado indescritível.

Arronge começou:

— Madame Duhamel, a senhora nos convidou porque quer fazer uma participação importante... ao menos foi o que entendemos dos telefonemas de monsieur Perrier.

Yvonne respondeu:

— Os senhores entenderam corretamente. Agradeço por terem vindo em tão grande número, porque preciso de sua ajuda. Da última vez que precisei dela e pedi para me ou­virem, não mostraram interesse.

Começou logo assim, e os câmeras da televisão receberam instruções da direção para interromperem a transmissão, os holofotes se apagaram, e Yvonne continuou se queixando do comportamento dos jornalistas no passado, quando estes a tinham boicotado em solidariedade aos colegas do France, Soir. Mas agora Balmoral fora assassinado, e Paul Perrier dera a entender claramente em seus telefonemas a jornais e televisões que Yvonne tinha revelações sensacionais sobre o cri­me. Depois disso os chefes tinham mandado seus. repórteres. Se se tivessem negado, teriam sido postos na rua e outros teriam vindo, sabiam disso. Portanto Arronge falou num mal-entendido, e pediu desculpas pelos colegas.

— Muito bem — disse Yvonne. — Não sou rancorosa. Aceito suas desculpas.

Os holofotes acenderam-se novamente, as câmeras zumbi­ram e Arronge recomeçou:

— Madame Duhamel, a senhora nos convidou porque tem uma informação importante a dar...

O diálogo que agora estava sendo gravado e mais tarde seria publicado nos jornais e transmitido pela televisão era o seguinte:

“Y. — Isso mesmo.

A. — De que se trata, madame?

Y. — Paris ainda está chocada com o brutal assassinato de maître Balmoral. Era o melhor amigo de meu marido. Ele foi morto por meu marido.

Confusão de vozes, cliques de câmeras.

“A. — Mas seu marido está morto, madame Duhamel, vítima do ataque terrorista de junho no avião da Euro-Air em Viena!

Y. — É o que pensam. Mas ele sobreviveu à explosão, ileso.

A. — Perdão, madame, mas não é um pouco... fantás­tico?

Y. — Admito que soa fantástico. Um alto funcionário do Ministério da Justiça também não quis acreditar em mim. Agora, um homem foi morto a tiro. Pergunto: acreditará em mim agora? Profetizei-lhe que meu marido voltaria e comete­ria crimes.

A. — A senhora profetizou o assassinato de Jean Balmoral, e ele não fez nada? Como se chama esse funcionário, madame?

Y. — Isso não vem ao caso. Também não profetizei a morte de Balmoral.

A. — Qual então?

Y. — A minha própria.”

Grande agitação. Mais uma vez, cliques de máquinas fo­tográficas. As câmeras de televisão funcionavam ininterrupta­mente.

“A. — Sua própria?

Y. — E a de monsieur Perrier.

A. — Isso é monstruoso.

Y. — Acho que se pode classificar assim.

A. — Mas por quê... como teve essas suspeitas?

Y. — Não é suspeita. É minha firme convicção. Meu marido é um monstro, ninguém senão eu conhece seu verda­deiro rosto... Ele me amedronta tanto que quase não consigo mais viver, e é isso que ele quer. Quando eu estiver mental­mente destruída, ele me matará... e a monsieur Perrier.

A. — Mas por que, madame, por quê?

Y. — Para vingar-se. Ele me odeia. Sempre me odiou. Monsieur Perrier me deu até aqui forças para continuar vi­vendo e agüentando. Mas agora estou no fim de minhas for­ças. — Um grito: — Eu não posso mais!

A. — Madame, acredite em nossa simpatia... embora seja difícil acreditar que tudo seja como diz.

Y. — Está me chamando de mentirosa?

A. — Absolutamente, madame. Eu jamais me permitiria isso.

Y. — Então não dê essas indiretas. É tudo exatamente como eu disse. Meu marido me odeia há muitos anos, nin­guém sabia disso. Na posição dele, ele não podia permitir que os outros soubessem. Mas se os senhores pudessem sequer adivinhar o que sofri... Esse homem não é normal, é comple­tamente anormal, isso é o mais terrível... Depois desse aten­tado aéreo a que sobreviveu, ele decidiu me matar...

A. — Madame, por favor!

Y. — ...me matar, sim... Agora ele desapareceu... e pode executar seu plano... é o que ele pensa, na sua mente doen­tia... Está vendo em que medida estou desesperada, a ponto de revelar coisas privadas à opinião pública... Monsieur Perrier está me apoiando... e da simpatia nasceu um amor, um amor muito grande... naturalmente meu marido sabe disso...

A. — Como?

Y. — Ele sabe de tudo. É muito esperto. Pense nos seus processos. Ele não conhecia todos os truques, todas as armadi­lhas?... Ele nos está observando... rondando... e seu ódio cresce mais e mais... ódio a monsieur Perrier também, natural­mente... Agora esse ódio de um cérebro doente cresceu e deu-se um crime. Meu marido assassinou seu melhor amigo, para me causar ainda mais medo e desespero. Com esse assassinato ele quis me dizer, olhe só do que sou capaz! Imagine o que farei com você. Isso é terror, senhores, o mais puro terror.

A. — Madame, a polícia não partilha do seu ponto de vista. Ao contrário, nega-o.

Y. — Esses canalhas!

A. — Mas onde está seu marido, madame?

Y. — Em seu esconderijo, claro. Só o abandona quando quer atacar... como agora, que matou o pobre Balmoral... ou já algum tempo quando, sabe, à noite ele apareceu diante do Tour D’Argent e quase me matou de susto. Depois a polícia veio e me levou à delegacia, registrei minha queixa, os mé­dicos pediram que eu fizesse uma sonoterapia. Sonoterapia! Olhe para mim! O que sou? Um farrapo humano. Uma pessoa acabada. A polícia não acredita em mim, o senhor disse corretamente. — Outro grito: — Será que esse demônio terá que me matar primeiro, para que acreditem em mim?

A. — Estou certo, madame, de que vão tratar a senhora de maneira diferente quando esta entrevista chegar à opinião pública.

Y. — Não tenho tanta certeza. O que já vi até agora de cinismo, incompreensão e rejeição de parte da polícia e dos mais altos funcionários deste Estado...”

 

“...supera qualquer imaginação”, li no France Soir, tran­cado no banheiro. Era 29 de setembro. Há uma semana eu brincava de esconde-esconde, ajudado por Hernin, que me trazia os jornais diariamente, e uma semana depois da morte de Jean Balmoral a polícia ainda não encontrara a menor pista, confessava abertamente um porta-voz. As notícias do caso já tinham passado das primeiras páginas para o interior dos jornais, mas agora, depois da entrevista com Yvonne, vol­tavam às primeiras páginas. Enojado de mim, inquieto por causa das entrevistas, continuei lendo...

“A. — Como? Acha que a polícia ainda não lhe dará atenção nem iniciará uma caçada ao seu marido?

Y. — Estou quase certa de que não o farão. Pelo contrá­rio, agora vão tentar esquivar-se de qualquer responsabili­dade, chamando-me de histérica e de coisas piores. As condi­ções aqui, senhores, não seriam admitidas na menor das repú­blicas das bananas. Logo vão me encontrar assassinada... e depois dirão que por histeria me suicidei, Essa desgraçada corja de burocratas nem pensa em procurar aquele demô­nio... Supliquei de joelhos àqueles importantes senhores... que fizessem ao menos algumas investigações, antes que seja tarde demais... eles não fazem nada... — Um novo abalo, mas rápido. — Eles não fazem nada!

A. — Na sua opinião, onde está escondido seu marido?

Y. — Pode estar em qualquer parte, aqui em Paris, em algum lugar na França, no exterior, Berlim, Roma, Madri, Düsseldorf, Hamburgo... Com o avião a jato ele chega a Paris de qualquer parte em pouco tempo. Naturalmente usa outro nome. E papéis falsos... Dinheiro ele tem... uma conta na Suíça... Acuso a polícia e o Ministério da Justiça de negli­gência e incompetência!”

Era o fim da entrevista. No France-Soir havia cinco fotos de Yvonne, duas com Paul Perrier, e uma velha foto minha.

Dentro de uma moldura havia um breve informe: o Mi­nistério da Justiça e o chefe de Polícia de Paris recusavam-se a tomar qualquer atitude em relação à entrevista de madame Yvonne Duhamel.

Pensei: estariam recusando mesmo? Ou seria um truque, uma manobra? E se as autoridades realmente ficassem inertes — até quando? Apesar de tudo, pensei, você tem uma boa chance. Mas e se o interesse de milhões de pessoas for des­pertado por essas entrevistas de jornal e televisão? Eu estaria protegido de todas as possibilidades imagináveis? Apagara todas as pistas. Era impossível encontrar-me. Impossível mes­mo? Talvez nos Estados Unidos eu estivesse absolutamente seguro. Mas não estava lá, estava em Hamburgo. E por outro lado, a afirmativa de Yvonne de que eu matara Jean Balmoral teria de parecer loucura a todos os que não soubessem da verdade, a afirmação de uma demente. Não, decidi, pode ficar tranqüilo. Mas eu preferia estar nos Estados Unidos do que na Europa.

Dobrei as folhas de jornal, meti-as debaixo da camisa e fui ao canto onde estava a minha pasta, para esconder as folhas. Andréia chamou da cozinha, avisando que o jantar estava pronto.

— Estou indo!

Sempre comíamos na cozinha, num grande nicho redondo a um canto. Dali se via o velho jardim. Andréia pusera a mesa com capricho, como sempre enfeitada de flores. Naquele gran­de nicho a gente se sentia como no convés de um navio, ou na cabine de um avião. Andréia era uma ótima cozinheira. Tudo corria depressa e sem esforço aparente. Eu me divertia colo­cando a louça na máquina de lavar depois da refeição e arrumando-a depois. Três vezes por semana uma faxineira cuidava da limpeza da casa. Chamava-se Wanderer. Era de muita confiança e leal, e trabalhava para Andréia há anos.

Sentei-me no convés e recebi junto com a comida um enorme prato de salada, que havia quase diariamente. An­dréia era louca por saladas. Tirava o avental colorido de cozi­nha antes de começar a comer, e alegrava-se como uma crian­ça quando eu dizia que tudo estava saborosíssimo. Acho que se devia dizer isso muitas vezes a uma mulher que além das outras tarefas ainda se dá o trabalho de cozinhar. Mulheres recebem tão pouco reconhecimento pelos seus inúmeros afaze­res domésticos. Yvonne obviamente jamais preparara a co­mida durante nosso longo convívio.

— Você é um bom Gatão — disse Andréia. — Para você a gente gosta de cozinhar. Você gosta de comer, gosta de brincar, e brinca com muita doçura.

— Não, é você que brinca docemente. Um homem mal consegue brincar com a mesma doçura de uma mulher.

— Quanta coisa temos em comum — disse ela. — Co­mer, beber, brincar. Gostamos dos mesmos livros e dos mes­mos quadros, e temos a mesma opinião política — o que pode nos acontecer de mal? Hoje vamos brincar outra vez, não é, meu Gato?

— Claro. Se isso lhe facilita o parto...

— ...então você se sacrifica, não é?

— Então eu me sacrifico.

— Você é realmente um Gato muito bonzinho, e vai ga­nhar mais um pedaço de fígado, é a comida preferida do meu Gato.

— Você é que precisa agora de muito fígado.

— Acha que vou lhe dar tudo? Vou tirar um pedaço para mim. — Ela me olhou fixo. — Ah, Gato, será que tudo sem­pre vai ser assim como agora entre nós? Estamos juntos há apenas alguns meses, isso não é grande proeza. Mas em dez anos, quando eu tiver rugas e não for mais tão excitante para você, e aí?

— Bem, não será tudo exatamente como agora — disse eu. — Pois terei cinqüenta e nove anos, estarei careca, com dentadura postiça e reumatismo, e estarei impotente.

— Não, não estará.

— Sim, estarei.

— Então vai tomar injeções de hormônios. Impotente com cinqüenta e nove anos, onde já se viu? — De repente ficou séria. — Em dez anos... meu Deus, Gato, em dez anos. Talvez as bombas atômicas já caiam amanhã... e eu aqui falando em dez anos, eu idiota. Sabe duma coisa, Gato?

— O quê?

— Acho que devemos viver cada dia como se fosse o último.

— Mas é o que nós fazemos.

— Sim — disse ela. — Por enquanto. Não vamos esque­cer: cada dia será o último. Santo Deus, em que época vi­vemos!

— Isso também as pessoas das outras épocas diziam.

— Você acha mesmo?

— Acho.

— Não acredito. De noite já tenho de ligar a televisão no noticiário. A cada notícia tenho a impressão de que não nos resta muito tempo.

— E a salada esteve excelente outra vez — disse eu.

— Obrigada, meu Gato querido — disse ela. — Você tem sorte com mulheres, eu entendo. Aquele que diz à mulher que o fígado está bom e que a salada esteve excelente, é um homem como todas querem, e se ainda por cima sabe brincar tão doce como você... mas sou uma boba, fico lhe dizendo coisas bonitas demais, você vai ficar com megalomania! Não — disse ela depois —, um Gato tão bonzinho como você não vai ficar megalomaníaco. Vai ficar desmemoriado, com qua­renta e nove anos já está esclerosado, meio prematuramente. Ao menos ficou contente?

— Contente? Com o quê? Penso que estou contente com tudo junto de você, mas parece que tem alguma coisa especial em vista.

— Ora, só não me diga que não viu!

— Não viu... o quê?

— Santo Deus, então não viu! — Levantou-se de um salto e saiu correndo da cozinha. — Ele não viu ainda! Será possível? — Voltou com a pasta nas mãos.

 

Abriu a pasta, e como se procurasse alguma coisa, espa­lhou na mesa tudo o que estava lá dentro: contas da livraria, outros papéis, uma agenda... e todas as páginas de jornais franceses, que estavam bem em cima.

Depois encontrou o que procurava. Era quadrado, muito chato, enrolado em papel de presente vermelho. Colocou o pacote na mesa.

— Você realmente não tinha visto isso?

— Não — disse eu. — Quando o colocou na pasta?

— Ontem de tarde. — Enquanto falava ela ia arrumando novamente tudo na pasta, as contas, os papéis, a agenda e todas as folhas de jornais franceses. Olhou-as um momento, mas sem interesse. — Abra — disse ela. — Abra, meu Gato!

Abri o pacotinho vermelho, abalado. Um velho disco de setenta e oito rotações apareceu, numa capa antiquada. Vi o título na etiqueta redonda: The man I love.

— Minha querida Esquilinha — disse eu, enquanto ela fechava a pasta. Os olhos dela brilhavam.

— Está contente, Gato? The man I love. A canção que sempre tenho na cabeça. A sua canção, a minha, a nossa canção. Desde que você está em Hamburgo andei atrás desse disco. Um disco velho de setenta e oito rotações. Naturalmente a gente encontra a canção em compactos de quarenta e cinco e em discos de trinta e três, cantada por muitas estrelas. Mas eu queria o disco velho, com a música daquele tempo, as ranhuras, a atmosfera. Doris Day cantando. Com aquela vozinha aguda, que todos têm num disco de setenta e oito. The man I love está sentado aqui — disse ela. E me beijou. — Come on, let’s dance, Gato!

Ela me pegou pela mão e correu comigo até a sala, onde estava o toca-discos. Não era mais novo, e tinha dispositivo para setenta e oito rotações. Andréia colocou o disco no prato e ligou o aparelho. A orquestra soou e depois a voz de Doris Day...

“When the mellow moon begins to beam, ev’ry night I dream a little dream...”

Peguei Andréia nos braços e lentamente, ao som da mú­sica romântica, começamos a dançar.

— Gato — dizia ela —, ah, meu Gato!

Beijei-a.

— “...someday he’ll come along, the man I love...” can­tava Doris Day, e a sua voz e a música tinham um som metá­lico e vibrante que me comovia, lembrando um tempo há muito passado, quando eu era criança e Andréia nem havia nascido, aquele tempo de uma guerra cruel com cinqüenta milhões de mortos, a maior da história. Naquele tempo as pessoas já dançavam ao som daquela música, e naquele tempo o disco fora prensado.

“...and he’ll be big and strong, the man I love...”

Esquilinha — disse eu —, te amo tanto. — E giramos devagar, o rosto dela contra o meu, a safira no velho disco arranhando, e, como algumas vezes antes, tive de novo a súbi­ta sensação de já haver experimentado tudo aquilo, a terna música, a dança. Eu já dançara uma vez com Andréia, feliz e livre, girando, e era como se voássemos cada vez mais alto, num céu radiante. Quando fora aquilo, quando? Eu não sabia mais.

— Sirvo direitinho para você, Gato, não é?

— Direitinho.

— Se quiser que eu mude, deve me dizer, sabe?

“...and when he comes my way, I’ll do my best to make him stay...”, soava a voz de Doris Day no velho disco, vinda de outros tempos.

— Não quero que mude, quero você assim como é — respondi. — Você é maravilhosa, perfeita.

“...he’ll look at me and smile, I’ll understand...”

— Não — disse ela. — Ainda sou muito boba e inexpe­riente com meus dois, três homens. Talvez você me preferisse mais requintada ou sensual.

“...and in a little while he’ll take my hand...”

Ela apertou minha mão e disse: — Deve haver coisas lascivas e maravilhosas de que você gosta e que eu não co­nheço.

— Você conhece todas as coisas que eu gosto — disse eu.

— Muitas delas são pecaminosas?

— Sim.

— Eu sou pecaminosa, querido?

— Como eu.

— Ah — disse ela no meu ouvido —, o pecado não é uma coisa maravilhosa, querido?

— Com você é maravilhoso — disse eu.

“...and though it seems absurd, I know we both won’t say a word...”, cantava Doris Day.

— Com outras também foi tão bom, Gato, me diga, me diga a verdade! É importante.

— Esqueci, não tenho mais nem idéia.

“...may be I shall meet him Sunday, may be Monday, may be not. Still I’m sure to meet him someday...”

— Verdade, querido?

— Verdade, Esquilinha. — Ela pegou minhas mãos e as colocou no seio.

“may be Tuesday will be my good-news-day...”, cantava Doris Day.

— Sim, deixe sua mão aí, Gato, mas firme, um pouco mais. Assim é bom, é maravilhoso.

— Adoro teus seios — disse eu.

“...he’ll build a little home”, cantava Doris Day, “just meant for two, from which I’ll never roam — who would, would you?”

— E minhas coxas não são finas demais?

— Não. E suas pernas são compridas e excitantes.

— É tão bom ouvir isso, meu Gato amado...

“...and so all else above... I’m waiting for the man I love”, soou a voz de Doris Day. Um saxofone começou a tocar alto, e a safira cambaleava nas ranhuras do velho disco, sobre o qual tinham deslizado tantas agulhas em todo aquele longo tempo. A música tremia.

— Não me olhe desse jeito tão desavergonhado — disse Andréia, rindo. — Não, pode olhar, sim, Gato. Vamos brin­car? — De repente ela ficou excitada. — Vamos fazer uma brincadeirinha doce?

— Sim, Esquilinha.

— Vem!

— Vou só desligar o aparelho...

— Pode fazer depois. Podemos fazer tudo depois. Agora só interessa brincar. Vem, Gato, brinque comigo!

 

Casamos a 6 de outubro, na igreja que Langenau fre­qüentava. Estivemos no cartório dias antes, tudo fora bem depressa, como Patty profetizara.

— SMS!

— Como? — disse Andréia.

— SMS: Sem música nem sermão — respondera Patty.

Langenau estava muito feliz por estarmos casando na igreja “dele”, e o jovem padre também ficou contente. Um casamento assim certamente ele ainda não vira. Os amigos e amigas de Andréia estavam lá, e além disso vinte e quatro crianças tiveram permissão de faltar à escola e foram com os pais. Lá estavam sentados alemães, turcos, gregos, iugosla­vos, espanhóis e italianos, todos em seus melhores ternos e vestidos, ainda mais nervosos do que Andréia e eu. Ficamos bastante nervosos quando estávamos no pequeno altar, ou ajoelhados no banco, e o jovem padre falava conosco. Atrás de nós estavam os padrinhos: Conrad Langenau para Andréia e Walter Hernin para mim, ambos de terno azul-escuro como eu. Meu terno fora feito pelo pobre sr. Kratchowil em Viena. Usei-o pela solenidade do dia, embora já tivesse comprado ternos de confecção e outras roupas, pois minhas caixas que eu jamais entregara em Buenos Aires naturalmente não ha­viam chegado a Hamburgo. A conselho de Eisenbeiss, eu esti­vera numa firma de expedição e armara uma briga enorme, mas naturalmente não conseguira nada. E assim, também isso fora resolvido.

A costureira realmente imitara o modelo do Vogue, e Andréia estava linda como nunca. Era de lã creme, leve, a saia até os tornozelos, em cima justo e embaixo bem amplo. Lembrava um desses belos e finos vasos de cristal de lindas formas. Como Andréia tivesse pernas longas, a saia comprida lhe ficava muito bem. Havia um casaquinho com a gola ape­nas revelando o laço da blusa de seda creme. O casaco fecha­va-se assimetricamente, os botões de um lado. Andréia me explicara por que a roupa parecia tão fofinha: na fazenda havia “um pouco de veludo”. Nos cabelos castanhos havia um gorrinho redondo de plumas de marabu, que agora estava no estreito banco onde nos ajoelhávamos. Os sapatos também eram creme. Eu tinha de contemplar Andréia o tempo todo, e pensei num filme chamado Mayerling, que conta a história do infeliz príncipe herdeiro da Áustria, Rodolfo, e sua amada Maria Vetsera... naquele filme ela usava um vestido bem pare­cido.

Como a maioria dos pais das crianças fossem pobres, Andréia pedira que não mandassem presentes nem flores. Quem quisesse fazer alguma coisa, poderia dar dinheiro ao Lar de Crianças Deficientes. As crianças tinham feito pinturas coloridas, ou bichos e pratos e figuras fantásticas com argila. Algumas deram recortes de tesoura, minúsculos naviozinhos feitos com cascas de nozes, ou cartas e poemas compostos por eles mesmos. Tudo isso no dia do casamento civil, no subsolo da livraria, que estava enfeitado, e ficamos muito felizes, so­bretudo porque todos puderam comparecer apesar de não ser dia de folga.

Lá estavam todos sentados, o jovem pároco com uma comunidade bem singular à sua frente: católicos e protestantes, judeus, maometanos e não-crentes, social-democratas, democratas-cristãos, democratas liberais e “verdes”, gente endi­nheirada e gente de pouco dinheiro. Tudo aquilo debaixo do teto de sua igreja: era realmente um pároco fantástico.

Na primeira fila estavam sentados os pais de Andréia, de mãos dadas. Ao lado deles o Apre Robert Stark e Patty. A música do órgão era às vezes retumbante, outras vezes bem doce, e quando o padre deu início à cerimônia, a mãe de Andréia começou a chorar e seu marido a acariciou. À nossa direita havia um capelão escondido, que para mim era a pes­soa mais importante além de Andréia, pois com discretos ges­tos ele me indicava quando eu devia me ajoelhar e levantar. Eu não sabia nada, e, para minha alegria, Andréia também não. Ela também a toda hora olhava o pequeno capelão gordo que nos comandava.

Então prometemos ser bom marido e boa esposa, amar e respeitar um ao outro, ajudar-nos em tempos bons e ruins, proteger e respeitar-nos e não nos abandonarmos até que a morte nos separasse. Eram palavras muito comoventes, e nos olhávamos nos olhos. Andréia estava tão linda, tão linda.

Depois de termos trocado as alianças e nos beijado, o jovem padre se adiantou e disse:

— Queridos noivos, queridos presentes, permitam que eu diga mais algumas palavras. Isso não é costume, mas exata­mente neste casamento, no qual tantas pessoas de diversos países e religiões estão presentes, eu gostaria de acrescentar uma coisa. A maioria de vocês há de falar alemão o bastante para entender, e os que não sabem peçam aos seus filhos que traduzam baixinho. — E depois de uma pausa:

— Cada um de nós tem a ilusão de viver apenas a sua vida. Mas na verdade vive muitas vidas, tantas quantas as pes­soas com as quais se relaciona. — Ouviram-se os sussurros de filhos de pais estrangeiros traduzindo as palavras. — Cada relação que assumimos, desde que não seja absolutamente su­perficial — entre duas pessoas inteligentes e sensíveis não há superficialidade —, deixa algo de nós no espírito do outro, e faz com que sua vida se torne nossa vida. — Pegou um papel amarelado e disse: — Meu pai tombou no terceiro dia da Segunda Guerra Mundial na Polônia. Depois de sua morte recebemos ainda uma carta que ele escrevera à minha mãe logo antes de começar a guerra. Guardo essa carta como um tesouro, e muitas vezes a mostro a outras pessoas, pois hoje vivemos um tempo em que a cada dia pode irromper nova guerra. Por favor, escutem o que meu pai escreveu a minha mãe pouco antes de sua morte, e, se for possível, apreciem suas palavras.

O jovem padre aproximou mais a carta dos olhos e leu:

— “Chegou o momento de pensarmos em amor. Ama­mos o bastante? Usamos cada dia para nos admirarmos com outras pessoas, sermos felizes com elas, valorizarmos o con­tato, sentir o peso e o significado das mãos, dos olhos e do corpo? É hora de vivermos definitivamente o amor e a amizade antes de sucumbirmos na derrocada de um mundo sem espe­rança, para o qual nada mais vale. Juremos não pensar senão no amor, no abrir das almas e das mãos, no olhar do mais fundo de nossos olhos, e no abraçar aquilo que amamos, e em andar na luz do amor, sem temor algum...”

O jovem padre dobrou cuidadosamente a carta e guar­dou-a. Achei muito bonitas as palavras de seu pai, e Andréia tinha os olhos molhados. Eu disse: — Está vendo, Esquilinha, naquele tempo as pessoas também tinham medo.

E ela disse: — Sim, e com muita razão. — E o jovem padre nos desejou felicidades e apertou nossas mãos. Depois os pais de Andréia, Langenau, Hernin, Robert Stark e Patty nos abraçaram e beijaram. E quando saímos da igreja pelo corredor, todos se levantaram e sorriam para nós, e alguns choravam.

Depois, lá fora, é que tudo se desencadeou; todos nos felicitaram, os amigos de Andréia e outros, muitas mulheres fizeram o sinal da cruz sobre a testa de Andréia e a minha, e muitos disseram coisas em línguas estrangeiras, e homens es­tranhos me abraçaram e beijaram nas faces. O pequeno Ali, que tão bem falava alemão, apresentou-nos seus pais e sua avó, que também viviam na Alemanha. E a avó, uma mulher baixinha com lenço na cabeça, estendeu-nos com mão trêmula um lencinho de seda amarelada, menor do que um lenço co­mum, e Ali disse que sua avó o ganhara de sua melhor amiga no seu casamento e o guardara sempre. Agora o lencinho era nosso e nos protegeria da desgraça. Andréia abaixou-se e bei­jou a testa da velhinha, vestida como camponesa, o rosto engelhado de incontáveis rugas.

Depois levei Andréia para o estacionamento dos carros, e todos foram juntos. Lá estava um Mercedes novinho que um mecânico levara até ali enquanto estávamos na igreja. Eu ti­nha os documentos e a chave no bolso, e entreguei-os a An­dréia; era meu presente de casamento. O velho Volkswagen simplesmente não dava mais. E todos admiraram o carro azul, mas fiquei meio deprimido porque muitos eram pobres, e ja­mais teriam um Mercedes. Mas não havia sinal de tristeza ou inveja em nenhum deles, todos riam, e bateram palmas, e alegraram-se com Andréia.

O padre mudara de roupa, apareceu em traje civil, pois estava convidado para o almoço. Eu encomendara uma mesa no Elbschloss, e os pais de Andréia também sentaram no Mercedes novo. O padre foi no carro de Langenau, com Robert Stark, e Patty no carro de Hernin. Quando partimos, todos gritaram e acenaram, e a voz mais alta era do sr. Rosen, que berrava:

— Mazeltov! Mazeltov! Mazeltov!*

* “Felicidades!” em hebraico. (N. da T.)

 

Andréia dirigia, muito excitada e feliz. Experimentou to­dos os botões e alavancas, por fim ligou o rádio, ecoou a Ina­cabada de Schubert, e então ficamos quietos, ouvindo a mú­sica de um gênio.

De repente a música se interrompeu e um locutor disse:

— Aqui Rádio Hamburgo. Senhoras e senhores, acaba de nos chegar uma informação: em um desfile militar no Cairo fanáticos islamitas em uniforme militar atentaram contra o presidente egípcio Anuar Sadat...

 

Nessa tarde Andréia, seus pais e eu, depois de mudarmos de roupa, fomos ao Prado Lüneburg, num restaurante antigo e muito bem situado. Ficamos sentados ao ar livre debaixo de grandes árvores frondosas, tomando café. Havia muitos fre­gueses nas mesas, e ouvi um homem dizer:

— Graças a Deus pelo menos não foram os judeus...

E uma mulher disse a um homem em outra mesa:

— Não beba tanto, Kurt. — E Kurt respondeu:

— Me deixe beber. Fico pensando nele o tempo todo, e nisso que vai acontecer por lá agora, e não quero pensar. Ele foi um homem grande, e bom, por isso naturalmente tinham de matá-lo. Se fosse um homem ruim e pequeno, o deixariam vivo.

Também pensávamos em Sadat, mas não falamos nele. Vimos um rebanho de ovelhas passando perto, e no meio um velho. Andréia me disse que essas ovelhas se chamavam Heidschnucken, uma raça muito antiga e boa de ovelhas, que só viviam no Prado Lüneburg. Não, não falamos em Sadat.

O pai de Andréia tinha de voltar à clínica no dia seguinte para mais alguns exames, e por isso à noite levamos os pais dela ao aeroporto. Quando voltamos para casa, Andréia disse:

— Então, Gato, não acha que eles são suportáveis?

— São formidáveis.

— São, sim — disse ela. — Só nos vemos quando real­mente sentimos vontade. Pais assim são raros de encontrar.

À porta de nossa casa estava um grande envelope ama­relo.

Entramos e abrimos o envelope. Andréia desdobrou um papel grande, colocou os óculos, e disse:

— Santo Deus!

— Que foi, Esquilinha?

— Hermi escreveu. A pequena epiléptica do Lar, que sempre tem de usar capacete protetor e tem uma letra tão bonita. — Sentamo-nos, e Andréia leu em voz alta: “Queridos noivos! Para o seu casamento, desejamos que sejam sempre felizes. Vocês foram tão atenciosos conosco, por isso agrade­cemos muito. Todas as crianças aqui, e os adultos, lhes man­dam abraços. E todos vão assinar. Sua Hermi.”

— Veja só isso! — disse Andréia.

Embaixo da assinatura dela, havia muitas garatujas tor­tas e os nomes de alguns adultos, mas o resto da página estava todo coberto de impressões de dedos de pés e mãos de crian­ças que tinham prótese. E nisso vi a marca de batom de uma boca, e Andréia disse:

— Essa é Lilly.

Lilly era uma menininha que não tinha pés nem mãos. Uma médica deve ter-lhe pintado os lábios para que ela tam­bém pudesse “assinar” a carta que nos mandavam.

— Gato, amanhã vamos agradecer — disse Andréia.

— Sim — disse eu. — E agora, vamos... ou será demais para você hoje?

— Não — disse ela. — Ah, Gato, eu amo muito você!

Encaminhou-se na frente para a sala com a cadeira de balanço e sentou-se. Já se podia perceber seu ventre ligeira­mente aumentado. Tínhamos virado a cadeira de balanço de modo a não se poder ver o quadro memento-mori. Ao lado da cadeira havia outra, e uma mesa. Há algumas semanas tí­nhamos transportado para lá as caixas de som estéreo da sala de estar. Sobre a mesa, seis grandes livros de arte.

— O que prefere ouvir hoje? — perguntei.

— Vivaldi, por favor. Ouvi muito Rachmaninof e Mozart. Depois de Vivaldi, amanhã ou depois, eu gostaria de Gerschwin. Mas agora, Vivaldi.

— O que de Vivaldi?

— As Quatro Estações, por favor.

Fui até o armário de discos na sala, e pus Le quattri stagioni no toca-discos, o concerto para violinos, cordas e baixo contínuo. Quando soaram os primeiros compassos, vol­tei para junto de Andréia e perguntei:

— E que Madona hoje?

Ela disse:

— Primeiro aquela com a rosa silvestre — e procurei num dos livros de figuras o quadro da Madona, da escola de Ghirlandaio, uma Madona infantil, jovem e rosada, de vestido vermelho e véu verde, com a criança no braço, e diante dela um vaso de rosas silvestres sobre uma mesa.

A música maravilhosa soou, e mostrei a Andréia a grande reprodução da Madona com a rosa silvestre. Andréia ficou sentada quieta, sem se balançar, com os óculos, e via-se que se concentrava muito na contemplação do quadro durante o pri­meiro trecho da música.

Nos outros, mostrei-lhe outras madonas dos livros de arte que eu trouxera da livraria para casa. A mãe de Andréia dissera que mulheres grávidas devem olhar belas Madonas, e ouvir bela música, então a criança também ficaria bonita. Por fim Andréia quis olhar ainda a Mãe de Deus de um mestre da Escola dos Beneditinos. O quadro fora feito havia mais de quinhentos anos, mas parecia moderno, lembrava um pouco Chagall. A Madona estava toda de azul. Segurava a criança despida no braço esquerdo, na mão direita uma maçã, e fitava a criança com ar muito pensativo.

Depois caiu o silêncio no apartamento, e ficamos sentados lado a lado de mãos dadas, olhando o jardim que escurecia. Sempre que possível passávamos uma hora ali, depois íamos para a cama e fazíamos amor. Fizemos o mesmo naquela noite.

 

— Ajoelhe-se, balance os quadris, bata palmas, dance o Mussolini, vire-se para a direita e faça o Adolf Hitler!

Os punks tinham ocupado o palco e cantavam esse tex­to com uma dança louca. Cada um mais horrendo que o outro: rapazes e moças pintados de verde, lilás, branco e cinza. Usavam alfinetes de segurança que pareciam atravessar suas bochechas, dentes pintados simulando buracos; sua apa­rência repugnante era completada por feridas e remelas artifi­cialmente colocadas. Rapazes e mocinhas tinham raspado par­tes do cabelo e pintado símbolos repugnantes nas partes cal­vas. Vestiam farrapos, couro ou trapos, em cores berrantes. O feio é bonito, o bonito é feio — como cantavam as bruxas do Macbeth. Uggliness is beautiful! Os punks batiam os pés, balançavam os corpos, e a música martelava, ensurdecedora.

— “Cara, que troço sinistro!” — disse um rapaz ao meu lado — contou-nos Robert Stark, o Apre. Finalmente o tínha­mos convidado, e ele aparecera, reservado e sorridente como sempre, com flores para Andréia. Ela preparara um jantar excelente, e nós dois a elogiamos muito. Depois de termos ajudado a arrumar a cozinha, sentamo-nos na sala. Stark e eu bebíamos uísque, Andréia, suco de laranja, e Stark contou do concerto punk a que assistira. Fora no dia 13 de outubro, exatamente o dia em que o Chanceler Schmidt recebera um marcapasso no Hospital Federal em Coblença. Pouco antes, a 10 de outubro, realizara-se em Bonn a maior demonstração pela paz na história da República Federal — cerca de trezen­tas mil pessoas reunidas.

— O que você está contando parece horrível — disse eu. — Por que foi a esse concerto?

