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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GUARDIÃO DO CRISTAL / Emily Rodda
O GUARDIÃO DO CRISTAL / Emily Rodda

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O GUARDIÃO DO CRISTAL

 

Sete palavras, escritas a tinta negra num pergaminho com cheiro a óleo e peixe. O Cristal enfraquece. O Selecionador foi convocado...

O sol aquecia suavemente o vale de Rin no dia em que a mensagem chegou. Uma brisa ligeira agitava os rebentos das árvores de hoopeberry no pomar.

Rowan encontrava-se junto da lagoa dos bukshah, ina­lando a fragrância doce trazida pelo vento. Enquanto os po­tentes animais que ele guardava bebiam, olhou para o topo da Montanha revestido de neve que se erguia acima do vale. Podia ouvir o som dos pássaros, dos insetos sobre a vege­tação, das pessoas a trabalhar nas hortas e nos campos. Podia ouvir o borbulhar do riacho, atravessando a aldeia e esten­dendo-se pelas encantadoras colinas verdes atrás dele, em direção ao mar.

Para Rowan, aquele parecia um dia como os outros. No entanto, o mensageiro estava já muito próximo. Já não era apenas um ponto azul ao longe. Avistava já a aldeia enquanto avançava, meio a correr, meio tropeçando pelas colinas, se­guindo o riacho como uma linha de vida. As suas mãos apalpavam já o interior da capa, sentindo o pergaminho que trans­portava.

Dentro de alguns momentos, o sino da praça da aldeia começaria a tocar, assinalando a sua chegada, convocando uma assembléia.

E, depois deste dia, nada voltaria a ser igual para Rowan.

 

Rowan juntou-se à população na praça, pondo-se em bicos dos pés para ver melhor o mensageiro. Viera a correr, tal como os outros, quando ouviu o sino. Via agora Lann, a pessoa mais velha da aldeia, a receber o pergaminho das mãos do exausto homem dos Maris e a lê-lo em voz alta.

Sete palavras.

O Cristal enfraquece. O Selecionador foi convocado.

Mais tarde, Rowan iria recordar-se de tudo como um sonho. A voz de Lann, alta na praça. A mão enrugada a se­gurar o pergaminho. O sol do meio-dia filtrando-se por entre as árvores. A multidão surpreendida, murmurando entre si.

As brisas suaves e aromas adocicados do vale de Rin mo­viam-se à sua volta. Estava rodeado de pessoas que conhecia desde que nascera. Pássaros familiares cantavam nas árvores acima da sua cabeça. Não sentia medo nem nenhum alerta interior. Tudo o que sentia era interesse, e prazer, porque algo de inesperado acontecera, interrompendo a rotina do dia a dia. Um visitante desconhecido, vindo da longínqua costa, da terra dos Maris. E uma mensagem ainda mais estra­nha.

O Cristal enfraquece...

— O que acha que significa? — sussurrou Rowan para Jiller, sua mãe, muito perfilada junto dele.

Ela não respondeu. Mas, quando olhou para ela, para repetir a pergunta, as palavras morreram-lhe nos lábios. O rosto de Jiller estava isento de cor e os seus olhos fixavam o pergaminho na mão de Lann. Atrás dela, Jonn Forte do Pomar deu um passo e colocou um braço à volta dos ombros dela. A boca estava severa.

Rowan percebeu então que a mensagem era de extrema importância. Mesmo assim, não fazia idéia que era algo que o iria afetar.

Sentindo uma curiosidade crescente, fitou de novo a figura exausta, sentada nas pedras rijas da praça da aldeia. Era a primeira vez que via um homem dos Maris. E ne­nhuma das histórias contadas pelos aldeãos regressados de viagens à costa, nenhuma das imagens que vira na casa dos livros, o tinham preparado para a realidade. Sabia que não devia fixar o olhar, mas era difícil não fazê-lo.

O homem estava vestido dos punhos aos tornozelos com umas vestes justas azuis que reluziam à luz do sol. Nos pés, umas botas leves. Tinha tirado o capuz e luvas que usava quando entrou na aldeia. Agora, todos conseguiam ver a pele reluzente, desprovida de pêlos e azul-esbranquiçada da cabeça, rosto e pescoço, os olhos lisos e vidrados, a boca branca e as pequenas mãos de dedos unidos por uma mem­brana.

Permanecia sentado, ofegante, aos pés de Lann. Esta baixou os olhos para ele, apoiando-se na sua bengala.

— Como se chama, homem de Maris? — perguntou, abruptamente.

— Perlain, do clã dos Pandellis.

— Há quanto tempo deixou a costa, Perlain?

— Há quatro sóis — respondeu o homem. A voz era monótona e rouca, e levou a mão à garganta ao falar, como se as palavras o ferissem.

Um murmúrio de surpresa ergueu-se da multidão. As pessoas de Rin necessitavam pelo menos de uma semana para viajar entre o vale e a costa. Aquele homem deve ter corrido grande parte do percurso e dormido muito pouco. Não admirava que estivesse exausto. Encararam-no com novo respeito.

— Chegou em tempo muito curto — disse Lann. — Bom trabalho, Perlain dos Pandellis.

— Há um grande perigo — disse com dificuldade o ho­mem Maris. — O Selecionador...

— O Selecionador de Rin escutou o chamamento e irá obedecer — disse Lann calmamente. — Sempre existiu perigo. Mas nunca, em trezentos anos, deixamos de respon­der ao chamamento. O Selecionador e o Primogênito partirão contigo para a costa ao pôr-do-sol.

O coração de Rowan deu um salto. Perigo! Alguém ia partir para o seio de um grande perigo. Alguém de Rin. Mas que perigo seria esse? O que significava tudo aquilo? Quem era o Selecionador? Selecionador de quê?

Perlain abanava a cabeça.

— Não. Não... podemos demorar tanto tempo. Cada hora... cada minuto... é precioso! — A garganta moveu-se ao engolir dolorosamente.

— Viajou demasiado tempo sob o sol e também sob a lua. Precisa de descansar. Precisa se molhar. Ou morrerá, Perlain — disse Lann.

— Não importa. — O homem Maris umedeceu os lábios ressequidos. — A morte de um... não é importante.

— Essa pode ser a sua opinião, mas não a nossa — respondeu Lann, com firmeza. — Além do mais, os nossos têm de se preparar para a viagem. O Selecionador partirá ao pôr-do-sol. — Levantou o tom de voz. — De acordo?

Houve um momento de silêncio. Rowan olhou com curio­sidade para o rosto de Lann. Franzia o cenho, fitando alguém na multidão. Alguém próximo de Rowan.

Virou a cabeça para ver quem era. A sua volta, outras crianças e a maioria dos adultos faziam o mesmo. Mas as expressões de alguns adultos eram sérias e concentradas.

Eles sabem, pensou Rowan. Eles sabem.

— De acordo? — repetiu Lann. — O Selecionador con­corda?

Rowan sentiu um movimento quando alguém avançou para o centro da praça.

— Sim — disse uma voz calma. — Concordo. Partimos ao pôr-do-sol.

O homem Maris olhou ansiosamente na direção da voz e depois baixou a cabeça, tocando com a testa no chão.

— Selecionador de Rin que tem o destino dos Maris nas tuas mãos, saúdo-te em nome do Guardião do Cristal — disse. — Sou teu servo. Sou a areia sob os teus pés. A minha vida é tua.

Rowan pestanejou e conteve a respiração. Não acredi­tava no que se passava. Não conseguia compreender.

Não pode ser! Eu teria tido conhecimento. Deve haver algum erro, pensou, perdido.

Mas não havia nenhum erro.

A pessoa que aceitava a reverência do homem Maris, a pessoa que a mensagem apelidara de Selecionador, a pessoa prestes a partir para o perigo desconhecido, era Jiller, a sua mãe.

 

O CRISTAL DOS MARIS

— O que se passa? Mãe, diga-me!

Rowan agarrava no braço de Jiller ao dirigirem-se apressadamente para casa. Mas ela continuava a andar, de cenho franzido e em silêncio.

— Espere, coelho magricelo — disse Jonn Forte para ele. Fez sinal com a cabeça para as pessoas na praça, atrás deles. — A sua mãe não falará até estarmos a sós. Seja pa­ciente. — A sua voz era confiante como sempre, mas Rowan percebia pela sua expressão que estava preocupado e abalado.

Jonn e Jiller caminharam rapidamente. A irmã mais nova de Rowan, Annad, corria na frente deles. Annad pouco per­cebeu do que se passara na praça. Ela e os seus amigos esti­veram demasiado ocupados a sussurrar uns para os outros e a observar o estranho homem Maris para prestar atenção a qualquer outra coisa.

Rowan arrastava-se atrás, a mente turbulenta com per­guntas, pensamentos e receios.

Tudo o que compreendera até agora era que a mãe tinha de ir a Maris. Que ele, o seu filho primogênito, a tinha que acompanhar. E que um terrível perigo os aguardava no final da viagem.

Mas, que perigo? E, por que tinham sequer que ir? Maris. Rowan tentou recordar tudo o que sabia. Timon, o professor, contara às crianças muitas narrativas sobre a terra na costa. Narrativas de serpentes do mar, de batalhas e tempestades — e parte da história do estranho povo Maris.

Subitamente, Rowan recordou-se de um dia especial sob a árvore-escola. Um dia quente de Verão.

Timon estivera a mostrar-lhes imagens de um livro. Ima­gens do povo Maris. Para Rowan, eram todos iguais, exceto que uns usavam roupas prateadas, outros azuis e alguns verdes.

— Os Maris são um povo secreto — dissera Timon, apon­tando para as imagens uma a uma. — Embora tenham re­lações comerciais conosco e com outros do outro lado do mar, não abrem os corações a estranhos e pouco se sabe em relação a eles.

— Mas algumas coisas sabemos. Os Maris dividem-se em três tribos, ou clãs: o clã prateado, os Umbray, o clã verde, os Fisk e o clã azul, os Pandellis. Em tempos remotos, houve guerras terríveis entre os clãs. Conta-se que, todas as noites, o mar estava tingido de sangue e as serpentes alimenta­vam-se da carne dos Maris.

— Mas há mil anos que os clãs estão unidos sob o poder de um só líder... o Guardião do Cristal. O primeiro Guardião foi um homem chamado Orin, o Sábio. Foi ele quem encontrou o Cristal, um tesouro de grande poder e mistério, numa gruta sob o mar de Maris...

Naquele dia, Rowan estava cansado. Fora despertado a meio da noite por um pesadelo e levara muito tempo a vol­tar a adormecer.

Pelo que estava meio adormecido debaixo da árvore-es­cola, escutando apenas parcialmente o que Timon dizia.

— Rowan dos bukshah! O que acabei de dizer?

A voz de Timon acordou-o repentinamente.

— Ah... ah... existem três clãs... — gaguejou, sentin­do-se corar. — O líder deles é... o Guardião do Cristal.

As outras crianças riram-se e trocaram cotoveladas. Sabiam como Rowan era tímido. E, habitualmente, estava sossegado e era bom nas aulas. Acharam engraçado por ele ter sido apanhado.

Timon franziu o cenho para eles e prosseguiu.

— Muito bem. Antigamente havia um quarto clã, o clã dos Mirril. Eram peritos em venenos. Criaram mil e um venenos mortais e, para cada veneno, um antídoto. Mas os Mirril foram todos destruídos quando os Zebak inva­diram a costa, há trezentos anos.

Olhou de novo para Rowan, os olhos cinzentos pene­trantes.

— O que mais aconteceu há trezentos anos, Rowan?

— Os nossos antepassados vieram para este local e Rin teve a sua origem — disse Rowan em voz baixa.

Timon anuiu.

— Correto. Os Zebak tentaram muitas vezes invadir a costa desta zona. Mas, há trezentos anos, vieram com um exército de escravos guerreiros acorrentados aos remos das embarcações. Esses escravos foram os nossos antepassados.

O rosto de Timon estava sério ao continuar.

— Na manhã em que os Zebak desembarcaram, todos os clãs Maris estavam reunidos nos seus edifícios de assem­bléia separados. Não fora deixado ninguém cá fora, de guarda. Ninguém sabia que o inimigo chegara. Os Zebak alcançaram o edifício dos Mirril e atiraram um fogo explosivo para o interior. Houve um estrondo enorme. Colunas de chamas dispararam para o céu. O edifício ruiu e incendiou-se. To­dos morreram. Não restou vivo nem um único elemento do clã Mirril. Nem homem, nem mulher, nem criança.

Timon concentrava agora a atenção de todos. As crianças sentadas sob a árvore-escola estavam em silêncio. Todos conhe­ciam bem o terror do fogo.

— Os nossos antepassados presenciaram isto — prosse­guiu Timon. — Assistiram às gargalhadas dos Zebak en­quanto o fogo se desenvolvia. O horror desse momento foi uma das razões por que se revoltaram por fim contra os Zebak. Partiram as correntes e uniram-se ao povo deste terri­tório para combater e derrotar o inimigo. Foi o dia mais importante na nossa história.

Depois, Timon fez uma coisa estranha. Fechou o livro e inclinou-se para a frente. Rowan ficou subitamente com a impressão que Timon se dirigia especificamente a ele.

— Nunca nos deveremos esquecer — disse Timon lenta­mente, os olhos fixos nos de Rowan — que, desde então, o povo Maris tem sido vital para a nossa segurança. Sem eles, os Zebak teriam regressado para nos reclamar, há muitos anos atrás. O objetivo permanente dos Zebak é apodera­rem-se deste território, e a sua astúcia cresce em cada ano que passa. Nunca podemos perder a confiança dos Maris, seja a que custo for.

Pouco depois, a lição terminou. Pensando no assunto mais tarde, Rowan decidiu que fora pateta ao pensar que Timon falava com ele em particular. Por que razão haveria aquela história de ser mais especial para Rowan do que para qualquer outra criança de Rin?

Mas agora, com a mensagem dos Maris ainda ecoando na sua mente, sentia de modo diferente.

Timon estava a falar especialmente para mim naquele dia, pensou, o coração acelerando. Timon sabia que, um dia, chegaria a mensagem dos Maris. Avisava-me que não devia lutar contra ela. Que tinha de cumprir a minha obriga­ção.

Que obrigação?

Tinha algo a ver com o Cristal. O lendário Cristal dos Ma­ris.

O Cristal enfraquece. O Selecionador foi convocado.

“Poucas pessoas à exceção dos Maris compreendem como é poderoso e misterioso o Cristal. Muito poucas”, dissera Timon uma determinada ocasião.

De novo, os seus olhos cinzentos pareceram mover-se na direção de Rowan.

Rowan abrandou o passo. Sim. O que estava em jogo era o Cristal. Teria Timon dito mais alguma coisa a esse res­peito?

Apenas uma coisa. E dissera-o em tom grave, como se fosse muito importante.

“Os Maris vivem muito tempo. Muito mais do que nós de Rin. E os Guardiães atingem uma idade superior em relação aos outros, devido ao poder do Cristal. Apesar de tudo, há sempre uma altura em que cada Guardião sabe que a morte está próxima. Nessa altura, o Cristal começa a perder o seu fogo e força. Deve então ser escolhido um novo Guardião, para ocupar o lugar do anterior. O novo Guardião tem que se juntar ao Cristal antes do velho Guar­dião falecer, para que não seja perdido o seu poder”.

O Cristal enfraquece...

Rowan sentiu um nó na garganta. Percebeu subita­mente o significado da mensagem. Lá muito longe em Ma­ris, o Guardião do Cristal estava a morrer. E um novo Guardião tinha de ser escolhido.

Mas por que fora a mensagem entregue a Jiller? Por que lhe chamara o mensageiro o Selecionador? O que ti­nha ela, uma mulher de Rin, a ver com o Guardião do Cristal?

Rowan levantou a cabeça e viu que Jiller e Jonn tinham parado e que esperavam por ele. Tinham chegado ao ca­minho que conduzia ao jardim deles e aos campos para além da casa. Annad já tinha corrido pelo portão, deixando-o total­mente aberto.

Correu para se juntar a eles.

— Vai agora para casa, Rowan — disse Jiller em tom baixo. — Reúna roupas para a viagem. Roupas quentes, pois vai estar frio em Maris. Depois vá ao campo dos bukshah e prepare a Estrela. Terá de vir conosco para carregar os suprimentos.

Jiller esperou que ele fosse cumprir o que ela pediu, mas Rowan hesitou.

— Depressa — disse a mãe, severamente. — Partimos ao pôr-do-sol.

Rowan permaneceu imóvel.

— Por favor, mãe — disse. — Por que temos que ir? Como pode ser esse tal... esse tal Selecionador?

— Jiller, tem de lhe contar — pediu Jonn Forte. — Não pode protelar mais.

Jiller suspirou. Fechou o portão e fitou os campos cul­tivados que ondulavam como um mar verde diante dela.

— Sou o Selecionador porque nasci para essa missão, Rowan — disse, por fim. — É um dever que tem sido transmitido na nossa família há centenas de anos.

— Na nossa família? — Rowan mal acreditava no que ouvia. — Mas... porquê? Por que nunca soube disso? Lann sabia. Jonn sabia. Timon sabia. Muitos deviam saber. — Sentiu uma fúria repentina. — Por que nunca me conta­ram? — inquiriu.

— É um assunto conhecido por poucos em Rin, por de­sejo dos Maris — disse Jonn, pousando uma mão no ombro de Rowan.

— Talvez já devesse ter lhe contado antes. Mas não quis te perturbar até ser necessário — afirmou Jiller, ainda olhando em frente. — Sempre foi um rapaz... que se preocupava com as coisas, Rowan.

Rowan contraiu-se. Sabia que, se tivesse sido uma pessoa mais forte e corajosa, a mãe teria partilhado o segredo com ele há muito.

Jiller pareceu compreender o que ele sentia, porque olhou para ele rapidamente e tocou-lhe na mão.

— Quis proteger-lhe pelo mais tempo possível — mur­murou. — É tudo.

— Bom, chegou a altura de contar a verdade — afirmou Jonn Forte. — Agora Rowan tem de ouvir a história com­pleta.

 

O SELECIONADOR

Foi assim que, finalmente, caminhando de um lado para o outro sob as árvores do jardim, Rowan ouviu o segredo que a mãe guardara tanto tempo dele.

Quando os Zebak invadiram a costa, no dia que Timon apelidara o mais importante na história de Rin, programa­ram bem a sua chegada. Os seus espiões tinham informado que o Cristal dos Maris estava a enfraquecer. O Guardião estava moribundo. Estava prestes a iniciar-se a Escolha de um novo Guardião.

Os Zebak perceberam que aquela era a altura perfeita para atacarem. Não só porque os clãs rivais dos Maris esta­vam a conspirar para que um dos seus fosse escolhido como o novo Guardião. Mas também porque o próprio Cristal estava fraco e não voltaria a fortalecer-se até estar terminada a Es­colha.

Os Zebak sabiam que a Escolha dependia de regras espe­ciais, estabelecidas por Orin, o Sábio. Orin antecipara que, quando morresse, cada clã iria exigir que um dos seus ele­mentos fosse o Guardião. Não queria que o poder do Cristal se perdesse enquanto os clãs lutavam entre si.

As regras de Orin eram simples. Os Candidatos a Guar­dião iriam juntos para a ilha existente no porto dos Maris. Não para lutar, porque os Maris não apreciavam grande­mente o confronto físico, mas para realizar diversos testes de inteligência e astúcia. Os Candidatos seriam avaliados por um único Selecionador. O Candidato escolhido no final dos testes seria o novo Guardião do Cristal.

Orin era inteligente e compreendia bem o seu povo. Sabia que o Selecionador tinha de ser alguém em que toda a gente confiasse. Pelo que decretou que o Selecionador seria sempre do seu próprio clã, o clã de Mirril. Contudo, em retribuição desta honra, nenhum Mirril poderia voltar a ser Guardião do Cristal.

O Selecionador dos Mirril faria a escolha a partir apenas de três Candidatos — um dos Fisk, um dos Umbray e um dos Pandellis. Deste modo, o clã do Selecionador não teria nada a ganhar ou a perder. A escolha seria sempre justa.

As pessoas aceitaram a norma de Orin. Manteve-se inal­terada durante séculos — até que algo aconteceu que nem mesmo Orin poderia ter antecipado.

Os Zebak atacaram, enquanto o velho Guardião estava às portas da morte. E o seu primeiro ato foi destruir os Mirril.

Não foi fruto do acaso. Não foi por o edifício dos Mirril se encontrar mais próximo da costa. Mas porque queriam destruir o clã do Selecionador. Pretendiam evitar que fosse escolhido um novo Guardião. O Cristal perderia assim a sua potência para sempre e a vitória seria alcançada por eles.

O plano deles quase foi bem sucedido. Havia Candi­datos à posição de Guardião mas, com todos os Mirril mortos, não havia Selecionador. Apesar desta crise, com uma bata­lha a desenrolar-se na costa Maris, os clãs dos Fisk, Pan­dellis e Umbray não chegavam a um acordo para atribuir a escolha a um deles. Nem permitiram que fosse o Guardião a escolher, que por sinal estava a morrer e incapaz de se deslocar da Gruta da Cristal, onde estava acamado.

Mas os Zebak esqueceram-se de um pormenor: o Cristal, mesmo enfraquecido, continha dentro de si a sabedoria de várias eras. E o velho Guardião, mesmo moribundo, possuía a astúcia do próprio Orin.

O velho Guardião sabia onde encontrar um Selecionador que o seu povo aceitaria. Voltou-se para os estranhos — os escravos guerreiros que se amotinaram contra os se­nhores Zebak e que lutavam lado a lado com o seu povo. Com ajuda do Cristal, selecionou um homem para Selecionador. Esse homem era um antepassado de Jiller e de Rowan. O seu nome era Lieth.

— Assim, enquanto a batalha se travava, Lieth foi para a Ilha e escolheu o novo Guardião — disse Jiller. — O Cristal começou a reluzir com uma vida nova e radiante. O meu pai contou-me que o seu poder atinge o ponto máximo quando é escolhido um novo Guardião. O que se provou verdadeiro nesse dia.

— Logo de imediato, a maré da batalha virou. Os Zebak foram vencidos e repelidos. Esta terra ficou a salvo. E os nossos antepassados ficaram livres da escravatura, para darem início a uma nova vida.

— Isso foi há centenas de anos — disse Rowan.

Jiller anuiu.

— Foi. Mas o dever que Lieth aceitou em Maris naquele dia tem passado pela nossa família desde então.

— É uma grande honra — disse Jonn calmamente.

— Uma grande honra e, ao mesmo tempo, uma maldi­ção. — O rosto de Jiller estava determinado e pálido.

— Porquê? — perguntou Rowan com ansiedade. — Por que é uma maldição?

Jiller estendeu a mão para a maçaneta da porta.

— Porque ser um Selecionador em Maris é colocarmo-nos num terrível perigo — murmurou. — Trata-se de um risco de morte.

Virou-se subitamente e tomou o rosto de Rowan nas mãos.

— Daria tudo para lhe poupar, Rowan. Tudo. Mas nada posso fazer. Tenho que te levar comigo, para que ocupe o meu lugar de Selecionador, se eu morrer. Ambos tere­mos que enfrentar o que nos espera com coragem. Ambos. Sozinhos.

Afastou as mãos, voltou-se e correu para dentro de casa. Rowan seguiu-a. A sua mente estava cheia de confusão e medo.

— Porquê, mãe? Por que podemos ficar em perigo? — gritou. — Por causa dos Zebak? Porque sabem que a altura para atacar a costa é quando o Cristal está enfraquecido?

— Não! — exclamou Jiller. O seu olhar era ardente. Rowan retrocedeu. Assustava-o ver a mãe assim. Era habi­tualmente tão calma e destemida.

— Jiller! — Jonn Forte deu um passo em frente. — Vamos sentar-nos. Vamos sentarmo-nos, comer e beber. Poderá responder às perguntas de Rowan como devem ser res­pondidas. Em paz.

— Não há tempo... — começou Jiller, esfregando as mãos. Depois, subitamente, cedeu. Os seus ombros descaíram. Puxou uma cadeira e sentou-se à mesa. — Tem razão — disse, suavemente. — A culpa é minha. Carrego este fardo sozinha há tanto tempo que me é difícil partilhá-lo, agora que chegou a altura. — Abanou a cabeça. — O meu pai disse-me a mesma coisa, na sua época.

— O avô escolheu um Guardião? — perguntou Rowan, sentando-se timidamente ao lado dela. O avô morrera quando ele era muito pequeno. Rowan recordava-se sobretudo de um sorriso rasgado e gentil, olhos azuis e mãos calosas e rijas devido ao trabalho no campo e aos animais que esculpia em madeira com uma navalha pequena e afiada.

Jiller abanou a cabeça.

— Não, o meu pai nunca foi convocado — respondeu.

— O atual Guardião foi escolhido pela mãe dele, a minha avó. Mas o meu pai sabia que o Cristal iria quase de certeza perder a intensidade durante o meu tempo. E isso preo­cupava-o, bastante.

Jonn colocou pão, queijo e leite sobre a mesa.

— Coma, Jiller — disse. — E você, Rowan, coma também. Vão precisar de todas as forças nos próximos dias. Perder refeições não terá qualquer utilidade.

Começaram a comer. Jonn estava certo, pensou Rowan. Alimentar-se o ajudou de fato. Nem percebera que tinha tanta fome.

— Quer então dizer que é perigoso ser Selecionador — disse, com a maior calma possível. — Porquê?

— Porque os Maris não mudaram — afirmou Jonn. — Os ciúmes entre clãs é como uma loucura. — Pousou a mão no braço de Jiller. — Conte-lhe o resto, Jiller.

A mãe de Rowan anuiu com relutância e começou a falar de novo.

— À medida que cada Guardião envelhece, os clãs Maris preparam-se para a Seleção. Cada clã tem pelo menos um Candidato, treinado ou treinada desde tenra idade para os testes. Os elementos de cada clã farão tudo, tudo mesmo, para assegurarem a vitória do seu Candidato. Po­derão roubar, espiar, enganar e mentir. Poderão mesmo matar, se suspeitarem que o Selecionador está a favorecer outro.

Esmigalhou o pão no prato, fitando-o sem ver.

— Muitos membros da nossa família morreram em Maris. O meu bisavô foi o último. Em luto pelo pai e cheia de medo, a minha avó, a sua primogênita, teve que assumir a posição dele como Selecionador enquanto ele jazia morto na Caverna do Cristal. Dizem que se portou com muita coragem, apesar de ter apenas quinze anos.

Rowan sentiu o coração a dar voltas. Mas forçou-se a man­ter-se em silêncio.

Jiller prosseguiu.

— Ela sempre teve consciência do perigo. Muitos outros na nossa família morreram nos séculos anteriores, assassi­nados por Candidatos ciumentos, ou por espiões dos clãs. Com muita freqüência, a Escolha tem ocasionado a morte do Selecionador. Veneno. Lâminas afiadas na cobertura da noite. Corpos envoltos em redes e lançados ao mar faminto.

Rowan olhou para a mãe horrorizado.

— Mas... isso é uma loucura.

Jonn anuiu.

— Tal como lhe disse. Uma loucura — ecoou. — Uma lou­cura que se tem prolongado por um milhar de anos.

— É a forma de ser dos Maris — suspirou Jiller. — De nada serve revoltarmo-nos contra isso. Pelo menos agora os clãs só lutam entre si quando o cristal enfraquece. Assim que um novo Guardião for escolhido, os Maris unir-se-ão de novo, jurando lealdade e obedecendo ao seu líder sem questionarem. Sempre foi assim.

Sempre foi assim... Rowan respirou fundo.

— Se ambos formos mortos — disse, num tom de voz inexpressivo —, isso quer dizer que Annad...?

— Não. — Jiller sorriu, cansada. — O meu único alento é que Annad é demasiado jovem para ser convocada. Se você e eu morrermos, Rowan, o dever passa para outro. Para Timon. A família dele é a seguinte na linha.

Timon. Por isso os olhos de Timon estavam tão sérios ao falar do Cristal dos Maris.

Jonn afastou o prato e ergueu-se.

— Bom — disse —, já conversamos, já comemos e agora temos de lançar mãos ao trabalho. Se vamos partir ao pôr-do-sol, há muito a fazer.

Jiller olhou para cima, surpreendida.

— Vamos? — perguntou. — Não virá conosco, não é, Jonn?

— Claro que sim — respondeu ele. — Pensou que permitiria que você e Rowan fossem sozinhos?

Jiller abanou a cabeça.

