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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ASSASSINATO NO BECO / Agatha Christie
ASSASSINATO NO BECO / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ASSASSINATO NO BECO

 

                       

 

— Uma esmola para o judas, chefe?

O pequeno garoto tinha a cara suja e um sorriso in­sinuante.                                                    

— Claro que não — respondeu o Inspetor-Chefe Japp. E olhe aqui, meu rapaz...          

Enquanto Japp começava um sermão o garoto tra­tava de bater em retirada, mas não sem antes gritar para os amigos:

— Que fora, o cara é um tira a paisana!

E saíram correndo, enquanto cantavam:

Lembrem-se, lembrem-se,

do Cinco de Novembro,

pólvora e conspiração.

Não há razão          

para jamais esquecermos

uma grande traição.

O inspetor-chefe estava acompanhado por um ho­mem maduro, pequeno, com uma larga testa e grandes bigodes à militar, que agora sorria consigo mesmo.

— Très bien, Japp. Meus parabéns. Foi um belo sermão.

— Esta história de pedir dinheiro para fazer o espantalho do Guy Fawkes não passa de uma desculpa esfarrapada para mendigar — disse o inspetor, ainda indignado.

— Uma tradição interessante — refletia Hercule Poi­rot.  Os fogos de artifício continuam a explodir — bang, bang — mas o homem e seu crime já foram esquecidos.

O detetive da Scotland Yard concordou:

— A maioria desses garotos nem sabe quem foi Guy Fawkes.

— E a confusão só tende a aumentar. Daqui a pou­co vai haver quem não saiba se os fogos do Dia de Guy Fawkes celebram um dia de honra ou a vergonha nacio­nal.   Afinal, tentar dinamitar o Parlamento inglês terá sido pecado ou virtude?

Japp riu.                                                              

— Muitos diriam que foi uma virtude.

Deixando a rua principal, os dois entraram na rela­tiva tranqüilidade de um beco. Tinham acabado de jan­tar e agora cortavam caminho, de volta ao apartamento de Hercule Poirot.

Mesmo no beco ainda se ouvia o estrondo das bom­bas e dos busca-pés. Os clarões de um ou outro foguete iluminavam os céus.

— Uma bela noite para um assassinato — comentou Japp, em tom profissional. Numa noite como esta nin­guém ouviria um tiro.

— Sempre me pareceu estranho que mais criminosos não tirassem proveito da situação — respondeu Poirot.

— Sabe, Poirot, às vezes chego a desejar que você cometesse um crime.

— Mon cher!

— Sim, gostaria de saber como você o executaria.

— Meu caro Japp, se eu matasse alguém você não teria a menor chance de descobrir como eu o teria feito. Você nem sequer desconfiaria que um crime tinha sido cometido.

Japp riu, com afeto.

— Você quase não é prosa, hein Poirot?

Às onze e meia da manhã seguinte o telefone tocou no quarto de Poirot.

— Alô, alô?

— Alô, é o Poirot?

— Oui, c’est moi.

— É o Japp. Lembra-se que ontem voltamos para casa pelo beco dos Bardsley Gardens?

— Lembro.

— E comentamos como seria fácil matar alguém com todo aquele barulho de foguetes?

— E daí?

— Daí que alguém se suicidou naquele beco. No número 14. Uma jovem viúva — a senhora Allen. Eu vou lá agora. Quer vir comigo?

— Não leve a mal, Japp, mas alguém tão importante como você tem que cuidar de um simples caso de suicídio?

— Não, meu caro gênio. Mas o médico legista acha o caso um pouco suspeito. Você quer vir? Acho que você devia.

— Então eu vou. Você disse número 14?

— Isto mesmo.

Poirot chegou ao número 14 do beco dos Bardsley Gardens quase na mesma hora em que parava à porta o carro que trazia Japp e três outros homens.

O número 14 já era centro do interesse geral. Uma multidão de curiosos, com motoristas particulares e suas mulheres, mensageiros, desocupados, transeuntes bem vestidos e um bando de crianças pasmava diante da casa, de boca aberta e olhar surpreso.

Um guarda uniformizado mantinha-se à porta e tra­tava de afastar os importunos. Repórteres e fotógrafos precipitaram-se de imediato ao encontro de Japp.

— Nada a declarar — disse Japp, afastando-os com o braço. Fez um sinal para Poirot:

— Vamos entrar.

A porta fechou-se às suas costas e eles se acharam aos pés de um acanhado lance de escadas.

Um homem surgiu ao topo delas, reconheceu Japp e chamou:

— Aqui em cima, inspetor.

Japp e Poirot subiram.

O homem no alto das escadas abriu uma porta e introduziu Japp e Poirot em um pequeno quarto.

— O senhor quer um resumo da situação, chefe?

— Vamos lá, Jameson — respondeu Japp. Como foi o caso?

O inspetor Jameson começou, em tom eficiente:

— A morta é a senhora Allen, chefe. Morava aqui com uma amiga, uma Miss Plenderleith. Miss Plenderleith foi passar o fim de semana fora e voltou hoje de manhã. Ela entrou com sua própria chave e estranhou não encontrar ninguém, pois a faxineira geralmente chega às nove horas. Ela veio primeiro ao seu quarto, que é este, depois cruzou o patamar para o quarto de sua amiga, mas a porta estava trancada por dentro. Ela tentou forçar a maçaneta, bateu, gritou, mas não teve resposta. Por fim, já assustada, telefonou para a polícia. Isso foi às quinze para as onze.  Nós viemos logo e arrombamos a porta. A senhora Allen estava caída no chão, com um tiro na cabeça.  Em sua mão estava uma auto­mática — uma Webley calibre 25 — e parecia um evi­dente caso de suicídio.

— Onde está Miss Plenderleith?

— Em baixo, na sala de visitas. Uma moça que eu descreveria como muito segura de si mesma.  Não é de perder a cabeça à toa.

— Vou falar com ela. Mas antes quero uma palavra com o Brett.

Acompanhado por Poirot, Japp cruzou o patamar e entrou no quarto em frente. Um homem alto, de meia-idade, cumprimentou-os.

— Alô, Japp, alegro-me que tenha chegado. Este caso é meio estranho.

Japp caminhou em sua direção, enquanto Hercule Poirot demorava-se a percorrer o quarto com os olhos.

Era um quarto bem maior que o outro. Tinha uma janela avarandada e, enquanto o outro era simplesmente um quarto de dormir, este era uma combinação de quar­to de dormir com sala de visitas.

As paredes eram em tom prateado e o teto em verde-esmeralda. As cortinas eram em verde e prateado, com padrões modernos. Havia um divã com coberta verde-esmeralda em seda brilhante e diversas almofadas pratea­das e douradas. Havia ainda uma grande escrivaninha em nogueira, uma cômoda também em nogueira e diver­sas cadeiras em estilo moderno, em cromo brilhante. Numa pequena mesa de tampo de vidro estava um gran­de cinzeiro cheio de pontas de cigarros.

Hercule Poirot farejou o ar, delicadamente, e enca­minhou-se para Japp, que olhava o corpo.

O corpo tinha evidentemente escorregado de uma das cadeiras de cromo e era de uma mulher jovem, de seus 27 anos, com cabelos louros e feições delicadas. Ha­via muito pouco make-up no rosto — era um rosto bo­nito, mas melancólico e não muito inteligente. À esquer­da da cabeça via-se o sangue coagulado e os dedos da mão direita seguravam uma pequena pistola. A moça usava um vestido simples, verde-escuro, abotoado até o pescoço.

— Bem, Brett, qual é o problema?

— A posição parece perfeita — respondeu o doutor. Se ela matou-se com um tiro, o corpo provavelmente teria escorregado da cadeira e caído nesta posição. A porta estava trancada e a janela fechada por dentro.

— Então, qual é a dúvida?

— Dê uma olhada na pistola. Eu ainda não a toquei — estou esperando pelos peritos em impressões digitais. Mas é fácil ver o que quero dizer.

Poirot e Japp ajoelharam-se e examinaram a pistola com cuidado.

— Estou percebendo — disse Japp, erguendo-se. Está na curva da mão. Parece que ela a está segurando, mas na verdade não está. Mais alguma coisa?

— Muitas. A arma está na mão direita, mas a fe­rida é acima do ouvido esquerdo. O ouvido esquerdo, veja bem.

— Hum — disse Japp. Parece que isto liquida o as­sunto. Deve ser impossível segurar uma pistola e dispa­rá-la naquela posição com a mão direita.

— Completamente impossível. Você pode torcer o braço, mas duvido que possa disparar.

— O caso é bem óbvio. Alguém matou-a e quis dar a impressão de suicídio. Mas e a porta e a janela que estavam fechadas?

O inspetor Jameson tinha a resposta pronta.

— A janela estava fechada e trancada, chefe, mas embora a porta estivesse trancada, não conseguimos en­contrar a chave.

Japp balançou a cabeça.

— É, o criminoso deu azar. Ele a matou, trancou a porta ao sair e ficou na esperança de que ninguém desse pela falta da chave.

Poirot murmurou:

— C’est bête, ça!

— Vamos lá, Poirot, não é todo mundo que pode ter sua inteligência. Este é o tipo do detalhe que pode ser facilmente esquecido. A porta está trancada, alguém a arromba e encontra a mulher morta, com um revólver na mão. Um caso evidente de suicídio e ninguém se preo­cupa em procurar a chave. O assassino deu azar porque Miss Plenderleith mandou chamar a polícia. Se ela ti­vesse chamado um ou dois dos motoristas particulares que moram no beco para arrombar a porta, ninguém teria pensado em procurar a chave.

— É, parece ser verdade — disse Hercule Poirot. Teria sido a reação natural de muita gente.  A polícia geralmente só é chamada em último caso, não?

Ele continuava a olhar para o corpo.

— Alguma coisa errada? — perguntou Japp.

A pergunta foi lançada em tom casual, mas os olhos traíam seu interesse.

Hercule Poirot balançou a cabeça devagar.

— Eu estava olhando seu relógio de pulso.

Ele inclinou-se e tocou levemente no relógio, com a ponta de um dedo. Era um relógio delicado, com pulseira em chamalote brilhante, que a morta usava no punho da mão que segurava a arma.

— Um belo relógio — comentou Japp. Deve ter custado caro. — Ele olhou interrogativamente para Poi­rot: — Algo de estranho?

— Possivelmente... sim.

Poirot encaminhou-se para a escrivaninha, com uma tampa corrediça em cor que combinava com a tonalidade geral do quarto. Sobre ela havia um pesado tinteiro e em frente a este um mata-borrão laqueado. À esquerda do ma­ta-borrão estava um descanso para penas de escrever em tom verde-esmeralda com um suporte prateado para cane­tas» um bastão de cera para lacrar cartas, um lápis e dois selos. À direita do mata-borrão havia um calendário mó­vel dando o dia da semana, a data e o mês. Havia ainda um pequeno vidro em tonalidade cambiante e, emergin­do dele, uma resplendente pena de cauda de ave.

Poirot deu a impressão de interessar-se pela pena: tomou-a e examinou-a, mas não havia traços de tinta. Evidentemente tinha propósito apenas decorativo. As ca­netas de pena de metal, com o bico manchado de tinta, eram as que realmente se usavam. Os olhos de Poirot fixaram-se a seguir no calendário.

— Terça-feira, cinco de novembro — disse Japp. Ontem. Está certo.

E dirigindo-se a Brett:

— Há quanto tempo ela morreu?

— Ela morreu às 11h33min da noite de ontem — veio a resposta pronta. E Brett riu ao ver a expressão de surpresa no rosto de Japp.

— Não leve a mal, meu caro. Não resisti à tentação de bancar o superdoutor das histórias de detetive. Na verdade, o máximo que posso dizer é que ela morreu por volta das onze — uma hora a mais, uma hora a menos.

— Ah, pensei que o relógio tivesse parado na hora da morte, ou qualquer coisa assim.

— Ele parou mesmo, mas foi às quatro e quinze.

— E suponho que ela não possa ter sido morta às quatro e quinze.

— De jeito nenhum.

Poirot tinha olhada nas costas da folha do mata-borrão.

— Boa idéia — disse Japp. Mas não há nada aí.

O mata-borrão estava limpo dos dois lados. Poirot examinou as outras folhas, mas todas tinham o mesmo aspecto. A seguir, examinou a cesta de papéis. Nela es­tavam duas ou três cartas e circulares, rasgadas. Mas ras­gadas uma única vez, e assim puderam ser facilmente recompostas.  Não passavam de um pedido de dinheiro de uma sociedade de amparo aos ex-pracinhas, um convite para um coquetel no dia 3 de novembro, uma carta da costureira confirmando uma hora marcada. Entre as circulares, o aviso de uma próxima liquidação de peles e o catálogo de um grande bazar.

— Nada que interesse — observou Japp.

— Não, estranho... — respondeu Poirot.

— Você quer dizer que em geral os suicidas deixam uma carta?

— Exatamente.

— Pois então aí está mais uma prova de que não foi suicídio.

Japp afastou-se.

— Vou pôr meus homens a trabalhar. É melhor des­cermos e entrevistarmos esta Miss Plenderleith. Vamos, Poirot?

Poirot parecia ainda fascinado pela escrivaninha e seus objetos.

Finalmente saiu do quarto mas, à porta, voltou-se ainda uma vez para olhar a ostentosa pena de ave.

 

Aos pés da escada, uma porta dava passagem a uma grande sala de estar, que em outros tempos fora um está­bulo. O aposento tinha as paredes em argamassa rústi­ca e nelas penduravam-se gravuras em água-forte e ma­deira. Duas pessoas estavam sentadas.

Uma era uma jovem de cabelos escuros, de 27 ou 28 anos, com um ar de eficiência em suas maneiras. Senta­ra-se perto da lareira e aquecia as mãos. A outra, uma matrona de amplas proporções, com uma bolsa de pano, falava agitadamente quando os dois homens entraram.

— ... e como eu ia dizendo, Miss, levei um susto tão grande que quase caí dura.  E pensar que tinha que ser justamente hoje...

A outra interrompeu-a.

— Está bem, Mrs. Pierce. Acho que estes cavalhei­ros são da polícia.

— Miss Plenderleith? — perguntou Japp, adiantan­do-se.

A jovem acenou afirmativamente.

— Sim. Esta é Mrs. Pierce, que vem fazer a faxina diária.

Mrs. Pierce despejou-se em nova torrente de palavras.

— E, como eu estava dizendo a Miss Plenderleith, pensar que logo hoje minha irmã Louisa Maud tinha que ficar doente, e eu tenho que ajudar, porque irmã é irmã e eu não pensei que Mrs. Allen fosse se importar, embora eu procure nunca deixar as senhoras assim em falta...

Japp interrompeu-a com habilidade.

— De fato, Mrs. Pierce. Quem sabe a senhora não gostaria de ir à cozinha com o inspetor Jameson e dar-lhe suas declarações por escrito?

Tendo se livrado de Mrs. Pierce e sua loquacidade, Japp voltou a se concentrar na jovem.

— Sou o inspetor-chefe Japp, Miss Plenderleith. A senhorita poderia me contar tudo o que sabe sobre o que se passou?

— Perfeitamente. Por onde quer que eu comece?

Seu autocontrole era admirável. Não havia o menor sinal de choque ou de pesar, exceto talvez por uma certa rigidez de atitude.

— A que horas a senhorita chegou hoje de manhã?

— Acho que foi pouco antes das dez e meia. Mrs. Pierce, a mentirosa, não estava aqui...

— Ela falta muito?

Jane Plenderleith deu de ombros.

— Umas duas vezes por semana ela só aparece ao meio-dia — ou simplesmente não aparece, embora seu horário de entrada seja às nove. Mas como eu dizia, duas vezes por semana ou ela “tem uns troços” ou é algum outro membro da família que cai de cama. Todas essas faxineiras são assim. Ela até que não é das piores.

— Há quanto tempo ela trabalha aqui?

— Pouco mais de um mês. A anterior roubava coisas.

— Prossiga, Miss Plenderleith.

— Eu paguei o táxi, pus minha mala dentro de casa, procurei Mrs. Pierce e não a encontrei; depois subi para meu quarto. Arrumei-me ligeiramente e fui para o quar­to de Bárbara — Mrs. Allen — mas a porta estava fechada. Forcei um pouco a maçaneta e bati, mas não tive resposta. Então desci e telefonei para a polícia.

— Pardon — Poirot interpôs uma pergunta rápida. — Não lhe passou pela cabeça tentar arrombar a porta, talvez com a ajuda de um dos motoristas do beco?

Ela voltou-se para ele, com seus olhos calmos, cinza-esverdeados, medindo-o numa mirada rápida mas precisa.

— Não, não me passou pela cabeça. Pensei que, se havia alguma coisa errada, o melhor seria chamar a po­lícia .

— Então a senhorita pensou que havia alguma coisa errada?

— Naturalmente que havia.

— Só porque não responderam a suas batidas? Mas sua amiga poderia ter tomado uma pílula de dormir ou outra coisa qualquer.

— Ela nunca tomava pílulas de dormir.

A resposta veio rápida.

— Ou talvez ela tivesse saído e trancado a porta?

— E por que ela haveria de sair? Em todo caso, ela teria me deixado um bilhete.

— E a senhorita tem certeza de que ela não lhe dei­xou um bilhete?

— Claro que tenho. Se ela tivesse eu o teria visto imediatamente.

Sua voz tinha agora uma tonalidade áspera.

Japp perguntou:

— A senhorita não tentou espiar pelo buraco da fe­chadura, Miss Plenderleith?

— Não — respondeu Jane Plenderleith, pensativa­mente. — Não me ocorreu olhar pelo buraco da fecha­dura. Mas eu não poderia ver nada mesmo, poderia? Pois a chave me impediria.

Ela tinha uma expressão inocente e seus olhos não se desviaram dos de Japp. Poirot subitamente sorriu para si mesmo.

— Tem razão, Miss Plenderleith — disse Japp. — Creio que a senhorita não tinha motivo algum para acre­ditar que sua amiga poderia ter cometido suicídio, não?

— Não, claro que não.

— Ela não tinha por acaso mostrado sinais de preo­cupação?

Houve um intervalo — uma pausa prolongada antes que a jovem respondesse.

— Não.

— A senhorita sabia que ela tinha uma pistola?

Jane Plenderleith assentiu.

— Sim, ela a tinha desde o tempo em que morou na Índia. Ela sempre a guardava em uma gaveta, em seu quarto.

— Ham. Ela tinha porte de arma?

— Creio que sim, mas não tenho certeza.

— Agora, Miss Plenderleith, conte-me por favor tudo o que sabe sobre Mrs. Allen, há quanto tempo a conhece, onde posso encontrar seus amigos e parentes. Em suma, tudo.

  Jane Plenderleith tornou a assentir com a cabeça.

— Conheço Bárbara há uns cinco anos. A primeira vez que a vi foi numa viagem ao estrangeiro, ao Egito, para ser mais precisa. Ela vinha da Índia, de volta à In­glaterra. Eu tinha ensinado por algum tempo na British School de Atenas e resolvera passar algumas semanas de férias no Egito antes de voltar para casa. Nós nos en­contramos numa excursão pelo rio Nilo. Ficamos amigas, gostamos logo uma da outra. Eu estava justamente procurando alguém para dividir comigo o aluguel de um apartamento ou de uma pequena casa. Bárbara não tinha ninguém no mundo e pensamos que talvez nos déssemos bem.

— E vocês se deram bem? — perguntou Poirot.

— Muito bem. Tínhamos cada uma seu próprio gru­po de amigos. Os de Bárbara eram mais chegados à so­ciedade e os meus aos meios artísticos. Deve ter sido por isso mesmo que nos demos tão bem.

Poirot concordou.  Japp prosseguiu:

— O que você sabe sobre a família de Mrs. Allen e de sua vida antes de vocês se encontrarem?

Jane Plenderleith deu de ombros.

— Não muito, na verdade. Acho que seu nome de solteira era Armitage.

— Seu marido?

— Não creio que fosse boa coisa. Parece que bebia. Creio que ele morreu um ano ou dois depois do casamen­to. Eles tiveram uma filha, que morreu aos três anos. Bárbara quase não falava de seu marido e parece que ela se casou com ele na Índia, quando tinha apenas 17 anos. Depois eles foram para Boné ou um destes outros fins do mundo para onde os imprestáveis são enviados — mas como o assunto evidentemente trazia lembranças doloro­sas, eu nunca me referi a ele.

— Sabe se Mrs. Allen estava em alguma dificuldade financeira?

— Tenho certeza que não.

— Há ainda uma outra pergunta que preciso fazer, e espero que a senhorita não se aborreça com ela, Miss Plenderleith. Mrs. Allen tinha algum amigo homem, ou amigos homens?

Jane Plenderleith respondeu friamente:

— Bem, ela estava noiva e ia casar, se isto responde sua pergunta.

— Qual é o nome do homem com quem ela ia casar?

— Charles Laverton-West. Ele é deputado, eleito por um distrito em Hampshire.

— Ela o conhecia há muito tempo?

— Pouco mais de um ano.

— E há quanto tempo eles eram noivos?

— Dois...  não, quase três meses.

— Sabe se tinha havido alguma briga entre eles?

Miss Plenderleith balançou a cabeça negativamente.

— Não, e eu teria me surpreendido se tivesse havi­do.

Bárbara não era do tipo de discutir.

— Quando foi a última vez que a senhorita viu Mrs. Allen?

— Sexta-feira, quando fui passar o fim de semana fora.

— Mrs. Allen ia ficar em Londres?

— Ia. Acho que ela tinha combinado sair com o noivo no domingo.

— E a senhorita, onde passou o fim de semana?

— Em Laidells Hall, Laidells, Essex.

— Na casa de quem?

— Mr. e Mrs. Bentinck.

— A senhorita só saiu de lá hoje de manhã?

— Sim.

— Então deve ter sido muito cedo.

— O sr. Bentinck me trouxe de carro. Ele sai cedo porque tem que estar no escritório às dez.

— Compreendo.

Japp balançou a cabeça. As respostas de Miss Plen­derleith tinham sido prontas e convincentes.

Poirot fez uma pergunta, por sua vez.

— O que a senhorita acha de Mr. Laverton-West?

A jovem sacudiu os ombros.

— Interessa a alguém?

— Talvez não interesse, mas mesmo assim gostaria de ter sua opinião.

— Acho que nem chego a ter uma opinião. Ele é moço, não mais de 31 ou 32 anos, ambicioso, bom orador, quer subir na vida.

— Este é o seu lado bom. E o mau?

— Bem — Miss Plenderleith pensou alguns instantes. — Em minha opinião ele é muito quadrado e ligeiramen­te presunçoso. Suas idéias não têm originalidade.

— Estes não chegam a ser defeitos sérios, senhorita — disse Poirot, com um sorriso.

— O senhor acha?

Seu tom de voz era levemente irônico.

— Para a senhorita, talvez.

Ele a estava observando e notou que a resposta dei­xou-a um pouco embaraçada. Aproveitou então para tirar partido da vantagem.

— Mrs. Allen nem repararia neles.

— O senhor tem razão. Bárbara o achava maravi­lhoso e tinha uma grande fé nele.

Poirot perguntou com amabilidade:

— A senhorita gostava de sua amiga?

Ele viu suas mãos se crisparem sobre o joelho, notou o súbito endurecimento dos músculos do rosto, mas a res­posta veio numa voz sem qualquer emoção.

— Sim. Gostava.

Japp interveio:

— Mais outra coisa, Miss Plenderleith. A senhorita e Mrs. Allen não brigaram? Não tiveram ao menos uma discussão?

— Não, nenhuma.

— Nem a propósito de seu noivado?

— Claro que não. Eu fiquei feliz por vê-la tão con­tente .

Houve uma pequena pausa, depois Japp disse:

— A senhorita sabe se Mrs. Allen tinha algum ini­migo?

Desta vez houve uma pausa significativa antes que Jane Plenderleith respondesse. E quando ela o fez foi num tom de voz ligeiramente diferente.

— Não compreendo bem o que o senhor quer dizer com inimigos.

— Alguém, por exemplo, que se beneficiasse com a morte dela.

— Ah, não, de jeito algum. Ela não tinha dinheiro para isso.

— Mas quem é sua herdeira, mesmo assim?

— Olhe, nem pensei nisso. Mas não me surpreende­ria se fosse eu. Quer dizer, na hipótese de que ela tenha feito um testamento.

— E nenhuma outra espécie de inimigo? Gente que guardasse algum ressentimento dela?

— Não creio que ninguém pudesse ter rancor dela. Mrs. Allen era uma ótima pessoa, sempre amável, sempre procurando ser agradável. Ela tinha um ótimo tempera­mento.

Era a primeira vez que a voz de Jane Plenderleith deixava entrever alguma dor. Poirot inclinou a cabeça com brandura.

Japp disse.

— Em resumo, Mrs. Allen vinha se mostrando alegre, não tinha qualquer problema financeiro e sentia-se feliz por estar de casamento marcado. Não havia nenhuma razão para levá-la a se matar. Correto?

Houve um silêncio de segundos antes que Jane res­pondesse.

— Correto.

Japp levantou-se.

— Se a senhorita me dá licença, preciso falar com o inspetor Jameson.

Ele saiu.

Hercule Poirot ficou sozinho com Jane Plenderleith.

 

Houve silêncio por alguns minutos.

Jane Plenderleith rapidamente mediu o homenzinho de alto a baixo, mas depois olhou em frente e não falou nada. Mas um certo nervosismo de sua parte indicava que ela estava consciente de sua presença. Seu corpo mantinha-se imóvel, mas estava tenso. Quando Poirot finalmente falou foi evidente que o simples som de sua voz contribuiu para aliviar a tensão. Ele dirigiu-se a ela em tom amável:

— Quando a senhorita acendeu a lareira?

— A lareira? — Sua voz soava distraída. — Oh, as­sim que cheguei.

— Antes de subir ou depois?

— Antes.

— Compreendo. Sim, é claro. E ela já estava posta, ou a senhorita teve que colocar lá os carvões?

— Já estava preparada. Tive apenas que acendê-la.

Sua voz soava um pouco impaciente, como se ela suspeitasse que ele apenas procurava fazer conversação social. E é possível que este fosse mesmo o objetivo de Poirot. De uma ou outra forma ele continuou, no mes­mo tom:

— Mas sua amiga... No quarto dela a lareira é a gás, não?

Jane Plenderleith respondeu mecanicamente.

— Esta é a única lareira a carvão que temos. Todas as outras são a gás.

— E o fogão também é a gás?

— Acho que hoje em dia todos são, não?

— É verdade. Muito mais prático.

A conversa morreu. Jane Plenderleith bateu com o pé no chão e perguntou abruptamente:

— Este homem, este inspetor-chefe Japp, ele é in­teligente?

— Sim, todos acham que sim. Ele é trabalhador e muito minucioso.  Dificilmente deixa escapar algum de­talhe.

— Será que... — começou Jane, mas interrompeu-se.

Poirot a observava. O fogo na lareira realçava o verde de seus olhos, e ele perguntou:

— A morte de sua amiga foi um grande choque, não?

— Terrível! — A resposta veio cheia de sinceridade.

— A senhorita certamente não a esperava?

— Claro que não.

— Então sua primeira impressão foi de que era im­possível, que não podia ter acontecido?

O calor humano nas palavras de Poirot pareceu der­reter o gelo de Jane Plenderleith. Ela respondeu imedia­tamente, sofregamente, sem mais rigidez em seus modos:

— É exatamente isto o que sinto. Mesmo que Bár­bara tenha se suicidado, eu não posso acreditar que ela o tenha feito daquela maneira.

— Mas ela tinha ou não tinha uma pistola?

Jane Plenderleith fez um gesto impaciente.

— Mas ela guardava aquela pistola mais como um souvenir do que como uma arma. Recordação dos lugares exóticos onde esteve. Era por hábito, não por vontade ou necessidade de usá-la. Tenho certeza disto.

— E por que a senhorita tem tanta certeza?

— Por causa das coisas que ela me dizia.

— Como por exemplo?

A voz de Poirot era amável e conduzia a conversação com habilidade.

— Como, por exemplo, no dia em que estávamos con­versando sobre suicídios e ela me disse que a maneira ideal de alguém se matar era simplesmente virar o bico do gás, fechar todas as janelas e frestas e ir para a cama. Eu respondi que nunca me mataria assim, que não es­tava no meu temperamento deitar e ficar lá à espera. Eu disse que preferia me matar com um revólver e ela respondeu que não, que nunca poderia fazer isso. Ela disse que tinha medo do tiro, e medo do barulho.

— Compreendo — respondeu Poirot. — Como a se­nhorita disse, é estranho. Porque, veja bem, havia uma lareira a gás no quarto dela.

Jane Plenderleith olhou-o com expressão de surpresa.

— É mesmo, havia. Então não compreendo, não com­preendo por que ela não usou o gás.

Poirot balançou a cabeça.

— Sim, parece estranho, parece pouco natural.

— A coisa toda parece estranha. Ainda não me con­venci de que ela tenha se suicidado. Mas foi suicídio, não?

— Bem, há uma outra possibilidade.

— O que o senhor quer dizer com isto?

Poirot olhou-a nos olhos.

— Pode ter sido... assassinato.

— Assassinato? — Jane Plenderleith tremeu visivel­mente. — Mas isto é horrível, isto é...

— Horrível, talvez, mas a senhorita acha impossível?

— Mas a porta estava trancada por dentro. E a ja­nela também.

— A porta estava trancada, é verdade. Mas ninguém pode afirmar se por dentro ou por fora, porque, não sei se a senhorita sabe, a chave está sumida.

— Mas então, se vocês não conseguiram achar a cha­ve... Ela interrompeu-se por um momento e prosseguiu: — Então a porta deve ter sido trancada por fora. Do contrário a chave estaria no quarto.

— Talvez esteja ainda. Lembre-se que a busca no quarto não acabou. Ou talvez Mrs. Allen tenha atirado a chave pela janela e alguém a tenha apanhado.

— Assassinato! — exclamou Jane Plenderleith.   Ela parecia examinar a hipótese, o rosto inteligente mostran­do um esforço de concentração. — Acho que o senhor tem razão.

— Mas se foi assassinato deve ter havido um motivo. A senhorita sabia de algum motivo?

Ela negou com a cabeça. Mas apesar disto Poirot teve novamente a impressão de que Miss Plenderleith procurava ocultar alguma coisa. A porta abriu-se e Japp entrou.

Poirot ergueu-se.

— Acabo de dizer a Miss Plenderleith que a morte de sua amiga não foi suicídio.

Japp pareceu momentaneamente sem ação. Final­mente, deu um rápido olhar de desaprovação a Poirot.

— É muito cedo para afirmarmos qualquer coisa. Precisamos examinar todas as possibilidades. Por enquan­to não há nada definido.

Jane Plenderleith respondeu serenamente:

— Compreendo.

Japp caminhou em sua direção.

— Diga-me, Miss Plenderleith, já viu isto antes?

Na palma de sua mão estava um pequeno objeto oval, esmaltado em azul-escuro.

Jane Plenderleith balançou negativamente a cabeça.

— Não, nunca.

— Não é seu ou de Mrs. Allen?

— Não. Não me parece uma coisa muito feminina, parece?

— Ah, então a senhorita o reconhece?

— Bem, parece óbvio que é um pedaço de abotoadura de homem, não?

 

— Aquela moça é meio petulante — queixou-se Japp. Os dois homens estavam novamente no quarto de Mrs. Allen. O cadáver tinha sido fotografado e removido; os peritos tinham tirado as impressões digitais e já ha­viam ido embora.

— Mas você não deve tomá-la por tola, pois ela é evidentemente inteligente.  Na verdade eu diria que ela é extraordinariamente inteligente e competente.

— Você desconfia que ela possa ter matado a amiga? — perguntou Japp, com um raio de esperança, e pros­seguiu:

— Acho que é bem capaz.  Precisamos investigar me­lhor seu álibi. Quem sabe se as duas não tiveram uma briga por causa desse deputado? O desprezo que ela mostrou sentir por ele pode ser falso. É capaz dela ter se engraçado para cima dele e levado um fora. Ela é o tipo de mulher que mataria alguém se tivesse vontade, e teria calma suficiente para fazê-lo sem deixar vestígios. Sim, vamos ter que investigar melhor aquele álibi. Ele me pareceu arranjado um pouco convenientemente demais, e afinal de contas Essex não é assim tão longe. Há trens para lá com grande freqüência. Ou ela podia ter usado um bom carro. Vale a pena procurar descobrir se ela on­tem foi dormir cedo alegando uma dor de cabeça ou algo semelhante.

— Você tem razão — concordou Poirot.

— De qualquer forma — continuou Japp —, ela está escondendo alguma coisa da gente, você não acha? Aque­la moça sabe de alguma coisa.

Poirot parecia pensativo.

— Sim, ela está escondendo alguma coisa.

— Isto é sempre um problema em casos como este — queixou-se Japp. Há sempre gente que esconde os fatos, às vezes até mesmo por motivo justificado.

— E neste caso não podemos culpá-los, meu amigo.

— Não, mas isto torna nosso trabalho mais difícil — resmungou Japp.

Poirot consolou-o:

— Estas oportunidades servem apenas para realçar seu talento. E por falar nisto, como estamos de impres­sões digitais?

— Não há nenhuma na pistola, o que torna evidente que se trata de um assassinato. O revólver foi cuidadosa­mente limpo antes de ser colocado em sua mão. Mesmo que ela fosse uma contorcionista que conseguisse ter ati­rado com a pistola naquela posição, ser-lhe-ia impossível disparar a arma sem segurá-la, e nem ela poderia limpá-la depois de morta.

— Não há dúvida de que deve ter havido uma se­gunda pessoa.

— O resto do quarto também não tem impressões digitais. Nenhuma na maçaneta, nenhuma na janela. Curioso, não? Mas diversas impressões de Mrs. Allen nos outros lugares.

— Jameson teve algum sucesso?

— Com a faxineira? Nenhum. Ela fala muito, mas na verdade não sabe do muito. Confirmou que Mrs. Allen e Miss Plenderleith se davam bem. Mandei agora o Jame­son ouvir os outros moradores do beco. Vamos precisar falar também com Mr. Laverton-West. Descobrir onde ele estava ontem à noite e o que estava fazendo. Mas antes vamos dar uma olhada nos papéis de Mrs. Allen.

E pôs mãos à obra. De vez em quando resmungava e jogava algum papel na direção de Poirot. A busca não demorou muito, pois os papéis na escrivaninha eram pou­cos e estavam bem arrumados e rotulados.

O inspetor-chefe acabou por se erguer, deixando es­capar um suspiro.

— Quase nada, hem?

— Muito pouco.

— E tudo legal. Recibos, algumas contas ainda por pagar. Nada suspeito. Convites para festas, bilhetes de amigas. Você já deu uma espiada aí, no talão de cheques e na caderneta de depósitos? Algo de interessante?

— Só que ela tinha sacado além de seus fundos.

— Algo mais?

Poirot sorriu.

— Isto é um interrogatório? Mas sei onde você quer chegar. Ela fez uma retirada de 200 libras há três meses como despesas gerais... e outra ontem na mesma quantia.

— E o canhoto de ontem não diz nada. Além disso todas as outras retiradas para despesas gerais são de pe­quenas quantias... 15 libras no máximo. E vou lhe dizer mais. Não há nem sombra das 200 libras nesta casa. Tudo o que encontramos foram quatro libras numa bolsa e al­guns trocados em outra. Acho que não pode haver dúvida.

— De que ela pagou a alguém ontem?

— Sim. Mas a quem ela poderá ter pago?

A porta abriu-se e o inspetor Jameson entrou.

— Conseguiu alguma coisa, Jameson?

— Sim, chefe, diversas. Para princípio de conversa, ninguém ouviu o tiro. Duas ou três mulheres dizem que ouviram, mas são do tipo que tem uma imaginação mui­to fértil. Com aqueles fogos de artifício não dava mesmo para ninguém ouvir nada.

Japp grunhiu.

— Tem razão. Continue.

— Mrs. Allen não saiu de casa a maior parte da tarde e da noite de ontem. Ela entrou às cinco. Às seis saiu outra vez, mas foi só até a caixa dos correios, na esquina. Às nove e meia um carro chegou — um cupê Standard Swallow — com um passageiro, um homem de seus quarenta e cinco anos, de aparência militar, sobre­tudo azul, chapéu coco e bigode tipo escovão. James Hogg, um motorista particular que mora no número 18, diz que já o viu antes na casa de Mrs. Allen.

— Quarenta e cinco anos — murmurou Japp. Não pode ser o deputado.

— Este homem ficou durante quase uma hora. Saiu às dez e vinte e parou na porta para dizer alguma coisa a Mrs. Allen. O filho do motorista, Frederick Hogg, es­tava perto e ouviu suas palavras.

— E o que ele disse?

— “Pense bem e me dê uma resposta.” Em seguida Mrs. Allen disse alguma coisa e o homem respondeu: “En­tão está bem. Até breve.” Depois ele entrou no carro e afastou-se.

— Isto foi às dez e vinte — disse Poirot, pensativa­mente .

Japp esfregou o nariz.

— Então às dez e vinte Mrs. Allen estava viva — co­mentou.  E o que mais você conseguiu?

— Mais nada, chefe; pelo menos por enquanto. O motorista que mora no número 22 chegou às dez e meia e tinha prometido a seus filhos soltar alguns fogos. Os garotos tinham estado à espera... junto com uma porção de outros da vizinhança. Eles soltaram os fogos com mui­ta gente assistindo. Depois foi todo mundo para a cama.

— E ninguém mais foi visto entrando no número 14?

— Não, mas não quer dizer que alguém não tenha entrado. Não havia ninguém para ver.

— Hum — fez Japp. — É verdade.   Bom, vamos ter que descobrir quem é este cavalheiro com pinta de mi­litar e bigode escovão. Parece não haver dúvida de que ele foi o último a ver Mrs. Allen viva. Quem será o nosso amigo?

— Miss Plenderleith poderia nos dizer — sugeriu Poirot.

— Não duvido, mas é bem capaz dela não nos contar nada. Não tenho dúvida de que ela está escondendo al­guma coisa. O que você acha, Poirot? Você esteve sozi­nho um longo tempo com ela. Você não deu aquela de padre Confessor que em geral faz tanto sucesso?

Poirot abriu os braços.

— Não, falamos só de lareiras a gás.

— Lareiras a gás! — Japp parecia indignado. — O que que há com você, meu velho? Desde que você chegou não tem feito mais do que investigar penas de ave e cestas de papéis. É, eu vi você dando uma olhada na cesta de lixo do andar térreo. Achou alguma coisa?

Poirot suspirou.

— Um catálogo de plantas e uma revista velha.

— Mas o que você quer, afinal? Se alguém quisesse jogar fora algum documento incriminador, ou seja lá o que for, certamente não iria usar a cesta de papéis.

— Você tem toda razão. Só algo sem a menor im­portância seria atirado na cesta de papéis.

Poirot falou num tom de voz resignado, mas mesmo assim Japp olhou-o desconfiado.

— Bem — disse por fim. — Já sei o que vou fazer. E você?

— Eh bien — respondeu Poirot. — Vou continuar a procurar coisas sem importância.   Ainda há a lata de lixo.

E saiu da sala rapidamente. Japp continuou a olhá-lo com expressão de desagrado.

— Doido, só pode estar doido.

O inspetor Jameson manteve-se em respeitoso silên­cio. Seu rosto contudo falava por ele, com superioridade britânica: “Estes estrangeiros...”

Mas, em voz alta, o que ele acabou dizendo foi:

— Então este é o senhor Hercule Poirot. Já ouvi falar dele.

— Um velho amigo meu — explicou Japp. — Não é tão maluco quanto parece, mas a idade é sempre um problema.

— Deve estar ficando gagá, chefe, se me permite a expressão.

— Pode ser — continuou Japp —, mas mesmo assim gostaria de saber o que ele tem na cabeça.

E encaminhou-se para a escrivaninha, onde ficou a examinar desconfiado uma pena de escrever verde-esme­ralda.

 

Japp ia começar a conversar com a terceira esposa de motorista quando Poirot subitamente apareceu em seus calcanhares, caminhando tão silenciosamente quanto um gato.

— Epa, você me deu um susto — disse Japp. — Achou alguma coisa?

— Não o que eu estava procurando.

Japp voltou-se de novo para Mrs. James Hogg.

— A senhora tem certeza de que já tinha visto antes o homem que esteve ontem à noite com Mrs. Allen?

— Absoluta, chefe. E meu marido também. Nós o reconhecemos logo.

— Agora preste atenção, Mrs. Hogg. A senhora é uma mulher inteligente, qualquer um pode ver. Não tenho dúvida que a senhora deve estar muito bem informada sobre o que se passa aqui no beco. E a senhora é uma mulher de bom senso, um grande bom senso, é fácil de se ver — Japp mentia descaradamente, repetindo esta observação pela terceira vez. Mrs. Hogg empertigou-se to­da, assumindo um ar de inteligência quase sobrenatural. Japp prosseguiu:

— Fale-me destas duas moças, Mrs.  Allen e Miss Plenderleith. Elas eram do tipo leviano, de viver metidas em festas, em boates?

— Não, chefe, de jeito algum. Elas saíam bastante, especialmente Mrs. Allen, mas eram moças de classe, se o senhor me compreende, não como outras que moram no fim do beco. Tenho certeza que do jeito como aquela Mrs. Stevens anda, se é que ela é Mrs. mesmo, o que eu duvido... bem, do jeito que ela vive, eu...

— Compreendo, compreendo, interrompeu Japp. — O que a senhora acabou de me dizer é muito importante, Mrs. Hogg. Todos aqui gostavam de Mrs. Allen e Miss Plenderleith, não?

— Sim, todos. Elas eram muito boas, especialmente Mrs. Allen. Sempre amável com as crianças, sempre. Parece que sua filhinha tinha morrido, pobrezinha. É a vida, eu mesma já enterrei três meus. E o que sempre digo é que...

— Sim, sim, muito triste. E Miss Plenderleith?

— Ela também é uma boa moça, mas um pouco mais brusca, se o senhor me compreende. Apenas um cumprimento rápido quando passava, sem parar para conversar. Mas não tenho nada contra ela, nada.

— Ela e Mrs. Allen se davam bem?

— Sim. Nunca as vi discutindo. Sempre muito alegres e contentes. Tenho certeza que Mrs. Pierce vai confirmar o que digo.

— Sim, nós já falamos com ela. A senhora conhece de vista o noivo de Mrs. Allen?

— O moço com quem ela ia casar? Conheço. Ele vinha aqui freqüentemente. Dizem que é deputado.

— E não foi ele quem esteve aqui ontem à noite?

— Não, chefe, não foi — Mrs. Hogg empertigou-se de novo. Estava visivelmente excitada, mas assumiu uma expressão de rígida formalidade antes de prosseguir:

— E se o senhor me permite, chefe, o que o senhora está pensando está completamente errado. Mrs. Allen não era deste tipo, posso lhe assegurar. É verdade que não havia mais ninguém na casa, mas eu não acredito em nenhuma insinuação... Ainda hoje de manhã eu dizia a meu marido: “Não, Hogg, Mrs. Allen era uma senhora de classe, portanto não adianta vir com insinuações”, porque eu sei como os homens são, se o senhor me perdoa.  Sempre pensando em indecências.

Japp continuou, ignorando o insulto:

— A senhora viu este homem chegar e viu-o sair de novo, não?

— É verdade.

— E a senhora não ouviu nada? Nenhuma discussão?

— Não, nem era provável que ouvisse. Isto não quer dizer que não se possa ouvir nada, muito pelo contrário pois a Mrs. Stevens, por exemplo, está sempre gritando tanto com aquela pobre empregada dela que é impossível deixar de escutar...  e eu e muita gente mais já aconse­lhamos a pobre coitada a não tolerar mais a situação, mas o senhor sabe, o salário é bom... a dona tem um semana. dos diabos, mas paga alto... uma libra e meia por

Japp disse rapidamente:

     — Mas a senhora não ouviu nada parecido no nú­mero 14?

     — Não, chefe, nem era provável, com aqueles fogos de artifício explodindo por toda parte, que até queima­ram as sobrancelhas do meu pobre Eddie.

 — O homem que veio visitar Mrs. Allen saiu às dez e vinte, não é verdade?

— Não posso dizer com certeza, chefe. Mas meu marido diz que sim, e ele é homem de saber o que está falando.

— Mas a senhora viu o homem sair. A senhora ou­viu o que ele disse?

— Não, chefe. Eu não estava suficientemente perto. Apenas o vi de minha janela, de pé na porta, conversan­do com Mrs. Allen.

— A senhora viu Mrs. Allen também?

— Vi sim, chefe, ela estava na porta, mas do lado de dentro.

— Viu que roupa ela estava usando?

— Olhe, chefe, não reparei. Não estava prestando tanta atenção assim.

Poirot disse:

— Não deu nem para notar se ela estava vestida para sair ou com uma roupa de ficar em casa?

— Não, não deu.

Poirot olhou pensativamente para a janela da casa de Mrs. Hogg e depois para a do número 14, do outro lado da rua. Sorriu consigo mesmo e por um instante seu olhar se cruzou com o de Japp. — E o cavalheiro?

— Ele estava usando um sobretudo azul-escuro com um chapéu coco.  Muito distinto e elegante.

Japp fez mais algumas perguntas e passou depois próxima entrevista. Era com Frederick, um garoto de cara travessa, olhos vivos e ar de quem se achava enormemente importante.

— Sim, chefe, eu os ouvi conversando. “Pense bem e me dê sua resposta”, disse o cavalheiro. Com um tom de voz amável, o senhor compreende. Então a senhor respondeu alguma coisa e ele continuou: “OK. Até breve.” Então o cavalheiro entrou no carro... eu lhe abri a porta, mas ele não me deu nada... — informou Frederick Hogg, com um ligeiro tom de censura na voz, finalizando:

— E ele foi embora.

— Você não ouviu o que Mrs. Allen disse?

— Não, chefe, não deu para ouvir.

— Sabe me dizer o que ela estava usando? A cor de vestido, por exemplo?

— Não reparei, chefe. O senhor compreende, eu não cheguei a vê-la. Ela devia estar atrás da porta.

— É provável — disse Japp. — Agora preste atenção meu filho, porque eu quero que você responda minha próxima pergunta com muito cuidado. Se você não souber ou não puder se lembrar diga. Está bem claro?

— Sim, chefe.

Frederick Hogg olhava-o com grande atenção.

— Qual dos dois fechou a porta, a senhora Allen ou o cavalheiro?

— A porta da frente?

— A porta da frente, claro.

O rapazinho refletia. Seus olhos mostravam seu esforço de concentração.

— Acho que foi a senhora... Não, não foi ela, foi ele. Puxou a porta, porque eu até me lembro quando ela bateu, e entrou depressa no carro. Parecia até que estava atrasado para algum encontro.

— Muito bem, meu filho, você parece um rapaz inteligente. Tome aqui este dinheiro.

Depois de mandar Frederick Hogg embora Japp voltou-se para seu amigo. Lentamente suas cabeças se inclinaram em sinal de concordância.

— Pode ser — comentou Japp.

— Há possibilidades — respondeu Poirot.

Seus olhos verdes brilhavam como os de um gato.

 

Ao voltar à sala de visitas do número 14, Japp não perdeu tempo com cerimônias. Foi diretamente ao as­sunto.

— Olhe aqui, Miss Plenderleith, a senhorita não acha melhor contar logo toda a verdade? Vamos acabar des­cobrindo, de qualquer jeito.

Jane Plenderleith ergueu as sobrancelhas. Ela estava em frente à lareira, procurando aquecer um pé próximo à chama.

— Não sei do que o senhor está falando.

— Não sabe mesmo, Miss Plenderleith?

Ela sacudiu os ombros.

— Eu já respondi todas as suas perguntas. Não sei o que mais posso fazer pelo senhor.

— Bem, na minha opinião a senhorita poderia fazer muito mais, desde que tivesse vontade.

— Mas isto não passa de uma opinião, não é, chefe?

O rosto de Japp começou a dar alarmantes sinais de apoplexia.

— Eu acho — interrompeu Poirot vivamente — que mademoiselle perceberia melhor onde você quer che­gar com suas perguntas se você lhe dissesse como a si­tuação está, no momento.

— É simples — tornou Japp. — Os fatos são os seguintes, Miss Plenderleith: sua amiga foi encontrada com um tiro na cabeça, com uma pistola na mão, e tanto a porta quanto a janela trancadas. Parecia um evidente caso de suicídio, mas não era suicídio. O simples exame médico-legal afasta esta hipótese.

— Como?

Toda a irônica tranqüilidade de Miss Plenderleith tinha desaparecido. Ela inclinou-se em direção a Japp, ouvindo suas palavras com ansiedade.

— A pistola estava em suas mãos, mas ela não a estava segurando. Além do mais, não havia qualquer im­pressão digital. E o ângulo de entrada da bala prova ser impossível que ela tenha disparado a arma. Mais ainda, ela não deixou nenhuma carta ou bilhete... coisa muito estranha para uma suicida.  E embora a porta estivesse fechada, a chave não foi encontrada.

Jane Plenderleith voltou-se vagarosamente e sentou-se em uma cadeira em frente a Japp.

— Então é isto! — exclamou. — Eu bem que estava achando impossível que Bárbara tivesse se suicidado. Eu estava certa! Ela não se suicidou. Alguém a matou.

Por alguns momentos ela pareceu mergulhada em seus pensamentos. Voltando a si, ergueu a cabeça num gesto brusco.

— Estou à sua disposição para qualquer pergunta, inspetor, e procurarei respondê-las da melhor maneira possível.

Japp começou:

— Alguém veio visitar Mrs. Allen ontem à noite. Um homem de seus 45 anos, aspecto de militar, bigode grande, bem vestido e dirigindo um cupê Standard Swallow; sabe quem é esse homem?

— Não posso responder com certeza, mas me pare­ce ser o major Eustace.

— Quem é esse major Eustace? Diga-me tudo o que sabe dele.

— É um velho conhecido de Bárbara do estran­geiro, da Índia. Ele reapareceu há coisa de um ano, e desde então o temos visto algumas vezes.

— Ele era amigo de Mrs. Allen?

— Parecia ser — respondeu Jane secamente.

— Como ela o tratava?

— Eu não acho que ela gostasse muito dele. Na verdade, tenho certeza que não gostava.

— Mas ela o tratava com amabilidade?

— Sim.

— Alguma vez ela deu a impressão de estar — pense bem, Miss Plenderleith — de estar com medo dele?

Jane Plenderleith pensou por um minuto ou dois antes de responder. E então disse:

— Sim, acho que ela tinha medo dele. Ela sempre ficava nervosa quando ele aparecia.

— Ele e Mr. Laverton-West se encontraram algu­ma vez?

— Acho que uma vez, mas não me pareceu terem se simpatizado muito um com o outro. Ou, para ser mais cla­ra, o major Eustace estava procurando ser agradável, mas Charles não estava querendo saber de conversa. Charles tem um ótimo faro para gente... gente que não é muito boa.

— E o major Eustace não é o que a senhorita cha­maria gente boa? — perguntou Poirot.

Ela respondeu friamente:

— Não, não era. Um sujeito falso, sem classe.

— Em outras palavras, não é o que os indianos chamariam um autêntico sahib?

A sombra de um sorriso passou pelo rosto de Jane Plenderleith, mas sua resposta foi séria:

— Não.

— A senhorita se surpreenderia muito, Miss Plen­derleith, se eu sugerisse que este major Eustace estava chantageando Mrs. Allen?

Japp chegou-se mais perto para observar a impres­são de suas palavras.

O resultado o deixou satisfeito. A moça estremeceu, seu rosto ficou vermelho e ela bateu com força no braço da cadeira.

— Então é isto. Que idiota eu fui de não ter per­cebido logo. É claro como água.

— A senhorita acha a sugestão plausível? — per­guntou Poirot.

— Claro que sim. Bárbara vinha me pedindo di­nheiro emprestado nos últimos seis meses, e diversas vezes a vi consultando sua caderneta de depósitos. Eu nunca me preocupei, pois sabia que ela tinha uma boa renda, mas se estava sendo vítima de uma chantagem, então...

— E isto explicaria seu comportamento nos últi­mos tempos? — insistiu Poirot.

— Explicaria. Ela andava nervosa, agitada. Com­pletamente diferente do que costumava ser.

Poirot disse brandamente:

— Perdão, mas isto não é o que a senhorita disse antes.

— Antes era diferente — Jane Plenderleith respon­deu com impaciência. — Bárbara não estava deprimida, tenho certeza de que não andava pensando em suicídio. Mas chantagem... aí a coisa é outra. Gostaria que ela tivesse me contado. Eu o teria mandado para o inferno.

— Aí talvez ele fosse não ao inferno, mas a Mr. Charles Laverton-West — observou Poirot.

— Sim — disse Jane, vagarosamente. — Sim... é verdade.

— A senhorita não tem idéia do que ele estava usando para chantageá-la?  — perguntou Japp.

A moça balançou a cabeça.

— Não tenho a menor idéia. Mas conhecendo Bár­bara como eu conhecia, tenho certeza de que não podia ser nada muito sério. Por outro lado... — ela se inter­rompeu, mas depois prosseguiu:

— O que eu quero dizer é que Bárbara era um pouco simplória. Seria fácil amedrontá-la. Na verdade ela era o tipo de garota que seria um presente dos céus a um chantagista.  Sujeito nojento!

Ela atirou o insulto com ódio na voz.

— Infelizmente — observou Poirot —, este crime parece ter acontecido ao contrário. Em geral é a vítima quem mata o chantagista, não o chantagista à sua vítima.

Jane Plenderleith enrugou a testa.

— É verdade, mas, talvez, nas circunstâncias...

— Quais circunstâncias?

— Suponha que Bárbara estivesse desesperada. Ela pode tê-lo ameaçado com aquela pequena pistola. Ele tentou arrancá-la dela e na luta a arma disparou acidentalmente e a matou. Ele se assustou e procurou si­mular um suicídio.

— Talvez — observou Japp. — Mas há um peque­no problema.

Ela olhou-o interrogativamente.

— O major Eustace, se era ele mesmo, saiu daqui ontem às dez e vinte da noite e se despediu de Mrs. Allen na porta.

— Oh — o desapontamento era evidente no rosto da moça —, compreendo. — Ela ficou em silêncio por um minuto.

— Mas ele pode ter voltado — insistiu.

— Sim, é possível — disse Poirot.

Japp continuou:

— Diga-me, Miss Plenderleith, Mrs. Allen em geral recebia as visitas aqui ou no quarto?

— Indiferentemente. Mas esta sala em geral era usa­da mais para amigos comuns de nós duas ou então os meus amigos particulares. O senhor sabe, nossa combinação era de que Bárbara ficava com o quarto grande e o usava também como sala de visitas, enquanto eu tinha o quarto pequeno e ficava com o uso desta sala.

— Se o major Eustace tinha um encontro mar­cado ontem à noite, a senhorita acha que Mrs. Allen o receberia aqui ou em seu quarto?

— Acho que aqui, pois daria uma atmosfera menos íntima. Por outro lado, se ela quisesse fazer um cheque ou qualquer coisa assim, é bem possível que o tivesse levado a seu quarto. Não há canetas aqui.

Japp sacudiu a cabeça.

— Não há hipótese de que tenha escrito um cheque. Ela tinha feito uma retirada de 200 libras e não encon­tramos nem sinal desse dinheiro na casa.

— E ela o deu àquele nojento? Oh, meu Deus, pobre Bárbara...

Poirot tossiu.

— Como a senhorita mesma disse, a não ser que tenha sido um acidente, parece estranho que ele tenha resolvido matar sua fonte de renda.

— Acidente? Não foi acidente. Ele perdeu a cabeça, viu tudo vermelho à sua frente e a matou.

— É o que a senhorita pensa que aconteceu?

— É — acrescentou ela com veemência. — Foi assas­sinato... assassinato.

Poirot disse com gravidade:

— Não direi que a senhorita esteja errada.

Japp perguntou:

— Que tipo de cigarro Mrs. Allen fumava?

— Ingleses, mas dos baratos. Há alguns naquela ci­garreira.     

Japp abriu a cigarreira, tirou um cigarro e guardou-o em seu bolso.

— E a senhorita? — perguntou Poirot.

— Os mesmos.

— A senhorita não fuma cigarros turcos?

— Nunca.

— Nem Mrs. Allen fumava?

— Não. Ela não gostava.

Poirot perguntou:

— E Mr. Laverton-West? O que ele fumava?

Ela olhou-o com dureza.

— Charles? E que importa saber o que ele fumava? O senhor não vai querer dizer que ele a matou, vai?

Poirot sacudiu os ombros.

— Não seria a primeira vez que um homem mata a mulher que ama, mademoiselle.

Jane sacudiu a cabeça com impaciência.

— Charles não mataria ninguém. Ele é cuidadoso demais para isso.

— São os homens cuidadosos que cometem os cri­mes mais engenhosos, mademoiselle.

Ela continuava a olhá-lo fixamente.

— Mas não pelo motivo que o senhor acaba de ale­gar, Monsieur Poirot.

Ele fez uma mesura.

— Não, é verdade.

Japp ergueu-se.

— Bem, não creio que haja muito mais a fazer aqui. Mas gostaria de uma última olhadela pela casa.

— Caso o dinheiro esteja escondido em algum lu­gar? Com o maior prazer. Procure onde quiser... e no meu quarto também.  Mas não creio que Bárbara o es­condesse lá.

A busca de Japp foi rápida mas eficiente. A sala de visita tomou-lhe apenas alguns minutos e em segui­da ele passou ao andar de cima. Jane Plenderleith dei­xou-se estar sentada no braço de uma poltrona, fuman­do um cigarro e olhando pensativamente as chamas da lareira. Poirot a observava.

Alguns minutos mais tarde ele disse brandamente:

— A senhorita sabe se Mr. Laverton-West encontra-se hoje em Londres?

— Não tenho a menor idéia, mas acho que é capaz dele estar em seu distrito, em Hampshire. Acho melhor mandar-lhe um telegrama, tinha me esquecido disto.

— Não é fácil se lembrar de todos os detalhes, mademoiselle, quando acontece uma tragédia. E as más notícias sempre chegam cedo demais. Nunca se deve ter muita pressa para dá-las.

— É mesmo — concordou a moça, com ar distraído.

Podiam-se ouvir já os passos de Japp descendo as escadas. Jane foi ao seu encontro.

— E então?

Japp balançou a cabeça negativamente.

— Receio que não tenha encontrado nada, Miss Plenderleith. Procurei em toda parte, falta só este ar­mário embaixo das escadas.

Enquanto falava, o inspetor-chefe tomava da maça­neta e a torcia.

Jane Plenderleith disse:

— Ele está trancado.

Algo em sua voz fez os dois homens olharem-na com curiosidade.

— Sim — disse Japp em tom amável. Estou vendo que está trancado. Talvez a senhorita tenha a bondade de nos trazer a chave.

A moça estava imóvel, como que esculpida em pedra.

— Eu... eu não tenho certeza onde está a chave.

Japp deu-lhe uma mirada rápida. Sua voz continua­va amável, mas suas palavras eram precisas.

— Que azar, não é mesmo? Seria uma pena ter que arrombá-la. Vou mandar Jameson trazer uma cole­ção de chaves da delegacia.

Ela moveu-se afinal.

— Ah... espere um instante. Pode ser que eu...

Jane desapareceu em direção à sala de visitas e daí a pouco reaparecia com uma grande chave na mão.

— Nós costumamos escondê-la — explicou — por­que nossos guarda-chuvas viviam desaparecendo.

— Uma precaução elogiável — concordou Japp, to­mando a chave de bom grado.

Ele colocou-a na fechadura, girou-a e abriu a porta. O armário estava escuro e Japp precisou usar uma lanterna.

Poirot sentiu que a moça se tornava tensa e prendia a respiração. Seus olhos acompanhavam o facho da lan­terna de Japp.

O armário estava quase vazio. Três guarda-chuvas, um dos quais quebrado, quatro bengalas, um jogo de tacos de golfe, duas raquetes de tênis, um tapete bem enrolado e diversas almofadas em melhor ou pior estado de conservação. Sobre estas últimas estava uma pequena valise.

Quando Japp se preparava para pegá-la, Jane Plen­derleith disse rapidamente.

— É minha. Eu a trouxe comigo quando cheguei hoje de manhã. Não há nada aí dentro.

— Vamos dar uma espiada só para nos certificar­mos — disse Japp com um tom de amabilidade um pou­co mais forçada na voz.

A valise estava destrancada. Dentro Japp encontrou escovas de camurça e pequenos vidros de perfume e lo­ções. Havia ainda duas revistas, mas nada mais.

Japp examinou tudo com grande atenção. Quando finalmente fechou a valise e passou adiante, a jovem soltou um bem audível suspiro de alívio.

Não havia nada de especial no resto do armário e logo Japp deu suas investigações por encerradas. Tran­cou de novo a porta e entregou a chave a Jane Plen­derleith.

— Bem — disse ele —, isto encerra os nossos tra­balhos. A senhorita pode me dar o endereço de Mr. Laverton-West?

— Farlescombe Hall, Little Ledbury, Hampshire.

— Obrigado, Miss Plenderleith. É tudo por enquan­to, mas eu talvez tenha que voltar mais tarde. Por falar nisso, bico calado. Se alguém perguntar alguma coisa, diga que foi suicídio mesmo.

— Claro, compreendo.

Ao despedir-se, ela apertou as mãos de ambos.

Ao chegarem ao fim do beco, Japp explodiu:

— Que diabo havia naquele armário? Há alguma coisa lá.

— Sim, há alguma coisa — concordou Poirot.

— E aposto que é alguma coisa naquela valise. Mas, que nem um idiota, não consegui descobrir. Examinei o forro, olhei dentro dos vidros.. . que diabo poderia ser?

Poirot sacudiu a cabeça pensativamente.

— Esta moça está implicada na história — con­tinuou Japp. — Trouxe aquela valise hoje de manhã? Nunca na vida. Você reparou que dentro havia duas revistas?

— Reparei. E daí?

— Bem, uma delas era do mês de Julho.

 

 No dia seguinte Japp chegou ao apartamento de Poirot bufando de raiva.

— Ela está inocente!

— Quem está inocente?

— Plenderleith. Ficou jogando bridge até a meia-noite. Tanto os anfitriões quanto um outro hóspede e dois criados confirmaram seu álibi. Não pode haver dú­vida, temos que procurar em outro lugar. Mesmo assim, queria saber ainda por que ela ficou tão perturbada quan­do abrimos aquela valise. Este é um caso para você, Poirot. Você é quem gosta destas trivialidades que não conduzem a nada. O Mistério da Valise no Beco. Até que não soa mal.

— Eu sugeriria um título diferente. O Mistério do Cheiro da Fumaça de Cigarro.

— Não soa tão bem. Mas por que cheiro?  Era por isto que você estava fungando tanto enquanto examina­va o cadáver? Pensei que você estivesse resfriado.

— Você se enganou.

Japp suspirou.

— Sempre pensei que fossem apenas suas pequenas células cinzentas. Não me diga que as células de seu olfato são também superiores às dos outros seres humanos.

— Não, não são. Tranqüilize-se.

— Eu não senti nenhum cheiro de cigarro — con­tinuou Japp, com uma expressão desconfiada.

— Nem eu, meu caro.

Japp olhou-o com ar de dúvida e finalmente tirou um cigarro do bolso:

— Esta é a marca que Mrs. Allen fumava. Ingle­ses. Seis das pontas encontradas no cinzeiro eram dela. As outras três eram de cigarros turcos.

— Exatamente.

— Suponho que seu maravilhoso nariz tenha fare­jado isto sem precisar olhar no cinzeiro.

— Posso lhe assegurar que meu nariz não tem nada a ver com o caso. Meu nariz não farejou nada.

— Mas as células cinzentas farejaram?

— Bem, havia um ou dois sinais indicativos... Você não concorda?

Japp olhou-o de soslaio.

— Que sinais?

— Eh bien... sem dúvida alguma faltava uma coisa naquele quarto. Por outro lado, havia algo demais... E, na escrivaninha...

— Eu sabia! Sabia que você ia acabar falando na­quela maldita pena de escrever.

— Du tout. A pena de escrever desempenha um papel meramente negativo.

Japp bateu em retirada para terreno mais seguro.

— Charles Laverton-West vai me encontrar na Scotland Yard dentro de meia hora. Pensei que você gos­taria de estar presente.

— Gostaria mesmo.

— E saiba também que descobrimos onde está o major Eustace. Tem um pequeno apartamento na Crom­well Road.

— Ótimo.

— E acho que vamos ter muito que investigar a seu respeito. Minhas informações são de que ele é um tipo bastante suspeito. Depois de conversarmos com La­verton-West vamos vê-lo. De acordo?

— Perfeitamente.

— Então vamos.

Às onze e meia Charles Laverton-West foi levado à presença do inspetor-chefe, que se levantou para cum­primentá-lo.

O deputado era um homem de estatura mediana e individualmente bem definido. Tinha o rosto bem bar­beado, a boca expressiva de um ator e os olhos ligeira­mente esbugalhados que tão freqüentemente se notam nos homens de talento oratório. Era a seu jeito um ho­mem bem apessoado, com modos discretos e bem educa­dos. Embora um pouco pálido e abalado, conduzia-se com distinção e serenidade.

Ele sentou-se, pôs as luvas e o chapéu sobre a mesa e olhou para Japp.

— Primeiramente gostaria de lhe dizer, Mr. La­verton-West, que compreendo perfeitamente como tudo isto deve lhe ser penoso.

Laverton-West afastou os pêsames com um gesto de mão.

— Deixemos meus sentimentos de lado. Diga-me, inspetor-chefe, o senhor tem alguma idéia do motivo que levou minha... Mrs. Allen a se matar?

— Estávamos contando com sua ajuda para des­cobrir.

— Não tenho a menor idéia.

— Vocês não brigaram? Não tiveram algum rom­pimento?

— Nada, absolutamente. O suicídio foi uma surpre­sa enorme para mim.

— Talvez as coisas se tornem mais fáceis de com­preender, senhor, se eu lhe disser que não foi suicídio... mas assassinato.

— Assassinato? — os olhos de Charles Laverton-West quase lhe saltaram dás órbitas. — O senhor dis­se assassinato?

— Exatamente. Agora, Mr. Laverton-West, o senhor tem alguma suspeita de quem poderia querer matar Mrs. Allen?

A resposta veio num jorro.

— Não, não, nenhuma. A mera idéia é revoltante.

— Ela nunca lhe falou de nenhum inimigo? Alguém que lhe guardasse algum ressentimento?

— Nunca.

— O senhor sabia que ela tinha uma pistola?

— Não tinha a menor idéia.

Laverton-West parecia surpreso.

— Miss Plenderleith diz que Mrs. Allen trouxe esta arma com ela quando regressou do estrangeiro, há alguns anos.

— Isto para mim é novidade.

— É claro que só temos a palavra de Miss Plenderleith neste sentido. É bem possível que Mrs. Allen conservasse a pistola por se sentir sob alguma ameaça.

Charles Laverton-West balançava a cabeça com ar de dúvida. Seu aspecto era de um homem perplexo e aturdido.

— O que o senhor acha de Miss Plenderleith, Mr. Laverton-West? Quero dizer, ela lhe parece uma moça de confiança?

Laverton-West pensou por um momento.

— Sim, acho que sim... acho que sim.

— O senhor não gosta muito dela, não?  — insinuou Japp, que tinha estado a observá-lo com atenção.

— Não diria assim. Ela não é do tipo que mais admiro... é muito sarcástica, muito independente. Mas eu diria que é uma moça de confiança.

— Compreendo — disse Japp. — O senhor conhece um tal major Eustace?

— Eustace? Eustace? Ah, sim, lembro-me do nome Encontrei-o uma vez em casa de Bárbara, quero dizer. Mrs.  Allen. Não fui muito com seu jeito e disse isto a minha... à senhora Allen. Ele não era do tipo que gostaria de ver em nossa casa depois que casássemos.

— E o que disse Mrs. Allen?

— Ela concordou logo, pois confiava muito em meu julgamento. Um homem conhece os outros melhor que as mulheres. Ela me explicou que não queria ser grosseira com um conhecido que não via há tempos... Acho que ela tinha medo de passar por esnobe. É natural que depois de casada ela achasse alguns de seus velhos conhecidos um pouco, digamos assim, inadequados.

— O senhor quer dizer que casando-se com o senhor ela estava subindo de posição social? — perguntou Japp, sem meias palavras.

Laverton-West ergueu suas mãos bem manipuladas.

— Não, não, não precisamente. Na realidade Mrs. Allen e eu éramos parentes, embora distantes, mas nossa posição social era absolutamente a mesma. É claro porém que, como deputado, eu tenho que ser muito cuidadoso na escolha de meus amigos, e minha mulher também. Um parlamentar está sempre em grande evidência.

— Não há dúvida — admitiu Japp friamente, prosseguindo:

— O senhor então não sabe de nada que possa nos ajudar?

— Não, nada. Bárbara... assassinada! Parece incrível!

— Agora, Mr. Laverton-West, o senhor poderia nos dizer o que o senhor fez na noite de 5 de novembro?

— O que eu fiz? O que quer o senhor dizer com isto?

— A voz de Laverton-West mostrava sua indig­nação.

— É apenas uma questão de rotina — explicou Japp. — Nós... nós temos que perguntar a todo mundo.

Charles Laverton-West olhou-o com ar de dignidade ultrajada.

— Eu pensei que um homem em minha posição pudesse ser dispensado.

Japp limitou-se a esperar.

— Eu... deixe-me ver. Ah, sim. Eu estava na Câmara. Saí às dez e meia e fui dar um longo passeio ao longo do Tâmisa, olhando os fogos de artifício.

— É reconfortante saber que hoje em dia não há conspirações para explodir o Parlamento — observou Japp alegremente.

Laverton-West limitou-se a lançar-lhe um olhar gelado.

— E depois fui para casa. A pé.

— O senhor mora na Onslow Square, não? A que horas o senhor chegou lá?

— Difícil dizer com certeza.

— Onze, onze e meia?

— Mais ou menos por aí.

— Alguém abriu a porta para o senhor?

— Não, eu tenho minha própria chave.

— Encontrou-se com alguém enquanto caminhava?

— Não. Francamente, inspetor-chefe, suas perguntas chegam a ser ofensivas!

— Posso lhe garantir que é uma simples questão de rotina, Mr. Laverton-West. Nada pessoal.

A resposta pareceu acalmar um pouco o irritado deputado.

— Se isto é tudo...

— É tudo por enquanto, Mr. Laverton-West.

— Por favor, mantenha-me informado.

— Com todo prazer. Por falar nisso, deixe-me apresentar-lhe monsieur Hercule Poirot. O senhor talvez tenha ouvido falar dele.

Mr. Laverton-West fixou um olhar curioso no peque-nino belga.

— Sim, sim... já ouvi o nome.

— Monsieur — começou Hercule Poirot, com modos subitamente muito estrangeiros. — Queira receber meus mais profundos sentimentos por sua grande perda. Seu sofrimento deve ser enorme! Ah, mas não quero me alongar no assunto. Os ingleses sabem esconder suas emoções maravilhosamente.

Dizendo isto, Poirot puxou de sua cigarreira:

— Permita-me oferecer-lhe um... Oh, está vazia Japp?

Japp deu uma busca rápida em seus bolsos e balançou a cabeça negativamente.

Laverton-West então tirou de sua própria cigarreira murmurando:

— Aceite um dos meus, monsieur Poirot.

— Obrigado, obrigado.

— Como o senhor ia dizendo, monsieur Poirot, nós ingleses não colocamos nossas emoções numa vitrina. Agüentar firme, eis a nossa divisa.

Ele fez uma mesura e saiu.

— Bastante pretensioso — comentou Japp. — Miss Plenderleith tinha razão a seu respeito. Só uma moça sem muito senso de humor cairia por um tipo as­sim. Que tal o cigarro que ele lhe deu?

Poirot mostrou-o, sacudindo a cabeça.

— Egípcio, e dos caros.

— É uma pena, pois nunca ouvi um álibi menos consistente. Na verdade, nem chegava a ser um álibi. Você sabe, Poirot, é pena que a história não seja um pouco diferente. Suponha que Mrs. Allen o estivesse chantageando. Ele é o tipo ideal para uma chantagem... Fa­ria tudo para evitar um escândalo.

— Meu amigo, pode ser muito agradável recriar um caso da maneira que lhe parece mais conveniente, mas nós temos coisas mais importantes a fazer.

— Sim, temos que interrogar Eustace. Já andei tomando informações sobre ele e me parece um tipo meio repugnante.  — Por falar nisso, você fez aquilo que eu sugeri a propósito de Miss Plenderleith?

— Fiz mas espere um segundo. Vou telefonar e saber das últimas notícias.

Depois de uma rápida conversação ao telefone, Japp virou-se para Poirot.

— É incrível a insensibilidade de certas pessoas. Miss Plenderleith foi jogar golfe. Bonita coisa para se fazer quando sua melhor amiga acaba de ser assassinada.

Poirot deu um grito.

— Que foi? — perguntou Japp.

Mas Poirot limitava-se a murmurar consigo mesmo:

 — É claro, é claro... é evidente... Que imbecil eu fui. Claro, a verdade salta aos olhos.

Japp estava impaciente:

— Pára de resmungar e vamos interrogar Eustace.

Sua surpresa aumentou ao ver um sorriso radiante espalhar-se no rosto de Poirot.

— Com muito prazer, vamos interrogá-lo. agora, você compreende, eu já sei de tudo. De tudo.

 

O major Eustace recebeu-os com a tranqüila confiança de um profundo conhecedor das coisas do mundo.

Seu apartamento era pequeno, apenas um alojamento provisório, explicou. Ofereceu uma bebida a seus visitantes e, tendo eles recusado, abriu sua cigarreira.

Tanto Japp quanto Poirot aceitaram de imediato, trocando rapidamente um olhar.

— Vejo que o senhor gosta de cigarros turcos — disse Japp enquanto rolava o cigarro entre os dedos.

— Sim. O senhor prefere nacionais? Devo ter alguns por aqui.

— Não, não, este está muito bom. Então Japp inclinou-se, mudando de tom:

— O senhor sabe por que viemos procurá-lo?

O major Eustace sacudiu a cabeça. Seu aspecto era imperturbável. Era um homem alto e até atraente, mas seus modos não ocultavam uma certa vulgaridade. Seus olhos pequenos e astutos estavam um pouco inchados e de certa forma traíam a cordialidade de suas palavras

Ele disse:

— Não, não tenho idéia do que possa trazer à minha presença alguém tão importante quanto um inspetor-chefe. Algo de errado com o meu carro?

— Não, não é o seu carro que me preocupa. Acho que o senhor conheceu uma Mrs. Bárbara Allen, não, major Eustace?

O major resfolegou, refestelou-se mais na poltrona, expeliu uma baforada de fumaça e respondeu, com um tom de alívio na voz:

— Ah, então é isto. Claro, eu devia ter adivinhado logo. Que tragédia, hem?

— O senhor sabe o que aconteceu?

— Li nos jornais. Lamentável.

— Creio que o senhor e Mrs. Allen se conheceram na Índia.

— É verdade. Há alguns anos atrás.

— O senhor também conheceu seu marido?

Houve uma pequena pausa. Uma mera fração de segundo, mas os pequenos olhos matreiros tiveram tempo para estudar rapidamente os dois homens em frente. Finalmente ele respondeu:

— Não, para falar a verdade nunca fui apresen­tado a Allen.

— Mas o senhor o conhecia, ou sabia a seu respeito.

— Ouvi dizer que não tinha muito boa fama. Mas apenas rumores, o senhor compreende...

— Mrs. Allen nunca comentou coisa alguma a res­peito?

— Nunca me falou dele.

— O senhor e Mrs. Allen eram amigos íntimos?

O major Eustace deu de ombros.

— Tudo que posso lhe dizer é que éramos velhos amigos. Mas não nos víamos com muita freqüência.

— Mas o senhor esteve com ela na noite de sua morte? Na noite de cinco de novembro?

— Sim, estive.

— O senhor foi à sua casa, creio.

 — Sim, ela tinha me pedido minha opinião a pro­pósito de uns investimentos que pensava fazer. Percebo onde o senhor quer chegar. O senhor quer me perguntar em que estado de espírito estava Mrs. Allen. Bem, é di­fícil de explicar. Seus modos pareciam normais, mas ao mesmo tempo ela estava um pouco sobressaltada.

— Mas ela não lhe deu a menor indicação do que pretendia fazer?

— Não, nenhuma. Na verdade, quando me despedi disse-lhe que lhe telefonaria em breve para irmos a um teatro e ela concordou.

— O senhor lhe disse que lhe telefonaria. Estas fo­ram suas últimas palavras?       

— Sim.

— É curioso. Tenho informações de que o senhor disse algo completamente diferente.

Eustace ficou vermelho.

— Bem, não posso ter certeza de quais foram exatamente minhas palavras.

— A informação que eu tenho foi de que o senhor disse. “Pense bem e me dê sua resposta”.

— Deixe-me ver. Sim, sim. Mas as palavras também não foram exatamente estas. Eu estava lhe sugerindo que ela me avisasse quando estivesse disponível.

— Bem diferente do que o senhor me disse primeiro, não? — perguntou Japp.

O major Eustace deu de ombros.

— Meu caro, o senhor não pode exigir que alguém se lembre com precisão das palavras que disse há dois dias.

— E qual foi a resposta de Mrs. Allen?

— Disse-me que me telefonaria.  Ou pelo menos é o que me lembro.

— E o senhor então disse: “Está bem, até breve?”

— Provavelmente. Algo mais ou menos assim.

Japp prosseguiu, em voz calma:

— O senhor diz que Mrs. Allen pediu-lhe sua opinião a propósito de uns investimentos. Por acaso ela lhe confiou a quantia de 200 libras para o senhor aplicar em nome dela?

O rosto de Eustace tornou-se convulso. Ele chegou-se mais à frente e rosnou:

— Que diabo o senhor está querendo insinuar?

— Ela lhe deu o dinheiro ou não?

— Não é de sua conta, inspetor-chefe.

Japp limitou-se a continuar, ainda calmo:

— Mrs. Allen tinha feito uma retirada de 200 libras naquele dia, a maior parte delas em notas de cinco libras. Estas notas são numeradas, como o senhor sabe.

— E que tem de mais se Mrs. Allen me deu o dinheiro?

— Era um investimento, major Eustace, ou era uma chantagem?

— Esta idéia é absurda. O que mais o senhor tem a insinuar?

Japp disse, no seu tom mais burocrático:

— Acho, major Eustace, que a esta altura preciso convidá-lo a vir comigo à Scotland Yard e prestar suas declarações por escrito. O senhor tem evidentemente liberdade para recusar-se e tem também o direito de exigir a presença de seu advogado.

    — Advogado? Para que diabo eu preciso de um ad­vogado? E para que o senhor quer minhas declarações?

— Para minhas investigações sobre as circunstân­cias da morte de Mrs. Allen.

— Deus do céu, o senhor não está pensando... É um absurdo. Olhe aqui, o que se passou foi o seguinte. Eu tinha um encontro marcado com Bárbara...

— A que horas?

— Nove e meia, mas eu cheguei um pouco depois. Nós nos sentamos e conversamos...

— E fumaram?

— Sim, e fumamos. Algo de errado nisso? — quis saber o major em tom beligerante.

— E onde foi essa conversa?

— Na sala de visitas. A esquerda de quem entra. Nossa conversa foi bastante amistosa. Saí pouco antes das dez e meia. Na porta parei para algumas últimas palavras...

— Últimas palavras... realmente — murmurou Poirot.

— E quem é o senhor, afinal de contas? — pergun­tou Eustace, virando-se para ele. — Algum maldito es­trangeiro. Por que é que o senhor tem de se intrometer?

— Eu sou Hercule Poirot — disse o homenzinho, com dignidade.

— Pouco se me dá que o senhor seja a própria es­tátua de Aquiles. Como eu ia dizendo, Bárbara, e eu nos despedimos amistosamente e fui de carro diretamente ao Clube do Extremo Oriente. Cheguei lá às dez e trinta e cinco e fui à sala de jogo.  Fiquei lá jogando bridge até a uma e meia da manhã. E agora, o que o senhor tem a dizer?

— Me parece um bom álibi — concordou Poirot.

  — Bom não, excelente. E o senhor, inspetor-chefe, esta satisfeito?

— O senhor ficou o tempo todo na sala de visitas?

— Sim.

— O senhor não esteve em momento algum no quarto de Mrs. Allen?

— Não, posso garantir-lhe. Permanecemos o tempo todo na sala e nenhum de nós saiu dela em momento algum.

Japp encarou-o pensativamente por um minuto ou dois. Finalmente perguntou:

— Quantos jogos de abotoaduras o senhor tem?

— Abotoaduras? O que é que abotoaduras têm a ver com nossa conversa?

— O senhor tem o direito de não responder, se quiser

— Responder? Não me importo de responder, pois não tenho nada a esconder. E quando isto estiver terminado vou exigir um pedido de desculpas. Tenho estas — disse Eustace, estendendo os punhos.

Japp examinou-as rapidamente.

— E estas.

Eustace levantou-se, abriu uma gaveta e abriu uma pequena caixa, estendendo-a bruscamente na direção de Japp.

— Muito bonitas — observou o inspetor-chefe. — Vejo que uma está quebrada, falta uma pequena lasca.

— E daí?

— O senhor não se lembra quando isto aconteceu?

— Um dia ou dois, não mais.

— O senhor se surpreenderia se eu lhe disse que foi na casa de Mrs. Allen?

— E por que iria me surpreender? Não nego que tenha estado lá. — As palavras do major vinham cheias de arrogâncias. Ele continuava a vociferar, a desempenhar o papel do homem justamente indignado, mas suas mãos tremiam.

Japp inclinou-se e colocou ênfase em suas palavras:

— Aquele pedaço de abotoadura não foi encontrado na sala. Foi encontrado no andar de cima, no quarto de Mrs. Allen — no mesmo quarto em que ela foi assassinada, no mesmo quarto em que esteve um homem fumando a mesma marca de cigarros que o senhor fuma.

O efeito foi imediato. O major Eustace deixou-se cair em sua cadeira, olhando assustado de um lado para o outro. O fanfarrão transformou-se num covarde em poucos segundos, e o espetáculo não era bonito de se ver.

— O senhor não pode me acusar de nada... O senhor está procurando me armar uma cilada. Mas vocês não podem fazer isto. Eu tenho um álibi. Posso provar que não voltei mais àquela casa...

Poirot interrompeu:

— Não, o senhor não voltou àquela casa... O senhor não precisava voltar... pois talvez Mrs. Allen já estivesse se morta quando o senhor saiu.

— É impossível, impossível. Ela veio à porta e até falou comigo. Alguém deve tê-la ouvido, ou visto...

Poirot prosseguiu em tom suave:

— Há testemunhas que ouviram o senhor falar com ela e fingindo esperar por sua resposta antes de falar outra vez... Este é um velho truque... As pessoas foram levadas a pensar que ela estava lá, mas ninguém a viu, pois ninguém soube ao menos dizer se ela estava vestida pára sair ou não... nem ao menos dizer a cor de sua roupa...

— Meu Deus, não é verdade... não é verdade.

Eustace tremia todo.

Japp o olhava revoltado e disse-lhe asperamente:

— Tenho que pedir-lhe que me acompanhe.

— Estou preso?

— Digamos que está detido para averiguações.

O silêncio foi quebrado por um suspiro longo e trê­mulo. Com uma voz sumida o até então vociferante ma­jor Eustace disse:

— Estou acabado...

Hercule Poirot esfregou as mãos e sorriu alegremen­te. Parecia estar se divertindo imensamente.

 

Pouco depois, naquele mesmo dia, Japp e Poirot se­guiam de carro pela Brompton Road.

— Nosso amigo desabou que foi uma beleza — comentou Japp.

— Ele sabia que a brincadeira tinha acabado — respondeu Poirot com ar distraído.

— Temos muitas provas contra ele — disse Japp — Dois ou três nomes falsos, um cheque fraudulento e uma história complicada numa ocasião em que se hospedou no Ritz fazendo-se passar por um coronel de Bathe. Além disso, passou o conto do vigário em meia dúzia de comerciantes em Piccadilly. Nós o prendemos sob esta acusação enquanto concluímos nossas investigações sobre o assassinato de Mrs. Allen. Mas por que você cismou de fazer esta viagem aos arredores de Londres, meu caro?

— Meu amigo, um caso tem que ser propriamente encerrado. Todos os detalhes precisam ser explicados. Estou procurando resolver o mistério que você mesmo sugeriu. O Mistério da Valise Desaparecida.

— O que eu disse foi o Mistério da Valise no Beco. Que eu saiba ela não está desaparecida.

— Tenha paciência, mon ami.

O carro entrou no beco. A porta do número 14 Jane Plenderleith estava acabando de saltar de um pequeno Austin Severn, usando roupas de jogar golfe.

Ela olhou primeiro Japp, depois Poirot, e finalmente tirou uma chave da bolsa, abrindo a porta.

— Entrem, por favor.

Ela abriu o caminho. Japp seguiu-a, entrando na sala de visitas, mas Poirot permaneceu ainda alguns instantes no hall, murmurando consigo mesmo:

— C’est embêtant, muito difícil tirar estes sobretudos.

Pouco depois ele também entrou na sala de visitas, já sem o sobretudo, mas Japp o encarava com expres­são curiosa. O inspetor-chefe ouvira o rangido muito li­geiro da porta do armário ao ser aberta.

Japp dirigiu-lhe um olhar interrogativo e Poirot respondeu-lhe com um mal perceptível aceno.

— Não pretendemos nos demorar, Miss Plenderleith — começou Japp vivamente. — Só viemos perguntar se a senhorita poderia nos dar o nome do advogado de Mrs. Allen.

— Seu advogado? — A jovem sacudiu a cabeça. — Nem sabia que ela tinha advogado.

— Bem, quando ela alugou esta casa com a senhorita alguém deve ter redigido o contrato, não?

— Não, não foi assim. Quem alugou a casa fui eu, ela está em meu nome. Bárbara simplesmente me pagava metade da renda. Não achamos necessário fazer um contrato.

— Compreendo. Então nada feito.

— Sinto não poder ajudá-los — disse Jane cortesmente.

— Não tem importância — disse Japp, encami­nhando-se em direção à porta. — A senhorita tem joga­do golfe ultimamente?

— Sim. — Ela ruborizou-se. Parece insensibilidade de minha parte, mas preciso fazer alguma coisa para fugir desta casa, porque ela me deprime. Preciso sair e fazer algum exercício, me cansar, pois senão esta casa me esmaga.

Sua voz vinha carregada de intensidade.

Poirot interrompeu:

— Compreendo, mademoiselle. É muito natural. Ficar aqui sentada, pensando... não, não seria nada agradável.

— Estimo que o senhor compreenda — disse Jane, um pouco secamente.

— A senhorita pertence a algum clube?

— Sim, em Wentworth.

— O dia hoje foi bonito — continuou Poirot.

— Mas, infelizmente, as árvores estão quase todas desfolhadas. Na semana passada elas ainda estavam verdes.

— Mas o dia foi bonito — insistiu Poirot.

— Boa tarde, Miss Plenderleith — disse Japp, em tom formal. — Eu a avisarei de qualquer novidade. Na verdade já prendemos um homem como suspeito.

— Quem? — perguntou Jane Plenderleith ansiosa­mente.

— O major Eustace.

Ela assentiu com a cabeça e deu-lhes as costas, abai­xando-se para acender a lareira.

— E então? — perguntou Japp a Poirot, quando o carro em que iam saiu do beco.

Poirot sorriu.

— Foi simples. A chave estava na porta.

— E...?

Poirot continuava a sorrir.

— Eh bien, os tacos de golfe tinham desaparecido...

— Claro. Esta moça pode ser o que for, mas não é tola. Algo mais tinha desaparecido?

Poirot inclinou a cabeça.

— Sim, meu amigo. A pequena valise.

O acelerador saltou sob o pé de Japp.

— Maldição! — exclamou ele. — Eu sabia que havia algo de estranho. Mas que diabo será? Eu examinei aquela valise cuidadosamente.

— Mas meu caro Japp o caso é tão... como dizem os ingleses? Óbvio, meu caro Watson?

Japp deu-lhe um olhar exasperado.

— Onde estamos indo? — perguntou.

Poirot olhou o relógio.

— Ainda não são quatro horas. Dá para irmos a Wentworth antes de escurecer.

— Você acha que ela foi lá mesmo?

— Acho que sim. Ela devia saber que íamos pedir informações. Tenho certeza que vamos descobrir que ela realmente esteve em Wentworth.

Japp rosnou, enquanto dirigia habilmente entre o trânsito intenso:

— O que não consigo imaginar é o que esta maldita valise tem a ver com o crime. Na minha opinião não tem nada.

— Concordo inteiramente com você, meu amigo. A valise e a morte de Mrs. Allen não têm nada a ver uma com a outra.

— Mas então por quê... Não, não me diga, já sei. “É preciso elucidar todos os detalhes com ordem e método.” Enfim, a tarde está agradável para um passeio.

Japp dirigia velozmente e eles chegaram a Wentworth pouco depois das quatro e meia, mesmo porque na estrada o trânsito era pouco intenso.

Poirot foi direto ao chefe dos caddies e pediu-lhe os tacos de Miss Plenderleith, explicando que ela precisa deles para jogar num outro clube no dia seguinte.

O chefe dos caddies chamou um pequeno rapaz que dirigiu-se a um canto onde estavam diversos tacos, e finalmente localizou uma bolsa com as iniciais J.P.

— Obrigado — disse Poirot, e, depois de andar alguns passos como quem se lembra:

— Ela por acaso não deixou aqui também uma pe­quena valise?

— Hoje não, senhor. Mas talvez a tenha deixado na sede.

— Ela esteve aqui hoje?

— Esteve, eu a vi.

— Qual foi o caddie que trabalhou com ela? Ela diz que perdeu uma pequena valise, mas não sabe onde.   

— Hoje ela não levou nenhum caddie. Apenas com­prou algumas bolas e levou alguns tacos. Mas tenho qua­se certeza que vi uma pequena valise com ela.

Poirot afastou-se, depois de agradecer. Os dois ho­mens passearam um pouco pelo gramado, dando a volta à sede, e Poirot deteve-se um instante para admirar a paisagem.

— Uma beleza de vista, não? Os pinheiros, o lago. Sim, o lago...

Japp deu-lhe uma olhadela rápida.

— Então é isto? Poirot sorriu.

— É bem possível que alguém tenha visto alguma coisa. Se eu fosse você começaria a investigar.

 

Poirot deu um passo atrás e examinou a arrumação do quarto. Melhor chegar aquela cadeira para a direita e esta um pouco para cá. Sim, estava ótimo. A cam­painha tocou — devia ser Japp.

O inspetor da Scotland Yard entrou rapidamente.

— Você estava certo, meu velho. Tudo como você previu. Uma jovem foi vista ontem em Wentworth ati­rando algo dentro do lago e as descrições coincidem com a de Jane Plenderleith. Conseguimos achar o objeto sem maiores dificuldades, pois o local é raso. Ele estava preso em uns caniços.

— E o que era o objeto?

— Era a valise, sem tirar nem pôr. Mas por que, pelo amor de Deus?  Não consigo compreender.   Estava completamente vazia — não tinha sequer as revistas. Por que uma jovem mentalmente sã haveria de jogar fora uma valise cara dentro de um lago? Não consegui dormir a noite toda, tentando descobrir a razão.

— Mon pauvre Japp. Não precisa se preocupar mais A resposta está a caminho. A campainha acabou de tocar.

George, o correto criado de Poirot, abriu a porta e anunciou:

— Miss Plenderleith.

A moça entrou com seu habitual ar de autoconfiança e cumprimentou os dois homens.

— Eu lhe pedi que viesse — começou Poirot, enquanto fazia a moça ocupar uma das cadeiras, indicando a outra a Japp — porque tenho algumas novidades a lhe dar.

A moça sentou-se, tirando o chapéu e colocando-o a seu lado com impaciência.

— Bem— disse ela —, o major Eustace já foi preso.

— A senhorita leu isto nos matutinos de hoje, não?

— Sim.

— No momento, ele é acusado apenas de um delito sem muita gravidade. Enquanto isso, continuamos as nossas investigações a respeito do assassinato.

— Então foi assassinato, sem dúvida alguma? — perguntou a moça, com ansiedade.

Poirot assentiu.

— Sim. Assassinato. A destruição proposital de um ser humano por outro ser humano.

Ela estremeceu.

— Parece horrível quando o senhor diz deste jeito.

— Sim... e é horrível.

Ele fez uma pausa e depois prosseguiu:

— Agora, Miss Plenderleith, vou lhe dizer como descobri a verdade neste caso.

Ela olhou para Poirot e depois para Japp. Este estava sorrindo.

— Ele tem seus próprios métodos, Miss Plenderleith — disse o inspetor —, e eu procuro não aborrecê-lo. Acho melhor ouvirmos o que ele tem a dizer.

Poirot começou:

— Como a senhorita sabe, cheguei ao local do crime com o inspetor-chefe Japp na manhã do dia seis de novembro. Fomos ao quarto onde o corpo de Mrs. Allen estava e notei de imediato diversos detalhes significativos. Havia coisas naquele quarto decididamente estranhas demais.

— Prossiga — disse a moça.

— Para começo de conversa — disse Poirot —, havia o cheiro de cigarro.

— Acho que você está exagerando — interrompeu Japp — Eu não senti cheiro algum.

Poirot voltou-se rapidamente para ele.

— Exatamente. Você não sentiu nenhum cheiro de cigarro. Nem eu. E isso era muito, muito estranho, pois tanto a porta quanto a janela estavam trancadas e havia pelo menos dez pontas de cigarro no cinzeiro. Muito es­tranho mesmo que a atmosfera no quarto estivesse, diga­mos assim, tão pura.

— Então é isto o que você queria dizer — suspirou Japp. — Você sempre escreve por linhas tortas.

— O grande detetive inglês Sherlock Holmes fazia o mesmo. Lembre-se que ele chamou a atenção para o curio­so incidente com o cachorro de noite... e a resposta era, claro, que não houve incidente algum. O cachorro não fez nada de noite. Mas continuemos:

— O segundo detalhe a atrair minha atenção foi o relógio usado pela morta.

— O que havia com ele?

— Com ele particularmente nada, mas a morta o usava no braço direito. Ora, as pessoas em geral usam-no no braço esquerdo.

Japp deu de ombros, mas antes que ele pudesse dizer alguma coisa, Poirot continuou:

— Mas, como você diz, isto em si não prova nada. Há quem prefira usar o relógio no pulso direito. E agora chegamos a um ponto muito interessante. Chegamos agora, meus amigos, à escrivaninha.

— Eu já esperava por isto — suspirou Japp.

— A escrivaninha era extremamente interessante, por dois motivos. Em primeiro lugar, algo estava faltando nela.

Jane Plenderleith falou.

— E o que faltava nela?

Poirot virou-se.

— Uma folha de mata-borrão, mademoiselle. A folha que estava no mata-borrão estava imaculadamente limpa.

Jane não ocultou o desdém em suas palavras.

— Francamente, monsieur Poirot, as pessoas de ver em quando jogam fora a folha usada.

— Sim, mas onde? Na cesta de papéis, não? Mas não estava na cesta de papéis, e eu sei porque olhei.

Jane parecia impaciente.

— Provavelmente porque tinha sido jogada na véspera. O mata-borrão estava limpo porque Bárbara não tinha escrito cartas naquele dia.

— Sua hipótese é altamente duvidosa, mademoiselle, pois Mrs. Allen foi vista a caminho da caixa do correio naquela tardinha e portanto deve ter escrito cartas. Ela não poderia tê-las escrito na sala de visitas, pois lá não havia qualquer material apropriado. Dificilmente ela teria ido ao seu quarto para escrevê-las. Então, o que aconteceu à folha de mata-borrão com que ela secou a sua carta? É verdade que, algumas vezes, as pessoas atiram papéis à lareira e não à cesta, mas a lareira no quarto de Mrs. Allen era a gás. E a lareira na sala de visitas não tinha sido acesa na véspera, pois a senhorita me disse que ela estava preparada com lenha nova e que a senhorita só teve o trabalho de chegar-lhe um fósforo.

Ele fez uma pequena pausa.

— Um problema realmente curioso.  Olhei por toda parte: na cesta de papéis, na lata de lixo, mas não consegui achar uma folha de mata-borrão velha, e o detalhe me parecia altamente importante. Era como se alguém tivesse removido o mata-borrão propositadamente. Por quê? Porque havia nele algo que poderia facilmente ser lido de encontro a um espelho.

— Mas havia outro ponto realmente interessante acerca da escrivaninha — prosseguiu Poirot. — Japp, você lembra mais ou menos como as coisas estavam arranjadas sobre ela? O mata-borrão e o tinteiro no centro, descanso para as canetas à esquerda, calendário e pena de escrever à direita.  Eh bien? Não percebe onde quero chegar? Eu examinei a pena de pássaro, lembre-se, e ela era apenas para enfeite. Não era para ser usada. Será que você ainda não percebeu? Vou repetir. Mata-borrão no centro, canetas à esquerda — à esquerda, Japp. Mas não é mais comum se encontrar as canetas à direita, ao alcance da mão direita? Agora você começa a perceber, não? As canetas à esquerda, o relógio no pulso direito, o mata-borrão desaparecido... e algo trazido propositada­mente para o quarto: o cinzeiro com os restos de cigar­ro Aquele quarto tinha o ar puro. Japp. Era um quarto cuja janela tinha permanecido aberta e não fechada du­rante a noite. E eu pude então começar a juntar as di­ferentes peças.

Ele virou-se e encarou Jane.

— E o que me veio à mente foi a senhorita, chegan­do de táxi, pagando e subindo as escadas ligeira, talvez chamando Bárbara... apenas para abrir a porta e en­contrar sua amiga morta com o revólver na mão. A mão esquerda, naturalmente, pois ela era canhota — e por isso é que a bala entrou no lado esquerdo de sua cabeça. Há um bilhete dirigido à senhorita, explicando-lhe o que ti­nha levado sua amiga ao suicídio. Deve ter sido um bi­lhete extremamente comovente... uma moça jovem, amá­vel e infeliz, levada à morte por uma chantagem... Pos­so deduzir como uma idéia lhe passou instantaneamente pela cabeça. Aquilo era conseqüência da ação de um ho­mem — e este homem merecia ser punido. A senhorita então toma do revólver, limpa-o e coloca-o na mão direita da morta. Rasga o bilhete e também a folha de mata-borrão usada para secá-lo. Em seguida, desce e atira os pedaços na lareira. Depois, leva o cinzeiro para o quarto de cima, para dar a ilusão de que os dois tinham estado a conversar naquele aposento, e, para dar um toque ainda maior de verossimilhança, leva também um pedaço de abotoadura que encontrou no chão. Esta foi uma desco­berta feliz e a senhorita calcula que servirá para incri­minar definitivamente o chantagista. A seguir, a senho­rita fecha a janela e tranca a porta, pois não quer que suspeitem que a senhorita tenha lá entrado. E chama diretamente a polícia, pois deseja menos ainda que al­guém no beco estrague o cenário tão cuidadosamente arranjado.

— E assim por diante — prosseguiu Poirot. — A senhorita desempenha seu papel com perfeição e sangue-frio. A princípio recusa-se a dizer qualquer coisa, mas lança pequenas dúvidas sobre o suicídio. Mais tarde está disposta abertamente a pôr-nos na trilha do major Eustace. Sim, senhorita, foi um assassinato muito inteligente. Ou, melhor dizendo, uma tentativa de assassinato. Pois estou falando da tentativa de assassinato do major Eustace.

Jane Plenderleith levantou-se de súbito.

— Não foi tentativa de assassinato. Foi justiça. Aquele homem levou Bárbara ao suicídio. Ela era tão indefesa e tão boazinha. O senhor compreende, ela tinha tido um romance com um homem na Índia, quando tinha apenas 17 anos. Ele era casado, e muito mais velho. Então ela ficou grávida, teve um filho. Ela poderia tê-lo posto num orfanato, mas preferiu criá-lo ela mesma. Ela partiu numa viagem longa e voltou dizendo chamar-me senhora Allen. Mais tarde a criança morre, ela volta à Inglaterra e se apaixona por Charles — aquele pedante Ela o adorava, ele simplesmente aceitava sua devoção. Se Charles fosse um homem diferente eu teria aconselhado Bárbara a contar-lhe tudo. Mas sendo ele como era, aconselhei-a a ficar quieta.  Afinal, eu era a única pessoa que sabia daquela história em seu passado. E então aquele demônio Eustace apareceu... O resto o senhor sabe. Ele passou a chantageá-la, mas foi apenas naquela última noite que ela percebeu o escândalo a que também estava expondo Charles. Depois de casados, Eustace a teria onde ele mais a desejava: mulher de um homem rico, com horror a escândalos. Quando Eustace saiu ela ficou pensando, desesperada. Então subiu e me escreveu uma carta, dizendo-me que amava Charles e não podia viver sem ele, mas que para o próprio bem de Charles ela não podia casar-se com ele.  Decidiu então optar pelo que ela achava a melhor saída.

Jane atirou a cabeça para trás.

— O senhor se admira de que eu tenha feito o que fiz? E o senhor ainda tem a coragem de chamar isto assassinato?

— Mas é assassinato — respondeu Poirot, em voz severa. — O assassinato pode parecer justificado algumas vezes, mas não deixa de ser assassinato. A senhorita é inteligente... encare a verdade. Sua amiga matou-se, em última análise, porque não tinha coragem bastante para viver. Podemos simpatizar com ela, podemos sentir pena dela, mas não obstante, a mão que a matou foi sua, de ninguém mais.

Poirot fez uma pausa.

— E a senhorita? Aquele homem está preso e cum­prirá uma longa sentença por outros crimes. A senhorita quer mesmo vê-lo executado? A senhorita tem coragem de destruir uma vida humana?

Ela encarou-o fixamente, com os olhos sombrios. Finalmente, disse, entre dentes:

— Não, o senhor está com a razão.   Não tenho.

E virando-se subitamente, saiu da sala. A porta da rua bateu com estrondo.

Japp assobiou longamente.

— Macacos me mordam.

Poirot sentou-se e sorriu-lhe amavelmente. Passou-se um longo tempo antes que Japp falasse:

— Não era assassinato disfarçado em suicídio, mas suicídio disfarçado em assassinato.

— Sim, e muito bem disfarçado. Nenhum detalhe muito exagerado.     

Japp perguntou de repente:

— Mas e a valise? Onde entra a valise?

— Mas meu amigo, meu querido amigo, eu já lhe disse muitas vezes que a valise não entra em lugar ne­nhum.

— Mas então por quê...?

— Os tacos de golfe. Os tacos de golfe, Japp. Eles eram tacos de golfe de uma pessoa canhota. Jane Plenderleith guardava seus tacos em Wentworth. Aqueles eram os de Bárbara Allen. Não é de admirar que Jane tenha ficado assustada quando dissemos que íamos abrir aquele armário, pois todo o seu plano iria por água abaixo. Mas ela é inteligente e percebeu que tinha se traído. Ela viu que nós tínhamos visto.  Então fez o que lhe pareceu mais apropriado para distrair nossa atenção — isto é procurou focalizá-la no objeto errado, dizendo: “Aquela valise é minha, eu a trouxe esta manhã, não pode ter nada de interessante.” E, como ela esperava, embarca-mos na canoa furada. Pelo mesmo motivo, quando ela foi se desfazer dos tacos no dia seguinte, levou a valise como isca.

— Quer dizer que sua verdadeira intenção...

— Pense bem, meu amigo. Qual é o melhor lugar para se desfazer de uns tacos de golfe? Não é possível queimá-los ou pô-los na lata de lixo. Se você deixá-los em algum lugar é provável que eles lhe sejam devolvidos. Miss Plenderleith levou-os para um clube de golfe. Lá tomou alguns de seus próprios tacos e foi jogar sem um caddy. De tempos em tempos parava, quebrava os tacos da amiga e jogava-os em alguma moita. Finalmente, jogou também a sacola fora. Se alguém achasse um taco quebrado aqui e ali não se surpreenderia, pois há quem se exaspere tanto com seu próprio jogo que atire todos os tacos fora de uma vez. O golfe é um jogo de deixar você maluco.  Mas — prosseguiu Poirot — Miss Plenderleith desconfiava que continuávamos interessados em suas ações, e o que faz então? Leva a isca, a valise, e atira-a no lago, sabendo que o fato seria testemunhado por alguém. Esta, meu caro, é a verdade sobre “O Mistério da Valise no Beco”.                                                       

Japp considerou seu amigo por alguns momentos e finalmente ergueu-se, dando-lhe um amistoso tapinha no ombro:

— Nada mau para um detetive decrépito. Você abis-coita o prêmio. Por falar nisto, que tal almoçarmos juntos?                                                                           

— Ótimo, mas não vão ser meros biscoitos. Sei de um restaurante onde servem um excelente blanquette de veau avec petits-pois à la française. Podemos pedir uma omelette aux champignons de entrada e baba au rhum de sobremesa.                                                            

— É para já — retrucou Japp. — Mostre-me o caminho.


O Roubo Inacreditável

Enquanto o mordomo passava o soufflé, Lord Mayfield dizia alguma coisa em tom confidencial a sua vizinha da direita, Lady Julia Carrington. Conhecido como um perfeito anfitrião, Lord Mayfield chegava a extremos para manter sua reputação e, embora solteirão convicto, era sempre cativante com as senhoras.

Lady Julia Carrington tinha quarenta anos, era alta, morena e cheia de vivacidade. Era magra, mas ainda bonita, com mãos e pés particularmente delicados. Seus gestos eram inquietos e bruscos, típicos de uma constituição nervosa.

Quase em frente a ela, do lado oposto da mesa redonda, sentava-se seu marido, o brigadeiro Sir George Carrington. Ele tinha iniciado sua carreira na Marinha e guardava ainda muito dos modos expansivos de um velho homem do mar. Ele estava rindo e brincando com a bela Mrs. Vanderlyn, que se sentava à esquerda do anfitrião.

Mrs. Vanderlyn era loura e bonita. Sua voz tinha um ligeiro traço de sotaque americano — o suficiente para ser encantador sem ser exagerado.

Do outro lado de Sir George Carrington estava a deputada Mrs. Macatta. Mrs. Macatta era uma grande autoridade em política habitacional e em assistência aos menores. Ela não falava: vociferava — e todo seu aspecto era do mesmo modo alarmante. Não era de se estranhar que o brigadeiro achasse sua vizinha da direita mais interessante.

Mrs. Macatta, onde quer que fosse, só falava nos assuntos de sua especialidade e, no momento, dedicava-se a fornecer detalhes dos mesmos a seu vizinho da esquerda, o jovem Reggie Carrington.

Reggie Carrington tinha 21 anos e não tinha o menor interesse nem em política habitacional nem em assistência aos menores. Na verdade, nem sequer gostava de política. De tempos em tempos ele intercalava um “É revoltante” ou um “A senhora tem toda razão”, mas era evidente que seus pensamentos estavam muito longe. Entre Reggie e sua mãe estava sentado Mr. Carlile, secretário particular de Lord Mayfield — um jovem pálido de pincenê e um ar reservado, que falava pouco mas estava sempre disposto ao sacrifício de preencher qualquer silêncio embaraçoso. Ao notar que Reggie Carrington mal podia disfarçar um bocejo, ele inclinou-se e rapidamente fez a Mrs. Macatta uma pergunta a propósito de seu projeto para educação física infantil.   

Movendo-se silenciosamente ao redor da mesa, um mordomo e dois lacaios passavam os pratos e enchiam os copos de vinho. Lord Mayfield pagava um alto salário a seu mestre-cuca e era considerado grande conhecedor de vinhos.                                         

A mesa era redonda, mas não havia qualquer dúvida possível sobre a identidade do anfitrião, pelo ar de tranqüila autoridade de Lord Mayfield — um homem forte. de ombros largos, cabelo branco abundante, nariz grande e reto e queixo ligeiramente proeminente. Um rosto que se prestava muito à caricatura. Sob seu nome de nascimento — Sir Charles McLaughlin — Lord Mayfield combinara a carreira política com a chefia de uma grande firma de engenharia e era ele próprio um engenheiro de primeira ordem. O título nobiliárquico fora-lhe concedido há um ano e ao mesmo tempo ele fora nomeado ministro dos armamentos de um ministério que acabara de ser criado.

A sobremesa tinha sido servida, o vinho do Porto circulado uma vez. Fazendo um sinal com os olhos a Mrs. Vanderlyn, Lady Julia ergueu-se. As três mulheres deixaram a sala.

O Porto circulou novamente e Lord Mayfield falou de faisões.  Durante uns cinco minutos a conversação girou sobre caça. Então Sir George falou:

— Acho que você poderia fazer companhia às senhoras. Reggie. Tenho certeza de que Lord Mayfield não se importará.

O rapaz percebeu de imediato a indireta.

— Obrigado, Lord Mayfield.

Mr. Carlile murmurou:

— Se o senhor me permite, Lord Mayfield, tenho al­guns papéis para pôr em ordem...

Lord Mayfield assentiu de cabeça e os dois moços deixaram a sala. Os criados já haviam saído há algum tempo. O ministro dos armamentos e o chefe da Força Aérea estavam sozinhos.

Depois de um minuto ou dois, Carrington disse:

— E então? Tudo perfeito?

— Perfeitíssimo. Nenhum outro país da Europa tem nada que se compare a este bombardeiro.

— Muito melhor que os outros, hem? Era o que eu pensava.

— Vamos ter a supremacia aérea — disse Lord May­field em tom convicto.

Sir George Carrington deixou escapar um suspiro de alívio.

— E já não era sem tempo. Você sabe, Charles, que a situação na Europa não anda boa, com todo mundo armado até os dentes. E nós estávamos ficando para trás, esta é a verdade. Este bombardeiro vem nos livrar de um aperto dos diabos. E olhe que ainda não nos safamos de todo.

Lord Mayfield observou:

— Mesmo assim, George, começar depois tem suas vantagens. Alguns outros países estão com seu arma­mento quase obsoleto e gastaram tanto nele que se en­contram à beira da falência.

— Esta história para mim é conversa fiada. Estão sempre dizendo que este país ou aquele está a caminho da bancarrota, mas eles vão em frente de um jeito ou de outro.  Nunca consegui entender nada de finanças.

Um brilho divertido passou pelos olhos de Lord Mayfield. Sir George Carrington era o típico homem do mar “rude, franco e leal”. Havia quem dissesse que ele adotava aquela pose deliberadamente.

Mas, mudando de assunto, Carrington disse num tom um pouco casual demais:

— Bela mulher, Mrs. Vanderlyn, não?

Lord Mayfield perguntou:

— Você está querendo saber o que ela veio fazer aqui?

Seus olhos mantinham o habitual brilho travesso.

Carrington parecia um pouco atrapalhado.

— Não, absolutamente.

— Vamos lá, é claro que você está. Não pense que eu não percebi. Você passou o jantar todo com pena de mim, com pena de que eu fosse a última vítima de Mrs. Vanderlyn.

Carrington disse devagar:

— Bem, achei mesmo um pouco estranho que ela estivesse aqui. Por coincidência, logo neste fim de semana.

Lord Mayfield concordou:

— Onde há carniça, há urubu. Temos aqui uma carniça suculenta e Mrs. Vanderlyn pode ser classificada como o urubu número um.

O marechal do ar perguntou abruptamente:

— O que você sabe sobre esta mulher?

Lord Mayfield cortou a ponta de um charuto, acendeu-o com destreza e, atirando a cabeça para trás, deixou cair as palavras com cuidadosa precisão.

— O que eu sei sobre Mrs. Vanderlyn? Sei que é cidadã americana.  Sei que já teve três maridos — um italiano, um alemão e um russo — e que, em conseqüência disto, estabeleceu contatos muito úteis nestes três países Sei que mantém um padrão de vida muito elevado, embora ninguém tenha ainda descoberto de onde vem seu dinheiro.

— Vejo que seus espiões não andaram dormindo no ponto, Charles.                                                             

— Sei ainda — continuou Lord Mayfield — que, além de ser bela, Mrs. Vanderlyn é o que poderíamos chamar uma excelente ouvinte, sendo capaz de mostrar um encantador grau de interesse em assuntos que outras mulheres considerariam aborrecidos. Quer dizer, um homem é capaz de falar horas sobre seu trabalho e descobrir, lisonjeado, de que ela ouve com prazer. Diversos jovens oficiais só descobriram tarde demais para o futuro de suas carreiras que contaram a Mrs. Vanderlyn um pouco além do que deviam. Quase todos os amigos de Lady Vanderlyn estão nas Forças Armadas — e no ano passado ela foi dedicar-se à caça em um condado nas cercanias de uma das nossas grandes fábricas de armamentos, tendo formado amizade com gente que não tinha nada a ver com tiro ao pombo. Para dizer em poucas palavras, Mrs. Vanderlyn é extremamente útil para a...

Lord Mayfield descreveu um círculo no ar com seu charuto antes de prosseguir:

— Melhor não dizermos para quem. Digamos ape­nas uma potência européia...  talvez mais de uma po­tência européia.

Carrington respirou fundo.

— Você tira um grande peso de meus ombros, Charles.

— Você pensou que eu tivesse caído no canto da se­reia? Ora, meu caro George.. Mrs. Vanderlyn é um pouco óbvia demais em seus métodos para um gato escaldado como eu. Além disso, ela já não é assim tão jovem. Jo­vens oficiais deslumbrados não se importam com isto, mas eu estou com cinqüenta e seis anos, meu caro, e os velhos preferem as moças. Daqui a uns quatro anos, provavel­mente, serei um velho gagá correndo atrás de jovens debutantes.

— Foi tolice de minha parte — disse Carrington em tom de desculpa — mas me parecia um pouco estranho...

— Parecia estranho que ela estivesse aqui logo no fim de semana em que nós dois vamos discutir os deta­lhes de uma descoberta que provavelmente revolucionará a guerra aérea, não?

Sir George Carrington assentiu.

Lord. Mayfield completou, com um sorriso:

— Mas foi para isto que a convidei.  Para morder a isca.

— Que isca?

— Olhe, George, até hoje não nos foi possível provar nada contra a mulher, porque ela tem sido diabolica­mente cuidadosa. Portanto, decidi tentá-la com algo real­mente grande.

— Quer dizer que o novo bombardeiro é a isca?

— Exatamente. Uma isca suficientemente apetitosa para levá-la a se arriscar um pouco demais.  E, então nós a pegamos.

Sir George resmungou:

— O.K. Mas e se ela não morder a isca?

— Seria uma pena — disse Lord Mayfield. — Mas acho que morderá...

Ele levantou-se.

— Vamos fazer companhia às senhoras? Sua mulher deve estar à procura de parceiros para o bridge.

Sir George queixou-se:

— Julia é maníaca por aquele bridge e aposta a alto demais. Já lhe disse isto, mas ela é viciada.

Erguendo-se e caminhando em direção a seu anfitrião Carrington disse:

— Espero que seu plano corra bem, Charles.

 

Na sala de visitas a conversa já se tinha interrompido mais de uma vez.   Mrs. Vanderlyn geralmente não fazia sucesso entre suas companheiras de sexo, que as mostravam invulneráveis a seus modos, que tanto encantavam os homens.

Lady Julia era uma mulher que sabia ser muito bem ou muito mal educada. No momento, ela tinha optado pela segunda alternativa, pois não gostava de Mrs. Vanderlyn e achava Mrs. Macatta chatíssima. A conversação só não tinha se extinguido de todo por causa dos esforços desta última.

Mrs. Macatta era uma mulher extremamente perseverante. Não perdeu tempo com Mrs. Vanderlyn, que identificou logo como um tipo inútil e parasitário, mas procurou interessar Lady Julia num espetáculo beneficente que estava organizando. Lady Julia, contudo, deu-lhe umas respostas vagas, disfarçou um bocejo ou dois e concentrou-se em seus próprios pensamentos. Por que Charles e George não apareciam? Como eram irritantes os homens! À medida que se absorvia com suas próprias preocupações as respostas de Lady Julia se tornavam mais vagas e espaçadas.

Quando os homens finalmente apareceram as três mulheres estavam em silêncio.

Lord Mayfield pensou com seus botões:

— Julia me parece adoentada. A mulher é evidente­mente uma pilha de nervos.

Mas o que ele disse alto foi:

— Que tal uma rodada de bridge?

Lady Julia despertou de imediato, como se a própria palavra fosse o remédio para todos os seus males.

Reggie Carrington também acabava de entrar e se organizou logo uma parceirada de dois. Lady Julia, Mrs. Vanderlyn, Sir George e Reggie sentaram-se à mesa de jogo. Lord Mayfield resignou-se ao sacrifício de entreter Mrs. Macatta.

Depois de duas rodadas, Sir George olhou aparatosamente para o relógio sobre a lareira.

— Acho que não vale a pena começar outra — ob­servou.

Sua mulher pareceu aborrecida.

— São ainda quinze para as onze. Vamos jogar uma rápida.

— Elas nunca são rápidas, minha querida — res­pondeu Sir George de bom humor. — Além disso, Charles e eu temos trabalho pela frente.

Mrs. Vanderlyn murmurou:

— Isto soa muito importante. Aposto como vocês grandes homens nunca têm oportunidade para descansar.

— A semana de 48 horas não foi feita para nós — concordou Sir George.

Mrs. Vanderlyn continuou:

Sei que não passo de uma americana roceira, mas talvez por isto mesmo fico arrepiada só de encontrar gen­te que controla os destinos de uma nação. Aposto como o senhor me acha muito simplória por dizer isto, Sir George.

— Minha cara Mrs. Vanderlyn, eu jamais a consi­deraria roceira ou simplória.

Sir George sorria e sua voz tinha um traço de ironia que Mrs. Vanderlyn não deixou de perceber. Ela virou-se com desembaraço para Reggie, oferecendo-lhe seu melhor sorriso.

— É pena que nossa parceria tenha que acabar. Sua última jogada foi de gênio.

Vermelho e não cabendo em si de orgulho, Reggie respondeu sufocado:

— Foi pura sorte.

— Não senhor. Foi uma jogada que mostrou seu grande poder de dedução. Você sabia exatamente o que todo mundo tinha nas mãos.

Lady Julia ergueu-se bruscamente, pensando com seus botões que Mrs. Vanderlyn mentia sem a menor sutileza.

Mas seus olhos se comoveram ao ver o rosto de seu filho, ao perceber que ele acreditara em tudo. Como era jovem e ingênuo! Nada de admirar que vivesse a se meter em embrulhadas. A verdade é que ele tinha uma natureza muito crédula e seu pai nunca chegara a compreendê-lo. Os homens, pensava Lady Julia, eram muito severos em seus julgamentos, pois esqueciam-se de que também tinham sido jovens e de boa fé. Não, George era severo demais com Reggie.

Mrs. Macatta tinha se levantado. Todos se disseram as boas noites.

As três mulheres saíram. Lord Mayfield preparou um uísque para Sir George, serviu-se de outro e ergueu a vista ao notar que Mr. Carlile aparecia na porta.

— Por favor, prepare todos os pastéis e todos os papéis, Carlile. As plantas e as especificações também. O marechal e eu vamos para o escritório daqui a pouco. Mas que tal primeiro darmos uma volta aí fora, George? A chuva já parou.

Mr. Carlile virou-se para sair, mas desculpou-se rapidamente ao notar que quase dera um esbarrão em Mrs. Vanderlyn.

Ela esgueirou-se por ele, dizendo:

— Meu livro. Eu o estava lendo antes do jantar.

Reggie levantou-se de imediato, com um livro na mão.

— Será este por acaso? Estava aqui, no sofá.

— É este mesmo. Muito obrigada. Você é gentilísssimo.

Ela sorriu encantadoramente, disse boa noite mais uma vez e saiu da sala.

Sir George tinha aberto a porta envidraçada que dava para o jardim.

— Está uma beleza de noite — anunciou. — Boa idéia darmos uma volta.

Reggie disse:

— Boa noite, Lord Mayfield. Estou com tanto sono que quase tenho que me arrastar para a cama. 

— Boa noite, meu rapaz — respondeu Lord Mayfield.

Reggie tomou de uma história de detetive que an­dara lendo antes do jantar e deixou a sala.

Lord Mayfield e Sir George saíram para o terraço.

A noite estava realmente bonita, com o céu limpo e cheio de estrelas.

Sir George respirou fundo.

— Uf, aquela mulher se banha em perfume.

 Lord Mayfield riu.

 — Ainda bem que não é um perfume barato. Muito pelo contrário, acho que é um dos mais caros que existem.         

Sir George fez uma careta.

— Graças a Deus.

— Graças a Deus mesmo. Uma mulher afogada em perfume barato é uma das maiores abominações a que está sujeita a humanidade.  

Sir George olhou para o céu.

— É incrível como o tempo limpou. Estava chovendo forte durante o jantar.

Os dois homens começaram a passear vagarosamente.       

O terraço corria toda a extensão da casa. Abaixo dele o terreno caía numa encosta suave, oferecendo uma magnífica vista das florestas de Sussex.       

Sir George acendeu um charuto.       

— A propósito desta liga metálica... — começou.

A conversa tornou-se extremamente técnica.

Quando eles se aproximavam pela quinta vez da ex­tremidade mais distante do terraço, Lord Mayfield disse com um suspiro:

— Bem, vamos meter mãos ao trabalho.

— Sim, temos muito que fazer.

Os dois homens voltaram-se e, ao fazê-lo, Lord Mayfield deixou escapar uma exclamação de surpresa:

— Ei, o que é aquilo?

— Aquilo o quê?

— Aquela sombra que atravessou o terraço, saindo de meu escritório.                                                       

— Não havia sombra alguma, meu caro. Eu não vi nada.

— Bem, eu vi. Pelo menos, acho que vi.

— Seus olhos andam a lhe pregar peças. Eu estava olhando bem naquela direção e se tivesse alguma coisa lá eu a teria visto. É difícil alguma coisa me escapar... embora hoje em dia só consiga ler um jornal com os braços bem esticados.

— Aí eu lhe levo vantagem, meu caro. Não preciso de óculos para ler os jornais.

— Mas dificilmente você consegue reconhecer um amigo do outro lado do plenário da Câmara.  Ou aqueles óculos que você costuma usar por lá são só para intimidar seus adversários?

Os dois homens riram e entraram no escritório pela porta envidraçada, que estava aberta.

Mr. Carlile estava arrumando alguns papéis em um arquivo ao lado do cofre.                                          

Ele ergueu a vista ao ver seu patrão entrar.

— Alô, Carlile, tudo preparado?

— Tudo pronto, Lord Mayfield. Os papéis estão sobre sua escrivaninha.

A escrivaninha em questão era um pesado móvel de mogno colocado de través num dos cantos do escritório perto da janela. Lord Mayfield dirigiu-se a ela e começou a separar os papéis.

— Que magnífica noite — insistiu ainda Sir George

Mr. Carlile concordou.

— De fato. È quase incrível, depois de toda aquela chuva.

Pondo seu fichário de lado, Mr. Carlile perguntou:

— O senhor deseja mais alguma coisa, Lord Mayfield?

— Não, acho que não, Carlile. Pode deixar que eu mesmo guardo os papéis. Você pode ir embora, ainda vamos demorar,

— Obrigado. Boa noite, Lord Mayfield. Boa noite, Sir George.

— Boa noite, Carlile.

O secretário já estava saindo quando Lord Mayfield o deteve.

— Espere um instante, Carlile. Você esqueceu o documento mais importante.

— Como, Lord Mayfield?

— O projeto para o bombardeiro, homem de Deus.

Os olhos do secretário se arregalaram.

— Mas estão logo aí em cima, Lord Mayfield.

— Estão coisa nenhuma.

— Mas se eu os pus aí.

— Veja você mesmo.

Com uma expressão de perplexidade no rosto o jo­vem adiantou-se. Lord Mayfield mostrou-lhe a pilha de papéis num gesto um pouco impaciente e Carlile exami­nou-o, com a perplexidade a crescer em seu olhar.

— Como você mesmo pode ver, o projeto não está aqui.

O secretário começou a gaguejar:

— Mas... mas... é incrível. Eu o coloquei aí não faz nem três minutos.

Lord Mayfield respondeu de bom humor:

— Você deve ter cometido um engano. O projeto deve estar ainda no cofre.

— Não, tenho certeza. Eu o coloquei na mesa.

Lord Mayfield afastou-o com o braço e se dirigiu ao cofre. Sir George ajudou-o na busca, mas em poucos mi­nutos eles se convenceram de que o projeto do bombar­deiro não estava no cofre.

Os três homens foram novamente à escrivaninha e procuraram mais uma vez, num aturdimento.

— Meu Deus — gritou Lord Mayfield. — O projeto sumiu!

Mr. Carlile exclamou:

— Mas é... é impossível.

— Quem esteve neste escritório? — quis saber o ministro?

— Ninguém, ninguém.

— Olhe aqui, Carlile.  O projeto não pode ter saído andando sozinho. Alguém o levou. Mrs. Vanderlyn esteve aqui?                                                                        

— Mrs. Vanderlyn? Não.                                   

— Posso garantir que é verdade — disse Carrington farejando o ar. — Se ela estivesse aqui teria deixado o cheiro daquele seu perfume.

— Ninguém entrou aqui — continuou Carlile. — Não posso entender o que houve.

— Vamos pensar com calma, Carlile — interrompeu Lord Mayfield. — Vamos recapitular tudo desde o princípio. Você tem certeza absoluta de que o projeto estava no cofre?                                                                        

— Absoluta.                                                         

— Mas você o viu ou simplesmente presumiu que ele estava junto com os outros papéis?

— Não, não, Lord Mayfield. Eu o vi. Eu o coloquei no alto dos outros documentos.

— E desde este momento, segundo você, ninguém entrou no escritório. E você? Você saiu daqui?

— Não... quero dizer... sim.

— Ah — exclamou Sir George. — Estamos ficando quentes.

Lord Mayfield começou com ar severo:

— Que diabo... — mas Carlile interrompeu-o:

— Normalmente nem me passaria pela cabeça sair do escritório deixando papéis importantes sobre a mesa Lord Mayfield, mas ouvi um grito de mulher...

— Um grito de mulher? — espantou-se Lord Mayfield.

— Sim. O senhor pode calcular minha surpresa. Eu acabara de pôr os papéis na mesa quando o ouvi, e naturalmente saí para ver o que era.

— E o que era?

— Era a criada francesa de Mrs. Vanderlyn. Ela estava no meio da escada, muito branca e nervosa, tremendo toda. Disse que tinha visto um fantasma.

— Um fantasma?

— É. Uma mulher alta, vestida de branco, que movia-se sem fazer barulho e parecia flutuar no ar.

— Que coisa mais ridícula!

— Sim, Lord Mayfield. Foi o que eu disse a ela. Devo confessar que ela parecia um pouco encabulada. Ela continuou subindo a escada e eu voltei para cá.

— Há quanto tempo foi isso?

— Um minuto ou dois antes do senhor entrar com Sir George.

— E quanto tempo você ficou fora do escritório?

O secretário pensou um instante.

— Dois minutos. No máximo, três.

— Tempo mais do que suficiente — resmungou Lord Mayfield. De súbito ele tomou do braço de seu amigo.

— George, aquela sombra que eu vi... aquela sombra que parecia sair deste escritório. Era o ladrão, George. Assim que Carlile saiu do escritório ele entrou rapidamente, pegou o projeto e desapareceu.

— Que embrulhada — disse Sir George. E tomando por sua vez do braço do amigo:

— E agora, Charles? Que vamos fazer?

 

— Não custa tentar, Charles.

Era meia hora mais tarde. Os dois amigos estavam ainda no escritório de Lord Mayfield e Sir George procurava convencê-lo a tomar certas providências.

A princípio Lord Mayfield resistiu muito, mas aos poucos começou a ceder.

Sir George continuava:

— Não seja teimoso, Charles.

Lord Mayfield disse devagar:

— Por que entregarmos o caso a um estrangeiro que nem conhecemos direito?

— Mas eu o conheço bem. É um extraordinário de­tetive.

— Hum...

— Olhe, Charles, será pelo menos uma tentativa que fazemos. E podemos contar com sua discrição.  Se o caso se tornar público...

— Quando o caso se tornar público é o que você quer dizer...

— Não necessariamente. Este homem, Hercule Poirot...

— Chegará aqui e tirará o projeto de dentro de uma cartola, como um mágico?

— Ele descobrirá a verdade. E o que nós queremos é a verdade. Olhe, Charles, eu assumo pessoalmente a responsabilidade.

Lord Mayfield disse vagarosamente:

— Bem, faça como achar melhor, mas não acho que este sujeito...

Sir George tomou do telefone, não lhe dando tempo de completar a frase.

— Vou chamá-lo agora mesmo.

— Ele deve estar dormindo.

— Mas pode acordar. Temos que agir depressa, não podemos deixar aquela mulher escapar com o projeto.

— Você está falando de Mrs. Vanderlyn?

— Claro. Ou você tem alguma dúvida de que ela é a culpada?

— Não, nenhuma. Ela me fez cair em minha própria armadilha. É duro reconhecer que uma mulher pode ser mais esperta do que a gente. Não podemos provar nada contra ela, mas sabemos ambos que ela é o cérebro por trás de tudo isso.

— As mulheres são infernais — disse Carrington com convicção.

— Não temos prova nenhuma de que foi ela, isto é que é pior. Como provar que ela mandou sua empregada gritar e que tinha um cúmplice esperando lá fora para roubar o projeto?

— Por isto mesmo é que mandei chamar Hercule Poirot.

Lord Mayfield deu uma risada repentina.

— Deus do céu, George, sempre pensei que você fosse inglês demais para confiar num francês,

— Ele não é francês, é belga — desculpou-se Sir George encabulado.

— Então que venha o seu belga. Venha e ponha a cabeça para funcionar. Aposto que não descobrirá mais do que já sabemos.

Sir George começou a discar sem responder.

 

Piscando um pouco e delicadamente disfarçando um bocejo, Hercule Poirot olhou primeiro para um e depois para o outro homem.

Eram duas e meia da manhã. Hercule Poirot aca­bara de ouvir o que Sir George Carrington e Lord Mayfield tinham a dizer, depois de uma viagem em plena noite num Rolls-Royce com chofer que lhe tinham mandado.

— Estes são os fatos, monsieur Poirot — disse Lord Mayfield.

 O anfitrião recostou-se em sua cadeira e vagarosa­mente colocou o monóculo. Através dele um olho azul e sagaz observava Poirot com atenção. Mas não era apenas argúcia que se podia ler naquele olhar; era também ceticismo. Poirot por sua vez deu uma rápida mirada em Sir George Carrington.

Este inclinara-se para a frente com uma expressão de esperança quase infantil no rosto.

Poirot disse, medindo as palavras:

— Estes são deveras os fatos. A criada grita, o secretário sai do escritório, o ladrão sem nome entra, o projeto está em cima da mesa, ele o apanha e desaparece. Os fatos... os fatos são muito convenientes.

Algo no tom da voz de Poirot pareceu atrair a atenção de Lord Mayfield. Ele deixou cair o monóculo e sentou-se mais direito, como que em estado de alerta.          

— Como disse, monsieur Poirot?

— Eu disse, Lord Mayfield, que os fatos são muito convenientes... para o ladrão. Por falar nisto, o senhor tem certeza de que o senhor viu foi um homem?

Lord Mayfield sacudiu a cabeça.

— Não posso garantir. Foi... foi uma sombra. Para falar a verdade, no primeiro momento nem tive certeza de que havia visto algo.

Poirot virou-se para o brigadeiro:

— E o senhor, Sir George? Pode me dizer se era um homem ou uma mulher?

— Eu não vi nada.

Poirot assentiu pensativamente. Depois ergueu-se repentinamente e foi à escrivaninha.

— Posso garantir-lhe que o projeto não está aí — disse Lord Mayfield. — Nós três já o procuramos uma porção de vezes.

— Os três? Quer dizer que o secretário também?

— Sim. Meu secretário, Carlile.

Poirot virou-se de súbito.

— Diga-me, Lord Mayfield, que papel estava no alto da pilha quando o senhor sentou-se à escrivaninha?

Mayfield ergueu as sobrancelhas, procurando lembrar-se.

— Deixe-me ver... Era a minuta de um memorando a propósito de algumas de nossas defesas antiaéreas.

Poirot pegou de um documento e o exibiu.

— Este aqui, Lord Mayfield?

Lord Mayfield examinou-o.

— Sim, este mesmo.

A seguir Poirot mostrou o documento a Carrington

— O senhor viu este documento sobre a mesa?

Sir George tomou do papel, segurou-o longe dos olhos e colocou seu pincenê para vê-lo melhor.

— Sim, vi. Era o que estava no alto.

Poirot recolocou o papel na escrivaninha. Mayfield continuava a olhá-lo com curiosidade.

— Se há mais alguma questão a ser esclarecida... — começou.

— Sim, sim, claro que há. Carlile. Carlile é a questão.

Um certo rubor cobriu o rosto de Lord Mayfield.

— Deixe-me informá-lo, monsieur Poirot, que considero Carlile acima de qualquer suspeita. Há nove anos ele é meu secretário particular, com acesso a todos os meus papéis, e gostaria de chamar-lhe a atenção para o fato de que ele facilmente poderia ter tirado uma cópia do projeto sem ninguém saber.

— Compreendo seu ponto de vista — respondeu Poirot. — Carlile não precisaria ter simulado um roubo.          

— De qualquer forma — continuou Lord Mayfield — respondo pela integridade de Carlile.                                 

Sir George interrompeu em tom quase áspero:

— Carlile é inatacável.

Poirot abriu os braços: — E esta Mrs. Vanderlyn... é atacável?

— E muito — disse Sir George.                                     

Lord Mayfield respondeu mais circunspectamente:

— Creio que não pode haver dúvida das... ativida­des de Mrs. Vanderlyn. O Ministério das Relações Exte­riores poderá lhe dar mais informações a respeito.

— E o senhor crê que a criada seja cúmplice da patroa?   

— Não tenho a menor duvida — interrompeu nova mente Sir George.

 — É uma hipótese viável — respondeu Lord May­field em tom mais cauteloso.

Houve uma pausa. Poirot suspirou, tornou a arranjar distraidamente um ou dois objetos sobre a escrivaninha e perguntou:

— Suponho que este projeto fosse valioso, não? Que­ro dizer, que houvesse quem pagasse um bom preço por ele?

— Em uma certa parte da Europa, sim.

— Que parte?

Sir George disse o nome de dois países.

Poirot assentiu.

— Este fato seria conhecido de todos?

— Pelo menos de Mrs. Vanderlyn, sem dúvida alguma.       

— Eu disse, todos?  

— Sim, acho que sim.

— Qualquer pessoa com um mínimo de inteligência?     

— Sim, mas monsieur Poirot... — Lord Mayfield começava a se mostrar pouco à vontade.

Poirot ergueu as mãos.  

 — Eu investigo todas as possibilidades, Lord Mayfield.

Subitamente ele se levantou, foi até o terraço e examinou a grama que se prolongava do jardim até a encosta.

Os dois homens o observavam.

Ele entrou, sentou-se e disse:

— Diga-me, Lord Mayfield, este malfeitor embuçado... o senhor não o perseguiu?

Lord Mayfield deu de ombros.

— Ao chegar ao fundo do jardim ele poderia facilmente escapar por uma estrada. Se estivesse de carro estaria longe num instante...

— Mas há a polícia, a patrulha rodoviária...

Sir George interrompeu-o.

— O senhor se esquece, monsieur Poirot, que nós não queremos publicidade. Seria extremamente desagradável para o governo se a opinião pública tomasse conhecimento de que o projeto foi roubado.

— Claro, claro — disse Poirot. — É preciso não esquecer la politique. Os senhores mandaram me chamar porque queriam o máximo de discrição.  É mais simples mesmo.

— O senhor tem esperança de solucionar o caso, monsieur Poirot? — perguntou Lord Mayfield num tom pouco crédulo.

O homenzinho sacudiu os ombros.

— E por que não? É questão apenas de reflexão, de raciocínio...

Ele fez nova pausa e disse:

— Gostaria de conversar com Mr. Carlile.

— Pois não. — Lord Mayfield ergueu-se. — Pedi-lhe que ficasse por perto. Vou chamá-lo.

Lord Mayfield deixou o escritório.

Poirot olhou para Sir George.

— Eh bien — disse. — Que me diz o senhor deste homem no terraço?

— Meu caro monsieur Poirot, não me pergunte, pois não o vi e não poderia descrevê-lo.

Poirot chegou-se à frente.

— Foi o que o senhor me disse. Mas a verdade é um pouco diferente, não?

— O que o senhor pretende dizer? — perguntou Sir George asperamente.

— Como me explicar? Sua descrença, digamos assim, é mais profunda...

Sir George pareceu que ia começar a falar, mas parou.

— Vamos — disse Poirot em tom encorajador. — Diga-me: o senhor está ao lado de Lord Mayfield, na extremidade do terraço. Lord Mayfield vê uma sombra atravessar o jardim. Por que o senhor não a vê?

Carrington desabafou.

— O senhor está certo, monsieur Poirot. Isto me parece extraordinário. Poderia jurar que ninguém atravessou o jardim. A princípio pensei que fosse imaginação de Mayfield... talvez um galho de árvore. Quando en­tramos e descobrimos o furto, tudo indicava que Mayfield estava certo e eu errado.  Mas apesar disto...

Poirot sorriu.

— Apesar disto, no fundo, o senhor acredita mais nos seus olhos do que nos dele?

— Sim, monsieur Poirot, acredito.

— E o senhor está com toda razão.

Sir George perguntou:

— Não havia pegadas na grama?

Poirot concordou.

— Exatamente. Lord Mayfield pensou ter visto uma sombra. Quando entrou e descobriu ter sido roubado, aquela impressão transformou-se em certeza. Ele conven­ce-se de que tinha visto um homem. Mas não viu. Ge­ralmente não dou muita importância a pegadas e coisas semelhantes, mas é impossível ignorar a evidência. Não havia qualquer pegada na grama. Choveu forte à noite e seria impossível alguém ter andado sobre a grama sem deixar marcas.

Sir George encarava-o fixamente:

 — Mas então... então...

— Estamos de volta à casa. Às pessoas nesta casa.

Poirot calou-se ao ver que a porta se abria e Lord Mayfield entrava com Mr. Carlile.

O secretário estava ainda pálido e preocupado, mas tinha recuperado um pouco do domínio de si mesmo. Ele sentou-se dirigindo a Poirot um olhar inquiridor, enquan­to ajustava seu pincenê.

— Há quanto tempo o senhor estava neste escritório quando ouviu o grito, monsieur?

Carlile pensou alguns instantes.  

— Entre cinco e dez minutos.

— Antes disto não tinha acontecido nada de anormal?

— Não.

— Creio que as pessoas nesta casa passaram a maior parte da noite num mesmo aposento, não?

— Sim, na sala de visitas.

Poirot consultou seus apontamentos.

— Sir George Carrington e sua esposa. Mrs. Macatta. Mrs. Vanderlyn. Mr. Reggie Carrington. Lord Mayfield e o senhor. Estou certo?

— Eu não estava na sala de visitas. Passei grande parte da noite aqui no escritório.

Poirot voltou-se para Lord Mayfield.

— Quem foi primeiro para a cama?

— Creio que Lady Julia Carrington. Não, pensando bem, as três senhoras se recolheram juntas.

— E a seguir?

— Mr. Carlile entrou e eu lhe disse para pôr os papéis na escrivaninha, pois eu e Sir George iríamos examiná-los num instante.

— Foi então que o senhor decidiu dar um passeio lá fora?

— Foi.

— Mrs. Vanderlyn teria ouvido quando o senhor disse que ia trabalhar no escritório?

— Sim, falamos disto na presença dela.

— Mas ela estava na sala quando o senhor deu ordens a Mr. Carlile para pôr os papéis sobre a escrivaninha?

— Não.

— Perdoe-me, Lord Mayfield — interrompeu Carlile. — Assim que o senhor falou comigo, eu ia saindo e esbarrei em Mrs. Vanderlyn, que tinha voltado para apanhar um livro.

— O senhor acha que ela pode ter ouvido?

— Acho bastante possível.

— Ela voltou para apanhar um livro — refletiu Poirot. — O senhor encontrou o livro que ela procurava, Lord Mayfield?

— Eu não. Reggie encontrou-o e deu-o a ela.

— É o que poderíamos chamar o velho golpe... melhor dizendo, o velho truque do livro. Muito útil em geral...

— O senhor acha que foi proposital?

Poirot limitou-se a dar de ombros.

— Depois os senhores vão dar um passeio lá fora. E Mrs. Vanderlyn?

— Foi para o quarto com seu livro.

— E o jovem monsieur Reggie? Também foi para a cama?

— Foi.

— E Mr. Carlile vem para cá, recomeça a trabalhar, mas cinco ou dez minutos depois ouve um grito. Prossi­ga, Mr. Carlile. O senhor ouviu um grito e foi ver o que era. Seria melhor se o senhor pudesse reproduzir exata­mente suas ações.

Mr. Carlile levantou-se um pouco desajeitadamente.

— Vou dar o grito — disse Poirot para ajudá-lo, enquanto abria a boca e deixava escapar um balido agudo. Lord Mayfield virou o rosto para esconder o riso e Mr. Carlile mostrou-se ainda mais constrangido.

— Allez. Adiante, vá — comandou Poirot. — Acabo de lhe dar sua deixa.

 Mr. Carlile encaminhou-se a passos rígidos até a por­ta, abriu-a e saiu para o corredor. Poirot seguiu-o, com os outros dois atrás.

— O senhor fechou a porta atrás de si ou deixou-a aberta?

— Não me lembro com certeza. Acho que a deixei aberta.

— Não importa. Vamos em frente.

Ainda constrangido, Mr. Carlile encaminhou-se para o sopé da escada e se postou lá, olhando para cima.      

— O senhor disse que a criada estava na escada. Em que altura?

— A meia altura.

— E parecia perturbada?      

— Muito.

— Eh bien, eu sou a criada — continuou Poirot, correndo escada acima. — Foi mais ou menos aqui que ela estava?

— Um degrau ou dois acima.

— Assim? — perguntou Poirot, assumindo uma posição.

— Bem... não propriamente.

— Como então?

— Ela... ela estava com as mãos na cabeça.

— Ah, com as mãos na cabeça. Muito interessante Assim? — perguntou Poirot erguendo os braços, com as mãos segurando a cabeça logo acima das orelhas.

— Assim mesmo.

— Ah. Diga-me, Mr. Carlile, a criada é bonita?

— Não cheguei a reparar.

A voz de Carlile parecia reprimida.

— Ah, o senhor não reparou? Mas o senhor é um moço. Os moços não reparam quando as moças são bonitas?

— Francamente, monsieur Poirot, tudo o que posso dizer-lhe é que eu não reparei.

Carlile lançou um olhar agoniado ao patrão, que res­pondeu com uma risada.

— Acho que monsieur Poirot está querendo caçoar de você, Carlile.

— Eu por mim nunca deixo de reparar quando uma moça é bonita — anunciou Poirot, descendo a escada.

Carlile limitou-se a receber a observação com um silêncio bastante significativo, mas Poirot não se deu por achado:

— E foi então que ela lhe disse que tinha visto um fantasma?

— Sim.

— E o senhor acreditou na história?

— Ora, francamente, monsieur Poirot.

— Não estou perguntando se o senhor acredita em fantasmas. Estou perguntando se lhe pareceu que a moça realmente pensava ter visto um.

— Ah, não posso garantir, mas ela de fato parecia muito nervosa e perturbada.

— O senhor viu ou ouviu sua patroa?

— Sim, para falar a verdade, ouvi. Ela saiu de seu quarto no segundo andar e chamou a moça.

— E então?

— A criada subiu correndo e eu voltei ao escritório

— Enquanto o senhor estava aqui ao pé da escada alguém poderia ter entrado no escritório pela porta que o senhor deixou aberta?

Carlile sacudiu a cabeça.

— Não, qualquer pessoa teria que passar por mim. Como o senhor vê, o escritório é bem ao fim deste corredor.

Poirot concordou, pensativo. Mr. Carlile prosseguiu com sua voz precisa:

— Devo dizer que felizmente para mim Lord May­field viu o ladrão sair pela janela. Caso contrário, minha posição seria muito esquerda.

— Tolice, meu caro Carlile — interrompeu Lord Mayfield. Você está acima de qualquer suspeita.

— É muita bondade sua dizer isto, Lord Mayfield, mas é preciso enfrentar os fatos e eu sei perfeitamente que eles não me deixam numa boa posição. Por isto mes­mo, ficaria agradecido se minha pessoa e meus perten­ces fossem revistados.

— Bobagem, meu caro — insistiu Lord Mayfield.

Poirot murmurou:

— O senhor prefere mesmo ser revistado?

— Sem dúvida alguma.

Poirot estudou-o por um momento e disse mais para si:

— Compreendo.

Depois perguntou:

— Qual é a posição do quarto de Mrs. Vanderlyn em relação a este escritório?

— Diretamente acima dele.

— Com uma janela abrindo para o terraço?

— Sim.

Poirot balançou a cabeça mais uma vez, dizendo a seguir:

— Vamos todos até a sala de estar.

Ao chegar lá, Poirot circulou pelo aposento, exami­nou os trincos das portas envidraçadas abrindo para o terraço, deu uma olhada nas anotações do jogo de bridge e finalmente dirigiu-se a Lord Mayfield.

— Este caso é mais complicado do que parece, mas uma coisa é certa: o projeto roubado não saiu desta casa.

Lord Mayfield olhou-o fixamente.

— Mas meu caro monsieur Poirot, o homem que eu vi saindo do escritório...

— Não havia homem algum.

— Mas se eu o vi...

— Com o respeito devido, Lord Mayfield, o senhor pensa que o viu, mas foi apenas a sombra de um galho de árvore. O fato de que, por coincidência, tenha havido um roubo pareceu-lhe prova definitiva de que o senhor realmente tinha visto alguém.

— Mas monsieur Poirot, o senhor quer que eu duvide de meus próprios olhos...

— Sou muito mais meus olhos a qualquer momen­to — interrompeu Sir George.

Poirot prosseguiu:

— Permita-me dizer-lhe isto com convicção absoluta, Lord Mayfield. Ninguém atravessou aquele terraço a caminho do jardim.

Mr. Carlile parecia extremamente tenso:

— Neste caso, monsieur Poirot, a suspeita cai natu­ralmente sobre mim. Sou a única pessoa que pode ter cometido o roubo.

Lord Mayfield cortou-lhe as palavras:

— Tolice, já afirmei. Seja o que for que monsieur Poirot pense a seu respeito eu não concordo com ele. Mais do que isso, ponho minha mão no fogo por sua inocência.

Poirot murmurou suavemente:

— Mas eu não disse que suspeito de Mr. Carlile.

Carlile replicou:

— Não, mas o senhor deixou bem claro que nin­guém mais teve a oportunidade de praticar o roubo.

— Du tout! Du tout!

— Mas se eu lhe disse que ninguém passou por mim no hall a caminho do escritório.

— Concordo. Mas alguém poderia ter entrado pela porta envidraçada do escritório.

— Mas o senhor não acabou de garantir que isto não aconteceu?

— O que eu disse é que nenhum estranho poderia ter vindo e saído sem deixar marcas no jardim. Mas o roubo pode ter sido feito por alguém da própria casa. Alguém poderia ter saído desta sala por uma destas portas envidraçadas, caminhado pelo terraço, entrado no escritório e voltado pelo mesmo caminho.

Mr. Carlile contestou:

— Mas Lord Mayfield e Sir George estavam no ter­raço!

— Sim, mas caminhando. Sir George pode ter ex­celentes olhos, mas não atrás de sua cabeça. O escritó­rio está ao fim do terraço e esta sala vem logo a seguir, mas o terraço continua ainda por mais quantas salas? Três, quatro?

— Sala de jantar, sala de bilhar, saleta de visitas e biblioteca — disse Lord Mayfield.

— E quantas vezes os senhores caminharam pelo terraço?

— Pelo menos cinco ou seis.

— Como vêem, teria sido fácil. Bastava ao ladrão es­perar o momento oportuno.

Carlile perguntou, medindo as palavras:

— O senhor quer dizer que quando eu saí ao hall para ver o que se passava com a criada, o ladrão estava esperando nesta sala?

— É o que penso. Mas por enquanto não passa de uma hipótese.

— Hipótese que me parece pouco provável — inter­rompeu Lord Mayfield — pois o risco seria muito grande.

O brigadeiro objetou:

— Não concordo, Charles. Acho-a perfeitamente pos­sível. Devíamos ter tido o bom senso de pensar nela há mais tempo.

— Os senhores compreendem agora — continuou Poirot — por que acho que o projeto ainda está nesta casa. O problema agora é achá-lo.

Sir George bufou:

— É muito simples. Reviste todo mundo.

Lord Mayfield ia protestar, mas Poirot falou antes que ele pudesse fazê-lo.

— Não, não, não é tão simples assim. Quem roubou o projeto espera que demos uma busca e vai tomar pro­vidências para que ele não seja encontrado consigo ou entre seus pertences. O projeto deve estar escondido no que poderíamos chamar território neutro.

— O senhor está sugerindo que a gente procure pela casa toda?

Poirot sorriu.

— Não precisamos ser tão primários. Podemos descobrir o esconderijo ou a identidade do ladrão por dedução, o que simplificará muito as coisas. Gostaria de conversar com todo mundo nesta casa amanhã de manhã. Agora está muito tarde para isto.

Lord Mayfield concordou.

— Iria atrair muito a atenção — comentou — se arrastássemos todo mundo para fora da cama as três da manhã. Mesmo amanhã de manhã o senhor deve proceder com discrição, monsieur Poirot, pois o caso tem que permanecer em sigilo.

Poirot fez um gesto com a mão.

— Deixe por conta de Hercule Poirot. Minhas men­tiras são sempre sutis e convincentes. Está combinado que iniciarei minhas investigações amanhã. Mas hoje gos­taria de conversar com o senhor, Sir George, e o senhor, Lord Mayfield.

E dizendo isto fez uma mesura.

— O senhor quer dizer... separadamente?

— Exato.

Lord Mayfield ergueu ligeiramente as sobrancelhas, mas depois disse:

— Perfeitamente. Deixarei o senhor à vontade com Sir George. Quando precisar de mim estarei no escritório. Venha, Carlile.

Lord Mayfield e seu secretário saíram, fechando a porta atrás de si.

Sir George sentou-se, puxando do cigarro com um gesto mecânico. Tinha uma expressão intrigada no rosto.

— Se o senhor não me leva a mal, não percebo suas intenções.

— É muito fácil de explicar — disse Poirot com um sorriso. — Em duas palavras, para ser mais preciso: Mrs. Vanderlyn.

— Ah, compreendo agora — disse Sir George. — Mrs. Vanderlyn?

— Precisamente. Não seria muito delicado de minha parte fazer a Lord Mayfield a pergunta que me in­teressa. Por que Mrs. Vanderlyn está aqui? Todos sabem de suas atividades; por que então convidá-la? Só há três possibilidades. A primeira é de que Lord Mayfield tem uma queda por ela, e é por isto que eu quis conversar se­paradamente com o senhor. A segunda é que Mrs. Van­derlyn é muito amiga de algum dos outros convidados.

— Não é o meu caso — disse Sir George com um sorriso.

— Se nem uma nem outra das hipóteses se aplicam, voltamos ao ponto de origem. Por que chamar Mrs. Van­derlyn? Só pode haver uma razão. Lord Mayfield dese­java sua presença hoje nesta casa por um motivo espe­cial. Estou certo?

Sir George assentiu.

— Certíssimo. Mayfield é um solteirão muito expe­rimentado para cair nas artimanhas de Mrs. Vanderlyn. Ele a queria aqui por outras razões. Foi para...

Sir George repetiu o que tinha ouvido de Lord May­field. Poirot ouviu com atenção.

— Compreendo agora. Mas me parece que o tiro lhe saiu pela culatra.

Sir George deixou escapar um palavrão.

Poirot observou-o um momento com expressão diver­tida, depois continuou:

— O senhor não tem dúvida de que este roubo é de responsabilidade de Mrs. Vanderlyn, quer ela tenha to­mado nele parte ativa ou não?

— Não pode haver dúvida de que ela é a responsável. Quem mais teria interesse em roubar o projeto?

Poirot recostou-se e olhou o teto:

— Mas, Sir George, há 15 minutos o senhor concor­dava em que este projeto vale muito dinheiro. Se alguém nesta casa estivesse em má situação financeira?

O outro o interrompeu com um grunhido.

— Quem não está, hoje em dia? Acho que posso con­fessar isto sem me incriminar no roubo.

Ele sorriu. Poirot sorriu-lhe e prosseguiu:

— O senhor pode dizer o que quiser, Sir George, que não destruirá seu álibi. Ele é toda a prova.

— O álibi pode ser, mas financeiramente estou quase em apuros.

— Sim, sim, um homem em sua posição deve ter muitas despesas. Ainda mais com um filho na idade de seu.

Sir George suspirou:

— A universidade custa uma fortuna e além disso ele anda cheio de dívidas.  Mas não pense que é um mau rapaz.

 Poirot ouviu com simpatia as queixas do brigadeiro. A pouca firmeza de ânimo da juventude, o modo incrível pelo qual as mães estragam a educação dos filhos, satisfazendo-lhes todas as vontades, o mal que era uma mulher viciada no jogo, a insensatez de fazer apostas que não podia pagar. Tudo isto foi dito em termos muito gerais e Sir George não mencionou diretamente nem sua mulher nem seu filho, mas era muito fácil ver que se re­feria a eles.

Ele parou de súbito.

— Desculpe-me, não deveria estar aqui tomando seu tempo com assuntos estranhos às suas investigações, prin­cipalmente a esta hora da noite. Ou, melhor dizendo, ma­nhã.

Ele abafou um bocejo.

— Sugiro que o senhor vá se deitar, Sir George. Sua ajuda foi inestimável.

— É, acho que vou mesmo. O senhor acredita que há possibilidade de reavermos o projeto?

Poirot sacudiu os ombros.

— Vou tentar, e não vejo por que haveria de fracassar.

— Bom, vou indo. Boa noite.

Ele saiu da sala.

Poirot continuou sentado, estudando o teto pensati­vamente. Depois tirou do bolso um pequeno caderno de apontamentos e, procurando uma página nova, escreveu:

Mrs. Vanderlyn?

Lady Julia Carrington?

Mrs. Macatta?

Reggie Carrington?

Mr. Carlile?

Mais abaixo Poirot escreveu:

Mrs. Vanderlyn e Mr. Reggie Carrington?

Mrs. Vanderlyn e Lady Julia?

Mrs. Vanderlyn e Mr. Carlile?

Ele balançou a cabeça descontente e murmurou:

— C’est plus simple que ça.

A seguir Poirot escreveu algumas frases curtas.

Lord Mayfield terá visto uma “sombra”? Se não, por que disse que viu? Terá Sir George visto alguma coisa? Ele se mostrou absolutamente seguro de que não tinha visto nada, mas só DEPOIS que eu examinei o jardim. Observação: Lord Mayfield é míope; pode ler sem óculos, mas precisa deles para ver alguém do outro lado da sala. Sir George tem vista cansada. Assim, para ver longe, do outro lado do terraço, seus olhos são melhores que os de Lord Mayfield. Mas Lord Mayfield GARANTE que viu al­guma coisa, apesar de todas as afirmativas em contrá­rio de seu amigo.

Será Mr. Carlile tão inocente quanto Lord Mayfield acredita? Lord Mayfield o considera acima de qualquer suspeita. Por que tanta certeza? Por que no fundo descon­fia de seu secretário e sente-se envergonhado por isto? Ou por que tem suspeitas fortes sobre uma outra pessoa? Uma outra pessoa que não seja Mrs. Vanderlyn?

Poirot guardou o caderno.

Depois, levantando-se, caminhou para o escritório.

 

Lord Mayfield estava sentado em sua escrivaninha quando Poirot entrou. Ele voltou-se, pôs de lado sua ca­neta e olhou com expressão interrogativa.

— Que tal, monsieur Poirot, teve sua conversa com Carrington?

Poirot sorriu e sentou-se.

— Sim, Lord Mayfield. Ele esclareceu um ponto que estava me intrigando.

— Qual?

— A razão para a presença de Mrs. Vanderlyn nesta casa. O senhor compreende, eu cheguei a julgar...

Mayfield percebeu de imediato onde Poirot queria chegar com sua forçada demonstração de constrangimento.

— O senhor julgou que eu tinha uma queda por esta senhora? Absolutamente. Longe disso. É engraçado que Carrington pensasse a mesma coisa.

— Sim, ele me relatou a conversa que teve com o senhor a este respeito.

Lord Mayfield parecia pesaroso.

— Meu pequeno plano parece ter fracassado. É emba­raçoso reconhecer que uma mulher me levou a melhor.

— Mas ela ainda não lhe levou a melhor, Lord Mayfield.

— O senhor acha que ainda podemos nos safar? Agra­da-me ouvir isto, mas não sei se posso acreditar muito.

Lord Mayfield deu um suspiro.

— Acho que banquei o bobo. E estava tão satisfeito com meu estratagema para desmascarar Mrs. Vanderlyn!

Hercule Poirot perguntou, enquanto acendia um de seus pequenos cigarros:

— E como era exatamente o seu estratagema, Lord Mayfield?

— Bem — hesitou Lord Mayfield —, não tinha che­gado a planejá-lo em detalhes.

— O senhor não discutiu seu plano com ninguém?

— Não.

— Nem mesmo com Mr. Carlile?

— Não.

Poirot sorriu.

— O senhor, sem dúvida, prefere agir sozinho, Lord Mayfield.

— Acho que em geral dá mais resultado — respon­deu o outro, um pouco carrancudamente.

— O senhor tem razão. Não se deve confiar em nin­guém. Mas o senhor contou o caso a Sir George Carrington.

— Só porque compreendi que ele estava preocupado comigo.

Lord Mayfield sorriu ao dizer isto. — Ele é um velho amigo seu?

— Sim. Nos conhecemos há mais de 20 anos.

— E sua esposa?

— Também a conheço há muito tempo.

— Mas, perdoe-me se estou sendo impertinente, o se­nhor tem relações de amizade tão estreitas com ela quanto tem com Sir George?

— Não chego a perceber o que tem o caso em ques­tão com minhas relações pessoais, monsieur Poirot.

— Acho que pode ter muita coisa a ver, Lord May­field. O senhor não concordou com minha teoria de que era possível haver alguém na sala de visitas?

— Concordei. Acho mesmo que é o que deve ter acon­tecido.

— Melhor não dizermos deve. É uma palavra que im­plica muita certeza da parte de quem a diz. Mas se mi­nha teoria está certa, quem o senhor acha era a pessoa na sala de visitas?

— Só pode ter sido Mrs. Vanderlyn. Ela já tinha vol­tado lá para apanhar um livro e poderia inventar outro pretexto qualquer. Uma bolsa, ou um lenço, enfim uma destas muitas desculpas femininas. Ela diz a sua criada para gritar e atrair Carlile para fora do escritório, e en­tão entra e sai pela porta envidraçada, como o senhor disse.

— O senhor se esquece de que não pode ter sido Mrs. Vanderlyn. Carlile ouviu-a chamar a criada de cima, en­quanto ele falava com a moça.

Lord Mayfield mordeu o lábio inferior.

— É verdade, tinha me esquecido.

Ele parecia aborrecido.

— Como o senhor vê, vamos fazendo progressos — disse Poirot amavelmente. — Começamos com a explica­ção de que um ladrão tinha vindo de fora, mas, como eu disse logo, esta teoria era conveniente demais para ser aceita. A seguir passamos à tese de um agente estrangeiro, Mrs. Vanderlyn, mas também temos que aban­doná-la.

— O senhor inocentaria Mrs.  Vanderlyn por completo?

— Só posso ter certeza de que Mrs. Vanderlyn não estava na sala de visitas, mas talvez fosse um cúmplice dela, como talvez fosse outra pessoa qualquer. Nesta última hipótese, temos que achar um motivo, o porquê do roubo.

— Esta hipótese não será forçada demais, monsieur Poirot?

— Não vejo por quê. Agora, que motivos existiriam? Temos em primeiro lugar o dinheiro. O projeto pode ter sido roubado para ser vendido. Este seria o móvel mais simples. Mas é possível que o motivo fosse algo completamente diferente.

— Como?

Poirot disse pausadamente.

— O roubo pode ter sido feito com o propósito de prejudicar alguém?

— Quem?

— Mr. Carlile, talvez, pois ele seria o suspeito ime­diato. Mas a razão talvez seja mais complexa. Os homens que controlam o destino de uma nação são extremamente vulneráveis às demonstrações de sentimento popular.

— O senhor quer dizer que o roubo foi feito com o objetivo de me prejudicar?

Poirot assentiu.

— Se minha memória não me engana, Lord May­field, há cerca de cinco anos o senhor esteve em um certo apuro, pois o acusaram de ser amigo de uma potência européia à época altamente impopular com o eleitorado deste país.

— É verdade, monsieur Poirot.

— Não é fácil a missão de um estadista. Ele tem que adotar a política que julga mais vantajosa para o país, mas tem ao mesmo tempo que respeitar a opinião públi­ca. Ora, esta é freqüentemente sentimental, confusa e er­rônea, mas nem por isso pode ser ignorada.

— O senhor coloca o problema muito bem. Esta é sem dúvida a maldição do político: agradar a opinião pública por mais errada que ela seja.

— E creio que seu dilema era precisamente este. Havia rumores de que o senhor estava prestes a negociar um tratado com o país em questão, o que provocou grande ira dos jornais. Para sua felicidade o primeiro-ministro desmentiu tudo e o senhor negou que tivesse sequer es­tabelecido contato com o outro país, embora deixasse claro que era a favor de fazê-lo.

— Tudo isto é verdadeiro, monsieur Poirot, mas por que desencavarmos o passado?

— Porque eu suspeito que algum desafeto, irritado por vê-lo sobreviver àquela crise, esteja agora tentando lhe preparar outra. O senhor conquistou de novo a con­fiança do povo e é um dos políticos mais prestigiados do momento. Dizem mesmo que o senhor deverá ser o novo primeiro-ministro.

— O senhor acha que o roubo é uma manobra para desacreditar-me? Não creio.

— Tout de même, Lord Mayfield, o senhor ficaria numa posição esquerda se soubessem que o projeto para o mais novo bombardeiro britânico fora roubado durante um fim de semana em que o senhor tinha como hóspede uma certa senhora muito encantadora.  Uma insinuação aqui ou ali sobre suas relações com esta dama seria o suficiente para desacreditá-lo.

— Ninguém levaria essas histórias a sério.

— Meu caro Lord Mayfield, o senhor sabe muito bem que levariam. Não é preciso muito para abalar a con­fiança do povo num homem.

— Sim, é verdade — disse Lord Mayfield, parecendo subitamente preocupado. — Meu Deus, como este caso começa a se complicar. O senhor acha mesmo... mas é impossível... é impossível.

— O senhor sabe se alguém lhe tem inveja?

— A mera hipótese é um absurdo.

— Absurda ou não, o senhor há de reconhecer que minhas perguntas sobre suas relações com seus hóspedes não são totalmente irrelevantes.

— É possível. O senhor me perguntou sobre Julia Carrington. Não tenho muito o que dizer. Nunca tivemos grande simpatia um pelo outro. Considero-a uma destas mulheres meio insuportáveis, extravagantes, maníacas por baralho. Creio que ela me acha mais ou menos um no­vo-rico.

Poirot respondeu:

— Procurei o seu nome no “quem é quem” antes de vir para cá. O senhor foi o chefe de uma famosa firma de engenharia e é aliás um engenheiro de primeira ordem.

— Não há nada que ignore sobre o lado prático do assunto, pois fiz minha carreira começando de baixo.

Lord Mayfield continuava carrancudo.

— U lá lá — gritou Poirot. — Sou um idiota, um completo idiota.

Lord Mayfield olhou-o espantado.

— O que o senhor disse, monsieur Poirot?

— Eu disse que começo a desvendar o quebra-cabe­ça. As peças começam a se ajustar. Sim, tudo come­ça a se ajustar às mil maravilhas.

Lord Mayfield parecia disposto a querer detalhes, mas Poirot balançou a cabeça negativamente.

— Não, não. Mais tarde. Preciso aclarar minhas idéias um pouco mais.

Ele ergueu-se.

— Boa noite, Lord Mayfield. Acho que sei onde está o projeto.                                                                        

Lord Mayfield não se conteve:

— Sabe? Então vamos apanhá-lo imediatamente.

Poirot de novo sacudiu a cabeça.

— Não, não queremos precipitações. Deixe tudo por minha conta.

E saiu do escritório. Lord Mayfield ergueu os ombros com desdém, enquanto resmungava:

— Não passa de um charlatão.

Com o que, guardou seus papéis, desligou a luz e tam­bém foi dormir.

 

— Se houve um roubo, por que diabo o velho May­field não manda chamar a polícia? — quis saber Reggie Carrington.

O rapaz afastou um pouco a cadeira da mesa onde acabara de tomar o café da manhã.

Ele tinha sido o último a descer. Seu anfitrião, Mrs. Macatta e Sir George já tinham acabado quando ele chegou. Sua mãe e Mrs. Vanderlyn estavam tomando o café em seus quartos.

Sir George repetiu o recado que lhe fora pedido por Lord Mayfield e Poirot, mas com a desagradável impressão de que não estava se desincumbindo bem de sua mis­são.

— Muito estranho que tenham chamado este gringo meio doido — continuou Reggie. — O que roubaram, afinal?

— Não sei ao certo, meu filho.

Reggie levantou-se. Ele parecia nervoso e inquieto.

— Não foi nada de importante? Documentos ou qual­quer coisa assim?

— Para ser franco com você, Reggie, não estou au­torizado a dizer-lhe.

— Então é segredo, hem?

Reggie começou a subir a escada, parou por um mo­mento de hesitação, mas depois continuou e bateu na porta do quarto de sua mãe. Uma voz mandou-o entrar.

Lady Julia estava sentada na cama, fazendo contas nas costas de um envelope.

— Bom dia, Reggie — disse ela e, ao ver seu rosto: — Algo de errado com você?

— Comigo nada, mas parece que houve um roubo durante a noite.

— Um roubo? O que foi roubado?

— Não sei. Tudo anda em grande segredo. Há uma espécie de detetive particular interrogando as pessoas lá embaixo.

— É incrível.

— É sobretudo desagradável — disse Reggie pausa­damente — quando se é hóspede de uma casa onde acon­tece uma coisa destas.

— Mas o que aconteceu exatamente?

— Não sei. Foi depois que fomos dormir. Cuidado, mamãe, a bandeja vai cair.

Ele apanhou a bandeja do café e colocou-a numa mesa perto da janela.

— Roubaram dinheiro?

— Já disse que não sei.

Lady Julia perguntou impassível:

— É de supor que este detetive esteja a fazer perguntas por aí?                                                                

— Acho que sim.

— Onde as pessoas estavam a noite passada? Este tipo de perguntas?

— Provavelmente. Bem, não posso lhe dizer muito Fui direto para a cama e adormeci imediatamente.

Lady Julia permaneceu calada.

— Olhe, mamãe, será que você não podia me emprestar algum dinheiro? Estou sem um tostão.

— Impossível — respondeu Lady Julia com firmeza. — Minha conta no banco já está em déficit.  Nem sei o que seu pai vai dizer quando descobrir.

Ouviu-se uma pancada na porta e Sir George entrou.

— Ah, você está aqui, Reggie. Você se incomoda de ir até a biblioteca? Monsieur Hercule Poirot quer falar com você.

Poirot acabara de interrogar a temível Mrs. Macatta.

Não foram necessárias muitas perguntas para se es­tabelecer que Mrs. Macatta tinha ido para a cama antes das onze horas e que não vira nem ouvira nada de in­teressante.

Poirot então desviara o assunto para tópicos mais pessoais. Dissera que tinha uma grande admiração por Lord Mayfield. Que o considerava um grande homem. Mas Mrs. Macatta, que era um membro da Câmara, teria cer­tamente muito mais condições de falar sobre as qualida­des de Lord Mayfield.

— Ele é muito inteligente — admitiu Mrs. Macatta. — E se fez na vida por si mesmo. Não deve nada à fa­mília ou amigos, mas talvez tenha pouca visão, no que aliás os homens são todos parecidos. Falta a eles a am­plitude da imaginação feminina. Dentro de dez anos, monsieur Poirot, as mulheres vão dominar o governo des­te país.

Poirot disse não ter qualquer dúvida a respeito.

Depois, com jeito, perguntou por Mrs. Vanderlyn. Seria verdade, como lhe tinham insinuado, que ela e Lord Mayfield eram, digamos assim, amigos íntimos?

— Absolutamente. Para falar a verdade surpreendi-me ao vê-la aqui. Surpreendi-me muito mesmo.

Poirot incitou Mrs. Macatta a emitir sua opinião sobre Mrs. Vanderlyn — e conseguiu-a.

— Uma mulher inteiramente inútil, monsieur Poirot. Um parasita, acima e antes de qualquer outra coisa. Mulheres como ela me levam a ter vergonha de meu próprio sexo.

— Mas os homens a consideram atraente?

— Os homens. (Havia um profundo desprezo na voz de Mrs. Macatta.) Os homens estão sempre caindo por mulheres de beleza vulgar. Veja aquele rapaz, Reggie Carrington, vermelho como um pimentão toda vez que Mrs. Vanderlyn lhe dirige a palavra.  Só um tolo poderia acreditar nos elogios de Mrs. Vanderlyn, mesmo porque Reggie Carrington joga bridge muito mal.

— Oh, pensei que ele fosse um bom jogador.

— Longe disso.  Fez as maiores bobagens ontem à noite.

— Mas sua mãe joga bem, não?

— Bem demais, em minha opinião — respondeu Mrs. Macatta. — É quase uma profissional. Joga de manhã, de tarde e de noite.

— E aposta alto?

— Muito alto, alto demais para mim. Acho mesmo que é errado se apostar tanto.

— E costuma ganhar?

Mrs. Macatta deixou escapar um bufido de desgosto.

— Acho que ela procura pagar suas dívidas com o bridge, mas ultimamente vem perdendo muito dinheiro, pelo que ouvi dizer. Ontem à noite ela parecia estar com sua atenção concentrada em algum outro problema. O vício do jogo é quase tão ruim quanto o da bebida, monsieur Poirot. Se minha autoridade neste país fosse maior...

Poirot viu-se constrangido a ouvir um longo sermão sobre a degeneração da moral inglesa, mas na primeira oportunidade encerrou a conversa e mandou chamar Reggie Carrington.

Ele examinou o rapaz com atenção ao vê-lo entrar na biblioteca. Reparou especialmente nos traços hesitan­tes de seu rosto, na cabeça alongada, na impressão geral de fraqueza que Reggie disfarçava sob um sorriso quase cativante. Poirot conhecia bem o tipo.

— Mr. Reggie Carrington?

— Sim. Posso lhe ser útil?

— Diga-me por favor tudo que sabe a respeito de ontem à noite.

— Deixe-me ver... Jogamos bridge, na sala de visitas. Depois fui para a cama.

— A que horas?

— Pouco antes das onze. O roubo foi depois, não?

— Sim, depois. O senhor não viu ou ouviu nada?

Reggie balançou a cabeça pesarosamente.

— Infelizmente não. Fui direto para a cama e dor­mi como uma pedra.

— Ao sair da sala de visitas o senhor foi direto para seu quarto e ficou lá a noite inteira?

— Sim.

— É curioso — disse Poirot.

— Curioso? O que é curioso? — quis saber Reggie vivamente.

— O senhor não ouviu um grito?

— Não, não ouvi.

— É muito curioso.

— Olhe aqui, o senhor pode ter a bondade de se explicar melhor?

— Será que o senhor é um pouco surdo?

— Claro que não.

Os lábios de Poirot moveram-se, mas ele não falou nada. É possível que estivesse dizendo consigo mesmo, pela terceira vez, a palavra curioso. Finalmente, conti­nuou:

— Bem, muito obrigado, Mr, Carrington. É só.

Reggie levantou-se irresolutamente.

— O senhor sabe, é capaz que eu tenha ouvido al­guma coisa...

— Ah, ouviu?

— Sim, mas o senhor sabe... eu estava lendo um livro, uma história de detetive, para dizer a verdade, e eu... bem, não cheguei a perceber bem que barulho era

— Ah — disse Poirot, com expressão impassível — uma explicação muito convincente.

Reggie continuava a hesitar Virou-se, caminhou vagarosamente em direção à porta, e finalmente perguntou

— Hum, o que foi roubado?

— Algo de grande valor, Mr. Carrington. É tudo o que posso dizer.

— Oh! — fez Reggie, desconcertado.

E saiu da biblioteca.

Poirot balançava a cabeça.

— As peças se ajustam — murmurou. — As peças se ajustam muito bem.

Ele tocou a campainha e perguntou polidamente se Mrs. Vanderlyn já tinha se levantado.

 

Mrs. Vanderlyn entrou na biblioteca com a majes­tade de quem se sabe bela. Estava vestida com um cos­tume esportivo castanho avermelhado que realçava a to­nalidade clara de seus cabelos. Deixou-se deslizar para uma cadeira enquanto dava um sorriso cativante ao ho­menzinho em frente.

Por um instante fugidio o sorriso mostrou algo mais que passava pela cabeça de Mrs. Vanderlyn — talvez triunfo, talvez zombaria. Não demorou quase nada, mas tinha estado lá. Poirot considerou o fato interessante.

— Ladrões? Ontem à noite? Que coisa horrível! Eu? Não, eu não ouvi nada. E a polícia? Será que ela não poderá fazer nada?

Novamente, e também apenas por um instante, a zombaria transpareceu em seus olhos.

Hercule Poirot pensou:

“É óbvio que você não está com medo da polícia, minha cara. Você sabe muito bem que ela não vai ser chamada.”

E da certeza de que ela sabia disso, que conclusão podia tirar Poirot?

Em voz alta, falou:

— A senhora compreende, madame, este caso tem que ser tratado com a maior discrição.

— Sim, sim, claro, monsieur... monsieur Poirot, não é mesmo o seu nome? Pode contar com toda minha colaboração. Admiro Lord Mayfield enormemente e jamais faria alguma coisa que pudesse prejudicá-lo.

Ela cruzou as pernas, mostrando delicados sapatos marrons de salto baixo.

Ela sorriu, um sorriso irresistível e amistoso, um sorriso de ótima saúde e muita satisfação.

— Gostaria muito de poder ajudá-lo.

— Agradecido, madame. A senhora jogou bridge ontem à noite na sala de visitas?

— Sim.

— É verdade que em seguida as senhoras foram dormir?

— É verdade.

— Mas alguém voltou para apanhar um livro. Foi a senhora, não?

— Sim, eu fui a primeira a voltar.

— O que a senhora quer dizer com este a primeira? — perguntou Poirot vivamente.

— Eu voltei imediatamente — explicou Mrs. Van­derlyn. — Então fui de novo para meu quarto e toquei a sineta, chamando minha criada, que demorou muito a atender. Chamei de novo, depois fui até quase o patamar. Ouvi sua voz e a chamei. Ela estava nervosa e embara­çou meus cabelos com a escova uma ou duas vezes en­quanto me penteava. Foi então, ao mandá-la embora no­vamente, que vi Lady Julia subindo a escada. Ela me disse que tinha tornado a descer para apanhar um livro também. Curioso, não?

Mrs. Vanderlyn sorriu ao acabar de falar, um sorriso de esperteza felina. Hercule Poirot pensou consigo mes­mo que Mrs. Vanderlyn não gostava de Lady Julia Car­rington.

— Realmente, madame. Diga-me, a senhora ouviu sua criada gritar?

— Sim, algo que me pareceu um grito.

— E a senhora perguntou-lhe por que gritara?

— Sim, ela me disse que vira um vulto de branco a flutuar... uma bobagem assim.

— Que vestido Lady Julia estava usando?

— O senhor acha que... Sim, compreendo. Lady Ju­lia estava usando um vestido branco. É claro, é o que deve ter ocorrido. Ela deve ter visto o vulto de Lady Julia, no escuro, com um vestido branco. Estas criadas são terrivelmente supersticiosas.

— Sua criada tem estado com a senhora há muito tempo?

— Não — respondeu Mrs. Vanderlyn. — Há uns cin­co meses apenas.

— Gostaria de conversar com ela agora, se a senhora não se incomoda.

Mrs. Vanderlyn ergueu as sobrancelhas.

— Pois não — respondeu um tanto friamente.

— A senhora compreende, eu gostaria de interrogá-la.

— Pois não — a sombra de zombaria voltou a pas­sar em seu rosto.

Poirot levantou-se e cortejou.

— Sou seu mais profundo admirador, madame.

Pela primeira vez Mrs. Vanderlyn pareceu pouco à vontade.

— Muita gentileza sua, monsieur Poirot, mas por quê?

— Porque sua autoconfiança é verdadeiramente enor­me.

Mrs. Vanderlyn deu um riso em que havia um certo nervosismo.

— Devo tomar isto como um cumprimento?

— Talvez como uma advertência... para não enca­rar a vida com arrogância.

Mrs. Vanderlyn voltou a rir com mais segurança, enquanto levantava-se e lhe estendia a mão.

— Meu caro monsieur Poirot, desejo-lhe êxito em sua missão. Muito agradecida pelas coisas gentis que me disse.

É saiu da biblioteca. Poirot murmurou consigo mes­mo:

— Deseja-me sucesso, hem? Ah, mas a senhora está certa de que eu não vou ter sucesso. E isto me irrita muito.

Com um gesto ligeiramente petulante Poirot tocou a campainha e pediu que mademoiselle Leonie entrasse.

Seus olhos se demoraram apreciativamente sobre a moça enquanto ela esperava hesitante no vão da porta, muito recatada em seu vestido negro, com seu cabelo negro e ondulado muito bem repartido. Ela conservava os olhos baixos. Poirot parecia satisfeito com o que via.

— Entre, mademoiselle Leonie — disse ele. — Não tenha medo.

Ela entrou e continuou de pé em frente a ele, com seu ar modesto.

— A senhorita sabe — disse Poirot, mudando de re-pente seu tom de voz — que eu a acho muito bonitinha?

A reação de Leonie foi imediata. Ela dardejou-lhe uma rápida mirada com o canto dos olhos e murmurou em voz suave:

— O senhor é muito gentil.

— Agora veja a senhorita — continuou Poirot. — Perguntei a Mr. Carlile se a senhorita era bonita e ele me respondeu que não sabe.

Leonie ergueu o queixo em sinal de desprezo.

— Aquele paspalhão.

— Acho que a palavra o descreve muito bem.

— Acho que ele nunca olhou para uma garota em sua vida.

— É provável. E é uma pena, pois ele não sabe o que tem perdido. Mas há outros nesta casa que apreciam melhor o belo, não?

— Não compreendo onde o senhor quer chegar.

— Compreende muito bem, mademoiselle Leonie. Falo daquela bela fábula que a senhorita criou ontem à noite a propósito de um fantasma. Assim que me disse­ram que a senhorita estava lá com as mãos na cabeça, vi logo que não havia fantasma algum. Quando uma moça toma um susto ela leva as mãos ao coração, ou à boca, para abafar um grito. Mas se suas mãos estão na cabeça, então o motivo é completamente diferente. É porque seu cabelo foi despenteado e ela o está arranjando rapidamente.  Vamos, mademoiselle, conte-me a verdade. Por que a senhorita gritou ontem à noite?

— Mas monsieur eu já lhe disse, vi um vulto desli­zando de branco...

— Mademoiselle, não insulte minha inteligência. Esta história pode ter sido boa para Mr. Carlile, mas não ser­ve para monsieur Poirot. A verdade é que alguém acabara de lhe dar um beijo. E vou dar um palpite: foi Mr. Reggie Carrington.

Leonie piscou-lhe com ar maroto.

— Eh bien, que mal há num beijo?

— Nenhum, de fato — respondeu Poirot, galantemente.

— O senhor sabe, ele me pegou de surpresa e me segurou pela cintura. Foi por isto que eu gritei. Se eu soubesse que ele ia me beijar então naturalmente não teria gritado.

— Naturalmente — concordou Poirot.

— Mas ele veio como um gato. E então a porta do escritório se abriu e surgiu monsieur le secrétaire e Mr. Carrington desapareceu escada acima, deixando-me lá como uma idiota. Eu tinha que inventar uma desculpa, especialmente para um... um... — ela hesitou e con­tinuou em francês — un jeune homme comme ça, tellement comme il faut.

— Foi então que a senhorita inventou o fantasma?

— Foi a primeira coisa que me ocorreu. Uma figura vestida de branco, que flutuava. É ridículo, mas o que mais poderia eu fazer?

— Nada, realmente. Finalmente está tudo explicado. Eu desconfiava desde o começo.

Leonie deu-lhe um olhar provocativo.

— O senhor é muito inteligente, e muito simpático.

— E como não pretendo contar a ninguém nosso segredo, acho que em paga a senhorita poderia me fazer um pequeno favor.

— Com muito prazer, monsieur.

— O que a senhorita sabe das atividades de sua patroa?

A moça deu de ombros.

— Não muito, monsieur. Mas tenho minhas suspeitas.

— E que suspeitas são essas?

— Bem, já percebi que os amigos de madame são todos oficiais da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica. E há alguns outros, estrangeiros, que vêm vê-la, algumas vezes quase às escondidas. Madame é bonita, embora eu ache que sua beleza não vá durar muito mais tempo, mas os jovens se deslumbram com ela.   Desconfio que algumas vezes eles falam demais. Mas é só uma impres­são minha, pois madame não me diz nada.

— A senhora quer dizer que sua patroa gosta de agir sozinha?

— Precisamente, monsieur.

— Em outras palavras, a senhorita não pode me ajudar.

— Receio que não, mas gostaria, se possível.

— Diga-me, sua patroa está de bom humor hoje?

— Muito, monsieur.

— A senhorita acha que aconteceu alguma coisa que a alegrou particularmente?

— Ela tem estado assim desde que chegou aqui.

— Bem, Leonie, ninguém melhor do que você para saber.

A moça respondeu com segurança:

— Sim, monsieur. Tenho certeza absoluta, pois co­nheço muito bem o temperamento de madame. Ela está em excelente disposição.

— A senhorita diria triunfante?

— A palavra não poderia ser mais adequada, mon­sieur.

Poirot parecia deprimido.

— Isto me irrita muito, mas que fazer? É inevitável. Obrigado, mademoiselle, isto é tudo.

Leonie lançou-lhe um olhar atrevido.

— Obrigada, monsieur. Se eu encontrá-lo na escada, pode ter certeza que não vou gritar.

— Minha jovem — respondeu o detetive com digni­dade —, sou um homem de idade madura. Por que per­deria meu tempo com estas frivolidades?

Leonie saiu com uma pequena risada.

Poirot caminhou pela biblioteca, com uma expressão grave no rosto. Por fim, disse alto:

— E agora, vamos a Lady Julia. Que terá ela a dizer?

Lady Julia entrou com um ar de dignidade serena. Saudou Poirot com a cabeça, aceitou a cadeira que ele lhe oferecia e falou com voz bem modulada:

— Lord Mayfield me disse que o senhor tinha algu­mas perguntas a fazer.

— Sim, madame, sobre a noite passada.

— E o que o senhor quer saber sobre ontem à noite?

— O que se passou quando a senhora acabou seu jogo de bridge?

— Meu marido achou que era tarde demais para começar outra partida e eu então fui para meu quarto.

— E então?

— Então fui dormir.

— Só?

— Só. Sinto que não tenha nada de interessante para contar-lhe. Quando houve este... este roubo?

— Pouco depois da senhora subir.

— Compreendo. E o que foi roubado?

— Documentos particulares, madame.

— Documentos importantes?

— Muito importantes.

Ela franziu o rosto e perguntou:

— Eram... valiosos?

— Tinham um grande valor em dinheiro, se é o que a senhora quer saber.

— Compreendo.

Houve uma pequena pausa e Poirot perguntou:

— E seu livro, madame?

— Meu livro? Ela parecia perplexa.

— Sim. Mrs. Vanderlyn me disse que a senhora des­ceu de novo para apanhar um livro.

— Ah, sim, claro. Tem razão.

— Então a verdade é que a senhora não foi direto para a cama quando se recolheu a seu quarto, não? A senhora voltou à sala de visitas, não?

— É verdade. Tinha me esquecido.

— Enquanto apanhava seu livro, ouviu alguém gri­tar?

— Não... sim... Acho que não.

— Certamente a senhora não pode deixar de ter ou­vido o grito quando voltou à sala de visitas.

Lady Julia levantou a cabeça e disse com firmeza:

— Não ouvi nada.

Poirot ergueu as sobrancelhas, mas não disse nada.

O silêncio começou a ficar pesado. Lady Julia per­guntou bruscamente:

— E o que é que está sendo feito?

— Sendo feito? Não sei onde a senhora quer chegar, madame.

— Quero dizer, sobre o roubo. A polícia deve estar fazendo alguma coisa.

Poirot sacudiu a cabeça.

— A polícia não foi chamada. Eu fui encarregado do caso.

Ela olhava-o fixamente, com nervosismo na face pá-lida. Seus olhos escuros procuravam penetrar sua impassibilidade.

Finalmente, ela baixou os olhos, derrotada.

— O senhor não pode me dizer o que está fazendo para solucionar o caso?

— Só posso lhe assegurar, madame, que não estou deixando pedra sobre pedra.

— Para pegar o ladrão... ou recuperar os papéis?

— O principal é recuperar os papéis.

Os modos de Lady Julia se alteraram. Ela agora parecia indiferente.

— Creio que o senhor tem razão.

Houve outro silêncio.

— O senhor ainda precisa de mim, monsieur Poirot?

— Não, madame. Não desejo tomar mais o seu tempo.

— Obrigada.

Poirot abriu a porta. Lady Julia saiu sem olhar para ele.

O detetive voltou à lareira e começou a rearrumar os diversos ornamentos sobre o consolo. Ainda estava en­tregue a esta tarefa quando Lord Mayfield entrou pela porta envidraçada,

— E então?

— Acho que tudo está correndo bem. As peças estão se ajustando como eu pensava.                                   

Lord Mayfield olhava-o com atenção.

— O senhor me parece contente.

— Contente não propriamente, mas satisfeito.    

— Não compreendo, monsieur Poirot.

— Não sou o charlatão que o senhor pensa.

— Eu nunca disse...

— Nunca disse, mas pensou. Não faz mal, não me ofendi.  Às vezes sou obrigado a adotar uma certa pose.

Lord Mayfield olhava-o com certa suspeita. Hercule Poirot era um homem que ele não conseguia compreen­der. Sentia vontade de menosprezá-lo, mas algo lhe dizia que aquele homenzinho estranho não era tão inútil quan­to parecia. Charles McLaughlin sempre soubera reconhe­cer a capacidade alheia.

— Bem — acabou por dizer —, estamos em suas mãos. O que devemos fazer agora?

— O senhor pode se livrar de seus hóspedes?

— Acho que poderia dar um jeito. Posso dizer que tenho que ir a Londres por causa deste roubo. Eles provavelmente se disporão a voltar para casa.

— Ótimo. Veja se consegue arranjar as coisas desta

Lord Mayfield hesitou.

— O senhor não acha que talvez...

— Tenho certeza que esta é a melhor coisa a fazer.

Lord Mayfield sacudiu os ombros.

— Se o senhor quer mesmo assim...

E saiu da biblioteca.

 

Os hóspedes saíram depois do almoço. Mrs. Vander­lyn e Mrs. Macatta foram de trem, os Carrington em seu carro particular. Poirot estava em pé no hall quando Mrs. Vanderlyn despediu-se amavelmente de seu anfitrião.

— Lastimo imensamente o que aconteceu e espero que tudo ainda acabe bem. Pode ter certeza que não direi uma palavra sobre o que se passou.

Ela deu-lhe um aperto de mão e dirigiu-se ao Rolls Royce que esperava para levá-la à estação. Mrs. Macatta já estava dentro do carro. Sua despedida tinha sido curta e pouco calorosa.

Mas de repente Leonie, que começara a se sentar ao lado do chofer, saltou correndo.

— Uma das maletas de madame está faltando — exclamou.

Houve uma busca apressada. Por fim Lord Mayfield descobriu a maleta perto de uma arca de carvalho, num canto escuro. Leonie deu um pequeno grito de alegria e voltou ao carro.

Mas foi a vez de Mrs. Vanderlyn pôr a cabeça fora da janela.

— Lord Mayfield, Lord Mayfield! O senhor se inco­modaria de pôr esta carta na sua caixa-postal para mim? Se eu deixar para colocá-la no correio na cidade vou acabar me esquecendo. As cartas sempre ficam dias e dias em minha bolsa.                                                          

Sir George Carrington olhava nervosamente o seu relógio. Era um maníaco da pontualidade.

— Elas estão se arriscando — murmurou. — Se não andarem depressa, vão acabar perdendo o trem.

Sua mulher disse com irritação:

— Deixe de implicância, George. Afinal de contas é o trem delas, não o nosso.

Ele olhou-a com ar de censura.

O Rolls finalmente partiu, enquanto Reggie chegava com o Morris da família.

— Tudo pronto, papai — chamou.

Os criados começaram a pôr a bagagem dos Carrington na mala.

Poirot aproximou-se do carro, aparentemente interes­sado em observar a arrumação.

De repente ela sentiu uma mão pousar em seu bra­ço. Era Lady Julia, que parecia agitada.

— Monsieur Poirot, preciso falar com o senhor... imediatamente.

E dizendo isto conduziu-o a uma saleta de visitas, fechando a porta.

— É verdade o que o senhor disse? Que a descoberta dos papéis é o que mais interessa a Lord Mayfield?

Poirot olhou-a com curiosidade.

— É verdade, madame.

— Se os papéis lhe fossem entregues, o senhor os daria de volta a Lord Mayfield sem fazer perguntas? O caso estaria encerrado?

— Creio que não compreendo bem onde a senhora quer chegar.

— Acho que o senhor compreende sim. Estou pedindo que a identidade do ladrão continue em segredo se os papéis forem devolvidos.

Poirot perguntou:

— E quando seria isso, madame?

— Dentro de no máximo 12 horas.

— A senhora garante que os papéis serão devolvidos neste prazo?

— Garanto.

Como ele ficasse calado, ela insistiu:

— E o senhor garante que o caso será encerrado? Ele respondeu afinal, em tom solene:

— Sim, madame, garanto.

— Então está combinado.

Ela saiu abruptamente. Momentos depois Poirot ouvia o carro se afastar.

Ele atravessou o hall e se encaminhou para o escri­tório. Lord Mayfield ergueu os olhos ao ouvi-lo entrar.

— E então?

Poirot abriu os braços.

— O caso está encerrado, Lord Mayfield.

— O quê?

Poirot contou-lhe o que acabava de se passar com Lady Julia.

Lord Mayfield encarava-o estupefato.

— Mas o que quer dizer isto? Não compreendo.

— É bastante claro, não? Lady Julia sabe quem rou­bou o projeto.

— O senhor está talvez insinuando que ela mesma o roubou?

— De forma alguma. Lady Julia pode ser viciada no jogo, mas não é uma ladra. Se ela ofereceu-se para de­volver os papéis é porque está convencida que eles foram levados por seu marido ou por seu filho. Sir George não pode ser, porque estava com o senhor no terraço. Isto nos deixa com o filho. Acho que posso reconstruir os acontecimentos de ontem à noite com grande precisão. Lady Julia foi ao quarto de seu filho e encontrou-o vazio. Veio então ao andar de baixo procurá-lo e não o encon­trou. Esta manhã, ao ouvir falar do roubo, ouve também seu filho dizer que foi direto para a cama. Ela sabe que é mentira. E sabe mais ainda. Sabe que ele precisa muito de dinheiro e tem um caráter fraco. Reparou no seu des­lumbramento com Mrs. Vanderlyn durante o jantar e mais tarde na mesa de jogo. Tudo lhe parece claro — Mrs. Vanderlyn convenceu Reggie a roubar o projeto. Mas La­dy Julia está decidida a intervir. Vai apertar Reggie, tomar-lhe os papéis e devolvê-los.

— Mas é impossível! — exclamou Lord Mayfield.

— Sim, é impossível, mas Lady Julia não sabe. Ela não sabe o que eu, Hercule Poirot, sei. Ela não sabe que seu filho não estava roubando nenhum projeto ontem à noite, mas sim namorando a criada francesa de Mrs. Vanderlyn.

— Ela está completamente iludida!

— Exatamente.

— E o caso portanto não está encerrado!

— Está sim, está encerrado. Eu, Hercule Poirot, sei a verdade. O senhor não me acreditou ontem quando eu lhe disse que sabia onde o projeto estava. Mas eu sabia Ele. estava bem perto de nós.

— Onde?

— No seu bolso.

Houve um silêncio. Depois Lord Mayfield disse:

— O senhor sabe o que está falando, monsieur Poirot?

— Sei. Sei que estou falando com um homem muito inteligente. Desde o começo achei estranho que o senhor, sabidamente míope, pudesse ter tanta certeza de ter visto uma sombra saindo da janela. O senhor queria que todos acreditássemos, pois aquela solução lhe era conveniente. Mas por quê? Mais tarde fui eliminando um a um os di­versos suspeitos. Mrs. Vanderlyn estava no andar de cima, Sir George estava no terraço com o senhor, Reggie Car­rington estava com a criada na escada, Mrs, Macatta es­tava inocentemente em seu quarto (é pegado ao do ca­seiro e ela roncou a noite toda), Lady Julia estava visi­velmente desconfiada de seu filho. Só restavam duas pos­sibilidades. Ou Carlile não pusera o projeto na mesa e sim em seu bolso (e isto não seria razoável, porque, como o senhor mesmo disse, ele poderia facilmente ter tirado uma cópia), ou então... ou então o projeto estava em cima da escrivaninha quando o senhor entrou na sala e o único lugar para onde ele poderia ter ido era seu bolso. Tudo se explicava — sua insistência em ter visto uma pes­soa, sua certeza na inocência de Carlile, sua pouca incli­nação a me chamar para investigar o caso.

— Apenas uma coisa me intrigava — continuou Poirot. — O motivo. Eu estava convencido de que o se­nhor era um homem íntegro e honesto e isto se fazia bem visível em sua preocupação de não incriminar ninguém pelo roubo. Era também evidente que o roubo do projeto poderia prejudicar sua carreira. Por que então este roubo injustificável? Mas finalmente atinei com a resposta. A grande crise em sua vida, há alguns anos, com o primei­ro-ministro garantindo à opinião pública que o senhor não conduzira negociação alguma com a potência estran­geira. Suponha que não fosse completamente verdade, que houvesse alguma prova — uma carta, talvez — mos­trando que o senhor tinha feito aquilo que negava. Sua negativa se impunha no interesse nacional, mas o ho­mem comum não compreenderia. E assim, agora que sua hora de se tornar primeiro-ministro se aproxima, um eco do passado voltaria para arruinar tudo. Poirot fez uma pausa e continuou:

— Desconfio que a carta ficou em poder de um cer­to governo e que este governo acenou-lhe com um negó­cio: a carta em troca do projeto do bombardeiro. Outros homens teriam recusado, mas o senhor aceitou. Mrs. Van­derlyn seria o intermediário e veio aqui para concluir a troca. O senhor se traiu quando me disse não ter nenhum estratagema especificamente concebido para desmascará-la. Com isto sua justificativa para a presença de Mrs. Vanderlyn nesta casa se tornava muito fraca. O senhor planejou o roubo. Fingiu ter visto o ladrão no terraço, afastando assim as suspeitas de Carlile. Mesmo que ele não tivesse saído do escritório, a mesa era tão perto da porta envidraçada que um ladrão poderia ter levado o projeto enquanto Carlile estava de costas, ocupado com o cofre. O senhor encaminhou-se para a escrivaninha, pôs o projeto no bolso e o deixou lá até o momento em que, como tinha combinado com Mrs. Vanderlyn, o se­nhor o colocou em sua maleta. Em troca ela lhe entre­gou a carta fatídica, disfarçada em carta dela mesma que ela temia esquecer de pôr no correio.

Poirot parou.

Lord Mayfield disse:

— Seu conhecimento sobre o caso não poderia ser mais completo, monsieur Poirot. O senhor deve me achar um patife inominável.

Poirot fez um gesto rápido.

— Não, não, Lord Mayfield. Eu acho que, como já disse, o senhor é um homem muito inteligente. Compre­endi tudo ontem à noite enquanto conversávamos aqui mesmo no escritório. O senhor é um excelente engenhei­ro. Por isto haverá uma ou duas alterações sutis no projeto roubado, alterações feitas com tanta perícia que ninguém compreenderá por que o bombardeiro não funciona tão bem quanto deveria. Tenho certeza de que a potência estrangeira de que estamos falando vai ter um grande desapontamento com o novo aparelho...

Houve outro silêncio e a seguir Lord Mayfield disse:

— O senhor é extremamente sagaz, monsieur Poirot. Peço-lhe apenas que acredite numa coisa. Tenho confiança em mim mesmo. Sei que sou o homem indicado para conduzir a Inglaterra através da crise que se avizinha. Se eu não acreditasse com sinceridade que sou o homem de quem meu país precisa, não teria feito o que fiz, con­ciliando interesses e salvando minha carreira através de um ardil.

— Meu caro Lord Mayfield — respondeu Poirot —, se o senhor não soubesse conciliar interesses, o senhor não poderia ser um político!


O Espelho do Morto

O apartamento era moderno e os móveis também, com poltronas quadradas e cadeiras de espaldar reto. Uma escrivaninha estava colocada em frente à janela e nela sentava-se um homem pequeno, de meia-idade. Sua ca­beça era praticamente a única coisa em todo o aposento que não era quadrada: ao contrário, era bem oval.

Monsieur Hercule Poirot estava lendo uma carta:

“Hamborough Close,

Hamborough St. Mary

Westshire.

24 de setembro de 1936

Monsieur Hercule Poirot.

Meu caro senhor. Escrevo-lhe a propósito de um as­sunto que exige grande discrição e habilidade. Tenho ti­do boas referências de seu trabalho e portanto decidi en­tregar-lhe o caso. Tenho razões para acreditar que es­teja sendo vítima de uma fraude, mas por razões de fa­mília prefiro não chamar a polícia. Estou tomando al­gumas providências por conta própria, mas o senhor deve estar preparado para pôr-se imediatamente a caminho, tão logo receba um telegrama. Ficaria agradecido se o senhor não respondesse a esta carta.

Atenciosamente,

Gervase Chevenix-Gore.”

As sobrancelhas de monsieur Hercule Poirot come­çaram a erguer-se, e ergueram-se tanto que quase se juntaram ao cabelo.

— E quem, afinal de contas, é este Gervase Chevenix-Gore? — perguntou ele às paredes.

Em busca da resposta, encaminhou-se a uma estante, de onde tirou um livro grande e grosso.

Poirot encontrou o que queria com facilidade.

“Chevenix-Gore, Sir Gervase Francis Xavier, 10.° ba­ronete, título criado em 1864; ex-capitão do 17.° Regi­mento de Lanceiros; nascido no dia 18 de maio de 1878; filho mais velho de Sir Chevenix-Gore, 9.° baronete, e de Lady Claudia Bretherton, segunda filha do oitavo conde de Wallingford. Sucedeu o pai em 1911; casou-se em 1912 com Vanda Elizabeth, filha mais velha do coronel Fre­derick Arbuthnot (veja verbete próprio); educado em Eton. Lutou na Guerra de 1914-1918. Hobbies: viagens, caçadas. Endereços: Hamborough St. Mary, Westshire, e Lowndes Square 218, S.W.l. Clubes: Cavalry, Travellers.”

Poirot sacudiu a cabeça um tanto ou quanto insatis­feito. Por algum tempo ficou assim, imerso em seus pen­samentos, mas depois dirigiu-se à escrivaninha, abriu uma gaveta e tirou dela uma pequena pilha de cartões de vi­sita.

Sua face alegrou-se.                                         

— A la bonne heure! Era do que eu precisava. Ele vai estar lá sem falta.

Poirot foi saudado por uma duquesa com sotaque afetado.

— Alegro-me que o senhor tenha podido vir, mon­sieur Poirot. É um grande prazer.

— O prazer é meu, madame — murmurou Poirot, com uma mesura.

Ele driblou habilmente personalidades importantes — um famoso diplomata, uma atriz não menos famosa, um par do reino muito conhecido — e afinal encontrou quem procurava: Mr. Satterthwaite, personagem habitual das festas elegantes.

Mr. Satterthwaite chilreou amavelmente.

— Nossa querida duquesa... suas festas são ótimas... Ela tem tanta categoria, se o senhor sabe o que quero dizer. Vimo-nos muito na Córsega, há alguns anos...

A conversação de Mr. Satterthwaite era sempre as­sim, cheia de referências a seus amigos nobres. É pos­sível que alguma vez na vida ele tenha encontrado pra­zer na companhia de meros mortais, mas neste caso não chegava a mencionar o fato. Mas descrevê-lo como um mero esnobe era fazer-lhe injustiça. Mr. Satterthwaite era um observador agudo da natureza humana e poucos estudiosos conheceriam tão bem quanto ele o mundo da aristocracia britânica.

— Meu caro Poirot, há muito tempo não nos vemos. Sempre considerei um privilégio ter podido acompanhar seu trabalho em Crow’s Nest. Desde então passei a me considerar também uma espécie de detetive.  Por coin­cidência, vi Lady Mary ainda na semana passada. Uma criatura encantadora... verbenas e alfazema!

Mr. Satterthwaite ocupou-se ainda de um ou dois es­cândalos recentes — as escapadas da filha de um conde, a conduta lamentável de um visconde —, até que Poirot conseguiu introduzir na conversa o nome de Gervase Chevenix-Gore.

A reação de Mr. Satterthwaite foi imediata.

— Ah, eis aí uma personalidade realmente curiosa. Seu apelido é o Último dos Baronetes.

— Perdão, mas não entendo.

Mr. Satterthwaite mostrou-se afavelmente indulgente ante a compreensão inferior de um estrangeiro.

— É uma piada, monsieur Poirot, uma piada. Não quis dizer que ele seja o último baronete na Inglaterra, mas sim que ele representa o fim de uma era, o último dos baronetes temerários e insensatos tão populares nos romances do século passado. Um destes tipos que fazem apostas malucas e as ganham.

Passou então a dar sua explicação em detalhes. Quando moço, Gervase Chevenix-Gore dera a volta ao mundo num barco a vela; participara de uma expedição ao Pólo Norte; desafiara um par do reino a um duelo; apos­tara como poderia subir as escadarias de uma mansão em sua égua favorita — e vencera; saltara de um camarote ao palco em que uma atriz famosa representava e a carregara consigo à vista de todo o público.

As histórias a seu respeito eram infindáveis.

— É uma família muito antiga — continuou Mr. Satterthwaite. Sir Guy de Chevenix participou da primeira Cruzada. Mas agora parece que o tronco vai se extin­guir. O velho Gervase é o último dos Chevenix-Gore.

— Será que ele anda em dificuldades financeiras?

— De modo algum. Gervase é fabulosamente rico. Tem muitas propriedades, minas de carvão, e quando jo­vem comprou por uma ninharia uma mina de pedras preciosas no Peru, ou outro lugar qualquer da América do Sul, que mostrou mais tarde ser riquíssima. Um ho­mem extraordinário. Sempre teve sorte onde quer que se metesse.

— Ele já está ficando velho, não?

— Sim, pobre Gervase — disse Mr.  Satterthwaite com um suspiro, enquanto balançava a cabeça. — A maioria das pessoas diria que ele é também doido var­rido e, de certa forma, é verdade. Ele é doido — não no sentido puramente clínico da palavra — mas no sen­tido de ser diferente dos outros homens. Gervase sempre teve uma personalidade extremamente original.

— E a originalidade transforma-se em excentricida­de à medida que os anos passam, não?

— Exato. Foi isto mesmo o que ocorreu com o pobre Gervase.

— Ele tem uma idéia exagerada de sua própria im­portância?                                                              

— Muito. Eu diria que para Gervase o mundo se divide em duas espécies de seres: os Chevenix-Gore e os outros.

— Um grande orgulho da família?

— Sim. Os Chevenix-Gore são todos arrogantes co­mo o diabo. Fazem sua própria lei. E Gervase, talvez por ser o último, sempre foi o pior. Quem o ouve falar é capaz de pensar que ele é a reencarnação do próprio Deus.

Poirot sacudiu a cabeça pensativamente.

— Sim, foi o que pensei. O senhor sabe, recebi uma carta dele. Uma carta muito estranha. Uma carta que não pedia nem mandava: exigia.

— Uma ordem de comando — disse Mr. Satter­thwaite com uma pequena risada.

— Exatamente. Não deve ter passado pela cabeça deste Sir Gervase que eu, Hercule Poirot, sou um homem importante, um homem ocupadíssimo! Não parece ter-lhe ocorrido que dificilmente eu poria tudo de parte para lhe obedecer, correndo como um cão obediente, como um joão-ninguém, agradecido por ter recebido uma in­cumbência!

Mr. Satterthwaite mordeu os lábios, num esforço para não rir. É provável que tenha achado que, em matéria de megalomania, era difícil estabelecer uma diferença en­tre Hercule Poirot e Gervase Chevenix-Gore.

Ele murmurou:

— Mas o motivo da convocação deve ter sido ur­gente...

— De modo algum — disse Poirot, gesticulando in­dignado. — Dizia-me apenas que estivesse à sua dispo­sição, caso ele precisasse de mim. Enfin, je vous demande!

Novamente as mãos se agitaram no ar, expressando melhor do que quaisquer palavras o senso de dignidade ultrajada de monsieur Hercule Poirot.

— Devo concluir então — continuou Mr. Satterth­waite — que o senhor recusou?

— Ainda não tive oportunidade — respondeu Poirot.

— Mas vai recusar?

O rosto de Poirot assumiu uma expressão diferente. Suas sobrancelhas se franziram em sinal de completa per­plexidade.

Ele disse:

— Como posso me explicar? Meu primeiro instinto foi de fato recusar. Mas agora já não sei... Há ocasiões em que a gente tem um pressentimento... E eu pressinto alguma coisa neste caso.

Mr. Satterthwaite recebeu esta afirmativa com toda naturalidade.

— Sim? Muito interessante...

— Quer me parecer — continuou Hercule Poirot — que um homem como Sir Gervase poderia ser extrema­mente vulnerável...

— Vulnerável? — interrompeu Mr. Satterthwaite, não escondendo sua surpresa. — Vulnerável não era uma palavra que ele normalmente associaria a Gervase Chevenix-Gore. Mas Mr. Satterthwaite era um homem de inteligência rápida e acabou por dizer:

— Acho que compreendo o que o senhor quer dizer.

— Um homem como Sir Gervase — continuou Poirot. — anda dentro de uma armadura, e que armadura! A ar­madura dos cruzados nem podia se lhe comparar... É uma armadura de arrogância, de orgulho, de amor-pró­prio. Esta armadura é uma proteção para as flechas e golpes da vida diária, que nela ricocheteiam inofensiva­mente. Mas por isto mesmo ela é perigosa, pois às vezes um homem de armadura pode nem perceber que está sen­do atacado. Ele demorará a ver, demorará a ouvir... de­morará mais ainda à sentir.

Ele fez uma pausa e depois perguntou, num outro tom de voz:

— De quem consiste a família deste Sir Gervase?

— Bem, há sua mulher, Vanda. Ela era uma Arbuthnot... uma moça muito bonita. E ainda tem muita be­leza. Mas é extremamente distraída, desligada das coisas. Muito dedicada a Gervase. Ouvi dizer que ultimamente anda com mania de ocultismo — usa amuletos, escara­velhos e parece ter-se convencido de que é a reencarnação de uma rainha egípcia. Depois há Ruth, a filha adotiva do casal. Eles não tiveram filhos, o senhor compreende. Ruth é muito atraente, no estilo moderno. Esta é toda a família, com exceção, é claro, de Hugo Trent. Ele é o so­brinho de Gervase. Pamela Chevenix-Gore casou-se com Reggie Trent e Hugo foi o único filho da união. Hugo é órfão. Não pode herdar o título, claro, mas acho que deve ficar com a maior parte do dinheiro de Gervase. É um ra­paz bonitão, está no Regimento da Rainha.

Poirot balançou a cabeça pensativamente. Depois per­guntou:

— Deve ser um desgosto para Sir Gervase não ter um filho homem que herde o título, não?

— Acho que sim, sem dúvida.

— Ele não gostaria de perpetuar a família?

— Gostaria.

Mr. Satterthwaite ficou calado algum tempo, intri­gado com as perguntas de Poirot. Finalmente arriscou:

— O senhor vê alguma razão suficientemente forte para ir a Hamborough Close?

Poirot voltou-se lentamente.

— Não. Não vejo razão alguma. Mas mesmo assim acho que vou.

 

Hercule Poirot estava sentado à janela de um trem de primeira classe que corria veloz pelos campos ingleses.

De seu bolso ele puxou um telegrama bem dobrado e pôs-se a lê-lo mais uma vez, com ar meditativo:

“Tome o trem das 16h30min na estação de St. Pancras e dê ordens ao condutor para fazer uma parada em Whimperley.

Chevenix-Gore.”

Poirot dobrou o telegrama e guardou-o de volta no bolso.

O condutor tinha sido amável. O cavalheiro ia para Hamborough Close? Claro, sem dúvida. O trem sempre parava em Whimperley para os hóspedes de Sir Gervase Chevenix-Gore. Devia ser alguma prerrogativa especial de Sir Gervase.

Desde então o condutor aparecera duas vezes — da primeira para assegurar Poirot que estava fazendo o pos­sível para deixá-lo sozinho no compartimento, e da se­gunda para anunciar que o expresso estava com um atra­so de dez minutos.

O trem tinha chegada prevista para as 19h50min, mas foi só às 20h02min que Hercule Poirot desembarcou na plataforma da pequena estação, depositando na mão do condutor a meia coroa que ele obviamente esperava.

Ouviu-se um apito e o Expresso do Norte pôs-se de novo em movimento. Um chofer alto, de uniforme verde-escuro, encaminhou-se em direção a Poirot.

— Monsieur Poirot? Indo para Hamborough Close?

Ele tomou da pequena mala de Poirot e abriu caminho em direção a um grande Rolls Royce estacionado em frente. Lá chegando, abriu a porta e acomodou o passageiro, tendo o cuidado de lhe colocar uma grande manta de peles sobre o joelho.

A viagem durou uns 10 minutos em uma estrada sinuosa pelos campos, até que Poirot se viu passando por um grande portão flanqueado por enormes grifos de pedra.

Eles seguiram através de um pequeno bosque até alcançarem a casa. A porta estava aberta e um mordomo imponente apareceu de imediato no primeiro degrau.

— Monsieur Poirot? Por aqui, senhor.

Ele conduziu o visitante ao longo do hall e abriu uma porta à direita.

— Monsieur Hercule Poirot — anunciou.

Havia um grupo de pessoas na sala, todas vestidas era traje formal, e Poirot percebeu de imediato que sua presença não era aguardada. Todos os olhos se voltaram para ele com uma autêntica expressão de surpresa.

Finalmente uma mulher alta, com cabelos escuros já intercalados por fios grisalhos, adiantou-se hesitante.

Poirot curvou-se enquanto lhe tomava a mão.

— Peço-lhe desculpas, madame. Infelizmente o trem atrasou.

— Não se preocupe — respondeu Lady Chevenix-Gore vagamente. Seus olhos continuavam a analisá-lo, sem compreender direito. — Não se preocupe, senhor... se­nhor. ..

— Hercule Poirot.

Ele falou em tom alto e claro e percebeu que atrás de si alguém abafava uma expressão de espanto.

Ao mesmo tempo Poirot compreendia que seu anfi­trião não se encontrava na sala. Ele disse, amavelmente:

— A senhora sabia que eu viria, madame?

— Ah, sim, sim... — seus modos não eram muito convincentes. — Eu acho.... quero dizer... estou um pou­co confusa, monsieur Poirot. Meu problema é que me esqueço de tudo.

Sua voz não deixava de esconder um certo prazer melancólico no fato. Ela prosseguiu.

— As pessoas vivem a me dizer coisas e pensam que eu as gravei, mas elas me parecem entrar por um ouvido e sair pelo outro. Simplesmente se evaporam, como se jamais tivessem sido ditas.

 Depois, como se cumprisse um dever há muito es­quecido, relanceou os olhos ao redor e murmurou:

— Com certeza o senhor já conhece todo mundo.

Era evidente que Poirot não conhecia e que Lady Chevenix-Gore apenas poupava-se o incômodo de lembrar os nomes das demais pessoas presentes.

Como quem faz um esforço supremo, acrescentou:

— Minha filha... Ruth.

A moça era também alta e morena, mas de um tipo bem diferente. Ao contrário de Lady Chevenix-Gore, tinha um nariz bem esculpido, ligeiramente aquilino, e a linha do queixo bem definida. Seu cabelo preto estava pentea­do para trás, terminando numa massa de pequenos ca­chos. Sua pele era rosada e brilhante, com pouca neces­sidade de make-up. Hercule Poirot achou-a uma das jo­vens mais bonitas que já vira.

Ele podia também perceber que ela era inteligente, além de entrever certas características de orgulho e tem­peramento. Sua voz tinha um certo ritmo arrastado que lhe pareceu um pouco forçado,

— Que prazer termos a companhia de monsieur Her­cule Poirot. Aposto como esta surpresa nos foi preparada pelo velho.

— A senhorita então não sabia que eu vinha? — perguntou Poirot rapidamente.

— Nem desconfiava. Por isto vou ter que esperar até depois do jantar para pegar meu livro de autógrafos.

Um gongo soou no hall e a seguir o mordomo abriu a porta, anunciando:

— O jantar está servido.

E então uma coisa curiosa sucedeu, quase antes que ele tivesse acabado de falar. Por uma fração de segundo sua imponente aparência deixou entrever, por trás da máscara, uma expressão muito humana de incredulidade.

A metamorfose foi tão rápida e a máscara de criado bem treinado voltou tão rapidamente que ninguém po­deria ter notado a não ser que o estivesse observando com atenção. Poirot contudo tinha estado a observá-lo.

O mordomo hesitou na soleira da porta. Seu rosto não mais deixava entrever suas emoções, mas ele continuava tenso.

Lady Chevenix-Gore disse um pouco desconcertada:

— Oh, meu Deus... é incrível. Nem sei o que fazer.

Ruth explicou a Poirot:

— Esta consternação toda, monsieur Poirot, se deve ao fato de que é a primeira vez, em mais de 20 anos, que meu pai se atrasa para o jantar.

— É inacreditável — lamuriou-se Lady Chevenix-Gore. Gervase nunca....

Um homem já idoso, mas de porte militar ainda ereto, aproximou-se dela, rindo com prazer.

— Afinal pegamos o velho Gervase. Juro que de uma boa gozação ele não vai escapar. Será que foi o botão do colarinho? Ou Gervase será imune a estas pequenas aflições humanas?

Lady Chevenix-Gore continuava a dizer, em voz bai­xa e intrigada:

— Mas Gervase nunca se atrasa.

A consternação causada por um contratempo tão pe­queno chegava a parecer tola. Mas, para Poirot, não era tola... Atrás dela ele sentia nervosismo, talvez mesmo medo. E ele também achava estranho que Gervase Che­venix-Gore não tivesse aparecido para receber o hóspede que convocara tão misteriosamente.

Mas por enquanto era evidente que ninguém sabia o que fazer. Criara-se uma situação que ninguém sabia como resolver.

Finalmente Lady Chevenix-Gore tomou a iniciativa — se é que iniciativa é uma palavra que pudesse se apli­car a ela. Seus modos continuavam extremamente hesi­tantes.

— Snell — perguntou ela —, o seu amo...?

Ela não terminou a frase. Limitou-se a olhar para o mordomo com expectativa.

Snell, que evidentemente estava acostumado aos es­tranhos métodos de sua patroa, respondeu com presteza:

— Sir Gervase desceu às cinco para as oito, minha ama, e dirigiu-se diretamente ao escritório.

— Ah, sim... Lady Chevenix-Gore estava de boca aberta, os olhos perdidos na distância. Você não acha... quero dizer... ele ouviu o gongo?

— Deve ter ouvido, minha ama, pois o gongo está do lado de fora da porta. Eu não sabia que Sir Gervase ainda estava no escritório, pois caso contrário lhe teria dito diretamente que o jantar estava servido. Devo fazer isto agora?

Lady Chevenix-Gore agarrou-se à sugestão com gran­de alívio.

— Ah, sim, claro, Snell. Imediatamente. Muito obri­gada.

Quando o mordomo deixou a sala ela comentou:

— Snell é uma preciosidade.  Não sei o que faria sem ele na casa.

Alguém murmurou uma palavra de concordância, mas ninguém mais falou. Hercule Poirot observava-os atentamente e se convencera que todos estavam sob gran­de tensão. Seus olhos mediram os presentes. Dois ho­mens de idade, o de tipo militar que falara há pouco e um magro, seco, de cabelos grisalhos, com todo jeito de advogado. Dois rapazes — de tipos bem diversos. Um com bigodes e todo ar de discreta arrogância, que ele adivinhou ser o sobrinho de Sir Gervase. O outro, com cabelos lisos penteados para trás e uma beleza um pouco vulgar, que Poirot classificou como sem dúvida pertencen­te a uma categoria social inferior. Havia ainda uma se­nhora de meia-idade com olhos inteligentes escondendo-se atrás de um pincenê, e uma jovem com chamejan­tes cabelos ruivos.

Snell surgiu de novo à porta. Suas maneiras eram impecáveis, mas mais uma vez sob o cuidadoso verniz de mordomo era possível se ver sinais de um ser humano estupefato.

— Perdão, minha ama, mas a porta do escritório está trancada.

— Trancada?

Era a voz de um homem — uma voz jovem, alerta, excitada. Fora o rapaz bem-parecido que falara, o de ca­belo liso. Ele continuou, adiantando-se:

— Querem que eu vá ver...?

Mas Hercule Poirot já assumira o comando da situação. E o fez tão naturalmente que ninguém achou nada demais que este estranho, apenas recém-chegado, começasse a dar ordens.

— Venham comigo — disse ele. — Vamos todos ao escritório.

E Poirot continuou, dirigindo-se a Snell:

— Mostre-me o caminho, por obséquio.

Snell obedeceu. Poirot seguia pouco atrás e os outros todos enfileiraram-se em sua esteira, como um bando de carneiros.

Snell conduzia o grupo através do grande hall, pas­sando pela escadaria, por um enorme relógio de parede e por uma pequena reentrância onde se encontrava o gongo, até que dobraram numa passagem estreita que levava a uma porta.

Neste ponto Poirot adiantou-se a Snell e delicadamen­te girou a maçaneta. A porta não abria. Poirot bateu de leve, depois com mais força. Afinal desistiu, ajoelhou-se e olhou pelo buraco da fechadura.

Vagarosamente ele levantou-se e olhou a seu redor. Seu rosto estava sério.

— Cavalheiros, esta porta tem que ser arrombada imediatamente.

Os dois rapazes, ambos altos e fortes, lançaram-se à porta, mas precisaram empregar muita energia. As por­tas de Hamborough Close eram extremamente sólidas.

A fechadura acabou por ceder e a porta foi arromba­da com um barulho de madeira despedaçada.

E, por um momento, todos permaneceram imóveis na soleira, o olhar horrorizado. As luzes estavam acesas. Ao longo da parede esquerda havia um grande escrivani­nha em sólido mogno. Sentado de lado em frente à mesa, com as costas voltadas para a porta, um homem forte sentava-se meio despencado. Sua cabeça e a parte su­perior de seu tronco pendiam sobre o lado direito da ca­deira e sua mão direita estava caída, quase tocando o chão. Logo abaixo dela, no tapete, estava uma pistola pequena e brilhante.

Não era preciso explicar mais nada. A situação era clara. Sir Gervase Chevenix-Gore tinha se matado.

 

 O grupo se manteve ainda imóvel por alguns momentos. Finalmente Poirot deu um passo à frente.

Ao mesmo tempo Hugo Trent dizia vivamente:

— Meu Deus, o velho se matou.

E Lady Chevenix-Gore deixava escapar um gemido longo e estremecido.

— Oh, Gervase, Gervase!

Poirot falou com autoridade:

— Levem Lady Chevenix-Gore. Não há nada que ela possa fazer aqui.

O velho militar obedeceu.

— Venha, Vanda. Venha, minha cara. Não há nada que você possa fazer.  Está tudo acabado. Ruth, venha e tome conta de sua mãe.

Mas Ruth Chevenix-Gore tinha entrado no escritó­rio e mantinha-se agora de pé ao lado de Poirot enquan­to este se curvava para examinar o corpo do homem hor­ripilantemente prostrado na cadeira — um homem de proporções hercúleas, com uma barba de viking.

Ela falou em voz baixa, tensa, mas ao mesmo tempo curiosamente controlada:

— O senhor tem certeza de que ele... está morto?

Poirot olhou para cima.

O rosto da jovem estava dominado pela emoção, mas era uma emoção controlada que ele não chegava a com­preender. Não era bem sofrimento, era antes quase uma espécie de excitação provocada pelo medo.

A pequena mulher com pincenê murmurou:

— Sua mãe, minha querida, você não acha...?

A moça ruiva gritou em voz alta e histérica:

— Então não foi a descarga de um carro, nem uma rolha de champanha. Foi um tiro que escutamos...

Poirot voltou-se e olhou-os de frente, dizendo:

— Alguém deve entrar em contato com a polícia.

Ruth Chevenix-Gore gritou impetuosamente:

— Não!

O senhor de idade que parecia advogado disse:

— É inevitável, Ruth. Você pode cuidar disto, Burrows? Hugo...

Poirot interrompeu-o, dirigindo-se ao rapaz de bigode:

— O senhor é Mr. Hugo Trent? Seria conveniente que os demais saíssem e nos deixassem a sós neste escritório:

Mais uma vez ninguém pôs em dúvida sua autorida­de. O advogado conduziu os outros para fora do escritório. Poirot e Hugo Trent estavam sozinhos.

Este último disse, encarando Poirot:

— Olhe aqui, quem é o senhor? O que o senhor está fazendo nesta casa?

Poirot tirou um cartão de visitas de seu bolso e es­tendeu ao homem.                                                   

Hugo Trent murmurou:

— Detetive particular, hem? Sim, já ouvi seu nome. Mas ainda não sei o que o senhor veio fazer nesta casa.

— O senhor não sabia que seu tio... Ele era seu tio, não?

Hugo relanceou o morto rapidamente.

— O velho? Sim, ele era meu tio.

— O senhor não sabia que ele tinha me chamado?

Hugo sacudiu a cabeça.

— Não tinha a menor idéia.

Sua voz demonstrava uma emoção difícil de descre­ver. Seu rosto parecia rígido e entorpecido — o tipo de expressão, Poirot pensou, que servia como uma máscara muito útil em momentos perigosos.

Poirot perguntou calmamente:

— Este lugar é Westshire, não? Conheço bem o ma­jor Riddle, o delegado local.

Hugo respondeu:

— Riddle mora a menos de um quilômetro daqui. Ele deverá vir ver o que houve pessoalmente.

— O que seria muito bom — comentou Poirot.

Ele começou a rondar o escritório. Abriu as cortinas e examinou as portas envidraçadas, forçando-as delicadamente. Estavam trancadas.

Na parede atrás da escrivaninha estava pendurado um espelho redondo, partido. Poirot inclinou-se e pegou um pequeno objeto.

— O que é isto? — quis saber Hugo Trent.

— A bala.

— Atravessou a cabeça dele e quebrou o espelho?

— É o que parece.

Poirot pôs a bala cuidadosamente de volta onde a encontrara. Em seguida examinou a escrivaninha. Havia alguns papéis, cuidadosamente arranjados em pilhas. So­bre a grande folha de mata-borrão que cobria a super­fície da escrivaninha havia um papel com a palavra DES­CULPEM em letra de imprensa grande e tremida.

Hugo disse:

— Ele deve ter escrito isto pouco antes de se... de se suicidar.

Poirot concordou pensativamente.

Ele examinou de novo o espelho estilhaçado, depois o cadáver. Sua testa franzia-se, em sinal de perplexidade. Foi em seguida até a porta, meio pendente sobre os gon­zos. Ele sabia que não havia nenhuma chave na fecha­dura, pois caso contrário não poderia ter visto o interior do escritório. Não a encontrou também no chão e final­mente inclinou-se sobre o morto, apalpando-o rapida­mente.

— Aqui está — disse. — No seu bolso.

Hugo acendeu um cigarro, enquanto dizia um tanto asperamente:

— O caso parece bem simples. Meu tio trancou-se aqui, rabiscou sua despedida num pedaço de papel e deu um tiro na cabeça.

Poirot limitava-se a ouvir. Hugo prosseguiu:

— Só não consigo compreender por que teria man­dado chamá-lo. Qual a razão de sua presença aqui?

— Isto já é mais difícil de explicar. Enquanto es­peramos pela chegada das autoridades, Mr. Trent, que tal se o senhor me dissesse quem são as pessoas que eu encontrei ao chegar?

— Quem são elas? — perguntou Hugo, parecendo distraído. — Ah, sim, sem dúvida. Não acha melhor nos sentarmos? — ele indicou um sofá no canto extremo do escritório e prosseguiu, falando aos arrancos:

— Bem, em primeiro lugar havia Vanda. Minha tia, como o senhor sabe. E Ruth, minha prima. Mas estas o senhor já conhece. A outra moça é Susan Cardwell. Apenas uma hóspede.  Há ainda o coronel Bury. Um ve­lho amigo da família. E Mr. Forbes — outro velho amigo, além de advogado da família. Os dois velhotes foram apaixonados por Vanda quando ela era moça e ainda vi­vem mais ou menos em órbita ao redor dela. São inofen­sivos. Depois temos Godfrey Burrows, secretário do velho, quero dizer, do meu tio, e Miss Lingard, que estava aju­dando-o a escrever a história dos Chevenix-Gore. Ela faz o trabalho de pesquisa, ou coisa assim.

Poirot perguntou:

— E vocês ouviram o tiro que matou seu tio?

— Sim, ouvimos. Eu pensei que fosse uma rolha de champanha. Susan e Miss Lingard pensaram que fosse o escapamento de um carro — a estrada passa aqui per­to, o senhor sabe.

— E quando foi isso?

— Mais ou menos às oito e dez. Snell tinha acabado de soar o primeiro gongo.

— E onde vocês estavam quando ouviram o tiro?

— No hall. Nós começamos a rir e a discutir, ten­tando adivinhar de onde viera o barulho. Eu disse que tinha vindo da sala de jantar, Susan achava que era da de visitas, Miss Lingard achava que viera do segundo an­dar e Snell dizia que viera da estrada, mas pelas janelas do segundo andar. E Susan disse: “Alguma outra hipó­tese?” E eu ri e respondi que sempre havia a hipótese de um crime. Agora parece uma piada de péssimo gosto.

Seu rosto contorceu-se nervosamente.

— Não ocorreu a ninguém que Sir Gervase podia ter se suicidado?

— Não, claro que não.

— O senhor não faz a menor idéia do que o teria levado ao suicídio?

Hugo parecia refletir:

— Bem, talvez eu não devesse dizer isto...

— Dizer o quê?

— Bem, é difícil explicar. Eu não esperava que ele se matasse, mas por outro lado não estou muito surpreso. A verdade é que meu tio era completamente doido, monsieur Poirot. Todos sabiam disto.

— E o senhor acha que isto é motivo suficiente?

— Bem, há doidos que se matam.

— Uma explicação admiravelmente singela.

Hugo limitou-se a olhá-lo fixo.

Poirot levantou-se mais uma vez e vagou pelo escri­tório. Era confortavelmente mobiliado, num pesado esti­lo vitoriano. Havia grandes estantes, poltronas maciças e cadeiras de espaldar em genuíno Chippendale. Havia poucos ornamentos, mas algumas estatuetas de bronze no consolo sobre a lareira pareceram atrair Poirot. Ele le­vantou-as uma por uma, examinando-as cuidadosamente antes de pô-las de novo no lugar. Finalmente, tirou algo, com a ponta da unha, da estatueta que estava na extre­midade esquerda da fila.

— O que é isso? — quis saber Hugo meio desinteressa­damente.

— Nada de importante. Apenas um fragmento de vidro.

Hugo continuou:

— É curioso como o espelho foi estilhaçado pelo tiro. Dizem que um espelho partido é sinal de azar. Pobre Gervase. Acho que sua sorte já tinha demorado muito tempo.

— Seu tio era um homem de sorte?

Hugo riu.

— E como. Sua sorte era famosa. Tudo o que ele tocava se transformava em ouro. Se apostava num matungo, o cavalo ganhava o Grande Prêmio. Se investia em uma mina abandonada, achavam ouro em seguida. Vivia se metendo em situações difíceis e escapando delas, e mais de uma vez sua vida foi salva por milagre. De certa forma ele era uma grande figura, o senhor sabe. Já tinha visto mais coisas e lugares deste mundo que a grande maioria de seus contemporâneos.

Poirot murmurou em tom coloquial:

— O senhor tinha afeição por seu tio, Mr. Trent?

Hugo pareceu surpreendido pela pergunta.

— Eu... sim, é claro — respondeu meio vagamente. — O senhor sabe, ele era um pouco difícil às vezes. Vi­ver com ele não era nada fácil. Felizmente eu não ti­nha que vê-lo freqüentemente.

— E ele gostava do senhor?

— Não que desse para se notar muito.  Para falar a verdade, quase se podia dizer que ele tinha ressentimen­to de mim.

— E por que, Mr. Trent?

— Bem, o senhor sabe, ele não tinha filho homem e isto o magoava muito. Ele era maníaco pelo nome Chevenix-Gore e acho que não suportava o fato de que os Chevenix-Gore iam deixar de existir. É uma família que vem desde os tempos da invasão normanda, o senhor sabe. E o velho era o último. De seu ponto de vista, era insuportável.

— O senhor não tinha a mesma opinião?

Hugo sacudiu os ombros.

— Estas coisas me parecem fora de moda.

— Para quem irá a herança?

— Não sei. Talvez para mim, talvez para Ruth. Mas é provável que ou eu ou Ruth só entremos na posse dos bens depois da morte de Vanda.

— O seu tio não disse a ninguém quais eram suas intenções?

— Bem, ele tinha uma idéia que o encantava muito.

— Qual?

— Que eu e Ruth nos casássemos.

— O que de fato seria muito conveniente.

— Muito. Mas Ruth... Ruth tem idéias muito de­finidas sobre o que pretende na vida. Antes de mais nada, é uma moça muito bonita e sabe que é bonita. Não está com pressa alguma de se casar e se prender.

Poirot inclinou-se:

— Mas o senhor gostaria da idéia, Mr. Trent?

Hugo respondeu enfadado:

— Hoje em dia tanto faz se casar com essa ou com aquela. O divórcio é tão fácil! Se as coisas não dão certo, começa-se tudo de novo.

A porta foi aberta e Forbes entrou acompanhado por um homem alto e bem vestido.

O estranho cumprimentou Hugo.

— Alô, Hugo. Sinto muito o que aconteceu. Deve ter sido horrível para vocês.

Hercule Poirot adiantou-se.

— Como vai, major Riddle? Lembra-se de mim?

— Sim, muito. — O delegado apertou-lhe a mão e prosseguiu:

— Então, você está aqui?

Havia um tom pensativo em sua voz. Ele olhava Poirot com curiosidade.

 

— E então? — perguntou o major Riddle.

Era 20 minutos mais tarde. O “então” interrogativo do delegado se dirigira ao médico legista, um senhor ma­gro de cabelos grisalhos.

Este deu de ombros.

— Ele morreu há mais de meia hora e menos de uma. Sei que o senhor não quer se aborrecer com detalhes técnicos, por isso não vou perder tempo com eles. O tiro atravessou a cabeça e foi disparado de pouca distância da têmpora direita. A bala dilacerou o cérebro e saiu do outro lado.

— A trajetória é compatível com um suicídio?

— Completamente compatível. Em seguida ele afun­dou-se na cadeira e deixou cair a pistola.

— O senhor achou a bala?

— Sim — respondeu o legista, exibindo-a.

— Ótimo — disse o major Riddle. — Vamos guardá-la para compará-la com a arma. É bom saber que o caso é simples e não há dificuldades.

Hercule Poirot perguntou mansamente:

— O senhor tem certeza que não há dificuldades, doutor?

O legista respondeu com cuidado:

— Bem, há uma coisa que poderíamos considerar um pouco estranha. Quando se matou ele devia estar um pouco caído para a direita. De outra forma a bala teria atin­gido a parede abaixo do espelho, e não o teria quebrado.

— Uma posição pouco confortável para um suicídio, não? — disse Poirot.

O legista sacudiu os ombros.

— Bem, se você vai se matar...

Ele não chegou a completar a frase.

O major Riddle perguntou:

— Podemos remover o cadáver?

— Oh, sim. Por ora meu serviço está concluído.

— E para o senhor, inspetor? — o major Riddle di­rigia-se a um homem alto e impassível, vestido à paisana.

— Por mim também, chefe. Já temos tudo o que queríamos. As únicas impressões digitais na arma eram do morto.

— Então pode mandar tirar o corpo.

Os restos mortais de Gervase Chevenix-Gore foram removidos.  Poirot e o delegado ficaram sozinhos.

— Tudo me parece bastante simples — disse Riddle. — Portas e janelas trancadas, chave da porta no bolso do cadáver. Tudo de acordo com as regras... menos uma coisa.

— E que coisa é esta, meu amigo? — quis saber Poirot.                     

— Você — respondeu Riddle bruscamente. — O que você está fazendo aqui?

Poirot limitou-se a passar-lhe a carta que recebera na semana anterior, mais o telegrama que finalmente pedia seu comparecimento imediato.

— Hum — disse o delegado. — Interessante. Vamos ter que apurar isto. Eu diria que está diretamente rela­cionado com o suicídio.

— Estou inteiramente de acordo.

— Vamos ver quem se encontrava na casa na hora da morte.

— Posso lhe dizer os nomes de todos, pois perguntei a Mr. Trent.

Poirot repetiu as informações que já ouvira.

— O senhor sabe alguma coisa destas pessoas? — perguntou.

— Sim — respondeu o major. — Naturalmente posso lhe dizer alguma coisa deles. Lady Chevenix-Gore também é bastante amalucada, mas de um jeito diferente de Sir Gervase. Os dois se gostavam muito. Ela é a pessoa mais distraída que já houve no mundo, mas de vez em quando surpreende a todos com uma sagacidade que ninguém pensava que ela pudesse ter. As pessoas fazem caçoada dela e eu acho que ela sabe, mas não liga. Ela é também incapaz de ver o lado cômico das situações.

— Miss Chevenix-Gore é apenas filha adotiva deles não?

— Sim.

— Uma moça muito bonita.

— Extraordinariamente atraente. Tem feito gato e sapato dos corações masculinos aqui por perto. Ela finge que lhes dá bola, depois os deixa a ver navios. É uma excelente amazona.

— Por enquanto, isto é o que menos nos preocupa.

— Aã... tem razão. Bem, vejamos os demais. Co­nheço o velho Bury, é claro. Quase não sai daqui — uma espécie de gato domesticado. É um velho amigo da famí­lia, uma espécie de ajudante-de-ordens de Lady Chevenix-Gore. Acho que ele e Sir Gervase eram sócios numa com­panhia da qual Bury era um dos diretores.

— E Oswald Forbes, o que você sabe dele?

— Tenho quase certeza que já o encontrei antes.

— Miss Lingard?

— Nunca ouvi falar dela.

— Miss Susan Cardwell?

— Aquela moça bonita com cabelos ruivos? Tenho-a visto nos últimos dias em companhia de Ruth Chevenix-Gore.

— Mr. Burrows?

— Este eu conheço bem. Era o secretário de Sir Ger­vase. Cá entre nós, não vou muito com ele. É bonitão e acho que procura tirar vantagem. Me parece meio mau-caráter.

— Ele estava trabalhando com Sir Gervase há muito tempo?

— Há uns dois anos, creio.

— E não haverá mais ninguém...

Mas Poirot teve que se interromper.

Um homem alto, de cabelos louros, de terno, entrou no escritório às pressas. Estava ofegante e parecia muito perturbado.

— Boa noite, major Riddle. Ouvi um boato de que Sir. Gervase tinha dado um tiro na cabeça e vim às presas. Snell me disse que é verdade. É incrível, não posso acreditar!

— Mas é verdade, Lake. Deixe-me apresentá-lo. Este o capitão Lake, procurador de Sir Gervase. Monsieur Hercule Poirot, de quem você provavelmente já ouviu falar.

O rosto de Lake iluminou-se com uma incredulidade alegre.

— Monsieur Hercule Poirot? É um grande prazer co­nhecê-lo. Pelo menos...

O sorriso de Lake morreu em seu rosto e ele perguntou preocupado:

— Há alguma coisa de errada no suicídio?

— Por que haveria alguma coisa “errada” no suicídio, como você diz? — perguntou vivamente o delegado.

— Quero dizer... porque monsieur Poirot está aqui. E... e porque tudo me parece francamente incrível.     

— Não, não — tranqüilizou-o Poirot. — Não estou aqui por causa da morte de Sir Gervase. Eu já estava presente... como hóspede.

— Ah, compreendo. É estranho que ele não tenha me dito que o senhor vinha, quando examinamos umas contas hoje à tarde.

Poirot disse em tom sereno.

— O senhor já usou duas vezes a palavra “incrível” desde que aqui chegou, capitão Lake. O suicídio de Sir Gervase é uma surpresa assim tão grande para o senhor?

— Sim, muito grande. Bem sei que ele era doido, todos sabiam disto.  Mas mesmo assim não consigo acreditar que ele achasse que o mundo pudesse existir sem à sua pessoa.

— É verdade. Eis aí uma boa observação — concor­dou Poirot, enquanto olhava com simpatia o rosto fran­co e inteligente do jovem.

O major Riddle pigarreou.

— Já que você está aqui, Lake, gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas.

— Com todo prazer.

Lake sentou-se numa cadeira em frente aos dois homens.

— Quando você viu Sir Gervase pela última vez?

— Hoje à tarde, pouco antes das três horas. Havia algumas contas para examinar, além da proposta de arrendamento de uma das fazendas.

— Quanto tempo você ficou com ele?

— Mais ou menos meia hora.

— Pense cuidadosamente e diga-me se você notou alguma coisa de estranho em seu comportamento.

Lake pensou por alguns instantes.

— Não, acho que nada. Ele estava meio agitado, mas isto era comum.

— Não estava deprimido ou aborrecido?

— Não, me pareceu bem disposto. Acho que ele vi­nha se distraindo muito nos últimos dias com o livro sobre a história de sua família.

— Há quanto tempo ele vinha escrevendo este livro?

— Há uns seis meses.

— Foi quando Miss Lingard veio para cá?

— Não. Ela chegou há uns dois meses, quando Sir Gervase descobriu que não tinha condições de efetuar toda a pesquisa sozinho.

— E você acha que ele tinha prazer em escrever o livro?

— Sim, enorme. Ele achava que nada no mundo po­dia ser mais importante que sua família.

Havia um ligeiro tom de amargura na voz do jovem.

— Então, em sua opinião Sir Gervase não tinha maio­res preocupações?

Lake fez uma pausa pequena mas perceptível antes de responder:

— Não.

Poirot interrompeu subitamente:

— Sir Gervase não estaria preocupado com sua fi­lha?

— Sua filha?

— Exatamente.

— Que eu saiba, não — respondeu o rapaz empertigadamente.

Poirot não insistiu. O major Riddle disse:

— Então muito obrigado, Lake.  Gostaria que você permanecesse por perto caso eu precisasse chamá-lo outra vez

 — Certamente — respondeu Lake, enquanto se levantava e perguntava:

— Posso ainda lhe ser útil em alguma coisa?

— Sim, mande o mordomo entrar. E talvez você pu­desse também dar uma olhada em Lady Chevenix-Gore para me dizer se ela já está em condições de ser inter­rogada ou se continua muito perturbada.

Lake assentiu e saiu do escritório com passos firmes.

— Um rapaz simpático — comentou Poirot.

— Sim, todos gostam dele. E é muito eficiente em seu trabalho.

 

— Sente-se, Snell — disse o major Riddle amavel­mente. — Tenho muita coisa a perguntar-lhe e acho que você deve ter sofrido um grande choque.

— Sem dúvida, senhor. Muito obrigado, senhor — Snell sentou-se com tal discrição que era como se conti­nuasse de pé.

— Você trabalha aqui há muito tempo?

— Há 16 anos, desde que Sir Gervase resolveu instalar-se, por assim dizer.

— Ah, sim, claro, seu patrão foi um grande viajante quando moço.

— Exatamente, senhor. Ele participou de expedições ao Pólo Norte e muitos outros lugares interessantes.

— Agora, Snell, pode me dizer quando viu seu pa­trão pela última vez hoje à noite?

— Bem, eu estava na sala de jantar, senhor, cui­dando dos últimos detalhes na mesa. A porta do hall estava aberta e eu vi quando Sir Gervase desceu as es­cadas, cruzou-o e dirigiu-se ao escritório.

— A que horas foi isso?

— Pouco antes das oito. Talvez às cinco para as oito.

— E foi a última vez que você o viu?

— Foi.

— Você ouviu um tiro?

— Ouvi sim, senhor, mas na hora não pensei que fosse um tiro. Quem teria pensado?

— O que você pensou que fosse?

— Pensei que fosse um carro, senhor. A estrada passa bem perto do muro de nosso parque. Ou talvez um tiro nas matas — algum caçador furtivo, quem sabe? Mas nunca me ocorreu...

O major Riddle interrompeu-o:

— A que horas foi isso?

— Foi exatamente às oito horas e oito minutos, senhor.

— Como você pode saber com tanta certeza?

— Porque eu tinha acabado de soar o primeiro gon­go, senhor.

— O primeiro gongo?

— Sim, senhor. Por ordens de Sir Gervase eu sem­pre soava um primeiro gongo exatamente sete minutos antes do gongo para o jantar. Sir Gervase fazia questão absoluta que todos estivessem reunidos na sala de visitas quando o segundo gongo soasse. Assim que eu soava o segundo gongo eu ia à sala de visitas, anunciava que o jantar estava pronto e todos se dirigiam à mesa.

— Começo a compreender melhor — interrompeu Poirot — por que você parecia tão surpreso ao anunciar o jantar hoje à noite. Sir Gervase estava sempre na sala de visitas, não?

— Nunca em minha vida deixei de encontrá-lo lá, senhor. Foi um choque. Mas eu não podia pensar...

O major Riddle interrompeu habilmente:

— E os outros também costumavam estar lá?

Snell tossiu.

— Quem quer que se atrasasse para o jantar, senhor, jamais era convidado outra vez para se hospedar aqui.

— Hum, muito drástico.

— Sir Gervase, senhor, empregava um chef-de-cuisine que anteriormente trabalhara com o imperador da Morá­via. Na opinião de Sir Gervase o jantar era tão importante quanto um ritual religioso.

— E o que pensavam disso os outros membros da família?

— Lady Chevenix-Gore sempre fez muita questão de não contrariar Sir Gervase e nem mesmo Miss Ruth tinha coragem de se atrasar para o jantar.

— Interessante — murmurou Poirot.

— Compreendo — disse Riddle. — Quer dizer que como o jantar era às oito e quinze, você soou o gongo às oito e oito, como de hábito?

— Foi assim mesmo, senhor, mas não como de hábito. O jantar era em geral às oito horas. Hoje Sir Ger­vase dera ordens de servi-lo às oito e quinze porque esperava um convidado no trem da tarde.

Snell fez uma pequena mesura para Poirot enquanto falava.

— Seu patrão parecia preocupado ou aborrecido quando se dirigiu ao escritório?

— Não poderia lhe dizer, senhor. Ele estava muito longe para eu poder julgar sua expressão. Pude apenas notar seu vulto, nada mais.

— Ele estava sozinho?

— Sim.

— Alguém teria entrado no escritório em seguida?

— Também não saberia dizer, senhor. Dirigi-me em seguida à copa e fiquei lá até soar o gongo às oito e oito.

— Foi então que você ouviu o tiro?

— Foi, senhor.

Poirot interrompeu com brandura.

— Houve outros que ouviram o tiro, não?

— Sim, senhor. Mr. Hugo e Miss Cardwell. E Miss Lingard.

— Eles também estavam no hall?

— Miss Lingard saiu da sala de visitas e Miss Cardwell e Mr. Hugo vinham descendo as escadas.

Poirot perguntou:

— Alguém comentou o assunto?

— Sim, senhor. Mr. Hugo perguntou se íamos servir champanha ao jantar. Eu respondi-lhe que não, apenas xerez, vinho do Reno e vinho da Borgonha.

— Ele pensou que fosse uma rolha de champanha?

— Sim, senhor.

— Mas ninguém tomou o barulho muito a sério?

— Não, senhor. Eles todos se dirigiram à sala de visitas rindo e conversando.

— Onde estavam as demais pessoas da casa?

— Não saberia lhe dizer, senhor.

O major Riddle perguntou:

— Você saberia me dizer alguma coisa desta pistola?

— Sim, senhor. Ela pertencia a Sir Gervase. Ele a guardava sempre na gaveta de sua escrivaninha, aqui no escritório.

— Ela costumava estar carregada?

— Não saberia lhe dizer, senhor.

O major Riddle pôs a arma de lado e pigarreou.

— Snell, agora vou perguntar-lhe algo muito importante. Espero que você me responda com a maior fran­queza possível. Você sabe de alguma coisa que possa ter levado seu patrão a se matar?

— Não, senhor. Não sei de nada.

— Sir Gervase não vinha se comportando de modo estranho ultimamente? Andava preocupado? Ou abatido?

Snell tossiu embaraçado.

— Se o senhor não me leva a mal, Sir Gervase sem­pre teve um comportamento que outras pessoas poderiam descrever como estranho. Ele era um cavalheiro extre­mamente original, senhor.

— Sim, sim, já sei disso.

— As pessoas de fora dificilmente podiam compre­ender Sir Gervase.

Snell deu à palavra “compreender” uma ênfase muito óbvia.

— Sim, sim, concordo. Mas não havia nada que até mesmo você pudesse considerar pouco comum?

O mordomo hesitou, mas acabou por dizer:

— Acho que Sir Gervase andava preocupado com al­guma coisa, senhor.

— Preocupado e abatido?

— Não diria abatido, senhor. Mas preocupado, sim.

— Você teria alguma idéia sobre a causa de sua preo­cupação?

— Não, senhor.

— Teria algo a ver com alguma pessoa em particular?

— Não saberia lhe dizer, senhor. De qualquer forma, é apenas uma impressão minha.

Poirot falou de novo.

— Você se surpreendeu com seu suicídio?

— Muito, senhor. Foi um choque terrível. Nunca supus que isso pudesse acontecer.

Poirot concordou. Seu rosto tinha uma expressão meditativa.

Riddle deu-lhe uma olhada rápida e depois dirigiu-se de novo ao mordomo.

— Obrigado, Snell, é tudo que precisamos de você. Você tem certeza que não há mais nada que você queira nos contar... por exemplo, nada estranho que tenha acon­tecido nos últimos dias?

O mordomo levantou-se sacudindo a cabeça.

— Não há nada, senhor, nada mesmo.

— Então pode ir.

— Obrigado, senhor.

Snell dirigia-se à porta, mas subitamente abriu ca­minho e perfilou-se ereto enquanto Lady Chevenix-Gore entrava com seu ar eternamente vago.

Ela estava usando um vestido de seda em roxo e ala­ranjado, enrolado ao corpo, em estilo oriental. Seu rosto estava tranqüilo e seus modos serenos.

— Lady Chevenix-Gore — cumprimentou o major Riddle, enquanto se erguia.

Ela disse:

— Me avisaram que o senhor queria falar comigo, por isto vim vê-lo.

— Vamos a um outro aposento? Este deve lhe trazer recordações extremamente dolorosas.

Lady Chevenix-Gore sacudiu a cabeça e se sentou em uma das cadeiras Chippendale, enquanto murmurava:

— Não. Que diferença faz?

— A senhora é uma mulher de grande coragem, Lady Chevenix-Gore. Bem sei o choque terrível que deve ter sido...

Ela interrompeu.

— De fato foi um choque a princípio — disse em tom sereno e coloquial. — Mas, o senhor sabe, não existe isto que chamam morte. Apenas mudança, transformação.

Antes que o delegado pudesse dizer qualquer coisa ela acrescentou:

— Para falar a verdade, Gervase está de pé logo atrás do senhor, quase tocando seu ombro esquerdo. Posso vê-lo perfeitamente.

O ombro esquerdo do major Riddle tremeu levemente. Ele olhava para Lady Chevenix-Gore com expressão incrédula,

Ela sorriu-lhe. Um sorriso feliz e sereno.

— Vejo que o senhor não acredita. Não importa, poucos acreditariam. Para mim o mundo sobrenatural é tão real quanto o material. Mas não se constranja. Pergunte-me o que quiser e não tenha medo de ferir meus sentimentos. Não estou abalada, porque aceito tudo como obra da fatalidade. Ninguém pode escapar de seu próprio destino. Tudo se ajusta... o espelho... tudo.

— O espelho, madame? — quis saber Poirot.

Ela assentiu com a cabeça.

— O espelho sim. Está partido, como o senhor pode ver.  É um símbolo. O senhor conhece o poema de Tenny­son. Gostava de recitá-lo quando garota... embora na época não pudesse ainda apreciar seu lado esotérico. “O espelho partiu-se de alto a baixo. A maldição desabou sobre mim — gritou a Senhora de Ascalônia.” Foi o que se passou com Gervase. A maldição desabou sobre ele de repente. Acho que todas as famílias antigas sofrem de alguma forma a maldição... O espelho partiu-se... Ele sabia que estava condenado. A maldição tinha chegado.

— Mas, madame, não foi uma maldição que partiu o espelho. Foi uma bala!

Lady Chevenix-Gore respondeu com voz de quem per­doa tamanha ignorância.

— É tudo o mesmo, o senhor sabe. Foi o destino.

— Mas foi seu marido que se matou!

Lady Chevenix-Gore sorriu com indulgência.

— Ele não deveria ter feito isto, é claro. Mas Ger­vase sempre foi impaciente. Nunca soube esperar. Sua hora estava próxima... ele adiantou-se ao seu encontro. É tudo muito simples.

O major Riddle pigarreou desesperado e disse:

— Então para a senhora o suicídio de seu marido não foi uma surpresa? A senhora já o esperava?

— Não, não. Nem sempre se pode prever o futuro. É claro que Gervase sempre foi um homem estranho, um homem diferente. Ele era a reencarnação de um dos gran­des Profetas. Há muito tempo eu sabia disso e acho que ele próprio desconfiava. Por isso mesmo Gervase achava difícil respeitar as tolas normas convencionais.

E, olhando novamente sobre o ombro esquerdo do major Riddle:

— Ele está. sorrindo agora. Está pensando que somos um grupo de tolos. E é verdade. Somos como crianças, fingindo que a vida é real e importante... A vida é ape­nas uma grande ilusão.

Sentindo-se como um general prestes a perder uma batalha, Riddle insistiu:

— A senhora então não pode nos dar a menor idéia do que teria levado seu marido ao suicídio?

Ela sacudiu os ombros magros.

— Somos como palha movida pelo vento. O senhor não pode compreender. O senhor vive apenas no plano material.

Poirot tossiu.

— Por falar em plano material, madame, a senhora sabe a quem seu marido deixou o dinheiro?

— Dinheiro? — perguntou Lady Chevenix-Gore com ar de desdém. — Nunca penso em dinheiro.

Poirot passou a outro assunto.

— E a que horas a senhora desceu para o jantar hoje à noite?

— Horas? Que importam as horas, que importa o tempo? O que é o tempo? O infinito. O tempo é infinito.

Poirot murmurou:

— Mas pelo que eu sei, madame, seu marido era mui­to exigente em matéria de tempo, especialmente quanto à hora do jantar.

— Pobre Gervase — Lady Chevenix-Gore sorriu com indulgência. — Era uma criancice dele. Mas o fazia fe­liz, por isso nós nunca nos atrasávamos.

— A senhora estava na sala de visitas quando soou o primeiro gongo?

— Não. Estava em meu quarto.

— A senhora se lembra quem estava na sala de vi­sitas quando a senhora desceu?

— Acho que quase todos. Importa muito saber?

— Talvez não muito — concordou Poirot, prosseguindo:

— Mas há outra coisa que eu gostaria de saber: seu marido chegou a lhe contar que achava estar sendo vítima de um roubo?

Lady Chevenix-Gore não pareceu se interessar muito pelo assunto.

— Roubo? Não, acho que ele nunca me falou nada.

— Roubo, fraude, conto do vigário. Enfim, enganado de alguma maneira?

— Não, não, acho que não. Gervase teria ficado furioso se alguém tivesse tentado fazer isto com ele.

— Então ele nunca disse nada a respeito?

— Não... não... — respondeu Lady Chevenix-Gore ainda sem mostrar grande interesse.  Acho que eu me lembraria se ele tivesse falado.

— Quando a senhora viu seu marido pela última vez?

— Ele veio ao meu quarto, como de hábito, antes de descer. Minha criada estava lá. Ele apenas olhou à porta e disse que já ia descer.

— Sobre o que ele falava mais freqüentemente nes­tas últimas semanas?

— Sobre a história de nossa família. Ultimamente ele vinha fazendo grandes progressos em seu livro. Ele achava aquela pitoresca Miss Lingard de grande utilida­de. Ela pesquisava para ele no Museu Britânico e luga­res assim, e tinha trabalhado com Lord Mulcaster quando ele escreveu a história de sua família. Foi Lord Mulcaster quem a recomendou. Ela tinha um grande tato... nunca pesquisava as coisas erradas, se o senhor entende o que quero dizer. Afinal há antepassados que é melhor deixar mesmo de lado. Miss Lingard também me ajudava muito. Foi ela quem me conseguiu uma porção de informações sobre Hatshepsut. Não sei se o senhor sabe, mas eu sou a reencarnação de Hatshepsut.

Lady Chevenix-Gore fez esta comunicação em voz absolutamente calma.

— Antes disso — continuou — fui uma sacerdotisa na Atlântida.

O major Riddle remexeu-se em sua poltrona.

— Hum, muito... muito interessante. Bem, Lady Chevenix-Gore, creio que foi tudo. A senhora foi muito gentil em vir nos ver.

Lady Chevenix-Gore ergueu-se, arrepanhando as do­bras de seu vestido.

— Boa noite — disse ela, e depois, olhando no espaço.

— Boa noite, Gervase querido. Gostaria que você viesse, mas sei que você tem que ficar aí.

Ela acrescentou, como se explicasse ao major Riddle:

— Você tem que permanecer no local de sua morte por pelo menos 24 horas. Ainda é cedo para você podar vagar por aí e se comunicar com os vivos.

Lady Chevenix-Gore saiu do escritório.

O major Riddle enxugou a testa.

— Puxa — murmurou. — Ela é muito mais doida do que eu pensava. Será que ela acredita em toda essa babugice?

Poirot balançava a cabeça como quem medita.

— É possível que lhe seja de grande utilidade. No momento ela precisa criar uma ilusão onde possa se re­fugiar para não enfrentar a triste realidade da morte do marido.

— Para mim ela é quase um caso de internamente Nada do que ela disse tem o menor nexo.

— Não, não, meu amigo. Como Mr. Hugo Trent ob­servou-me casualmente, entre toda aquela mixórdia de repente descobrimos uma observação muito lúcida. Como a de que Miss Lingard tem muito tato, pois evita pesquisar antepassados comprometedores. Acredite-me, Lady Che­venix-Gore não é nenhuma tola.

Poirot ergueu-se e passeou pela sala.

— Há muitas coisas estranhas neste caso. Coisas de que eu não gosto nada.

Riddle olhava-o com curiosidade.

— Você quer se referir ao motivo do suicídio?

— Suicídio... não! Não foi suicídio, posso lhe ga­rantir. Não corresponde psicologicamente. Que idéia Che­venix-Gore fazia de si mesmo? A de um colosso, um se­mideus, uma pessoa imensamente importante, o centro do Universo! Um homem destes se destrói a si mesmo? Claro que não. É muito mais provável que ele mate outra pessoa... um miserável verme de um homem que ousasse criar-lhe problemas. Tal ato na opinião dele seria perfeitamente justificável, necessário mesmo. Mas auto-destruição? A destruição de um ego tão imenso?

— Sua psicologia é muito boa, Poirot, mas as provas não admitem discussão. A porta trancada, a chave no bolso. A porta da varanda também fechada e com o trinco passado por dentro. Um crime como este poderia acon­tecer nos livros, mas nunca na vida real. Você ainda tem alguma coisa a dizer?

— Sim, tenho ainda alguma coisa a dizer — respon­deu Poirot, sentando-se na cadeira, enquanto prosseguia;

— Aqui estou eu, Chevenix-Gore, sentado à minha escrivaninha. Resolvi suicidar-me porque... porque, di­gamos, descobri algo de horrível sobre o passado de mi­nha família. Não é um motivo muito convincente, mas aceitemo-lo mesmo assim.

— Eh bien — continuou Poirot —, que faço eu? Rabisco num pedaço de papel a palavra DESCULPEM. Até aí, tudo bem. Em seguida, abro a gaveta onde guardo minha pistola, carrego-a, se já não está carregada, e, en­tão? Dou um tiro na minha cabeça? Não, primeiro viro a cadeira assim, depois inclino-me para a direita assim e só então encosto a pistola em minha cabeça e disparo!

Poirot pôs-se vivamente de pé.

— E agora eu lhe pergunto; isto faz sentido? Por que virar a cadeira? Se pelo menos houvesse um quadro ou um retrato na parede ainda seria admissível. Algo que Chevenix-Gore quisesse ver uma última vez antes de morrer. Mas uma cortina, não, não faz sentido.

— Talvez ele quisesse olhar pela janela. Ver sua propriedade pela última vez.

— Meu amigo, você sabe que isto não faz sentido. As oito horas e oito minutos era já noite fechada e além disso as cortinas estavam fechadas. Não, tem que haver outra explicação.

— Só pode haver uma, na minha opinião. Gervase Chevenix-Gore era doido.

Poirot continuava a balançar a cabeça insatisfeito.

O major Riddle ergueu-se.

— Venha Comigo. Vamos interrogar as outras pessoas. Pode ser que assim descubramos alguma coisa.

 

Depois da difícil conversa com Lady Chevenix-Gore o major Riddle sentiu-se aliviado ao tratar com um advo­gado lógico e sensato como Forbes.

Mr. Forbes se manteve extremamente reservado, mas suas respostas iam sempre diretamente ao assunto.

Ele reconheceu que o suicídio de Sir Gervase lhe ti­nha sido um choque. Jamais pensara que Sir Gervase fosse capaz de se matar. Não podia imaginar a menor razão para semelhante coisa.

— Sir Gervase era não apenas meu cliente mas um velho amigo. Conhecia-o desde garoto e posso dizer que ele sempre amou a vida.

— Gostaria que o senhor usasse do máximo de fran­queza conosco, Mr. Forbes. O senhor tinha conhecimento de alguma mágoa ou ansiedade secreta de Sir Gervase?

— Não. Ele tinha suas pequenas preocupações, como todos nós, mas nada de sério.

— Alguma doença? Alguma briga com a mulher?

— Não. Sir Gervase e Lady Chevenix-Gore se davam maravilhosamente,

O major Riddle disse cautelosamente:

— Lady Chevenix-Gore parece ter idéias estranhas.

Mr. Forbes sorriu. O sorriso superior e indulgente de um homem.

— As senhoras se deve perdoar pequenas esquisitices.

O delegado continuou:

— O senhor cuidava de todos os interesses legais de Sir Gervase?                                            

— Sim. Minha firma, Forbes, Ogilvie and Spence, cuida dos negócios da família Chevenix-Gore há mais de 100 anos.

— Havia algum... algum escândalo na família Che­venix-Gore?

Mr. Forbes franziu a testa:

— Não compreendo.

— Monsieur Poirot, quer ter a bondade de mostrar a Mr. Forbes a carta que o senhor recebeu?

Poirot pôs-se de pé em silêncio e estendeu a carta a Mr. Forbes, com uma pequena mesura.

Mr. Forbes leu-a e sua testa se franziu mais ainda.

— Uma carta extraordinária — disse. — Agora vejo onde o senhor queria chegar. Mas não sei de nada que a pudesse justificar.

— Sir Gervase nada lhe disse sobre o assunto?

— Nada. E devo confessar que acho muito estranho que ele não tenha dito.

— Ele costumava fazer-lhe confidências?

— Digamos que ele gostava de pedir minha opinião.

— E o senhor não tem idéia do que o teria levado a escrever a carta?

— Prefiro não fazer juízos precipitados.

O major Riddle admirou a sutileza da resposta.

— E será que o senhor poderia nos dizer alguma coisa sobre a herança de Sir Gervase?

— Pois não. Não vejo nenhum inconveniente nisto. Lady Chevenix-Gore terá uma renda anual de seis mil libras e a escolha de uma propriedade no campo ou a casa em Lowndes Square — o que ela preferir. Há ainda di­versos outros legados e doações, mas nada importante. A maior parte da herança foi deixada à sua filha adotiva, Ruth, com a condição de que, ao casar, seu marido adote o nome Chevenix-Gore.

— E para seu sobrinho Hugo Trent?

— Um legado de cinco mil libras.

— Estou certo em presumir que Sir Gervase era um homem rico?

— Imensamente rico. Além desta casa ele tinha mui­tos outros bens, embora já não fosse tão rico quanto há alguns anos, pois diversas ações de sua propriedade caíram de cotação. Além disso, ele perdeu bastante dinhei­ro com o investimento que fez numa companhia de pro­priedade do coronel Bury, a Paragon Synthetic Rubber Substitute. O coronel tinha lhe garantido que era um bom negócio.

— Um conselho infeliz, não?

— Militares aposentados são os piores financistas que existem. Minha experiência me ensinou que são mais fáceis de enganar que as viúvas, e olhem que isto é um recorde.

— Mas estes maus investimentos não chegaram a abalar seriamente a fortuna de Sir Gervase, chegaram?

— Não. Ele ainda era extremamente rico.

— Quando foi feito o testamento?

— Há dois anos.

Poirot murmurou:

— E o testamento não seria um pouco injusto com Mr. Hugo Trent, o sobrinho de Sir Gervase? Afinal ele era o parente consangüíneo mais chegado a Sir Gervase.

Mr. Forbes sacudiu os ombros.

— É preciso levar em conta a história da família...

— Em que sentido?

Mr. Forbes hesitou.

O major Riddle interveio:

— A curiosidade de monsieur Poirot é natural. Esta carta de Sir Gervase precisa ser explicada.

— Não há nada de escandaloso na atitude de Sir Gervase em relação a seu sobrinho — principiou Mr. For­bes. — Ocorre simplesmente que ele sempre levou muito a sério seu papel de chefe de família. Ele tinha um irmão e uma irmã, ambos mais moços. O irmão morreu na guer­ra. A irmã, Pamela, casou-se, mas com a discordância de Sir Gervase. Ele achava que a família do capitão Trent não era suficientemente boa para uma aliança com os Chevenix-Gore e acreditava que, em qualquer caso, a irmã devia lhe pedir autorização antes de se casar. Ela nem se aborreceu — achou sua atitude simplesmente di­vertida. O resultado foi que Sir Gervase sempre mostrou uma certa aversão pelo sobrinho. Acho mesmo que foi esta aversão que o levou a adotar uma criança.

— E não lhe era possível ter um filho próprio?

— Não. Um ano depois do casamento Lady Chevenix-Gore teve um filho natimorto e os médicos lhe disseram que ela nunca poderia conceber novamente. Dois anos mais tarde eles adotaram Ruth.

Poirot perguntou:

— E quem era esta menina? Por que eles a escolhe­ram?

— Creio que ela era filha de um parente distante.

— Já pensava isto — respondeu Poirot, olhando os diversos retratos pendurados na parede. — É fácil ver que ela tem o mesmo sangue... o mesmo nariz, a for-ma do queixo. São traços comuns a quase todos estes retratos.

— Não são apenas as feições. Ela também herdou o temperamento — observou Mr. Forbes.

— É fácil imaginar, Como ela se dava com seu pai adotivo?

— Como o senhor deve estar pensando. Eram ambos terrivelmente voluntariosos, mas apesar de todas as dis­cussões creio que no fundo eles se entendiam.

— Mesmo assim ela lhe dava dores de cabeça?

— E muitas. Mas posso lhe garantir que não a ponto de suicidar-se.

— Ah, sim, claro — concordou Poirot. — Ninguém se mata só porque tem uma filha teimosa. Quer dizer que a senhorita Ruth é a principal herdeira? Sir Gervase nunca pensou em modificar o testamento?

— Ahum — tossiu Mr. Forbes embaraçado. — Para dizer a verdade, eu tinha recebido instruções de Sir Ger­vase, ao chegar há dois dias, para fazer um novo testa­mento.

— Hem? — perguntou o major Riddle, interessado. — O senhor não nos tinha dito nada.

Mr. Forbes explicou rápido:

— O senhor simplesmente me perguntou quais eram os termos do testamento de Sir Gervase e eu lhe dei a informação solicitada. O novo testamento nem estava rascunhado, quanto mais assinado.

— E quais seriam os novos termos? Eles podem nos dar uma idéia do estado de espírito de Sir Gervase.

— De modo geral os termos eram os mesmos, mas Miss Chevenix-Gore só poderia entrar na posse da heran­ça se se casasse com Mr. Hugo Trent.

— Ah!... — fez Poirot. — Mas há então uma dife­rença fundamental.

— Eu disse a Sir Gervase que não concordava com a cláusula — continuou Mr. Forbes — e expliquei-lhe que ela provavelmente poderia ser anulada em juízo. A Justiça não vê com simpatia condições semelhantes. Mas Sir Gervase estava decidido a adotá-la.

— E se Miss Chevenix-Gore ou Mr. Hugo Trent não quisessem cumpri-la?

— Se Mr. Hugo Trent se recusasse a casar com Miss Chevenix-Gore, a herança seria dela incondicionalmente. Mas se ele quisesse e ela se recusasse, o dinheiro iria para ele.

— Negócio complicado — murmurou o major Riddle.

Poirot inclinou-se, tocando no joelho do advogado.

— Mas o que havia por trás disto? O que teria le­vado Sir Gervase a estabelecer tais condições? Devia haver alguma coisa... provavelmente um outro homem... um pretendente com o qual ele não concordasse: O senhor não sabe quem era esta pessoa?

— Para ser franco, monsieur Poirot, não.

— O senhor poderia talvez dar um palpite.

— Jamais dou palpites — respondeu Mr. Forbes, es­candalizado.

Em seguida, tirando o pincenê e limpando-o com um lenço de seda, perguntou:

— Há mais alguma coisa que os senhores desejem saber?

— Por enquanto não — respondeu Poirot. — Pelo menos, não no que me diz respeito.

Mr. Forbes olhou-o como se muito pouco lhe dissesse respeito e voltou sua atenção para o delegado. O major Riddle disse:

— Obrigado, Mr. Forbes. Acho que é tudo. Agora gostaria de conversar com Miss Chevenix-Gore, se possível.

— Certamente. Acho que ela está no segundo andar com Lady Chevenix-Gore.

— Bem, então talvez seja melhor conversarmos pri­meiro com... como é mesmo seu nome?... com Burrows e depois com a pesquisadora.

— Ambos estão na biblioteca.  Vou avisá-los.

 

— Trabalho duro — comentou o major Riddle quan­do Mr. Forbes deixou a sala. — Para extrair informações de certos advogados você quase precisa usar um aspirador. Parece que a moça é o centro de toda a história.

— Parece não haver dúvida.

— Bem, aí vem Burrows.

Godfrey Burrows entrou com um ar solícito. Seu sorriso havia sido cuidadosamente ensaiado para ser simpático sem ao mesmo tempo perder o toque de tristeza que a ocasião exigia. Por isto mesmo, parecia mais artificial do que espontâneo.

— Gostaríamos de lhe pedir algumas informações, Mr. Burrows.     

— Com todo prazer, major Riddle. Estou às suas ordens.

— Bem, primeiro de tudo, para irmos direto ao as­sunto: o senhor tem idéia do que teria levado Sir Gervase ao suicídio?

— Nenhuma. Foi um imenso choque para mim.

— O senhor ouviu o tiro?

— Não. Acho que eu estava na biblioteca. Eu desci bastante cedo e fui à biblioteca procurar algumas refe­rências de que precisava. A biblioteca é bem do outro lado da casa e assim eu não poderia ouvir nada.

— Havia alguém com o senhor na biblioteca? — quis saber Poirot.

— Não, ninguém.

— O senhor faz idéia de onde estariam as outras pessoas da casa?

— Acho que a maior parte estava no segundo andar, preparando-se para o jantar.

— Quando o senhor se dirigiu à sala de visitas?

— Pouco antes da chegada de monsieur Poirot. Es­tavam todos lá... exceto, é claro, Sir Gervase.

— Pareceu-lhe estranho que ele não estivesse?

— Sim, pareceu-me. Ele tinha o hábito de estar sem­pre na sala de visitas antes mesmo do primeiro gongo.

— O senhor tinha reparado algo de estranho nos modos de Sir Gervase recentemente? Ele andava preocu­pado? Ansioso? Deprimido?

Godfrey Burrows pensou um pouco.

— Não, acho que não. Talvez um pouco... um pou­co preocupado.

— Mas era uma preocupação grande, sobre algum assunto em especial?

— Não.

— Ele tinha alguma... alguma inquietação de or­dem financeira?

— Bem, ele andava contrariado com a situação de uma companhia. Para ser mais preciso, a Synthetic Paragon Rubber Company.

— E ele lhe disse alguma coisa a respeito?

Godfrey Burrows sorriu de novo e mais uma vez a impressão foi artificial.

— Bem, para ser sincero, o que ele me disse foi: “Este Bury é ou bobo ou vigarista. Mais provavelmente um bobo. Mas tenho que tratá-lo com calma, por causa de Vanda.”

— E por que ele teria dito isto “por causa de Van­da”? — perguntou Poirot.

— Bem, o senhor sabe, Lady Chevenix-Gore gosta muito do coronel Bury e ele praticamente a adora. Se­gue-a pela casa toda como um cachorro.

— Sir Gervase nunca mostrou ciúmes?

— Ciúmes? — espantou-se Burrows. — Sir Gervase com ciúmes? Acho que nunca na vida lhe ocorreria que uma mulher pudesse preteri-lo por outro homem.  Isto lhe era inconcebível.

Poirot observou brandamente:

— Acho que o senhor não tinha muito boa impres­são de Sir Gervase Chevenix-Gore.

Burrows se fez vermelho.

— Não, não. Tinha sim. É só que certas coisas de Sir Gervase me pareciam um pouco ridículas hoje em dia.

— Que coisas?

— Aquelas manias feudais, aquele culto dos antepas­sados, além de uma certa arrogância em suas atitudes. Sir Gervase era um homem inteligente e levara uma vida fascinante, mas teria sido uma personalidade mais agra­dável se não fosse tão absorto em si mesmo e em seu próprio egoísmo.

— Sua filha concordava com o senhor?

Burrows ficou vermelho de novo. Vermelho vivo.

Finalmente disse:

— Miss Chevenix-Gore me parece ter uma mentalidade bem moderna. Mas nunca me ocorreu lhe perguntar sua opinião sobre seu pai.

— Mas os jovens de hoje não se furtam a discutir os defeitos de seus pais — respondeu Poirot. Falar mal dos pais é prova de espírito avançado.

Burrows não disse nada.

O major Riddle perguntou:

— Não havia mais nada... nenhuma outra preocu­pação de ordem financeira? Sir Gervase nunca se queixou de estar sendo esbulhado?

— Esbulhado? — Burrows parecia incrédulo, acres­centando:

— Não, ele nunca me disse nada.

— E o senhor tinha um bom relacionamento com ele?

— Sim, claro, por que não teria?

— Quem está fazendo as perguntas sou eu, Mr. Bur­rows.

O jovem fechou a cara.

— Posso lhe garantir que nos dávamos muito bem.

— O senhor sabia que Sir Gervase havia escrito a monsieur Poirot pedindo-lhe que viesse a esta casa?

— Não.

— Sir Gervase costumava escrever suas próprias cartas?

— Não, em geral ele as ditava para mim..

— Mas não fez isto com a carta a monsieur Poirot?

— Não.

— O senhor saberia me dizer por quê?

— Não.

— O senhor teria idéia do motivo que o teria levado a escrever justamente esta carta por si mesmo?

— Não, nenhuma.

— Ah! — fez o major Riddle, acrescentando:

— Muito curioso. Quando o senhor viu Sir Gervase pela última vez?

— Pouco antes de me vestir para o jantar. Levei-lhe algumas cartas para assinar.

— Em que estado de espírito ele lhe pareceu?

— Bastante normal. Me pareceu mesmo que estava satisfeito consigo mesmo.

Poirot mexeu-se em sua cadeira.

— Verdade? Esta foi sua impressão? É estranho que um homem satisfeito consigo mesmo poucos momentos depois dê um tiro na cabeça. Muito estranho.

Godfrey Burrows deu de ombros.

— Estou apenas lhe dando minhas impressões.

— Sim, eu sei, e elas são muito valiosas. Afinal o senhor deve ter sido uma das últimas pessoas a ver Sir Gervase vivo.

— A última pessoa a vê-lo vivo foi Snell.

— Vê-lo, sim, mas não a falar com ele.

Burrows não respondeu.

O major Riddle interveio:

— A que horas o senhor subiu para se vestir?

— Uns cinco minutos depois das sete horas.

— E o que Sir Gervase estava fazendo?

— Ele continuou no escritório.

— Quanto tempo ele em geral levava para se vestir antes do jantar?

— Uns quarenta e cinco minutos.

— Então, se o jantar era às oito e quinze ele teria subido o mais tardar às sete e meia?

— Provavelmente.

— Mas o senhor subiu para se vestir mais cedo?

— Sim, eu preferi me vestir mais cedo para ter tempo de ir à biblioteca e fazer as consultas de que precisava.

Poirot assentia pensativamente. O major Riddle disse:

— Bem, acho que por enquanto é só. Será que o senhor poderia mandar Miss não-sei-o-quê entrar?

A pequenina Miss Lingard entrou quase em seguida. Ela usava diversas correntes que tilintaram um pouco enquanto ela se sentava e olhava interrogativamente os dois homens.

— Este é um momento muito... muito triste, Miss Lingard — começou o major Riddle.

— Sem dúvida — concordou ela com decoro.

— Quando a senhorita veio trabalhar aqui?

— Há uns dois meses. Sir Gervase escreveu a um amigo seu no Museu Britânico, o coronel Fotheringay, pedindo-lhe que lhe indicasse alguém para ajudá-lo a pesquisar a história de sua família e o coronel Fotheringay me recomendou. Eu tenho bastante experiência neste ti­po de pesquisas históricas.

— A senhorita achava difícil trabalhar com Sir Gervase?

— Para dizer a verdade, não. Era preciso um jeito especial para se lidar com ele, o senhor sabe.  Mas isto acontece com todos os homens.

O major Riddle suspeitou vagamente que naquele mesmo momento Miss Lingard estava usando um jeito especial para falar com ele, mas continuou:

— Seu trabalho aqui era então ajudar Sir Gervase a escrever o livro?

— Sim.

— E o que a senhorita fazia exatamente?

Por um momento Miss Lingard deixou entrever que sob seu aspecto eficiente, havia emoções humanas. Seus olhos brilhavam enquanto falava:

— Eu praticamente escrevia o livro! Eu fazia toda a pesquisa, tomava notas, organizava o material. E depois fazia a revisão do que Sir Gervase tinha escrito.

— A senhorita deve então ter precisado de muito tato, Miss Lingard — observou Poirot.

— Tato e firmeza. A gente precisa de ambos — disse Miss Lingard.

— Sir Gervase não se incomodava com sua... sua firmeza?                                  

— Oh não, nem um pouco. Mas eu sabia manobrá-lo, dizendo-lhe que ele não precisava se incomodar com de­talhes de menor importância.

— Compreendo.

— Na verdade, Sir Gervase não era difícil de se lidar, desde que se soubesse o jeito.

— Agora, Miss Lingard, gostaríamos de saber se a senhorita sabe de alguma coisa que possa nos elucidar a respeito desta tragédia.

Miss Lingard balançou a cabeça negativamente.

— Sinto muito, mas não creio que possa ajudá-los. O senhor compreende, afinal de contas ele não iria me fazer confidências. Eu lhe era praticamente uma estranha. De qualquer jeito, acho que ele era orgulhoso demais para conversar com alguém a propósito de problemas de fa­mília.

— Mas a senhorita acha que foram problemas de fa­mília que o levaram ao suicídio?

Miss Lingard pareceu surpresa.

— Mas claro. Que outra coisa poderia ser?

— A senhorita tem certeza de que ele estava preocupa­do com problemas de família?

— Eu sabia que ele andava muito aborrecido.

— Ah, a senhorita sabia?

— Bem... claro que eu sabia.

— Diga-me, mademoiselle, Sir Gervase lhe confessou alguma vez que andava aborrecido?

— Bem... não de forma direta.

— De que forma então?

— Deixe-me ver. Notei que ele não estava prestando atenção ao que eu dizia.

— Um momento. Pardon. Quando foi isso?

— Hoje à tarde.  Nós geralmente trabalhávamos de três às cinco.

— Continue, por obséquio.

 — Como eu ia dizendo, Sir Gervase parecia encon­trar dificuldade em se concentrar e chegou mesmo a ad­mitir o fato, explicando que tinha a cabeça ocupada com outros assuntos. E me disse... deixe-me lembrar mais ou menos como, embora as palavras talvez não sejam as mesmas... mas ele disse: “Miss Lingard, é horrível quan­do uma família orgulhosa de sua história se vê subita­mente confrontada com uma desonra.”

— E o que a senhorita respondeu?

— Apenas algo para consolá-lo. Disse que todas as famílias tinham suas ovelhas negras, mas elas não eram lembradas pela posteridade.

— E isto teve o efeito calmante que a senhorita es­perava?

— Mais ou menos. Passamos a falar de Sir Roger Chevenix-Gore, pois eu tinha descoberto um manuscrito da época com referências interessantes à sua pessoa. Mas mesmo assim Sir Gervase não prestava muita atenção, e finalmente me disse que não ia mais trabalhar hoje à tarde pois tinha sofrido um choque.

— Um choque?

— Foi o que ele disse, mas preferi não fazer mais perguntas. Disse-lhe apenas que sentia muito. Ele então me pediu que avisasse Snell que monsieur Poirot chegaria no trem das sete e cinqüenta, que um carro deveria apanhá-lo na estação e o jantar seria atrasado até as oito e quinze.

— Ele costumava pedir-lhe para transmitir este tipo de recado?

— Não. Em geral isto era tarefa de Mr. Burrows. Eu fazia apenas o trabalho literário. Não era uma secretá­ria em nenhum sentido da palavra.

Poirot perguntou:

— A senhorita acha que Sir Gervase tinha alguma ra­zão especial para pedir-lhe este recado, em vez de trans­miti-lo através de Mr. Burrows?

Miss Lingard pensou alguns instantes.

— Bem, é possível, mas na hora não pensei nisto. Pareceu-me apenas que lhe fosse mais conveniente, já que eu estava no escritório. Mas agora que estou falando no assunto me lembro que ele me pediu para não contar a ninguém que monsieur Poirot estava para chegar. Ex­plicou-me que era uma espécie de surpresa.

— Ah, ele disse isto? Muito curioso. Muito interes­sante. E a senhorita contou a alguém?

— Claro que não, monsieur Poirot. Apenas transmiti a Snell o recado como Sir Gervase me pedira.

— Sir Gervase lhe disse mais alguma coisa pertinente com o caso?

— Não. Creio que não. Ele estava com um ar muito preocupado, como já disse. Ah, lembro-me que, quando eu ia saindo do escritório, ele disse: “Se bem que a vinda de monsieur Poirot já não adiante nada. É tarde demais.”

— E a senhorita não faz idéia do que ele queria dizer com isto?

— N... não.

A voz de Miss Lingard revelou um traço apenas per­ceptível de hesitação. Poirot repetiu, com uma ruga na testa:

— Tarde demais. Foi o que ele disse, não? Tarde de­mais.

O major Riddle disse:

— A senhorita poderia talvez nos dar uma idéia sobre o motivo da preocupação de Sir Gervase com sua família?

Miss Lingard respondeu, medindo bem as palavras:

— Tenho a impressão que pode ser alguma coisa re­lacionada com Mr. Hugo Trent.

— Com Hugo Trent? E por que a senhorita tem esta impressão?

— Bem, não é nada de concreto. É apenas que ontem de tarde nós tratamos de Sir Hugo de Chevenix, que, in­felizmente, não teve um comportamento dos mais dignos na Guerra das Rosas, e Sir Gervase disse: “Não sei por que minha irmã cismou de escolher o nome de Hugo para seu filho. Sempre foi um nome infeliz na história da fa­mília. Ela deveria saber que nenhum Hugo poderia dar boa coisa.”

— O que a senhorita diz é muito interessante — co­mentou Poirot. — Sim, o que a senhorita diz me sugere uma nova hipótese.

— Sir Gervase não entrou em maiores detalhes? — perguntou o major Riddle.

Miss Lingard balançou a cabeça.

— Não e não achei conveniente perguntar-lhe. Na verdade ele estava falando mais consigo mesmo do que comigo.

— Concordo.

Poirot interrompeu de novo:

— A senhorita é uma estranha à família, mas já está aqui há dois meses. Será que não poderia nos dar suas impressões da família e dos criados?

Miss Lingard tirou o pincenê e piscou com ar de quem refletia.

— Bem, logo de saída tive a impressão que acabara de entrar num hospício. Lady Chevenix-Gore vivia a ver fantasmas e Sir Gervase comportava-se como um rei, cer­cando todos os seus atos da maior dramaticidade. Minha impressão foi de que era o casal mais doido que já conhe­cera. É verdade que Miss Chevenix-Gore sempre me pa­receu uma pessoa normal e aos poucos descobri que Lady Chevenix-Gore era no fundo uma criatura extremamente bondosa e gentil. Ninguém poderia ser mais amável co­migo do que ela tem sido. Mas Sir Gervase... este eu acho mesmo que era doido. Sua egomania... é assim mes­mo que se diz?... ficava pior a cada dia.

— E os outros?

— Acho que Mr. Burrows passava momentos difíceis com Sir Gervase. Para ele devia ser um alívio o fato de que meu trabalho com Sir Gervase lhe dava algumas horas de folga. O coronel Bury sempre foi muito amável. Ele é muito dedicado a Lady Chevenix-Gore e sabia como tratar Sir Gervase. Quanto a Mr. Trent, Mr. Forbes e Miss Cardwell não posso dizer nada, pois eles chegaram há poucos dias.                                                   

— Obrigado, mademoiselle. E quanto ao capitão Lake?

— Ele é extremamente simpático. Todos gostavam dele.

— Mesmo Sir Gervase?

— Sim, mesmo Sir Gervase. Uma vez ouvi-o dizer que Lake era o melhor procurador que ele já tivera. É certo que o capitão Lake também passava seus apertos com Sir Gervase, mas de modo geral eles se davam bem.

Poirot assentiu pensativamente e murmurou:

— Há uma coisa que eu queria lhe perguntar, mas não me lembro no momento. O que era mesmo, meu Deus?

Miss Lingard olhou para ele com jeito de quem se dispunha a aguardar com paciência.

Poirot parecia embaraçado.

— Tsk! Está na ponta da minha língua.

O major Riddle esperou um pouco, mas como Poirot continuava a franzir as sobrancelhas com ar perplexo, ele continuou com suas perguntas.

— Quando foi a última vez que a senhorita viu Sir Gervase?

— Na hora do chá, nesta sala.

— E como ele lhe pareceu? Normal?       

— Sim, dentro do que lhe era possível.

— Havia alguma tensão entre os presentes?

— Não, acho que todos se comportavam da maneira habitual.

— E para onde Sir Gervase foi depois de tomar seu lanche?

— Foi para o escritório com Mr. Burrows, como de hábito.

— Esta foi a última vez que a senhorita o viu?

— Foi. Eu me dirigi à pequena sala de visitas onde sempre trabalhava e bati à máquina um dos capítulos do livro, baseando-me nas anotações que tinha conferido com Sir Gervase. Fiquei lá até às sete horas, quando subi para descansar um pouco e preparar-me para o jantar.

— Creio que a senhorita ouviu o tiro, não?

— Sim, eu estava aqui na sala. Ouvi o que me pa­receu um tiro e fui até o hall. Lá encontrei Mr. Trent com Miss Cardwell. Mr. Trent perguntou a Snell se iríamos ter champanha para o jantar e fez uma brincadeira qual­quer a respeito. Nunca nos passou pela cabeça que o as­sunto poderia ser sério. Pensamos que fosse a descarga de um automóvel.

Poirot perguntou:

— A senhorita ouviu Mr. Trent dizer que sempre se podia pensar na hipótese de um assassinato?

— Acho que ele falou algo mais ou menos assim, mas foi brincando.

— E o que se passou em seguida?

— Nós todos viemos aqui, para a sala de visitas.

— A senhorita se lembraria da ordem em que as ou­tras pessoas chegaram?

— Acho que Miss Chevenix-Gore foi a primeira, se­guida por Mr. Forbes. Depois, o coronel Bury e Lady Che­venix-Gore entraram juntos, com Mr. Burrows logo atrás. Acho que foi nesta ordem, mas não posso ter certeza porque eles chegaram quase ao mesmo tempo.

— Convocados pelo som do primeiro gongo, não?

— Sim. Todos se apressavam quando ouviam o gongo, pois Sir Gervase fazia questão absoluta de pontualidade ao jantar.

— A que horas ele costumava descer?

— Quase sempre ele já estava na sala de visitas an­tes do primeiro gongo.

— A senhorita se surpreendeu ao não encontrá-lo aqui hoje à noite?

— Imensamente.

— Ah, consegui! — gritou Poirot.

Miss Lingard e o major Riddle o olharam espantados, enquanto ele continuava:

— Lembrei-me do que queria perguntar a Miss Lin­gard. Hoje à noite quando todos nos dirigíamos ao escri­tório, atrás de Snell, a senhorita abaixou-se e apanhou al­guma coisa.

— Eu? — Miss Lingard parecia extremamente sur­presa.

— Sim, logo que dobramos e entramos no pequeno corredor que leva ao escritório. Algo que me pareceu pequeno e brilhante.

— É incrível, mas não me lembro... Ah, espere um momento... Sim, agora me lembro. É que o peguei quase sem pensar. Deixe-me ver... deve estar aqui.

Ela abriu a bolsa e despejou o conteúdo sobre a mesa.

Poirot e o major Riddle examinaram a coleção com interesse. Havia dois lenços, uma caixinha de pó-de-arroz compacto, um chaveiro, um estojo de óculos e um outro objeto sobre o qual Poirot precipitou-se avidamente.

— Deus do céu! Uma bala! — gritou o major Riddle.

O objeto tinha de fato a forma de uma bala, mas era na verdade uma pequena lapiseira.

— Foi o que apanhei no chão — disse Miss Lingard. — Tinha me esquecido por completo.

— A senhorita sabe de quem é esta lapiseira, Miss Lingard?

— Sei. É do coronel Bury. Ele a mandou fazer de uma bala que o feriu na Guerra dos Boers.

— A senhorita sabe quando ele a perdeu?

— Bem, ele a tinha consigo hoje à tarde quando eles estavam jogando bridge, porque quando cheguei para o chá reparei que ele tomava nota dos pontos com ela.

— Quem estava jogando bridge?

— O coronel Bury, Lady Chevenix-Gore, Mr. Trent e Miss Cardwell.

— Se a senhorita não se incomoda nós guardaremos a lapiseira e a devolveremos nós mesmos ao coronel Bury — disse Poirot amavelmente.

— Sim, será um favor. Sou muito distraída e poderia me esquecer de devolvê-la.

— Neste caso a senhorita poderia fazer o favor de pedir ao coronel Bury que viesse aqui?

— Pois não. Vou procurá-lo imediatamente.

Miss Lingard saiu apressada. Poirot levantou-se e co­meçou a andar pela sala, sem rumo certo.

— Vamos ver se podemos reconstituir o que se pas­sou durante a tarde — começou ele. — É tudo muito interessante. Às duas e meia Sir Gervase examina algu­mas contas com o capitão Lake.   Ele está ligeiramente preocupado. Às três, troca idéias com Miss Lingard sobre o livro da família. Parece extremamente agoniado. Miss Lingard supõe que seu aborrecimento tenha alguma coisa a ver com Hugo Trent, por causa de uma observação ca­sual que ele deixar escapar. Na hora do chá seu compor­tamento é normal. Depois do chá, Godfrey Burrows acha que ele está satisfeito consigo mesmo. Às cinco para as oito ele desce, entra no escritório, rabisca DESCULPEM num pedaço de papel e dá um tiro na cabeça. Riddle disse devagar:

— Vejo onde você quer chegar. É incongruente.

— Uma alteração de estado de espírito muito estra­nha parece se passar com Sir Gervase. Ele está preocu­pado, ele está seriamente aflito, ele tem um comporta­mento normal, ele está alegre. Há algo de muito curioso nisto tudo. E além do mais ele diz outra coisa estranha. Tarde demais. Diz que eu chegaria aqui tarde demais. Bem, não deixa de ser verdade. Eu cheguei aqui tarde demais... para vê-lo vivo.

— Compreendo. Você acha que...

— O que eu acho na certa é que nunca descobrirei por que Sir Gervase me mandou chamar.

Poirot continuava caminhando pela sala. Ele ajei­tou as posições de dois ou três objetos sobre a lareira; examinou uma mesinha para jogo que se encontrava en­costada de encontro a uma parede, tirando de uma gaveta as folhas de apontamento para bridge. A seguir di­rigiu-se a outra mesa e examinou a cesta que se encon­trava sob ela, mas lá encontrou apenas um saco de pa­pel. Poirot o pegou, cheirou-o, murmurou “laranjas” e se pôs a alisá-lo, lendo o nome impresso — “Carpenter and Sons, Frutieres, Hamborough St. Mary”.

Poirot estava dobrando o saco de papel cuidadosa­mente quando o coronel Bury entrou na sala.

 

O coronel deixou-se cair a uma cadeira, sacudiu a cabeça, suspirou e disse:

— É horrível, Riddle. Lady Chevenix-Gore vem mostrando uma coragem a toda prova. É uma mulher extra­ordinária.

Sentando-se outra vez em sua cadeira Poirot perguntou:

— O senhor conhece Lady Chevenix-Gore há muitos anos, não?

— Sim, estive em seu baile de debutante. Lembro-me que tinha botões de rosa nos cabelos e um vestido bran­co, esvoaçante. Não havia ninguém que lhe chegasse per­to no salão!

Sua voz vinha cheia de entusiasmo. Poirot estendeu-lhe a lapiseira.

— Este objeto lhe pertence?

— Hem? Ah, sim. Eu a estava usando hoje à tarde enquanto jogávamos bridge. Sabe que nunca joguei tão bem quanto hoje?

— O senhor estava jogando bridge antes do lanche, não? Qual era o estado de espírito de Sir Gervase quando veio tomar seu chá?

— O de sempre. Nunca me poderia passar pela ca­beça que ele estivesse pensando em se suicidar. Mas pen­sando bem, talvez estivesse um pouco mais excitado do que o normal.

— Qual foi a última vez que o senhor o viu?

— Eu? Naquela hora, no chá. Nunca mais vi o po­bre coitado vivo.

— O senhor não teria ido ao escritório depois do lanche?

— Não, nunca mais o vi, estou lhe dizendo.

— A que horas o senhor desceu para o jantar?

— Quando ouvi o primeiro gongo.

— O senhor e Lady Chevenix-Gore desceram juntos?

— Não... nós, nós nos encontramos no hall. Acho que ela tinha ido à sala de jantar para ver o arranjo das flores... algo assim.

O major Riddle interrompeu:

— Espero que o senhor não se aborreça, coronel Bu­ry, se eu lhe fizer uma pergunta pessoal. Houve alguma espécie de desentendimento entre o senhor e Sir Gervase a propósito da Synthetic Paragon Rubber Co.?

O coronel Bury fez-se subitamente muito vermelho e gaguejou um pouco:

— N... não, de jeito algum. Mas é preciso se levar em consideração que o velho Gervase era uma criatura difícil. Esperava que tudo que tocava se transformasse em ouro. Parecia não compreender que há uma crise de caráter mundial. Todas as ações tinham que sofrer um pouco.

— Então quer dizer que havia um certo desentendi­mento entre os senhores?

— Não era desentendimento. Apenas incompreensão de Gervase.

— Ele pôs a culpa de alguns prejuízos que tivera sobre sua pessoa?

— Gervase era meio doido. Vanda sabia disto, mas sabia também como lidar com ele. Eu preferi deixar o caso em suas mãos.

Poirot tossiu e o major Riddle mudou de assunto, depois de olhá-lo de esguelha.

— Sei que o senhor é um velho amigo da família, coronel Bury.  Será que o senhor sabia como Sir Gervase tinha feito seu testamento?

— Bem, acho que a maior parte da herança seria de Ruth. Foi o que deduzi do que Gervase deixava escapar.

— O senhor não acha que isto era um pouco injus­to com Hugo Trent?

— Gervase não gostava de Hugo. Nunca simpatizou com ele.

— Mas ele tinha uma noção muito grande de famí­lia. Afinal, Miss Chevenix-Gore não passava de sua filha adotiva.

O coronel Bury hesitou, mas, depois de limpar a gar­ganta uma ou duas vezes, acabou por dizer:

— Olhem, acho que devo lhes contar uma coisa, mas peço-lhes sigilo absoluto a respeito.

— Claro... claro...

— Ruth é ilegítima, mas é uma Chevenix-Gore.   É filha do irmão de Gervase, Anthony, que morreu na guer­ra. Parece que ele teve um caso com uma datilógrafa e depois de sua morte esta escreveu a Vanda. Vanda foi vê-la, a moça estava grávida. Vanda discutiu o assunto com Gervase pois tinha acabado de ser informada de que não poderia ter mais filhos. O resultado foi que quando a criança nasceu eles a adotaram, com a mãe renuncian­do a todos os direitos. Eles criaram Ruth como sua filha verdadeira e para todos os propósitos ela é sua filha verdadeira e basta vê-la para se compreender que ela é uma autêntica Chevenix-Gore.

— Ah — fez Poirot. — Isto torna a atitude de Sir Gervase muito mais fácil de compreender. Mas se ele não gostava de Mr. Hugo Trent por que diabo queria tan­to que ele casasse com Miss Ruth?

— Para regularizar a situação da família. Era uma coisa que combinava bem com seu temperamento.

— Embora ele não gostasse do rapaz, nem confiasse nele?

O coronel Bury deu um pequeno bufo.

— O senhor não pode compreender o velho Gervase. Ele não olhava as pessoas como seres humanos. Arranjava casamentos como se os personagens fossem reis e rainhas. Ele considerava apropriado que Ruth e Hugo passassem a se assinar Chevenix-Gore. O que Hugo e Ruth pensavam do assunto não lhe interessava.

— E mademoiselle Ruth estava por acaso disposta a satisfazer seus planos?

O coronel Bury riu.

— Ela? Nunca, ela é uma fera.

— O senhor sabia que pouco antes de morrer Sir Gervase estava preparando um testamento com a condi­ção de que Miss Chevenix-Gore só entraria na posse da herança se se casasse com Mr. Trent?

O coronel deixou escapar um assovio.

— Então ele sabia de alguma coisa entre Ruth e Burrows...

Assim que falou o coronel se arrependeu, mas era tarde. Poirot lançou-se ao assunto:

— Então havia alguma coisa entre mademoiselle Ruth e o jovem Mr. Burrows?

— Provavelmente nada de sério... nada de firme. O major Riddle tossiu e disse:

— Acho melhor o senhor nos contar tudo o que sa­be, coronel Bury. Pode ser que esteja aí a explicação para o estado de espírito de Sir Gervase.

— Acho melhor mesmo — concordou o coronel, em­bora um pouco hesitante. — Bem, o fato é que o jovem Burrows é bem-parecido... ou pelo menos as mulheres parecem pensar assim. Ultimamente ele e Ruth anda­vam muito juntos e Gervase não gostava... não gostava nada, mas não queria despedir Burrows com medo de piorar as coisas. Ele conhecia Ruth muito bem, sabia que ela não aceitaria imposições. Então acho que teve essa idéia. Ruth não é o tipo de moça que sacrificaria tudo por amor. Ela gosta de conforto e gosta de dinheiro.

— E o que o senhor acha de Mr. Burrows?

O coronel respondeu que, em sua opinião, Burrows não era flor que se cheirasse, expressão idiomática que Poirot não entendeu bem, mas que trouxe um sorriso aos lábios do major Riddle.

Houve mais algumas perguntas e respostas. Final­mente o coronel Bury se retirou.

Riddle olhou de soslaio para Poirot, que estava sen­tado e parecia absorto em seus pensamentos.

— O que você acha de tudo isto, Poirot?

O homenzinho ergueu as mãos.

— Acho que começo a ver um contorno, um propó­sito definido.

Riddle disse:

— É um caso difícil.

— Sim, é um caso difícil. Mas cada vez mais uma frase começa a fazer sentido, embora talvez dita por acaso.

— Que frase?

— Aquela frase que Hugo Trent disse rindo: “Sem­pre há o assassinato...”

Riddle disse vivamente:

— Sim, sei que você tem esta desconfiança desde o início.

— Mas você não concorda, meu amigo, que quanto mais aprendemos sobre o caso mais a hipótese de suicí­dio se mostra inverossímil? Mas para assassinato o que não falta são motivos!

— Mesmo assim não podemos ignorar os fatos — a porta trancada, a chave no bolso de Sir Gervase.  Sim, eu sei que sempre se pode dar um jeito. Há toda sorte de truques, de molas, de alfinetes entortados. Sim, tecnicamente suponho que seria possível... Mas estes truques funcionam mesmo? É o que eu sempre duvido muito.

— Mesmo assim vamos examinar o caso sob o ponto de vista de assassinato, não de suicídio.

— Concordo. Como você está aqui aposto que no fim vai ser crime mesmo!

Poirot sorriu:

— Acho que esta observação não é muito elogiosa.

Mas depois ficou sério outra vez:

— Sim, vamos examinar o caso do ponto de vista de assassinato. Quando o tiro foi disparado havia quatro pes­soas no hall: Miss Lingard, Hugo Trent, Miss Cardwell e Snell. Onde estariam os outros? — perguntou Poirot, conti­nuando:

— Burrows estava na biblioteca, de acordo com o que ele mesmo diz, embora ninguém possa corroborar esta afirmativa. Os outros presumivelmente estavam em seus quartos, mas quem garante que eles realmente estariam lá? Todos parecem ter descido separadamente para o jantar. Mesmo Lady Chevenix-Gore e Bury só se encon­traram no hall. Lady Chevenix-Gore vinha saindo da sala de jantar. De onde saiu Bury? Não seria possível que ele estivesse vindo não do andar de cima mas do escri­tório? Afinal de contas, como ele perdeu aquele lápis?

— Sim, a lapiseira nos oferece conjeturas muito in­teressantes. Ele não se perturbou muito quando eu a mostrei, mas é possível que ele não saiba onde eu a achei e nem soubesse mesmo que a tivesse perdido. Vejamos, quem mais estava jogando bridge quando o coronel usava a lapiseira? Hugo Trent e Miss Cardwell, mas eles não podem ser incluídos entre os suspeitos, pois têm um álibi corroborado pelo mordomo e por Miss Lingard.  A quarta pessoa na mesa de bridge era Lady Chevenix-Gore.

— Você não pode suspeitar dela a sério.

— Por que não, meu amigo? Posso suspeitar de todo mundo. Suponha que, apesar de toda sua aparente dedi­cação a Sir Gervase, na verdade ela amasse mesmo o fiel Bury?

— Hum — refletiu Riddle. — De certa forma tem havido um ménage à trois há anos.

— E não se esqueça do desentendimento entre o coronel Bury e Sir Gervase a propósito daquela compa­nhia de borracha.

— É bem possível que Sir Gervase estivesse começan­do a se fazer realmente difícil — concordou Riddle. — Não conhecemos os pormenores do caso. Mas o desenten­dimento pode ter sido a causa daquela carta chamando-o aqui. Digamos que Sir Gervase suspeitasse que Bury vi­nha roubando-o mas não quisesse publicidade sobre o caso, com receio que sua mulher também estivesse envol­vida na trama. Sim, é possível, e aí tanto o coronel quan­to Lady Chevenix-Gore teriam um motiva Não deixa mes­mo de ser estranho que Lady Chevenix-Gore tivesse re­cebido a morte de seu marido com tanta calma. Este negócio de fantasmas pode ser fingimento.

— Mas há ainda outras complicações — continuou Poirot — e estou me referindo a Miss Chevenix-Gore e Burrows. Eles tinham interesse em que Sir Gervase não assinasse o novo testamento, pois ela seria a única her­deira, com a condição de que seu marido tomasse o nome da família...

— Sim, e o relato de Burrows sobre o estado de es­pírito de Sir Gervase hoje à noite é um pouco estranho. Diz ele que Sir Gervase estava de ótimo humor, satisfeito consigo mesmo, mas esta descrição não combina com ne­nhuma das outras que ouvimos.

— E ainda há Mr. Forbes. Parece muito correto, mui­to empertigado, de um escritório de advocacia muito tra­dicional. Mas mesmo os mais respeitáveis advogados já fraudaram os clientes ao se acharem eles mesmos em apertos financeiros.

— Acho que você está começando a exagerar, Poirot.

— Você acha que o que eu digo lembra o enredo de um filme? Mas a vida real muitas vezes parece-se com o que vemos nos cinemas, meu caro major Riddle.

— E tem sido mesmo, aqui neste condado — con­cordou o delegado. — Não acha melhor acabarmos de interrogar os outros? Está ficando tarde, ainda não vi­mos Ruth Chevenix-Gore e ela é provavelmente a mais importante de todos.

— Concordo. Temos também que falar com Miss Cardwell. Aliás acho melhor interrogá-la primeiro, pois não deverá tomar muito tempo, e depois então dedicar­mos toda a nossa atenção a Miss Chevenix-Gore. — Boa idéia.

 

Ao chegar Poirot tinha olhado Susan Cardwell ape­nas de relance, mas agora estudou-a mais demoradamente. A moça não era propriamente bonita, mas tinha um rosto inteligente e uma graça que faria inveja a muitas outras jovens. Seu cabelo era magnífico e a pintura de seu rosto muito bem feita. Seus olhos pareciam atentos.

Depois de algumas indagações preliminares o major Riddle perguntou:

— A senhorita é uma amiga chegada da família?

— Não, mal os conheço. Foi Hugo quem levou Sir Gervase a me convidar para vir aqui.

— A senhorita é, portanto, uma amiga de Hugo Trent?

— De certa forma sim. Mas sou mais do que isto. Sou sua namorada — Susan Cardwell sorriu ao dizer as últimas palavras.

— A senhorita o conhece há muito tempo?

— Não. Pouco mais de um mês — respondeu ela, acrescentando depois de uma pausa:

— Vamos ficar noivos.

— E ele a trouxe aqui para anunciar o noivado à família?

— Não, nada disto. Estamos mantendo tudo em se­gredo. Eu só vim dar uma espiada, pois Hugo me disse que era uma casa de loucos. Achei melhor vir ver com meus próprios olhos. Hugo é muito bom, mas não tem a menor malícia.  Nossa posição é difícil porque nem Hugo nem eu temos dinheiro e o velho Sir Gervase, que era a maior esperança de Hugo, tinha decidido que queria vê-lo casado com Ruth. Hugo não sabe impor sua von­tade e eu temi que ele concordasse com o casamento, es­perando depois ver-se livre através de um divórcio.

— A idéia então não a atraía muito, mademoiselle? — perguntou Poirot amavelmente.

— Nem um pouco. Temi que Ruth tivesse idéias estranhas e se recusasse a um divórcio depois do casamento. Bati meu pé. Nada de igreja, a não ser que eu própria estivesse lá toda nervosa e de branco.

— Então a senhorita veio estudar a situação pessoalmente?

— Vim.

— Eh bien! — disse Poirot.

— Bem, descobri que Hugo tinha razão. Com exceção de Ruth, a família é doida varrida. Ruth na verdade é uma boa moça. Ela tem seu próprio namorado e mostrava tão pouco entusiasmo pelo tal casamento quanto eu mesma.

— A senhorita está se referindo a Mr. Burrows.

— Burrows? Claro que não. Ruth jamais gostaria de um convencido como aquele.

— Quem é então seu namorado?

Susan Cardwell fez uma pausa, acendeu um cigarro e finalmente respondeu:

— É melhor o senhor perguntar a ela mesma. Afi­nal, não é da minha conta.

O major Riddle perguntou:

— Qual foi a última vez que a senhorita viu Sir Gervase?                               

— Na hora do lanche.

— Seu comportamento lhe pareceu estranho?

A jovem sacudiu os ombros.

— Não mais do que o habitual.

— O que a senhorita fez depois do lanche?

— Joguei bilhar com Hugo.

— Não tornou a ver Sir Gervase?

— Não.

— Mas ouviu o tiro?

— Bem, foi estranho, o senhor compreende. Eu pen­sei que o primeiro gongo tivesse soado, acabei de me ves­tir as pressas, saí correndo do quarto, ouvi o que pensei ser o segundo gongo e desci as escadas praticamente aos pulos. Na minha primeira noite aqui eu tinha me atra­sado um minuto para o jantar e Hugo me disse que as­sim não teríamos a menor chance com o velho. Por isto, desci correndo. Hugo ia logo adiante e então ouvimos um estalo. Hugo perguntou se era uma rolha de cham­panha e Snell respondeu que não. De qualquer forma não me pareceu que o barulho viesse da sala de jantar Miss Lingard apareceu e disse que achava que o barulho tinha sido no segundo andar, mas todos acabamos che­gando à conclusão de que deveria ser a descarga de um automóvel. Finalmente entramos na sala de visitas e esquecemos o assunto.

— Não lhe ocorreu nem por um momento que Sir Gervase pudesse ter se suicidado? — quis saber Poirot.

— Eu lhe pergunto se eu deveria ter pensado uma coisa destas. O velho parecia muito satisfeito com sua própria importância. Nunca me passou pela cabeça que ele pudesse se suicidar. Mesmo agora não consigo atinar com um motivo. Acho que é porque ele era doido mesmo.

— De qualquer forma, foi um acontecimento muito triste.

— Muito, especialmente para mim e para Hugo. Pelo que sei, ele não deixou nada para Hugo, ou pratica­mente nada.

— Quem lhe disse isto?

— Hugo soube com o velho Forbes.

O major Riddle fez uma pequena pausa.

— Bem, Miss Cardwell, acho que é tudo. A senho­rita acha que Miss Chevenix-Gore está em condições de conversar conosco?                                

— Acho que sim. Vou chamá-la.

Poirot interrompeu-a antes que ela deixasse a sala.

— Um momento, mademoiselle. A senhorita viu isto antes?

Ele mostrava-lhe a lapiseira feita com uma bala.

— Vi sim, vi hoje na mesa de bridge. Creio que é do coronel Bury.

— Sabe se ele a guardou consigo quando o jogo acabou?

— Não tenho a menor idéia.

— Obrigado, mademoiselle. É tudo.

— Então vou chamar Ruth.

Ruth Chevenix-Gore entrou na sala com o porte de uma rainha. Sua cabeça estava erguida e em seu rosto não havia traço de abatimento. Mas seus olhos eram atentos, como os de Susan Cardwell. Ela usava ainda a mesma roupa com que Poirot a vira ao chegar — uma túnica em tom damasco-claro. No seu ombro estava pre­sa uma rosa de um tom bem forte. Uma hora antes a flor se mostrara fresca e viçosa, mas agora começava a murchar.

— E então? — perguntou Ruth.

— Sinto imensamente ter que incomodá-la — come­çou o major Riddle.

Ela interrompeu-o.

— É claro que o senhor tem que me incomodar. O senhor precisa incomodar todo mundo, é de seu dever. Mas posso poupar-lhe algum tempo. Não tenho a menor idéia do que terá levado o velho ao suicídio. Tudo o que posso lhe dizer é que não combina nada com o seu tem­peramento.

— A senhorita notou algo de estranho em seu com­portamento hoje? Ele estava deprimido ou por demais excitado? Havia alguma coisa de anormal com ele?

— Acho que não. Se havia não reparei.

— Qual foi a última vez que a senhorita o viu?

— Na hora do chá.

Poirot falou:

— A senhorita não foi ao escritório... mais tarde?

— Não. A última vez que o vi foi nesta sala. Senta­do ali.

Ela apontou uma cadeira.

— Compreendo. A senhorita já viu esta lapiseira antes?

— É do coronel Bury.

— A senhorita lembra-se de tê-la visto recentemente?

— Não saberia lhe dizer com certeza.

— A senhorita sabe se havia algum... algum de­sentendimento entre Sir Gervase e o coronel Bury?

— A propósito da Paragon Rubber Co.?

— Sim.

— Creio que havia. Pelo menos sei que o velho es­tava furioso com ele.

— Será que ele achava que estava sendo vítima de uma fraude?

Ruth deu de ombros.

— Ele não entendia nada de finanças.

Poirot disse:

— Posso fazer-lhe uma pergunta, senhorita? Uma pergunta talvez impertinente?

— Pois não.

— A senhorita sente... a senhorita está triste com a morte de seu pai?

Ela olhou-o fixamente.

— É claro que estou triste. Só não sou de choramin­gar pelos cantos. Mas sentirei saudade dele... Eu gosta­va muito do velho. É assim que o chamávamos, Hugo e eu, sempre. O Velho ou então o Velho Homem... talvez porque nos desse a idéia de um ser primitivo, meio antropóide, meio patriarca.  Parece falta de respeito, mas na verdade havia muita afeição por trás de nossa ma­neira de falar. É claro que ele foi o velho mais teimoso e asneirento que jamais existiu.

— Muito interessante, senhorita.

— O velho tinha o cérebro de um piolho. Não me leve a mal, mas é a pura verdade. Completamente inca­paz de qualquer trabalho intelectual. Mas vejam bem, era um homem de grande personalidade e coragem, um desses tipos que vão ao Pólo ou entram em duelos. Sem­pre achei que ele era fanfarrão de propósito, porque sabia que sua inteligência não era das melhores. Qual­quer um podia enganá-lo.

Poirot tirou a carta do bolso.                                 :

— Leia isto, mademoiselle.

Ela leu e devolveu a carta a ele.

— Então foi por isto que o senhor veio!

— Esta carta lhe sugere alguma coisa?

Ela balançou a cabeça.

— Não. Mas é bem possível que seja verdade. Qual­quer um seria capaz de roubar o pobre coitado. John diz que o procurador que o antecedeu no emprego enganava o velho a torto e a direito. Mas o senhor compreende, o velho dava-se tantos ares que jamais se rebaixaria a exa­minar detalhes. Ele era a alegria dos vigaristas.

— A senhorita pinta um quadro diferente dos de­mais.

— Bem... o velho escondia-se por trás de uma boa camuflagem. Vanda, minha mãe, dava-lhe todo o apoio. Ele sentia-se feliz pavoneando-se por aí, pretendendo ser o Todo-Poderoso. É por isto que, de uma certa maneira, estou contente com sua morte. Foi melhor para ele.

— Não consigo entendê-la, mademoiselle.

Ruth disse, meditativamente.

— Ele estava piorando. Mais dia menos dia iria aca­bar internado... As pessoas já começavam a falar aber­tamente.

— A senhorita sabia que ele pretendia fazer um novo testamento pelo qual a senhorita só entraria na posse da herança se se casasse com Mr. Trent?

Ela deixou escapar um grito:

— Que absurdo! Seja como for, tenho certeza de que tal condição poderia ser anulada nos tribunais. Não se pode obrigar ninguém a se casar com esta ou aquela pessoa.

— Mas se ele chegasse mesmo a assinar o testamen­to, a senhorita teria obedecido sua vontade?

— Eu... eu...

Ruth interrompeu-se. Por dois ou três minutos ela permaneceu sentada com ar irresoluto, olhando a ponta de seus próprios pés. Um pedacinho de lama despren­deu-se do salto de um dos sapatos e caiu no tapete.

De repente ela levantou-se e disse:

— Esperem.

Ela saiu quase correndo e voltou em seguida, com o capitão Lake a seu lado.

— Tínhamos que contar a verdade mais cedo ou mais tarde — anunciou. — É melhor dizermos tudo ago­ra. John e eu nos casamos em Londres, há três semanas.

 

 Dos dois, o capitão Lake era quem parecia mais embaraçado.

— É uma grande surpresa, Miss Chevenix-Gore... ou melhor, Mrs. Lake — disse o major Riddle. — Nin­guém sabia do casamento?

— Não. Nós mantivemos segredo, embora John não gostasse muito disso.

Lake disse, gaguejando um pouco:

— Eu... eu sei que foi um procedimento estranho. Sei que deveria ter ido direto a Sir Gervase...

Ruth interrompeu:

— E ter-lhe dito que queria casar com sua filha, com o que ele o poria fora a pontapés, criando um es­cândalo dentro de casa e provavelmente me deserdando? Grande consolo seria saber que tínhamos agido direito. Acredite-me, foi o melhor caminho. Se uma coisa está feita, está feita. Ainda haveria uma discussão, mas ele acabaria se dando por vencido.

Mesmo assim Lake não parecia muito convencido. Poirot perguntou:

— Quando a senhorita pretendia dar a notícia a Sir Gervase?

Ruth respondeu:

— Eu estava preparando o terreno. Ele tinha andado desconfiado de alguma coisa entre John e eu, por isto fingi interesse em Godfrey. Assim a notícia de meu casa­mento com John para ele acabaria sendo um alívio.

— Mas a senhorita não contou a ninguém sobre o casamento?

— Bem, no fim acabei contando a Vanda. Eu queria tê-la do meu lado.

— E ela ficou de seu lado?

— Sim. O senhor compreende, ela não gostava muito da idéia do meu casamento com Hugo... acho que porque éramos parentes. Ela achava que a família era tão doida que nossos filhos não poderiam ser normais. Mas era exagero de Vanda, porque eu sou apenas filha adotiva, embora acredite que meus pais sejam primos longínquos do velho.

— A senhorita tem certeza de que Sir Gervase não suspeitava de nada?

— Tenho.

Poirot interveio:

— Isto é verdade, capitão Lake? O senhor tem cer­teza que o assunto não foi mencionado em sua conversa desta tarde com Sir Gervase?

— Posso garantir-lhe que não foi.

— Porque, capitão Lake, fomos informados de que Sir Gervase estava extremamente preocupado hoje à tar­de, depois que o senhor saiu, e que uma ou duas vezes ele falou em desonra da família.

— Não tocamos no assunto — repetiu Lake, muito branco.

— Essa foi a última vez que o senhor viu Sir Ger­vase?

— Sim, já lhe disse isto.

— Onde estava o senhor as oito e oito desta noite?

— Onde estava? Em minha casa, a quase um qui­lômetro daqui.

— O senhor não veio a esta casa ou não esteve perto dela a essa hora?

— Não.

Poirot voltou-se para a moça:

— E a senhorita, onde estava quando seu pai se suicidou?

— No jardim.

— No jardim? E a senhorita ouviu o tiro?

— Sim, mas pensei que fosse alguém caçando coe­lhos, embora o barulho realmente tivesse me parecido muito perto.

— Que caminho a senhorita usou para voltar para dentro de casa?

— Eu entrei por esta porta envidraçada.

Ruth indicou com a cabeça uma porta-janela atrás dela.

— Havia alguém aqui?

— Não. Mas Hugo, Susan e Miss Lingard entraram quase a seguir, vindos do hall. Falavam de tiros, crimes e coisas assim.

— Compreendo — disse Poirot. — Sim, creio que agora compreendo.

O major Riddle disse um pouco hesitante:

— Bem... nós... muito obrigado. Creio que é tudo por enquanto.

Ruth e seu marido saíram da sala.

— Que diabo! — começou o major Riddle. — Este negócio cada vez fica mais complicado.

 

Poirot concordou. Ele apanhara o fragmento de lama que se destacara do sapato de Ruth e o observava pensa­tivamente na mão.

— É como o espelho partido na parede — respon­deu. — O espelho do morto.  Cada fato que descobrimos nos mostra um ângulo diferente do morto. É como uma imagem refletida sob os mais diversos pontos de vista. Mas muito em breve vamos ter um quadro completo...

Ele levantou-se e jogou o pedacinho de lama na cesta de papéis.

— Vou dizer-lhe uma coisa, meu amigo. A chave do mistério está no espelho. Vá ao escritório e olhe você mesmo, se você não me acredita.

O major Riddle respondeu decididamente:

— Se é assassinato você é quem tem que provar. Na minha opinião, já falei, é suicídio. Você ouviu o que a moça disse sobre um antigo procurador enganando Sir Gervase? Aposto como Lake inventou aquela história para encobrir suas próprias falcatruas. Provavelmente ele é quem estava roubando Sir Gervase, o velho desconfiou e mandou chamá-lo porque não sabia ainda a que ponto as coisas entre Lake e Ruth tinham chegado. Então, hoje à tarde Lake lhe disse que tinham se casado. A notícia foi a última gota para Sir Gervase. Agora era “tarde demais” para qualquer coisa. Ele procurou uma saída para sua vergonha. Seu cérebro, que normalmente já não funcionava muito bem, perdeu de todo a razão. Na minha opinião é o que aconteceu. O que você tem a dizer contra minha teoria?

Poirot interrompeu de súbito seu passeio pela sala.

— O que eu tenho a dizer? Isto: não tenho nada a dizer contra sua teoria, mas ela é uma teoria que não vai muito longe. Há certas coisas que ela não leva em conta.

— Como por exemplo?

— As discrepâncias no comportamento de Sir Ger­vase hoje, o achado da lapiseira do coronel Bury, o de­poimento de Miss Cardwell (que é muito importante), o que Miss Lingard disse sobre a ordem em que as pessoas chegaram para o jantar, a posição da cadeira de Sir Ger­vase quando seu corpo foi encontrado, o saco de papel que tinha laranjas e, finalmente, a pista muito impor­tante do espelho partido.

O major Riddle olhou-o fixamente.

— Você vai querer me dizer que toda esta mixórdia faz sentido?

Poirot respondeu suavemente:

— Espero fazer com que ela tenha sentido. Amanhã.

 

Na manhã seguinte Poirot acordou logo depois do nascer do sol. Tinham-lhe dado um quarto na parte leste da casa.

Levantando-se da cama ele abriu as cortinas e certificou-se de que a manhã era bonita e o sol já havia nascido.

Assim satisfeito, começou a vestir-se com a meticulosidade habitual, acabando por envergar um grosso so­bretudo e enrolar um cachecol no pescoço.

Em seguida, esgueirou-se pé ante pé de seu quarto, dirigindo-se à sala de visitas no andar térreo. Abriu a porta-janela sem ruído e saiu para o jardim.

O sol ainda mal aparecia e havia uma névoa no ar, a névoa que em geral precede um dia bonito. Hercule Poirot seguiu pela rua calçada ao redor da casa até che­gar ao escritório de Sir Gervase, onde parou e examinou a cena.

Logo fora da porta-janela havia uma faixa de grama que corria paralelamente à casa e, em frente a ela, um largo canteiro com plantas e flores. As margaridas ainda estavam bonitas, apesar do começo do outono. Em frente ao canteiro estava o caminho lajeado em que Poirot se encontrara. Um caminho de grama atravessava o can­teiro, correndo do passeio onde se achava Poirot à faixa gramada logo contígua à casa. Poirot examinou-o com cuidado mas acabou por balançar a cabeça. A seguir, concentrou-se no canteiro dos dois lados do caminho de grama.

Sua cabeça balançou vagarosamente. No canteiro à direita havia pegadas claramente visíveis na terra macia

Poirot olhava as pegadas, franzindo a testa, quando ouviu um ruído e ergueu a cabeça vivamente.

Alguém abrira uma janela logo acima dele. Poirot viu surgirem uns cabelos ruivos e, emoldurados por eles o rosto inteligente de Susan Cardwell.

— Que diabo o senhor está fazendo aí tão cedo monsieur Poirot? Alguma investigação?

Poirot curvou-se com impecável correção.

— Bom dia, mademoiselle. Sim, a senhorita tem ra­zão. A senhorita vê agora um detetive... um grande detetive, melhor dizendo... no ato de detetar.

Susan curvou a cabeça, como impressionada pela re­tumbante afirmação.

— Prefiro lembrar disto em minhas memórias — observou. — Devo descer e ajudá-lo?

— Ficaria encantado.

— Quando ouvi barulho aí embaixo pensei que fosse um ladrão. Como é que o senhor saiu para o jardim?

— Pela sala de visitas,

— Estarei aí dentro de um minuto.

Ela foi extraordinariamente pontual. Poirot parecia conservar-se na mesma posição em que ela o deixara.

— A senhorita costuma acordar cedo assim?

— Não consegui dormir direito. Estava começando a sentir aquele desespero que acomete a gente quando dão as cinco horas e ainda não pudemos dormir.

— Não é tão cedo assim.

— Se não é parece. Mas então, meu superdetetive, o que devemos investigar?

— É só observar, mademoiselle. Pegadas.

— E daí?

— Quatro pegadas — continuou Poirot. — Preste atenção, vou mostrar-lhe direito. Duas indo para o escri­tório, duas saindo dele.

— De quem são? Do jardineiro?

— Mademoiselle, mademoiselle. Estas pegadas fo­ram deixadas pelos sapatos delicados de uma mulher. Pise aqui ao lado na terra para convencer-se.

Susan hesitou um pouco mas finalmente pisou com grande cautela no lugar indicado por Poirot. Ela estava usando chinelos marrons de salto alto.

— A senhorita vê, quase do mesmo tamanho. Mas apenas quase. Estas outras pegadas foram feitas por pés mais compridos que os seus. Talvez os de Miss Chevenix-Gore, ou de Miss Lingard, ou talvez mesmo de Lady Che­venix-Gore.

— De Lady Chevenix-Gore não.  Ela tem pés bem pequenos. Não sei como, mas antigamente todas as mu­lheres pareciam ter pés pequenos. E Miss Lingard usa sapatos de salto baixo.

— Então estas pegadas são de Miss Chevenix-Gore. Ah, sim... Agora me lembro. Ela me disse que esteve no jardim ontem à noite.

Poirot e Susan voltaram à casa pelo caminho que ti­nham vindo.

— Ainda estamos investigando? — perguntou Susan.

— Sim. Agora vamos ao escritório de Sir Gervase.

Poirot foi na frente, com Susan Cardwell a segui-lo.

A porta arrombada ainda pendia das dobradiças. O aposento conservava-se da mesma forma em que fora deixado na véspera. Poirot abriu as cortinas, deixando entrar a luz do dia.

Ele permaneceu calado um momento ou dois; de­pois perguntou à moça:

— Presumo que a senhorita não tenha tido grande experiência com ladrões?

Susan sacudiu a cabeça, desalentada:

— Temo que não, monsieur Poirot.

— O delegado também parece ter poucos ladrões entre seus amigos. Seus contatos com o mundo do cri­me se desenvolvem numa base estritamente oficial.  Mas comigo é diferente. Tive certa vez uma conversa muito agradável com um ladrão, que me contou algo extrema­mente interessante a respeito dessas portas envidraça­das... um truque que pode ser feito com o trinco se este não se acha emperrado.

Enquanto falava, Poirot girou a maçaneta. A lingüeta se ergueu, deixando o buraco no chão, e Poirot pô­de puxar as duas folhas da porta em sua direção. Ten­do-as aberto, fechou-as novamente... nas sem girar a maçaneta, de modo que a lingüeta permaneceu no ar. Depois de um instante Poirot deu uma pancada seca a meia altura da porta. O impacto fez a lingüeta cair no encaixe. A maçaneta girou por si mesma.

— Compreende onde eu quero chegar, mademoiselle?

— Creio que sim.

Susan tinha empalidecido.

— A porta está fechada. É impossível entrar no es­critório, mas é possível sair dele, fechar a porta por fora e vibrar-lhe um golpe que faz a lingüeta cair no encaixe. A porta está então trancada e qualquer pessoa acreditaria que foi trancada pelo lado de dentro.

— E foi isto o que aconteceu ontem à noite? — per­guntou Susan, com voz trêmula.

— Acho que sim, mademoiselle.

Susan gritou:

— Não acredito. Não é possível.

Poirot não respondeu. Ele dirigiu-se à lareira e vi­rou-se de novo para a moça:

— Preciso da senhorita como testemunha. Já tenho uma testemunha — Mr. Trent. Ele me viu encontrar este pedacinho de vidro ontem à noite e conversamos a respeito. Deixei o vidro no mesmo lugar, para a polícia apanhá-lo. Cheguei mesmo a dizer ao delegado que o espelho partido era uma pista importante, mas ele não me deu ouvidos. Agora quero que a senhorita testemunhe que estou colocando este pedacinho de vidro em um en­velope. E eu escrevo no envelope... assim... e depois o colo. A senhorita está observando tudo?

— Sim... mas não sei o que o senhor quer dizer.

Poirot caminhou até a outra extremidade do escri­tório. De lá ele olhou na direção da escrivaninha e do espelho partido por trás dela.

— O que eu quero dizer, mademoiselle, é que se a senhorita estivesse aqui de pé ontem à noite, olhando na direção daquele espelho, a senhorita poderia ter visto nele um crime sendo cometido...

 

Talvez pela primeira vez na vida, Ruth Chevenix-Gore (agora Ruth Lake) desceu na hora para o café da manhã. Hercule Poirot estava no hall e conduziu-a a um canto antes que ela entrasse na sala de jantar.

— Tenho uma pergunta a lhe fazer, madame.

— Pois não.

— A senhora foi ao jardim ontem à noite. A senho­ra pisou no canteiro de flores fora do escritório de Sir Gervase?

Ruth olhou-o fixamente.

— Sim, duas vezes.

— Ah, duas vezes. Como duas vezes?

— Da primeira vez eu estava apanhando umas mar­garidas. Isto foi mais ou menos às sete horas.

— Não lhe parece uma hora estranha para apanhar margaridas?

— Realmente era, mas depois do chá Vanda disse-me que as flores que eu apanhara de manhã para a mesa de jantar não estavam bonitas. Por isto fui apanhar outras.

— Quer dizer que sua mãe pediu-lhe para apanhar flores mais frescas?

— Sim. Eu fui apanhá-las pouco antes das sete. Eu as tirei daquele canteiro justamente porque ele fica num lugar escondido e assim não estragaria o jardim.

— Está certo. Mas e a segunda vez?

— Foi pouco antes do jantar. Eu tinha derramado um pouco de creme no meu vestido, aqui perto do om­bro. Eu não queria trocar de roupa e nenhuma de mi­nhas flores artificiais combinava com o que eu estava usando. Mas lembrei-me de ter visto uma rosa, que ainda florescia apesar do outono, enquanto eu colhia as margaridas, então voltei ao canteiro para colhê-la e prendê-la em meu ombro.

Poirot sacudiu a cabeça vagarosamente.

— Sim, lembro-me que a senhora usava uma rosa ontem à noite. A que horas a senhora a colheu?

— Não me lembro exatamente.

— Mas é essencial que a senhora se lembre. Faça um esforço.

Ruth franziu a testa, deu uma rápida mirada em Poirot e desviou o olhar.

— Não posso lhe dizer exatamente. Deve ter sido... ah, sim... deve ter sido mais ou menos uns cinco mi­nutos depois das oito. Foi quando eu estava de volta ao redor da casa que ouvi o gongo e em seguida aquele estranho barulho.  Eu estava com pressa porque pensei que o gongo fosse o primeiro e não o segundo.

— Ah, a senhora pensou isso... e a senhora não tentou abrir a porta do escritório que dava para o jar­dim enquanto a senhora estava colhendo sua rosa?

— Para dizer a verdade, tentei. Pensei que ela pu­desse estar aberta e o caminho de volta seria mais curto. Mas a porta estava trancada.

— Então tudo está explicado. Dou-lhe meus para­béns, madame.

Ela olhou com um ar surpreso.

— O que o senhor quer dizer?

— Que a senhora tem uma explicação para tudo, para a lama em seus sapatos, para suas pegadas no can­teiro, para suas impressões digitais do lado de fora da porta. Tudo muito conveniente.

Antes que Ruth pudesse responder, Miss Lingard havia descido as escadas quase correndo. Seu rosto es­tava afogueado e ela parecia um pouco alarmada de ver Ruth e Poirot juntos.

— Desculpem-me — falou. — Há algum problema?

Ruth respondeu furiosa:

— Acho que monsieur Poirot enlouqueceu!

E deixou-os, entrando na sala de jantar. Miss Lin­gard voltou-se para Poirot com uma expressão surpresa.

Ele sacudiu a cabeça.

— Vou explicar tudo depois do café. Gostaria que todos se reunissem às 10 horas no escritório de Sir Gervase.

Entrando na sala, Poirot repetiu seu pedido. Susan Cardwell mirou-o de relance e depois olhou Ruth.

Hugo Trent perguntou: “Por quê?” — mas calou-se ao receber uma rápida cotovelada da namorada.

Ao terminar seu café, Poirot levantou-se e caminhou em direção à porta. Lá chegando, voltou-se, tirou do bol­so um relógio grande e fora da moda, e anunciou:

— Faltam cinco para as dez. Às dez em ponto, no escritório.

Poirot olhou em redor. Um grupo de rostos olhava-o com grande interesse. Todos estavam lá, com uma única exceção, e dentro de segundos aquela exceção também entrou no escritório. Lady Chevenix-Gore chegou quase sem fazer ruído. Ela parecia pálida e cansada.

Poirot ofereceu-lhe uma cadeira e ela se sentou. Ao fazer isto, olhou o espelho partido na parede, estreme­ceu, e virou um pouco a cadeira, de modo a olhar em outra direção.

— Gervase ainda está aqui — comunicou em voz calma. — Pobre Gervase... seu espírito em breve será libertado.

Poirot pigarreou e anunciou:

— Chamei-os aqui para ouvir os fatos verdadeiros sobre o suicídio de Sir Gervase.

— Foi o destino — disse Lady Chevenix-Gore. — Gervase era forte, mas seu destino era mais.

O coronel Bury moveu-se um pouco para a frente.

— Minha pobre Vanda.

Ela. sorriu e estendeu-lhe a mão. Ele segurou-a. La­dy Chevenix-Gore disse baixinho:

— Você é tão bom, Ned.

Ruth interrompeu asperamente:

— Devemos acreditar, monsieur Poirot, que o se­nhor descobriu sem possibilidade de erro a causa do sui­cídio de meu pai?

Poirot balançou a cabeça:

— Não, madame.

— Então para que tanta encenação?

Poirot respondeu suavemente:

— Não descobri a causa do suicídio de Sir Gervase Chevenix-Gore porque Sir Gervase Chevenix-Gore não se suicidou.  Ele não se matou. Foi assassinado.

— Assassinado? — diversas vozes ecoaram a pala­vra. Rostos perplexos voltavam-se na direção de Poirot. Lady Chevenix-Gore ergueu os olhos, disse “Assassinado? Não!” e balançou a cabeça vagarosamente.

— O senhor diz assassinado? — era Hugo quem fa­lava agora. — É impossível. Não havia ninguém no es­critório quando entramos. A porta que dá para o jardim estava fechada por dentro.  A do corredor estava tran­cada, com a chave no bolso de meu tio. Ele não pode ter sido assassinado.

— Mas foi.

— E o assassino saiu pelo buraco da fechadura? Ou pela chaminé? — perguntou o coronel Bury ceticamente.

— O assassino saiu pela porta do jardim — anun­ciou Poirot. — Vou mostrar-lhes como.

Ele fez-lhes nova exibição com o trinco.

— Compreendem agora? Foi assim que o assassino saiu. Desde o começo achei impossível que Sir Gervase tivesse se suicidado. Ele tinha uma grande egomania e homens assim não se matam.

— E havia mais — continuou Poirot. — Aparente­mente, pouco antes de sua morte, Sir Gervase tinha sen­tado à escrivaninha, rabiscado a palavra DESCULPEM num pedaço de papel e então dado um tiro na cabeça. Mas antes disto, por alguma estranha razão, ele tinha mudado a posição da cadeira, girando-a de forma que ela estava agora de lado em relação à mesa. Por quê? Devia haver algum motivo. Comecei a compreender melhor quando encontrei um pequenino pedaço de vi­dro grudado à base de uma pesada estatueta de bronze.

— Então perguntei a mim mesmo — continuou Poirot: como um pedaço de vidro veio parar aqui? E a resposta me pareceu bem óbvia. O espelho tinha sido quebrado não por uma bala, mas pela estatueta. O es­pelho tinha sido quebrado deliberadamente.

— Mas por quê? Voltei à escrivaninha, olhei a ca­deira. Sim, era claro. Tudo estava errado. Nenhum suicida iria girar a cadeira, inclinar-se sobre sua borda e só então disparar um tiro na cabeça. Tudo não passava de uma encenação, pois não tinha havido suicídio.

— E então surgiu outra coisa muito impor­tante. O depoimento de Miss Cardwell. Miss Cardwell disse que desceu correndo as escadas ontem à noite por­que pensou que tinha ouvido o segundo gongo. O que quer dizer que ela antes julgava ter ouvido um primeiro.

— Agora, prestem atenção. Se Sir Gervase estivesse sentado à sua escrivaninha em posição normal, onde te­ria ido a bala? Voando em linha reta ela sairia pela por­ta, se a porta estivesse aberta, e atingiria o gongo.

— Vocês percebem a importância do depoimento de Miss Cardwell? Ninguém mais ouviu aquele primeiro gon­go, mas o seu quarto se encontra exatamente sobre este escritório e sua posição era ideal para ouvi-lo.

— Não havia portanto possibilidade alguma de sui­cídio. Um homem morto não pode levantar-se, fechar a porta, trancá-la e sentar-se novamente. Havia mais al­guém no escritório e, portanto, não se trata de suicídio e sim de assassinato. Alguém cuja presença parecia natural a Sir Gervase estava a seu lado, falando com ele. É pro­vável que Sir Gervase estivesse concentrado em alguma coisa que estivesse escrevendo. O assassino aponta o re­vólver para sua cabeça e dispara. O crime está cometi­do. É preciso disfarça-lo! O assassino coloca luvas, fecha a porta e coloca a chave no bolso de Sir Gervase. Mas suponhamos que alguém tivesse ouvido o barulho do gongo? Seria fácil compreender assim que a porta esta­va aberta, não fechada. Então a cadeira é posta em outra posição, o corpo cuidadosamente ajeitado, os dedos com­primidos firmemente no revólver, o espelho deliberada­mente despedaçado. A seguir o assassino sai pela porta-janela, vibra-lhe um golpe por fora e sai pisando não na grama, mas no canteiro, onde seria mais fácil desmanchar as pegadas com um ancinho; a seguir contorna a casa e entra na sala de visitas.

Poirot fez uma pausa e continuou:

— Há apenas uma pessoa que estava no jardim quando o tiro foi disparado. Esta mesma pessoa deixou suas pegadas no canteiro e suas impressões digitais do lado de fora da porta do jardim.

Ele moveu-se em direção a Ruth.

— E havia um motivo, não havia?  Seu pai tinha descoberto a verdade sobre seu casamento secreto. Ele estava se preparando para deserdá-la.

— É mentira — gritou Ruth numa voz cheia de desprezo.  — Não há uma palavra de verdade em sua história. É mentira do começo ao fim.

— As provas contra a senhora são muito fortes. Po­de ser que um júri acredite em sua inocência. Pode ser que não.

— Ela não precisará enfrentar um júri.

Os outros se voltaram, espantados. Miss Lingard estava de pé, com o rosto desfigurado. Ela tremia dos pés à cabeça.

— Eu o matei. Eu confesso tudo. Eu tinha meus mo­tivos e só estava esperando uma oportunidade. Monsieur Poirot está certo. Eu o segui ao escritório, já com a pis­tola, que tinha tirado antes da gaveta. Eu coloquei-me de pé a seu lado, falando sobre o livro... e disparei o tiro. Foi logo depois das oito horas.  A bala atingiu o gongo. Eu nunca imaginara que ela ia atravessar sua cabeça daquele jeito. Não havia tempo de sair e procu­rar por ela. Assim, tranquei a porta e coloquei a chave no seu bolso. Depois girei a cadeira, quebrei o espelho e, depois de escrever DESCULPEM em letra de imprensa, saí pela porta do jardim como monsieur Poirot disse. Eu pisei no canteiro, mas desmanchei minhas pegadas com um ancinho que já tinha deixado ali. Então voltei à sala de visitas, onde tinha deixado a porta que dá para o jardim aberta. Não sabia que Ruth também tinha saí­do por ali. Ela deve ter dado a volta pela frente da casa enquanto eu ia pelos fundos, pois precisava pôr o ancinho no depósito de ferramentas. Esperei na sala de visitas até que ouvi passos descendo as escadas e Snell caminhando para o gongo. Então...

Ela voltou-se para Poirot.

— O senhor não sabe o que eu fiz então?

— Sim, sei. Encontrei o saco de papel na cesta. Foi uma idéia muito engenhosa. A senhora simplesmen­te repetiu um truque que as crianças adoram: encheu o saco de ar e o estourou. Fez um barulho satisfatório. Depois a senhora atirou o saco na cesta e foi para o hall. A senhora acabara de estabelecer a hora do suicí­dio — e um álibi para si mesma. Mas havia ainda uma coisa que a preocupava — a bala que a senhora não tive­ra tempo de apanhar. Ela devia estar perto do gongo. Era indispensável porém que fosse encontrada no es­critório, perto do espelho. Só não sei quando lhe ocorreu a idéia de lançar mão da lapiseira do coronel Bury.

— Foi naquela hora mesmo — disse Miss Lingard. — Quando todos entramos na sala de visitas, vindos do hall. Fiquei surpresa ao ver Ruth lá e compreendi que ela deveria ter vindo do jardim. Então vi a lapiseira do coronel Bury sobre a mesa de bridge e disfarçadamente a coloquei em minha bolsa. Se alguém mais tarde me visse apanhar a bala, eu poderia fingir que era a lapi­seira. Mas na verdade não pensei que alguém tivesse me visto apanhando a bala. Quando todas olhavam o corpo eu deixei-a cair perto do espelho. Quando o senhor disse que me vira pegando alguma coisa no chão fiquei contente por ter pensado na lapiseira.

— Sim, a senhora foi muito astuta. A lapiseira me confundiu por completo.

— Eu temia que alguém tivesse ouvido o verda­deiro tiro, mas sabia também que todos estavam se ves­tindo para o jantar e que os criados estariam em suas dependências. A única que poderia ouvi-lo seria Miss Cardwell mas ela provavelmente pensaria tratar-se de um cano de descarga. Mesmo assim ela apenas ouviu o impacto da bala no gongo, pensando que fosse a pri­meira chamada para o jantar. Pensei... pensei que tudo tivesse corrido à perfeição.

Mr. Forbes disse com sua voz precisa:

— É uma confissão extraordinária. Parece não ha­ver motivos...

Miss Lingard interrompeu-o:

— Havia um motivo.

E a seguir:

— Vamos, chamem a polícia. O que estão esperando?

Poirot interveio:

— Vocês se incomodam de sair do escritório? Mr. Forbes, chame o major Riddle, por favor. Eu ficarei aqui até sua chegada.

Vagarosamente, um por um, os demais saíram da sala. Atônitos ainda, sem compreender, davam olhares de esguelha à pequena mulher que permanecia de pé, quase orgulhosa, com seu cabelo grisalho cuidadosa­mente repartido.

Ruth foi a última a sair. Ela hesitou ainda na porta.

— Não compreendo — disse por fim, num tom de voz ainda irritado, como quem acusa Poirot. — Ainda há pouco o senhor acreditava que eu tivesse matado meu pai.

— Não, não — disse Poirot, balançando a cabeça. — Nunca acreditei nisto.

Ruth saiu.

Poirot ficou só com a empertigada Miss Lingard, a aparentemente tranqüila senhorita de meia-idade que acabara de confessar um crime a sangue-frio.

— Não — concordou Miss Lingard. — O senhor não acreditava que ela tivesse cometido o crime. O se­nhor acusou-a para fazer-me confessar, não?

Poirot assentiu.

— Enquanto esperamos — continuou Miss Lingard em tom coloquial —, bem que o senhor poderia dizer-me o que o levou a suspeitar de mim.

— Diversas coisas. Em primeiro lugar, sua descri­ção de Sir Gervase. Um homem orgulhoso como ele ja­mais se referiria em termos pejorativos a seu sobrinho na presença de uma estranha, especialmente alguém como a senhora que, afinal de contas, era sua empre­gada. A senhora procurava fortalecer a hipótese do sui­cídio. A senhora também se esforçou demais ao tentar me convencer que a causa do suicídio foi uma desonra relacionada com Hugo Trent. Este era outro fato que Sir Gervase jamais admitiria para um subordinado. Ha­via ainda o objeto que a senhora apanhou no hall e o fato de que, ao me dizer que Ruth entrara na sala de visitas, omitiu o detalhe de que fora pela porta do jar­dim. E finalmente eu encontrei o saco de compras — algo que dificilmente se poderia esperar encontrar na sala de visitas de uma mansão como Hamborough Close. A senhora era a única pessoa que estava na sala de visi­tas quando o “tiro” foi ouvido. O saco de papel é um truque tipicamente feminino... digamos assim, um truque doméstico. Tudo se ajustava. A tentativa de lan­çar suspeitas sobre Hugo e afastá-la de Hugo, o meca­nismo do crime... e até seu motivo.

Miss Lingard estremeceu.

— O senhor conhece o motivo?

— Creio que sim. O motivo do crime foi a felici­dade de Ruth. Acho que a senhora sabia ou desconfiava do que havia entre ela e John Lake. E como tinha aces­so aos papéis de Sir Gervase, leu o rascunho de seu novo testamento, que deserdava Ruth, a não ser que ela se casasse com Hugo Trent. Isto levou-a a decidir-se a fa­zer justiça com suas próprias mãos. Quando ele escre­veu chamando-me a esta casa a senhora achou a opor­tunidade ideal, pois poderia fingir depois, como fingiu, que ele estava extremamente preocupado com algum problema familiar envolvendo Hugo Trent. Nunca sabe­rei o que levou Sir Gervase a me escrever em primeiro lugar. Provavelmente alguma suspeita vaga de que es­tava sendo roubado por Burrows ou por Lake. Mas tenho certeza de que quem me mandou o telegrama foi a senhora, preparando o cenário para dizer depois que Sir Gervase se referira à minha chegada com um “tarde demais”.

Miss Lingard disse arrebatadamente:

— Gervase Chevenix-Gore era um tirano, um es­nobe e um convencido. Eu não iria permitir que ele arruinasse a felicidade de Ruth.

Poirot disse suavemente:

— Ruth é sua filha, não?

— Sim. Ela é minha filha. Eu nunca deixei de pensar nela. Quando soube que Sir Gervase Chevenix-Gore procurava alguém que o ajudasse a escrever a his­tória de sua família, aproveitei a oportunidade. Eu que­ria ver minha filha e sabia que Lady Chevenix-Gore não me reconheceria. Ela não me via há muito tempo e naquela época eu era jovem e bonita. Mesmo meu nome tinha sido mudado. Além do mais, Lady Chevenix-Gore é muito distraída para gravar o rosto de alguém duran­te tanto tempo. Eu gostava dela, mas odiava a família Chevenix-Gore, que tinha me tratado como se eu fosse uma intocável. E agora Gervase queria arruinar a vida de Ruth com seu orgulho e seu esnobismo. Mas eu estava decidida a fazer Ruth feliz. E ela será feliz... se nunca lhe contarem a meu respeito.

Era um apelo, não uma afirmação.

Poirot curvou-se:

— Não direi nada a ninguém.

Miss Lingard respondeu serenamente:

— Obrigada.

Mais tarde, depois que a polícia já saíra com Miss Lingard, Poirot encontrou Ruth Lake com o marido no jardim.

Ela disse em tom desafiador:

— O senhor pensava mesmo que eu tivesse mata­do meu pai, monsieur Poirot?

— Madame, eu sabia que a senhora não poderia ter matado seu pai... por causa das margaridas.

— As margaridas? Não compreendo.

— Madame, havia apenas quatro pegadas no can­teiro. Mas deveria haver muitas mais, pois a senhora estivera lá colhendo flores. O que significa que entre sua primeira e sua segunda visita, alguém havia des­manchado todas as pegadas. Isto só podia ter sido feito pelo assassino e, como suas pegadas da segunda visita não tinham sido removidas, a senhora não era a crimi­nosa. Sua inocência estava automaticamente estabe­lecida.

O rosto de Ruth se iluminou.

— Ah, compreendo agora. O senhor sabe... talvez seja horrível o que vou dizer, mas sinto pena daquela pobre mulher. Afinal de contas ela preferiu confessar a me ver presa... ou pelo menos ela pensava que eu poderia ser presa. Ela agiu de uma maneira muito... muito nobre. Não me agrada a idéia de vê-la submetida a um julgamento por crime de morte.

Poirot respondeu:

— Não se aflija. Ela não chegará a ser julgada. O médico acaba de me dizer que ela tem um sério pro­blema cardíaco e não viverá mais que algumas semanas.

— É melhor assim — disse Ruth.

E concluiu, enquanto pegava uma flor e a acaricia­va de encontro ao rosto:

— Pobre mulher. Por que terá ela feito aquilo?


Triângulo de Rodes

Hercule Poirot estava sentado na areia branca e olhava ao longe o mar azul. Ele estava cuidadosamente vestido num terno branco de flanela e sua cabeça se en­contrava bem protegida por um grande chapéu panamá. Poirot pertencia à geração antiquada que acreditava no máximo possível de proteção contra o sol. Miss Pamela Lyall, que sentava-se a seu lado e falava sem cessar, re­presentava a moderna escola de pensamento, pois usava o mínimo possível de pano sobre o corpo queimado de sol.

De vez em quando ela se interrompia para se untar um pouco mais com um vidro de óleo colocado a seu lado, na areia.

Do outro lado de Miss Pamela Lyall, sua grande amiga, Miss Sarah Blake, estava deitada de bruços numa espalhafatosa toalha listrada. O bronzeado de Miss Blake era absolutamente perfeito, o que levava sua ami­ga a dardejar-lhe de tempos em tempos olhares invejosos.

— Eu ainda estou cheia de manchas — queixou-se ela tristonha. Monsieur Poirot, será que o senhor se in­comodaria de passar um pouco de óleo aqui no ombro, onde não consigo alcançar?

Monsieur Poirot atendeu-a e depois limpou cuida­dosamente a mão em seu lenço. Miss Lyall, cujos prin­cipais interesses na vida eram o estudo da espécie hu­mana ao seu redor e o som de sua própria voz, continuou a falar.

— Eu estava com a razão sobre aquela mulher... aquela no modelo Chanel. Ela é Valentine Dacres... quer dizer, Chantry. Eu a reconheci logo. Ela é linda, não? É fácil entender por que tanta gente se apaixona por ela. Ela obviamente não espera deles outra atitude... o que é metade da batalha ganha. Aquele outro casal que chegou ontem são os Gold. Ele é muito bem apanhado.

— Estão em lua-de-mel? — perguntou Sarah numa voz abafada.

Miss Lyall sacudiu a cabeça com ar experiente.

— Não. As roupas dela não são tão novas assim. Sempre posso dizer quando uma moça está em lua-de-mel. O senhor não acha que a coisa mais fascinante do mundo é observar as pessoas, monsieur Poirot, e desco­brir uma porção de coisas sobre elas com o simples fato de analisá-las?

— Não é só análise, minha querida — interrompeu Sarah. — Você também faz uma porção de perguntas.

— Eu ainda nem falei com os Gold — respondeu Miss Lyall com dignidade. — E de qualquer jeito não vejo que mal haja na gente se interessar pelos seres humanos. Não há nada mais fascinante que a natureza humana. O senhor não acha, monsieur Poirot?

Desta vez Miss Lyall fez uma pausa suficientemente grande para uma resposta de Poirot.

Sem tirar os olhos do mar, ele replicou:

— Ça depend. Pamela escandalizou-se.

— Oh, monsieur Poirot. Não creio que possa haver nada mais interessante, mais... mais imprevisível que os seres humanos.

— Imprevisível? Não, isto não.

— Mas eles são imprevisíveis. Quanto mais o senhor pensa que os conhece, mais eles o surpreendem.

Poirot balançou a cabeça.

— Não, não, não é verdade. Raríssimas vezes al­guém faz uma coisa que não esteja dans son caractère. No fim chega a ser monótono.

— Discordo completamente do senhor — disse Miss Pamela Lyall.

Ela ficou quase um minuto em silêncio antes de voltar ao ataque.

— Assim que vejo pessoas começo a pensar no que elas são, como são, no que estão pensando, no que estão sentindo. É muito excitante.

— De jeito algum — discordou Poirot.— A na­tureza humana repete-se com mais freqüência do que suspeitamos. O mar tem muito mais variedade.

Sarah virou-se para ele e perguntou:

— O senhor acha que os seres humanos tendem a repetir certas fórmulas de comportamento? Fórmulas estereotipadas?

— Précisément — disse Poirot, enquanto fazia com o dedo um desenho na areia.

— O que o senhor está desenhando? — perguntou Pamela com curiosidade.

— Um triângulo — respondeu Poirot.

Mas a atenção da moça já tinha se voltado em ou­tra direção.

— Olhem aí os Chantry — anunciou.

Uma mulher vinha caminhando pela praia: uma mulher alta, muito consciente de si e de seu corpo. Ela dirigiu-lhes um meio-sorriso com um aceno de cabeça e se sentou um pouco adiante, enquanto deixava escor­regar dos ombros a saída de praia em tom vermelho e dourado. Seu maiô era branco.

Pamela suspirou.

— Ela não tem um corpo lindo?

Mas Poirot estava olhando seu rosto — o rosto de uma mulher de 39 anos que desde os 16 era famosa por sua beleza.

Como todo mundo, ele sabia muitas coisas de Valentine Chantry. Ela era famosa por muitas razões — por seus caprichos, por sua fortuna, por seus enormes olhos azuis, por suas aventuras matrimoniais e suas aventuras extramatrimoniais. Tinha tido cinco maridos e um número ainda maior de amantes. Já fora casada com um conde italiano, um magnata do aço, norte-ame­ricano, um jogador profissional de tênis, um piloto de carros de corrida. Destes quatro, o norte-americano mor­rera, mas os outros tinham sido displicentemente descar­tados em processos de divórcio. Seis meses atrás ela se casara pela quinta vez — com um comandante da Marinha.

Era ele quem caminhava atrás dela. Era um tipo moreno, silencioso, com um queixo quadrado e um ar feroz. Tinha algo de um homem de Neanderthal.

Ela falou:

— Tony meu querido... minha cigarreira.

Ele já a tinha aberto para ela e não só acendeu seu cigarro como ajudou-a a baixar as alças do maiô. Ela deitou-se ao sol, com os braços abertos. Ele sentou-se a seu lado, como um animal selvagem que guarda sua presa.

Pamela disse, num tom de voz suficientemente baixo para que o casal não a ouvisse:

— Eles me interessam terrivelmente... Ele pare­ce ser um brutamontes!  Tão caladão, com um ar tão furibundo... Suponho que mulheres como ela gostem de tipos assim. Deve ser como controlar um tigre! Só não sei é quanto tempo este casamento vai demorar. Ela se cansa deles rapidamente. Mas se ela tentar se livrar deste acho que ele vai ser perigoso.

Outro casal vinha chegando, timidamente. Eram os recém-chegados da véspera — Mr. e Mrs. Douglas Gold, como Miss Lyall sabia por ter inspecionado o livro de registro de hóspedes. O livro especificava não apenas o nome de família como os prenomes e a idade de cada um.

Mr. Douglas Cameron Gold tinha 31 anos e Mrs. Marjorie Emma Gold tinha 35 anos de idade.

Como já foi dito, o hobby de Miss Lyall era o estudo dos seres humanos. Ao contrário da grande maioria dos ingleses, ela era capaz de falar à primeira vista com es­tranhos, em vez de deixar passar uma semana antes de encetar os primeiros tímidos esforços, como é o típico hábito britânico. Sendo assim, ao notar o embaraço e a hesitação de Mrs. Gold, ela tomou a iniciativa:

— Bom dia. Não está uma manhã maravilhosa?

Mrs. Gold era uma mulher pequena, lembrando de certa forma um camundongo. Não era feia, até pelo con­trário, pois tinha traços bem feitos e uma boa pele, mas havia nela um ar de acanhamento e falta de confiança em si mesma que levava as pessoas a lhe darem pouca atenção. Já seu marido era extremamente bem-parecido, de um jeito quase teatral, com cabelos louros e crespos, olhos azuis, ombros largos e quadris estreitos. Parecia mais um artista num palco que um homem da vida co­mum, mas assim que abriu a boca esta impressão desa­pareceu. Ele era natural, sem afetação, e talvez até meio simplório.

Mrs. Gold sorriu agradecida a Pamela e sentou-se perto dela.

— Como o seu bronzeado está bonito! Eu me sinto terrivelmente branca.

— Mas dá muito trabalho um bronzeado assim — suspirou Miss Lyall.

Fez uma pequena pausa e depois prosseguiu:

— Vocês são recém-chegados, não?

— Sim, chegamos ontem à noite. Viemos de navio, pela Vapo d’Italia.

— Vocês nunca tinham vindo a Rodes antes?

— Não. É uma beleza aqui.

Seu marido aparteou:

— Pena que seja tão longe.

— Ah, sim, se fosse mais perto da Inglaterra...

Com a voz abafada pela toalha, Sarah disse:

— Aí seria horrível. Já pensaram estas praias cheias de ingleses, sem nem lugar para a gente se mexer?

— É verdade — respondeu Douglas Gold. — É uma maçada que a lira italiana esteja tão por baixo no mo­mento.

A conversação prosseguiu alguns minutos ao longo de uma linha estereotipada. Ninguém poderia chamá-la de brilhante.

Deitada um pouco adiante na areia, Valentine Chantry subitamente espreguiçou-se e sentou-se, tomando cui­dado para não deixar o maiô escorregar sobre o busto.

Ela deu um bocejo, um bocejo bem evidente mas ao mesmo tempo gracioso e felino, enquanto olhava ao redor com uma expressão casual. Seus olhos pousaram rapida­mente sobre Marjorie Gold e depois fixaram-se com ar pensativo nos cabelos dourados de Douglas Gold.

Ela fez um movimento sinuoso e falou numa voz um pouco mais alta do que seria necessário para se comunicar com seu marido.

— Tony meu amor, este sol não está divino? Eu devo ter sido uma adoradora do sol em outra encarnação, você não acha?

O marido limitou-se a uma resposta baixa que os outros não puderam entender, mas Valentine continuou em tom alto e estudado:

— Será que você pode estender esta toalha melhor para mim, meu amor?

Ela tomou cuidados infinitos para ajeitar de novo seu belo corpo sobre a toalha. Douglas Gold olhava-a agora e havia uma expressão de interesse em seu rosto.

Mrs. Gold observou em tom alegre a Miss Lyall:

— Que mulher linda!

Pamela, que gostava tanto de dar quanto de receber informação, respondeu baixo:

— Ela é Valentine Chantry, a mesma que já foi Va­lentine Dacres. Ainda é muito bonita, não? O marido pa­rece doido por ela. Não a deixa sair de perto.

Mrs. Gold olhou o mar, e então disse:

— Vamos dar uma nadada, Douglas? A água parece estar ótima.

Ele ainda olhava Valentine Chantry e custou um pou­co a responder. Finalmente disse, com ar distraído:

— Nadar? Ah, sim. Ou melhor, daqui a pouco.

Marjorie Gold levantou-se e caminhou sozinha para a água.

Valentine Chantry virou-se ligeiramente em sua toa­lha. Seus olhos encontraram-se com os de Douglas Gold, Ela lhe deu um leve sorriso.

O pescoço de Mr. Douglas Gold fez-se um pouco ver­melho.

Valentine Chantry falou:

— Tony meu bem, me lembrei que preciso de um vidro de creme que eu esqueci em cima da mesa. Será que você se incomoda de apanhá-lo para mim?

O comandante pôs-se obedientemente de pé e se­guiu rumo ao hotel.

Marjorie Gold entrou no mar, chamando:

— A água está ótima, Douglas. Por que você não vem?

Pamela Lyall perguntou-lhe:

— Você não vai com sua mulher?

Ele respondeu com ar vago:

— Gosto de apanhar um pouco de sol primeiro.

Valentine Chantry ergueu a cabeça um instante, como se fosse chamar o marido, mas ele acabara de transpor o jardim do hotel.

— Só gosto de cair antes de ir embora — explicou Douglas Gold.

Mrs. Chantry sentou-se novamente e pegou um vidro de óleo de bronzear, mas parecia ter dificuldades com a tampa.

— Puxa, como está dura — disse, enquanto olhava o grupo e continuava:

— Será que alguém...

Poirot ergueu-se como um perfeito cavalheiro, mas Douglas Gold, mais jovem e mais ágil, já tomara a dian­teira:

— Posso ajudá-la?

— Muito obrigada — veio a resposta em tom quase ciciante. — Você é muito amável. Sou tão desastrada com estas coisas, sempre acabo apertando em vez de abrir. Ah, você conseguiu. Muito obrigada mesmo...

Hercule Poirot sorriu consigo mesmo, depois ergueu-se e começou a caminhar ao longo da praia, na direção opos­ta. Caminhou lentamente e não chegou a se afastar mui­to. Estava já voltando, quando Mrs. Gold saiu da água e juntou-se a ele. Ela usava uma touca e seu rosto estava radiante.

Ela disse, quase sem fôlego:

— Adoro o mar. E a água hoje está ótima.

Poirot pôde ver que ela era uma nadadora entusiasta.

Ela acrescentou:

— Douglas também adora nadar. As vezes fica horas dentro d’água.

Ao ouvir isto Hercule Poirot dirigiu o olhar ao ponto em que aquele nadador fanático, Mr. Douglas Gold, es­tava sentado, ao lado de Valentine Chantry.

Sua mulher continuava:

— Não sei por que ele não vem...

Sua voz tinha uma perplexidade infantil.

Poirot continuava a olhar para Valentine Chantry, pensando que muitas outras mulheres já teriam feito per­guntas semelhantes à de Mrs. Gold.

Ao seu lado, esta finalmente deixou escapar uma observação em tom seco:

— Todos dizem que ela é muito atraente, mas não é o tipo de Douglas.

Hercule Poirot não respondeu.

Mrs. Gold foi nadar outra vez.

Afastou-se da praia em braçadas lentas e ritmadas. Podia-se ver que adorava a água.

Poirot voltou ao lugar onde estivera sentado.

O grupo tinha sido aumentado com a chegada do ve­lho general Barnes, um veterano que aparentemente só apreciava a companhia das jovens. Ele sentara-se entre Pamela e Sarah e tinha travado com a primeira uma ani­mada conversa sobre as fofocas mais recentes.

O comandante Chantry já voltara de sua missão e sentara-se do outro lado de Valentine, com uma expressão aborrecida.

Valentine agora conversava animadamente com Dou­glas Gold, voltando-se de vez em quando para o marido, para que ele pudesse seguir o assunto. Ela estava aca­bando de contar um caso:

... e o que você acha que ele disse?. “Pode ter sido apenas um minuto, mas eu jamais me esqueceria da se­nhora, madame!” Não foi, Tony? Acho que foi tão simpá­tico da parte dele! Realmente todos são tão bons comi­go... não sei por que, mas são... Mas eu disse a Tony, você se lembra, querido? “Tony, se você quer ser um pou­co ciumento, um pouco só, pode começar a ter ciúmes deste carregador.” Porque ele era mesmo adorável...

Houve uma pausa e Douglas Gold disse:

— Alguns destes carregadores são ótimos sujeitos.

— Aquele pelo menos era. Ele se deu a tanto traba­lho que você nem imagina, e parecia fazer aquilo só pelo prazer de me ajudar.

Douglas Gold disse:

— Não há nada de estranho nisto. Qualquer um gostaria de ajudá-la.

Valentine Chantry exclamou deliciada:

— Como você é gentil! Você ouviu isto, Tony?

O comandante Chantry deixou escapar um rosnado.

Sua mulher suspirou:

— Tony não é de falar muito. É, querido?

Sua mão branca acariciou seu cabelo escuro.

— Na verdade, não sei como ele me tolera. Ele é terrivelmente inteligente e eu passo o tempo todo a ta­garelar sobre coisas sem importância. Mas parece que ele não se zanga. Ninguém se zanga comigo, todos me estragam. Não pode me fazer bem.

O comandante Chantry dirigiu-se a Douglas Gold:

— Aquela moça na água é sua mulher?

O marido deu-lhe uma olhada de lado. Ele mur­murou:

— Sim. Já está na hora de eu cair também.

Valentine murmurou:

— Mas o sol está tão gostoso... não vá cair já. To­ny meu amor, acho que eu não vou cair hoje. Não é bem logo no primeiro dia. Pode me dar um resfriado ou qual­quer coisa assim. Mas por que você não vai nadar, meu amor? Mr... Douglas me fará companhia enquanto você nada.

Chantry respondeu de mau humor:

— Não, obrigado. Não vou cair já. Sua mulher pa­rece estar lhe chamando, Gold.

Valentine disse:

— Sua mulher nada muito bem. Tenho certeza que ela deve ser uma destas mulheres terrivelmente eficientes, que faz tudo direito. Elas costumam me dar medo, pois tenho a impressão de que me acham uma débil mental. Sou completamente desastrada com tudo o que faço. Tony, querido, você não me acha uma inútil?

Mas novamente o comandante Chantry limitou-se a rosnar algo incompreensível.

Sua mulher murmurou afetuosamente:

— Você é bonzinho demais para dizer que eu sou. Os homens são tão leais... é a qualidade que mais apre­cio neles. Os homens são muito mais nobres que as mu­lheres... pelo menos nunca procuram dizer coisas para ferir a gente. Acho que as mulheres são muito mesqui­nhas.

Sarah Blake rolou sobre si mesma, voltando-se para Poirot, e murmurou entre dentes:

— Posso lhe dar um exemplo de mesquinharia: dizer que a querida Mrs. Chantry não é tão perfeita quanto pensa. Na verdade, acho-a uma idiota completa, uma das mulheres mais idiotas que já conheci. Tudo que ela sabe dizer é “Tony querido” e revirar os olhos.  Ela deve ter uma cabeça recheada de algodão em vez de cérebro.

Poirot ergueu suas expressivas sobrancelhas.

— Un peu sévère!

— Pode me achar mesquinha, se o senhor quiser. Mas esta Chantry é uma boa bisca. Será que não pode deixar nenhum homem sossegado? Seu marido está com uma cara furiosa.

Olhando o mar, Poirot observou:

— Mrs. Gold nada bem.

— É, ela não se incomoda de se molhar, como a maioria de nós.  Gostaria de saber se Mrs. Chantry vai entrar nágua alguma vez enquanto estiver aqui.

— Aposto que não — disse o general Barnes rouca-mente. — Ela não vai querer estragar seu make-up. Não que ela não seja bonita, mas já está ficando velhinha.

— Ela está olhando para o senhor, general — disse Sarah maldosamente.   E de qualquer maneira o senhor não tem razão em relação ao make-up. Hoje em dia todas nós somos à prova de água e de beijos.

— Mrs. Gold está saindo — anunciou Pamela.

— As duas querem buscar lã — murmurou Sarah. — Vamos ver quem vai sair tosquiada.

Mrs. Gold veio direto ao grupo. Seu corpo era bonito, mas a touca a desfavorecia. Era um modelo apenas prá­tico, sem nenhum atrativo.

— Você não vem, Douglas? — perguntou já com um tom de impaciência na voz. — A água está deliciosa.

— Vou já.

Douglas Gold levantou-se rapidamente, mas antes de ir embora pousou ainda os olhos em Valentine Chantry, que lhe deu um sorriso encantador.

— Au revoir — disse ela.

Gold e a mulher partiram.

Quando eles estavam já suficientemente longe, Pa­mela disse em voz crítica:

— Não acho que tenha sido uma atitude muito inte­ligente.  Arrebatar seu marido da presença de outra mu­lher sempre é má política. Faz você parecer muito pos­sessiva e isto é uma coisa que os maridos odeiam.

— A senhorita parece conhecer um bocado sobre ma­ridos, Miss Pamela — disse o general Barnes.

— Maridos alheios, não meus.

— Ah, a diferença é importante.

— Pode ser, general, mas aprendi uma porção de “Não faça isto”.                     

— Para princípio de conversa — disse Sarah — eu não usaria uma touca como aquela.

— Mrs. Gold me parece uma mulher de bom senso — replicou o general.

— O senhor tem toda razão, general — replicou Sa­rah. — Mas o senhor deve saber que há um limite para o bom senso de uma mulher. Acho que ela não vai ter tão bom senso assim em matéria de Valentine Chantry.

Ela virou-se e exclamou em voz baixa e excitada:

— Olhem só a cara do marido. Está furioso. Acho que ele deve ter um temperamento horrível.

De fato o comandante Chantry olhava para o casal Gold com um ar ameaçador.

Sarah voltou-se para Poirot:

— E então? O que o senhor me diz de tudo isto?

Hercule Poirot não respondeu, mas novamente seu dedo indicador traçou um desenho na areia. O mesmo desenho... um triângulo.

— O eterno triângulo — comentou Sarah com ar me­ditativo. — É capaz de o senhor ter razão. E se for as­sim, vamos ter muito de que nos ocupar nos próximos dias.

 

Monsieur Hercule Poirot estava desapontado com Ro­des. Ele viera à ilha acima de tudo para um descanso, pois tinham lhe dito que em fins de outubro Rodes esta­ria praticamente deserta.

E isto era verdade. Os únicos hóspedes no hotel eram os Chantry, os Gold, Pamela, Sarah, o general, ele pró­prio e dois casais italianos. Mas Hercule Poirot queria sobretudo um descanso de suas investigações criminais, e seu inteligente cérebro já percebera dentro daquele pequeno grupo sinais evidentes de que isto não lhe seria possível.

— Deve ser porque eu vivo vendo crimes por toda parte — disse ele com seus botões. — Devo estar ima­ginando coisas.

Mas mesmo assim ele não conseguia convencer-se do contrário.

Uma manhã ele encontrou Mrs. Gold fazendo um bor­dado no terraço.

Ao aproximar-se, Poirot teve a impressão de perceber, um lenço que era rapidamente removido de cena.

Os olhos de Mrs. Gold estavam secos, mas com um brilho suspeito. Seu bom humor também lhe pareceu um pouco forçado.

— Bom dia, monsieur Poirot — disse ela com entu­siasmo exagerado.

Poirot sentiu que era impossível que ela estivesse tão alegre por vê-lo. Pois afinal de contas eles mal se co­nheciam. E embora Poirot fosse até um pouco convenci­do no que se referia às suas qualidades profissionais, ti­nha suficiente modéstia para saber das limitações de seu charme.

— Bom dia, madame — respondeu ele. — Mais outro belo dia.

— É verdade, não? Mas Douglas e eu sempre temos muita sorte quando estamos de férias.

— É mesmo?

— É. Temos muita sorte juntos. O senhor sabe, mon­sieur Poirot, quando vejo tantos casais se divorciando e tanta infelicidade junta é que aprecio melhor minha pró­pria felicidade.

— Agrada-me saber disto, madame.

— Douglas e eu somos tão felizes! Estamos casados há cinco anos, o senhor sabe, e hoje em dia cinco anos é já bastante tempo...

— Não tenho mesmo dúvidas de que em certos casos deve parecer uma eternidade, madame — comentou Poirot.

— Mas tenho certeza de que somos mais felizes agora do que quando nos casamos. O senhor sabe, somos feitos um para o outro.

— Isto representa tudo.

— É por isto que sinto pena dos que não são felizes.

— A senhora quer dizer...

— Estou apenas falando em linhas gerais, monsieur Poirot.

— Ah, compreendo.

Mrs. Gold pegou um fio de seda, segurou-o contra a luz, examinou-o bem e continuou:

— A Mrs. Chantry, por exemplo...

— Sim? Que tem a Mrs. Chantry?

— Não creio que ela seja uma mulher muito correta.

— Talvez a senhora tenha razão.

— Na verdade, estou certa de que ela não é uma mu­lher muito correta. Mas, de um certo modo, tenho pena dela. Porque apesar de todo seu dinheiro e de sua bele­za... (os dedos de Mrs. Gold tremiam e ela não conseguia enfiar a agulha)... ela não é o tipo de mulher que con­segue ser feliz com um homem. Os homens se cansam depressa de mulheres como ela. O senhor não acha?

— Eu certamente me cansaria de sua conversação antes que se passasse muito tempo — limitou-se Poirot a dizer, com precaução.

— É exatamente o que quero dizer.   Ela tem um certo charme, é inegável... — Mrs. Gold interrompeu-se, com os lábios trêmulos, enquanto tentava inutilmente continuar seu trabalho. Um observador menos arguto que Poirot já teria notado seu desespero.  Ela continuou desconexamente:

— Os homens são verdadeiras crianças. Acreditam em tudo...

Ela vergou-se sobre seu trabalho. O pequeno lenço pôde ser novamente entrevisto.

Hercule Poirot achou mais prudente mudar de as­sunto, e disse:

— A senhora não vai nadar hoje? E seu marido, ele está na praia?

Mrs. Gold olhou-o, piscou, adotou de novo sua pose quase desafiadoramente alegre e respondeu:

— Não, não vou nadar hoje. Nós tínhamos combina­do fazer uma visita às muralhas da cidade velha. Mas não sei o que houve... só sei que me perdi deles. Eles foram embora sem me esperar.

O pronome por si só já era bastante revelador, mas antes que Poirot pudesse dizer qualquer coisa, o general Barnes apareceu e sentou-se numa cadeira ao lado deles.

— Bom dia, Mrs. Gold.  Bom dia, Poirot. Vocês tam­bém desertaram hoje? A lista de ausências está grande. Vocês dois e seu marido, Mrs. Gold... e Mrs. Chantry.

— E o comandante Chantry? — perguntou Poirot em tom casual.

— Não, este está na praia. Miss Pamela o tem sob controle — disse o general rindo, enquanto continuava:

— Mas ela está achando um pouco difícil lidar com ele.  É um destes tipos fortes e silenciosos que só encon­tramos em livros.

Marjorie Gold disse, com pequeno estremecimento:

— Aquele homem me dá um pouco de medo. Parece sempre tão... tão ameaçador.  Como se fosse mesmo ca­paz de cometer uma violência.

Ela estremeceu de novo.

— Acho que no fundo ele sofre de indigestão — disse o general alegremente. — A dispepsia é responsável por muitas reputações de melancolia romântica ou loucura furiosa.

Marjorie Gold deu um sorriso meramente polido.

— E onde está aquele seu bom marido? — perguntou o general.

Sua resposta veio sem hesitação, numa voz aparen­temente alegre e natural.

— Douglas? Ah, ele e Mrs. Chantry foram até a ci­dade. Acho que foram ver as muralhas da cidade velha.

— Ah, sim... muito interessante. Da época dos ca­valeiros e tudo mais. A senhora deveria ter ido também.

Mrs. Gold respondeu:

— Acho que me atrasei um pouco.

Ela se levantou de súbito, murmurou uma desculpa e desapareceu no interior do hotel.

O general Barnes olhou-a com uma expressão preo­cupada, sacudindo a cabeça pesarosamente.

— Uma brava mulherzinha. Vale muito mais que uma boa bisca cujo nome prefiro não mencionar. Ah! Seu marido é um idiota. Não sabe reconhecer o que tem.

Ele sacudiu a cabeça novamente e depois também entrou no hotel.

Sarah Blake tinha acabado de chegar da praia e ou­viu as últimas palavras do general. Fazendo um gesto com a cabeça na direção do guerreiro que batia em reti­rada, observou enquanto sentava ao lado de Poirot:

— Brava mulherzinha, brava mulherzinha! Os ho­mens estão sempre elogiando as bravas mulherezinhas mal vestidas, mas quando se trata de escolher entre elas e as vigaristas embonecadas, sempre ficam com as últimas. É triste, mas é verdade.

— Mademoiselle! — disse Poirot, abruptamente. — Não estou gostando disto.

— O senhor não está? Eu também não. Não, vou ser honesta, acho que de uma certa forma estou gostando. Todos nós temos um lado mau que se diverte com desas­tres, calamidades públicas e coisas desagradáveis que se passam com nossos amigos.

Poirot perguntou:

— Onde está o comandante Chantry?

— Na praia, sendo dissecado por Pamela e não se mostrando nem um pouco satisfeito com o processo. Es­tava com um ar de tormenta quando saí. Vamos ter tem­pestade, acredite-me.

Poirot murmurou:

— Há uma coisa que não compreendo...

— Compreender é fácil — disse Sarah. — Saber o que vai acontecer é que é difícil.

Poirot balançou a cabeça e continuou:

— Como a senhorita diz, é o futuro que me inquieta.

— Que forma elegante de definir a questão — res­pondeu Sarah, e foi para o hotel.

Ao entrar, quase esbarrou em Douglas Gold. O jovem chegava com um ar muito satisfeito, mas ao mesmo tem­po um pouco culpado. Ele disse:

— Alô, monsieur Poirot — e acrescentou, um pouco embaraçado:

— Estive mostrando as muralhas dos Cruzados a Mrs. Chantry. Marjorie não quis ir.

As sobrancelhas de Poirot ergueram-se ligeiramente, mas mesmo que ele tivesse querido fazer algum comentá­rio não teria tempo, pois Valentine Chantry entrou em seguida, dizendo em voz alta:

— Douglas, um gim com angostura para mim. Pre­ciso de um gim rapidamente.

Douglas Gold foi pedir a bebida, enquanto Valentine sentava-se ao lado de Poirot. Parecia extremamen­te contente.

Ela viu seu marido e Pamela caminhando ao encon­tro do grupo e fez-lhes um aceno, gritando:

— Deu uma nadada, meu amor? Não está uma ma­nhã maravilhosa?

O comandante Chantry não respondeu. Subiu cor­rendo as escadas, passou por ela sem uma palavra ou olhar e desapareceu a caminho do bar.

Seus punhos estavam crispados e mais do que nunca seu aspecto lembrava um gorila.

A bela boca de Valentine Chantry ficou aberta, di­zendo “Oh”, com uma expressão apalermada.

Já o rosto de Pamela mostrava que ela se divertia imensamente. Disfarçando ao máximo seus sentimentos, sentou-se perto de Valentine Chantry e perguntou:

— Que tal o passeio?

Quando Valentine começou a responder “Maravilho­so. Nós...”. Poirot levantou-se e também dirigiu-se ao bar. Ele encontrou o jovem Gold esperando pela bebida com um rosto vermelho. Parecia nervoso e irritado.

Ele disse a Poirot “Aquele homem é um grosseirão” enquanto fazia um gesto de cabeça na direção do coman­dante Chantry, que estava se afastando.

— É possível — respondeu Poirot. — Sim, é bem pos­sível. Mas não se esqueça de que as mulheres gostam dos homens brutos.

Douglas murmurou:

— Não me surpreenderia de saber que ele a maltrata!

— Ela provavelmente gosta disto.

Douglas Gold dirigiu-lhe um olhar espantado, pegou o gim e foi-se embora.

Hercule Poirot sentou-se num tamborete e pediu um licor. Enquanto o deliciava, Chantry surgiu de súbito e tomou diversos gins, em rápida sucessão.

Em seguida, disse em voz alta e violenta, falando mais para o mundo em geral do que propriamente com Poirot:

— Se Valentine pensa que pode se livrar de mim como se livrou daqueles outros idiotas, está muito enganada. Ela é minha e continuará a ser minha. Ninguém vai tomá-la de mim sem ter que primeiro passar sobre meu cadáver.

E, jogando o dinheiro sobre o balcão, virou-se e de­sapareceu.

 

Três dias mais tarde Hercule Poirot foi à Montanha do Profeta. A viagem de carro era agradável, por estra­das frescas cercadas de abetos, elevando-se por curvas si­nuosas, muito acima das misérias e intrigas humanas que ficavam lá embaixo. O carro parou fora do restaurante no alto da montanha e Poirot, descendo, caminhou em dire­ção às árvores. Finalmente, chegou a um lugar que pare­cia mesmo o topo do mundo. Bem abaixo, profundamente azul, podia-se ver o mar.

Poirot dobrou seu sobretudo, colocou-o cuidadosamen­te sobre um toco de árvore e sentou-se. Finalmente ele podia estar em paz, longe de todos os problemas.

— Não há dúvida que le bon Dieu deve saber o que faz, mas é estranho que ele tenha resolvido criar certos seres humanos. Eh bien, pelo menos aqui estarei por al­gum tempo salvo destas complicações.

Mas, súbito, teve um sobressalto. Uma pequena mu­lher num casaco marrom apressava-se em sua direção. Era Marjorie Gold e agora ela já punha todo seu orgulho de lado. Seu rosto estava molhado de lágrimas.

Poirot não tinha como escapar. Ela já estava perto.

— Monsieur Poirot, o senhor precisa me ajudar. Sou tão infeliz, não sei o que fazer. O que será de mim? O que será de mim?

Ela o olhava com expressão angustiada, segurando-o pela manga do casaco. Mas alguma coisa na expressão de Poirot a amedrontou, pois ela recuou um pouco.

— Há alguma coisa errada? — perguntou.

— A senhora quer o meu conselho, madame? É isto o que a senhora quer?

Ela gaguejou:

— Sim... sim...

— Eh bien... aqui está o meu conselho — disse Poirot, acrescentando de modo incisivo:

— Saia deste lugar imediatamente... antes que seja tarde demais.

— O quê? — perguntou ela, arregalando os olhos.

— A senhora me ouviu. Vá embora desta ilha.

— Embora desta ilha?

Ela olhava-o com ar estúpido.

— Foi o que eu disse.

— Mas por quê? Por quê?

— É o conselho que posso lhe dar... se a senhora tem amor à vida.

Ela deixou escapar um pequeno grito.

— O que o senhor quer dizer com isto? O senhor está me amedrontando... o senhor está me amedrontando.

— Sim — respondeu Poirot em tom grave. — É exa­tamente esta a minha intenção.

Ela deixou-se cair sentada, com o rosto escondido en­tre as mãos.

— Mas eu não posso! Ele não viria comigo! Ele, Douglas, não viria comigo, ela não deixaria. Ela o domina completamente...  corpo e alma. Ele não dá ouvidos a nada que digo contra ela... está completamente apaixo­nado. Acredita em tudo que ela lhe diz. Que seu marido a maltrata, que ela é uma pobre inocente, que ninguém nunca soube compreendê-la. Ele já nem pensa em mim... eu já não conto mais, é como se não existisse. Ele quer que eu lhe conceda o divórcio. Ele acredita que ela tam­bém se divorciará e se casará com ele.  Mas acho que Chantry não vai desistir dela. Ele não é deste tipo. Ontem à noite ela mostrou a Douglas manchas no braço e disse que foram feitas por Chantry.  Douglas ficou furioso. Ele é tão cavalheiresco... Oh, tenho medo. O que vai acon­tecer? Diga-me o que fazer!

Hercule Poirot continuou olhando através do mar a costa asiática que se desenhava na distância. Finalmente, falou:

— Eu já lhe disse.  Saia desta ilha antes que seja tarde demais...

Ela sacudiu a cabeça.

— Eu não posso, não posso... a menos que Douglas... Poirot suspirou e deu de ombros.

 

Hercule Poirot sentou-se na praia ao lado de Pamela Lyall.

Ela disse com um prazer pouco disfarçado:

— O triângulo está cada vez mais complicado. On­tem à noite eles se sentaram um de cada lado dela... e o senhor precisa ver os olhares que um dirigia ao outro. Chantry estava bastante bêbado e ofendeu Gold diversas vezes, mas Gold se comportou muito bem. Não perdeu a calma. Valentine adorou a cena, claro. Ronronava como o gato que sente o camundongo nas garras. O que o se­nhor acha que vai acontecer?

— Estou com receio... estou com receio...

— Nós todos estamos — disse Miss Lyall fingidamen­te, completando:

— Este assunto é da sua especialidade. Ou é bem capaz de acabar sendo. Será que o senhor não poderia fazer alguma coisa?

— Já fiz tudo que pude.

Miss Lyall inclinou-se ansiosa.

— O que o senhor fez?

Sua voz era alvoroçada.

— Aconselhei Mrs. Gold a sair desta ilha antes que fosse tarde demais.

— Oh... então o senhor acha... — ela interrom­peu-se.

— Acho o que, mademoiselle?

— O senhor acha que é isto o que vai acontecer? — disse Pamela lentamente. Mas ele não faria isto, ele nun­ca faria uma coisa destas. Ele é uma boa pessoa, na ver­dade. Aquela Chantry é que é uma bisca. Ele não faria isto, ele não faria isto.

Ela interrompeu-se de novo, depois continuou em voz baixa:

— Assassinato? É esta a palavra em que o senhor está pensando?

— Esta é a palavra em que alguém está pensando, mademoiselle. Posso garantir-lhe isto.

Pamela estremeceu.

— Não posso acreditar nisto — declarou.

 

Na noite de 29 de outubro, os acontecimentos desen­rolaram-se em ordem perfeitamente delineada.

Primeiro houve uma discussão entre os dois homens — Gold e Chantry. A voz de Chantry elevou-se cada vez mais e mais alta; suas últimas palavras foram ouvidas por quatro pessoas: o caixa no balcão, o gerente, o gene­ral Barnes e Pamela Lyall.

— Seu maldito suíno! Se você e minha mulher pen­sam que vão se livrar de mim estão muito enganados. Enquanto eu estiver vivo Valentine será minha esposa.

E. saiu do hotel, com o rosto contorcido de raiva.

A discussão foi antes do jantar. Depois do jantar houve uma surpreendente reconciliação, não se sabe ar­ranjada por quem. Valentine convidou Marjorie para um passeio de carro. Pamela e Sarah também foram. Gold e Chantry jogaram bilhar e depois foram fazer compa­nhia a Poirot e ao general Barnes no saguão.

— Foi bom o jogo? — perguntou o general.

O comandante respondeu:

— Este camarada é bom demais para mim. Fez qua­renta e seis carambolas logo de saída.

Douglas Gold disse modestamente:

— Pura sorte, posso lhe garantir. Vocês não querem beber alguma coisa? Vou chamar o garçom.

— Gim com angostura para mim, por favor.

— E o senhor, general?

— Um uísque com soda, obrigado.

— E o senhor, monsieur Poirot?

— Muita gentileza sua. Gostaria de um sirop de cassis.

— Um sirop... como é mesmo o nome?

— Sirop de cassis. Xarope de cássia.

— Ah, um licor. Será que eles têm deste aqui? Nunca ouvi falar.

— Têm sim. Mas não é um licor.

Douglas Gold disse, rindo:

— Me parece um gosto estranho... mas cada um toma o veneno que quer. Vou pedir as bebidas.

O comandante Chantry sentou-se. Embora não fos­se por natureza um homem comunicativo, estava visivel­mente se esforçando para ser amável.

— É curioso como a gente se acostuma a viver sem jornais — comentou.

O general bufou.

— Ninguém pode dizer que o Continental Daily Mail de quatro dias atrás seja uma grande fonte de informa­ções. Eu recebo o Times e o Punch aqui no hotel, mas eles também custam muito a chegar.

— Será que vão convocar eleições gerais por causa da questão palestina?

— O assunto tem sido muito mal conduzido — de­clarou o general, ao mesmo tempo em que Douglas Gold reaparecia seguido por um garçom e as bebidas.

O general começou a contar uma passagem de sua carreira militar na Índia, em 1905. Os dois ingleses ou­viram polidamente, mas sem grande interesse. Hercule Poirot sorvia com delícia seu sirop de cassis.

O general chegou ao fim de sua história e houve risos bem educados ao redor.

Então as mulheres reapareceram no saguão. Todas as quatro falavam e riam, parecendo muito bem dis­postas.

— Tony, meu amor, foi um passeio adorável — disse Valentine, sentando-se numa cadeira a seu lado. — Uma idéia adorável de Mrs. Gold. Vocês todos deveriam ter vindo.

Seu marido perguntou:

— Quem quer uma bebida? — olhando interrogativa­mente ao redor.

— Gim com angostura para mim, querido — disse Valentine.

— Gim e gengibirra — disse Pamela.

— Sidecar — disse Sarah.

— Ótimo — disse Chantry, levantando-se.   E ofere­ceu sua própria bebida, até então intocada, à sua esposa:

— Fique com este. Vou pedir outro para mim. O que a senhora quer tomar, Mrs. Gold?

Mrs. Gold estava tirando o capote, com a ajuda do marido.   Ela virou-se, sorrindo:

— Uma laranjada, por favor.

— Perfeitamente. Uma laranjada.

O comandante Chantry foi em busca das bebidas. Mrs. Gold sorria para seu marido:

— Foi um passeio maravilhoso, Douglas. Gostaria que você tivesse vindo.

— Gostaria de ter ido também. Fica para uma outra oportunidade.

Os dois sorriram um para o outro.

Valentine Chantry pegou de seu gim e o tomou de um gole.

— Oh, eu bem que estava precisando — murmurou.

Douglas Gold tomou do casaco de Marjorie e o colocou num sofá. Ao encaminhar-se de volta ao grupo excla­mou, assustado:

— Ei, o que é isto?

Valentine Chantry oscilava em sua cadeira. Seus lá­bios estavam roxos e sua mão apertava o coração.

— Eu me sinto... me sinto estranha.

Ela arquejava em busca de ar.

Chantry voltou à sala e apressou-se ao ver a mulher.

— Ei, Val, o que você tem?

— Não sei... Aquele gim tinha um gosto estranho...

— O gim com angostura?

Chantry virou-se para Douglas Gold, segurando-o pe­lo ombro.

— Aquele gim era para mim, Gold, que diabo você pôs nele?

Douglas Gold estava branco feito cera e olhava apa­lermado o rosto contorcido de Valentine Chantry.

— Eu... eu... nunca...

Valentine Chantry escorregou da cadeira.

O general Barnes gritou:

— Chamem um médico, depressa!

Cinco minutos depois Valentine Chantry estava morta.

 

No dia seguinte ninguém foi à praia.

Pamela Lyall, muito pálida, vestida num vestido ne­gro simples, encontrou Hercule Poirot no hall e o levou a uma pequena saleta vazia.

— É horrível — disse. — Horrível! O senhor previu tudo! Assassinato!

Poirot inclinou a cabeça gravemente.

Pamela estava nervosa e batia o pé no chão.

— O senhor deveria ter impedido aquilo. O senhor deveria ter dado algum jeito, feito alguma coisa.

— O quê? — perguntou Poirot.

— O senhor não poderia ter chamado a polícia?

— E dizer o quê? O que a gente pode dizer, antes do crime? Que alguém está pensando em um crime? Vou dizer-lhe uma coisa, mon enfant, se uma pessoa está de­cidida a matar uma outra...

— O senhor poderia ter prevenido a vítima — in­sistiu Pamela.

— Algumas vezes os avisos são inúteis.

Pamela pensou e disse:

— O senhor poderia ter prevenido o assassino... mostrar-lhe que o senhor conhecia suas intenções.

Poirot assentiu apreciativamente.

— Mais sensato, sem dúvida. Mas mesmo assim é preciso levar em conta o principal defeito de um cri­minoso.

— Que defeito é este?

— A presunção. Um criminoso nunca acredita que seu plano pode falhar.

— Mas é um absurdo.  É uma tolice — gritou Pa­mela. — O crime não poderia ter sido mais infantil. Pois se a polícia prendeu Douglas Gold imediatamente!

Poirot parecia pensativo:

— Sim. Douglas Gold é um rapaz muito ingênuo.

— Eu diria muito burro. Soube que eles encontra­ram o resto do veneno...  o que era mesmo?

— Um tipo de estrofantina. Um veneno para o co­ração.

— Pois soube que encontraram o resto no paletó de seu terno, não?

— É verdade.

— É muita burrice mesmo — insistiu Pamela. — Talvez ele pretendesse jogá-lo fora, mas tenha ficado, talvez, paralisado pelo choque de ver que a pessoa errada tomara o veneno. Que cena maravilhosa seria num pal­co de teatro! O amante colocando estrofantina no copo do marido e a mulher tomando-o por engano, enquanto ele não prestava atenção. Pense no horror de Douglas Gold ao se virar e compreender que tinha assinado a sentença de morte da mulher que amava...

Pamela estremeceu.

— O seu triângulo. O Eterno Triângulo. Quem diria que ia acabar desta maneira?

— Eu tinha medo disto — murmurou Poirot.

Pamela virou-se para ele.

— O senhor preveniu-a... a Mrs. Gold. Mas por que o senhor não o preveniu também?

— A senhora quer saber por que eu não preveni Dou­glas Gold?

— Não. Quero saber por que o senhor não preveniu o comandante Chantry. O senhor poderia ter-lhe avisado que ele corria perigo... afinal, ele era o principal obs­táculo. Não tenho dúvidas de que Douglas Gold esperava atormentar sua mulher a tal ponto que ela acabaria con­cordando com o divórcio. Ela é muito dócil e acabaria se convencendo. Mas Chantry é teimoso como uma mula. Ele estava decidido a não concordar com o divórcio.

Poirot deu de ombros.

— Não teria adiantado nada falar com Chantry.

— Talvez não — concordou Pamela. — É provável que ele respondesse que sabia cuidar de si mesmo e o mandasse ao inferno.  Mas mesmo assim acho que o se­nhor poderia ter tentado fazer alguma coisa.

Poirot pensou um pouco e depois disse, medindo bem as palavras:

— Eu cheguei a pensar em tentar convencer Valentine Chantry a deixar a ilha, mas ela não acreditaria no que eu tinha a lhe dizer. Ela não era suficientemente inteligente para compreender a situação. Pauvre femme, sua estupidez a matou.

— Não acho que teria adiantado nada ela sair daqui — disse Pamela — pois ele simplesmente a teria seguido.

— Ele quem?

— Douglas Gold.

— A senhorita acha que Douglas Gold a teria segui­do? Não, a senhorita está enganada, completamente en­ganada. A senhorita não compreendeu ainda o que real­mente se passou. Se Valentine tivesse deixado a ilha, seu marido teria ido com ela.

Pamela tinha uma expressão intrigada no rosto.

— Naturalmente.

— E então, a senhorita vê, o crime simplesmente te­ria ocorrido em outro lugar.

— Não compreendo.

— Estou lhe dizendo que o mesmo crime teria ocor­rido em outro lugar. Estou falando do assassinato de Va­lentine Chantry por seu marido.

Pamela arregalou os olhos.

— O senhor está querendo dizer que foi o comandan­te Chantry... Tony Chantry... quem matou Valentine?

— Claro. Pois se a senhorita o viu cometer o crime. Douglas Gold trouxe-lhe sua bebida e sentou-se diante do copo. Quando vocês mulheres chegaram, nós todos olha­mos em sua direção, do que Chantry aproveitou-se para despejar o veneno no gim, que depois galantemente ofe­receu à sua esposa.

— Mas o vidrinho de estrofantina foi encontrado no bolso de Douglas.

— Uma coisa muito fácil de fazer quando estávamos todos aflitos ao redor da mulher moribunda.

Pamela levou bem uns dois minutos para recuperar a fala.

— Mas não compreendo nada. O triângulo... o se­nhor mesmo disse.

Poirot sacudiu a cabeça com firmeza.

— Sim, eu disse que havia um triângulo, mas a se­nhorita imaginou o triângulo errado. A senhorita se dei­xou enganar por uma bela encenação. A senhorita acre­ditou, como eles queriam, que tanto Tony Chantry quan­to Douglas Gold estavam apaixonados por Valentine Chantry. A senhorita acreditou, como eles queriam, que, apaixonado por Valentine, cujo marido se recusava a lhe conceder o divórcio, Douglas Gold se desesperou a ponto de envenenar o rival... com a diferença de que, por um acidente, quem morreu foi a vítima errada. Mas é tudo ilusão. Chantry já estava decidido a matar sua mulher há algum tempo. Pude ver logo de saída que ele estava “cheio” dela, com quem de qualquer forma só se casou por causa do dinheiro. Agora ele queria casar com outra mulher... e assim precisava arranjar um jeito de se li­vrar dela mas conservar o dinheiro. O único caminho era o assassinato.

— Ele queria se casar com outra mulher?

— Claro, claro, com a aparentemente inofensiva Marjorie Gold. Eis aí o eterno triângulo a que eu me referi, mas a senhorita me compreendeu mal. Nenhum dos dois homens estava apaixonado por Valentine Chan­try. Foi apenas vaidade dela e a encenação muito hábil de Marjorie Gold que levou a senhorita e os outros a pensarem assim. Uma mulher muito inteligente, esta Mrs. Gold, e bastante atraente com seu jeitinho recata­do de pobre-coisinha-abandonada! Conheci quatro assas­sinas do mesmo tipo. Primeiro, a Mrs. Adams, absolvida da acusação de assassinato de seu marido, embora todos saibam que ela o matou. Mary Parker matou uma tia, um namorado e dois irmãos antes de se tornar um pouco descuidada e ser, finalmente, apanhada. Depois conheci Mrs. Rowden, que acabou na forca. Mrs. Lecray escapou por um triz. Assim que vi Mrs. Gold tive certeza de que ela era do mesmo tipo. Estas mulheres gostam de matar, como pato gosta de nadar. E foi um assassinato muito bem planejado. Diga-me, que prova a senhorita tem de que Douglas Gold estava apaixonado por Valentine Chantry? É só pensar um pouco para compreender que havia apenas as confidências de Mrs. Gold e as demonstrações de ciúmes de Chantry. Compreende agora?

— É... é horrível — disse Pamela.

— Eles são um casal esperto — disse Poirot com apreciação profissional. —Planejaram “encontrar-se” aqui e encenar seu crime. Esta Marjorie Gold tem um sangue-frio dos diabos. Seria capaz de ver o marido en­forcado sem o menor remorso.

Pamela interrompeu:

— Mas a polícia o prendeu ontem à noite...

— Prendeu — concordou Hercule Poirot — mas de­pois eu tive uma conversa com eles... É verdade que eu não vi Chantry pôr a estrofantina no copo, porque, como todo mundo, olhei na direção de vocês quando vocês che­garam. Mas no momento em que compreendi que Valentine Chantry tinha sido envenenada, observei seu marido sem tirar os olhos dele.  E assim pude ver quando ele colocou o vidrinho de estrofantina no bolso do paletó de Douglas Gold...

Poirot acrescentou com uma expressão severa no rosto:

— Sou uma boa testemunha.  Meu nome é bastante conhecido. Assim que ouviu minha história a polícia com­preendeu que o caso mudava completamente de figura.

— E então? — perguntou Pamela, fascinada.

— Eh bien, eles fizeram algumas perguntas ao coman­dante Chantry. Ele tentou fingir-se de indignado, mas não é tão inteligente quanto pensa e teve que acabar confessando tudo.

— Então a polícia já soltou Douglas Gold?

— Já.

— E... e Marjorie Gold?

O rosto de Poirot tornou-se sombrio.

— Eu a preveni — disse.

— Sim — continuou — eu a preveni. No alto da Montanha do Profeta eu a preveni... Era a única possi­bilidade de evitar o crime. Disse-lhe claramente que sus­peitava dela. Ela me compreendeu, tenho a certeza. Mas ela se achava muito inteligente... Eu disse-lhe que dei­xasse a ilha se tinha amor à própria vida. Ela decidiu ficar...

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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