— A gente tem de estar informado — disse ele. — Nós jovens — há tantos tipos de jovens que a gente fica confuso. Nomes e conceitos se misturam: viciados, refúgios para os que “desembarcam”, chocadeiras de terroristas, encontros de dan­ças de zumbis. Psicoguetos, comunidades, de moradia, de sexo, politrockers, spontis, e além disso a juventude absoluta­mente normal, que quer trabalhar, aprender e progredir. O que é afinal a juventude alemã?

— Sim, o que é? — perguntei.

— Não sei, embora faça parte dela — disse ele. — Nin­guém sabe. O que pensa disso: em Bonn, na grande mani­festação pela paz, havia tipos de jaquetas de couro em cujas costas se lia: ALEMANHA? LIXE-SE! Sim, mas em Dortmund, no campeonato mundial europeu de júniores, quando a Bélgica e a Alemanha se defrontaram e tocaram o hino nacio­nal alemão, cinqüenta mil estudantes irromperam em gritos de júbilo como nunca se ouviu em parte alguma. “Dentro de um ano eles vão acompanhar o texto”, escreveu um jornalista, “e toda a primeira estrofe.” — Robert Stark sorriu. — A juven­tude — disse ele — faz a grande maioria da população mun­dial. Trinta e seis por cento abaixo de quinze anos de idade, quase sessenta por cento abaixo de trinta. Mas a juventude não é questionada quanto ao que deveria acontecer imediata­mente para que exista um mundo de amanhã. Nem aqui entre nós. Muitos homens inteligentes queixam-se disso. Já por mo­tivos de democracia e justiça, a juventude devia ser ouvida.

— Mas ela é ouvida — disse eu. — Nós a ouvimos.

— Talvez ela só seja assim porque ninguém lhe pergunta nada — disse Stark. — Porque ninguém dá sentido à sua vida. Todos só têm medo dessa juventude... também dela.

— O que significa “também dela”?

— Ah, cara senhora Kent, de que é que as pessoas hoje não têm medo? A Alemanha na crise. O desemprego cres­cendo. Falências por toda parte. O Estado muito endividado. A destruição do mundo cada dia mais catastrófica. Nunca, desde que existe a República Federal, tantos alemães se mata­ram. Cada um de nós conhece ao menos uma pessoa que não resiste. — Balançou a cabeça: — Desculpem, estou falando demais.

— Não — disse Andréia —, por favor, não! Tudo o que você diz nós também sentimos.

— Muitos milhões sentem — disse Robert Stark. — Es­tou um pouco informado... um pouco. Trabalho há muito tempo também para um grande Instituto que faz pesquisas de opinião.

— Quando tem tempo para isso? — perguntei.

— Ora, nas férias ou depois que a livraria fecha. — Fi­cou mais animado ainda. — Em algumas semanas chega o resultado da nossa última grande pesquisa. “Armamento e Pacifismo” foi o tema. Interrogamos uma parte representativa dos cidadãos eleitores. Já ajudei em duas pesquisas anteriores sobre o tema, em 1975 e 1978. Uma pergunta é sempre feita: De que sente medo às vezes?

— E de que é que os alemães mais têm medo hoje? — perguntou Andréia.

— Da guerra, da guerra atômica — disse Stark. — É o maior medo, muito maior que todos os outros. Trinta e cinco por cento dos questionados. Trinta e cinco por cento! Em 1975 foram dezessete por cento, em 1978 só doze. O segundo maior medo é de doenças... dezenove por cento. Em terceiro lugar, onze por cento disseram: “Não tenho medo nenhum.” Há duzentos anos Hölderlin escreveu: “Não posso imaginar um povo mais dilacerado do que o alemão”.

— De que mais temos medo? — perguntou Andréia.

— Inflação e aumento de preços vêm depois, dez por cento. Desemprego, oito por cento. Acidentes, também oito por cento. Poluição mundial, cinco por cento. Em 1975 e 1978 ninguém tinha medo disso. Agora está aumentando cada vez mais. Estou certo de que nas próximas eleições nós os “ver­des” — sou um deles — chegaremos ao Parlamento. Medo do futuro, seis por cento, mais do que da poluição mundial, per­dão. Morte e situação financeira ruim, três por cento. Velhice, tempos ruins, comunismo, terror, radicalismo, tudo isso junto, só dois por cento. E assim por diante.

— Mas guerra, trinta e cinco por cento — disse An­dréia.

— Sim — disse Stark. — E esse é um medo pânico, o maior, o pior. Não admira, quando se pensa nos gigantescos sistemas de armamento que se desenvolve agora. Na Segunda Guerra, as bombas mais fortes tinham um poder explosivo de mais de dez toneladas de TNT, cerca de dez toneladas de dinamite. A bomba atômica sobre Hiroxima em 1945 já tinha efeito de treze mil toneladas de dinamite. Hoje há foguetes correspondendo a vinte e cinco milhões de toneladas de dina­mite. Vinte e cinco milhões de toneladas! No mundo inteiro há dessas armas atômicas, num total de três toneladas de dina­mite para cada ser humano. E continuam se armando mais e mais! Todos os países gastam para isso quase um milhão de dólares por hora. Os Estados Unidos e a Rússia, as duas su­perpotências: dois menininhos metidos em gasolina até os joe­lhos. Um tem cinco fósforos, o outro, dez. O que tem dez está feliz da vida: “Eu me sinto mais seguro porque tenho dez fósforos!” Os dois querem cada vez mais fósforos. Um milhão de dólares por hora, dia e noite, mês a mês, ano após ano! E cada um deles sabe: onde existem armas, um dia elas dis­param.

 

Depois disso fez-se um longo silêncio.

Nenhum de nós três encarava o outro. Cada um pensava a mesma coisa. Por fim Stark falou:

— E tem mais uma coisa, muito importante. Além do medo ainda temos a angústia. Uma diferença gigantesca! Pode ler em qualquer dicionário: medo é uma sensação que nasce de uma ameaça real, ou perigo real. Angústia nasce de amea­ças e perigos indefinidos. Quem tem medo pode se defender, mas não quem tem angústia, por não saber do quê e contra quê. A angústia faz ficar doente. Quem tem neurose de angús­tia tem de ir ao psiquiatra. Não imagina como eles estão asso­berbados, assim como as clínicas de doentes nervosos.

— Eu sei — disse Andréia. — A farmacêutica, a sra. Gerlach — vocês a conhecem, o seu pequeno Stefan fica na livraria conosco —, me disse: “É horrível. As pessoas se entopem de calmantes, calmantes. Medo de viver. Puro medo de viver.”

— E as conseqüências da angústia? — perguntou Robert Stark. — Vício de comprimidos, alcoolismo. Quantas coisas se tratam hoje devidas à angústia. Enfartes, distúrbios circula­tórios, problemas na coluna vertebral, úlceras, enxaqueca, asma, ciática... tudo doenças que levam as pessoas a deixarem seus empregos. — As faces de Stark estavam rubras, ele falava mais alto! — E agora, vem a coisa mais louca! Por que as pessoas têm angústia quando deviam ter medo? Quero dizer, por exemplo, deve-se dizer medo da guerra, e não angústia da guerra. A guerra é uma ameaça real. E todos os outros moti­vos também são ameaças reais. Por que então nos causam angústia e não medo? Por que até nos questionários se fala de angústia, e não de medo? O que acontece?

— Você sabe? — perguntei.

— Creio que sim — disse ele. — Por causa do tamanho e da variedade dos perigos, nós simplesmente perdemos o senso de realidade. Tudo é terrível demais, grave demais, insuportá­vel demais! Ou pode realmente imaginar o que aconteceria depois da explosão de uma bomba de hidrogênio? Não, não pode, ninguém pode. Uma explosão dessa é uma ameaça real, mas como ninguém consegue imaginar a realidade dessa amea­ça real, por ela ser tão louca, cruel e desmedida, sem termos de comparação, nosso medo se torna estranho, sem que possamos evitar, se transforma em angústia. Não só com a bomba de hidrogênio, mas com tudo o que nos deveria causar medo mas nos dá angústia, porque hoje já não conseguimos calcular suas medidas. Uma usina atômica estoura. E o que acontece? Nossa economia vai à falência. O que acontece? Irrompe uma guerra atômica. O que acontece quando cinqüenta ou cem ou quinhentas bombas atômicas explodirem uma atrás da outra? A Terra sairá do eixo? Ninguém sabe. E assim, o medo se transforma em angústia.

— Contra a qual nada se pode fazer — disse eu.

— Que nos deixa doentes — disse Andréia.

Stark concordou com a cabeça. — Veja o que esse medo causa — não só entre nós. Hoje as pessoas falam tanto em guerra e paz como há decênios não acontecia. Reconhecer a angústia é questão de honra; “pacificador” é um título de honra. E a angústia pela paz pela primeira vez se tornou politicamente influente.

 

Andréia pôs a mão sobre a minha. Estávamos nos olhan­do, e tentamos sorrir. Mas não conseguimos.

— Naturalmente — disse Stark, aquele jovem que até então mal tínhamos conhecido —, muitos dizem que tudo isso foi feito pelo Leste, pelos comunistas. Todo o movimento pela paz é de orientação comunista. Toda a angústia é fomentada pelos comunistas. Isso pode estar correto? O trabalho subter­râneo comunista pode levar trezentas mil pessoas a Bonn? Pode causar o maior índice de suicídios desde 1945? Pode con­seguir que trinta e cinco por cento dos alemães tenham an­gústia por uma nova guerra, como a primeira e mais impor­tante de suas angústias? Acreditam nisso? — Ele sacudiu a cabeça.

— É preciso ser idiota para não sentir angústia depois de tudo o que você contou aí, Stark — disse Andréia.

— Sim — exclamou ele —, mas segundo nosso questio­nário, onze por cento dizem que não têm medo.

— Nenhum povo mais dilacerado do que o alemão. Gran­de homem, esse Hölderlin — disse Andréia.

— Os políticos não conhecem muito sobre o seu povo — disse Stark. — O povo não liga muito para a política. Mi­lhões se sentem abandonados e caem em depressão e melan­colia.

— Depressão, melancolia — disse Andréia. — Não é no­vidade. Palavras como melancolia, Weltschmerz, tristeza, afli­ção e manias — Grass já mencionou isso — sempre existiram na Alemanha.

— Sim — disse Stark. — Mas alguma coisa aconteceu. Estávamos tão certos de que o bem-estar continuaria, a paz continuaria. E isso acabou definitivamente. Não é o medo, não é a angústia que domina tanta gente!

Eu disse:

— Os que não têm angústia ficam com medo dos que a têm. Diante da alternativa de experimentar novas formas de vida, de todos os que nos dizem constantemente o quanto estamos ameaçados.

— E não é compreensível? — disse Stark. — Muitas al­ternativas falam em amabilidade, não-violência e humanidade — e depois acabam jogando pedras e brigando nas ruas com a polícia. — Bebeu apressadamente como falava. — Como vai continuar isso? Por toda parte a mesma coisa: indignação, angústia, insegurança, preocupação pela segurança e proprie­dade pessoais. Auto-acusação também sempre existe: “Era impossível termos uma vida tão boa!” e “Ainda temos vida boa demais!” Ainda, ainda! Esta palavra “ainda”! Ainda ga­nho minha aposentadoria! Ainda posso viajar! Os estrangeiros ainda não me tiraram tudo! Ainda não temos guerra civil! Os russos ainda não chegaram! Ainda se pode beber água! Esse “ainda” é um sinal de angústia! Todos se sentem logrados e trapaceados pelos “de cima”: Os grandes escândalos finan­ceiros! Os escândalos de suborno! Os escândalos do dinheiro nas eleições! E querem que a gente confie naqueles “lá de cima”, “aqueles de Bonn”, “aqueles na direção da empresa”? Esses podem nos “passar a perna com facilidade”. Há muito de Kafka na Alemanha, muito de Kafka. E isso também gera angústia.

— Você mora com seus pais? — perguntei, pois de re­pente achei que entendera aquele jovem na sua seriedade e paixão.

— Meus pais morreram — disse ele. — Faz tempo.

Eu esperava por isso.

— E parentes?

— Não; moro sozinho.

— Mas tem namorada? — perguntou Andréia.

— Namorada, ora — disse ele. — Claro. De vez em quando a gente precisa ter uma, não é? Mas nunca dura muito.

— Por que não?

— Nenhuma agüenta comigo — disse ele. — Sempre chega uma hora em que me julgam um “verde maluco”, com minha ecologia. Mas não sou maluco, não sou mesmo! Estão vendo como o mundo em volta está sendo destruído? Olhem em torno! Não devemos nos preocupar com o amanhã? Nossos rios envenenados, peixe não se pode mais comer, nossas florestas morrendo. Todo dia um novo escândalo nos jor­nais. Ontem, crianças encontraram muitas centenas de cáp­sulas envenenadas da Segunda Guerra numa praça de brin­quedos! O veneno está por toda parte entre nós, no chão, no ar, nos alimentos. O azeite da Espanha! Quantas centenas de pessoas já morreram por isso? Se você come carne de vitela, come estrógenos, se for homem vai ter seios, talvez câncer. Mercúrio nas conservas de frutas! Grande impacto: leite co­mum para bebês é melhor do que leite materno, porque no leite materno há hexaclorocicloexano...

— O que há no leite? — assustou-se Andréia.

— Um produto químico fortemente venenoso. A mãe já tem, como qualquer ser humano, tantos venenos no sangue que o bebê facilmente pode ficar prejudicado se a mãe o amamentar.

— Isto é horrível — disse Andréia. — Vamos ter de lhe dar leite de vaca, Gato. Espero que não seja perigoso.

— Com duzentos venenos empesteamos de tal forma a natureza — prosseguiu Stark — que nem em cem anos ela ficará limpa. Quase uma entre cada duas espécies animais está se extinguindo. Um terço de todas as plantas. Até o ano 2000, se vivermos até lá, haverá pelo menos quinhentas mil espécies de animais e vegetais extintas. Meio milhão! Pode imaginar isso?

— Não — disse eu.

— Ninguém pode — disse ele. — Por isso, tudo nos causa angústia — os acidentes químicos, as catástrofes de enchente e seca pela devastação sistemática das florestas, a contaminação do solo por pesticidas. Loucura, não? Isto não é loucura? Nosso dinheiro de impostos também é aplicado na destruição de víveres! No ano passado a comunidade européia gastou duzentos e cinqüenta milhões de marcos para acabar com fru­tas e legumes a fim de que os preços permanecessem estáveis, altos. Tudo isso é grave. Tudo isso causa angústia. Por isso sou um dos “verdes”. Não é apenas a angústia da guerra! — Ele nos encarou. — Afinal, onde estamos vivendo? E como viveremos amanhã se estamos destruindo tudo, tudo? — De repente ele se assustou tanto que se levantou.

— Santo Deus, peço desculpas! Vocês me convidaram, foram tão amáveis comigo, a comida estava tão boa — e eu falando e falando nessas coisas!

 

No dia em que pedi a Walter Hernin que não comprasse mais jornais franceses e lhe agradeci, ele de repente ficou embaraçado.

— Fiz com prazer — disse ele, olhando para o lado. — Ajudo onde posso, Peter... você... Quero dizer, eu poderia...

— Então?

— Bom, então — disse o motorista de cabelos brancos que um dia fora professor universitário de História Antiga —, vou fazer sessenta e cinco anos. Quero dizer, um dia pode me acontecer alguma coisa. E Patty ficará sozinha no mundo. Posso pedir a você... você e Andréia, que cuidem um pouco de Patty quando eu não estiver mais vivo? Não quero que ela os estorve, pelo amor de Deus! Vai para um bom internato, di­nheiro não falta, ela herdará tudo. Mas que vocês não a es­queçam, para que não se sinta tão abandonada... Você faria isso, Peter? — A voz dele ficara cada vez mais baixa, e por fim não passava de um sussurro.

Abracei-o e disse que podia ficar descansado, sempre cui­daríamos de Patty como de nossa própria filha. E ele ainda disse:

— Bem, e quanto ao defeito da perna, coisa engraçada. Ela sempre me disse que vai passar, e você também disse, não é? E sabe de uma coisa?

— Que coisa?

— Acho que ela está melhorando de verdade. Bem deva­gar, mas melhorando, Peter. Não é maravilhoso?

— Está vendo — disse eu, e pensei no efeito que tem a repetição constante de uma frase. Pois naturalmente Patty mancava como sempre.

Na primeira oportunidade contei a ela o que Hernin me dissera, e seu rosto se iluminou.

— Ah, tio Peter, obrigada!

— Ouça, Patty, você vai fazer aniversário em breve. O que gostaria de ganhar de mim e da tia Andréia? Ou ainda não sabe?

— Sei sim — disse ela.

— Então, vamos lá!

— Sabe, tio Peter, você é tão grande e tão forte e tão amável... sempre penso nos amáveis ursos no Zôo. Por isso gostaria que você me desse um Teddy... um desses castanhos, para eu dormir com ele e levar comigo e abraçar. Um grande, um Teddy desses que a gente pode amar bastante.

— Vamos ver o que se pode fazer — disse eu. — Direi no Zôo que você precisa sem falta de um urso, porque a mim não pode levar para a cama e carregar e abraçar. Que tal?

E rimos muito.

 

— Ah, sr. Kent — disse uma enfermeira idosa de avental branco —, sua senhora já está com o doutor. Pode entrar.

Era alguns dias depois, pelas seis e meia da tarde. Assim como eu ia regularmente ao Dr. Salzer, que controlava o meu coração, Andréia ia a cada quatro semanas ao ginecologista por causa do bebê. Naquele dia eu trabalhara com Langenau na livraria, e quando fechamos, Robert Stark, que agora guiava o velho Volkswagen de Andréia, me levara à Bellealliancestrasse. Lá morava e trabalhava o Dr. Otto Kahler. Eu conhecia aquele homem alto, de rosto bondoso, pois muitas vezes viera vê-lo com Andréia, e sabia que sua gorda enfer­meira se chamava Agnes. Nessa tarde Andréia era a última paciente.

Bati na porta da sala e ouvi a voz do médico: — Sim!

O Dr. Kahler e Andréia estavam sentados frente a frente na escrivaninha. Estavam sérios, e imediatamente me assustei.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, depois de bei­jar Andréia e apertar a mão do Dr. Kahler. — Alguma coisa errada com o bebê?

— Ora, meu Gato querido — disse Andréia.

— Tudo em ordem com o bebê — respondeu o Dr. Kah­ler. Era um homem perto de setenta anos, e sempre dava a impressão de trabalhar demais. Seu consultório sempre re­pleto, as mulheres confiavam muito naquele médico de olhos claros e cabelos grisalhos. — Vai ser um bebê magnífico, sr. Kent. Sente-se.

— O Dr. Kahler e eu estávamos falando sobre a situação mundial e especialmente a Alemanha — disse Andréia.

— Ah — disse eu. — Por isso essas caras.

— O Dr. Kahler está muito pessimista — disse Andréia.

— Sim, é verdade — disse ele. — Olhe só o nosso país, sr. Kent! Quase um milhão e meio de desempregados. E vai aumentar mais. Crescimento econômico esperado: zero. A coalizão quando tempo vai durar? A SPD: irreversivelmente brigados e decadentes. Quanto tempo isso pode continuar? E se houver mudança de governo, acha que vai melhorar? Por quanto tempo o marco ainda valerá alguma coisa? Quando virá a grande derrocada? Que ela virá, todos sabem, só não sabemos quando. Tenho medo, sr. Kent.

Então ele também, pensei, lembrando de nossa conversa com Robert Stark. Mas um médico? E por que não um mé­dico?

— Ouça, doutor — disse eu —, o senhor anima assim todas as suas pacientes?

Ele sacudiu a cabeça. — Claro que não, sr. Kent. Mas tenho simpatia pelo senhor e sua esposa. Considero-os amigos, bons amigos. E não preciso assustar sua esposa, ela é inteli­gente demais, e sabe o que está acontecendo. Hoje tive mais tempo aqui e pensei, agora está na hora de dizer a ela.

— Dizer o quê? — perguntei.

— O Dr. Kahler vai para os Estados Unidos — disse Andréia.

Fiquei atônito.

Ele deu um leve sorriso.

— Não, não sou médico de abandonar as pacientes.

Contemplei-o atentamente e notei, assustado, como pa­recia infeliz e cansado. Todos esperam que um médico esteja sempre saudável, repousado e animado. Simplesmente tem de estar. Quantos médicos estão gravemente enfermos e não di­zem a ninguém? Não devem dizer? Quem sabe Kahler es­tava doente.

Ele continuou falando:

— Eu realmente lhe contei isso em segredo, sabendo que não vai contar a mais ninguém, sra. Kent. — Depois ele me fitou. — Sabe, tenho sessenta e nove anos. Sempre trabalhei feito louco. O que minha mulher teve de mim? Quase nada. Houve muitos anos em que nem ao menos pudemos tirar férias. Quanto tempo vive uma pessoa? Helga, minha esposa, é dez anos mais jovem que eu. Espero viver ainda um pouco. Mas quero esses anos para ela e para mim. Dá para enten­der isso?

Fiz que sim.

— Está vendo? Por isso dentro de um ano vou parar tudo. Aos setenta a gente deve parar, na minha profissão. De modo algum quero viver o que ainda vai acontecer por aqui. Por isso há algum tempo andei me informando, e encontrei com minha mulher um lugar especialmente bonito na Flórida. Lá estão construindo tanto agora, não é? Bem, investimos em um imenso conjunto residencial com um condomínio brilhante­mente planejado, um belíssimo apartamento com vista para uma praia de palmeiras. Estivemos lá olhando tudo. Lindo, realmente lindo. Estava mesmo falando romanticamente disso à sua esposa. — Lá estava ele sentado, em seu avental branco, pálido, exausto, feliz. Seus olhos brilhavam. — Foi difícil guardar dinheiro para a velhice, apesar da trabalheira. Logo depois dos estudos fui convocado. Em 1944 tudo o que tínha­mos de nossos pais ficou em escombros. Até montar meu con­sultório... pagar todos os meus aparelhos... Há sempre novi­dades, não é? Ainda hoje pago por alguns aparelhos que tenho há anos. Mas alguma coisa sobrou, e isso agora está inves­tido em nosso lar na Flórida. Trabalharei ainda um ano, de­pois nos mudaremos, Helga e eu. Estou muito feliz por ter aplicado assim o meu dinheiro. As moradias estão sendo cons­truídas, mas a nossa parte já está paga. Com dinheiro que ainda valia alguma coisa. Agora, veja, sr. Kent, eu disse à sua esposa: “A senhora tem meios, faça o mesmo que eu! Compre alguma coisa nos Estados Unidos. A senhora é tão jovem, pode facilmente construir alguma coisa lá.” Saia deste país, sra. Kent. Acredite, aqui está tudo acabado.

— Ora, doutor — disse Andréia —, mas a nossa livraria? Tudo o que fizemos! Teríamos que desistir de tudo.

Meu coração batia mais depressa. Para os Estados Uni­dos. Muitos queriam fazer isso, como esse velho médico, por medo do que ameaçava a Alemanha, a Europa. Aquela gente pelo menos acreditava estar segura lá.

Eu não.

Segurança... onde havia isso? Não, não, se eu queria ir aos Estados Unidos, era por outro motivo. Apesar do que lera nos jornais franceses, estava preocupado. Preocupação infun­dada, eu me dizia, pois como poderiam me encontrar, mesmo que Yvonne conseguisse fazer com que iniciassem uma bus­ca? Era muito improvável me encontrarem. Improvável; não impossível. Não, impossível não era. Não enquanto eu vivesse na Europa. Mas nos Estados Unidos seria realmente impos­sível.

— Acho que o Dr. Kahler tem sua razão, Esquilinha — disse eu.

Ela me olhou assustada:

— Mas, Gato...

Não será fácil, pensei.

— Não quero dizer que tenhamos de ir logo — disse eu. — Só pensei que poderíamos ir para lá a qualquer hora se tudo aqui fosse muito ruim.

— Veja, sra. Kent — disse o Dr. Kahler. — Eu disse que seu marido ia concordar. E como ele diz: só por segurança, por tranqüilidade.