— Jonn, este é o meu dever e o de Rowan. Não há necessi­dade de se por também em perigo. Não há necessidade.

— Há necessidade, sim — disse Jonn gentilmente. — Sabe isso. Também sabe que, se o pai de Rowan fosse vivo, os acompanharia à costa. Para ficar com Rowan enquanto você participa na Escolha, nem que seja para isso. Tem de me conceder o mesmo direito.

— Estamos noivos, ainda não somos casados. Agora, talvez... — a voz de Jiller tremeu e virou a cara.

Rowan sentiu a respiração contida na garganta. Jonn agarrou na extremidade da mesa, o olhar duro.

— Não diga essas coisas — disse, em voz alta. — Vai correr tudo bem. Ficaremos em segurança, tal como Rowan. Farei tudo por isso.

As palavras eram corajosas. Mas Rowan sabia que Jonn, apesar de toda a sua força, não poderia os proteger contra o que estavam prestes a enfrentar. Ninguém os podia pro­teger.

A voz da mãe ecoou na sua mente. Ambos teremos que enfrentar o que nos espera com coragem. Ambos. Sozinhos.

 

A VIAGEM

Partiram assim que o sol se pôs. Poucos os viram partir. Apenas Timon e a velha Lann se deslocaram ao limite da aldeia para se despedirem.

Annad iria ficar com Marlie, a tecedeira, enquanto Jiller e Rowan estavam fora. Ficaria aí em segurança e feliz. Para além de que se sentiria importante, pois iria cuidar dos bukshah no lugar de Rowan.

— E se... — murmurara Jiller para Marlie. — Se Rowan e eu não voltarmos...

— Cuidarei de Annad como se fosse minha — disse Marlie rapidamente. — Nada receie. Mas, Jiller... vocês vão voltar.

A velha Lann fez eco destas palavras ao despedir-se deles.

— Vocês vão regressar — disse, o rosto forte e enrugado não demonstrando o receio que talvez sentisse. — Pelo menos um de vocês regressará. A convocação chegou tarde. O ho­mem Maris contou-me que o Guardião está ficando débil muito rapidamente. Não haverá tempo para vir buscar a Rin outro Selecionador. O que, sem dúvida, Timon agradece.

Timon baixou a cabeça.

— Não é bem assim. Se pudesse, tomava o lugar de Jiller. Mas os Maris não me aceitarão como Selecionador enquanto ela e Rowan forem vivos.

Lann olhou para Perlain, que aguardava impacientemente junto ao riacho.

— Os Maris já não são o que eram — afirmou. — Atados de mãos e pés por regras e obedecendo apenas aos costumes antigos, as pessoas não aprendem nada. Os Guardiães velam pelo Cristal, mas já não o usam como antigamente. Temem novas idéias. Não querem mudar. Não querem crescer. Mas os Zebak tornam-se mais astutos em cada ano que passa.

Franziu fortemente o cenho.

— Peço-lhe, Jiller, e a você, Rowan dos bukshah, que, quando tiverem que cumprir o vosso dever, escolham com sensatez e ponderação.

— Vou tentar — murmurou Jiller.

Rowan engoliu em seco e anuiu.

Lann inclinou-se para a frente.

— E tenham cuidado — recomendou, num sussurro. — Aqueles demônios dos Maris vão estar de olho em vocês a todo o momento. Agora vão. Os nossos pensamentos e confiança estarão convosco.

 

Há anos, tal como qualquer criança de Rin, que Rowan desejava visitar a costa. Ansiara por observar o grande oceano, reluzente, em movimento, azul até onde se conse­guia ver.

Imaginara-se a olhar para o misterioso povo Maris, de pele pálida, navegando os seus barcos para onde o sol nascia, deslizando como peixes através das ondas no calor do meio-dia, remendando as redes ao entardecer. Em se­gurança em casa no seu vale verde, estremecera com o medo agradável ao pensar nas mandíbulas enormes, cintilantes e gotejantes das serpentes marinhas, caçando as presas sob o luar.

Tantas imagens que vira e tantas histórias que escutara sobre este local. Desejava ardentemente ver tudo com os próprios olhos.

Pensara que viajaria para a terra dos Maris numa das deslocações comerciais da aldeia. Todos os anos um grupo de aldeãos partia entusiasmado. Com eles iam quatro ou cinco animais da manada dos bukshah, puxando carruagens repletas de queijo, fruta, vegetais, lã cardada dos bukshah e outros bens.

Rowan escapava sempre do seu trabalho nos campos dos bukshah para vê-los partir. E três ou quatro semanas depois, juntava-se aos outros habitantes para lhes dar as boas-vindas.

Se as transações comerciais tivessem corrido bem, os artigos de Rin teriam desaparecido das carruagens. Em seu lugar, haveria peixe seco, frascos de óleo, embalagens de sal e esponjas.

Os aldeãos que viajaram mostrariam as pequenas coisas que compraram para si e para os amigos: ornamentos estra­nhos e bonitos, esculpidos em madeira e madrepérola, bis­coitos pequenos, duros e matizados que sabiam a mar, cintos em pele de peixe, colares com pequenos cristais. Rowan escutava as suas histórias com entusiasmo e inveja.

Um dia, disse a si mesmo, terei idade e força suficiente para ir à costa. Um dia...

Mas esse dia chegara muito mais cedo do que anteci­para. E chegara de uma forma que o chocara. Por um mo­tivo que jamais imaginara.

 

Os dias e as noites passaram. Era uma viagem longa. Para além de ser dura, porque viajavam de noite e apressa­damente. Percorrendo os caminhos sinuosos na escuridão, seguindo primeiro o riacho e depois o rio que conduzia ao mar, todos eles ficaram exaustos. Embora descansassem o mais possível durante o dia, era difícil dormir profunda e longamente com o sol brilhante no céu.

Viajavam de noite por causa de Perlain, o homem Maris. Longe da umidade do mar, a sua pele macia secava e esta­lava. O sol do interior, mesmo naquela estação mais tempe­rada, queimava-o.

Ele não lhes agradeceu a atenção. Disse-lhes que não o deviam poupar. Disse que o tempo era demasiado precioso para ser desperdiçado. Mas, após três noites de caminhada, sentia-se demasiado cansado para continuar a argumentar. Cingiu-se ao silêncio.

A noite, seguia na frente deles, os pés suaves no terreno, as vestes azuis brilhando ao luar. Durante o dia, molhava-se no rio enquanto eles dormiam na margem.

Uma tarde, quando se encontravam próximos do final da viagem, Rowan despertou de um sono intranqüilo e viu Perlain sair de dentro de água, pingando, sentando-se no solo.

As sombras eram extensas. Rowan sabia que em breve seriam horas de comer e de partirem de novo. Mas Jiller e Jonn continuavam a dormir. Até Estrela dormitava. Sob im­pulso, Rowan levantou-se e aproximou-se do homem Maris.

Perlain viu-o chegar. Os seus olhos planos não revela­vam nem surpresa nem agrado.

Rowan pensou que poderia conversar com Perlain, fazer-lhe perguntas sobre Maris. Mas descobriu agora que não sabia por onde começar. Olhou para ele sem conse­guir falar, muito consciente da estranha aparência do indiví­duo, do seu cheiro estranho a peixe.

— Dormiu bem, primogênito do Selecionador? — per­guntou Perlain, educadamente.

— Sim, obrigado — mentiu Rowan. — E você?

Perlain encolheu os ombros e os seus lábios finos desenha­ram um sorriso.

— De manhã já estarei em casa — disse, simplesmente. Olhou para o céu.

— Está na altura do Selecionador acordar — afirmou. Era evidente que desejava que Rowan o deixasse só.

Rowan mordeu o lábio.

— Perlain — disse, repentinamente. — O Cristal de Maris. Pode falar-me sobre ele?

Perlain olhou para ele.

— Sou apenas o mensageiro do Guardião. Não conheço todos os segredos do Cristal.

— Não quero saber os segredos — afirmou Rowan. — Apenas as coisas que todas as pessoas em Maris devem saber. Até nós em Rin sabemos um pouco. O Cristal foi encontrado há muito tempo atrás por um homem cha­mado Orin, o Sábio. Eu sei isso. Mas não sei onde foi encon­trado, ou como. Não me pode contar pelo menos isso, por favor?

Perlain pareceu ponderar por instantes. Depois, lenta­mente, anuiu.

— Vou contar-lhe o que sei — disse. Estendeu o olhar sobre o rio.

— Orin andava à pesca, de forma imprudente, quando o sol se punha — começou. — A lua cheia exibia-se no céu. A Grande Serpente, a mãe de todas as outras serpentes do mar, ergueu-se das águas negras, atacou a embarcação de Orin e perseguiu-o até à Ilha, no porto.

Rowan estremeceu. Na casa dos livros havia uma ima­gem da Grande Serpente dos Maris. Sempre provocara nele um temor imenso. Uma besta enorme, retorcida e escamosa, com a cabeça de um dragão e o corpo de uma cobra gigan­tesca, erguendo-se do mar. Uma embarcação com elementos do povo Maris aos gritos, de mãos nos ouvidos, esmagada por entre as terríveis mandíbulas gotejantes. Perlain sorriu levemente e prosseguiu.

— Movido pelo terror, Orin fugiu para uma gruta e, aí, mergulhou num túnel sombrio que conduzia muito abaixo do nível do mar. Numa caverna pequena e rochosa, encontrou o Cristal. Quando lhe tocou, começou a brilhar... como se uma centena de luzes de arco-íris estivessem enclau­suradas no seu interior. Permaneceu na caverna toda a noite e, na manhã seguinte, levou o Cristal para terra.

— As pessoas perceberam de imediato que o Cristal era um grande prodígio, embora, naquele tempo, ninguém se percebesse o seu verdadeiro poder. Não tardaram a verificar que só brilhava para Orin. E perceberam que Orin fora mudado por ele. Subitamente, começou a ver coisas que eles não viam. A sentir o peixe abaixo da super­fície do mar. A sentir a aproximação de serpentes. A sa­borear o vento e a antever a aproximação de tempestades. Mesmo a ver no interior do coração das pessoas.

— E Orin sofreu modificações de outra ordem. Antes de encontrar o Cristal, era um homem com ódio aos outros clãs que não o seu. Contudo, agora, mesmo com o seu clã a pedir-lhe que usasse o seu poder para destruir os seus rivais, nunca o fez. Partilhou com todos o conhecimento e sabedoria do Cristal.

— Quer dizer que se tornou o líder dos Maris — in­terrompeu Rowan. — O primeiro Guardião.

— Sim. Pelo poder do Cristal — disse Perlain. — Depois, tudo aconteceu como ele disse que aconteceria. Assim que as pessoas se dedicaram à construção, planejamento e armaze­namento de alimentos, em lugar de se guerrearem entre si, a nossa nação prosperou. Seguiram-se outros Guardiões a Orin, cada um deles escolhido de acordo com as regras que estabeleceu. E o Cristal...

— Sim? — perguntou Rowan ansioso. — O que tem o Cristal?

— Com os anos, descobriu-se que o Cristal era mais, muito mais do que até Orin supusera.

Perlain hesitou e depois prosseguiu, escolhendo com prudência as palavras.

— O Cristal não se limita a dar. Também recebe e guarda. Contém agora todo o conhecimento dos Maris. Quando um velho Guardião morre, todas as suas aprendizagens e experiências passam para o Cristal. E deste, para o novo Guardião. Pelo que nada se perde. Tudo é recordado.

— Isso quer dizer que cada Guardião é mais sábio do que os Guardiões do passado! — exclamou Rowan. — Mais sábios e mais poderosos.

— É o que se diz.

— Não admira então que o lugar de Guardião seja tão pretendido — disse Rowan. — Todas as pessoas de Maris devem desejar ser escolhidas como Candidatas.

— Oh, não — respondeu Perlain suavemente. — Nem todas. Eu, por exemplo, não podia pensar em nada que me interessasse menos.

Então, parecendo subitamente sentir que dissera dema­siado, pôs-se de pé e afastou-se.

Rowan mirou o rio. A água corria veloz, transportando paus e folhas com ela, deslocando-se interminavelmente em direção ao oceano.

Amanhã, pensou Rowan, estaria para onde aquela água corria. Estaria no local onde o rio se encontra com o mar.

Amanhã, estaria em Maris.

 

PERIGO

De pés doridos, gelado e exausto até à medula, Rowan sentiu o vento cortante no rosto, sentiu o sabor do sal nos lábios e fitou, com olhos lacrimejantes, o mar inter­minável e ondulado. Estendeu a mão para o calor reconfortante da crina de Estrela.

Estrela mugiu bem fundo na garganta e roçou-se nele. Tal como Rowan, estava distante de casa. Sentia saudades do ar doce do vale de Rin e da erva macia dos campos dos bukshah.

Não lhe agradava o vento gélido que soprava borrifos sal­gados para os seus pequenos olhos negros e o cheiro pun­gente e a peixe para o seu nariz sensível. Não gostava da areia e das pedras sob os cascos. Não gostava do estábulo sombrio onde a prenderam, nem das estranhas e silenciosas pessoas que a miravam quando passavam.

— Vai sentir-se melhor quando descansar, Estrela — murmurou-lhe Rowan, esfregando-lhe o focinho. — Todos nos sentiremos melhor depois.

Sabia que falava tanto para si como para ela.

O vento soprou com maior intensidade. Estrela raspava a pata no chão, virando a cabeça para a porta do estábulo, ao ruído do vento e à areia que aferroava.

— Agora tenho de ir— disse Rowan. — Jonn está à minha espera. Mas não tardarei a vir ver-te.

Estrela mugiu num tom infeliz.

— Tem aqui água e comida. Vá comer, beber e depois dormir — pediu-lhe Rowan. — Se dormir, o tempo passa mais depressa.

Afagou de novo o pescoço de Estrela e afastou-se. Dese­jou que as suas palavras de conforto correspondessem à ver­dade. Detestava ter de deixar Estrela sozinha, trancada daquele modo. Mas os Maris não tinham outro lugar para guardá-la.

Pelo menos aqui ficará em segurança, pensou Rowan, trancando a porta do estábulo e começando a percorrer a calçada de pedra onde ele e Jonn iam ficar. O estábulo era forte, construído com os tijolos tipo pedra que os Maris fabricavam para as suas próprias casas. As terríveis criaturas que se arrastavam do mar para caçar pela calada da noite não conseguiriam derrubar aquelas paredes sólidas.

Fora Perlain quem lhe dissera isso, sorrindo levemente, a cabeça pendendo para o lado. Os Maris não tinham por hábito relacionarem-se com animais. Perlain estava diver­tido por Rowan se interessar tanto por Estrela, mas era de­masiado delicado para o afirmar.

Rowan observou de novo o porto, onde a Ilha se desta­cava, negra e coberta de espessa floresta, fustigada pelas ondas e vento. Não avistava nenhum movimento nas orlas rochosas, mas era possível que a mãe já lá estivesse, oculta por entre as árvores. Fora levada assim que chegaram a Maris. E tinham já decorrido umas duas horas, no mínimo.

Rowan e Jonn foram informados que ela iria primeiro à Caverna do Cristal e depois à Ilha. Iria permanecer aí até a conclusão da Escolha.

Rowan mirou o mar reluzente e a forma negra da Ilha, mas não os estava de fato a ver. Já não avistava a costa Maris, nem a calçada empedrada em que se encontrava, nem as casas arredondadas que se aglomeravam atrás dele. Deixou de reparar nos olhares curiosos dos Maris que por ele passa­vam.

Na sua mente, estava de volta a Rin, junto à lagoa dos bukshah. Os animais deambulavam à sua volta. A mãe traba­lhava no campo. Jonn Forte estava no pomar. Tudo estava calmo. Tudo estava em segurança...

Rowan sentiu uma mão no ombro e deu um salto. Virou-se e deparou com Perlain, que o fitava com ar inquisi­dor.

— O que faz aqui sozinho, primogênito do Selecionador? — perguntou o homem Maris. — Por que não está na casa segura, com Jonn do Pomar, onde te deixei?

— Eu... eu fui ver como estava a Estrela, o meu bukshah — gaguejou Rowan.

Um sorriso cansado rasgou o rosto de Perlain.

— As pessoas de Rin são muito estranhas — suspirou. — Quer ser encontrado amanhã de manhã numa vala, apunhalado no coração, meu amigo? Esse animal, esse buks­hah, é tão importante para se arriscar a isso?

— Não há motivo para alguém desejar matar-me, Perlain — afirmou Rowan. — Não fiz nenhum mal a ninguém. E ainda não sei nada sobre a Escolha. Nem sequer vi os Can­didatos. Ninguém poderia saber como eu votaria, no caso de competir a mim.

Os olhos pálidos de Perlain pareceram toldar-se por momentos e depois, mais uma vez, exibiu um sorriso.

— É mais sábio do que parece, Rowan de Rin — mur­murou. — No entanto, não tão sábio quanto se crê. Os Candidatos estudam a forma de vida de Rin, sobretudo a da sua família. Os treinadores deles sabem como você pensa. Colheram informações a seu respeito desde o dia em que nasceu.

As faces de Rowan enrubesceram, apesar do vento gélido.

Não lhe agradava que a sua vida fosse espiada à distância por estranhos de olhos frios e pálidos. Olhou para Perlain e o seu rosto demonstrou claramente o que sentia.

O homem Maris abriu as mãos de dedos unidos por uma membrana.

— É assim que sempre foi — disse. — É melhor para você aceitá-lo. Venha agora comigo para a casa segura. Sugiro que, a partir de agora, aguarde lá e que não ande pelas ruas sozinho.

Pegou no braço de Rowan e conduziu-o pela rua de pedra.

— Tenho de visitar a Estrela pelo menos duas vezes por dia — disse Rowan, teimosamente. — Para lhe encher a tigela com água e dar-lhe de comer. Está sozinha e talvez mesmo com medo.

— E você não tem medo? — Perlain fitou-o. Os seus olhos planos pareceram penetrar na alma de Rowan. Depois anuiu. — Oh, sim. Estou percebendo. Está com medo, mas esforça-se por não o demonstrar. Esse é o modo de ser de Rin, não é?

Rowan nada disse. Continuou a andar, sentindo o hálito frio de Perlain na cara. Viu as outras pessoas Maris, sobre­tudo aquelas que usavam o prata e verde dos clãs Umbray e Fisk, a observarem e a sussurrarem à sua passagem. Talvez se questionassem o que Perlain lhe estaria a dizer. Questionando-se se Perlain estaria a aproveitar-se da sua posição como mensageiro do Guardião. Se estaria a comunicar as virtudes do Candidato do clã de Pandellis. Apenas no caso do primogênito se tornar no Selecionador.

A voz baixa prosseguiu, junto do seu ouvido.

— Contudo, é diferente dos outros que conheci. Dife­rente das pessoas grandes e ruidosas que vêm negociar conosco todos os anos. Diferente da sua mãe alta e corajosa, o Selecionador. Os seus olhos contêm a expressão de alguém que já viu a Grande Serpente e que sobreviveu. Profundos e extremamente conhecedores. Estranho, num rapaz tão jovem. Só conheci outro assim.

Rowan tropeçou e olhou para os pés, sem saber o que dizer.

— Mantém o silêncio — disse Perlain. — Isso é bom. Em silêncio, está em segurança. — Parou e apontou. — Ali está a sua casa segura — afirmou. — Não vou lhe acompa­nhar mais. Em breve lhes trarão comida. O melhor do nosso peixe. Os ovos do Verme Kirrian, colhidos frescos esta manhã. Mas sugiro que comam os seus próprios mantimentos.

— Porquê? — questionou Rowan.

Perlain encolheu os ombros.

— Poderá encontrar alguma coisa nos alimentos dos Maris que não te agrade — disse, calmamente. — Informe o seu amigo Jonn, se assim desejar. Se valoriza a vida dele tanto quanto valoriza a sua.

Fez uma vênia e afastou-se, deslizando como uma som­bra azul por um estreito caminho entre duas casas e desapa­recendo de vista.

Rowan deu os últimos passos até ao pequeno edifício onde estava hospedado com Jonn.

Perlain, alertava-o para o veneno. Alimentos envene­nados, bebidas envenenadas.

Jiller levara os seus próprios alimentos e água para a Ilha. Ela, Rowan e Jonn concordaram que seria o melhor. Mas não pensaram que Jonn e Rowan teriam de ter os mesmos cuidados. Não tão cedo. Não até que o pior acontecesse e Jiller fosse morta.

Os elementos de cada clã farão tudo, tudo mesmo, para assegurarem a vitória do seu Candidato. Poderão roubar, espiar, enganar e mentir. Poderão mesmo matar, se suspeitarem que o Selecionador está a favorecer outro.

Tome cuidado, mãe, pensou Rowan, unindo as mãos. Não permita que ninguém perceba como se sente. Não emita sequer uma sugestão sobre o Candidato que pensa ser me­lhor. Oculte as palavras, o rosto e, mesmo, os pensamentos...

Talvez porque, após mil anos da existência do Cristal, o Guardião não seja o único em Maris que consiga ler os pensamentos. Rowan recordou-se como os olhos pálidos de Perlain investigaram os seus. Perlain pareceu saber o que ele pensava. Poderia ser? Se assim era, Jiller não podia estar em segurança, por muito que se precavesse.

Não ficaria em segurança até chegar à Caverna do Cristal, até pousar a mão no ombro de um dos Candidatos e ter proferido as palavras que sussurrara a Rowan durante a viagem. As palavras proferidas por todos os Selecionadores desde a época de Orin.

O Selecionador fez a sua Escolha. Que os outros Candidatos abandonem este local.

Rowan percebeu que arfava de medo. Deliberadamente, abrandou o ritmo da respiração. Passou as mãos transpira­das pela camisa. Sabia que tinha que se manter calmo. Tão calmo como a mãe desejaria que ele estivesse. Mas era di­fícil. Tão difícil.

Questionou-se pela milésima vez se a mãe agira corretamente ao ocultar-lhe o segredo da família todos aqueles anos. Teria sido melhor estar preparado?

Ou teria a história perturbado a sua infância, como o perturbava agora? Ter-se-ia ele preocupado com isso e re­ceado, em cada dia, a chegada de um mensageiro dos Maris? Teriam os seus sonhos sido assombrados por pessoas pálidas e vigilantes, de olhos gelados e mãos unidas por membra­nas, por uma ilha rochosa negra rodeada de espuma, um cristal que reluzia como fogo?

Rowan escutou um som e olhou para cima. As pessoas na rua afastavam-se para dar passagem a um grupo apressado. Um grupo de três pessoas, dois homens e uma mulher, usando capas que esvoaçavam e estalavam ao vento.

Um homem usava o prateado dos Umbray, o outro o azul dos Pandellis. A mulher usava o verde dos Fisk. Os rostos exibiam gravidade. Vinham diretamente na direção dele. Algo acontecera. Algo terrível.

Todo o corpo de Rowan começou a tremer. O seu coração parecia ir explodir. Ouviu murmúrios à sua volta enquanto as pessoas se concentravam para observar. Os três Maris pararam diante dele e fizeram uma vênia acentuada. O homem de azul olhou para os outros e começou a falar.

— Selecionador de Rin, que tem o destino dos Maris nas tuas mãos, saúdo-te em nome do Guardião do Cristal... — começou.

À medida que a sua voz se ouvia, o burburinho elevou-se por entre as pessoas, enchendo os ouvidos de Rowan, intensificando-se e diminuindo, como a espuma das ondas sobre a areia. Selecionador... Selecionador... a mãe... Veneno... Veneno... Veneno...

Quando a maré de horror chegou e inundou a mente de Rowan, um único pensamento emergia. Jiller fizera bem em mantê-lo na ignorância enquanto foi possível. Porque nada que lhe pudesse ter dito o teria preparado para esta agonia. Absolutamente nada.

 

VENENO

— Quem fez isso? — Rowan escutou a sua própria voz falando como que ao longe.

— Não há forma de o sabermos — disse o homem mais alto, o homem dos Umbray. — A sua mãe adoeceu na Ilha. Estava lá sozinha com os Candidatos. A escolha tinha aca­bado de se iniciar. — O seu rosto não denotava qualquer expressão. Os olhos planos eram puro gelo.

Um dos Candidatos, pensou Rowan. Alguém que pensou que ia perder. A sua cabeça era um verdadeiro turbilhão. Não há forma de o sabermos. Mas tinha de haver.

A mulher vestida de verde olhou para o sol.

— Temos de nos apressar — disse. — O Cristal está a apagar-se. A Escolha tem de prosseguir. O tempo escapa-nos tal como a maré. — Começou a afastar-se.

Cegamente, Rowan agarrou-lhe o braço para segurá-la. Os seus dedos deslizaram na superfície macia das suas vestes. Sob o tecido, a carne transmitia uma sensação de frio e umidade.

— Jonn! Jonn já sabe? — gritou, olhando para a porta fechada da casa segura, um pouco mais à frente.

— Ainda não — respondeu ela.

— Tem de ser informado!

— E será. Já saberia, se você estivesse com ele como seria de esperar — afirmou a mulher. — Ficamos surpreendidos por lhe encontrar na rua sozinho. — A voz dela era gélida: o seu desagrado era evidente.

— Eu não estava... — começou Rowan, contendo de­pois as palavras. Ia dizer que não estivera só. Que Perlain estivera com ele. Mas, com uma punhalada de medo que trespassara inclusive a dor e confusão que sentia, teve cons­ciência que seria perigoso admiti-lo naquele momento.

Perlain pertencia ao clã Pandellis. Se os elementos dos Fisk e Umbray considerassem que se estava a tornar dema­siado próximo de um Pandellis, mesmo sendo o mensageiro do Guardião, poderiam sentir ciúmes. Podiam decidir que Rowan iria seguramente escolher um Candidato dos Pan­dellis para Guardião. Podiam...

— Venha — disse uma voz calma atrás dele. Era o homem dos Umbray. O seu rosto estava tão próximo que Rowan podia ver o seu próprio reflexo nos olhos incolores. — Venha — re­petiu o homem. — Não podemos demorar mais. É agora o Selecionador. O destino dos Maris está nas suas mãos.

— Quero ver a minha mãe — conseguiu dizer Rowan.

O homem anuiu.

— Claro. Por isso foi levada para a Caverna do Cristal, por ordem do Guardião. Tem que se despedir dela antes de assumir o seu lugar na Ilha, Selecionador de Rin. Já não estará viva quando voltar.

O coração de Rowan deu um salto gigantesco.

— Quer dizer que ela ainda... está viva? — exclamou. — Pensei...

— Respira— murmurou o homem dos Umbray, voltando a cara para o mar crispado. — Mas o coração vai batendo mais lentamente à medida que o veneno alastra dentro dela. Em breve deixará de respirar.

— Não está a sofrer — acrescentou o homem dos Pan­dellis, percebendo a expressão mortificada de Rowan. — Está a dormir e a sonhar e, com cada sonho, afasta-se cada vez mais da costa da vida. É só isso.

O homem dos Umbray sorriu, os lábios finos.

— Não queira se fazer parecer com Selecionador que tem o coração mole como ele e a sua gente, Pandellis. Todos os Maris sabem que os Pandellis nascem com fragmentos de gelo a flutuar nas veias. Que são frios e que não sentem nada. Ao passo que os Umbray...

A mulher dos Fisk contornou-o e pôs-se na frente dele.

— Os Umbray são tão maus quanto os Pandellis. São simplesmente melhores a enganar, escorregadios como as enguias que se esgueiram no lodo do rio — exclamou com desprezo. — O meu clã, pelo contrário...

— Cala essa boca de serpente, Fisk! — rosnou o homem dos Umbray, erguendo um braço prateado reluzente.

Os três juntaram-se mais uns aos outros, prensando Rowan entre eles. Os tons de vozes elevaram-se, transmitindo rancor. Em volta, as pessoas murmuravam entre si, formando grupos separados. Pandellis. Umbray. Fisk. Mãos unidas por membranas moveram-se para navalhas, longas e estreitas. Lâminas brilharam e cintilaram ao sol.

A cabeça de Rowan girava. Olhou em redor para os rostos pálidos e estranhos, retorcidos de fúria, os lábios finos abertos e aos gritos, os olhos planos vidrados de raiva.

A cólera cresceu dentro dele. Odiava aquela gente. Odia­va-os a todos. A rivalidade estúpida e assassina entre eles ma­tara-lhe a mãe.

Rangeu os dentes.

— Parem com isso! — gritou, tapando os ouvidos com as mãos. — Parem com isso!

Com respirações ofegantes, os Maris ficaram imóveis e silenciosos e retrocederam. Os seus rostos tornaram-se vigi­lantes.

O vento soprava, as ondas esmagavam-se na costa.

Rowan sentiu um nó na garganta. Parecia que ia sufocar. Os olhos ardiam-lhe das lágrimas. Engoliu em seco e pestanejou.

Por fim, conseguiu encontrar a voz.

— Levem-me à Caverna do Cristal — disse. — Levem-me à minha mãe! Já!

 

Enquanto caminhava, Rowan olhava em frente para as costas magras do homem dos Umbray que seguia na dianteira. Tinha vagamente consciência da mulher dos Fisk seguindo à esquerda e do homem dos Pandellis â direita. Não eram muito mais altos do que ele mas agora que a sua raiva acal­mara, deixando-o apenas envolto num entorpecimento, sen­tia-se encurralado por eles. Enclausurado, rodeado, indefeso.

O grupo avançou rapidamente pelas ruas, passando pelos aglomerados de pessoas de verde, azul e prateado como um peixe enorme através das águas.

“O Selecionador... o Selecionador...”, ouvia Rowan ao passar. As pessoas falavam sobre ele. Sabiam. Sabiam o que acontecera à mãe. Talvez alguns até soubessem quem a enve­nenara, e porquê.

Em breve deixará de respirar.

As palavras eram tão definitivas. No entanto... Rowan apressou o passo até estar praticamente colado ao homem dos Umbray. Como tinham os Maris tanta certeza? Não conhe­ciam a mãe. Não conheciam a força dela. Talvez pudesse ser feita alguma coisa para ajudá-la.

— Ainda falta muito? — perguntou, em voz alta. Sen­tiu-se subitamente aterrorizado por Jiller poder morrer antes de ele chegar.

— Não — respondeu o homem dos Pandellis sucinta­mente. — Já chegamos. — O ombro dele roçou no de Ro­wan ao virarem bruscamente para a direita, em direção ao mar.

As ondas rebentavam ruidosamente. Rowan sentiu borrifos de água no rosto. Olhou para cima e em volta.

Encontravam-se diante de um edifício redondo e cor de areia, com portas enormes cobertas de madrepérola. No te­lhado existia uma forma em concha onde uma chama seria acesa para informar todos os Maris que a Escolha fora con­cluída e que o Selecionador estava prestes a indicar o nome do novo Guardião. Agora estava fria e vazia.

Diante do edifício havia um pátio de pedras verde-pálido. Para lá dele, o mar, colidindo contra as rochas. E, mais à frente, orlada por espuma branca, a negridão da Ilha.

O homem dos Umbray estacou e afastou-se para o lado.

— Tem de entrar sozinho, Selecionador de Rin — afirmou, com um respeito cuidado.

A mulher dos Fisk fez um movimento rápido, como se se preparasse para falar. Mas pareceu mudar de idéias. Olhou para baixo para as mãos e manteve-se em silêncio.

Rowan sentiu, sem propriamente ver, os três Maris a observá-lo quando se encaminhou para o edifício. Já não se importava com o que eles faziam ou o que pensavam. Quando empurrou as portas reluzentes e penetrou no estranho aposento, nem sequer sentiu medo. Era como se estivesse incapaz sequer de sentir. Como se se estivesse a ver em so­nho.

As portas fecharam-se atrás dele e viu que estava só. O aposento era enorme. As paredes e tetos eram curvos.

Estes, tal como o chão, eram feitos de pedra polida, dura e brilhante. A única luz provinha de velas que ardiam em candelabros fixos ao chão.

Umas escadas, num dos cantos, conduzia para baixo.

Rowan dirigiu-se às escadas. Ao fundo, avistou uma luz tremeluzente. Colocou a mão no corrimão e o pé no primeiro degrau.

Bem-vindo, Selecionador de Rin.

A voz ecoou no cérebro de Rowan. A cabeça estremeceu. Chocado, olhou em volta.

Estou aqui em baixo. Venha até mim.

A voz era suave, persuasiva. Rowan obedeceu-lhe.

Sabia que estava prestes a conhecer o Guardião do Cris­tal.

 

O GUARDIÃO

As escadas desciam, desciam, em espiral. Rowan perdeu conta do número de degraus. Percebeu que se encontrava debaixo de terra, sob o mar. Um brilho suave e azul-esverdeado iluminava-lhe o caminho. As paredes de ambos os lados eram de pedra, tal como os próprios degraus, duros e frios debaixo dos seus pés. Ouvia-se o som de água a pingar e havia o cheiro a sal e plantas marinhas.

Em cada passo que dava, mais sentia que algo o atraía. As pernas pareciam mover-se contra sua vontade. Era como se estivesse a ser puxado na água por uma rede invisível.

Sentiu medo, que se sobrepôs a qualquer outro senti­mento, a qualquer outro pensamento.

Estremeceu e agarrou no corrimão até os nós dos dedos ficarem brancos. Desejava deixar-se afundar na pedra fria. Desejava conseguir regressar à força à superfície. Mas, apesar de tudo, continuava a descer, sempre a descer.

Não tenha medo. É o poder do Cristal que sente. Não lhe fará mal. E a sua mãe está aqui comigo.

A voz possuía-lhe a mente, sobrepondo-se ao medo, arrastando-o para longe, deixando tristeza e vergonha no seu lugar.

Mãe, pensou Rowan. A mãe está ali. Como me posso ter esquecido? Como posso ter hesitado? Nem que por um instante?

Agora, o seu medo parecia loucura. Apoiando-se firme­mente ao corrimão para não cair, avançou. A luz azul-esverdeada intensificou-se. O som de água a pingar aumentou.

Por fim, viu que se encontrava praticamente no fundo das escadas. À frente, havia uma parede de pedra reluzente. Nela fora cortado um arco, coberto com uma cortina de gotas de água que reluziam como pequenos cristais na luz que fluía do interior da Caverna.

Chegamos.

Rowan já não necessitava da luz para o guiar. Podia sentir o poder do Cristal, luzindo da Caverna com a mesma intensidade da luz.

Desceu o último degrau e, com duas passadas, mergu­lhou através do véu aquoso. Gotas frias e salgadas afaga­ram-lhe suavemente o rosto, encheram-lhe os olhos e fixaram-se ao seu cabelo. Sentiu depois areia sob os pés. Olhou para cima. Avistou, desfocadamente, paredes rochosas e brilhantes, de onde escorria água e luz.

— Mais uma vez, bem-vindo, Selecionador de Rin.

Desta vez, a voz falou em tom alto. Sussurrante, rouca, antiga, ecoou das paredes gotejantes vezes sem conta até cada nicho da Caverna parecer ter o som penetrado. Era impossível perceber onde estava quem proferia as palavras. Rowan esfregou os olhos e olhou nervoso em volta.

O espaço era iluminado por luz azul-esverdeada, pelo que o ar era como água profunda e cristalina iluminada pelo sol. A fonte luminosa provinha de algures no centro do aposento, mas Rowan nem sequer olhou para lá. Porque, num dos lados, vestida com trajes de seda e deitada sobre um sofá, estava Jiller.

Correu para ela, caindo de joelhos junto ao sofá. A mãe estava perfeitamente imóvel. Tinha os olhos fechados. A mão que ele tocou estava fria. Mas, quando aproximou o rosto do dela, sentiu-lhe a respiração suave. Era como se estivesse simplesmente adormecida.

Está a dormir e a sonhar e, com cada sonho, afasta-se cada vez mais da costa da vida.

— Mãe — murmurou. — Mãe, sou eu. O Rowan. — Gotas de água da sua cara e cabelo precipitaram-se sobre a face dela. Rowan limpou-as com a mão.

Os lábios pálidos desenharam lentamente um leve sorriso. O coração de Rowan acelerou. Ela podia ouvi-lo! Apertou-lhe a mão com força.

— Mãe, acorde — suplicou. — Tem de lutar contra os sonhos. Lutar contra o veneno. A mãe é forte. Não pode morrer! Tem de viver! Por Annad. Por Jonn. Por mim!

O esboço de uma ruga surgiu no cenho de Jiller e os seus olhos pestanejaram.

— Não perturbe a paz dela, Rowan — sussurrou uma voz. — Ela não pode despertar. Faça as suas despedidas e deixe-a descansar. Você é agora o Selecionador.

Rowan voltou-se repentinamente. Mas as palavras de raiva que se preparava para dizer morreram-lhe nos lábios quando enfrentou os olhos do ser que falara.

A Guardiã do Cristal estava sentada, imóvel, no centro do aposento, banhado em luz.

Não parecia velha como as pessoas de Rin pareciam velhas. Não tinha uma pele enrugada como Lann. Mas Rowan percebeu logo que nunca vira uma criatura humana tão idosa. Parecia quase transparente. Estava tão abatida, tão magra e encolhida, e a pele era tão fina e pálida, que se tornava difícil vê-la claramente tendo como fundo a ca­deira.

E os seus olhos! Eram desmedidos no pequeno rosto. Pareciam falar da sabedoria e conhecimento de uma eterni­dade e, acima de tudo, de uma terrível ânsia para repousar.

As coisas que já vi, pareciam afirmar os olhos. As coisas que eu sei. Mas agora estou exausta. Tão exausta.

As pequeninas mãos, as membranas entre os dedos quase transparentes, abriam-se harmoniosamente sobre a fonte de luz— um cristal enorme e reluzente que tinha no regaço. Inclinou-se então lentamente sobre ele. A luz inundou-lhe o rosto e fechou os olhos, como que assimilando calor.

— Os Candidatos aguardam-no, Rowan de Rin — disse. — A Escolha tem de prosseguir sem demora. A minha hora aproxima-se.

Rowan sentiu-se a estremecer por completo.

— Um dos Candidatos envenenou a minha mãe — disse.

— Pode ser — respondeu a Guardiã.

— Qual deles?

— Não sei dizer. O Cristal está a perder a potência. Já não consigo ver até à Ilha. E não consigo ler os pensamen­tos dos que foram treinados para velarem as mentes, como é o caso dos Candidatos desde a mais tenra infância. O veneno é uma poção Mirril antiga chamada Sono da Morte. Há anos que não é vista em Maris. Mata lentamente, mas mata. É tudo o que lhe posso dizer.

Os Mirril. Peritos em venenos. Subitamente, Rowan viu-se de volta a Rin, sob a árvore-escola, escutando as histórias de Timon sobre os clãs dos Maris. Os Mirril. Pe­ritos em venenos. E, para cada veneno...

A voz sussurrante continuou, interrompendo-lhe as recor­dações.

— Rowan! Preste atenção! O tempo urge. Tem de continuar com a Escolha.

— Como posso continuar? — perguntou Rowan. — Como posso fazê-lo, sabendo que um dos Candidatos é um assassino? Enquanto a minha mãe está ali deitada, despedin­do-se da vida?

— Pode porque é a sua obrigação. Tal como os seus an­tepassados antes de você — disse a Guardiã. — E os Selecionadores dos Mirril antes deles. Assim tem sido sempre. — Debruçou-se sobre o Cristal. Aguardando.

— Só porque tem sido sempre assim, não significa que continue a sê-lo. — As palavras irromperam de Rowan antes de ele pensar.

A Guardiã libertou um longo suspiro. Lentamente, abriu os olhos.

Rowan olhou para trás, para a mãe que jazia no sofá. Sabia o que ela diria. Pedir-lhe-ia que fosse forte. Que acei­tasse a dor e que cumprisse o seu dever. Tal como sucedera com a avó. Tal como sucederia com ela. Como sucedia com os elementos da sua família há séculos.

— Sim — disse a Guardiã, quando ele se virou para ela. — Tem de ser forte. Ela lera-lhe a mente. Rowan fitou-a diretamente.

— Serei forte, Guardiã dos Maris — afirmou. — Serei forte ao meu modo.

Rowan pareceu detectar um lampejo, como cinzas a tor­narem-se subitamente incandescentes num fogo moribundo. Talvez fosse ira. Talvez fosse surpresa. Ou... qualquer outra coisa. Era impossível saber. Nem um só movimento per­turbava a serenidade naquele rosto.

— Tem de existir um antídoto para o Sono da Morte — disse Rowan.

Ela abanou a cabeça.

— Nada pode ser feito. — Baixou de novo a cabeça para o Cristal.

Rowan cerrou os punhos. Ela mentia-lhe. Sabia-o. Recor­dou de novo as palavras de Timon.

Os Mirril. Peritos em venenos. Mil e um venenos mortais. E, para cada veneno, um antídoto.

Para cada problema, uma solução. Para cada veneno, um antídoto.

Mas não havia forma de obrigar a Guardiã a dar-lhe a informação que sabia seguramente. Tudo o que ela pensava agora era na Escolha. Na necessidade da diligência. Não estava disposta a desperdiçar tempo precioso em busca da cura para Jiller. Por muito velha, sábia e rica em conhe­cimentos que fosse, continuava a ser um Maris.

“A morte de um não é importante”, dissera Perlain na praça da aldeia de Rin.

Era assim que os Maris pensavam.

Mas a velha Lann respondera, “Essa pode ser a sua opinião, mas não a nossa”.

— Não a nossa — afirmou Rowan baixo.

O Cristal reluziu. Em algum lugar para lá da Caverna, escutou um som de algo a ranger, como de uma porta a abrir.

— Convoquei os Candidatos — disse a Guardiã. Afas­tou-se do Cristal e reclinou-se na cadeira.

De novo, o Cristal reluziu. O rosto da Guardiã mante­ve-se inalterado. Contudo, Rowan teve a sensação que a mente dela estava fixa em algo fora daquela sala.

— O seu amigo Jonn do Pomar aproxima-se — disse. — Mas tenho que lhe negar a entrada na Caverna. Jonn está cheio de tristeza e raiva. Pretende vingar a morte da sua mãe.

— A minha mãe não está morta — disse Rowan em voz alta. A sua voz fez eco. Não está morta. Não está morta.

No sofá coberto de seda, Jiller agitou-se. Veio um ruído do fundo da sala.

— Entrem — disse a Guardiã.

Surgiram três figuras. Uma de prateado, uma de azul e outra de verde.

Rowan fitou-os. Contava que os Candidatos tivessem pelo menos a idade da mãe, ou de Jonn. Mas aquela gente era muito mais nova. Por momentos, esse fato surpreen­deu-o. Recordou-se então que o Cristal transmitia o conheci­mento e recordações de milhares de anos da história dos Maris. A idade e a experiência de vida não eram qualidades importantes para os Candidatos: apenas o teste de capaci­dade intelectual, delineado por Orin, o Sábio, para o qual estudaram ao longo das suas vidas. A inteligência era impor­tante. A determinação era importante.

E uma vontade de ganhar também é importante, pensou Rowan furioso. E, pelo que parece, também instintos assassinos. Continuou a observar as figuras junto à porta. A sua mente estava fria do ódio.

Um de vocês tinha motivos para desejar tirar a vida à minha mãe, pensou. E pensa que teve êxito nisso. Mas, de algum modo, vou derrotar-te. E ninguém, nem mesmo a Guardiã do Cristal, me vai impedir de fazê-lo.

 

OS CANDIDATOS

— Asha, dos Umbray — disse a Guardiã.

A figura vestida de prateado avançou e fez uma vênia. Era alta, para os Maris, e olhou para baixo para Ro­wan, enfrentando o olhar dele sem pestanejar.

— Saúdo-o, Selecionador de Rin — disse, num tom de voz regular. — O destino dos Maris está nas suas mãos.

Será você? Pensou Rowan, fitando bem no fundo daqueles olhos cinzentos pálidos e firmes. Poderia olhar assim para mim se tivesse envenenado a minha mãe, Asha? Talvez sim, porque, pelo que me disseram, os Umbray são manipuladores e enganadores. Escorregadios, como as enguias que se esgueiram no lodo do rio. Achou que a minha mãe, forte e prática, era difícil de manobrar? Pensou que iria ser mais fácil impressionar um Selecionador mais jovem e mais tímido? Um rapaz? Como eu?

— Seaborn, dos Fisk — zumbiu a voz da Guardiã.

A figura em verde fez uma vênia e repetiu as palavras de Asha. Era ainda mais alto do que ela, parecendo mais forte. Permanecia perfilado, com os braços alinhados rigida­mente com o corpo. Mas falou suavemente e, ao falar, os seus olhos não paravam de se desviar para a figura imóvel no sofá e para a cadeira da Guardiã.

Ou é você o culpado, Seaborn dos Fisk?, pensou Rowan. É por isso que não consegue olhar para mim? Foi você quem colocou o veneno na comida ou bebida do Selecionador pensando que, como mulher, poderia favorecer Asha, em vez de você? Ou os seus olhos desviam-se de mim porque está desapontado, valente e forte Fisk? Pensou que a minha mãe ia te escolher? Lamenta que agora tenha que me enfrentar a mim, em vez dela?

— Doss, dos Pandellis — disse a Guardiã.

A figura em azul deu uns passos em frente, e mais uma vez, foram repetidas a vênia e as palavras.

Doss era mais novo do que os outros Candidatos. Era também menos encorpado e baixo e os seus olhos pareciam mais sombrios, mais profundos e mais misteriosos.

Uma lembrança surgiu na mente de Rowan. Perlain, fitando-o com curiosidade. As palavras de Perlain: Os seus olhos contêm a expressão de alguém que já viu a Grande Serpente e que sobreviveu. Profundos e extremamente conhecedores. Estranho, num rapaz tão jovem. Só conheci outro assim.

Serás o “outro” de Perlain, Doss?, pensou Rowan. Tal como ele, pertences ao clã Pandellis. Terá Perlain visto em mim algo que o recordava de você? Será que outros o viram? Outras pessoas do seu clã? Terão lhe contado? Terão pensado que me ligaria mais a você do que a minha mãe? Que haveria mais probabilidades de eu lhe escolher? É por isso que...

— O Selecionador está pronto, Candidatos — disse a Guardiã. — Só tem que se unir ao Cristal, no lugar da mãe. Poderão depois regressar à Ilha, e a Escolha pode iniciar-se de novo.

Os três fizeram uma vênia.

Unir-se ao Cristal?, pensou Rowan. O que significava isso? Poderia aquela ser a sua oportunidade? Sentiu o estremeci­mento de uma esperança receosa.

— Aviso-os a todos — alertou a Guardiã. — Se algo acontecer a este rapaz, tal como sucedeu à mãe, não haverá tempo para dar início à Escolha por uma terceira vez. A Guardiã voltou a cadeira para enfrentá-los. — O Cristal está a perder a intensidade — afirmou, fitando-os um a um. — Em breve morrerei. E, se não hou­ver um Guardião junto de mim quando morrer, para receber de mim os conhecimentos do Cristal e renovar o seu poder, também o Cristal morrerá. Os clãs Maris ficarão de novo divididos e, com o Cristal sem poder para sempre, não haverá proteção quando os Zebak chegaram de novo às nossas costas, como chegarão certamente. Para nós, e para esta terra, tudo ficará perdido.

Perdido, perdido, perdido, murmuraram os ecos. Os Candidatos ergueram a cabeça e permaneceram silen­ciosos.

— Dê-me a sua mão, Selecionador de Rin — pediu a Guardiã.

Rowan hesitou. O coração batia-lhe desordenado no peito. Esforçou-se por se acalmar.

— Por favor, explique-me por que tenho que fazer isto — disse, em tom baixo.

De novo, algo cintilou nos olhos da Guardiã. Raiva?, pensou Rowan. Divertimento?

— É necessário que o Cristal o conheça, através de mim — explicou. — Quando isso acontecer, irá reconhecê-lo como o único Selecionador. Por favor, apresse-se. Jonn, do Pomar, está muito perto. Quero que isto esteja terminado antes que ele exija a entrada.

Rowan deu um passo a frente. Com todo o seu ser, concentrou-se, ocultando os pensamentos, aguardando o momento.

Serei forte ao meu modo.

Estendeu a mão. Os dedos ligados por membrana da Guardiã tocaram nele. Suaves, frios, úmidos. Rowan sen­tiu um formigamento pelo braço acima.

Agora, pensou. Cerrou os olhos e agarrou fortemente nos dedos. Depois virou, caiu, mergulhou nas águas profun­das, profundas da mente da Guardiã, nas memórias da Guardiã.

Imagens.

Beleza e luz. Ondas formando-se, em azul e verde, rebentando em espuma branca em areia dourada. Uma criança, rindo, livre, escondendo-se, mergulhando, brincando com amigos. Há muito, muito tempo atrás...

Estudos, professores, conselheiros, velas ardendo pela noite dentro. O Cristal, brilhante como o sol, emitindo sinal. Um mundo reduzido a uma caverna por baixo da terra...

Em pânico, Rowan debateu-se, afundando-se ainda mais. Para mentes mais antigas, para memórias mais antigas.

Mares remotos. Criaturas retorcendo-se, caçando, ocultando-se em águas cintilantes... a Grande Serpente elevando-se acima de mim, as presas gotejando veneno...

Veneno. Rowan agarrou a palavra e segurou-se a ela como uma linha salva-vidas. Apagou as imagens de turbilhão. Criou a sua própria imagem.

Jiller, a minha mãe. Envenenada. Estendida e completamente imóvel. Sonhando enquanto a vida lhe escapa.

Fixou a mente na imagem e nas palavras Sono da Morte. Diga-me, Guardiã, exigiu. Diga-me, Guardiã.

O Cristal está a perder a intensidade... estou tão exausta... não há tempo...

Diga-me!

Então, subitamente, algo cedeu, e a resposta apresen­tou-se perante os seus olhos. Viu um frasco, numas mãos pequenas de dedos unidos por membrana. O frasco estava meio cheio com um líquido prateado. Enquanto Rowan olhava, o líquido mudou de cor, tornando-se tão azul quanto o céu. O azul transformou-se em verde. Em seguida, o líquido alterou-se de novo, perdendo qualquer cor, tor­nando-se límpido. E uma voz falou.

“Para preparar a poção que desperta o Sono da Morte Encha uma mão cheia com água de prata. Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas: Colha uma e adicione as lágrimas que derramar. Mexe lentamente com a pluma nova do lutador, Três vezes, não mais, e deixe repousar. Adicione o veneno do seu mais temível medo... Uma gota... e a verdade tornar-se-á cristalina”.

Com uma expressão de triunfo, Rowan libertou-se. Retroce­deu, a cambalear, da cadeira da Guardiã. A sua mente fervi­lhava. A mão ardia-lhe.

Lentamente, abriu os olhos. Avistou trevas, rasgadas por colunas e remoinhos de cores. Depois, finalmente, recuperou a visão.

A Guardiã estava desfalecida na cadeira. Tinha os olhos fechados. O Cristal pulsava sem vigor debaixo das suas mãos flácidas. Atrás da cadeira estavam Asha, Seaborn e Doss, fitando-o como se fosse um demônio das profundezas.

— O que fez? — exclamou Seaborn.

— O que tinha que fazer — disse Rowan. As palavras transmitiam força, mas não era assim que se sentia. As pernas cambaleavam como as pernas de uma cria bukshah recém nascida. A mão que segurara os dedos da Guardiã ainda latejavam e ardiam.

As pálpebras da Guardiã palpitaram e abriram-se.

— Guardiã... — começou Asha. Mas a anciã nem sequer olhou para ela. Toda a sua atenção focava-se em Rowan.

— O que pretende? — perguntou-lhe, bruscamente. Rowan não teve oportunidade para responder porque, naquele instante, ouviu-se o som de pés nos degraus de pedra e Jonn Forte irrompeu pela cortina de água para a Caverna.

Olhou rapidamente em volta, assimilando tudo num só relance. Encaminhou-se então para junto de Jiller e in­clinou-se sobre ela. Tomou-a nos braços, levantando-a para junto do peito, chamando por ela. Ela não se mexeu.

Voltou-se para Rowan com uma expressão grave.

— Ela falou de perigo, mas não a levei muito a sério — disse. — Pensei, não, não com Jiller. Nada podia acontecer a Jiller. Rowan...

— Tudo vai ficar bem — respondeu Rowan calmamente. — Há um antídoto para o veneno que deram à mãe. A Guardiã acabou de me revelar.

Alguém soltou uma exclamação por detrás da cadeira da Guardiã. Rowan olhou rapidamente para cima. Asha? Seaborn? Doss? Não tinha forma de saber.

— Não permitirei que a mãe morra — afirmou. E trans­mitia essa informação a si próprio e a todos os presentes na sala, incluindo Jonn.

— A Escolha tem de continuar— disse a Guardiã, ansiosa.

Rowan virou-se para ela.

— Não — respondeu. Escutou a sua própria voz a tremer quando a palavra ecoou nas paredes da Caverna. — Lamento, mas a Escolha terá de aguardar.

Sentiu os olhos de Jonn fixos nele. Sabia que também Asha, Seaborn e Doss o observavam. Mas apenas via a Guardiã.

— Sei que temos pouco tempo — disse. — Mas, antes de qualquer outra coisa, a minha mãe tem de tomar o antí­doto contra o Sono da Morte. Tem de o dar, Guardiã. Ou dizer-me onde o encontrar. Tenho de ajudar a minha mãe. Nada é mais importante do que isso.

 

O ENIGMA

— Disse que seria forte, Rowan de Rin — acusou-o a Guardiã. — Permiti que se unisse ao Cristal, que se confirmasse como o Selecionador. Ludibriou-me.

— Disse que seria forte ao meu modo — afirmou Ro­wan, esforçando-se em desespero por se mostrar calmo e firme enquanto as suas pernas tremiam. — Tem de me dizer o que devo fazer para salvar a minha mãe.

— É impossível! — disse a Guardiã. Agarrava o Cristal com as pequenas mãos, como que lhe pedindo que a sal­vasse daquela situação. Mas este limitava-se a brilhar sem fulgor.

— Falem com ele! — ordenou a Guardiã aos Candida­tos. Mas estes permaneceram silenciosos, pasmados.

A Guardiã respirou fundo.

— Bem lhe disse. O Sono da Morte não é utilizado em Maris desde os tempos dos Mirril.

Rowan olhou para Jonn. Este deitara Jiller e encontra­va-se de pé junto ao sofá, de punhos cerrados. Rowan sabia o que lhe passava em mente. Se o veneno era tão raro, não seria difícil descobrir a sua origem. Descobrir qual o clã que se apoderara do segredo dos Mirril e que o pusera em prática.

Mas Rowan não estava interessado em vingança. Pelo menos por agora.

— Existe um antídoto — repetiu. — Vi-o, Guardiã. Um líquido prateado, que mudou várias vezes de cor, do azul para verde e depois se tomou cristalino. Vi-o, em mãos de Maris.

O olhar parado da Guardiã não se alterou.

— As mãos eram de Orin — disse ela.

— Orin — murmurou Asha. Seaborn levou as mãos à boca. Doss manteve-se inexpressivo.

— Orin estava a fazer o antídoto para o Sono da Morte na Ilha, no dia em que encontrou o Cristal — disse a Guardiã. — Foi o que viu na sua mente, Selecionador de Rin. Viu as memórias de Orin. A última gota da mis­tura nesse frasco foi usada há quinhentos anos. Já não existe mais.

Não existe mais, não existe mais, sussurraram os ecos.

— Nesse caso, a mistura tem de ser feita de novo — afirmou Rowan, levantando o queixo. — Se foram as mãos de Orin que vi, então também as palavras que ouvi eram dele.

— Que palavras, Rowan? — insistiu Jonn.

Os três Candidatos inclinaram-se para a frente, em simul­tâneo. Mesmo a fria Asha. Mesmo o Doss introvertido.

— A receita para o antídoto — disse Rowan. Proferiu as palavras em voz alta. Não teve dificuldade em recordá-las. Parecia que tinham sido cauterizadas no seu cérebro.

“Para preparar a poção que desperta o Sono da Morte

Enche uma mão cheia com água de prata.

Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas:

Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar.

Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,

Três vezes, não mais, e deixa repousar.

Adicione o veneno do teu mais temível medo...

Uma gota... e a verdade tornar-se-á cristalina”.

Asha resfolegou.

— Que ingredientes são esses? — murmurou Seaborn. Os olhos de Doss brilharam de interesse.

— Orin transformou a receita num segredo — disse.

— Sim — exclamou a Guardiã. — E os segredos dele são meus. — Voltou-se para Rowan. — Por vontade de Orin, não posso te dizer como deve ler o enigma — afirmou, fria­mente. — Mas, acredite, mesmo que lhe pudesse contar quais são os ingredientes, nunca os conseguirias obter. O antídoto não pode ser feito.

— Pode — respondeu Rowan. — Tem de poder.

O Cristal reluziu. Rowan sentiu um puxão na mente. Com­bateu-o desesperadamente.

— Não pode me obrigar a satisfazer a sua vontade, Guar­diã — disse. — Não consegue mudar a minha mente. Está demasiado fraca.

— Não há tempo! — exclamou a Guardiã. — E o que planeja é impraticável, rapaz de Rin. Se a preparação do antídoto fosse uma questão tão fácil como parece acredi­tar, já o teria aqui, e a sua mãe estaria a se recuperar. Não sou nenhum monstro. Curá-la-ia, se pudesse. Mas o antídoto para o Sono da Morte é composto por coisas raras e quase impossíveis de obter. Você sozinho nunca as conseguiria, nunca...

— Ele não estaria sozinho — interrompeu Jonn Forte. — Eu estaria com ele.

Deixou o lado de Jiller e dirigiu-se para o centro do Ca­verna, para junto de Rowan. Ficou como uma torre relativa­mente à Guardiã. Comparada com ele, parecia tão pequena e frágil quanto uma criança. Mas ela abanou a cabeça, sem qualquer receio.

— Por decreto de Orin, a Ilha está proibida a todos, à exceção do Guardião — disse ela. — E, na altura da Escolha, estão autorizados o Selecionador e os Candidatos, que devem estar sós. Não pode lá ir, Jonn do Pomar, sem en­frentar a morte.

Jonn comprimiu os lábios. Virou-se para olhar para Jiller, imóvel e pálida, mal respirando.

— Há coisas que receio mais do que a minha própria morte — disse.

— Também eu — exclamou a Guardiã. — E uma delas é quebrar a minha confiança. Não pode ir à ilha, Jonn. Tudo farei para impedi-lo. Ainda me resta o poder sufi­ciente para o fazer.

— O que significa que Rowan irá sozinho, por sua von­tade. — Os olhos de Jonn eram duros. — Vai sozinho e nós esperamos aqui. E diz que ele nunca será bem sucedido sozinho. O que quer dizer que não terá êxito. Nem regressará para escolher um novo Guardião. Jiller morre. Você morre. O Cristal extingue-se, para sempre. Não será isso também quebrar a sua confiança?

A Guardiã sorriu levemente.

— Argumenta bem, homem de Rin. Mas não pode ir à Ilha.

O silêncio instalou-se, apenas quebrado pelo ruído suave da água que caía incessantemente.

Rowan percebeu o que tinha que fazer. Necessitava de ajuda. Sabia qual o caminho a seguir. Não tinha alternativa. Olhou para as três figuras ainda por trás da cadeira da Guardiã. Sobrepondo uma máscara à desconfiança e receio nos seus olhos, falou diretamente para eles, pela primeira vez.

— Asha, dos Umbray, Seaborn, dos Fisk, Doss, dos Pandellis. A Ilha não lhes é proibida. Irão ajudar-me?

Pensara que eles concordariam de imediato. Afinal, ele era o Selecionador. Iriam querer impressioná-lo e agradar-lhe. Cada um iria desejar convencê-lo que não fora ele quem envenenara a mãe.

Mas eles hesitaram, de olhos na Guardiã. Nunca o aju­dariam contra a vontade dela.

A Guardiã permanecia imóvel, debruçada sobre o Cristal. Depois, por fim, anuiu.

— Muito bem — disse, a voz sem tonalidade e inex­pressiva. — O que tem de ser, tem de ser. Mas alerto-os. Ao nascer do sol, a minha vida terminará. E o Cristal morrerá comigo, se a Escolha não tiver sido concluída até lá.

— Regressarei a tempo de terminar a Escolha — mur­murou Rowan. — Prometo.

— Não duvido que esteja a ser sincero — respondeu a Guardiã. — Irá regressar... se depender de si. Mas o percurso que escolheu é perigoso, Selecionador. Peri­goso para você, para os Maris e para todo o território. Mesmo neste momento, quem sabe, os navios dos Zebak podem estar a dirigir-se para as nossas costas. Já devem ter tomado conhecimento que o Cristal está a enfraquecer. Têm espiões por todo o lado.

— Esse é um perigo sempre presente na altura da Escolha — disse Rowan através de lábios que pareceram subitamente secos e hirtos.

A Guardiã olhou para as suas mãos, as membranas trans­parentes à luz do Cristal.

— Mas apenas uma vez esteve o poder do Cristal em si em tamanho perigo. Uma ocasião, há trezentos anos, quando os Mirril morreram. Depois o seu antecessor, Lieth, aceitou para o seu povo o ônus da Escolha, permitindo que o Cristal vivesse para bem de todos nós.

Levantou os olhos.

— É muito parecido com Lieth, Rowan de Rin — afir­mou. — Muito, muito parecido. É estranho pensar que, tal como ele salvou o poder do Cristal, você possa ser aquele que o destruirá.

Rowan ficou gelado. Olhou para Jonn, que o observava gravemente. Apenas por instantes, a sua determinação en­fraqueceu. Olhou depois para a mãe e soube que estava certo.

Seaborn vinha a mostrar-se inquieto.

— Permita que o acompanhemos — solicitou. — O sol iniciou já o seu caminho descendente para oeste. Devemos tirar proveito da luz.

Rowan voltou-se para Jonn.

— Cuida da Estrela enquanto eu estiver fora? — pergun­tou.

Jonn anuiu. Levou então a mão à algibeira e tirou uma bolsa em couro macio. Despejou o conteúdo para a mão. Era um pequeno frasco de vidro, com uma reluzente tampa em prata com a forma de um peixe voador sobre as ondas.

— Isto era para Jiller — disse. — Tinha acabado de comprá-lo no mercado quando Perlain chegou até mim com a notícia do que lhe acontecera. Achei que era... lindo. E, por isso, adequado para ela. Leve-o contigo, Rowan, e encha-o com o líquido que lhe há de salvar a vida. Não vejo melhor propósito para ele.

A sua voz era forte e calma. Mas o seu dedo endurecido pelo trabalho estremeceu quando tocou suavemente no pequeno peixe de prata antes de voltar a guardar o frasco na bolsa, entregando-a depois a Rowan.

Rowan guardou cuidadosamente a bolsa na sua própria algibeira.

Desejava dizer algo que reconfortasse Jonn, mas sabia que tudo o que dissesse soaria a falso. Não podia prometer que seria bem sucedido na sua missão. E sabia que, fossem quais fossem os problemas e perigos que iria enfrentar, não se iriam comparar à dor que Jonn Forte iria sofrer, enquanto ficava ali à espera.

— Farei o meu melhor, Jonn — murmurou. — O melhor que puder.

Jonn pousou uma mão pesada no ombro dele.

— Eu sei — afirmou. — E os meus pensamentos e espe­ranças vão contigo.

Rowan virou-se e dirigiu-se ao local onde os Candidatos o aguardavam.

— Não vai se despedir da sua mãe, Selecionador de Rin? — perguntou a Guardiã, observando-o através de olhos meio cerrados quando passou pela sua cadeira.

Rowan sentiu-se invadir pela raiva. E a raiva conferiu-lhe a coragem para dizer as palavras que não conseguira ex­pressar a Jonn.

— Não. Não preciso de me despedir da minha mãe — disse, suficientemente alto para que todos ouvissem. — Ela ainda estará aqui, e viva, quando regressar com o antí­doto.

— Veremos — disse a Guardiã. — Veremos.

 

A ILHA

Em silêncio, seguiram em fila indiana ao longo do túnel para a Ilha. Rowan ia na dianteira. Asha, Doss e Seaborn deixaram-se ficar para trás, em tom de respeito, deixando-o entrar primeiro na passagem escura e gotejante.

Caminhavam agora atrás dele, sintonizando os passos com os dele. Os seus sapatos macios não provocavam ne­nhum som nas pedras lisas e úmidas. Por diversas vezes, Rowan teve que olhar para trás para se certificar que ainda o seguiam. Mas estavam sempre presentes, três passos atrás, os olhos vigilantes.

Levavam consigo archotes para iluminar o caminho. Som­bras tremiam sinistramente no teto e paredes de rocha. Água brilhava onde se escapava por fendas e escorria em fio para o chão.

Estamos a andar debaixo do mar, não deixou Rowan de pensar. A idéia daquele vasto peso de água em movi­mento por cima e em redor deles fê-lo estremecer.

Concentrou os pensamentos na missão a cumprir. Na Caverna do Cristal, fora tão persuasivo a forçar a Guardiã a abrir-lhe o caminho que não tivera de fato tempo para pensar. E, desde então, aquela viagem estranha sob o mar afastara tudo da sua mente.

Não tentara ainda perceber o que poderia significar a lista enigmática de ingredientes de Orin. Não levara efetivamente em conta o aviso da Guardiã de que não tinha qualquer esperança de obter os ingredientes, mesmo que soubesse quais eram.

Mas agora pensava nessas duas coisas. Perguntou-se se os três Maris que seguiam atrás dele pensariam o mesmo. Ou estariam demasiado preocupados com o Cristal, com a Guardiã, com eles próprios, e no atraso a que estavam todos a ser forçados, para sequer pensar?

Avistou uma luz fraca mais adiante. O túnel chegava ao fim. Percebeu que podia também ouvir o som das ondas. Um rebentar distante de água nas rochas escarpadas e pe­nhascos da Ilha.

— No fim do túnel há uma escada, Selecionador de Rin. Era a voz de Asha, impassível e fria.

Rowan voltou-se para ela.

— Talvez seja melhor tratarem-me pelo nome — disse, tentando sorrir.

Ela não retribuiu o sorriso.

— Como desejar — respondeu.

Rowan virou-se de novo para a luz no fundo do túnel. Asha, pelo menos, não se estava a forçar muito para lhe agra­dar, pensou. Não pretendia mostrar-se diferente do que realmente era.

Talvez os treinadores a tivessem instruído para agir assim, disse-lhe uma voz na mente. Lembre-se do que Perlain disse. Os Candidatos estudam o modo de ser de Rin, pelo que hão de saber como agradar ao Selecionador. Talvez os treinadores de Asha a tivessem informado que nós, em Rin, odiamos falsas aparências. Por isso, faz o jogo de parecer ser honesta comigo enquanto elabora secretamente esquemas. Quem sabe o que ela de fato pensa?

Abanou a cabeça para afastar o pensamento desconfor­tável. Gostaria de poder confiar nas três pessoas que o acom­panhavam. Já seria suficientemente difícil para ele fazer o que tinha a fazer, sem se questionar continuamente quem falava verdade e quem mentia. Muito menos quem era o culpado do envenenamento, e quem era inocente.

No final do túnel havia umas escadas de pedra íngre­mes, tal como Asha informara. Lá em cima reluzia a luz do dia.

Rowan começou a subir. O som das ondas intensi­ficava-se em cada degrau que avançava. A luz aumentou, penetrando por umas grades do que parecia um portão.

Começou a apressar o passo, embora já estivesse ofegante e com dores nas pernas. Independentemente dos perigos que o aguardavam na Ilha, estava ansioso por respirar ar fresco de novo e de ver o céu por cima da cabeça.

Com alívio, subiu os últimos degraus, abriu o portão de ferro enferrujado e passou por ele. As pernas tre­miam-lhe, depois do esforço da subida. Ficou a arfar, tentando recuperar a respiração.

Permanecera por tanto tempo sob o solo que a luz do sol o parecia cegar. Tinha os olhos tão lacrimosos que mal conseguia ver. Pestanejou furiosamente, limpando-os com as costas da mão. À medida que a visão voltava ao normal, viu que se encontrava na costa rochosa da Ilha. Diante dele havia uma densa floresta, com lianas.

Voltou-se para Asha, Seaborn e Doss que subiam para a claridade. O portão de ferro cerrou-se após a passagem deles, protegendo as escadas que pareciam desaparecer na escuri­dão. Mais ao fundo, as ondas lançavam-se em espuma sobre as rochas. E ao longe, do outro lado do mar agitado, esten­dia-se a areia dourada e edifícios redondos de Maris.

Semicerrando os olhos contra os salpicos de água, Rowan analisou os edifícios, tentando detectar o estábulo de Estrela. Sabia que esta estaria intrigada com a sua ausência quando Jonn o fosse substituir no enchimento da tigela de água. Estrela iria sentir saudades dele e ficaria infeliz.

Na praia, crianças corriam para a água, entrando e saindo das ondas, pouco incomodadas com o vento frio. Aqui e ali, homens e mulheres remendavam redes, sentados. Uma figura isolada encapuzada, uma mulher vestida com o verde do clã dos Fisk, passeava pela praia.

Por algum motivo, parecia-lhe familiar. Tinha algo a ver com a forma como ela caminhava. Tinha os braços dobra­dos sob a capa e as costas muito perfiladas. Ah, é claro. Era a severa mulher Fisk que servira também de guia até à Caverna do Cristal.

Rowan percebeu que tinha alguém ao seu lado e, len­tamente, virou a cabeça.

Era Seaborn. Não sabia que estava a ser observado. Apre­sentava uma expressão grave e tinha os olhos fixos na praia.

Para onde olharia ele? Para as crianças? Para os edifí­cios? Para as pessoas que remendavam as redes? Ou seria a mulher dos Fisk que ele observava?

A mulher na praia parou, virou-se e olhou para o mar. Permaneceu imóvel. A capa verde esvoaçava ao vento, o capuz ocultava-lhe o rosto.

Ela está a olhar para nós, pensou Rowan. Fitou de novo Seaborn. Também ele permanecia imóvel, como que inten­samente concentrado. As gotículas de água salgada fusti­gavam-lhe o rosto como chuva, mas ele não se virou nem semicerrou os olhos como Rowan se vira forçado a fazer.

Eles não se mexem, nem acenam, nem fazem nenhum sinal, pensou Rowan. Mas, mesmo assim, ela está a enviar alguma mensagem dos Fisk. Se não conseguem ler os pensa­mentos um do outro, então a mensagem tem a ver como a forma como ela se posiciona. Ou mesmo o fato de ter sequer aparecido na praia. As intrigas e planos desta gente são in­termináveis.

Cresceu dentro dele uma nova onda de raiva que se lhe fixou na garganta. Sentia-se como se fosse sufocar.

Deve ter feito algum pequeno ruído, porque Seaborn olhou rapidamente para ele, o rosto demonstrando surpresa e culpa.

— O seu clã já sabe que a Escolha foi atrasada? — per­guntou Rowan. — É essa a mensagem dela?

— Mensagem de quem? Não há mensagem nenhuma — respondeu Seaborn, voltando-se.

Mas Rowan sabia que ele estava a mentir.

Não há nada a não ser mentiras aqui, pensou amarga­mente. A mentira contorce-se nas mentes destas pessoas como as serpentes que se enrolam sob a superfície do mar deles.

A raiva ainda fervilhava dentro dele. Não lamentava ter mostrado a Seaborn que não o enganara.

Não necessito de ter cuidado com as palavras, ou fingir, com esta gente, pensou. Seja o que for que tenha que re­cear, não é seguramente a morte às mãos deles. A Guardiã disse-lhes que não havia tempo para ir buscar outro Selecionador. Nenhum dos Candidatos arriscaria a perda do Cristal matando-me agora.

No entanto... surgiu subitamente na mente de Rowan um outro pensamento, como uma coisa viscosa nas trevas. Pensando bem, o tempo sempre fora curto. A Guardiã chamara o Selecionador quando era já quase demasiado tarde. Os Candidatos sabiam-no desde o início.

Mas Jiller fora envenenada. O atraso na Escolha era peri­goso para os Maris, mas o atraso fora provocado.

Este pensamento aumentou, intensificou-se e retorceu-se numa pergunta.

Porquê? Por que haveria alguém de colocar em jogo o destino dos Maris? O que teria um clã a ganhar em ser selecionado na Escolha, se o Cristal deixasse de existir?

Rowan voltou-se para os Candidatos.

Seaborn baixara-se para ajustar melhor o sapato ao pé. Ou, pelo menos, pretendia dar essa noção. Tinha o rosto convenientemente oculto. Asha e Doss estavam afastados um do outro na neblina criada pelo rebentamento das ondas — uma figura alta prateada, a capa esvoaçando ao vento, uma figura mais baixa em azul.

Rowan recordou-se das palavras de Perlain.

Os Candidatos estudam a forma de vida de Rin... Os trei­nadores deles sabem como você pensa. Colheram informações a eu respeito desde o dia em que nasceu.

Se estes estranhos me conhecem, me conhecem de fato, poderiam ter calculado que não deixaria a minha mãe morrer sem procurar ajudá-la, pensou Rowan. Podiam ter calculado que eu retardaria ainda mais a Escolha. Tal como fiz.

O seu coração acelerou. Este pensamento enchia-lhe a mente agora. Podia vê-lo cara a cara. E era horrível e aterrorizador.

Comportara-se exatamente como alguém esperara. Caíra na cilada de fazer parte do plano de alguém.

Alguém pretendia que a Escolha falhasse.

Alguém pretendia que o poder do Cristal se extinguisse.

E estavam a utilizar Rowan para ajudá-lo a alcançar os seus intuitos.

 

O INÍCIO

—Já descansamos o suficiente. Não devemos perder mais tempo.

Era a voz de Asha, severa e fria.

Rowan engoliu em seco. Não confiava em si para falar. Pressionou as mãos, tentando evitar que tremessem.

— O que se passa? — perguntou Seaborn rudemente. — Está doente?

Embora não visse, Rowan sentiu os Candidatos a troca­rem olhares rápidos e suspeitos.

— Não estou doente — forçou-se a responder. Respirou fundo e tentou acalmar a mente. Pensou em Estrela, em Jonn, em Annad em casa, em Rin. Na mãe deitada em sonhos na Caverna do Cristal.

Nada mudou na realidade, disse, para si. Seja quem for que está por trás desta perversidade, e sejam quais forem as suas razões, tenho de concretizar o que vim aqui fazer. Tenho de seguir as instruções de Orin. Tenho de preparar o antídoto para o Sono da Morte. E rapidamente.

Tinha na algibeira o frasco de vidro que Jonn lhe dera, protegido na sua suave bolsa de cabedal. Tirou o frasco para fora e observou-o. Uma coisa bonita e brilhante, mas vazia. Aguardando ser enchida com o que salvaria a vida da mãe.

Segurou o jarro na mão e repetiu o verso de Orin, em voz baixa.

“Para preparar a poção que desperta o Sono da Morte

Enche uma mão cheia com água de prata.

Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas:

Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar.

Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,

Três vezes, não mais, e deixa repousar.

Adicione o veneno do seu mais temível medo...

Uma gota... e a verdade tornar-se-á cristalina”.

— Essas palavras não fazem qualquer sentido para mim — disse Seaborn.

— São as palavras de Orin — afirmou Asha rispidamente. — São palavras secretas, não destinadas a serem compreendidas por outros. Há mil anos que estão ocultas. É errado ir contra a vontade de Orin. Sempre foi.

Doss hesitou.

— A primeira linha é simples — começou finalmente.

— Mas a segunda... “água de prata”...

— A segunda também é simples — disse Seaborn com impaciência. — Para começar a poção, temos de tirar uma mão cheia de água das profundezas. Do mar.

Asha mirou-o com desprezo.

— Até uma criança consegue entender as duas primeiras linhas — disse. — O problema não está aí.

Rowan desatarraxou a tampa do frasco. Os seus dedos tremiam. Não dês ouvidos à discussão deles, disse para si mesmo. Pense apenas no que está a fazer. Vai buscar a água. O primeiro ingrediente. Inicia o processo.

Afastou-se dos Candidatos e caminhou rapidamente por entre os salpicos de água para a orla rochosa da Ilha.

— Espere, Selecionador de Rin — ouviu Asha a chamar. Rowan continuou a andar. Estava furioso. Quer que não seja bem sucedido nisto, Asha, zangou-se com ela mental­mente. Tem tentado desencorajar-me. Mas não vai conse­guir.

Alcançou as rochas e começou a descer por elas, em direção ao mar.

Foi então, quando a sua raiva começava a diminuir, que se percebeu o perigo. As ondas lançavam-se sobre a Ilha, rebentando numa chuva de partículas e lençóis de espuma sibilantes. Os seus sapatos pesados escorregavam nas rochas molhadas e polidas. Era como caminhar sobre gelo. À medida que se aproximava da água, um chuveiro gelado caia-lhe sobre a cabeça e fustigava-lhe o rosto, picando-lhe nos olhos e perturbando-lhe a visão.

Sentiu um nó no estômago quando uma onda rebentou e sentiu o pé direito a deslizar sob ele. Gritou, debatendo-se em desespero para recuperar o equilíbrio. Perante os seus olhos umedecidos, o mundo inclinou-se estranha­mente...

Depois, três pares de mãos agarraram-lhe nos braços, puxando-o para trás, estabilizando-o. Virou-se, tossindo, vendo os rostos de Seaborn, Asha e Doss fitando-o sombrios.

Rowan sentiu-se mal. Quase caíra. A cabeça teria embatido nas rochas duras como o ferro. As ondas tê-lo-iam sugado para o mar frio e agitado.

Todos os Candidatos avançaram para salvá-lo. Será que, afinal, estava enganado? Que não teria um inimigo entre eles?

Ou não seria apenas a altura ideal para ele morrer? Será que alguém precisava dele vivo e a desperdiçar momentos preciosos, até a Guardiã se afastar das costas da vida e o Cristal se extinguir para sempre?

Rowan pestanejou para os três rostos diante de si e lim­pou os olhos.

— Obrigado — disse, entorpecido.

Seaborn sorriu.

— Os seus sapatos não são feitos para caminhar sobre as rochas, Rowan.

— Pedi-lhe para esperar — disse Asha gravemente. — Tem que deixar que sejamos nós a nadar nas águas turbu­lentas, se é que é mesmo necessário.

— Pedi para que me ajudassem — murmurou Rowan. — Mas não estou à espera que arrisquem as suas vidas.

Os lábios de Asha assumiram uma linha reta e dura.

— A morte de um de nós não é importante — disse. — Mas, se o perdermos, então os Maris também estarão per­didos.

Seaborn anuiu.

— Dê-me o frasco, eu vou buscar a água — afirmou. — Não devemos perder mais tempo.

Doss abriu a boca como que para dizer algo, mas pare­ceu mudar de idéias. Os seus olhos, tão estranhamente so­nhadores para um Maris, desviaram-se do rosto de Rowan para o mar irrequieto.

— O que foi? — perguntou-lhe Rowan.

— Eu... não acredito que esta água se ajuste às palavras do enigma — disse Doss. — Penso que devemos procurar noutro local.

Os outros ficaram a olhar.

— O mar tem água de prata — disse Asha.

— E reluz como prata ao sol — disse Seaborn.

Doss abanou a cabeça.

— As palavras “água de prata” são tranqüilas e serenas, e cheias de mistério — afirmou. — Mas, aqui, o mar é agitado. Luta com a terra. Desfaz-se em espuma. Não acredito que Orin lhe tivesse chamado água de prata.

— Quem é você para conhecer a mente de Orin? — voci­ferou Asha.

Doss olhou para o chão e não respondeu.

Rowan mordeu o lábio. Lentamente, voltou a enroscar a tampa do frasco. Agora que pensava nisso, percebia que Doss estava certo.

Sentiu-se mal com a sua própria falta de senso. Deixa­ra-se levar pela fúria e medo. Esquecera-se como o povo Maris era astuto — sobretudo o grande Orin. Sentira-se desesperado e demasiado disposto a acreditar que o pri­meiro ingrediente de Orin seria assim tão fácil de encontrar.

De fato, fora tão irrefletido que quase perdera a vida apressando-se a colher algo que se iria revelar inútil.

Tenho de ser mais cuidadoso, pensou. Não posso voltar a entrar em pânico. Tenho de ser tão frio quanto estes Maris, se quero ser mais astuto do que eles.

Respirou fundo.

— Na sua opinião, o que é água de prata, Doss? — per­guntou, calmamente.

— Não sei — murmurou Doss. — Mas tem que ser aqui. Sobre ou em redor da Ilha. Porque foi aqui que Orin prepa­rou a poção.

— Sendo assim, vamos investigar. Vamos investigar até o encontrarmos. — Rowan guardou o frasco de novo na bolsa e olhou em redor. Um litoral rochoso, ondas a reben­tar, vegetação agreste, uma floresta cerrada e enredada... Por onde deviam começar?

Repetiu a pergunta em voz alta.

— Por onde devemos começar?

A voz de Seaborn ergueu-se acima das nuvens.

— A Ilha é como águas desconhecidas para nós — res­pondeu. — Ninguém, a não ser o Guardião, pode aqui entrar, exceto na altura da Escolha. Mas já naveguei muitas vezes ao seu redor. E, do outro lado, que não se consegue ver de Maris, existem baías calmas e arenosas e lugares prote­gidos. Talvez aí...

Rowan considerou e depois anuiu.

— Vamos tentar — disse. — Vamos contornar a costa. Não levará muito tempo. É melhor do que experimentar atravessar a floresta.

— Se formos para o outro lado da Ilha, ficaremos fora de vista de Maris — murmurou Asha. — E o Cristal está demasiado enfraquecido para a mente da Guardiã nos seguir. Se depararmos com algum perigo no lado secreto, não teremos forma de pedir auxílio.

— Teremos de depender uns dos outros para nos auxi­liarmos — disse Rowan.

Assim que as palavras lhe deixaram os lábios, viu de novo os três Candidatos a trocar olhares suspeitos, a franzir o cenho e a tocar nas navalhas que traziam nos cintos.

Foi invadido pelo desespero. Havia poucas probabilida­des dos Candidatos dos Fisk, Pandellis e Umbray dependerem uns dos outros. Naquele momento, para eles, nenhum ini­migo era mais perigoso do que um da própria espécie.

Começou a avançar pela costa, mantendo-se junto das árvores e o mais afastado possível das rochas traiçoeiras.

Recordou as palavras de Asha. O que acontecesse do outro lado da Ilha não seria avistado em Maris. Iria ficar bastante desprotegido. Nada poderia impedir que um dos três Candidatos o matasse. Quem o fizesse poderia também matar os outros e depois regressar para junto da Guardiã e contar a história que tinham caído acidentalmente no mar.

Faria aquela viagem também parte do plano de alguém?

 

LONGE DA VISTA

Rowan sentia-se só e temeroso. Se conseguisse ao me­nos falar com alguém que eu soubesse poder confiar, pensou.

Olhou para trás. Os Candidatos seguiam-no em fila indiana. Asha, a capa prateada refletindo à vez as árvores e o mar, seguia na frente, praticamente atrás dele.

Rowan percebeu subitamente que ela parecia muito familiar. Apesar do aspecto e roupas estranhas, Asha re­cordava-o Jiller, a mãe. Parecia honesta, firme, direta, de­terminada a fazer o que era correto, fosse a que preço fosse.

Virou-se para a frente e prosseguiu caminho. Contor­navam agora a Ilha. Em breve, deixariam de ver a costa Maris.

Os seus pensamentos não paravam. Sim, Asha fazia-o lembrar-se da sua mãe. Apesar da fúria que ele sentia e da falta de encorajamento por parte dela, queria confiar nela. Recordou-se que fora Asha quem soara o alarme sobre o lado secreto da Ilha.

Mas ela sabia que eu não hesitaria por causa disso, pen­sou. Sabia, mesmo, que isso me tornaria mais determinado.

Os treinadores deles sabem como você pensa.

Não posso esquecer-me disso, disse Rowan para si. Nunca o posso esquecer.

Centrou os pensamentos em Seaborn, que seguia atrás de Asha, alto e sólido em verde. Seaborn era enérgico, confiante e forte. Um homem com quem se podia contar. Recordava-lhe Jonn — Jonn Forte, que tantas vezes o ajudara e ficara do seu lado em épocas de perigo.

Fora Seaborn quem sugerira deslocarem-se para o lado secreto da Ilha. Parecera sugeri-lo apenas porque estava ansioso por ajudar. Ansioso por alguma ação, como seria o caso de Jonn.

Mas, será que sim? Ou estaria simplesmente a desen­rolar o próximo passo de uma intriga?

Rowan abanou a cabeça. Também não podia estar se­guro em relação a Seaborn.

Quanto a Doss. Este seguia no fim da fila. Era tão mais baixo em relação aos outros que tudo o que Rowan conse­guia ver era uma forma azul intermitente, aparecendo por breves instantes e depois desaparecendo por trás do verde de Seaborn.

Doss era calmo e sonhador e mais inseguro do que os outros. Será que Doss recordava alguém a Rowan?

Sim, claro que sim. Doss era como Rowan. Seria então a pessoa em quem confiar.

No entanto, fora Doss quem suscitara as dúvidas sobre a água de prata. Foram as suas palavras alegadamente hesitantes que acabaram por dar origem àquela viagem, em­bora Doss por si não a tivesse sugerido.

Seria Doss, de fato, o mais esperto e mais perigoso de todos eles?

A mente de Rowan era um verdadeiro turbilhão. Nada era certo. Flutuava indefeso em marés agitadas de pergun­tas e confusão. Enfiou a mão na algibeira e segurou no frasco de tampa de prata, retirando conforto da sua dureza sólida.

Não posso confiar em nenhum deles, pensou. Só posso confiar em mim.

Subitamente, percebeu que caminhava sobre areia e não sobre rocha. Olhou para cima e verificou que, en­quanto pensava para si, contornara a curva da Ilha sem reparar.

Tal como Seaborn dissera, o outro lado da Ilha era uma baía abrigada. As árvores que o ladeavam já não eram uma massa sólida. Carreiros sombrios e com fetos mergulhavam nas profundezas da floresta e podia avistar clareiras de ve­getação rasteira por entre os troncos.

Naquela costa mais amena, as ondas desfaziam-se cal­mamente, transformando-se em espuma. Na outra extre­midade da praia, um elevado penhasco recortado erguia-se do mar como uma barreira. A sua volta, duas aves grandes voavam e piavam. Eram os únicos sinais de vida.

Para lá das ondas, até onde os seus olhos conseguiam ver, não havia nada a não ser mar e céu.

Agora, pensou Rowan, estou verdadeiramente sozinho. Forçou a mente a apagar este medo.

Água de prata...

Rowan observou a linha de ondas rolando para a praia. Eram seguramente menores do que do outro lado da Ilha. Mas, apesar de tudo, não pareciam adequar-se às palavras.

Sentiu um arrepio na nuca e virou-se, vendo Asha, Seaborn e Doss mesmo atrás dele. Tinham alcançado o local onde Rowan se encontrava e aguardavam. Há quanto tempo estariam ali? Não sabia dizer. Moviam-se em per­feito silêncio.

Tenho de informá-los sobre o que vamos fazer de se­guida, pensou Rowan. E sentiu-se de novo invadido pelo desespero.

Não sou um líder, pensou. Não sei para onde me virar. Sou um estranho aqui. Estou com medo. Insisti em fazer isto e, agora, não sei para onde ir ou o que fazer.

Mirou mais uma vez os Candidatos. E percebeu len­tamente que pareciam diferentes.

Há duas horas atrás, não o teria detectado. Mas, desde então, acostumara-se a ver rostos de Maris. Já não lhe pare­ciam todos iguais. Começara a perceber expressões e alte­rações de humor naqueles com quem falava.

Via agora que Asha, Seaborn e Doss estavam com medo. O olhar deles era cauteloso. Permaneciam imóveis, prepa­rando-se para o perigo. As mãos pairavam próximas das nava­lhas nos cintos.

Neste lado da Ilha, pensou, são tão estranhos quanto eu. Não estudaram este lugar. Não conseguem ver as suas casas. Nunca pisaram esta areia. Não sabem o que poderão encontrar aqui.

Por alguma razão, esse pensamento deu-lhe alento.

— Penso que devemos começar por caminhar ao longo da areia — disse, em voz alta. — Olhem para a esquerda e para a direita, tentando detectar algo que se adéqüe às pala­vras.

— A água só pode ser o mar — disse Asha, atrás dele. — Não a encontraremos entre as árvores, Selecionador de Rin.

— A água em si tem mais do que um significado — disse Doss, em voz baixa. — O enigma não diz “as águas de prata” mas apenas “água de prata”.

— Que diferença faz? — retorquiu a mulher. — É claro ao que Orin se referia.

Seaborn riu-se.

— Quem é você, Asha dos Umbray, para conhecer a mente de Orin? — troçou.

— Cuidado com essa língua suja, Fisk! — cuspiu Asha.

— Cuidado com a sua — disse Seaborn.

Rowan não disse nada. Apetecia-lhe gritar com eles. Ape­tecia-lhe rogar-lhes que trabalhassem em equipe, para o ajudarem. Mas sabia que não valia a pena.

Pôs-se a caminhar, sabendo que eles o seguiriam. A areia chiava sob os seus pés. Seguindo em frente, olhava alternadamente da floresta para o mar e do mar para a floresta.

O seu coração entristecia-se à medida que os minutos passavam.

Nada. Não conseguia ver nada.

Não muito à frente, a areia terminava no sopé do enorme penhasco rochoso que se estendia pela praia e penetrava no mar. Assim que o alcançassem, não poderiam avançar. O único lugar que lhes restaria para investigar seria a flo­resta em si. E, embora a Ilha fosse pequena, sem nenhuma pista de orientação isso poderia levar dias.

Se ao menos soubesse o que procuro, pensou Rowan desesperadamente. Passou por uma outra abertura no arvoredo, espreitou, viu vegetação alta e aguçada a oscilar e seguiu caminho.

Uma das aves que avistara antes piou das profundezas da floresta. Olhou na direção do som. Então, quando vol­tava a cabeça de novo para o mar, avistou algo. Apenas de relance, pelo canto do olho.

Estacou de imediato e retrocedeu um passo. Espreitou por entre as árvores. Sim, lá estava de novo. Em algum lugar por entre as profundezas verdes, algo reluzia em tom de prata. Como água parada e secreta, brevemente tocada pelo sol.

— Penso... há qualquer coisa ali — disse, apontando. Tentou falar com calma, mas o coração batia desordenado.

De algum modo, sabia, sem sombra de dúvida, que encon­trara finalmente a água de prata de Orin.

 

ÁGUA DE PRATA

Abriram caminho por entre a vegetação alta e penetraram cautelosamente na floresta. Hesitaram por momentos, apreensivos e silenciosos.

As árvores elevavam-se bem alto de ambos os lados. Ramos frondosos, entrelaçados, formavam uma cobertura sobre a cabeça deles, bloqueando o sol. Agora que tinham ultrapassado a vegetação alta, viram-se num caminho largo que se estendia para o seio da floresta.

Rowan viu Doss a estremecer ao olhar ao redor.

— Quem abriu este caminho? — questionou-se Sea­born em voz alta.

Era certo que aquela trilha não existia ali por acaso. Era plano e largo — suficientemente largo para os quatro caminharem facilmente lado a lado. Era ladeado por mon­tes de terra afastados para o lado, que ficaram depois cober­tos de arbustos, musgo e fetos.

— Deve ter sido a Guardiã — disse Asha. — Só um Guardião está autorizado a vir à Ilha. Mas parece evidente que o caminho não é utilizado há muito tempo.

Apontou para a camada espessa de folhas apodrecidas que cobriam o trilho e os grupos de fetos que estendiam as suas tenras folhas aqui e ali.

Rowan anuiu.

— Pelo menos um ano — disse. — Se estas plantas crescem como em Rin.

— Mesmo assim — afirmou Seaborn gravemente —, devemos manter a vigilância quanto a um possível perigo.

Avançaram, os pés afundando-se no tapete castanho de folhas. Traças gordas e cinzentas esvoaçavam cegamente no caminho, roçando-lhes com as suaves asas nos rostos.

Rowan forçou a visão na penumbra, procurando à frente nova cintilação de prata.

Por entre as árvores, detectou o brilho de um verde mais brilhante e escutou de novo o piar feroz de uma das aves que avistara junto do penhasco.

Não parece um som simpático, pensou. Uma idéia agi­tou-lhe a mente mas um entusiasmo súbito dissipou-a rapi­damente. Porque, mesmo à sua frente, ainda o piar da ave esmorecia, o prateado que ele buscava reluziu de novo.

— Ali — exclamou. Começou a correr.

Podia ouvir Asha, Seaborn e Doss apressando-se atrás dele. Pela primeira vez, estavam com maiores dificuldades do que ele. Os seus sapatos leves afundavam-se na suavi­dade do caminho, retardando-os.

Das folhas emanava um cheiro a umidade e terra ao serem esmagadas debaixo dos pés de Rowan. Misturou-se com outros odores da floresta. Folhas frescas, fetos par­tidos, mofo... e algo mais.

Rowan torceu o nariz, tentando determinar o que era esse algo mais. Era um perfume forte e doce. Talvez uma flor de floresta, mas não havia nada que se assemelhasse em Rin. E era cada vez mais intenso.

O caminho fez uma curva ligeira e deu acesso ao que parecia ser uma clareira natural, rodeada de árvores. Havia folhas e vegetação em torno da clareira mas, no centro, er­guia-se um rochedo liso e descoberto, dobrado e curvo, como um grande animal enroscado a dormir.

O céu criava um círculo pálido por cima, iluminando a clareira. O enorme rochedo elevava-se, cinzento, de um dos lados, acima dos topos das árvores.

Não havia vento. Nenhum ruído, à exceção do som distante do mar. Era um local tranqüilo e secreto. No ro­chedo, reluziam charcos de água.

— Deve haver uma nascente lá em cima — murmurou Rowan. — Alimentada de um riacho sob o rochedo.

Não havia razão para murmurar. Mas Rowan sentia a pele eriçada. Pressentia perigo.

Talvez fosse a luz, depois da penumbra na floresta. Talvez fosse o cheiro estranho e adocicado que surgiu subi­tamente à sua volta. Ou talvez fosse o silêncio do lugar, e a sua estranheza.

Também Asha, Seaborn e Doss pareciam ter sido afetados. Rowan só sabia que estavam atrás dele porque os ouvia a respirar.

Aproximou-se do rochedo. Eles o seguiram quando Rowan subiu lentamente para o topo.

E ali, tal como ele contara, havia uma lagoa de água cristalina, escavada na rocha. Era quase perfeitamente re­donda e tão pequena que duas pessoas conseguiam tocar nas mãos uma da outra no seu diâmetro.

Muito abaixo da superfície, um reluzir de prata. O fundo da lagoa estava coberto com um tipo qualquer de lama ou areia reluzente.

Mas não foi isso que levou Rowan a libertar uma excla­mação e o seu coração a encher-se de esperança. Havia algo mais debaixo daquela superfície límpida e ondulada. Algo redondo e branco, brilhando na água como uma lua cheia flutuando no céu.

Era uma flor. Tinha a face virada para o céu, as pétalas abertas, formando um círculo perfeito. Rowan podia sentir o seu perfume elevando-se da água. A fragrância forte e adocicada que já sentira.

Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas...

— As flores não conseguem crescer debaixo de água — exclamou Asha, quebrando o seu silêncio em choque.

Parecia quase irritada, porque aquilo revolucionava as leis que lhe ensinaram como sendo inalteráveis. Para Asha, as flores cresciam ao ar e ao sol. Sempre assim fora. Era assim que sempre teria que ser.

Mas o rosto de Seaborn estava intenso de curiosidade e entusiasmo.

— Não é o caso desta — disse. — E é o segundo ingre­diente. Encontramos dois num só lugar! Rápido, Rowan. A água e depois a flor.

Rowan tirou o frasco da algibeira e desapertou a tampa. Enche uma mão cheia com água de prata... Estendeu a mão, inclinou-se sobre a água, olhou para os dedos, hesitou...

— Espera — disse Doss, tocando-lhe no braço. — Lem­bre-se...

Rowan mal o escutou. Fixava, fascinado, a água. Porque, subitamente, a flor alva desaparecia. A lagoa deixou de ser cristalina. Transformava-se em cor de prata ao olhar para ela.

Virou-se para Seaborn, para lhe dizer. E, nesse instante, viu o rosto do homem a alterar-se, sentiu-se a ser rude­mente empurrado para o chão.

— Cuidado! — gritou Seaborn.

Um grito terrível e penetrante cortou o ar. Asas enor­mes bateram sobre as cabeças deles. Ouviu-se um som de chapinhar e água transbordou para o rochedo.

Depois, uma ave verde, enorme, voou para longe, re­gressando ao cume do penhasco com vários peixes peque­nos agitando-se por entre as suas garras. Rowan nunca vira uma ave assim. Era tão grande quanto ele.

Seaborn resfolegou com um riso contido.

— Pensei que estava a nos atacar. Mas pretendia apenas encher a barriga! E as barrigas das crias. Não admira que Orin lhe tenha chamado uma “lagoa faminta”.

Doss começou a falar, mas a sua voz foi abafada pela de Asha. Pusera-se de pé e apontava receosa para a lagoa.

— Aquela luz! — disse. — O que é?

Rowan aproximou-se da beira da lagoa. O perfume da flor era muito forte. E a água parecia prata fundida. Pra­teada como a capa de Asha. Prateada como os raios de sol incidindo sobre a água. Prateada como um peixe. Mal con­seguia olhar para lá, tal o brilho que emitia com o sol.

Num instante, percebeu do que sucedera. Os peixes, mergulhando em busca de segurança da ave, agitaram a areia brilhante no fundo da lagoa.

Enche uma mão cheia com água de prata...

— Seaborn! — gritou. — Rápido! Antes que a prata se afunde de novo. Tire uma mão cheia de água!

Seaborn hesitou, intrigado.

— A minha mão não serve — gritou Rowan. — Com­preendi isso antes da ave descer. Aberta, a minha mão é inútil. O enigma refere-se a uma mão Maris. Com dedos unidos por uma membrana, tal como a de Orin.

Seaborn anuiu e saltou para junto de Rowan.

— Não! — gritou Doss.

Mas Seaborn tinha já enfiado a mão aberta na água.

Começou a levantar o braço. Rowan preparou o frasco para colher a água. Então, subitamente, Seaborn gritou em agonia.

Estremeceu a mão no ar. Tinha um líquido prateado na mão aberta em concha. Mas as costas da mão e o punho estavam cobertos por dezenas de peixes sinuosos. Mesmo fora de água, continuavam a morder-lhe a carne, regressando depois à lagoa coberta com o pálido sangue do Maris.

Asha gritou repugnada e horrorizada.

— Lagoa faminta... — murmurou Doss.

— Rowan, o frasco — gritou Seaborn, estremecendo com dores. — Oh, depressa, por amor de Orin! Estão a comer-me vivo!

Sem uma palavra, Rowan lançou-lhe o recipiente. Com a mão livre, Seaborn agarrou no punho ferido, imobi­lizou-o e despejou o precioso líquido para o frasco.

Os peixes continuavam a cair-lhe da carne. O seu sangue pingava livremente para a lagoa. E esta pulsava, fervilhava, enquanto os peixes se banqueteavam.

Grunhindo, Seaborn retrocedeu. Arrancou a última criatura da mão e atirou-a contra a rocha. Vacilou. Tinha o rosto tão pálido quanto o ventre de um peixe.

Rowan correu para o seu lado e ajudou-o a sentar-se e depois a deitar-se no chão. Suavemente, virou a pequena mão membranosa. Só então se revelou o total horror dos ferimentos.

Os peixes tentaram de fato desossar a carne a Seaborn. Os ferimentos eram terríveis.

— Nos meus pertences — disse Seaborn com dificul­dade. — Creme curativo. Ligaduras.

Asha e Doss aproximaram-se quando Rowan tirou um frasco com uma pomada castanha pegajosa e um rolo de ligadura sedosa de uma bolsa cozida à capa de Seaborn.

— Eu ajudo — disse Asha, estendendo a mão para a ligadura.

— Não! — gritou Seaborn fracamente, agarrando o casaco de Rowan com a mão sã. — Rowan! Não permita que eles me toquem! Não os deixe aproximar das minhas coisas!

Asha deu um passo para trás.

— Não tentaria fazer-lhe mal, homem dos Fisk — disse, franzindo o cenho. — É proibido. Seja como for, não havia qualquer necessidade. Já fez bastante mal a si mesmo, sem a minha intervenção.

Rowan começou a espalhar a pomada castanha na mão de Seaborn. Fê-lo com a maior suavidade possível, mas Seaborn fechou os olhos, o rosto retorcido em dores.

— Se Seaborn está ferido, é por culpa minha — mur­murou Rowan. — A superfície da lagoa estava ondulada, embora não houvesse vento. Não reparei nesse fato. Mesmo quando vi a ave a levar os peixes da água, não con­siderei o perigo. Não prestei atenção ao aviso no enigma de Orin.

Olhou para Doss.

— Mas você prestou — acrescentou. — Tentou aler­tar-me. Bem devia ter-lhe dado ouvidos.

— Eu devia ter falado com maior firmeza — respondeu Doss. — Mas não estava seguro. Era apenas uma idéia. — Fitou apreensivo o rosto pálido de Seaborn.

Agora que a crise passara, Doss estava calmo como sem­pre. Não parecia particularmente preocupado com a aflição de Seaborn. Mesmo para um Maris, estava estranhamento imperturbado.

Rowan questionou-se sobre isto ao dobrar-se para ligar a mão tremente do homem que gemia. Estaria Doss secre­tamente satisfeito por Seaborn estar ferido? Ter-se-ia deliberadamente calado até o alerta chegar demasiado tarde?

Ou seria apenas o fato de Doss ter presenciado tanto sofrimento e morte durante ávida que já não ficava afetado?

Há tanta coisa sobre esta gente que eu desconheço, pensou Rowan. Quando chegar a altura de escolher, como irei decidir qual destes Candidatos irá governar melhor os Maris?

Tentou desviar a mente da pergunta. O importante agora era curar Jiller. Isso estava em primeiro lugar.

Fora já encontrado um ingrediente para o antídoto. Teria agora que ser adicionado o segundo.

Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas: Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar.

Apenas há alguns minutos atrás, essa tarefa parecera fácil. Mergulhar um braço naquela água clara e ondulante. Apanhar a flor que crescia bem lá no fundo.

Mas agora... quem arriscaria tal coisa?

Ninguém.

 

LAGOA FAMINTA

Rowan acabou de ligar a mão de Seaborn e ajudou-o a sentar-se direito enquanto lhe suspendia o braço. Viu o homem olhar com ódio para o peixe, agora imóvel sobre a pedra onde caíra.

Agora, todos podiam ver claramente o seu corpo trans­parente e tipo verme e a cabeça inchada que parecia ter apenas a dimensão suficiente para conter a fileira dupla de dentes afilados.

— Nunca tinha visto nada assim! — exclamou Asha. — E são aos milhares.

Subiu para o rochedo e observou a lagoa.

— Está outra vez límpida — disse. Rowan foi ver.

Não havia dúvida, a lagoa brilhava cristalina. A areia prateada assentara de novo no fundo. Também não havia sinal do sangue de Seaborn. Pelo que parecia, os peixes tra­taram rapidamente dele.

A flor alva flutuava tentadora nas profundezas agitadas. Parecia que se conseguiria estender a mão e apanhá-la... com a maior das facilidades. E, há apenas alguns minutos atrás, Rowan pensou que o poderia fazer.

— Vamos ter de partir o pedúnculo da flor com dois paus e retirá-la da água — sugeriu Asha.

Rowan abanou a cabeça.

— O enigma diz que temos de adicionar as lágrimas que a flor derramar. Penso que as lágrimas devem ser a seiva que pinga do caule partido. Se partirmos o pedúnculo aqui de cima, irá diluir-se na água. A flor tem de ser apanhada à mão e o caule protegido para não deixar es­capar a seiva.

Uma das grandes borboletas cinzentas da floresta pairou sobre a lagoa, atraída pelo aroma da flor. A água estremeceu. Um perfume erguia-se da superfície em ondas de doçura. A borboleta voou mais baixo. As suas asas to­caram na água...

Num abrir e fechar de olhos, desapareceu da superfície. A água borbulhou e ondulou como se estivesse em ebu­lição. Depois, mais nada.

Rowan estremeceu. Combateu a agonia que sentia no estômago.

É assim que as coisas são no mundo, disse a si mesmo. Os peixes comem borboletas. As aves comem os peixes. É assim o ciclo da vida.

Apesar de tudo, a morte da inocente borboleta pertur­bara-o.

— Se aquelas criaturas só comem borboletas, é de admi­rar serem em tamanho número — comentou Asha, imperturbada.

Rowan engoliu em seco e anuiu.

— Temos de arranjar uma forma de lidar com eles — disse. — Seja como for, temos de apanhar a flor alva.

— Só há um modo de lidar com peixes — afirmou Asha com firmeza. — Mesmo peixes tão extraordinários como estes. Vamos capturá-los. Apanhá-los com uma rede, até ao último.

— Não creio que tenhamos uma rede que os segure — disse Doss, ouvindo a sugestão.

Asha voltou-se para ele, envolvendo-se na sua capa prateada.

— Não dispomos de uma rede suficientemente ade­quada, é verdade — respondeu. — Mas, se unirmos todas as nossas redes, de forma a que a malha fique cruzada, a rede servirá para o efeito. Tenho certeza.

Doss olhou para o céu.

— É melhor afastarmo-nos da lagoa — disse. — A ave está de volta.

Recordando-se do que acontecera da última vez, Rowan e Asha apressaram-se a descer do rochedo.

Rowan virou-se para observar. A ave mergulhou na direção da lagoa a uma velocidade vertiginosa. Era enorme. O seu bico era cruel e curvo. Tinha as garras estendidas, prontas a capturar a presa.

Enquanto Rowan olhava, a ave pairou por instantes sobre a lagoa. A água começou a ficar prateada quando os peixes procuraram segurança.

Então, subitamente, a ave guinou no ar e, libertando um pio, lançou-se direta a Rowan e Asha.

— Para baixo! — gritou Rowan, empurrando Asha para o chão.

Mesmo a tempo. O bico a estalar, as asas em movimento e as garras afiadas como lâminas não os apanharam por uma fração de segundo.

Rowan ficou a ver, perplexo, a ave a afastar-se.

— O que... o que ela está a fazer? — gritou Seaborn.

— Não sei — respondeu Rowan, ofegante. — Parece ter decidido que somos inimigos dela.

Asha pôs-se de pé, lívida e abalada.

— Ficarei satisfeita quando sair deste lugar — disse. Tirou uma rede fina da bolsa na capa. — Com esse fim — acrescentou —, pedirei aos Candidatos dos Pandellis e dos Fisk que me entreguem as suas redes, para que possa limpar a lagoa.

Sem uma palavra, Seaborn levou a mão sã à sua capa e retirou uma rede ainda mais fina do que a de Asha. Esten­deu-a.

Doss hesitou e depois procedeu de igual modo.

Asha estendeu as três redes sobre a rocha, umas por cima das outras, e atou as extremidades em vários lugares. Rowan viu que, em conjunto, as redes formavam uma teia fina. Havia muito poucos orifícios através dos quais peixes po­diam escapar, mesmo peixes tão pequenos como os que viviam na lagoa.

Asha levantou-se, com as três redes tornadas numa só na mão. Olhou para o topo do penhasco para lá das árvo­res. A ave verde guinchava aí, batendo as asas para um animal da sua espécie que se atrevera a entrar no seu território.

— O nosso amigo está ocupado por agora — disse. — Este é o momento oportuno.

Levou a rede para a lagoa da flor alva e ajoelhou-se junto a ela. Rowan e Doss correram para a ajudar. Baixaram-se à beira da lagoa, segurando a rede entre si.

— Temos de mergulhar a rede, erguer os peixes para fora, lançá-los para a rocha onde não nos possam fazer mal e mergulhar de novo o mais depressa possível — afirmou Asha. — Vai levar algum tempo a esvaziar a lagoa por completo. — Olhou para trás para Seaborn, que observava sem nada poder fazer, afagando a mão ferida. — Avise-nos se a ave se aproximar — ordenou. — Certa­mente que ficará satisfeito por ter algo útil para fazer.

Virou-se para Rowan e Doss. Agrada-lhe estar no coman­do, pensou Rowan.

— Prontos? — perguntou Asha. — Agora!

Mergulharam a rede na lagoa. A água agitou-se. Rowan sentiu um ligeiro esticar nas mãos. Tornou os músculos tensos, pronto a levantar...

— Para fora! — gritou Asha.

Puxaram em simultâneo. Rowan contara com um pe­queno peso... mas não havia qualquer peso.

Retrocedeu alguns passos, mirando estupidamente o fragmento de rede esfarrapado que segurava. Olhou para os outros. Também eles estavam perplexos, como se não entendessem o que acontecera.

Toda a zona central da rede desaparecera. E, na lagoa, os peixes banqueteavam-se.

— Nunca... — Asha tremia em choque e raiva. — Nunca vi nada assim. Que diabos serão estes?

A água acalmava-se. Não tardou a ondular de novo e pu­deram avistar outra vez a flor alva. Não havia sinais da rede, nem de qualquer pedaço. Fora completamente consumida.

— Não acredito! — gritou Asha. — Comem a nossa rede, mas não tocam na flor!

— Penso que sei porquê — disse Doss. — É porque necessitam da flor. O seu perfume atrai as borboletas que eles usam como alimento. — Sorriu. — E, como é evidente — acrescentou —, a flor também precisa dos peixes. Eles devoram tudo o que cai na lagoa, pelo que a água perma­nece límpida e cristalina e a flor consegue sempre ver o sol.

— Cuidado! — gritou Seaborn.

Apressaram-se a afastarem-se da lagoa, mantendo-se acocorados.

A ave de penas verdes fez um vôo raso. A lagoa começou a ficar prateada. A ave mergulhou e depois ergueu-se, guinchando, levando consigo presas que se contorciam.

— A ave consegue apanhar os peixes — disse Doss len­tamente.

— Foi adequado pela natureza para poder fazê-lo! — exclamou Asha. — Mas não podemos esperar que esvazie a lagoa para nós.

— Temos algum recipiente com o qual consigamos re­tirar a água para fora? — perguntou Seaborn.

Ninguém tinha. E, depois do que acontecera com a rede, todos sabiam que um recipiente feito de folhas, tecido ou casca de árvore seria inútil.

— Já sei! Vamos encher a lagoa com areia e rochas — disse Asha, dando um salto. — Depois a água transborda e os peixes demônios morrem.

— Não temos tempo a perder. Seriam necessárias muitas, muitas horas para encher aquela lagoa — murmurou Sea­born. — E eu... — Fez uma careta, afagando a mão dorida. — Eu pouco os posso ajudar.

— Não importa! — Os olhos pálidos de Asha reluziam de fúria. — Aquelas criaturas têm de ser destruídas. Têm mesmo!

Rowan abanou a cabeça.

— Está a esquecer-se — disse, gentilmente. — O nosso objetivo não é destruir os peixes. O nosso objetivo é colher a flor alva. Se enchermos a lagoa, a flor ficará so­terrada no fundo. Ficará danificada, talvez mesmo partida. Depois, será inútil.

Asha levantou as mãos.

— Temos de destruir os peixes antes de conseguirmos chegar à flor! — explodiu. — Se não os conseguirmos des­truir, nada se poderá fazer!

— Pode, sim — gritou Rowan. — Tem de poder.

— Pode ser feito — disse Doss. — Porque Orin fê-lo. Tem de existir uma forma. Só precisamos descobrir.

Fez-se silêncio. Baixaram-se no rochedo, observando a ave grande a aproximar-se de novo da lagoa, a pairar por um segundo enquanto a água se tornava prateada sob a sua sombra e depois a mergulhar.

— Os peixes têm medo da ave — disse Doss subitamente.

— Correm a esconder-se sob a areia prateada antes de ela mergulhar. E é aí que permanecem até o perigo passar.

— Está a pensar que, nesse momento, poderíamos apanhar a flor em segurança — murmurou Rowan.

Seaborn parecia duvidoso.

— Tudo sucede num abrir e fechar de olhos — disse.

— E continua a haver peixes na água, porque a ave captura alguns. Mas poderíamos tentar, e esperar, que sejam em número suficientemente reduzido para provocar muitos danos.

Asha resfolegou.

— Estão a sonhar, vocês três, se pensam estar no ca­minho daquela ave quando ataca. Seria uma loucura. Se­riam dilacerados.

Olhou de novo para o topo do penhasco, onde a ave lutava de novo com outra da sua espécie. No mar, caíam penas verdes enquanto ela batia as asas em fúria, as garras curvas golpeando o intruso.

Rowan anuiu. A seu modo, a ave era tão perigosa quanto os peixes vorazes. Seja como for, a objeção de Seaborn também fazia sentido. O momento de segurança, enquanto a ave pairava, era mínimo. Nem os peixes dispunham todos de tempo para se esconderem na areia prateada.

Mas todos tentavam. Porque sabiam que estavam em perigo. Como os pássaros que se afastavam rapidamente dos campos de cereais em Rin quando alguém se aproximava. Ou quando Jiller colocava um...

Rowan conteve a respiração.

— O que foi? — perguntou Doss.

— Já sei o que tenho que fazer — disse Rowan. — Pre­ciso de uma navalha. E da capa de Seaborn. E de alguns paus compridos e direitos.

 

O PLANO

A ave verde mergulhou muitas vezes na lagoa até Rowan terminar a sua obra.

— Em nome de Orin, por favor despache-se — pe­diu-lhe Seaborn, mirando o sol, inquieto.

Rowan mordeu o lábio, forçando-se a concentrar-se no que fazia. Sabia perfeitamente que o tempo era precioso. Mas o trabalho tinha que ser feito adequadamente, sob pena de não resultar.

Atou por fim os últimos nós e retrocedeu.

Asha, Doss e Seaborn fitaram em silêncio a coisa que Ro­wan criara. Tinha a forma de um pássaro, feito com partes da capa verde de Seaborn, formando uma estrutura tipo papagaio de papel com diversos paus.

Seaborn franziu o cenho.

— É uma idéia curiosa — disse. — Como lhe ocorreu tal coisa?

— A minha mãe faz uma figura em madeira e veste-lhe as suas roupas, para afugentar os pássaros dos nossos cam­pos — disse Rowan, erguendo a forma nos braços.

— Mas tenho certeza que não enganará os peixes diabo — disse Asha.

— Tenho esperanças que sim — disse Rowan. — Em Rin, o truque não resulta com os pássaros mais velhos. Mas assusta aqueles que não sabem ainda diferenciar o perigo verdadeiro do falso. E penso que estes peixes são como esses pássaros mais jovens. Porque, se estiver certo, nunca ninguém tentou este truque aqui desde o tempo de Orin.

Levou a estrutura para a lagoa e observou os céus. A ave verde não estava à vista.

— Agora é o momento — disse, acenando. — Rápido, antes que o pássaro verdadeiro regresse ou o sol se ponha. É importante que a sombra do pássaro incida na superfície da água.

Doss e Asha afastaram-se da lagoa e seguraram a estru­tura pelas extremidades das asas.

Rowan deitou-se junto à lagoa, de olhos fixos na flor alva. Seaborn, contraindo-se com dores ao mover-se, ajoe­lhou-se ao lado dele, segurando o frasco de vidro.

Em lagoa faminta, alvas erguem as suas coroas: Colhe uma...

— Agora — murmurou Rowan.

Asha e Doss avançaram, um de cada lado da lagoa. A sombra da forma de pássaro que seguravam incidiu sobre a água.

De imediato, a lagoa começou a turvar-se e depois a brilhar. Os peixes enterravam-se na areia de prata, pro­curando salvar as vidas.

— Espera... espera — murmurou Doss. — Deixa que todos se escondam.

Rowan sentia formigamento na mão. Contou lentamente até cinco. Depois, soube que não podia esperar mais. Ran­gendo os dentes, mergulhou o braço nas profundezas frias e prateadas. Cada vez mais fundo... esperando a cada segundo aquela dor penetrante que assinalaria que os pei­xes vorazes tinham abandonado o esconderijo, conscientes de que tinham sido enganados.

Tinha o caule da flor alva entre os dedos, suave e duro. Dobrou-o, mas este não se partiu.

— Depressa! — suplicou Seaborn. Desesperadamente, Rowan inclinou-se mais sobre a lagoa e enfiou o outro braço na água, cortando o caule da flor com as unhas. A água prateada roçava-lhe o peito, o pescoço, o queixo. Se os peixes atacassem agora...

Sentiu o caule a partir. Apertando a extremidade entre os dedos de uma mão e segurando na flor com a outra, pu­xou-se para trás, roçando na rocha. E, no preciso instante em que a flor branca rasgou a superfície da água, uma dor ardente disparou pelos seus antebraços e pulsos.

Ouviu Asha e Seaborn a gritar horrorizados. Cheirou o aroma pesado e sufocante da flor que murchava já. Olhou para os braços, onde uma dúzia de criaturas transparentes se agarravam a ele, mordendo e contorcendo-se.

A sua mente ficou toldada pela dor que se assemelhava a um milhar de agulhas. Mas Seaborn segurava no frasco de vidro, chamando por ele.

Colhe uma e adiciona as lágrimas que derramar...

Rowan colocou o caule da flor sobre o jarro e libertou o aperto dos dedos.

...adiciona as lágrimas que derramar.

E gotas preciosas caíram no frasco. Misturando-se com o líquido prateado. Tornando-o azul. Azul como o tecido brilhante da capa de Doss. Azul como o mar. Azul como o céu.

 

— Pronto. Está feito — disse Doss, apertando a última ligadura.

Rowan agradeceu-lhe. Os seus braços continuavam a latejar e a doer. Mas a pomada pegajosa castanha e as liga­duras eram reconfortantes.

Olhou para a rocha onde se encontrava a flor alva, já amarelecendo. Sentiu pena que ela tivesse que morrer.

Doss seguiu o olhar dele e emitiu um dos seus sorrisos raros.

— Venha aqui — disse, chamando. Rowan levantou-se e se­guiu-o.

A lagoa estava ondulante e límpida. Muito abaixo da sua superfície, reluzia a corola branca de outra flor alva.

— Havia um botão por baixo da flor que apanhou — disse Doss, enquanto Rowan continha a respiração. — Abriu assim que a água da lagoa se tornou clara. Vi isso a acon­tecer. Foi como um milagre.

— Um milagre!? — exclamou Asha, juntou-se a eles. — Como pode chamar a uma coisa tão demoníaca um milagre?

Doss virou uns olhos sérios para ela.

— A flor não é demoníaca por florir onde floresce — disse. — Limita-se a existir. Tal como os peixes na lagoa e a ave no penhasco e você e eu.

Asha retribuiu-lhe friamente o olhar.

— Nunca se esqueça que é um Candidato, pois não, Doss dos Pandellis? — escarneceu. — E como estudou bem o Selecionador! Diz exatamente o que lhe agrada.

Doss franziu o cenho.

— Não, não digo — retorquiu. — Afirmo aquilo que penso.

Ela riu-se em descrença e foi sentar-se sozinha na extre­midade do rochedo.

Rowan olhou rapidamente para Doss e desviou logo o olhar. Sentia-se chocado consigo mesmo. Percebera subi­tamente que deixara cair a guarda.

Por momentos, esquecera-se que os seus companheiros não eram seus amigos nem mesmos ajudantes voluntario­sos. Esquecera-se do que Perlain lhe dissera: tinham sido criados desde tenra idade para serem astutos e agradarem ao Selecionador, independentemente do que pudessem pensar.

Esquecera-se que um deles envenenara a sua mãe.

Mas recordara-se agora e a sua raiva regressou. Ergueu a cabeça, ignorando a dor dilacerante nos braços e a dor ainda mais intensa no coração.

— Temos de localizar o terceiro ingrediente — disse, em voz alta, evitando olhar para eles.

Mexe lentamente com a pluma nova do lutador, Três vezes, não mais, e deixa repousar.

A voz calma e forte que proferiu as palavras foi a de Sea­born.

— Penso que já tenho o terceiro ingrediente, Rowan — disse. Mostrou uma pena verde comprida — A ave arrancou-a da sua própria asa, irada, quando atacou Asha.

Rowan pensou rapidamente. Uma pluma era uma pena. Isso era verdade. A ave podia ser considerada um lutador. Isso era verdade. Os outros dois ingredientes tinham sido encontrados ali, naquele lugar. Era muito provável que a ave fizesse parte.

E o quarto?

Rowan cerrou os olhos. Não pensaria no quarto. Nunca desejara pensar no quarto.

Estendeu a mão e Seaborn entregou-lhe a pena. Viram que a ave se aproximava de novo na direção deles e sal­taram para o lado. Mas a ave não lhes prestou nenhuma atenção. Limitou-se a mergulhar na lagoa como antes e depois afastou-se.

Rowan desapertou a tampa do frasco. Enfiou a extremidade aguçada da pena verde no líquido azul e mexeu. Uma, duas, três vezes.

Nada aconteceu.

O enigma diz, “deixa repousar”, pensou. Pousou o frasco sobre a rocha e observou cuidadosamente o con­teúdo.

Lentamente, o líquido assentou. Mas a cor permaneceu inalterada.

Rowan esforçou-se por se manter em silêncio. Virou a pena, forçou a extremidade mais larga pelo gargalo do frasco e mexeu de novo a mistura. Retrocedeu de novo, para observar e aguardar.

Após dois longos minutos, soube que não podia esperar mais. Lentamente, enroscou a tampa do frasco.

Os três Candidatos miravam-no com curiosidade. Percebiam que algo se passava, mas não entendiam qual era o problema.

— A mistura devia ter ficado verde — disse-lhes Rowan. Tentou falar num tom forte, como um líder. Mas ouvia a sua voz a transmitir desapontamento.

— Quer dizer que o enigma não se referia à pena — disse Seaborn. Abanou a cabeça. — Lamento — disse. — Tinha quase a certeza que era isso.

— Também eu — acrescentou Doss. Fitou por breves instantes os olhos de Rowan, detectou inimizade e baixou o olhar.

— Não concordo — disse Asha firmemente. — Nunca compreendi como uma simples pena podia adicionar fosse o que fosse à poção. As penas são usadas para decoração e, por vezes, como caneta para escrever. É a única coisa para que servem.

Rowan rolou a extremidade pontiaguda da pena por entre os dedos. Apesar do que Asha dissera, tinha a certeza que o enigma de Orin se referia à pena da ave verde. Re­petiu de novo as instruções para si. Será que fizera exatamente o que elas indicavam?

Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,

Três vezes, não mais, e deixa repousar.

Mexera a mistura com a pena. Mexera três vezes, não mais. Deixara-a repousar. Não havia nada mais. Nada...

Foi então que percebeu. A única palavra que não consi­derara.

Suspirou. Pelo menos sabia o que tinha que fazer.

 

 

O LUTADOR

Nova. Essa era a palavra chave.

— Uma pena pode adicionar algo à poção — disse Rowan para Asha. — Pode adicionar um vestígio do óleo do corpo da ave que a torna impermeável. Mas só quando é acabada de apanhar. O óleo deve secar e evaporar muito rapidamente.

Em simultâneo, os Candidatos olharam para cima, para o céu que escurecia acima do topo do penhasco, onde a ave piava, atacava, esvoaçava e lançava as garras a outro invasor. Naquele momento, uma pena caiu da asa da ave e planou para o mar muito abaixo.

— As penas caiem quando as aves combatem — disse Doss.

— Não podemos escalar aquele penhasco, Doss dos Pandellis — escarneceu Asha. — As mãos dos Maris não são feitas para escalarem. E o Selecionador não pode ir só para enfrentar tamanho perigo.

— Seria idiota só de tentar — afirmou Rowan com desalento. — Não estou suficientemente forte para escalar. Tenho os braços feridos. Além do mais, tenho vertigens e acabaria provavelmente por cair.

Nenhum dos Candidatos considerou isto surpreendente. Claro que não iriam considerar, pensou Rowan. Ao con­trário de Perlain, que ficara surpreendido de como ele era diferente das pessoas de Rin que se deslocavam a Maris nos dias de mercado, sabiam tudo a respeito dele. Os seus treinadores devem ter-lhes dito que ele não tinha nada a ver com o seu povo, que era forte e corajoso por natureza.

Sentiu as faces a enrubescerem. Por vezes, era ainda difícil enfrentar esta diferença. Não pela primeira vez, desejou de todo o coração que Jonn forte estivesse ali com ele. Jonn não teria ficado a falar e com receios. Jonn já estaria a meio daquele penhasco.

— As aves combatem sobre o mar — disse Doss. — As penas caem na água. Não acredito que conseguíssemos apanhar uma lá em cima, mesmo que lá chegássemos.

— Então? — Seaborn esperava com impaciência. — O que sugere então?

Doss mirou-o, sem pestanejar.

— Esperamos que a ave venha até nós. Não tardará a chegar, quando desejar mais peixes.

Asha anuiu.

— Sim. Depois capturamo-la — disse, com entusiasmo.

— E tiramos uma pena à força.

Rowan meio sorriu.

— E capturamo-la com o quê? — inquiriu.

— Com as nossas redes, é claro — respondeu ela. — O que mais poderíamos...? Oh! — A sua boca cerrou-se numa linha rígida ao perceber o problema.

Seaborn riu-se.

— Infelizmente, não dispomos de uma única rede. De­vido à sua experiência na pesca, Asha!

Ela voltou-se furiosa, sabendo que estavam a gozar com ela. Seaborn anuiu para Rowan.

— É simples. Aguardamos que a ave chegue à lagoa. Mas, desta vez, não fugimos dela. Enfrentamo-la. Obrigamo-la a lutar conosco.

O coração de Rowan inchou de gratidão. Se Jonn não podia estar com ele, pelo menos podia contar com Sea­born.

Asha virou-se para os enfrentar.

— Está louco, Seaborn dos Fisk? — gritou. — Começou a acreditar ser você próprio aquilo que os seus treina­dores te ensinaram a representar? O destemido herói, tão amado pelos agricultores de Rin?

Mais uma vez, Rowan sentiu um aperto.

Seaborn não é Jonn, recordou-se. Seaborn é um Maris. Os Maris valorizam a astúcia, não a força. Deve estar a re­presentar um papel, tal como Asha diz.

Mas Seaborn fuzilava Asha com o olhar.

— É você quem está louca, Asha dos Umbray — disse, friamente. — Sou o que sou. E, se o que necessitamos é de uma pena acabada de cair da ave, estou disposto a lutar por ela.

— Uma das suas mãos já não está funcional — retorquiu ela.

Seaborn pegou na sua navalha.

— Nesse caso, utilizarei a outra — respondeu.

— A ave vem aí — alertou Doss.

Tentando ignorar a dor lancinante nos braços envol­vidos por ligaduras, Rowan pegou num pau e correu para a lagoa. Seaborn acompanhou-o, a mão sã empunhando a navalha. Após um momento de hesitação, Doss sacou a sua e seguiu-os. Mas Asha envolveu-se na sua capa prateada e voltou de novo as costas.

A ave avançava na direção deles. Podiam ouvir o esvoaçar das suas asas. Rowan, Seaborn e Doss ficaram à espera, ombros com ombros.

É enorme, pensou Rowan. As garras são como navalhas. Abraçou-se.

— Deixe a luta conosco, Rowan — gritou Seaborn.

— Tente apanhar a pena enquanto nós...

A voz dele foi abafada pelo grito irritado da ave. Estava sobre eles! Rowan percebeu o brilho perverso dos seus olhos negros. Retrocedeu, vacilante, enquanto as asas gigantes fustigavam o ar acima da cabeça dele.

Depois, perplexo, percebeu que a ave passara por ele, passara por todos eles. Seguia direta para Asha, que permanecia teimosamente de costas voltadas para eles.

— Asha! — gritou.

Ela virou-se ligeiramente, viu o que se passava e ati­rou-se para o chão rochoso. A ave roçou por cima dela, o bico abrindo e fechando, e depois elevou-se no ar.

Rowan correu para ela. Asha levantava-se já, machucada, arranhada e estremecendo do choque.

— O que aconteceu? Por que ela fez aquilo? — disse, com dificuldade.

— Não ligou para nós! — gritou Seaborn, quando ele e Doss correram para junto deles. — E estávamos ao lado da lagoa onde se alimenta.

— Já uma dada ocasião atacou Asha, ignorando-nos a todos — murmurou Rowan.

— Mas, porquê? Porquê? — Asha olhou para cima, temerosa. Levou a mão à boca. — Está voltando! — gritou.

— Vem de novo atrás de mim!

Rowan olhou para cima. Não havia dúvida. Bem alto no céu, a ave voava em círculos, preparando-se para atacar mais uma vez.

— Esconda-se na floresta — disse Rowan. — Vamos tentar impedi-la.

Asha começou a descer a rocha em direção às árvores. A capa prateada ondulava atrás dela. Na sua superfície brilhante, movia-se uma confusão de imagens: o rochedo, o céu, a forma pequena da ave que se aproximava, as for­mas maiores de Rowan, Doss e Seaborn. Rowan esbugalhou os olhos.

— Asha! — gritou. — A capa! Tire-a! Tire-a!

A mulher hesitou.

Mas Rowan corria já para ela, chamando pelos outros.

— Não percebe? A capa é um espelho! — disse Rowan rapidamente, alcançando Asha. Começou a puxar pelas fitas que prendiam a capa prateada sobre os ombros dela. — Quando vira as costas, a ave vê o seu próprio reflexo. Por isso ataca. Pensa que está a lutar com uma ave igual a ela.

Agora, Asha não conseguia desprender a capa com a velocidade necessária. Esta acabou por cair no chão e Asha afastou-se.

No preciso instante. A ave quase os alcançara.

— Não desperdice a oportunidade — gritou Doss, correndo para a capa e pegando num dos lados. — Asha, afaste-se! Seaborn... levante-a comigo.

Seaborn assim fez, sem qualquer pergunta. Estenderam a capa entre eles. A ave gigantesca lançou um grito furioso de aviso. O seu reflexo na capa foi aumentando gradual­mente, enchendo a superfície prateada com um verde em movimento.

A ave estendeu as garras e bateu as asas numa exibição frenética de raiva. Um rival atrevera-se a invadir o seu terri­tório! Era como aquele que por vezes aparecia na lagoa prateada. Mas este rival era maior. Batia as suas próprias asas e estendia as garras. Recusava-se a voar dali para fora. Recusava-se a render-se!

Guinchando, a ave embateu na capa com as asas enor­mes, rasgando-a com as garras afiadas como lâminas. Doss e Seaborn cambalearam e vacilaram, tentando manter o equilíbrio.

De novo, a ave atirou-se contra o inimigo imaginário. O coração de Rowan deu um salto quando uma pena caiu, reluzente, para o chão.

— Larguem a capa! — gritou. — Atirem-na para longe!

Doss e Seaborn lançaram a capa para o lado. Foi cair amontoada sobre a rocha. A ave pousou sobre ela, rasgando-a com o bico e guinchando em triunfo.

Rowan mergulhou para a pena, as lágrimas surgindo-lhe nos olhos quando a dor disparou nos seus braços feridos. Retirou o precioso frasco de cristal da algibeira. Tentando impedir que os dedos tremessem, desatarraxou a tampa.

Mexe lentamente com a pluma nova do lutador,

Três vezes, não mais, e deixa repousar...

A pena estava ainda quente na sua mão. A extremidade macia e pontiaguda reluzia com óleo. Rowan mergulhou-a na mistura azul. Contendo a respiração, mexeu lentamente. Uma, duas, três vezes.

Pousou a mistura sobre a rocha na sua frente e fechou os olhos. Nem se atrevia a olhar.

Escutou então três vozes a gritar. Abriu os olhos.

O líquido no frasco brilhava num verde brilhante. Verde como as árvores. Verde como as penas da ave luta­dora. Verde como a vegetação no vale de Rin.

 

O MAIS TEMÍVEL MEDO

Foi agora a vez de Asha ser ligada. As mãos tinham ras­pado na rocha e as costas e ombros estavam arranha­dos e magoados devido às asas e garras da ave.

Não permitiu que ninguém lhe tocasse nos ferimentos a não ser Rowan. Ficou rigidamente sentada enquanto ele aplicava a pomada através dos rasgões na roupa dela. De­ve-lhe ter doido, mas não emitiu um único som de lamento.

Doss e Seaborn observaram ao longe. Seaborn olhava constantemente para o céu. Por fim falou.

— Temos de nos apressar a encontrar o último ingre­diente — disse. — Já está a ficar escuro. A noite não tarda a cair.

Rowan sabia que Seaborn pensava na força em deca­dência da Guardiã. Mas Rowan apenas conseguia pensar na mãe. Quanto tempo lhe restaria?

— A Escolha já devia estar concluída — murmurou Asha. — Nesta altura, o Selecionador devia estar a nomear a Escolha.

— Como pode a Guardiã ter tanta certeza que irá morrer ao nascer do sol? — inquiriu Rowan.

— Sempre assim foi — respondeu Asha. — Faz parte do mistério do Cristal. Esta noite, de todas as noites do ano, é sempre a noite da Escolha. A noite da lua cheia. Orin en­controu o Cristal neste mês, na noite de lua cheia. Mas an­tes, a chama acima da Caverna do Cristal sempre esteve acesa ao pôr-do-sol.

Olhou de forma acusadora para Rowan.

— Não tenho culpa que tenhamos tão pouco tempo — exclamou Rowan. — Viemos de Rin assim que fomos convocados. E não pedi para que a minha mãe fosse enve­nenada.

As últimas linhas do verso de Orin não paravam de repe­tir-se na sua mente.

Adiciona o veneno do seu mais temível medo... Uma gota... e a verdade tornar-se-á cristalina.

Qual era o seu mais temível medo? Era que falhasse tudo o que tinha que fazer. Que a sua mãe morresse. Que não fosse escolhido um novo Guardião a tempo para manter o Cristal vivo. Que, por sua causa, a sua terra ficasse à ameaça de uma última e terrível invasão pelos Zebak. Que ele e Jonn, Annad e todos os seus amigos fossem de novo escravizados e o encantador vale destruído.

Mas, não podia ser aquilo o que o enigma de Orin alu­dia. Orin referia-se a um tipo diferente de medo. Orin era um Maris. A receita tinha como fim ser compreendida pelas mentes dos Maris.

Olhou para Doss, Seaborn e Asha, um a um. Rostos pálidos e tensos. Olhos inexpressivos.

— Qual é o seu maior receio? — inquiriu.

Houve apenas um segundo de hesitação. Depois, todos afirmaram em simultâneo:

— A Grande Serpente.

Rowan respirou fundo. Já o suspeitava. Mas nem quisera pensar nisso.

— As garras da Grande Serpente libertam veneno — disse Doss. — Penso que é a isso que se refere o enigma de Orin. Temos de obter uma gota do veneno para completar o an­tídoto.

Os outros dois anuíram.

Instalou-se um silêncio pesado entre eles. Na clareira, estava tudo tranqüilo e escuro. A ave lutadora já não guinchava contra os rivais no topo do penhasco. E não regressara à lagoa. Talvez tivesse regressado ao ninho durante a noite.

— Como encontramos a Grande Serpente? — perguntou Rowan por fim.

Na sua mente, agigantava-se a imagem que vira na casa dos livros em Rin. Já nessa altura o amedrontara. O pensa­mento de ter que enfrentar o animal em pessoa enchia-o de terror.

— O mar está cheio de serpentes — disse Seaborn. — Não são difíceis de encontrar. É uma questão de nos aventurarmos na praia depois do sol se pôr, que elas en­contram-nos.

— Mas, e a Grande Serpente? — persistiu Rowan. Asha e Seaborn olharam para Doss. E Rowan recor­dou-se do que Perlain dissera.

“Os teus olhos contêm a expressão de alguém que já viu a Grande Serpente e que sobreviveu. Profundos e extremamente conhecedores. Estranho, num rapaz tão jovem. Só conheci outro assim.”

Virou-se para Doss.

— Você já a viu — afirmou, calmamente. Doss anuiu.

— Já. — Não olhou para Rowan ao responder. Rowan aguardou. Sabia que, se esperasse o tempo sufi­ciente, Doss voltaria a falar. — Foi exatamente nesta altura, há um ano atrás — acabou por murmurar Doss. — Nesse dia, estava com a minha família, no nosso barco. Ia estar lua cheia, como estaria durante a Escolha. Era o meu Dia da Despedida.

— Todos os Candidatos têm um Dia de Despedida — disse Seaborn, respondendo ao olhar intrigado de Rowan. — É o dia em que nos despedimos da nossa família. Depois disso, vivemos afastados dos restantes Maris. Retiramo-nos para a casa do Candidato do nosso clã, tendo apenas por companhia os nossos treinadores e livros, para nos preparar­mos integralmente para a Escolha.

— Isso deve ser duro — afirmou Rowan, pensando no que sentiria se tivesse que se separar de todos e tudo que conhecia e amava.

— É necessário — retorquiu Seaborn.

— E representa também preparação — acrescentou Asha. — Porque o novo Guardião só é levado uma vez à superfície para ser mostrado às pessoas. Posteriormente, ele ou ela regressa à Caverna do Cristal, para sempre.

Rowan sentiu um arrepio gelado de horror.

— Querem dizer... que os Guardiães não voltam a sair da Caverna? — afirmou, perplexo. — Nunca mais vêem as suas casas e famílias, não respiram ar puro, não vêem o céu?

Doss sorriu.

— Não precisam de fazê-lo, Rowan. O Cristal é tudo para eles.

— Estão lá para servir — disse Seaborn.

Rowan fechou os olhos. Para ele, aquilo soava a uma morte viva. Compreendia agora o que queria Perlain dizer quando dissera que nem toda a gente desejava ser Guar­dião.

— Não entende — afirmou Doss. — Não é dor, é ale­gria.

— É um dever glorioso — disse Asha. — Sempre foi. — Os olhos dela reluziam.

Rowan disse a si mesmo que aquilo era algo que não lhe dizia respeito. Não lhe competia julgar a forma de vida dos Maris.

— Fale-me da Grande Serpente, Doss — disse, abrupta­mente.

— Tínhamos navegado para longe — disse Doss. — Pensávamos regressar a casa quando o nosso barco come­çou a meter água. Não só num local, mas em vários. A madeira tinha sido perfurada e os orifícios sagazmente preenchidos com algo que só caía passado bastante tempo, quando o barco já estivesse muito afastado da costa.

Olhava diretamente em frente. Não acusava ninguém. Mas Seaborn e Asha franziram o cenho.

— O meu clã não tocou no seu barco! — exclamou Asha.

— Nem o meu — retorquiu Seaborn. Doss continuava a não olhar para eles.

— Seja o que for que aconteceu, o barco afundou-se — disse. — Nadamos, mas a corrente estava forte. — Falava tão baixo que Rowan teve que se inclinar para ouvi-lo.

— Não tardei a perder de vista a minha mãe e o meu pai, tal como os meus irmãos — prosseguiu a voz calma. — Lutei contra a maré. Estava exausto. O sol começou a pôr-se. Foi então que ouvi um barulho. Um som alto e estri­dente. Parecia vir de toda a volta. Do céu por cima e do mar por baixo. Aumentou de intensidade. Sempre contínuo. Enchia-me os ouvidos e pareceu-me penetrar na mente, enchendo-a também, de tal modo que não conseguia pen­sar em mais nada. Era o cântico da Grande Serpente.

Mais uma vez, surgiu na mente de Rowan a imagem que vira. O barco, e as pessoas aos gritos, com as mãos sobre os ouvidos. Estremeceu.

A voz de Doss tornara-se monótona e inerte, um cân­tico, como se recitasse uma lição repetida tantas vezes.

— A Grande Serpente surgiu das profundezas. Ele­vou-se como uma torre diante de mim. Os seus olhos eram dourados e repletos de segredos ancestrais. As escamas refa­ziam como fogo no pôr-do-sol. Mirou-me. Soube que ia morrer.

— Mas não morreu — exclamou Rowan. O seu pró­prio coração batia rápido. Sabia o que era enfrentar pesa­delos.

— Não — respondeu Doss simplesmente. — Fui en­volvido por uma negridão. Não sei o que se passou depois disso. Não me recordo de nada nessa noite. Mas, quando acordei, o sol levantava-se e eu estava deitado num frag­mento do barco da minha família, à deriva junto à costa. O meu clã avistou-me e trouxe-me para terra. Também procuraram os outros. Mas nunca foram encontrados.

Voltou os olhos sonhadores para Rowan.

— Da minha família, apenas eu fui poupado. E eu... mudei. Sentia-o. Todos à minha volta perceberam isso. Era como se algo tivesse sido perdido... ou acrescido. Não sei qual dos casos.

— Não deixa de ser invulgar — disse Asha rudemente — que o seu clã tenha permitido que continuasse a ser o Candidato deles. Não havia outros, imperturbados, que pudessem tomar o seu lugar?

— Claro que sim — respondeu Doss. — E eu contava com isso. Mas depois percebi que os meus treinadores encaravam a mudança como algo positivo. Não afetara a minha perspicácia. Mas separou-me dos outros. Tornou-me diferente. E, na opinião deles, especial.

De novo, um estranho sorriso aflorou nos seus lábios.

— Porque, como é evidente, ver a Grande Serpente e so­breviver é um poderoso sortilégio. Nunca aconteceu a nin­guém desde Orin, o Sábio.

Seaborn, que estivera a ouvir em silêncio, acabou por falar.

— Há quem diga que toda essa história é uma mentira — roncou. — Uma mentira inventada pelos seus treinado­res para impressionar as pessoas e, um dia, o Selecionador. Como talvez esteja a acontecer neste momento.

Doss enfrentou calmamente o olhar frio dele.

— Bem que gostaria que fosse uma mentira — retorquiu. — Porque, se assim fosse, aquele som, e aqueles olhos amarelos, não assombrariam os meus sonhos... como, de­pois desta noite, poderão assombrar os seus.

...como, depois desta noite, poderão assombrar os teus.

Rowan endireitou os ombros. Apesar dos seus medos, das suas dúvidas, sabia que a única alternativa era ir em frente.

— O sol já se pôs — disse. — O tempo escasseia. Temos de encontrar a Grande Serpente. Como acham que de­vemos começar?

 

A LUA DA ESCOLHA

Não vejo como seja possível — disse Asha. — Só os incautos se aventuram no mar à noite, mesmo de barco. E não temos nenhum barco. Se formos a nado, seremos seguramente apanhados pelas serpentes mais pe­quenas, sem nunca avistarmos a grande que procuramos.

O céu estava negro e cheio de estrelas. A flor alva reluzia branca na lagoa negra. As ondas rebentavam na praia, para lá da floresta.

— Tem de haver uma forma — disse Rowan, obser­vando Doss. — Porque Orin conseguiu. A resposta reside nele.

Ver a Grande Serpente e sobreviver é um poderoso sortilégio. Nunca aconteceu a ninguém desde Orin, o Sábio. Orin, o Sábio...

Há mil anos atrás, no dia em que encontrou o Cristal, Orin deparou com a Grande Serpente, pensou Rowan. Foi exatamente nesta altura do ano. É por esse motivo que a Escolha decorre nesta época.

Recordou mentalmente a história. A história que Perlain lhe contara. Orin andava à pesca. Começou a dirigir-se para casa no seu barco, depois do pôr-do-sol. A Grande Serpente ergueu-se do mar. Intrometeu-se com o barco dele e perseguiu-o. Orin fugiu para a Ilha. Encontrou o Cristal.

E foi assim que tudo começou, pensou Rowan. Depois, franziu o cenho.

Havia algo de estranho na história. Algum pormenor que não estava correto. No início, Rowan não conseguiu perceber o que era. Recordou-se então.

Orin não andava a pescar no dia em que encontrou o Cristal. A Guardiã contara, sem intenção, que Orin se encontrava na Ilha nesse dia, preparando o antídoto para o Sono da Morte.

Rowan refletiu. Orin deve ter dito que andava à pesca, para ocultar os seus verdadeiros objetivos. Não queria que os outros soubessem que estava a preparar o secreto an­tídoto para o Sono da Morte. E nessa altura, e desde então, ninguém questionara a sua história.

Ninguém questionara porque Orin trouxera o Cristal com ele e todos os interesses se focaram no seu prodígio. E, depois disso, ninguém questionou a história porque Orin se tornara em Orin, o Sábio. Alguém extraordinário. O primeiro Guardião do Cristal.

Mas, no dia em que encontrou o Cristal, não passava de um vulgar homem Maris. E, vendo as coisas sob esse prisma, a história do seu encontro com a Grande Serpente era ainda mais improvável.

Teria Orin mais medo de passar a noite na Ilha do que fazer avançar o seu barco pelas águas negras? Quase certa­mente que não.

E, mesmo que tivesse enfrentado a água, teria mesmo Orin conseguido escapar à Grande Serpente, se esta o es­tivesse a perseguir? De novo, quase certamente que não.

Rowan continuou a refletir. Nesse caso, então também essa parte da história era falsa. Orin não abandonara a Ilha depois do pôr-do-sol. Não en­contrara o animal no mar. Será que o chegara a ver?

Sim, porque o seu veneno era o quarto ingrediente do antídoto.

Então... Rowan sentiu os pêlos da nuca a arrepiarem-se. Então isso significava algo muito estranho de fato. Signifi­cava que, de alguma forma, Orin e a Grande Serpente se encontraram em terra. Na Ilha. Talvez mesmo...

— Olhem para a lua — murmurou Doss, apontando. Uma enorme lua cheia erguera-se acima das copas das árvores. Calma, fria e branca, flutuava no céu cinzento como a flor nas profundezas da lagoa negra.

— A lua da Escolha — murmurou Asha.

Foi então que ouviram. Um som pesado e arrastado, vindo do caminho por entre a floresta. Aproximando-se.

— O que é? — perguntou Seaborn, ofegante.

Doss levantou-se, os olhos esbugalhados.

— Rápido — disse. — Vamos sair daqui! Embora! Correram para longe da rocha e esconderam-se por entre as árvores.

O som intensificou-se. O ruído das folhas a serem esma­gadas e arrastadas. O som dos fetos a serem vergados e quebrados sob um peso gigantesco.

Surgiu na clareira a Grande Serpente, deixando atrás de si um caminho rasgado, como acontecera tantas vezes antes. A água do mar ainda escorria da sua cabeça de dragão. Os olhos amarelos estavam vidrados. As escamas douradas que secavam brilhavam à Lua da Escolha. O seu corpo enorme e inchado açoitava e ondulava.

Ondas de terror invadiram Rowan. Escutou o chora­mingar baixo de Doss, a respiração pesada de Asha e Sea­born, logo atrás dele. Levou a mão à algibeira e pegou no pequeno frasco, o frasco que continha a mistura que iria salvar a vida da mãe. Se fosse adicionada uma pequena coisa. Uma gota...

— Por que estará aqui? — sussurrou Asha, surpreen­dida. — Por que invade a terra? O mar... o mar é o reino da Grande Serpente. Sempre assim foi.

Mas Rowan já adivinhara.

— Vem aqui uma vez por ano — murmurou em res­posta. — É assim que sempre tem sido. Mas vocês não o sabiam, porque acontece deste lado da Ilha. O lado que vocês em Maris nunca avistam, depois do sol se pôr.

O aroma da flor alva pairava forte no ar. Elevava-se da lagoa. A serpente retorceu-se até ela, lentamente, trepando com dificuldade pelo rochedo.

— Está à nossa procura — disse Seaborn, numa agonia de medo.

— Não — respondeu Rowan. — Nem sequer sabe que estamos aqui. Procura outra coisa. Um lugar. Observem. Esperem.

A serpente alcançou a lagoa no topo do rochedo. Fitou com os olhos amarelos a flor alva, flutuando branca na água ondulada. Olhou depois para a lua no céu. Abriu as mandíbulas enormes e libertou um grito. Um som es­tranho e estridente que penetrava nos ouvidos e enchia a mente.

Doss envolveu a cabeça com os braços e gemeu suave­mente.

Também Asha tapou os olhos.

Mas Seaborn observava, fascinado, enquanto o monstro enrolava o corpo enorme em tomo da lagoa.

— Está a pôr ovos — exclamou.

— Sim — disse Rowan. — É como as tartarugas gigantes que nadam nos seus mares. Como o verme Kirrian, cujos ovos vocês apanham todas as manhãs da Primavera. Vive no mar, mas põe os ovos em terra. E este é o lugar dela. Foi aqui que Orin a encontrou.

A serpente estava de fato a pôr ovos. Brilhavam como prata ao luar. Com cada um que saía, a ponta da cauda enorme lançava-o para o interior da lagoa da flor alva, onde afundava e pousava no leito da areia prateada.

— Não podia haver local melhor para esconder os ovos. — Rowan estava maravilhado. — Nenhuma criatura se atreveria a tocar neles. A casca deve ser dura como pedra, pelo que os peixes não lhes podem fazer mal.

Doss e Asha já se atreviam a olhar.

— Mas, quando chocarem... — começou Asha.

— Quando chocarem, não haverá muitos peixes — disse Rowan calmamente. — A ave lutadora já terá levado bastantes.

— Os peixes que restarem atacarão as serpentes recém-nascidas — anuiu Doss. — E muitas serão mortas. Mas algumas irão sobreviver, nadando para a superfície, arrastando-se para fora da lagoa, rastejando pelo caminho até à praia e mergulhando no mar.

— E as cascas dos ovos irão ficar, sendo gradualmente esmagadas pela água em movimento, criando mais areia prateada — disse Seaborn. — Por Orin, é incrível. — O seu rosto revelava uma expressão de vivo interesse. Estava tão maravilhado que se esquecera do medo.

— Se não fosse a ave lutadora, a lagoa estaria repleta de peixes, e as serpentes bebês morreriam todas quando saíssem dos ovos — murmurou Rowan. — Se a ave lutadora não defendesse a lagoa contra todos os vizinhos, esta ficaria sem nenhum peixe. Assim, todos os ovos seriam chocados e o mar ficaria infestado de serpentes, mas sem qualquer outro ser vivo.

— Sem peixe — disse Doss. — Sem alimentos para os Maris, sem óleo para as nossas lanternas, pele de peixe para os nossos sapatos e roupas. Sem segurança, nem mesmo de dia, para as embarcações que vêm negociar, porque as serpentes estariam esfomeadas e desesperadas. Desse mo­do, os Maris morreriam. E também as serpentes, no final de contas. Faz tudo parte de um grande círculo.

— Não tem qualquer significado! — Seaborn franzia agora o sobrolho. — As aves comem os peixes. Os peixes comem as serpentes. Para que existe afinal o ciclo? Se vier­mos todos os anos à Ilha e destruirmos os ovos da Grande Serpente, conforme Rowan nos ensinou, os nossos mares não tardariam a ficar livres de perigo. Podíamos pescar tanto de noite como de dia, e duplicar, ou mesmo triplicar, a apanha. Podíamos vender aos comerciantes e alimentar muitas, muitas pessoas.

— A Ilha está proibida por Orin, Seaborn dos Fisk — disse Asha teimosamente. — E sempre existiram serpentes nos nossos mares. Sempre foi assim.

Para Asha, era o bastante. Mas não para Seaborn.

— Por que não haveremos de destruir as serpentes? — inquiriu. — Que utilidade têm? Tudo o que fazem é impe­dir-nos de pescarmos quando queremos.

Não está entendendo, Seaborn?, pensou Rowan. Não vê a utilidade? Acabou de a explicar.

Mas não disse nada. Levantou-se. Todo ele tremia, mas sabia o que tinha que fazer. Desatarraxou a tampa prateada do frasco e caminhou para o rochedo.

 

UMA GOTA

Grande Serpente virou a cabeça. Os seus olhos ama­relos fixavam-se em Rowan.

— Não olhs para ela — gritou Doss.

Mas era demasiado tarde. Rowan mirava já aqueles olhos vidrados. E não conseguia desviar o olhar. Era como se o seu corpo estivesse entorpecido.

Mãos puxaram-lhe pela manga.

— Rowan! — disse uma voz sufocada. — Lembre-se! A sua mãe! O veneno!

Rowan desviou os olhos do olhar frio e dourado. Doss, Asha e Seaborn estavam atrás dele. Os seus rostos pareciam fantasmas ao luar.

Fora Asha quem falara. Como que em sonho, Rowan percebeu que ela utilizara pela primeira vez o seu nome. Era ela quem segurava fortemente o seu braço.

— Você é o Selecionador. Não pode fazer isto. Irei no seu lugar. A minha morte não teria qualquer importância. A sua representaria o fim dos Maris. Dê-me o frasco.

Rowan fitou os olhos pálidos dela. Demonstravam um medo profundo, mas mirava-o com firmeza. Ela era como a minha mãe, pensou. Fará sempre o que considerar que está certo. Até à morte.

Seaborn abanou a cabeça.

— Sou mais forte e mais alto — disse, em voz baixa. — Compete-me a mim enfrentar o animal. Dê-me o frasco.

No rochedo, a serpente aguardava. Rowan hesitou e depois virou-se para Doss, uma pe­quena sombra azul na luz fosca.

— Não — disse Doss calmamente. — Nenhum de nós pode fazer isto no lugar de Rowan.

Asha e Seaborn começaram violentamente a argu­mentar, mas Doss ergueu a mão.

— Desde que nascemos que receamos esta criatura e a sua espécie. E ela conhece-nos, e à nossa espécie. Conhece o nosso cheiro. Conhece a nossa pele pálida. Sabe como nos movemos. Somos as suas presas naturais. Irá atacar-nos sem pensar. O único com possibilidades de se aproximar é o que lhe for desconhecido.

Rowan respirou fundo.

— Sim — afirmou.

Virou-se e enfrentou de novo o animal. Desta vez, este não o fitou nos olhos. Rowan deu um passo em frente. E depois outro.

A serpente não se moveu mas abriu as maxilas enormes, estendeu uma língua negra e bifurcada e sibilou. O inte­rior da sua boca era mole e amarelo. As presas eram bran­cas, com as pontas negras. O veneno pingava daquelas agulhas pretas como gotas de ouro líquido fumegante e caíam, chiando, no solo.

Rowan subiu. Sentia a rocha macia sob os pés. Ou­via-se a arfar. Segurava com força o frasco.

O pé roçou em algo no chão. Era a flor alva morta. Já castanha e seca, as suas pétalas estavam engelhadas como taças de couro rasas. Ajoelhou-se e pegou numa das pé­talas.

A serpente continuava a pôr os seus ovos. Ainda empur­rando-os, um a um, para a lagoa. Por cima, a lua brilhava enorme e branca. Mas os seus olhos amarelos estavam fixos em Rowan.

Doss estava certo, pensou Rowan. Não sabe bem o que eu sou. E quer acabar de pôr os ovos. Irá ameaçar, mas não se moverá a menos que eu faça um movimento brusco. Há uma possibilidade.

Foi subindo em direção à lagoa. Cada vez mais perto, e mais ainda... até conseguir avistar a flor alva brilhando sob as águas negras, como um reflexo da lua no céu. Começou a deslocar-se em redor das vastas espirais que contornavam a lagoa, em direção à cabeça.

Os olhos da Grande Serpente reluziram. Arqueou o pescoço e o seu grito estranho e estridente rasgou o ar.

O som era tão penetrante que surgiram lágrimas nos olhos de Rowan. Desejava tapar os ouvidos. Mas tinha a pétala da flor numa mão e o precioso frasco na outra. Não podia fazer nada.

Depois, a serpente sibilou de novo. As mandíbulas, que conseguiam desfazer um barco dos Maris, abriram-se largamente. A língua vibrou, saboreando o ar. As presas reluziam ao luar, brancas com pontas de negro, gotejando ouro líquido letal.

Agora! Rowan lançou-se rapidamente para a frente, segurando a pétala da flor alva, captando o veneno no reci­piente em que se tornara.

A serpente lançou-se a ele, gritando de raiva. Rowan caiu desamparado para trás, o som rasgando-lhe o cérebro. Sentiu uma dor terrível nos braços ligados. O veneno fumegava e chiava na pétala da flor alva. O frasco inclinou-se perigosamente.

Adiciona o veneno do teu mais temível medo... Uma gota...

Em pânico, Rowan olhou para o frasco. O líquido verde estava ainda em segurança. Voltou depois os olhos para a pétala e, horrorizado, viu que o veneno começava a quei­má-la. O precioso líquido dourado escapava por entre orifícios negros e queimados, desperdiçando-se sobre a rocha. Caía numa corrente fina e fumegante. Já havia muito pouco.

— Não! — Mal percebera que tinha gritado.

— Rowan, sai daí! Oh... oh, em nome de Orin, corre! Corre! Está a mexer-se! Vai...

Mal escutou os gritos dos três Maris. Percebeu a uma forma monstruosa erguendo-se acima dele, bloqueando a lua. De grandes espirais arrastando-se e desenrolando-se da lagoa. De maxilas gotejantes abrindo-se para atacar de novo.

Mas o antídoto...

Uma gota...

Com as mãos a tremer, virou a pétala sobre o frasco.

E uma última gota dourada caiu, chiando, nas trevas do líquido verde. Tornando-o límpido. Límpido como a água na lagoa. Transparente como o vidro do frasco. Crista­lino como a verdade.

— Rowan!

Colocou a tampa de prata no frasco. Cambaleando, pôs-se de pé. Saltou para salvar a vida, correndo aos tropeções pela superfície castanha lisa da rocha, o seu bem mais precioso nas mãos latejantes.

Mas o animal manifestava a sua ira, lançando-se atrás dele com uma rapidez assoladora. Ouvia-o atrás dele — mais próximo em cada segundo. Atordoado pela dor e terror, nunca parou. Para onde devia ir? Para onde devia correr?

— Aqui!

Os três Maris chamavam-no. Com os olhos ofuscados, avistou-os correndo para ele, os seus próprios rostos desfi­gurados pelo medo.

Cegamente, Rowan estendeu as mãos. Asha e Seaborn apanharam-no e puxaram-no do rochedo para as árvores. Meio arrastando-o, começaram a abrir caminho por entre o arvoredo cerrado.

Por todos os lados, viram-se envolvidos por arbustos e fetos. Das árvores pendiam um número sem fim de lianas, retorcidas e emaranhadas, prendendo-lhes as mãos, pés e roupas, retardando a fuga. As folhas formavam uma cober­tura sobre as suas cabeças, bloqueando a luz da lua. Sea­born e Asha arrastavam Rowan entre eles. Doss seguia na traseira.

O monstro roncava. As árvores estalavam e caiam à medida que a serpente, guinchando e sibilando, se retorcia atrás deles. Não necessitava de luz. Seguia o som deles, bem como o cheiro. Aproximava-se em cada segundo. Eles iam rasgando o caminho através da vegetação, soluçando e arfando, cegos na escuridão, os gritos horríveis ecoando nos seus ouvidos. Também Orin deve ter corrido assim, aterro­rizado pela sua vida.

— Para onde? — Rowan ouviu Asha a perguntar. — Não consigo ver!

Ouviu-se então um grito aterrorizado e sufocante atrás deles.

No início, esforçando a visão nas trevas, Rowan não conse­guiu ver o que acontecera. Mas depois viu. Doss estava preso numa liana. Envolvera-se à volta do pescoço dele e, ao de­bater-se para se libertar, cingira-a ainda mais. Estava a sufocar e imobilizado.

O animal estava quase em cima dele. Podiam ver as árvores a sacudirem e a caírem no seu caminho. Roncou ao cheirar o terror deles. Doss permanecia pendurado, in­defeso, as pontas dos pés batendo inutilmente no terreno macio.

— Deixem-no! — gritou Asha.

Mas Rowan não o podia fazer. Soltou-se das mãos de Asha e de Seaborn e dirigiu-se ao local onde Doss se encon­trava.

Tentou partir a liana com os dedos, ignorando os seus próprios ferimentos. Uma dor agonizante difundiu-se pelos braços ligados.

Doss soltou um grito estrangulado. Depois, uma navalha cortou a liana e ele caiu no solo. Ficou aí imóvel, ofegante.

— Levante-se! — gritou Asha, dando-lhe um pontapé. A navalha que o libertara cintilava na sua mão.

Seaborn baixou-se e levantou Doss para os seus braços.

— Rápido! — exclamou. Vacilando com o peso que carregava, lançou-se a correr de novo, com Rowan e Asha logo atrás.

Avançaram às cegas pela noite escura como breu.

— Deixem-me — pediu Doss, agitando-se. — Po­nham-me no chão. Deixem-me. O Selecionador tem de viver... O Cristal tem de viver...

— Fique quieto. O Selecionador não quer te deixar — disse Seaborn ofegante.

— Ali! — exclamou Asha. — Oh, ali!

Apontava para uma luz cintilante. Tão débil, tão pequena, que reluzia através das árvores negras como uma estrela.

— Maris! — gritou Seaborn.

Marcharam com ímpeto em direção à luz. Foi aumen­tando de tamanho e intensidade. Começaram a ouvir o rebentamento das ondas. Nunca teriam encontrado o caminho tão rapidamente à luz do dia. Mas, durante a noite, as luzes de Maris brilhavam sobre as águas, rasgando a escuridão, guiando-os.

Sibilando, retorcendo-se, a serpente avançava atrás deles. A terra não era o seu ambiente. Mas estava irritada. Estava esfomeada. Caçava.

Respirando com dificuldade, gritando de medo, aban­donaram a floresta e chegaram à praia. Ondas enormes esmagavam-se contra as rochas. A espuma salgada salpi­cou-lhes os rostos. Do outro lado do mar, todas as casas em Maris estavam iluminadas.

— Acederam todas as lanternas para nós — disse Sea­born, pousando Doss finalmente. — Devem... devem estar todos... à espera.

— Depressa! — rogou Asha.

Ali, diante deles, estava o portão de ferro.

Arrastando Doss entre eles, correram para lá e abri­ram-no. Entraram de rompante nas escadas e, no preciso momento em que a enorme serpente derrubava o último anel de árvores, o portão fechou-se.

Ouviram a cauda da criatura a bater furiosamente. Avistaram a enorme cabeça a virar-se de um lado para o outro, em busca deles.

Permaneceram juntos, tremendo e exaustos. Mas sabiam que estavam em segurança. O animal não os conseguiria seguir naquele espaço exíguo. Tal como Orin antes, tinham escapado.

Rowan tocou no frasco na sua algibeira. E, tal como Orin, pensou, trazemos de volta algo precioso. Precioso, se não fosse tarde demais. A sua voz abalada ecoou nas paredes rochosas do túnel.

— Venham — disse. — Temos de nos apressar.

 

O DISSIMULADO

Eles meio saltaram, meio correram pelo túnel. Parecia interminável. Pela frente, apenas escuridão.

— Onde está a luz do Cristal? — perguntou Asha, arfando. — Devemos estar muito próximo da Caverna, mas não a consigo ver. E se...

— A Guardiã está viva— afirmou Seaborn com firmeza. — De outro modo, as pessoas não estariam nas suas casas, com as luzes acesas para nós.

— Ali! — exclamou Rowan.

Apontou para uma luz fraca que coloria apenas as trevas mais à frente.

Correram nesse sentido. A cabeça de Rowan batia ao ritmo do coração. Sentia a garganta fechada e contraída.

Estavam praticamente na Caverna mas não sentia nada. Nenhuma atração invisível do Cristal, atraindo-o. Nenhuma voz sussurrando na sua mente como os seus próprios pensa­mentos.

Encontravam-se na entrada. No interior, tudo estava silen­cioso, exceto o pingar constante da água. Seaborn, Doss e Asha ficaram para trás. Rowan respirou fundo e entrou, temendo aquilo com que poderia deparar.

A Guardiã estava sentada na cadeira no centro da Ca­verna. O Cristal brilhava fracamente debaixo das suas mãos, difundindo um círculo de luz verde em redor da cadeira, deixando o restante espaço mergulhado na escuridão.

Nas sombras, Jonn estava ajoelhado junto ao sofá de Jiller, a cabeça inclinada. Rowan sentiu o coração a saltar.

— Então, Selecionador de Rin. Regressou.

A Guardiã não se moveu nem olhou para cima. Mas a sua voz baixa encheu a Caverna.

Jonn ergueu a cabeça. Pôs-se de pé, num salto. E pela expressão de louca e descrente esperança no rosto dele, Rowan percebeu que, afinal, não chegara tarde demais.

Atravessou a caverna a correr e ajoelhou-se ao lado da mãe. Sim. Ela ainda respirava. Mas fracamente. Tão fraca­mente.

Rowan batia os dentes. Todo ele tremia. Tinha os dedos rígidos e desajeitados ao tirar o frasco da algibeira e ao desapertar a tampa.

— Tenho o antídoto, Guardiã — disse, olhando por cima do ombro. — Que quantidade devo utilizar?

A Guardiã continuava sem se mover. Mas pareceu-lhe detectar um sorriso a delinear-se na fina boca dela.

— Parece que você é tudo aquilo que dizem, Rowan de Rin — afirmou ela. — Mergulhe o dedo na poção, apenas uma vez, e esfregue-lhe nos lábios. Será suficiente.

O líquido no frasco estava frio. Ardeu-lhe no dedo quando o esfregou na boca da mãe.

Jiller franziu levemente o cenho no seu sono. Depois, suspirando, lambeu os lábios.

A mão forte de Jonn agarrou no ombro de Rowan.

— Quando...? — começou Rowan.

— Em breve. — A voz da Guardiã era seca e calma, como o restolhar de folhas mortas. — O Sono da Morte leva duas horas completas a manifestar-se. Não pode contar que seja neutralizado em momentos. Mas não podemos espe­rar. Eu não posso esperar. O Cristal apaga-se. A minha hora está preste a chegar. Muito em breve. Dirija-se para a luz.

— A Escolha... — começou Rowan, pondo-se de pé.

A Guardiã olhou para cima. Atrás dela estavam Doss, Seaborn e Asha, mas ela não lhes prestou nenhuma aten­ção. Os seus grandes olhos pálidos, perdendo o brilho como o Cristal, procuraram Rowan nas trevas.

— Dirija-se para a luz, Selecionador de Rin — repetiu.

Rowan assim fez.

Ela fitou-lhe o rosto.

— A chama está acesa. A Escolha está feita — afirmou ela.

Rowan abriu a boca. Olhou para lá da Guardiã, para as figuras silenciosas dos Candidatos. O olhar deles revelava choque e descrença.

— Guardiã, a Escolha ainda não se iniciou — balbuciou. — Os testes...

— As provações por que passaram foram os testes — disse ela.

Rowan fitou-a.

Exausta, cerrou os olhos.

— Os testes antigos já não são úteis. Cada vez mais, os Candidatos estudam para eles. Tal como estudam as pessoas de Rin, para que consigam os favores do Selecionador. São fechados longe dos seus. Fechados e afastados da própria vida. Esta não é a forma de escolher o líder dos Maris. Já há muito que percebera que era um erro. Tive noção disso quando eu própria nunca pude fazer mais do que guardar o Cristal. Que eu não conseguia chefiar os Maris nem mudar os seus costumes.

— Você... — Rowan conteve a respiração. Olhou como louco para o Jonn vigilante, para Jiller, deitada imóvel e silenciosa no sofá.

Virou-se de novo para a Guardiã. O que compreendeu inundou-o numa maré vermelha de fúria que neutralizou o medo e a dúvida.

— Foi você! — sibilou. — Foi você quem planejou tudo isto. Foi você quem deu o Sono da Morte à minha mãe.

— Atreve-se a me acusar, a mim... — A voz era baixa e repleta de aviso. Mas Rowan pouco se importou com isso.

— Sim, acuso-a — gritou. — Acabou de admitir que o veneno levou duas horas a atuar. Isso significa que a mãe tomou o veneno quando chegou a esta Caverna. Mesmo antes de ter conhecido os Candidatos. Antes de pôr o pé na Ilha.

Apontou para a Guardiã com uma mão enfaixada.

— Foi você a responsável, a pessoa que planejou isto tudo. Enganou-me a mim, aos Candidatos e pôs em risco a vida da minha mãe! Apenas porque desejou estabelecer novos testes para os quais ninguém estava preparado!

A Guardiã abriu os olhos e, por momentos, o Cristal bri­lhou com o antigo fogo verde.

— A Escolha tem de revelar a verdade — disse. — O Cristal fornece o conhecimento, a experiência e o poder. Mas os cuidados e a astúcia são fornecidos pelo Guardião. Este tem de ser capaz de resolver novos problemas, bem como os antigos. O Guardião deve poder mudar tal como o mar muda, atrever-se a experimentar caminhos que nunca foram trilhados. Só assim poderão os Maris sobreviver.

— Quase matou a minha mãe — disse Rowan ofegante.

— A morte de uma pessoa não é importante.

— E pôs tantas outras coisas em risco.

— Talvez não assim tanto. Mas confiei no Cristal, como sempre confiei, e ele disse-me que tudo iria correr bem. Que você seria bem sucedido e que regressaria a tempo. Tive de partir as correntes que nos ligam. Fi-lo na única forma que pude. Utilizei-te. A única pessoa que eu sabia não ser igual às outras de Rin.

Colheram informações a seu respeito desde o dia em que nasceste.

Rowan fitou-a. Devia ter percebido que, se os Candi­datos o conheciam, o mesmo se aplicava à Guardiã. Ela, mais do que qualquer outro.

— A Escolha está concluída — disse a Guardiã com voz arrastada. — Indique a sua escolha.

Rowan ergueu os olhos para os três Candidatos, atrás da cadeira da Guardiã.

Asha. Seaborn. Doss. Aprendera a admirá-los a todos. Todos se uniram a ele quando enfrentou a Grande Serpen­te. E sabia agora que nenhum deles estivera a representar.

Seaborn era de fato corajoso e forte, para além de amar a vida, tal como Jonn. Fora escolhido como Candidato dos Fisk por esse fato. Era invulgar para um Maris, mas acreditaram que ele iria impressionar o Selecionador de Rin.

Asha era realmente dedicada às suas obrigações, honesta e prática, tal como Jiller. Fora escolhida pelo clã dos Umbray por causa disso. Era invulgar para um Maris, mas acreditaram que ela iria impressionar o Selecionador de Rin.

E Doss. Doss era uma simpatia. Preocupava-se com as coisas vivas e enfrentara a morte, como o próprio Rowan. Fora escolhido pelo clã dos Pandellis por esse fato. Era invulgar para um Maris, mas acreditaram que ele iria im­pressionar o Selecionador de Rin.

Todos os três Candidatos tinham ajudado Rowan a solucionar o enigma do antídoto para o Sono da Morte. Cada um, a seu modo. Mas, qual deles demonstrara maio­res cuidados e astúcia, a disposição para experimentar novos procedimentos, que a Guardiã dissera serem necessários aos Maris?

— Indique a sua escolha — disse a Guardiã fracamente. — Tem... tem... de indicar. Fala!

O Cristal tremeluziu.

Ouviram-se passos apressados nas escadas. Através da cortina de água, irrompeu Perlain.

— Velas. Avistamos velas — disse ofegante. — O ho­rizonte está repleto delas. E estão a aproximar-se. São os Zebak!

 

A ESCOLHA

—  Por que chegam agora? — gritou Asha. — Não faz sentido! Conseguem seguramente ver a chama da Escolha. O tempo para atacar teria sido antes, quando o Cris­tal estava fraco e a Escolha ainda por concluir.

— Viemos a saber que se tornaram ardilosos. Talvez te­nham um plano sobre o qual nada sabemos — afirmou Sea­born severamente. — Ou talvez contem que o Cristal possa ainda falhar antes do novo Guardião se unir a ele.

— Rowan! — gritou Perlain. — Indique a sua Escolha. O Cristal enfraquece.

Rowan ouviu uma exclamação atrás dele e virou-se. Jonn estava inclinado sobre Jiller. Ela tinha os olhos abertos. Sorria para ele.

— Tenho estado a dormir — murmurou Jiller. — Jonn, tive sonhos tão maravilhosos. — Mas depois, franziu leve­mente o cenho. — Onde estou, afinal? Onde está Rowan?

Uma alegria infinita invadiu o coração de Rowan. Mas teve uma breve duração. A mãe estava viva. Estava acordada e feliz. Mas os Zebak chegavam. Tinha de agir. Tinha de nomear o novo Guardião e renovar a vida do Cristal, ou estariam perdidos.

Virou-se de novo para os Candidatos.

— A Guardiã disse-me que devia esforçar-me por en­contrar cuidado, astúcia e a disposição para experimentar coisas novas — afirmou, rapidamente. — Disse que o Cristal fornecerá tudo o resto. Fitou os olhos ardentes de Asha.

— Você... você é boa e fará sempre aquilo que achar correto — afirmou. — Mas não tem uma mente aberta. Agarra-se às regras e aos velhos costumes, vivendo apenas segundo esses parâmetros. Por isso, embora a admire, não posso lhe escolher.

A expressão dela não se alterou, mas baixou a cabeça. Rowan voltou-se para Seaborn.

— Você é corajoso e forte — disse. — E está disposto a experimentar o que é novo. Mas age muitas vezes sob im­pulso, sem o cuidado e astúcia que a Guardiã procura. Por isso, esperando que possamos sempre ser amigos, não lhe posso escolher.

Também Seaborn baixou a cabeça. Mas, ao fazê-lo, os seus olhos pareceram cintilar com algo — algo muito seme­lhante a alívio. Rowan questionou-se sobre isso apenas por um segundo. Não havia tempo para nada mais a não ser a Escolha.

Avançou para Doss e pousou-lhe uma mão no ombro. Entreolharam-se. Um olhar longo e penetrante. Rezo para que esteja certo, pensou Rowan.

— Tem de proferir as palavras — lembrou Perlain sua­vemente.

Rowan engoliu em seco.

— O Selecionador fez a sua Escolha — proferiu. Sentiu o ombro de Doss ficar tenso sob os seus dedos, — Que os outros Candidatos abandonem este local.

Doss permaneceu imóvel. O seu olhar era inexpressivo, como se não visse nada.

Com o rosto habitualmente calmo tenso, Perlain levou Asha e Seaborn através da cortina de água e depois regressou.

O Cristal reluziu fracamente. Uma vez, duas vezes, três vezes. A Guardiã mexeu-se.

— As portas estão trancadas e não se voltarão a abrir até essa ser a vontade do novo Guardião — exalou. — Rápido. O sol não tardará a nascer.

— Doss dos Pandellis — disse Perlain rapidamente. — O Cristal.

Doss deslocou-se para a cadeira da Guardiã como que em sonho. Rigidamente, estendeu as mãos na direção do suave brilho do Cristal. Rowan olhou com curiosidade para os seus olhos inexpressivos.

Os olhos de alguém que já viu a Grande Serpente e que sobreviveu.

Está certo, disse Rowan para si. A minha escolha está correta. Doss possui tudo aquilo que a Guardiã solicitou. E estava destinado a esta tarefa. Tal como Orin, viu a Grande Serpente. E, depois disso, modificou-se.

No entanto, havia algo de errado. Rowan sentia-o.

A mão de Doss pairou sobre o Cristal.

— Una-se ao Cristal e a mim — murmurou a Guardiã.

Eu também vi a Grande Serpente, pensou Rowan subi­tamente. Tal como Asha e Seaborn. Mas nós não estamos mudados. Por que estaria então Doss? O que lhe sucedera, há um ano atrás?

Não me recordo de nada daquela noite... Eu estava mudado... Era como se algo tivesse sido perdido... ou acrescido. Não sei qual dos casos.

O que teria acontecido a Doss durante essa longa noite, sob a lua cheia, longe da costa? Sob a lua cheia...

— Espere! — exclamou Rowan. Agarrou na mão de Doss. A sua voz ecoou, chocantemente alta, pela Caverna. Jonn e Jiller olharam para cima, surpreendidos, e Perlain agarrou as costas da cadeira da Guardiã.

Lentamente, Doss virou-se. Olhou inexpressivamente, primeiro para Rowan, depois para a mão que lhe prendia a sua.

— Doss, não pode ter visto a Grande Serpente há um ano atrás — exclamou Rowan.

— Rowan, isso não importa agora — gritou Perlain. — Por Orin, não compreende? A Guardiã está a morrer. A sua vida está por um fio. A cerimônia já se iniciou. Deve prosseguir. Os Zebak...

A boca de Doss abriu-se.

— O Selecionador fez a sua Escolha — disse, sem emo­tividade. — Que os outros Candidatos abandonem este local.

Rowan tremia, mas, apesar de tudo, não largava a mão fria e de dedos unidos por membrana.

— Neste mês, na lua cheia, a Grande Serpente está na Ilha a pôr os seus ovos. Sabemos isso agora. Doss, não a pode ter visto no mar, tão distante da terra.

— Rowan! — gritou Jiller. — Deixe-o!

Jonn pôs-se de pé e, com duas passadas, aproximou-se de Rowan.

— Rowan, largue-lhe a mão — murmurou com intensi­dade. — Agora já nada importa. Todas as perguntas podem ser respondidas mais tarde.

Mas Rowan sabia que as perguntas não podiam esperar.

— Doss, fale comigo! — rogou. — O que se passa com você? Conte-me o que aconteceu naquela noite. O que te fez mudar? Não foi a Grande Serpente. O que foi?

— A Grande Serpente surgiu das profundezas — disse Doss. — Elevou-se acima de mim. Os seus olhos eram dourados e repletos de segredos ancestrais.

Rowan ouvia, horrorizado. Doss utilizava precisamente as mesmas palavras que proferira na Ilha. Até a voz era igual. Entoava, como que repetindo uma lição que de­corara.

E ele acredita nisso, pensou Rowan. Acredita nisso. Mas não é verdade!

— As escamas reluziam como fogo no pôr-do-sol — entoou Doss. — Mirou-me. Soube que ia morrer.

— Não está falando de algo que tenha realmente visto! — exclamou Rowan. — É algo que alguém lhe meteu na cabeça!

Foi invadido por um medo terrível.

— Doss, quem danificou o seu barco? — gritou. — Quem esperava por você no meio do mar, para lá do hori­zonte? Quem te apanhou das águas negras e te guardou toda a noite, mandando-o de volta apenas com uma re­cordação falsa do que se sucedera?

Mas ele sabia a resposta. E pela expressão aterrorizada no rosto de Perlain, percebeu que o homem Maris também sabia. Havia apenas uma explicação possível.

Tornaram-se astutos...

— Foi capturado por um barco dos Zebak! — excla­mou. — De alguma forma, os Zebak obrigaram-lhe a ceder à vontade deles, Doss. Infiltraram ordens secretas no in­terior da sua mente e revestiram-nas com a recordação falsa da Grande Serpente. Quando regressou a Maris, as pessoas perceberam que estavas mudado, mas desconheciam os ver­dadeiros motivos. Como haveriam de saber? Nem você sabia.

— É impossível — ouviu Jonn a murmurar para Jiller.

— Os treinadores do rapaz tê-lo-iam detectado. A Guardiã tê-lo-ia percebido.

— Não! — exclamou Rowan sem se virar. — Há um ano atrás, o poder da Guardiã tinha já enfraquecido. E mais ninguém o poderia ter visto, porque parte do plano deve ter sido que as ordens secretas só poderiam aflorar à super­fície da mente de Doss quando certas palavras fossem pro­feridas.

Fixou diretamente os olhos inexpressivos de Doss.

— Eu disse essas palavras há pouco, não disse? São sempre proferidas quando um Guardião é escolhido. “O Selecionador fez a sua Escolha”.

Doss estremeceu, olhando para ele. Rowan sentiu um nó no estômago. Era horrível ver o rosto familiar tão alterado.

— Eu vi e senti isso a acontecer, Doss. Na altura pergun­tei-me o que se passaria e agora sei. Naquele momento, perdeu a sua vontade própria. Tornou-se um servo dos Zebak. É por isso que as suas embarcações surgem agora. Avistaram a chama e compreenderam que tinha chegado a altura. Estão à espera do seu sinal de que o Cristal, e este território, é deles.

Perlain gemeu. Cobrira o rosto com as mãos e oscilava lentamente para a frente e para trás.

— Perlain! — disse Rowan com autoridade. — Não desperdice tempo com desesperos! Traga Seaborn e Asha de volta aqui!

Perlain abanou a cabeça.

— Rápido! — gritou Rowan. — Não entende? Doss não pode ser o Guardião. Irá trair os Maris. Irá trair-nos a todos!

— Cuidado! — gritou Jiller.

Antes de qualquer outro, avistara a faca a reluzir na mão de Doss.

Com um clamor, Jonn saltou para a frente e agarrou na faca que mergulhava para o coração da moribunda Guar­diã. Debateu-se com Doss para o afastar e conteve-o. Doss lutou por alguns momentos e depois, subitamente, cedeu. Permaneceu imóvel, segurado por Jonn.

— O Selecionador fez a sua Escolha — murmurou. — Se a Escolha não for Doss dos Pandellis, a Guardiã tem de morrer. O Cristal tem de morrer.

— Perlain! — gritou Rowan. — De que está à espera? Traga...

— As portas estão trancadas — respondeu Perlain. A voz estava inundada de desespero. — Só se abrirão para o Guardião. E não conseguimos que a Guardiã recupere a consciência. Não conseguimos contar com ela.

— Terá de ser você! — disse Jonn. — Você, Perlain. Terá de se unir com o Cristal. Poderá não ser o que dese­java. Mas é melhor tê-lo como Guardião do que ninguém.

Perlain abanou de novo a cabeça.

— Não posso — afirmou. — Não sou conhecido pelo Cristal. Se lhe tocar, morrerei.

— Então, o que vamos fazer? — exclamou Rowan, deses­perado. — Perlain, o que vamos fazer?

Perlain olhou para ele.

— Só há uma coisa que podemos fazer — respondeu. — Para além de Doss dos Pandellis, só há aqui uma pessoa que pode tocar no Cristal e sobreviver. Apenas uma pessoa que se pode unir a ele, tornando-se no Guardião dos Maris. E essa pessoa é você.

 

 

TERROR

—  Não! — A palavra explodiu da boca de Rowan e ecoou na Caverna. Afastou-se da cadeira da Guar­diã, do Cristal enfraquecido, abanando incessantemente a cabeça.

Nunca mais voltar a ver a sua casa. Nunca mais voltar a ver o céu, as colinas verdejantes, o riacho, a neve na Mon­tanha. Nunca mais voltar a sentir o ar fresco e doce no rosto nem os sons dos pássaros. Nunca mais. Passar o resto da vida abaixo do solo, tragado, dissolvido, no grande mis­tério do Cristal.

— Não — repetiu. — Não!

— Tem de fazê-lo — disse Perlain.

— Não pertenço aos Maris — exclamou Rowan. — Não posso...

— Pode — afirmou Perlain. — Se não o fizer, esta­mos perdidos. — Estendeu as mãos para Jiller. — Expli­que-lhe — gritou.

Rowan virou-se para a mãe. As lágrimas corriam-lhe pela face.

— Tem de fazê-lo. É o único — murmurou ela. — O Cristal já não me conhece. Apenas a você. Apenas a você...

— Depressa! — silvou Perlain. — Não há tempo.

Rowan voltou-se para Jonn, que continuava a agarrar em Doss, silencioso. A boca de Jonn revelava uma linha severa. Os seus olhos estavam repletos de dor ao anuir.

Rowan não tinha para onde se virar, a não ser para o seu próprio coração. E sabia que não lhe restava alterna­tiva. Se abdicasse das coisas que amava, talvez os pudesse salvar. Se recusasse abdicar delas, iria quase seguramente destruí-los.

Endireitou os ombros e encaminhou-se para a Guardiã. O Cristal era como uma pedra no regaço dela. Detectava-se apenas um brilho fraquíssimo no seu núcleo, iluminando-lhe as mãos com uma luz verde.

Rowan colocou as mãos sobre as dela. A Guardiã abriu os olhos.

— Você... — suspirou ela. — Porquê?

— Não há mais ninguém — respondeu Rowan suave­mente. Atrás dele, ouviu o soluçar baixo de Jiller.

A Guardiã cerrou de novo os olhos. Estava para lá da surpresa e perguntas. Mas os seus lábios moveram-se. Ro­wan baixou-se para ouvir o que ela dizia.

— Eu digo as palavras mas ninguém acredita. Nada se pode opor ao poder do Cristal — sussurrou a voz ao seu ouvido. — Sente... e... compreende.

E pareceu que Rowan estava a precipitar-se — lenta­mente, lentamente, flutuando através das eras do tempo e recordações em turbilhão. Já não conseguia ver a Caverna. Já não escutava a voz da mãe. Sentiu-se a abandonar-se. Entregando-se ao poder, não com tristeza mas com uma profunda alegria.

E afundou-se mais... cada vez mais, sabendo que estava a tornar-se parte de algo superior a ele. Era como um mar profundo, extenso, velho como o tempo.

Nada se conseguia opor a isso. Nenhum amor por um clã, por uma família. Sem laços ou exigências de outros.

Tudo desaparecia. O seu próprio ser — os seus amores, receios, esperanças, erros — tudo o que o ligava à sua vida sumia-se dele. Resistiu um pouco, não desejando abrir mão deles.

Sente... e... compreende.

Teria a Guardiã falado de novo? Ou seriam as suas re­cordações?

As mãos sob as dele estremeceram.

Nada se pode opor ao poder do Cristal...

Foi então que Rowan compreendeu. Compreendia, por fim.

Ajude-me, Guardiã, disse, mentalmente. Ajude-me a cum­prir o meu dever.

Sentiu uma vibração de poder. E depois gritava alto. Puxava uma mão do Cristal, inclinando-se para trás e es­tendia a outra para a figura imóvel e pálida de Doss.

— Rowan! — Como que em sonho, ouviu o grito da mãe. Mas sabia o que tinha que fazer.

Agarrou na mão de Doss e arrastou-o para longe de Jonn. Sentiu o forte poder curativo passando dele para Doss como um rio correndo para o mar.

Depois, no limite das suas forças, puxou Doss para a frente. Conduziu a pequena mão de Doss sobre as da Guar­diã e retirou as suas.

A separação atingiu-o como um golpe. Cambaleou para longe da cadeira e caiu de joelhos no solo. O seu peito estava oprimido com a dor súbita de solidão e perda. As lágrimas cegavam-no.

Percebeu que a Caverna ecoava com sons.

— O que fez? — gritava Perlain em pânico.

— Rowan! Rowan! — bradava Jiller.

Tentou falar, mas as palavras sufocavam-lhe a garganta. Afastou-se engatinhando da luz estonteante. O Cristal reluzia, cada vez com maior intensidade. Estava vivo de fogo, cintilando com todas as cores da terra, mar e céu. Cor e luz encheram o ar, iluminava as paredes da Caverna como arco-íris...

E, depois, tudo terminou. O pequeno corpo dobrado da velha Guardiã permanecia como uma casca vazia na cadeira. Um novo Guardião olhava para eles. Os seus olhos eram os olhos profundos e solenes de Doss dos Pandellis. Mas era um Doss mais perfilado e alto. As suas roupas já não eram azuis, mas de nenhuma cor e de todas as cores em simultâneo, como água reluzente. E, nas suas mãos, o Cristal brilhava e ardia como uma estrela.

Perlain retrocedeu e fez uma vênia.

— Saúdo-lhe, Guardião do Cristal — murmurou. O seu rosto estava tenso de terror.

— O sol está a nascer — disse o Guardião. Voltou-se para Rowan. — Venha comigo, lá para cima para a luz.

Rowan e os outros seguiram em silêncio enquanto ele passava pela cortina de água, subia as escadas e atravessava a enorme sala vazia por cima. Sem um som, as portas abri­ram-se.

O espaço no exterior estava apinhado de pessoas. Pan­dellis em azul. Umbray em prata. Fisk em verde. Todos nos seus clãs separados. Todos miravam o mar, na direção do sol que nascia.

O Guardião saiu para o ar livre, o Cristal reluzente nas mãos. Ouviu-se uma exclamação coletiva. Uma exclama­ção de boas-vindas, alívio e alegria, enquanto as pessoas o saudavam e apontavam para o mar.

Lentamente, o Guardião virou-se e olhou. O horizonte es­tava picotado com velas dos Zebak. Rowan sentiu um arre­pio de medo.

O Guardião elevou o Cristal bem alto no ar. Brilhou como um farol no sol nascente. As exclamações de júbilo das pessoas transformaram-se em gemidos de medo quando as velas avançaram, como que em resposta a um sinal.

— Ele assinalou-lhes para avançarem. Estamos perdidos — murmurou Perlain.

O Guardião ficou a observar a frota dos Zebak avança­rem para eles, impulsionados pelo vento. Não fez qualquer gesto ou sinal.

Rowan sentiu um toque no braço.

— Leve a sua mãe — murmurou-lhe Jonn ao ouvido. — Infiltre-se por entre as pessoas. Regresse o mais rápido possível a Rin.

— Não vou te deixar, Jonn — disse Jiller, ouvindo.

— Tem de fazê-lo — respondeu ele, severamente. — Alguém tem de avisar a nossa gente, para não serem apa­nhados desprevenidos.

— Então Rowan irá sozinho — disse ela. — Estou ainda demasiado fraca para viajar. Iria retardá-lo.

— Jiller, tem de ir!

— Não vou.

O povo Maris estava tão silencioso como a morte. Todos os olhos se fixavam no Guardião. Aguardando o seu sinal. Aguardando a ordem que os conduziria à batalha.

Mas o Guardião não se moveu.

Fui eu a causa disto, pensou Rowan. E, no seu deses­pero, pensou em Estrela, trancada no estábulo. Sem poder fugir ou defender-se. Aguardando ser abatida por mãos cruéis.

Correu para junto do Guardião.

— Doss... — começou. Mas as palavras morreram na sua boca quando o Guardião se voltou para ele.

— O Doss dos Pandellis já não existe, Rowan de Rin — afirmou o Guardião. — Sou o Guardião do Cristal.

— Pensei... — começou Rowan de novo. E, mais uma vez, calou-se.

— Estava certo — disse o Guardião suavemente, como se Rowan tivesse vocalizado os seus pensamentos. — Aguarde.

As primeiras embarcações dos Zebak estavam agora tão próximas que Rowan conseguia avistar os rostos cruéis e triunfantes dos guerreiros sobre o convés. Conseguia avistar a linha negra que marcava cada testa, do nariz aos cabelos. Conseguia ver o metal reluzente das suas armas.

O Guardião ergueu os braços.

— Agora! — disse, tranquilamente. O Cristal reluziu, cegando.

Nesse instante, grandes nuvens negras varreram o hori­zonte. Formavam-se grossas e negras pelo céu, empurradas por um vento gelado, toldando o sol, toldando o céu pálido. Todo o mundo enegreceu, tornando-se escuro como a noite.

— O que se passa? — gritou Jonn. Agarrou no braço de Rowan. — Rowan...

O Guardião elevou ainda mais o Cristal. Ouviu-se o ribombar de trovoadas e relâmpagos rasgaram o céu, caindo como lanças nas águas límpidas.

As pessoas gritaram. No mar, as embarcações dos Zebak, muito próximas umas das outras, oscilaram e balançaram. Mastros partiram-se e velas rasgaram-se enquanto o vento rugia e os relâmpagos cintilavam em volta.

Seguiu-se um agitar e borbulhar no mar e as águas cobri­ram-se de espuma quando as serpentes das profundezas subiram à superfície, irritadas por seu descanso ter sido perturbado.

Sibilaram e lançaram-se contra os grandes barcos de guerra, os quais, perante a sua raiva, eram tão frágeis quanto folhas na corrente de um riacho. A madeira foi partida e despeda­çada, armas inúteis chocaram e caíram na espuma e os gritos aterrorizados dos Zebak condenados perderam-se no rugir do vento.

Rowan desviou o olhar. Tentou recordar-se que aqueles eram os inimigos do seu povo. Que tinham chegado para trazer sofrimento e morte àqueles que ele amava. Apesar de tudo, não conseguia assistir à sua destruição.

Mas o Guardião do Cristal presenciou tudo. E só quando tudo terminou é que acalmou a tempestade.

 

DESPEDIDAS

Iam voltar a casa. Partindo com as bênçãos dos Maris, com muitas ofertas, com promessas de regressarem em breve. Permaneceram por mais dois dias em Maris, conce­dendo algum tempo a Jiller e a Rowan para descansar. Mas agora, todos ansiavam partir.

Quando tudo já estava preparado para a viagem, Rowan deixou a casa segura e seguiu sozinho para a Caverna do Cristal. As portas abriram-se para ele. Caminhou lenta­mente para a vazia sala circular superior e desceu as escadas. Bem-vindo.

A Caverna estava banhada numa luz gloriosa. O Guar­dião estava sentado na sua cadeira, rodeado de arco-íris.

— Vim despedir-me — disse Rowan.

— Não é uma despedida. Sabe que sempre estarei com você, Rowan de Rin — disse o Guardião. — Tal como você estará comigo.

Rowan anuiu. Não conversara sobre isto com ninguém, nem mesmo com Jiller. Mas, nos últimos dias, percebe­ra lentamente a verdade. No momento em que o poder do Cristal fluíra por ele, o Doss dos Pandellis mudara para sempre.

O Guardião sorriu.

— Tenho memórias de Rin, embora nunca a tenha visto — disse. — Vejo as margaridas-selvagens florescendo ama­relas nas colinas. Ouço os bukshah a mugir nos campos. Sinto terra macia nas mãos e sinto prazer com as pequenas coisas a crescer.

— E eu sinto-me a deslizar pela água como um peixe — disse Rowan. — Sinto areia fresca e úmida sob os pés. Remendo redes à luz de candeeiros de petróleo à noite. Ouço aves marinhas a gritar e vejo peixes voadores a ro­çarem as ondas sob um céu azul escuro.

— Compreendemo-nos então um ao outro, o que nunca aconteceu entre duas pessoas de Maris e de Rin — disse o Guardião. — E, quando te digo que, devido ao que acon­teceu na manhã em que nomeou a sua Escolha, a sua família não voltará a sofrer às mãos dos Maris, acreditará em mim.

— Sim — respondeu Rowan. — Acredito.

— Satisfazendo as minhas ordens, Perlain dos Pandellis contou às pessoas o que aconteceu entre nós — disse o Guardião. — Contou-lhes que era um inimigo secreto dos Maris, que me encontrava sob o domínio dos Zebak, antes de me unir ao Cristal. Mas eles viram com os próprios olhos o que aconteceu quando os Zebak chegaram.

Sorriu.

— Pelo que agora já compreendem. Pouco importa qual o clã onde tem origem o Guardião. Nada se pode opor ao poder do Cristal. Nem o amor familiar, nem os amigos, nem o lar. Nem a lealdade a um clã ou a um país. Nem mesmo os jogos mentais de um inimigo.

— Só o entendi quando senti eu próprio o poder — murmurou Rowan. — Só então percebi que nenhum Guardião podia trair o povo Maris.

Virou-se para se ir embora.

— Adeus, Doss — afirmou.

— Adeus, meu amigo — disse o Guardião do Cristal.

 

Muitas pessoas juntaram-se nos limites de Maris para se despedirem deles. Asha, Seaborn e Perlain estavam entre eles.

— Adeus, Selecionador de Rin. — Asha apertou grave­mente a mão a Rowan. — Eu... estou-lhe grata.

Rowan pestanejou, não sabendo o que dizer.

— Se eu tivesse sido a Guardiã, teria ordenado que os nossos barcos se fizessem ao mar quando os Zebak ataca­ram. Porque foi isso que sempre foi feito. Teríamos lutado, como sempre lutamos. Podíamos ter ganho, pelo poder do Cristal, mas muitos de nós teriam morrido. Fez a escolha correta em relação a Doss dos Pandellis. A mente dele é nova e fresca. Será como os Guardiões do passado. Utilizando o Cristal, aumentando o seu poder, em vez de apenas retirar dele. Por isso, agradeço-o.

Retrocedeu, grave e calma como sempre.

Seguiu-se Seaborn. Com ele estava uma mulher alta vestida no verde dos Fisk, o rosto já não tenso e sério, mas cheio de luz e alegria. Rowan reconheceu-a como uma das três que o acompanhou à Caverna. A mulher que os obser­vara da costa, quando se encontravam na Ilha.

— Esta é Imlay. Vamos casar no Verão, quando os meus ferimentos tiverem sarado — informou-o Seaborn. — Tal­vez queira vir ao nosso casamento. Gostaríamos de contar com a sua presença, meu amigo. Sobretudo com a sua.

Rowan anuiu, sorrindo. Compreendia finalmente a expressão de alívio no rosto de Seaborn quando lhe foi dito que não seria o Guardião do Cristal. Seaborn era um ho­mem forte e corajoso. Estava disposto a cumprir o seu dever. Esforçara-se por ser aquilo que o seu clã desejara. Mas, tendo falhado, estava livre para conduzir a sua vida como sempre ansiara. Estava livre para respirar o ar fresco, para ver o céu, para casar com a mulher que amava.

Perlain foi o último a despedir-se deles. Apertou a mão a Jiller, a Jonn e a Rowan. Mas Rowan reparou, com um sor­riso secreto, que se mantinha afastado de Estrela.

— Poderá desejar não voltar a ver as costas de Maris, Rowan — disse Perlain, ao seu jeito formal. — Mas deve vir. A minha casa será sempre a sua.

— Eu voltarei — respondeu Rowan. Olhou para Sea­born e Imlay, que observavam afastados. — Nem que seja para um casamento no Verão — acrescentou.

Perlain sorriu e fez uma vênia.

Rowan, Jonn, Jiller e Estrela viraram então as costas ao mar e começaram a andar. Caminharam durante muitos minutos sem trocar uma só palavra.

O rio serpenteava até se perder de vista, perdendo-se nas suaves colinas verdes. Tinham uma extensa viagem diante deles, mas nenhum se queixava.

Estavam em segurança. Estavam juntos. E cada passo apro­ximava-os mais de casa.

 

                                                                                            Emily Rodda  

 

                      

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