Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O QUARTO K
Parte I
O êxito internacional de O Poderoso Chefão consolidou a posição de Mario Puzo não apenas como um dos grandes romancistas de nosso tempo, mas como um escritor de excepcional talento para reinventar o passado de forma a prefigurar o futuro. Em O Quarto K, ele utiliza como tema os Kennedy, um dos mais poderosos mitos americanos, numa história que transcorre em um futuro próximo.
Sobrinho de John, Robert e Edward, Francis Xavier Kennedy é eleito presidente dos Estados Unidos graças, em grande parte, à boa aparência e riqueza, principal legado de seus antepassados. Sua metamorfose, caracterizada pela explosão de uma agressividade latente, é um dos mais interessantes aspectos da narrativa? Quando sua filha se torna vítima fatal de uma conspiração terrorista, Kennedy, que mantinha obsessivamente viva a lembrança do assassinato de seus tios, aciona todo o seu poder de retaliação, enquanto o mundo assiste a tudo com horror. Ao ser derrotado pelo processo político, ele se torna um líder cruel e extremista, distanciando-se cada vez mais da imagem otimista que o ajudou a se eleger.
Com um estilo ágil e uma linguagem brutal, Puzo nos conduz a um mundo dominado pela violência, onde o terrorismo adquire uma dimensão inteiramente nova, motivando a criação de sistemas de segurança altamente sofisticados. Com uma trama assustadoramente plausível, o livro nos apresenta o homem cada vez mais enclausurado pelo medo e a solidão.
OLIVER OLIPHANT tinha cem anos de idade e sua mente era lúcida. Infelizmente para ele.
Era uma mente tão lúcida, e ao mesmo tempo tão sutil, que, apesar de violar muitas leis morais, deixara sua consciência limpa. Uma mente tão astuta que Oliver Oliphant jamais caíra nas armadilhas quase inevitáveis da vida cotidiana: jamais casara, jamais concorrera a qualquer cargo público, e nunca tivera um amigo em quem confiasse absolutamente.
Numa vasta propriedade, fortemente guardada, a apenas quinze quilômetros da Casa Branca, Oliver Oliphant, o homem mais rico dos Estados Unidos e talvez o mais poderoso cidadão particular, aguardava a chegada de seu afilhado, o procurador-geral do país, Christian Klee.
O charme de Oliphant se igualava à sua inteligência; seu poder baseava-se nas duas coisas. Mesmo na idade avançada de cem anos, seus conselhos ainda eram procurados por grandes homens, que confiavam a tal ponto em sua capacidade analítica que haviam lhe dado o apelido de “Oráculo”.
Como conselheiro de presidentes, o Oráculo previra crises econômicas, craques em Wall Street, a queda do dólar, a fuga do capital estrangeiro, as fantasias dos preços do petróleo. Previra os movimentos políticos na União Soviética, as inesperadas alianças de rivais nos partidos democrata e republicano dos Estados Unidos. Mas, acima de tudo, acumulara dez bilhões de dólares. Era natural que os conselhos de um homem tão rico fossem valorizados, mesmo quando errados. Mas o Oráculo quase sempre estava certo.
Agora, nesta Sexta-Feira da Paixão, o Oráculo preocupava-se com uma coisa: a festa de aniversário para comemorar seus cem anos neste mundo. Uma festa que seria realizada no Domingo de Páscoa, no Jardim Rosa da Casa Branca, tendo como anfitrião ninguém menos que o Presidente dos Estados Unidos, Francis Xavier Kennedy.
Era uma vaidade permissível que o Oráculo sentisse um grande prazer pela festa espetacular. O mundo tornaria a se lembrar dele, por um breve momento. E seria, ele pensou tristemente, a sua última entrada em cena.
Em Roma, na Sexta-Feira da Paixão, sete terroristas completaram os preparativos para assassinar o Papa. O grupo, de quatro homens e três mulheres, estava convencido de que eram libertadores da humanidade. Intitulavam-se os Cristos da Violência.
O líder daquele bando era um jovem italiano bastante experiente na técnica do terrorismo. Para aquela operação em particular, assumira o codinome de Romeu; agradava ao seu senso de ironia juvenil, e seu sentimentalismo adoçava o amor intelectual que sentia pela humanidade.
Ao final da tarde da Sexta-Feira da Paixão, Romeu descansava numa casa segura fornecida pela Internacional dos Cem. Deitado sobre os lençóis amarrotados, manchados com cinza de cigarro e dias de suor noturno, ele lia uma edição em brochura de Os Irmãos Karamazov. Os músculos das pernas estavam com cãibras de tensão, talvez medo, mas não tinha importância. Passaria, como sempre acontecera. Mas aquela missão era muito diferente, complexa demais, envolvia um tremendo perigo para o corpo e o espírito. Naquela missão seria de fato o Cristo da Violência, um nome tão jesuíta que sempre o fazia rir.
Romeu nascera como Armando Giangi, de pais ricos, da alta sociedade, que o submeteram a uma criação religiosa lânguida e luxuosa, uma combinação que muito ofendia sua natureza ascética, de tal forma que aos dezesseis anos renunciara aos bens materiais e à Igreja Católica. E agora, aos 23 anos, que rebelião maior poderia haver para ele do que matar o Papa? E, no entanto, ainda havia, para Romeu, um temor supersticioso. Quando criança, fora crismado por um cardeal, de chapéu vermelho. Romeu jamais esquecera aquele sinistro chapéu vermelho, com a própria cor do fogo do inferno.
Assim confirmado por Deus em todos os ritos, Romeu preparava-se para cometer um crime tão terrível que centenas de milhões de pessoas amaldiçoariam seu nome, pois era inevitável que seu verdadeiro nome se tornasse conhecido. Seria capturado. Era parte do plano. Mas, com o passar do tempo, ele, Romeu, seria aclamado como um herói que ajudara a mudar a cruel ordem social existente. O que era infame num século seria considerado como santificado no seguinte. E vice-versa, pensou ele, sorrindo. O primeiro Papa a assumir o nome de Inocêncio, séculos antes, emitira uma bula papal autorizando a tortura, e fora aclamado por propagar a verdadeira fé e resgatar almas heréticas.
Também atraía o senso de ironia juvenil de Romeu o fato de que a Igreja canonizaria o Papa que ele planejava matar. Criaria um novo santo. E como os odiava, a todos aqueles papas! Aquele Papa Inocêncio IV, o Papa Pio, o Papa Benedito, ah, como eram hipócritas, aqueles acumuladores de fortunas, repressores da verdadeira fé humana da liberdade, os magos pomposos que sufocavam os miseráveis do mundo com sua magia de ignorância, seus insultos à credulidade.
Ele, Romeu, um dos Primeiros Cem dos Cristos da Violência, ajudaria a erradicar essa terrível magia. Vulgarmente chamados de terroristas, os Primeiros Cem espalhavam-se pelo Japão, Alemanha, Itália, Espanha e até mesmo a Holanda das tulipas. Cabia ressaltar que não havia nenhum dos Primeiros Cem nos Estados Unidos. Aquela democracia, aquele berço da liberdade, só tinha revolucionários intelectuais, que desmaiavam à visão de sangue. Que explodiam suas bombas em prédios vazios, depois de avisarem às pessoas para saírem; que pensavam que a fornicação pública nas escadarias de prédios do governo era um ato de rebelião idealista. Como eram desprezíveis! Não era de surpreender que os Estados Unidos nunca tivessem dado um único homem aos Cem Revolucionários.
Romeu interrompeu seus devaneios. Afinal, nem mesmo sabia se havia de fato cem. Podiam ser cinqüenta ou sessenta, era apenas um número simbólico. Mais tais símbolos estimulavam as massas e seduziam os meios de comunicação. O único fato que realmente sabia era que ele, Romeu, era um dos Primeiros Cem, assim como seu amigo e companheiro de conspiração Yabril.
Os sinos de uma das muitas igrejas de Roma repicaram. Eram quase seis horas da tarde daquela Sexta-Feira da Paixão. Mais uma hora e Yabril chegaria para uma revisão de toda a mecânica da complicada operação. O assassinato do Papa seria o movimento de abertura de um jogo de xadrez concebido de maneira brilhante, uma sucessão de atos ousados que encantavam a alma romântica de Romeu.
Yabril era o único homem que já intimidara Romeu, física e mentalmente. Yabril conhecia as traições dos governos, as hipocrisias da autoridade legal, o perigoso otimismo dos idealistas, os surpreendentes lapsos de lealdade até dos mais dedicados terroristas. Mas, acima de tudo, Yabril era um gênio da guerra revolucionária. Desprezava as mesquinhas misericórdias e a compaixão infantil que afetam a maioria dos homens. Yabril só tinha um objetivo: libertar o futuro.
E Yabril era mais implacável do que Romeu jamais conseguiria se tornar. Romeu matara pessoas inocentes, traíra seus pais e seus amigos, assassinara um juiz que outrora o protegera. Romeu compreendia que o assassinato político podia ser uma espécie de insanidade — e estava disposto a pagar esse preço. Mas Yabril dissera uma ocasião:
— Se você não é capaz de jogar uma bomba num jardim-de-infância, então não é um autêntico revolucionário.
E Romeu respondera:
— Isso eu nunca poderia fazer.
Mas ele podia matar um Papa.
E, no entanto, ao final da escuridão das noites romanas, horríveis monstrinhos, meros fetos de sonhos, cobriam o corpo de Romeu com um suor destilado de gelo.
Romeu suspirou, levantou-se da cama imunda para tomar um banho de chuveiro e fazer a barba, antes da chegada de Yabril. Sabia que Yabril julgaria sua limpeza como um bom sinal, que a moral estava alta para a missão iminente. Yabril, como muitos sensualistas, acreditava num certo grau de refinamento, Romeu, um asceta genuíno, podia até viver na merda.
Nas ruas romanas, a caminho da casa segura onde Romeu o aguardava, Yabril adotou as precauções habituais. No fundo, porém, tudo dependia da segurança interna, da lealdade dos quadros guerrilheiros, da integridade dos Primeiros Cem. Mas eles não conheciam, nem mesmo Romeu, a plena extensão da missão.
Yabril era um árabe que passava facilmente por um siciliano, como acontecia com muitos árabes. Tinha o rosto fino e escuro, mas a parte inferior, o queixo e o maxilar, era surpreendentemente mais grossa, mais áspera, como se houvesse uma camada extra de osso. Nos momentos de lazer, deixava crescer uma barba sedosa, a fim de encobrir a aspereza. Mas raspava o rosto quando participava de uma operação. Como o Anjo da Morte, ele mostrava seu verdadeiro rosto ao inimigo.
Os olhos de Yabril eram de um castanho-amarelado claro, os cabelos tinham apenas alguns fios brancos isolados, as dimensões do queixo se repetiam na largura dos ombros e do peito. As pernas eram compridas para o corpo pequeno e disfarçavam a força física que ele podia gerar. Mas nada podia ocultar a inteligência alerta de seus olhos.
Yabril detestava toda a idéia dos Primeiros Cem. Achava que era um expediente em voga de relações públicas, desprezava a renúncia formal ao mundo material. Aqueles universitários treinados em universidades, como Romeu, eram românticos demais em seu idealismo, desdenhavam as concessões. Yabril compreendia que um pouco de corrupção no pão crescente da revolução era necessário.
Há muito que Yabril renunciara a toda e qualquer vaidade moral. Possuía a consciência limpa daqueles que acreditam e sabem que se devotam, com toda sua alma, à melhoria da humanidade. E nunca censurara a si mesmo por seus atos de egoísmo. Já fizera contratos pessoais com xeques do petróleo para matar rivais políticos. E diversos trabalhos de assassinato para os novos chefes de estado africanos, que estudaram em Oxford e lá aprenderam a delegar. E houvera também os atos de terror aleatórios para muitos líderes políticos respeitáveis — todos aqueles homens do mundo que controlam tudo, menos o poder de vida e morte.
Esses atos nunca chegaram ao conhecimento dos Primeiros Cem, muito menos foram confidenciados a Romeu. Yabril recebera dinheiro de companhias petrolíferas holandesas, inglesas e americanas, dos serviços secretos russo e japonês, e até mesmo, há muito tempo, da CIA americana, para uma execução secreta muito especial. Mas tudo isso acontecera nos primeiros tempos.
Agora, vivia bem, não era um asceta — afinal, já fora pobre, embora não tivesse nascido assim. Gostava de um bom vinho, de pratos de gourmet, preferia os hotéis de luxo, apreciava o jogo e com freqüência sucumbia ao êxtase da união com a carne de uma mulher. Sempre pagava por esse êxtase com dinheiro, presentes e seu charme pessoal. Tinha pavor de um envolvimento romântico.
Apesar dessas “fraquezas revolucionárias” Yabril era famoso em seus círculos pela força de sua vontade. Não tinha nenhum medo da morte, o que não era tão extraordinário assim, mas também não tinha medo da dor, o que era mais excepcional. E talvez fosse por isso que podia ser tão impiedoso.
Yabril provara do que era capaz ao longo dos anos. Oferecia uma resistência total a qualquer tipo de persuasão física ou psicológica. Sobrevivera à prisão na Grécia, França e Rússia, a dois meses de interrogatório pela segurança israelense, cuja competência inspirava-lhe admiração. Derrotara-os, talvez porque seu corpo aprendera o expediente de perder as sensações sob pressão. Todos acabaram compreendendo. Yabril era como granito sob a dor.
Quando era o captor, muitas vezes encantava suas vítimas. Reconhecia uma certa insanidade em si mesmo, o que era parte de seu charme e parte do medo que incutia. Ou talvez fosse a ausência de maldade em suas crueldades. De um modo geral, no entanto, saboreava a vida, era um terrorista jovial. Mesmo agora, experimentava um prazer intenso nas ruas fragrantes de Roma, o crepúsculo da Sexta-Feira da Paixão, povoado pelo repicar de sinos incontáveis, embora estivesse preparando a mais perigosa missão de sua vida.
Tudo estava pronto. Os quadros de Romeu se encontravam de prontidão. O grupo de Yabril chegaria a Roma no dia seguinte. As duas equipes ficariam em casas seguras separadas, os dois líderes seriam o único vínculo. Yabril sabia que aquele era um grande momento. O iminente Domingo de Páscoa e os dias subseqüentes seriam uma brilhante criação.
Ele, Yabril, conduziria nações por caminhos que detestavam percorrer. Iria prevalecer sobre seus empregadores secretos, todos se tornariam seus peões, acabaria por sacrificá-los, até mesmo ao pobre Romeu. Só a morte ou um lapso da coragem poderiam frustrar seus planos. Ou, para ser sincero, qualquer um de uma centena de erros possíveis no cálculo do tempo. Mas a operação era tão complicada, tão engenhosa, que lhe proporcionava um intenso prazer. Yabril parou na rua por um momento, a fim de apreciar a beleza das torres da catedral, os rostos felizes dos habitantes de Roma, sua especulação sobre o futuro.
Mas como todos os homens que pensam que podem mudar o curso da história por sua própria vontade, inteligência e força, Yabril não atribuía a importância devida aos acidentes e coincidências da história, nem à possibilidade de haver homens mais terríveis do que ele. Homens criados dentro da estrutura rigorosa da sociedade, usando a máscara de afáveis respeitadores da lei, podiam ser muito mais implacáveis e cruéis.
Observando os devotos e alegres peregrinos nas ruas de Roma, os crentes num Deus onipotente, Yabril experimentou um senso de sua invencibilidade. Orgulhoso, iria além do perdão do Deus daquela gente, pois era nas profundezas do mal que o bem devia necessariamente começar.
Yabril encontrava-se agora num dos distritos mais pobres de Roma, onde as pessoas podiam ser intimidadas e subornadas com a maior facilidade. Alcançou a casa segura de Romeu no momento em que a escuridão caía. O velho prédio de apartamentos de quatro andares tinha um pátio grande, parcialmente cercado por um muro de pedra; todos os apartamentos eram controlados pelo movimento revolucionário clandestino. Yabril foi admitido por uma das três mulheres do grupo de Romeu. Era magra, usava jeans e uma blusa azul de brim, desabotoada quase até a cintura. Não usava sutiã, e não era visível qualquer curva dos seios. Ela participara antes de uma das operações de Yabril. Ele não gostava da mulher, mas não podia deixar de admirar sua fúria selvagem. Haviam discutido uma vez, e ela não recuara.
O nome da mulher era Annee. Usava os cabelos muito pretos num corte à Príncipe Valente, que não era favorável ao rosto rude e forte, mas atraía a atenção para os olhos brilhantes, que avaliavam todos, até Romeu e Yabril, com uma espécie de fúria. Ela ainda não fora plenamente informada sobre a missão, mas a presença de Yabril indicava que era da maior importância. Ela ofereceu um breve sorriso, sem dizer nada, deixou Yabril entrar e fechou a porta.
Yabril notou com repulsa como o interior do apartamento se tornara imundo. Havia pratos com restos de comida e copos sujos espalhados pela sala, jornais por todo o chão. O grupo de Romeu era composto por quatro homens e três mulheres, todos italianos. As mulheres recusavam-se a limpar qualquer coisa; era contrário as suas convicções revolucionárias realizar tarefas domésticas numa operação, a menos que os homens também ajudassem. Os homens, todos universitários, ainda jovens, possuíam a mesma crença nos direitos das mulheres, mas eram os filhos diletos condicionados de mães italianas, e também sabiam que um grupo de apoio limparia o apartamento de todos os indícios incriminadores, depois que fossem embora. O acordo tácito era o de que a sujeira seria ignorada. Um acordo que só irritava Yabril.
— Vocês são uns porcos — comentou ele para Annee.
Annee avaliou-o com um desdém frio.
— Não sou uma empregada doméstica.
E Yabril reconheceu no mesmo instante a qualidade de Annee. Ela não tinha medo dele, nem de qualquer homem ou mulher. Era uma verdadeira crente. Estava disposta a morrer na fogueira.
Romeu desceu correndo a escada do apartamento de cima — tão bonito, tão cheio de vitalidade, que Annee baixou os olhos — e abraçou Yabril, com uma afeição genuína, depois levou-o para o pátio, onde sentaram num pequeno banco de pedra. O ar noturno estava impregnado com a fragrância das flores da primavera, e havia um suave zumbido, o som de incontáveis milhares de peregrinos gritando e falando nas ruas de Roma. Acima de tudo, o repicar subindo e descendo de centenas de sinos de igrejas, saudando o iminente Domingo de Páscoa. Romeu acendeu um cigarro e disse:
— Nosso momento finalmente chegou, Yabril. Não importa o que aconteça, nossos nomes se tornarão conhecidos para sempre.
Yabril riu do romantismo pomposo, sentiu algum desprezo por aquele desejo de gloria pessoal.
— Infames — comentou ele. — Estamos competindo com uma longa história de terror.
Yabril pensava no abraço dos dois. Um abraço de amor profissional de sua parte, mas impregnado do terror lembrado, como se fossem parricidas parados sobre um pai que haviam assassinado juntos.
Havia algumas lâmpadas fracas ao longo do muro do pátio, mas seus rostos permaneciam no escuro. Romeu disse:
— Eles saberão de tudo, com o tempo. Mas nos darão crédito pelos motivos? Ou nos descreverão como lunáticos? Mas tenho certeza de que os poetas do futuro nos compreenderão.
— Não podemos nos preocupar com isso agora —protestou Yabril.
Embaraçava-se quando Romeu se tornava teatral; fazia-o questionar a eficiência do homem, embora já tivesse sido comprovada muitas vezes. Romeu, apesar da beleza delicada e imprecisão do conceito, era sem dúvida um homem perigoso. Mas havia uma diferença fundamental entre os dois: Romeu era destemido demais, Yabril, talvez muito astucioso.
Apenas um ano antes, percorriam juntos as ruas de Beirute. Avistaram um saco de papel pardo na calçada, aparentemente vazio, engordurado da comida que contivera. Yabril contornara-o. Romeu chutara o saco para a sarjeta. Instintos diferentes. Yabril acreditava que tudo neste mundo era perigoso. Romeu demonstrava uma certa confiança inocente.
Havia outras diferenças. Yabril era feio, com olhos pequenos, castanho-amarelados. Romeu era quase bonito. Yabril sentia orgulho de sua feiúra, Romeu envergonhava-se de sua beleza. Yabril sempre compreendera que o empenho absoluto de um homem inocente pela revolução política deve levar ao assassinato. Romeu só chegara a essa conclusão com algum atraso e evidente relutância. Sua conversão fora intelectual.
Romeu conquistara vitórias sexuais com o acidente da beleza física, e o dinheiro da família protegera-o de humilhações econômicas. Romeu era bastante inteligente para saber que sua sorte não era moralmente correta, e por isso a facilidade de sua vida o repugnava. Mergulhara na literatura e nos estudos, que confirmaram sua convicção. Era inevitável que acabasse convencido por seus professores radicais de que deveria ajudar a tornar o mundo um lugar melhor.
Não queria ser como o pai, um italiano que passava mais tempo em barbearias do que cortesãs no salão de beleza. Não queria passar a vida no encalço de belas mulheres. Acima de tudo, jamais gastaria dinheiro recendendo ao suor dos pobres. Era preciso fazer com que os pobres fossem livres e felizes, e então ele poderia também saborear a felicidade. E por isso ele se dedicara, em busca de uma segunda comunhão, aos livros de Karl Marx.
A conversão de Yabril fora mais visceral. Quando menino na Palestina, vivera num Jardim do Éden. Fora um garoto feliz, excepcionalmente inteligente, obediente aos mais velhos — especialmente ao pai, que todos os dias, durante uma hora, lia para ele do Corão.
A família morava numa casa grande, com muitos criados, no meio de um terreno amplo, magicamente verde naquela terra de deserto. Mas um dia, quando tinha cinco anos, Yabril fora expulso desse paraíso. Os pais amados desapareceram, a casa e os jardins dissolveram-se numa nuvem de fumaça púrpura. E de repente ele se descobriu vivendo numa aldeia pequena e imunda, no fundo de uma montanha, um órfão sobrevivendo da caridade de parentes. Seu único tesouro era o Corão do pai, impresso em papel velino, com ilustrações iluminadas em dourado, a caligrafia de um azul intenso. E sempre se lembrava do pai lendo em voz alta, exatamente do texto, de acordo com o costume muçulmano. Aquelas ordens de Deus ao Profeta Maomé, palavras que nunca poderiam ser discutidas ou contestadas. Já adulto, Yabril comentara para um amigo judeu:
— O Corão não é uma Tora.
E os dois desataram a rir.
A verdade do exílio do Jardim do Éden fora-lhe revelada quase que imediatamente, mas ele só compreendera direito alguns anos mais tarde. O pai fora um partidário secreto da libertação palestina do estado de Israel, um líder do movimento clandestino. O pai fora traído, metralhado num cerco policial, e a mãe cometera suicídio quando a casa e os jardins foram dinamitados pelos israelenses.
Nada mais natural que Yabril se tornasse um terrorista. Os parentes e os professores na escola local ensinaram-lhe a odiar todos os judeus, mas não tiveram um êxito total. Ele odiava seu Deus por bani-lo do paraíso da infância. Aos dezoito anos, vendera o Corão do pai por uma enorme quantia e se matriculara na universidade em Beirute. Ali, gastara a maior parte de sua fortuna com mulheres, até que finalmente, dois anos depois, tornara-se um membro da organização clandestina palestina. E ao longo dos anos tornara-se uma arma letal por essa causa. Mas a liberdade de seu povo não era o objetivo final de Yabril. De certa forma, seu trabalho era uma busca de paz interior.
Agora, juntos no pátio da casa segura, Romeu e Yabril levaram pouco mais de duas horas para repassarem todos os detalhes da missão. Romeu fumava um cigarro atrás do ou¬tro. Estava nervoso com uma coisa, e perguntou:
— Tem certeza de que eles vão me soltar?
— Como poderão deixar de fazê-lo, com o refém que estará em meu poder? — respondeu Yabril, persuasivo. — Fique tranqüilo. Estará mais seguro nas mãos deles do que eu em Sherhaben.
Eles trocaram um derradeiro abraço, no escuro. Depois do Domingo de Páscoa, nunca mais tornariam a se ver.
Nessa mesma Sexta-Feira da Paixão, o Presidente Francis Xavier Kennedy reuniu-se com seus principais assessores e sua vice-presidente para lhes dar uma notícia que sabia que os deixaria infelizes.
O encontro foi na Sala Oval Amarela da Casa Branca, sua sala predileta, maior e mais confortável do que o mais famoso Gabinete Oval. Era mais uma sala de estar, e podiam ficar à vontade, enquanto era servido um chá inglês.
Todos estavam à sua espera e levantaram-se quando os agentes do Serviço Secreto introduziram-no na sala. Kennedy gesticulou para que os assessores sentassem, e disse aos agentes que aguardassem lá fora. Duas coisas irritaram-no nessa pequena cena. A primeira era o fato de que devia ordenar pessoalmente, de acordo com o protocolo, que os homens do Serviço Secreto saíssem da sala; e a segunda era o fato de que a vice-presidente devesse ficar de pé, por respeito à presidência. Afinal, era uma mulher e irritava-o que a cortesia política devesse prevalecer sobre a cortesia social. Isso era agravado pelo fato da Vice-Presidente Helena Du Pray ser dez anos mais velha do que ele, ainda uma mulher muito bonita, com uma extraordinária inteligência política e social. Fora por isso, é claro, que ele a escolhera para sua companheira de chapa, apesar da oposição de muitas figuras de proa do Partido Democrata.
— Mas que coisa, Helen! — exclamou Francis Kennedy. — Pare de levantar quando entro numa sala. Agora terei de servir o chá para todos, a fim de demonstrar minha humildade.
— Eu queria expressar minha gratidão — disse Helen Du Pray. — Calculei que chamou sua vice-presidente para a reunião porque alguém tem de cuidar da louça.
Os dois riram. Os assessores não.
Romeu fumou um último cigarro na escuridão do pátio. Além dos muros de pedra, podia avistar os domos das grandes igrejas de Roma. Acabou entrando. Estava na hora de transmitir as instruções a seu grupo.
A mulher Annee servia como a armeira do grupo e abriu um baú enorme para distribuir as armas e munição. Um dos homens estendeu no chão da sala um lençol sujo, sobre o qual Annee pôs pedaços de pano e óleo. Limpariam e passariam óleo nas armas, enquanto escutavam as instruções. Por horas escutaram e fizeram perguntas, ensaiaram os movimentos. Annee distribuiu os trajes operacionais e todos fizeram piadas a respeito. Ao final, sentaram para uma refeição que Romeu e os homens haviam preparado. Brindaram ao sucesso da missão com o vinho novo da primavera, depois alguns jogaram cartas por uma hora, antes de se retirarem para seus quartos. Não havia necessidade de um guarda; haviam se trancado com toda segurança, e além disso contavam com as armas ao lado das camas. Ainda assim, todos tiveram dificuldades para dormir.
Já passava de meia-noite quando Annee bateu na porta de Romeu. Ele estava lendo. Deixou-a entrar, e no mesmo instante ela pegou e jogou no chão o exemplar de Os Irmãos Karamazov, dizendo quase desdenhosamente:
— Está lendo essa merda de novo?
Romeu deu de ombros e sorriu.
— Serve para me divertir. Os personagens parecem italianos fazendo o maior esforço para serem sérios.
Despiram-se depressa e deitaram sobre os lençóis sujos, ambos de costas. Os corpos estavam tensos, não com o excitamento do sexo, mas de um terror misterioso. Romeu olhava fixamente para o teto e a mulher. Annee fechou os olhos. Estava à esquerda de Romeu e usou a mão direita para masturbá-lo, devagar, com extrema gentileza. Os ombros dos dois mal se tocavam, o resto de seus corpos mantinha-se apartado. Ao sentir que Romeu ficava erecto, ela continuou a movimentar a mão direita, ao mesmo tempo em que masturbava a si mesma com a mão esquerda. Era um ritmo lento e contínuo, durante o qual Romeu fez um gesto hesitante, tocando no seio pequeno de Annee, mas ela fez uma careta, como uma criança, sem abrir os olhos. Seus movimentos foram se tornando mais vigorosos, a mão apertava com mais força, até que Romeu atingiu o orgasmo. Enquanto o sêmen escorria pela mão de Annee, ela também chegou ao orgasmo, abriu os olhos, o corpo franzino pareceu se projetar pelo ar, soerguendo-se e virando-se para Romeu, como se fosse beijá-lo; depois, porém, Annee desviou a cabeça e comprimiu o rosto contra o peito dele, por um momento, até seu corpo parar de tremer. Ao final, com um ar de indiferença, ela sentou na cama e limpou a mão com o lençol sujo. Em seguida, pegou o cigarro e o isqueiro de Romeu na mesinha-de-cabeceira de mármore e pôs-se a fumar.
Romeu foi ao banheiro e molhou uma toalha. Voltou e lavou as mãos de Annee, depois limpou-se. Estendeu a toalha para ela, que a passou entre as pernas.
Já haviam feito isso em outra missão, e Romeu compreendia que aquele era o único tipo de afeição que ela podia permitir. Annee era veemente demais em sua independência, qualquer que fosse o motivo, não podia suportar que um homem que não amava a penetrasse. E quanto a felação e cunilíngua, que Romeu sugerira, eram também outra forma de rendição. O que ela fizera agora era a única maneira pela qual podia satisfazer suas necessidades sem trair os ideais de independência.
Romeu observava o rosto de Annee. Não estava tão rigoroso agora, os olhos não pareciam tão arrebatadores. Ela era jovem, pensou ele, como se tornara tão implacável em tão pouco tempo?
— Quer dormir comigo esta noite, apenas pela companhia? — indagou ele.
Annee apagou o cigarro.
— Não. Por que eu haveria de querer? Ambos tivemos o que precisávamos.
Ela começou a se vestir. Romeu disse, em tom de gracejo:
— Pelo menos você podia dizer alguma coisa terna antes de ir embora.
Annee parou na porta por um instante, virou-se. Romeu chegou a pensar que ela voltaria para a cama. Annee sorria, e pela primeira vez ele viu-a como a uma moça a quem poderia amar. Mas depois ela pareceu se erguer na ponta dos pés, e disse:
— Romeu, Romeu, onde estás, Romeu?
E fazendo um fiau para ele, Anne desapareceu.
Na Universidade Brigham Young, em Provo, Utah, dois estudantes, David Jatney e Cryder Cole, preparavam seus equipamentos para a tradicional competição de assassinato, que ocorria uma vez por período. Esse jogo voltara a entrar em voga com a eleição de Francis Xavier Kennedy para a presidência dos Estados Unidos. Pelas regras do jogo, uma equipe de estudantes dispunha de 24 horas para cometer o assassinato — isto é, disparar suas pistolas de brinquedo contra a efígie de papelão do Presidente dos Estados Unidos, de uma distância não superior a cinco passos. Para impedir isso, havia uma fraternidade da lei e da ordem, uma equipe de defesa integrada por mais de cem estudantes. O “prêmio das apostas em dinheiro” era usado para pagar o banquete da vitória, ao final da caçada humana.
Os professores e a administração da universidade, influenciados pela Igreja Mórmon, desaprovavam esses jogos, mas haviam se tornado populares nos campi de todos os Estados Unidos — um exemplo dos excessos exasperantes de uma sociedade livre. O mau gosto, um apetite pelo vulgar na vida, era parte do espírito vibrante dos jovens. E aquele jogo era uma vazão para o ressentimento contra a autoridade, uma forma de protesto daqueles que ainda não haviam realizado coisa alguma contra os que já eram bem-sucedidos. Era um protesto simbólico, sem dúvida preferível às manifestações políticas, violências aleatórias e greves. O jogo da caçada era uma válvula de segurança para os hormônios da rebelião.
Os dois caçadores, David Jatney e Cryder Cole, atravessaram o campus de braços dados. Jatney era o planejador, e Cole, o executor; assim, era Cole quem falava, enquanto Jatney se limitava a acenar com a cabeça, ao se encaminharem para os irmãos da fraternidade que guardavam a efígie do presidente. A figura em papelão de Francis Kennedy tinha uma semelhança reconhecível, mas era colorida de forma extravagante, mostrando-o de terno azul, gravata verde, meias vermelhas, e sem sapatos. No lugar dos sapatos, havia o enorme numeral romano IV.
A turma da lei-e-ordem ameaçou Jatney e Cole com suas pistolas de brinquedo, e eles se desviaram. Cole gritou um insulto jovial, mas Jatney manteve-se de cara amarrada. Levava a missão muito a sério. Jatney revisava seu plano e já experimentava uma profunda satisfação pelo êxito inevitável. Aquela passagem à vista do inimigo era para determinar que usavam trajes de esquiar, definir uma identidade visual, e assim preparar a surpresa posterior. Servia também para insinuar a idéia de que estavam deixando o campus pelo fim de semana.
Parte do jogo exigia que o itinerário da efígie presidencial fosse divulgado. A efígie estaria no banquete da vitória, marcado para aquela noite, antes de meia-noite. Jatney e Cole planejavam desfechar seu ataque antes do prazo fatal de meia-noite.
Tudo transcorreu de acordo com os planos. Jatney e Cole encontraram-se às seis horas da tarde no restaurante combinado. O proprietário não tinha o menor conhecimento de seus planos. Eram apenas dois jovens estudantes que trabalhavam para ele há duas semanas. Eram ótimos garçons, especialmente Cole, e o proprietário sentia-se satisfeito com o serviço dos dois.
Às nove horas da noite, quando os guardas da lei-e-ordem, num total de cem, entraram com sua efígie presidencial, foram postadas sentinelas em todas as entradas do restaurante. A efígie foi colocada no meio do círculo de mesas. O proprietário esfregava as mãos de contentamento pelo fluxo de fregueses. Só quando foi até a cozinha e viu os dois jovens garçons escondendo suas pistolas de brinquedo em terrinas de sopa é que compreendeu o que estava acontecendo.
— Essa não! — exclamou ele. — Isso significa que vocês dois deixarão o emprego esta noite.
Cole sorriu para ele, mas David Jatney lançou-lhe um olhar ameaçador, enquanto se encaminhavam para o salão de jantar, as terrinas de sopa levantadas para encobrir os rostos.
Os guardas já bebiam brindes de vitória quando Jatney e Cole puseram as terrinas na mesa do centro, levantaram as tampas e tiraram as pistolas de brinquedo. Apontaram as armas para a efígie colorida e acionaram os mecanismos de estalo. Cole disparou um tiro e desatou a rir. Jatney disparou três tiros, de forma determinada, depois jogou a pistola no chão. Não se mexeu, não sorriu, até que os guardas o cumularam de insultos congratulatórios e todos sentaram para jantar. Jatney deu um chute na efígie para derrubá-la no chão, onde ninguém poderia vê-la.
Esta foi uma das caçadas mais simples. Em outras universidades, por todo o país, o jogo era mais sério. Eram montados elaborados esquemas de segurança, as efígies esguichavam sangue sintético.
Em Washington, o Procurador-Geral dos Estados Unidos, Christian Klee, tinha fichas de todos esses assassinos de brincadeira. E foram as fotografias e memorandos sobre Jatney e Cole que atraíram sua atenção. Fez uma anotação para enviar uma equipe para fazer um levantamento das vidas de David Jatney e Cryder Cole.
Na sexta-feira antes da Páscoa, dois jovens sisudos seguiram de carro do Instituto de Tecnologia de Massachusetts para Nova York. Guardaram uma pequena valise num armário de bagagem no terminal do porto. Depois, desguiaram-se com todo cuidado entre a multidão de vagabundos bêbados, cafetões de olhos penetrantes e prostitutas que se espalhavam por todo o prédio. Os dois eram prodígios, aos vinte anos tornaram-se professores-assistentes de física e membros de um programa avançado na universidade. A valise continha uma minúscula bomba atômica, que eles haviam fabricado com materiais roubados do laboratório, inclusive o plutônio necessário. Levaram dois anos para roubar todos os materiais dos programas em que trabalhavam, pouco a pouco, falsificando relatórios e experiências, a fim de que o roubo não fosse percebido.
Adam Gresse e Henry Tibbot haviam sido classificados como gênios desde os doze anos de idade. Os pais criaram-nos com a noção de suas responsabilidades com a humanidade. Não tinham vícios, exceto o conhecimento. A inteligência excepcional levara-os a desdenhar dos apetites que eram como pulgas no pêlo da humanidade, o álcool, o jogo, as mulheres, a gula e as drogas.
Sucumbiram, no entanto, à droga poderosa de um pensamento lúcido. Possuíam uma consciência social e viam o mal no mundo. Sabiam que a fabricação de armas atômicas era um erro, que o destino da humanidade pendia na balança, e resolveram fazer o que pudessem para evitar um desastre infernal. Depois de um ano de conversas infantis, decidiram dar um susto no governo. Mostrariam como era fácil para um louco infligir uma terrível punição à humanidade. Construíram a pequena bomba atômica, com uma potência de apenas meio quiloton, a fim de poderem escondê-la em algum lugar e depois comunicar sua existência às autoridades. Julgavam a si mesmos e a seu ato como excepcionais, quase divinos. Não sabiam que essa exata situação fora prevista por relatórios psicológicos de um prestigioso grupo de planejamento, financiado pelo governo, como um dos possíveis riscos da era atômica da humanidade.
Enquanto ainda estavam em Nova York, Adam Gresse e Henry Tibbot despacharam sua carta de advertência para o New York Times, explicando seus motivos e pedindo que o texto fosse publicado, antes de ser encaminhado às autoridades. O preparo da carta fora um longo processo, não apenas porque a redação precisava ser impecável, a fim de demonstrar que não havia más intenções, mas também porque usaram palavras e letras impressas recortadas de jornais velhos, que colaram em folhas de papel em branco.
A bomba não explodiria até a terça-feira seguinte. A esta altura, a carta já estaria nas mãos das autoridades e a bomba certamente já teria sido encontrada. Seria um aviso para os governantes do mundo.
E em Roma, naquela Sexta-Feira da Paixão, Theresa Catherine Kennedy, filha do Presidente dos Estados Unidos, preparava-se para encerrar seu exílio europeu auto-imposto e voltar para viver com o pai na Casa Branca.
Os agentes do Serviço Secreto destacados para sua segurança já haviam tomado todas as providências para a viagem. Obedecendo a suas instruções, reservaram passagem no vôo de Roma para Nova York, no Domingo de Páscoa.
Theresa Kennedy tinha 23 anos e estudara filosofia na Europa, primeiro na Sorbonne, em Paris, depois na universidade em Roma, onde acabara de romper uma relação séria com um estudante radical italiano, para alívio mútuo.
Ela amava o pai, mas detestava o fato de ele ocupar a presidência, porque era muito leal para manifestar publicamente suas opiniões divergentes. Fora uma crente no socialismo; agora, era uma defensora da fraternidade dos homens, a irmandade das mulheres. Era uma feminista ao estilo americano; a independência econômica era a base da liberdade, e por isso ela não sentia remorso pelos fundos de investimentos que garantiam sua liberdade.
Com uma moral curiosa, mas muito humana, rejeitara a idéia de qualquer privilégio e raramente visitava o pai na Casa Branca. E talvez o culpasse, inconscientemente, pela morte da mãe, porque ele se empenhara na luta pelo poder político, enquanto a esposa estava morrendo. Depois, ela tentara cortar os vínculos, na Europa, mas por lei devia ser protegida pelo Serviço Secreto, já que pertencia à família presidencial imediata. Quisera renunciar formalmente à proteção, mas o pai suplicara que não o fizesse. Francis Kennedy lhe dissera que não suportaria se alguma coisa acontecesse com ela.
Um grupo de vinte homens, divididos em três turnos por dia, guardava Theresa Kennedy. Quando ela entrava num restaurante, se ia a um cinema com o namorado, os agentes estavam sempre por perto. Alugaram apartamentos no mesmo prédio, usavam um furgão de comando estacionado na rua. Ela nunca estava sozinha. E todos os dias tinha de fornecer a sua programação ao chefe da segurança.
Os guardas eram monstros de duas cabeças: meio servos, meio amos. Com os mais modernos equipamentos eletrônicos, podiam ouvi-la fazer amor, quando levava um namorado para o apartamento. E eram assustadores — movimentavam-se como lobos, deslizando sem fazer barulho as cabeças inclinadas, sempre alertas, como se farejassem algo no vento, embora na verdade estivessem apenas se esforçando para escutar os rádios minúsculos em seus ouvidos.
Theresa recusara uma “rede de segurança”, isto é, a segurança do tipo mais rigoroso. Guiava seu próprio carro, não permitira que o pessoal da segurança alugasse o apartamento ao lado, rejeitava a idéia de agentes andando ao seu lado. Exigira que fosse uma “segurança de perímetro”, que os agentes erguessem um muro de proteção ao seu redor, como se estivesse num vasto jardim. Poderia assim levar uma vida pessoal. Esse arranjo acarretara alguns momentos embaraçosos. Um dia saíra para fazer compras e precisara de uma moeda para dar um telefonema. Pensara reconhecer um dos agentes, fingindo olhar para uma vitrine próxima. Aproximara-se do homem e pedira:
— Pode me dar uma moeda?
Ele a fitara aturdido e só então Theresa compreendera que se enganara. Desatara a rir e pedira desculpas. O homem achara graça e comentara jovialmente, ao lhe entregar a moeda:
— Qualquer coisa para uma Kennedy.
Como tantos jovens, Theresa Kennedy acreditava, sem qualquer evidência específica, que as pessoas eram “boas”, tanto quanto acreditava que ela própria era boa. Participava de manifestações pela liberdade, defendia o certo e condenava o errado. Tentava nunca cometer atos mesquinhos na vida cotidiana. Quando criança, dera as moedas de seu cofrinho para os índios americanos.
Em sua posição de filha do Presidente dos Estados Unidos, era um constrangimento declarar seu apoio às ativistas do aborto livre, ou emprestar seu nome a organizações radicais e esquerdistas. Suportava os abusos dos meios de comunicação e os insultos dos adversários políticos.
Com absoluta inocência, era escrupulosamente justa em suas ligações amorosas; acreditava na franqueza total, detestava o embuste.
Houvera incidentes, em seus anos no exterior, de que deveria ter aprendido algumas lições valiosas. Em Paris, um bando de vagabundos, vivendo sob uma ponte, tentara estuprá-la, quando vagueava pela cidade à procura da cor local. Em Roma, dois mendigos tentaram lhe arrebatar a bolsa, quando dava algum dinheiro a eles. Em ambos os casos, fora salva pelos atentos agentes do Serviço Secreto. Mas isso não causara qualquer impressão em sua fé generalizada de que o homem era bom. Cada ser humano possuía a semente imortal da bondade em sua alma, ninguém se encontrava além da redenção. Como feminista, é claro que tinha conhecimento da tirania dos homens sobre as mulheres, mas não compreendia a força brutal que os homens usavam quando lidavam com seu próprio mundo. Não tinha noção de como um ser humano podia trair outro, da maneira mais falsa e cruel.
O chefe da equipe de segurança, um agente velho demais para proteger as pessoas mais importantes do governo, sentia-se impressionado com sua inocência e tentava educá-la. Contara-lhe histórias de horror sobre os homens em geral, histórias lembradas de sua longa experiência no Serviço Secreto; era mais franco do que normalmente se mostraria, já que aquele trabalho era a sua última missão antes da aposentadoria.
— Você é muito jovem para compreender este mundo — dissera-lhe ele um dia. — E na sua posição deve ser muito cuidadosa. Pensa que os outros serão bons para você, só porque é boa para todo mundo.
No dia anterior, Theresa dera carona a um homem, que presumira que se tratasse de um convite sexual. O chefe da segurança agira imediatamente; os dois carros com os agentes obrigaram o carro de Theresa a parar no acostamento, no instante mesmo em que o carona punha a mão em seu colo.
— Quero lhe contar uma história — dissera o veterano agente. — Trabalhei uma ocasião para o homem mais esperto e mais simpático no governo. Em operações clandestinas. Apenas uma vez alguém foi mais esperto do que ele, atraiu-o para uma armadilha, deixou-o à sua mercê. O homem que o acuava era o pior tipo possível, poderia liquidá-lo. Mas, por algum motivo, deixou meu chefe escapar, dizendo: “Não se esqueça de que você me deve uma.” Passamos seis meses procurando o tal sujeito e finalmente conseguimos agarrá-lo. E meu chefe o liquidou, não lhe deu a menor chance de se render ou virar um agente duplo. E sabe por quê? Ele me explicou. O bandido tivera uma vez o poder de Deus, e por isso era perigoso demais para continuar a viver. E meu chefe não tinha o menor sentimento de gratidão, comentou que a misericórdia do sujeito fora um capricho, e não se pode contar com caprichos na próxi¬ma vez.
O que ele não contou a Theresa foi que seu chefe era um homem chamado Christian Klee.
A eleição de Francis Xavier Kennedy para a presidência dos Estados Unidos foi um milagre da política americana. Fora eleito pela magia do nome e os extraordinários dotes físicos e intelectuais, apesar de ter servido apenas um mandato no Senado antes de se candidatar à presidência.
Era chamado de “sobrinho” de John F. Kennedy, o presidente que fora assassinado em 1963, mas não pertencia ao clã organizado dos Kennedys, ainda ativo na política americana. Era de fato um primo, o único na família ampla que herdara o carisma dos dois tios famosos, John e Robert Kennedy.
Francis Kennedy fora um garoto prodígio na faculdade de direito, tornara-se professor em Harvard aos 28 anos de idade. Mais tarde, organizara sua própria firma de advocacia, defendendo amplas reformas liberais no governo e na iniciativa privada. Não ganhava muito dinheiro com a advocacia, o que não era importante para ele, pois herdara uma considerável fortuna, mas adquirira um grande prestígio nacional. Defendera os desamparados, os direitos das minorias, e a assistência social aos incapacitados economicamente.
Kennedy arrebatara o país em sua campanha pela presidência. Proclamara que escreveria um novo contrato social para o povo americano. O que faz uma civilização perdurar?, indagava ele. É o contrato entre os governantes e os governados. O governo devia prometer a segurança pública contra o crime, contra as dificuldades econômicas; devia prometer a cada cidadão o direito e os meios de buscar o sonho individual de encontrar a felicidade pessoal nesta vida. E então, somente então, os governados estariam obrigados a obedecer às leis que garantiam a civilização. E Kennedy propunha que, como parte desse sagrado contrato social, todas as grandes questões na sociedade americana fossem resolvidas por um plebiscito, não por decisões tomadas pelo Congresso, pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Presidente.
Ele prometeu que acabaria com o crime. Prometeu que acabaria com a pobreza, que era a raiz do crime e um crime por si mesma. Prometeu um programa de segurança de saúde financiado pelo estado e um sistema de assistência social que permitiria aos trabalhadores uma aposentadoria confortável.
Para afirmar sua devoção a esses ideais e remover a armadura de sua riqueza pessoal, ele proclamou na televisão que doaria sua fortuna de quarenta milhões de dólares ao Tesouro dos Estados Unidos. Isso foi feito numa cerimônia legal pública, transmitida para todo o país pelas emissoras de televisão. A imagem do gesto gran¬dioso de Francis Kennedy teve um grande impacto sobre os eleitores.
Ele voou para todas as grandes cidades do país, suas carretas percorreram pequenas cidades. Com a esposa e a filha ao lado, a beleza das duas flanqueando a sua, ele conquistara a consciência pública. Os três debates com seu adversário republicano, o presidente no cargo, foram triunfos espetaculares. A combinação de seu espírito, inteligência e exuberância juvenil destruiu completamente o oponente. Nenhum presidente jamais iniciara seu primeiro mandato tão amado pelo povo. Conquistara tudo, exceto o destino. A esposa morrera de câncer antes de sua posse.
Apesar do profundo pesar, Francis Xavier Kennedy conseguira concretizar a primeira etapa de seu programa. Durante a campanha eleitoral, tomara a ousada iniciativa política de indicar sua assessoria pessoal com antecedência, a fim de que os eleitores pudessem aprová-la também. Escolhera Oddblood Gray, um ativista negro, para funcionar como ligação com o Congresso em questões internas. Selecionara uma mulher como companheira de chapa e tomara a decisão política de que ela também integraria sua assessoria pessoal. As outras indica¬ções foram mais convencionais. E fora essa assessoria que o ajudara a conquistar sua primeira vitória: a revisão das leis da previdência social, a fim de que cada trabalhador pudesse ter dinheiro suficiente para viver quando se aposentasse. Os impostos para financiar essa revisão foram pagos pelos lucros das gigantescas corporações americanas, que no mesmo instante se tornaram suas inimigas mortais.
Mas, depois dessa vitória inicial, Kennedy parecera perder o ímpeto. Seu projeto para plebiscito popular sobre as grandes questões fora rejeitado pelo Congresso, assim como sua proposta para um plano nacional de seguro de saúde. E o próprio Kennedy perdia energia ao confrontar o muro de pedra que o Congresso erguera em seu caminho. Embo¬ra Kennedy e sua assessoria da Casa Branca lutassem com um vigor quase desesperado, mais e mais de seus projetos foram rejeitados.
Ele sentia uma raiva intensa pelo conhecimento de que estava perdendo a batalha em seu último ano de mandato. Sabia que sua causa era justa, que se encontrava no lado do que era certo, que se mantinha na posição moral mais elevada, que seu curso de ação era o mais inteligente para a sobrevivência dos Estados Unidos. Mas parecia-lhe ago¬ra que inteligência e moral não tinham qualquer influência no processo político.
O Presidente Kennedy esperou até que fosse servido o chá a todos os membros de sua assessoria pessoal.
— Posso não concorrer a um segundo mandato — anunciou ele, calmamente. Olhando para a vice-presidente, Kennedy acrescentou: — Helen, quero que você se prepare para concorrer à presidência.
Todos ficaram aturdidos, mas Helen Du Pray sorriu. Aqueles homens sabiam que o sorriso era uma de suas grandes armas políticas.
— Francis, acho que uma decisão de não concorrer exige uma ampla avaliação de sua assessoria, sem a minha presença — disse ela. — Mas gostaria de dizer uma coisa, antes de me retirar. Sei como você se sente desanimado neste momento. Mas não serei capaz de me sair melhor, presumindo que conseguisse ser eleita. Creio que você deve ser mais paciente. Seu segundo mandato pode ser mais produtivo.
Kennedy declarou, impaciente:
— Helen, você sabe tão bem quanto eu que um presidente dos Estados Unidos tem mais influência em seu primeiro mandato do que no segundo.
— Isso é verdade na maioria dos casos — concordou Helen Du Pray. — Mas talvez possamos ter uma diferente Câmara de Representantes em seu segundo mandato. E deixe-me falar também de meus interesses pessoais. Como vice-presidente em um mandato apenas, fico numa posição mais fraca do que teria com dois mandatos. Além disso, seu apoio seria mais valioso como um presidente de dois mandatos, e não um presidente que foi afastado do cargo por seu próprio Congresso democrata.
Enquanto ela pegava sua pasta e preparava-se para dei¬xar a sala, Francis Kennedy disse:
— Não precisa sair.
Du Pray ofereceu a todos o mesmo sorriso doce.
— Tenho certeza de que sua assessoria poderá falar mais francamente se eu não estiver presente.
Assim que acabou de falar, ela saiu da Sala Oval Amarela. Os quatro homens em companhia de Kennedy perma¬neceram calados. Eram os seus assessores mais íntimos. Escolhera-os pessoalmente, todos eram responsáveis apenas perante ele. O presidente era como uma estranha espécie de ciclope, com um cérebro e quatro braços. Aqueles assessores eram os seus quatro braços. Também eram seus maiores amigos e, desde a morte da esposa, sua única família.
Assim que Du Pray fechou a porta, houve uma pequena agitação na sala, os homens endireitando suas pastas, pegando o chá e sanduíches. Só depois de algum tempo é que o chefe da assessoria, Eugene Dazzy, comentou calmamente:
— Helen talvez seja a pessoa mais esperta nesta administração.
Kennedy sorriu para Dazzy, que era conhecido por sua fraqueza por mulheres bonitas.
— E o que você acha, Euge? Devo ser mais paciente e concorrer de novo?
Eugene Dazzy dirigia uma grande companhia de computadores dez anos antes, quando Francis Kennedy ingressara na política. Era um demolidor, um homem que podia arrasar as companhias rivais, mas vinha de uma família pobre e conservara sua fé na justiça, mais como uma questão de bom senso do que por idealismo romântico. Passara a acreditar que o dinheiro concentrado detinha poder demais nos Estados Unidos e que, a longo prazo, isso destruiria a verdadeira democracia. E por isso, quando Francis Kennedy lançara-se na política, com a bandeira de uma genuína democracia social, Dazzy organizara o apoio financeiro que ajudara Kennedy a conquistar a presidência.
Era um homem grande e afável, cuja arte maior era evitar que se tornassem inimigas as pessoas cujos desejos importantes e pedidos especiais eram negados pelo presidente. Dazzy inclinou a cabeça sobre suas anotações, a parte superior do corpo, atarracada, esticando a parte de trás do paletó impecável.
— Por que não concorrer? — disse ele. — Terá uma boa oportunidade de se esquivar à responsabilidade. O Congresso lhe dirá o que fazer e se recusará a fazer o que você quer. Tudo continuará como antes. Exceto na política externa. Aí você poderá se divertir um pouco. Talvez mesmo fazer alguma coisa boa.
Uma pausa e ele acrescentou:
— Olhe da seguinte maneira. Nosso exército está cinqüenta por cento abaixo de sua quota. Educamos nossos garotos tão bem que eles se tornaram espertos demais para serem patriotas. Temos a tecnologia, mas ninguém quer comprar nossos produtos. Nossa balança de pagamentos é um caso perdido. Você só pode melhorar as coisas. Assim, seja reeleito, relaxe, divirta-se por mais quatro anos. Afinal, não é um emprego tão ruim assim, e você pode aproveitar o dinheiro.
Dazzy sorriu e acenou com a mão para indicar que gracejava pelo menos em parte.
Os quatro homens da assessoria pessoal observaram Kennedy com a maior atenção, apesar das atitudes aparentemente casuais. Nenhum deles achava que Dazzy fora desrespeitoso; a jovialidade de seus comentários era uma atitude que Kennedy encorajara nos últimos três anos.
Arthur Wix, o assessor de segurança nacional, um homem corpulento, com um rosto de cidade grande — isto é, étnico, nascido de pai judeu e mãe italiana — podia ser implacavelmente espirituoso, mas também demonstrava alguma reverência no gabinete presidencial e na presença de Kennedy.
Wix conhecera Kennedy dez anos antes, quando concorrera pela primeira vez ao Senado. Era um liberal da Costa Leste, um professor de ética e ciência política na Universidade de Columbia. Era também um homem muito rico que tinha desprezo por seu dinheiro. O relacionamento entre os dois aumentara, baseado nos dotes intelectuais de ambos, Kennedy achava que Arthur Wix era o homem mais inteligente que já conhecera, Wix achava que Kennedy era o homem de maior moral na política. Esta não era — não podia ser — a base de uma amizade calorosa, mas constituía a fundação para um relacionamento de confiança.
Como assessor de segurança nacional, Wix achava que sua responsabilidade obrigava-o a adotar um tom mais sério do que os outros. Falou numa voz suave e persuasiva, que ainda conservava um murmúrio de Nova York:
— Euge pode pensar que está brincando, mas o fato é que você pode fazer uma contribuição valiosa à política externa de nosso país. Temos muito mais influência do que a Europa e Ásia acreditam. Creio que é indispensável que você concorra a outro mandato. Afinal, na política externa, o Presidente dos Estados Unidos possui o poder de um rei.
Kennedy virou-se para o homem à sua esquerda. Oddblood “Otto” Gray era o mais jovem de sua assessoria pessoal saída da universidade há apenas dez anos. Viera da ala esquerda do movimento negro, através de Harvard e uma bolsa de estudos Rhodes. Alto e imponente, fora um aluno brilhante e um orador de primeira classe em seus tempos de estudante. Kennedy reconhecera sob o agitador um homem com uma cortesia natural e senso de diplomacia, um homem que podia persuadir sem ameaças. E numa situação potencialmente violenta em Nova York, Kennedy conquistara a admiração e a confiança de Gray. Kennedy usara sua extraordinária habilidade jurídica, sua inteligência e charme e sua evidente ausência de preconceito racial para desarmar a situação, obtendo assim a admiração dos dois lados.
Depois disso, Oddblood Gray apoiara Kennedy em sua carreira política e exortara-o a concorrer à presidência. Kennedy nomeara-o para sua assessoria, como ligação com o Congresso, incumbido de conseguir a aprovação dos projetos presidenciais. O idealismo juvenil de Gray conflitava com seu gênio instintivo para a política. E até certo ponto, como era natural, o idealismo sofreu derrotas, porque ele sabia de fato como o governo funcionava, onde se podia aplicar alguma pressão, quando usar a força bruta do apadrinhamento, quando se manter irredutível, quando capitular graciosamente.
— Otto — disse Kennedy —, dê-nos sua opinião.
— Caia fora. Enquanto está apenas perdendo.
Kennedy sorriu e os outros riram. Gray continuou:
— Quer franqueza? Estou com Dazzy. O Congresso caga em cima de você, a imprensa o sacaneia. Os lobistas e as grandes corporações estrangularam seus programas. E os trabalhadores e intelectuais acham que você os traiu. Está guiando o enorme Cadillac que é este país e nem ao menos tem alguma potência no motor. E ainda quer dar a cada porra de maníaco neste país mais quatro anos de oportunidade para liquidá-lo? Pois eu digo que devemos todos cair fora.
Kennedy parecia deliciado, os bonitos planos irlandeses de seu rosto desmanchando-se num sorriso, os olhos azuis faiscando.
— Muito engraçado — disse ele —, mas agora vamos falar sério.
Kennedy sabia que tentavam espicaçá-lo a concorrer de novo, apelando para seu orgulho. Nenhum deles queria deixar aquele centro de poder, nenhum deles queria se afastar de Washington, da Casa Branca. Era melhor ser um leão sem garras do que não ser um leão.
— Vocês querem que eu concorra de novo — acrescentou o presidente. — Mas para fazer o quê?
Otto Gray declarou:
— Claro que eu quero que você concorra. Ingressei nesta administração porque você me pediu para ajudar meu povo. Acreditei em você e ainda acredito. Já ajudamos, e podemos ajudar ainda mais. Há muita coisa a fazer. Os ricos se tornam mais ricos, os pobres cada vez mais pobres, e só você pode mudar isso. Não abandone a luta agora.
— Mas como posso vencer? — indagou Kennedy. — O Congresso é virtualmente controlado pelo Clube Sócrates.
Gray fitou seu presidente com uma expressão de arrebatamento e veemência só encontrada nos jovens.
— Não podemos pensar assim. Veja o que conseguimos, contra todas as probabilidades. Podemos vencer de novo. E mesmo que isso não aconteça, o que poderia ser mais importante do que tentar?
Houve silêncio na sala por um momento. Todos pareciam se aperceber do silêncio de um homem, o que tinha mais influência sobre Francis Kennedy. Christian Klee. Todos os olhos fixaram-se nele agora.
Klee tratava Kennedy com uma certa reverência, embora fossem amigos íntimos. Isso sempre surpreendia Kennedy, porque Klee dava a maior importância à bravura física e sabia que o presidente tinha medo de ser assassinado. Fora Klee quem persuadira Kennedy a concorrer à presidência, e comprometera-se a garantir sua segurança pessoal, se fosse nomeado procurador-geral, no comando do FBI e do Serviço Secreto. Agora, ele controlava basicamente todo o sistema de segurança interna dos Estados Unidos. Kennedy, no entanto, pagara um pesado preço por isso. Negociara a nomeação de Klee com o Congresso, em troca da indicação de dois ministros do Supremo Tribunal e o posto de embaixador em Londres.
Agora, Kennedy ficou olhando fixamente para Klee, até que este acabou falando:
— Sabe o que mais preocupa as pessoas neste país? Estão pouco ligando às relações exteriores. Não estão interessadas na economia. Não querem saber se a Terra vai ficar ressequida como uma passa. Só se preocupam nas cidades grandes e pequenas com o fato de não poderem andar pelas ruas à noite sem correrem o risco de um assalto. Com o fato de não poderem dormir sossegadas em suas camas à noite, apavoradas com a possibilidade de assaltantes e assassinos.
Klee fez uma pausa.
— Vivemos num estado de anarquia. O governo não cumpre a sua parte do contrato social de proteger cada um e todos os cidadãos. As mulheres têm medo de estupro, os homens de assassinato. Estamos resvalando para alguma espécie de pântano do comportamento humano. Os ricos sufocam as pessoas economicamente e os criminosos massacram os pobres e a classe média. E você, Francis, é o único que pode nos conduzir a um terreno mais alto. Acredito nisso, acredito que você pode salvar este país. Por isso é que vim trabalhar para você. E agora quer nos abandonar... Deve tentar de novo, Francis. Só mais quatro anos.
O Presidente Kennedy ficou comovido. Podia perceber que aqueles quatro homens ainda acreditavam sinceramente nele. E em uma parte de sua mente compreendeu que os manipulara para dizerem aquilo, que os levara a reafirmar a fé nele, tornara-os responsáveis junto com ele. Sorriu para todos, com uma profunda satisfação.
— Pensarei a respeito.
Eles consideraram isso como uma dispensa e se retiraram, à exceção de Christian Klee, que perguntou:
— Theresa virá passar os feriados em casa?
Kennedy deu de ombros.
— Ela está em Roma, com um namorado novo. Voará no Domingo de Páscoa. Como sempre, faz questão de ignorar os feriados religiosos.
— Estou contente por ela sair de lá — comentou Christian. — Não posso protegê-la direito na Europa. E ela acha que pode dizer o que quiser por lá sem que ninguém noticie aqui. — Ele fez uma pausa. — Se você concorrer de novo, terá de manter sua filha fora de vista ou repudiá-la.
— Não posso. Se eu concorrer de novo, precisarei do voto feminista radical.
Christian riu.
— Está bem. Agora, vamos tratar da festa de aniversário para o Oráculo. Ele está realmente ansioso.
— Não se preocupe. Eu lhe darei o tratamento completo. É incrível, cem anos de idade e ele está ansioso pela festa de aniversario!
— Ele foi e continua a ser um grande homem — comentou Christian.
Kennedy fitou-o atentamente.
— Você sempre gostou mais dele do que eu. É um homem que teve seus defeitos, cometeu seus erros.
— Tem razão. Mas nunca vi um homem controlar melhor sua vida. E ele mudou minha vida, com seus conselhos, sua orientação. — Christian ficou em silêncio por um momento. — Jantarei com ele esta noite, e lhe direi apenas que a festa está confirmada.
Kennedy sorriu secamente.
— Não há problema em lhe dizer isso.
Ao final do dia, Kennedy assinou alguns documentos no Gabinete Oval, depois sentou-se à mesa e ficou olhando pela janela. Podia ver a parte superior dos portões que davam acesso ao terreno da Casa Branca, as pontas pretas de ferro, eletrificadas. Como sempre, sentia-se apreensivo por sua proximidade com as ruas e o público, embora soubesse que a aparente vulnerabilidade a um ataque não passava de ilusão. Era extraordinariamente bem protegido. Havia sete perímetros guardando a Casa Branca. Por três quilômetros ao redor, cada prédio tinha uma equipe de segurança nos telhados e em apartamentos. Todas as ruas que levavam à Casa Branca tinham postos de documentos, equipados com armas de grosso calibre e fogo rápido. Os turistas que apareciam todas as manhãs para uma visita ao andar térreo da Casa Branca, às centenas, eram acompanhados por agentes secretos infiltrados nos grupos, circulando constantemente, sempre alerta, participando das conversas. Cada palmo da Casa Branca que esses turistas podiam visitar, por trás de cordas, era coberto por monitores de TV e equipamentos especiais de áudio, que podiam captar os sussurros mais secretos. Guardas armados guarneciam os painéis especiais de computador que podiam servir como barricadas, em cada volta dos corredores. E durante essas visitas do público, Kennedy sempre permanecia lá em cima, no novo quarto andar, especialmente construído, que servia como seus aposentos. E os aposentos eram também protegidos por chão, paredes e teto especialmente reforçados.
Agora, no famoso Gabinete Oval, que raramente usava, a não ser para assinar documentos oficiais, em cerimônias especiais, Francis Kennedy relaxou para desfrutar alguns dos poucos minutos em que ficava completamente sozinho. Tirou um charuto cubano, comprido e fino, da caixa em cima da mesa, sentiu nos dedos a oleosidade do papel. Cortou a extremidade, acendeu com o maior cuidado, deu a primeira baforada e tornou a olhar pelas janelas à prova de balas.
Podia se ver como uma criança, atravessando o vasto gramado verde, do distante posto da guarda pintado de branco, depois correndo para cumprimentar o tio Jack e o tio Robert. Como os adorava! Tio Jack, com tanto charme, tão infantil, ao mesmo tempo tão poderoso, proporcionando a uma criança a esperança de que poderia exercer tanto poder sobre o mundo. E tio Robert, tão sério, compenetrado, ao mesmo tempo gentil e jovial. E foi nesse ponto que Francis Kennedy pensou, não, nós o chamávamos de tio Bobby, não Robert, ou seria o segundo às vezes? Ele não podia se lembrar.
Mas recordava um dia, há mais de quarenta anos, em que correra ao encontro dos tios, naquele mesmo gramado, e como cada um pegou um braço, não deixando que seus pés tocassem no chão, enquanto o levavam para a Casa Branca.
E agora ele se encontrava no lugar deles. O poder que tanto o impressionara quando criança era agora seu. Era uma pena que a memória pudesse evocar tanto sofrimento e tanta beleza, e tanto desapontamento. E ele pensava em renunciar àquilo pelo qual os dois haviam morrido.
Naquela Sexta-Feira da Paixão, Francis Xavier Kennedy não sabia que tudo aquilo seria mudado por dois revolucionários insignificantes em Roma.
NA MANHÃ DO DOMINGO DE PÁSCOA, Romeu e seu grupo de quatro homens e três mulheres, com um equipamento operacional completo, desembarcaram de seu furgão. Nas ruas romanas, próximas da Praça de São Pedro, misturaram-se com a multidão, em indumentária da Páscoa — as mulheres gloriosas em cores suaves da primavera e líricas nos chapéus da igreja, os homens em trajes sedosos, de cor creme, com cruzes amarelas bordadas nas lapelas. As crianças estavam ainda mais deslumbrantes: meninas usando luvas e vestidos de babados, os garotos em ternos azul-marinho de crisma, gravatas vermelhas e camisas brancas. Padres dispersos por toda parte ofereciam bênçãos aos fiéis, sorrindo.
Romeu era um peregrino mais sóbrio, uma testemunha séria da Ressurreição que aquela manhã de Páscoa celebrava. Vestia um terno preto, uma camisa branca engomada e uma gravata branca que ficava quase invisível. Os sapatos eram pretos, com solas de borracha. E agora ele abotoou o casaco de pêlo de camelo para esconder o rifle, que pendia de uma tipóia especial. Praticara com aquele rifle durante os três últimos meses, até obter uma precisão mortífera.
Os quatro homens de seu grupo vestiam-se como monges da ordem dos capuchinhos, em hábitos compridos e folgados, de um marrom encardido, presos por largos cintos de pano. As cabeças tonsuradas estavam cobertas por bar¬retes. Levavam granadas e pistolas ocultas sob os hábitos. As três mulheres — uma delas era Annee — vestiam-se como freiras, em preto e branco, e também tinham armas por baixo dos trajes largos. Annee e as outras duas freiras seguiam adiante, as pessoas à frente dando passagem para elas, enquanto Romeu seguia em sua esteira, sem a menor dificuldade. Depois de Romeu vinham os quatro monges do grupo, observando tudo, prontos para interferir se Romeu fosse detido pela polícia papal.
E assim o bando de Romeu encaminhou-se para a Praça de São Pedro, invisíveis na vasta multidão que ali se reunia. Até que, finalmente, como rolhas escuras boiando num oceano de muitas cores, Romeu e seu grupo foram parar no outro lado da praça, as costas protegidas por colunas de mármore e muros de pedra. Romeu manteve-se um pouco apartado. Observava, à espera de um sinal do outro lado da praça, onde Yabril e seu bando estavam ocupados em colocar imagens santas nos muros.
Yabril e seu grupo, três homens e três mulheres, usavam trajes informais, com casacos largos. Os homens levavam armas escondidas, enquanto as mulheres trabalhavam com as estatuetas religiosas, pequenas imagens de Cristo, carregadas de explosivos, que seriam detonados por um sinal de rádio. A parte de trás das imagens tinha uma cola tão forte que elas não poderiam ser arrancadas das paredes por algum curioso na multidão. Além disso, as imagens eram muito bonitas, feitas de terracota de aparência dispendiosa, pintadas de branco, em torno de uma estrutura de arame. Davam a impressão de serem parte da ornamentação da Páscoa, e como tal eram invioláveis.
Concluída essa operação, Yabril conduziu seu grupo através da multidão, deixando a Praça de São Pedro, a caminho de seu furgão à espera. Ele mandou um de seus homens ao encontro de Romeu, a fim de lhe entregar o aparelho de rádio cujo sinal detonaria os explosivos. Depois Yabril e seu pessoal embarcaram no furgão e seguiram na direção do aeroporto de Roma. O Papa Inocêncio só apareceria na sacada três horas depois. Estavam dentro do prazo.
Dentro do furgão, isolado do mundo da Páscoa em Roma, Yabril pensou na maneira como tudo aquilo começara...
Numa missão conjunta, uns poucos anos antes, Romeu comentara que o Papa dispunha da mais forte segurança entre todos os governantes da Europa. Yabril rira e dissera:
— Quem poderia querer matar um Papa? Seria como matar uma cobra que não tem veneno. Uma figura de fachada inútil, com meia dúzia de velhos inúteis prontos para substituí-lo. Os noivos de Cristo, uma dúzia de bonecos de chapéu vermelho. O que mudaria no mundo com a morte de um Papa? Posso pensar em seqüestrá-lo, já que ele é o homem mais rico do mundo. Mas matá-lo seria a mesma coisa que matar um lagarto dormindo ao sol.
Romeu argumentara com insistência e deixara Yabril intrigado. O Papa era reverenciado por centenas de milhões de católicos no mundo inteiro. E sem dúvida o Papa era um símbolo do capitalismo; os estados burgueses cristãos ocidentais o sustentavam. O Papa era um dos grandes suportes da autoridade no edifício dessa sociedade. E, portanto, o assassinato do Papa seria um tremendo choque psicológico para o mundo inimigo, porque era considerado o representante de Deus na Terra. As realezas da Rússia e França haviam sido assassinadas porque também pensavam que possuíam o direito divino de reinar, e esses assassinatos propiciaram o progresso da humanidade. Deus era a fraude dos ricos, o trapaceiro dos pobres, o Papa era o homem que manipulava esse poder diabólico. Mas ainda era apenas uma idéia que impressionava Romeu e despertava em Yabril uma profunda auto-admiração.
Romeu, apesar de toda a sua conversa e sacrifícios, não era o que Yabril considerava um verdadeiro revolucionário. Yabril estudara a história dos terroristas italianos. Eram competentes em assassinar chefes de estado; haviam aprendido com os russos, que ao final mataram seu czar, depois de muitos atentados — os italianos até tomaram emprestado dos russos o nome que Yabril detestava: os Cristos da Violência.
Yabril encontrara-se uma vez com os pais de Romeu. O pai, um homem inútil, um parasita da humanidade. Completo, com motorista, valete e um cachorro enorme e manso, que usava como isca para atrair as mulheres nos bulevares. Mas um homem de belas maneiras. Era impossível não gostar dele, se não fosse seu filho.
E a mãe, outra beldade do sistema capitalista, voraz por dinheiro e jóias, uma católica devota. Elegantemente vestida, com criadas a reboque, ela ia à missa todas as manhãs. Essa penitência realizada, dedicava o resto de seu dia ao prazer. Como o marido, ela era complacente, infiel e dedicada ao filho único, Romeu.
Agora, aquela família feliz seria finalmente punida. O pai, um Cavaleiro de Malta, a mãe comungando todos os dias com Cristo, e o filho, o assassino do Papa. Que traição, pensou Yabril. Pobre Romeu, você vai passar uma semana horrível quando eu o trair.
À exceção do desvio final que Yabril acrescentara, Romeu conhecia todo o plano.
— Igualzinho a xadrez — comentou Romeu. — Xeque ao rei, xeque ao rei e xeque-mate. Uma beleza.
Yabril olhou para seu relógio: mais quinze minutos. O furgão seguia em velocidade moderada pela estrada que leva¬va ao aeroporto.
Estava na hora de começar. Ele recolheu todas as armas e granadas de seu bando, guardou tudo numa mala. Quando o furgão parou, na frente do terminal do aeroporto, Yabril foi o primeiro a saltar. O furgão foi em frente, a fim de descarregar o resto do pessoal em outra entrada. Yabril avançou devagar pelo terminal, carregando a mala, os olhos vasculhando à procura de agentes secretos da polícia. Pouco antes do balcão de confirmação, ele entrou numa loja de flores e presentes. Um cartaz de FECHADO, em letras vermelhas e verdes, estava pendurado de um pino, na parte interna da porta. Era o aviso de que podia entrar com segurança, e também de que a loja seria fechada aos fregueses.
A mulher na loja era uma loura pintada, com muita maquilagem e aparência vulgar, mas com uma voz suave e convidativa, um corpo exuberante, ressaltado por um vestido simples de lã, apertado na cintura por um cinto.
— Sinto muito — disse ela a Yabril. — Pode ver pelo aviso que estamos fechados, é o Domingo de Páscoa.
Mas a voz era afável, não de rejeição; e o sorriso, caloroso. Yabril disse a frase de código, destinada apenas à confirmação do reconhecimento:
— Cristo se levantou, mas ainda assim tenho de viajar a negócios.
Ela estendeu a mão e tirou a mala da mão dele.
— O avião está no horário? — perguntou Yabril.
— Está, sim. Você tem uma hora. Há alguma mudança?
— Não. Mas não se esqueça de que tudo depende de você.
Yabril deixou a loja. Nunca vira a mulher antes e nunca mais tornaria a vê-la, ela conhecia apenas aquela fase da operação. Ele verificou os horários no quadro de partidas. Isso mesmo, o avião decolaria no prazo previsto.
Ela era uma das poucas mulheres entre os Primeiros Cem. Fora plantada na loja há três anos, como proprietária, e durante esse tempo cultivara com o maior cuidado e sedução as relações com o pessoal do terminal aéreo e os guardas de segurança. Estabelecera com astúcia a prática de contornar os detectores nas barreiras para entregar pacotes a pessoas nos aviões. Não fizera isso com uma freqüência exagerada, mas apenas o suficiente para que ninguém se preocupasse. No terceiro ano começara uma ligação amorosa com um dos guardas armados, que podia acenar para que ela passasse pela entrada ao lado dos detectores. Seu amante estava de serviço naquele dia; ela prometera-lhe um almoço e uma sesta na sala dos fundos da loja. E por isso ele se apresentara como voluntário para o plantão no Domingo de Páscoa.
O almoço já estava posto sobre a mesa na sala dos fundos quando ela esvaziou a mala e ajeitou as armas em caixas de presente da Gucci, de cores alegres. Ela pôs as caixas em sacolas de compras de papel malva, e esperou até vinte minutos antes da hora da partida. Depois, com as bolsas aninhadas nos braços, porque estavam muito pesadas e receava que o papel pudesse se romper, ela seguiu apressada, meio sem jeito, para a passagem sem detectores. O amante de plantão acenou para que ela passasse, galantemente. Ela ofereceu-lhe um sorriso afetuoso. Quando entrou no avião, a aeromoça reconheceu-a e exclamou, com uma risada:
— Livia, mais uma vez!
A mulher foi avançando pela seção turística, até avistar Yabril, cercado pelos três homens e três mulheres de seu grupo. Uma das mulheres estendeu os braços para receber as pesadas bolsas.
Á mulher conhecida como Livia largou as bolsas nos braços à espera, e depois virou-se e deixou o avião, quase correndo. Voltou à loja e acabou de aprontar o almoço na sala dos fundos.
O guarda, Faenzi, era um daqueles magníficos espécimes da virilidade italiana, que pareciam ter sido deliberadamente criados para deliciar as mulheres. O fato de ser bonito era a menor de suas virtudes. Mais importante, era um desses homens de doce temperamento, que se sentem totalmente satisfeitos com o âmbito de seus talentos e a extensão de sua ambição. Faenzi usava seu uniforme de guarda do aeroporto com o mesmo garbo de um marechal-de-campo de Napoleão; o bigode era tão impecável e bonito quanto o nariz arrebitado de uma criada de comédia. Podia-se perceber que ele acreditava que tinha um trabalho significativo, um dever importante para o estado. Contemplava as mulheres que passavam de um jeito afetuoso e benevolente, porque se encontravam sob sua proteção. A mulher Li¬via identificara-o quase que imediatamente, em seu primeiro dia de serviço como guarda da segurança do aeroporto, e decidira conquistá-lo. A princípio ele a tratara com uma requintada cortesia filial, mas ela acabara com isso em pouco tempo, usando uma torrente de lisonjas insinuantes, alguns presentes graciosos, e depois lanches deliciosos em sua butique, à noite. Agora, ele a amava, ou pelo menos era tão devotado a ela quanto um cachorro com seu dono indulgente — afinal, Livia era uma fonte de pequenos regalos.
E Livia gostava dele. Era um amante maravilhoso e jovial sem qualquer pensamento sério na cabeça. Preferia-o na cama aos jovens e soturnos revolucionários, consumidos pelo sentimento de culpa, atormentados pela consciência.
Ele se tornara como um animalzinho de estimação, e ela o chamava afetuosamente de Zonzi. Assim que ele entrou na loja e trancou a porta, Livia foi ao seu encontro, com a maior afeição e desejo, embora dominada pela consciência pesada. Pobre Zonzi... O setor antiterrorismo do serviço secreto italiano investigaria tudo, e logo notaria o desaparecimento dela. Zonzi com certeza se gabara de sua conquista — afinal, ela era uma mulher mais velha e experiente, sua honra não precisava ser protegida. A ligação entre os dois seria descoberta. Pobre Zonzi... Aquele lanche seria a sua última hora de felicidade.
Com pressa e eficiência da parte dela, com entusiasmo e alegria da parte dele, fizeram amor. Livia refletiu, com ironia, que ali estava um ato que apreciava intensamente, mas ao mesmo tempo servia a seus propósitos como uma revolucionária. Zonzi seria punido por seu orgulho e presunção, sua paixão condescendente por uma mulher mais velha; ela conquistaria uma vitória tática e estratégica. E, mesmo assim, pobre Zonzi... Como ele era bonito nu, a pele azeitonada, os olhos grandes e ternos, os cabelos muito pretos, o bigode atraente, o pênis e o saco duros como bronze.
— Ah, Zonzi, Zonzi — murmurou Livia, para as coxas do guarda —, não se esqueça nunca de que eu o amo.
Ela alimentou-o com uma refeição magnífica, tomaram uma garrafa de vinho excelente e depois tornaram a fazer amor. Zonzi vestiu-se, beijou-a em despedida, radiante com a convicção de que merecia de fato tanta sorte. Depois que ele saiu, Lívia examinou toda a loja. Reuniu todos seus pertences, junto com algumas roupas extras, e usou a mala de Yabril para carregá-los. Isso era parte das instruções. Não deveria haver vestígios de Yabril. Sua última tarefa foi apagar todas as impressões digitais óbvias que poderia ter deixado na loja, embora fosse apenas um cuidado simbólico. Provavelmente não eliminaria todas. Depois, carregando a mala, deixou a loja, trancou a porta e saiu do terminal. Lá fora, ao sol brilhante da Páscoa, uma mulher de seu próprio grupo esperava com um carro. Livia embarcou, deu um rápido beijo de cumprimento na motorista e comentou, quase pesarosa:
— Graças a Deus que é o fim disso.
Ao que a outra mulher ressaltou:
— Não foi tão ruim assim. Ganhamos dinheiro com a loja.
Yabril e seu grupo estavam na seção turística porque Theresa Kennedy, filha do Presidente dos Estados Unidos, viajava na primeira classe, em companhia dos seis agentes do Serviço Secreto destacados para sua segurança. Yabril não queria que a entrega das armas em embrulhos de presentes fosse observada pelos agentes. Sabia também que Theresa Kennedy não embarcaria no avião até o momento da decolagem e que os agentes não entrariam no avião antes porque nunca sabiam quando a filha do presidente poderia mudar de idéia e também, Yabril assim esperava, porque haviam se tornado indolentes e negligentes.
O avião, um Jumbo, estava longe da ocupação plena. Não eram muitas as pessoas na Itália que resolviam viajar no Domingo de Páscoa, e Yabril especulou por que a filha do presidente americano assim decidira. Afinal, ela era uma católica romana, embora defendesse a nova religião da esquerda liberal, a mais desprezível das divisões políticas. Mas a escassez de passageiros convinha a seus planos — era mais fácil controlar uma centena de reféns.
Uma hora depois, com o avião no ar, Yabril abaixou-se na poltrona, enquanto as mulheres começavam a arrancar o papel Gucci dos embrulhos. Os três homens do grupo usaram seus corpos como escudo, debruçando-se por cima das poltronas e falando com as mulheres. Como não havia outros passageiros sentados nas proximidades, eles formavam um pequeno círculo de privacidade. As mulheres entregaram a Yabril as granadas embrulhadas em papel de presente, e ele pendurou-as em seu corpo. Os homens pegaram pistolas e esconderam-nas dentro dos paletós. Yabril também pegou uma pistola, e as três mulheres se armaram.
Quando tudo estava pronto, Yabril interceptou uma aeromoça que passava pelo corredor. Ela viu as granadas e a pistola antes mesmo que Yabril pegasse sua mão e sussurrasse as ordens. A expressão de espanto, depois choque e medo da aeromoça era familiar para ele. Yabril apertou a mão suada da aeromoça e sorriu. Dois de seus homens tomaram posições para dominar a classe turista. Yabril ainda segurava a aeromoça pela mão quando entraram na primeira classe. Os agentes do Serviço Secreto viram-no, e no mesmo instante perceberam as granadas e a pistola. Yabril sorriu-lhes.
— Continuem sentados, cavalheiros — disse ele.
A filha do presidente virou a cabeça lentamente e fitou Yabril nos olhos. Seu rosto tornou-se tenso, mas não assustado. Ela é corajosa, pensou Yabril, e bonita. Era mesmo uma pena. Ele esperou até que as três mulheres ocupassem posições na primeira classe, depois mandou que a aeromoça abrisse a porta para a cabine de comando. Yabril sentiu que entrava no cérebro de uma imensa baleia, deixando o resto do corpo desamparado.
Quando Theresa Kennedy viu Yabril pela primeira vez, seu corpo tremeu subitamente com a náusea do reconhecimento inconsciente. Aquele homem era o demônio contra o qual ela fora alertada. Havia uma estranha ferocidade no rosto estreito e moreno; o maxilar inferior, brutal, dava-lhe a impressão de um rosto num pesadelo. As granadas penduradas no paletó e em sua mão pareciam sapos verdes. E depois ela viu as três mulheres, vestindo calças escuras e casacos brancos, com as enormes armas de aço em suas mãos. Passado o choque inicial, a segunda reação de Theresa Kennedy foi a de uma criança culpada. Oh, merda, metera o pai numa encrenca; nunca mais ela conseguiria se livrar da segurança do Serviço Secreto. Observou Yabril encaminhar-se para a porta da cabine de comando, segurando a mão da aeromoça. Virou a cabeça para trocar um olhar com o chefe de sua segurança, mas ele observava atentamente as mulheres armadas.
Nesse momento um dos homens de Yabril entrou na primeira classe, com uma granada na mão levantada. Uma das mulheres obrigou outra aeromoça a pegar o microfone. A voz saiu um pouco trêmula pelos alto-falantes:
— Todos os passageiros, apertem os cintos, por favor. O avião foi dominado por um grupo revolucionário. Por favor, permaneçam calmos e aguardem novas instruções. Não se levantem, não toquem em sua bagagem de mão. Não deixem seus lugares por qualquer motivo. Por favor, permaneçam calmos. Permaneçam calmos.
Na cabine de comando, o comandante viu a aeromoça entrar e disse-lhe, muito excitado:
— Ei, o rádio acaba de noticiar que alguém atirou no Papa!
Depois ele viu Yabril entrar por trás da aeromoça e sua boca se abriu num “O” silencioso de surpresa, as palavras congeladas ali, como numa história em quadrinhos, pensou Yabril, enquanto levantava a mão que segurava uma granada. O comandante dissera “atirou no Papa”, Isso significava que Romeu fracassara? A missão já estava perdida? De qualquer forma, Yabril não tinha alternativa. Deu as ordens para o comandante mudar o curso e seguir para o estado árabe de Sherhaben.
No mar de humanidade na Praça São Pedro, Romeu e seu grupo flutuaram para um canto, com um muro de pedra por trás, e formaram sua própria ilha. Annee, com o hábito de freira, postou-se diretamente na frente de Romeu, com a arma pronta para entrar em ação, por baixo do traje. Tinha a responsabilidade de protegê-lo, proporcionar-lhe tempo para o seu tiro. Os outros membros do grupo, em seus disfarces religiosos, formaram um círculo, um perímetro para dar espaço a Romeu. Tinham três horas de espera antes que o Papa aparecesse.
Romeu encostou-se no muro de pedra, fechou os olhos contra o sol da manhã de Páscoa, e a mente repassou rapidamente os movimentos ensaiados da operação. Quando Papa aparecesse, Romeu bateria no ombro do homem à sua esquerda, que acionaria o sinal de rádio para detonar as imagens religiosas no muro no outro lado da praça. No momento das explosões, Romeu tiraria seu rifle de baixo do casaco e atiraria — a rapidez era fundamental, a fim de que o tiro parecesse uma reverberação das outras explosões. Depois largaria o rifle, os monges e freiras formariam um círculo ao seu redor e tratariam de fugir. Havia também bombas de fumaça nas imagens religiosas, a Praça São Pedro seria envolta por densas nuvens. A confusão seria tremenda, haveria pânico. Com tudo isso, eles deveriam conseguir escapar. Os espectadores mais próximos poderiam ser perigosos, pois estariam a par de suas ações, mas o movimento da multidão em fuga logo os separaria. E os que fossem temerários o bastante para insistir na perseguição seriam liquidados a tiros.
Romeu podia sentir o suor em seu peito. A vasta multidão acenando com flores tornou-se um oceano de branco e púrpura, rosa e vermelho. Ele pensou na alegria daquela gente, sua crença na Ressurreição, o êxtase da esperança contra a morte. Enxugou as mãos suadas no casaco e sentiu o peso do rifle na tipóia. As pernas começaram a doer, a ficar dormentes. Romeu projetou a mente para fora do corpo, a fim de passar as longas horas que teria de esperar até que o Papa aparecesse em sua sacada.
Cenas perdidas da infância afloraram. Preparado para a crisma por um sacerdote católico, ele sabia que um cardeal de chapéu vermelho sempre confirmava a morte de um rapa batendo em sua testa com um martelinho de prata. Será que ainda se fazia isso? Desta vez seria um martelinho ensangüentado. Mas de que tamanho? Como um brinquedo? Bastante grande e pesado para pregar um prego? Mas é claro que devia ser uma preciosa relíquia da Renascença, incrustada de pedras preciosas, uma obra de arte. Não fazia diferença, pois restaria muito pouco da cabeça do Papa para se bater; o rifle sob sua roupa continha balas explosivas. E Romeu tinha certeza de que não erraria. Acreditava no fato de ser canhoto, ser mancino significava ser bem-sucedido nos esportes, no amor e, certamente por todas as superstições, no assassinato.
Enquanto esperava, Romeu especulou por que não experimentava nenhum sentimento de sacrilégio — afinal, fora criado rigorosamente como um católico, numa cidade em que cada rua e prédio lembrava os primórdios do cristianismo. Mesmo agora, podia divisar os telhados em domo dos prédios sagrados, como discos de mármores contra o céu, ouvir os sinos das igrejas, muito confortadores, mas também intimidativos. Naquela vasta praça sagrada, podia ver as estátuas de mártires, aspirar o ar impregnado pelas incontáveis flores da primavera, oferecidas pelos verdadeiros crentes em Cristo.
A fragrância intensa das flores envolveu-o, e ele se lembrou da mãe e do pai, sempre perfumados para encobrir o odor da libidinosa e mimada carne mediterrânea.
E de repente a vasta multidão, em seus trajes da Páscoa, pôs-se a gritar “Papa, Papa, Papa!”. À claridade cor de limão do início da primavera, anjos de pedra por cima de suas cabeças, as pessoas clamavam incessantemente pela bênção de seu Papa. Por fim, dois cardeais em hábitos vermelhos apareceram e estenderam os braços em bênção. Um momento depois o Papa Inocêncio surgiu na sacada.
Era um homem muito velho, vestindo uma casula sacerdotal branca, uma cruz dourada por cima, o pálio com cruzes bordadas. Em uma das mãos levantadas para saudar a multidão estava o anel de pescador pontifical de São Pedro.
A multidão mandou suas flores pelo céu, as vozes se elevaram em êxtase, a sacada faiscava ao sol, como se caísse com as flores descendo.
Nesse momento, Romeu sentiu o temor dos símbolos que sempre o haviam inspirado na juventude, recordando o cardeal de chapéu vermelho de sua crisma, que era bexiguento como o Demônio, mas depois experimentou uma intensa exultação que projetou todo o seu ser para a bem-aventurança, a suprema alegria. Romeu bateu no ombro do homem à sua esquerda para acionar o sinal de rádio.
O Papa ergueu os braços dentro das mangas brancas em resposta aos gritos de “Papa, Papa!”, a fim de abençoar a todos, louvar a Páscoa, a Ressurreição de Cristo, saudar os anjos de pedra no alto dos muros ao redor. Romeu tirou o rifle de baixo do casaco; dois monges do grupo à sua frente ajoelharam-se para lhe oferecer uma visão desimpedida. Annee adiantou-se para que ele apoiasse o rifle em seu ombro. O homem à esquerda acionou o sinal de rádio que detonaria os explosivos nas imagens no outro lado da praça.
As explosões sacudiram as fundações da praça, uma nuvem rosada flutuou no ar, a fragrância das flores foi deteriorada pelo fedor de carne queimada. E nesse instante, Romeu, o rifle apontado, puxou o gatilho. As explosões no outro lado da praça mudaram o troar de felicidade da multidão para o que parecia ser gritos estridentes de incontáveis gaivotas.
Lá em cima, o corpo do Papa pareceu se levantar do chão, o solidéu branco voou pelo ar, turbilhonou nos ventos fortes de ar comprimido e depois caiu para a multidão, um trapo ensangüentado. Um gemido de horror, de terror e raiva animal, espalhou-se pela praça, enquanto o corpo do Papa debruçava-se sobre a grade da sacada. A cruz de ouro pendeu livre, o pálio ficou encharcado de vermelho.
Nuvens de pó de pedra estenderam-se sobre a praça. Fragmentos de mármore de anjos e santos espatifados caíram. Havia um terrível silêncio, a multidão paralisada pela visão do Papa assassinado. Todos podiam ver sua cabeça explodida. E depois o pânico começou. As pessoas fugiam da praça, derrubando os guardas suíços, que tentavam fechar as saídas. Os vistosos uniformes da Renascença foram sepultados pela massa de fiéis dominados pelo terror.
Romeu largou o rifle no chão. Cercado por seu grupo de monges e freiras armados, ele se deixou levar para fora da praça, através das ruas de Roma. Parecia ter perdido a visão e cambaleava às cegas; Annee pegou-o pelo braço e empurrou-o para o furgão à espera. Romeu tapou os ouvidos para obstruir os gritos; tremia com o choque, e depois com um senso de regozijo, seguido por um senso de espanto, como se o assassinato não passasse de um sonho.
No Jumbo que deveria seguir de Roma para Nova York, Yabril e seu grupo mantinham o controle absoluto, com todos os passageiros retirados da primeira classe, à exceção de Theresa Kennedy.
Theresa estava agora mais interessada do que assustada. Ficara fascinada pela maneira como os seqüestradores haviam intimidado os agentes do Serviço Secreto com a maior facilidade, pelo simples expediente de mostrar os detonadores espalhados por seus corpos, o que significava que qualquer bala disparada faria com que o avião explodisse no céu. Ela notou que os três homens e três mulheres eram bastante esguios, os rostos contraídos na tensão demonstrada por grandes atletas em momentos de intensa competição. Um seqüestrador deu um empurrão num dos agentes, lançando-o para fora da primeira classe, continuou a empurrá-lo pelo corredor da classe turística. Uma das mulheres manteve Theresa a distância, a arma pronta para entrar em ação. Quando um agente do Serviço Secreto demonstrou alguma relutância em se afastar de Theresa, a mulher estendeu a pistola e encostou o cano em sua cabeça. E seus olhos contraídos indicaram claramente que estava prestes a atirar; os lábios dela se entreabriram um pouco, para aliviar a pressão dos músculos em torno da boca. Nesse instante Theresa empurrou o guarda e pôs seu corpo na frente da mulher, que sorriu aliviada e acenou para que ela sentasse.
Theresa observou Yabril supervisionar a operação. Ele parecia quase distante, como se fosse um diretor assistindo ao desempenho de seus atores, não como se desse ordens, mas apenas oferecendo indicações, sugestões. Com um pequeno sorriso tranqüilizador, ele gesticulou para que The¬resa permanecesse sentada. Era a ação de um homem zelando por alguém que fora entregue aos seus cuidados especiais. Depois, Yabril entrou na cabine de comando. Um dos seqüestradores guarnecia a entrada da primeira classe. Duas mulheres permaneceram na seção com Theresa, as armas levantadas. Uma aeromoça ficou junto do microfone que transmitia mensagens aos passageiros, sob o comando do seqüestrador. Todos pareciam muito pequenos para causarem tanto terror.
Na cabine de comando, Yabril autorizou o comandante a comunicar pelo rádio que o avião fora seqüestrado e transmitir o novo plano de vôo, para Sherhaben. As autoridades americanas pensariam que seu único problema seria o de negociar as habituais exigências terroristas árabes. Yabril permaneceu na cabine para controlar os contatos pelo rádio.
Enquanto o avião estivesse voando, não haveria nada a fazer além de esperar. Yabril sonhou com a Palestina, como fora quando ele era um menino, sua casa um oásis verde no deserto, seu pai e mãe anjos de luz, o belo Corão na escrivaninha do pai, sempre pronto para renovar a fé. E como tudo acabara em nuvens de fumaça cinza, fogo e as explosões das bombas caindo do céu. E os israelenses chegaram, parecia que toda a sua infância fora passada em algum enorme campo de prisioneiros, de choças frágeis, um vasto acampamento unido apenas numa coisa: o ódio aos judeus. Os mesmos judeus que o Corão enaltecia.
Ele se lembrava como, até mesmo na universidade, alguns professores referiam-se a um trabalho malfeito como um “serviço de árabe”. O próprio Yabril já usara a expressão para censurar o armeiro que lhe fornecera armas defeituosas. Só que não chamariam o que estava fazendo agora de um “serviço de árabe”.
Ele sempre odiara os judeus... não, não os judeus, os israelenses. Ainda se lembrava quando era um menino de quatro anos, talvez cinco, não mais velho do que isso, e os soldados de Israel atacaram o acampamento em que ele freqüentava a escola. Haviam recebido a falsa informação, “serviço de árabe”, de que o acampamento ocultava terroristas. Todos os habitantes receberam ordem de saírem e suas casas para as ruas, com as mãos levantadas. Inclusive as crianças na cabana comprida de lata, pintada de amarelo, que servia como escola, um pouco apartada do povoado. Yabril ficara com as outras crianças de sua idade, choramingando, os braços erguidos em rendição, gritando em terror. E Yabril jamais esquecera um dos jovens soldados israelenses, a nova raça de judeu, louro como um nazista, olhando para as crianças com uma espécie de horror, e depois a pele clara daquele estranho rosto semita ficara molhada de lágrimas. O israelense baixara sua arma e gritara que as crianças podiam parar de chorar, baixar as mãos. Nada tinham a temer, dissera ele, as criancinhas nada tinham a temer. O soldado israelense falava um árabe perfeito; como as crianças permanecessem imóveis, com os braços levantados, o soldado circulara entre elas, tentando fazer com que baixassem as mãos, chorando durante todo o tempo. Yabril nunca esquecera o soldado, e resolvera, mais tarde, que nunca seria como ele, nunca deixaria que a compaixão o destruísse.
Agora, olhando para baixo, ele podia avistar os desertos da Arábia. Muito em breve o vôo terminaria e ele estaria no sultanato de Sherhaben.
Sherhaben era um dos menores países do mundo, mas tinha tamanha abundância de petróleo que as centenas de filhos e netos do sultão que andava a camelo agora guiavam Mercedes e estudavam nas melhores universidades do exterior. O sultão original possuíra grandes empresas industriais na Alemanha e nos Estados Unidos, e morrera como o homem mais rico do mundo. Só um de seus netos sobrevivera às intrigas fatais de meios-irmãos e se tornara o atual sultão — Maurobi.
O Sultão Maurobi era um militante, um fanático devoto muçulmano, e os cidadãos de Sherhaben, agora ricos, eram igualmente devotos. Nenhuma mulher podia sair de casa sem um véu; nenhum dinheiro podia ser emprestado a juros; não havia uma gota de álcool naquela sedenta terra de deserto, a não ser nas embaixadas estrangeiras.
Há muito tempo Yabril ajudara o sultão a conquistar e consolidar o poder, assassinando quatro dos mais perigosos meios-irmãos de Maurobi. Por causa dessas dívidas e gratidão, e também por seu ódio às grandes potências, o sultão concordara em ajudar Yabril naquela operação.
O avião levando Yabril e seus reféns aterrissou e seguiu lentamente para o pequeno terminal envidraçado, amarelo-claro ao sol do deserto. Quando o avião parou, Yabril constatou que o aeroporto estava cercado por mil sol¬dados pelo menos do Sultão Maurobi.
Começaria agora a parte mais intrincada e satisfatória da operação... e também a mais perigosa. Ele precisaria ser cuidadoso até que Romeu finalmente estivesse no lugar certo. E estaria apostando na reação do sultão e seu xeque-mate final e secreto. Não, aquele não era um serviço de árabe.
Por causa da diferença de fusos horários com a Europa, Francis Kennedy recebeu a primeira notícia do atentado contra o Papa às seis horas da manhã do Domingo de Páscoa. Foi transmitida pelo secretário de imprensa, Matthew Gladyce, que estava de plantão na Casa Branca durante os feriados. Eugene Dazzy e Christian Klee já haviam sido informados e estavam também na Casa Branca.
Francis Kennedy desceu de seus aposentos pela escada e entrou no Gabinete Oval para encontrar Dazzy e Chris¬tian à sua espera. Ambos exibiam expressões sombrias. A distância, nas ruas de Washington, soavam sirenes. Fran¬cis sentou atrás de sua escrivaninha. Olhou para Eugene Dazzy, que daria as informações, como chefe do gabinete.
— Francis, o Papa está morto. Foi assassinado durante o serviço da Páscoa.
Kennedy ficou chocado.
— Quem fez isso? E por quê?
— Não sabemos — respondeu Klee. — E há uma noticia ainda pior.
Kennedy tentou ler os rostos dos homens à sua frente, sentindo um medo crescente.
— O que poderia ser pior?
— O avião em que Theresa viajava foi seqüestrado e está agora a caminho de Sherhaben — informou Klee.
Francis Kennedy sentiu uma onda de náusea envolvê-lo. E um momento depois ouviu Eugene Dazzy acrescentar:
— Os seqüestradores têm tudo sob controle, não há incidentes no avião. Assim que pousar, começaremos a negociar, cobraremos todos os favores que prestamos, tudo acabará bem. Creio que eles nem mesmo sabiam que Theresa se encontrava no avião.
— Arthur Wix e Otto Gray estão vindo para cá —disse Christian. — E também a CIA, o Departamento de Defesa e a vice-presidente. Estarão à sua espera na Sala do Gabinete dentro de meia hora.
— Está certo. — Kennedy fez um esforço para manter o controle. — Há alguma ligação?
Ele percebeu que Christian não ficou surpreso, mas que Dazzy não entendera.
— Entre o Papa e o seqüestro — explicou Kennedy, Como nenhum dos dois respondesse, ele acrescentou: —Esperem por mim na Sala do Gabinete, Quero ficar a sós por um momento.
Os dois se retiraram.
O próprio Kennedy era quase invulnerável a assassinos, mas sempre soubera que nunca poderia proporcionar uma proteção total à filha. Ela era muito independente, jamais permitiria restrições à sua vida. E não parecia um perigo mais sério. Ele não podia se lembrar de qualquer atentado à filha de um chefe de estado. Era uma péssima ação política e as piores relações públicas para qualquer organização terrorista ou revolucionária.
Depois da posse do pai, Theresa seguira seu próprio caminho, emprestando seu nome a grupos radicais e feministas, ao mesmo tempo em que declarava que sua posição na vida era diferente da posição do pai. Ele nunca tentara persuadi-la a agir de modo diferente, a apresentar ao público uma falsa imagem de si mesma. Bastava que ele a amasse. E quando Theresa visitava a Casa Branca, para uma permanência, os dois sempre se divertiam juntos, discutindo política, dissecando os meandros do poder.
A imprensa republicana conservadora e os vergonhosos tablóides sempre a vigiavam, na esperança de prejudicar o presidente. Theresa fora fotografada marchando com as feministas, em manifestações contra as armas nucleares e uma ocasião até defendendo uma pátria para os palestinos. O que sem dúvida inspiraria agora comentários irônicos nos jornais.
Por mais estranho que pudesse parecer, o público americano reagia a Theresa Kennedy com afeição, mesmo ao saber que ela estava vivendo com um radical italiano em Roma. Apareceram fotografias dos dois passeando pelas velhas ruas de pedra, beijando-se, de mãos dadas; fotografias da varanda do apartamento que partilhavam. O jovem amante italiano era bonito; Theresa era atraente em sua lourice, com a leitosa pele irlandesa e os olhos azuis lustrosos dos Kennedys. E seu corpo Kennedy, bastante esguio, envolto por roupas italianas informais, tornava-a tão cativante que as legendas por baixo das fotografias eram desprovidas de veneno.
Uma fotografia sua, protegendo o jovem amante italiano dos cassetetes da polícia italiana, ressuscitara sentimentos há muito sepultados nos americanos mais velhos, lembranças daquele dia terrível em Dálias.
Ela era uma heroína espirituosa. Durante a campanha, fora acuada por repórteres de TV, que lhe perguntaram:
— Concorda com seu pai politicamente?
Se ela respondesse “sim”, pareceria uma hipócrita ou uma criança manipulada por um pai sedento de poder. Se respondesse “não”, as manchetes ressaltariam que nem mesmo a filha apoiava Kennedy na disputa pela presidência. Mas ela demonstrara o gênio político dos Kennedys ao responder, abraçando o pai:
— Claro, ele é meu pai. E sei que é um homem de bem. Mas se fizer alguma coisa que não me agrade, gritarei com ele, exatamente como vocês repórteres fazem.
A declaração foi divulgada para todo o país pela televisão. O pai amara-a ainda mais por isso. E agora ela corria um perigo mortal.
Se ao menos ela permanecesse mais perto dele, se ao menos fosse uma filha mais amorosa e vivesse em sua companhia na Casa Branca, se fosse menos radical, nada daquilo estaria acontecendo. E por que ela precisava ter um amante estrangeiro, um estudante radical que talvez tivesse fornecido informações cruciais ao seqüestrador? E, depois, Kennedy riu de si mesmo. Sentia a exasperação de um pai que queria resguardar a filha de problemas. Amava-a e haveria de salvá-la. Pelo menos aquilo era uma coisa contra a qual poderia lutar, não como a longa e dolorosa morte de sua mulher.
Agora Eugene Dazzy apareceu e disse-lhe que estava na hora. Esperavam-no na Sala do Gabinete.
Todos se levantaram quando Kennedy entrou. Ele gesticulou no mesmo instante para que sentassem, mas todos o cercaram para oferecer seu apoio. Kennedy encaminhou-se para a cabeceira da comprida mesa oval e sentou na cadeira perto da lareira.
Dois lustres de luz branca clareavam o marrom da mesa, faziam faiscar o preto das cadeiras de couro, seis em cada lado da mesa, com mais cadeiras encostadas na parede do outro lado. Ao lado das duas janelas que se abriam para o Jardim das Rosas havia duas bandeiras, a listrada dos Estados Unidos e a bandeira do presidente, um campo azul-escuro com estrelas claras.
Os assessores de Kennedy ocuparam lugares perto dele, pondo suas pastas em cima da mesa oval. Mais além sentaram os membros do Gabinete e o comandante do estado-maior das forças armadas, um general do exército de uniforme, sua cor se destacando no grupo sombriamente vestido. A Vice-Presidente Du Pray ocupou a outra extremidade da mesa, longe de Kennedy, a única mulher na sala. Usava um elegante costume azul-escuro, com uma blusa de seda. O rosto bonito exibia uma expressão firme e compenetrada. A fragrância do Jardim das Rosas impregnava a saia, passando pelas grossas cortinas que cobriam as portas de vidro. Por baixo das cortinas, o tapete água-marinha refletia uma claridade esverdeada para a sala.
Foi o diretor da CIA, Theodoro Tappey, quem deu as informações. Tappey, que já fora diretor do FBI, não era empolado nem tinha ambições políticas. E nunca ultrapassara os regulamentos da CIA com planos arriscados, ilegais ou de expansão de seu poder. Tinha muito crédito com a assessoria pessoal de Kennedy, em particular com Christian Klee.
— Nas poucas horas que tivemos, conseguimos obter algumas informações concretas — disse Tappey. — O assassinato do Papa foi cometido por um grupo só de italianos. O seqüestro do avião de Theresa foi realizado por um grupo misto, liderado por um árabe que atende pelo nome de Yabril. O fato dos dois incidentes terem ocorrido no mesmo dia e se originado na mesma cidade parece coincidência. Algo de que, é claro, sempre devemos desconfiar.
Kennedy interveio, suavemente:
— Neste momento, o assassinato do Papa não é primário. Nossa maior preocupação é o seqüestro. Eles já fizeram exigências?
Tappey respondeu com firmeza e presteza:
— Não. O que é uma estranha circunstância, por si mesma.
— Acione os seus contatos para negociações e me informe pessoalmente a cada passo. — Kennedy virou-se para seu secretário de estado. — Que países nos ajudarão?
— Todos... os outros Estados árabes estão horrorizados, detestam a idéia de sua filha ser mantida como refém. Ofende o senso de honra deles, e também pensam em seu antigo costume da inimizade de sangue. Estão convencidos de que nada de bom poderá resultar do seqüestro para eles. A França mantém boas relações com o sultão. Ofereceram enviar observadores para nós. A Inglaterra e Israel não podem ajudar... os árabes não confiam neles. Mas até os seqüestradores apresentarem suas exigências, estamos numa espécie de limbo.
Kennedy olhou para Christian Klee.
— Chris, o que você acha do fato de ainda não terem apresentado exigências?
— Talvez seja cedo demais. Ou então eles têm outro trunfo para jogar.
A Sala do Gabinete foi dominada por um lúgubre silêncio; contra o preto das muitas cadeiras altas, os pontos de luz branca nas paredes transformavam a pele das pessoas num cinza muito claro. Kennedy esperou que falassem, todos eles, e fechou a mente quando formularam as opções, a ameaça de sanções, a ameaça de um bloqueio naval, o congelamento dos bens de Sherhaben nos Estados Unidos — a expectativa de que os seqüestradores prolongariam as negociações interminavelmente, a fim de aproveitar ao máximo o tempo de TV e o noticiário dos jornais no mundo inteiro.
Depois de algum tempo, Kennedy virou-se para Oddblood Gray e disse abruptamente:
— Marque uma reunião com os líderes partidários no Congresso e os presidentes dos comitês relevantes, comigo e minha assessoria.
Ele virou-se em seguida para Arthur Wix:
— Ponha o seu pessoal de segurança nacional para elaborar planos, caso isto se expanda.
O presidente levantou-se para ir embora e acrescentou, dirigindo-se a todos:
— Senhores, devo lhes dizer que não acredito em coincidências. Não acredito que o Papa da Igreja Católica Romana possa ser assassinado no mesmo dia e na mesma cidade em que a filha do Presidente dos Estados Unidos é seqüestrada.
Adam Gresse e Henry Tibbot encararam o Domingo de Páscoa como um dia de trabalho. Não em projetos científicos, mas na remoção de todos os vestígios de seu crime. Em seu apartamento, juntaram todos os jornais velhos a que haviam recortado as letras para compor a mensagem. Passaram o aspirador por toda parte, a fim de remover os menores fragmentos de aparas de papel cortado. Até se livraram da tesoura e da cola. Lavaram as paredes E depois foram para sua oficina na universidade, a fim de se livrarem de todos os instrumentos e equipamentos usados na fabricação de sua bomba. Não lhes ocorreu ligar a televisão, até que a tarefa estivesse concluída. Quando souberam do assassinato do Papa e do seqüestro da filha do presidente, trocaram um olhar e sorriram; e Adam Gresse comentou:
— Henry, acho que nossa hora chegou.
Foi um longo Domingo de Páscoa. A Casa Branca estava repleta com o pessoal dos diferentes comitês de ação formados pela CIA, exército, marinha e Departamento de Estado. Todos concordavam que o fato mais desconcertante era que os terroristas ainda não haviam apresentado suas exigências para libertar os reféns.
Lá fora, as ruas estavam congestionadas pelo tráfego. Repórteres de jornais e TV corriam para Washington. Os funcionários da assessoria especial haviam sido chamados para trabalhar, apesar da Páscoa. E Christian Klee determinara que mil homens extras do Serviço Secreto e do FBI reforçassem a segurança da Casa Branca.
O movimento telefônico na Casa Branca aumentou em volume. Reinava a maior confusão, pessoas corriam de um lado para outro, na Casa Branca e no anexo do executivo. Eugene Dazzy tentava manter tudo sob controle.
O resto do domingo na Casa Branca foi ocupado com informações constantes transmitidas a Kennedy da Sala de Comando, em longas e solenes reuniões em que eram estudadas todas as opções, em conversas telefônicas entre os chefes de outros estados e membros do Gabinete dos Estados Unidos.
Ao final da noite de domingo, a assessoria pessoal do presidente jantou com ele, todos se preparando para o dia seguinte. Controlavam o noticiário da TV, que era contínuo.
Kennedy decidiu finalmente ir para a cama. Tinha certeza de que sua assessoria se manteria em vigília durante a noite e o acordaria em caso de necessidade. Um agente do Serviço Secreto seguiu na frente, quando Kennedy subiu a pequena escada que levava a seus aposentos, no quarto andar. Outro agente subiu em sua esteira. Ambos sabiam que o presidente detestava andar nos elevadores da Casa Branca.
O topo da escada abria-se para um salão, em que havia uma mesa de comunicações e mais dois homens do Serviço Secreto. Depois de passar por esse salão, Kennedy entrava em seus aposentos, em que ficavam apenas os seus criados pessoais; uma moça, o mordomo e o valete, cuja função era cuidar de seu amplo guarda-roupa.
O que Kennedy não sabia era que até mesmo esses criados pessoais pertenciam ao Serviço Secreto. Christian Klee é que determinara esse esquema. Era parte de seu plano geral para manter o presidente a salvo de qualquer atentado, parte do complexo escudo que Christian erguera em torno de Francis Kennedy.
Ao assumir o comando do sistema de segurança, Christian explicara ao pelotão especial de homens e mulheres do Serviço Secreto:
— Vocês serão os melhores criados pessoais do mundo, e poderão sair daqui e conseguir um emprego no Palácio de Buckingham. Já sabem que seu primeiro dever é se colocarem na frente de quaisquer balas disparadas contra o presidente. Mas também terão o dever de tornar mais confortável a vida particular do presidente.
O chefe do pelotão especial era o valete de serviço naquela noite. Ostensivamente, ele era um camareiro negro da marinha, com o posto de suboficial. Na verdade, ele ocupava um dos postos mais elevados no Serviço Secreto e era excepcionalmente bem-treinado em combate corpo a corpo. Era um atleta natural e disputara o campeonato principal da liga universitária de futebol americano. E seu QI era de 160. Também tinha um senso de humor, o que lhe proporcionava satisfação especial em se tornar o criado perfeito.
Agora, Jefferson ajudou Kennedy a tirar o paletó e pendurou-o com todo cuidado. Entregou a Kennedy um chambre de seda, pois já sabia que o presidente não gosta que o ajudasse a vesti-lo. Quando Kennedy foi para o pequeno bar na sala de estar da suíte, Jefferson já se encontrava lá, preparando uma vodca com tônica e gelo. E Jefferson comunicou pouco depois:
— Senhor Presidente, seu banho já está pronto.
Kennedy fitou-o com um sorriso. Jefferson era bom demais para ser verdade.
— Por favor, Jefferson, desligue todos os telefones. Você pode me acordar pessoalmente, se for necessário.
Ele ficou no banho quente por quase meia hora. Os jatos da banheira esguichavam em suas costas e coxas, aliviando o cansaço dos músculos. A água tinha uma agradável fragrância masculina, e na prateleira em torno da banheira havia um amplo sortimento de sabonetes, linimentos e revistas. Havia até mesmo uma cesta de plástico com uma pilha de memorandos.
Ao sair do banho, Kennedy vestiu um roupão branco felpudo, que tinha um monograma em vermelho, branco e azul, dizendo O CHEFE. Era um presente do próprio Jefferson, que o julgara de acordo com o papel que representava. Francis Kennedy esfregou o corpo branco, quase sem pelos, com o próprio roupão, a fim de se enxugar. Sempre fora insatisfeito com a palidez de sua pele e a ausência de pelos no corpo.
.Jefferson fechara as cortinas do quarto e acendera a luz de leitura. Também puxara as cobertas. Havia uma mesinha com tampo de mármore, equipada com rodinhas, e uma poltrona confortável. A mesinha estava coberta por uma toalha bordada rosa-claro, havendo por cima um jarro azul-escuro com chocolate quente. O chocolate era sempre despejado numa xícara azul-celeste. Havia também uma travessa pintada contendo seis variedades de biscoitos. Um pote branco continha manteiga sem sal e quatro potes diferentes ofereciam geléias diferentes: verde para maçã, azul para framboesa, amarelo para marmelada e vermelho para morango.
— Está ótimo — disse Kennedy.
Jefferson se retirou. Por algum motivo, pensou Kennedy, aquelas pequenas atenções o confortavam mais do que deveriam. Ele sentou na poltrona e tomou o chocolate, tentou comer um biscoito e não conseguiu. Empurrou a mesinha para longe e deitou. Tentou ler de uma pilha de memorandos, mas sentiu-se cansado demais. Apagou a luz e tentou dormir.
Mas através das cortinas, que abafavam os sons, ainda podia ouvir um pouco do imenso ruído lá fora, com representantes dos meios de comunicação do mundo inteiro se concentrando diante da Casa Branca para uma vigília de 24 horas por dia. Haveria dezenas de veículos, com as câmeras e equipes de TV. E um batalhão de fuzileiros fora chamado para aumentar a segurança.
Francis Kennedy sentia o profundo presságio que só lhe surgira antes uma vez, em toda a sua vida. E se permitiu pensar na filha, Theresa. Ela dormia naquele avião, cercada por assassinos. E não era uma questão de azar. O destino lhe proporcionara muitos presságios. Dois tios haviam sido assassinados quando ele era pequeno. E pouco mais de três anos antes a mulher, Catherine, morrera de câncer.
A primeira grande derrota na vida de Francis Kennedy ocorrera quando Catherine Kennedy descobrira um caroço no seio, seis meses antes de o marido ganhar a convenção partidária para disputar a presidência. Depois do diagnóstico de câncer, Kennedy propusera se retirar do processo político, mas ela o proibira, dizendo que queria viver na Casa Branca. Haveria de se recuperar, dissera ela, e o marido nunca duvidara. A princípio se preocupara com a possibilidade de Catherine perder o seio c consultara cancerologistas do mundo inteiro sobre as perspectivas de uma operação que removesse apenas o tumor canceroso. Um dos maiores especialistas em câncer dos Estados Unidos examinara o caso de Catherine e recomendara a remoção do seio. Francis Kennedy jamais esquecera suas palavras:
— É um tipo de câncer extremamente agressivo.
Ela estava fazendo quimioterapia quando ele conquistara em julho a indicação democrata para concorrer à presidência. E se encontrava num processo de remissão. Engordara, o esqueleto se escondia por trás de uma parede de carne.
Descansava muito, não podia sair de casa, mas estava sempre de pé para recebê-lo quando ele chegava. Theresa voltara à faculdade, Kennedy continuara a campanha. Mas organizara seu programa de maneira a poder voar de volta para casa, a intervalos de poucos dias, a fim de estar com Catherine. A cada vez que ele voltava Catherine parecia mais forte, e aqueles dias foram maravilhosos, nunca haviam se amado tanto. Ele levava presentes; ela tricotava luvas e agasalhos.
Uma ocasião ela dera um dia de folga às enfermeiras e criadas, a fim de poder ficar a sós com o marido na casa, desfrutarem o jantar simples que ela preparara. Catherine estava se recuperando. Fora o momento mais feliz na vida de Francis Kennedy, nada poderia se comparar àquelas poucas horas. Ele derramara lágrimas de pura alegria, sem angústia, sem medo. Na manhã seguinte saíram para um passeio pelas colinas verdes em torno da casa, o braço de Catherine estendido pela cintura do marido. Ela sempre fora vaidosa com sua aparência, preocupada em ajustar os vestidos novos, os maiôs, em esconder a dobra extra de pele sob o queixo. Mas agora tentava engordar. Kennedy pudera sentir cada osso do corpo da mulher, enquanto passeavam, enlaçados. Ao voltarem, ele próprio preparara o desjejum e Catherine comera vorazmen¬te, mais do que o marido podia se lembrar de em qualquer outra ocasião.
Sua recuperação proporcionara a Kennedy a energia para.se elevar no auge de sua capacidade, enquanto prosseguia na campanha para a presidência. Levara de roldão tudo o que surgia à.sua frente, tudo era maleável, a ser moldado por seu destino afortunado. Seu corpo gerava uma enorme energia, a mente operava com uma precisão extraordinária.
E de repente, numa de suas viagens para casa, ele mergulhara no inferno. Catherine se achava mal outra vez, não estava de pé para recebê-lo. E todos os talentos e forças de Francis Kennedy de nada adiantavam.
Catherine fora a esposa perfeita para ele. Não que fosse uma mulher extraordinária, mas era uma dessas mulheres que parecem quase geneticamente dotadas para a arte do amor. Ela tinha o que parecia ser uma ternura natural, um temperamento excepcional. O marido nunca a ouvira dizer uma única palavra ruim sobre qualquer pessoa; ela perdoava os defeitos dos outros, nunca se sentia desfeiteada ou insultada. E nunca acalentava ressentimentos.
Era agradável sob todos os aspectos. Possuía um corpo esguio, o rosto apresentava uma beleza tranqüila, que inspirava afeição em quase todos. Tinha uma fraqueza, é claro: adorava roupas bonitas e era um pouco vaidosa. Mas permitia que os outros zombassem disso. Era espirituosa, sem ser insultuosa ou mordaz. Nunca ficava deprimida. Era instruída, trabalhara como jornalista antes de casar, e tinha outros talentos. Era uma magnífica pianista amadora; pintava como um hobby. Criara bem a filha e as duas se amavam; era compreensiva com o marido e nunca sentia ciúme de suas realizações. Era um desses acidentes raros, um ser humano contente e feliz.
Chegara o dia em que o médico procurara Francis Kennedy no corredor do hospital e lhe dissera, de uma maneira franca e brutal, que sua esposa devia morrer. O médico explicara. Havia buracos nos ossos de Catherine Kennedy, seu esqueleto podia ruir. Havia tumores no cérebro, pequenos agora, mas a expansão era inevitável. E o sangue, inexoravelmente, produzia venenos para acarretar sua morte.
Francis Kennedy não fora capaz de dizer isso à esposa. E não pudera dizer porque não conseguia acreditar. Recorrera a todos os seus recursos, entrara em contato com todos os seus amigos poderosos, até mesmo consultara o Oráculo. Havia uma esperança. Em centros médicos espalhados por todos os Estados Unidos realizavam-se pesquisas, testando-se novas e perigosas drogas, programas experimentais disponíveis apenas aos que haviam sido proclamados condenados. E havia tantos condenados que cada programa tinha pelo menos cem voluntários.
E assim, Francis Kennedy cometeu o que normalmente considerava um ato imoral. Usou todo o seu poder para incluir a esposa num desses programas de pesquisa; recorreu a todo o seu prestígio para que a esposa pudesse receber em seu corpo aqueles venenos letais, mas que também podiam preservar-lhe a vida. E conseguiu. Passou a sentir uma nova confiança. Algumas pessoas saíram curadas desses centros de pesquisa. Por que não sua mulher? Por que não podia salvá-la? Triunfara durante toda a sua vida, tornaria a vencer agora.
E começou então um reinado de trevas. A princípio, foi um programa de pesquisas em Houston. Ele internou Catherine num hospital ali, permaneceu a seu lado durante o tratamento, que a enfraqueceu tanto que ela ficou irremediavelmente acamada. Ela obrigou-o a deixá-la ali e continuar a campanha presidencial. Ele voou de Houston para Los Angeles, a fim de fazer discursos da campanha, confiantes, espirituosos, animados. Voou de volta a Houston de madrugada, a fim de passar algumas horas em companhia da esposa. E tornou a voar para a próxima escala na campanha, assumindo o papel de estadista.
O tratamento em Houston fracassou. Em Boston, removeram o tumor do cérebro de Catherine, com êxito, embora se verificasse que era maligno. E também eram malignos os novos tumores em seus pulmões. As radiografias indicavam que os buracos nos ossos eram maiores. Em outro hospital de Boston, novas drogas e novos tratamentos fizeram milagres. O novo tumor no cérebro parou de crescer, os tumores no seio restante regrediram. Todas as noites, Francis Kennedy voava da cidade em que estivera em campanha para passar algumas horas com a esposa, lia para ela, gracejava. Às vezes Theresa voava da escola em Los Angeles para visitar a mãe. Pai e filha jantavam juntos e depois visitavam a paciente em seu quarto no hospital, ficavam sentados no escuro, em sua companhia. Theresa contava histórias engraçadas, suas aventuras na escola; Francis relatava suas aventuras na campanha para a presidência. E Catherine ria.
Kennedy tornou a propor o abandono da campanha para passar o tempo todo ao lado da esposa. E Theresa queria deixar a escola para ficar permanentemente com a mãe. Mas Catherine disse-lhes não, não admitiria que fizessem isso. Ela poderia ficar doente por muito tempo. E eles deviam continuar suas vidas. Só isso podia lhe proporcionar esperança, só isso lhe daria forças para suportar a tortura. Nesse ponto, mostrou-se inflexível. Ameaçou deixar o hospital e voltar para casa se os dois não prosseguissem como se tudo estivesse normal.
Francis, nas longas viagens noturnas para sua cabeceira, só podia admirar a tenacidade da mulher. Catherine, o corpo cheio de veneno químico para combater os venenos de seu próprio corpo, apegava-se com todo empenho à convicção de que acabaria se recuperando e que as duas pessoas que mais amava no mundo não seriam arrastadas para o fundo com ela.
E, finalmente, o pesadelo parecia chegar ao fim. Ela se achava outra vez em remissão. Francis podia levá-la para casa. Haviam passado pelos mais diversos pontos dos Estados Unidos; Catherine estivera em sete hospitais diferentes, submetendo-se a tratamentos experimentais, o grande fluxo de substâncias químicas parecia ter funcionado. Francis experimentava uma exultação intensa: triunfara mais uma vez. Levou a esposa para casa, em Los Angeles. Uma noite, ele, Catherine e Theresa saíram para jantar, antes da retomada da campanha eleitoral. Era uma linda noite de verão, o ar fragrante da Califórnia os acariciava. Houve um estranho momento. Um garçom derramou uma gota de molho de um prato na manga do vestido novo de Catherine. Ela desatou a chorar e perguntou, soluçando, depois que o garçom se afastou:
— Por que ele tinha de fazer isso comigo?
Era uma reação tão insólita — em ocasiões anteriores, ela descartaria um incidente assim com uma risada — que Francis Kennedy sentiu um estranho presságio. Catherine passara pela tortura de todas aquelas operações, a remoção do seio a extirpação no cérebro, a dor dos tumores crescentes e nunca chorara nem se queixara. E agora, era evidente, aquela mancha na manga parecia comprimir seu coração. Catherine ficou desconsolada.
No dia seguinte Kennedy tinha de voar para comícios Nova York. Pela manhã, Catherine preparou o desjejum. Estava radiante, sua beleza parecia maior do que nunca. Todos os jornais divulgavam pesquisas, indicando que Kennedy estava na frente. Catherine leu-as em voz alta e comentou:
— Oh, Francis, vamos viver mesmo na Casa Branca! Terei a minha própria equipe. E Theresa poderá levar os amigos para passar os fins de semana e férias. Pense só como seremos felizes. E não voltarei a ficar doente. Prometo. Você fará grandes coisas, Francis, tenho certeza.
Ela abraçou-o e chorou de felicidade e amor.
— Vou ajudá-lo, Francis. Passearemos juntos por todos aqueles cômodos e eu o ajudarei a fazer seus planos. Você será o maior de todos os presidentes. Vou ficar boa, querido, e terei muito o que fazer. Seremos muito felizes. Temos muita sorte, não é?
Ela morreu no outono, a claridade de outubro tornou-se sua mortalha. Francis Kennedy ficou parado entre as colinas verdes e chorou. Árvores prateadas velavam no horizonte, e na agonia atordoada ele fechou os olhos, tapou-os com as mãos, a fim de excluir o mundo. Foi nesse instante sem luz que ele sentiu romper a essência de sua mente.
Alguma célula inestimável de energia escapou. Era a primeira vez em sua vida que sua inteligência extraordinária não valia coisa alguma. Sua riqueza nada significava. Seu poder político e posição no mundo nada significavam. Não fora capaz de salvar a esposa da morte. E, portanto tudo se tornava nada.
Ele retirou as mãos dos olhos e lutou contra o nada com um supremo esforço da vontade. Reuniu o que restava de seu mundo, convocou todas as forças para lutar contra o sofrimento. Faltava menos de um mês para a eleição e ele fez o esforço final.
Entrou na Casa Branca sem a esposa, apenas com a filha, Theresa. E Theresa tentou se mostrar feliz, mas chorou durante toda aquela primeira noite porque a mãe não se encontrava com eles.
E agora, três anos depois da morte da esposa, Francis Kennedy, Presidente dos Estados Unidos, um dos homens mais poderosos do mundo, estava sozinho em sua cama, apreensivo pela vida da filha, incapaz de dormir.
O sono inviável, ele tentou repelir o terror que o impedia de dormir. Disse a si mesmo que os seqüestradores não se atreveriam a fazer mal a Theresa, que a filha voltaria para casa sã e salva. Nessa questão não se achava impotente — não precisava confiar nos fracos e falíveis deuses da medicina, não tinha de enfrentar as invencíveis células cancerosas. Nada disso. Poderia salvar a vida da filha. Poderia recorrer a todo o poderio de seu país, empenhar sua autoridade. Tudo estava em suas mãos e, graças a Deus, não tinha escrúpulos políticos. A filha era a única coisa que restava neste mundo que ele amava de verdade. E haveria de salvá-la.
Mas depois a ansiedade, uma onda de tanto medo que seu coração pareceu parar, levou-o a acender a luz por cima da cabeça. Levantou-se e foi sentar na poltrona. Puxou a mesinha de tampo de mármore e tomou o resto de chocolate frio na xícara.
Estava convencido de que o avião fora seqüestrado porque sua filha se encontrava nele. O seqüestro fora possível por causa da vulnerabilidade da autoridade instituída a uns poucos terroristas determinados, implacáveis e talvez arrogantes. E fora inspirado pelo fato de que ele, Francis Kennedy, Presidente dos Estados Unidos, era o símbolo proeminente dessa autoridade. Por seu desejo de ser Presidente dos Estados Unidos, ele, Francis Kennedy, era responsável por lançar a filha numa situação de perigo.
Ele tornou a ouvir as palavras do médico: “É um tipo de câncer extremamente agressivo.” Mas agora compreendia plenamente as implicações. Tudo era mais perigoso do que parecia. Aquela era uma noite em que deveria planejar, defender; tinha o poder de alterar o destino. O sono nunca chegaria aos compartimentos de seu cérebro, repletos de minas.
Qual fora o seu desejo? Levar o nome Kennedy a um destino vitorioso? Mas era apenas um primo. Lembrava do tio-avô, Joseph Kennedy, lendário conquistador de mulheres, um homem que acumulara muito ouro, uma mente perceptiva para o momento, mas cega para o futuro. Lembrava afetuosamente do Velho Joe, embora tivesse certeza de que ele seria um adversário político de Francis Kennedy, se estivesse vivo hoje. O Velho Joe dera moedas de ouro a Francis em seus primeiros aniversários e instituíra um fundo de investimentos para ele. Levara uma vida egocêntrica, trepando com estrelas de Hollywood, projetando os filhos o mais alto possível. Não importava que tivesse sido um dinossauro político. E que fim trágico. Uma vida afortunada até o último capítulo: o assassinato de dois filhos, tão jovens, tão proeminentes. O velho derrotado, um derrame final explodindo seu cérebro.
Tornar o filho Presidente dos Estados Unidos — um pai poderia ter alegria maior? E o velho fazedor de reis sacrificara os filhos por nada? Os deuses haviam-no punido não tanto por seu orgulho, mas por seu prazer? Ou tudo não passara de um acidente? Os filhos Jack e Robert, tão ricos, tão bonitos, tão talentosos, mortos por pessoas impotentes que inscreviam seus nomes na história pelo assassinato dos que lhe eram superiores. Não, não podia haver nenhum propósito, era tudo obra do acaso. Tantas coisas pequenas podiam alterar o destino, precauções mínimas reverter o curso de tragédia...
E, no entanto... no entanto, havia aquele estranho sentimento de tragédia. Por que a ligação entre o assassinato do Papa e o seqüestro da filha do Presidente dos Estados Unidos? Por que a demora em apresentar as exigências? Que outros caminhos haveria no labirinto? E tudo aquilo de um homem de que ele nunca ouvira falar, um misterioso árabe chamado Yabril, e um jovem italiano chamado, em desdenhosa ironia, Romeu.
Na escuridão, ele sentiu-se apavorado com a maneira pela qual tudo poderia terminar. Sentiu a raiva familiar, sempre reprimida, o temor. Recordou os dias angustiantes em que ouvira os primeiros sussurros de que o tio Jack morrera, e o choro longo e desesperado de sua mãe.
Depois, misericordiosamente, os compartimentos do cérebro se abriram, as lembranças escaparam. E ele adormeceu na poltrona.
O MEMBRO MAIS INFLUENTE da assessoria presidencial era o procurador-geral. Christian Klee nascera numa família rica, que remontava aos primeiros dias da república. Seus fundos de investimentos valiam agora mais de cem milhões de dólares, graças à orientação e conselhos do padrinho, o Orá¬culo, Oliver Oliphant. Jamais desejara muita coisa, e houvera um tempo em que não queria nada. Tinha muita inteligência e energia para se tornar outro rico ocioso, investindo em filmes, perseguindo mulheres, abusando das drogas e álcool, ou se lançando numa religiosidade desvir¬tuada. Dois homens, o Oráculo e Francis Xavier Kennedy, persuadiram-no a ingressar na política.
Christian conhecera Kennedy em Harvard, não como colegas, mas como professor e aluno. Kennedy era o mais jovem professor que já passara pela Faculdade de Direito de Harvard. Na casa dos vinte anos, era um jovem prodígio. Christian ainda se lembrava de sua aula inaugural. Kennedy começara com as seguintes palavras:
Todos conhecem ou já ouviram falar da majestade da lei. É o poder do estado de controlar a organização política existente que permite que haja a civilização. É a verdade. Sem o domínio da lei, estamos todos perdidos. Mas não se esqueçam também de uma coisa: a lei é cheia de merda.
Ele fizera uma pausa, sorrindo para a audiência.
— Posso contornar qualquer lei que vocês conseguirem escrever. A lei pode ser distorcida para servir a uma civilização iníqua. Os ricos podem escapar à lei, e às vezes até os pobres têm sorte. Alguns advogados tratam a lei da maneira como cafetões tratam suas mulheres. Juízes vendem a lei, os tribunais a traem. Tudo isso é verdade. Mas lembrem-se de que não temos nada melhor que funcione. Não há nenhum outro meio pelo qual possamos fazer um contrato social com os nossos semelhantes.
Ao formar-se na Faculdade de Direito de Harvard, Christian Klee não tinha a menor idéia do que fazer com sua vida. Nada o interessava. Valia milhões de dólares, mas não se interessava por dinheiro, também não tinha um interesse profundo pelo direito. E possuía o romantismo normal de um jovem.
As mulheres gostavam dele. Tinha uma beleza um pouco maculada — isto é, feições clássicas, apenas um pouco distorcidas. Um Dr. Jekyll começando a se transformar em Mr. Hyde, mas só se notava quando ele se irritava. Possuía a cortesia requintada que o aristocrata rico obtém nos primeiros anos de escola. Apesar disso, impunha um respeito instintivo aos outros homens, por causa de seus talentos extraordinários. Era o punho de ferro na luva de veludo de Kennedy, mas tinha inteligência e cortesia para manter isso oculto do público. Gostava das mulheres, tivera breves ligações, mas não era capaz de acalentar o sentimento de total convicção no amor que leva a um romance apaixonado. Procurava desesperadamente por algo em que empenhar sua vida. Interessava-se pelas artes, mas não possuía impulso criativo, não tinha talento para a pintura, música ou literatura. Sentia-se paralisado pela segurança que desfrutava na sociedade. Não era tanto infeliz, mas sim aturdido.
Experimentara as drogas, é claro, por um breve período; afinal, eram parte integrante da cultura americana, como acontecera outrora no império chinês. E pela primeira vez descobrira uma coisa surpreendente em relação a si mesmo. Não podia suportar a perda de controle que as drogas acarretavam. Não se importava de ser infeliz, contanto que mantivesse o controle de sua mente e corpo. A perda desse controle era o máximo de desespero. E as drogas nem sequer o levaram a sentir o êxtase que outras pessoas experimentavam. Assim, aos 22 anos, com o mundo a seus pés, ele não era capaz de sentir que alguma coisa valia a pena. Nem mesmo tinha o que muitos jovens sentiam, um desejo de melhorar o mundo em que vivia.
Consultara o padrinho, o Oráculo, então um “jovem” de 75 anos, que ainda sentia um apetite extraordinário pela vida, que mantinha três amantes ocupadas, que se envolvia em todos os negócios e conferenciava com o Presidente dos Estados Unidos pelo menos uma vez por semana. O Oráculo conhecia o segredo da vida.
— Escolha a coisa mais inútil para fazer e faça-a durante alguns anos — dissera o Oráculo. — Algo que nunca pensaria em fazer, que não tem o menor desejo de fazer. Mas que seja algo que o melhore, pelo menos em termos físicos e mentais. Aprenda uma parte do mundo que acha que nunca será parte de sua vida. Não esbanje o seu tempo. Aprenda. Foi assim que entrei na política. E isso surpreendeu meus amigos, eu não tinha realmente um interesse por dinheiro. Faça algo que deteste. Em três ou quatro anos mais coisas serão possíveis, e o que é possível torna-se mais atraente.
No dia seguinte Christian matriculara-se em West Point e passou os quatro anos subseqüentes estudando para ser um oficial do exército dos Estados Unidos. O Oráculo ficara espantado a princípio, depois maravilhado.
— É exatamente isso — comentara ele. — Nunca será um soldado. E vai desenvolver um gosto pela negação.
Depois de quatro anos em West Point, Christian permanecera mais quatro no exército, treinando em brigadas especiais de ataque e se tornando eficiente no combate armado e desarmado- O sentimento de que seu corpo podia empenhar qualquer tarefa que lhe exigisse sempre lhe proporcionava um senso de imortalidade.
Deixara o exército aos trinta anos e passara a trabalhar na divisão de operações da CIA. Tornara-se um agente em operações clandestinas e durante os quatro anos seguintes atuara no teatro europeu. De lá, fora para o Oriente Médio, por seis anos, fora subindo na divisão de operações da Agência, até que uma bomba lhe arrancara o pé. Fora outro desafio. Aprendera a usar e controlar uma prótese, um pé artificial, a tal ponto que nem mesmo mancava. Mas isso encerrara sua carreira como agente secreto, e voltara para casa, indo trabalhar num prestigiado escritório de advocacia.
Fora nessa ocasião que se apaixonara pela primeira vez, e casara com uma moça que pensava ser a resposta para todos os seus sonhos juvenis. Ela era inteligente, espirituosa, bonita e ardente. Durante cinco anos ele fora feliz no casamento, feliz como o pai de dois filhos, e encontrara satisfação no labirinto político pelo qual o Oráculo o conduzia. Por fim, pensava ele, era um homem que encontrara seu lugar na vida. E depois o infortúnio. A esposa se apaixonara por outro homem, pedira o divórcio.
Christian ficara atordoado, depois furioso. Ele era feliz; como a esposa podia não ser? E o que a mudara? Ele era amoroso, atendia a todos os desejos da mulher. É verdade que estava sempre ocupado com o trabalho, desenvolvendo sua carreira. Mas era rico, nada faltava à mulher, Em sua raiva, Christian decidira resistir a todas as exigências da mulher, lutar pela custódia das crianças, negar a casa que ela tanto queria, reduzir as recompensas financeiras concedidas a uma mulher divorciada. Acima de tudo, ficara espantado ao saber que ela planejava residir na casa com o novo marido. Era uma mansão, não se podia deixar de reconhecer, mas o que dizer das lembranças sagradas da vida que haviam partilhado ali? E ele sempre fora um marido fiel
Christian tornara a procurar o Oráculo, despejara a sua angústia e sofrimento. Para sua surpresa, o Oráculo se mostrara impassível.
— Você foi fiel, mas por que deve pensar que isso faria com que sua mulher também fosse fiel? O que acontece se você não mais a interessa? Claro que é mais natural o homem ser infiel. A infidelidade é a precaução de um homem prudente que sabe que sua mulher pode privá-lo unilateralmente de sua casa e filhos, mesmo assim uma causa moral. Você aceitou o acordo ao casar; agora, deve cumpri-lo.
Depois, o Oráculo rira e acrescentara:
— Sua mulher estava certa ao deixá-lo. Ela viu dentro de você, embora se deva admitir que seu desempenho foi impressionante. Ela sabia que você não era realmente feliz. Mas, acredite, é a melhor coisa que poderia acontecer. Você é agora um homem pronto para assumir sua verdadeira posição na vida. Não tem mais nada para atrapalhá-lo... uma mulher e filhos seriam apenas estorvos. É essencialmente um homem que deve viver para fazer grandes coisas. Sei disso porque eu também era assim. As esposas podem ser perigosas para homens com grande ambição, filhos são uma causa em potencial de tragédia. Use o seu bom senso, o seu preparo como advogado. Dê tudo o que ela quiser, pois será apenas uma redução mínima em sua fortuna. As crianças são pequenas, acabarão esquecendo-se. Pense da seguinte maneira: Agora você está livre. Sua vida será dirigida por você mesmo.
E assim acontecera.
Tarde da noite, no Domingo de Páscoa, o Procurador-Geral Christian Klee deixou a Casa Branca para visitar Oliver Oliphant, a fim de pedir conselhos e também informá-lo que sua festa de cem anos fora adiada pelo Presidente Kennedy.
O Oráculo residia numa propriedade cercada, dispendiosamente guardada; seu sistema de segurança pegara cinco assaltantes no último ano. Contava com muita gente trabalhando na casa, todos bem pagos e com uma pensão generosa, inclusive um barbeiro, um valete, um cozinheiro e varias criadas, pois ainda havia muita gente importante que se aconselhava com o Oráculo e às vezes era preciso oferecer jantares requintados e proporcionar alojamentos.
Christian sentia-se ansioso pelo encontro com o Oráculo. Gostava da companhia do velho, das histórias que ele contava sobre as guerras terríveis nos campos de batalha do dinheiro, as estratégias de homens lidando com pais, mães, esposas e amantes. Ele dizia como se defender contra o governo, de força tão prodigiosa, justiça tão cega, leis tão traiçoeiras, eleições livres tão corrompidas. Não que o Oráculo fosse um cético profissional, era apenas lúcido. E insistia que uma pessoa podia levar uma vida feliz e bem-sucedida no respeito aos valores éticos em que se baseava a verdadeira civilização. O Oráculo podia ser fascinante.
O Oráculo recebeu Christian em sua suíte no segundo andar, formada por um quarto pequeno, um enorme banheiro de ladrilhos azuis que continha uma Jacuzzi e um chuveiro por cima de um banco de mármore, um escritório com uma lareira espetacular, uma biblioteca e uma sala de estar aconchegante, com um sofá e poltronas em cores fortes.
O Oráculo se encontrava na sala de estar, numa cadeira de rodas motorizada, construída de encomenda. Ao seu lado havia uma mesa, enquanto na frente havia uma poltrona e outra mesa, posta para um chá inglês.
Christian sentou na poltrona, serviu-se de chá e um pequeno sanduíche. Como sempre, Christian ficou satisfeito com a aparência do Oráculo, a intensidade de seu olhar, tão extraordinária em alguém que já vivera cem anos. E parecia lógico a Christian que o Oráculo tivesse passado de um velho feio de 65 anos para o jeito de um ancião centenário. A pele parecia escamosa, assim como a cabeça calva, mostrando manchas de fígado tão escuras quanto nicotina. As mãos de pele de leopardo projetavam-se das mangas do terno impecável — a velhice não acabara com sua vaidade. O pescoço, envolto por uma gravata de seda, era também escamoso, cheio de sulcos; as costas largas eram encurvadas. O corpo afilava para uma cintura mínima, que se podia envolver com os dedos; as pernas eram pouco mais que dois fios numa teia de aranha. Mas as feições ainda não haviam sido devastadas pela morte iminente.
Christian serviu o Oráculo e durante os primeiros minutos eles se limitaram a tomar o chá, sorrindo um para o outro. O Oráculo foi o primeiro a falar:
— Presumo que você veio cancelar minha festa de aniversário. Estava assistindo à televisão com minhas secretárias comentei para elas que a festa seria adiada.
A voz tinha o grunhido baixo e rouco de uma laringe gasta.
— É isso mesmo — confirmou Christian. — Mas apenas por um mês. Acha que pode esperar tanto tempo?
Ele estava sorrindo.
— Claro que posso. Essa merda está em todos os canais Siga o meu conselho, garoto, e compre ações das emissoras de TV. Ganharão fortunas com esta tragédia e todas as tragédias futuras. São os crocodilos de nossa sociedade. — O Oráculo fez uma pausa e depois acrescentou, mais suavemente: — Como seu amado presidente está suportando?
— Admiro aquele homem mais do que nunca. Nunca vi alguém em sua posição se manter mais controlado diante de uma terrível tragédia. Ele está muito mais forte agora do que depois da morte da esposa.
O Oráculo comentou, secamente:
— Quando o pior que pode acontecer acaba lhe acontecendo, e você suporta, então se torna o homem mais forte do mundo. O que, para dizer a verdade, pode não ser uma coisa muito boa.
Ele fez uma pausa para tomar um gole do chá, os lábios lívidos se contraíram numa linha branca, como um arranhão no rosto vincado e manchado de nicotina.
— Se acha que não vai violar seu juramento do cargo nem sua lealdade ao presidente, por que não me conta o que está acontecendo?
Christian sabia que o velho vivia para isso. Estar por dentro do poder.
— Francis está muito preocupado porque os seqüestradores ainda não apresentaram suas exigências. Afinal, já se passaram dez horas. E ele acha que isso é sinistro.
— E é mesmo.
Os dois ficaram em silêncio por um longo tempo. Os olhos do Oráculo haviam perdido sua vibração, pareciam apagados pelas bolsas de pele agonizante por baixo.
— Estou muito preocupado com Francis — acrescentou Christian. — Ele não poderá suportar mais. Se acontecer alguma coisa com sua filha...
— Haverá uma confrontação muito perigosa. Lembro de Francis Kennedy quando ele era pequeno. Mesmo naquele tempo, sempre me impressionou a maneira como ele dominava os primos. Era um herói, ainda menino. Defendia os menores, promovia a paz. E às vezes causava mais danos do que qualquer dos valentões que enfrentava. Os olhos pretos ficavam sombrios em nome da virtude.
O Oráculo fez uma pausa e Christian serviu-lhe mais chá quente, embora a xícara ainda estivesse pela metade. Sabia que o velho não podia saborear qualquer coisa que não estivesse muito quente ou gelada.
— Qualquer coisa que o presidente me mandar fazer, eu farei — comentou Christian.
Os olhos do Oráculo tornaram-se de repente muito brilhantes e visíveis; e ele disse, pensativo:
— Você se tornou um homem muito perigoso nestes últimos anos, Christian. Mas não tão original assim. Ao longo da história, sempre houve homens, alguns considerados “grandes”, que tiveram de escolher entre Deus e seu país. E alguns homens muito religiosos escolheram seu país acima de Deus, acreditando que iriam para o inferno, mas achando que seu gesto era nobre. Mas chegamos a uma época, Christian, em que devemos decidir se damos a vida por nosso país ou se ajudamos a humanidade a continuar a existir. Vivemos numa era nuclear. Essa é a nova e interessante questão, uma questão que nunca antes foi apresentada aos homens, individualmente. Pense nesses termos. Se você ficar do lado de seu presidente, isso acarretará um risco para a humanidade? Não é tão simples como rejeitar Deus.
— Não me importo — declarou Christian, — Sei que Francis é melhor do que o Congresso, o Clube Sócrates e os terroristas.
— Sempre especulei sobre a sua total lealdade a Francis Kennedy. Há algumas intrigas vulgares de que se trata de um relacionamento homossexual. Da sua parte. Não da dele. O que é estranho, já que você tem mulheres e ele não, desde a morte da esposa, há três anos. Mas por que as pessoas em torno de Kennedy lhe dedicam tanta veneração, quando ele é reconhecido como um idiota político? Todos aqueles projetos reformistas e reguladores que ele tentou enfiar pela goela do Congresso... Pensava que você era mais esperto mas presumo que foi sufocado pelos outros. Ainda assim, sua afeição descomedida por Kennedy é um mistério para mim.
— Ele é o homem que sempre desejei ser. É simples assim.
— Nesse caso, você e eu não seriamos amigos há tanto tempo. Jamais gostei de Francis Kennedy.
— Ele é melhor do que qualquer outro — insistiu Christian. — Conheço-o há mais de vinte anos, e ele é o único político que se mostra honesto com o público, não mente para os eleitores.
— O homem que você descreveu nunca poderia ser Presidente dos Estados Unidos — comentou secamente o Oráculo.
Ele pareceu inflar seu corpo de inseto, as mãos de pele lustrosa mexeram nos controles da cadeira de rodas. Recostou-se na cadeira. Por cima do terno escuro, camisa branca e gravata azul, o rosto vidrado parecia feito de mogno.
— O charme dele me escapa, mas também nunca nos demos bem. E agora, Christian, quero lhe fazer uma advertência. Todo homem comete muitos erros ao longo de sua vida. Isso é humano, inevitável. O segredo é nunca cometer erros que possam destruí-lo. Tome cuidado com o seu amigo Kennedy, que é tão virtuoso, lembre-se de que o mal pode derivar do desejo de fazer o bem. Tome cuidado.
O Oráculo sacudiu os braços, como se fossem asas de passarinho.
— O caráter não muda — declarou Christian, confiante.
— Muda, sim. O sofrimento muda o caráter. O pesar muda o caráter. O amor e o dinheiro também. E o tempo vai corroendo o caráter. Deixe-me contar uma história. Aos cinqüenta anos, tive uma amante trinta anos mais jovem do que eu. Ela tinha um irmão mais velho, com cerca de trinta anos. Eu era o mentor dela, como sempre fui com todas as minhas mulheres. Defendia os interesses dela. O irmão era um especulador de Wall Street, um homem negligente, que mais tarde se meteu nas maiores encrencas. Nunca tive ciúme... ela costumava sair com rapazes. Quando ela completou 21 anos, o irmão ofereceu uma festa e, de brincadeira, contratou um homem para fazer um strip-tease, um profissional, na presença dela e das amigas. Foi tudo às claras, eles não fizeram segredo. Mas sempre fui consciente de minha feiúra, da minha falta de atração física para as mulheres. E por isso me senti afrontado, o que foi indigno de minha parte. Rompemos, mas continuamos amigos, ela acabou casando, fez carreira. E eu passei para amantes mais jovens. Dez anos depois o irmão se meteu num problema financeiro, como acontece com muita gente de Wall Street. Informações internas, manipulação ilegal do dinheiro sob seus cuidados. Ele foi condenado a dois anos de prisão e, como não podia deixar de ser, o escândalo liquidou sua carreira.
O velho fez uma pausa, reminiscente.
— A esta altura, eu tinha sessenta anos, e continuava amigo dos dois. Nunca pediram a minha ajuda, não sabiam a extensão do que eu podia fazer. Poderia salvá-lo, mas não levantei um dedo. Deixei que ele se arruinasse. E dez anos depois ocorreu-me que não ajudara por causa daquela brincadeira idiota, deixar que a irmã visse o corpo de um homem muito mais jovem do que eu. E não foi uma questão de ciúme sexual, mas sim pela afronta ao meu poder, ou o poder que eu pensava que tinha. Tenho me lembrado desse episódio com freqüência. É uma das poucas coisas em minha vida de que me envergonho. Nunca seria culpado de tal ato aos trinta ou aos setenta anos. Por que então aos sessenta? O caráter muda. Esse é o triunfo do homem, e também sua tragédia.
Christian balançou o conhaque que o Oráculo providenciara. Era delicioso e muito caro. O Oráculo sempre servia o melhor. Christian apreciava, embora pessoalmente nunca fosse capaz de comprar coisas assim; nascido rico, nunca sentia que merecia se tratar tão bem.
— Eu o conheço por toda a minha vida, mais de 45 — e você nunca mudou — disse Christian. — Vai fazer cem anos na próxima semana. E ainda é o grande homem que sempre pensei que era.
O Oráculo sacudiu a cabeça.
— Você me conheceu apenas na velhice, dos sessenta aos cem anos. Isso nada significa. O veneno desapareceu a esta altura, assim como a força para aplicá-lo. Não é vantagem ser virtuoso na velhice, como aquele farsante do Tolstoi sabia.
Ele fez uma pausa, suspirando.
— Mas o que me diz da festa de aniversário? Seu amigo Kennedy jamais gostou realmente de mim. E sei que foi você que pressionou para a festa no Jardim das Rosas da Casa Branca, um grande acontecimento dos meios de comunicação. Ele está aproveitando esta crise para tirar o corpo fora?
— De jeito nenhum — respondeu Christian. — Ele aprecia tudo o que você fez na vida e quer dar a festa. Você foi e é um grande homem, Oliver. Só peço que espere um pouco. Afinal, o que são uns poucos meses depois dos cem anos?
Christian fez uma pausa.
— Mas se preferir, já que não gosta de Francis, podemos esquecer os grandes planos dele para a sua festa de aniversário, a cobertura dos meios de comunicação, seu nome e retrato em todos os jornais e na TV. Sempre posso oferecer uma pequena festa particular imediatamente e acabar com isso.
Ele sorriu para o Oráculo, a fim de mostrar que estava gracejando. Às vezes o velho o tomava literalmente.
— Não, obrigado. Quero ter alguma coisa por que viver. Ou seja, uma festa de aniversário oferecida pelo Presidente dos Estados Unidos. Mas deixe-me dizer que o seu Kennedy é muito astuto. Sabe que meu nome ainda significa alguma coisa. A Publicidade reforçará sua imagem. Seu Francis Kennedy é tão esperto quanto seu tio Jack. Já Bobby teria me rejeitado.
— Não resta nenhum dos seus contemporâneos, mas seus protegidos estão entre os grandes homens e mulheres do país, e todos se sentem ansiosos em lhe prestar essa homenagem. Inclusive o presidente. Ele não esquece que você o ajudou em sua carreira. E vai até convidar seus colegas no Clube Sócrates, apesar de detestá-los. Será a sua melhor festa de aniversário.
— E a minha última — disse o Oráculo. — E me agarro nela pelas porras das unhas.
Christian riu. O Oráculo nunca dissera palavrões até os noventa anos, mas agora os usava com a mesma inocência de uma criança.
— Isso está acertado — acrescentou o Oráculo. — E agora deixe-me dizer uma coisa sobre os grandes, Kennedy e eu mesmo inclusive. Eles acabam consumindo a si mesmos e às pessoas que os cercam. Não que eu admita que o seu Kennedy é um grande homem. É verdade que ele se tornou o Presidente dos Estados Unidos, mas isso não passa de um truque de ilusionista. Por falar nisso, sabia que no show business o mágico é considerado como alguém completamente desprovido de talento artístico?
Neste ponto o Oráculo inclinou a cabeça para o lado; a semelhança com uma coruja era espantosa.
— Reconheço que Kennedy não é o político típico — continuou ele. — É um idealista muito mais inteligente e tem moral, embora eu tenha minhas dúvidas se a austeridade sexual é saudável. Mas todas essas virtudes são uma desvantagem para a grandeza política. Um homem sem vícios? Um veleiro sem vela?
— Desaprova as ações dele — disse Christian. — Que curso seguiria?
— Isso não é relevante. Durante os seus três anos no cargo ele esteve sempre com o pau meio dentro, meio fora, o que sempre acarreta problemas. — Os olhos do Oráculo ficaram turvos agora. — Espero que isso não interfira com minha festa de aniversário por muito tempo. Que vida eu tive, hem? Quem teve uma vida melhor do que a minha? Nasci pobre, a fim de poder apreciar a riqueza que ganhei mais tarde. Um homem feio, que aprendeu a cativar e desfrutar as belas mulheres. Um bom cérebro, uma compaixão adquirida, por isso mesmo muito melhor do que a genética. Uma enorme energia, o suficiente para me abastecer além da velhice. Uma boa constituição, pois nunca fiquei realmente doente em toda a minha vida. Uma grande vida... e longa! E é justamente esse o problema, talvez um pouco longa demais. Não suporto mais me olhar no espelho, mas também, como eu disse, nunca fui bonito.
Ele fez uma pequena pausa e depois aconselhou a Christian abruptamente:
— Saia do governo. Desligue-se de tudo o que está acontecendo agora.
— Não posso fazer isso. E tarde demais.
Christian estudou a cabeça sardenta do velho. Não podia deixar de admirar aquele cérebro ainda tão atilado. Fitou aqueles olhos envelhecidos, que pareciam amortalhados por uma névoa incessante. Será que ficaria tão velho, o corpo murcho como um inseto morto?
E o Oráculo, observando-o, pensava: Como todos eles são transparentes, como são inocentes que nem criancinhas. Era óbvio para o Oráculo que seu conselho fora tarde demais, que Christian cometeria uma traição a si mesmo.
Christian terminou o conhaque e levantou-se para ir embora. Ajeitou as mantas em torno do velho e depois tocou a campainha para chamar as enfermeiras. Antes de se retirar, sussurrou no ouvido do Oráculo:
— Conte-me a verdade sobre Helen Du Pray. Ela foi uma de suas protegidas, antes de casar. E sei que foi você quem promoveu o ingresso dela na política. Alguma vez trepou com ela ou já era velho demais para isso?
O Oráculo sacudiu a cabeça.
— Nunca fui velho demais até os noventa anos. E quero que saiba que a verdadeira solidão começa quando seu pau o abandona. Mas agora deixe-me responder à sua pergunta. Ela nunca se sentiu atraída por mim, eu não tinha beleza a oferecer- E devo confessar que me senti desapontado, pois ela era muito bonita e muito inteligente, minha combinação predileta. Nunca pude amar as mulheres inteligentes e feias... era parecidas demais comigo. Podia amar as mulheres belas e estúpidas, mas quando eram também inteligentes, isso representava o paraíso para mim. Helen Du Pray... claro que eu sabia que ela iria longe, era muito forte, uma vontade inabalável. Bem que tentei, mas nunca consegui... um fracasso raro, diga-se de passagem. Mas sempre fomos bons amigos. Esse era um talento que ela possuía, recusar-se sexualmente a um homem e permanecer uma amiga íntima. Algo excepcional. Foi quando isso aconteceu que eu compreendi que se tratava de uma mulher com grandes ambições.
Christian tocou na mão do velho, que parecia uma cicatriz.
— Telefonarei ou virei até aqui todos os dias. E o manterei informado de tudo.
O Oráculo ficou bastante ocupado depois que Christian foi embora. Tinha de transmitir as informações que Klee lhe dera ao Clube Sócrates, cujos membros eram figuras importantes na estrutura dos Estados Unidos. Não considerava isso como uma traição a Christian, a quem amava profundamente. O amor era sempre secundário.
Precisava entrar em ação, seu país navegava por águas perigosas. Tinha o dever de ajudar a guiá-lo para a segurança. E o que mais um homem de sua idade podia fazer para que valesse a pena viver? E, para dizer a verdade, sempre detestara o mito Kennedy. Ali estava uma oportunidade de destruí-lo para sempre.
Finalmente o Oráculo permitiu que a enfermeira o cuidasse e preparasse para deitar. Lembrava de Helen Du Pray com afeição, e agora sem desapontamento. Ela era muito jovem, vinte e poucos anos, a beleza acentuada por uma tremenda vitalidade. Fizera muitas relações sobre o poder para ela, sua aquisição e usos, e como se abster de usá-lo, o que podia ser ainda mais importante. E ela escutara com a paciência que é necessária para se conquistar o poder.
Dissera-lhe que um dos grandes mistérios da humanidade era a maneira pela qual as pessoas agiam contra seus próprios interesses. Questões de orgulho arruinavam suas vidas. A inveja e a auto-ilusão levavam-nas por caminhos que desaguavam no nada. Por que era tão importante para as pessoas manter uma auto-imagem? Havia aqueles que nunca se submetiam, nunca lisonjeavam, nunca mentiam, nunca voltavam atrás, nunca traíam, ou nunca enganavam. E havia os que viviam na inveja e ciúme do destino mais feliz dos outros.
Fora tudo um tipo especial de súplica, e ela percebera. Rejeitara-o e seguira em frente, sem a sua ajuda, a fim de realizar o seu sonho pessoal de poder.
Um dos problemas de se ter uma mente lúcida aos cem anos de idade é que se pode perceber o germinar da vilania inconsciente em si mesmo e esclarecê-la no passado. Ficara mortificado quando Helen Du Pray se recusara a fazer amor com ele. Sabia que ela tinha outros amantes, não era uma pudica. Mas aos setenta anos, por mais incrível que pudesse parecer, ele ainda era vaidoso.
Fora para o centro de rejuvenescimento na Suíça, submetera-se a intervenções cirúrgicas para remover as rugas, a limpeza de pele, a injeção de uma substância de feto animal nas veias. Mas nada podia ser feito pelo encolhimento de seu esqueleto, a paralisia das articulações, a conversão de seu sangue em água.
Embora isso não mais lhe adiantasse em nada, o Oráculo achava que compreendia os homens e mulheres apaixonados. Mesmo depois dos sessenta anos, suas jovens amantes adoravam-no. Todo o segredo era nunca impor quaisquer regras ao comportamento delas, nunca sentir ciúme, nunca magoar seus sentimentos. Encontravam jovens para seus verdadeiros amores, tratavam o Oráculo com uma crueldade indiferente. Não tinha importância. Ele as cumulava de presentes caros, jóias, tudo do melhor gosto. Permitia que usassem seu poder para obter favores imerecidos da sociedade e gastassem seu dinheiro em quantidades generosas, mas não pródigas. Era um homem prudente e sempre tinha três ou quatro amantes ao mesmo tempo. Pois elas tinham suas próprias vidas para levar. Sempre acabavam se apaixonando e o negligenciariam, fariam viagens, sem empenhariam em suas carreiras. Ele não podia exigir demais o tempo delas. Mas quando precisava de companhia feminina (não apenas para sexo, mas para a doce música de suas vozes, a inocente insídia de suas astúcias), uma das quatro estaria disponível. E é claro que serem vistas em funções importantes em sua companhia lhes proporcionava o acesso a círculos nos quais teriam dificuldades para entrarem sozinhas. O cachê social era um de seus trunfos.
Ele não fazia segredo, todas sabiam umas das outras. Estava convencido de que as mulheres, no fundo de seus corações, detestavam os homens monógamos.
Como era cruel que se lembrasse das coisas ruins que fizera com mais freqüência do que das coisas boas... Seu dinheiro construíra centros médicos, igrejas, asilos para os velhos; fizera de fato muitas coisas boas. Mas suas recordações de si mesmo não eram boas. Por sorte pensava no amor com freqüência. De uma maneira interessante e peculiar, fora a coisa mais comercial em sua vida. E logo ele, que possuíra firmas em Wall Street, bancos, empresas de avião.
Ungido com o poder do dinheiro, fora convidado a partilhar os eventos que abalavam o mundo, fora conselheiro dos poderosos. Ajudara a moldar o próprio mundo em que as pessoas viviam. Uma vida importante, fascinante, valiosa. E, no entanto, o relacionamento com suas incontáveis amantes era muito mais vívido em seu cérebro de cem anos. Ah, aquelas beldades inteligentes e voluntariosas, como eram maravilhosas, e como haviam confirmado seu julgamento, a maioria. Agora eram juízas, diretoras de revistas, potências em Wall Street, as rainhas dos noticiosos da televisão. Como haviam sido espertas em suas ligações amorosas com ele, e como ele as enganara. Mas sem privá-las do que lhes era devido. Não tinha sentimento de culpa, apenas pesares. Se uma delas o tivesse amado sinceramente, ele a teria elevado ao céu. Mas depois sua mente lembrou-lhe que não merecera ser amado assim. Elas haviam reconhecido como era seu amor, um tambor oco que ressoava em seu peito.
Fora aos oitenta anos de idade que seu esqueleto começara a se contrair por dentro do invólucro de carne. O desejo físico diminuíra, e um vasto oceano de imagens juvenis e perdidas inundou seu cérebro. E fora nessa ocasião que ele descobrira ser necessário empregar moças para deitar inocentemente em sua cama, a fim de poder contemplá-las. Ah essa perversão tão desdenhada na literatura, tão escarnecida pelos jovens que devem envelhecer... E, no entanto, quanta paz proporcionava ao seu corpo em ruínas a visão daquela beleza que não podia mais devorar! Como era puro! As curvas dos seios, a pele branca, macia, coroada pelos bicos rosados... As coxas misteriosas, a carne arredondada irradiando um brilho dourado, o surpreendente triângulo de cabelos — em diversas cores — e no outro lado a profundidade das nádegas, os quadris se projetando. Tanta beleza, morta e perdida para seus sentidos físicos, mas fazendo faiscar bilhões de células em seu cérebro. E seus rostos, as conchas misteriosas dos ouvidos espiralando para algum mar interior, os olhos profundos, com seus fogos abafados de azul, cinza, castanho e verde, espiando de suas eternas celas particulares, os planos dos rostos descendo para lábios desprotegidos, entreabertos para o prazer e o sofrimento. Ele as contemplava antes de dormir. Estendia a mão e tocava na carne quente, na maciez das coxas e nádegas, nos lábios ardentes, algumas vezes nos cabelos púbicos encres¬pados, a fim de sentir a pulsação por baixo. Havia tanto conforto ali que ele adormecia, e a vibração atenuava o terror de seus sonhos. Odiava os muito jovens e os destruía nos sonhos. Sonhava com corpos de homens jovens empilhados em valas, milhares de marinheiros flutuando no fundo do mar, vastos céus povoados pelos corpos de exploradores celestes em trajes espaciais, girando interminavelmente para os buracos negros do universo.
Desperto, ele também sonhava. Mas desperto reconhecia os sonhos como uma forma de loucura senil, repulsa por seu próprio corpo. Odiava sua pele, que brilhava como tecido cicatrizado, as manchas marrons nas mãos e na cabeça calva, aquelas sardas letais da morte, a visão deficiente, a fraqueza das pernas e braços, o coração desconsolado, o mal se expandindo no cérebro,
Era uma pena que as fadas-madrinhas procurassem os berços dos recém-nascidos para lhes conceder três desejos mágicos. Aquelas crianças não precisavam; os velhos como ele é que deveriam receber essas dádivas. Ainda mais aqueles que possuíam uma mente tão lúcida quanto a sua.
SEMANA DA PÁSCOA
Segunda-feira
A FUGA DE ROMEU da Itália fora meticulosamente planejada. O furgão levou seu grupo da Praça de São Pedro para uma casa segura, onde ele trocou de roupa, recebeu um passaporte quase infalível, pegou uma valise já preparada e foi levado por rotas clandestinas pela fronteira até o sul da França. Ali, na cidade de Nice, embarcou no vôo para Paris, que depois continuava até Nova York. Embora não dormisse há trinta horas, Romeu permanecia alerta. Todos aqueles detalhes eram complicados, a parte fácil de uma operação que às vezes saía errada por causa de um acidente inesperado ou um equívoco no planejamento.
O jantar com vinho nos aviões da Air France era sempre bom, e Romeu pouco a pouco relaxou. Contemplou a interminável água verde-claro e os horizontes de céu azul e branco. Tomou duas pílulas para dormir. Mas algum resquício de medo em seu corpo ainda o mantinha desperto. Pensou na passagem Pela alfândega dos Estados Unidos... alguma coisa sairia errada ali? Mas mesmo que fosse apanhado, isso não faria qualquer diferença para o esquema de Yabril. Um traiçoeiro instinto de sobrevivência impedia-o de dormir. Romeu não acalentava ilusões sobre o sofrimento que teria de suportar. Concordara em cometer um ato de auto-sacrifício para expiar os pecados de sua família, sua classe e seu país, mas agora aquele misterioso resquício de medo retesava seu corpo.
As pílulas finalmente funcionaram e ele adormeceu. Nos sonhos, disparou o tiro e fugiu da Praça de São Pedro; ainda fugia quando acordou. O avião estava pousando no Aeroporto Kennedy, em Nova York. A aeromoça entregou-lhe seu paletó, e ele pegou a valise no compartimento por cima. Passou pela alfândega com naturalidade, saiu com a valise para a praça central do terminal.
Avistou seus contatos quase que no mesmo instante. A moça usava um gorro de esquiagem, verde com listras brancas. O rapaz tirou do bolso um boné vermelho e pôs na cabeça, deixando à mostra a inscrição em letras azuis, “Yankees”. Romeu não usava qualquer sinal de identificação; preferira manter suas opções em aberto. Abaixou-se e abriu uma das malas, vasculhando-a, enquanto estudava os contatos. Não percebeu nada suspeito. Não que isso tivesse alguma importância.
A moça era magra e loura, descarnada demais para o gosto de Romeu, mas o rosto possuía uma firmeza feminina que algumas mulheres sérias exibem, e que lhe agradava. Especulou como ela seria na cama e torceu para que permanecesse livre por tempo suficiente para seduzi-la. Não deveria ser muito difícil. Sempre fora atraente para as mulheres. Sob esse aspecto, era melhor do que Yabril. A moça adivinharia que ele estava ligado ao assassinato do Papa, e partilhar sua cama, para uma revolucionária compenetrada, poderia ser a realização de um sonho romântico. Romeu notou que a moça não se inclinava para o rapaz em sua companhia, nem o tocava.
O rapaz tinha um rosto franco e cordial, irradiava tanta generosidade americana que Romeu o detestou à primeira vista. Os americanos eram uns merdas imprestáveis, levavam uma vida confortável demais. Em mais de duzentos anos, nunca haviam sequer chegado perto de ter um partido revolucionário. E isto num país que nascera com uma revolução. O rapaz enviado para recebê-lo no aeroporto era típico dessa debilidade. Romeu pegou as malas e se encaminhou para os contatos
— Com licença — disse ele, sorrindo, o inglês com um forte sotaque. — Podem me informar de onde sai o ônibus para Long Island?
A moca virou-se para fitá-lo. Era muito mais bonita de perto. Romeu viu uma pequena cicatriz em seu queixo, o que despertou-lhe o desejo.
— Quer ir para North Shore ou South Shore
— East Hampton — respondeu Romeu.
A moça sorriu, um sorriso caloroso, até mesmo de admiração. O rapaz pegou uma das malas de Romeu e disse:
— Venha conosco.
Eles deixaram o terminal, com Romeu na esteira. Ele ficou quase atordoado com o barulho do tráfego, a densidade de pessoas. Um carro esperava, com um motorista que também usava um boné de beisebol. Os dois homens sentaram na frente, a moça instalou-se no banco de trás, com Romeu. Enquanto o carro avançava pelo tráfego, a moça estendeu a mão e disse:
— Meu nome é Dorothea. Por favor, não se preocupe.
Os dois rapazes na frente também murmuraram seus nomes, e depois a moça acrescentou:
— Estará confortável e seguro.
E nesse momento Romeu sentiu a agonia de um Judas.
Naquela noite o casal americano esforçou-se em preparar um bom jantar para Romeu. Ele tinha um quarto confortável, dando para o mar, embora a cama fosse encaroçada, o que não fazia muita diferença, porque Romeu sabia que só dormiria ali uma noite, se é que dormiria. A casa era luxuosamente decorada, mas sem muito bom gosto; era o típico estilo americano de casa de Praia. Os três passaram uma noite tranqüila, conversando numa mistura de italiano e inglês.
A moça, Dorothea, foi uma surpresa. Era excepcionalmente inteligente, além de bonita. Também se mostrou séria, alheia a galanteios, o que acabou com as esperanças de Romeu de passar sua última noite de liberdade empenhado em jogos sexuais. O rapaz, Richard, também era muito sério. Era evidente que os dois já tinham adivinhado quê ele estivera envolvido no assassinato do Papa, mas não fizeram perguntas específicas. Romeu ficou impressionado com eles. Exibiam corpos ágeis quando se moviam. Falavam com inteligência, demonstravam compaixão pelos de-safortunados e irradiavam confiança em suas convicções e capacidades.
Passando aquela noite sossegada com os dois jovens tão sinceros em suas convicções, tão inocentes em suas necessidades da verdadeira revolução, Romeu sentiu-se um pouco nauseado com toda a sua vida. Era mesmo necessário que aqueles dois fossem traídos junto com ele? Romeu acabaria sendo libertado, acreditava no plano de Yabril — julgava-o extraordinariamente simples e perfeito, E se oferecera como voluntário para a armadilha. Mas o rapaz e a moça também eram verdadeiros crentes, pessoas do seu lado. E seriam algemados, conheceriam os sofrimentos dos revolucionários. Por um momento, Romeu pensou em alertá-los. Mas era necessário que o mundo soubesse que havia americanos envolvidos na conspiração; aqueles dois eram os cordeiros sacrificiais. E depois ele ficou furioso consigo mesmo, tinha o coração muito mole. Era verdade que nunca seria capaz de jogar uma bomba num jardim-de-infância, como Yabril podia fazer, mas com certeza podia sacrificar uns poucos adultos. Afinal, matara um Papa.
E que mal poderia acontecer aos dois? Passariam alguns anos na prisão. A América era tão mole, de alto a baixo, que poderiam até escapar impunes, recuperar a liberdade logo. A América era uma terra de advogados tão destemidos quanto os Cavaleiros da Távola Redonda. Podiam livrar qualquer um da prisão.
E por isso Romeu tentou dormir. Mas todos os terrores dos últimos dias envolveram-no com o ar marinho, que soprava pela janela aberta. Ele tornou a levantar o rifle, tornou a ver o Papa cair, tornou a correr pela praça, a ouvir os peregrinos celebrantes gritarem em horror. .
No início da manhã seguinte, a manhã de segunda-feira, 24 horas depois de ter assassinado o Papa, Romeu decidiu passear pela praia americana, desfrutar os últimos minutos de liberdade. A casa estava silenciosa quando ele desceu a escada. Encontrou Dorothea e Richard dormindo em dois sofás na sala de estar, como se montassem guarda. O veneno de sua traição levou-o a sair pela porta, para a brisa que soprava na praia. À primeira vista, detestou aquela praia estrangeira, os bárbaros arbustos escuros, o mato alto e amarelado, os raios do sol faiscando em latas vermelho-prateadas de refrigerantes. Até o sol era fraco, o início da primavera mais frio naquela terra estranha. Mas sentiu-se contente por estar num espaço aberto, enquanto a traição se consumava. Um helicóptero passou por cima de sua cabeça e logo desapareceu; havia dois barcos parados no mar, sem qualquer sinal de vida a bordo. O sol adquiriu uma tonalidade alaranjada, depois se tornou amarelado, quase ouro, enquanto subia pelo céu. Romeu caminhou por muito tempo, contornou um canto da enseada, perdeu a casa de vista. Por algum motivo, isso deixou-o em pânico, ou talvez fosse por causa da visão de uma verdadeira floresta de mato cinza, que se estendia quase até a beira d’água. Virou-se para voltar.
Foi nesse instante que ouviu as sirenes dos carros da polícia. À distância, pela praia, avistou as luzes faiscantes. Passou a andar depressa em sua direção. Não sentia medo, não duvidava de Yabril, embora ainda pudesse fugir. Desprezava aquela sociedade americana, que nem ao menos era capaz de organizar direito a sua captura. Como eram estúpidos! Mas depois o helicóptero reapareceu, os dois barcos que pareciam abandonados dispararam para a praia. Agora que não havia possibilidade de escapar, Romeu sentiu vontade de correr e correr e correr. Mas fez um esforço para se controlar e seguiu para a casa, cercada por homens e armas. O helicóptero pairava sobre o telhado. Havia mais homens se aproximando pela praia, de todas as direções. Romeu preparou sua farsa de culpa e medo; começou a correr para o mar, mas homens saíram da água, usando máscaras. Romeu virou-se e correu de volta para casa, e foi então que avistou Richard e Dorothea.
Estavam algemados, correntes de ferro imobilizavam seus corpos na terra. E estavam chorando. Romeu compreendia como se sentiam — já vivera aquela situação, há muito tempo. Choravam de vergonha, humilhação, despojados de seu senso de poder. E dominados por um terror de pesadelo insuportável, de desamparo total, seu destino não mais determinado por deuses caprichosos, talvez misericordiosos, mas por seus implacáveis semelhantes.
Romeu ofereceu a ambos um sorriso de compaixão impotente. Sabia que ele estaria livre em poucos dias, sabia que traíra aqueles verdadeiros crentes em sua fé, mas fora uma decisão tática, não maldosa ou maliciosa. Os homens armados enxamearam em cima dele e imobilizaram-no com aço e ferro.
No outro lado do mundo, o mundo cujo céu estava repleto de satélites espiões, a camada de ozônio patrulhada por radar, no outro lado dos mares cheios de navios de guerra americanos, navegando para Sherhaben, no outro lado de continentes pontilhados de silos de mísseis e exércitos estacionários para servirem como pára-raios da morte, Yabril comeu o desjejum no palácio, com o sultão de Sherhaben.
O sultão era um crente sincero na liberdade árabe, no direito palestino a uma pátria. Considerava os Estados Unidos como o baluarte de Israel — sem o apoio americano, Israel não seria capaz de sobreviver. Por isso, a América era o supremo inimigo. E o plano de Yabril para desestabilizar a autoridade na América atraíra a mente sutil do sultão. Era uma imensa satisfação a humilhação de uma grande potência por Sherhaben, um país tão impotente em termos militares.
O sultão exercia um poder absoluto em Sherhaben. Possuía uma vasta riqueza; todos os prazeres do mundo estavam à sua disposição, mas tudo isso se tornara corriqueiro e insatisfatório. O sultão não tinha vícios para acrescentar tempero à sua vida. Respeitava a lei muçulmana, levava uma vida virtuosa. O padrão de vida em Sherhaben, com sua enorme receita do petróleo, era um dos mais altos do mundo: o sultão construíra novas escolas e novos hospitais- Na verdade, seu sonho era transformar Sherhaben na Suíça do mundo árabe. Sua única excentricidade era a mania de limpeza, em sua pessoa e em seu estado.
O sultão participara naquela conspiração porque adorava o senso de aventura, o jogo com apostas altas, a luta por elevados ideais. E havia pouco risco para ele e seu país, já que contava com um escudo mágico, bilhões de barris de petróleo, guardados em segurança sob o seu deserto. Outro forte motivo era sua amizade e gratidão a Yabril. Quando o sultão era apenas um príncipe insignificante, houvera uma encarniçada luta pelo poder em Sherhaben, ainda mais depois que se constatou como eram imensas as suas reservas de petróleo. As companhias petrolíferas americanas apoiavam os oponentes do sultão, que naturalmente favoreciam a causa americana. O sultão, que fora educado no exterior, compreendia o verdadeiro valor dos campos petrolíferos, e lutara para conservá-los na posse de Sherhaben. Irrompera a guerra civil. Fora o jovem Yabril que ajudara o sultão a conquistar o poder, matando seus adversários. Pois o sultão, embora um homem de virtude pessoal, reconhecia que a luta política tinha suas próprias regras.
Depois de tomar o poder, o sultão ofereceu santuário em Sherhaben a Yabril, sempre que precisasse. Nos últimos dez anos, Yabril passara mais tempo em Sherhaben do que em qualquer outro lugar. Criara ali uma identidade separada, com uma casa e criados, uma esposa e filhos. Era também, nessa identidade, um funcionário especial do governo, ocupando um cargo sem muito importância. Essa identidade nunca fora descoberta por nenhum serviço secreto estrangeiro. Durante aqueles dez anos, Yabril e o sultão haviam se tornado amigos íntimos. Ambos eram estudiosos do Corão, educados por professores estrangeiros, unidos em seu ódio a Israel. E nesse ponto faziam uma distinção especial: não odiavam os judeus como judeus, odiavam o estado oficial dos judeus.
O sultão de Snerhaben acalentava um sonho secreto, tão insólito que não se atrevia a partilhá-lo com ninguém, nem mesmo com Yabril. O de que Israel seria destruído um dia, e os judeus dispersados outra vez pelo mundo inteiro E quando isso acontecesse, ele, o sultão, atrairia os cientistas e estudiosos judeus para Sherhaben. Instalaria uma grande universidade para alojar os grandes cérebros judeus. Pois a história não demonstrara que essa raça possuía os genes da grandeza da mente? Einstein e outros cientistas judeus haviam dado a bomba atômica ao mundo. Que outros mistérios de Deus e da natureza eles não poderiam deslindar? E não eram também semitas? O tempo dilui o ódio; judeus e árabes poderiam conviver em paz e transformar Sherhaben num grande país. Haveria de atraí-los com riquezas e civilidade; respeitaria seus obstinados caprichos culturais. Quem sabia o que poderia acontecer? Sherhaben poderia se tornar outra Atenas. O pensamento fez o sultão sorrir de sua própria insensatez... mas que havia de mal em sonhar?
Mas agora talvez a conspiração de Yabril se transformasse num pesadelo. O sultão convocara Yabril ao palácio, afastara-o do avião, a fim de ter certeza de que sua ferocidade seria controlada. Yabril tinha uma longa história de acrescentar desvios pessoais a todas as suas operações.
O sultão insistira que Yabril tomasse um banho, fizesse a barba e desfrutasse uma bela dançarina do palácio. Depois, com Yabril revigorado e com uma pequena dívida ao sultão, sentaram no terraço envidraçado, com ar condicionado. O sultão concluiu que podia falar com franqueza e disse a Yabril:
— Devo lhe dar os parabéns. A escolha do momento foi perfeita, teve muita sorte. Alá vela por você, sem a menor dúvida. — Ele sorriu afetuosamente para Yabril, e continuou: — Recebi o aviso de que os Estados Unidos atenderão a todas as suas exigências. Pode se sentir contente. Humilhou o maior país do mundo. Matou o maior líder religioso do mundo. Conseguirá a libertação do assassino do Papa e isso será como mijar na cara deles. Mas não vá além disso. Pense no que poderá acontecer depois. Será o homem mais caçado na história deste século.
Yabril sabia o que viria agora, a sondagem por mais informações, como ele conduziria as negociações. Por um momento, especulou se o sultão tentaria assumir o comando da operação.
— Estarei seguro aqui em Sherhaben — disse Yabril. — Como sempre.
O sultão balançou a cabeça.
— Sabe tão bem quanto eu que eles vão se concentrar em Sherhaben, depois que tudo acabar. Terá de procurar outro refúgio.
Yabril riu.
— Serei um mendigo em Jerusalém. Mas deve se preocupar com você próprio. Eles saberão que teve uma participação.
— Não é provável. Afinal, estou sentado no maior e mais barato oceano de petróleo do mundo. Além disso, os americanos têm cinqüenta bilhões de dólares investidos aqui, o custo da cidade petrolífera de Dak e ainda mais. Acho que serei perdoado muito mais depressa do que você e seu Romeu. E agora, Yabril, meu amigo, eu o conheço muito bem, foi longe demais desta vez, realizou um trabalho magnífico. Por favor, não estrague tudo com um de seus pequenos floreios ao final do jogo. — O sultão fez uma pausa. — Quando devo apresentar suas exigências?
— Romeu já se encontra no lugar. Apresente o ultimato esta tarde. Eles devem concordar até onze horas da manhã de terça-feira, pelo horário de Washington. Não vou negociar.
— Tenha muito cuidado, Yabril. Dê-lhes mais tempo.
Os dois se abraçaram e Yabril voltou ao avião, guardado agora por três homens de seu grupo e mais quatro que haviam embarcado em Sherhaben. Os reféns estavam todos na classe turística, inclusive a tripulação. O avião se encontrava isolado no meio do aeroporto, cercado por multidões de espectadores, junto com equipes de TV do mundo inteiro, com seus equipamentos e veículos, mantidos a quinhentos metros do avião, onde o exército do sultão erguera um cordão de isolamento.
Yabril foi levado para o avião secretamente, como um membro da equipe do caminhão de abastecimento, levando comida, suprimentos e água para os reféns.
Em Washington, era o início da manhã de segunda-feira. A última coisa que Yabril dissera ao sultão fora o seguinte:
— Vamos descobrir agora de que é feito esse tal de Kennedy.
MUITAS VEZES É BASTANTE PERIGOSO, para todos os envolvidos, quando um homem rejeita os prazeres deste mundo e devota a vida a ajudar seus semelhantes. O Presidente dos Estados Unidos, Francis Xavier Kennedy, era um homem assim.
Antes de ingressar na política, Kennedy conquistara um sucesso espetacular e riqueza, antes mesmo de completar trinta anos. E depois se preocupara com o problema do que valia a pena fazer na vida. Como era religioso, como tinha um senso moral rigoroso, por causa da tragédia da perda dos tios quando era menino, acreditava que não poderia fazer nada melhor do que melhorar o mundo em que vivia. Em suma, melhorar o próprio Destino.
Ao ser eleito para a presidência, declarou que sua administração moveria uma guerra contra toda a miséria humana. Representaria milhões de pessoas que não podiam contratar lobistas e não dispunham de outros grupos de pressão.
Tudo isso, em circunstâncias normais, seria radical demais para o eleitorado americano, se não fosse pela presença mágica de Kennedy na tela da TV. Ele era mais bonito do que os dois “tios” famosos, e um ator muito melhor Também contava com uma inteligência superior à dos dois tios, era muito superior em instrução, um autêntico erudito. Podia sustentar sua retórica com as mais diversas estatísticas. Podia apresentar os esboços de planos, preparados por homens eminentes, nos mais variados campos, com uma eloqüência excepcional. E com um espírito um tanto cáustico.
— Com uma boa educação — dizia Francis Kennedy —, qualquer ladrão ou assaltante saberá o suficiente para roubar sem machucar ninguém. Saberão como roubar que nem as pessoas de Wall Street, aprenderão a sonegar impostos como os cidadãos mais respeitáveis em nossa sociedade. Podemos criar mais crimes do colarinho branco, mas pelo menos ninguém sairá machucado.
Mas havia outra faceta em Kennedy.
— Sou um reacionário para a esquerda e um terror para a direita — dissera Kennedy a Klee, no dia em que lhe dera um novo estatuto para o FBI, com amplos poderes discricionários. — Quando um homem comete o que é chamado de um ato criminoso, eu sinto que é um pecado. O cumprimento da lei é a minha teologia. Um homem que comete um ato criminoso exerce o poder de Deus sobre outro ser humano. Passa a ser decisão da vítima se aceita esse outro deus em sua vida. Quando a vítima e a sociedade aceitam o ato criminoso, por qualquer forma, destruímos a vontade de sobreviver de nossa sociedade. A sociedade e até mesmo o indivíduo não têm o direito de perdoar ou atenuar a punição. Por que impor a tirania do criminoso sobre uma população respeitadora da lei, que adere ao contrato social? Em casos hediondos de assassinato, assalto a mão armada e estupro, o criminoso proclama sua divindade.
Christian indagara, sorrindo:
— Vamos meter todos na cadeia?
— Não temos cadeias suficientes — respondera Kennedy, sombrio.
Christian lhe mostrara as últimas estatísticas sobre o crime nos Estados Unidos. Kennedy estudara o relatório por alguns minutos e demonstrara uma raiva intensa.
— Se ao menos as pessoas conhecessem as estatísticas ime... e se soubessem dos crimes que nunca entram estatísticas! Os ladrões, mesmo com ficha criminal, raramente vão para a prisão. A casa que o governo não invade, a preciosa liberdade, o sagrado contrato social, o lar sacrossanto são invadidos a todo instante por outro cidadão armado, empenhado no roubo, assassinato e estupro.
Kennedy recitara o ditado tão apreciado do direito consuetudinário inglês:
— A chuva pode entrar, o vento pode entrar, mas o rei não pode entrar. — E acrescentou: — Mas que besteira! Só a Califórnia teve seis vezes mais assassinatos do que toda a Inglaterra em um ano. Nos Estados Unidos, os assassinos passam menos de cinco anos na prisão. Desde que, por algum milagre, se consiga condená-los.
Kennedy não ficara por aí:
— O povo americano vive aterrorizado por uns poucos milhões de lunáticos. As pessoas têm medo de sair à rua durante a noite. Guardam suas casas com uma segurança particular que custa trinta bilhões de dólares por ano.
Kennedy detestava especialmente um aspecto:
— Sabia que 98 por cento dos crimes ficam impunes? Nietzsche disse há muito tempo: “Uma sociedade que se torna branda e indulgente toma o lado daqueles que a prejudicam.” As organizações religiosas, com toda a sua merda de misericórdia, perdoam os criminosos. Os miseráveis não têm o direito de perdoar os criminosos. A pior coisa a que já assisti na minha vida foi uma mãe que apareceu na TV. Sua filha fora estuprada e morta de uma maneira horrível e ela disse: “Eu os perdôo.” Que porra de direito ela tinha de perdoá-los?
E depois, para a surpresa um tanto esnobe de Christian, Kennedy investira contra a literatura:
— Orwell escreveu tudo errado em 1984. O indivíduo é que é a besta. E Huxlev, em Admirável Mundo Novo, fez uma coisa lamentável. Eu não me importaria de viver no Admirável Mundo Novo, pois é melhor do que este. O indivíduo é que é o tirano, não o governo.
Christian comentara, muito sério, com alguma ingenuidade:
— Fiquei sinceramente espantado com os dados no relatório estatístico que lhe apresentei. A população deste país está sendo aterrorizada.
— O Congresso deve aprovar a legislação de que precisamos. Os jornais e outros meios de comunicação protestam, argumentando com a Lei dos Direitos do Homem e a sagrada Constituição.
Kennedy fizera uma pausa, a fim de avaliar a reação do amigo. Klee parecia um tanto chocado. Kennedy sorrira e continuara:
— Deixe-me dar uma pequena informação, quer aceite ou não. O mais espantoso é que discuti essa situação com os homens mais poderosos deste país, os que controlam todo o dinheiro. Fiz um discurso no Clube Sócrates. Pensei que eles ficariam preocupados. Foi uma surpresa. Tinham o poder de influenciar o Congresso, mas se recusaram a tomar qualquer iniciativa. E nem em um milhão de anos você seria capaz de adivinhar o motivo, Eu ainda não consegui.
Ele fizera uma pausa, como se esperasse que Christian desse o seu palpite. O rosto contraído no que poderia ser um sorriso ou uma expressão desdenhosa, Kennedy acrescentara:
— Os ricos e poderosos deste país podem se proteger. Não contam com a polícia e outras agências do governo. Cercam-se com dispendiosos sistemas de segurança. Dispõem de seguranças. Dispõem de seguranças particulares. Estão isolados da comunidade criminosa. E os prudentes não se envolvem com os elementos ligados às drogas. Podem dormir em paz à noite, por trás de seus muros eletrificados.
Christian remexera-se, inquieto, tomara um gole de conhaque, enquanto Kennedy prosseguia:
— A questão é a seguinte: se aprovarmos leis para reprimir o crime, teremos de punir criminosos pretos mais do que quaisquer outros. E o que farão as pessoas sem talento, ignorantes, impotentes? Que outro recurso terão contra a nossa sociedade? Se não encontrarem uma vazão no crime, passarão para a ação política. E se tornarão radicais ativos. O equilíbrio político deste país será alterado. Poderemos deixar de ser uma democracia capitalista.
— Acredita mesmo nisso? — indagara Christian.
Kennedy suspirara.
— Quem sabe? Mas as pessoas que comandam este país acreditam nisso. Acham que é melhor deixar os chacais se banquetearem com os desamparados. O que eles podem roubar? Uns poucos bilhões de dólares? É um preço pequeno a pagar. Milhares de pessoas são assaltadas, assassinadas, estupradas, não tem importância, acontece com pessoas insignificantes. É melhor do que os danos causados por uma sublevação política.
— Está indo muito longe — comentara Christian.
— É bem possível.
— E quando a coisa for longe demais, terá todos os tipos de grupos de vigilantes, o fascismo ao estilo americano.
— Mas esse é o tipo de ação política que se pode controlar — respondera Kennedy. — E ajudará as pessoas que comandam a nossa sociedade.
Depois ele sorrira para Christian, pegara o relatório de computador e arrematara:
— Quero ficar com isto. Para emoldurar e pendurar na parede do meu escritório, como uma relíquia dos tempos anteriores à nomeação de Christian Klee para procurador-geral e diretor do FBI.
Agora, na segunda-feira depois da Páscoa, às sete horas da manhã, os membros da assessoria pessoal do Presidente Francis Kennedy, seu Gabinete e a Vice-Presidente Helen Du Pray reuniram-se na Sala do Gabinete da Casa Branca. E naquela manhã de segunda-feira estavam todos apreensivos com a ação que ele poderia determinar. sinal
Theodore Tappey, o diretor da CIA, esperou por um sinal de Kennedy e depois abriu a reunião:
— Devo informar primeiro que Theresa está bem. Ninguém foi ferido. Não foram apresentadas exigências específicas até agora. Mas serão feitas até o anoitecer, e já fomos avisados que deverão ser atendidas imediatamente, sem negociações. Mas isso é o normal. O líder dos seqüestradores, Yabril, é um nome famoso nos círculos terroristas e consta de nossos arquivos. É um agente independente e quase sempre realiza suas operações com a ajuda de algum dos grupos de terror organizados, como o mítico Primeiros Cem.
Klee interveio:
— Por que mítico, Theo?
— Não é como Ali Babá e os quarenta ladrões. Limita-se a ações de ligação entre terroristas de diferentes países.
Kennedy disse bruscamente:
— Continue.
Tappey consultou suas anotações.
— Não resta a menor dúvida de que o sultão de Sherhaben está cooperando com Yabril. Seu exército protege o aeroporto, a fim de impedir qualquer tentativa de resgate. Enquanto isso, o sultão finge ser nosso amigo e se oferece como intermediário nas negociações. Ninguém pode adivinhar qual o seu propósito nisso, mas é do nosso interesse descobrir, O sultão é razoável e vulnerável a pressões. Yabril é uma incógnita.
O diretor da CIA hesitou; mas continuou, relutante, a um aceno de cabeça de Kennedy:
— Yabril está tentando fazer uma lavagem cerebral em sua filha, Senhor Presidente. Tiveram várias conversas longas. Ele parece pensar que Theresa é uma revolucionária em potencial, e que seria um grande golpe se ela fizesse alguma declaração de simpatia. E Theresa parece não ter medo dele.
Os outros na sala permaneceram em silêncio. Sabiam que era melhor não perguntar a Tappey como obtivera essas informações.
Havia um burburinho de vozes além da Sala do Gabinete, eles podiam ouvir os gritos das equipes de TV, esperando no gramado da Casa Branca. E de repente um dos assistentes de Eugene Dazzy foi introduzido na sala e entregou um memorando escrito a seu chefe. Dazzy leu-o rapidamente e perguntou ao assistente:
— Tudo isso foi confirmado?
— Foi, sim, senhor.
Dazzy virou-se para Francis Kennedy.
— Senhor Presidente, tenho uma notícia extraordinária. O assassino do Papa foi capturado aqui, nos Estados Unidos. O prisioneiro confirma que é o assassino, e que seu codinome é Romeu. Recusa-se a revelar seu nome verdadeiro. Já houve contato com as autoridades de segurança italianas, e o prisioneiro forneceu detalhes que confirmam a sua culpa.
Arthur Wix explodiu, como se um hóspede não convidado aparecesse numa festa íntima:
— Mas o que ele está fazendo aqui? Não dá para acreditar!
Dazzy explicou pacientemente as confirmações. A segurança italiana já capturara alguns dos ajudantes de Romeu, que confessaram e identificaram Romeu como seu líder. O chefe da segurança italiana, Franco Sebbediccio, era famoso por sua capacidade de arrancar confissões. Mas não descobrira por que Romeu fugira para os Estados Unidos e por que se deixara capturar com tanta facilidade.
Francis Kennedy foi até as portas de vidro que davam para o Jardim das Rosas. Observou por um momento os destacamentos militares que patrulhavam o terreno da Casa Branca e as ruas adjacentes. Tornou a experimentar o senso familiar de medo. Nada em sua vida era fortuito, a vida era como uma conspiração mortífera, não apenas entre os seres humanos, mas também entre a fé e a morte.
Francis Kennedy voltou à mesa de reuniões. Contemplou a sala, povoada pelas pessoas nos mais altos cargos no, país, as mais astutas, as mais inteligentes, táticas, planejadoras. E comentou, quase em tom de gracejo: .
— Querem apostar que hoje receberemos as exigências do seqüestrador? E que uma delas será a libertação do assassino do Papa?
Os outros fitaram Kennedy com espanto. Otto Gray disse:
— Senhor Presidente, isso seria um absurdo. Seria uma agencia ultrajante, inegociável.
Tappey interveio, cauteloso:
— Ás informações de que dispomos não indicam qualquer ligação entre os dois atos. Mais do que isso, seria inconcebível que qualquer grupo terrorista desfechasse duas operações tão importantes na mesma cidade e no mesmo dia. — Ele fez uma pausa, virou-se para Christian Klee. — Senhor Procurador-Geral, como esse homem foi capturado?
Outra pausa e Tappey acrescentou, com repulsa:
— Esse tal de Romeu...
— Através de um informante que usamos há anos. Achamos que era impossível, mas meu subchefe, Peter Cloot, organizou uma operação em larga escala, que parece ter sido bem-sucedida. Devo dizer que também estou surpreso. Não faz o menor sentido.
— Vamos adiar esta reunião, até que os seqüestradores apresentem suas exigências — decidiu Kennedy.
Num instante de intuição paranóica, ele compreendera todo o plano que Yabril criara com tanto orgulho e astúcia. Agora, pela primeira vez, temia de fato pela segurança da filha.
As exigências de Yabril chegaram pelo Centro de Comunicações da Casa Branca, ao final da tarde de segunda-feira, transmitidas pelo aparentemente prestativo sultão de Sherhaben. A primeira exigência era um resgate de cinqüenta milhões de dólares pelo avião; a segunda, a libertação de seiscentos prisioneiros árabes em prisões israelenses. A terceira era a libertação de Romeu, o recém-capturado assassino do Papa, e sua transferência para Sherhaben. Se essas exigências não fossem atendidas em 24 horas, um refém seria fuzilado.
Francis Kennedy e sua assessoria especial reuniram-se na sala de jantar da ala noroeste, no segundo andar da Casa Branca, para analisar as exigências de Yabril. A mesa antiga foi servida para Helen Du Pray, Otto Gray, Arthur Wix, Eugene Dazzy e Christian Klee. O lugar de Kennedy era na cabeceira da mesa, proporcionando-lhe mais espaço do que os outros.
Francis Kennedy pusera-se nas mentes dos terroristas — Sempre possuíra esse talento para a empatia. O objetivo primário deles era humilhar os Estados Unidos, destruir seu manto de poder aos olhos do mundo, até mesmo aos olhos das nações amigas. E Kennedy achava que era um golpe de mestre psicológico. Quem tornaria a levar os Estados Unidos a sério se fosse acuado e se submetesse a uns poucos homens armados e um pequeno sultanato do petróleo? Devia permitir que isso acontecesse para trazer a filha de volta sã e salva? Contudo, em sua empatia, ele adivinhou que a história não estava completa, haveria mais surpresas. Mas não disse nada. Deixou que os outros na sala de jantar transmitissem suas informações.
Eugene Dazzy, como chefe de gabinete, iniciou as discussões. Sua voz estava arrastada com a fadiga; não dor¬mia há 36 horas.
— Senhor Presidente, achamos que as exigências dos terroristas só devem ser atendidas até certo ponto. Devemos entregar Romeu ao governo italiano, não a Yabril, essa é a atitude legalmente correia. Não concordamos que temos de pagar algum dinheiro, e não podemos obrigar Israel a libertar seus prisioneiros. Dessa maneira não pareceremos fracos demais, e não estaremos provocando-os. Depois que Theresa voltar, poderemos cuidar dos terroristas.
— Prometo que esse problema será resolvido em um ano — disse Klee.
Francis Kennedy permaneceu em silêncio por um longo tempo, depois disse:
— Não creio que isso possa dar certo.
Arthur Wix interveio:
— Mas essa deve ser a nossa reação pública. Nos bastidores, podemos prometer-lhes que Romeu será libertado, que pagaremos o resgate e pressionaremos Israel. Acho que pode dar certo. Pelo menos lhe dará o que pensar e uma oportunidade para negociar.
— Não fará mal algum — acrescentou Dazzy. —Nessas situações, os ultimatos são apenas parte do processo de negociação. O Prazo fatal de 24 horas nada significa.
Kennedy refletiu sobre as sugestões e acabou reiterando:
— Ainda acho que não vai dar certo.
— Mas nós achamos que é viável — declarou Oddblood Gray.— E você precisa ter muito cuidado, Francis. O Congressista Jintz e o Senador Lembertino me avisaram que o Congresso pode pedir que se afaste completamente desta crise, por causa de seu envolvimento pessoal. É uma possibilidade muito perigosa.
— Isso nunca vai acontecer — proclamou Kennedy.
— Deixe-me lidar com o Congresso — sugeriu a Vice-Presidente Du Pray. — Serei o pára-raios. Serei a voz que vai propor as capitulações de nossa parte.
Foi Dazzy quem resumiu tudo:
— Nesta situação, Francis, você deve confiar no julgamento coletivo de sua assessoria. Sabe muito bem que o protegeremos e faremos o que for melhor para você.
Kennedy suspirou e se manteve calado por um longo momento, antes de concordar:
— Está certo. Vão em frente.
Peter Cloot demonstrara ser um subchefe de excepcional eficiência no comando do FBI. Cloot era magro, o corpo um mero feixe de músculos. Tinha um bigodinho que em nada contribuía para abrandar o rosto ossudo. Apesar de suas virtudes, Cloot também tinha defeitos. Era inflexível no cumprimento de suas responsabilidades, não transigia com seus deveres e acreditava demais na segurança interna. Naquela noite, com uma expressão sombria, ele recebeu Christian com um punhado de memorandos e uma carta de três páginas que entregou em separado.
Era uma carta composta por tipos recortados de jornais. Christian leu-a. Era outra daquelas ameaças malucas, avisando que uma bomba atômica de fabricação doméstica explodiria na cidade de Nova York.
— É para uma coisa assim que você me tira do gabinete do presidente? — indagou Christian.
— Esperei a conclusão de todos os procedimentos de confirmação — respondeu Cloot. — Foi considerada uma possibilidade!
— Oh, Deus, não agora!
Ele tornou a ler a carta, agora com muito mais cuidado. Parecia um bizarro quadro de vanguarda. Christian sentou à sua mesa e leu devagar, palavra por palavra. A carta era endereçada ao New York Times. Primeiro, ele leu os parágrafos assinalados com tinta verde para identificar as informações concretas.
Os trechos marcados diziam o seguinte:
“Colocamos uma arma nuclear com o potencial mínimo de meio quiloton e máximo de dois quilotons na área da cidade de Nova York. Esta carta é endereçada a seu jornal para que possam publicá-la e avisar aos moradores da cidade para desocuparem-na, escapando à explosão. O artefato está armado para detonar daqui a sete dias, a contar da data acima. Portanto, podem compreender como é necessário que a carta seja publicada imediatamente.” Klee verificou a data. A explosão seria na quinta-feira. Ele continuou a ler: "Tomamos essa iniciativa para mostrar ao povo dos Estados Unidos que o governo deve se unir com o resto do mundo, numa base de igualdade, para controlar a energia nuclear, ou nosso planeta pode ser destruído".
"Não há possibilidade de sermos comprados por dinheiro ou qualquer outra condição". Ao publicar esta carta e exortar à evacuação da cidade de Nova York, vocês estarão salvando milhares de vidas.
"Para provar que esta não é uma carta de lunático, mandem que o envelope e o papel sejam examinados em laboratórios do governo". Eles encontrarão resíduos de óxido de plutônio.
“Publiquem esta carta imediatamente.”
O resto da carta era uma preleção sobre a moralidade política e uma exigência veemente para que os Estados Unidos deixassem de fabricar armas nucleares. Christian perguntou a Peter Cloot:
— Mandou fazer os exames?
— Mandei. E encontraram os resíduos. As letras individuais foram recortadas de jornais e revistas para formar a mensagem, mas oferecem uma pista. O autor ou autores foram bastante espertos para usarem publicações de todo o país. Mas há uma ligeira tendência, acima do normal, para jornais de Boston. Enviei cinqüenta homens extras para ajudarem o chefe do nosso escritório lá.
Christian suspirou.
— Temos uma longa noite pela frente. Vamos manter isso em sigilo. Não deixe que os meios de comunicação vazem a notícia. O posto de comando será minha sala, tudo me deve ser encaminhado. O presidente já tem problemas demais... vamos abafar esta história. Não passa de uma bobagem, como as outras cartas de lunáticos.
— Está certo — disse Peter Cloot. — Mas quer saber de uma coisa? Algum dia uma dessas cartas será autêntica.
Foi uma longa noite. As informações chegavam a todo instante. O diretor da Agência de Energia e Pesquisa Nuclear foi informado, a fim de que suas equipes de busca ficassem alerta. Eram equipes especialmente treinadas, com sofisticados equipamentos de detecção para procurar bombas nucleares escondidas.
Christian jantou em sua sala, junto com Cloot. Leu todos os relatórios. O New York Times não publicara a carta; como era a rotina, encaminharam-na ao FBI. Christian ligou para o editor do jornal e pediu que não publicasse nenhuma notícia a respeito, até que a investigação fosse concluída. O que era também uma questão de rotina. Os jornais vêm recebendo milhares de cartas similares ao longo dos anos. Fora por isso que a carta só chegara ao FBI na segunda-feira, em vez de no sábado.
Pouco antes de meia-noite, Peter Cloot foi para sua própria sala para conferenciar com seu pessoal, que estava recebendo centenas de telefonemas dos agentes no campo, a maioria de Boston. Christian continuou a ler os relatórios, à medida que chegavam. Mais do que qualquer outra coisa, não queria que aquilo fosse acrescentado aos fardos com que o presidente já arcava. Por um momento, chegou a pensar na possibilidade de que se tratasse de outro desvio na trama dos seqüestradores, mas nem mesmo eles ousariam jogar com apostas tão altas. Só podia ser alguma aberração que a sociedade expelira. Houvera antes ameaças de bombas atômicas, malucos que alegavam ter plantado artefatos de fabricação doméstica e exigiam resgates de dez a cem milhões de dólares. Uma carta até pedia uma carteira de ações negociadas em Wall Street, da IBM, General Motors, Sears, Texaco e algumas companhias de tecnologia genética. A carta fora encaminhada ao Departamento de Energia para uma análise psicológica; o relatório foi de que não representava nenhuma ameaça de bomba, mas o terrorista entendia muito bem do mercado de ações. O que levara à prisão de um pequeno corretor de Wall Street que malversara os fundos de seus clientes e procurava uma es¬capatória.
Aquela nova carta só podia ser uma coisa de maluco, refletiu Christian; mas até que isso fosse confirmado estava causando problemas. Centenas de milhões de dólares seriam gastos. E era uma sorte que os meios de comunicação não divulgassem a carta. Havia algumas coisas que nem aqueles desgraçados de coração frio se atreviam a fazer Sabiam que havia artigos sobre o sigilo nas leis de controle da bomba atômica que podiam ser invocados, abrindo brechas no muro da sagrada liberdade de imprensa. Christian passou as horas subseqüentes rezando para que tudo aquilo se desvanecesse como um rebate falso. Para não ter de procurar o presidente pela manhã e acrescentar-lhe mais aquele fardo.
NO SULTANATO DE SHERHABEN, Yabril estava parado na porta aberta do avião seqüestrado, preparando-se para o próximo ato que teria de representar. Relaxou um pouco a concentração absoluta e contemplou o deserto ao redor. O sultão providenciara a instalação de mísseis ali, assim como uma estação de radar. Uma divisão blindada formara um perímetro, a fim de impedir que os furgões das emissoras de TV chegassem a menos de cem metros do avião. Mais além, havia uma enorme multidão de espectadores. E Yabril pensou que no dia seguinte teria de dar a ordem para que permitissem que as equipes de TV e os espectadores chegassem mais perto, muito mais perto. Não haveria perigo de um ataque; o avião estava cheio de bombas, e Yabril sabia que poderia explodir tudo em fragmentos de metal e carne, de forma tão completa que os ossos teriam de ser peneirados das areias do deserto.
Finalmente ele se afastou da porta do avião e foi sentar ao lado de Theresa Kennedy. Estavam sozinhos no compartimento da primeira classe. Os terroristas mantinham os reféns na classe turística, e havia guardas também na cabine de comando, com os tripulantes.
Yabril fazia tudo o que podia para deixar Theresa tranqüila. Assegurava-lhe que os outros passageiros, também reféns, estavam sendo bem cuidados. Claro que não estavam muito confortáveis; nem ela, nem ele próprio, diga-se de passagem. Ele comentou agora, com uma careta de desagrado:
— Sabe muito bem que é do meu interesse evitar que lhe aconteça algum mal.
Theresa acreditou. Apesar de tudo, achava simpático aquele rosto moreno e fervoroso; embora soubesse que ele era perigoso, não podia detestá-lo sinceramente. Em sua inocência, Theresa acreditava que sua posição elevada a tornava invulnerável. Yabril acrescentou, quase suplicante:
— Pode nos ajudar, pode ajudar os outros reféns. Nossa causa é justa. Você mesma disse isso, há alguns anos. Mas a comunidade judaica americana foi forte demais. Calou a sua boca.
Theresa sacudiu a cabeça.
— Tenho certeza de que tem suas justificativas, todo mundo sempre tem. Mas as pessoas inocentes neste avião nunca fizeram qualquer mal a você ou à sua causa. Não deveriam sofrer pelos pecados de seus inimigos.
Yabril sentia um estranho prazer por descobri-la tão corajosa e inteligente. O rosto de Theresa, tão atraente e bonito ao estilo americano, também lhe agradava, como se ela fosse alguma espécie de boneca americana.
Outra vez Yabril ficou impressionado pelo fato de que ela não demonstrava medo dele, não tinha medo do que poderia lhe acontecer. A cegueira dos bem-nascidos diante do destino, a arrogância dos ricos e poderosos. O que estava na história de sua família.
— Srta. Kennedy — disse ele, numa voz cortês, que a persuadiu a escutar —, sabemos muito bem que não é o tipo habitual de americana mimada, que sua simpatia é pelos pobres e oprimidos do mundo. Tem dúvidas até sobre o direito de Israel de expulsar pessoas de suas próprias terras para fundar um estado guerreiro. Talvez queira fazer uma gravação dizendo isso, para ser ouvida no mundo inteiro.
Theresa Kennedy estudou o rosto de Yabril. Os olhos castanhos-amarelados eram brilhantes e afetuosos, o sorriso tornava seu rosto moreno e fino quase infantil. Ela fora criada para confiar no mundo, confiar nos outros seres humanos, e confiar em sua inteligência e em suas próprias convicções. Podia perceber que aquele homem acreditava sinceramente no que estava fazendo. De uma maneira curiosa, ele inspirava respeito. Ela foi polida em sua recusa:
— Talvez seja verdade o que você diz. Mas eu nunca faria qualquer coisa que pudesse prejudicar meu pai. — The¬resa fez uma pausa, e depois acrescentou: — E acho que seus métodos não são inteligentes. Não creio que o assassinato e o terror consigam mudar alguma coisa.
Yabril sentiu um profundo desdém por esse comentário, mas respondeu gentilmente:
— O estado de Israel foi criado pelo terror e o dinheiro americano. Não lhe ensinaram isso na sua universidade americana? Aprendemos com Israel, mas sem a sua hipocrisia. Nossos xeques árabes do petróleo nunca foram tão generosos no dinheiro que nos deram quanto os seus filantropistas judeus foram com Israel.
— Acredito no estado de Israel, mas também acredito que o povo palestino deve ter uma pátria. Não tenho nenhuma influência sobre meu pai, estamos sempre discutindo. Mas nada justifica o que você está fazendo agora.
Yabril ficou impaciente.
— Deve compreender que você é meu tesouro. Já apresentei as exigências. Um refém será fuzilado de hora em hora, depois do prazo fatal. E você será a primeira.
Para surpresa de Yabril, ainda não havia medo no rosto de Theresa. Ela seria estúpida? Uma mulher tão obviamente resguardada podia ser tão corajosa? Ele estava interessado em descobrir. Até agora, ela fora bem tratada. Ficara isolada na primeira classe, tratada com o maior respeito pelos guardas. Theresa parecia agora furiosa, mas acalmou-se tomando o chá que ele servira.
Ela fitou-o agora. Yabril notou como os cabelos louros emolduravam as feições delicadas. As pálpebras estavam escuras da fadiga, os lábios sem maquilagem eram de um rosa pálido.
— Dois dos meus tios-avôs foram mortos por pessoas como você — disse Theresa, a voz calma, controlada. — Minha família foi criada com a morte. E meu pai se preocupava comigo quando foi eleito presidente. Advertiu que o mundo tinha homens como você, mas me recusei a acreditar. Agora, estou curiosa. Por que age como um bandido? Acha que pode assustar o mundo inteiro matando uma mulher?
Yabril pensou: Talvez não, mas matei um Papa. Ela não sabia disso, ainda não. Por um momento, ele sentiu-se tentado a contar. Revelar todo o plano grandioso. A corrosão da autoridade que todos os homens temem, o poder das grandes nações e das grandes igrejas. E como o medo do poder no homem pode ser erodido por atos solitários de terror. Mas ele estendeu a mão para tocá-la, num gesto tranqüilizador.
— Nenhum mal lhe acontecerá. Eles vão negociar. A vida é negociação. Ao conversarmos, estamos negociando. Cada ato terrível, cada palavra insultuosa, cada palavra de louvor, tudo é negociação. Não leve muito a sério o que eu disse.
Theresa riu.
Yabril ficou contente por ela achá-lo espirituoso, lembrava-o de Romeu; ela possuía o mesmo entusiasmo instintivo pelos pequenos prazeres da vida, mesmo que fosse apenas um jogo de palavras. Uma ocasião Yabril dissera a Romeu:
— Deus é o supremo terrorista.
E Romeu aplaudira na maior satisfação.
Mas agora Yabril sentiu um aperto no coração, uma tremenda vertigem. Estava envergonhado por querer encantar Theresa Kennedy. Acreditara que alcançara um estágio na vida em que se encontrava além dessas fraquezas. Se ao menos ele pudesse persuadi-la a fazer a gravação, então não teria de matá-la.
Terça-feira
NA MANHÃ DA TERÇA-FEIRA seguinte ao seqüestro e assassinato do Papa no Domingo de Páscoa, o Presidente Francis Kennedy entrou na sala de projeções da Casa Branca para assistir a um filme que a CIA contrabandeara de Sherhaben.
A sala de projeções da Casa Branca era uma vergonha, com cadeiras de braços verdes e encardidas para uns poucos privilegiados e cadeiras dobráveis de metal para qualquer um abaixo do nível do Gabinete. A audiência era formada pelo secretário de estado, o secretário de defesa, seus respectivos assessores, o pessoal da CIA e os membros da assessoria especial da Casa Branca.
Todos se levantaram quando o presidente entrou. Kennedy foi sentar numa cadeira verde; o diretor da CIA, CIA, Theodore Tappey, postou-se ao lado da tela para fazer os comentários.
O filme começou a ser projetado. Mostrava um caminhão parando atrás do avião seqüestrado. Os trabalhadores descarregando suprimentos usavam chapéus de aba larga como proteção contra o sol; vestiam calças marrons de sarja e camisas de algodão castanhas, de mangas curtas. O filme mostrava os trabalhadores deixando o avião, e depois focalizava um deles. Podia-se ver, sob o chapéu de aba mole, as feições de Yabril, o rosto moreno anguloso, olhos brilhantes, um sorriso contraindo os lábios. Yabril embarcou no caminhão de suprimentos com os outros trabalhadores. O filme parou e Tappey falou:
— O caminhão seguiu para o palácio do sultão. Temos informações de que eles se encontraram num banquete requintado, completo, inclusive com dançarinas. Depois, Yabril retornou ao avião da mesma maneira. Não resta a menor dúvida de que o sultão de Sherhaben é também um conspirador nesses atos de terrorismo.
A voz do secretário de estado trovejou na escuridão:
— Indubitável apenas para nós. O serviço de informações é sempre suspeito. E mesmo que pudéssemos provar, não poderíamos tornar público. Perturbaria todos os equilíbrios políticos no Golfo Pérsico. Seríamos forçados a uma ação retaliatória, e isso seria contra os nossos melhores interesses.
Otto Gray murmurou:
— Santo Deus!
Christian Klee soltou uma risada.
Eugene Dazzy, que era capaz de escrever no escuro — um sinal infalível de gênio administrativo, ele sempre dizia a todos —, fez anotações num bloco.
O diretor da CIA continuou:
— Nossas informações se reduzem ao seguinte. Receberão os memorandos com detalhes mais tarde. Parece que a operação é financiada pelo grupo terrorista internacional que se intitula Primeiros Cem, ou às vezes os Cristos da Violência. Parece ser uma ligação entre grupos revolucionários de orientação marxista de universidades de elite, providenciando casas seguras e material. E se limita basicamente à Alemanha, Itália, França e Japão, existindo de uma maneira muito vaga na Irlanda e Inglaterra. Mas segundo nossas informações, nem mesmo os Cem sabiam direito o que estava acontecendo por aqui. Achavam que a operação seria encerrada com o assassinato do Papa. O que nos leva à conclusão de que esse homem, Yabril, controla a conspiração, junto com o sultão de Sherhaben.
O filme recomeçou a rodar. Mostrava o avião isolado na pista, o círculo de soldados e baterias antiaéreas, que protegiam contra a aproximação de qualquer avião. Mostrava as multidões que eram mantidas a cem metros de distância. A voz do diretor da CIA soou durante a projeção:
— Este filme e outras fontes indicam que não pode haver unia missão de resgate. A menos que decidamos simplesmente dominar todo o estado de Sherhaben. E é claro que a Rússia nunca permitirá isso, nem talvez os outros estados árabes. Além disso, mais de cinqüenta bilhões de dólares de dinheiro americano foram investidos na construção da cidade de Dak, o que constitui outro tipo de refém deles. Não podemos explodir esses investimentos de cinqüenta bilhões de dólares de nossos cidadãos. Acrescente-se o fato de que as rampas de mísseis em Sherhaben são guarnecidas em sua maioria por mercenários americanos, mas a esta altura deparamos com algo muito mais curioso.
Na tela, apareceu uma cena trêmula, do interior do avião seqüestrado. A câmera era obviamente operada de forma manual, desceu pelo corredor da classe turística, mostrando os passageiros assustados, imobilizados nas poltronas. A câmera continuou, até a primeira classe, focalizou uma única passageira sentada ali. E no instante seguinte Yabril apareceu na cena. Usava uma calça bege de algodão e uma camisa castanho-amarelada, de mangas curtas, a mesma cor do deserto lá fora. Houve um corte para Yabril sentado ao lado da passageira solitária, revelada agora como Theresa Kennedy. Yabril e Theresa pareciam conversar de uma maneira animada e cordial.
Theresa Kennedy exibia um pequeno sorriso divertido, o que fez com que o pai, observando a tela, quase desviasse o rosto. Era um sorriso que ele se lembrava de sua própria infância, o sorriso das pessoas entrincheiradas nos centros do poder, que nunca sonham que podem ser atingidas pelo mal de seus semelhantes. Francis Kennedy vira aquele sorriso muitas vezes no rosto de seus tios; e perguntou ao diretor da CIA:
— Quando esse filme foi feito e como o conseguiu?
— O filme tem doze horas — respondeu Tappey. —Nós o compramos a um custo elevado, obviamente de alguém muito ligado aos terroristas. Posso lhe dar os detalhes em particular, depois desta manhã, Senhor Presidente.
Kennedy fez um gesto de dispensa. Não estava interessado em detalhes. Tappey continuou:
— Informações adicionais. Nenhum dos passageiros foi maltratado. E também, o que é muito curioso, as mulheres que participaram do seqüestro foram substituídas, sem dúvida com a conivência do sultão. Considero esse fato como um pouco sinistro.
— Por quê? — indagou Kennedy, bruscamente.
— Todos os terroristas no avião são homens. Há mais agora, pelo menos dez. Estão fortemente armados. Talvez estejam decididos a matar os reféns se houver um ataque. É possível que tenham achado que as mulheres não seriam capazes de cometer esse massacre. Nossa última avaliação das informações é a de que não se deve tentar uma operação de resgate pela força.
— Eles podem estar usando pessoal diferente apenas por se tratar de uma fase diferente da operação — comentou Klee. — Ou Yabril pode ter achado que ficaria mais à vontade só com homens... afinal, ele é um árabe.
Tappey sorriu.
— Ora, Chris, você sabe tão bem quanto eu que essa substituição é uma aberração. Creio que só aconteceu uma vez antes. Pela sua experiência em operações clandestinas, sabe perfeitamente que isso exclui um ataque direto para resgatar os reféns.
Kennedy permaneceu em silêncio.
Assistiram ao que restava do filme. Yabril e Theresa conversaram animadamente, parecendo se tornar mais e mais cordiais. Até que Yabril afagou o ombro de Theresa. Era evidente que estava tranqüilizando-a, dando alguma boa notícia, porque Theresa riu, satisfeita. E depois Yabril fez uma reverência quase cortês, um gesto que indicava que ela se encontrava sob sua proteção e nenhum mal lhe aconteceria.
— Tenho medo desse camarada — disse Klee. — Precisamos tirar Theresa de lá.
Eugene Dazzy estava sentado em sua sala, repassando todas as opções para ajudar o Presidente Kennedy. Primeiro, telefonou para sua amante, a fim de avisá-la de que não poderiam se encontrar até que a crise terminasse. Depois ligou para a esposa, a fim de conferir a agenda social e cancelar tudo. Pensou muito e acabou ligando para Bert Au¬dick, um dos mais encarniçados inimigos da administração Kennedy.
— Precisa nos ajudar, Bert. Ficarei lhe devendo um grande favor.
— Neste caso, Eugene, somos todos americanos, unidos — respondeu Audick.
Bert Audick já absorvera duas das gigantescas companhias petrolíferas americanas, tragando-as como um sapo engole moscas, como diziam seus inimigos. E ele parecia mesmo com um sapo, a boca larga no rosto grande e papudo, os olhos um pouco esbugalhados. Apesar disso, porém, era um homem impressivo, alto e corpulento, com uma cabeça enorme e o queixo tão quadrado quanto suas plataformas de petróleo. Sempre fora um homem do petróleo. Concebido no petróleo, criado no petróleo, amadurecido no petróleo. Nascido na riqueza, ele multiplicara essa riqueza por cem. Sua companhia valia vinte bilhões de dólares, e ele possuía 51 por cento das ações. Agora, aos setenta anos, sabia mais sobre petróleo do que qualquer outro homem nos Estados Unidos. Dizia que conhecia cada ponto do globo em que havia petróleo por baixo da terra.
Na sede de sua corporação em Houston, telas de computador formavam um imenso mapa do mundo, mostrando cada um dos incontáveis petroleiros no mar, seu porto de origem e destino. Quem o possuía, por que preço fora comprado, quantas toneladas transportava. Ele podia entregar um bilhão de barris de petróleo a qualquer país com a mesma facilidade com que um homem comum dá uma nota de cinqüenta dólares ao maître num restaurante.
Ganhara parte de sua vasta fortuna na crise do petróleo na década de 70, quando o cartel da OPEP parecia segurar o mundo pela garganta. Mas fora Bert Audick quem aplicara a pressão. Ganhara bilhões de dólares com uma escassez que sabia não passar de um embuste.
Mas não agira assim por pura ganância. Amava o petróleo e sentia-se indignado ao ver sua força vital sendo vendida por um preço vil. Ajudara a elevar o preço do petróleo com o ardor romântico de um jovem se rebelando contra as injustiças da sociedade. E depois dera a maior parte do que ganhara para obras de caridade.
Construíra hospitais sem fins lucrativos, asilos gratuitos para os velhos, museus de arte. Instituíra milhares de bolsas de estudos universitários para os desprivilegiados, sem distinção de raça ou credo. Também cuidara de parentes e amigos, enriquecera primos distantes. Amava seu país e os compatriotas americanos, e jamais contribuíra com seu dinheiro para qualquer coisa fora dos Estados Unidos. À exceção, é claro, dos subornos para autoridades estrangeiras. Não amava os líderes políticos de seu país, nem as engrenagens opressivas do governo. Eram quase sempre seus inimigos, com suas leis restritivas, suas ações judiciais antitruste, sua interferência nos negócios particulares. Bert Audick tinha uma lealdade absoluta por seu país, mas era o seu negócio, seu direito democrático de pressionar os compatriotas, obrigá-los a pagar pelo petróleo que ele idolatrava.
Audick acreditava em manter o petróleo no fundo da terra por tanto tempo quanto possível. Pensava muitas vezes, com amor, nos bilhões e bilhões e bilhões de dólares que se encontravam em enormes poços sob as areias do deserto de Sherhaben e outros lugares do mundo, tão seguros quanto podiam ficar. Manteria esse vasto lago de ouro intacto por tanto tempo quanto conseguisse. Comprava o petróleo de outras pessoas, comprava outras companhias petrolíferas. Perfurava os oceanos, comprava o Mar do Norte da Inglaterra, comprava uma parte da Venezuela. E havia ainda o Alasca. Só ele conhecia as proporções da imensa fortuna que se encontrava sob o gelo.
Era tão ágil quanto um bailarino em suas transações. Dispunha de um sofisticado sistema de informações que lhe proporcionava uma estimativa muito mais acurada das reservas de petróleo da União Soviética do que a CIA tinha. Não partilhava essa informação com o governo dos Estados Unidos, achava que não havia motivo para isso, já que pagara muito dinheiro para obtê-la, e o valor para ele era a exclusividade.
E acreditava sinceramente, como muitos americanos — até proclamava que isso era um dos fundamentos de uma sociedade democrática —, que um cidadão livre, num país livre, tem o direito de pôr seus interesses pessoais acima dos objetivos das autoridades do governo eleito. Pois se cada cidadão promovia o seu próprio bem-estar, como o país poderia deixar de prosperar?
Por recomendação de Dazzy, Kennedy concordou em receber esse homem. Para o público, Audick era uma figura vaga, apresentado nos jornais e na revista Fortune como um caricato Czar do Petróleo. Mas ele tinha uma grande influência no Congresso. Também tinha muitos amigos e associados entre os poucos milhares de homens que controlavam as mais importantes companhias dos Estados Unidos e pertencia ao Clube Sócrates. Os homens dessa organização controlavam os meios de comunicação impressos e a TV, dirigiam as companhias que controlavam a compra e transporte de grãos; eram os gigantes de Wall Street, os colossos da eletrônica e da indústria automobilística, os templários do Dinheiro que comandavam os bancos. E, o mais importante de tudo, Audick era amigo pessoal do sultão de Sherhaben.
Bert Audick foi conduzido a Sala do Gabinete, onde Francis Kennedy estava reunido com sua assessoria e os membros do Gabinete apropriados. Todos compreendiam que ele viera não apenas para ajudar o presidente, mas também para adverti-lo. Era a companhia petrolífera de Audick que tinha cinqüenta bilhões de dólares investidos nos campos de petróleo de Sherhaben e na cidade principal de Dak, Ele possuía uma voz mágica, afável, persuasiva e tão segura que era como se um sino de catedral repicasse ao final de cada frase. Poderia ter sido um político extraordinário, se não fosse pelo fato de que em toda a sua vida nunca fora capaz de mentir para o povo de seu país em questões políticas e de suas convicções se situarem tão à direita que não conseguiria ser eleito nem mesmo nos distritos mais conservadores.
Começou por expressar sua mais profunda simpatia pela situação em que Kennedy se encontrava, com tanta sinceridade que não podia haver qualquer dúvida de que o resgate de Theresa Kennedy era o motivo principal para oferecer seus préstimos.
— Senhor Presidente, tenho mantido contato com todas as pessoas que conheço nos países árabes. Eles repudiam esse atentado lamentável e nos ajudarão por todos os meios que puderem. Sou amigo pessoal do sultão de Sherhaben e usarei toda a minha influência junto a ele. Fui informado de que há certos indícios de que o sultão faz parte da conspiração do seqüestro e assassinato do Papa. Posso lhe assegurar que, independentemente dos indícios, o sultão está do nosso lado.
Isso alertou Francis Kennedy. Como Audick sabia dos indícios contra o sultão? Só os membros do Gabinete e sua assessoria pessoal estavam a par dessa informação, que fora apresentada como ultra-secreta. Seria possível que Audick fosse o passaporte do sultão para a absolvição depois de encerrado o incidente? Seria um esquema para que o sultão e Audick se destacassem como os salvadores de sua filha?
— Senhor Presidente, recomendo que atenda às exigências do seqüestrador — continuou Audick. — É verdade que será um golpe para o presidente americano, sua autoridade. Mas isso pode ser reparado mais tarde. Gostaria de lhe dar minha opinião sobre a questão que sei que mais o preocupa. Nenhum mal acontecerá à sua filha.
O sino de catedral em sua voz repicou com essa garantia. E foi a certeza de seu discurso que levou Kennedy a duvidar dele. Pois Kennedy sabia, por sua experiência pessoal na guerra política, que a confiança absoluta é a qualidade mais suspeita em qualquer tipo de líder.
— Acha que devemos entregar-lhes o homem que assassinou o Papa? — indagou Kennedy.
Audick interpretou a pergunta de maneira errada.
— Senhor Presidente, sei que é católico. Mas lembre-se de que este país é na maior parte protestante. Como uma questão de política externa, não precisamos converter a morte de um Papa católico na mais importante de nossas preocupações. É necessária para o futuro de nosso país a preservação dos suprimentos de petróleo. Precisamos de Sherhaben. Devemos agir com todo cuidado, com inteligência, sem paixão. E apresento outra vez minha garantia pessoal. Sua filha está segura.
Não havia qualquer dúvida em sua afirmativa, ele se mostrava totalmente sincero. Kennedy agradeceu e acompanhou-o até a porta. Depois que Audick se retirou, Kennedy virou-se para Dazzy e perguntou:
— O que ele estava realmente querendo dizer?
— Ele quer apenas marcar pontos com você. E talvez não queira que tenha alguma idéia de usar a cidade petrolífera de Dak, que vale cinqüenta bilhões de dólares, como um item de barganha. — Dazzy fez uma pausa, e depois acrescentou: — Acho que ele pode ajudar.
Christian inclinou-se para o ouvido de Kennedy e murmurou:
— Francis, preciso falar com você a sós.
Kennedy pediu licença para deixar a reunião por um momento e foi para o Gabinete Oval com Christian. Kennedy detestava usar aquela sala pequena, mas as outras salas da Casa Branca se achavam ocupadas por assessores e planejadores, aguardando as instruções finais.
Christian gostava do Gabinete Oval. A claridade que entrava pelas três janelas compridas, à prova de balas, as duas bandeiras — a alegre bandeira nacional, vermelha, branca e azul, à direita da escrivaninha, e a bandeira presidencial, mais sombria, de um azul-escuro, à esquerda.
Kennedy acenou para que Christian sentasse. Christian se perguntou como o presidente conseguia se manter tão controlado. Embora fossem amigos íntimos há muitos anos ele não podia perceber qualquer sinal de emoção.
— Temos mais problemas, Francis. Aqui mesmo, nos Estados Unidos. Detesto incomodá-lo num momento como este, mas é necessário.
Ele relatou a Kennedy a história da carta com a ameaça da bomba atômica, e depois acrescentou:
— Provavelmente não passa de besteira. Há uma possibilidade em um milhão de que a bomba de fato exista. Mas se existir, pode destruir dez quarteirões da cidade e matar milhares de pessoas. E a precipitação radiativa tornaria a área inabitável por muito tempo. Por isso, devemos levar a sério essa probabilidade em um milhão.
Francis Kennedy disse bruscamente:
— Espero que não vá me dizer agora que isso está ligado também ao seqüestro.
— Quem sabe?
— Então abafe o caso, resolva tudo sem estardalhaço. Invoque a Lei do Sigilo Atômico. — Kennedy levantou a alavanca do aparelho de intercomunicação para a sala de Eugene Dazzy. — Gene, mande-me cópias da Lei do Sigilo Atômico. Também quero as fichas médicas da pesquisa de cérebros. E marque uma reunião com o Dr. Annaccone.
Kennedy desligou o aparelho. Levantou-se, olhou pelas janelas do Gabinete Oval. Distraído, passou a mão pela bandeira americana ao lado da mesa. Ficou parado ali por um longo tempo, pensando.
Christian admitiu a capacidade do homem de isolar aquilo de tudo o mais que estava acontecendo.
— Acho que este é um problema interno — comentou ele —, uma espécie de desvio psicológico que há anos foi previsto. Estamos investigando alguns suspeitos.
Kennedy continuou em silêncio, absorvido em seus pensamentos. Só depois de um longo tempo é que murmurou:
— Chris, não deixe que isso chegue ao conhecimento dos outros compartimentos do governo. O problema deve ser tratado entre nós dois. Nem mesmo Dazzy e os outros membros de minha assessoria pessoal devem saber. É demais para acrescentar ao resto todo.
A cidade de Washington transbordava com o fluxo de jornalistas e seus equipamentos do mundo inteiro. Havia um zumbido no ar, como num estádio lotado, as ruas estavam repletas de pessoas, multidões se concentravam na frente da Casa Branca, como se quisessem partilhar o sofrimento do presidente. O céu estava cheio de aviões, vôos do exterior especialmente fretados. Emissários do governo voavam para outros países, a fim de conferenciarem sobre a crise. Enviados especiais chegavam de outros países. Uma divisão extra de soldados do exército fora levada para a área, com a incumbência de patrulhar a cidade e guardar os acessos à Casa Branca. As multidões pareciam dispostas a se manter em vigília durante toda a noite, como se quisessem garantir ao presidente que não se encontrava sozinho em seu problema. O barulho dessas multidões envolvia a Casa Branca e seus jardins.
Todas as emissoras de televisão interromperam a programação normal para transmitir as manifestações de pesar pela morte do Papa. Serviços memoriais em todas as grandes catedrais do mundo, com milhões de pessoas chorando e com o traje preto de luto, apareceram em todas as telas. Em todo aquele pesar, havia um clamor implícito por vingança, embora os sermões falassem em caridade. Havia também nos serviços orações pela libertação de Theresa Kennedy.
Vazaram rumores de que o presidente estaria disposto a libertar o assassino do Papa para obter a devolução de sua filha e dos outros reféns. Os analistas políticos convocados pelas redes de TV dividiram-se sobre a sabedoria de tal iniciativa, mas achavam que as exigências iniciais eram passíveis de negociação, como em muitas outras crises de reténs, ao longo dos últimos anos. Mais ou menos concordaram que o presidente entrara em pânico por causa do perigo que a filha corria.
E enquanto tudo isso acontecia, as multidões em torno da Casa Branca foram se tornando cada vez maiores, ao longo da noite. As ruas de Washington estavam apinhadas de veículos e pedestres, todos convergindo para o coração simbólico de seu país. Muitos levavam comida e bebida para a longa vigília. Esperariam pela noite afora com seu presidente, Francis Xavier Kennedy.
Ao se retirar para seu quarto, na noite de terça-feira, Kennedy rezou para que os reféns fossem libertados no dia seguinte. Com o esquema armado, Yabril venceria. Por enquanto. Na mesinha ao lado da cama de Kennedy estavam os relatórios preparados pela CIA, Conselho de Segurança Nacional, secretário de estado, secretário da defesa, e os memorandos de sua assessoria pessoal. O mordomo, Jefferson, serviu chocolate quente e biscoitos. Kennedy acomodou-se para ler os relatórios.
E leu nas entrelinhas. Juntou as posições aparentemente divergentes das diversas agências. Tentou se colocar no papel de uma potência mundial rival ao ler os relatórios. E a imagem que sobressaía era a dos Estados Unidos como um país decadente, um gigante obeso e artrítico, provocado por pirralhos insolentes. Dentro do próprio país, o gigante tinha uma hemorragia interna. Os ricos se tornavam muito mais ricos, os pobres mergulhavam no desespero. A classe média lutava desesperada por sua cota de boa vida.
Kennedy compreendia que aquela última crise, o assassinato do Papa, o seqüestro do avião com sua filha e as humilhantes exigências eram um golpe deliberadamente planejado, visando a minar a autoridade moral dos Estados Unidos.
Mas havia também o ataque interno, a ameaça da bomba atômica. O câncer por dentro. Os perfis psicológicos haviam previsto que aquilo poderia acontecer, e se adotaram as precauções possíveis. Mas não foram suficientes. E só podia ser uma operação interna, era uma trama perigosa demais para terroristas, uma agressão exagerada ao gigante obeso. Seria um trunfo que os terroristas, por mais ousados que fossem, nunca se atreveriam a usar. Poderia abrir uma caixa de Pandora de repressão, pois eles sabiam que se os governos, em particular o governo dos Estados Unidos, suspendessem as leis que protegiam as liberdades civis, qualquer organização terrorista poderia ser destruída com facilidade.
Kennedy estudou os relatórios que resumiam as informações sobre os grupos terroristas conhecidos e as nações que os apoiavam. Ficou surpreso ao constatar que a China dava apoio financeiro a grupos terroristas árabes. Havia organizações específicas que naquele momento não pareciam ligadas a operação de Yabril; era bizarra demais, sem um proveito incontestável para o custo envolvido, o aspecto negativo. Os russos nunca haviam defendido a livre iniciativa no terrorismo. Mas havia as incontáveis facções árabes, como a Frente Árabe, Saiqua, FPLP-G e várias outras, designadas apenas pelas iniciais. Havia ainda as brigadas vermelhas, a Brigada Vermelha Japonesa, a Brigada Vermelha Italiana, a Brigada Vermelha Alemã, que dominara todas as outras facções alemãs numa guerra interna mortífera.
Ao final, tudo isso foi demais para Kennedy. Pela manhã, na quarta-feira, as negociações seriam concluídas, os reféns estariam sãos e salvos. Não havia nada que ele pudesse fazer agora, a não ser esperar. A solução passaria do prazo fatal de 24 horas, mas isso estava combinado. Seus assessores haviam lhe assegurado que os terroristas, com toda certeza, seriam pacientes.
Antes de adormecer, ele pensou na filha, em seu sorriso jovial e confiante ao conversar com Yabril, o sorriso reencarnado dos tios mortos do pai. E depois ele mergulhou em sonhos angustiados: gemendo, clamou por socorro. Jefferson entrou correndo no quarto, olhou para o rosto agoniado do presidente adormecido, esperou um momento, depois despertou-o do pesadelo. Serviu outra xícara de chocolate quente e deu a Kennedy a pílula para dormir que o médico determinara.
Manhã de Quarta-Feira
Sherhaben
ENQUANTO FRANCIS KENNEDY DORMIA, Yabril levantou-se. Ele amava o amanhecer no deserto, o frio sendo tangido pelo fogo interno do sol, o céu adquirindo um vermelho incandescente. Em tais momentos, sempre pensava no Lúcifer maometano, Azazel.
O anjo Azazel, postando-se diante de Deus, recusou-se a aceitar a criação do homem. Deus lançou Azazel do Paraíso para atear o fogo do inferno nas areias do deserto. Ah, que maravilha ser Azazel!, pensou Yabril. Quando era jovem e romântico, usara Azazel como seu primeiro nome operacional.
Naquela manhã, o sol flamejando em calor deixou-o tonto. Embora permanecesse na porta ensombreada do avião dotado de ar-condicionado, uma terrível lufada de ar escaldante fez seu corpo recuar, cambaleando. Sentiu náusea e se perguntou se isso tinha alguma relação com o que devia fazer. Agora cometeria o ato final e irremediável, o último movimento em seu jogo de xadrez do terror, que não revelara a Romeu, nem ao sultão de Sherhaben, nem mesmo aos quadros de apoio das Brigadas Vermelhas. Um sacrilégio final.
À distância, junto do terminal aéreo, ele avistou o perímetro guardado pelos soldados do sultão, que impediam a aproximação de milhares de repórteres de jornais, revistas e TV. Ele tinha a atenção do mundo inteiro; mantinha em seu poder a filha do Presidente dos Estados Unidos. Contava com uma audiência maior do que qualquer soberano, qualquer Papa, qualquer profeta. Yabril virou-se da porta aberta para contemplar o interior do avião.
Quatro homens de seu novo grupo comiam o desjejum no compartimento da primeira classe. Haviam se passado 24 horas desde que apresentara o ultimato. O tempo esgotara. Ele mandou que os homens se apressassem, depois despachou-os em suas missões. Um deles levou a ordem escrita de Yabril ao chefe da segurança no perímetro, autorizando as equipes de TV a se aproximarem do avião. Outro recebeu a pilha de volantes impressos, proclamando que as exigências de Yabril não haviam sido atendidas no prazo improrrogável de 24 horas, e por isso um dos reféns seria executado.
Dois homens foram incumbidos de trazer a filha do presidente americano da primeira fila isolada da classe turística para o compartimento de primeira classe, até a presença de Yabril.
Quando Theresa Kennedy entrou na primeira classe e avistou Yabril à sua espera, seu rosto relaxou num sorriso aliviado. Yabril não entendia como ela podia parecer tão adorável, depois de passar aqueles dias no avião. Era a pele, pensou Yabril — ela não tinha óleo na pele para acumular sujeira. Ele sorriu e disse, num tom gentil, meio de gracejo:
— Está bonita, mas um pouco desalinhada. Lave-se, ponha um pouco de maquilagem, escove os cabelos. As câmeras de TV estão à nossa espera. O mundo inteiro vai assistir e não quero que pensem que a tratei mal.
Ele deixou Theresa entrar no banheiro do avião e aguardou. Ela demorou quase vinte minutos. Yabril ouviu a descarga e imaginou-a sentada ali, como uma garotinha, sentiu uma pontada de angústia no coração e orou: Azazel, Azazel, esteja comigo agora. E depois ele ouviu o rugido furioso da multidão, ao sol do deserto; as pessoas haviam lido os volantes. As unidades móveis de TV se adiantaram.
Theresa apareceu. Yabril viu uma expressão de tristeza em seu rosto. E também obstinação. Ela decidira que não falaria, não permitiria que ele a obrigasse a fazer a gravação. Exibia um rosto lavado, estava bonita, cheia de fé em sua força. Mas perdera um pouco da inocência de seu coração. Theresa sorriu para Yabril e declarou:
— Não vou falar.
Yabril segurou-a pela mão.
— Apenas quero que a vejam.
Ele levou-a para a porta aberta do avião, pararam ali. O ar vermelho do sol do deserto incendiava seus corpos. Seis unidades móveis de TV pareciam guardar o avião, como monstros pré-históricos, quase bloqueando a imensa multidão além do perímetro.
— Basta sorrir para eles — disse Yabril. — Quero que seu pai veja que está segura.
Nesse momento ele alisou a parte posterior da cabeça de Theresa, sentindo os cabelos sedosos; empurrou-a para o lado, a fim de deixar a nuca à mostra, a pele de marfim assustadoramente pálida. A única mácula era uma verruga preta no ombro.
Theresa encolheu-se ao contato e virou-se para ver o que ele estava fazendo. Yabril apertou-lhe a nuca, obrigando-a a virar a cabeça para a frente, a fim de que as câmeras de TV pudessem focalizar a beleza de seu rosto. O sol do deserto emoldurava-a em ouro, o corpo mantinha-se na sombra.
Uma das mãos levantada e comprimida contra o teto da porta, a fim de manter o equilíbrio, Yabril pressionou seu corpo contra as costas de Theresa, enquanto balançava na beira, um suave contato. Ele sacou a pistola com a mão direita, encostou-a na pele exposta da nuca. E depois, antes que Theresa pudesse compreender a pressão do metal, Yabril puxou o gatilho e deixou que o corpo da filha do presidente americano se separasse do seu.
Theresa pareceu flutuar para cima, pelo ar, para o sol, para o halo de seu próprio sangue. E depois o corpo virou, as pernas apontando para o céu, tornou a virar, antes que ela batesse na pista de cimento, onde ficou esparramada, destruída além da mortalidade, a cabeça uma cratera, iluminada pelo sol escaldante. A princípio, o único som era o zumbido das câmeras de TV e das unidades móveis, o ranger da areia, mas depois, ressoando pelo deserto, ouviu-se o gemido de milhares de pessoas, um interminável grito de terror.
O som profundo, sem o júbilo esperado, surpreendeu Yabril. Ele recuou da porta para o interior do avião. Viu que seus homens observavam-no com horror, com aversão, com um terror quase animal. E lhes disse:
— Alá seja louvado.
Mas eles não responderam. Yabril esperou por um momento longo, depois acrescentou bruscamente:
— Agora o mundo saberá que estamos falando sério. Agora nos darão o que pedimos.
Mas sua mente registrou que o rugido da multidão não tinha o êxtase que esperara. A reação de seus próprios homens parecia sinistra. A execução da filha do Presidente dos Estados Unidos, a extinção de um símbolo desprovido de autoridade, violava um tabu que ele não levara em consideração. Mas não importava.
Ele pensou por um instante em Theresa Kennedy, o rosto meigo, a fragrância de violeta de seu pescoço alvo pensou no corpo envolto pelo halo vermelho de areia. E pensou: Que ela vá para Azazel, lançada da estrutura dourada do paraíso para as areias do deserto, por toda a eternidade E a mente de Yabril focalizou a última imagem de Theresa Kennedy, a calça branca folgada levantada nos tornozelos deixando à mostra os pés metidos em sandálias O fogo de sol espalhou-se pelo avião e ele ficou encharcado de suor E pensou: Eu sou Azazel.
Washington
ANTES DO AMANHECER DA QUARTA-FEIRA, mergulhado num pesadelo povoado pelo clamor angustiado de uma vasta multidão, o Presidente Kennedy descobriu-se sacudido por Jefferson. E estranhamente, embora estivesse agora desperto, ainda podia ouvir o estrondo de vozes trovejantes, que penetravam pelas paredes da Casa Branca.
Havia algo diferente em Jefferson — ele não aprecia alguém que preparava chocolate quente, escovava ternos, o criado diferente. Parecia mais como um homem que contraíra o corpo e o rosto para receber um golpe terrível. E dizia sem parar:
— Senhor Presidente, acorde, acorde...
Mas Kennedy já estava acordado e disse:
— Que barulho é esse?
Todo o quarto se achava iluminado pela luz do lustre e havia um grupo de homens por trás de Jefferson. Kennedy reconheceu o oficial da marinha que era o médico da Casa Branca, o suboficial a quem era confiado o “controle” nuclear e mais Eugene Dazzy, Arthur Wix e Christian Klee. Sentiu que Jefferson quase o levantava da cama, depois envolvia-o com o chambre, num movimento rápido. Por algum motivo, seus joelhos vergaram, e Jefferson amparou-o.
Todos os homens pareciam abalados, os rostos muito pálidos, como fantasmas, os olhos arregalados e rígidos. Kennedy fitou-os com espanto e depois com um medo opressivo. Por um momento, perdeu todo o senso de visão, todo o senso de audição, enquanto o medo envenenava seu ser inteiro. O oficial da marinha abriu sua maleta preta, tirou uma seringa já preparada. Kennedy murmurou:
— Não.
Ele olhou para os outros homens, um a um, mas ninguém falou. E Kennedy acrescentou, hesitante:
— Tudo bem, Chris, eu sabia que ele acabaria fazendo. Matou Theresa, não é?
Ele esperou que Christian dissesse não, que fora outra coisa, alguma catástrofe natural, a explosão de uma instalação nuclear, a morte de um grande chefe de estado, o afundamento de um navio de guerra no Golfo Pérsico, um terremoto devastador, inundação, incêndio, pestilência. Qualquer outra coisa. Mas Christian, o rosto muito pálido, balbuciou:
— É, sim.
E Kennedy teve a sensação de que alguma longa doença, uma febre à espreita, finalmente o dominava. Sentiu o corpo se dobrar, teve consciência de que Christian se postava ao seu lado, como a protegê-lo das outras pessoas no quarto, porque as lágrimas escorriam por seu rosto, ele ofegava para respirar. E depois todas as pessoas pareceram se aproximar, o médico espetou a agulha em seu braço, Jefferson e Christian baixaram seu corpo para a cama. Eles esperaram que Francis Kennedy se recuperasse do choque. Finalmente, ao recuperar algum controle, ele deu as instruções. Acionar todas as seções necessárias de planejamento, fazer contatos com os líderes do Congresso, esvaziar as multidões das ruas da cidade e dos arredores da Casa Branca. E bloquear os meios de comunicação. Ele informou que se reuniria com todos às sete horas da manhã. Pouco antes do raiar do dia, Kennedy determinou que todos se retirassem. Jefferson serviu-lhe a habitual bandeja com chocolate quente e biscoitos.
— Estarei ao lado da porta — disse Jefferson. — E verificarei como está de meia em meia hora, se não se importa, Senhor Presidente.
Kennedy acenou com a cabeça e Jefferson se retirou. Ele apagou todas as luzes. O quarto estava cinza, com a aproximação da alvorada. Kennedy forçou-se a pensar com lucidez. Seu sofrimento era o resultado de um ataque de um inimigo, e ele tentou reprimir esse sofrimento. Olhou para as janelas compridas e ovais, recordando, como sempre fazia, que eram de vidro especial, ele podia ver lá fora, mas ninguém do outro lado podia vê-lo, e também eram à prova de balas. Além disso, a vista que ele tinha, os jardins da Casa Branca, os prédios além, se encontrava ocupada por agentes do Serviço Secreto, o terreno contando com detectores especiais e patrulhas de cães. Ele próprio estava sempre seguro; Christian cumprira sua promessa. Mas não houvera como manter Theresa segura. Estava acabado, ela morrera. E agora, depois da onda inicial de desespero, ele se admirava de sua calma. Seria porque ela insistira em levar sua própria vida, depois da morte da mãe? Recusara-se a partilhar a vida com ele na Casa Branca, porque se encontrava à esquerda dos dois partidos e assim era sua oponente política? Haveria uma falta de amor por sua filha?
Ele tratou de se absolver. Amava Theresa, e ela estava morta. Mas o impacto fora atenuado porque ele estivera se preparando para essa morte nos últimos dias. Sua paranóia inconsciente e astuta, enraizada na história dos Kennedys, enviara sinais de advertência.
Houvera uma coordenação entre o assassinato do Pa-pa e o seqüestro do avião em que viajava a filha do líder da nação mais poderosa do mundo. Houvera uma protelação na apresentação das exigências, até que o assassino se encontrasse no lugar certo, capturado nos Estados Unidos. E depois a arrogância deliberada, a exigência de libertação do assassino do Papa.
Por um supremo esforço da vontade, Francis Kennedy baniu da mente todo sentimento pessoal. Tentou seguir um curso lógico. Era de fato muito simples: um Papa e uma moça haviam morrido. Em termos objetivos, isso não era tão importante assim numa escala global. Os líderes religiosos podem ser canonizados, as moças lamentadas com uma doce tristeza. Mas havia algo mais. As pessoas no mundo inteiro sentiriam desprezo pelos Estados Unidos e seus líderes. Outros ataques seriam desfechados, de formas imprevistas. A autoridade desprezada não podia impor a ordem. A autoridade escarnecida e derrotada não podia ter a presunção de preservar a estrutura de sua civilização em particular. Como ele poderia defendê-la?
A porta do quarto foi aberta, e a luz do corredor entrou, Mas o quarto se achava agora iluminado pelo sol nascente, e a luz foi diluída. Jefferson, de camisa e paletó trocados, empurrou a mesinha do desjejum para o interior do quarto, preparou tudo para Kennedy. Lançou um olhar inquisitivo para o presidente, como se indagasse se deveria ficar, mas acabou se retirando.
Kennedy sentiu lágrimas em seu rosto e compreendeu subitamente que eram as lágrimas da impotência. Tornou a constatar que seu sofrimento desaparecera e especulou por quê. E depois sentiu, conscientemente, as ondas de sangue invadindo seu cérebro, com uma raiva terrível, uma raiva até de sua assessoria pessoal, que lhe falhara, uma raiva que jamais conhecera, e que desdenhara nos outros durante toda a sua vida. Tentou resistir.
Pensou agora como sua assessoria pessoal tentara confortá-lo. Christian demonstrara sua afeição pessoal, partilhada ao longo dos anos, Christian o abraçara, ajudara-o a deitar Qddblood Gray, sempre tão frio e impessoal, segurara-o pelos ombros e murmurara:
— Lamento muito, lamento profundamente.
Arthur Wix e Eugene Dazzy foram mais reservados. Tocaram-no de leve e sussurraram alguma coisa que ele não entendera. E Kennedy notara que Dazzy, como o chefe de sua assessoria, fora o primeiro a deixar o quarto para organizar as coisas no resto da Casa Branca. Wix se retirara com Dazzy. Como chefe do Conselho de Segurança Nacional, ele tinha um trabalho urgente, e talvez tivesse medo de ouvir alguma ordem incontrolável de retaliação, de um homem sufocado pelo sofrimento de pai.
No pouco tempo antes de Jefferson voltar com o desjejum, Francis Kennedy compreendera que sua vida seria agora completamente diferente, talvez fora de seu controle. Tentou excluir a raiva de seu processo de raciocínio.
Lembrou sessões de estratégia em que eventos assim haviam sido discutidos. Lembrou o Irã, lembrou o Iraque.
Sua mente voltou por quase quarenta anos. Era um menino de sete anos, brincando na praia em Hyannisport, com os filhos do tio Jack e tio Bobby. E os dois tios, tão altos, esguios e bonitos, haviam brincado com eles por alguns minutos, antes de embarcarem no helicóptero à espera, como deuses. Quando criança, sempre gostara mais de tio Jack, porque conhecia todos os seus segredos. Vira-o uma ocasião beijar uma mulher, depois levá-la para o quarto. E vira-os saírem uma hora depois. Jamais esquecera a expressão de tio Jack, uma expressão de felicidade, como se tivesse acabado de receber um presente inesquecível. Os dois notaram o menino escondido por trás de uma mesa no corredor. Naquele tempo de inocência, o Serviço Secreto não se mantinha muito próximo do presidente.
E havia outras cenas de sua infância, nítidas imagens do poder. Os dois tios sendo tratados como a realeza por homens e mulheres mais velhos. A música começando quando tio Jack pisava no gramado, todos os rostos virando-se em sua direção, a interrupção de qualquer conversa enquanto ele falava. Os dois partilhando o poder e sua dignidade ao exercê-lo. Como esperavam confiantes que os helicópteros descessem do céu, como pareciam seguros, cercados por homens fortes que os protegiam de qualquer mal, como eram levados pelo céu, como eram magníficos ao descerem das alturas...
Seus sorrisos irradiavam luz, sua divindade irradiava conhecimento e autoridade pelos olhos, o magnetismo se irradiava de seus corpos. E com tudo isso ainda encontravam tempo para brincar com as crianças, seus filhos e filhas, sobrinhos e sobrinhas, brincar com a maior seriedade, deuses que visitavam os pequenos mortais sob sua guarda! E de repente... de repente...
Ele assistira pela televisão, com a mãe ao lado chorando, ao funeral de tio Jack, o coche fúnebre, o cavalo sem cavaleiro, os milhões de pessoas abaladas, e vira seu pequeno companheiro de brincadeiras como um dos atores no palco mundial. E tio Bobby, tia Jackie. Em determinado momento, a mãe o abraçara e murmurara:
— Não olhe, não olhe...
E sua visão fora encoberta pelos cabelos compridos e as lágrimas da mãe.
Agora, o feixe de luz amarela entrando pela porta aberta interrompeu suas recordações, e ele viu que Jefferson entrara com um carinho. Kennedy disse suavemente:
— Leve isso e dê-me uma hora. Não me interrompa antes.
Ele quase nunca falava de forma tão incisiva, e Jefferson lançou-lhe um olhar avaliador.
— Pois não, Senhor Presidente.
O mordomo se retirou com o carrinho, fechou a porta. O sol era bastante forte para iluminar o quarto, mas não o suficiente para proporcionar calor. Mas o burburinho de Washington penetrava no quarto. Os caminhões das redes de televisão ocupavam as ruas além dos portões, incontáveis motores de carros roncavam, como um gigantesco enxame de insetos. Aviões passavam constantemente por cima, todos militares — o espaço aéreo fora fechado ao tráfego civil.
Ele tentou resistir à raiva opressiva, à bílis amarga em sua boca. O que deveria ser o maior triunfo de sua vida acabara se transformando no maior infortúnio. Fora eleito para a presidência, mas a esposa morrera antes que assumisse o cargo. Seus grandiosos programas para uma América utópica haviam sido destruídos pelo Congresso. E agora a filha pagara o preço por sua ambição e sonhos. Uma saliva nauseante fê-lo engasgar, enquanto passava pela língua e lábios. O corpo parecia se encher com um veneno que o enfraquecia em cada parte, o sentimento de que só a raiva poderia fazê-lo ficar bem, e nesse instante aconteceu alguma coisa em seu cérebro, uma carga elétrica lutando contra a doença das células. Tanta energia fluiu por seu corpo que ele estendeu os braços, os punhos cerrados, para as janelas agora encharcadas de sol.
Tinha poder, usaria esse poder. Podia fazer os inimigos tremerem, podia fazer com que a saliva deles se tornasse amarga em suas bocas. Podia acabar com todos os homenzinhos insignificantes e seus tubos de ferro, todos aqueles que haviam provocado tanta tragédia em sua vida e sua família.
Sentia-se como um homem que, por muito tempo enfraquecido, curou-se de uma grave doença, e desperta uma manhã para descobrir que recuperou as forças. Experimentava uma exultação, quase uma paz, como nunca conhecera desde a morte da esposa. Sentou na cama e tentou controlar seus sentimentos, restaurar a cautela e um curso de pensamento racional. Mais calmo, revisou todas as opções e todos os perigos, concluiu que sabia o que devia fazer e que riscos deveria evitar. E sentiu uma última pontada de angústia pela filha que não mais existia.
Quarta-Feira
Washington
ÀS ONZE HORAS DA MANHÃ de quarta-feira, as pessoas mais importantes do governo em termos políticos reuniram-se na Sala do Gabinete, a fim de decidir o curso de ação que o país deveria adotar. Lá estavam a Vice-Presidente Helen DuPray, os membros do Gabinete, o diretor da CIA, o comandante do estado-maíor das forças armadas, que não costumava estar presente nessas reuniões, mas fora instruído a comparecer por Eugene Dazzy, a pedido do presidente. Todos se levantaram quando Kennedy entrou na sala.
Kennedy gesticulou para que todos sentassem. Só o secretário de estado permaneceu de pé, e disse:
— Senhor Presidente, todos nós desejamos expressar nosso pesar por sua perda. Apresentamos nossas condolência pessoais, nosso amor. E lhe asseguramos a mais absoluta lealdade e devoção em sua crise pessoal e nesta crise em nossa nação. Estamos aqui para lhe oferecer mais do que nossa assessoria profissional. Estamos aqui para lhe dar nossa devoção individual.
Havia lágrimas nos olhos do secretário de estado. E ele era um homem famoso por sua frieza e reserva.
Kennedy baixou a cabeça por um momento. Era o único homem naquela sala que parecia não demonstrar emoção, exceto pela palidez do rosto. Fitou a todos por um longo momento, como se agradecesse a cada pessoa na sala por seus sentimentos de afeição, a que retribuía com gratidão. E sabendo que estava prestes a destruir aqueles bons sentimentos.
— Quero agradecer a todos, sinto-me grato e conto com vocês — disse ele. — Mas agora eu lhes peço que ponham de lado o meu infortúnio pessoal no contexto desta reunião. Estamos aqui para decidir o que é melhor para nosso país. Este é o nosso dever, nossa sagrada obrigação. As decisões que tomei são rigorosamente impessoais.
Helen Du Pray pensou: Oh, Deus, ele vai agir! Kennedy continuou:
— Esta reunião analisará nossas opções. Duvido que qualquer das opções de vocês venha a ser adotada, mas devo lhes dar a oportunidade de defendê-las. Mas, primeiro, quero apresentar minha proposta. E devo acrescentar que conto com o apoio de minha assessoria pessoal.
Ele fez outra pausa, a fim de projetar todo o seu magnetismo pessoal. Levantou-se e voltou a falar:
— Um: a análise. Todos os trágicos eventos recentes têm a dinâmica de um plano concebido com ousadia e executado de forma implacável. O assassinato do Papa no Domingo de Páscoa, o seqüestro do avião no mesmo dia, a deliberada impossibilidade logística das exigências para a libertação dos reféns, e embora eu concordasse em atender a todas as exigências, o assassinato desnecessário de minha filha, esta madrugada. E até mesmo a captura do assassino do Papa aqui, em nosso país, um evento muito além do reino de qualquer acaso ou destino, era parte do plano global, a fim de que pudessem exigir a libertação do assassino. Os indícios apoiando essa análise são incontestáveis.
Ele podia perceber a expressão de incredulidade em seus rostos. Fez mais uma pausa, antes de prosseguir:
— Mas qual poderia ser o propósito de um plano tão aterrador e complicado? Há hoje no mundo um desprezo pela autoridade, a autoridade do estado, mais especificamente um desprezo pela autoridade moral dos Estados Unidos. Vai muito além do desprezo histórico usual pela autoridade que os jovens exibem, e que é uma boa coisa. O propósito desse plano terrorista é desacreditar os Estados Unidos como uma figura de autoridade. Não apenas nas vidas de bilhões de pessoas comuns, mas aos olhos dos governos do mundo. Devemos em algum momento responder a esses desafios, e o momento é agora.
Kennedy correu os olhos pela mesa.
— Para que fique registrado. Os estados árabes não têm qualquer participação nesta conspiração. À exceção de Sherhaben. É certo que a organização terrorista internacional conhecida como Primeiros Cem deu apoio logístico e de pessoal. Mas os indícios apontam para um único homem no comando da operação. E parece que ele não aceita ser controlado, a não ser, talvez, pelo sultão de Sherhaben.
Ele fez outra pausa.
— Sabemos agora, com certeza, que o sultão é um cúmplice. Seus soldados protegem o avião contra ataques externos, não para nos ajudar a salvar os reféns. O sultão alega agir em nosso interesse, mas na verdade está envolvido nesses atos. Contudo, para lhe dar crédito, há indícios de que ele não sabia que Yabril pretendia assassinar minha filha.
Kennedy tornou a correr os olhos pela mesa, a fim de impressionar a todos com sua calma.
— Segundo: o prognóstico. Esta não é uma situação de reféns habitual. Esta é uma hábil conspiração para humilhar os.Estados Unidos ao máximo. Para obrigar os Estados Unidos a suplicar pela devolução dos reféns, depois de sofrer uma série de humilhações, que nos farão parecer impotentes. É uma situação que será aproveitada por semanas, com uma cobertura dos meios de comunicação do mundo inteiro. E sem qualquer garantia de que todos os reféns serão devolvidos sãos e salvos. Nessas circunstâncias não posso imaginar qualquer outra coisa que não o caos depois. Nosso próprio povo perderá a fé em nós e no país.
Kennedy fez mais uma pausa, constatou que causava uma impressão agora, que as pessoas naquela sala compreendiam que seus argumentos eram fortes.
— Soluções: estudei o memorando sobre as opções. Acho que são os recursos usuais do passado. Sanções econômicas, missões de resgate armado, pressão política, concessões feitas em segredo, enquanto alegamos que nunca negociamos com terroristas. A preocupação de que a União Soviética se recusará a permitir que realizemos uma operação militar em larga escala no Golfo Pérsico. Tudo isso sugere que devemos nos submeter a aceitar a humilhação profunda aos olhos do mundo. E, na minha opinião, mais reféns serão perdidos.
O secretário de estado interveio:
— Meu departamento acaba de receber uma garantia do sultão de Sherhaben de que todos os reféns serão libertados, assim que forem atendidas as exigências dos terroristas. Ele está indignado com a ação de Yabril e alega que se acha disposto a atacar o avião. Obteve a promessa de Yabril de libertar agora cinqüenta reféns, a fim de demonstrar sua boa-fé.
Kennedy fitou-o fixamente por um instante. Os olhos azuis-celestes pareciam marcados de pequenos pontos pretos. Depois, numa voz fria, com uma cortesia tensa, e tão controlada que as palavras ressoavam metalicamente, ele declarou:
— Senhor Secretário, depois que eu acabar, todos os presentes poderão falar. Até lá, por favor, não interrompa. A oferta deles será abafada, não chegará ao conhecimento da imprensa.
O secretário de estado ficou visivelmente surpreso. O presidente nunca lhe falara tão friamente antes, nunca fizera seu poder prevalecer de forma tão clamorosa. O secretário de estado baixou a cabeça para estudar sua copia do memorando; só as faces ficaram um pouco vermelhas. Kennedy continuou:
— Proposta: determino que o comandante do estado-maior planeje e prepare um ataque aéreo aos campos petrolíferos de Sherhaben e à cidade industrial petrolífera de Dak. A missão do ataque aéreo será a destruição de todos os equipamentos petrolíferos, torres de perfuração, oleodutos, etc. A cidade será arrasada. Quatro horas antes do bombardeio, serão lançados volantes na cidade, advertindo a população que deve evacuá-la imediatamente. O ataque aéreo será desfechado exatamente daqui a 36 horas. Ou seja, na quinta-feira, às onze horas da noite, horário de Washington.
Havia um silêncio total na sala, em que se encontravam as trinta e poucas pessoas que manipulavam todas as armas do poder nos Estados Unidos. Kennedy continuou:
— O secretário de estado entrará em contato com os países necessários para a aprovação da passagem por seus espaços aéreos. Ele deixará bem claro que qualquer recusa implicará a suspensão de todos os acordos econômicos e militares com o país. Que os resultados de uma recusa serão calamitosos.
O secretário de estado pareceu levitar de sua cadeira para protestar, mas depois se conteve. Houve um murmúrio pela sala, de surpresa ou choque.
Kennedy levantou as mãos, o gesto quase furioso, mas sorria para eles, um sorriso que parecia de tranqüilização. Deu a impressão de se tornar menos autoritário, quase informal, sorrindo para o secretário de estado e lhe falando diretamente:
— O secretário de estado me enviará, imediatamente, o embaixador ao sultanato de Sherhaben. Direi o seguinte ao embaixador: o sultão deve entregar os reféns até amanhã de tarde. Entregará o terrorista Yabril de uma maneira que o impeça de se matar. Se o sultão recusar, todo o País de Sherhaben deixará de existir.
Kennedy fez mais uma pausa; reinava um silêncio absoluto na sala.
— Esta reunião é ultra-secreta. Não haverá vazamentos. Se houver, serão adotadas as ações mais extremas, nos termos da lei. Agora, todos podem falar.
Ele podia perceber que a audiência estava atordoada por suas palavras, que todos baixavam os olhos, recusando-se a fitar os outros na sala.
Kennedy sentou, acomodou-se na cadeira de couro preto, estendeu as pernas por baixo da mesa e para o lado. Olhou para o Jardim das Rosas, enquanto a reunião continuava. Ouviu o secretário de estado dizer:
— Senhor Presidente, devo argumentar contra a sua decisão mais uma vez. Será um desastre para os Estados Unidos. Vamos nos tornar párias entre as nações, pelo uso da força para esmagar uma pequena nação.
E a voz continuou, interminavelmente, mas Kennedy não podia ouvir as palavras. Depois, ouviu a voz do secretário de interior, uma voz quase monótona, mas que mesmo assim impunha atenção:
— Senhor Presidente, ao destruirmos Dak, estaremos destruindo cinqüenta bilhões de dólares americanos, dinheiro de companhias petrolíferas, dinheiro da classe média americana, investido em ações das companhias petrolíferas. Além disso, estaremos reduzindo nossas fontes de petróleo. O preço da gasolina vai dobrar para os consumidores deste país.
Houve outros argumentos. Por que a cidade de Dak devia ser destruída antes de se dar qualquer satisfação? Havia ainda muitos cursos que podiam ser explorados. O grande perigo era agir de forma precipitada. Kennedy olhou para seu relógio. A reunião já se prolongava há mais de uma hora. Ele se levantou.
— Agradeço a todos por seus conselhos. É claro que o sultão de Sherhaben poderá salvar a cidade de Dak pelo atendimento imediato das minhas exigências. Mas não fará isso. A cidade de Dak deve ser destruída, ou nossas ameaças serão ignoradas. A alternativa para nos é governar um país que qualquer homem com coragem e poucas armas poderá humilhar. Quando isso acontecer, poderemos muito bem acabar com nossa marinha e exército, economizar o dinheiro. Vejo o nosso único curso viável com muita nitidez e o seguirei.
Kennedy fez outra pausa.
— È agora quero falar sobre a perda de cinqüenta bilhões de dólares de acionistas americanos. Bert Audick lidera o consórcio que possui essa propriedade. Já ganhou seus cinqüenta bilhões de dólares e muito mais. E faremos o melhor possível para ajudá-lo, é claro. Permitirei que o Sr. Audick tenha a oportunidade de salvar seu investimento de outra forma. Enviarei um avião a Sherhaben para buscar os reféns, e um avião militar para trazer os terroristas a nosso país, onde serão levados a julgamento. O secretário de estado convidará o Sr. Audick a ir a Sherhaben num desses aviões. Seu trabalho será o de persuadir o sultão a aceitar minhas condições. Persuadi-lo que a única maneira de salvar a cidade de Dak, Sherhaben e o petróleo americano naquele país é atender a minhas exigências. Esse é o único acordo.
O secretário de defesa declarou:
— Se o sultão não concordar, isso significa que perdemos mais dois aviões, Audick e os reféns.
— É bem provável — disse Kennedy. — Vamos ver se Audick tem coragem. Mas ele é esperto. Saberá, tão bem quanto eu, que o sultão deve concordar. Tenho tanta certeza que também enviarei o assessor de segurança nacional, Sr. Wix.
Foi a vez de o diretor da CIA se manifestar:
— Senhor Presidente, deve saber que as baterias antiaéreas em torno de Dak são guarnecidas por americanos, em contrato civil com o governo de Sherhaben e as companhias petrolíferas americanas. E americanos especialmente treinados guarnecendo as rampas de mísseis. Eles podem oferecer resistência.
Kennedy sorriu.
— Audick ordenará a evacuação deles. E é claro que, como americanos, eles serão traidores se resistirem, e os americanos que lhes pagam também serão processados como traidores.
Ele fez uma pausa, para deixar que todos absorvessem essa decisão. Audick seria processado. Depois de um momento, Kennedy virou-se para Christian.
— Chris, você pode começar a trabalhar no aspecto legal.
Entre os presentes, havia dois membros do poder legislativo: o líder da maioria no Senado, Thomas Lambertino, e o presidente da Câmara dos Representantes, Alfred Jintz. Foi o senador quem falou primeiro:
— Acho que esse curso de ação é drástico demais para ser adotado sem uma ampla discussão nas duas casas do Congresso.
Kennedy lhe disse, com toda cortesia:
— Com o devido respeito, não há tempo para isso. E tenho competência, como chefe do executivo, de promover essa ação. Não resta a menor dúvida de que o poder legislativo poderá recusar minha ação depois e tomar as decisões que julgar convenientes. Mas espero sinceramente que o Congresso me apóie e à nação nesta crise.
O Senador Lambertino disse, quase pesaroso:
— É uma situação terrível, as conseqüências serão graves. Eu lhe imploro, Senhor Presidente, que não aja com tanta pressa.
Pela primeira vez, Francis Kennedy mostrou-se menos do que cortês:
— O Congresso sempre me fez oposição. Podemos discutir todas as opções complicadas, até os reféns estarem mortos e os Estados Unidos ridicularizados aos olhos de cada nação e de cada pequena aldeia do mundo. Mantenho minha análise e a solução indicada; a decisão está dentro da minha competência como chefe do executivo. Depois que a crise terminar, eu me apresentarei ao povo e farei um relatório detalhado. Até lá, lembro a todos, mais uma vez, que esta reunião é ultra-secreta. Agora, sei que todos têm muito trabalho a fazer. Comuniquem seus progressos ao chefe da minha assessoria.
Alfred Jintz manifestou-se agora:
— Senhor Presidente, eu esperava não ter de dizer isso. Mas o Congresso insiste agora que se afaste destas negociações. Comunico que hoje mesmo o Congresso fará tudo o que for possível para impedir seu curso de ação, sob a alegação de que sua tragédia pessoal o torna incompetente. .,
Kennedy fitou-o. Seu rosto, com os belos planos e linhas estava congelado numa máscara, os olhos azuis pareciam tão cegos quanto os de uma estátua.
— Podem fazer isso por sua conta e risco... e pondo em perigo a América.
E Kennedy se retirou.
Na Sala do Gabinete, houve muita agitação, um burburinho de vozes. Oddblood Gray foi conferenciar com o Senador Lambertino e o Deputado Jintz. Mas os rostos deles eram sombrios, as vozes, frias. Jintz declarou:
— Não podemos permitir que isso aconteça. Acho que a assessoria do presidente foi negligente por não dissuadi-lo desse curso de ação.
— Ele me convenceu de que não estava agindo por raiva pessoal — explicou Oddblood Gray. — Que era a solução mais eficaz para o problema. É terrível, não nego, mas assim também é o tempo em que vivemos. Não podemos permitir que a situação se prolongue. Seria catastrófico.
O Senador Lambertino comentou:
— É a primeira vez que vejo Francis Kennedy agir de forma tão arrogante. Ele sempre foi um presidente cortês com o poder legislativo. Poderia pelo menos fingir que tínhamos alguma participação no processo de decisão.
— Ele está sob muita pressão — disse Gray. — Seria muito importante se o Congresso não aumentasse essa pressão.
Só que não havia a menor possibilidade, pensou Gray, mesmo enquanto falava. Jintz sugeriu, preocupado:
— A pressão pode ser o problema.
Oddblood Gray pensou: Ah, merda! Despediu-se, apressado e cordial, voltou correndo à sua sala, a fim de dar as centenas de telefonemas para membros do Congresso. Embora se sentisse particularmente consternado com a Precipitação de Kennedy, estava determinado a vender sua política ao legislativo.
O assessor de segurança nacional, Arthur Wix, tentava sondar o secretário de defesa. E providenciar para que houvesse uma reunião imediata do estado-maior das forças armadas. Mas o secretário de defesa parecia atordoado demais pelos acontecimentos e se limitava a murmurar respostas, concordando, mas sem acrescentar qualquer coisa por si mesmo.
Eugene Dazzy percebera a dificuldade de Oddblood Gray com os legisladores. Haveria grandes problemas. Dazzy virou-se para Helen Du Pray e perguntou:
— O que você acha?
Ela fitou-o friamente. Era uma bela mulher, pensou Dazzy. Devia convidá-la para jantar.
— Acho que você e o resto da assessoria pessoal falharam neste caso. A reação de Francis à crise é drástica demais. E como Christian Klee vai enfrentar a situação?
Klee desaparecera, o que surpreendia Du Pray, pois ele não tinha o hábito de sumir num momento crucial como aquele. Dazzy estava irritado.
— A posição de Francis tem lógica, e teríamos de apoiá-lo de qualquer maneira, mesmo que discordássemos.
— Foi assim que Francis apresentou seu plano — comentou Helen Du Pray. — Mas é evidente que o Congresso tentará tirar as negociações de suas mãos. E tentará também afastá-lo do cargo.
— O que só vai acontecer por cima dos cadáveres de sua assessoria — respondeu Dazzy.
— Tome muito cuidado, por favor — murmurou Helen Du Pray. — Nosso país corre um grande perigo,
PETER CLOOT, na tarde de quarta-feira, era com certeza a única autoridade em Washington que quase não prestou atenção à notícia de que a filha do presidente fora assassinada. Suas energias concentravam-se na ameaça de bomba nuclear.
Como subchefe do FBI, ele tinha uma responsabilidade quase plena pela agência. Christian Klee era o titular, mas apenas para controlar as rédeas do poder, colocar o FBI mais firmemente sob o comando do gabinete do procurador-geral, que ele também ocupava. Essa acumulação de cargos sempre incomodara Peter Cloot. E também o incomodava que o Serviço Secreto estivesse sob as ordens de Klee. Era uma excessiva concentração de poder, na opinião de Cloot. Ele sabia ainda que havia uma seção de elite separada, ostensivamente no organograma do FBI, mas dirigida de forma direta por Klee, integrada por seus antigos colegas na CIA. O que era uma afronta para Cloot.
Mas aquela ameaça nuclear era de competência de Cloot. Comandaria o espetáculo. E, por sorte, havia diretivas específicas para orientá-lo, participara dos seminários que trataram do problema das ameaças nucleares internas. Se havia alguém que era especialista nessa situação em particular era justamente Peter Cloot. E não havia escassez de recursos humanos no FBI. Durante a administração de Klee o efetivo aumentara três vezes.
Ao ver a carta ameaçadora pela primeira vez, com os diagramas que a acompanhavam, Cloot entrara em ação no mesmo instante, seguindo as diretivas em vigor. E também experimentara um arrepio de medo. Já houvera centenas de ameaças assim até aquele momento, apenas umas poucas plausíveis, mas nenhuma tão convincente quanto aquela. Todas essas ameaças haviam sido mantidas em segredo, mais uma vez de acordo com as diretivas.
Cloot prontamente encaminhara a carta para o Departamento de Energia, ao posto de comando em Maryland, usando as instalações especiais de comunicações para servirem apenas a tal propósito. Também alertara as equipes de busca do Departamento de Energia, baseadas em Las Vegas, conhecidas como NEST. As equipes já estavam voando com seus equipamentos de detecção para Nova York. Outros aviões levavam mais pessoal habilitado para a cidade, onde explorariam as ruas com o sofisticado equipamento, em furgões disfarçados. Helicópteros também seriam usados; e homens a pé, carregando valises com o contador Geiger, cobririam toda Nova York. Mas tudo isso não era a grande dor de cabeça de Cloot. Precisaria apenas fornecer guardas armados do FBI para proteger os pesquisadores. Seu trabalho fundamental era descobrir os vilões.
O pessoal do Departamento de Energia em Maryland estudara a carta e lhe enviara um perfil psicológico do autor. Aqueles caras eram mesmo espantosos, pensou Cloot — não podia imaginar como conseguiam. É verdade que uma das pistas óbvias era o fato de a carta não pedir dinheiro. E também definia uma posição política. Assim que recebeu o perfil, Cloot despachou mil homens para investigar.
O perfil dizia que o autor da carta provavelmente era muito jovem e com um alto grau de instrução. Que provavelmente era um estudante de física numa universidade importante. E com base nessa informação apenas, Cloot e poucas horas descobriu dois suspeitos; depois disso, foi espantosamente fácil. Ele trabalhou durante toda a noite, orientando seus agentes no campo. Ao ser informado do assassinato de Theresa Kennedy, ele tratou de afastá-lo da mente, resoluto, a não ser pelo pensamento de relance de que tudo aquilo podia estar ligado de alguma forma. Mas seu trabalho agora era encontrar o autor da ameaça de bomba nuclear. Graças a Deus que o miserável era um idealista. Isso tornava mais fácil descobri-lo. Havia um milhão de filhos da puta gananciosos que seriam capazes de fazer uma coisa assim por dinheiro, e nesse caso seria muito mais difícil descobri-los.
Enquanto esperava por informações, ele passou por seu computador todas as fichas das ameaças anteriores de bomba nuclear. Nunca fora encontrada qualquer arma nuclear, e os chantagistas capturados ao tentarem recolher o dinheiro haviam confessado que jamais existira alguma. Alguns tinham conhecimentos vagos de ciência. Outros haviam obtido informações convincentes de uma revista de esquerda, que publicara um artigo descrevendo como fabricar uma arma nuclear. A revista fora pressionada a não publicar o artigo, mas recorrera ao Supremo Tribunal, que decidira que a proibição seria uma violação da liberdade de imprensa. Só de pensar nisso agora Peter Cloot tremeu de raiva. A porra do país ia destruir a si mesmo. Ele notou uma coisa com interesse: nenhum dos mais de duzentos casos envolvera uma mulher, um preto, ou sequer um terrorista estrangeiro. Eram todos homens, americanos autênticos, gananciosos.
Depois de passar as fichas pelo computador, ele pensou por um momento em seu chefe, Christian Klee. Não gostava da maneira como Klee dirigia as coisas. Klee achava que toda a função do FBI era proteger o Presidente dos Estados Unidos. Klee usava nisso não apenas a Divisão do Serviço Secreto, mas também pelotões especiais dos escritórios do FBI em todo o país, cuja função principal era investigar possíveis perigos para a pessoa do presidente. Klee desviava uma boa parte dos efetivos do FBI para fazer isso.
Cloot desconfiava do poder de Klee, de sua divisão especial de ex-agentes da CIA. O que eles faziam? Cloot não tinha a menor idéia, embora tivesse todo o direito de saber. Essa divisão reportava-se diretamente a Klee, o que era lamentável, numa agência do governo tão sensível à opinião pública quanto o FBI. Nada acontecera até agora Cloot passava uma grande parte de seu tempo a se precaver, cuidando para não ser absorvido pela explosão quando aquela divisão especial fizesse alguma cagada que atrairia a ira do Congresso e acarretaria a criação de comitês especiais de investigação.
O principal assistente de Cloot apareceu à uma hora da madrugada para comunicar que dois suspeitos estavam sob vigilância. As provas disponíveis confirmavam o perfil psicológico, e havia outros indícios circunstanciais. Só faltava agora a ordem para efetuar a prisão.
— Tenho de informar Klee antes — disse Cloot. — Fique aqui, enquanto ligo para ele.
Cloot sabia que Klee estaria no gabinete do chefe da assessoria do presidente, ou que as onipotentes telefonistas da Casa Branca haveriam de localizá-lo, se não estivesse. Fez contato com Klee logo na primeira tentativa.
— Temos aquele caso especial todo amarrado — informou Cloot. — Mas acho que devo informá-lo de tudo, antes de entrar em ação. Pode vir até aqui?
A voz de Klee era tensa:
— Não, não posso. Preciso ficar ao lado do presidente neste momento, deve compreender isso.
— Então devo agir e informá-lo depois? — perguntou Cloot.
Houve uma pausa prolongada no outro lado da linha. Depois, Klee disse:
— Acho que temos tempo para recebê-lo aqui. Se eu não estiver disponível no momento, aguarde um pouco. Mas deve se apressar.
— Já estou a caminho.
Não fora necessário que qualquer dos dois sugerisse a conversa por telefone. Isso era inadmissível. Qualquer um poderia captar mensagens no espaço.
Cloot chegou à Casa Branca e foi conduzido a uma pequena sala de reuniões. Klee o aguardava, sem a prótese, massageando o coto, através da meia.
— Só tenho alguns minutos — informou Klee. — Vai começar uma importante reunião com o presidente.
— Lamento muito o que aconteceu. Como ele está suportando?
Klee balançou a cabeça.
— Nunca se sabe direito com Francis, mas ele parece estar bem. — Ele tornou a sacudir a cabeça, meio atordoado, depois acrescentou, incisivo: — Muito bem, vamos ver o que você tem.
Ele fitou Cloot com uma certa aversão. O exterior físico do homem sempre o irritava. Cloot nunca parecia cansado, era um daqueles homens que jamais ficavam com a camisa e o terno amarrotados. Sempre usava gravatas de tricô, com laços quadrados, em geral cinza-claro, às vezes pretas.
— Nós os descobrimos — informou Cloot. — Dois garotos, vinte anos, nos laboratórios nucleares do MIT. Gênios, QI acima de 160, de famílias ricas, esquerdistas, participaram de protestos nucleares. Os garotos têm acesso a documentos secretos. Ajustam-se ao perfil psicológico. Estão em seu laboratório em Boston, trabalhando em algum projeto do governo e universidade. Estiveram em Nova York há dois meses, envolveram-se com um colega, e adoraram. O sujeito tem certeza de que foi a primeira vez dos dois. Uma combinação perigosa, idealismo e os hormônios incontroláveis da juventude. Os dois estão sendo vigiados neste momento.
— Tem alguma prova concreta? — indagou Klee. — Algo incontestável?
— Não vamos julgá-los ou indiciá-los — respondeu Cloot. — Será apenas uma prisão preventiva, autorizada pelas leis da bomba atômica. Depois que os prendermos, eles confessarão e dirão onde está a porra da bomba, se é que existe. Acho que não existe. Acho que essa parte é invenção. Mas é certo que eles escreveram a carta. Ajustam-se ao perfil. E a data da carta... é o mesmo dia em que eles se registraram no Hilton, em Nova York. Este é o argumento definitivo.
Christian muitas vezes admirara os recursos das agências do governo, com seus computadores e outros equipamentos eletrônicos avançados. Era espantoso que fossem capazes de ouvir qualquer pessoa, em qualquer lugar, independentemente das precauções tomadas. Os computadores podiam vasculhar os registros de hotel em toda a cidade em menos de uma hora. E outras coisas ainda mais complicadas. A um custo fantástico, é claro.
— Muito bem, vamos agarrá-los — decidiu Christian. — Mas não tenho certeza se você conseguirá obrigá-los a confessar. São garotos espertos.
Cloot fitou Christian nos olhos.
— Está certo, Chris, eles não confessam, vivemos num país civilizado. Deixamos a bomba explodir e matar milhares de pessoas. — Ele sorriu por um momento, quase malicioso. — Ou você fala com o presidente e pede para ele assinar uma autorização de interrogatório médico. Artigo IX da Lei de Controle de Armas Atômicas.
O que era justamente o que Cloot desejava, desde o início.
Christian evitara o pensamento durante toda a noite. Sempre se sentira chocado pelo fato de que um país como os Estados Unidos pudesse ter uma lei secreta assim. A imprensa poderia descobrir com a maior facilidade, mas havia o acordo entre os proprietários dos veículos de comunicação e os dirigentes do país. Por isso, a lei não era conhecida do público, o que também acontecia com outras leis que regulamentavam a ciência nuclear.
Christian conhecia muito bem o Artigo IX. Como advogado, sempre o espantara. Era essa brutalidade na lei que sempre o repugnara.
O Artigo IX, essencialmente, dava ao presidente o direito de ordenar um exame químico do cérebro, desenvolvido para obrigar qualquer pessoa a contar a verdade, um detector de mentiras dentro do cérebro. A lei fora especialmente projetada para arrancar informações sobre a colocação secreta de um artefato nuclear. Ajustava-se àquele caso com perfeição. Não haveria tortura, a vítima não sofreria dor física. Apenas se mediriam as mudanças químicas no cérebro para verificar se o suspeito invariavelmente dizia a verdade, ao responder às perguntas. Era humano, a única desvantagem sendo o fato de que ninguém realmente sabia o que acontecia com o cérebro depois da operação. As experiências indicavam que em casos raros haveria perda de memória, uma ligeira perda da função cerebral. O suspeito não ficaria retardado — isso seria inadmissível —, mas, como dizia a velha piada, lá se iam as aulas de música. Havia também uma possibilidade de dez por cento de perda total da memória. Uma amnésia completa, a longo prazo. Todo o passado do suspeito podia ser apagado.
— É uma possibilidade muito remota, mas este caso não poderia estar ligado ao seqüestro e ao assassinato do Papa? — indagou Christian. — Até mesmo a captura daquele sujeito em Long Island parece ter sido um truque. Isto não poderia ser também parte do plano dos terroristas, uma cortina de fumaça, uma armadilha?
Cloot fitou-o em silêncio por um longo tempo, como se debatesse a resposta, antes de dizer:
— É possível, mas desconfio de que se trata de uma das famosas coincidências da história.
— Que sempre levam à tragédia — comentou Christian, ironicamente.
— Esses dois garotos são apenas malucos, em seu estilo de gênio. Na são políticos. E vivem obcecados com o perigo nuclear para o mundo em geral. Não estão interessados nas atuais divergências políticas. Não querem saber dos árabes e Israel, dos pobres e ricos na América. Nem dos democratas ou republicanos. Querem apenas que o globo gire mais depressa sobre seu eixo. Sabe como são essas coisas. — Cloot sorriu, desdenhoso. — Todos eles pensam que são Deus. Nada pode afetá-los.
Mas a mente de Christian fixava-se numa coisa. Havia estilhaços políticos voando por toda parte com aqueles dois problemas. Não se pode avançar muito depressa, pensou ele. Francis corria um tremendo perigo agora. Era preciso protegê-lo. E talvez fosse possível jogar um fato contra o outro.
— Escute, Peter, quero que esta seja a mais secreta das operações. Oculte tudo de todo mundo. Quero que os dois garotos sejam detidos e internados no hospital penitenciário que temos aqui em Washington. O fato só será conhecido por você, eu e os agentes que usarmos, da divisão especial. Esfregue no nariz dos agentes a Lei de Controle de Armas Atômicas, exija sigilo absoluto. Ninguém poderá vê-los, ninguém falará com eles, a não ser eu. Conduzirei o interrogatório pessoalmente.
Cloot reagiu com uma expressão de dúvida. Não lhe agradava que a operação fosse entregue à divisão especial de Klee.
— A equipe médica vai querer uma ordem presidencial antes de injetar as substâncias químicas nos cérebros dos garotos.
— Falarei com o presidente.
— O tempo é fundamental neste caso, e você declarou que será o único a interrogá-los — acrescentou Cloot, calmamente. — Isso significa que eu também não posso? E se você estiver ocupado com o presidente?
Christian Klee sorriu.
— Não se preocupe. Estarei presente no momento necessário. Só eu, Peter, mais ninguém. E agora me dê os detalhes.
Ele tinha outras coisas em sua mente. Dali a pouco se encontraria com os chefes de sua divisão especial do FBI e ordenaria que montassem uma vigilância eletrônica e de computador sobre os membros mais importantes do Congresso e do Clube Sócrates.
Adam Gresse e Henry Tibbot haviam plantado sua pequena bomba atômica, construída com muito esforço e engenhosidade. Talvez se orgulhassem tanto de seu trabalho que não puderam resistir à tentação de usá-lo numa causa nobre.
Verificaram os jornais, mas sua carta não apareceu na primeira página do New York Times. E não houve qualquer notícia sobre o assunto. Não lhes era dada a oportunidade de conduzir as autoridades à bomba, depois do atendimento de sua exigência. Estavam sendo ignorados. Isso os assustava e ao mesmo tempo irritava. Agora, a bomba explodiria e causaria milhares de mortes. Mas talvez fosse melhor assim. De que outra forma o mundo poderia ser alertado para os perigos do uso da energia atômica? De que outra forma os poderiam ser efetuadas as ações necessárias pelas autoridades, instituindo as salvaguardas apropriadas? Calculavam que a bomba destruiria pelo menos de quatro a seis quarteirões da cidade de Nova York. Suas consciências estavam limpas; haviam providenciado, na fabricação da bomba, para que a precipitação radiativa fosse mínima. Lamentavam que viesse a custar um determinado número de vidas humanas. Mas seria um preço mínimo a pagar para a humanidade perceber os erros de seus caminhos. Era preciso instituir salvaguardas infalíveis; a fabricação de bombas nucleares devia ser proibida por todas as nações do mundo.
Na quarta-feira, Gresse e Tibbot trabalharam no laboratório até tarde, até que todos os outros foram embora. Depois, discutiram se deveriam dar um telefonema para alertar as autoridades. No início, não tinham a intenção de deixar que a bomba explodisse. Queriam ver a carta de advertência publicada pelo New York Times, planejavam em seguida voltar a Nova York para desarmar a bomba. Mas agora parecia uma guerra de vontades. Estavam sendo tratados como crianças, desprezados, quando podiam fazer tanta coisa pela humanidade? Ou lhes dariam a devida atenção? Em sã consciência, não podiam prosseguir em seu trabalho científico, se este seria usado de maneira deturpada pelo sistema político.
Haviam escolhido a cidade de Nova York para ser punida porque em suas vidas sentiram-se horrorizados pelo sentimento do mal que parecia impregnar suas ruas. Os mendigos ameaçadores, os motoristas insolentes, a grosseria dos vendedores nas lojas, os incontáveis assaltantes, os assassinatos. Ficaram repugnados em particular com Times Square, tão apinhada de pessoas que lhes dera a impressão de um esgoto cheio de baratas. Em Times Square, os cafetões, traficantes de tóxicos e prostitutas pareciam tão ameaçadores que Gresse e Tibbot retiraram-se em pânico para seu quarto de hotel longe do centro. E por isso, com uma ira justificada, decidiram plantar a bomba em Times Square.
Adam e Henry ficaram tão chocados quanto o resto da nação quando a televisão mostrou o assassinato de Theresa Kennedy. Mas também se sentiram um pouco aborrecidos porque isso desviava a atenção da operação deles, que era mais importante, em última análise, para o destino da humanidade.
Mas ficaram nervosos. Adam ouvira estranhos estalidos em seu telefone e tinha a impressão de que seu carro era seguido; experimentava um distúrbio elétrico quando certos homens passavam por ele na rua. Disse tudo isso a Tibbot.
Henry Tibbot era bastante alto e magro, parecia feito de arame, juntado com fragmentos de carne e uma pele transparente. Possuía uma mente científica superior à de Adam, e nervos muito mais fortes.
— Está reagindo como todos os criminosos, Adam. É normal. Cada vez que alguém bate na porta, tenho a impressão de que são os agentes federais.
— E se eles acabarem aparecendo?
— Fique de boca fechada até seu advogado aparecer — aconselhou Henry Tibbot. — Isso é o mais importante. Receberíamos 25 anos de prisão só por escrever a carta. Portanto, se a bomba explodir, haverá apenas mais uns poucos anos.
— Acha que eles podem nos descobrir?
— Não há a menor possibilidade. Nós nos livramos de tudo o que poderia servir como pista. Afinal, somos ou não mais espertos do que eles?
Adam foi acalmado por essas palavras, mas ainda hesitava um pouco.
— Talvez devêssemos dar um telefonema e avisar onde está a bomba.
— Nada disso. Eles já estão alertas agora, poderão localizar nosso telefone. Será a única maneira de nos descobrirem. Só precisa se lembrar de que deve ficar de boca fechada se as coisas saírem erradas. E, agora, vamos trabalhar.
Adam e Henry trabalhavam até tarde no laboratório naquela noite porque queriam ficar juntos. Queriam conversar sobre o que tinham feito, sobre os recursos de que dispunham. Eram jovens de profunda determinação, criados para terem a coragem por suas convicções, para detestar uma autoridade que se recusava a ser influenciada por qualquer argumento razoável. Embora evocassem fórmulas matemáticas que poderiam mudar o destino da humanidade, não tinham a menor noção dos complexos relacionamentos da civilização. Realizadores gloriosos, ainda não haviam amadurecido para a humanidade.
O telefone tocou quando se preparavam para ir embora. Era o pai de Henry, que lhe disse:
— Preste atenção, filho. Você está prestes a ser preso pelo FBI. Não diga nada, enquanto eles não deixarem você falar com seu advogado. Não diga absolutamente nada Sei...
Nesse momento a porta do laboratório foi aberta e homens armados entraram.
OS RICOS NOS ESTADOS UNIDOS, sem a menor dúvida, possuem mais consciência social do que os ricos em qualquer outro país do mundo. Isso é ainda mais verdade entre os muito ricos, aqueles que possuem e dirigem as enormes corporações, exercem sua força econômica na política e fazem propaganda em todas as áreas da cultura. E se aplicava em particular aos sócios do Socratic Country Golf and Tennis Club da Califórnia Meridional, fundado quase setenta anos antes por magnatas da indústria imobiliária, dos meios de comunicação, cinema e agricultura, como uma organização política liberal devotada à recreação. Era uma organização exclusiva; uma pessoa precisava ser muito rica para ingressar nela. Teoricamente, podia ser negra ou branca, judia ou católica, homem ou mulher, artista ou magnata. Na verdade, porém, havia bem poucos negros e nenhuma mulher.
O Clube Sócrates, como era comumente conhecido, acabara evoluindo até se tornar um clube para os ricos mais esclarecidos e mais responsáveis. Prudentemente, tinha um ex-vice-diretor de operações da CIA como chefe da segurança, e suas defesas eletrônicas eram as mais sofisticadas nos Estados Unidos.
Quatro vezes por ano, o clube era usado como um refúgio por cerca de cinqüenta a cem homens, que possuíam quase tudo na América. Passavam uma semana ali, e durante esse período o serviço era reduzido ao mínimo. Faziam suas próprias camas, serviam os próprios drinques e às vezes até providenciavam sua comida, em churrasqueiras externas, ao final da tarde. É claro que sempre havia alguns garçons, cozinheiros e camareiras, assim como os inefáveis assessores daqueles homens tão importantes; afinal o mundo americano dos negócios e da política não podia parar, enquanto eles recarregavam suas baterias espirituais.
Durante a permanência de uma semana, aqueles homens reuniam-se em pequenos grupos e passavam o tempo em discussões particulares. Participavam de seminários conduzidos por eminentes professores das mais famosas universidades, sobre questões de ética, filosofia, a responsabilidade da elite afortunada com os menos afortunados na sociedade. Ouviam conferências de cientistas famosos sobre os benefícios e perigos das armas nucleares, pesquisa do cérebro, exploração espacial, economia.
Também jogavam tênis, nadavam na piscina, empenhavam-se em torneios de gamão e bridge, promoviam discussões pela noite afora sobre a virtude e vilania, as mulheres e o amor, o casamento e a aventura. E eram homens responsáveis, os mais responsáveis na sociedade americana. Tentavam ali fazer duas coisas: tornarem-se seres humanos melhores, ao mesmo tempo em que recuperavam a adolescência; e se unirem para promover uma sociedade melhor, como achavam que uma sociedade melhor deveria ser.
Depois de uma semana juntos, retornavam a suas vidas normais, revigorados por uma nova esperança, um desejo de ajudar a humanidade, e uma percepção mais nítida da maneira como todas as suas atividades podiam ser conduzidas para preservar a estrutura da sociedade, e talvez com relações pessoais mais firmes, que poderiam ajudá-los em seus negócios.
A atual semana começara na segunda-feira, depois do Domingo de Páscoa. Por causa da crise nacional, com a morte do papa e o seqüestro do avião com a filha do presidente e seu posterior assassinato, a freqüência caíra para menos de vinte homens.
George Greenwell era o mais velho. Aos oitenta anos ainda podia jogar tênis em duplas, mas por uma cortesia nata não se impunha aos mais jovens, que seriam obrigados a jogar num estilo clemente. Ainda assim era um tigre nas longas sessões de gamão.
Greenwell considerava que a crise nacional não era da sua conta, a menos que envolvesse os grãos de alguma forma, pois sua companhia possuía e controlava a maior parte do trigo da América. Seu momento de glória ocorrera trinta anos antes, quando os Estados Unidos embargaram a venda de cereais para a Rússia, como um instrumento político para prevalecer sobre os soviéticos na guerra fria. George Greenwell era um patriota, mas não era um tolo. Sabia que a Rússia não poderia ceder às pressões. Também sabia que o embargo imposto por Washington arruinaria os agricultores americanos. Por isso, desafiara o Presidente dos Estados Unidos e despachara os grãos proibidos, desviando-os para outras companhias estrangeiras, que remeteram tudo para a Rússia. E, com isso, atraíra a ira do poder executivo americano. Foram apresentados projetos no Congresso para reduzir o poder da companhia pertencente à sua família, para torná-la aberta ao público, submetê-la a alguma espécie de controle. Mas o dinheiro que Greenwell distribuíra entre deputados e senadores logo acabara com essas tentativas.
Greenwell adorava o Clube Sócrates porque era luxuoso, mas não tão luxuoso que pudesse acarretar a inveja dos menos afortunados. E também porque não era conhecido dos meios de comunicação — afinal, seus sócios possuíam quase todas as emissoras de TV, jornais e revistas do país. E também fazia com que se sentisse jovem, permitia-lhe participar socialmente das vidas de homens mais jovens, que eram seus iguais no poder.
Ganhara muito dinheiro extra durante aquele embargo dos cereais, comprando trigo e milho de agricultores americanos ameaçados e vendendo caro a uma Rússia desesperada. Mas cuidara para que o dinheiro extra beneficiasse o povo dos Estados Unidos. O que fizera fora uma questão de princípio, o princípio de que sua inteligência era maior que a dos funcionários do governo. O dinheiro extra, centenas de milhões de dólares, fora canalizado para museus, fundações educacionais, programas culturais na TV, especialmente a música, que era a paixão de Greenwell.
Ele se orgulhava de ser civilizado, uma decorrência de ter cursado as melhores escolas, onde aprendera o comportamento social dos ricos responsáveis e um civilizado sentimento de afeição por seus semelhantes. O rigor que demonstrava nos negócios era sua forma de arte; a matemática de milhões de toneladas de grãos soava em seu cérebro com a mesma nitidez e encanto de música de câmara.
Um de seus poucos momentos de raiva ignóbil ocorrera quando um jovem professor de música, numa cátedra universitária instituída por uma de suas fundações, publicara um ensaio em que situava a música de jazz e rock acima de Brahms e Schubert e ousara afirmar que a música clássica era “fúnebre”. Greenwell jurara que o professor seria removido de sua cátedra, mas sua cortesia nata acabara prevalecendo. Mas logo em seguida o jovem professor publicara outro ensaio, com uma frase lamentável: “Quem dá alguma merda por Beethoven?” E fora o fim. O jovem professor nunca soubera o que acontecera, mas um ano depois estava dando aulas de piano em San Francisco.
O Clube Sócrates tinha uma extravagância, um requintado sistema de comunicações. Na manhã em que o Presidente Kennedy anunciou na reunião secreta de seus assessores o ultimato que apresentaria ao sultão de Sherhaben, todos os vinte homens do Clube Sócrates receberam a informação uma hora depois. Só Greenwell sabia que essa informação fora fornecida por Oliver Oliphant, o Oráculo.
Era uma questão de doutrina que aqueles retiros anuais de grandes homens não fossem usados de qualquer forma para planejar ou organizar conspirações: serviam apenas como um meio para comunicar objetivos gerais, informar um interesse geral, dissipar a confusão na operação de uma sociedade complexa. Nesse espírito, George Greenwell convidou, na terça-feira, três outros grandes homens para almoçar num dos pavilhões, perto das quadras de tênis
O mais jovem daqueles homens, Lawrence Salentine possuía uma grande rede de TV e algumas empresas a cabo, jornais em três grandes cidades, cinco revistas e um dos maiores estúdios de cinema. Através de subsidiárias, possuía uma grande editora de livros. Também possuía doze emissoras de TV locais, em importantes cidades. E tudo isso só nos Estados Unidos. Era também uma presença poderosa nos meios de comunicação em outros países. Sa¬lentine tinha apenas 45 anos, um homem esguio e bonito, cabelos prateados, cacheados ao estilo dos imperadores romanos, agora muito em moda entre intelectuais e pessoas ligadas às artes, em Hollywood. Era impressionante na aparência e na inteligência, e um dos homens mais poderosos na política americana. Não havia um deputado, senador ou membro do Gabinete que não atendesse a seus telefonemas. Apesar disso, ele não conseguira fazer amizade com o Presidente Kennedy, que parecia ter considerado em termos pessoais as críticas da imprensa aos novos programas sociais que propusera.
O segundo homem era Louis Inch, que possuía mais importantes imóveis nas grandes cidades americanas do que qualquer outro homem ou companhia. Ainda muito jovem — agora estava na casa dos quarenta anos — fora o primeiro a perceber a verdadeira importância de construir na vertical, a alturas aparentemente impossíveis. Comprara direitos de espaço aéreo sobre muitos prédios existentes e depois construíra enormes edifícios, que aumentaram em dez vezes o valor dos prédios. Mais do que qualquer outra pessoa, mudara a própria claridade das grandes cidades, criando intermináveis desfiladeiros escuros entre os prédios comerciais, que provaram ser mais necessários do que todos os outros supunham. Tornara os aluguéis tão excepcionalmente altos em Nova York, Chicago e Los Angeles para as famílias comuns, que só os ricos ou muito prósperos podiam viver em conforto nessas cidades. Persuadira ou subornara autoridades para lhe concederem abatimentos fiscais e suspenderem os controles sobre aluguéis, a tal ponto que se gabava de que algum dia seu preço de aluguel por metro quadrado igualaria o de Tóquio.
Sua influência política, apesar de suas ambições, era inferior à dos outros homens no pavilhão. Possuía uma fortuna pessoal de mais de cinco bilhões de dólares, mas essa riqueza tinha a inércia da terra. Sua verdadeira força era mais sinistra. Seus objetivos eram a acumulação de riqueza e poder sem qualquer responsabilidade com a civilização em que vivia. Subornara de forma indiscriminada autoridades públicas e sindicatos da construção civil. Possuía cassinos-hotéis em Atlantic City e Las Vegas, excluindo os gangsters dessas cidades. Mas no processo, à maneira curiosa do sistema democrático, adquirira o apoio de figuras secundárias nos impérios criminosos. Todos os departamentos de serviços de seus inúmeros hotéis tinham contrato com firmas que forneciam louças e talheres, lavanderia, criados, bebidas e aumentos. Através de subordinados, estava ligado a esse submundo criminoso. Claro que não era tolo a ponto de permitir que essa ligação fosse mais que um fio microscópico. O nome de Louis Inch nunca fora afetado por qualquer insinuação de escândalo — graças não apenas a seu senso de prudência, mas também à ausência de qualquer carisma pessoal.
Por esses motivos, ele era na verdade desprezado, num nível pessoal, por quase todos os sócios do Clube Sócrates. Era tolerado porque uma de suas companhias possuía os terrenos em torno do clube e havia sempre o medo de que ele pudesse construir conjuntos habitacionais baratos para cinqüenta mil famílias, sufocando a área do clube com hispânicos e negros.
O terceiro homem, Martin Mutford, vestindo uma calça esporte, blazer azul e camisa branca aberta, tinha sessenta anos e talvez fosse o mais poderoso dos quatro, porque tinha o controle do dinheiro em muitas áreas diferentes. Quando jovem, fora um dos protegidos do Oráculo, e aprendera muito bem suas lições. Contava histórias impregnadas de admiração sobre o Oráculo, para intensa satisfação das audiências no Clube Sócrates.
Mutford baseara sua carreira em banco de investimentos. No começo, por causa da influência do Oráculo, ou pelo menos assim alegava, encontrara algumas dificuldades. Quando jovem, tinha um grande vigor sexual, como ele dizia. Para seu espanto, os maridos de algumas jovens esposas que ele seduzira procuraram-no, não em busca de vingança, mas para solicitar um empréstimo bancário. Exibiam sorrisos sugestivos, um comportamento afável. Por instinto, ele concedera os empréstimos pessoais, que sabia que nunca seriam pagos. Na ocasião, não sabia que os responsáveis pelos empréstimos nos bancos recebiam presentes e subornos para concederem empréstimos duvidosos a pequenas empresas. Era fácil preparar os pedidos para serem aprovados, as pessoas que dirigiam os bancos queriam emprestar dinheiro — esse era o seu negócio, daí tiravam seus lucros, e por isso os regulamentos eram deliberadamente formulados para facilitar o trabalho dos gerentes de empréstimos. Claro que tinha de haver fichas cadastrais, memorandos de entrevistas etc. Mutford custara ao banco umas poucas centenas de milhares de dólares, antes de ser transferido para outra agência, em outra cidade, pelo que julgava ser uma circunstância afortunada, mas que depois compreendera ter sido uma atitude tolerante de seus superiores.
Os erros da juventude para trás, perdoados, esquecidos, lições valiosas aprendidas, Mutford fora subindo em seu mundo. Trinta anos depois sentava no pavilhão do Clube Sócrates e era o mais poderoso financista dos Estados Unidos. Presidia o conselho de administração de um grande banco e possuía parcelas substanciais de ações das redes de TV; ele e seus amigos controlavam a gigantesca indústria automobilística e estavam associados à indústria de transporte aéreo. Mutford usara seu dinheiro como uma teia de aranha para capturar uma parcela considerável da indústria eletrônica. Também integrava os conselhos de administração de firmas de investimentos de Wall Street, que promoviam as transações de aquisições de imensos conglomerados, para aumentar outros imensos conglomerados. Quando essas batalhas eram mais encarniçadas, Mutford despachava uma onda de dinheiro, tão irresistível quanto o mar, para resolver os problemas. Como os outros três, “possuía” determinados deputados e senadores.
Os quatro homens acomodaram-se em torno da mesa redonda, no pavilhão perto das quadras de tênis, cercadas por flores da Califórnia e arbustos como os da Nova Inglaterra. George Greenwell indagou:
— O que vocês acham da decisão do presidente?
— É lamentável o que fizeram com a filha dele — disse Mutford. — Mas destruir propriedade no valor de cinqüenta bilhões de dólares é uma reação desproporcional.
Um garçom, um hispânico, usando uma calça branca e uma camisa de mangas curtas com o logotipo do clube, anotou os pedidos de drinques. Salentine comentou, pensativo:
— O povo americano vai considerar Kennedy como um grande herói se ele fizer o que está pretendendo. Será reeleito por uma maioria esmagadora.
— Mas é uma reação drástica demais, todos nós sabemos disso — declarou Greenwell. — As relações exteriores ficarão prejudicadas por muitos anos.
— O país está indo muito bem — comentou Mutford. — O poder legislativo finalmente exerce algum controle sobre o executivo. O país vai se beneficiar de uma oscilação do poder na direção oposta?
— O que Kennedy poderia fazer se fosse reeleito? — interveio Inch. — O Congresso mantém o controle, e temos muita influência nele. Não há mais que cinqüenta deputados que são eleitos sem o nosso dinheiro. E não há um senador que não seja um milionário. Não precisamos nos preocupar com o presidente.
Greenwell olhava além das quadras de tênis para o azul deslumbrante do Oceano Pacífico, tão sereno e tão majestoso. Naquele exato momento, o oceano aninhava bilhões de dólares em navios transportando seus cereais pelo mundo inteiro. Experimentava um ligeiro sentimento de culpa ao pensar que podia deixar na inanição ou alimentar quase o mundo inteiro.
Ele começou a falar, mas foi interrompido pelo garçom, que chegou com os drinques. Greenwell era prudente em sua idade e pedira água mineral. Tomou um gole e, depois que o garçom se retirou, recomeçou a falar, em tons cuidadosamente modulados. Sua cortesia requintada era típica de um homem obrigado a tomar decisões brutais ao longo da vida.
— Não devemos jamais esquecer que o cargo do Presidente dos Estados Unidos pode constituir um grande perigo para c processo democrático.
— Isso é bobagem — protestou Salentine. — As outras autoridades no governo o impediriam de tomar uma decisão pessoal. Os militares, abençoados sejam, não permitiriam, a menos que fosse razoável. Sabe disso, George.
— Isso é verdade — concordou Greenwell. — Só que em tempos normais. Mas lembre-se de Lincoln, que suspendeu o habeas corpus e as liberdades civis durante a Guerra Civil; e Franklin Roosevelt, que nos levou à Segunda Guerra Mundial. Lembre-se dos poderes pessoais do presidente. Ele tem o poder de conceder o perdão absoluto a qualquer crime. Esse é o poder de um rei. Sabe o que pode ser feito com tal poder? A fidelidade que pode criar? Ele tem poderes quase infinitos, se não houver um Congresso forte para contê-lo. Por sorte, temos um Congresso assim. Mas precisamos pensar no futuro, cuidar para que o executivo permaneça subordinado aos representantes eleitos do povo.
— Com a TV e os outros meios de comunicação, Kennedy não duraria um dia se tentasse algo ditatorial. Ele não tem essa opção. A convicção mais forte na América hoje é o credo da liberdade individual. — Salentine fez uma pausa e depois acrescentou: — E você sabe disso muito bem, George. Afinal, desafiou aquele infame embargo.
— Está perdendo o ponto principal — disse Greenwell. — Um presidente ousado pode superar esses obstáculos. Kennedy está sendo muito ousado nesta crise.
Inch interveio, impaciente:
— Está querendo dizer que devemos apresentar uma frente unida contra o ultimato de Kennedy a Sherhaben? Pessoalmente, acho ótimo que ele esteja sendo duro. A força funciona, a pressão funciona, sobre governos e também sobre as pessoas.
No início de sua carreira, Inch usara táticas de pressão sobre os inquilinos em conjuntos habitacionais de aluguel controlado, quando queria esvaziar os prédios. Suspendera o aquecimento e o abastecimento de água, proibira a manutenção; tornara extremamente desconfortável a vida de milhares de pessoas. “Desequilibrara” certas comunidades suburbanas, inundando-as com negros, a fim de expulsar os residentes brancos; subornara governos municipais e estaduais, enriquecera fiscais federais. Sabia do que estava falando. O sucesso baseava-se na aplicação de pressão.
— Continuo a achar que não estão percebendo a questão principal — insistiu Greenwell. — Dentro de uma hora teremos uma conferência pela televisão com Bert Audick. Por favor, perdoem-me por ter marcado essa conferência sem consultá-los... achei que era urgente demais para esperar, os acontecimentos estão se sucedendo muito depressa. E, afinal, os cinqüenta bilhões de dólares que serão destruídos pertencem a Bert Audick, e ele está muito preocupado. E é importante pensar no futuro. Se o presidente pode fazer isso com Audick, também poderá fazer conosco.
— Kennedy é imprevisível — comentou Mutford, pensativo.
— Acho que devemos chegar a alguma espécie de consenso da conferência com Audick — sugeriu Salentine.
— Ele é realmente pervertido em sua obsessão com a preservação do petróleo — disse Inch, que sempre achara que o petróleo conflitava de alguma forma com os interesses imobiliários.
— Devemos a Bert conceder-lhe toda a nossa consideração — declarou Greenwell.
Os quatro homens estavam reunidos no centro de comunicações do Clube Sócrates quando a imagem de Bert Audick surgiu na tela de TV. Ele cumprimentou-os com um sorriso, mas o rosto na tela tinha um vermelho anormal, o que podia ser um problema de sintonia de cor ou o efeito de um acesso de raiva. A voz de Audick era calma quando anunciou:
— Vou para Sherhaben. Talvez seja a última olhada em meus cinqüenta bilhões de dólares.
Os homens na sala podiam falar com a imagem como se Audick estivesse presente no clube. Podiam ver seus próprios rostos no monitor, a imagem que Audick via em seu escritório.
— Pretende mesmo ir? — indagou Inch.
— Claro. O sultão é meu amigo, e a situação se tornou bastante delicada. Posso fazer muito por nosso país se for até lá pessoalmente.
— Segundo os correspondentes em minha folha de pagamento — disse Salentine —, a Câmara e o Senado estão tentando vetar a decisão do presidente. É possível?
A imagem de Audick sorriu.
— Não apenas possível, mas quase certo. Conversei com membros do Gabinete. Estão propondo que o presidente seja afastado temporariamente do cargo, por causa de sua vendeta pessoal, que indica um certo desequilíbrio mental. Nos termos de uma emenda à Constituição, isso é legal. Precisamos apenas das assinaturas dos membros do Gabinete e da vice-presidente numa petição, que o Congresso ratificará. Mesmo que a suspensão seja por trinta dias apenas, poderemos evitar a destruição de Dak. E garanto que os reféns serão libertados quando eu estiver em Sherhaben. Mas acho que todos vocês devem oferecer apoio ao Congresso para o afastamento do presidente. Devem isso à democracia americana, assim como eu devo a meus acionistas. Sabemos muito bem que ele não escolheria esse curso de ação se a pessoa executada não fosse sua filha.
— Bert, nós quatro discutimos o assunto e concordamos em apoiar você e o Congresso... é o nosso dever — declarou Greenwell. — Daremos os telefonemas necessários, nossos esforços serão coordenados. Mas Lawrence Sa¬lentine tem algumas observações pertinentes que gostaria de apresentar.
O rosto de Audick na tela reagiu com raiva e repulsa.
— Larry, este não é o momento para que você fique em cima do muro. Se Kennedy pode me custar cinqüenta bilhões de dólares, talvez chegue um momento em que todas as suas emissoras de TV perderão a licença federal; e se isso acontecer, você pode se danar que não levantarei um dedo para ajudá-lo.
Greenwell estremeceu à vulgaridade e grosseria da resposta. Inch e Mutford sorriram. Salentine não deixou transparecer qualquer emoção. A voz era tranqüila quando respondeu:
— Bert, estou com você até o fim, nunca duvide disso. Acho que um homem que decide arbitrariamente destruir cinqüenta bilhões de dólares para reforçar uma ameaça é sem dúvida desequilibrado, não tem condições para liderar o governo dos Estados Unidos. Estou com você, posso lhe garantir. Minhas emissoras de televisão vão interromper a programação normal com notícias de que o Presidente Kennedy está sendo submetido a uma avaliação psiquiátrica, que o trauma da morte da filha pode ter perturbado temporariamente sua razão. Isso deve preparar o terreno para o Congresso. Mas isso envolve uma área em que tenho mais experiência do que a maioria. A decisão do presidente contará com o apoio do povo americano... a reação natural das massas a todos os atos de afirmação do poder nacional. Kennedy tem inteligência e energia. Se sua ação tiver êxito e recuperar os reféns, passará a contar com uma fidelidade incalculável, terá todos os votos que quiser. E se conseguir enfiar um pé na porta, poderá derrubar o Congresso.
Salentine fez uma pausa, tentando escolher as palavras com o maior cuidado.
— Mas se as ameaças fracassarem... os reféns mortos, o problema sem solução... então Kennedy estará liquidado como uma força política.
Na tela, a imagem de Bert Audick tremeu.
— Isso não é uma alternativa. Se chegar a esse ponto, então os reféns devem ser salvos, nosso país deve vencer. Além do mais, os cinqüenta bilhões de dólares já estarão perdidos. Nenhum americano de verdade vai querer que a missão de Kennedy fracasse. Eles podem não querer uma missão com uma ação tão drástica, mas depois de começar, devemos providenciar para que tenha êxito.
— Concordo plenamente — declarou Salentine, embora não concordasse. — Mas tenho outro argumento. Assim que o presidente perceber o perigo do Congresso, sua primeira providência será a de falar à nação pela televisão E quaisquer que sejam os defeitos de Kennedy, não se pode deixar de reconhecer que ele é um mago na televisão. A partir do momento em que ele defender o seu caso para todo o país, o Congresso ficará numa situação muito difícil. O que acontece se o Congresso afastar Kennedy do cargo por trinta dias? Há sempre a possibilidade de que o presidente esteja certo em seu diagnóstico, que os seqüestradores prolonguem a situação de forma interminável, com Kennedy à margem, imune a todas as pressões.
Salentine fez outra pausa, tentando ser cauteloso ao máximo.
— Neste caso, Kennedy torna-se um herói ainda maior. Nossa melhor opção é deixá-lo em paz, para ganhar ou perder. Assim, não há perigo a longo prazo para a estrutura política deste país. Esta pode ser a melhor opção.
— E com isso eu perco os cinqüenta bilhões de dólares, certo?
O rosto de Bert Audick na imensa tela de televisão era cada vez mais vermelho, de raiva. Nunca houvera qualquer problema com o controle de cor.
— É muito dinheiro, não se pode negar — interveio Mutford —, mas não é o fim do mundo.
O rosto de Bert Audick na tela exibia agora um espantoso vermelho-sangue. Salentine tornou a pensar que só podia ser o controle — nenhum homem seria capaz de sobreviver a uma tonalidade assim. A voz de Audick ressoou pela sala:
— Vá se foder, Martin! E é mais de cinqüenta bilhões. O que me diz da perda de receita enquanto reconstruímos Dak? Seus bancos me emprestarão o dinheiro sem juros. Você tem mais dinheiro em seu rabo que o Tesouro dos Estados Unidos, mas me daria os cinqüenta bilhões? Porra nenhuma!
Greenwell apressou-se em interferir:
— Bert, Bert, estamos do seu lado. Salentine apenas ressaltou umas poucas opções em que você talvez não tenha pensado, sob a pressão dos acontecimentos. De qualquer forma, não poderíamos deter a ação do Congresso, mesmo que tentássemos. O Congresso não permitirá que o executivo prevaleça, numa questão assim. E, agora, todos temos muito trabalho a fazer, por isso, proponho que esta conferência seja encerrada.
Salentine sorriu e disse:
— Bert, as notícias sobre a condição mental do presidente começarão a ser transmitidas pela televisão dentro de três horas. As outras redes seguirão nossa iniciativa. Ligue-me e diga o que acha, talvez tenha algumas idéias. E mais uma coisa: se o Congresso votar pela deposição do presidente antes que ele peça tempo na televisão, as redes podem recusar, sob a alegação de que ele foi considerado mentalmente incompetente e não é mais o presidente.
— Ótimo — disse Audick, o rosto desvanecendo para uma cor normal.
A conferência foi encerrada com despedidas corteses. Depois, Salentine disse aos outros:
— Sugiro que todos voemos para Washington em meu avião. Acho que devemos fazer uma visita a nosso velho amigo, Oliver Oliphant.
Mutford sorriu,
— O Oráculo, meu velho mentor. Ele nos dará algumas respostas.
Uma hora depois estavam todos a caminho de Washington.
Convocado para uma reunião com o Presidente Kennedy, o embaixador de Sherhaben, Sharif Waleeb, assistiu ao vídeo-teipe secreto da CIA, mostrando Yabril jantando com o sultão no palácio. O embaixador ficou sinceramente chocado. Como o seu sultão podia se envolver numa operação tão perigosa? Sherhaben era um pequeno país, amante da paz, sensato por sua força militar mínima.
A reunião foi no Gabinete Oval, com a presença de Bert Audick. O presidente estava acompanhado por dois assistentes, Arthur Wix, o assessor de segurança nacional, e Eugene Dazzy, o chefe de sua assessoria pessoal. Depois da apresentação formal, o embaixador de Sherhaben declarou a Kennedy:
— Meu caro Senhor Presidente, pode estar certo de que eu não tinha conhecimento disso. E apresento minhas desculpas pessoais, humildes e sinceras. — Ele estava à beira das lágrimas. — Mas devo ressaltar uma coisa em que acredito plenamente. O sultão jamais teria concordado em fazer qualquer mal à sua pobre filha.
Francis Kennedy disse solenemente:
— Espero que seja verdade, pois neste caso ele concordará com a minha proposta.
O embaixador escutava com uma apreensão que era mais pessoal do que política. Fora educado numa universidade americana, era um admirador do modo de vida americano. Adorava a comida americana, as bebidas alcoólicas americanas, as mulheres americanas e sua rebeldia contra o jugo masculino. Adorava a música e o cinema americano. Dera muito dinheiro a todos os políticos necessários, enriquecera burocratas no Departamento de Estado. Era um profundo conhecedor dos problemas do petróleo e amigo de Bert Audick.
Sentia-se agora em desespero por seu infortúnio pessoal, mas não estava realmente preocupado com Sherhaben e seu sultão. O pior que poderia acontecer agora seriam sanções econômicas. A CIA americana promoveria operações secretas para derrubar o sultão, mas isso talvez até o beneficiasse.
Por isso, ele ficou profundamente chocado quando Kennedy acrescentou, num discurso articulado com extremo cuidado:
— Quero que preste toda atenção. Dentro de três horas partirá em um avião para Sherhaben, levando minha mensagem a seu sultão, pessoalmente. O Sr. Bert Audick, a quem já conhece, e meu assessor de segurança nacional, Arthur Wix, o acompanharão. E a mensagem é a seguinte: Dentro de 24 horas, sua cidade de Dak será destruída.
Horrorizado, com um aperto na garganta, o embaixador não conseguiu falar. Kennedy continuou:
— Os reféns devem ser libertados e o terrorista Yabril será entregue. Vivo. Se o sultão não fizer isso, o próprio estado de Sherhaben deixará de existir.
O embaixador parecia tão atordoado que Kennedy pensou que talvez ele encontrasse dificuldades para entender. O presidente fez uma pausa, antes de acrescentar, tranqüilizador:
— Tudo isso constará dos documentos que apresentará pessoalmente a seu sultão.
O embaixador Waleeb balbuciou, aturdido:
— Perdoe-me, Senhor Presidente, mas disse alguma coisa sobre a destruição de Dak?
— É isso mesmo. Seu sultão não acreditará em minhas ameaças enquanto não contemplar a cidade de Dak em ruínas. Deixe-me repetir: os reféns devem ser libertados, Yabril deve ser entregue de uma forma que não possa cometer o suicídio. E não haverá mais negociações.
O embaixador murmurou, incrédulo:
— Não pode ameaçar destruir um país livre, por menor que seja. E se destruir Dak, destruirá bilhões de dólares de investimentos americanos.
— É bem possível — respondeu Kennedy. — Veremos. Providencie para que seu sultão compreenda que me manterei inabalável nesta questão... essa é a sua função. Partirá com o Sr. Audick e o Sr. Wix em um dos meus aviões pessoais. Dois outros aviões os acompanharão. Um para trazer de volta os reféns e o corpo de minha filha. O outro trará Yabril.
O embaixador não podia falar, mal conseguia pensar. Com certeza aquilo era um pesadelo. O presidente enlouquecera. Mas Bert Audick lhe disse, quando ficaram a sós:
— O desgraçado falava sério, mas ainda temos um trunfo. Eu lhe falarei a respeito no avião.
No gabinete Oval, Eugene Dazzy escrevia anotações. Francis Kennedy perguntou-lhe:
— Já providenciou para que todos os documentos sejam entregues ao embaixador no avião?
— Tivemos de fazer alguns floreios — informou Dazzy. — A destruição de Dak já é bastante terrível, e não podíamos dizer por escrito que também destruiremos todo o país. Mas a mensagem é clara. Por que mandar Wix?
Kennedy sorriu.
— O sultão saberá que falo sério pela presença do meu assessor de segurança nacional. E Arthur Wix vai repetir minha mensagem verbalmente.
— Acha que vai dar certo?
— Ele esperará pela destruição de Dak — respondeu Kennedy. — E depois nos atendera, a menos que seja louco.
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