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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS VIAJANTES / Emily Rodda
OS VIAJANTES / Emily Rodda

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS VIAJANTES

 

Os Viajantes vêm aí. Os Viajantes vêm aí!

A notícia espalhou-se rapidamente pela aldeia de Rin. As crianças gritavam-na entusiasmadas, as vozes propagando-se pelo vale e ecoando na grande Montanha que se erguia acima da aldeia. Gritavam e corriam, corriam como loucos pelas colinas abaixo, passando pelos campos dos bukshah e pelo pomar, ladeando os jardins e alcançando a praça da aldeia.

Tinham avistado os três Batedores voando sobre as coli­nas, os papagaios de papel sedosos que seguravam contra o céu. Sabiam que as carruagens, os cavalos e as pessoas comunicativas e cantantes não estavam muito distantes.

Os Viajantes estavam chegando, trazendo com eles jogos e histórias, danças e música, coisas maravilhosas para troca. As suas brilhantes tendas não tardariam a espalhar-se, esvoaçando como enormes borboletas, por entre as margaridas-selvagens amarelas nas colinas acima da aldeia. À noite, as suas fogueiras iriam iluminar a escuridão e a sua música ecoaria pelo vale. Permaneceriam uma semana, ou duas, ou três, e, para as crianças, cada dia seria uma festa.

 

 

— Os Viajantes vêm aí!

Junto à lagoa dos bukshah, observando uma borboleta sair do seu casulo no ramo de uma árvore, o menino Rowan, guardador dos bukshah, ouviu o grito. Mas ele já adivinhara a notícia.

Muito antes das outras crianças terem detectado os Bate­dores, vira os bukshah levantarem as cabeças e olharem para além do vale, para as colinas. Os grandes animais escutavam algo que ele não podia ouvir.

— Então, os Viajantes estão chegando? — disse para Es­trela, a sua predileta de todos os grandes animais. — Já tinha ouvido os assobios deles, não foi?

Estrela abanou o corpo, olhando para as colinas.

— Não estávamos contando vê-los este ano — continuou Rowan —, mas é a época deles. Os girinos no ribeiro estão ficando com pernas e se transformando em sapos. As lagar­tas estão se transformando em borboletas. E as margaridas-selvagens estão florindo. — Cheirou o ar. — Como eu sei. O pólen me faz ficar com o nariz escorrendo.

Estrela fez um ruído profundo com a garganta e mexeu as patas, inquieta.

— O que lhe preocupa, Estrela? — perguntou Rowan, afagando-lhe o pescoço sob o grosso manto de lã. — Fique calma. Está tudo bem.

Olhou intrigado para Estrela. Ultimamente, todos os bukshah mostravam-se inquietos. E não conseguia perceber porquê. Tinha-os examinado minuciosamente. Não havia sinais de doença. No entanto, há vários dias que pareciam nervosos e infelizes.

— Está tudo bem, Estrela — disse de novo.

Mas Estrela batia com a pata no chão, empurrava-lhe a mão com a pesada cabeça e recusava-se a ficar calma.

 

— Os Viajantes vêm aí!

Jonn Forte, que trabalhava no pomar, ouviu o grito com surpresa e depois sorriu. Os Viajantes tinham vindo na direção de Rin há apenas doze meses. Não os esperava tão cedo. Mas ficava satisfeito por virem. Porque, com os Via­jantes, chegava a cerveja deles.

As abelhas não tardariam a trabalhar afincadamente nas flores brancas das suas árvores de hoopberry. As colméias começariam a transbordar com o mel rico e dourado que os Viajantes colheriam, comeriam e venderiam.

Mas, enquanto as abelhas trabalhavam para os Viajan­tes, também o fariam para Jonn. Saltitando de flor em flor, iriam alastrar o pólen amarelo pegajoso, assegurando a for­mação dos frutos quando as flores caíssem. Graças às abelhas dos Viajantes, Jonn iria ter uma boa colheita no Outono.

Por isso Jonn ficou satisfeito quando ouviu os gritos das crianças. Mas sabia que outros não ficariam tão contentes. Para outros, as notícias não eram nada boas.

 

— Os Viajantes vêm aí!

Bronden, a marceneira, escutou o grito e franziu o cenho, martelando os robustos dedos sobre a madeira macia da mesa meio terminada que estava debaixo de sua mão.

— Selvagens — resmungou, batendo com o pé no soalho coberto de serragem. — Uns perfeitos selvagens inúteis.

Passou a mão pela testa. Sentia-se cansada. Esgotada. E isto... isto era a última gota.

Os Viajantes viravam de pernas para o ar a vida ins­tituída na aldeia. Pouco lhes interessavam as regras, a ordem, o trabalho duro. Não tinham casas fixas, nem trabalho certo, nem o desejavam. Era por isso que ela, e outros que pensavam do mesmo modo, chamavam os Viajantes de Selva­gens, como as margaridas-selvagens nas colinas. Faziam-na sentir-se desconfortável. Eles irritavam-na.

 

— Os Viajantes vêm aí!

Na sua pequena casa, Timon, o professor, ouviu o grito e suspirou sobre os seus livros. Enquanto os Viajantes esti­vessem acampados por perto, as crianças de Rin iriam estar inquietas e aos sussurros debaixo da árvore-escola.

Teriam as algibeiras cheias de brinquedos e truques que pechincharam ou compraram no acampamento na colina. Teriam as bocas repletas de doces e gomas de mel. Teriam as cabeças a fervilhar com histórias e lendas dos Viajantes.

Apesar de tudo, pensou Timon, recostando-se na ca­deira e pondo as mãos na nuca, esta visita poderia ser uma bênção. Fora um Inverno longo e rigoroso. As crianças mostra­vam-se ultimamente cansadas e irritadiças. Os Viajantes iriam animá-las. Sorriu.

Pela minha vida, eu próprio, quando menino, ado­rava as histórias dos Viajantes, pensou. E, se histórias do Vale do Ouro, os Gigantes de Inspray, o Cristal Sombrio, o Fosso de Unrin e todas as outras não me fizeram mal, porque haveriam agora de prejudicar as crianças?

Timon refletiu um pouco. Talvez pudesse ir visitar o acampamento dos Viajantes este ano. Ouvir de novo as histórias. E talvez comprar uma porção de gomas de mel. Há muito que não lhes sentia o sabor.

Timon fechou os olhos e riu indolentemente para si mesmo perante essa expectativa. Já sentia água na boca.

 

— Os Viajantes vêm aí!

Allun, o padeiro, ouviu o grito enquanto batia a massa na sua cozinha quente.

— Está ouvindo, mãe? O povo do meu pai está a caminho— disse, por cima do ombro. — É melhor parar com essa conversa de estar ficando velha e ir buscar os sapatos para dançar.

Sara entrou lentamente, vinda da loja, limpando as mãos no avental.

— Acho que os meus dias de dança já passaram à his­tória, Allun — disse, com um sorriso cansado. — Mas é melhor irmos preparando a voz. Pela primeira vez, nós, os habitantes de Rin, temos uma história para contar aos Viajantes. Tão boa quanto qualquer uma que eles nos têm contado. Os nossos amigos hão de querer ouvir a nossa aventura na Montanha. Sua, de Jonn, e de...

— E do jovem Rowan, acima de tudo — riu Allun. — Mas Rowan é tímido demais para contar ele mesmo a história. Por isso, sim, irei fazê-lo. Quem melhor para sur­preender os Viajantes... dado eu ser um meio Viajante!

Sara passou um dedo pela fita de seda ao redor da gar­ganta. Era um colar de casamento dos Viajantes.

Há muitos anos atrás, quando era nova, Sara deixara Rin com um marido Viajante. Mas a sua felicidade perfeita terminara quando o seu homem foi morto pelos Zebak invasores, durante a grande Guerra das Planícies. Quando o território ficou de novo em paz, regressou à aldeia com Allun, o seu único filho, na época uma mera criança.

Sara ficara satisfeita por voltar a ver a sua casa. Mas sabia que, por vezes, fora difícil para o seu filho meio Viajante crescer em Rin.

Era como se estivesse preso no meio de dois mundos: a vida livre e desprendida dos Viajantes e a vida calma e programada do povo de sua mãe. Por vezes, o coração de Sara sangrara ao vê-lo esforçar-se para ser aceito pelos aldeãos de Rin que desprezavam e desconfiavam dos Via­jantes e que, por esse fato, não se coibiam de desprezá-lo e de desconfiar dele também.

Não quisera que Allun se juntasse ao grupo que subira à montanha proibida no Outono. Receara por ele. Mas agora estava contente por ele ter ido. Porque, nessa terrível jornada, o filho descobrira que não era mais fraco do que os outros, os heróis da aldeia. E aqueles que escarneciam dele também perceberam esse fato.

Mais: Allun trouxera da sua odisséia uma prenda es­pecial. Uma prenda que parecia que iria trazer riquezas à aldeia. Porque, por fim, ele sentia ter comprovado ser um digno cidadão de Rin. Por causa disso, encontrara uma nova paz. Seguramente que nada podia destruir isso agora.

— Por que terão regressado tão cedo? — murmurou Allun. O seu rosto alegre tornara-se pensativo. — Há muita gente na aldeia que não vai ficar satisfeita por vê-los de novo.

Sara observou o filho enquanto este retomava as suas tarefas. Escutou as vozes das crianças ecoando pelo vale. E, pela primeira vez, o receio surgiu na sua mente. Por que teriam os Viajantes regressado tão cedo?

Por que?

 

A ESCURIDÃO INSTALA-SE

Nos jardins, Bree e Hanna ouviram os gritos das crianças e pousaram as enxadas. Para eles, aquela no­tícia era de fato tudo, menos boa.

— Como é possível? — exclamou Hanna, voltando-se para o marido e limpando o suor da testa. — Nunca passam por aqui em anos seguidos.

Bree e Hanna, tal como os tratadores dos jardins de Rin antes deles, sempre detestaram as visitas dos Viajantes. Os Viajantes podiam mover-se silenciosamente, como sombras na noite. As ervilhas novas, as ervas tenras — tudo o que era bom nos jardins — tinham o hábito de desaparecer como que por magia quando os Viajantes estavam por perto.

Outros habitantes da aldeia, como Jonn do pomar e Allun o padeiro, riam sempre quando os jardineiros se enfureciam. Mesmo que alguns vegetais tivessem de algum modo encontrado o caminho para as panelas dos Viajantes ao longo dos anos, que importância tinha, quando os Via­jantes traziam à aldeia tanto comércio útil e tanto prazer?

Bree cuspiu no chão, com desprezo. Talvez essa gente cantasse uma melodia diferente este ano. Até o meio Via­jante, Allun. Porque, afinal de contas, fora ele quem trou­xera para o vale a semente para a nova colheita.

Fitou as jovens plantas das bagas da Montanha que en­chiam agora um quarto do jardim. Estavam a desenvolver-se, erguendo as pequenas folhas lustrosas para o sol e dissemi­nando novos rebentos pelo solo castanho. Perfumadas flores vermelhas desabrochavam nos pequenos ramos, pendendo já com pequenos frutos vermelhos aromatizados.

Uma planta robusta e de crescimento rápido que flores­cia e dava frutos ao mesmo tempo! As bagas da Montanha eram de fato miraculosas e uma nova colheita preciosa. Uma colheita que Bree estava determinado que se desti­nasse unicamente a Rin. Pensou nos Viajantes a infiltra­rem-se nos jardins pela noite, saqueando os seus preciosos arbustos, colhendo os frutos...

— Selvagens ladrões! — exclamou. — Eles não podem ficar sabendo das bagas da Montanha, Hanna. Não podem!

Ela anuiu.

— Vamos pedir uma reunião — disse ela. — Vamos contar aos outros os nossos receios. Depois, ninguém dirá uma só palavra. E vamos guardar bem os jardins.

— Eu fiquei de guarda o ano passado — murmurou Bree. — E, de que serviu?

— No ano passado você adormeceu, Bree.

— Lançaram-me um feitiço do sono! Sei que lançaram! — De rosto corado, franziu o cenho na direção das colinas.

— Que tolice! — retorquiu Hanna. — Feitiços do sono! Nunca ouvi tamanha besteira. Até parece o Neel, o oleiro, dizendo tolices como essa.

Bree virou-se, baixando os ombros.

— Vamos pedir uma reunião — murmurou. — Vá se lavar, Hanna. Não temos muito tempo.

Hanna nada disse. Alguns momentos depois, Bree pegou as enxadas e dirigiu-se à cabana das ferramentas.

Hanna esfregou os olhos. Sentia-se invadir por uma enorme onda de cansaço. Teria dado tudo para se deitar e descansar... apenas por um minuto. Estou exausta, pen­sou. Estou tão cansada de trabalhar dias a fio. E agora isto.

Olhou para o marido. Guardava vagarosamente as enxa­das e fechava a porta da cabana. Pobre Bree. O que lhe passou pela cabeça? Tinha de seguir em frente, tal como ele. Havia agora um novo problema a enfrentar. Bom, iriam enfrentá-lo juntos.

Se tudo corresse bem, na próxima estação haveria bagas da Montanha com fartura. Poderiam então descansar e Rin podia banquetear-se. Também podiam comercia­lizá-las, porque ninguém na costa jamais provara aquele fruto novo e delicioso. Finalmente ficariam ricos.

Se tudo corresse bem.

 

O sino replicou na praça da aldeia. Rowan ouviu-o nos campos dos bukshah.

— Vai haver uma reunião, Estrela — disse. — Tenho de ir. Tome conta da manada enquanto estou ausente.

Estrela emitiu um som e olhou para as colinas.

— Tenho certeza que a reunião deve ser por causa dos Viajantes — disse-lhe Rowan. — Jonn vai ficar satisfeito por voltar a vê-los. Tal como Allun. Marlie, a tecelã, fi­cará contente porque os Viajantes irão trocar a sua seda pelas roupas quentes dela. Mas Bronden ficará zangada. Bree e Hanna ficarão furiosos, porque os Viajantes roubam coisas dos jardins.

Sorriu, em tom de culpa. Quando Bree e Hanna não estavam atentos, ele próprio roubava por vezes uma porção de ervilhas tenras através da vedação, a caminho dos campos dos bukshah. Os seus animais apreciavam muito ervilhas novas.

Rowan lembrou-se então das bagas da Montanha e a luz brilhante do sol pareceu enfraquecer. Se os Viajantes interferissem com as bagas da Montanha...

Estrela agitou-se e bateu com a pata no chão, inquieta. Rowan esqueceu os seus problemas e agarrou-lhe a crina, preocupado.

— Acalme-se — disse, com uma voz tranqüilizadora. — Não tem nada a temer.

Estrela fitou-o com os seus pequenos olhos negros e roçou-o com o ombro. Era como se estivesse tentando lhe di­zer algo. Rowan sentiu a pele dela estremecer sob a espessa lã.

Rowan suspirou. Atrás dele, a borboleta acabou de estender as novas asas e voou, deixando o casulo duro vazio na árvore. Uma brisa ligeira e fresca agitou o ar, trazendo com ela o cheiro das margaridas-selvagens nas colinas. Correu-lhe outra vez um pingo do nariz e os olhos picavam-lhe.

Na aldeia, o sino continuava a tocar.

 

Encolhida junto da lareira da sua pequena cabana, Sheba, a feiticeira, ouviu o sino como que em sonho. Des­pertou com um sobressalto e inclinou-se para atirar uns paus no fogo. As chamas saltaram.

— Uma reunião? Grandes idiotas! — rosnou, obser­vando as imagens nas labaredas. — Idiotas, passam o tempo em conversas enquanto as trevas se concentram.

Pressionou as mãos na cabeça. As palavras aterrorizado­ras que gritavam na sua mente há tantos dias continuavam ativas, de forma interminável e sem significado. E, com as palavras, vezes sem conta, as imagens...

Três papagaios de papel: um amarelo, um vermelho e um branco, contrastando num céu azul. O rosto pálido de um menino que ela conhecia — Rowan dos bukshah. E uma coruja dourada, com reluzentes olhos verdes que a fitava, cheia de conhecimento. Ordenando-lhe que compreen­desse.

Havia também outras imagens, iluminadas por clarões de luz dourada, subitamente apagadas por uma escuridão. Os campos dos bukshah vazios. A aldeia de Rin imóvel e silenciosa. O mais aterrorizador de tudo, um monte de trapos velhos e cabelos desalinhados, junto a um fogo ex­tinto. Ela própria nesta sala. Sem conseguir agir. Enquanto o inimigo...

Sheba levantou-se com dificuldade. Acordada ou dor­mindo, não havia possibilidade de fuga. O fogo cuspia e crepitava. Afastou-se dele.

Percebeu subitamente o que tinha de fazer. Tinha de fazer o que era necessário. Escapar daquele lugar de pesa­delos. Tinha de ir colher raízes nas colinas, onde as doces margaridas-selvagens floresciam e o ar era límpido. Talvez ali conseguisse pensar.

Quando saiu da cabana, o sino deixou de tocar. Os ha­bitantes de Rin tinham se reunido. Juntavam-se na praça.

— Idiotas! — escarneceu Sheba. E seguiu o seu cami­nho, vacilante.

 

OS BATEDORES

Bem-vindos, amigos! — A voz de Jonn ecoou forte nas colinas. Ele, Marlie, a tecelã, e Allun, o padeiro, protegeram os olhos contra o sol para observarem os três Batedores que se aproxima­vam, erguendo os braços em resposta. Rowan, junto deles, viu que a que se encontrava no centro levou qualquer coisa aos lábios.

Para onde os Viajantes iam, os Batedores seguiam sem­pre à frente, alertando sobre os perigos com que deparavam, assinalando com os seus pequenos assobios, para informar se a tribo devia parar ou avançar. O som dos assobios era característico, imperceptível às pessoas comuns. Apenas os Viajantes, com os ouvidos treinados ao longo de séculos, escutavam as suas mensagens. Os Viajantes e, como Rowan descobriu, os bukshah.

Talvez os outros animais também ouvissem os assobios. Rowan não sabia. De fato, à medida que crescia, perce­bia como desconhecia o território para lá do vale de Rin.

Os Viajantes perambulavam por vastas extensões desde sempre. Conheciam as terras como se conheciam a si mes­mos. Faziam parte delas, tal como as árvores, as rochas, as aves e os bukshah. Algumas das narrativas contadas por Ogden, o contador de histórias e líder da tribo, tinham milhares de anos.

Mas a população de Rin era recente. Não tinham de­corrido ainda praticamente trezentos anos desde que os seus antepassados foram trazidos para a costa como es­cravos guerreiros dos Zebak invasores. Só nessa altura se revoltaram contra os seus senhores, juntando-se ao povo Maris e aos Viajantes para derrotá-los, acabando por viajar para o interior do território, encontrando o vale que cons­tituía agora o seu lar.

Trezentos anos não era nada para o povo Maris — e menos do que nada para os Viajantes, que acreditavam que a sua tribo perambulava por este território desde o início dos tempos.

Apesar de tudo, não me sinto como um recém-chegado, pensava agora Rowan, olhando para Rin, com os seus impe­cáveis caminhos e casas, o seu riacho murmurante, os retalhos dos seus campos verdes e castanhos, o pomar de hoopberry e os bukshah espalhados pelas encostas das colinas. Este é o único lar que conheço.

— Já não vão demorar muito — murmurou Jonn para Allun e Marlie. — Espero que o que vamos ouvir satisfaça as preocupações lá em baixo.

Inclinou-se e apanhou a folha de uma margarida selvagem, torcendo-a entre os dedos. Rowan sabia que a folha fazia parte das boas-vindas. As folhas das margaridas-selvagens eram compostas por três lóbulos redondos unidos, tal como as folhas dos trevos. Eram usadas como um sinal de amizade entre os Viajantes, o povo Maris e a população de Rin.

Os Batedores tinham começado a voar baixo, as pontas dos pés roçando ligeiramente na vegetação e nas flores. Os seus papagaios de papel — um amarelo, um vermelho e um branco — agitavam-se e batiam ao vento, enquanto os fios de seda que os guiavam eram manobrados com agili­dade por mãos morenas.

Rowan devorou com prazer aquela visão. Nunca vira os Batedores tão de perto. O costume era serem recebidos ape­nas por três adultos de Rin.

Mas, desta vez, os aldeãos queriam notícias rápidas. Ti­nham decidido, na reunião, descobrir qual a razão para a visita inesperada dos Viajantes antes de continuarem a discutir o problema das bagas da Montanha. Rowan devia correr para a aldeia com as notícias assim que as tivesse.

— Sempre lamentei — disse Allun, observando os bri­lhantes papagaios — a minha mãe me ter afastado dos Viajantes antes de eu ter idade para receber treino como Batedor.

— E queria isso, Allun? — perguntou Jonn, sur­preendido. — Sei que é um posto de honra. Mas segura­mente que está associado a muitos perigos.

Allun sorriu.

— Tem razão, é claro — admitiu. — Se os Batedores se depararem com um perigo, têm de enfrentá-lo sozi­nhos, enquanto a tribo permanece mais atrás, em segurança. Esse é o seu dever. Mas os papagaios, Jonn! Os papagaios! Viajar ao sabor do vento é o sonho mais precioso de qual­quer criança dos Viajantes.

Enquanto falava, o vôo dos Batedores abrandou para um ritmo de passo. Depois, com um movimento, os três pousaram os pés no solo. Os papagaios ondularam atrás deles por momentos, dobrando-se depois graciosamente em finas bolsas de seda. Os Batedores apanharam-nos sem pressas, colocando a seda sobre os ombros enquanto avan­çavam para receber a comissão de boas-vindas.

Jonn estendeu a folha da margarida-selvagem.

— Bem vindos, amigos — disse de novo.

Rowan fitava os Batedores com fascínio. Trajavam rou­pas de seda brilhante. Tinham os pés descalços. Os cabelos castanhos, enfeitados com flores, penas e fitas, caiam em ondas sobre os ombros deles. Eram dois rapazes e uma moça, todos pouco mais velhos do que ele.

O rapaz tinha uma estrutura óssea estreita e era magro, como Allun. Fitaram Jonn com olhos negros que dan­çavam sob sobrancelhas inclinadas. A moça tinha um ar mais austero. Era alta — quase tão alta quanto Marlie. As sobrancelhas eram lineares, os olhos de um azul es­tranho e claro. Avançou e pegou na folha que Jonn oferecia.

— Sou Zeel, filha adotiva de Ogden, o contador de histórias. Os Viajantes agradecem as vossas boas-vindas, amigos — disse, com formalidade. — Acamparemos aqui enquanto lhes for mais adequado e receberemos com pra­zer as vossas visitas todas as noites após o pôr-do-sol.

Rowan sabia que aquelas eram sempre as palavras pro­feridas. Tinham pouco significado. Os Viajantes acampa­vam onde bem queriam. Ninguém, à exceção dos Zebak, jamais tentara interferir com eles. E os Zebak, segundo narravam as lendas, tinham-se dado mal por isso.

Aguardou pelo que haveria de vir em seguida.

— Podemos saber o que os traz aqui tão cedo? — in­quiriu Jonn. — Nunca aconteceu dos Viajantes visitarem Rin dois anos seguidos.

Os olhos pálidos nunca se desviaram do rosto dele.

— A idéia agradou-nos — disse Zeel, a Batedora. — Sentimos essa necessidade e por isso viemos.

— Pensamos que precisariam de alimentos ou de ne­gociar — persistiu Jonn. — O Inverno foi longo e rigoroso.

— Foi, de fato — respondeu a moça, calmamente. — E é sempre um prazer negociar convosco, nossos ami­gos. Mas as nossas necessidades não são diferentes de qual­quer outra Primavera.

— Pensamos que trariam notícias da costa — interveio Marlie. — Notícias de movimentos do nosso inimigo, tal­vez. Pensamos que viriam para nos avisar.

Rowan observou Zeel cuidadosamente. Teria detectado vacilação bem no fundo daqueles olhos pálidos? Mas ela abanou a cabeça.

— Não temos notícias para vocês — afirmou.

Está mentindo, pensou Rowan. Sinto-o. Está mentindo. Ou, pelo menos, não está contando toda a verdade.

Seguiu-se um silêncio nas colinas. Os Batedores fitaram Jonn, Marlie e Allun calmamente. Pelos vistos, não tinham nada mais a acrescentar.

— Assim seja — acabou por dizer Jonn. Desviou-se para que os Batedores pudessem avistar Rowan claramente e virou-se para ele. — Corra para a aldeia, Rowan, e conte às pessoas o que os nossos amigos disseram. Não há ne­nhum motivo especial para a sua visita. A idéia simples­mente agradou-lhes.

Rowan percebeu pela forma como Jonn falou que também ele sentira que Zeel ocultava algo. E tinha a certeza que os três Batedores tinham perfeita consciência que a comissão de boas-vindas não fora enganada. Pare­ciam um pouco surpreendidos ao fitarem-no com olhos firmes, entreolhando-se depois como se transmitissem uma mensagem não proferida.

Rowan não perdeu mais tempo. Anuiu, virou-se e correu pela colina abaixo em direção à aldeia. Sabia que as pessoas na praça o aguardavam com ansiedade. Não tinha reconforto para lhes levar. Mas de nada servia man­tê-los à espera. Além do mais, queria voltar para junto dos bukshah.

Do topo da colina podia ver que a manada continuava a deslocar-se ao longo do riacho, afastando-se cada vez mais da aldeia. Deviam ter derrubado alguma vedação. Não queria que os animais se afastassem demais. Mesmo assim iria levar bastante tempo a reuni-los e a reencaminhá-los para os campos.

Estava ofegante devido ao esforço de correr. Irritado, esfregou o nariz entupido e os olhos inchados, desejando pela milésima vez ser tão forte quanto os outros meninos da sua idade.

Desejava-o sempre que via Jiller, a mãe, esforçando-se por detrás do arado que revirava o solo dos seus campos. Desejava-o sempre que via as costas dela inclinadas sobre um fardo de cereais. Com a sua idade, já devia ser capaz de ocupar o lugar do seu pai falecido para ajudá-la — pelo menos parcialmente.

Contudo, quando arranjava coragem para dizer isso à mãe, ela limitava-se a sorrir. “Força eu tenho, Rowan”, dizia. “Um dia, há de ter a capacidade para me ajudar mais nos campos. Por agora, ajude-me como pode. Que isso seja suficiente para você, como é para mim”.

As margaridas-selvagens amarelas baixavam as cabeças sob os seus pés, endireitando-se após a sua passagem. O pólen enchia o ar numa nuvem pálida e dourada. Rowan espirrava enquanto corria. Os seus olhos lacrimejavam de tal forma que mal conseguia ver.

Enrugando o nariz, levou a mão à algibeira e tirou um pequeno frasco verde. Conteve a respiração e bebeu um trago. O remédio forte e de sabor horrível inundou-lhe a boca. Tossiu e forçou-se a engolir.

O remédio era odioso. Sobretudo para ele, por ter sido preparado por Sheba. Estremecia só de pensar que aquelas mãos ossudas tinham colhido as raízes das margaridas-sel­vagens a partir das quais o tônico era preparado, e que mexeram o caldeirão onde fora fervido.

Tinha a certeza que a velha mulher dera boas risadas ao despejar a poção para os frascos. Era o único da aldeia que tinha de tomá-la e há muito que decidira que Sheba o tornara especialmente mal saboroso propositadamente para ele. Era o tipo de piada cruel que ela apreciava.

Com alívio, avistou as sombras de um bosque mais à frente. Não tardaria a ficar longe das margaridas-selvagens e o remédio iria começar a atuar dentro de momentos. Com alguma sorte, os espirros deixá-lo-iam em paz por algum tempo.

Abrandou o passo e começou a caminhar por entre as árvores. Os olhos lacrimejantes, habituados à luz do sol forte, pestanejaram nas sombras. Teve de apalpar o ca­minho.

De tal forma que, de início, não viu a forma corcunda que se ergueu diante dele. Não retrocedeu a tempo de evitar o braço ossudo que se estendeu para lhe impedir o avanço. Não se virou a tempo de impedir que os dedos duros como ferro se cravassem no seu ombro, forçando-o a parar.

Rowan gritou de choque e medo. A figura diante dele começou a rir. Era um riso aterrorizador, zombeteiro. Muito familiar.

Era Sheba.

 

O ENIGMA

 

 

Então, Rowan dos bukshah — disse a velha mulher, cravando ainda mais os dedos no ombro de Rowan. — Onde vai com tanta pressa?

— Para a aldeia— respondeu Rowan timidamente. Sen­tiu o nariz a pingar de novo e fungou.

— Precisa de mais uma dose da minha poção da Pri­mavera, rapaz — disse Sheba suavemente. — O seu nariz pinga como o riacho.

Apontou para o saco cheio aos pés dela.

— Tenho aqui as raízes das margaridas-selvagens. Subi até às colinas para as colher. Foi difícil para os meus pobres e velhos ossos. Esta noite vou preparar a poção. Não são boas notícias? Não está grato à velha Sheba?

Rowan franziu o cenho. O sabor horrível do remédio ainda perdurava na sua boca. Fitou o saco de Sheba. Estava cheio até acima. O suficiente para um caldeirão daquela mistura hedionda.

Os dedos de Sheba apertaram o ombro de Rowan.

— Não está agradecido? — repetiu.

Rowan anuiu. O que quer ela de mim?, pensou.

Sheba aproximou o rosto do dele. A pele dela era cin­zenta. Cheirava a cinzas e a ervas amargas. Os cabelos caíam como cordas gordurentas por cima dos ombros.

— Por que vieram os Viajantes ao vale, Rowan dos bukshah? — A voz era insistente e baixa. — Deve saber. Na visão, o seu rosto é nítido enquanto tudo o resto é misterioso. Por que voltaram tão cedo? Diga-me! Diga-me! Pode ser a chave.

— Eles... eles dizem que não há nenhuma razão es­pecial — gaguejou Rowan, tentando libertar-se.

A visão? A chave? O que queria ela dizer?

Os lábios dela recolheram-se para trás dos longos dentes amarelos, num sorriso hostil.

— Mentiras! — Os olhos dela pesquisaram os dele. Eram como buracos negros na cara de Sheba. Pareciam cauterizá-lo. Começou a sentir a cabeça a andar à roda. Mas não podia afastar-se.

Por fim, ela anuiu. As suas pálpebras fecharam-se.

— Muito bem — murmurou. — As mentiras não são suas, mas deles, então, Rowan dos bukshah. — Empurrou-o rudemente. — Quer dizer que estava enganada. Não me serve para nada. Desapareça da minha vista!

— O que se passa? — perguntou Rowan. Sheba aterro­rizava-o, mas precisava saber o que significava aquilo.

Sheba pegou no saco pesado e começou a afastar-se.

— Espere! — chamou Rowan. — Sheba! Como sabe que os Viajantes mentiram? Há algum perigo que nos amea­ça? Por favor, diga-me. Tem de me dizer!

Ela deu meia-volta, mostrando os dentes.

— Eu não tenho que fazer nada, rapaz — gritou, a voz inundada com uma fúria súbita. — Quem é você para me dar ordens? Pensa que, pelo fato de os incautos dos aldeãos lhe considerarem um herói, pode me dizer o que fazer? Ora!

Os seus olhos estreitaram-se. Parecia irritada de uma forma que Rowan não podia entender.

— Conheço-lhe pelo que é, Rowan dos bukshah — troçou. — Coelho magricelo! Uma criança fraca, com o nariz escorrendo, com medo da própria sombra! Que não é útil à própria mãe quando ela precisa. Que não é útil para mim. Que não é útil para ninguém. Foge e vai se esconder nos campos dos bukshah. Só serve para isso!

Rowan encolheu-se como se tivesse recebido um golpe. As palavras dela ecoaram nos seus pensamentos mais ín­timos. Ela tinha razão. Não era útil para ninguém, indepen­dentemente do que as pessoas dissessem. O rosto ardia-lhe. Virou-se para fugir. Para fugir da voz horrível e da cara desdenhosa dela.

Contudo, quando se virou, viu a Montanha, erguendo-se negra e secreta acima das árvores. E recordou-se da grande lição que aí aprendera. A lição que seis heróis que o acompanhavam também tinham aprendido. Uma lição que nenhum jamais esqueceria.

Voltou-se outra vez.

— Só os tolos não têm medo, Sheba. Disse isso uma vez, e é verdade. Sei que não sou nenhum herói. Mas sei que posso enfrentar o perigo, se for necessário. Agora posso enfrentá-la e perguntar de novo, o que a preocupa? O que considera ser um perigo para Rin?

Ela mirou-o.

— A Montanha ensinou-lhe bem — afirmou, lenta­mente. Olhou para cima, para as rochas pontiagudas, para o cume de gelo onde a neve reluzia com sol que se punha. A expressão de escárnio que lhe velara o rosto, desapare­cera. Por baixo, havia algo mais. Medo!

O coração de Rowan saltou, aterrorizado. O que podia ser tão medonho que pudesse refletir medo no rosto de Sheba?

— O que é? — perguntou.

Sheba abanou a cabeça.

— Não sei — respondeu, rendida. — Não sei. Só sei os meus sonhos. As imagens. As palavras que me assombram, noite e dia. O inimigo vai chegar outra vez. A roda está a girar. E, desta vez... desta vez...

— Que imagens? Que palavras? — inquiriu Rowan. — Conte-me!

Subitamente, as mãos de Sheba começaram a tremer. Depois, o tremor espalhou-se até todo o corpo estremecer, como que assolado por uma terrível febre. Os olhos rolaram-lhe nas órbitas. A parte branca dos olhos reluziu de forma horrível nas sombras das árvores. A boca abriu-se.

Rowan deu um passo em frente e agarrou-lhe o braço. Sacudiu-o com violência.

— Fale! — gritou. — Sheba!

A boca aberta começou a mover-se. O cântico rouco começou.

Sob aparências aprazíveis, o mal incendeia-se

E, lentamente, a velha roda gira.

Os mesmos erros, o mesmo orgulho de sempre,

A inestimável proteção desprezada.

O inimigo secreto chegou.

Oculta-se nas trevas, cautela incautos!

Porque, dia após dia, o seu poder engrandece,

E, quando por fim o seu rosto é revelado,

Histórias passadas e presentes irão encontrar-se...

O círculo do mal está completo...

A voz apagou-se num gemido gorgolejante. A velha mulher vacilou. Rowan tentou segurá-la, impedindo que caísse no chão. Rowan sentia como que uma mão de gelo a apertar-lhe a garganta.

O que significaria aquilo? As palavras de Sheba persis­tiam na sua mente enquanto procurava uma resposta.

O enigma tinha a ver com intriga. Traição. E não era um aviso para o futuro. Pelo menos em parte. Rowan conteve a respiração.

O inimigo secreto chegou. O inimigo secreto... chegou.

 

DESACORDO

Rostos zangados voltaram-se para Rowan quando por fim chegou à praça da aldeia.

— Onde estiveste, Rowan? — perguntou a mãe. — Es­tamos à espera há tanto tempo!

— Tanto tempo! — repetiu a sua irmã mais nova, Annad. Pôs as mãozinhas nas ancas e olhou para ele, aguardando a sua explicação.

— Eu... encontrei Sheba no bosque — disse Rowan, hesitante. — Ela... atrasou-me.

Ergueu-se um murmurinho por entre a multidão. Sheba era necessária à aldeia, porque fazia poções que curavam todas as doenças. Mas era temida por muitos como feiti­ceira, e muitos não gostavam dela devido ao seu mau feitio e língua viperina.

— O que ela queria? — perguntou Neel, o oleiro.

— Esqueçam-na! — ordenou a velha Lann. — Conte-nos as novidades que traz das colinas. Conte-nos, rápido! — Bateu com a bengala no chão.

Sendo a pessoa mais velha da aldeia, Lann fora também um dos seus grande guerreiros. Agora precisava da bengala para andar, mas a sua mente e voz continuavam fortes como sempre. E não gostava de esperar.

Rowan não sabia o que fazer. Deveria contar o que Sheba dissera? Deveria dizer que achava que os Batedores menti­ram a Jonn?

Olhou em torno do anel de rostos na praça. Algumas pessoas, como Neel, o oleiro, estavam ansiosas. Algumas, como Bronden, Bree e Hanna, desconfiadas. Algumas, como Solla, o confeiteiro, entusiasmadas. Algumas, como Vai e Ellis da azenha, estavam meramente curiosas.

Rowan sabia como aquelas expressões iriam se alterar se repetisse o enigma que escutara naquele bosque. Não estava seguro se conseguiria lidar com o medo, raiva e pâ­nico que se instalaria nos presentes.

— Então? — irrompeu a voz de Bronden no meio do silêncio.

Rowan tomou uma decisão. Iria esperar até ter tido oportunidade de falar com a mãe e com Jonn Forte, em particular. Eles saberiam o que seria melhor. As palavras de Sheba era aterrorizadoras, mas era possível que ela o estivesse a enganar, movida pelo desprezo. Por agora, limitar-se-ia a repetir a mensagem que lhe fora transmitida na colina.

— Os Batedores disseram que os Viajantes não tinham nenhum motivo especial para esta visita — fungou. — Disse­ram que simplesmente a idéia lhes agradou.

Os olhos de Lann estreitaram-se, mas nada disse. Bronden roncou, com repugnância.

— Agradou-lhes a idéia de nos fazer perder o nosso tempo e de comerem a nossa comida! — afirmou. — Como deve ser bom ter idéias tão agradáveis!

— Convidaram-nos para ir ao acampamento deles esta noite, e todas as noites em que aqui estiverem, se assim o desejarmos — prosseguiu Rowan.

Diversos adultos, e todas as crianças, soltaram gritos de alegria.

Bronden franziu o cenho.

— Bom, certeza que eu não desejo lá ir — disse.

— Nem nós — afirmou Bree, lançando um olhar duro a Rowan como se fosse culpa dele. — E todos aqueles que querem perder o seu precioso tempo visitando o antro de ladrões devem recordar o que decidimos. Nem uma pa­lavra sobre as bagas da Montanha deverá ser proferida perto dos Viajantes.

— Quase de certeza que já sabem, Bree — exclamou Val, a moleira. — Se não, por que haveriam de ter vindo? Essa coisa de uma idéia que lhes agradou não faz sentido. — O seu irmão gêmeo Ellis anuiu lentamente, concor­dando.

De novo se ouviu a multidão a murmurar. E, desta vez, foi um som de irritação.

— Mesmo assim — disse a velha Lann —, vamos ter tento na língua. Se estivermos a fechar o portão depois do bukshah já ter fugido, paciência. Mais vale prevenir do que remediar. Para além de mantermos a boca fechada, temos também que manter os Viajantes longe dos nossos jardins, a todo o custo.

— As bagas da Montanha não existem apenas nos jardins — recordou-lhe Timon. — Allun e os outros sete que subiram a Montanha também têm as bagas. Os pássa­ros têm comido as bagas e espalhado as sementes. Há plantas novas por todo o lado. Mais e mais em cada dia que passa. O seu aroma já tornou doce o ar da aldeia. — Acenou a mão em torno da praça.

— Nesse caso, vamos ter que dizer aos Selvagens que não são bem vindos na aldeia — disse Bree. — Devem per­manecer no acampamento deles, nas colinas.

— Não podemos fazer isso, Bree — contrapôs Timon. — Os Viajantes são nossos amigos e nossos aliados em tem­pos conturbados.

— Concordo. Não nos podemos dar ao luxo de irritar os Viajantes — afirmou Jiller, tranqüilamente. — Lutamos juntos contra os Zebak no passado, e poderemos ter que o fazer de novo um dia. Precisamos da amizade deles.

— Tal como eles precisam da nossa. — A velha Lann perfilou a cabeça. — Por isso terão que obedecer às nossas regras, Jiller. Para o bem e para o mal. Esta questão é dema­siado importante para nos deixarmos conduzir pela fra­queza.

Bree, Hanna e Bronden anuíram. Tal como muitos ou­tros.

— Está então decidido — concluiu Lann. — Assim será. Jiller fez um pequeno som de irritação e consternação.

Timon revelava uma expressão séria.

Não eram os únicos que consideravam a decisão inade­quada. Rowan imaginava o que Allun, Marlie e Jonn diriam quando soubessem que os Viajantes não estavam autoriza­dos a entrar na aldeia.

Voltou-se e começou a afastar-se da praça. A reunião estava a deixá-lo incomodado. E tinha de ir ver os bukshah. O sol não tardaria a deslizar por trás da Montanha e o vale começaria a ficar escuro e frio. Era importante que eles vol­tassem para os seus campos antes disso.

— Rowan, onde vai? — chamou Annad. Correu para ele e puxou-lhe pela mão. — Temos de ir para casa, para nos aprontarmos cedo para o jantar. Jonn vem jantar conosco. Depois podemos ir todos juntos ao acampamento dos Viajan­tes. Foi o que a mãe disse.

— Primeiro tenho de ir aos campos dos bukshah, Annad — disse-lhe Rowan. — Estrela e os outros dispersaram-se enquanto estive nas colinas.

— Porquê? — inquiriu a menina.

Rowan tentou sorrir.

— Talvez, como os Viajantes, a idéia lhes tivesse agra­dado — brincou. — Mas, não se preocupe, Annad. Se demorar muito tempo a trazer os animais, não janto e encon­tro-me com você, com a mãe e com Jonn no acampamento. Diga isso à mãe. Está bem?

Ela anuiu e correu para junto do aglomerado de pessoas.

Rowan começou a andar em direção aos campos. Virou-se uma vez e viu Annad a acenar para ele. Acenou também e prosseguiu o seu caminho. Como era uma menina engraçada, pensou. Estava sempre a perguntar porquê.

Por que o céu é azul? Por que não posso ficar acordada toda a noite? Por que os girinos comem ervas e os sapos comem insetos? Por que não caem as nuvens? Por que se dispersaram os bukshah?

Rowan chegou à lagoa dos bukshah. Não havia nenhum animal à vista. Suspirando, começou a avançar ao longo do riacho.

Por que teriam os bukshah dispersado, logo hoje? Havia muita erva nova nos campos. Havia muita água. Os bukshah nunca se afastavam muito da sua lagoa. Mas hoje, isso aconteceu. Precisamente quando Rowan desejava chegar cedo a casa. As terríveis palavras de Sheba perturbavam-no. Quer se tratasse de uma brincadeira cruel ou não, queria partilhá-la com a mãe e com Jonn, aliviando-se assim do fardo de só ele saber.

Olhou em frente e avistou os bukshah à distância. Con­tinuavam a seguir o riacho. Apressou o passo.

A vida em Rin decorre dia após dia, inalterada, pensou. Subitamente, três coisas estranhas e preocupantes aconte­cem em simultâneo. A chegada dos Viajantes, Sheba mostra-se com medo — ou finge — e agora os bukshah disper­sam-se. É mesmo má sorte. Franze o cenho.

Seria apenas má sorte? Ou estaria tudo de alguma forma relacionado?

O sol mergulhou por trás da Montanha. A luz enfra­quece. Rowan estremece. De novo, as palavras de Sheba surgem na sua mente.

O inimigo chegou... O inimigo... CHEGOU.

 

O VALE DO OURO

E assim os Gigantes de Inspray combateram na en­costa da Montanha, para verem qual deles iria ficar com o lendário Vale do Ouro. Lutaram ao longo de seis longos dias e seis longas noites. O som dos seus gritos era como um furioso furacão, o confronto das suas armas como mil címbalos e o bater dos seus pés como trovoada. E nenhum deles cedia...

Ogden, o contador de histórias, estava sentado junto à fogueira, narrando a sua lenda. A sua volta, muitas crianças — crianças de Rin e também crianças dos Viajantes. Por­que, apesar das crianças dos Viajantes terem escutado as his­tórias de Ogden vezes sem conta, nunca se cansavam delas.

Atrás deles, nas sombras, figuras mais altas. Eram os adultos de Rin que se tinham deslocado ao acampamento de Ogden. Rowan avistou Timon, o professor, entre os outros. Junto dele, Maise, a bibliotecária. Também lá esta­vam Allun, com Sara e Marlie, tal como Solla, o confeiteiro.

Os adultos poderiam rir-se mais tarde sobre as histórias dos Viajantes. Poderiam afirmar que as histórias que Ogden contava não eram verdadeiras, mas lendas, às quais foi inte­ligentemente atribuída vida. Por agora, limitavam-se a ouvi-las atentamente, como toda a gente.

Rowan sabia que também a mãe e Jonn Forte estariam entre a multidão, pois Annad estava agora sentada ao seu lado, junto à fogueira. Ainda não tivera tempo para vê-los ou falar com eles. Viera diretamente dos campos dos bukshah para o acampamento.

Levara horas a reunir os animais em segurança. Quando por fim alcançou a manada, fora necessário muito tempo para falar calmamente com Estrela antes de ela lhe obede­cer e conduzir os outros de volta a Rin. Reparara depois o melhor que conseguiu o portão que eles abriram para se afastar.

Esperava que agora fossem dormir. Poderiam facil­mente derrubar o portão outra vez, se assim o entendessem. Estrela continuava a parecer inquieta, mas certamente que não tentaria sair outra vez, na escuridão.

O tom de voz de Ogden elevou-se, interrompendo os pensamentos de Rowan. A narração do contador de his­tórias atingia o seu clímax.

— Durante seis dias e noites, a terra da Montanha foi esmagada e o sangue escorreu. Durante seis dias e noites, a vegetação foi arrancada, as árvores derrubadas. Durante seis dias e noites, o ar encheu-se dos terríveis sons da fúria dos gigantes e dos cheiros imundos da transpiração e ódio dos gigantes. Então, quando o sétimo dia amanheceu, e a batalha prosseguia, foi como que se a Montanha gritasse, “Basta!”.

— O chão estremeceu. Grandes fendas e fossos rasga­ram-se na terra, erguendo-se fumo e labaredas que tolda­ram o céu.

— Rochedos enormes desprenderam-se do topo da Montanha, atingindo os gigantes, arrancando as árvores, amontoando-se uns em cima dos outros em torno do Vale do Ouro. E as pessoas no Vale ficaram aterrorizadas. Grita­ram e agarraram-se umas às outras, pensando que agora, realmente, as suas últimas horas tinham chegado.

Ogden olhou em redor para os olhos esbugalhados das crianças sentadas aos seus pés. A lenha da sua fogueira crepitava e estalava. Sob o nariz pontiagudo, os seus lábios enrugaram-se num sorriso. A sua voz baixou para um tom de murmúrio.

— Depois, finalmente, o combate cessou. A fumaça e poeira dispersaram-se. Os gigantes, moribundos, estavam estendidos na encosta da Montanha, os seus corpos atin­gidos pelos rochedos que a Montanha lançara em fúria contra eles. Olharam para baixo com olhos vidrados, em busca da última visão do encantador lugar que tanto dese­jaram para si.

— Depois, gemeram. Berraram. Vibraram os punhos em raiva e dor, indefesos. Porque tudo o que viram por baixo eram grandes pilhas de rochas e fendas enormes que cicatrizavam a terra. O prêmio de ouro pelo qual tinham combatido, numa fúria que se traduzira na sua morte, desaparecera das suas vistas. Desaparecera da vista de todos aqueles que o ameaçassem. Desaparecido para sempre. Desaparecido, desaparecido, desaparecido...

A voz de Ogden apagou-se lentamente.

— Oh, não! — murmurou Annad, que nunca ouvira a história. Cerrava os punhos. — Aqueles gigantes maus destruíram o Vale do Ouro. As rochas cobriram-no. Ro­laram de cima e mataram todas aquelas pessoas boas e sábias. Sepultaram os caminhos preciosos, as fontes de prata, as frutas e os pássaros e os pequeninos cavalos brancos e...

Rowan deu-lhe a mão.

— Shhh, Annad. Escute — disse, suavemente. Ogden anuiu, os olhos negros brilhando à luz da fo­gueira.

— Os gigantes morreram amaldiçoando e chorando. Amaldiçoaram-se um ao outro e amaldiçoaram a Monta­nha. Choraram pela perda do tesouro mais brilhante exis­tente na terra. Mas desconheciam o segredo da Montanha.

Fez uma pausa.

— Vocês sabem qual é? — perguntou.

As crianças à sua volta, mesmo aquelas que já tinham ouvido a história vezes sem conta, abanaram silenciosa­mente a cabeça. Queriam que Ogden contasse o final.

Inclinou-se para a frente. A sua voz era agora tão suave quanto a brisa da noite.

— Sendo assim, vou contar-lhes — disse. — O Vale do Ouro não ficou destruído pela chuva de pedras. Enquanto as pessoas se agarravam umas às outras, aterrorizadas e temendo a morte, viram que estava a ocorrer um milagre. Nenhum rochedo caiu no Vale.

Rowan sentiu a mão de Annad apertar a sua. A voz suave de Ogden continuou.

— Enquanto ao redor a terra abria e as rochas se amon­toavam, o Vale do Ouro permaneceu seguro e protegido. Quando a avalanche terminou, novas e enormes colinas de pedra da Montanha tinham-se erguido à sua volta, e o horrível Fosso de Unrin, onde abundava o mal e a morte, barrava o caminho para a sua entrada. Pelo que as pessoas ficaram sabendo que as suas casas estavam em segurança dos olhares predadores e das mãos gananciosas. E podiam viver em paz e felicidade, sem medo.

Annad não conseguiu conter-se.

— Então, o Vale do Ouro continua a existir, para lá da Montanha? — exclamou. — E as pessoas, os cavalos brancos, as casas pintadas, a fonte de prata e...

Ogden sorriu para ela.

— Tal como contei, minha menina — disse. — Mas, desde esse dia, mais ninguém o voltou a ver. Nem os Viajan­tes, os grande amigos do povo do Vale em épocas passadas, sabem onde fica. Porque os Viajantes estavam em luta com os Zebak na costa quando os Gigantes de Inspray lutaram e morreram.

— Muitas almas imbecis, aquelas que só acreditam no que vêem, afirmam que já não existe — continuou. — Alguns chegam ao ponto de dizer que o Vale do Ouro nunca existiu! Mas eu sei que existiu, e que continua a existir. E, agora, também vocês.

Ogden reclinou-se e cruzou as mãos. Annad descon­traiu-se, soltando um suspiro de prazer e contentamento.

Rowan questionou-se mais uma vez sobre o poder de Ogden, o contador de histórias. As suas palavras cativavam como um feitiço, um feitiço tão poderoso quanto qualquer um preparado com ervas especiais colheitas ao luar ou com palavras lidas de um livro antigo. Rowan já ouvira várias vezes a história do Vale do Ouro. Mas cada vez era como a primeira.

Mesmo agora, com todas as outras coisas que lhe per­turbavam a mente, o feitiço tivera efeito sobre ele. Mais uma vez, a sua mente fora invadida pelo mistério. Mais uma vez, quase acreditava no lendário Vale do Ouro.

Fechou os olhos enquanto a voz de Ogden sussurrava na sua memória. “O Vale do Ouro... Um lugar fantástico, repleto de luz, vida e riso... A fonte de prata, correndo fria e fresca das entranhas da terra... Lanternas coloridas e brilhantes pendendo nas árvores... Pessoas bonitas, altas e fortes, sábias e boas... Flores e frutos de todos os gêneros, derramando pelos caminhos de gemas reluzentes que serpenteavam pelos jardins... Pequenos cavalos brancos, com selas de seda... Casas pintadas de encantadores padrões, cada uma diferente... Diante de cada casa, uma ave dourada — uma coruja com olhos de esmeralda...”

Rowan quase que acreditava. Quase acreditava que, para lá de Rin, para lá da Montanha, existia um lugar pacífico e belo, perdido e oculto dos olhos predadores. Aguardando, apenas aguardando...

— O Vale do Ouro — disse Annad, o rosto radiante. — O Vale do Ouro.

 

ALLUN CONTA UMA HISTÓRIA

Houve uma agitação nas pessoas e Rowan olhou para cima, o sonho interrompido. Allun dava um passo em frente.

— Agora, Ogden — dizia com um sorriso. — Nós, o povo de Rin, temos uma história para você, se estiver disposto a ouvir. É uma história recente. Uma história de grande coragem.

O coração de Rowan acelerou. Não sabia que aquilo ia acontecer. Sentiu a cara ficar quente. Annad deu-lhe uma leve cotovelada, orgulhosa.

O contador de histórias olhou para cima, surpreen­dido. A luz da fogueira dançava sobre o seu cabelo.

— Escutarei com prazer, Allun — disse, em tom de troça. Piscou o olho para as crianças dos Viajantes aos seus pés.

— Que grande história terá o povo de Rin para nos contar? — exclamou. — Será que um herói evitou que o pão de Allun se queimasse, talvez? Será que os destemidos jardineiros de Rin lutaram contra uma praga de lesmas com as próprias mãos? Quem sabe que terrores nos aguardam nesta história? Estremeço só de pensar.

As crianças dos Viajantes soltaram fortes gargalhadas. Annad pôs-se de pé com um salto.

— Parem de rir! — gritou. — A nossa história é tão boa quanto as vossas.

Rowan puxou-lhe pelo vestido.

— Cale-se, Annad — murmurou. — Ogden está só brincando. — Mas, quando ela se sentou de novo no chão, soube que a sua irmãzinha não era a única enfurecida com as palavras de Ogden.

Muitas das crianças de Rin, e também os adultos, franziam o cenho. Alguns deles já não confiavam nos Viajantes. E não gostavam que troçassem deles.

Mas Allun não perdeu o sorriso.

— Pode troçar, Ogden — disse, na sua voz cristalina. — Mas lembre-se que as pessoas de Rin nem sempre foram simples agricultores. Os nossos antepassados foram guerrei­ros. Lembre-se que, no passado, os nossos dois povos lu­taram lado a lado para derrotar o inimigo que pretendia invadir as nossas terras.

— Sim! — gritou uma voz familiar. A multidão agi­tou-se. As pessoas viraram-se para olhar para a mulher de cabelos brancos que se apoiava na sua bengala, nas som­bras. O coração de Rowan afundou-se ao reconhecer a velha Lann.

— Ficou mais do que satisfeito por permanecer atrás da nossa força quando os Zebak vieram, Viajante! — disse.

— Recorde-se das prisões de ferro deles. Recorde-se da Guerra das Planícies. Recorde-se dos muitos de nós que morreram. Recorde-se disso antes de fazer piadas à nossa custa.

As pessoas de Rin soltaram exclamações de concordân­cia.

— Nós recordamos, respeitável idosa — afirmou Og­den, em tom pacífico, estendendo as mãos para o fogo. — Nós, os Viajantes, não esquecemos, por exemplo, que os vossos guerreiros dependeram da astúcia e conheci­mento dos Viajantes para urdirem os seus planos e coloca­rem as armadilhas.

O seu tom de voz baixou.

— Não esquecemos como os Viajantes alimentaram e deram abrigo aos vossos guerreiros quando teriam morrido de fome nas planícies selvagens, longe dos seus pequenos campos, confortáveis casas e armazéns bem providos. E não esquecemos como os Viajantes combateram ao seu lado e morreram também às centenas, quando podiam ter partido para zonas seguras, deixando-os perecer sozinhos.

Emitiu um meio sorriso.

— Não — murmurou. — Nós não nos esquecemos de nada. Embora outros pareçam esquecer... com muita facilidade. — Apanhou do chão uma folha de uma margarida-selvagem e fitou-a, pensativo.

Instalou-se um silêncio no acampamento. Um silêncio desconfortável. Depois, Ogden levantou a cabeça. Os olhos reluziam, dançando como as chamas, e o seu sorriso alar­gou-se.

— Apesar de tudo, fala verdade, Lann de Rin — afir­mou. — A vossa curta história é uma história de heróis, como os Viajantes bem sabem. Sabemos como valorizam a coragem.

Os lábios grandes retorceram-se.

— Valorizam-na como valorizam o trabalho duro, casas sólidas, barrigas cheias e costumes instituídos. E tal signi­fica que o valorizam de fato. Sabemos isso, embora não tenhamos pretensões de compreendê-lo. E se, por vezes, nós os Selvagens inúteis troçamos, é apenas devido à nossa ignorância, povo de Rin. Mais depressa entraríamos na Fossa de Unrin do que, deliberadamente, os ofendería­mos. Rogamos que nos perdoem. — Fez uma vênia com a cabeça.

Muitas das pessoas de Rin anuíram solenemente. Mas as crianças dos Viajantes abafaram risadas com as palmas das mãos. Rowan sabia que Ogden estava a troçar outra vez. Sabia também que, subjacente à piada, havia algo mais sinistro. As palavras de Lann tinham aberto feridas antigas. Aberto de forma profunda.

Também Allun o sentiu. Rowan percebeu pelo nervo­sismo nos olhos dele e pela expressão da sua boca. Mas limitou-se a anuir para Ogden e a sorrir para os presentes.

— Bom, agora que isso ficou esclarecido — afirmou —, posso contar a minha história?

Ogden estendeu as mãos.

— Conta, Allun, filho de Sara de Rin e de Forley dos Viajantes — respondeu, friamente. — O sangue de ambos os nossos povos corre-lhe nas veias. Os nossos ouvidos estão abertos às suas palavras.

— Conte, Allun o padeiro — disse a velha Lann. — Mas cuidado com a sua língua tagarela. Nada de divagações. Tome cuidado para não acrescentar nada que não seja necessário à história.

Ogden ergueu as sobrancelhas oblíquas e lançou um olhar curioso na direção dela.

Mas Rowan sabia o que ela queria dizer. Lann receava que, ao contar a história, Allun divulgasse que encontrara umas bagas vermelhas e doces que cresciam junto às grutas da Montanha. Receava que ele se gabasse de ter comido algumas, de ter dado também a Marlie e de ter enchido as algibeiras para trazê-las para Rin. Receava que ele contasse o segredo deles.

— Não se preocupe, Lann — respondeu Allun. — Não a vou desapontar.

Fixou o olhar em Ogden e ergueu o tom de voz.

— Uma manhã — começou —, o povo de Rin acordou e viu que o riacho que corria da Montanha através da sua aldeia não continha praticamente água. Quando a noite chegou, o pequeno fluxo que ainda corria parou por completo...

O silêncio instalou-se na multidão em torno do acampa­mento. Rowan viu os Viajantes adultos a parar para ouvir, aproximando-se. Reconheceu Zeel, a chefe dos Batedores, infiltrando-se no círculo. Os Viajantes sabiam que o riacho significava a vida para Rin e para a sua manada de bukshah. Até os olhos de Ogden tinham perdido a expressão de zombaria.

Rowan fechou os olhos enquanto Allun prosseguia. Não precisava de ouvir a história. Vivera-a, com Jonn Forte do pomar, Allun o padeiro, Marlie a tecelã, Bronden a marceneira e Val e Ellis da azenha.

Há seis meses atrás, os sete subiram à Montanha proibida para descobrirem o motivo da ausência da água no riacho e tentar fazê-la chegar de novo a Rin. No final, e tal como Sheba vaticinara, foi Rowan, o elemento mais pequeno e mais fraco do grupo, que conseguira realizar a proeza.

Mas Rowan sabia que não era nenhum herói. Tal como Sheba afirmara, continuava a ser o mesmo menino que sem­pre fora — tímido e cheio de medos.

A questão é que ele agora compreendia que existiam diferentes tipos de coragem. Sabia agora que, se aqueles que ele amava necessitassem de ajuda, ele podia sentir terror, enfrentá-lo e cumprir a sua missão.

Ter noção disso dava-lhe forças. A sensação fria e soli­tária que lhe cauterizava o peito desde que o pai falecera há anos, tinha desaparecido. Era agora mais feliz, muito mais, do que antes de subir à Montanha. Como Sheba dissera, ensinara-o bem.

Mas não se sentia um herói. Nada que se parecesse. E, quando lhe chamavam herói, sentia-se desconfortável. Remexia-se agora sentado no chão. Desejava, do fundo do seu coração, poder escapar dali, encontrar Jonn e a mãe e conversar com eles. Mas era impossível. Seria con­siderada uma descortesia da parte dele abandonar o acam­pamento naquele momento. Teria de esperar.

A pequena mão de Annad puxou-lhe a manga da ca­misa.

— Eles estão a ouvir — murmurou. — Olhe para eles. Espere até ouvirem o que fez, Rowan. Espere até eles saberem os perigos que enfrentou para salvar a aldeia. — Encheu o peito. — Espero que eles saibam que sou sua irmã! — acres­centou.

Os olhos dela vaguearam em redor, observando as crian­ças dos Viajantes sentadas, de olhos muito abertos, junto à fogueira.

— Não se atreverão a troçar de nós depois disto — anuiu, com satisfação.

Rowan afagou a mão dela.

— Não teria tanta certeza disso, Annad — sussurrou também. — Os Viajantes gostam de rir. Não levam nada a sério por muito tempo.

 

A história de Allun terminara. Havia silêncio em redor das cinzas moribundas do acampamento. Depois os Viajan­tes, e o povo de Rin, bateram palmas e soltaram vivas.

Allun sorriu para eles e estendeu a mão para Rowan, sentado nas sombras. Rowan sabia que ele queria que se le­vantasse. Mas não o podia fazer. Encolheu-se, sem vontade que os olhos curiosos dos Viajantes o encontrassem.

— Então! — disse Ogden, remexendo pensativamente as cinzas. — Então, Allun. Agora tenho mais uma história para contar por essas terras afora. A história de Rowan de Rin.

Ele anuiu.

— É uma excelente história — afirmou. — Contou-a bem. — Depois sorriu. — Mas eu irei contá-la melhor.

Toda a gente se riu, Allun com mais vontade do que os outros.

Ogden largou o pau que tinha na mão e inclinou-se para a frente.

— Agora, Allun, temos de conversar, em particular — disse.

Allun hesitou e Ogden franziu levemente o cenho.

— Tenho algumas perguntas para lhe fazer. — Fez uma pausa. — A Montanha é um grande mistério. Diz-se que o povo do Vale do Ouro subiu até ela, antes do combate dos Gigantes de Inspray e de eles o terem escondido da nossa vista. Mas há muito que esperava por uma testemunha que me pudesse falar dos seus prodígios. Por favor, não me desa­ponte, Allun.

Um pequeno silêncio caiu sobre o grupo em torno da fogueira. Rowan percebeu que o povo de Rin continha a res­piração.

— Lamento ter de o desapontar, Ogden — disse Allun. — Não posso ficar. A minha mãe está cansada e preciso regressar à aldeia com ela.

— Nesse caso, vou acompanhar-los — respondeu Og­den em tom simpático. — Vamos partilhar os três uma ti­gela de sopa na vossa cozinha quente, como já aconteceu várias vezes.

De novo, Allun hesitou. Rowan quase sentia a dor por trás do sorriso dele. E a dor era facilmente visível no rosto de Sara, agarrada ao braço do filho.

— Desta vez, preferimos que nenhum elemento da sua tribo se desloque à aldeia, Ogden dos Viajantes. — Lann avançara de entre a multidão. A voz era firme e forte e fitou Ogden diretamente nos olhos. — Consideramos que as suas visitas excitam as crianças. E elas estão cansadas de­pois de um longo Inverno. Por isso, pedimos que respei­tem os nossos desejos e se mantenham no seu acampa­mento.

No rosto de Ogden, nem um músculo se moveu. Era impossível perceber o que estava a pensar. Mas Rowan con­seguia ver os rostos sombrios de Zeel e dos outros Viajantes em torno da fogueira. Não estavam aceitando bem esta re­cusa.

— Talvez possa falar com um outro elemento do grupo da Montanha, Ogden — interveio Sara, em desespero de paz. — Jonn Forte do pomar está aqui. E Marlie a tecelã, também.

Ogden mirou-a por instantes. Parecia esta a refletir.

— Noutra altura, gostaria muito de conversar com cada um dos sete — respondeu por fim, com cortesia. — Por agora... — Os seus olhos penetrantes examinaram os rostos pelo acampamento. — Deixem-me conhecer o menino Ro­wan. Ele, em particular, tem interesse para mim.

Rowan mexeu os pés e sentiu as orelhas a ficarem quentes. Sentiu Annad a empurrá-lo, entusiasmada. Sabia que unha que se levantar e ir ao encontro do homem junto à fogueira. Mas não queria fazê-lo. Não queria nada fazê-lo.

Forçou-se a pôr-se de pé e avançou, cambaleante. Sentiu os olhos da multidão sobre ele. Mas os únicos olhos que viu foram os de Ogden: profundos, negros, atraindo-o para ele.

 

O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Então, Rowan dos bukshah — disse Ogden, estendendo uma mão fina e morena para que se aproxi­masse. — Temos muito para conversar. Esta é a segunda vez que ouço falar de você hoje. Estava na colina com a comissão de boas-vindas, segundo me informaram.

Rowan anuiu. Recordava-se das expressões curiosas dos Batedores. Quer dizer que fixaram o nome dele e que o reportaram a Ogden. Porquê?, questionou-se. Que inte­resse teriam num menino mensageiro?

Ogden inclinou a cabeça para o lado.

— Pensa e interroga-se muito, não é? — disse, num tom de voz baixo. — Mais, talvez, do que a maioria do seu povo. E, talvez por isso, por vezes se sinta afastado deles. Talvez se sinta muito mais satisfeito em tomar conta dos seus animais. Será assim, Rowan dos bukshah?

Rowan permaneceu imóvel, sem saber o que fazer. Conse­guiria aquele homem ler-lhe a mente? A sua alma? Olhou nervoso para trás. Onde estavam a mãe e Annad? Onde estava Jonn?

Viu que eles observavam um Viajante mágico a fazer aparecer e a desaparecer um pequeno sino prateado. As mãos do mágico moviam-se como um pássaro a esvoaçar, lançando o sino de um lado para o outro, para que relu­zisse à luz da fogueira, aparecendo e desaparecendo. Annad abria a boca, maravilhada.

— Não tenha medo de mim— disse Ogden, ainda naquela voz calma e gentil. — Não lhe quero fazer mal. Desejo apenas fazer-lhe algumas perguntas. Perguntas simples. Quero compreender-te melhor.

Rowan sentiu as bochechas ficarem ainda mais quentes. Obrigou-se a ficar direito e preparou-se para enfrentar o que estava para vir. Sabia que seria difícil mentir àquele homem, com os seus olhos penetrantes. Rowan não sabia o que faria se Ogden, o contador de histórias, lhe pergun­tasse diretamente se alguém trouxera algo com eles da Mon­tanha.

Mas, para sua surpresa e alívio, Ogden não perguntou. Em vez disso, questionou Rowan sobre a sua mãe e pai. Per­guntou sobre os bukshah e a vida que Rowan levava. No final do interrogatório, pegou no queixo do menino e mirou profundamente os seus olhos.

— Honesto como o dia é longo — afirmou e retirou a mão. Olhou para o rosto surpreendido de Rowan e os seus lábios esboçaram um breve sorriso.— A tua provação terminou, Rowan dos bukshah — suspirou. — Pode ir, com a minha bênção.

Rowan baixou a cabeça e retrocedeu cuidadosamente para longe da fogueira. Quando se atreveu a olhar de novo, Ogden colocara as mãos atrás da cabeça e fitava o céu estre­lado. Tinha a testa enrugada, como se as preocupações do mundo tivessem caído sobre os seus ombros.

Rowan virou-se e foi-se embora.

 

Pouco depois, Rowan seguia para casa com Annad, Jiller e Jonn Forte. Já passava da hora de deitar de Annad e ela estava com sono. Mas continuava a tagarelar sobre a história de Allun enquanto caminhava, cheia de orgulho e entusiasmo.

Rowan olhou para a mãe, movendo-se altiva e forte ao seu lado. Apesar de irritada com a decisão de proibir os Viajantes de entrarem na aldeia, parecia mais animada do que nos últimos dias. A visita à colina fizera-lhe bem.

Será que devia contar agora a ela e a Jonn sobre Sheba? Não o queria fazer ao pé de Annad. Talvez fosse melhor es­perar até chegarem a casa e Annad ter ido para a cama. Mais alguns minutos não iriam fazer diferença.

Além do mais, sob aquele céu repleto de estrelas, com a sua família junto de si, o seu medo começava a tomar contornos de infantilidade. Quanto mais pensava sobre o encontro no meio do arvoredo, menos seguro se sentia de que Sheba não estivera a brincar com ele.

Jiller virou-se e viu-a a olhar para ele.

— Procedeu bem, Rowan — disse, calmamente. — Es­tive a observá-lo enquanto conversava com Ogden, o contador de histórias. Estava calmo e manteve-se perfi­lado. Estou orgulhosa de você.

Rowan não disse nada. Ainda se sentia abalado depois daquele encontro com Ogden. Tinha a certeza que as per­guntas do homem, que, à superfície, pareciam tão simples, tinham algum sentido que lhe escapava. Apesar de tudo, o seu coração ficou consolado com as palavras da mãe. Não dizia aquelas coisas com freqüência. Ela considerava que era melhor ensiná-lo a ser forte e em não procurar elo­gios por aquilo que era suposto fazer.

— Rowan mostrou-lhes bem — bocejou Annad feliz. — Mostrou umas coisas àqueles Selvagens.

— Annad! — exclamou Jiller, meio chocada, meio diver­tida. — Não trate os Viajantes assim.

Annad bocejou de novo.

— Por que não? — perguntou. — Toda a gente trata. Toda a gente os trata por “Selvagens”.

— Nem toda a gente, pequenina — interveio Jonn com firmeza. — A sua mãe não trata. Eu não trato. Marlie e Allun não tratam. Só aqueles que pretendem insultar os Viajantes utilizam essa palavra.

— Oh. — Annad pensou um pouco. — Porquê?

— Há quem pense que os Viajantes não têm nenhuma utilidade — explicou Jiller. — Por isso os tratam por Sel­vagens, como as margaridas-selvagens.

— Porquê? — perguntou Annad de novo. Os seus olhos quase se fechavam do cansaço, mas continuou determi­nada ao lado deles. — Porquê? — repetiu.

Rowan viu Jiller e Jonn sorrirem um para o outro por cima da cabeça de Annad.

Depois Jonn levantou a menina nos seus braços.

— Porque as margaridas-selvagens não têm nenhuma finalidade — disse-lhe, continuando a andar. — Quando o nosso povo chegou pela primeira vez a Rin, as margari­das-selvagens cresciam por todo o vale, como continuam a crescer nas colinas e para lá delas. Mas, quando foram semeadas as colheitas úteis, e construídas as casas e caminhos, as margaridas foram cortadas. Pelo que parece, não cres­cem outras plantas onde houver margaridas-selvagens. É por isso que os bons agricultores não gostam delas. Como alguns não gostam dos Viajantes.

Annad pensou um pouco.

— As margaridas-selvagens não são totalmente inúteis — argumentou. — É das raízes delas que Sheba faz o re­médio que nos vendeu, para o nariz de Rowan.

Jonn riu-se.

— O pólen delas faz com que o nariz do coelho magricelo fique a pingar e as raízes tratam-no — disse, olhando para Rowan. — A doença e a cura, numa pequena planta. De fato, a natureza é muito estranha e maravilhosa.

Alcançaram os jardins de Bree e Hanna e Jonn parou. Rowan cheirou o ar. Até o seu nariz entupido detectava o cheiro doce das flores das bagas da Montanha fluindo deli­ciosamente no ar fresco.

— Tenho que os deixar aqui — disse Jonn, pousando Annad no chão. — Vou ficar de guarda com Bree e Hanna esta noite.

Rowan sentiu-se decepcionado. Estava seguro que Jonn os acompanharia, para se sentar um pouco junto da fo­gueira. Tantas vezes que o fizera! Que má sorte, logo na noite que Rowan precisava dele.

Jiller puxou o xale mais para si junto aos ombros.

— Boa guarda — disse. — Receio, tal como os outros, que Allun acabará por contar a Ogden sobre as bagas da Montanha. Não esteve muito longe. Ele e Sara deixaram o acampamento cedo. Mas podem voltar mais tarde, sozi­nhos, e então, quem sabe...?

— Allun não é insensato. Vai manter a boca fechada, tal como a mãe — disse Jonn com firmeza. — Por que acha que deixaram cedo o acampamento? Queriam que todos percebessem claramente que, no caso dos Viajantes des­cobrirem sobre as bagas, não foram Allun nem Sara quem lhes contou.

— Mas Allun é meio Viajante — argumentou Jiller. — E pensa que todo este alarido sobre as bagas da Montanha não faz sentido.

— Mãe! — protestou Rowan, chocado com as palavras dela. — Allun nunca nos trairia!

Jiller nada disse.

— Pensei que era amiga dele! — acusou Rowan.

— Sou de fato amiga de Allun, Rowan — disse Jiller, em tom grave. — Mas isso não significa que não conheça as suas fraquezas. Concordo, ele nunca nos trairia volun­tariamente. Mas pode considerar que contar sobre as bagas da Montanha não seja uma traição.

Mordeu o lábio.

— O sangue dos Viajantes corre com força nas veias de Allun. Acredita que tudo o que cresce é pertença de todos. Não entende por que motivo o povo de Rin deseja manter a sua dádiva em segredo. Sei isto porque ele me contou. Tal como a Marlie.

Rowan preparava-se para falar de novo, mas Jonn levan­tou a mão para acalmá-lo.

— Independentemente do que Allun faça, tanto ele como eu temos a certeza que os Viajantes já estão ao corrente da nova colheita, Jiller — disse. — Seja não sabem, não tardarão a saber.

— Mas, como? — gritou Jiller. — Lann pediu a Ogden que...

— A ordem insultuosa de Lann não impedirá os Viajan­tes de visitarem a aldeia durante a noite, se desejarem — respondeu Jonn calmamente. — Terão apenas que se so­correr dos olhos e narizes para detectarem os arbustos das bagas da Montanha. Estão por todo o lado!

Jiller suspirou.

— Penso que não precisamos de ter medo, Jiller — disse-lhe Jonn suavemente — Haverá bagas da Montanha com fartura em Rin no próximo ano. Mais do que suficiente para assegurar um bom negócio e para todos comermos.

Sorriu.

— Muito em breve, as bagas da Montanha serão tantas quantas margaridas-selvagens havia — afirmou. — As pessoas começarão a queixar-se sobre elas, achando que são selvagens e inúteis, e acabarão por arrancá-las.

— Isso duvido — riu-se Jiller. — As flores são tão boni­tas. O aroma é maravilhoso. E nunca provei bagas tão doces e saborosas. São boas para comer, para cozinhar, para fazer sumo...

— Quer dizer que ninguém vai querer as minhas hoopberries, quando as bagas da Montanha crescerem? — pergun­tou Jonn, pendendo a cabeça e fingindo-se preocupado. — Irão as minhas árvores desaparecer do vale, como acon­teceu com as margaridas-selvagens? Depois terei que subir às colinas, como Sheba, para fazer as minhas colheitas.

— Isso nunca acontecerá. Gosto muito mais de hoopberries do que das bagas da Montanha — afirmou Rowan convicto.

— Também eu — gritou Annad. Adorava as bagas da Montanha. Mas gostava mais de Jonn.

Jonn espreguiçou-se.

— Bom, tenho que lhes dar boa-noite e deixá-los partir para a vossa lareira quentinha — bocejou.

Começou a caminhar para o portão dos jardins.

— Olá! — ouviu-o Rowan a chamar, sacudindo o por­tão. — Hanna! Bree! Abram!

Não se ouviu um som vindo dos jardins.

— Bree! Hanna! — gritou Jonn bem humorado. — Estão surdos ou a dormir? Deixem-me entrar!

Silêncio. Um silêncio profundo e misterioso.

Rowan estremeceu. Ao longe, ouvia mugidos baixos e inquietos vindos dos campos dos bukshah. E, das colinas, música fraca.

Ouviu-se um ronco irritado e depois um som alto quando Jonn se içou para cima do portão cerrado e saltou para o chão do outro lado.

— Que brincadeira é a essa? — ouviu-o Rowan gritar. — Onde estão? Se os encontro a ressonar na cama en­quanto eu...

Ouviu-se uma respiração contida. Um silêncio. Depois, o som de pés a correr e o portão a ser aberto por dentro. Ouviu-se de novo a voz de Jonn, estridente e aflita.

— Rowan! Jiller! Venham depressa!

 

PERIGO

Debruçaram-se sobre as duas formas deitadas de barriga para baixo no solo junto ao jardim das bagas da Montanha. Havia paus espalhados à volta deles.

— Estão respirando! — exclamou Jiller. — Oh, estavam tão imóveis que, a princípio, pensei...

— Também eu — respondeu Jonn severamente. — Mas estão vivos, não há dúvida. No entanto, não acordam.

Sacudiu o ombro de Bree. O homem não se moveu.

— Vê? — disse.

— As crianças! — exclamou Jiller.

Sem outra palavra, correu para a casa às escuras não muito longe dali, por trás de algumas árvores de fruto.

Rowan esperou nervoso pelo regresso dela. Os três fi­lhos de Bree e Hanna não eram particularmente amigos dele. Escarneciam demasiado da sua timidez e troçavam mui­tas vezes por causa disso. Mas detestava pensar neles em perigo, ou agachados e aterrorizados naquela casa às escuras, com os pais inconscientes no exterior.

Jiller regressou pouco depois.

— Estão dormindo, aconchegados nas suas camas — disse, ofegante. — Parecem em segurança. Mas não os tentei des­pertar. Tanto quanto me pareceu, sofrem do mesmo mal que os pais.

Levou a mão à face de Bree, pálida nas sombras profundas.

— Não tem febre — disse. — Mas este não é um sono natural, Jonn.

Jiller olhou em redor, tremendo, como que em busca de olhos vigilantes.

— Receava que algo parecido pudesse acontecer— afir­mou, pondo um braço à volta dos ombros de Annad. — Receei no momento em que ouvi as crianças a gritar esta tarde.

Olhou rapidamente para os arbustos no jardim.

— Não sei se foram incomodados ou se faltam alguns frutos — murmurou. — Não consigo perceber, nesta escuri­dão.

Jonn fitou-a, a boca cerrada. Depois, abanou a cabeça, como que para aclarar as idéias.

— Falaremos sobre isso mais tarde — disse. — Agora temos de cuidar de Bree e Hanna. Temos que os levar para um local abrigado,Jiller. São pesados mas, entre nós, acho que vamos conseguir.

— Querem que vá buscar auxílio? — perguntou Rowan. — A casa de Bronden fica perto. Tal como a de Marlie.

Jonn hesitou.

— Não — acabou por dizer. — Penso que, por agora, devemos lidar nós próprios com a situação, Rowan. Não queremos que as notícias se espalhem demasiado. Até sa­bermos...

Fitou Rowan diretamente nos olhos.

— Compreendeu? — inquiriu.

Rowan anuiu. Sabia tão bem quanto Jonn o que aconte­ceria se se espalhassem os rumores de que Bree e Hanna tinham sido atacados. Sabia que alguns aldeãos não hesita­riam em subir ao acampamento dos Viajantes com lanternas e archotes, para os acusar e ameaçar.

E isso seria perigoso. Perigoso para toda a aldeia de Rin.

Seria preferível que Jonn e Jiller conseguissem acordar Bree e Hanna e soubessem exatamente o que lhes aconte­cera. Algo simples podia estar no centro de tudo aquilo. Algo que não tivesse nada a ver com os Viajantes.

— Pode ajudar ficando aqui e mantendo-se vigilante, coelho magricelo — disse Jonn. — Não há agora tarefa mais importante do que manter os intrusos fora destes jardins.

— Eu ajudo! — insistiu Annad, sonolenta. — Também fico de guarda.

Jonn sorriu para ela, os dentes brancos na escuridão.

— Estou contando com isso, Annad — disse-lhe.

— Chame-nos ao mínimo ruído de alarme, Rowan — alertou Jiller.

Rowan anuiu. Viu a mãe e Jonn Forte debruçarem-se para erguerem o corpo inerte de Bree, transportando-o para a casa logo atrás dos jardins.

Jiller e Jonn, um pouco vacilantes com o peso que carre­gavam, desapareceram nas sombras da casa. A sós com Annad e com Hanna adormecida, Rowan apurou a visão nas trevas. Colunas de luar penetravam por entre os jardins.

Estava tudo calmo agora. Tão calmo que as respirações profundas de Hanna soavam alto. Dos campos dos bukshah não vinha qualquer ruído. Nenhum som do acampamento na colina. No entanto, o silêncio não era tranqüilo. Era como o silêncio da espera: pesado e repleto de segredos.

O inimigo secreto chegou.

Oculta-se nas trevas, cautela incautos!

Rowan sentiu o peso da irmã aumentar sobre o seu ombro. Olhou para baixo e viu que fechara os olhos.

— Annad — disse. — Quer ir para dentro da casa, para dormir lá?

Ela forçou as pálpebras pesadas a abrirem-se.

— Não quero dormir— murmurou. — Estou de guarda.

— Está, de fato — concordou ele. — Mantenha-se então de guarda.

Ela anuiu, feliz. As suas pálpebras fecharam-se de novo.

Rowan abraçou-a para a manter quente. Ficou de vigia, espreitando as trevas para lá dos jardins, examinando as sombras em busca do mais leve movimento. Escutou, no silêncio profundo, o mais ínfimo dos sons. Aguardou pelo mais pequeno sinal que alguém ou algo se ocultava por per­to, vigiando e escutando, tal como ele.

Mas não havia nada. Apenas uma voz monocórdica e persistente na sua cabeça. Associada à voz, uma imagem. Sheba, com o medo estampado no rosto.

Ouviu a mãe e Jonn a saírem da casa em direção aos jardins. Regressavam para vir buscar Hanna.

Olhou para Annad. Dormia profundamente. Não iria acordar. Sabia que chegara a altura.

— Jonn, mãe — sussurrou, em tom grave. — Tenho algo para lhes contar. Agora!

 

Os olhos de Jiller estavam negros de medo.

— O que significa isso? — perguntou ela. — O que significa, “a velha roda gira”?

Rowan olhou para ela surpreendido. Não pensara muito sobre essa parte do enigma.

— Não sei — respondeu. — Não sei o que significa nada. Nem mesmo Sheba. Mas ela estava com medo.

Ambos o fitaram. Uma nuvem cobriu a lua e os jardins enegreceram. Um pássaro esvoaçou numa árvore próxima. Annad murmurou no seu sono e mexeu-se nos braços de Rowan.

Jonn levantou-se.

— Penso que precisamos de ajuda — afirmou. — Já não podemos manter este assunto em segredo.

Jiller concordou.

— É tarde. Não podemos acordar toda a aldeia a esta hora.

— Nem o queremos fazer — disse Jonn. — Rowan tem de ir acordar aqueles que podem de fato ajudar.

— Timon — sugeriu Rowan. Para ele, Timon, o pro­fessor, era a pessoa mais provável de conseguir pensar com clareza sobre o enigma de Sheba. E um dos aldeões com menores probabilidades de entrar em pânico.

— Sim — concordou Jiller. — Timon. E Marlie.

— E Allun — acrescentou Jonn.

— Penso que não será sensato envolver Allun nisto — disse Jiller. — Tenho quase a certeza que os Viajantes têm algo a ver com o que se passou.

— Nesse caso, quem melhor do que Allun para nos ajudar? — perguntou Jonn. — Ainda bem que podemos contar com um amigo que conhece os hábitos dos Viajan­tes.

Jiller ficou em silêncio, mas Rowan percebeu que estava incomodada.

— Nesse caso, vou buscar Timon, Marlie e Allun — disse rapidamente.

Preocupava-o o fato de Jonn e a mãe estarem em desa­cordo. Houve uma altura que detestou a idéia de, um dia, Jonn Forte do pomar poder casar com Jiller e tornar-se seu padrasto. Mas agora sentia de modo diferente. Jonn nunca ocuparia o lugar do pai no seu coração. Mas conseguira o seu lugar próprio — o lugar de um amigo bom e especial, alguém de quem depender e amar à sua maneira.

— Sim, Rowan — disse Jiller calmamente. — Traz também Lann.

Rowan e Jonn fitaram-na, surpreendidos. Ela mirou-os da mesma forma, com uma expressão grave.

— Estive a pensar no enigma — disse. — “A velha roda gira”, como diz. E fala de “os mesmos erros, o mesmo or­gulho de sempre”. Parece querer dizer que os problemas que nos esperam já foram confrontados antes.

O coração de Rowan acelerou. Recordou-se subita­mente do que Sheba dissera, antes de citar o enigma. “O inimigo vai chegar outra vez”, afirmara. “A roda está a girar. E, desta vez... desta vez...”

Repetiu em voz alta os últimos versos de Sheba.

Porque, dia após dia, o seu poder engrandece,

E, quando por fim o seu rosto é revelado,

Histórias passadas e presentes irão encontrar-se...

O círculo do mal está completo.

Estremeceu. Sabia que a mãe estava certa. Algo terrível ia acontecer. E já acontecera antes. A roda do tempo e do destino girava lentamente. Algum círculo do mal estava a formar-se. E, quando se completasse...

Jiller olhou para Jonn.

— A resposta está no nosso passado — disse. — Tenho certeza.

Ele anuiu lentamente.

— Lann é a pessoa mais velha da aldeia — continuou Jiller. — Recorda-se de coisas que nem os livros nos narram. Seja passamos pelo perigo que enfrentamos agora, Lann há de saber. Poderá ajudar-nos a impedi-lo, antes que a roda gire demasiado.

— Tem razão — exclamou Jonn. Voltou-se para Rowan. — Vai então — ordenou. — Depressa.

 

O INIMIGO SECRETO

Timon esfregou o queixo.

— Os livros dizem-nos que a fome sempre foi um inimigo que Rin devia temer — sugeriu. — Já a enfrentamos várias vezes quando as colheitas não medram ou quando as neves do Inverno isolam a aldeia demasiado tempo da costa.

— Mas duvido que seja esse o inimigo do enigma — afirmou Jiller. — O enigma diz que o inimigo já cá está. Oculto, talvez, para não ser reconhecido. Mas que está cá.

— Penso que devíamos ir falar com Sheba — sugeriu Marlie. — Temos de lhe perguntar o que querem dizer aquelas palavras.

— Ela não sabe! — exclamou Rowan. — Já lhes disse.

— Não sabia quando falou com ela, Rowan — res­pondeu Jonn. — Mas pode ter agora mais informações. Devemos tentar.

Lann anuiu.

— É verdade — disse. Apontou a bengala para Rowan. — O menino deve lá ir. Acompanhado de Jiller e de Jonn. Os restantes ficarão aqui com os adormecidos. Timon faz-me companhia e Marlie pode guardar as bagas da Montanha...

— E eu? — inquiriu Allun com um sorriso retorcido.

— Quero-o aqui debaixo da minha vista, Allun o pa­deiro — respondeu Lann calmamente. — Para o caso de decidir dar um passeio pelas colinas.

O rosto de Allun toldou-se de raiva, mas manteve-se em silêncio.

 

O pomar estava parcamente iluminado pelo luar. Ro­wan, Jonn e Jiller não falaram ao avançar pelas árvores de hoopberries, caminhando com cautela para não esmagarem as ervas doces e os arbustos jovens de bagas da Montanha que cresciam no chão. Estava tudo muito tranqüilo. Os pássa­ros não se mexiam nas árvores. Não provinha nenhum som dos campos dos bukshah.

Passaram pela vedação que marcava o fim do pomar e começaram a andar rapidamente pela vegetação que cres­cia diante da cabana de Sheba.

A porta estava aberta e a luz derramava para o exterior, tremeluzente, do aposento interior. A luz e a longa sombra de alguém que se movia lá dentro. Rowan sentiu o coração a começar a bater mais rápido. Olhou para a mãe. O rosto dela revelava uma expressão determinada mas Rowan per­cebia, pela respiração rápida, que também ela sentia medo.

Alcançaram a porta e olharam para dentro. Lá estava Sheba, debruçada sobre um grande caldeirão de ferro, pen­durado sobre o fogo vivo. Murmurava para si, mexendo a poção.

— Sheba! — disse Jiller suavemente.

A velha mulher virou-se lentamente. Olhou inexpressivamente para Jiller e Jonn. Reparou então em Rowan. Os olhos vidrados esbugalharam-se e ergueu as mãos com um grito de medo, como que para se proteger.

— Deixem-me! — gritou. — Deixem-me! Levem daqui o seu rosto de pesadelo!

Rowan retrocedeu, chocado.

— Precisamos falar com você, Sheba — disse Jonn, com insistência. — O enigma que transmitiu a Rowan. O que significa?

Ela abanou a cabeça, cerrando os olhos.

— Deixem-me — gemeu. — Deixem-me com o meu trabalho. Não há tempo. Já não há tempo.

As chamas elevaram-se atrás dela. A poção de cheiro fedorento borbulhou no caldeirão.

— O trabalho não é importante agora — exclamou Jiller. — O que importa é o enigma, Sheba. Tem que nos contar o que sabe.

— Não sei nada — disse ela, arrastando as palavras. — Nada a não ser pesadelos. É tudo... tudo... está a revelar-se verdadeiro. Sinto-o. Mesmo neste instante, a roda está a girar. E o inimigo não tardará a estar sobre nós. Em breve, em breve...

— Sheba, ajude-nos! — rogou Jonn. Mas o rosto de Sheba nada revelava.

— Tenho de preparar a poção. Isso posso fazer. É o que sei. O menino... levem-no daqui. O rosto dele atormenta os meus sonhos. O rosto... os papagaios de papel... a coruja dourada de olhos verdes...

Rowan escutou o seu próprio soluço contido e o grito da mãe.

— Tudo isso... me atormenta! — Sheba leva os dedos aos cabelos e cambaleia. — Não sei porquê. Apenas sei que tenho de trabalhar. Tenho de continuar. E estou exaus­ta, tão exausta...

Deu um passo vacilante na direção deles.

— Deixe-me, atormentador! — guinchou, olhando diretamente para Rowan. — Deixe-me!

Jiller pôs um braço em redor do filho e chegou-o a si.

— Vamos embora — disse Jonn. — Não há mais nada para nós aqui.

 

A velha Lann arrastou-se para a janela parcialmente aberta. Fitou por momentos a figura alta de Marlie, ainda de guarda às bagas da Montanha. Voltou-se depois para os outros.

— Três papagaios de papel... o que poderá isso signi­ficar a não ser os Viajantes? E a coruja dourada de olhos verdes é um símbolo daquela história dos Viajantes... O Vale do Ouro. Temos de ter bem presentes essas visões. Sheba pode não saber o que elas significam. Mas representam avisos. Quanto a isso não há dúvida.

— Ela disse que a roda estava a girar — afirmou Jiller, receosa. — Disse que, em breve, o inimigo estaria sobre nós.

— Mas, que inimigo? — Timon franziu o cenho.

— Para quê procurar significados secretos para a pala­vra? — respondeu Lann, numa voz cansada, contrastando com a sua firmeza habitual. — Rin teve apenas um inimigo real. Os Zebak. Temos que nos armar e preparar para a guerra.

Fez-se silêncio na sala alegre e bem iluminada. Rowan olhou para a mãe. Tinha ido ao quarto ver como se encon­travam Bree e Hanna, dormindo ainda o sono estranho e inverossímil.

Voltara mesmo a tempo de ouvir as palavras de Lann. Encontrava-se agora junto à porta, as mãos unidas. Os seus olhos fitaram Annad, enrascada no sofá no canto, depois Jonn, sentado à grande mesa e por fim o filho.

Ela receia por nós, pensou Rowan. Viu-a dirigir-se rapi­damente para a mesa e sentar-se no seu lugar. Parecia exausta. Olheiras profundas marcavam-lhe a pele sob os olhos. O rosto estava pálido.

— Não se ouviu falar nada sobre os Zebak estarem de volta, Lann — argumentou, debruçando-se sobre a mesa.

— Não chegaram notícias do povo Maris sobre navios estrangeiros na costa, nem rumores sobre os mares.

— Foi um Inverno longo e rigoroso, Jiller — disse Lann.

— Desde o Outono que ninguém de Rin se desloca à costa. Como podemos saber o que se está a passar? Tanto quanto sabemos, neste momento, o povo Maris pode ter sido derrotado e estar escravizado.

— Os Viajantes saberiam — interveio Timon. — E os Batedores disseram que não tinham notícias.

— Disseram que não tinham notícias para nos contar, Timon — corrigiu Jonn. — Isso é diferente de não ter notícias. — Olhou para Allun. — Os Batedores estavam a esconder algo. Eu senti-o. Pode suceder que os Viajantes saibam algo que não podem ou não querem contar, por ra­zões que só eles conhecem.

— Que tolice — disse Allun, desviando o olhar.

Lann fitou-o.

— Será? — inquiriu.

Allun enfrentou o olhar severo dela com extrema sere­nidade.

— É — respondeu, tranqüilamente. — Os Viajantes não deixariam de nos contar sobre uma invasão dos Zebak. Não só porque são nossos amigos como também, tal como você salientou no acampamento esta noite, Lann, porque eles precisam de nós.

— Isso é verdade, Lann — anuiu Jonn. — Os Viajantes não desejam ser escravizados pelos Zebak, tal como nós. Tal como Ogden afirmou esta noite, recordam-se bem da Guerra das Planícies. E recordam também a grande batalha que a antecedeu, quando os nossos antepassados chegaram a este local e foram libertados.

— E não estamos a falar apenas nestes dois casos — ouviu-se a voz calma de Timon. — Existem histórias dos Via­jantes sobre as invasões dos Zebak que remontam há muitos séculos. Segundo a lenda, o povo deles travava uma grande batalha contra os Zebak na costa, precisamente na mesma altura em que os Gigantes de Inspray lutavam na Montanha por causa do Vale do Ouro.

Lann escarneceu.

— Os Gigantes de Inspray... O Vale do Ouro! Contos infantis!

Timon pigarreou.

— Talvez — disse. — E freqüente a realidade e a fantasia se misturarem quando uma história é passada apenas em imagens e palavras orais, como acontece no caso da his­tória dos Viajantes. Mas parece verossímil que os Zebak sempre quiseram tomar posse destas terras. Tentaram muitas, muitas vezes, antes de chegarmos cá.

— E nunca conseguiram — recordou Jiller.

— De fato — concordou Timon. — O poder deles nunca se igualou à astúcia do povo Maris e ao conheci­mento que os Viajantes tinham deste território. No final, eram sempre forçados a ceder e a retirar.

— Depois trouxeram a nossa raça para estas costas. E isso constituiu um erro fatal — acrescentou Lann com satis­fação. — Contavam aumentar o poder deles com um exér­cito de escravos guerreiros. Em vez disso, os escravos re­voltaram-se contra eles, unindo-se àqueles que os Zebak desejavam conquistar. Nos últimos trezentos anos, em lugar de dois povos a defender estas terras, passaram a haver três.

Fez uma pausa e o seu rosto enrugado assombrou-se.

— Mas, meus amigos, temos de ponderar se continuam a ser três. Ou se... tal como nos alerta o enigma da feiti­ceira... a traição paira no ar.

— O que quer dizer? — exclamou Allun irritado.

Timon esfregou os olhos cansados com a mão.

— Não nos podemos deixar guiar pelos nossos senti­mentos, Allun — disse. — Temos de considerar todas as hipóteses. E se... — hesitou, olhou para Jonn e Jiller e depois continuou. — E se os Zebak, tomando consciência de que não conseguiam ganhar estas terras apenas pela força, se tornaram mais astutos? E se eles fizeram promessas aos Viajantes... promessas de lhes darem algo que eles desejam ardentemente, talvez... em retribuição de ajuda?

— Os Viajantes não desejam nada. O que lhes podiam os Zebak prometer? — perguntou Allun.

— Algo que não conseguem obter de mais ninguém — disse Timon simplesmente. — Os Zebak podem ter pro­metido usar o seu poder para ajudar os Viajantes a ultra­passar o Fosso de Unrin e encontrar o Vale do Ouro.

 

TRAIÇÃO

O silêncio instalou-se na sala. Rowan sabia que, em todas as mentes, se elaborava um único pensamento. Timon estava certo. A única coisa que podia tentar os Via­jantes era a possibilidade de encontrar o lendário local, o centro do bem, que constituía o âmago das suas histórias. Redescobrir, após milhares de anos, a sábia raça de pessoas que foram amigos e aliados dos Viajantes.

— Pensem no que isso representaria para Ogden, ser o líder que alcançou para o seu povo tal felicidade — afir­mou Timon. — O Fosso de Unrin sempre foi um local proibido para os Viajantes. Não podem lá entrar, tal como não podem subir à Montanha. Para o derrotarem, o feito terá de ser obra de terceiros. E Ogden sabe que nem nós nem os Maris nos ofereceríamos para ajudar a encontrar o Vale.

— Por que iríamos perder o nosso tempo e pôr vidas em perigo para uma expedição desse gênero? — disse Lann por fim. — O Vale do Ouro não passa de uma lenda. Não existe.

— Os Viajantes acreditam que existe. — A voz de Allun era inexpressiva e fria. — Acreditam tanto nisso como o sol nasce a oriente e se põe a ocidente. Não têm qualquer dúvi­da. — Empurrou subitamente a cadeira para trás e soergueu-se. Abanava violentamente a cabeça. — Não! — gritou. — Não! Os Viajantes nunca se dei­xariam levar por promessas dos Zebak! Nunca! Nem mesmo por isto. Nem mesmo pelo Vale do Ouro. São nossos amigos. Nunca nos atraiçoariam!

Timon baixou a cabeça.

— Os Zebak poderão finalmente ter aprendido uma lição com os Viajantes — disse. — Podem ter aprendido que se apanham mais abelhas com mel do que com aparências hostis e palavras bélicas. Através de fraudes e mentiras, podem ter virado os Viajantes contra nós, Allun. Quem sabe?

Rowan ficou vidrado. Sob aparências aprazíveis, o mal incendeia-se. Olhou rapidamente para a mãe e para Jonn. Teriam percebido como as palavras de Timon se aproxima­vam tanto do enigma?

Percebeu que sim, pelas suas expressões. Mais. Recor­davam as visões de Sheba. Três papagaios de papel. Os papagaios dos Viajantes. E uma coruja dourada com olhos verdes.

Ouviu de novo a voz de Ogden. “O Vale do Ouro... Casas pintadas de encantadores padrões, cada uma dife­rente... Diante de cada casa, uma ave dourada — uma coruja com olhos de esmeralda...”

Antes que pudesse proferir uma palavra, ouviu-se um gemido vindo do quarto. Jiller pôs-se de pé com um salto e correu para junto de Bree e Hanna. Todos a seguiram rapidamente.

Bree mexia-se, virando a cabeça na almofada.

Estava abafado dentro do quarto. Timon virou-se e abriu a janela. O ar frio da noite entrou, trazendo com ele o aroma a bagas da Montanha e a rebentos novos, mas nenhum som. Nenhum som mesmo.

— Bree, o que aconteceu? — perguntou Lann rispidamente. — Conte-nos! Então, homem! Faz um esforço!

Os olhos de Bree abriram-se lentamente. Mirou, em surpresa, todas aquelas pessoas amontoadas no seu pe­queno quarto. Virou depois a cabeça e viu a mulher, ainda inconsciente na cama ao seu lado.

— Hanna! — gemeu e estendeu a mão para ela.

— Está a dormir, Bree, tal como você esteve — informou Jiller. — Bree, precisamos de saber o que se passou.

— Estávamos a levantar uma vedação — murmurou Bree. — Em redor das plantas das bagas da Montanha. Para as proteger dos Selvagens ladrões que pudessem vir pela calada da noite.

Allun emitiu um som de aversão e protesto. Jiller aba­nou a cabeça para ele. Queria que Bree continuasse.

— Estava a enterrar estacas no solo — disse Bree. — A enterrá-las e a aparar as pontas. Mas o solo era duro... mais parecia ferro. As estacas não entravam muito fundo, por muita força que aplicasse. Fiquei tão cansado. Depois Hanna tentou, enquanto eu descansava. Mas também ela teve que desistir.

Rowan viu os adultos a entreolharem-se por cima da cabeça de Bree. Aquilo era muito estranho. O solo dos jardins era rico e úmido. As estacas deviam entrar com a mesma facilidade como uma faca corta manteiga mole.

— Estava tão cansado — suspirou Bree. — Tão cansado. Tive que me deitar. Para descansar. Tão cansado. — As pálpebras fecharam-se. A boca abriu-se.

— Bree! — gritou Jonn, sacudindo-o. Mas Bree não respondeu. Estava de novo adormecido e, desta vez, não iria acordar.

— Está sob o efeito de um feitiço — disse Lann, batendo irritada com a bengala no chão. — Ele e Hanna. Não satis­feitos por nos terem traído para o nosso inimigo, os Selva­gens querem também as bagas da Montanha. Endureceram o solo para que não fosse possível instalar a vedação. Adormeceram os jardineiros. E...

— Talvez tivessem adormecido os jardineiros! — afir­mou Allun mal-humorado. — Mas, se o fizeram... se, Lann, o que tem de mal? É um truque inofensivo. Não tem nada a ver com os Zebak nem com o enigma de Sheba. Vocês passam de uma coisa para a outra, sem pensarem, guiados apenas pela vossa aversão aos Viajantes.

— Isso não é verdade, Allun. — Jiller pousou uma mão no braço dele.

— É! — gritou ele, sacudindo-a.

— Não é — bramiu Lann, batendo com a bengala. — Acalme-se, Allun o padeiro!

Jiller saiu silenciosamente do quarto. Rowan seguiu-a.

Encontrou-a debruçada sobre Annad, ainda deitada no sofá. Endireitou-se para olhar para ele, a fronte rasgada por rugas de preocupação.

— Isto não me agrada, Rowan — disse ela. — Parece que já sinto o perigo a rondar-nos. Discutimos e brigamos entre nós, quando nos devíamos estar a unir para enfrentar o que aí vem. Só assim podemos permanecer fortes.

Rowan anuiu. Sentia-se à beira do desespero. As palavras de Sheba surgiram-lhe na mente.

Os mesmos erros, o mesmo orgulho de sempre, A inestimável proteção desprezada.

Seria a isso que o enigma se referia? Nesse caso, Sheba estava certa e o círculo do mal estava próximo de se fechar por completo. A roda girava, o inimigo aproximando-se cada vez mais em cada momento que passava. Estremeceu.

— Acha que Timon pode ter razão? — murmurou Jiller. — Será que os Viajantes se voltaram contra nós?

— Mas, sendo assim, por que terão vindo para cá? — disse Rowan.

— Para espiar! — disse Lann da porta do quarto. Rowan observou-a a caminhar pesadamente para a lareira. O seu rosto estava debilitado e fatigado ao baixar-se dolorosa­mente para uma cadeira de braços.

— Vieram para nos espiar — disse. — Para passarem informações aos novos amigos sobre os nossos suprimentos alimentares e armamento. — A cabeça descaiu-lhe e esfor­çou-se por mantê-la ereta. — Estou cansada — murmurou. — Tão cansada.

Jonn atravessou rapidamente a sala para se ajoelhar junto dela.

A velha guerreira acenou a mão fracamente para afastá-lo.

— Os Selvagens vieram para nos espiar — repetiu. Rowan viu-a então a abrir muito os olhos. — Ou algo pior — disse ela baixo.

Virou-se na cadeira para olhar para eles, desnorteada.

— Oh, temos sido cegos! — gritou. — Bree... Hanna... — Tentou levantar-se, mas caiu para trás com um grito penetrante.

— Lann, o que se passa? — perguntou Jiller, com medo. Levou a mão à boca e olhou para Annad, mas a sua voz não perturbara a menina. Não se moveu. Uma expressão de surpresa instalou-se no rosto de Jiller.

— Marlie — gemeu Lann. — Depressa!

Allun lançou-lhe um olhar cortante e seguiu para a por­ta. Abriu-a e chamou por Marlie. Mas a figura alta no jardim não lhe respondeu.

Jonn e Timon avançaram, mas Allun lançara-se já a correr. Ouviram a voz dele a chamar, com crescente ansiedade, no silêncio da noite.

— Marlie! Marlie! Responde!

— Ainda vai acordar a aldeia — preocupou-se Timon. Mas nada se movia. Muito menos Marlie. Porque quando, em resposta aos gritos desesperados de Allun, Rowan, Jonn e os outros correram para junto dele, encontraram-no agachado e a sacudi-la aterrorizado, enquanto ela permanecia imóvel como uma estátua, os olhos parados, mirando o vazio.

 

— Ela está a respirar — disse Jiller, debruçando-se sobre o corpo rígido de Marlie estendido junto à fogueira. — Mas...

— Mas não acorda — murmurou Lann. — Um a um, vamos sendo vítimas desta... desta feitiçaria. E é esse o pla­no. Adormecemos e depois... — A voz apagou-se. Caiu para trás na cadeira.

Oculta-se nas trevas, cautela incautos!

Com um grito, Jiller deu um salto e levou uma mão à testa da velha mulher. Mas ela não se moveu. Jiller virou-se, de lábios comprimidos, e dirigiu-se ao sofá onde Annad dormia.

— Por que não apareceu ninguém para saber o que se passa aqui? — perguntou subitamente Timon. — Os gritos de Allun deviam ter chamado a atenção de, pelo menos, uma dúzia de pessoas. A casa de Bronden fica logo ali. E há mais gente. Muito mais.

— Talvez não tenham ouvido — disse Jonn em tom grave. — Talvez estejam a dormir profundamente. Tal como os filhos de Bree e Hanna. Como os próprios Bree e Hanna. Como Marlie. E agora, pelo que parece, como Lann.

Jiller soltou um som baixo e angustiado do sofá. Quando olharam para ela, lambia os lábios ressequidos.

— E também Annad, Jonn — sussurrou. — Annad... ela... está como os outros.

Rowan sentiu o estômago às voltas. Correu para o sofá e sacudiu Annad violentamente. Mas a menina não se me­xeu. Virou-se repentinamente para Allun, os olhos flamejando.

— Allun! — gritou. — Allun, tem de pedir aos Viajan­tes... que parem com isto!

Allun retrocedeu. Tinha o rosto lívido.

— Não pode ser — afirmou. — Não pode...

Olhou depois para Marlie no chão, Lann afundada na cadeira, Jiller sobre a pequena criança no sofá.

— Eu vou — disse, suavemente. — E se isto for obra do meu povo, farei com que termine. Juro, por tudo o que há de mais sagrado! — Agarrou no braço de Jonn. — Toca o sino na praça — pediu. — Toca-o bem forte e repetida­mente até as pessoas aparecerem. Não podemos ser as únicas almas ainda com os nossos perfeitos sentidos esta noite.

— Eu encarrego-me disso — afirmou Timon. — Jiller e Jonn podem ficar aqui com os adormecidos, para que nada de mal lhes aconteça. Você, Allun, vai ao acampamento na colina. Vai rapidamente, mas não sozinho. Leva Rowan com você.

— Não! — gritou Jiller. — Porquê Rowan?

— Ogden conhece agora Rowan e respeita-o como o herói da Montanha — disse Timon. — Pareceu reconhe­cer algo no menino esta noite. Algo que considerou inte­ressante e que lhe agradou. Em pé de igualdade com Allun, Rowan é o nosso melhor mensageiro.

— Sim — concordou Jonn. — Rowan deve ir. Sheba disse que via constantemente a cara dele nos sonhos dela. Talvez tenha um papel a desempenhar neste mistério.

Jiller anuiu e deixou-se cair sobre o sofá, com a cabeça de Annad no regaço. Parecia exausta. As olheiras tinham-se tornado quase negras.

— Mãe! Não adormeça! — avisou Rowan ansiosamente. Allun puxou-lhe pelo braço.

— Anda — pediu. — Temos de nos apressar!

Deixaram a casa e começaram a correr pela aldeia. Os primeiros sinais pálidos da alvorada começavam já a surgir no céu. Quando alcançaram o bosque onde Rowan encon­trara Sheba ouviram o sino a começar o seu toque de alerta.

Rowan imaginou Timon sozinho na praça, os longos dedos segurando a corda do sino, puxando-o vezes sem conta. Os seus ouvidos ficariam atordoados com o sino. Os seus olhos pesquisariam a escuridão em busca das pessoas meio despertas levantadas da cama em resposta ao seu chamamento.

Rowan e Allun saíram de entre o arvoredo e começa­ram a correr colina acima. Rowan corria de cabeça baixa, ofegante.

Ouviu Allun a praguejar, sentiu-o a vacilar e a abrandar.

— O que se passa? — perguntou, respirando com difi­culdade. — Allun?

Allun estacou.

A colina onde os Viajantes tinham acampado encon­trava-se deserta. Tinham partido.

 

A RODA GIRA

Allun inclinou-se sobre as cinzas da fogueira de Ogden. — Ainda estão mornas — disse. — Partiram há pou­cas horas.

— Por que terão ido embora? — exclamou Rowan. — Assim tão silenciosamente, sem se despedirem?

Allun comprimiu os lábios.

— Talvez tivessem ficado magoados e zangados por a aldeia dos seus supostos amigos lhes ter sido proibida.

Rowan fitou o rosto magro dele, delineado contra o céu que aclarava. Naquele momento, com o cabelo desgrenhado e os olhos negros semi-cobertos, Allun assemelhava-se muito pouco a um homem de Rin, e muito a um Viajante.

— Ou talvez — continuou o homem num tom duro — se tenham ido embora porque fizeram o que vieram fazer. Talvez a velha Lann esteja certa.

Rowan conteve a respiração.

— Temos de regressar à aldeia — disse Allun abrupta­mente. Começou a descer a colina.

— Allun! — gritou Rowan. — O que vamos fazer?

— Vamos visitar a minha mãe e a sua — respondeu Allun, apressando o passo. — Vamos arranjar água e ali­mentos. E depois vamos encontrar os Viajantes e ir ao fundo desta questão, para o bem e para o mal, antes que seja tarde demais. Se os Zebak vêm aí...

— Mas, Allun... — disse Rowan ofegante, esforçando-se por se manter ao lado dele. — Como...? Onde...?

Allun olhou para o menino ao seu lado. A sua voz suavi­zou-se.

— Rowan, não faça perguntas. Poupe o fôlego. Temos de nos apressar.

 

A aldeia estava tranqüila quando chegaram. O rebate do sino cessara. Mas o coração de Rowan sentiu-se aliviado quando escutou vozes baixas vindas da praça. Isso queria dizer que as pessoas estavam acordadas e reunidas. E não gritavam em medo e pânico. Conversavam calmamente umas com as outras.

— Está tudo bem — disse para Allun. — As pessoas estão lá. Talvez Annad também já tenha acordado... e Marlie e as outras.

Mas o rosto de Allun revelava uma expressão determi­nada e grave.

— Espere — disse ele.

Contornaram uma esquina e chegaram à praça. Timon continuava junto do sino. Uma dúzia de pessoas encon­trava-se à sua volta. Outras chegavam das ruas em volta. Outras afastavam-se calmamente.

Rowan pestanejou perante o que viu. E, ao pestanejar, a sua esperança desvaneceu-se. A concentração de pessoas estava perfeitamente errada. Sentira-se satisfeito por não ouvir gritos de pânico. Mas devia haver muito mais barulho do que aquele que se ouvia!

Também devia haver muito mais movimento. Devia ha­ver crianças a correr, excitadas com o chamamento inespe­rado. Devia haver pessoas a andar de um lado para o outro, esperando por saber que notícias havia, desejando saber porque haviam sido tão rudemente acordadas.

Mas não havia nada disso. Não havia crianças à vista. E os adultos presentes pareciam deambular como que ator­doados. Os rostos estavam apáticos e as vozes eram baixas. Alguns nem se incomodaram a pôr um casaco sobre as roupas de dormir, deslocando-se em camisas brancas, tre­mendo, descalços e de cabelos desalinhados, como assom­brações.

Estavam acordados, mas não despertos. Era como se tivessem apenas agitado no meio do sono, preparando-se para se virarem e dormir outra vez. Enquanto Rowan obser­vava, viu Neel o oleiro a suspirar e a afundar-se lentamente para o chão. As pedras do pavimento deviam estar muito frias, mas enroscou-se sobre elas como se fossem o seu colchão macio, fechando os olhos.

Rowan cobriu a boca com as mãos para evitar gritar.

Allun atravessou a praça em três passos e agarrou no braço de Timon. O professor voltou-se lentamente e, para seu horror, Rowan viu que também o seu rosto estava apá­tico e inexpressivo.

Allun sacudiu-lhe o braço.

— Timon! — chamou. — Timon, acorda! Toca outra vez o sino!

Pegou ele próprio na corda do sino e puxou-a com fúria. O badalar do sino soou alto, chocantemente alto, na praça. As pessoas voltaram-se para olhar, pestanejaram e viraram-se outra vez.

— Timon! — gritou Allun. O rosto de Timon reagiu por instantes. Lambeu os lábios.

— É demasiado forte, Allun — murmurou. — Está a aumentar. Não consigo resistir mais. E os outros... — Aba­nou a cabeça.

Allun virou-se para Rowan.

— Vem comigo — disse. Começou a abrir caminho por entre as pessoas que circulavam pela praça. Mal olha­ram para ele ou para Rowan. Limitavam-se a afastar-se quando ele passava, como vegetação vergando-se sob a ação do vento.

A porta da padaria estava fechada. Allun abriu-a e passou pela cozinha fria e escura para as traseiras da casa.

— Mãe! — gritou.

Mas não obteve resposta.

— Mãe! — chamou Allun de novo. — Responda! Mas nenhum som perturbou o silêncio.

Sem nada poder fazer, Rowan viu Allun entrar em todas as divisões, gritando, batendo com as portas. Viu que a porta das traseiras estava aberta e saiu para o exterior. O jardim cuidado estendia-se diante dele, fracamente iluminado e docemente perfumado. E aí...

— Allun — chamou Rowan, chocado.

Sara estava sentada numa velha cadeira de madeira sobre a relva, com uma tigela virada na mão pendente e inerte.

Allun debruçou-se sobre ela. Tocou-lhe com mãos trementes.

— Ela estava aqui, a beber uma sopa, quando me vieste chamar a noite passada. Deve ter sido atingida depois de eu sair. Ficou aqui desde essa altura. As escuras e ao frio. Tem a roupa úmida do orvalho.

Enterrou o rosto nas mãos.

— O que está a acontecer aqui? — gemeu. — Pela mi­nha vida, Rowan, o que está a acontecer? Como puderam os Viajantes fazer isto? Logo a Sara, que os amava? Ainda a noite passada esteve a rir-se com Ogden. E agora...

Colheu o corpo da mãe nos braços e levou-a para casa.

— Vai à cozinha e traz pão e água — pediu por cima do ombro.— Rápido, Rowan. Rápido! Temos que ir ter com Jonn e com os outros o mais depressa possível e ir atrás dos Viajantes. Antes de também nós ficarmos afetados e não restar ninguém em Rin. O sol está a nascer. E o inimigo...

Mas Rowan corria já para a cozinha da padaria, colo­cando cacetes num saco e enchendo um frasco com água da grande bilha colocada junto à porta. Não tardou a re­gressar para junto de Allun. Viu-o cobrir a mãe com um cobertor e inclinar-se sobre ela, mexendo em qualquer coisa na nuca dela.

— Allun, vamos! — incitou.

Allun endireitou-se, enfiou a mão dentro da algibeira e anuiu. Chocado, Rowan reparou na palidez no rosto dele, nos olhos parados.

— Allun! — gritou, amedrontado. — O que...

Allun anuiu.

— Estou a sentir — murmurou. — É... um peso. A au­mentar. Eu...

Rowan puxou-lhe pelo braço.

— Venha depressa — disse. — Venha para o jardim. Não fique quieto. Talvez seja o fato de não estarmos para­dos que evite sermos afetados. Venha!

Puxou Allun para fora da sala e passaram pela porta da cozinha para a porta da frente. Conduziu-o depois para a rua e deu-lhe a mão.

— Corra! — murmurou. — Corra, Allun!

Correram. Rowan ouvia Allun ofegante ao seu lado.

Ao longo da rua, havia pessoas deitadas a dormir sobre as pedras duras. Agora que o dia aclarava, Rowan podia avistar muito mais pessoas.

Algumas recostadas em cadeiras nos jardins, como acon­tecera com Sara. Algumas deitadas junto a poços, com bal­des entornados ao lado. Solla, o confeiteiro, pendia na janela, meio dentro meio fora. Um grupo de crianças, que estivera animadamente a conversar à volta da fogueira de Ogden há apenas algumas horas atrás, estavam amontoados sob a árvore-escola, ainda com as roupas que vestiram para ir ao acampamento.

Rowan arrastou Allun pela praça. Viram-se obrigados a passar por cima dos corpos das pessoas aí deitadas. Ti­mon encontrava-se junto ao sino, a mão ainda na corda, os olhos parados. Rowan chamou por ele, mas a sua ex­pressão permaneceu inalterada.

Começaram a correr para os jardins. Foi então que Rowan reparou nos pássaros.

Havia aves de todos os tipos espalhadas por baixo das árvores que ladeavam o caminho. Como pequenos amon­toados de penas, permaneciam imóveis por entre as flores das bagas da Montanha e a vegetação, como se tivessem caído dos ninhos e poleiros durante a noite. Tinham os olhos fechados. Os bicos entreabertos. As patas, como pe­quenos galhos hirtos.

Rowan sentiu uma dor na garganta. Era como se todo o ser vivo de Rin tivesse sido capturado pelo feitiço que dominara a aldeia.

— Estrela! — murmurou. Sentiu um nó no estômago ao perceber que o animal devia ter pressentido que algo de errado estava para acontecer. Por isso se mostrara tão inquieta. Por isso conduzira para longe os outros bukshah.

E ele obrigara-os a regressar! Se ao menos tivesse per­cebido que ela nunca se afastaria sem uma razão. Ela acabara por lhe obedecer, confiando nele. Mas, cego, obrigara-a a trazer a manada de volta, mesmo para o seio do perigo.

Soluçando, continuou a puxar por Allun. Alcançaram a oficina de Bronden. Rowan quase parou, pensando em pedir ajuda. Mas avistou o corpo corpulento de Bronden, desfalecido na porta da frente. Tinha a testa enrugada e os fortes braços estendidos como se tivesse lutado até ao fim contra o poder que lhe toldava o cérebro, forçando-a a cerrar os olhos.

— Rowan — murmurou Allun, puxando-lhe a mão. — Não consigo...

— Consegue, sim! — gritou Rowan, invadido pelo pânico. — Allun, olhe, a casa de Bree e Hanna está pró­xima. Não pare. Temos de encontrar Jonn e a mãe. Eles irão ajudar-nos.

Empurrou o portão que conduzia aos jardins. Arrastou Allun, cambaleante, para a casa atrás das árvores. Descobriu que, também ali, não encontraria ajuda. Porque a porta estava aberta e Jonn estava deitado de barriga para baixo no fundo dos degraus, com Jiller a seu lado. Estavam inertes como a morte.

 

O CHAMAMENTO

Rowan correu para longe de Rin com as lágrimas deslizando-lhe pela cara. Ele e Allun não consegui­ram pegar em Jonn e Jiller e levá-los para dentro de casa. Nenhum deles tivera forças para tal. Por isso, viram-se obrigados a deixá-los onde se encontravam.

Nunca Rowan enfrentara tamanha dificuldade. Ne­nhum dos horrores que jamais enfrentara se assemelhara a voltar as costas à mãe, estendida indefesa no solo, e ter de fugir.

Seguia agora em frente, o coração tão frio e vazio como uma lareira onde o fogo se extinguira. Mal via o solo que pisava. Mal sentia a brisa da manhã contra o rosto.

No topo da colina, parou e olhou para o vale. Ainda ontem fizera aquilo, pensou. Depois observara aqueles campos retalhados, aqueles caminhos e casas dispostos com harmonia, e o coração repleto de regozijo. Mas isso fora antes de encontrar Sheba no arvoredo. Isso sucedera quando a aldeia estava plena de vida.

Sem surpresa, verificou que os campos dos bukshah es­tavam inativos. Avistava alguns corpos de crias estendidos sobre a relva. Mas mais ao longe — conteve um soluço de alívio — ao longo do riacho, outros animais moviam-se. E, na frente deles, Estrela.

Deve ter decidido, durante a noite, fazer avançar a ma­nada. Decidira e assim fizera. Pelo menos ela não cometera o erro de sempre. O erro de confiar em alguém que desconhe­cia como ela estava certa sobre o que sentia.

— Rowan — murmurou Allun ao seu lado. — Rowan, temos de continuar. Isto... esta coisa... tinha razão... in­tensifica-se mais quando estamos parados.

Rowan anuiu e virou as costas à aldeia. Ocorreu-lhe o pensamento que poderia nunca mais voltar a vê-la e aba­nou a cabeça. Não iria pensar isso. Começou a andar.

As margaridas sob os seus pés estavam já a atuar. Sentia os olhos inchados e o nariz a pingar. Pára com isso! disse, para si. Meteu a mão na algibeira para tirar o remédio horrí­vel e bebeu um trago. O sabor repugnante e amargo ardia-lhe na língua. A recordação das palavras de Sheba martela­vam-lhe a mente.

Mas Sheba, talvez, não estaria agora a tagarelar. Estaria também ela acocorada junto à fogueira num transe sono-lento, enquanto o mal que ela tanto temera se aprontava para mostrar o seu rosto?

Histórias passadas e presentes irão encontrar-se... O círculo do mal está completo...

Com o coração apertado, Rowan deparou com o único significado possível para estas palavras. No passado, numa terra longínqua, o povo de Rin estivera escravizado pelos Zebak. Agora, após trezentos anos de tentativas, os Zebak iriam atacá-los de novo. Iriam voltar a escravizá-los. O cír­culo do mal iria completar-se.

E seria em breve. Muito em breve. A menos...

Rowan enterrou as unhas na palma da mão. A menos que ele e Allun conseguissem encontrar os Viajantes, supli­car-lhes que desfizessem o mal que lançaram e impedissem que a roda continuasse a girar.

Foram avançando em silêncio. Rowan já sentia as pernas cansadas e estivera acordado toda a noite. Mas o seu cé­rebro estava efervescentemente ativo. Seguiam os rastros das carruagens dos Viajantes. Mas a tribo passara por ali há várias horas e a vegetação e margaridas retomavam já a sua posição normal, ocultando parcialmente os rastos.

Os vestígios não tardariam a desaparecer. O que fariam então ele e Allun? Mesmo que conseguissem continuar a seguir o rasto, como poderiam apanhá-los, caminhando àquele ritmo?

Olhou para Allun. O rosto magro do homem estava im­passível, mas os seus olhos mais vivos dos que antes.

— Sente-se melhor, Allun — disse. Allun anuiu.

— O movimento ajuda — respondeu. — E você?

— Nunca senti o cansaço — disse Rowan. Essa questão perturbara-o. — Não consigo compreender. Toda a gente de Rin... até Bronden, mesmo Jonn... foram afetados. Você é meio Viajante, por isso faz sentido que pudesse es­capar. Mas, porquê eu?

Allun abanou a cabeça.

— Você agradou a Ogden — disse. — Talvez tivesse deci­dido que iria ser poupado ao sono... e ao mal que possa ainda surgir.

Rowan fitou-o, horrorizado. Apesar de tudo, parte dele nunca acreditara que os Viajantes tivessem adormecido Rin com um intuito malévolo. Tinha agora consciência que sen­tira a esperança que eles tivessem apenas lançado o feitiço sobre a aldeia como forma de lição. Uma lição demasiado violenta, talvez, mas uma lição que podia ser dada, compreen­dida e depois anulada.

Mas as palavras de Allun deixaram-no apavorado. Mor­deu o lábio para evitar gritar e prosseguiu em frente.

Depois, Allun parou, olhou para trás e levou a mão ao bolso.

— Penso que já estaremos suficientemente afastados — disse. — Rowan, agora vamos ver o que poderemos ver.

Estendeu a mão. Continha uma fita longa e fina de seda desbotada. O colar de casamento de Sara. Rowan vi­ra-o umas mil vezes, à volta do pescoço dela. Mas nunca reparara no pequeno objeto castanho que nele pendia. Supôs que sempre estivera oculto sob as roupas de Sara.

Perplexo, viu Allun levar a pequena coisa aos lábios e soprar.

Nenhum som chegou aos ouvidos de Rowan. Mas com­preendeu de imediato o que estava a suceder. O objeto era um assobio. Allun estava a transmitir um sinal. Cha­mava os Viajantes.

— Não sabia que Sara tinha um assobio — murmurou.

Allun baixou o assobio.

— Tem sido um segredo, até este momento. Foi ofere­cido à minha mãe quando ela deixou os Viajantes, há muitos anos. Foi-lhe dito que só teria que chamar quando tivesse um problema e que eles viriam. Estivessem onde estivessem. Em qualquer altura. Mas nunca foi usado, até hoje.

— Será que eles vêm? — inquiriu Rowan. — Mesmo...?

Allun sabia o que ele pensava. Mesmo que o problema de Sara tivesse sido causado pelos próprios Viajantes?

— Foi uma promessa solene — afirmou Allun, em tom grave. — Se não a cumprirem...

Rowan examinou o horizonte, virando-se lentamente para todas as direções. Para este e norte, um céu matinal de um azul pálido cintilava sobre colinas douradas com flo­res. Atrás deles, para oeste, erguia-se a enorme Montanha, de cume branco. A seu lado, um pouco para sul, surgiam as rochas recortadas e cavernas de...

Soltou uma exclamação e apontou.

Três manchas coloridas moviam-se ao longe, numa pai­sagem cinzento-acastanhada. Iam-se aproximando.

— Os Batedores! — exclamou Allun. Rowan viu-o fechar os olhos por instantes, como que dando graças. — Eles ouviram-me. Estão a chegar.

 

Os Batedores abrandaram, roçando a vegetação e pou­saram levemente no solo.

— Saudações, Allun, filho de Forley dos Viajantes — disse Zeel. — Saudações, Rowan dos bukshah. — Avançou, dobrando o papagaio de papel com uma mão. Os dois rapa­zes permaneceram onde tinham aterrado. Observando.

— Saudações — respondeu Allun, após alguns ins­tantes. — Agradecemos por terem ouvido o nosso chama­mento.

— Onde está Sara? Por que nos convocaram? — inqui­riu Zeel.

— Sara está doente. Preciso de falar com Ogden — retorquiu Allun.

A Batedora abanou a cabeça.

— Ogden está com a tribo — disse, friamente. — Não pode vir.

Allun deu um passo em frente.

— Preciso falar com ele, Zeel — insistiu. — Reclamo o meu direito a uma audiência. Pelo meu sangue de Via­jante. Pelo nome do meu pai. E por um tratado antigo. — Inclinou-se e pegou numa folha de uma margarida-selvagem, estendendo-a para ela.

Zeel mirou-o com suspeita. Pegou então na pequena folha de três lóbulos, levou o assobio aos lábios e soprou. Aguardou. Momentos depois franziu o cenho e afastou para as costas os cabelos encaracolados. Enviara uma men­sagem e recebera outra, pensou Rowan, maravilhado. E ele nada ouvira. Absolutamente nada.

— Ogden concede-vos um encontro — disse a rapariga, contrariada. — Mas ele não virá até vós. Estão dispostos a viajar até ele?

— Quanto tempo será necessário? — irrompeu Rowan.

— Não muito — respondeu Zeel. Os seus olhos estavam abatidos e frios. — Irão voar, com os Batedores. Os Via­jantes irão convocar o vento. — Voltou-se e regressou para junto dos amigos que esperavam, já lançando os seus papa­gaios.

Rowan e Allun ficaram a observar. Zeel olhou para trás.

— Venham! — ordenou. — O vento já está a mudar. Está na hora de partirmos. Ogden aguarda-os.

Fez uma pausa e sobre o seu rosto suave e bronzeado surgiu uma sombra. Uma sombra de temor.

— Ele aguarda — disse — junto ao Fosso de Unrin.

 

CHOQUES

O vento fluía junto aos ouvidos de Rowan e sacudia-lhe os cabelos. O forte cinto de cabedal que o unia a Zeel e ao papagaio dela vincava-lhe as costelas. Por baixo, o solo deslizava. Tão rápido. Momentos depois, estavam tão dis­tantes da colina onde se encontraram com os Batedores. De­corridos alguns minutos, a paisagem cinzento-acastanhada aproximava-se a passos largos.

Era então esta a sensação de voar, de planar, como uma ave ao vento. Rowan não conseguiu assimilar a impressão. Estava atordoado com um milhar de pensamentos diferen­tes. A mãe. Annad. Sheba. Os Zebak. Os Viajantes. Ogden. Segredos. O Vale do Ouro. O Fosso de Unrin...

A sua mente agitava-se em turbilhão, enquanto o pa­pagaio de papel avançava a alta velocidade. O Fosso de Unrin não era uma lenda. Não era simplesmente uma história. Era um lugar real. E Ogden conduzira os Viajantes para lá. Por­quê? Talvez a teoria de Timon estivesse certa. Os Zebak prome­teram aos Viajantes uma passagem segura através do local amaldiçoado e a entrada no Vale do Ouro.

Estariam agora mesmo os Zebak acampados com os seus novos amigos? Revelariam os seus rostos selvagens, que Ro­wan tantas vezes vira em livros, falsos sorrisos ao sussurra­rem mentiras ao ouvido de Ogden?

Estariam ele e Allun a voar com o vento para o antro de um terrível perigo? Para que morressem e desaparecesse assim a última esperança de auxílio para Rin?

O Fosso de Unrin. Uma lenda de trevas, como equilíbrio para a lenda da luz que era o Vale do Ouro. Pelo menos, Rowan sempre pensara assim.

Ouvira muitas vezes falar dele, através das histórias de Ogden. Podia escutar a voz baixa de Ogden na sua mente, naquele preciso instante, murmurando enquanto as chamas crepitavam e as crianças escutavam. “...E, guardando o Vale do Ouro, o asqueroso Fosso de Unrin. É um lugar per­verso e sombrio, um lugar de morte. E um lugar a temer. Um lugar a recear. Roguem, crianças, que nunca, nunca o venham a ver”.

Na primeira vez que Rowan ouviu falar do Fosso de Unrin, despertara a meio da noite, gritando com pesade­los. Isso acontecera quando era pequeno e o pai ainda era vivo. O pai entrara no quarto, trazendo com ele o cheiro a sopa, toalhas limpas e lume quente. Envolvera Rowan nos seus braços, escutou os medos que ele balbuciou, alisou-lhe a almofada e deitou-o de novo.

“Não tenha medo, pequeno Rowan”, dissera, gentilmen­te. “O Fosso de Unrin não existe. Não passa de uma história”.

“Mas, e se for verdade?”, recordava-se Rowan de ter gri­tado. “E se existir? E se um dia eu lá tiver que ir?”

O pai sorrira.

“Nunca terá que lá ir, Rowan”, dissera. “Prometo”.

Ele pensara estar a dizer a verdade. Como podia ele saber o contrário? Porque as pessoas trabalhadoras de Rin nunca desperdiçavam tempo a viajar para as áridas terras para lá da Montanha. Quando viajavam, seguiam para leste, para a costa, para negociar. O oeste era um mistério para eles. Um mistério sobre o qual raramente se interrogavam e que nunca tentaram solucionar.

Não podia saber que eu acabaria por vir aqui, pai, pensava agora Rowan, olhando com receio para baixo quando o papagaio começou a voar cada vez mais junto ao solo. Ninguém poderia ter sabido. Porque, mesmo sem a terrível visão do Fosso de Unrin, por que haveria alguém de viajar para aquele árido local?

A terra dura, apenas suavizada por alguns pequenos ar­bustos e alguns tufos de margaridas-selvagens e vegetação aguçada, elevou-se para ir ao encontro dos seus pés pendentes.

Avistou mais à frente as tendas dos Viajantes, na sombra da Montanha, e as pessoas congregadas, observando em silêncio. Detectou a figura de Ogden isolada próxima de um grupo rochoso de aspecto inexorável.

Estariam também ali os Zebak? Rowan examinou o local desesperado, em busca de um sinal. Não. Não havia figuras com capacetes, nem armas, nem grandes má­quinas de guerra. Estariam os Zebak escondidos nalgum lugar próximo? Ou marchariam já em direção a Rin, en­quanto os Viajantes aguardavam aqui a recompensa da traição?

Não havia espaço na sua mente para o medo quando os seus pés tocaram no solo com um som abafado que lhe estremeceu os dentes e difundiu uma dor fina pelas pernas acima. Subitamente, sentiu-se atordoado.

O que o esperava naquele terrível lugar?

Permaneceu imóvel enquanto Zeel desapertava o cinto que o segurara ao papagaio. Percebeu que tremia por completo. Sentiu a mão de Allun no ombro e os joelhos quase cederam.

— Allun... — disse, aos soluços.

— Espera — disse Allun, o rosto pálido.

Zeel deixou-os e seguiu na direção de Ogden. Entre­gou-lhe algo. Era a folha da margarida-selvagem que Allun lhe dera.

Ogden pegou na folha e levantou a cabeça para olhar para Allun. Depois, lentamente, caminhou para eles.

— Saudações, Allun, filho de Forley dos Viajantes — disse. — O que quer de mim?

— Não vou desperdiçar palavras, Ogden — respondeu Allun. — O tempo poderá ser muito escasso.

Ogden ergueu o cenho. Os seus olhos negros estavam inexpressivos.

— Explique-se — ordenou.

Allun fitou diretamente a folha de três lóbulos na mão de Ogden.

— Os nossos povos são aliados há trezentos anos — disse. — Há trezentos anos que os nossos destinos estão unidos, vivemos separados mas somos um só.

Ogden não disse nada. Começou a girar o caule da folha da margarida-selvagem entre os dedos finos bron­zeados.

Allun respirou fundo.

— Em nome dessa velha amizade, Ogden dos Viajantes, peço-lhe que liberte o povo de Rin da maldição que lhe lançaste — afirmou. — Se cometemos algo de errado, ro­gamos que nos perdoe. Faremos tudo o que pudermos para...

— Espere! — ordenou Ogden em tom alto, erguendo a mão. Os seus olhos reluziram. Zeel e os outros Batedores correram para o seu lado.

Allun retrocedera e ficara imóvel e em silêncio. Rowan aproximou-se mais dele e agarrou-se ao seu braço. O seu coração batia-lhe desordenado. Nunca vira Ogden, o con­tador de histórias misterioso e sorridente, com tal expressão. De testa franzida, feroz e muito irritado.

— A que se refere quando me fala de maldições? — per­guntou Ogden. — Que mentiras tenta pregar? Que planos tem em mente? E sob ordens de quem?

Allun fitou-o, em choque. Tentou falar, mas não conse­guiu proferir uma só palavra.

Os mesmos erros, o mesmo orgulho de sempre,

A inestimável proteção desprezada...

— Não estamos a mentir! — irrompeu Rowan. Sabia que não lhe competia falar. Mas não conseguia ficar im­passível enquanto o medo e a raiva impediam que o auxílio chegasse ao seu lar.

Os olhos negros de Ogden viraram-se para ele. Rowan esforçou-se por conseguir falar.

— Todas as pessoas de Rin estão... estão doentes, por causa do que vocês fizeram — disse. — Allun e eu fu­gimos... para os encontrar. Para pedir que parem aquilo. — As lágrimas quentes surgiam-lhe nos olhos. Tentou o mais possível contê-las, mas acabaram por lhe rolar pela cara.

— Os bukshah perceberam que havia perigo — solu­çou. — Ouviram os vossos assobios... devem ter compreen­dido o que estavam a planejar. A Estrela tentou avisar-me, mas não lhe dei ouvidos. Levou a manada para longe, para longe da aldeia e ao longo do riacho. Manteve-os a salvo, à exceção de algumas crias. Mas as pessoas... a minha mãe, a minha irmã... Estão adormecidas e indefesas. E quando os Zebak chegarem...

A garganta inchou-lhe. Mal conseguia respirar.

— Oh, por favor, por favor, ajude-os — suplicou. — Não permita que o enigma se concretize. Não permita!

O rosto de Ogden alterara-se. Agora, associada à irrita­ção, havia espanto. Olhou para os três Batedores ao seu lado.

Os dois rapazes mostraram-se inseguros. Mas Zeel fran­ziu o cenho e abanou a cabeça.

— É um truque — disse. — Não dê ouvido ao menino. Estão a usá-lo porque sabem que gostou dele, quando o conheceu a noite passada. Tal como estão a usar o outro porque tem o assobio e é meio Viajante.

Elevou o tom de voz.

— Por que haveriam de ser estes dois os únicos a esca­par a essa suposta doença? Porquê, a não ser pelo fato de não haver doença nenhuma e terem sido escolhidos para nos seguirem?

— Isso não é verdade! — gritou Rowan, olhando deses­perado para Allun e de novo para Ogden.

O que se passava ali? Os Viajantes pareciam pensar que o povo de Rin era o traidor.

Ogden não disse nada.

— Foi um erro grave ter respondido ao chamamento — exclamou Zeel enfaticamente. — Seguramente que o inimigo seguiu os nossos papagaios. E está a permitir que estes espiões retardem a nossa fuga. Tal como eles conta­vam. Estamos a perder minutos preciosos. Vamos embora! Para o Fosso de Unrin e para o Vale do Ouro, como planejamos. É a nossa única saída!

Rowan sentiu um nó no estômago. Olhou atentamente para Zeel, a filha adotiva de Ogden, o Viajante. Mirou-lhe as sobrancelhas fortes e negras e os seus olhos sombrios. Olhou para a sua altura e para os ombros largos. Agora que estava zangada, era como se uma máscara lhe tivesse caído do rosto.

Se se tirassem as penas, as flores, o cabelo longo, os pés morenos descalços, a seda solta e brilhante. Se se colo­cassem roupas justas de um cinzento de aço, botas rijas, uma lista negra do cabelo ao nariz... Zeel seria uma ima­gem tirada da Biblioteca. Uma imagem de um Zebak. Apontou para ela.

— É você! — exclamou. — Você é o inimigo! Você é a espiã! Tem dito palavras venenosas aos Viajantes e traiu-nos a todos. Foi você quem causou tudo isto! Você!

 

TREVAS E LUZ

Saltou para Zeel, vendo de relance o seu rosto sur­preendido. Bateu-lhe com os punhos cerrados. Ela permaneceu sem resistir, não fazendo nenhum gesto para se defender.

Foram as mãos de Ogden que pousaram nele e que o afastaram. A voz de Ogden que lhe ordenou que ficasse quieto.

Debateu-se contra as mãos que o continham, ofegante, até a ira que o invadia ter-se dissipado. Os ouvidos zum­biam e, no início, mal conseguiu ouvir o que Ogden lhe dizia.

— Está enganado, Rowan — gritava Ogden. — Escu­te-me! Escute-me!

Rowan acalmou-se finalmente. Gradualmente, a raiva foi desaparecendo. Deixou de resistir e ficou a tremer nas mãos de Ogden.

— Assim está melhor — afirmou Ogden.

Olhou para Allun e, pela primeira vez, a sua expressão era amigável.

— Esta criança de Rin é mais determinada do que pa­rece — afirmou, sorrindo levemente. — Percebo agora como conquistou a Montanha.

— Tem razões para ser determinado— murmurou Allun, sem devolver o sorriso. — Tenho sido cego. A Batedora Zeel é uma Zebak. E tem de saber isso.

— Não há nada na minha tribo que eu desconheça — respondeu Ogden calmamente. — Zeel era uma criança abandonada, trazida pelo mar para a costa. Acolhemo-la entre nós. Nasceu Zebak, isso é verdade. Sabemo-lo desde os primeiros dias, embora nunca o revelássemos aos outros. Temíamos que reagissem da mesma forma que o nosso jo­vem amigo Rowan.

Apertou os ombros de Rowan. A sua voz era triste.

Rowan olhou para Zeel. Ela retribuiu-lhe o olhar com altivez, embora Rowan conseguisse detectar o sofrimento nos seus olhos. Esforçou-se por se manter desconfiado e zangado. Mas não conseguiu.

— Zeel nasceu Zebak, mas foi criada como uma Via­jante, desde a infância — prosseguiu Ogden. — É uma de nós. Morreria por nós. Se temos um inimigo, não é Zeel. Estejam seguros disso. Zeel não me disse nada em que não acreditasse piamente. E nada disse que, eu próprio, não temesse.

Comprimiu os lábios.

— Fiquem também seguros disto, habitantes de Rin. Os Viajantes não fizeram nada que prejudicasse os vossos amigos.

— Nesse caso, por que apareceram tão repentinamen­te, e partiram de forma tão rápida, sem aviso? — inquiriu Allun.

— Partimos porque sentimos que algo estava errado no território — disse Ogden simplesmente. — Pressentíamos um perigo. Viemos até vós como amigos, para verificarmos se o problema estava relacionado convosco. E, quando che­gamos, sentimos um afastamento. Sentimos segredos, uma raiva, sob os rostos sorridentes. Fomos proibidos de entrar na aldeia e recebemos ordens para permanecermos nas colinas.


— Mas isso só foi por causa das bagas da Montanha! — exclamou Rowan.

Ogden fez uma pausa.

— O novo fruto! — disse. — Por que haveria isso de fechar os seus corações a nós? — Franziu o cenho. — Rowan dos bukshah, receio que esteja equivocado. Tem de haver algo que desconheça. Algo muito mais...

Allun abanava a cabeça.

— Não, Ogden — suspirou. — Não há mais nada. O povo de Rin... é difícil de compreender, eu sei... mas qui­seram manter o fruto em segredo. Para terem uma colheita que fosse só deles, para venderem na costa no próximo ano.

Ogden fitava-o, perplexo.

— Mas isso não era segredo nenhum, Allun — retorquiu. — Ficamos a saber da nova colheita quando ainda estávamos a um dia de viagem de Rin. A fragrância chegou até nós. Vimos a mancha dos seus frutos nos pássaros. E por que haveria alguém de querer manter uma fonte de ali­mento secreta, apenas pelo lucro? Tem certeza...

— Completamente — disse Allun com firmeza. — Se sentiu segredos e suspeitas nos habitantes de Rin, essa foi a causa, Ogden. Não existe outra.

Ogden olhou para os três Batedores, que pareciam ainda mais surpreendidos e descrentes do que ele.

— É inacreditável — murmurou. — Nunca hei de en­tender a forma de ser do povo da sua mãe, Allun. Nunca, enquanto viver.

Estendeu as mãos.

— Pensamos que tinham feito uma aliança com os Ze­bak contra nós. Decidimos prosseguir viagem, para escapar à vinda deles. E ocorreu-me que devíamos viajar para aqui. O lugar apelava por mim. E, quando a terra chama, eu es­cuto.

Olhou à sua volta, para a terra seca e rochosa.

— Não sabia qual era o motivo. Mas, ultimamente, o Vale do Ouro tem estado muito nos meus pensamentos. Ocorrem-me com freqüência e espontaneamente visões do Vale. Pensei que talvez estivesse a ser atraído para aqui por ter finalmente chegado a altura dos Viajantes se en­contrarem de novo com os seus velhos amigos. Eles pode­riam então unir-se a nós para combater o inimigo, dado que vocês nos abandonaram.

— Está a pensar encontrar o povo do Vale do Ouro? — murmurou Rowan. — Mas, o Vale do Ouro é realmente verdade? Pensei...

Ogden sorriu.

— Pensou que era uma lenda? Logo você, Rowan dos bukshah? Seguramente que já sabe que todas as lendas são fios de seda tecidos em torno de um réstia de verdade. Além de que o Fosso de Unrin é totalmente real. — A sua ex­pressão toldou-se e olhou para trás.

Rowan olhou mas não via nada a não ser as rochas pon­tiagudas que já vira antes e, ao longe, um penhasco dou­rado erguendo-se em direção ao céu.

— O Fosso de Unrin situa-se ali, para lá do penhasco — disse Ogden. — E as nossas histórias relatam que guarda o Vale do Ouro. Nisso acreditamos. Nisso sempre acreditamos. Os Batedores já voaram muitas vezes por cima do Fosso. Mas não se consegue avistar nada do ar. Por isso, temos de entrar no lugar malévolo, para descobrir o caminho secreto para o nosso objetivo.

— Mas, o Fosso de Unrin é proibido — exclamou Allun. — Os Viajantes não podem ir até lá. É o que diz a sua lei.

Ogden anuiu, o rosto sombrio.

— Os que nasceram Viajantes não podem. Mas... — Olhou para Zeel. — Os Zebak podem fazer o que quiserem. Ocorreu-me que talvez tenha sido por isso que Zeel nos foi concedida. Talvez a intenção sempre tivesse sido que ela... e nós... chegássemos finalmente a este momento.

Zeel ergueu orgulhosamente o queixo.

Rowan esforçou-se por traduzir os seus pensamentos por palavras.

— Tudo isto significa que vocês, que os Viajantes não lançaram um feitiço sobre a aldeia?

— Claro que não lançamos! — retorquiu Zeel, pare­cendo mais uma vez como um verdadeiro Zebak na sua irri­tação. — Ogden acabou de lhes dizer isso!

Rowan sentiu-se corar, mas esforçou-se por continuar.

— Então, como aconteceu? — disse. — E porquê?

Ogden passou a mão fina sobre a boca.

— Não entendo— afirmou. Depois, os seus olhos estreita­ram-se. — Falou num enigma — prosseguiu. — Que enigma é esse?

— A nossa Sábia, Sheba, transmitiu-o a Rowan, no dia que vocês chegaram a Rin — explicou Allun. — Esse foi um dos motivos por que eu... nós... pensamos que nos tinham traído para os Zebak. Tudo assim indicava.

Ogden franziu o cenho.

— Ah, indicava? Bom, talvez seja melhor eu ouvi-lo, dado que tanto nos prejudicou.

Rowan sentiu de novo o rosto a enrubescer. Mas fez o que lhe pediram e proferiu as palavras que começara a recear:

Sob aparências aprazíveis, o mal incendeia-se

E, lentamente, a velha roda gira.

Os mesmos erros, o mesmo orgulho de sempre,

A inestimável proteção desprezada.

O inimigo secreto chegou.

Oculta-se nas trevas, cautela incautos!

Porque, dia após dia, o seu poder engrandece,

E, quando por fim o seu rosto é revelado,

Histórias passadas e presentes irão encontrar-se...

O círculo do mal está completo...

A voz de Rowan deixou de se ouvir. Ogden ficou em si­lêncio por instantes. Voltou-se depois para Allun.

— Compreendo por que foram enganados — afirmou. Fez uma pausa. — Trata-se de um enigma — prosseguiu. — Dele retiro apenas uma coisa. A resposta a este problema reside em algum lugar no passado.

— Foi o que a minha mãe pensou— interrompeu Rowan.

— E Lann disse que o enigma falava da nossa escravatura com os Zebak e que alertava que ia acontecer outra vez, se esquecêssemos as nossas velhas lições.

Ogden anuiu.

— Poderia ser isso — disse —, mas não creio que seja. Ambos os nossos povos temem os Zebak. Mas talvez te­nhamos que temer um outro inimigo.

— Mas, como pode ser? — gritou Rowan. — Nunca tivemos outro inimigo, desde que viemos para Rin.

Ogden mirou-o, pensativamente.

— Ah, sim — afirmou. — Mas se forem inimigos se­cretos, que existissem aqui antes e depois de terem chegado, mas que nunca vos foram revelados, nem mesmo a nós, até agora? Antigos inimigos do território e dos seus povos. Ini­migos que podem aguardar um milhar de anos, dois milha­res, dez milhares, pela oportunidade de atacar outra vez. E se forem esses?

Inclinou a cabeça e cerrou os olhos. Aguardaram. Rowan conteve a respiração. O rosto de Zeel estava tão imóvel que mais parecia uma máscara moldada.

Por fim, Ogden olhou para cima.

— Já refleti — disse. — Segui o coração ao vir para este lugar, onde se diz que combateram os Gigantes de Inspray e onde se perdeu um vale maravilhoso. Fui atraído para cá e o sentimento ainda está forte dentro de mim. Não o posso negar. Sei que aqui reside a resposta que buscamos.

Voltou-se para Zeel.

— Prepare-se, Batedora — disse, em tom grave. — Vamos, finalmente, concretizar o seu desejo. Irá em busca do Vale do Ouro. Ainda assim o deseja?

Ela anuiu, o rosto empalidecendo.

— O Vale é guardado pelo Fosso de Unrin — prosse­guiu Ogden. — E o Fosso de Unrin é um lugar malévolo. Ainda está disposta a ir?

— Sim — respondeu ela, em tom baixo.

Ogden fitou a folha da margarida-selvagem, retorcendo-a na mão.

— É Zebak por nascimento e corajosa até à medula, Zeel, minha filha adotiva — disse. — É uma Batedora dos Viajantes, nascida para enfrentar o desconhecido para proteger e liderar a tribo. Mas... — Olhou para os dois ra­pazes Batedores, imóveis ao seu lado. — Mas nesta via­gem, Tor e Mithren, os seus companheiros habituais, não podem te acompanhar.

— Compreendo — disse Zeel.

— Contudo, não estou disposto a que enfrente o mal sozinha. Por isso escolho outra pessoa para ir com você. Uma pessoa que, com a sua ajuda, irá provar que a velha ami­zade entre os nossos dois povos continua de fato inabalá­vel. Uma pessoa que segue também o seu coração e que já demonstrou que consegue defrontar o medo e o perigo na persecução dos seus intentos.

Voltou-se e entregou a folha a Rowan.

 

O PESADELO

Subiram a colina rochosa sem trocarem palavra. Quan­do alcançaram o cume, Zeel abraçou Tor, Mithren e Ogden.

— Voltaremos a nos ver — disse ela individualmente a cada um. E eles repetiram as palavras, mirando-se olhos nos olhos.

Allun agarrou nas mãos de Rowan.

— Tome cuidado — disse. Puxou então Rowan para si e abraçou-o. — Tome cuidado — repetiu.

— Vão — disse Ogden suavemente. — Escutem os vossos corações. Eles irão guiá-los. Ficaremos a aguardar notícias de que tudo está bem.

Rowan e Zeel viraram-se e tomaram o caminho que con­duzia ao fundo do vale.

Rowan olhou para baixo e começou a sentir vertigens. Não porque a inclinação fosse muito acentuada, ou o cami­nho demasiado tortuoso. Por detrás da colina rochosa, o terreno pendia de forma bastante gradual e tufos de vege­tação e margaridas-selvagens atapetavam o solo que pisavam.

As vertigens eram provocadas pelo medo. Um medo terrí­vel. Porque, lá no fundo, situava-se um local que ele sabia ser malevolente mesmo que nunca tivesse ouvido o seu nome. Só a visão em si enregelava-lhe o coração.

Avistava apenas uma massa de árvores baixas e frondo­sas. Mas eram repugnantes, não bonitas. Troncos negros e grossos elevavam-se do solo encanecido, numa massa retor­cida. Folhas de cor púrpura amontoavam-se nas pontas dos ramos.

Aqui e ali, manchas de nevoeiro amarelado rastejavam e pegavam-se às suas raízes. E havia um odor odioso, um cheiro como jamais sentira na vida. Enchia-lhe as narinas e entranhava-se nas suas roupas, criando-lhe náuseas de re-pugna e terror.

Olhou para Zeel, que descia determinada ao seu lado. Os seus pés, agora cobertos com sapatos macios, não des­lizavam no terreno de terra solta como os seus. A vegetação e margaridas pareciam acolher os seus passos, suavizando o solo.

Zeel não falou com Rowan. Não sorria. Não desejara a companhia dele. Pretendera encetar aquela aventura so­zinha.

Também Allun não quisera que Rowan fosse.

— Rowan não passa de um rapazinho, Ogden — opu­sera-se. — Seguramente que posso tomar o lugar dele. Tam­bém eu sou um cidadão de Rin. Se acompanhar Zeel no lugar de Rowan, isso seguramente provará que a amizade entre os nossos povos permanece forte como sempre.

Mas Ogden abanara a cabeça.

— Rowan dos bukshah é praticamente da mesma idade de Zeel, Allun — retorquira. — E Rowan foi o único de entre vós que conquistou a Montanha. Deposito grande confiança nele e no sentimento que nutre pela terra. Sinto que há retidão na minha escolha. Quero que seja ele a acom­panhar Zeel.

Rowan resvalava na terra solta, esforçando-se por man­ter-se de pé, sabendo que Ogden e Allun, e os outros dois Batedores, Tor e Mithren, o observavam.

Sentiu a respiração a acelerar a medida que as árvores deformadas de Unrin se iam aproximando e o cheiro fétido do lugar chegava até ele. Deslizou os últimos metros até ao fundo da encosta e desejou ardentemente que Zeel falasse com ele. Que dissesse alguma coisa. Apenas para que a sua mente não estivesse focada no medo.

Como se tivesse ouvido os pensamentos de Rowan, Zeel voltou-se para ele.

— Está com medo? — perguntou, friamente.

Pensou em mentir, mas descartou a idéia. Era evidente que ela se percebia como ele estava aterrorizado.

— Estou — respondeu. E perguntou, apenas para sa­ber: — E você?

Ela mirou-o orgulhosamente.

— Lembre-se, sou uma Zebak — disse. — Os Zebak nunca admitem o medo. — Depois sorriu subitamente e, por momentos, lembrou-o Allun. — Mas também sou uma Via­jante — riu-se. — E, como Viajante, respondo, sim, sim, sim! Estou morta de medo. — Fez uma pausa. — Os Via­jantes acham que não vale a pena mentir, quando não se ganha nada com isso — acrescentou.

Rowan sentiu-se invadir por uma sensação de agradeci­mento. Pelo menos não estava só. Sorriu também para Zeel, ignorando o coração que batia acelerado.

Começaram a caminhar pela pequena faixa de terreno plano que separava a encosta rochosa das árvores. As ale­gres margaridas amarelas no caminho pareciam troçar deles. Dobradas à passagem dos pés, voltavam a erguer-se para o sol assim que Rowan e Zeel passavam. Não se tornavam entristecidas e receosas pelo Fosso de Unrin. Desenvol­viam-se com toda a naturalidade até à beira das árvores.

Mas, tal como Rowan reparou, não cresciam para lá delas. Onde as árvores se elevavam, deixava de haver tufos de vegetação e de margaridas. Era como se todo o indício da vida normal terminasse onde Unrin se iniciava.

Tudo era desagradável e silencioso. Um silêncio abso­luto. Não esvoaçavam borboletas por cima daquelas árvores de baixa estatura e retorcidas. Nenhum pássaro roçava os seus ramos, em busca de sementes e pequenas lagartas. Nenhuma lagartixa se serpenteava pelas raízes, à caça de insetos. Nenhum sapo coaxava por entre aquele nevoeiro amarelado e tóxico.

— Está tudo... morto — murmurou Zeel, apontando para a terra cinzenta. — Não as árvores, mas tudo o resto. E o cheiro! — Torceu o nariz.

— Zeel... — Rowan hesitou. — Zeel, sabemos quais os perigos com que nos podemos deparar aqui?

Ela abanou a cabeça.

— As nossas histórias não nos dizem isso. — Mordeu o lábio. — Tudo o que narram é que este é um lugar de monstros. Nenhum ser vivo jamais penetrou em Unrin e voltou. É proibido.

É proibido.

— Era o que diziam sobre a Montanha — afirmou Ro­wan. — No entanto, sete de nós subimos a ela e sete de nós regressamos.

Zeel endireitou os ombros.

— Talvez aconteça então o mesmo com Unrin — disse, forçando um sorriso. — Por que não? Nestas lendas, quem sabe o que é real e o que não passa de imaginação? Poderá ter sido conveniente para as gentes do Vale do Ouro levar os estranhos a pensar que Unrin é mortífero.

Zeel abanou a cabeça com firmeza, como que assegu­rando a si mesma que o que dizia era verdade.

— Vamos! — disse. — Já perdemos muito tempo.

Viraram-se e acenaram para as figuras que os observavam lá de cima. Em seguida, dobraram-se e começaram a andar, Zeel à frente, Rowan logo atrás, para o território nebuloso de Unrin.

Caminhando lentamente, os olhos disparando em to­das as direções, os pêlos da nuca em pé, Rowan tapou o nariz com a mão para se defender do hediondo fedor. Um pó fino acinzentado elevava-se sob os seus pés. Con­tudo, debaixo desse pó, o solo era duro como pedra.

Passados alguns segundos, deixaram de ver a encosta por onde desceram. Deixaram de ver o céu. Os troncos e ramos retorcidos incidiam por trás e acima deles, encurralando-os num mundo sombrio e de cheiro demoníaco, de um silêncio sinistro.

— Devemos marcar as árvores? — sussurrou Rowan nervosamente. — Para sabermos o caminho de regresso?

— Vamos poder seguir as nossas pisadas sobre o pó — murmurou Zeel. — Tenha calma. Escute o seu coração. Confie nele. — A voz dela transmitia tensão.

Prosseguiram caminho. Durante cinco minutos. Dez. Nada aconteceu. Mas Rowan não se tranqüilizou. Verifi­cava constantemente que sustinha com freqüência a respi­ração. Na sua mente, havia imagens. Que se tornavam cada vez mais nítidas. Mais fortes.

— Está próximo. — Os olhos pálidos de Zeel brilhavam. Os seus passos apressaram-se. — O Vale do Ouro. Sinto-o.

— Também eu — disse Rowan.

A fonte de prata, correndo fria e fresca das entranhas da terra... Pessoas bonitas, altas e fortes, sábias e boas... Flores e frutos de todos os gêneros, derramando pelos caminhos de gemas reluzentes que serpenteavam pelos jardins... Pequenos cavalos brancos, com selas de seda... Casas pintadas de encantadores padrões, cada uma diferente... Diante de cada casa, uma ave dourada — uma coruja com olhos de esmeralda...

Um lendário lugar do bem. Guardado por um lugar do mal.

Vozes vindas do passado murmuraram para ele, tol­dando as resplandecentes imagens, cravando-o de medo.

...um lugar perverso e sombrio... um lugar de morte... um lugar a temer. Um lugar a recear...

“Não tenha medo, pequeno Rowan...”

“Mas, e se for verdade? E se existir”? E se um dia eu lá tiver que ir?”

“Nunca terá que lá ir, Rowan. Prometo”.

Algo os observava. Rowan podia senti-lo. Algo sabia que eles estavam ali. Algo estava à espera. A espera...

Todo o seu corpo estremeceu ao ter percepção disto. Os seus olhos examinaram desesperadamente as sombras negras por entre as árvores, os ramos retorcidos sobre a cabeça, o nevoeiro amarelo e rastejante no solo. Mas não havia nada. Nada.

Apesar de tudo, tinha a certeza.

— Zeel! — chamou para a figura que se movia com ligeireza à sua frente. — Zeel...

Foi então que o solo se moveu sob os seus pés. A poeira elevou-se bem alto. E gritou quando algo lhe agarrou os tornozelos, se retorceu à sua volta, puxando-lhe os pés.

Caiu pesadamente, soltando gritos, escutando os pró­prios gritos de Zeel. Fitou, num horror inacreditável, a coisa cinzenta-esbranquiçada que se levantara como um enorme verme do interior da terra e o ia entrelaçando, com uma força terrível, na sua cauda que se movia como um chicote.

— Cobra! — gritou Zeel, atirando-se à criatura, apunhalando-a com a navalha, rasgando-a com os dedos.

Faixas semelhantes a ferro confrangeram as pernas de Rowan, o estômago, o tórax. Sentia as forças a esvairem-se à medida que o ar era expelido dos seus pulmões. Estava a ser esmagado. Estava a ser arrastado para a base inchada e retorcida de uma árvore, onde mais vermes cinzentos-esbranquiçados se erguiam da terra seca, estendendo-se para ele como os tentáculos de um monstro das histórias de Ogden.

Uma névoa vermelha de horror passou perante os seus olhos ao tomar consciência da verdade. Os monstros de Unrin não se ocultavam nas árvores. Os monstros eram as próprias árvores. Árvores que se alimentavam de criaturas vivas. Eram as raízes de uma árvore que investiam sobre ele. A própria árvore parecia estremecer, debruçando-se sobre ele. A espera. Esfomeada.

Tentou gritar em terror, mas da sua boca não saiu qualquer voz. Sentiu Zeel puxar por ele, tentando li­bertá-lo. Depois pensou ouvir um som. Um som rangente, rouco. O som de algo que aguardava há muito e que ia finalmente alimentar-se.

Tinha agora a cabeça comprimida contra a base da árvore, pressionada contra a massa poeirenta de pequenos ossos e dos corpos secos e mirrados de pássaros, lagartos e outras criaturas de que a árvore se alimentara enquanto aguardava por caça mais grossa. Viu um tentáculo cinzento-esbranquiçado a erguer-se ao seu lado e sentiu um deslizar repugnante e de cheiro fétido sobre o rosto e boca.

Cheio de horror, mal sabendo o que fazia, mordeu a raiz com todas as forças. Esta estremeceu e Rowan mordeu com maior intensidade.

A raiz largou-o e debateu-se, afastando-se dele. Do in­terior da árvore provinha um ruído profundo e rouco. Seria dor? Como podia ser, se a navalha afiada de Zeel rasgara o atacante em vão?

Mas o tentáculo continuava a retroceder, afastando-se dele. Com descrença, sentiu e viu os outros a arredarem-se também, libertando-lhe as mãos, o tórax, as pernas, e pe­netrando de novo na terra. Depois, Zeel puxava-o para cima, gritando para ele.

— Corra! — gritava. — Estamos cercados. Corra, corra, corra!

 

FUGA

Correram, saltando e tropeçando pela poeira. Na sua frente, ao seu lado, raízes irrompiam da terra, retorcendo-se e avançando para eles, até o solo parecer contorcer-se com serpentes cinzento-esbranquiça- das.

Rowan corria às cegas, cada respiração emitindo uma dor no peito magoado.

— Vamos! — pediu Zeel. — Rowan, não desista! Deu-lhe a mão, apertando-a com força. Puxou-o atrás dela. O ar estava compacto com poeira e com os sons ras­tejantes e movediços das árvores perseguidoras. Raízes en­rolavam-se numa massa debaixo dos seus pés, flagelando para cima, lançando-se aos tornozelos deles, sem contudo se agarrarem por completo.

Rowan sabia que não conseguiria continuar muito mais tempo. Iria acabar por tropeçar e cair. Foi então...

— Olha ali! — gritou Zeel. — Há uma abertura. Pode ser o que procurávamos... o caminho. Oh, despacha-te!

Lançaram-se por entre as árvores e penetraram numa pequena clareira — um solo úmido e pantanoso, bas­tante diferente do restante. As árvores cresciam perto dos limites do pântano, inclinando-se para a frente, entrela­çando os seus ramos por cima.

Rowan e Zeel caminharam sobre a lama viscosa e cin­zenta. Seixos e pedras maiores envoltas no lodo magoa­vam-lhes os pés e saltavam para o seu corpo enquanto avançavam para o centro.

Aqui, pararam, ofegantes, agarrando-se um ao outro.

— Não podemos ficar aqui — disse Rowan. — Sabem onde estamos. Vão perseguir-nos. — Estremeceu por com­pleto. A lama movia-se e parecia viva. As raízes das árvores deslizavam por ela como enguias brancas, em sua busca.

— Rowan, vejo uma luz! — gritou Zeel subitamente, apontando.

Rowan olhou para cima mas nada viu. Nada a não ser lama, árvores e tentáculos rastejantes avançando para eles. Zeel começou a avançar, com dificuldade.

— Rowan, olha para a frente! Não vê? Estamos quase lá! Estamos praticamente no final das árvores! Estamos quase... — As suas palavras foram interrompidas por um grito abafado ao ser puxada para baixo.

Rowan lançou-se para ela. Puxou-lhe a cabeça e ombros para fora da lama sufocante. Chamou a si todas as forças para libertá-la do tentáculo que a estrangulava em redor do tórax. Sentiu uma pedra grande junto à perna. Tirou-a, a pingar, de dentro da lama e bateu no tentáculo com ela, arranhando-o e mordendo ao mesmo tempo, recusando-se a desistir.

O tentáculo sacudiu e libertou Zeel. Soluçando e mal conseguindo respirar, Zeel e Rowan lançaram-se a correr. Olhou de novo para cima. Agora, também ele avistava o que o olhar perspicaz da Batedora detectara antes dele. Luz, de fraca intensidade, reluzindo mais à frente.

Sentiu o terreno a endurecer sob os pés. O pântano terminava. Tal como as árvores. Avistava agora a encosta do penhasco, alto como uma torre. Reluzia como ouro ao sol.

— Zeel! Mais alguns passos! — incentivou. — Zeel, vamos!

Correram em frente, livrando-se da última raiz perse­guidora, subindo pelas rochas douradas enquanto as raízes se contorciam e elevavam para eles. Rowan virou-se e golpeou-as sem sentido com a pedra que ainda tinha na mão.

— Não perca tempo com isso! — afirmou Zeel. — Suba! Há uma plataforma mais acima. Aí ficaremos em segurança. Não olhe para baixo. Não olhe para baixo!

Rowan impulsionou o corpo dolorido, esperando a cada momento sentir um aperto no tornozelo que o lançaria desamparado para o solo lá em baixo. Viu Zeel a alcançar a plataforma e a virar-se para ele, estendendo o braço.

Com todas as forças que lhe restavam, levantou a mão e sentiu-a a puxá-lo para segurança. Deixou-se depois cair de costas sobre a rocha e as trevas invadiram-no.

 

Rowan abriu os olhos e avistou céu azul. Escutou o som de pássaros. Inalou uma lufada de ar doce e contraiu-se com dores. Parecia que todos os ossos e músculos do seu corpo estavam doridos.

— Está bem? — A voz de Zeel era tão ríspida como sempre mas, quando olhou para ela, reparou que o seu olhar era amistoso.

Anuiu e depois abanou a cabeça.

— Não sei — acabou por dizer. Sentou-se, gemendo, sacudindo pequenos seixos e lama dos braços. A pedra grande que lhe servira de arma contra as árvores permanecia junto dele. Pegou nela e pousou-a no regaço, afagando-a em agradecimento.

A garota observava-o, de rosto sério.

— Salvou-me a vida — disse. — O meu povo está em dívida para com você.

— Não, não está — disse Rowan. — Também me salvou a vida. Estamos quites.

Zeel olhou para as árvores de Unrin encolhidas lá em baixo.

— Não — respondeu. — Você salvou-se a si mesmo. Nada do que fiz ajudou. Só quando mordeu a raiz da árvore é que ela te libertou.

Os seus olhos pálidos viraram-se para ele.

— É mais forte do que parece — disse, pensativamente. — Ogden estava certo ao te escolher para me acompanhar. — Franzindo o cenho, começou a tirar as pedrinhas dos sapatos macios, negros e ensopados da lama.

Rowan esfregou a pedra. Tinha uma sensação fria, suave e reconfortante sob os seus dedos. Pestanejou para um pequeno pássaro azul que esvoaçava por trás da cabeça de Zeel, arrancando umas bagas num arbusto que se desenvolvia numa fenda na encosta do penhasco. O pássaro era-lhe estranho.

Inclinou-se um pouco mais para a frente para o obser­var mais atentamente. Percebeu então o que ele comia. De um arbusto de bagas da Montanha. Percebia agora de onde provinha o aroma adocicado.

Rin! Um tremor agonizante de medo percorreu cada célula do seu corpo. O perigo que acabara de enfrentar afas­tara tudo o resto da sua mente, mas recordou-se subi­tamente da razão que os levara ali. Por que tiveram que enfrentar os terrores de Unrin.

— Zeel — exclamou, tentando levantar-se e caindo para trás. — Zeel, há quanto tempo estamos aqui? Temos de avançar. Temos de encontrar o Vale do Ouro. Temos de...

Zeel abanou a cabeça. O rosto manchado de lama estava severo.

— Lamento, Rowan — disse, suavemente.

— O que quer dizer?

— Chamei os outros para virem nos buscar. Disse-lhes que falhamos.

— Não! — Rowan olhou à sua volta, desnorteado. — Não! Ouve! Ogden disse que ficava aqui. Para lá de Unrin. E há um arbusto das bagas da Montanha a crescer atrás de você. Como pode ter chegado aqui a menos que o povo do Vale do Ouro tivesse trazido o fruto da Montanha, há muito tempo atrás? Ogden disse que eles subiram a Mon­tanha.

— Pelo que parece, Ogden não sabe tudo — respondeu Zeel.

Rowan não estava disposto a desistir com tanta facili­dade.

— Mas, sentimos que estava perto, Zeel. Sentiu-o, tal como eu. A entrada para o Vale pode estar lá em baixo, em qualquer zona da base deste penhasco! Pode...

Zeel abanou de novo a cabeça.

— As nossas visões não passavam de sonhos feitos de esperança e medo. O Vale do Ouro não existe neste lugar.

Havia agora uma terrível tristeza no seu rosto.

— Quantas vezes olhamos para baixo, do topo deste pe­nhasco, acreditando. Mas fomos tolos por termos acredi­tado. Desta plataforma, podemos ver toda a encosta do penhasco, o que não acontece lá de cima. Veja por si mesmo. Não há grutas nem túneis na rocha. Nada.

Rowan baixou a cabeça para que Zeel não visse o deses­pero na sua cara. Não acreditava que aquilo estivesse a acon­tecer.

A voz de Zeel continuou.

— O que significa que o Vale do Ouro não passou sempre de uma lenda — disse, amargamente. — Nunca existiu na realidade. Nunca era suposto ajudar-nos. Não passou de uma mentira... uma história para divertir as crianças ao redor de uma fogueira.

Rowan pegou na rocha, esfregando-a, em busca de uma resposta.

— Talvez esteja em algum lugar aí — murmurou. — Talvez, se tentarmos... — Calou-se, fitando a pedra sob os dedos enlameados. O coração acelerou e soltou um grito sufo­cado.

— O que foi? — perguntou Zeel, largando os sapatos e começando-se a pôr de pé.

Rowan olhou para a encosta do penhasco, reluzindo como ouro. Mirou as demoníacas árvores de Unrin e a pedra no seu regaço. Estendeu o braço, os dedos tremendo, e pegou numa mão cheia de pedrinhas enlamea­das, tirou outras da própria roupa, e esfregou-as entre as mãos. Quando viu uma cor reluzente destacando-se do revestimento negro, uma onda de dor percorreu-o. Do­brou-se sobre si mesmo, arqueado sobre o solo.

— Rowan, o que se passa? — gritou a garota. — Enlouquece? Está bem, não encontramos o Vale do Ouro. E Ogden estava enganado em relação a tudo. Tudo não passava de uma lenda. E tudo é triste para todos nós. — A voz começou a tremer-lhe. — Mas há que enfrentar as coi­sas como são, tal como os outros. Podemos sempre tentar ajudar o teu povo...

— Ogden não estava enganado em relação a tudo — exclamou Rowan. — Quem está enganada é você, Zeel. O Vale do Ouro não é uma lenda. Nós o descobrimos.

Zeel fitou-o, abanando a cabeça em descrença e receio.

— Encontramos — repetiu Rowan, observando a re­torcida massa de negras árvores lá em baixo. — Vimos a sua parede dourada. Estamos agora sobre ela. Andamos sobre os seus caminhos preciosos. As suas pedras preciosas estão presas aos nossos sapatos e roupas.

Levantou a pedra grande. Removida a substância lo­dosa, a sua forma era clara e as marcas da sua verdadeira cor brilharam ao sol. Era uma coruja dourada com olhos de esmeralda.

Rowan inalou profundamente e estremeceu. — O Fosso de Unrin não guarda o Vale do Ouro, Zeel — disse. — Os dois são exatamente o mesmo.

 

E, QUANDO POR FIM, O SEU ROSTO É REVELADO...

Não compreendo! — Zeel abanou a cabeça vezes sem conta, olhando para as pedras preciosas que deslizavam por entre os seus dedos e depois fitando a massa negra de Unrin. — Como pode ter acontecido isto? Como é que ninguém tomou conhecimento disto?

— Aconteceu há muitos anos — respondeu Rowan, recordando-se das histórias. — Os Viajantes estavam na costa, combatendo os Zebak. Regressaram após muitos anos de ausência. O novo lugar que chamaram de Fosso de Un­rin situava-se aqui. O Vale que eles conheciam desaparecera. Por acaso, houve uma derrocada de rochas da Montanha, tornando tudo diferente. Talvez tenham inventado a histó­ria dos Gigantes de Inspray para explicá-lo. Quem sabe?

— Mas... e o povo do Vale! — exclamou Zeel. — Era suposto ser muito sábio e inteligente. Como puderam per­mitir que as suas casas fossem tomadas por tal inimigo? Como foi possível? Como chegaram aqui as árvores, apoderando-se de tudo em tão pouco tempo?

Marchou pela plataforma, erguendo uma mão para sentir o vento.

— Está a mudar — disse, abruptamente, enfiando as pedras brilhantes nas algibeiras. — Anda. Temos de subir para o topo do penhasco para esperar pelos Batedores.

Rowan pegou na coruja dourada e enfiou-a na camisa. Ao colocar-se de pé, detectou algo azulado sob o arbusto das bagas da Montanha. Aproximou-se mais para investi­gar.

Era o pássaro. Estava imóvel, os olhos fechados, o pe­queno bico aberto. As penas do peito agitavam-se ligeira­mente com a sua respiração. Estava profundamente adorme­cido.

O perfume rico das flores das bagas da Montanha flu­tuava docemente no ar. As luxuriantes bagas vermelhas mostravam-se tentadoras.

— As bagas da Montanha — murmurou Rowan. Na sua mente, viu os pássaros de Rin, estendidos e imóveis, exatamente assim, sobre a vegetação. Viu as pessoas dei­tadas nas ruas e nos jardins. As pessoas que inalaram o aroma daquelas flores vermelhas doces que floresciam por todo o lado em Rin, o seu número crescendo em cada dia que passava. Crescendo e crescendo...

— Zeel! — exclamou, voltando-se rapidamente para ela. — Os habitantes da minha aldeia... são as flores das bagas da Montanha que os estão a adormecer. O aroma das flores! Olha para o pássaro.

Ela fitou com curiosidade o pássaro adormecido. Apro­ximou-se mais e tocou-lhe gentilmente com um dedo.

— Quem pensaria em tal coisa? — murmurou, aba­nando a cabeça. Olhou para o rosto ansioso de Rowan e sorriu.

— Rowan, não fique tão preocupado — disse. — Não percebe o que isto significa? Significa que a nossa travessia de Unrin não foi um desperdício. Significa que, afinal, a resposta estava aqui!

Zeel apertou-lhe a mão.

— Não tenha medo! — disse. — O pássaro está a dormir, não está morto. Tal como os habitantes da sua aldeia estão a dormir. Tudo o que temos que fazer é voltar a Rin e arran­car os arbustos das bagas da Montanha ou, pelo menos, grande parte deles. Depois, as pessoas irão recuperar do sono.

Rowan franziu o cenho, duvidando.

Zeel pousou as mãos nas ancas e mirou-o com irritação.

— Não o compreendo! — gritou. — Devia estar feliz! O seu problema está resolvido! Não admira que as bagas da Montanha tenham sido a causa dos seus problemas. A Montanha é proibida. Está repleta de coisas estranhas e monstruosas que não conseguimos sequer imaginar.

— Não tenho tanta certeza assim, Zeel — murmurou Rowan, observando o pássaro adormecido. — Não tenho tanta certeza que tenhamos a resposta completa. A questão é o enigma. O enigma de Sheba. Não se ajusta. Ela falou de um grande mal, um inimigo secreto, cujo poder se am­plifica nas trevas. Não podem ser estes pequenos arbustos. Nem um mal do sono com uma cura tão fácil. Tem de haver mais qualquer coisa.

Repetiu, baixo, os versos.

O inimigo secreto chegou. Oculta-se nas trevas, cautela incautos! Porque, dia após dia, o seu poder engrandece, E, quando por fim o seu rosto é revelado, Histórias passadas e presentes irão encontrar-se... O círculo do mal está completo...

Sob aparências aprazíveis, o mal incendeia-se... Oculta-se nas trevas... Dia após dia, o seu poder engrandece, E, quando por fim o seu rosto é revelado...

Algo se agitou na mente de Rowan. Uma idéia, que se for­mava sem que ele a visse com clareza. Pestanejou, tentando apreendê-la. Foi então que se viu a si mesmo, nos campos dos bukshah com Estrela, pensando nos Viajantes e nas mudanças da Primavera, observando a borboleta a sair do casulo.

Ouviu a voz de Annad. “Por que é que os girinos comem ervas, mas os sapos comem insetos? Por que...?”

Cansada de esperar, Zeel suspirou, impaciente. Depois, apontou para o céu. Dois papagaios de papel, um branco, outro vermelho, agitavam-se contra o azul.

— Tor e Mithren estão a chegar — informou. — Temos de ir. Espera... vou buscar o pássaro. Morrerá de fome se o deixarmos a dormir aqui.

As coisas mudam, Annad, pensou Rowan. A natureza é estranha e maravilhosa. Uma espécie de criatura pode transformar-se noutra, numa estação. As criaturas adultas podem ser muito diferentes das suas versões infantis — com diferentes aspectos, diferentes apetites, diferentes...

Abriu muito os olhos. Girinos e sapos. Lagartas e bor­boletas.

Zeel inclinou-se para pegar no pequeno corpo de penas por baixo do arbusto das bagas da Montanha.

— Zeel! — gritou Rowan. — Afaste-se!

Nesse instante, o terreno sob os seus pés começou a retumbar e a estremecer. Zeel gritou, caindo para trás com o pássaro na mão e quase derrubando Rowan da plata­forma.

— O que se passa? — gritou, agarrando-se aterrorizada a Rowan.

Fragmentos de rocha dourada começaram a separar-se da encosta do penhasco por baixo do arbusto das bagas da Montanha, estatelando-se no solo muito abaixo. O pe­nhasco abria-se através de uma fenda. O arbusto das bagas da Montanha sacudia fortemente, as bagas e flores Soltan­do-se dos ramos como se estivessem a ser abanadas para cima e para baixo por algo enorme e poderoso por baixo.

— Sobe! — gritou Rowan. — Sobe! E, quando por fim o seu rosto é revelado...

Zeel colocou o pássaro no interior do casaco e começa­ram a trepar, os dedos tensos, os pés firmando-se na rocha.

— O que será? — perguntou Zeel ofegante, olhando para trás.

— É o inimigo — respondeu Rowan. — O inimigo! Revelando o seu rosto. Zeel... é uma delas. Uma das ár­vores de Unrin. Os arbustos das bagas da Montanha — são apenas a forma jovem daquelas árvores. Os adultos desenvolvem-se por baixo deles. Os arbustos colhem o primeiro alimento das árvores, com o seu aroma. Eles...

Com um terrível som de rocha a fragmentar-se, uma forma negra ergueu-se debaixo do pequeno arbusto que a coroava. As suas raízes cinzento-esbranquiçadas como vermes a contorcerem-se, deslizaram em volta do terreno, em busca de comida — a comida que esperavam encontrar.

Zeel chegou o casaco a si.

— Eu tenho o pássaro — gritou para a árvore. — Está comigo! Terá de passar fome!

As raízes começaram a subir pela encosta. Na direção deles.

— Sobe! — gritou Rowan, desesperado.

Foram ganhando terreno até ao topo do penhasco. Ro­wan olhou para cima, tentando esquecer as dores dilacerantes nas pernas e tórax, tentando não pensar na queda que seria. Viu Tor e Mithren a olhar para baixo, estendendo inutilmente as mãos. Podia ouvir as raízes da árvore de Unrin a bater nas rochas atrás dele e o som das pedras ao partirem-se à medida que a árvore adulta avançava para cima, por fim liberta das trevas da terra.

Foi subindo, respirando com dificuldade, tendo em mente apenas uma visão horrível. O vale de Rin, total­mente modificado para um repugnante labirinto de ár­vores retorcidas e terra cinzenta e seca. As suas casas e caminhos esmagados por ramos negros e raízes seme­lhantes a tentáculos. Os habitantes adormecidos cativos das árvores famintas, as suas vidas sugadas lentamente.

Histórias passadas e presentes irão encontrar-se... O círculo do mal está completo...

Não! Não iria permitir que o círculo se completasse. Não iria permitir que Rin fosse destruída como o Vale do Ouro. Não iria permitir que o povo de Rin, o seu povo, desaparecesse, como outra raça há muito desaparecera. Desta vez, isso iria ser travado. Desta vez...

A mão de Tor agarrou-lhe o pulso e puxou-o para cima. Rowan avistou suaves colinas e planícies, com vegetação e margaridas-selvagens, estendendo-se no horizonte. A coruja dourada caiu-lhe da camisa e tombou no chão. Ficou quieto, oscilando, vendo Zeel colocar-se ao seu lado.

Ela permaneceu imóvel, ofegante e exausta. Levou então a mão ao casaco e tirou o pássaro. Tinha despertado. Ficou na sua palma por alguns instantes e depois, num clarão de azul, voou em liberdade.

— Ótimo — disse Zeel, com uma centelha da sua au­dácia característica. — Voa para longe. E deixa o demônio da árvore passar fome.

— Zeel, levante-se — rogou-lhe Rowan. — Temos de ir! Temos de ir para Rin!

 

RÁPIDO!

Voaram. Rowan com Zeel, Allun com Tor, e, com Mithren... Ogden.

Levaram apenas alguns momentos a regressar para junto dos Viajantes. Apenas alguns momentos para contar a história. Apenas alguns momentos para Ogden emitir ordens e para ser preparado o terceiro papagaio de papel.

Mas cada segundo representava uma agonia para Ro­wan. Na sua mente, avistava a mãe e Jonn inanimados sobre a relva, no exterior da casa de Bree e Hanna. Viu Annad a dormir no interior. E Lann. E, estendidos sobre caminhos, jardins, portais, as outras pessoas que conhecia desde que nasceu. Simultaneamente, o inimigo desenvolvia-se nas trevas e as bagas da Montanha floresciam.

Quanto tempo seria necessário para que uma árvore adulta crescesse o suficiente para emergir? Estremecendo, recordou-se da voz de Bree. “Mas o solo estava duro... como ferro, pelo que parecia”. Duro, tão duro... não por efeito de uma qualquer magia, como pensaram, mas porque a ár­vore adulta crescia lá, secreta e segura, preparando-se...

Mais rápido, mais rápido, pensou, desejando que o vento impelisse o papagaio. Contudo, teve consciência, com uma sensação de pânico que roçava o desespero, que desconhecia o que iria encontrar quando chegasse a Rin.

— Estamos quase lá — gritou Zeel, a voz quase perdida no vento. — Vamos aterrar nas colinas, onde não há pe­rigo.

Rowan olhou para baixo e avistou colinas douradas e, mais à frente, o vale. Os retalhos de campos castanhos e verdes desapareceram. Rin era agora um tapete de flores vermelhas.

As bagas da Montanha tinham alastrado — surpreen­dentemente depressa. Estavam por todo o lado: nos jar­dins, nos caminhos, nos campos, no pomar. A grande azenha de pedra destacava-se isolada num mar vermelho, a lagoa dos bukshah estava rodeada por uma faixa escarlate que se estendia até ao pomar.

— Zeel, o que vamos fazer? — gritou, desesperado. O seu rosto determinado voltou-se para ele e, nos seus pálidos olhos azuis, detectou a firmeza de um guerreiro Zebak.

— Agradeça às estrelas elas não se terem disseminado ainda para o vale — gritou ela. — Agora será mais fácil fazermos o que decidimos. Vamos queimá-las, Rowan. Quei­má-las! Queimá-las!

 

Desceram em conjunto a colina a correr. O pólen das margaridas-selvagens atingiu o rosto de Rowan e este espirrou, as lágrimas correndo-lhe pelas faces. Mas nunca mais amaldiçoaria as margaridas, prometeu a si mesmo. Flores doces, felizes e selvagens, tinham sido arrancadas de Rin por serem inúteis. Mas as bagas da Montanha foram bem recebidas, por serem uma fonte de orgulho e riqueza. Muito provavelmente, os habitantes do Vale do Ouro sen­tiram o mesmo quando trouxeram da Montanha, em triunfo, mãos cheias de bagas da Montanha.

Os mesmos erros, o mesmo orgulho de sempre.

O enigma fazia agora sentido. À exceção de um verso. Rowan refletia sobre isso quando alcançaram o bosque onde se encontrara com Sheba. A recordação das suas palavras tinia nos seus ouvidos. Ainda mais um mistério. Ainda...

— Ali! — gritou Zeel com veemência, apontando para uma mancha vermelha sob uma das árvores. Pegou num ramo seco coberto de folhas e ateou-o.

— Não, aqui não, por enquanto — gritou Allun, passando correndo por ela. — As pessoas. Primeiro temos que tirar as pessoas de lá! A minha mãe, Marlie, Jiller, Jonn... oh, tantas. Temos de nos apressar! Rápido!

— Será apenas um instante — gritou Zeel para ele, atirando as folhas em chama para o centro dos arbustos das bagas da Montanha. — Um instante para tratar destes demônios e... Oh!

O grito dela fê-los estacar, voltarem-se e olharem. Avist­aram chamas, saltando entre as plantas das bagas. Viram depois as chamas a sibilar e a extinguirem-se. Viram o solo a romper-se e a estalar, montes de terra e vegetação a desabar.

E viram as árvores a erguerem-se — enormes, inchadas e negras como a noite. As raízes, grossas como cobras gigan­tes, moveram-se para fora, cortando o ar em direção a Zeel, na direção deles, em direção a qualquer criatura viva que pudessem capturar e colher.

— Fuja! Fuja! — ouviu Rowan a sua própria voz a gritar, vendo, horrorizado, Zeel a dar um salto para salvar a vida, para longe das árvores, para longe dos tentáculos retorcidos que a perseguiam.

Zeel chegou junto dele, o rosto lívido.

— O fogo! — exclamou ela, ofegante. — Assim que tocou nas plantas, as árvores adultas irromperam do solo. Deve irritá-las. São enormes, Rowan. Muito maiores do que as árvores de Unrin.

— O solo é muito mais rico aqui — observou Ogden gravemente.

Allun tremia.

— Eu e Marlie não vimos nada semelhante na Monta­nha — disse. — Nada mesmo. Havia algumas árvores pequenas e retorcidas por trás dos arbustos onde apanhei as bagas, mas...

Ogden esfregou o queixo.

— Na Montanha, existe rocha logo abaixo do solo e o vento é gelado. Lá, esta maldita planta deve ficar atrofiada, vivendo de insetos e de outras criaturas rastejantes. Mas aqui, tal como no Vale do Ouro, não há nada que as faça parar.

Rowan estava como que paralisado. As chamas, em que depositaram tantas esperanças, revelavam-se inúteis. E não lhe ocorria nenhuma outra forma de salvar o vale.

Allun agarrou-lhe no braço.

— Temos de tirar a nossa gente de lá — disse, ansioso. — É a única hipótese que temos agora. Temos de os tirar de lá... o maior número possível. Antes... antes...

Não conseguiu continuar.

A fronte de Ogden apresentava sulcos pronunciados.

— Tem de haver uma forma — murmurou. — Há sem­pre uma forma. A terra sabe. Protege as suas criaturas. Mantém o equilíbrio.

— Desta vez não — gritou Allun. — Porque estas coisas são da Montanha. Graças a mim, estão na aldeia! — Rom­peu a chorar. — Não posso esperar por vocês! — gritou.

Correu na direção da aldeia. Zeel, Tor e Mithren lan­çaram-se atrás dele.

Mas Rowan permaneceu onde estava, com Ogden.

— A Montanha também faz parte da terra — disse-lhe Ogden. — E tem de existir uma forma.

Ouviram gritos distantes, mas não se moveram.

— Cite o enigma, Rowan — pediu Ogden.

Rowan engoliu em seco e começou.

Sob aparências aprazíveis, o mal incendeia-se E, lentamente, a velha roda gira. Os mesmos erros, o mesmo orgulho de sempre, A inestimável proteção desprezada...

— Pára! — Ogden levantou a mão. — “A inestimável proteção desprezada” — repetiu. — O que significa isso?

— Não sei — murmurou Rowan, desesperado. — Tenho tentado e tentado compreender. Mas, a mim, não me diz nada. Não faz sentido. No entanto, todo o resto do enigma é importante. Tudo!

— Tal como isto deve ser — disse Ogden. — Rowan, pense! A pista para isto reside em você. Pode estar enraizada dentro de si, mas está lá. Porque você é especial. Há algo em você que é especial. Vocêescapou do mal do sono e salvou Allun de ser afetado. Você salvou-se a si mesmo e a Zeel, no Fosso de Unrin. Você, e só você, conseguiu tudo isto. Como. Porquê?

— Não sei! Não sei! — gritou Rowan, enterrando o rosto nas mãos. Como um eco trocista, escutou a voz escarnecedora de Sheba. “Coelho magricela! Garoto fraco, com o nariz a escorrer, com medo da própria sombra! Que não é útil à própria mãe quando ela precisa... Que não é útil para ninguém... garoto fraco, com o pingo no nariz, fraco, com o pingo no nariz...”

Rowan conteve a respiração. Viu-se a arrastar Allun para fora de Rin, para as colinas. Recordou-se de morder e arranhar as raízes das árvores de Unrin. Recordou-se de algo que Jonn dissera. Recordou Zeel: “Agradece às es­trelas elas não se terem disseminado ainda para o vale”. Recordou Sheba, os olhos vidrados: “Só sei que tenho de trabalhar”.

Virou-se repentinamente para Ogden.

— As plantas não conseguiram alastrar-se para o vale! — gritou. — Porque as colinas ainda têm a sua proteção. A sua proteção dourada. A sua proteção inestimável. Como eu. Não entende?

Ogden fitou-o.

— Chame os outros! — gritou Rowan. — Sei o que precisamos. E sei onde o arranjar. Está pronto. A nossa espera. Ogden, por favor!

Ogden não perdeu tempo com perguntas. Levou o assobio aos lábios e soprou.

 

UM FIM E UM PRINCÍPIO

Mas Rowan lançara-se já a correr.

— Aqui, aqui! — gritava, enquanto corria. Seguiu pelo caminho mais curto que conhecia, roçando árvores e enfiando-se por baixo de arbustos, chamando, chamando para que eles o seguissem.

Dezenas de arbustos de bagas da Montanha cercavam a porta baixa da cabana de Sheba. Estavam enormes. Es­tavam prontos. Ratos, lagartos e pássaros estendidos no chão, à espera de serem devorados. Lá dentro, algo maior.

Rowan irrompeu pela cabana adentro. Como um monte de trapos velhos e cabelos desgrenhados, Sheba encontra­va-se aninhada perto de um fogo frio. Passou por ela, em direção ao grande caldeirão de ferro, pendurado sobre as achas apagadas. Estava cheio até acima de um líquido oleoso e de cheiro nauseabundo. Rowan encheu uma concha e bebeu um trago. Sim!

— Rowan! Está aí? Rowan!

Correu para a entrada. Ogden e os Batedores aguarda­vam aí.

— Vejam! — gritou Rowan. Deixou cair algumas gotas do líquido na concha sobre as plantas aos seus pés. Estas estremeceram e penderam. O solo elevou-se. Depois, em simultâneo com os gritos de Zeel, Tor e Mithren, os fami­liares troncos negros horríveis surgiram, empurrando, retorcendo-se e estendendo-se.

Os Batedores caíram para trás. Mas Rowan não se mo­veu. Deixou cair mais algumas gotas da poção das raízes de margaridas-selvagens sobre as coisas em movimento. Foi então que estremeceram e se voltaram para si e, por fim, com um horrível suspiro tumultuoso, rasgaram-se de um lado ao outro e ficaram imóveis.

— As margaridas-selvagens — exclamou Rowan. — São elas a proteção. Jonn contou a Annad que outras plantas não se desenvolvem onde crescem margaridas-selvagens. Por isso as arrancamos. A todas. E as pessoas do Vale do Ouro... certamente fizeram o mesmo. Para fazerem os seus pomares, para construírem as suas casas e para pavimenta­rem os seus caminhos. Por isso, quando as bagas da Mon­tanha apareceram, ficaram indefesos. Tal como nós.

Levantou a concha.

— Mas isto... esta poção é feita a partir das raízes das margaridas-selvagens. Há muito que a tomo. Sou o único que a tomo. Estou cheio da poção, por isso as árvores não conseguiram capturar-me. Isto mata-as. Isto mata-as!

Os Batedores correram para ele.

— Temos bastante poção — disse. — Sheba preparou-a. Ela sabia. Sabia que o tinha de fazer. Mas desconhecia a razão. Para dentro! Rápido!

— Encham os fracos com a poção — ordenou Ogden. — Levem os papagaios. Lancem o líquido primeiro sobre a aldeia e depois sobre os campos. Sejam poupados e não desperdicem. Rowan, leve jarros, taças, qualquer coisa! Nós seguiremos a pé.

— A minha mãe! — gritou Rowan. — A minha irmã! Nos jardins!

 

Os jardins agitavam-se com serpentes cinzento-esbranquiçadas. Arrastavam-se pela vegetação, enrolavam-se no cabelo de Jiller, tocavam em Jonn. As árvores inclina­vam-se para a frente, derrubando a vedação, encaminhando-se para a casa onde mais carne permanecia adormecida.

Rowan correu entre elas, gritando, lançando o precioso líquido para elas, vendo com extremo prazer as árvores a partirem-se e a mirrarem e as suas raízes a caírem sem vida sobre a vegetação.

Ogden deixou-o ir e seguiu o seu caminho, lançando tranqüilamente o líquido aqui e ali, onde era necessário, observando os papagaios de papel a manobrarem no ar e os jovens a desempenharem a sua tarefa sobre a aldeia.

Compreendia o que o menino sentia. Sabia o que signi­ficava defender um lar. Todo o território era o seu lar. Também lutara por ele, na devida altura. Mas nunca da­quela forma, pensou. Nunca tivera um inimigo que se assemelhasse a este.

Mas depois corrigiu-se. Claro que tivera. Estava a es­quecer-se do círculo. Há muito, muito tempo atrás, o mesmo velho inimigo descera da Montanha. Mas, nessa ocasião, ganhara.

— Mas não desta vez — disse em voz alta, inclinando o jarro. Viu três gotas a caírem e a encantadora planta de cheiro adocicado a mirrar e a morrer aos seus pés. — Desta vez, um menino com o nariz entupido venceu-os.

Parou. Viu no chão um rato adormecido a agitar-se, sentar-se, a limpar os bigodes em surpresa e depois a afas­tar-se a correr. Sorriu ao vê-lo. Pensou na história que iria contar.

 

As labaredas da fogueira elevavam-se no ar. As crianças escutavam, de olhos muito abertos.

Ogden, o contador de histórias, inclinou-se para a fren­te, o rosto magro desfigurado.

— E Rowan tirou o líquido do caldeirão da feiticeira e correu, gritando como um homem louco, gritando com uma centena de vozes, bem para o seio das árvores predadoras que se retorciam e cuspiam para ele.

Jiller apertou o braço de Rowan. Jonn pousou uma mão no seu ombro. Annad aninhou-se mais a ele.

— Foi isso o que aconteceu, Rowan? — perguntou. Rowan encolheu os ombros. Não era bem assim que recordava as coisas. Mas não ia estragar uma boa história. Pelo menos por agora. Sentia-se demasiado feliz. Dema­siado aliviado. Demasiado repleto de alegria.

Sorriu para Allun, de pé junto de Ogden com os braços em torno de Sara e Marlie. Sabia que ninguém culpava Allun pelo que acontecera. Todos assumiram a sua quota parte da culpa. Assim o tinham dito. E Allun fora saudado como um herói, por se ter unido a ele para encontrar os Viajantes e ter combatido o inimigo.

Sorriu para Zeel, rindo para ele sobre as chamas da fogueira. Viu Neel, o oleiro, e Bree e Hanna com Maise e todas as suas crianças. Viu Bronden, Vai e Ellis, Timon e Lann. E todos os outros. Estavam todos lá. Todos à exceção de Sheba, que os considerou a todos como patetas e regressou à sua cabana.

Os meses que se avizinhavam iam ser duros. Havia muito trabalho pela frente, para reparar os danos causados na aldeia pelas árvores de Unrin. Os alimentos não iam abun­dar. Teriam de ser plantadas novas colheitas. Mas todos esta­vam felizes. Apenas por estarem vivos. A voz de Ogden subia de tom.

— E Rowan salpicou-as com a poção uma vez, duas vezes, três vezes — gritou. — Elas gritavam, retorciam-se e abriam-se ao meio... e acabavam por morrer. — Fez uma pausa, olhando em volta. A sua voz transformou-se num murmúrio. — E as raízes enrascadas nos cabelos da mãe dele, murcharam e desfaleceram. Inúteis. Perdidas. Mortas.

Ouviu-se um murmurinho baixo.

— Por toda a aldeia, Allun e os Viajantes dedicavam-se à sua missão, matando as outras plantas do mal. Quando o sol se pôs, a aldeia estava em segurança. Os bukshah ti­nham regressado. As pessoas tinham despertado. Tal como os pássaros, as crias dos bukshah e todas as outras criaturas que estiveram tão perto de serem tragadas e destruídas pelas árvores de Unrin. O vale adquiriu vida de novo. O movimento da roda fora travado. A velha história adquiriu um novo final. O círculo fora interrompido.

— E o povo de Rin rejubilou, cantou e sentiu-se feliz. Por uns tempos, pouco se preocuparam com riquezas. Por uns tempos, tornaram-se como os Viajantes. Apenas felizes por inalarem o ar. Por mirarem o céu. Nessa noite, quando a lua estava cheia, Ogden, o contador de histórias, contou uma narrativa. Uma narrativa que iria contar vezes sem conta, por essa terra fora, nos anos vindouros.

Inclinou-se para a frente.

— Era uma narrativa de coragem e medo; de lenda e realidade; de um enigma e uma resposta; de suspeita e amizade; de um tesouro perdido e de um outro tesouro recuperado; de um inimigo terrível que não veio de fora mas de dentro.

Sorriu.

— Acima de tudo, era uma narrativa de um coelho magricelo com o nariz a pingar e um grande coração, que regressou para salvar o seu lar, nunca desistindo até o conseguir.

As pessoas começaram a soltar vivas e a bater palmas. O ruído arrastou-se por alguns minutos. Ecoou pelo vale. Ecoou na Montanha. Flutuou pelas colinas até onde as carruagens dos Viajantes regressavam tranqüilamente a Rin.

Quando por fim o ruído cessou, Ogden ergueu-se.

— Mais uma coisa — disse.

Pegou num saco de seda que Zeel lhe estendeu. Contor­nou lentamente a fogueira em direção a Rowan.

— O seu povo está em dívida para com você — afirmou. — Mas nós também. Salvou a vida da nossa adorada filha adotiva Zeel e, por esse fato, só terá que nos chamar que nós viremos. Estejamos onde estivermos. Em qualquer altura. Esta é a nossa promessa solene.

Entregou a Rowan um assobio. Rowan agradeceu, gaguejando.

— Por outro lado — afirmou Ogden casualmente, vol­tando a enfiar a mão no saco —, deixou isto no nosso acam­pamento e que te devolvemos agora. A aldeia poderá arranjar uma utilização para elas, nos próximos meses.

As preciosas gemas caíram dos dedos dele para o regaço de Rowan, como gotas de chuva multicoloridas. Ouviu-se um sussurro por entre as pessoas. Os olhos negros de Ogden reluziram. A sua mão enfiou-se mais uma vez no saco. E, nas mãos de Rowan, colocou a coruja dourada. Fora limpa e polida. Brilhava como o sol. Os seus olhos eram fogo verde.

— Vendam o resto, mas guardem isto — afirmou. — Tal como eu, é muito antigo, muito precioso e tem muitas histórias para contar. Fique com isto, Rowan dos bukshah, em sinal da nossa amizade. É agora o único que resta. Não vamos tentar limpar o Fosso de Unrin e recuperar os ossos e glórias perdidas do Vale do Ouro. Já passou o tempo desse local dourado. Do mesmo modo que o tempo para Rin começa neste momento.

Por entre um silêncio profundo, regressou para junto da fogueira e sentou-se.

— Muito bem! — disse, olhando em redor e batendo com as mãos nos joelhos. — Há alguém que possa oferecer algo para comer a este pobre Selvagem?

Não houve uma pessoa que não corresse para satisfazer o seu pedido.

 

                                                                                            Emily Rodda

 

                      

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