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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ARRASTADO NA TORRENTE / Agatha Christie
ARRASTADO NA TORRENTE / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ARRASTADO NA TORRENTE

                       

 

Há em todos os clubes um sócio maçador. O Coronation Club não constituía exceção, e o fato de, naquele momento, estar a decorrer um ataque aéreo não alterava de forma alguma o procedimento habitual desse sujeito.

 

O major Porter, antigo oficial do Exército da índia, agitou ruidosamente o jornal e pigarreou. Todos os circunstantes lhe evitaram o olhar, mas isso de nada lhes valeu.

 

- Vejo que o Times publica a notícia da morte de Gordon Cloade comentou. Discretamente, já se sabe. No dia 5 de Outubro, em conseqüência de um ataque inimigo. Não indicam morada. Na realidade, morava na casa da esquina logo a seguir à minha modesta residência. Um desses grandes edifícios ao cimo de Campden Hill. Confesso-lhes que me chocou bastante. Como sabem, sou um Warden (*). Cloade tinha acabado de regressar dos Estados Unidos. Tinha lá ido por causa desse assunto de compras do Governo. Casou-se, enquanto lá esteve, com uma viúva nova... tão nova que podia ser filha dele. Mrs. Underhay. Na realidade, conheci o seu primeiro marido na Nigéria.

 

(*) Corpo Militar de Vigilantes

 

O major Porter fez uma pausa. Ninguém se mostrou interessado ou lhe pediu que continuasse. Os jornais mantinham-se persistentemente erguidos em frente dos rostos, mas isso não bastava para desencorajá-lo. Tinha sempre longas histórias para contar, na maioria das vezes, acerca de pessoas que ninguém conhecia.

 

- É interessante prosseguiu o major Porter, com firmeza e com o olhar absorto, fito num par de sapatos de verniz, exageradamente pontiagudos, tipo de calçado esse que desaprovava profundamente. Como já disse, sou um Warden. Um caso curioso o dessa bomba. Nunca se sabe o que provoca. Introduziu-se na cave e rebentou com o telhado. O primeiro andar ficou praticamente intacto. Estavam seis pessoas dentro de casa. Três criados, um casal e uma governanta, Gordon Cloade, a mulher e o irmão desta. Estavam todos na cave com exceção deste último um tipo que pertenceu aos Comandos que preferiu o confortável quarto de cama, no primeiro andar, e caramba! escapou apenas com algumas contusões. A explosão matou os três criados; Gordon Cloade ficou soterrado e, embora tivessem conseguido tirá-lo cá para fora, morreu a caminho do hospital; a mulher também foi atingida pela explosão e ficou sem um farrapo em cima do corpo! Mas não morreu e têm esperanças de que se salve. Será uma viúva rica... Gordon Cloade devia valer para cima de um milhão.

 

O major Porter tornou a fazer uma pausa. O seu olhar percorrera um caminho ascensional desde os sapatos de verniz... às calças de riscas... ao casaco preto... até à cabeça em forma de ovo e aos bigodes colossais. Estrangeiro, certamente! Isso explicava os sapatos. «Este Clube... » pensava o major Porter... «onde é que irá parar?... Nem aqui conseguimos livrar-nos dos estrangeiros. » Esta linha independente de pensamentos correu paralelamente à sua narrativa.

 

O fato de o referido estrangeiro parecer prestar a máxima atenção à narrativa, não diminuiu, de forma alguma, o antagonismo do major Porter.

 

- Não pode ter mais do que vinte e cinco anos prosseguiu. É viúva pela segunda vez. Ou, pelo menos... é isto o que ela julga...

 

Fez nova pausa, esperando alguma demonstração de curiosidade... um comentário. Apesar de ver contrariados os seus desejos, prosseguiu obstinadamente:

 

- Na realidade, tenho cá as minhas idéias pessoais acerca disso. Um caso estranho. Como já lhes disse, conheci o seu primeiro marido, Underhay. Um tipo estupendo que foi comissário de distrito na Nigéria. Um tipo competentíssimo no seu cargo... um tipo de primeira categoria. Casou com esta rapariga na Cidade do Cabo. onde ela se encontrava de passagem numa tournée teatral. A sorte não a favorecia, era bonita, estava desamparada na vida, etc. Ouviu o bom do Underhay tecer elogios ao seu Distrito, ao espaço imenso e livre... e suspirou «Maravilhoso! Como eu gostaria de fugir de tudo isto». Pois bem, casou com ele e fugiu de tudo aquilo. Ele estava apaixonadíssimo, coitado... mas a coisa correu mal logo desde o princípio. Ela detestava o mato, os nativos aterrorizavam-na e sentia-se terrivelmente aborrecida. Apenas desejava ir à cidade, encontrar-se com gente de teatro e falar de assuntos profissionais. Solitude à dieux, na selva, não era o seu prato favorito. Embora possa parecer-lhes espantoso, nunca a vi... soube tudo isto pelo pobre Underhay. Foi para ele um golpe muito duro. Fez a única coisa decente que tinha a fazer: mandou-a para casa e concordou em conceder-lhe o divórcio. Foi exatamente depois disso que o conheci. Achava-se num estado de grande nervosismo e na disposição de alguém que tem necessidade de falar para desabafar. Sob certos aspectos, era um homem antiquado e curioso era um católico romano e resolveu não lhe conceder o divórcio. Disse-me assim «Há outros modos de concedermos a liberdade a uma mulher». «Mas ouça lá, meu velho», intervim eu, «não cometa nenhuma loucura. Não há no mundo mulher alguma que mereça que metamos uma bala na cabeça».

 

«Respondeu-me que, de modo algum, era essa a sua idéia. «Mas sou um homem só», continuou, «Não tenho parentes que se preocupem comigo. Se publicarem a notícia da minha morte, Rosaleen será considerada viúva, que é exatamente o que ela quer». «E você?», perguntei. «Ora!» respondeu-me. «É possível que um certo Mr. Enoch Arden surja em qualquer ponto da terra, a umas mil milhas daqui e recomece vida nova». «Isso ainda poderá, qualquer dia, vir a ser desastroso para ela», observei-lhe. «Oh, não!», assegurou-me, «jogarei a partida até final. Não haverá dúvidas quanto à morte de Robert Underhay».

 

«Bem, nunca mais voltei a pensar naquilo, mas, seis meses depois, ouvi dizer que Underhay tinha morrido, com febres, em qualquer ponto do interior. Os nativos eram de confiança e regressaram com um relato pormenorizado e plausível, trazendo as últimas palavras de Underhay, escritas pelo seu próprio punho, dizendo que todos tinham feito o possível por salvá-lo, que estava convencido de que não escaparia e que queria louvar o chefe da tribo. Este era-lhe muito dedicado assim como todos os outros. Seriam capazes de jurar o que ele lhes dissesse que jurassem. Portanto, aqui têm... Pode ser que Underhay esteja enterrado no seio da África Equatorial, mas também pode ser que não... e, neste caso, Mrs. Gordon Cloade ainda algum dia pode ter uma grande sensaboria. E acho que seria bem feito! Arruinou a vida ao pobre Underhay. É uma história interessante. »

 

O major Porter olhou em volta, ansiosamente, procurando ver esta declaração confirmada. Encontrou dois olhares fixos, perscrutadores e desconfiados: o olhar um tanto oblíquo do jovem Mr. Mellon e a atenção cortês de M. Hercule Poirot.

 

Depois, um jornal fez barulho e um homem de cabelo grisalho e de rosto singularmente impassível levantou-se calmamente da poltrona ao canto da chaminé e saiu do aposento.

 

O queixo do major Porter descaiu e o jovem Mr. Mellon soltou um assobio baixinho.

 

- Fê-la bonita! exclamou. Sabe quem era?

 

- Valha-me Deus! proferiu o major Porter, muito sobressaltado. Certamente que sim. Não o conheço intimamente, mas já fomos apresentados... Jeremy Cloade, o irmão de Gordon Cloade! Palavra de honra, que azar o meu! Se eu tivesse sonhado...

 

- É solicitador esclareceu o jovem Mr. Mellon. Aposto que vai processá-lo por tentativa de difamação de personalidade ou qualquer coisa assim.

 

O jovem Mr. Mellon tinha prazer em provocar o alarme e a consternação em lugares daquele gênero, pois a Defesa do Acto do Reino não o proibia.

 

O major Porter repetiu, consternado:

 

- Que azar! Que terrível azar!

 

- Esta noite já todo Warmsley Heath o saberá atormentou-o Mr. Mellon... É onde os Cloades moram. Ficarão reunidos até tarde a discutir a medida a tomar.

 

Nesse momento, soou o sinal de «Passou o perigo» e o jovem Mr. Mellon, pondo ponto final às suas malícias, conduziu suavemente o seu amigo Hercule Poirot para a rua. Terrível atmosfera a destes clubes comentou. É a mais completa coleção de velhos maçadores, mas Porter é de longe o pior de todos. A sua descrição do truque indiano da corda leva três quartos de hora e, ainda por cima, conhece toda a gente que passou por Puna! (*)

 

(*) Cidade indiana.

 

Isso foi em Outubro de 1944. Foi no fim da Primavera de 1946 que Hercule Poirot recebeu uma visita.

 

Hercule Poirot estava sentado a uma elegante secretária, numa agradável manhã de Maio, quando o seu criado George se aproximou e murmurou deferentemente:

 

- Está lá fora uma senhora que deseja falar-lhe.

 

- Que espécie de senhora? informou-se prudentemente Poirot, que apreciava sempre a meticulosa precisão das descrições de George.

 

- Deve andar entre os quarenta a cinqüenta anos. Pouco arranjada, com um aspecto muito artístico. Uns bons sapatos práticos, grossos. Um casaco de tweed e uma saia... mas a blusa é de renda. Umas discutíveis contas egípcias e um lenço azul ao pescoço.

 

Poirot encolheu levemente os ombros.

 

- Creio que não estou interessado em recebê-la disse.

 

- Devo dizer-lhe que está indisposto? Poirot olhou-o pensativamente.

 

- Suponho que já lhe disseste que estou ocupado com um assunto importante e que não posso ser incomodado, não é verdade?

 

George voltou a tossicar.

 

- Declarou-me que viera da província propositadamente para falar-lhe e que não se importava de esperar.

 

Poirot suspirou.

 

- Nunca se deve lutar contra o inevitável filosofou. Se uma senhora de meia-idade, que usa contas egípcias falsas, decidiu falar ao famoso Hercule Poirot e se deslocou da província com esse fim, nada a demoverá desse propósito. Ficará sentada lá fora, no átrio, até conseguir o seu intento. Manda-a entrar, George.

 

George retirou-se para voltar daí a pouco tempo, anunciando cerimoniosamente:

 

- Mrs. Cloade.

 

A silhueta de tweed coçado e de lenço azul de pontas flutuantes entrou no aposento com uma expressão radiosa. Dirigiu-se a Poirot de mão estendida e com todos os colares de contas oscilando e tinindo.

 

- M. Poirot começou vim procurá-lo guiada por uma indicação espírita.

 

Poirot pestanejou levemente.

 

- A sim, madame? Talvez deseje sentar-se e contar-me...

 

Não prosseguiu.

 

- Ambas as coisas, M. Poirot. Com a escrita automática e a tábua ouija. Foi na penúltima noite. Madame Elvary é uma mulher maravilhosa e eu estávamos a consultar a tábua. Saíram-nos as mesmas iniciais repetidas vezes. H. P. H. P. H. P. Já se sabe que, não compreendi imediatamente o verdadeiro significado. Leva algum tempo, compreende. Neste plano terrestre, não se pode ver claramente. Torturei os miolos a pensar nalguém com essas iniciais. Calculei que se relacionasse com a sessão anterior, uma sessão realmente muito lancinante, mas levei algum tempo a compreender isso. Comprei depois um exemplar do Picture Post outra indicação espírita, bem vê, porque geralmente compro o New Statesman e lá vinha o senhor... um retrato seu com uma descrição da sua pessoa e uma relação do que tem feito.

 

- É maravilhoso, não acha, M. Poirot, como tudo tem um propósito? Muito nitidamente, o senhor é a pessoa apontada pelos Guias para esclarecer este assunto.

 

Poirot observava-a pensativamente. Por muito estranho que pareça o que lhe chamou realmente a atenção foi o fato de possuir uns olhos azul-claros, extraordinariamente astutos. Tal como eram, acentuavam o seu modo incoerente de aproximação.

 

- E que tem isso, Mrs... Cloade? franziu o sobrolho. Parece-me ter ouvido este nome há algum tempo...

 

Ela acenou veementemente com a cabeça, em sinal de concordância.

 

- O meu pobre cunhado... Gordon. Imensamente rico e muitas vezes mencionado na Imprensa. Morreu num bombardeamento há mais de um ano... foi um duro golpe para todos nós. O meu marido era o seu irmão mais novo. É médico. O Dr. Lionel Cloade... Evidentemente acrescentou, baixando a voz que não faz a menor idéia de que vim consultá-lo. Não o aprovaria. Acho que os médicos têm uma maneira muito prosaica de ver as coisas. Parece que odeiam estranhamente o lado espiritual. Põem a sua fé na Ciência, mas o que eu digo é isto... o que é a Ciência... de que serve?

 

Hercule Poirot achou que para aquela pergunta não haveria qualquer resposta que não fosse uma descrição meticulosa e cuidada que abrangesse Pasteur, Lister, a lâmpada de segurança de Humphrey Davy... a comodidade da eletricidade em casa e várias centenas de outros temas afins. Mas isso não era naturalmente a resposta que Mrs. Lionel Cloade queria. Na realidade, a sua pergunta, tal como muitas outras perguntas, não era exatamente uma pergunta. Era uma simples figura de retórica.

 

Hercule Poirot contentou-se em inquirir, optando por uma atitude prática:

 

- De que modo espera que possa ajudá-la, Mrs. Cloade?

 

- Acredita realmente no mundo espírita, M. Poirot?

 

- Sou um bom católico respondeu Poirot, prudentemente.

 

Mrs. Cloade pôs de parte a fé católica com um sorriso de comiseração.

 

- Cega! A Igreja é cega... cheia de preconceitos, e louca... em não querer aceitar a realidade e a beleza do mundo que existe por trás deste.

 

- Tenho uma entrevista importante marcada para as doze horas preveniu Hercule Poirot.

 

Foi uma observação oportuna. Mrs. Cloade inclinou-se para a frente.

 

- Tenho então de abordar o assunto imediatamente. Ser-lhe-á possível, M. Poirot, encontrar uma pessoa desaparecida?

 

Poirot ergueu o sobrolho.

 

- Bem... talvez replicou acauteladamente. Mas a polícia, minha querida Mrs. Cloade, poderia fazê-lo com muito mais facilidade do que eu, pois dispõe de toda a engrenagem necessária para isso.

 

Mrs. Cloade pôs de parte a polícia como já o fizera à Igreja Católica.

 

- Não, M. Poirot... foi para si que fui guiada... por esses que estão por trás do véu. Ora, ouça. O meu irmão Gordon casou-se, umas semanas antes da sua morte, com uma viúva jovem... uma Mrs. Underhay. O seu primeiro marido, pobre pequena teve um desgosto tão grande, foi dado como morto em África. Uma região misteriosa... a África.

 

- Um continente misterioso corrigiu Poirot. É possível. Em que parte...

 

Ela antecipou-se:

 

- Na África Central. A zona do Vúdú do Zombi...

 

- O Zombi fica nas índias Ocidentais.

 

Mrs. Cloade prosseguiu:

 

... da magia negra... de práticas estranhas e secretas... uma região onde um homem pode desaparecer para nunca mais se ouvir falar dele.

 

- É possível, é possível admitiu Poirot mas verifica-se o mesmo em Piccadilly Circus.

 

Mrs. Cloade pôs de parte Piccadilly Circus.

 

- Mais tarde, M. Poirot, recebemos por duas vezes uma comunicação de um espírito que diz chamar-se Robert. A mensagem foi a mesma de ambas as vezes. Não morri... Ficamos intrigadas pois não conhecíamos nenhum Robert. Pedimos-lhe mais explicações e conseguimos isto: «R. U. R. U. R. U. » e depois «Prevenir R.». «Prevenir Robert?», inquirimos. «Não, de Robert. R. U. » «Para que é o U»? Foi então, M. Poirot, que recebemos a resposta mais significativa ”Little Boy Blue. Little Boy Blue. Ha ha ha! » Está a compreender?

 

- Não respondeu Poirot, não compreendo.

 

Ela olhou-o, cheia de comiseração.

 

- A cantiga para crianças Little Boy Blue, «Under the Hay cock fast asleep» Underhay compreende?

 

Poirot acenou que sim com a cabeça. Absteve-se de perguntar por que razão, se o nome Robert podia ser soletrado, o mesmo não se verificava com o nome Underhay e por que fora necessário recorrer a uma linguagem de Serviço Secreto tão rudimentar.

 

- E a minha cunhada chama-se Rosaleen terminou triunfantemente Mrs. Cloade. Compreende? Todos estes RR causam confusão, mas o significado é muito claro. “Prevenir Rosaleen de que Robert Underhay não morreu”.

 

- Ah! E disse-lho?

 

Mrs. Cloade pareceu levemente embaraçada.

 

- Hum... bem... não. Compreende, isto é... bem, as pessoas são tão cépticas... Tenho a certeza de que Rosaleen não é uma exceção. E de resto, pobre pequena, isso poderia sobressaltá-la... perguntando-se, compreende, onde ele estava... e o que estaria a fazer.

 

- Além de projetar a sua voz através do éter? Muito bem. Um método curioso, evidentemente, de participar a sua incolumidade?

 

- Ah, M. Poirot, vejo que não é um iniciado. E como sabemos nós que circunstâncias são? O pobre capitão Underhay ou major Underhay pode estar prisioneiro em qualquer parte do misterioso interior de África. Mas se pudesse ser encontrado, M. Poirot! Se pudesse ser devolvido à sua querida e jovem Rosaleen! Pense na felicidade dela! Oh, M. Poirot, eu fui-lhe enviada... Certamente, certamente não recusará a ordem do mundo espírita.

 

Poirot olhou-a pensativamente.

 

- Os meus honorários são muito elevados observou suavemente. Devo dizer até tremendamente elevados! E o trabalho que acaba de sugerir-me não seria fácil.

 

- Oh... mas certamente... é uma imensa pouca sorte. Eu e meu marido estamos em muito má situação... muito má, efetivamente. Na realidade, a minha ainda é pior do que ele julga. Levada por uma indicação espírita, comprei algumas ações que, por ora, só me têm desapontado... para dizer a verdade, chegaram até a alarmar-me. Desceram muito e creio que agora são praticamente invendáveis.

 

Mirava-o com uns olhos azuis consternados.

 

- Não me atrevi a confessá-lo a meu marido. Digo-lho unicamente a si, para explicar-lhe a minha situação. Mas, meu caro M. Poirot, não acha que reunir um marido jovem à mulher... é uma missão tão nobre...

 

- A nobreza, chère madame, não me pagará passagens por barco, por caminho-de-ferro e por avião; nem tão-pouco cobrirá o custo de extensos telegramas e de mensagens por cabo submarino, nem os interrogatórios de testemunhas.

 

- Mas se o encontrar... se o capitão Underhay for encontrado vivo, bem... então... bem, acho que posso garantir-lhe que, uma vez realizado esse trabalho, não... não haverá qualquer dificuldade em... hum... em reembolsá-lo.

 

- Ah, então, esse capitão Underhay é rico?

 

- Não. Bem, não... mas posso garantir-lhe... posso dar-lhe a minha palavra... de que... de que a situação financeira não apresentará dificuldades.

 

Poirot abanou lentamente a cabeça numa resposta negativa.

 

- Lamento, madame. A resposta é Não.

 

Teve uma certa dificuldade em fazê-la aceitar essa resposta.

 

Quando por fim Mrs. Lionel Cloade se retirou, ficou mergulhado em divagações, de sobrolho franzido.

 

Lembrava-se agora do motivo por que o nome de Cloade lhe era familiar. Ocorreu-lhe a conversa no clube, no dia do ataque aéreo. O matraquear incomodativo da voz do major Porter, narrando, num tagarelar ininterrupto, uma história que ninguém queria ouvir.

 

Lembrou-se do ruído de um jornal e do súbito descair de queixo do major Porter aliado a uma expressão de profunda consternação.

 

Mas o que o importunava era a impressão que lhe deixara a impaciente senhora de meia-idade que acabara de deixá-lo. A fluente tagarelice espírita, a indeterminação, o lenço de pontas flutuantes, os colares e amuletos pendurados à volta do pescoço... e finalmente, em leve contraste com tudo isso, um imprevisto brilho astuto, num par de olhos azul-pálidos.

 

- Por que motivo exato veio procurar-me? perguntou-se. Gostava de saber o que teria acontecido em olhou para o cartão de visita, pousado sobre a secretária Warmsley Vale?

 

Tinham decorrido exatamente cinco dias quando leu um pequeno parágrafo de um jornal da noite que se referia à morte de um homem chamado Enoch Arden, ocorrida em Warmsley Vale, pequena e antiga aldeia, a cerca de três milhas do conhecido Campo de Golfe de Warmsley Heath.

 

Hercule Poirot disse com os seus botões:

 

- Gostava de saber o que teria acontecido em Warmsley Vale...

 

 

Warmsley Heath compreende um campo de golfe, dois hotéis, algumas moradias modernas e muito caras, fronteiras ao campo de golfe, uma série de construções que, antes da guerra, tinham sido lojas luxuosas, e uma estação de caminho-de-ferro.

 

Ao sair-se desta, encontra-se, à esquerda, uma estrada principal que conduz a Londres... e, à direita, um estreito caminho recortado através do campo, com o poste indicativo de Atalho para Warmsley Vale.

 

Warmsley Vale, encaixado em colinas arborizadas, é muitíssimo diferente de Warmsley Heath. É, em essência, uma microscópica e antiga cidade-mercado, agora degenerada em aldeia. Tem uma rua principal entre casas jorgianas, várias tabernas, algumas lojas antiquadas e parece estar distanciada de Londres cento e cinqüenta milhas, em vez de vinte e oito.

 

Pelos arredores, espalham-se casas encantadoras rodeadas por jardins. Foi a uma dessas casas, a White House, que Lynn Marchmont regressou no princípio da Primavera de 1946, quando da sua desmobilização das Wrens (*).

 

(*) Corpo militar feminino.

 

Na terceira manhã do seu regresso a Warmsley Vale, postada à janela do seu quarto de cama, aspirava com delícia o ar fresco enquanto espraiava o olhar pelo relvado descuidado, em frente à casa, e pelos ulmeiros do prado mais além. Era uma manhã suave, pardacenta, impregnada do aroma de gleba molhada. Era um cheiro que não aspirara durante os dois últimos anos e meio.

 

Era maravilhoso estar de novo em casa; maravilhoso estar ali no seu quartinho de cama que tantas vezes recordara, cheia de nostalgia, enquanto estivera no ultramar; maravilhoso também ter despido o uniforme, poder enfiar uma saia de tweed e uma camisola de lã embora as traças tivessem sido excessivamente diligentes durante os anos de guerra!

 

Era bom ter saído das Wrens e voltar a ser uma mulher livre, apesar do serviço que prestara no ultramar lhe ter agradado muitíssimo. Fora um trabalho bastante interessante, entremeado de saraus e de muitos outros divertimentos, mas a que também não faltara o tédio da rotina e a sensação deprimente de «andar em rebanho» com as companheiras. Fora uma sensação que, algumas vezes, lhe fizera sentir uma desesperada ânsia de fugir.

 

Fora durante esse longo e abrasador Verão passado no Oriente, que relembrara tão veementemente Warmsley Vale, a agradável casa fresca e velha e a querida Mamã. Lynn amava sua mãe tanto quanto se irritava com ela. Longe de casa, continuara a amá-la, esquecendo as irritações ou recordando-as apenas com uma adicional dor nostálgica. Era uma Mamã adorável que, por vezes, conseguia pô-la fora de si! Mas quanto não teria dado para ouvi-la enunciar um cliché na sua voz doce e queixosa! Oh, estar de novo em casa e nunca, nunca mais ter de deixá-la!

 

E agora ali estava, desmobilizada, livre, de regresso à White House. Havia apenas três dias que regressara e já uma curiosa e insatisfeita inquietação a invadia. Era sempre a mesma coisa quase chegava a entediar a casa, a Mamã, Rowley, a granja e a família. A única coisa que era diferente e que o não devia ser era ela própria...

 

- Querida... o grito estrídulo de Mrs. Marchmont subiu as escadas. Posso levar à cama da minha menina, um apetitoso tabuleiro?

 

Lynn gritou vivamente:

 

- Certamente que não. Desço já.

 

«Por que razão a Mamã», pensou, «há-de dizer minha menina? É tão tolo!»

 

Desceu rapidamente as escadas e entrou na casa de jantar. Não se tratava de um excelente pequeno-almoço. Presentemente, Lynn compreendia como se perdia tanto tempo e era preciso lutar para arranjar comida. Com exceção de uma mulher-a-dias, um tanto incerta, que lá aparecia, quatro vezes por semana, Mrs. Marchmont vivia sozinha em casa, azafamando-se a cozinhar e nas limpezas diárias. Quando Lynn nascera, contava quase quarenta anos e a sua saúde não era boa. Lynn também notou, com certa consternação, quanto a situação financeira de ambas mudara. O pequeno mas suficiente rendimento fixo que lhes permitira viver confortavelmente, antes da guerra, achava-se agora quase reduzido a metade, em conseqüência do aumento de impostos. Preços e despesas, tudo aumentara.

 

«Oh! Admirável mundo novo!», pensou Lynn sombriamente. Os seus olhos percorreram rapidamente as colunas do jornal. Ex-W. A. A. F. procura emprego que requeira iniciativa e energia. » ”Antiga W. R. E. N. procura lugar que requeira capacidade organizadora e austeridade.»

 

Empreendimento, iniciativa, comando, eram os préstimos oferecidos. Mas do que precisavam? Pessoas que soubessem cozinhar, fazer limpezas ou tivessem um conhecimento decente de estenografia; gente laboriosa, especializada num trabalho rotineiro.

 

Ora, isso não lhe respeitava. O seu rumo estava bem traçado. O casamento com seu primo Rowley Cloade. Tinham ficado noivos sete anos antes, exatamente antes do rebentar da guerra. Que se lembrasse, sempre fizera tenção de casar com Rowley cuja escolha de uma vida rural fora do seu inteiro e pronto acordo. Uma boa vida. Talvez não fosse excitante e exigisse imenso trabalho árduo, mas ambos gostavam do ar livre e de tratar de animais.

 

Não queria isso dizer que o futuro agora apresentado fosse o mesmo que fora tempos antes. O tio Gordon sempre prometera...

 

A voz de Mrs. Marchmont soou em tom lamentoso:

 

- Como te disse numa das minhas cartas, foi um golpe tremendíssimo para todos nós, querida Lynn. Gordon chegara a Inglaterra dois dias antes. Nem sequer o tínhamos visto. Se, ao menos, não tivesse ficado em Londres e tivesse vindo diretamente para aqui...

 

Sim! Se, ao menos...

 

Lynn recebera o choque, longe de casa, e magoara-a muito a notícia da morte do tio, mas só agora começava a avaliar o seu verdadeiro significado.

 

Desde que era capaz de recordar-se, a sua vida, todas as suas vidas tinham dependido de Gordon Cloade. Este homem rico, que não tivera filhos, tomara completamente a seu cargo todos os parentes.

 

Desse modo, Rowley... Rowley e o seu amigo Johnnie Vavasour tinham entrado de sociedade na quinta. Dispunham de pequeno capital, mas sentiam-se animados por uma enorme esperança e energia. E Gordon Cloade aprovara.

 

A ela, porém, dissera mais:

 

- Não se pode começar a cultivar a terra sem se dispor de capital. Porém, tornava-se necessário descobrir se esses rapazes tinham realmente vontade e energia para fazer qualquer coisa. Ainda que agora os financiasse, não o saberia... antes de vários anos decorridos. Se tiverem dentro deles as qualidades necessárias e se eu me der por satisfeito, então, Lynn, não terás que preocupar-te. Financiá-los-ei na devida escala. Por conseguinte, não esmoreças, minha filha. És exatamente a mulher de que Rowley precisa. “Mas guarda segredo do que acabo de dizer-te.”

 

Ela assim fizera, mas Rowley sentira por si próprio o benevolente interesse do tio. Competia-lhe provar ao velhote que ele e Johnnie eram um bom emprego de capital.

 

Sim, todos eles tinham dependido de Gordon Cloade. Não quer dizer que qualquer membro da família tivesse sido explorador ou mandrião. Jeremy Cloade era sócio-chefe de uma firma de solicitadores e Lionel Cloade era médico.

 

Mas, por trás da vida laboriosa de todos os dias, havia a reconfortante certeza de dinheiro. Nunca tinham tido necessidade de economizar ou de poupar. O futuro estava assegurado. Gordon Cloade, viúvo e sem filhos, velaria por isso. Ele próprio o dissera a todos mais de uma vez.

 

A irmã, Adela Marchmont, também viúva, continuara na White House, quando talvez lhe tivesse sido possível mudar-se para uma casa mais pequena, que exigisse menos trabalho. Lynn freqüentara os melhores colégios. Se a guerra não tivesse estalado, poderia ter seguido qualquer curso dispendioso que lhe tivesse apetecido. Os cheques do tio Gordon choviam com uma regularidade confortante, que permitia pequenos luxos.

 

Tudo fora tão firme, tão seguro. Depois verificara-se o casamento completamente imprevisto de Gordon Cloade.

 

- Como é natural, querida prosseguiu Adela todos nós ficamos surpreendidíssimos. Se alguma coisa parecia absolutamente certa era Gordon nunca mais voltar a casar. Não foi por não ter muitos laços familiares.

 

«Sim», pensou Lynn, «muita família. Às vezes, possivelmente, até demasiada família. »

 

- Foi sempre tão bom prosseguiu Mrs. Marchmont embora, por vezes, fosse talvez um nadinha tirânico. Nunca gostou do hábito de jantar numa mesa sem toalha. Insistia sempre em ver a uso as antigas toalhas de mesa e, quando esteve em Itália, chegou a mandar-me uma toalha maravilhosa em renda de Veneza.

 

- Certamente compensou-te por acederes aos seus desejos observou Lynn secamente, e acrescentou com certa curiosidade. Como conheceu... a segunda mulher? Nunca mo disseste nas tuas cartas.

 

- Oh, minha querida, num barco, num avião ou noutro sítio qualquer. Ia da América do Sul para Nova Iorque, creio eu. Depois de todos aqueles anos! E depois de todas aquelas secretárias, datilografas, governantas e tudo o mais!

 

Lynn sorriu. Desde que conseguia lembrar-se, as secretárias, as governantas e o pessoal de escritório de Gordon Cloade tinham sido submetidos ao mais severo exame.

 

- Inquiriu com curiosidade?

 

-Tem boa aparência, não?

 

- Bem, querida respondeu Adela, eu acho que tem uma cara bastante tola.

 

- Mas tu não és homem, Mamã!

 

- Certamente prosseguiu Mrs. Marchmont que a pobre rapariga estava aparvalhada, tinha sofrido o choque da explosão e estava na realidade terrivelmente mal e tudo o mais e, na minha opinião, ainda não se refez completamente. Está num feixe de nervos, não sei se compreendes o que quero dizer. E, na realidade, às vezes, parece absolutamente parva. Não creio que pudesse ter sido uma boa companheira para o pobre Gordon.

 

Lynn sorriu. Duvidava que Gordon Cloade tivesse casado com uma mulher alguns anos mais nova do que ele para encontrar nela uma companheira intelectual.

 

- Além disso, minha querida Mrs. Marchmont baixou a voz, custa-me dizê-lo, mas ela não é de forma alguma uma senhora!

 

- Que expressão, Mamã! Hoje em dia, que importância tem isso?

 

- Na província, ainda tem, minha querida respondeu Adela, tranquilamente. Quero simplesmente exprimir que não é exatamente do nosso meio!

 

- Pobre rapariga!

 

- Francamente, Lynn, não sei o que queres dizer com isso. Todos nós tivemos o maior cuidado em sermos amáveis e delicados para com ela e, em atenção a Gordon, acolhemo-la com simpatia.

 

- Está então em Furrowbank? perguntou Lynn com curiosidade.

 

- Sim, naturalmente. Para que outro sítio podia ter ido depois de sair da casa de saúde? Os médicos recomendaram-lhe que saísse de Londres. Está em Furrowbank com o irmão.

 

- Que tal é ele? interessou-se Lynn.

 

- Um rapaz novo, detestável! Mrs. Marchmont fez uma pausa e depois acrescentou com uma boa dose de intensidade. Arrogante.

 

Um momentâneo rasgo de simpatia cruzou o espírito de Lynn, que pensou: «Aposto que no seu lugar, também seria arrogante. »

 

- Como se chama? inquiriu.

 

- Hunter. David Hunter. É irlandês, segundo creio. Não são, evidentemente, gente conhecida. Ela era viúva... uma Mrs. Underhay. Não é ter vontade de ser-se cruel, mas uma pessoa não pode deixar de perguntar-se que espécie de viúva teria tido o capricho de ir viajar pela América do Sul, em tempo de guerra? Compreendes, não se pode deixar de sentir a impressão de que andava à caça de marido rico.

 

- Nesse caso, não o fez em vão observou Lynn. Mrs. Marchmont suspirou.

 

- É um caso tão extraordinário! Gordon foi sempre um homem tão perspicaz! Imagino quantas mulheres tê-lo-iam já anteriormente tentado. Aquela penúltima secretária, por exemplo. Na realidade, era muito intrometida. Era muito eficiente, segundo creio, mas ele teve de desembaraçar-se dela.

 

- Suponho que, na vida, há sempre um Waterloo.

 

- Sessenta e dois comentou Mrs. Marchmont, uma idade muito perigosa. E, na minha opinião, uma guerra é tão desnorteante! Mas não sei descrever-te o choque que tivemos ao recebermos a sua carta de Nova Iorque.

 

- Que dizia exatamente?

 

- Escreveu a Frances... Na realidade, não consigo imaginar porquê. Talvez tivesse pensado que, devido à sua educação, fosse mais compreensiva. Dizia que provavelmente ficaríamos surpreendidos ao saber que tinha casado; que fora tudo muito repentino, mas que tinha a certeza de que pouco tempo depois de conhecermos Rosaleen todos nós gostaríamos muito dela. É um nome muito teatral, não achas, minha querida? Quero dizer, muito fictício. Tivera uma vida muito triste, dizia ele, e que embora fosse ainda muito nova já passara por muitas agruras da vida; que fora realmente maravilhoso o modo corajoso como enfrentara a vida.

 

- Um ardil muito conhecido murmurou Lynn.

 

- Oh, bem sei. Concordo inteiramente. Já se ouviu contar isso tantas vezes. Mas, na realidade, é-se levado a pensar que Gordon, apesar de toda a sua experiência, também caiu. Ela tem uns olhos enormes, azul-escuros, cercados por grandes olheiras.

 

- Atraente?

 

- Sim, é sem dúvida alguma muito bonita. Mas não é o gênero de beleza que eu admiro.

 

- Nunca o é observou Lynn, com um sorriso forçado.

 

- Não, querida. Na realidade, os homens... bem não se trata de homens. Até os mais ajuizados cometem as loucuras mais incríveis! A carta de Gordon dizia ainda que, nem por um só instante, deveríamos pensar que o seu casamento significasse qualquer perda dos antigos laços. Continuava a considerar-nos a todos sob a sua especial responsabilidade.

 

- Mas, depois do casamento, não fez nenhum testamento?

 

Mrs. Marchmont sacudiu negativamente a cabeça.

 

- O último testamento que fez data de 1940. Não conheço nenhum dos seus pormenores, mas, nessa altura, Gordon deu-nos a entender que, se alguma coisa lhe acontecesse, ficávamos todos garantidos. Já se sabe que esse testamento ficou anulado pelo seu casamento. Estou convencida de que teria feito outro, quando estivesse na pátria... simplesmente, não teve tempo para isso. Praticamente, morreu mal desembarcou neste país...

 

- E, por conseguinte, ela... Rosaleen... herda tudo?

 

- Sim. O antigo testamento ficou invalidado pelo casamento.

 

Lynn ficou calada. Não era mais mercenária do que a maioria das pessoas, mas não teria sido humana se não tivesse lamentado a nova situação. Sentia que não era de maneira nenhuma isso o que Gordon Cloade desejaria. Possivelmente teria deixado à jovem esposa a parte principal da sua fortuna, mas teria certamente tomado algumas disposições a favor da família que habituara e encorajara a viver na sua dependência. Recomendara-lhes repetidas vezes que não poupassem, que não amealhassem para o futuro. Ouvira-o dizer a Jeremy «Quando eu morrer, serás um homem rico» e à mãe, muitas vezes «Não te preocupes, Adela. Olharei sempre por Lynn... bem sabes isso e custar-me-ia muito que deixasses esta casa... é a tua casa. Manda-me todas as contas de consertos».

 

A Rowley, encorajara-o a dedicar-se ao cultivo da terra. Empenhara-se em que Anthony, o filho de Jeremy, entrasse nos Guards e concedera-lhe sempre uma agradável mesada. Animara Lionel Cloade a prosseguir em certas pesquisas médicas, que não eram imediatamente proveitosas e a deixar diminuir a sua clientela.

 

Os pensamentos de Lynn foram interrompidos. Dramaticamente e com um lábio trêmulo, Mrs. Marchmont apresentou-lhe um maço de contas.

 

- Olha para isto tudo gemeu. Que hei-de fazer? Que coisa hei-de fazer, Lynn? O gerente do banco só esta manhã me escreveu a prevenir que estou sem crédito. Não posso compreender como isso é possível. Tenho sido tão cuidadosa! Mas parece que os meus empregos de capital não estão a render o que costumavam. Aumento de impostos, diz ele. E todas essas coisas horríveis, War Damage Insurance (*) ou qualquer coisa parecida é-se obrigado a pagar-lhes quer se queira quer não.

 

(*) Seguro contra danos causados pela guerra. (N. do T.)

 

Lynn pegou nas contas e deu-lhes uma rápida vista de olhos. Nenhuma delas resultara de qualquer gasto extravagante. Diziam respeito à colocação de placas de ardósia no telhado; ao conserto de cercas; à substituição da caldeira rota da cozinha... a um novo cano de água. O seu montante perfazia uma quantia considerável.

 

Mrs. Marchmont lastimou-se:

 

Creio que terei de mudar-me daqui. Mas para onde poderei ir? Não se encontra em parte alguma uma casa pequena... é coisa que não existe. Oh, não quero preocupar-te com tudo isto, Lynn, tanto mais que regressaste a casa há tão pouco tempo. Mas não sei que fazer. Na realidade, não sei.

 

Lynn olhou para a mãe. Tinha mais de sessenta anos. Nunca fora uma mulher muito forte. Durante a guerra, hospedara refugiados de Londres, cozinhara e tratara da casa, cooperara com o W. V. S. (*), fizera compota, ajudara no serviço das refeições escolares. Trabalhara catorze horas por dia, em contraste com a vida agradável que levara antes da guerra. Achava-se agora, como Lynn via, à beira de um esgotamento de forças; estava extenuada e preocupada quanto ao futuro.

 

(*) Corpo militar feminino.

 

Uma cólera surda e lenta cresceu dentro de Lynn. Perguntou vagarosamente:

 

- Essa Rosaleen não poderia... ajudar? Mrs. Marchmont enrubesceu.

 

- Não temos direito a nada... a nada absolutamente.

 

Lynn objetou: - Acho que a mãe tem um direito moral. O tio Gordon ajudou sempre.

 

Mrs. Marchmont sacudiu negativamente a cabeça e acrescentou: - Não seria muito agradável, minha querida, implorar favores... a uma pessoa de que não gostamos muito. Em qualquer dos casos, o irmão nunca lhe consentiria que largasse um centavo!

 

E acrescentou, permitindo que o heroísmo cedesse lugar a maldade puramente feminina.

 

- Se realmente é irmão dela, é bom que se diga!

 

Frances olhou pensativamente para o marido, sentado no lado oposto da mesa.

 

Frances tinha quarenta e oito anos. Era uma dessas mulheres magras e esgalgadas a quem os tweeds ficam bem. O rosto onde, além do baton, aplicado um pouco descuidadamente, não se notava o mínimo artifício, conservava ainda sinais de uma antiga beleza, um tanto altiva. Jeremy Cloade tinha sessenta e três anos. Era um homem magro, de cabelo grisalho, de rosto seco e inexpressivo.

 

Nessa noite, ainda estava mais inexpressivo do que habitualmente.

 

A mulher registrou o fato num rápido relance de olhos.

 

Uma rapariga de quinze anos arrastava os pés em volta da mesa, apresentando as travessas. O seu olhar angustiado pousava-se em Frances. Se esta franzia o sobrolho, quase deixava cair o que tivesse nas mãos, mas, se lhe via um olhar aprovativo, exultava de contentamento.

 

Observava-se invejosamente em Warmsley Vale que, se havia alguém que tivesse criadas, esse alguém era Frances Cloade. Não as subornava com salários extravagantes e era exigente no serviço mas a sua afetuosa aprovação do esforço e a sua corajosa energia e autoridade tornavam o serviço doméstico algo de criador e de pessoal. Durante toda a sua vida fora tão acostumada a ser servida que aceitava o fato naturalmente, inconscientemente, e nutria a mesma consideração quer por uma boa cozinheira ou criada de fora quer por um bom pianista.

 

Frances Cloade fora a única filha de Lorde Edward Trenton, que criara os seus cavalos nas vizinhanças de Warmsley Heath. A final a bancarrota de Lorde Edward foi considerada pelos entendidos como uma fuga misericordiosa a coisas piores. Tinham corrido boatos relacionados com cavalos que, em momentos inesperados, não tinham correspondido ao que deles se esperara e ainda outros de inquéritos realizados pelos administradores do Jockey Club. Mas Lorde Edward conseguira escapar com a reputação apenas levemente manchada e conseguira um acordo com os seus credores que lhe permitia viver muitíssimo confortavelmente no Sul da França. Essas inesperadas dádivas tinha de agradecê-las à astúcia e diligências especiais do seu solicitador, Jeremy Cloade. Cloade fizera muito mais do que geralmente um solicitador faz por um cliente e chegara a dar garantias pessoais. Fora bem explícito em declarar que nutria uma profunda admiração por Frances Trenton, e oportunamente, depois dos negócios do pai terem ficado satisfatoriamente arrumados, Frances tornou-se Mrs. Jeremy Cloade.

 

Nunca ninguém conhecera as suas emoções a esse respeito. Tudo quanto podia dizer-se era que cumprira admiravelmente o seu lado do contrato. Fora uma esposa eficiente e leal para Jeremy, uma mãe extremosa para o filho, ativara os interesses do marido em todos os sentidos e nunca por uma palavra ou ação sugerira que o casamento fora qualquer coisa mais do que um impulso da sua livre vontade.

 

Em contrapartida, a família Cloade votava a Frances um profundo respeito e admiração. Orgulhava-se dela, submetia-se ao seu parecer... mas na realidade nunca se sentira muito da sua intimidade.

 

O que Jeremy Cloade pensou deste casamento ninguém o soube porque nunca ninguém sabia o que Jeremy Cloade pensava ou sentia. É um «pau seco», diziam as pessoas, referindo-se ao marido de Frances. A sua reputação quer como homem quer como advogado era esplêndida. Cloade, Brunskill e Cloade nunca se encarregavam de qualquer assunto de legalidade duvidosa. Não eram considerados brilhantes, mas fruíam de toda a confiança. A firma prosperara e os Jeremy Cloades viviam numa boa casa jorgiana, à saída da Praça do Mercado, rodeada por um grande jardim murado onde, na Primavera, as pereiras formavam um mar de flores brancas.

 

Foi para um quarto dando para o jardim que marido e mulher se dirigiram, quando, acabado o jantar, se levantaram da mesa. Edna, a rapariguita de quinze anos, serviu-lhes o café, ali, respirando excitada e ofegantemente.

 

Frances verteu um pouco de café para dentro da chávena. Era forte e quente. Virando-se para Edna, proferiu em modo conciso e aprovador:

 

- Excelente, Edna.

 

A pequena enrubesceu de prazer e retirou-se, espantando-se todavia com o gosto de algumas pessoas. Na opinião de Edna, o café devia ter uma cor creme-pálido, ser sempre muito doce e levar uma grande quantidade de leite.

 

No quarto que dava para o jardim, os Cloades beberam o seu café sem leite e sem açúcar. Durante o jantar, tinham falado vagamente de encontros com pessoas conhecidas, do regresso de Lynn, das perspectivas do cultivo da terra no futuro próximo; porém, depois de ficarem sozinhos, mantiveram-se calados.

 

Frances recostou-se na cadeira, observando o marido. Este não reparou no seu olhar. Com a mão direita afagava o lábio superior. Sem que Jeremy Cloade o soubesse, esse seu gesto era característico e coincidia com alguma preocupação íntima. Frances não o notara muitas vezes. De uma delas, quando Anthony o filho do casal estivera, em criança, gravemente enfermo; de outra, quando aguardava o veredicto de um júri; ainda de uma outra, quando do estalar da guerra, esperando ouvir as irrevogáveis palavras transmitidas pelo rádio e finalmente na véspera do embarque de Anthony.

 

Antes de falar, Frances esteve durante alguns momentos a pensar. A sua vida de casados tinha sido feliz, mas nunca tinham sido íntimos nas suas conversas. Respeitara as reservas de Jeremy e o marido as dela. Nem sequer quando o telegrama lhes anunciara a morte de Anthony, no serviço ativo, qualquer deles cedera.

 

Jeremy abrira-o e depois olhara-a. Frances perguntara:

 

- É a...?

 

Ele baixara a cabeça, depois persignara-se e metera-lhe o telegrama na mão estendida.

 

Tinham ficado calados durante um momento. Depois, Jeremy dissera:

 

- Gostaria... de poder confortar-te, querida.

 

Mas ela respondera em voz firme, retendo as lágrimas, consciente apenas de um terrível vazio e de um indizível sofrimento:

 

- Tu também sofres.

 

Ele dera-lhe uma pancadinha no ombro.

 

- Sim confessara, sim.

 

Depois, dirigira-se para a porta, cambaleando um pouco, mas teimosamente, subitamente envelhecido, e dizendo:

 

- Não há nada a dizer... não há nada a dizer...

 

Ela ficara-lhe grata, imensamente grata, por uma compreensão tão grande e sentira o coração confranger-se cheio de comiseração ao vê-lo tornar-se subitamente velho. Com a perda do filho, algo endurecera no seu íntimo extinguira-se certa bondade natural. Era mais eficiente, mais enérgica do que nunca e, às vezes, as pessoas chegavam a assustar-se com o seu cruel senso prático...

 

O dedo de Jeremy Cloade voltou a deslizar sobre o lábio superior irresolutamente, indecisamente. Frances cortou o silêncio:

 

- Passa-se alguma coisa, Jeremy?

 

O marido sobressaltou-se. Quase deixou cair da mão a chávena de café. Recompôs-se e pousou-a firmemente na bandeja. Depois, encarou a mulher.

 

- Que queres dizer, Frances?

 

- Pergunto se se passa alguma coisa?

 

- Que coisa havia de passar-se?

 

- Seria tolice deitar-me a adivinhar. Preferia que mo dissesses.

 

Falava sem denotar a mínima emoção, indiferentemente.

 

Jeremy respondeu de um modo não convincente:

 

- Não se passa nada...

 

Ela não respondeu... Limitou-se a esperar inquiridoramente. Arquivou a sua negação como inatendível. Ele olhou-a hesitantemente.

 

Por um momento apenas, a imperturbável máscara escorregou-lhe do rosto sombrio e ela surpreendeu-lhe uma nota de uma tão viva angústia que quase deixou escapar uma exclamação. Foi apenas por um breve instante, mas não lhe deixou dúvidas quanto ao que vira.

 

Insistiu calmamente sem trair qualquer emoção na voz:

 

- Acho que farias melhor em dizer-mo...

 

Ele suspirou... profundamente, tristemente.

 

- Certamente que, mais tarde ou mais cedo, terás de sabê-lo.

 

E depois acrescentou uma frase que a deixou atônita:

 

- Receio que tenhas feito um mau negócio, Frances.

 

Desistiu de uma dedução que não foi capaz de fazer, para atacar fatos positivos:

 

- O que é perguntou, dinheiro?

 

Não saberia explicar porque se lembrara de dinheiro em primeiro lugar. Até então, não tinha havido quaisquer sinais especiais de apuro financeiro que não fossem naturais nos tempos que corriam. No escritório, lutava-se com falta de pessoal e havia mais trabalho do que era possível realizar, mas acontecia o mesmo em toda a parte e no último mês tinham readmitido antigos empregados que já tinham sido desmobilizados do Exército. Era possível também que lhe escondesse qualquer doença ultimamente, andava com má cor e exausto, devido ao excesso de trabalho. Mas, apesar disso, o instinto de Frances indicou-lhe dinheiro e parecia que não se enganara.

 

O marido acabou por confirmar as suas suspeitas com um aceno de cabeça.

 

- Compreendo. Ficou calada durante um momento a pensar.

 

Pelo que lhe dizia respeito, não se preocupava realmente com o dinheiro... mas sabia que Jeremy era absolutamente incapaz de compreender isso. Para ele o dinheiro significava um mundo perfeito... estabilidade... obrigações... uma situação definida na vida.

 

Para ela o dinheiro era um brinquedo que se recebia e que servia para brincar. Nascera e fora criada numa atmosfera de instabilidade financeira. Conhecera épocas maravilhosas, enquanto os cavalos tinham correspondido ao que deles se esperara e conhecera também tempos difíceis, quando os lojistas tinham retirado o crédito a Lorde Edward e este se vira obrigado a vergonhosos expedientes para evitar os beleguins à porta. Certa vez, tinham estado a pão seco durante uma semana e tinham despedido todos os criados; de outra vez, ainda Frances era uma criança, tinham tido os beleguins dentro de casa, durante três semanas.

 

Se uma pessoa estava sem dinheiro, apropriava-se de bens alheios ou ia para o estrangeiro ou vivia à custa de amigos e de parentes, durante algum tempo. Ou alguém a ajudava com um empréstimo... Mas, ao mesmo tempo que contemplava o marido, Frances compreendia que, no mundo dos Cloades, esse gênero de coisas não se fazia. Não se mendigava, nem se pedia emprestado, nem tão-pouco se vivia à custa de outras pessoas. Por conseguinte, não se podia esperar que mendigassem, pedissem emprestado ou vivessem à custa alheia!

 

Frances sentiu uma profunda pena de Jeremy. Sentiu-se também um pouco culpada por estar tão imperturbável. Procurou refúgio na conversa.

 

- Temos de vender tudo? A firma vai falir?

 

Jeremy Cloade estremeceu de dor e Frances percebeu que fora demasiado positivista.

 

- Meu querido disse-lhe meigamente, conta-me o que há. Não posso continuar a deitar-me a adivinhar.

 

Cloade declarou firmemente:

 

- De há dois anos para cá, temos atravessado uma crise péssima. O Williams, como deves lembrar-te, safou-se! Tivemos algumas dificuldades para conseguirmos voltar a endireitar-nos. Depois, surgiram certas complicações relacionadas com a nossa posição no Extremo Oriente, depois da queda de Singapura...

 

Ela interrompeu-o:

 

- Não te preocupes com as razões... importam tão pouco. Ficaste numa situação embaraçosa. E não conseguiste sair-te dela?

 

- Contava com Gordon... Gordon teria endireitado as coisas.

 

Ela soltou um breve suspiro impaciente.