— Pense, Esquilinha, pode haver guerra — disse eu. — Você mesma disse; então certamente a Alemanha vai entrar.

— Sim, é verdade — disse Andréia. — É verdade. Mas... ah, Gato, ter que desistir de tudo aqui, você poderia fazer isso tão facilmente?

— Ninguém falou em desistir — disse eu, esperando que pudesse persuadi-la, lentamente, cuidadosamente. — Mas não faria mal comprar alguma coisa nos Estados Unidos. Vamos falar nisso com calma outra hora. Vamos ver as possi­bilidades.

— Isso mesmo — disse o Dr. Kahler. — Posso lhes man­dar prospectos do meu corretor. No fim de semana dêem uma olhada nos anúncios!

— Que anúncios?

— Ora, anúncios imobiliários para os Estados Unidos. Nunca os viu?

— Não — disse Andréia.

— Pois vai se espantar vendo quantos corretores anun­ciam, sra. Kent. E acredite em seu velho médico que lhe quer bem: é a única coisa sensata a fazer. Agora que a criança está por chegar, é bom saber que fizeram tudo pela segurança dela. — Debruçou-se sobre a mesa e acariciou a mão dela.

— A criança — disse Andréia. — Sim, claro, a criança...

 

O anúncio maior ocupava meia página, na verdade. Mos­trava a bandeira americana, com a seguinte manchete:

SOMOS PERITOS IMOBILIÁRIOS PARA OS EUA

Abaixo vi o desenho de uma magnífica construção, que parecia um hotel de luxo. Ficava numa paisagem fabulosa, com palmeiras, praia, mar e o texto:

“Negócios imobiliários nos Estados Unidos são os melhores no

mercado internacional de capitais. Pois a segurança política

e a dinâmica financeira dos Estados Unidos lhes garantem boa

renda, valorização a longo prazo, e segurança pessoal.

A propriedade EURAM-GmbH oferece a investidores alemães

participações substanciais em shopping centers, hotéis,

escritórios e edifícios de apartamentos.”

Era domingo, fim de outubro, mas ainda bastante quen­te, e Andréia e eu estávamos como tantas vezes lá fora em Reinbeck, em nossa ravina. Na estação tínhamos comprado a edição de fim de semana de grandes jornais, e cada um de nós estava com uma seção de anúncios nos joelhos, olhando os imensos dizeres. Eu estava com o Süddeutsche Zeitung, e havia tantos anúncios que apenas os olhei de relance, lendo as gor­das manchetes.

INSEGURANÇA? MEDO DO FUTURO? PREVINA-SE:

COMPRE UM APARTAMENTO NOS ESTADOS UNIDOS!

UNIDADES EM WILMINGTON, DELAWARE, DE 28 A

84 m2. ADMINISTRAÇÃO GARANTIDA, SALDO DO

PREÇO DE COMPRA COMO HIPOTECA!

Mais:

SEGURANÇA — FUTURO — APLICAÇÃO

DE CAPITAL NOS EUA!

RESIDÊNCIAS, CLUBES, APARTAMENTOS.

EXCURSÕES EM GRUPO PARA VISITAÇÃO!

E ainda:

TEXAS-HOUSTON: NÚMERO 1 NOS EUA:

TERRENOS PARA CONSTRUÇÃO

5 ACRES, 47.000 DÓLARES.

Eu lera mais vezes esse tipo de anúncios, mas não quis dizer a Andréia. Tinha de ser muito cauteloso agora, para ela não desconfiar e perguntar se eu realmente queria abandonar tudo ali só por causa daquela breve conversa com o velho mé­dico.

— Santo Moisés! — exclamei fingindo espanto. — Olhe só isto, Esquilinha!

— No Welt a coisa também é impressionante — disse ela baixinho, balançando tristemente a cabeça enquanto olhava os anúncios que cobriam as páginas...

HORSESHOE BAY É UM SÍMBOLO DE SEGURANÇA,

FELICIDADE E PAZ!

E mais:

FLÓRIDA: SEU INVESTIMENTO A PARTIR DE 42.600

DÓLARES. DEMONSTRAÇÕES EM FILME E

DIAPOSITIVOS INFORMAM SEM COMPROMISSO —

VOE CONOSCO AOS EUA — EM CASO DE COMPRA

DEVOLVEMOS AS PASSAGENS.

E mais:

FLORIDA KEYS, MARATHON, EUA — TODA A SUA

VIDA VOCÊ SONHOU COM SEGURANÇA E BELEZA

PARA VIVER — O SONHO PODE SE REALIZAR —

NÃO HÁ RISCOS NA CONCLUSÃO E

FINANCIAMENTO DA OBRA!

E sempre a bandeira americana! E tantas páginas de jor­nais cheias de anúncios, todos oferecendo o paraíso, segurança contra o medo, lucros abundantes, vida em paz e beleza, la­ranjais, edifícios inteiros ou apartamentos individuais, fontes de petróleo, até uma mina de ouro, segundo peritos, ainda cheia de ouro.

Eu já vira coisa semelhante em jornais franceses, mas nunca com aquela intensidade. Aqui, pensei, vive a maior concentração de pessoas com medo de uma guerra atômica, porque acreditam que a Alemanha será a primeira atingida.

Os Estados Unidos estavam em alta. Terra americana, eu sabia disso, estava vendendo como água. Estados Unidos, isso eu também sabia, era a terra onde nos últimos dez anos os alemães mais tinham aplicado dinheiro para terras e casas; portanto, também isto existia: negociar com o medo!

— Gato — disse Andréia abalada. — Isso é sinistro. Como foi que não vi isso antes? Nunca olho os anúncios classi­ficados. O que vamos fazer?

Agora seja cauteloso, disse eu a mim mesmo, não pressio­ne nem exija. No fim ela teria de querer por si ir para lá, não só por amor a mim. Só assim eu alcançaria meu objetivo de escapar para os Estados Unidos. Não era nenhum otimista romântico. Podia bem imaginar como se lucrava com isso, convencendo pessoas de que estavam em perigo na Alemanha, e acenando com a compra de sua segurança. Eu sempre fora cético. A única segurança que eu teria lá seria a de não ser descoberto, e disso dependia toda a minha vida.

— Sabe — disse eu, hesitante —, conheço esses anúncios de corretores, Esquilinha. Já os li em jornais estrangeiros. É preciso ter muito cuidado para não cair num engano terrível. Tem de ser um corretor sério e honesto.

— E como se sabe disso, para não ser logrado?

— Há um meio relativamente seguro: só devemos nos dirigir a um escritório que tenha bom nome há anos, o mais possível, e o melhor possível. Vi nos jornais anúncios de um escritório realmente sério, que se conhece até na Argentina. (Eu não podia dizer França.) É a firma Langstrom. Sei que eles têm escritórios em muitos países europeus e de além-mar. Aqui, por exemplo, está vendo, há anúncios da Langstrom, da filial de Hamburgo. A matriz da empresa, que deve ser do século passado, parece que fica em Berlim.

Andréia apertou-se a mim, toda encolhida.

— Eu gostaria... agora com a criança, você sabe... Mas a nossa bela livraria! E embora agora o movimento tenha caído um pouco... ainda estamos com lucro.

— Ainda — disse eu.

— Sim, sim.

— Penso que também poderíamos ter nos Estados Uni­dos uma livraria com seção infantil, caso a gente decida ir para lá.

Não pressione, pensei, de jeito nenhum mostrar impaciên­cia e pressionar. Deixar bem à vontade. Basta por enquanto fazer com que Andréia vá a um corretor. Depois, voamos para os Estados Unidos. Talvez Langstrom tenha coisas muito boas a oferecer. Que sabe então ela se decida lá a comprar alguma coisa e mudar-se da Alemanha. Sim, pensei, provavelmente será assim.

Se ela vir alguma coisa maravilhosa nos Estados Unidos, poderei pressionar um pouco mais. Mas não agora. Por en­quanto ela deve pensar que também estou hesitante, que tam­bém me custa tanto quanto a ela.

— Nesses conjuntos supermercado-edifícios de aparta­mentos moram tantas pessoas no mesmo lugar e além disso ainda há muitos outros edifícios de apartamentos. Grandes parques, lê-se nos anúncios — disse ela. — Provavelmente poderíamos organizar outra livraria. Mas tudo isso só teria sentido se fôssemos para lá definitivamente, não é?

— Sim — respondi.

— Aqui teríamos de vender a nossa livraria Osterkamp. Naturalmente teríamos de vendê-la, não?

Agora seja muito, muito cauteloso, pensei.

— Sim, sim, claro, Esquilinha.

Ela calou-se e mordeu os lábios.

— E também o nosso belo apartamento, Gato, teríamos de vender tudo. E lá nos Estados Unidos só teríamos nós dois, sem amigos, sem conhecidos, nada no começo.

— A criança — disse eu —, teríamos a criança, Esqui­linha.

E ficamos os dois longo tempo calados.

Por fim ela indagou:

— Você gostaria de ir para lá?

Eu precisava arriscar, e disse:

— Sim, Esquilinha. Realmente a longo prazo não temos boa vida aqui. Nós dois só ficamos mais nervosos, e assus­tados, por fim começaremos a tomar comprimidos, e você conhece o efeito. Vamos ficar irritados, dizer palavras duras... por fim estaremos brigando aos berros, apesar do nosso amor.

— Não posso imaginar isso, Gato — disse ela, e acres­centou abruptamente: — E meus pais? A esses jamais conse­guirei tirar da Alemanha! Vejo-os raramente, é verdade, mas posso vê-los quando quero. Se algo acontece, estou com eles imediatamente. E isso tudo teria acabado. E Langenau e o nosso Apre? E meus amigos?

Diabos, pensei, ela tem razão! Se eu pudesse lhe dizer a verdade. Não quero ir para lá por nenhum dos motivos dos anúncios, dos quais pelo menos metade é exagerada, para usar uma palavra suave.

Eu disse:

— Tudo deve ser pesado com muito cuidado e minúcia; para isso se precisa de tempo.

Mas não tempo demais, pensei, não demais, por favor.

— Quero dizer, naturalmente podemos visitar um dia esse corretor Langstrom, claro — disse ela.

— Se você quer mesmo... — eu tive vontade de rir alto, de alívio.

— Sim, claro. Temos de nos informar sobre tudo, e para isso precisamos de Langstrom. O que foi, Gato?

— Nada — disse eu. — Apenas estou orgulhoso por ter uma Esquilinha tão sensata e inteligente. — O primeiro passo está dado, refleti. O segundo virá depois. E por fim estaría­mos nos Estados Unidos, em absoluta segurança. Eu estaria em absoluta segurança.

 

Yvonne pegou o bico dos seios com o indicador e o polegar, por cima do vestido, e fez um movimento como se qui­sesse ordenhar a si mesma. E abriu a boca e mostrou a língua várias vezes ao garçom mais próximo. Paul Perrier ficou roxo de vergonha. As pessoas ao redor encararam Yvonne atônitas. Todas as mesas do restaurante do hipódromo de Auteuil, na tribuna fechada com grandes vidraças, estavam ocupadas. A tribuna ficava junto da chegada, ao longo da qual se compri­miam muitos apostadores.

— Ora, não fique assim, Paul — disse Yvonne, num vestido vermelho berrante, um casaco de chinchila nos om­bros, e muitas jóias de ouro. — Esse sujeito, esse patife de garçom nunca teria vindo. Agora sabe que quero mais cham­panhe. Qualquer um entende isso, sempre fiz assim. Acaso sente vergonha por minha causa? Basta dizer. — E já estava agressiva. — Estou num excelente humor para isso.

— Mas por favor, chérie... — murmurou ele. Lá em cima na tribuna havia guichês onde se podia apostar, mas também havia muitas mocinhas andando com bandejas, rece­bendo os números dos cavalos e as apostas, e depois da corrida voltavam para pagar aos ganhadores. Pagamentos mais ele­vados era preciso apanhar nos guichês lá em cima. Havia ago­ra muito barulho na tribuna. Monitores de tevê mostravam os nomes dos cavalos e seus números de partida, depois de cada páreo.

Nos favoritos havia sempre cotas baixas, e nos outros, cotas muito altas.

Yvonne chamara com um sinal uma das amáveis moci­nhas para fazer a sua aposta tripla. Disse o nome de seus favoritos, e a moça colocou o número deles num formulário impresso, deu um original a Yvonne e ficou com a cópia. Também recebeu o dinheiro que Yvonne tinha que pagar. Era muito dinheiro, pois havia dezenove cavalos correndo e Yvonne ditara dez vezes três números em diferentes seqüên­cias. Eram muitas combinações. Ela esperava forçar a sorte, distribuindo bem suas apostas.

As mesas na tribuna estavam muito juntas, de duas em duas, pois depois havia uma larga escada. Na mesa ao lado da de Yvonne sentava-se um senhor idoso com uma mulher muito linda, que deixava Paul Perrier muito nervoso, porque, en­quanto escutava o senhor grisalho, sorrindo, pisava sem parar com o pé direito no pé esquerdo de Perrier.

O garçom trouxe nova meia garrafa de champanhe — a quarta que Yvonne encomendava: ela não queria que vissem garrafas grandes em sua mesa —; abriu a garrafa e esperou Yvonne provar. Apesar do pedido feito de modo tão obsceno, ele continuava absolutamente cortês. Quando ela concordou com a cabeça, benevolente, e disse que o champanhe estava bom, ele disse com uma mesura e um servilismo exagerado:

— Mil vezes obrigado, madame, isso me alegra muito.

Paul Perrier suava de vergonha, pois Yvonne, que não tinha senso de ironia, sorriu generosamente para o garçom, e a loura à esquerda de Perrier pisava-lhe no sapato, olhando-o desdenhosamente de lado.

A corrida começou e Yvonne saltou da cadeira para observar com o binóculo. O senhor idoso fez o mesmo, e sua companheira colocou casualmente a mão na de Perrier. Acariciou seus dedos lentamente, e perguntou ao seu acompa­nhante qual o cavalo da frente. Os dois falavam alemão, só com os garçons e as mocinhas das apostas falavam francês.

Perrier arriscou um sorriso, e a jovem lambeu o lábio su­perior. Era realmente linda. Agora os cavalos chegavam à meta pela segunda vez e as pessoas na tribuna gritavam ao mesmo tempo, pois o número cinco, um cavalo em que nin­guém confiava, e que daria um lucro imenso se ganhasse, passava em primeiro pela meta. Só duas pessoas ficaram sen­tadas nas mesas: Paul Perrier e a jovem loura a seu lado. E ela disse a meia voz, com um rosto absolutamente inexpressivo:

— Quero foder com você!

Perrier entendia alemão o suficiente, e ficou transtornado. O senhor idoso sentou-se ao lado da jovem e falou com ela, enquanto Yvonne também se sentava, derrubando a garrafa de champanhe, de nervosismo. E dizia sempre a mesma coisa:

— Tenho o Cinco, o Cinco primeiro depois o Dezoito e o Sete... — Remexeu nos bilhetes de aposta, procurando o cer­to, mas não o achou, e a jovem alemã pisava no pé de Perrier, o que o deixava louco. O casal alemão parecia abastado. O homem devia possuir uma imensa fábrica ou banco, pensou Perrier, que foi arrancado de seus devaneios pela voz de Yvonne.

— Alguém roubou o meu bilhete!

Algumas pessoas viraram-se para olhar.

Paul meteu-se embaixo da mesa para procurar o bilhete de aposta, e não o encontrou. Nessa oportunidade, meteu a mão debaixo da saia da vizinha e sentiu que ela abria bem as coxas. Depois emergiu outra vez a cabeça vermelha, e disse:

— Não há nada, chérie.

Naturalmente, Yvonne ficou histérica no mesmo instante, gritou e acenou para a mocinha a quem dera suas cifras, e a moça veio, muito calma e determinada, e disse:

— Madame, a senhora não fez essa aposta tripla comigo!

— O quê? — berrou Yvonne. — Atreve-se a dizer uma coisa dessas? Sua impostora!

— Deixe disso, madame — disse a moça. — Tenho có­pias de todas as apostas aqui no meu bloco. Não há nenhuma cinco-dezoito-sete.

— Mas eu lhe disse cinco-dezoito-sete!

— Lamento, madame, a senhora não disse.

— Sua putinha! — gritou Yvonne —, mas é demais! Um escândalo! Chame o gerente!

— Lamento, madame, aqui temos só o gerente do restau­rante — disse a moça. — O gerente dos escritórios de apostas agora não pode sair do guichê lá em cima.

— Pois então vou até lá! — berrou Yvonne, e estava tão nervosa que até esqueceu Perrier. Subiu tropeçando a escada alta e falava sozinha o tempo todo. Paul Perrier disse à moci­nha das apostas:

— Por favor, desculpe o comportamento dela! — E ela deu de ombros: — Aqui há de tudo — disse, e foi embora.

O homem idoso da mesa vizinha correra para os guichês a trocar o seu lucro por novas apostas. Paul e a jovem ficaram sozinhos.

— Seu fodedor — disse a jovem, sem mover um músculo do rosto. — Você só trepa com essa velha aí. Deus, eu sabe­ria o que fazer com você! Meu marido tem sessenta e seis anos, e eu trinta e dois. — Ela falava um excelente francês. — Este é o meu cartão de visitas — disse empurrando um cartãozinho para Perrier sobre o banco; meteu a mão entre as pernas dele, e gemeu. — Moramos em Munique, meu marido está sempre de viagem. Ele não se importaria se eu trepasse com você. Nunca se importou; é veado, sabe? Sou o seu cartão de apresentação; entre nós se chama isso de “condessa de areia”. Quer dizer, comigo ele joga areia nos olhos dos outros, para que não pensem que ele é veado. Naturalmente ele tem seus amiguinhos, mas tem de se cuidar, porque sua empresa fabrica armas para o governo. Você virá? Vou mimar você muito. Poderá ter de mim tudo o que quiser. — E pôs de novo a mão entre as pernas dele. — Estou louca por você. Venha logo que puder, dê o fora na sua velha. Comigo será muito melhor, e não sou tão histérica assim. Só estou louca por você, louca de desejo. Você vem?

De repente Paul Perrier viu uma faixa clara no horizonte escuro de sua vida, e disse que iria, talvez demorasse um pouco, mas iria.

— Fico molhada só de olhar sua calça, seu fodedor — disse a jovem alemã. — Meu nome é Ilse. E o seu?

— Paul — disse ele. — Paul Perrier.

Nesse momento ouviram um grito.

— Paul! — Era Yvonne.

— Então, até breve — disse a loura Ilse. — Você tem de atender a sua velha.

— Perdão... — Perrier abriu caminho entre as pessoas, escada acima. Na tribuna havia inquietação, muitas pessoas a caminho das caixas ou voltando de lá, outras já indo embora. Nos guichês o movimento era ainda pior, e Paul precisou usar punhos e cotovelos para alcançar Yvonne.

— O gerente me botou na rua! — gritava ela. — Esse porco se atreveu a dizer que sou maluca. Paul! Vamos, uma vez na vida faça alguma coisa por mim!

Ele se aproximava cada vez mais pela multidão, Yvonne já estendia os braços para ele, quando sentiu que de repente alguém punha a mão no seu ombro. Virou-se de repente, e atrás dela estava eu. Debrucei-me sobre ela e disse-lhe niti­damente no ouvido:

— Agora não demora muito e será sua vez, sua mise­rável!

Yvonne caiu, pessoas gritavam, tratei de escapar. Quando Perrier chegou junto de Yvonne, eu sumira.

Naturalmente dessa vez também não era eu, mas o ho­mem era como eu antigamente, barba, cabelo comprido, apa­recera de dia, e muitos me tinham visto. Também Paul Per­rier, que mal podia andar, tão fracas estavam suas pernas.

Lá estava Yvonne deitada. Muitas pessoas tinham recua­do ao seu redor, enfermeiros chegaram correndo, Paul gritou ao empregado no guichê mais próximo que avisasse imediata­mente a polícia do hipódromo, porque o homem que sumira era procurado pela polícia, era o advogado Charles Duhamel. Quando disse esse nome as pessoas ficaram mais nervosas ainda, e ofereceram-se como testemunhas, e o empregado no guichê chamou a polícia. Em todas as saídas procuraram por um homem que se ajustasse à descrição dada por Perrier, mas ele sumira na multidão. E continua desaparecido.

 

A sala de espera da Agência Langstrom era imensa, com mobília incrivelmente sólida, e seus escritórios ficavam na Grosse Bleiche. Poderíamos falar com algum dos outros senho­res cujos nomes estavam fixados nas portas ao redor, mas o chefe, sr. Schönhaus, queria nos ver. Estávamos marcados para as 17h30min.

Andréia escorregava para lá e para cá na poltrona de couro.

— O que foi, Esquilinha?

— Gato, eu preciso, urgentemente. Você tem idéia de onde fica o...

— Mas é sempre a mesma coisa com você. Por que não foi na livraria...

— Mas eu fui, eu fui. Agora preciso a toda hora...

Então levantei-me e disse a uma mocinha celestialmente linda que batia na máquina elétrica quase sem ruído, atrás de um balcão, que minha mulher precisava lavar as mãos, onde ficava...

A criatura celestial me explicou o caminho, que expliquei a Andréia, e esta sumiu, voltando logo, satisfeita.

— Tudo bem?

— Rapaz, que banheiros chiques eles têm aqui. Firma muito séria, como você disse. Muito...

O sr. Schönhaus apareceu na porta, despediu um visitan­te e dirigiu-se a nós. Estava impecavelmente vestido, tinha o rosto redondo e rosado, boquinha pequena e bicuda, olhos azuis, de botão, e cabelo dourado nas têmporas; o resto era calvo.

Levou-nos à sua sala, onde havia também muito couro e cromo niquelado. Andamos sobre grossos tapetes, e num lambril de mogno havia grandes retratos coloridos de mansões maravilhosas em belíssimas paisagens de floresta ou mar. Vi praias brancas e infinitas, palmeiras curvadas ao vento, mar azul, ondas com cristas de espuma.

O sr. Schönhaus ofereceu cigarros e bebidas, mas recusa­mos, e disse-lhe quem éramos e o que estávamos procurando.

— Cara senhora, caro sr. Kent — disse o sr. Schönhaus depois disso —, posso felicitá-los pela decisão, que mostra que estão muito bem informados e responsáveis em relação à criança que virá. — E acariciou a calva. — E imaginando o que procuram — prosseguiu —, acho que tenho exatamente o que desejam. — Tirou muitos papéis, planos e prospectos co­loridos da escrivaninha. — Aqui — disse, e nos mostrou fotos coloridas depois de se levantar e inclinar sobre a mesa. — Acho que aqui seria o lugar ideal para os senhores. — Olha­mos os retratos, imensos blocos de apartamentos, ruas com lojas e um supermercado, tudo em construção. O conjunto residencial era rodeado por velhas palmeiras, a certa distân­cia, via-se o mar.

— É o Parque Harrodsboro, a cinqüenta quilômetros de Miami, um lugar abençoado, com clima excelente... — Inter­rompeu-se, porque Andréia se levantara. Estava muito pálida, olhos arregalados.

— O que foi, Esquilinha?

— Cara senhora, não se sente bem? Posso...

— Está tudo bem, sr. Schönhaus. Peço mil desculpas. Estou me portando de maneira horrível, perdão. Eu nunca quis ir para os Estados Unidos... só disse por amor ao meu marido, “então vamos dar uma olhada, vamos ouvir um pou­co!”... mas agora que estou aqui, não quero mais.

— Mas Andréia...

— Vamos, querido, por favor, faça o que lhe digo, não faz nenhum sentido... — E olhando para ela, reconheci que de fato não fazia sentido, e levantei também e gaguejei desculpas, minha mulher andava tão nervosa com a gravidez. O sr. Schönhaus manteve a dignidade, embora visse que tudo lhe era muito difícil; acompanhou-nos até à sala de espera e disse que isso acontecia, eram coisas humanas, e caso minha cara es­posa mudasse de idéia... ele estaria sempre à nossa disposição.

Logo estávamos sentados no Mercedes, eu atrás da di­reção, e fomos para casa. Durante todo o trajeto não trocamos palavra, nem ao menos nos olhamos. Por fim isso se tornou tão insuportável que tive dificuldades em dirigir o carro com calma. Em casa, fui até a sala, sentei-me e tentei permanecer tranqüilo. Andréia chegou com soda e gelo, preparou um uís­que, estendeu-me o copo e disse:

— Quero lhe explicar tudo.

Então nos fitamos, peguei o copo, ela sentou-se à minha frente e começou:

— Sei que você está muito zangado comigo...

— De modo algum — disse eu.

— Está sim. Queria tanto ir para os Estados Unidos. Mas eu não posso, Gato, não posso. E não quero. E a culpa é sua.

— Minha? — perguntei, e tomei um grande gole.

— Sim, sua. Ainda se lembra de quando nos encontra­mos no Schafberg em Viena?

— Claro. O que isso tem a ver?

— Espere! Lembra-se de que você disse que tínhamos de nos encontrar, porque não existe acaso na vida, porque tudo está predeterminado, as coisas maiores e as menores? Lem­bra-se?

Fiz que sim. E sabia o que estava por vir. Bom, pensei, então não.

— E quando eu lhe disse que não entendia por que você queria vir para a Alemanha, logo um país como a Alemanha, em que as pessoas têm tanto medo de uma nova guerra, você disse que a gente morre em toda parte, e que dia, hora e lugar estão predeterminados. Em outra ocasião me contou a história da morte em Samarra, recorda?

— Sim, Esquilinha — disse eu, e de repente me senti cansado. Adeus, América.

— Aquele homem rico em Bagdá, a quem uma vidente previne: A morte está a caminho e vem pegar o homem rico ainda esta noite...

— Conheço a história, querida Esquilinha.

— E o homem rico pega seu melhor cavalo e foge... para Samarra. E quando chega totalmente exausto avista a morte, que lhe diz: “Eu estava esperando por ti, chegaste atrasado. Vem comigo...” É a história da morte em Samarra, que você me contou, Gato, e ainda acrescentou: “Não se pode escapar. Ninguém, para lugar nenhum. Quando a hora soar, você vai morrer como está determinado.” Palavras suas, Gato! Ou não?

— São — disse eu, e bebi outra vez, e pensei que na verdade eram palavras de Eisenbeiss, e eu mais tarde as repe­tira para Andréia, mas que importância tinha isso?

— E você acredita nelas?

— Sim, Esquilinha — respondi. Então, fim. Acabado. Sentença divina. Era preciso encarar assim, pensei... uma sen­tença de Deus.

— Essas palavras são uma espécie de credo seu, Gato, não?

— Sim, Esquilinha.

— Está vendo — disse ela, deslizou para o tapete e apoiou um braço nos meus joelhos. — Mas também se tornará o meu credo, Gato. Fiquei tão feliz quando você me contou a história da morte em Samarra. Feliz e apaziguada. Antes sem­pre tivera medo neste país; desde então não tenho mais. Adap­tei-me com as coisas. Não se pode fugir. O que tem de acon­tecer, acontece. Tudo predeterminado. Tudo decidido no co­meço do mundo — palavras suas.

Concordei com a cabeça.

— Mas se tudo é assim, e acredito nisso, querido, então seríamos desleais para conosco mesmos, fugindo para a América. Iríamos trair algo em que nós dois acreditamos, você há mais tempo que eu. Sairíamos de Bagdá para Samarra. Quero dizer, então, se tudo está predeterminado, uma desgraça nos alcançaria nos Estados Unidos, talvez a morte... e aqui te­ríamos ficado vivos. Quem pode dizer realmente se haverá uma guerra atômica, e quando? e onde? Todos moramos em Bagdá, todos os seres humanos. Pense nos muitos milhões que nem podem ir para os Estados Unidos, mesmo que desejem, porque não têm dinheiro. Pense no seu destino predetermi­nado, na sua vida e na sua morte. E pense na nossa vida e na nossa morte predeterminadas. Mas se não posso fugir ao meu destino, quero ficar aqui, onde estão todas as coisas que amo, meus amigos, pessoas que falam a minha língua. Seja como for, este é o meu país. Não quero abandoná-lo, Gato, en­tende?

— Sim — disse eu, e estava bem calmo agora. — Eu te compreendo, Esquilinha. Mas por que não me disse isso muito antes? Por que foi comigo ao Langstrom?

— Porque amo você, Gato! — exclamou ela, infeliz. — Porque vi como você gostaria de ir para os Estados Unidos! E pensei que podia me esforçar e me dominar e ir com você como boa esposa. Mas não funcionou, Gato. Não funcionou. Naquele magnífico escritório daquele sr. Schönhaus, de re­pente acabou. Não conseguia mais respirar. Tive de ir embora. Você me perdoa? Por favor, por favor, me perdoe!

— Não há o que perdoar, Esquilinha querida. — Larguei meu copo, puxei-a para mim, e a beijei.

— E não está infeliz por não irmos para os Estados Uni­dos, por ficarmos aqui... agora que lhe expliquei tudo?

— Não, não estou infeliz — afirmei.

— De verdade?

— De verdade — disse eu, e quando o disse, tornou-se verdade. Realmente não se podia escapar. Nem se devia. E talvez por mais que me procurassem não me encontrariam, nem aqui na Europa, pensei. E abracei Andréia outra vez e beijei-a muitas vezes, e ela ria e chorava de nervosismo, e repetia como estava feliz. Depois foi à cozinha preparar o jantar, e lentamente continuei bebendo meu uísque, e não pensei em nada, tão grande era de repente a paz em mim.

 

Jacques Leriot, chefe do Secretário de Estado no Minis­tério da Justiça Philippe Nardonne, era bem mais velho do que este, baixo e também bem-vestido. E sentava-se na frente de Nardonne.

— Ouça, Philippe — disse o Ministro da Justiça. — Trata-se de madame Duhamel. — Nardonne fez cara de nojo. — Sim, dá náuseas. Sabe que ontem em Auteuil ela voltou a ser ameaçada pelo marido!

— Recebi um relatório da delegacia para onde a levaram. Naturalmente ela desmaiou outra vez em Auteuil.

— Gosto tão pouco da história como você, Philippe — disse Leriot. — Mas dessa vez muitas pessoas viram o homem e se apresentaram à polícia como testemunhas. Madame Du­hamel me telefonou. Realmente conseguiu me alcançar, ao menos por telefone, e disse que daria uma entrevista coletiva à imprensa, para correspondentes de jornais estrangeiros aqui em Paris. Quero que você impeça isso.

— Querer é fácil — disse Nardonne. Os sinos da igreja de Notre-Dame próxima bateram meio-dia. — Não conhece essa criatura, Jacques. Uma fera.

— Não importa se é simpática ou não — disse Leriot. — Trata-se de termos de impedir a qualquer preço essa entrevista coletiva. Há um fato que não podemos eliminar do mundo: o cadáver de Duhamel não foi identificado em Viena.

— Então também acha que ele está vivo? — Nardonne encarou pasmado o Ministro, a quem o ligava certa amizade.

— Claro que não acredito. Mas pela pura lógica não po­demos excluir essa possibilidade. Você sabe muito bem, Phi­lippe, que num número tão grande de mortos — mais de oitenta! — um ou outro corpo simplesmente não é encontrado quando os cadáveres ficam tão mutilados.

— Está certo, vamos presumir que ele esteja vivo. Só por fazer de conta. Acaso Duhamel será tão doido quanto sua mulher? O que significaria essa encenação? Quantas vezes ele ainda pretende aparecer e ameaçar a mulher? Por que afinal não a mata de uma vez?

— Seria simples — disse Leriot. — E se um outro ho­mem, com a máscara de Duhamel, fica assustando essa mulher dos infernos para se vingar de alguma coisa que ela lhe fez um dia?

— Outro homem...?

— Sim, outro homem! Não sabemos do que realmente se trata. E por isso tem de haver um fim. Não é tanto por essa pessoa, mas pela nossa responsabilidade e fama. Não esqueça que também não temos idéia de quem matou Balmoral. A Duhamel diz que foi seu marido.

— Ridículo.

— Certamente. Mas quem matou Balmoral? Quem é esse segundo homem? Por que já apareceu pela segunda vez? No começo desse caso tudo parecia diferente. Pense na opinião pública, Philippe, pense no exterior! A louca simplesmente não pode dar essa entrevista coletiva.

— E como pretende impedir isso?

— Dando início a uma investigação.

— O quê?

— E pegaremos para isso o nosso melhor homem.

— Nosso melhor... quer dizer Rolland?

— Quero dizer Rolland. Temos de esclarecer essa coisa. Se alguém pode fazer isso, esse alguém é Rolland. Mandei telefonar para a Delegacia Central de Polícia e pedi que o mandassem para cá. Talvez já tenha chegado.

Nardonne pegou um telefone, indagou algo de sua secre­tária e depois desligou.

— Acaba de chegar. Está esperando aí fora.

Leriot foi a uma porta branca com enfeites dourados. Abriu-a e estendeu os braços.

— Comissário Rolland, que alegria revê-lo!

Entrou um homem baixinho e delicado. Devia andar na casa dos cinqüenta anos, e usava terno comprado feito, amas­sado e não muito cuidado. Tinha rosto oval, boca grande, testa alta e olhos de cor indefinida, que davam a impressão de pacientes e pensativos. O cabelo preto era curto, com várias mechas grisalhas. Ninguém teria imaginado que Rolland era comissário criminal, aquele funcionário da polícia criminal pa­risiense a quem se apelava sempre que apareciam casos insolúveis, que tinham de ser resolvidos com discrição.

Nardonne levantou-se e saudou Rolland com o respeito que sentiam todos os que alguma vez tivessem lidado com aquele homem pequeno, de aparência tímida. Rolland tinha fama, era uma lenda. Em situações insolúveis e ameaçadoras, ele se saíra bem, assim como em casos que mais pareciam labirintos. O comissário Robert Rolland jamais alterava a voz, nunca perdia a paciência, não mostrava alegria nem preo­cupação, era sempre o mesmo — ali no Ministério da Jus­tiça como diante de uma mulher bestialmente assassinada em Belleville, bairro miserável de Paris. Falava pouco. Ficava sempre na sombra. Havia um acordo com jornais de nunca citarem o seu nome, nem escreverem seus casos. O que Rol­land fazia jamais viera a público. Apenas seus chefes sabiam - de seus trabalhos.

O Ministro pediu ao pequeno comissário que se sentasse. Rolland sentou-se, cruzou as mãos nos joelhos e escutou por uma hora o relato de Leriot e Nardonne. Só por três vezes fez perguntas, em voz baixa. De resto, sentava-se quase imóvel, os olhos semicerrados.

O tempo passava, os dois homens disseram a Rolland tudo o que sabiam e suspeitavam.

— Tem mais alguma pergunta? — perguntou Leriot.

— Não — disse mansamente o comissário Robert Rol­land.

— Quando pode começar com a investigação? — inda­gou Leriot.

— Imediatamente — disse Rolland, que sempre traba­lhava sozinho, embora pudesse contar em sua atividade com toda a ajuda, até a mais ampla intervenção das forças poli­ciais, o que nunca acontecera. Rolland resolvera quieto todos os seus casos, às vezes com a ajuda da polícia estrangeira ou da Interpol. Nenhum sucesso o empolgava, nenhum fracasso o abatia. Não tinha mulher nem parentes. Sempre que sobrava tempo, o que era raro, jogava xadrez sozinho. Era a sua única paixão.

— Se este caso se mostrar insolúvel, pelo menos fizemos o que podíamos — disse Leriot.

O pequeno comissário respondeu calmamente:

— Não há casos insolúveis, senhor Ministro. Só há casos sobre os quais não se sabe o suficiente. Nenhum caso se opõe à elucidação.

Nardonne perguntou:

— Por onde vai começar suas investigações?

— Pelo começo — disse Rolland, serenamente. — Bem pelo começo.

 

                                                                                            CONTINUA

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades