Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


BUKSHAH / Emily Rodda
BUKSHAH / Emily Rodda

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

BUKSHAH

 

É UMA MALDIÇÃO!

A aldeia de Rin acotovelava-se, gelada, num mundo branco de silêncio. A neve espessa cobria o vale. A Montanha recortava-se contra o céu cinzento como uma enorme escultura encimada por nuvens.

Nunca tinha havido um Inverno assim. A neve nunca tinha caído com tanta intensidade. Nunca tinha feito tanto frio.

E este nunca tinha durado tanto. De acordo com o calendário, era Primavera — altura para plantar, para as flores desabrocharem, para as abelhas, e para os pássa­ros fazerem os seus ninhos. Mas o ar ainda estava gelado, os campos e os jardins permaneciam soterrados, e a neve fazia vergar os ramos despidos das árvores do pomar de Jonn Forte.

Foi convocada uma reunião mas estava demasiado frio para os habitantes se reunirem na praça da aldeia. Em vez disso, eles apinharam-se na casa dos livros, a tremer de frio e a murmurar no meio do cheiro das lamparinas, dos pergaminhos e do papel antigo. Sombras profundas tremeluziam nos rostos preocupados, mãos gesticulavam. As lamparinas estavam no mínimo, pois o azeite, tal como tudo o mais, era escasso.

Rowan, que estava no campo dos bukshah quando o sino tocou a convocar para a reunião, foi o último a chegar.

Durante algum tempo, ele ficou na porta, a bater com os pés para tirar a neve das botas. Apesar do frio, ele não estava com pressa em entrar. Ele sabia o que a velha Lann, a chefe da aldeia, ia dizer ao povo, e ele já tinha decidido o que ia fazer a esse respeito. Por enquanto, a sua mente ainda estava com os bukshah.

Os animais enormes e meigos de que ele tomava conta tinham voltado a fugir durante a noite. Eles tentavam fazê-lo todos os Invernos mas, este ano, tinham saído várias vezes do campo.

Desta vez, eles tinham passado pelo moinho silen­cioso, cuja roda enorme estava presa no gelo do riacho, e foram andando até terem chegado quase ao sopé da Montanha. Ele levara horas a convencê-los a voltarem para o seu campo — horas, e as últimas mãos-cheias de aveia do armazém.

Quando se souber que a aveia desapareceu, vai haver problemas, pensou Rowan com ironia. Mas que mais podia ele fazer? Permitir que os bukshah continuassem a vaguear e acabassem por morrer?

Ele não culpava os animais por terem derrubado a cerca. Eles estavam com fome. Os fardos de feno com que se alimentavam no Inverno estavam quase no fim e, numa tentativa desesperada de tentar fazer com que a comida durasse, Rowan tinha-se visto obrigado a cortar a sua ração diária para metade. Alguns dos membros mais velhos e mais débeis da manada já tinham fraque­jado e morrido.

Mas Rowan sabia que, se havia falta de comida no vale, fora deste não havia absolutamente nenhu­ma comida. Com exceção dos locais em que os penhascos ín­gremes, rochosos, pareciam feridas brutais na brancura cintilante da Montanha, a terra estava toda coberta de neve, até onde avista conseguia alcançar.

— Vocês têm que tentar não se afastar, Estrela — dissera Rowan à sua bukshah preferida, a líder da ma­nada, quando os animais voltaram finalmente para o seu campo. — Tem que ficar aqui, onde eu posso tomar conta de vocês.

A Estrela virara a enorme cabeça para olhar para ele e fez um ruído profundo com a garganta. Havia uma expressão de inquietação nos seus olhinhos escuros. Ela queria agradar a Rowan e obedecer-lhe. Mas todos os seus instintos lhe diziam que ele estava enganado.

Compreendendo vagamente o que ela lhe queria di­zer, Rowan fizera-lhe carícias, sentindo, com tristeza, as costelas salientes debaixo do pêlo comprido.

— Já falta pouco para a Primavera, Estrela — mur­murara ele. — A neve vai derreter e vai haver erva para comeres. É só mais um pouco...

Mas quanto tempo mais? pensou Rowan. Quanto tempo mais poderia aquilo durar?

Cerrando os dentes, ele abriu a porta e entrou na sala apinhada. Shaaran e Norris, os dois jovens que ele resga­tara da terra inimiga dos Zebak, colocaram-se rapida­mente ao seu lado. Os olhos meigos de Shaaran estavam ansiosos, mas o rosto do seu irmão manifestava uma ávida curiosidade.

— Onde é que se escondeu, Rowan? — murmurou Norris. — Há dias que não te vemos! — Ele sorriu e olhou para a irmã com ar maroto. — A Shaaran pensa que anda a evitar-nos. Ela tem medo que tivéssemos feito qualquer coisa que te tivesse ofendido. Por favor diga-lhe que não é nada disso, para ela ficar mais tran­quila.

— Norris! — silvou Shaaran, ficando vermelha como um tomate.

Rowan obrigou-se a si próprio a sorrir.

— Claro que não me ofenderam — murmurou ele. Pelo menos isso podia ele dizer com toda a verdade, embora não pudesse negar o resto. Como é que ele podia ter estado com os seus amigos sem lhes dizer o que ia acontecer? Por isso, ele tinha-os evitado.

Mas agora eles estavam prestes a ouvir tudo. Doía-lhe o coração só de pensar no desalento deles.

Norris gostaria de ter insistido com ele mas, nesse momento, houve movimento na parte da frente da sala. Lann, a líder da aldeia, estava a preparar-se para falar. Ela estava no lugar de honra, em frente das faixas de seda pintadas que contavam a história da escravidão do povo de Rin na terra dos Zebak. As pinturas colori­das brilhavam à luz da lamparina, constituindo um fundo estranho para a sua figura sóbria.

Durante mais de trezentos anos, o povo de Rin vivera em liberdade no vale verde, sem se recordar do seu pas­sado e sem fazer a mínima idéia de que muitos dos seus membros tinham ficado naquele terrível local situado no outro lado do mar. Depois, pouco mais de um ano antes, Annad, a irmãzinha de Rowan tinha sido raptada e levada para a terra dos Zebak. Decidido a salvá-la, Ro­wan fora atrás dela. Contra todas as probabilidades, ele conseguira encontrá-la. E, ao mesmo tempo, ele encon­trara Shaaran e Norris, os últimos dos que tinham lá ficado.

Quando eles fugiram, Shaaran tinha trazido consigo a caixa de sedas e, desde essa altura, as sedas estavam penduradas na casa dos livros, para serem admiradas pelos habitantes da aldeia, que passavam horas a fio a conversar sobre elas.

Lann pediu que se calassem. Viraram-se todos para ela, e fez-se um silêncio tenso.

— Amigos — disse Lann. — Peço-lhes que escutem com atenção o que tenho a dizer.

Ela falou com firmeza, assumindo o comando como fizera muitas vezes antes. Mas pareceu a Rowan que, de um dia para o outro, o seu rosto ficara com um ar mais cansado e que ela se apoiava mais na sua bengala. A sua direita estava Jonn do Pomar, o padrasto de Rowan, e à esquerda, Timon, o professor. Ela parecia muito débil, no meio deles.

— A nossa situação é grave — disse Lann. — O arma­zém está quase vazio, e a neve não mostra sinais de derre­ter. O motivo por que isto está a acontecer...

— É uma maldição! — gritou uma voz ao centro da sala. As pessoas viraram-se, esticando o pescoço para verem quem tinha falado.

Era Neel, o oleiro. O seu rosto estreito estava pálido e chupado.

— Uma maldição — gritou ele com voz estridente. — Nós ofendemos a Montanha, e agora a Montanha virou-se contra nós.

Rowan sentiu um arrepio de frio que não teve nada a ver com as suas botas encharcadas nem com os dedos gelados.

— Isso é um disparate, Neel — disse Jonn em voz baixa.

— Não é! — gritou Neel. — Nunca houve um In­verno como este. Não é natural! Se não acredita, per­gunte ao Timon. O Timon esteve a estudar os registros do tempo. Ele sabe que o que eu estou a dizer é verdade.

Todos os olhos se viraram para Timon, que alisou a barba cinzenta com nervosismo.

— Este Inverno certamente que é mais rigoroso do que qualquer dos que tivemos antes — disse ele na sua voz tranqüila, hesitante. — Mas não há necessidade de falarmos em maldições. Há muitos anos que os nossos Invernos estão a ficar mais rigorosos e mais longos. E temos que nos lembrar que vivemos neste vale há apenas três séculos. Numa terra antiga como esta, trezentos anos são apenas um abrir e fechar de olhos. Quem pode dizer o que é natural e o que não é? Há uma história dos Viajantes que nos diz...

Lann deu-lhe um toque com o cotovelo, e ele calou-se, mas era demasiado tarde. Neel já estava a acenar vio­lentamente a cabeça, e os seus olhos vermelhos brilha­vam à luz da lamparina.

— Exatamente! — exclamou Neel. — A história do Tempo Frio, quando o Inverno mantinha a terra es­crava, e os répteis do gelo desciam da Montanha à procura de carne quente para devorarem!

Um coro de risos de escárnio, liderados por Bronden, a marceneira, ecoou através da sala.

— Oh, eu recordo-me dessa! — gritou Allun, o pa­deiro. — A minha avó contou-me à lareira numa noite de Inverno, quando eu tinha seis anos. Segundo me lembro, eu levei a minha espada de madeira comigo para a cama, e fiquei horas acordado à espera que os répteis do gelo atacassem.

Ouviram-se gargalhadas. Neel mostrou os dentes.

— Vocês troçam de mim e ignoram a mensagem da história! — gritou ele. — Allun, o padeiro, é meio-Viajante, e devia ter mais juízo! Ele não está sempre a dizer-nos que os Viajantes vagueiam por esta terra há quase tanto tempo como os bukshah pastam abaixo da Montanha? E que as histórias dos Viajantes parecem fantasio­sas, mas a maior parte contém um grão de verdade?

As gargalhadas foram diminuindo, acabando por desa­parecer.

— O Neel tem razão — disse, com voz trêmula, Solla, o doceiro, com os seus papos moles a balouçar enquanto falava. — Lembram-se do Vale do Ouro? Nós pensávamos que era apenas uma lenda dos Viajantes. Depois as suas ruínas foram encontradas no outro lado da montanha. Ele era, afinal, bastante real, e as pessoas que nele viviam também eram, embora estas tenham morrido há muito tempo.

Os aldeões murmuraram desconfortavelmente. O ba­rulho tomou-se cada vez mais alto, e só diminuiu quando Lann ergueu a mão.

— A história do Tempo Frio dos Viajantes só prova o que eu disse — afirmou Timon com firmeza. — Prova que há algo neste frio que não é natural. Antes deste, já houve claramente pelo menos um longo e terrível In­verno na terra... uma estação suficientemente rigorosa para se tornar uma lenda. Agora...

— Você está ignorando deliberadamente o mais im­portante, Timon! — interrompeu Neel num tom estri­dente. — Na história, o Tempo Frio veio porque os habi­tantes do Vale de Ouro voltaram as costas à Montanha e não a honraram. E nós... nós fizemos o mesmo!

Ele apontou, com um dedo trêmulo, para a seda pintada pendurada atrás de Lann.

— Essas imagens de outra terra e de um tempo lon­gínquo não têm lugar no vale. Elas ofendem a Monta­nha. Elas têm que ser queimadas!

O estômago de Rowan deu uma volta. Por toda a sala soavam gritos de choque e protesto. Norris tinha o rosto vermelho e os punhos cerrados. Até mesmo Shaaran tinha esquecido a sua timidez e estava a gritar. Na terra dos Zebak, Norris e Shaaran tinham passado a vida a guardar as sedas. A idéia de as preciosas pinturas antigas serem destruídas horrorizava-os.

— As sedas são a nossa história, Neel — disse Lann, com as mãos nodosas a agarrarem com força na ben­gala.

— Não! — exclamou Neel num tom irado. — A história de Rin, a única história que interessa, teve início no dia em que os nossos antepassados se ergueram contra os seus amos Zebak na costa desta terra, e começaram uma vida nova.

Ele deu meia-volta, apelando para os que estavam perto de si.

— Os nossos antepassados foram trazidos para esta terra para ajudar os Zebak a conquistá-la, mas, em vez disso, a terra deu-lhes liberdade, e este vale tornou-se o seu lar — gritou ele. — Esta costumava ser a única história que nós sabíamos, e era suficiente para nós!

Ele virou-se e ficou a olhar para Norris e Shaaran, com uma expressão de desagrado no rosto.

— Mas desde que as sedas e os seus guardiães foram trazidos para cá, tudo isso mudou. Subitamente, as nossas mentes estão cheias de perguntas sobre tempos do passado que é melhor esquecer. Durante quanto tempo os nossos antepassados viveram como escravos na terra dos Zebak? De onde é que eles vieram? Haverá outra terra, uma terra ainda melhor que esta, que já foi nossa e talvez possa voltar a sê-la?

— É natural que sintamos curiosidade, Neel — disse Jonn. — Isso não faz mal nenhum.

— Claro que faz mal! — Neel gesticulava, e a sua voz era cada vez mais estridente. — Vocês não percebem? Quando olhamos para o passado e fazemos perguntas, rejeitamos o dom da vida que a Montanha nos concede! E agora a Montanha ofendeu-se e está a vingar-se!

Jonn fez um som de repugnância, e Timon abanou a cabeça.

— Eu nunca ouvi um disparate tão grande! — disse Lann num tom ríspido, e algum do seu fogo antigo bri­lhava-lhe nos olhos baços. — Cale-se, Neel, e deixe que outras pessoas com cabeças mais fortes que a sua conti­nuem a discutir o assunto que é o objetivo desta reunião.

Neel corou e, sem dizer mais uma palavra, abriu ca­minho por entre a multidão e saiu da sala, batendo a porta atrás de si. Mas Rowan percebeu que nem todos os que estavam na sala concordavam com Lann. Algumas pessoas olharam para as costas de Neel com um ar de compaixão. E Solla, o doceiro, parecia muito nervoso.

Talvez Lann também tivesse reparado nisso e tivesse ficado zangada porque, quando voltou a falar, a sua voz era ainda mais dura do que antes.

— Conforme eu estava a dizer, a nossa situação é grave — prosseguiu ela. — De acordo com os meus cálculos, a comida que resta no armazém só nos vai alimentar a todos durante mais doze dias. E é preciso que tenhamos muito cuidado. Chegou a altura de agirmos... e receio que não vão gostar do que temos que fazer.

 

A DECISÃO

Os olhos da multidão estavam fixos em Lann. Ela levantou o queixo.

— É minha opinião que devemos abandonar a aldeia e ir até á costa, onde os Maris e os Viajantes nos darão abrigo e comida até podermos regressar.

A sala explodiu num tumulto.

— O quê? — gritou Bronden, numa voz que se er­gueu acima das dos outros. — Os habitantes de Rin vão transformar-se em pedintes errantes? E o que pensa que acontecerá à aldeia se a abandonarmos agora? Se o vento partir as janelas e estas não forem reparadas? Se a neve soterrar as casas e os telhados se racharem e caírem?

O rosto enrugado de Lann ficou tenso.

— É isso ou morrermos à fome, Bronden — disse ela secamente.

— Então eu prefiro morrer de fome! — replicou Bron­den num tom ríspido.

— Eu não! — disse Marlie, a tecelã, chegando-se mais perto de Allun, seu marido desde o Verão.

Allun tomou a mão de Marlie nas suas e enfrentou o olhar zangado de Bronden.

— Pode pensar que é um disparate, Bronden, mas eu e a Marlie estamos mais interessados em viver do que em morrer — disse ele num tom ligeiro. — O nosso filho vai nascer antes do fim do mês. Nós não queremos que ele venha ao mundo só para morrer.

Muitas pessoas acenaram a cabeça em sinal de con­cordância. Outros começaram a falar alto e a discutir.

Lann observava-os de olhos velados. Os seus ombros tinham caído, e os nós dos dedos que agarravam a bengala estavam brancos.

Rowan sentiu imensa pena dela. Ela tinha feito o que considerava ser o seu dever — o que ele, Jonn e Timon a tinham encorajado a fazer — mas o preço tinha sido muito alto.

— Peço-lhes que pensem neste plano com as suas mentes e não com os seus corações — disse Jonn, levan­tando a voz para poder ser ouvido no meio do tumulto da sala. — Só precisamos estar ausentes até o perigo passar. Os Maris e os Viajantes são nossos amigos e alia­dos. Eles terão muito gosto em ajudar-nos, tal como nós os ajudaríamos se eles precisassem.

— Talvez — disse Bronden com o rosto franzido. — Mas porque é que temos que ir para a costa e deixar as nossas casas sujeitas a serem arruinadas pela neve e pelo vento? Tem que haver outra maneira. Onde está Rowan dos Bukshah? — Os olhos dela varreram a sala.

Rowan recuou para as sombras, mas não serviu de nada.

— Ah, Rowan, aí está você! — exclamou Bronden, quando o avistou. — Porque é que está escondido aí ao fundo da sala? Se há alguém que deva estar envolvido nisto, é você... você que, por mais de uma vez, salvou Rin de catástrofes!

Ela apontou para Rowan, e toda a gente se virou para olhar para ele.

Rowan sentiu a cara a ficar quente. Ao longo dos últi­mos anos, a sua confiança em si próprio tinha aumen­tado, mas ele ainda não gostava de ser diferenciado dos outros. E o fato de alguns habitantes de Rin acredita­rem que ele tinha poderes especiais, até mesmo mágicos, fazia-o sentir-se muito pouco à vontade. Era verdade que ele tinha conseguido salvar a aldeia de vários perigos no passado, mas não havia nada de mágico no que ele fizera. Certamente que algum tipo de magia o ajudara — mas não tinha sido feita por ele.

— Rowan, existem rumores de que você tem uma li­gação estranha... uma união de mentes... com o líder dos Maris, o Guardião do Cristal — rosnou Bronden. — Se isso for verdade, seguramente que pode falar ao Guardião sobre os nossos problemas e pedir-lhe que envie ajuda?

— E os Viajantes, Rowan? — perguntou Solla. — Você é respeitado por Ogden, o chefe deles, não é? E muito amigo de Zeel, a filha de Ogden, que te ajudou a salvar a Annad dos Zebak? Porque é que não usa a flauta de cana que eles te deram para pedir ajuda? Os Viajantes podiam trazer provisões para o vale. Nós já partilhamos a nossa comida com eles muitas vezes, quando eles acam­param aqui!

Rowan umedeceu os lábios.

— Receio que nem os Maris nem os Viajantes possam nos ajudar agora, por muito que desejem fazê-lo — disse ele em voz baixa.

— Claro que não podem! — disse Lann num tom ríspido. — Nós somos os únicos habitantes desta terra que conseguimos sobreviver ao Inverno da ilha. Todos vocês sabem isso! Ou deviam saber. Os Maris e os Via­jantes mantêm-se sempre na costa mais quente, mesmo numa estação fria normal. Este frio intenso matá-los-ia muito antes de eles cá chegarem.

Uma expressão de desânimo perpassou o rosto de Solla, no meio de lamentos de desilusão de outros que estavam na sala. Bronden simplesmente cruzou os braços e trocou olhares sombrios com os seus vizinhos.

— Muito bem — disse Lann. — Eu não posso obrigar ninguém a partir. A viagem até à costa será longa e cheia de perigos. A neve é muito espessa, o frio é intenso, e haverá lobos brancos esfomeados nas planícies. Para que os mais fracos e mais novos sobrevivam, serão ne­cessárias a proteção e a coragem de todos os homens e mulheres fortes de Rin. Mas qualquer viagem, por mais perigosa que seja, é certamente melhor do ficar aqui a morrer lentamente à fome.

A sala ficou totalmente silenciosa. Os olhos de Lann percorreram a multidão. Depois ela respirou fundo.

— Vamos fazer uma votação — disse ela. — Aqueles que concordam com o meu plano levantem a mão.

Os rostos eram sérios, mas uma floresta de mãos er­gueu-se.

Rowan suspirou silenciosamente de alívio.

— Então está decidido — disse Lann num tom só­brio. — A marcha até à costa terá início amanhã, à pri­meira luz do dia. Eu própria irei dividir a comida que ainda existe no armazém, para que todos tenham um quinhão justo. Quanto ao resto, preparem apenas o que conseguirem carregar às costas, pois o caminho será longo e duro.

— Certamente que os bukshah podem transportar... — começou Norris a dizer, mas Lann abanou a cabeça e olhou para Rowan.

Este era o momento que Rowan temera. Sentindo os olhos da multidão pousados nele mais uma vez, ele en­goliu em seco e obrigou-se a falar.

— Os bukshah estão demasiado fracos para consegui­rem viajar até para costa — disse ele com voz rouca. — Eles morreriam durante a viagem.

— Mas agora eles já estão a morrer, um a um! — gritou alguém. — Se os deixarmos... Se os deixarmos...

O estômago de Rowan deu uma volta.

— Os bukshah não vão ficar cá sozinhos — disse ele, sentindo Shaaran e Norris ao seu lado, a ouvi-lo atenta­mente. — Eu vou ficar com eles.

Shaaran soltou uma exclamação de horror e olhou em redor à procura de Jiller, a mãe de Rowan. Ela estava à espera que Jiller protestasse, que insistisse para que o filho fugisse da aldeia com eles. Mas Jiller mantinha-se orgulhosamente silenciosa na frente da sala, e Annad, a irmã mais nova de Rowan, olhava em frente sem dizer uma palavra. Era óbvio que elas já tinham conhecimento da decisão de Rowan e que a tinham aceito.

— A maior parte deles não irá sobreviver mais do que uma ou duas semanas — prosseguiu Rowan num tom tranquilo. — Mas se eu conseguir que alguns dos ani­mais mais jovens e mais fortes se mantenham vivos até o tempo mudar, há uma possibilidade de a manada voltar a crescer nos próximos anos.

Só os que o conheciam melhor conseguiam perce­ber a tristeza que havia na sua voz uniforme. Só eles sabiam o que lhe custava falar da morte de um sequer dos seus amados bukshah.

— Não, Rowan! — gritou Shaaran. Ignorando o ir­mão que, embaraçado, lhe puxava pela manga, mandando-a calar, ela olhava desvairadamente em redor para as pessoas altas, de rosto sério, que a rodeavam.

— Digam-lhe! — suplicou ela. — Digam-lhe que ele não deve ficar!

— Rowan é o guardião dos bukshah — disse Lann num tom ríspido. — Os animais conhecem-no e con­fiam nele. A sua presença irá reconfortá-los e poderá ajudá-los a viver durante algum tempo, mesmo depois de a comida ter se acabado. Você está aqui há pouco tempo, menina, e talvez não compreenda como os bukshah são importantes para Rin. Todo o nosso modo de vida depende deles. Sem eles, nós não teríamos leite nem queijo, nem lã para a roupa, nem ajuda para lavrar a terra. A decisão de Rowan é a decisão correta.

Shaaran abanou a cabeça, incrédula.

— Como pode isso ser? Como pode ser correto Ro­wan ficar cá para morrer sozinho?

Lann ergueu a cabeça.

— Ele não irá morrer sozinho — disse ela. Os seus lábios curvaram-se num sorriso sombrio, e ela fez um gesto com a bengala. — É óbvio que eu não consigo caminhar até à costa sem ajuda, e não quero ser um fardo para todos vocês. Por isso, eu também vou ficar.

— E eu! — exclamou Bronden, teimosamente.

As linhas duras do rosto de Lann pareceram descon­trair-se. Subitamente, ela ficou com um ar cansado e velho.

— Então é tudo o que eu tenho a dizer — disse ela. — Vão para casa preparar-se.

As pessoas deram silenciosamente meia volta e dirigi­ram-se para a porta.

— Esperem! — a voz trêmula de Solla ergueu-se no silêncio. — E a Sheba?

Murmúrios nervosos encheram a sala. Sim. E Sheba, a Feiticeira, Sheba, a bruxa, agachada, a resmungar, junto da fogueira, na sua cabana atrás do pomar? Sheba, cujo mau gênio ficara ainda pior com o frio? Sheba que, durante semanas, ficara escondida, cuspindo escárnios e insultos a todos os que se atreviam a aproximar-se da sua porta, até mesmo às almas corajosas que tinham caminhado penosamente através da neve para lhe levar comida?

Teria Sheba conhecimento do plano para abandonar a aldeia? Quase certamente que sim. Ela tinha uma forma assustadora de saber essas coisas sem que fosse dita uma única palavra na sua presença.

Os corajosos habitantes de Rin mexeram-se desconfortavelmente. Tal como Lann, Sheba não seria capaz de caminhar até à costa. Ficaria ela ali, acenando o punho fechado enquanto eles partiam, amaldiçoando-os por a abandonarem?

Ou iria ela insistir em que carregassem com ela? Mais de um homem forte estremeceu ao pensar nos braços ossudos de Sheba à volta do seu pescoço, com os seus rabos-de-cavalo a balouçar enquanto ela se agarrava as suas costas como uma aranha gigante, sil­vando para que ele andasse mais depressa.

Jonn sorriu sombriamente.

— A Sheba não foi esquecida — disse ele. — Eu, a Jiller e o Timon tentamos entrar na sua cabana esta manhã, para falar com ela. Ela não só se recusou a dei­xar-nos entrar, como nos amaldiçoou. Parece que só há uma pessoa que ela deseja ver.

Ele olhou na direção de Rowan.

O coração de Rowan caiu-lhe aos pés.

 

SHEBA

Rowan atravessou o pomar, seguindo a trilha das pegadas fundas deixadas por Jonn, Jiller e Timon algumas horas antes. Ele mantinha a cabeça baixa. Não queria olhar para as árvores despidas à sua volta, com os troncos cobertos de branco e os ramos retorcidos a arra­nhar o céu cinzento como dedos de esqueletos congela­dos. Ele não queria ver a cabana de Sheba à frente, meia enterrada na neve, com pingentes de gelo a formarem uma franja à volta do telhado baixo.

Mas ele não conseguia impedir-se de respirar a fumaça da lareira de Sheba, a que a cinza e as ervas amargas davam um odor acre. Ele não conseguia fechar os ouvidos ao som abafado da voz dela, a entoar num tom monó­tono no interior da cabana e parando abruptamente quando ele chegou ao espaço plano, desimpedido, junto da porta.

É uma tolice sentir este medo, disse ele a si próprio, atravessando lentamente o terreno pisado gelado. Eu já não sou o garoto medroso que era na primeira vez que me vi frente a frente com Sheba. Nada que ela possa fazer conseguirá piorar a situação. Nada que ela me possa dizer será mais aterrorizador do que aquilo que eu imagino.

Mas, mesmo assim, ele estremeceu, porque sabia que Sheba, apesar de gostar de arreliar os outros e de ter prazer em ver as suas vítimas sofrer, dizia sempre a verdade. E se ela tivesse pedido para falar com ele com o objetivo de apagar a última chama de esperança que ainda ardia no seu coração, ele não seria capaz de suportá-lo.

Não se ouvia qualquer som vindo da cabana. Estava tudo em silêncio, com exceção do som da neve a ser triturada debaixo das botas de Rowan.

À porta, ele fechou os olhos por um momento, obrigando-se a si próprio a ficar calmo. Estava decidido a que desta vez, pelo menos, ele iria encontrar-se com Sheba sem medo. Os truques dela não iriam assustá-lo. Levantou a mão para bater.

Antes de os nós dos dedos tocarem na porta, esta abriu-se subitamente, batendo com força contra a pa­rede interior da cabana. Os pingentes de gelo partiram-se e caíram, mergulhando como lanças na neve atrás das costas de Rowan. Uma rajada de ar quente atingiu-o em cheio na cara. Engasgado, respirando com dificuldade, ele recuou, com o coração a bater com força e os olhos a arderem.

— O que é que está fazendo aí com a porta aberta? — gritou Sheba do interior. — O ar quente está todo a sair! Tolo medroso! Mexa-se!

Rowan atravessou, vacilante, o limiar e entrou na sala. A porta fechou-se com força atrás dele.

Estava tudo escuro com exceção do fogo da lareira, vermelho com lampejos verdes. Lentamente, os olhos lacrimejantes de Rowan distinguiram a forma corcovada que era Sheba. Ela tinha-se afundado na cadeira, que parecia ter sido levada para tão perto do fogo que os seus pés estavam ocultos por montículos de cinza branca.

— Chegue mais perto, Rowan dos Bukshah. — A voz áspera era agora enganadoramente suave. — Che­gue mais perto, mas não demasiado perto. A sua pele está fria, e o meu calor é precioso.

Rowan avançou desajeitadamente, sentindo-se como se estivesse a nadar através da obscuridade espessa, mal cheirosa. Depois, com um grito, ele deu um salto para trás quando uma coisa enorme, a rosnar, se ergueu de um dos lados da sala e se lançou sobre ele. O riso desdenhoso de Sheba soou aos seus ouvidos quando ele se estatelou no soalho sujo e se contorceu descontroladamente, tentando rastejar para um lugar seguro.

Um nariz quente e escamoso tocou-lhe no braço, e um hálito quente chamuscou-lhe a face. Olhos amare­los planos olharam para ele, e asas que pareciam de cabedal bateram no chão, cobrindo-o de pó.

O pânico de Rowan desapareceu, sendo substituído por uma vergonha irritada. O ataque não tinha sido um ataque. Era apenas a companheira de Sheba, a grach Unos, a cumprimentá-lo.

Ele conseguiu ajoelhar-se. O choque tinha-o deixado sem forças. A mão ainda lhe tremia quando a levantou para coçar o ombro de Unos. A pele escamosa não era tão fria como ele se recordava, mas sim escaldante. A grach silvou de prazer.

— Tinha-se esquecido da Unos, rapaz? — perguntou Sheba com um prazer malicioso. — Como foi isso possí­vel? Ela não te trouxe, a você e aos idiotas dos seus amigos, da terra dos Zebak para casa, no Verão passado?

Rowan pôs-se de pé, tentando ignorar a dor da perna e do ombro machucados.

— Eu não me esqueci, Sheba — disse ele o mais cal­mamente que conseguiu. — Mas não estava à espera que ela estivesse aqui dentro com você.

E porque é que havia de estar a espera? pensou ele en­quanto o enorme corpo pintalgado da grach balouçava à sua frente, irradiando calor. Quem iria tentar manter um animal tão grande dentro de casa? Quando os seus olhos se adaptaram à luz, ele viu que não havia qualquer mobília da sala, exceto a cadeira de Sheba. Tudo o mais tinha sido retirado para arranjar espaço para Unos.

— Nós temos trabalho para fazer — disse Sheba. Ela emitiu um som suave, semelhante a um gorjeio, e Unos arrastou-se até junto ela, deixando-se cair pesadamente ao lado da cadeira.

As chamas tornaram-se verdes. A sala pareceu, de imediato, ficar mais quente. A grach silvou de satisfação e os espigões do seu dorso atingiram o seu tamanho máximo para absorver melhor o calor.

Rowan umedeceu os lábios.

— Queria falar comigo, Sheba? — perguntou ele.

— Porque é que eu havia de querer falar com você? — perguntou a velha com um ar de desdém. — Esses tolos da aldeia podem pensar que é um grande herói. Eles podem pensar que tem coisas importantes para dizer. Mas eu conheço a verdade. Oh, sim! — Ela sorriu, e os seus dentes castanhos brilharam à luz do fogo.

Rowan ficou calado. Sheba tinha feito o possível por abalá-lo, e conseguira, mas ele estava decidido a não a deixar vencer aquela guerra de nervos. O silêncio pro­longou-se. O fogo crepitava. Rowan sentia a cabeça rodar por causa do calor.

Ao fim de algum tempo, Sheba mexeu-se impacientemente na cadeira.

— Atreve-se a fazer jogos comigo, rapaz? — pergun­tou ela com a sua voz áspera. — Não sabe que, se eu quiser, posso parti-lo como se fosse uma casca de noz?

Rowan manteve-se calado e ela prosseguiu.

— Começa a acreditar nas histórias que eles con­tam a seu respeito? — perguntou ela com desdém. — É um sonhador! Se não fosse eu, você não seria nada. Nada! Você foi sempre o meu instrumento, nada mais, a seguir as minhas instruções.

— Eu sei disso, Sheba — disse Rowan apressada­mente, embora lhe ocorresse que o que ela dizia não era totalmente verdadeiro.

— Mentiroso! — silvou Sheba, e Rowan sentiu um aperto no peito ao perceber que ela tinha lido os seus pensamentos. Quando começou a balbuciar ex­plicações, ela cuspiu rancorosamente para o fogo.

— Acha que eu sou tola e tenta lisonjear-me, con­cordando comigo quando não acredita no que eu digo? — perguntou ela. — Você é tal e qual como os outros. Ingrato e ignorante. A conspirar e a fazer planos nas minhas costas. Bem, vocês vão ver do que eu sou capaz!

Aquilo parecia um mau agouro.

— Vai... vai partir com os outros amanhã de manhã, Sheba? — atreveu-se Rowan a perguntar.

— Não, não vou! — respondeu ela com desdém. — Acha que eu sou uma peça de bagagem para ser trans­portada por imbecis? Não, não diga nada. Eu não te chamei aqui para conversar com você, guardião dos bukshah, mas sim para falar com você. Controle-se e escute.

Ela recostou-se na cadeira, resmungando para si pró­pria, com as mãos semelhantes a garras entrelaçadas junto da garganta. As suas pálpebras descaíram lentamente até os seus olhos se tornarem ranhuras cintilantes, pri­meiro verdes, depois brancas. O coração de Rowan batia dolorosamente. A voz monótona subiu e baixou, subiu e baixou, mas ele não conseguia distinguir as palavras.

Ele deu um passo em frente, mas o calor — o calor do fogo, ou da própria Sheba — era tão intenso que ele soltou uma exclamação. Instintivamente, tentou recuar, mas não conseguiu mexer-se. O calor tinha-o apanhado e mantinha-o preso, como uma teia de fogo invisível. Ele esforçou-se por se libertar do seu abraço, sentindo-o a queimar-lhe a pele, aquecendo-lhe o san­gue, chamuscando-lhe os ossos.

Depois a boca de Sheba abriu-se, e ela começou a falar claramente. As palavras chegaram até Rowan em ondas de calor escarlate. Era como se, em vez de as ouvir, ele as visse. Elas pareciam entrar pelos seus olhos como tições ardentes e ficar gravadas no seu cérebro.

"Os animais são mais sábios do que podemos imaginar

E aonde eles conduzem, quatro almas devem caminhar.

Uma para chorar e uma para lutar,

Uma para sonhar e uma para voar.

Quatro têm que se sacrificar.

No domínio entre o fogo e o gelo

A fome não pode ser negada,

A fome tem que ser mitigada.

E nessa rajada incandescente,

A busca une a vida e a morte iminente."

A voz calou-se. A boca de Sheba fechou-se. Com as terríveis palavras a ecoar-lhe na mente, Rowan deu por si à recuar, cambaleante, afastando-se da bruma escaldante.

As pálpebras enrugadas de Sheba levantaram-se len­tamente. O seu rosto estava exausto.

— Então? — balbuciou ela.

— Eu... eu não compreendo — gaguejou Rowan.

— Eu não tenho nada a ver com isso — disse ela num tom ríspido. — Eu já disse o que tenho a dizer. O resto é preocupação sua. Eu tenho outra tarefa a cumprir, e irei cumpri-la, embora ninguém vá me agradecer.

— Sheba, eu tenho que... — exclamou Rowan, mas ela, irritada, fez um gesto a mandá-lo calar.

— Fique quieto! — ordenou ela. — Está me fazendo perder tempo, a roubar-me o calor e a esgotar a minha energia.

Ela respirou fundo. Quando recomeçou a falar, falou rapidamente, e todos os vestígios de despeito tinham de­saparecido da sua voz. Pela primeira na vida de Rowan, era como se ela estivesse a falar com ele como sua igual.

— Eu não posso ajudá-lo mais, Rowan dos Bukshah — disse ela. — A única coisa que sei é que só você pode fazer o que tem que ser feito. A única coisa que lhe posso dizer é que tudo o que aprendeu até agora foi a prepa­ração para este momento. A única coisa que posso lhe dar é... isto.

Ela levou novamente a mão à garganta, procurando algo escondido sob o seu xale esfarrapado. Quando ela trouxe o objeto para a luz, Rowan viu que era o estranho medalhão velho que ela lhe dera para levar para a terra dos Zebak. Ela tinha-o pendurado ao pes­coço magro, ainda enfiado no cordão desbotado de seda entrançada.

Rowan ficou olhando para ela. Ele tinha se esquecido completamente do medalhão. Certamente que não se lembrava de o ter devolvido a Sheba quando regressara à aldeia. Mas devia tê-lo feito, pois ali estava ele, preso entre as unhas amarelas compridas que se curvavam como garras sobre a sua superfície baça.

Ela tirou o cordão do pescoço e estendeu o medalhão para Rowan.

— Tome! — silvou ela. — Use-o. Aprenda o que é ser o que eu sou.

Rowan hesitou. A última coisa que ele queria fazer era obedecer. Mas a sua mão estendeu-se involuntaria­mente e, antes de ele conseguir pensar, o medalhão bri­lhava, quente, entre os seus dedos, e ele estava a colocar o cordão ao pescoço.

O medalhão era pesado — muito mais pesado do que ele se recordava. Parecia vergá-lo.

Sheba recostou-se na cadeira, como se se sentisse ali­viada.

— Pronto... está feito — murmurou ela. — Agora vá embora. Eu e a Unos ainda temos que absorver mais calor. Temos que aproveitar todo o calor que o fogo tem para dar. — Ela atirou outro pau para o fogo. As chamas crepitaram e arderam, verdes. Ela voltou a fe­char lentamente os olhos.

— Mas, Sheba, o que devo eu fazer? — perguntou Rowan num tom de desespero.

— Observe e espere — respondeu Sheba, sem abrir os olhos. — Quando chegar a altura, saberá.

A luz verde tremeluziu nas suas faces encovadas. Ela começou a respirar lenta e profundamente. Rowan sabia que ela não voltaria a falar com ele.

Saiu da cabana como um sonâmbulo. Quando a porta se fechou atrás de si, o ar gelado penetrou-lhe pelos pulmões como uma faca, e a luz branca ofuscou-o. Ator­doado, com o medalhão a pesar-lhe em volta do pescoço como uma enorme pedra, cambaleou ao longo da linha das suas próprias pegadas até o pomar. Enquanto cami­nhava por entre as árvores enterradas na neve, ele ouviu novamente a entoação monótona, abafada, de Sheba.

 

UMA PARA SONHAR

Rowan sabia que Jiller, Jonn e Annad estariam à sua espera em casa, ansiosos, mas ele atrasou deliberadamente o passo quando saiu do pomar.

Estava abalado e confuso, mas uma coisa estava clara na sua mente. Independentemente do que ele dissesse sobre o que se passara na cabana de Sheba, a terrível profecia devia permanecer um segredo só seu. Quatro têm que se sacrificar...

Se ouvissem essas palavras, Jonn e Jiller se recusariam a deixar a aldeia na manhã seguinte. Rowan tinha tido grande dificuldade em convencê-los de que deviam juntar-se à marcha até à costa, enquanto ele ficava com os bukshah. Só quando Lann tomara o seu partido é que eles tinham, com relutância, concordado.

Se ouvissem a profecia, com a sua conversa agourenta sobre animais e sacrifício, eles mudariam novamente de idéias.

E isso não deve acontecer, pensou Rowan desesperadamente. A única coisa que me ajudará a suportar isto é saber que aqueles que amo... pelo menos as pessoas que eu amo... estão em segurança.

Mas quando saiu do pomar e começou a atravessar penosamente a neve que cobria as hortas, até mesmo essa consolação começou a abandoná-lo. Ao longe, ele via muitas pessoas reunidas ao pé do armazém. Lann estava distribuindo a comida que restava. As trouxas que elas levavam pareciam muito pequenas.

Rowan sentiu um enorme desânimo ao imaginar o grupo a partir na manhã seguinte, caminhando em direção à costa através da neve espessa, sem trilhos, guiado apenas pelo som do riacho soterrado.

Com bom tempo, a viagem até Maris demorava pelo menos uma semana. Quanto tempo mais demoraria quando cada passo era uma batalha? Três semanas? Quatro? Mais tempo ainda? A comida se esgotaria len­tamente, e o frio, a fome, a exaustão e os lobos fariam os seus estragos.

Rowan sentiu um arrepio de terror. Tentando domi­ná-lo, reprimindo os terríveis pensamentos que o tinham causado, ele baixou a cabeça e continuou a andar, fa­zendo desesperadamente votos para que ninguém se virasse e o visse.

Para seu alívio, ele chegou às primeiras casas sem que ninguém o chamasse. Continuou a andar em direção à praça da aldeia. Quando passou pela oficina de Bronden, ouviu o som solitário de um martelo. Bron­den estava a trabalhar, recusando-se teimosamente a admitir que em breve não haveria ninguém precisando dos seus produtos, tentando esquecer que em breve só ali estariam ela, Lann e Rowan.

Uma para chorar e uma para lutar,

Uma para sonhar e uma para voar.

Bronden é a lutadora, pensou Rowan. E, se acreditarmos em Sheba, eu sou o sonhador inútil. Lann poderá chorar lágri­mas de raiva por se sentir tão impotente. Mas quem será a quarta alma? A que irá voar?

Os seus olhos viraram-se involuntariamente para a olaria. A porta encontrava-se encerrada, as janelas es­tavam fechadas, e não se ouvia qualquer som vindo do interior. Neel, se lá estivesse, queria estar sozinho.

Como uma sombra, Rowan atravessou a praça de­serta e continuou a andar. Espreitou através da janela para a casa dos livros e viu que esta também estava vazia. Só as sedas se moviam, esvoaçando suavemente na cor­rente de ar que passava por baixo da porta, fazendo com que as figuras pintadas, as árvores e os animais pare­cessem estar vivos e a mover-se.

Os olhos de Rowan recaíram sobre uma cena em particular — a que sempre o perturbara mais. Ela retra­tava a aldeia escrava na terra dos Zebak, pouco mais de trezentos anos antes. Mostrava os guardas Zebak a arran­car os escravos mais corajosos e mais fortes aos braços dos seus entes amados chorosos e a fechá-los em gaiolas de ferro.

Talvez as pessoas representadas na cena pintada já soubessem que as mais fortes iriam ser acorrentadas aos remos de barcos de guerra e obrigadas a remar através do mar para lutar pela causa Zebak. Mas ninguém conse­guiria adivinhar que, na nova terra, os escravos se iriam virar contra os seus amos e obter a liberdade. Ninguém poderia saber que, na sua nova vida, no pacífico vale de Rin, eles não se recordariam do seu passado porque os Zebak tinham destruído as suas memórias. E ninguém conseguiria prever que o número de almas meigas que tinham ficado para trás como escravos, iria, a pouco e pouco, diminuir, até, trezentos anos depois, só restarem Shaaran e Norris para as representar.

Ou talvez, pensou Rowan, houvesse um que tinha visto o futuro. No meio da confusão, uma velha curvada, que tinha sido pintada com um ramo de ervas na mão para mostrar que era Feiticeira e curandeira, estava a passar secretamente o medalhão para uma mulher mais nova no interior de uma das gaiolas.

