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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Duelo de Mutantes / Clark Darlton
Duelo de Mutantes / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Duelo de Mutantes

 

                  

 

A menos de quinhentos metros de altura, a nave-escola em forma de torpedo da Academia Espacial corria vertiginosamente sobre a superfície vermelha e desértica de Marte, desviando-se agilmente dos cumes da longa cadeia de montanhas. O capitão Hawk, um dos instrutores mais competentes, estava sentado diante de seus controles e mostrava aos alunos que mesmo uma nave de grandes dimensões, habilmente manejada, é capaz de se desviar de qualquer obstáculo.

A nave-escola Z-82 tinha cerca de trinta metros de comprimento e oferecia lugar apenas para três tripulantes. Era capaz de alcançar a velocidade da luz.

O cadete Klaus Eberhardt estava sentado à esquerda do observador e procurava memorizar as inúmeras manipulações dos instrumentos. Não era bobo; pelo contrário, possuía um elevado grau de inteligência. Mas ele mesmo não negaria que tinha certa dificuldade em compreender. Isso não acontecia sempre; de forma alguma. Mas geralmente acontecia nos momentos mais inoportunos. Era esse seu único defeito.

À direita do instrutor, estava sentado outro cadete. Ao contrário de Eberhardt era alto e esbelto, quase magro. Uma cabeleira castanho-escura encimava o rosto oval, onde dois olhos castanhos esboçavam um sorriso meigo, um pouco tímido. Sem que o percebesse, o cadete Julian Tifflor, que seus amigos e colegas chamavam apenas de Tiff, enganava os que o cercavam. Atrás daqueles olhos sonhadores escondia-se a energia de uma pequena bomba atômica. Apesar dos seus vinte anos, Tiff era um gênio matemático e um exemplar de coragem e resolução. Era um dos melhores alunos da instituição.

O capitão Hawk apontou obliquamente para a frente.

— Estão vendo aquela montanha? Chegarei o mais próximo possível antes de desviar a nave. Observem o poder de reação da Z-82. É claro que no espaço vazio esse poder é um pouco menor, porque nas proximidades da superfície a resistência da atmosfera ajuda na direção.

— Ah! — disse o cadete Eberhardt e acenou a cabeça para Tiff, que, sorrindo em silêncio, colocou as mãos sobre os controles simulados, para tentar esboçar sua reação no mesmo instante em que o instrutor o fizesse. Os instrumentos eletrônicos mediriam e registrariam qualquer movimento que executasse.

Eberhardt seguiu o exemplo do colega.

O cume da montanha aproximou-se a uma velocidade vertiginosa. Realmente parecia que a nave iria bater em cheio na rocha nua e avermelhada. No entanto, literalmente no último segundo, entrou numa curva quase imperceptível, passou junto à formação rochosa e subiu para o céu azul-escuro, onde já se viam as primeiras estrelas.

— Foi por pouco — disse o cadete Eberhardt, reclinando-se no assento. — Acho que eu nunca tentaria uma manobra dessas, a não ser que isso fosse absolutamente necessário.

— Devemos estar em condições de enfrentar qualquer situação — observou o capitão Hawk, olhando para o relógio. — Está na hora de voltarmos à Terra.

— É mesmo — disse Tiff em tom pensativo. — Pedi licença para hoje de noite.

Hawk lançou-lhe um olhar de recriminação.

— Nas horas de serviço não se deve pensar no prazer, cadete Tifflor. Ainda temos diante de nós um vôo de regresso bastante cansativo.

— Esse trechinho? — respondeu Tiff em tom de desprezo. — Com a Z-82 não levaremos mais de uma hora.

— Não pretendo acelerar até atingir a velocidade da luz, embora isso fosse perfeitamente possível. Dentro de três horas pousaremos em Terrânia.

Desta vez o capitão Hawk estava muito enganado, mas não poderia mesmo saber. Porém, se tivesse levado em consideração a folga noturna de Tifflor, possivelmente tudo teria sido diferente e os acontecimentos do dia seguinte seriam completamente outros.

— Já fez os cálculos? — perguntou Hawk. — Suponhamos que nosso piloto robotizado falhou, e que o senhor tem de encontrar o curso que mais rapidamente o conduza de volta à Terra. E isso sem instrumentos, partindo do lugar em que nos encontramos. Quanto tempo levará?

Tiff suspirou e olhou para trás. Na escotilha viu Marte, cujo tamanho diminuía a olhos vistos.

Na escotilha dianteira, a Terra apareceu como uma pequenina estrela cinza-azulada. Era perfeitamente reconhecível. Tiff soltou um suspiro desanimado e sacudiu os ombros.

— É claro que o cálculo da rota não é fácil, mas pode ser feito. Mas, na minha opinião, é totalmente supérfluo. Com a velocidade que estamos desenvolvendo podemos perfeitamente realizar um vôo visual.

O capitão Hawk começou a agitar os braços.

— Cadete Tifflor, não se esqueça de que se encontra numa nave-escola. Sei perfeitamente que podemos realizar um vôo visual, mas não é disso que se trata. Quero saber se o senhor é capaz de se orientar sem instrumentos num espaço desconhecido. Portanto, comece logo a calcular.

Tiff lançou um olhar melancólico em direção ao planeta Marte, que se desvanecia. De repente viu que o quadro que se oferecia pela escotilha estava modificado. Também a Terra deslocou-se lateralmente, saindo do campo de visão. Hawk havia deixado que a Z-82 corresse sem rumo, para dificultar a tarefa que Tiff tinha de cumprir.

Não devia ter feito isso. Mas, quem é que conhece o futuro? O capitão Hawk, pelo menos, não o conhecia. A Z-82 deslocava-se a uma velocidade vertiginosa, acelerando constantemente. Não se sentia qualquer pressão, pois os campos gravitacionais automáticos compensavam qualquer modificação da rota ou da velocidade.

Numa expressão de compaixão, Eberhardt contemplou Tiff quando este se pôs a lançar algarismos numa folha de papel. Confortavelmente reclinado em sua poltrona, o capitão Hawk deixou que a nave disparasse pelo espaço afora, sem se preocupar com a trajetória. Dali a pouco seu aluno teria de recolocar a Z-82 na rota correta e, mais tarde, fazê-la pousar em segurança.

Ninguém se preocupou com os instrumentos.

Ninguém, com exceção de Eberhardt.

Mas, infelizmente, foi mais uma vez sua lentidão que lhe causou problemas. Se comparadas com as de um cidadão normal do planeta Terra — e convém que isto fique bem claro — suas reações ainda eram bem rápidas. Apenas, era muito lento para preencher as qualidades de um bom piloto espacial.

E foi por isso que levou dez segundos vitais para perceber a reação do rastreador. Tratava-se de um instrumento que emitia constantemente ondas de radar em todas as direções, registrando os reflexos que ocorressem. O alcance do instrumento era relativamente reduzido, e por isso tais reflexos se tornavam bastante raros no espaço livre. Só surgiam quando um asteróide ou um meteorito de grandes dimensões passasse nas proximidades da nave; ou quando outra nave se encontrava nas vizinhanças.

O cadete Eberhardt estendeu o braço, apontando para a minúscula tela que se via por cima da escala do rastreador.

— Apareceu alguma coisa — disse. — Parece ser bem grande.

O capitão Hawk levantou-se preguiçosamente e, perplexo, fitou o instrumento. Na pequenina tela viu-se uma mancha quase redonda, que crescia rapidamente. O objeto vinha em sua direção.

De um salto, Hawk pôs-se de pé. Seus olhos correram velozmente sobre os dados projetados na escala; depois sacudiu a cabeça.

— Um destróier? Não é possível! Nosso destróier é o único que se encontra entre Marte e Terra. Se não modificarmos nossa rota, estará aqui dentro de poucos segundos. Vejam, está desacelerando. Que coisa estranha!

A figura esguia da nave gêmea já se tornara visível mesmo a olho nu. Descreveu uma curva bem ampla e voltou a se aproximar, vinda da frente.

— Quem sabe se a Terceira Potência... — principiou Tiff, mas o capitão Hawk sacudiu a cabeça.

— Segundo o último comunicado do rádio, transmitido pela academia, não há nenhuma nave de Perry Rhodan no espaço. Somos os únicos. Se não conhecesse tão bem esse tipo de nave...

Não chegou a prosseguir.

Uma luz ofuscante surgiu pela frente. Um raio quase alaranjado saiu da proa do outro destróier e, tão rápido que o olho humano não poderia segui-lo, aproximou-se da Z-82.

O capitão Hawk não reagiu com a necessária rapidez, e também para Tiff o inesperado ataque foi rápido demais. Inclinou-se para a esquerda e bateu com o punho fechado sobre a chave, mas o envoltório energético formou-se com o atraso de uma fração de segundo.

A pontaria do artilheiro da outra nave era péssima; foi uma sorte. Foi uma sorte para a Z-82, mas de nada valeu ao capitão Hawk.

O raio energético disparado pelo inimigo não chegou a penetrar na capa protetora da proa da Z-82; mas parecia que a nave havia batido contra uma muralha sólida. O impacto foi tamanho que mesmo os neutralizadores de pressão revelaram-se praticamente inúteis. A força do impacto fez com que o capitão Hawk fosse arrancado do assento e projetado, com toda força e de cabeça, contra o painel de controle do cérebro eletrônico encarregado da navegação.

Tiff foi atirado para a frente, mas conseguiu amortizar o impacto, estendendo rapidamente as mãos. Destrancou ambos os pulsos, o que nem chegou a perceber no momento.

O cadete Eberhardt teve mais sorte. Foi o único que colocara e afivelara o cinto de segurança, que geralmente não costumava ser usado. O cinto quase o corta em dois, mas evitou que tivesse destino idêntico ao de Hawk. Evidentemente Eberhardt teria levado um segundo e meio para lembrar-se de pôr as mãos à frente do corpo, o que seria demais.

Um olhar bastou para que Tiff visse que seu instrutor estava morto. Os instrumentos do painel haviam esfacelado seu crânio. Mas não teve tempo para cuidar do morto. Havia coisa mais importante a fazer.

Depois do ataque aparentemente frustrado, a nave inimiga descreveu uma curva e voltou a se aproximar em vôo frontal. Com um salto, Tiff colocou-se na poltrona do instrutor, agora vazia, e assumiu os controles. Desviou-se numa curva fechada para a direita, acelerou e lançou-se ao ataque contra o desconhecido. Enquanto fazia isso, as idéias mais fantasiosas passavam pela sua mente.

Quem seria o piloto do destróier que os estava atacando? Não podia ser ninguém da Academia Espacial; a hipótese era totalmente inconcebível. E também era inconcebível que uma nave da Terceira Potência se pusesse a derrubar suas próprias naves.

Mas quem seria?

Tiff não sabia que o maior inimigo de Perry Rhodan havia roubado três destróieres, que estavam sendo tripulados por homens transformados em simples instrumentos, destituídos de vontade própria, que haviam recebido ordem para atirar contra qualquer coisa que trouxesse alguma indicação de pertencer à Terceira Potência.

Tiff ignorava tudo isso. Sabia apenas que um desconhecido o havia atacado com uma nave muito conhecida e quase chegara a dar cabo dele. Seria totalmente inútil tentar a fuga, pois o inimigo poderia desenvolver a mesma velocidade da Z-82. Além disso, a possibilidade de fugir e deixar para trás um enigma sem solução não agradava ao temperamento de Tiff.

A reação da nave inimiga não foi muito rápida. Numa curva que quase chegava a ser elegante, Tiff conseguiu colocar a Z-82 numa posição tal que a proa apontava diretamente para a popa flamejante da nave tripulada pelo desconhecido. Conforme soubera do ensinamento teórico, ali ficava o único ponto vulnerável do destróier. Naquele ponto o campo protetor tinha uma espécie de furo, pois de outra maneira os raios propulsores seriam refletidos sobre o campo.

Os olhos de Tiff procuraram e encontraram a chave vermelha do canhão neutrônico, que se tornara célebre em tantas horas de vôo. Nunca pudera tocar nessa chave, quanto menos acioná-la. Em caso de necessidade, sempre fizera questão de ressaltar o capitão Hawk, essa chave põe a funcionar uma arma mortífera, cujos efeitos...

Surgira o caso de necessidade.

O cadete Julian Tifflor não mais se sentia preso a qualquer regulamento. Estava agindo em legítima defesa.

À medida que a velocidade da Z-82 aumentava, a popa do outro destróier ia se aproximando. Tiff colocou a mão sobre a chave vermelha e, num movimento instantâneo, puxou-a para fora.

Um segundo.

Dois segundos.

O raio energético alaranjado precipitou-se para fora da proa e rompeu os chamejantes raios propulsores do inimigo. Com uma velocidade próxima à da luz, penetrou nos bocais dos jatos e roeu o maquinismo, até atingir a sala de máquinas, onde se situava o reator arcônida.

Depois de três segundos, Tiff soltou a chave vermelha e descreveu uma curva fechada com a Z-82. Numa velocidade vertiginosa, embora parecesse que ambas as naves estavam paradas, passou rente ao destróier atingido.

Fascinado, Tiff observou os efeitos do disparo.

De início, um vazamento formara-se na popa do destróier; nas bordas do mesmo o fogo começou a se espalhar. Surgiu uma coroa de fogo que, subitamente, foi apagada pelo impacto de uma explosão silenciosa. A popa se esfacelou e uma força invisível atirou os destroços em todas as direções. A parte interior da nave parecia se desprender do resto, com uma tendência a se tornar independente. O envoltório externo rompeu-se. As fortes paredes metálicas deformaram-se, como se fossem feitas de lata.

O destróier quebrou no meio.

O inimigo estava praticamente destruído.

Tiff respirou aliviado. Só depois disso teve tempo para cuidar do instrutor e de seu colega.

O capitão Hawk jazia contorcido entre o assento do piloto e a parede dianteira da cabina. Não havia a menor dúvida de que estava morto. Apesar disso Tiff não deixou de examiná-lo, mas o resultado apenas confirmou suas suposições. O cadete Eberhardt, que estivera sentado bem quieto perto de Tiff, sem poder fazer nada, foi se recuperando do choque. A primeira observação que soltou foi típica de seu temperamento.

— Agora estamos sem professor. Como faremos para voltar?

Tiff reprimiu a contrariedade.

— Até parece que se esqueceu de que já temos algumas horas de vôo. Além disso, já calculei a rota. Dentro de duas horas pousaremos na Terra. Apenas lhe peço que me ajude a levar o capitão Hawk ao camarote.

Colocaram o instrutor morto sobre a cama e cobriram-no. Encontraria seu último descanso em sua cidadezinha natal. Mas seus alunos nunca o esqueceriam quando, comandando orgulhosamente as naves espaciais, vagassem pelas amplidões do espaço cósmico. Deviam tudo aquilo que eram e que sabiam fazer a um homem, o capitão Hawk.

Nesse meio tempo a proa desgovernada só se desviara ligeiramente para o lado. Dali a pouco penetraria no círculo de asteróides.

Tiff contemplou os destroços com os olhos semicerrados.

A proa estava intacta, não apresentando qualquer vestígio de destruição. Em compensação, o lado oposto assemelhava-se a um campo de destroços. Peças derretidas da cabina e placas de envoltório semi-gaseificadas emergiam por entre as bordas entrecortadas. Ao lado dela, certas peças avulsas, cuja finalidade não mais podia ser reconhecida, acompanhavam a trajetória da nave.

Em meio a esses destroços devia haver uma cabina intacta, na qual os inimigos desconhecidos estariam encerrados em situação desesperadora. Talvez possuíssem armas manuais, mas elas só poderiam ser usadas se alguém se aproximasse deles.

Era exatamente o que Tiff pretendia fazer. Dirigindo-se a Eberhardt, disse:

— Vamos dar uma olhada nesses camaradas que queriam nos mandar para o inferno?

Enquanto proferia estas palavras, aproximou a trajetória da Z-82 dos destroços da outra nave. Lançou um olhar bastante expressivo para o armário de parede, examinou os controles remotos e murmurou:

— Um de nós deve enfiar um traje pressurizado, sair pela comporta de nossa nave e dar uma olhada no que está se passando por lá.

— É verdade — confirmou Eberhardt em tom sério. — Um de nós deve fazer isso.

Tiff esperou. Mas esperou em vão. Eberhardt não tinha mais nada a dizer sobre o assunto. E o que dissera fora bem pouco. Suspirou. Tudo ficaria por conta dele.

— Quem vai fazer isso é você, cadete Eberhardt. Vamos logo! Enfie seu terno e faça a baldeação. Leve um radiador portátil, para estar prevenido se do lado de lá a porta estiver emperrada.

— Eu? — o cadete Eberhardt arregalou os olhos. — Quer que eu saia sozinho da nave e prenda aqueles bandidos? Escute aí, cadete Tifflor, eu sou um piloto espacial; não pertenço ao F.B.I.

— Comandante Tifflor, por obséquio — retificou Tiff e deu uma expressão autoritária ao seu rosto. — E procure se apressar, nem que seja só desta vez.

Eberhardt sacudiu os ombros, levantou-se preguiçosamente e tirou um radiador de impulsos do armário de armamentos. Todas as naves de treinamento da academia estavam equipadas com essa arma mortal, que funcionava segundo princípios arcônidas. Lançou um último olhar de desespero para Tiff, à espera de um gesto de compaixão, balançou nervosamente o corpo e saiu. Parou na porta.

— Matarei esses bandidos para vingar Hawk — disse em tom triunfal. — Eu sozinho. E você, o que vai fazer?

— Farei com que nada de mal lhe aconteça — asseverou Tiff tranqüilamente, apontando para a chave vermelha do canhão neutrônico. — Ao menos tentarei.

Eberhardt engoliu seco e deixou a cabina sem mais comentários. Tiff esperou que a luz verde se iluminasse, antes de pôr a funcionar a comporta.

A Z-82 estava flutuando, aparentemente imóvel, a menos de dez metros dos destroços. Num certo instante Tiff acreditou ter percebido um movimento atrás de uma das escotilhas do que restava da nave inimiga. Mas talvez fosse engano. Não, ali estava de novo. Reconheceu perfeitamente os contornos de uma figura humana. Uma luz débil surgiu no mesmo lugar. Naturalmente aquela gente já não dispunha de eletricidade, e por isso tinha de se contentar com o suprimento das pilhas. Se é que dispunham de alguma, além das lanternas de bolso. A instalação de rádio também havia sido destruída pela explosão.

Uma luz vermelha surgiu diante de Tiff. A comporta de ar estava vazia, e Eberhardt abrira a escotilha externa. As manobras em pleno espaço haviam sido treinadas várias vezes, mas desta vez era para valer. Além disso, ninguém sabia o que os esperaria naqueles destroços. Era bem possível que os piratas — Tiff acreditava que os desconhecidos fossem exatamente isso — tivessem os trajes pressurizados na cabina.

Eberhardt entrou no seu campo de visão. Preso a um cabo fino, flutuava perto de Tiff; aproximou-se lentamente dos destroços, que descreviam um movimento de rotação. A sombra atrás da escotilha da proa enrijeceu. Devia ter notado a pessoa que se aproximava.

Eberhardt absorveu o leve impacto que sofreu ao pousar no envoltório da nave destruída. Moveu-se lentamente até atingir a escotilha. Olhou bem no rosto de um homem, que o encarava com os olhos arregalados.

O estranho envergava um traje espacial, mas não estava com o capacete fechado. De pele escura, parecia um mestiço, mas Eberhardt não tinha certeza. De qualquer maneira, sentiu-se satisfeito ao ler no rosto do outro o susto e o pavor.

Acenou a cabeça para o estranho, com uma expressão de raiva no rosto; por uma medida de cautela mostrou-lhe seu radiador e deslocou-se cautelosamente em direção à parte destroçada da proa. Ao primeiro relance de olhos, percebeu que tinha diante de si parte do corredor que levava aos camarotes. Como por milagre a porta da sala de comando não havia sido danificada.

E agora?

Era claro que pretendia pegar o estranho vivo, pois a morte do mesmo não ajudaria ninguém. Afinal, era necessário descobrir quem era ele e qual era a pessoa que se encontrava atrás desse ataque inexplicável. Eberhardt segurou seu radiador portátil e bateu com a pesada coronha contra a porta. Três vezes.

Evidentemente não ouviu nada, pois não havia nenhuma atmosfera que pudesse conduzir o som. Mas a pessoa que se encontrava na cabina ouviria as pancadas.

Eberhardt encostou o capacete à porta e pôs-se a escutar. Se o desconhecido respondesse às batidas, as vibrações se transmitiriam ao ar que se encontrava no interior do capacete. Não demorou dez segundos e ouviu três batidas. O sujeito estava disposto a negociar.

Eberhardt agradeceu ao destino por ter prestado muita atenção nas aulas de telegrafia. Lembrou-se da observação irônica de que muitos dos cadetes não puderam se abster quando tiveram de aprender o alfabeto Morse. Para que servia esse alfabeto numa era em que as comunicações audiovisuais cobriam trajetos interplanetários?

Subitamente descobriu para que tinha aprendido aquilo.

Respondeu às batidas de forma quase automática:

— Feche o capacete e abra a porta apenas um pedacinho. Saia de costas e sem armas. Estou esperando.

Não houve qualquer resposta. Mas dali a um minuto a porta se abriu. Por pouco o ar que escapou do recinto não arrasta Eberhardt, mas ele se segurou num suporte oculto. Na mão direita empunhava o radiador de impulsos, engatilhado e apontado para a abertura da porta.

Viu em primeiro lugar um braço, que tateou cuidadosamente para trás; logo após surgiu a parte traseira de um traje espacial. Era do mesmo tipo usado pelos cadetes da academia. Logo, também devia ser...

Eberhardt praguejou por não ter se lembrado logo dessa possibilidade. Com um gesto rápido ligou o radiofone. Talvez o outro já estivesse pronto para receber sua mensagem.

Estava.

— ...bom, se me levasse de volta para Marte.

Eberhardt aguçou o ouvido. O homem queria ir para Marte? Teria vindo de lá? O que estaria acontecendo naquele planeta?

— Vire-se de frente e levante as mãos. O desconhecido obedeceu. Só agora Eberhardt pôde examinar melhor o rosto. Não se enganara. Era um mestiço. Falava um inglês perfeito.

— Onde estão os outros tripulantes?

A resposta surpreendeu Eberhardt:

— Estou sozinho.

O mestiço estava desarmado; via-se ao primeiro relance de olhos. Eberhardt ordenou-lhe que o deixasse passar e aguardasse. Foi à sala de comando da nave destroçada e certificou-se de que estava vazia. Realmente; o rapaz devia ter pilotado a nave sozinho. Era estranho.

Saiu da sala de comando e, satisfeito, notou que o outro não saíra do lugar.

— Vamos embora. Voe na minha frente. Está vendo a comporta aberta. Trate de entrar; mas não pense em tolices. Mantenho a arma apontada para você.

O desconhecido não respondeu; afastou-se com um ligeiro empurrão. Livre de toda força gravitacional, passou sobre a fresta e pousou um pouco ao lado da comporta, no casco da Z-82. Com um ligeiro movimento colocou-se no interior da comporta; ficou aguardando.

Eberhardt seguiu-o; não sabia o que pensar. Tinha a impressão de que a coisa fora fácil demais. Aquele sujeito devia saber que para ele as perspectivas não eram nada agradáveis. Por que havia deixado que o aprisionassem sem esboçar a menor resistência?

Tiff aguardou o prisioneiro na sala de comando. Esperou pacientemente até que o mestiço tirasse o capacete; estudou seu rosto. Ficou surpreso com a sinceridade espelhada no mesmo. Nos olhos lia-se um ligeiro espanto, aliado a um pouco de medo e indecisão. É bem verdade que também se notava uma certa teimosia. Os lábios estavam firmemente cerrados. O queixo enérgico e proeminente dava testemunho de uma dose elevada de coragem e energia, o que era contrariado pela maneira pela qual o homem se entregava ao seu destino.

— Você fala inglês? — perguntou Tiff, enquanto fazia sinal para que Eberhardt fechasse a porta que dava para o corredor.

O mestiço confirmou com um aceno de cabeça, mas não pronunciou uma palavra.

— Quem é você?

Ainda desta vez não houve resposta.

— Você nos atacou sem motivo — prosseguiu Tiff, enquanto seu espírito começava a ferver. Lembrou-se do capitão Hawk, que acabara de morrer. — Quero saber quem o mandou fazer isso, e por que fez.

— Não posso falar — murmurou o mestiço e logo cerrou os lábios, como se quisesse impedir que alguma palavra irrefletida saísse de sua boca.

— Então não pode falar? — disse Tiff espantado, enquanto os pensamentos se atropelavam em seu cérebro. Quem sabe se o acaso não os levara a se defrontar com um acontecimento muito importante? Já não acreditava que se tratasse de um simples ato de pirataria. Ninguém pensaria em encontrar tesouros numa nave-escola da Academia Espacial.

— Está bem. Outra gente o fará falar. Cadete Eberhardt, tranque o prisioneiro na cela e tire seu capacete. Tire todo o ar da sala de acesso à cela, para que toda e qualquer tentativa de fuga seja ilusória.

Estreitou os olhos e viu que o prisioneiro se deixava levar, indiferente, como se já não tivesse nada a ver com aquilo.

Aguardou ate que Eberhardt voltasse e o informasse de que o pirata estava bem trancafiado.

— Seguiremos rumo à Terra — decidiu Tiff. — Estabeleça contato com a central de comando e informe-a sobre o incidente. Acredito que estarão interessados em saber tudo.

Enquanto a Z-82, numa aceleração louca, se precipitava para o espaço, deixando os destroços da outra nave entregues ao seu destino, as ondas de rádio adiantaram-se à nave. Eberhardt relatou todos os detalhes do ataque, deu informações sobre a morte trágica de Hawk e sentiu-se muito surpreendido quando, subitamente, foi interrompido por uma emissora muito forte. Uma voz um tanto nervosa perguntou:

— Como era a nave que atacou a sua?

Eberhardt reagiu com uma rapidez surpreendente.

— Foi um destróier do mesmo tipo do nosso. Não sabemos como explicar o incidente.

— Capturaram um prisioneiro?

— Isso mesmo. Afinal, quem é o senhor?

— Sou do setor de segurança da Terceira Potência. Reginald Bell.

— Só podia ser — disse Eberhardt em tom resignado. — O setor de segurança tem suas orelhas em toda parte.

— Graças a Deus! — retrucou Bell e acrescentou: — Continue ligado para a recepção. Terei que transmitir a informação a outra pessoa. E possível que Perry Rhodan queira entrar em contato com você.

Ouviu-se um estalo no alto-falante; depois só restou um zumbido. Um tanto espantado, Eberhardt dirigiu-se a Tiff:

— Esse Reginald Bell! Tem que meter o nariz em tudo.

Tiff provou que também sabia reagir rapidamente. Lançando um último olhar para a fileira de instrumentos, ligou o piloto automático, que manteria o destróier na rota. Levantou-se e aproximou-se de Eberhardt.

— Tomarei conta disso — disse em tom indiferente. — Veremos o que estão querendo de nós. Fique de olho no rastreador, para que não nos peguem de surpresa mais uma vez. Tenho a impressão de que há algo de errado em tudo isso.

Nem desconfiava de que essa afirmativa era totalmente correta.

 

Anos atrás, o primeiro foguete espacial tripulado decolou com destino à Lua e pousou no satélite. Naquela oportunidade ninguém desconfiava de que com isso teria início uma nova época da história da Humanidade. O major Rhodan, comandante da expedição, encontrou na Lua alguns representantes dos arcônidas, uma raça humanóide que regia um império estelar situado a 34.000 anos-luz de distância. Prestou ajuda à expedição frustrada e esta o recompensou com o extenso saber de sua raça, que há milênios conhecia os segredos da navegação espacial. Com o auxílio dos arcônidas, Perry Rhodan instalou na Terra a Terceira Potência, impediu a guerra nuclear e, nessa altura dos acontecimentos, esforçava-se para alcançar a união definitiva do mundo.

Seu quartel-general achava-se instalado na cidade de Terrânia, situada em pleno deserto de Gobi. Terrânia era a metrópole mais moderna do mundo e encerrava em seu seio o saber e a tecnologia de milênios. Em caso de necessidade a cidade e as instalações nela existentes podiam ser isoladas do mundo exterior por meio de uma abóbada energética. Um exército formado por dez mil soldados e robôs cuidava da segurança da Terceira Potência.

Reginald Bell, ministro da segurança e um dos homens que haviam acompanhado Perry Rhodan na primeira viagem à Lua, aguardou pacientemente até que a tela de quase dois metros de altura se iluminasse. Uma escrivaninha surgiu na mesma. Atrás dela estava sentado um homem. Quase chegava a ser magro, seu cabelo castanho-escuro era liso e estava penteado para trás; possuía um par de olhos cinza-azulados que pareciam chispar fogo. Embora já não fosse tão jovem, Perry Rhodan não aparentava mais de trinta anos. E conservaria esse aspecto para sempre, pois o saber inconcebível de uma raça há muito desaparecida tornara-o quase imortal. A cada sessenta e dois anos teria que visitar o planeta da vida eterna, onde estava instalada a misteriosa ducha celular que lhe conferiria a juventude por mais seis decênios.

Também Reginald Bell estivera no planeta Peregrino e, tal qual Rhodan, obtivera o tratamento da conservação celular.

— Um dos destróieres roubados apareceu, Rhodan — disse Bell. Seus olhos chispavam de nervosismo contido. — Atacou uma nave-escola da academia.

Perry Rhodan ergueu as sobrancelhas.

— Onde?

— Nas proximidades de Marte. Felizmente um dos cadetes teve bastante presença de espírito para destruir a nave atacante, depois que o instrutor tinha sido morto. Capturou um prisioneiro.

De repente Rhodan demonstrou bastante interesse.

— Um prisioneiro?

— Foi por isso que me comuniquei com você. Pensei que gostaria de dar uma olhada no sujeito.

— Onde está o prisioneiro?

— No momento está na cela da nave-escola Z-82. Aguarde um momento. Eu o colocarei em contato com o destróier. Assim você poderá falar pessoalmente com o cadete. A nave está a caminho da Terra.

Alguns segundos depois, o cadete Julian Tifflor anunciou-se pelo rádio. Relatou mais uma vez em palavras lacônicas, mas precisas, o incidente pelo qual havia passado, e aguardou. Perry Rhodan refletiu sobre o que acabara de ouvir e disse:

— Como é mesmo seu nome?

— Cadete Julian Tifflor.

— Muito bem. Você pousará no espaçoporto de Terrânia e me apresentará um relato pessoal. Sua base será avisada. Cuide bem do prisioneiro; é muito importante para nós. O cadáver do capitão Hawk será trasladado para sua terra natal. Quando poderei contar com sua chegada?

— Dentro de oitenta minutos.

Na voz de Tiff havia respeito e veneração. Para ele Perry Rhodan não era apenas o chefe supremo da Academia Espacial; era principalmente uma figura lendária e distante. Onde estaria a Terra hoje se Perry Rhodan não tivesse conseguido utilizar o poder dos arcônidas? Talvez os homens já tivessem se destruído uns aos outros. Talvez nosso planeta nem existisse mais.

— Está bem, cadete Tifflor. Fico à sua espera.

Bell interrompeu a comunicação e instruiu os postos militares para que dentro de oitenta minutos facultassem o pouso do destróier Z-82 e fizessem conduzir os tripulantes imediatamente ao edifício do ministério da segurança. Depois voltou-se a Rhodan, cuja imagem em tamanho natural ainda era projetada na tela.

— Então, o que acha?

— Não tenho a menor dúvida; trata-se de um dos três destróieres que o Supercrânio nos roubou.

— Supercrânio; sempre ouço falar nele — resmungou Bell, assustado. — Quem dera que soubéssemos quem se esconde atrás desse apelido. Supercrânio, Supercabeça. Talvez não passe de uma cabeça d’água.

— Não acredito — disse Rhodan. — O Supercrânio é um sujeito muito inteligente, que resolveu se transformar na Quarta Potência do planeta Terra. Não será fácil impedi-lo de realizar seu intento. Até hoje não conseguimos estabelecer a identidade do grande desconhecido. Só sabemos que nos defrontamos com um inimigo dotado de uma enorme inteligência e falta de escrúpulos, que não recua nem mesmo diante de um assassínio. Interrogaremos o prisioneiro até descobrir tudo que desejamos saber a respeito desse desconhecido. Depois disso saberá quem eu sou. Se é que o prisioneiro vai prestar declarações — objetou Rhodan, enfatizando o se.

Bell soltou uma risada fria.

— Ele vai prestar declarações; nem tenha a menor dúvida. Afinal, para que serve André Noir?

— Não me refiro a qualquer resistência da parte dele — disse Perry Rhodan. — Mas é bem possível que o Supercrânio tenha adotado certas providências que o impeçam de prestar declarações, mesmo que se encontre sob influência hipnótica.

— Veremos — disse Bell para espantar as preocupações que surgiram em sua própria mente.

 

Para Tiff o primeiro encontro com Perry Rhodan foi um dos grandes momentos de sua vida. Então era este o salvador da Humanidade e o herói da juventude moderna, o lendário Perry Rhodan, que repelira a invasão dos deformadores individuais, expulsara os tópsidas do sistema Vega e salvara a Humanidade da destruição.

E esse homem estava sorrindo.

Para Tiff talvez fosse a maior surpresa de toda a vida, e mais tarde o mesmo reconheceu que, no primeiro instante, aquele sorriso o decepcionara um pouco.

Perto de Rhodan havia outro homem, que já conhecia de muitas fotos e telefilmes. Era Reginald Bell, ministro da segurança da Terceira Potência e o melhor amigo de Rhodan. Até Tiff sabia que Bell estava sorrindo, mas era um sorriso impaciente e insistente.

Tiff ficou em posição de sentido.

— O cadete Tifflor e o cadete Eberhardt estão de volta de um vôo de treinamento. Ocorrências especiais: ataque de um destróier, o capitão Hawk morto, inimigo destruído, um prisioneiro capturado.

De repente Rhodan não estava sorrindo mais. Dirigiu-se a Tiff e estendeu-lhe a mão.

— Agradeço-lhe por sua atuação decidida, cadete Tifflor. Você vingou o capitão Hawk e nos prestou um grande serviço. Se não fosse você não saberíamos quem espalha a insegurança pelo espaço com nossos destróieres roubados. O prisioneiro é este?

Eberhardt e o mestiço estavam um pouco atrás de Tiff. Além da cor da pele não havia a menor diferença entre os mesmos, pois ambos continuavam a envergar o leve terno pressurizado, embora sem o capacete. E na academia dos espaçonautas não existiam diferenças raciais.

Por isso não era de admirar que Rhodan apontasse para Eberhardt, que se encontrava ao lado do prisioneiro, ligeiramente embaraçado. Tiff se esforçou para reprimir um sorriso.

— Perdão, este é o cadete Eberhardt, que aprisionou o sobrevivente.

Rhodan apertou a mão de Eberhardt.

— Então é este? — disse, examinando atentamente o mestiço. Aproximou-se dele. — Quem é você? E qual é a pessoa que lhe dá ordens?

Nenhuma resposta.

Bell, que também cumprimentara os dois cadetes, franziu a testa, bastante contrariado.

— Para que tudo isso? — perguntou. — Para que servem nossos mutantes? John Marshall logo descobrirá o que há com ele. Esse sujeito não conseguirá esconder seus pensamentos.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Cuide disso, Bell. Enquanto isso converso com os nossos hóspedes. Avise-me assim que ele falar.

Bell aproximou-se do prisioneiro, fitou os olhos inexpressivos do mesmo, sacudiu a cabeça, perplexo, e deu-lhe o braço. E de braços dados, como se fossem grandes amigos, os dois homens saíram da sala. Rhodan seguiu-os com os olhos; parecia pensativo. Depois de algum tempo voltou a se dirigir a Tiff.

— Agora você vai contar minuciosamente o que aconteceu. Quero conhecer todos os detalhes, mesmo os que pareçam não ter a menor importância. Devemos encontrar algum indício.

Tiff começou a contar.

 

As emanações radiativas, cuja presença na atmosfera terrestre data de 1945, produziram um efeito mais rápido do que os cientistas haviam admitido. Quase diariamente nascera um mutante, sem que ninguém tivesse percebido qualquer coisa dessa mudança paulatina. Só muitos anos mais tarde começaram a ser descobertas faculdades extraordinárias em pessoas aparentemente normais. De uma hora para outra surgiram os telepatas e os telecinetas. Um homem desapareceu na África e apareceu no mesmo instante a três mil quilômetros de distância; atravessara essa distância por teleportação. Houve outra pessoa que captou emissões de rádio sem possuir qualquer aparelho receptor. De repente o cérebro humano demonstrou capacidades que nunca possuíra antes. Os mutantes começaram a surgir em todos os cantos da Terra, se bem que poucos deles apresentassem alterações positivas. Isoladamente não representavam qualquer perigo, mas se fossem reunidos sob uma disciplina rígida poderiam se transformar numa força combatente bastante poderosa.

Rhodan não demorara a perceber o fato. Enviara comandos de busca a todas as partes do mundo, especialmente ao Japão. Dentro de poucos meses foi formado o Exército de Mutantes. Esse exército formava a espinha dorsal das forças armadas de Rhodan.

Um desses mutantes era John Marshall. Suas capacidades telepáticas permitiam-lhe dispensar qualquer detector de mentiras, por mais sofisticado que fosse. Nenhum pensamento lhe ficava oculto, e a experiência ensinara que Marshall sabia manter contato telepático até mesmo com seres extraterrenos.

O prisioneiro que tinham diante de si era um homem normal; ao menos à primeira vista parecia sê-lo. Quando John Marshall penetrou nos seus pensamentos, não se defrontou com qualquer obstáculo. Mas Marshall só conseguiu captar os pensamentos superficiais.

— Quem lhe deu ordem para atacar a nave-escola Z-82? — perguntou John Marshall e fitou os olhos do mestiço.

Bell estava a seu lado e procurou dar-se um ar de muito zangado. Mas o prisioneiro nem parecia perceber. Dispôs-se a falar, mas acabou ficando calado. Alguma coisa o impedia de responder. Talvez quisesse, mas evidentemente não podia.

Ishi Matsu, a telepata japonesa, concentrara-se mais intensamente, talvez porque desconfiasse de que haveria dificuldades.

— Está sofrendo um bloqueio hipnótico — cochichou. — Suas recordações estão mergulhadas num campo energético hipnótico. Não conseguiremos rompê-lo.

— Que tal um contra bloqueio? — sugeriu Bell.

Ishi sacudiu a cabeça.

— Não acredito que adiante alguma coisa, mas podemos tentar. André Noir seria o homem indicado para isso.

Poucos minutos depois, Noir, filho de franceses radicados no Japão, entrou na sala e parou junto à porta. Com um ar indiferente contemplou o prisioneiro. Era o chamado hipno do Exército de Mutantes. Tinha a maior facilidade em penetrar na consciência de qualquer ser vivo e obrigá-lo a submeter-se à sua vontade. Ninguém desconfiaria de que esse homem, que parecia tão descansado, fosse um dos hipnotizadores mais eficazes do mundo.

André Noir se aproximou lentamente. Seus olhos pensativos descansavam no prisioneiro. Sem olhar para Marshall ou Bell, disse:

— Pode dizer seu nome, pois está entre amigos. E diga também o nome de quem lhe dá ordens. Sei que está submetido a coação, mas o senhor tem de me ajudar a remover essa coação, senão nunca será um homem livre.

— Antes viver sob coação que deixar de viver — disse o mestiço em tom hesitante.

Todos sentiram que alguém lhe colocara essas palavras na boca.

— Uma vida livre é melhor — disse Noir em tom insistente.

O prisioneiro não demonstrou a menor reação.

Noir empenhou suas imensas energias espirituais para romper o anel que alguém colocara em torno da consciência do prisioneiro. John Marshall e Bell mantiveram-se numa atitude de muda expectativa. A japonesinha delicada tinha o rosto transformado em máscara; acompanhava o fenômeno em todos os detalhes.

Mais alguém entrou na sala semi-obscurecida, quase sem ser percebido, e parou junto à porta.

Perry Rhodan.

Subitamente o encanto foi quebrado. O prisioneiro arregalou os olhos, encarou seu interlocutor, perplexo, e abriu a boca. Dela saiu uma série de palavras ininteligíveis, pronunciadas às pressas, como se aquele homem estivesse com medo e tivesse que se apressar.

De repente passou a falar em inglês:

— ...atacar e destruir tudo... Ódio, um ódio terrível... Domínio mundial... Mutantes... eu também... o Supercrânio...

— Quem é o Supercrânio? — gritou Rhodan, que continuava parado junto à porta. Aproximou-se e fitou os olhos do prisioneiro. Noir sacudiu a cabeça, desesperado, e fez um gesto como se quisesse deter Rhodan.

— Supercrânio... — balbuciou o prisioneiro. — O Supercrânio é...

Seu rosto se modificou numa rapidez apavorante. Parecia que de repente o prisioneiro estava vendo alguma coisa horrorosa e incompreensível. A dor parecia fustigar seu corpo. As pernas começaram a se dobrar. Rhodan deu um salto e segurou-o na queda. Marshall veio em seu auxílio. André não fez nada disso; recuou alguns passos.

— É tarde — murmurou. — O bloqueio hipnótico foi muito forte. Mas não foi o bloqueio hipnótico que o matou. Foi um comando hipnótico superpotente.

Colocaram o corpo imóvel do mestiço num sofá. John Marshall inclinou-se para examiná-lo.

— Um comando hipnótico? — perguntou Rhodan, olhando para Noir. — Quem deu esse comando?

— Não sei. Deve ter sido o tal do Supercrânio.

— E qual foi o comando que transmitiu ao nosso prisioneiro?

— Um comando de morrer. Ordenou-lhe simplesmente que morresse. E o prisioneiro morreu.

— Uma coisa dessas é possível?

André Noir confirmou com um ar sério.

— Acredito que encontrei alguém que é capaz de medir-se comigo — disse em tom sombrio.

Saiu sem aguardar resposta. Bell, que se mantivera totalmente passivo junto à parede, aproximou-se de Rhodan.

— Sempre esse Supercrânio. Aí está a prova. Nas últimas duas horas, assassinou duas pessoas, o capitão Hawk, e este aqui, que afinal era um elemento do seu grupo.

— Ele comanda os mutantes que domina — disse Marshall, que ainda se encontrava junto ao sofá. — No instante em que o prisioneiro morreu, consegui penetrar por um segundo em seu espírito. Era um mutante fraco e possuía memória fotográfica. Por isso foi capaz de pilotar o destróier sozinho. Sem dúvida poderia ter contado alguma coisa bem interessante.

— Sem dúvida — confirmou Rhodan. — Foi por isso que teve de morrer.

Franziu a testa e olhou para Marshall.

— Não conseguiu descobrir de que direção vinham as emanações que o influenciaram?

— De que direção? O que quer dizer com isso?

— É simples. Se o Supercrânio exercia uma vigilância telepática sobre o prisioneiro, os impulsos hipnóticos por ele emitidos devem ter vindo da mesma direção.

Talvez você possa me esclarecer a este respeito.

— Noir pensou nisso enquanto deixava a sala. Estava admirado porque os impulsos vinham de duas direções diversas: exatamente do leste e do oeste.

Rhodan estacou.

— De duas direções ao mesmo tempo?! — exclamou, espantado. — É estranho. Talvez não seja, pois afinal a Terra é redonda. Mas quase chegaria a apostar que vinham exclusivamente de uma direção. De cima. Ou será que Marte ainda se encontra embaixo da linha do horizonte?

John Marshall seguiu-o com os olhos, silencioso, quando deixou a sala.

Bell apontou para o prisioneiro, que jazia imóvel.

— Quer dizer que está morto?

— Isso mesmo — confirmou Marshall.

 

O Tenente Becker comandava o posto de fronteira leste, formado de dez postos de combate, próximos uns aos outros, equipados com canhões arcônidas de nêutrons. Os postos estavam constantemente guarnecidos.

A companhia de guardas ficava a pouca distância dali, numa área plana. Um pequeno cinema, um bar e uma piscina constituíam as únicas distrações para os homens, a não ser que estes preferissem usar o ônibus, que trafegava regularmente, para irem à cidade, onde encontrariam oportunidade para se divertir ao gosto de cada um.

O sargento Harras acabara de anunciar a Becker o regresso de seu grupo e mandara que os homens se dirigissem aos alojamentos. Tinham oito horas livres diante deles. Só de noite voltariam a montar guarda.

Um sol escaldante brilhava no céu. Não se via qualquer nuvem. A melhor coisa que Harras pôde imaginar foi tirar quanto antes o uniforme suado e dar um salto na piscina, onde ficaria até que a fome o tangesse para a cantina.

Vestindo apenas um calção, saiu do quarto que compartilhava com dois outros sargentos, andou tranqüilamente por cima do gramado ralo e parou à beira da piscina. Respirou o cheiro vivificante da água em que trinta homens se debatiam alegremente, esquecidos de que se encontravam num deserto quase totalmente ressequido. Gritavam piadas uns para os outros e não pouparam Harras.

— Está com medo? — berrou alguém perto dele e bateu contra a água, levantando um verdadeiro esguicho que atingiu Harras. — Entre, seu sapo.

Subitamente o sargento Harras hesitou. Ainda há um instante a perspectiva de saltar no líquido frio o alegrara, mas agora alguma coisa parecia segurá-lo. Mas o desejo de se refrescar era mais forte que todos os pressentimentos sombrios. Deu um passo para a frente e deixou que seu corpo robusto caísse na água.

— A piscina está transbordando! — gritou alguém ironicamente.

Harras não o ouviu mais. Deixou-se afundar e se sentiu feliz por não ouvir qualquer voz. Por um instante agradeceu ao destino pelo instante de solidão.

Pensamentos e desejos estranhos se apoderaram dele, afastando seu eu normal. Sentiu uma pressão estranha em algum ponto da cabeça. Uma estranha ansiedade se apossou de seu coração. Talvez tivesse segurado a respiração por muito tempo.

Deu um empurrão no fundo e subiu à tona. O quadro com que se deparou parecia confirmar suas suposições mais inconcebíveis. Seus companheiros dirigiam-se às pressas para a beira da piscina e saíam da água. Ninguém dizia uma palavra. Parecia que nos poucos instantes em que estivera embaixo da água alguém lhes dera um comando. Um comando para que saíssem imediatamente da piscina.

O tenente Becker surgiu na saída do edifício. Agitava os braços e gritava alguma coisa que Harras não entendia.

Mas sabia o que Becker havia gritado...

— Alarma! Entrar em forma. Equipar-se para a luta.

O sargento Harras correu para o quarto, envergou o uniforme, afivelou o radiador portátil e correu para a praça de reuniões. Metade da companhia já se encontrava lá. Do lado dos postos de fronteira vieram os veículos de esteira. Espantado, Harras constatou que os radiadores de nêutrons haviam sido retirados dos postos de combate e montados nos veículos. A fronteira estava desguarnecida. Talvez os robôs arcônidas se incumbissem da vigilância.

O tenente Becker não se preocupou com o fato de que a companhia não estava toda reunida. Uma inquietação nervosa parecia dominá-lo. Insistiu para que os oficiais subalternos se apressassem. Mal os dez carros com os canhões entraram em forma, deu ordem para iniciar a marcha.

O sargento Harras percebeu que alguma coisa não estava certa, porém, por mais que se esforçasse, não conseguia concentrar seus pensamentos sobre aquilo que estava acontecendo. A pressão na cabeça não diminuíra, mas se tornara ainda mais forte. Alguma coisa o obrigava a pôr-se em marcha com gestos mecânicos.

O tenente Becker deslocou sua unidade em direção aos estaleiros da Terceira Potência, situados no interior da área interditada, a menos de dois quilômetros do lugar em que se encontravam. Os canhões de radiação neutrônica iam à frente, com os canos apontados horizontalmente. Os artilheiros estavam sentados atrás dos controles, prontos para disparar a qualquer momento.

Por um instante, Harras teve idéia de perguntar ao homem que ia a seu lado o que havia acontecido, mas, quando viu os lábios estreitados do mesmo, desistiu do seu intento. Devia ser uma coisa horrível.

Mas tudo isso era uma tolice rematada...

Teve sua atenção desviada. Três veículos, vindos dos estaleiros, aproximaram-se da coluna, levantando uma espessa nuvem de poeira. Pararam e deixaram descer nove robôs de combate dos arcônidas.

“São reforços”, pensou Harras aliviado, mas ainda preocupado.

Tal qual seus companheiros, havia-se acostumado com a idéia de ver nesses homens mecânicos sofisticados seus amigos e aliados. Ajudavam-nos a proteger a Terceira Potência contra qualquer atacante.

O tenente Becker fez uma coisa totalmente incompreensível. Deu ordens para que os robôs fossem destruídos. Os veículos com os canhões formaram um semicírculo em cujo foco estavam os robôs.

Harras não conseguiu pegar sua arma manual. Sabia que a ordem dada por Becker era absurda, mas não tinha forças para se opor à mesma. Manteve-se em atitude passiva; foi o máximo que conseguiu fazer.

Pelos cantos dos olhos viu que com outros soldados se passava coisa semelhante. Hesitavam em cumprir as ordens de Becker.

“Isso é um motim declarado”, pensou o sargento Harras tomado de pavor. “Um motim contra Perry Rhodan e contra os arcônidas. Um motim contra o exército onipotente dos robôs.”

O primeiro canhão emitiu um raio de energia concentrada contra os robôs desprevenidos, dando início à batalha absurda. Quatro dos nove homens mecânicos caíram, semiderretidos, permanecendo imóveis, estendidos na areia escaldante do deserto. Os outros esboçaram uma reação instantânea; o pensamento positrônico não conhecia o segundo de pavor.

Foram atacados, e pouco lhes importava quem era o atacante. Seus braços esquerdos levantaram-se e assumiram uma posição horizontal. O relê embutido em seus ventres deu um estalo, liberando a ligação de emergência, através da qual lhes era concedida permissão para disparar contra seres humanos. O braço esquerdo transformou-se num canhão de radiação em miniatura.

Antes que os canhões de Becker pudessem disparar a segunda salva, foram atingidos pelas descargas energéticas dos robôs. Os canos de dois dos canhões torceram-se, como se, de uma hora para outra, tivessem se transformado em cera. Um terceiro canhão se desmanchou numa chuva de faíscas.

Os outros encontravam-se fora da zona de destruição. Apesar da reação instantânea, os robôs não tinham a menor chance. Foram destruídos antes que pudessem se virar.

O tenente Becker, empunhando o radiador neutrônico que trazia consigo, dirigiu-se aos três carros, que se mantinham à espera. Os três motoristas aguardavam-no com os rostos inexpressivos e não esboçaram qualquer defesa.

— Os senhores estão submetidos ao meu comando — gritou Becker.

Os motoristas, mesmo sentados, assumiram posição de sentido e fizeram continência.

O sargento Harras, que se mantinha a distância, não compreendera quase nada do que havia acontecido; mas sabia que algo de horrível se passava. Becker devia ter enlouquecido de uma hora para outra. Mas será que ele mesmo não enlouquecera também? Por que cumpria ordens absurdas como essas? O que o obrigara a fazê-lo?

Que dor de cabeça! Não queria parar. Devia ser aquele calor insuportável. O sol, quase em posição vertical, dardejava seus raios sobre o deserto. Os estaleiros tremeluziam no ar aquecido.

Subitamente teve a impressão de que dedos delicados tateavam seu cérebro e o sondavam. Mas de uma hora para outra esses dedos já não eram delicados; comandavam e pressionavam. Eliminavam sua vontade e anulavam seu raciocínio normal.

Tal qual seus companheiros, voltou a pôr-se em movimento. Passou pelos robôs imóveis, estendidos na areia, e pelos veículos com os canhões destroçados.

Viu um movimento junto aos estaleiros. Homens saíram de seus abrigos, de armas nas mãos. Um turbomóvel em disparada surgiu da direita e parou perto de um edifício. Homens desceram. Um deles segurava alguma coisa na mão, uma caixinha quadrada.

O tenente Becker levantou o braço.

— Espalhem-se! Vamos atacar os estaleiros.

Num movimento resoluto e automático, o sargento Harras puxou a arma.

 

Perry Rhodan levantou os olhos quando a porta foi aberta com violência e alguém se precipitou.

Era Bell; mas tinha diante de si um Bell que ainda não conhecia. Os cabelos estavam desgrenhados, e no rosto, geralmente corado, via-se uma palidez cadavérica. Os olhos chamejavam nervosamente, e Rhodan percebeu que as mãos do amigo tremiam.

— Viu o demônio por aí? — perguntou, espantado.

— Dentro de pouco estará aqui mesmo — fungou Bell. — O diabo está às soltas. A companhia de vigilância do tenente Becker está atacando nossos estaleiros.

— O que aconteceu? — perguntou Rhodan e lançou um olhar atento para Bell, como se temesse pelas faculdades mentais do mesmo. — Becker está atacando os estaleiros? Acho que isso só pode ser uma piada de mau gosto. Comigo pode-se fazer muita coisa, Bell, mas...

— É verdade. Aquela gente ficou louca. O Supercrânio deve estar atrás disso.

— O Supercrânio — murmurou Rhodan, enquanto se levantava lentamente. — Como? O que aconteceu?

— Há poucos instantes recebi aviso de alarma do setor sete. Becker e seu grupo está marchando em direção ao estaleiro e destruiu nove robôs de combate. A guarnição de defesa assumiu seus postos. Está aguardando novas ordens. O que devem fazer se Becker realmente se lançar ao ataque? Deve ter enlouquecido.

Naquele instante Rhodan pareceu ver diante de si o mestiço que havia morrido em virtude de um comando do inimigo desconhecido. Se o Supercrânio era capaz de uma coisa dessas, ele também estaria em condições de dar a uma companhia inteira a ordem de marchar para sua própria destruição.

Subitamente sentiu-se sacudido por um susto. Deu-se conta do que poderia acontecer se realmente o tal do Supercrânio dispusesse de qualidades inconcebíveis, face às quais até mesmo as forças dos mutantes não passassem de brincadeira. Com uma frieza implacável a idéia de que se defrontava com um inimigo igual em forças, que seria capaz de destruí-lo se agisse com bastante inteligência, impôs-se ao seu cérebro.

— Não podemos perder tempo — com essa observação Bell interrompeu as reflexões de Rhodan. — Os homens aguardam nossas instruções. Não é nada fácil atirar contra amigos que enlouqueceram.

— Vamos até lá — respondeu Rhodan em tom decidido. — Arranje um projetor mental e um neutralizador gravitacional pequeno. Ande depressa. Espero no carro.

Bell não perdeu tempo com perguntas. Girou nos calcanhares e saiu apressadamente. Dois minutos depois, quando Rhodan chegou ao seu carro, Bell já o esperava. Na mão esquerda segurava uma caixinha metálica, que não parecia ser muito pesada. Na direita trazia um bastão prateado.

— Não vamos levar mais ninguém?

— Se não dermos conta disso sozinhos, ninguém mais dará — respondeu Rhodan e entrou no carro. As turbinas uivaram e o pequeno veículo acelerou loucamente, precipitando-se sobre a superfície lisa de concreto. Tomou a direção do estaleiro de naves espaciais, situado a cinco quilômetros das instalações centrais de Terrânia.

A hora não era de muito movimento. Vez por outra um pedestre solitário parava e olhava atrás do veículo tresloucado, cujo motorista devia ter perdido o juízo.

Bell respirava com dificuldade.

— O que será que aconteceu?

— Trata-se de influência hipnótica; nem poderia ser outra coisa. O Supercrânio apoderou-se da companhia de Becker e submeteu-a ao seu comando. Devemos tentar compensar esse comando por meio do projetor mental.

O projetor mental era uma arma arcônida. Através dele podia-se penetrar na vontade de outra pessoa e dirigi-la. Até se podiam transmitir comandos pós-hipnóticos.

— O que será de nós? — perguntou Bell. — Será que o Supercrânio conseguirá nos impor sua vontade?

— Sabemos que ele já o tentou com Crest, o arcônida, mas não teve êxito. Por isso suponho que sua força não é capaz de influenciar um cérebro arcônida. E atravessamos o treinamento hipnótico arcônida. Talvez ele tenha deixado seus reflexos em nossos cérebros. Ao menos faço votos de que seja assim.

— Eu também — disse Bell, respirando profundamente.

O veículo disparava pelo deserto. A pista de concreto, lisa como um espelho, tinha dez metros de largura. Era encimada pelo ar tremeluzente, que tinha o aspecto de uma nuvem de gás que escapava de algum lugar. Mais adiante erguiam-se os edifícios alongados do estaleiro, onde diariamente surgiam novas naves espaciais do tipo dos destróieres. Rhodan percebeu os contornos pouco nítidos de figuras que corriam de um lado para outro e fechavam enormes portões. Veículos blindados assumiam suas posições.

Mais à esquerda, em pleno deserto, uma nuvem de poeira erguia-se acima do solo. Embaixo dela, marchavam soldados. Eram os homens de Becker!

Rhodan não compreendia por que o inimigo desconhecido não utilizava suas faculdades num empreendimento que possuísse maiores chances de êxito. Se estava em condições de submeter uma companhia inteira à sua influência, poderia ordenar aos pilotos das naves de Rhodan que decolassem e atacassem Terrânia. Por que não fazia isso? Por que se contentava com uma ação relativamente inofensiva, da qual devia saber de antemão que não levaria a nada?

Será que pretendia desgastar os nervos de Rhodan?

Bem, ao que parece já o havia conseguido com Bell. O ministro da segurança da Terceira Potência transformara-se num modelo de insegurança. Se John Marshall estivesse presente àquela hora, sem dúvida o teria apelidado de ministro da insegurança. Revirava nervosamente o projetor mental e escorregava nervosamente em seu assento.

— Será que você não sabe mais ficar quieto? — indagou Rhodan. — Não pense que o Supercrânio se contentará com este ensaio. É só o começo.

— O começo? — disse Bell com um gemido de pavor. — Nossos homens atiram contra nós e você diz que isso é só o começo?

Rhodan não respondeu. Conhecia o amigo e sabia que sua aparente desorientação só era externa. Passou pelos primeiros robôs de vigilância e deixou para trás os canhões de radiações que se encontravam em posição de combate. Parou junto a um abrigo subterrâneo, onde havia alguns oficiais que envergavam o uniforme da divisão de vigilância. Vieram correndo quando reconheceram Rhodan.

Bell não permitiu que falassem.

— Saiam do caminho! — gritou-lhes. Saltou do carro e levantou a caixa prateada do projetor mental. — Vamos mostrar a essa gente como se comanda um exército.

Rhodan tirou a caixa metálica de suas mãos e colocou-a no chão. Ao que parecia não estava confiando no efeito do projetor. Deu um aceno de cabeça em direção a Bell:

— Tente. Transmita um comando para que regressem imediatamente aos seus alojamentos.

Depois disso dirigiu-se aos oficiais, que pareciam desorientados.

— Mantenham seus homens reunidos. Mas só dêem ordem de fogo quando eu autorizar. Não queremos matar nossa gente.

— Eles destruíram nove robôs — disse um capitão.

— Isso é muito lamentável, mas robôs não são gente. E acontece que fizeram isso contra a vontade.

— Contra a vontade? — perguntou o capitão, esticando as palavras, mas não formulou outras perguntas.

Nem teria tempo para isso, pois Bell entrou em ação.

Evidentemente o alcance do projetor mental era limitado. Mas as forças do tenente Becker já haviam se aproximado bastante. Era inexplicável que ocupassem posições num lugar tão próximo, pois com seus canhões poderiam ter bombardeado o estaleiro a dois quilômetros de distância. Mas Becker mandou que sua coluna parasse a quinhentos metros das linhas do comando de vigilância e colocasse as peças de artilharia em posição de atirar.

Bell ajoelhou-se lentamente e dirigiu o bastão prateado sobre o inimigo involuntário. Comprimiu um botão para acionar o aparelho. Falando em voz alta, disse:

— Tenente Becker, ordeno ao senhor e aos seus subordinados que voltem imediatamente aos seus alojamentos. Qualquer ordem em contrário que lhes tenha sido dada é revogada.

Os oficiais — neste meio tempo um total de cinco se reunira no local — olharam para Bell como se fosse algum bicho milagroso. Sabiam que os arcônidas possuíam armas lendárias, mas nunca tinham visto nenhuma delas em ação. Ao menos o projetor mental ainda lhes era desconhecido. Infelizmente ainda dessa vez não tiveram sorte.

O tenente Becker não deu a menor atenção às ordens de Bell.

O primeiro disparo passou a pequena altura acima do grupo, derretendo um robô de vigilância desprevenido que se encontrava a alguma distância.

— O poder do Supercrânio é maior que o de nosso projetor mental — disse Rhodan em tom tranqüilo.

Terminara seus preparativos e estava agachado junto ao abrigo, pronto para entrar em ação. Ali poderia desaparecer de um momento para outro, quando isso se tornasse necessário. Os cinco oficiais abrigaram-se atrás da cúpula de concreto. Utilizando seus rádios, instruíram os subordinados, espalhados por vários lugares, para que aguardassem novas instruções e em hipótese alguma abrissem fogo contra as tropas amotinadas.

Bell voltou a dirigir o raio hipnótico contra os homens de Becker e transmitiu um segundo comando que, tal qual o primeiro, não foi obedecido. Pelo contrário, três dos canhões dirigiram seus raios neutrônicos contra os pavilhões do estaleiro que se encontravam mais próximos.

Rhodan percebeu que não poderia opor-se à atuação do Supercrânio por meios exclusivamente psíquicos. Só a violência resolveria. Dirigiu a objetiva do neutraliza-dor gravitacional sobre as tropas de Becker e acionou o aparelho.

O campo de atuação abria-se em forma de leque; começava junto à caixa metálica, espalhando-se em direção ao inimigo e diminuindo de intensidade. Mas a regulagem levada a efeito por Rhodan foi suficiente para fazer com que Becker e seus homens não mais tivessem peso.

O sargento Harras, contrariado, estava dando um passo para a frente, sem saber por quê, quando subitamente perdeu o apoio dos pés. Foi subindo lentamente, girando em torno de seu próprio eixo. Assustado, soltou a arma de radiação, mas o objeto não caiu para baixo, permaneceu na mesma altura.

O que aconteceu com Harras também aconteceu com os outros homens do tenente Becker. Este, que pretendia se deslocar com um salto para junto de um dos canhões, foi atingido com maior intensidade pela súbita ausência de gravidade. Subiu inclinadamente, como se fosse uma granada humana e remou desesperadamente com os pés e as mãos, procurando se segurar no ar. Infelizmente Rhodan não estava em condições de seguir sua trajetória. O infeliz logo saiu do campo de atuação do neutralizador e caiu ao solo feito uma pedra. Transformou-se na única vítima do ataque que lhe fora imposto, além dos condutores e artilheiros dos veículos destruídos pelos robôs.

Praticamente toda a força do tenente Becker encontrava-se no ar. A terra não mais conseguia segurá-la. A posição ocupada por cada um dependia dos movimentos que executara em terra. De qualquer maneira, o alcance do aparelho arcônida não era ilimitado. Para evitar maiores perdas, Rhodan teria de agir imediatamente. Dirigindo-se aos oficiais que, perplexos, haviam acompanhado o fenômeno, disse:

— Vou reduzir a intensidade do neutralizador. Mandem seus homens para lá, a fim de que aguardem a companhia que vai aterrisar. Devem se mover com muita cautela. Na área submetida à ação do aparelho a gravidade foi reduzida a um décimo. Cuidem dos carros de combate de Becker. Se necessário, os artilheiros devem ser reduzidos à inatividade.

Foi espantosa a rapidez com que os oficiais se recuperaram do susto. Levaram poucos minutos para mobilizar seus homens. Os soldados moveram-se com estranhos passos rastejantes sob os corpos que desciam lentamente, remando desesperadamente no ar e procurando se recuperar da surpresa. A maior parte deles havia largado as armas, e assim não poderia mais causar qualquer dano.

Aos poucos Rhodan fez com que a gravidade voltasse ao nível normal e esperou até que a companhia amotinada fosse dominada. Tirou o projetor mental das mãos de Bell e procurou proteger os soldados contra novos comandos hipnóticos. Supunha que esse tipo de proteção seria perfeitamente possível, muito embora não houvesse condições de romper um bloqueio depois de instalado.

Menos de cinco minutos depois disso, o Supercrânio retirou sua influência.

De repente o sargento Harras sentiu que a pressão em sua cabeça diminuía. No primeiro instante não compreendeu de que se tratava. Pensou que ainda se encontrasse no fundo da piscina e ficou espantado ao ver-se ameaçado por armas apontadas em sua direção. O próprio Rhodan explicou o acontecimento inconcebível a ele e seus companheiros, e ressaltou que o fenômeno poderia se repetir a qualquer instante. No momento não havia motivo para recear qualquer ataque armado vindo de fora; por isso determinou que o armamento da companhia de vigilância fosse reduzido a um mínimo.

Próximo dali, o corpo imóvel do tenente Becker jazia sob um cobertor. Bell lançou um olhar na direção do mesmo e disse em tom sombrio:

— Só hoje foram nove vítimas, Rhodan. Está na hora de darmos um passo decisivo.

Rhodan não respondeu. Sem dizer uma palavra, regressaram a Terrânia, onde a notícia de outra calamidade os aguardava. O coronel Freyt em pessoa trouxera a notícia de Nova Iorque, onde ficava o quartel-general de Homer G. Adams, o financista da Terceira Potência. Dali, o mutante de memória fotográfica tecia sua rede e dominava a economia mundial. Homer parecia infalível e nunca tomava uma decisão errada. Ou melhor, nunca a tomara enquanto o Supercrânio não existia. Os primeiros ataques do personagem monstruoso foram repelidos. A mutante Betty Toufry foi enviada a Nova Iorque, para proteger o gênio das finanças. Betty era a telepata mais potente do Exército de Mutantes, e ao mesmo tempo era uma telecineta.

E foi Betty que deu o alarma.

Mais uma vez Homer G. Adams parecia ter sido submetido à influência nefasta do Supercrânio. As últimas instruções dadas por ele não correspondiam às vindas de uma inteligência normal e teriam levado a General Cosmic Company à beira da ruína financeira.

No último instante Betty conseguiu anular essas instruções por meio de um projetor mental. Enquanto se encontrasse nas proximidades de Adams, nada poderia acontecer; mas não poderia segui-lo a cada passo.

Imediatamente Rhodan pôs-se em contato com a G.C.C. A tela retratou o rosto embaraçado de Adams, que era um pouco pequeno. Seu cabelo ralo estava maltratado; tinha a aparência de quem passara algumas noites sem dormir. No fundo via-se Betty Toufry, que parecia bastante cansada.

— Olá, Adams — disse Rhodan, como se Nova Iorque ficasse a poucos quilômetros dali, não na extremidade oposta da esfera terrestre. — Pelo que ouvi, voltou a ter problemas.

Adams ia dizer alguma coisa, mas Rhodan não permitiu que ele o interrompesse.

— Adams, não há necessidade de se desculpar. Aqui estamos enfrentando os mesmos problemas. O poder de nosso pavoroso inimigo estende-se por todo mundo. Gostaria apenas que me dissesse se não consegue sentir o início da influência exercida pelo Supercrânio.

Adams confirmou com um gesto hesitante.

— Sinto uma pressão no cérebro, mas quando isso acontece já é tarde. Não sei o que teria acontecido se Betty não estivesse perto de mim. Sinto muito, Rhodan, mas não pode confiar mais em mim.

— Que tolice, Adams! Não diga uma coisa dessas. Mantenha-se numa atitude passiva até receber novas instruções. Evite nos próximos dias qualquer ação de maior envergadura, pois vou precisar de Betty Toufry. De uma hora para outra o inimigo vai se expor, e então golpearemos imediatamente.

— Tomara que isso aconteça logo. Não é nada agradável sabermos que já não somos donos de nós mesmos.

Rhodan esboçou um sorriso tranqüilizador e interrompeu o contato.

No instante em que a imagem de Adams desapareceu, o sorriso desapareceu de seus lábios.

 

Para quem não prestasse atenção à sua pele morena e se deixasse enganar por seus modos fleumáticos, Fellmer Lloyd parecia ser um tipo absolutamente normal e corriqueiro. Trabalhara durante anos numa usina atômica americana, onde exercia as funções de assessor do diretor científico, mas a equipe de Perry Rhodan acabou por localizá-lo.

Fellmer Lloyd era um mutante natural.

Não poderia ser designado propriamente um telepata, mas suas faculdades aproximavam-se das de um mutante desse tipo. Certo setor de seu cérebro fora modificado pelas emanações radiativas a que seus pais estiveram expostos, a tal ponto que estava em condições de, a qualquer momento, absorver os modelos cerebrais de seus semelhantes, classificá-los e analisá-los. Não sabia captar os pensamentos, mas os sentimentos fundamentais do próximo, e com isso também suas prováveis intenções. Ao falar com alguém, sabia imediatamente se o interlocutor tinha uma disposição amistosa ou hostil para com ele. Suas faculdades transformaram-no num tipo de localizador do Exército de Mutantes.

Fellmer Lloyd estava parado junto à barreira do aeroporto de Moscou; sem despertar a atenção de ninguém, observava os passageiros que desembarcavam e embarcavam no jato de carreira. Era um dos aviões das linhas regulares que, por incumbência da Terceira Potência, estabeleciam ligação entre os continentes.

Na semana anterior dois aviões desse tipo haviam sido destruídos no ar, por sabotagem. O ministério da segurança da Terceira Potência recorrera aos mutantes aptos para esse tipo de ação, a fim de impedir a repetição desse tipo de incidente.

E foi assim que Fellmer Lloyd passou a voar de um continente para outro, tateando os passageiros e tomando cuidado para que nenhum sabotador subisse a bordo.

Ainda estava indeciso sobre se devia tomar esse avião e deixar a capital do Bloco Oriental. Gostava de Moscou, onde travara relações bastante agradáveis. O povo parecia-lhe muito amável e gentil, motivo por que sentia bastante ter que deixar essa cidade.

Fez um exame quase superficial de um casal elegante que atravessou a barreira e, atravessando a faixa de concreto, dirigiu-se ao avião. Provavelmente seriam recém-casados em viagem de núpcias. De qualquer maneira eram inofensivos.

Mais ao longe os telhados da cidade brilhavam sob os raios do sol que se punha. Gigantescos arranha-céus erguiam-se para o alto, num esforço de concentrar sobre si os últimos raios do sol no poente. A larga via de acesso que ligava o aeroporto à cidade recebia os raios do sol em cheio; mal conseguia dar vazão ao tráfego.

Subitamente Fellmer Lloyd estremeceu.

Alguma coisa má, vinda não se sabe de onde, que não combinava com o ambiente de paz, penetrou em seu espírito. Alguém pensava em violência e em cautela, em morte, em assassínio.

O raio de ação de sua faculdade não era muito extenso, só atingia algumas centenas de metros. Mas a intensidade das ondas cerebrais que o atingiam era tamanha que o respectivo emissor devia se encontrar nas imediações.

Num movimento apressado lançou os olhos em torno de si.

Grupos de pessoas conversavam. Alguns se despediam, separavam-se, ainda acenavam com as mãos. Uma dama jovem, com pernas lindíssimas, atravessou a barreira em passos resolutos e dirigiu-se ao avião. Carregava uma grande pasta marrom. Mais à esquerda, Lloyd viu um policial, cujos olhos atentos fitavam as pessoas que passavam por ali.

Os olhos de Lloyd voltaram a pousar na jovem dama. As impressões causadas pela mesma fortaleceram-se em seu cérebro. Realmente. As idéias de violência provinham dela; não havia a menor dúvida. Por um instante o mutante pensou que se tivesse enganado; mas podia confiar em seu senso de orientação.

Cautelosamente movimentou seu corpo musculoso e seguiu a dama. Trajava um vestido moderno e dava a impressão de que praticava muito esporte. Seu andar era elástico, quase macio.

Faltavam três minutos para a decolagem.

Quando subiu a escada do avião, a dama apresentou sua ficha de embarque com o número da poltrona, trocou algumas palavras com a aeromoça e entrou no avião. Lloyd seguiu-a. Sua identidade bastou para que fosse admitido no avião. Recebeu um lugar próximo ao da dama.

As idéias que se ocupavam com alguma coisa terrível enfraqueceram um pouco, dando lugar a uma sensação de tranqüilidade e segurança temporária. Lloyd tinha certeza absoluta de que no momento não havia o menor perigo. Mas também sabia que não devia tirar os olhos daquela bela dama, enquanto ela se encontrasse no avião.

Devia ter uns vinte e cinco anos, era esbelta e tinha cabelos castanho-escuros. Os olhos, um pouco estreitos, davam um encanto extraordinário ao seu rosto oval. Lloyd não podia se conformar com a idéia de que se tratava de uma agente daquele personagem desconhecido, o Supercrânio. Talvez tudo não passasse de coincidência.

O avião decolou e seguiu o sol que se punha. Sua velocidade era tamanha que o sol ainda se encontrava na mesma altura quando pousou no aeroporto de Tempelhof, em Berlim.

Lloyd sentiu-se atingido por uma onda de excitação quando a moça se levantou e se dirigiu à porta. O avião acabara de taxiar na pista e encontrava-se diante das salas de inspeção alfandegária.

O mutante também se levantou e apressou-se para não perder de vista sua presa. As ondas cerebrais da mesma eram tão intensas que Lloyd mal conseguia se proteger contra elas. Quase chegavam a provocar dor ao penetrarem em sua consciência, despertando nela a sensação de uma ameaça imediata.

Descera e caminhava a passos rápidos e decididos em direção à barreira. Segurava a passagem na mão. Ao que parecia não tinha bagagem.

Nenhuma bagagem?

Lloyd teve a impressão de que alguém derramara uma tina de água escaldante em suas costas. E a bagagem?

De supetão percebeu a realidade. A dama não trazia nada na mão. Deixara a pasta de couro no avião.

Lloyd girou sobre os calcanhares, correu em direção ao avião, forçou passagem ao lado dos passageiros que desciam, não deu a menor atenção aos protestos enfurecidos e, de um salto, colocou-se junto à poltrona que havia sido ocupada pela suspeita.

A pasta de couro, aparentemente inofensiva, estava embaixo da poltrona.

Pegou-a num movimento rápido e voltou correndo pelo mesmo caminho. Por um instante acreditou ter perdido a pista da possuidora da pasta. Mas descobriu-a junto à entrada do aeroporto onde se esforçava para conseguir um táxi. Lloyd captou o modelo confuso de suas idéias, nas quais voltara a se introduzir a insegurança. Não estava convencida do acerto daquilo que acabara de fazer?

Chegou no momento exato em que ela ia entrando num táxi. Com alguns saltos enormes, alcançou o veículo, abriu a porta e entrou. Fitou diretamente os olhos da dama, arregalados de pavor. O olhar dela não se fixava nele, mas na pasta de couro que segurava despreocupadamente embaixo do braço.

— Meu Deus — disse Lloyd, exausto. — Para que tanta pressa? A senhora esqueceu esta pasta no avião.

A desconhecida fitou-o com os olhos perscrutadores. Depois disso uma expressão de pavor passou pelo seu rosto. Enfiou a mão no bolso do vestido e retirou com um revolverzinho. Mas Lloyd fora prevenido por um modelo dos sentimentos do outro cérebro. Com um gesto tirou a arma da moça.

— Não faça isso, minha bela amiga — advertiu em tom suave. — Minhas intenções são as melhores possíveis.

— Esta mentindo — disse a dama, sacudindo a cabeça. Falava um inglês arranhado, com um ligeiro sotaque russo. — O senhor vem me perseguindo desde Moscou. Acha que não percebi?

— Quer dizer que lê pensamentos.

A dama hesitou por um instante; depois confirmou com um aceno de cabeça.

— Sim, sou telepata.

No primeiro instante Lloyd ficou decepcionado e mesmo assustado. Como lidar com alguém que adivinhava seus pensamentos mais secretos? Mas depois de algum tempo sacudiu os ombros.

— Está bem. Nesse caso podemos usar de franqueza. A senhora foi incumbida pelo Supercrânio de sabotar as linhas aéreas da Terceira Potência. Uma carga explosiva está tiquetaqueando nesta pasta. A senhora ajustou o detonador e deixou a pasta no avião. Ela explodiria na viagem daqui para Londres. Minhas suposições não são corretas?

Ela o mediu com o olhar.

— E se fosse assim?

— Nesse caso Perry Rhodan estaria muito interessado em conversar com a senhora.

Uma sombra passou pelo lindo rosto da dama.

— Não tenho nenhum interesse em conversar com o homem que traiu a Humanidade. Diga-lhe isto da minha parte. Aliás, se fosse o senhor, procuraria me livrar desta pasta quanto antes. A carga explosiva tem potência suficiente para nos atirar até as nuvens. E a única pessoa que conhece o momento da detonação sou eu.

— Enquanto a senhora estiver comigo e não demonstrar nenhuma inquietação, nada poderá me acontecer — observou Lloyd com uma lógica irrepreensível. Inclinou-se para a frente e abriu o vidro que os separava do motorista. — Leve-nos de volta ao aeroporto — voltou a fechar o vidro e dirigiu-se à prisioneira. — Seria bonito se nos apresentássemos. Já conhece meu nome. Como posso chamar a senhora?

— Tatiana Michalovna — respondeu a dama em tom obstinado. Lloyd sentiu que não mentia. — Em hipótese alguma descobrirá mais que isto.

— Perry Rhodan e seus mutantes descobrirão — prometeu Lloyd em tom tranqüilo e ficou satisfeito ao constatar que sua interlocutora se assustou. — Tenho um avião rápido no aeroporto. Daqui a algumas horas poderemos estar em Terrânia.

A dama não respondeu. Seus olhos pensativos estavam pousados na pasta de couro, que estava de pé junto a Lloyd. Este percebeu o olhar e sorriu.

— Não se preocupe, madame. Na Sibéria encontraremos um lugar em que uma pequena explosão não fará mal a ninguém. Por lá já houve explosões bem maiores.

A dama manteve-se num silêncio obstinado.

 

O duelo espiritual entre Marshall e Tatiana Michalovna não durou muito. A russa logo percebeu que não adiantaria ocultar a verdade. E houve outro fator com que não contava: Perry Rhodan.

Começou a falar com a voz hesitante.

— Tal qual todos os seres humanos, mantive uma atitude de ceticismo face à Terceira Potência. Para mim o senhor, Sr. Rhodan, era um traidor pois aliou-se a seres extraterrenos que aspiravam ao domínio mundial. É bem verdade que impediu a guerra atômica entre o Oriente e o Ocidente. Mas nem por isso tinha o direito de nos forçar a ingressar num processo evolutivo que avança com rapidez excessiva, atirando-nos para fora da trilha que nos foi prescrita. Também teríamos alcançado a união mundial sem o senhor.

— Não tenho a menor dúvida — admitiu Rhodan sorrindo e piscou o olho. — Teriam conseguido à sua maneira, naturalmente. Acontece que eu fiz à minha maneira. Há alguma objeção contra isto?

— Há algumas. O fato é que um belo dia me encontrei com um homem cujas idéias coincidiam com as minhas. Também ele condenava a Terceira Potência e desejava a paz. Nossa paz. Entrei em contato com ele. Como nem desconfiasse das minhas capacidades telepáticas, descobri tudo. Uma quarta potência está sendo formada; será uma potência puramente humana, que nada terá que ver com os arcônidas e raças da Via Láctea. A política do Supercrânio é terrena, não galáctica.

— Não é nada inteligente — disse Rhodan. — Prossiga, Michalovna.

— Resolvi me unir ao grupo do Supercrânio — disse a moça com a maior naturalidade. — A luta dele é uma luta justa, pois dirige-se contra uma coisa que sempre será estranha à nossa natureza.

— Já houve um tempo em que as pequenas nações da Europa julgavam as culturas vizinhas estranhas à sua natureza — objetou Rhodan. — Hoje formam uma unidade.

— Trata-se de uma evolução natural, não artificial...

— Não diga isso. Deram um empurrão.

— Apesar de tudo...

— Não vejo a menor diferença. A Humanidade teve de se convencer de que não é a única raça inteligente que existe no Universo. Deve se manter isolada, para ser vitimada um belo dia por uma agressão? Não será muito melhor que nos adaptemos ao ambiente em que vivemos? Não podemos fazer mais que isso. Só uma Terra unida sob uma mão forte não perderá a oportunidade de se integrar na civilização galáctica. Há alguns anos ainda se julgava que essa evolução dos acontecimentos se situava num futuro muito distante; parecia o sonho de um alucinado. Hoje ingressou no mundo da realidade. Devemos tomar nossa decisão, e muita gente já o fez. Nem mesmo um Supercrânio pode modificar isso.

— Nem pretende fazê-lo. Apenas opõe-se ao domínio exclusivo que o senhor quer exercer.

Rhodan sorriu e lançou um olhar rápido para John Marshall.

— Se aspirasse ao domínio exclusivo, já o teria alcançado. A senhora não deixará de reconhecer isso.

A moça hesitou.

— É verdade. Por que ainda não o conquistou?

— Porque não faço a menor questão disso. A polícia deve cuidar da ordem, mas nunca deve governar.

— Então acha que lhe cabe o papel de polícia mundial?

— Talvez, mas isso não deve ser levado ao pé da letra. Prefiro que me considere um desbravador de caminhos.

A moça não respondeu, mas seu rosto revelava que refletia intensamente. De repente John Marshall, o telepata, disse:

— Michalovna, por que será que não consigo captar claramente todos os seus pensamentos? Nunca encontrei uma pessoa que conseguisse ocultar seus pensamentos de mim.

— Pois desta vez o senhor acaba de encontrar uma pessoa destas — disse Tatiana com um sorriso de superioridade. — Além da telepatia possuo outra faculdade, que aparentemente ainda não se tornou tão corriqueira como supus. Posso instalar um bloqueio volitivo contra qualquer tipo de influência estranha. É bem possível que esse bloqueio também isole meus pensamentos do mundo exterior, impedindo que sejam captados por um telepata.

— A senhora sabe se resguardar contra qualquer influência estranha? — perguntou Rhodan bastante interessado. — Será que há necessidade disso? Os hipnos são muito raros.

— O Supercrânio é um hipno — disse Tatiana, enfatizando as palavras.

Rhodan contemplou-a por algum tempo; depois acenou lentamente com a cabeça.

— Quer dizer que a senhora sabe se defender de uma influência hipnótica exercida a distância?

Esperou até que a moça confirmasse com um aceno de cabeça e prosseguiu:

— Mesmo neste instante estaria em condições de agir contra vontade do Supercrânio?

A moça voltou a confirmar com um aceno de cabeça.

— Já sabe que costuma ordenar a qualquer colaborador aprisionado por nós que morra?

Tatiana empalideceu.

— E daí? — perguntou, assustada.

— A pessoa obedece e morre — respondeu Rhodan em tom brutal. — Por isso recomendo-lhe que tome cuidado para que seu bloqueio volitivo resista. Provavelmente é o único ser humano sobre o qual o Supercrânio não consegue exercer qualquer influência, com exceção de nós, evidentemente. É possível que possa haver certa influência, mas nunca o comando dirigido ao nosso coração, de suspender sua atividade.

— Isso é uma coisa horrível! — exclamou Tatiana. Não podia se conformar com o fato de que seu chefe era um homem sem escrúpulos. Rhodan tirou proveito da situação.

— O Supercrânio fez com que uma das nossas companhias se amotinasse e atirasse contra seus companheiros. Felizmente conseguimos evitar o pior.

Tatiana cobriu o rosto com as mãos.

— E eu estava tão cega que quase chego a assassinar cem pessoas inocentes. Aquela bomba...

— Não pense mais nisso — disse Rhodan baixinho e em tom insistente. — Já houve gente que fez coisa muito pior, de boa fé. A senhora agiu de acordo com suas convicções. Assim que estiver recuperada do susto, Lloyd a levará de volta para Moscou. Ninguém a obrigará a ficar conosco.

A moça olhou-o, espantada.

— Vai me colocar em liberdade?

— Por que iria segurá-la? Não acredito que a senhora caia mais uma vez na tolice de se deixar levar por simples frases. O Supercrânio não é apenas um nacionalista estúpido, mas também um criminoso ávido de poder. Ainda vou descobrir quem se oculta atrás da máscara do Supercrânio.

Tatiana levantou a cabeça e encarou Rhodan, um tanto espantada. De repente sorriu.

— Não sabe quem é o Supercrânio? — perguntou em tom perscrutador.

Rhodan sacudiu a cabeça. Subitamente seus olhos cinza-azulados tornaram-se frios e emitiram um brilho enérgico. Inclinou-se para a frente.

— Será que a senhora sabe?

Tatiana acenou com a cabeça e saboreou seu triunfo.

— Sei; até o conheço pessoalmente.

 

Nas imediações da região onde em 1.945 foi detonada a primeira bomba atômica, um reator experimental entrou em pane em fins de 1944. As radiações liberadas pelo acidente mataram muitos cientistas e trabalhadores, mas outros tantos escaparam com vida.

Um deles foi o físico Monterny, que casou pouco depois. Foi um casamento breve, mas feliz. Em 1.945 sua mulher presenteou-o com um filho, Clifford Monterny. Clifford era um mutante de primeiro grau, um hipno de potência inacreditável.

Seguindo o exemplo do pai, estudou física. Sua inteligência extraordinária levou-o a conquistar posições importantes e uma fortuna apreciável, mas quase chegou a envelhecer antes que descobrisse suas capacidades anômalas. Não tinha a menor dificuldade em impor sua vontade a outras pessoas. Levou dois anos para descobrir que a distância não impunha qualquer limitação à influência por ele exercida. Depois de ter visto um homem uma única vez, conseguiria localizá-lo do outro lado do mundo e submetê-lo à sua influência.

Clifford Monterny era gordo e flácido; não tinha um aspecto muito atraente. As mulheres evitavam-no, e essa circunstância talvez tivesse exercido alguma influência em seu caráter. A expressão de seus olhos pequenos e afundados nas órbitas sempre era de inveja e desconfiança. Com trinta e dois anos já tinha a cabeça completamente calva e quase sempre andava de chapéu. Sua inteligência extraordinária formava um contraste chocante com seu aspecto desagradável.

Teve sua atenção despertada pela formação da Terceira Potência e pelos êxitos alcançados por Perry Rhodan. Acompanhou a formação do Exército de Mutantes e por mais de uma vez tomou a decisão de se colocar ao dispor de Rhodan. Mas nunca o fez.

Não era ele mesmo um mutante? Não poderia dirigir os destinos da Humanidade se o desejasse? Não estaria em condições de reunir um poder maior do que jamais um homem teve em suas mãos? Não poderia formar seu próprio exército de mutantes?

Foi assim que Clifford Monterny começou a reunir, às escondidas, seu próprio grupo de mutantes.

Clifford Monterny transformou-se no Supercrânio, um homem que quase ninguém conhecia e que parecia estar em todos os lugares, ou em lugar nenhum. Sua fortuna permitiu-lhe construir um verdadeiro castelo nas Montanhas Rochosas de Utah. Menos de cem quilômetros ao leste do grande lago salgado, ao pé do Emmons Peak com seus quatro mil e noventa metros de altura, ficava sua fazenda de nove quilômetros quadrados. A casa ali construída parecia uma verdadeira fortaleza, que poderia ser considerada inexpugnável. As conquistas da técnica moderna permitiam-lhe detectar e vigiar qualquer visitante, e elas o defenderiam eficazmente contra qualquer ataque.

Quando atingiu a idade de trinta e cinco anos, suas capacidades telepáticas estavam totalmente amadurecidas. Além de seus dons hipnóticos, sabia dominar qualquer homem com quem se tivesse encontrado uma vez que fosse, captando o modelo de suas vibrações cerebrais. Para um homem desses não haveria escapatória: o Supercrânio saberia localizá-lo, onde quer que ele se escondesse.

Num trabalho silencioso, o quartel-general de uma nova potência foi instalado nas montanhas rochosas de Utah; tratava-se de uma potência que poderia representar um perigo mesmo para Perry Rhodan. O primeiro ataque, de natureza econômica, desfechado contra a Terceira Potência, foi rechaçado por Rhodan. Mas o Supercrânio passou a utilizar métodos mais diretos.

Foi nesse estágio dos acontecimentos que Perry Rhodan teve conhecimento da identidade daquele homem, até então desconhecido.

 

Todos os serviços secretos do mundo se haviam reunido na Federação de Defesa da Terra, F.D.T. O secretário-geral da importante organização era Allan D. Mercant.

Mercant, ligeiramente perturbado, estava arrumando a escassa coroa de cabelos louros que cercava sua cabeça quando o visitante foi anunciado.

— Rhodan em pessoa? — procurou se certificar, como se não acreditasse no que acabara de ouvir. Quanto tempo já se fazia que falara com Rhodan pela última vez? — Por que fica parado aí? Faça-o entrar.

O jovem oficial quase tropeça ao girar sobre os calcanhares e por pouco não derruba Rhodan, que entrou com um sorriso no lábio e cumprimentou Mercant com algumas palavras cordiais.

— Como vai, meu velho? Sempre alegre e bem disposto?

— Que nem um peixe velho — resmungou Mercant com a voz amargurada e alisou os cabelos que lhe cobriam as têmporas. Já estavam mais grisalhos, mas o tom louro da coroa de cabelos mantinha-se obstinadamente. — O que me dá a honra dessa visita?

— Não é nada de agradável — explicou Rhodan, enquanto se acomodava numa poltrona. — Preciso do seu auxílio.

— Do meu auxílio? — perguntou Mercant, enquanto seus olhos se tornavam redondos. — Quer que eu o ajude?

— Desta vez quero — disse Rhodan com um sorriso. — É uma situação excepcional. Não quero saber de dificuldades políticas. Você sabe perfeitamente como hoje em dia os homens são sensíveis neste ponto.

— É verdade — confirmou Mercant num tom de profundo interesse. — Afinal, ainda não temos o governo mundial.

Rhodan se inclinou para a frente e lançou um olhar perscrutador sobre Mercant.

— Conhece Clifford Monterny?

No rosto de seu interlocutor desenharam-se as marcas de uma profunda reflexão. Finalmente esboçou um gesto hesitante de cabeça.

— Já ouvi falar nele, mas não o conheço pessoalmente.

— Sorte sua — interrompeu-o Rhodan.

Mercant não lhe deu atenção.

— Houve um físico muito conhecido, de nome Monterny, mas este morreu numa explosão. Já faz bastante tempo.

— É o pai. Refiro-me ao filho, Clifford.

— Não é também um físico?

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça e Mercant prosseguiu:

— É autor de algumas invenções, mas nunca despertou a atenção da F.D.T. Deve ter muito dinheiro. Possui uma fazenda ou coisa que o valha em algum lugar no Oeste. Mas, com os mil demônios, por que me faz essa pergunta? Será que sou o Departamento de Registro de Moradores?

— Quero que me dê permissão para penetrar no território dos Estados Unidos com uma esquadrilha de destróieres espaciais e arrasar essa fazenda de Monterny. Há de concordar comigo que, para isso, preciso de um certo tipo de autorização.

— Quer o quê?! Acho que... — exclamou Mercant exaltado.

— É melhor que não ache coisa alguma, Mercant. Clifford Monterny é o misterioso Supercrânio. Está agindo no intuito de abalar a ordem mundial. É um hipno e está em condições de ainda hoje levar qualquer estadista do mundo a despejar as provisões de armas nucleares de que seu país disponha no território de um país vizinho. Se já existiu um inimigo mundial número um, este é Clifford Monterny. O único meio de evitar um desastre de maiores proporções é destruí-lo. Foi por isso que resolvi falar com você.

Mercant já estava falando num telefone de mesa. Por intermédio do F.B.I. solicitou todos os dados sobre Monterny. Depois levantou os olhos.

— Conte com toda ajuda que esteja ao meu alcance, Rhodan. O contato com o presidente dos Estados Unidos é uma questão de minutos. Mais uma pergunta: onde estão seus destróieres neste momento?

Rhodan esboçou um sorriso gentil.

— Encontram-se numa altitude de trinta mil metros, exatamente acima do ponto em que nos encontramos. Isto o surpreende?

 

O cadete Julian Tifflor viu bem ao longe a lâmina redonda formada pela Terra. A curvatura da mesma era acompanhada por uma camada leitosa formada pelas partes mais densas da atmosfera; dali em diante o céu, passando pelo violeta, tornava-se negro. As grandes estrelas brilhavam, mas não cintilavam, muito embora o sol estivesse no céu.

Perry Rhodan o admitira sem maiores formalidades na frota da Terceira Potência. Confiou-lhe o comando de um destróier. Juntamente com Ray Gall e Pete Maros encontrava-se no Z-82, trinta mil metros acima do quartel-general da F.D.T., onde Rhodan estava conferenciando com Mercant.

Mais oito destróieres flutuavam nas proximidades, sustentados pelos neutralizadores gravitacionais. Mais acima, numa posição em que não podia ser alcançada pela vista dos tripulantes dos destróieres, a imensa nave Stardust-III estava estacionada no espaço. Bell em pessoa estava no comando, enquanto Rhodan se encontrava em terra. A Terceira Potência passara ao ataque contra o Supercrânio.

Mercant transmitira as necessárias instruções; ninguém pensaria em incomodar os nove destróieres que aguardavam sobre o território submetido à soberania americana. Quanto à Stardust-III, uma nave esférica de oitocentos metros de diâmetro, de qualquer maneira não existia arma capaz de afetá-la.

Tiff respirou aliviado quando a tela se iluminou diante dele, exibindo o rosto conhecido de Bell. Sabia que no mesmo instante os comandantes dos outros destróieres do grupo estavam entrando em contato com a Stardust-III.

— Atenção, todos os destróieres. Dentro de alguns minutos a nave auxiliar que conduz Rhodan chegará à Stardust-III. A ação planejada será levada avante. Basta que observem as instruções permanentes. Fim.

A tela continuou iluminada, mas o rosto de Bell desapareceu. O contato acústico foi interrompido. Essa situação perdurou por dez minutos, após os quais veio uma indicação de rota. A voz tranqüila de Bell conduzia os nove destróieres ao destino.

 

O posto de comando militar de Clifford Monterny ficava bem abaixo do nível do solo.

Cercado de inúmeras telas e outros instrumentos de comunicação, o Supercrânio estava sentado nessa central, igual a uma aranha em sua rede. Era para ali que convergiam todos os fios, era dali que o monstro dirigia suas batalhas que geralmente passavam quase despercebidas.

Uma das telas se iluminou. Exibiu um rosto asiático. A imagem tremia, ocultando os detalhes. A transmissão devia passar por muitos postos de relê.

— O que houve, S-7? — perguntou Clifford.

— No âmbito das novas tentativas, a Usina Syntak foi destruída na noite passada. Fica na Austrália e sessenta e cinco por cento de seu capital pertencem à G.C.C.

— Obrigado, S-7. Remeterei o cheque. O quadro se apagou. Outro rosto surgiu numa tela diferente. Era de um negro.

— Aqui fala M-3, meu senhor. Hoje de manhã o governador de Sirãpolis foi vitimado num acidente de trânsito. O condutor do veículo que causou o acidente escapou sem ser identificado.

— Obrigado, M-3. Já conhece sua próxima tarefa?

— Perfeitamente. Recebi as instruções por intermédio...

— Está bem, M-3. Aguardo aviso de que a tarefa foi cumprida. Fim.

Ainda outra tela se iluminou.

— Alô, chefe. Aqui fala SP-6. Há uma freqüência extraordinária de vôos no território da F.D.T. A presença da nave esférica foi observada. O F.B.I. recebeu solicitações de dados sobre a pessoa de Clifford Monterny.

— O quê? — o Supercrânio se inclinou para a frente. — Sobre minha pessoa?

— Não há dúvida sobre a autenticidade da informação, chefe. Apenas não sei quem solicitou os dados.

— Que diabo! Não é possível! Ninguém sabe quem sou. A não ser que...

Como uma alucinação, o rosto oval de uma linda mulher surgiu diante de seus olhos. Há dias não tinha contato com ela.

Tatiana Michalovna!

Perdera-a no instante em que ela deixou de executar sua última tarefa. Sabia que Tatiana era uma telepata de elevada potência, tal qual ele mesmo. Além disso, porém, dispunha da faculdade de isolar seu cérebro, subtraindo-se a qualquer tipo de influência. Inclusive de qualquer influência partida dele.

Será que Tatiana poderia ter se atrevido a traí-lo? Por que teria agido assim? Não era uma das suas adeptas mais convictas? Sempre tivera de se controlar quando se encontrava nas proximidades dela, para não pensar alguma coisa que não devia.

— Deve ter sido um dos membros da nossa equipe — soou a voz do agente SP-6. — Assim que descobrir quem solicitou as informações do F.B.I., voltarei a entrar em contato com o senhor. Fim.

Por alguns minutos Clifford interrompeu a recepção e refletiu intensamente. Seu supercérebro expandiu-se, procurando localizar seus homens em todas as partes do mundo. Às vezes isso não era fácil, motivo por que para as mensagens rotineiras mantinha seu equipamento de comunicações.

Todavia, se necessário, poderia vigiar seus agentes independentemente desse equipamento.

Havia treze mutantes submetidos ao seu comando. Um dos grandes mutantes não pôde acusar o recebimento da mensagem telepática, visto que não se encontrava na Terra. Onze deles responderam e receberam instruções para regressar imediatamente. Um único mutante não atendeu ao chamado de Clifford: era Tatiana Michalovna.

O Supercrânio não perdeu tempo. Deu o alarma preventivo. Os primeiros mutantes estavam chegando. A fortaleza foi colocada em condições de se defender.

Os minúsculos aviões-foguetes foram pousando na área imensa da fazenda. Traziam os atores principais, os mutantes, que haviam abandonado seus postos para regressar ao quartel-general, onde lhes seriam ministradas instruções diretas. Uma atividade febril começou a se desenvolver nas galerias subterrâneas da antiga mina. Peças de artilharia moderna subiram em elevadores, entrando em posição de defesa pouco abaixo da superfície. Tudo se processou automaticamente, obedecendo a comandos eletrônicos.

Sentado na sala de comando, o Supercrânio controlava o desenrolar dos acontecimentos. As telas mostravam todos os detalhes das áreas adjacentes à sede da fazenda. Mas, por mais que se esforçasse, não viu nada de suspeito. Não se via nem se ouvia nada de um eventual atacante.

Talvez o agente SP-6 se tivesse enganado; era possível que a solicitação formulada ao F.B.I. não passasse de um ato de rotina. Mas, para um homem que ocupava sua posição, a cautela nunca seria demais. Quem dera que o elemento que tinha em Terrânia desse sinal de vida.

Clifford Monterny não sabia que esse homem nunca mais daria sinal de vida, porque nunca mais estaria em condições de fazê-lo. Por mais que seu espírito perscrutador o procurasse, não conseguiria entrar em contato com um cérebro morto. Tatiana tomara providências para que esse tipo de traição se tornasse impossível. Ao ser preso, o homem de Clifford foi morto em legítima defesa.

Conforme já foi dito, o Supercrânio não conhecia esse detalhe. Aguardava em vão por um contato vindo de Terrânia. E, como esse contato não chegava, não podia ter certeza se Perry Rhodan descobrira sua identidade.

Por enquanto tudo continuava quieto.

Mas, ao menor sinal de um ataque, a fazenda inofensiva do generoso Clifford Monterny se transformaria numa fortaleza a cuspir fogo.

O Supercrânio estava preparado para a luta.

 

Perry Rhodan e Bell não se apressaram.

A Stardust-III e os nove destróieres subiram às camadas extremas da atmosfera, para afastar qualquer possibilidade de serem detectados pelas instalações de radar do Supercrânio. E ali realizaram o último conselho de guerra.

— Os mutantes fizeram um serviço perfeito — relatou Bell, lançando um olhar de advertência para Gucky, que estava agachado num canto. — Conseguimos agarrar mais alguns agentes do Supercrânio. Não descobrimos nenhum dos seus mutantes. Pelo que diz Tatiana, tinha doze além dela. Tatiana conhece onze; não conhece um deles. Deve se tratar de um exemplar dotado de capacidade extraordinária.

— Será que a capacidade dele é maior que a minha? — perguntou Gucky no seu canto.

Isso seria difícil de imaginar. Pelo menos no que diz respeito ao aspecto exterior, Gucky não poderia ser superado por qualquer ser humano. É que Gucky não era nenhum ser humano. Quando por ocasião de sua viagem em busca do imortal do planeta Peregrino, Rhodan fizera um pouso no planeta Vagabundo, o rato-castor entrara sorrateiramente a bordo da Stardust-III e dali em diante nunca mais se afastara de Rhodan e Bell. Gucky tinha pêlo marrom-avermelhado; sua cabeça era a de um camundongo e o corpo de castor. Seu maior orgulho era a cauda larga, sobre a qual costumava se apoiar quando andava sobre as patas traseiras. Sua inteligência extraordinária permitira-lhe aprender rapidamente a língua dos bípedes. A essa inteligência aliava-se o domínio perfeito da telecinésia e da teleportação. Já chegara a fazer com que uma frota inteira de pequenas naves espaciais realizasse os exercícios que lhe dessem na cabeça, muito embora os pilotos protestassem energicamente contra essa espécie de tutela.

Era esse Gucky, um dos grandes amigos de Rhodan, que estava agachado num dos cantos da sala de comando, fazendo o papel de uma criatura inofensiva. Assim costumava agir quando grandes coisas estavam para acontecer. Pertencia ao Exército de Mutantes, em igualdade de condições com os demais membros.

Bell lançou-lhe um olhar perscrutador.

— É possível que em certo ponto seja superior a você, Gucky. O fato, porém, é que não sabemos. Mas pare de nos incomodar. Devemos tomar algumas decisões importantes — fungou, bastante nervoso, e olhou para Rhodan. — Onde estávamos?

— Nos mutantes — disse Rhodan com um sorriso. — Já conseguiram estabelecer contato.

— É verdade. Tanaka Seiko, o goniômetro, conseguiu captar a mensagem mental do Supercrânio, e posteriormente também sua transmissão televisada. Localizou as respectivas estações e fez um croqui. Aqui está.

Rhodan pegou a folha de papel e examinou o desenho. Lembrava uma teia de aranha. O Supercrânio encontrava-se no centro da mesma. Dali partiam os fios que se dirigiam para todo o mundo. As extremidades desses fios correspondiam à localização de um agente. Os homens de Rhodan já se dirigiam a esses pontos.

— Excelente! — elogiou Rhodan. — Acho que com isso conseguiremos isolar o Supercrânio. Já não poderá contar com qualquer auxílio vindo de fora.

— Não acredito que ele se importe com isso. Não se esqueça do que Tifflor nos contou. O prisioneiro que capturou aludiu ao planeta Marte. Receio que tenha instalado uma base em Marte.

— Por enquanto continua na Terra, e é aqui mesmo que vamos liquidá-lo. Nunca estive tão decidido a exterminar totalmente um inimigo.

A voz de Rhodan adquirira um tom duro.

— O Supercrânio é um inimigo de toda a Humanidade. Quer a união da Terra, como nós, mas quer realizar essa união para impor seu domínio. Diria que é o exemplar perfeito do ditador mundial.

— Vamos lhe estragar a festa — disse Bell e olhou para o relógio. — Acho que nossas tropas de choque já devem se encontrar nas proximidades da fazenda. Por que será que ainda não entraram em contato conosco?

— Talvez tenha surgido algum problema. De qualquer maneira não vamos esperar muito; logo iniciaremos a ação. Se possível, quero o Supercrânio vivo.

Bell arregalou os olhos.

— Para quê? Quer prendê-lo? Ele nos escapará, e a caçada terá de começar de novo. Já que resolvemos atacar, devemos destruí-lo.

— Estou pensando nos seus mutantes — ponderou Rhodan. — Estou convencido de que sabem tanto do procedimento vergonhoso de seu senhor quanto Tatiana.

— Acontece que eles mesmos têm praticado crimes.

— Porque têm sido obrigados a isso, Bell. E ainda porque estão convencidos de se encontrarem a serviço de uma boa causa. Bem, não demoraremos a descobrir.

A porta da sala de comando se abriu.

— Há um chamado de Utah — disse o telegrafista com a voz nervosa. — Querem falar com o senhor Rhodan.

Bell chegou à sala de telegrafia antes de Rhodan. Gucky seguiu-os lentamente, no seu andar balouçante.

— Aqui fala Wuriu Sengu — soou a voz do alto-falante, assim que Rhodan transmitiu a senha. Sengu era o espia japonês do Exército de Mutantes. Podia ver qualquer objeto, mesmo que este se encontrasse atrás de grossas paredes de aço. — Estou deitado no chão a três quilômetros da casa de Monterny. Consegui aterrisar e me aproximar sem dificuldades. Na casa tudo está quieto; não descobri ninguém. Mas embaixo da terra o movimento é grande. Há um conjunto incrível de equipamento de defesa. São corredores extensos com galerias laterais e inúmeros recintos que servem de depósito de munições e mantimentos, salas de estar, salas de armas, etc. Ainda há elevadores para canhões de tiro rápido. O Supercrânio está sentado numa espécie de sala de comando e prepara a defesa de seu reino. Alguém o deve ter prevenido.

— Quem?

— Talvez Seiko possa informar. Está escutando as palestras radiofônicas. Não tenho nenhum contato com ele.

Rhodan refletiu por alguns segundos. — Está bem, Sengu. Continue a observar tudo. Procure entrar em contato com os outros mutantes, especialmente com Seiko. Avise sempre que houver alguma novidade. Atacaremos exatamente daqui a trinta minutos. Mantenha-se afastado e só intervenha quando o maior perigo tiver passado. Entendido?

— Entendido.

Rhodan se levantou.

— Dirigirei o ataque a bordo da Good Hope-V.

Bell, espantado, ergueu as sobrancelhas.

— A bordo do girino?! — disse espantado. — E o que é que eu vou fazer com a Stardust-III?

— Você ficará de olhos abertos para que tudo dê certo, meu caro — consolou-o Rhodan. — Você ficará num lugar afastado, cuidando para que o patife não nos escape. Não se esqueça de que dispõe ao menos de dois destróieres capazes de atingir a velocidade da luz. Roubou três, e um deles foi destruído. É possível que um se encontre em Marte. Quer dizer que sobra um. É desse que você terá de cuidar.

— Eu também? — perguntou Gucky com sua voz de grilo.

Não parecia nada satisfeito.

— Você também! — confirmou Rhodan, enquanto dava uma pancada no ombro de Bell. — Estou satisfeito que hoje os arcônidas não estão conosco. Thora e Crest não gostam de atos de beligerância. Acham que é um procedimento bárbaro, uma demonstração de violência.

— E não deixam de ter sua razão.

Rhodan deu de ombros.

— Você conhece uma solução melhor?

Bell imitou o gesto de Rhodan, mas não respondeu. Os dois homens voltaram à sala de comando, acompanhados do inseparável Gucky. Bell assumiu o comando da Stardust-III. Rhodan tomou o elevador antigravitacional e dirigiu-se apressadamente aos grandes hangares, a fim de preparar a Good Hope-V para a decolagem.

Dali a cinco minutos a nave esférica, que media sessenta metros de diâmetro, saiu do bojo gigantesco da Stardust-III e mergulhou rapidamente na atmosfera terrestre. Os nove destróieres acompanharam-na em formação militar.

E assim teve início o ataque ao quartel-general do Supercrânio.

 

Mal os instrumentos de Clifford Monterny registraram a presença da nave esférica e desencadearam o alarma, Rhodan já havia pousado. A queda vertiginosa só foi amortecida no último instante. Quando a Good Hope-V ainda vibrava sobre os suportes telescópicos, a menos de duzentos metros do edifício-sede da fazenda, o Supercrânio abriu fogo.

Mais de vinte canos expeliam chamas de vários metros de comprimento e disparavam cargas explosivas mortais. Os projéteis tomaram uma trajetória retilínea em direção à Good Hope-V, mas detonaram no campo protetor instalado nesse meio tempo. Esse campo recebia sua energia dos inesgotáveis reatores arcônidas. O espetáculo era um fogo de artifício nunca visto na área tranqüila das montanhas rochosas desde que o homem andava sobre a Terra. Indiferente a tudo, a esfera manteve-se imóvel atrás do campo protetor, aguardando.

O dispositivo automático de defesa do Supercrânio disparou uns quinhentos projéteis, antes que o cérebro eletrônico compreendesse que esse procedimento era totalmente inútil. As transportadoras mecânicas mudaram as cargas explosivas. O cérebro eletrônico do Supercrânio decidiu recorrer às armas atômicas.

Rhodan contara com isso. Sabia que o campo protetor seria capaz de suportar e neutralizar essa carga. Todavia, o bombardeio atômico representava o sinal de que o Supercrânio já não dispunha de outros recursos. Era o princípio do fim.

Rhodan aguardou por uns três ou quatro minutos, até que surgisse uma ligeira pausa no bombardeio. Tivera tempo de sobra para determinar a posição dos vinte canhões. Seus canos saíam diretamente da rocha natural e dali a pouco desapareceriam embaixo do solo, onde estariam a salvo de qualquer ataque. Se quisesse inutilizar os canhões, teria de agir depressa.

Os robôs de combate estavam preparados. Os soldados da Terceira Potência, todos muito bem treinados, esperavam ansiosamente na grande comporta de carga da Good Hope-V. O resto do Exército de Mutantes aguardava febrilmente a entrada em ação. Só eles sabiam que a luta decisiva poderia ser travada num plano exclusivamente espiritual.

Seria uma luta de mutantes contra mutantes.

Todas as peças da artilharia de desintegração da nave apontavam para os alvos já conhecidos. Também aguardavam. No mesmo instante em que Rhodan desativasse o campo energético, expeliriam a torrente mortífera de raios gaseificantes que destruiria o alvo. Toda e qualquer estrutura cristalina se desmancharia por completo e deixaria de existir.

Rhodan esperara justamente essa breve pausa no bombardeio. Uma das desvantagens de um conjunto de peças de artilharia comandado por meios mecânicos consistia no fato de que as mesmas não podiam receber um tratamento individual. Quando silenciavam, ou quando havia uma troca de munições, não havia uma única que continuasse em condições de disparar.

O campo energético que protegia a Good Hope-V se desfez.

No mesmo instante uns oito ou nove raios da grossura de um dedo, quase invisíveis, saíram do envoltório côncavo e alcançaram seu objetivo. Numa fração de segundo a terra e a rocha transformaram-se numa massa borbulhante e fumegante, na qual os canhões de aço flutuavam e se derretiam como se fossem de manteiga.

Os feixes de raios deslocaram-se em direção aos próximos objetivos. Antes que o cérebro eletrônico do complexo defensivo do Supercrânio registrasse a desgraça, todos os canhões, com exceção de dois, haviam sido colocados fora de combate. Esses dois afundaram nas galerias. Mas isso apenas evitou sua destruição. Os raios energéticos expelidos pela Good Hope-V derreteram a boca das galerias a tal ponto que uma massa vitrificada as fechava hermeticamente. Dessa forma não havia mais qualquer peça de artilharia que pudesse ser utilizada na luta contra Rhodan.

Era exatamente isso que Rhodan aguardava.

O alarma ressoou pela nave. Escotilhas abriram-se. De uma delas, uma rampa larga e inclinada estendeu-se em direção ao solo. Dentro de poucos segundos vinte robôs de combate marcharam em direção à casa, que jazia tranqüilamente em meio a algumas árvores solitárias. Nessa casa devia se encontrar a entrada da fortaleza subterrânea do Supercrânio. Os braços esquerdos estendiam-se em ângulo. As mãos estavam ausentes. No lugar delas havia uma abertura em forma de cone.

Foram seguidos pelos soldados, armados com radiadores de impulsos portáteis e armas automáticas. As granadas de gás estavam presas aos cintos.

Rhodan permaneceu na sala de comando; acompanhou os acontecimentos através das imagens projetadas na tela. Por enquanto achou mais prudente não fazer pleno uso de seus mutantes. Formariam uma espécie de reserva.

As telas estavam coordenadas de tal forma que Rhodan parecia se encontrar numa casa de paredes de vidro. Nada poderia lhe escapar. Por isso foi o primeiro a notar as medidas defensivas do Supercrânio, cujos efeitos desastrosos logo se fizeram sentir.

 

Numa fúria desesperada, Clifford Monterny fitou os controles das peças de artilharia automaticamente dirigidas. O cérebro eletrônico não reagia mais. As escalas indicavam a marcação zero. Os canhões haviam sido colocados fora de ação.

Mas, se Rhodan acreditava que só por isso já ganhara a batalha, estava redondamente enganado.

Era bem verdade que Clifford supusera que conseguiria liquidar qualquer atacante com algumas salvas rápidas de suas vinte peças de artilharia; no entanto, não deixara de prever outras possibilidades. Não foi à toa que formou um pequeno exército de mutantes, que lhe dispensava uma cega dedicação.

Seus dedos giraram um botão. Uma tela se iluminou, e nela surgiu a cabeça de um homem branco. Os cabelos cortados rente faziam concluir que se tratava de um americano.

— Roster Deegan — disse o Supercrânio — ponha seus homens em ação. Especialmente os telecinetas. Rhodan está atacando com robôs. Em hipótese alguma devem alcançar a casa. O senhor comparecerá à sala de comando para dirigir o contra-ataque.

Dois minutos depois dessa palestra, os telecinetas de Monterny entraram em ação.

 

Os robôs marchavam inexoravelmente, seguidos pelos soldados.

Deviam ter percorrido mais ou menos metade dos duzentos metros que separavam a nave da casa. Menos de cem metros deviam faltar até chegarem à casa; eram cem metros formados por grama ressequida e algumas árvores. Entre elas havia um monte de pedras muito bem empilhadas junto a um monte de lenha. Tudo recendia a uma pacífica atividade agrária.

Talvez essa impressão tivesse sido enfatizada demais.

Rhodan, sentado atrás dos controles da sala de comando da Good Hope-V, esperava que alguma coisa acontecesse. Embora os canhões do Supercrânio tivessem sido inutilizados, ele não estava liquidado. Um homem que pretendia conquistar o mundo não se contentaria com uma única chance; iria no seguro.

Restava saber qual seria o próximo recurso de que lançaria mão. Bem, Rhodan não ficaria na ignorância por muito tempo.

Subitamente a primeira fila de robôs parou, como se tivesse esbarrado numa muralha invisível. Um deles cambaleou, perdeu o equilíbrio e caiu de costas, permanecendo estendido no solo. Os outros — Rhodan mal acreditava no que via — foram levantados do solo e subiram ao ar num movimento lento e irregular. Lá em cima começaram a girar em torno de seu eixo e derivaram para o lado.

Alguns começaram a disparar insensatamente. O recuo das armas de impulso conferiu-lhes um movimento em sentido contrário. Giraram que nem rodas de fogo em direção à superfície, expelindo raios mortíferos. Alguns deles foram reduzidos à inatividade pelos soldados, numa luta corpo a corpo.

A segunda fila de robôs foi alvo de uma operação já treinada. Os mutantes do Supercrânio aprendiam depressa. As cinco obras de arte da eletrônica foram atiradas pelo ar por uma força invisível e bateram com toda força contra o campo energético da Good Hope-V, ativado às pressas. Caíram ao solo sem forças e permaneceram imóveis. Suas vísceras ultra-sensíveis não haviam sido feitas para resistir a tamanha provação.

Antes que a terceira fila de robôs pudesse ser colocada fora de combate através da mesma manobra, houve um outro acontecimento com o qual Rhodan, no íntimo, já contava.

Os soldados de seu pequeno exército passaram a adotar um comportamento muito estranho. Alguns dos homens sentaram na grama, largaram as perigosas armas de radiações e passaram a desembrulhar seus mantimentos de reserva. Ao que parecia pretendiam realizar um piquenique antes de se lançarem ao ataque.

“São telecinetas e hipnos”, pensou Rhodan com certa dose de desespero.

De qualquer maneira os mutantes de Monterny tinham um certo humor. Se não fosse assim, teriam ordenado aos soldados que se matassem uns aos outros.

O contragolpe de Rhodan não se fez esperar. O êxito de tudo dependia da circunstância de que o Supercrânio tivesse entrado em ação pessoalmente ou tivesse deixado tudo por conta de seus mutantes. Pelo que se concluía das experiências feitas até então, o Supercrânio era o único mutante que sabia impor sua vontade contra os efeitos do projetor mental.

O telepata John Marshall fez um sinal para Tatiana. A jovem russa, ansiosa por redimir-se dos erros do passado, saltou pela escotilha da Good Hope-V e correu a toda pela rampa. Sua mão segurava um bastão prateado. Apontou-o numa direção que demonstrava conhecer ela perfeitamente a posição do quartel-general subterrâneo. O bastão foi apontado para a superfície da terra, num ponto situado à esquerda da casa.

A imagem de Tatiana estava na tela de Rhodan. Este aumentou o quadro e procurou ler seus pensamentos na testa. John Marshall saberia identificar os comandos transmitidos através de seus pensamentos.

O resultado de seus esforços surgiu dentro de um minuto. Na verdade, era espantoso.

Os robôs que ainda se encontravam no ar perderam seu suporte invisível e caíram ao solo. Alguns poucos caíram de tal forma que logo conseguiram se erguer. Prosseguiram sua marcha em direção à casa, como se não tivesse acontecido nada; atiraram por todos os braços, transformando a sede da fazenda num montão de destroços fumegantes.

Os soldados, tão entretidos na agradável atividade de lanchar, interromperam-se subitamente. Por uma fração de segundo olharam espantados para as latas de conserva abertas e as facas de cortar pão; logo deixaram cair tudo e correram atrás dos robôs.

Tatiana permaneceu no mesmo lugar, cuidando para que os mutantes de Monterny não pudessem mais exercer qualquer influência sobre os homens de Rhodan. Mas sabia que a parte mais difícil de sua tarefa ainda se encontrava pela frente. Evidentemente não conhecia todos os detalhes do quartel-general; não sabia quantos homens se encontravam abrigados nas galerias de rocha, bem embaixo da terra. Mas imaginava que o Supercrânio devia guardar outras surpresas em seu arsenal.

Tinha que encontrar um meio de convencer um dos mutantes a abrir uma segunda entrada. O projetor mental devia oferecer uma possibilidade para isso.

Os robôs e os soldados pararam diante dos destroços fumegantes da casa. Ali não havia mais nada a fazer. Se a entrada para o labirinto subterrâneo ficava na casa, fora inutilizada. Ninguém poderia penetrar na terra ou dela emergir por ali.

Tatiana reduziu ligeiramente a intensidade do bloqueio defensivo que cercava seu cérebro, para poder absorver alguns pensamentos vindos de fora. Concentrou-se no modelo já conhecido das ondas cerebrais do Supercrânio e procurou estabelecer contato com ele. Teve cuidado para que o projetor mental apontasse constantemente para a sala de comando da fortaleza subterrânea, e manteve-se preparada para, a qualquer momento, fechar o bloqueio defensivo.

De repente a voz do Supercrânio, debilitada pelo bloqueio defensivo, surgiu em seu cérebro.

“Tatiana, você agiu de modo contrário às minhas ordens e traiu nossa boa causa. Você passou para o lado dos traidores da Humanidade e...”

“Basta de frases vazias”, pensou Tatiana concentradamente em resposta à mensagem do Supercrânio. Sentiu-se fortalecida pela certeza de que John Marshall poderia ouvi-la e transmitiria o conteúdo da palestra diretamente a Rhodan. “Sua obra é feita exclusivamente de frases vazias e violência oculta atrás das mesmas. Descobri suas manhas, Clifford Monterny! Você abusou do meu idealismo.”

“Não diga bobagens!”, retrucou o Supercrânio, sem fazer qualquer tentativa de exercer uma influência hipnótica sobre ela. Conhecia suas faculdades. “Contra os meus mutantes você não tem a menor chance.”

“As armas de Rhodan são superiores às suas, Monterny. E os mutantes dele são mais numerosos e capazes. Desista.”

Uma risada silenciosa de deboche atravessou o cérebro de Tatiana e de Marshall.

“Desistir?”, ironizou o Supercrânio. “Se eu desistir, o mundo acabará comigo. Se Rhodan tiver que dominar, ele o fará sobre uma terra despovoada.”

“Obrigada”, pensou Tatiana tranqüilamente. “Você acaba de proferir sua sentença de morte. Tente dar uma ordem aos seus mutantes. Veremos quem é mais forte: você ou nós.”

“Espere mais um pouco”, pediu o Supercrânio em tom de deboche. “Você só poderá levar vantagem se esperar. Talvez consiga influenciar meus mutantes. Acontece que o tal do projetor mental não tem qualquer efeito sobre mim. E ninguém me impedirá de neste instante transmitir instruções aos meus agentes, que aguardam em todos os cantos do mundo, para que executem as ações para as quais estão preparados há longo tempo.”

“É possível”, reconheceu Tatiana. “Mas acontece que de nada lhe adiantará transmitir essas ordens, pois você não conseguirá entrar em contato com seus agentes. Estes já foram presos pelos serviços de segurança da Terceira Potência. Estão reduzidos à inatividade. Até parece que você se esquece de que Rhodan também tem um Exército de Mutantes.”

A maldição apenas pensada por Supercrânio foi mais terrível que quaisquer palavras. Traiu sua impotência. Naquele instante Rhodan soube que o poder de seu inimigo havia sido rompido. Se conseguisse penetrar na fortaleza subterrânea...

Tatiana não perdeu tempo.

Seus pensamentos tatearam e localizaram Roster Deegan. Com o apoio do projetor mental transmitiu-lhe uma ordem insistente:

— Roster, abra a saída de emergência.

 

O Supercrânio sentiu que Tatiana se afastou dele e estabeleceu contato com seu telecineta. Imaginava o que desejava dele e decidiu aproveitar a oportunidade para tirar a prova.

Como telepata que era, compreendeu a ordem que Tatiana transmitiu através de seus pensamentos. Acontece que não era apenas um telepata, mas também um hipno. Deu a contra-ordem.

Roster parou indeciso em meio ao movimento que ia executar; lentamente voltou a sentar. O Supercrânio era mais forte que o projetor mental. Monterny começou a exultar; mas Roster voltou a se levantar. A passos lentos dirigiu-se para a porta e foi ao corredor.

Por um instante, Supercrânio, perplexo, seguiu-o com os olhos. Mas logo praguejou e voltou a ativar seus dons hipnóticos com uma intensidade ainda maior. Mas percebeu logo que uma resistência tremenda se lhe opunha, uma resistência que não conseguia vencer. Não sabia que nesse meio tempo André Noir, o hipno de Rhodan, havia entrado em ação. Reunindo suas forças às do projetor mental manipulado por Tatiana, era mais potente que o Supercrânio.

O fracasso deixou Monterny arrasado. O fato de não poder enfrentar Rhodan no terreno da técnica não lhe ofendia o orgulho; mas não podia se conformar em ser inferior ao inimigo também no terreno espiritual.

Poderia matar Roster, mas preferiu não fazê-lo. No mesmo instante em que praticasse tal ato, todos os mutantes se voltariam contra ele, e isso poderia se tornar perigoso na situação em que se encontrava.

Se estivesse só, talvez conseguisse dominá-los; mas com o reforço espiritual dos mutantes de Rhodan seriam mais fortes que ele.

A fuga?

O Supercrânio cerrou os lábios. Evidentemente também pensara nessa possibilidade e providenciara tudo que com ela se relacionasse. No hangar subterrâneo, o terceiro destróier estava à sua disposição. Estaria em condições de dirigir essa nave, que tinha apenas trinta metros de comprimento. As provisões de mantimentos que se encontravam a bordo seriam suficientes para muitos anos. O armamento era suficiente. O destróier poderia alcançar a velocidade da luz. E, em Marte, o último e o mais terrível dos mutantes aguardava o momento de entrar em ação.

Por que esperar até que ficasse encurralado e não tivesse nenhuma saída?

Clifford Monterny fez mais uma tentativa para recuperar sua influência sobre Roster Deegan, mas logo se deu conta da inutilidade dos seus esforços. Apesar disso não desistiu. Quis dificultar as coisas ao máximo para Rhodan.

Enquanto Roster abria a saída de emergência da fortaleza e a atenção de Tatiana se concentrava na nova tarefa, o Supercrânio transmitiu comandos pós-hipnóticos aos seus mutantes e fechou-lhes o cérebro por meio de um bloqueio psicológico. Sabia que a ruptura desses bloqueios era apenas uma questão de tempo, mas isso aumentaria sua vantagem na fuga. E bem que precisaria dessa vantagem.

Não hesitou mais.

Fechou-se psiquicamente do mundo exterior e providenciou para que nenhum telepata pudesse seguir sua pista. Era bem verdade que assim perderia toda orientação espiritual, mas já não estava interessado no que acontecesse dali em diante no seu reino. Tinha uma tarefa bem maior à sua frente.

Saiu da sala de comando em passos apressados e andou rapidamente pelo corredor. Ouviu passos e gritos atrás de si. Tiros soaram nos corredores, e alguém berrou um comando. Em meio a tudo isso, ouvia-se o andar ritmado dos robôs arcônidas. As forças de Rhodan haviam penetrado na fortaleza do Supercrânio.

Clifford Monterny, tomado de raiva e desespero, cerrou o punho, soltou uma praga e continuou a correr. Entrou numa estreita passagem lateral e aumentou a velocidade da corrida. Devia ter pensado em algum meio de transporte subterrâneo. Mas quem poderia imaginar que seu esconderijo aparentemente inexpugnável viesse a cair diante do primeiro ataque? O Supercrânio não podia deixar de reconhecer que, depois de ter alcançado suas primeiras vitórias, subestimara o inimigo.

O corredor parecia não ter fim. Tal qual em todos os outros, as luzes de teto, instaladas de espaço em espaço, espalhavam uma débil luminosidade. Havia dezenas de corredores desse tipo, e os homens de Rhodan levariam bastante tempo em descobrir este.

Uma curva. Mais uma. Depois prosseguiu em linha reta.

O Supercrânio tivera bastante inteligência para instalar seu hangar a boa distância da sala de comando. Se esta fosse destruída numa ação bélica, o hangar permaneceria intacto. Além disso, ninguém desconfiaria de que sua saída de emergência se encontrava a mais de dois quilômetros da entrada principal.

O barulho atrás dele já havia cessado. Os passos do Supercrânio se tornaram mais lentos. Grossos pingos de suor reluziam em sua calva. Os traços contorcidos do rosto flácido e nada belo alisaram-se. Nos olhos assustados voltou a brilhar aquela fria superioridade. Apesar disso, Monterny estava satisfeito em saber que ninguém o via. Ele, o grande desconhecido, que era superior a qualquer mortal, estava fugindo.

O corredor terminou diante de uma parede lisa.

Os dedos trêmulos do Supercrânio apalparam a parede e encontraram uma pequena elevação. Uma ligeira pressão, e a parede deslizou para cima, deixando livre a passagem. Prosseguiu. A parede se fechou atrás dele.

Encontrava-se num pavilhão não muito grande, mas bastante alto. Quase lembrava o poço de uma mina. As paredes eram de rocha nua, cujas saliências haviam sido removidas às pressas. O teto de rocha, que tinha uns cem metros de altura, parecia fechar o hangar.

Bem no meio do gigantesco poço, o destróier roubado de Rhodan descansava sobre os suportes telescópicos.

Clifford Monterny suspirou aliviado. Agora nem mesmo Rhodan conseguiria impedir sua fuga. Se logo após a decolagem imprimisse à nave a aceleração máxima, ninguém o alcançaria.

Num pensamento fugaz, lembrou-se dos cientistas seqüestrados, que seriam encontrados e libertados por Rhodan. Isso pouco lhe importava, pois já se apoderara do seu saber. Foi graças a eles que conseguiu alcançar o controle perfeito da nave espacial que tinha diante de si.

Deu alguns passos, alcançou os suportes telescópicos e acionou o botão de controle da comporta de entrada. No mesmo instante a escotilha se abriu muitos metros acima dele e a escada deslizou em sua direção.

Enquanto isso acontecia, correu de volta e comprimiu outro botão, que estava embutido na parede de rocha. Lançou um olhar ansioso para o alto.

A parede de rocha maciça começou a se mover lá em cima. Deslocou-se para o lado, deixando livre o caminho da fuga. A luz do dia penetrou no hangar, fazendo com que empalidecessem as luzes que ali se encontravam acesas.

Clifford Monterny não perdeu mais nenhum segundo.

Com alguns saltos, colocou-se junto da escada que já havia completado seu movimento em direção ao solo, subiu por ela e desapareceu no interior da nave. A escotilha se fechou com um baque surdo.

Mais alguns segundos se passaram.

Esses segundos transformaram-se em minutos.

Na sala de máquinas da nave, os geradores de energia e os transformadores começaram a ressoar. O fluxo de partículas atravessou condutos de consideráveis espessuras, foi submetido a um processo de compressão e de aceleração nos propulsores e saiu dos bocais de popa sob a forma de impulso ultraluminosos com a velocidade da luz.

A rocha embaixo do destróier começou a ferver, enquanto os suportes telescópicos eram recolhidos. A nave disparou para o alto.

A energia que escapava para todos os lados com uma pressão tremenda atingiu as paredes do hangar e derreteu a rocha. A porta secreta foi destruída.

Era evidente que o Supercrânio pretendia utilizar esse caminho de fuga uma única vez.

Com uma aceleração louca, a nave subiu na vertical e, qual um gigantesco projétil, saiu do cano de cem metros. Dentro de poucos segundos, mergulhou e desapareceu no azul do céu.

 

Rhodan saiu da Good Hope-V, também conhecida por G-5, no momento exato em que Roster Deegan surgiu na superfície e, com os olhos inexpressivos, caminhou na direção de Tatiana, que se aproximou dele e procurou lhe restituir aos poucos sua própria vontade.

O Exército de Mutantes substituiu os robôs e os soldados e assumiu a vigilância. O telepata John Marshall permaneceu ao lado de Rhodan.

— Tatiana avisa que além de Deegan ainda há dez mutantes no interior da fortaleza. Um comando pós-hipnótico os obriga a cumprir as instruções do Supercrânio. Devem ser libertados individualmente da vontade de Monterny.

— E os prisioneiros do Supercrânio? Tatiana não descobriu nada?

— Descobriu sim, mas não tem certeza. Ao que parece, encontram-se na fortaleza de Monterny.

— Está bem — Rhodan lançou os olhos em torno. — Podemos iniciar a luta contra os mutantes. Eu mesmo cuidarei de Monterny.

Pegou o projetor mental e dirigiu-se a Tatiana e Deegan, que se defrontavam num duelo mudo. Perto deles a entrada do labirinto estava aberta. Havia degraus que conduziam para baixo.

— Irei com você — disse Marshall, permanecendo ao lado de Rhodan. — Sengu, Anne Sloane e Betty Toufry também. Sengu poderá nos prevenir quando surgir qualquer perigo, enquanto os dois telecinetas poderão deter qualquer atacante até que consigamos romper o bloqueio hipnótico.

Foi exatamente o que aconteceu nesse instante com Roster Deegan.

O americano sacudiu a cabeça, como se acabasse de emergir das profundezas da água e se sentisse livre da pressão. Pegou a mão de Tatiana.

— Ainda não compreendi tudo, mas começo a imaginar o que aconteceu. Conte comigo. E liberte os outros.

Rhodan se aproximou.

— Venha, Tatiana. Não podemos perder tempo. Ninguém sabe que diabrura o Supercrânio estará preparando.

Roster lançou um olhar perscrutador para Rhodan. Fitou-o prolongadamente nos olhos e estendeu-lhe a mão.

— O senhor é Rhodan; conheço-o pelos retratos. Deve estar interessado em aumentar os efetivos de seu Exército de Mutantes. Se for assim, saiba que no interior da fortaleza há dez homens que aguardam a hora de poder se considerar seus amigos. Mas ainda não estão livres.

Tatiana apontou para os projetores mentais que ela e Rhodan traziam na mão.

— Logo estarão.

Enquanto se dirigia para a sala de comando, encontrou-se com o primeiro telecineta.

Subitamente Rhodan sentiu-se atirado para o lado. Teve que estender as mãos para evitar que sua cabeça batesse contra a parede. Deixou-se escorregar para o chão, para subtrair-se por um instante à atenção daquele defensor da fortaleza. Depois disso dirigiu calmamente o projetor para a figura apagada que mal se destacava na luz do corredor. Martelou insistentemente seus comandos contrários ao bloqueio hipnótico, que não fez menção de ceder à resistência que subitamente lhe era oposta. Só quando André Noir acorreu às pressas e utilizou sua potência hipnótica para romper a barreira mental e implantar seus comandos no cérebro do mutante que o poder do Supercrânio se esfacelou.

Rhodan teve a cautela de lhe transmitir um comando pós-hipnótico através do projetor mental. Não havia tempo para explicações.

Continuaram a penetrar passo a passo no reino abandonado do Supercrânio. Os mutantes ainda dominados pelo mesmo opunham-lhe uma resistência encarniçada, mas a mesma acabou sendo vencida.

Incluindo Roster Deegan, dez mutantes haviam mudado de dono. Mas deviam ter sido onze.

Onde estava o outro?

Onde estava o Supercrânio?

Rhodan lançou os olhos em torno.

— Ras Tshubai.

A figura gigantesca do africano se aproximou.

— Sim.

— Deu busca em toda a fortaleza?

O teleportador levantou a mão, num gesto de insegurança.

— Não sei. Nesta toca de raposa há tantos corredores e salas que nunca se pode ter certeza de ter estado em todos os lugares. De qualquer maneira, encontrei a sala de comando. Está vazia. Não encontrei a menor pista do careca.

— E os cientistas?

Antes que Ras pudesse responder, Sengu, o espia, disse:

— Estão presos num calabouço. Trata-se de um complexo com compartimentos residenciais. Há um elevador no qual se pode descer ao lugar em que se encontram.

O japonês olhou em direção inclinada para o chão. Quem imaginasse que enxergava perfeitamente através das massas rochosas não conseguiria evitar um calafrio.

— Alguém deve tê-los encontrado. Vejo um vulto que está mexendo na porta da ala dos prisioneiros. Não o reconheço.

Betty Toufry, que era telepata e telecineta ao mesmo tempo, se aproximou:

— Estou captando os pensamentos de um homem — cochichou, lançando um olhar inseguro na mesma direção de Sengu. — São débeis e confusos. Quer matar.

Ras Tshubai se dirigiu a Sengu.

— Descreva a situação do calabouço, para que possa interceptar o homem antes que faça alguma tolice. Vamos logo!

Rhodan manteve-se imóvel, pois não podia fazer nada. Deixou livres as mãos dos telepatas. Não via nada, não ouvia nada, não sentia nada. Não era um mutante, era apenas um homem perfeitamente normal, se o abstrairmos de certas qualidades que nada têm que ver com qualquer modificação da estrutura cerebral.

Ras Tshubai prestou atenção às breves indicações de posição fornecidas por Sengu, acenou com a cabeça... e desapareceu.

Os que ficaram sentiram o ligeiro deslocamento de ar provocado pela massa aérea que penetrou no vácuo formado subitamente com a desmaterialização do teleportador. Nesse mesmo instante o corpo de Ras Tshubai lhe era restituído no lugar desejado; ele voltava a se materializar.

Rhodan resolveu aproveitar a pausa forçada.

— Tatiana e Marshall, venham comigo. Precisamos descobrir o que é feito do Supercrânio. Não posso imaginar que esteja escondido em algum canto e fique parado até que o encontremos.

— Nesta fortaleza há dezenas de corredores, e ninguém de nós viu todos eles — ponderou a russa. — Só sei que um deles leva a um hangar aberto na rocha, onde está guardado um dos destróieres roubados. Quem sabe...

— É claro que só pode ser isso — disse Rhodan com certa impaciência. — Você devia ter dito logo. Tenho certeza de que o Supercrânio é bastante inteligente para perceber sua derrota no momento adequado. Você diz que o hangar foi aberto na rocha?

— Isso mesmo.

— Só pode ficar a oeste daqui. Não deve ser difícil encontrar o corredor que leva para lá. Venha comigo.

A iluminação ainda estava funcionando. Rhodan correu a frente pelos corredores vazios; Tatiana e Marshall seguiram-no de perto. As paredes de rocha refletiam o eco abafado e cavo de seus passos.

Atingiram um ponto em que o corredor se bifurcava. Rhodan lançou um olhar ligeiro para a bússola embutida em seu relógio e escolheu o caminho que seguia pela esquerda.

— Este corredor leva exatamente para o oeste. Talvez seja ele.

Não esperou a resposta, mas continuou a correr.

De repente a rocha começou a vibrar mais à frente. O chão tremia sob seus pés, como se os efeitos de um terremoto distante se fizessem sentir até ali.

Rhodan parou assustado e Marshall empalideceu. Tatiana baixou a mão que segurava o projetor mental.

— O que foi isso? — cochichou com a voz quase inaudível.

Rhodan cerrou o punho.

— Foi o destróier. De qualquer maneira já sabemos que o corredor é este mesmo. Chegamos tarde. Talvez o pessoal que está lá em cima cuide melhor. Vamos ao menos dar uma olhada naquilo.

A dez metros do ponto em que o corredor terminava, foram atingidos, subitamente, por uma onda de calor seco, que os impediu de prosseguir. À luz das lâmpadas do teto, Rhodan viu pingos de rocha endurecidos. A idéia atingiu-o com a força de um raio: o hangar ficava atrás dessa parede.

— O calor liberado pela decolagem do destróier não pôde se espalhar e derreteu as paredes. Não acredito que possamos atingir o hangar por aqui.

Refletiu por alguns segundos e disse em tom resignado:

— Isso não nos adiantaria nada. A esta hora o Supercrânio já está correndo pelo espaço. Só podemos fazer votos de que alguém tenha percebido sua fuga.

— Devíamos avisar a Stardust-III — sugeriu Marshall.

Um sorriso amargo se esboçou no rosto de Rhodan.

— Mesmo para isso seria tarde, Marshall. Mas não se preocupe. O Supercrânio não nos escapará por muito tempo. Afinal, temos algumas pistas.

Diante dos olhos de Rhodan surgiu o quadro de solidão, formado por um deserto vermelho atravessado por largas faixas de verde e aquecido escassamente por um sol distante.

 

Pete Maros era mexicano, mas não tinha quase nada em comum com seus antepassados.

Mas herdara uma coisa desses antepassados: seu temperamento impulsivo, que formava um contraste marcante com a atitude fleumática do inglês Ray Gall. A função principal de Ray era a de telegrafista do destróier Z-82 que, depois de reparado, passou a ser utilizado por Rhodan.

O comandante da nave era Julian Tifflor, que, por enquanto, ainda ocupava o posto de cadete da Academia Espacial.

O grupo de nove destróieres se espalhara e se mantinha a menos de trinta mil metros de altura sobre o Estado de Utah. Cinqüenta mil metros acima dele, Bell procurava se consolar com o fato de que era de certa forma o quartel-general de Perry Rhodan, e não podia colocar a Stardust-III em perigo.

As idéias de Tiff eram semelhantes às de Bell.

— Aqui estamos nós pendurados acima das nuvens, e nem podemos ver o que está acontecendo lá embaixo. Até mesmo o contato pelo rádio foi interrompido. Consegue ouvir alguma coisa, Pete?

O mecânico apontou para a porta da cabina de rádio.

— Quem está de serviço é Ray. Posso dar uma olhada.

O inglês mantinha-se imóvel diante do aparelho mudo e parecia cochilar. A tela, através da qual se estabelecia contato direto com a Stardust-III, estava apagada.

— Tudo tranqüilo? — perguntou Pete, demonstrando uma preocupação excessiva.

Ray levantou a cabeça.

— Quando houver alguma novidade, não deixarei de avisar — resmungou e voltou a fechar os olhos.

Pete sentiu-se aliviado ao constatar que o telegrafista ficava, ao menos, com os ouvidos abertos e voltou à sala de comando.

Nesse meio tempo, Tiff havia ligado o ampliador de imagem e dirigiu a câmera para a superfície da Terra. Não havia nuvens que impedissem a visão, e poucos segundos depois o Estado de Utah surgiu na tela como um mapa. A ampliação começou a aumentar automaticamente. O mapa se desmanchou, e quando a imagem voltou a se tornar nítida, apresentava um setor menor em igual dimensão. O jogo repetiu-se até que a mancha redonda, que representava a G-5 pousada, surgisse nitidamente ao lado da casa destruída.

Tiff lembrou-se das instruções de Rhodan. Não deviam se preocupar com os acontecimentos que se desenrolassem em redor da G-5. Cabia-lhes cuidar das áreas adjacentes e do espaço aéreo que cobria o Estado de Utah.

Tiff suspirou. Paciência, não lhe restava outra coisa, embora ninguém pudesse controlar o que fazia. De qualquer maneira...

Fez a objetiva da câmera deslizar sobre o terreno. Deslocou-a para o oeste, em direção à cadeia de montanhas. Foi uma paisagem nada agradável que se estendeu diante de seus olhos. Nenhum homem sensato pensaria em fixar sua residência por ali. Rochas pontudas sobressaíam por entre matas ralas, formando grotas íngremes e profundas.

O formato regular da montanha logo lhe chamou a atenção.

Num platô relativamente baixo, coberto por uma vegetação rasteira e cercada de rochas íngremes, havia uma pequena montanha solitária. Parecia ter chegado ali por acaso. Era feita em grande parte de pedras soltas, mas em certos lugares aflorava a terra fértil. Apesar disso nenhuma árvore crescia em sua superfície. Apenas alguns vestígios de grama rala davam mostras da fertilidade daquele solo.

O pé da montanha tinha o formato de meia-lua; o lado oposto era côncavo.

Alguma coisa dava a impressão de se tratar de uma montanha artificial; talvez tivesse sido formada com os materiais retirados da escavação de uma galeria.

Subitamente Tiff despertou, esquecendo-se do que significava o tédio e a desilusão. Durante a conferência realizada antes do ataque, Rhodan afirmara que a área ao redor da fazenda do Supercrânio era desabitada. E agora descobria, a menos de dois quilômetros da casa destruída, os vestígios de uma escavação recente.

Pete aproximou-se e olhou por cima de seu ombro.

— Alguém andou procurando minério por aí — constatou.

— E tirou toda essa sujeira da terra? — perguntou Tiff.

— Naturalmente. Acredito que se trate de uma galeria secundária da mina que deve ter existido por ali.

— Quando foi isso?

— As últimas escavações neste local foram realizadas há vinte anos — disse Pete, lembrando-se das aulas recebidas em Terrânia. — Mas não foram compensadoras, e por isso decidiu-se suspendê-las.

— Ah! — disse Tiff em tom de triunfo. Viu suas suposições se confirmarem. — Tem alguma explicação para o fato de que nesses dois decênios nem uma moita cresceu no montão de resíduos?

Pete calou-se, perplexo, e examinou mais detidamente a imagem projetada na tela. Depois acenou com a cabeça.

— Isso é estranho.

— Acha que é? Pois também sou da mesma opinião. Tenho certeza de que há pouco tempo...

Subitamente calou-se. Enquanto falava não tirara os olhos do estranho monte de entulho. Como que por acaso seu olhar caiu sobre o platô que o cercava e registrou uma alteração.

— Veja! A parte interna da montanha.

A rocha natural moveu-se junto à montanha suspeita. Um pedaço circular de cerca de trinta metros de diâmetro deslizou lentamente. Por baixo dele surgiu uma abertura negra, em cujo fundo brilhava uma luz mortiça.

Era uma nave espacial! Um destróier do mesmo tipo do seu, e idêntico ao que o atacara junto a Marte.

A aceleração da nave era tamanha que dentro de poucos segundos atingiu a mesma altura da de Tiff e desapareceu vertiginosamente no céu.

Mas finalmente Tiff reagiu.

— Ray, entre em contato com a Stardust-III e avise Reginald Bell. Vamos perseguir essa nave.

Deu uma pancada na chave de partida, colocando-a na aceleração máxima. Os campos gravitacionais foram ativados automaticamente para neutralizar a súbita pressão.

— Pete, ocupe o canhão neutrônico. Ray ficará, por cautela, junto ao canhão de popa, assim que tiver transmitido sua mensagem.

A nave fugitiva já havia mergulhado entre as estrelas. Tiff procurou uns cinco minutos com o binóculo antes de localizá-la. Como fosse do mesmo tipo da Z-82, a distância entre as duas naves dificilmente poderia ser reduzida. Mas era perfeitamente possível perseguir o destróier e conservar o mesmo intervalo, assim que ambas as naves tivessem alcançado a velocidade máxima.

A Terra foi recuando depressa, transformando-se num globo verde-azulado. Ray saiu da sala de telegrafia e sentou na poltrona junto a Tiff.

— Que surpresa! — exclamou. — Reginald Bell praguejou terrivelmente. Mandou que procurássemos descobrir o destino da nave. Talvez seja o Supercrânio que está fugindo. Assim que Rhodan confirmar sua suspeita, ele nos seguirá. Pediu que mantivéssemos nosso rádio ligado para recepção.

Tiff não tirou os olhos da tela.

A mancha conservava o mesmo tamanho. Os números projetados na parte inferior da tela indicavam que o fugitivo se encontrava a menos de dois mil quilômetros da Z-82. Continuava a acelerar e dali a pouco atingiria um quarto da velocidade da luz.

Tiff olhou pela janela. Mais uma vez tinha diante de si o espaço infinito com suas maravilhas e perigos. E lá adiante um pequenino ponto luminoso corria vertiginosamente por entre os milhares de estrelas, em busca de um destino longínquo e desconhecido.

Sentiu um choque quando voltou a olhar para a tela.

O tamanho da mancha aumentara.

A outra nave encontrava-se a apenas quinhentos quilômetros.

Reduzira a aceleração.

 

Ras Tshubai materializou-se a menos de um metro do mutante desconhecido, que se virou assustado, encarando o recém-vindo como se o mesmo fosse um fantasma.

Era um japonês; Ras percebeu-o à primeira vista. Tratava-se de um homem ainda jovem; empunhava uma pistola automática na mão direita, que pendia molemente ao longo do corpo.

Ras teve a impressão de que o homem que se encontrava a seu lado estava aguardando novas instruções, que não chegavam. Encontrava-se sob influência hipnótica, e esse estado privava-o da liberdade de movimentos e de decisão.

A dois metros dali havia uma porta, resguardada por fechaduras magnéticas. Ras sabia que atrás dela ficava a residência dos cientistas aprisionados.

Ras deu dois passos rápidos e tirou a arma do japonês. Só a surpresa inaudita do outro livrou-o do uso de violência.

Depois de se apoderar da pistola automática, Ras enfiou-a entre o cinto e o uniforme.

— Abra a porta que leva ao alojamento dos cientistas — ordenou ao japonês.

Nesse instante ouviu um ruído às suas costas. Passos e vozes. Olhou para trás e, na luz débil das lâmpadas, reconheceu Rhodan e Tatiana. Deviam ter encontrado o elevador e descido por ele.

Ras suspirou aliviado. Levantou o braço e fez sinal para que se aproximassem. Nesse instante, o comando pós-hipnótico do Supercrânio venceu a barreira que se opunha a ele. Ras viu que Rhodan e Tatiana levantaram os projetores mentais e dirigiram-nos sobre ele. Recebeu uma ordem absurda, a de não realizar qualquer ataque contra Ras Tshubai, isto é, contra si mesmo.

É claro que esse comando era dirigido ao japonês, que se dispunha a investir contra o africano. Estacou em meio ao movimento, pôs a mão na cabeça num gesto de pavor, e depois, vencido pelo esforço excessivo do cérebro martirizado, caiu lentamente ao solo, desmaiado.

Quando a pressão na cabeça de Ras Tshubai cessou, ele se virou; viu que o japonês jazia imóvel. Rhodan e Tatiana se aproximaram.

— Dois projetores mentais de uma só vez são uma dose um pouco forte — explicou Rhodan em tom indiferente. — Se nos tivéssemos lembrado disso antes, talvez o Supercrânio não tivesse escapado. Onde estão os prisioneiros?

Ras apontou para a pesada porta de ferro.

— Ali.

E... desapareceu. Ressurgiu em menos de dez segundos. Sorriu; parecia um tanto confuso. Rhodan lançou-lhe um olhar ansioso e perguntou em tom preocupado:

— O que é isso, Ras? Os prisioneiros não estão mais lá?

— Estão, sim — tranqüilizou-o o africano e sacudiu a cabeça. — Mas esses cientistas são gente muito estranha. Materializei-me no laboratório de um físico. Acredita que o sujeito se assustou quando surgi ao lado dele que nem um fantasma? Nada disso. Mal levantou os olhos quando, de uma hora para outra, apareci perto dele, olhando-o enquanto estudava seus projetos. Limitou-se a fazer um gesto com a mão, como se quisesse me espantar, e resmungou, dizendo que voltasse dentro de dez minutos.

Rhodan sorriu e dirigiu-se a Tatiana.

— Aposto que foi Glenner, o físico de fama mundial.

Deu um aceno de cabeça em direção a Ras.

— Abra a porta. Não temos tempo para esperar por Glenner. Poderá continuar seus trabalhos em Terrânia.

Ras se dirigiu à porta.

 

A distância entre o destróier Z-82 e a nave fugitiva foi diminuindo com uma relativa rapidez. Já se encontravam a mais de treze milhões de quilômetros da Terra, e a distância crescia constantemente. A velocidade permanecia inalterada. Uma mensagem de Bell informou-os de que a Stardust-III recebera ordem para também iniciar a perseguição. Ao menos, deviam constatar para onde o Supercrânio pretendia fugir.

Pete parecia pensativo.

— Se quisermos liquidar o monstro sozinhos, devemos nos apressar. Senão Bell nos passará para trás, e a glória será dele. Eu o conheço.

Tiff lançou um olhar de censura para o mexicano.

— Se eu fosse você, teria vergonha de conceber uma idéia dessas. O Supercrânio é um inimigo do mundo, e pouco importa quem o liquide; o importante é que seja liquidado. Ray procure entrar em contato com a nave que está à nossa frente.

— Há uma ligação direta com a sala de telegrafia. O senhor pode tentar, se quiser.

Tiff, satisfeito, efetuou as respectivas ligações. Chamou o Supercrânio pela faixa geral de telecomunicação e passou à recepção intensiva. Menos de dez segundos depois o rosto do inimigo do mundo surgiu na tela. A calva reluzia fortemente e cheia de satisfação. Os olhos, que pareciam acolchoados em meio à gordura, emitiam um brilho traiçoeiro e ameaçador. Demonstrou um interesse visível por seus perseguidores. Com toda calma examinou-os um por um, como se quisesse gravar seus rostos para todos os tempos.

Tiff sentiu que aquele olhar gelado lhe provocava um calafrio na espinha. Imaginou que com seus companheiros estaria acontecendo a mesma coisa.

— O que deseja? — perguntou o Supercrânio com uma calma apavorante, da qual não se poderia deduzir que se considerava derrotado.

Tiff procurou se controlar.

— Desista da luta, Clifford Monterny — disse. — Sua fortaleza em Utah caiu e seus mutantes se encontram sob o poder de Rhodan. Não tem a menor chance. A qualquer momento poderá surgir o couraçado da Terceira Potência.

Os olhos gelados pareciam esboçar um sorriso ameaçador.

— Você é um idiota, meu jovem. Acha que deixei que se aproximasse para ouvir um sermão? Acreditou realmente que iria me entregar a você? Subestima minha pessoa e minhas intenções, meu caro. É possível que ainda não saiba, mas vou lhe revelar um segredo. A comunicação visual que estamos mantendo permitiu que eu captasse o modelo de suas ondas cerebrais. Seu nome é Julian Tifflor, não é? E seus companheiros são Pete Maros e Ray Gall. Pois bem; já devem ter uma idéia do que lhes acontecerá. Preciso apenas de uma pequena vantagem. Vocês vão deter o couraçado por algum tempo. Isso me bastará para encontrar um esconderijo no sistema solar. Peço-lhe que dê um recado a Rhodan: um belo dia voltarei; e não voltarei sozinho.

A mão de Tiff projetou-se para a frente. A tela se apagou de repente.

No mesmo instante um punho de ferro parecia demolir sua consciência.

 

Bell e o major Nyssen, comandante dos caças espaciais estacionados a bordo da Stardust-III, encontravam-se na sala de comando da gigantesca nave esférica, olhando atentamente para a tela amplificadora.

Nyssen disse com a voz rouca:

— Esse Supercrânio é um sujeito estranho. Por que está desacelerando?

Bell não tirou os olhos da tela, que registrava ocorrências bastante estranhas. A nave do Supercrânio voltou a acelerar e disparou pelo espaço. A proa apontava para o círculo de asteróides, ignorando o planeta Marte, que se encontrava à sua direita.

Enquanto isso o destróier Z-82 continuava a desacelerar e, descrevendo uma curva ampla, tomou o rumo contrário. A proa apontava para a Stardust-III, que vinha da Terra.

— Será que Tifflor desistiu? — resmungou Bell, espantado e estreitou os olhos. — Isso não combina com a idéia que faço dele.

E o Supercrânio não pode estar atrás dele. Não conhece Tifflor, nem qualquer dos outros dois homens que se encontram a bordo da Z-82.

A Stardust-III não teria a menor dificuldade em efetuar um pequeno salto espacial para alcançar o Supercrânio. Acontece que num trajeto curto não havia possibilidade de fixar com precisão a distância que seria percorrida. E no espaço normal o couraçado dos arcônidas também não ultrapassava a velocidade da luz. Mas Bell acreditava que já conhecia o lugar para onde o Supercrânio pretendia fugir, e isso tranqüilizou-o um pouco.

Por enquanto suas preocupações diziam respeito à Z-82 e aos seus tripulantes.

O destróier se aproximou da Stardust-III numa velocidade vertiginosa e, a uma distância de cinqüenta quilômetros, abriu fogo com o canhão de impulsos. Bell reduzira a velocidade de sua nave, para ter melhores possibilidades de manobra. O campo energético foi ativado.

Os raios despejados pelo canhão do destróier bateram no campo energético e foram desviados para o lado, perdendo-se no espaço. Foram refletidos no mesmo ângulo em que se verificou o impacto. Pouco antes de atingir a Stardust-III, a Z-82 subiu e, depois de descrever uma curva ampla, repetiu a manobra absurda.

Bell sacudiu a cabeça e, dirigindo-se ao major Nyssen, disse:

— É claro que temos de nos livrar deles, pois do contrário não teremos sossego. Não posso imaginar como o Supercrânio conseguiu submetê-los ao seu controle, mas não há dúvida de que conseguiu. Enquanto não houver um choque que liberte Tifflor da influência a que está sujeito, ele representará um perigo constante. Se o deixarmos, voltará à Terra e atacará qualquer nave nossa que se coloque à sua frente. É bem possível que alguém que não desconfiasse de nada fosse atingido pela desgraça. O Supercrânio contou com isso mesmo. Sabe que não deixaremos Tiff na mão, e com isso daremos a ele mesmo, isto é, a Monterny, a oportunidade de se colocar em segurança. Até aí muito bem. Só gostaria de saber como poderemos fazer com que Tiff volte a agir razoavelmente.

— O projetor mental — resmungou Nyssen. — Tente.

— Teremos poucas probabilidades de êxito, meu caro. Mesmo a uma distância muito reduzida torna-se difícil libertar alguém de um bloqueio hipnótico. E, no nosso caso, os raios teriam de atravessar as paredes de duas naves espaciais e dois campos energéticos. Será inútil; não tenha menor dúvida.

— Que tal se déssemos um tiro na sua popa? — sugeriu Nyssen. — Enquanto permanecer na sala de comando, nada poderá lhe acontecer. Mas ficará privado da fonte de energia de que precisa para nos atacar. Bell acenou lentamente com a cabeça.

— Nada mau para um caso de emergência — reconheceu e refletiu desesperadamente para encontrar uma solução melhor. Não havia dúvida de que a destruição de um destróier não representava uma perda irreparável e compensava amplamente a vida de três seres humanos. Mas se isso pudesse ser evitado, seria bem melhor.

Bell cocou a cabeça.

— Quando é que você se lembrará de pedir auxílio a mim? — piou uma voz que quase chegava a ser encantadora.

O rato-castor estava sentado sobre as patas traseiras, apoiando-se no rabo. Nos olhos fiéis do animal havia tanta expectativa e dedicação que Bell teve vontade de se abaixar e afagar o bichinho. Mas controlou seus impulsos.

Seu rosto assumiu a expressão severa de um superior.

— Que auxílio poderíamos esperar de você? — perguntou.

Num gesto de lástima, Gucky sacudiu a cabeça e sorriu.

— Poderia brincar um pouco.

Bell sabia qual era a brincadeira de Gucky. O rato-castor era um telecineta, e sua brincadeira consistia no uso das capacidades sobrenaturais que possuía. Nas fases iniciais de sua amizade, isso levou a muitos equívocos e, segundo uma recordação instantânea de Bell, até mesmo os controles direcionais da Stardust-III tornaram-se vítimas da paixão lúdica de Gucky: a nave foi atirada por alguns anos-luz através do hiperespaço.

— Brincar? — resmungou Bell. Parecia pensativo. Um plano ainda vago começou a despontar em seu cérebro. — Se você soubesse respeitar as regras do jogo, poderíamos falar a respeito. Você sabe perfeitamente que Rhodan lhe proibiu que, quando não esteja autorizado expressamente...

— Sei disso! — Gucky levantou a pata num gesto dramático. — Acontece que sou o único mutante que se encontra a bordo da nave; sou telecineta e teleportador ao mesmo tempo. Sou a única pessoa que pode reduzir o destróier à inatividade sem destruí-lo.

Nyssen acenou animadamente com a cabeça.

— Gucky tem razão; não há dúvida — acudiu ao rato-castor. — Devia imobilizar o reator.

— Está bem — disse Bell. — Gucky, peça ao major Nyssen que explique como se imobiliza um reator.

— No fundo é bastante simples — disse o comandante dos caças espaciais. — Basta que introduzamos a parede isolatória entre os dois elementos ativadores. O fenômeno pode ser dirigido e regulado a partir da sala de comando. Portanto, não nos adiantará interromper simplesmente a comunicação entre o reator e a sala de comando. Tifflor é muito inteligente; saberá corrigir o defeito em pouco tempo. Mas se realizarmos uma modificação no reator, que não possa ser influenciada do lado de fora, estará reduzido à impotência. O suprimento de energia do destróier terá sido eliminado. A nave não poderá ser manobrada.

— E as baterias de emergência? — interveio Bell.

— Dão apenas para a iluminação e para as comunicações radiofônicas normais. Não lhe servirão para muita coisa.

Gucky aproximou-se e, olhando pela escotilha, viu o destróier que mais uma vez se aproximava vertiginosamente, antecedido pelos raios mortais despejados pelo canhão de impulsos. Sacudiu a cabecinha, num gesto que quase chegava a ser humano.

— Preciso conhecer a situação exata do reator — chiou.

Nyssen pegou uma folha de papel e um lápis e esboçou um desenho. Dele se concluía que o reator ficava no terço traseiro da nave. Pegou uma segunda folha para detalhar o reator e sua estrutura.

— Neste compartimento ficam os dois elementos, Gucky. Aqui está a parede divisória. Ela é sustentada por meio de campos magnéticos pequenos, mas muito intensos. Caso suas forças sejam suficientes, você poderá isolá-la desses campos. Depois disso bastará torcer ou quebrar um dos pólos. E não haverá força do mundo que consiga levantar a parede divisória para ativar o reator.

Gucky exibiu seu dente roedor.

— A não ser eu — chiou confiante de si mesmo e acrescentou: — Hei de conseguir. Deixem-me algum tempo para que possa me concentrar. Não quero que ninguém me perturbe.

Bell reprimiu uma resposta. Seus olhos estavam presos à tela, onde se destacava a imagem da Z-82, bastante ampliada.

Tiff estava lançando outro ataque; aproximava-se numa velocidade tresloucada.

 

Uma idéia martelava continuamente o cérebro de Tiff: aquela esfera de oitocentos metros de diâmetro era sua inimiga. Teria que atacá-la sem cessar, devia detê-la até que o Supercrânio se encontrasse em segurança.

Tiff raciocinava perfeitamente e, às vezes, chegava a refletir sobre o motivo por que, de uma hora para outra, Rhodan se transformara em seu inimigo e o Supercrânio num aliado. Mas não encontrou nenhuma resposta, e prosseguiu nos seus ataques.

Com uma obediência mecânica Pete e Ray controlavam as armas de bordo, despejando raios do desintegrador e do canhão de impulsos contra a Stardust-III, que se mantinha tranqüila na imensidão do espaço. Não se deram conta do fato de que um único impulso energético despejado pela nave poderia romper seus campos protetores e destruí-los.

Passaram ao vigésimo ataque.

A Z-82 descreveu uma curva e, sem diminuir a velocidade, precipitou-se sobre o inimigo. Sentado em sua torre, Pete comprimiu os botões que acionavam as peças de artilharia. Ray, sentado junto ao radiador de popa, aguardava que o destróier voltasse a se afastar.

Mas dessa vez não aconteceu nada.

A Z-82 prosseguiu em linha reta em direção à Stardust-III, sem que os canhões fossem ativados.

Tiff demorou um pouco a perceber a alteração, pois sua atenção estava concentrada totalmente na tarefa de se aproximar o mais possível da nave esférica, para aumentar o efeito dos raios mortíferos. No último instante procurou ativar os jatos direcionais, para passar o mais perto possível da Stardust-III, dando oportunidade a Ray para despejar o fogo de seu canhão sobre o inimigo.

Empurrou a alavanca para a direita, mas a Z-82 manteve o mesmo curso.

A nave esguia penetrou no campo energético do couraçado, atingiu-o num ângulo bastante aberto e prosseguiu quase sem nenhuma alteração de rota. O impacto conferiu-lhe um ligeiro movimento.

O suprimento de energia fora eliminado por completo. Os campos gravitacionais destinados à neutralização de pressões deixaram de existir. O impacto contra o campo energético atirou Tiff para fora do assento. Seu corpo cruzou o ar da sala de comando. Não conseguiu impedir que sua cabeça batesse contra um suporte. Por um instante perdeu a consciência, mas ainda pôde constatar, espantado, que perdera o peso.

Pete e Ray tiveram um destino semelhante. De uma hora para outra o mexicano estava pendurado no teto, de cabeça para baixo, e tentou em vão se aproximar dos controles do canhão, para prosseguir no bombardeio insensato. Ray teve menos sorte. Caiu de lado e bateu com a cabeça contra o painel de controle do radiador de nêutrons. Logo perdeu a consciência.

 

Bell seguiu a nave de Tifflor com os olhos. Depois se dirigiu ao rato-castor, que já havia regressado.

Nada revelava o esforço que tivera que fazer, muito embora se tivesse teleportado para a sala do reator da Z-82 e exercido uma atividade telecinética.

O animal passou a mão pelo nariz e bocejou. De repente soltou um chiado, sorriu satisfeito e exibiu seu único dente roedor.

— Não foi nada fácil. Gostaria de saber quem inventou esse dispositivo de separação. Mal consegui movê-lo.

— Mas conseguiu — exultou Bell e abaixou-se para afagar o pêlo de seu pequeno amigo. — Nosso colega Tiff ficou sem energia. Se não o pescarmos no espaço, acabará visitando o planeta Plutão.

O major Nyssen apontou para a tela; parecia preocupado.

— Está na hora.

— Vamos ancorar a nave, tirar os pobres-diabos de lá e submetê-los ao tratamento do Dr. Manoli. Este lhes ensinará quem é seu mestre e amigo.

Acelerando ao máximo, a nave esférica saiu em disparada atrás do destróier desgovernado.

 

Allan D. Mercant não gostava de sair de seu quartel-general. Mas o convite de ir a Terrânia, formulado por Rhodan, tinha um tom oficial e insistente. Além disso, parecia que não era o único convidado; mais tarde tal suposição se confirmaria.

Em poucas horas o avião a jato levou-o para a Ásia. Quando, no aeroporto de Terrânia, saía do avião com as pernas endurecidas e percorria a distância que o separava da barreira, outro avião pousou. Cinco minutos depois, reconheceu o passageiro solitário: era o presidente da Federação Asiática. Também ele não foi recepcionado por qualquer delegação. Só e um pouco espantado, caminhou em direção a Mercant.

— O senhor por aqui? — murmurou, enquanto seu espanto crescia. Estreitou os olhos e estendeu a mão para o chefe da Federação de Defesa da Terra. — Também veio a convite?

— Sem isso não teria vindo — respondeu Mercant e apertou a mão de seu interlocutor. — Não quis perder as revelações importantes que Rhodan deverá fazer.

O presidente da Federação Asiática, um chinês alto, robusto e de traços inteligentes, sacudiu a cabeça.

— Nem se deram ao trabalho de nos receber. Será que teremos que andar até Terrânia?

— Lá fora não faltam táxis — observou Mercant, recordando um fato que observara por ocasião de sua última visita à capital da Terceira Potência. — É possível que Rhodan não queira chamar a atenção de ninguém.

O chinês sacudiu os ombros, apertou a estreita pasta de diplomata embaixo do braço e caminhou em direção à saída.

— Pois venha comigo. Espero que tenha dinheiro trocado para pagar o táxi.

— Aqui os táxis não custam nada — tranqüilizou-o Mercant e esboçou um sorriso condescendente. — O que mais me impressiona é que, em comparação com as outras vezes, o movimento no aeroporto é bastante reduzido. Não se vê quase ninguém.

Na barreira estava sentado um robô arcônida de serviço, que os deixou passar sem submetê-los a qualquer controle. Mercant supôs que o modelo de ondas cerebrais dos dois homens estivesse registrado em sua memória positrônica. Isso significava que todos os detalhes de sua recepção haviam sido preparados.

Se fosse assim, por que não haveria nenhuma delegação para recepcioná-los, como era usual nas visitas de estadistas?

Resolveu não pensar mais no assunto. Rhodan nunca agia sem um motivo. Sua conduta devia inspirar-se em razões poderosas. Enquanto atravessava a praça fronteira ao aeroporto, em direção aos táxis, rememorou o texto do convite recebido de Rhodan. Fora concebido em termos bastante lacônicos:

Allan D. Mercant, chefe da F.D.T., é convidado a participar de uma sessão extraordinária dos representantes da Terceira Potência e dos outros blocos da Terra. Trata-se do esclarecimento de questões de importância vital para todos.

Perry Rhodan Presidente da Terceira Potência.

Um africano abriu a porta do táxi, esperou até que tivessem entrado e levou-os pelo caminho mais rápido à metrópole moderna. As tentativas de Mercant, que pretendia entrar em conversa com o motorista, falharam diante do mutismo crônico deste. Além disso, o motorista fez de conta que nem sabia que estava transportando passageiros tão importantes.

Mercant logo esqueceu seus problemas. Tinha debaixo de seus pés a cidade mais moderna do mundo, com os arranha-céus que pareciam tocar as nuvens, as ruas largas e as imensas áreas verdes. O táxi voador passou a pequena altura por cima da praça de concreto no centro da cidade, em torno da qual se agrupavam as repartições do governo da Terceira Potência.

A praça não estava vazia.

Mercant ficou perplexo ao notar que um verdadeiro exército estava formado na mesma. Lá de cima não podia reconhecer os detalhes, mas percebeu alguma coisa. Aquilo não era um simples desfile de soldados. Viam-se peças de artilharia pesada montadas nos respectivos veículos. Os blindados com o revestimento impenetrável de arconita rolavam por entre elas.

O presidente da Federação Asiática estreitou os olhos e contemplou o espetáculo militar. Pigarreou e, dirigindo-se a Mercant, disse:

— Será que isso tem alguma coisa a ver com nossa conferência?

Mercant deu de ombros.

— Não sei, mas talvez Rhodan tenha a gentileza de explicar a finalidade do espetáculo. Talvez se trate de um simples desfile em homenagem aos homens que derrotaram o Supercrânio.

O chinês esboçou um ar incrédulo.

— Pelo que sei, o Supercrânio conseguiu fugir. Rhodan apenas conseguiu ocupar um de seus esconderijos.

Mercant sentiu que o aborrecimento ameaçava tomar conta de seu espírito.

— Por que diz apenas? Afinal, Rhodan conseguiu libertar doze mutantes da influência desse homem terrível. Até chego a recear que o senhor não conheça o perigo em que nos encontrávamos. Devemos ser muito gratos a Rhodan, porque ele conseguiu quebrar o poder do Supercrânio.

— Acho que, no fundo, o tal do Supercrânio foi inimigo de Rhodan, não nosso — ponderou o presidente da Federação Asiática.

Mercant percebeu que o táxi descia e preparava-se para pousar. Resolveu mudar de assunto.

— É bem possível que daqui a pouco saibamos mais alguma coisa. Pelo que vê, estamos pousando no heliporto do governo. Isso demonstra que o piloto sabe perfeitamente quem são os passageiros que está transportando. Deixemos que eles nos surpreendam.

Pousaram numa pequena área circular coberta de areia branca. Ali se tornou patente que estavam sendo esperados. Reginald Bell, acompanhado de dois oficiais, aproximou-se em atitude quase solene. Cumprimentou em primeiro lugar o presidente da Federação Asiática, e depois, com um olhar que suplicava compreensão, dirigiu-se a Mercant.

— Cavalheiros, os senhores estão atrasados. Os outros hóspedes já estão impacientes à sua espera. Queiram me acompanhar.

Não era uma pergunta, mas uma intimação. Antes que Mercant pudesse dizer qualquer coisa, Bell girou sobre os calcanhares e pôs-se a caminhar à sua frente. Cada um dos oficiais colocou-se de um lado dos hóspedes e depois seguiram seu ministro da segurança.

Mercant não deixou de lançar um rápido olhar para as tropas formadas na praça central. Seria difícil deixar de notar essa demonstração de poderio.

Sentiu um choque ao perceber que os soldados na verdade não eram soldados. Eram robôs reluzentes, armados com pesados radiadores de impulsos. Também as peças de artilharia estavam ocupadas por robôs. Não se via uma única pessoa.

O estranho silêncio e a imobilidade daquele exército invencível impressionaram Mercant a tal ponto que seguiu o homem que caminhava à sua frente com uma sensação de desamparo. Fazia votos de que também o presidente da Federação Asiática sentisse a ameaça implícita que havia em tudo aquilo.

Mas logo se corrigiu. Era uma advertência, pensou.

 

Encontraram-se numa sala pequena e simples. Uma das paredes era formada por uma tela superdimensionada, que no momento não se encontrava em atividade. Quatro homens estavam reunidos em torno de uma mesa semicircular: Mercant, os presidentes da OTAN, do Bloco Oriental e da Federação Asiática.

A sua frente, num plano um pouco mais elevado, estavam cinco pessoas. No centro encontrava-se Perry Rhodan, à sua direita seu representante, o coronel Freyt, e à direita deste, Bell. À sua esquerda Crest e Thora, os dois arcônidas, exibiam-se de rosto impassível.

As mãos de Rhodan estavam pousadas sobre uma caixinha, na qual se viam dez botões vermelhos. Ao lado dos botões encontravam-se pequenas placas, nas quais estava escrita alguma coisa.

Levantou a cabeça e lançou um olhar de expectativa para os homens que o contemplavam. Em seus olhos havia um sorriso sutil, mas também um brilho frio, que parecia advertir de alguma coisa.

— Cavalheiros — principiou Perry Rhodan com uma amabilidade que formava um contraste marcante com a atmosfera que o cercava — devem ter ficado admirados com este convite para uma conferência em Terrânia. Têm todos os motivos para isso. Mas não os deixarei na incerteza por muito tempo. Permitam que lhes dê algumas explicações antes de formular minhas exigências.

O presidente da Federação Asiática se inclinou para a frente.

— Exigências? — disse, entre espantado e incrédulo.

Bell deu-lhe um sorriso amável de lado. Rhodan acenou com a cabeça; seu rosto continuou impassível.

— Exigências, sim; o senhor compreendeu perfeitamente, senhor presidente. Mas peço-lhe que, por enquanto, não se preocupe com isso. Há outras coisas que devem interessá-lo muito mais. Ou melhor, que devem interessar a todos.

Lançou os olhos para a caixinha e apertou um dos botões.

A enorme tela estava ao alcance da vista de todos; parecia uma tela de cinema.

Não havia muita iluminação na sala, motivo por que as imagens coloridas e bem formadas pareciam ter muita vida.

Os espectadores deram sinais de espanto quando viram o que Rhodan pretendia lhes apresentar. Eram filmes que já conheciam. Parte dos acontecimentos retratados nos mesmos passara-se nos territórios submetidos à sua soberania, e ainda guardavam uma lembrança nítida dos mesmos.

Greve dos operários de Detroit, Estados Unidos da América.

Atentado contra os delegados do Bloco Oriental por ocasião de sua visita a Londres e complicações diplomáticas resultantes do incidente.

Revolta de trabalhadores na Sibéria.

Perseguições raciais nos Estados Unidos.

Aumento da criminalidade no Japão.

Fome na China em virtude do fracasso dos nutricionistas.

Os acontecimentos desfilaram numa seqüência incessante, sem comentário e som. Com isso a impressão tornou-se mais realista.

Subitamente a tela se apagou. Os quatro homens lançaram um olhar indagador para Rhodan. Depois de algum tempo o presidente da OTAN pigarreou.

— Qual é a finalidade disso? Já conhecemos esses fatos retratados nos semanários. Tenho certeza de que o senhor não nos pediu que fizéssemos a viagem para ver isso.

— Correto! — confirmou Rhodan e colocou o dedo no outro botão. — Olhem o resto.

Seguiram-se cenas de filmes mais velhos, sobre as guerras de 1914-1918, 1939-1945 e a breve guerra atômica que fora reprimida no nascedouro graças à intervenção de Rhodan. Também essas cenas desfilaram sem qualquer comentário.

Quando a tela escureceu, Rhodan tirou a mão de cima da caixinha. Fitou os quatro homens:

— Os senhores acabam de ver as causas e os efeitos. Toda guerra tem suas causas. Se acreditamos que já eliminamos essas causas, estamos enganados. O registro cinematográfico das causas constitui prova cabal disso. As revoluções, as greves, o descontentamento e os confrontos violentos continuam a ocorrer. A desconfiança ainda lavra entre os membros de uma raça que já ultrapassou o limiar de uma nova era. Os senhores sabem de tudo isso. Mas não sabem que a um só homem cabe boa parte da responsabilidade por esses fatos causais. Refiro-me ao Supercrânio.

Os ouvintes se movimentaram. Mercant se inclinou para a frente e fitou os olhos de Rhodan. Uma ruga vertical surgiu em sua testa, mas a boca já aberta permaneceu muda.

— O Supercrânio? — perguntou o presidente do Bloco Oriental em tom incrédulo.

— É responsável por grande parte dos acontecimentos — confirmou Rhodan com um sorriso frio. — O resto é culpa dos senhores. Isso mesmo, é culpa dos senhores. Têm dificuldade em superar o passado. De qualquer maneira o exemplo do Supercrânio provou que um mundo desunido sempre pode ser submetido à vontade de um indivíduo, desde que esse indivíduo seja um mutante positivo revestido de traços de caráter negativo. Pois bem. Destruí o quartel-general do Supercrânio; mas nem por isso o perigo foi eliminado. Mesmo que ele estivesse morto, não poderíamos pensar assim. Os Supercrânios voltarão a surgir, sempre e sempre.

Apertou outro botão. Na tela surgiu uma reprodução fiel do Universo. No primeiro instante os espectadores não conseguiram identificar o setor do espaço que estava sendo projetado na tela. Mas logo reconheceram uma estrela chamejante, chamada nova.

— Isso — disse Rhodan com uma calma apavorante — já foi um sistema solar igual ao nosso. Também nele havia um único planeta habitado. Seus habitantes eram uma raça inteligente e ativa, mas também eram ambiciosos e de mentalidade estreita em sentido cósmico. Construíram as armas mais eficientes, e utilizaram-nas para se ameaçarem uns aos outros. Um belo dia, quando os tópsidas, uma raça de seres inteligentes em forma de crocodilo, encontraram o sistema, eles o atacaram e destruíram. Não encontraram qualquer resistência, pois seus habitantes estavam ocupados em dificultar a vida uns dos outros. Bem, de uma hora para outra ficaram livres de suas preocupações.

Rhodan apontou para a nova flamejante.

— O que restou de seu sol e dos onze planetas foi só isso.

O quadro se apagou.

Um silêncio ansioso reinava na sala.

Rhodan pigarreou.

— Pelo que vejo, entenderam o sentido das minhas palavras. Pois bem. Eu lhes pergunto: querem que um belo dia nosso sol também seja transformado numa nova flamejante, incendiada pelas forças terríveis de uma inteligência extraterrena?

— Temos força suficiente para repelir qualquer ataque — objetou o presidente da Federação Asiática.

— Os senhores dispõem de armas — disse Rhodan com um gesto zombeteiro e trocou um olhar com Mercant que, segundo sabia, estava de seu lado. — Mas para que adquiriram essas armas? Para defender sua Federação Asiática. Essas armas só terão um sentido quando forem construídas no intuito de servirem à defesa da Terra. Mas voltemos ao Supercrânio. Seus mutantes revelaram que ele fomentava a desunião entre os homens, instigava revoltas, causava greves e preparava guerras. É um hipno, cavalheiros. Impôs-se à vontade de políticos influentes e dirigiu-a segundo seu arbítrio. É possível que tenha exercido influência até sobre os senhores. Recomendo-lhes que aproveitem a pausa que nos foi proporcionada. Reflitam seriamente sobre a maneira de amalgamar a Federação Asiática, o Bloco Oriental, e o Ocidente sob um único governo. Minha exigência é esta. Hão de reconhecer que não constitui nenhuma novidade. A novidade é o prazo que agora lhes fixo. Se dentro de um ano o governo mundial não se tiver transformado em realidade, eu o imporei com as forças de que disponho.

Mercant contemplou a tela vazia; seu rosto permaneceu inalterado.

Os três presidentes levantaram-se e encararam Rhodan. Defrontaram-se com o olhar frio do mesmo e voltaram a cair nas suas poltronas. Os rostos dos arcônidas continuaram inexpressivos. O coronel Freyt e Bell esforçaram-se para reprimir o riso.

— Poderemos realizar algumas conferências preparatórias — disse o presidente da OTAN, falando com esforço. Lançou um olhar de desespero aos colegas. — A organização de um governo mundial...

— Não é tão difícil — interrompeu-o Rhodan. — Façam de conta que um perigo terrível ameaça a Terra. Ficarão admirados com a rapidez da solução. Aliás, posso lhes assegurar que esse perigo não existe apenas na imaginação. O Supercrânio continua vivo e ainda não se deu por vencido.

— Pensaremos no assunto — disse o presidente do Bloco Oriental.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Não pensem, ajam! — exigiu. — E isso aplica-se a todos. Acostumem-se com a idéia de que um belo dia terão que conviver pacificamente com lagartos, aranhas, ou sejam lá quais forem as inteligências do cosmos. Cavalheiros, a decisão final sobre a maneira da constituição e a finalidade do governo mundial pertence aos senhores. A decisão sobre a formação ou não deste governo cabe a mim.

Pela primeira vez Rhodan voltou a sorrir.

— E, acreditem ou não, essa decisão já foi tomada.

Deu um aceno de cabeça em direção a Bell.

O ministro da segurança da Terceira Potência se levantou.

— A conferência está encerrada, senhores. Permitam que os convide a assistirem a uma parada militar que será realizada em sua honra. Depois disso programamos uma recepção do corpo diplomático. Ainda hoje de noite nossos aviões os levarão de volta para sua pátria. Queiram me acompanhar.

Os presidentes seguiram-no em silêncio. Ao que parecia nenhum deles estava percebendo que Mercant ficara para trás, tendo sido levado a uma sala contígua por Rhodan.

 

— ...portanto, é imperioso que não descansemos enquanto o Supercrânio não tiver sido definitivamente liquidado, Mercant. Eu ficarei na Terra, enquanto Bell perseguirá o fugitivo. Já formamos uma pequena frota.

O chefe dos serviços secretos reunidos da Terra fez um gesto de aprovação, mas não ocultou seu ceticismo.

— O sistema solar é muito grande, Rhodan. Como encontrar um homem? Não tem nenhuma pista, nenhum indício, absolutamente nada.

— Está enganado — disse Rhodan com um sorriso e levantou os olhos quando viu Bell entrar. — Temos um indício. Além disso, também aqui a velha regra de que todo criminoso comete algum engano encontrará sua confirmação. O Supercrânio não é um homem que se recolhe à inatividade enquanto dispuser de um trunfo.

— Um trunfo?

Mercant levantou a cabeça e lançou um olhar indagador para Rhodan.

— Isso mesmo, um trunfo. Trata-se de um mutante ainda desconhecido, que possui faculdades que também não conhecemos. Foi o que conseguimos saber dos mutantes libertados. Ninguém sabe exatamente do que se trata, mas deve ser uma coisa terrível. Estou convencido de que o Supercrânio não demorará em lançar mão desse trunfo. Ali estará nossa chance, se tivermos sorte.

Bell torceu o rosto e sentou perto dos dois.

— Mais uma vez a cobaia serei eu. Quando devo decolar?

— Dentro de uma semana — disse Rhodan. — Então, o que acharam os presidentes da parada realizada em sua honra?

— Estão muito impressionados — disse Bell, rindo com satisfação. — Acho que apresentarão uma sugestão para que as negociações tenham início na semana que vem. Assim você terá que fazer alguma coisa enquanto eu estiver percorrendo o sistema solar em busca daquele cabeça de estouro.

— Cabeça de estouro?! — perguntou Mercant, estupefato.

— Supercrânio... Supercabeça — explicou Rhodan. — Bell gosta de dar apelidos às pessoas. Assim, por exemplo, costuma chamar o senhor de...

— Não conte! — pediu Bell e se levantou. Retirou-se até a porta, entreabriu a mesma e, quando se encontrava quase em segurança, disse: — Agora pode contar, se quiser.

E fechou a porta.

Mercant piscou para Rhodan.

— Então?

— Ele o chama de Sherlock Holmes Terrano, se não estou enganado.

Mercant sacudiu a cabeça; estava radiante.

— Ora, ele não precisaria ter fugido por causa disso. O apelido até me lisonjeia bastante.

Perry Rhodan, como que casualmente, contemplou suas unhas.

— Há outro detalhe, meu caro Mercant. Para certas pessoas, Bell inventa dois apelidos, porque um só não lhe parece suficiente.

— Dois apelidos? — perguntou Mercant cheio de pressentimentos, passando a mão pela calva cercada da coroa de cabelos louros. Parecia pensativo. — Será possível? E eu também tenho outro apelido?

Rhodan fez que sim. Procurava se manter sério.

— Qual é o outro? — insistiu Mercant, cheio de curiosidade.

— Cabeça de luar.

Parecia que alguém havia derramado uma tina de água sobre a cabeça de Allan D. Mercant. Este lançou um breve olhar para a porta fechada, suspirou resignadamente e disse:

— Vamos falar sobre coisas mais importantes.

Dali a dois minutos haviam esquecido Bell...

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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