 

- Certamente. Não quero censurar o pobre homem... no fim de contas, é próprio da natureza do homem perder a cabeça com uma rapariga bonita. E por que diabo não havia de voltar a casar se lhe apetecesse? Mas, não há dúvida, que foi um azar ter morrido nesse ataque aéreo, antes de ter feito um testamento ou regulado os seus assuntos. A verdade é que, por muito perigo que uma pessoa corra, nunca lhe passa pela cabeça que vai morrer. A bomba nunca lhe é destinada; é sempre para outra pessoa!

 

- Eu gostava muito dele... e também me orgulhava dele disse o irmão mais velho de Gordon Cloade. Para mim a sua morte foi uma catástrofe. Deu-se numa altura...

 

Interrompeu-se.

 

- É a bancarrota? inquiriu Frances com um interesse inteligente.

 

Jeremy Cloade olhou-a quase desesperadamente. Embora a mulher não o compreendesse, ele teria enfrentado com muito mais facilidade as suas lágrimas e a sua aflição. Aquele seu interesse calmo e desprendido derrotava-o completamente.

 

Declarou em voz rouca:

 

- É muito pior do que isso...

 

Ele observou-a, enquanto, sentada, muito calma, ponderava a resposta. Pensou: «Daqui a pouco, terei de dizer-lho. Saberá então o que eu sou... Terá de sabê-lo. A princípio, é capaz de não acreditar. »

 

Frances Cloade suspirou e endireitou-se na enorme poltrona.

 

- Compreendo disse, por fim. Fraude. Se não é este o termo próprio, outro no gênero... Como o caso do Williams.

 

- Sim. mas, desta vez não compreendes? O responsável sou eu! Servi-me de depósitos que me foram confiados. Até aqui, tenho coberto os meus levantamentos...

 

- Mas agora vai descobrir-se tudo?

 

- A não ser que consiga arranjar o dinheiro necessário... rapidamente.

 

A vergonha que sentia era a pior que sentira em toda a sua vida. Como aceitaria a mulher a notícia?

 

Naquele momento, aceitava-a muito calmamente. Pensou que Frances seria incapaz de fazer uma cena. Nunca lho censuraria ou lho lançaria em cara.

 

Com o rosto apoiado na mão, Frances franzia o sobrolho.

 

- É tão estúpido, disse. eu não ter dinheiro meu...

 

Jeremy Cloade lembrou a custo:

 

- Há o teu dote de casamento, mas...

 

- Mas suponho que esse também já se sumiu, conjeturou a mulher, absortamente.

 

Ele ficou calado e depois acrescentou com dificuldade, na sua voz seca:

 

- Lamento muito, Frances. Mais ainda do que sou capaz de exprimir. Fizeste um mau negócio.

 

Ela olhou-o perscrutadoramente.

 

- Já, há pouco, disseste o mesmo. Que queres significar com isso?

 

Jeremy respondeu com firmeza:

 

- Visto teres levado a tua bondade ao ponto de condescenderes em casar comigo, tinhas direito a esperar... bem, integridade... e uma vida isenta de sórdidas ansiedades.

 

Ela olhou-o com profundo espanto.

 

- Francamente, Jeremy! Por que diabo pensas tu que casei contigo?

 

Ele sorriu levemente.

 

- Foste sempre uma esposa tão leal e dedicada quanto é possível, minha querida, mas dificilmente me pode ocorrer o pensamento lisonjeiro que me aceitasses em... hum... diferentes circunstâncias.

 

Ela olhou-o pasmada e subitamente pôs-se a rir às gargalhadas

 

- Mas que grande cômico me saíste! Que maravilhoso espírito novelista deves esconder por trás dessa fachada leal! Pensas então que casei contigo para salvar o pai dos lobos... ou dos administradores do Jockey Clube, etc.?

 

- Tu gostavas muito de teu pai, Frances.

 

- Eu era dedicada ao papá! Era terrivelmente encantador e era um companheirão! Mas compreendi sempre que não tinha cabeça. Se julgas que fui capaz de vender-me ao solicitador da família para salvá-lo dos seus apuros, então nunca compreendeste a coisa mais importante a meu respeito. Nunca!

 

Olhou-o com espanto. Era extraordinário, pensava, que duas pessoas pudessem estar casadas durante mais de vinte anos sem se conhecerem uma à outra. Mas como seria isso possível tratando-se de espíritos tão diferentes um do outro? Um espírito romântico, certamente, bem disfarçado, mas essencialmente romântico. Pensou: «Com todas aquelas velhas novelas amorosas no seu quarto de cama, eu já devia ter percebido! Que tolo querido!»

 

Em voz alta, declarou-lhe:

 

- Casei contigo porque estava apaixonada por ti, evidentemente.

 

- Apaixonada por mim? Mas que encontravas em mim?

 

- Se me perguntas isso, Jeremy, devo dizer-te que, na realidade, não sei. Eras uma mudança tão diferente de todas as relações do pai. Nunca falavas a respeito de cavalos. Não calculas como estava farta de cavalos... e das possibilidades que havia de ganhar a Taça de Newmarket! Uma noite, foste jantar conosco lembras-te? Fiquei sentada a teu lado e perguntei-te o que era o bimetalismo e tu explicaste-mo... explicaste-mo realmente! Foi uma explicação que durou todo o jantar seis pratos. Naquela altura, estávamos com dinheiro e tínhamos um cozinheiro-chefe!

 

- Deve ter sido extremamente incomodativo! disse Jeremy.

 

- Foi fascinante! Nunca ninguém me tinha tratado tão a sério. Foste tão delicado e, no entanto, não davas a parecer que me olhavas, que me achavas bonita ou qualquer coisa assim. Isso excitou-me o amor-próprio. Jurei que havia de obrigar-te a reparares em mim.

 

Jeremy confessou-lhe em tom melancólico:

 

- Reparei muito bem em ti. Nessa noite, fui para casa e não consegui pregar olho. Tinhas um vestido azul com espigas de trigo...

 

Seguiu-se um leve silêncio que Jeremy quebrou pigarreando:

 

- Hum... tudo isso foi há tanto tempo...

 

Ela procurou pressurosamente pôr fim ao seu embaraço.

 

- E agora somos um casal de meia-idade, à procura da melhor solução para um apuro.

 

- O que acabaste de dizer-me, Frances, torna mil vezes pior esta... esta desgraça...

 

Ela interrompeu-o.

 

- Por favor, vamos esclarecer as coisas. Estás a ser apologético porque violaste a lei. Podes ser processado... ir para a prisão ele estremeceu. Não quero que isso aconteça. Lutarei como ninguém para evitá-lo, mas não me julgues indignada devido a qualquer preconceito moral. Não te esqueças de que na minha família há poucos. O pai, apesar de todo o seu encanto, comportou-se muitas vezes como um escroque. E Charles... o meu primo. Disfarçaram o caso, conseguiram que não fosse processado e mandaram-no para as colônias. O meu primo Gerald também... esse falsificou um cheque em Oxford. Mas entrou na guerra e ganhou uma V. C. (*) póstoma por feito de alta bravura, dedicação aos seus homens e resistência super-humana. O que eu quero dizer com isto é que as pessoas são assim nem muito más, nem muito boas. Não me julgo a mim própria particularmente reta tenho-o sido porque até aqui ainda não se me deparou nenhuma tentação que me fizesse ser de modo diferente. Mas o que tenho é muita coragem e sorriu-lhe sou leal!

 

(*) Victoria Cross. Alta condecoração militar britânica.

 

- Querida! levantou-se e, aproximando-se da mulher, curvou-se e pousou-lhe os lábios no cabelo.

 

- E agora, disse a filha de Lorde Edward Trenton, sorrindo-lhe que vamos fazer? Há qualquer meio de conseguirmos dinheiro?

 

O rosto de Jeremy endureceu.

 

- Não vejo como.

 

- Hipotecar esta casa. Ah sim, acrescentou rapidamente, já o fizeste. Estou estúpida. Evidentemente que já fizeste todas as coisas óbvias. É então uma questão de tacto? A quem podemos nós recorrer? Creio que há apenas uma possibilidade. A viúva de Gordon... a triste Rosaleen!

 

Jeremy abanou duvidosamente a cabeça.

 

- Seria necessária uma grande quantia... que ela não pode levantar do capital. O dinheiro está depositado e ela. enquanto viver, só tem direito ao seu rendimento.

 

- Não tinha percebido isso. Julgava que podia dispor dele inteiramente. O que acontecerá quando ela morrer?

 

- Reverte a favor dos parentes mais chegados de Gordon. Quer dizer, é dividido entre mim, Lionel, Adela e o filho de Maurice, Rowley.

 

- Reverte a nosso favor... proferiu Frances lentamente.

 

Alguma coisa pareceu atravessar o quarto uma corrente de ar frio - o espectro de um pensamento... Frances observou-lhe:

 

- Não me tinhas explicado isso... Julgava que lhe pertencia incondicionalmente... que podia deixá-lo a quem quer que lhe apetecesse.

 

- Não. De acordo com o estatuto de 1925 relativo à falta de testamento...

 

É questionável que Frances tenha ouvido a explicação do marido. Quando a voz deste se calou, disse:

 

- Pessoalmente, isso pouco nos interessa, pois, quando ela for uma mulher de meia-idade, já nós estamos enterrados há muito tempo. Que idade tem ela? Vinte e cinco... vinte e seis? Provavelmente viverá até aos setenta.

 

Jeremy Cloade lembrou duvidosamente.

 

- Podemos pedir-lhe um empréstimo... alegando o grau de parentesco? Pode ser que seja uma rapariga generosa. Na realidade, sabemos tão pouco a seu respeito...

 

- Seja como for, mostrámo-nos bastante gentis para com ela... e não antipáticos como Adela. É capaz de aceder.

 

O marido acrescentou preventivamente:

 


- Não podemos de modo algum dar a entender que temos... hum... uma grande urgência.

 

Frances replicou impacientemente:

 

- Evidentemente que não! A dificuldade está em que não é propriamente com a rapariga que temos de tratar. Ela está inteiramente debaixo da influência do irmão.

 

- Um rapaz nada simpático comentou Jeremy Cloade.

 

O rosto de Frances iluminou-se com um súbito sorriso.

 

- Oh, não retorquiu. É simpático, é até muitíssimo simpático. Com bastante falta de escrúpulos também, suponho. Mas, quanto a isso, eu também não os tenho!

 

O seu sorriso endureceu-se. Olhou para o marido.

 

- Não seremos derrotados, Jeremy afiançou-lhe. Hei-de achar algum meio... ainda que tenha de assaltar um banco!

 

- Dinheiro! exclamou Lynn.

 

Rowley Cloade confirmou com um aceno de cabeça. Era um rapaz alto e espadaúdo, de tez corada, com a tonalidade do tijolo, de pensativos olhos azuis e de cabelo muito louro. Era dotado de uma lentidão que mais parecia propositada do que inveterada. Usava a reflexão tal como as outras pessoas a rapidez da réplica.

 

- Sim confirmou, hoje em dia parece que tudo se resume a dinheiro.

 

- Mas eu julgava que os agricultores tinham tirado lucros, durante o tempo da guerra.

 

- Sim, efetivamente... mas isso não nos proporciona um bem permanente. Dentro de um ano, voltaremos ao ponto em que estávamos com salários aumentados, trabalhadores mal-encarados, toda a gente insatisfeita e sem saber o que quer. A não ser, já se sabe, que se possa cultivar a terra em grande escala. O velho Gordon sabia-o era isso o que ele tencionava fazer.

 

- E agora...? perguntou Lynn. Rowley arreganhou os dentes num sorriso.

 

- E agora Mrs. Gordon vai a Londres e gasta duas mil libras num bonito casaco de vison.

 

- É... é imoral!

 

- Oh, não... Rowley fez uma pausa e acrescentou. Gostaria muito de dar-te um casaco de vison, Lynn...

 

- Como é ela, Rowley?

 

Lynn queria ouvir uma opinião contemporânea.

 

- Vê-la-ás esta noite, na festa do tio Lionel e da tia Kathie.

 

- Sim, bem sei. Mas quero que tu mo digas. A Mamã diz que é estúpida.

 

Rowley ponderou.

 

- Bem, não digo que o seu lado forte seja o intelectual, mas estou convencido de que parece parva simplesmente porque tem sido tão exageradamente cuidadosa.

 

- Cuidadosa? Cuidadosa em quê?

 

- Oh, simplesmente cuidadosa. Principalmente, no sotaque tem um forte sotaque irlandês, na maneira de estar à mesa e nas citações literárias mais vulgares.

 

- Então, na realidade, não tem... muita... bem, educação?

 

Rowley sorriu.

 

- Bem, não é uma senhora, se é isso o que queres dizer. Tem uns olhos encantadores e uma pele muito bonita... Acho que foi por esses predicados que o velho Gordon se deixou prender e também pelo seu ar extraordinariamente ingênuo. Não acredito que seja fingido... embora, evidentemente, quem vê caras não vê corações. Parece muito calada e deixar-se guiar por David.

 

- David?

 

- É o irmão. Acho que não deve haver muita coisa acerca de «expedientes» que ele desconheça! Rowley acrescentou, passado um momento. Não simpatiza muito conosco.

 

- Por que havia de simpatizar? inquiriu Lynn desabridamente, e acrescentou ao vê-lo olhá-la, surpreendido. Acho que tu não gostas dele.

 

- Certamente que não. E tu também não. Não é da nossa classe.

 

- Sabes lá de quem eu gosto ou não, Rowley! Nestes últimos três anos, tenho corrido muito mundo e visto muita coisa. Creio... creio que os meus pontos de vista se alargaram.

 

-Tens visto mais deste mundo do que eu, lá isso é verdade.

 

Declarou isto calmamente... mas Lynn olhou-o perscrutadoramente.

 

Por trás daquela entoação calma... escondia-se alguma coisa.

 

Ele aguentou-lhe firmemente o olhar, não deixando transparecer no rosto a menor emoção. Lynn recordou-se de que nunca fora fácil saber-se exatamente o que Rowley pensava.

 

Como o mundo era estranho e estava mudado, pensava Lynn. Os homens é que costumavam ir para a guerra e as mulheres é que ficavam em casa. Mas, no caso de ambos, as situações tinham-se invertido.

 

Dos dois rapazes, Rowley e Johnnie, um tivera de ficar na granja. Tinham atirado uma moeda ao ar para decidir qual deles seria e Johnnie Vavasour fora o que partira. Tinha morrido quase imediatamente... na Noruega. Durante todos os anos de guerra, Rowley nunca se distanciara de casa mais do que uma milha ou duas.

 

Em contrapartida, ela, Lynn, estivera no Egito, no Norte de África, na Sicília. Estivera debaixo de fogo por mais de uma vez.

 

Perguntou-se subitamente se ele se teria importado...

 

Soltou uma pequena gargalhada nervosa.

 

- Às vezes, as coisas parecem um pouco às avessas, não achas?

 

- Não sei respondeu Rowley, contemplando absortamente a paisagem. Depende.

 

- Rowley ela hesitou, importas-te... quero dizer... Johnnie...

 

O seu olhar calmo e frio fê-la calar-se.

 

- Deixa Johnnie em paz! A guerra acabou e eu tive sorte.

 

- Por sorte queres dizer... não teres sido forçado a ir...? calou-se, hesitando.

 

- Uma sorte fantástica, não achas?

 

Lynn não soube muito bem como interpretar aquilo.

 

A voz do rapaz era calma, mas com entoações ásperas. Rowley acrescentou com um sorriso:

 

- Ora, certamente que tu e todas as outras raparigas que prestaram serviço na guerra hão-de ter dificuldade em readaptar-se à vida do lar.

 

Ela retorquiu-lhe irritadamente:

 

- Oh, não sejas estúpido, Rowley.

 

Mas, por que estava irritada? Ora... só se as palavras do rapaz tivessem ferido qualquer nervo tenso da verdade.

 

- Bem disse Rowley, creio que, apesar disso, ainda podemos considerar-nos noivos, ou já mudaste de idéias?

 

- Evidentemente que não mudei de idéias. Por que teria mudado?

 

Ele respondeu vagamente:

 

- Nunca se sabe.

 

- Queres dizer que me achas, Lynn fez uma pausa, diferente?

 

- Não particularmente.

 

-Talvez tu tenhas mudado de idéias.

 

- Oh, não, eu não mudei de idéias. Sabes, na granja houve poucas mudanças.

 

- Pois sim, contemporizou Lynn embora consciente de um certo antagonismo, então casemos. Para quando queres?

 

- Junho ou proximidades?

 

- Está bem.

 

Ficaram calados. Estava assente. Sem querer, Lynn sentia-se terrivelmente deprimida. Todavia, Rowley era Rowley... tal como sempre fora. Afetuoso, calmo, cuidadosamente dado a narrações incompletas.

 

Amavam-se um ao outro, sempre se tinham amado. Nunca tinham falado muito a respeito do seu amor... portanto, por que haviam de começar a fazê-lo agora?

 

Casar-se-iam em Junho e viveriam em Long Willows

 

um nome que Lynn sempre achara bonito e ela nunca mais voltaria a partir, isto é, a partir, no sentido que as palavras agora tinham para ela. A excitação do erguer de pranchas de desembarque, o rodopiar de uma hélice de navio, a emoção sentida ao descolar de um avião e na subida cada vez mais alta deixando a Terra em baixo; ver uma costa desconhecida tomar vulto e feitio; aspirar o cheiro a pó quente, a parafina, a alho a algazarra e a algaravia de idiomas estrangeiros; flores exóticas, poinséttias vermelhas, destacando-se altivamente no meio de um jardim cheio de poeira... Fazer as malas, desmanchar as malas... sempre com destino desconhecido.

 

Tudo isso acabara. A guerra findara. Lynn Marchmont regressara a casa “Home is the sailor, home from the sea...” (*) Mas eu não sou a mesma Lynn que partiu, pensou.

 

(*) Canção inglesa - O marinheiro regressa a casa, vindo do mar.

 

Ergueu o olhar e viu que Rowley a observava...

 

Os saraus da tia Kathie eram sempre a mesma coisa. Havia neles uma nota de superficialismo característica da personalidade da hospedeira. O Dr. Cloade dava sempre a impressão de refrear a custo a sua irritabilidade. Mostrava-se invariavelmente cortês para com os seus hóspedes, mas estes percebiam que essa cortesia era forçada.

 

No aspecto, Lionel Cloade não diferia de seu irmão Jeremy. Era magro e de cabelo grisalho porém, destituído da imperturbabilidade do advogado. O seu temperamento era brusco e impaciente e a sua irritabilidade nervosa chegara a ofender muitos dos seus doentes não os deixando perceber a sua verdadeira perícia e bondade. Os seus verdadeiros interesses residiam nas pesquisas e o seu passatempo favorito era o uso de ervas medicinais sem conta. Era dotado de um intelecto preciso e dificilmente arranjava paciência para aturar as extravagâncias da mulher.

 

Conquanto Lynn e Rowley tratassem sempre Mrs. Jeremy Cloade por «Frances», para eles Mrs. Lionel Cloade era invariavelmente a «Tia Kathie». Gostavam dela, mas achavam-na muito ridícula.

 

Esse «sarau», realizado ostensivamente para celebrar o regresso de Lynn era simplesmente uma festa familiar.

 

A tia Kathie cumprimentou afetuosamente a sobrinha.

 

- Que bonita e queimada que estás, minha querida. Acho que é do Egito. Leste o livro que te mandei sobre as profecias das Pirâmides? É tão interessante! Na realidade, explica tudo, não achas?

 

A entrada de Mrs. Gordon Cloade, acompanhada de seu irmão David, evitou a Lynn o embaraço de uma resposta.

 

- Minha sobrinha Lynn Marchmont, Rosaleen.

 

Lynn olhou para a viúva de Gordon Cloade com uma curiosidade discretamente velada.

 

Sim, de fato, essa rapariga que casara por dinheiro com o velho Gordon Cloade era encantadora. Tal como Rowley dissera, tinha um ar de ingenuidade. Cabelo preto em ondas largas, uns olhos azuis, muito límpidos, cercados por olheiras... lábios entreabertos.

 

O resto era ostensivamente caro vestido, jóias, capa de peles, mãos cuidadas. Uma bonita figura que, na realidade, não sabia usar roupas caras. Não as usava como Lynn Marchmont saberia usá-las se tivesse essa possibilidade. «Mas nunca a terás», disse-lhe uma voz interior.

 

- Muito prazer disse Rosaleen Cloade. Virou-se hesitantemente para o homem que estava atrás dela e apresentou-o.

 

- Este... este é meu irmão.

 

- Muito prazer, disse David Hunter.

 

Era um rapaz magro, de cabelo e olhos escuros. Tinha um rosto sombrio, provocante, levemente insolente.

 

Lynn compreendeu imediatamente por que razão os Cloades antipatizavam tanto com ele. No estrangeiro, conhecera homens daquele tipo. Homens que eram temerários e até perigosos. Homens em quem não se podia confiar. Homens que faziam as suas próprias leis e escarneciam do universo. Homens que, num apuro, valiam quanto pesavam em ouro... mas que, em tempo de paz, eram uma preocupação para os seus oficiais superiores.

 

Lynn dirigiu, em ar natural, a palavra a Rosaleen

 

- Gosta de viver em Furrowbank?

 

- Acho que é uma casa maravilhosa respondeu Rosaleen.

 

David Hunter soltou uma gargalhada levemente escarninha.

 

- O pobre Gordon tratava-se bem ,comentou, não olhava a despesas.

 

Era literalmente a verdade. Quando Gordon resolvera instalar-se em Warmsley Vale, ou antes, decidira passar ali uma parte da sua vida atarefada, preferira mandar construir uma casa. Era demasiado individualista para satisfazer-se com uma casa que estivesse impregnada da vida de outras pessoas.

 

Confiara a obra a um jovem arquiteto modernista e dera-lhe carta branca. Metade de Warmsley Vale achava Furrowbank uma casa horrível, detestando a sua quadratura branca, o mobiliário, as portas de correr, as mesas de vidro e as cadeiras. A única parte da casa que realmente admiravam com toda a sinceridade eram os quartos de banho.

 

Rosaleen dissera a medo «É uma casa maravilhosa» e o riso de David fizera-a corar.

 

- Você é a Wren que regressou, não é? perguntou David a Lynn.

 

- Sou.

 

Os olhos do rapaz examinaram-na de alto a baixo aprovativamente... e sem saber porquê Lynn corou.

 

A tia Kathie reapareceu inesperadamente. Parecia materializar-se no espaço. Talvez tivesse adquirido essa faculdade nas sessões de espiritismo a que assistia.

 

- Ceia anunciou, um tanto arquejante, e acrescentou pateticamente: Acho que é melhor chamar-lhe assim em vez de jantar. As pessoas já não esperam grande coisa. Está tudo muito difícil, não é verdade? Mary Lewis afiançou-me que paga ao peixeiro dez xelins de quinze em quinze dias. Eu acho isso imoral.

 

O Dr. Lionel Cloade soltou a sua Irritante gargalhada nervosa enquanto falava com Frances Cloade.

 

- Ora, vamos, Frances dizia-lhe. Não pensa que eu acredite nisso... Entremos.

 

Entraram na casa de jantar, puída e bastante feia. Jeremy e Frances, Lionel e Katherine, Adela, Lynn e Rowley. Uma festa familiar dos Cloades com dois intrusos, pois Rosaleen, embora usasse o mesmo apelido, não se tornara uma Cloade, tal como Frances e Katherine o tinham conseguido.

 

Era uma estranha que não se sentia à vontade, que estava nervosa. E David... David era o proscrito. Por necessidade, mas também por vontade. Lynn pensava nestas coisas, enquanto ocupava o seu lugar à mesa.

 

Sentiam-se no ar ondas emotivas uma forte corrente elétrica de... de que seria? Ódio? Seria realmente ódio?

 

Em todo o caso, alguma coisa... destruidora.

 

Subitamente, Lynn pensou “Mas em toda a parte acontece o mesmo. Tenho-o notado desde que regressei à pátria. É a marca deixada pela guerra. Má vontade. Maus instintos. Por todo o lado. Nos caminhos-de-ferro, nos autocarros, nas lojas, entre os operários e os funcionários e até trabalhadores agrícolas. E suponho que nas minas e nas fábricas ainda é pior. Má vontade. Mas aqui é mais do que isso. Aqui é especial. É significativa!”

 

E, chocada com essa descoberta, pensou ainda «Será possível que odiemos tanto estes estranhos que ficaram com o que supomos nosso?»

 

E depois... «Não, ainda não. Pode ser que sim... mas ainda não. Não, eles é que nos odeiam.»

 

Pareceu-lhe uma descoberta tão deprimente que ficou calada a pensar nela, esquecendo-se de dirigir a palavra a David Hunter, sentado a seu lado.

 

Pouco depois, este perguntou-lhe:

 

- Está a fazer alguma descoberta?

 

Era uma voz muito afável, levemente divertida, mas que a atingiu em cheio. David devia esperar que ela lhe replicasse rudemente.

 

- Desculpe, estava a pensar no estado do mundo. David comentou calmamente:

 

- Que falta de originalidade!

 

- Sim, tem razão. Hoje em dia, somos todos tão sinceros! E não me parece que isso traga algum benefício.

 

- Geralmente, é mais prático desejar praticar o Mal. Nestes últimos anos, inventamos uma ou duas engenhocas bastante práticas para esse efeito incluindo essa piece de resistance da Bomba Atômica.

 

- Era nisso que eu estava a pensar... Não me refiro à Bomba Atômica. Queria dizer Má Vontade. Inimizade prática e precisa.

 

- Inimizade certamente, mas eu prefiro não empregar a palavra prática. Na Idade Média tomavam-na mais à letra.

 

- Como? perguntou-lhe Lynn.

 

- Magia negra, geralmente. Mau-olhado. Figuras de cera. Sortilégios na mudança de lua. A morte do gado do vizinho. A morte do próprio vizinho.

 

- Certamente não crê que uma coisa dessas fosse magia negra? inquiriu Lynn, incredulamente.

 

- Talvez não. Mas, em todo o caso, devem tê-lo tentado. Hoje em dia, bem... encolheu os ombros. Apesar de toda a inimizade que reina no mundo, você e a sua família não podem fazer-nos muito mal, a Rosaleen e a mim, pois não?

 

Lynn endireitou a cabeça, bruscamente. Mas, sentiu-se divertida e replicou:

 

- É já um pouco tarde.

 

David Hunter riu-se. Também ele parecia divertir-se.

 

- Para impedir que fujamos com a presa? Sim, realmente temo-la bem segura.

 

- E goza imenso com isso!

 

- Com o fato de termos muito dinheiro? Certamente que sim.

 

- Não me referia apenas ao dinheiro. Referia-me a nós outros.

 

- Por lhes termos ganho a partida? Bem, talvez. Todos vocês se teriam mostrado delambidos e condescendentes quanto ao dinheiro do velhote. Consideravam-no já praticamente na vossa algibeira.

 

Lynn observou-lhe:

 

- Não deve esquecer-se de que fomos habituados a pensar assim, durante anos. Habituados a não poupar, a não pensar no futuro... encorajados até a darmos largas a toda a espécie de planos e projetos.

 

Rowley, pensava ela, Rowley e a granja.

 

- Com efeito, só não aprenderam uma coisa - observou David prazenteiramente.

 

- O que foi?

 

- Que nada é seguro.

 

- Lynn gritou a tia Katherine, inclinando-se para a frente, no seu lugar, à cabeceira da mesa, um dos guias de Mrs. Lester é um sacerdote da quarta dinastia. Contou-nos coisas maravilhosas. Tu e eu, Lynn, temos de ter uma longa conversa. Acho que o Egito deve ter-te afetado psiquicamente.

 

O Dr. Cloade interveio desabridamente:

 

- Lynn teve coisas mais importantes a fazer do que interessar-se por toda essa baboseira supersticiosa.

 

- És tão torto, Lionel censurou-o a mulher. Lynn sorriu à tia e depois deixou-se ficar calada com o refrão das palavras de David no ouvido.

 

Nada é seguro...

 

Havia pessoas que viviam num mundo dessa natureza pessoas para as quais tudo era perigoso. David Hunter era uma dessas pessoas... Não era o mundo em que Lynn fora criada... e, no entanto, era um mundo que a atraía.

 

Pouco depois, David prosseguiu no mesmo tom baixo e divertido:

 

- Continuamos em boas relações?

 

- Certamente.

 

- Belo. Continua a invejar a Rosaleen e a mim o nosso injusto acesso à riqueza?

 

- Sim, redargüiu Lynn com espírito.

 

- Esplêndido. Que conta então fazer?

 

- Comprar cera e praticar magia negra! Ele riu-se.

 

- Oh, não, não fará isso. Não é dessas pessoas que confiam em velhos métodos, postos fora de prática. Os seus métodos serão modernos e provavelmente muito eficientes. Mas não ganhará.

 

- Por que pensa que haverá luta? Não aceitamos já, nós todos, o inevitável?

 

- Comportaram-se lindamente. É muito divertido.

 

- Por que nos odeia? perguntou-lhe Lynn em voz baixa.

 

Algo fulgurou naqueles olhos escuros e insondáveis.

 

- Não conseguiria fazê-la compreender-me.

 

- Pois eu acho que sim ,retorquiu Lynn.

 

David permaneceu calado por um momento e depois perguntou em tom natural:

 

- Por que vai casar com Rowley Cloade? É um imbecil.

 

Ela reagiu vivamente:

 

- Você nada sabe a esse respeito... nem a respeito dele. Nem tem nada com isso!

 

Sem parecer mudar de conversa, David inquiriu:

 

- Que pensa de Rosaleen?

 

- Acho-a encantadora.

 

- Que mais?

 

- Não me parece sentir-se divertida.

 

- Exatamente disse David. Rosaleen é muito estúpida. Sente-se amedrontada. Sente-se sempre amedrontada. Arranja complicações e depois não sabe sair-se delas sozinha. Posso falar-lhe de Rosaleen?

 

- Se isso lhe agrada replicou Lynn delicadamente.

 

- Agrada. Começou por interessar-se pela vida de teatro e foi para o palco. Não deu nada, já se sabe. Entrou para uma companhia de terceira categoria que estava para partir em tournée para a África do Sul. A companhia desembarcou na Cidade do Cabo. Depois, casou com um funcionário do Governo em serviço na Nigéria. Não gostou da Nigéria e não creio que tivesse gostado muito do marido. Se ele tivesse sido um tipo vulgar que se embriagasse e a espancasse, tudo teria corrido bem. Mas era um homem muito intelectual, que tinha uma enorme biblioteca no mato e que gostava de dissertar sobre metafísica. Por conseguinte, voltou para a Cidade do Cabo. O tipo portou-se muito bem e passou-lhe uma mesada adequada. Por um lado, não se importava de conceder-lhe o divórcio e, por outro, não podia fazê-lo porque era católico; mas, seja como for, felizmente morreu com febres e Rosaleen ficou com uma pequena pensão. Depois a guerra rebentou e ela meteu-se num barco com rumo à América do Sul. Esta não lhe agradou muito e, por conseguinte, tornou a embarcar. Foi então que conheceu Gordon Cloade e lhe contou toda a sua triste vida. Em conseqüência disso, casaram em Nova Iorque e viveram felizes durante quinze dias. Pouco tempo depois uma bomba matou o velho e ela ficou senhora de uma enorme quantidade de jóias valiosas e de um avultado rendimento.

 

- É agradável que o romance tenha tido um fim feliz comentou Lynn.

 

- Sim concordou David Hunter. Embora destituída de qualquer parcela de inteligência, Rosaleen foi sempre uma rapariga de sorte, até nisto. Gordon Cloade era um homem velho, mas forte. Tinha sessenta e dois anos. Poderia facilmente ter vivido mais vinte. Até mais. Isso não teria sido muito divertido para Rosaleen, não acha? Quando casou com ele tinha vinte e quatro anos. Agora tem apenas vinte e seis.

 

- Parece mais nova.

 

David olhou para o lado oposto da mesa. Rosaleen Cloade estava entretida a esmigalhar um pedacinho de pão. Parecia uma criança nervosa.

 

- Pois parece concordou ele pensativamente. Deve-se isso a uma completa ausência de pensamentos, segundo creio.

 

- Coitada! exclamou Lynn inesperadamente. David franziu o sobrolho.

 

- A que vem essa comiseração? inquiriu desabridamente. Eu tomarei Rosaleen a meu cuidado. Quem tentar humilhá-la terá de haver-se comigo! Conheço muitas maneiras de fazer guerra... e algumas delas não são estritamente ortodoxas.

 

- Agora vai contar-me a história da sua vida? inquiriu Lynn friamente.

 

- Em edição muito reduzida sorriu. Quando a guerra rebentou, não vi qualquer razão para combater pela Inglaterra. Sou irlandês. Mas, como todos os irlandeses, gosto de combater. Os Comandos tinham para mim uma fascinação irresistível. Diverti-me um pouco, mas infelizmente tive de retirar-me com uma perna muito ferida. Depois fui para o Canadá onde fui contratado para treinar uns tipos. Achava-me com a corda na garganta, quando recebi o telegrama de Rosaleen de Nova Iorque, dizendo que ia casar-se! Na realidade, não me participava que se tratava de um bom negócio, mas sou muito hábil a ler nas entrelinhas. Voei até lá, apresentei-me ao ditoso par e vim com ele para Londres. “E agora «Home is the sailor, home from the sea”. Aí tem! “And the Hunter home from the Hill” (*). Que se passa?

 

- Nada respondeu Lynn.

 

(*) E o caçador regressa do monte. (Hunter é também o apelido de David.)

 

Levantou-se com os outros convivas. Quando entraram na sala de estar, Rowley disse-lhe:

 

- Parecias muito entretida com David Hunter. De que estavam a falar?

 

- De nada em especial respondeu Lynn.

 

- David, quando voltamos para Londres? Quando vamos para a América?

 

Do outro lado da mesa do pequeno-almoço, David Hunter lançou a Rosaleen um rápido olhar surpreendido.

 

- Não há pressa, pois não? Há nesta casa qualquer coisa que não te agrade?

 

Lançou um rápido olhar apreciativo em volta do quarto onde estavam a tomar o pequeno-almoço. Furrowbank situava-se na encosta de uma colina e das suas janelas gozava-se um extenso panorama da adormecida paisagem campestre inglesa. Na vertente arrelvada, tinham sido plantados milhares de dálias. Estavam agora quase todas mortas, mas formavam ainda um lençol de flores douradas.

 

Desfazendo em migalhas a torrada que estava no prato, Rosaleen murmurou:

 

- Prometeste que íamos para a América... em breve. Logo que fosse possível.

 

- Sim... mas na realidade, não é possível fazê-lo tão facilmente. Temos que contar com a prioridade de passagens. Nem tu nem eu temos razões de negócios a alegar. Depois de uma guerra, as coisas são sempre difíceis.

 

Enquanto falava, sentia-se levemente irritado consigo próprio. As razões que alegava, embora fossem bastante genuínas, soavam como desculpas. Tê-las-ia assim considerado a rapariga que estava em sua frente? Por que estaria tão interessada em ir para a América?

 

Rosaleen murmurou:

 

- Disseste que ficaríamos cá apenas pouco tempo. Não disseste que iríamos viver aqui.

 

- Que te desagrada em Warmsley Vale... e em Furrowbank?

 

- Nada. São eles... todos eles!

 

- Os Cloades?

 

- Sim.

 

- É exatamente com eles que gozo disse David. Gosto de ver-lhes os rostos delambidos, roídos de inveja e de maldade. Não me tires este prazer, Rosaleen.

 

Ela confessou em voz baixa e perturbada:

 

- Gostava que não sentisses isso. Não me agrada.

 

- Ânimo, rapariga. Tu e eu já vivemos bastante tempo aos baldões da sorte. Os Cloades têm levado uma boa vida... uma boa vida à custa do mano Gordon. Detesto esse gênero... sempre o detestei.

 

Ela retorquiu, chocada:

 

- Não gosto de odiar os outros. É pecado.

 

- Julgas que eles não te detestam? Foram gentis para contigo... amistosos?

 

Ela respondeu hesitantemente:

 

- Não foram desagradáveis. Nunca me fizeram mal.

 

- Mas gostariam de fazê-lo, meu anjinho. Gostariam de fazê-lo riu-se, despreocupadamente.Se não tivessem tanto cuidado com o próprio pêlo, aparecerias, numa linda manhã, com uma faca nas costas.

 

Ela estremeceu.

 

- Não digas essas coisas horríveis.

 

- Bem... talvez não fosse com uma faca. Estricnina na sopa.

 

Ela olhou-o, pasmada, com a boca trêmula.

 

- Estás a brincar... Ele voltou a ficar sério.

 

- Não te preocupes, Rosaleen: cuidarei de ti. Têm de haver-se comigo.

 

Ela propôs, gaguejando:

 

- Se é verdade o que disseste... que nos detestam... que me detestam... por que não vamos para Londres? Aí, estaríamos seguros... longe de todos eles.

 

- O campo faz-te bem, minha pequena. Bem sabes que te faz mal estares em Londres.

 

- Isso era quando havia bombardeamentos... estremeceu e fechou os olhos. Nunca esquecerei... nunca...

 

- Esquecerás, sim agarrou-a delicadamente pelos ombros e sacudiu-a com brandura. Esquece isso, Rosaleen. Ficaste terrivelmente impressionada, mas agora tudo isso já passou. Já não há mais bombas. Não penses nisso. Não o recordes. O médico recomendou-te ar e vida do campo durante bastante tempo. É por isso que quero conservar-te afastada de Londres.

 

- É realmente por isso? David? Pensei... que talvez...

 

- Que pensaste?

 

Rosaleen respondeu vagarosamente:

 

- Pensei que talvez fosse por causa dela que querias estar aqui...

 

- Dela?

 

- Bem sabes a quem me refiro. À rapariga da outra noite. À que esteve nas Wrens.

 

Subitamente, o rosto de David endureceu-se e tornou-se carrancudo.

 

- Lynn? Lynn Marchmont?

 

- Tu interessas-te por ela, David.

 

- Lynn Marchmont? É a noiva de Rowley. Do bom Rowley «Que-ficou-em-casa». Esse imbecil bem-parecido.

 

- Observei-te enquanto conversaste com ela, naquela noite.

 

- Oh, por amor de Deus, Rosaleen!

 

- E, desde então para cá, tens voltado a vê-la, não tens?

 

- Encontrei-a uma destas manhãs, perto da granja, quando saí a cavalo.

 

- E tornarás a encontrá-la.

 

- Certamente que estarei sempre a encontrá-la. Isto é uma terra pequena. Não se pode dar dois passos sem esbarrarmos com um Cloade. Mas, se julgas que estou apaixonado por Lynn Marchmont, enganas-te. É uma rapariga desagradável e orgulhosa sem a mínima noção de civismo na cabeça. Apresento as minhas congratulações ao velho Rowley. Não, Rosaleen, minha querida, não é o meu tipo.

 

- Tens a certeza? inquiriu ela, duvidosa.

 

- Certamente que sim.

 

Ela acrescentou, com certa timidez:

 

- Bem sei que não gostas que eu deite as cartas... Mas elas dizem a verdade... acertam realmente. Havia uma rapariga portadora de aborrecimentos e de tristezas... uma rapariga que chegaria por mar. Havia também um estrangeiro desconhecido que apareceria nas nossas vidas e portador de perigo. Havia a carta da morte e...

 

- Tu e os teus estrangeiros desconhecidos! David riu-se. Que monte de superstições tu és! Não traves relações com nenhum estrangeiro desconhecido, é o que te aconselho.

 

Saiu de casa, rindo-se, mas depois de ter percorrido uma certa distância, o rosto ensombrou-se-lhe e franziu o sobrolho, murmurando:

 

- Que pouca sorte a tua, Lynn! Voltares do estrangeiro e transtornares os projetos!

 

Compreendeu, nesse mesmo instante, que seguia propositadamente um caminho em que lhe era possível encontrar a rapariga que acabara de apostrofar tão desagradavelmente.

 

Rosaleen viu-o atravessar o jardim e transpor a pequena cancela que dava para o atalho que atravessava os campos. Depois foi ao seu quarto de cama e contemplou os vestidos que se alinhavam no guarda-fatos. Sentia sempre prazer em apalpar e sentir o casaco de vison. Pensar, que possuía um casaco desses... Custava-lhe a convencer-se de que assim era. Estava ainda no quarto, quando a criada subiu a participar-lhe a chegada de Mrs. Marchmont,

 

Adela achava-se sentada na sala de estar, com os lábios apertados e o coração pulsando com o dobro da velocidade habitual. Durante vários dias, estivera a ganhar coragem para pedir auxílio a Rosaleen; mas, em verdade, a sua natureza fora morosa. Ficara também desnorteada ao ver que a atitude de Lynn mudara inconcebivelmente e que a filha se mostrava rigidamente contrária a que a mãe procurasse alívio para as suas aflições num empréstimo à viúva de Gordon.

 

Contudo, uma outra carta do gerente do banco, recebida nessa manhã, decidira Mrs. Marchmont a entrar em ação. Não podia prolongar esse estado de coisas por mais tempo. Lynn saíra muito cedo e Mrs. Marchmont avistara David percorrendo o atalho... o caminho estava, pois, desimpedido. Tinha um interesse especial em encontrar-se a sós com Rosaleen, pensando com razão que a ausência de David tornaria a proposta muito mais fácil.

 

Apesar disso, sentiu-se terrivelmente nervosa, durante aqueles momentos em que esperava, na sala de estar, assoalhada. Sentiu-se, porém, levemente melhor quando Rosaleen entrou com o que Mrs. Marchmont sempre chamara o seu «aspecto tolo», mais acentuado do que nunca.

 

«Gostaria de saber», pensou Adela, «se foi em conseqüência da explosão ou se ela foi sempre assim.»

 

Rosaleen gaguejou:

 

- Oh, b-b-om dia. Que se passa? Sente-se.

 

- Que bela manhã! exclamou Mrs. Marchmont com entusiasmo. Todas as minhas tulipas já abriram. E as suas?

 

A rapariga fitava-a pasmada, absortamente.

 

- Não sei.

 

Por onde começar, pensou Adela, com uma pessoa que não sabia falar de jardinagem, de cães... enfim, de qualquer tema de conversa rural?

 

Sem ser capaz de dominar uma nota de acidez na voz, desculpou:

 

- É natural, tem tantos jardineiros... que tratem de tudo isso...

 

- Estamos com falta de pessoal. O velho Mullard diz que precisa de mais dois homens. Mas parece que ainda há uma terrível falta de mão-de-obra.

 

As palavras brotavam-lhe da boca como uma espécie de dicção papagueada um tanto como uma criança que repete o que ouviu dizer a uma pessoa crescida.

 

Sim, era como uma criança. Seria isso, pensou Adela, o seu encanto? Teria sido isso que atraíra o perspicaz e ativo homem de negócios, Gordon Cloade. cegando-o a ponto de não o deixar notar a estupidez e falta de educação? No fim de contas, não podia tratar-se apenas de aparências. Já anteriormente muitas mulheres atraentes tinham procurado baldadamente «caçá-lo».

 

Mas, para um homem de sessenta e dois anos de idade, a infantilidade podia constituir uma atração. Seria, poderia ser, real ou seria uma pose, uma pose que resultara e desse modo se tornara uma segunda natureza?

 

Rosaleen dizia:

 

- David saiu... e as palavras fizeram Mrs. Marchmont voltar a si. David podia voltar. Não podia perder aquela oportunidade. As palavras ficaram-lhe presas na garganta, mas conseguiu soltá-las.

 

- Gostava de saber se poderia ajudar-me?

 

- Ajudá-la?

 

Rosaleen parecia surpreendida, não compreendia.

 

- Eu... as coisas estão muito difíceis... compreende, a morte de Gordon fez-nos a todos uma grande diferença.

 

«Idiota, imbecil», pensava. «Tens necessidade de estar a olhar para mim boquiaberta? Bem sabes o que quero dizer! Deves saber o que quero dizer. No fim de contas, tu própria já foste pobre...»

 

Nesse momento, detestava Rosaleen. Detestava-a porque ela, Adela Marchmont, estava ali sentada pedinchando dinheiro. Pensou: «Não posso... não posso.»

 

Por um breve instante, todas as longas horas de meditação, de preocupação e de planos vagos, perpassaram-lhe pelo espírito.

 

Vender a casa (Mas mudar-se para onde? Não havia casas pequenas... nem certamente casas baratas.) Arranjar hóspedes... (Mas não se conseguia arranjar pessoal... e ela sozinha não podia... não podia tratar da cozinha e do arranjo da casa. Se Lynn ajudasse... mas Lynn ia casar com Rowley.) Ir viver com Rowley e Lynn? (Não, nunca o faria!) Arranjar um emprego. Que emprego? Quem aceitaria uma mulher exausta, de meia-idade e inexperiente?

 

Ouviu a própria voz, beligerante, porque se desprezava a si própria.

 

- Quero dizer dinheiro esclareceu.

 

- Dinheiro? repetiu Rosaleen.

 

Parecia ingenuamente surpreendida, como se a palavra dinheiro fosse a última coisa que esperasse ouvir.

 

Adela prosseguiu obstinadamente, sacando a custo as palavras:

 

- Estou sem dinheiro no banco e tenho contas a pagar... consertos da casa... e os salários também ainda não foram pagos. Compreende, tudo ficou reduzido a metade... isto é, o meu rendimento. Suponho que é por causa dos impostos. Gordon costumava ajudar-nos... na casa, quero dizer. Fez todos os consertos; telhados, pinturas e coisas no gênero. E também me dava uma pensão. Pagava-a no banco todos os trimestres. Dizia sempre que não nos preocupássemos e, já se sabe, que nunca o fiz. Isto é, foi assim enquanto ele viveu, mas agora...

 

Calou-se. Sentia-se envergonhada... mas, ao mesmo tempo, aliviada. No fim de contas, o pior já passara. Se a rapariga recusasse, recusava e pronto.

 

Rosaleen parecia muito desolada.

 

- Oh, coitada disse. Não sabia. Nunca pensei eu... bem, certamente, pedirei a David...

 

Agarrando-se desesperadamente aos braços da cadeira, Adela perguntou:

 

- Não poderia passar-me um cheque... agora...

 

- Sim... sim, suponho que sim. Rosaleen, parecendo assustada, levantou-se e dirigiu-se à escrivaninha. Rebuscou em vários escaninhos e finalmente retirou uma caderneta de cheques.

 

- Devo... quanto?

 

- Poderiam... poderiam ser quinhentas libras... Adela calou-se.

 

Quinhentas libras escreveu Rosaleen obedientemente.

 

Das costas de Adela escorregou um pesado fardo. No fim de contas, fora fácil! Ficou consternada ao ocorrer-lhe que sentia mais do que gratidão um leve desprezo pela facilidade da vitória obtida. Rosaleen era, sem dúvida alguma, extraordinariamente ingênua.

 

A rapariga levantou-se da escrivaninha e aproxímou-se dela. Estendeu-lhe desajeitadamente o cheque. Agora o embaraço parecia estar inteiramente do seu lado.

 

- Espero que esteja bem. Na realidade, tenho muita pena...

 

Adela pegou no cheque. A escrita infantil e irregular espraiava-se no papel cor-de-rosa.

 

Mrs. Marchmont. Quinhentas libras. 500 libras. Rosaleen Cloade.

 

- É muita bondade sua, Rosaleen. Obrigada.

 

- Oh, por favor... quero dizer... eu devia ter pensado...

 

- Muita bondade minha querida.

 

Com o cheque na mala, Adela Marchmont sentia-se outra mulher. A rapariga fora realmente muito compreensiva. Seria embaraçoso prolongar a entrevista. Despediu-se e retirou-se. Passou por David no caminho do jardim, deu-lhe amavelmente um «bom-dia» e seguiu num passo apressado.

 

- Que veio cá fazer aquela Marchmont? perguntou David, mal entrou.

 

- Oh, David, tinha uma necessidade terrível de dinheiro. Nunca tinha pensado que...

 

- E deste-lho, suponho.

 

Olhou-a com um desespero meio divertido.

 

- Não podes ficar sozinha, Rosaleen.

 

- Oh, David, não pude recusar. No fim de contas...

 

- No fim de contas... o quê? Quanto?

 

Em voz baixa, Rosaleen murmurou:

 

- Quinhentas libras.

 

Ouviu, com grande alívio, David rir-se.

 

- Uma simples picadela de pulga!

 

- Oh, David, é imenso dinheiro!

 

- Não para nós atualmente, Rosaleen! Na realidade, nunca mais te compenetras de que és uma mulher muito rica. Em todo o caso, visto que pediu quinhentas, ter-se-ia dado inteiramente por satisfeita com duzentas e cinqüenta. Tens de aprender a linguagem dos empréstimos!

 

Ela murmurou:

 

- Desculpa, David!

 

- Minha querida pequena! No fim de contas, o dinheiro é teu.

 

- Não é. Na realidade não é.

 

- Bem. Não comeces outra vez com isso. Gordon Cloade morreu antes de ter tempo de fazer um testamento. A isto é que se chama a sorte do jogo. Nós ganhamos, tu e eu. Os outros... perderam.

 

- Não me parece... bem.

 

- Ora deixa-te disso, minha linda mana. Não gostas de tudo isto? Uma casa grande, criados... jóias? Não é um sonho realizado? Não achas? Deus seja louvado, às vezes penso que vou acordar e ver que é tudo um sonho.

 

Ela riu-se também e David Hunter, depois de observá-la atentamente, ficou satisfeito. Sabia como lidar com Rosaleen. Era incômodo, pensou, que ela tivesse remorsos, mas isso não se podia evitar.

 

- É uma grande verdade, David, parece um sonho, ou qualquer história de cinema. Tudo me agrada. Tudo, tudo!

 

- Mas o que temos, não o largamos advertiu-a.

 

- Nada de mais presentes aos Cloades, Rosaleen. Qualquer deles tem muito mais dinheiro do que, antes, tu e eu tivemos na vida.

 

- Sim, acho que sim.

 

- Onde esteve Lynn esta manhã? inquiriu David.

 

- Creio que foi a Long Willows.

 

A Long Willows ver Rowley, esse imbecil, esse estúpido! A sua boa disposição desvaneceu-se. Afinal continuava decidida a casar com esse tipo.

 

Saiu de casa pensativamente, caminhou através de maciços de azalias e transpôs a pequena cancela ao cimo da colina. Desse ponto, o atalho descia ao longo da encosta e passava pela granja de Rowley.

 

Quando ali chegou, viu Lynn Marchmont subir a encosta, vindo da quinta. Hunter hesitou por um momento, depois cerrou belicosamente os maxilares e desceu o atalho ao seu encontro. Encontraram-se, por assim dizer, exatamente a meio da subida.

 

- Bom dia saudou David. Quando é o casamento?

 

- Já me perguntou isso retorquiu ela. Sabe muito bem quando é. Em Junho.

 

- Está resolvida?

 

- Não sei o que quer dizer, David.

 

- Sabe, sim soltou uma gargalhada desdenhosa.

 

- Rowley... O que é Rowley?

 

- Um homem melhor do que você... ataque-o, se se atreve disse ela, alegremente.

 

- Não tenho qualquer dúvida de que seja um homem melhor do que eu... mas atrevo-me a isso. Por si, atrever-me-ia a qualquer coisa.

 

Ela ficou calada por um momento e, passado este, disse:

 

- Você não compreende que amo Rowley?

 

- Duvido.

 

Ela teimou veementemente:

 

- Amo-o, sim, digo-lho eu. David olhou-a perscrutadoramente.

 

- Todos nós vemos o retrato de nós próprios de nós próprios como desejamos ser. Você vê-se apaixonada por Rowley, casando com ele, vivendo aqui contente,. sem nunca querer ir-se embora. Mas isto não é o seu «eu» verdadeiro, pois não, Lynn?

 

- Ah, sim, então qual é o meu eu verdadeiro? Qual é o seu, já agora? O que é que você quer?

 

- Eu queria segurança, bonança depois da tormenta, calma depois de mares tempestuosos. Mas não sei. Às vezes, suspeito, Lynn, de que tanto você como eu queremos... agitação acrescentou pensativamente. Desejava que você nunca para aqui tivesse voltado. Até você vir, senti-me extraordinariamente feliz.

 

- E agora não se sente feliz?

 

Olhou-a. Ela sentiu nascer dentro de si uma estranha excitação. A sua respiração tornou-se mais rápida. Nunca antes sentira tão fortemente a estranha atração fantástica de David. Ele estendeu rapidamente uma mão, agarrou-a por um ombro e fê-la virar-se...

 

Depois, subitamente, sentiu o seu aperto afrouxar. Olhava fixamente, por cima do seu ombro, para um ponto superior da colina. Virou a cabeça para ver o que lhe atraíra a atenção.

 

Naquele momento, uma mulher ia a transpor a pequena cancela acima de Furrowbank. David perguntou vivamente:

 

- Quem é aquela?

 

- Parece ser Frances.

 

Hunter franziu o sobrolho.

 

- Que quer ela?

 

- Minha querida Lynn! Só aqueles que querem alguma coisa vão visitar Rosaleen. Sua mãe já lá foi hoje.

 

- A mãe? Lynn recuou e franziu o sobrolho. Que queria ela?

 

- Não sabe? Dinheiro!

 

- Dinheiro? Lynn retesou-se.

 

- E conseguiu-o acrescentou David. Esboçava agora aquele sorriso cruel e frio que lhe ficava tão bem ao rosto.

 

Um momento antes, tinham estado próximos um do outro, mas agora achavam-se separados por muitas milhas, divididos por um vivo antagonismo.

 

Lynn gritou:

 

- Oh, não, não, não!

 

Ele imitou-a: Sim, sim, sim!

 

- Não acredito. Quanto?

 

- Quinhentas libras. Ela inspirou vivamente.

 

David acrescentou contemplativamente:

 

- Pergunto a mim mesmo quanto é que Frances irá pedir. Na realidade, é pouco seguro deixar Rosaleen sozinha, ainda que seja apenas por cinco minutos. A pobre rapariga não sabe dizer não.

 

- Foi lá... quem mais? David sorriu trocistamente.

 

- A tia Kathie contraíra certas dívidas oh, não muito, umas simples duzentas e cinqüenta libras bastariam mas estava com medo que isso chegasse aos ouvidos do médico! Como resultaram de pagamentos a médiuns, ele podia não gostar. Ela não sabia, certamente acrescentou David, que o próprio médico já contraíra um empréstimo.

 

Lynn murmurou:

 

- O que você deve pensar de nós... o que você deve pensar de nós! depois, apanhando-o de surpresa, virou-se e desceu precipitadamente a encosta, a caminho da granja.

 

David franziu o sobrolho ao vê-la afastar-se.

 

Não, Frances disse para consigo. Creio que escolheste um mau dia e subiu resolutamente a encosta.

 

Transpôs a cancela e desceu o atalho por entre as azaleas, atravessou o relvado e entrou silenciosamente em casa pela porta envidraçada da sala de estar, no momento em que Frances Cloade dizia:

 

...gostava de saber explicar-me melhor. Mas, compreende Rosaleen, é realmente muito difícil de explicar...

 

Uma voz atrás dela, disse:

 

- Ah, sim?

 

Frances Cloade virou-se com vivacidade. Ao contrário de Adela Marchmont, não procurara propositadamente encontrar-se a sós com Rosaleen. A quantia requerida era suficientemente elevada para levar a crer que seria pouco natural que Rosaleen lha entregasse sem primeiramente consultar o irmão. Na realidade, Frances preferiria até discutir o assunto na presença de David para que este não pensasse que ela procurava extorquir dinheiro à irmã, na sua ausência.

 

Não o ouvira entrar, de absorta que estava na exposição de um caso plausível. A interrupção sobressaltara-a e compreendera também que, por qualquer razão, David Hunter estava numa disposição notavelmente má.

 

- Oh, David, exclamou com à vontade, ainda bem que veio! Estava a expor o caso a Rosaleen. A morte de Gordon deixou Jeremy num terrível aperto e lembrei-me de perguntar-lhe se ela poderia vir em nossa salvação. É isto...

 

As palavras fluíam rapidamente, a avultada quantia em causa, a proteção de Gordon, prometida verbalmente, as restrições do governo, hipotecas...

 

Uma certa admiração fulgurou na escuridão do espírito de David. Que tremenda mentirosa era aquela mulher! Toda a história era plausível. Mas não verdadeira. Não, era capaz de jurá-lo. Não era verdadeira. Mas, perguntou-se, qual era a verdade? Estaria Jeremy com a corda na garganta? Devia tratar-se de uma situação desesperada para Frances ali ir, pois era uma mulher altiva...

 

- Dez mil? inquiriu David Hunter.

 

Rosaleen murmurou numa voz temerosa: Isso é muito dinheiro.

 

Frances interveio pressurosamente.

 

- Oh, bem sei que sim. Não teria cá vindo se não se tratasse de uma quantia tão difícil de obter. Mas Jeremy nunca se teria metido neste negócio se não tivesse contado com a proteção de Gordon. A morte dele, inesperadamente, foi uma desgraça tão grande...

 

- Deixando-os a todos desprotegidos? a voz de David soou desagradavelmente. Depois de uma vida abrigada sob as suas asas.

 


Pelos olhos de Frances perpassou um leve fulgor, quando lhe observou:

 

- Tem uma maneira deveras pitoresca de considerar as coisas!

 

- Como deve saber Rosaleen não pode tocar no capital. Apenas nos rendimentos. Mas ela paga cerca de dezenove xelins e seis dinheiros de imposto por cada libra de rendimento.

 

- Oh, bem sei. Hoje em dia, os impostos são terríveis. Mas poderia arranjar-se isso, não é verdade? Nós pagaríamos...

 

Ele interrompeu-a:

 

- Poderia arranjar-se. Mas não se arranja!

 

Frances virou-se rapidamente para Rosaleen.

 

- Rosaleen, tem tão bom coração...

 

A voz de David cortou-lhe o discurso.

 

- O que é que vocês, os Cloades, julgam que Rosaleen seja... uma vaca leiteira? Pela frente, todos lhe fazem sugestões, pedem, imploram... E pelas costas? Troçam dela, arrogam-se ares protetores, lastimam-na, detestam-na, desejam-lhe a morte...

 

- Isso não é verdade! gritou Frances.

 

- Ai não? Estou farto de vocês todos! Ela está farta de vocês todos. Não nos apanharão dinheiro algum. Por conseguinte, é melhor deixar de vir cá pedinchá-lo. Compreendeu?

 

Tinha o rosto rubro de cólera.

 

Frances levantou-se de rosto duro e inexpressivo. Calçou absortamente uma luva, mas como se fosse um ato significativo.

 

- Foi muito claro, David declarou-lhe.

 

Rosaleen murmurava: Desculpe. Tenho realmente pena...

 

Frances não lhe deu atenção. Era como se Rosaleen não estivesse naquele quarto. Deu um passo para a porta envidraçada e parou, para encarar David.

 

- Disse que desprezo Rosaleen. Isso não é verdade. Não desprezo Rosaleen... mas por si... nutro um profundo desprezo.

 

- Que quer dizer? Olhava-a ameaçadoramente.

 

- As mulheres têm de viver. Rosaleen casou com um homem riquíssimo, muitos anos mais velho do que ela. Por que não? Mas você? Você vive à custa de sua irmã, anda à boa vida, vive à grande... à custa dela.

 

- Interponho-me entre ela e as harpias.

 

Fitaram-se firmemente. Apercebeu-se da raiva dela e, num relâmpago, compreendeu que Frances Cloade era um inimigo perigoso, um inimigo que poderia ser ousado e sem os menores escrúpulos.

 

Quando Frances abriu a boca para falar, Hunter chegou a sentir um momento de apreensão. Mas o que ela disse foi singularmente inocente:

 

- Lembrar-me-ei do que me disse, David. Deixou-o e transpôs a porta envidraçada.

 

David perguntava-se por que se sentia tão firmemente convicto de que aquelas palavras representavam uma ameaça.

 

Rosaleen chorava.

 

- Oh, David, David... não lhe devias ter dito essas coisas. Ela foi, de entre todos, uma das pessoas mais simpáticas para mim.

 

- Cala-te, minha parva! gritou-lhe furiosamente. Queres que te saltem em cima e te deixem sem um vintém?

 

- Mas o dinheiro... se... se não me pertence de direito...

 

Emudeceu perante o olhar que ele lhe lançou.

 

- Não... não era isso que eu queria dizer, David.

 

- Espero que não.

 

«O remorso», pensou Hunter, «era o pior!»

 

Não contara com a consciência de Rosaleen. De futuro, dificultar-lhe-ia terrivelmente as coisas.

 

O futuro? Franziu o sobrolho enquanto a olhava e deu livre curso aos seus pensamentos. O futuro de Rosaleen... o seu... Sempre soubera o que queria... compreendia agora... Mas Rosaleen? Que futuro seria o de Rosaleen?

 

Ao ver-lhe o rosto tornar-se sombrio... ela gritou... começando subitamente a tremer:

 

- Oh! Alguém caminha sobre a minha sepultura!

 

Hunter olhou-a com curiosidade e disse: Já te convenceste de que isso pode acontecer?

 

- Que queres dizer, David?

 


- Quero dizer que cinco... seis... sete pessoas fazem tenção de te mandarem para a cova antes de chegar a tua hora!

 

- Não queres dizer... assassínio... a sua voz estava horrorizada. Julgas que essas pessoas seriam capazes de um assassínio... mas, boa gente como os Cloades, não.

 

- Não estou certo de que exatamente boa gente como os Cloades não possa cometer um assassínio. Mas, enquanto eu aqui estiver a velar por ti, não conseguirão matar-te. Primeiramente, terão de desembaraçar-se de mim. Mas, se conseguirem fazê-lo... então... tem cuidado contigo!

 

- David, não digas essas coisas horríveis!

 

- Ouve disse-lhe, agarrando-a por um braço. Se eu te faltar, tem cuidado contigo, Rosaleen. A vida não é segura, não te esqueças... é perigosa, terrivelmente perigosa. E tenho idéia que é especialmente perigosa para ti.

 

- Rowley, podes emprestar-me quinhentas libras?

 

Rowley olhou pasmado para Lynn. Estava ali, parada, sem fôlego por ter corrido, com o rosto pálido e a boca cerrada.

 

Disse-lhe meigamente e um pouco como se falasse a um cavalo: Aí, aí, calma, minha filha. Que se passa?

 

- Preciso de quinhentas libras.

 

- Lá por isso, também eu.

 

- Mas Rowley, é sério. Não me podes emprestar quinhentas libras?

 

- Estou nas lonas. Esse novo trator...

 

- Sim, sim... põe de parte os pormenores da granja. Mas, em todo o caso, poderias arranjar dinheiro... se precisasses de fazê-lo, não é verdade?

 

- Para que o queres, Lynn? Estás nalguma aflição?

 

- Quero-o para ele... lançou a cabeça para trás, para a grande casa quadrada, na colina.

 

- Hunter? Por que diabo...

 

- Foi a Mamã. Foi pedir-lhe dinheiro emprestado. Ela está... está um bocado atrapalhada de dinheiro.

 

- Sim, creio que sim Rowley mostrou-se compreensivo. Está numa terrível situação. Gostava de poder ajudá-la um pouco... mas não posso.

 

- Não posso admitir que ela tenha pedido dinheiro emprestado a David!

 

- Calma, pequena. Na realidade, quem tem de largar o dinheiro é Rosaleen. E, no fim de contas, por que não?

 

- Por que não? Tu dizes «Por que não?», Rowley?

 

- Não vejo por que razão Rosaleen não há-de ajudar, uma vez por outra. O velho Gordon deixou-nos a todos numa bela alhada, indo para o outro mundo, sem ter deixado testamento. Se a situação for apresentada claramente a Rosaleen, ela própria deverá compreender que lhe compete dar uma ajuda, de vez em quando.

 

- Tu já lhe pediste dinheiro emprestado?

 

- Não... bem... é diferente. Não me ficaria muito bem ir procurar uma mulher para pedir-lhe dinheiro. É uma coisa bem pouco agradável.

 

- Não compreendes que não me agrada ser... ser devedora de David Hunter?

 

- Mas não és. O dinheiro não é dele.

 

- Mas, na realidade, dele é que é. Rosaleen está completamente sob a sua mão.

 

- Oh, admito que sim, mas, legalmente, não é dele.

 

- Então tu não... não podes... emprestar-me o dinheiro?

 

- Ouve lá, Lynn... se vocês estivessem em verdadeiro apuro... chantagem ou dívidas... poderia vender terras ou ações... mas isso seria um procedimento assaz desesperado. Estou simplesmente a considerar as coisas com calma. E sem sabermos o que este maldito Governo fará a seguir sempre a tramar-nos a vida com uma quantidade de impressos para preencher, com que, às vezes, estou até à meia-noite... é demasiado para um homem só.

 

Lynn exclamou amargamente:

 

- Oh, bem sei! Mas se Johnnie não tivesse morrido...

 

Ele gritou:

 

- Johnnie não é cá chamado. Não fales disso!

 

Ela fitou-o, atônita. O rosto dele estava rubro e congestionado. Parecia fora de si com raiva.

 

Lynn virou-lhe as costas e regressou vagarosamente a White House.

 

- Não podes devolvê-lo, Mamã?

 

- Realmente, querida Lynn! Fui com ele direita ao banco. Além disso, paguei a Arthurs, a Bodgham, a Knebworth. Este último estava a tornar-se muito insolente. Oh, minha querida, que alívio! Estive noites seguidas sem conseguir dormir. Na realidade, Rosaleen foi muitíssimo compreensiva e amável.

 

Lynn conjeturou com amargura:

 

- Suponho que agora vais lá voltar mais vezes.

 

- Espero que não seja necessário, minha querida. Procurarei ser muito econômica, bem sabes. Mas, hoje em dia, é tudo tão caro... E está tudo cada vez pior...

 

- Sim, e nós iremos de mal a pior. Numa pedinchice contínua.

 

Adela enrubesceu.

 

- Não me parece que seja uma maneira bonita de considerar as coisas, Lynn. Como já expliquei a Rosaleen, sempre dependemos de Gordon.

 

- Não devíamos tê-lo feito. O erro está aí e acrescentou. Ele tem direito a desprezar-nos.

 

- Quem é que nos despreza?

 

- Esse odioso David Hunter.

 

- Realmente disse Mrs. Marchmont, com dignidade não vejo que importância tenha o que David pense. Felizmente, esta manhã não estava em Furrowbank... caso contrário, acho que poderia ter influenciado essa rapariga. Ela está, sem dúvida alguma, inteiramente na mão dele.

 

Lynn descansou o peso do corpo sobre o outro pé.

 

- O que querias dizer Mamã, quando disseste... naquela manhã depois de eu ter regressado: «Se é irmão dela»?

 

- Oh, isso mesmo Mrs. Marchmont pareceu levemente embaraçada. Bem, tem corrido um certo burburinho, já se sabe.

 

Lynn limitou-se a esperar, inquiridoramente. Mrs. Marchmont tossicou.

 

- Esse gênero de mulheres... o tipo da aventureira... evidentemente que o pobre Gordon ficou completamente iludido... têm geralmente, secretamente, um rapaz. Suponhamos que ela diz a Gordon que tem um irmão... telegrafa-lhe para o Canadá ou para onde ele está. Esse homem surge. Como pode Gordon saber se é ou não irmão da mulher? Pobre Gordon, absolutamente baboso por ela, e acreditando, sem dúvida, em tudo quanto ela lhe dissesse. E, por conseguinte, o «irmão» vem com eles para Inglaterra... Pobre Gordon, sem suspeitar de nada.

 

Lynn gritou ferozmente:

 

- Não acredito. Não acredito!

 

Mrs. Marchmont levantou as sobrancelhas.

 

- Realmente, minha querida...

 

- Ele não é desse gênero. E ela... ela também não. Ela talvez seja uma imbecil, mas é boa... Sim, é realmente boa. As pessoas é que têm idéias loucas. Não acredito já lhe disse.

 

Mrs. Marchmont observou com dignidade:

 

- Na realidade, não há necessidade de gritares.

 

Uma semana depois, o comboio das cinco horas e vinte minutos entrou na estação de Warmsley Heath, dando saída a um homem alto e bronzeado, transportando uma mochila às costas.

 

No cais oposto, um grupo de golfistas esperava o comboio para Londres. O homem alto e barbado, da mochila, apresentou o bilhete e saiu da estação. Parou indeciso, por um momento... e depois reparou no poste de sinalização: Atalho para Warmsley Vale. Dirigiu então os seus passos nesse sentido, com viva decisão.

 

Em Long Willows, Rowley Cloade acabara de preparar uma chávena de chá, quando uma sombra se espraiou pela mesa da cozinha e o fez erguer o olhar.

 

Se, por um momento, pensara que a rapariga parada do lado de dentro da porta era Lynn, o seu desapontamento transformou-se em surpresa quando viu que se tratava de Rosaleen Cloade.

 

Envergava um vestido leve, de um tecido rústico, às riscas largas e garridas, cor de laranja e verdes, cuja simplicidade artificial custara mais dinheiro do que Rowley teria julgado possível.

 

Até ali, sempre a vira com vestidos caros e um tanto citadinos, que ela usava com um ar artificial pensara ele, como um manequim apresentaria os vestidos da firma em que estivesse empregado.

 

Nessa tarde, com aquele vestido de largas riscas rústicas de cores alegres, Rowley tinha a sensação de ver uma nova Rosaleen Cloade. A sua origem irlandesa, o cabelo escuro ondulado e os encantadores olhos azuis levemente rodeados por olheiras eram mais notórios. Também a sua voz possuía um sotaque irlandês mais suave em vez das inflexões cuidadosas e um tanto afetadas com que geralmente falava.

 

- Está uma manhã tão bonita observou que a aproveitei para dar um passeio.

 

Acrescentou: David foi a Londres.

 

Disse-o quase culposamente; depois corou e tirou de dentro da mala uma cigarreira. Ofereceu um cigarro a Rowley, que o declinou com um movimento de cabeça e que depois olhou em volta à procura de um fósforo com que acender o cigarro da rapariga. Esta procurava baldadamente fazer funcionar um pequeno e caro isqueiro de ouro. Rowley tirou-lho da mão e com um movimento rápido acendeu-o. Quando a rapariga se inclinou para que ele lhe acendesse o cigarro, Rowley reparou como eram longas e escuras as pestanas que lhe sombreavam a face, e pensou: «O velho Gordon sabia o que estava a fazer... »

 

Rosaleen recuou um passo e comentou apreciativamente:

 

- Que linda vitelinha você tem no campo lá de cima!

 

Atônito com aquele interesse, Rowley começou a falar-lhe da granja. O interesse da rapariga surpreendeu-o, pois era obviamente genuíno e não fictício e com grande surpresa verificou que tinha muitos conhecimentos sobre a vida de uma granja.

 

- Mais parece que foi mulher de um lavrador, Rosaleen, observou ele sorrindo.

 

- Tínhamos uma quinta... na Irlanda... antes de vir para aqui... antes...

 

- Antes de ir para o teatro?

 

Respondeu ansiosamente e um pouco, achou Rowley, culposamente.

 

- Não foi há muito tempo... Lembro-me de tudo muito bem acrescentou de repente. Se quisesse, podia ir agora mungir-lhe as vacas, Rowley.

 

Era uma Rosaleen completamente diferente. Teria David Hunter aprovado essas referências casuais a um passado agrícola? Rowley estava convencido de que não. Velha classe média irlandesa, era a impressão que David procurava infundir. Achou que a versão de Rosaleen se aproximava mais da verdade. Vida agrícola primitiva, depois a tentação do palco, a tournée à África do Sul, o casamento... o isolamento na África Central... a fuga... uma lacuna... e finalmente o casamento com um milionário em Nova Iorque...

 

Sim, Rosaleen Hunter viajara muito desde a última vez que ordenhara uma vaca Kerry. Contudo, ao olhá-la, custava-lhe a acreditar que já alguma vez tivesse representado. O seu rosto tinha aquela expressão ingênua, levemente tola; era o rosto de uma pessoa que não tem história. E parecia tão nova... muito mais nova do que vinte e seis anos.

 

Havia nela algo de suplicante; tinha a mesma nota fatídica das vitelas que, nessa manhã, levara ao carniceiro. Olhava para a rapariga como olhara para os animais. Coitaditas, pensara, era uma lástima terem de matá-las...

 

Uma expressão de alarme surgiu nos olhos de Rosaleen. Perguntou embaraçadamente:

 

- Em que está a pensar, Rowley?

 

- Gostaria de visitar a herdade e a vacaria?

 

- Oh, sim, muito!

 

Divertido com o interesse da rapariga, mostrou-lhe toda a granja. Mas, quando por fim lhe sugeriu tomarem uma chávena de chá, voltou a ver-lhe no olhar a mesma expressão alarmada.

 

- Oh, não... obrigada, Rowley... prefiro ir para casa consultou o relógio de pulso. Oh, como é tarde! David chega no comboio das cinco e vinte. Quererá saber onde estou. Tenho... tenho de apressar-me acrescentou, timidamente. Gostei muito, Rowley.

 

Isso, pensou o rapaz, era verdade. Tinha gostado. Pudera ser natural... ser da sua própria categoria social sem qualquer artificialismo. Tinha medo do irmão, não havia dúvida. David era o mandão da família. Ora, ao menos uma vez, tivera uma tarde de folga... sim, era isso mesmo, uma tarde de folga, tal como uma criada! A rica Mrs. Gordon Cloade!

 

Sorriu estranhamente, junto à cancela, enquanto a via subir apressadamente a encosta, a caminho de Furrowbank. Quando ia a chegar à vedação da propriedade, um homem transpô-la. Rowley perguntou-se se seria David, mas tratava-se de um homem mais alto, mais forte. Rosaleen recuou para deixá-lo passar, depois passou desembaraçadamente por cima dela e caminhou com um passo que quase era corrida.

 

Sim, tivera uma tarde de folga... e ele, Rowley, perdera mais de uma hora de tempo precioso! Ora, talvez não se tivesse desperdiçado. Parecia-lhe que Rosaleen tinha simpatizado com ele. Isso poderia ser útil. Uma rapariguita bonita; as vitelas dessa manhã também eram bonitas... coitaditas.

 

Absorto nos seus pensamentos, ficou sobressaltado ao ouvir uma voz e ergueu vivamente a cabeça.

 

Um homenzarrão, com um chapéu de feltro de abas largas e uma mochila às costas, estava parado em frente à cancela.

 

- É este o caminho para Warmsley Vale?

 

Como Rowley o fitasse pasmado, repetiu a pergunta. Com um esforço, Rowley reuniu os seus pensamentos e respondeu:

 

- Sim, continue pelo atalho... através do campo seguinte. Vire para a esquerda quando chegar à entrada e são uns três minutos até chegar à aldeia.

 

Respondera já dúzias de vezes a essa mesma pergunta com palavras semelhantes. As pessoas ao saírem da estação metiam pelo atalho, seguiam-no pela encosta acima e julgavam terem seguido um caminho errado, quando desciam a encosta oposta sem avistarem qualquer sinal do seu destino, pois Blackwell Copse ocultava Warmsley Vale à vista. Ficava encaixado numa depressão, mostrando apenas o cimo da torre da igreja.

 

A pergunta seguinte não foi muito corrente, mas Rowley respondeu-lhe sem ter de pensar muito.

 

- O «Stag» ou os «Bells & Motley». O «Stag» de preferência. São ambas igualmente boas... ou más. Acho que conseguirá arranjar quarto.

 

A pergunta fê-lo olhar mais atentamente para o seu interlocutor. Nos tempos correntes, as pessoas reservavam geralmente um quarto com antecedência para qualquer sítio para onde fossem...

 

O homem era alto, de rosto bronzeado, com barba e olhos muito azuis. Devia ter cerca de quarenta anos e não tinha mau aspecto, apesar da indumentária rude e um tanto atrevida. Não tinha talvez um rosto muito agradável.

 

Chegado de qualquer ponto do ultramar, pensou Rowley. Havia ou não um leve sotaque colonial na sua voz? Sob certo aspecto coisa curiosa! aquele rosto não lhe era desconhecido...

 

Onde o vira já, ou um outro muito parecido?

 

Enquanto se debatia baldadamente com aquele problema, o desconhecido espantou-o, ao perguntar-lhe:

 

- Poderia dizer-me se existe, aqui perto, uma casa chamada Furrowbank?

 

Rowley respondeu lentamente:

 

- Há, sim. Lá em cima, na colina. Teve de passar perto dela... isto é, se seguiu pelo atalho, desde que saiu da estação.

 

- Sim... foi o que fiz. Vírou-se para olhar para a parte superior da colina. Por conseguinte, foi aquela... aquela casa nova grande e branca.

 

- Sim, essa mesmo.

 

- Uma casa dispendiosa comentou o homem. Deve custar uma data de dinheiro a manter, não?

 

«Muito», pensou Rowley. «E dinheiro nosso... » Um ímpeto de raiva fê-lo esquecer, por um momento, o sítio onde estava...

 

Com um sobressalto acalmou-se e viu o desconhecido contemplar a parte superior da colina com uma expressão especulativa no olhar.

 

- Quem vive ali? perguntou. É... uma Mrs. Cloade?

 

- Exatamente respondeu Rowley. Mrs. Gordon Cloade.

 

O desconhecido ergueu o sobrolho. Parecia levemente divertido.

 

- Ah exclamou, Mrs. Gordon Cloade. Tem uma linda casa!

 

Depois acompanhou a frase com um rápido movimento de cabeça, confirmativo.

 

- Obrigado, amigo! agradeceu e, ajeitando a mochila, encaminhou-se para Warmsley Vale.

 

Rowley regressou lentamente ao pátio da propriedade. O seu espírito continuava intrigado com alguma coisa. Onde diabo vira já aquele indivíduo?

 

Por volta das nove e meia dessa noite, Rowley pôs de lado um montão de papéis que tinham estado espalhados sobre a mesa da cozinha e levantou-se. Olhou distraidamente para o retrato de Lynn, colocado sobre a escarpa da chaminé, depois franziu o sobrolho e saiu de casa.

 

Dez minutos depois, empurrou a porta do salão de bar do «Stag». Beatrice Lippincott, por trás do balcão das bebidas, lançou-lhe um sorriso de boas vindas. Mr. Rowley Cloade, pensava ela, era uma bonita figura de homem. Com uma ponta de azedume, Rowley trocou, com os circunstantes, as observações habituais que incluíram um comentário desfavorável ao Governo, ao tempo e às várias colheitas.

 

Momentos depois, desviando-se um pouco, Rowley pôde dirigir-se a Beatrice, numa voz calma:

 

- Está cá hospedado um desconhecido? Um homem alto? Com chapéu rústico?

 

- Exatamente, Mr. Rowley. Chegou por volta das seis horas. É esse que diz?

 

Rowley respondeu com um aceno de cabeça afirmativo.

 

- Passou pela minha granja. Perguntou-me o caminho.

 

- Sim, sim. Parece estrangeiro.

 

- Gostava de saber quem é, confessou Rowley. Olhou para Beatrice e sorriu. A rapariga retribuiu-lhe o sorriso.

 

- É fácil, Mr. Rowley, já que quer saber.

 

Passou por baixo do balcão e voltou daí a pouco com um enorme volume de couro onde estavam anotadas as chegadas.

 

Abriu-o na página que mostrava as entradas mais recentes. A última dizia o seguinte:

 

Enoch Arden. Cidade do Cabo. Britânico.

 

Estava uma bela manhã. Os pássaros cantavam e Rosaleen, ao descer para tomar o pequeno-almoço, no seu vestido caro e rústico, sentia-se feliz.

 

As dúvidas e receios, que ultimamente a tinham acabrunhado, pareciam ter desaparecido. David andava bem disposto, rindo-se e metendo-se com ela. A sua visita da véspera a Londres fora satisfatória. O pequeno-almoço estava bem cozinhado e bem apresentado. Tinham precisamente acabado de tomá-lo, quando chegou o correio.

 

Havia sete ou oito cartas para Rosaleen. Contas, pedidos esmolares, alguns convites locais... nada de interesse especial.

 

David pôs de parte duas contas pequenas e abriu o terceiro sobrescrito. Tanto o conteúdo como a face do sobrescrito estavam escritos à máquina.

 

Caro Mr. Hunter:

 

Acho melhor dirigir-me a si do que a sua irmã, «Mrs. Cloade», por poder dar-se o caso do conteúdo desta carta representar um choque para ela. Em resumo, tenho notícias do capitão Robert Underhay que talvez ela gostasse de ouvir. Estou hospedado no «Stag» e, se quiser vir visitar-me esta noite, terei muito gosto em falar nesse assunto consigo. Muito sinceramente, Enoch Arden

 

Um som sufocado soltou-se da garganta de David. Rosaleen ergueu o olhar, sorrindo, mas depois o seu rosto adquiriu uma expressão de alarme.

 

- David... David... que se passa?

 

Em silêncio, Hunter estendeu-lhe a carta. Ela agarrou-a e leu-a.

 

- Mas... David... não compreendo... que significa isto?

 

- Sabes ler, não sabes? Ela olhou-o receosamente.

 

- David... quer dizer... que vamos fazer?

 

Ele estava de sobrolho franzido... fazendo planos, rapidamente, no seu espírito célere e calculador.

 

- Deixa lá, Rosaleen, não há razão para preocupações. Tratarei disto...

 

- Mas quer dizer que...

 

- Não te preocupes, rapariga. Deixa o caso comigo. Escuta o que tens a fazer: vai imediatamente para Londres. Mete-te no apartamento... e deixa-te lá estar até teres notícias minhas. Compreendido?

 

- Sim. Sim, está claro que compreendo, mas, David...

 

- Faz o que te digo, Rosaleen sorriu-lhe. Mostrava-se afetuoso, tranqüilizador. Vai fazer a mala. Levar-te-ei no carro à estação. Podes apanhar o comboio das dez horas e trinta e dois minutos. Diz ao porteiro que não queres receber ninguém; que, se perguntarem por ti, diga que não estás em Londres. Dá-lhe uma libra. Compreendido? Que não permita que ninguém vá visitar-te a não ser eu.

 

- Oh! levou as mãos às faces e olhou-o com os olhos encantadores um pouco assustados.

 

- Não há perigo, Rosaleen... mas requer astúcia. Não estás muito habituada a este gênero de coisas, pois não? Eu estou de atalaia. Quero-te fora do caminho, para ter o pulso livre, nada mais.

 

- Não posso cá ficar, David?

 

- Não, evidentemente que não, Rosaleen. Vê se tens um pouco de juízo. Tenho de ter o pulso livre para me haver com esse tipo, seja ele quem for...

 

- Julgas que seja... que seja...

 

Hunter respondeu com ênfase: Neste momento, não julgo nada. A primeira coisa a fazer é pôr-te fora do caminho. Depois, poderei ver em que águas navegamos. Vamos... sê boa rapariga, não discutas.

 

Ela virou-se e saiu do quarto.

 

David franziu o sobrolho ao olhar de novo a carta que segurava na mão.

 

Nada comprometedora... cortês... bem redigida... deve significar qualquer coisa. Podia tratar-se de uma genuína solicitude numa situação desastrosa e podia ser também uma ameaça velada. Estudou demoradamente cada uma das frases... «Tenho notícias do capitão Robert Underhay...» «Acho melhor dirigir-me a si...» «Terei muito gosto em falar nesse assunto consigo...» «Mrs. Cloade». Com os diabos, não gostava daquelas aspas: “Mrs”. Cloade...»

 

Olhou para a assinatura. Enoch Arden. Alguma coisa lhe perpassou pelo espírito... alguma recordação poética... um verso.

 

Quando, nessa noite, David entrou no vestíbulo do «Stag» não havia ali, como habitualmente, ninguém. Uma porta à esquerda tinha o indicativo «Café» e uma outra à direita «Antecâmara». Mais ao longe uma outra porta estava marcada restritivamente «Reservado aos hóspedes». Um corredor à direita conduzia ao bar, de onde se escoava um leve murmúrio de vozes. Um pequeno cubículo com caixilhos de vidro tinha o letreiro «Escritório» e um botão de campainha colocado convenientemente ao lado da janela corrediça.

 

Às vezes, tal como David sabia por experiência, tinha de tocar-se quatro ou cinco vezes antes que alguém se dignasse atender. Com exceção feita para o curto período das horas da refeição, o vestíbulo do «Stag» estava sempre tão deserto como a ilha de Robinson Crusoe.

 

Dessa vez, a terceira campainhada de David trouxe Miss Beatrice Lippincott pelo corredor de acesso ao bar, ajeitando a cabeleira de um louro pompadour. Deslizou para dentro do cubículo de vidro e cumprimentou-o com um sorriso gracioso.

 

- Boa noite, Mr. Hunter. Está um tempo muito frio para esta época do ano, não acha?

 

- Sim... acho que sim. Está cá hospedado um tal Mr. Arden?

 

- Ora, deixe-me ver disse Miss Lippincott, preferindo fingir não o saber exatamente, procedimento esse que sempre adotava com o propósito de aumentar a importância do «Stag». Ah, sim, Mr. Enoch Arden. N.° 5. No primeiro andar. Dá logo com ele, Mr. Hunter. Suba as escadas e não percorra o corredor; vire logo à esquerda e desça três degraus.

 

Cumprindo essas complicadas diretivas, David bateu à porta do n.° 5 e uma voz respondeu: «Entre».

 

Entrou, fechando a porta atrás de si.

 

Ao sair do escritório, Beatrice chamou «Lily». Uma rapariga obesa, com um riso falso e uns pálidos olhos de groselha fervida respondeu ao apelo.

 

- Podes ficar aqui por um momento, Lily? Tenho de ir tratar de umas roupas.

 

- Sim, Miss Lippincott respondeu Lily com um risinho e acrescentou, suspirando profundamente. Mr. Hunter é sempre tão interessante, não acha?

 

- Oh, durante a guerra, vi muitos homens daquele tipo disse Miss Lippincott com um ar desiludido da vida jovens pilotos e outros elementos dos corpos de combate. Nunca se podia ter confiança nos seus cheques. Muitas vezes tinham uma tal maneira de conseguir o que queriam que, sem querermos, lhes fiávamos as coisas. Mas, já se sabe, sou exigente a esse respeito, Lily, do que eu gosto é de classe. Dêem-me sempre classe. Aquele que eu disser que é um cavalheiro, é um cavalheiro ainda que vá a guiar um trator.

 

E, com essa enigmática declaração, Beatrice deixou Lily e subiu as escadas.

 

No quarto n.° 5, David Hunter parou do lado de dentro da porta e olhou para o homem que se assinara Enoch Arden.

 

Um quarentão, bastante estragado, com aspecto de se ter degradado na escala social em resumo, um freguês difícil. Foi isto o que David resumiu. À parte isso. não era fácil de sondar-se; era reservado.

 

Arden cumprimentou:

 

- Viva... é Hunter? Belo. Sente-se. Que quer tomar? Whisky?

 

David notou que se pusera à vontade. Uma modesta fila de garrafas... um fogo a arder na grade da chaminé, naquela fria noite de Primavera. Roupas de corte estrangeiro, mas usadas. Tal como um inglês as usa. O homem devia ser também daquela idade...

 

- Obrigado disse David, tomarei um pouco de whisky.

 

- Mande parar!

 

- Pare. Pouca soda.

 

Assemelhavam-se um pouco a cães, manobrando para tomarem as suas posições... rodeando-se mutuamente, arqueando os dorsos, eriçando os pêlos, prontos a tornarem-se amigos ou a rosnarem e a morderem.

 

- À sua saúde! desejou Arden. À sua!

 

Pousaram os copos e descontraíram-se um pouco. O primeiro round acabara.

 

O homem que se intitulava Enoch Arden perguntou:

 

- Ficou surpreendido ao receber a minha carta?

 

- Sinceramente, respondeu David, não a compreendo.

 

- N-não... n-não... bem, talvez não.

 

- Sei que conheceu o primeiro marido de minha irmã. Robert Underhay disse David.

 

- Sim, conheci Robert muito bem. Arden sorria, soprando nuvens de fumo negligentemente para cima. Tão bem, talvez, como ninguém melhor pudesse conhecê-lo. Nunca o viu, pois não, Hunter?

 

- Não.

 

- Oh, talvez seja bom.

 

- Que quer dizer com isso? perguntou David vivamente.

 

Arden respondeu com simplicidade:

 

- Meu caro amigo, isso torna tudo mais fácil... É tudo. Peço-lhe desculpa de ter-lhe pedido que viesse aqui, mas achei realmente melhor fez uma pausa deixar Rosaleen fora de tudo. Não há precisão nenhuma de mortificá-la desnecessariamente.

 

- Importa-se de ser explícito?

 

- Evidentemente, evidentemente. Bem, já alguma vez suspeitou... como direi? de que havia algo de... bem... de suspeito... na morte de Underhay?

 

- Que diabo quer dizer?

 

- Bem, não sei se sabe que Underhay tinha umas idéias bastante peculiares. Pode ter sido cavalheirismo... também é possível que tenha sido por uma razão inteiramente diferente... mas admitamos que, há alguns anos, em certa altura, Underhay tenha tido certas vantagens em ser considerado morto. Sabia lidar com os nativos... sempre o soube. Não teve qualquer dificuldade em conseguir fazer circular uma história plausível, recheada de uma certa quantidade de pormenores corroborativos. Tudo quanto Underhay teve a fazer, foi surgir a umas mil milhas de distância... com outro nome.

 

- Parece-me uma suposição muitíssimo fantástica declarou Hunter.

 

- Sim? Realmente? Arden sorriu. Inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha no joelho de David. E se for verdade, Hunter? Hem? E se for verdade?

 

- Exigiria uma prova irrefutável.

 

- Sim? Bem, evidentemente que não existe qualquer prova superirrefutável. O próprio Underhay poderia aparecer aqui... em Warmsley Vale. Que tal acharia esta prova?

 

- Pelo menos, seria conclusiva respondeu David secamente.

 

- Oh, sim, conclusiva... mas um nadinha embaraçosa... para Mrs. Gordon Cloade, claro está. Porque, nesse caso, evidentemente que não seria Mrs. Gordon Cloade. Desastroso. Tem de admitir que seria bastante desastroso, não acha?

 

- Minha irmã, replicou, tornou a casar-se de perfeita boa fé.

 

- Certamente que sim, meu caro amigo. Certamente que sim. Não discuto isso nem por um segundo. Qualquer juiz diria o mesmo. Nenhuma censura poderia atingi-la.

 

- Juiz? exclamou David com vivacidade.

 

O outro explicou-se como que apologeticamente:

 

- Estava a pensar em bigamia.

 

- Aonde quer chegar exatamente? inquiriu David de modo selvagem.

 

- Não se excite, meu rapaz. Queremos apenas considerar juntos o caso e ver qual a melhor solução... melhor para sua irmã, claro está. Ninguém deseja uma quantidade de publicidade sórdida. Underhay... bem, Underhay foi sempre um tipo cavalheiresco. Arden fez uma pausa. Ainda o é...

 

- É? inquiriu David vivamente.

 

- Foi isso o que eu disse.

 

- Diz que Robert Underhay está vivo? Onde pára ele agora?

 

Arden inclinou-se para a frente... a sua voz tornou-se confidencial.

 

- Quer realmente sabê-lo, Hunter? Não seria preferível não o saber? Pelo que você e Rosaleen sabem, Underhay morreu em África. Muito bem e se Underhay está vivo, não sabe que a mulher voltou a casar, não faz a mínima idéia a esse respeito, porque, evidentemente, se ele o soubesse, teria aparecido... Rosaleen, bem vê, herdou do segundo marido uma enorme porção de dinheiro ora, já se sabe que não tem direito algum a qualquer parte desse dinheiro... Underhay é dotado de um sentido de honra muito sensível. Não gostaria que ela herdasse dinheiro sob falsas pretensões fez uma pausa. Mas é possível evidentemente que Underhay nada saiba do seu segundo casamento. Está em mau estado, coitado... em muito mau estado.

 

- Que quer dizer com muito mau estado?

 

Arden abanou a cabeça solenemente.

 

- Tem a saúde arruinada. Carece de vigilância médica... de tratamentos especiais... tudo infelizmente muito caro.

 

A última palavra foi proferida delicadamente como que com uma categoria muito própria. Era a palavra por que David esperara inconscientemente.

 

- Caro? inquiriu.

 

- Sim... infelizmente tudo custa dinheiro. Underhay, coitado, está praticamente na penúria acrescentou. Praticamente nada tem, mas o que o agüenta...

 

Por um momento, os olhos de David percorreram todo o quarto. Reparou na mochila, sobre uma cadeira. Não se via qualquer mala de viagem.

 

- Gostava de saber, disse David numa voz que não era agradável, se Robert Underhay é realmente o indivíduo cavalheiresco que descreve.

 

- Foi-o em tempos, assegurou-lhe o outro, mas a vida, compreende, é capaz de tornar um homem cínico. Fez uma pausa e acrescentou baixinho. Gordon Cloade era realmente um homem incrivelmente rico. O espetáculo de muita riqueza desperta os mais baixos instintos de uma pessoa.

 

David Hunter levantou-se.

 

-Tenho uma resposta a dar-lhe. Vá para o Inferno.

 

Sem se perturbar, Arden respondeu, sorrindo: Sim, já esperava que dissesse isso.

 

- Você é um maldito chantagista, sem tirar nem pôr.

 

- «Publique-o e vá para o Inferno»? Um sentimento admirável. Mas você não gostaria que eu o «publicasse». Não quer dizer que o faça. Se não quiser comprar, tenho outra porta aonde ir bater.

 

- Que quer dizer?

 

- Os Cloades. Suponha que vou procurá-los. «Desculpem-me, mas acaso estariam interessados em saber que o falecido Robert Underhay está vivo?» Ora, homem, a notícia havia de fazê-los pular.

 

David retorquiu com desdém:

 

- Não conseguiria nada deles. Estão todos arruinados.

 

- Ah, mas existem combinações práticas. No dia em que se provar que Underhay está vivo, que Mrs. Gordon Cloade continua a ser Mrs. Robert Underhay e que, consequentemente, o testamento de Gordon Cloade, feito antes do seu casamento, continua válido...

 

Durante um momento, David ficou calado e depois perguntou rudemente:

 

- Quanto?

 

A resposta chegou no mesmo modo rude: Vinte mil.

 

- Está fora de questão! Minha irmã não pode tocar no capital, tem apenas uma renda vitalícia.

 

- Então, dez mil. Pode consegui-los facilmente. Tem jóias, não tem?

 

David continuou calado e depois, inesperadamente, respondeu:

 

- Está bem.

 

Por um momento, o outro pareceu rendido. Era como se a facilidade da vitória o tivesse surpreendido.

 

- Não aceito cheques especificou. Têm de ser pagas em notas de banco!

 

- Terá de dar-nos tempo, para arranjarmos o dinheiro...

 

- Dou-lhes quarenta e oito horas...

 

- Isso quer dizer até terça-feira.

 

- Exatamente. Trar-me-á o dinheiro aqui e acrescentou, antes que David pudesse falar. Não irei ter consigo a nenhuma mata solitária... nem à margem deserta de um rio; portanto, pode já pôr essas idéias de parte. Trar-me-á o dinheiro aqui... ao «Stag»... às nove horas da noite da próxima terça-feira.

 

- Um tipo desconfiado, hem?

 

- Conheço-me e conheço o seu gênero.

 

- Então, seja como disse.

 

David saiu do quarto e desceu as escadas. O seu rosto estava lívido de raiva.

 

Beatrice Lippincott saiu do quarto marcado com o n.° 4. Havia uma porta de comunicação entre o n.° 4 e o n.° 5, embora esse fato dificilmente pudesse ser apercebido por um ocupante do n.° 5, visto existir neste um guarda-fatos que a encobria.

 

Miss Lippincott tinha as faces coradas e os olhos iluminados por uma excitação agradável. Com mão trêmula alisou para trás a cabeleira pompadour.

 

Shepherd’s Court, no bairro de Mayfair, era um enorme edifício de apartamentos luxuosos. Mantido ileso, apesar dos estragos causados pela ação inimiga, conseguira, apesar de tudo, conservar o seu cunho de antes da guerra. Contudo, o serviço não era tão bom como o desses tempos! Onde houvera dois porteiros fardados, havia agora apenas um. O restaurante continuava a fornecer todas as refeições, mas, com exceção do pequeno-almoço, não as serviam nos apartamentos.

 

O apartamento alugado por Mrs. Gordon Cloade ficava no terceiro andar. Compunha-se de uma sala de visitas com um bar para cocktails, de dois quartos de cama com armários de parede e de uma casa de banho estupendamente apetrechada, reluzente de azulejos e de cromados.

 

Na sala de visitas, David Hunter andava a passadas largas de um lado para o outro, enquanto Rosaleen, sentada numa enorme poltrona estofada, o observava. Tinha um aspecto pálido e assustado.

 

- Chantagem! resmungou por entre dentes. Chantagem! Meu Deus, serei do tipo que permite que lhe façam chantagem?

 

Ela abanou a cabeça, confusa, perturbada.

 

- Se eu soubesse dizia David. Se simplesmente eu soubesse!

 

Rosaleen soltou um pequeno soluço. Ele prosseguiu:

 

- É trabalhar no escuro... trabalhar às cegas... virou-se subitamente.

 

- Levaste essas esmeraldas à Bond Street, ao velho Greatorex?

 

- Sim.

 

- Quanto?

 

A voz de Rosaleen tremia ao responder:

 

- Quatro mil. Quatro mil libras. Disse-me que, se não lhas vendesse, deviam ser resseguradas.

 

- Sim... as pedras preciosas duplicaram de valor. Oh, sim, podemos conseguir o dinheiro. Mas ainda que assim seja, isso é apenas o princípio... significa que seremos sugados até à última... sugados, Rosaleen, completamente sugados!

 

Ela gritou:

 

- Oh, partamos de Inglaterra... fujamos... não poderíamos ir para a Irlanda... para a América... para qualquer parte?

 

Ele virou-se e olhou-a.

 

- Não tens espírito combativo, pois não, Rosaleen? Largar e fugir é o teu mote.

 

Ela gemeu:

 

- Nós não temos razão... tudo isto foi mal feito... muito mal feito.

 

- Não me venhas agora com piedades! Não o suporto. Estávamos bem instalados na vida, Rosaleen. Pela primeira vez, desde que nasci, estava bem instalado na vida... e não vou deixar escapar tudo isso, estás a ouvir? Se simplesmente não estivesse a trabalhar às cegas! Compreendes, não é verdade, que tudo deve ser bluff... apenas bluff? Underhay está provavelmente bem enterrado em África, como sempre pensamos que estivesse.

 

Ela estremeceu.

 

- Não digas isso, David. Assustas-me.

 

Ele olhou-a, viu-lhe o pânico no rosto e subitamente mudou de atitude. Aproximou-se dela, sentou-se a seu lado e agarrou-lhe nas mãos, que estavam geladas.

 

- Não tens que preocupar-te disse-lhe. Deixa o caso comigo... e procede como eu te disser. Podes fazê-lo, não é verdade? Procede exatamente como eu te disser.

 

- Sempre assim faço, David. Ele riu-se.

 

- Sim, sempre assim fazes. Bem, põe de parte esses medos. Acharei maneira de alvejar esse Mr. Enoch Arden.

 

- Não havia um poema, David... qualquer coisa a respeito de um homem que regressava...

 

- Sim interrompeu-a. É isso exatamente o que me preocupa... Mas deixa estar que irei ao âmago das coisas. -

 

- É na terça-feira, à noite... que lhe levas o dinheiro?

 

Ele confirmou com um gesto.

 

- Cinco mil. Dir-lhe-ei que não posso arranjar o resto de repente. Mas tenho de evitar que vá aos Cloades. Julgo que foi apenas uma ameaça, mas não tenho a certeza.

 

Calou-se e os olhos tornaram-se-lhe sonhadores, distantes. Por trás deles, trabalhava o espírito, considerando e rejeitando possibilidades.

 

Depois riu-se. Era um riso alegre e descuidado. Havia homens, já mortos, que o teriam reconhecido...

 

Era o riso de um homem que entrasse em ação numa empresa perigosa e arriscada. Havia nele prazer e desafio.

 

- Confio em ti, Rosaleen. Graças a Deus, posso confiar inteiramente em ti!

 

- Confiar em mim? ela ergueu uns enormes olhos inquiridores. Para fazer o quê?

 

Ele voltou a sorrir.

 

- Para fazeres exatamente o que eu te disser. É esse o segredo de uma operação feliz, Rosaleen.

 

Riu-se e acrescentou:

 

- Operação Enoch Arden.

 

Rowley abriu o enorme sobrescrito cor de malva, sentindo alguma surpresa. Quem diabo poderia escrever-lhe num artigo daquele gênero e, fosse quem fosse, como conseguira arranjá-lo? Esses artigos de fantasia tinham certamente desaparecido durante a guerra.

 

Leu:

 

Caro, Mr. Rowley:

 

Espero que não tome a mal esta minha liberdade em escrever-lhe desta forma, mas, se me permite, devo dizer-lhe que se passam fatos de que deve ter conhecimento.

 

Reparou no sublinhado com um olhar intrigado.

 

Vem isto em continuação da nossa conversa da outra noite em que veio cá informar-se a respeito de uma certa pessoa. Se pudesse vir ao «Stag», teria muito gosto em contar-lhe tudo quanto sei a esse respeito. Todos aqui compreendemos a vergonha terrível que foi ter o seu tio morrido e ter levado o dinheiro o caminho que levou. Esperando que não se zangará comigo e crendo realmente que deve saber o que se passa,

 

Sua

 

Beatrice Lippincott

 

Rowley fitou essa missiva, pasmado, com o espírito perdido em conjecturas. De que diabo se trataria? A boa Bee. Conhecia Beatrice desde sempre. Comprara tabaco na loja do pai e passara dias com ela atrás do balcão. Fora uma bonita rapariga. Lembrava-se de, quando criança, ter ouvido uns boatos a seu respeito, durante um tempo em que estivera ausente de Warmsley Vale. Ausentara-se durante cerca de um ano e toda a gente dissera que saíra da terra para dar à luz uma criança ilegítima. Talvez sim, talvez não. Mas, em todo o caso, agora era certamente muito respeitável e polida. Uma profusão de tagarelice e de risinhos, mas uma correção quase laboriosa.

 

Rowley ergueu o olhar para o relógio. Iria imediatamente ao «Stag». Para o diabo com todos aqueles impressos. Queria ouvir o que Beatrice estava tão ansiosa por contar-lhe.

 

Passava um pouco das oito horas quando empurrou a porta do salão do bar. “Tiveram lugar os cumprimentos habituais, acenos de cabeça, «Boa noite, sir”. Rowley aproximou-se do bar e pediu um Guiness. Beatrice dirigiu-se-lhe imediatamente.

 

- Que prazer em vê-lo, Mr. Rowley.

 

- Boa noite, Beatrice. Obrigado pelo seu bilhete. Ela lançou-lhe um rápido olhar.

 

- Já lhe dou atenção, Mr. Rowley.

 

Ele baixou a cabeça em sinal de assentimento... e bebeu pensativamente o seu copo, observando ao mesmo tempo Beatrice, que acabara de servir um freguês.

 

Gritou por cima do ombro de Rowley e, pouco depois, apareceu a pequena Lily, que a substituiu. Beatrice murmurou:

 

- Quer vir comigo, Mr. Rowley?

 

Conduziu-o através de um corredor e transpuseram uma porta marcada «Privado». O aposento que ficava do lado interior desta era muito pequeno e estava atravancado com poltronas de pelúcia, um estrondoso aparelho de rádio, uma profusão de adornos de porcelana e um boneco pierrot, de aspecto um tanto danificado, recostado no espaldar de uma cadeira.

 

Beatrice Lippincott apagou o aparelho de rádio e indicou-lhe uma cadeira de pelúcia.

 

- Dá-me sempre muito gosto quando cá vem, Mr. Rowley, e espero que não tenha levado a mal que lhe tenha escrito... mas tenho andado a refletir nisso durante todo este fim-de-semana... e acabei por chegar à conclusão de que o senhor devia saber o que se passa.

 

Parecia feliz e importante, nitidamente satisfeita da sua pessoa.

 

Rowley inquiriu com moderada curiosidade:

 

- O que se passa?

 

- Bem, Mr. Rowley, conhece aquele cavalheiro que cá está hospedado... Mr. Arden, aquele por quem cá veio fazer perguntas.

 

- Sim?

 

- Foi exatamente na noite seguinte. Mr. Hunter veio cá perguntar por ele.

 

- Mr. Hunter?

 

Rowley endireitou-se, cheio de interesse.

 

- Sim, Mr. Rowley. «N.° 5», disse eu, e Mr. Hunter baixou a cabeça e subiu. Devo confessar que fiquei intrigada, pois Mr. Arden não nos tinha dito que conhecia alguém de Warmsley Vale e eu estava convencida de que era aqui um desconhecido e que não conhecia ninguém da terra. Mr. Hunter parecia muito mal disposto, como se alguma coisa tivesse acontecido que o transtornasse; mas evidentemente que naquela altura, não liguei.

 

Fez uma pausa para tomar fôlego.

 

Rowley ficou calado, à espera que ela continuasse. Nunca apressava as pessoas. Se estas gostavam de levar o seu tempo, ele não se importava com isso.

 

Beatrice continuou com dignidade:

 

- Foi um pouco depois que tive ocasião de subir ao n.° 4 para verificar as toalhas e a roupa da cama. Fica ao lado do quarto n.° 5 e, por acaso, existe uma porta de comunicação mas do n.°5 não se vê porque fica oculta por um grande guarda-fatos e, portanto, ali não sabem da sua existência. Evidentemente que está sempre fechada, mas, por acaso, dessa vez, estava um nadinha entreaberta... embora eu não faça a mínima idéia de quem a abriu.

 

Ainda desta vez, Rowley não fez qualquer comentário, limitando-se a acenar compreensivamente com a cabeça.

 

Intimamente, estava certo de que fora Beatrice quem a abrira. Levada pela curiosidade, subira propositadamente ao n.° 4 para descobrir o que pudesse.

 

- E aqui tem, Mr. Rowley, como não pude deixar de ouvir o que se passava.

 

Ouviu, com um rosto impassível, quase asmático, o relato sucinto da conversa que Beatrice surpreendera. Depois de acabado, ela ficou à espera, ansiosa.

 

Decorreu um longo momento antes que Rowley despertasse do seu êxtase. Depois levantou-se.

 

- Obrigado, Beatrice disse ele. Muito obrigado. E, dito isso, saiu do quarto. Beatrice sentiu-se muito desiludida. Achou realmente, disse com os seus botões, que Mr. Rowley devia ter dito alguma coisa.

 

Quando Rowley saiu do «Stag», os seus passos levaram-no automaticamente para casa, mas, depois de ter percorrido algumas centenas de metros, parou e retrocedeu.

 

O seu espírito apreendia lentamente as coisas e o primeiro espanto que lhe haviam causado as revelações de Beatrice só agora começava a dar lugar a uma verdadeira apreciação do seu significado. Se a versão do que surpreendera era correta e não duvidava de que substancialmente assim fosse então criara-se uma situação que dizia respeito intimamente a todos os membros da família Cloade. A pessoa mais indicada para tratar do caso, era obviamente seu tio Jeremy. Como solicitador, Jeremy Cloade saberia qual a melhor maneira de utilizar essa surpreendente informação e exatamente que passos dar.

 

Embora Rowley tivesse gostado de tratar diretamente o caso, compreendeu um tanto de má vontade que seria muito melhor confiar o assunto a um advogado sagaz e experiente. Quanto mais cedo Jeremy fosse posto ao corrente dessa informação, tanto melhor e, consequentemente, Rowley dirigiu os seus passos para a casa de Jeremy, na High Street.

 

A criadita que lhe abriu a porta informou-o de que Mr. e Mrs. Cloade estavam ainda à mesa. Prontificou-se a levá-lo à casa de jantar, mas Rowley recusou e disse que esperaria no gabinete de Jeremy, até que acabassem. Não estava particularmente interessado em incluir Frances no colóquio. Na realidade, quanto menos pessoas estivessem a par do assunto tanto melhor.

 

Percorreu continuamente de um lado para o outro o gabinete de Jeremy. Sobre o tampo da secretária estava uma caixa de latão rotulada Sir William Jessamy (Falecido). As prateleiras continham uma coleção de tomos de legislatura. Havia uma fotografia antiga de Frances em fato de noite e uma do pai, Lorde Edward Trenton, em trajo de cavaleiro. Sobre a secretária via-se a fotografia de um rapaz fardado o filho de Jeremy, Anthony, morto na guerra.

 

Rowley recuou e afastou-se. Sentou-se numa cadeira e concentrou o olhar na fotografia de Lorde Edward Trenton.

 

Na casa de jantar, Frances disse ao marido:

 

- Que quererá Rowley?

 

Jeremy respondeu com enfado: Provavelmente, está desesperado com alguma medida do Governo. Nenhum lavrador compreende mais do que a quarta parte desses impressos que têm de preencher. Rowley é um tipo consciencioso. Anda preocupado.

 

- É simpático disse Frances mas terrivelmente lento. Sabes, tenho um pressentimento de que as coisas entre ele e Lynn não correm bem.

 

Jeremy murmurou distraidamente:

 

- Lynn... ah, sim, certamente. Perdoa-me, eu... eu não sou capaz de concentrar-me. A tensão...

 

Frances interveio pressurosamente:

 

- Não penses nisso. Tudo correrá bem, vais ver.

 

- Às vezes, assustas-me, Frances. És tão terrivelmente destemida! Não compreendes...

 

- Compreendo tudo e não tenho medo. Sabes, na realidade, Jeremy, até me acho um pouco divertida...

 

- É isso exatamente, minha querida confessou Jeremy, que me põe assim tão ansioso.

 

Ela sorriu e disse-lhe:

 

- Vamos lá. Não deves fazer esperar muito tempo esse bucólico rapaz. Vai ajudá-lo a preencher o impresso 1199 ou lá o que é.

 

Mas, quando iam a sair da casa de jantar, a porta da rua fechou-se com estrondo. Edna veio dizer-lhes que Mr. Rowley declarara que não esperaria mais e que não se tratava de nada realmente importante.

 

Na tarde dessa terça-feira, Lynn Marchmont fora dar um longo passeio a pé. Consciente de um crescente desassossego e de um íntimo descontentamento consigo própria, sentiu necessidade de ponderar os fatos.

 

Havia já alguns dias que não via Rowley. Depois daquela separação um tanto tempestuosa, na manhã em que fora pedir-lhe quinhentas libras emprestadas, tinham voltado a encontrar-se com a mesma assiduidade. Lynn compreendia que o seu pedido fora excessivo e que Rowley tivera razão em não aceder. Contudo, a moderação nunca fora uma qualidade própria dos namorados. Exteriormente as coisas entre ambos continuavam na mesma, mas intimamente Lynn não tinha a mesma certeza. Achara os últimos dias intoleravelmente monótonos e, contudo, custava-lhe a admitir que a súbita partida para Londres de David Hunter com a irmã pudesse ter qualquer relação com essa monotonia. Admitia tristemente que David era uma pessoa atraente...

 

Quanto aos seus parentes, naquele momento, achava-os a todos dolorosamente suportáveis. Sua mãe andava na melhor das disposições e, ao almoço desse dia, aborrecera-a anunciando-lhe o propósito de arranjar um ajudante de jardineiro.

 

- Na verdade, o velho Tom não pode agüentar sozinho o trabalho do jardim.

 

- Mas, querida, não podemos permitir-nos isso! exclamara Lynn.

 

-Tolice! Estou certa, Lynn, de que Gordon ficaria terrivelmente desolado se visse como o jardim tem sido desprezado. Era sempre tão cuidadoso com a sua ornamentação, com o corte da relva e o bom estado dos caminhos... e o estado em que ele está agora... Tenho a certeza de que Gordon havia de querer arranjá-lo.

 

- Ainda que para isso tenhamos de pedir dinheiro emprestado à sua viúva.

 

- Já te disse, Lynn, que Rosaleen não podia ter sido mais gentil. Estou realmente convencida de que ela compreendeu o meu ponto de vista. Depois de pagas todas as contas, ainda fiquei com um belo saldo no banco. Além disso, estou convencida de que um ajudante de jardineiro seria uma economia. Pensa nas hortaliças suplementares que poderíamos cultivar.

 

- Poderíamos comprar uma quantidade de hortaliças suplementares por muito menos do que esse acréscimo de três libras por semana.

 

-Talvez pudéssemos arranjar alguém por menos dinheiro, querida. Há agora homens que estão a ser desmobilizados e que andam à procura de emprego. O jornal assim o diz.

 

Lynn observou secamente:

 

- Duvido que os encontre em Warmsley Vale... ou em Warmsley Heath.

 

Contudo, embora o assunto tivesse ficado nesses termos, Lynn sentia-se mortificada pela tendência de sua mãe para considerar Rosaleen uma fonte regular de recurso. Reavivava-lhe a recordação das palavras desdenhosas de David.

 

Sentindo-se, por conseguinte, desgostosa e enfadada, saiu a arejar a má disposição.

 

Esta não melhorou com um encontro com a tia Kathie, junto à estação dos correios. A tia Kathie mostrava-se excitada.

 

- Creio, querida Lynn, que, em breve, receberemos boas notícias.

 

- Que quer dizer, tia Kathie?

 

Mrs. Cloade meneou a cabeça, sorriu e pareceu discreta.

 

- Tenho recebido as comunicações mais espantosas que podes calcular... realmente espantosas. Um desfecho feliz para todas as nossas ralações. Tive uma contrariedade, mas desde então para cá, tenho recebido a mensagem «Tenta, tenta várias vezes. Se, a princípio, não fores bem sucedida, etc...» Não trairei quaisquer segredos, querida Lynn, e a coisa que menos desejo fazer é despertar prematuramente falsas esperanças, mas tenho a maior fé em que as coisas acabarão todas muito bem, dentro em breve. E muito a tempo também. Estou verdadeiramente preocupada com teu tio. Trabalhou excessivamente durante a guerra. Precisa realmente de reformar-se e dedicar-se aos seus estudos especializados... mas evidentemente que não poderá fazê-lo sem um rendimento adequado. E, às vezes, tem uns ataques nervosos tão estranhos que me sinto realmente preocupada com ele. Anda de fato muito estranho.

 

Lynn meneou a cabeça pensativamente. Não lhe passara despercebida a mudança operada em Lionel Cloade nem tão-pouco as suas estranhas mudanças de disposição. Suspeitava de que ocasionalmente recorresse a estupefacientes para se estimular e perguntava-se se não seria, em certa escala, um viciado. Isso explicaria a sua irritabilidade extremamente nervosa. Perguntava-se até que ponto iria o conhecimento ou as suspeitas da tia Kathie. Esta, pensava Lynn, não era tão tola como parecia.

 

Ao descer a High Street, viu de relance o tio Jeremy a entrar em casa. Lynn achou que, durante essas três últimas semanas, o seu aspecto parecia muito mais velho.

 

Apressou o passo. Queria sair de Warmsley Vale, subir aos montes, alcançar os espaços desafogados. Pouco tempo depois de ter caminhado com passo rápido, sentiu-se melhor. Percorreria umas boas seis ou sete milhas para meditar seriamente nos fatos. Durante toda a vida, fora uma pessoa resoluta e esclarecida. Sempre soubera o que queria e o que não queria. Nunca antes sentira prazer em andar ao acaso...

 

Sim, era isso exatamente! Andar ao acaso! Um método de vida, à ventura, sem desígnio, e por que sempre ansiara desde que fora desmobilizada. Sentiu-se invadida por uma vaga de nostalgia ao lembrar-se desses dias da guerra. Dias em que os deveres estavam claramente definidos, em que a vida estava traçada e ordenada em que fora aliviada da responsabilidade das decisões individuais. Mas, todavia, ao formular essa idéia, sentiu-se horrorizada consigo própria. Seria isso realmente o que as pessoas sentiriam secretamente em toda a parte? Seria isso o que a guerra fizera ultimamente? Não eram os perigos físicos as minas no mar, as bombas lançadas do ar, o ping seco de uma bala passando por uma vereda deserta. Era sim o perigo espiritual de saber como a vida era muito mais fácil quando se deixava de pensar... Ela, Lynn Marchmont, já não era a rapariga inteligente, decidida e esclarecida que partira. A sua inteligência fora especializada, canalizada em sentidos bem definidos. Agora, de novo senhora de si e da sua vida, sentia-se aterrada com a relutância do seu espírito em agarrar-se e prender-se aos seus problemas pessoais.

 

Com um súbito sorriso forçado, Lynn pensou que agora as mulheres tinham de planear, de pensar e de improvisar, de utilizar a mínima parcela de engenho de que eram dotadas e de desenvolver uma habilidade que ignoravam possuir! Somente essas podiam manter-se direitas, sem o auxílio de muletas, ser responsáveis por si próprias e por outros. E ela, Lynn Marchmont, bem educada, inteligente, que desempenhara um lugar que requerera cérebro e intensa aplicação, achava-se agora à deriva, incapaz de uma resolução... sim, essa palavra odiosa, ao acaso...

 

As pessoas que tinham ficado na pátria, Rowley por exemplo...

 

Mas subitamente, o espírito de Lynn abandonou a generalidade vaga para considerar o assunto pessoal imediato, ela e Rowley. O problema, o verdadeiro problema era esse. Queria realmente casar com Rowley?

 

Lentamente, as sombras foram-se espraiando, trazendo o crepúsculo e a escuridão. Lynn estava sentada, imóvel, com o queixo metido entre as mãos, na orla de um pequeno souto, na encosta da colina, a contemplar o vale estendido a seus pés. Perdera a noção do tempo, mas apercebia-se da sua enorme relutância em regressar a White House. A seus pés, ao longe e para a esquerda, ficava Long Willows. Long Willows, o seu lar, se casasse com Rowley.

 

Se! Lá voltava ao mesmo... se... se... se!

 

Um pássaro fugiu da mata, soltando um grito assustado, semelhante ao de uma criança zangada. Uma nuvem de fumo que se soltava de um comboio subia para o céu, formando um gigantesco ponto de interrogação.

 

Devo casar com Rowley? Quero casar com Rowley? Já alguma vez quis casar com Rowley? Seria capaz de não casar com Rowley?

 

O comboio afastou-se subindo o vale, e o seu fumo agitou-se e desvaneceu-se; mas o mesmo não aconteceu no espírito de Lynn ao ponto de interrogação.

 

Antes de se ter ausentado da pátria, amara Rowley. «Mas voltei mudada», pensava. «Não sou a mesma Lynn.»

 

Um verso ocorreu-lhe ao espírito.

 

A vida, o mundo e eu própria estamos mudados...

 

E Rowley? Rowley não mudara.

 

Sim, era isso. Rowley não mudara. Rowley estava tal como ela o deixara, quatro anos antes.

 

Queria casar com Rowley? Se não queria, que queria então?

 

Ouviu um estalido de ramos partidos na mata e uma voz de homem praguejar, enquanto abria caminho.

 

- David! exclamou.

 

- Lynn! pareceu espantado, ao aproximar-se, fazendo estalar pequenos rebentos. - Que diabo está aqui a fazer?

 

Correra e estava um pouco ofegante.

 

- Não sei. Estava a pensar... aqui, sentada, a pensar... riu-se, embaraçadamente. Creio... que é muito tarde.

 

- Não faz idéia das horas?

 

Olhou vagamente para o relógio de pulso e respondeu:

 

- Está outra vez parado. Eu desarranjo os relógios.

 

- Não só os relógios! declarou David. Você tem eletricidade dentro de si. Vitalidade. Vida!

 

Aproximou-se de Lynn e esta, levemente perturbada, levantou-se apressadamente.

 

- Está a fazer-se noite. Tenho de ir já para casa. Que horas são, David?

 

- Nove e um quarto. Terei de correr como uma lebre. Quero apanhar o comboio das nove e vinte para Londres.

 

- Não sabia que tinha cá voltado!

 

- Fui buscar umas coisas a Furrowbank mas não posso perder este comboio. Rosaleen está sozinha no apartamento... e tem um medo enorme de ficar sozinha de noite, em Londres.

 

- Num apartamento de hotel? perguntou Lynn, com voz trocista.

 

David respondeu desabridamente:

 

- O medo não conhece a lógica. Quando se foi vítima de uma explosão...

 

Lynn sentiu-se subitamente envergonhada... contrita e desculpou-se: Perdão, tinha-me esquecido.

 

Com súbita amargura, David gritou: Sim, tudo se esquece depressa! De regresso à tranqüilidade! De regresso ao sítio em que estávamos quando eclodiu a manifestação sangrenta! Arrastamo-nos para dentro das nossas choças carunchosas e voltamos a sentir-nos seguros. Você, também, Lynn... você é tal e qual como os outros.

 

Ela gritou:

 

- Não. Não sou, David. Estava agora exatamente... a pensar...

 

- Em mim?

 

A sua ânsia sobressaltou-a. Tomou-a nos braços e segurou-a de encontro ao peito enquanto que os seus lábios, ardentes e sequiosos, beijavam os dela.

 

- Rowley Cloade? perguntou-lhe. Esse imbecil? Meu Deus, Lynn, pertences-me.

 

Depois, tão subitamente como a agarrara, largou-a, quase a repelindo.

 

- Vou perder o comboio. Correu pela encosta abaixo.

 

- David...

 

Virou a cabeça e gritou-lhe:

 

- Telefonarei quando chegar a Londres...

 

Ela ficou a vê-lo correr através da escuridão que se adensava, ágil, atlético, cheio de garbo natural.

 

Depois, emocionada, com o coração estranhamente excitado, com o espírito num estado caótico, encaminhou-se lentamente para casa.

 

Hesitou um pouco antes de entrar. Retraía-se antecipadamente perante o afetuoso acolhimento que a mãe lhe faria, perante as suas perguntas...

 

Sua mãe pedira quinhentas libras emprestadas a pessoas que ela detestava...

 

«Não temos o direito de detestar Rosaleen e David», pensou Lynn, enquanto se dirigia sem fazer barulho para o andar superior. «Somos exatamente iguais. Faríamos qualquer coisa... qualquer coisa por dinheiro.»

 

Parou no quarto de cama, contemplando curiosamente a imagem do seu rosto refletido no espelho... Era, pensou, o rosto de uma desconhecida...

 

E depois, de repente, sentiu-se dominada pela cólera.

 

«Se Rowley me amasse realmente», pensou, «teria arranjado essas quinhentas libras de qualquer maneira. Sim... teria. Não teria consentido que eu ficasse humilhada tendo de aceitá-las de David... David...»

 

David dissera que lhe telefonaria logo que chegasse a Londres.

 

Desceu as escadas, caminhando como que num sonho...

 

Os sonhos, pensava, podiam ser perigosos...

 

- Ah, cá estás, Lynn a voz de Adela soou viva e aliviada. Não te ouvi entrar, querida. Chegaste há muito tempo?

 

- Sim, há imenso. Estava lá em cima.

 

- Peço que me previnas quando chegas, Lynn. Fico sempre nervosa quando andas sozinha lá por fora, depois do anoitecer.

 

- Francamente, Mamã, não achas que estou já em boa idade de tomar conta de mim?

 

- Ora, ultimamente, os jornais têm relatado coisas terríveis. Todos esses soldados desmobilizados... atacam raparigas.

 

- Suponho que as raparigas não desejam outra coisa.

 

Sorriu... de um modo um tanto forçado. Sim, as raparigas procuravam o perigo... No fim de contas, quem se preocupava realmente com segurança?...

 

- Lynn, querida, estás a ouvir-me?

 

Lynn despertou das suas divagações com um sobressalto.

 

A mãe estava a falar.

 

- Que disseste, Mamã?

 

- Estava a falar das tuas damas de honor. Suponho que poderão apresentar os seus cupões. Tens sorte em teres todos os que recebeste depois de teres sido desmobilizada. Tenho, na realidade, muita pena das raparigas que hoje em dia se casam dispondo apenas dos cupões vulgares. Quero dizer, não podem comprar nada de novo. De roupa exterior, está claro, pois da qualidade que a roupa interior é, nestes tempos, está sempre a ser necessário comprar mais. Sim, Lynn, tens realmente muita sorte.

 

- Oh, muita sorte.

 

Andava à volta do quarto, ao acaso, pegando em coisas para largá-las logo em seguida.

 

-Tens de estar assim tão terrivelmente desassossegada, querida? Pões-me sobressaltada!

 

- Desculpa, Mamã!

 

- Passa-se alguma coisa?

 

- Que coisa havia de passar-se? retorquiu Lynn com vivacidade.

 

- Bem, não precisas de zangar-te. Mas, quanto às damas de honor, acho que devias convidar a Macrae. Não te esqueças que a mãe dela foi a minha melhor amiga e estou certa de que se magoará se...

 

- Detesto a Joan Macrae e sempre a detestei.

 

- Bem sei, querida, mas que importância tem isso realmente? Tenho a certeza de que a Marjorie ficaria magoada...

 

- Mas o casamento é meu, Mamã, não é verdade?

 

- Sim, bem sei, Lynn, mas...

 

- Se é que haverá casamento!

 

Não quisera dizer aquilo. As palavras saltaram-lhe da boca sem ter pensado nelas. Gostaria de retê-las, mas era já demasiado tarde. Mrs. Marchmont olhava-a, pasmada, alarmada.

 

- Lynn, querida, que queres dizer?

 

- Oh, nada, Mamã.

 

- Tu e Rowley zangaram-se?

 

- Não, certamente que não. Não te inquietes, Mamã, tudo corre bem.

 

Mas Adela observava a filha, sentindo-se realmente alarmada e sensível à perturbação que se escudava por trás da expressão carrancuda de Lynn.

 

- Sempre pensei que ficarias com um futuro tão seguro, casando-te com Rowley disse lastimosamente.

 

- Que importa estar-se seguro? inquiriu Lynn desdenhosamente. Virou-se depois vivamente e inquiriu. Foi o telefone?

 

- Não. Porquê? Esperas alguma chamada?

 

Lynn sacudiu negativamente a cabeça. Era humilhante estar à espera que o telefone tocasse. David prometera telefonar-lhe nessa noite: Fá-lo-ia. «És louca», disse a si própria. «Louca.»

 

Por que a atraía tanto aquele homem? A recordação do seu rosto moreno e sombrio apresentou-se-lhe ao espírito. Procurou bani-la, procurou substituí-la pelo semblante aberto e agradável de Rowley. O seu sorriso estúpido, o seu olhar afetuoso. Mas Rowley, perguntou-se, preocupar-se-ia realmente com ela? Certamente que, se se tivesse preocupado com ela, tê-la-ia compreendido nesse dia em que o procurara e lhe pedira quinhentas libras emprestadas. Tê-la-ia compreendido em vez de ser tão desesperadamente razoável e prático. Casar com Rowley, viver na granja, nunca mais partir, nunca mais ver céus desconhecidos, aspirar aromas exóticos... nunca mais ser livre...

 

O telefone tocou estridentemente. Lynn inspirou fundo, atravessou o vestíbulo e pegou no auscultador.

 

Com o choque de um murro, a voz da tia Kathie chegou-lhe debilmente através do fio.

 

- Lynn? És tu? Oh, estou tão contente. Sabes, receio ter feito uma confusão... acerca da reunião no Instituto.

 

A voz fina e palpitante prosseguiu. Lynn ouvia, interpolava comentários, proferia palavras tranqüilizadoras, recebia agradecimentos.

 

- Oh, Lynn, é um consolo tão grande seres assim tão gentil e prática. Não consigo compreender realmente como faço estas confusões.

 

Lynn também não conseguia compreender. A capacidade da tia Kathie para confundir as coisas mais simples chegava a ser praticamente genial.

 

- Mas sempre te digo terminou a tia Kathie que, de repente, tudo nos corre mal ao mesmo tempo. O nosso telefone está avariado e tive de vir telefonar a uma cabina e agora estou aqui sem ter mais moedas para falar... tenho de ir pedir...

 

Por fim, deixou de ouvir-se, Lynn pousou o auscultador no seu lugar e voltou para a sala de estar. Adela Marchmont, alerta, inquiriu:

 

- Era...e fez uma pausa.

 

- A tia Kathie apressou-se Lynn a responder.

 

- Que queria ela?

 

- Oh, foi simplesmente uma das suas confusões.

 

Lynn voltou a sentar-se com um livro na mão e deitando um olhar ao relógio. Sim... fora demasiado cedo. Não era de esperar que lhe telefonasse tão cedo. Às onze horas e cinco minutos, o telefone voltou a tocar. Foi lentamente atendê-lo. A essa hora, ainda não podia ser... provavelmente, era outra vez a tia Kathie...

 

Mas não.

 

- Warmsley Vale 34? Miss Lynn Marchmont pode atender uma chamada particular de Londres?

 

O coração pulsou-lhe violentamente.

 

- Fala Miss Lynn Marchmont.

 

- Faça o favor de atender.

 

Esperou... ruídos confusos... depois, silêncio. O serviço telefônico estava cada vez pior... Esperou. Por fim, apertou encolerizadamente o auscultador. Uma outra voz feminina, indiferente, fria, desinteressada:

 

- Desligue, por favor. Voltarei a chamar. Desligou, voltou para a sala de estar e o telefone tornou a tocar quando já tinha a mão na porta. Apressou-se a atendê-lo.

 

- Está?

 

Uma voz de homem perguntou:

 

- Warmsley 34? Uma chamada particular de Londres para Miss Lynn Marchmont.

 

- É a própria.

 

- Um momento, por favor depois, debilmente. Fale, Londres, está ligado...

 

E depois, subitamente, a voz de David:

 

- Lynn és tu?

 

- David!

 

- Precisava de falar-te.

 

- Sim...

 

- Ouve, Lynn, acho que será melhor eu fugir...

 

- Que queres dizer?

 

- Fugir de Inglaterra. Oh, é muito fácil. Disse a Rosaleen que o não era... simplesmente porque não queria sair de Warmsley Vale. Mas de que serve isso? Tu e eu... não ligaríamos bem. És uma bela rapariga, Lynn... e, quanto a mim, sou um grande escroque, sempre o fui. Pensava que talvez... mas não daria nada. Não, é melhor casares com esse cavador do Rowley. Enquanto viveres, ele nunca conseguirá dar-te um dia de excitação.

 

Ela continuava segurando o auscultador, sem dizer nada.

 

- Lynn, ainda aí estás?

 

- Sim, estou.

 

- Não disseste nada.

 

- Que hei-de dizer?

 

- Lynn?

 

- Sim?...

 

Era estranho como, apesar de toda aquela distância que os separava, podia sentir a sua excitação, a sua pressa...

 

Hunter praguejou em voz baixa e depois gritou desabridamente:

 

- Oh, que o Diabo carregue isto tudo! e desligou.

 

Mrs. Marchmont, ao sair da sala de estar, perguntou:

 

- Quem foi?...

 

- Foi engano respondeu Lynn e subiu rapidamente as escadas.

 

No «Stag» era costume acordar os hóspedes à hora que pedissem pelo simples processo de vibrar uma forte pancada na porta, acompanhada da informação gritada «Oito e meia, sir ou «Oito horas», consoante o caso. Levavam-lhes o chá, se assim fora estipulado, o qual era deposto com um barulho de louça de barro no capacho exterior à porta.

 

Na manhã dessa quarta-feira, a jovem Gladys fez uso da forma habitual do quarto n.° 5, gritando do lado de fora «Oito e quinze, sir» e pousando a bandeja tão bruscamente que entornou leite da leiteira. Depois continuou o seu caminho, acordando mais pessoas e desempenhando-se de outras das suas obrigações.

 

Só às dez horas reparou que o chá do n.° 5 continuava no capacho.

 

Vibrou mais algumas pancadas fortes na porta, não obteve resposta, e, em vista disso, entrou.

 

O ocupante do n.° 5 não era o gênero de cavalheiro que dormisse muito e lembrava-se de que, do lado de fora da janela, havia um telhado, facilmente alcançável. Era até possível, pensava Gladys, que o do n.° 5 se tivesse eclipsado sem pagar a conta.

 

Mas o homem registado com o nome de Enoch Arden não se eclipsara. Estava estendido de bruços, no meio do quarto, e Gladys, embora não possuísse qualquer conhecimento de medicina, não teve a menor dúvida de que estava morto.

 

A rapariga atirou a cabeça para trás, gritou e, sem parar de fazê-lo, precipitou-se para fora do quarto e pelas escadas abaixo.

 

- Ai, Miss Lippincott... Miss Lippincott... Ai...

 

Beatrice Lippincott achava-se no seu quarto onde o Dr. Lionel Cloade lhe ligava uma mão golpeada. Este último largou a ligadura e virou-se irritadamente quando a rapariga irrompeu pelo aposento.

 

- Ai, menina!

 

O doutor cortou-lhe a palavra:

 

- O que é? O que é?

 

- O que é, Gladys? perguntou Beatrice.

 

- É o senhor do n.° 5, menina. Está lá em cima, estendido no chão, morto.

 

O médico olhou espantado para a rapariga e depois para Miss Lippincott. Esta olhou pasmada para Gladys e depois para o médico.

 

Por fim, o Dr. Cloade disse indecisamente:

 

- Que tolice!

 

- Morto e bem morto! afiançou Gladys e acrescentou com certo prazer. Tem a cabeça toda num bolo.

 

O médico olhou para Miss Lippincott.

 

-Talvez seja melhor eu...

 

- Sim, por favor, Dr. Cloade. Mas realmente... Custa-me a crer... parece tão extraordinário!

 

Subiram ao andar de cima, precedidos de Gladys. O Dr. Cloade lançou um olhar, ajoelhou-se e inclinou-se sobre o corpo estendido.

 

Ergueu o olhar para Beatrice. A sua atitude mudara. Era brusca, autoritária.

 

- É melhor telefonar para a esquadra disse. Beatrice Lippincott saiu, seguida de Gladys.

 

Esta perguntou num sussurro aterrado: Oh, menina, julga que seja um assassínio? Beatrice alisou a cabeleira loura com mão trêmula.

 

- Cala-te, Gladys ordenou-lhe vivamente. Dizer que é assassínio antes de saber que é assassínio é uma calúnia e corre-se o risco de ir a tribunal por causa disso. O «Stag» nada terá a ganhar se começarem por aí a correr boatos acerca disso e acrescentou como que numa graciosa concessão. Podes ir tomar uma chávena de chá. Deves precisar dela.

 

- Sim, menina. Cá por dentro estou toda revolvida! Vou trazer-lhe uma também!

 

Beatrice não teve coragem de dizer não.

 

O superintendente Spence considerou pensativamente Beatrice Lippincott, sentada do lado oposto da mesa e cujos lábios se apertavam numa delgada linha.

 

- Obrigado, Miss Lippincott agradeceu. É tudo de quanto se lembra? Dar-lhe-ei o depoimento a ler depois de passado à máquina, e, nessa altura, se não se importar de assiná-lo...

 

- Oh... espero não ter de responder num tribunal de polícia.

 

O superintendente Spence sorriu-lhe tranquilizadoramente.

 

- Oh, não devemos chegar a tanto disse falsamente.

 

- Deve ser suicídio sugeriu Beatrice esperançosamente.

 

O superintendente Spence absteve-se de dizer que, na generalidade dos casos, um suicida não despedaça a nuca com um par de tenazes... Em vez disso, replicou com a mesma atitude calma:

 

- Nunca há vantagem em tirar conclusões apressadas. Obrigado, Miss Lippincott. Foi muita bondade sua vir aqui tão prontamente prestar essa declaração.

 

Depois de a terem acompanhado até à porta, passou mentalmente em rápida revista o seu depoimento. Conhecia muito bem Beatrice Lippincott e sabia, portanto, até que ponto podia contar com a sua exatidão, no que respeitasse a uma conversa genuinamente ouvida por casualidade e recordada. Um certo floreado a mais por causa da excitação e ainda porque o crime fora cometido no quarto n.° 5. Mas, pondo os «a mais» de parte, o que restava era repugnante e sugestivo.

 

O superintendente Spence olhou para a mesa à sua frente. Sobre esta via-se um relógio de pulso com o vidro quebrado, um pequeno isqueiro de ouro com iniciais gravadas, um baton para os lábios num estojo dourado e um par de fortes tenazes de aço, cuja cabeça maciça tinha uma mancha de um castanho ferrugento.

 

O sargento Graves espreitou para dentro do gabinete e disse que Mr. Rowley Cloade estava à espera.

 

Spence fez um aceno afirmativo e o sargento mandou entrar Rowley.

 

Do mesmo modo como sabia tudo acerca de Beatrice Lippincott, o superintendente sabia tudo a respeito de Rowley Cloade. Se Rowley viera à esquadra, era porque tinha algo a dizer e esse algo devia ser sólido, seguro e despido de imaginação fértil. Efetivamente, devia ser digno de ouvir-se. Por outro lado, sendo Rowley uma pessoa circunspeta, esse algo requeria algum motivo para ser dito. E não se podiam apressar pessoas do tipo de Rowley Cloade. Fazendo-o, tornavam-se desconcertadas, repetiam-se, e geralmente levavam o dobro do tempo...

 

- Bom dia, Mr. Cloade. Muito prazer em vê-lo. Pode lançar alguma luz sobre este nosso problema? O homem que foi assassinado no «Stag».

 

Para surpresa de Spence, Rowley começou com uma pergunta. Inquiriu abruptamente:

 

- Já identificou o homem?

 

- Não respondeu Spence lentamente. Ainda não. Assinou o registo com o nome Enoch Arden; mas nada do que possuía prova que fosse Enoch Arden.

 

Rowley franziu o sobrolho.

 

- Não acha isso... um pouco estranho?

 

Era terrivelmente estranho, mas o superintendente Spence não se propunha discutir com Rowley Cloade até que ponto achava o caso estranho. Em vez disso, lembrou gentilmente:

 

- Não se esqueça, Mr. Cloade, que sou eu quem faz as perguntas. Foi procurar o morto na noite passada. Por quê?

 

- Conhece Beatrice Lippincott, superintendente? Do «Stag».

 

- Sim, certamente. E acrescentou o superintendente, julgando vibrar um pequeno golpe já ouvi o seu relato. Veio contar-mo.

 

Rowley pareceu aliviado.

 

- Bom. Receava que ela não quisesse ficar metida num caso da polícia. Às vezes, essas pessoas são esquivas.

 

O superintendente meneou a cabeça compreensivelmente. Rowley prosseguiu:

 

- Ora. Beatrice contou-me o que tinha ouvido por casualidade e pareceu-me... não sei se a si também... verdadeiramente suspeito. O que quero significar é que... somos, também, partes interessadas.

 

O superintendente voltara a menear a cabeça compreensivamente. Tomara um vivo interesse local na morte de Gordon Cloade e, em comum com a opinião geral da terra, achava que a família de Gordon fora mal tratada. Partilhava da opinião comum de que Mrs. Gordon Cloade «não era uma senhora» e que o irmão de Mrs. Gordon Cloade era um daqueles jovens e brilhantes Comandos que, embora tivessem tido a sua utilidade em tempo de guerra, deviam ser olhados com desconfiança, em tempo de paz.

 

- Não creio ser necessário explicar-lhe, superintendente, que, se o primeiro marido de Mrs. Gordon ainda está vivo, isso constituirá uma grande diferença para todos nós, de sua família. Esta história de Beatrice, foi a primeira insinuação que tive de que poderia dar-se tal caso. Nunca sonhara com isso. Pensei que fosse realmente viúva. E devo confessar que me senti profundamente chocado. Precisei de algum tempo para compreender. Sabe, tive de dar tempo ao tempo.

 

Spence voltou a acenar compreensivamente. Imaginava Rowley ruminando lentamente o assunto, dando-lhe voltas e reviravoltas no espírito.

 

- Primeiro do que tudo, pensei pôr meu tio ao corrente... o advogado.

 

- Mr. Jeremy Cloade?

 

- Sim; e, portanto, fui a casa dele. Deve ter sido um pouco depois das oito. Estava ainda a jantar e fiquei à espera do velho Jeremy, sentado no seu escritório, sem deixar de continuar a dar voltas à cabeça.

 

- Sim?

 

- E finalmente cheguei à conclusão de que seria melhor não pôr o meu tio a par da coisa. Os advogados, superintendente, são todos os mesmos, pensei. Muito prudentes, muito cautelosos, e têm de certificar-se absolutamente dos fatos antes de entrarem em ação. A informação que eu recebera chegara-me de um modo um tanto secreto... e perguntei-me se o velho Jeremy não hesitaria em atuar de acordo com ela. Resolvi ir ao «Stag» e procurar o tipo por minha conta.

 

- E fê-lo?

 

- Sim, voltei ao «Stag»...

 

- A que horas foi isso? Rowley ponderou.

 

- Deixe-me ver, devo ter chegado a casa do Jeremy por volta das oito e vinte... cinco minutos, mais ou menos... bem, não posso dizê-lo exatamente, Spence... depois das oito e meia... talvez cerca das vinte para as nove.

 

- Sim, Mr. Cloade?

 

- Eu sabia onde o sujeito estava... a Bee tinha mencionado o número do quarto... portanto, fui lá diretamente e bati à porta. Ele disse «Entre» e eu assim fiz.

 

Rowley fez uma pausa.

 

- Apesar de tudo, creio que não tratei do caso muito bem. Quando lá entrei, pensei que era eu que estava em situação vantajosa. Mas o homem devia ser um tipo inteligente. Não pude apanhá-lo em nada de concreto. Julguei que se assustaria quando o acusasse de ter feito chantagem, mas isso até pareceu diverti-lo. Perguntou-me que insolente! se eu também queria comprar. «Comigo não pode fazer o seu jogo sórdido», disse-lhe eu «nada tenho a esconder.» Respondeu-me bastante asquerosamente que não era isso que ele queria dizer. A questão estava, disse ele, em que tinha uma coisa para vender e queria saber se eu era um comprador. «Que quer dizer?» perguntei-lhe. Respondeu-me: «Quanto me pagaria ou a família em geral pela prova definitiva de que Robert Underhay, dado como morto em África, está realmente vivo?» Perguntei-lhe por que diabo havíamos de pagar-lhe fosse o que fosse. Riu-se e respondeu: «Porque esta noite vou receber a visita de um cliente que certamente me pagará uma quantia muito substancial pela prova positiva de que Robert Underhay está morto.» Depois... bem, depois, creio que perdi a calma e que lhe disse que a minha família não estava habituada a esse gênero vil de negócios. Se Underhay estava realmente vivo, disse eu, o fato devia ser muito fácil de provar. Dito isso, ia a retirar-me quando ele se riu e disse num tom muito estranho: «Não creio que o provem sem a minha cooperação.» Disse aquilo de um modo estranho.

 

- E depois?

 

- Bem, sinceramente, voltei para casa, bastante perturbado. Com a sensação, compreende, de que embrulhara as coisas. Desejava ter confiado o caso ao velho Jeremy, pois, no fim de contas, um advogado está acostumado a lidar com clientes duvidosos.

 

- A que horas saiu do «Stag»?

 

- Não faço idéia. Um momento. Deve ter sido pouco antes das nove, porque quando ia a passar pela aldeia ouvi o sinal do noticiário... através de uma das janelas.

 

- Arden disse quem esperava? O nome do «cliente»?

 

- Não. Fiquei convencido de que era David Hunter. Que outra pessoa podia ser?

 

- Não parecia alarmado de qualquer modo com a perspectiva?

 

- O tipo estava inteiramente satisfeito da sua pessoa e muito importante.

 

Spence indicou com um gesto débil as pesadas tenazes de aço.

 

- Notou-as na grade da chaminé, Mr. Cloade?

 

- Essas? Não... não me parece. O lume não estava aceso franziu o sobrolho procurando imaginar o cenário. Na grade, havia vários utensílios do gênero, tenho a certeza, mas não posso dizer que tenha reparado quais eram acrescentou. Foi isso o que...

 

Spence respondeu afirmativamente, com um aceno de cabeça.

 

- Arrombaram-lhe o crânio. Rowley franziu o sobrolho.

 

- Estranho. Hunter é um tipo de fraco arcabouço... Arden era um homem grande, robusto.

 

O superintendente disse numa voz inexpressiva:

 

- O parecer médico diz que foi derrubado pelas costas e que os golpes dados com a cabeça das tenazes foram desferidos de cima.

 

Rowley disse pensativamente:

 

- Não há dúvida de que se tratava de um sujeito absolutamente seguro... mas, em todo o caso, eu não teria virado as costas a um tipo com quem estivesse a sós num quarto, a quem procurasse extorquir dinheiro e que, durante a guerra, se desempenhara de missões difíceis. Arden não era um tipo muito prudente.

 

- Se o tivesse sido, é muito provável que ainda estivesse vivo observou secamente o superintendente.

 

- Preferia sinceramente que o tivesse sido declarou Rowley com fervor. Sinto que atrapalhei terrivelmente as coisas. Se simplesmente não tivesse sido arrogante e não me tivesse ido embora, poderia ter conseguido alguma informação útil através dele. Devia ter pretendido que éramos compradores, mas a coisa é tão terrivelmente tola... Ora, quem somos nós para licitar contra Rosaleen e David? Eles têm o dinheiro. Entre nós todos, não conseguiríamos reunir quinhentas libras.

 

O superintendente pegou no isqueiro de ouro.

 

- Já o tinha visto?

 

Uma ruga cavou-se entre as sobrancelhas de Rowley. Respondeu vagarosamente:

 

- Sim, já o vi em qualquer parte, mas não me lembro onde. Não foi há muito tempo. Não... não me recordo.

 

Spence não depôs o isqueiro na mão estendida de Rowley. Pousou-o sobre a mesa e pegou no baton, fazendo-o sair para fora do estojo.

 

- E isto?

 

Rowley arreganhou os dentes num sorriso forçado.

 

- Para falar com franqueza, isso não é o meu forte, superintendente.

 

Pensativamente, Spence traçou com ele um traço nas costas da mão. Pôs a cabeça de lado. estudando-o apreciativamente.

 

- Cor brunette observou.

 

- Que coisas divertidas a polícia sabe comentou Rowley. Levantou-se. Não sabe... não sabe realmente... quem era o morto?

 

- O senhor tem alguma idéia a esse respeito, Mr. Cloade?

 

- Faço simplesmente suposições respondeu Rowley lentamente. Quero dizer... esse tipo era a nossa única pista para chegarmos a Underhay. Mas como agora está morto... bem, procurar Underhay é o mesmo que procurar uma agulha num palheiro.

 

- Haverá publicidade, Mr. Cloade observou Spence. Não se esqueça de que, na devida altura, a imprensa falará muito disto. Se Underhay está vivo e ler o que se publicar... bem, pode ser que apareça.

 

- Sim disse Rowley duvidosamente. É possível.

 

- Mas não crê?

 

- Creio, respondeu Rowley Cloade, que o primeiro round foi ganho por David Hunter.

 

- Admira-me respondeu Spence. Quando Rowley saiu, Spence pegou no isqueiro de ouro e olhou para as iniciais de David Hunter, nele gravadas. Um artigo caro declarou ao sargento Graves. Não é produzido em série. É facilmente identificável. Greatorex ou qualquer dessas casas da Bond Street.

 

Depois o superintendente considerou o relógio de pulso o vidro estava quebrado e os ponteiros indicavam nove e dez.

 

Olhou para o sargento.

 

- Já tens o relatório deste, Graves?

 

- Sim, sir. A corda está partida.

 

- E o mecanismo dos ponteiros?

 

- Está bom, sr.

 

- Na tua opinião, o que nos indica o relógio, Graves?

 

O sargento murmurou cautelosamente: Parece indicar-nos as horas a que o crime foi cometido.

 

- Ah! exclamou Spence. Quando se esteve tanto tempo na Force como eu estive, é-se levado a suspeitar de uma coisa tão simples como um relógio partido. Pode ser genuíno... mas é também uma velha manha muito conhecida. Desviar os ponteiros do relógio para uma hora conveniente... e parti-lo... e pôr-se a andar com um álibi eficaz. Mas não se engana um passarão dessa maneira. Mantenho uma opinião pessoal quanto às horas a que este crime foi cometido. O parecer médico situa-o entre as oito e as onze da noite.

 

O sargento Graves pigarreou.

 

- Edwards, o ajudante de jardineiro de Furrowbank, diz que viu David Hunter sair dali por uma porta lateral, por volta das sete horas e trinta minutos. As criadas não sabiam que ele cá estava. Julgavam que estivesse em Londres com Mrs. Gordon. É uma prova de que estava nas vizinhanças.

 

- Sim concordou Spence. Gostarei muito de ouvir o relato do próprio Hunter.

 

- Parece um caso claro, sir disse Graves, olhando para as iniciais do isqueiro.

 

- Hum... fungou o superintendente. Temos ainda que contar com isto.

 

Indicou o baton.

 

- Rolara para debaixo da cômoda, sir. Podia já lá estar há algum tempo.

 

- Averigüei isso objetou Spence. A última vez que esse quarto foi ocupado por uma mulher, foi há três semanas. Bem sei que, hoje em dia, o serviço deixa muito a desejar... mas, em todo o caso, quero acreditar que limpem o pó debaixo dos móveis pelo menos de três em três semanas. De um modo geral, o «Stag» está razoavelmente limpo e arranjado.

 

- Não há qualquer referência a ter estado Arden com alguma mulher.

 

- Bem sei disse o superintendente. É por isso que eu chamo a esse baton, o «número desconhecido».

 

O sargento Graves absteve-se a custo de dizer cherchez la femme. Tinha uma boa pronúncia francesa e sabia muito bem que irritava o superintendente Spence, chamando-lhe a atenção para o fato. O sargento Graves era um rapaz cheio de tacto.

 

O superintendente Spence ergueu o olhar para o Shepherd’s Court, de Mayfair, antes de entrar no seu agradável vestíbulo. Situado modestamente na vizinhança de Shepherd’s Market, era discreto, caro e imperceptível.

 

Mal entrou, os pés de Spence enterraram-se na macia carpete do vestíbulo onde se via um sofá forrado de veludo e uma jardineira cheia de plantas em flor. À sua frente, encontrou um pequeno ascensor automático e, ao lado deste, um lanço de escadas. À direita do vestíbulo havia uma porta, com a indicação: «Escritório». Spence empurrou-a e entrou. Achou-se numa pequena divisão dividida por um balcão, atrás do qual ficava uma mesa com uma máquina de escrever e duas cadeiras. Uma destas estava chegada à mesa e a outra, de melhor aspecto, estava postada ao lado da janela.

 

Não se via ninguém.

 

Spence descobriu um besouro no balcão de mogno e premiu-o. Porém, vendo que nada acontecia, voltou a premi-lo. Cerca de um minuto depois, abriu-se uma porta na parede oposta e apareceu uma pessoa trajando um uniforme esplendente. Tinha o aspecto de um general estrangeiro ou até de marechal-de-campo, mas a sua fala era de Londres e até de uma Londres mal-educada.

 

- Sim, sir?

 

- Mrs. Gordon Cloade?

 

- No 3.° andar, sir. Devo anunciar...?

 

- Está cá, não está? certificou-se Spence. Pensei que talvez estivesse no campo.

 

- Não, sir, está cá desde sábado passado.

 

- E Mr. David Hunter?

 

- Mr. Hunter também cá está.

 

- Não esteve fora?

 

- Não, sir.

 

- Esteve cá na noite passada?

 

- Mas observou o marechal-de-campo, subitamente agressivo que vem a ser isto? Quer saber da vida de cada um?

 

Em silêncio, Spence apresentou-lhe o cartão de identificação. O marechal-de-campo acalmou-se imediatamente e tornou-se cooperativo.

 

- Lamento desculpou-se. Não podia adivinhar, não é verdade?

 

- Então, Mr. Hunter esteve cá a noite passada?

 

- Sim, sir, esteve. Pelo menos, estou convencido de que sim. Quer dizer, não disse que ia sair.

 

- Se ele tivesse saído era natural que o soubesse?

 

- Bem, falando de um modo geral, não. Acho que não. Os cavalheiros e as senhoras dizem geralmente quando saem. Dão alguma indicação quanto a correspondência ou ao que devemos dizer se alguém telefonar.

 

- As chamadas telefônicas são feitas através deste escritório?

 

- Não, a maior parte dos apartamentos têm linhas próprias. Uma ou outra pessoa prefere não ter telefone e então prevenimo-la pelo telefone interno e vem cá abaixo falar da cabina que está no vestíbulo.

 

- Mas o apartamento de Mrs. Cloade tem telefone próprio?

 

- Tem, sim, Sr.

 

- E, segundo sabe, estavam cá na noite passada?

 

- Exatamente.

 

- Refeições?

 

- Há um restaurante, mas Mrs. Cloade e Mr. Hunter não o utilizam muitas vezes. Geralmente vão jantar fora.

 

- Pequeno-almoço?

 

- É servido nos apartamentos.

 

- Pode averiguar se esta manhã lhes levaram o pequeno-almoço?

 

- Sim, sir, posso sabê-lo através do serviço de quartos.

 

Spence aplaudiu com um aceno de cabeça e declarou:

 

- Vou agora lá acima. Dê-me a resposta, quando eu descer.

 

- Muito bem, sir.

 

Spence entrou no elevador e premiu o botão do terceiro andar. Em cada piso, havia apenas dois apartamentos. Tocou à campainha do n.° 9.

 

David Hunter abriu a porta. Não conhecia de vista o superintendente e perguntou com brusquidão:

 

- Bem, o que há?

 

- Mr. Hunter?

 

- Sim.

 

- Superintendente Spence da Polícia do Condado de Oastshire. Pode receber-me?

 

- Perdão, superintendente arreganhou os dentes num sorriso forçado julguei que fosse um corretor. Entre.

 

Conduziu-o para um aposento moderno e encantador. Rosaleen Cloade estava de pé, junto à janela, e virou-se, ao ouvi-los entrar.

 

- O superintendente Spence, Rosaleen apresentou Hunter. Sente-se, superintendente. Toma qualquer coisa?

 

- Não, obrigado, Mr. Hunter.

 

Rosaleen inclinara levemente a cabeça. Estava agora sentada, de costas para a janela, com as mãos apertadamente unidas sobre o regaço.

 

- Fuma? David ofereceu-lhe a cigarreira.

 

- Obrigado.

 

Spence tirou um cigarro, esperou... viu David meter uma mão numa algibeira, tirá-la para fora, franzir o sobrolho, olhar em volta e pegar numa caixa de fósforos. Raspou um e acendeu o cigarro do superintendente.

 

- Obrigado.

 

- Bem disse David, à vontade, enquanto acendia o próprio cigarro. O que corre mal por Warmsley Vale? A nossa cozinheira fez mercado negro? Ela dá-nos comida excelente, e sempre desconfiei que, por trás disso, houvesse qualquer história sinistra.

 

- É bastante mais sério do que isso declarou o superintendente. Na noite passada, morreu um homem na estalagem «Stag». Talvez já tenha lido a notícia nos jornais?

 

David sacudiu a cabeça.

 

- Não, não reparei. Que lhe aconteceu?

 

- Não foi de morte natural. Foi assassinado. Efetivamente, tinha a cabeça despedaçada.

 

Rosaleen soltou uma exclamação meio abafada. David disse apressadamente:

 

- Por favor, superintendente, não se alargue em pormenores. Minha irmã é muito sensível. Desmaia sempre que ouve mencionar sangue e casos impressionantes.

 

- Oh, lamento disse o superintendente, mas não havia qualquer sangue a que referir-me. E, contudo, trata-se de um crime.

 

Fez uma pausa. David ergueu o sobrolho e disse suavemente:

 

- Está a interessar-me. Que pretende?

 

- Esperávamos que pudesse dizer-nos alguma coisa a respeito desse homem, Mr. Hunter.

 

- Eu?

 

- Foi visitá-lo na noite do último sábado. O seu nome... ou o nome com que se registou... era Enoch Arden.

 

- Sim, certamente. Recordo-me agora.

 

David falara calmamente, sem qualquer embaraço.

 

- Então. Mr. Hunter?

 

- Bem, superintendente, custa-me não poder ajudá-lo. Nada mais sei a respeito desse homem.

 

- O seu nome seria realmente Enoch Arden?

 

- Duvido muito.

 

- Por que foi procurá-lo?

 

- Em virtude de mais uma dessas habituais histórias infelizes. Mencionou certos lugares, experiências de guerra, pessoas... David encolheu os ombros. Apenas um contacto. Toda a coisa bastante fictícia.

 

- Deu-lhe algum dinheiro?

 

Fez-se uma pausa da fração de um segundo e depois David respondeu:

 

- Apenas uma nota de cinco libras... Para lhe dar sorte. Tinha estado na guerra.

 

- Mencionou-lhe alguns nomes... seus conhecidos?

 

- Sim.

 

- Um desses nomes foi o do capitão Robert Underhay?

 

Agora, finalmente, conseguira o seu efeito. O rosto de David endureceu-se. Atrás dele, Rosaleen soltou uma pequena arfada assustada.

 

- O que o faz pensar isso, superintendente? perguntou David, por fim.

 

Os seus olhos mostravam-se cautelosos, perscrutadores.

 

- Uma informação recebida, respondeu estolidamente o superintendente.

 

Seguiu-se um curto silêncio. O superintendente via os olhos de David, estudando-o, avaliando-o, esforçando-se por saber... Ele próprio esperou calmamente.

 

- Faz alguma idéia de quem fosse Robert Underhay, superintendente? perguntou David.

 

- Suponhamos que é o senhor quem mo diz.

 

- Robert Underhay foi o primeiro marido de minha irmã. Morreu em África, há alguns anos.

 

- Está absolutamente certo disso, Mr. Hunter? perguntou Spence, apressadamente.

 

- Absolutamente certo. Não é verdade, Rosaleen? virou-se para ela.

 

- Oh, sim ela falou precipitadamente, ofegantemente Robert morreu com febres... febres palustres. Foi um caso muito triste.

 

- Às vezes, espalham-se histórias que não são inteiramente verdadeiras, Mrs. Cloade.

 

Ficou calada, sem o encarar, mas com os olhos fitos no irmão. Depois de um momento, declarou:

 

- Robert morreu.

 

- Segundo uma informação que possuo, disse o superintendente, presumo que esse homem, Enoch Arden, alegou ser amigo do falecido Robert Underhay e que, ao mesmo tempo, o informou, Mr. Hunter, de que Robert Underhay estava vivo.

 

David sacudiu a cabeça e objetou:

 

- Isso é uma tolice, uma rematada tolice!

 

- Afirma categoricamente que o nome de Robert Underhay não foi mencionado?

 

- Oh, David fez um sorriso encantador, foi mencionado. Esse pobre tipo tinha conhecido Underhay.

 

- Não se tratou de chantagem, Mr. Hunter?

 

- De chantagem? Não o compreendo, superintendente.

 

- Não, de fato, Mr. Hunter? A propósito, por uma simples questão de pró-forma, onde esteve na noite passada... entre, digamos, as sete e as onze horas?

 

- Simplesmente por pró-forma, superintendente, suponhamos que me recuso a responder?

 

- Não estará a comportar-se um tanto infantilmente, Mr. Hunter?

 

- Não creio. Desagrada-me... sempre me desagradou ser ameaçado.

 

O superintendente achou que provavelmente aquilo era verdade.

 

Já antes conhecera testemunhas do tipo de David Hunter.

 

Testemunhas que eram importunas pelo puro prazer de serem importunas e de forma nenhuma por terem qualquer coisa a esconder. O simples fato de se lhes pedir contas dos seus passos parecia despertar dentro delas um orgulho mau e teimoso. Empenhar-se-iam em causar à Justiça todo o incômodo que pudessem.

 

O superintendente Spence, embora se orgulhasse de ser um homem justo, dirigira-se a Shepherd’s Court com a firme convicção de que David Hunter era um assassino.

 

Mas agora, pela primeira vez, já não sentia a mesma certeza. A própria puerilidade do desafio de David abalara-lhe a certeza.

 

Spence olhou para Rosaleen Cloade. Esta reagiu imediatamente:

 

- David, por que não lhe dizes?

 

- Muito bem, Mrs. Cloade. Nós apenas queremos esclarecer as coisas...

 

David cortou-lhe abruptamente a palavra:

 

- Deixe-se de ameaçar a minha irmã, ouviu? Que lhe interessa saber se estive aqui ou em Warmsley Vale ou em Tombuctu?

 

Spence preveniu-o:

 

- Será intimado a comparecer no inquérito, Mr. Hunter, e, nessa altura, será obrigado a responder às perguntas.

 

- Esperarei então pelo inquérito! E agora, superintendente, quer fazer o favor de pôr-se a andar daqui para fora?

 

- Muito bem, o superintendente levantou-se, imperturbável, mas primeiramente tenho de interrogar Mrs. Cloade.

 

- Não quero que incomode minha irmã.

 

- Pois sim, mas preciso que ela veja o corpo e me diga se pode identificá-lo. Ali, estou investido dos meus poderes. Isso terá de fazer-se mais tarde ou mais cedo. Por que não lhe permite que me acompanhe agora para arrumarmos o assunto? Uma testemunha ouviu Mr. Arden declarar que conhecia Robert Underhay e, por conseguinte, pode dar-se o caso de Mrs. Underhay também o conhecer. Se o seu nome não é Enoch Arden, poderíamos realmente identificá-lo.

 

Um tanto inesperadamente, Rosaleen Cloade levantou-se.

 

- Certamente que irei declarou.

 

Spence esperou uma explosão de David, mas surpreendeu-se ao ver que este sorria.

 

- És muito boa, Rosaleen disse. Confesso que eu próprio me sinto curioso. No fim de contas, és capaz de dar um nome a esse tipo.

 

Spence dirigiu-se à rapariga.

 

- Não o viu em Warmsley Vale? Ela sacudiu a cabeça.

 

- Estou em Londres desde sábado passado.

 

- E Arden chegou sexta-feira à noite... sim.

 

- Quer que vá agora? perguntou Rosaleen, quase com a submissão de uma garota.

 

Sem querer, o superintendente ficou favoravelmente impressionado. Havia nela uma docilidade, uma prontidão, com que não contara.

 

- Seria muito gentil da sua parte, Mrs. Cloade. Quanto mais cedo pudermos estabelecer definitivamente certos fatos, tanto melhor. Lamento não ter aqui um carro da polícia.

 

David dirigiu-se ao telefone.

 

- Vou telefonar para os táxis urbanos. Fica para lá do limite legal... mas espero que isso lhe convenha, superintendente.

 

- Creio que poderá consegui-lo, Mr. Hunter. Levantou-se e disse:

 

- Esperarei por si lá em baixo.

 

Desceu no elevador e abriu uma vez mais a porta do escritório.

 

O marechal-de-campo esperava-o.

 

- Então?

 

- Ambas as camas ficaram desmanchadas a noite passada, sir. As casas de banho e toalhas foram utilizadas. Foi-lhes servido o pequeno-almoço, às nove horas e meia, no apartamento.

 

- E não sabe a que horas entrou Mr. Hunter, ontem à noite?

 

- Lamento nada mais saber dizer, sir!

 

Bem, era isso, pensou Spence. Gostaria de saber se, por trás da recusa de David em falar, haveria mais alguma coisa do que um simples desafio infantil. Devia compreender que pairava sobre ele uma acusação de assassínio. Certamente deveria compreender que, quanto mais cedo contasse a sua história, melhor seria. Nunca há qualquer vantagem em contender com a polícia. Mas contender com a polícia, pensou ele desconsoladamente, era exatamente o que David Hunter gostaria de fazer.

 

Falaram muito pouco durante o caminho. Quando chegaram à morgue, Rosaleen estava muito pálida. As mãos tremiam-lhe. David parecia preocupado com ela. Falou-lhe como se fosse uma criança.

 

- Será apenas um minuto ou dois, queridinha. Não custa nada, mesmo nada. Não te enerves. Vais com o superintendente e eu fico à tua espera. Não tens que te preocupar. Vais ver que tem um aspecto tranqüilo e que até parece estar a dormir.

 

Ela tranquilizou-o com um leve movimento de cabeça e estendeu-lhe a mão. Ele apertou-lha rapidamente.

 

- Sê corajosa, querida.

 

Enquanto seguia o superintendente, disse-lhe com a sua voz meiga:

 

- Deve achar-me muito cobarde, superintendente. Mas, quando morreram todos lá de casa... e só nós escapamos... naquela noite terrível em Londres...

 

Ele replicou delicadamente:

 

- Compreendo, Mrs. Cloade. Sei que passou por uma terrível experiência nesse bombardeamento em que o seu marido morreu. Mas, na verdade, será apenas um minuto ou dois.

 

A um sinal de Spence, o lençol foi puxado para baixo. Rosaleen olhou para o homem que se dissera Enoch Arden. Spence pusera-se discretamente de lado, mas estudava-a atentamente.

 

Rosaleen contemplou o morto com curiosidade, como que espantada não denunciou o menor sobressalto, não evidenciou qualquer sinal de emoção ou de reconhecimento; limitou-se a olhá-lo com espanto. Depois, muito calmamente, fez o Sinal-da-Cruz.

 

- Paz à sua alma disse. Nunca tinha visto esse homem. Não sei quem era.

 

Spence pensou «Ou é uma das melhores atrizes que tenho visto ou está a falar verdade».

 

Mais tarde, Spence telefonou a Rowley Cloade.

 

- A viúva já cá veio anunciou. Afirma que não é Robert Underhay e que nunca o tinha visto antes. Por conseguinte, isto põe fim àquilo.

 

Houve uma pausa, que Rowley quebrou, dizendo:

 

- Acha que sim?

 

- Estou convencido que qualquer júri lhe dará crédito... à falta de provas em contrário, já se sabe.

 

- Sim, disse Rowley e desligou.

 

Depois, sobrolho franzido, pegou na lista telefônica não na da terra, mas na de Londres. O dedo indicador desceu metodicamente ao longo das páginas marcadas com a letra P. Pouco depois, encontrou o que procurava.

 

 

Hercule Poirot dobrou cuidadosamente o último jornal dos que mandara comprar a George. A informação neles publicada era bastante escassa. Segundo a opinião médica, o crânio do homem fora fraturado por uma série de golpes. O inquérito sofrera um adiamento de quinze dias. Pedia-se a todas as pessoas que soubessem dar alguma informação acerca de um homem chamado Enoch Arden, que se presumia ter chegado pouco tempo antes da Cidade do Cabo, que se pusessem em contacto com o chefe da Polícia de Oastshire.

 

Poirot colocou os jornais num monte perfeito e entregou-se à meditação. Sentia-se interessado. Era possível que tivesse passado pelo primeiro parágrafo sem sentir interesse, se não tivesse recebido a visita recente de Mrs. Lionel Cloade. Essa visita recordara-lhe nitidamente os incidentes ocorridos nesse dia no clube, durante aquele ataque aéreo. Recordou-se muito distintamente da voz do major Porter, dizendo «É possível que um certo Mr. Enoch Arden surja em qualquer ponto, a umas mil milhas daqui e recomece vida nova».

 

Desejava agora, veementemente, conhecer mais coisas acerca desse homem chamado Enoch Arden, vítima de morte violenta, em Warmsley Vale.

 

Lembrou-se de que conhecia vagamente o superintendente Spence da Polícia de Oastshire e lembrou-se também de que o jovem Mellon não só não vivia muito longe de Warmsley Heath como também conhecia Jeremy Cloade.

 

Estava a pensar em telefonar ao jovem Mellon quando George entrou a dizer que um certo Mr. Rowley Cloade gostaria de falar-lhe.

 

- Aah! exclamou Hercule Poirot com satisfação. Manda-o entrar.

 

Entrou um homem novo, bem parecido, de aspecto preocupado e parecendo sentir-se um tanto atrapalhado para começar a falar.

 

- Bem, Mr. Cloade, disse Poirot esperançosamente, em que posso ser-lhe útil?

 

Rowley Cloade olhou Poirot um tanto indecisamente. Os bigodes extravagantes, a elegância do fato, as polainas brancas e os sapatos bicudos de verniz, tudo isso incutia naquele rapaz uma vaga de hesitação.

 

Poirot percebeu isso perfeitamente e sentíu-se muito divertido.

 

Rowley Cloade começou muito lentamente:

 

- Receio ter de explicar-lhe quem sou e tudo o mais. O meu nome não lhe diz nada...

 

Poirot interrompeu-o:

 

- Pelo contrário, conheço perfeitamente o seu nome. Sabe, sua tia veio procurar-me na semana passada.

 

- Minha tia?

 

Rowley ficou de boca aberta. Olhou pasmado para Poirot. Aquilo era por tal forma inesperado para o rapaz que Poirot pôs de parte a sua primeira suspeita de que as duas visitas tivessem a mesma origem. Por um momento, pareceu-lhe uma coincidência notável que dois membros da família Cloade tivessem resolvido consultá-lo dentro de um período de tempo tão curto, mas, no segundo imediato, compreendeu que não se tratava de coincidência, mas simplesmente de uma seqüência natural, resultante de uma mesma causa inicial.

 

- Deduzo que Mrs. Lionel Cloade é sua tia.

 

Rowley pareceu ainda mais surpreendido. Perguntou com a maior incredulidade:

 

- A tia Kathie? Certamente... refere-se a... Mrs. Jeremy Cloade?

 

Poirot abanou a cabeça.

 

- Mas que diabo podia a tia Kathie...

 

Poirot murmurou discretamente: Veio procurar-me, creio eu, guiada por uma indicação espírita.

 

- Oh, meu Deus! exclamou Rowley. Pareceu aliviado e divertido. Acrescentou como desejando tranqüilizar Poirot. Sabe, é absolutamente inofensiva.

 

- Admira-me, disse Poirot.

 

- Que quer dizer?

 

- Existe... ou existiu já... alguém absolutamente inofensivo?

 

Rowley olhou-o, pasmado. Poirot suspirou:

 

- Veio procurar-me para pedir-me alguma coisa?... Sim? animou-o, gentilmente.

 

O rosto de Rowley voltou a adquirir uma expressão preocupada.

 

- Receio que seja uma história bastante longa...

 

Poirot também receava o mesmo. Muito sagazmente, calculava que Rowley Cloade não fosse do gênero de pessoa que aborda rapidamente o ponto essencial de um assunto. Recostou-se na cadeira e semicerrou os olhos, enquanto Rowley começava:

 

- Como sabe, meu tio era Gordon Cloade...

 

- Sei tudo a respeito de Gordon Cloade, declarou Poirot.

 

- Bom. Então, não preciso de explicar tudo. Casou-se umas semanas antes de morrer... com uma jovem viúva chamada Underhay. Desde que ele morreu, ela tem vivido em Warmsley Vale... ela e um irmão. Todos nós julgávamos que o seu primeiro marido tivesse morrido com febres, em África. Mas agora parece que não foi assim.

 

- Ah! Poirot endireitou-se na cadeira. E o que o levou a essa suspeita?

 

Rowley relatou-lhe a chegada de Mr. Enoch Arden a Warmsley Vale.

 

-Talvez tenha lido nos jornais...

 

- Li, sim cooperou Poirot.

 

Rowley prosseguiu. Descreveu a primeira impressão que Arden lhe causara, a sua visita ao «Stag», a carta que recebera de Beatrice Lippincott e, finalmente, a conversa que esta surpreendera.

 

- Evidentemente, conjeturou Rowley, que não se pode ter uma certeza do que ela ouviu realmente. Pode ter exagerado um pouco... ou até ouvido mal.

 

- Ela contou isso à polícia?

 

Rowley respondeu que sim, com um gesto de cabeça.

 

- Eu disse-lhe que achava preferível que o fizesse.

 

- Não compreendo muito bem... perdoe-me... por que veio procurar-me, Mr. Cloade? Quer que eu investigue esse... crime? Porque trata-se de um crime, presumo.

 

- Oh, não, meu Deus! exclamou Rowley. Não quero nada disso. Isso é uma tarefa que compete à polícia. Foi assassinado, não há dúvida. Não, o que eu procuro, é descobrir quem era o homem.

 

Os olhos de Poirot semicerraram-se.

 

- Quem pensa que fosse, Mr. Cloade?

 

- Bem, quero dizer... Enoch Arden não é um nome. É uma citação. Tennyson. Fui consultá-lo. Um tipo que regressa e descobre que a mulher está casada com outro homem.

 

- Então julga, disse Poirot calmamente, que Enoch Arden era o próprio Robert Underhay?

 

Rowley respondeu prudentemente:

 

- Bem, podia ter sido... quero dizer, com a mesma idade, aspecto e tudo o mais. Evidentemente que considerei o caso repetidas vezes com Beatrice. Como é natural, não consegue lembrar-se exatamente do que eles disseram. O tipo disse que Robert Underhay estava numa má situação, que andava com a saúde muito em baixo e que precisava de dinheiro. Ora, podia muito bem estar a falar de si próprio, não acha? Parece ter dito qualquer coisa que significasse não convir a David Hunter que Underhay aparecesse em Warmsley Vale... dando um pouco a impressão de que estava lá sob um falso nome.

 

- Que prova de identificação se apresentou no inquérito?

 

Rowley sacudiu a cabeça.

 

- Nada de definitivo. Apenas as pessoas do «Stag» que declararam ser o mesmo homem que ali fora instalar-se e se registara sob o nome Enoch Arden.

 

- E documentos pessoais?

 

- Não tinha nenhuns.

 

- O quê? Poirot endireitou-se com surpresa. Nenhum papel de qualquer espécie?

 

- Nenhum absolutamente.

 

-Isso é muito interessante, comentou Poirot. Sim, muito interessante.

 

Rowley prosseguiu:

 

- David Hunter, que é o irmão de Rosaleen Cloade, fora procurá-lo na noite imediata à da sua chegada. Segundo o que declarou à polícia, recebera uma carta dele, dizendo que fora amigo de Robert Underhay e que estava em má situação; que, a pedido da irmã, fora ao «Stag» procurar o sujeito e lhe dera cinco libras. Foi isto o que ele contou e é de crer que tencione sustentá-lo! Evidentemente que a polícia continua embaraçada acerca do que Beatrice ouviu.

 

- David Hunter afirma que antes disso nunca vira o homem?

 

- É o que ele diz. Seja como for, estou convencido de que Hunter nunca conheceu Underhay.

 

- E Rosaleen Cloade?

 

- A polícia pediu-lhe que fosse ver o corpo, por poder dar-se o caso de conhecer o homem. Mas ela declarou-lhes que lhe era completamente desconhecido.

 

- Eh bien! exclamou Poirot. Então, isso responde à sua pergunta!

 

- Sim? perguntou Rowley, confuso. Não vejo como. Se o falecido é Underhay, nesse caso, Rosaleen nunca foi mulher de meu tio e não tem direito a um centavo que seja do seu dinheiro. Julgo que, nessas circunstâncias, ela o reconheceria?

 

- Não acredita nela?

 

- Não acredito em nenhum deles.

 

- Certamente que há muitas pessoas que podem dar a certeza se o morto é ou não Underhay.

 

- Não me parece fácil. Aqui tem o que desejo que faça. Descubra-me alguém que conheça Underhay. Aparentemente, neste país, não tem parentes... e foi sempre um tipo de homem solitário e bicho-do-mato. Suponho que haja antigos criados... amigos... alguém... mas a guerra destruiu tudo e dispersou as pessoas. Eu não sei como começar o trabalho... e, no fim de contas, também não tenho tempo. Sou um lavrador... e luto com falta de pessoal.

 

- Por quê eu? perguntou Hercule Poirot.

 

Rowley pareceu embaraçado.

 

Nos olhos de Poirot brilhou um leve fulgor.

 

- Indicação espírita? murmurou.

 

- Oh, valha-o Deus! exclamou Rowlley, horrorizado. Para falar com franqueza ,hesitou, ouvi um sujeito meu conhecido falar de si... dizer que, neste gênero de coisas, o senhor era um mágico. Não sei quais sejam os seus honorários... elevados, suponho... estamos um pouco em baixo, mas, creio que entre nós todos será possível conseguirmos pagá-los. No caso de querer tomar conta do caso, está claro.

 

Hercule Poirot respondeu lentamente:

 

- Sim, julgo que talvez possa ajudá-lo. Voltou-lhe aquela lembrança, uma lembrança muito precisa e definitiva. O maçador do clube, o ruído dos jornais, a voz monótona...

 

O nome... ouvira o nome... ocorrer-lhe-ia daí a pouco. E, se assim não sucedesse, poderia perguntá-lo a Mellon... Não, já se lembrava. Porter, major Porter.

 

Hercule Poirot pôs-se de pé.

 

- Quer cá voltar esta tarde, Mr. Cloade?

 

- Bem... não sei. Sim, suponho que sim. Mas certamente que não pode fazer nada num espaço de tempo tão curto!

 

Fitava Poirot com temor respeitoso, com incredulidade. Poirot não teria sido humano se pudesse ter resistido à tentação de ostentar os seus méritos. Com as lembranças de um brilhante passado no espírito, declarou solenemente:

 

-Tenho os meus méritos, Mr. Cloade.

 

Era nitidamente a coisa mais indicada para dizer. A expressão de Rowley tornou-se profundamente respeitosa.

 

- Sim... certamente... realmente... não sei como os senhores fazem essas coisas.

 

Poirot não o elucidou. Quando Rowley se retirou, sentou-se e escreveu um pequeno bilhete. Entregou-o a George recomendando-lhe que o levasse ao Coronation Club e esperasse por uma resposta.

 

Esta foi altamente satisfatória. O major Porter enviava cumprimentos a M. Hercule Poirot e dizia que teria muito gosto em recebê-lo e ao seu amigo, nessa tarde, no n.° 79 da Edgeway Street, em Campden Hill.

 

Às quatro horas e meia, Rowley Cloade voltou a aparecer.

 

- Alguma novidade, M. Poirot?

 

- Certamente, Mr. Cloade. Vamos agora procurar, um velho amigo do capitão Robert Underhay.

 

- Como? Rowley estava boquiaberto. Fitava Poirot com o espanto que um rapazinho mostra quando um prestidigitador tira coelhos de dentro de um chapéu. Mas é incrível! Não compreendo como consegue fazer essas coisas... foi apenas em poucas horas.

 

Poirot agitou uma mão suplicante e procurou assumir um ar modesto. Não fazia a mínima tenção de revelar a simplicidade com que realizara essa habilidade. Agradava à sua vaidade impressionar aquele ingênuo Rowley.

 

Os dois homens saíram juntos e, chamando um táxi, dirigiram-se para Campden Hill.

 

O major Porter ocupava o primeiro andar de uma casa velha e modesta. Recebeu-os uma mulher alegre e de faces vermelhas que os levou lá acima. Entraram num quarto quadrado com estantes em toda a volta e com algumas gravuras desportivas, bastante más. Sobre o soalho viam-se dois tapetes uns bons tapetes com uma encantadora tonalidade pálida, mas já muito coçados. Poirot reparou que a parte central do soalho apresentava um aspecto novo e lustroso em contraste com o espaço à volta do quarto, velho e raspado. Percebeu então que, naquele sítio, houvera, até há pouco tempo, outros tapetes em melhor estado tapetes que, nesses dias, valiam bom dinheiro. Olhou para o homem que se perfilava junto à chaminé, no seu fato de bom corte, mas coçado. Poirot calculou que para o major Porter, oficial do exército aposentado, a vida era muito dura. Os impostos e o aumento de custo da vida dificultavam terrivelmente a existência dos antigos «cavalos de batalha». Contudo, havia algumas coisas a que o major Porter se apegaria até ao fim. Por exemplo, a sua assinatura do clube.

 

O major Porter falava aos sacões:

 

- Receio não me lembrar de lhe ter sido apresentado, M. Poirot. No clube, diz? Há uns dois anos? Conheço o seu nome, evidentemente.

 

- Este, disse Poirot, é Mr. Rowland Cloade.

 

O major Porter baixou a cabeça, num cumprimento.

 

- Muito prazer disse. Lamento não poder oferecer-lhes um cálice de xerez. A verdade é que o meu comerciante de vinhos perdeu a sua provisão com os bombardeamentos. Mas tenho gin. Sempre o achei uma mistela. Ou preferem cerveja?

 

Aceitaram cerveja. O major Porter estendeu-lhes a cigarreira.

 

- Fuma?

 

Poirot aceitou um cigarro. O major raspou um fósforo e acendeu o cigarro de Poirot.

 

- Não fuma, bem sei disse o major a Rowley. Incomoda-o que acenda o meu cachimbo?

 

Acendeu-o depois de o limpar e soprar muitas vezes.

 

- Ora, agora disse o major, depois de cumpridos todos esses preliminares digam-me o que os trouxe até cá?

 

Olhou para um e para outro. Poirot respondeu:

 

-Já leu talvez no jornal a notícia da morte de um homem em Warmsley Vale?

 

Porter sacudiu negativamente a cabeça.

 

- É possível, mas não me recordo.

 

- Chamava-se Arden. Enoch Arden. Porter continuou a sacudir a cabeça.

 

- Foi encontrado na estalagem do «Stag» com a nuca arrombada.

 

Porter franziu o sobrolho.

 

- Deixe-me ver... sim, li qualquer coisa a esse respeito, creio eu... há alguns dias.

 

- Isso. Tenho aqui uma fotografia... é uma fotografia de jornal e não muito nítida, receio! Gostaríamos de saber, major Porter, se já alguma vez tinha visto esse homem?

 

Estendeu-lhe a melhor reprodução da cara do morto que conseguira arranjar.

 

O major Porter pegou-lhe e olhou-a de sobrolho franzido.

 

- Um momento, o major tirou os óculos, ajustou-os ao nariz e examinou melhor a fotografia... depois teve um ligeiro sobressalto.

 

- Valha-me Deus! Cos diabos! exclamou.

 

- Reconhece-o, major?

 

- Certamente que o reconheço. É Underhay... Robert Underhay.

 

-Tem a certeza? na voz de Rowley palpitava o triunfo.

 

- Certamente que sim. Robert Underhay! Reconhecê-lo-ia em qualquer lado.

 

O telefone tocou e Lynn foi atendê-lo. Soou a voz de Rowley.

 

- Lynn?

 

- Rowley?

 

A voz da rapariga parecia desanimada.

 

- Como tens passado? Não te tenho visto, nestes últimos dias.

 

- Oh, bem... há muito trabalho... compreendes. Andar de um lado para o outro com um cesto, esperar pelo peixe, estar na bicha para arranjar um bocado de bolo, que no fim sabe mal... todas essas coisas... O arranjo da casa.

 

- Preciso de ver-te. Tenho uma coisa a dizer-te.

 

- Que espécie de coisa? Rowley soltou um rizinho.

 

- Boas notícias. Vem ter comigo ao Rolland Copse.

 

- Boas notícias? Lynn pousou o auscultador no descanso. O que seriam boas notícias para Rowley Cloade? Finanças? Teria vendido aquele novilho por melhor preço do que esperara?

 

Devia ser mais do que isso, pensava. Enquanto subia o campo em direção a Rolland Copse, Rowley deixou o trator e veio ao seu encontro.

 

- Olá, Lynn.

 

- Mas Rowley... pareces... diferente! Ele riu-se.

 

- Creio que sim. A nossa sorte mudou, Lynn!

 

- Que queres dizer?

 

- Lembras-te do velho Jeremy se ter referido a um certo Hercule Poirot?

 

Lynn franziu a testa, procurando recordar-se.

 

- Sim, lembro-me realmente de qualquer coisa...

 

- Foi há bastante tempo. Estávamos ainda em guerra. Estavam naquele mausoléu do clube e havia um ataque aéreo.

 

- E então? perguntou Lynn impacientemente.

 

- Um tipo com roupas estranhas... Um tipo Frances... ou belga. Um tipo estranho, mas boa pessoa.

 

Lynn franziu o sobrolho.

 

- Não era... um detetive?

 

- Exatamente. Bem, sabes, aquele tipo que foi assassinado no «Stag»... não te disse nada, mas tinha cá uma idéia de que era possível que fosse o primeiro marido de Rosaleen Cloade.

 

Lynn riu-se.

 

- Simplesmente porque se chamava Enoch Arden? Que idéia absurda!

 

- Não é tão absurda como isso, minha filha! O velho Spence levou Rosaleen a vê-lo. E ela jurou que não era o seu marido.

 

- Por conseguinte, a idéia foi posta de lado?

 

- Ia sendo, disse Rowley, mas não o foi por minha causa.

 

- Por tua causa? Que fizeste?

 

- Fui procurar esse Hercule Poirot. Disse-lhe que precisávamos de outra opinião. Poderia descobrir alguma pessoa que tivesse realmente conhecido Robert Underhay? Palavra de honra, esse tipo é absolutamente mágico! Tal como tirar coelhos de dentro de um chapéu. Apresentou em poucas horas um tipo que era o melhor amigo de Underhay. Um velhote chamado Porter Rowley calou-se. Depois voltou a rir com a nota de excitação que surpreendera e sobressaltara Lynn. Agora, guarda segredo disto, Lynn. O superintendente fez-me jurar que guardaria segredo... mas gostaria que tu soubesses. O morto é Robert Underhay.

 

- O quê? Lynn deu um passo para trás. Fitou Rowley, perturbada.

 

- O próprio Robert Underhay. Porter não teve a mínima dúvida. Portanto, como vês, Lynn a voz de Rowley elevou-se excitadamente nós ganhamos! No fim de contas, ganhamos! Derrotamos esses malditos malandros.

 

- Que malditos malandros?

 

- Hunter e a irmã. Estão batidos. Rosaleen já não fica com o dinheiro de Gordon. Nós é que o recebemos. É nosso! O testamento que Gordon fez antes de casar-se com Rosaleen é ainda válido e divide o dinheiro entre nós. Eu recebo um quarto. Compreendes? Visto que o seu marido estava vivo quando ela casou com Gordon, ela nunca esteve casada com Gordon!

 

-Tens... tens a certeza do que estás a dizer?

 

Ele fitou-a e pela primeira vez pareceu levemente embaraçado.

 

- Certamente que tenho! É elementar. Tudo agora está bem. Exatamente como ele queria. Tudo está tal e qual como se esse precioso par nunca se tivesse intrometido.

 

Tudo está tal e qual... Mas, pensava Lynn, não se podia passar uma esponja por cima de tudo quanto se tinha passado. Perguntou lentamente:

 

- Que vão eles fazer?

 

- Hem?

 

Ela compreendeu que Rowley ainda não considerara essa pergunta.

 

- Não sei. Voltarão para o sítio de onde vieram, suponho. Sabes, acho que...ela via-o considerar o caso lentamente. Sim, acho que devíamos fazer qualquer coisa por ela. Está claro que se casou com Gordon de inteira boa fé. Creio que está absolutamente convencida de que o primeiro marido estava morto. Não é culpa dela. Sim, temos de fazer alguma coisa por ela... dar-lhe uma pensão decente. Podemos arranjar-lha entre nós todos.

 

- Gostas dela, não gostas? perguntou Lynn.

 

- Acho que sim, Rowley considerou. Sob certo aspecto, sim. É uma pequena agradável. Conhece uma vaca logo que a vê.

 

- Eu não, disse Lynn.

 

- Oh, aprenderás assegurou-lhe Rowley, gentilmente.

 

- E... David? inquiriu Lynn. Rowley tomou um ar ameaçador.

 

- Que vá para o Inferno, esse David! Seja como for, o dinheiro nunca foi dele. Ele limitou-se a aparecer e a viver à custa da irmã.

 

- Não, Rowley, não foi assim... não foi. Ele não é um «chupista». É... é um aventureiro, talvez...

 

- É um criminoso!

 

Ela inquiriu ofegante: Que queres dizer?

 

- Ora, quem julgas tu que matou Underhay?

 

Lynn gritou: Não acredito! Não acredito!

 

- Certamente que o matou! Quem mais podia tê-lo feito? Ele esteve cá, nesse dia. Chegou no comboio das cinco e meia. Eu tinha ido buscar umas coisas à estação e vi-o de relance, ao longe.

 

- Ele voltou para Londres, nessa noite disse Lynn com vivacidade.

 

- Depois de ter assassinado Underhay disse Rowley triunfantemente.

 

- Não deves dizer essas coisas, Rowley. A que horas foi Underhay assassinado?

 

- Bem... não sei exatamente Rowley abrandou o seu entusiasmo... considerou. Não creio que o saibamos antes do inquérito de amanhã. Foi entre as nove e as dez, calculo eu.

 

- David apanhou o comboio das nove e vinte para Londres.

 

- Ouve cá, Lynn, como sabes isso?

 

- Eu... encontrei-o... ia a correr para apanhá-lo.

 

- Como sabes que conseguiu apanhá-lo?

 

- Porque mais tarde telefonou-me de Londres.

 

Rowley gritou colericamente: Por que diabo havia de telefonar-te? Ouve cá, Lynn, macacos me mordam se...

 

- Que importa isso, Rowley? Seja como for, isso prova que apanhou o comboio.

 

- Teve imenso tempo para matar Underhay e para depois apanhar o comboio.

 

- Mas, se foi assassinado depois das nove, não teve.

 

- Ora, pode ter sido assassinado pouco antes das nove.

 

Mas a voz de Rowley era um pouco hesitante. Lynn semicerrou os olhos. Seria essa a verdade?

 

Quando, sem fôlego, a praguejar, David emergira do souto, teria sido um homem que acabara de assassinar um outro que a tomara nos braços? Recordava-se da sua estranha excitação... da ousadia da sua atitude. Seria dessa forma que o crime o afetaria? Talvez. Tinha de admiti-lo. Seria capaz de matar um homem que nunca lhe fizera qualquer mal... um fantasma surgido do passado? Um homem cujo único crime era estar entre Rosaleen e uma grande herança... entre David e a possibilidade de desfrutar do dinheiro de Rosaleen.

 

- Por que havia de matar Underhay? perguntou num murmúrio.

 

- Meu Deus, ainda o perguntas? Acabei de dizer-to! O fato de Underhay estar vivo significa que nós recebemos o dinheiro de Gordon! Seja como for, Underhay fez chantagem com ele.

 

- Ah, assim explicava-se melhor. David podia matar um chantagista... Não seria exatamente dessa maneira que lidaria com um chantagista? Sim, isso ajustava-se à idéia que fazia dele. A pressa de David, a sua excitação... o seu amor feroz, quase irado. E mais tarde renunciando-a. «É melhor eu fugir...» sim, ajustava-se.

 

Depois de terem caminhado um bom pedaço, ouviu a voz de Rowley perguntar: O que se passa, Lynn? Sentes-te bem?

 

- Certamente que sim.

 

- Então, pelo amor de Deus, não estejas com esse ar tão mal-humorado, virou-se e o seu olhar desceu a encosta até Long Willows. Graças a Deus, agora poderemos modernizar bastante a casa... vou dotá-la de máquinas elétricas para teres menos trabalho com o serviço... vou pô-la digna de receber-te. Não quero que te sintas mal nela, Lynn.

 

Devia ser aquele o seu lar... aquela casa. O seu lar e o de Rowley...

 

E uma manhã, às oito horas, David balançaria, suspenso pelo pescoço, até morrer...

 

Com um rosto pálido, mas resoluto, e olhos perscrutadores, David pousou as mãos nos ombros de Rosaleen.

 

-Tudo correrá bem, está descansada, tudo correrá bem. Mas não podes perder a calma e farás exatamente o que eu te disser.

 

- E se eles te levarem? Tu disseste isso! Disseste que podiam levar-te!

 

- Sim, é uma possibilidade. Mas não seria por muito tempo. A menos que percas a cabeça.

 

- Farei o que me disseres, David.

 

- Boa menina! Tudo quanto tens a fazer, Rosaleen, é sustentares a tua história. Continua a dizer que o morto não é o teu marido Robert Underhay.

 

- Obrigar-me-ão a dizer coisas que não quero.

 

- Não, não obrigarão nada. Correrá tudo bem, verás.

 

- Vai correr mal... tem corrido sempre mal. Ficamos com dinheiro que não nos pertence. Passo noites em claro a pensar nisso, David. Ficamos com o que não nos pertence. Deus está a castigar-nos pela nossa maldade.

 

Ele olhou-a de sobrolho franzido. Ela estava a manifestar indícios de loucura... sim, não havia a menor dúvida. Houvera sempre esse resíduo religioso. A sua consciência nunca se sentira inteiramente acalmada. Portanto, a menos que fosse muitíssimo afortunado, ela acabaria por sucumbir. Bem, havia apenas uma coisa a fazer.

 

- Ouve, Rosaleen pediu-lhe suavemente. Queres que me enforquem?

 

Ela arregalou os olhos, horrorizada.

 

- Oh, David, tu não... eles não podem...

 

- Há apenas uma pessoa que pode mandar-me para a forca... és tu. Se, por uma única vez que seja, admitires por um olhar, por um sinal ou por uma palavra que esse morto era Underhay, lanças-me a corda à volta do pescoço. Compreendes?

 

Sim, isso entrara-lhe na cabeça. Olhou-o com uns olhos esgazeados, horrorizados.

 

-Sou tão estúpida, David.

 

- Não és, não. Em qualquer dos casos, não precisas de ser esperta. Terás apenas de jurar solenemente que esse morto não é teu marido. És capaz disso?

 

Ela respondeu-lhe com um sinal de cabeça afirmativo.

 

- Finge-te estúpida, se te apetecer. Finge não compreenderes bem o que eles te perguntarem. Isso não fará mal nenhum. Mas mantém-te firme nos pontos que te indiquei. Gaythorne defender-te-á. É um advogado criminal muito hábil, foi por isso que o arranjei. Estará presente no inquérito e livrar-te-á de qualquer embaraço. Mas até com ele tens de insistir na tua história. Por amor de Deus, não tentes ser inteligente ou pensar que podes ajudar-me com qualquer iniciativa tua.

 

- Está descansado, David. Farei exatamente o que me dizes.

 

- Boa pequena. Quando tudo estiver acabado, ir-nos-emos embora... para o Sul da França... para a América. Entretanto, cuida da tua saúde. Não passes as noites acordada afligindo-te e enervando-te. Toma esses soporíferos que o Dr. Cloade te receitou... brometo ou lá o que é. Toma o conteúdo de um pacotinho todas as noites, tem ânimo e lembra-te de que se aproxima o bom tempo!

 

- Agora... olhou para o relógio de pulso são horas de comparecer no inquérito. Está marcado para as onze.

 

Percorreu com o olhar a comprida e bonita sala de estar. Beleza, conforto, luxo... Gozara tudo isso. Uma bela casa em Furrowbank. Talvez isso fosse o adeus...

 

Metera-se numa alhada... isso era certo. Mas nem agora o lamentava. E quanto ao futuro... ora, continuaria a arriscar-se «Devemos aproveitar a corrente, quer favoreça ou prejudique as nossas aventuras».

 

Olhou para Rosaleen. Ela observava-o com uns grandes olhos suplicantes e intuitivamente ele compreendeu o que ela queria.

 

- Não o matei, Rosaleen, disse suavemente. Juro-o por todos os santos do calendário!

 

O inquérito teve lugar no Cornmarket.

 

O coroner, Mr. Pebmarsh, era um homem baixo e gorducho, com óculos e uma considerável noção da sua importância.

 

A seu lado, estava sentado o corpulento superintendente Spence. Num discreto assento, achava-se um homem baixo, com aspecto estrangeiro e um grande bigode negro. A família Cloade: os Jeremy Cloades, os Lionel Cloades, Rowley Cloade, Mrs. Marchmont e Lynn... estavam lá todos. O major Porter estava sentado, à parte, inquieto e contrafeito. David e Rosaleen foram os últimos a chegar. Sentaram-se também à parte.

 

O coroner pigarreou e, olhando para cada uma das nove sumidades locais, que constituíam o júri, começou os atos judiciais.

 

O polícia Peacock...

 

O sargento Vane...

 

O Dr. Lionel Cloade...

 

- Estava a atender profissionalmente um paciente no «Stag» quando Gladys Aitkin foi ter consigo. Que disse ela?

 

- Informou-me de que o ocupante do quarto n.° 5 estava estendido no chão, morto.

 

- E em conseqüência disso, subiu ao n.° 5?

 

- Sim.

 

- Quer descrever o que encontrou?

 

O Dr. Cloade acedeu. O corpo de um homem... de bruços... ferimentos na cabeça... na nuca... tenazes.

 

- Foi de opinião que os ferimentos tivessem sido provocados com as tenazes em questão?

 

- Alguns deles foram-no, incontestavelmente.

 

- E teriam sido desferidos vários golpes?

 

- Sim. Não procedi a um exame minucioso porque achei que a polícia devia ser chamada antes de se tocar no corpo ou alterar-lhe a sua posição.

 

- Muito bem. O homem estava morto?

 

- Sim. Estava-o, há várias horas.

 

- Na sua opinião, há quantas?

 

Hesitou em dar uma resposta categórica. Pelo menos, onze horas... mas também é possível que estivesse há treze ou catorze... digamos entre as sete e meia e as dez e meia da noite anterior.

 

- Obrigado, Mr. Cloade.

 

Depois foi a vez do cirurgião da polícia... que forneceu uma descrição completa e técnica das lesões. Havia um ferimento e um inchaço no maxilar inferior e na base da nuca tinham sido desferidos cinco ou seis golpes, alguns dos quais depois da morte.

 

- Foi um ato de requintada selvajaria?

 

- Exatamente.

 

- Teria sido requerida muita força para infligir esses golpes?

 

- Força, precisamente, não. As tenazes, agarradas pela extremidade dos braços, podiam ser vibradas facilmente sem grande esforço. A pesada esfera de aço que constitui a cabeça das tenazes, é uma arma formidável. Qualquer pessoa, ainda que fraca, podia ter causado essas lesões, isto é, se fosse levada a fazê-lo num frenesi de excitação.

 

- Obrigado, doutor.

 

Seguiram-se pormenores acerca do estado do corpo... bem alimentado, saudável, com a idade aproximada de quarenta e cinco anos. Nenhuns sinais de doença... coração, pulmões, etc., tudo bom.

 

Beatrice Lippincott relatou a chegada do falecido. Registara-se como Enoch Arden, proveniente da Cidade do Cabo.

 

- O falecido apresentou uma caderneta de racionamento?

 

- Não, senhor.

 

- Pediu-lhe alguma?

 

- A princípio, não. Ignorava por quanto tempo ia demorar-se.

 

- Mas chegou a pedir-lha?

 

- Sim, senhor. Chegou na sexta-feira e, no sábado, disse-lhe que, no caso de tencionar demorar-se mais do que cinco dias, fizesse o favor de dar-me a sua caderneta de racionamento.

 

- Que respondeu ele a isso?

 

- Prometeu dar-ma.

 

- Mas não chegou a fazê-lo?

 

- Não.

 

- Não lhe disse que a tinha perdido? Ou que não tinha nenhuma?

 

- Oh, não. Disse-me apenas: «Vou tratar disso e dar-lha.»

 

- Miss Lippincott, na noite de sábado, surpreendeu por acaso uma conversa?

 

Com uma profusão de explicações embaraçosas para justificar a sua necessidade de ir ao n.° 4, Beatrice Lippincott contou-lhe o que ouvira. O coroner encaminhava-a astutamente.

 

- Obrigado. Mencionou esta conversa a alguém?

 

- Sim referi-a a Mr. Rowley Cloade.

 

- Por que a contou a Mr. Rowley Cloade?

 

- Achei que devia sabê-lo. Beatrice corou.

 

Um homem alto e magro, Mr. Gaythorne, levantou-se e pediu licença para fazer uma pergunta.

 

- No decurso da conversa ocorrida entre o defunto e Mr. David Hunter o falecido chegou alguma vez a dizer que era Robert Underhay?

 

- Não... não...

 

- Mas falou de «Robert Underhay» como se Robert Underhay fosse uma outra pessoa?

 

- Sim... sim...

 

- Obrigado, senhor coroner, era tudo quanto eu queria esclarecer.

 

Beatrice Lippincott voltou para o seu lugar e foi a vez de Rowley Cloade.

 

Confirmou que Beatrice lhe tinha repetido a história e depois relatou a sua entrevista com o falecido.

 

- Foram as últimas palavras que lhe dirigiu: «Não creio que prove isso sem a minha cooperação», sendo «Isso» o fato de Robert Underhay ainda estar vivo?

 

- Foi isso o que ele disse, sim. E riu-se.

 

- Riu-se? Que significado atribuiu a essas palavras?

 

- Bem... pensei que tentava levar-me a fazer-lhe uma oferta, mas depois disso, comecei a pensar...

 

- Sim, Mr. Cloade... mas o que o senhor pensou em seguida não tem muita importância. Deveremos considerar que, em resultado dessa entrevista, o senhor foi procurar uma pessoa que conhecesse o falecido Robert Underhay? E que, com uma certa ajuda, foi bem sucedido?

 

Rowley respondeu que sim com um aceno de cabeça e corroborou:

 

- Exatamente.

 

- A que horas deixou o defunto?

 

- Julgo que pelas nove menos cinco.

 

- O que o levou a fixar essa hora?

 

-Quando ia na rua, ouvi o bater das nove horas através de uma janela aberta.

 

- O defunto disse a que horas esperava esse cliente?

 

- Disse: «De um momento para o outro.»

 

- Não mencionou qualquer nome?

 

- Não.

 

- David Hunter!

 

Houve apenas um leve murmúrio quando os habitantes de Warmsley Vale estenderam os pescoços para verem o homem novo, magro e alto, de aspecto sombrio, que olhou desafiadoramente para o coroner.

 

Os preliminares realizaram-se rapidamente. O coroner continuou:

 

- Foi procurar o defunto na noite de sábado?

 

- Sim. Recebi uma carta dele pedindo-me auxílio e dizendo que conhecera em África o primeiro marido de minha irmã.

 

-Tem essa carta?

 

- Não, não guardo cartas.

 

- Ouviu o relato feito por Beatrice Lippincott da sua conversa com o defunto. É um relato verdadeiro?

 

- Absolutamente falso. O defunto referiu-se ao seu conhecimento de meu falecido cunhado, lastimou a sua triste sorte e ter ficado arruinado e pediu um certo auxílio financeiro que, como é costume, estava absolutamente certo de poder pagar.

 

- Disse-lhe que Robert Underhay ainda estava vivo?

 

David sorriu.

 

- Certamente que não. Disse: «Se Robert ainda fosse vivo, sei que me ajudaria.»

 

- Isso difere muito do que Beatrice Lippincott nos contou!

 

- As pessoas que escutam às portas sentenciou David ouvem geralmente apenas uma parte do que se diz e frequentemente embrulham tudo em virtude de fornecerem os pormenores que lhes faltam com auxílio da sua fértil imaginação.

 

Beatrice agitou-se colericamente e exclamou:

 

- Eu nunca...

 

O coroner recomendou repreensivamente:

 

- Silêncio, por favor.

 

- Mr. Hunter, voltou a procurar o defunto na noite de terça-feira?

 

- Não, não procurei.

 

- Ouviu Mr. Cloade dizer que o defunto esperava um visitante?

 

- É possível que sim, mas, ainda que assim fosse, eu não era esse visitante. Já lhe tinha dado cinco libras. Achei que era mais do que o suficiente. Não havia qualquer prova de que tivesse conhecido Robert Underhay. Minha irmã, desde que, por morte do marido, herdou um largo rendimento, tem sido alvo de todos os «chupistas» das vizinhanças e até pedinchões desconhecidos.

 

Calmamente, percorreu com o olhar o grupo dos Cloades.

 

- Mr. Hunter, quer dizer-nos onde esteve na noite de terça-feira?

 

- Descubram-no! desafiou David.

 

- Mr. Hunter! o coroner deu uma pancada na mesa. Acaba de dizer uma coisa muitíssimo insensata e imprudente.

 

- Por que hei-de dizer-lhe onde estive e o que fiz? Tenho imenso tempo para isso se me acusarem de ter assassinado o homem.

 

- Se persiste nessa atitude, é possível que o façamos mais cedo do que pensa. Reconhece isto, Mr. Hunter?

 

Inclinando-se para a frente, David pegou no isqueiro de ouro. O seu rosto denotava perturbação. Devolveu-o, dizendo lentamente:

 

- Sim, é meu.

 

- Quando o teve pela última vez?

 

- Perdi-o... fez uma pausa.

 

- Então, Mr. Hunter? a voz do coroner era branda. Gaythorne agitou-se dando a impressão de querer falar, mas David foi mais rápido do que ele.

 

-Tinha-o ainda na sexta-feira passada... de manhã. Não me lembro de tê-lo visto depois disso.

 

Mr. Gaythorne levantou-se.

 

- Com licença, Mr. Coroner. Visitou o defunto na noite de sábado. Não poderia lá ter deixado o isqueiro?

 

- É possível respondeu David lentamente. Mas não me lembro de tê-lo visto depois de sexta-feira... acrescentou. Onde o encontraram?

 

O coroner respondeu: Trataremos disso mais tarde. Pode voltar para o seu lugar, Mr. Hunter.

 

David voltou lentamente para o seu lugar. Baixou a cabeça e segredou a Rosaleen:

 

O major Porter.

 

Tossicando e tartamudeando um pouco, o major Porter tomou lugar no estrado das testemunhas. Ficou ali, ostentando um aprumo militar, como se estivesse numa parada. Só o modo como umedecia os lábios denotava o intenso nervosismo de que estava possuído.

 

- É George Douglas Porter, antigo major do Royal African Rifles (*)?

 

(*) Regimento colonial britânico.

 

- Sou.

 

- Até que ponto conhecia bem Robert Underhay?

 

Com uma voz de praça de armas, o major Porter referiu lugares e datas.

 

-Já viu o corpo do defunto?

 

- Sim.

 

- Pode identificar esse corpo?

 

- Sim. É o corpo de Robert Underhay.

 

Um murmúrio de excitação perpassou pela sala.

 

- Declara isso categoricamente e sem a mínima dúvida?

 

- Declaro.

 

- Não há qualquer possibilidade de estar enganado?

 

- Nenhuma.

 

- Obrigado, major Porter. Mrs. Gordon Cloade. Rosaleen levantou-se. Passou pelo major Porter que a olhou com uma certa curiosidade. Ela nem sequer o olhou de relance.

 

- Mrs. Cloade, a polícia levou-a a ver o corpo do defunto?

 

Ela estremeceu e respondeu:

 

- Sim.

 

- Afirma ser o corpo de um homem completamente desconhecido?

 

- Sim.

 

- Em vista do depoimento que o major Porter acabou de fazer, deseja desdizer ou retificar o seu depoimento?

 

- Não.

 

- Continua a afirmar que o corpo não era o de seu marido, Robert Underhay?

 

- Não era o corpo de meu marido. Era o de um homem que eu nunca tinha visto na minha vida.

 

- Mas, Mrs. Cloade, o major Porter reconheceu-o definitivamente como sendo o do amigo Robert Underhay.

 

Rosaleen declarou inexpressivamente:

 

- O major Porter está enganado.

 

- Neste tribunal, não está sob juramento, Mrs. Cloade, mas é de esperar que o esteja, dentro de pouco tempo, num outro tribunal. Está então resolvida a declarar sob juramento que o corpo não é o de Robert Underhay, mas o de um homem que lhe é desconhecido?

 

- Estou resolvida a jurar que não é o corpo de meu marido, mas o de um homem que me é inteiramente desconhecido.

 

A sua voz era clara e firme. Agüentou o olhar do coroner sem estremecer.

 

- Pode ir sentar-se murmurou este. Depois, tirando o pince-nez, dirigiu-se ao júri. Encontravam-se ali para descobrir como esse homem morrera. Quanto a isso, poucas dúvidas podia haver. Não podia considerar-se a idéia de suicídio ou de acidente. Nem sequer podia haver a sugestão de homicídio. Restava apenas um veredicto assassínio premeditado. Quanto à identidade do morto, isso ainda não estava claramente esclarecido.

 

Tinham ouvido uma testemunha, um homem de caráter reto e de reconhecida probidade, em cuja palavra se podia confiar, afirmar que o corpo era o de um antigo amigo, Robert Underhay. Por outro lado, a morte de Robert Underhay, em África, com febres, fora comprovada ao que parecia de modo a satisfazer as autoridades locais e sem que se tivesse levantado qualquer objeção. Em contradição com o depoimento do major Porter, a viúva de Robert Underhay, agora Mrs. Cloade, afirmava que o corpo não era o de Robert Underhay. Eram pois dois depoimentos diametralmente opostos. Depois da questão de estabelecimento de identidade, teriam de decidir se havia qualquer prova que indigitasse a mão que cometera o crime. Podiam pensar que as provas indicavam uma certa pessoa, mas era necessário uma boa quantidade de provas para se poder decifrar qualquer caso... provas... motivo... e oportunidade. Era necessário que alguém tivesse visto essa pessoa na vizinhança da cena do crime e em altura apropriada. Se tal não se verificasse, o melhor veredicto indicava crime premeditado sem provas suficientes que indigitassem o criminoso. Um veredicto dessa natureza daria liberdade à polícia para proceder aos necessários inquéritos.

 

Depois, deu-lhes liberdade para que considerassem o seu veredicto.

 

Levaram três quartos de hora.

 

Entregaram um veredicto de assassínio premeditado, contra David Hunter.

 

- Já calculava que o fizessem! disse o coroner apologeticamente.

 

Prevenção local! Mais comovedor do que lógico. Depois do inquérito, o coroner, o chefe da Polícia, o superintendente Spence e Hercule Poirot reuniram-se em conferência.

 

- Fez o possível consolou-o o chefe da Polícia.

 

- É prematuro dizê-lo retorquiu Spence, franzindo o sobrolho. E isso deixa-nos embaraçados. Conhece M. Hercule Poirot? Devemos-lhe a presença de Porter.

 

O coroner disse amavelmente:

 

-Tenho ouvido falar de si, M. Poirot.

 

Este fez uma tentativa mal sucedida de assumir um ar modesto.

 

- M. Poirot está interessado no caso explicou Spence com um arreganhar de dentes.

 

- Exatamente, é isso mesmo confirmou Poirot. Já o estava, antes de haver um caso.

 

E, em resposta aos seus olhares interessados, contou a estranha cena no clube em que, pela primeira vez, ouvira mencionar o nome de Robert Underhay.

 

- Isto constitui um ponto adicional a favor de Porter quando o caso for a julgamento observou o chefe da Polícia pensativamente Underhay planeou realmente uma morte falsa... e falou em usar o nome de Enoch Arden.

 

O chefe da Polícia murmurou: Mas será isso aceitável como prova? Palavras proferidas por um homem que agora está morto?

 

- Pode não ser aceitável como prova, admitiu Poirot pensativamente, mas levanta uma hipótese muito interessante e sugestiva.

 

- O que nós queremos, fez notar Spence, não é sugestão, mas fatos concretos. Alguém que tenha visto realmente David Hunter no «Stag» ou perto dele, na noite de terça-feira.

 

- Deve ser fácil declarou o chefe da Polícia, de sobrolho franzido.

 

- Se tivesse sido no meu país, teria sido bastante fácil disse Poirot. Há sempre um pequeno café onde alguém toma café, à noite... mas na provinciana Inglaterra! ergueu as mãos.

 

O superintendente concordou com um aceno de cabeça.

 

- Algumas das pessoas estão nas tabernas e ficam aí até serem horas de fechar, ao passo que o resto da população fica dentro das suas casas a ouvir o noticiário das nove horas. Se aqui percorremos a rua principal entre as oito e meia e as dez horas, achamo-la completamente deserta. Nem vivalma!

 

- Ele contou com isso? sugeriu o chefe da Polícia.

 

-Talvez admitiu Spence. A sua expressão não era feliz.

 

Pouco depois, o chefe da Polícia e o coroner retiraram-se. Spence e Poirot ficaram sós.

 

- O caso não lhe agrada, pois não? perguntou Poirot, compreensívamente.

 

- Aquele rapaz preocupa-me, confessou Spence. É do tipo que nunca se compreende quando estamos com eles. Quando estão absolutamente inocentes num assunto, procedem como se estivessem culpados. E quando são culpados... seríamos capazes de jurar que são uns anjos!

 

- Acha-o culpado? perguntou Poirot.

 

- E o senhor? ripostou Spence. Poirot estendeu as mãos.

 

- Confesso que me interessaria saber exatamente quais os dados que dispõe contra ele?

 

- Não quer dizer legalmente? Quer dizer no campo das probabilidades?

 

Poirot respondeu afirmativamente com um movimento de cabeça.

 

- Há o isqueiro começou Spence.

 

- Onde o encontrou?

 

- Debaixo do corpo.

 

- Impressões digitais?

 

- Nenhuma.

 

- Ah! exclamou Poirot.

 

- Sim concordou Spence, eu próprio também não me sinto muito satisfeito com isso. Além disso, o relógio do morto estava parado às nove e dez. Isto ajusta-se perfeitamente à opinião médica... e com a declaração de Rowley Cloade de que Underhay esperava de um momento para o outro o seu «cliente»... presumivelmente, esse «cliente» era quase exato.

 

Poirot concordou com um meneio de cabeça.

 

- Sim... é tudo muito nítido.

 

- E para mim, aquilo de que não nos podemos esquecer, M. Poirot, é que ele é a única pessoa ele e a irmã que têm o espectro ou sombra de um motivo. Ou David Hunter assassinou Underhay... ou então Underhay foi assassinado por qualquer estranho que o seguiu até cá por qualquer razão que desconhecemos... e isso parece-me muito improvável.

 

- Oh, de acordo, de acordo.

 

- Bem vê, não há ninguém, em Warmsley Vale, que pudesse ter um motivo a não ser que, por uma coincidência, viva aqui alguém, além dos Hunters que tenha qualquer relação com o passado de Underhay. Eu nunca excluo as coincidências, mas não houve nenhum indício ou sugestão de qualquer coisa no gênero. O homem era um desconhecido para toda a gente com exceção desse irmão e irmã.

 

Poirot concordou com um movimento de cabeça.

 

- Para a família Cloade, Underhay seria a luz dos seus olhos que devia ser conservada a todo o custo. Robert Underhay, vivo e com saúde, significa a certeza de uma grande fortuna a dividir entre eles.

 

- Mon ami, tem de novo o meu entusiástico acordo. Robert Underhay vivo e com saúde, é do que a família Cloade precisava.

 

- Então, voltamos ao mesmo ponto... Rosaleen e David Hunter são as duas únicas pessoas que têm um motivo. Rosaleen Cloade estava em Londres. Mas David, sabemo-lo, esteve nesse dia em Warmsley Vale. Chegou às cinco e meia à estação de Warmsley Heath. Nesse caso temos um MOTIVO, escrito em maiúsculas e a certeza de que, às cinco e meia e daí para diante até uma hora não especificada, ele esteve no lugar.

 

- Exatamente. Agora considere o relato de Beatrice Lippincott. Acredito nele. Ela escutou o que disse ter escutado, embora tivesse aumentado um pouco, como é humano.

 

- Como é humano, exatamente.

 

- À parte conhecer a rapariga, acredito-a porque não podia ter inventado certas coisas. Por exemplo, nunca antes ouvira falar em Robert Underhay. Por conseguinte, acredito no seu relato acerca do que se passou entre os dois homens e não no de David Hunter.

 

-Também eu, apoiou Poirot. Deu-me a impressão de ser uma testemunha singularmente verídica.

 

-Temos a confirmação de que a sua versão é verdadeira. Por que julga que o irmão e a irmã foram para Londres?

 

- É essa uma das coisas que mais me tem interessado.

 

- Ora, a posição do dinheiro é esta. Rosaleen Cloade dispõe apenas de uma renda vitalícia da fortuna de Gordon Cloade. Não pode tocar no capital... exceto, creio eu, em mil libras, aproximadamente. Mas as jóias, etc., pertencem-lhe. A primeira coisa que ela fez, ao regressar à capital, foi levar das peças mais valiosas à Bond Street e vendê-las. Queria obter rapidamente uma avultada quantia em dinheiro contado... por outras palavras, tinha de pagar a um chantagista.

 

- Atribui isso a David Hunter?

 

- Não é também da mesma opinião?

 

Poirot abanou a cabeça.

 

- O fato de haver chantagem, sim. Mas não a intenção de cometer o assassínio. Não podemos tirar essas duas conclusões, mon cher. Esse rapaz ou tencionava pagar ou planeava assassinar. Acaba de me apresentar dados comprovativos de que ele tencionava pagar.

 

- Sim... sim, talvez seja assim. Mas pode ter mudado de idéias.

 

Poirot encolheu os ombros.

 

- Conheço esse tipo disse, pensativo, o superintendente. É um tipo que serviu durante a guerra. É dotado de coragem física. Audacioso e temerariamente descuidado da sua segurança pessoal. O gênero capaz de enfrentar quaisquer forças superiores. O gênero capaz de ganhar-a Victory Cross embora muitas vezes seja póstuma. Sim, em tempo de guerra, um homem desses é um herói. Mas em paz... bem, em paz, tais homens acabam geralmente na prisão. Gostam da excitação e não podem portar-se bem, pouco se importando com a sociedade... e, finalmente, não têm qualquer consideração pela vida humana.

 

Poirot concordou com um aceno de cabeça.

 

- Digo-lhe repetiu o superintendente que conheço o gênero.

 

Seguiram-se alguns minutos de silêncio.

 

- Eh bien! exclamou Poirot por fim. Concordamos que temos aqui o tipo de um assassino. Mas é tudo. E isso não nos adianta.

 

Spence olhou-o com curiosidade.

 

-Tem um grande interesse no caso, M. Poirot?

 

- Sim.

 

- Posso perguntar-lhe porquê?

 

- Sinceramente Poirot estendeu as mãos não sei bem. Talvez porque, quando há dois anos me achava sentado, muito incomodado do estômago porque não gostava de ataques aéreos e não sou muito corajoso, embora me esforce por manter as boas aparências quando, estava eu a dizer, me achava sentado com uma desagradável sensação aqui Poirot abraçou expressivamente o estômago na sala de fumo do clube do meu amigo, estava zumbindo, a um canto, o elemento-maçador do clube, o major Porter, uma longa história a que ninguém prestava atenção; mas eu ouvia-o, porque desejava distrair a atenção das bombas e porque os fatos que relatava me pareciam interessantes e sugestivos. Pensei com os meus botões que era possível que algum dia pudesse resultar qualquer coisa dessa situação que narrava pela centésima vez. E, de fato, agora resultou alguma coisa.

 

- Aconteceu o inesperado, hem?

 

- Pelo contrário corrigiu-o Poirot. O esperado é que aconteceu... o que em si é suficientemente notável.

 

- Esperava assassínio? inquiriu Spence, cepticamente.

 

- Não, não, não! Mas uma esposa torna a casar-se. Possibilidade de que o primeiro marido ainda esteja vivo? Está vivo. Pode aparecer? Aparece! Pode haver chantagem? Há chantagem! Possibilidade, por conseguinte, de que o chantagista seja reduzido ao silêncio? Mas foi, é reduzido ao silêncio!

 

- Bem disse Spence, olhando para Poirot bastante duvidosamente. Suponho que estas coisas se ajustem bastante ao tipo. É uma espécie de crime vulgar... chantagem que resulta em assassínio.

 

- Acha que é um caso interessante? Usualmente, não o é. Mas este é interessante, porque, compreende disse Poirot placidamente, está tudo errado.

 

-Tudo errado? Que quer dizer com tudo errado?

 

- Nada está, como hei-de dizer, da forma acertada? Spence olhou-o pasmado.

 

- O chefe-inspector Japp disse sempre observou que o senhor tinha um espírito tortuoso. Quer dar-me um exemplo do que diz errado?

 

- Bem, o morto, por exemplo, esse está errado. Spence abanou a cabeça.

 

- Não sente isso? perguntou-lhe Poirot. Oh, bem, talvez eu seja um fantasista. Mas considere este ponto: Underhay chega ao «Stag»; escreve a David Hunter; este recebe essa carta na manhã seguinte... à hora do pequeno-almoço?

 

- Sim, é isso. Admite ter recebido nessa altura uma carta de Arden.

 

- Foi a primeira intimação, não foi, da chegada de Underhay a Warmsley Vale? Qual é a primeira coisa que ele faz?... Manda a irmã para Londres!

 

- Isso é perfeitamente compreensível alegou Spence. Quer o caminho desembaraçado, para tratar das coisas à sua maneira. Deve ter receado que a rapariga fraquejasse. Não se esqueça de que o espírito diretor é ele. Mrs. Cloade está-lhe inteiramente na mão.

 

- Oh, sim, isso vê-se perfeitamente. Por conseguinte, expede-a para Londres e visita Enoch Arden. Temos um relato bastante exato da sua conversa, feito por Beatrice Lippincott e a coisa que difere, uma milha como vocês dizem, é que David Hunter não tinha a certeza se o homem com quem estava a falar era ou não Robert Underhay. Suspeitava-o mas não o sabia.

 

- Mas nisso não há nada de estranho, M. Poirot. Rosaleen Hunter casou-se com Underhay, na Cidade do Cabo, e foi com ele para a Nigéria. Hunter e Underhay nunca se conheceram. Por conseguinte, embora, como diz, Hunter suspeitasse que Arden era Underhay, não podia ter a certeza disso... porque nunca o vira.

 

Poirot olhou pensativamente para o superintendente Spence.

 

- Então, não há nada que o impressione... pela sua singularidade? inquiriu.

 

- Sei onde quer chegar. Por que não disse Underhay claramente que era Underhay? Bem, creio que isso também é compreensível. As pessoas respeitáveis que fazem negócios escuros preferem salvaguardar as aparências. Gostam de fazer as coisas de uma certa maneira que as não comprometa... não sei se compreende o que quero dizer. Não... não acho que isso seja muito extraordinário. Temos de dar desconto à natureza humana.

 

- Sim disse Poirot, a natureza humana. Isso, creio eu, é talvez a verdadeira resposta ao motivo por que estou interessado neste caso. Contemplei demoradamente o tribunal do coroner, olhei para todas as pessoas, especialmente para os Cloades... tantos e, todavia, todos eles ligados pelo mesmo interesse comum e todos eles de personalidades tão diferentes, nos seus pensamentos e sentimentos; todos eles dependentes, durante muitos anos, do homem forte, o poderoso da família, Gordon Cloade. Não quero dizer, talvez, diretamente dependentes.

 

-Todos eles tinham os seus meios independentes de existência. Mas tinham ido, devem ter-se, conscientemente ou inconscientemente, apoiado nele. E o que acontece... pergunto-lhe isto, superintendente, o que acontece à hera quando o carvalho, à volta do qual trepa, foi abatido?

 

- Bem, isso não é bem uma pergunta do meu ofício respondeu Spence.

 

- Acha que não? Pois eu acho que sim. A personalidade, mon cher, não enfraquece. Fortalece-se. Pode também deteriorar-se. O que uma pessoa é na realidade, só se vê quando chega o momento de prová-lo, isto é, o momento em que se mantém de pé ou cai.

 

- Não estou realmente a ver aonde quer chegar, M. Poirot. Spence parecia confundido. Seja como for, os Cloades agora ficarão bem colocados, uma vez que as formalidades legais estejam cumpridas.

 

Poirot lembrou-se que isso devia levar algum tempo.

 

- Há ainda que provar que o depoimento de Mrs. Gordon Cloade é falso. No fim de contas, uma mulher deve conhecer o marido quando o vê.

 

Pôs a cabeça um pouco de lado e olhou inquiridoramente para o enorme superintendente.

 

- Não vale a pena a uma mulher não reconhecer o marido se disso depender o rendimento de dois milhões de libras? inquiriu cinicamente o superintendente. Além disso, se ele não fosse Robert Underhay, por que foi assassinado?

 

- Na realidade murmurou Poirot a pergunta é essa.

 

Poirot saiu da esquadra da polícia, de sobrolho franzido. À medida que caminhava, os seus passos tornavam-se mais lentos. Parou na praça do mercado, olhando à volta. Ficava aí a casa do Dr. Cloade, com a sua placa de latão já gasta, e, um pouco mais adiante, a estação dos correios. Do outro lado, ficava a casa de Jeremy Cloade. À frente de Poirot, um pouco recuada do pavimento da rua, ficava a Igreja Católica Romana da Assunção, uma obra modesta, uma violeta definhada, em comparação com o agressivismo da de Santa Maria, erguida arrogantemente no meio da praça, em frente ao Cornmarket, proclamando a supremacia da religião Protestante.

 

Levado por um impulso, Poirot transpôs o portão e percorreu o caminho da entrada da Igreja Católica Romana. Tirou o chapéu, fez uma genuflexão em frente ao altar e ajoelhou-se atrás de uma das cadeiras. As suas orações foram interrompidas pelo som de soluços sufocados e confrangedores.

 

Virou a cabeça. Do outro lado da nave, estava ajoelhada uma mulher, vestida de negro, com o rosto metido entre as mãos. Pouco depois, levantou-se e, ainda soluçante, dirigiu-se para a porta. Poirot, com os olhos dilatados pelo interesse, ergueu-se e seguiu-a. Reconhecera Rosaleen Cloade.

 

A rapariga parou junto do pórtico, procurando recompor-se, e foi aí que Poirot se lhe dirigiu, muito gentilmente:

 

- Madame, posso ajudá-la?

 

Ela não mostrou quaisquer sinais de surpresa, mas respondeu com a simplicidade de uma criança infeliz:

 

- Não respondeu, ninguém pode ajudar-me.

 

- Está numa situação muito aflitiva, não está?

 

- Levaram David... estou sozinha respondeu. Dizem que foi ele que matou... Mas não foi! Não foi!

 

Olhou para Poirot e perguntou-lhe:

 

- Esteve lá hoje? No inquérito. Vi-o!

 

- Sim. Se posso ajudá-la, madame, terei muito gosto em fazê-lo.

 

- Estou assustada. David disse que eu estaria em segurança enquanto ele pudesse olhar por mim. Mas agora levaram-no... Tenho medo. Disse... que todos queriam a minha morte. É uma coisa terrível. Mas talvez seja verdade.

 

- Deixe-me ajudá-la, madame.

 

Ela sacudiu negativamente a cabeça.

 

- Não, repetiu. Ninguém pode ajudar-me. Nem sequer posso desabafar. Tenho de agüentar sozinha o peso da minha maldade. Estou privada da misericórdia de Deus.

 

- Ninguém, disse Hercule Poirot, está privado da misericórdia de Deus. Bem sabe isso, minha filha.

 

Ela voltou a olhá-lo com um olhar infeliz e desorientado.

 

- Queria confessar os meus pecados... confessar-me. Se pudesse confessar-me...

 

- Não pode confessar-se? Veio à igreja para isso, não veio?

 

- Vim procurar consolo... consolo. Mas que consolo há para mim? Sou uma pecadora.

 

-Todos nós somos pecadores.

 

- Mas teria de arrepender-me... teria de dizer... de contar... levou as mãos à cara. Oh, as mentiras que eu disse... as mentiras que eu disse.

 

- Mentiu a respeito de seu marido? A respeito de Robert Underhay? Foi Robert Underhay quem foi assassinado aqui, não foi?

 

Ela virou-se vivamente para ele. Os seus olhos mostravam-se desconfiados, prudentes. Gritou desabridamente:

 

- Já lhe disse que não era meu marido. Não se parecia nada com ele!

 

- O homem morto não se parecia nada com seu marido?

 

- Não. respondeu firmemente.

 

- Diga-me, pediu-lhe Poirot, como era seu marido?

 

Fitou-o de olhos arregalados. Depois espelhou-se-lhe no rosto uma expressão de alarme e os olhos mostraram um indizível pavor.

 

Gritou: Não falarei mais consigo!

 

Afastou-se rapidamente, desceu o caminho da entrada e transpôs o portão que dava para a praça do mercado.

 

Poirot não procurou segui-la. Em vez disso, meneou a cabeça com profunda satisfação.

 

- Ah! exclamou. Com que então é isso! Dirigiu-se lentamente para a praça.

 

Depois de uma hesitação momentânea, percorreu a High Street até chegar ao «Stag», que era a última casa antes do campo aberto.

 

Na entrada, encontrou Rowley Cloade e Lynn Marchmont.

 

Poirot olhou interessadamente para esta. Era uma rapariga elegante, pensou, e inteligente também, mas não era o seu tipo. Preferia um gênero mais delicado, mais feminino. Achava que Lynn Marchmont era essencialmente um tipo moderno embora também pudesse, com igual justeza, chamar-se um tipo isabelino. Mulheres que pensavam por si sós, que tinham uma linguagem livre e que admiravam a iniciativa e a coragem dos homens.

 

- Estamos-lhe muito gratos, disse Rowley. Caramba, foi realmente um truque de prestidigitação.

 

Fora exatamente isso, pensou Poirot. Fazerem-nos uma pergunta cuja resposta conhecemos, não era nenhuma dificuldade. Calculou que para o ingênuo Rowley a apresentação do major Porter, por assim dizer, tirado do ar, fora tão formidável como qualquer truque com coelhos saídos do chapéu de um prestidigitador.

 

- A maneira como faz essas coisas, confunde-me confessou Rowley.

 

Poirot não o esclareceu. No fim de contas, era apenas humano. O prestidigitador não explica ao público como faz a habilidade.

 

- Seja como for, Lynn e eu estamos-lhe infinitamente reconhecidos prosseguiu Rowley.

 

Poirot pensou que Lynn Marchmont não parecia particularmente agradecida. Tinha pés-de-galinha à volta dos olhos e os seus dedos entrelaçavam-se e desprendiam-se nervosamente.

 

- Isso representará uma enorme diferença para a nossa futura vida de casados disse Rowley.

 

Lynn interveio vivamente:

 

- Como o sabes? Estou certa de que há ainda imensas formalidades a cumprir e outras coisas mais.

 

- Quando se casam? perguntou Poirot delicadamente.

 

- Em Junho.

 

- Há muito tempo que estão noivos?

 

- Há perto de seis anos respondeu Rowley. Lynn acaba de sair das Wrens.

 

- É proibido casar-se enquanto se faz parte das Wrens, não é?

 

Lynn explicou brevemente:

 

- Estive no ultramar.

 

Poirot reparou no rápido franzir de sobrolho de Rowley.

 

- Vamos, Lynn. Temos de ir andando. Julgo que M. Poirot quer regressar à capital.

 

Poirot declarou, sorrindo:

 

- Não regresso à capital.

 

- Como?

 

Rowley estacou, causando uma impressão estranha.

 

- Vou instalar-me aqui, no «Stag», por algum tempo.

 

- Mas... mas porquê?

 

- C’est un beau paysage, respondeu Poirot placidamente.

 

Rowley disse hesitantemente:

 

- Sim, certamente... Mas não anda... bem, isto é... ocupado?

 

-Tenho as minhas economias respondeu Poirot, sorrindo. Não necessito forçosamente de trabalhar. Posso gozar o meu lazer e passar o tempo onde a fantasia mo ditar. Ora, a minha fantasia inclina-se para Warmsley Vale.

 

Viu Lynn Marchmont erguer a cabeça e fitá-lo atentamente. Achou que Rowley estava levemente aborrecido.

 

- Suponho que joga o golfe? disse ele. Há um hotel muito melhor em Warmsley Heath. Isto aqui é um sítio muito primitivo.

 

- Os meus interesses, assegurou-lhe Poirot, residem inteiramente em Warmsley Vale.

 

- Vamos Rowley ,incitou Lynn.

 

Rowley seguiu-a com certa relutância. À porta, Lynn parou e depois voltou rapidamente atrás. Dirigiu-se a Poirot em voz baixa e calma:

 

- Prenderam David Hunter depois do inquérito. Acha... acha que fizeram bem?

 

- Depois do veredicto, não tinham outra alternativa, mademoiselle.

 

- Quero dizer... acha-o culpado?

 

- A menina acha que o é? ripostou Poirot. Mas Rowley estava de novo ao lado de Lynn. O rosto da rapariga adquiriu uma brandura fictícia.

 

- Até à vista, M. Poirot... Espero que voltemos a encontrar-nos.

 

«Estou pasmado», pensou Poirot.

 

Pouco depois, tendo já tratado da instalação com Beatrice Lippincott, voltou a sair. Os seus passos levaram-no a casa do Dr. Lionel Cloade.

 

- Ah! exclamou a tia Kathie, abrindo a porta, e recuando um ou dois passos. M. Poirot!

 

- Um seu criado, madame. Poirot inclinou-se numa vênia. Vim apresentar-lhe os meus respeitos.

 

- É muito gentil da sua parte. Sim... bem... acho que é melhor entrar. Sente-se... talvez queira uma chávena de chá... simplesmente o bolo está terrivelmente rançoso. Tencionava ir aos Peacocks buscar alguns; às vezes, às quartas-feiras, têm torta suíça... mas um inquérito altera a rotina da vida doméstica, não acha?

 

Poirot respondeu que achava isso inteiramente compreensível.

 

Calculava que Rowley Cloade ficara aborrecido com a sua decisão de ficar em Warmsley Vale. A atitude da tia Kathie estava, sem dúvida, longe de ser acolhedora. Olhava-o com algo que não se afastava muito da consternação e segredou-lhe, inclinando-se para a frente, num sussurro rouco e conspirador:

 

- Não diga a meu marido, não, que fui consultá-lo a respeito... bem, a respeito do que sabemos, não?

 

- A minha boca está selada.

 

- Bem... evidentemente que, naquela altura, eu não fazia a mínima idéia... de que Robert Underhay, pobre homem que fim tão trágico... estivesse realmente em Warmsley Vale. Parece-me, ainda assim, uma coincidência extraordinária!

 

- Podia ter sido mais simples ,observou Poirot, se a tábua ouija a tivesse guiado diretamente ao «Stag».

 

A tia Kathie animou-se um pouco à menção da tábua ouija.

 

- O modo como as coisas acontecem no mundo espírita parece muito inconcebível disse ela. Mas sinto, M. Poirot, que em todo ele há um propósito. Não sente isso na vida? Que há sempre um propósito?

 

- Efetivamente acho, madame. Mesmo agora há um propósito para eu me encontrar aqui, sentado, na sua sala de estar.

 

- Ah, sim? Mrs. Cloade pareceu um tanto embaraçada.

 

- A sério? Sim, creio que sim... Está de regresso a Londres, certamente?

 

- Ainda não. Passarei alguns dias no «Stag».

 

- No «Stag»? Ah... no «Stag». Mas, aí foi onde... oh, M. Poirot, acha que está a ser prudente?

 

- Fui guiado para o «Stag» declarou Poirot solenemente.

 

- Guiado? Que quer dizer?

 

- Guiado por si.

 

- Oh, mas nunca pensei... isto é, não tinha a mínima idéia. Tudo isto é tão terrível, não acha?

 

Poirot abanou tristemente a cabeça e respondeu:

 

- Estive a conversar com Mr. Rowley Cloade e com Miss Marchmont. Ouvi dizer que vão casar-se muito em breve.

 

A tia Kathie ficou imediatamente distraída do assunto.

 

- A querida Lynn é tão boa rapariga... e tão formidável para contas! Mas, eu sou uma negação para números... uma autêntica negação. Ter Lynn de novo conosco é uma bênção. Se estou metida numa embrulhada qualquer, ela endireita-me sempre as coisas. Querida pequena, desejo sinceramente que seja feliz. Rowley é evidentemente uma esplêndida pessoa, mas é capaz de ser... bem, um pouco insípido. Isto é, insípido para uma rapariga que já percorreu tanto mundo como Lynn. Rowley, sabe, esteve aqui na granja durante toda a guerra oh, muito justamente, evidentemente isto é, o Governo queria que ele ficasse esta parte é muito justa nada de penas brancas ou coisas assim como fizeram na Guerra dos Bóeres mas o que eu quero dizer é que isso o tornou um pouco acanhado nas suas idéias.

 

- Seis anos de noivado é uma boa prova de afeto.

 

- Lá isso, é! Mas acho que estas raparigas, quando voltam para casa, se sentem bastante impacientes... e se perto há mais alguém... alguém, talvez, que tenha levado uma vida aventureira...

 

- Como David Hunter?

 

- Não há nada entre eles afiançou ansiosamente a tia Kathie. Nada absolutamente. Tenho a certeza disso! Se assim não fosse, teria sido terrível, não acha, depois de se ter tornado um assassino? Oh, não, M. Poirot, por favor, não se vá com a idéia que existe algum entendimento entre Lynn e David. Na realidade, mais pareciam questionar um com o outro, todas as vezes que se encontraram. O que eu sinto é... oh, meu caro amigo, creio que vem aí meu marido. Não se esqueça, não, M. Poirot, nem uma palavra acerca do nosso primeiro encontro? O meu pobre e querido marido ficaria tão aborrecido se pensasse que... oh, Lionel querido, está aqui M. Poirot que tão inteligentemente trouxe o major Porter a ver o corpo.

 

O Dr. Cloade parecia cansado e abstrato. Os seus olhos, de um azul-pálido, com pupilas reduzidas a um ponto, percorreram vagamente o quarto.

 

- Como está, M. Poirot? De regresso a Londres?

 

«Mon Dieu, outro que me remete para Londres!», pensou Poirot e, em voz alta, disse pacientemente: Não, fico no «Stag» um dia ou dois.

 

- No «Stag»? Lionel Cloade tomou um ar carrancudo. Ah, a Polícia quer demorá-lo cá, por algum tempo?

 

- Não. É por minha livre vontade.

 

- Ah, sim? subitamente, os olhos do médico iluminaram-se com um rápido fulgor inteligente. Então, não se dá por satisfeito?

 

- Por que há-de pensar, isso, Dr. Cloade?

 

- Vamos, homem, é verdade, não é? gorjeando acerca do chá, Mrs. Cloade saiu da sala de estar. O médico prosseguiu:Tem um pressentimento de que alguma coisa está mal, não é verdade?

 

Poirot ficou espantado.

 

- É estranho que diga isso. Tem então esse pressentimento?

 

Cloade hesitou.

 

- N-n-não. Não é bem isso... talvez seja apenas uma sensação de irrealidade. Nos romances, o chantagista acaba sempre por morrer com uma bala no corpo. Na vida real, acontece o mesmo? Aparentemente, a resposta é sim. Mas não me parece natural.

 

- Houve alguma nota insatisfatória no aspecto médico do caso? Não é uma pergunta oficial, evidentemente.

 

O Dr. Cloade respondeu pensativamente:

 

- Não, creio que não.

 

- Sim... há qualquer coisa. Vejo que há qualquer coisa.

 

Quando Poirot o desejava, a sua voz podia adquirir uma qualidade quase hipnótica.

 

O Dr. Cloade franziu um pouco o sobrolho e depois disse hesitantemente: Não tenho experiência nenhuma, evidentemente, de casos policiais. E, seja como for, o parecer médico não é a prova definitiva e irrefutável que os leigos e novelistas parecem julgar. Não somos infalíveis... a ciência médica não é infalível. O que é a diagnose? Uma suposição, baseada num conhecimento muito reduzido e nalguns indícios indefinidos que apontam mais do que uma direção. Sou muito seguro, talvez, a diagnosticar sarampo, porque, durante toda a minha vida, tenho visto centenas de casos de sarampo e conheço uma extraordinária variedade de indícios e sintomas. Dificilmente se compreende o que um livro textual nos indica como «um caso típico» de sarampo. Mas tenho visto algumas coisas curiosas... Já vi uma mulher praticamente na mesa de operações para sofrer a extração do apêndice... e, no último momento, diagnosticar-se uma paratifóide! Vi uma criança com uma doença de pele atribuída a um caso de grave deficiência de vitaminas por um jovem médico consciencioso e cuidadoso e o veterinário local aparecer e dizer à mãe que o gato que a criança aperta nos braços apanhou impingem e que a criança ficou contaminada!

 

«Os médicos, tal como qualquer outra pessoa, são vítimas de idéias preconcebidas. Aqui temos um homem, obviamente assassinado, estendido no chão, com um par de tenazes ensangüentadas a seu lado. Seria tolice dizer que foi atacado com qualquer outra coisa e, contudo, falando clara e afoitamente, com absoluta inexperiência de pessoas com cabeças arrombadas, suspeitei de algo bastante diferente... de algo... oh, não sei, de algo com uma aresta mais cortante... um tijolo ou qualquer coisa assim.

 

- Não disse isso no inquérito?

 

-Não... porque, na realidade, não sei. Jenkins, o cirurgião da polícia, deu-se por satisfeito e a opinião dele é que conta. Mas há a idéia preconcebida... a arma ao lado do corpo. Poderia o ferimento ter sido produzido com ela? Sim, podia. Mas, se lhe mostrassem a ferida e lhe perguntassem o que a fez... bem, não sei se o diria, porque na realidade, não faz sentido... isto é, se tivesse dois tipos, um batendo-lhe com um tijolo e o outro com as tenazes o médico fez uma pausa e abanou a cabeça de um modo insatisfeito. Não faz sentido, pois não? perguntou a Poirot.

 

- Poderia ter caído sobre algum objeto cortante? O Dr. Cloade abanou a cabeça.

 

- Estava estendido de cara para baixo, no meio do chão... sobre uma boa e espessa carpete antiga de Axminster.

 

Interrompeu-se quando a mulher entrou.

 

-Cá está Kathie com a bandeja, anunciou.

 

A tia Kathie balouçava uma bandeja coberta com louça de barro, meio pão e alguma compota de aspecto desanimador no fundo de um frasco.

 

-Julguei que a água estivesse a ferver disse duvidosamente, enquanto levantava a tampa do bule e espreitava para dentro.

 

O Dr. Cloade voltou a resfolegar e resmungou: «Maldita bandeja», e depois dessa explosão saiu dali.

 

- Pobre Lionel, desde que rebentou a guerra, anda com os nervos num estado terrível. Trabalhava muitíssimo. Mandaram tantos médicos para fora... Não tinha descanso. Estava fora de casa de manhã, à tarde e à noite. Evidentemente que tencionava retirar-se mal a paz fosse restabelecida. Tudo isso foi combinado com Gordon. A sua predileção favorita é a botânica, especialmente as ervas medicinais da Idade Média. Está a escrever um livro acerca disso. Tencionava levar uma vida calma, dedicada às necessárias pesquisas. Mas depois, quando Gordon morreu daquela maneira... ora, bem sabe, como hoje em dia as coisas são, M. Poirot. Impostos, etc... Não pode pensar em estudar e isso tem-no amargurado muito. E, na realidade, não me parece justo. Gordon morreu assim, sem deixar testamento... bem, isso abalou realmente muito a minha fé. Isto é, na realidade, não consegui ver o propósito que houve nisso. Pareceu-me, não pude deixar de senti-lo, um erro.

 

Suspirou e depois animou-se um pouco.

 

- Mas, do outro lado, recebo algumas informações animadoras, encantadoras. «Coragem e paciência e achar-se-á um meio.» E, na realidade, quando hoje esse simpático major Porter surgiu e declarou de um modo tão categórico que o pobre homem assassinado era Robert Underhay... bem, vi que esse meio fora achado! É maravilhoso, não acha, M. Poirot, como as coisas resultaram no melhor possível?

 

- E num crime também acentuou Hercule Poirot.

 

Poirot entrou no «Stag», pensativo e um pouco a tremer, pois soprava um vento leste cortante. O vestíbulo estava deserto. Abriu a porta da antecâmara, que ficava à direita. Cheirava a fumo atrasado e a braseira estava quase apagada. Poirot, foi na ponta dos pés até à porta situada ao fundo do vestíbulo e que tinha o indicativo «Reservado aos Hóspedes». Havia ali uma boa lareira, mas, numa enorme poltrona, aquecendo confortavelmente os pés, achava-se uma monumental senhora idosa, que fitou Poirot com uma tal ferocidade que este bateu apologeticamente em retirada.

 

Parou por um momento no vestíbulo, junto à divisória de caixilhos de vidro àquela hora, vazia e olhou para a porta marcada, numa escrita firme e antiquada: CAFÉ. Devido a uma experiência adquirida em hotéis da província, Poirot sabia muito bem que a única hora a que ali serviam café era ao pequeno-almoço, e, mesmo então, de má vontade e tendo como principal componente uma boa porção de leite quente e aguado. Pequenas chávenas de um líquido semelhante a melaço e turvo, chamado Café Puro, eram servidas, não na Sala de Café, mas na antecâmara. A sopa Windsor, o bife à Viena com batatas e um pudim cozido a banho-maria, que constituíam o jantar, podiam obter-se na Sala de Café, às sete horas em ponto. Até lá, uma profunda paz reinava sobre a área residencial do «Stag».

 

Poirot subiu pensativamente as escadas. Em vez de virar para a esquerda, onde se situava o seu quarto no n.° 11, virou para a direita e parou diante do n.° 5. Olhou à volta. Silêncio e vazio. Abriu a porta e entrou.

 

A polícia utilizara-se do quarto. Fora nitidamente limpo e esfregado de fresco. Sobre o soalho não se via a carpete. Presumivelmente a «antiga Axminster» fora mandada a limpar. Os lençóis estavam dobrados sobre a cama, num monte perfeito.

 

Depois de fechar a porta atrás de si, Poirot vagueou à volta do quarto. Estava limpo e estranhamente despido de interesse humano. Poirot examinou o mobiliário uma escrivaninha, uma cômoda de bom mogno antigo, um guarda-fatos semelhante presumivelmente o que encobria a porta de comunicação com o n.° 4, uma enorme cama de casal, de ferro, um lavatório com água quente e fria tributo ao modernismo e falta de pessoal, uma enorme e todavia bastante incômoda poltrona, duas cadeiras pequenas, uma antiga grelha vitoriana com um atiçador e uma pá crivada, pertencentes ao mesmo jogo que as tenazes, uma pesada escarpa de chaminé e um sólido rebordo de mármore com cantos pontiagudos.

 

Foi sobre estes que Poirot se Inclinou para examiná-los. Umedeceu o dedo, esfregou-o ao longo do canto direito e depois inspecionou o resultado. O dedo ficara levemente negro. Repetiu a ação com outro dedo, no canto esquerdo do rebordo. Desta vez, o dedo permaneceu absolutamente limpo.

 

«Sim», pensou Poirot, «sim».

 

Olhou para o lavatório. Depois foi até à janela. Ficava sobranceira a umas telhas... o telhado de uma garagem. Calculou que desse para uma pequena azinhaga das traseiras. Um meio fácil de entrar e de sair do quarto n.° 5, sem ser visto. Mas também era igualmente fácil subir as escadas até ao n.° 5, sem ser visto. Ele próprio, o fizera, momentos antes.

 

Calmamente, Poirot retirou-se, fechando sem ruído a porta atrás de si. Estava realmente frio. Voltou a descer as escadas, hesitou, e depois levado pelo frio da noite, entrou ousadamente no «Reservado aos Hóspedes». Aproximou uma segunda poltrona da lareira e sentou-se.

 

A monumental senhora de idade conseguia ser mais formidável quando vista de perto. Tinha um cabelo de um cinzento de chumbo, um bigode farto e quando, pouco depois, falou uma voz profunda e horrenda.

 

- Esta saleta ,preveniu-o, é reservada às pessoas hospedadas no hotel.

 

- Estou hospedado no hotel replicou Hercule Poirot.

 

A idosa senhora meditou, por um momento, antes de voltar ao ataque. Depois, observou, acusadoramente:

 

- É estrangeiro.

 

- Sou, confirmou, Hercule Poirot.

 

- Na minha opinião, deviam todos ir-se embora.

 

- Embora, para onde? inquiriu Poirot.

 

- Para o sítio de onde vieram, retorquiu a velha senhora firmemente, acrescentando como uma espécie de rifão, a sotto você. Estrangeiros!

 

- Isso, retorquiu tranquilamente Poirot, havia de ser difícil.

 

- Que disparate! Foi para isso que fizemos a guerra, não foi? Para que as pessoas voltassem aos seus lugares e aí ficassem.

 

Poirot não se atreveu a uma controvérsia. Já aprendera que cada pessoa tinha uma versão diferente do tema «Para que fizemos a guerra?».

 

Fez-se um silêncio um tanto hostil.

 

- Não sei onde isto vai parar, dizia a velha senhora. Sinceramente, não sei. Todos os anos, venho instalar-me neste hotel. Meu marido faleceu há dezesseis anos. Está cá enterrado. Venho todos os anos passar aqui um mês.

 

- Uma romagem piedosa, comentou Poirot, cortesmente.

 

- E as coisas pioram de ano para ano. Não há pessoal! A comida é intragável! Os bifes de Viena... com franqueza! Um bife ou é de lombo ou de alcatra... nunca carne de cavalo!

 

Poirot meneou compreensivamente a cabeça.

 

- Uma coisa boa... fecharam o aeródromo filosofou a velha senhora. Foi uma desgraça, todos esses jovens aviadores virem para aqui com essas terríveis raparigas. Raparigas, francamente! Não sei o que, hoje em dia, as mães pensam. Deixá-las andar por onde lhes apetece, como fazem. Censuro o Governo. Mandar as

mães trabalhar em fábricas. Só as dispensam se têm filhos pequenos! Filhos pequenos, que tolice! Qualquer pessoa pode cuidar de um bebê! Um bebê não anda a correr atrás dos soldados! As raparigas dos catorze aos dezoito anos é que precisam de ser cuidadas. Precisam das mães... É preciso uma mãe para saber-se o que uma rapariga anda a fazer. Soldados! Aviadores! É só no que elas pensam. Americanos! Negros! Rebotalho polaco! Nesta altura, a indignação obrigou a velha dama a tossir. Quando lhe passou o ataque de tosse, prosseguiu, entrando num frenesi agradável e usando Poirot como alvo do seu mau humor.

 

Por que têm arame farpado à volta dos acampamentos? Para impedirem que os soldados vão ter com as raparigas? Não, para impedirem que as raparigas vão ter com os soldados. Loucas por homens, é o que elas são! Repare no modo como elas se vestem. Calças! Algumas palermas usam calções... mas não o fariam, não, se soubessem o que parecem por trás!

 

- Concordo inteiramente consigo, madame.

 

- Que usam na cabeça? Chapéus decentes? Não, um bocado de pano torcido para cima e a cara coberta de pintura e pó. Uma pasta imunda nas bocas. E não são apenas as unhas das mãos que são encarnadas... as dos pés também!

 

A velha dama calou-se de repente e olhou expectativamente para Poirot. Este suspirou e abanou a cabeça.

 

- Até na igreja, prosseguiu a dama. Nada de chapéus. Às vezes, nem sequer esses lenços disparatados. Apenas aquele cabelo com «permanente», horrorosamente teso. Cabelo! Hoje em dia ninguém sabe o que é cabelo. Quando eu era nova, podia orgulhar-me do meu.

 

Poirot lançou um olhar furtivo àqueles bandós de um cinzento de chumbo. Parecia impossível que aquela mulher velha e feroz pudesse ter sido nova!

 

- Uma delas meteu cá o nariz, ontem à noite! prosseguiu. Trazia a cabeça amarrada num lenço cor de laranja e a cara toda pintada e empoada. Olhei para ela. Bastou OLHAR. Foi-se embora pouco depois.

 

«Não era uma hóspede. Agrada-me poder dizer que aqui não está hospedada nenhuma pessoa daquele tipo! Por conseguinte, que vinha ela fazer, saindo do quarto de um homem? É repugnante! Falei nisso à pequena Lippincott... mas ela é tão boa como as outras... anda atrás de tudo quanto tem calças.

 

No espírito de Poirot despertou certo interesse.

 

- Vinha do quarto de um homem? inquiriu. A velha dama atacou o tópico com deleite.

 

- Foi exatamente isso que eu disse. Vi-a com os meus próprios olhos a sair do n.° 5.

 

- Em que dia foi isso, madame?

 

- Na véspera do dia em que se deu toda essa embrulhada do assassínio de um homem. É uma ignomínia que uma coisa dessas tenha acontecido aqui! Esta casa costumava ser um sítio pacato e muito decente. Mas, agora...

 

- E a que horas do dia foi isso?

 

- Do dia? Não foi de dia. Foi à noite. E já bastante tarde. Uma verdadeira ignomínia. Já passava das dez horas. Fui lá para cima para deitar-me às dez e um quarto. Ela saiu do n.° 5, com um aspecto muito descarado, viu-me e meteu-se logo para dentro, a rir-se e a falar com o homem que lá estava.

 

- Ouviu-o falar?

 

- Não estou a dizer-lhe que sim? Ela tornou a meter-se para dentro e ele gritou-lhe «Vamos lá, saia daqui. Já estou farto». Que maneira bonita de um homem falar a uma rapariga! Mas elas é que têm a culpa! As atrevidas!

 

- Não participou isso à polícia? perguntou-lhe Poirot.

 

Ela fitou-o com um olhar basilisco e levantou-se tropegamente da cadeira. Debruçou-se sobre Poirot, dardejando-o com um olhar feroz e vociferou-lhe: Nunca tive nada a ver com a polícia. A polícia, francamente! Eu, num tribunal da polícia?

 

Trêmula de raiva e lançando a Poirot um último mau olhar, saiu do aposento.

 

Poirot ficou sentado ainda durante alguns momentos, cofiando pensativamente o bigode. Depois, foi em busca de Beatrice Lippincott.

 

- Ah, sim, M. Poirot, refere-se à velha Mrs. Leadbetter? É a viúva de Canon Leadbetter. Vem cá todos os anos, mas para nós a sua estada aqui é quase uma provação. Às vezes, chega a ser terrivelmente rude para com as pessoas e parece não compreender que, nos tempos de hoje, as coisas são outras. Deve andar perto dos oitenta anos.

 

- Mas está no seu perfeito juízo? Sabe o que diz?

 

- Oh, sim. É uma pessoa muito esperta... às vezes, até de mais.

 

- Sabe quem foi a mulher nova que visitou o homem assassinado na terça-feira à noite?

 

Beatrice mostrou-se atônita.

 

- Não me recordo de que qualquer mulher tenha cá vindo visitá-lo. Como era ela?

 

- Tinha à volta da cabeça um lenço cor de laranja, e suponho que o rosto muito pintado. Estava no n.° 5 a falar com Arden, às dez horas e quinze minutos da noite de terça-feira.

 

- Sinceramente, M. Poirot, não faço a mínima idéia.

 

Pensativamente, Poirot foi procurar o superintendente Spence.

 

Este ouviu em silêncio o seu relato, depois recostou-se na cadeira e meneou lentamente a cabeça.

 

-Tem piada, não tem? comentou. Quantas vezes chegamos à mesma velha fórmula Cherchez la femme.

 

A pronúncia francesa do superintendente não era tão boa como a do sargento Graves, mas, apesar disso, orgulhava-se dela. Levantou-se e atravessou o gabinete. Voltou com alguma coisa na mão. Era um baton num estojo dourado.

 

- Tivemos, desde o início, esta indicação de que devia haver uma mulher implicada no caso disse.

 

Poirot pegou no baton e traçou uma leve marca nas costas de uma das mãos.

 

- Boa qualidade apreciou. Um vermelho-cereja-escuro... provavelmente usado por uma morena.

 

- Sim. Encontraram-no no chão do n.° 5. Tinha rolado para debaixo da cômoda, mas é possível, evidentemente, que já lá estivesse há algum tempo. Não tinha impressões digitais. Hoje em dia, como é sabido, não existe no mercado a variedade de batons que havia antigamente... apenas alguns produtos legais.

 

- Procedeu, sem dúvida, a uma investigação, não é verdade?

 

Spence sorriu e respondeu:

 

- Sim, tal como diz, fizemos as nossas investigações. Rosaleen Cloade usa esta marca de baton. Lynn Marchmont também. Frances Cloade usa uma cor mais suave. Mrs. Lionel Cloade não usa nenhum. Mrs. Marchmont usa um matiz malva-pálido. Beatrice Lippincott não deve usar um produto tão caro como este... e a criada dos quartos, Gladys, também não.

 

Fez uma pausa.

 

- Foi um trabalho perfeito aplaudiu Poirot.

 

- Não completamente perfeito. Agora, parece que está imiscuída no caso uma pessoa desconhecida... talvez alguma mulher que Underhay tenha conhecido em Warmsley Vale.

 

- E que esteve com ele às dez horas e quinze minutos da noite de terça-feira?

 

- Sim confirmou Spence, que acrescentou com um suspiro. Isto iliba David Hunter.

 

- Sim?

 

- Sim. Sua excelência acedeu finalmente a fazer um depoimento, depois de o seu procurador tê-lo feito ver a luz da razão. Aqui tem o relatório que fez dos seus passos.

 

Poirot leu um memorando datilografado.

 

«Saiu de Londres no comboio das quatro e dezesseis para Warmsley Heath. Chegou aqui às cinco e trinta. “Seguiu por um atalho para Furrowbank.”

 

- A razão que o levou a vir cá, segundo disse interveio o superintendente, foi buscar umas coisas que tinha cá deixado, cartas e documentos, uma caderneta de cheques e ver também se já tinham chegado umas camisas da lavanderia e que, já se sabe, não tinham chegado! Cá para mim, hoje em dia, a lavagem da roupa é um problema. Há quatro semanas que foram a nossa casa... não nos deixaram uma única toalha lavada e agora a minha mulher é quem me lava a roupa.

 

Depois desta interpelação muito humana, o superintendente voltou ao itinerário dos movimentos de David.

 

“Saiu de Furrowbank, às sete e vinte e cinco e declara que foi dar um passeio a pé, pois perdera o comboio das sete e vinte e só teria outro às nove e vinte”.

 

- Para que lado foi dar o passeio? perguntou Poirot.

 

O superintendente consultou as suas notas.

 

- Para Downe Copse, Bats Hill e Long Ridge.

 

- Uma volta completa em torno de White House!

 

- Palavra que aprendeu depressa a topografia local, M. Poirot!

 

Poirot sorriu e abanou a cabeça.

 

- Não. Não reconheci os nomes que citou. Estava simplesmente a fazer uma conjectura.

 

- Ah, estava? o superintendente pôs a cabeça de lado. Ora, de acordo com o que ele diz, quando subia Long Ridge viu que lhe restava já pouco tempo e começou a correr a corta-mato, para chegar a tempo à estação de Warmsley Heath. Apanhou o comboio por um triz, chegou a Vitória às dez e quarenta e cinco, dirigiu-se a pé para Shepherd’s Court, chegando ali às onze horas, declaração esta que é confirmada por Mrs. Gordon Cloade.

 

- E que confirmação tem do resto?

 

- Muito pouca... mas alguma. Rowley Cloade e outras pessoas viram-no chegar a Warmsley Heath. As criadas de Furrowbank tinham saído. Hunter tinha uma chave da casa, já se sabe e, por conseguinte, não o viram, mas encontraram uma ponta de cigarro na biblioteca, o que, suponho, as intrigou e deparou-se-lhes o armário da roupa branca em grande desordem. Um dos jardineiros ficou lá a trabalhar até tarde a fechar as estufas ou qualquer outra coisa e também o viu. Mrs. Marchmont encontrou-o em Mardon Wood... quando ele ia a correr para apanhar o comboio.

 

- Alguém o viu entrar nele?

 

- Não... mas telefonou de Londres a Miss Marchmont logo que lá chegou... às onze e cinco.

 

- Isso foi confirmado?

 

- Sim. Já tínhamos realizado um inquérito acerca das chamadas feitas desse número. Houve uma chamada de troncas às onze e quatro para Warmsley Vale 36. É o número das Marchmont.

 

- Muito, muito interessante murmurou Poirot.

 

Spence prosseguiu conscienciosa e metodicamente: Rowley Cloade deixou Arden às nove menos cinco. É categórico ao afirmar que não era mais cedo. Por volta das nove e dez, Lynn Marchmont viu Hunter em Mardort Wood. Poder-se-á supor que tenha ido a correr desde o «Stag», que tenha tempo de ter procurado Arden, de ter questionado com ele, de tê-lo assassinado e chegado a Mardon Wood? Não creio que seja possível. Contudo, agora vamos começar de novo. Arden não estava assassinado às nove horas; estava vivo às dez horas e dez isto é, a não ser que essa velha dama esteja a sonhar. Foi assassinado pela mulher que deixou cair o baton, a mesma do lenço cor de laranja, ou por alguém que entrou depois dessa mulher ter saído. Quem quer que tenha sido, fez girar propositadamente os ponteiros do relógio para as nove e dez.

 

- Isso significa que, se David Hunter não tivesse encontrado, ocasionalmente, Lynn Marchmont, num sítio muito improvável, teria sido extraordinariamente terrível para ele, não? conjeturou Poirot.

 

- Sim, sem dúvida. O comboio das nove e vinte é o último que vai de Warmsley Heath para Londres. Estava a escurecer. Há sempre uns golfistas que regressam nele à capital. Ninguém teria reparado em Hunter e certamente que as pessoas da estação não o conhecem de vista. Chegado a Londres, não tomou nenhum táxi. Por conseguinte, temos apenas a palavra da irmã a dizer que ele regressou a Shepherd’s Court, às horas a que ele diz tê-lo feito.

 

Poirot permaneceu calado e Spence perguntou:

 

- Em que está a pensar, M. Poirot?

 

- Num longo passeio em volta da White House; num encontro em Mardon Woods; numa chamada telefônica a uma hora mais tardia... Ora, Lynn Marchmont está noiva de Rowley Cloade... Gostaria muito de conhecer o assunto dessa conversa telefônica.

 

- É o interesse humano que o incita?

 

- Sim respondeu Poirot. É sempre o interesse humano.

 

Estava a fazer-se tarde, mas Poirot queria fazer ainda outra visita. Encaminhou-se para a casa de Jeremy Cloade.

 

Foi acompanhado ao escritório deste por uma criadita de aspecto inteligente.

 

Depois de ter ficado sozinho, Poirot olhou interessadamente em volta. Até ali, no lar, pensou Poirot, tudo era muito legal e seco como o pó. Sobre a secretária, havia uma grande fotografia de Gordon e uma outra, desbotada, de Lorde Edward Trenton montado a cavalo. Poirot examinava esta última, quando Jeremy Cloade entrou.

 

- Ah, perdão Poirot pousou a fotografia emoldurada, um pouco embaraçado.

 

- É o pai de minha mulher explicou Jeremy, deixando transparecer na voz uma leve nota congratulatória. E um dos seus melhores cavalos, o Chestnut Trenton. Classificou-se em segundo lugar no Derby de 1924. Interessa-se por corridas de cavalos?

 

- Oh, não!

 

- É um gosto que sai muito caro observou Jeremy secamente. Lorde Edward arruinou-se com isso... teve de ir viver para o estrangeiro. Sim, é um desporto caro.

 

Contudo, na sua voz notava-se ainda a notazinha de orgulho.

 

Poirot pensou que Jeremy Cloade mais facilmente seria capaz de atirar com dinheiro pela janela fora do que investi-lo em cavalos, mas que nutria uma secreta admiração e respeito pelos que o faziam.

 

Cloade prosseguiu:

 

- Em que posso ser-lhe útil, M. Poirot? Na qualidade de membros da família, acho que temos para consigo uma dívida de gratidão... por ter encontrado o major Porter, que se prestou à identificação.

 

- A família parece jubilosa com isso, observou Poirot.

 

- Ah! exclamou Jeremy secamente. É ainda demasiado cedo para regozijes. No fim de contas, a morte de Underhay foi acatada em África. São precisos anos para provar-se o contrário de uma coisa dessas... e, além disso, o testemunho de Rosaleen foi muito positivo... muito positivo, realmente. Causou uma boa impressão, bem sabe.

 

Era quase como se Jeremy Cloade sentisse relutância em acreditar numa melhoria das suas perspectivas.

 

- Não me agradaria dar um parecer de um modo ou de outro. Nunca se pode dizer como um caso terminará acrescentou.

 

Depois, afastando para o lado alguns papéis, com um gesto mal-humorado, quase enfastiado, informou-se:

 

- Mas desejava falar-me?

 

- Queria perguntar-lhe, Mr. Cloade, se tem realmente a certeza absoluta de que seu irmão não deixou testamento? Um testamento redigido depois do matrimônio?

 

Jeremy pareceu surpreendido.

 

- Não creio que alguma vez tenha surgido a idéia de uma coisa dessas. Certamente que não fez nenhum antes de partir de Nova Iorque.

 

- Podia tê-lo feito, durante os dois dias que esteve em Londres.

 

- E ter ido ali procurar um advogado? Ou tê-lo feito pelo próprio punho.

 

- Com testemunhas? Com que testemunhas?

 

- Em casa, havia três criados lembrou-lhe Poirot. Três criados que morreram na mesma noite do que ele.

 

- Hum... sim... mas, se por qualquer acaso fez o que está a sugerir, o testamento também foi destruído.

 

- Isso é o que resta saber. Ultimamente, têm-se decifrado, por um novo processo, muitíssimos documentos que se julgavam completamente destruídos. Incinerados dentro de cofres, por exemplo, mas não tão destruídos que não permitissem uma leitura.

 

- Bem, realmente, essa sua idéia, M. Poirot, é muitíssimo notável. Mas não creio... não, na realidade, não creio que dê alguma coisa... Que eu saiba, na casa de Sheffield Terrace, não havia nenhum cofre. Gordon guardava todos os seus documentos importantes, etc., no escritório... e certamente que ali não havia nenhum testamento.

 

- Mas podia-se investigar insistiu Poirot. Autoriza-me a fazê-lo?

 

- Oh, certamente... certamente. É uma grande amabilidade sua oferecer-se para empreender uma coisa dessas, mas não tenho a menor fé no seu êxito. Todavia... bem, é uma possibilidade mais. Vai... vai então regressar já a Londres?

 

Os olhos de Poirot semicerraram-se. O tom de voz de Jeremy fora indubitavelmente ansioso. Voltar para Londres... Quereriam todos eles vê-lo pelas costas?

 

Antes de poder responder, a porta abriu-se e Frances entrou.

 

Poirot ficou impressionado por duas coisas. Primeiramente, pelo fato de a recém-chegada parecer extraordinariamente doente. Em segundo lugar, pela sua forte semelhança com a fotografia do pai.

 

- M. Hercule Poirot veio visitar-nos, querida explicou Jeremy, superfluamente.

 

Ela apertou-lhe a mão e Jeremy Cloade participou-lhe imediatamente a sugestão de Poirot quanto a um testamento.

 

Frances mostrou-se incrédula.

 

- Parece-me uma probabilidade muito fraca.

 

- M. Poirot regressa a Londres e muito amavelmente vai proceder a investigações.

 

- Segundo creio, o major Porter foi um Air Raid Warden (1), nesse bairro, disse Poirot.

 

(1) Corpo de vigilantes contra ataques aéreos.

 

Pelo rosto de Mrs. Cloade perpassou uma expressão curiosa. Perguntou:

 

- Quem é o major Porter?

 

Poirot encolheu os ombros.

 

- Um oficial do Exército, reformado, que vive da pensão.

 

- Esteve realmente em África?

 

Poirot olhou-a com curiosidade.

 

- Certamente, madame. Por que não?

 

- Não sei respondeu Frances, quase absortamente. Intrigou-me.

 

- Sim, Mrs. Cloade, disse Poirot compreendo.

 

Frances olhou-o perscrutadoramente. Os seus olhos adquiriram uma expressão quase receosa e, virando-se para o marido, disse-lhe: Jeremy, sinto muita pena de Rosaleen. Está sozinha em Furrowbank e deve estar terrivelmente excitada com a detenção de David. Importas-te que a convide a cá ficar?

 

- Achas realmente que isso seja aconselhável, querida? perguntou Jeremy, duvidoso.

 

- Oh... aconselhável? Não sei! Mas é humano. Está tão desamparada.

 

- Duvido que ela aceite.

 

- Em todo o caso, posso fazer-lhe o oferecimento.

 

O advogado retorquiu calmamente: Se achas que te sentes mais feliz com isso...

 

- Mais feliz!

 

As palavras brotaram-lhe da boca com uma estranha amargura. Depois, lançou a Poirot um relance de olhos desconfiado.

 

Poirot murmurou cerimoniosamente:

 

- Apresento agora as minhas despedidas. Ela acompanhou-o até ao átrio.

 

- Regressa a Londres?

 

- Amanhã, mas apenas por vinte e quatro horas, quando muito. Depois voltarei para o «Stag»... onde me encontrará se precisar de mim.

 

- Por que viria a precisar de si? perguntou Frances com vivacidade.

 

Poirot não respondeu à pergunta, limitando-se a dizer:

 

- Estarei no «Stag».

 

Mais tarde, na noite desse mesmo dia, Frances Cloade disse ao marido:

 

- Não acredito que esse homem vá a Londres pelo motivo que diz. Não acredito que Gordon tenha feito um testamento. Acreditas, Jeremy?

 

Respondeu-lhe uma voz cansada e resignada:

 

- Não, Frances, não... ele vai lá por qualquer outra razão.

 

- Que razão?

 

- Não faço idéia.

 

- Que vamos fazer, Jeremy? Que vamos fazer?

 

Jeremy Cloade, respondeu, pouco depois: Acho, Frances, que há apenas uma coisa a fazer...

 

De posse das necessárias credenciais, passadas por Jeremy Cloade, Poirot recebera as respostas às suas perguntas. Eram muito definitivas. A casa ficara totalmente destruída. O local fora desobstruído, apenas pouco tempo antes, com vista a novas edificações. Com exceção de David Hunter e de Mrs. Cloade, não houvera sobreviventes. Na casa havia três criados: Frederick Game, Elizabeth Game e Eileen Corrigan. Esses três tinham tido morte instantânea. Gordon Cloade fora retirado dos escombros ainda com vida, mas morrera a caminho do hospital, sem ter recuperado os sentidos. Poirot tomou nota dos nomes e das moradas dos parentes mais chegados dos três criados.

 

- É possível explicou que, em conversa, tenham dito alguma coisa aos amigos ou tenham feito algum comentário que me dê uma pista para alguma informação de que tanto preciso.

 

O oficial com quem conversava parecia céptico. Os Games tinham vindo de Dorset e Eileen Corrigan do County Cork.

 

Em seguida, Poirot dirigiu os seus passos para a residência do major Porter. Lembrava-se de ter ouvido Porter dizer que fora um Warden e queria saber se, nessa noite em questão, estivera de serviço e presenciara alguma coisa do incidente ocorrido em Sheffield Terrace.

 

Além disso, tinha outras razões para querer falar com o major Porter.

 

Ao virar a esquina da Edge Street, ficou sobressaltado ao ver um polícia fardado, postado à porta da casa para onde se dirigia. Havia um círculo de garotos e de outras pessoas paradas, com os olhares fitos na casa. O coração de Poirot comprimiu-se ao interpretar aqueles sinais.

 

O polícia interceptou o avanço de Poirot.

 

- Não pode entrar preveniu-o.

 

- Que aconteceu?

 

- Não vive na casa, pois não?

 

Poirot abanou a cabeça e o guarda inquiriu:

 

- Quem queria visitar?

 

- Queria visitar o major Porter.

 

- É amigo dele?

 

- Não, não me intitulo amigo. Que aconteceu?

 

- Suponho que esse senhor se suicidou com um tiro. Ah, cá está o inspetor.

 

A porta abrira-se e saíam duas pessoas. Uma delas era o inspetor do bairro e a outra o sargento Graves de Warmsley Vale. Este último reconheceu-o e Poirot identificou-se prontamente ao inspetor, que propôs:

 

- É melhor entrarmos.

 

Os três homens entraram na casa.

 

-Telefonaram para Warmsley Vale, explicou Graves e o superintendente Spence mandou-me cá.

 

- Suicídio?

 

O inspetor respondeu:

 

- Sim. Parece um caso nítido. Não sei se o fato de ter prestado provas no inquérito lhe transtornou o espírito. Às vezes, as pessoas comportam-se assim, estranhamente, mas creio que, ultimamente, também andava neurastênico. Dificuldades financeiras, uma coisa e outra. Matou-se com o próprio revólver.

 

Poirot inquiriu:

 

- É-me permitido subir?

 

- Se assim o deseja, M. Poirot. Acompanhe M. Poirot lá acima, sargento.

 

Graves indicou o caminho para o quarto do primeiro andar. Correspondia à recordação que Poirot guardava dele: as cores pálidas dos velhos tapetes, os livros... O major Porter estava na enorme poltrona. A sua atitude era quase natural, só a cabeça estava levemente descaída para a frente. O braço direito pendia a um lado... e abaixo dele, sobre o tapete, jazia o revólver. No ar, pairava ainda um tenuíssimo odor acre de pólvora.

 

- Foi há coisa de duas horas informou-o Graves. Ninguém ouviu o tiro. A dona da casa tinha ido às compras

 

Poirot, de sobrolho franzido, contemplava aquele vulto imóvel, com uma pequena ferida chamuscada, na têmpora direita.

 

- Tem qualquer idéia do motivo por que se suicidou, M. Poirot? inquiriu Graves.

 

Mostrava-se respeitoso para com Poirot porque vira o superintendente sê-lo embora a sua própria opinião fosse de que Poirot era um desses terríveis «escavadores» de fatos.

 

Poirot replicou distraidamente:

 

- Sim... sim, houve uma ótima razão. A dificuldade não está aí.

 

O seu olhar dirigiu-se para uma mesinha colocada à esquerda do major Porter. Sobre ela, achava-se um grande cinzeiro de vidro maciço, com um cachimbo e uma caixa de fósforos. Ali, nada. Os seus olhos vaguearam à volta do quarto. Depois, dirigiu-se a uma secretária de tampo rolante e aberto.

 

Estava em perfeita ordem. Viam-se documentos ordenadamente dispostos nos vários escaninhos. Ao centro, uma pequena pasta de couro, um suporte para canetas, com uma caneta e dois lápis, uma caixa de molas para papéis e uma cartilha de selos. Tudo muito limpo e arrumado. Uma vida ordinária e uma morte ordenada... certamente... era isso mesmo... o que não se ajustava!

 

- Não deixou nenhum bilhete... nenhuma carta para o coroner? perguntou a Graves.

 

- Não, não deixou... era de esperar que um antigo oficial do Exército o fizesse.

 

- Sim, isso é muito estranho.

 

Meticuloso em vida, o major Porter não o fora na morte. Era absolutamente impróprio, pensou Poirot, que Porter não tivesse deixado um bilhete.

 

- Isto é um choque para os Cloades, comentou Graves. Vai fazê-los retroceder. Terão de andar à caça de outra pessoa que tenha conhecido Underhay intimamente. Impacientou-se, perante a atitude calada de Poirot e perguntou. Deseja ver mais alguma coisa, M. Poirot?

 

Este meneou negativamente a cabeça e, acompanhado de Graves, saiu do aposento.

 

Na escada encontraram a dona da casa. Era indubitável que sentia prazer na excitação que a dominava e começou imediatamente um volúvel discurso. Graves fez uma retirada hábil e deixou que Poirot recebesse em cheio aquela torrente de palavras.

 

- Até parece que me falta o ar. Coração, é o que é. Angina Pectora (*), foi com o que a minha mãe morreu... caiu morta quando ia a atravessar o Caledonian Market. Quando o encontrei, ia-me dando uma coisa... oh, tive uma comoção tão grande! Nunca suspeitei de nada no gênero, embora ele andasse há muito tempo neurastênico. Preocupado com dinheiro, acho eu, e não comia o suficiente (*) H Pectoris. (N. do T.) para manter-se vivo. Nunca aceitou nada nosso. E depois, ontem, teve de ir a uma terra no Oastshire... Warmsley Vale... para prestar declarações num inquérito. Isso consumiu-o, não há dúvida. Voltou com um aspecto terrível. Passou toda a noite a andar de um lado para o outro. De um lado para o outro... de um lado para o outro. Parece que foi por causa de um amigo dele que foi assassinado. Coitado, aquilo transtornou-o. De um lado para o outro... de um lado para o outro. E eu que saí para fazer as compras... e tive de estar tanto tempo na bicha do peixe... quando subi a ver se ele queria tomar uma chávena de chá... ali estava ele, pobre senhor, com o revólver caído da mão, recostado na cadeira. Causou-me uma impressão horrível. E ter cá a polícia e todas essas coisas. Aonde o mundo vai parar é o que eu pergunto?

 

Poirot respondeu lentamente:

 

- O mundo vai tornar-se um lugar difícil onde viver... exceto para os fortes.

 

Passava já das oito horas, quando Poirot chegou ao «Stag». Encontrou um bilhete de Frances Cloade, pedindo-lhe que fosse procurá-la. Foi imediatamente.

 

Frances esperava-o na sala de estar. Poirot ainda não vira esse aposento. As janelas abertas davam para um jardim cercado por um muro e cheio de pereiras em flor. Sobre as mesas viam-se jarras com tulipas. O velho mobiliário brilhava de encerado com afinco e o bronze do guarda-fogo da chaminé e o balde de carvão reluziam profusamente.

 

Era, pensou Poirot, um lindo aposento.

 

- Disse que precisaria de si, M. Poirot. Teve toda a razão. Há uma coisa que deve contar-se... e considero-o a melhor pessoa a quem falar.

 

- É sempre mais fácil, madame, contar uma coisa a alguém que já tem uma boa idéia do que seja.

 

- Julga que sabe o que vou dizer?

 

Poirot meneou afirmativamente a cabeça.

 

- Desde quando...

 

Deixou a pergunta em meio, mas Poirot replicou prontamente:

 

- Desde que vi a fotografia de seu pai. As características da sua família estão muito fortemente vincadas. Não se pode duvidar que a senhora e ele sejam da mesma família. A semelhança era igualmente forte no homem que aqui veio, dizendo-se Enoch Arden.

 

Frances suspirou... foi um suspiro profundo, desalentado.

 

- Sim... sim, tem razão... embora o pobre Charles tivesse barba. Era meu primo em segundo grau. M. Poirot... era a ovelha ronhosa da família. Nunca o conheci muito bem, mas, em crianças, brincamos juntos... e agora levei-o à morte... a uma morte terrivelmente sórdida...

 

Ficou calada por uns momentos. Poirot pediu gentilmente:

 

- Vai contar-me... Ela endireitou-se.

 

- Sim, a história tem de ser contada. Estávamos numa situação financeira desesperada... é aqui que começa. Meu marido... meu marido estava numa séria aflição... na pior espécie de aflições. A desonra, esperando-o talvez a prisão... e ainda lhe pesa sobre a cabeça essa ameaça, por causa disso. Mas acredite, M. Poirot, que a idéia que eu tive e pus em prática foi unicamente minha; meu marido nada teve a ver com ela. Seja como for, não teria tido uma idéia desse gênero... era demasiado arriscada. Porém, eu nunca me importei de correr riscos. Suponho também que sempre fui bastante falta de escrúpulos. Primeiramente, deixe-me que lho diga, pedi a Rosaleen Cloade um empréstimo. Não sei se, estando sozinha, mo teria concedido ou não. Mas o irmão apareceu. Estava muito mal-humorado e foi, pelo menos assim o achei, desnecessariamente insultuoso. Quando aquele ardil me ocorreu, não tive quaisquer escrúpulos em pô-lo em ação.

 

«Para melhor explicar as coisas, tenho de dizer-lhe que, no ano passado, meu marido me repetira umas declarações bastante interessantes que ouvira no clube. O senhor também lá estava, segundo creio, e, por conseguinte, não preciso de entrar em pormenores. Abria-me, porém, a possibilidade de que o primeiro marido de Rosaleen não tivesse morrido... e, evidentemente que, neste caso, ela não teria qualquer direito ao dinheiro de Gordon. Não passava, já se sabe, de uma vaga possibilidade, mas, nos recônditos dos nossos espíritos, havia uma espécie de possibilidade externa de que fosse verdade. Ocorreu-me a idéia de que poderia fazer-se alguma coisa, utilizando essa possibilidade. Charles, o meu primo, estava em Inglaterra e em más circunstâncias. Suponho que já tivesse estado preso e que não fosse uma pessoa escrupulosa, mas portou-se bem na guerra. Fiz-lhe a proposta. Tratava-se evidentemente de chantagem, mas achamos que havia boas esperanças de conseguirmos o que queríamos. Na pior das hipóteses, pensei, David Hunter recusar-se-ia a pagar. Não o supus capaz de recorrer à polícia... as pessoas do seu gênero não gostam da polícia.

 

A voz endureceu-se-lhe.

 

- O nosso ardil deu resultado. David caiu no laço mais facilmente do que supúnhamos, mas evidentemente que Charles não podia intitular-se definitivamente «Robert Underhay». De um momento para o outro, Rosaleen podia descobrir tudo. Felizmente, porém, ela foi para Londres e isso deu a Charles a possibilidade de, pelo menos, sugerir que era Robert Underhay. Ora, como já disse, parecia que David caíra no laço. Ficou de levar-lhe o dinheiro às nove horas da noite de terça-feira. Em vez de...

 

A voz embargou-se-lhe.

 

- Devíamos ter compreendido que David era... uma pessoa perigosa. Charles está morto... assassinado... e, se não fosse eu, ainda estaria vivo. Mandei-o para a morte.

 

Depois de um momento, prosseguiu com voz seca:

 

- Bem pode calcular como me tenho sentido desde então.

 

- Em todo o caso, acusou Poirot, foi suficientemente rápida a imaginar o desenvolvimento subseqüente do ardil. Foi a senhora que induziu o major Porter a identificar seu primo como «Robert Underhay»?

 

Subitamente, porém, ela protestou veementemente:

 

- Não, juro-lhe que não! Isso não! Ninguém ficou mais espantado... Espantado? Ficamos embatucados! Quando este major Porter apareceu a declarar que Charles Charles! era Robert Underhay, não compreendi... e continuo sem compreender!

 

- Mas alguém procurou o major Porter. Alguém o persuadiu ou subornou... a identificar o homem como Underhay.

 

Frances declarou decisivamente:

 

- Não fui eu e também não foi Jeremy. Nenhum de nós dois faria uma coisa dessas. Oh, compreendo que isso lhe pareça absurdo! Acha isso porque fiz chantagem e não vê por que razão não havia de cometer uma fraude, mas para mim trata-se de duas coisas completamente diferentes. Deve compreender que eu senti... e, na realidade, ainda sinto... que temos direito a uma parte do dinheiro de Gordon. O que eu não tinha conseguido por meios legais estava resolvida a consegui-lo à má-fé. Mas despojar Rosaleen de tudo, forjando a declaração de que ela não era mulher de Gordon... oh, sinceramente, não, M. Poirot, seria incapaz de fazer uma coisa dessas. Por favor, por favor, acredite-me.

 

- Admitirei, pelo menos concedeu lentamente Poirot, que todas as pessoas têm os seus pecados particulares. Sim, acredito-a.

 

Depois olhou-a perscrutadoramente.

 

-Já sabe, Mrs. Cloade, que, esta tarde, o major Porter meteu uma bala na cabeça?

 

Ela recuou com os olhos dilatados pelo horror.

 

- Oh, não, M. Poirot... não!

 

- Sim, madame. Sabe, au-fond, o major Porter era um homem honesto. Financeiramente, estava muito por baixo e, quando a tentação lhe acenou, tal como muitos outros homens, não soube resistir-lhe. Deve ter-lhe parecido, pode até ter-se convencido, de que a sua vida estava quase moralmente justificada. Estava já profundamente predisposto contra a mulher com quem seu amigo Underhay casara. Achou que ela lhe tratara o amigo ignominiosamente. E depois essa impiedosa «exploradora» casara-se com um milionário e fugira com a fortuna do segundo marido, em detrimento das pessoas da sua carne e do seu sangue. Deve ter-lhe parecido tentador meter-lhe algumas pedras no caminho... apenas as que ela merecia. E pelo simples fato de identificar um morto teria o futuro assegurado. Quando os Cloades estivessem de posse dos seus direitos, ele teria dado a sua cutilada... Sim, imagino a tentação... mas, como a muitos homens do seu tipo, faltava-lhe imaginação. No inquérito, estava muito incomodado, terrivelmente incomodado. Era notório. Num futuro próximo, teria de repetir aquela mentira sob juramento. Não era apenas isso; tinham detido um homem sob a acusação de assassínio... e a identidade do morto fornecia um motivo muito forte para essa acusação. «Voltou para casa e considerou as coisas friamente. Deu-lhes a solução que lhe pareceu melhor.»

 

- Suicidou-se?

 

- Sim.

 

Frances murmurou: Ele não disse quem... quem... Poirot abanou lentamente a cabeça.

 

- Ele tinha o seu código. Não se encontrou qualquer referência a quem quer que o tenha instigado a cometer perjúrio.

 

Poirot observou-a perscrutadoramente. Teria havido um fulgor fugidio de alívio ou de afrouxamento de tensão? Sim, mas isso era natural, em qualquer dos casos...

 

Ela levantou-se e dirigiu-se à janela.

 

- Voltamos, por conseguinte, ao ponto em que estávamos.

 

Poirot perguntou-se o que lhe iria no espírito.

 

Na manhã seguinte, o superintendente Spence utilizou quase as mesmas palavras de Frances:

 

- Por conseguinte, voltamos ao ponto onde estávamos observou com um suspiro. Temos de descobrir quem era realmente esse tal Enoch Arden.

 

- Posso dizer-lho já, superintendente prontificou-se Poirot. Chamava-se Charles Trenton.

 

- Charles Trenton! o superintendente soltou um assobio. Hum! Um dos Trenton... suponho que foi ela que o levou a isso... refiro-me a Mrs. Jeremy... Contudo, não poderemos provar a sua relação com isso. Charles Trenton? Parece que me lembro...

 

Poirot confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Sim. Tinha cadastro.

 

- Assim pensei. Se não me engano, por burlar hotéis. Costumava chegar ao Ritz, sair, comprar um Rolls, sujeito a experiência por uma manhã, ir no carro a todas as lojas mais caras e comprar coisas... e garanto-lhe que os cheques de um homem, que tem à porta um Rolls para transportar as compras para o hotel, não suscitam dúvidas? Além disso, tinha boa figura e bom trato. Demorava-se cerca de uma semana e depois, mal começavam a despertar as suspeitas, desaparecia tranquilamente, vendendo por pouco dinheiro as várias cautelas de penhor aos amigos que tinha arranjado. Charles Trenton. Hum... olhou para Poirot. O senhor tem jeito para descobrir coisas, não tem?

 

- Que tal vai o seu caso contra David Hunter?

 

-Teremos de soltá-lo. Nessa noite, esteve uma mulher com Arden. Isso não é testemunhado apenas pelas palavras dessa velha rabugenta. Jimmy Pierce voltava para casa, depois de o terem expulso do «Loadof Hay» após um copo ou dois fica brigão e viu uma mulher sair do «Stag» e entrar na cabina telefônica, em frente à estação dos correios... Ora, isso foi logo depois das dez. Disse que não era nenhuma pessoa sua conhecida e julgou que fosse alguma hóspede do «Stag». «Pássaro de Londres», foi o que ele lhe chamou.

 

- Não esteve muito perto dela?

 

- Não, no passeio fronteiro. Quem diabo era ela, M. Poirot?

 

- Disse como ia vestida?

 

- Com um casaco de tweed e com um lenço cor de laranja à volta da cabeça. Calças compridas e a cara muito pintada. Condiz com a descrição da velha.

 

- Sim, condiz concordou Poirot, com ar carrancudo.

 

Spence perguntou-lhe:

 

- Ora, quem era ela, de onde veio, para onde foi? Conhece o nosso horário de comboios. O comboio das nove e vinte é o último que vai para Londres... e o das dez e três é o que vai no sentido oposto. Essa mulher teria andado a vagabundear por aí, durante toda a noite, e seguido para Londres no das seis e dezoito da manhã? Teria carro? Ter-se-ia escondido? Já batemos todo o sítio e as redondezas... mas nada.

 

- E quanto ao das seis e dezoito?

 

- Vai sempre apinhado de gente... na maior parte, homens. Acho que teriam reparado numa mulher... nesse tipo de mulher, está claro. Suponho que pode ter aqui vindo e partido de carro, mas, hoje em dia, um carro é coisa que não passa despercebida em Warmsley Vale.

 

- Nessa noite, não foi visto nenhum?

 

- Apenas o do Dr. Cloade. Tinha ido atender um caso... no caminho de Middlingham. É de supor que alguém tivesse reparado numa mulher desconhecida que seguisse num carro.

 

- Não é necessário que tenha sido uma desconhecida declarou lentamente Poirot. Um homem, levemente embriagado e a cem metros de distância, podia não ter reconhecido uma pessoa da terra que não conhecesse muito bem. Alguém, talvez, vestido de maneira diferente da habitual.

 

Spence olhava-o inquiridoramente.

 

- Esse jovem Pierce reconheceria, por acaso, Lynn Marchmont? Ela esteve ausente durante uns poucos de anos.

 

- A essa hora, Lynn Marchmont estava em White House com a mãe declarou Spence.

 

- Tem a certeza?

 

- Mrs. Lionel Cloade é a «avariada», a mulher do médico diz que lhe telefonou às dez e dez. Rosaleen Cloade estava em Londres. Mrs. Jeremy bem, nunca a vi em calças e não usa maquiagem. Em todo o caso, já não é nova.

 

- Oh, mon cher Poirot inclinou-se para a frente. Numa noite escura, apenas à luz fraca dos candeeiros da rua, pode saber-se se uma pessoa é velha ou nova ou a idade que tem por baixo da maquiagem?

 

- Ouça cá, Poirot, aonde quer chegar?

 

Poirot recostou-se na cadeira e semicerrou os olhos.

 

- Calças, um casaco de tweed, um lenço cor de laranja em volta da cabeça, uma boa dose de maquiagem, um baton caído. Tudo isso é sugestivo.

 

- Parece o oráculo de Delfos resmungou o superintendente. Não quer dizer que eu saiba o que era o oráculo de Delfos uma coisa que o jovem Graves se dá ares de saber e não lhe serve para nada no seu serviço de polícia. Tem ainda mais algumas declarações a fazer, M. Poirot?

 

- Já lhe disse que este caso estava errado. Como exemplo, disse-lhe que o morto estava incorreto. E estava-o, como Underhay. Underhay era nitidamente um excêntrico, um indivíduo cavalheiresco, antiquado e reacionário. O homem que se hospedou no «Stag» era um chantagista; não era nem cavalheiresco, nem antiquado, nem reacionário, nem particularmente excêntrico... por conseguinte, não era Underhay. Não podia ser Underhay porque as pessoas não mudam. A coisa interessante foi Porter ter declarado que era Underhay.

 

- Levando-o a Mrs. Jeremy?

 

- A semelhança levou-me a Mrs. Jeremy. Esse perfil Trenton tem uma nota muito especial. Para permitir-me um pequeno jogo de palavras, Charles Trenton, o morto, pertence ao mesmo molde. Mas subsistem ainda perguntas a que é necessário responder. Por que foi David Hunter tão pronto a permitir que lhe extorquissem dinheiro por chantagem? Será o gênero de homem que se preste a chantagem? Qualquer pessoa seria categórica a responder NÃO. Por conseguinte, ele também procede despropositadamente. Temos ainda Rosaleen Cloade. Todo o seu comportamento é incompreensível... mas há uma coisa que muito me agradaria saber. Por que motivo está amedrontada? Por que motivo pensa que, desde que não tem o irmão a seu lado para protegê-la, alguma coisa lhe acontecerá? Alguém... ou alguma coisa lhe incutiu esse medo. Mas não é o receio de perder a fortuna... não, é mais do que isso. É pela sua vida que ela receia...

 

- Meu Deus, M. Poirot, não está a pensar...

 

- Não nos esqueçamos, Spence, que, tal como há pouco acabou de dizer, voltamos ao ponto onde estávamos. Isto é, a família Cloade voltou ao ponto de onde tinha partido. Robert Underhay morreu em África e a vida de Rosaleen Cloade está de permeio entre eles e o dinheiro de Gordon Cloade...

 

- Julga realmente que algum deles seria capaz de fazer isso?

 

- Julgo apenas isto: Rosaleen Cloade tem vinte e seis anos e, embora mentalmente seja um pouco fraca, fisicamente é forte e saudável. Pode viver até aos setenta e ainda mais. Ainda uns quarenta e quatro anos, digamos. Não acha, superintendente, que quarenta e quatro anos podem ser tempo demasiado para uma pessoa ficar em contemplação?

 

Quando Poirot saiu da esquadra, foi quase imediatamente abordado pela tia Kathie. Esta transportava vários embrulhos de compras e dirigiu-se-lhe tão excitada que quase perdera o fôlego.

 

- Que coisa terrível essa morte do major Porter! comentou. Não posso deixar de sentir que a sua perspectiva da vida deve ter sido muito materialista. Vida de exército, compreende. Muito limitada e, embora tivesse passado grande parte da vida na índia, receio que nunca tenha tirado vantagem das oportunidades espirituais. Devia ser tudo pukka (1) e chota hazri (2) e tiffin (3) e alancear javalis... o acanhado ambiente do Exército. Pensar que podia ter-se sentado com um cheia (4) aos pés de um guru! (5) Ah, as oportunidades desperdiçadas, M. Poirot, como são tristes!

 

A tia Kathie meneou a cabeça e afrouxou o aperto com que segurava um dos sacos das compras. Para fora deste resvalou um desolado bocado de bacalhau, que foi cair na valeta. Poirot apanhou-o e a tia Kathie, na sua agitação, deixou escapar uma vasilha de melaço refinado que começou uma animada carreira ao longo da High Street.

 

- Muito obrigada, M. Poirot a tia Kathie agarrou no bacalhau. Poirot foi na perseguição da vasilha. Oh, obrigada... que desastrada!... Mas realmente tenho andado tão transtornada. Esse pobre homem... cuidado, é pegajoso... custa-me realmente sujar-lhe o seu lenço limpo. Bem, é muito gentil da sua parte... como eu estava a dizer, na vida estamos na morte... e na morte estamos na vida. Não me espantaria nada ver o corpo astral de um dos meus queridos amigos que morreram. Como é sabido, até se pode passar por ele na rua. Ora... só na outra noite, eu...

 

(1) Gente snob. (N. do T.)

 

(2) Pequeno-almoço. (N. do T.)

 

(3) Almoço. (N. do T)

 

(4) Estudante budista. (N. do T.)

 

(5) Chefe espiritual. (N. do T.)

 

- Dá-me licença? Poirot encafuou firmemente o bacalhau nas profundezas do saco. Estava a dizer, sim?

 

- Corpos astrais respondeu a tia Kathie. Sabe, pedi uma moeda de dois dinheiros... porque só tinha moedas de meio-péni. Mas, naquela altura, o rosto pareceu-me familiar... simplesmente, não consegui localizá-lo. Morreu... talvez já há algum tempo... e, por isso, a minha memória não estava muito boa. É maravilhoso o modo como as pessoas são enviadas a uma outra que esteja nalgum apuro... ainda que se trate apenas de uma questão de moedas para falar ao telefone. Oh, meu caro, que bicha à porta dos Peacocks... devem ter Bolo Familiar ou Torta Suíça! Espero não chegar demasiado tarde!

 

Mrs. Lionel Cloade precipitou-se para o outro lado da rua e tomou lugar na ponta de uma bicha de mulheres de cara horrível, formada à porta da confeitaria.

 

Poirot continuou a descer a High Street. Não virou para o «Stag». Em vez disso, desviou os seus passos para a White House.

 

Desejava muitíssimo ter uma conversa com Lynn Marchmont e suspeitava de que Lynn Marchmont não seria avessa a ter uma conversa com ele.

 

Estava uma manhã encantadora... uma dessas manhãs de Verão, na Primavera, que têm uma frescura negada por um dia de verdadeiro Verão.

 

Poirot saiu da estrada principal. Avistou o atalho que passava por Long Willows e continuava a subir pela encosta da colina, passando também por Furrowbank. Charles Trenton tomara por esse atalho ao sair da estação, na sexta-feira anterior à sua morte. Ao descer a encosta, cruzara-se com Rosaleen Cloade, que a subia. Não a reconhecera o que não era para admirar, visto não ser Robert Underhay e ela, como é natural, não o reconhecera pela mesma razão. Mas, quando lhe tinham mostrado o corpo, jurara que nunca vira aquele homem. Tê-lo-ia dito para se salvaguardar? Ou, naquele dia, teria estado tão absorta nos seus pensamentos que nem sequer olhara para o rosto do homem com quem se cruzara no atalho? Se assim fora, em que estaria a pensar? Teria estado, por acaso, a pensar em Rowley Cloade?

 

Poirot percorreu a pequena estrada lateral que levava a White House. O jardim que a rodeava tinha um aspecto encantador. Ostentava muitos arbustos em flor, lilases e laburnos e, no centro do relvado, ficava uma enorme e velha macieira. Sob esta, estendida numa cadeira de lona, achava-se Lynn Marchmont.

 

Saltou nervosamente, quando Poirot, numa voz cerimoniosa, lhe desejou:

 

- Bom dia!

 

- Assustou-me, M. Poirot. Não o vi atravessar o relvado. Com que então ainda cá está... em Warmsley Vale.

 

- Estou cá... sim.

 

- Por quê?

 

Poirot encolheu os ombros.

 

- É um lugar agradável, retirado do mundo, onde se pode descansar. Descanso.

 

- Agrada-me que cá esteja disse Lynn.

 

- O resto da sua família não me diz o mesmo. «Quando regressa a Londres, M. Poirot?» E esperam ansiosamente pela resposta.

 

- Querem que regresse a Londres?

 

- Assim parece.

 

- Pois eu não.

 

- Não... compreendo. Por quê, mademoiselle?

 

- Porque significa que não está convencido. Não está convencido de que David Hunter tenha feito isso.

 

- E deseja assim tanto... que ele esteja inocente? Notou-lhe um leve rubor sob a pele bronzeada.

 

- Como é natural, não quero ver um homem enforcado pelo que não fez.

 

- Como é natural... oh, sim!

 

- E a polícia tem-lhe má vontade, simplesmente porque ele não a quis ajudar. O mal de David está aí... gosta de contender com as pessoas,

 

- A polícia não está tão predisposta contra ele como pensa, Miss Marchmont. A predisposição contra ele estava no espírito dos jurados. Recusaram-se a seguir a indicação do coroner. Pronunciaram-se por um veredicto acusatório e, por conseguinte, a polícia viu-se obrigada a prendê-lo. Mas posso dizer-lhe que não está nada convencida da sua culpabilidade.

 

- Então, vão pô-lo em liberdade? perguntou Lynn ansiosamente.

 

Poirot encolheu os ombros.

 

- Quem pensa a polícia que seja o culpado, M. Poirot?

 

- Nessa noite, esteve uma mulher no «Stag» proferiu Poirot vagarosamente.

 

- Não compreendo nada. Quando pensávamos que o homem era Robert Underhay, parecia tudo tão simples. Por que afirmou o major Porter que era Underhay, se o não era? Por que se suicidou? Voltamos ao ponto de partida.

 

- É a terceira pessoa a empregar essa frase!

 

- Sou? inquiriu Lynn, assustada. O que anda a fazer, M. Poirot?

 

- A falar com pessoas. É o que ando a fazer. Simplesmente a falar com pessoas.

 

- Mas não lhes faz perguntas a respeito do crime? Poirot abanou a cabeça.

 

- Não, apenas... como hei-de dizer... ouço tagarelar.

 

- Isso serve de alguma coisa?

 

- Às vezes, ajuda. Ficaria surpreendida se soubesse quanto sei da vida quotidiana de Warmsley Vale, nas últimas semanas. Sei os sítios por onde as pessoas andaram a passear, quem encontraram, e, às vezes, o que disseram. Sei, por exemplo, que esse Arden dirigiu-se à aldeia, seguindo pelo atalho que passa por Furrowbank, que perguntou o caminho a Mr. Rowley Cloade, que levava às costas uma mochila e que não tinha bagagem. Sei que Rosaleen Cloade tinha passado mais de uma hora na granja com Rowley Cloade e que, contrariamente à sua maneira de ser, se sentira ali feliz.

 

- Sim, Rowley contou-me isso. Disse que parecia alguém que estivesse a passar uma tarde de folga.

 

- Ah, ele disse isso? Poirot fez uma pausa e depois prosseguiu. Sim, estou a par de muitas idas e vindas. E ouvi contar muita coisa acerca de dificuldades das pessoas... das suas e das de sua mãe, por exemplo.

 

- Não há nenhum segredo a respeito de qualquer de nós disse Lynn. Todos nós tentamos extorquir dinheiro a Rosaleen. É isso que quer dizer, não é verdade?

 

- Não disse isso.

 

- Ora, é verdade! E suponho que também ouviu dizer coisas a meu respeito, a respeito de Rowley e de David.

 

- Mas vai casar com Rowley Cloade?

 

- Vou? Isso gostava eu de saber... Era o que procurava decidir nesse dia... em que David emergiu do souto. Foi como um grande ponto de interrogação no meu espírito. Devo? Devo? Até o comboio, que passava no vale, parecia estar a perguntar a mesma coisa. O fumo desenhava um perfeito ponto de interrogação no céu.

 

O rosto de Poirot adquiriu uma expressão curiosa. Lynn interpretou-a erradamente e gritou:

 

- Oh, não compreende, M. Poirot, é tudo tão difícil. Não se trata de David. É de mim! Mudei. Estive ausente durante três anos... quatro anos. Agora voltei, mas não sou a mesma pessoa que partiu. Em toda a parte, sucede a mesma tragédia. Pessoas que regressam mudadas e que têm de reajustar-se. Não é possível ausentarmo-nos e levarmos uma espécie de vida diferente sem mudarmos!

 

- Engana-se contrariou-a Poirot. A tragédia da vida está no fato de as pessoas não mudarem.

 

Ela fitou-o abanando a cabeça. Poirot insistiu:

 

- Sim. É como lhe digo. Por que partiu, em primeiro lugar?

 

- Por quê? Entrei para as Wrens. Fui em serviço.

 

- Sim, sim, mas por que se alistou nas Wrens, em primeiro lugar? Estava pedida em casamento. Estava apaixonada por Rowley Cloade. Podia ter trabalhado, não é verdade, como camponesa, aqui, em Warmsley Vale?

 

- Creio que sim, mas eu queria...

 

- Queria partir. Queria ir para o estrangeiro, conhecer a vida. Queria talvez afastar-se de Rowley Cloade... E agora está desassossegada, ainda quer... partir! Oh, não mademoiselle, as pessoas não mudam!

 

- Quando eu estava no Oriente, ansiava por regressar à pátria exclamou Lynn defensivamente.

 

- Sim, sim, deseja-se sempre estar onde não se está. Talvez isso seja sempre assim, consigo. Idealiza um quadro de si mesma, um quadro de Lynn Marchmont de regresso à pátria... Mas o quadro não se torna verdadeiro porque a Lynn Marchmont que imagina não é a verdadeira Lynn Marchmont. É a Lynn Marchmont que gostaria de ser.

 

- Por conseguinte, na sua opinião, nunca estarei feliz em parte alguma? perguntou Lynn amargamente.

 

- Não digo isso. O que lhe digo é que, quando partiu, se sentia desgostosa com o seu noivado e que, agora que voltou, continua desgostosa com o seu noivado.

 

Lynn arrancou uma folha e mastigou-a meditativamente.

 

- É muito perspicaz a analisar as coisas, não é, M. Poirot?

 

- É o meu metier replicou com modéstia. Há também outra verdade que julgo ainda não ter reconhecido.

 

- Refere-se a David, não é? inquiriu Lynn, com vivacidade. Julga-me apaixonada por David?

 

- Cabe-lhe a si dizê-lo murmurou Poirot, discretamente.

 

- Mas eu... não sei! Há qualquer coisa em David que me mete medo... mas há também qualquer coisa que me atrai...ficou calada por um momento e depois prosseguiu. Estive ontem a falar com o comandante de David. Apareceu cá, logo que ouviu dizer que David tinha sido preso, para ver se poderia fazer alguma coisa por ele. Esteve a falar-me de David, disse-me que era terrivelmente temerário, que era um dos homens mais valentes que durante toda a sua vida tivera sob o seu comando. E, no entanto, sabe, M. Poirot, apesar de tudo quanto ele disse em seu louvor, tive a sensação de que não tinha a certeza, de que não tinha a certeza absoluta de que David estivesse inocente.

 

-Também não tem a certeza?

 

Lynn esboçou um sorriso torcido, um tanto patético.

 

- Não... compreende, nunca tive confiança em David. Pode amar-se uma pessoa em quem não se confia?

 

- Infelizmente, sim.

 

- Estive sempre de má-fé para com ele... porque não confiava nele. Acreditei em muita coisa da estúpida tagarelice da terra... que David não era David Hunter... mas simplesmente um amante de Rosaleen. Fiquei envergonhada quando conheci o comandante e ele me contou que conhecera David em rapaz, na Irlanda.

 

- C’est épatant murmurou Poirot como as pessoas podem agarrar num pau pela ponta indevida!

 

- Que quer dizer?

 

- Apenas o que disse. Diga-me, se por acaso, Mrs. Cloade a mulher do médico lhe telefonou na noite do crime?

 

- A tia Kathie? Sim, telefonou.

 

- A que propósito?

 

- Uma incrível confusão de contas.

 

- Telefonou-lhe de casa?

 

- Não, tinha o telefone avariado. Teve de ir a uma cabina.

 

- Às dez e dez?

 

- Pouco mais ou menos. Os nossos relógios nunca estão exatos.

 

- Pouco mais ou menos repetiu Poirot, pensativamente. Prosseguiu delicadamente: Foi a única chamada que recebeu, nessa noite?

 

- Não respondeu Lynn laconicamente.

 

- David Hunter telefonou-lhe de Londres?

 

Lynn encolerizou-se subitamente. Suponho que também quer saber o que ele disse, não?

 

- Oh, certamente que não presumo...

 

- Estou pronta a dizer-lho! Disse que ia partir... desaparecendo da minha vida. Disse que não me merecia e que nunca se portaria bem... nem sequer por mim.

 

- E, em vista disso ser provavelmente verdade, não gostou conjeturou Poirot.

 

- Espero que ele parta... isto é, se for posto em liberdade... Desejo que vão ambos para a América, ou para qualquer outro lado. Depois, talvez deixemos de pensar neles... aprenderemos a manter-nos à nossa custa. Deixaremos de sentir ódio.

 

- Ódio?

 

- Sim. Senti-o pela primeira vez, certa noite, em casa da tia Kathie. Ela deu um pequeno sarau. Talvez por eu ter acabado de regressar do estrangeiro e estar ainda muito excitada... pareceu-me senti-lo no ar que pairava à nossa volta. Ódio contra ela... contra Rosaleen. Não vê que desejávamos que ela morresse... todos nós! Desejávamos que ela morresse... E é horrível desejar-se... a morte de uma pessoa que nunca nos fez mal.

 

- A sua morte, evidentemente, é a única coisa que lhes pode trazer qualquer bem material observou Poirot num tom vivo e prático.

 

- Quer dizer, financeiramente? O fato de a sua propriedade estar aqui situada causou-nos mal, sob todos os aspectos! Invejar uma pessoa, odiá-la, explorá-la... não é bom para ninguém. E agora cá está ela, sozinha, em Furrowbank. Parece um fantasma... parece terrivelmente assustada... parece... oh!, parece estar transtornada da cabeça. E não quer que a ajudemos! Nenhum de nós. Todos nós tentamos fazê-lo. A Mamã convidou-a a vir para nossa casa e a tia Frances fez o mesmo. Até a tia Kathie se ofereceu para ficar com ela em Furrowbank. Mas ela agora não quer nada conosco e não a censuro. Nem sequer quis receber o comandante Conroy. Acho que está doente, doente de aflição, de terror e de angústia. E nós nada podemos fazer para tranqüilizá-la, porque ela não deixa.

 

- Já tentou?

 

- Sim respondeu Lynn. Fui lá ontem perguntar-lhe se queria que a ajudasse nalguma coisa. Olhou-me... interrompeu-se subitamente e estremeceu. Julgo que me odeia. Disse «Você, menos do que todos». David recomendou-lhe, julgo eu, que ficasse em Furrowbank e ela faz sempre o que David lhe recomenda. Rowley levou-lhe ovos e manteiga de Long Willows. Creio que, de nós todos, é a única pessoa de quem ela gosta. Rowley é realmente bom.

 

- Há pessoas comentou Poirot por quem se tem muita simpatia... muita piedade, pessoas que têm um fardo demasiado pesado a suportar. Por Rosaleen Cloade, sinto muita piedade. Se pudesse, havia de ajudá-la. Mesmo agora, se ela quisesse ouvir...

 

Com uma súbita resolução, pôs-se de pé.

 

- Venha, mademoiselle incitou-a. Vamos a Furrowbank.

 

- Quer que vá consigo?

 

- Se está disposta a ser generosa e compreensiva...

 

Lynn exclamou: Estou... sinceramente estou...

 

Levaram cerca de cinco minutos a chegar a Furrowbank. O atalho serpenteava, subindo através de compactos maciços de rododendros. Gordon Cloade não se poupara a qualquer esforço ou dispêndio para fazer de Furrowbank um lugar de sonho.

 

A criada que veio abrir-lhes a porta pareceu ficar surpreendida ao vê-los e um pouco indecisa quanto a poderem ser recebidos por Mrs. Cloade. Informou-os de que a senhora ainda não estava levantada. Todavia, conduziu-os à sala de visitas e subiu ao primeiro andar com o recado de Poirot.

 

Este olhou em volta. Comparava este aposento à sala de Frances este último, com uma nota tão íntima, tão característica da personalidade da dona de casa. A sala de visitas de Furrowbank era estritamente impessoal... testemunhando apenas opulência, temperada por bom gosto. Gordon Cloade cuidara do mínimo pormenor... tudo ali era de boa qualidade e de valor artístico, mas não havia qualquer indício de selectivismo, qualquer sinal dos gostos pessoais da dona daquele aposento. Dava a impressão de que Rosaleen não impregnara a casa com a sua individualidade.

 

Vivera em Furrowbank como um visitante estrangeiro pode viver no «Ritz» ou no «Savoie».

 

«Gostava de saber se a outra...», pensou Poirot.

 

Lynn interrompeu-lhe o decurso dos pensamentos, perguntando-lhe em que estava a pensar e por que tomara uma expressão tão desagradável.

 

- Dizem que o salário do pecado é a morte. Mas, às vezes, o salário do pecado é o luxo. Há algum mais suportável? Ser-se separado da própria vida caseira. Ter talvez uma única e rápida visão dela, quando o regresso a essa vida está vedado...

 

Interrompeu-se. A criada pusera de parte o seu porte superior e foi uma simples mulher de meia-idade, assustada, que apareceu a correr na sala, gaguejando e sufocando com palavras que mal podia pronunciar.

 

- Oh, Miss Marchmont! Oh, senhor, a senhora... lá em cima... está muito mal... não fala... não pode levantar a cabeça e tem as mãos muito frias.

 

Poirot virou-se vivamente e precipitou-se para fora do aposento. Lynn e a criada seguiram-no. Subiu a correr ao primeiro andar. A criada indicou-lhe a porta aberta, em frente, ao cimo das escadas.

 

Era um belo quarto de dormir, espaçoso, onde o sol entrava pelas janelas abertas incidindo sobre os belos tapetes de tons pálidos.

 

Rosaleen estava estendida na enorme cama de armação esculpida. Parecia dormir. As longas pestanas escuras descansavam sobre as faces e a cabeça estava naturalmente de lado, sobre a almofada. Numa das mãos, via-se um lenço amarfanhado. Parecia uma criança triste, que tivesse chorado, acabando por adormecer.

 

Poirot agarrou-lhe na mão e tomou-lhe o pulso. A mão estava gelada e não fez mais do que confirmar-lhe as suas suposições.

 

Disse, calmamente, a Lynn: Já está morta, há algum tempo. Morreu enquanto dormia.

 

- Oh, senhor... oh... que havemos de fazer? a criada irrompeu num pranto.

 

- Quem era o médico dela?

 

- O tio Lionel respondeu Lynn.

 

Poirot ordenou à criada: Telefone ao Dr. Cloade.

 

Ela retirou-se para cumprir a ordem, sem parar de soluçar. Poirot examinou todos os cantos do quarto. Uma pequena caixa branca de cartão, colocada ao lado da cama, tinha o rótulo «Pó para tomar ao deitar». Com o auxílio de um lenço, abriu-a. Continha três pacotinhos de papel. Dirigiu-se à escarpa da chaminé e depois à escrivaninha. A cadeira desta achava-se afastada para o lado e a pasta estava aberta. Via-se nela uma folha de papel com palavras garatujadas numa escrita infantil e informe.

 

- Não sei o que fazer... não posso continuar... Tenho procedido tão perversamente. Tenho de desabafar com alguém e tranqüilizar a minha consciência. Em primeiro lugar, não tencionava ser tão má. Não previ tudo quanto resultaria disto. Tenho de anotar...

 

As palavras seguintes estavam ilegíveis. A caneta encontrava-se onde fora deixada cair. Poirot ficou a olhar para aquelas palavras. Lynn continuou junto à cama a contemplar a rapariga morta.

 

Depois, a porta abriu-se violentamente e David Hunter precipitou-se, arquejante, para dentro do quarto.

 

- David, Lynn adiantou-se na sua direção. Soltaram-te? Estou tão contente.

 

Hunter, sem fazer caso das suas palavras, empurrou-a para o lado, quase brutalmente, e debruçou-se sobre o rosto tranqüilo e pálido.

 

- Rosa! Rosaleen...tocou-lhe na mão e depois virou-se para Lynn, com o rosto rubro de cólera. As suas palavras soaram alto e vagarosamente: Com que então mataram-na, não é verdade? Finalmente, desembaraçaram-se dela! Desembaraçaram-se de mim, mandaram-me para a «gaiola», sob uma acusação forjada, e depois, entre vocês todos, puseram-na fora do jogo! Todos vocês ou apenas um de vocês? Pouco me importa como foi! Mataram-na! Queriam o maldito dinheiro... agora já o têm! A morte dela pô-lo nas vossas mãos! Agora todos se libertaram de apertos. Serão todos ricos... um bando de sórdidos ladrões e assassinos é o que vocês são! Enquanto estive a seu lado, não foram capazes de tocar-lhe. Eu sabia proteger a minha irmã... ela nunca foi capaz de proteger-se. Quando aqui ficou sozinha, vocês viram uma oportunidade e aproveitaram-na fez uma pausa, inclinando-se um pouco para o lado e em voz baixa e trêmula, proferiu: Assassinos!

 

Lynn gritou:

 

- Não, David. Não! Estás enganado. Nenhum de nós seria capaz de matá-la, de fazer uma coisa dessas!

 

- Um de vocês a assassinou, Lynn Marchmont. E sabes isso tão bem como eu!

 

- Juro-te que não a matamos, David. Juro-te que não o fizemos.

 

O olhar desvairado do rapaz suavizou-se um pouco.

 

- É possível que não tenhas sido tu, Lynn.

 

- Não fui, David, juro que não...

 

Hercule Poirot deu um passo em frente e tossicou. David Hunter virou-se para ele.

 

- Creio interveio Poirot que as suas suposições são um pouco ultradramáticas. Por que se apressa a concluir que sua irmã foi assassinada?

 

- É capaz de dizer que não foi assassinada? Chama a isto indicou o corpo estendido na cama uma morte natural? Rosaleen sofria dos nervos, não há dúvida, mas não tinha um organismo fraco. Tinha um coração excelente.

 

- Na noite passada continuou Poirot antes de se deitar, sentou-se aqui a escrever...

 

David passou por ele e inclinou-se sobre a folha de papel.

 

- Não lhe toque recomendou Poirot.

 

David retirou a mão que já estendera e leu as palavras, sem pestanejar.

 

Depois, virou vivamente a cabeça e olhou perscrutadoramente para Poirot.

 

- Está a sugerir suicídio? Por que havia Rosaleen de suicidar-se?

 

A voz que respondeu à pergunta não foi a de Poirot. A voz calma, com a acentuação de Oastshire, do superintendente Spence respondeu, da entrada da porta.

 

- Suponhamos que, na passada terça-feira, à noite, Mrs. Cloade não esteve em Londres, mas em Warmsley Vale? Suponhamos que foi procurar o homem que estivera a fazer chantagem com ela? Suponhamos que, num acesso de nervos, o assassinou?

 

David dirigiu ao superintendente um olhar duro e irado.

 

- Minha irmã estava em Londres, na noite de terça-feira. Estava no apartamento, quando eu lá entrei, às onze horas.

 

- Ora disse Spence isso é a sua versão, Mr. Hunter. E estou certo de que continuará a sustentá-la. Mas não sou obrigado a acreditar nessa história. E, em qualquer dos casos, não é já um pouco tarde?... com um gesto apontou a cama. O caso já não será levado a tribunal.

 

- Ele não quer admiti-lo, mas estou convencido de que sabe que ela o fez, declarou Spence, sentado à secretária do seu gabinete da esquadra e olhando para Poirot, instalado à sua frente. É curioso como fomos tão cuidadosos em verificar o seu álibi. Nunca nos preocupamos muito com ela. E, contudo, não há nenhuma prova que corrobore a sua estada, nessa noite, no apartamento de Londres. Temos apenas a palavra dele, de que a irmã lá estava. Sabemos desde o princípio que apenas duas pessoas tinham motivo para eliminarem Arden. David Hunter e Rosaleen Cloade. Eu virei-me logo contra ele e deixei-a de lado. Ela parecia tão inofensiva um pouco estúpida até mas acho que isso explica, em parte, toda a coisa. Muito provavelmente David Hunter despachou-a para Londres por essa mesma razão. Deve ter percebido que ela perderia a cabeça e que era do gênero que se torna perigoso quando se enche de pânico. Uma outra coisa curiosa: via-a muitas vezes com um vestido de linho cor de laranja. Era uma das suas cores preferidas. Lenços cor de laranja um vestido às riscas, cor de laranja, uma boina cor de laranja. E, todavia, até quando a velha Mrs. Leadbetter descreveu uma mulher nova com a cabeça metida num lenço cor de laranja, não me ocorreu que devia ter sido a própria Mrs. Gordon. Penso, contudo, que ela não estava no seu juízo perfeito... que não foi totalmente responsável. O modo como a viu na igreja católica, aqui da terra, dá a impressão de que estava meio transtornada da cabeça com o remorso e sentimento de culpabilidade.

 

- Sim, tinha um sentimento de culpabilidade concordou Poirot.

 

Spence conjeturou pensativamente:

 

- Deve ter atacado Arden, numa espécie de frenesi. Não creio que ele tivesse a mínima suspeita do que ia acontecer-lhe. Com uma amostra de rapariga como aquela, não se teria posto em guarda ruminou, durante um momento, em silêncio e depois acrescentou: Há ainda uma coisa que não consigo compreender bem. Quem diabo foi ter com Porter? Diz que não foi Mrs. Jeremy? Aposto que foi tudo a mesma coisa!

 

- Não afiançou Poirot não foi Mrs. Jeremy. Garantiu-mo e eu acredito-a. Fui estúpido nesse ponto. Eu devia logo ter sabido quem foi. O próprio major Porter mo disse.

 

- Ele disse-lho?

 

- Oh, indiretamente, já se sabe, sem dar por isso.

 

- Quem foi, então?

 

Poirot pôs a cabeça um pouco de lado.

 

- Primeiramente, é-me permitido fazer-lhe duas perguntas?

 

O superintendente pareceu surpreendido.

 

- Pergunte o que quiser.

 

- Aqueles pós soporíferos, na caixa ao lado da cama de Rosaleen Cloade, o que eram?

 

O superintendente pareceu ainda mais surpreendido.

 

- Aqueles? Oh, eram absolutamente inofensivos. Brometo. Calmante de nervos. Tomava o conteúdo de um pacotinho todas as noites. Analisámo-los, está claro. Eram absolutamente inofensivos.

 

- Quem os receitou?

 

- O Dr. Cloade.

 

- Quando lhos receitou?

 

- Oh, há já algum tempo.

 

- Que veneno é que a matou?

 

- Bem, na realidade, ainda não recebemos o relatório, mas não creio que haja muitas dúvidas a esse respeito. Morfina, e numa boa dose.

 

- Encontraram alguma morfina na sua posse?

 

Spence olhou curiosamente para Poirot.

 

- Não. Aonde quer chegar, M. Poirot?

 

- Passarei agora à minha segunda pergunta respondeu Poirot evasivamente. David Hunter fez uma chamada de Londres para Lynn Marchmont às onze e cinco da noite de terça-feira. O senhor diz que verificou as chamadas. Essa foi a única chamada feita do apartamento de Shepherd’s Court. Houve algumas chamadas feitas aqui da terra?

 

- Uma, às dez e quinze. Também de Warmsley Vale. Foi feita de uma cabina telefônica pública.

 

- Compreendo Poirot ficou calado por um momento.

 

- Qual é a sua idéia, M. Poirot?

 

- Atenderam a chamada? A telefonista recebeu resposta do número de Londres?

 

- Compreendo o que quer dizer declarou Spence, vagarosamente. Devia ter estado alguém no apartamento. Não podia ser David Hunter pois seguia no comboio, em viagem de regresso. Parece pois que devia ter sido Rosaleen Cloade. E, se assim foi, Rosaleen Cloade não podia ter estado no «Stag» alguns minutos antes. Aonde quer chegar, M. Poirot, é que a mulher com o lenço cor de laranja não era Rosaleen Cloade. E, neste caso, não foi Rosaleen Cloade quem assassinou Arden. Mas então por que razão se suicidou?

 

- A resposta a isso é muito simples retrucou Poirot. Não se suicidou. Rosaleen Cloade foi assassinada.

 

- O quê?

 

- Foi assassinada deliberadamente, a sangue-frio.

 

- Mas quem assassinou Arden? Eliminamos David...

 

- Não foi David...

 

- E agora elimina Rosaleen? Mas, cos diabos!, esses dois eram as únicas pessoas com uma sombra de motivo!

 

- Sim disse Poirot. Motivo. Foi isso que nos despistou. Se A tem um motivo para matar C e B tem um motivo para matar D... bem, não parece fazer sentido, não é verdade, que A mate D e B mate C?

 

Spence resmungou.

 

- Acalme-se Poirot, acalme-se. Ainda nem sequer comecei a compreender o que está para aí a dizer com os seus AA, BB e CC.

 

- É complicado concedeu Poirot é muito complicado. Porque, bem vê, tem aqui duas espécies diferentes de crime e, consequentemente, tem, deve ter, duas espécies diferentes de assassinos. Registe Primeiro Assassino e registe Segundo Assassino.

 

- Não cite Shakespeare resmungou Spence. Isto não é um drama isabelino.

 

- Pelo contrário, é até muito shakespeariano... estão aqui todas as emoções... as emoções humanas... em que Shakespeare devia ter revelado... os ciúmes, os ódios... as rápidas ações apaixonadas. E aqui há também um oportunismo bem-sucedido, «Na vida de cada ente, há uma maré oportuna, cuja torrente, aproveitada na enchente, pode levar à Fortuna...» Alguém agiu de acordo com isso, superintendente. Agarrar a oportunidade e fazê-la servir os seus próprios fins isso foi triunfantemente consumado debaixo do seu nariz, por assim dizer!

 

Spence esfregou irritadamente o nariz.

 

- Fale de modo que eu o entenda, M. Poirot pediu. Se é possível, diga simplesmente o que quer exprimir com isso.

 

- Serei muito claro... tão claro como cristal. Temos três mortes, não é verdade? Concorda com isto, não é assim? Morreram três pessoas.

 

Spence olhou-o com curiosidade.

 

- Certamente que sim... Não vai querer fazer-me acreditar que uma delas ainda está viva?

 

- Não, não tranquilizou-o Poirot. Estão todas mortas. Mas como morreram elas? Como, digamos assim, classificaria as suas mortes?

 

- Bem, quanto a isso M. Poirot, conhece os meus pontos de vista. Um assassínio e dois suicídios. Mas, de acordo consigo, o último suicídio não é um suicídio. É outro assassínio.

 

- De acordo comigo sublinhou Poirot houve um suicídio, um acidente e um assassínio.

 

- Acidente? Quer dizer que Mrs. Cloade se envenenou acidentalmente? Ou quer dizer que a bala que o major Porter meteu na cabeça se deve a um acidente?

 

- Não respondeu Poirot. O acidente foi a morte de Charles Trenton... por outras palavras, Enoch Arden.

 

- Acidente! o superintendente explodiu Acidente? Chama a um assassínio extraordinariamente brutal, em que a cabeça de um homem fica despedaçada por repetidos golpes, um acidente?!

 

Absolutamente imperturbável perante o calor do superintendente, Poirot replicou calmamente:

 

- Quando digo um acidente, quero dizer que não havia a mínima intenção de matar.

 

- Não houve intenção de matar... quando a cabeça de um homem ficou desfeita? Quererá dizer que foi atacado por um lunático?

 

- Acho que essa hipótese se aproxima muito da verdade. embora não muito no sentido que lhe atribui.

 

- Mrs. Gordon, era a única mulher tarada que havia neste caso. Notei-lhe algumas vezes um aspecto muito estranho. Evidentemente que Mrs. Lionel Cloade é um bocado desaparafusada... mas nunca seria violenta, Mrs. Jeremy tem a cabeça colocada no seu lugar! A propósito, diz que não foi Mrs. Jeremy que subornou Porter?

 

- Não. Sei quem foi. Como já lhe disse, foi o próprio Porter que mo deu a entender. Apenas uma leve observação... ah, devia bater com a cabeça nas paredes, por não ter reparado nisso naquela altura.

 

- Então o seu lunático anônimo assassinou Rosaleen Cloade? perguntou Spence cuja voz soava cada vez mais impregnada de cepticismo.

 

Poirot sacudiu vigorosamente a cabeça.

 

- De forma alguma. É aqui que o Primeiro Assassino sai e o Segundo Assassino entra. Este é um tipo de criminoso inteiramente diferente, sem ódio, sem paixão. Um assassínio premeditado, a sangue-frio e, posso dizer, superintendente Spence, que o assassino de Rosaleen Cloade será enforcado por este crime.

 

Levantou-se enquanto falava e dirigiu-se para a porta.

 

- Eh! gritou Spence. Tem de dar-me alguns nomes. Não pode deixar a coisa nesses termos.

 

- Dentro de muito pouco tempo... sim, dar-lhos-ei. Mas estou à espera de uma coisa... Para ser exato, de uma carta do outro lado do mar.

 

- Não fale como um adivinho barato! Eh... Poirot. Mas Poirot sumira-se.

 

Atravessou a praça e tocou à campainha da casa do Dr. Cloade. A mulher do médico veio abrir a porta e, ao ver Poirot, soltou a habitual arfada. Este não perdeu tempo.

 

- Madame, preciso de falar-lhe.

 

- Oh, certamente... entre... não tive ainda muito tempo para limpar o pó, mas...

 

- Quero perguntar-lhe uma coisa. Há quanto tempo seu marido é morfinômano?

 

A tia Kathie irrompeu num pranto súbito.

 

- Oh, meu Deus, meu Deus... tinha tantas esperanças de que nunca ninguém chegasse a saber... Começou com a guerra. Andava tão terrivelmente extenuado e sofria de uma nevralgia tão forte! Desde então, tem procurado diminuir a dose... lá isso tem. Mas é isso que o torna, por vezes, tão irascível...

 

- É essa uma das razões por que tem precisado de dinheiro, não é verdade?

 

- Suponho que sim. Oh, meu caro M. Poirot, ele prometeu-me ir para um sanatório...

 

- Acalme-se, madame, e responda-me a mais uma pequena pergunta. Na noite em que telefonou a Lynn Marchmont, fê-lo da cabina telefônica em frente à estação dos correios, não foi? Encontrou alguém na praça, nessa noite?

 

- Oh, não, M. Poirot, nem vivalma.

 

- Mas ouvi dizer que teve de pedir emprestada uma moeda de dois dinheiros porque tinha apenas uma moeda de meio-péni.

 

- Ah, sim. Tive de pedi-lo a uma mulher que ia a sair da cabina. Deu-me dois dinheiros em troca do meio-péni.

 

- Que aspecto tinha essa mulher?

 

- Bem, muito teatral, não sei se me faço entender. Um lenço cor de laranja em volta da cabeça. O mais engraçado é que tive quase a certeza de tê-la já visto noutro sítio qualquer. A cara dela pareceu-me muito familiar. Penso que devia ter sido alguma pessoa que já tivesse morrido. E, apesar disso, sabe, não pude lembrar-me de onde e como a tinha conhecido.

 

- Obrigado, Mrs. Cloade agradeceu Hercule Poirot.

 

Lynn saiu de casa e contemplou o céu.

 

O Sol aproximava-se do poente, mas no céu não havia qualquer tonalidade, apenas uma luminosidade quase irreal. Sentia-se a tranqüilidade daquele anoitecer. Mais tarde, pensou, haveria tempestade.

 

Bem, chegara a altura. Não podia adiar as coisas por mais tempo. Devia ir a Long Willows falar com Rowley. Pelo menos, devia-lhe isso... “ser ela própria a dizer-lho e não optar pelo modo mais fácil de uma carta”.

 

Estava decidida... decididíssima... repetiu a si própria e, contudo, sentia uma relutância estranha. Olhou em volta e pensou: «É um adeus a tudo isto... ao meu mundo... ao meu modo de viver.»

 

Realmente, não tinha ilusões. A vida com David era um jogo... uma aventura que tanto podia acabar mal como bem. Ele próprio a prevenira...

 

Na noite do crime, pelo telefone.

 

E depois, poucas horas antes, dissera-lhe:

 

- Tencionava sair do teu caminho. Fui um louco... em pensar que me seria possível partir e deixar-te. Iremos para Londres e casaremos com uma licença especial... Oh, sim, não te darei ocasião para irresoluções. Tens raízes lançadas aqui, raízes que te prendem. Tenho que arrancar-te por elas. E acrescentara: Participaremos o caso a Rowley depois de já seres Mrs. David Hunter. Pobre diabo, é a melhor maneira de dizer-lho.

 

Mas Lynn não concordara com esse ponto, embora, naquela altura, não lho tivesse dito. Não, ela própria devia participá-lo a Rowley.

 

Era a casa de Rowley que ia agora!

 

A tempestade começou no momento preciso em que Lynn bateu à porta de Long Willows. Rowley abriu-a e pareceu atônito ao vê-la.

 

- Olá, Lynn, por que não telefonaste a dizeres que vinhas? Podia não estar em casa.

 

- Preciso de falar contigo, Rowley.

 

O rapaz desviou-se para o lado para lhe dar passagem e seguiu-a até à enorme cozinha. Sobre a mesa viam-se ainda os restos da sua ceia.

 

- Estou a pensar em pôr um H ou um S, neste sítio disse. Será mais cômodo para ti. E um novo lava-louças... em aço...

 

Ela interrompeu-o.

 

- Não faças planos, Rowley.

 

- Dizes isso porque aquela pobre rapariga ainda não está enterrada? Acho que isto parece bastante falta de coração, mas ela nunca me deu a impressão de uma pessoa particularmente feliz. Doentia, talvez. Nunca se refez daquele maldito ataque aéreo! Seja como for, já está irremediavelmente morta e para mim... ou antes para nós, a diferença...

 

Lynn tomou fôlego.

 

- Não, Rowley. Não se trata de nenhum «nós». Foi o que vim dizer-te.

 

Ele olhou-a, pasmado.

 

Lynn acrescentou lentamente, odiando-se a si própria, mas firme no seu propósito: Vou casar com David Hunter, Rowley.

 

Lynn não sabia muito bem o que esperava protestos talvez e uma explosão encolerizada, mas o que certamente não esperava era que Rowley aceitasse essa sua declaração da maneira que o fez.

 

Fitou-a, durante um momento, depois foi atiçar o fogão e, por fim, virou-se numa atitude quase distraída.

 

- Bem propôs, esclareçamos o assunto. Vais casar com David Hunter. Por quê?

 

- Porque o amo.

 

- Tu amas-me a mim.

 

- Não. Amava-te... quando parti. Mas passaram-se quatro anos... e mudei. Ambos mudamos.

 

- Enganas-te... contrariou-a calmamente. Eu não mudei.

 

- Bem, talvez não tenhas mudado muito.

 

- Não mudei nada, não tive grande oportunidade de mudar. Continuei simplesmente a cavar por aqui. Eu não me atirei de pára-quedas, nem trepei por rochedos, de noite, nem passei um braço em torno de um homem para apunhalá-lo...

 

- Rowley...

 

- Eu não estive na guerra. Eu não combati. Eu não sei o que é a guerra! Levei aqui uma bela vida, em segurança, nesta granja. O felizardo do Rowley! Mas, como marido, terias vergonha de mim!

 

- Não, Rowley... oh, não! Não é nada disso!

 

- Pois eu digo-te que sim!

 

Aproximou-se dela. O sangue entumescia-lhe o pescoço e as veias da testa sobressaíam de inchadas. Aquele brilho que lhe animava os olhos... já ela uma vez o vira quando passara por um toiro, num campo. Vira-o bater com as patas, sacudir e baixar lentamente a cabeça armada de grandes chifres. Aguilhoado por uma enorme fúria, por uma raiva cega...

 

- Está calada, Lynn. Para variar, hás-de ouvir-me.

 

- Não fiz o que devia ter feito. Perdi a minha oportunidade de lutar pelo meu país. Vi os meus melhores amigos partirem e morrerem. Vi a minha noiva... a minha noiva... fardada e partir para o ultramar. Fui apenas o Homem Que Ela Deixou. A minha vida foi o inferno... não compreendes, Lynn? Foi o Inferno. E depois tu voltaste... e, desde então, tem sido pior que o Inferno. Desde que, naquela noite, em casa da tia Kathie, te vi olhar para David Hunter, quando estávamos à mesa. Mas ele não te terá, estás a ouvir? Já que não és para mim, também não serás para ninguém. Que julgas tu que eu sou?

 

- Rowley...

 

Ela levantara-se e recuava a pouco e pouco. Estava aterrorizada. Aquele homem deixara de ser um homem, era uma besta bruta.

 

- Matei duas pessoas declarou-lhe Rowley Cloade. Julgas que hesitarei em matar uma terceira?

 

- Rowley...

 

O rapaz lançara-se sobre ela e passava-lhe as mãos à volta do pescoço...

 

- Já não posso suportar mais, Lynn...

 

As mãos apertaram-lhe o pescoço, o quarto andou à roda, escuridão, uma escuridão prolongada, sufocação... tudo se tornava escuro...

 

E depois, subitamente, tosse. Uma tosse empertigada, levemente fictícia.

 

Rowley deteve-se... as suas mãos afrouxaram o aperto e caíram pendentes aos lados do corpo. Lynn, soltando-se, caiu amarfanhada no soalho.

 

Do lado de dentro da porta, estava Hercule Poirot, tossindo apologeticamente.

 

- Espero desculpou-se não ter sido um intruso. Bati à porta. Sim, certamente que bati, mas ninguém respondeu... Suponho que estava ocupado?

 

Durante um momento, a atmosfera ficou tensa, elétrica. Rowley fitava-o, pasmado. Por um instante, pareceu que ia atirar-se a Hercule Poirot, mas, por fim, afastou-se. Uma voz calma e inexpressiva disse-lhe:

 

- Chegou a tempo... por um triz.

 

Hercule Poirot levara a sua atmosfera de anticlimax a uma outra, tremente de perigo.

 

- A água da caldeira está a ferver? perguntou.

 

Rowley respondeu lentamente... sombriamente: Sim, está a ferver.

 

- Então, talvez não se importe de fazer um pouco de café? Ou de chá, se for mais fácil.

 

Rowley obedeceu como um autômato.

 

Hercule Poirot tirou da algibeira um enorme lenço limpo, ensopou-o em água fria, espremeu-o e aproximou-se de Lynn.

 

- Olhe, mademoiselle, se o atar à volta do pescoço... isso. Sim, tenho um alfinete de segurança... Vê, isso diminui logo a dor.

 

Lynn agradeceu-lhe numa voz rouca. A cozinha de Long Willows... Poirot andando de um lado para o outro... tudo isso lhe parecia um pesadelo. Sentia-se horrivelmente mal e a garganta doía-lhe terrivelmente. Levantou-se, cambaleando, e Poirot conduziu-a suavemente para uma cadeira onde a ajudou a sentar-se.

 

- Ora, aí está! exclamou, e virando a cabeça para trás perguntou. O café?

 

- Está pronto respondeu Rowley.

 

Levou-lho. Poirot encheu uma chávena e deu-a a Lynn.

 

- Ouça lá disse Rowley. Parece que não compreendeu. Tentei estrangular Lynn.

 

-Tá-tá fez Poirot, numa voz enfadada, parecendo deplorar um lapso de mau gosto, cometido por Rowley.

 

-Tenho na minha consciência duas mortes confessou Rowley. A dela teria sido a terceira... se o senhor não tivesse chegado.

 

- Vamos beber o nosso café propôs Poirot e não falemos de mortes. Não é agradável para mademoiselle Lynn.

 

- Meu Deus! exclamou Rowley, fitando Poirot. Lynn sorveu o café com dificuldade. Estava forte e quente. Pouco depois, sentiu a garganta menos dorida e o estimulante começou a agir.

 

- Ora, está melhor, não está? informou-se Poirot.

 

Ela respondeu meneando afirmativamente a cabeça.

 

- Agora, podemos conversar alvitrou. Quando digo isto, quero dizer realmente que sou eu quem vai falar.

 

- O que é... que sabe? perguntou Rowley lentamente. Sabe que matei Charles Trenton?

 

- Sim. Já sei isso há algum tempo.

 

A porta abriu-se. Era David Hunter.

 

- Lynn! exclamou. Não me tinhas dito... Calou-se embaraçado, percorrendo com o olhar cada um dos circunstantes.

 

- Que tens no pescoço?

 

- Outra chávena pediu Poirot.

 

Rowley tirou uma do guarda-louças. Poirot agarrou-a, encheu-a com café e estendeu-a a David. Poirot dominava uma vez mais a situação.

 

- Sente-se disse a David. Ficaremos aqui sentados, a tomar o nosso café, e os três escutarão Hercule Poirot enquanto este lhes faz uma dissertação sobre crimes.

 

Olhou-os e meneou satisfatoriamente a cabeça.

 

Lynn pensou: «Tudo isto é um pesadelo fantástico. Não é real!»

 

Parecia que estavam todos sob a influência daquele absurdo homenzinho de grandes bigodes. Ficaram ali sentados obedientemente Rowley, o assassino; ela, a vítima; David, o homem que a amava, todos eles segurando na mão uma chávena de café, escutando esse homenzinho que os dominava a todos, de um modo estranho.

 

- Qual a causa de um crime? inquiriu retoricamente Hercule Poirot. Isto é um problema. Que estímulo se requer? Que disposição ingênita tem de haver? Será toda a gente capaz de matar... ou de cometer um crime? E o que acontece... é isto o que me tenho perguntado desde o início... o que acontece quando as pessoas que têm estado couraçadas contra a realidade da vida, contra os seus assaltos e destruições, se vêem subitamente privadas dessa proteção?

 

«Refiro-me, bem vêem, aos Cloades. Há apenas aqui um membro Cloade e, por conseguinte, posso falar perfeitamente à vontade. O problema fascinou-me desde o início. Temos aqui uma família inteira que as circunstâncias sempre impediram de viver à própria custa. Embora cada membro desta família tivesse um modo de vida, uma profissão, nunca nenhum deles se afastou da sombra de uma proteção beneficente. Nunca sentiram medo. Viveram em segurança... numa segurança que era irreal e fictícia. Gordon Cloade estava sempre por trás deles a protegê-los.

 

«O que lhes digo é que nunca se pode conhecer um caráter humano antes de este ser submetido a um teste. Para a maior parte das pessoas, esse teste ocorre bem cedo na vida. Qualquer homem vê-se muito cedo a braços com a necessidade de manter-se à sua custa, de encarar perigos e dificuldades e de resolvê-los por si só. Pode fazê-lo de uma maneira reta ou condenável... em qualquer dos casos, todo o homem conhece, geralmente depressa, a têmpera de que é feito.

 

«Mas os Cloades só tiveram oportunidade de conhecer a sua fraqueza no momento em que ficaram subitamente despojados de proteção e foram forçados, com uma absoluta falta de preparação, a encarar a dificuldade. Uma coisa, apenas uma coisa, se interpunha entre eles e a recuperação da segurança a vida de Rosaleen Cloade. Estou absolutamente certo de que cada um dos Cloades pensou em qualquer altura «Se Rosaleen morresse...»

 

Lynn estremeceu. Poirot fez uma pausa, deixando que as palavras produzissem bem o seu efeito, e depois prosseguiu:

 

- A idéia da morte, da sua morte, perpassou por todos os espíritos... disso estou eu certo. Teria acontecido o mesmo quanto à idéia do crime? E teria essa idéia, numa dada ocasião, ultrapassado o pensamento e entrado em ação?

 

Sem alterar o tom de voz, virou-se para Rowley:

 

- Pensou em matá-la?

 

- Sim confessou Rowley. Foi no dia em que ela veio à granja. Não havia cá mais ninguém. Nessa altura, pensei que podia matá-la muito facilmente. Ela parecia patética e muito bonita como as bezerras que mandei para o mercado. Nota-se bem como são patéticas mas, apesar disso, mandamo-las abater. Espantei-me, na realidade, que ela não estivesse assustada... Certamente o estaria, se tivesse sabido o que me ia no espírito... Sim, estava a pensar naquilo quando peguei no isqueiro para acender-lhe o cigarro.

 

- Ela deixou-o cá, creio eu, e assim se explica que você tenha ficado com ele.

 

Rowley confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Não sei porque não a matei disse meditativamente. Lembrei-me de fazê-lo. A sua morte podia ter-se atribuído a um acidente, a qualquer coisa...

 

- Não era o seu tipo de crime declarou Poirot. Aí tem a resposta. Você matou um homem, mas fê-lo num acesso de raiva... e imagino que não tivesse realmente intenção de matá-lo.

 

- Não, valha-me Deus! Esmurrei-lhe o queixo. Ele caiu para trás e bateu com a cabeça no guarda-fogo de mármore. Quando vi que estava morto, mal podia acreditar que fosse verdade.

 

Depois, subitamente, lançou um olhar penetrante a Poirot.

 

- Como soube isso? perguntou-lhe.

 

- Creio ter reconstituído as suas ações com bastante exatidão. Se me enganei, diga-mo. Foi ao «Stag» e Beatrice Lippincott contou-lhe a conversa que ouvira, não foi? Em conseqüência disso, foi, segundo me disse, a casa de seu tio Jeremy Cloade, pedir-lhe a sua opinião de solicitador quanto à situação. Mas viu aí qualquer coisa que o fez mudar de idéias quanto a consultá-lo. Creio saber o que foi. Viu uma fotografia.

 

Rowley confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Sim. Estava sobre a secretária. De repente, compreendi a semelhança. Compreendi também por que motivo a cara do homem me parecera tão familiar. Deduzi que Jeremy e Frances tinham chamado algum parente desta para, por meio de uma artimanha, extorquirem dinheiro a Rosaleen. Fiquei encolerizado. Fui direito ao «Stag» subi ao n.° 5 e acusei o tipo de intrujão. Riu-se e admitiu sê-lo. Declarou-me que David Hunter ia levar-lhe o dinheiro, nessa mesma noite. Fiquei de cabeça perdida, quando compreendi que a minha própria família estava a enganar-me. Chamei-lhe cão e esmurrei-o. Caiu como já disse.

 

Seguiu-se uma pausa que Poirot interrompeu: E depois?

 

- Foi o isqueiro disse Rowley lentamente. Caiu-me da algibeira. Trazia-o comigo com a intenção de dá-lo a Rosaleen quando a visse. Caiu sobre o corpo e vi as iniciais D. H. Era, portanto, de David e não dela.

 

«Desde aquela noite em casa da tia Kathie, compreendi... bem, isto não importa. Às vezes, tenho pensado que enlouqueço... Talvez tenha um pouco de louco. Primeiramente, a partida de Johnny... depois a guerra... eu... eu não posso falar acerca de certas coisas, mas, às vezes, fico cego de raiva... e agora Lynn... e este tipo. Arrastei o morto para o meio do quarto e virei-o de cabeça para baixo. Depois, agarrei naquelas pesadas tenazes de aço... bem, não vou entrar em pormenores. Limpei as impressões digitais, o rebordo de mármore... e depois, premeditadamente, desloquei os ponteiros do relógio para as nove menos dez e parti-lhe o vidro. Levei a caderneta de racionamento e todos os documentos... pensei que pudessem estabelecer a sua identidade, por meio deles. Depois, fui-me embora. Parecia-me que com a história que Beatrice me contara culpariam David de tudo aquilo.

 

- Obrigado agradeceu David.

 

- E depois continuou Poirot foi procurar-me. Foi uma comediazinha que representou, não foi, pedindo-me que arranjasse uma testemunha que conhecesse Underhay? Tornou-se-me imediatamente claro que Jeremy Cloade repetira à família a história que o major Porter contara. Durante cerca de dois anos, toda a família acalentara uma secreta esperança de que Underhay pudesse surgir. Esse desejo influenciou inconscientemente Mrs. Lionel Cloade na sua manipulação da tábua ouija, mas foi um incidente muito revelante.

 

- Eh, bien, realizo o meu «truque de prestidigitação». Gabo-me de tê-lo impressionado e, na realidade, o verdadeiro simplório sou eu. Sim, e no quarto do major Porter este, depois de me oferecer um cigarro, diz-lhe: «Não fuma, pois não?»

 

Olhou-os iradamente e prosseguiu:

 

- Mas depois o major Porter desfez essa combinação. Não estava disposto a ser testemunha sob juramento num julgamento de assassínio e a consistência do caso contra David Hunter dependia em grande parte da identidade do morto. Por conseguinte, o major Porter desistiu.

 

- Escreveu-me a dizer que desistia da combinação explicou Rowley tristemente. O louco! Não via que tínhamos ido demasiado longe para recuar. Disse que preferia meter uma bala na cabeça do que cometer perjúrio num caso de assassínio. A porta da rua não estava fechada à chave... subi e encontrei-o.

 

«Não posso descrever-lhe o que senti. Foi como se eu próprio fosse um assassino pela segunda vez. Se, ao menos, ele tivesse esperado... se, simplesmente, me tivesse deixado falar-lhe...

 

- Encontrou lá algum bilhete? inquiriu Poirot. Levou-o?

 

- Sim... depois procurei outros elementos. Já que as coisas tinham chegado àquele ponto, também podia ir até ao fim. O bilhete era para o coroner. Dizia apenas que prestara uma declaração falsa no inquérito. O morto não era Robert Underhay. Levei o bilhete e destruí-o.

 

Rowley deu um murro na mesa.

 

- Era como um sonho mau... um pesadelo horrível! Mas eu tinha começado essa coisa e tinha de continuá-la. Queria o dinheiro para ter Lynn e queria ver Hunter enforcado. E depois... não pude compreender... o caso contra ele ficou demolido. Uma história qualquer acerca de uma mulher... uma mulher que, mais tarde, esteve com Arden. Não consegui compreender isso e ainda o não consigo. Que mulher? Como é que uma mulher podia lá ter estado a falar com Arden depois dele estar morto?

 

- Não houve nenhuma mulher declarou Poirot.

 

- Mas, M. Poirot observou Lynn, em voz lamentosa. Essa senhora velha... viu-a, ouviu-a.

 

- Aah! exclamou Poirot. Mas o que viu ela? E o que ouviu ela? Viu uma pessoa de calças, com um casaco claro de tweed. Viu uma cabeça completamente envolta num lenço cor de laranja, colocado como um turbante, um rosto coberto de maquiagem e uma boca pintada. Viu isso numa semi-escuridão. E o que ouviu ela? Viu a «atrevida» retirar-se para dentro do n.° 5 e ouviu uma voz de homem, proveniente do interior do quarto, dizer «Vamos lá, saia daqui. Já estou farto». Eh bien, foi um homem que ela viu e um homem que ouviu! Mas foi uma idéia muito engenhosa, Mr. Hunter acrescentou Poirot, virando-se placidamente para Hunter.

 

- Que quer dizer? perguntou o rapaz com vivacidade.

 

- Agora, é a si que vou contar uma história. Dirigiu-se ao «Stag» às nove horas, pouco mais ou menos. Não foi lá com a intenção de matar, mas sim de pagar. O que encontra? Encontra o homem que fizera chantagem consigo, estendido no chão, assassinado de uma maneira particularmente brutal. O senhor discorre com rapidez, Mr. Hunter, e compreende imediatamente que corre um perigo iminente. Que o saiba, ninguém o viu entrar no «Stag» e a sua primeira idéia é desaparecer dali o mais depressa possível, apanhar o comboio das nove e vinte para Londres e jurar a pés juntos que não esteve nas proximidades de Warmsley Vale. A única possibilidade que tem de apanhar o comboio é correr a corta-mato. Ao fazê-lo, depara-se-lhe inesperadamente Miss Marchmont e compreende que não pode apanhar o comboio. Embora não o saiba, ela também viu o fumo, mas não compreendeu conscientemente que o senhor não poderia apanhar o comboio e, quando lhe diz que é às nove e quinze, ela aceita confiadamente essa sua declaração.

 

«Para convencê-la de que apanha o comboio, inventa um plano muito engenhoso. Efetivamente, agora tem de inventar um plano inteiramente novo para desviar a suspeita de si.

 

«Volta a Furrowbank, entra calmamente com a sua chave, pega num lenço de sua irmã, num dos seus batons e trata de pintar a cara de uma maneira altamente teatral.

 

«Volta ao «Stag» a uma hora conveniente, faz-se notar pela velha dama que está sentada na saleta «Reservada aos Hóspedes» e cuja peculiaridade é tagarelar no «Stag». Depois, sobe ao n.° 5. Quando a ouve ir deitar-se, sai para o corredor, depois mete-se apressadamente para dentro e põe-se a dizer em voz alta «Vamos, saia daqui...».

 

Poirot fez uma pausa e depois observou:

 

- Uma atuação muito hábil.

 

- Isso é verdade, David? gritou Lynn. É verdade?

 

David distendeu os lábios num sorriso largo.

 

- Tenho uma boa impressão a meu respeito como personagem feminino. Meu Deus, deviam ter visto a cara daquela velha harpia!

 

- Mas como pudeste estar aqui às dez horas e telefonar-me de Londres às onze? inquiriu Lynn, perplexa.

 

David Hunter indicou Poirot com um gesto de cabeça e respondeu:

 

- Todas as explicações são dadas por Hercule Poirot, o homem que sabe tudo. Como o fiz?

 

- Muito simplesmente retorquiu Poirot. Telefonou a sua irmã para o apartamento, da cabina pública, e deu-lhe determinadas instruções precisas. Às onze e quatro exatas, fez uma chamada para Warmsley Vale 34. Quando Miss Marchmont atendeu o telefone, a telefonista verificou o número e depois disse sem dúvida «Uma chamada de Londres» ou «Fala, Londres» ou qualquer coisa semelhante, não é verdade?

 

Lynn confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Rosaleen Cloade pousou depois o auscultador no descanso. Você, Poirot virou-se para David, anotando cuidadosamente as horas, marcou o 34, atenderam, carregou no botão A e disse «Fala, Londres» numa voz levemente dissimulada. Depois falou com a sua voz natural. O lapso de um minuto ou dois não seria nada de estranho numa chamada telefônica destes tempos e Miss Marchmont apenas o atribuiria a uma reconexão.

 

Lynn perguntou lentamente:

 

- Foi então por isso que me telefonaste, David?

 

Na sua voz, apesar de calma, houve algo que levou David a olhá-la perscrutadoramente.

 

Virou-se para Poirot e fez um gesto de resignação.

 

- Não há dúvida. O senhor sabe tudo! Para dizer a verdade, eu estava terrivelmente assustado. Tinha de inventar alguma coisa. Depois de ter telefonado a Lynn, palmilhei cinco milhas até Dasleby e regressei a Londres no primeiro comboio da manhã. Cheguei ao apartamento a tempo de desmanchar um pouco a cama e de tomar o pequeno-almoço com Rosaleen. Nunca me passou pela cabeça que a polícia pensasse que ela o fizera.

 

«E já se sabe que eu não tinha a mínima idéia de quem o tinha matado! Nem sequer podia imaginar quem podia ter querido matá-lo. Que eu visse, absolutamente ninguém tinha um motivo, a não ser eu próprio e Rosaleen.

 

O grande erro foi esse declarou Poirot. Motivo. Você e sua irmã tinham um motivo para matar Arden. Todos os membros da família Cloade tinham um motivo para matar Rosaleen.

 

David interveio com vivacidade:

 

- Então, sempre a mataram? Não foi suicídio?

 

- Não. Foi um crime cuidadosamente arquitetado e premeditado. A morfina substituiu o brometo num desses pacotinhos de soporífero... num que estava no fundo da caixa.

 

- Juntamente com o soporífero. David franziu o sobrolho. Não se refere... não pode referir-se a Lionel Cloade?

 

- Oh, não respondeu Poirot. Compreende, praticamente qualquer dos Cloades podia ter lá posto a morfina. A própria tia Kathie podia tê-lo feito antes de os pacotinhos terem saído do armário da farmácia. Aqui o Rowley foi a Furrowbank levar manteiga e ovos a Rosaleen. Mrs. Marchmont também lá foi. Mrs. Jeremy Cloade igualmente. Até Lynn Marchmont. Cada um e todos eles tinham um motivo.

 

- Lynn não tinha motivo nenhum! gritou David.

 

-Todos nós tínhamos motivos disse Lynn. É isso o que quer dizer?

 

- Sim confirmou Poirot. Foi isso o que dificultou o caso. David Hunter e Rosaleen tinham um motivo para matar Arden mas não o mataram. Todos vocês. Cloades, tinham um motivo para matar Rosaleen Cloade e, contudo, nenhum de vocês a matou. Este caso é e sempre foi um ciclo vicioso. Rosaleen Cloade foi assassinada pela pessoa que mais tinha a perder com a sua morte virou ligeiramente a cabeça. Foi o senhor, Mr. Hunter, quem a matou...

 

- Eu? gritou David. Por que diabo havia eu de matar a minha irmã?

 

- Matou-a porque não era sua irmã. Rosaleen Cloade morreu durante um ataque aéreo, em Londres, há cerca de dois anos. A mulher que o senhor matou era uma jovem criada irlandesa, Eileen Corrigan, cuja fotografia recebi hoje da Irlanda.

 

Tirara-a da algibeira enquanto falava. Com a rapidez do relâmpago, David arrancou-lha da mão, correu para a porta, transpô-la num salto e, batendo-a atrás de si com estrondo, desapareceu. Com um rugido de raiva, Rowley precipitou-se em sua perseguição.

 

Poirot e Lynn ficaram sós.

 

- Não!, não pode ser verdade! gritou Lynn.

 

- Oh, sim, é verdade. Você vislumbrou meia verdade quando conjeturou que David Hunter não fosse irmão dela. Considere isso de outra maneira e verá que tudo se ajusta. Essa Rosaleen era uma católica (a mulher de Underhay não era católica), torturada pela consciência, inteiramente dedicada a David. Imagine as sensações deste, naquela noite do bombardeamento aéreo, com a irmã morta e Gordon Cloade moribundo... e aquela boa vida endinheirada a escapar-se-lhe... Seguidamente, depara-se-lhe essa rapariga, da mesma idade que a irmã, única sobrevivente, além dele, atingida também pela explosão e desmaiada. Não há dúvida que já a possuíra e está certo de que poderá levá-la a fazer o que quiser.

 

- Sabia lidar com as mulheres acrescentou Poirot secamente, sem olhar para Lynn, que corou.

 

- É um oportunista e agarra essa oportunidade de fortuna. Identifica-a como sua irmã. Ela volta a si e encontra-o a seu lado. Persuade-a e convence-a a desempenhar aquele papel.

 

«Calcule agora a consternação deles quando recebem a primeira carta chantagista. Não sei se Hunter seria realmente o gênero de homem que se presta tão facilmente a ser vítima de chantagem. Parecia também que não tinha a certeza de que o outro fosse Underhay ou não. Mas como poderia tê-la? Rosaleen Cloade poderia dizer-lhe imediatamente se o homem era seu marido ou não. Por que despachá-la, à pressa, para Londres antes de ela ter podido ver aquele homem? Porque só podia haver uma razão porque não podia arriscar-se a que o homem a visse. Se o homem era de fato Underhay, não devia de forma alguma descobrir que Rosaleen Cloade não era Rosaleen. Havia apenas uma coisa a fazer. Pagar o necessário para manter o chantagista calado e depois... bater as asas... partir para a América.

 

«Mas depois, inesperadamente, o chantagista desconhecido é assassinado e o major Porter identifica-o como Underhay. David Hunter nunca, em toda a vida, se vira em maior embrulhada! Pior ainda, a própria rapariga começa a dar sinais de loucura. A sua consciência começa a tornar-se cada vez mais ativa. Evidencia sinais de alienação mental. Mais cedo ou mais tarde, acabaria por confessar, por confessar tudo e por entregá-lo à justiça. Além disso, acha as suas perguntas cada vez mais fastidiosas. Apaixonou-se por si e, por conseguinte, resolve escolher do mal o menos. Eileen tem de morrer. Substitui o conteúdo de um dos pacotinhos receitados pelo Dr. Cloade, por morfina, incita-a a tomar um todas as noites, incute-lhe pavor à família Cloade. Não se suspeitaria de David Hunter pois que a morte da irmã significa que o dinheiro voltaria para os Cloades.

 

«A sua carta de trunfo era essa... falta de motivo. Como já lhe disse... este caso foi sempre um ciclo vicioso.»

 

A porta abriu-se e o superintendente Spence entrou.

 

- Eh bien? inquiriu vivamente Poirot.

 

- Está tudo bem. Já o apanhamos, informou Spence.

 

- Ele... disse alguma coisa? perguntou Lynn em voz baixa.

 

- Disse que tinha gozado uma bela vida... É curioso acrescentou o superintendente como falam sempre no momento inoportuno... Avisámo-lo já se sabe, mas ele disse «Deixe-se disso, homem. Sou um jogador... sei quando perco a última cartada».

 

Poirot recitou em voz baixa:

 

- Na vida de cada ente há uma maré oportuna cuja torrente se for aproveitada na enchente pode levar à fortuna.

 

- Sim, a maré enche... mas também vaza... e pode levar-nos para o largo.

 

Num domingo de manhã, Rowley foi ver quem lhe batera à porta e deparou-se-lhe Lynn. Deu um passo para trás.

 

- Lynn?

 

- Posso entrar, Rowley?

 

Ele retrocedeu um pouco, Lynn dirigíu-se para a cozinha. Fora à igreja e tinha ainda o chapéu na cabeça. Calmamente, em gestos quase rituais, levantou as mãos, tirou o chapéu e pousou-o sobre o peitoril da janela.

 

- Voltei para casa, Rowley.

 

- Que diabo queres dizer com isso?

 

- Simplesmente isto: voltei para casa. isto é a casa... aqui, contigo. Fui uma parva em não o ter percebido há mais tempo... em não ter reconhecido o fim da viagem, quando realmente regressei. Não compreendes, Rowley, voltei para casa!

 

- Não sabes o que estás a dizer, Lynn. Eu... eu tentei matar-te.

 

- Bem sei Lynn fez uma careta e levou cuidadosamente os dedos à garganta. Para dizer a verdade, foi exatamente quando pensei que me tivesses assassinado, que comecei a compreender como tinha sido tão tola.

 

- Não compreendo.

 

- Oh, não sejas estúpido. Desejei sempre casar contigo, não foi? Depois, perdi o contacto contigo... pareceste-me tão dócil, tão submisso... Achei que, contigo, a vida seria tão segura... tão insípida. Apaixonei-me por David porque era perigoso e atraente... e, para ser sincera, porque sabe muito de mulheres. Mas nada disso era real. Quando me agarraste pela garganta e disseste que, já que não era para ti, também não o seria para ninguém... bem... compreendi então que era a tua mulher. Infelizmente pareceu-me que o sabia... demasiado tarde... Felizmente entrou Hercule Poirot e salvou a situação. E eu sou a tua mulher, Rowley.

 

Rowley sacudiu a cabeça.

 

- É impossível, Lynn. Matei dois homens... assassinei-os...

 

-Tolices! proferiu Lynn. Não sejas cabeçudo e melodramático. Se uma pessoa tem uma querela com um homenzarrão desajeitado e o esmurra, se ele cai e bate com a cabeça contra um guarda-fogo... isso não é um assassínio. Nem sequer o é legalmente.

 

- É homicídio. Vai-se para a cadeia por causa disso.

 

- É possível. Se assim for, achar-me-ás à porta, quando saíres.

 

- E há ainda Porter. Moralmente, sou responsável pela sua morte.

 

- Não, não és. Ele era uma pessoa adulta, inteiramente responsável... podia ter rejeitado a tua proposta. Não se pode atirar para cima de uma pessoa com as culpas dos erros que uma outra decide fazer com os olhos bem abertos. Sugeriste-lhe um procedimento desonesto, concordou, depois arrependeu-se e optou por uma solução rápida. Era um caráter fraco.

 

Rowley sacudiu obstinadamente a cabeça.

 

- Não serve de nada, minha filha. Não podes casar-te com um «pássaro na gaiola».

 

- Não acredito que vás para a cadeia. Se assim fosse, já a polícia te teria vindo buscar.

 

Rowley fitou-a, pasmado.

 

- Mas, cos diabos!, homicídio... suborno de Porter...

 

- Que te leva a pensar que a polícia saiba ou venha a saber alguma coisa acerca disso?

 

- Esse Poirot sabe-o bem.

 

- Não é a polícia. Vou dizer-te o que esta julga: pensa que David Hunter matou Arden e Rosaleen, pois sabem agora que, nessa noite, esteve em Warmsley Vale. Não o acusarão disso porque não é necessário... e, além disso, creio que não se pode ser julgado duas vezes sob a mesma acusação. Ora, enquanto pensarem que o fez, não procurarão mais ninguém.

 

- Mas esse tipo, Poirot...

 

- Disse ao superintendente que foi um acidente e suponho que o superintendente se riu dele. Se queres saber a minha opinião, acho que Poirot não dirá nada a ninguém. É uma pessoa encantadora...

 

- Não, Lynn. Não posso arriscar-te a isso. Além de tudo o mais, eu... bem, isto é... poderei eu confiar em mim próprio? Quero dizer que não seria seguro para ti.

 

-Talvez não... mas, vê se compreendes, Rowley, eu amo-te... e tu passaste um bocado tão mau... e, no fim de contas, na realidade, nunca me importei muito com a segurança...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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