Rowan levou os dedos ao medalhão pesado que tra­zia no pescoço. Veio-lhe à mente o que se recordava dele. Ele não se parecia apenas com o medalhão da pintura. Era o mesmo. Ele tinha vindo para o vale de Rin com aquela jovem. Tinha sido transmitido ao longo das ge­rações sucessivas de feiticeiros que se tinham seguido a ela, até chegar às mãos de Sheba.

E agora Sheba deu-me, pensou Rowan. Mas não como o tinha feito antes. Na terra dos Zebak, ela esteve comigo em espírito. Desta vez, é diferente. Eu sinto-o.

Quando se lembrou das palavras de Sheba, sentiu um rugido nos ouvidos.

Leve-o. Use-o. Aprenda o que é ser o que eu sou.

A sua respiração estava a embaçar a janela. Ele já não conseguia ver as sedas esvoaçantes. Mas não fez qualquer esforço para limpar o vidro. Ele não queria ver os rostos graves, concentrados, das duas mulheres, a jovem e a velha, no momento em que algo raro e pode­roso passava de uma para a outra. Ele não queria pensar no que a dádiva de Sheba significava. Aprenda o que é ser o que eu sou...

Ele virou as costas à janela, certificando-se de que o medalhão e o seu cordão estavam completamente escon­didos debaixo da roupa, e começou a afastar-se rapida­mente. Agora queria chegar a casa o mais depressa possí­vel. Tinha o rosto a escaldar, mas sentia o coração gelado.

Cobriu rapidamente a distância que restava e, ao fim de pouco tempo, estava a abrir o portão e a atra­vessar o caminho desimpedido até à casa. Annad, que estivera claramente à sua espera, abriu a porta antes de ele chegar lá. Ela agarrou-lhe na mão para o puxar para dentro, depois deixou-a cair com um pequeno grito de surpresa.

— Oh, você está tão quente! — exclamou ela. Rowan olhou por cima da cabeça dela para os rostos ansiosos de Jonn e de Jiller, que tinham parado de arru­mar as coisas para virem ter com ele.

— A fogueira da Sheba estava muito quente — disse ele despindo o casaco acolchoado. — Muito mais quente do que é natural. Acho que ela está fazendo um feitiço qualquer de calor para ela própria e para a Unos.

— Seria, sem dúvida, uma tolice estarmos à espera que ela planejasse partilhá-lo com todos nós — comentou Jiller num tom seco.

— Acho que tem razão — concordou Rowan. — Ela acusou-me de lhe roubar calor, e parece que, de fato, lhe roubei algum, sem o saber.

Ele esfregou as mãos, só então percebendo que, desde que saíra da cabana de Sheba, não sentia frio.

— O que disse ela, Rowan? — perguntou Annad.

Rowan encolheu os ombros.

— Ela estava zangada. Disse que não iria partir ama­nhã de manhã. Disse que nós éramos ignorantes e in­gratos, e que ela iria fazer-nos ver

— Fazer-nos ver? O que queria ela dizer com isso? — exclamou Jiller.

— Não sei — Rowan sentou-se à mesa, que estava cheia de pilhas de cobertores dobrados, comida e outras provisões por entrouxar. — Ela disse que tinha algo a fazer que ninguém lhe agradeceria, mas não explicou o que queria dizer com isso.

— Talvez ela vá tentar nos impedir de partir — disse Jonn.

— Talvez. — Rowan baixou-se para desapertar os cadarços das botas. Ele tinha feito o que se propusera fazer. Sem dizer uma única mentira, desviara a atenção da família de si, para a opinião de Sheba sobre a marcha até à costa.

Era um alívio. Mas, subitamente, sentiu-se muito só e terrivelmente cansado.

— Desculpem — suspirou ele. — Eu gostaria de poder ajudar mais. Mas não tenho mais nada para dizer.

 

Nessa noite esteve mais frio do que nunca. Não caiu mais neve, mas antes da meia-noite já o vale estava coberto por uma estranha neblina gelada que enregelava até aos ossos.

Os habitantes de Rin, com as trouxas preparadas e prontos para o dia seguinte, foram descansar silenciosa­mente, com as mentes e os corações tolhidos por um medo que poucos se atreviam a admitir, até mesmo a si próprios. E, na escuridão, muitos se lembraram da voz estridente de Neel na apinhada casa dos livros.

O Tempo Frio... quando o Inverno mantinha a terra escrava, e répteis do gelo desciam da Montanha à procura de carne quente para devorarem...

Rowan estava deitado, completamente vestido, na sua cama estreita, vendo as sombras moverem-se lentamente nas paredes do seu quarto no sótão enquanto a vela ardia.

Ele já não partilhava o quarto com Annad, que agora dormia no chão, no pequeno quarto que Jonn e Jiller tinham construído para ela. Habitualmente, Ro­wan gostava da sua privacidade e do espaço extra mas, nessa noite, o sótão parecia muito vazio. Ele disse a si próprio que se devia despir antes que a vela se apagasse. Disse a si próprio que devia tentar dormir. Mas não conseguia arranjar energia para se mexer.

A neblina, branca e sufocante, movia-se no exterior da sua janela. Ele sentiu um arrepio só de vê-la mas, ao mesmo tempo, ficou satisfeito por ela existir, pois ocul­tava-lhe a visão da melancólica Montanha.

...os habitantes do Vale de Ouro voltaram as costas à Mon­tanha e não a honraram. E nós... nós fizemos o mesmo!

Seguramente que o que Neel dissera tinham sido disparates supersticiosos, tal como Lann afirmara. Segu­ramente...

No banco ao lado da cama de Rowan estava a coruja de ouro que ele encontrara nas ruínas do Vale de Ouro, no outro lado da Montanha. A coruja cintilava à luz trê­mula da vela. Os seus olhos cor de esmeralda pareciam brilhar, como estivessem a tentar dizer-lhe alguma coisa.

Rowan estendeu a mão para ela. A sua superfície macia pareceu aquecer as pontas dos seus dedos.

O Vale do Ouro não tinha sido destruído pelo Tempo Frio, recordou ele a si próprio. Na história dos Viajan­tes, o povo tinha feito as pazes com a Montanha, e a Primavera viera outra vez. O Vale só morrera muito mais tarde, séculos depois, quando foi assaltado pelas árvores assassinas de Unrin.

... o povo fez as pazes com a Montanha...

Mas como? Como?

Quatro têm que se sacrificar...

Os dedos de Rowan apertaram-se sobre a coruja de ouro. Os olhos verdes dela pareceram lampejar. A chama da vela tremeu e apagou-se.

 

Rowan abriu os olhos num lugar que lhe era estra­nho. Um lugar frio e ermo. A neve cobria o chão em declive, e o céu estava sombrio mas ainda não tinha escurecido. Os penhascos elevavam-se acima dele. Ele soube que estava na Montanha.

Não muito longe, três figuras cobertas com capa e capuz caminhavam através da neve em fila indiana, se­guindo um caminho muito batido que subia a monta­nha.

Todas elas levavam archotes, e as chamas eram atiçadas pelo vento agreste. O líder, alto e com ombros largos, coxeava, apoiado numa bengala comprida. A segunda figura era pequena e delicada. A terceira era magra, de altura média.

Este é o fim...

A última figura da fila parou, virou a cabeça e olhou diretamente para Rowan. Com um arrepio, Rowan re­conheceu o rosto. Era o rosto que ele via todas as vezes que olhava para um espelho. O rosto olhou para ele, olhou através dele, como se ele fosse invisível.

Rowan estava no exterior de si próprio. Estava a ver a si próprio ao longe. Mas ele conseguia sentir as emoções a fervilhar por trás daqueles olhados vidrados, cegos.

Medo. Ira. Um sofrimento terrível, doloroso.

Eu estou sonhando, pensou Rowan, esforçando-se por acordar. Mas o sonho era demasiado real, demasiado forte. Apoderou-se dele e manteve-o paralisado, obrigando-o a presenciar a cena à sua frente, sem se poder me­xer nem falar.

A figura pequena do meio parou e virou-se. Era Shaa­ran. Ela levava uma caixa comprida de madeira nos braços — a caixa de sedas que trouxera da terra dos Zebak.

— O que se passa? — perguntou a menina em voz baixa.

A figura Rowan encolheu os ombros.

— Eu senti que havia mais alguém aqui a observar-nos — disse ele.

O líder alto resmungou impacientemente, parando e aliviando a perna machucada.

— Como pode isso ser? — rosnou ele. — Nós somos os únicos que restam. — Era Norris. O seu rosto atraente estava tenso e os olhos manifestavam inquietação. — Os únicos que restam — repetiu ele, e subitamente soltou uma gargalhada áspera.

Shaaran olhou-o ansiosamente.

— A luz está a falhar — disse ela, apertando mais a caixa contra si. — Temos que continuar andando. Temos que ir atrás dos animais.

Norris olhou em volta e deu outra gargalhada.

— Para quê? — disse ele em voz alta. — Que importa o local onde vamos morrer? — prosseguiu ele, deixando cair a bengala e atirando-se ao chão.

Shaaran correu para ele, e Rowan viu-se a si próprio a mexer-se para ir ter com ela. Juntos, puxaram Norris pelos braços. Norris permaneceu onde estava, estendido no meio da lama e da neve, com o corpo fustigado re­petidamente por rajadas daquele riso terrível.

— Levante-se — ouviu Rowan dizer a si próprio numa voz calma, determinada, que não teria reconhecido como sua. — Nós não vamos te deixar. Mas, se ficarmos aqui, vamos morrer todos, para nada. E quando os outros voltarem da costa...

— Eles não vão voltar — disse Norris com uma voz arquejante, no meio de gargalhadas que mais pareciam soluços. — Tenho certeza de que, neste momento, eles já morreram todos, e a Feiticeira também já morreu. Vocês não compreendem? Estamos acabados. Isto é o fim.

Isto é o fim...

Shaaran abriu a boca como se fosse gritar. Mas o som, quando saiu, foi muito sumido, como se Rowan o esti­vesse a ouvir de muito longe. Uma névoa estava a fechar-se sobre os seus olhos...

Acordou sufocado, com o coração a bater com força. Estava a arder, banhado em suor.

Saltou da cama, O grito de Shaaran ainda ecoava na sua mente quando cambaleou até à janela e a abriu. Inclinou-se para a noite, respirando fundo. A neblina rodopiava à volta da sua cabeça, espessa e gelada.

Aprenda o que é ser o que eu sou...

— Não! — disse Rowan desesperadamente a si próprio, pressionando os dedos contra a madeira áspera do parapeito. Foi apenas um sonho estúpido! Não havia nada de real nele. Como é que eu poderia subir à Montanha com Shaaran e Norris? Amanhã de manhã, eles vão partir para a costa com os outros.

Depois o seu coração deu um enorme baque, pois subitamente o grito que ouvira no seu sonho chegou outra vez até ele, abafado pela neblina, mas alto e cheio de terror.

E, desta vez, ele não teve qualquer dúvida de que era real.

 

SUSTOS

Rowan desceu as escadas correndo. Calçou as botas e vestiu o casaco, que tinham estado a secar junto das brasas da lareira, e saiu disparado para a noite. Ouviu Jonn, Jiller e Annad a acordar e a chamar. Ele respondeu-lhes, mas não parou.

Não havia tempo. Ele tinha certeza de que a voz que ouvira era de Shaaran, e Shaaran não teria gritado da­quele modo se não estivesse aflita.

A neblina era como um cobertor branco à frente dos seus olhos. Com os braços estendidos para tentar orien­tar-se, chegou, aos tropeções, ao portão do jardim. Du­rante longos momentos, o silêncio foi total. Depois, vindo de algum lugar mais adiante, ouviu-se um estrondo, a voz de Shaaran a pedir desesperadamente ajuda, e outra voz, estridente e a falar atrapalhadamente.

E agora ele conseguia ver uma luz a cintilar — uma chama —, a oscilar, sumida, através da neblina. Sem pensar em mais nada, desatou a correr.

Já havia mais gente acordada. Rowan ouviu as suas vozes alarmadas a fazer perguntas, e os sons de portas e janelas a abrir-se. Mas ele sabia que estava mais perto da agitação do que qualquer outra pessoa.

Ele não conseguia compreender uma única das pala­vras frenéticas que ainda se misturavam com os gritos de Shaaran, mas a voz estridente era demasiado fami­liar, e a visão da chama tremida constituiu um aviso sinistro do que ele estava prestes a encontrar.

Tal como esperava, quando chegou à casa dos livros, a porta estava escancarada e, no interior, a luz e as sombras moviam-se de um lado para o outro. Shaaran, cuja figura frágil era inconfundível mesmo na obscuridade, estava lutando com uma figura escura ao fundo da sala. E havia fogo em algum lugar!

Com um grito, Rowan entrou na sala correndo, e quase tropeçou num corpo que estava caído, imóvel, no chão. Recuou, cambaleante. A luz das chamas dançava sobre o rosto inconsciente.

Era Norris. Tinha a cabeça encostada na base de uma estante de livros alta, os olhos fechados e a testa cheia de sangue. Havia um archote a arder ao lado da sua mão, como se, ao cair, ele o tivesse deixado tombar. O assoalho por baixo do archote soltava fumaça, e alguns dos livros na prateleira já estavam a arder, lambidos avidamente pelas chamas que subiam em direção ao teto, atiçadas pela corrente de ar que vinha da porta.

Rowan pegou no archote e segurou-o bem alto. Agora ele via Shaaran nitidamente. E conseguia ver que o homem a que ela se agarrava com toda a força. Era Neel, o oleiro, com o rosto pálido contorcido de raiva enquanto tentava libertar-se. Rowan deu um passo em frente.

— Não! — gritou Shaaran. — O fogo, Rowan! Apague o...

Com um grito de raiva lancinante, Neel fez um úl­timo esforço, atirou-a para o lado e saltou sobre Rowan. Rowan viu, de relance, o seu rosto tresloucado, os olhos desvairados, os dentes à mostra, os lábios salpicados de espuma. Depois Neel lançou-se sobre ele, atirando-o no chão e tentando arrancar-lhe o archote da mão.

— Largue! — rosnou Neel. — Dê-me! As sedas têm que ser queimadas! Tenho que as queimar para nos salvar a todos.

— Não! — disse Rowan, ofegante, agarrando com força no archote enquanto os dedos fortes de Neel ten­tavam obrigá-lo a soltá-lo. Ele sabia que não ia conseguir resistir durante muito mais tempo.

Virou a cabeça até conseguir ver a porta e abriu muito os olhos, fingindo uma expressão de surpresa e alívio.

— Jonn! — gritou ele. — Ajude-me!

Neel também olhou para a porta. A sua atenção va­cilou, e ele abriu um pouco a mão. Apenas por um instante, mas foi o suficiente. Rowan libertou o braço e atirou o archote através da porta aberta para a neve.

Neel gritou e correu atrás do archote. Com a cabeça à rodar, Rowan levantou-se e fechou a porta com um pontapé. Tirou o casaco e começou a tentar apagar o fogo das estantes com ele. Muitos livros já tinham queimado. Chamas pequenas, ávidas, corriam como insetos ao longo das prateleiras. A sala estava cheia de fumaça.

— Shaaran, sai daqui! — gritou ele.

Quando não recebeu resposta, olhou em volta, re­ceoso. Através de um véu de fumaça espesso, ele viu, espan­tado, que Shaaran estava em cima de uma mesa ao fundo da sala. Estava de costas para ele e tirava rapidamente as sedas penduradas, embrulhando-as e metendo-as na caixa de madeira.

Rowan voltou a chamar, mas Shaaran não se virou. Estava tão concentrada na sua tarefa que ele duvidou que ela o conseguisse sequer ouvir. A fumaça estava ficando cada vez mais espesso. Enquanto a observava, ela come­çou a tossir e a ficar engasgada.

— Shaaran! — gritou ele.

A porta abriu-se com estrondo atrás dele. Ele deu meia volta, aterrorizado com a possibilidade de Neel ter voltado, mas foi inundado por uma sensação de alívio quando viu, envolvidos pela neblina que se mis­turava com a fumaça, os rostos chocados de Jonn, Jiller e Bronden, com uma multidão de gente atrás deles. Jonn tinha uma lamparina acesa na mão.

— Foi o Neel! — disse Rowan. — Ele tentou queimar as sedas. Ele fugiu. Lá fora...

Com uma expressão de ira no rosto, Jonn deu meia volta e desapareceu na neblina. Bronden foi correndo atrás dele. Os outros começaram a pedir cobertores e água.

Deixando-os a apagar o fogo e a tratar de Norris, Ro­wan tapou a boca e o nariz com o cachecol e mergulhou na fumaça espessa no fundo da sala.

Encontrou Shaaran a alguns passos da mesa. Ela tinha a caixa de sedas nos braços mas, vencida pela fumaça, tinha caído de joelhos. Rowan puxou-a, para a pôr de pé, e começou a arrastá-la em direção à porta.

— Eu não conseguia dormir — disse Shaaran, engas­gada. As palavras jorravam dela, entrecortadas pela tosse e pelos soluços. — Estava preocupada com as sedas. Por isso, eu e o Norris viemos buscá-las, e... e vimos uma luz, e era o Neel. Chegamos... mesmo a tempo. Ele estava prestes a... Norris tirou-lhe o archote, e eles lu­taram... o Neel empurrou-o, e ele caiu e bateu com a cabeça...

— Fique quieta agora, Shaaran. O Norris está em se­gurança — acalmou-a Rowan. — E as sedas também estão em segurança.

Mas uma mão fria apertou-lhe o coração quando eles saíram finalmente para o ar frio do exterior e viram Norris, embrulhado num cobertor, apoiado no ombro de Allun. Norris tinha os olhos vidrados e transpirava de dor ao tentar pôr-se de pé sobre uma perna que claramente não aguentava com ele.

Ele sofrerá mais do que uma pancada na cabeça. Quando caíra, tinha macucado a perna. Agora já não iria deixar a aldeia com os outros na manhã seguinte. Ele não conseguiria fazer a viagem até à costa. E Shaaran não abandonaria o irmão. Nada havia de mais certo.

Mesmo assim, isto não significa que o sonho tenha sido uma profecia, disse Rowan a si próprio, atordoado, quando Shaaran se soltou dele e correu, aos tropeções, para junto de Norris. Claro que não significa!

Percebeu que os bukshah estavam a mugir. Certamente que os gritos e o cheiro do fogo os pertur­bara. Ou talvez Neel tivesse corrido em direção a eles e os tivesse sobressaltado.

Inquietos como eles andavam ultimamente, isso podia ser desastroso. Rowan sabia que, se não fosse feito nada para os acalmar, eles podiam voltar a derrubar a cerca e fugir. Abrindo caminho por entre a multidão, começou a dirigir-se apressadamente para o campo dos bukshah.

Ele viu, aliviado, que a estranha neblina se tornara mais fina, pelo que, mesmo sem luz, conseguia ver bas­tante bem o caminho. Enquanto caminhava, pensava. E, quanto mais pensava, mais convencido ficava de que o fato de Norris e Shaaran permanecerem na aldeia não passava de uma simples coincidência.

Aquelas capas com capuz que usávamos no meu so­nho, eram apenas capas antigas dos guerreiros de Rin, feitas de pele de bukshah, disse ele a si próprio. Já não há capas assim em Rin. E, além disso, no sonho, Norris disse que Sheba tinha ido para a costa. Isso seguramente que não irá acontecer. Foi a própria Sheba que me disse.

Os bukshah ainda estavam a chamá-lo. O mugido distintivo da Estrela era mais alto do que todos os ou­tros. Rowan apressou o passo. Quando chegou ao portão do campo, estava quase a correr.

Ao lado do portão estava o barracão onde era armaze­nada a comida da manada para o Inverno. Rowan abriu a porta do barracão, mergulhou na escuridão adocicada do interior e tirou metade de um fardo de feno da orla da pequena pilha que restava. Ele sabia que um pouco de comida acalmaria os enormes animais mais rapida­mente do que qualquer outra coisa. Com o fardo às costas, ele entrou no campo e chamou em voz baixa.

Os mugidos pararam, mas os bukshah não se apro­ximaram dele. Intrigado, Rowan, espreitou através da escuridão e da neblina que ainda rolava, espessa, sobre o riacho congelado, e voltou a chamar.

Ouviu a Estrela responder-lhe com um mugido, mas não viu qualquer movimento. Rowan dirigiu-se cautelo­samente para o som e, ao fim de algum tempo, viu formas cinzentas corcovadas, encostadas, sem se mexerem, à cerca que separava o campo do pomar. Ali, a neblina era apenas um véu tênue e, passado pouco tempo, ele conseguiu ver claramente a manada.

Os bukshah tinham-se juntado num grupo, muito perto uns dos outros, com os maiores e mais fortes no lado de fora, e os mais fracos no meio. Mesmo depois de verem o que Rowan trazia, nenhum deles se mexeu exceto a Estrela, que deu apenas um passo em frente.

— Estrela, não há razão para ter medo — disse Rowan suavemente quando chegou ao pé dela e deixou cair o fardo de feno aos seus pés. — O Neel nunca te faria mal, e o fogo está apagado. Está em segurança.

A Estrela abanou a cabeça, soltando um mugido vindo do fundo da garganta. A sua pele estremecia de­baixo da lã encaracolada da crina.

Rowan sentiu uma desagradável ponta de dúvida. Estariam os bukshah realmente em segurança? A Estrela certamente que achava que não, e Rowan sabia que, no passado, os instintos dela tinham sido mais fiáveis do que os dele.

Ele contou rapidamente as cabeças. Depois, com uma crescente sensação de frio no peito, moveu-se por entre os animais, chamando-os pelo nome. Todos, exceto um, responderam. Faltava a Crepúsculo, a bukshah cinzento-clara que era a mais velha, a mais peluda da manada, a favorita de Lann. E só podia haver uma razão para isso.

Tentando dominar o desespero, Rowan baixou-se para desfazer o fardo para que toda a manada pudesse comer.

— Sinto muito, Estrela — disse ele. — Sinto muito por Crepúsculo. Não percebi que ela estivesse... tão fraca. Amanhã de manhã vou à pro­cura dela. Mas por agora...

— Rowan! É você?

Rowan deu um salto. A voz de Jonn, vinha da direção do pomar, tinha um tom estranhamento tenso.

Rowan espreitou por cima da cerca. Viu, indistinta­mente, o brilho de uma lamparina.

— Sou, sim, Jonn! — gritou ele.

— Rowan, venha cá!

Não havia dúvida de que a voz de Jonn estava alte­rada. O que teria acontecido? Seria alguma coisa a ver com o Neel?

Com o coração na boca, Rowan fez uma última carícia à Estrela, saltou por cima da cerca e atravessou a neve em direção à luz da lamparina.

Encontrou Jonn à sua espera no meio das primeiras árvores semi-enterradas. O homem grande parecia per­turbado, mas os seus olhos abriram-se muito, numa expressão de choque, quando Rowan emergiu da es­curidão.

— Rowan! — exclamou ele. — Onde está o seu casaco? Deve estar gelado!

Só então Rowan percebeu que tinha deixado o casaco no chão da casa dos livros. Ele tinha saído para o campo dos bukshah sem qualquer proteção a não ser o casaco de lã. E nem sequer tinha reparado.

Ele e Jonn ficaram olhando um para o outro, espan­tados, durante um longo momento, depois Jonn abanou violentamente a cabeça, como que a desanuviá-la.

— Faz tudo parte da mesma coisa! — murmurou ele para si próprio. Depois, abruptamente, fez sinal para Rowan. — Venha ver uma coisa! — ordenou ele. — Veja o que encontrei quando andava à procura do Neel.

Ele virou-se e começou a caminhar por entre as ár­vores. Rowan seguiu-o, curioso. O seu estômago come­çou a dar voltas quando percebeu que Jonn se dirigia para a cabana de Sheba.

Na orla do pomar, Jonn parou e levantou a lampa­rina. A sua frente estava o caminho desimpedido que ia ter à porta de Sheba.


Mas não estava igual ao que Rowan vira na última vez que lá estivera. Não havia nenhuma luz trêmula a brilhar, oriunda da cabana. Não havia qualquer cheiro acre de fumaça. Não se ouvia qualquer entoação. E junto à porta começava uma trilha larga, preta, que descrevia uma curva através da neve pisada e desaparecia nas colinas mais adiante.

Rowan ficou a olhar.

— O que é? — perguntou ele em voz baixa.

Sem dizer uma palavra, Jonn conduziu-o até a trilha preta. Quando o pisou, Rowan sentiu o calor elevar-se do chão, mesmo através das suas botas grossas, molhadas. Deu alguns passos e viu, espantado, o vapor a erguer-se dos lugares que ele pisava.

— A trilha atravessa as colinas — disse Jonn, cuja voz habitualmente calma estava tensa de excitação. — Segui ao longo dele, até ter a certeza. Vai dar no riacho, depois continua em direção à costa.

Rowan ficou a olhar, incapaz de assimilar o que estava a acontecer. Engoliu com dificuldade.

— Mas a Sheba disse-me...

— E só te disse a verdade! — interrompeu-o Jonn. — A sua maneira rancorosa, enganadora, ela lhe disse exatamente o que estava a planejar. Ela disse que havia de nos fazer ver, e ela está a fazer-nos ver. Ela disse que não deixaria a aldeia conosco, e não o vai fazer. Porque ela já se foi embora! Ela vai guiar-nos!

Ele agarrou no braço de Rowan.

— Não percebe, Rowan? O feitiço do calor era para isto. A Sheba vai abrir uma trilha através da neve, até à costa!

— Mas... — a palavra pareceu ficar colada à garganta de Rowan. Ele sentia-se sufocar com uma mistura de espanto, alívio e medo. — Mas a Sheba mal consegue andar, Jonn! Mesmo que conseguisse derreter a neve, como é que ela...?

— Ela não vai a pé, vai montada — disse Jonn, bai­xando a lamparina para que a luz iluminasse o chão preto. E ali estavam, inconfundíveis, as pegadas pesadas de um animal enorme, com garras.

As pegadas de Unos, a grach.

 

DESCOBERTAS MACABRAS

E foi assim que os habitantes de Rin saíram no seu vale ao nascer do dia, não a caminhar penosa­mente através da neve espessa como tinham pensado, mas avançando em quatro filas, lado a lado, ao longo da trilha preta queimada que a sua Feiticeira tinha deixado para eles seguirem.

Rowan e Shaaran despediram-se deles no local em que a trilha preta se encontrava com o riacho, depois ficaram a vê-los afastar-se. As pessoas iam de cabeça er­guida, com os olhos fixos no horizonte. Sentiam o coração pesado, mas não choraram, e apenas Allun, o meio-Viajante, olhou para trás.

— Eles não querem saber — murmurou Shaaran, com os olhos rasos de lágrimas.

— Querem, sim — replicou Rowan. — Mas eles não têm feitio para manifestá-lo. — Ele retribuiu o aceno de Allun e depois deu meia-volta, para não continuar a ver a longa fila que seguia para leste, a única coisa que se movia na imensidão branca.

— Vamos — disse ele pondo o braço à volta dos om­bros de Shaaran. — Temos que voltar para junto dos outros. O Norris deve estar preocupado com o seu para­deiro.

Shaaran mordeu o lábio.

— Não está, não — disse ela em voz baixa. — Ele está muito zangado porque me recusei a deixá-lo. Ele diz que a minha fraqueza nos envergonha aos dois. Mas, com exceção do meu avô, o Norris era o meu único companheiro na terra dos Zebak. Eu não podia aban­doná-lo, Rowan. Não podia!

Rowan teve pena dela. Ele sabia muito bem o que era sentir-se uma pessoa fraca, diferente, no meio dos fortes habitantes de Rin.

— Você não é fraca, Shaaran — disse ele, quando iniciaram a caminhada de regresso à aldeia. — Ao seu modo, você é muito forte. Olhe só como lutou com o Neel para proteger as sedas!

Ele desejou imediatamente não ter falado, pois Shaaran estremeceu ao ouvir o nome de Neel. Apesar de uma busca que durara horas, o oleiro não tinha sido encontrado na noite anterior.

— O idiota caiu num buraco e ficou congelado, podem ter a certeza — dissera Lann num tom inexpressivo.

Mas Rowan e Jonn não tinham tanta certeza. E Shaa­ran tinha medo de que Neel estivesse à espreita em algum lugar na aldeia, à espera de uma oportunidade para voltar a tentar destruir as sedas.

— Eu não culpo o Neel — disse ela. — Ele só tentou fazer o que pensou que estava certo, e espero, do fundo do coração, que ele esteja bem. Mas se ao menos o con­seguíssemos encontrar! Assim poderíamos conversar com ele, explicar-lhe...

Rowan olhou para ela e fez votos para que ela não repetisse essas palavras de perdão em frente de Lann. A velha guerreira ouvi-las-ia com desdém.

Quando passaram pela cabana de Sheba e começa­ram a atravessar o pomar, Rowan lembrou-se de algo que talvez desviasse os pensamentos de Shaaran dos seus problemas.

— Tenho que ir dar de comer aos bukshah — disse ele. — Quer vir comigo?

Shaaran hesitou, e uma mistura de medo e vontade de agradar perpassou-lhe o rosto. Rowan sempre se admi­rara com o fato de ela ter medo dos meigos bukshah, ao passo que Unos, a grach, horrenda e com garras, não a assustava absolutamente nada.

— Não faz mal — disse ele rapidamente. — Em todo o caso, eu tenho que ir falar primeiro com a Lann, senão ela ficara preocupada. Mas os bukshah nunca te fa­riam mal, Shaaran. Eles são uns animais muito meigos.

— Os chifres têm um aspecto muito perigoso — res­pondeu Shaaran em voz baixa.

Rowan riu-se.

— Eu te disse... eles nunca usam os chifres — disse ele. — Nem sequer uns contra os outros.

— Então porque é que eles têm chifres? — retorquiu Shaaran.

Rowan não conseguiu encontrar resposta para essa pergunta. Ele já a tinha feito muitas vezes a si próprio.

Quando chegaram à aldeia, esta estava estranhamente silenciosa. Atravessaram a praça sem falarem, passando instintivamente em bicos de pés pelas casas fechadas, de portadas encerradas. Sem gente para lhe dar vida, a aldeia parecia um cemitério.

Quando chegaram à padaria, sentiram um enorme alívio pois ali, pelo menos, havia barulho e movimento. Quando Rowan e Shaaran entraram na enorme cozinha, ouviram a voz de Lann a gritar instruções, e o som de mobília a ser arrastada na sala de estar que ficava a seguir à cozinha.

Para que a pequena quantidade de madeira e com­bustível durasse o mais tempo possível, tinha sido decidido que os que permanecessem em Rin iriam mudar-se para uma única divisão, para poderem partilhar a comida, a luz e o calor.

Lann tinha decidido que ficariam na padaria, porque esta era ampla e ficava perto do centro da aldeia. Rowan ficou muito satisfeito. Ele adorava a padaria, que para ele estava cheia de agradáveis recordações de Sara, a bem-disposta mãe de Allun, e do próprio Allun a cantar enquanto tirava tabuleiros de aromáticos bolos e pãezinhos do velho forno preto.

Mas quando ele e Shaaran entraram na confortável sala de estar atrás da cozinha, ele percebeu que, com Lann, a vida na padaria não seria tão alegre e con­fortável como tinha sido com Sara quando esta tomava conta da casa.

Na sala ampla, já não havia mobília. As únicas peças que tinham ficado eram uma cadeira em frente da la­reira, onde Norris estava sentado, com um ar carrancudo, e o banco em cima do qual estava apoiada a sua perna ferida.

Espalhados pelo chão, sobrepostos para evitar as correntes de ar, estavam tapetes trazidos dos quartos. As portadas das janelas estavam bem fechadas. Bronden estava bloqueando a escada com mobília e cobertores velhos para impedir o ar quente de subir, desperdiçando-se.

Cinco conjuntos de roupa de cama enrolada tinham sido dispostos ordenadamente à volta das paredes nuas. O saco dos pertences de cada pessoa tinha sido colo­cado ao lado do seu rolo, e junto dele estava uma caneca de estanho, um prato e uma colher.

Era como um acampamento militar preparado para um cerco — um cerco contra o frio. Lann estava no meio da sala, curvada sobre a sua bengala.

— Até que enfim! Finalmente chegaram! — disse ela quando Rowan e Shaaran apareceram. — Vejam o que já fizemos enquanto vocês dois passeavam pelas colinas. Isto não está começando bem!

O tom da voz dela era duro, e o seu rosto era uma massa de rugas franzidas. Rowan sentiu Shaaran en­colher-se, encostada a ele, e suspirou interiormente. Ele sabia perfeitamente que Lann estava a usar o trabalho e a zanga para disfarçar a tristeza que a partida do seu povo lhe causava. Mas, para Shaaran, a velha parecia apenas severa e assustadora.

— Ajude Bronden com as escadas, Rowan dos Bukshah — prosseguiu Lann num tom ríspido. — Você, menina, pode ir buscar mais lenha para a lareira.

— Eu posso fazer isso — disse Norris, tentando pôr-se de pé. — A Shaaran não é suficientemente forte para...

— Deixe-se ficar onde está, Norris! — gritou Lann. — Se não descansar, a sua perna não vai sarar. A sua irmã insistiu em ficar, e tem que ganhar o seu sustento.

Norris voltou a afundar-se na cadeira, com um ar amuado.

— Neste momento, eu não posso ajudar a Bronden, Lann — disse Rowan. — Tenho que ir tratar dos bukshah. — Ele respirou fundo e obrigou-se a si próprio a prosseguir no mesmo tom de voz. — Sou capaz de demorar mais do que habitualmente. A Crepúsculo morreu ontem à noite. Tenho que ver se a encontro para enterrá-la, por causa dos outros.

— A Crepúsculo? — As rugas no rosto de Lann pare­ceram ficar mais fundas e, por um momento, algo seme­lhante ao desespero escureceu os seus olhos esmoreci­dos. Mas a única coisa que ela disse foi: — Vá enterrá-la, então. Mas não se esqueça de a tosquiar primeiro. Não se pode desperdiçar lã.

 

O campo dos bukshah era uma imensidão silenciosa branca, castanha e cinzenta. Atrás dele via-se a enorme Montanha, envolta em neblina.

Os bukshah ainda estavam muito juntos, encostados na cerca do pomar. A neve à sua volta estava marcada pelos buracos que eles tinham escavado para desen­terrarem raízes de ervas, a única comida que ainda havia no campo.

Quando Rowan os chamou, eles não se aproxima­ram nem sequer se mexeram quando ele partiu o gelo do lago com um espigão de ferro. Só quando ele se diri­giu apressadamente para o barracão e tirou de lá a ração de feno diária é que eles se acercaram dele.

Quando todos eles tinham começado a comer, Rowan pegou na pá, no saco e na tesoura grande que tinha preparado e seguiu as pegadas de cascos em debandada até chegar a um pedaço de terra pisada ao lado do riacho coberto de neve.

Para sua surpresa, não havia sinal do corpo de Crepús­culo em parte alguma.

O riacho gelado gorgolejava secretamente por baixo dos seus pés quando ele atravessou a neve que o cobria. A Montanha erguia-se à sua frente, uma parede disforme de branco em turbilhão. O frio jorrava dela, apanhando Rowan na cara como um sopro gelado, fazendo-o suster a respiração.

O choque fê-lo recuar. A voz estridente de Neel ecoava na sua memória.

É uma maldição... Nós ofendemos a Montanha, e agora a Montanha virou-se contra nós.

Depois Rowan viu algo em que, no frenesi dos úl­timos dias frenéticos, não tinha reparado.

Naquele lado do riacho não havia pegadas de bukshah. Pequenos montes de neve, compridos e regulares, que se erguiam ao lado uns dos outros como ondas do mar de Maris, iam até à névoa da Montanha. Mesmo na sua incessante busca de comida, os bukshah não tinham atravessado o riacho desde a última queda de neve, três dias antes.

Rowan deu subitamente um salto, ao ouvir um mu­gido suave atrás de si. Deu meia volta e viu a Estrela no outro lado do riacho, a observá-lo. Para experimentar, ele estendeu a mão, convidando-a a vir ter com ele, mas ela abanou a cabeça pesada e não se mexeu.

Arrastando a pá atrás de si, Rowan atravessou nova­mente o riacho e aproximou-se da Estrela. Enfiou as mãos enluvadas na lã espessa da sua crina e sentiu a pele tremer debaixo dela.

— Estrela, onde é que a Crepúsculo caiu? — murmu­rou ele.

A Estrela escavou o chão com as patas, com a cabeça baixa e com as pontas dos seus enormes chifres curvos quase a tocarem na neve.

— A Crepúsculo! — repetiu Rowan, agarrando com um pouco mais força na crina. — Mostre-me, Estrela.

A Estrela virou a cabeça para olhar para ele. Depois, com relutância, começou a andar.

Ela conduziu Rowan ao longo do riacho escondido até chegar ao canto mais distante do espaço pisado. Ali, ela parou e recomeçou a escavar o chão.

Rowan olhou em volta. Não havia nada para ver, exceto um enorme monte de neve que atravessava o riacho e terminava num montículo na orla do espaço.

Ocorreu-lhe uma idéia horrível. Talvez a Crepúsculo tivesse caído de joelhos, e a extremidade do monte de neve tivesse desabado em cima dela quando ela tentava levantar-se. Este pensamento fez-lhe arder os olhos. Lim­pando as lágrimas antes que estas caíssem e congelassem nas suas faces, ele pegou na pá e começou a escavar o montículo de neve.

A Estrela recuou, mugindo insistentemente.

— Não tenha medo, Estrela — disse Rowan. Mas, com cada pazada de neve que ele atirava para o lado, o seu próprio medo aumentava. Tinha as mãos a tremer.

O que se passa comigo? pensou ele, zangado. Eu já vi a morte antes, muitas vezes. Cerrando os dentes, inclinou as costas para trás e cavou com mais força, abrindo um túnel na massa branca congelada.

Depois, subitamente, com um grito de choque, foi impelido para a frente, tropeçando e quase caindo. A pá tinha mergulhado no vazio. Num espaço oco por baixo da neve.

Rowan pôs-se de joelhos e espreitou para o espaço oco. Todo ele ficou arrepiado.

Um espaço comprido, estreito, sombreado de azul. O gorgolejar alto do riacho a ecoar das paredes geladas. Ar inerte, tão frio que lhe fazia doer os lábios e os olhos, tão frio que o medalhão que ele tinha ao pescoço pa­recia queimar.

Rowan ficou boquiaberto, hipnotizado pelo ambiente estranho, paralisado de medo. A Estrela gemeu, tocando-lhe com o focinho, incitando-o a levantar-se. O toque dela quebrou o feitiço. Os seus olhos adaptaram-se len­tamente à luz, e a sua mente deu sentido ao que ele vira.

A neve que desabara tinha escondido a entrada de um túnel por baixo do monte de neve. No outro ex­tremo, preso entre as paredes congeladas, estava algo peludo e cinzento.

A Crepúsculo.

Um nó formou-se na garganta de Rowan. Ele pensou que conseguia perceber o que acontecera. Tal como ele receara, Crepúsculo tinha caído e fora soterrada pela neve que desabara. Ela devia ter conseguido arras­tar-se para a frente durante algum tempo, formando, ao mover-se, um túnel através da brancura gelada. De­pois, quando, finalmente, não conseguira avançar mais, ela tinha simplesmente pousado a cabeça e morrido.

Ele pôs-se de pé, a tremer. A idéia de desenterrar os restos patéticos da Crepúsculo e de lhe tirar a lã en­cheu-o de repulsa. A idéia de entrar naquele túmulo ge­lado, de sombras azuis, encheu-o de medo. Ele soube que não conseguia fazê-lo.

Pegou na pá e, com alguns movimentos, fechou a entrada do túnel, voltando a selá-lo.

A Estrela tocou-lhe com força no braço, ansiosa por sair dali. Rowan pegou-lhe na crina e deixou que ela o conduzisse. Por baixo do seu pêlo espesso, a pele dela estremecia, estremecia.

Os animais são mais sábios do que imaginamos...

Os dedos de Rowan fecharam-se sobre a lã macia, ao mesmo tempo que um pensamento terrível lhe pe­netrou na mente como um fragmento de gelo.

A Estrela amava-o, mas já não confiava nele para tomar decisões por ela. Ela sabia que o frio vinha da Montanha. Há dias que ela o sabia. Ela sabia que todos os cuidados de Rowan e o conforto que ele lhes pudesse proporcionar só resultariam numa morte mais lenta para a manada.

Como se sentisse o desespero de Rowan, a enorme bukshah parou e levantou a cabeça para olhar para ele. Fitou-o nos olhos, com os seus olhinhos pretos a tentar ler os dele. Rowan retribuiu o olhar dela, impotente. Ao fim de algum tempo, a Estrela desviou os olhos e prosse­guiu o seu caminho.

 

O resto do dia passou como um sonho — um sonho estranho, quase silencioso. O único som que se ouvia era o de Bronden a martelar, a entaipar as casas para as pro­teger do frio.

Rowan não disse nada sobre o que encontrara no campo dos bukshah. Não tinha vontade de falar da morte estranha e horrível da Crepúsculo. Nem estava pronto para falar do terror que sentira quando o sopro gelado da Montanha o atingira no rosto. Se dissesse aos outros que aquele frio terrível que se apoderava da terra provi­nha da Montanha, estaria parecendo tão histérico e supers­ticioso como Neel.

Passou o resto da manhã a cumprir as ordens de Lann, transportando comida, combustível e outras coisas necessárias para a padaria, procurando em vão uma lamparina que ninguém sabia onde fora deixada, e que Lann insis­tia que era indispensável e que precisava de ser enchida de óleo. A tarde, após uma frugal refeição de pão e queijo, ele trabalhou no campo dos bukshah, verificando as cer­cas, partindo novamente o gelo do lago enquanto a ma­nada o observava com um ar apático.

À medida que escurecia, o ar foi-se tornando mais frio. Mais frio do que nunca. Rowan continuou a trabalhar. Manteve os olhos baixos para não ter que olhar para a Montanha. Mas todos os nervos do seu corpo estavam conscientes dela, pairando acima dele, soprando o frio, soprando a morte.

Quando o Dragão do topo da Montanha rugiu ao crepúsculo, ele tinha as mãos tão dormentes que já não conseguia pegar nas ferramentas. A neblina estava a tor­nar-se mais espessa na base da Montanha, deslocan­do-se através dos montes de neve em direção ao riacho. Ele sabia que tinha que procurar a segurança da pada­ria, e depressa. Mas não queria deixar os bukshah, que permaneciam muito juntos ao pé da cerca do pomar. Ele temeu o que a noite pudesse trazer.

 

TERRORES NOTURNOS

Rowan atravessou as ruas sombrias, desertas, passan­do pelas casas entaipadas, sentindo-se um fantasma. Mas quando chegou finalmente à padaria e entrou na cozinha quente, iluminada, ficou um pouco mais ani­mado.

Uma panela de sopa, rala, mas aromática, fervia a fogo brando em cima do fogão. Na sala de estar ao lado, tudo era paz e tranquilidade. Norris estava a ensinar Bronden a fazer um nó de corda que ela não conhecia. Lann dormitava ao pé da lareira. E Shaaran estava de pé em frente de um pedaço de seda esticado numa armação, com um pincel fino na mão.

— Lann disse que eu devia fazer uma seda deste mo­mento... da neve e das pessoas a abandonarem a aldeia — explicou ela a Rowan quando ele se aproximou dela. — Ela disse que era uma coisa importante que eu podia fazer. Ela disse que eu tenho que dar continuidade ao trabalho dos meus antepassados, pintando os aconteci­mentos importantes da nossa história, de modo a que os que vierem a seguir não se esqueçam. Os contornos já estão quase acabados.

Rowan olhou, com admiração, para o belo desenho — uma longa fila de pessoas a caminhar ao longo de uma estrada preta que seguia para leste, os bukshah no seu campo, a Montanha a pairar sobre todos eles. Depois, os seus olhos cruzaram-se com os de Shaaran, e estes já não eram mortiços, cheios de desalento, mas sim determinados, e ele abençoou Lann por ter pen­sado na única coisa que a poderia reconfortar.

Nessa noite, ele foi cedo para a cama. Não lhe apetecia conversar. Havia demasiadas coisas na sua cabeça que não podia partilhar. Mas, embora estivesse muito can­sado, lutou contra o sono.

Ficou deitado com a cara virada para a parede en­quanto Lann, Bronden e Norris permaneceram senta­dos à lareira, a conversar sobre os que se tinham ido embora, perguntando a si próprios quantos quilôme­tros teriam percorrido naquele dia e se estariam em se­gurança.

Lentamente, as vozes foram ficando mais indistintas, até se transformarem num suave murmúrio em algum lugar na orla do seu consciente. Ele fechou os olhos e obri­gou-se a si próprio a descontrair-se.

Não tenha medo, disse ele a si próprio. Desta vez não vai sonhar. Não vai sonhar...

 

Rowan abriu os olhos. Estava num caverna. A neblina rodopiava na escuridão para além do triângulo estreito, denteado, da entrada da caverna. Ao seu lado, estavam três pessoas embrulhadas em capas pesadas, muito juntas à volta de uma lareira minúscula. A luz vermelha trê­mula, mal se distinguiam os seus rostos, mas Rowan viu o suficiente para saber quem eram. Norris. Shaaran. Ele próprio.

Os três não lhe prestaram qualquer atenção. Ele sabia que não o podiam ver. Desta vez, ele soube imediata­mente que estava a sonhar.

— O fogo vai manter-nos em segurança — mur­murou Shaaran. — Seguramente que vai.

— Devia manter — retorquiu Norris num tom impa­ciente. — Mas a noite vai ser longa.

Rowan viu a sua imagem para a menina. Os olhos dela estavam escuros de medo. A caixa de sedas estava em cima do seu colo. Ela agarrava-a com tanta força que os seus dedos estavam brancos.

— Vamos ver algumas sedas — sugeriu a figura Rowan suavemente. — Vamos pensar nos tempos antigos. Isso vai desviar as nossas mentes do presente e recordar-nos o motivo por que estamos aqui.

Norris resmungou, mas a menina, grata, acenou a cabeça em sinal de concordância. Ela abriu a caixa e mostrou os familiares rolos de seda. Enfiou a mão na caixa e tirou um ao acaso, depois levantou-se e desenro­lou-o. A figura Rowan susteve a respiração. Norris virou-se. A menina olhou para baixo, viu qual era a pintura e exclamou, desanimada:

— Oh, que pouca sorte! Eu não queria...

Ela calou-se e, com mãos trêmulas, começou a enrolar novamente a pintura. Mas Rowan tinha visto o sufi­ciente para ficar com os cabelos da nuca em pé.

A pintura era toda a preto e branco, com sombras azuis e cinzentas. As sombras eram claras e precisas, as criações de uma mão hábil.

Uma longa fila de pessoas a caminhar através das colinas cobertas de neve, ao longo de uma trilha preta que seguia em direção a um horizonte ermo. Os bukshah, os únicos objetos escuros numa imensidão branca, estavam muito juntos por baixo da Montanha que pairava acima de tudo, envolta em neblina.

E da neblina emergiam, a contorcer-se, centenas, milhares de coisas brancas enormes parecidas com cobras sem olhos. Coisas com maxilares abertos, re­vestidos de azul, e dentes que pareciam estilhaços de gelo. Coisas que deslizavam e saíam, ondulantes, do gelo, coisas que faziam túneis através da neve, procuran­do, procurando...

Algo agarrou no braço de Rowan. Ele estremeceu, com o choque, e tentou sacudi-lo. Tentou gritar, mas a única coisa que conseguiu emitir foi um gemido estran­gulado.

— Rowan! — A voz era alta ao seu ouvido. Era a voz de Bronden murmurando secamente. — Acorde! Está a mexer-te muito e a gemer, perturbando-nos a todos. Acorde, ou fique quieto, por favor.

Os olhos de Rowan abriram-se rapidamente. Durante uma fração de segundo ele ficou imóvel, ofegante, a olhar para o rosto gordo, irritado, de Bronden. Depois pôs-se de pé num salto, quase a deitando ao chão.

— O que se passa com você? — exclamou ela com um ar zangado.

Rowan tinha a garganta apertada de medo, e a ca­beça a andar à roda com as visões do sonho.

— Os bukshah! — disse ele com a voz estrangulada, calçando as botas e pegando na sua faca. — Eu estava enganado! Muito enganado! A Estrela sabia... todos eles sabiam... ah, pobre Crepúsculo! Ela foi a primeira. Agarraram nela e arrastaram-na. Arrastaram...

Bronden fitava-o, boquiaberta. À luz fraca do Fogo, ele viu Lann acordar lentamente, e Norris e Shaaran a fitá-lo.

O fogo manter-nos-á em segurança...

Rowan correu para o outro lado da sala, tirou um archote da pilha e mergulhou-o nas brasas da lareira. Ele pegou rapidamente fogo.

— Rowan! — gritou Lann, estendendo impacientemente um braço para que Bronden a puxasse para se pôr de pé. — O que é que passa?

— Tragam archotes! — gritou Rowan. — O campo dos bukshah! Apressem-se, por favor!

Segurando o archote bem alto, ele correu para a cozi­nha e saiu para a rua, onde uma neblina gelada rodopiava como uma coisa viva, prendendo-se à roupa, penetrando-lhe nos pulmões, cegando-o.

Mas ele correu como o vento, com o coração a bater com força e o peito a doer de medo. Ouvia os passos pesados de Bronden atrás de si. E também uns passos mais leves, atrás de Bronden. E Norris a ordenar a Shaaran que voltasse para trás, que se deixasse ficar em segu­rança. E Lann a gritar ordens inúteis a todos eles.

Quando emergiu do aglomerado de casas e se dirigiu para o campo silencioso dos bukshah, Rowan olhou por cima do ombro e viu as chamas trêmulas dos archotes através da névoa. Quatro archotes em fila, a balancear para cima e para baixo.

Uma para chorar e uma para lutar,

Uma para sonhar e uma para voar...

E subitamente, muito perto, ouviu um grito lanci­nante.

Não era a Estrela. Nem nenhum dos outros bukshah. Animal algum fazia aquele som. Aquela era uma voz humana a flutuar através da névoa em ondas de um frio mortal.

À frente viam-se os contornos do barracão da comida. A porta estava escancarada. Ao lado dele, uma parte da cerca estava achatada, meio enterrada na neve pisada. E muito perto, no campo dos bukshah, havia uma luz a mover-se desordenadamente.

— Ah, não! Não! — o grito lancinante erguia-se, es­tridente, num lamento.

Rowan passou por cima da cerca deitada abaixo. E através da névoa viu Neel, o oleiro, a escorregar e a cambalear, recuando, na neve.

Neel gritava, ao mesmo tempo que recuava na direção do barracão, rodando a lamparina em arcos enor­mes em frente do corpo.

Ele tinha bocados de feno agarrados ao cabelo e à roupa. A neblina rodopiava à sua volta, por cima dele, formando formas brancas que se contorciam à luz da lamparina. Os seus olhos estavam muito abertos e fixos, e o rosto distorcido virado para cima era uma máscara de terror.

O Neel não está morto, deu Rowan por si a pensar inexpressiva, estupidamente, ao mesmo tempo que a sua mente absorvia o que os seus olhos viam. Neel tinha levado a lamparina de Lann. Durante todo aquele tempo, Neel estivera escondido no barracão da comida dos animais, atrás dos fardos de feno. Mas o que é que ele... Porque é que ele...?

Neel gritou, rodando a lamparina muito alto. Foi então que Rowan, horrorizado, viu finalmente o que o oleiro via. Viu o que eram as formas que se contorciam para além do círculo de luz.

A volta de Neel, a pairar por cima dele, havia animais brancos enormes, horrendos, parecidos com cobras, com as cabeças sem olhos viradas para baixo em posição de ataque, e as bocas abertas como buracos na neve sombreados de azul.

Neel gritou outra vez, e óleo a arder derramou-se da lamparina quando ele a rodou por cima da cabeça. Fogo líquido salpicou-lhe as mãos e caiu, crepitante, na neve. Os animais silvaram, e o frio do seu sopro pareceu gelar o ar, de tal modo que este se tornou mais espesso e branco. Neel caiu de costas, ainda a segurar na lamparina. O suor do seu rosto congelou numa máscara pálida, ra­chada.

Rowan gritou e deu um salto em frente, segurando o archote bem alto acima da cabeça. Deslizou em direção a Neel, tentando desesperadamente alcan­çá-lo. Mas Neel estava outra vez a gritar, contorcendo-se no chão gelado. Rowan agarrou-lhe no braço e tentou puxá-lo e pô-lo de pé. Neel agarrou-se a ele e fê-lo cair de joelhos.

— Eles vieram atacar-nos! — gritou Neel. — Agora acredita? Agora já compreende?

— Levante-se! — gritou Rowan, esforçando-se por se pôr novamente de pé e, ao mesmo tempo, levantar Neel.

Mas, louco de terror, a chorar e a balbuciar como se estivesse a ter um pesadelo do qual não conseguia acor­dar, Neel agarrava-se a Rowan como um homem a afo­gar-se, impedindo-o de se erguer.

E os terríveis animais desciam, com as bocas azuis mais abertas, suficientemente abertas para engolirem um homem, os dentes brilhantes como agulhas de gelo compridas, inclinados para trás para morderem fundo, segurarem bem, arrastarem a presa para a escuridão gelada.

Répteis do gelo...

Os animais silvavam, e o som era como uma faca a cortar através da neve fresca, e um sopro gelado exalava das suas bocas abertas.

— Não — gritou Neel, atirando desvairadamente a lamparina. Esta voou para o lado e bateu contra uma parede do barracão. As chamas saltaram e elevaram-se no ar.

Neel gritava, em pânico, rolando os olhos. Depois, subitamente, começou a mexer-se, atirando-se para cima do corpo de Rowan, gatinhando por cima dele como se fosse um pedaço de lenha ou um saco de trigo, dando pontapés com as suas botas pesadas, dirigindo-se para o fogo.

Os répteis do gelo viraram as cabeças cegas e segui­ram o movimento.

E enquanto se punha de pé, com um braço à volta das costelas doloridas, Rowan só viu uma mancha branca quando um dos animais atacou, e Neel foi levado, aos gritos, pelo ar.

Numa questão de segundos, o animal voltara para o interior da neblina, ouviu-se um som suave de neve a deslizar, e Neel tinha desaparecido. Desaparecido na escuridão gelada. Os répteis que ficaram voltaram-se para Rowan.

Ele oscilou freneticamente o archote de um lado para o outro, recuando, obrigando-se a si próprio a mo­ver-se devagar, deslocando-se cautelosamente no chão traiçoeiro, escorregadio. Os animais desceram sobre ele, a silvar, e ele sentia o seu sopro a cortá-lo como facas frias.

Os membros de Rowan pareceram congelar. Ele cam­baleou. A chama tremeu. Através do rugido nos seus ou­vidos ele ouviu Shaaran a gritar, Bronden a praguejar, chamando o seu nome. Shaaran e Bronden tinham che­gado à cerca. Elas tinham visto...

— Não se aproximem! — ouviu-se a si próprio gritar com voz rouca. — Vão embora!

Mas já havia passos pesados atrás dele, bem como sons de respirações ofegantes e de soluços. Rowan sentiu alguém agarrar-lhe no braço. Viu, de relance, o rosto desvairado de Bronden enquanto ela o empurrava vio­lentamente para trás dela.

Depois, Bronden estava a escudá-lo com o seu próprio corpo. Bronden estava a enfrentar os animais ferozes, segurando um archote a arder bem alto numa mão, e a sua espada brilhante na outra. E ao lado dele estava Shaaran, a soluçar e a tremer, segurando-o com o seu braço frágil, e o archote levantado de modo a arder ao lado do dele.

— Para trás! — gritou Bronden. — Para trás!

Ela deu um passo gigante para trás, e Rowan e Shaa­ran seguiram-na, cambaleantes. Mas os répteis do gelo foram atrás deles, com os maxilares abertos e as cabeças prontas a atacar a descer, descer, descer...

 

ENFRENTANDO A VERDADE

Pelo canto do olho, Rowan via o fogo a tremeluzir no local em que a lamparina tinha caído de encon­tro ao barracão da comida dos bukshah. A lã velha tinha pegado fogo, e as chamas estavam a subir.

— O fogo! — gritou ele. — Bronden! Aproxime-se...

Bronden ouviu e começou a dirigir-se para o barra­cão. Lenta, muito lentamente...

Nisto, Norris, ofegante e a praguejar, emergiu, cambaleante, da neblina, com um archote a arder numa mão e a espada de Lann na outra.

Os olhos de Bronden voltaram-se para ele. Foi apenas um relance, uma questão de uma fração de segundo. Mas foi fatal. Porque, quando ela olhou, o seu archote inclinou-se ligeiramente para a esquerda, e um réptil atacou e prendeu os dentes ao seu lado direito, mesmo acima da cintura.

Bronden soltou um gemido. A espada caiu-lhe da mão. Ela tentou desesperadamente sacudir o animal enquanto este a puxava para cima.

Rowan atirou-se para a frente e apanhou-a pelos joelhos. Norris, a gritar, horrorizado, atirou o archote para o lado e agarrou-lhe no braço esquerdo. Mas a força conjunta dos dois não era suficiente para puxar Bron­den para trás.

Norris golpeou desordenadamente a cabeça horrí­vel do animal com a espada de Lann. A espada deslizou da pele branca, brilhante, com um som metálico. O animal pareceu estremecer, mas não largou a presa.

Ele nunca a largaria. Ele tinha atacado Bronden apenas uma vez, mas os seus dentes estavam cravados no forro do casaco dela e tinham-se enterrado na pele por baixo dele. Shaaran, muito pálida, balouçava o archote de um lado para o outro, protegendo-os dos outros animais que se contorciam à volta deles.

— Shaaran! — rugiu Norris. — Sai de perto de nós! Corra!

Shaaran não respondeu.

— O casaco de Bronden! — exclamou Rowan. — Norris! Tire-lhe o casaco! Depois segure-lhe as pernas! Segure-a!

Norris agarrou nas costas do casaco de Bronden e puxou. Ouviu-se o som do tecido a rasgar-se quando as costuras se descoseram e os fechos rebentaram. Rowan esperou um agonizante momento enquanto Norris agarrava bem nas pernas de Bronden. Depois, atirou o seu archote diretamente à cabeça do animal.

O réptil sacudiu-se, silvando violentamente. Bron­den soltou um grito de angústia. E depois o réptil recuou, com o casaco rasgado ainda pendurado nos dentes, e Bronden caiu ao chão, salpicando a neve com o sangue do seu lado.

Os outros répteis do gelo atacaram furiosamente. Rowan, Shaaran e Bronden mantiveram-se bem juntos sobre o corpo de Bronden, erguendo os archotes bem alto nos braços doloridos; as chamas, vacilantes e peque­nas, impediam os terríveis animais de avançar.

Todos eles sabiam que não podiam resistir durante muito mais tempo. Os répteis também o sabiam. Os seus corpos lisos, brilhantes, arqueavam-se e contorciam-se. As suas cabeças baixavam. Com as bocas muito abertas e a silvar, parecia que estavam a sorrir...

Foi então que o grito de desafio de Lann ecoou atra­vés da neblina, e o barracão da comida dos animais ex­plodiu em chamas. As chamas rugiram através do te­lhado. Faíscas incandescentes e fragmentos de feno queimado encheram o ar. Ondas de calor percorreram a neve.

Os répteis do gelo recuaram. Ouviu-se o som de algo a deslizar, como neve a escorregar de um telhado. E, no momento seguinte, eles tinham desaparecido.

Mal conseguindo acreditar no que tinha acontecido, que estavam sãos e salvos, Rowan, Shaaran e Norris arrastaram Bronden em direção ao fogo, mantendo as cabeças baixas para se protegerem das faíscas que caíam à sua volta.

Quando chegaram à brecha na cerca, foram envol­vidos pelo calor abençoado. A neve sob os seus pés derretia-se e fumegava. Lann estava à espera deles, com o rosto enrugado preto de cinza e os dentes à mostra num sorriso feroz.

— Aquilo fez parar os demônios! — disse ela num tom seco.

Com exceção da bengala, ela tinha as mãos vazias. Dera a sua espada a Norris. E Rowan sabia que o archote que ela levara para o campo estava no barracão a arder. Lann, a mais persistente protetora das provisões da aldeia, tinha lançado o seu archote para o precioso feno. Para atiçar o fogo. Para salvar as vidas deles.

Como se adivinhasse os pensamentos dele, Lann olhou para o inferno em que o barracão se transfor­mara. O seu sorriso de triunfo desapareceu, deixando o seu rosto cinzento e cansado.

— Não havia outra maneira — murmurou ela.

— Agora já não tem importância — replicou Rowan. A sua voz soou como a voz de um estranho, até para si próprio.

Lann lançou-lhe um olhar penetrante. Depois com­primiu os lábios enquanto observava o lado de Bron­den.

— A carne foi rasgada — disse ela despindo o casaco e colocando-o em cima de Bronden. — É uma ferida dolorosa, mas uma mulher forte como a Bronden não devia ter ficado tão prostrada. E há muito pouco sangue para o meu gosto. É como se o contato com o animal a tivesse gelado até aos ossos. Temos que a tirar do frio sem demora. Carreguem os dois com ela. Eu levo os archotes e vou à frente.

Lenta, desajeitadamente, Norris, Rowan e Shaaran levantaram Bronden do chão. O corpo dela estava mole, um peso morto.

Tinham dado apenas alguns passos quando Shaaran parou subitamente.

— Oh... e os bukshah? — exclamou ela. — Não po­demos deixá-los...

— Use os ouvidos, menina! — disse Lann num tom ríspido. — Alguma vez viu os bukshah assim tão si­lenciosos? E use os seus olhos!

Ela bateu com a bengala no chão. A luz do fogo que ainda lavrava nas ruínas do barracão, todos viram a trilha larga pisada que atravessava a brecha da cerca e seguia na direção da neblina e da escuridão.

— Há muito tempo que a Estrela levou a manada, Shaaran — disse Rowan, com voz baixa, quando recomeçaram a andar. — Ela deve ter esperado até eu ter ido embora, depois fez o que sabia que estava certo. Assim, quando os répteis vieram, não havia presas no campo. Exceto o Neel.

Lann e Norris olharam em volta, espantados. Eles tinham chegado demasiado tarde para ver o que acontecera ao Neel.

— Quando eu e a Bronden chegamos ao campo, o Neel... estava lá — disse Rowan com os olhos fixos no chão. — Ele tinha se escondido no barracão. Por qualquer motivo, ele saiu de lá no meio da noite.

— Certamente para roubar comida do armazém — disse Lann num tom sombrio.

— Talvez — disse Rowan. Ele sentia relutância em falar mal de Neel, embora as costelas machucadas ainda lhe doessem dos pontapés das botas do oleiro. — De qualquer modo, ele deve ter visto que a cerca tinha sido derrubada enquanto ele dormia. Foi ao campo ver se os bukshah tinham realmente ido embora...

— E encontrou mais do que estava à espera — termi­nou Norris num tom sombrio.

Shaaran emitiu um soluço estrangulado.

— O Neel foi sempre demasiado curioso para o seu próprio bem — murmurou Lann. — Curioso e fraco de espírito, tal como o pai antes dele. — Abanando a cabeça, ela prosseguiu. — Mas o pai dele morreu tran­quilamente na cama, e o mesmo devia ter acontecido ao Neel... teria acontecido, sem dúvida, se esta catás­trofe não tivesse desabado sobre nós.

Ela levantou os ombros e continuou a atravessar a neve.

— É uma pena. O Neel nunca foi uma pessoa alegre, nem sequer em criança, mas assobiava tão bem que conseguia encantar os pássaros e fazê-los sair das ár­vores. E os seus potes eram tão perfeitos quanto qualquer pessoa poderia desejar.

As palavras eram simples e secas como a própria Lann, mas trouxeram memórias vivas a Rowan. O som do asso­bio a sair da olaria nas noites doces de Verão. A visão de Neel sentado à sua roda de oleiro, com as mãos ossudas molhadas, a transformar pedaços giratórios de argila em taças, jarros e canecas.

Neel não tinha sido o homem mais simpático de Rin. Mas ele tinha feito parte da aldeia, tanto como a Árvore do Ensino ou a Casa dos Livros. Agora ele já não estava entre eles.

Uma visão do rosto de Neel como a vira pela última vez — branca com o suor congelado, enlouquecida de terror — ergueu-se perante os olhos de Rowan. Pergun­tou a si próprio se alguma vez conseguiria esquecê-la.

O pequeno e desalentado grupo continuou a cami­nhar em silêncio.

— O Neel talvez fosse fraco de espírito — disse Shaa­ran em voz baixa, quando chegaram finalmente às ruas da aldeia e se dirigiram para a padaria. — Mas ele tinha toda a razão. Ele avisou-nos de que o Tempo Frio estava a chegar outra vez. Ele avisou-nos sobre os répteis do gelo. Ele avisou-nos, e nós recusamo-nos a escutá-lo, e ele morreu por causa disso.

— Ele morreu por causa dos seus próprios dispara­tes, rapariga — disse Lann num tom ríspido.

— E as outras coisas que ele disse, Shaaran? — per­guntou Norris. — Certamente que não acredita que a Montanha está a castigar a aldeia por nossa causa? Por causa das sedas?

— Eu já não sei em que hei de acreditar — murmu­rou Shaaran.— Eu só sei que deve haver uma razão para tudo isto. E se a razão não é a que Neel disse que era, qual é? Quando nós cá chegamos, Norris, a aldeia estava cheia de vida. Agora está praticamente morta. As pessoas foram-se embora. Os bukshah foram-se embora...

— Nós ainda estamos aqui, Shaaran das Sedas — disse Lann vigorosamente, parando à porta da padaria e abrindo-a para que Bronden fosse transportada para o interior.

Shaaran mordeu o lábio. Quando voltou a falar, a sua voz era pouco firme.

— Estamos aqui agora — disse ela. — Mas quanto tempo falta para também nós nos irmos embora? Cada dia que passa fica mais frio. Os monstros desceram da Montanha, à procura de presas. Eles já invadiram os campos. Talvez, dentro em breve, eles andem pelas ruas.

— Fique calada, Shaaran — replicou Norris. — Se eles vierem, nós nos defenderemos. É tudo.

Eles pousaram Bronden em frente da lareira que ainda estava a arder.

— Traga cobertores, Rowan! — ordenou Lann, ajoelhando-se com dificuldade ao lado da mulher inconscien­te. — E também ligaduras e bálsamo. Norris, ponha mais lenha no fogo. E você, menina, faça alguma coisa de útil e ponha água a ferver. Temos trabalho a fazer aqui.

Shaaran dirigiu-se para a cozinha mas, quando che­gou à porta, virou-se. Duas manchas vermelhas tingiam-lhe as faces. Ela olhou diretamente para Rowan.

— A Lann recusa-se a discutir esta questão — disse ela num tom agudo. — E o Norris vira a cara, fingindo que está ocupado com o cesto da lenha. Mas você sabe que eu tenho razão, Rowan, e... você sabe mais do que diz.

Os olhos dela, habitualmente meigos, eram tão duros como as palavras que jorravam da sua boca.

— O que é que a Sheba te disse, Rowan? Eu sei que havia mais, muito mais, do que você admitiu. Eu vi isso nos seus olhos durante todo este longo dia. Chegou a altura de dizer a verdade. E chegou a altura de nós a enfrentarmos, seja ela qual for.

Rowan sentiu-se como se o seu coração tivesse sido agarrado por uma mão gelada. Uma suspeita tinha-lhe vindo à mente no momento em que vira a cerca partida e as pegadas dos bukshah a desaparecerem na escuri­dão. Agora, a suspeita transformara-se numa certeza.

Quando chegar a altura, saberá.

— É verdade — respondeu ele com voz rouca. Ele sentiu Lann fitá-lo com olhos chocados, zangados, e ouviu Norris soltar uma exclamação de surpresa. — Sheba deu-me uma profecia — disse ele. — As palavras eram assustadoras, mas eu não compreendi o seu significado. Talvez eu não quisesse compreender. Agora, acho que compreendo pelo menos as primeiras. Quanto às outras...

A sala ficou muito silenciosa. Os olhos dos seus com­panheiros estavam fixos nele. Rowan engoliu em seco, olhou para o fogo e repetiu lentamente a profecia:

"Os animais são mais sábios do que podemos imaginar

E aonde eles conduzem, quatro almas devem caminhar.

Uma para chorar e uma para lutar,

Uma para sonhar e uma para voar.

Quatro têm que se sacrificar.

 

No domínio entre o fogo e o gelo

A fome não pode ser negada,

A fome tem que ser mitigada.

E nessa rajada incandescente,

A busca une a vida e a morte iminente."

O silêncio da sala era quebrado apenas pela crepitação do fogo. Ao fim de algum tempo, Lann falou.

— Sacrifício? — disse ela em voz baixa, com um ar de aflição no rosto.

— Os animais... — disse Norris. — Os répteis do gelo...?

Rowan abanou a cabeça.

— Os répteis do gelo, não. Os bukshah. Há várias semanas que eles teimam em fugir do campo. Eu trouxe-os sempre de volta. Desta vez, eu sei que não devo fazê-lo. A comida deles ardeu. Não há nada para eles aqui. Mas eles irão conduzir-me... aonde eu tenho que ir.

— A profecia diz que quatro almas devem segui-los, não uma — comentou Lann num tom mal-humorado. — Mas a Bronden está ferida, e eu... eu estou inválida.

Todos os que estavam na sala conseguiam ver quanto lhe custava admiti-lo. O seu rosto enrugado estava rí­gido como se fosse feito de ferro.

Norris endireitou-se na cadeira.

— Eu vou com o Rowan — disse ele.

Lann franziu os lábios.

— Você não pode...

— Posso — insistiu Norris. Ele virou-se para Rowan, que estava a abanar a cabeça. — E não pense em esca­par-te sorrateiramente sozinho, meu amigo — disse ele. — Se o fizer, eu vou atrás de você. O meu lugar é ao seu lado.

— E meu — disse Shaaran, com a voz a tremer.

— Não! — exclamou Rowan num tom ríspido. — Norris, diga-lhe...

Mas Norris baixou a cabeça e ficou calado. Rowan fitou-os com um ar de impotência. Ele sabia que não podia continuar a opor-se.

— Mesmo assim — disse Lann —, só são três.

Na mente de Rowan surgiram, vividas, imagens de sonhos, como sedas pintadas a flutuar na brisa.

Três figuras a caminhar através da neve, uma quarta figura a observá-los de longe. Três figuras muito juntas dentro de uma caverna, uma quarta por perto.

Uma para sonhar...

Rowan sentiu um formigueiro na pele.

— Três serão suficientes — disse ele.

— Como é que sabe isso? — perguntou Norris olhando-o com curiosidade.

Rowan hesitou, desejando ter ficado calado.

Aprende o que é ser o que eu sou...

Uma visão da face sorridente de Sheba veio-lhe à mente. Sheba, horrenda, a rir-se, transbordando de ran­cor, com espuma a formar-se aos cantos da boca en­quanto murmurava, inclinada sobre o seu fogo mal­cheiroso. Sheba, temida e detestada por todos.

Ao pensar nela, sentiu repulsa. A idéia de que as pessoas pudessem pensar que ele era igual a ela fez o seu estômago dar uma volta. O dom da profecia que ela lançara sobre ele era como uma infecção. Ele sabia que tinha que o ocultar, que devia manter os sonhos secretos. Ele nunca admitiria que o tinha, pois não queria ver o lábio de Lann a enrugar-se, nem ver Shaaran e Norris a afastarem-se dele com um temor fascinado.

— Três... terão que ser suficientes — disse ele ao fim de algum tempo.

— E onde é que acha que os animais te conduzirão? — perguntou Lann secamente.

Quatro têm que se sacrificar.

No domínio entre o fogo e o gelo

Rowan umedeceu os lábios.

— A Montanha — respondeu ele. — Eu acho que temos que ir... à Montanha.

 

A ARCA ESCULPIDA

Os preparativos para a viagem foram feitos rapidamente. Comida, combustível, archotes, cordas e roupa foram entrouxados. Depois, só restou esperar. Até mesmo Rowan, preocupado com a possibilidade de a neve cair e cobrir as pegadas dos bukshah, sabia que eles só poderiam partir de dia.

Lann, de vigília ao pé de Bronden, que ainda estava inconsciente, mandou-os dormir, mas apenas Norris conseguiu obedecer-lhe. Com uma tranquilidade que Rowan invejou, ele atirou-se para cima da cama e, passa­dos alguns momentos, estava a ressonar.

Shaaran dirigiu-se para o seu canto da sala mas, quando se encontrou fora do campo de visão de Lann, instalou-se ao pé da armação das sedas e pegou novamente nos pincéis.

Rowan ficou acordado, levantando-se de vez em quando para ver se a neve continuava a cair.

Ao fim de algum tempo, o céu começou a clarear. Não tinha nevado mas, quando passou a porta da cozi­nha, Rowan percebeu que, mesmo com a aproxi­mação do nascer do sol, o ar não estava a aquecer. Estava muito frio — ainda mais frio do que na manhã anterior.

A porta rangeu atrás dele. Ele deu um pequeno salto e olhou em volta. Lann estava à porta, com uma lampa­rina na mão. O seu rosto enrugado estava pálido de cansaço devido à longa vigília noturna.

— Em breve será hora de partirem — disse ela, e o seu hálito fez nuvens de névoa no ar gelado. — Antes disso, eu tenho que ir buscar algumas coisas na minha casa, e agradeceria se me ajudasse.

Rowan anuiu, engolindo em seco com força quando começaram a andar. Pela primeira vez, ele permitiu-se enfrentar o fato de que, depois desta manhã, Lann e Bronden ficariam sozinhas. Uma velha e outra grave­mente ferida, com pouca comida, e ainda menos espe­rança, a sustentá-las.

— Como está a Bronden? — perguntou ele.

— Ela não se mexeu — respondeu Lann num tom sombrio. — Ainda está inconsciente, embora esteja ao pé do fogo e embrulhada em cobertores. A menina está a tomar conta dela.

— Lann, eu lamento muito... — começou Rowan a dizer.

A velha levantou a mão para o calar.

— Você está fazendo o que tem que fazer, Rowan dos Bukshah — disse ela, — E eu e a Bronden também estamos a jogar as cartas que o destino nos deu. Não há mais nada a dizer.

Chegaram ao chalé estreito de Lann e ela entrou à frente dele. A casa estava esparsamente mobiliada e escrupulosamente arrumada. Cheirava a cabedal antigo e a sândalo.

Lann olhou em volta, com um ar inexpressivo. Distraidamente, tocou nas costas da cadeira que estava ao lado da lareira vazia. Ali, adivinhou Rowan, ela tinha passado tranquilamente as suas noites em paz. Antes disto. De tudo isto...

— Com a trilha da Sheba, eles irão chegar à costa mais cedo do que esperávamos, Lann — disse ele. — Uma equipe de salvamento irá voltar com comida e outras provisões. Jonn prometeu.

— É verdade, ele prometeu — respondeu Lann ainda a olhar em redor da sala — mas, quanto à equipe de salvamento, saberemos quando ela chegar...

Subitamente, ela abanou a cabeça e tirou a mão da cadeira e dirigiu-se para o quarto minúsculo ao fundo da casa. Rowan foi atrás dela. Ela apontou com a ben­gala para a cama de ferro.

— Há uma arca de madeira debaixo da cama — disse ela. — Por favor, tire-a para fora.

Rowan inclinou-se e fez o que ela lhe pediu. A arca era pesada e, ao arrastá-la para fora, ele conseguia sentir a madeira esculpida debaixo dos seus dedos. Ele supôs que contivesse mais cobertores, ou talvez tapetes de pele de bukshah.

Lann baixou a lamparina. A luz suave brilhou sobre a tampa da arca, iluminando as esculturas de pássaros, animais, quadrúpedes e flores.

— É linda! — exclamou Rowan. Demasiado tarde, ele percebeu que Lann talvez se sentisse insultada pela sua surpresa óbvia. Mas ele não estava à espera que ela possuísse uma coisa daquelas. Tudo o mais que existia na casa era tão simples...

Mas Lann não pareceu ficar aborrecida. Ela própria estava a olhar para a arca com uma expressão que parecia de espanto.

— É muito bonita — concordou ela. — Há muito tempo que eu não a via de perto. Há muito tempo que se tornou demasiado pesada para eu a trazer para a luz.

Com alguma dificuldade, ela baixou-se para tocar na madeira esculpida com as pontas dos dedos.

— É adequado que a admire, pois ela foi feita para mim pelo Morgan, o pai do seu pai, como prenda de casamento — disse ela.

Desta vez, a exclamação de surpresa de Rowan fê-la sorrir ligeiramente.

— Ah, sim! — murmurou ela. — Nós estivemos noivos, eu e o seu avô.

Ela suspirou.

— O Morgan era um homem bonito. O seu pai era muito parecido com ele. As semelhanças familiares são frequentemente muito fortes em Rin. Quando o seu pai se fez homem, eu costumava olhar para ele e pensar, Se as coisas tivessem sido diferentes, você podia ter sido meu filho.

O meu pai, que morreu para me salvar de um incêndio, pensou Rowan, olhando para Lann com novos olhos.

Durante toda a sua infância ele soubera que a maior parte dos aldeões pensava que um rapaz franzino, enfermiço, era uma pobre troca por um homem forte, amado por todos. Ele compreendia agora que Lann devia ter sentido ainda mais azedume do que o resto. Ela ocultara-o bem. Por que motivo estaria ela a falar-lhe no assunto?

— A aldeia pensou que seria um belo casamento, pois tanto eu como o Morgan éramos heróis de batalhas contra os Zebak — prosseguiu Lann, sem levantar os olhos. — Mas... — Ela encolheu os ombros. — O casa­mento nunca se realizou.

— Porquê? — perguntou Rowan, pensando seguida­mente como é que se atrevera a fazer uma pergunta da­quelas. Ficou à espera que Lann o repreendesse, mas ela não o fez. Ela respondeu, numa voz hesitante, como se as palavras tivessem dificuldade em formar-se.

— O Morgan tinha um irmão muito mais novo cha­mado Joel — disse ela olhando para a arca esculpida. — Quando o Joel nasceu, há muito que a sua mãe tinha passado a idade fértil habitual. Quando ele tinha dez anos, já os pais tinham morrido, e o Morgan era o seu único guardião.

Os seus dedos gastos percorriam as linhas graciosas da madeira esculpida — pássaros a voar, lagartos agachados junto de tufos de ervas, flores.

— O Joel era uma criança débil, triste... sonhadora e tímida, com medo da sua própria sombra. Ele era pouco útil nos campos. As outras crianças troçavam dele. As pessoas não sabiam o que fazer com ele.

Rowan sentiu o rosto corar. Era como se Lann esti­vesse a descrever a sua própria infância. E, pelo tom da sua voz e pelos seus olhos baixos, ele percebia que ela sabia isso perfeitamente bem.

— O Joel também era guardião dos bukshah? — perguntou ele em voz baixa.

— Era. Esse era um trabalho que ele podia fazer — respondeu Lann. — Como você sabe, essa tarefa é sem­pre... foi sempre... considerada demasiado fácil para qualquer pessoa, exceto os muito jovens ou os que têm alguma forma de deficiência...

Os lábios dela comprimiram-se. Ela parecia estar a obrigar-se a si própria a prosseguir.

— Eu desprezava o Joel — disse ela. — Considerava-o fraco e covarde. As características positivas que o Morgan via nele... a sua ternura para com todos os animais, a sua natureza amável... não significavam nada para mim. Eu tinha vergonha de ser vista na sua companhia. Mas o Morgan recusava-se a abandoná-lo. O Morgan dizia que o Joel tinha que viver conosco até ser adulto. Nós discutíamos sobre isso. Discutíamos muito. Ao fim de pouco tempo, toda a aldeia sabia que as coisas não corriam bem entre nós, e adivinharam o motivo. Eu fazia pouco para escondê-lo.

Ela suspirou, com os dedos a esfregar a madeira es­culpida como se conseguisse eliminar o passado.

— Eu era jovem — disse ela. — Jovem e com sangue na guelra. Acho que também tinha ciúmes da lealdade do Morgan para com o irmão. Todos nós pagamos o preço do meu orgulho.

Rowan olhou para ela, emudecido. Lann nunca falara com ele sobre os seus sentimentos... nem, tanto quanto ele sabia, com mais ninguém.

— O que aconteceu? — perguntou ele. A história provocara-lhe uma sensação de tristeza, um aperto no coração, e ele não queria saber o fim. Mas ele sabia que Lann queria contá-lo. Por qualquer motivo, ela sentia-se impelida a contá-lo.

— O Joel morreu — disse Lann num tom inex­pressivo. — Ele tinha medo de altura, mas subiu em uma árvore para se esconder de algumas crianças que o estavam a atormentar porque ele se interpusera entre mim e o Morgan. Os seus perseguidores descobri­ram-no em cima da árvore. Atiraram-lhe pedras enquanto ele subia cada vez mais alto. E ele caiu. Talvez tivesse sido atingido por uma pedra. Talvez tenha simples­mente escorregado. Ou talvez ele apenas... tenha se deixado cair...

Ela calou-se, e pareceu ficar mais escuro, como se as sombras da velha tragédia tivessem enchido a pequena sala. Rowan sentiu os olhos a arder ao pensar no rapazinho débil, envergonhado e desesperado, perseguido até à morte porque...

Porque era como eu, pensou Rowan. Uma reversão a um tempo antigo, quando todos os nossos homens, os fortes e os fracos, os corajosos e os bondosos, os artistas e os guerreiros, viviam juntos como um só povo. Antes de os Zebak nos terem separado e trazido os fortes e corajosos para esta terra, deixando os mais dóceis para trás. Sempre que a Lann olha para mim, ela vê o Joel outra vez. E ela lembra-se...

— O Joel caiu da árvore grande... a árvore debaixo da qual nós, os habitantes de Rin, nos casamos e nos despedimos dos nossos mortos — murmurou Lann. — Foi uma estranha reviravolta do destino porque, quando o Joel morreu à sombra dessa árvore, a minha esperança de me casar com o Morgan morreu com ele.

Ela ainda estava a olhar para a arca, ainda a acariciar a madeira esculpida com os dedos gastos pelo trabalho.

— O Morgan veio ter comigo nessa noite e deu-me esta arca — prosseguiu ela numa voz tão baixa que Rowan teve dificuldade em ouvi-la. — Ele disse que o Joel tinha desenhado o padrão a partir do qual ele esculpira a madeira. Devia ser a oferta de ambos para mim. Ele não disse mais nada, não disse uma só palavra de raiva ou de culpa, mas eu soube que os seus senti­mentos por mim tinham mudado. Vi isso nos seus olhos. Libertei-o do nosso noivado.

Ela levantou-se lentamente e fitou Rowan nos olhos.

— Anos mais tarde, ele casou-se com a Else, a sua avó. Eu fiquei contente por ele ter finalmente encon­trado a felicidade. Ou, pelo menos, disse isso a mim própria.

— E você...? — perguntou Rowan.

— Nunca encontrei ninguém que se comparasse com o Morgan, por isso fiquei sozinha — respondeu Lann, recuperando alguma da sua energia antiga. — Sem dúvida que foi melhor assim. Eu sempre gostei demasiado de minha independência para partilhar a minha vida com outra pessoa.

— Lamento muito — balbuciou Rowan, sem saber o que dizer.

— Ah, bem. Isso foi há muito, muito tempo — disse Lann. — E o que está feito, está feito.

Por um momento, ela ficou calada, depois cerrou os lábios com um ar determinado e fixou Rowan com o seu habitual ar duro.

— Abra a arca, se fazes favor — disse ela.

O fecho de metal estava emperrado mas, ao fim de algum tempo, Rowan conseguiu soltá-lo. Ele abriu cuidadosa­mente a tampa.

Por qualquer motivo, sentiu-se decepcionado ao en­contrar o que já esperava. A arca estava cheia de tapetes de pele de bukshah enrolados.

Lann soltou um suspiro. Baixou-se e pegou num dos tapetes. Depois sacudiu-o e deixou-o pendurado.

E Rowan viu que não era um tapete, mas sim uma capa comprida, com capuz. Era uma capa de pele de bukshah, feita com a pele de um animal inteiro, com lã áspera no exterior e cabedal, ainda espantosamente macio e maleável, no interior.

Ele já vira algo parecido antes, em pinturas e dese­nhos, na Casa dos Livros.

E vira-o no sonho com a Montanha.

— Eu tenho quatro destas — disse Lann. — São capas de guerreiros de Rin... as últimas que restam na aldeia, pois, ao que parece, hoje em dia os jovens prefe­rem peças de roupa de tecido. Uma é minha, duas per­tenceram aos meus pais, e a outra era de Morgan. A Else me deu quando ele morreu. Elas já viram muita coisa. E aquecer-te-ão como nada mais conseguirá fa­zê-lo. A você e aos seus companheiros.

Ela tirou mais três capas da arca, sacudindo-as cuidado­samente e empilhando-as nos braços de Rowan.

Rowan não conseguia falar. Havia um rugido nos seus ouvidos. Mas Lann ainda estava a falar. Obrigou-se a si próprio a prestar-lhe atenção.

— Eu e você nem sempre estivemos de acordo, Rowan dos Bukshah — disse ela. — Encontrei defeitos em você, tal como outrora os encontrei no Joel. Você certamente pensou que eu era dura e obstinada. Mas, ao longo destes últimos anos, eu comecei a ver que, embora eu e você sejamos muito diferentes, em aspectos importantes nós somos parecidos.

Ao ver a expressão de espanto de Rowan, ela ergueu o queixo. Quando ela olhou para ele, o seu rosto des­gastado pelas intempéries adquiriu uma expressão ca­lorosa.

— Eu não vou fingir que compreendo esta... esta coisa que lhe foi pedida — disse ela num tom constran­gido. — Se é o que parece, ela vai contra tudo aquilo que eu sempre acreditei a respeito das nossas vidas e desta terra.

Ela fez uma pausa. Estava a respirar profundamente, como se estivesse a esforçar-se por controlar uma emo­ção profunda. Rowan aguardou.

— Eu estou velha, e o meu tempo neste mundo em breve chegará ao fim — disse Lann finalmente. — O que tenho para dar ao meu povo já foi dado. Com você, a questão é diferente. Eu sinto uma grande amargura por a fraqueza do meu corpo me impedir de enfrentar esta provação no seu lugar.

Rowan sabia o suficiente para não a insultar com agradecimentos inúteis. Em vez disso, disse-lhe a ver­dade.

— Você não poderia ocupar o meu lugar, Lann, nem que tivesse força — disse ele diretamente. — Só poderia acompanhar-me, tal como Shaaran e Norris parecem destinados a fazer. A Sheba disse-me que só eu podia fazer o que tem que ser feito.

Lann respirou fundo.

— Só você? — disse ela secamente. — O que subiu à Montanha e enfrentou o Dragão para fazer com que o riacho voltasse a correr? O que forjou os laços de con­fiança com os Maris e os Viajantes? O que nos deu o conhecimento do nosso passado e nos salvou do ataque dos Zebak?

Ela virou-lhe as costas.

— Que ser maligno exigiria o nosso melhor como sacrifício?

A fome tem que ser mitigada...

Rowan sentiu um arrepio de frio dentro de si.

Sem aviso, naquela casa estreita cheia de objetos domésticos e recordações ensombradas da vida de uma velha, o medo que ele controlara durante tanto tempo ameaçou dominá-lo.

O coração batia-lhe com força. Sentiu-se impelido a fugir.

Como seria fácil! Deixar cair as capas ao chão e voltar para a padaria. Agarrar no saco que tinha preparado e fugir, ao longo da trilha nítida, escura, feita pela Sheba, atravessando as colinas para bem longe dali.

Ao fim de um dia, ele podia estar muito distante. O caminho seria longo e duro, mas acabaria por chegar à costa. Se o seu próprio povo não o recebesse, se lhe voltasse as costas com repugnância, ele poderia ficar a viver com os Maris ou com os Viajantes. Na costa, ele poderia começar uma vida nova. Estaria em segurança...

A medalha que trazia ao pescoço parecia latejar. Agarrou nela, com a intenção de a arrancar.

Mas quando os dedos tocaram no metal quente, as palavras da profecia de Sheba começaram a ecoar na sua mente. E com as palavras veio uma visão.

Rin, presa num sonho silencioso, gelado. Répteis do gelo a contorcer-se e a deslizar por entre as árvores do pomar e as ruas brancas, desertas. A Montanha a pairar acima da povoação, soprando maldade fria para a terra e para o céu. E o frio mortífero a espalhar-se, a espalhar-se, sem parar. Até as planícies onde os Viajan­tes outrora vagueavam terem-se transformado em de­sertos cobertos por uma névoa branca, e as ondas terem deixado de se quebrar nas praias dos Maris, pois o próprio mar tinha congelado e ficado imóvel.

E Rowan soube que aquilo era o futuro. O futuro se ele fugisse. O futuro se ele fracassasse.

Rowan...?

A voz do Guardião do Cristal murmurou na mente de Rowan, suave como a água. A visão era tão forte e tão clara que o Guardião estava a partilhá-la. Muito longe, em Maris, o Guardião, ao fundo da sua caverna arco-íris, também estava a olhar para aquela imensidão coberta de neve, para aquele mar gelado.

— Rowan? Rowan?

Esta voz era real. A mão que lhe sacudia o braço tam­bém era real. Rowan virou-se lentamente, e o seu olhar cruzou-se com os olhos ansiosos de Lann. Ele pergun­tou a si próprio quanto tempo estivera ali imóvel, petri­ficado por algo que ela não conseguia ver, escutando algo que ela não conseguia ouvir.

O enorme impulso de fugir desapareceu, deixando uma vergonha amarga no seu lugar.

— Vamos para junto dos outros — disse ele. — É quase hora de partirmos.

 

QUATRO ALMAS

Rowan, Shaaran e Norris partiram da aldeia quando o Dragão da Montanha rugiu ao amanhecer. O seu caminho estava distintamente marcado. As pegadas dos bukshah eram como uma faixa larga, salpicada, na ne­ve, seguindo a linha do riacho soterrado e desaparecendo no meio das árvores que se agrupavam ao fundo da montanha.

Os três companheiros usavam capas de pele de buks­hah. Tal como Lann assegurara, as capas eram muito quentes. Também eram surpreendentemente confor­táveis, embora quase tocassem no chão. Lann tinha-se visto obrigada a encurtar duas delas com a sua faca, para que Rowan e Shaaran conseguissem andar sem trope­çar.

Norris levava a espada de Lann e um bastão com­prido para se apoiar quando caminhava, a coxear. Shaa­ran levava a caixa das sedas, que ela se recusara a deixar para trás.

— Eu sou a guardiã das sedas — disse ela com tei­mosia, quando Norris e Lann lhe quiseram fazer ver que estava a ser insensata. — Elas têm que estar comigo. Eu sinto-o.

Passaram o moinho, alto e silencioso, cuja roda enorme estava presa numa cama de gelo. Continuaram a andar, descansando de vez em quando mas falando pouco. Rowan sabia que o sol devia estar a elevar-se atrás do véu espesso das nuvens, mas o dia não se tornava mais claro, e o ar não aquecia.

À medida que se aproximavam da Montanha, as ár­vores passaram a ser mais numerosas e a trilha dos bukshah tornou-se mais estreito e sinuoso por entre elas. As árvores eram como sentinelas a desfalecer, com os ramos escuros curvados sob o peso da neve. Ouvia-se o riacho abafado a gorgolejar timidamente. Era difícil respirar o ar gelado. A frente deles, pairava a Montanha, enorme e ameaçadora.

Rowan fixou os olhos no chão, tentando não pensar em nada. O medalhão ficou quente. Involuntariamen­te, tocou-lhe com a mão.

Aprende o que é ser o que eu sou.

O som de algo a bater na água fê-lo erguer o olhar. Através das árvores ele viu... viu três figuras com capas de pele de bukshah ajoelhadas junto de um pequeno lago no sopé de um penhasco íngreme. Enquanto olhava, uma figura endireitou-se, enrascando a tampa de um cantil de água a escorrer. Depois, ela ficou imóvel e olhou subitamente por cima do ombro, diretamente para Rowan.

Foi como se estivesse a olhar para um espelho. Mas os olhos escuros, ansiosos, não estavam concentrados em nada, procuravam...

— Ah, é aqui que o riacho começa!

Era a voz de Norris. Rowan pestanejou. As figuras mais adiante cintilaram e desapareceram. Agora restava apenas o penhasco. A água jorrava de um buraco preto perto da base do penhasco, para o lago redondo, pro­fundo, que estava apenas parcialmente coberto de gelo.

Norris tirou o seu cantil do cinto e foi enchê-lo. Ro­wan seguiu-o, mas permaneceu de pé enquanto Shaa­ran se ajoelhava ao lado do irmão para encher o seu próprio cantil.

— O que se passa, Rowan? — perguntou Norris, er­guendo os olhos para ele. — Parece que viu um fantas­ma!

Seria uma loucura não encher o meu cantil, só para de­monstrar que a visão era um retrato do futuro, pensou Rowan. Não se pode lutar contra isto. Foi um disparate tentar.

Cansado, deixou-se cair de joelhos e inclinou o cantil para o encher até ao gargalo. Quando se endireitou, não resistiu a olhar para trás, para o local onde estivera apenas alguns minutos antes. Obviamente que não viu nada... nada a não ser uma massa de troncos pretos, escuros, ramos carregados de neve e as pegadas que iam dar à aldeia.

Depois os seus olhos viram uma pequena mancha de cor no céu por cima das árvores — um clarão ama­relo vivo, contrastando com o cinzento. O clarão surgiu outra vez. Havia algo a descer rapidamente em direção a ele. Com um grito de aviso, Rowan pôs-se de pé num salto, levando a mão a faca.

— O que é? — gritou Shaaran, aterrorizada.

Mas a forma amarela já esvoaçava por cima deles. Seguidamente, dobrou-se sobre si própria e mergu­lhou. E Rowan soltou uma exclamação de espanto ao ver, pendurada nela, uma figura pequena embrulhada numa capa de pele de bukshah.

Era Zeel dos Viajantes.

 

Rowan ficou a olhar, atordoado, para as botas macias de Zeel a baterem no chão, e o seu papagaio de seda amarelo a cair atrás dela. Shaaran e Norris soltaram exclamações, mas ele não conseguia falar.

— Está muito surpreendido por me ver, Rowan! — disse Zeel com uma gargalhada, apanhando a seda e atirando-a por cima do ombro. — Parece um peixe de Maris! Mas certamente que sabia que eu viria?

Rowan conseguiu finalmente falar.

— Não — disse ele com a voz estrangulada. — Eu nunca sonhei que o fizesse. Porquê...? Como...?

Zeel aproximou-se rapidamente dele e apertou-lhe a mão.

— Os Viajantes estão acampados às portas de Maris — disse ela. — O Guardião do Cristal chamou Ogden ao amanhecer e contou-lhe a visão que tinha partilhado com você. Ogden voltou rapidamente para o nosso acam­pamento com a notícia, e eu parti imediatamente, para me juntar a você na sua busca.

Uma para voar...

As palavras pareceram chamejar na mente de Rowan. Ele julgara que elas significavam que ele, Shaaran ou Norris acabariam por fugir do perigo. Mas estivera enganado, muito enganado — ele enganara-se ao pen­sar que o seu eu do sonho seria o quarto membro daquele malfadado grupo.

O quarto membro estava agora à sua frente. Zeel, a filha adotiva de Ogden, a amiga de Rowan, muito direita e forte, cheia de vida.

Que ser maligno iria exigir o nosso melhor como sacrifício?

À recordação da voz de Lann, tremendo de ira, parecia rugir aos ouvidos de Rowan.

Ele sentiu a mão de Zeel apertar mais a sua.

— Eu sobrevoei a sua gente que caminhava ao longo de uma estranha estrada preta em direção à costa, Rowan — disse ela. — Encontrei a sua aldeia deserta, com exceção da velha guerreira Lann e da mulher Bronden que dormia profundamente um sono gelado. Fiquei sabendo que você, Shaaran e Norris tinham partido sozinhos para a Montanha, seguindo as pegadas dos bukshah. Rowan, porque é que não me chamou antes?

— Há... um grande perigo... — começou Rowan a dizer num tom hesitante.

— Eu sei disso! — afirmou Zeel. — Por que outro motivo estaria eu aqui?

— Mas eu pensei que os Viajantes não conseguiam sobreviver ao frio do Inverno no interior do país! — exclamou Norris. — E já ouvi dizer que, para os Via­jantes, a Montanha é proibida! — O seu rosto estava crispado de ansiedade. Ele conhecia Zeel da terra dos Zebak e sentia uma enorme admiração por ela.

— Isso é verdade — disse Zeel com um sorriso, e os dentes brancos brilharam no seu rosto castanho. — Mas já se esqueceu, Norris? Eu não sou Viajante de nascença. Eu era um bebê Zebak... fui encontrada na praia desta terra e adotada por Ogden há muito tempo. Eu consigo fazer o que os outros Viajantes não conseguem. Posso subir à Montanha, se for necessário. E consigo sobreviver ao frio intenso, embora — ela estremeceu, embrulhando-se melhor na capa —, embora nunca tivesse tido tanto frio. Ainda bem que tenho esta estranha peça de roupa que a Lann me deu.

Com um ar pensativo, ela passou as mãos pelo pêlo da capa.

— A Lann mudou muito. Antigamente, ela teria ficado furiosa só de pensar que uma Viajante... quanto mais uma Zebak... pudesse usar uma capa dos guerreiros de Rin. Mas ela obrigou-me a trazê-la. Disse que a capa estava à minha espera.

— Isso foi porque a profecia da Sheba dizia que quatro almas seguiriam os animais — murmurou Ro­wan. — Mas, Zeel, a profecia fala também de morte e de sacrifício.

Zeel acenou a cabeça em sinal de concordância, e os últimos vestígios do seu sorriso desapareceram.

— Eu sei — disse ela. — A profecia passou da sua mente para a do Guardião juntamente com a visão. Assim que a ouvi, eu soube que estava destinada a vir ter con­tigo e partilhar o seu destino, seja ele qual for.

— Não! — A palavra jorrou dos lábios de Rowan como um gemido de dor.

Zeel endireitou-se.

— A terra está ameaçada. Se for necessário um sa­crifício, porque é que é que há de ser Rin sozinha a sacrificar-se? Eu estou aqui de minha livre vontade, em representação do povo de Maris e dos Viajantes, com os agradecimentos do Guardião e a bênção de Ogden. Fico muito satisfeita com o fato de, devido às minhas origens, eu ser a única escolha possível. Estou muito contente por o meu papagaio ser capaz de me trazer tão depressa para junto de você.

Os seus olhos azuis-claros percorreram o rosto assus­tado de Shaaran e a cara excitada de Norris, depois vol­taram-se para Rowan.

— Nós somos quatro quartos de um todo — disse ela. — Cada um de nós tem um papel a desempenhar nisto. Todos nós somos necessários. Ainda não sabemos como nem porquê. Mas depressa iremos descobrir. E, nessa altura... o que for, será.

 

As pegadas dos bukshah continuavam ao longo da base da Montanha até os penhascos da face leste darem lugar a massas desordenadas de pedras nuas, cobertas de neve, no lado sul. E ali o trilho virava abruptamente para o interior e começava a subir.

Os companheiros pararam, e um enorme silêncio envolveu-os. Nada se mexia. Nem uma pequena brisa se movia no ar gelado. A Montanha erguia-se acima deles, à espera.

— Até que enfim! — exclamou Norris, esfregando as mãos de contentamento. — Aqui começa o verdadeiro teste!

Rowan olhou para ele, curioso. Não havia nos olhos de Norris o mínimo vestígio de medo. Ele tinha a ca­beça erguida, os ombros fortes atirados para trás e a boca cerrada numa expressão de determinação.

Lann devia ter tido um ar semelhante quando, há muito tempo, se preparava para combater os Zebak, pensou Rowan. Norris é um verdadeiro filho de Rin. Forte. Sem medo. Um guerreiro.

Nesse momento, Rowan sentiu um movimento ao seu lado e olhou em volta. Shaaran também estava a olhar para a Montanha. Mas o seu rosto delicado estava cheio de medo. Ela agarrava-se desesperadamente à caixa das sedas, premindo-a com força contra o corpo para aquietar as mãos trêmulas.

Rowan pensou nas pinturas no interior da caixa — as pinturas cheias de cor, de vida e de movimento. Ele pensou na mão de Shaaran a mover habilmente o pin­cel fino sobre a seda, criando verdade e beleza, tal como os seus antepassados tinham feito durante séculos.

E, com um sobressalto, ele lembrou-se também de que Shaaran era uma verdadeira filha dos habitantes de Rin. Não dos habitantes de Rin como eles eram atualmente, mas como tinham sido séculos atrás, na terra dos Zebak, quando artistas e guerreiros viviam lado a lado, e a meiguice era tão valorizada quanto a força. Antes de os fortes terem sido levados para longe.

E, subitamente, naquela terrível quietude expectante, foi como se as peças de um puzzle se tivessem en­caixado.

Quatro almas...

Quatro quartos de um todo...

Shaaran e Norris, que eram a prova viva da história que as sedas contavam.

Ele, Rowan, que os trouxera para o vale.

E Zeel, que representava todos aqueles que o tinham ajudado a fazê-lo.

Nós ofendemos a Montanha...

Um dedo gelado tocou-lhe no coração.

 

Os bukshah tinham passado cuidadosamente por entre as pedras, fazendo uma trilha estreita e sinuosa. Com Rowan à frente, Norris e Shaaran a seguir, e Zeel atrás de todos, os companheiros seguiram a trilha.

A caminhada era difícil e incômoda, especialmente para Shaaran e Norris, a quem a perna machucada difi­cultava o andar. Mas nenhum deles pediu para descansar, e nem Rowan nem Zeel o sugeriram. A luz desaparecia lentamente, e todos eles sentiam que, quando anoite­cesse, era melhor já não estarem naquele labirinto sinis­tro. Assim, eles continuaram a andar, sempre a subir e sempre em direção a oeste.

As pedras tornaram-se gradualmente maiores, erguendo-se acima deles e impedindo-os de ver o caminho à sua frente. Ao fim de algum tempo, a trilha era apenas um caminho estreito em ziguezague no meio de pe­nhascos pretos alcantilados, e eles não tinham outra opção a não ser seguir em frente ou voltar para trás.

Continuaram a caminhar na obscuridade. O cami­nho tornou-se mais estreito até o céu ser apenas uma nesga de luz pouco intensa muito acima deles. As paredes rochosas que os cercavam estavam marcadas por estra­nhos riscos compridos à altura dos ombros. Ao fim de algum tempo, Rowan percebeu que eles deviam ter sido feitos pelos chifres dos bukshah quando os animais abriam caminho ao longo da trilha estreita.

O medalhão junto da sua garganta parecia latejar ao ritmo do seu coração. A mochila, cada vez mais pesada, machucava-lhe os ombros.

— Não estou a gostar disto — a voz de Zeel ecoou estranhamente. — E se estivermos a ser atraídos para uma armadilha? Se alguma coisa nos atacar aqui, não teremos possibilidade de fugir.

Norris balbuciou um som de concordância. A respira­ção de Shaaran pulsava-lhe na garganta. Mas Rowan mal os ouvia. Ele tinha virado uma esquina e, subitamente, toda a sua atenção se concentrou em algo que só ele conseguia ver. Não muito longe à frente deles o cami­nho terminava num arco rochoso. A seguir ao arco, bri­lhava uma estranha luz azul. E, no interior da luz, havia algo a mover-se.

Rowan imobilizou-se, semicerrando os olhos para ver melhor a forma ondulante. Depois, o coração pareceu saltar-lhe para a garganta quando viu rodopiar, primeiro uma capa comprida pesada, depois outra, e compreendeu o que era aquela forma.

Figuras envoltas em capas iam à sua frente, a cami­nhar na luz azul. Seguiam umas atrás das outras, de cabeça baixa, tão juntas umas das outras que, a princí­pio, pareciam uma única pessoa. Elas deslocavam-se muito, muito depressa.

E estavam com medo. Rowan sentia o medo delas como se fosse seu.

Apressem-se! Mantenham-se juntos. Não olhem...

Com a pele arrepiada, mal tendo a noção do que es­tava a fazer, Rowan abriu a boca para gritar. Mas, antes de conseguir emitir um único som, as figuras tinham desaparecido.

Rowan encostou-se à face do penhasco num dos lados da trilha, pressionando o ombro contra a rocha gelada para se manter ereto. Sentia os joelhos fracos. O cora­ção ainda batia com força, de medo. O arco abria-se à sua frente, com a luz azul a brilhar. Ouviu as exclamações de Shaaran, Norris e Zeel quando se aproximaram dele e também viram a luz. Mas ele não conseguia falar.

Era óbvio que havia algo assustador do outro lado do arco. Ele cravou os dedos enluvados na pedra dura para os obrigar a parar de tremer.

— O que é? — gritou Shaaran. — Rowan, que lugar é aquele? O que devemos fazer?

E, subitamente, o medalhão estava tão quente que o queimava. Estremecendo de dor, Rowan agarrou nele, tentando afastá-lo da pele. Mas, para seu espanto, ele não se moveu. Parecia preso ao sítio onde estava e, quanto mais o puxava, mais ele se colava a ele e mais quente se tornava.

Ele viu os seus companheiros virarem-se, alarmados para ele quando gritou. Viu-os estenderem-lhe os braços quando ele caiu de joelhos, com a mão na garganta. Mas eles não podiam fazer nada por ele, nada. Naquele momento, era como se a coisa que ele tinha no pescoço estivesse a afundar-se na sua pele. O medalhão queimava, queimava, e a sua garganta estava a ficar cheia do que lhe parecia serem brasas incandescentes, tão cheia que ele se sentiu sufocar com o fogo.

Tentou gritar, mas, quando os seus lábios secos se abriram, não saiu qualquer grito. Em vez disso, ele sen­tiu os pedaços de fogo a subir da garganta para a boca e transbordar para o ar gelado. Mesmo na sua agonia, ele ficou espantado quando percebeu que não eram brasas incandescentes, mas sim palavras... palavras que jorraram dele numa voz rouca, áspera, que mal reconheceu como sua.

Dentro deste vale os cegos são sábios.

Horrores espreitam atrás dos vossos olhos.

A cura é água de uma fonte

Onde não existe ódio nem ira.

Quando pronunciou a última palavra, Rowan caiu para frente na neve, inconsciente.

 

OS CEGOS SÃO SÁBIOS

Rowan voltou a si lenta e dolorosamente. Tinha o cora­ção a bater com muita força. Sentiu-se tonto e ago­niado. Sentiu uma mão suave a fazer-lhe carícia no rosto, e ouvia vozes a chamá-lo, mas não lhe agradava abrir os olhos. A única coisa que queria era dormir, dormir para sempre. Mas as vozes não o deixavam descansar.

— Rowan, acorde! — era a voz de Zeel, num tom urgente e autoritário. — Não podemos ficar aqui!

— Ele está enfeitiçado! — Era Norris, quase a gritar. — Aquelas palavras não eram dele! E aquela voz... não era...

— Rowan, abra os olhos. — Uma voz mais suave, a voz de Shaaran, junto do seu ouvido. — Rowan, os buks­hah precisam de você. Temos que os seguir. Lembra-se?

Os bukshah...

A memória varreu a mente de Rowan e, com um movimento brusco, ele ficou completamente desperto. Os seus olhos abriram-se. Ele levou a mão à garganta. Por baixo da roupa, a pele estava lisa e intacta, e o me­dalhão pendia, inofensivo, do cordão. Esforçou-se por se pôr de pé, ajudado por seis mãos ansiosas.

— O que aconteceu? — perguntou Norris, claramente abalado pelo que acabara de ver e ouvir. — Rowan, você começou a delirar, a dizer palavras sem qualquer sentido e a revirar os olhos... — Ele estremeceu e calou-se.

— O medalhão... — a voz de Rowan era estrangulada e rouca. Ele pigarreou e tentou novamente. — A Shaa­ran fez uma pergunta, e o medalhão deu-me as palavras para lhe responder. Não consigo explicar...

— Não vale a pena tentar — disse Zeel secamente. — Nós temos os nossos conselhos e o nosso aviso. Há perigos para além do arco. Nós sabemos o que temos que fazer para nos protegermos deles. Por enquanto, isso é a única coisa que interessa. Temos que continuar a avançar, e depressa. A tarde está a chegar ao fim.

Rowan acenou a cabeça em sinal de concordância e, sem dizer mais nada, começou a caminhar, com um passo pouco firme, em direção à luz azul cintilante. Shaaran, com os olhos ensombrados pelo medo, foi atrás dele.

Norris seguiu-os, olhando continuamente para trás, para Zeel, procurando no rosto dela as respostas para a sua perplexidade. Por fim, quando o arco se abriu finalmente à sua frente, preenchendo-lhes o campo de visão, eles não puderem manter o silêncio por mais tempo.

— Porque é que disse que nós sabemos o que fazer? — perguntou ele. — Nós não sabemos nada!

— Você não ouviu, Norris? — retorquiu Zeel num tom ríspido. — A profecia nos disse que no vale os cegos são sábios. Certamente que isso significa que o que nós não virmos não nos fará mal.

— O quê? — exclamou Norris. — Será que temos de caminhar para o desconhecido com os olhos fecha­dos?

— Não podemos fazer isso — disse Rowan, sem se virar. — Mas temos que ser tão cegos quanto possível. Quando entrarmos na luz azul, temos que baixar a cabeça e seguir a trilha, sem olhar para a direita nem para a esquerda... pelo menos até chegarmos a essa fonte miste­riosa que é um lugar seguro.

Enquanto falava, ele recordava-se da visão que tivera — as figuras cobertas pelas capas a andar rapidamente, muito juntas, com as cabeças encapuzadas baixas.

Ele estremeceu novamente ao sentir o medo delas.

Apressem-se! Mantenham-se juntos! Não olhem...

O arco estava agora à frente deles. Ele parou e en­costou-se a uma rocha para se equilibrar. A luz azul parecia rodopiar à frente dos seus olhos como neblina colorida. E agora ele conseguia ver o brilho do gelo. O lugar para além do arco estava cravejado de enormes colunas de gelo retorcidas que se erguiam da terra como árvores!

Não havia neve no chão. O que queria dizer que o vale era coberto. Era uma caverna — ou talvez um túnel comprido que atravessava a rocha da Montanha.

— Parece-me que só um tolo seria capaz de atravessar um lugar maligno como este sem estar atento — estava Norris a murmurar. — E se a profecia for uma armadi­lha?

— Não são uma armadilha! — retorquiu Zeel, zangada.

— E você é um tolo, Norris, por sugerir isso.

Norris corou muito e endireitou os ombros pesados.

— Talvez eu seja um tolo — balbuciou ele. — Eu sei que o meu avô sempre achou que eu era tolo porque não tinha qualquer talento para pintar, nem ouvido para a música, e porque gostava de lutar. Mas por ser desconfiado, por reconhecer um inimigo quando o via, e por estar preparado para lutar, quando ele e a Shaaran não estavam, eu salvei-lhe muitas vezes a vida na terra dos Zebak.

— Isso é verdade — disse Shaaran em voz baixa. — Sem o Norris nós não teríamos sobrevivido.

Zeel franziu a testa.

— Desculpa, Norris — disse ela, embaraçada. — Falei sem pensar. Você tem razão em estar desconfiado. Você não tem tanta experiência destes versos proféticos como eu e o Rowan. Mas acredita que podemos confiar neles.

Norris olhou-a nos olhos e acenou lentamente a ca­beça em sinal de assentimento.

— Muito bem — disse ele. — Mas se vamos andar as cegas, pelo menos vamos juntar-nos bem para não podermos nos separar.

— Isso seria muito sensato — concordou Zeel, apro­ximando-se dele e colocando-lhe a mão em cima do ombro.

Corando ainda mais, desta vez de satisfação, Norris segurou no ombro de Shaaran. Shaaran segurou no de Rowan.

— Cabeças baixas — disse Rowan, e ouviu Zeel mur­murar uma bênção. Ele respirou fundo e atravessou o arco, com os companheiros a arrastar os pés atrás dele.

A luz azul envolveu-os. E com ela veio o medo. O medo trespassou a mente de Rowan como água gelada, gelando-lhe o sangue, invadindo-lhe o coração. Um formigueiro na pele fazia-o sentir que não estavam sós, que havia algo ali que tinha consciência da presença deles, algo cheio de maldade.

Ele sentiu a mão de Shaaran apertar-lhe mais o ombro, ouviu a respiração curta dela e percebeu que ela também estava aterrorizada.

— Mantém a cabeça baixa — murmurou ele. Mas mesmo enquanto obrigava as palavras a sair dos seus lábios, o impulso de abrir os seus próprios olhos estava a tornar-se quase avassalador.

Espirais de gelo surgiam nas orlas do seu campo de visão como sombras azuis. Os cascos dos bukshah ti­nham deixado apenas marcas sumidas no chão duro, pelo que a trilha estreita e sinuosa que eles tinham feito era quase invisível. Rowan viu-se obrigado a hesitar muitas vezes antes de prosseguir cautelosamente.

Nisto, a trilha pareceu desaparecer totalmente. Mesmo à frente deles estava um pilar de gelo, e Rowan não sabia se devia virar para a direita ou para a esquerda.

Parou, paralisado, procurando desesperadamente a trilha no chão envolto em neblina. Tinha a testa coberta de suor gelado. Estava aterrorizado com a possibilidade de tomar a decisão errada. A idéia de se perder, de vaguear sem rumo naquele temível labirinto gelado enchia-o de medo.

Sentiu Shaaran premir-se contra as suas costas, como se estivesse a ser empurrada por trás.

— Não consigo ver a trilha — disse ele. — Esperem... Ele calou-se quando Norris ouviu praguejar furiosa­mente e Zeel emitir um assobio longo e arrastado.

Rowan sentiu um acesso de ira. Eles não sabiam como aquilo era difícil? Então eles que experimen­tassem ir à frente, a guiá-los.

— Eu estou a fazer o melhor que posso! — gritou ele. — Tenham paciência!

Houve um rugido de raiva confusa, depois um grito estranho, alto, e, subitamente, Shaaran foi empurrada tão violentamente contra as costas de Rowan que ele quase se desequilibrou. Rowan gritou, cambaleante, esforçando-se por se manter de pé enquanto Shaaran se agarrava a ele.

Atrás deles, alguém caiu pesadamente no chão duro. Rowan sentiu a sua capa a ser puxada e torcida, e gemeu alto quando percebeu de que Shaaran tinha se virado para olhar por cima do ombro.

Shaaran soltou um grito lancinante, gritou o nome dele.

No interior deste vale os cegos são sábios...

As palavras soavam aos ouvidos de Rowan, mas ele já não conseguia ouvir.

Deu meia volta, empurrando a menina aos gritos para o lado e parcialmente para trás dele. E, horro­rizado, viu que tinham caído numa armadilha. Havia duas figuras a lutar no chão. Lutavam selvagemente, rolando no meio das colunas de gelo retorcidas. Uma neblina azul rodopiava à volta delas, encobrindo-as, pelo que Rowan não conseguia ver se quem tinha sido atacado era Zeel ou Norris. Mas ele conseguia ver a lâmina brilhante de um punhal. E via manchas de sangue escarlate no gelo.

Procurando a sua própria faca, tirou a mochila dos ombros e deu um salto para a frente, com um grito.

Uma das figuras que lutavam atirou a outra pesada­mente para o lado e pôs-se de pé num salto para o enfrentar.

A respiração ficou presa na garganta de Rowan, e ele recuou, chocado, com o coração a bater com muita força. A sua frente estava uma guarda Zebak a rosnar ferozmente, com o rosto manchado de sangue. O risco preto tatuado que identificava todo o seu povo era como um sulco no centro da testa.

A Zebak ergueu o punhal e saltou sobre ele. Instin­tivamente, Rowan bloqueou-lhe o golpe, agarrando no pulso da mão que empunhava o punhal, para manter a arma à distância. O peso dela atirou-o contra o pilar de gelo, que se estilhaçou como vidro. A faca caiu-lhe da mão e rodopiou para longe.

Rolaram os dois pelo chão, e os estilhaços de gelo despedaçaram-se debaixo deles. Ele sentia o hálito quente da Zebak no seu rosto. Conseguia sentir o seu ódio. O punhal dela cintilava acima dele, com a ponta manchada de sangue apontada para a sua garganta. As mãos e os pulsos dele eram fortes devido ao seu trabalho com os bukshah — eram a sua única força — mas já estavam a tremer com o esforço. Durante quanto tempo conseguiria ele manter o punhal afastado? Du­rante quanto tempo...

Ao fundo, havia alguém a gritar. Shaaran. Shaaran estava a gritar desesperadamente pela Zeel. Porque é que a Zeel não respondia? Porque é que não o vinha ajudar?

E, subitamente, Rowan soube porquê. A Zeel não vinha porque estava morta. Como, sem dúvida, devia estar Norris, que era o último da fila. Esta mulher cruel tinha matado os dois.

E aquele fora o plano dos Zebak. Apanhar os quatro um a um, à medida que eles se arrastavam às cegas através da neblina. Para garantir que eles nunca atingi­riam o seu objetivo, nunca cumpririam a profecia.

E porquê? A mente de Rowan estava a trabalhar como um relâmpago. Porquê? Porque os Zebak queriam que aquela terra, a terra que eles não tinham conseguido conquistar, fosse destruída. Eles queriam que o seu povo fosse castigado por se ter atrevido a desafiá-los.

Uma raiva intensa percorreu-o. As suas mãos aperta­ram os pulsos da Zebak e, com uma força que ele não tinha consciência de possuir, afastou-a de si, esmagando a mão que empunhava o punhal contra a orla denteada do pilar estilhaçado.

Ela gritou de dor e raiva. O punhal voou para longe. Rowan mergulhou para o apanhar, agarrou nele...

E ouviu um som estranho.

Ergueu o olhar e viu, erguendo-se mesmo à sua frente, algo escuro e horrendo. Era uma árvore baixa, retorcida. Os seus ramos grossos e curtos com folhas roxas baças nas pontas ondulavam e agitavam-se. As suas raízes brancas e gordas já estavam a serpentear avidamente em direção a ele.

Rowan sentiu o sangue gelar. Aquela era uma árvore de Unrin — uma árvore que gostava de carne humana, uma árvore semelhante às que, muito tempo antes, ti­nham asfixiado o Vale do Ouro.

Árvores demoníacas, chamara-lhes Zeel. Ela e Ro­wan tinham lutado contra elas no Fosso de Unrin, quase tinham morrido nas suas odiosas garras. Mas a Monta­nha era o habitat natural das árvores, e aquela estava ali, a tentar apanhá-lo, ávida dele...

Estremecendo de repugnância, Rowan recuou, ten­tando manter os pés longe daquelas raízes esfomeadas, que pareciam cobras.

A capa emaranhara-se à volta das suas pernas, dificultando-lhe os movimentos quando ele se tentou levantar. Ouviu Shaaran gritar, a soluçar desvairadamente e, com uma onda de pânico, apercebeu-se de que ela vinha a correr em direção a ele, gritando cada vez mais alto. Ele ouvia os seus passos, cada vez mais próximos.

— Não, Shaaran! Não se aproxime! — rugiu ele, golpeando as raízes quando elas o atacaram.

A sua mente trabalhava velozmente. Nessa altura, a Zebak devia estar a pôr-se de pé, com a raiva inflamada pela dor dos seus ferimentos.

Ela tinha perdido o punhal, mas, ferida ou não, atacaria com as mãos nuas se fosse necessário. E ela era forte, muito forte. Ela faria qualquer coisa para cumprir a tarefa que lhe fora atribuída. Ela partiria o pescoço magro de Shaaran como se este fosse um galho de uma árvore. Arrancaria o punhal a Rowan e matá-lo-ia também.

Mas... o coração de Rowan deu um salto. A árvore demoníaca. A Zebak não tinha maneira de saber como ela era perigosa. Se ele conseguisse atraí-la para as suas garras...

Arriscou-se a olhar para trás, para ver se o caminho estava desimpedido. E o seu coração pareceu parar quando viu erguer-se atrás de si uma forma branca re­torcida com maxilares abertos, forrados de azul, e dentes afiados como agulhas.

 

A FONTE

Com o punhal erguido, Rowan levantou os olhos para o réptil do gelo, à espera da morte. Ele já estava para além do terror, para além da dor. Todos os senti­mentos tinham sido varridos da sua mente, com exceção de um: ódio puro. Se ia morrer, se tudo estava perdido, ele levaria consigo o maior número de inimigos possível.

Ele viu a Zebak agachada atrás do animal, com um estilhaço de gelo afiado como uma agulha na mão ensanguentada. Ele sentiu uma raiz da árvore do demônio agarrar-lhe no tornozelo, apertando-o como um aro de ferro.

Muito bem. Elas que lutassem por causa dele e que se matassem uma à outra na briga.

Fez um esforço para resistir à árvore do demônio. Riu-se para a Zebak, escarnecendo dela, desafiando-a a aproximar-se mais. Depois ergueu novamente os olhos para o réptil do gelo. Acima dos horrendos maxilares, a cabeça do animal brilhava como se um líquido imundo lhe escorresse da pele. O rosto de Rowan contorceu-se de ódio.

O animal soltou um silvo estranho. Inclinou-se mais, e a sua cabeça sem olhos aproximou-se, cada vez mais...

Rowan segurou o punhal com mais força, preparan­do-se para atacar. Depois... com grande espanto seu, sentiu algo quente borrifar-lhe a cara virada para cima.

E instantaneamente o réptil do gelo serpenteou e recuou, vencido. No seu lugar estava Shaaran — Shaa­ran inclinada sobre ele, com a caixa das sedas nos braços e lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.

Rowan olhou para ela, espantado. O punhal caiu-lhe da mão. Depois o coração pareceu saltar-lhe para a garganta quando viu uma sombra erguer-se atrás da chorosa menina — uma sombra a empunhar uma lâ­mina de gelo mortífera.

A Zebak!

— Cuidado! — gritou ele, agarrando no braço de Shaaran e puxando-a para baixo, para baixo e para o lado. A lâmina falhou-a por pouco, e a sua atacante caiu para a frente, tropeçando nos seus corpos e caindo pesa­damente ao chão.

E só então Rowan viu quem era a atacante... era a Zeel! Pestanejou, incrédulo. Mas não havia qualquer engano.

Não havia qualquer guerreira Zebak. Nunca houvera. Era Zeel quem estava de joelhos à sua frente, com uma mão a sangrar e a outra a tatear o chão à procura de uma arma.

Atordoado de choque, horror e alegria, Rowan soltou um grito estrangulado. Nesse mesmo momento, a mão de Zeel fechou-se sobre a faca dele, que tinha estado meio escondida atrás da coluna de gelo. Seguidamente, ainda vacilante, ela pôs-se de pé. Os seus olhos vidrados concentraram-se nele. O seu rosto franziu-se em rugas de ódio.

— Morra, ishkin! — silvou ela, atirando-se para a frente.

— Zeel, não! — gritou Rowan. Mas, no preciso mo­mento em que as palavras lhe saíram dos lábios e ele deu um salto para trás, e a faca golpeou desajeitada­mente o local onde ele estivera, ele compreendeu.

Horrores espreitam atrás dos teus olhos...

Ele amaldiçoou-se freneticamente pela sua estupi­dez, por não ter pensado mais atentamente nas palavras da profecia.

O verso dizia atrás dos teus olhos, não à frente deles! Rowan estava furioso consigo próprio. E o que está atrás dos teus olhos? A sua mente, seu estúpido! A sua mente! Essa é a traição deste lugar. Ela lhe mostra os inimigos que vivem na sua memória. A Zeel não está a te ver como é! Quando olha para você, ela o vê como um ishkin, um monstro da terra dos Zebak. Tal como você a viu como um guarda Zebak, e viu a Shaaran como um réptil do gelo. Inimigos que, não só detesta, como teme...

Com um sobressalto, ele olhou para o seu pé preso. Em vez da raiz da árvore demoníaca, agora ele viu a mão enluvada de Norris a segurá-lo com uma mão de ferro. O braço de Norris estava estendido, muito hirto. Norris estava deitado no chão de barriga para baixo, imóvel como a morte.

— Rowan! — gritou Shaaran. Rowan levantou os olhos mesmo a tempo de a ver lançar-se em direção a ele, ao mesmo tempo que Zeel voltava a atacar.

E, no instante seguinte, a faca dirigida ao seu coração tinha mergulhado na caixa de madeira que Shaaran segurava à frente dele como um escudo. O lado da caixa estilhaçou-se. Os preciosos rolos de seda começaram a deslizar para fora, caindo e rolando no chão duro.

Shaaran soltou um grito agonizante. Zeel agarrou-a e atirou-a violentamente ao chão.

— Com que então quer atirar-me ao ishkin, guar­da? — silvou ela para Shaaran. — Quer ver-me esfolada e arrastada para debaixo da terra, como os meus amigos? Bem, sem dúvida que o seu desejo será cum­prido. Mas você vem comigo, viva ou morta! — Ela levou as mãos manchadas de sangue ao pescoço de Shaaran e apertou.

— Não, Zeel, não! — soluçou Shaaran, tentando libertar-se dos dedos que a estrangulavam.

Rowan tentou puxar Zeel para trás, obrigá-la a soltar Shaaran. Era inútil. A sua mente rugia de horror. Ver-se-ia ele obrigado a usar o punhal da própria Zeel para salvar Shaaran? As coisas tinham chegado àquele ponto?

— O que... o que se passa com ela? — perguntou Shaaran, sufocando.

— Ela pensa que você é uma guarda Zebak — respondeu Rowan. — Como eu pensei que ela era, até... Ele calou-se.

Até o quê? O que quebrara a ilusão? Porque é que ele tinha ficado curado tão repentinamente, tão comple­tamente? O que tinha...?

As últimas palavras da profecia ecoaram subitamente aos seus ouvidos.

A cura é água de uma fonte

Onde não há ódio nem raiva.

A compreensão atingiu-o como um raio.

— Shaaran! — gritou ele. — Limpa os olhos, depois toca-lhe no rosto! Agora! Depressa!

Era típico de Shaaran não lhe fazer perguntas, não hesitar. Tirou as mãos da garganta, limpou as lágrimas dos olhos, depois colocou os dedos nas faces de Zeel.

E, instantaneamente, Zeel pestanejou e recuou, com uma expressão de choque no rosto. As mãos largaram o pescoço de Shaaran, e ela olhou para elas como se não lhe pertencessem.

— Zeel! — gritou Rowan, cheio de alegria. Ela virou-se para ele com um ar inexpressivo. Depois, a memória invadiu-a, e ela olhou para Shaaran que estava caída no meio de um emaranhado de seda, a tentar recuperar a respiração.

— O que... o que é que eu fiz? — perguntou ela, horrorizada.

— Não se preocupe — conseguiu dizer Shaaran, pondo-se de joelhos. — A culpa não foi sua. A sério que não foi.

— Você não fez nada que eu não tenha feito, Zeel — disse Rowan. — E o Norris também. A Shaaran foi a única de nós que...

Um gemido baixo fê-lo virar-se, alarmado.

Norris estava a acordar. Ele levantou a cabeça e abriu os olhos. Olhou diretamente para o rosto de Rowan. Os seus olhos escureceram, e ele mostrou os dentes. A sua mão apertou o tornozelo de Rowan com mais força.

Com um grito, Shaaran começou a gatinhar dolorosa­mente na direção do irmão.

Rowan estendeu rapidamente a mão, passou os dedos pelas faces molhadas da menina e espalhou as lágrimas pela testa franzida de Norris. As rugas de expressão desapareceram do rosto dele, deixando-o liso, perplexo e quase infantil.

— Eu... eu estava a sonhar — balbuciou ele. — Shaa­ran, você está viva! E o Rowan! Mas eu pensava...

O seu rosto adquiriu subitamente uma expressão de alarme, e ele começou a tentar levantar-se, com o sangue a jorrar de uma enorme facada num dos lados.

— Norris, não se mexa! — gritou Shaaran. Mas Norris já estava de pé, a olhar desvairadamente em volta.

— Há uma guarda Zebak aqui! — silvou ele. — Ela matou a Zeel e tomou o seu lugar, em algum lugar na trilha. A culpa foi minha! Eu não ouvi nada! Só percebi isso quando me virei para falar com a Zeel, depois de termos parado. A bandida atacou-me... nós lutamos...

Ele tentou endireitar-se, gemeu e levou a mão ao lado.

— E também há aqui um grach guerreiro... enorme! Um assassino! Eu estava a agarrá-lo... a tentar mantê-lo longe de você... mas agora não consigo vê-lo! Rowan, Shaa­ran, ponham-se atrás de mim. Onde está a minha espada? A minha espada!

Rowan viu a espada caída no chão. Apanhou-a e colocou-a na mão de Norris.

— Está aqui, mas não precisa dela, Norris — disse ele. — Não há ninguém para combater. Não há ne­nhuma guarda, nem nenhum grach. — Ele suspirou. — Tal como não havia nenhum réptil do gelo, nem ár­vore demoníaca...

— Nem ishkin — acrescentou Zeel calmamente, aproximando-se deles a coxear. — Eram apenas ilusões, Norris. Nós quase nos matamos uns aos outros, lutando contra as nossas recordações.

Norris oscilou, abanando a cabeça, confuso.

— Mas eu não vi nada! — disse Shaaran com voz rouca e uma mão na garganta magoada. — Só os vi... a todos vocês... a atacarem-se uns aos outros. E os seus rostos... — Uma sombra pareceu perpassar-lhe o rosto, e ela es­tremeceu.

— Você não viu nada porque não tem inimigos para ver, Shaaran — disse Rowan.

Shaaran quase riu.

— Mas isso é ridículo — gritou ela. — Eu tenho mais medos do que todos vocês juntos!

— Você tem medo de muitas coisas, mas não tem ódio a nada — disse Rowan. — Não há uma única pessoa ou animal que você fosse capaz de destruir de propósito, nem mesmo para salvar a si própria. Não é verdade?

Shaaran olhou para ele, com o rosto ligeiramente corado como se tivesse vergonha.

— O nosso Avô era a mesma coisa — murmurou Norris. — E a minha mãe e o meu pai também. Prote­gê-los era uma tarefa quase inglória.

— Posso bem imaginar isso — disse Zeel num tom caloroso. — Mas parece que desta vez a situação foi ao contrário.

Norris pareceu perplexo.

Ele não viu nada do que aconteceu, pensou Rowan. Ele continua sem compreender.

— A Shaaran salvou-nos a todos — disse ele a Norris. — Lembra-se dos últimos versos da profecia? A fonte livre de ódio e raiva não era uma fonte verdadeira, mas sim o coração transbordante da Shaaran. E as lágrimas dela eram a água curativa.

— Uma para chorar — disse Zeel.

Shaaran corou ainda mais. Norris franziu o sobrolho.

— Então porque é que a profecia não disse isso cla­ramente? — perguntou ele, zangado. — Porque é que um enigma nos há de enganar e confundir?

— Porque a vida em si é um enigma — respondeu Zeel — e, à medida que fazemos a nossa viagem através dela, temos que resolver todos os enigmas por nós próprios. — Ela falou num tom ligeiro, mas os seus olhos tinham um ar pensativo.

Shaaran tinha começado a apanhar os rolos de seda espalhados pelo chão.

— Eu não consigo ver as pegadas dos bukshah — disse ela com nervosismo. — Acho que estamos perdidos.

Mas Rowan ainda conseguia ver a sua mochila no lugar onde a deixara cair, não muito longe.

— Está tudo bem — exclamou ele, apontando. — Foi ali que deixei a trilha.

— Ainda bem! — suspirou Zeel. — Então vamos pôr ligaduras nas nossas feridas, consertar a caixa das sedas e sair deste lugar maldito o mais depressa que pu­dermos. O próprio ar põe-me doente.

 

Ao fim de menos de uma hora, os companheiros já prosseguiam lentamente o seu caminho por entre as colunas de gelo, desta vez com Zeel à frente. Os seus olhos perspicazes não tinham demorado muito tempo a localizar a trilha que Rowan não conseguira encon­trar.

Todos eles estavam machucados, mas Norris era quem estava em pior estado. A sua perna machucada tinha piorado com a luta, e a ferida num dos lados era profunda e dolorosa.

Mas seria o sofrimento o único motivo para o seu si­lêncio? perguntou Rowan a si próprio. Ou residiria o verdadeiro problema em algum lugar dentro dele?

O rosto de Norris estava carrancudo. Ele não se jun­tou ao coro de fracos vivas que saudaram a visão de outro arco rochoso à sua frente — um arco através do qual se via uma mancha cinzenta. Ele não ergueu o olhar quando os companheiros saíram finalmente do vale de horrores e chegaram ao espaço aberto.

Isto não pressente nada de bom, pensou Rowan. E, quando olhou em redor e reconheceu a encosta erma, íngreme, coberta de neve, que ficava para além do arco, o coração caiu-lhe aos pés.

Um vento agreste soprava à volta deles. Havia pouca luz. As pegadas dos bukshah eram escuras na neve e subiam até se perderem no meio das rochas caídas. Para além das rochas havia uma parede de penhascos pretos. Acima dos penhascos não se via nada a não ser a neblina rodopiante.

Três figuras, subindo em fila indiana...

Este era o local do seu sonho. Do primeiro sonho. Mas o sonho não se tornará realidade, disse Rowan a si próprio. Não pode tornar-se realidade. Eu, o Norris e a Shaaran não estamos sós. A Zeel está conosco.

Percebeu que Zeel estava a falar com ele.

— Temos que encontrar um abrigo, e depressa — murmurava ela. — Um lugar onde possamos fazer uma fogueira.

Três figuras juntas, cheias de medo, à volta de uma fogueira...

— A caverna... — balbuciou Rowan.

— A caverna? — exclamou Zeel. — Qual caverna?

Rowan abanou a cabeça para desanuviá-la.

— Eu só queria dizer... ali... certamente que deve haver uma caverna, naqueles penhascos lá em cima — gaguejou ele.

Zeel olhou para ele com a cabeça inclinada para um lado.

— Porque é que tem tanta certeza? — perguntou ela.

Rowan hesitou, percebendo que Zeel estava desconfiada de que ele sabia mais do que dizia. Por um lado, ele ansiava por lhe fazer confidencias. Mas se, até agora, ele não admitira ter aqueles sonhos terrí­veis, como é que podia fazê-lo naquele momento, na­quele lugar ermo, com Shaaran e Norris à beira do desespero?

Zeel abanou impacientemente a cabeça.

— Pode guardar os seus segredos! — disse ela num tom ríspido. — Mas se você sabe que há uma caverna, Rowan, é loucura não me dizer. Nós estamos em perigo! Para onde devemos ir? Como é que nos podemos es­conder?

E, instantaneamente, o medalhão começou a aque­cer. Rowan, horrorizado, agarrou nele, consumido pela recordação daquela dor que o queimava, por aquela sensação aterrorizadora de ser dominado por algo que não era ele próprio.

— Oh, Rowan! Não foi minha intenção... oh, descul­pa! — o grito de Zeel ressoou nos seus ouvidos. — Rowan, não resista! Deixa que...

A voz dela deixou de se ouvir. Não resista.

Rowan resistiu ao impulso de afastar o medalhão da pele. Em vez disso, ele premiu-o mais contra si. O calor começou na garganta, chamuscando-a e fazen­do-a inchar, mas ele obrigou-se a si próprio a não ficar sufocado. E assim as palavras estranhas fluíram dele para o ar gelado, não com facilidade, mas também não o fizeram de uma forma atroz.

“O refúgio espera no alto, mais adiante

Sobe a escada do morto.

Esconde-te no interior das paredes rochosas

Fica imóvel enquanto a escuridão gelada cai.”

 

A SUBIDA

Quando as últimas palavras lhe saíram dos lábios, Rowan caiu de joelhos, sentindo-se tonto e ago­niado. Lentamente, o mundo pareceu estabilizar, e ele ergueu o olhar. Norris estava a fitá-lo com um ar inex­pressivo. Shaaran também o fitava, mas tinha a mão pre­mida contra a boca. E a Zeel...

Zeel estava a abrir o seu papagaio.

— Não, Zeel! — gritou Rowan, em pânico, a tentar pôr-se de pé. Novas vagas de tonturas fizeram-no camba­lear.

Zeel olhou para ele.

— Eu não tinha a intenção de te fazer sofrer, Rowan, mas, pelo menos, posso fazer com que a dor valha a pena — disse ela. — A profecia fala de “paredes rochosas.” Deve haver, de fato, uma caverna mais adiante. Eu vou à procura dela a partir do ar enquanto vocês começam a subir.

— Não! — retorquiu Rowan num tom de desespero. — Você tem uma mão machucada. Voar aqui é demasiado perigoso. Se o vento mudar, será atirada contra os pe­nhascos!

Zeel levantou a cabeça.

— Você se esquece — disse ela suavemente — de que eu sou uma Batedora dos Viajantes. A minha tarefa na vida é voar à frente da tribo qualquer que seja o tempo, à procura de abrigo, ver se há perigos à espreita. Os meus conhecimentos podem ajudar-nos agora. Eu não me arriscaria a levar o peso de um passageiro extra, mas sozinha consigo voar, com uma mão só, se necessário.

Ela levantou o papagaio, de modo a que a seda ama­rela esvoaçasse por cima dela.

— Nos veremos em breve, Rowan,

Rowan reconheceu as palavras. Eram usadas pelos Viajantes quando se despediam uns dos outros em momentos de perigo.

— Nos veremos em breve — respondeu ele. Zeel sorriu-lhe, virou a cabeça para o vento, e este levou-a para cima, para longe.

Rowan ficou um momento a ver o papagaio a voar por cima deles, uma mancha de cor contra o fundo branco, preto e cinzento. Depois voltou-se para Shaaran e para Norris.

Estavam os dois a olhar para Zeel, Shaaran com um misto de espanto e medo, Norris com um ar de desespero. O jovem estava parado, a oscilar, com o rosto marcado pela tensão e os ombros curvados.

Rowan sentiu um enorme desânimo.

— Devíamos acender archotes antes de continuar­mos — disse ele. — Temos uma longa subida pela frente, e a qualquer momento... — Ele calou-se ao ver os olhos aterrorizados de Shaaran. Não precisava de lhe lembrar do que, naquele preciso momento, poderia estar a desli­zar por baixo da neve em direção a eles.

Norris não disse nada. Não falou sequer quando Rowan lhe meteu um archote a arder na mão, simplesmente deu meia volta e começou a afastar-se, a coxear, seguindo as pegadas dos bukshah.

Shaaran olhou para Rowan, com os olhos cheios de ansiedade.

— Deixe-o ir — disse Rowan. — Vamos atrás dele. — O medo acabrunhava-o. Ele sabia o que ia acontecer a seguir, mas não podia fazer nada.

Aprende o que é ser o que eu sou.

Começaram a subir os três em fila indiana. Na mente de Rowan estava um retrato claro do aspecto que eles deveriam ter. A figura alta, a coxear, à frente; a seguir, a figura pequena, frágil, com uma caixa comprida de madeira nas mãos; por último, ele próprio...

Incapaz de resistir à tentação, ele virou-se e olhou para trás. Não viu nada a não ser uma imensidão cheia de neve, rocha preta e o arco, de um azul cintilante.

— Rowan, o que é?

Shaaran tinha parado e estava a olhar para ele com um ar alarmado.

Rowan encolheu os ombros, decidido a não dizer nada. Viu que Norris também tinha parado e se virara. Os olhos de Norris tinham um ar inquieto, mas ele não falou.

Pelo menos isto não é igual ao meu sonho, pensou Rowan, com um lampejo de esperança. Mantendo-me calado, alterei as coisas. Talvez...

— Vamos continuar a andar — insistiu Shaaran. — Daqui a pouco vai ficar escuro.

Os lábios de Norris distenderam-se num sorriso ter­rível.

— Que importância tem isso? — disse ele subitamente. — Quer paremos aqui, quer mais acima na Mon­tanha, quer seja noite, quer dia, estamos condenados.

A bengala e o archote caíram-lhe das mãos, e ele tombou no chão.

Shaaran correu para ele e começou a puxar-lhe os braços, chamando-o pelo nome. Ele limitou-se a virar-lhe a cara e a enterrar-se mais na neve, como uma criança que não quisesse levantar-se de uma cama quentinha.

— Rowan, ajude-me! — gritou Shaaran.

Rowan pegou o archote caído e obrigou-se a si pró­prio a pensar.

Eu vi todos juntos numa caverna, recordou ele a si próprio. Eu sei que, de algum modo, Norris vai conseguir sobreviver a isto... que todos nós vamos conseguir sobreviver. Mas eu também sei que suplicar-lhe ou tentar convencê-lo não o fará mexer-se. Tem que haver outra maneira.

Mas que outra maneira? Ele e Shaaran não tinham força suficiente para carregar Norris, nem sequer para arrastá-lo mais do que uma curta distância pela colina acima.

— Levante-se, Norris, por favor! — dizia Shaaran, a chorar, ajoelhada ao pé do irmão, ela própria meio enterrada na neve.

— Deixe-me dormir — resmungou Norris. — Isto é o fim.

Isto é o fim...

Rowan viu Shaaran cobrir a boca com a mão para abafar um grito de desespero.

Era ali que o seu sonho tinha terminado. E agora? Ele deitou-se ao lado de Norris.

— Isto não é o fim, a não ser que faça com que seja, meu amigo — disse ele num tom inexpressivo.

Norris suspirou profundamente. Depois rolou, ficou deitado de costas e olhou para Rowan.

— É o fim — disse ele. — Todos nós tivemos o nosso papel a desempenhar nesta busca. Uma alma para chorar, uma para lutar, uma para sonhar, uma para voar. Não é assim?

Rowan acenou afirmativamente a cabeça e aguardou.

— A Shaaran é a que chora — disse Norris erguendo os olhos para o céu que já estava a escurecer. — As suas lágrimas salvaram-nos no vale dos horro­res. Você é o que sonha, Rowan, pois usa o medalhão e diz as profecias. Zeel é a que voa, conforme acabamos de ver. E eu...

Ele calou-se e fechou os olhos.

— Continue! — insistiu Rowan, lutando contra a sensação de culpa que o inundara quando Norris falara em sonhar. — E você... você é o que luta?

— Claro! — respondeu Norris, abrindo os olhos. — Eu pensava que estava destinado a ser o seu protetor. Eu tinha tanta certeza disso que nem sequer tentei im­pedir que a Shaaran viesse nesta viagem. Eu pensei que ia salvar aos dois.

Shaaran soluçou, um soluço estrangulado. Norris olhou na direção dela mas desviou imediatamente o olhar.

— Eu sentia-me tão orgulhoso do papel que estava destinado a desempenhar — murmurou ele. — Eu, que fazia desesperar o meu avô, ia provar finalmente que era um herói, não um tolo.

Ele soltou uma gargalhada amargurada.

— Norris — começou Rowan a dizer. Mas Norris não estava a ouvir. — Quando foi altura de lutar, com que satisfação eu me apressei a atacar! — prosseguiu ele, com o rosto contorcido de dor e de vergonha. — Mas depois... depois descobri que não tinha estado a lutar contra inimigos, mas sim contra os amigos que tinha jurado defender. Mais uma vez, eu tinha sido um tolo estouvado. E agora não passo de um peso ferido, inútil.

— Eu e a Zeel também fomos vítimas das visões! — exclamou Rowan.— Você não pode culpar-se a si próprio pelo que aconteceu.

— Posso, porque fui eu que me virei. Fui eu que dei origem a tudo, ao armar-me em grande guarda e protetor — disse Norris. — E agora a nossa busca termi­nou. Eu compreendi isso quando vi a Zeel lançar o seu papagaio. Chorar, lutar, sonhar e voar. Os quatro papéis já foram todos desempenhados.

O estômago de Rowan deu uma volta.

— E o meu papel — prosseguiu Norris numa voz cada vez mais baixa —, o meu papel, longe de nos salvar, tem sido deixar-nos fracos e indefesos, presas fáceis do destino que a Montanha nos reserva. Eu não passei de um peão num jogo maligno.

Lágrimas amargas ardiam-lhe nos olhos.

— Deixem-me. Eu não quero viver o que está para acontecer. O ente maligno que nos trouxe para este lugar triunfou.

Ele virou-se para a neve, cobrindo a cabeça com os braços e puxando os joelhos para o peito.

— Norris — gritou Rowan, abanando-o. — Mesmo que tivesses razão... mesmo que uma força maligna nos tenha conduzido a uma armadilha... nós não podemos simplesmente deixar-nos morrer.

Mas desta vez Norris não se mexeu.

Ouviu-se um grito estranho, agudo, vindo de algures lá no alto. Era a Zeel! Rowan pôs-se de pé e olhou para cima. O papagaio amarelo pairava perto da face do penhasco, com um lado ligeiramente inclinado como se estivesse a apontar para um lugar mais abaixo.

Ele sentiu uma ponta de esperança. Zeel tinha encon­trado a caverna. A única coisa de que eles precisavam era chegar lá; depois, teriam calor, descanso e alguma espécie de segurança.

Mas Norris estava deitado na neve como um toro de madeira, retendo-os naquela colina sombria e perigosa. O Norris, imagine-se só! Ele que era tão admirado por todos os habitantes de Rin pela sua força e coragem.

Rowan sentiu a ira aumentar dentro de si. Ele sabia que era imerecido e injusto mas, por um instante, dei­xou-se dominar por ela. Se a Lann visse o Norris agora! Ou a Bronden! O que fariam elas?

E, de repente, ele soube. Lann e Bronden tratariam Norris tal como esperariam ser tratadas. Elas saberiam instintivamente o que poderia quebrar a casca de deses­pero que o envolvera, pois ele era igual a elas.

Rowan respirou fundo e preparou-se para agir.

— Levante-se! — disse ele, dando um pontapé no ombro de Norris, com um ar de desprezo.

Shaaran gritou.

Rowan ignorou-a e deu outro pontapé.

Norris abriu os olhos.

— Deixe-me em paz — gemeu ele.

— Covarde! — disse Rowan com desdém. — É um covarde!

— Rowan, como pôde fazer uma coisa dessas? — perguntou Shaaran, a chorar. — Ele está a sofrer muito!

Mas os olhos baços de Norris tinham adquirido vida, e havia um ar zangado no seu rosto.

— Você está me chamando de covarde? — rosnou ele. Rowan virou-lhe as costas. A Norris, pareceu certa­mente que ele lhe virava as costas com repulsa. Norris não conseguia ver que o seu atormentador estava a fazer figas e sustinha a respiração.

Mas Shaaran via. Os seus olhos chocados abriram-se muito em sinal de compreensão, e ela calou-se.

Norris mexeu-se. Procurou desajeitadamente a ben­gala. Quando a tinha na mão, pôs-se em pé, com dificul­dade. A neve caiu-lhe pesadamente da roupa como um aguaceiro. Ele arrancou o seu archote da mão de Rowan.

— Eu vou mostrar-te quem é covarde — rosnou ele. — Acompanhe o meu passo, se puder!

E, a cambalear, ele começou a afastar-se, seguindo a trilha.

Shaaran e Rowan foram atrás dele. Certamente que ele me está a amaldiçoar, pensou Rowan. Mas, pelo menos, está vivo.

Vivo por enquanto.

Rowan afastou o pensamento indesejado e continuou a andar.

A subida era longa e árdua. Estava cada vez mais frio e mais escuro, e o vento era agreste, picando-lhes a cara e soprando-lhes o fogo dos archotes para os olhos. À medida que se aproximavam da face do penhasco, o caminho foi se tornando mais íngreme e sinuoso. A sua volta havia pedregulhos enormes. A neve debaixo dos seus pés era gelada, e tinha congelado em pedaços duros denteados, escorregadios como o gelo.

Zeel descrevia círculos por cima das suas cabeças, atenta aos sinais de perigo — perigo que se contorcia debaixo da neve, escondido na neblina que rodopiava por entre as rochas.

Ao fim de algum tempo, os penhascos ergueram-se, enormes e escuros, à sua frente. As pegadas dos bukshah seguiam para a esquerda, mas Zeel dirigiu-se para a di­reita, e os três em terra seguiram-na aos tropeções através da neve espessa. Pouco depois, o papagaio estava a pairar como uma enorme borboleta sobre um local onde dois terços da face do penhasco formavam uma saliência sobre o resto, lançando sombras sobre uma abertura estreita e escura na rocha.

Rowan reconheceu imediatamente a abertura como a caverna do seu sonho, embora, sem a ajuda de Zeel, certamente que teria passado sem reparar nela. Visto de fora, o triângulo estreito, irregular, parecia uma sim­ples racha na rocha. E não estava na base da face do penhasco como ele esperara, mas sim a um terço da subida, mesmo abaixo da saliência.

O refúgio aguarda no alto, mais adiante...

O verso dizia literalmente a verdade. A caverna era, de fato, um refúgio bem alto. Como é que iriam chegar lá? A face do penhasco era lisa, e era impossível escalá-la.

Rowan apressou o passo, passando, quase a correr, por Shaaran e por Norris. Quando estava diretamente abaixo da caverna, encostou-se à face do penhasco e levantou as mãos o mais que conseguiu. As pontas dos seus dedos ficaram longe da entrada, pelo menos a al­tura de uma pessoa.

Sobre a escada do morto...

— Tem que subir para os meus ombros.

Rowan virou-se, surpreendido. Norris tinha surgido ao seu lado, com o rosto pálido de dor e cansaço.

— Você primeiro, Rowan, para poder ajudar a Shaaran de cima — disse Norris. — A Zeel pode ir a seguir.

— Norris, você não está em condições... — começou Rowan a dizer. Mas Norris abanou a cabeça.

— Para chegar à caverna tem que subir a escada do morto, é que diz o verso — murmurou ele. — E o que sou eu senão um homem morto?

Shaaran, que ainda caminhava penosamente em direção a eles, ouviu as últimas palavras e soltou uma exclamação de horror. Norris não se virou para ela. Os seus olhos estavam fixos em Rowan.

— Eu não consigo chegar à abertura, e vocês três juntos não seriam capazes de me içar — disse ele. — Mas eu posso ser-lhes útil. E depois talvez... talvez você, a Zeel e a Shaaran tenham a possibilidade de sobreviver a isto. Seria muito importante para mim pensar que isso pode acontecer. Rowan, eu suplico-te!

Rowan não foi capaz de lhe negar o pedido. Acenou rapidamente a cabeça em sinal de assentimento e Norris, com um gemido abafado, curvou as costas. Igno­rando o grito de aflição de Shaaran, Rowan subiu para os ombros largos. Depois, quando Norris se endireitou, levantou as mãos e agarrou-se à base da entrada da ca­verna.

Os seus músculos retesaram-se quando ele se içou. As botas tentaram em vão encontrar apoio na face lisa do penhasco. Mas a idéia de cair para trás, para o chão, de ter causado dor a Norris para nada, deu-lhe força aos braços. Alguns momentos depois, ele estava estendi­do, ofegante, no chão da caverna.

A caverna era escura mas pouco funda. Ele conse­guia ver suficientemente bem para confirmar que não havia nada à espreita nos cantos envoltos em sombras. Rodou rapidamente de modo a ficar virado para fora, e deslizou para a frente, com a cabeça e os ombros fora da entrada da caverna.

Norris estava muito curvado. Shaaran estava agachada ao lado dele, a soluçar.

— Shaaran! — chamou Rowan, estendendo o braço para ela.

Mas ela abanou a cabeça.

— Ele está cheio de dores! — disse ela em voz alta. — Eu não consigo.

Rowan ouviu um grito de aviso lancinante vindo de cima. Ergueu o olhar. O papagaio amarelo rodava e mergulhava. Zeel fazia freneticamente sinais. Ele voltou a olhar para baixo e o coração começou a bater-lhe com força quando viu que a neve espessa um pouco mais adiante, junto da base do penhasco, estava a mover-se e a erguer-se, formando um monte de neve branco.

Havia algo a correr ao longo da base do penhasco, em direção a Shaaran e Norris, serpenteando através da neve como uma enguia na água.

— Réptil do gelo! — gritou Rowan. — Shaaran! Norris! Cuidado!

 

A CAVERNA

Norris endireitou-se. Cerrando os dentes, agarrou em Shaaran pela cintura e, com um gemido, ati­rou-a para cima, com tanta força que Rowan conseguiu agarrá-la pelos ombros e puxá-la para dentro da caverna.

Caíram os dois para trás no chão de areia. Shaaran gritava. Rowan levantou-se e foi até à entrada.

Não viu Zeel em parte nenhuma. Ela devia ter voado para o topo do penhasco e aterrado lá, pensou Rowan, atordoado. Ela devia ter tido medo de que o réptil do gelo a agarrasse. Mas Norris...

Norris estava encostado ao penhasco. A ferida do seu lado tinha-se aberto novamente quando ele agarrara em Shaaran, e sangrava profusamente. Ele segurava os três archotes à sua frente como um escudo.

— Norris! — gritou Rowan, empurrando-se para a frente e estendendo os braços. — Agarra nas minhas mãos!

Norris nem sequer ergueu a vista.

— Vá para trás! — gritou ele. — Não consegue me içar. Protejam-se. Acenda uma fogueira na entrada da caverna. Depressa! Eu vou reter esta coisa o mais tempo que puder, mas...

A neve aos seus pés inchou, depois a superfície gelada abriu-se e dela surgiu uma cabeça cega hedionda, com a boca aberta. Norris não pestanejou. Atirou os archotes para a frente. O réptil silvou, encolheu-se e preparou-se para voltar a atacar.

Segurando Shaaran, que gritava, para a afastar da beira, Rowan tirou archotes novos da mochila e come­çou a tentar acendê-los. Tinha as mãos a tremer e amaldi­çoou-se pela sua falta de jeito.

Norris vociferou, tentando atingir o réptil com os ar­chotes. O animal atacava, enfurecido, com a boca aberta, sombreada de azul. Nisto, um clarão amarelo desceu do topo do penhasco e passou-lhe por cima da cabeça, numa golfada de calor e chamas, e ele estremeceu.

Era Zeel — Zeel, agarrada ao papagaio com a mão boa e empunhando um archote a arder na outra. Ela tinha certamente aterrado no topo do penhasco, mas permanecera lá apenas o tempo suficiente para acender o archote.

O réptil do gelo silvou e atacou, apanhando a orla da seda amarela com os dentes. A seda rasgou-se com um terrível som agudo. O papagaio estremeceu, incli­nou-se para o lado e começou a descer. O réptil ergueu-se e contorceu-se em direção a ele, pronto para voltar a atacar.

Norris viu a sua oportunidade e aproveitou-a. Com um grito, lançou-se para a frente, empurrando os três archotes juntos contra o corpo desprotegido do animal.

Ouviu-se um crepitar horrível e um cheiro quente e azedo. Uma onda de vapor azul escuro jorrou, com um rugido, da boca aberta do animal. Por um momento, o seu corpo enorme pareceu tremer no ar. Depois, enquanto Norris saía apressadamente do caminho, o réptil caiu junto da face do penhasco e ficou imóvel.

Norris ficou a olhar, com olhos vidrados, para o monte de anéis flácidos que quase chegavam à entrada da caverna. Ele não virou a cabeça quando Zeel surgiu ao pé dele, com os pedaços rasgados do seu precioso papagaio por cima do ombro. Mas, quando ela lhe pegou no braço, ele não discutiu e deixou que ela o segurasse enquanto se aproximavam do corpo do animal.

Zeel tocou-lhe com o pé. A pele do réptil já estava a ficar baça e ligeiramente enrugada, e o pé fez uma mossa na carne.

— Matou-o — disse ela num tom respeitoso.

— Mas foi apenas uma pequena queimadura, num corpo tão grande — Norris abanou a cabeça. — Como é que o animal podia morrer disso?

— Para ele, o calor deve ser como um veneno — respondeu Zeel. — Como veneno no sangue. Ah, como investiu contra ele! Como um homem possesso!

— Você deu-me a oportunidade de que eu precisava — murmurou ele.

Ela encolheu os ombros.

— Fiz o que pude — disse ela. — Mas foi a sua força que nos salvou a todos.

Ele fez um pequeno som estrangulado e ela ergueu o olhar para ele. Os olhos dele estavam estranhamente brilhantes, e os músculos tensos à volta da sua boca ti­nham-se descontraído subitamente, deixando o seu rosto liso e tranqüilo.

O que foi que eu disse para ele ficar assim?, pensou ela. Limitei-me a dizer a verdade.

Ela refletiu sobre o assunto durante alguns instan­tes, depois afastou o pensamento da mente, tal como afastara o desgosto por causa do papagaio, e concen­trou-se em questões práticas. Norris estava a cambalear e tinha a roupa ensopada de sangue. Ela segurou-lhe com mais firmeza no braço.

— Ande — disse ela. — Você deu-nos a nossa escada. A nossa escada do morto. Agora temos que a subir.

Com Rowan e Shaaran a incitá-los, subiram os dois juntos, utilizando a coisa branca sem vida como escada. Os anéis flácidos faziam-nos deslizar e escorregar a cada passo. Zeel tinha os maxilares cerrados, e havia uma expressão de horror nos seus olhos. Norris tremia todo.

Ao fim de alguns momentos eles chegaram à caverna e entraram.

Assim que lhes apertou as mãos para lhes dar as boas-vindas, Rowan começou a acender uma fogueira. Ele sabia que Shaaran cuidaria de Norris. Ele sabia que Zeel ia querer ficar sozinha, a chorar o papagaio ao seu modo. A sua tarefa agora seria tornar a caverna segura — tanto quanto possível — para a longa noite que tinham pela frente.

 

Enquanto a escuridão aumentava no exterior da ca­verna, Rowan, Zeel e Shaaran ferveram um pouco de água para fazerem chá. Depois torraram pão, que comeram primeiro com queijo derretido e depois com o mel e os frutos secos que Zeel trouxera consigo.

O fogo, a comida e a bebida quentes reconfortaram-lhes as mentes, bem como os corpos. Ao fim de algum tempo, até mesmo Norris pareceu recuperar um pouco e conseguiu sentar-se, embrulhado em cober­tores e encostado à parede da caverna.

Por acordo tácito, eles não falaram do dia que passara, nem do futuro, embora houvesse muito a dizer. Em vez disso, conversaram sobre pequenas coisas — o sabor doce e fresco do mel, refeições que tinham saboreado antes.

Rowan falou do peixe salgado dos Maris. Shaaran e Norris falaram das hortaliças e da fruta que tinham cultivado na terra dos Zebak. Zeel falou das abelhas dos Viajantes, transportadas de um lado para o outro quando a tribo seguia a floração das flores.

Depois ela calou-se, e Rowan desconfiou que ela estava a pensar que poderia vir aí um tempo em que já não haveria flores, nem abelhas, nem sequer Viajantes na terra. Em que não haveria nada a não ser a brancura fria e estéril de um Inverno interminável.

Ele moveu-se, inquieto, tentando expulsar esses pensa­mentos da sua mente.

— É melhor tentarmos dormir — disse ele. — Eu serei o primeiro a ficar de guarda.

— Eu ficarei a seguir — disse Zeel rapidamente, antes de Norris poder falar. — Não se esqueça de me acordar quando forem horas.

Ao fim de pouco tempo, estava tudo silencioso. O chão da caverna era duro, mas Norris, Zeel e Shaaran estavam exaustos e, assim que se embrulharam nos seus cobertores, nem mesmo a dor e os receios conseguiram mantê-los acordados.

Rowan ficou de guarda enquanto as longas horas passavam, sentado muito rígido junto da fogueira, a ver as chamas dançar. De vez em quando, ele deitava mais um pau para manter o fogo vivo mas, sempre que o fazia, era assaltado pelo medo.

O feixe de paus que eles tinham trazido estava a ficar cada vez mais pequeno. E se mais répteis viessem... se ele, Zeel, Norris e Shaaran ficassem cercados, encurra­lados na caverna por dúzias desses animais... o que acon­teceria?

Eles tinham comida e tinham água. Mas isso não os salvaria se eles não tivessem combustível.

O fogo apagar-se-ia. O último archote arderia até o fim. Depois não haveria nada que impedisse os répteis do gelo de os arrancar da caverna um a um, como lagartos a roubar filhotes de passarinhos de um ninho.

Esconde-te no interior das paredes rochosas

Fica imóvel quando a escuridão gelada cair

Escuridão gelada...

Rowan sentiu um arrepio. Iria aquela caverna ser o fim da viagem? Seria aquele pequeno buraco numa parede gelada o local onde todos eles iriam morrer?

O seu coração era como um bloco de gelo. Ele sentia todo o corpo dormente. Subitamente, no meio do silên­cio, começou a ouvir sons sumidos.

Todo ele se arrepiou. Escutou atentamente. Ouviu novamente os sons, aterrorizadores e inconfundíveis. Havia algo a contorcer-se e a esgaravatar por cima dele, na saliência da rocha.

Os sons aumentaram de volume. Pedaços de neve começaram a cair da beira da saliência, passando pela entrada da caverna antes de chegarem ao chão.

Zeel sentou-se, instantaneamente atenta. Norris e Shaaran mexeram-se e abriram os olhos.

— Começou há pouco tempo — murmurou Rowan. — No início acho que era só um. Mas agora são muitos.

Zeel rangeu os dentes. Shaaran começou a tremer. O rosto de Norris parecia ser esculpido de pedra. Rowan sabia que em todas as suas mentes estava a aterrorizadora imagem de uma massa de corpos brancos contorcidos, semelhantes a cobras, com maxilares sombreados de azul e cabeças sem olhos a baterem na rocha, à procura de uma entrada.

Ele acrescentou outro pau à fogueira. Não podia fazer mais nada.

— O fogo vai manter-nos em segurança — disse Zeel. Mas ela não parecia muito segura.

Rowan procurou algo que servisse de tópico de con­versa — qualquer coisa para camuflar aqueles sons terrí­veis.

— Fale-nos da nossa gente que seguia a trilha da Sheba — disse ele. — Eles estavam bem?

— Razoavelmente bem — respondeu Zeel seguindo a deixa dele com determinação. — Eu não desci até junto deles, pois estava ansiosa por me juntar a vocês e não queria arriscar-me a perder o vento. Mas eles iam a marchar a um bom ritmo, concentrados no seu objetivo e a olhar em frente, como os habitantes de Rin fazem.

Involuntariamente, ela esboçou um meio sorriso.

— Todos, com exceção de Allun, que ainda não perdeu totalmente os seus modos de Viajante — acres­centou ela. — Eu penso que ele talvez me tenha visto, porque levantou o braço. Mas eu tinha passado muito rapidamente, e não tenho bem a certeza.

— E a Lann e a Bronden? — perguntou Shaaran, arranjando ânimo para manter a conversa, embora os seus lábios estivessem rígidos de medo. — Como estavam elas?

— A Lann tem as coisas bem sob controle — disse Zeel. — Ela fez um círculo à volta da padaria com toda a madeira velha e inútil que conseguiu encontrar. Ela tenciona deitar petróleo na madeira e pegar-lhe fogo se necessário, para se proteger a ela própria e à Bronden dos...

Ela calou-se, aborrecida consigo própria por ter feito lembrar aos seus companheiros o perigo que os amea­çava. Por um momento, tomaram todos novamente consciência dos sons por cima das suas cabeças.

Os ásperos ruídos furtivos eram agora mais altos e pareciam mais próximos. Era como se, a cada momento, cada vez mais répteis do gelo se arrastassem através da neve que cobria a saliência. Como se uma massa de corpos frios e brancos a contorcerem-se estivesse agora a raspar a própria rocha.

Os olhos de Zeel recaíram sobre a caixa de sedas que Shaaran segurava em cima do colo.

— Shaaran, deixe-me ver outra vez algumas sedas. Por favor — disse ela, erguendo a voz.

O coração de Rowan deu um salto. Até àquele mo­mento, tudo tinha sido diferente da cena do seu sonho. Mas parecia que não havia forma de escapar ao que estava para vir. Zeel estava a fazer o mesmo pedido que ele próprio jurara não fazer.

— O Ogden não tem falado de outra coisa desde que viu as sedas na sua aldeia, no Verão passado — prosseguiu Zeel. — E eu acho que ele pensa nelas com mais frequência ainda do que fala delas. É estranho.

Ela inclinou-se para a frente para alimentar o fogo, sem reparar no silêncio súbito dos seus companheiros. Rowan trocou olhares com Shaaran e Norris. Ele sabia que eles estavam a pensar o mesmo que ele.

Teria Ogden dos Viajantes pressentido perigo nas sedas? Perigo para a terra? Pensando bem, Rowan lem­brou-se de que ele tinha examinado cuidadosamente as sedas e deixado apressadamente a aldeia logo a se­guir.

Ele não me disse nada sobre esses receios, mas talvez quisesse ter tempo para refletir, pensou Rowan. Se assim foi, ele esperou demasiado tempo. Mas mesmo que ele tivesse falado, será que nós, os habitantes de Rin, lhe teríamos dado ouvidos? As pessoas sentiam-se tão felizes por aprenderem um pouco sobre o seu passado. Elas não acatariam de bom grado um aviso de um Viajante.

Ele voltou a concentrar a sua atenção em Zeel. Esta entusiasmara-se com o assunto e estava a falar rapida­mente, olhando para o fogo. Era óbvio que Lann não lhe dissera nada sobre o terrível aviso de Neel, o oleiro, nem sobre como este tentara queimar as sedas. Zeel não fazia idéia de que, a cada palavra que proferia, o medo dos seus companheiros aumentava.

— É intrigante — disse ela. — O Ogden elogiou muitas vezes a técnica com que estas sedas foram feitas, bem como a intemporalidade desta forma de preservar a história. Mas não há dúvida de que há algo nelas que o... perturba. Uma vez, quando estava a falar nelas, ele disse, quase para si próprio, “O que devo fazer? Falar, dizer o que suspeito, ou não mexer no assunto?” Mas quando lhe perguntei o que ele queria dizer, ele virou-me as costas e recusou-se a falar mais sobre o assunto.

Ela suspirou.

— É um mistério. Eu decidi que, quando tivesse opor­tunidade, o tentaria resolver. Posso ver as sedas?

Incapaz de recusar, Shaaran respirou fundo e mexeu no fecho da caixa de madeira. A caixa tinha um ar muito estragado. O lado partido tinha sido forrado com um pedaço de cobertor para manter as sedas seguras no interior. Ela abriu cuidadosamente a tampa.


Não, Shaaran, pensou Rowan. Mas a menina já estava a tirar os rolos de seda da caixa. Ela soltou um rolo e estendeu-o. Rowan sentiu um arrepio na espinha. Era a seda que ela tinha pintado na padaria.

As cores eram mais vivas do que as cores da seda no seu sonho mas, tirando isso, a pintura era a mesma. Rowan ficou a olhar para as formas pretas, brancas, azuis e cinzentas de que se recordava. Olhou para a longa fila de pessoas a caminhar através das colinas cobertas de neve ao longo de um trilho preto queimado. Olhou para os bukshah, dentro da cerca do seu campo cheio de neve.

Depois, virou os olhos para a Montanha, atemorizado. Durante aquela última longa noite antes de partirem, Shaaran não só tinha acabado a pintura, como lhe acres­centara alguns pormenores. Emergindo, a contorcer-se, da neblina da Montanha havia centenas de formas he­diondas, parecidas com cobras, com os maxilares abertos, forrados de azul, e dentes semelhantes a estilhaços de gelo.

Zeel susteve a respiração e virou o rosto. Norris soltou um longo gemido.

— Oh, desculpem! — balbuciou Shaaran, enrolando as sedas com as mãos a tremer. — Eu tinha que pintar a verdade. Mas não tencionava mostrar-lhes esta...

Depois, subitamente, ouviu-se uma profunda rosnadela em surdina oriunda da rocha, e foi como se o mundo tivesse desabado, acompanhado pelo som de uma onda enorme a rebentar. Rowan correu para a frente da caverna, tapando os ouvidos com as mãos.

Ele ouviu vagamente Zeel a exclamar, Shaaran a gritar e Norris a praguejar.

O fogo apagou-se. Depois, foram envolvidos pelo frio e pela escuridão.

 

SOMBRAS

Os bukshah iam em fila indiana, a subir uma escada estreita cortada na rocha. O seu aspecto não era aquele de que Rowan se recordava. Iam de cabeça er­guida. Os chifres estavam brancos e afiados. O seu pêlo espesso parecia brilhar. Os cascos cintilavam e, à luz do sol, pareciam dourados.

Rowan subia a escada atrás deles, seguindo as pegadas dos cascos dourados. Estava cheio de medo. As pernas doíam-lhe, mas ele sabia que não podia parar. Não havia qualquer outra opção. Não podia voltar para trás.

Temos que seguir os animais...

Rowan ergueu involuntariamente os olhos. No topo da escada, no meio da rocha vincada e marcada como uma cara antiga, havia um enorme buraco escuro a fumegar.

Fome...

A sua visão ficou nublada. Os degraus brilhavam, ofuscantes, subindo, subindo...

Rowan acordou com a boca seca e o coração a bater com força. Abriu os olhos e só viu escuridão. Durante um terrível minuto ele pensou que deixara de ver. Depois ouviu Norris, Shaaran e Zeel a chamarem-se uns aos outros e a ele. Lembrou-se do que sentira e ouvira antes de adormecer. E as palavras da profecia ecoaram-lhe na mente, torturando-o.

Esconde-te no interior das paredes rochosas.

Fica imóvel enquanto a escuridão gelada cai.

Amaldiçoou-se freneticamente por ter sido imbecil. As últimas palavras da profecia tinham-lhe dito o que ia acontecer — tinham-no feito em palavras simples, embora ele não as compreendesse.

O topo do penhasco saliente, a enorme saliência da rocha coberta de neve e cheia de répteis do gelo tinha-se partido e caído. A neve e os detritos tinham-se empi­lhado contra a face do penhasco. A entrada da caverna estava bloqueada.

Rowan sentiu a testa a ficar coberta de suor. Estavam encurralados. Escondidos no interior das paredes rocho­sas. Escondidos para sempre. A escuridão parecia pre­mir-se contra ele.

Às cegas, procurou a sua pederneira e tirou um archote da mochila. Quando a chama se acendeu, ele viu Shaa­ran encolhida contra uma parede, Zeel ajoelhada com a cabeça apoiada nas mãos, e Norris agachado ao pé da entrada da caverna, com o bastão na mão. A neve branca do estreito triângulo da entrada cintilava.

Norris deu meia-volta, fazendo um esgar de dor quando o movimento lhe repuxou a ferida.

— Apague isso! — rugiu ele. — A chama vai consumir o ar que respiramos, e já há muito pouco!

Rowan obedeceu apressadamente, envergonhado por, no seu pânico, não ter pensado nisso.

Ouviu Norris gemer de esforço, e depois o som do bastão a mergulhar na neve, empurrando e triturando. Os sons repetiram-se duas vezes. Depois, subitamente, Norris soltou um grito de triunfo, e Rowan sentiu uma pequena corrente de ar frio na cara.

— Consegui! — disse Norris. — Estamos com sorte! Acho que é sobretudo a neve que está a bloquear a en­trada, e a neve nem sequer tem a espessura do compri­mento do meu bastão.

Ele recomeçou a furar a neve. Ao fim de pouco tempo, uma mancha de luz fraca brilhou na escuridão de breu, e a corrente de ar frio tornou-se mais forte.

— Os répteis — murmurou Shaaran. — Eles devem estar à espera.

— Eu prefiro enfrentar uma centena de répteis do gelo a permanecer neste túmulo — disse Zeel. — Mas agora já é seguro acender archotes, por isso, por favor acende alguns, Shaaran, enquanto eu e o Rowan ajuda­mos o Norris a desimpedir o caminho. Assim, pelo menos, podemos dar-lhes luta.

Mas quando Norris, Zeel e Rowan fizeram um buraco suficientemente largo para poderem passar, as chamas dos archotes que Shaaran acendera apressadamente já estavam muito pequenas. E quando, finalmente, os quatro conseguiram sair cautelosamente, um a um, para o enorme monte de rocha e neve que descia agora da entrada da caverna até ao chão, os únicos répteis do gelo que eles viram estavam mortos.

O dia estava a nascer, envergonhado, e um vermelho baço manchava o céu. Os companheiros desceram aos tropeções para o nível do chão, escorregando na neve amontoada e pisando os restos de dezenas de répteis esmagados e mirrados por baixo de enormes pedaços de rocha. Quando olharam em redor, eles viram que não tinha sido só a saliência por cima da caverna que tinha desabado, mas também um enorme pedaço da face do rochedo negro. Os pedregulhos gigantes que outrora se amontoavam no sopé do penhasco um pouco mais para oeste estavam agora invisíveis debaixo de uma mistura de neve, pedras e árvores mortas caídas. E por todo o lado havia corpos, parcialmente cobertos, de répteis do gelo, mutilados e cinzentos. Tantos...

Rowan abanou a cabeça. Era como se alguém tivesse murmurado ao seu ouvido. Mas isso não podia ser, pois ele conseguia ouvir os seus companheiros a conversar uns com os outros, não muito longe.

— Aqueles répteis mortos devem ser apenas alguns dos que aqui estavam. Pensem em quantos mais devem ter escapado — estava Norris a murmurar. — Deve ter havido centenas deles a aproximar-se de nós.

— Como é que tantos souberam onde nós estávamos? — perguntou Shaaran.

— Eu penso que eles devem sentir o nosso calor — disse Zeel. — Mas, seja como for, é uma sorte não termos acampado junto de um daqueles pedregulhos, como eu pensei que acontecesse. Seguramente que teríamos sido mortos, ou pelos répteis, ou pelo desabamento do pe­nhasco. Só fomos poupados porque estávamos dentro da caverna.

...Ninguém será poupado... Ninguém sobreviverá... Frio, tanto frio... E há tantos... tantos...

As palavras perpassaram a mente de Rowan. Depois houve um movimento vacilante na orla da sua visão, e ele viu que, à sua volta, havia sombras oscilantes com rostos magros, esfomeados, e olhos encovados nas ór­bitas. E, horrorizado, ele reconheceu, por baixo das rugas de sofrimento, traços que ele conhecia. Os traços de Jonn, de Bronden, de Timon, da sua mãe...

Estremeceu. Sentiu-se quente, depois gelado. Mur­múrios, silvos e ecos fervilhavam-lhe na mente, torcendo-se e misturando-se, sobrepondo-se uns com os outros.

Tantos... demasiados... O que fizemos?

Rowan tapou os ouvidos com as mãos e fechou os olhos com força. Mas não servia de nada. As sombras rodeavam-no. Ele ainda conseguia ouvir os murmúrios, ainda via os rostos familiares, horrivelmente alterados. O cabelo da sua mãe estava da cor da cinza. Ela tinha os olhos vermelhos de tanto chorar.

Nós sabíamos demasiado, e demasiado pouco. Estávamos errados... tão errados... Agora a Montanha faz-nos pagar...

Alguém lhe tocou na mão.

— Rowan! — chamou uma voz suave.

As sombras desapareceram. Os murmúrios deixaram de se ouvir. Rowan oscilou.

— Você não está bem, Rowan — ouviu Shaaran dizer. — Está a desfalecer. — A voz dela elevou-se. — Norris! Zeel!

Rowan ouviu exclamações, sentiu braços fortes a bai­xá-lo suavemente para o chão. Sentou-se com a cabeça baixa e as tonturas foram desaparecendo gradualmente, e o mundo voltou a ficar nítido. Zeel e Norris ladea­vam-no. Shaaran estava ajoelhada à sua frente, a ofere­cer-lhe água.

Ele bebeu, agradecido. Tinha a cabeça a latejar. A luz fraca fazia-lhe doer os olhos.

— Desculpem — balbuciou ele. — Eu não consegui evitar...

— Foi mais uma profecia? Diga-nos! — instou Norris.

— Não... não foi mais uma profecia. — Rowan en­goliu em seco. — Eu vi... — ele sentiu um arrepio e calou-se.

Zeel tinha estado a observá-lo atentamente.

— Eu penso que você tem algo para nos dizer, Rowan — disse ela. — Já há algum tempo que acho isso. Mas não é esta a altura nem o local. Aqui estamos demasiado expostos ao perigo. Consegue andar?

Rowan conseguiu acenar a cabeça em sinal afirma­tivo, e ela ajudou-o a pôr-se de pé.

— Vamos andando devagarinho — disse ela. — Eu ajudo-o.

— Mas as pegadas dos bukshah ficaram cobertas quando o penhasco caiu — disse Norris olhando em volta, com o cenho franzido. — Perdemos a trilha.

Zeel abanou a cabeça.

— Eu vi a trilha do ar ontem à noite — disse ela. — Ele seguia o penhasco para oeste, depois entrava num bosque. A manada pode ter parado no bosque para comer, pois as árvores são muito densas, e são perenes. No mínimo, encontraremos a trilha lá.

Começaram a andar, mantendo-se perto do penhasco, passando cuidadosamente por cima dos detritos ge­lados. Era difícil, mas todos eles se sentiam mais seguros sem a neve espessa à sua volta.

A princípio, Rowan apoiou-se no braço de Zeel, tal como ela sugerira, mas, ao fim de pouco tempo, ele já conseguia andar sozinho, embora ainda se sentisse fraco. O medo de que as sombras voltassem perseguia-o, mas Zeel mantinha-se ao seu lado, falando muitas vezes com ele como se soubesse que ele precisava que o distraíssem dos seus pensamentos.

 

Já era dia claro quando chegaram ao fim dos detritos, um local onde a face do penhasco se curvava para a direita. Quando dobraram a esquina e chegaram, ali­viados, a um terreno mais suave, viram-se no meio de uma confusão de pegadas de bukshah.

— Ali! Estão a ver? — exclamou Zeel, apontando. E, de fato, as pegadas dirigiam-se diretamente para uma mancha verde... um bosque aninhado contra a face do penhasco.

Começaram todos a dirigir-se para o bosque o mais depressa que conseguiam. O verde vivo, surpreendente de encontro ao cinzento, preto e branco mortos do resto da paisagem, parecia chamá-los. Mas Rowan depressa percebeu que, mesmo que quisessem evitar o bosque, não conseguiriam fazê-lo. O terreno à esquerda deles começara a formar um declive íngreme. Ao fim de pouco tempo, eles tinham a parede negra da face do penhasco num dos lados e um abismo no outro. Tal como os bukshah antes deles, não tinham outra opção a não ser seguir em frente.

E as árvores atravessavam-se no caminho, preenchendo-o de um lado ao outro.

Rowan começou a sentir um formigamento no estô­mago. A situação trazia-lhe a desagradável lembrança da trilha no meio das rochas antes do vale dos horrores. Ele via que Zeel, Norris e Shaaran também estavam a começar a sentir-se pouco à vontade. A pouco e pouco, o seu passo rápido foi abrandando e eles começaram a arrastar os pés.

Ao fim de algum tempo, quando tinham as árvores mesmo à sua frente, os quatro pararam. Instintiva­mente, levaram as mãos ao nariz, pois um cheiro estranho, desagradável, semelhante ao de ovos podres, pairava no ar.

— Eu sinto que fui empurrada para este lugar — disse Zeel em voz baixa. — Não estou a gostar nada disto.

— Eu também não — concordou Norris, esprei­tando por entre as árvores. — Mas não parece haver perigo. É óbvio que os bukshah entraram sem qualquer hesitação. Podemos ver isso pelas pegadas.

— Os bukshah também atravessaram o vale dos hor­rores — recordou-lhe Shaaran. — Só porque um lugar é seguro para os animais, não significa que seja seguro para nós.

— Pode nem sequer ser seguro para os animais — disse Zeel, olhando para Rowan. — Os bukshah en­traram no bosque, mas não sabemos se saíram de lá. Aquele cheiro...

— Não é o cheiro da morte — interrompeu-a Rowan rapidamente. Mas a sensação de medo era cada vez maior. Ele tinha a certeza de que os bukshah estavam muito perto. Sentia a presença deles. Mas o bosque estava totalmente silencioso.

— Estrela! — chamou.

O grito ecoou, triste, em volta dos penhascos, e mor­reu sem obter resposta.

— Eles podem ter saído do bosque há muito tempo e já não conseguirem ouvir — murmurou Shaaran, puxando-lhe pela manga.

Rowan compreendeu que ela estava a tentar conso­lá-lo, mas não lhe pôde responder. Sentia-se ansioso por avançar imediatamente para o meio das árvores. Mas ele sabia que os seus companheiros o seguiriam. Ele não podia arrastá-los atrás de si numa imprudente precipitação para o perigo. Embora a espera fosse ago­nizante, ele tinha que ser cauteloso e descobrir tudo o que pudesse antes de seguir em frente.

Era impossível ver muito longe no interior do bos­que. Muitas árvores mortas tinham caído do topo do penhasco, emaranhando-se nos ramos das árvores vivas e formando um dossel baixo e espesso que não deixava entrar a luz.

Porém, as primeiras filas de árvores eram visíveis, e Rowan observou-as atentamente. Certamente que não pareciam perigosas, nem se pareciam nada com as árvores demoníacas de Unrin.

Eram todas do mesmo tipo — grossas, embora não muito altas, com ramos bem espalhados e folhas brilhan­tes. A única diferença entre elas era a casca. As árvores que cresciam nas orlas exteriores do bosque tinham uma casca áspera, cinzenta, peluda. Mas, nas árvores mais próximas do centro, a casca cinzenta só aparecia em man­chas, e os troncos e os ramos das árvores mesmo no meio, de cada lado da trilha dos bukshah, eram lisos e brancos.

Talvez as árvores exteriores precisassem de mais proteção do que as interiores, pensou Rowan. Talvez o bosque gere o seu próprio calor. Porque ele tinha reparado que ali o ar era mais quente, e que havia pouca neve no chão à sua volta.

E isso era muito estranho.

— Nós temos vindo a subir a manhã inteira — disse Zeel, colocando os pensamentos dele em palavras. — Estamos a uma altitude mais elevada. Aqui devia ser mais frio, não mais quente.

Fez-se um silêncio breve, ansioso.

— O que havemos de fazer? — exclamou Norris. E Rowan sentiu instantaneamente o medalhão a ficar quente como fogo.

 

O BOSQUE

Desta vez, a profecia veio mais depressa. A sensação de queimadura e asfixia era muito menor, e até mesmo a voz se parecia mais com a de Rowan. Mas isso tornou a experiência ainda mais horrível. O estômago de Rowan dava voltas enquanto ele dizia as palavras que eram tão novas e estranhas para ele como para os seus companheiros:

"Apressa-te, o caminho é sempre em frente.

Afasta os mortos caídos.

Se desesperares, a vida desvanecer-se-á.

A doença cura, e o desagradável torna belo."

Quando as últimas palavras lhe saíram dos lábios ele recuperou o ânimo, decidido a não cair ao chão. Mas não precisava de se ter preocupado. Zeel, Norris e Shaa­ran tinham-se juntado à sua volta, prontos para o segura­rem.

— A Sheba disse, “Aprende o que é ser o que eu sou” — murmurou ele, olhando para eles. — Agora eu sei. E quem me dera não saber.

— Qualquer pessoa sensata sentiria o mesmo — disse Norris secamente. — Desculpe, Rowan. Eu devia ter tido cuidado com a língua. E não serviu de nada. Esse maldito enigma deu-nos pouca ajuda e ainda menos esperança.

Afasta os mortos caídos...

Rowan sentiu um arrepio.

— A profecia disse que seguíssemos em frente, e que nos apressássemos, Norris — disse Zeel num tom ríspido. — Também nos disse que não desesperásse­mos. Isso, pelo menos, nós conseguimos compreender. Quando ao resto, veremos.

Ela voltou-se para Rowan.

— Consegue andar?

Como resposta, ele deu um passo em frente, para a sombra das árvores. Os outros juntaram-se atrás dele.

Começaram a seguir as pegadas dos bukshah. Os troncos brancos lisos das árvores erguiam-se de ambos os lados como postes de orientação. Ramos brancos entrelaçavam-se por cima das suas cabeças. Eles mantinham-se muito juntos, com os olhos e os ouvidos atentos a qualquer som ou movimento súbitos. Mas estava tudo silencioso e, à medida que as árvores se fechavam à sua volta, o silêncio e a sombra tornavam-se mais profundos.

Falaram pouco uns aos outros e, quando o faziam, era em murmúrios. Ao fim de pouco tempo, o dossel emara­nhado tinha-se tornado tão baixo que Norris teve que caminhar com os ombros curvados e a cabeça baixa. Uma leve neblina pairava na obscuridade, misturando-se com o vapor da respiração deles, e o cheiro desagradável em que tinham reparado antes estava a tornar-se mais forte.

Rowan viu um pouco de luz mais adiante. O seu coração deu um baque. Já tinham chegado ao fim do bosque?

— Zeel! — murmurou ele.

— Estou vendo — silvou ela atrás dele. — Acho que é uma espécie de clareira. E tenho certeza de que o cheiro vem de lá.

Rowan teve que se obrigar a não começar a correr. A sua respiração tornou-se ofegante. A pele do peito e das costas tinha começado a picar, e ele sentia uma comichão insuportável.

Estou a transpirar, pensou ele. A capa é demasiado quente para este lugar. Mas nem sequer pensou em parar para tirar a capa.

Ao fim de pouco tempo, já estavam muito perto da clareira, mas a neblina espessa que a envolvia impedia Rowan de a ver com grande nitidez. Ele só conseguia ver formas e cores. O terreno não era plano, mas sim cheio de formas angulares verdes e brancas. Não havia movi­mento em lado nenhum.

Rowan começou a andar mais depressa.

— Tenha cuidado — avisou-o Zeel atrás dele. — Ro­wan...

Nesse momento, Shaaran deu um grito.

Rowan e Zeel deram meia volta. Shaaran estava a arranhar freneticamente o ombro, com uma expressão de terror no rosto. Norris tentava, em vão, ajudá-la.

— Tirem isso daí! — gritava Shaaran. — Ajudem-me!

— O que é? — perguntou Zeel num tom ríspido. — Shaaran, fique quieta.

— Tira as mãos. Nós não consegui­mos ver...

— Vocês também os têm! — gritou Shaaran, estre­mecendo de repulsa. — Oh, eles estão em todo o lado! Oh, é horrível!

Rowan sentiu a pele a arrepiar-se quando viu, de­baixo dos dedos dela, agarrada ao ombro, uma coisa cinzenta, com a pele rija e a forma de uma estrela. Acha­tada contra a lã áspera da capa, ficava completamente disfarçada, quase invisível. Mas agora que a vira, ele conseguia ver outras — uma num dos lados dela e outra no braço.

No braço de Zeel, também. E na nuca. E ali, agarradas ao capuz de Norris, estavam mais duas.

De onde tinham elas vindo?

Enquanto a pergunta se formava na sua mente, o ramo da árvore por cima da cabeça de Shaaran pareceu mover-se, e um pedaço de casca flácido, com a forma de uma estrela, descolou-se e caiu silenciosamente nas costas dela.

— A... a casca das árvores — gaguejou Rowan. — Não é casca. E... são...

O peito picava-lhe. Cheio de uma súbita e terrível suspeita, ele olhou para baixo e gritou alto, com re­pugnância e horror. Tinha o peito coberto por uma massa cinzenta peluda. Alguns dos seres ainda se contor­ciam, ainda estavam a instalar-se. Outros estavam bem fixos, e era óbvio que se encontravam lá há algum tempo, pois estavam inchados e gordos.

Gordos com o sangue dele!

Rowan tentou freneticamente arrancá-los. Dores finas como uma agulha penetravam-lhe na carne quando ele puxava, mas as coisas cinzentas continuavam agarra­das.

— Aqueça a sua faca com a chama do archote, Ro­wan! — ouviu ele Zeel gritar acima dos gritos de Shaa­ran. — O metal quente certamente que os fará soltar-se.

Enquanto Rowan procurava a faca, um ramo roçou-lhe o braço e outro ser cinzento deslizou-lhe para as costas da mão.

Ele sacudiu o braço, com um grito. O ser rodopiou para longe. Mas enquanto olhava para ele, Rowan viu que o dossel estava enxameado de outros. E ainda havia centenas a abandonar os troncos das árvores situadas para além da trilha, a subir para se juntarem à enorme quantidade que se movia furtivamente em direção a ele e aos seus companheiros.

— Corram! — gritou ele. — Para fora do bosque!

A tremer e a soluçar, horrorizados, tropeçando desajei­tadamente, eles correram em direção à clareira, com as cabeças baixas, embrulhados nas capas.

E foi quando se precipitaram para fora da sombra verde e chegaram a uma pilha fumegante, mal cheirosa, de árvores mortas misturadas com trepadeiras, que viram os bukshah.

Os animais estavam deitados perto do meio dos de­tritos, imóveis como pedras. Os seus corpos peludos estavam cobertos de animais em forma de estrela tão inchados e tão juntos que era difícil ver onde terminava um e começava outro.

A Estrela estava à cabeça da manada. Os seus podero­sos chifres estavam manchados de lama e enfiados de­baixo de um tronco. Ela estava coberta de parasitas que se banqueteavam nela.

Com um grito de angústia, Rowan deixou cair o ar­chote e deu um salto, passando por cima da madeira caída, sem se incomodar com as trepadeiras espinhosas que se emaranhavam e o feriam. Ele chegou ao pé da Estrela e ajoelhou-se ao seu lado, chamando-a pelo nome.

Os olhinhos pretos da bukshah abriram-se. Ela mugiu suavemente, no fundo da garganta. Um som de amor e confiança.

O coração de Rowan deu um salto de alegria incré­dula.

— Ela está viva! — gritou ele, com a voz embargada. — A Estrela ainda está viva! Os outros... talvez eles também... eles também...

Ele virou-se para o bukshah atrás de si. Era o Tesouro, o único bukshah preto da manada, nascido em Rin na Primavera anterior. Os olhos do Tesouro estavam fecha­dos, e, quando Rowan lhe tocou no nariz, ele não emitiu qualquer som. Mas estava quente. Ainda estava quente, e a respirar!

Se o Tesouro, tão novo e tão pequeno, ainda estava vivo, havia esperança para todos os outros. Rowan gati­nhou freneticamente no meio dos corpos cinzentos imóveis. Chamou os animais pelos nomes, fazendo-lhes afagos onde quer que conseguiu pôr a mão. E, ao som da sua voz e ao toque da sua mão, a pele quente estre­mecia, as pálpebras mexiam-se, e os animais gemiam e suspiravam.

Mas era quase demasiado tarde. Ele sabia isso. Tinha-o visto nos olhos baços da Estrela, ouvira-o na sua voz fraca.

Há quanto tempo teriam os bukshah atravessado o bosque, a passo lento, parando para comer as folhas verdes ao longo do caminho? Há quanto tempo teriam os seres em forma de estrela presos às árvores de ambos os lados do caminho deslizado para as costas deles, dei­xando os troncos lisos e brancos das árvores do centro do bosque?

Rowan conseguia imaginar o que se tinha passado. Quando saíram do meio das árvores, os bukshah estavam todos cobertos de parasitas e começaram rapidamente a enfraquecer. A Estrela tinha tentado levá-los a atravessar a clareira mas, um a um, eles tinham caído por terra. E, desde essa altura que eles estavam ali deitados, in­defesos, com a vida a ser-lhes sugada lentamente.

Começou a levantar-se, olhando desvairadamente à sua volta. Onde estavam Zeel, Shaaran e Norris? Sen­tiu-se tonto e, por um instante, não conseguiu focar os olhos. Porque é que não o unham vindo ajudar?

Quando viu que eles ainda estavam onde os tinha deixado, nem conseguiu acreditar. Shaaran estava ajoelhada, com o rosto branco como a cal. Norris estava inclinado sobre ela, com o ar de quem está doente e em pânico. Zeel estava de pé ao lado deles.

— Ajude-me, Zeel! — gritou Rowan. — Traga o ar­chote! Depressa!

Zeel abanou a cabeça e chamou-o. Furioso com a demora, Rowan começou a subir por cima do mar de árvores caídas, em direção a eles.

Eles vieram ao seu encontro, movendo-se devagar.

— Têm que me ajudar! — explodiu ele quando esta­vam finalmente juntos. — Os bukshah estão a morrer! Eu preciso...

— Não vale a pena, Rowan — interrompeu-o Zeel em voz baixa. — Acha que não estávamos a fazer nada? Nós temos estado a tentar tirar as malditas coisas dos nossos próprios corpos. E não conseguimos. É como se elas fossem de pedra. O meu punhal, quer esteja frio, morno ou muito quente, não lhes faz mal nenhum.

Ele fitou-a, de boca aberta.

— Mas... mas certamente que...

Ela abanou a cabeça.

— Nem sequer as chamas fazem algum efeito. Eu já tentei — prosseguiu ela, mostrando-lhe o braço com um ar triste. Tinha dois seres horríveis em forma de es­trela agarrados, intactos, no centro de uma enorme mancha de tecido queimado e de pele ferida coberta de bolhas.

— Zeel! — exclamou ele em voz baixa. Shaaran soluçou, e Norris fez uma careta.

— Ela fê-lo antes de nós conseguirmos impedi-la — disse ele num tom sombrio.

Zeel encolheu os ombros.

— Tive que tentar — disse ela. — Estas coisas estão a sugar-nos a vida.

— E acho que não vão demorar muito a terminar o trabalho — disse Norris. — Se elas conseguem matar um bukshah num dia, muito mais facilmente acabam conosco.

Shaaran tinha-se deixado cair em cima de um tronco, com o rosto ensombrado de desespero.

A vida esvair-se-á se desesperares...

— Esperem! — exclamou Rowan. — Esquecemo-nos da profecia!

Shaaran ergueu o olhar, com um ar de espanto, e repetiu lentamente as palavras:

"Apressa-te, o caminho é sempre em frente.

Afasta os mortos caídos.

Se desesperares, a vida desvanecer-se-á.

A doença cura, e o desagradável torna belo."

— Na verdade, as nossas vidas e as vidas dos bukshah esvair-se-ão se desistirmos — disse Norris. — Pelo menos esse verso eu consigo entender. E os outros? Será que os primeiros versos significam que, para nos salvarmos, temos que deixar os animais entregues ao seu destino e seguir em frente?

Rowan mordeu o lábio. Essa idéia tinha-lhe ocorrido, mas ele não queria acreditar nela.

— Se seguirmos em frente, isso significa que atra­vessamos a clareira e prosseguimos por entre as árvores que estão do outro lado — disse Zeel. — Mas essas árvores estão cheias de seres em forma de estrela. Todos os troncos são cinzentos.

— Talvez os seres não consigam viver fora do bosque — sugeriu subitamente Shaaran. — Talvez, se conse­guirmos sair dele, nos vejamos livres deles.

Norris pareceu esperançoso, mas Zeel abanou a cabeça.

— Eu acho que eles conseguem viver onde quer que haja árvores que os sustentem — disse ela, apon­tando para a árvore morta em que Shaaran estava sentada e para as outras árvores à volta deles. Os troncos brancos estavam cravejados de fracas marcas em forma de estrela.

— Estas árvores morreram e caíram do topo do pe­nhasco — prosseguiu Zeel. — E é óbvio que havia seres em forma de estrela a viver nelas, tal como vivem nas árvores aqui. Eles talvez suguem a seiva — acrescentou ela calmamente — até aparecer uma comida mais subs­tancial.

Rowan viu Shaaran ficar ainda mais pálida.

— As árvores do bosque talvez estejam tão infestadas porque as árvores no topo do penhasco morreram — disse ele rapidamente. — Se as árvores lá em cima morre­ram e caíram...

E, com um clarão ofuscante, ele viu a resposta.

— Os mortos caídos! — disse ele. — As árvores! As árvores mortas caídas aqui, nesta clareira. São delas que nós devemos nos afastar!

— Mas porquê? — perguntou Zeel num tom inex­pressivo.

— Porque há qualquer coisa debaixo delas! — excla­mou Norris. — Algo que nos vai ajudar! E...

— Mas a clareira está cheia de árvores mortas! — contrapôs Zeel. — Não conseguimos movê-las a todas. Não a tempo. Não...

— Não precisamos mover todas — disse Ro­wan. Com o coração a transbordar, ele virou-se e olhou para o local onde a Estrela estava deitada. Ele sabia, sem qualquer sombra de dúvida, que a Estrela teria lu­tado contra a fraqueza até ao fim. Ela teria tentado salvar a manada. E ela tinha caído com os chifres enla­meados debaixo do tronco de uma árvore.

— Ali — disse ele, apontando. — Ali, onde a Estrela está deitada, e a neblina e o cheiro são mais fortes. E onde temos que afastar os mortos caídos. O que quer que esteja por baixo é a resposta!

 

O DESAGRADÁVEL TORNA BELO

Rowan estava desesperado, Zeel estava decidida, e Shaaran não se poupava. Mas todos eles estavam a ficar mais fracos a cada momento que passava e, se não fosse Norris, a tarefa teria sido inútil.

Norris viu de imediato que eles não conseguiriam mover as árvores caídas com a força bruta. Em vez disso, ele atou cordas à volta delas, depois procurou ramos retos compridos que pudessem usar como alavancas para levantar os troncos brancos enquanto puxavam as cordas.

Zeel e Shaaran encarregaram-se das cordas, Norris e Rowan das alavancas. A transpirar e fazendo um enorme esforço, os companheiros puxaram ao compasso das ordens de Norris até cada uma das árvores se deslocar um pouco do local onde estivera caída durante tanto tempo.

Eles trabalharam durante horas, enquanto a luz di­minuía lentamente no céu acima deles. Deslocaram as árvores para o lado uma a uma, revelando apenas mais ramos partidos emaranhados e mais raízes arrancadas.

O rosto de Norris estava cinzento, marcado por rugas de dor profundas. A ferida do lado tinha voltado a abrir-se, e a perna machucada mal conseguia apoiá-lo. Mas ele re­cusava-se a descansar, recusava-se a parar. Voltou a colo­car as alavancas e a atar as cordas. Deu novamente as suas ordens e começou a coxear para o seu lugar, pronto para continuar a levantar as árvores.

Um para lutar, pensou Rowan. Mas Norris nunca recuperará disto. Talvez nenhum de nós o faça. Talvez seja este o fim da história.

Sentiu a cabeça a toldar-se. Ele sabia que os seres que se tinham agarrado a ele lhe estavam a sugar a força física e a força de vontade. Viu, sem surpresa, Norris tropeçar subitamente, oscilar e depois cair lentamente ao chão entre a Estrela e o Tesouro. Os gritos de Shaaran soaram aos seus ouvidos como campainhas distantes enquanto ela corria para o irmão e se inclinava sobre ele.

Os olhos de Rowan e de Zeel cruzaram-se.

— Mais uma vez — disse ela, enrolando a corda à volta da mão.

Ele acenou apaticamente a cabeça e deslocou-se para o local onde Norris teria estado. Agarrou no ramo com­prido preso debaixo do tronco da árvore.

— Agora! — gritou ele. E, fazendo apelo às suas últimas forças, à sua última esperança e força de vontade, empurrou para baixo.

Durante um longo momento, nada aconteceu. Depois a árvore moveu-se. Rowan ouviu o gemido de triunfo de Zeel, viu a corda esticada. Empurrar outra vez, em­purrou com toda a força. Mas havia qualquer coisa a oferecer resistência. Havia algo a prender a árvore. Algo...

— Shaaran! — gritou ele. — Ajude-nos! Aqui! Ele não acreditava que Shaaran viesse. Mas ela veio.

Com o rosto manchado de lágrimas, pálida como um fantasma, ela colocou-se à frente dele e colocou o seu fraco peso sobre o ramo.

E foi o suficiente. Ouviu-se um murmúrio, um som de algo a sugar. A árvore rolou para o lado. E, ao mesmo tempo, um tapete de madeira podre, trepadeiras e folhas mortas moveram-se com ela, e vapor fétido ele­vou-se do lugar onde ela estivera caída.

Tontos, cambaleantes de cansaço, Rowan, Zeel e Shaa­ran ficaram a olhar para o que tinham posto a descoberto.

Era um lago de água fumegante a borbulhar. A Es­trela e Norris estavam deitados na lama da sua orla.

Shaaran sentou-se de repente, com os olhos muito abertos de choque.

Zeel inclinou-se cautelosamente para a frente e testou a água com a ponta de um dedo.

— Está quente! — disse ela, espantada. — Água quente a borbulhar, a sair do chão! É um milagre! — Ela sentou-se sobre os calcanhares, torcendo o nariz. — Mas, oh, como cheira mal. Tem o cheiro de mil ovos podres.

A doença cura, o desagradável torna belo...

Rowan estava sem fala, consumido pela esperança desesperada. Ajoelhou-se ao lado da Estrela e mer­gulhou cautelosamente as mãos em concha na nascente. Sentiu calor e um ligeiro formigueiro, mas nada mais. Levantou as mãos, cheias de água turva e segurou-as perto do nariz da Estrela.

— Estrela — murmurou. — É disto que estava à procura? É isso o que vai te ajudar? Que nos vai ajudar?

Os olhos da Estrela abriram-se, e ela viu a água a escorrer por entre os dedos de Rowan. O odor chegou-lhe às narinas e ela fungou. Depois começou a tentar levantar-se.

Mas ela não lambeu as mãos de Rowan, só esfregou o nariz contra elas, pelo que Rowan ficou a saber que a água não era para beberem, mas sim para se banha­rem nela.

— Zeel! — chamou ele. — O seu braço! Mete-o na água!

Zeel mergulhou o braço ferido na nascente. Manteve-o lá e contou até três. E, quando o retirou, o ser em forma de estrela tinha caído e estava a boiar, enrolado e morto, no meio das bolhas da superfície da nascente.

Era isto que Rowan tinha esperança que acontecesse. Mas o que ele não esperava, o que o fez ficar de boca aberta de espanto, era que a pele queimada, empolada, de Zeel, tivesse ficado novamente sã e lisa.

A própria Zeel estava a olhar para o braço, espantada.

— Eu... não consigo acreditar! — gaguejou ela.

— Parece magia! — disse Shaaran. — É como a nascente mágica do país das fadas de que o meu avô me costumava falar, há muito tempo. — O seu rosto iluminou-se de esperança como a chama de uma vela a cintilar, e ela precipitou-se através da lama para junto do irmão.

Zeel e Rowan correram a ajudá-la e, juntos, levaram o corpo mole, pesado, de Norris até à nascente.

Ao tocar na água, Norris acordou. Esbracejou, em pânico, a gemer e tossir. Depois, subitamente, ficou quieto. O seu rosto alterou-se. Os olhos abriram-se, livres da dor, redondos de surpresa.

Deixando-o entregue a Zeel e a Shaaran, Rowan voltou para junto da Estrela. Esta ainda estava a tentar levantar-se, com uma coragem que quase despedaçou o coração de Rowan. Vieram-lhe lágrimas aos olhos en­quanto tentava, em vão, ajudá-la.

Depois Norris, Shaaran e Zeel aproximaram-se dele, todos eles molhados e a pingar, todos eles livres de parasitas, com os olhos límpidos e brilhantes. Quando eles se debruçaram sobre a Estrela, a água do cabelo e da roupa caiu sobre o corpo da bukshah. E, onde quer que a água caísse, os seres em forma de estrela enro­lavam-se e tombavam para o chão.

A Estrela gemeu de alívio, tentou novamente e, ao fim de algum tempo, conseguiu finalmente pôr-se de pé e ficar ereta, magra e a oscilar, junto do lago borbulhante. Mas ela não entrou logo na água. Primeiro mugiu, chamando a manada, ordenando-lhe que a ouvisse.

Os outros bukshah mexeram-se. Por todo o lado as orelhas estremeceram um pouco, os olhos baços abri­ram-se. A Estrela mugiu outra vez. Depois, subitamente, lançou-se para a frente, caindo no centro do lago com um enorme borrifo e mergulhando abaixo da superfície.

A água ergueu-se numa enorme onda que cobriu a margem lamacenta, ensopando o Tesouro e mais uma dúzia de animais, e borrifando a clareira como chuva quente, enlameada. A superfície da nascente parecia ferver quando a Estrela mergulhou cada vez mais fun­do...

Com um grito de medo, Rowan atirou-se atrás dela. O cheiro da água queimava-lhe o nariz e irritava-lhe a garganta, fazendo-o engasgar-se. Ele tentou freneticamente ver por baixo da superfície borbulhante, cheia de folhas. Viu, de relance, algo pálido muito abaixo dele e mergulhou, com os olhos bem fechados e as mãos estendidas, a tentar encontrar o caminho às cegas.

Sentiu a dor súbita de uma picada quando a ponta de um dos chifres da Estela lhe perfurou a mão. Fez deslizar a mão para baixo, agarrou com mais firmeza e segurou. Puxou com toda a força, mas era como se a Estrela fosse uma enorme pedra. Ele não conseguia içá-la. Sentiu-se como se tivesse os pulmões a rebentar.

Sentiu algo a puxar-lhe pela capa. Alguém estava a tentar puxá-lo para cima, mas ele estava a agarrar a Estrela e recusava-se a largá-la.

Nisto, houve um movimento súbito vindo de baixo e, no meio de um jato de bolhas, ele foi impulsionado para cima, para a luz. A sua cabeça emergiu à superfície, e ele abriu a boca para inspirar. Tinha zumbidos nos ouvidos. Quando abriu os olhos nublados, a primeira coisa que viu foi a cabeça magra de Norris a flutuar ao lado dele. Norris ainda lhe segurava na capa e estava a tentar arrastá-lo em direção à margem, proferindo palavras que ele não conseguia ouvir.

Depois foram os dois atirados para o lado quando, com um enorme borrifo, o corpo enorme da Estrela subiu à superfície quase diretamente abaixo deles. Com uma enorme alegria, Rowan viu a bukshah erguer a cabeça acima da água e começar a nadar vigorosamente. Tinha os olhos límpidos, os chifres brancos a brilhar, e água a escorrer da crina de lã. Rowan deu um grito, engasgou-se e deu outro grito mas, para seu espanto, quando tentou tocar-lhe, a Estrela empurrou-o vigorosa­mente para a zona menos funda.

Ele pôs-se de pé, depois caiu de joelhos, confuso e magoado. Sentiu Norris a puxá-lo. Ouviu a Estrela a mugir. E, ao fim de algum tempo, os seus ouvidos a zumbir perceberam os gritos de Norris.

— Sai da água, Rowan! — estava Norris a gritar. — Vai ser esmagado! Deixe-os passar!

Rowan viu então que a Estrela não era a única buks­hah que estava na nascente. O Tesouro já tinha água até ao pescoço. Dois outros filhotes — a Névoa e o Genica — chapinhavam, pouco firmes, atrás dele. Seguiam-se mais três. E atrás deles vinham os outros membros da manada, magros, fracos e a cambalear, com seres em forma de estrela a cobri-los como uma armadura he­dionda, exceto nos locais em que tinham sido borrifados quando a Estrela se atirara vigorosamente à água.

Os enormes animais peludos avançavam freneticamente, surdos e cegos a tudo exceto à nascente. Norris tirou Rowan do caminho deles e, um instante depois, os cascos estavam a calcar a lama em que os dois tinham estado deitados.

Em grupos de três e quatro, os bukshah mergulha­ram na água gemendo de alívio quando os parasitas os deixavam; seguidamente, eles ergueram a cabeça e nadaram para o lado oposto da nascente, onde a Estrela já estava à espera deles.

E depois de todos eles terem feito a travessia, quando estavam todos de pé no outro lado da nascente, com o pêlo a pingar e a deitar vapor, Rowan, Zeel, Shaaran e Norris pegaram nos seus pertences e seguiram-nos.

 

Passaram aquela noite na clareira, com os bukshah à volta deles. Apesar de estarem encharcados, não tiveram frio, pois o ar ao lado da nascente era tão quente como uma tarde de Verão em Rin, embora não cheirasse tão bem.

Acenderam uma fogueira, aqueceram um pouco de água para o chá e torraram pão para comerem com queijo e mel. E, quando o sol se pôs, deitaram-se e dormiram profundamente, pois sabiam que, pelo menos ali, os répteis do gelo não chegariam.

Ainda estava muito escuro quando Rowan acordou. A Estrela estava a tocar-lhe com o focinho na cara. Os seus enormes chifres curvos, afiados nas paredes rocho­sas antes do vale dos horrores até terem ficado como bicos de facas, pareceram-lhe demasiado perto dos olhos para se sentir à vontade.

— Estrela, porque é que está a me acordar tão cedo? — resmungou ele, virando-se para o outro lado. — De­vem faltar horas para o dia nascer.

A Estrela fez um ruído surdo, escavou o chão com a pata e depois deu meia volta. Ele sentou-se e viu que os outros animais já estavam de pé, à espera. Ficou a ver a Estrela passar no meio deles e começar a conduzi-los para as árvores.

A manada estava outra vez em movimento. Rowan acordou rapidamente Norris, Shaaran e Zeel. Todos eles beberam apressadamente um gole de água e come­ram uma mão cheia de frutos secos. Depois acenderam archotes, puseram as mochilas às costas e seguiram os bukshah, até mesmo Zeel ainda estava a esfregar os olhos de sono.

A trilha por entre as árvores para além da nascente estava cheio de madeira morta, mas os bukshah remo­viam todos os obstáculos, esmagando-os com as patas, desimpedindo o caminho. Os quatro foram caminhando atrás deles, encantados por terem recuperado as forças e por se terem visto livres das dores.

O archote iluminava as árvores, iluminava os seres em forma de estrela agrupados nos troncos e nos ramos, mas poucos parasitas tentaram instalar-se nos seres hu­manos ou nos animais. Os que o fizeram pagaram ins­tantaneamente pelo seu erro, caindo mortos assim que tocaram no cabelo e na roupa ainda úmidos da água da nascente.

A umidade desapareceu lentamente no calor da floresta, e Rowan começou a sentir medo. Mas os seres em forma de estrela mantiveram-se onde estavam, e os seres humanos continuaram a caminhar em paz, como se a água lhes tivesse dado um revestimento protetor.

Era como andar num sonho, mas este terminou de­masiado depressa. O sol ainda estava muito abaixo do horizonte quando Rowan, Zeel, Shaaran e Norris saíram do meio das árvores, mas eles conseguiram ver bastante bem o lugar sinistro e brutal de rocha gelada a que tinham chegado.

Eles estavam no único lugar plano de uma paisagem de ângulos agudos. Pedregulhos atravancavam o chão em declive à sua frente. À direita elevavam-se os penhascos envoltos em neblina, encimados por árvores mortas e neve. As paredes pretas escarpadas dos penhascos estavam semi-ocultas pelas enormes rochas empilhadas de encontro a elas.

À esquerda, tudo era escuridão, mas Rowan conseguia ver que o chão que descia da zona onde eles estavam era íngreme e estéril. E, por qualquer motivo, terrivel­mente familiar.

Zeel estremeceu.

— Chegamos à face ocidental da Montanha — disse ela em voz baixa. — Lá em baixo é o Fosso de Unrin.

 

ANTES DO AMANHECER

Shaaran aproximou-se um pouco mais de Norris.

— O que... o que é o Fosso de Unrin? — perguntou ela, a gaguejar. Desde que chegara a Rin, ela ouvira muitas histórias, mas não aquela. Ninguém falava de bom grado do Fosso de Unrin.

Rowan umedeceu os lábios.

— É um lugar de morte... um vale morto cheio de árvores que comem carne — disse ele. — Antigamente era o Vale do Ouro. Vivia lá um grande povo, antigos aliados dos Viajantes e dos Maris.

— O Vale do Ouro! — exclamou Norris. — Mas esse foi o lugar de que o Timon e o Neel falaram na reu­nião! O lugar onde viviam as pessoas que viraram as costas à Montanha e provocaram o primeiro Tempo Frio.

O ar pareceu escurecer. Um ligeiro vento cruel so­prava à volta deles, fustigando-lhes o rosto, desviando as chamas dos archotes e torcendo o pêlo comprido dos bukshah que vagueavam por entre as rochas como almas perdidas, escavando o chão com as patas.

— Chegamos — pensou Rowan subitamente. — Este é o fim da viagem.

— O Tempo Frio ocorreu nos primeiros tempos da terra — disse Zeel lentamente. — O povo do Vale do Ouro viveu durante muito tempo e em paz, muito depois de ele ter terminado. Depois, subitamente, eles deixaram de existir. Durante séculos não se soube o que lhes tinha acontecido. Agora nós sabemos que as árvores demoníacas ocuparam o Vale e mataram-nos a todos. O Ogden pensa que as raízes das árvores mina­ram esta parte da Montanha, fazendo com que parte dos penhascos ruíssem e caíssem.

— Mas como é possível um povo inteiro, rico e feliz, simplesmente desaparecer? — murmurou Shaaran, olhando para a escuridão lá em baixo. — Eles não pe­diram ajuda? Os Viajantes não...

— Os Viajantes estavam longe — disse Zeel, com uma expressão sombria no rosto. — Eles tinham acam­pado na costa perto de Maris para passarem ali a estação fria, como sempre faziam. Os primeiros ventos do In­verno trouxeram uma invasão dos Zebak. Os Viajantes combateram ao lado do povo Maris para defender a terra, mas os Zebak eram muitos, e os Maris eram fracos e estavam divididos, porque o seu líder, o Guardião do Cristal, estava a morrer. Foi enviado um pedido urgente ao Vale do Ouro. O povo do Vale respondia sempre a uma chamada às fileiras.

— Mas dessa vez eles não apareceram? — Norris es­tava inclinado para a frente, fascinado como sempre por histórias de batalhas.

Zeel abanou a cabeça.

— Não só não apareceram, como os mensageiros dos Viajantes não regressaram. Supõe-se que os mensa­geiros morreram de frio antes de chegarem ao seu desti­no. Nesse ano nevou cedo, e em grande abundância.

Ela virou-se para olhar para os bukshah. Rowan não insistiu com ela. Zeel não gostava de histórias de guerras.

Embora fingisse o contrário, ela sofria muito com a guerra, aparentemente interminável, entre o seu povo natural e o adotado.

Os sentimentos de Norris não eram tão delicados.

— E então o que aconteceu? — perguntou ele. — Continua, Zeel! Ao que parece, os animais estão a descansar, ou então não sabem que caminho seguir. Que mais temos nós para fazer a não ser conversar?

Zeel olhou para ele e sorriu ironicamente ao ver que ele não lhe daria sossego enquanto ela não terminasse a história.

— A cidade de Maris caiu rapidamente frente ao inimigo e o povo Maris foi obrigado a fugir para túneis debaixo do mar onde o seu líder ainda conseguia prote­gê-los — disse ela em voz baixa. — Os Zebak tentaram fazer os Viajantes de escravos, mas a tribo escapou das garras deles como sombras e fugiu, tendo-se escon­dido mais para norte.

Ele fez uma careta.

— Só podemos tentar adivinhar o que aconteceu depois, pois nem os Maris nem os Viajantes estavam lá para ver. Mas quando regressaram a Maris na Prima­vera, os Viajantes descobriram que muitos dos barcos dos Zebak já tinham sido enviados de volta para o seu país... carregados com bens dos Maris, com toda a cer­teza saqueados, porque a cidade tinha sido totalmente despojada de tudo. Os Zebak que ficaram pensaram que a guerra tinha sido ganha.

Ela abanou a cabeça ao pensar na idéia ridícula deles.

— Para os Viajantes, claro, a luta tinha acabado de começar. Eles enviaram novos mensageiros ao Vale de Ouro e começaram a perseguir o inimigo de todas as formas que podiam. Ciladas e ataques súbitos. Roubos de comida e de armas. Distúrbios noite após noite...

Todos os seus companheiros a escutavam atenta­mente. Shaaran ouvia-a com tanta atenção como Rowan e Norris.

— Sem comida e sem conseguirem dormir, ameaça­dos por um inimigo que eles não conseguiam ver, ao fim de pouco tempo os Zebak tinham medo das som­bras — prosseguiu Zeel. — Depois, aquilo de que os Viajantes estavam à espera aconteceu. O Guardião velho e fraco morreu. Um novo Guardião tomou o seu lugar, e o Cristal Mágico de Maris voltou a luzir. O povo Maris saiu dos túneis, unido e cheio de uma nova esperança. Nesta altura, eles eram muito mais fortes que os Zebak. E, assim, o inimigo foi finalmente derro­tado e escorraçado.

Ela franziu a testa e olhou para baixo, para as en­costas sinistras que desapareciam na escuridão.

— Mas, no meio do regozijo, os novos mensageiros regressaram do centro e, quando eles contaram o que tinham encontrado, o triunfo transformou-se em sofri­mento. Acima do Vale do Ouro, a face da Montanha tinha-se transformado numa massa de detritos, como se tivesse sido palco de uma batalha entre dois gigantes. O Vale tinha desaparecido. Em seu lugar estava o horror a que mais tarde foi dado o nome de Fosso de Unrin... uma massa de árvores hediondas que pareciam exalar o mal. E o povo do Vale tinha desaparecido da face da terra.

Rowan suspirou profundamente. Ele já ouvira muitas vezes essa história antiga, mas nunca daquela forma. De algum modo, a voz de Zeel, inexpressiva e neutra, fazia sobressair os pormenores da história de uma forma que a narrativa colorida e dramática de Ogden nunca fizera.

Shaaran deu voz aos pensamentos dele.

— O acaso desempenhou realmente um papel terrí­vel nessa história — disse ela. — Se os Zebak tivessem atacado algumas semanas antes... se não tivesse nevado antes do que se esperava... se os mensageiros tivessem chegado ao Vale do Ouro... os habitantes do Vale teriam ido para a costa combater e não teriam sido mortos pelas árvores demoníacas.

— Em vez disso, talvez tivessem sido mortos pelos Ze­bak — comentou Norris num tom sombrio. — Quem sabe? Não vale a pena pensarmos nos “sés”, Shaaran. Mas aqui tem outro: se os habitantes do Vale do Ouro não tivessem morrido todos, nós poderíamos saber o que nos vai acontecer. Eles podiam ter-nos dito como é que fizeram as pazes com a Montanha e puseram termo ao primeiro Tempo Frio.

Zeel suspirou, olhando novamente para os bukshah.

— Esse conhecimento perdeu-se na névoa do tempo — disse ela. O povo do Vale não o partilhou com os seus amigos. Talvez fossem demasiado arrogantes. Ou tivessem vergonha. Ogden conhece muitos segredos antigos mas, quando lhe fiz perguntas sobre este, ele não me pôde dizer nada.

Não pôde, ou não quis? perguntou Rowan silenciosa­mente a si próprio. Uma imagem do rosto moreno, de falcão, de Ogden, perpassou-lhe a mente — o rosto de Ogden na primeira vez que se tinham encontrado, os olhos pretos de Ogden a fitá-lo atentamente.

Desde o início que Ogden, o contador de histórias, o líder dos Viajantes, manifestara um grande interesse por Rowan. Um interesse muito maior do que Rowan ou qualquer outra pessoa poderia esperar.

Porquê? Porque é que Ogden lhe tentara ler a mente tão profundamente naquele primeiro encontro, dese­jando saber tudo, mesmo as coisas triviais, sobre os pais de Rowan, os bukshah e a vida que ele levava?

No seu íntimo, Rowan sabia a resposta. Desde a noite na caverna que sabia. Agora ele enfrentou-a honesta­mente.

Ogden tinha pressentido qualquer coisa. Tinha pres­sentido que, por mais improvável que parecesse, o rapaz franzino e assustado que estava à sua frente estava destinado a desempenhar um papel importante na história da terra que eles partilhavam.

O contador de histórias tinha sido um aliado firme. Mas Rowan tivera sempre a sensação de que ele ocultava qualquer coisa — um conhecimento secreto ou uma suspeita sobre os quais ele não conseguia falar.

Ele não tinha ficado surpreendido quando Rowan trouxe Shaaran e Norris da terra dos Zebak. Parecia que estava à espera que isso acontecesse. Só quando as sedas foram desenroladas, e os habitantes de Rin começaram a admirá-las e a fazer perguntas sobre elas é que ele parecera perturbado. Ogden cerrara os lábios finos e afastara-se.

Talvez naquele momento Ogden tivesse compreen­dido que aquilo por que esperara, aquilo que ele temia, já tinha começado. Que Rowan tinha involuntaria­mente posto em marcha uma série de acontecimentos que terminariam...

Terminariam aqui, pensou Rowan, olhando em volta para os seus companheiros e, para além deles, para as formas vagas dos bukshah a vaguearem sem destino por entre as rochas. Terminariam ali, para o bem ou para o mal.

— Já não falta muito para o dia nascer — disse Zeel subitamente.

Rowan virou-se para olhar para ela. Havia algo na sua voz...

— O que é? — murmurou ele.

Zeel estava muito rígida, com a cabeça erguida como se estivesse a farejar o ar. O archote que ela tinha na mão lançava uma luz amarela sobre as suas maçãs do rosto altas e sobre as sobrancelhas direitas e fortes.

— Não sei — disse ela, mal mexendo os lábios.

— O que está a acontecer? — pensou Rowan num tom de desespero. — O que devo eu fazer?

Sentiu o medalhão aquecer junto da garganta e um formigueiro na pele. A horrível sensação de enjôo habi­tual percorreu-o.

Não, pensou ele com temor. Não!

Mas ele sabia que não servia de nada. Ele tinha feito a sua pergunta. A coisa aconteceria, quer ele quisesse ou não.

Sentiu o archote cair dos seus dedos entorpecidos, ouviu a exclamação abafada de Zeel quando ela se virou para ele. A sua boca abriu-se. Os seus lábios começaram a mexer-se, formando as palavras.

"Quando o trovão preso à terra saúda o dia,

O coração destroçado desimpedirá o caminho.

E onde o rio dourado corre,

A escada oculta revela o seu segredo.

Quando ele disse o último verso, a memória avivou-se — a memória de um sonho, um sonho aterrorizador de que se esquecera até àquele momento. Ele ia atrás dos bukshah, a subir uma escada de pedra em direção a um buraco no topo.

Tinha a cabeça a andar à rodar. Não conseguia pensar.

Quando ele tinha sonhado aquilo? Como podia ter se esquecido daquele sonho? A memória era verdadeira ou falsa?

Espere, disse ele a si próprio. Espere...

Lentamente, as tonturas e a sensação de enjôo foram desaparecendo. A sua mente ficou desanuviada. Perce­beu que tinha caído encostado a Zeel, de que esta tinha um braço em volta dele, e de que Norris o estava segurando do outro lado. Empurrou-os suavemente, e manteve-se de pé sem qualquer apoio.

Já se lembrava. O sonho da escada de pedra tinha-lhe vindo na caverna. O medo de ficar encurralado, a fuga da caverna, e tudo o que acontecera desde então, ti­nha-o feito esquecê-lo. Mas agora a memória voltara, sinistra e assustadora.

Todos os outros sonhos se tinham tornado realidade, em todos os aspectos importantes. Por isso este pesa­delo também se tornaria realidade. E em breve.

Quando o trovão preso à terra saúda o dia.

Quando o Dragão da Montanha rugisse ao nascer do sol?

Rowan sentia um zumbido nos ouvidos. Era como se tivesse a cabeça cheia de abelhas. Atordoado, olhou para o topo dos penhascos envoltos em neblina. Lenta­mente, os seus olhos moveram-se para baixo.

E pararam.

Era imaginação sua, ou ele conseguia ver uma leve mancha de cor mais clara na face do penhasco? Semicerrou os olhos, cada vez mais seguro de que tinha razão.

Havia algo — uma marca ou falha — mesmo acima do local onde começava a encosta íngreme formada pelas pedras.

Se não tivesse sido o sonho, ele teria pensado que as rochas eram a escada da profecia. Mas ele tivera o sonho e sabia que não eram.

Mas, ao nascer do dia, o segredo seria revelado. O sol nascente iluminaria as rochas. A escada, agora oculta, estaria banhada por um rio de luz dourada.

Vai acontecer, pensou Rowan. Não preciso fazer nada a não ser esperar. Ele sentiu-se estranhamente calmo.

— Porque é que ele não responde? — Subitamente, o zumbido dos seus ouvidos transformou-se em pala­vras, e ele reconheceu a voz de Norris, cheia de pânico. Percebeu que os seus companheiros o estavam a chamar há longos minutos, a tentar fazê-lo falar.

Ele virou-se para o som. Três rostos ansiosos flutua­vam na obscuridade. Zeel. Shaaran. Norris.

Pouco a pouco, percebeu que havia algo que ele tinha que fazer. Antes de o dia nascer. Antes que o Dragão rugisse. Antes de o sol revelar a escada, e ele iniciar a última, longa subida ao encontro do seu destino.

Irá acontecer, disse ele a si próprio. Mas não tem forço­samente que acontecer a todos. No sonho, eu não vi ninguém na escada a não ser eu próprio e os bukshah.

Uma imensa solidão desceu sobre ele. Doía-lhe o peito.

O coração destroçado desimpedirá o caminho... Ele tinha perguntado a si próprio o que significariam aquelas palavras. Agora ele sabia. Abriu os lábios secos.

— É altura de me deixarem — disse ele, com uma voz que soou estranha e rouca aos seus próprios ouvi­dos. — O que tem que ser feito, eu tenho que o fazer sozinho.

 

DECISÕES

Shaaran, Norris e Zeel protestaram, tal como Rowan sabia que eles fariam. A profecia tinha-os abalado, mas não tinha abalado a sua força de vontade nem a sua lealdade.

Ele sabia que havia apenas uma forma de convencê-los. Tinha que lhes contar o seu pesadelo com a escada de pedra e o buraco fumegante no topo. Ele sentia relu­tância em fazê-lo porque, para que eles acreditassem que o que ele sonhara iria certamente acontecer, ele teria que confessar os outros sonhos quetinham se tornado realidade — os sonhos que ele mantivera secretos du­rante todo aquele tempo.

Isso irá destruir a confiança deles em mim, pensou ele, e a dor no seu coração tornou-se mais forte. Irá destruir a nossa amizade. Mas... mas talvez seja melhor assim. O seu amor e a sua lealdade mantêm-nos ligados a mim. Se esses laços forem cortados, eles ficarão livres para partir. O regresso a Rin será perigoso, mas terão a água do bosque para ajudá-los. E nada é mais perigoso do que permanecer aqui.

— Vocês não compreendem — disse ele em voz alta, interrompendo os protestos deles. — E isso acontece porque... porque eu os enganei.

As vozes pararam subitamente. Ele viu três pares de olhos espantados a olhar para ele e baixou a cabeça.

Respirou fundo para ganhar alento e, numa voz baixa, confessou tudo. Falou rapidamente, obrigando-se a si próprio a limitar-se ao essencial da história. Nin­guém o interrompeu.

— Eu devia ter-lhes contado logo no início, mas fui egoísta e não o fiz — terminou Rowan desajeitada­mente, sem levantar os olhos. — Eu queria que a nossa amizade se mantivesse tal como sempre fora. Eu não queria que me olhassem com repulsa nem que tivessem medo de mim como as pessoas têm de Sheba. Agora sinto-me um ser bizarro. Mas não tenho desculpa. Per­doem-me.

Fez-se silêncio. Este durou tanto tempo que Rowan quase se interrogou se os três já se teriam afastado si­lenciosamente, deixando-o sozinho. Obrigou-se a si pró­prio a erguer a vista.

Estavam à sua frente, exatamente como antes de ele ter começado o seu discurso. Os seus rostos eram graves. Shaaran tinha lágrimas nos olhos. Nesse mo­mento, Rowan quase desejou que eles tivessem ido embora sem dizer nada.

Depois Shaaran atirou-se para os seus braços.

— Eu não consigo acreditar que suportou este fardo sozinho, todo este tempo, por nossa causa, Rowan — exclamou ela. — Eu nunca teria conseguido fazê-lo!

— Nem eu — disse Norris, abanando a cabeça e apertando a mão de Rowan.

— Eu talvez conseguisse — disse Zeel calmamente. — Mas felizmente não tive que tentar.

Rowan ficou a olhar para eles, espantado. A reação dos seus amigos era tão diferente do que ele esperara, que ficou sem fala.

— Eu sabia que estava a esconder qualquer coisa, Rowan, mas não fazia idéia do que pudesse ser tão assustador que precisasse de o ocultar — disse Zeel. — Isso é algo que eu não compreendo muito bem, pois porque é que alguém iria virar as costas a um bom amigo só porque ele tem um talento inesperado e muito útil?

— É mais uma maldição do que um talento — con­seguiu dizer Rowan.

— Maldição ou talento, não interessa — disse Shaa­ran, recuando um pouco para poder olhar para ele, mas ainda a segurar-lhe no braço.— Não se pode dividir um amigo verdadeiro aos pedaços e dizer, “Deste pedaço eu gosto, mas não quero aquela parte”! O pacote tem que ser levado inteiro.

— E, por falar nisso, se pensa que pode dividir o todo em que nós quatro nos tornamos e enviar três quartos para casa enquanto você prossegue a viagem sozinho, está muito enganado — rosnou Norris.

Shaaran acenou a cabeça em sinal de concordância.

— Eu não diria que não tenho medo — disse ela. — Tenho muito medo. Mas isso não significa que eu queira voltar para trás.

— Mas... mas vocês não ouviram o que eu disse? — gaguejou Rowan. — O sonho da escada... havia terror nele. E morte. Eu senti-o.

— E depois? — perguntou Zeel calmamente. — Não é a você que compete tomar a decisão, Rowan dos Bukshah. Quer nos tenha visto no seu sonho quer não, a profecia da Sheba dizia claramente que quatro almas têm que seguir os animais.

Ela olhou de Norris para Shaaran, e depois nova­mente para Rowan.

— E nós vamos segui-los — acrescentou ela — até onde quer que a trilha nos leve. Não por amor a você, mas por amor a esta terra e a tudo o que nos é caro.

Rowan, envergonhado, ficou calado.

Norris pigarreou.

— Muito bem — disse ele num tom decidido. — Agora, vamos pensar no que podemos fazer para nos ajudarmos a nós próprios. Com sonho ou sem ele não me agrada a idéia de ficar aqui à espera do nascer do dia como uma vítima indefesa que não tem qualquer controle sobre o seu destino.

— A escada do sonho de Rowan ia ter a um buraco — disse Zeel. — O buraco tem que ser certamente a entrada de outra caverna.

— Acha? — perguntou Shaaran timidamente. — Mas o sopro quente estava a fumegar...

— Muitas vezes, os sonhos mostram coisas vulgares de uma forma estranha — interrompeu Norris. — Os bukshah também eram diferentes do que são na rea­lidade. Não é assim, Rowan?

Rowan hesitou. Claro que Norris tinha razão, mas... Zeel estava a olhar para cima, semicerrando os olhos para tentar ver na obscuridade.

— Aquela mancha cinzenta é o único sinal de uma entrada que eu consigo ver na face do penhasco. Se subirmos até lá agora, talvez fiquemos a saber algo que nos irá ajudar mais tarde.

Shaaran emitiu um pequeno som de protesto, mas Norris concordou imediatamente. Para ele, uma subida difícil era preferível a esperar, impotente, na escuridão. Rowan permaneceu em silêncio. Ele via que o plano de Zeel era sensato, mas continuava a sentir-se inquieto.

Talvez eu esteja aborrecido porque já não sou eu a tomar as decisões, pensou ele. Talvez esteja demasiado habituado a ser o líder.

Apesar dos seus temores, este pensamento fê-lo sorrir.

— Eu... eu não consigo subir aquelas rochas — disse Shaaran num fio de voz.

Norris deu uma gargalhada.

— Claro que não, Shaaran — disse ele. — Ninguém está à espera que o faça. Eu e a Zeel vamos ver o que há para ver, e depois voltamos para te contar, a você e ao Rowan.

Rowan sentiu um baque. Aquilo estava tudo errado. Ele sabia. Mas não podia proibir Zeel e Norris de tenta­rem o que eles achavam que deviam fazer.

E eu também não posso ficar aqui à espera enquanto eles o fazem, pensou ele. Tenho que ver o que está lá em cima com os meus próprios olhos.

— Se estão decididos a fazer isso, eu vou com vocês — disse ele em voz alta. — Eu acho que consigo subir.

— E a Shaaran? — exclamou Norris. — Ela não pode ficar aqui sozinha!

— Claro que posso! — disse Shaaran vigorosamente. — Eu não preciso de um guarda. Eu fico aqui de vigia. Se houver alguma ameaça de perigo, ou se os bukshah começarem a dispersar-se, eu os chamo.

E assim ficou decidido. Ao fim de alguns minutos, Zeel, Norris e Rowan estavam a dirigir-se para as rochas mesmo por baixo do seu objetivo.

Quando Rowan começou a subir, a Estrela sacudiu a cabeça e começou a caminhar em direção a ele. Pare­ceu a Rowan que ela, se pudesse, teria tentado impedi-lo de subir. Mas, quando ela chegou ao fundo da pilha de rochas, ele já ia demasiado alto para ela conseguir aproximar-se dele.

Ele olhou para baixo. A Estrela estava a esgaravatar as rochas como se quisesse ir atrás dele. Mas não conse­guia. A pilha de rochas era demasiado íngreme. Ela esti­cou o pescoço e mugiu, desanimada, enquanto ele conti­nuava a subir.

A Estrela está a gostar disto tanto quanto eu, pensou Ro­wan, com inquietação. O seu pé escorregou, e ele pro­curou freneticamente algo a que se agarrar, salvando-se por milagre.

— Tenha cuidado, Rowan! — gritou-lhe Zeel acima dele. — Estas rochas são traiçoeiras, especialmente no escuro! Com metade da mente a pensar noutra coisa, não consegue subir.

Rowan sabia que ela tinha razão. Expulsou tudo da sua mente exceto a tarefa em que estava empenhado e continuou a subir.

 

Ao fim de algum tempo, chegaram ao topo da pilha de rochas. O ar tornara-se subitamente muito mais frio. Neblina gelada rodopiava acima deles, e Rowan sentiu um arrepio ao olhar para a mancha cinzenta na face do penhasco à sua frente. Não era o lugar que vira no seu sonho. Ele não teve a certeza se ficou alegre ou triste.

A área cinzenta era muito maior e mais clara do que parecera lá de baixo, e agora eles viram que não era um buraco, mas sim parte da parede do próprio penhasco.

Fazia parte do penhasco mas, ao mesmo tempo, não fazia. Era muito diferente da rocha preta à sua volta.


Norris descalçou a luva, inclinou-se para a frente e tocou no material cinzento. Um ar de surpresa perpassou-lhe o rosto, e ele retirou a mão.

— Eu nunca senti nada assim! — exclamou ele. — É dura, mas muito mais macia do que a rocha. E não é fria! É apenas um pouco mais fria que os meus dedos!

— Norris, como pode ser tão imprudente! — ralhou-lhe Zeel. — Provavelmente é alguma espécie de fungo que cresceu em cima da rocha. Não faz qualquer idéia do mal que ele te possa ter feito!

Aterrado, Norris começou a limpar vigorosamente os dedos na capa.

Zeel pegou no seu punhal e enfiou a ponta no ma­terial cinzento.

— Se for um fungo, é muito espesso — disse ela, intrigada, empurrando afaça com mais força. A lâmina brilhante deslizou para a frente e mergulhou até ao cabo. Zeel puxou-a para trás, torcendo-a, e um pedaço de material cinzento soltou-se e caiu para dentro da sua manga. Ela sacudiu-o apressadamente.

— Que estranho — murmurou ela, com os olhos cheios de curiosidade. Enfiou novamente a faca no buraco e começou a raspar energicamente.

— Deixe isso, Zeel — disse Rowan, sem muita espe­rança de que ela lhe prestasse atenção. Ele olhou para baixo, por cima do ombro, para onde os bukshah anda­vam ansiosamente de um lado para outro, e Shaaran estava à espera.

Ele conseguia distinguir a Estrela no meio da ma­nada. Conseguia ver o rosto pálido de Shaaran virado para cima. O seu estômago deu uma volta quando percebeu que o céu estava a clarear. Faltava pouco para o dia nascer.

— Zeel! — disse ele, virando-se novamente para o penhasco. — Zeel, é melhor nós...

Mas Zeel não o ouvia. Ela tinha-se içado de modo a ficar ao mesmo nível que o material cinzento. Tinha o olho pressionado contra o buraco que fizera. Enquanto Ro­wan a observava, ela recuou. Não havia qualquer expres­são no seu rosto.

— É melhor ver isto — disse ela tranquilamente.

Rowan avançou, mas Norris estava à sua frente, a apro­ximar ansiosamente o olho do buraco. Houve um mo­mento de silêncio, depois Norris também recuou.

— O que é? — perguntou Rowan.

Norris estava muito pálido. Os seus olhos estavam quase pretos. A boca moveu-se, como se ele quisesse falar, mas não emitiu qualquer som.

Com o coração a bater como um tambor, Rowan lan­çou-se para a frente e olhou pelo buraco.

A princípio, ele só conseguia ver uma mancha de um azul baço. O frio era tão intenso que os olhos lhe doeram e ficaram rasos de água.

Muito mais frio do que aqui fora, pensou ele. No entanto, a barreira cinzenta não era fria.

Lentamente, ocorreu-lhe que o material cinzento era um tampão. Este constituía, tal como a capa de pele de bukshah que ele usava, uma poderosa barreira tanto contra o calor como contra o frio. Evitava que um fluísse para o outro.

O material cinzento estava a preencher uma fenda na rocha. Estava a ser usado para manter o frio mortífero no interior e não deixar entrar o ar menos gelado do exterior.

Mas porquê ali? pensou ele, confuso. Quem o fizera?

Depois o seu olho ajustou-se à estranha luz azul para além da barreira cinzenta, e viu...

Viu uma caverna enorme, tão grande que a aldeia inteira de Rin poderia caber quatro vezes lá dentro. Viu que o teto e as paredes da caverna brilhavam com o mesmo fungo branco azulado de que ele se lembrava da viagem que fizera ao interior da montanha alguns anos antes. Viu que o teto estava cravejado de manchas pálidas que ele depressa identificou como sendo extre­midades roídas de raízes de árvores. Viu as entradas para outras câmaras e túneis que subiam, serpenteando através do centro da Montanha.

E viu, horrorizado, répteis do gelo. Dezenas de milha­res de répteis do gelo. Répteis do gelo a contorcerem-se ao longo de todo aquele enorme espaço, enrolando-se em cima uns dos outros numa enorme massa branca movediça. Répteis do gelo a construir, a construir ine­xoravelmente, deslizando através dos túneis com os maxilares a trabalhar, utilizando o material mastigado para construir mais e mais celas cinzentas que já forra­vam as paredes geladas da caverna e se erguiam em enor­mes torres até ao teto.

O centro oco da Montanha era um ninho. Um ninho gigantesco. Em todas as celas acabadas havia um verme branco — uma réplica minúscula dos adultos que toma­vam conta dele.

E depois, aterrorizado, Rowan viu que os animais mais próximos dele ficaram imóveis, viraram as cabeças cegas para ele, abriram os maxilares e atiraram-se a silvar, contra o buraco por onde ele estava a olhar.

 

O TROVÃO DIRIGIDO À TERRA

Rowan recuou com tanta força que quase se soltou e caiu. As exclamações de espanto dos seus compa­nheiros e os gritos estridentes de Shaaran vindos de baixo soaram aos seus ouvidos enquanto ele se agarrava à rocha cortante com as pontas dos dedos.

— Para trás! — disse ele com a voz estrangulada. — Eles pressentiram-me. Eles sentiram o ar mais quente. Eles estão...

Horrorizado, ele viu pequenas rachas a irradiar do buraco como teias de aranha. Viu o material cinzento a começar a desfazer-se, à medida que o buraco ficava cada vez maior...

Começou a descer atrapalhadamente juntamente com Zeel e Norris, de costas, com as biqueiras das botas a procurar apoios para os pés, as mãos a doer, e a rocha, dura e fria, a raspar-lhe o peito e as pernas.

Mas a cabeça horrível de um réptil do gelo já estava a atravessar a barreira cinzenta. Enorme, feroz, o réptil desli­zou, a contorcer-se, para as rochas e começou a perse­gui-los. Um hálito gelado jorrava-lhe da boca, enchendo o ar à sua frente com uma névoa gelada e revestindo as rochas com uma camada branca.

— Para baixo! — gritava Shaaran lá em baixo. — Ve­nham para baixo!

Para baixo! Para baixo! Para baixo onde estava mais quente. Onde havia archotes. Onde o bosque não estava muito distante.

Rowan escorregou, recuperou o equilíbrio, voltou a escorregar. A respiração doía-lhe na garganta. Agarrando-se desesperadamente à rocha, olhou para cima.

O réptil estava quase ao pé deles, com a cabeça cega a investir, e os horríveis maxilares abertos. Era tão grande que a ponta da cauda ainda batia nas rochas do topo da pilha. E, mesmo cheio de terror, Rowan ficou espantado com o fato de a barreira cinzenta do penhasco já estar outra vez inteira e lisa. Mal o réptil do gelo emergiu total­mente, o buraco ficou selado atrás dele.

Tão rapidamente. O pensamento girou na mente ator­doada de Rowan, ao mesmo tempo que o seu pé encon­trou, finalmente, uma fenda em que conseguiu apoiar-se, e ele retomou a arriscada descida. O seu estômago dava voltas quando ele pensava nos répteis do gelo a corre­rem para o buraco, com as cabeças cegas a baterem contra ele enquanto as bocas abertas cuspiam o material cin­zento pegajoso que ficaria rijo ao fim de poucos mo­mentos, reparando os danos, selando o frio precioso no interior.

Só seriam necessários alguns. Alguns entre as deze­nas de milhares daquelas hediondas coisas rastejantes que infestavam a Montanha, fazendo túneis através da rocha, roendo as raízes das árvores. Construindo, cons­truindo...

— Dezenas de milhares? — resmungou Rowan para si próprio. Centenas de milhares! E, em breve, mais cen­tenas de milhares. Os túneis dos répteis minavam a rocha gelada da Montanha. As celas das crias parecidas com vermes enchiam as cavernas cheias de gelo da Monta­nha.

No frio agreste do Tempo Frio elas procriariam in­cessantemente, e as suas crias espalhar-se-iam aos milhões pela Montanha. Até todas as árvores terem mor­rido e todos os seres vivos terem sido destruídos.

Ele escorregou por um pedaço liso da rocha abaixo e aterrou, com um baque surdo, num pedregulho plano junto da base. Ainda a tremer, respirou fundo. Tinha a certeza de que ali não estava tanto frio. Ele tinha deixado o ar gelado do topo da pilha de rochas e passara para o ar quente mais abaixo.

Atreveu-se a olhar para cima e viu que tinha razão. O réptil do gelo estava a abrandar. Balouçava, a silvar, claramente desconfortável. Mas continuava a avançar. Rowan ouviu gritos, olhou rapidamente em volta e viu Norris e Zeel um pouco abaixo dele. Estavam os dois a olhar para baixo e a chamar. Norris tinha um braço es­tendido para... para o local onde uma chama se movia para cima e para baixo. Uma chama a subir!

Rowan percebeu que Shaaran estava a subir em direção a eles, segurando desajeitadamente um archote aceso. O rosto pálido, aterrorizado, da menina parecia flutuar na obscuridade atrás da chama. Abaixo dela viam-se os bukshah. Os animais estavam muito juntos, formando um nó imóvel apertado junto do sopé da pilha de rochas. Shaaran devia ter aberto caminho entre eles para iniciar a sua subida.

E ela tinha tanto medo deles! pensou Rowan. Este pensamento quase o fez soltar uma gargalhada. Medo dos bukshah, quando as rochas eram duras, altas e denteadas, e um réptil do gelo silvava a sua raiva acima deles!

Mas ele sabia, melhor do que ninguém, que os pe­quenos medos podiam ser tão aterrorizadores como os grandes. Ele sabia que Shaaran tinha recorrido a toda a sua força, num esforço desesperado para levar aos seus companheiros aquilo de que eles necessitavam para conseguirem sobreviver.

Ela podia facilmente escorregar e cair! Rowan obser­vou, aterrorizado, a chama oscilante. Ele sabia como a subida da rocha era difícil e perigosa. E Shaaran, frágil e cheia de medo, estava a subir só com uma mão, com o archote que trazia na outra a dificultar-lhe os movi­mentos.

— Rowan! — o grito agudo de Zeel fê-lo dar um salto. Instintivamente, olhou de novo para cima, para onde o réptil do gelo se contorcia numa nuvem de ar gelado. Os seus olhos viram algo a mover-se acima dele, e ele sentiu o sangue a gelar-lhe nas veias. A face do penhasco estava quase oculta pela névoa branca ondulante. E na névoa havia centenas de formas brancas azuladas, deslizando pesadamente do topo do penhasco coberto de neve.

Claro, pensou Rowan, paralisado. Como é que eu pude pensar que apenas um animal iria defender o ninho? A porta cinzenta tinha que ser selada, para impedir que o ar mais quente entrasse na câmara. Mas, mais acima, onde está tanto frio no exterior como no interior, não havia necessi­dade de selar as portas. E através dessas aberturas saíam mais répteis, às centenas...

Recomeçou a descida. O medo dominava-o, mas ele cerrou os dentes, combatendo-o. Tinha que se concen­trar no que estava a fazer, pensar apenas em colocar os pés com segurança, em utilizar bem as mãos. Se es­corregasse e partisse um osso — até mesmo se torcesse um pé — estaria acabado.

O som de um silvo encheu-lhe os ouvidos. Uma gol­fada de névoa gelada envolveu-o. Abriu a boca e engas­gou-se, olhou para cima e viu o primeiro réptil do gelo mesmo por cima dele, com o seu enorme corpo seme­lhante ao de uma cobra quase escondido no meio de uma nuvem branca.

O animal tinha, de alguma forma, arranjado forças para enfrentar o ar mais quente da parte inferior da pilha de rochas.

E atrás dele... estavam outros.

Rowan ouviu o seu próprio grito de terror. A parte superior da rocha estava coberta por uma neblina ondulante. A neblina descia lentamente e, dentro dela, havia uma massa de bocas azuis a silvar, corpos brancos azulados a contorcer-se nas rochas que o gelo preto fazia cintilar.

Eles não se limitam a viver no frio. Eles causam-no! Quanto mais numerosos são, mais frio fica... O pensamento pene­trou-lhe na mente como um punhal de gelo. E, logo a seguir, ele percebeu a terrível verdade.

Nenhum lugar está a salvo deles.

O réptil do gelo avançava às cegas. Rowan recuou, com um grito, largando o apoio da mão, escorregando, deslizando, abandonando todas as precauções. Os seus calcanhares bateram na rocha e resvalaram para a frente e para baixo. No momento seguinte, ele estava entalado até à cintura numa fenda entre dois pedregulhos.

Quando tentava içar-se para se soltar, olhou, aterro­rizado, para cima. A boca do réptil estava muito aberta por cima dele. Os seus dentes oblíquos brilhavam quando ele investiu, tentando agarrá-lo...

Ouviu-se um enorme grito, e Rowan, atordoado de medo, viu um rastro de fogo passar-lhe ao lado da cabeça e mergulhar nos maxilares abertos forrados de azul. O réptil empinou-se, com a ponta do archote ainda a sair-lhe da boca. Uma neblina azul escura gelada jorrou-lhe da garganta. Depois ele enrugou-se e caiu.

Braços fortes nada meigos içaram Rowan para fora da fenda.

— Depressa! — rugiu Norris aos seus ouvidos.

A massa de formas brancas que estava nas rochas por cima deles pareceu avançar enquanto Rowan e Norris desciam atrapalhadamente. Quando olhou por cima do ombro, Rowan viu Shaaran e Zeel a chegarem ao fim da sua apavorada descida.

Não caiam! Não caiam! pensava ele repetidamente, falando tanto para elas, como para si próprio. Foi com um enorme alívio que viu as duas meninas deslizarem pela última rocha íngreme, aterrando, sãs e salvas, no meio da manada de bukshah. Instintivamente, ele e Norris dirigiram-se para o mesmo local.

Mas, quando chegaram finalmente ao fundo, eles viram que os bukshah tinham se movido, e que Shaaran e Zeel se tinham movido com eles. Eles estavam agora na outra extremidade da pilha de rochas — na extre­midade mais distante do bosque. Zeel e Shaaran estavam estranhamente imóveis, com os bukshah muito juntos à sua volta.

Norris e Rowan correram a gritar para lá. Os buks­hah deslocaram-se para os deixar passar, depois voltaram a fechar-se silenciosamente atrás deles.

— Porque é que estão aqui? — perguntou Norris, ofegante, quando chegou ao pé de Shaaran.

Ela não respondeu e limitou-se a fitá-lo com os seus enormes olhos assustados.

Ele puxou-lhe pelo braço.

— Não percebe? Vêm aí centenas de répteis! Temos que voltar para o bosque. É a nossa única possibilidade!

Mas, quando ele se virou, arrastando Shaaran consigo, encontrou o caminho bloqueado pelos bukshah. Os animais tinham-se deslocado de modo a incluírem os recém-chegados no seu círculo, e agora permaneciam lado a lado à volta deles como uma sólida parede peluda. Eles farejavam e faziam um ruído surdo, tocando suave­mente em Rowan, Zeel e Norris com o nariz como se estivessem ansiosos por lhes tocarem. Mas não tocaram em Shaaran, mantendo-se afastados dela como se sou­bessem que ela tinha medo.

Norris barafustou e empurrou-os em vão.

— Rowan! — gritou ele, olhando desvairadamente à sua volta. — Obrigue-os a se mexerem!

Rowan sabia que não havia qualquer esperança de que isso acontecesse. A Estrela estava no centro do grupo, mesmo ao lado dele. Os seus olhinhos pretos estavam fixos nele, e naqueles olhos ele via a determinação dela. Ela não o deixaria passar.

Os animais são mais sábios do que nós imaginamos...

Rowan sentiu os cabelos da nuca a eriçarem-se.

— Eles não vão se mexer — disse Zeel. — Eles em­purraram-nos para aqui e é aqui que eles querem que fiquemos. — A voz dela era muito baixa. Os seus olhos claros estavam fixos e concentrados, como se ela estivesse a escutar algo que mais ninguém conseguia ouvir.

— O que é, Zeel? — murmurou Rowan.

— Escuta — respondeu ela.

Rowan escutou. E... não ouviu nada. Nada a não ser o seu próprio coração a bater, a respiração pesada de Norris, e os cascos dos bukshah a raspar levemente o chão rochoso.

O vento tinha diminuído. Havia uma estranha quietude, como se a Montanha estivesse a suster a respiração.

O silêncio pareceu premir-se contra os ouvidos e os olhos de Rowan. Os dentes começaram a doer-lhe. Sentia um formigamento na pele como se um milhão de formi­gas lhe percorresse os pêlos das pernas e dos braços.

Obrigou-se a si próprio a olhar para cima. Os répteis que estavam em cima da pilha de rochas tinham parado. No meio da neblina rodopiante, as suas cabeças cegas oscilavam indecisamente.

— O que...? — começou a perguntar Norris, engasgando-se seguidamente quando a voz secou na garganta.

A luz tinha-se alterado. O céu sombrio estava man­chado de vermelho. O dia estava a nascer.

Muito alto acima deles, na sua caverna de gelo no topo, o Dragão rugiu.

E, vindo do interior da Montanha, ouviu-se um rugido baixo e longo como o ribombar de um trovão.

O ar cintilou à frente dos olhos de Rowan. A terra pareceu tremer debaixo dele.

Depois as rochas começaram a cair. Lentamente, como um castelo de uma criança feito de blocos de ma­deira, um castelo deitado abaixo por um dedo descui­dado, as rochas tombaram, caíram em cima umas das outras e em cima dos répteis do gelo que se moviam, indefesos, no trajeto delas.

À medida que a Montanha tremia, as rochas começa­ram a tombar cada vez mais depressa, caindo no local onde os companheiros tinham estado apenas alguns minutos antes, rodopiando e caindo no Fosso de Unrin, levando consigo os corpos esmagados dos répteis do gelo.

Rowan caiu de joelhos, pressionando a cabeça contra o lombo peludo da Estrela, escondendo os olhos da imagem do mundo a desfazer-se à sua volta, tentando proteger os ouvidos do ronco do trovão.

Mas não era possível escapar ao som. Este estava em todo o lado. Fazia tremer o corpo da Estrela. Fazia vibrar o mundo. Enchia o ar que ele respirava.

Que som aquele! Rowan nunca ouvira um som assim. Não oriundo do Dragão da Montanha. Nem vindo das árvores demoníacas de Unrin. Nem proveniente da Grande Serpente de Maris. O rugido da Montanha era baixo e terrível, como um rugido de ira. E enquanto Rowan se encolhia, subjugado por ele, o som foi au­mentando cada vez mais até se ouvir o lamento áspero, estridente, de rocha a partir-se. Depois uma rajada de vento quente varreu tudo à sua volta, atirando-o ao chão.

 

A ESCADA

A cabeça de Rowan doía-lhe. Tinha zumbidos nos ouvidos. O nariz da Estrela tocou bruscamente no rosto. Talvez, em muitas outras ocasiões anteriores, ela lhe tivesse tocado mais suavemente, a tentar acordá-lo. Mas agora ela não podia esperar mais tempo. Ele ou­via-a a fazer barulho, ansiosa, e a escavar o chão com as patas.

Abriu os olhos. Estes choravam e ardiam-lhe. Viu a Estrela acima dele, uma forma preta recortada no céu nublado. O terrível amanhecer tinha-se esbatido. Era dia claro.

Rowan foi percebendo lentamente do que o ro­deava.

Ao seu lado, Zeel, Norris e Shaaran começavam a mexer-se. Os outros bukshah ainda os cercavam, ainda formavam aquela enorme parede cinzenta viva que os escudava do pior da fúria da Montanha. Mas agora a parede era irregular e oscilante, e o ar estava cheio de mugidos e resfôlegos. A manada estava impaciente por partir.

Está na hora, pensou Rowan. Ele não sentia nada. Tinha a mente entorpecida.

Pôs-se de pé, vacilante, esforçando-se por se equili­brar embora sentisse a cabeça a andar à roda, e agarran­do-se à crina da Estrela para se segurar. A lã dela era áspera sob os seus dedos. Recordou-se vagamente de que ela estava assim desde que mergulhara na água da nascente do bosque. Depois, o pensamento dissipou-se.

Lenta, pacientemente, a Estrela conduziu-o por entre a irrequieta manada. Ele seguiu, a cambalear, ao lado dela, esfregando os olhos rasos de água. Atordoado, che­gou ao espaço aberto e viu o que ela queria que ele visse.

As pedras denteadas que tinham estado amontoadas contra a face do penhasco tinham desaparecido, como se tivessem sido empurradas para longe por uma mão de gigante. Rowan viu que o penhasco e a encosta não estavam separados e formavam uma enorme rocha cin­tilante.

A escada do seu sonho começava no local em que a rocha começava a subir a pique. Fitou-a com um ar inex­pressivo através de uma névoa de vapor e lágrimas. A escada brilhava, iluminada por uma estranha radiância amarela que não era o sol.

Ergueu os olhos. Ao lado da escada, oriundo de uma enorme fenda situada aproximadamente a meio da rocha, corria um rio de ouro.

O rio de ouro brotava lentamente da rocha. Fumegante, com uma cor forte e espessa como melaço, ele corria ao lado da escada, descendo a encosta mais suave onde os bukshah tinham vagueado e escavado a terra com as patas. Ali, ele alargava e prosseguia o seu cami­nho, numa faixa dourada larga, cintilante, derramando-se sobre a orla do fosso.

— Estou a sonhar — disse Rowan a si próprio. Mas ele sabia que não estava.

O coração destroçado desimpedirá o caminho...

O coração da Montanha tinha rebentado através da sua casca de rocha, revelando o seu segredo. E agora o ouro derretido corria, corria como sangue, pela encosta abaixo, para o Fosso de Unrin.

Rowan percebeu que Zeel, Norris e Shaaran estavam ao seu lado, vendo o que ele estava a ver. Ele sentia a sua presença. Ouvia a sua respiração rápida. Mas nenhum deles disse uma só palavra.

Sentiu a Estrela a afastar-se suavemente dele, sentiu a mão cair ao lado como uma coisa morta. Viu a Estrela dirigir-se lentamente para a escada, pisando o chão sal­picado de manchas e poças de ouro a arrefecer, e os outros bukshah a seguirem-na, um a um.

E, à medida que os animais começavam a subir, os olhos de Rowan foram ficando desanuviados e ele viu, sem surpresa, que o aspecto deles era muito semelhante ao que tinham tido no seu sonho, embora muito mais magros e cansados.

Eles mantinham a cabeça erguida. Os chifres eram brancos e afiados como lâminas. O pêlo era espesso e cintilante. Os cascos brilhavam, dourados e, por onde passavam, deixavam pegadas douradas.

Temos que seguir os animais...

Rowan avançou em direção à escada e começou também a subir. Ele sabia que os seus companheiros iam atrás dele, mas não se virou para olhar para eles. Continuou a subir, um degrau de cada vez, enquanto ao seu lado o ouro líquido corria como sangue fumegante oriundo do coração da Montanha, a escorrer da rocha partida.

Era um sonho que não era um sonho. Um sonho com calor que ele não conseguia sentir. Com um plano que ele não conseguia descortinar. Com farrapos de memórias que a sua mente não conseguia alcançar. Com medo e sofrimento, ânsia e arrependimento, silên­cio e morte.

Só depois de passar o local onde o rio de ouro come­çava é que ele olhou para cima. E ali, não muito abaixo da mancha cinzenta que assinalava a caverna dos répteis do gelo, estava a boca aberta do seu sonho.

Era a entrada de uma caverna, sombria e horrível, envolta em vapor ondulante. Um parapeito largo de rocha cheia de marcas projetava-se por baixo dela, como um queixo enorme, deformado.

Nós subimos por cima de tudo isto sem sabermos, pensou Rowan vagamente. Olhou de um lado para o outro, para a camada externa lisa e dura da encosta da Montanha. Por baixo de nós bate agora o coração da Montanha, pensou ele. O seu calor, contido por baixo das rochas, refreou os répteis do gelo e salvou-nos. Salvou-nos... com outra finalidade.

Para isto.

Rowan ergueu novamente o olhar. Estava quase no topo da escada. Através do vapor ele viu que o buraco na rocha não era bem igual à boca aberta do seu sonho. Três pedras altas, denteadas, permaneciam presas à base, projetando-se para cima como dentes pretos e tortos.

Pela primeira vez desde que pisara os degraus da es­cada, Rowan estremeceu de medo.

Quatro têm que se sacrificar...

Rowan virou-se e olhou para trás. Os seus olhos cru­zaram-se com os olhos tranquilos de Zeel.

— Chegamos — disse ela.

Atrás dela, quase escondida pelos seus ombros largos, estava Shaaran, ofegante e de olhos muito abertos, com a caixa das sedas nos braços.

E atrás de Shaaran vinha Norris, com um ar decidido no rosto.

Muito acima deles, a neve cobria o cimo do penhasco e a mancha cinzenta selava a face do penhasco, prote­gendo o frio intenso no seu interior. Mais adiante, o vapor erguia-se da sombra dourada.

No domínio entre o fogo e o gelo...

Os bukshah estavam amontoados em cima do para-peito corroído. Eles mugiam e escavavam o chão. Alguns tentavam empurrar as rochas.

Eles querem entrar na caverna, mas não conseguem, pen­sou Rowan. Os espaços entre os dentes as rochas são dema­siado estreitos.

Sentiu-se um pouco mais animado. O que quer que lhe estivesse reservado, os bukshah, pelo menos, iriam ser poupados. A tarefa deles estava terminada.

Os companheiros chegaram ao parapeito e começa­ram a abrir caminho por entre os bukshah. Mais uma vez, os animais farejaram e tocaram ansiosamente em Rowan, Zeel e Norris, mas deixaram Shaaran passar lançando-lhe apenas um olhar.

— Eles não gostam de mim — disse Shaaran.

— Eles sentem o medo que tem deles — respondeu distraidamente Rowan, fazendo seguidamente um es­gar. Se o cheiro do medo repelia os bukshah, porque é que eles se juntavam à sua volta? Todo o seu corpo tremia de medo. O medo provocava-lhe um formigamento na pele. Ele sentia que o terror devia irradiar dele como se fosse calor.

Entrou na caverna à frente dos outros. Esta era úmida e cintilante. O vapor flutuava no interior, vaga­mente colorido de ouro.

A Estrela estava no centro da fila de animais que tentava forçar a entrada. Ela tinha colocado o ombro de encontro à rocha do meio e estava a empurrar, do mesmo modo que empurraria uma cerca para a derrubar. Ela tinha conseguido deslocá-la um pouco para o lado. Mas embora os bukshah estivessem magros, o es­paço criado continuava a ser demasiado estreito para eles.

E ela nunca conseguiria empurrá-la para dentro. A caverna estava situada num degrau alto acima do para-peito. As três rochas estavam comprimidas contra o degrau.

— Não vai conseguir fazê-lo, Estrela — disse Rowan em voz baixa, pondo a mão em cima da crina. — Poupe as suas forças.

A Estrela levantou a cabeça pesada e olhou para ele. Os seus olhos pareciam cheios de tristeza e frustração.

— Você e a manada trouxeram-nos até aqui, e isso é suficiente — disse-lhe Rowan, com um nó na garganta. — Agora tem que nos deixar agir... fazer o que tem que ser feito.

A Estrela escavou a terra com a pata, soltando um gemido profundo, e tentou, mais uma vez, em vão, em­purrar a rocha.

— Não! Volte para trás, Estrela! — insistiu Rowan puxando-lhe pela lã, desesperado por fazê-la compreen­der. — Leva a manada novamente para o bosque e es­pere. No bosque há alguma comida, há água, e estarão a salvo do frio e dos répteis. E talvez... ao fim de algum tempo... as neves derretam e vocês possam regressar ao vale.

Se nós fizermos o que temos que fazer, pensou ele. Se tivermos forças para fazer o que temos que fazer.

Ele esfregou o rosto na crina da Estrela, sentindo a sua aspereza pouco familiar contra a pele. Seguida­mente, deixou-a e passou por entre as rochas.

O ar estava cheio de uma névoa dourada sombria. Ele conseguia ver muito pouco através da neblina.

Ergueu a mão, descobriu que podia tocar facilmente no teto, e pensou nos répteis do gelo enrolados no seu ninho gelado situado não muito longe acima da sua cabeça. Zeel, Shaaran e Norris atravessaram a barreira formada pelas rochas e agruparam-se atrás dele. Rowan deu um passo em frente.

Os bukshah tinham começado novamente a mugir, com a Estrela a mugir mais alto que todos. Os seus berros ecoavam de um modo estranho, ecoavam continuamente, até o som lamentoso parecer encher o ar brumoso.

— Mais adiante está mais claro — disse Zeel em voz baixa atrás dele.

Rowan olhou e viu que era verdade. A entrada da caverna estava agora muito atrás deles mas, em vez de ficar mais escuro, a estranha luz era cada vez mais forte. Eles caminhavam na direção de uma luz amarela que, a cada passo, se tornava mais luminosa.

E o vapor estava a diminuir. Agora era apenas um véu fino. As paredes do túnel através do qual se deslo­cavam eram claramente visíveis. Acima das suas cabeças, o teto era baixo e brilhante.

Nisto, Rowan viu figuras envoltas em capas a andar não muito à frente, em silêncio e em fila indiana, ca­minhando cheias de medo e desespero, enquanto os mugidos dos bukshah ecoavam, distantes, à sua volta. Com um choque, ele reconheceu a imagem.

Está tudo perdido... Estamos perdidos... Não é possível escapar...

As figuras cintilaram e desapareceram. Rowan sentiu a respiração a acelerar. A luz amarela aumentava. Agora ele conseguia ver que no local onde ela começava, o túnel era mais largo, abrindo-se para um espaço muito maior. Ele soube que ali eles iriam encontrar a origem da luz, o fim da viagem.

Tinha as pernas a tremer. Com parte da sua mente... a parte que ainda era sua... ele ansiava por parar, por se atirar contra as paredes brilhantes do túnel, por se agarrar a elas, para se conter. Mas era demasiado tarde para isso. Ele começou a ser impelido para a frente por algo mais poderoso que ele próprio.

Em vez de abrandar, deu por si a mover-se mais rapi­damente. E, de imediato, a luz dourada rodeou-o, um calor enorme envolveu-o, e ele viu o que tinha vindo tão longe para ver.

O teto da caverna era baixo e salpicado de preto e cinzento. As paredes pretas tinham veios dourados cin­tilantes, iluminados, tal como o ar enublado, por uma radiância que jorrava de um buraco redondo no centro do chão liso raiado de ouro.

Não havia mais nada. Nada a não ser calor e sombras nos cantos, e os ecos dos lamentos dos bukshah.

Rowan aproximou-se da orla do buraco como alguém em transe. Depois olhou para baixo — para um abismo tão fundo que sentiu a cabeça a rodar. Olhou para o calor inimaginável, para o brilho terrível do ouro derretido escaldante.

Sentindo-se tonto, olhou para o coração da Monta­nha e não conseguiu desviar o olhar. Tinha a cabeça à rodar. Percebeu que tinha parado de res­pirar.

A fome não será negada...

A fome tem que ser mitigada...

— Ande, Rowan. Afaste-se da beira.

Rowan ouviu a voz de Shaaran, mas não conseguiu compreender as palavras. Outras vozes reclamavam a sua atenção. Vozes da sua memória.

A voz de Neel:

Nós ofendemos a Montanha, e agora a Montanha virou-se contra nós.

A voz de Norris:

Se o povo do Vale do Ouro não tivesse morrido... eles podiam ter-nos dito como é que fizeram as pazes com a Montanha, e puseram termo ao primeiro Tempo Frio.

A voz de Zeel:

Esse conhecimento perdeu-se... Os habitantes do Vale não o partilharam... Talvez fossem demasiado orgulhosos. Ou tivessem vergonha...

— Vergonha — murmurou Rowan. — Vergonha do que tiveram que fazer para reparar o mal que tinham feito. Mas o nosso povo nunca saberá. A Lann não lhes dirá, e eu espero que eles nunca adivinhem.

O coração da Montanha rosnou, à espera.

— E é isto o que tem que ser feito? — perguntou uma voz num tom firme. — Se é, estou pronta.

 

A FOME

Rowan virou-se. Zeel estava ao seu lado, à beira do precipício. Ela pegou-lhe na mão e fitou-o nos olhos com um ar altivo. Ele viu a força e a graça dela, uma combinação de Zebak e Viajante, e o seu coração pareceu partir-se dentro dele.

— Estou pronta — repetiu ela.

Norris deu um passo em frente e pegou na outra mão de Zeel.

— Eu também — disse ele. — Eu segui-te até aqui, Rowan, e se tiver que te seguir até às profundezas e até à eternidade, fá-lo-ei.

Rowan olhou para ele, viu a sua coragem e o seu rosto franco e sincero, e sentiu novamente uma dor no coração.

Só Shaaran não tinha avançado. Só Shaaran não tinha dito nada. Mas agora ela falou e, quando o fez, a sua voz era trêmula, mas firme.

— Eu não acredito — disse Shaaran.

— Shaaran... — começou Norris a dizer.

Mas Shaa­ran abanou a cabeça.

— A Montanha é uma coisa de rocha e terra — disse ela. — É misteriosa. Ela encerra muitas coisas espan­tosas. Mas ela só exige que a respeitemos. Não quer o nosso amor, nem lealdade, nem medo... nem sacrifício. Ela não precisa de nada disso. Precisa... deve precisar... de qualquer outra coisa.

Rowan levantou a cabeça, como se acordasse de um sonho. O medalhão latejava junto da sua garganta. Ele virou-se. Shaaran estava afastada do abismo. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto.

Uma para chorar...

— Está com medo, Shaaran — disse Zeel num tom suave.

— Claro que estou com medo — retorquiu Shaaran. — Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso teria medo! Mas não é por isso que eu recuso juntar-me a vocês nesta loucura. Eu recuso-me porque vocês estão engana­dos! Enganados!

Eles fitaram-na com um ar inexpressivo. Ela bateu com o pé.

— Além de coração, vocês não têm cabeça? — per­guntou ela. — Como é que podem pensar que o fato de se atirarem para o coração a ferver da Montanha irá fazer derreter um só pingente de gelo em Rin, ou impedir um réptil do gelo de nascer, ou fazer florir uma única flor?

Rowan já tinha rodado 180 graus e afastou-se um pouco do abismo.

Ouviu-se um rosnado surdo vindo das profundezas debaixo deles. A rocha estremeceu sob os seus pés.

— Não podemos esperar — disse Zeel numa voz sumida. — A ira está a aumentar. Há demasiado calor. Demasiado...

— Rowan, o medalhão! — disse Shaaran num tom insistente. — Use-o!

— Cada um de nós fez uma pergunta — disse Rowan. — Já tivemos quatro respostas. Acho que... já não vai haver mais.

Mas, mesmo assim, ele levantou a mão e levou-a ao metal que lhe queimava a garganta. Este pareceu contorcer-se sob os seus dedos, como se estivesse vivo. Ele sentiu as palavras subirem dentro dele. Abriu os lábios secos e falou. As palavras vieram facilmente, e ele ouviu-as sem surpresa, pois eram-lhe muito familiares.

“Os animais são mais sábios do que podemos imaginar

E aonde eles conduzem, quatro almas devem caminhar.

Uma para chorar e uma para lutar,

Uma para sonhar e uma para voar.

Quatro têm que se sacrificar.

No domínio entre o fogo e o gelo

A fome não pode ser negada,

A fome tem que ser mitigada.

E nessa rajada incandescente,

A busca une a vida e a morte iminente.”

Quando as palavras terminaram, ele ficou calado. Sentia-se muito cansado, mas nada mais.

— Então... — murmurou Zeel.

— Quatro têm que se sacrificar — disse Norris num tom inexpressivo. — Aqui, no domínio entre o fogo e o gelo. Não pode haver qualquer engano.

Mas Rowan estava novamente a ouvir uma voz na sua mente. A voz de Sheba, a dizer a profecia. Ele tinha-os repetido exatamente do mesmo modo. Todas as pala­vras, todas as pausas. E...

— Entre o verso que termina com “sacrificar” e o que termina com “o fogo e o gelo” há uma pausa. Um ponto — disse ele lentamente. — Podem ser dois versos completamente diferentes. Não reparei nisso antes, mas agora estou a ver. O verso sobre o sacrifício pode estar ligado aos versos sobre as quatro almas que vêm antes dele. O verso sobre o fogo e o gelo pode estar ligado aos versos seguintes, os versos sobre a fome. Nesse caso, a profecia tem um significado diferente.

— É verdade — disse Zeel após um momento de reflexão. — Mas isso não altera realmente nada. Os quatro sacrifícios têm que ser feitos.

— Acha? — comentou Rowan. — Ou será que já foram feitos? A Shaaran abandonou as sedas para me salvar no vale dos horrores. O Norris convenceu-se de que estava perdido, para nos salvar do réptil do gelo na caverna. Você, Zeel, sacrificou o seu papagaio, e quase a sua vida, para salvar o Norris. E eu... — ele sorriu ironi­camente. — Eu sacrifiquei a coisa mais preciosa que tinha... a nossa amizade e confiança... para tentar fazer com que me deixassem e se salvassem.

— Tem razão — disse Shaaran em voz baixa. — Para chegarmos a este lugar, todos nós fizemos sacrifícios. E agora estamos aqui. Há algo que temos que fazer. Antes que... — Ela estremeceu quando a Montanha rosnou debaixo dos seus pés.

Antes que a rocha volte a explodir, pensou Rowan. Antes que a escada caia e os bukshah morram. Antes que esta caverna se torne o nosso túmulo.

— E... sobre a fome— balbuciou Norris. — A fome...

As palavras ficaram a pairar, pesadas, no meio deles.

No domínio entre o fogo e o gelo

A fome não pode ser negada,

A fome tem que ser mitigada

Algo brilhou na orla do campo de visão de Rowan. Ele virou a cabeça e viu movimento num canto envolto em sombras mesmo atrás de Shaaran. Viu uma capa de pele de bukshah no chão a mexer-se, o débil movimento de uma mão delicada a curvar-se protetoramente à volta de uma caixa de madeira comprida. Viu outra mão, uma mão mais forte, a escrever, uma cabeça inclinada a brilhar, escura, na luz dourada. Sentiu os pensamentos, as palavras rabiscadas na folha...

Quando regressarem, vocês têm que saber o que aconteceu, por isso eu escrevo estas palavras...

E ele viu o quadro de que a sua mente se estava a recordar. Um quadro pintado na seda. Uma longa fila de pessoas a atravessar a neve ao longo de uma trilha preta, queimada. Répteis do gelo saindo, a contorcer-se, da névoa da Montanha. Bukshah juntos lá em baixo, as únicas marcas pretas numa imensidão branca.

As únicas marcas pretas...

Rowan susteve a respiração. A mão que se movia parou, um rosto olhou para cima.

Era o seu próprio rosto. E nele ele leu o fim da espe­rança, o fim do medo, a aceitação do que tinha que ser. Por um momento, os olhos fitaram-no, inexpressivos, depois a boca pareceu curvar-se numa sombra de sorriso, e a cabeça inclinou-se mais uma vez sobre o papel.

Rowan virou-se rapidamente, com o coração a bater com força, e a mente a tentar abarcar a espantosa idéia que lhe viera. Ele viu que os seus companheiros olhavam para ele com um terror fascinado, com os olhos cheios de perguntas que eles tinham medo de fazer. Ele sempre temera o dia em que eles olhariam para ele daquele modo. Mas isso já não parecia importante.

— O que viu? — perguntou Norris, sem se conse­guir conter. — Você estava a olhar fixamente... para nada! Era o nosso futuro? Era, Rowan?

Rowan não respondeu. Nem sequer ouviu. Estava a ouvir os ecos. Os ecos dos mugidos que nunca tinham parado... os berros dos bukshah esfomeados que ainda estavam à entrada da caverna. Os bukshah.

Os bukshah, que tinham vivido e morrido na sombra da Montanha desde que os Viajantes vagueavam pela terra, e até mesmo antes disso. Os animais sábios que os companheiros tinham salvado da morte no bosque. Os animais que os tinham conduzido àquele lugar. Os animais que farejavam e tocavam ansiosamente nele, em Zeel e em Norris, mas que tinham ignorado Shaaran. Os animais com os chifres afiados há pouco tempo, os cascos dourados, o pêlo brilhante sobre os corpos magros, esfomeados...

Fome...

Rowan olhou em redor da caverna. Chão preto liso, raiado de ouro. Cantos envoltos em sombras. Paredes pretas, raiadas de ouro. Calor e luz oriundos de um poço de fogo jorrando para cima, até chegar a um teto baixo salpicado de preto e cinzento.

Salpicado de cinzento... embora as paredes e o chão fossem pretos.

Ele ergueu a mão e tocou no teto.

E nessa rajada de sopro incandescente...

Rowan rodou e agarrou no braço de Norris.

— Ajude-me! — pediu ele.

E ele desatou a correr, com Norris, Zeel e Shaaran atrás, e as perguntas confusas deles a soarem aos seus ouvidos.

Correram velozmente através da neblina. Os ecos dos berros eram cada vez mais altos, e o ouro foi substituído por uma luz branca. Ao fim de algum tempo, tinham à sua frente as rochas denteadas que os bukshah tentavam, em vão, empurrar.

A Estrela ainda se encontrava à cabeça da manada e ergueu a cabeça cansada.

— Para trás, Estrela! Para trás! — gritou Rowan. A Estrela viu-o premir o ombro contra a rocha do meio, com Norris ao seu lado e, desta vez, obedeceu. Recuou, e os outros bukshah recuaram também, até o caminho em frente da rocha estar desimpedido.

Depois Norris empurrou com toda a força, e Rowan, Zeel e Shaaran adicionaram o seu peso ao dele. E a enorme rocha, que os bukshah há muito tinham desprendido, oscilou na sua base e rolou lentamente para longe da entrada.

Os bukshah avançaram, com a Estrela à frente. Os companheiros encolheram-se e comprimindo contra o lado da entrada. Com uma pressa frenética, os animais passaram, um a um, pelo espaço entre as rochas, meio saltando o degrau baixo para entrarem no túnel, irrom­pendo seguidamente num galope pesado.

O som dos seus cascos pesados era como um trovão, e a neblina rodopiava como nuvens de tempestade. Ro­wan, Zeel, Norris e Shaaran corriam atrás deles enquanto eles galopavam em direção à caverna.

— O que estamos a fazer? — rugiu Norris.

— Estamos a fazer o que devíamos ter feito logo de início — respondeu Rowan no mesmo tom. — Estamos a seguir os animais. Durante todo este tempo, o nosso único papel tem sido garantir que eles chegassem à ca­verna. Eles é que são necessários aqui, não somos nós!

— Porquê? — gritou Shaaran. — O que é que eles vão fazer?

Mas Rowan não teve que lhe responder porque, en­quanto ela falava, eles chegaram à caverna, e ela viu por si própria.

Viu os animais a abanar a cabeça, e os seus chifres acabados de afiar, os chifres de que ela tinha tanto medo, a fazer o que deviam fazer. Ela viu os chifres a penetrar profundamente nas manchas claras que salpicavam o teto da caverna, a escavar pedaços grandes cinzentos, grossos e viscosos. Viu os bukshah a engolir sofregamente os pedaços cinzentos como se fossem a comida mais deliciosa da terra, e a voltar a levantar a cabeça para arrancarem mais.

A fome tem que ser mitigada...

— Este é o material que os répteis do gelo usam para selar o seu ninho! — gritou Norris, olhando em pânico para as migalhas cinzentas espalhadas pelo chão e para os pedaços maiores que caíam do teto como granizo. — O ninho está mesmo por cima de nós... e o teto da caverna está todo esburacado! Esburacado como uma peneira! Rowan, faça os animais parar! Eles vão escavar até ao ninho! Vão ser a nossa morte!

— Eles vão ser a nossa salvação! — replicou Rowan. Mas, embora se sentisse seguro, mesmo ele susteve a respiração quando a Estrela, com um vigoroso movi­mento dos chifres, rasgou a última camada cinzenta do enorme buraco por cima da sua cabeça.

Por um instante, o buraco era apenas rocha preta em volta de uma luz branca azulada. Depois um ser branco horrendo a silvar começou a preencher o buraco a partir de cima, a tentar atravessá-lo, com os dentes afiados como agulhas à mostra e a boca azul muito aberta.

Shaaran gritou. Mas ainda não se tinha começado a ouvir o eco e já uma névoa azul escura irrompia da boca a silvar. A garganta branca pareceu murchar, e o réptil do gelo caiu para trás e desapareceu.

— É o calor! — gritou Rowan acima do barulho dos bukshah e dos ecos. — Os répteis não conseguem supor­tá-lo! Para eles é a morte!

E ele virou-se e viu que, um a um, os buracos iam ficando desimpedidos à medida que o calor do coração incandescente da Montanha, que deixara de estar apri­sionado no interior da caverna, jorrava para cima numa explosão de fogo e aquecia os domínios escondidos que os répteis do gelo há tanto tempo, e com tanto tra­balho, tinham tornado seus.

 

VIDA E MORTE

Ao fim de algum tempo, o frenesi dos bukshah acalmou, e o processo de escavar a estranha comida que eles sabiam que os iria fazer sobreviver ao Inverno mais rigoroso adquiriu um ritmo constante, satisfeito. O chão estava coberto de fragmentos cinzentos. Muitos buracos ainda estava bloqueados, mas outros tinha sido total ou parcialmente abertos, e todos os répteis do gelo que se tinham aventurado a aproximar-se tinham morrido com o ar quente que vinha de baixo.

— Assim a nossa busca juntou realmente a vida e a morte — disse Norris com satisfação. — Morte para os répteis do gelo, vida para nós.

— Os répteis do gelo não estão todos mortos — disse Zeel, olhando-o com um ar divertido. — É certo que o grande ninho ficou destruído, e que os répteis que esta­vam a descer, a espalhar o frio de que gostavam, já não existem. Mas deve haver ainda muitos mais a viver nos lugares altos da Montanha, onde a neve nunca derrete. — Ela ergueu o olhar para os buracos do teto da caverna. — E, à medida que o calor continuar a subir e por conseguinte, a diminuir aqui, eles vão voltar, arriscando a vida para selar novamente os buracos. Faz parte da natureza deles tentar alargar o seu território.

Os companheiros estavam sentados junto da parede da entrada, fora do caminho dos bukshah. Embora sou­bessem que, nessa altura, o calor era muito maior do que eles sentiam, já parecia mais frio na caverna.

— Acho que a nascente do bosque deixou uma camada na nossa pele e na roupa que nos protege do calor — disse Rowan. — E protege também o pêlo dos bukshah.

— A passagem para o vale dos horrores afiou-lhes os chifres de modo a estarem prontos para escavar a comida do teto da caverna — comentou Shaaran, sacudindo a cabeça com um ar de espanto. — E a água da nascente protegeu-os do calor que aí vinha. É como se eles ti­vessem sido guiados para seguir a trilha que percorre­ram.

— Eu tenho certeza de que eles foram guiados — disse Rowan. — Não por magia, mas pelo instinto. Desde os tempos antigos que a manada dos bukshah devia vir à caverna alimentar-se no Inverno. Assim, todos os anos o teto da caverna era desimpedido, os répteis do gelo recuavam, e o equilíbrio mantinha-se.

— Então como é que o primeiro Tempo Frio veio? — perguntou Norris. — Ou isso não passou, afinal, de uma lenda?

— Oh, não — respondeu Rowan num tom sério. — Tenho a certeza de que ele, de fato, aconteceu. Eu acho que aconteceu porque os habitantes do Vale do Ouro decidiram construir cercas para manter os bukshah confi­nados o ano inteiro.

— Mas porquê? — quis saber Zeel. — Porque é que eles haveriam de fazer uma coisa dessas? Eles deviam saber o que os bukshah vinham fazer à caverna! A Monta­nha não lhes era proibida, como era para os Viajantes.

Rowan suspirou.

— Eu desconfio, embora nunca possamos ter a cer­teza, que os habitantes do Vale do Ouro descobriram que, quanto mais quente a caverna ficava, e quanto mais a pressão lá em baixo aumentava, mais rapidamente o seu rio de ouro secreto corria. Eles só pensaram na beleza e no poder do ouro. Esqueceram-se de que a Montanha também tinha necessidades.

— E foi assim que se deu o primeiro Tempo Frio — murmurou Zeel. — Tolos! Eles acabaram por perce­ber o seu erro e corrigiram-no. Mas recusaram-se a dizer aos Viajantes o que tinham feito. Não admira! Não admira que tivessem vergonha!

Rowan suspirou.

— Eu também tenho vergonha de não ter percebido que tinha que haver um motivo para que, no Inverno, os bukshah tentassem sempre fugir. Os bukshah não são estúpidos, são sábios. Eu sabia isso, mas não tentei compreendê-los. Em vez disso, como todos os guardiães dos bukshah antes de mim, convencia-os a voltar para o campo dando-lhes a comida armazenada para eles comerem durante os meses frios. Eu perguntava muitas vezes a mim próprio como é que eles tinham sobrevi­vido antes de nós virmos para o vale. Agora eu sei.

Zeel franziu o sobrolho.

— Mas quando o Vale do Ouro foi finalmente des­truído, o deslizamento de terras provocado pelas árvores demoníacas soterrou a escada e esta caverna. Depois disso, os bukshah já não podiam vir aqui comer.

— Tem razão — concordou Rowan. — Ao longo de todos esses anos, eles devem ter voltado para trás, de­cepcionados, e regressado a casa com apenas as folhas do bosque para encher a barriga. Depois nós chegamos ao vale, construímos cercas e, tal como os habitantes do Vale do Ouro tinham feito outrora, começamos a dar de comer aos nossos animais no Inverno. Assim, embora o seu instinto para irem até à Montanha continuasse a existir, já não havia uma necessidade urgente de comida, e eles não se importavam de se manterem longe dela.

— E, durante todo esse tempo, pouco a pouco, os tampões dos répteis do gelo no teto da caverna iam-se tornando mais espessos, e a Montanha foi ficando mais fria — disse Zeel. — E os répteis foram se reproduzindo cada vez mais, provocando mais frio, e, a cada ano que passava, os Invernos eram mais longos e mais rigorosos.

Apesar do calor, Shaaran embrulhou-se melhor na capa.

— Então, se os habitantes de Rin não tivessem se instalado no vale e não tivessem começado a dar de comer aos bukshah no Inverno, a manada teria morrido! — exclamou Norris.

— Toda a terra teria acabado por morrer — disse Zeel num tom sombrio. — Mas os bukshah sobrevive­ram, conduziram-nos até aqui e mostraram-nos o que tinha que ser feito. — Ela olhou para Rowan com um ar pensativo. — Ao que parece, foi um feliz acaso o seu povo ter chegado aqui, com as suas cercas, colheitas e armazéns, e a sua capacidade de sobreviver ao frio no interior do país.

Rowan interrogou-se a si próprio. Feliz acaso? Ou outra coisa?

— Rowan, o que foi que viu imediatamente antes de começar a correr para conseguir que os bukshah entrassem na caverna? — perguntou Norris abrupta­mente. — Na altura, não quis nos dizer. Não quer nos dizer agora? Viu o futuro? Viu... tudo isto? — Ele acenou a mão na direção dos bukshah que es­tavam a comer.

Rowan abanou a cabeça e pôs-se lentamente de pé. Ele sabia que chegara o momento. O momento de deci­frar o último mistério. O momento de dizer o que ele pensava que sabia. Quando fora necessário agir urgente­mente, ele não conseguira dizer nada e, mesmo depois disso, mantivera-se calado, guardando o precioso segredo para si próprio, como se, ao falar sobre ele, o pudesse ferir ou destruir.

Se não existe qualquer prova, qualquer vestígio, será apenas a minha palavra, pensou ele. A palavra de um sonhador, facilmente descartada e ignorada. Se não houver nada, como irei conseguir suportar a desilusão?

Mas, seguido de perto pelos seus companheiros, ele começou a abrir caminho por entre os bukshah, diri­gindo-se para o canto envolto em sombras da sua última visão.

O canto estava escuro, guardando os seus segredos.

Ele parou a alguma distância dele e tentou acender um archote, mas as mãos tremiam-lhe tanto que não conseguiu fazê-lo. Olhando-o com um ar de curiosida­de, Zeel tirou-lhe o archote da mão e acendeu-o ela própria.

A chama inflamou-se. Eles aproximaram-se do canto.

E ali, no meio de uma pilha de ossos cobertos de poeira, estava uma caixa de madeira comprida.

— Shaaran! — exclamou Norris. — Você deixou as sedas...

Nisto, ele viu que Shaaran ainda tinha nos braços a caixa que trouxera de Rin e calou-se.

Rowan ajoelhou-se em frente dos ossos e colocou as mãos sobre a caixa. A madeira estava dura, preservada pelo calor seco, constante, da caverna. O fecho tombou da tampa quando ele a abriu.

Ao ver o que estava dentro da caixa, o seu coração começou a bater com força. Era um tabuleiro com um conjunto de frascos de vidro minúsculos, de todas as cores do arco-íris. E, em cima dos frascos, havia um pedaço de pergaminho.

Ele tirou o pergaminho para fora. Estava coberto por um texto escrito numa letra vacilante, irregular.

Ele leu em voz alta.

Meus amigos,

Quando regressarem, vocês têm que saber o que aconteceu, por isso eu escrevo estas palavras... O Fliss está demasiado fraco para fazer mais.

O Bron escapou ao ataque dos Zebak e correu a avisar-nos. Apesar dos ferimentos, ele levou apenas dois dias a chegar até nós. Seguindo o plano, o Bron, o Fliss e eu pegamos no tesouro, deixamos bastante comida para os cavalos e seguimos os animais ao longo do seu cami­nho secreto do Vale dos Bukshah até ao Coração da Mon­tanha. Uma vez em segurança aqui, mantivemo-nos de guarda. Todos os dias esperamos que vocês voltassem, impelidos pelos chicotes dos Zebak ou ditosamente livres, mas vocês não vieram...

A voz de Rowan vacilou.

— O que é isso? — perguntou Norris com voz rouca. — Eu não compreendo. Quem...?

— Fique quieto, Norris — silvou Zeel, com um ar con­centrado.

No fim do Inverno, os bukshah abandonaram o Coração da Montanha, mas nós ficamos. Vimos, de longe, as novas colheitas a florir no nosso vale, e lamentamos que só nós conseguíssemos ver a sua beleza.

Rowan fez outra pausa. Estava a ter dificuldade em suportar o sofrimento. Ele podia imaginar o que eram as “novas colheitas” — arbustos perfumados carregados de fruta, arbustos nascidos de bagas levadas da Monta­nha. O escritor desconhecido não percebera o mal que aquela beleza disfarçava, não soubera que desses bonitos arbustos iriam crescer árvores carnívoras.

Os seus companheiros estavam à espera, sustendo a respiração. Ele obrigou-se a si próprio a prosseguir.

Algum tempo depois, nós vimos que os cavalos e as aves tinham sido acometidos por uma terrível doença, pois eles jaziam imóveis nas ruas. Receando um plano Zebak para nos levar a sair do esconderijo, fomos mais para o fundo da caverna. Algumas noites depois, houve uma trovoada terrível. O chão estremeceu e, quando nos levantamos, descobrimos que a estrada estava escura e selada pela rocha.

— Eles estavam aqui quando as árvores demoníacas irromperam da terra e provocaram o deslizamento de terras — disse Zeel num tom sombrio. — Ficaram en­curralados. — Ela olhou para a patética pilha de ossos e cerrou os punhos.

Rowan respirou fundo e continuou a ler.

Muitas semanas se passaram desde essa altura. O Bron tem tentado esforçadamente libertar-nos, mas nem sequer a sua enorme força consegue deslocar a barreira. Há muito que a comida e a água acabaram. Estamos a morrer. Mas o tesouro está em segurança, e nós estamos juntos. Isto reconforta-nos.

Sentimos pesar por vocês, os nossos amigos, mas os nossos corações dizem-nos que um dia irão encontrar uma forma de regressarem, pois a terra irá chamá-los, e vocês irão ouvir o seu apelo. E, quando regressarem, abrirão mais uma vez o Coração da Montanha, para que os bukshah possam entrar nele como devem. Nessa altura, irão encontrar-nos e deitar-nos finalmente na terra generosa, sob o céu aberto, onde ansiamos por estar.

Deixamo-los com a nossa bênção.

Evan dos Bukshah

— “Evan dos Bukshah” — disse Zeel em voz baixa. Havia lágrimas nos seus olhos. As primeiras lágrimas que Rowan a via derramar.

Ele pousou o pergaminho. Depois levou novamente a mão à caixa, tirou o tabuleiro com os frasquinhos e pô-lo cuidadosamente de lado. Por baixo do tabuleiro havia uma cavidade funda. Estava cheia de rolos de seda.

Shaaran soltou uma exclamação, lançou-se para a frente e, com mãos trêmulas, tirou da caixa o rolo que estava em cima e desenrolou-o ternamente.

Azul, branco e cinzento. Uma longa fila de pessoas a ca­minhar através da neve branca, seguindo uma trilha preta queimada...

— É o mesmo! — murmurou Norris, com uma ex­pressão de medo no rosto. — E a seda que vocêpintou, Shaaran.

— Não — disse Shaaran em voz baixa. — Esta é muito, muito mais antiga. Está a ver as cores sumidas? E... — Os seus dedos magros apontaram para os bukshah, de pé na neve. — Está a ver, Norris? A minha pintura mostrava os bukshah dentro da cerca. Mas os habitantes do Vale do Ouro tinham derrubado as cercas muito antes de isto ser pintado, deixando os bukshah vaguear à von­tade. O guardião das sedas... o Fliss... pintou apenas a verdade, como somos obrigados a fazer. Ah... este tra­balho não tem comparação!

E, enquanto Norris, Zeel e Rowan observavam, mara­vilhados, Shaaran desenrolou outra seda, e mais outra, e mais outra. As sedas eram frágeis como gaze, mas as cores continuavam vivas, e as formas ainda falavam.

A Feiticeira a conduzir o seu povo através das pri­meiras quedas de neves para combater na costa. O feroz exército Zebak a atacar inesperadamente a planície. Um homem ferido, estranhamente parecido com Norris, a fugir, cambaleante. O mesmo homem, apoiado num pau comprido, a dar a notícia a duas figuras num vale paradisíaco onde os trilhos eram pavimentados de pe­dras preciosas, onde havia cavalos em miniatura a vaguear e uma coruja de ouro com olhos de esmeralda ao lado de todas as portas. Três figuras vestidas com capas forradas de pele, a subir degraus de pedra íngremes em direção à entrada de uma enorme caverna, atrás de uma manada de bukshah.

— Os habitantes do Vale do Ouro receberam o pe­dido de ajuda dos Viajantes — disse Zeel, admirada. — Eles partiram para a costa com os mensageiros, dei­xando para trás apenas o guardião dos bukshah e o guardião das sedas. Mas, durante a viagem, eles foram atacados pelos Zebak.

— Foram capturados, obrigados a marchar até à costa, metidos em barcos e levados a atravessar o mar, para serem feitos escravos — murmurou Rowan.

Zeel abanou a cabeça.

— E os Maris e os Viajantes estavam escondidos e nunca souberam. Ninguém soube. Até agora.

— Mas... — Norris tinha os olhos muito abertos. — Mas isso significa que... que...

— Significa que os habitantes do Vale do Ouro foram nossos antepassados — murmurou Shaaran, sem conse­guir tirar os olhos das sedas. — Significa que esta terra não é nova para nós. É a nossa terra. Sempre foi.

— Um povo rico, variado, com gente grande e pequena, forte e meiga, desapareceu — disse Zeel esforçando-se por compreender. — Séculos mais tarde, um grupo de escravos guerreiros altos e comedidos, sem qualquer recordação do passado, chegou à praia de Maris. Como é alguém poderia pensar que era o mesmo povo?

— Eu acho que o Ogden sabe — disse Rowan. — Ou, pelo menos, desconfia. Ele conhece mais histórias do Vale do Ouro do que qualquer pessoa viva. Eu diria que uma das coisas que ele sabe é que a história foi preser­vada em faixas de seda pintadas.

E, enquanto Zeel e Norris se inclinavam mais uma vez sobre os tesouros antigos que Shaaran estava a desenro­lar um a um, Rowan pegou no pedaço de pergaminho e tocou suavemente nas palavras rabiscadas.

— Nós regressamos, Evan dos Bukshah — disse ele em voz baixa. — Encontramos uma forma de o fazermos. Tal como você sabia que iria acontecer.

 

ENCONTROS

E foi assim que Rowan, Zeel e Shaaran deixaram os bukshah a banquetear-se e desceram a Montanha, transportando consigo mais do que tinham levado no início da sua viagem.

Eles levavam duas caixas de sedas em vez de uma. Le­vavam um conhecimento que enchia os seus corações ao ponto de estes parecerem estar prestes a rebentar. E levavam os ossos dos três homens que tinham mor­rido na caverna — Bron, o guerreiro, Fliss, o guardião das sedas, e Evan, o guardião dos bukshah.

— Os nossos antepassados eram assim tão parecidos conosco? — perguntou Shaaran a Rowan em voz baixa, enquanto os dois caminhavam juntos.

— Muito parecidos — respondeu ele. — Tão pareci­dos que eu pensava que estava a ver o nosso futuro. Mas nós estávamos apenas a seguir as pegadas deles.

— E o povo das sombras? Os que você viu no exterior da caverna, cheios de fome? Eles eram...?

Embora o sol brilhasse, Rowan sentiu um arrepio.

— Eu acho que eles eram muito, muito mais antigos — disse ele com relutância. — Acho que eles eram al­guns membros do nosso povo que sobreviveram ao pri­meiro Tempo Frio. — Ele sentiu outro arrepio. A recor­dação desses rostos familiares, torturados, ainda o per­seguia.

Shaaran mordeu o lábio e, durante bastante tempo, eles caminharam em silêncio. Depois, ao fim de algum tempo, ela falou novamente.

— Rowan, a Sheba lhe disse que só você conseguiria li­derar a busca. Já pensou porquê?

Rowan acenou afirmativamente a cabeça.

— Porque eu sou o guardião dos bukshah, e eu amo os animais e confio neles, tal como eles me amam e con­fiam em mim. Porque eu sou um sonhador, e o medalhão aceita-me. Porque eu tenho... muita prática de pensar em novas formas de resolver problemas...

Ele engoliu em seco.

— E porque... porque você, o Norris e a Zeel eram meus amigos e estavam dispostos a seguir-me — acres­centou ele em voz baixa. — Porque, para que a busca tivesse êxito, todos vocês eram necessários.

Shaaran inclinou a cabeça.

— Eu estava a pensar — disse ela — se parte do mo­tivo por que eu e Norris formos chamados foi o fato de sermos parecidos com os outros dois. Os dois de há muito tempo. Tal como você é parecido com o Evan.

— Tem razão — Rowan hesitou. — E talvez também fosse porque você e o Norris representavam as duas metades dos habitantes de Rin. E eu... era a ponte entre os dois.

— E eu? — perguntou Zeel secamente, aproximan­do-se deles. — Qual foi o meu papel?

— Você representava os Viajantes, os Maris e talvez também os Zebak — disse Rowan. — Você era a tes­temunha.

 

O caminho foi longo e difícil, mas os companheiros sentiam-se muito felizes. A sua volta, a neve estava a derreter, e a terra despertava de novo depois do Inverno longo e frio.

Quando chegaram ao local onde a água corria até Rin vinda do topo da Montanha, eles encontraram três figuras ajoelhadas a encher os seus cantis no lago.

Jonn. Jiller. Allun.

Rowan ficou a olhar para eles, incrédulo.

Os três que estavam à beira do lago ergueram os olhos, e sorrisos de alegria pura espalharam-se pelos seus ros­tos. Jiller atirou-se, com um grito, para os braços de Rowan. Allun e Jonn fizeram o mesmo e, ao fim de pouco tempo, os quatro companheiros faziam parte de um alegre círculo.

— Como é que podem estar aqui? — exclamou Ro­wan. — Como é que podiam saber que era seguro regressar?

— Não sabíamos — respondeu Allun alegremente. — Pelo contrário. Na verdade, nós pensávamos que está­vamos a entrar na boca da morte.

— Quando o Allun nos disse que tinha visto a Zeel lá em cima, a dirigir-se apressadamente para Rin, receamos que algo de novo e muito grave tivesse acontecido — disse Jonn. — Não podíamos prosseguir a viagem. Tivemos que voltar para trás.

— A Marlie e a Annad também voltaram — disse Jiller. — Elas estão na aldeia, com a Lann e a Bronden. Nós viemos à sua procura... para os ajudar, se pu­déssemos. Embora agora seja óbvio que não precisam de qualquer ajuda.

— A Lann? A Bronden? — perguntou Rowan ansio­samente. — Elas estão...?

— Estão as duas bem — disse Allun. — A Bronden ainda está muito fraca, mas está a recuperar... embora seja possível que venha a ter uma recaída quando des­cobrir que a Lann fez fogueiras com toda a mobília da aldeia. Ela tem uns dias muito ocupados à sua frente.

Rowan olhou para Zeel.

— Madeira velha, inútil? — murmurou ele.

Zeel encolheu os ombros. Mesas e cadeiras não significavam nada para ela.

— E, a propósito, Rowan — prosseguiu Allun. — A Sheba diz que o medalhão que te deu pode parecer um metal vil, mas ele é feito de ouro puro, e ela está a contar que o devolva assim que regressar. Ela diz que, inde­pendentemente do que possas pensar, você nunca poderia ocupar o seu lugar.

— Folgo muito em ouvir isso — disse Rowan com sinceridade.

— Como pode perder tempo com disparates a res­peito de mobílias e da Sheba, Allun! — repreendeu-o Jiller. — O Tempo Frio está a chegar ao fim! Podemos ver a prova disso por todo o lado à nossa volta! Estes jovens corajosos conseguiram salvar-nos a todos. Mas como? Como?

Ela virou-se para Rowan, e o seu rosto manchado de lágrimas irradiava felicidade e orgulho.

— Conte-nos! — suplicou ela. — O que aconteceu na Montanha? O que descobriram que alterou tanta coisa, tão depressa? Onde estão os bukshah?

Rowan sentia-se demasiado emocionado para conse­guir falar. E, em todo o caso, ele mal sabia por onde come­çar.

— Sem dúvida que, a seu tempo, eles nos contarão tudo — disse Jonn calmamente, colocando a mão no ombro de Rowan. — Já sabemos o mais importante. Estas quatro almas estão salvas. O longo Inverno termi­nou. E os habitantes de Rin podem voltar para casa.

Os olhos de Rowan cruzaram-se com os de Norris, Shaaran e Zeel. Ele pensou em tudo o que eles tinham para contar. Pensou na pequena e triste trouxa que trazia e no local onde a enterraria, com honra, debaixo da grande árvore de Rin. Pensou no sofrimento, na dor, nos erros e no desperdício de séculos.

Depois pensou no futuro e sorriu.

— Sim — disse ele. — Os habitantes de Rin podem finalmente voltar para casa.

 

                                                                                            Emily Rodda

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades