Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ÚLTIMO DOS PADRINHOS - P.2 / Mario Puzo
O ÚLTIMO DOS PADRINHOS - P.2 / Mario Puzo

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ÚLTIMO DOS PADRINHOS

Parte II

 

Pipi De Lena argumentou em defesa da vida de Big Tim por muitas razões diferentes. Primeira, Tim contribuía anualmente com entre meio e um milhão de dólares para os cofres do Xanadu. Segunda, tinha um afecto perverso pelo homem, pelo seu gosto pela vida, pelas suas trampolinices incrivelmente descaradas.

Tim Snedden, conhecido como "The Rustler", era o dono de uma cadeia de centros comerciais que se estendia pela região Norte do estado da Califórnia. Era igualmente grande jogador e frequentador assíduo de Las Vegas, onde habitualmente se instalava no Xanadu. "The Rustler" apostava em grande, cinquenta mil no futebol e por vezes dez mil no basquetebol. Convencido de que estava a ser esperto, perdia as apostas pequenas mas ganhava invariavelmente as grandes. Cross apercebera-se imediatamente disto.

Big Tim era de facto grande, quase um metro e noventa e cinco de altura e cento e sessenta quilos de peso. Dotado de um apetite a condizer com o físico, comia tudo o que estivesse à vista. Gabava-se de ter mandado fazer um bypass parcial ao estômago, de modo que a comida lhe atravessava directamente o organismo, sem o engordar. Afirmava orgulhosamente que descobrira uma maneira de ludibriar a própria natureza.

Porque "The Rustler" era um artista da vigarice nato, e fora assim que ganhara a sua alcunha [1]. No Xanadu, alimentava os amigos à borla ao abrigo dos seus privilégios de jogador, e provocava o caos absoluto no serviço de quartos. Tentava pagar as callgirlsc as compras que fazia nas lojas do hotel pelo mesmo sistema. E então, quando perdia e a caixa ficava cheia de vales assinados por ele, adiava o pagamento até à próxima visita, em vez de os liquidar no prazo de um mês, como era obrigação de qualquer cavalheiro jogador.

Embora tivesse sempre muita sorte com as suas apostas no desporto, "The Rustler" era muito menos feliz quando jogava no casino. Era habilidoso, conhecia as probabilidades e apostava correctamente, mas deixava-se arrastar pela sua exuberância natural, perdendo geralmente o que ganhava com o desporto e algum mais. Não foi, pois, por uma questão de dinheiro, mas por razões estratégicas a longo prazo, que os Clericuzio se interessaram por ele.

Uma vez que o objectivo último da Família era a legalização das apostas desportivas em todo o território dos Estados Unidos, qualquer escândalo que envolvesse jogo e desporto prejudicava esse objectivo. Foi pois ordenada uma investigação à vida e costumes de Big Tim "the Rustler" Sned-den. Os resultados revelaram-se de tal modo alarmantes que Cross e Pippi De Lena foram chamados à mansão de Quogue para uma conferência. Era a primeira operação de Pippi depois do seu regresso da Sicília.

Pippi e Cross apanharam juntos o avião para leste. Cross receava que os Clericuzio estivessem já informados a respeito da sua incursão no mundo do cinema e que o pai se zangasse por não ter sido consultado. Porque Pippi, com cinquenta e sete anos, apesar de reformado, continuava a ser o Consi-glieri do filho, o bruglione.

Por tudo isto, durante o voo, Cross pôs o pai ao corrente da questão do filme, reafirmando que continuava a prezar muito os seus conselhos, mas que não quisera colocá-lo numa posição falsa perante os Clericuzio. Expressou também o seu receio de que aquela chamada a Quogue se relacionasse com o facto de o Don estar a par dos seus planos em Hollywood.

Pippi ouviu-o sem dizer uma palavra. No fim, suspirou com um ar de pena.

- Estás ainda muito verde - disse. - Isto não tem nada a ver com o negócio do filme. O Don nunca mostraria o seu jogo tão depressa. Esperaria, a ver o que acontecia. Aparentemente, é o Giorgio quem dirige agora as coisas; é o que o Vincent, o Petie e o Dante pensam. Mas estão enganados. O velho é mais esperto do que nós todos juntos. E não te preocupes com ele, é sempre justo nestas coisas. É com o Giorgio e com o Dante que tens de preocupar-te.

Interrompeu-se por instantes, como se tivesse relutância em falar da Família, mesmo com Cross.

- Já reparaste que os filhos do Giorgio, do Vincent e do Petie não sabem nada a respeito dos negócios da Família? O Don e o Giorgio planearam que os miúdos hão-de viver de uma forma estritamente legal. O Don tinha os mesmos planos para o Dante, mas esse é demasiado esperto, percebeu tudo, e quis entrar no jogo. O Don não pôde impedi-lo. Pensa em todos nós... o Giorgio, o Vincent e o Petie, tu, eu e o Dante... como a retaguarda, combatendo para que o clã Clericuzio possa pôr-se a salvo. São esses os planos do Don. É essa a sua força, o que o torna grande. Por isso talvez até fique contente por tu tentares escapar. Era o que tinha esperanças que o Dante fizesse. Porque é disso que se trata, não é?

Acho que sim - respondeu Cross. Nem sequer ao pai confessaria a sua terrível fraqueza. Que estava a fazer aquilo pelo amor de uma mulher.

Joga sempre no longo prazo, como o Gronevelt - aconselhou Pippi.

- Quando chegar a altura, fala directamente com o Don e faz as coisas de maneira que a Família possa molhar o bico no negócio. Mas tem cuidado com o Giorgio e o Dante. O Vincent e o Petie hão-de estar-se nas tintas.

Porquê o Giorgio e o Dante?

Porque o Giorgio é um sacana ganancioso. E o Dante porque sempre teve ciúmes de ti, por seres meu filho. Além disso, o estupor é maluco.

Cross ficou espantado. Era a primeira vez que ouvia o pai criticar qualquer dos Clericuzio.

E por que é que o Vincent e o Petie não se vão importar?

Porque o Vincent tem os seus restaurantes e o Petie tem o seu negócio de construção e o Enclave do Bronx. O Vincent quer gozar a velhice e o Petie gosta da acção. E ambos gostam de ti e respeitam-me a mim. Trabalhámos juntos, quando éramos novos.

Pai, não estás zangado comigo por não ter pedido a tua opinião? - perguntou Cross.

Pippi dirigiu-lhe um olhar sardónico.

Não me venhas com tretas - disse. - Sabias que eu desaprovaria, e que o Don desaprovaria. Muito bem, quando é que vais matar esse tal Skannet?

Ainda não sei. É complicado, tem de ser uma Confirmação, para que a Athena saiba e deixe de se preocupar com ele. Poderá então voltar às filmagens.

Deixa-me fazer os planos. E se essa gaja, a Athena, mesmo assim não volta ao trabalho? Perdes cinquenta milhões.

Há-de voltar - assegurou Cross. - Ela e a Claudia são amigas íntimas, e a Claudia diz que volta.

A minha querida filha - disse Pippi, ironicamente. - Continua a não querer ver-me?

Penso que sim. Mas podes sempre aparecer no hotel quando ela lá estiver.

Não. Se essa tal Athena não voltar ao trabalho depois de tu teres feito o serviço, arranjo-lhe uma Comunhão, por muito grande estrela que ela seja.

Não, não! - protestou Cross. - Devias ver a Claudia. Está muito mais bonita, agora.

Isso é bom. Tinha um carão mais feio quando era miúda! Igual a mim.

Por que foi que não fizeste as pazes com ela?

Não me deixou ir ao funeral da minha ex-mulher e não gosta de mim. Fazer as pazes para quê? Quando eu morrer, quero que a impeças de assistir ao meu funeral. Ela que se lixe. - Pippi fez uma pausa antes de acrescentar: - Era uma miúda tesa.

Havias de vê-la agora. • Lembra-te. Não digas nada ao Don. Esta reunião é a respeito de outra coisa qualquer.

Como é que podes ter a certeza?

- Porque ele teria falado comigo primeiro, a ver se eu te denunciava. E, como se veio a ver, Pippi tinha razão.

Na mansão, Giorgio, Don Domenico, Vincent, Petie e Dante esperavam-nos no jardim, junto às grandes figueiras. Como era costume, almoçaram todos juntos antes de tratarem de negócios.

Giorgio expôs a situação. Uma investigação revelara que Rustler Snedden andava a "combinar" certos jogos do campeonato universitário no Médio Oeste. Que possivelmente tinha também o dedo metido no futebol e no basquetebol profissionais. O seu modo de agir era subornar as autoridades e determinados jogadores, uma história complicada e muito perigosa. Se a coisa se soubesse, provocaria a nível nacional um escândalo de tal ordem que constituiria um golpe quase fatal nos esforços da Família para legalizar as apostas no desporto em todos os Estados Unidos. E acabaria fatalmente por saber-se, mais tarde ou mais cedo.

A polícia dedica mais tempo e esforços a quaisquer manobras que envolvam o desporto do que a um assassino psicopata - disse Giorgio. - Porquê, não sei. Que raio de diferença lhes faz quem ganha ou quem perde? É um crime que não prejudica ninguém a não ser os corretores de apostas; e esses os polícias odeiam-nos de qualquer maneira. Se esse tal Rustler arranjasse os jogos do Notre Dame de maneira que eles ganhassem sempre, era o país inteiro que ficava feliz.

Por que é que estamos sequer a falar disto? - perguntou Pippi impacientemente. - é mandar alguém dizer-lhe para estar quieto. Já tentámos isso - respondeu Vincent. - Este tipo é um caso especial. Não sabe o que é o medo. Foi avisado, mas continua a fazer o mesmo Chamam-lhe Big Tim - interveio Petie -, e chamam-lhe The Rustler, e ele gosta desse tipo de merdas. Nunca paga as suas contas, até engana o IRS [2], anda sempre em guerra com as autoridades da Califórnia por que se recusa a pagar os impostos sobre as vendas das lojas que tem nos centros comerciais. Que diabo, até engana a mulher e os filhos no pagamento da pensão de alimentos. E ladrão do fundo do coração. Não se pode ser razoável com um tipo assim.

Cross - disse Giorgio -, tu conhece-lo pessoalmente, de Las Vegas. Qual é a tua opinião?

Cross pensou uns instantes antes de responder.

- Demora muito a pagar os vales. Mas acaba sempre por pagar. É um jogador esperto, não um batoteiro. É um desses tipos de quem é difícil gostar, mas é muito rico, de modo que tem muitos amigos que costuma levar a Vegas. Na realidade, mesmo aldrabando alguns jogos e ganhando algum do nosso dinheiro, representa uma grande vantagem para nós. Deixem-no em paz.

Ao dizer isto, viu que Dante sorria, como se soubesse qualquer coisa que ele ignorava.

- Não podemos deixá-lo em paz - disse Giorgio. - Porque esse Big Tim, esse Rustler, é completamente louco. Anda a preparar um esquema qualquer para aldrabar o jogo da Super Bowl.

Don Domenico falou pela primeira vez, e dirigiu-se directamente a Cross:

- Diz-me, sobrinho, isso é possível?

A pergunta era um elogio. Significava que o Don o reconhecia como perito na matéria.

- Não - respondeu Cross. - Não é possível trabalhar os árbitros, porque ninguém sabe quem eles serão. Não é possível trabalhar os jogadores, porque os mais importantes ganham demasiado dinheiro. Além disso, não é possível aldrabar um jogo, seja em que desporto for, de uma maneira cem por cento segura. Quem trabalha nessa área, tem de conseguir combinar cinquenta ou cem jogos. Desse modo, se perder três ou quatro, não fará grande mal. Portanto, a menos que se tenha a mão metida num monte deles, os possíveis ganhos não compensam o risco.

Bravo - aplaudiu o Don. - Porque é então que este homem, que é rico, quer fazer uma coisa tão arriscada?

Quer ser famoso - explicou Cross. - Para aldrabar a Super Bowl, teria de fazer qualquer coisa tão arriscada que não poderia deixar de ser descoberta. Qualquer coisa de tão louco que não consigo sequer imaginar o que possa ser. E o Rustler está convencido que é capaz de se safar de qualquer sarilho em que se meta.

Nunca conheci um homem assim - disse o Don.

Só se criam na América - troçou Giorgio.

Mas nesse caso é muito perigoso para aquilo que queremos fazer - continuou o Don. - Pelo que me dizes, é um homem que não dará ouvidos à razão. O que não nos deixa alternativa.

Um momento! - exclamou Cross. - O homem representa pelo menos meio milhão de dólares de lucro para o casino todos os anos.

É uma questão de princípio - declarou Vincent. - Os corretores pagam-nos dinheiro para os protegermos.

Deixem-me falar com ele - pediu Cross. - Talvez me dê ouvidos. Nada disto tem grande importância. Ele não tem possibilidades de aldrabar a Super Bowl. Não justifica uma acção da nossa parte.

Nesse momento captou o olhar do pai e compreendeu que, por qualquer razão, não era adequado da sua parte aduzir aqueles argumentos.

- O homem é perigoso - disse o Don, com uma determinação final. - Não fales com ele, sobrinho. Ele não sabe quem tu és na realidade. Para quê dar-lhe essa vantagem? O homem é perigoso porque é estúpido, e é estúpido da mesma maneira que um animal é estúpido, quer comer tudo o que vê. E depois, quando for apanhado, há-de querer fazer o maior estrago que puder. Implicará toda a gente, com razão ou sem ela. - Fez uma pausa e olhou para Dante. - Neto, penso que deves ser tu a fazer o serviço. Mas deixa o Pippi tratar do planeamento neste caso. Ele conhece o território.

Dante assentiu.

Pippi sabia que pisava terreno perigoso. Se acontecesse alguma coisa a Dante, seria ele o responsável. E houve outra coisa que ficou perfeitamente clara para ele. O Don e Giorgio tinham decidido que Dante se tornaria um dia o chefe da Família Clericuzio. Mas, por enquanto, ainda não confiavam no seu discernimento.

Em Las Vegas, Dante instalou-se numa suite do Xanadu. Big Tim "the Rustler" só era esperado na semana seguinte, de modo que Pippi e Cross aproveitaram esse tempo para porem Dante ao corrente dos factos.

- O Rustler é um jogador de alto voo - explicou Cross -, mas não suficientemente alto para ter direito a uma villa. Não está na mesma classe que os árabes e os asiáticos. Os seus privilégios QCB são enormes, e ele faz questão de obter de borla tudo o que puder. Põe os almoços dos amigos nas contas do restaurante, encomenda os vinhos mais caros, tenta inclusivamente meter na conta as coisas que compra nas lojas do hotel. Nós não autorizamos isso nem sequer aos tipos das villas. E um artista da reclamação, de modo que os croupiers têm de estar sempre de olho nele. Reclama que fez uma aposta mesmo antes de aparecer um número na mesa de dados. No bacará tenta apostar depois de a primeira carta ter sido mostrada. No vinte-e-um afirma que queria chegar a dezoito quando a próxima carta é um três. Demora sempre muito tempo a pagar os seus vales. Mas dá-nos meio milhão por ano, mesmo descontando o que rouba aos corretores. O tipo é engraçado. Chega a levantar fichas para os amigos e a pô-las nos vales dele, para nos levar a pensar que joga mais do que na realidade joga. Mas perde a cabeça quando a sorte lhe dá para o torto. No ano passado perdeu dois milhões e nós organizámos-lhe uma festa e oferecemos-lhe um Cadillac. Fartou-se de protestar por não ter sido um Mercedes. Dante estava indignado.

Levanta fichas e dinheiro da caixa e depois não os joga?

Claro - respondeu Cross. - Há montes de tipos que fazem o mesmo. Não nos importamos. Gostamos de passar por parvos. É uma coisa que lhes dá confiança nas mesas. Conseguiram levar-nos à certa mais uma vez.

Por que é que lhe chamam Rustler?

Porque ele tira coisas e não as paga. Quando tem raparigas, morde- -as como se quisesse arrancar-lhes um pedaço de carne. E safa-se sempre com estas pantomimas. E um grande artista da trafulhice.

Mal posso esperar para conhecê-lo - disse Dante, sonhadoramente.

Nunca conseguiu convencer o Gronevelt a dar-lhe uma villa - continuou Cross. - Por isso eu também não lhe dou.

Dante olhou duramente para ele.

Porque foi que eu não recebi uma villa!- perguntou.

Porque isso custaria ao hotel entre cem mil e um milhão de dólares por noite.

Mas o Giorgio tem direito a uma villa - protestou Dante.

Está bem, eu falo com o Giorgio a esse respeito - prometeu Cross. Ambos sabiam como Giorgio iria reagir a semelhante exigência.

Então bem posso esperar - resmungou Dante.

Quando casares - prometeu Cross -, dou-te uma villa para a tua lua-de-mel.

O meu plano operacional baseia-se no carácter do homem - interveio Pippi. - Cross, tu vais ter de cooperar só aqui em Vegas, para preparar o tipo. Tens de conceder ao Dante um crédito ilimitado na caixa e depois fazer desaparecer os vales. No que respeita à coordenação dos tempos, em L. A. está tudo pronto. Tens de assegurar-te de que o tipo vem para cá e não cancela a reserva. Para isso, vais organizar-lhe uma festa para lhe ofereceres um Rolls-Royce. Depois, quando ele chegar, apresenta-lo ao Dante e a mim. Feito isso, ficas de fora.

Demorou mais de uma hora a explicar o plano em pormenor. No fim, Dante disse, admirativamente:

- O Giorgio sempre disse que eras o melhor. Fiquei um bocado lixado quando o Don te pôs acima de mim nesta coisa, mas agora vejo que tinha razão. , Pippi aceitou a lisonja com uma expressão de pedra.

- Lembra-te que isto é uma Comunhão, não uma Confirmação - disse a Dante. - Tem de dar a ideia que o homem se sumiu de livre vontade. Com o cadastro que tem e todos aqueles processos judiciais contra ele vai parecer bastante plausível. Dante, não uses um dos teus estuporado! chapéus nesta operação. As pessoas têm uma memória curiosa. E não esqueças que o Don disse que queria que o tipo explicasse como tencionava fazer a aldrabice, mas que isso não era absolutamente necessário. Ele é o chefe quando desaparecer, acaba-se a tramóia. Portanto, não faças disparates.

- Sinto-me azarento sem o meu chapéu - declarou Dante, friamente Pippi encolheu os ombros.

Outra coisa, não tentes fazer batota com o teu crédito ilimitado Foi o próprio Don quem o disse, não quer que o hotel perca uma fortuna. nesta operação. Já têm de entrar com o Rolls.

Não te preocupes - respondeu Dante. - O meu trabalho é o meu prazer. - Fez uma curta pausa e acrescentou, com um sorriso malicioso: - Espero que desta vez me dês uma boa nota.

Esta saída surpreendeu Cross. Era evidente que havia alguma hostilidade entre eles. E também ficou surpreendido pelo facto de Dante tentar intimidar Pippi De Lena. Isso podia ser desastroso, por muito netodico que ele fosse.

Pippi, no entanto, pareceu não ter dado por isso.

- Es um Clericuzio - disse. - Quem sou eu para te dar notas? - Deu uma palmada num ombro de Dante. - Temos um trabalho para fazer juntos. Esforcemo-nos por torná-lo divertido.

Quando Rustler Snedden chegou, Dante estudou-o. Era grande e gordo mas a gordura era rija, agarrava-se-lhe aos ossos e não balançava. Vestia uma camisa de sarja azul, com dois grandes bolsos no peito, fechados por botões brancos. Num destes bolsos enfiou as fichas pretas de cem dólares, no outro as brancas e douradas de quinhentos. As vermelhas de cinco dólares e as verdes de vinte e cinco, meteu-as nos bolsos das amplas calças de lona branca. Calçava sandálias castanhas.

Big Tim "the Rustler" jogava sobretudo dados, o jogo que oferecia melhores percentagens. Cross e Dante sabiam que ele já tinha apostado dez mil em dois jogos de basquetebol universitário e outros cinco mil numa corrida de cavalos em Santa Anita, por intermédio de um dos corretores ilegais da cidade. O Rustler não era homem para pagar impostos. E não parecia nada preocupado com as suas apostas. Estava a divertir-se à grande a jogar dados.

Era ele o maioral da mesa, dizendo aos outros jogadores como apostar, gritando-lhes bem humoradamente que não fossem medricas. Estava a apostar pretas, com montes deles a cobrir todos os números, jogando forte. Quando os dados lhe chegavam às mãos, lançava-os com força, de modo que ressaltavam na parede oposta da mesa e voltavam a ficar ao seu alcance. Tentava então apanhá-los, mas o croupier, sempre alerta, tapava-os com a pá do taco e retinha-os até que os outros jogadores tivessem tempo de fazer as suas apostas.

Dante ocupou o seu lugar na mesa de dados e apostou com Big Tim para ganhar. Depois fez todas as ruinosas apostas secundárias que, a menos que tivesse uma sorte espantosa, fariam dele um perdedor seguro. Apostou no quatro e no dez. Apostou nos pares num lançamento e nos ases e no onze num lançamento, com probabilidades de trinta e de quinze para um. Pediu um vale de vinte mil dólares e, depois de o ter assinado, espalhou as fichas pretas por toda a mesa. Pediu outro vale. Por esta altura, já tinha conseguido atrair a atenção de Big Tim, que lhe gritou:

- Eh, você do chapéu! Veja se aprende a jogar este jogo!

Dante acenou-lhe alegremente e continuou a apostar à toa. Quando Big Tim conseguiu o sete, Dante pegou nos dados e pediu um vale de cinquenta mil dólares. Espalhou fichas pretas por toda a mesa, na esperança de ter sorte. Não teve. Entretanto, Big Tim começara a observá-lo com um interesse que já era mais do que casual.

Big Tim "the Rustler" comeu na cafetaria, que era também o restaurante que servia os vulgares pratos americanos. Raramente frequentava o luxuoso restaurante francês, ou o restaurante italiano, ou o autêntico English Royal Pub do hotel. Cinco amigos juntaram-se-lhe para o jantar, e Big Tim mandou vir cartões de loto para todos, para que pudessem ir vigiando o painel dos números enquanto comiam. Cross e Dante sentaram-se numa mesa de canto.

Os cabelos curtos e louros faziam Big Tim "the Rustler" parecer um jovial burguês alemão de um quadro de Brueghel. Encomendou uma grande variedade de pratos, o equivalente a três jantares, mas, justiça lhe seja feita, comeu quase tudo, além do que foi depenicando dos pratos dos companheiros.

É verdadeiramente uma pena - comentou Dante. - Nunca conheci um tipo que gozasse tanto a vida.

É uma maneira de fazer inimigos - respondeu Cross -, sobretudo quando se goza a vida à custa dos outros.

Viram Big Tim assinar a conta, que não teria de pagar, e mandar un dos companheiros deixar uma gorjeta em dinheiro. Depois de o grupo ter saído, Cross e Dante beberam descontraidamente um café. Cross adoravva aquela sala imensa com as suas paredes de vidro que deixavam ver a noit iluminada lá fora por lâmpadas cor-de-rosa, matizada pelos reflexos esverdeados da relva e das árvores que se filtravam para o interior, amenizando a luz demasiado intensa dos lustres. "

Lembro-me de uma noite, para aí há três anos - disse Cross a Dantt - O Rustler teve uma sorte danada na mesa de dados, acho que deve ter ganho mais de cem mil. Eram cerca de três da manhã. Quando o chefe da mesa se afastou para levar as fichas à caixa, o Big Tim saltou para cima dela e mijou-a toda.

E tu que fizeste?

Mandei os seguranças levarem-no para o quarto e debitei-lhe cinco mil por ter mijado em cima da mesa. Que ele nunca pagou. "

Eu tinha-lhe arrancado o coração! - exaltou-se Dante.

- Se um homem te dá meio milhão por ano, não o deixas mijar em cima de uma mesa? Mas, para dizer a verdade, nunca lho perdoei. Para st franco, se tivesse feito aquilo no casino das villas, quem sabe?

No dia seguinte, Cross almoçou com Big Tim, para lhe falar da festa que se preparava e da oferta do Rolls-Royce. Pippi juntou-se-lhes e foi apresentado. Big Tim estava sempre pronto a pedir mais.

Agradeço o Rolls-Royce - disse -, mas quando é que me dão um das villas?

Sim, bem a merece - admitiu Cross. - Da próxima vez que vier a Vegas, dou-lhe uma villa. Está prometido, nem que tenha de correr com alguém a pontapé.

Big Tim voltou-se para Pippi.

O seu filho é muito mais simpático do que aquele velho canastra do Gronevelt.

O Alfredo andava um pouco esquisito nos últimos anos - concordou Pippi. - Eu era talvez o seu melhor amigo, e nunca tive direito a uma villa.

- Bom, ele que se lixe! - declarou Big Tim. - Agora que é o filho quem manda no hotel, pode ter uma villa sempre que quiser.

- Nunca! - disse Cross. - Ele não joga! - E riram-se os três. Big Tim, porém, já estava noutra.

Anda por aí um tipo baixinho e esquisito, que usa um chapéu estranho à brava e é o pior jogador de dados que vi em toda a minha vida - disse. - Vi o malandro assinar quase duzentos mil em vales em menos de uma hora. O que é que pode dizer-me a respeito dele? Sabe que estou sempre à procura de investidores.

Não posso dizer-lhe seja o que for a respeito dos meus jogadores - respondeu Cross. - Ou gostava que eu desse informações a seu respeito? Posso dizer-lhe que teria direito a uma villa sempre que quisesse, mas nunca quis. Não gosta de dar nas vistas.

Apresente-mo - pediu Big Tim. - Se fizermos negócio, dou-lhe uma parte.

Não - recusou Cross. - Mas o meu pai conhece-o.

Por acaso, faziam-me jeito umas massas - disse Pippi.

- Óptimo! - exclamou Big Tim. - Fale-lhe de mim. Pippi abriu a torneira do encanto:

- Vocês os dois fariam uma grande equipa. Este tipo tem montes de dinheiro, mas falta-lhe o seu faro para os grandes negócios. Sei que é um homem justo, Tini, dê-me aquilo que achar que eu mereço.

Big Tim sorriu amplamente ao ouvir isto. Pippi era mais um pato para depenar.

- Estupendo! - disse. - Esta noite vou estar na mesa de dados. Leve-o até lá.

Quando as apresentações foram feitas junto à mesa de dados, Big Tim "the Rustler" surpreendeu tanto Pippi como Dante, arrancando o chapéu renascentista da cabeça do segundo e substituindo-o pelo boné dos Dodger que ele próprio usava. O resultado foi hilariante. O barrete renascentista na cabeça de Big Tim fazia-o parecer um dos anões de Branca de Neve.

- Para ver se a sua sorte muda - disse Big Tim. Riram-se os três, mas Pippi não gostou do brilho malévolo que viu nos olhos de Dante. Além disso, estava furioso com Dante por este ter ignorado as suas instruções e insistido em usar o barrete. Tinha introduzido Dante como Steve Sharpe e enchera os ouvidos de Big Tim com histórias a respeito de Steve ser o dono de um império da droga na Costa Leste e precisar de "lavar" muitos milhões. Além disso, Steve era um jogador inveterado que apostara um milhão na Super Bowl e perdera sem sequer pestanejar. E os vales dele na caixa do casino valiam ouro. Nunca deixara de pagá-los religiosamente.

Big Tim passou um braço enorme pelos ombros de Dante e sugeriu:

- Stevie, precisamos de falar. Vamos comer qualquer coisa à cafetaria.

Instalaram-se numa mesa afastada. Dante pediu café, mas Big Tim mandou vir todo um sortido de sobremesas: gelado de morango, mil-folhas e tarte de banana, além de um prato com biscoitos variados.

Feito isto, lançou-se num discurso de venda que durou uma hora. Tinha um pequeno centro comercial de que queria desembaraçar-se, um bom fazedor de dinheiro a longo prazo, e podia arranjar as coisas de maneira que o pagamento fosse feito quase todo por baixo da mesa. Havia uma fábrica de enlatados de carne e camiões cheios de produtos frescos que podiam ser comprados com dinheiro "clandestino" e depois revendidos com lucro por dinheiro "lavado". Tinha um "pé" na indústria cinematográfica, de modo que podia ajudar a financiar filmes que seguiam directamente para o circuito vídeo ou para as salas porno.

- Um grande negócio! - asseverou. - Dá para um tipo conhecer as estrelas, comer algumas delas e ao mesmo tempo lavar o dinheiro.

Dante apreciou a representação. Tudo o que Big Tim dizia era com tal confiança e brio que a vítima só podia ficar a sonhar com futuras riquezas. Fez perguntas que traíam o seu interesse, mas que deixavam transparecer um certo retraimento. ;

- Dê-me o seu cartão - pediu. - Depois telefono-lhe, ou peço ao Pippi que lhe ligue a combinar um jantar para podermos discutir isto tudo antes de tomar uma decisão.

Big Tim entregou-lhe um cartão.

- Quanto mais cedo melhor - declarou. - Tenho um negócio absolutamente seguro em que quero que entre. Mas vamos ter de andar depressa. - Fez uma pausa antes de acrescentar: - Tem a ver com o desporto.

Desta vez Dante mostrou um entusiasmo que não tinha mostrado antes.

Jesus, esse sempre foi o meu sonho! Adoro desportos. Está a falar de comprar uma equipa de baseball da primeira divisão?

Nada de tão grande - disse Big Tim apressadamente. - Mas  suficientemente grande.

Então quando é que nos encontramos? - perguntou Dante.

Amanhã o hotel oferece-me uma festa e um Rolls - anunciou Big Tim, orgulhosamente. - Por ser um dos principais trouxas que eles cá têm. Regresso a L. A. no dia seguinte. Que tal nessa noite?

Dante fingiu pensar um pouco no assunto.

Okay - disse. - O Pippi vai para L. A. comigo e eu peço-lhe que lhe dê uma apitadela a marcar a coisa.

- Óptimo! - exclamou Big Tim. A excessiva cautela do homem intrigava-o um pouco, mas não estava nos seus hábitos estragar um negócio com perguntas desnecessárias. - E esta noite vou ensiná-lo a jogar dados de maneira a ter algumas hipóteses de ganhar. Dante fez um ar meio envergonhado.

Eu sei quais são as probabilidades, mas gosto de arriscar dinheiro. E depois, a coisa sabe-se e isso dá-me uma chance com as coristas.

Nesse caso, não há esperança para si - sentenciou Big Tim. - De qualquer maneira, nós os dois vamos ganhar dinheiro juntos.

A festa em honra de Big Tim "the Rustler" teve lugar no dia seguinte, no grande salão de baile do Xanadu, que era frequentemente usado para ocasiões especiais: a festa de Ano Novo, jantares de Natal, casamentos de grandes jogadores, apresentações de galardões e donativos especiais, festas da Super Bowl ou da World Series e até convenções políticas.

Era uma sala enorme, de tecto muito alto, com balões a flutuarem por todo o lado e duas imensas mesas-bufetes que a dividiam ao meio. Os bufetes tinham a forma de grandes glaciares, e, incrustados no gelo, havia frutos de todas as cores. Melões abertos para mostrarem a sua polpa amarelo-dourada, grandes uvas vermelhas cheias de sumo, espinhosos ananases, kiwis e kumquats [3], nectarinas e líchias, e uma enorme melancia. Baldes cheios de doze tipos diferentes de gelados tinham sido enterrados como submarinos. Depois havia os pratos quentes: dois lombos de vaca com o tamanho de um búfalo, um gigantesco peru, um suculento presunto orlado de gordura. Depois havia uma travessa com diferentes tipos de massas, salpicadas de verde com pesto e avermelhadas pelo molho de tomate. E depois havia uma terrina vermelha, grande como um caixote de lixo, com asas de prata, dentro da qual fervilhava um guisado de "javali", que era na realidade uma mistura de porco, vaca e vitela. Seguiam-se pães de todos os tamanhos e feitios, polvilhados de farinha. Outro bloco de gelo continha as sobremesas, bombas-de-creme, sonhos recheados com natas batidas, um conjunto de bolos de vários andares decorados com réplicas do Xanadu Hotel.

Big Tim "the Rustler" já estava a semear a destruição nas mesas antes de o primeiro convidado ter chegado.

Bem no meio do salão, em cima de uma rampa isolada por cordões, estava o Rolls-Royce. Leitoso, branco, luxurioso, com verdadeira elegância e um certo génio na concepção, oferecia um contraste gritante com o mundo pretensioso de Las Vegas. Uma das paredes de vidro do salão fora substituída por pesados cortinados dourados para permitir a sua entrada e saída. Mais afastado, num canto do salão, estava um Cadillac vermelho, que seria sorteado como prémio aos detentores de convites numerados: grandes jogadores convidados para a festa e directores dos casinos dos maiores hotéis. Esta fora uma das melhores ideias de Gronevelt. Aquelas festas aumentavam de forma significativa a receita do hotel.

A festa foi um enorme êxito, pois Big Tim era a exuberância em pessoa. Acompanhado por duas empregadas de mesa, destruiu quase sozinho uma mesa-bufete. Encheu três pratos e fez uma tal exibição de gula que quase tornava desnecessária a missão de Dante. Cross fez o discurso de apresentação em nome do hotel. Em seguida, Big Tim fez o seu discurso de aceitação.

- Quero agradecer ao Xanadu Hotel por este maravilhoso presente. Este carro de duzentos mil dólares é agora meu completamente grátis. É a minha recompensa por vir ao Xanadu há mais de dez anos, durante os quais eles me trataram como um príncipe e me esvaziaram a carteira. Calculo que se me dessem cinquenta Rolls ficaríamos mais ou menos quites, mas que diabo, só consigo conduzir um carro de cada vez!

Neste ponto foi interrompido por aplausos e gritos. Cross fez uma careta. Ficava sempre embaraçado por estes rituais, que denunciavam a falsidade da simpatia do hotel. Big Tim passou os braços pelas costas das duas raparigas que o flanqueavam, e apertou-lhes amigavelmente os seios. Esperou, como um cómico experiente, que os aplausos esmorecessem.

- A sério, estou mesmo muito agradecido - disse. - Este é um dos dias mais felizes da minha vida. Juntamente com o do meu divórcio. Só uma coisa. Quem é que vai dar-me dinheiro para a gasolina para levar este carro até L. A.? O Xanadu voltou a deixar-me completamente limpo. Big Tim sabia quando parar. Enquanto os aplausos e os gritos recomeçavam, subiu a rampa e instalou-se no carro. Os cortinados dourados que tinham substituído a parede abriram-se e Big Tim fez o Rolls rolar para o exterior.

A festa chegou rapidamente ao fim depois de o Cadillac ter sido ganho por um dos grandes jogadores. Os festejos tinham durado quatro horas e toda a gente estava desejosa de voltar para as mesas de jogo.

Nessa noite, o fantasma de Gronevelt teria ficado exultante com os resultados da festa. A receita foi quase o dobro da média. O nível de acasalamentos não pôde ser confirmado, mas o cheiro a sémen parecia espalhar-se pelos corredores. As lindíssimas call girls que tinham sido chamadas para a festa de Big Tim depressa estabeleceram relações de grande intimidade com alguns jogadores menos dedicados, que lhes deram fichas pretas para jogarem.

Gronevelt muitas vezes fizera notar a Cross que os homens e mulheres que jogam têm padrões sexuais diferentes. E que era importante para o proprietário de um casino conhecê-los.

Em primeiro lugar, Gronevelt proclamava a primazia das coxas, como delicadamente dizia. Um par de coxas podia vencer tudo e mais alguma coisa. Era até capaz de conseguir que um jogador inveterado se emendasse. Muitos dos homens mais importantes do mundo tinham sido hóspedes do seu hotel. Cientistas galardoados com o Prémio Nobel, bilionários, grandes pregadores religiosos, eminentes figuras literárias. Um Prémio Nobel de Química, talvez o melhor cérebro do mundo, tinha-se divertido com todas as coristas do corpo de baile durante os seis dias da sua estada. Não jogava muito, mas era uma honra para o hotel. Tivera o próprio Gronevelt de dar prendas às raparigas, pois o grande cientista nem sequer se lembrara de semelhante coisa. Segundo elas, era o melhor amante do mundo, ávido, ardente, hábil, nada de truques, com uma das pilas mais bonitas que alguma vez tinham visto. E, o que era ainda melhor, divertido, nunca as aborrecendo com conversas sérias. Fosse pelo que fosse, isto deixara Gronevelt contente. O facto de um homem tão inteligente ser capaz de contentar o sexo oposto. Ao contrário de Ernest Vail, um grande escritor mas uma espécie de garoto de meia idade, com uma erecção perpétua e sem conversa para a acompanhar. Depois havia o senador Wawen, um possível futuro presidente dos Estados Unidos, que tratava o sexo como se fosse uma partida de golfe. Para não falar do reitor de Yale, o cardeal de Chicago, o líder da Comissão Nacional de Direitos Cívicos e os cartolas do Partido Republicano. Todos eles reduzidos ao estado de crianças por um par de coxas. As únicas possíveis excepções eram os maricas e os drogados, mas, bem vistas as coisas, esses também não eram tipicamente jogadores.

Gronevelt notara que os homens pediam os serviços de uma prostituta antes de começarem a jogar. As mulheres, em contrapartida, preferiam o sexo depois de terem jogado. Uma vez que o hotel tinha de atender às necessidades sexuais de todos os seus clientes e não havia prostitutos, apenas gigolôs, utilizava os serviços de jovens barmen e croupiers para satisfazer as senhoras. Do que Gronevelt tirara uma conclusão: os homens precisam de sexo para poderem enfrentar a batalha cheios de confiança; as mulheres precisam de sexo para suavizar o desgosto de terem perdido ou como parte da sua recompensa por terem ganho.

É certo que Big Tim pediu uma prostituta uma hora antes da festa e mais tarde foi para a cama com as suas duas empregadas de mesa, às primeiras horas da manhã e depois de ter perdido uma grande soma. As raparigas não eram prostitutas, tinham-se mostrado relutantes. Big Tim resolveu o problema ao seu jeito muito especial. Juntou dez mil dólares em fichas pretas e disse-lhes que eram delas se passassem a noite com ele. Isto acompanhado da sua habitual e vaga promessa de mais se lhe proporcionassem uma noite verdadeiramente agradável. Adorou o modo como elas estudavam o monte de fichas antes de aceitarem. O mais engraçado é que as duas o embebedaram de tal maneira que ele adormeceu, empanturrado de comida e bebida, antes de chegar ao fim dos preliminares. Adormeceu entre as duas, com o seu corpo enorme a empurrá-las para fora da cama e ambas as raparigas a agarrarem-se-lhe desesperadamente aos braços até que por fim caíram no chão e adormeceram por sua vez.

Nessa noite, bastante tarde, Cross recebeu um telefonema de Claudia.

A Athena desapareceu - disse ela. - Os estúdios estão frenéticos e eu estou preocupada. Excepto que, desde que a conheço, a Athena desaparece pelo menos um fim-de-semana por mês. Mas desta vez achei que devias saber. É melhor fazeres qualquer coisa antes que ela desapareça para sempre.

Não há problema - tranquilizou-a Cross. Mas não lhe disse que tinha os seus próprios homens a vigiar Boz Skannet.

O telefonema, porém, fê-lo recordar Athena. O rosto mágico, que parecia reflectir todas as suas emoções; as pernas compridas e maravilhosas. E a inteligência que lhe brilhava nos olhos, a vibração de um qualquer instrumento invisível no seu ser interior.

Pegou no telefone e ligou para uma consta chamada Tiffany, com quem de vez em quando saía.

Tiffany era a primeira-figura do corpo de baile do grande espectáculo de cabaret do Xanadu. Isto dava-lhe direito a um pagamento extra e a certos privilégios por manter a disciplina e impedir as habituais discussões e até lutas físicas em que as raparigas se envolviam. Bela como uma estátua, só falhara os seus testes para o cinema por ser pura e simplesmente demasiado grande para o celulóide. Enquanto no palco a sua beleza era imponente, em filme parecia enorme.

Quando chegou, ficou surpreendida pela rapidez e urgência com que Cross fez amor. Agarrou-a, arrancou-lhe as roupas e em seguida pareceu querer devorar-lhe o corpo com beijos. Penetrou-a rapidamente e chegou rapidamente ao orgasmo. Isto era tão diferente do seu estilo habitual que ela disse, quase com pena:

Desta vez deve ser amor verdadeiro.

Claro que é - respondeu Cross, e começou novamente a fazer amor com ela.

Não me refiro a mim, tonto! Quem é a felizarda?

Cross ficou aborrecido por ser tão transparente. Mas nem mesmo isso bastou para travar o seu apetite pela carne que tinha ao lado. Não se fartava dos seios suculentos, da língua sedosa, o monte aveludado entre as coxas dela, tudo irradiando um calor irresistível. Quando, finalmente, horas mais tarde, aquela febre de luxúria lhe passou, não conseguiu deixar de pensar em Athena.

Tiffany pegou no telefone e encomendou uma ceia para os dois. - Tenho pena da pobre rapariga, quando finalmente lhe puseres as mãos - comentou.

Depois de ela sair, Cross sentiu-se livre. Era uma fraqueza estar tão apaixonado, mas o desejo satisfeito dava-lhe confiança. Às três da manhã, fez a sua última ronda pelo casino.

Na cafetaria, viu Dante acompanhado por três mulheres bonitas e animadas. Embora uma delas fosse Loretta Lang, a cantora cujo contrato ajudara a quebrar, não a reconheceu. Dante chamou-o com um gesto da mão, mas ele recusou abanando a cabeça. De regresso à suite do terraço, tomou dois comprimidos para dormir antes de se deitar, mas mesmo assim sonhou com Athena.

As três mulheres que faziam companhia a Dante eram figuras conhecidas em Hollywood, esposas de Estrelas Cotáveis e estrelas menores por direito próprio. Tinham estado presentes na festa de Big Tim, não por convite, mas servindo-se dos seus encantos para conseguirem entrada.

A mais velha era Julia Deleree, casada com uma das mais famosas Estrelas Cotáveis da indústria. Tinham dois filhos, e a família aparecia frequentemente nas revistas como o raro exemplo do casal perfeito, sem problemas e perfeitamente felizes no seu casamento.

A segunda era Joan Ward. Era ainda muito atraente, apesar dos seus quase cinquenta anos. Interpretava segundos papéis, em geral na personagem da mulher inteligente, da sofredora mãe de um filho condenado ou da esposa abandonada, cuja tragédia conduz a um novo e feliz casamento. Ou como ardente defensora dos pontos de vista femininos. Estava casada com um director de estúdio que lhe pagava as contas dos cartões de crédito sem se queixar, por muito extravagantes que fossem, e cuja única exigência era que ela servisse de anfitriã nas inúmeras festas mundano-profissionais que oferecia. Não tinha filhos.

A terceira estrela era Loretta, que entretanto se transformara numa das primeiras figuras mais procuradas para todo o tipo de comédias mais ou menos nonsense. Também ela casara bem, com um Actor Cotável especializado em filmes de acção, que passava a maior parte do ano a filmar no estrangeiro.

As três tinham-se tornado amigas entrando nos mesmos filmes, fazendo compras em Rodeo Drive e almoçando no Polo Lounge do Beverly Hills Hotel, onde comparavam notas relativamente aos maridos e aos respectivos cartões de crédito. Quanto aos cartões, não tinham queixas. Era como ter uma pá para cavar numa mina de ouro, e os maridos nunca discutiam as contas a pagar.

Julia queixava-se de que o marido não passava tempo suficiente com os filhos. Joan, cujo marido era aclamado como um grande descobridor de novas estrelas, queixava-se de não ter filhos. Loretta queixava-se por o marido não interpretar papéis mais sérios. Mas chegou um dia em que Loretta, com a sua habitual vivacidade, disse:

- Deixemo-nos de tretas. Todas nós somos felizes e bem casadas com homens muito importantes. O que realmente detestamos é o facto de os nossos maridos nos mandarem às compras em Rodeo Drive para se sentirem menos culpados por andarem a dormir com outras mulheres.

Riram-se as três. Era tão verdade...

Eu amo o meu marido - afirmou Julia -, mas há um mês que ele está a filmar no Tahiti. E sei que não vai masturbar-se para a praia. Mas a mim não me apetece passar um mês no Tahiti, de modo que ele ou anda a fornicar a actriz principal, ou uma representante qualquer do talento local.

O que continuaria a fazer mesmo que tu lá estivesses - declarou Loretta.

O meu - disse Joan, pensativamente - , embora tenha tanto esperma como um estupor de uma formiga, tem uma pila que parece uma mangueira. Por que será que a maior parte das estrelas que ele descobre são mulheres? Deve testá-las vendo que porção de pila conseguem engolir.

Por esta altura, já estavam as três bastante animadas. Por qualquer razão, tinham-se convencido de que o vinho não tem calorias.

- Não podemos culpar os nossos maridos - sentenciou Loretta, pragmaticamente. - As mulheres mais bonitas do mundo andam atrás deles. A verdade é que não têm alternativa. Mas porque havemos nós de sofrer? Que se lixem os cartões de crédito, vamos mas é divertir-nos!

E daí tinham nascido as sacrossantas noites de paródia "só mulheres" que as reuniam uma vez por mês. Quando os maridos estavam fora, o que acontecia com muita frequência, metiam-se em aventuras mais altas e prolongavam a farra até ao dia seguinte.

Uma vez que eram reconhecíveis para a maioria dos americanos, tinham de se disfarçar. O que se revelou extraordinariamente fácil. Usavam perucas para alterar o tipo e a cor dos cabelos. Serviam-se da maquilhagem para engrossar ou adelgaçar os lábios. Vestiam-se ao estilo das mulheres da classe média. Tornavam-se menos belas, o que não tinha a mínima importância, uma vez que, como a maior parte das actrizes, sabiam ser extraordinariamente encantadoras. E deliciavam-se com aquele fingimento. Adoravam ouvir diferentes tipos de homens abrirem-lhes o coração na esperança de conseguirem ir para a cama com elas, frequentemente com êxito. Era como um sopro de vida real, com personagens ainda misteriosas, não condenadas a seguir um guião escrito. E havia surpresas deliciosas. Ofertas sinceras de casamento e de amor verdadeiro; homens que partilhavam com elas as suas dores por pensarem que nunca mais voltariam a vê-las. A admiração que recebiam não por serem quem eram, mas pelos seus encantos inatos. E adoravam criar novas identidades para si mesmas. Às vezes eram operadoras de computadores em férias, outras enfermeiras de folga, ou técnicas dentárias, ou assistentes sociais. Aperfeiçoavam os respectivos papéis informando-se a respeito das suas novas profissões. Por vezes fingiam ser secretárias no escritório de um grande advogado de L. A. ligado ao mundo dos espectáculos e divulgavam escândalos que envolviam os próprios maridos e outros actores conhecidos. Divertiam-se imenso, mas sempre fora de Los Angeles. A cidade era demasiado perigosa, corriam o risco de encontrar amigos que as reconheceriam facilmente, apesar dos disfarces. Descobriram que ir para São Francisco era também arriscado. Alguns homossexuais pareciam adivinhar-lhes as verdadeiras identidades com um simples olhar. O local favorito das três era Las Vegas.

Dante encontrara-as no Xanadu Club Lounge, onde os jogadores fatigados faziam um intervalo ouvindo um conjunto, um humorista e uma jovem cançonetista. Loretta actuara ali em tempos, no princípio da sua carreira. Não se dançava. O hotel queria que os seus clientes regressassem às mesas de jogo logo que tivessem descansado.

Dante foi atraído pela vivacidade delas, pelo seu encanto natural. Elas sentiram-se atraídas porque o tinham observado a jogar e a perder uma grande porção de dinheiro graças ao seu crédito ilimitado. Depois das bebidas, ele levou-as para a roleta e deu a cada uma mil dólares em fichas. Elas ficaram encantadas com o chapéu dele e com a extravagante cortesia com que os croupiers e os chefes de mesa o tratavam. E com o seu encanto malicioso, apimentado por um toque de humor malévolo. Dante era espirituoso de uma maneira vulgar e por vezes arrepiante. E as extravagâncias do seu modo de jogar excitavam-nas. Claro que elas próprias eram ricas, ganhavam grandes quantidades de dinheiro, mas ali tratava-se de notas, e isso tinha uma magia muito própria. é certo que já tinham gasto dezenas de milhares de dólares em Rodeo Drive num único dia, mas recebendo em troca artigos de luxo. Quando Dante assinava um vale de cem mil dólares, ficavam maravilhadas, embora os maridos lhes tivessem oferecido carros que custavam mais do que isso. Mas Dante deitava dinheiro fora às mãos cheias.

Nem sempre dormiam com os homens que encontravam, mas quando se reuniram as três na casa de banho das senhoras conferenciaram para decidir qual delas ficaria com Dante. Julia pediu-lhes que a deixassem ser ela, afirmando ter um desejo irresistível de fazer chichi no chapéu dele. As outras cederam.

Joan tivera a esperança de embolsar cinco ou dez mil. Não que lhe fizessem verdadeiramente falta, mas tratava-se de notas, de dinheiro a sério. Loretta não ficara tão encantada com Dante como as outras. A sua vida nos cabarets de Las Vegas imunizara-a em parte contra homens como ele. Eram todos demasiado cheios de surpresas, a maior parte delas desagradáveis.

Estavam instaladas numa suite com três quartos no Xanadu. Ficavam sempre juntas nestas saídas, em parte por razões de segurança, em parte para poderem conversar a respeito da suas aventuras. Tinham instituído como regra nunca passarem a noite inteira com os homens que "engatassem".

Foi pois Julia quem ficou com Dante, que não teve voto na matéria, embora tivesse preferido Loretta. Mas insistiu com Julia em que fossem para a sua suite, que ficava exactamente por baixo da delas.

- Depois acompanho-te à tua suite - disse, friamente. - Não vamos demorar mais de uma hora. Amanhã tenho de me levantar cedo.

Foi então que Julia compreendeu que ele as tomava por prostitutas amadoras.

Vem à minha suite - pediu. - Eu depois acompanho-te à tua.

Tens as tuas duas amigas lá em cima - disse Dante. - Como é que sei que não vão cair-me em cima para me sodomizarem? Afinal, sou um tipo pequenino.

Esta saída divertiu suficientemente Julia para a decidir a acompanhá-lo. Não tinha reparado na expressão zombeteira do sorriso dele. Pelo caminho, disse-lhe, em tom de brincadeira:

Quero fazer chichi no teu chapéu.

Se for bom para ti, vai ser bom para mim - respondeu-lhe Dante, com uma cara absolutamente séria.

Uma vez na suite, houve muito pouca conversa. Julia atirou a bolsa para cima do sofá e puxou para baixo as alças do vestido, de modo a expor os seios, que eram a parte melhor do seu corpo. Dante, porém, parecia ser a excepção: um homem que não se interessava por mamas.

Levou-a para o quarto e arrancou-lhe o vestido e a roupa interior. Quando ficou nua, despiu-se ele também. Julia reparou que tinha um pénis curto, grosso e não circuncidado.

- Vais ter de usar um preservativo - disse.

Dante atirou-a para cima da cama. Julia era uma mulher robusta, mas ele pegou nela e atirou-a aparentemente sem esforço. Depois montou-a.

- Insisto em que uses um preservativo. Estou a falar a sério.

No momento seguinte, uma luz ofuscante pareceu explodir-lhe na cabeça. Apercebeu-se de que ele lhe batera com tanta força que quase perdera os sentidos. Tentou libertar-se, mas, para um homem tão pequeno, ele era incrivelmente forte. Sentiu mais duas bofetadas que lhe deixaram a cara a arder e lhe fizeram doer os dentes. Depois sentiu-o penetrá-la. As investidas dele duraram apenas alguns segundos, após o que se deixou cair em cima dela.

Ficaram assim imóveis por alguns instantes, e então ele começou a virá-la. Julia viu que mantinha a erecção e percebeu que pretendia penetrá-la analmente. Murmurou-lhe ao ouvido:

- Adoro isso, querido, mas deixa-me ir buscar um pouco de vaselina à minha bolsa.

Ele deixou-a deslizar para fora da cama e dirigir-se à sala de entrada. Depois seguiu-a até à porta do quarto. Continuavam ambos nus, e Dante continuava com uma erecção.

Julia procurou dentro da bolsa e então, com um floreado dramático, mostrou uma diminuta pistola prateada. Era um adereço de um dos filmes em que participara e sempre tivera fantasias quanto a usá-la numa situação da vida real. Apontou-a a Dante, adoptando a posição semi-agachada que lhe tinham ensinado no filme, e anunciou:

- Vou vestir-me e sair. Se tentares impedir-me, disparo.

Para sua surpresa, Dante, completamente nu, lançou uma gargalhada bem humorada. Mas Julia notou, com satisfação, que ele perdera imediatamente a erecção.

Estava a delirar com a situação. Imaginava-se lá em cima, com Joan e Loretta, e como as três ririam à custa de tudo aquilo. Tentou reunir coragem suficiente para lhe pedir o chapéu, para poder urinar nele.

Nesse instante, porém, Dante surpreendeu-a. Tinha começado a avançar para ela, devagar. Sorrindo amavelmente, disse-lhe:

- E um calibre tão pequeno que não conseguirá deter-me, a menos que tenhas sorte e me acertes na cabeça. Nunca uses uma arma pequena. Podes meter-me três balas no corpo e depois eu estrangulo-te. Além disso, está a pegar nessa arma da maneira errada, não precisas de te agachar, ela não dá coice. Além disso, o mais certo é nem sequer me acertares, essas porcarias são muito pouco certeiras. Portanto, atira isso fora e vamos conversar. Depois podes ir-te embora.

Continuou a avançar para ela, de modo que Julia atirou a pistola para cima do sofá. Dante pegou-lhe, examinou-a e abanou a cabeça:

- Uma arma de brincar? - disse. - É a maneira mais segura de ser morto. - Continuou a abanar a cabeça, numa reprovação quase afectuosa. - Muito bem, se fosses uma pega a sério, isto seria uma arma a sério. Portanto, quem és tu?

Empurrou Julia para o sofá e imobilizou-a com uma perna, espetando-lhe o pé entre as coxas. Depois abriu a bolsa dela e espalhou o conteúdo em cima da pequena mesa de café. Procurou dentro dos compartimentos e tirou a carteira com os cartões de crédito e a carta de condução. Estudou-os atentamente e então sorriu, de pura delícia.

Tira essa peruca - ordenou. Depois pegou na pequena toalha que cobria a mesa e limpou-lhe a maquilhagem.

Jesus Cristo, és a Julia Deleree! - exclamou Dante. - Estive a foder uma estrela de cinema! - Deu outra gargalhada deliciada. - Podes mijar no meu chapéu sempre que quiseres.

Estava a enfiar-lhe os dedos dos pés entre as coxas. Estendeu uma mão e levantou-a.

- Não tenhas medo - disse.

Beijou-a, e então fê-la voltar-se empurrou-a de modo a ficar dobrada sobre as costas do sofá, com os seios pendentes e as nádegas levantadas para ele.

- Prometeste que me deixavas ir - protestou Julia, a choramingar. Dante estava a beijar-lhe as nádegas, a explorá-la com os dedos. Então penetrou-a selvaticamente e ela gritou de dor. Quando acabou, deu-lhe uma palmadinha afectuosa no traseiro.

- Podes vestir-te - disse. - Desculpa ter faltado à minha palavra, mas não podia perder a oportunidade de dizer aos meus amigos que comi o magnífico cu de Julia Deleree!

Cross deixara instruções na recepção para que o acordassem cedo. Ia ter um dia muito ocupado. Tinha de retirar todos os vales assinados por Dante da caixa do casino e tratar da papelada necessária para os fazer desaparecer. Tinha de pegar nos livros de registo dos chefes de mesa e mandá-los corrigir. Depois tinha de tomar medidas para que os documentos do Rolls de Big Tim fossem anulados. Giorgio fizera as coisas de maneira que a transferência de propriedade só fosse efectiva passados trinta dias. Era puro Giorgio no seu melhor.

No meio de tudo isto, foi interrompido por um telefonema de Loret-ta Lang. Estava no hotel e precisava de falar com ele urgentemente. Pensando que talvez fosse alguma coisa relacionada com Claudia, Cross ordenou à segurança que a levasse à penthouse.

Loretta beijou-o em ambas as faces e depois contou-lhe tudo o que se passara entre Julia e Dante. Disse que o homem se apresentara com o nome de Steve Sharpe e perdera cem mil dólares na mesa de dados. Tinham ficado impressionadas, e Julia decidira ir para a cama com ele. As três tinham ido ao Xa-nadu apenas para se divertirem um pouco e passarem uma noite a jogar. Agora estavam aterrorizadas com a possibilidade de Steve provocar um escândalo.

Cross assentiu com a cabeça, compreensivamente. Estava a pensar. Que estupidez da parte de Dante fazer uma coisa daquelas antes de uma operação tão importante, e ainda por cima o filho da mãe andava a distribuir fichas pretas às tipas que engatava.

- Conheço o homem, claro - disse calmamente a Loretta. - Quem são as outras duas que estão contigo?

Loretta sabia que era melhor não brincar com Cross. Disse-lhe os dois nomes. Cross sorriu.

Fazem isto com muita frequência?

Temos de nos divertir um pouco - respondeu Loretta. Cross dirigiu- -lhe um sorriso de compreensão.

OK - disse. - A tua amiga foi ao quarto dele. Despiu-se. Agora quer pôr-se aos berros porque foi violada? Como é que é?

Não, não! - respondeu Loretta, apressadamente. - Tudo o que queremos é que ele fique calado. Se fala, pode ser um desastre total para as nossas carreiras.

Não falará - prometeu Cross. - É um tipo esquisito. Não gosta de dar nas vistas. Mas aceita o meu conselho, não tornem a envolver-se com ele. Vocês deviam ter mais cuidado.

Loretta ficou irritada com este último comentário. As três mulheres tinham decidido não desistir das suas surtidas. Não iam deixar-se assustar por um precalço. Na verdade, não acontecera nada de verdadeiramente terrível.

Como é que sabes que ele não falará? - perguntou. Cross olhou gravemente para ela.

Vou pedir-lhe que me faça esse favor - disse.

Quando ela saiu, Cross pediu o arquivo da câmara oculta, que mostrava todos os hóspedes no momento em que se registavam na recepção. Estudou as fotografias. Agora que sabia, era fácil penetrar os disfarces das duas mulheres que acompanhavam Loretta. Fora estúpido da parte de Dante não ter pedido essa informação.

Pippi subiu à penthouse para almoçar com o filho antes de seguir para Los Angeles, onde ia verificar os aspectos logísticos da operação Big Tim. Cross repetiu-lhe a história que Loretta lhe tinha contado.

Pippi abanou a cabeça.

- O grande filho da mãe podia ter arruinado toda a operação alterando o calendário que combinámos. E continua a usar aquele estupor daquele chapéu, depois de eu lhe ter dito para não o fazer.

Tem muito cuidado nesta operação - aconselhou Cross. - Mantém o Dante debaixo de olho.

Fui eu que a planeei, ele não consegue lixá-la - respondeu Pippi. - E quando me encontrar com ele em L. A., esta noite, dou-lhe outra ensaboadela.

Cross contou-lhe como Giorgio tinha preparado os papéis de tal maneira que Big Tim só poderia tomar legalmente posse do carro dentro de um mês, de modo que, quando ele morresse, o hotel recuperaria o Rolls.

- Típico do Giorgio - disse Pippi. - O Don havia de deixar que os filhos herdassem o carro.

Big Tim "the Rustler" Snedden deixou Las Vegas dois dias mais tarde, deixando sessenta mil dólares em vales na caixa do Xanadu. Apanhou o último avião da tarde para Los Angeles, dirigiu-se ao seu escritório, trabalhou durante algumas horas e em seguida foi de carro até Santa Monica, para jantar com a ex-mulher e os dois filhos. Levava os bolsos atafulhados de maços de notas de cinco dólares, que deu aos garotos juntamente com uma caixa de cartão cheia até meio de dólares de prata. Entregou à mulher o cheque da pensão de alimentos, sem o qual não seria autorizado a ver os filhos. Tentou trabalhá-la com falinhas doces, depois de os miúdos se terem ido deitar, mas ela recusou-se a ir para a cama com ele, o que no fundo até nem lhe apetecia, depois de Las Vegas.

O dia seguinte foi verdadeiramente atarefado para Big Tim. Dois agentes do IRS tentaram convencê-lo com ameaças a pagar alguns impostos atrasados que estavam em contencioso. Big Tim disse-lhes que ia a tribunal e pô-los na rua. Depois teve de visitar um armazém de produtos enlatados e um outro de medicamentos de venda livre, tudo comprado a um preço baixíssimo porque os prazos de validade estavam a expirar. Aqueles prazos de validade teriam de ser alterados. Ao almoço, encontrou-se com o vice-presidente de uma cadeia de supermercados, que estava disposto a comprar os produtos em causa. Durante a refeição entregou ao vice-presidente um sobrescrito que continha dez mil dólares.

Depois do almoço recebeu a visita surpresa de dois agentes do FBI que queriam fazer-lhe perguntas a respeito do seu relacionamento com um congressista que andava a ser investigado. Big Tim disse-lhes que se fossem lixar.

Big Tim "the Rustler" nunca soubera o que fosse o medo. Talvez por ser tão grande, ou por lhe faltar um pedaço do cérebro. Porque não só desconhecia o medo físico, como também ignorava o medo mental. Tomara a ofensiva, não apenas contra os homens, mas contra a própria Natureza. Quando os médicos lhe disseram que a comida havia de matá-lo e que tinha de seguir uma dieta séria, optara em vez disso por fazer um bypass ao estômago, uma operação relativamente arriscada. E funcionara perfeitamente. Agora comia tudo o que queria sem efeitos perniciosos aparentes. Construíra o seu império financeiro da mesma maneira. Fazia contratos que se recusava a cumprir quando deixavam de dar lucro, traía sócios e amigos. Toda a gente o processava, mas todos tinham de chegar a acordo por menos do que teriam recebido nos termos do negócio original. Era uma vida de êxito para alguém que não tomava quaisquer precauções relativamente ao futuro. Pensava sempre que no fim havia de ganhar. Podia sempre deixar falir as empresas e troçar das animosidades pessoais. Com as mulheres era ainda mais impiedoso. Prometia-lhes centros comerciais inteiros, apartamentos, bou-tiques. No fim, acabavam por se contentar com uma pequena jóia no Natal, um cheque pelos anos. Somas significativas, mas não as promessas originais. Big Tim não queria relacionamentos. Tudo o que queria era ter a certeza que poderia levar uma mulher para a cama sempre que lhe apetecesse.

Big Tim adorava toda esta excitação, era o que tornava a vida interessante. Houvera o caso de um corretor de apostas independente, de L. A., a quem ele ficara a dever setenta mil dólares de uma aposta num jogo de futebol. O homem apontara-lhe uma pistola à cabeça. Big Tim dissera-lhe: "Vai-te foder!", e em seguida oferecera-lhe dez mil dólares para liquidar a dívida. O corretor aceitara.

A sua fortuna, a sua saúde de ferro, o seu tamanho imponente, a sua incapacidade de sentir culpa faziam que Big Tim fosse bem sucedido em tudo o que tocasse. A sua convicção de que toda a humanidade podia ser corrompida dava-lhe um certo ar de inocência, que era útil não só com as mulheres, mas também nos tribunais. E o seu gosto pela vida dava-lhe um certo encanto. Era um batoteiro que deixava os adversários espreitarem-lhe as cartas.

Por isso Big Tim não se preocupou sequer com o aspecto misterioso da combinação que Pippi De Lena fizera para essa noite. O homem era um fura-vidas, como ele, e havia maneiras de lidar com os fura-vidas. Grandes promessas e pequenas recompensas.

Quanto a Steve Sharpe, Big Tim farejava ali uma grande oportunidade, uma golpada para durar anos. O homenzinho perdera pelo menos meio milhão num único dia, nas mesas que tinha observado. O que significava que dispunha de uma enorme linha de crédito no casino e devia estar em posição de ganhar uma grande quantidade de dinheiro sujo. Seria perfeito para a golpada da Super Bowl. Não só podia entrar com o dinheiro para apostar, como tinha a confiança dos corretores. Ao fim e ao cabo, aqueles tipos não aceitavam apostas gigantescas de qualquer um.

Então, Big Tim pôs-se a sonhar com a sua próxima visita a Las Vegas. Finalmente, ia ter uma villa. Perguntou a si mesmo quem devia levar como convidados. Negócios ou prazer? Futuras vítimas ou talvez só mulheres? Finalmente, eram horas de ir jantar com Pippi e Steve Sharpe. Telefonou à mulher e aos filhos, para tagarelar um pouco, e pôs-se a caminho.

O jantar estava combinado para um pequeno restaurante especializado em peixe na zona das docas de L. A. Não havia serviço de arrumador, de modo que Big Tim deixou o carro num parque de estacionamento.

No restaurante, foi recebido por um minúsculo maitre, que lhe lançou um olhar e o conduziu a uma mesa onde Pippi De Lena já o aguardava.

Big Tim, que era um perito do abraccio, tomou Pippi nos braços.

- Onde está o Steve? Anda a reinar comigo? Não tenho tempo para esse género de tretas.

Pippi pôs a funcionar todo o seu charme. Deu uma palmada no ombro de Big Tim.

- Então e eu? Não conto para nada? Sente-se e saboreie o melhor jantar de peixe de toda a sua vida. Encontramo-nos com o Steve mais tarde.

Quando o maitre se aproximou para tomar nota da encomenda, Pippi disse-lhe:

- Queremos o melhor de tudo e o máximo de tudo. Aqui este meu amigo é um campeão a comer, se ele se levanta desta mesa com fome, tenho uma conversa com o Vincent.

O maitre sorriu confiantemente; conhecia a qualidade da sua cozinha. Aquele restaurante fazia parte do império de Vincent Clericuzio. Quando a polícia tentasse seguir os passos de Big Tim, esbarraria ali com uma parede de pedra.

Comeram sucessivamente amêijoas, mexilhões, gambas e depois lagostas: três para Big Tim e uma para Pippi, que ficou despachado muito antes do companheiro.

Esse tipo é meu amigo - disse Pippi, enquanto Big Tim comia - e posso dizer-lhe agora que é um dos grandes da droga. Se isso o assusta, mais vale dizer-me já.

Assusta-me tanto como esta lagosta! - respondeu Big Tim, agitando uma pata meio comida do animal diante da cara de Pippi. - Que mais?

Tem sempre necessidade de branquear dinheiro sujo - continuou Pippi. - O negócio terá de incluir esse aspecto.

Big Tim estava a saborear a comida, sentindo todos os aromas do mar a invadirem-lhe as narinas.

Óptimo, já sabia disso! Mas onde raios se meteu ele?

Está no iate. Não quer que ninguém os veja juntos. Também é no seu interesse. O Steve é um tipo muito cauteloso.

- Quero lá saber de quem me vê com ele! O que quero é ver-me a mim com ele!

Finalmente, tinha acabado. A sobremesa foi fruta, com um café expresso. Pippi descascou-lhe habilmente uma pêra. Tim pediu mais um café.

- Para me manter acordado - explicou. - Aquela terceira lagosta quase deu cabo de mim.

Não foi apresentada qualquer conta. Pippi deixou uma nota de vinte dólares em cima da mesa e os dois homens saíram do restaurante, enquanto o maítre aplaudia silenciosamente o desempenho de Big Tim à mesa.

Pippi guiou o companheiro até um pequeno carro alugado, no qual Big Tim se acomodou com muita dificuldade.

Céus, não tinham dinheiro para um carro maior? -protestou.

É muito perto - respondeu Pippi, conciliadoramente. E foi, de facto, uma viagem de apenas cinco minutos. Por essa altura a escuridão era completa, exceptuando as luzes de um pequeno iate ancorado ao cais.

A prancha de acesso estava no seu lugar, guardada por um homem quase tão grande como Tim. Havia outro homem no convés mais afastado. Pippi e Big Tim subiram a prancha e entraram no iate. Nesse momento Dante apareceu no convés e avançou para lhes apertar a mão. Usava o seu chapéu renascentista, que defendeu bem humoradamente quando Big Tim tentou apoderar-se dele.

Dante conduziu-os para uma cabine situada abaixo do convés e decorada como uma sala de jantar. Sentaram-se à volta da mesa, em confortáveis cadeiras aparafusadas ao chão.

Em cima da mesa havia diversas garrafas com bebidas, um balde de gelo e uma bandeja com copos. Pippi serviu brandy para os três.

Nesse instante os motores foram ligados e o iate começou a mover-se.

Aonde raios vamos nós? - quis saber Big Tim.

Só dar uma volta para apanhar um pouco de ar fresco - respondeu Dante, suavemente. - Quando estivermos no mar alto, podemos ir para o convés.

Big Tim não era assim tão confiante, mas tinha fé em si mesmo, em que podia fazer frente a qualquer coisa que lhe acontecesse no futuro. Aceitou a explicação.

Tim - disse Dante -, segundo bem entendi, quer entrar em negócios comigo.

Não, você é que quer entrar em negócios comigo! - respondeu Big Tim, com espalhafatoso bom humor. - O espectáculo é meu. Você fica com o seu dinheiro lavado sem ter de pagar mais por isso. E ainda ganha uma porção dele extra. Tenho um centro comercial que estou a construir nos arredores de Fresno e posso ceder-lhe uma parte por cinco ou dez milhões. Tenho sempre montes de outros negócios.

Isso parece bom - comentou Pippi De Lena. Big Tim lançou-lhe um olhar gelado.

Qual é o seu papel nesta história? Já andava para perguntar.

- É meu sócio - explicou Dante. - O meu conselheiro. Eu tenho o dinheiro, mas ele tem os miolos. - Fez uma pausa e acrescentou, sinceramente. - Disse-me muito bem de si, Tim, é por isso que estamos a falar.

O iate navegava agora muito depressa; os copos tilintavam na bandeja. Big Tim debatia consigo mesmo se devia ou não meter aquele tipo no golpe da Super Bowl. Então teve um dos seus palpites, e eles nunca lhe saíam errados. Recostou-se na cadeira, bebericou o brandy e lançou aos dois homens um olhar sério e interrogativo, um olhar que usava muitas vezes e que tinha até ensaiado. O olhar de um homem prestes a dar a sua confiança. No tom confidencial com que um velho amigo anunciaria "Ouçam, rapazes, vou contar-lhes um segredo", disse:

Mas primeiro, vamos ou não fazer negócio? Quer uma parte do centro comercial?

Quero - respondeu Dante. - Os nossos advogados podem entrar em contacto amanhã e eu avanço já algum dinheiro, como sinal de boa fé.

Big Tim despejou o copo de brandy e inclinou-se para a frente.

- Posso "manobrar" a Super Bowl - declarou. Com um floreado dramático, indicou a Pippi que voltasse a encher-lhe o copo. Ficou delicia- do com a expressão de assombro dos outros dois. - Pensam que é só conversa, não é?

Dante tirou o seu chapéu renascentista e olhou pensativamente para ele.

Acho que está a mijar no meu chapéu - disse, com um sorriso de reminiscência. - Muita gente tenta. Mas o Pippi é que é o perito nessa matéria. Pippi?

Não pode ser feito - declarou Pippi. - Faltam oito meses para a Super Bowl e ainda nem sequer se sabe quem vai entrar.

Então vão-se lixar! - exclamou Big Tim. - Se não querem entrar numa coisa segura, por mim tudo bem. Mas estou a dizer-lhes que posso fazê-lo. Se não querem, muito bem, vamos tratar do centro. Mande o barco voltar para trás e parem de desperdiçar a porra do meu tempo!

Não seja tão peludo - pediu Pippi. - Explique-nos como é que a coisa funciona.

Big Tim despejou de um trago o copo de brandy e respondeu, num tom de pena.

- Não posso fazer isso. Mas dou-lhes uma garantia. Vocês apostam dez milhões e dividimos os lucros. Se alguma coisa correr mal, devolvo- -lhes os dez milhões. Então, é justo ou não é?

Dante e Pippi trocaram sorrisos divertidos. Dante baixou a cabeça, e o chapéu renascentista fê-lo parecer um esquilo manhoso.

Devolve-me o dinheiro em notas? - perguntou.

Não exactamente. Compenso-o com outro negócio. Tiro dez milhões ao preço.

Suborna os jogadores? - perguntou Dante.

Não pode - declarou Pippi- - Esses ganham demasiado dinheiro. Tem de ser os árbitros.

Big Tim estava entusiasmadíssimo.

Não posso dizer-lhes, mas é à prova de fogo. E que interessa o dinheiro? Pensem na glória. Será a maior golpada da história do desporto.

Sim, hão-de aplaudir-nos muito na prisão - atirou-lhe Dante.

E aí que está a beleza de eu não lhes dizer nada - declarou Big Tim. - Eu vou para a prisão, vocês não. E os meus advogados são demasiado bons, e eu tenho demasiados conhecimentos.

Pela primeira vez, Dante afastou-se do guião estabelecido por Pippi. Perguntou:

Já estamos suficientemente ao largo?

Sim - respondeu Pippi. - Mas acho que se conversarmos um pouco mais, aqui o Big Tim nos conta tudo.

Que se lixe o Tim - declarou Dante, com um sorriso amável. - Ouviste esta, Big Tim? Quero saber como funciona o truque, e nada de tretas. - O tom dele foi tão cheio de desprezo que o rosto de Big Tim ficou vermelho.

Seu pedaço de merda! - exclamou. - Pensas que és mais duro que o FBI, e o IRS, e o mais lixado dos agiotas da Costa Oeste? Vou é cagar no teu chapéu!

Dante inclinou-se para trás na cadeira e bateu na parede da cabina. Segundos mais tarde, dois homens grandes e de ar duro apareceram à porta e ficaram à espera. Em resposta, Big Tim pôs-se de pé e varreu a mesa com um gesto do braço. As garrafas, o balde de gelo e a bandeja com copos caíram estrepitosamente no chão.

- Não, Tim, ouça! - gritou Pippi. Queria poupar ao homem sofrimentos desnecessários. Além disso, também não queria ser ele a disparar, isso não fazia parte do plano. Mas Big Tim já saltava para a porta, pronto a dar batalha.

Então, subitamente, Dante deslizou por entre os braços de Big Tim, como que a aninhar-se contra o seu corpo enorme. Quando se separaram, Big Tim caiu de joelhos. Oferecia um espectáculo assustador. Metade da camisa fora cortada e no lugar onde estivera o seu peludo mamilo direito havia agora apenas uma grande mancha escarlate de onde o sangue jorrava aos borbotões. Na mão de Dante estava a faca que tinha usado, com a larga lâmina vermelha de sangue até ao cabo.

Sentem-no na cadeira - ordenou Dante aos guardas, e depois pegou na toalha da mesa para estancar a sangria. Big Tim ficara meio inconsciente com o choque.

Podias ter esperado - disse Pippi.

Não - respondeu Dante. - Ele é um tipo duro. Vejamos até que ponto.

Vou preparar as coisas no convés - anunciou Pippi. Não queria assistir. Nunca torturara ninguém. Não havia na verdade segredos suficientemente importantes para justificarem esse tipo de coisa. Quando se matava um homem, limitávamo-nos a afastá-lo deste mundo, para que não pudesse prejudicar-nos.

No convés, viu que dois dos seus homens tinham já as coisas preparadas. A gaiola de aço estava pronta e presa ao gancho da grua, com as barras móveis fechadas. O convés tinha sido coberto por uma folha de plástico.

Aspirou o ar que cheirava a sal, contemplou o oceano, púrpura e quase imóvel sob o manto da noite. O iate começou a abrandar, até que se deteve completamente.

Pippi ficou a olhar para a água durante uns bons quinze minutos antes que os homens que tinham ficado de guarda à porta aparecessem transportando o corpo de Big Tim. O espectáculo era tão terrível que Pippi desviou os olhos.

Os quatro homens meteram o corpo de Big Tim na gaiola e desceram-na até à água. Um deles ajustou as barras de modo que as criaturas das profundezas pudessem entrar e devorar o cadáver. Então o gancho foi solto e a gaiola mergulhou para o fundo do mar.

Antes que o sol nascesse, restaria apenas o esqueleto de Big Tim "the Rustler", nadando eternamente na sua gaiola no fundo do oceano.

Dante apareceu no convés. Tomara obviamente um duche e mudara de roupa. Por baixo do chapéu renascentista, os seus cabelos estavam húmidos e brilhantes. Não havia vestígios de sangue.

Então já lhe deram a Comunhão - disse. - Podiam ter esperado por mim.

Ele falou? -perguntou Pippi.

Oh, claro! - respondeu Dante. - A ideia era até muito simples. Só que desconfio que o tipo não passou de um aldrabão até ao fim.

No dia seguinte, Pippi voou para Leste para fazer ao Don e a Giorgio um relatório completo.

O homem era louco - disse. - Tinha subornado o dono da empresa que fornece as refeições e as bebidas às equipas que participam na Super Bowl. Iam usar drogas de modo a fazer que a equipa contra a qual queriam apostar fosse ficando cada vez mais fraca à medida que o jogo decorresse. Os treinadores e os jogadores haviam de dar por isso, mesmo que o público não desse, e o FBI também. Tinha razão, tio, o escândalo arruinaria o nosso programa, talvez para sempre.

O tipo era idiota? -perguntou Giorgio.

Penso que queria tornar-se famoso. Rico não era o suficiente.

E os outros envolvidos no esquema? - inquiriu o Don.

Quando virem que o Big Tim não aparece, vão ficar quietos - assegurou Pippi.

Concordo - disse Giorgio.

- Muito bem - assentiu o Don. - E o meu neto, portou-se bem? Parecia uma pergunta casual, mas Pippi conhecia o Don suficientemente bem para saber que aquilo era um assunto muito sério. Respondeu o mais cautelosamente que pôde, mas com um certo objectivo.

Disse-lhe para não usar um dos seus chapéus nesta operação em Vegas e em L. A. Não me ligou nenhuma. Depois, não seguiu o plano que tinha ficado combinado. Podíamos ter conseguido a informação com um pouco mais de conversa, mas ele queria sangue. Cortou o desgraçado aos bocados. Cortou-lhe a pica, e os tomates, e os peitos. Não era necessário. Ele gosta de fazer estas coisas, e isso é muito perigoso para a Família. Alguém tem de falar a sério com ele.

Vai ter de ser o pai - disse Giorgio ao Don. - Ele não liga ao que eu lhe digo.

Don Domenico ponderou longamente.

- E novo, há-de passar-lhe.

Pippi percebeu que o Don não faria coisa alguma. Falou-lhes então da indiscrição de Dante com a estrela de cinema na noite anterior à operação. Viu que o Don tinha como que um sobressalto e Giorgio fazia uma careta de desagrado. Seguiu-se um longo silêncio. Pippi perguntou a si mesmo se não teria ido demasiado longe.

Finalmente, o Don abanou a cabeça e disse:

- Pippi, planeaste tudo bem, como sempre, mas podes ficar descansado. Nunca mais terás de voltar a trabalhar com o Dante. Mas tens de compreender, ele é o único filho da minha filha. Eu e o Giorgio temos de arranjar-nos o melhor que pudermos com ele. A idade há-de dar-lhe juízo.

Cross De Lena sentou-se na varanda da sua suite no terraço do Xanadu Hotel e analisou os riscos da linha de acção que se propunha seguir. Daquele ponto elevado, podia ver toda a extensão da Strip, a linha ininterrupta de luxuosos casinos-hotéis de ambos os lados, as multidões que se acotovelavam na rua. Via os jogadores no campo de golfe do Xanadu, tentando supersticiosamente conseguir um "hole in one" [4] que lhes garantisse a vitória nas mesas de jogo horas mais tarde.

Primeiro perigo: naquela operação Boz Skannet, ia desencadear uma acção crucial sem o consentimento prévio da Família Clericuzio. Era ele, é certo, o barão administrativo do Distrito Ocidental, que incluía o Nevada e a região Sul da Califórnia. Era verdade que os Barões operavam independentemente em muitas áreas e não se encontravam estritamente sob o controlo dos Clericuzio, desde que deixassem a Família molhar o bico com uma percentagem dos lucros. Mas havia regras estritas. Nenhum barão, ou bruglione, podia embarcar numa operação daquela envergadura sem a aprovação dos Clericuzio. Por uma simples razão. Se o barão o fizesse e se metesse em sarilhos, não teria direito a qualquer espécie de indulgência por parte do Ministério Público, não haveria qualquer intervenção judicial. Além disso, não receberia qualquer apoio contra um eventual adversário ou rival que surgisse no seu território, e o seu dinheiro não seria lavado e posto de lado para quando fosse velho. Cross sabia que devia falar com o Don e com Giorgio para lhes pedir umOK.

Aquela operação podia ser tremendamente delicada. E ele estava a arriscar parte da sua quota de 51% no Xanadu, que lhe fora deixada por Gronevelt, para levar a cabo o negócio do filme. Era, sem dúvida, dinheiro seu, mas era dinheiro aliado aos interesses ocultos que os Clericuzio tinham no hotel. E era dinheiro que os Clericuzio o tinham ajudado a ganhar. Uma das manias, curiosa mas de certa maneira muito humana, dos Clericuzio era manifestarem um interesse de proprietário nas fortunas dos seus subordinados. Iam ficar ofendidos por ele investir aquele dinheiro sem lhes pedir conselho. Este hábito, embora não tivesse qualquer base legal, assemelhava-se à cortesia medieval: nenhum barão podia vender o seu castelo sem o consentimento do rei.

E o volume de dinheiro envolvido era também um factor. Cross herdara a percentagem de Gronevelt, e o Xanadu valia um bilião de dólares. Mas ele estava a arriscar cinquenta milhões, e ia investir outros cinquenta, perfazendo um total de cem milhões. O risco financeiro era enorme. E os Clericuzio eram notoriamente prudentes e conservadores, como na realidade tinham de ser para sobreviverem no mundo em que se moviam.

Cross lembrou-se de outra coisa. Muito tempo antes, quando as Famílias Clericuzio e Santadio mantinham ainda boas relações, tinham conseguido pôr um pé na indústria do cinema. Mas a coisa não correra muito bem. Quando o império dos Santadio fora esmagado, Don Clericuzio ordenara a cessação de todas as tentativas de infiltrar essa área. "Essa gente é demasiado esperta", dissera o Don. "E não têm medo, porque os lucros são muito altos. Teríamos de matá-los a todos, e depois não saberíamos dirigir o negócio. É mais complicado do que a droga."

Não, decidiu Cross. Se pedisse autorização, recusar-lha-iam. E nesse caso ser-lhe-ia impossível ir para a frente. Quando acabasse, poderia penitenciar-se, poderia deixar os Clericuzio afogarem o bico nos lucros; o êxito desculpava com frequência os pecados mais impudentes. E se falhasse, então o mais certo seria estar liquidado, de qualquer maneira, com aprovação ou sem ela. O que suscitava uma última dúvida.

Por que razão queria fazer aquilo? Recordou a frase de Gronevelt: "Tem cuidado com as donzelas em perigo." Bom, já encontrara donzelas em perigo noutras alturas e sempre as deixara à mercê dos seus dragões. Vegas estava cheia de donzelas em perigo.

Porém, ele sabia. Ansiava pela beleza de Athena Aquitane. Não apenas a perfeição do seu rosto, dos seus olhos, dos seus cabelos, das suas pernas, dos seus seios. Ansiava por ver a expressão de inteligência e ternura nos olhos dela, nos próprios ossos do rosto, na curva delicada dos lábios. Sentia que se pudesse conhecê-la, estar na presença dela, o mundo inteiro ganharia uma luz diferente, o sol um novo calor. Viu o oceano atrás dela, rolando em ondas verdes coroadas de espuma, como um halo em torno da sua cabeça. E o pensamento insinuou-se-lhe no espírito: Athena era a mulher que a mãe tinha sonhado ser.

Espantado, sentiu-se invadido por um desejo irresistível de a ver, de estar com ela, de lhe ouvir a voz, de a ver mover-se. E então pensou: Oh, merda, é então por isso que quero fazer esta coisa?

Aceitou isso e ficou contente por conhecer finalmente a verdadeira razão das suas acções. Tornava-o mais resoluto e permitia-lhe focar melhor as ideias. No momento presente, o principal problema era operacional. Esquece Athena. Esquece os Clericuzio. Havia o difícil problema de Boz Skannet, um problema que tinha de ser resolvido rapidamente.

Cross sabia que se colocara a si mesmo numa posição demasiado exposta, o que era outra complicação. Beneficiar publicamente se acontecesse alguma coisa a Skannet seria perigoso.

Chegou finalmente a uma conclusão quanto às três pessoas de que precisava para a operação planeada. A primeira era Andrew Pollard, proprietário da Pacific Ocean Security e que já estava envolvido em toda aquela trapalhada. A segunda era Lia Vazi, o vigilante da cabana de caça dos Clericuzio nas montanhas do Nevada. O terceiro homem era Leonard Sossa, um falsificador reformado que a Família mantinha sob avença para quando fosse necessário. Todos os três estavam sob a sua jurisdição, como bruglione do Oeste.

Dois dias mais tarde, Andrew Pollard recebia um telefonema de Cross De Lena.

Ouvi dizer que anda a trabalhar demasiado - disse-lhe Cross. - Que tal umas pequenas férias em Vegas? Com direito a privilégios QCB. Traga a sua mulher. E se se sentir aborrecido, apareça no meu escritório para uma conversa.

Obrigado - respondeu Pollard. - De momento estou ocupadíssimo, mas que tal para a semana?

Claro - anuiu Cross. - Só que nessa altura não estarei na cidade, de modo que não poderei vê-lo.

Sendo assim, vou amanhã.

Óptimo - disse Cross, e desligou.

Pollard recostou-se na cadeira, pensativo. O convite fora uma ordem. Ia ter de andar com muito cuidado.

Leonard Sossa saboreava a vida como só um homem salvo de uma terrível sentença de morte pode saboreá-la. Saboreava cada nascer do sol e saboreava cada ocaso. Saboreava o crescer da erva e saboreava as vacas que a comiam. Saboreava a visão de mulheres bonitas, de jovens confiantes e de crianças inteligentes. Saboreava uma fatia de pão, um copo de vinho, um pedaço de queijo.

Vinte anos antes, o FBI tinha-o prendido por falsificar notas de cem dólares para a agora extinta Família Santadio. Os cúmplices tinham chegado a acordo com as autoridades admitindo uma culpa menor, tinham-no traído, e ele convencera-se de que a flor da sua vida ia murchar e morrer entre as quatro paredes de uma cela. Falsificar dinheiro era um crime muito mais perigoso do que violar, matar ou incendiar. O falsificador de dinheiro atacava a própria engrenagem do governo. Os outros criminosos eram apenas carniceiros que arrancavam um pedaço à carcaça desse gigantesco animal que era a amorfa e dispensável cadeia humana. Não esperara misericórdia, e nenhuma lhe fora oferecida. Leonard Sossa fora condenado a vinte anos.

Cumpriu apenas um. Um colega de prisão, maravilhado pela habilidade de Sossa, pelo seu génio com a tinta, o lápis e a caneta, recrutou-o para a Família Clericuzio.

Subitamente, tinha um novo advogado. Subitamente, tinha no exterior um médico que nunca vira. Subitamente, houve um pedido de clemência com base no facto de a sua capacidade mental se ter deteriorado ao nível da de uma criança, pelo que já não constituía uma ameaça para a sociedade. Subitamente, Leonard Sossa era um homem livre e um empregado da Família Clericuzio.

A Família tinha necessidade de um falsificador de primeira água. Não para falsificar dinheiro, pois sabiam que isso era, para as autoridades, um crime imperdoável. Precisavam de um falsificador para tarefas muito mais importantes. Nas montanhas de papelada com que Giorgio tinha de lidar, fazendo malabarismos com empresas nacionais e internacionais, assinando documentos legais com o nome de pessoas que não existiam, depositando e levantando grandes somas, era necessária uma grande variedade de assinaturas e de imitações de assinaturas. Depois, à medida que o tempo foi passando, outros usos foram sendo descobertos para as capacidades de Leonard.

O Xanadu Hotel recorria a elas com grande proveito. Quando um dos grandes jogadores morria e deixava dívidas na caixa, Sossa era chamado para assinar mais um milhão de dólares em vales. Como é evidente, os herdeiros do falecido não pagavam estes vales. O que permitia que todo esse valor fosse classificado como prejuízos do exercício e deduzido dos impostos. Isto acontecia muito mais frequentemente do que seria natural. O prazer parecia envolver uma alta taxa de mortalidade. Fazia-se o mesmo com os jogadores que se recusavam a pagar as suas dívidas ou tentavam pagar alguns cênti-mos por cada dólar.

Por tudo isto, Leonard Sossa recebia cem mil dólares anuais, estando proibido de fazer qualquer outra espécie de trabalho, muito especialmente falsificar notas. Isto enquadrava-se na política geral da Família. Os Clericuzio tinham uma regra que proibia todos os seus dependentes de se envolverem em casos de falsificação ou rapto. Estes eram os crimes que levavam as autoridades federais a atacar com uma força esmagadora. Os ganhos pura e simplesmente não compensavam os riscos.

Assim, durante vinte anos. Leonard Sossa gozou a vida de um artista na sua pequena casa aninhada em Topanga Canyon, não muito longe de Malibu. Tinha um pequeno jardim, uma cabra, um gato e um cão. Durante o dia pintava, à noite bebia. Havia um fornecimento inesgotável de belas jovens que viviam no Canyon e eram espíritos livres e colegas de arte.

Sossa nunca saía do Canyon a não ser para fazer compras em Santa Monica ou quando era chamado pela Família, o que acontecia em geral duas vezes por mês e sempre por um período de poucos dias. Executava o que lhe mandavam e nunca fazia perguntas. Era um bom e valioso soldado da Família Clericuzio.

Por isso, quando um carro foi buscá-lo e o motorista lhe disse que levasse as suas ferramentas e roupa para alguns dias, Sossa soltou o cão, o gato e a cabra no Canyon e fechou a porta de casa à chave. Os animais saberiam cuidar de si mesmos; ao fim e ao cabo, não era o mesmo que crianças. Não que não gostasse deles, mas os animais tinham uma vida curta, sobretudo no Canyon, e estava habituado a perdê-los. O ano passado na prisão fizera de Leonard Sossa um realista, e a sua inesperada libertação fizera dele um optimista.

Lia Vazzi, o vigilante da cabana de caça dos Clericuzio nas montanhas Sierra Nevada, chegara aos Estados Unidos quando tinha apenas trinta anos de idade e era o homem mais procurado de Itália. Nos dez anos que entretanto tinham decorrido, aprendera a falar inglês com apenas um ligeiro sotaque e sabia ler e escrever razoavelmente nessa língua. Na Sicília, nascera no seio de uma das Famílias mais poderosas e instruídas da ilha.

Quinze anos antes, Lia Vazzi era o chefe da Máfia em Palermo, um Homem Qualificado da mais alta condição. Mas fora demasiado longe.

O governo de Roma acabava de nomear um juiz de instrução e dotara-o de poderes extraordinários para acabar com a Máfia na Sicília. O juiz de instrução chegara a Palermo com a mulher e os filhos, protegido por forças do exército e uma horda de polícias. Fez um discurso incendiário, prometendo não mostrar qualquer espécie de misericórdia para com os criminosos que havia séculos dominavam a bela ilha da Sicília. Era tempo de a lei prevalecer, de serem os representantes eleitos do povo de Itália a decidir o futuro da Sicília, e não um bando de assassinos ignorantes com as suas vergonhosas sociedades secretas. Vazzi considerou este discurso um insulto pessoal.

O juiz de instrução, fortemente guardado dia e noite, começou a ouvir testemunhas e a passar mandatos de captura. O seu tribunal era uma fortaleza, a casa onde vivia estava cercada e defendida por forças do exército. Aparentemente, era impossível atingi-lo. Mas, passados três meses, Vazzi descobriu o itinerário que o juiz seguia, e que fora mantido secreto para evitar ataques de surpresa.

O juiz deslocara-se às principais povoações da Sicília para reunir provas e passar mandatos de captura. Ia agora regressar a Palermo, onde seria condecorado pelas suas heróicas tentativas de livrar a Sicília dessa praga que era a Máfia. Lia Vazzi e os seus homens minaram uma pequena ponte por onde o cortejo teria de passar. O juiz e os seus guarda-costas ficaram reduzidos a pedaços tão pequenos que os seus corpos tiveram de ser retirados da água com peneiras. O governo de Roma replicou com uma caçada maciça aos responsáveis, e Vazzi teve de passar à clandestinidade. Embora não houvesse provas, sabia que se caísse em poder das autoridades mais lhe valeria morrer. Ora, todos os anos os Clericuzio enviavam Pippi De Lena à Sicília com a missão de recrutar homens para o Enclave do Bronx e soldados para a Família. Um dos dogmas da fé do Don era que só os Sicilianos, com a sua tradição multi-secular de omertà, davam garantias sólidas de que não se tornariam traidores. Os rapazes nascidos na América eram demasiado moles, demasiado cheios de vaidade, podiam facilmente ser levados a trair pelos procuradores mais agressivos, que estavam a mandar tantos brugliones para a prisão.

Como filosofia, a omertà era muito simples. Falar à polícia do que quer que fosse que pudesse prejudicar a Máfia era um pecado mortal. Se um clã rival da Máfia matasse o pai de um homem diante dos seus próprios olhos, esse homem estava proibido de informar a polícia. Se a própria pessoa fossa ferida a tiro e estivesse a morrer, estava proibida de informar a polícia. Se lhe roubassem a mula, a cabra ou as jóias, estava proibida de queixar-se à polícia. As autoridades eram o Grande Satã, para o qual um verdadeiro sici-liano nunca podia voltar-se. A Máfia e a Família eram os vingadores.

Dez anos antes, Pippi De Lena levara o filho, Cross, na sua viagem anual à Sicília, como parte da sua instrução. Na realidade, tratava-se mais de escolher do que de recrutar, pois havia centenas de homens cujo maior sonho era ir para a América.

Deslocaram-se a uma pequena povoação a oitenta quilómetros de Palermo, numa região de aldeias de casas de pedra decoradas com as brilhantes flores da Sicília, onde foram acolhidos em casa do presidente da Câmara.

O presidente da Câmara era um homem baixo com uma barriga redonda, uma barriga tão figurativa como ritual, pois a expressão "um homem com barriga" designava, em dialecto siciliano, um chefe da Máfia.

A casa tinha um agradável jardim, com figueiras, oliveiras e limoeiros, e foi aí que Pippi conduziu as suas entrevistas. O jardim parecia-se estranhamente com o dos Clericuzio, em Quogue, excepto pelas flores de cores berrantes e os limoeiros. O presidente da Câmara era obviamente um homem que apreciava a beleza, pois estava casado com uma bonita mulher e tinha três filhas encantadoras que, embora ainda adolescentes, eram mulheres já feitas.

Cross notou, no entanto, que o pai era, na Sicília, um homem diferente. Esquecida toda a sua descuidada galanteria, mostrava-se sobriamente respeitoso no seu trato com as mulheres. Mais tarde nessa mesma noite, no quarto que ambos partilhavam, disse ao filho:

- Tens de ter muito cuidado com os sicilianos. Desconfiam dos homens que se interessam por mulheres. Se fores para a cama com a filha de um deles, nunca sairás daqui vivo.

Durante os dias que se seguiram, os homens fizeram fila para serem entrevistados e avaliados por Pippi. Havia critérios definidos. Não podiam ter mais de trinta e cinco anos nem menos de vinte. Se fossem casados, não podiam ter mais do que um filho. Finalmente, tinham de ver avalizados pelo presidente da Câmara. Pippi explicou a Cross a razão destas exigências. Se os homens fossem demasiado novos, poderiam deixar-se influenciar excessivamente pela cultura americana. Se fossem demasiado velhos, poderiam não conseguir adaptar-se à América. Se tivessem mais do que um filho, teriam tendência para se mostrarem demasiado cautelosos relativamente aos riscos que os seus deveres lhes exigiriam.

Alguns dos homens que apareceram estavam tão seriamente comprometidos aos olhos da lei que tinham de sair da Sicília. Outros procuravam simplesmente uma vida melhor na América, custasse o que custasse. Alguns eram demasiado espertos para confiar na sorte e queriam desesperadamente ser soldados dos Clericuzio, e esses eram os melhores.

No final dessa semana, Pippi tinha a sua quota de vinte homens e entregou a lista ao presidente da Câmara, que teria de aprová-los e em seguida tratar do necessário para a sua emigração. O presidente cortou um dos nomes da lista.

Pensei que seria perfeito para nós -disse Pippi. - Cometi algum erro?

Não, não - respondeu o presidente da Câmara. - Foi tão hábil como sempre.

Pippi ficou intrigado. Todos os recrutas seriam muito bem tratados. Os solteiros receberiam apartamentos, os casados com uma filho uma pequena casa. Todos eles teriam empregos fixos. Todos eles viveriam no Enclave do Bronx. E depois alguns seriam escolhidos para soldados da Família Clericuzio e teriam uma bela vida com um futuro brilhante. O homem cujo nome fora riscado pelo presidente devia estar muito mal visto. Mas nesse caso, por que razão foram autorizados a ir à entrevista? Pippi sentiu que havia ali alguma jogada siciliana.

O presidente observava-o com um sorriso astuto, parecendo estar a ler-lhe na mente e a gostar do que lia.

- E demasiado siciliano para que eu consiga enganá-lo - disse. - O nome que risquei é o do homem com quem a minha filha tenciona casar. Quero mantê-lo aqui mais um ano, para fazer feliz a minha filha, e depois é todo seu. Não podia recusar-lhe a entrevista. A outra razão é porque tenho um homem que penso que deve levar no lugar dele. Far-me-á o favor de vê-lo?

Claro - respondeu Pippi.

Não quero influenciá-lo, mas trata-se de um caso especial e este homem tem de partir imediatamente.

Sabe que tenho de ter muito cuidado - disse Pippi. - Os Cleri-cuzio são exigentes.

Será no seu interesse - assegurou o presidente. - Mas é um pouco perigoso.

Explicou então o caso de Lia Vazzi. O assassínio do juiz aparecera nos cabeçalhos dos jornais de todo o mundo, de modo que Pippi e Cross estavam familiarizados com o assunto.

Se eles não têm provas, por que motivo é a situação tão desesperada para o Vazzi? - perguntou Cross.

Meu rapaz, estamos na Sicília - respondeu o presidente. - Os polícias também são sicilianos. O juiz era siciliano. Toda a gente sabe que foi o Lia. Esqueça essa história das provas. Se cair nas mãos deles, é um homem morto.

Consegue fazê-lo sair do país e chegar à América? - inquiriu Pippi.

Sim. A dificuldade vai ser mantê-lo escondido na América.

- Parece dar mais chatices do que vale - comentou Pippi. O presidente encolheu os ombros.

E meu amigo, confesso. Mas esqueça isso - fez uma pausa e sorriu benevolentemente, para se certificar de que Pippi não esquecia. - É tam bém um perfeito Homem Qualificado. É um perito com explosivos, e isso é sempre uma coisa muito complicada. Conhece a corda, uma habilidade antiga e muito útil. A faca e a pistola, evidentemente. Mas, mais importante que tudo isto, é inteligente, um homem completo. E firme. Como uma rocha. Nunca fala. Escuta e tem um dom para desatar línguas. Agora diga-me, faz- -lhe ou não jeito um homem assim?

Uma resposta às minhas preces - respondeu Pippi, delicadamente. - Mas, mais uma vez, por que tem um homem desses de fugir?

Porque, a somar a todas as suas outras virtudes, é prudente. Não quer desafiar a sorte. Aqui os seus dias estão contados.

E poderá um Homem Qualificado contentar-se em ser um simples soldado na América?

O presidente da Câmara inclinou a cabeça num gesto de sentida comiseração.

- É um cristão - declarou. - Tem a humildade que Cristo sempre nos ensinou.

- Tenho de conhecer esse homem - disse Pippi -, quanto mais não seja pelo prazer da experiência. Mas não posso garantir nada.

O presidente fez um amplo e expansivo gesto com os braços.

- Claro que ele lhe convém - assentiu. - Mas há outra coisa que devo dizer-lhe. Ele proibiu-me terminantemente de lhe mentir a este respeito. - Pela primeira vez o presidente não pareceu tão confiante. - Tem mulher e três filhos, e terão de ir todos com ele.

Nesse momento Pippi soube que a resposta seria não.

Ah! - disse. - Isso torna as coisas mais difíceis. Quando é que posso falar com ele?

Estará aqui no jardim depois de escurecer. Não haverá perigo, já tratei de tudo.

Lia Vazzi era um homem pequeno mas com essa rijeza seca e nodosa que muitos sicilianos herdaram dos seus remotos antepassados árabes. Tinha uma cara atraente, aquilina, uma máscara morena e digna, e falava um pouco de inglês.

Sentaram-se à volta da mesa no jardim do presidente da Câmara, com uma garrafa de vinho tinto caseiro, um prato de azeitonas das árvores circundantes, e pão, estaladiço e cozido nessa mesma noite, redondo, ainda quente, além de uma perna deprosciuttox [5] cravejada de grãos de pimenta preta, como diamantes negros. Lia Vazzi comeu e bebeu, e não disse palavra.

- Recebi as mais altas recomendações - começou Pippi, respeitosamente. - Mas estou preocupado. Poderá um homem com a sua educação e as suas qualificações ser feliz na América ao serviço de outro homem?

Lia olhou para Cross, e em seguida dirigiu-se a Pippi:

Tem um filho. O que seria capaz de fazer para o salvar? Quero ver a minha mulher e os meus filhos a salvo, e para isso farei o meu dever.

Haverá algum perigo para nós - continuou Pippi. - Compreende que tenho de pensar nas vantagens que justifiquem o risco.

Lia encolheu os ombros.

Não posso ser juiz em causa própria - respondeu. Parecia ter-se resignado a não ser escolhido.

Se fosse sozinho, seria mais fácil - disse Pippi.

Não. A minha família viverá junta ou morrerá junta. - Fez uma pausa. - Se os deixar aqui, Roma tornará as coisas muito difíceis para eles. Mais depressa me entregaria.

O problema é como escondê-lo a si e à sua família.

Vazzi voltou a encolher os ombros. A América é muito grande - disse. Ofereceu o prato de azeitonas a Cross e perguntou, quase ironicamente: - O seu pai alguma vez o abandonaria?

Não - respondeu Cross. - É antiquado, como o senhor. - Disse isto gravemente, mas no seu rosto havia a sombra de um sorriso. Depois acrescentou:- Ouvi dizer que também é agricultor.

- Azeitonas - confirmou Vazzi. - Tenho o meu próprio lagar. Cross olhou para o pai.

- Que tal a cabana de caça nas Sierras? Podia tomar conta dela, com a família, e ganhar o seu sustento. E isolada. A família dele pode ajudar. - Voltou-se para Lia. - Importava-se de viver nos bosques? - "Bosques" significava tudo o que não fosse urbano. Lia encolheu os ombros.

Foi a força pessoal de Lia Vazzi que acabou por decidir Pippi De Lena. Vazzi não era um homem grande, mas o seu corpo tinha uma dignidade eléctrica. O efeito era arrepiante, um homem que não temia a morte, nem o Céu nem o Inferno.

- É uma boa ideia - disse Pippi. - Uma camuflagem perfeita. E podemos chamá-lo para trabalhos especiais e dar-lhe a ganhar algum dinheiro extra. Esses trabalhos serão o seu risco.

Puderam ver como os músculos do rosto de Lia se descontraíam ao perceber que tinha sido escolhido. A voz tremeu-lhe ligeiramente quando falou.

- Quero agradecer-lhe por salvar a minha mulher e os meus filhos - disse. E estava a olhar directamente para Cross.

Desde então, Lia Vazzi mais do que merecera a misericórdia que lhe fora concedida. De soldado, ascendera a chefe de todas as equipas operacionais de Cross. Supervisionava os seis homens que o ajudavam a cuidar da cabana de caça, em cujos terrenos tinha a sua própria casa. Prosperara, adquirira a cidadania americana, os filhos frequentavam a universidade. Tudo isto ele conquistara com sua coragem e bom senso, e, acima de tudo, com sua lealdade. Por isso, quando recebeu a mensagem de Cross De Lena a chamá-lo a Las Vegas, foi com boa vontade que fez a mala, se meteu no seu novo Buick e iniciou a longa viagem até Vegas e ao Xanadu Hotel.

Andrew Pollard foi o primeiro a chegar a Las Vegas. Saiu de Los Angeles no voo do meio-dia, descontraiu-se à beira de uma das enormes piscinas do Xanadu, jogou distraidamente dados durante um par de horas, e finalmente foi conduzido à suite de Cross De Lena, no terraço do hotel.

Depois de terem apertado as mãos, Cross disse:

- Não vou demorá-lo muito. Pode regressar esta mesma noite. O que preciso é de toda a informação que tiver a respeito desse tal Skannet.

Pollard pô-lo rapidamente ao corrente de tudo o que tinha acontecido e informou-o de que Skannet estava presentemente instalado no Bever-ly Hills Hotel. Contou-lhe a conversa que tivera com Bantz.

Os tipos estão-se verdadeiramente nas tintas para ela, o que querem é ver o filme acabado - explicou a Cross. - Além disso, os estúdios não levam a sério pessoas como o Skannet. Tenho na minha empresa uma secção de vinte homens que se encarregam exclusivamente dos chatos e molestadores. Constituem um problema muito real para as estrelas.

E a polícia -perguntou Cross. - Não há nada que possam fazer?

Não. Só depois do mal feito.

E você, Andrew? Tem algum pessoal muito bom a trabalhar para si.

Tenho de ser cuidadoso. Arrisco-me a perder a empresa se fizer jogo duro. Sabe como são os tribunais. Porque hei-de arriscar o pescoço?

Esse Boz Skannet, que género de homem é?

Não se assusta. Para dizer a verdade, assusta-me a mim. E um desses tipos genuinamente duros, que não querem saber das consequências. A família tem dinheiro e poder político, de modo que ele pensa que pode fazer o que quiser. E gosta mesmo de se meter em sarilhos, sabe, há tipos assim. Se vai envolver-se nisto, vai ter de ser a sério.

Tudo o que faço é a sério - afirmou Cross. - Tem o Skannet sob vigilância, de momento?

Claro. O homem é definitivamente capaz de fazer seja o que for.

Retire os seus homens. Não quero ninguém a vigiá-lo. Compreendido?

OK, se é isso que quer - anuiu Pollard. Fez uma curta pausa antes de acrescentar: - Tenha cuidado com o Jim Losey. Ele anda de olho no Skannet. Conhece o Losey?

Já nos encontrámos - admitiu Cross. - Quero que faça uma coisa. Empreste-me o seu CL da Pacific Ocean Security por algumas horas. Devolver--lho-ei a tempo de apanhar o voo da meia-noite para L. A. Pollard estava preocupado. | - Sabe que farei qualquer coisa por si, Cross, mas tenha cuidado, este é um caso muito delicado. Construí aqui uma vida muito boa e não quero vê-la ir pelo cano abaixo. Sei que devo tudo à Família Clericuzio, e estou-lhes eternamente grato, e sou sempre pago. Mas este assunto é muito complicado.

Cross sorriu-lhe tranquilizadoramente.

- O Andrew é demasiado valioso para nós. Outra coisa, se o Skannet telefonar para verificar a identidade de homens pertencentes à sua agência, limite-se a confirmar.

Ao ouvir isto, o coração de Pollard afundou-se-lhe no peito. Ia haver sarilhos a sério.

- Agora conte-me tudo o que puder a respeito dele - continuou Cross. E, ao ver que Pollard hesitava, acrescentou: - Vou fazer uma coisa por si. Mais tarde.

Pollard pensou por um instante.

- O Skannet afirma conhecer um grande segredo que a Athena tudo faria para impedir que fosse descoberto. Foi por isso que retirou a queixa contra ele. Um segredo terrível, e o Skannet adora esse segredo. Cross, não sei como nem por que razão está envolvido, mas talvez conhecer esse segredo possa resolver o seu problema.

Pela primeira vez, Cross olhou para ele sem afabilidade, e Pollard soube como Cross conseguira a sua reputação. O olhar foi frio, como que a julgar, um julgamento que podia resultar em morte.

Sabe porque é que estou interessado - disse Cross. - O Bantz deve ter-lhe contado a história. Contratou-o para obter informações a meu respeito. Sabe alguma coisa sobre esse grande segredo, ou os estúdios sabem?

Não. Ninguém sabe. Cross, estou a fazer o melhor que posso por si, sabe disso, não sabe?

Sei - respondeu Cross, subitamente gentil. - Deixe-me tornar as coisas mais fáceis para si. Os tipos da LoddStone estão doidos por saber como é que eu tenciono convencer a Athena Aquitane a regressar ao trabalho. Eu digo-lhe. Vou oferecer-lhe metade dos lucros do filme. E não tenho objecções a que os informe disto. Pode marcar pontos, talvez até lhe paguem um bónus. - Estendeu a mão para a secretária, pegou num saco de couro e entregou-o a Pollard. - Cinco mil em fichas pretas. Tenho sempre medo, quando o chamo aqui em negócios, que perca dinheiro seu no casino.

Não precisava ter-se preocupado. Andrew Pollard trocava sempre as fichas por dinheiro na caixa do casino.

Leonard Sossa acabava de se instalar numa suite para executivos do Xanadu quando lhe levaram o cartão de identificação de Pollard. Com o seu próprio equipamento, falsificou cuidadosamente quatro conjuntos de CIs da Pacific Ocean Security, completos, com as respectivas carteiras. Não passariam numa inspecção feita por Pollard, mas isso não era necessário, Pollard nunca veria aqueles CIs. Quando Sossa acabou o trabalho, várias horas mais tarde, dois homens levaram-no de carro até à cabana de caça na Sier-ra Nevada, onde o instalaram num bangalô escondido nos bosques.

Sentado à porta do bangalô, nessa tarde, Sossa ficou a observar um veado e um urso que passaram perto. Chegada a noite, limpou as suas ferramentas *' e aguardou. Não sabia onde estava nem o que ia ter de fazer, e não queria saber. Ganhava cem mil dólares por ano e vivia a vida de um homem livre. Matou o tempo esboçando o urso e o veado que vira em cem folhas de papel, de tal maneira que, fazendo passar as folhas muito rapidamente, dava a impressão de que o veado perseguia o urso. Lia Vazzi foi recebido de uma maneira completamente diferente. Cross abraçou-o, convidou-o para jantar na sua suite. Durante os anos que Vazzi passara na América, Cross fora muitas vezes o seu chefe operacional. Vazzi, apesar da sua própria força de carácter, nunca tentara usurpar a autoridade, e Cross, em contrapartida, tratava-o com o respeito devido a um igual.

Ao longo dos anos, Cross passara vários fins-de-semana na cabana de caça, e os dois tinham caçado juntos. Vazzi falava-lhe da Sicília e de como era diferente viver na América. Cross, por sua vez, convidara-o a ele e à família para irem a Vegas, ofereceu-lhe privilégios QCB no Xanadu e um crédito de cinco mil dólares no casino, que Lia nunca foi convidado a pagar.

Durante o jantar, falaram de generalidades. Vazzi continuava a maravilhar-se com a sua vida na América. O filho mais velho estava a licenciar-se na Universidade da Califórnia e nada sabia da vida secreta do pai. Era uma coisa que o preocupava.

Por vezes penso que não tem uma gota do meu sangue - disse. - Acredita em tudo o que os professores lhe dizem. Acredita que as mulheres são iguais aos homens, acredita que devia ser dada terra aos camponeses pobres. Pertence à equipa de natação da universidade. Em toda a minha vida na Sicília, e a Sicília é uma ilha, nunca vi um siciliano nadar.

Excepto os pescadores quando o barco se virava - observou Cross, com uma gargalhada.

Nem mesmo assim. Afogavam-se sempre.

Quando acabaram de comer, falaram de negócios. Vazzi nunca gostara verdadeiramente da comida do hotel, mas adorava o brandy e os charutos havanos. Todos os anos, pelo Natal, Cross mandava-lhe seis garrafas de bom brandy e uma caixa de charutos.

- Tenho uma coisa muito difícil que preciso que faças - disse Cross. - Uma coisa que tem de ser feita com muita inteligência.

- Isso é sempre difícil - respondeu Vazzi.

- Tem de ser na cabana de caça. Vamos levar lá uma certa pessoa. Quero que essa pessoa escreva umas cartas, quero que me dê uma informação.

Fez uma pausa para sorrir ao gesto depreciativo de Vazzi, que muitas vezes comentava, ao ver os filmes americanos em que o herói ou o vilão se recusavam a revelar informações: "Até chinês eu os punha a falar."

A dificuldade - continuou Cross -, é que não pode haver marcas no corpo, nem podemos usar drogas. Além disso, o tipo é muito teimoso.

Só as mulheres são capazes de fazer um homem falar com beijos - declarou Vazzi amavelmente, saboreando o seu charuto. - Cheira-me que vais estar pessoalmente envolvido nesta história.

Não pode ser de outra maneira. Usaremos os teus homens, mas primeiro a cabana tem de ficar livre de mulheres e crianças.

Vazzi agitou o charuto.

Irão à Disneylândia, essa bênção tanto na alegria como na tristeza. Mandamo-las sempre para lá.

A Disneylândia? - espantou-se Cross, com uma gargalhada.

Nunca lá fui. Espero ir para lá, quando morrer. Vai ser uma Comunhão ou uma Confirmação?

Confirmação.

Começaram então a discutir os pormenores. Cross explicou a operação a Vazzi e por que razão e quando tinha de ser feita.

Que achas? -perguntou, finalmente.

És mais siciliano do que o meu filho, e nasceste aqui na América. O que é que acontece se ele teimar em não te dar aquilo que queres?

Então a culpa será minha. E dele. E então teremos de pagar. Nisso, a América e a Sicília são iguais.

É verdade - disse Vazzi. - Como na China, e na Rússia, e em África. Como o Don costuma dizer, nesse caso podemos ir todos nadar para o fundo do oceano.

 

Eli Marrion, Bobby Bantz, Skippy Deere e Melo Stuart reuniram-se de emergência em casa de Marrion. Andrew Pollard revelara a Bantz o plano secreto de Cross De Lena para fazer Athena regressar ao trabalho. Esta informação fora corroborada pelo detective Jim Losey, que recusara divulgar a sua fonte.

Isto é um assalto! - protestou Bantz. - Melo, tu és o agente dela, és responsável por ela e por todos os teus clientes. Quer isto dizer que quando estivermos a meio de um grande filme as tuas estrelas se vão recusar a trabalhar a menos que lhes ofereçamos metade dos lucros?

Só se vocês forem suficientemente loucos para pagar - respondeu Stuart. - Deixem esse tal De Lena tentar. Não vai durar muito tempo no ramo.

Melo - interveio Marrion -, está a falar de estratégia, nós estamos a falar de agora, deste preciso minuto. Se a Athena volta ao trabalho, então você e a sua cliente estão a roubar-nos, exactamente como se fossem assaltantes de bancos. Vai permitir uma coisa dessas?

Estavam todos espantados. Era raro Marrion ir tão rapidamente ao cerne da questão, pelo menos desde quando era muito mais novo. Stuart ficou alarmado.

A Athena não sabe nada disto - afirmou. - Se soubesse, ter-me-ia dito.

Achas que aceitaria a proposta, se soubesse? - perguntou Deere.

Eu aconselhá-la-ia a aceitar e então, numa outra carta, a dividir a sua metade com os estúdios Bantz interveio, secamente:

- Nesse caso, todos os seus protestos de medo seriam mentira. Tretas,  em suma. E, Melo, tu és é parvo. Pensas que nos contentaríamos com metade do que a Athena recebesse do De Lena? Esse dinheiro pertence-nos a nós. E ela pode ficar rica com o De Lena, mas será o fim da sua carreira no cinema. Nenhum estúdio voltará a contratá-la.

- No estrangeiro - disse Skippy. - Um estúdio estrangeiro correria o risco.

Marrion pegou no telefone e estendeu-o a Stuart.

Assim não chegamos a parte nenhuma. Ligue para a Athena. Diga- -lhe o que o Cross De Lena se prepara para lhe oferecer e pergunte-lhe se vai aceitar.

Ela desapareceu no fim-de-semana - disse Deere.

-Já voltou - informou Stuart. - Desaparece muitas vezes nos fins-de-semana. - Premiu os botões do telefone.

A conversa foi curta. Stuart desligou e sorriu.

Diz que não lhe foi feita qualquer proposta desse tipo. E que nenhuma proposta desse tipo a faria voltar ao trabalho. Está-se nas tintas para a carreira. - Fez uma pausa e acrescentou, admirativamente. - Gostava de conhecer esse tal Skannet. Qualquer homem capaz de assustar assim uma actriz, a ponto de ela se estar nas tintas para a carreira, tem de ter alguma coisa de bom.

Está resolvido, então - disse Marrion. - Safamo-nos sem prejuízos de uma situação desesperada. Mas é uma pena. A Athena era uma grande estrela!

Andrew Pollard tinha as suas instruções. A primeira fora informar Bantz sobre as intenções de Cross De Lena relativamente a Athena. A segunda era retirar a equipa que vigiava Skannet. A terceira era visitar o mesmo Skannet para lhe apresentar uma proposta.

Skannet estava de camisola interior quando abriu a Pollard a porta da sua suite no Beverly Hills Hotel, e cheirava a água-de-colónia.

- Estava a acabar de fazer a barba - explicou. - A casa de banho deste hotel tem mais perfumes que uma casa de putas.

- Não devia estar na cidade - disse Pollard, em tom de acusação. Skannet deu-lhe uma palmada nas costas.

Eu sei. Vou-me embora amanhã. Tinha umas coisitas a resolver. - O sorriso malévolo que acompanhou estas palavras, o torso maciço do homem, teriam assustado Pollard noutras condições, mas agora que Cross estava envolvido, suscitavam unicamente pena. Em todo o caso, teria de andar com cuidado.

A Athena não está surpreendida por você não se ter ido embora - disse. - Acha que a gente da LoddStonne não o compreende, mas ela sim. Por isso gostaria de se encontrar consigo pessoalmente. Pensa que os dois sozinhos talvez consigam chegar a um acordo.

Quando viu a súbita expressão de alegria que iluminou o rosto de Skannet soube que Cross tivera razão. Aquele tipo ainda estava apaixonado, ia engolir a história.

Boz Skannet mostrou-se repentinamente desconfiado.

- Isso não parece coisa da Athena. Ela não suporta sequer olhar para mim, e não posso dizer que a censure. - Riu-se. - Tem demasiada necessidade daquela carinha bonita que Deus lhe deu.

A Athena quer fazer-lhe uma proposta séria. Uma renda vitalícia. Uma percentagem do que ela ganhar enquanto viver, se quiser. Mas quer falar-lhe pessoalmente e em segredo. E quer ainda outra coisa.

Eu sei o que ela quer - interrompeu-o Skannet. Tinha uma expressão curiosa no rosto. Pollard já vira aquela expressão nas caras de violadores dolorosamente arrependidos.

Às sete - continuou Pollard. - Dois dos meus homens virão buscá- -lo e acompanhá-lo-ão ao local de encontro. Ficarão com ela, para lhe servirem de guarda-costas. Dois dos meus melhores homens, armados. Para que não se ponha com ideias.

Skannet sorriu.

Não se preocupe comigo - disse.

Pois - respondeu Pollard, e saiu.

Quando a porta se fechou, Skannet ergueu vitoriosamente o braço direito. Ia voltar a ver Athena, e só com dois cretinos de dois detectives particulares a protegê-la. E teria provas de que fora ela a pedir o encontro, não estaria a infringir a ordem do tribunal.

Durante o resto do dia, sonhou com aquele encontro. Era realmente uma surpresa, e, pensando bem naquilo, soube que Athena ia tentar servir-se do corpo para o convencer a chegar a um acordo. Deitou-se na cama, imaginando como seria voltar a estar com ela. A imagem do corpo de Athena era muito nítida. A pele branca, o ventre suavemente arredondado, os seios com os bicos rosados, os olhos tão verdes que eram uma outra espécie de luz, a boca quente e delicada, o hálito dela, os cabelos flamejantes como um sol que ganhasse tons esfumados de bronze sob um céu de fim de tarde. Por um momento, a velha paixão avassalou-o, o mesmo amor que tivera pela inteligência dela, pela bravura de um carácter que ele soubera quebrar, transformar em medo. E então, pela primeira vez desde que tinha dezasseis anos, começou a acariciar-se a si mesmo. O seu espírito formou imagens muito nítidas de Athena a incitá-lo a continuar, até que atingiu o clímax. Por um fugaz instante, amou-a e foi feliz.

E então tudo mudou. Teve uma sensação de vergonha, de humilhação. Voltou a odiá-la. Subitamente, convenceu-se que aquilo era uma qualquer espécie de armadilha. Que sabia ele, verdadeiramente, a respeito daquele Pollard? Skannet vestiu-se apressadamente e examinou o cartão que Pollard lhe entregara. A agência ficava a uns escassos vinte e cinco minutos do hotel. Desceu até à portaria, e um dos empregados foi buscar-lhe o carro.

Quando entrou no edifício da Ocean Pacifi Security, ficou surpreendido pelo tamanho e opulência do local. Um segurança armado escoltou-o até ao gabinete de Pollard. Skannet notou que as paredes estavam decoradas com galardões do Departamento de Polícia de L. A., a Associação de Ajuda aos Desalojados e outras organizações, incluindo os Escoteiros. Havia inclusivamente um qualquer galardão cinematográfico.

Andrew Pollard estava a olhar para ele com surpresa e alguma preocupação. Skannet tranquilizou-o. v?"

- Só queria dizer-lhe que irei ao encontro no meu carro. Os seus homens poderão ir comigo e dar-me indicações.

Pollard encolheu os ombros. Já não tinha nada a ver com aquilo. Fizera tudo o que lhe tinham dito para fazer.

- Óptimo - disse. - Mas podia ter-me telefonado. Skannet sorriu-lhe.

Pois podia, mas queria dar uma vista de olhos aos seus escritórios. Além disso, queria telefonar à Athena e certificar-me de que não há aqui falcatrua. Pensei que podia ser você a ligar. Ela é capaz de não atender a minha chamada.

OK- respondeu Pollard, tranquilamente. Pegou no telefone. Não fazia a mínima ideia do que estava a passar-se e, no fundo do coração, espera va que Boz Skannet abortasse o encontro e que ele próprio pudesse deixar de estar envolvido naquilo que Cross planeava fazer, fosse lá o que fosse. Também sabia que Athena não falaria directamente com ele.

Marcou o número e perguntou por Athena. Ligou o altifalante, para que Skannet pudesse ouvir o telefonema. A secretária de Athena disse-lhe que Miss Aquitane não estava em casa e só era esperada no dia seguinte. Pousou o auscultador e olhou para Skannet, erguendo uma sobrancelha. Boz parecia contente.

E estava. Não se enganara. Athena estava a planear usar o corpo para chegar a um acordo. Estava a planear passar a noite com ele. A pele avermelhada do rosto de Skannet ganhou um tom de bronze com a onda de sangue que lhe subiu ao cérebro ao recordar quando ela era jovem, quando o amava e ele a amava.

As sete da tarde, quando Lia Vazzi chegou ao hotel com um dos seus soldados, Skannet estava à espera e pronto para seguir imediatamente. Vestia elegantemente, num estilo juvenil: jeans, camisa de ganga de um azul desbotado e casaco de desporto branco. Escanhoara-se cuidadosamente e tinha os cabelos louros penteados para trás. A pele avermelhada parecia um pouco mais pálida, uma palidez que de algum modo lhe suavizava o rosto. Lia Vazzi e o seu soldado exibiram os falsos CIs da Pacific Ocean Security.

Boz Skannet não ficou impressionado pelos homens. Dois baixotes, um deles com um ligeiro sotaque que talvez fosse mexicano. Não constituiriam problema. Aquelas agências de detectives privados eram mesmo uma merda. Que espécie de protecção era aquela para Athena?

Disseram-me que prefere levar o seu carro - disse-lhe Vazzi. - Eu vou consigo e o meu colega segue-nos no nosso carro. Parece-lhe bem?

OK - respondeu Skannet.

Quando saíram do elevador e entraram no vestíbulo do hotel, foram detidos por Jim Losey. O detective estivera à espera sentado num sofá, junto à lareira, e interceptara-os levado por um puro palpite. Fora até ali para manter um olho em Skannet, para o que desse e viesse. Mostrou o crachá aos três homens.

Skannet olhou para o distintivo e perguntou:

Que raio é que você quer?

Quem são estes dois homens que estão consigo?

Não tem porra nenhuma a ver com isso - replicou Skannet. Vazzi e o companheiro permaneceram silenciosos, enquanto Losey lhes estuda va os rostos.

- Gostaria de lhe dar uma palavrinha em particular - disse Losey. Skannet empurrou-o para um lado e Losey agarrou-lhe um braço. Eram ambos homens corpulentos. Skannet estava frenético por sair dali. Gritou a Losey, num tom furioso:

- As queixas foram retiradas, não sou obrigado a falar consigo! E se não tira as mãos de cima de mim, corro-o daqui para fora a pontapé!

Losey deixou cair a mão. Não estava de modo algum intimidado, mas o seu cérebro trabalhava a todo o vapor. Os dois homens que acompanhavam Skannet pareciam-lhe estranhos, havia ali qualquer coisa. Deu um passo para o lado, mas seguiu-os até ao arco diante da entrada do hotel, onde os carros eram entregues aos hóspedes. Viu Skannet entrar no seu próprio carro com Lia Vazzi. Entretanto, o outro homem tinha desaparecido. Losey reparou nisso e ficou à espera de ver um segundo carro sair do parque de estacionamento, mas isso não aconteceu.

Era inútil tentar segui-los, e nada ganharia lançando um alerta relacionado com o carro de Skannet. Debateu consigo mesmo a hipótese de relatar o incidente a Skippy Deere, e decidiu não o fazer. Uma coisa era certa, se Skannet voltasse a sair da linha, havia de arrepender-se dos insultos daquele dia.

Foi uma longa viagem, com Skannet a queixar-se constantemente, a fazer perguntas e inclusivamente a ameaçar voltar para trás. Mas Lia Vazzi tranquilizava-o. Skannet já sabia que o local do encontro era uma cabana de caça que Athena possuía na Sierra Nevada, e as instruções eram para passarem lá a noite. Athena insistira em que ninguém deveria saber daquele encontro, afirmando que saberia resolver o assunto a contento de todos. Skannet não fazia ideia do que isso significava. Que poderia ela fazer para dissolver o ódio que crescera durante os últimos dez anos? Seria tão estúpida ao ponto de pensar que uma noite de amor e um monte de notas bastariam para o amolecer? Julgaria que era assim tão simples? Sempre admirara a inteligência dela, mas talvez se tivesse tornado numa dessas arrogantes estrelas de Hollywood, convencidas que podiam comprar tudo com o corpo e com dinheiro. E, no entanto, a ideia da beleza dela perseguia-o. Finalmente, depois de todos aqueles anos, ela sorrir-lhe-ia, encantá-lo-ia, subjugá-lo-ia. Acontecesse o que acontecesse, teria aquela noite.

Lia Vazzi não estava preocupado com as ameaças de Boz Skannet de fazer meia volta. Sabia que havia três carros na estrada atrás deles, a servír-lhes de escolta, e tinha as suas intruções. Como último recurso, poderia pura e simplesmente matar Skannet. Mas as intruções tinham sido claras num ponto: Boz Skannet não deveria sofrer qualquer ferida além daquela que lhe provocasse a morte.

Atravessaram o portão aberto, e Skannet ficou surpreendido com o tamanho da cabana de caça. Parecia mais um pequeno hotel. Saiu do carro e distendeu os braços e as pernas. Havia cinco ou seis carros estacionados junto à casa, circunstância que o fez hesitar momentaneamente.

Lia Vazzi acompanhou-o até à porta, que abriu. Nesse instante, Skannet ouviu o ruído de mais carros no caminho de acesso. Voltou-se, pensando que Athena tinha chegado. O que viu foi três carros deterem-se e dois homens saírem de cada um deles. Então Lia atravessou com ele a porta principal da cabana e entraram os dois na sala de estar, com a sua grande lareira. Ali, sentado no sofá e à espera, estava um homem que Skannet nunca tinha visto. Esse homem era Cross De Lena.

O que aconteceu a seguir foi muito rápido. Skannet perguntou, furiosamente: "Onde está a Athena?", dois homens agarraram-lhe os braços, outros dois apontaram-lhe pistolas à cabeça e o aparentemente inofensivo Lia Vazzi rasteirou-o e fê-lo estender-se ao comprido no chão.

- Pode morrer neste instante se não fizer exactamente o que lhe disserem - ameaçou .... - Não resista. Fique quieto.

Um outro homem algemou-lhe os tornozelos e depois puseram-no de pé, em frente de Cross. Skannet ficou surpreendido com a sensação de impotência que se apoderou dele quando os homens lhe largaram os braços. O facto de ter os pés presos parecia neutralizar toda a sua força física. Estendeu um braço, para ao menos esmurrar o pequeno filho da mãe, mas Vazzi limitou-se a recuar um passo, e embora Skannet desse um pequeno salto, não conseguia pôr força nos braços.

Vazzi observou-o com tranquilo desprezo.

- Sabemos que é um homem violento - disse. - Mas agora chegou a altura de usar os miolos. Aqui, a força não lhe serve de nada.

Skannet deu a impressão de seguir este conselho. Estava a pensar furiosamente. Se quisessem matá-lo, já poderiam tê-lo feito. Aquilo era uma processo de intimidação para o forçar a concordar com qualquer coisa. Pois muito bem, concordaria. E então passaria a tomar precauções no futuro. Uma coisa era certa. Athena não estava envolvida naquela operação. Ignorou Vazzi e voltou-se para o homem sentado no sofá.

Quem raio é você? -perguntou.

Há umas coisas que quero que faça antes de ser autorizado a voltar para casa - disse Cross, sem lhe responder.

E se eu não fizer, torturam-me, não é verdade? - Skannet riu-se. Começava a pensar que aquilo era uma cena de uma porcaria de um filme estúpido que os estúdios estavam a usar para o intimidar.

Não - disse Cross simplesmente. - Nada de tortura. Ninguém lhe tocará. Quero que se sente àquela mesa e escreva quatro cartas. Uma dirigida à LoddStone, prometendo nunca se aproximar das instalações deles. Outra dirigida a Athena Aquitane, pedindo desculpa pelo que se passou e jurando nunca mais voltar a aproximar-se dela. Outra dirigida às autoridades policiais, admitindo ter comprado ácido para ser usado num segundo ataque contra a sua mulher, e outra dirigida a mim revelando qual o segredo que conhece a respeito da sua mulher. Simples.

Skannet tentou desajeitadamente saltar na direcção de Cross, mas foi empurrado por um dos homens, indo cair desamparado no sofá oposto.

- Não lhe toquem! - ordenou Cross, secamente. Skannet serviu-se dos braços para voltar a pôr-se de pé.

Cross apontou para a mesa, sobre a qual havia um monte de folhas de papel.

- Onde está a Athena? - perguntou Skannet.

- Não está aqui - respondeu Cross. - Todos lá para fora, excepto o Lia.

Os homens saíram.

- Vá sentar-se à mesa - ordenou Cross a Skannet. Skannet obedeceu.

- Quero falar consigo muito seriamente - disse-lhe Cross. - Deixe de querer mostrar como é um tipo duro. Quero que ouça. Não tente nenhu ma loucura. Tem as mãos livres, e isso pode dar-lhe uma ilusão de poder. Tudo o que quero é que escreva essas cartas, e depois pode ir.

Vá-se foder! - atirou-lhe Skannet, numa voz carregada de desprezo. Cross voltou-se para Vazzi e disse:

Não vale a pena perder mais tempo. Mata-o.

Cross mantivera a voz perfeitamente calma, e no entanto havia algo de terrível na sua indiferença. Naquele instante, Skannet sentiu um medo que não experimentava desde a infância. Compreendeu pela primeira vez o significado da presença de todos aqueles homens, de todas as forças reunidas contra ele. Lia não tinha ainda feito um gesto.

- OK, eu escrevo - disse Skannet. Pegou numa folha de papel e começou a escrever.

Astutamente, escreveu as cartas com a mão esquerda; como alguns bons atletas, era capaz de se servir quase com igual perícia de ambas as mãos. Cross foi pôr-se atrás dele e ficou a observar. Skannet, envergonhado com a sua súbita cobardia, fincou os pés no chão. Confiante na sua coordenação física, passou a caneta para a mão direita e levantou-se para atacar Cross, na esperança de o atingir num olho. Pareceu explodir ao entrar em acção, com o braço a descrever um amplo arco para cima, o tronco a elevar-se impulsionado pelas pernas, e ficou espantado com a facilidade com que Cross se colocou fora do seu alcance. Mesmo assim, Skannet tentou mover-se com os pés algemados.

Cross olhou-o tranquilamente e disse:

- Toda a gente tem direito a tentar uma vez. Já fez a sua tentativa. Agora pouse a caneta e dê-me essas folhas de papel.

Skannet obedeceu. Cross estudou os papéis e observou:

Não me contou o segredo.

Nunca o porei numa folha de papel - disse Skannet. - Mande embora esse tipo - fez um gesto indicando Vazzi - e eu digo-lho.

Cross entregou as folhas de papel a Lia e pediu: , - Trata disto. E Vazzi saiu da sala.

- OK - disse então Cross a Skannet. - Vamos lá ouvir o grande segredo.

Quando Vazzi saiu da cabana, cobriu a correr os cem metros que a sepa ravam do bangalô onde Leonard Sossa estava instalado. Sossa esperava-o. Olhou para as duas folhas de papel e disse irritadamente:  Isto foi escrito por um canhoto. Não sou capaz de imitar canhotos. O Cross sabe disso.

Estuda isso melhor - aconselhou Vazzi. - Ele tentou espetar o Cross com a mão direita. Sossa voltou a examinar as páginas.

- Tens razão - disse. - Este tipo não é verdadeiramente canhoto. Esteve a gozar com vocês.

Vazzi pegou nas folhas, voltou à cabana e entrou na sala. Pela cara de Cross, soube que alguma coisa tinha corrido mal. Cross parecia desnorteado, e Skannet estava estendido no sofá, com as pernas algemadas estendidas por cima do braço, sorrindo para o tecto com um ar feliz.

- Estas cartas não servem - explicou Vazzi. - Ele escreveu-as com a mão esquerda e o analista diz que não é canhoto.

Cross voltou-se para Skannet e disse:

- Acho que você é demasiado duro para mim. Não consigo assustá- -lo, não consigo obrigá-lo a fazer o que quero, desisto.

Skannet levantou-se do sofá e afirmou, malevolamente:

Mas o que eu lhe disse é verdade. Toda a gente se apaixona pela Athena, mas ninguém a conhece como eu.

Você não a conhece - respondeu Cross, num tom calmo. - E não me conhece a mim. - Aproximou-se da porta, abriu-a e fez um gesto. Qua tro homens entraram na sala. Depois voltou-se para Lia. - Sabes o que é que eu quero. Se ele não mo der, liquida-o. - E saiu.

Lia Vazzi soltou um audível suspiro de alívio. Admirava Cross, fora gostosamente seu subordinado durante todos aqueles anos, mas Cross era demasiado paciente. Era verdade que todos os grandes Dons da Sicília primavam pela paciência, mas sabiam quando parar. Vazzi suspeitava de que havia em Cross De Lena uma falta de dureza muito americana que o impediria de alcançar a verdadeira grandeza.

Voltou-se para Skannet e disse, numa voz sedosa:

- Agora vamos começar nós os dois. - Dirigindo-se aos quatro ho mens, ordenou:-Agarrem-lhe os braços, mas com cuidado. Não o magoem.

Os quatro homens saltaram para Skannet. Um deles tirou do bolso um par de algemas, e em poucos instantes Skannet estava reduzido à impotência. Vazzi obrigou-o a ajoelhar-se no chão, e os outros imobilizaram-no.

- Acabou-se a comédia - continuou Vazzi. O seu corpo seco e nodoso parecia descontraído, o seu tom era coloquial. - Agora vai escrever aque las cartas com a mão direita. Ou pode recusar.

Um dos homens pegou num enorme revólver e numa caixa de munições e entregou-os a Lia. Vazzi carregou a arma, mostrando a Skannet cada uma das balas. Depois aproximou-se da janela e disparou para a floresta até que a arma ficou vazia. Voltou então para junto de Skannet, colocou uma bala no tambor, fê-lo girar e encostou o cano da arma por baixo do nariz do homem ajoelhado.

- Eu não sei onde está aquela bala - disse. - Você também não. Se continuar a recusar-se a escrever, puxo o gatilho. Então, sim ou não?

Skannet olhou Lia nos olhos e não respondeu. Lia puxou o gatilho. Ouviu-se apenas o clique do percussor a bater numa câmara vazia. Lia assentiu aprovadoramente com a cabeça.

- Estava a torcer por si - disse.

Olhou para o tambor e meteu uma bala na primeira câmara. Aproximou-se da janela e disparou. A explosão pareceu sacudir a sala. Lia regressou à mesa, tirou outra bala, carregou a arma e fez girar o tambor.

Vamos tentar outra vez - disse. Encostou o revólver ao queixo de Skannet. Mas desta vez Skannet estremeceu.

Voltem a chamar o vosso chefe - pediu. - Tenho mais coisas que posso dizer-lhe.

Não - disse Lia -, já acabámos com essas parvoíces. Então, sim ou não?

Skannet olhou para os olhos de Lia e o que viu neles não foi uma ameaça, mas pena.

- Está bem - disse. - Eu escrevo. Foi imediatamente posto de pé e sentado à mesa. Lia instalou-se no sofá, enquanto Skannet escrevia. Quando ele acabou, pegou nos papéis e voltou ao bangalô de Sossa.

Isto serve? - perguntou.

Perfeitamemnte - respondeu Sossa.

Vazzi regressou à cabana e falou com Cross. Depois dirigiu-se à sala de estar e disse a Skannet:

- Acabou-se. Levo-o de volta a L. A. logo que esteja pronto. Junto à porta do carro, antes de partir, Cross disse-lhe:

Sabes o que tens de fazer. Espera até de manhã. Por essa altura já estarei de regresso a Vegas.

Não te preocupes - respondeu Vazzi. - Estava a ver que o tipo nunca mais escrevia. Que animal! - Via que Cross estava preocupado. - O que foi que ele te disse quando eu saí da sala? - peguntou. - Alguma coisa que eu deva saber? Devia tê-lo morto imediatamente - disse Cross, com uma amargura selvagem que Vazzi nunca lhe tinha visto. - Nunca devia ter arriscado. Detesto ser tão estuporadamente esperto.

 - Ah! Bom, agora está feito.

Vazzi ficou a ver o carro de Cross atravessar o portão. Por uma das poucas vezes naqueles dez anos, teve saudades da Sicília. Na Sicília os homens nunca ficavam tão afectados pelos segredos das mulheres. E na Sicília nunca teria sido possível toda aquela trapalhada. Há muito que Skannet estaria a nadar no fundo do oceano.

Quando o dia nasceu, uma carrinha fechada deteve-se à porta da cabana.

Lia Nz.tl recebeu das mãos de Leonard Sossa as notas de suicídio que este falsificara e meteu-o no carro que o levaria de volta a Topanga Canyon. Depois limpou o bangalô, queimou as cartas que Skannet tinha escrito, apagando todos os vestígios de ocupação. Leonard Sossa nunca chegara a ver Skannet ou Cross durante o tempo que ali estivera.

Lia Vazzi preparou-se então para a execução de Boz Skannet.

A operação envolvia seis homens. Skannet, vendado e amordaçado, estava já no interior da carrinha. Dois dos homens ficaram com ele. Skannet estava completamente indefeso, algemado de pés e mãos. Um terceiro homem sentou-se ao volante da carrinha e um quarto ocupou o lugar a seu lado. O quinto conduziu o carro de Skannet. Lia Vazzi e o sexto homem meteram-se noutro carro e arrancaram á frente.

Lia Vazzi viu o erguer-se lentamente da sombra das montanhas. A caravana percorreu quase noventa quilómetros e então meteu por um caminho que se internava nos bosques.

Finalmente, detiveram-se. Vazzi deu indicações precisas sobre como o carro de Skannet devia ficar estacionado. Depois mandou tirar Skannet da carrinha. Skannet não ofereceu resistência, parecia resignado à sua sorte. Bom, finalmente percebeu tudo, pensou Vazzi.

Vazzi tirou a corda do carro. Mediu cuidadosamente o comprimento e amarrou uma ponta ao grosso ramo de uma árvore próxima. Dois dos homens mantinham Skannet direito, para que ele pudesse passar-lhe o laço pelo pescoço. Vazzi pegou nas duas notas que Sossa falsificara e enfiou-as no bolso do casaco de Skannet.

Foram necessários quatro homens para içar Skannet para o tejadilho da carrinha, e então Vazzi apontou uma mão fechada na direcção do condutor. A carrinha saltou em frente e Skannet voou do tejadilho e ficou suspenso no ar. O som do pescoço a partir-se ressoou pela floresta. Vazzi examinou o corpo e retirou as algemas. Um dos outros homens tirou a venda e a mordaça. Havia umas pequenas escoriações à volta da boca, mas um par de dias pendurado na floresta e deixariam de ser significativas. Examinou os braços e as pernas, à procura de marcas. Mais uma vez, havia algumas, mas não seriam conclusivas. Estava satisfeito. Não sabia se aquilo ia resultar, mas tudo o que Cross mandara fazer fora feito.

Dois dias mais tarde, alertado por um telefonema anónimo, o xerife do condado encontrou o corpo de Skannet. Teve de afugentar um urso castanho mais curioso que estava a dar patadas na corda para fazer o corpo balançar, e quando o médico legista chegou com os seus assistentes, verificaram que a pele do cadáver, já em putrefacção, tinha sido roída pelos insectos.

 

Uma Morte à Hollywood.

 

Dez traseiros femininos nus ergueram-se em uníssono para o olho pes-tanejante da câmara. Embora o filme continuasse ainda no limbo, Dita Tom-mey testava actrizes no set de Messalina, em busca de um par de nádegas que pudessem dobrar as de Athena Aquitane.

Porque Athena recusava-se a fazer nus, os seja, a expor totalmente os seios ou as nádegas, uma modéstia surpreendente numa estrela, mas não fatal. Dita teria apenas de substituir os seios e o rabo dela pelos de uma das actrizes que estava a testar.

Claro que lhes dera para ensaiar cenas completas, com diálogo. Nunca as humilharia fazendo-as posar como se o objectivo fosse apenas pornográfico. Mas o factor determinante seria a cena de sexo final, quando, rebolando-se numa cama, ergueriam os traseiros nus para as lentes da câmara. o coreógrafo das cenas de sexo estava precisamente a definir as reviravoltas e as contorsões com o actor principal, Steve Stallings.

Bobby Bantz e Skippy Deere, ao lado de Dita Tommey, acompanhavam os testes. As únicas outras pessoas presentes no vieram os membros indispensáveis da equipa técnica. Tommey não se importava que Deere observasse, mas que diabo estava Bantz ali a fazer? Considerara por instantes a hipótese de lhe proibir a entrada no set, mas depois pensara que se o filme fosse abandonado ficaria numa posição muito fraca. Poderia vir a ter necessidade da boa vontade dele.

- De que é exactamente que estamos à procura? - preguntou Bantz, num tom de irritado fastio.

O coreógrafo das cenas de sexo, um jovem chamado Willis, que era também o director da Los Angeles Ballet Company, respondeu alegremente:

Do traseiro mais bonito do mundo. Mas também com bons músculos. Não queremos flacidez, e não queremos uma racha que se abra.

Certo - resmungou Bantz. - Nada de rabos flácidos.

E as mamas? - perguntou Deere.

 Não podem saltitar - respondeu o coreógrafo.

Amanhã fazemos testes para as mamas - interveio Dita Tommey. - Nenhuma mulher tem umas nádegas e uns seios perfeitos, excepto talvez a Athena, e ela recusa-se a mostrá-los.

- Tu lá sabes, Dita - comentou Bantz, maliciosamente. Tommey esqueceu imediatamente a fragilidade da sua posição.

Bobby, és um perfeito cara de cu, mas não é disso que andamos à procura. Como ela não quis ir para a cama contigo, deduzes que é lésbica.

Está bem, está bem - disse Bantz. - Tenho mais de cem telefonemas a que preciso de responder.

Também eu - declarou Deere.

Vocês são incríveis, francamente! - protestou Tommey.

Dita, tem um pouco de compreensão - pediu Deere. - Que diver timentos é que nós temos, eu e o Bobby? Andamos demasiado ocupados para jogar golfe. Ver filmes é trabalho. Não temos tempo para ir ao teatro ou à ópera. Conseguimos no máximo arrancar uma hora por dia para nos distrairmos, depois de passarmos algum tempo com a família. O que é que se pode fazer com uma hora por dia? Fornicar. De todos os divertimentos, é o menos intensivo em termos de trabalho.

Uau! Skippy, olha para aquilo! - interrompeu-o Bantz. - É o traseiro mais bonito que vi em toda a minha vida.

Deere assentiu vigorosamente, cheio de admiração.

- O Bobby tem razão. Dita, aquela é que é. Contrata-a. Tommey abanou a cabeça, incrédula:

Vocês são mesmo uns parvalhões! - protestou. - A rapariga é negra.

Contrata-a da mesma maneira! - insistiu Deere, exuberante de alegria.

Sim - apoiou Bantz. - Uma escrava etíope da Messalina. Mas por que raio está ela a fazer o teste?

Dita Tommey observou-os com curiosidade. Ali estavam dois dos homens mais duros do negócio do cinema, com mais de uma centena de telefonemas a que tinham de responder, e pareciam um par de adolescentes à procura do primeiro orgasmo. Explicou pacientemente:

Quando anunciamos que vamos fazer testes, não podemos especificar que só nos interessam traseiros brancos.

Quero conhecer aquela rapariga - declarou Bantz.

E eu também - acrescentou Deere.

A conversa foi interrompida pela entrada de Melo Stuart no set. Sorria triunfantemente.

Vamos voltar todos ao trabalho - anunciou. - A Athena regressa ao filme. O marido, o Boz Skannet, enforcou-se. Boz Skannet, fora do filme!- E, ao dizer isto, bateu as palmas, como a equipa técnica costumava fazer quando um actor terminava a sua participação num filme. Skip- py e Bobby imitaram-no. Dita Tommey ficou a olhar para os três, indignada.

O Eli quer falar com vocês os dois, já - continuou Melo. - Você não, Dita. - Sorriu, como que a desculpar-se. - é apenas uma reunião de negócios, nada de decisões criativas. Os três homens abandonaram o set.

Depois de eles partirem, Dita Tommey convocou para a sua roulote a dona do traseiro que tanto entusiasmara Deere e Bantz. Era muito bonita, verdadeiramente negra e não apenas morena, e tinha uma vivacidade impudente que Dita identificou como natural, não fabricada.

Vou dar-lhe o papel de escrava etíope da imperatriz Messalina - disse-lhe. - Vai ter uma frase para dizer, mas sobretudo vai ter de mostrar o traseiro. Infelizmente, precisamos de um traseiro branco para dobrar o de Miss Aquitane, e o seu é demasiado negro, caso contrário ainda podia vir a ser a estrela do filme. - Dirigiu à rapariga um sorriso amistoso. - Falene Fant. É um bom nome artístico.

Se acha - respondeu a rapariga. - Obrigada. Tanto pelos elogios como pelo trabalho.

Só mais uma coisa - continuou Dita. - O nosso produtor, Skip- py Deere, acha que você tem o traseiro mais bonito do mundo. Essa é tam bém a opinião de Mr. Bantz, presidente e director de produção dos estúdios. Hão-de falar consigo.

E a si, o que é que lhe parece? - perguntou Falene Fant, com um sorriso malicioso.

Dita Tommey encolheu os ombros.

- Não me interesso tanto por traseiros como os homens. Mas acho que é muito bonita e uma boa actriz. Suficientemente boa para, em minha opinião, ter direito a mais do que uma única frase neste filme. E se for a minha casa esta noite, podemos conversar a respeito da sua carreira. Ofereço-lhe de jantar.

Nessa noite, depois de Dita Tommey e Falene Fant terem passado duas horas na cama, Dita fez o jantar e falaram a respeito da carreira de Falene.

Foi agradável - disse Dita -, mas acho que daqui em diante deveremos ser apenas amigas e manter segredo sobre esta noite.

Certo - concordou Falene. - Mas toda a gente sabe que és fufa. Será por causa do meu traseiro preto? - perguntou, com um sorriso.

Dita ignorou a palavra fufa. Tinha sido uma impudência deliberada para se vingar da aparente rejeição.

É um traseiro magnífico, preto, branco, verde ou amarelo - respondeu Dita. - Mas tens verdadeiro talento. Se eu continuar a fazer-te aparecer nos meus filmes, nunca te darão crédito por esse talento. E eu só faço um filme de dois em dois anos. Precisas de trabalhar mais do que isso. A maior parte dos realizadores são homens, e quando escolhem alguém como tu, estão sempre à espera de uma queca. Se pensarem que és lésbica, podem não te escolher.

Quem é que precisa de realizadores, quando eu tenho um produtor e um presidente de estúdio? - perguntou Falene alegremente.

Precisas tu. Os outros tipos podem ajudar-te a meter o pé na porta, mas o realizador pode deixar-te abaixo na sala de montagem. Ou pode filmar-te de maneira que pareças e fales como uma atrasada mental.

Falene abanou pesarosamente a cabeça.

- Tenho de ir para a cama como o Bobby Bantz, com o SkippyDeere, e já fui para a cama contigo. Será isto absolutamente necessário? - E abriu muito os olhos, com uma expressão de inocência.

Dita gostou verdadeiramente dela naquele momento. Ali estava uma rapariga que não tentava fingir-se indignada.

Gostei muito desta noite - disse. - Tocaste exactamente na nota certa.

Bom, nunca percebi porque é que as pessoas fazem tanto espalhafato por causa do sexo. - A mim não me custa nada. Não ando na droga, não bebo por aí além. Com alguma coisa tenho de me divertir.

Óptimo. Agora, quanto ao Deere e ao Bantz. O Deere é melhor, e vou dizer-te porquê. O Deere está apaixonado por si mesmo e gosta de mulheres. Há-de fazer qualquer coisa por ti, a sério. Há-de arranjar-te um bom papel, é suficientemente esperto para ver que tens talento. Já o Bantz, não gosta de ninguém excepto do Eli Marrion. Além disso, não tem gosto, não tem olho para o talento. O Bantz faz-te assinar um contrato com os estúdios e depois deixa-te apodrecer. Faz o mesmo com a mulher, para a manter calada. A desgraçada trabalha para ganhar o seu dinheiro, mas nunca consegue um papel decente. O Skippy Deere, se gostar de ti, ajudar-te-á na tua carreira.

- Isso parece-me um bocado calculista - observou Falene. Dita deu-lhe uma palmadinha num braço.

Não me venhas com tretas. Posso ser lésbica, mas também sou mulher. E conheço os actores. Homens ou mulheres, farão seja o que for para subir a escada. Aqui joga-se forte. Queres ter um emprego das nove às cinco em Oklahoma, ou queres ser uma estrela de cinema e viver em Malibu? Vi na tua ficha que tens vinte e três anos. Com quantos já foste para a cama?

Contando contigo? Talvez uns cinquenta. Mas todos por prazer - acrescentou, fingindo estar a justificar-se.

Nesse caso, mais uns quantos não vão traumatizar-te. E, quem sabe, pode ser que gostes.

Sabes, nunca o faria se não tivesse tanta certeza de que hei-de ser uma estrela.

Claro. Nenhuma de nós o faria. Falene riu-se.

E tu? - perguntou.

Não tive por onde escolher. Subi à custa de puro e esmagador talento.

Coitadinha - disse Falene.

Na LoddStone Studios, Bobby Bantz, Skippy Deere e Melo Stuart estavam reunidos com Eli Marrion no gabinete deste último.

- O grande estupor! - exclamou Bobby Bantz, indignado. - Prega um susto de morte a toda a gente e depois suicida-se!

Marrion dirigiu-se a Stuart:

Melo, a sua cliente vai voltar ao trabalho, suponho.

Claro - respondeu Melo.

Não tem mais exigências, não precisa de nenhum incitamento extra? - perguntou Marrion, com uma voz tranquila e letal. Pela primeira vez, Melo Suart apercebeu-se de que Marrion estava furioso.

Não - respondeu Melo. - Pode começar a trabalhar amanhã.

Óptimo - disse Deere. - Ainda conseguimos concluir o filme dentro do orçamento.

Quero que se calem todos e me ouçam - disse Eli Marrion. E esta rudeza, tão invulgar nele, fê-los calarem-se.

Marrion falou no tom agradável e calmo que lhe era habitual, mas a raiva transparecia clara em cada uma das suas palavras.

- Skippy, que nos interessa a nós se o filme fica ou não dentro do orçamento? Já não é nosso. Entrámos em pânico, cometemos um erro estúpido. Todos nós somos culpados. O filme não nos pertence, pertence a um intruso.

Skippy Deere tentou interrompê-lo.

A LoddStone vai fazer uma fortuna com a distribuição. E recebem uma percentagem dos lucros. Continua a ser um excelente negócio.

Mas esse De Lena ganha mais dinheiro do que nós - interveio Bantz.

- Isso não é justo.

A questão é que o De Lena não fez nada para resolver o assunto - declarou Eli Marrion. - Com certeza os estúdios têm alguma base legal para recuperar o filme.

Isso mesmo! - corroborou Bantz. - O gajo que se lixe! Vamos para tribunal.

- Ameaçamo-lo com o tribunal e depois chegamos a um acordo - disse Marrion. - Devolvemos-lhe os cinquenta milhões e damos-lhe dez por cento do bruto ajustado.

Deere lançou uma gargalhada.

Eli, a Molly Flanders nunca o deixará aceitar esse acordo.

Negociaremos directamente com o De Lena - respondeu Marrion. - Acho que sou capaz de o convencer. - Fez uma pausa. - Telefonei-lhe assim que soube da notícia. Virá juntar-se-nos muito em breve. Sabem que ele tem um certo passado, e este suicídio foi demasiado conveniente. Não acredito que esteja interessado na publicidade de uma acção em tribunal.

Na sua suite no terraço do Xanadu Hotel, Cross De Lena leu nos jornais a notícia da morte de Boz Skannet. Correra tudo na perfeição. Era um caso nítido de suicídio, as duas notas de despedida encontradas no corpo eram uma prova definitiva. Não havia a mínima possibilidade de os peritos detectarem a falsificação: Boz Skannet não legara ao mundo um grande corpo de correspondência e Leonard Sossa era demasiado bom. As algemas nas pernas e nos braços de Skannet, propositadamente largas, não tinham deixado marcas. Lia Vazzi era um perito.

O primeiro telefonema que Cross recebeu foi o que esperava. Giorgio Clericuzio chamava-o à mansão da Família, em Quogue. Cross nunca duvidara que os Clericuzio descobririam rapidamente o que tinha feito.

O segundo telefonema foi de Eli Marrion, a pedir-lhe que fosse vê-lo a Los Angeles, e sem a companhia da sua advogada. Cross disse que assim faria. Mas, antes de sair de Las Vegas, telefonou a Molly Flanders e falou-lhe do telefonema de Marrion.

- Esses viscosos filhos da mãe! - exclamou ela. - Vou buscá-lo ao aeroporto e vamos juntos. Nunca diga sequer bom-dia ao dono de um estúdio sem ter o seu advogado consigo.

Quando os dois entraram no edifício da LoddStone e no gabinete de Marrion, souberam logo que havia sarilho. Os quatro homens que os esperavam arvoravam as expressões sérias e truculentas de quem está disposto a optar pela violência.

Decidi trazer a minha advogada - disse Cross a Marrion. - Espero que não se importe.

Como quiser - respondeu Marrion. - Só pretendia poupar-lhe um possível embaraço.

Isto vai ser bom a valer - disse Molly Flanders, com uma expressão dura e zangada. - Querem recuperar o filme, mas o nosso contrato é de ferro.

Tem toda a razão - anuiu Eli Marrion. - Mas vamos apelar para o sentido de justiça do seu cliente. Ele não fez nada para resolver o problema, ao passo que a LoddStone investiu quantidades consideráveis de tempo, dinheiro e criatividade, sem os quais este filme não teria sido possível. O Cross recupera o dinheiro que nos pagou. Recebe dez por cento dos lucros brutos ajustados, e seremos generosos na determinação dessas correcções. Não correrá qualquer risco.

Ele já sobreviveu ao risco - ripostou Molly. - A vossa proposta é insultuosa.

Nesse caso teremos de ir para tribunal - disse Marrion. - Cross, tenho a certeza de que isso lhe desagrada tanto como a mim. - Sorriu a Cross. Era o tipo de sorriso que fazia o seu rosto de gorila parecer angelical.

Molly estava furiosa.

- Eli, vocês vão a tribunal vinte vezes por ano prestar declarações porque passam a vida a fazer truques destes. - Voltou-se para Cross e declarou: - Vamos embora.

Cross sabia, porém, que um longo caso em tribunal era algo que não se podia permitir. O facto de ele ter comprado o filme e de pouco depois Skannet se ter muito convenientemente suicidado seria examinado à lupa. Esmiuçar-lhe-iam o passado, pintá-lo-iam com cores tais que se tornaria uma figura pública, e isso era uma coisa que o velho Don nunca toleraria. Não tinha a mínima dúvida de que Eli Marrion sabia tudo isto.

- Fiquemos mais um pouco - disse a Molly. Depois voltou-se para Marrion, Bantz, Skippy Deere e Melo Stuart. - Se um jogador vai ao meu hotel, faz uma aposta arriscada e ganha, eu pago-lhe tudo o que ganhar. Não lhe pago o que arriscou. E isso é o que os senhores estão a querer fazer. Por que não reconsideram o assunto?

- O nosso negócio não é o jogo - disse Bantz, num tom de desprezo. Melo Stuart interveio apaziguadoramente, dirigindo-se a Cross:

- Ganha pelo menos dez milhões com o seu investimento. Não se pode dizer que não seja justo.

- E sem ter de fazer fosse o que fosse! - acrescentou Bantz. Só Skippy Deere parecia estar do lado dele.

- Cross, tu mereces mais. Mas o que eles oferecem é melhor do que uma luta em tribunal, com o risco de perder. Deixa passar esta e voltaremos a fazer negócio, sem a LoddStone. Prometo-te um tratamento justo.

Cross sabia que era importante não parecer ameaçador. Sorriu, resignado.

- Talvez tenhas razão - disse. - Quero ficar no negócio do cinema em boas relações com toda a gente, e um lucro de dez milhões não é um mau começo. Molly, encarregue-se dos papéis. Agora tenho de ir apanhar um avião, de modo que se me dão licença...

Saiu da sala, seguido por Molly.

Podemos ganhar em tribunal - disse-lhe Molly.

Não quero ir a tribunal - respondeu Cross. - Faça o acordo. Molly estudou-o cuidadosamente, e depois disse:

Está bem, mas vou conseguir-lhe mais do que dez por cento.

Quando Cross chegou à mansão de Quogue, no dia seguinte, Don Dome-nico Clericuzio, os seus filhos Giorgio, Vincent e Petie, e o neto, Dante, estavam à espera dele. Almoçaram no jardim, debaixo do caramanchão, um almoço de presuntos e queijos italianos, uma enorme tijela de madeira cheia de salada e compridas fatias de estaladiço pão italiano. Havia também a taça de queijo ralado e a colher de prata do Don. Enquanto comiam, Don Dome-nico disse, como que casualmente:

- Croccifixio, ouvimos dizer que te meteste no negócio do cinema.

- Fez uma pausa para beber um golo de vinho e comer uma colher de parmesão ralado.

- E verdade - respondeu Cross.

É verdade que arriscaste algumas das tuas acções no Xanadu Hotel para financiar um filme? - quis saber Giorgio.

O que está dentro dos meus direitos - respondeu Cross. - Ao fim e ao cabo, sou o vosso bruglione no Oeste. - Riu-se.

Bruglione é a palavra exacta - comentou Dante.

O Don lançou ao neto um olhar de reprovação. Depois, voltando-se novamente para Cross, disse:

Envolveste-te num assunto muito sério sem consultar a Família. Não procuraste a nossa sabedoria. Mais importante do que tudo isto, levaste a cabo uma acção violenta que pode ter repercussões graves. Nestes casos, o costume é claro, tens de ter o nosso consentimento ou ficar por tua conta e sofrer as consequências.

E utilizaste recursos da Família - acrescentou Giorgio, secamente.

- A cabana de caça na Sierra. Usaste o Lia Vazzi, o Leonard Sossa e o  Pollard, com a sua agência de segurança. E certo que são a tua gente no Oeste, mas são também recursos da Família. Felizmente, tudo correu bem, mas se não tivesse corrido? Estaríamos todos em perigo.

- Ele sabe tudo isso - interrompeu-o Don Domenico, impacientemente. - A questão é, porquê? Sobrinho, há uns anos pediste para não participar nesse trabalho necessário que alguns homens têm de fazer. Concedi-te o que pedias, apesar de seres tão valioso para nós. Agora fazes esse mesmo trabalho para teu próprio proveito. Não parece coisa do querido sobrinho que eu sempre conheci.

Cross soube então que o Don queria apoiá-lo. Não podia dizer a verdade, que se deixara seduzir pela beleza de Athena; isso não seria uma explicação razoável, seria até insultuosa. E possivelmente fatal. Que poderia ser mais indesculpável do que permitir que a atracção por uma mulher desconhecida se sobrepusesse à lealdade que devia à Família? Falou com todo o cuidado:

- Vi uma oportunidade para ganhar muito dinheiro. Vi uma oportunidade de pôr o pé num novo negócio. Para mim e para a Família. Um negócio que pode ser usado para transformar dinheiro sujo em dinheiro limpo. Mas tinha de agir rapidamente. Com certeza não era minha intenção manter isto em segredo, e a prova é que usei recursos da Família, o que não poderiam deixar de saber. Quis vir ter convosco com o trabalho feito.

O Don estava a sorrir-lhe; perguntou, gentilmente:

- E o trabalho, está feito?

Cross adivinhou imediatamente que o Don sabia tudo.

Sim, mas há um outro problema - disse, e explicou o novo acordo que fizera com Marrion. Para sua surpresa, Don Domenico pôs-se a rir às gargalhadas.

Fizeste exactamente o que devias - declarou o Don. - Um processo no tribunal poderia ser um desastre. Deixa-os gozar a sua vitória. Foi uma coisa boa termo-nos sempre mantido afastados desse negócio. - Fez uma pausa antes de acrescentar: -Pelo menos, ganhaste os teus dez milhões. É uma bonita soma.

Não - disse Cross -, cinco para mim e cinco para a Família, isso nem se discute. Mas acho que não devemos deixar-nos desencorajar tão facilmente. Tenho alguns planos, mas preciso da ajuda da Família.

Nesse caso temos de discutir outro tipo de participação - interveio Giorgio. Giorgio era como Bantz, pensou Cross, queria sempre mais.

O Dom interrompeu-o, impaciente:

Primeiro há que apanhar o coelho, depois dividimo-lo. Tens a bênção da Família. Mas uma coisa. Discussão total de qualquer acção drástica que tenha de ser tomada. Compreendes-me, sobrinho?

Sim - respondeu Cross.

Saiu de Quogue com uma sensação de alívio. O Don mostrara o seu afecto.

Don Domenico Clericuzio, com os seus oitenta e tantos anos, continuava a governar um império. Um mundo que criara com grande esforço e a grande custo e que, por isso mesmo, sentia ter ganho.

Com uma idade venerável, numa altura em que a maior parte dos homens vivem obcecados pela recordação dos pecados inevitavelmente cometidos, pela saudade dos sonhos perdidos e até por dúvidas quanto à justeza das suas acções e princípios, o Don continuava tão inabalavelmente convencido da sua virtude como quando tinha catorze anos.

Don Clericuzio era estrito nas suas crenças e estrito nos seus julgamentos. Deus tinha criado um mundo perigoso, e a Humanidade tornara-o ainda mais arriscado. O mundo de Deus era uma prisão onde o homem tinha de ganhar o seu pão de cada dia, onde o seu próximo era uma fera, carnívora e sem piedade. Don Clericuzio orgulhava-se de ter sabido defender aqueles que amava ao longo das respectivas viagens através da vida.

Orgulhava-se de, com a sua idade avançada, continuar a ter a força de vontade para decretar a pena de morte contra os seus inimigos. Sem dúvida que lhes perdoava. Não era acaso um bom cristão que mantinha uma capela em sua própria casa? Mas perdoava aos seus inimigos como Deus perdoa a todos os homens, condenando-os mesmo assim à extinção inevitável.

No mundo que criara, Don Clericuzio era venerado. A família, os milhares que viviam no Enclave do Bronx, os brugliones que governavam territórios e lhe confiavam o seu dinheiro, vinham pedir a sua intercessão quando entravam em conflito com a sociedade formal. Sabiam que o Don era justo. Que em alturas de necessidade, de doença ou de problemas podiam procurá-lo, e ele daria remédio aos seus infortúnios. Por isso o amavam.

O Don sabia que o amor, por muito profundo que seja, não é um sentimento em que se possa confiar. O amor não garante a gratidão, não garante a obediência, não proporciona harmonia neste mundo tão difícil. Ninguém compreendia isto melhor que Don Clericuzio. Para inspirar verdadeiro amor, um homem tinha igualmente de ser temido. O amor só por si era desprezível, era nada se não incluísse também confiança e obediência. De que lhe serviria um amor que não reconhecesse a sua autoridade?

Porque era responsável pelas vidas de todos, era ele quem estava na raiz da boa fortuna de todos, e por isso não podia fraquejar nos seus deveres, Tinha de ser estrito nos seus julgamentos. Se um homem o traía, se um homem punha em causa a integridade do seu mundo, esse homem devia ser punido e impedido de agir, mesmo que isso significasse uma sentença de morte. Não podia haver desculpas, nem circunstâncias atenuantes, nem pedidos de misericórdia. O que tinha de ser feito tinha de ser feito. O seu filho Giorgio chamara-lhe uma vez arcaico. Ele aceitava que não podia sequei ser de outra maneira.

Agora tinha muitas coisas a ponderar. Tinha planeado bem durante aqueles últimos vinte e cinco anos, desde a guerra contra os Santadio. Fon clarividente, astuto, brutal quando necessário, e misericordioso quando pode sê-lo sem perigo. E agora a Família Clericuzio estava no auge do seu poder aparentemente a salvo de qualquer ataque. Em breve desapareceria na trama legal da sociedade e tornar-se-ia invulnerável.

Don Domenico não sobrevivera tanto tempo, porém, sendo cegamente optmista. Era capaz de detectar uma erva daninha antes que ela mostrasse a cabeça acima do chão. O grande perigo agora era interno, a ascensão de Dante, o facto de ele ter chegado à idade adulta de uma maneira que não era inteiramente satisfatória para o Don.

Depois havia o caso de Cross, enriquecido pela herança de Gronevelt, que se atrevera a fazer uma jogada de grande vulto sem a supervisão da Família. Aquele jovem começara de uma forma brilhante, a caminho de se tornar um Homem Qualificado, como o pai, Pippi. Então, no caso de Virginio Ballazzo, pusera-se com esquisitices. Depois de ter sido desobrigado pela Família dos deveres operacionais, por causa da sensibilidade do seu coração, voltara ao campo por razões de proveito próprio e matara o tal homem, Skan-net. Sem autorização do Don. Mas Don Clericuzio desculpava-lhe estas acções, desculpava-lhe o seu estranho sentimentalismo. Cross estava a tentar escapar ao mundo em que vivia para entrar noutro. Embora aquelas acções fossem ou pudessem ser sementes de traição, Don Clericuzio compreendia. No entanto, Pippi e Cross combinados constituiriam uma ameaça para a Família. Além disso, o Don não ignorava o ódio de Dante pelos De Lena. Pippi era demasiado esperto para não o ter descoberto também, e Pippi era um homem perigoso. Seria preciso mantê-lo debaixo de olho, apesar da sua mais que provada lealdade.

Esta indulgência do Don nascia da sua amizade por Cross e do seu amor por Pippi, o seu velho e fiel soldado, o filho da sua irmã. Ao fim e ao cabo, corria-lhes nas veias sangue dos Clericuzio. O perigo que verdadeiramente o preocupava era o representado por Dante.

Don Clericuzio sempre fora para Dante um avô terno e compreensivo. Os dois tinham sido muito chegados até que o rapaz fizera dez anos e um certo desencanto começara a instalar-se. O Don detectava no carácter do neto certas características que o preocupavam.

Dante, aos dez anos de idade, era uma criança exuberante, maliciosamente divertida. Era um bom atleta, com uma excelente coordenação física. Adorava falar, sobretudo com o avô, e tinha longas e sigilosas conversas com a mãe, Rose Marie. Mas então, a partir dos dez anos, tornara-se malévolo e brutal. Lutava com outros rapazes da sua idade usando uma violência inapropriada. Provocava desapiedadamente as raparigas, com uma obscenidade inocente que era chocante, apesar de divertida. Torturava pequenos animais - o que não era particularmente significativo no caso de rapazinhos muito novos, como o Don bem sabia -, mas certa vez tentara afogar um garoto mais pequeno na piscina da escola. E, finalmente, tornara-se desobediente, inclusive ao próprio avô.

Não que o Don julgasse com demasiada severidade estas coisas. Ao fim e ao cabo, as crianças eram animais, tinham de aprender a ser civilizadas à custa de muita paciência e palmadas no rabo. Havia crianças como Dante que ao crescerem se tornavam autênticos santos. O que perturbava o Don era a sua loquacidade, as suas longas conversas com a mãe, e, acima de tudo as suas desobediências ao próprio avô. Talvez o que também perturbasse o Don, que tinha um temor respeitoso pelos caprichos da Natureza, fosse o facto de, aos quinze anos, Dante ter parado de crescer. Continuou a medir um metro e cinquenta e sete centímetros de altura. Os médicos consultados concordaram que poderia crescer talvez mais seis ou sete centímetros, mas nunca chegaria ao metro e oitenta habitual dos Clericuzio. O Don via na baixa estatura de Dante um sinal de perigo, como nos gémeos: afirmava que embora o nascimento fosse um milagre sagrado, ter gémeos era ir demasiado longe. Houvera o caso de um soldado, no Enclave do Bronx, cuja mulher dera à luz trigémeos. O Don horrorizado, comprara-lhes uma mercearia em Portland, Oregon; uma vida boa, mas solitária. Don Domenico tinha igualmente superstições relativa mente aos canhotos e aos gagos. Dissessem as pessoas o que dissessem, aquilo não podiam ser bons sinais. E Dante era naturalmente canhoto.

Nem mesmo tudo isto, porém, teria sido o suficiente para fazer o Don desconfiar do neto, ou diminuir o seu afecto por ele; qualquer pessoa de seu próprio sangue estava naturalmente isenta. Mas quanto mais Dante crescia, mais se distanciava dos sonhos que o Don acalentara para o seu futuro Dante abandonara a escola com dezasseis anos e começara imediata mente a meter o nariz nos assuntos da Família. Trabalhara para Vincen num dos seus restaurantes. Era um empregado de mesa muito apreciado < ganhava excelentes gorjetas graças à sua habilidade e esperteza. Cansado disto, fora trabalhar durante dois meses para o escritório de Giorgio en Wall Street, mas detestara o trabalho e não mostrara a mais pequena aptidão para os números, mau grado os esforços de Giorgio para lhe ensinar as complexidades da riqueza no papel. Finalmente, assentara na empresa de construção de Petie, e adorava trabalhar com os soldados do Enclave. Orgulhava-se do seu corpo, que se tornava cada vez mais musculoso. Mas com tudo isto adquirira de certa maneira algumas características dos três tios facto que o Don notara com orgulho. Tinha a franqueza directa de Vincent, a frieza de Giorgio e a ferocidade de Petie. Algures ao longo deste percurso, estabelecera a sua própria personalidade, aquilo que verdadeira mente era: matreiro, astuto, tortuoso, mas com um sentido de humor que podia ser muito divertido. E fora por essa altura que começara a usar o seus chapéus renascentistas.

Os chapéus - ninguém sabia onde ele ia arranjá-los - eram feitos de um material colorido e iridiscente; alguns eram redondos, outros rectangulares, e balouçavam-lhe na cabeça como se flutuassem à tona de água. Pareciam torná-lo mais alto, mais atraente, mais simpático. Em parte porque eram apalhaçados e desarmantes, em parte porque equilibravam os seus dois perfis. Os chapéus ficavam-lhe bem. Escondiam-lhe o cabelo, muito negro e grosso, como o de todos os Clericuzio.

Um dia, no escritório, onde a fotografia de Silvio continuava a ocupar o lugar de honra, Dante perguntara ao avô:

Como foi que ele morreu?

Um acidente - respondera o Don, sem mais explicações.

Era o seu filho preferido, não era? - insistira Dante.

O Don sobressaltara-se ao ouvir a pergunta. Dante ainda tinha apenas quinze anos.

Porque haveria isso de ser verdade? - perguntara por sua vez.

Porque está morto - respondera Dante com um sorriso malicioso, e o Don demorara alguns instantes a aperceber-se de que aquele miúdo ousara dizer semelhante graça.

Don Domenico sabia que Dante lhe revistava o escritório quando ele estava a jantar. Isto não o perturbava, as crianças eram sempre curiosas a respeito dos velhos e o Don nunca escrevia em papéis fosse o que fosse que pudesse divulgar qualquer informação. Don Clericuzio tinha num canto do cérebro um grande quadro negro onde apontava tudo o que precisava de saber, incluindo os totais de todos os pecados e virtudes daqueles que lhe eram mais queridos.

No entanto, quanto mais aumentava a sua desconfiança em relação ao neto, mais afecto lhe mostrava, dando-lhe a entender que seria um dia um dos herdeiros do império da Família. E as censuras e admoestações ficavam a cargo dos tios do rapaz, sobretudo Giorgio.

Finalmente, o Don acabara por desistir da sua esperança de que Dante viesse alguma vez a integrar-se na sociedade legal e, relutantemente, autorizara que começasse a ser treinado como futuro martelo.

Don Domenico ouviu a filha, Rose Marie, chamá-lo para jantar na cozinha, onde comiam quando estavam só os dois. Desceu, sentou-se à mesa diante da grande e colorida tijela de massa "cabelos de anjo" com tomate e manjericão apanhados na horta da casa. Rose Marie colocou diante dele a taça de prata com o parmesão ralado; o queijo era intensamente amarelo, o que provava a sua doce frescura. Depois foi sentar-se em frente dele. Estava alegre e bem disposta, e o Don ficou encantado por vê-la de tão bom humor. Naquela noite não teria nenhum dos seus terríveis ataques. Estava como costumava ser antes da guerra contra os Santadio.

Que tragédia, essa guerra! Um dos poucos erros que alguma vez cometera, um erro que lhe provara que uma vitória nem sempre é uma vitória Mas quem teria pensado que Rose Marie iria ficar viúva para sempre? os apaixonados acabam sempre por voltar a amar, era uma das convicções de Don. Naquele instante, Don Domenico sentiu um enorme afecto pela filha Ela compensava os pequenos pecadilhos de Dante. Rose Marie inclinou -se por cima da mesa e fez-lhe uma terna festa na cabeça grisalha.

O Don encheu a colher de queijo ralado e sentiu a sua agradável consistência contra as gengivas. Bebeu um golo de vinho e ficou a ver Rose Mari cortar a perna de borrego. Ela serviu-lhe três batatas assadas, tostadas e brilhantes de gordura. O espírito perturbado do Don clarificou-se. Quem era melhor do que ele?

Estava tão bem disposto que deixou Rose Marie convencê-lo a ver um pouco de televisão com ela na sala de estar pela segunda vez nessa semana Depois de assistir a quatro horas repletas de horrores, disse à filha:

- Será possível viver num mundo assim, onde cada um faz aquilo que quer? Ninguém é castigado por Deus nem pelos homens e ninguém tem de ganhar a vida? Haverá realmente mulheres assim, que seguem cada um dos seus caprichos? E homens tão loucos e fracos, que sucumbem aos mais pequenos desejos, aos mais pequenos sonhos de felicidade? Onde estão os honestos pais de família que trabalham para ganhar o pão de cada dia, que procuram a melhor maneira de proteger os filhos contra os ataques da sorte e de um mundo cruel? Onde estão as pessoas que compreendem que un pedaço de queijo, um copo de vinho, o calor de uma casa no fim de um dia de trabalho são recompensa suficiente? Onde estão as pessoas que anseiam por uma misteriosa felicidade? Que confusão fazem das suas vidas, que tragédias fabricam a partir de nada. - O Don acariciou a cabeça da filha e fez um gesto de desdém na direcção do televisor. Disse:- Eles que vão todos nadar para o fundo do oceano. - E rematou com uma última sentença de sabedoria: - Toda a gente é responsável por tudo o que faz.

Nessa noite, sozinho no seu quarto, Don Clericuzio saiu para a varanda Todas as casas à volta da mansão estavam brilhantemente iluminadas, ouvi; o bater das bolas de ténis no courte via os jogadores à luz dos projectores Não havia crianças a brincar no exterior a uma hora tão tardia. Viu os guardas junto ao portão em volta da casa.

Ponderava que medidas poderia tomar para evitar tragédias futuras O amor pela filha e pelo neto invadiram-no como uma onda, era o que fazia valer a pena chegar a velho. Teria muito simplesmente de protegê-los o me lhor que pudesse. Então irritou-se consigo mesmo. Porque seria que estava constantemente a prever calamidades? Resolvera todos os problemas da sua vida, e havia de resolver aquele.

No entanto, a sua cabeça continuava cheia de um turbilhão de planos. Pensou no senador Wavven. Durante anos, dera àquele homem milhões de dólares para conseguir que fossem aprovadas leis que legalizassem o jogo. Mas o senador era escorregadio. Era uma pena Gronevelt ter morrido; Cross e Giorgio não tinham a habilidade necessária para lidar com ele. Talvez o seu sonho de um império de jogo nunca viesse a concretizar-se.

Então pensou no seu amigo David Redfellow, agora a viver tão confortavelmente em Roma. Talvez fosse tempo de o chamar de volta à Família. Estava muito bem para Cross mostrar-se tão compreensivo para com os seus sócios em Hollywood. Ao fim e ao cabo, era muito novo. Ainda não sabia que um só sinal de fraqueza podia ser fatal. Decidiu que ia mandar regressar David Redfellow de Roma, para fazer qualquer coisa em relação ao negócio do cinema.

 

Uma semana depois da morte de Boz Skannet, Cross recebeu, através de Claudia, um convite de Athena Aquitane para jantar na sua casa em Malibu.

Apanhou o avião de Las Vegas para Los Angeles, alugou um carro e chegou diante do portão guardado de Malibu Colony quando o sol começava a mergulhar lentamente no oceano. Já não havia qualquer segurança especial, embora a secretária continuasse a ocupar o seu posto na casa de hóspedes e a abrir o portão. Cross atravessou o jardim até à casa sobre a praia. A mesma empregada sul-americana conduziu-o à sala verde-mar, que parecia escapar por pouco ao espraiar das ondas do Pacífico.

Athena esperava-o, e era ainda mais bela do que ele se lembrava. Vestia blusa e calças verdes, e parecia confundir-se e fazer parte da névoa que pairava sobre o oceano, estendido como um pano de fundo atrás dela. Cross não conseguia afastar os olhos. Athena recebeu-o com um aperto de mão, e não com o beijo em cada face habitual em Hollywood. Tinha bebidas preparadas e entregou-lhe uma. Água de Evian com lima. Sentaram-se nas grandes cadeiras verdes estofadas, de frente para o mar. O sol poente espalhava pela sala moedas douradas de luz.

Cross estava tão consciente da beleza dela que teve de baixar a cabeça para conseguir deixar de a contemplar. O elmo dourado do cabelo, a pele leitosa, a maneira como o corpo alongado se estirava na cadeira. Algumas das moedas de ouro caíram-lhe nos olhos verdes, como sombras fugidias. Cross sentiu um desejo urgente de lhe tocar, de estar perto dela, de a ter como coisa sua.

Athena parecia inconsciente das emoções que despertava. Provou a bebida e disse:

- Quero agradecer-lhe por me ter mantido no mundo do cinema.

O som da voz dela enfeitiçou Cross ainda mais. Não era lascivo nem convidativo. Mas tinha um tom tão aveludado, uma confiança tão absoluta, e ao mesmo tempo tanta doçura, que tudo o que ele queria era que ela continuasse a falar. Jesus Cristo, pensou, que diabo estava a acontecer-lhe? Envergonhava-se do poder que ela exercia sobre todo o seu ser. Ainda de cabeça baixa, murmurou:

Pensei que poderia fazê-la voltar ao trabalho apelando para a sua ganância.

A ganância não é uma das minhas fraquezas - disse Athena. Desviou então os olhos do oceano, para poder fixar directamente os dele. - A Claudia disse-me que a LoddStone renegou o acordo depois de o meu marido se ter suicidado. Que teve de devolver-lhes o filme e aceitar uma percentagem.

Cross manteve uma expressão impassível. Esforçava-se por banir do rosto o reflexo de tudo o que sentia por ela.

Acho que não sou um grande homem de negócios - respondeu. Queria dar-lhe a impressão de que era inepto.

Foi a Molly Flanders quem redigiu o seu contrato. E ela é a melhor. Podia ter aguentado.

Cross encolheu os ombros.

Uma questão de política. Quero entrar para o negócio do cinema numa base permanente e não me interessa fazer inimigos tão poderosos como a LoddStone Studios.

Eu podia ajudá-lo. Podia recusar-me a voltar ao filme.

A possibilidade de ela estar disposta a fazer aquilo por ele emocionou-o. Ponderou a oferta. A LoddStone poderia continuar a querer ir para tribunal. Além disso, não suportava a ideia de deixar que Athena o colocasse numa posição de devedor. E então ocorreu-lhe que embora Athena fosse muito bela, isso não significava que não fosse também muito esperta.

- Porque faria uma coisa dessas? - perguntou.

Athena levantou-se da sua cadeira e aproximou-se das portas do terraço. As praias eram sombras cinzentas, o sol tinha desaparecido, e o oceano parecia reflectir as montanhas que se erguiam para lá da casa e da Pacific Coast Highway. Deixou o olhar alongar-se pela superfície do mar, que adquirira um tom azul de chumbo, agitada por pequenas ondas. Não voltou a cabeça para ele quando respondeu:

- Porque faria uma coisa dessas? Simplesmente porque conhecia o Boz Skannet melhor do que ninguém. E não quero saber se deixou duas ou cem notas de suicídio; sei que nunca se mataria.

Cross encolheu os ombros.

Morto é morto - disse.

Isso é verdade - admitiu Athena. Voltou-se para o enfrentar, olhou directamente para ele. - O Cross compra o filme e logo a seguir o Boz, muito convenientemente, suicida-se. Você é o meu candidato a assassino. - Mesmo sério, o rosto dela pareceu tão belo a Cross que a voz dele, quando falou, não soou tão firme quanto teria desejado.

- E os estúdios? O Marrion é um dos homens mais poderosos do país. E o Bantz? E o Skippy Deere?

Athena abanou a cabeça.

Compreenderam o que eu estava a pedir-lhes. Tal como o Cross. Mas não o fizeram, venderam-lhe o filme a si. Não se importavam que eu fosse morta uma vez acabado o filme. Mas o Cross importou-se. E eu soube que me ajudaria mesmo quando me disse que não podia. Quando ouvi dizer que tinha comprado o filme, soube exactamente o que ia fazer, mas tenho de admitir que nunca pensei que pudesse ser tão esperto. - Subitamente, aproximou-se dele, e Cross levantou-se da cadeira. Athena pegou-lhe nas mãos. Cross sentiu o cheiro do corpo, do hálito dela.

Foi a única coisa má que fiz em toda a minha vida - continuou Athena. - Levar alguém a cometer um assassínio. Foi terrível. Teria sido uma pessoa muito melhor se o tivesse feito eu própria. Mas não podia.

Porque é que tinha a certeza que eu faria qualquer coisa?

A Claudia falou-me muito de si. Compreendi imediatamente quem o Cross era, mas ela é tão ingénua que ainda não percebeu. Pensa que o irmão é apenas um tipo duro com muita influência.

Cross ficou instantaneamente muito alerta. Athena estava a tentar levá-lo a admitir a sua culpa. Uma coisa que ele nunca faria nem mesmo diante de um padre, ou do próprio Deus.

- E a maneira como olhou para mim - continuou ela. - Muitos homens têm olhado para mim dessa maneira. Não estou a ser vaidosa, sei que sou bonita, as pessoas dizem-mo desde quando eu era criança. Sempre soube que tinha poder, mas nunca compreendi verdadeiramente esse poder. Não gosto realmente dele, mas uso-o. É aquilo a que as pessoas chamam "amor".

Cross largou-lhe as mãos.

- Porque tinha tanto medo do seu marido? Porque ele podia arruinar a sua carreira?

Por um momento, houve um clarão de ira nos olhos dela.

Não foi por causa da minha carreira - disse -, e não foi por medo, embora soubesse que ele me mataria. Tinha uma razão melhor. - Fez uma pausa, e então declarou:- Posso obrigá-los a devolverem-lhe o filme. Posso recusar-me a continuar a trabalhar?

Não.

Athena sorriu e disse, com uma expressão alegremente animada:

- Ou então podemos ir os dois para a cama. Acho-o muito atraente e estou certa de que ambos gostaríamos da experiência.

A primeira reacção dele foi de irritação, por ela pensar que podia comprá-lo. Por estar a representar um papel, usando a sua habilidade de mulher, como um homem poderia usar a sua força física. Mas o que realmente o incomodou foi o facto de ter detectado uma levíssima nota de troça na voz dela. Troça da galanteria dele, e o querer transformar o seu amor numa simples cópula. Como se estivesse a dizer-lhe que o amor dele por ela era tão falso como o amor dela por ele.

Respondeu, friamente:

- Tive uma longa conversa com o Boz, tentando chegar a um acordo. Ele disse-me que costumava levá-la para a cama cinco vezes por dia, quando estavam casados.

Ficou satisfeito ao ver que ela parecia ter-se sobressaltado.

- Nunca as contei, mas eram muitas. Eu tinha dezoito anos e estava verdadeiramente apaixonada por ele. Não é estranho que agora quisesse vê- -lo morto?- Franziu a testa e perguntou, displicentemente:- De que mais falaram?

Cross olhou-a com uma expressão sombria.

- O Boz revelou-me o terrível segredo que existe entre os dois. Disse- -me que a Athena lhe tinha confessado que, ao fugir, enterrara a sua filha no deserto.

O rosto de Athena tornou-se uma máscara, os seus olhos ficaram baços. Pela primeira vez naquela noite, Cross sentiu que não era possível ela estar a representar. As suas faces tinham adquirido uma palidez que nenhuma actriz conseguiria simular.

Acredita verdadeiramente que eu assassinei a minha filha? - perguntou, num murmúrio.

O Boz afirmou que foi o que lhe disse.

Disse-lhe isso, de facto. Agora, pergunto-lhe outra vez. Acredita verdadeiramente que eu assassinei a minha filha?

Não há nada tão terrível como condenar uma mulher bonita. Cross sabia que se respondesse com a verdade, perdê-la-ia para sempre. De súbito, rodeou-a suavemente com os braços.

- É demasiado bela. Ninguém assim tão bela seria capaz de uma coisa dessas. - A eterna veneração do homem pela beleza contra todas as provas. - Não - afirmou. - Não acredito que o tenha feito.

Ela afastou-se um pouco.

Apesar de eu ser responsável pelo que aconteceu ao Boz?

Não é responsável. Ele suicidou-se.

Athena estava a olhar intensamente para ele. Cross pegou-lhe nas mãos.

- Acredita que eu matei o Boz? - perguntou por sua vez.

E então Athena sorriu, uma actriz que acabava finalmente de descobrir como representar uma cena.

- Não mais do que o Cross acredita que eu matei a minha filha. Sorriram ambos. Tinham-se declarado inocentes um ao outro. Ela pegou-lhe na mão e disse:

- Agora vou preparar-lhe um jantar, e depois vamos os dois para a cama. - E levou-o para a cozinha.

Quantas vezes terá ela representado esta cena, pensou Cross, ciumen-tamente. A bela rainha entregue às tarefas do lar, como qualquer vulgar dona de casa. Ficou a vê-la cozinhar. Não usava avental e era extraordinariamente profissional. Conversou com ele enquanto cortava os vegetais, preparava a frigideira e punha a mesa. Deu-lhe uma garrafa de vinho para abrir, segurando-lhe na mão e roçando o corpo pelo dele. Viu-o olhá-la com admiração quando tudo ficou pronto em meia hora.

- Interpretei uma mulher chefe de cozinha num dos meus primeiros filmes - explicou -, de modo que fui para uma escola de culinária aprender como se fazia. E um dos críticos escreveu: "Quando Athena Aquitane representar tão bem como cozinha, será uma estrela."

Comeram junto à janela da cozinha, para poderem ver o mar. O jantar estava delicioso: pequenos quadrados de carne cobertos de vegetais, e uma salada verde. Havia um prato de queijos e fatias de pão quente, roliças como pombos. Terminaram com um café expresso e uma leve tarte de limão.

Devia ter sido cozinheira - disse Cross. - O meu irmão Vincent não teria a mínima dúvida em contratá-la para um dos seus restaurantes.

Oh, eu podia ter sido o que quisesse! - respondeu ela, com fingida presunção.

Durante o jantar, ela tocara-lhe uma ou outra vez, ao de leve, de uma maneira que era sexual, como se procurasse algum espírito na carne dele. Mas Cross, a cada toque, ansiava por sentir o corpo dela contra o seu. No final da refeição, já nem era capaz de saborear o que estava a comer. Finalmente acabaram e Athena pegou-lhe na mão e guiou-o para fora da cozinha, subindo os dois lanços de escada até ao quarto. Fê-lo graciosamente, quase timidamente, quase corando, como se fosse uma noiva virginal e ansiosa. Cross estava maravilhado com a habilidade dela como actriz.

O quarto ficava mesmo no topo da casa e tinha uma pequena varanda sobranceira à praia. Era uma divisão muito ampla, com as paredes cobertas de quadros estranhos, berrantes, que pareciam iluminá-la.

Ficaram na varanda a ver as luzes do quarto reflectirem-se na areia com um fantasmagórico brilho amarelo. As outras casas de Malibu estendiam-se pela orla da praia, como caixinhas de luz. Pequenas aves, como numa espécie de jogo, desciam velozmente quase até à água entre cada onda, sem nunca se molharem.

Athena pousou uma mão no ombro de Cross, e com a outra puxou-lhe a cabeça para baixo, de modo que os seus lábios se encontrassem. Beijaram-se longamente, bafejados pelo ar morno que soprava do mar. Depois ela levou-o para o interior do quarto.

Despiu-se rapidamente, desembaraçando-se da blusa e das calças verdes. O seu corpo branco brilhava na escuridão dissipada pelo luar. Era tão bela como ele a tinha imaginado. Os seios altos, com mamilos como morangos, pareciam algodão doce. As pernas compridas, a curva das ancas, os cabelos louros do púbis, a sua imobilidade absoluta, delineada por uma auréola quase invisível de bruma marítima.

Cross estendeu as mãos para aquele corpo, e a carne dela era como veludo, os lábios dela estavam cheios do aroma das flores. A simples alegria de lhe tocar era tão doce que ele não conseguia fazer mais nada. Athena começou a despi-lo. Fê-lo suavemente, passando as mãos pelo corpo dele como ele passara as suas pelo dela. Então, beijando-o, puxou-o docemente para a cama.

Cross fez amor com uma paixão que nunca conhecera e nem sequer sonhara que existisse. Estava tão ansioso que Athena teve de bater-lhe na cara para o acalmar. Não conseguia largar o corpo dela, mesmo depois de ambos terem atingido o clímax. Ficaram deitados, entrelaçados um no outro, até que começaram novamente. Ela foi ainda mais ardente do que da primeira vez, como se aquilo fosse uma espécie de concurso, uma espécie de confissão. Finalmente, deslizaram ambos para o sono.

Cross acordou quando o sol despontava por detrás das montanhas a oriente. Pela primeira vez em toda a sua vida, tinha uma dor de cabeça. Nu, saiu para a varanda e sentou-se numa das cadeiras de verga. Ficou a ver o mar, que o sol nascente iluminava ao iniciar a sua subida pelo céu.

Ela era uma mulher perigosa. O assassínio da própria filha, cujos ossos estavam agora cheios de areia do deserto. E era demasiado hábil na cama. Podia significar o fim dele. Naquele instante, decidiu que nunca mais voltaria a vê-la.

Então sentiu os braços da Athena em volta do pescoço e voltou a cabeça para a beijar. Athena vestia um felpudo roupão branco e tinha os cabelos seguros por ganchos que brilhavam como jóias numa coroa.

- Toma um duche e eu preparo-te o pequeno-almoço antes de ires - disse.

Guiou-o até à casa de banho dupla - dois lavatórios, dois balcões de mármore, duas banheiras e dois duches. Estava equipada com artigos de higiene para homem: máquina e espuma de barbear, loções, escovas e pentes.

Quando Cross acabou e voltou à varanda, Athena colocou em cima da mesa uma bandeja com croissants, café e sumo de laranja.

Posso fazer-te bacon com ovos - ofereceu.

Não, isto chega perfeitamente.

Quando é que volto a ver-te? -perguntou ela.

Tenho montes de coisas que fazer em Vegas - respondeu Cross. - Telefono-te para a semana.

Athena olhou-o atentamente, como se estivesse a avaliá-lo.

Isso significa adeus, não é? Gostei muito da noite passada. Cross encolheu os ombros.

Não fizeste mais que a tua obrigação - disse.

Ela dirigiu-lhe um sorriso bem humorado e respondeu:

- E com uma espantosa boa vontade, não te pareceu? Não me fiz rogada.

Cross riu-se.

- Não - admitiu.

Ela parecia ler-lhe a mente. Na noite anterior haviam mentido um ao outro, naquela manhã as mentiras não tinham poder. Ela parecia saber que a sua beleza era demasiada para que ele pudesse confiar. Que ele se sentia em perigo junto dela, com os seus pecados confessados. Parecia mergulhada em profundos pensamentos, e comeu em silêncio. Finalmente, disse-lhe:

- Sei que tens muito que fazer, mas há uma coisa que quero mostrar- -te. Podes dispensar-me esta manhã e apanhar o avião da tarde para Vegas? É importante. Quero levar-te a um sítio.

Cross não conseguiu resistir à tentação de passar mais algumas horas com ela, e disse que sim.

Foram no carro dela, um Mercedes SL 300, seguindo em direcção ao sul pela estrada de San Diego. Pouco antes de chegarem à cidade, porém, Athena virou à esquerda, por uma estreita estrada que atravessava as montanhas.

Um quarto de hora depois chegaram a um complexo cercado por um muro eriçado de arame farpado. Havia seis edifícios de tijolos vermelhos separados por relvados e ligados uns aos outros por caminhos pintados de azul celeste. Num dos relvados, um grupo de cerca de vinte crianças brincavam com uma bola. Ao lado, outras dez lançavam papagaios de papel. Três ou quatro adultos vigiavam-nas, mas a cena tinha algo de estranho. Quando a bola voava pelos ares, dava a impressão que a maior parte das crianças fugia dela, enquanto no outro relvado os papagaios se erguiam cada vez mais alto no céu, e nunca voltavam.

- Que lugar é este? - perguntou Cross. Athena olhou para ele, suplicantemente.

- Vem só comigo, por favor - pediu. - Depois poderás fazer todas as perguntas que quiseres.

Avançou até ao portão de entrada e mostrou um crachá dourado ao segurança. Depois de entrar, continuou até ao maior dos edifícios e estacionou o carro.

Lá dentro, na recepção, perguntou qualquer coisa em voz baixa à empregada sentada atrás do balcão. Cross deixou-se ficar para trás, mas mesmo assim ouviu a resposta.

Hoje estava mal disposta, de modo que lhe demos um abraço no quarto.

Que raio significa isso? - espantou-se Cross.

Athena, porém, não respondeu. Pegou-lhe numa mão e guiou-o ao longo de um corredor de azulejos comprido e brilhante até um edifício contíguo e a uma espécie de dormitório.

Uma enfermeira sentada à entrada perguntou-lhes quem eram. Depois de lhe ter respondido, Athena voltou a pegar na mão de Cross e levou-o por um outro corredor para o qual davam numerosas portas. Finalmente, abriu uma delas.

Estavam num bonito quarto, amplo e cheio de luz. Havia os mesmos estranhos e sombrios quadros que Cross já vira em casa de Athena, mas aqui estavam espalhados pelo chão. Na parede, uma pequena prateleira continha uma fila de bonecas vestidas com engomados trajes Amish. No chão havia igualmente vários fragmentos de desenhos e pinturas.

Havia uma pequena cama coberta por uma manta felpuda cor-de-rosa e almofadas brancas com rosas vermelhas bordadas. Mas não havia qualquer criança deitada na cama.

Athena avançou até uma grande caixa aberta em cima, com as paredes interiores e o fundo protegidos por um espesso acolchoado azul claro, e quando Cross espreitou para dentro viu a criança lá estendida, aparentemente indiferente à presença deles. Estava a girar um manipulo situado no topo da caixa, e Cross viu como forçava as paredes acolchoadas a aproximarem-se uma da outra, quase a esmagando.

Era uma garotinha de dez anos, uma réplica minúscula de Athena, mas sem emoção, completamente desprovida de expressão, e os seus olhos verdes pareciam tão cegos como os de uma boneca de porcelana. No entanto, de cada vez que girava o manipulo para fazer os painéis acolchoados apertarem-lhe o corpo, o seu rosto refulgia com uma serenidade absoluta. Não dera o mais pequeno sinal de os ter visto.

Athena aproximou-se da cabeceira da caixa de madeira e fez girar o manipulo de modo a poder retirar a criança lá de dentro. Parecia não pesar quase nada.

Athena pegou-lhe ao colo como se fosse um bebé e inclinou a cabeça para lhe beijar a face, mas ela encolheu-se e afastou a cara.

- É a Mamã - disse Athena -. Não me dás um beijo?

O tom da voz dela destroçou o coração de Cross. Era uma súplica abjecta, mas agora a criança debatia-se violentamente nos seus braços. Finalmente, Athena pousou-a no chão com todo o cuidado. A garota pôs-se de joelhos e pegou imediatamente numa caixa de tubos de tinta e numa grande folha de cartão. Completamente absorta, começou a pintar.

Cross ficou a ver como Athena recorria a todos os seus dotes de actriz para tentar estabelecer contacto com a filha. Primeiro ajoelhou-se junto dela e foi a amorosa companheira de brincadeiras, ajudando-a pintar, mas a menina não lhe prestou atenção.

Então Athena sentou-se e tentou ser a mãe cheia de confiança a contar à filha o que acontecia pelo mundo, mas a criança continuou a ignorá-la. Em seguida, Athena transformou-se no adulto solícito, a elogiar as pinturas da criança. A tudo isto, a menina respondeu continuando a voltar-lhe as costas. Athena pegou num dos pincéis e tentou ajudar, mas quando a menina se apercebeu disto, arrancou-lhe o pincel da mão. Nem uma única vez pronunciou uma palavra.

Finalmente, Athena desistiu.

- Volto amanhã, querida - disse. - Levo-te a dar um passeio e trago- -te mais uma caixa de tintas. Estás a ver - continuou, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces - estás a ficar sem vermelhos. - Tentou dar à criança um beijo de despedida, mas foi mantida à distância por duas pequenas e bonitas mãos.

Finalmente, Athena levantou-se e saiu do quarto, seguida por Cross.

Entregou-lhe as chaves do carro, para que ele pudesse conduzir de volta a Malibu, e durante toda a viagem escondeu a cara nas mãos e chorou. Cross estava tão estarrecido que não conseguia dizer uma palavra.

Quando desceram do carro, Athena parecia ter recuperado o controlo de si mesma. Puxou Cross para dentro de casa e voltou-se para o enfrentar.

- Aquela criança é o bebé que eu disse ao Boz que tinha enterrado no deserto. Agora acreditas em mim? - E, pela primeira vez, Cross acreditou verdadeiramente que ela podia amá-lo.

Athena levou-o para a cozinha e fez café. Sentaram-se junto à janela, a olhar para o mar. Enquanto bebiam o café, Athena começou a falar. Falava em tom de conversa, sem qualquer emoção na voz ou no rosto.

- Quando fugi do Boz, deixei a minha filha em casa de uns primos afastados, que viviam em San Diego. Ela parecia uma criança normal. Nessa altura não sabia que era autista, e talvez não fosse. Deixei-a lá porque estava  decidida a ser uma actriz de sucesso. Tinha de ganhar dinheiro para nós as duas. Tinha a certeza de ter talento, e Deus sabe que toda a gente me dizia como era bonita. Sempre pensei que quando fosse famosa poderia ir buscar a minha filha.

"Por isso trabalhava em Los Angeles e ia vê-la a San Diego sempre que podia. Então comecei a ter êxito e deixei de ir vê-la tão frequentemente, talvez uma vez por mês. Finalmente, quando estava pronta para a trazer para casa, fui à festa do seu terceiro aniversário carregada com todo o género de presentes, mas a Bethany parecia ter-se escapado para um outro mundo. Estava completamente vazia. Não conseguia chegar-lhe. Entrei em pânico. Pensei que talvez tivesse um tumor no cérebro. Lembrei-me de quando o Boz a tinha deixado cair no chão, pensei que talvez o cérebro dela tivesse ficado afectado e só então começasse a notar-se. Durante meses andei com ela nos médicos, foi submetida a uma porção de testes, levei-a a especialistas que verificaram tudo. Então alguém, já não me lembro se foi o médico em Boston ou o psiquiatra no Texas Children's Hospital, disse-me que ela era autista. Eu nem sequer sabia o que isso significava, pensava que era uma espécie de atraso mental. Não, disse-me o médico. Significava que ela vivia noutro mundo, que não tinha consciência da existência das outras pessoas, não tinha interesse nelas, era incapaz de sentir fosse o que fosse por alguma coisa ou alguém. Foi quando a trouxe para aquela clínica, para estar mais perto de mim, que descobrimos que era capaz de reagir àquela máquina-de-abraços que viste. Parecia ajudar alguma coisa, e por isso tive de deixá-la lá.

Cross escutava em silêncio; Athena continuou:

- Ser autista significava que nunca poderia amar-me. Mas os médicos disseram-me que alguns autistas são pessoas de talento, mesmo geniais. E eu penso que a Bethany é um génio. Não só a pintar. Há mais qualquer coisa. Os médicos dizem que ao cabo de muitos anos de treino intenso alguns autistas conseguem aprender a interessarem-se por algumas coisas, e depois por algumas pessoas. Alguns conseguem até viver uma vida quase normal. Por enquanto, a Bethany não suporta ouvir música ou qualquer ruído. Mas ao princípio não suportava sequer que eu lhe tocasse, e agora aprendeu a tolerar-me, de maneira que acho que está melhor do que já esteve.

"Continua a rejeitar-me, mas menos violentamente. Fizemos alguns progressos. Antigamente pensava que isto era o meu castigo por tê-la abandonado porque queria ter êxito na vida. Mas os especialistas dizem que por vezes, embora pareça ser uma doença hereditária, também pode ser adquirida, mas não sabem o que é que verdadeiramente a provoca. Disseram-me que não tinha nada a ver com o facto de o Boz a ter deixado cair no chão ou eu tê-la abandonado, mas não sei se acredito muito nisso. Estão sempre a dizer-me que não somos responsáveis, que é um dos mistérios da vida, talvez estivesse preestabelecido. Insistem em que nada poderia ter evitado que acontecesse e nada poderá alguma vez alterar o que aconteceu. Mas, mais uma vez, há qualquer coisa dentro de mim que se recusa a acreditar nisso.

"Mesmo quando soube pela primeira vez do estado dela, pensava nisso constantemente. Tive de tomar algumas decisões difíceis. Sabia que seria impotente para a ajudar se não ganhasse muito dinheiro. Por isso internei-a na clínica e ia visitá-la pelo menos um fim-de-semana por mês, e por vezes durante a semana. Finalmente, fiquei rica, era famosa, e nada do que antes fora importante importava agora. Tudo o que queria era estar junto da minha filha. Mesmo que nada disto tivesse acontecido, ia deixar o cinema depois deste filme, de qualquer maneira.

Porquê? -perguntou Cross.-O que é que ias fazer?

Há uma clínica especial em França onde trabalha um médico muito famoso. Era para lá que ia depois do filme. Então o Boz apareceu, e eu sabia que ele ia matar-me e então a Bethany ficaria sozinha. Foi por isso que, de certa maneira, arranjei maneira de o mandar matar. Ela só me tem a mim. E, bem, suportarei esse pecado. - Athena interrompeu-se e sorriu a Cross. - É pior do que as telenovelas, não é?

Cross olhou para o mar. Refulgia com um brilho azul oleoso à luz do sol. Recordou a garotinha com o seu rosto vazio como uma máscara, que nunca se abriria para o mundo.

- O que era aquela caixa onde ela estava? Athena riu-se.

É o que me dá esperança - disse. - Triste, não é? É uma caixa-de- -abraços. Muitas crianças autistas servem-se dela quando estão deprimidas. É como um abraço dado por uma pessoa, mas não têm de contactar ou relacionar-se com outro ser humano. - Inspirou fundo e afirmou:- Cross, um dia vou tomar o lugar daquela máquina. E o único objectivo da minha vida. A minha vida não faz sentido a não ser por isso. Não achas engraçado? Os estúdios dizem-me que recebo milhares de cartas de pessoas que me amam. Quando apareço em público, as pessoas querem tocar-me. Os homens estão constantemente a dizer-me que me amam. Toda a gente menos a Bethany, e ela é a única que eu quero.

Ajudar-te-ei em tudo o que puder.

Então telefona-me para a semana. Passemos tanto tempo juntos quanto pudermos, até acabarem as filmagens.

Telefono-te - prometeu Cross. - Não posso provar a minha inocência, mas amo-te mais do que tudo na vida.

E estás verdadeiramente inocente? - perguntou ela.

Sim - respondeu Cross. Agora que a sabia inocente, não suportava a ideia de ela o julgar culpado.

Cross pensou em Bethany, no seu rosto vazio tão artisticamente perfeito, nos seus olhos como espelhos; o raro ser humano totalmente isento de pecado.

Quanto a Athena, estivera a julgá-lo. De todas as pessoas que conhecia, Cross fora a única que vira Bethany depois de a criança ter sido declarada autista. Fora um teste.

Um dos grandes choques da sua vida acontecera-lhe quando descobrira que, apesar de ser tão bela, apesar de ser tão talentosa (e, pensou, troçando de si mesma, tão boa, tão gentil, tão generosa), os seus amigos mais chegados, homens que a amavam, parentes que a adoravam, tinham um secreto prazer nos seus infortúnios.

Fora quando Boz lhe deixara um olho negro, e embora toda a gente lhe chamasse um "estuporado filho da mãe", ela notara em todos eles um fugidio lampejo de satisfação. Ao princípio pensara que era imaginação sua, que era demasiado sensível. Mas quando Boz voltara a fazer-lhe o mesmo, detectara outra vez aquelas expressões. E ficara terrivelmente magoada. Porque dessa vez compreendera perfeitamente.

Claro que todos a amavam, não duvidava disso. Mas parecia que ninguém conseguia resistir a uma pequena ponta de malícia. A grandeza, seja sob que forma for, suscita a inveja.

Uma das razões por que gostava tanto de Claudia era o facto de ela nunca a ter traído com aquela expressão.

Era por isso que mantinha Bethany tão afastada da sua vida do dia a dia. Detestava a ideia de ver nas caras de pessoas que amava aquele lampejo de satisfação, de ser castigada por ser tão bela.

Embora conhecesse o poder da sua beleza e o usasse, desprezava-o. Ansiava pelo dia em que rugas fundas lhe sulcariam o rosto perfeito, mostrando cada uma delas um caminho que escolhera, uma jornada a que sobrevivera, em que o seu corpo se tornaria mais cheio, mais macio e mais amplo para proporcionar conforto àqueles que abraçasse, em que os seus olhos se tornariam mais líquidos de piedade por todos os sofrimentos de que fora testemunha e todas as lágrimas que nunca derramara. Aparecer-lhe-iam rugas nos cantos da boca de tanto rir de si mesma, e da própria vida. Como seria livre quando já não tivesse de recear as consequências da sua beleza física e em vez disso se regozijasse pela sua perda, à medida que fosse sendo substituída por uma serenidade mais duradoura.

Por isso vigiara atentamente Cross De Lena enquanto estivera com Bethany, notara o seu ligeiro recuo inicial, mas depois mais nada. Sabia que ele estava perdidamente apaixonado por ela, e não lhe vira no rosto a tal expressão de satisfação ao saber da sua infelicidade com Bethany.

 

Claudia estava decidida a descontar o vale sexual que Eli Marrion lhe passara: ia envergonhá-lo, a ponto de dar a Ernest Vail os pontos percentuais que ele exigia sobre o seu romance. As hipóteses não eram muitas, mas Claudia estava disposta a comprometer os seus princípios. Bobby Bantz era implacável quando se tratava de percentagens dos resultados brutos, mas Eli Marrion era imprevisível e tinha um fraquinho por ela. Além disso, um costume geralmente respeitado no mundo do cinema determinava que qualquer relação sexual, por muito breve que fosse, exigia a concessão de alguma cortesia material.

A ameaça de Vail de se suicidar fora o disparador daquela reunião. Se a cumprisse, os direitos dos seus romances passariam para a ex-mulher e os filhos, e Molly Flanders seria uma negociadora feroz. Ninguém acreditava na ameaça, nem sequer Claudia, mas Bobby Bantz e Eli Marrion, partindo do seu conhecimento daquilo que seriam capazes de fazer por dinheiro, não podiam deixar de se preocupar.

Quando Claudia, Ernest e Molly chegaram à LoddStone, encontraram apenas Bobby na suite do último andar. Parecia pouco à vontade, embora procurasse disfarçá-lo acolhendo-os efusivamente, sobretudo a Vail.

- O nosso Tesouro Nacional - exclamou, e abraçou Ernest com respeitoso afecto.

Molly ficou imediatamente alerta.

- Onde está o Eli? -perguntou. - Ele é o único que pode tomar uma decisão final neste assunto.

A voz de Bantz era tranquilizadora:

O Eli está no hospital, no Cedar Sinai, nada de grave, apenas um checkup. Isto é confidencial. As acções da LoddStone sobem e descem ao ritmo da saúde dele.

Ele tem mais de oitenta anos - disse Claudia, secamente. - Com essa idade, tudo é grave.

- Não, não - garantiu Bantz. - Trabalhamos todos os dias no hospital. Está até mais fino do que é costume. Portanto, digam-me o que pretendem e eu conto-lhe a vossa história quando for visitá-lo.

Não - recusou Molly, secamente. Ernest Vail, no entanto, interveio:

Vá lá, falemos com o Bobby.

Expuseram o caso. Bantz achou engraçadíssimo, mas não riu alto:

Já ouvi de tudo nesta cidade - disse -, mas isto é uma beleza Falei com os nossos advogados e eles dizem que a morte do Ernest não afecta os nossos direitos. é uma questão legal complicada.

Então fale com a sua gente das RP - sugeriu Claudia. - Se o Ernest faz o que diz e a história vem a público, a LoddStone vai ficar muito ma vista. O Eli não vai gostar disso. Ele tem mais sentido moral.

Do que eu? -perguntou Bobby Bantz delicadamente. Mas estav; furioso. Porque seria que as pessoas não compreendiam que Eli Marriom aprovaria tudo o que ele fizesse? Voltou-se para Ernest e perguntou: - Como é que está a pensar liquidar-se? Pistola, faca, janela?

Vail sorriu-lhe. - Hara-kiri em cima da sua secretária, Bobby. - Riram-se todos.

Não estamos a chegar a parte nenhuma - disse Molly. - Porque é que não vamos todos ao hospital visitar o Eli?

Não vou ter com um homem que está numa cama de hospital para discutir com ele a respeito de dinheiro! - declarou Vail.

Olharam todos para ele, com simpatia. Claro que, em termos convencionais, uma coisa daquelas podia parecer insensibilidade. Mas havia homens que nos seus leitos de doentes planeavam assassínios, revoluções, fraudes, traições. Uma cama de hospital não era um verdadeiro santuário. E sabiam que o protesto de Vail era basicamente uma convenção romântica.

- Mantenha essa boca calada, Ernest, se quer continuar a ser meu cliente - disse-lhe Molly, friamente. - O Eli tem lixado centenas de pessoas da sua cama no hospital. Bobby, façamos um acordo razoável. A Lodd Stone tem uma mina de ouro com as continuações. Podem dar-se ao luxo de conceder ao Ernest alguns pontos sobre o bruto, como uma forma de seguro.

Bantz estava horrorizado, foi como se lhe cravassem uma faca em brasa nas entranhas.

Pontos sobre o bruto? - exclamou, incrédulo. - Nunca!

OK - disse Molly. - E que tal cinco por cento sobre o líquido? Sem despesas de publicidade e sem descontos das percentagens sobre o bruto pagas às estrelas.

- Isso é quase o mesmo que sobre o bruto - respondeu Bantz, depreciativamente. - E todos nós sabemos que o Ernest não se suicida. Isso é demasiado estúpido e ele é demasiado inteligente.

O que queria verdadeiramente dizer era que ele não tinha coragem para o fazer.

- Para quê arriscar? - insistiu Molly. - Estive a ver os números. Vocês têm planeadas pelo menos três continuações. O que significa no mínimo meio bilião, incluindo o estrangeiro, mas sem contar com o vídeo e a TV. E só Deus sabe quanto é que vocês, ladrões de um raio, ganham com o vídeo. Assim sendo, porque não dar ao Ernest alguns pontos, uns míseros vinte milhões. Não hesitariam em dar isso a qualquer estrela meio-estúpida.

Bantz ponderou a proposta. Resolveu então recorrer ao charme.

- Ernest - disse -, como romancista, é um Tesouro Nacional. Ninguém o respeita mais do que eu. E o Eli leu todos os seus livros. Gosta imenso de si. Por isso queremos chegar a um acordo.

Claudia ficou embaraçada ao ver como Ernest engolia obviamente aquelas tretas, ainda que, para lhe fazer justiça, tivesse tido um ligeiro sobressalto ao ouvir-se chamar "Tesouro Nacional".

- Seja específico - disse, e nessa altura Claudia orgulhou-se dele. Bantz dirigiu-se a Molly:

- Que tal um contrato de cinco anos a dez mil por semana para escrever guiões originais e fazer um pouco de adaptação. E, claro, no que respeita aos originais tudo o que queremos é o direito de ser os primeiros a ver. E por cada adaptação recebe cinquenta mil extra por semana. Em cinco anos pode ganhar mais de dez milhões.

- Duplique isso - respondeu Molly - e podemos falar. Neste ponto, Vail pareceu perder a sua paciência quase angélica.

- Nenhum de vocês me está a levar a sério - declarou. - Sou capaz de fazer contas simples. Bobby, a sua proposta não vale mais que dois e meio. Nunca me comprará um guião original, e eu nunca escreverei um. Nunca me pedirá adaptações. E se fizerem seis continuações? Nesse caso ganham um bilião. - Vail começou a rir, genuinamente divertido. - Dois milhões e meio de dólares não me resolvem o problema.

- De que raio está você a rir? - perguntou Bantz. Vail estava quase histérico.

- Nunca em toda a minha vida sonhei ter sequer um milhão, e agora dois milhões e meio não me resolvem o problema.

Claudia conhecia o sentido de humor de Ernest.

Por que é que não te resolvem o problema? - inquiriu.

Porque continuarei a estar vivo. A minha família precisa dos pontos. Confiaram em mim e eu traí-os.

Deveriam ter-se sentido tocados, incluindo Bantz. Só que Vail soava tão falso, tão satisfeito consigo mesmo.

- Vamos falar com o Eli - propôs Molly Flanders.

Vail perdeu completamente a cabeça e saiu da sala, gritando:

- Não posso tratar com vocês! Recuso-me a pedinchar a um homem estendido numa cama de hospital!

Depois de ele sair, Bobby Bantz perguntou:

E vocês as duas estão dispostas a defender este tipo?

Por que não? - replicou Molly. - Uma vez defendi um tipo que tinha esfaqueado a mãe e os três filhos. O Ernest não é pior do que ele.

E a sua desculpa, qual é? -quis saber Bantz, voltando-se para Claudia.

Nós, os escritores, temos de nos ajudar uns aos outros - respondeu ela, secamente. Riram-se todos.

Acho que é tudo, então - disse Bobby. - Fiz o melhor que podia, não é verdade?

Bobby, por que é que não lhe dá um ou dois pontos? Seria mais do que justo - insistiu Claudia.

Porque, ao longo dos anos, ele tem lixado milhares de escritores, actores e realizadores. E uma questão de princípio - explicou Molly.

Exacto - admitiu Bantz. - E eles, quando podem, lixam-nos a nós. O negócio é assim.

O Eli está bem? - perguntou Molly, com fingido interesse. - Nada de grave?

Está óptimo. Não venda as suas acções.

Nesse caso pode receber-nos - atacou Molly.

Seja como for, quero ir vê-lo - acrescentou Claudia. - Gosto sinceramente do Eli. Foi ele quem me deu a minha primeira oportunidade.

Bantz encolheu os ombros. Molly disse:

Vai morder-se todo se o Ernest se mata. Essas continuações valem mais do que eu disse. Estava a tentar tornar as coisas mais fáceis para si.

Aquele palerma não se mata - replicou Bantz, num tom carregado de desprezo. - Não tem tomates para isso.

De Tesouro Nacional passou a palerma! - observou Claudia, pensativamente.

O homem é reconhecidamente um tanto doido - disse Molly. - E capaz de bater a bota por puro descuido.

Anda metido em drogas? - perguntou Bantz, preocupado.

Não - respondeu Claudia -, mas o Ernest é um poço de surpresas. E um verdadeiro excêntrico que nem sequer sabe que é excêntrico.

Bantz pensou naquilo por alguns instantes. Os argumentos delas tinham um certo mérito. E, além disso, nunca gostara de fazer inimigos desnecessariamente. Não queria que MoUy Flanders guardassem qualquer ressentimento contra ele. A mulher era um perfeito terror.

- Deixem-me telefonar ao Eli - propôs. - Se ele disser que está bem, levo-as ao hospital. - Tinha a certeza de que Marrion ia recusar.

No entanto, para sua enorme surpresa, Eli Marrion respondeu: - Claro que sim, podem vir todos ver-me.

Dirigiram-se ao hospital na limusina de Bantz, que era um carro grande mas de modo algum luxuoso. Estava equipada com um fax, um computador e um telefone celular. Um guarda-costas fornecido pela Pacific Ocean Security ocupava o lugar ao lado do motorista. Um outro carro da segurança, com dois homens a bordo, seguia-os a curta distância.

Os vidros castanhos das janelas da limusina apresentavam a cidade no tom creme como dos velhos filmes de cowboys. A medida que avançavam para o centro, os edifícios tornavam-se mais altos, como se estivessem a entrar numa profunda floresta de pedra. Claudia ficava sempre admirada pela maneira como, no curto espaço de dez minutos, era possível passar de uma pequena cidade verde e ligeiramente bucólica para uma grande metrópole de vidro e betão armado.

No Cedar Sinai, os corredores do hospital pareciam tão grandes como as salas de um aeroporto, mas os tectos eram opressivamente baixos, como numa bizarra perspectiva de câmara de um filme impressionista alemão. Foram recebidas por uma coordenadora do hospital, uma mulher atraente que envergava um conjunto saia-casaco severo mas nitidamente alta-costura e que fez lembrar a Claudia as "anfitriãs" dos hotéis de Las Vegas.

A coordenadora conduziu-os a um elevador especial que subia directamente até às suites do último andar.

Estas suites tinham grandes portas escuras de carvalho entalhado que chegavam do chão ao tecto, com brilhantes maçanetas metálicas, e que se abriam como portões, dando acesso a um conjunto formado por um quarto de hospital, uma sala maior, equipada com uma mesa de jantar e cadeiras, um sofá e cadeirões de braços, e uma espécie de gabinete onde tinha sido instalada uma secretária com um computador e um fax. Havia ainda uma pequena cozinha e uma casa de banho para as visitas, além da do doente. o tecto era muito alto e a ausência de paredes entre a cozinha, a sala de estar e o "escritório" dava a todo o conjunto o aspecto do cenário de um filme.

Eli Marrion estava estendido numa austera cama de hospital, apoiado por grandes almofadas brancas. Lia um guião com uma capa cor de laranja.

 Na mesa junto à cama havia diversas pastas com orçamentos de filmes em curso de produção. Uma secretária jovem e bonita, sentada do outro lado, tomava notas. Marrion gostava sempre de ter mulheres bonitas à sua volta. Bobby Bantz beijou-o na face e disse: , - Eli, estás com óptimo aspecto.

Molly e Claudia beijaram-no também. Claudia insistira em levar flores, e pousou-as em cima da cama. Tais familiaridades eram desculpáveis porque o grande Eli Marrion estava doente.

Claudia observava todos os pormenores, como se estivesse a fazer pesquisa para um argumento. Os filmes passados em ambiente hospitalar eram êxitos financeiros praticamente garantidos.

Na realidade, Eli Marrion não estava "com óptimo aspecto". Tinha os lábios orlados por linhas azuladas que pareciam traçadas a tinta, e ofegava pesadamente sempre que falava. Duas pontas verdes saíam-lhe do nariz, ligadas a um fino tubo de plástico que ia terminar numa borbulhante garrafa de água presa à parede e por sua vez sem dúvida ligada a um reservatório de oxigénio ali escondido.

Marrion notou o olhar dela: Oxigénio - disse.

É apenas temporário - apressou-se Bobby Bantz a explicar. - Para lhe facilitar a respiração.

Molly Flanders ignorou-o.

- Eli - disse -, expliquei a situação ao Bobby, e ele precisa do seu OK. Marrion parecia de bom humor.

Molly - respondeu -, sempre foi o advogado mais duro desta cidade. Vai perseguir-me até no meu leito de morte?

Eli - interveio Claudia -, o Bobby disse-nos que estava bem. E nós queríamos realmente vê-lo.

Estava tão obviamente envergonhada que Marrion ergueu uma mão, num gesto de aceitação e bênção.

- Compreendo todos os argumentos - disse Marrion. Acenou com a mão a despedir a secretária, que saiu silenciosamente do qurto. A enfermeira particular, uma mulher atraente e de ar duro, estava a ler um livro sentada à mesa de jantar. Marrion fez-lhe sinal para sair. Ela olhou para ele, abanou a cabeça e continuou a ler. Marrion riu, com um som sibilante. - É a Priscilla, a melhor enfermeira da Califórnia - explicou. - É especializada em cuidados intensivos, e é por isso que é tão dura. O meu médico contratou-a especialmente para este caso. Ela é que manda.

Priscilla cumprimentou-os com um gesto de cabeça e voltou ao seu livro.

Estou disposta a limitar os pontos dele a um máximo de vinte milhões - continuou Molly. - Será uma espécie de seguro. Para quê correr riscos? E porquê ser tão injusto?

Não é injusto! - protestou Bantz, iradamente. - Ele assinou um contrato.

Vá-se lixar, Bobby - respondeu-lhe Molly. Marrion ignorou-os.

Claudia, o que é que te parece?

Claudia tinha a cabeça cheia de pensamentos. Marrion estava obviamente muito mais doente do que alguém parecia disposto a admitir. E era uma crueldade sem nome pressionar aquele velho que tinha de fazer um esforço tão grande só para falar. Esteve tentada a anunciar que se ia embora, mas então pensou que Eli nunca os teria deixado ir até ali se não tivesse algum propósito muito seu.

O Ernest é um homem que faz coisas surpreendentes - disse. - Está decidido a defender os interesses da família. Mas, Eli, ele é um escritor, e o Eli sempre gostou dos escritores. Encare isto como uma contribuição para a arte. Que diabo, ofereceu vinte milhões ao Metropolitan Museum. Por que não fazer o mesmo pelo Ernest?

E ter todos os agentes à perna? - perguntou Bantz.

Eli Marrion inspirou profundamente, e as pontas verdes pareceram enterrar-se-lhe ainda mais no nariz.

- Molly, Claudia, isto vai ter de ficar um segredo só entre nós - disse. - Vou dar ao Ernest Vail dois pontos de percentagem sobre a margem bruta, até ao máximo de vinte milhões. E dou-lhe um milhão à cabeça. Chega para as satisfazer?

Molly pensou rapidamente. Dois por cento de todos os filmes renderiam pelo menos quinze milhões, mas talvez mais. Não conseguiria melhor, e estava até espantada por Marrion ter ido tão longe. Se se pusesse a regatear, ele era muito capaz de retirar a oferta.

- E óptimo, Eli, obrigada. - Inclinou-se para o beijar na face. - Amanhã mando um memorando para o seu escritório. E, Eli, espero sinceramente que se ponha bom.

Claudia não foi capaz de conter a sua emoção. Tomou uma mão de Eli entre as suas. Reparou nos pontos castanhos que salpicavam a pele daquela mão gelada pela aproximação da morte.

- Salvou a vida ao Ernest - disse.

Nesse instante, a filha de Marrion entrou no quarto com os dois filhos pequenos. A enfermeira, Priscilla, levantou-se da cadeira como um gato que tivesse cheirado ratos e avançou para as crianças, erguendo uma barreira entre elas e a cama. A filha já se divorciara duas vezes e não se dava bem com o pai, mas tinha uma companhia produtora nos terrenos da LoddStone porque Eli Marrion gostava muito dos netos.

Claudia e Molly despediram-se. Foram até ao gabinete de Molly e telefonaram a Ernest para lhes dar as boas notícias. Ele insistiu em levá-las a jantar, para festejar.

A filha de Marrion e os dois filhos não se demoraram muito. O tempo suficiente, mesmo assim, para convencer o pai a prometer comprar-lhe um romance muito caro para o seu próximo filme.

Bobby Bantz e Eli Marrion ficaram sozinhos.

- Hoje deu-te para a fraqueza - comentou Bobby.

Marrion sentiu o cansaço do seu corpo, o ar que lhe entrava à força nos pulmões. Com Bobby podia descontrair-se, nunca precisava de representar. Tinham passado por muita coisa juntos, usado o seu poder juntos, vencido guerras, viajado e manobrado de um extremo ao outro do mundo. Sabiam ler na mente um do outro.

O romance que vou comprar para a minha filha, dará um filme? - perguntou.

De pequeno orçamento - respondeu Bantz. - A tua filha faz filmes "sérios", entre aspas.

Marrion esboçou um gesto de cansaço.

Porque é que temos sempre de pagar pelas boas intenções dos outros? Dá-lhe um argumentista decente, mas nada de estrelas. Ela fica feliz e nós não perdemos tanto dinheiro.

Vais mesmo dar ao Vail uma percentagem do bruto? Os nossos advogados dizem que podemos ganhar em tribunal, se ele morrer.

Marion estava a sorrir.

- Se eu me puser bom. Senão, será contigo. Serás tu a mandar. Bantz ficou espantado por este sentimentalismo.

Eli, vais pôr-te bom, claro que sim. - E estava a ser absolutamente sincero. Não tinha o mínimo desejo de suceder a Eli Marrion, na realidade, temia esse dia que teria inevitavelmente de chegar. Era capaz de fazer fosse o que fosse, desde que Marrion aprovasse.

Vais ter de ser tu a decidir, Bobby - insistiu Eli. - A verdade é que não me vou safar. Os médicos dizem que preciso de fazer um transplante do coração, e eu decidi não o fazer. Posso viver talvez mais seis meses, talvez um ano, talvez muito menos, com este miserável coração que tenho. Além disso, sou demasiado velho para ter direito a um transplante.

Bantz estava petrificado.

- Não podem fazer um bypassi - perguntou. Quando Marrion abanou a cabeça, Bantz continuou: - Não sejas ridículo, claro que te vão fazer um transplante. Construíste metade deste hospital, têm de te dar um coração. Ainda tens mais uns bons dez anos pela frente. - Fez uma pausa. - Estás cansado, Eli, falamos a respeito disto amanhã.

Marrion, porém, tinha adormecido. Bantz saiu para ir falar com os médicos e dizer-lhes que iniciassem as diligências necessárias para encontrar um coração novo para Eli Marrion.

Ernest Vail, Molly Flanders e Claudia De Lena festejaram a vitória com um jantar no La Dolce Vita, em Santa Monica. Era o restaurante preferido de Claudia. Tinha recordações de si mesma, quando menina, a ir lá com o pai e ser tratada como uma rainha. Tinha recordações das garrafas de vinho branco e de vinho tinto empilhadas junto de todas as janelas, atrás dos bancos, em todos os espaços vagos. Os clientes podiam estender um braço e tirar uma garrafa, como se colhessem um cacho de uvas.

Ernest Vail estava de bom humor, e Claudia voltou a perguntar a si mesma como seria possível alguém julgá-lo capaz de se suicidar. Estava esfusiante de alegria por a sua ameaça ter resultado. E o excelente vinho tinto pusera-os a todos num estado de espírito exuberante, ligeiramente fanfarrão. Estavam muito satisfeitos consigo mesmos. A própria comida, robustamente italiana, alimentava esta energia.

O que temos agora de pensar - disse Vail -, é se dois pontos são o suficiente ou se devemos exigir três.

Não se torne ganancioso - aconselhou Molly. - O negócio está feito.

Vail beijou-lhe a mão, ao estilo estrela de cinema, e declarou:

- Molly, é um verdadeiro génio. Um génio implacável, é certo. Como foram vocês capazes de intimidar um desgraçado doente numa cama de hospital?

Molly molhou um pedaço de pão no molho de tomate.

Ernest - disse -, nunca há-de compreender esta cidade. Não há piedade para quem está bêbado, ou se mete nas drogas, ou está apaixonado, ou falido. Porque é que estar doente havia de constituir excepção?

O Skippy Deere disse-me uma vez - interveio Claudia -, que quando se está a comprar, se deve levar a pessoa a um restaurante chinês, mas quando se está a vender, deve-se ir a um restaurante italiano. Isto faz algum sentido?

Ele é um produtor - respondeu Molly. - Deve ter lido isso em qualquer lado. Não significa coisa nenhuma fora de um contexto.

Vail estava a comer com o prazer de um criminoso salvo da forca. Encomendara três tipos diferentes de massas só para si, mas dera uma pequena porção de qualquer delas a Molly e a Claudia e pedira-lhes a sua opinião. - A melhor comida italiana do mundo fora de Roma - sentenciou.

- A respeito disso do Skippy, faz um certo sentido, em termos de cinema. A comida chinesa é barata, faz baixar o preço. A comida italiana é capaz de pôr uma pessoa a dormir e torná-la menos atenta. Gosto de ambas. Não é agradável saber que o Skippy está sempre a engendrar qualquer coisa?

Vail pedia sempre três sobremesas. Não que as comesse todas, mas gostava de saborerar muitas coisas diferentes durante um único jantar. Nele não parecia excêntrico. Nem sequer a maneira como se vestia, como se as roupas se destinassem apenas a proteger a pele contra o vento ou o sol, ou a maneira descuidada como se barbeava, deixando uma patilha mais comprida do que a outra. Nem mesmo a ameaça de se suicidar parecia ilógica ou estranha. Nem a sua franqueza absoluta e infantil, que por vezes magoava os outros. Claudia não estranhava a excentricidade. Hollywood estava cheia de excêntricos.

Sabes uma coisa, Ernest, o teu lugar é em Hollywood. És suficiente mente excêntrico - disse.

Não sou excêntrico - protestou Vail. - Não sou assim tão sofisticado.

Não chamas excêntrico a quereres matar-te por causa de uma questão de dinheiro? - perguntou Claudia.

Isso era uma resposta extremamente fria e pensada à nossa cultura - afirmou Vail. - Estava farto de ser um Zé Ninguém.

- Como podes dizer uma coisa dessas? - exclamou ela, impacientemente. - Escreveste dez livros, ganhaste o Pulitzer. És internacionalmente famoso.

Vail despachara as suas três variedades de massas e estava a olhar para a entrada, três finas fatias de vitela cobertas com rodelas de limão. Pegou no garfo e na faca.

Tudo isso é conversa - declarou. - Não tenho dinheiro. Levei cinquenta e cinco anos a aprender que se uma pessoa não tem dinheiro, está lixada.

Pois eu acho que não é excêntrico, é doido - disse Molly. - E pare de choramingar por não ser rico. Também não é pobre. Ou não estaríamos aqui. Não o vejo a sofrer muito pela sua arte.

Vail pousou o garfo e a faca e deu uma palmadinha no braço de Molly.

- Tem razão - admitiu. - Tudo o que disse é verdade. Eu gozo a vida momento a momento. É o arco da vida que me atira abaixo. - Despejou o copo de vinho e continuou, no tom de quem se limita a verificar um facto: - Nunca mais voltarei a escrever. Escrever romances é um beco sem saída, como ser ferreiro. Agora é tudo cinema e TV.

Isso é um disparate! - protestou Claudia. - As pessoas hão-de ler sempre.

O que o Ernest é é preguiçoso - espicaçou-o Molly. - Qualquer desculpa lhe serve para não escrever. Essa era a verdadeira razão por que queria matar-se.

Riram-se todos. Ernest serviu-as da vitela que tinha no prato, e depois das sobremesas extra. As únicas alturas em que se mostrava cortês era ao jantar; parecia ter prazer em dar de comer aos outros.

Tudo isso é verdade - disse. - Mas um romancista não consegue ganhar a vida a menos que escreva romances simples. E mesmo isso é um beco sem saída. Um romance nunca pode ser tão simples como um filme.

Por que é que estás sempre a desfazer no cinema? -perguntou Claudia, irritada. - Já te vi chorar em bons filmes. Um bom filme é uma obra de arte.

Vail estava imensamente divertido. Ao fim e ao cabo, ganhara a sua guerra com os estúdios, conseguira os seus pontos.

- Claudia, concordo sinceramente contigo. O cinema é arte. Estou a queixar-me por inveja. O cinema está a tornar os romances irrelevantes. Qual é a vantagem de escrever uma passagem lírica a respeito da Natureza, descrever o mundo ao rubro, um magnífico pôr do sol, uma cordilheira de montanhas cobertas de neve, as majestosas ondas de um grande oceano? - Vail estava a declamar, agitando os braços. - O que é que se pode escrever a respeito da paixão e da beleza de uma mulher? Para que serve tudo isso, se uma pessoa pode vê-lo na tela do cinema, em Technicolor? Oh, essas maravilhosas mulheres de lábios vermelhos e cheios, de olhos mágicos, quando se pode vê-las de rabo e mamas à mostra! Tudo muito melhor do que na vida real, quem quer saber da prosa? E quem é que vai escrever a respeito das espantosas proezas de heróis que matam inimigos às centenas, que vencem todos os desafios e todas as tentações, quando se pode ter tudo em gotas de sangue diante dos nossos olhos, rostos torturados e agonizantes em grande plano na tela. Os actores e as câmaras fazem o trabalho todo, sem intervenção do cérebro. O Sly Stallone a fazer de Aquiles na Ilíada. A única coisa que o cinema não consegue fazer é entrar na mente das personagens, não consegue duplicar o processo mental, a complexidade da vida. - Interrompeu-se por um instante, e depois continuou pensativamente: - Mas sabem o que é o pior de tudo? É que eu sou um elitista. Queria ser artista para ser qualquer coisa especial. É por isso que detesto o facto de o cinema ser uma arte tão democrática. Qualquer pessoa pode fazer um filme. Tens razão, Claudia, vi filmes que me comoveram até às lágrimas, e sei de certeza absoluta que as pessoas que os fizeram são completamente estúpidas, insensíveis, incultas e sem um átomo de moralidade. O argumentista é iletrado, o realizador um egomaníaco, o produtor um carniceiro da moralidade e os actores dão murros numa parede ou num espelho para mostrarem aos espectadores que estão zangados. Mas o cinema funciona. Como é isso possível? Porque um filme utiliza escultura, pintura, música, corpos humanos e tecnologia para se fazer a si mesmo, enquanto o romancista tem apenas uma enfiada de palavras, letras impressas a preto numa folha de papel branco. E, para dizer a verdade, isso nem sequer é assim tão terrível. É o progresso. É a nova grande arte. Uma arte democrática. É só comprar a câmara certa e juntar-se com alguns amigos. - Sorriu às duas mulheres. - Não é maravilhoso? Uma arte que não exige qualquer espécie de verdadeiro talento? Que democracia, que terapia, fazer o seu próprio filme. Há-de substituir o sexo. Eu vou ver o teu filme e tu vens ver o meu. É uma arte que vai transformar o mundo, e para melhor. Claudia, regozija-te por estares numa forma de arte que é o futuro!

- Ernest, você não passa de um parvalhão presunçoso! - atirou-lhe Molly. - A Claudia bateu-se por si, defendeu-o. Eu tenho sido mais paciente consigo do que com qualquer dos assassinos que defendi. E você convida-nos para jantar para nos insultar.

Vail pareceu ficar genuinamente espantado.

- Não estou a insultar ninguém - protestou. - Estou apenas a definir. Estou-lhes agradecido e amo-as a ambas. - Fez uma pausa e então acrescentou, humildemente: - Não estou a dizer que sou melhor do que vocês.

Claudia rompeu à gargalhada.

Ernest, és mesmo parvo! - disse.

Só na vida real - respondeu ele, afavelmente. - Podemos falar um pouco de negócios? Molly, se eu morresse e a minha família recuperasse os direitos, a LoddStone pagava cinco por cento?

Pelo menos cinco - respondeu Molly. - Como é, agora vai matar-se por causa de uns pontos extra? Estou completamente baralhada.

Claudia estava a olhar para ele, perturbada. Desconfiava daquele bom humor.

Ernest, ainda te sentes infeliz? Conseguimos-te um belo negócio. Fiquei tão entusiasmada!

Claudia - disse Vail, num tom cheio de amizade -, não fazes a mínima ideia de como é o mundo real. O que te torna perfeita para escrever argumentos. Que raio de diferença faz se eu estou ou não feliz? O homem mais feliz que alguma vez viveu vai passar por momentos terríveis na sua vida. Tragédias terríveis. Agora olha para mim. Consegui uma grande vitória, já não tenho de me suicidar. Estou a saborear esta refeição, estou a saborear a companhia de duas mulheres bonitas e inteligentes e compreensivas. E estou muito contente por a minha mulher e os meus filhos poderem ter segurança económica.

Então de que raio se queixa? - exaltou-se Molly. - Por que é que está a estragar um momento agradável?

Porque não consigo escrever -respondeu Vail. - O que nem é uma grande tragédia. Deixou de ser importante, mas é a única coisa que sei fazer. - Enquanto dizia isto, acabava as três sobremesas com tanto entusiasmo que as duas mulheres não conseguiram conter as gargalhadas. Vail sorriu-lhes. - Não há dúvida de que levaram à certa o velho Eli - disse.

Estás a levar o bloqueio do escritor demasiado a sério - sugeriu Claudia. - Toma um pouco de speed.

Os argumentistas não sofrem do bloqueio do escritor porque não escrevem - respondeu Vail. - Eu não escrevo porque não tenho nada para dizer. Falemos agora de coisas mais interessantes. Molly, nunca consegui compreender como é que posso ter dez por cento dos lucros de um filme que rendeu cem milhões de dólares e custou apenas 15 milhões a fazer, e mesmo assim não ver um chavo. Aqui está um mistério que gostaria de ver esclarecido antes de morrer.

O pedido devolveu a Molly o bom humor que quase perdera; adorava ensinar a lei. Tirou um bloco de notas da bolsa e escreveu uma série de números.

- É absolutamente legal - disse. - Os estúdios estão a cingir-se ao contrato, um contrato que o Ernest nunca devia ter assinado, para começar. Veja, consideremos os cem milhões de receita bruta. Os cinemas, os exibi-dores, ficam com metade, de modo que os estúdios já só recebem cinquenta milhões, que são as chamadas rendas.

"OK. Os estúdios abatem os quinze milhões de dólares que o filme custou. Já só restam trinta e cinco milhões. Mas nos termos do seu contrato, e da maior parte dos contratos que se fazem, os estúdios retiram trinta por cento das rendas para custos de distribuição. São mais quinze milhões para o bolso deles. E estamos reduzidos a vinte milhões. Então deduzem o custo das cópias, os custos da publicidade, o que chega facilmente a outros cinco. Vamos em quinze milhões. E agora temos a verdadeira beleza. Por contrato, os estúdios debitam vinte e cinco por cento do orçamento para despesas gerais, contas de telefone, electricidade, utilização do estúdio de som, etc. O que nos deixa com onze milhões. Óptimo, dirá. Venha a minha parte dos onze milhões. Mas a Estrela Cotável recebe pelo menos cinco por cento das rendas, o realizador e o produtor outros cinco. O que representa mais cinco milhões.

E temos seis milhões. Vai, finalmente, receber qualquer coisa. Não tão depressa! A seguir rectificam todos os custos da distribuição, debitam cinquem mil por entregar as cópias no mercado inglês, outros cinquenta mil para França ou a Alemanha. E, finalmente, debitam os juros dos quinze milhõis que pediram emprestados para fazer o filme. E aí perco-me. Mas os últimos seis milhões desaparecem. é o que acontece a quem não me tem a mim como advogada. Eu redijo contratos que garantem verdadeiramemte uma fatia mina de ouro. Nunca o bruto, no caso de um escritor, mas uma definição muito boa do líquido. Compreende agora? Vail estava a rir.

Não exactamente. E o dinheiro da TV e do vídeo?

Da TV receberá qualquer coisa. Ninguém sabe quanto é que eles ganham com o vídeo.

E o acordo que tenho agora com o Marrion é estritamente sobre bruto? Podem voltar a lixar-me?

Não da maneira como eu vou escrever o contrato. Vai ser estrita- mente sobre o bruto.

Nesse caso deixarei de ter motivos para me queixar - disse Vai lamentosamente. - Deixarei de ter desculpa para não escrever.

És realmente um excêntrico - comentou Claudia.

Não, não. Sou apenas um falhado. Os excêntricos fazem coisas esquisitas para desviar a atenção dos outros daquilo que fazem ou são envergonhados. E por isso que as pessoas do cinema são tão excêntricas.

Quem teria pensado que morrer pudesse ser tão agradável, que uma pessoa pudesse estar tão em paz, tão livre de medos. Que, sobretudo, tivesse resolvido a única, a grande incógnita comum.

Eli Marrion, nas longas noites dos doentes, inspirou oxigénio do tub ligado à parede e reflectiu sobre o que fora a sua vida. A enfermeira particular, Priscilla, a fazer um duplo turno, lia à luz de um pequeno candeeiro no outro lado do quarto. Marrion via como os olhos dela se erguiam e baixavam rapidamente, como se estivesse a verificar o seu estado entre cada linha que lia.

Marrion pensou em como aquela cena era diferente daquilo que seria num filme. Num filme, a atmosfera estaria carregada de tensão, porque pairava entre a vida e a morte. A enfermeira estaria inclinada sobre a sua cama; haveria médicos a entrar e a sair. Haveria, com toda a certeza, muito barulho, muita agitação. E ali estava ele num quarto totalmente silencioso, a respirar facilmente através do seu tubo de plástico, e a enfermeira a ler.

Sabia que o último piso do hospital continha apenas aquelas grande suites destinadas às pessoas muito importantes. Políticos poderosos, bilionárias estrelas que eram os mitos evanescentes do mundo do espectáculo. Todos eles reis por direito próprio e agora, ali na noite, naquele hospital, vassalos da morte. Jaziam nas suas camas, impotentes e sozinhos, confortados por mercenários, com todo o seu poder desfeito em pó. Com tubos enfiados no corpo, a saírem-lhes das narinas, à espera que a faca do cirurgião lhes limpasse os detritos dos corações avariados ou, como ele próprio, lhe inserissem no peito um coração completamente remodelado. Perguntou a si mesmo se estariam tão resignados como ele.

E porquê esta resignação? Porque dissera ele aos médicos que não queria um transplante, que preferia viver apenas o pouco tempo que o seu coração esgotado lhe concedesse? Pensou que, graças a Deus, ainda era capaz de tomar decisões inteligentes, despidas de sentimentalismos.

A situação era muito clara, como quando negociava a feitura de um filme: calcular o custo, a percentagem de rendimento, o valor dos direitos subsidiários, os possíveis problemas com as estrelas, realizadores e despesas excedentárias.

Número um: tinha oitenta anos, e uns oitenta anos não muito robustos. Um transplante do coração deixá-lo-ia incapaz de trabalhar durante um ano, no mínimo. Com toda a certeza, nunca mais voltaria a dirigir a Lodd-Stone Studios. Com toda a certeza, a maior parte do seu poder sobre este mundo desapareceria.

Número dois: a vida sem poder era intolerável. Ao fim e ao cabo, o que podia um velho como ele fazer, mesmo com um coração novo? Não poderia praticar desportos, nem correr atrás das mulheres, nem ter prazer na comida e na bebida. Não, o poder era o único prazer dos velhos, e porque haveria isso de ser assim tão mau? Acaso não se mostrara misericordioso para com Ernest Vail, contra todos os seus princípios, contra os preconceitos de uma vida inteira? Acaso não dissera aos médicos que não queria privar uma criança ou um homem novo da possibilidade de ter uma vida nova recebendo um coração novo? Não seria isto usar o poder o melhor possível?

Passara, porém, uma longa vida a lidar com a hipocrisia, e reconhecia-a agora em si mesmo. Recusara o coração novo porque não era um bom negócio; fora uma decisão básica. Concedera a Ernest Vail os pontos que ele pedia porque desejava o afecto de Claudia e o respeito de Molly Flanders; fora um sentimentalismo. Seria assim tão mau querer deixar atrás de si uma imagem de bondade?

Estava satisfeito com a vida que tinha vivido. Abrira caminho à força da pobreza até à riqueza, vencera tudo e todos. Saboreara todos os prazeres da vida humana, amara belas mulheres, morara em casas luxuosas, vestira as sedas mais finas. E ajudara a criar arte. Ganhara um poder enorme e uma fortuna imensa. E tentara fazer algum bem pelos seus semelhantes. Contribuíra com dezenas de milhões de dólares precisamente para aquele hospital. Mas, acima de tudo, gostara de lutar contra outros homens. E que tinha isso de tão terrível? De que outra maneira podia uma pessoa conseguir o poder para fazer o bem? Naquele preciso instante arrependia-se do seu último gesto de misericórdia para com Ernest Vail. Um homem não podia pura e simplesmente oferecer os despojos da luta ao seu semelhante, especialmente sob ameaça. Mas Bobby encarregar-se-ia disso. Bobby encarregar-se-ia de tudo.

Bobby faria constar entre os meios de comunicação a sua recusa de um transplante de coração para que um homem mais novo pudesse recebê-lo. Bobby recuperaria todos os pontos do bruto que existiam, Bobby desembaraçar-se-ia da produtora da filha, que só dava prejuízo. Bobby arcaria com as culpas.

Muito ao longe, ouviu uma pequena campainha, e depois o rumorejar do fax a transmitir os valores das receitas de bilheteira apurados em Nova Iorque. O ruído intermitente da máquina, como um refrão para o coração que lhe falhava no peito.

Agora a verdade. Saciara-se do que a vida tinha de melhor. No fim, não fora o corpo que verdadeiramente o traíra, mas o espírito.

Agora a verdade. Estava decepcionado com os seres humanos. Vira demasiadas traições, demasiadas fraquezas abjectas, demasiada ganância por dinheiro e por fama. Falsidade entre amantes, maridos e mulheres, pais, filhos, mães, filhas. Graças a Deus pelos filmes que tinha feito e que tinham dado esperança às pessoas, e graças a Deus pelos netos, e graças a Deus por não ter de vê-los crescer e assumirem a condição humana.

O fax calou o seu rumorejar, e Marrion pôde ouvir o bater hesitante do seu próprio coração. A luz da aurora invadiu o quarto. Viu a enfermeira apagar o candeeiro e fechar o livro. Era tão solitário morrer tendo apenas aquela estranha no quarto, quando era estimado por tantas pessoas poderosas. A enfermeira abriu-lhe as pálpebras e encostou-lhe o estetoscópio ao peito. As grandes portas da suite abriram-se como os enormes portões de um templo antigo e ele ouviu o tilintar dos pratos nas bandejas do pequeno-almoço...

Então o quarto encheu-se de luzes brilhantes. Sentiu punhos a baterem-lhe no peito e perguntou a si mesmo por que estariam a fazer-lhe aquilo. Formou-se-lhe uma nuvem no cérebro, enchendo-o de névoa. Através dessa névoa, ouvia vozes a gritar. Uma frase de um filme penetrou-lhe no cérebro faminto de oxigénio: "éassim que os deuses morrem?"

Sentiu os choques eléctricos, as pancadas, a incisão que lhe fizeram no peito para poderem massajar-lhe o coração com as mãos nuas.

Hollywood inteira chorá-lo-ia, mas ninguém como a enfermeira de vigília, Priscilla. Fizera um duplo turno porque tinha de sustentar dois filhos pequenos e desagradava-lhe que Marrion tivesse morrido durante o seu turno. Orgulhava-se da sua reputação de ser uma das melhores enfermeiras da Califórnia. Odiava a morte. Mas o livro que estivera a ler entusiasmara-a e estivera a planear o que havia de dizer a Marrion para o convencer a passá-lo para o cinema. Não queria ser eternamente enfermeira, escrevia argumentos nas horas vagas. Agora tinha perdido toda a esperança. Aquele último piso do hospital, com as suas grandes suites, recebia os homens mais importantes de Hollywood, e ela guardá-los-ia contra a morte para todo o sempre.

Tudo isto aconteceu apenas na mente de Marrion antes de morrer, uma mente saturada de imagens dos milhares de filmes que tinha visto.

Na realidade, a enfermeira aproximara-se da cama quinze minutos depois de ele ter morrido, tão sossegadamente morrera. Debateu durante talvez trinta segundos a hipótese de lançar um alerta para tentar trazê-lo de novo à vida. Era uma veterana da morte, e mais misericordiosa. Para quê tentar reanimá-lo para a tortura de reclamar a vida? Foi até à janela e ficou a ver o sol nascer e os pombos a pavonearem-se pomposamente pelas cornijas de pedra. Priscilla era o poder derradeiro a decidir a sorte de Marrion... e o seu mais misericordioso juiz.

 

O senador Wavven tinha excelentes notícias, que iam custar aos Cleri-cuzio cinco milhões de dólares. Era o que dizia o correio enviado por Gior-gio. Isto exigia uma montanha de papelada. Cross tinha de tirar cinco milhões da caixa do casino e deixar um longo rasto de papéis para justificar o respectivo desaparecimento.

Havia igualmente uma mensagem de Claudia e de Vail. Estavam no hotel, instalados na mesma suite. Queriam falar com ele logo que fosse possível. Era urgente.

Também Lia Vazzzi tinha telefonado. Pedia para falar pessoalmente com Cross, o mais depressa possível. Não precisava de dizer que era urgente; fosse qual fosse o assunto, tinha de ser urgente, ou não teria telefonado, e já estava a caminho.

Cross começou a tratar da papelada para transferir os cinco milhões de dólares para o senador Wavven. O primeiro problema era o volume das notas propriamente ditas, demasiado para uma mala ou um saco de viagem, mesmo que grande. Telefonou para uma das lojas do hotel, onde se lembrava de ter visto um antigo baú chinês que tinha o tamanho adequado. Era verde escuro, decorado com dragões vermelhos e falsas pedras preciosas, e tinha um forte mecanismo de fecho.

Gronevelt ensinara-o a preparar a falsa pista de papéis que legitimavam o dinheiro retirado do casino. Era um trabalho demorado e fastidioso, que envolvia transferências para diferentes contas bancárias, pagamentos a diversos fornecedores de comidas e bebidas, projectos especiais de formação de pessoal, campanhas promocionais e uma série de jogadores que não existiam como devedores.

Cross dedicou uma hora a este trabalho. O senador Wawen só era esperado no dia seguinte, um sábado, e os cinco milhões de dólares teriam de lhe ser entregues antes de ele partir, na manhã de segunda-feira. Finalmente, a concentração começou a falhar-lhe e teve de fazer uma pausa.

Ligou para a suite de Claudia e de Vail. Foi Claudia quem atendeu o telefone.

Estou com grandes problemas com o Ernest - disse. - Precisamos de falar contigo.

OK. Entretenham-se os dois a jogar um pouco, e eu encontro-me com vocês junto da mesa de dados dentro de uma hora. - Fez uma pausa. - Depois podemos ir jantar e tu contas-me os teus problemas.

Não podemos jogar. O Ernest já ultrapassou o seu limite de crédito e tu não me dás mais crédito além de uns miseráveis dez mil.

Cross suspirou. Aquilo significava que Ernest Vail devia ao casino cem mil dólares que valiam tanto como papel higiénico.

- Dá-me uma hora e depois subam os dois à minha suite. Jantamos aqui.

Cross tinha de fazer outro telefonema, para Giorgio, confirmando o pagamento ao senador; não que o correio não fosse de confiança, mas tratava-se de um procedimento de rotina. Utilizaram um código verbal preestabelecido. O nome era um número arbitrário pré-combinado, o dinheiro designado por um conjunto arbitrário de letras igualmente pré-combinadas.

Cross tentou continuar a tratar da papelada. Mas o seu espírito pôs-se uma vez mais a divagar. Por cinco milhões, o senador Wawen tinha de ter coisas muito importantes a comunicar. Para fazer a longa viagem até Las Vegas, Lia tinha de ter algum problema grave.

A campainha da porta soou. Um homem da segurança escoltara Claudia e Ernest Vail até à suite do terraço. Cross recebeu Claudia com um abraço particularmente caloroso, pois não queria que a irmã pensasse que estava zangado com ela por ter perdido no casino.

Na sala de estar da suite, entregou-lhes a ementa do serviço de quartos e fez ele próprio a encomenda. Claudia sentou-se rigidamente no sofá; Vail deixou-se cair a seu lado, com um ar desinteressado.

- Cross - disse Claudia -, o Ernest está num estado miserável. Temos de fazer qualquer coisa por ele.

Cross pensou que Vail não estava assim com tão mau aspecto. Parecia até muito descontraído, com os olhos semicerrados e um sorriso satisfeito nos lábios. Isso irritou-o.

Certo, a primeira coisa que vou fazer é cortar-lhe o crédito nesta cidade. Será uma medida de poupança; ele é o jogador mais incompetente que vi em toda a minha vida.

Não é por causa do jogo - esclareceu Claudia. E contou-lhe toda a história a respeito de Marrion ter prometido dar a Vail dois pontos percentuais sobre as receitas brutas das continuações do filme, e depois morrer.

E então? - perguntou Cross.

Agora o Bobby Bantz recusa-se a cumprir a promessa. Desde que se tornou presidente da LoddStone Studios, o poder subiu-lhe à cabeça. Esforça-se ao máximo para ser como o Marrion, mas falta-lhe a inteligência e o carisma. Por isso o Ernest está outra vez numa fria.

E que diabo é que tu achas que eu posso fazer?

És sócio da LoddStone no Messalina. Deves ter alguma influência junto deles. Quero que peças ao Bobby Bantz para cumprir a promessa que o Marrion fez.

Era em momentos como aquele que Cross desesperava de Claudia. Bantz nunca cederia, isso fazia parte do seu carácter e do seu papel.

- Não - disse -, já te expliquei isso uma vez. Não posso tomar posições a menos que saiba que a resposta vai ser sim. E aqui não há a mínima hipótese.

Claudia franziu a testa.

- Nunca percebi isso. - Fez uma pausa. - O Vail está falar a sério, vai matar-se para que a família possa recuperar os direitos.

Ao ouvir isto, Vail pareceu despertar.

- Claudia, minha parva, não sabes nada do teu irmão? - perguntou. - Se ele pedir alguma coisa a alguém e essa pessoa recusar, não tem outro remédio senão matá-la. - E dirigiu a Cross um grande sorriso.

Cross ficou furioso por Vail ousar dizer semelhante coisa diante de Claudia. Felizmente, nesse momento chegou o pessoal do serviço de quartos com o jantar, servido na mesa da sala de estar. Cross controlou-se enquanto comiam, mas não pôde impedir-se de dizer, com um sorriso gelado:

- Ernest, segundo entendi, resolves todos os teus problemas batendo a bota. Talvez eu possa ajudar. Vou mudar-te para o décimo andar, e então podes saltar da janela.

Claudia não achou graça.

- Isto não é brincadeira! - protestou. - O Ernest é um dos meus melhores amigos. E tu és o meu irmão que está sempre a dizer que me ama e que fará tudo por mim. - Tinha os olhos cheios de lágrimas.

Cross levantou-se e foi abraçá-la.

- Claudia, não há nada que eu possa fazer. Não sou mágico. Ernest Vail estava a saborear o jantar. Nenhum homem pareceria menos disposto a suicidar-se.

- Es demasiado modesto, Cross - afirmou. - Ouve, não tenho coragem para saltar da janela. Tenho demasiada imaginação, morreria de mil mortes durante a queda só de pensar como ia ficar espalhado por todo o lado. E até era capaz de cair em cima de um desgraçado qualquer sem culpa nenhuma.

Sou demasiado cobarde para cortar os pulsos, não suporto ver sangue e tenho um medo de morte de armas, e facas, e carros. Não quero acabar transformado num vegetal, sem ter conseguido nada. Não quero ver o estupor do Bobby Bantz a rir-se de mim e a ficar com o meu dinheiro. Há uma coisa que podes fazer: contrata alguém para me matar. Só não quero que me digas quando.

Cross começou a rir. Fez uma festa tranquilizadora na cabeça de Claudia e voltou ao seu lugar.

- Pensas que isto é uma porra de um filme? -perguntou, dirigindo-se a Ernest. - Pensas que matar alguém é uma espécie de piada?

Levantou-se da mesa e dirigiu-se à secretária. Abriu uma gaveta e tirou dela uma bolsa cheia de fichas pretas. Atirou a bolsa a Ernest e acrescentou:

- Aqui tens dez mil. Faz uma última tentativa nas mesas, quem sabe, talvez tenhas sorte. Mas pára de me insultar diante da minha irmã!

Vail estava animadíssimo.

- Anda, Claudia - disse. - O teu irmão não vai ajudar. - Enfiou as fichas no bolso das calças. Parecia ansioso por começar a jogar.

Claudia ficara como que absorta. Estava a somar tudo na sua cabeça e recusava-se a encontrar o total. Olhou para o rosto sereno do irmão. Não podia ser o que Vail disera que era. Beijou-o na face e disse:

Desculpa, mas estou preocupada com o Ernest.

Ele vai ficar bem - respondeu Cross. - Gosta demasiado de jogar para se matar. E além disso é um génio, não é?

Claudia riu-se. - É o que ele passa a vida a dizer, e eu acredito. E é um cobarde de todo o tamanho - disse, mas estendeu uma mão para tocar afectuosamente na de Vail.

Por que diabo é que o aturas? Porque é que partilhas uma suite com ele?

Porque sou a melhor e única amiga que lhe resta - respondeu Claudia, irritada. - E adoro os livros dele.

Depois de Claudia e Vail se retirarem, Cross passou o resto da noite a completar o plano para transferir os cinco milhões para o senador Wawen. Quando acabou, chamou o gerente do casino, um membro importante da Família Clericuzio, e mandou-o levar o dinheiro para a suite do terraço.

O dinheiro foi levado, em dois grandes sacos, pelo gerente e por dois homens da segurança que pertenciam igualmente à Família. Ajudaram Cross a arrumar as notas no baú chinês. Depois de os três homens terem saído, Cross tirou a grande colcha da cama e embrulhou o baú nela. Em seguida ligou para o serviço de quartos e pediu dois pequenos-almoços. Minutos mais tarde, a segurança ligou a dizer que Lia Vazzi estava à espera para ser recebido. Cross mandou-o subir.

Abraçou Lia quando este entrou. Ficava sempre encantado por vê-lo.

Boas notícias ou más notícias? - perguntou, depois de o serviço de quartos ter entregue os pequenos-almoços.

Más - respondeu Lia. - É o tal detective que nos interceptou no vestíbulo do Beverly Hills Hotel, quando fui buscar o Boz Skannet. O Jim Losey. Apareceu na cabana de caça a fazer-me perguntas sobre a minha relação com o Skannet. Corri com ele. A pior parte é como ele soube quem eu era e onde encontrar-me. Não consto de qualquer ficheiro da polícia, nunca me meti em sarilhos. Isso significa que há um informador.

Cross sobressaltou-se. Os traidores eram raros na Família Clericuzio, e eram sempre implacavelmente eliminados.

- Vou falar pessoalmente com o Don a este respeito -prometeu. - E tu? Queres fazer umas férias no Brasil até descobrirmos o que se passa?

Lia tinha comido muito pouco. Serviu-se do brandy e dos charutos que Cross lhe oferecera.

- Ainda não estou nervoso, pelo menos por enquanto. Só quero a tua autorização para me proteger contra este homem.

Cross ficou alarmado.

- Lia, não podes fazer uma coisa dessas - disse. - É muito perigoso matar um polícia neste país. Não estamos na Sicília. Vou ter de dizer-te uma coisa que não devias saber. Esse Jim Losey consta da folha de pagamentos dos Clericuzio. Dinheiro gordo. Penso que está só a fazer ondas para receber um bónus.

- Óptimo - respondeu Vazzi. - Mas o facto permanece. Deve haver um informador.

Eu trato disso. Não te preocupes com o Losey. Lia aspirou o fumo do charuto.

Ele é perigoso, Cross. Tem cuidado.

Terei. Mas nada de medidas precipitadas da tua parte, OK?

Claro - respondeu Lia. Pareceu descontrair-se. - O que é aquilo debaixo da colcha? - perguntou, despreocupadamente.

Um pequeno presente para um homem muito importante. - respondeu Cross. - Queres passar a noite no hotel?

Não. Vou regressar à cabana, e depois dizes-me o que se passar, quando tiveres tempo. Mas eu aconselhá-los-ia a livrarem-se do Losey. Já.

Vou falar com o Don - prometeu Cross uma vez mais.

O senador Wawen, com o seu séquito de três ajudantes dos sexo masculino, chegou ao Xanadu Hotel às três da tarde. Como de costume, viajara numa limusina vulgar e sem qualquer espécie de escolta. Às cinco, chamou Cross à sua villa.

Cross mandou dois homens da segurança colocarem o baú envolto na colcha na parte de trás de um carrinho de golfe motorizado. Um dos guardas conduziu e Cross sentou-se no lugar do passageiro, mantendo um olho no baú, que ocupava o espaço de carga habitualmente destinado aos sacos com os tacos e às garrafas de água gelada. Era uma curta viagem de cinco minutos desde o Xanadu até à área isolada onde se erguiam as sete villas.

Cross adorava sempre vê-las, a sensação de poder que transmitiam. Pequenos palácios de Versalhes, cada um deles com a sua piscina octogonal brilhando como uma esmeralda, e no centro a praça com o casino privativo dos ocupantes das villas, em forma de pérola.

Transportou pessoalmente o baú para o interior da villa. Um dos ajudantes do senador escoltou-o até à sala de jantar, onde Wawen e os outros dois ajudantes saboreavam um sumptuoso sortido de comidas frias e jarros de limonada gelada. O senador deixara de beber álcool.

Warren Wawen continuava tão bem parecido e afável como sempre. Subira muito alto nos meios políticos da nação, era o presidente de diversas comissões importantes e um candidato com muitas possibilidades às próximas eleições presidenciais. Pôs-se de pé para receber Cross.

Cross pousou o baú no chão e retirou a colcha.

- Um pequeno presente do hotel, senador - disse. - Espero que tenha uma estada agradável.

O senador agarrou com as duas mãos a que Cross lhe estendia. Tinha umas mãos muito macias.

Um presente encantador - declarou. - Obrigado, Cross. Podemos trocar umas palavrinhas a sós?

Com certeza - respondeu Cross, entregando-lhe a chave do baú. Wawen enfiou-a no bolso das calças. Voltou-se para os ajudantes e pediu:- Por favor, levem o baú para o meu quarto e um de vocês fique com ele. Agora deixem-me sozinho por alguns instantes com o meu amigo Cross.

Os três homens saíram e o senador começou a passear de um lado para o outro. Tinha o sobrolho franzido.

- Trago boas notícias, naturalmente - disse -, mas também algumas más.

Cross assentiu e comentou, bem humoradamente:

- É geralmente o que acontece. - Pensou que, por cinco milhões, as boas notícias tinham de ser muito melhores do que as más.

Wawen riu-se.

É, não é? Primeiro as boas notícias. E bem boas que elas são. Tenho dedicado os meus esforços, ao longo destes últimos anos, a fazer aprovar legislação que torne o jogo legal em todo o território dos Estados Unidos. Incluindo a legalização das apostas desportivas. Penso que tenho finalmente os votos necessários no Senado e no Congresso. O dinheiro que está no baú servirá para decidir alguns votos decisivos. São cinco, não é verdade?

Cinco - confirmou Cross. - E dinheiro bem gasto. Agora, quais são as más notícias?

O senador abanou tristemente a cabeça.

Os seus amigos não vão gostar disto - disse. - Especialmente o Giorgio, que é tão impaciente. Mas é um tipo estupendo, verdadeiramente estupendo.

O meu primo favorito - afirmou Cross, friamente. De todos os Clericuzio, de quem menos gostava era de Giorgio. E era evidente que o senador pensava da mesma maneira.

Então, Wawen largou a bomba.

- O presidente disse-me que vetaria a lei.

Cross, que já começava a exultar com o êxito final do grande plano de Don Clericuzio - construir um império legítimo baseado no jogo legal -, ficou confuso. Que raio estava Wawen a dizer?

- E nós não temos votos suficientes para anular um veto - concluiu Wawen.

Unicamente para dar a si mesmo tempo de recuperar a compostura, Cross perguntou:

- Então os cinco milhões são para o presidente? O senador ficou horrorizado.

Oh, não, não! - exclamou. - Nem sequer pertencemos ao mesmo partido. E, além disso, o presidente será um homem muito rico quando se retirar para a vida privada. Todos os conselhos de administração de todas as grandes empresas vão querer apanhá-lo. Não tem necessidade de dinheiro de bolso. - Dirigiu a Cross um sorriso satisfeito. - As coisas funcionam de uma maneira diferente quando se é o presidente dos Estados Unidos.

Nesse caso, não chegamos a parte nenhuma, a menos que o presidente caia morto - disse Cross.

Exactamente - concordou Wawen. -E um presidente muito popular, devo dizer, embora pertençamos a partidos opostos. Vai com certeza ser reeleito. Temos de ser pacientes.

Temos então de aguentar cinco anos e depois esperar que venha um presidente que não vete?

- Não é exactamente assim - respondeu o senador, e aqui hesitou um pouco. - Tenho de ser franco consigo. Em cinco anos, a composição do Congresso pode mudar. Posso não ter os votos que tenho agora. - Fez nova pausa. - Há muitos factores.

Cross estava completamente desnorteado. Que raio queria Wawen realmente dizer? O senador levantou uma ponta do véu.

- Claro que se alguma coisa acontecesse ao presidente, o vice-presidente assinaria a lei. Assim sendo, por muito horrível que possa parecer, temos de esperar que o presidente tenha um ataque de coração, ou que o avião dele caia, ou que fique incapacitado por uma trombose. Pode acontecer. Todos somos mortais.

Wawen estava a sorrir, e subitamente fez-se luz no cérebro de Cross.

Sentiu uma onda de fúria. Aquele filho da mãe estava a dar-lhe um recado para os Clericuzio: o senador fizera a sua parte, agora eles tinham de matar o presidente dos Estados Unidos para conseguir a aprovação da lei. E era tão escorregadio e tão manhoso que não se implicara concretamente fosse de que maneira fosse. Cross tinha a certeza que o Don não aprovaria, e se aprovasse, ele recusar-se-ia a fazer parte da Família para sempre.

Wawen continuou, mantendo o seu sorriso afável:

- Parece bastante improvável, mas nunca se sabe. O destino pode intervir, e o vice-presidente é um grande amigo meu, apesar de estarmos em partidos diferentes. Sei de certeza absoluta que aprovaria a lei. Temos de esperar para ver.

Cross quase não conseguia acreditar no que o senador estava a dizer. O senador Wawen era a personificação do virtuoso político americano, ainda que reconhecidamente com um fraco pelas mulheres e por um inocente jogo de golfe. O seu rosto era elegantemente atraente e a sua voz bem timbrada. Apresentava-se a si mesmo como um dos homens mais amáveis do mundo. E, no entanto, estava a sugerir que a Família Clericuzio assassinasse o seu próprio presidente. Mas que peça, pensou Cross.

O senador depenicou um pouco de comida de cima da mesa.

- Só fico esta noite - anunciou. - Espero que tenha algumas pequenas no seu espectáculo que não se importem de jantar com um velhadas como eu.

De regresso à sua suite no terraço do hotel, Cross telefonou a Gior-gio e disse-lhe que estaria em Quogue no dia seguinte. Giorgio respondeu-lhe que o motorista da Família iria buscá-lo ao aeroporto. Não fez quaisquer perguntas. Os Clericuzio nunca tratavam de negócios pelo telefone.

Quando Cross chegou à mansão de Quogue, ficou surpreendido ao encontrar o clã inteiro à sua espera. Reunidos no escritório sem janelas estavam não só o Don, mas também Pippi, os três filhos de Don Clericuzio e até Dante, que usava na cabeça um barrete renascentista azul celeste.

Não havia comida no escritório, o jantar seria servido mais tarde. Como sempre, o Don obrigou toda a gente a olhar para as fotografias de Silvio e do baptizado de Cross e de Dante, colocadas sobre a consola da lareira. "Que dia feliz!", dizia invariavelmente. Instalaram-se em cadeiras ou sofás. Gior-gio distribuiu bebidas, e o Don acendeu a sua retorcida cigarrilha italiana.

Cross fez um relatório pormenorizado: como tinha entregue os cinco milhões ao senador Wawen, e depois, palavra a palavra, a conversa que tivera com ele.

Seguiu-se um longo silêncio. Nenhum deles precisava da interpretação de Cross. Vincent e Petie eram os que pareciam mais preocupados. Agora que tinha a sua cadeia de restaurantes, Vincent sentia-se menos inclinado a correr riscos. Petie, embora fosse o chefe dos soldados do Bronx, tinha na gigantesca empresa de construções que dirigia a sua principal preocupação. Detestavam a idéia de uma missão tão terrível naquela altura das suas vidas.

- Esse raio desse senador é doido! - exclamou Vincent. O Don perguntou, dirigindo-se a Cross:

- Tens a certeza de que era essa a mensagem que ele queria enviar-nos? Que deviamos assassinar o líder do nosso país, um dos seus colegas de governo?

- Não pertencem ao mesmo partido político, diz o senador - comentou Giorgio, secamente.

Cross respondeu ao Don:

- O senador nunca se incriminaria. Limitou-se a apresentar os factos. Penso que partiu do princípio que agiríamos com base nesse conhecimento.

Dante falou pela primeira vez. Estava excitado pela ideia, pela glória, pelo lucro:

- Podemos tornar legal todo o negócio do jogo. Isso valeria a pena. É o maior de todos os prémios.

O Don voltou-se para Pippi.

E tu que pensas, meu martelloi - perguntou afectuosamente. Pippi estava claramente furioso.

Não pode ser feito e não deve ser feito.

- Primo Pippi - interveio Dante, num tom de provocação -, se não és capaz de o fazer, eu sou.

Pippi olhou para ele com desprezo.

- Tu és um carniceiro, não um planeador. Não eras capaz de planear uma coisa destas nem num milhão de anos. O risco é demasiado grande. As reacções seriam demasiado violentas. E a execução é demasiado difícil. Ninguém pode fazê-lo e escapar.

- Avô, dê-me o trabalho - pediu Dante, arrogantemente. - Eu trato disso.

O Don respondeu respeitosamente ao neto:

- Estou certo de que eras capaz de o fazer. E os lucros seriam enormes. Mas o Pippi tem razão. Os resultados seriam demasiado arriscados para a nossa Família. Toda a gente tem direito a cometer um erro, mas nunca um erro fatal. Mesmo que fôssemos bem sucedidos e conseguíssemos o nosso objectivo, o crime ficaria suspenso sobre as nossas cabeças para todo o sempre. É um crime demasiado grande. Além disso, não se trata de uma situação que ameace a nossa existência, é apenas uma em que tentamos alcançar um objectivo. Um objectivo que pode ser alcançado com paciência. Entre tanto, estamos todos bem instalados na vida. Giorgio, tu tens o teu lugar em Wall Sreet, Vincent, tu tens os teus restaurantes, Petie, tu tens a tua empresa de construções. Cross, tu tens o teu hotel e, Pippi, tu e eu estamos velhos, podemos reformar-nos e viver os nossos últimos anos em sossego. E tu Dante, meu neto, tens de ser paciente, um dia terás o teu império do jogo, será essa a tua herança. E quando o tiveres, será sem a sombra de um crime terrível suspenso sobre a tua cabeça. Portanto... o senador que vá nadar para o fundo do oceano.

Todos os presentes na sala se descontraíram, desfeita a tensão; com excepção de Dante, estavam todos contentes com a decisão. E todos  concordavam com a maldição do Don, que mandava o senador afogar-se. Por  ter ousado colocá-los naquele perigoso dilema.

Só Dante parecia discordar. Voltou-se para Pippi:

- E preciso ter muita lata, chamar-me carniceiro. O que é que tu és, alguma Florence Nightingale?

Vincent e Petie riram-se. O Don abanou a cabeça,  desaprovadoramente.

- Outra coisa - disse Don Clericuzio. - Penso que, por enquanto, devemos manter as nossas relações com o senador. Não lhe levo a mal os cinco milhões extra, mas considero um insulto o facto de ele nos ter julgado capazes de assassinar o presidente do nosso país para favorecer um negócio. Além disso, que mais terá ele na manga? Em que é que um tal acto poderia beneficiá-lo? Ele está a procurar manipular-nos. Cross, quando o senador for ao teu hotel, dá-lhe mais crédito. Certifica-te de que se diverte o mais possível. é um homem demasiado poderoso para ter como inimigo.

O assunto estava resolvido. Cross hesitava em trazer a lume outro problema delicado. Mas contou a história de Lia Vazzi e Jim Losey.

- Pode haver um informador no seio da Família - concluiu. O Don abanou decididamente a cabeça.

Um informador é impossível. O detective deve ter descoberto alguma coisa por acaso e agora quer um bónus para largar o assunto. Giorgio, encarrega-te disso.

Mais cinquenta mil - resmungou Giorgio, azedamente. - Cross, o caso é contigo, vais ter de pagá-los com dinheiro do teu hotel.

O Don voltou a acender a cigarrilha.

- Já agora que estamos todos juntos, há mais algum problema? -perguntou. - Vincent, como vai o teu negócio dos restaurantes?

As feições de granito de Vincent suavizaram-se.

- Vou abrir mais três - anunciou. - Um em Philly [6], outro em Denver e outro em Nova Iorque. Pai, acredita que cobro dezasseis dólares por um prato de spaghetti Quando o faço em casa, calculo o custo em meio dólar por prato. Por muito que me esforce, não consigo mais do que isso. Até incluo o preço do alho. E almôndegas, sou o único restaurante italiano de primeira classe que serve almôndegas, não sei porquê, mas pagam-me oito dólares por elas. E nem sequer são muito grandes. Custam-me vinte cêntimos.

Teria ido por ali fora, mas o Don interrompeu-o. Voltou-se para  Giorgio e perguntou:

Giorgio, como é que vai Wall Street?

Tem altos e baixos - respondeu Giorgio, cautelosamente. - Mas as comissões que recebemos pela corretagem são tão boas como as dos agiotas que trabalham nas ruas, se soubermos fazer as coisas. E não corremos o risco de ter calotes ou de ir parar à prisão. Devíamos pôr de parte todos os outros negócios, excepto talvez o jogo.

O Don estava a saborear aqueles relatos: o êxito no mundo da legalidade era um objectivo caro ao seu coração. Disse:

- E tu, Petie, a tua empresa de construção? Ouvi dizer que há dias tiveste um pequeno problema...

Petie encolheu os ombros.

- Tenho mais trabalho do que consigo fazer. Anda toda a gente a construir qualquer coisa, e os contratos para a construção de estradas estão garantidos. Todos os meus soldados estão na folha de vencimentos e têm uma boa vida. Mas, há uma semana, apareceu-me esse palhaço num dos meus maiores estaleiros. Trazia para aí uns cem pretos com ele, com todo o género de cartazes sobre os direitos cívicos. Levei-o para o meu gabinete, e de repente o tipo é todo doçuras. Tudo o que tenho a fazer é contratar dez por cento de pretos entre os trabalhadores de cada obra e pagar-lhe vinte mil por baixo da mesa.

Esta espantou Dante.

perguntou, com uma gargalhada: Estamos a ser sujeitos a extorsão?  - Nós, os Clericuzio?

Tentei pensar como o Pai - continuou Petie. - Porque não hão-de eles ter direito a ganhar a vida? Por isso dei ao homem os vinte mil e disse-lhe que punha cinco por cento de pretos a trabalhar.

Fizeste bem - disse o Don. - Evitaste que um pequeno problema se transformasse num grande problema. E quem são os Clericuzio para não pagarem a sua quota parte para o progresso dos outros povos e da própria civilização?

O que eu fazia era matar o filho da mãe do preto! - declarou Dante. - Agora vai voltar a pedir mais.

E nós damos-lhe mais - afirmou o Don. - Desde que sejam razoáveis. - Voltou-se para Pippi e perguntou:- E tu, quais são os teus problemas?

Nenhuns - respondeu Pippi. - Excepto que a Família está agora praticamente parada e eu fiquei sem trabalho.

é a tua boa sorte - disse o Don. - Já trabalhaste o suficiente. Escapaste a muitos perigos, portanto goza agora os teus últimos anos.

Dante não esperou que o interrogassem.

Eu estou no mesmo barco - protestou -, e sou demasiado novo para me reformar.

Joga golfe como os brugliones- respondeu-lhe Don Domenico secamente. - E não te preocupes, a vida arranja-nos sempre trabalho e problemas. Entretanto, tem paciência. Receio que a tua vez há-de chegar. E a minha também.

 

Na manhã do funeral de Eli Marrion, Bobby Bantz estava a gritar com Skippy Deere.

- Isto é de loucos, é o grande mal do negócio do cinema! Como raios pudeste tu deixar que isto acontecesse? - Estava a agitar um monte de folhas de papel agrafadas diante da cara de Deere.

Deere olhou para as folhas. Eram as folhas de viagens para a rodagem de um filme em Itália.

- Sim, e então? - perguntou. Bantz estava furioso.

Toda a gente que entra no filme voou em primeira classe para Roma... a equipa, os pequenos papéis, o raio das "participações especiais", os mensa- geiros, os estagiários. Há uma única excepção. Sabes quem é? O auditor da LoddStone Studios, que mandámos para controlar as despesas. Esse viajou em turística!

Sim, e então? - repetiu Deere.

A fúria de Bantz tornou-se mais fria e deliberada.

- E o orçamento do filme inclui a construção de uma escola para os filhos de todos os participantes. O orçamento inclui o aluguer de um iate durante duas semanas. Li o guião com todo o cuidado. Há doze actores e actrizes que têm talvez dois ou três minutos no filme. O iate está marcado para dois dias de filmagens. Agora explica-me como foi que autorizaste isto.

Skippy Deere estava a sorrir para ele.

Com certeza - respondeu. - O nosso realizador é o Lorenzo Tallufo. Insiste em que toda a sua gente viaje em primeira classe. Os pequenos papéis e as "participações especiais" foram metidos no guião porque andam a fornicar uma ou outra das estrelas. O iate está alugado por duas semanas porque o Lorenzo quer dar um salto ao Festival de Cinema de Cannes.

Tu és o produtor, fala com o Lorenzo - exigiu Bantz.

- Eu não! O Lorenzo tem quatro filmes feitos que ultrapassaram os cem milhões de dólares, já ganhou dois Óscares. Até lhe beijo o rabo quando o ajudar a entrar para o iate. Fala tu com ele.

Não havia resposta para isto. Tecnicamente, na hierarquia da indústria, o director do estúdio era superior a toda a gente. O produtor era a pessoa que reunia todos os elementos e vigiava o orçamento e o desenvolvimento do argumento. Mas na realidade, quando começavam as filmagens, o realizador era o poder supremo. Especialmente se tinha um cadastro de êxitos atrás de si.

Bantz abanou a cabeça.

Não posso falar com ele, agora que não tenho o Eli para me apoiar. O Lorenzo mandava-me dar uma curva e perdíamos o filme.

E teria toda a razão - declarou Deere. - Que diabo, o Lorenzo saca sempre cinco milhões de cada filme. Todos eles o fazem. Agora vê se te acalmas para podermos aparecer no funeral.

Bantz, no entanto, estava já a olhar para outra folha de despesas.

- No teu filme - disse -, há uma rubrica de quinhentos mil dólares para comida chinesa "pronto a levar". Ninguém, ninguém, nem sequer a minha mulher, é capaz de gastar quinhentos mil dólares em comida chinesa. Em comida francesa, talvez. Mas chinesa? E "pronto a levar"?

Skippy Deere tinha de pensar rapidamente, Bobby apanhara-o numa curva.

- É um restaurante japonês, a comida é sushi. E a comida mais cara do mundo.

Bantz ficou subitamente calmo. As pessoas estavam sempre a queixar-se por causa do sushi. O director de um estúdio rival contara-lhe que tinha levado um investidor japonês a um restaurante especializado em sushi. "Mil dólares para duas pessoas, por meia dúzia de cabeças de peixe", dissera. Bantz ficara impressionado.

- OK - acabou por dizer. - Mas temos de cortar despesas. Vê se consegues arranjar mais estagiários para o teu próximo filme.

Os estagiários trabalhavam de borla.

O funeral de Eli Marrion em Hollywood foi ainda mais mediático do que o de qualquer Estrela Cotável. Marrion fora venerado por directores de estúdios, produtores e agentes, fora respeitado, e por vezes mesmo amado, por Estrelas Cotáveis, realizadores e até alguns argumentistas. A razão disto fora a sua grande civilidade e uma inteligência poderosa que resolvera muitos problemas no mundo do cinema. Gozara igualmente da reputação de ser um homem justo, dentro do razoável.

Nos seus últimos anos, tornara-se um asceta. Não abusava do poder, não exigia favores sexuais por parte das starlets. Além disso, a LoddStone fizera mais grandes filmes do que qualquer outro estúdio, e não havia nada mais precioso do que isso para as pessoas que faziam realmente cinema.

O presidente dos Estados Unidos enviou o seu chefe de gabinete para pronunciar um curto elogio. A França enviou o seu ministro da Cultura, embora este fosse um inimigo dos filmes de Hollywood. O Vaticano enviou um representante especial, um jovem cardeal tão atraente que recebeu diversos convites para fazer "participações especiais". Um grupo de executivos japoneses apareceu como que por magia. Os maiores executivos da indústria cinematográfica da Holanda, da Alemanha, da Itália e da Suécia apresentaram-se para prestar uma última homenagem a Eli Marrion.

Começaram os elogios fúnebres. Primeiro um actor Estrela Cotável, depois uma actriz Estrela Cotável, depois um realizador Classe A; até um escritor, Benny Sly, rendeu tributo ao falecido. Seguiu-se o chefe de gabinete do presidente. Então, e só para que o espectáculo não parecesse demasiado pretensioso, dois dos maiores cómicos do cinema disseram algumas piadas a respeito do poder e da argúcia de Eli Marrion como homem de negócios. Finalmente, falaram Bobby Bantz e os dois filhos de Marrion, Kevin e Dora.

Kevin Marrion descreveu o defunto como um pai extremoso, não só para com os seus próprios filhos, mas para com todos os que trabalhavam na LoddStone. Era um homem que defendia intransigentemente a causa da Arte no cinema. Uma causa que, garantiu Kevin aos presentes, ele próprio não deixaria de fazer sua.

A filha de Eli Marrion, Dora, fez o discurso mais poético, escrito por Benny Sly. Foi eloquente, espiritual, e referiu as virtudes e realizações do falecido com um humor respeitoso. "Amei o meu pai mais do que qualquer outro homem que tenha conhecido", disse Dora, "mas ainda bem que nunca tive de negociar com ele. Só tive de lidar com o Bobby Bantz, e com esse podia eu bem."

As pessoas riram-se, e então foi a vez de Bobby Bantz, que estava intimamente furioso com a piada de Dora. "Passei trinta anos a construir a LoddStone Studios ao lado de Eli Marrion. Ele era o homem mais inteligente, mais bondoso que jamais conheci. Sob a sua direcção, estes trinta anos de trabalho foram a época mais feliz da minha vida. E continuarei a servir o seu sonho. O Eli mostrou a confiança que depositava em mim deixando-me à cabeça dos estúdios durante os próximos cinco anos, e não desmerecerei essa confiança. Não posso ter sequer a esperança de igualar as suas realizações. O Eli ofereceu sonhos a biliões de pessoas em todo o mundo. Partilhou a sua riqueza e o seu amor com a família e com todas as pessoas neste país. Foi, sem a mínima dúvida, um íman."

Todos os presentes souberam que Bobby Bantz tinha escrito pessoalmente o seu discurso, pois acabava de enviar uma mensagem importante a toda a indústria cinematográfica. A de que ia dirigir a LoddStone Stu-dios nos próximos cinco anos e que esperava de todos o mesmo respeito que tinham dado a Eli Marrion. Bobby Bantz já não era um Número Dois, era um Número Um.

Dois dias depois do funeral, Bantz chamou Deere ao seu gabinete e propôs-lhe a direcção de produção de LoddStone, o cargo que ele próprio até então ocupara, uma vez que ia passar para o lugar de Marrion, como presidente. A remuneração que oferecia era irresistível. Deere receberia uma percentagem dos lucros de todos os filmes feitos pelos estúdios. Teria capacidade para dar luz verde a qualquer filme cujo orçamento fosse inferior a trinta milhões de dólares. Teria a possibilidade de integrar a sua própria produtora na LoddStone, como empresa independente, e nomear o director dessa empresa.

Skippy Deere ficou espantado com a opulência da oferta. Analisou-a como um sinal de insegurança da parte de Bobby Bantz. Bantz sabia que era fraco na área criativa e estava a contar com ele para o proteger desse lado.

Aceitou a oferta e nomeou Claudia De Lena para dirigir a sua empresa de produção. Não só porque ela era criativa, não só porque conhecia a fundo o negócio do cinema, mas também porque era demasiado honesta para o trair. Com ela, não teria de estar sempre a vigiar a retaguarda. Além disso, e não era pequena coisa naquele negócio de fazer filmes, apreciava a companhia dela, o seu bom humor. E havia muito que a questão do sexo ficara resolvida entre os dois.

Skippy Deere sentia um calor agradável no peito só de pensar em como todos eles iam ficar ricos. Porque Deere andava naquilo havia tempo suficiente para saber que até as Estrelas Cotáveis chegavam por vezes à velhice numa quase miséria. Deere era já um homem muito rico, mas em sua opinião havia dez níveis de riqueza, e ele estava ainda apenas no primeiro. Com certeza que podia viver luxuosamente até ao fim dos seus dias, mas não podia ter o seu jacto particular, não podia ter cinco casas e mantê-las. Não podia manter um harém. Não podia dar-se ao luxo de ser um jogador inveterado. Não podia dar-se ao luxo de outros cinco divórcios. Não podia dar-se ao luxo de ter cem criados. Não podia sequer dar-se ao luxo de financiar os seus próprios filmes durante um período prolongado de tempo. E não podia dar-se ao luxo de possuir uma dispendiosa colecção de arte, um Monet ou um Picasso dos mais conhecidos, como Eli tivera. Mas, agora, havia um dia de subir daquele primeiro nível de riqueza até talvez ao quinto. Para isso teria de trabalhar duramente e de ser muito esperto, e, sobretudo, de estudar Bobby Bantz com muita atenção.

Bantz delineou os seus planos, marcados por uma ousadia que surpreendeu Deere. Estava obviamente decidido a ocupar o seu lugar no mundo do poder.

Para começar, ia fazer um acordo com Melo Stuart nos termos do qual Melo daria à LoddStone acesso preferencial a todos os talentos da sua agência.

Posso tratar disso - ofereceu-se Deere. - Deixar-lhe-ei bem claro que darei luz verde aos seus projectos preferidos.

Estou particularmente interessado em ter a Athena Aquitane no nosso próximo filme - disse Bobby Bantz.

Aha! pensou Deere. Agora que controlava a LoddStone, Bantz alimentava a esperança de conseguir levar Athena para a cama. Claro que ele próprio, como director de produção, também teria direito a tentar a sua chance.

Vou dizer à Claudia que comece desde já a trabalhar num projecto para ela.

Óptimo. Agora não esqueças que eu sempre soube o que o Eli queria fazer mas não podia, por ser tão piegas. Vamos ver-nos livres das produtoras do Kevin e da Dora. Só servem para perder dinheiro e, além disso, não as quero nos nossos terrenos.

Nessa vais ter de andar com cuidado. Eles têm uma porção de acções da companhia.

Bantz sorriu.

- Pois sim, mas o Eli deixou-me no controlo por cinco anos. De modo que vais tu fazer o papel de mau. Vais recusar-te a dar luz verde aos projectos deles. Calculo que dentro de um ou dois anos estejam tão fartos que se vão embora, e te culpem a ti. Era a técnica do Eli. Era sempre eu quem ficava com as culpas.

Acho que vais ter problemas em expulsá-los das instalações. Para eles é uma segunda casa, cresceram aqui.

Vou tentar - prometeu Bantz. - Outra coisa. Na noite em que morreu, o Eli prometeu ao Ernest Vail dois pontos percentuais sobre o bruto, com algum dinheiro à cabeça, de todos os filmes que fizemos baseados na merda do romance dele. O Eli fez essa promessa porque a Claudia e a Molly Flanders o foram chagar no seu leito de morte, o que foi um truque perfeitamente miserável, se queres saber a minha opinião. Já notifiquei a Molly por escrito de que não me sinto legal nem moralmente obrigado a cumprir essa promessa.

Deere ponderou a questão.

Ele nunca se suicidará, mas pode morrer de morte natural durante os próximos cinco anos. Devíamos garantir-nos contra essa possibilidade.

Não. Eu e o Eli consultámos os nossos advogados e eles dizem que os argumentos da Molly perderão em tribunal. Negociarei algum dinheiro, mas nunca pontos do bruto. Isso é sugar o nosso sangue.

E então, a Molly já respondeu?

Sim, as tretas habituais dos advogados. Disse-lhe que se fosse lixar.

Bantz pegou no telefone e ligou para o seu psicanalista. A mulher insistia com ele havia anos para que seguisse um tratamento qualquer que o tornasse mais simpático.

- Só quero confirmar a marcação para as quatro - disse Bantz ao telefone. - Sim, para a semana conversamos a respeito do seu guião.

Desligou e dirigiu a Deere um sorriso malicioso.

Deere sabia que Bantz tinha um encontro marcado com Falene Fant no Beverly Hotel Bungalow. E o psicanalista dava-lhe cobertura porque a LoddStone comprara os direitos de num guião original que ele escrevera a respeito de um psiquiatra que se transformava num serial killer. O mais engraçado era que Deere tinha lido o guião e estava convencido que a história dava para fazer um bom filme de baixo orçamento, ao passo que Bantz achava que era uma trampa. Deere ia fazer o filme e Bantz ia ficar convencido de que ele estava apenas a fazer-lhe um favor.

Então conversaram os dois a respeito de como o tempo que passavam com Falene os fazia sentirem-se tão bem. Ambos concordavam que aquilo era uma infantilidade da parte de dois homens importantes como eles. Também estavam de acordo que o sexo com Falene era tão agradável por ela ser tão divertida, e por nunca lhes exigir nada. Claro que havia exigências implícitas, mas ela tinha talento e, quando chegasse o momento oportuno, ser-lhe-ia dada a sua oportunidade.

O que me preocupa - disse Bantz - é que, se ela chega a estrela, acaba-se-nos a paródia.

Pois é - concordou Deere. - É assim que o Talento reage. Mas, que diabo, nesse caso dá-nos a ganhar um monte de massa.

Passaram ao exame dos calendários de produção e distribuição. Messalina estaria pronto dentro de dois meses e seria a "locomotiva" do estúdio para a época do Natal. Uma continuação do romance de Vail estava pronta e chegaria às salas dentro das próximas duas semanas. Estes dois filmes juntos podiam significar para a LoddStone uma receita bruta de um bilião de dólares, a nível mundial e incluindo os direitos de vídeo. Bantz receberia um bónus de vinte milhões, Deere provavelmente cinco milhões. Bobby seria aclamado como um génio no seu primeiro ano como sucessor de Mar-rion. Seria reconhecido como um verdadeiro executivo Número Um.

É uma pena termos de pagar ao Cross quinze por cento do bruto ajustado de Messalina- disse Deere, pensativamente. - Por que é que não nos limitamos a devolver-lhe o seu dinheiro com juros, e se ele não gostar que nos processe? Não me pareceu que estivesse muito interessado em ir para tribunal.

Não se diz por aí que ele é da Maria? - perguntou Bantz. E Deere pensou, este tipo é mesmo medricas.

Conheço o Cross - afirmou Deere. - Não é nenhum duro. A irmã, a Claudia, ter-me-ia avisado se ele fosse verdadeiramente perigoso. Quem me preocupa é a Molly Flanders. Vamos lixar dois clientes dela ao mesmo tempo.

OK - disse Bantz. - Céus, hoje fizemos um bom dia de trabalho. Poupámos vinte milhões com o Ernest e talvez uns dez com o De Lena. Chega para pagar os nossos bónus. Vamos ser uns heróis.

Podes dizê-lo. - Deere consultou o relógio. - São quase quatro horas. Não ias encontrar-te com a Falene?

Nesse instante, a porta do gabinete de Bobby Bantz abriu-se de rompante e no umbral surgiu Molly Flanders. Vinha vestida para a luta: calças, casaco e blusa de seda branca. E sapatos rasos. O seu belo rosto estava vermelho de raiva. Tinha lágrimas nos olhos, e mesmo assim nunca parecera mais bonita. Quando falou, a sua voz soou carregada de malévola satisfação:

- Muito bem, seus sacanas. O Ernest Vail morreu. Tenho um mandato de suspensão do tribunal que os impede de distribuir a continuação do livro dele. Então, estão prontos para se sentarem à mesa e falar de negócios?

Ernest Vail sabia que o seu grande problema com o suicídio era como evitar a violência. Era demasiado cobarde para recorrer aos meios mais populares. As armas assustavam-no, as facas e os venenos eram excessivamente directos e não absolutamente seguros. Cabeça dentro do forno de gás, morte no carro por monóxido de carbono, eram igualmente métodos com uma grande margem de insegurança. Cortar os pulsos envolvia sangue. Não, queria morrer de uma morte agradável, rápida, certa, que deixasse intactos o seu corpo e a sua dignidade.

Ernest orgulhava-se de ter tomado uma decisão racional que beneficiava toda a gente excepto a LoddStone Studios. Era puramente uma questão de ganho financeiro pessoal e de satisfação do seu ego. Ia recuperar o controlo da sua própria vida; esta fê-lo rir. Outra prova de sanidade mental: ainda conservava o sentido de humor.

Meter-se a nado pelo mar dentro era demasiado "cinema", atirar-se para debaixo de um autocarro era demasiado doloroso e além disso de certa maneira desprestigiante, como se fosse um vadio qualquer sem ter onde cair morto. Uma ideia prendeu-lhe a atenção por alguns instantes. Havia um medicamento para dormir, já passado de moda, um supositório que era só enfiar no recto. Mas, mais uma vez, pareceu-lhe pouco digno, além de pouco seguro.

Ernest rejeitou todos estes métodos e procurou algo que lhe proporcionasse uma morte feliz e garantida. Achou este processo tão divertido que esteve quase tentado a pôr toda a ideia de parte. Tal como escrever borrões de notas de suicídio. Queria usar toda a sua arte para não parecer autocomi-serativo, ou acusador. Acima de tudo, queria que o seu suicídio fosse visto como um gesto perfeitamente racional, e não como uma cobardia.

Começou pela nota para a primeira mulher, em quem pensava como tendo sido o seu único verdadeiro amor. Tentou tornar logo a primeira frase objectiva e prática:

"Entra em contacto com a Molly Flanders, a minha advogada, logo que receberes esta nota. Ela terá notícias importantes para ti. Agradeço-te e aos nossos filhos os anos de felicidade que me proporcionaram. Não quero que penses que o que fiz constitui qualquer espécie de censura para ti. Estávamos fartos um do outro quando nos separámos. Por favor, não penses que o meu gesto resulta de qualquer doença mental, ou de qualquer infelicidade. É completamente racional, como a minha advogada te explicará. Diz aos meus filhos que os amo"

Ernest empurrou a nota para o lado. Ia ter de trabalhá-la. Escreveu notas à segunda e à terceira mulheres, notas que até a ele pareceram frias, informando-as de que lhes deixava uma pequena parte dos seus bens, agradecendo-lhes a felicidade que lhe tinham dado e assegurando-lhes que não eram de modo algum responsáveis pelo seu gesto. Definitivamente, não estava com uma disposição muito sentimental. Resolveu, por isso, escrever uma curta nota dirigida a Bobyy Bantz. Dizia apenas: "Vá-se foder."

Depois escreveu uma nota destinada a Molly Flanders: "Lixe-me esses malandros!" Isto fê-lo ficar um pouco mais bem disposto.

A Cross De Lena escreveu: "Finalmente, fiz o que devia." Sentira o desprezo dele pela sua indecisão.

Finalmente, o coração abriu-se-lhe quando escreveu a Claudia. "Deste-me os dias mais felizes da minha vida, e nem sequer estávamos apaixonados. Como é que explicas isto? E como é que tudo o que tu fizeste na tua vida saiu certo e tudo o que eu fiz na minha vida saiu errado? Até agora. Por favor, esquece tudo o que eu disse a respeito da tua escrita, como rebaixei o teu trabalho, é apenas a inveja de um velho romancista tão obsoleto como um ferreiro. E obrigado por teres lutado pela minha percentagem, ainda que no fim tenhas perdido. Adoro-te por teres tentado."

Fez um monte com as notas, que tinha escrito em folhas de papel amarelo. Estavam péssimas, mas ele havia de reescrevê-las, e reescrever era sempre a chave.

Compor aquelas notas, porém, despertara-lhe o subconsciente. Finalmente, tinha descoberto a maneira perfeita de se suicidar.

Kenneth Kaldone era o melhor dentista de Hollywood, tão famoso como qualquer Estrela Cotável naquele pequeno meio. Era extraordinariamente hábil na sua profissão, e era pitoresco e ousado na sua vida privada. Detestava a imagem que a literatura e o cinema davam dos dentistas, como extremamente burgueses, e fazia tudo o que podia para a desmentir.

Era encantador no aspecto e nos modos, o seu consultório era luxuoso e tinha uma estante com as cem melhores revistas que se publicavam na América e na Inglaterra. Uma outra estante, mais pequena, continha revistas em línguas estrangeiras, alemãs, italianas, francesas e até russas.

Algumas obras de arte moderna de grande qualidade decoravam as paredes da sala de espera, e quando se entrava no labirinto das salas de tratamento, os corredores estavam cheios de fotografias autografadas de alguns dos maiores nomes de Hollywood. Os seus doentes.

Estava sempre esfuziante de bom humor e tinha um ar vagamente efeminado, que era estranhamente enganador. Adorava mulheres, mas não compreendia que se pudesse ter qualquer espécie de compromisso com uma. Considerava o sexo nem mais nem menos importante do que um bom jantar, um óptimo vinho, uma música maravilhosa.

A única coisa em que Kenneth acreditava era na arte da odontologia. Aí, era um artista, mantinha-se a par dos mais pequenos progressos e desenvolvimentos técnicos. Recusava-se a fazer próteses removíveis para os seus clientes, insistia em implantes de aço aos quais podiam ser aparafusados dentes artificiais. Proferia conferências em congressos de odontologia, era uma tão grande autoridade que certa vez fora chamado para tratar os dentes de um membro da família real do Mónaco.

Nenhum doente de Kenneth Kaldone se veria obrigado a meter os dentes num copo de água ao ir para a cama. Nenhum doente alguma vez sentiria amais pequena dor na sua sofisticadíssima cadeira de dentista. Kenneth era liberal no uso de drogas, e sobretudo no uso de "ar doce", uma mistura de óxido de azoto e oxigénio inalada através de uma máscara de borracha e que eliminava milagrosamente a dor e transportava o paciente para uma semi-consciência quase tão agradável como a provocada pelo ópio.

Ernest e Kenneth tinham-se tornado amigos quando da primeira visita de Vail a Hollywood, quase vinte anos antes. Ernest fora atacado por uma violentíssima dor de dentes durante um jantar em casa de um produtor que andava a namorá-lo por causa dos direitos de um dos seus livros. O produtor telefonara para Kenneth à meia-noite, e Kenneth acorrera à festa, levara Ernest para o seu consultório e tratara o dente infectado. Depois fora deixá-lo no hotel onde estava hospedado, recomendando-lhe que voltasse ao consultório no dia seguinte.

Mais tarde, Ernest, em conversa com o produtor, comentara que ele devia ter uma influência enorme, para conseguir que um dentista fizesse uma visita domiciliária à meia-noite. O produtor dissera que não, que Kenneth Kaldone era assim mesmo. Um homem com uma dor de dentes era para ele como um homem prestes a afogar-se, tinha de ser salvo. Mas também, Kaldone tinha lido todos os livros de Ernest e adorava as suas obras.

No dia seguinte, ao visitar de novo Kaldone no consultório, Ernest mostrou-se efusivamente agradecido. Kenneth interrompeu-o erguendo uma mão, e disse:

Continuo em dívida para consigo pelo prazer que os seus livros me proporcionaram. Agora deixe-me falar-lhe a respeito dos implantes de aço. - E lançou-se numa longa prelecção, argumentando que nunca era demasiado cedo para tratar da boca, que Ernest não tardaria a perder outros dentes e que os implantes de aço lhe poupariam a vergonha de ter de meter a dentadura dentro de um copo de água quando fosse para a cama.

Vou pensar nisso - respondeu Ernest.

Não - declarou Kenneth. - Não posso tratar um doente que discorda de mim no que respeita ao meu trabalho.

Ernest riu-se.

- Ainda bem que não é romancista - comentou. - Mas está bem. Tornaram-se amigos. Vail telefonava-lhe para irem jantar sempre que ia a Hollywood e por vezes fazia uma viagem especial a L. A. só para ser tratado com "ar doce". Kenneth falava inteligentemente a respeito dos seus livros, e sabia quase tanto de literatura como de odontologia.

Ernest adorava o "ar doce". Nunca sentia dor e tinha algumas das suas melhores ideias quando se encontrava no estado semiconsciente que o gás induzia. Ao longo dos anos que se seguiram, criou-se entre os dois uma amizade tão forte de que resultou Ernest ficar dotado de um conjunto de dentes novos com raízes de aço que haviam de o acompanhar até à cova.

O interesse de Ernest por Kenneth era, porém, sobretudo como personagem de um romance. Ernest sempre acreditara que existe em todos os seres humanos uma surpreendente perversidade. Kenneth revelara-lhe a sua, e era sexual, mas não no habitual estilo pornográfico.

Conversavam sempre um pouco antes de cada tratamento, antes de Ernest inalar o "ar doce". Kenneth confidenciou-lhe que a sua principal namorada, tinha igualmente relações sexuais com um cão, um enorme pastor-alemão.

Ernest, que começava a sucumbir ao "ar doce", arrancou a máscara da cara e disse sem pensar:

- Andas a fornicar com uma mulher que também fornica com um cão? E isso não te preocupa?

Referia-se, naturalmente, às complicações médicas e psicológicas. Kenneth não compreendeu o que ele queria dizer.

- Por que haveria de preocupar-me? - espantou-se. - Um cão não é concorrência.

Ao princípio, Ernest pensou que ele estava a brincar. Então compreendeu que Kenneth falava a sério. Ernest voltou a colocar a máscara e mergulhou no mundo de sonhos do "ar doce", e o seu espírito, estimulado como sempre pelo gás, fez uma análise completa do seu dentista e amigo.

Kenneth era um homem que não tinha qualquer conceito do amor como exercício espiritual. O prazer estava acima de tudo, na mesma linha que a sua perícia para eliminar a dor. A carne tinha de ser controlada ao mesmo tempo que era satisfeita.

Jantaram juntos nessa noite, e Kenneth mais ou menos confirmou a análise de Ernest.

O sexo é melhor do que o azoto - disse. - Mas, tal como o azoto, é preciso misturar-lhe pelo menos trinta por cento de oxigénio. – Lançou a Ernest um olhar malicioso. - Ernest, já vi que gostas muito do "ar doce". Dou-te o máximo... setenta por cento... e tu tolerá-lo bem.

E perigoso? -perguntou Ernest.

- Nem por isso. A menos que fiques com a máscara posta durante dois ou três dias, e possivelmente nem mesmo assim. Claro que o óxido de azoto puro mata-te em quinze ou trinta minutos. Para te dizer a verdade, uma vez por mês dou uma pequena festa nocturna no meu consultório, tudo gente muito seleccionada. Todos doentes meus, de modo que os conheço bem. Todos saudáveis. O azoto excita-os. Não sentes despertar os teus instintos sexuais quando estás com o gás?

Ernest riu-se.

Quando uma das tuas assistentes passa perto dá-me vontade de lhe apalpar o rabo.

Tenho a certeza de que ela não te levaria a mal - respondeu Kenneth, com um humor retorcido. - Por que é que não apareces lá no consultório amanhã à meia-noite? Divertimo-nos imenso. - Reparou na expressão escandalizada de Ernest e acrescentou:- O azoto não é como a cocaína. A cocaína deixa certas mulheres indefesas. O azoto só as liberta. Aparece por lá como se fosses a um cocktail. Não és obrigado a fazer nada.

Será permitida a entrada a cães?, pensou Ernest, maliciosamente. Depois prometeu aparecer. Justificou-se a si mesmo pensando que se tratava unicamente de pesquisa para um romance.

Não se divertiu na festa, na qual não participou. A verdade era que o azoto o fazia sentir-se mais espiritual do que sexy, como se fosse uma droga sagrada destinada a ser usada exclusivamente para adorar um deus de misericórdia. O modo como os outros convidados copularam foi tão animalesco que pela primeira vez compreendeu a atitude displicente de Kenneth relativamente à namorada e ao pastor-alemão. Tudo aquilo era vão vazio de intenção humana que se tornava aborrecido. Kenneth também não participou pessoalmente na orgia; estava demasiado ocupado a manipular os controlos do "ar doce".

Agora, passados anos, Ernest sabia que tinha uma maneira de se matar. Indolor e agradável. Não sofreria, não ficaria desfigurado, não teria medo. Flutuaria deste mundo para o outro numa nuvem de pensamentos agradáveis. Como se costuma dizer, morreria feliz.

O problema residia agora em entrar no consultório de Kenneth durante a noite e descobrir como funcionavam os controlos...

Fez uma marcação para um checkup. Enquanto Kenneth estudava as radiografias, Ernest disse-lhe que estava a usar um dentista como personagem de um novo romance e pediu-lhe que lhe mostrasse como funcionavam os controlos do "ar doce".

Kenneth era pedagogo por natureza e ensinou-o a manipular os controlos dos tanques de óxido de azoto e de oxigénio, acentuando o aspecto das proporções de segurança entre os dois gases.

Mas não pode ser perigoso? - perguntou Ernest. - Supõe que estavas bêbado e te enganavas? Podias matar-me.

Não, está regulado automaticamente para te dar sempre pelo menos trinta por cento de oxigénio - explicou Kenneth.

Ernest hesitou um instante, esforçando-se por parecer embaraçado.

- Sabes, diverti-me muito naquela festa, aqui há anos. Agora tenho uma namorada muito bonita que está a fazer-se esquisita. Preciso de ajuda. Emprestas-me a chave do consultório para eu poder trazê-la cá durante a noite? Talvez o azoto faça pender a balança a meu favor.

Kenneth estudou cuidadosamente as radiografias.

- A tua boca está óptima - disse. - Sou na verdade um grande dentista.

- - A chave? - insistiu Ernest.

- Uma namorada muito bonita? Diz-me quando, e eu venho cá ocupar-me dos controlos.

Não, é uma rapariga um bocado antiquada. Nunca faria nada contigo por perto. - Fez uma pausa. - É mesmo muito antiquada.

A sério? - perguntou Kenneth, olhando Ernest directamente nos olhos. Depois acrescentou:- E só um minuto. - E saiu do consultório.

Quando regressou, trazia uma chave na mão.

- Leva-a a uma loja de ferragens e manda fazer um duplicado - disse. - Assegura-te de que ficam a saber quem tu és. Depois volta aqui e devolve-me a chave.

Ernest ficou surpreendido.

- Não queria dizer que fosse já.

Kenneth guardou as radiografias num arquivo e voltou-se para ele. Por uma das poucas vezes desde que Ernest o conhecia, a alegria desaparecera-lhe do rosto.

- Quando os polícias te encontrarem morto na minha cadeira, não quero ver-me implicado seja de que maneira for. Não quero o meu estatuto profissional posto em causa, nem quero que os meus doentes me abandonem. Os polícias vão encontrar o duplicado e seguir-lhe o rasto até à loja. Deduzirão que me pregaste a partida. Presumo que vais deixar uma nota?

Ernest ficou espantado, e depois cheio de vergonha. Nunca pensara prejudicar Kenneth, que continuava a olhar para ele com um sorriso de censura a que se misturava uma ponta de tristeza. Ernest pegou na chave que ele lhe estendia e, num raro gesto de emoção, abraçou-o desajeitadamente.

Então compreendes - disse. - Estou a ser perfeitamente racional.

Claro que compreendo. Muitas vezes pensei no mesmo, para quando for velho ou se as coisas me correrem mal. - Sorriu alegremente e acrescentou: - A morte não é concorrência. - Riram-se ambos.

Sabes realmente porquê? - perguntou Ernest.

Toda a gente em Hollywood sabe. O Skippy Deere estava numa festa e alguém lhe perguntou se ia realmente fazer o filme. E ele respondeu: "Vou continuar a tentar até que as galinhas tenham dentes ou o Ernest Vail se suicide."

E não achas que estou louco? Matando-me por causa de um dinheiro que não poderei gastar...

Porque não? - respondeu Kenneth. - Sempre é mais inteligente do que matares-te por amor. Mas os aspectos mecânicos não são assim tão simples. Tens de desligar este tubo, que fornece o oxigénio, para poderes fazer a mistura a mais de setenta por cento. Fá-lo numa sexta-feira à noite, depois de o pessoal da limpeza ter saído, para que só te descubram na segunda-feira. Há sempre a possibilidade de seres reanimado. Claro que se usares azoto puro ficas arrumado em meia hora. - Voltou a sorrir com alguma tristeza. - Todo o trabalho que tive com os teus dentes deitado a perder. Que pena. . . .

Dois dias mais tarde, no sábado de manhã, Ernest acordou cedo no seu quarto no Beverly Hills Hotel. O sol começava a nascer. Tomou um duche, barbeou-se, vestiu uma T-shirt, uns confortáveis jeans e um casaco de linho castanho claro. O quarto era uma confusão de roupas e jornais espalhados, mas não faria sentido pôr-se agora a arrumá-lo.

O consultório de Kenneth ficava a meia hora do hotel, a pé, e Ernest saiu para a rua com uma sensação de libertação. Ninguém andava a pé em L. A. Estava com fome, mas tinha medo de comer qualquer coisa porque isso poderia fazê-lo vomitar quando estivesse a inalar o azoto.

O consultório era no décimo quinto andar de um edifício com dezasseis. Havia apenas um porteiro no vestíbulo, e ninguém no elevador. Ernest serviu-se da chave e entrou no consultório. Fechou a porta atrás de si e meteu a chave no bolso do casaco. As salas estavam fantasmagoricamente silenciosas, a gaiola de vidro da recepcionista reflectia os raios do sol matinal e o visor do computador estava agourentamente escuro e mudo.

Ernest abriu a porta que dava acesso à área de trabalho. Enquanto percorria o corredor, foi recebido pelas fotografias das Estrelas Cotáveis. Havia seis salas de tratamento, três de cada lado do corredor. Ao fundo ficava o gabinete e a sala de reuniões de Kenneth, onde tinham conversado tantas vezes, e, mesmo ao lado, a sala de tratamento de Kenneth, com a sua cadeira hidráulica especial onde ele recebia os clientes mais importantes.

A cadeira era luxuosa, estofada de couro preto. Na mesa móvel ao lado estava a máscara de "ar doce". A consola, com os tubos ligados aos depósitos de óxido de azoto e de oxigénio, escondidos na parede, tinha os dois manípulos de controlo no zero.

Ernest ajustou os controlos de modo a receber metade de azoto e metade de oxigénio. Depois sentou-se na cadeira e pôs a máscara. Descontraiu-se. Ao fim e ao cabo, desta vez Kenneth não ia espetar-lhe agulhas nas gengivas. Todas as dores e desconforto lhe abandonaram o corpo, o seu cérebro vagueou de um extremo ao outro do mundo. Sentia-se maravilhosamente bem, era ridículo pensar em morte.

Idéias para futuros romances flutuaram-lhe pela cabeça, à mistura com uma nova percepção a respeito de muitas pessoas que conhecia, uma percepção isenta de malícia, que era o que ele mais adorava no azoto. Merda, esquecera-se de reescrever as notas de suicídio, e compreendia agora que, a despeito das suas boas intenções e linguagem, elas eram essencialmente insultuosas.

Ernest estava agora na barquinha de um grande balão colorido. Percorria, pairando, todo o mundo que tinha conhecido. Pensou em Eli Marrion, que tinha seguido o seu destino, conseguira um grande poder, fora olhado com respeito e admiração graças à implacável inteligência com que usara esse poder. E no entanto, quando o melhor livro de Ernest fora publicado e comprado para o cinema, o que lhe dera o Pulitzer, Eli aparecera na festa que os editores lhe tinham oferecido.

Eli estendera-lhe a mão e dissera: "E um grande escritor." A sua presença na festa fizera sensação nos círculos sociais de Hollywood. E o grande Eli Marrion dera-lhe a última e definitiva prova de respeito, concedera-lhe pontos sobre o bruto. Pouco importava que Bantz tivesse voltado a tirar-lhos depois de Eli ter morrido.

E o próprio Bantz não era um vilão. Aquela ânsia insaciável de lucro era o resultado da sua experiência num mundo especial. Para dizer a verdade, Skippy Deere era bem pior, porque Deere, com a sua inteligência, o seu charme e a sua energia, a sua tendência para a traição a um nível pessoal, era mais mortífero.

E ele próprio, por que estaria sempre a rebaixar os filmes de Hollywood, a troçar deles?, perguntou, introspectivamente. Era por inveja. O cinema tornara-se a mais venerada das formas de arte, e ele gostava de cinema, de bom cinema, pelo menos. Mas o que mais invejava era as relações que se estabeleciam durante a rodagem de um filme. O elenco, a equipa técnica, o realizador, as estrelas, e até os executivos, esses estúpidos ignorantes, como que se juntavam numa família unida, ainda que nem sempre afectuosa, pelo menos enquanto duravam as filmagens. Ofereciam presentes uns aos outros, beijavam-se e abraçavam, juravam devoção eterna. Devia ser um sentimento tão maravilhoso... Lembrava-se de, quando escrevera o seu primeiro argumento com Claudia, ter julgado que poderia vir a ser admitido nessa família.

Como seria isso possível, com a sua maneira de ser, o seu espírito verrinoso, a sua troça constante? Sob os efeitos do doce óxido de azoto, porém, nem a si mesmo era capaz de julgar severamente. Tinha o direito, tinha escrito grandes livros (Ernest era uma raridade entre os romancistas porque gostava verdadeiramente dos seus livros) e merecera ser tratado com mais respeito.

Confortavelmente saturado de azoto, Ernest decidiu que não queria realmente morrer. O dinheiro não era assim tão importante, Bantz havia de ceder e Molly acabaria por encontrar uma maneira de resolver aquilo.

Então recordou todas as suas humilhações. Nenhuma das suas três mulheres o amara verdadeiramente. Ele sempre fora o suplicante, nunca soubera o que fosse um amor correspondido. Os seus livros tinham sido respeitados, mas nunca tinham suscitado esse tipo de adoração que torna um escritor rico. Alguns críticos tinham-no atacado, e ele fingira aceitar o facto com desportivismo. Era tolice irritar-se com os críticos, ao fim e ao cabo estavam apenas a fazer aquilo para que lhes pagavam. Mas os comentários tinham-no magoado. E todos os seus amigos homens, embora por vezes apreciassem a sua companhia, o seu humor mordaz e a sua franqueza, nunca eram muito íntimos, nem sequer Kenneth. Claudia era verdadeiramente sua amiga, mas sabia que Kenneth e Molly, no fundo, tinham pena dele.

Ernest estendeu um braço e desligou o ar doce. Em poucos minutos as idéias aclararam-se-lhe, e foi sentar-se no gabinete de Kenneth.

Voltou a mergulhar numa depressão profunda. Recostou-se na cadeira de Kenneth e ficou a ver o sol erguer-se acima de Beverly Hills. Estava tão furioso por os estúdios o terem roubado que não era capaz de saborear coisa nenhuma. Odiava o nascer de cada novo dia, à noite deitava-se cedo, tomava dois comprimidos e tentava dormir o mais tempo possível... Ser humilhado por aquela gente, gente que desprezava! E agora já nem sequer conseguia ler, um prazer que nunca antes o traíra. E, evidentemente, não conseguia escrever. Aquela prosa elegante, tantas vezes elogiada, tornara-se falsa, enfatuada, pretensiosa. Escrevê-la já não lhe dava prazer.

Havia já muito tempo que acordava todas as manhãs receando o novo dia, demasiado cansado por tomar um duche e barbear-se. E estava sem dinheiro. Ganhara milhões e perdera tudo ao jogo, com as mulheres, com a bebida. Ou esbanjara-o sem conta nem medida. O dinheiro nunca fora importante para ele, até agora..

Nos últimos dois meses, não pudera mandar aos filhos nem às três ex-mulheres o dinheiro das pensões de alimentos. Ao contrário da maior parte dos homens, enviar aqueles cheques era uma coisa que o fazia feliz. Havia cinco anos que não publicava um livro, e a sua personalidade tornara-se cada vez menos agradável, até para ele próprio. Estava sempre a queixar-se da sua sorte. Era como um dente infectado na boca da sociedade. E esta própria imagem deprimiu-o ainda mais. Que espécie de metáfora reles era aquela para um escritor do seu talento? Uma onda de melancolia invadiu-o, deixando-o completamente impotente.

Levantou-se de um salto e voltou à sala de tratamento. Kenneth explicara-lhe o que tinha de fazer. Puxou o tubo com as duas tomadas, uma para o oxigénio, a outra para o óxido de azoto. Depois ligou apenas uma. A do azoto. Sentou-se na cadeira de dentista, estendeu um braço e girou o controlo. Nesse instante pensou que deveria haver uma maneira de conseguir pelo menos dez por cento de oxigénio, para que a morte não fosse tão segura. Pegou na máscara e pô-la na cara.

O azoto puro atingiu-lhe o corpo e ele experimentou um momento de êxtase, um desvanecer de todas as dores, uma satisfação total. O azoto inundou-lhe o cérebro e deixou-o limpo como um quadro negro no fim da aula. Houve um último momento de puro prazer antes de deixar de existir, e, nesse momento, Ernest acreditou que havia um Deus e um Paraíso.

Molly Flanders foi feroz com Bobby Bantz e Skippy Deere; se Eli Marrion estivesse vivo, teria tido mais cuidado.

- Vocês têm uma nova continuação do livro do Ernest pronta para sair. o meu mandato de suspensão impede-os de o fazer. Os direitos pertencem agora aos herdeiros do Ernest. Claro que podem conseguir uma anulação do mandato e distribuir o filme, mas nesse caso eu processo-os. Se ganhar, os herdeiros do Ernest tornam-se proprietários do filme e da maior parte dos lucros que ele gerar. E com toda a certeza podemos impedi-los de continuar a fazer continuações com base nas personagens dos livros dele. Ora muito bem, podemos poupar a nós mesmos tudo isso e anos de chatices nos tribunais. Vocês pagam cinco milhões à cabeça e dez por cento do bruto de todos os filmes. E quero uma relação certificada das receitas do vídeo doméstico.

Deere estava horrorizado, e Bantz furioso. Ernest Vail, um escritor, teria uma percentagem dos lucros maior do que qualquer outra pessoa, excepto uma Estrela Cotável, e isso era um ultraje inaceitável.

Bantz telefonou imediatamente a Melo Stuart e ao chefe do contencioso da LoddStone Studios. Meia hora mais tarde, estavam na sala de reuniões. Melo Stuart era necessário porque tinha interesses nas continuações e recebia uma comissão sobre a Estrela Cotável, o realizador e o argumentista, Benny Sly. Aquela era uma situação que podia exigir que ele cedesse alguns pontos.

Estudámos a situação quando Mr. Vail fez a sua primeira ameaça contra os estúdios - disse o chefe do contencioso.

Chama a suicidar-se uma ameaça contra os estúdios? - interrompeu-o Molly Flanders, furiosamente.

E uma chantagem - respondeu o chefe do Contencioso, com muita calma. - Estudámos aprofundadamente os aspectos legais da situação, que são muito complicados, mas mesmo assim avisei a administração de que podemos combater as suas exigências em tribunal e ganhar. Neste caso particular, os direitos à propriedade não revertem para os herdeiros.

O que é que pode garantir? - perguntou-lhe Molly. - Com noventa e cinco por cento de certeza?

- Nada. Em matéria de leis, nada tem essa percentagem de certeza. Molly estava deliciada. Poderia reformar-se com os honorários que ia receber quando ganhasse aquele caso.

- Então vá-se lixar. Vemo-nos no tribunal.

Bantz e Deere estavam tão aterrorizados que nem conseguiam falar. Bantz desejou com todo o seu coração que Eli Marrion ainda estivesse vivo.

Foi Melo Stuart quem se levantou e segurou Molly com um abraço afectuoso e implorativo.

Eh! - exclamou. - Estamos aqui para negociar. Sê civilizada. - Voltou a conduzir Molly para a cadeira, notando que havia lágrimas nos olhos dela. - Podemos chegar a um acordo, eu estou disposto a ceder alguns dos meus pontos.

Quer arriscar-se a perder tudo? - perguntou Molly tranquilamente, voltando-se para Bantz. - O seu advogado pode garantir-lhe que vai ganhar? Claro que não pode! O que é que você é, um homem de negócios ou um raio de um jogador degenerado? Para poupar uma merda de uns vinte a quarenta milhões, arrisca-se a perder um bilião?

Chegaram a acordo. Os herdeiros de Vail receberam quatro milhões à cabeça e oito por cento da receita bruta do filme que estava pronto a ser distribuído. Receberiam mais dois milhões e dez por cento do bruto ajustado de qualquer outra continuação. As três ex-mulheres e os filhos de Ernest Vail iam ficar ricos.

Antes de sair, Molly disparou-lhes uma frechada final:

- Se acham que isto foi duro, esperem até o Cross De Lena descobrir como o lixaram.

Molly saboreou a sua vitória. Lembrava-se de como certa noite, anos antes, levara Ernest Vail para casa depois de uma festa. Estava muito embriagada e muito sozinha, e Ernest era engraçado e inteligente, e ela pensara que talvez fosse divertido passar a noite com ele. Então, quando tinham chegado a casa dela, com a bebedeira já meio curada pela viagem, e o levara para o quarto, olhara à sua volta, desesperada. Ernest era tão insignificante, e tão obviamente tímido em matéria de sexo, e nem sequer era um homem bonito... Naquele momento, parecia ter perdido a língua.

No entanto, Molly era demasiado justa para o repelir naquelas circunstâncias. Por isso embebedara-se outra vez e fora para a cama com ele. E, para dizer a verdade, no escuro, não fora mau de todo. Ernest mostrara gostar tanto que ela se sentira lisonjeada e lhe levara o pequeno-almoço à cama.

Ele dirigira-lhe um grande sorriso, e dissera:

- Obrigado. E outra vez obrigado E Molly percebera que ele tinha compreendido tudo o que ela sentira na noite anterior e estava a agradecer-lhe não só por lhe ter levado o pequeno-almoço à cama, mas também por ter sido a sua benfeitora sexual. Molly sempre lamentara não ser melhor actriz, mas que diabo, era uma advogada. E agora acabava de ter para com Ernest Vail um gesto de amor retribuído.

O Dottore David Redfellow recebeu a mensagem de Don Clericuzio quando se encontrava a meio de uma importante reunião em Roma. Estava a aconselhar o primeiro-ministro italiano sobre uma nova regulamentação bancária que pretendia impor sanções severas aos agentes corruptos da banca, e, naturalmente, pronunciava-se contra. Encerrou imediatamente os seus argumentos e voou para a América.

Durante os vinte e cinco anos do seu exílio em Itália, David Redfellow prosperara e modificara-se para além dos seus sonhos mais loucos. De início, Don Clericuzio ajudara-o a comprar um pequeno banco em Roma. Depois servira-se da fortuna que ganhara com as drogas e que depositara em bancos suíços para adquirir mais bancos e estações de televisão. Mas tinham sido os amigos de Don Clericuzio em Itália que o tinham guiado e ajudado a construir o seu império, a comprar os jornais, as revistas, as estações de TV, além da cadeia de bancos.

David Redfellow não estava, porém, menos contente com o que conseguira sozinho. Uma transformação completa e radical da sua própria pessoa. Adquirira a cidadania italiana, tinha uma mulher italiana, filhos italianos, e a típica amante italiana, tudo isto além de um doutoramento honoris causa (preço, dois milhões de dólares) por uma universidade italiana. Vestia fatos Armani, passava uma hora por semana no barbeiro, juntara um círculo de amigos (só homens) no bar que frequentava (e que tinha comprado), e entrara na política como conselheiro do governo e do primeiro-ministro. Com tudo isto, uma vez por ano fazia a sua peregrinação a Quoge, a fim de satisfazer quaisquer desejos do seu mentor, Don Clericuzio. Por isso este chamamento inesperado o encheu de apreensão.

O jantar aguardava-o na mansão de Quogue quando chegou, e Rose Marie ultrapassara-se, porque David Redfellow falava sempre com grande entusiasmo dos restaurantes de Roma. Todo o clã Clericuzio se encontrava reunido em sua honra: o Don em pessoa; os seus filhos, Giorgio, Petie e Vincent; o neto, Dante, e Pippi e Cross De Lena.

Foi uma espécie de regresso do herói. David Redfellow, o garoto que se recusara a estudar, o traficante de droga, o mal vestido de brinco na orelha, a hiena que explorara todos os becos do sexo, transformara-se num pilar da sociedade. Orgulhavam-se dele. Mais, Don Clericuzio considerava-se em dívida para com ele. Porque fora Redfellow quem lhe ensinara uma grande lição em matéria de moralidade.

Em tempos passados, Don Clericuzio sofrera de um estranho sentimentalismo. Acreditara que, de um modo geral, as forças da lei não podiam ser corrompidas quando se tratava de drogas.

Em 1960, David Redfellow era um estudante de vinte anos quando começara a traficar droga, não tanto pelo lucro, mas simplesmente para que ele e os amigos pudessem dispor de um fornecimento seguro e barato. Um negócio de amadores, apenas marijuana e cocaína. Num ano, esse negócio crescera de tal maneira que ele e os colegas eram donos de um avião particular que trazia o produto do México e da América do Sul. Muito naturalmente, não tardaram a ver-se em apuros com a lei, e fora então que David revelara pela primeira vez o seu génio. Os seis membros da sua sociedade ganhavam grandes quantidades de dinheiro, e David Redfellow pagava subornos tão exorbitantes que em pouco tempo tinha por sua conta uma enfiada de xerifes, delegados do ministério público, juizes e centenas de agentes da Polícia ao longo de toda a Costa Leste.

Costumava dizer que era muito simples. Bastava descobrir qual era o salário anual de uma pessoa e oferecer-lhe cinco vezes esse valor.

Fora então que o cartel dos colombianos aparecera em cena, mais selvagem do que quaisquer índios dos filmes do Velho Oeste, cortando não apenas escalpes mas cabeças inteiras. Quatro dos sócios de Redfellow tinham sido mortos, e Redfellow entrara em contacto com a Família Clericuzio e pedira-lhes protecção, oferecendo em troca cinquenta por cento dos seus lucros.

Petie Clericuzio e um grupo de soldados do Enclave do Bronx tornaram-se os seus guarda-costas, e este acordo durara até que o Don exilara Redfellow para Itália, em 1965. O negócio da droga tornara-se demasiado perigoso.

Agora, reunidos à mesa de jantar, felicitavam o Don pela sabedoria da sua decisão vinte e cinco anos antes. Dante e Cross ouviam a história de Redfellow pela primeira vez. David Redfellow era um bom contador de histórias, e tecia a Petie os mais rasgados elogios.

Que lutador - disse. - Se não fosse ele, nunca eu teria vivido o suficiente para ir para Itália. - Voltou-se para Dante e Cross e acrescentou, dirigindo-se-lhes directamente. - Foi no dia em que vocês os dois foram baptizados. Lembro-me de que nenhum de vocês pestanejou sequer quando o padre quase os afogou em água-benta. Nunca sonhei que um dia viríamos a ter negócios juntos, como homens adultos.

Não vais ter negócios com eles - interrompeu secamente o Don -, vais ter negócios comigo e com o Giorgio. Se precisares de ajuda, poderás recorrer ao Pippi De Lena. Resolvi ir para a frente com o assunto de que te falei. O Giorgio explica-te porquê.

Giorgio pôs David ao corrente dos últimos desenvolvimentos, contou-lhe que Eli Marrion tinha morrido e que Bobby Bantz, que ficara à frente da LoddStone, retirara a Cross a percentagem combinada sobre os lucros do filme, limitando-se a devolver-lhe com juros o dinheiro que ele tinha adiantado.

Redfellow achou graça à história.

- É um tipo esperto. Sabe que não podes ir para tribunal, de modo que te fica com o dinheiro. Bem jogado.

Dante estava a beber café, e olhou para Redfellow com desagrado. Rose Marie, sentada ao lado do filho, pousou a mão no braço dele.

- Acha engraçado? - perguntou Dante a Redfellow.

Redfellow estudou-o por um momento. O seu rosto tornou-se muito sério.

- Só porque, dadas as circunstâncias, sei que é um erro ser assim tão esperto.

O Don acompanhou esta troca de palavras, que pareceu diverti-lo. Em todo o caso, permitiu-se uma frivolidade, ocorrência rara que os filhos nunca deixavam de apreciar.

E então, neto - disse, dirigindo-se a Dante -, como terias tu resolvido o problema?

Mandava-os nadar para o fundo do oceano - disse, e o Don sorriu-lhe.

E tu Croccifixio? Como resolverias tu a situação?

Limitava-me a aceitá-la - respondeu Cross. -Aprendia com ela. Fui levado à certa porque nunca pensei que eles tivessem coragem para tanto.

Petie e Vincent? - perguntou o Don.

Ambos, porém, recusaram responder. Sabiam que jogo o pai estava a jogar.

- Não podes ignorar uma coisa destas - disse o Don, dirigíndo-se a Cross. - Serás conhecido como um pateta e nenhum homem do mundo te respeitará.

Cross estava a levar o Don a sério.

A casa do Eli Marrion ainda está cheia de quadros que valem uns vinte ou trinta milhões. Podíamos roubá-los e exigir um resgate.

Não - declarou o Don. - Isso denunciar-te-ia, revelaria o teu poder, e por mais delicadamente que o caso fosse tratado, poderia tornar-se perigoso. E demasiado complicado. David, e tu, que farias?

David aspirou pensativamente o fumo do seu charuto.

- Comprava a LoddStone - respondeu. - Fazia um negócio civilizado. Com os nossos bancos e empresas de comunicação, o que há a fazer é comprar a LoddStone.

Cross nem queria acreditar no que estava a ouvir.

A LoddStone é a mais antiga e a mais rica produtora de filmes de todo o mundo. Mesmo que conseguisse arranjar os dez biliões necessários, eles não lha vendiam. É simplesmente impossível.

David, meu velho amigo - interveio Petie, em tom brincalhão -, consegues deitar as luvas a dez biliões? O homem cuja vida eu salvei? o homem que disse que nunca poderia pagar-me?

Redfellow agitou uma mão.

Não compreendes como é que o dinheiro a sério funciona. E como bater claras. Pegas numa pequena quantidade e vais batendo com títulos, empréstimos e acções até conseguires uma grande espuma. O dinheiro não é o problema.

O problema é afastar Bantz do nosso caminho - disse Cross. - É ele quem controla a LoddStone, e sejam quais forem os seus defeitos é leal aos desejos do Marrion. Nunca aceitaria vender os estúdios.

- Eu vou até lá e dou-lhe um beijo - sugeriu Petie. Entretanto, o Don tinha tomado uma decisão. Voltou-se para Redfello.

Vai para a frente com o teu plano. Mas com todas as cautelas. O Pippi e o Croccifixio estarão sob as tuas ordens.

Mais uma coisa - interveio Giorgio, dirigindo-se a Redfellow. - Nos termos do testamento do Eli Marrion, o Bobby Bantz tem o controle total da LoddStone durante os próximos cinco anos. Mas o filho e a filha do Marrion detêm mais acções da empresa do que ele. Não podem despedi-lo, mas se a LoddStone for vendida, os novos proprietários terão de pagar-lhe. Esse é o problema que temos de resolver.

David Redfellow sorriu e puxou uma fumaça do charuto.

É como nos velhos tempos. Don Clericuzio, a única ajuda de que preciso é a sua. Alguns dos bancos italianos poderão ter relutância em apostar numa aventura tão grande. Lembre-se, vamos ter de pagar muito acima do valor real da LoddStone.

Não te preocupes - respondeu o Don. - Tenho muito dinheiro nesses bancos.

Pippi De Lena acompanhara tudo isto com uma atenção cuidadosa. O que o perturbava era a abertura daquela reunião. Por regra, só o Doi Giorgio e David Redfellow deveriam ter estado presentes. Ele próprio e Cro: teriam recebido ordens, separadamente, para ajudarem Redfellow. Por que razão lhes fora permitido tomar conhecimento de todos aqueles segredos Ainda mais importante, por que razão teriam Dante, Petie e Vincent sido chamados a participar? Nada daquilo parecia coisa do Don Clericuzio que ele conhecia, e que mantinha sempre os seus planos o mais secretos possível Vincent e Rose Marie estavam a ajudar o pai a subir as escadas, para se ir deitar. O Don recusava-se teimosamente a deixar que fosse instalada uma cadeira elevatória no corrimão.

Mal eles desapareceram, Dante voltou-se para Giorgio e perguntou furioso:

- E quem fica com a LoddStone quando ela for nossa? O Cross?

David Redfellow interrompeu-o, friamente.

- Os estúdios serão meus. Serei eu a dirigi-los. O teu avô terá um interesse financeiro. Isto ficará documentado.

Giorgio assentiu com a cabeça.

- Dante - disse Cross, com uma gargalhada -, nenhum de nós é capaz de dirigir um estúdio de cinema. Não somos suficientemente duros.

Pippi estudou-os um a um. Era bom a detectar perigos. Por isso vivera tantos anos. Mas aquela era uma situação que não conseguia compreender. Talvez o Don estivesse pura e simplesmente a ficar velho.

Petie levou Redfellow até ao aeroporto Kennedy, onde o seu jacto particular o esperava. Pippi e Cross tinham vindo de Vegas num vôo fretado. Don Clericuzio proibira terminantemente a posse de um avião particular pelo Xanadu ou qualquer outra das suas empresas.

Cross conduziu o carro alugado até ao aeroporto. Pelo caminho, Pippi disse-lhe:

- Vou ficar mais algum tempo em Nova Iorque. Fico com o carro depois de te deixar no aeroporto.

Cross percebeu que o pai estava preocupado.

Não me portei muito bem, pois não? - disse.

Estiveste bem. Mas o Don tem razão. Não podes consentir que te lixem duas vezes, seja quem for.

Quando chegaram ao aeroporto, Cross apeou-se e Pippi ocupou o lugar do condutor. Apertaram as mãos através da janela aberta. Nesse instante, Pippi olhou para o bonito rosto do filho e sentiu-se invadido por uma enorme onda de afecto. Tentou sorrir enquanto dava uma leve palmada na cara de Cross e dizia:

- Tem cuidado.

Com quê? -perguntou Cross, com os olhos a perscrutarem os do pai.

Com tudo - respondeu Pippi. Então, sobressaltando Cross, acrescentou: - Talvez eu devesse ter-te deixado ir com a tua mãe, mas fui egoísta. Precisava de ti a meu lado.

Cross ficou a ver o carro afastar-se e, pela primeira vez, apercebeu-se de como o pai se preocupava com ele, de como o pai o amava.

 

Para seu grande espanto, Pippi De Lena resolveu voltar a casar, não por amor, mas por uma questão de companhia. Tinha Cross, é certo, tinha os seus amigos no Xanadu, tinha a Família Clericuzio e um monte de parentes. Tinha, é certo, três amantes, e comia com bom e sincero apetite; gostava de jogar golfe e continuava a adorar dançar. Mas, como o Don dizia, podia ir a dançar para a cova.

Por isso, no fim da casa dos cinqüenta, de excelente saúde, sanguíneo de temperamento, rico, semi-reformado, ansiava uma vida caseira e, talvez, um novo rancho de filhos. Porque não? A ideia agradava-lhe cada vez mais. Surpreendentemente, desejava voltar a ser pai. Seria divertido criar uma filha; tinha adorado Claudia, quando ela era pequena, embora já não se falassem. Ela fora uma miúda tão astuta e ao mesmo tempo tão franca, e fizera carreira no mundo como argumentista de cinema. E, quem sabe, talvez um dia fizessem as pazes. Em certos aspectos, Claudia era tão teimosa como ele, de modo que Pippi compreendia-a e admirava a maneira como ela se batia por aquilo em que acreditava.

Cross perdera a jogada que tentara no mundo do cinema, mas de um modo ou de outro o seu futuro estava assegurado. Continuava a ter o Xanadu, e o Don ajudá-lo-ia a recuperar do risco que correra com a sua nova aventura. Era um bom rapaz, mas era jovem, e os jovens gostam de correr riscos. A vida era isso mesmo.

Depois de deixar Cross no aeroporto, regressou a Nova Iorque para passar alguns dias com a sua amante na Costa Leste. Era uma morena bonita, secretária num gabinete de advogados e dotada de uma acutilância de espírito muito novaiorquina. Tinha, era verdade, uma língua afiada, adorava gastar dinheiro, seria uma esposa dispendiosa. Mas era demasiado velha, já passara os quarenta e cinco. E era demasiado independente, uma excelente qualidade numa amante, mas não para o tipo de casamento que Pippi iria exigir.

Foi um fim-de-semana agradável, embora ela tivesse passado quase metade do domingo a ler o Times. Comeram nos melhores restaurantes, foram dançar a nightclubs e fizeram amor no apartamento dela. Mas Pippi precisava de uma coisa mais pacata.

Voou para Chicago. A amante que lá tinha era o equivalente sexual daquela truculenta cidade. Bebia um tudo nada de mais, adorava festas, em que participava sempre com grande exuberância, era alegre, descuidada e divertida. Mas era um tanto preguiçosa, um tanto desmazelada, e Pippi gostava de uma casa bem arranjada. Por outro lado, era já demasiado velha para iniciar uma família, pelo menos uns quarenta anos. Mas que diabo. Estaria ele à altura de andar metido com uma miúda verdadeiramente nova? Depois de dois dias em Chicago, Pippi riscou-a da lista.

Com qualquer delas, teria tido problemas em instalar-se em Las Vegas. Eram ambas mulheres da grande cidade, e Vegas, Pippi bem o sabia, não passava na realidade de uma grande povoação de cowboys onde os casinos tinham substituído o gado. E nunca Pippi aceitaria viver em qualquer outro lado que não fosse Vegas, porque em Vegas a noite não existia. As luzes eléctricas baniam todos os fantasmas, a cidade brilhava como um diamante cor-de-rosa na noite do deserto, e depois da aurora o sol queimava todos os espectros que tivessem escapado ao néon.

A sua melhor aposta era a amante de Los Angeles, e Pippi congratulava-se por ter sabido posicionar-se tão convenientemente, em termos de geografia. Não podia haver quaisquer confrontações acidentais, quaisquer debates mentais na escolha entre elas. Serviam um determinado propósito e não podiam interferir em qualquer caso amoroso passageiro que ele tivesse. Na realidade, em retrospectiva, estava satisfeito com a maneira como conduzira a sua vida. Ousada mas prudente, corajosa mas não louca, leal à Família e recompensado por essa lealdade. O seu único erro fora casar com uma mulher como Nalene, e mesmo assim, que outra mulher poderia ter-lhe dado tanta felicidade durante onze anos? E que homem podia gabar-se de ter cometido apenas um erro em toda a sua vida? Como o Don costumava dizer, não fazia mal cometer erros, desde que não fosse um erro fatal.

Resolveu seguir directamente para L. A., sem passar por Vegas. Telefonou a avisar Michelle de que ia a caminho e declinou a oferta dela de ir buscá-lo ao aeroporto.

- Só quero que estejas pronta para mim quando eu aí chegar - disse-lhe. - Tenho tido saudades tuas. E tenho uma coisa importante para te dizer.

Michelle era suficientemente nova, trinta e dois anos, e mais terna, mais disponível, mais calma, talvez por ser nada e criada na Califórnia. Era, além disso, boa na cama, não que as outras não fossem, claro, uma vez que isso constituía, para Pippi, uma condição primordial. Mas não tinha arestas vivas, não levantaria problemas. Era um pouco chanfrada, acreditava nessas tretas da New Age, e em ser capaz de conversar com os espíritos, e costumava falar a respeito das suas vidas passadas, mas também sabia ser muito divertida. Como muitas beldades californianas, sonhara ser actriz, mas a realidade encarregara-se de lhe arrancar essa ideia da cabeça. Agora estava totalmente envolvida no yoga e na forma física, e passava metade do tempo a correr e a frequentar o ginásio. Além disso, estava sempre a felicitar Pippi pelo seu karma. Claro que nenhuma destas mulheres sabia da sua verdadeira vocação. Para elas, era apenas um funcionário administrativo da associação hoteleira de Vegas.

Sim, com Michelle poderia ficar em Vegas, poderiam arranjar um apartamento em L. A., e quando lhes desse na gana podiam fazer os quarenta minutos de avião até L. A. e passar lá algumas semanas. E talvez, para a manter entretida, lhe comprasse uma das lojas do Xanadu. Era bem capaz de resultar. Mas, e se ela dissesse que não?

Uma recordação ocorreu-lhe ao espírito: Nalene a ler Goldylocks and The Three Bears[7] , quando os miúdos eram pequenos. Ele, Pippi, era como Goldilocks. A mulher de Nova Iorque era demasiado dura, a mulher de Chicago era demasiado mole, e a mulher de L. A. estava na conta certa. A ideia fê-lo sorrir. Claro que, na vida real, não havia nada que estivesse exactamente "na conta certa".

Quando desembarcou em L. A., inspirou deliciado o doce ar da Califórnia, sem sequer reparar na poluição. Alugou um carro e dirigiu-se em primeiro lugar a Rodeo Drive. Gostava de surpreender as suas mulheres com pequenos presentes e adorava passear por aquela rua de lojas caríssimas onde se amontoavam os luxos do mundo. Comprou um vistoso relógio na loja da Gucci; uma bolsa na Fendi's, embora a achasse horrorosa; um lenço Hermes e dois ou três perfumes metidos em frascos que pareciam esculturas em miniatura. Quando comprou um conjunto de lingeriede alto preço, estava tão bem disposto que brincou com a vendedora, uma jovem loura, afirmando que era para ele próprio. A rapariga olhou-o de alto a baixo e respondeu... - Claro...

De novo no carro, três mil dólares mais pobre, Pippi rumou a Santa Monica, levando as prendas num bonito saco da Gucci, em cima do banco ao seu lado. Fez uma paragem em Brentwood Mart, um dos seus locais favoritos. Adorava as lojas de comida à volta da praça quadrada cheia de pequenas mesas onde se podia tomar uma bebida fresca e comer. A refeição que lhe tinham servido no avião fora horrível, e estava com fome. Michelle nunca tinha no frigorífico nada que se comesse, pois estava sempre de dieta.

Numa das lojas comprou dois frangos assados, uma dúzia de costeletas grelhadas e quatro cachorros com todos os extras. Noutra, um pão de trigo e um de centeio. Num dos balcões de bebidas comprou um enorme copo de Coca Cola gelada e foi sentar-se a uma das mesas, para saborear um último momento de solidão. Comeu dois cachorros-quentes, metade de um dos frangos assados e algumas batatas fritas. Nunca provara nada tão bom. Deixou-se ficar sentado sob a luz dourada do fim da tarde da Califórnia, com a brisa suave e perfumada como que a limpar-lhe a cara. Não lhe apetecia ir-se embora, mas Michelle estava à espera. Havia de ter tomado banho e estaria toda cheirosa, talvez até ligeiramente embriagada, e arrastá-lo-ia imediatamente para a cama, sem sequer lhe dar tempo para lavar os dentes. Pippi ia pedi-la em casamento antes de começarem.

O saco de papel onde guardara a comida que sobrara estava decorado com uma treta qualquer a respeito dos alimentos; era um saco de papel intelectual, como convinha à clientela intelectual do lugar. Quando o pousou no carro, leu a primeira linha: "A fruta é o mais antigo dos produtos consumidos pelo homem. No Jardim do Paraíso...". Céus, pensou Pippi.

Seguiu para Santa Monica e parou o carro diante do apartamento de Michelle, numa fila de vivendas de dois andares em estilo espanhol. Quando se apeou, segurou automaticamente os dois sacos com a mão esquerda, deixando livre a direita. Por hábito, investigou a rua nos dois sentidos. Era encantadora, sem carros estacionados - as vivendas tinham estacionamento privativo e o ambiente geral, talvez devido ao estilo espanhol, era de uma serenidade ligeiramente religiosa. Havia canteiros de flores e relva e as árvores de folhagem densa formavam um dossel contra a luz do sol.

Pippi tinha de percorrer uma comprida álea limitada por vedações de madeira pintadas de verde que quase desapareciam sob um manto de roseiras. O apartamento de Michelle ficava nas traseiras, uma relíquia da antiga Santa Monica, que era ainda bucólica. As casas eram de madeira, cada uma com a sua piscina rodeada de bancos pintados de branco.

Vindo da rua, na extremidade oposta da álea, Pippi ouviu o ruído do motor de um carro parado. Isto alertou-o, pois estava sempre alerta. No mesmo instante, avistou um homem que se levantava de um dos bancos. Ficou tão surpreendido que exclamou:

- Que raio estás aqui a fazer?

O homem não estendeu a mão para o cumprimentar, e nesse instante tudo se tornou claro para Pippi. Sabia o que ia acontecer. O seu cérebro processava tanta informação que ficou incapaz de reagir. Viu a arma aparecer, tão pequena e inofensiva, viu a tensão no rosto do assassino. Compreendeu pela primeira vez a expressão nos rostos dos homens que matara, o supremo espanto de descobrir que a vida tinha chegado ao fim. E compreendeu que finalmente ia ter de pagar o preço da vida que tinha vivido. Pensou mesmo, fugidiamente, que o assassino planeara aquilo mal, que ele tê-lo-ia feito de maneira diferente.

Tentou um último esforço, sabendo que não haveria misericórdia. Deixou cair os sacos com as compras e saltou para a frente, ao mesmo tempo que sacava a sua própria arma. O homem avançou ao seu encontro e Pippi, exaltado, tentou agarrá-lo. Seis balas atingiram-lhe o corpo e atiraram-no para o meio de um canteiro de flores, junto a uma das vedações. Pippi cheirou-lhes a fragrância. Olhou para o homem que estava de pé a seu lado e disse:

- Filho da puta de Santadio.

Nesse instante, uma última bala despedaçou-lhe o crânio. Pippi De Lena tinha deixado de existir.

 

muito cedo na manhã do dia em que Pippi De Lena ia morrer, Cross foi buscar Athena à casa dela em Malibu e seguiram ambos para San Diego, para visitar Bethany.

Bethany tinha sido preparada pelas enfermeiras, estava vestida para sair. Cross apercebeu-se que ela era como um reflexo esbatido da mãe, e alta para a idade. Tinha a mesma ausência de expressão no rosto e nos olhos que já lhe vira da primeira vez, e o corpo era demasiado frouxo. As feições davam a sensação de estarem mal definidas, como se tivessem sido parcialmente dissolvidas, como um sabonete já usado. Continuava a vestir o avental de plástico vermelho que usava para proteger as roupas enquanto pintava. Estivera a pintar na parede desde cedo nessa manhã. Não deu sinais de se ter apercebido da presença deles e recebeu o abraço e os beijos da mãe com um retraimento do corpo e do rosto.

Athena ignorou isto e abraçou-a ainda com mais força.

Tinham combinado um piquenique junto de um lago no meio de um bosque próximo, e Athena preparara uma cesta com a merenda.

Durante o curto trajecto, com Athena a conduzir, Bethany sentou-se entre os dois. Athena estava constantemente a pentear-lhe os cabelos para trás e a acariciar-lhe a cara, mas Bethany não desviava os olhos da estrada.

Cross pensava que, quando aquele dia terminasse, ele e Athena regressariam a Malibu e fariam amor. Imaginava-a nua, estendida na cama, e ele inclinado sobre ela.

Subitamente, Bethany falou, e dirigiu-se a ele. Nunca antes dera sequer a impressão de o ter visto. Voltou para ele os olhos verdes e inexpressivos e perguntou:

- Quem és tu?

Athena respondeu, e a sua voz foi perfeita, como se a pergunta de Bethany fosse a coisa mais natural do mundo:

- Chama-se Cross, e é o meu melhor amigo.

Bethany pareceu não tê-la ouvido e voltou a retirar-se para o seu mundo.

Athena estacionou o carro a poucos metros do brilhante lago aninhado entre as árvores, uma pequena jóia azul no meio de um grande pano verde. Cross tirou a cesta da merenda e Athena espalhou o seu conteúdo em cima da toalha vermelha estendida sobre a erva, juntamente com guardanapos verdes e garfos e colheres. A toalha estava bordada com desenhos de instrumentos musicais que atraíram a atenção de Bethany. Havia sanduíches de diversas qualidades embrulhadas em película transparente. Havia tigelas de vidro com salada de batata e salada de frutas. Havia um prato de bolos a escorrerem creme. E uma travessa de frango assado. Athena preparara tudo aquilo com o cuidado de um profissional, pois Bethany adorava comer.

Cross voltou ao carro e tirou da mala uma caixa de garrafas de refrigerante. Havia copos no cesto e Cross encheu três. Athena ofereceu um copo a Bethany, mas ela afastou-lhe a mão com uma palmada. Estava a olhar para Cross.

Cross devolveu-lhe o olhar. O rosto de Bethany estava tão rígido que bem poderia ser uma máscara em vez de carne, mas os seus olhos estavam alerta. Era como se tivesse ficado encurralada no fundo de uma caverna secreta, como se estivesse a sufocar mas não pudesse gritar por socorro, como se a sua pele estivesse coberta de bolhas e não suportasse que lhe tocassem.

Comeram, e Athena assumiu o papel de palradora inveterada, esforçando-se por fazer Bethany rir. Cross admirou a habilidade dela, fingindo-se deliberadamente irritante e aborrecida, como se o comportamento autista da filha fosse perfeitamente normal, tratando Bethany como uma companheira de conversa, apesar de a garota nunca lhe responder. Era um monólogo inspirado que ela criava para aliviar a sua própria dor.

Finalmente, chegou a altura da sobremesa. Athena desembrulhou um dos bolos de creme e ofereceu-o a Athena, que o recusou. Ofereceu-o então a Cross, que abanou a cabeça. Cross começava a sentir-se nervoso, pois, embora Bethany tivesse consumido uma grande quantidade de comida, era óbvio que estava a ficar muito zangada com a mãe. E sabia que Athena também se apercebia disso.

Athena comeu o bolo e exclamou entusiasticamente que era uma delícia. Desembrulhou outros dois e colocou-os diante de Bethany. Habitualmente, a garota adorava doces. Bethany tirou-os de cima da toalha e pousou-os na erva. Em poucos minutos, ficaram cobertos de formigas. Então Bethany pegou nos dois bolos e meteu um na boca. Estendeu o outro a Cross. Sem hesitar um instante, Cross meteu-o na boca. Sentiu uma comichão no palato e nas gengivas. Bebeu rapidamente um golo de refrigerante para o ajudar a engolir. Bethany olhou para Athena.

Athena tinha a testa franzida, como uma actriz que planeasse uma cena difícil. Então riu-se, com uma gargalhada maravilhosamente contagiante, e bateu palmas.

- Eu bem lhes disse que eram deliciosos! - exclamou. Desembrulhou outro bolo, mas Bethany recusou-o, e Cross também.

Athena atirou o bolo para a relva, pegou num guardanapo e limpou a boca de Bethany, e depois a de Cross. Parecia estar a divertir-se imenso.

Na viagem de regresso à clínica, falou a Cross com algumas das inflexões que usara com Bethany. Como se ele também fosse autista. Bethany observou-a atentamente e então voltou-se e ficou a olhar para Cross.

Quando a deixaram na clínica, Bethany pegou numa mão de Cross por um instante.

- Es bonito - disse. Mas quando Cross tentou despedir-se com um beijo, desviou a cabeça. Depois afastou-se a correr.

No regresso a Malibu, Athena disse excitadamente:

Reagiu a ti. Isso é muito bom sinal!

Porque eu sou bonito - respondeu Cross, secamente.

Não. Porque és capaz de comer formigas. Eu sou pelo menos tão bonita como tu, e ela detesta-me... - Estava a sorrir alegremente, e, como sempre, a beleza dela fez Cross sentir-se tonto, e alarmou-o.

A Bethany pensa que tu és como ela - continuou Athena. - Pensa que és autista. Cross riu-se, saboreando a idéia.

E talvez tenha razão. Talvez devesses internar-me na clínica, junto dela.

Não - respondeu Athena, a sorrir. - Nesse caso não poderia ter o teu corpo sempre que quisesse. Além disso, vou levá-la comigo quando acabarmos o filme.

Quando chegaram à casa de Malibu, Cross entrou com ela. Tinham planeado passar a noite juntos. Entretanto, Cross tinha aprendido a conhecê-la: quanto mais animada se mostrava, mais perturbada estava.

- Se não te sentes bem, posso voltar para Vegas - disse.

Athena ficou triste. Cross perguntou a si mesmo como a amava mais: quando era naturalmente exuberante, quando se mostrava firme e séria, ou quando estava melancólica. O rosto de Athena transformava-se tão magicamente, na sua beleza, que os sentimentos dele se sintonizavam sempre com os dela.

- Tiveste um dia terrível e terás a tua recompensa - disse ela, meigamente. Havia uma nota de ironia na sua voz, mas Cross soube que troçava da sua própria beleza, que tinha consciência de que a sua magia era falsa.

Não tive nada um dia terrível - afirmou Cross. E era verdade. A alegria que sentira naquele dia, os três sozinhos junto ao lago na vasta floresta, lembrara-lhe a sua infância.

Gostas de bolos com formigas...- murmurou Athena, tristemente.

Não são nada más. A Bethany pode melhorar?

Não sei, mas continuarei a procurar até descobrir. Vem aí um fim-de-semana comprido, em que não vão precisar de mim para o filme. Vou a França com a Bethany. Há um grande médico em Paris, e vou levá-la lá para mais um exame.

E se ele disser que não há esperança? - perguntou Cross.

Talvez eu não acredite. Não importa. Amo-a. Hei-de tomar conta dela.

Para todo o sempre?

Sim - respondeu Athena. Subitamente bateu as mãos, com os olhos verdes a brilharem. - Entretanto, vamos divertir-nos um pouco. Vamos tratar de nós. Vamos lá para cima, tomamos um duche e metemo-nos na cama. Vamos fazer amor apaixonadamente, durante horas. Depois eu preparo uma ceia para os dois.

Para Cross, era como ser outra vez criança e acordar com um dia inteiro de prazer à sua frente, comer o pequeno-almoço preparado pela mãe, brincar com os amigos, ir à caça com o pai, e depois o jantar com a família, Claudia, Nalene e Pippi. E depois os jogos de cartas. Era o mesmo sentimento inocente. A sua espera estava fazer amor com Athena, ao crepúsculo, ficar na varanda a ver o sol desaparecer no oceano, o céu pintado de maravilhosos vermelhos e rosas, o toque da carne tépida dela e da sua pele sedosa. O rosto e os lábios de Athena para beijar. Sorriu, pegou-lhe numa mão e começou a subir as escadas.

O telefone do quarto tocou, e Athena correu à frente para atender. Tapou o bocal com a mão e, numa voz assustada, disse:

- é para ti. Um homem chamado Giorgio. - Era a primeira vez que ele recebia um telefonema em casa dela.

Aquilo podia significar sarilhos, pensou Cross, e então fez uma coisa que nunca se julgara capaz de fazer. Abanou a cabeça. Athena falou para o aparelho:

Não está cá... Sim, eu digo-lhe para lhe telefonar se ele aparecer. - Desligou o telefone e perguntou:- Quem é este Giorgio?

Um parente - respondeu Cross. Estava espantado com o que fizera, e com as razões por que o fizera: porque não queria desistir da sua noite com Athena. Aquilo era um crime muito sério. E então perguntou a si mesmo como soubera Giorgio onde encontrá-lo e o que lhe quereria. Devia ser alguma coisa importante, pensou, mas mesmo assim poderia esperar até de manhã. Mais do que tudo, ansiava desesperadamente pelas horas de amor com Athena.

Era o momento por que tinham esperado todo o dia, toda a semana; já estavam a despir-se um ao outro antes de tomarem duche juntos, mas ele não conseguiu resistir a abraçá-la, com os corpos de ambos ainda suados do piquenique. Então ela pegou-lhe na mão e levou-o para debaixo do chuveiro.

Secaram-se um ao outro com grandes toalhas cor de laranja e, embrulhados nelas, ficaram na varanda a ver o sol desaparecer lentamente para lá do horizonte. Depois foram para dentro e deitaram-se na cama.

Quando Cross fazia amor com ela, parecia que todas as células do seu corpo e do seu cérebro explodiam e ele ficava mergulhado num sonho febril; era um fantasma cujos fragmentos estavam em êxtase, um fantasma que entrava na carne dela. Perdia todas as cautelas, a razão, nem sequer lhe observava o rosto para tentar descobrir se ela estava a fingir, se realmente o amava. Amaram-se por uma eternidade, até que adormeceram nos braços um do outro. Quando acordaram ainda estavam enlaçados, iluminados pela lua cuja luz parecia mais brilhante que a do sol. Athena beijou-o e perguntou:

Gostaste verdadeiramente da Bethany?

Sim. Ela é parte de ti.

Achas que pode melhorar? Não achas que eu posso ajudá-la a melhorar? Naquele momento Cross pensou que seria capaz de dar a vida para que aquela criança melhorasse. Sentiu a necessidade de se sacrificar pela mulher que amava, essa necessidade que muitos homens sentem, mas que até então sempre lhe fora estranha.

Podemos ambos ajudar - disse.

Não - respondeu Athena. - Tenho de fazer isto sozinha. Adormeceram outra vez, e quando o telefone tocou o ar estava húmido e uma nova aurora despontava. Athena pegou no telefone, escutou e disse a Cross:

- É o guarda do portão. Diz que quatro homens num carro querem falar contigo.

Cross sentiu um choque de medo. Pegou no aparelho e disse ao guarda:

- Passe o telefone a um deles.

A voz que ouviu era a de Vincent.

Cross, o Petie está comigo. Temos notícias muito más.

OK, passa-me o guarda - pediu Cross. E depois, falando com o guarda: - Podem entrar.

Tinha esquecido completamente o telefonema de Giorgio. Isto é o que o amor nos faz, pensou, desdenhosamente. Não vivo mais um ano, se continuo assim.

 Vestiu-se rapidamente e desceu as escadas a correr. O carro estava a parar diante da casa, e o sol, ainda meio escondido, parecia espreitar por cima do horizonte.

Vincent e Petie apearam-se da parte de trás de uma comprida limusina. Cross viu o condutor e um outro homem no banco da frente. Vincent e Petie percorreram o longo caminho do jardim até à porta, que Cross lhes abriu.

Subitamente, Athena estava a seu lado, vestindo umas calças e uma camisola, sem mais nada por baixo. Petie e Vincent ficaram a olhar para ela. Nunca parecera mais bonita.

Athena levou-os para a cozinha e começou a preparar café, e Cross apresentou-a aos primos.

Como foi que chegaram aqui? - perguntou. - Ontem à noite estavam em Nova Iorque.

O Giorgio fretou-nos um avião - explicou Petie.

Athena estava a estudá-los enquanto fazia o café. Nenhum dos dois mostrava qualquer espécie de emoção. Pareciam irmãos, eram ambos homens grandes, mas Vincent era pálido como granito, ao passo que o rosto mais magro de Petie tinha um tom avermelhado que podia ser conseqüência do sol ou da bebida.

Quais são então as más notícias? - perguntou Cross, à espera de ouvir dizer que o Don tinha morrido, que Rose Marie tinha enlouquecido de vez ou que Dante fizera qualquer coisa tão terrível que a Família estava em crise.

Temos de falar contigo a sós - declarou Vincent, com a sua habitual brusquidão.

Athena serviu-lhes o café.

Eu conto-te todas as minhas más notícias - disse, dirigindo-se a Cross -, tenho o direito de ouvir as tuas.

Eu vou lá para fora com eles - respondeu Cross.

Não sejas não estuporadamente condescendente - protestou Athena. - Não te atrevas a sair!

Vincent e Petie reagiram. O rosto granítico de Vincent corou de embaraço, enquanto Petie dirigia a Athena um sorriso especulativo, como se ela fosse alguém que tivesse de ser vigiada. Cross, ao ver isto, riu-se e disse.

- OK, vamos lá saber.

Petie tentou suavizar o choque.

- Aconteceu uma coisa ao teu pai - começou. Vincent interrompeu-o selvaticamente:

- O Pippi foi atingido a tiro por um merdas de um assaltante, um puto drogado. Está morto. O puto também; um chui qualquer chamado Losey liquidou-o quando ia a fugir. Precisam de ti em L. A., para identificar o corpo e tratar da papelada. O velho quer que ele seja enterrado em Quogue. Cross ficou sem respiração. Cambaleou por um instante, como sacudido por uma rajada de vento, e sentiu Athena agarrar-lhe o braço com ambas as mãos.

Quando? - perguntou Cross.

Por volta das oito, ontem à noite - respondeu Petie. - O Giorgio telefonou-te.

Enquanto eu estava a fazer amor, pensou Cross, o meu pai jazia estendido na morgue. Sentiu um desprezo enorme pelo seu momento de fraqueza, uma vergonha insuportável.

- Tenho de ir - disse a Athena.

Ela olhou para o rosto desfigurado dele. Nunca o tinha visto assim.

- Lamento muito - murmurou. - Telefona-me.

No banco de trás da limusina, Cross ouviu os outros dois homens expressarem as suas condolências. Reconheceu-os como sendo soldados do Enclave do Bronx. Quando atravessaram o portão de Malibu Colony e depois na Pacific Coast Highway, detectou algo de especial nos movimentos do carro, e subitamente apercebeu-se de que estavam a viajar num veículo blindado.

Cinco dias mais tarde, Pippi De Lena foi a enterrar em Quogue. A propriedade do Don tinha o seu próprio cemitério privado, tal como a mansão tinha a sua capela, e Pippi foi sepultado ao lado de Silvio, para mostrar o respeito de Don Domenico.

Só estiveram presentes os Clericuzio e os soldados mais importantes do Enclave do Bronx. Lia Vazzi veio da cabana de caça nas Sierras, a pedido de Cross. Rose Marie não assistiu. Ao saber da morte de Pippi, tivera um dos seus ataques e fora levada para a clínica psiquiátrica.

Mas Claudia De Lena estava lá. Foi para consolar Cross e despedir-se do pai. O que não fora capaz de fazer enquanto Pippi vivera, sentia que tinha a obrigação de fazer agora que ele estava morto. Queria reclamar uma parte dele para si mesma, mostrar aos Clericuzio que Pippi era tanto pai dela como membro da família deles.

O relvado diante da mansão dos Clericuzio estava decorado com uma enorme coroa de flores, e havia mesas de bufete, e criados, e um barman junto de um bar improvisado, para servir os convidados. Era estritamente um dia de luto, e não foram discutidos quaisquer assuntos da Família.

Claudia chorou lágrimas amargas por todos os anos que fora obrigada a viver sem o pai, mas Cross recebeu as condolências com uma tranqüila dignidade e não deu quaisquer mostras de desgosto.

Na noite seguinte estava na varanda da sua suite no Xanadu a contemplar a orgia de luzes e cores da Strip. Mesmo àquela distância, conseguia ouvir os sons da música, o zumbido dos jogadores que enchiam as ruas em busca de um casino que lhes desse sorte. Mas havia silêncio suficiente para lhe permitir analisar o que acontecera durante aquele último mês. E para reflectir sobre a morte do pai.

Cross não acreditava por um momento sequer que Pippi De Lena pudesse ter sido morto por um qualquer vadio drogado. Era impossível um Homem Qualificado morrer dessa maneira.

Reviu todos os factos que lhe tinham contado. O pai fora morto por um jovem negro chamado Hugh Marlowe. Marlowe tinha vinte e três anos e cadastro como traficante de droga. Fora abatido, quando fugia do local do crime, pelo detective Jim Losey, que andava a segui-lo no âmbito de uma investigação. Marlowe empunhava uma arma e apontara-a a Losey, que em resposta o atingira mortalmente, um tiro limpo em cheio na cana do nariz. Ao investigar, Losey descobrira o corpo de Pippi De Lena, e telefonara imediatamente a Dante Clericuzio. Antes mesmo de avisar a polícia. Por que haveria de fazer semelhante coisa, mesmo estando na folha de pagamentos da Família? Uma grande ironia - Pippi De Lena, o perfeito Homem Qualificado, o martelo Número Um dos Clericuzio durante mais de trinta anos, morto por um miserável traficante de droga!

Nesse caso, porém, porque resolvera o Don enviar Petie e Vincent para o transportarem num carro blindado e o guardara até ao funeral? Por que razão achara necessário tomar precauções tão elaboradas? Durante o funeral, Cross perguntara-lhe isso mesmo. Mas o Don limitara-se a dizer que era mais sensato estarem preparados até que todos os factos fossem conhecidos. Que ordenara uma investigação aprofundada e que parecia ser verdade o que se dizia. Um gatuno sem importância cometera um erro e as conseqüências tinham sido uma estúpida tragédia; mas na verdade, acrescentara Don Domenico, quase todas as tragédias são estúpidas.

Não era possível duvidar da dor de Don Clericuzio. Sempre tratara Pippi como um dos seus filhos, dera-lhe inclusivamente alguma preferência, e dissera a Cross:

- Ocuparás o lugar do teu pai na Família.

Agora, no entanto, contemplando Vegas da varanda da sua suite, Cross meditava sobre a questão central. O Don nunca acreditara em coincidências, e ali estava um caso cheio delas por todos os lados. O detective Jim Losey estava a soldo da Família e, dos milhares de detectives e polícias de Los Angeles, fora precisamente ele que se encontrava no local do crime. Quais eram as probabilidades de semelhante coisa acontecer? Mas deixando isso de parte. Ainda mais importante, Don Domenico Clericuzio sabia perfeitamemnte que era impossível um vulgar ladrão de rua aproximar-se o suficiente de Pippi De Lena para o matar. E que assaltante disparava sete tiros antes de fugir? Nunca o Don acreditaria em tal coisa.

Portanto, a questão punha-se. Teriam os Cleriucuzio decidido que o melhor dos seus soldados se tornara um perigo para eles? Por que razão? Teriam podido ignorar a lealdade e devoção dele, bem como a estima que lhe tinham? Não, estavam inocentes. E a maior prova disto era o facto de o próprio Cross continuar vivo. O Don nunca o permitiria, se tivessem morto Pippi. Mas Cross sabia que devia estar em perigo.

Pensou no pai. Amara-o verdadeiramente, e Pippi ficara magoado por Claudia se ter recusado a falar com ele enquanto fora vivo, como tanto teria gostado. E no entanto, ela resolvera ir ao funeral. Porquê? Porque era irmã dele e queria estar a seu lado? Não podia ser só isso. Claudia continuara a guerra da mãe durante demasiado tempo, recusara quaisquer contactos com os Clericuzio. Teria finalmente recordado como o pai fora bom para os dois quando eram pequenos, antes de a família se desfazer?

Recordou aquele dia terrível em que decidira ficar com o pai porque compreendera de súbito o que ele verdadeiramente era, e soubera que mataria realmente a mulher se ela levasse ambos os filhos. Mas dera um passo em frente e pegara na mão do pai, não por amor, mas pelo medo que vira nos olhos de Claudia.

Cross sempre pensara que o pai era a sua protecção contra os perigos do mundo em que viviam, sempre o julgara invulnerável. Um homem que dava a morte, não que a recebia. Agora teria de defender-se sozinho dos seus inimigos, talvez até dos Clericuzio. Ao fim e ao cabo, era rico, dono de metade do Xanadu, quinhentos milhões de dólares, um homem que valia a pena matar.

E isto fê-lo pensar na vida que levava. Com que objectivo? Para envelhecer como o pai, correndo todos os riscos e acabar mesmo assim por ser morto? Certo, Pippi gozara a vida, o poder, o dinheiro, mas agora parecia a Cross ter sido uma vida vazia. O pai nunca conhecera a felicidade de amar uma mulher como Athena.

Tinha apenas vinte e oito anos, podia começar uma nova vida. Pensou em Athena e que no dia seguinte, pela primeira vez, a veria a trabalhar, observaria a sua vida de faz-de-conta e todas as máscaras que ela era capaz de usar. Como Pippi a teria adorado, ele que adorava todas as mulheres bonitas! Mas então recordou a mulher de Virginio Ballazzo. Pippi fora amigo dela, comera à sua mesa, abraçara-a, dançara com ela, jogara boccia com o marido, e depois planeara a morte de ambos.

Suspirou e levantou-se para regressar à suite. A aurora despontava, e a sua luz como que enevoou o fulgor do néon, suspenso como um grande pano de cena por cima da Strip. Podia ver as bandeiras de todos os outros grandes casinos-hotéis, o Sands, o Caesars, o Flamingo, o Desert Inn, e o vulcão do Mirage. O Xanadu era o maior deles todos. Observou as bandeiras que ondulavam sobre as sete villas. Vivera num sonho, e agora esse sonho dissolvia-se. Gronevelt tinha morrido e o pai fora assassinado.

De novo no quarto, pegou no telefone e ligou para Lia Vazzi, a convidá-lo para tomar o pequeno-almoço com ele. Tinham viajado juntos de Quogue para Vegas. Depois encomendou o pequeno-almoço para ambos. Lembrou-se que Lia gostava de panquecas, que continuavam a parecer-lhe um prato exótico, mesmo depois de todos aqueles anos passados na América. O segurança chegou com Vazzi ao mesmo tempo que o pequeno-almoço. Comeram na cozinha da suite.

Então, o que é que achas? - perguntou Cross a Lia.

Acho que devemos matar esse detective, o Losey. Já to tinha dito aqui há tempos.

- Não acreditas então na história dele? Lia estava a cortar as panquecas em tiras.

E uma autêntica desgraça, essa história. Nunca um Homem Qualificado como o teu pai deixaria um malandro qualquer aproximar-se assim tanto dele.

O Don pensa que é verdade - disse Cross. - Investigou.

Lia estendeu a mão para a caixa de charutos e o copo de brandy que Cross preparara para ele.

Nunca contradirei Don Clericuzio - afirmou. - Mas deixa-me matar o Losey, só para jogar pelo seguro.

E se os Clericuzio estiverem por detrás dele? - perguntou Cross.

O Don é um homem de honra. Dos velhos tempos. Se tivesse morto o Pippi, tinha-te morto a ti. Ele conhece-te. Sabe que vingarás o teu pai, e é um homem prudente.

De qualquer maneira, ao lado de quem lutarias? De mim ou dos Clericuzio?

Não tenho por onde escolher. Era muito chegado ao teu pai e sou muito chegado a ti. Eles não me deixarão viver, se te liquidarem.

Pela primeira vez na sua vida, Cross fez companhia a Lia e bebeu brandy ao pequeno-almoço.

Talvez tenha sido apenas uma daquelas coisas estúpidas - disse.

Não. Foi o Losey.

Mas ele não tinha qualquer motivo. Seja como for, vamos ter de descobrir. Quero que reúnas uma equipa de seis homens, os que te forem mais leais, nenhum do Enclave do Bronx. Prepara-os e aguarda as minhas ordens.

Lia estava invulgarmente sério.

Desculpa - disse -, nunca discuti as tuas ordens. Mas, desta vez, peço-te que me consultes a respeito do plano geral.

Óptimo - respondeu Cross. - No próximo fim-de-semana tenciono ir a França por dois dias. Entretanto, descobre tudo o que puderes a respeito do Losey.

Vais com a tua noiva? -perguntou Lia, com um sorriso. Cross achou graça à delicadeza.

Sim, e com a filha dela.

Aquela a que falta um quarto do cérebro? - A pergunta não era ofensiva. A expressão usava-se na Sicília para designar até as pessoas mais inteligentes que eram esquecidas.

Sim - respondeu Cross. - Há lá um médico que talvez possa ajudar.

Bravo! - exclamou Lia. - Desejo-te a maior sorte. Essa tua mulher, sabe alguma coisa a respeito dos assuntos da Família?

Deus o proíba! - disse Cross, e riram-se os dois. Cross perguntava a si mesmo como estaria Lia tão bem informado sobre a sua vida particular.

 

Pela primeira vez, Cross ia ver Athena a trabalhar num filme, vê-la representar falsas emoções, ser outra pessoa.

Foi ter com Claudia ao escritório dela nas instalações da LoddStone. Havia duas outras mulheres no gabinete, e Claudia apresentou-os:

- O meu irmão Cross, Dita Tommey, a realizadora, e Falene Fant, que hoje trabalha no filme.

Tommey lançou-lhe um olhar avaliador, pensando que ele era suficientemente bonito para trabalhar no cinema, excepto que não mostrava qualquer espécie de fogo, de paixão, na tela pareceria tão morto como uma pedra. Perdeu o interesse.

- Já estava de saída- disse, apertando-lhe a mão. - Lamento muito o que aconteceu ao seu pai. A propósito, é bem-vindo ao meu set. A Clau dia e a Athena respondem por si, apesar de ser um dos produtores.

Cross observou a outra mulher. Tinha uma pele cor de chocolate escuro, um rosto descaradamente insolente e um corpo magnífico, que as roupas realçavam. Falene era muito menos formal do que Tommey.

Não sabia que a Claudia tinha um irmão tão bonito... e ainda por cima rico, segundo ouvi dizer. Se alguma vez precisar de alguém para lhe fazer companhia ao jantar, telefone-me - disse ela.

Assim farei - respondeu Cross. O convite não o surpreendera. Muitas das coristas e bailarinas do Xanadu tinham-se mostrado igualmente directas. Ali estava uma rapariga naturalmente insinuante, consciente da sua beleza e nada disposta a deixar escapar um homem que lhe agradasse por causa de regras sociais..

Estávamos a dar à Falene um pouco mais que fazer no filme - explicou Claudia. - A Dita acha que ela tem talento, e eu também. ;

Falene dirigiu a Cross um sorriso rasgado.

- Pois, agora posso abanar o traseiro dez vezes em vez de seis. E digo à Messalina: "Todas as mulheres de Roma te amam e têm esperança na tua vitória." - Interrompeu-se por um instante e acrescentou:- Ouvi dizer que é um dos produtores. Talvez consiga que eles me deixem abanar o traseiro vinte vezes.

Cross detectou qualquer coisa nela, qualquer coisa que estava a tentar esconder, a despeito da sua vivacidade.

- Sou apenas um dos homens do dinheiro - disse. - Toda a gente tem de abanar o traseiro, uma ou outra vez. - Sorriu e acrescentou, com uma encantadora simplicidade. - Em todo o caso, desejo-lhe sorte.

Falene inclinou-se para ele e beijou-o na face. Cross sentiu-lhe o peito fúmebre, pesado e erótico, e depois o abraço agradecido pela sua boa vontade - Tenho de contar-lhe, a si e à Claudia, uma coisa que é segredo - disse subitamente Falene. - Não quero meter-me em sarilhos, sobretudo agora.

Claudia, sentada diante do computador, franziu o sobrolho e não respondeu. Cross recuou um passo. Não gostava de surpresas.

Falene notou estas reacções. Quando voltou a falar, a sua voz vacilou um pouco.

- Lamento o que aconteceu ao vosso pai. Mas há uma coisa que tên de saber. O Marlowe, o tipo que supostamente o assaltou, era um miúdo que cresceu comigo e que eu conhecia muito bem. Supostamente, o detective Losey matou o Marlowe, que supostamente tinha morto o vosso pai. eu sei que o Marlowe nunca teve uma arma. Tinha um medo de morte di armas. Traficava um pouco de droga e tocava clarinete. E era um cobarde muito querido. O Jim Losey e o parceiro, o Phil Sharkey, costumavam metê-lo no carro e dar uma volta com ele pela cidade, para que lhes apontasse os passadores. O Marlowe tinha tanto medo de ir parar à prisão que se tornou informador da polícia. E de repente é um assaltante e um assassino. Eu conhecia-o bem, era incapaz de fazer mal a uma mosca.

Claudia permaneceu silenciosa. Falene fez-lhe um aceno com a mão e dirigiu-se à porta, mas voltou para trás.

Lembrem-se - disse -, isto é um segredo entre nós.

Já está esquecido - respondeu Cross, com o mais tranqüilizador dos seus sorrisos. - E a sua história não vem mudar nada.

Tinha de desabafar com alguém. O Marlowe era tão bom rapaz - disse Falene, e saiu.

O que é que achas? - perguntou Claudia. - Que raio de história foi aquela?

Cross encolheu os ombros.

- Os drogados são sempre cheios de surpresas. Precisava de dinheiro para a droga, fez um assalto e teve azar.

- Suponho que tens razão - concordou Claudia. - E a Falene é tão boa rapariga que acredita em tudo. Mas não deixa de ser uma ironia, o nosso pai morrer daquela maneira.

Cross olhou para ela com uma expressão impenetrável. , - Toda a gente tem azar uma vez na vida.

Passou o resto da tarde a assistir às filmagens. Uma das cenas mostrava o herói, desarmado, a derrotar três homens armados. Isto ofendeu-o, era ridículo. Um herói nunca devia deixar-se colocar numa situação daquelas. Só provava que era demasiado estúpido para ser um herói. Depois viu Athena fazer uma cena de amor e outra em que tinha uma discussão. Ficou desapontado, ela parecia esforçar-se pouco, todos os outros actores sobressaíam mais. Cross era demasiado inexperiente para saber que aquilo que Athena fazia ficaria registado com muito mais força na película, que, para ela, a câmara operaria a sua magia.

E não descobriu a verdadeira Athena. As cenas eram filmadas em pequenas fracções, com longos intervalos pelo meio. Não via nenhuma da electricidade que haveria de perpassar pela tela. Athena parecia inclusivamente menos bela quando estava a representar diante da câmara.

Não falou a este respeito quando passou essa noite com ela na casa de Malibu. Depois de terem feito amor e quando estava a preparar uma ceia tardia, ela perguntou:

- Hoje não fui grande coisa, pois não? - Lançou-lhe um dos seus sorrisos felinos, que tinham sempre o condão de fazer uma onda de prazer percorrer-lhe o corpo. - Não quis mostrar-te os meus melhores truques. Sabia que ias estar ali, a tentar perceber-me.

Cross riu-se. Ficava sempre encantado com a percepção que ela tinha da sua maneira de ser.

- Não, não foste grande coisa - admitiu. - Queres que vá contigo a Paris, na sexta-feira?

Athena ficou surpreendida. Cross soube-o pela expressão dos olhos. O rosto nunca se alterava, Athena exercia sobre as suas feições um controlo perfeito.

Seria uma grande ajuda - disse. - E podíamos ver Paris juntos.

Estamos de volta na segunda-feira?

Sim. Tenho de filmar na terça de manhã. Só faltam umas poucas semanas para acabar o filme.

E depois?

Depois retiro-me e trato da minha filha. Além disso, não quero continuar a manter em segredo a existência dela.

O médico em Paris é a última palavra?

Ninguém é a última palavra. Neste caso, não. Mas está muito perto.

Na sexta-feira à tarde voaram para Paris num avião fretado. Athena tinha-se disfarçado com uma peruca, e a maquilagem mascarava-lhe tão eficazmente a beleza que a fazia parecer quase feia. Vestia roupas largas, que lhe escondiam completamente as formas e lhe davam um ar de matrona. Cross estava espantado. Ela até andava de uma maneira diferente.

No avião, Bethany ficou fascinada ao dar por si a olhar de cima para a Terra. Andava de um lado para o outro, espreitando pelas diferentes janelas. Parecia um pouco assustada e a sua expressão habitualmente vazia tornara-se quase normal.

Seguiram do aeroporto para um pequeno hotel na Avenida Georges-Mandel. Tinham uma suíte com dois quartos, um para Cross e o outro para Athena e Bethany, separados por uma pequena saleta. Eram dez da manhã. Athena tirou a peruca e a maquilagem. Não suportava ser feia em Paris.

Ao meio-dia, estavam os três no consultório do médico, um pequeno palacete rodeado por um jardim e fechado por um gradeamento de ferro. O guarda do portão verificou-lhes as identidades e deixou-os entrar.

Foram recebidos à porta por uma enfermeira que os conduziu a uma vasta sala, pesadamente mobiliada. O médico aguardava-os.

O Dr. Ocell Gérard era um homem grande e pesado, elegantemente vestido com um fato de riscas castanhas, camisa branca e gravata de seda em tons de castanho, a condizer. Tinha uma cara redonda, a que fazia falta uma barba para disfarçar as bochechas pesadas. Os lábios grossos eram vermelho escuros. Apresentou-se a Cross e a Athena, mas ignorou a criança. Tanto Athena como Cross sentiram uma aversão imediata pelo homem. Não parecia um médico adequado à delicada profissão que exercia.

Havia uma mesa posta com chá e bolos. Uma empregada serviu-os. Pouco depois juntaram-se-lhes duas enfermeiras, jovens e envergando uniformes estritamente profissionais, com toucas brancas e saias e blusas cor de marfim. As duas observaram atentamente Bethany enquanto durou a refeição.

O Dr. Gérard dirigiu-se a Athena:

- Madame, gostaria de agradecer-lhe a sua generosíssima contribuição para o nosso Instituto Médico para as Crianças Autistas. Respeitei o seu pedido de absoluta confidencialidade, e é por isso que estou a proceder a este exame aqui, no meu centro particular. Agora diga-me exactamente o que espera de mim.

A voz, um baixo profundo e suave, era magnética. Atraiu a atenção de Bethany, que olhou para ele, mas o médico ignorou-a.

Athena estava nervosa, não gostava do homem.

- Quero que o senhor doutor a examine. Quero que ela tenha uma vida normal, se possível, e estou pronta a sacrificar tudo para atingir esse objectivo. Quero que o senhor doutor a aceite no seu Instituto e estou disposta a vir viver para França e ajudar na educação dela.

Disse isto com uma tristeza e uma esperança comoventes, com um tal ar de abnegação que as duas enfermeiras ficaram a olhar para ela quase com adoração. Cross tinha consciência de que Athena estava a usar todos os seus dotes de actriz para convencer o médico a aceitar Bethany no Instituto. Viu-a estender uma mão e agarrar o braço de Bethany, num gesto de ternura.

Só que o Dr. Gérard não pareceu impressionado. Não olhou para Bethany, continuando a dirigir-se a Athena.

- Não se iluda - disse. - Nem todo o seu amor poderá ajudar esta criança. Examinei os registos e não tenho a mínima dúvida de que é genuinamente autista. Ela não pode retribuir-lhe o seu amor. Não vive no nosso mundo. Nem sequer vive no mundo dos animais. Vive numa outra estrela, completamente sozinha.

Fez uma curta pausa e prosseguiu:

- A culpa não é sua. Nem, estou convencido, do pai. Esta é uma dessas misteriosas complexidades da condição humana. Vamos fazer o seguinte. Vou examiná-la cuidadosamente e fazer-lhe vários testes. Dir-lhe-ei então o que nós, no Instituto, podemos e não podemos fazer. Se eu não puder ajudá-la, terá de levá-la de regresso a casa. Se puder, deixá-la-á comigo em França durante cinco anos.

Falou em francês com uma das enfermeiras, que saiu da sala e regressou pouco depois com um grande livro contendo fotografias de quadros famosos. Entregou o livro a Bethany, mas era demasiado grande para o colo dela. O Dr. Gérard dirigiu-se-lhe pela primeira vez. Falou-lhe em francês. No mesmo instante, Bethany colocou o livro em cima da mesa e começou a folheá-lo. Pouco depois, estava completamente absorta nas imagens.

O médico parecia pouco à vontade.

Não pretendo ser ofensivo - disse -, mas isto é no interesse da criança. Sei que Mr. De Lena não é seu marido, mas poderá dar-se o caso de ser o pai da sua filha? Se assim é, gostaria de examiná-lo.

Só o conheci depois de a minha filha ter nascido - respondeu Athena.

Bem - disse o médico. Encolheu os ombros. - Essas coisas são sempre possíveis.

Cross riu-se.

- Talvez o doutor veja em mim alguns sintomas.

Os lábios grossos e vermelhos do Dr. Gérard franziram-se quando ele assentiu com a cabeça e sorriu amavelmente.

Tem de facto alguns sintomas. Todos temos. Quem sabe? Um centímetro para um lado ou para o outro, e todos nós poderíamos ser autistas Agora preciso de examinar aprofundadamente a criança e fazer alguns testes Vai demorar pelo menos quatro horas. Por que não vão os dois dar um passeio pela nossa adorável Paris? É a primeira vez que cá vem, Mr. De Lena:

Sim - respondeu Cross.

Quero ficar com a minha filha - disse Athena.

Como desejar, Madame. - O Dr. Gérard voltou-se para Cross. - Goze o seu passeio. Pessoalmente, detesto Paris. Se uma cidade pudesse ser autista, seria Paris.

Chamaram um táxi e Cross regressou ao hotel. Não tinha a mínima vontade de ver Paris sem Athena e precisava de descansar. Além disso, fora a Paris para aclarar a cabeça, para reflectir.

Pensou no que Falene lhe tinha dito. Lembrou-se de que Losey aparecera em Malibu sozinho, mas os detectives trabalhavam habitualmente aos pares. Antes de partir para Paris, pedira a Vazzi que investigasse esse aspecto.

Às quatro, Cross estava de novo na sala do médico. Esperavam-no. Bethany continuava absorta no livro, Athena estava pálida, o único sinal físico que Cross sabia que não podia ser imitado. Enquanto estudava as fotos, Bethany ia-se servindo de um prato de bolos, e o médico tirou-lho do alcance, dizendo qualquer coisa em francês. Bethany não protestou. Uma das enfermeiras entrou e levou-a para a sala de recreio.

-Peço-lhe que me desculpe - disse o médico a Cross -, mas tenho de fazer-lhe algumas perguntas.

- O que quiser.

O Dr. Gérard levantou-se da sua cadeira e começou a passear pela sala.

- Vou dizer-lhe o que já disse a Madame. Não há milagres nestes casos, absolutamente nenhuns. Em alguns doentes, não muitos, pode, com um longo treino, haver grandes melhoras. E no caso de Mademoiselle, há certos limites. Vai ter de ficar no meu Instituto em Nice durante cinco anos, pelo menos. Nessa altura saberemos se é possível para ela fazer uma vida quase normal. Ou se terá de ficar internada até ao fim dos seus dias.

Athena começou a chorar. Levou aos olhos um pequeno lenço de seda azul, e Cross sentiu-lhe o perfume.

O médico olhou para ela, impassível.

- Madame concordou. Entrará para o Instituto como professora... Bom. - Sentou-se directamente em frente de Cross. - Há alguns indícios muito bons. A criança possui um genuíno talento para a pintura. Alguns sentidos estão despertos, não retraídos. Interessou-se quando eu falei em francês, uma língua que não compreende, mas que intui. É um óptimo sinal.

Outro bom indício. A criança deu alguns sinais de sentir a sua falta, esta tarde, tem algum sentimento por outro ser humano, e isso pode ser ampliado. E altamente invulgar, mas pode ter uma explicação nada misteriosa. Quando a interroguei a este respeito, respondeu-me que o senhor é bonito. Agora, por favor, Mr. De Lena, não se ofenda. Faço esta pergunta exclusivamente por razões médicas, para ajudar a criança, e não para o acusar. Estimulou sexualmente a menina de alguma maneira, talvez involuntariamente? Cross ficou tão surpreendido que lançou uma gargalhada.

- Não sabia que ela reagia a mim. E nunca lhe dei qualquer razão para reagir.

As faces de Athena estavam vermelhas de ira.

- Isto é ridículo! - exclamou. - Mr. De Lena nunca esteve sozinho com ela.

O médico não lhe deu atenção.

Aconteceu-lhe, em qualquer ocasião, fazer-lhe uma carícia? Não me refiro a apertar-lhe a mão, acariciar-lhe o cabelo ou mesmo dar-lhe um beijo na cara. A rapariga é núbil, teria respondido muito simplesmente por uma questão física. Não seria o senhor o primeiro homem tentado por uma tão grande inocência.

Talvez ela saiba do meu relacionamento com a mãe - sugeriu Cross.

Ela não quer saber da mãe... perdoe-me, Madame, mas isto é uma coisa que vai ter de aceitar... nem da beleza ou da fama da mãe. Para ela, pura e simplesmente não existem. É para o senhor que ela se volta. Pense. Talvez uma ternura inocente, qualquer coisa que lhe passasse despercebida.

Cross olhou-o friamente nos olhos.

Se isso tivesse acontecido, dir-lho-ia. Se pudesse ajudá-la.

Sente ternura por esta criança? Cross pensou um instante.

Sim - respondeu.

O Dr. Gérard recostou-se na cadeira e esfregou as mãos.

Acredito em si - declarou. - E isso dá-me grandes esperanças. Se a criança responde a si, pode ser ajudada a responder a outras pessoas. Pode ser que um dia tolere a mãe, e isso será o suficiente para si, não é verdade, Madame?

Oh, Cross! - exclamou Athena. - Espero que não estejas zangado.

- Não tem importância, palavra - afirmou Cross. O Dr. Gérard olhou atentamente para ele.

- Não está ofendido? - perguntou. - A maior parte dos homens ficariam extremamente perturbados. O pai de uma das minhas doentes chegou inclusivamente a bater-me. Mas o senhor não está zangado. Diga-me porquê.

Cross não podia explicar àquele homem, nem sequer a Athena, como o espectáculo de Bethany na sua máquina-de-abraços o tinha afectado. Como lhe recordara Tiffany e todas as outras raparigas com quem fizera amor que o tinham deixado a sentir-se vazio. Como o seu relacionamento com todos os Clericuzio e até com o pai lhe deixava uma sensação de isolamento e desespero. E, finalmente, como todas as vítimas que deixara para trás lhe pareciam as vítimas de um qualquer mundo fantasmagórico que só tornava real nos seus sonhos.

Olhou o médico directamente nos olhos.

- Talvez porque eu próprio também seja autista - disse. - Ou talvez porque tenho crimes bem piores a esconder.

O médico recostou-se para trás e disse, com uma voz satisfeita.

Ah! - Fez uma pausa e sorriu pela primeira vez. - Importa-se de passar por cá para eu lhe fazer alguns testes? - Riram-se ambos. - Muito bem, Madame - continuou, dirigindo-se a Athena-, segundo sei, regressa  amanhã de manhã à América. Porque não deixar desde já a sua filha comigo? As minhas enfermeiras são excelentes, e posso garantir-lhe que a criança não sentirá a sua falta.

Mas sentirei eu a dela - respondeu Athena. - Posso ficar com ela esta noite e trazê-la cá amanhã de manhã? Temos um avião fretado, de modo que poderemos partir quando quisermos.

Com certeza. Traga-a amanhã de manhã. As minhas enfermeiras acompanhá-la-ão a Nice. Tem o número de telefone do Instituto e pode ligar para lá sempre que quiser.

Levantaram-se. Impetuosamente, Athena beijou o médico na face. E o médico corou. Não era insensível à beleza e à fama dela, não obstante seu ar de ogre.

Athena, Bethany e Cross passaram o resto do dia a passear pelas ruas de Paris. Athena comprou roupas novas para Bethany, um guarda-roupa completo. Comprou-lhe tintas e pincéis e uma grande mala para guardar tudo aquilo. Mandaram entregar as compras no hotel.

Jantaram num restaurante dos Campos Elísios. Bethany comeu gulosamente, em especial os doces. Não dissera uma palavra durante todo o dia nem respondera a qualquer dos gestos de carinho da mãe.

Cross nunca vira uma demonstração de amor como a que Athena fizera a Bethany. A não ser quando, havia muitos anos, via a sua própria mãe Nalene, a escovar os cabelos de Claudia.

Durante o jantar, Athena segurou na mão de Bethany, limpou-lhe as migalhas da cara, explicou-lhe que dentro de um mês regressaria a França para ficar com ela no colégio durante os próximos cinco anos.

Bethany ignorou-a.

Athena parecia entusiasmada quando disse à filha que poderiam aprender francês juntas, ir aos museus juntas, ver todos os grandes quadros, e como Bethany poderia passar tanto tempo quanto quisesse com as suas próprias pinturas. Descreveu como viajariam por toda a Europa, como iriam a Espanha, a Itália, à Alemanha.

Então Bethany disse as suas primeiras palavras do dia:

- Quero a minha máquina.

Como sempre, Cross foi invadido por uma sensação de sacralidade. Aquela maravilhosa criança era como uma cópia de um retrato pintado por um grande pintor, mas sem a alma do artista, como se Deus tivesse resolvido deixar o seu corpo vazio.

Já tinha escurecido quando regressaram a pé ao hotel. Bethany caminhava no meio, e eles levantavam as mãos a cada passada de modo a ergue-la no ar, e por uma vez ela consentiu, e parecia até tão deliciada com a brincadeira que passaram a entrada do hotel e continuaram a andar durante mais algum tempo.

Foi nesse instante que Cross experimentou o mesmo sentimento de felicidade que tivera no piquenique. E que consistia em nada mais do que estarem os três juntos, de mãos dadas. O seu próprio sentimentalismo encheu-o de espanto e de horror.

Finalmente, voltaram ao hotel. Depois de ter ajudado Bethany a deitar-se, Athena entrou na pequena saleta da suite, onde Cross a esperava. Sentaram-se lado a lado no sofá cor de lavanda, de mãos dadas.

Amantes em Paris - disse Athena, sorrindo -, e nem sequer chegamos a dormir juntos numa cama francesa.

Estás preocupada por deixar a Bethany aqui? - perguntou Cross.

Não. Ela não sentirá a nossa falta.

Cinco anos é muito tempo. Estás disposta a sacrificar cinco anos da tua vida e a tua profissão?

Athena levantou-se do sofá e pôs-se a passear pela sala. Falou apaixonadamente:

- Orgulho-me de poder passar sem representar. Quando era miúda, sonhava ser uma grande heroína, Maria Antonieta a caminho da guilhotina, Joana d'Arc queimada na fogueira, Marie Curie a salvar a humanidade de alguma grande doença. E, claro, também com desistir de tudo pelo amor de um grande homem, e isso era o mais ridículo de tudo. Sonhava viver uma vida heróica e sabia que com toda a certeza iria para o Céu. Que seria pura de corpo e de espírito. Detestava a idéia de fazer qualquer coisa que me comprometesse, especialmente por dinheiro. Estava a decidida a nunca, fossem quais fossem as circunstâncias, fazer mal a outro ser humano. Toda a gente me amaria, incluindo eu própria. Sabia que era esperta, todos me diziam que era bonita, e eu provei ser não apenas competente, mas talentosa. "E que foi que fiz? Apaixonei-me por Boz Skannet. Dormi com homens, não por desejo, mas para promover a minha carreira. Dei vida a um ser humano que pode nunca vir a amar-me ou a quem quer que seja. Depois, muito astutamente, manobrei de maneira a conseguir a morte do meu marido. Muito pouco subtilmente perguntei quem estava disposto a matar aquele meu marido, que se tornara uma tão grande ameaça. - Apertou a mão de Cross. - E por isso agradeço-te.

- Não fizeste nenhuma dessas coisas - disse ele, para a tranquilizar.

- Era apenas o teu destino, como costumamos dizer na minha família. Quanto ao Skannet, era uma pedra no teu sapato... outro ditado da minha família ..., portanto tinhas todo o direito de te livrares dele.

Athena beijou-o fugidiamente nos lábios.

Foi o que fiz. Meu cavaleiro andante. O único problema é que não te limitas a matar dragões.

Passados os cinco anos, se o médico disser que ela não pode melhorar, o que é que fazes?

Não quero saber do que alguém diga. Há sempre esperança. Ficarei junto dela o resto da minha vida.

E não sentirás a falta do teu trabalho?

Claro que sim, e sentirei a tua falta. Mas finalmente estarei a fazer o que acredito que devo fazer, e não apenas a ser uma heroína num filme.

- Athena parecia ter-se animado. Mas depois acrescentou, numa voz sem inflexões: - Quero que ela me ame. E só o que quero.

Despediram-se com um beijo e cada um foi para o seu quarto.

Na manhã seguinte, deixaram Bethany com o médico. Athena teve dificuldade em despedir-se da filha. Abraçou-a e chorou, mas Bethany não estava pelos ajustes. Afastou a mãe com as mãos, e preparou-se para repelir também Cross, mas ele não fez qualquer gesto para a abraçar.

Cross sentiu-se momentaneamente irritado com Athena por ela ser tão fraca no que respeitava à filha. O médico, observando isto, disse a Athena:

Quando voltar, vai precisar de muito treino para lidar com esta criança.

Voltarei o mais depressa possível - prometeu Athena.

Não precisa de se apressar - respondeu o médico. - Ela vive num mundo onde o tempo não existe.

No avião de regresso a L. A., Cross e Athena combinaram que ele seguiria directamente para Vegas, em vez de acompanhá-la a Malibu. Houvera apenas um momento terrível em toda a viagem. Durante meia hora, Athena deixara-se vencer pelo desgosto, chorando sem palavras, dobrada sobre si mesma. Depois disso conseguira acalmar-se.

Quando se separaram, Athena disse a Cross:

- Tenho pena de não termos chegado a fazer amor em Paris.

Mas Cross compreendeu que ela não estava a ser sincera. Que naquele momento lhe repugnava a simples ideia de fazer amor, que, tal como a filha, também ela estava separada do mundo.

Cross foi recebido no aeroporto por uma grande limusina conduzida por um dos soldados da cabana de caça. Lia Vazzi ocupava o banco traseiro, e subiu a divisória de vidro para que o condutor não pudesse ouvir o que dizia.

O detective Losey foi procurar-me outra vez - disse. - A próxima vez que o fizer, será a última.

Tem calma - pediu Cross.

Eu conheço os sinais, confia em mim. Outra coisa. Uma equipa do Enclave do Bronx mudou-se para Los Angeles, não sei por ordem de quem. Acho que vais precisar de guarda-costas.

Ainda não - disse Cross. - Tens os teus homens prontos?

Sim. Mas são homens que não actuarão directamente contra os Clericuzio.

Quando chegaram ao Xanadu, Cross encontrou à sua espera uma mensagem de Andrew Pollard, com um dossier completo a respeito de Jim Losey. Uma leitura interessante, e também uma informação que permitia uma acção imediata.

Levantou cem mil dólares da caixa do casino, tudo em notas de cem, e disse a Lia que iam a L. A. Lia seria o seu condutor e não queria levar mais ninguém. Mostrou-lhe a mensagem de Pollard. Voaram para L. A. no dia seguinte e alugaram um carro para a viagem até Santa Monica.

Phill Sharkey estava a cortar a relva diante da casa onde morava. Cross apeou-se do carro, juntamente com Lia, e apresentou-se como um amigo de Pollard que precisava de algumas informações. Lia estudou atentamente o rosto de Sharkey. Depois regressou ao carro.

Phil Sharkey não era fisicamente tão imponente como Jim Losey, mas mesmo assim parecia bastante duro. Dava também a impressão de que os anos passados a trabalhar como polícia tinham consumido a sua fé no próximo.

Tinha essa desconfiança vigilante, essa seriedade de modos que os melhores polícias têm. Mas não era, claramente, um homem feliz.

Sharkey convidou Cross a entrar. O interior da casa, na realidade um bun-galow, era sombrio e degradado, tinha esse ar triste dos lares onde não há uma mulher nem crianças. A primeira coisa que Sharkey fez foi telefonar a PoUard para confirmar a identidade do seu visitante. Então, sem qualquer gesto preliminar de cortesia, sem oferecer uma cadeira ou uma bebida, rosnou:

- Pergunte.

Cross abriu a pasta que levava consigo e tirou dela um maço de notas de cem dólares.

- Aqui tem dez mil - disse. - Só por me deixar falar. Mas vai demorar um pouco. Que tal uma cerveja e um lugar para nos sentarmos?

O rosto de Sharkey rasgou-se num sorriso. Era curiosamente afável, o sorriso do "polícia bom" numa parelha, pensou Cross.

Sharkey meteu despreocupadamente o dinheiro no bolso das calças.

- Estou a gostar de si - declarou. - Sabe que o dinheiro é que fala, e não a conversa fiada.

Sentaram-se a uma pequena mesa no alpendre das traseiras, de onde se avistava a Ocean Avenue e, para lá dela, a praia, e beberam as cervejas directamente da garrafa. Sharkey deu uma palmada no bolso, como que a certificar-se de que o dinheiro continuava lá.

- Se ouvir as respostas certas - começou Cross -, há outros vinte mil para si logo a seguir. Depois, se mantiver a boca fechada a respeito da minha visita, voltarei cá daqui a dois meses, com mais cinquenta mil.

Sharkey voltou a sorrir, mas desta vez havia uma ponta de malícia no seu sorriso.

- Daqui a dois meses deixa de ter importância que eu fale ou não, eh?

Exacto. Sharkey pôs-se sério.

Não vou dizer-lhe nada que possa implicar seja quem for.

Eh, nesse caso não sabe quem eu realmente sou - disse Cross. - Talvez seja melhor telefonar outra vez ao Pollard.

Sei muito bem quem é - respondeu Sharkey, secamente. -Ojim Losey disse-me para o tratar sempre como deve ser. - E então arvorou o ar de ouvinte compreensivo que fazia parte da sua profissão.

Você e o Jim Losey foram parceiros durante os últimos dez anos e ganhavam os dois umas boas massas por fora. Então você reformou-se. Gostaria de saber porquê.

E então o Jim que lhe interessa - comentou Sharkey. - Isso pode ser muito perigoso. Ele é o chui mais teso e mais esperto que alguma vez conheci.

E honesto? - perguntou Cross.

Éramos polícias, e em Los Angeles. Sabe o que é que isso significa? Se fizéssemos o nosso verdadeiro trabalho e tratássemos da saúde aos hispânicos e aos pretos, podíamos ficar sem emprego. Os únicos que podíamos prender sem nos metermos em sarilhos eram os bimbos brancos com dinheiro. Ouça, eu não tenho preconceitos, mas por que raio havia de mandar os brancos para a prisão, se não podia mandar os outros? Não era justo.

Mas, segundo sei, o Jim tem o peito cheio de medalhas - observou Cross.

Sharkey encolheu os ombros.

- E impossível um polícia não ser um herói nesta cidade, desde que tenha tomates. Muitos daqueles tipos não sabiam que podiam chegar a um acordo se conduzissem as coisas como deve ser. Outros eram pura e simplesmente assassinos. Por isso tínhamos de defender-nos, e ganhámos algumas medalhas. Pode crer, nunca fomos para a rua à procura de uma luta.

Cross duvidava de tudo o que Sharkey dizia. Jim Losey era um rufião nato, por mais elegantemente que se vestisse.

- Eram sócios em tudo? - perguntou. - Sabia tudo o que ele fazia? Sharkey riu-se.

Com o Jim Losey? Ele sempre foi o patrão. Por vezes nem sequer sabia exactamente o que eu próprio estava a fazer. Não sabia quanto é que nos pagavam. O Jim tratava de tudo e depois dava-me o que dizia que era a minha parte. - Fez uma pausa. - Ele tem as suas próprias regras.

Então como é que ganhavam o dinheiro?

Estávamos nas folhas de pagamento de alguns dos grandes sindicatos do jogo. Às vezes recebíamos algum dos tipos da droga. Houve uma altura em que o Jim Losey não aceitava dinheiro da droga, mas depois percebeu que os chuis do mundo inteiro o faziam, e começámos a fazer o mesmo.

Alguma vez utilizaram um rapaz chamado Marlowe para lhes apontar os grandes passadores?

Claro. O Marlowe. Um puto porreiro, que tinha medo da própria sombra. Usávamo-lo muitas vezes.

Nesse caso, quando ouviu dizer que o Losey o tinha abatido quando ele ia a fugir depois de ter morto um homem, achou estranho? -perguntou Cross.

Raios, não! Os drogados são capazes de tudo. Mas têm aquelas cabeças tão lixadas que fazem sempre asneira. E o Jim, nessa situação, nunca avisa, como nos ensinaram. Atira logo.

E não lhe pareceu uma coincidência estranha? - insistiu Cross os caminhos dos dois terem-se cruzado daquela maneira?

Pela primeira vez, o rosto de Sharkey pareceu perder a sua dureza i ficar triste.

E esquisito - disse. - Toda a história é esquisita. Mas acho que tenho de lhe dar qualquer coisa. O Jim Losey era corajoso, as mulheres adoravam-no e os homens tinham uma grande consideração por ele. Eu era o parceiro dele e sentia o mesmo. Mas a verdade é que ele sempre foi um tipo esquisito.

Pode, portanto, ter sido uma jogada preparada.

Não, não. Tem de compreender. O trabalho obriga-nos a aceitar subornos. Mas não nos obriga a matar um homem. O Jim Losey nunca faria uma coisa dessas. Ninguém me convence disso.

Então porque foi que pediu a reforma depois do caso?- perguntou Cross.

Porque o Jim começava a pôr-me nervoso.

Encontrei o Jim em Malibu, há uns meses - disse Cross. - Estava sozinho. Era costume ele trabalhar sem o parceiro? Sharkey voltou a exibir o seu grande sorriso.

- Às vezes. Nessa ocasião de que fala, foi tentar a sorte com a actriz. Ficaria surpreendido se soubesse quantas vezes ele marcava pontos com as grandes estrelas. Por vezes ia almoçar com certas pessoas, e não me queria por perto.

- Outra coisa - continuou Cross. - O Jim é racista? Odeia os negros? Sharkey lançou-lhe um olhar de divertido espanto.

Claro que sim! Você é um desses liberais da treta, não é? Acha isso horrível? Só lhe digo, vá para a polícia e ande um ano nas ruas. Vai votar para os mandar a todos para o jardim zoológico.

Tenho uma última pergunta. Alguma vez o viu com um tipo baixinho, que usa um chapéu esquisito?

Um gajo italiano - disse Sharkey. - Uma vez almoçámos e o Jim disse-me que me pusesse a andar. O homem faz arrepios.

Cross meteu a mão na pasta e tirou mais dois maços de notas.

Aqui tem os vinte mil - disse. - E lembre-se, conserve a boca calada e ganha mais cinquenta mil. OK?

Eu sei quem você é - declarou Sharkey.

Claro que sabe. Disse ao Pollard para lhe dizer quem sou.

Sei quem você é mesmo - insistiu Sharkey com o seu sorriso contagioso. - é por isso que não lhe fico já com essa pasta. E é por isso que conservarei a boca fechada durante dois meses. Entre você e o Losey, não sei qual dos dois me mataria mais depressa.

Cross De Lena compreendeu que enfrentava problemas enormes. Sabia que Jim Losey estava a soldo da Família Clericuzio. Que recebia cinqüenta mil dólares por ano, a título de "salário", e bónus por trabalhos especiais, mas nenhum desses trabalhos incluía assassínio. Era o suficiente para Cross chegar a uma conclusão final. Dante e Losey tinham-lhe morto o pai. Era um julgamento fácil de fazer, não estando limitado pela obrigação legal de apresentar provas. E todo o seu treino com os Clericuzio o ajudava a chegar a um veredicto de culpados. Conhecia a competência e o carácter do pai. Nenhum vulgar assaltante conseguiria chegar suficientemente perto dele. E também conhecia a competência e o carácter de Dante, e o ódio que tinha a Pippi. , A grande questão era: teria Dante agido por sua própria conta, ou teria o Don ordenado aquela morte? Mas os Clericuzio não tinham qualquer razão, Pippi De Lena fora-lhes leal durante quarenta anos e um elemento importante na ascensão da Família. Fora o grande general na guerra contra os San-tadio. E Cross perguntou a si mesmo, não pela primeira vez, por que razão nunca ninguém lhe contara os pormenores dessa guerra, nem o pai, nem Gronevelt, nem Giorgio, ou Petie, ou Vincent.

Quanto mais pensava naquilo, mais Cross tinha a certeza de uma coisa: o Don não tivera nada a ver com a morte de Pippi. Don Domenico era um homem de negócios muito conservador. Recompensava os serviços leais, não os punia. Era extremamente justo, ao ponto de ser cruel. Mas o argumento principal era o seguinte: nunca deixaria Cross viver depois de ter mandado matar Pippi. Era essa a prova da sua inocência.

Don Domenico acreditava em Deus, por vezes acreditava no destino, mas não acreditava em coincidências. Rejeitaria imediatamente a coincidência de Jim Losey ter sido o polícia que matara o assaltante que matara Pippi. Havia com certeza de ter feito as suas investigações e descobrira a relação de Dante com Losey. E não só sabia que Dante era culpado, como também conhecia o motivo.

E Rose Marie, a mãe de Dante? Que saberia ela? Quando soubera da morte de Pippi, tivera o mais grave dos seus ataques, gritando coisas ininteligíveis, chorando sem parar, de modo que o Don a mandara para a clínica psiquiátrica de East Hampton, que tinha fundado muitos anos antes. Rose Marie ficaria lá durante pelo menos um mês.

O Don sempre proibira visitas à filha na clínica, excepto a Dante, Giorgio, Vincent e Petie. Mas Cross costumava enviar-lhe flores e cestos de fruta. Por que diabo teria Rose Marie ficado tão perturbada? Saberia da culpa de Dante, conheceria os seus motivos? Nesse instante Cross lembrou-se de o Don ter dito que Dante seria o seu herdeiro. Uma perspectiva sinistra.

Resolveu ir visitar Rose Marie à clínica, a despeito da proibição do Don. Levaria flores, e frutas, e chocolates, e queijos, e afecto sincero, mas com o propósito de a levar a trair o filho.

Dois dias mais tarde, Cross entrava no vestíbulo da clínica psiquiátrica em East Hampton. Havia dois guardas à porta, e um deles acompanhou-o até ao balcão da recepção.

A mulher que o atendeu era de meia idade e estava elegantemente vestida. Quando Cross lhe comunicou o seu propósito, ela dirigiu-lhe um sorriso encantador e disse-lhe que teria de esperar meia hora, porque Rose Marie estava a ser submetida a um pequeno tratamento médico. Avisá-lo-ia logo que tivesse acabado.

Cross sentou-se na sala de espera, contígua ao vestíbulo, onde havia mesas e cadeirões confortáveis. Pegou num exemplar de uma revista de Hollywood. Ao lê-la, encontrou um artigo sobre Jim Losey, o herói detective de Los Angeles. A história relatava as suas muitas façanhas, culminando com a morte de Marlowe, o assaltante-assassino. Cross achou dois pontos especialmente divertidos. O facto de o pai ser referido como o proprietário de uma agência de serviços financeiros e a típica vítima indefesa de um criminoso brutal, e a frase que rematava o artigo, afirmando que se houvesse mais polícias como Jim Losey, o crime nas ruas estaria sob controlo.

Uma enfermeira bateu-lhe num ombro. Tinha um aspecto extraordinariamente vigoroso, mas disse-lhe com um sorriso amável:

- Eu levo-o lá acima.

Cross pegou na caixa de bombons e nas flores que tinha levado e seguiu-a. Subiram um curto lanço de escadas e percorreram um corredor comprido para o qual davam várias portas. A enfermeira deteve-se diante da última e usou uma chave-mestra para a abrir. Fez sinal a Cross para entrar e fechou a porta atrás dele.

Rose Marie, vestindo um roupão cor-de-rosa, com os cabelos esmeradamente entrançados, estava a olhar para um pequeno televisor. Quando viu Cross, levantou-se de um salto e lançou-se-lhe nos braços. Estava a chorar. Cross deu-lhes os chocolates e as flores.

Oh, vieste ver-me! - exclamou ela. - Pensava que me odiavas por causa do que fiz ao teu pai.

Não fez nada ao meu pai - disse ele, fazendo-a sentar-se no sofá e desligando o televisor. Ajoelhou-se junto dela. - Estava preocupado consigo.

Ela estendeu uma mão e acariciou-lhe os cabelos.

- Sempre foste tão bonito! - disse. - Detestava saber que eras filho do teu pai. Fiquei contente quando ele morreu. Mas sempre soube que haviam de acontecer coisas terríveis. Enchi o ar e a terra de veneno, para ele. Achas que o meu pai vai deixar passar?

O Don é um homem justo - disse Cross. - Nunca a responsabilizará a si.

Enganou-te, como enganou toda a gente - declarou Rose Marie. - Nunca confies nele. Traiu a própria filha, traiu o neto e traiu o sobrinho, Pippi... E agora há-de trair-te a ti.

A voz dela começara a subir de tom e Cross teve receio de que caísse num dos seus ataques.

Acalme-se, Tia Roe. - pediu Cross. - Diga-me só o que foi que a perturbou tanto que teve de voltar para aqui. - Olhou-a no fundo dos olhos e pensou como devia ter sido bonita quando era nova, na inocência que ainda havia no seu rosto.

Obriga-os a falarem-te da guerra contra os Santadio - murmurou Rose Marie. - Então compreenderás tudo. - Olhou para além de Cross e cobriu a cara com as mãos. Cross voltou-se. A porta abrira-se e Vincent e Petie estavam parados no umbral, imóveis e silenciosos. Rose Marie levan tou-se de um salto e correu para o quarto, cuja porta bateu com estrondo.

O rosto granítico de Vincent mostrava piedade e desespero.

- Jesus Cristo! - murmurou. Aproximou-se da porta do quarto e bateu. Depois disse:- Roe, abre a porta. Somos teus irmãos, não te faze mos mal...

- Que coincidência encontrarmo-nos aqui - observou Cross. - Também eu vim visitar a Rose Marie.

Vincent nunca perdia tempo com conversa fiada.

- Não viemos visitá-la - disse. - O Don quer ver-te em Quogue. Cross avaliou a situação. Era óbvio que a recepcionista telefonara a alguém em Quogue. Tratava-se, evidentemente, de um procedimento preestabelecido. E, não menos evidentemente, o Don não queria que ele falasse com Rose Marie. O facto de ter enviado Vincent e Petie significava que não se tratava de uma execução. Nunca exporia tão descuidadamente os dois filhos mais novos.

Teve a confirmação disto quando Vincent acrescentou:

Vou contigo no teu carro. O Petie segue-nos no dele. - Na Família, uma execução nunca era feita na base de um para um.

Não podemos deixar a Rose Marie neste estado - protestou Cross.

Claro que podemos - disse Petie. - A enfermeira já trata de a acalmar.

Cross tentou meter conversa durante a viagem.

- Não há dúvida que vocês chegaram lá bem depressa - disse.

Foi o Petie que veio a guiar - respondeu Vincent. - O tipo é louco - Fez uma curta pausa e perguntou, num tom preocupado: - Cross, conheces as regras, por que raio foste visitá-la?

Eh! - protestou Cross. - A Rose Marie sempre foi uma das minhas tias preferidas.

O Don não achou graça - declarou Vincent. - Está muito chateado. Diz que nem parece coisa tua. Ele sabe.

Eu explico-lhe. Mas estava verdadeiramente preocupado com a tua irmã. Como está ela?

Vincent suspirou.

- Desta vez pode ser para durar. Sabes que ela tinha um fraquinho pelo teu velho, quando era nova. Quem poderia imaginar que a morte do Pippi ia perturbá-la tanto?

Cross detectou a nota de falsidade na voz de Vincent. Mas limitou-se a dizer:

O meu pai sempre gostou muito da Rose Marie.

Pois nestes últimos anos ela não gostava muito dele - respondeu Vincent. - Especialmente quando tinha um dos seus ataques. Havias de ouvir as coisas que dizia a respeito dele.

Estiveste na guerra dos Santadio - disse Cross, num tom despreocupado. - Por que é que vocês nunca me falam a esse respeito?

Porque nunca falamos a respeito de operações. O meu pai ensinou-nos que não há nenhuma vantagem nisso. O que é preciso é ir em frente. Já temos no presente problemas suficientes com que nos preocuparmos.

- O meu pai foi um grande herói, não é verdade? - insistiu Cross. Vincent sorriu por um instante, e o seu rosto de pedra quase se suavizou.

O teu pai era um génio - disse. - Era capaz de planear uma operação como o Napoleão. Nunca nada corria mal quando ele fazia os planos. Ou talvez uma ou duas vezes, por azar.

Foi então ele que planeou a guerra contra os Santadio?

Faz essas perguntas ao Don. Agora falemos doutras coisas.

OK - concordou Cross. - Também vou ser liquidado, como o meu pai?

Vincent, habitualmente calmo e impenetrável, reagiu com violência. Agarrou o volante e obrigou Cross a estacionar na berma da estrada. A voz soou-lhe sufocada de emoção quando disse:

- Estás louco? Pensas que a Família Clericuzio seria capaz de fazer uma coisa dessas? O teu pai tinha nas veias sangue dos Clericuzio. Era o nosso melhor soldado, foi ele que nos salvou. O Don amava-o como um dos seus filhos! Jesus Cristo, por que é que perguntas uma coisa dessas?

Assustei-me quando vocês apareceram - respondeu Cross, mansamente.

Volta à estrada - disse Vincent, irritado. - O teu pai, eu Giorgio, e o Petie, combatemos juntos durante tempos muito difíceis. Nada poderia fazer-nos ir uns contra os outros. O Pippi teve azar, apanhou um estupor de um drogado.

Fizeram o resto da viagem em silêncio.

Na mansão, havia os dois guardas habituais junto ao portão, e um homem sentado no pórtico. Não se notava qualquer actividade especial.

Don Clericuzio, Giorgio e Petie esperavam no escritório. Em cima do bar havia uma caixa de charutos havanos e uma caneca cheia de cigarrilhas I italianas, negras e retorcidas.

Don Clericuzio sentava-se num dos grandes cadeirões de couro castanho. E Cross foi cumprimentá-lo e ficou surpreendido ao ver que o Don se punha de pé, com uma agilidade que desmentia a sua idade, para o abraçar. Don Domenico apontou-lhe a grande mesa de café sobre a qual tinham sido dispostos vários pratos de queijos e carnes frias.

Cross sentiu que o Don não estava ainda pronto para falar. Fez uma sanduíche de queijo mozzarella e prosciutto. O prosciutto estava cortado em finas fatias de carne vermelha escura orlada de gordura branca e macia. O mozzarella era uma bola branca tão fresca que ainda escorria leite. Estava atado numa das extremidades com um nó grosso, como o nó de uma corda. O mais perto que o Don chegava em matéria de gabarolice era quando afirmava que nunca comia um mozzarella que tivesse mais de meia hora depois de feito.

Também Vincent e Petie estavam a servir-se da comida, enquanto Giorgio fazia as vezes de barman, servindo vinho ao Don e refrescos aos restantes. o Don só comia mozzarella, deixando-o derreter-se-lhe na boca. Petie deu-lhe uma das suas cigarrilhas retorcidas e acendeu-lha. Que estômago magnífico o velho tinha, pensou Cross.

- Croccifixio - disse subitamente Don Clericuzio -, fosse o que fosse que querias perguntar à Rose Marie, vou eu dizer-to. E desconfiaste de que houve qualquer coisa pouco clara na morte do teu pai. Estás enganado. Mandei investigar, aconteceu exactamente como foi dito. O Pippi teve azar. Era o homem mais prudente na sua profissão, mas estes estúpidos acidentes acontecem. Quero que tenhas a certeza disto. O teu pai era meu sobrinho e um Clericuzio, e um dos meus mais queridos amigos.

- Fale-me da guerra com os Santadio - pediu Cross.

 

A Guerra dos Santadio.

 

- E perigoso ser razoável com gente estúpida - começou Don Clericuzio, bebendo um pequeno golo do seu copo de vinho. Pôs a cigarrilha de lado. - Presta muita atenção. é uma longa história em que nem tudo era o que parecia ser. Foi há trinta anos... - Fez um gesto na direcção dos três filhos e pediu: - Se me esquecer de alguma coisa importante, digam-me. - Os filhos sorriram à ideia de que ele pudesse esquecer qualquer coisa importante.

A luminosidade no interior do escritório era uma suave bruma dourada onde pairava o fumo dos charutos, e até o cheiro da comida era tão intensamente aromático que parecia afectar a luz.

- Convenci-me disso depois da guerra contra os Santadio... - Fez nova pausa para beber mais um golo de vinho. - Houve um tempo em que os Santadio eram nossos iguais em poder. Mas os Santadio faziam demasiados inimigos, atraíam demasiado a atenção das autoridades e não tinham sentido de justiça. Criaram um mundo sem quaisquer valores, e um mundo sem valores e sem sentido de justiça não pode continuar a existir.

"Propus-lhes muitos acordos, fiz concessões, queria viver num mundo de paz. Mas eles, porque eram fortes, tinham essa sensação de poder que as pessoas violentas costumam ter. Acreditavam que o poder é tudo. E assim acabou por haver guerra entre nós.

- Porque é que o Cross precisa de saber esta história? - interrompeu-o Giorgio. - Em que é que isso pode beneficiá-lo, ou beneficiar-nos a nós. Vincent tinha desviado os olhos de Cross, mas Petie estava a olhar fixamente para ele, com a cabeça um pouco inclinada para trás, a avaliá-lo. Nenhum dos três parecia querer que o Don contasse a história.

- Porque o devemos ao Pippi e ao Croccifixio - respondeu o Don. E então falou directamente para Cross. - Faz desta história o que quiseres, mas eu e os meus filhos estamos inocentes do crime de que somos suspeitos a teus olhos. O Pippi era como um filho para mim, e tu és como um neto. Ambos têm o mesmo sangue dos Clericuzio.

- Isto não serve para nada - insistiu Giorgio.

Don Clericuzio agitou impacientemente uma mão, e depois perguntou aos filhos:

É verdade, o que eu disse até agora? Acenaram os três, e Petie murmurou:

Devíamos tê-los liquidado logo no princípio.

Don Domenico encolheu os ombros e voltou-se para Cross.

- Os meus filhos eram jovens, o teu pai era jovem, nenhum deles tinha ainda chegado aos trinta - continuou. - Não queria desperdiçar as vidas deles numa grande guerra. Don Santadio, Deus tenha piedade da sua alma, tinha seis filhos, mas via-os mais como soldados do que como filhos. Jimmy Santadio era o mais velho e trabalhava com o nosso querido amigo Gronevelt, Deus o tenha também em descanso. Na época, os Santadio eram donos de metade do hotel. Jimmy era o melhor do grupo, o único que via que a paz era a melhor solução para todos nós. Mas o velho e os outros filhos queriam sangue.

"Ora, uma guerra sangrenta não servia os meus interesses. Queria tempo para recorrer à razão, para os convencer do bom senso das minhas propostas. Eu dava-lhes as drogas, e eles davam-me o jogo. Eu queria a posição deles no Xanadu, e em troca cedia-lhes o controlo de todas as drogas na América, um negócio sujo que exigia uma mão firme e violenta. Uma proposta muito sensata. As drogas davam muito mais dinheiro, e era um negócio que não envolvia estratégias a longo prazo. Um negócio sujo, com montes de trabalho operacional. Tudo isto contribuía para aumentar o poder dos Santadio. Eu queria que os Clericuzio controlassem todo o jogo, menos arriscado do que as drogas, menos lucrativo, mas, inteligentemente gerido, mais valioso a longo prazo. E isto contribuía para aumentar o poder dos Clericuzio. O meu objectivo final sempre foi ser um membro da sociedade, e o jogo podia tornar-se uma mina de ouro legal sem nenhum dos riscos diários e o trabalho sujo das drogas. Nisto, o tempo veio a provar que eu tinha razão.

"Infelizmente, os Santadio queriam tudo. Tudo. Imagina como seria então, sobrinho, um tempo muito perigoso para todos nós. Nessa altura, o FBI já sabia que as Famílias existiam e cooperavam entre si. O governo, com os seus recursos e tecnologias, destruiu muitas Famílias. A muralha da omertà abria brechas.

"Os jovens nascidos na América colaboravam com as autoridades para salvarem a própria pele. Felizmente, criei o Enclave do Bronx e trouxe homens novos, da Sicília, para serem meus soldados.

 "A única coisa que nunca fui capaz de compreender é como as mulheres conseguem arranjar tantos problemas. A minha filha, Rose Marie, tinha na altura dezoito anos. Como foi ela embeiçar-se pelo Jimmy Santadio? Dizia que eram como Romeu e Julieta. Quem eram Romeu e Julieta? Quem, em nome do Céu, eram essas pessoas? Italianos não, com toda a certeza. Quando soube disto, conformei-me. Reabri as negociações com a Família Santadio, reduzi as minhas exigências, para que as duas Famílias pudessem viver juntas. Na sua estupidez, eles viram nisto um sinal de fraqueza. E assim começou toda a tragédia que durou estes trinta anos.

Don Clericuzio calou-se. Giorgio serviu-se de um copo de vinho, uma fatia de pão e um pedaço de queijo cremoso. Depois foi colocar-se junto do pai.

Porquê hoje? - perguntou.

Porque aqui o meu sobrinho neto está preocupado com a maneira como o pai morreu e temos de dissipar quaisquer suspeitas que possa ter a nosso respeito - respondeu o Don.

Não tenho quaisquer suspeitas a seu respeito, Don Domenico - assegurou Cross.

Toda a gente tem suspeitas a respeito de tudo - declarou o Don. - É próprio da natureza humana. Mas deixa-me continuar. A Rose Marie era muito nova, não sabia nada das coisas do mundo. Ficou com o coração desfeito quando, ao princípio, ambas as Famílias se opuseram ao casamento. Mas ela não sabia realmente porquê. E por isso decidiu juntar toda a gente, estava convencida de que o amor conquistaria tudo, como mais tarde me confessou. Nesse tempo era muito afectuosa. E era a luz da minha vida. A minha mulher morreu nova, e eu nunca voltei a casar porque não suportava a ideia de partilhá-la com uma desconhecida. Nunca lhe recusei nada, e tinha grandes esperanças para o seu futuro. Mas um casamento com um Santadio, isso não podia tolerar. Proibi-o. Nessa altura também eu era novo. Pensava que os meus filhos obedeceriam às minhas ordens. Queria que ela fosse para a universidade, que casasse com alguém de um mundo diferente. o Giorgio, o Vincent e o Petie tinham de apoiar-me nesta vida, precisava da ajuda deles. E tinha a esperança que também os filhos deles pudessem fugir para um mundo melhor. E o meu filho mais novo, Silvio. - O Don apontou para a fotografia na consola da lareira.

Cross nunca olhara verdadeiramente para aquela fotografia, ignorava a sua história. A foto era a de um jovem de vinte anos muito parecido com Rose Marie, só que mais bonito, com uns olhos mais cinzentos e mais inteligentes. Era uma foto que mostrava uma alma tão boa que Cross perguntou a si mesmo se não teria sido retocada.

A atmosfera na sala sem janelas estava a ficar mais acre com o fumo dos charutos. Giorgio acabava de acender um enorme havano.

Esperava do Silvio ainda mais que da Rose Marie - prosseguiu Don Clericuzio. - Tinha melhor coração do que a maior parte das pessoas. Tinha entrado para a universidade com uma bolsa de estudo. No caso dele, todas as esperanças eram permitidas. Mas era demasiado ingénuo.

Não tinha experiência das ruas - interveio Vincent. - Nenhum de nós teria ido. Não daquela maneira, sem protecção.

Giorgio pegou no fio da história:

- A Rose Marie e o Jimmy Santadio tinham-se escondido num lugar chamado Commack Motel. E a Rose Marie teve a ideia de que se o Jimmy e o Silvio conversassem, conseguiriam unir as duas Famílias. Telefonou ao Silvio, e ele foi ao hotel sem dizer nada a ninguém. Discutiram os três a estratégia a seguir. O Silvio chamava sempre "Roe" à  Rose Marie. As suas últimas palavras foram: "Vai correr tudo bem, Roe. O pai há-de dar-me ouvidos."

Silvio nunca chegaria, porém, a falar com o pai. Infelizmente, dois dos irmãos Santadio, Fonsa e ítalo, estavam de guarda a Jimmy.

Na sua paranóia de violência, os Santadio desconfiaram que Rose Marie queria conduzir Jimmy a uma cilada. Ou pelo menos atraí-lo a um casamento que diminuiria o poder deles dentro da sua própria Família. Além disso, Rose Marie ofendia-os com a sua coragem feroz e a sua determinação em casar com Jimmy. Chegara ao extremo de desafiar o próprio pai, o grande Don Clericuzio. Nada a faria parar.

Reconheceram Silvio quando ele saiu do motel, montaram-lhe uma emboscada na estrada e mataram-no a tiro. Depois tiraram-lhe a carteira e o relógio, para dar a entender que se tratara de um assalto. Aquele acto de pura selvajaria foi bem típico da mentalidade dos Santadio.

Don Clericuzio não se deixou iludir nem por um instante. Mas depois Jimmy Santadio apareceu no velório, sozinho e desarmado. Pediu uma entrevista particular com o Don.

- Don Clericuzio - disse -, a minha dor é quase igual à sua. Coloco a minha vida nas suas mãos, se pensa que os Santadio são responsáveis. Falei com o meu pai e ele nunca deu essa ordem. E autorizou-me a dizer que vai reconsiderar todas as suas propostas. Deu-me autorização para casar com a sua filha.

Rose Marie viera agarrar-se ao braço de Jimmy. E havia uma expressão tão dolorosa na cara dela que, por um momento, o coração do Don derreteu-se. O desgosto e o medo davam-lhe uma beleza trágica. Os seus olhos assustados estavam escuros e brilhantes de lágrimas. Todo o seu rosto tinha uma expressão espantada, de incompreensão.

Desviou os olhos do pai e olhou para Jimmy Santadio com tanto amor que, por uma das poucas vezes em toda a sua vida, Dpn Clericuzio pensou em misericórdia. Como podia ele destroçar o coração de uma filha tão bonita?

- O Jimmy ficou horrorizado com a ideia que o pai pudesse pensar que a família dele teve alguma coisa a ver com a morte do Silvio - disse Rose Marie, dirigindo-se ao pai. - Eu sei que não tiveram. O Jimmy prome- teu-me que a família dele chegaria a um acordo.

Don Clericuzio já condenara a Família Santadio pelo crime. Não precisava de quaisquer provas. Mas misericórdia era uma outra questão.

Acredito em ti e aceito-te - disse o Don, e sem dúvida acreditava na inocência de Jimmy, embora isso não fizesse qualquer diferença. - Rose Marie, tens a minha autorização para casar, mas não nesta casa, e ninguém da família estará presente. E, Jimmy, diz ao teu pai que nos reuniremos para discutir os nossos assuntos depois do casamento.

Obrigado - respondeu Jimmy Santadio. - Compreendo. O casa mento será na nossa casa em Palm Springs. Dentro de um mês toda a minha família estará lá, e toda a sua família será convidada. Se decidirem não aparecer, a escolha será vossa.

O Don escandalizou-se.

- Tão cedo depois disto? - exclamou, apontando o caixão.

Foi então que Rose Marie se deixou cair nos braços do pai. Don Domenico sentiu o terror que a dominava.

Estou grávida - murmurou ela.

Ah! - disse o Don. E sorriu a Jimmy Santadio.

Vou dar-lhe o nome do Silvio - continuou Rose Marie, ainda num murmúrio. - Há-de ser igual ao Silvio.

O Don acariciou-lhe os cabelos negros e beijou-lhe a face.

- Óptimo - disse. - Óptimo. Mas nem mesmo assim eu assistirei ao casamento.

Rose Marie tinha recuperado a coragem. Levantou o rosto para o pai e beijou-o por sua vez. Depois disse:

- Pai, alguém tem de ir. Alguém tem de levar-me ao altar. O Don voltou-se para Pippi, que estava a seu lado.

- O Pippi representará a Família no casamento. É meu sobrinho e gosta de dançar. Pippi, levarás a tua prima ao altar, e depois disso podem todos ir dançar para o fundo do oceano.

Pippi inclinou-se para beijar a face de Rose Marie.

- Lá estarei - prometeu. - E se o Jimmy não aparecer, fugimos os dois juntos.

Rose Marie ergueu agradecidamente os olhos e lançou-se-lhe nos braços.

Um mês mais tarde, Pippi De Lena estava num avião a caminho de Palm Springs, para assistir ao casamento. Esse mês fora passado com Don Clericuzio na mansão de Quogue, e em reuniões com Giorgio, Vincent e Petie.

O Don deixara muito claro que seria Pippi a chefiar a operação. Que as ordens de Pippi deveriam ser obedecidas como se partissem dele próprio, fossem elas quais fossem.

Só Vincent se atrevera a questionar o pai:

E se não foram os Santadio que mataram o Silvio?

Não importa - respondera o Don -, mas todo o caso cheira de longe à estupidez deles, e essa estupidez será perigosa para nós, no futuro. Acabaríamos por ter de enfrentá-los mais cedo ou mais tarde. Mas é claro que são culpados. A má fé só por si já é crime. Se os Santadio estivessem inocentes, então teríamos de admitir que o próprio destino está contra nós. Em qual destas coisas preferes acreditar?

Pela primeira vez na sua vida, Pippi notou que o Don estava perturbado. Passava longas horas na capela, na cave da mansão. Comia muito pouco e bebia mais vinho, o que nele era invulgar. E pôs a fotografia emoldurada de Silvio no seu quarto durante alguns dias. Um domingo, pediu ao padre que dizia a missa que o ouvisse em confissão.

No último dia, o Don teve uma reunião a sós com Pippi.

Pippi - disse Don Domenico -, esta é uma operação muito complicada. Poderá surgir uma situação em que se ponha a questão de saber se o Jimmy Santadio deve ser poupado. Não deve. Mas ninguém pode saber que a ordem partiu de mim. É uma coisa que vai ter de cair sobre a tua cabeça. Não sobre a minha, nem a do Giorgio, a do Vincent ou a do Petie. Estás disposto a arcar com essa culpa?

Sim - respondeu Pippi. - Não quer que a sua filha o odeie ou censure, ou aos irmãos.

Pode surgir uma situação em que a Rose Marie esteja em perigo.

- Sim - admitiu Pippi. O Don suspirou.

- Faz o que puderes para proteger os meus filhos - disse. - Terás de ser tu a tomar as decisões finais. Mas eu nunca dei a ordem para matar o Jimmy Santadio.

E se a Rose Marie descobrir que foi...? - perguntou Pippi. O Don olhou Pippi De Lena directamente nos olhos.

A Rose Marie é minha filha e irmã do Silvio. Nunca nos trairá.

A mansão dos Santadio tinha quarenta divisões distribuídas por apenas três pisos e fora construída em estilo espanhol, para se harmonizar com o deserto circundante. Estava separada da interminável extensão de areia por um muro de tijolos vermelhos. O complexo incluía, além da casa, uma enorme piscina, uma quadra de ténis e um campo de boccia.

Naquele dia festivo havia uma gigantesca grelha para assar carne, uma plataforma para a orquestra e uma pista de dança montada no relvado. Esta pista estava rodeada de compridas mesas carregadas de comida. Estacionados junto dos maciços portões de bronze viam-se três grandes carrinhas de uma empresa fornecedora de banquetes.

Pippi De Lena chegou cedo na manhã de sábado, transportando numa mala as roupas que usaria no casamento. Deram-lhe um quarto no segundo piso, por cujas janelas entrava a jorros a luz dourada do deserto. Começou a desfazer a mala.

A cerimónia religiosa teria lugar em Palm Springs, que ficava a uma escassa meia hora de viagem, e começaria por volta do meio-dia. Em seguida os convidados regressariam para o copo-de-água.

Pippi ouviu alguém bater à porta e Jimmy Santadio entrou no quarto. O seu rosto brilhava de felicidade e deu a Pippi um caloroso abraço. Não estava ainda vestido para o casamento, parecendo muito elegante com as suas calças brancas e a camisa de seda cinzenta prateada. Segurou a mão de Pippi entre as suas, para mostrar o seu afecto.

- Foi muito bom teres vindo - disse. - E a Roe está excitadíssima por seres tu a levá-la ao altar. Agora, antes que comece a confusão, o velho quer falar contigo.

Ainda a segurar-lhe a mão, desceu com Pippi ao primeiro piso e guiou-o, ao longo de um comprido corredor, até ao quarto de Don Santadio. Don Santadio estava deitado na cama, vestindo um pijama azul. Estava muito mais decrépito do que Don Clericuzio, mas tinha os mesmos olhos duros, a mesma maneira atenta de escutar; a cabeça dele era redonda como uma bola e completamente calva. Fez sinal a Pippi para se aproximar e estendeu-lhe os braços, para que pudesse abraçá-lo.

- É muito justo que tenhas sido tu a vir - disse o velho, numa voz rouca. Conto contigo para ajudares as nossas duas Famílias a abraçarem-se, como nós acabamos de fazer. Es a pomba da paz de que precisamos. Deus te abençoe, Deus te abençoe. - Deixou-se cair para trás e fechou os olhos. - Que feliz eu estou neste dia!

Estava uma enfermeira no quarto, uma mulher de meia idade, com um ar competente. Pediu-lhes em voz baixa que saíssem; o Don queria conservar as suas forças para poder mais tarde assistir aos festejos. Por um instante, Pippi reconsiderou a sua missão. Era óbvio que Don Santadio não viveria muito mais tempo. Jimmy tornar-se-ia então o chefe da sua Família. Talvez as coisas se pudessem compor. Mas Don Clericuzio nunca aceitaria a morte do filho, nunca poderia haver verdadeira paz entre as duas Famílias. Fosse como fosse, o Don dera-lhe instruções precisas.

Entretanto, dois dos Santadio, Fonsa e ítalo, tinham revistado o quarto de Pippi em busca de armas ou de equipamento de transmissões. O carro alugado de Pippi fora igualmente examinado de uma ponta à outra.

Os Santadio tinham preparado com esmero e prodigalidade o casamento do seu príncipe. Havia grandes cestas de verga cheias de flores exóticas espalhadas por todo o lado. Havia pavilhões de várias cores onde o champagne corria como água. Havia um bobo, envergando um traje medieval, que fazia truques de magia para as crianças, e os altifalantes distribuídos pelo jardim enchiam o ar de música. Cada convidado recebia uma rifa para um prémio de vinte mil dólares, a ser sorteado mais tarde. Que poderia ser mais esplêndido?

Grandes tendas alegremente coloridas, montadas nos relvados esmeradamente tratados, protegiam os convidados contra o calor do deserto. Tendas verdes sobre a pista de dança, tendas vermelhas sobre o estrado da orquestra. Tendas azuis sobre a quadra de ténis, onde tinham sido reunidos os presentes oferecidos aos noivos. Entre estes presentes contava-se um Mercedes prateado para a noiva e um pequeno avião particular para o noivo, oferta do próprio Don Santadio.

A cerimónia na igreja foi simples e breve, e os convidados regressaram a casa dos Santadio, onde encontraram a orquestra a tocar. Mesas carregadas de comida e três bares diferentes tinham sido instalados em duas vastas tendas, uma decorada com cenas de caçadores a perseguirem javalis, outra com grandes balões de vidro contendo bebidas tropicais exóticas.

Os noivos dançaram a primeira dança num solitário esplendor. Dançaram à sombra da tenda, com o sol vermelho do deserto a espreitar pelos cantos e a dourar-lhes a felicidade quando passavam pelas manchas de luz. Estavam tão evidentemente apaixonados que a multidão gritou e aplaudiu. Nunca Rose Marie parecera tão bela, nem Jimmy Santadio tão jovem.

Quando a banda deixou de tocar, Jimmy foi buscar Pippi ao meio da multidão e apresentou-o aos mais de duzentos convidados.

- Este é o Pippi De Lena, que acompanhou a noiva ao altar, e representa a Família Clericuzio. Ê o meu mais querido amigo. Os seus amigos são meus amigos. Os seus inimigos são meus inimigos. - Ergueu o copo e acrescentou. - Bebamos todos à sua saúde. E é dele a primeira dança com a noiva.

Enquanto Pippi e Rose Marie dançavam, ela murmurou-lhe ao ouvido:

Vais juntar as duas Famílias, não vais, Pippi?

É canja - respondeu Pippi, e fê-la rodopiar.

Pippi foi o rei da festa, nunca se vira convidado mais animado e simpático. Dançou todas as músicas, mais leve e ágil do que os rapazes mais novos. Dançou com Jimmy, e depois com os outros irmãos, Fonsa, ítalo, Benedict, Gino e Louis. Dançou com as crianças e com as matronas. Dançou com o chefe da orquestra e cantou com a banda, truculentas canções em dialecto siciliano. Comeu e bebeu com um tal entusiasmo que o smoking se encheu de nódoas de molho de tomate, dos sumos de frutos dos cocktails de vinho. Lançou as bolas de boccia com tal ardor que durante uma hora foi o centro de todas as atenções.

Depois do jogo, Jimmy Santadio chamou-o à parte.

- Estou a contar contigo para fazer isto resultar - disse-lhe. - Se as nossas duas famílias se juntarem, nada poderá deter-nos. Tu e eu. - Era Jimmy Santadio no seu melhor.

Pippi fez apelo a toda a sua sinceridade para responder:

- Assim será. Assim será. - E perguntou a si mesmo se Jimmy Santadio seria realmente tão sincero como parecia. Mas agora já devia saber que alguém na sua família cometera o crime.

Jimmy pareceu adivinhar-lhe os pensamentos.

Juro-te, Pippi, não tive nada a ver com aquilo - disse. Pegou numa mão de Pippi. - Não tivemos nada ver com a morte do Silvio. Nada. Juro sobre a cabeça do meu pai.

Acredito - respondeu Pippi. - E apertou as mãos de Jimmy. Teve um momento de dúvida, mas já não fazia diferença. Já era demasiado tarde.

O sol vermelho do deserto deu lugar ao crepúsculo, e acenderam-se luzes por toda a propriedade dos Santadio. Foi o sinal para o início do jantar formal. Todos os irmão, Fonsa, ítalo, Gino, Benedict e Louis, brindaram aos noivos. À felicidade daquele casamento, às virtudes especiais de Jimmy, a Pippi De Lena, o seu novo e grande amigo.

Don Santadio estava demasiado doente para deixar o leito, mas enviou as suas mais sentidas felicitações, mencionando a propósito o avião que oferecera ao filho, o que provocou os aplausos da assistência. Depois a noiva cortou uma grande fatia do bolo e levou-a ao quarto do velho. Mas Don Santadio dormia, de modo que a confiaram à enfermeira, que prometeu dar-lhe um pouco quando ele acordasse.

Finalmente, por volta da meia-noite, a festa acabou. Jimmy e Rose Marie retiraram-se para o quarto, dizendo que partiam em lua-de-mel na manhã seguinte e precisavam de descansar. Ao que os convidados responderam com grandes gargalhadas e comentários mais ou menos picantes. Tudo muito alegre e bem humorado.

As centenas de carros abandonaram a propriedade e desapareceram no deserto. Os camiões dos fornecedores foram recarregados, o pessoal desmontou as tendas e juntou as mesas e cadeiras, desfez a plataforma da orquestra e a pista de dança e deu uma rápida volta pelos terrenos para se certificarem de que não ficava lixo. Finalmente, retiraram-se. Tratariam do resto no dia seguinte.

A pedido de Pippi, tinha sido combinado um encontro formal com os cinco irmãos Santadio, para depois de os convidados terem partido. Trocariam presentes para comemorar a nova amizade entre as duas Famílias.

À meia-noite, reuniram-se na vasta sala de jantar da mansão dos Santadio. Pippi tinha uma mala cheia de relógios Rolex (genuínos, nada de imitações). Havia também um grande quimono japonês decorado com cenas de sexo orientais pintadas à mão.

Vamos levá-lo já ao Jimmy! - gritou Fonsa.

Demasiado tarde - respondeu jocosamente ítalo. - O Jimmy e a Rose Marie já vão para aí no terceiro assalto.

Riram-se todos.

Lá fora, o luar banhava a propriedade com a sua luz fria e branca. As lanternas chinesas penduradas nos muros punham manchas vermelhas neste lívido esplendor.

Um grande camião, com a palavra CATERING [8] escrita em letras douradas de ambos os lados, deteve-se diante dos portões da propriedade dos Santadio.

Um dos dois guardas aproximou-se, e o condutor disse-lhe que tinham voltado atrás para recolher um gerador que ficara esquecido.

- A esta hora? - estranhou o guarda.

Enquanto ele falava, o ajudante do motorista apeou-se e dirigiu-se ao outro guarda. Ambos os vigilantes estavam pesados da comida e bebida que tinham ingerido durante a festa.

Num único movimento sincronizado, aconteceram duas coisas: o motorista empunhou uma pistola munida de silenciador que trazia entre as pernas e disparou três vezes directamente contra a cara do primeiro guarda. O seu ajudante agarrou o segundo guarda pelo pescoço, puxou de uma grande faca e, com um gesto largo e rápido, cortou-lhe a garganta.

Os dois homens tombaram mortos no solo. Ouviu-se o suave zumbido de um motor eléctrico, a grande porta metálica do camião desceu rapidamente e vinte soldados dos Clericuzio saltaram para fora. Com os rostos cobertos por máscaras, vestidos de negro, armados com armas munidas de silenciador, chefiados por Giorgio, Petie e Vincent, espalharam-se pelo terreno. Um grupo especial cortou os fios telefónicos. Um outro tomou posições para controlar o exterior. Dez dos homens mascarados, com Giorgio, Petie e Vincent, entraram de rompante na sala de jantar.

Os irmãos Santadio erguiam os copos para brindarem a Pippi, que se afastou deles. Não foram pronunciadas quaisquer palavras. Os assaltantes abriram fogo e os cinco irmãos Santadio foram ceifados por uma saraivada de balas. Um dos homens mascarados, Petie, inclinou-se para eles e deu a cada um o golpe de misericórdia, uma bala por baixo do queixo. O chão estava juncado de copos partidos.

Outro dos mascarados, Giorgio, entregou a Pippi uma máscara e umas calças e uma camisola pretas. Pippi mudou rapidamente de roupa e atirou a que despira para dentro de um saco que um terceiro mascarado segurava.

Pippi, ainda desarmado, conduziu Giorgio, Petie e Vincent ao longo do comprido corredor até ao quarto de Don Santadio. Abriu a porta.

Don Santadio tinha finalmente acordado e estava a comer o bolo de noiva. Lançou um olhar aos quatro homens, fez o sinal da cruz e tapou a cara com uma almofada. O prato com o bolo escorregou para o chão.

A enfermeira estava a ler num canto do quarto. Petie saltou para ela como um grande gato, amordaçando-a e amarrando-a à cadeira com uma corda de nylon.

Foi Giorgio quem avançou para a cama. Estendeu suavemente uma mão e tirou a almofada de cima da cara de Don Santadio. Hesitou um instante e então disparou dois tiros, o primeiro num olho, o segundo, que fez saltar o topo da cabeça do velho, apoiando o cano da arma por baixo do queixo.

Reagruparam-se. Vincent armou finalmente Pippi: entregou-lhe uma comprida corda prateada.

Com Pippi a guiá-los, saíram do quarto, voltaram a percorrer o corredor e subiram ao terceiro piso, onde se situava o quarto dos noivos. O corredor estava cheio de flores e de cestos com fruta.

Pippi fez pressão contra a porta do quarto. Estava trancada. Petie tirou uma das luvas e pegou numa gazua, com a qual abriu facilmente a porta, que empurrou para trás.

Rose Marie e Jimmy estavam estendidos na cama. Tinham acabado de fazer amor e os seus corpos estavam quase líquidos de sensualidade libertada.

O négligée transparente de Rose Marie enrolara-se-lhe acima da cintura, e as alças caídas expunham os seios. Tinha a mão direita pousada nos cabelos de Jimmy e a esquerda no estômago dele. Jimmy estava completamente nu, mas levantou-se como impulsionado por uma mola ao ver os homens à porta e envolveu-se no lençol. Compreendeu tudo.

- Aqui não. Lá fora - disse, e avançou para eles.

Rose Marie, por uma fracção de segundo, pareceu incapaz de compreender. Quando Jimmy avançou para a porta, tentou agarrá-lo, mas ele esquivou-se-lhe. Saiu para o corredor, rodeado por Giorgio, Petie e Vincent. Então Rose Marie gritou:

- Pippi, Pippi, por favor, não! - Só quando os três mascarados se voltaram para olhar para ela se apercebeu de que eram os seus irmãos. - Giorgio, Petie, Vincent! Não! Por favor!

Este foi para Pippi o momento mais difícil. Se Rose Marie falasse, a Família Clericuzio estava perdida. O seu dever era matá-la. O Don não lhe dera instruções específicas a respeito daquilo, mas como poderia ele tolerar a morte da própria filha? E os irmãos dela, obedecer-lhe-iam? E como soubera Rose Marie quem eles eram? Tomou uma decisão. Fechou a porta e ficou no corredor com Jimmy e os outros três.

Naquele ponto, o Don fora explícito. Jimmy Santadio seria estrangulado. Era talvez um sinal de piedade, o facto de não lhe deixar perfurações no corpo que os seus parentes pudessem chorar. Ou talvez viesse de alguma antiga tradição não derramar o sangue de um ente querido sem por isso deixar de lhe dar a morte.

Subitamente, Jimmy Santadio deixou cair o lençol, ergueu as mãos e arrancou a máscara da cara de Pippi. Giorgio agarrou-lhe um braço, Petie o outro. Vincent ajoelhou-se no chão e prendeu-lhe as pernas. Pippi passou a corda pelo pescoço de Jimmy e dobrou-o para baixo. Jimmy tinha um sorriso enviesado nos lábios, estranhamente cheio de piedade, enquanto olhava Pippi nos olhos: como se soubesse que seria vingado pelo destino ou por qualquer Deus misterioso.

Pippi apertou a corda, Petie ajudou a fazer pressão, e caíram os três no chão do corredor, onde o lençol branco recebeu o corpo de Jimmy Santadio, como um sudário. Dentro do quarto, Rose Marie começou a gritar...

O Don terminara a sua história. Acendeu outra cigarrilha e bebeu um pequeno golo de vinho.

Foi o Pippi que planeou toda a operação - disse Giorgio. - Safá- mo-nos sem problemas e os Santadio foram eliminados. Foi brilhante.

Resolveu tudo - acrescentou Vincent. - Nunca mais voltámos a ter problemas.

Don Clericuzio suspirou. !

- A decisão foi minha, e foi uma decisão errada. Mas como podíamos nós adivinhar que a Rose Marie ia enlouquecer? Estávamos numa crise, e aquela era a nossa oportunidade de desferir um golpe decisivo. Não esqueças que eu não tinha ainda sessenta anos, sobrevalorizava muito o meu poder e a minha inteligência. Pensei, na altura, que, com certeza, ia ser uma tragédia para a minha filha, mas que as viúvas não ficam eternamente de luto. E eles tinham assassinado o meu filho Silvio. Como poderia eu perdoar uma coisa daquelas, filha ou não filha? Mas aprendi. Não é possível chegar a uma solução razoável com gente estúpida. Devia tê-los liquidado logo ao princípio. Antes que os dois amantes se conhecessem. Teria salvo o meu filho e a minha filha.

Permaneceu um longo momento calado antes de continuar:

- Portanto, como vês, o Dante é filho do Jimmy Santadio. E tu, Cross, partilhaste um carrinho de bebé com ele quando eram os dois crianças, no vosso primeiro ano nesta casa. Durante todos estes anos tenho tentado compensar o Dante pela perda do pai. Tentei ajudar a minha filha a recuperar do seu desgosto. O Dante foi educado como um Clericuzio e, junta mente com os meus filhos, será meu herdeiro.

Cross tentou compreender o que estava a passar-se. Todo o seu corpo estremeceu de repulsa pelos Clericuzio e pelo mundo em que viviam. Pensou no pai, Pippi, a representar o papel de Satanás, a seduzir os Santadio, arrastando-os para a morte. Como podia um homem assim ser seu pai? Depois pensou em Rose Marie, a tia que tanto amava, a viver todos aqueles anos com o coração e o espírito destroçados, sabendo que o marido fora assassinado pelo pai e pelos irmãos. Que a sua própria família a tinha traído. Conseguiu até pensar em Dante com alguma piedade, agora que a culpa dele estava estabelecida. E finalmente pensou no Don. Com toda a certeza Don Domenico não acreditava naquela história do assalto. Por que fingiria acreditar, um homem que nunca acreditara em coincidências? Qual era a mensagem?

Cross nunca conseguira compreender Giorgio. Acreditaria ele que se tratara de um simples assalto? Era evidente que Vincent e Petie acreditavam. Mas agora compreendia a relação especial que existira entre o pai e o Don e os seus três filhos. Tinham estado juntos na chacina dos Santadio. E Pippi poupara a vida a Rose Marie.

E a Rose Marie nunca falou? - perguntou Cross.

Não - respondeu o Don, sardonicamente. - Fez melhor do que isso: enlouqueceu. - Havia uma levíssima nota de orgulho na sua voz. - Mandei-a para a Sicília e trouxe-a de volta a tempo de o Dante nascer em solo americano. Quem sabe, um dia pode vir a ser presidente dos Estados Unidos. Tinha muitos sonhos para aquele rapaz, mas a mistura de sangue dos Clericuzio e dos Santadio foi demasiado para ele. E sabes o que é mais terrível? - acrescentou. - O teu pai, Pippi, cometeu um erro. Nunca devia ter poupado a Rose Marie, embora eu o tenha amado por isso. - Suspirou, bebeu um golo de vinho e, olhando Cross de frente nos olhos, disse: - Tem cuidado. O mundo é aquilo que é. E tu és aquilo que és.

No avião de regresso a Vegas, Cross ponderou toda aquela charada. Porque lhe teria o Don finalmente contado a história da guerra contra os Santadio? Para o impedir de ir visitar Rose Marie e ouvir uma versão diferente? Ou fora para o avisar, para lhe dizer que não vingasse a morte do pai porque Dante estava envolvido? O Don era um mistério. Mas de uma coisa tinha Cross a certeza. Se fora Dante que lhe matara o pai, então Dante teria de matá-lo também a ele. E, com toda a certeza, Don Clericuzio tinha perfeita consciência disso.

 

Dante Clericuzio não precisava de ouvir esta história. A mãe, Rose Marie, murmurava-lha aos ouvidos desde que ele tinha dois anos: sempre que sofria um dos seus ataques, sempre que a assaltava o desgosto pela perda do marido e do irmão, sempre que o terror que sentia por Pippi e pelos irmãos a invadia.

Era só quando tinha os seus ataques mais graves que Rose Marie acusava o pai, Don Clericuzio, da morte do marido. O Don negava sempre ter dado a ordem, como negava que os filhos e Pippi tivessem levado a cabo a matança. Mas depois de ela o ter acusado duas vezes, despachara-a para a clínica durante um mês. Depois disso, ela gritava e chorava, mas nunca mais voltara a acusá-lo directamente.

Dante, porém, recordava os murmúrios dela. Quando era criança, amara o avô e acreditara na sua inocência. Mas manobrava contra os três tios, embora eles o tratassem sempre com ternura. Especialmente, sonhava vingar-se de Pippi, e embora aquilo fossem apenas fantasias, alimentava-as por amor da mãe.

Quando estava normal, Rose Marie tratava do velho Don Clericuzio com o maior carinho. Para com os três irmãos, tinha cuidados fraternais. Com Pippi, mostrava-se distante. E porque naquele tempo tinha um rosto tão doce, era-lhe difícil expressar maldade de uma forma convincente. A estrutura dos ossos do rosto, a curva da boca, os olhos meigos de um castanho líquido desmentiam o ódio que lhe enchia o peito. Era com o filho, Dante, que mostrava a sua enorme necessidade de amar, um sentimento que já não era capaz de ter por qualquer outro homem. Cobria-o de prendas e de afecto. Tal como o avô e os tios, mas estes por razões menos puras, um amor enlameado de culpa. Quando Rose Marie estava normal, nunca contava a história ao filho.

Durante os seus ataques, porém, gritava insultos, pragas, até o seu rosto era capaz de se transformar numa feia máscara de fúria. Dante ficava sempre desnorteado. Quando tinha sete anos, uma dúvida insinuou-se-lhe no espírito.

- Como soubeste que era o Pippi? - perguntou à mãe.

Rose Marie riu-se malevolamente. Pareceu a Dante uma bruxa saída de um dos seus livros de histórias.

- Oh, eles julgavam-se muito espertos! - respondeu ela. -Julgavam que tinham planeado tudo muito bem, com as suas máscaras e as suas roupas pretas. Queres saber de que foi que se esqueceram? O Pippi continuava a calçar os seus sapatos de baile. E os teus tios agrupavam-se sempre de uma maneira especial. O Giorgio sempre à frente, o Vincent um pouco atrás, e o Petie sempre à direita. E a maneira como olharam para o Pippi a ver se ele dava a ordem para me matarem. Porque eu os tinha reconhecido. O modo como cambalearam, como quase recuaram. Mas ter-me-iam morto, disso podes ter a certeza. Os meus próprios irmãos. - Começou então a chorar tão convulsivamente que Dante ficou assustado.

Mesmo com apenas sete anos, já tentava confortá-la.

- O tio Petie nunca te faria mal - disse. - E o Avô matava-os a todos se fizessem.

Não estava muito certo a respeito do tio Giorgio, ou mesmo do tio Vinnie. Mas, no seu coração de criança, era a Pippi que nunca poderia perdoar.

Quando tinha dez anos, Dante aprendera a estar atento aos ataques da mãe, de modo que, quando ela o chamava para lhe contar novamente a história dos Santadio, apressava-se a levá-la para a segurança do quarto, onde o avô e os tios não podiam ouvi-los.

Quando se fizera homem, era demasiado esperto para se deixar enganar por todos os disfarces da Família Clericuzio. Tinha um temperamento tão malicioso e irónico que fazia gala em mostrar ao avô e aos tios que sabia a verdade. E tinha perfeita consciência de que os tios não gostavam muito dele. Dante fora designado para se juntar ao mundo legal, talvez para ocupar o lugar de Giorgio e aprender as complexidades da alta finança, mas não mostrara o mínimo interesse. Declarara até abertamente aos tios que não estava minimamente interessado nos aspectos "amaricados" dos negócios da Família. Giorgio ouvira-o fazer esta declaração com uma frieza que por momentos assustara o adolescente de dezasseis anos que Dante então era.

- Muito bem - respondera Giorgio, e houvera pena na sua voz, e alguma ira também. - Será como queres.

Quando deixara o liceu no ano em que terminaria o curso, fora trabalhar para a empresa de Petie no Enclave do Bronx. Dante era um trabalhador esforçado e desenvolvera uma impressionante musculatura no duro trabalho nos estaleiros de construção. Petie juntara-o a grupos de soldados do Enclave do Bronx. Quando atingira a idade suficiente, o Don decretara que o rapaz passaria a ser um soldado sob a chefia de Petie.

O Don só tomara esta decisão depois de ter ouvido os relatórios de Giorgio a respeito do carácter de Dante e de tomar conhecimento de certas coisas que o neto fizera. Era acusado de violação por uma colega do liceu, e de atacar com uma faca um outro colega, um rapaz da sua idade. Dante pedira aos tios que não contassem ao avô, e eles tinham-lho prometido, mas, claro, tinham imediatamente posto o Don ao corrente. Estas acusações tinham sido resolvidas graças ao pagamento de grandes quantias antes de os casos terem chegado a tribunal.

E fora durante os anos de adolescência que os seus ciúmes de Cross De Lena tinham crescido. Cross transformara-se num jovem alto e extraordinariamente atraente, com uma cortesia natural. As mulheres da Família Clericuzio adoravam-no e faziam tudo por ele. As primas namoriscavam-no, coisa que nunca faziam com o neto do Don. Dante, com os seus chapéus renascentistas, o seu humor virulento e o seu corpo baixo e musculoso, assustava-as. E ele era demasiado esperto para não se aperceber de tudo isto.

Quando ia passar algum tempo à cabana de caça, nas Sierras, gostava mais de caçar com armadilhas do que com a arma. Quando se apaixonou por uma das primas, como era perfeitamente natural no clã Clericuzio, extremamente fechado, foi demasiado directo nas suas propostas. E comportava-se de uma maneira demasiado familiar com as filhas dos soldados da Família que viviam no Enclave do Bronx. Finalmente, Giorgio, que tinha o papel de pai educador e castigador, apresentara-o à dona de um bordel de luxo em Nova Iorque, para o acalmar.

No entanto, a enorme curiosidade de Dante, a sua astúcia e esperteza, fizeram dele o único da sua geração de Clericuzios que sabia exactamente o que a Família fazia. Fora, por isso, finalmente decidido que ele receberia treino operacional.

A medida que o tempo passava, Dante sentia-se cada vez mais distante da sua família. O Don mostrava-se tão seu amigo como sempre, e assegurava-lhe frequentemente que seria ele o herdeiro do império, mas deixara de partilhar os seus pensamentos com o neto, deixara de dar-lhe conselhos, as suas secretas pérolas de sabedoria. E não apoiava as suas sugestões e idéias em questões de estratégia.

Os tios, Giorgio, Vincent e Petie, não eram tão calorosos no seu afecto como quando ele era criança. Petie, era verdade, parecia-lhe mais um amigo, mas também fora Petie quem o treinara.

Dante era suficientemente esperto para pensar que talvez a culpa fosse sua, por ter revelado o seu conhecimento sobre a matança dos Santadio e do pai. Chegara a fazer a Petie perguntas a respeito de Jimmy Santadio, e o tio dissera-lhe como todos eles o tinham respeitado e lamentado a sua morte. Nunca era dito abertamente, nunca era admitido, mas Don Clericuzio e os filhos sabiam que Dante conhecia a história verdadeira, que Rose Marie, nos seus ataques, revelara o segredo. Queriam compensá-lo, e por isso tratavam-no como um princepezinho.

O que mais formara o carácter de Dante fora, porém, a pena e o amor que tinha pela mãe. Durante os seus ataques, Rose Marie ateava nele o ódio por Pippi De Lena, isentando o pai e os irmãos.

Todas estas coisas ajudaram Don Clericuzio a tomar a decisão final, porque o Don conseguia ler na mente do neto tão facilmente como no seu livro de orações. O Don chegou à conclusão de que Dante nunca poderia participar na retirada final da Família para o seio da sociedade legal. O sangue Santadio e (o Don era um homem justo) Clericuzio que lhe corriam nas veias constituíam uma mistura demasiado feroz. Dante juntar-se-ia, portanto, à sociedade de Vincent e Petie, de Giorgio e Pippi De Lena. Bater-se-iam juntos na batalha final.

E Dante provou ser um bom soldado, ainda que incontrolável. Tinha uma independência que violava todas as regras da Família, e numa ou outra ocasião chegara mesmo a desobedecer a ordens específicas. A sua ferocidade era útil quando algum bruglione mais confuso ou algum soldado mais indisciplinado pisavam o risco e tinham de ser enviados para um mundo menos complicado. Dante não podia ser controlado por ninguém excepto pelo próprio Don, e, misteriosamente, o Don recusava-se a admoestá-lo pessoalmente.

Dante temia pelo futuro da mãe. Esse futuro dependia do Don, e à medida que os ataques de Rose Marie se tornavam mais freqüentes, Dante via o Don tornar-se mais impaciente. Especialmente quando Rose Marie dava o grande espectáculo e traçava um círculo no chão, com um pé, e então cuspia para o centro desse círculo, jurando aos gritos que não voltaria a entrar naquela casa. Era nessas ocasiões que o Don a mandava para a clínica por mais alguns dias.

Por isso Dante acalmava-a e mimava-a até que o ataque lhe passava e ela recuperava a sua doçura habitual. Mas havia sempre o medo de um dia não poder protegê-la. A menos que se tornasse tão poderoso como o próprio Don.

A única pessoa que Dante temia em todo o mundo era o velho Don. Era um sentimento que lhe vinha da sua experiência com o avô quando criança. E nascia, também, da sensação que tinha de que os filhos de Don Clericuzio o receavam tanto como o amavam. O que lhe parecia espantoso. o Don já passara os oitenta anos, perdera toda a sua força física, raramente saía de casa, até a sua altura tinha diminuído. Temê-lo porquê?

Comia bem, era verdade, tinha uma presença imponente, o único estrago físico que o tempo conseguira causar-lhe fora amolecer-lhe os dentes, de modo que estava reduzido a uma dieta de massas, queijo ralado, legumes cozidos e sopas. As carnes tinham de ser moídas e disfarçadas com molho de tomate.

Fosse como fosse, o velho Don teria de morrer em breve, e isso traria mudanças de poder. E se Pippi se tornasse o braço direito de Giorgio? E se Pippi tomasse o poder pela força? Se isso acontecesse, Cross seria guindado aos mais altos lugares, especialmente agora que se tornara rico graças à herança de Gronevelt.

Havia, pois, razões práticas, afirmava Dante a si mesmo, não era apenas o seu ódio contra Pippi, que ousara criticá-lo junto da sua própria Família.

Dante fizera o seu contacto inicial com Jim Losey quando Giorgio decidira dar-lhe um certo poder e o mandara entregar ao detective o salário que a Família lhe pagava.

Claro que tinham sido tomadas precauções para proteger Dante, no caso de Losey se tornar traidor. Assinaram-se contratos que mostravam que Losey trabalhava, como consultor, para uma empresa de segurança pertencente à Família. O contrato continha uma cláusula de confidencialidade e estipulava que Losey receberia o seu salário em notas. Mas na contabilidade da agência de segurança, estes dinheiros apareciam como despesas, utilizando-se uma empresa-fantasma como recebedora.

Dante fez pagamentos especiais a Losey durante vários anos antes de iniciar um relacionamento mais íntimo. Não se deixava intimidar pela reputação do detective e avaliara-o correctamente como alguém que se encontrava numa altura da vida em que começava a pensar em juntar um bom pé-de-meia para o futuro. Losey tinha o dedo metido numa porção de negócios. Protegia passadores de droga, recebia dinheiro dos Clericuzio para proteger os corretores de apostas, estava inclusivamente envolvido em manobras de extorsão para obrigar determinados grandes retalhistas a pagarem mais pela protecção que recebiam.

Dante recorreu a todo o seu encanto para causar boa impressão; tanto o seu sentido de humor, retorcido e brutal, como o seu desrespeito por todos os princípios da moral eram de molde a agradar a Losey. Dante reagiu particularmente bem às histórias que o detective contava a respeito da sua guerra contra os negros, que estavam a destruir a civilização ocidental. Pessoalmente, não tinha quaisquer preconceitos raciais. Os negros não tinham qualquer influência na sua vida, e se tivessem seriam implacavelmente eliminados.

Dante e Losey tinham um poderoso interesse comum. Eram ambos janotas preocupados com o respectivo aspecto, e ambos tinham o mesmo tipo de impulso sexual para dominar as mulheres. Não exactamente erótico, mas mais como uma expressão de poder. Ganharam o hábito de passar bastante tempo juntos quando Dante estava em Los Angeles. Jantavam os dois e faziam a ronda dos clubes nocturnos. Dante nunca se atrevera a levá-lo a Vegas e ao Xanadu; além disso, era algo que não servia os seus propósitos.

Dante adorava contar a Losey como começava por cortejar as mulheres, e como estas eram exigentes no exercício do poder que a sua beleza lhes conferia. E como então ele aproveitava esta característica para as colocar numa situação em que não podiam fugir a conceder-lhe, ainda que a contragosto, os seus favores sexuais. Losey, um pouco desdenhoso do truque de Dante, explicava-lhe como dominava as mulheres logo desde o início com a sua extraordinária presença de macho, e depois as humilhava.

Ambos declaravam que nunca forçariam uma mulher que não correspondesse aos seus avanços a ter relações com eles. Ambos concordavam que Athena Aquitane seria uma espécie de primeiro prémio, se alguma vez lhes desse uma hipótese. Quando andavam os dois a deambular pelos clubes nocturnos de L. A. e "engatavam" mulheres, comparavam as respectivas experiências, e riam-se dessas estúpidas que julgavam poder chegar quase até ao extremo limite e depois recusar o acto final. Por vezes os protestos tornavam-se demasiado veementes, e era então que Losey lhes mostrava o crachá de polícia e ameaçava prendê-las por prostituição. Uma vez que muitas delas eram na realidade prostitutas amadoras, a ameaça resultava.

Passavam assim grandes noitadas de farra, orquestradas por Dante. Losey, quando não estava a contar histórias de "pretos", esforçava-se por definir os vários tipos de prostitutas.

Havia, antes de mais nada, as pegas declaradas, as que estendiam uma mão para receber o dinheiro e agarravam a pica de um homem com a outra. E depois havia as amadoras, que podiam gostar de um tipo e facilitar-lhe uma queda amistosa, e então, quando o homem se preparava para sair na manhã seguinte, lhe pediam um cheque para ajudar a pagar a renda.

E havia a prostituta amadora, que se apaixonava por um tipo, mas também amava outros homens, e estabelecia uma relação de longo prazo alimentada à custa de ofertas de jóias em todos os dias de festa, incluindo o Dia do Trabalhador. E havia ainda as amadoras puras, as secretárias que trabalhavam das nove às cinco, as hospedeiras de bordo, as empregadas de balcão nas lojas finas, que convidavam um tipo para ir tomar café ao apartamento delas depois de um jantar caro e então tentavam pô-lo a arrefecer no olho da rua sem sequer lhe fazerem um trabalho de mão. Estas eram as suas favoritas. o sexo com elas era excitante, cheio de dramas, lágrimas e pedidos abafados de calma e paciência, o que dava origem a um sexo que era melhor do que o amor.

Certa noite, depois de terem jantado no Le Chinois, um restaurante de Venice, Dante sugeriu um passeio junto à praia. Sentaram-se num banco e ficaram a ver quem passava, belas raparigas de patins, chulos de todas as cores que as perseguiam gritando piropos, as mulheres que vendiam T-shirts decoradas com frases que nenhum dos dois conseguia compreender. Hare Krishnas com as suas malgas, grupos de cantores barbudos com as suas guitarras, grupos familiares com as suas máquinas fotográficas, e, reflectindo-os a todos, o negro oceano, o Pacífico, em cujas praias arenosas casais isolados se escondiam debaixo de mantas convencidos que elas disfarçavam as suas fornicações.

Podia meter na choça toda a gente que aqui está e alegar causa provável - disse Losey, com uma gargalhada. - Que sacana de zoo!

Incluindo essas garotas bonitas que andam de patins? - perguntou Dante.

A essas prendia-as por usarem os traseiros como armas perigosas.

Não se vêem por aí muitos pretos - comentou Dante.

Losey passeou o olhar pela praia, e quando falou foi com uma razoável imitação do sotaque sulista.

- Acho que tenho sido demasiado injusto para com os meus irmãos de cor. Como os liberais costumam dizer, é tudo por causa de terem sido escravos.

Dante ficou à espera do fim da piada.

Losey entrelaçou as mãos atrás da nuca e puxou o casaco para trás, de modo a mostrar o coldre com a arma e desmotivar quaisquer vadios que quisessem armar-se em espertos. Ninguém lhe prestou atenção, tinham-no identificado como chui a partir do momento em que pusera o pé no passeio.

- A escravatura - continuou. - Desmoralizante. Era uma vida demasiado fácil, e isso tornou-os excessivamente dependentes. A liberdade foi um golpe muito duro. Nas plantações tinham quem cuidasse deles, comiam três refeições por dia, não pagavam renda de casa, vestiam-nos e davam- -lhes bons cuidados médicos, por serem bens valiosos. Nem sequer eram responsáveis pelos filhos. Imagina. Os donos das plantações comiam-lhes as filhas e davam aos filhos que lhes faziam emprego para toda a vida. Claro que trabalhavam, mas passavam a vida a cantar, de modo que não podiam trabalhar assim tanto como isso. Aposto que cinco brancos eram capazes de fazer o trabalho de cem pretos.

Dante achou graça. Estaria Losey a falar a sério? Não tinha importância, estava a expressar um ponto de vista emocional, não um ponto de vista racional, e o que dissera expressava o essencial da sua opinião.

Estavam a divertir-se, a noite estava óptima, o mundo que observavam dava-lhes uma reconfortante sensação de segurança. Aquelas pessoas nunca constituiriam um perigo para eles.

Subitamente, Dante anunciou:

- Tenho uma proposta verdadeiramente importante a fazer-te. Queres começar pelos ganhos ou pelos riscos?

Losey dirigiu-lhe um sorriso.

Primeiro os ganhos, sempre.

Duzentos mil em notas, à cabeça - disse Dante. - Um ano mais tarde, o lugar de chefe da segurança no Xanadu Hotel. Com um salário cinco vezes superior ao que tens agora. Despesas de representação. Carro grande, cama, comida, roupa lavada e todas as miúdas que conseguires comer. Tens o direito de investigar todas as coristas do hotel. Além dos bónus, como ganhas agora. E não terás de correr os riscos que corres agora.

Parece bom de mais para ser verdade. Mas alguém tem de apanhar um tiro, É esse o risco, certo?

Para mim - declarou Dante. - Sou eu que atiro.

Porque não eu? - perguntou Losey. - Tenho um crachá, para tornar a coisa legal.

Porque não viverias seis meses depois disso.

Então o que é que eu tenho de fazer? Cócegas no teu rabo com uma pena?

Dante explicou-lhe a operação. Losey assobiou para expressar a sua admiração pela temeridade e inteligência do plano.

Porquê o Pippi De Lena? - quis saber Losey.

Porque ele está a preparar-se para nos trair.

Losey parecia continuar a ter dúvidas. Seria a primeira vez que cometeria um crime de assassínio a sangue-frio. Dante resolveu dar-lhe mais alguma coisa extra.

Lembras-te do suicídio do Boz Skannet? - perguntou. - Foi o Cross que tratou disso, não pessoalmente, mas através de um tipo chamado Lia Vazzi.

Como é ele? - perguntou Losey. Quando Dante lhe descreveu Vazzi, percebeu que era o homem que acompanhava Skannet quando o interpelara no vestíbulo do hotel. - Onde é que posso encontrar esse Vazzi?

Dante hesitou um longo instante. Estava a fazer algo que violava a única verdadeira lei da Família. Do Don. Mas podia bastar para afastar Cross do seu caminho, e Cross seria alguém a temer depois da morte de Pippi.

- Nunca direi a ninguém de onde me veio a informação - prometeu Losey.

Dante tinha tomado uma decisão. Disse:

Vive numa cabana de caça que a minha família tem nas Sierras. Mas não faças nada antes de liquidarmos o Pippi.

Claro - respondeu Losey. Faria exactamente o que quisesse. - E recebo os meus duzentos mil à cabeça, certo?

Certo.

Parece-me bem. Uma coisa, se os Clericuzio vierem atrás de mim, despejo o saco.

Não te preocupes - respondeu Dante, amavelmente. - Se ouvir falar disso, mato-te eu primeiro. Agora só falta estudar os pormenores.

Tudo correu como tinham planeado.

Quando Dante disparou seis balas contra o corpo de Pippi e quando Pippi murmurou, chamando-lhe "filho da puta de Santadio", Dante sentiu um júbilo como nunca tinha sentido.

 

Pela primeira vez, Lia Vazzi desobedeceu deliberadamente às ordens do seu chefe, Cross De Lena.

Era inevitável. O detective Losey fizera outra visita à cabana de caça e voltara a fazer perguntas a respeito da morte de Boz Skannet. Lia negara saber sequer quem era Skannet e afirmara encontrar-se por puro acaso no vestíbulo do hotel na altura em que Losey o vira. Losey dera-lhe uma palmada num ombro e depois batera-lhe levemente na cara.

- OK, meu estuporzinho - dissera. - Um destes dias apanho-te.

No seu íntimo, Lia assinara a sentença de morte de Losey. Acontecesse o que acontecesse, e sabia que o seu próprio futuro estava em perigo, Losey não escaparia à sua sorte. Mas ia ter de agir com muito cuidado. A Família Clericuzio tinha regras estritas. Era absolutamente proibido fazer mal a um agente da polícia.

Recordou-se de quando levara Cross ao encontro de Phil Sharkey, o antigo parceiro de Jim Losey. Nunca acreditara que Sharkey se conservasse calado, mesmo com a promessa de mais cinquenta mil dólares. Agora tinha a certeza de que Sharkey falara a Losey daquela conversa e provavelmente o vira a ele, Lia, à espera no carro. Se fosse esse o caso, ele e Cross corriam um perigo imediato. Essencialmente, discordava de Cross quanto àquele ponto: os chuis protegiam-se uns aos outros, exactamente como os mafiosos. Tinham a sua própria omertà.

Recrutou dois dos seus soldados para o acompanharem até Santa Monica, onde Sharkey vivia. Tinha a certeza de que lhe bastaria falar com ele para saber se o homem informara ou não Jim Losey a respeito da visita de Cross.

O jardim da casa de Sharkey estava deserto, o relvado vazio, à excepção do cortador de relva abandonado. Mas a porta da garagem estava aberta, e havia um carro lá dentro. Lia subiu o caminho de cimento e premiu o botão da campainha. Não houve resposta. Continuou a tocar. Experimentou o puxador. A porta não estava fechada, havia que tomar uma decisão. Devia entrar ou retirar-se imediatamente? Limpou as impressões digitais que deixara no puxador e no botão da campainha com a ponta da gravata. Depois empurrou a porta, entrou no pequeno vestíbulo e gritou o nome de Sharkey. Não houve resposta.

Percorreu a casa. Os dois quartos de dormir estavam desertos: viu dentro dos armários e debaixo da cama. Revistou a sala, procurando debaixo do sofá e entre as almofadas. Depois foi à cozinha e ao pátio das traseiras em cima de cuja mesa havia um pacote de leite e um prato de papel com uma sanduíche de queijo meio comida.

Na cozinha havia uma porta com travessas oblíquas. Lia abriu-a e descobriu uma arrecadação que ficava apenas dois degraus mais abaixo, uma espécie de cave sem janelas.

Desceu os dois degraus e espreitou para trás de um monte de velhas bicicletas. Abriu um armário de grandes portas, onde estava pendurado um uniforme de polícia. No chão havia um par de sapatos pretos de sola grossa e, em cima dos sapatos, o boné do uniforme, com o seu galão dourado. E mais nada.

Aproximou-se do baú colocado num canto e levantou a tampa. Era surpreendentemente leve. O interior estava cheio até acima de mantas cinzentas, cuidadosamente dobradas.

Voltou à cozinha, saiu para o pátio e ficou a olhar para o oceano. Enterrar o corpo na areia era demasiado arriscado, de modo que pôs a idéia de parte. Talvez alguém tivesse levado o cadáver de Sharkey. Mas, para o assassino, o risco de ser visto teria sido demasiado grande. Além disso, Sharkey não seria um homem fácil de matar. Portanto, pensou, se estava morto, o seu corpo continuava dentro de casa. Regressou imediatamente à cave e começou a tirar as mantas do baú. E, como já esperava, no fundo encontrou primeiro a grande cabeça, e depois o corpo magro. Havia um buraco no lugar do olho direito de Sharkey, sobre o qual se tinha formado uma fina rodela de sangue, como uma moeda vermelha. A pele do rosto, que a morte tornara cerosa, estava salpicada de pontos pretos. Lia, um Homem Qualificado, soube exactamente o que aquilo significava. Alguém em quem Sharkey confiava tivera a possibilidade de se aproximar o suficiente para o atingir à queima-roupa num olho: aqueles pontos negros eram marcas de pólvora.

Lia voltou a dobrar cuidadosamente as mantas, colocou-as em cima do corpo e abandonou a casa. Não deixara quaisquer impressões digitais, mas tinha consciência de que algumas fibras das mantas deviam ter aderido às suas roupas. E aos sapatos também. Ordenou aos seus soldados que o levassem ao aeroporto, e, enquanto esperava pelo avião que o transportaria a Las Vegas, comprou um novo conjunto de roupas, incluindo sapatos, numa das lojas. Em seguida adquiriu um saco de viagem, onde enfiou as roupas que tinha despido.

Em Vegas, instalou-se no Xanadu e deixou uma mensagem para Cross. Depois tomou um longo duche e voltou a vestir as roupas que comprara. Esperou que Cross o chamasse.

Quando isso aconteceu, disse-lhe que ia subir para falar com ele. Levou consigo o saco com as roupas que usara em L. A. e a primeira coisa que disse a Cross foi:

- Acabas de poupar cinqüenta mil.

Cross olhou para ele e sorriu. Lia, habitualmente discreto no vestir, comprara uma camisa florida, calças de ganga azul e um casaco leve, também azul. Parecia um dos batoteiros de baixa extracção que rondavam pelos casinos.

Lia contou-lhe o que acontecera com Sharkey. Tentou justificar as suas acções, mas Cross afastou as explicações com um gesto.

Estás metido nisto comigo, tens o direito de te protegeres. Mas o que é que isso significa?

E simples - respondeu Lia. - O Sharkey era a única pessoa que podia relacionar o Losey com o Dante. O Dante mandou o Losey liquidar o antigo parceiro.

- Como raio pôde o Sharkey ser tão estúpido? Lia encolheu os ombros.

Deve ter pensado que podia sacar algum ao Losey e mesmo assim ficar com os teus cinqüenta mil. Sabia que o Losey havia de estar a jogar forte, por causa do dinheiro que lhe ofereceste. Ao fim e ao cabo, tinha sido detective durante vinte e cinco anos, era capaz de perceber estas coisas. E nunca lhe passou pela cabeça que o Losey o matasse, o seu velho parceiro. Não contou com o Dante.

Foi uma medida extrema - comentou Cross.

Nesta situação, não podem permitir um jogador extra. Devo dizer que estou surpreendido por o Dante se ter apercebido desse perigo. Deve ter convencido o Losey, que com certeza não queria matar o seu antigo parceiro. Todos nós temos os nossos sentimentalismos.

Portanto, agora o Dante controla o Losey - disse Cross. - Sempre pensei que o Losey fosse mais duro.

Estás a falar de dois animais de espécies diferentes. O Losey é temível, o Dante é louco.

Nesse caso, o Dante sabe que eu sei que foi ele.

O que quer dizer que tenho de agir rapidamente - afirmou Lia. Cross assentiu.

Vai ter de ser uma Comunhão. Têm de desaparecer os dois.

Lia riu-se.

Pensas que isso vai enganar Don Clericuzio? - perguntou.

Se planearmos tudo bem, ninguém poderá acusar-nos - respondeu Cross.

Lia passou os três dias seguintes com Cross, a rever os planos. Entretanto, queimou pessoalmente as suas antigas roupas no incinerador do hotel. Cross praticou fazendo uns solitários dezoito buracos no campo de golfe, com Lia a acompanhá-lo para conduzir o carrinho eléctrico. Lia não conseguia compreender a popularidade do golfe entre os membros das Famílias. Para ele, era uma bizarra aberração. , Na noite do terceiro dia, estavam os dois sentados na varanda da suite de Cross. En cima da mesa havia uma caixa de charutos e uma garrafa de brandy. Observavam a multidão que enchia a Strip, lá em baixo.

- Por muito espertos que eles sejam, a minha morte tão cedo depois da do meu pai comprometeria o Dante junto do Don - disse Cross. -Acho que posso esperar.

Lia aspirou o fumo do charuto.

Não muito tempo. Agora já sabem que falaste com o Sharkey.

Temos de apanhá-los aos dois ao mesmo tempo. Lembra-te, terá de ser uma Comunhão. E preciso que os corpos nunca sejam encontrados.

Estás a pôr o carro à frente dos bois. A primeira coisa é assegurar-mo-nos de que podemos matá-los.

Cross suspirou.

Vai ser muito difícil. O Losey é um homem perigoso, e muito cauteloso. E o Dante é um lutador. Temos de isolá-los num lugar. Podemos fazê-lo em Los Angeles?

Não - respondeu Lia. - é o território do Losey. Aí é demasiado complicado. Terá de ser em Vegas.

E infringir as regras.

Se for uma Comunhão, ninguém saberá onde foram mortos. Ejá estamos a infringir as regras matando um polícia.

Acho que sei como atraí-los a Las Vegas ao mesmo tempo - disse Cross. E explicou o seu plano a Lia.

Vamos ter de usar mais isco - disse Lia. - Temos de ter a certeza de que o Losey e o Dante vêm quando os quisermos cá.

Cross bebeu um golo de brandy.

OK, que tal isto, como isco? - Explicou a Lia, que aprovou com a cabeça. - A morte deles será a nossa salvação. E enganará toda a gente.

Excepto Don Clericuzio - disse Lia. - E ele o único que temos de temer.

 

Comunhão.

 

Foi uma sorte Steve Stallings só ter morrido depois de a última cena de Messalina ter sido filmada. Caso contrário, teria custado ao estúdio milhões de dólares em repetições.

A última cena a ser filmada foi uma batalha que, na realidade, acontecia mais ou menos a meio do filme. A equipa estava instalada numa pequena cidade do deserto a oitenta quilómetros de Las Vegas, perto do "acampamento" do exército persa que ia ser desbaratado pelo imperador Cláudio (Steve Stallings) acompanhado pela esposa, Messalina (Athena).

No final do dia, Steve Stallings retirou-se para a sua suíte no hotel da pequena povoação. Tinha a sua cocaína, o seu champagne e duas companheiras para passar a noite, e estava disposto a desancar toda a gente; estava, na verdade, muito chateado. Para começar, o seu papel no filme fora reduzido ao de uma figura secundária. Bem se apercebia de que estava a iniciar uma nova carreira, de segundo plano, a sorte inevitável das estrelas em fase de envelhecimento. Depois, Athena mostrara-se distante durante toda a filmagem, e ele esperara mais. Além disso - e isto era, ele próprio o sentia, um pouco infantil - durante a festa de encerramento e a tradicional projecção do filme "em bruto" não receberia o tratamento normalmente reservado às estrelas: não lhe fora oferecida uma das famosas villas do Xanadu.

Depois dos seus muitos anos no mundo do cinema, Steve Stallings conhecia bem o funcionamento da estrutura do poder. Nos tempos em que era uma Estrela Cotável, podia impor-se a toda a gente. Teoricamente, o director dos estúdios era o patrão, era ele quem dava a luz verde para um filme. Um produtor poderoso, que levasse um valor para o estúdio, era também patrão; juntava os diversos elementos - as estrelas, o realizador, o argumento -, supervisionava o desenvolvimento da história e angariava fundos independentes de pessoas que apareciam no genérico como co-produtores, mas não tinham qualquer poder. Durante esse período, era ele o patrão.

Quando as filmagens começavam, porém, o patrão era o realizador. Desde que fosse um realizador Classe A, ou um ainda mais poderoso Realizador Cotável (ou seja, um capaz de garantir uma presença maciça de público durante as primeiras semanas de exibição e de atrair Estrelas Cotáveis para participarem no filme).

O realizador exercia um controlo completo sobre o filme. Tudo tinha de passar por ele. O guarda-roupa, a música, os cenários, a maneira como os actores representavam. Além disso, a Associação dos Realizadores era o sindicato mais poderoso da indústria do cinema. Nenhum realizador de nome aceitaria substituir outro que tivesse sido afastado.

Todas estas pessoas, no entanto, poderosas como eram, tinham de inclinar-se diante da Estrela Cotável. Um realizador que tivesse duas Estrelas Cotáveis no mesmo filme era como um homem montado em dois cavalos selvagens. Ficava com os tomates espalhados aos quatro ventos.

Steve Stallings tinha sido uma dessas estrelas, e sabia que já não era.

As filmagens daquele dia tinham sido fisicamente esgotantes e Steve Stallings precisava de se descontrair. Tomou um duche, comeu um grande bife, e quando as duas raparigas apareceram - garotas locais e nada más, por sinal -, ofereceu-lhes cocaína e champagne. Por uma vez, abandonou a prudência habitual: ao fim e ao cabo, a sua carreira estava a chegar ao fim e já não precisava verdadeiramente de ter cuidado. Abusou da cocaína.

As duas jovens usavam T-shirts que tinham estampada a frase STEVE STALLINGS ASS KISSERS [9], uma homenagem às nádegas de Steve, admiradas por fãs no mundo inteiro, tanto homens como mulheres. Mostraram-se adequadamente maravilhadas, e foi só depois da cocaína que despiram as T-shirts e foram para a cama com ele, o que teve o condão de o animar um pouco. Aspirou mais uma dose de cocaína. As raparigas estavam a acariciá-lo, a despir-lhe a camisa e as calças. Stallings pôs-se a sonhar acordado enquanto as duas lhe mexiam, sentindo-se cada vez mais descontraído.

No dia seguinte, durante a festa de encerramento, ia rever todas as suas conquistas. Tinha ido para a cama com Athena Aquitane, tinha ido para a cama com Claudia, que escrevera o argumento, tinha ido para a cama com Dita Tommey, muitos anos antes, quando ela não estava ainda plenamente convencida da sua verdadeira orientação sexual. Tinha ido para a cama com a mulher de Bobby Bantz e, embora essa já não contasse, uma vez que tinha morrido, também com a mulher de Skippy Deere. Tinha sempre uma sensação de virtuosa realização quando, num jantar, olhava à sua volta e via aquelas mulheres placidamente sentadas ao lado dos maridos. Conhecia-as intimamente a todas.

Houve uma distração. Uma das raparigas estava a enfiar-lhe um dedo no ânus, e isso era uma coisa que o incomodava sempre. Tinha hemorróidas. Levantou-se da cama para ir aspirar mais uma dose de cocaína e beber um trago de champagne, mas o vinho caiu-lhe mal. Sentiu-se agoniado e desorientado. Não sabia muito bem onde estava.

Subitamente, teve consciência de uma grande fadiga: os joelhos dobraram-se-lhe, o copo caiu-lhe da mão. Estava tonto. Muito ao longe, ouviu uma das raparigas gritar e ficou furioso com ela por ter gritado; a última coisa que sentiu foi um relâmpago que lhe explodiu na cabeça.

O que aconteceu a seguir só podia ter acontecido em conseqüência de uma combinação de estupidez e malícia. Uma das raparigas gritara porque Steve Stallings tinha caído na cama por cima dela e ficara ali estendido, imóvel, de boca aberta e olhos fixos, tão evidentemente morto que ambas entraram em pânico e puseram-se aos berros. Os gritos atraíram o pessoal do hotel e algumas das pessoas que nesse momento estavam a jogar no minúsculo casino contíguo ao vestíbulo, que oferecia meia dúzia de slot-machines, uma mesa de dados e uma grande mesa redonda, para o poker. Toda esta gente seguiu os gritos e subiu ao primeiro piso.

Havia, à entrada do quarto de Stallings, cuja porta estava aberta, diversas pessoas a olharem embasbacadas para o corpo estendido em cima da cama. No que deu a impressão de serem apenas uns poucos minutos, juntou-se ali uma autêntica multidão de gente vinda da rua, centenas de pessoas. Invadiram o quarto e começaram a tocar no corpo.

Ao princípio foram apenas tímidos toques cheios de reverência pelo homem que fizera mulheres de todos os cantos do mundo apaixonarem-se por ele. Então, algumas mulheres beijaram-no, outras tocaram-lhe nos testículos, no pénis, uma mulher tirou uma tesoura da bolsa e cortou-lhe uma grande madeixa de cabelos negros e brilhantes, expondo a penugem grisalha junto ao crânio.

O mal entrou em cena porque Skippy Deere tinha sido um dos primeiros a chegar e não se dera ao trabalho de chamar imediatamente a polícia. Ficou a ver a primeira vaga de mulheres aproximar-se do corpo de Steve Stallings. De onde estava assistiu a tudo. Stallings tinha a boca aberta, como se tivesse sido apanhado a cantar, e havia no seu rosto uma expressão de espanto.

A primeira mulher que chegou junto dele - Deere viu-a claramente - fechou-lhe suavemente os olhos e a boca antes de lhe beijar a testa. Mas foi afastada pela vaga seguinte, que se revelou muito menos comedida. E Deere sentiu a malícia dentro de si, os cornos que Stallings lhe pusera anos antes como que vibraram, e deixou a invasão continuar. Stallings costumava gabar-se de que nenhuma mulher conseguia resistir-lhe, e era indubitavelmente verdade. Mesmo morto, as mulheres acariciavam-lhe o corpo.

Só quando um pedaço de uma orelha de Steve Stallings desapareceu e o corpo, mortalmente pálido, foi voltado de lado para pôr à mostra as célebres nádegas, Deere chamou finalmente a polícia e assumiu o controlo da situação para resolver todos os problemas. Era o que os produtores faziam. Era esse o seu forte.

Skippy Deere tomou todas as medidas necessárias para que o corpo fosse imediatamente autopsiado e em seguida enviado para Los Angeles, onde se celebrariam as exéquias três dias mais tarde.

A autópsia revelou que Steve Stallings morrera em consequência de um aneurisma cerebral que, ao explodir, lhe despejou na cabeça todo o sangue do corpo.

Deere descobriu as duas raparigas que tinham estado com ele e prometeu-lhes que não seriam acusadas de uso de estupefacientes e que seriam contratadas para desempenharem pequenos papéis num novo filme que ia produzir. Pagar-lhes-ia mil dólares por semana durante dois anos. Havia, porém, uma cláusula nos termos da qual o contrato seria anulado se qualquer delas falasse fosse com quem fosse a respeito da morte de Stallings.

Telefonou então a Bobby Bantz, em Los Angeles, e explicou-lhe o que tinha feito. Telefonou também a Dita Tommey, para lhe dar a notícia e pedir-lhe que dissesse a todo o pessoal que participara no filme, abaixo e acima da linha, que eram, sem excepção, esperados em Las Vegas para a projecção e a festa de encerramento. Depois, mais abalado do que gostaria de admitir, tomou dois Halcions e foi dormir.

 

A morte de Steve Stallings não afectou a projecção nem a festa de encerramento marcadas para Vegas. Skippy Deere não o permitiria. E a estrutura emocional da feitura de um filme era assim mesmo. Era verdade que Steve Stallings fora uma estrela, mas já deixara de ser uma Estrela Cotável. Era verdade que amara muitas mulheres nos seus corpos, e milhões de outras apenas nos seus espíritos, mas o seu amor nunca fora mais do que prazer recíproco. Até as mulheres do filme, Athena, Claudia, Dita e as três outras estrelas em papéis secundários, ficaram muito menos desgostosas do que qualquer romântico teria podido imaginar. Todos estavam de acordo que Steve Stallings teria querido que o espectáculo continuasse, e nada o perturbaria mais do que saber que a festa de encerramento e a projecção privada tinham sido canceladas por causa da sua morte.

Na indústria do cinema, diz-se adeus à maior parte dos amantes no fim de um filme, tão delicadamente como nos bailes de outros tempos se agradecia ao par no fim de uma dança.

Skippy Deere afirmava que tinha sido ideia sua fazer a festa de encerramento no Xanadu e mostrar uma cópia muito "em bruto" do filme nessa mesma noite. Sabia que Athena ia partir para o estrangeiro nos próximos dias e queria ter a certeza que não seria necessário repetir qualquer cena em que ela entrasse.

Na realidade, porém, fora Cross quem sugerira a idéia de fazer a festa e a projecção no Xanadu. Pedira-o até como um favor.

- Será uma óptima publicidade para o Xanadu - dissera a Deere. - Em troca, ofereço a toda a gente que participou no filme, e a quem vocês convidarem, uma noite grátis: quarto, comida e bebida. Dou-te a ti e ao Bantz uma villa. Forneço a segurança, de modo que ninguém que vocês não queiram... como a imprensa... tenha acesso à sala de projecção. Há anos que andas a gritar por uma villa.

Deere ponderou a proposta.

- Só por uma questão de publicidade? - perguntou. Cross sorriu-lhe.

Além disso, vocês têm centenas de pessoas cheias de massa. O casino vai ficar com uma boa parte desse dinheiro. O Bantz não joga - disse Deere. - Eu sim. Vais ficar com o meu dinheiro.

Dou-te cinqüenta mil de crédito. Se perderes, não insistiremos no pagamento.

Esta convenceu Deere.

OK. Mas a ideia tem de partir de mim. Caso contrário, não consigo vendê-la aos estúdios.

Claro - anuiu Cross. - Mas, Skippy, tu e eu fizemos muita coisa juntos. E eu saí sempre a perder. Desta vez é diferente. Desta vez tens de cumprir. - Sorriu a Deere. - Desta vez não podes desiludir-me.

Por uma das poucas vezes na sua vida, Deere sentiu uma pontada de apreensão, e nem sequer saberia dizer porquê. Cross não estava a ameaçá-lo. O seu sorriso era afável, parecia estar apenas a expor um facto.

- Não te preocupes - respondeu. - Acabamos as filmagens dentro de três semanas. Faz os teus planos para essa altura.

Depois, Cross teve de se certificar de que Athena estaria presente na festa e na projecção.

- Preciso mesmo que venhas, por causa do hotel, e preciso de uma oportunidade para estar contigo.

Athena concordou. Faltava agora ter a certeza que Dante e Losey lá estariam também.

Convidou Dante a ir a Las Vegas para conversarem a respeito da Lodd-Stone e dos planos de Losey para fazer um filme baseado na sua aventurosa vida policial. Toda a gente sabia que Dante e o detective se tinham tornado grandes amigos.

- Quero que digas uma palavrinha a meu favor ao Jim Losey - disse Cross a Dante. - Quero ser coprodutor do filme e estou disposto a financiar metade do orçamento.

Dante pareceu divertido.

- Estás mesmo interessado no negócio do cinema - observou. - Porquê? Muita massa - respondeu Cross. - E miúdas. Dante riu-se.

Muita massa e miúdas já tu tens agora.

Classe - explicou Cross. - Muita massa e miúdas com classe.

- Porque é que não me convidas para essa festa? - perguntou Dante. - E por que raio é que nunca me ofereceste uma villdi - Fala ao Losey, e tens as duas coisas - prometeu Cross. - Traz o Losey. Além disso, se estiveres interessado numa garota, arranjo-te a Tiffany. Já a viste no espectáculo.

Para Dante, Tiffany era a personificação máxima da pura luxúria, com os seus seios grandes e firmes, o seu rosto alongado de lábios cheios e boca larga, as suas pernas altas e perfeitas. Pela primeira vez, pareceu entusiasmado.

- A sério? - perguntou. - Ela tem o dobro da minha altura. Imagina! Está combinado.

Era quase demasiado óbvio, mas Cross esperava que a proibição de qualquer violência em Vegas, imposta por todas as Famílias, esbatesse uma eventual desconfiança por parte de Dante.

Então Cross acrescentou, como que por acaso:

- Até a Athena vai estar cá. E ela é a principal razão por que quero continuar no negócio do cinema.

Bobby Bantz, Melo Stuart e Claudia voaram até Vegas no jacto da Lodd-Stone. Athena e o resto do elenco chegaram do local das filmagens nas suas roulotes invididuais, tal como Dita Tommey. O senador Wavven representaria o estado do Nevada, juntamente com o governador que lhe sucedera e que fora escolhido para o lugar pelo próprio Wawen.

Dante e Losey teriam dois apartamentos numa das villas. Lia Vazzi e os seus homens ocupariam os restantes quatro.

O senador Wawen, o governador e os respectivos séquitos ficariam instalados noutra villa. Cross organizara-lhes um jantar privado, com algumas bailarinas escolhidas. Esperava que a presença deles ajudasse a cortar o ímpeto a qualquer investigação que viesse a ser feita sobre o que ia acontecer. Que usassem a sua influência política para abafar a publicidade e as diligências policiais.

Cross estava a violar todas as regras. Athena tinha uma villa, mas Claudia, Dita Tommey e Molly Flanders também tinham apartamentos nessa villa. Os dois apartamentos restantes albergavam uma equipa de quatro homens do grupo de Lia Vazzi, para guardar Athena.

A quarta villa foi atribuída a Bantz, Skippy Deere e respectivos acompanhantes. As três villas restantes foram ocupadas por vinte homens de Lia, que substituiriam os habituais membros da segurança. No entanto, nenhuma das equipas de Lia participaria na acção, nenhum dos homens estava ao corrente das verdadeiras intenções de Cross. Lia e ele próprio seriam os dois únicos executores.

Cross fechou o casino privativo das villas por dois dias. A maior parte do pessoal de Hollywood, por muito que ganhasse, não podia dar-se ao luxo de jogar ali. Os clientes super-ricos que já tinham feito reservas foram informados que as villas estavam a sofrer reparações e melhoramentos e não poderiam recebê-los.

No seu plano, Cross e Lia tinham decidido que o primeiro mataria Dante e o segundo se encarregaria de Losey. Se o Don decidisse que eles eram culpados e descobrisse que Lia matara Dante, era capaz de mandar liquidar toda a sua família. Ao passo que, se descobrisse a verdade, não estenderia a sua vingança a Claudia. Ao fim e ao cabo, ela tinha nas veias sangue dos Clericuzio.

Além disso, Lia tinha uma vendetta pessoal contra Jim Losey. Odiava todos os representantes do governo, e porque não misturar um pouco de prazer àquele perigoso negócio?

O verdadeiro problema era como isolar os dois homens e fazer desaparecer os corpos. Sempre fora uma regra de todas as Famílias da América que nenhuma execução podia ser levada a cabo em Las Vegas, isto para preservar a aceitação pública do jogo. O Don era um intransigente apoiante dessa regra.

Cross esperava que Dante e Losey não suspeitassem de uma armadilha. Não sabiam que Lia descobrira o corpo de Sharkey e estava, por conseguinte, ao corrente dos seus intuitos. O outro problema era como prepararem-se para o ataque de Dante contra Cross. Foi então que Lia infiltrou um espião no campo de Dante.

Molly Flanders chegou mais cedo no dia da festa. Ela e Cross tinham negócios a tratar. Acompanhavam-na um juiz do Supremo Tribunal da Califórnia e o bispo da diocese católica de Los Angeles. Serviriam de testemunhas quando Cross assinasse o testamento que ela também preparara e levava consigo. Cross sabia que as suas probabilidades de continuar vivo eram poucas, e reflectira seriamente sobre a quem deixar a sua metade do Xanadu. Eram quinhentos milhões de dólares, uma quantia muitíssimo considerável.

O testamento deixava à mulher e aos filhos de Lia uma confortável pensão vitalícia. O resto era dividido entre Claudia e Athena, ficando a parte de Athena depositada num fundo que ela administraria em nome da filha, Bethany. Chocou-o um pouco descobrir que não havia no mundo mais ninguém de quem ele gostasse o suficiente para lhe legar o seu dinheiro.

Quando Molly, o juiz e o bispo chegaram à suite no terraço, o juiz felicitou-o pelo bom senso que revelava ao fazer o testamento ainda tão novo. O bispo avaliou calmamente o luxo da suite, como que a calcular o salário do pecado.

Eram ambos bons amigos de Molly, que em diversas ocasiões trabalhara pro bono^ para qualquer deles. Estava agora a valer-se desses favores a pedido expresso de Cross. Cross queria testemunhas que não pudessem ser subornadas nem intimidadas pelos Clericuzio.

Cross ofereceu-lhes bebidas, e procedeu-se à assinatura do testamento. Os dois homens saíram; embora tivessem sido convidados, não quiseram manchar as suas reputações assistindo à festa de encerramento de um filme nesse inferno do jogo que era Las Vegas. Não eram, ao fim e ao cabo, funcionários eleitos do estado.

Cross e Molly ficaram sozinhos na suite. Molly entregou-lhe o original do testamento.

Ficou com uma cópia para si, não é verdade? - perguntou Cross.

Evidentemente - respondeu Molly. - Tenho de confessar que fiquei surpreendida quando me deu as suas instruções. Não fazia idéia que o Cross e a Athena fossem tão chegados. E além disso, ela já é bastante rica por direito próprio.

Pode vir a precisar de mais dinheiro do que tem.

Por causa da filha? Eu sei o que se passa. Sou a advogada particular da Athena. Tem razão, a Bethany pode vir a precisar desse dinheiro. Tinha uma idéia diferente a seu respeito.

Sim? - perguntou Cross. - E qual era?

Estava convencida que foi o Cross quem despachou o Boz Skannet - respondeu Molly, tranquilamente. - Imaginava-o um mafioso sem piedade.  embro-me do pobre do garoto que safei de uma acusação de assassínio. E que o Cross se referiu a ele. E que ele foi supostamente morto num caso de droga.

- E agora vê como estava enganada - disse Cross, com um sorriso. Molly olhou-o friamente.

E fiquei muito espantada quando deixou o Bobby Bantz lixar-lhe a sua parte dos lucros no Messalina.

Isso foi uma coisa sem importância - respondeu Cross, pensando no Don e em David Redfellow.

A Athena parte para França depois de amanhã. Vai lá ficar algum tempo. Vai com ela?

Não. Tenho aqui muito que fazer.

OK. Encontramo-nos na projecção do filme e na festa. Talvez fique com uma idéia da fortuna que o Bantz lhe roubou. Não tem importância - afirmou Cross.

Probo no publico: a bem (ou a favor) do público. Ou seja, gratuitamente.

Sabe que a Dita pôs uma menção no começo do filme, a dizer: "Dedicado a Steve Stallings"? O Bantz ficou chateado a valer.

Porquê? - perguntou Cross.

Porque o Steve levou para a cama todas as mulheres que ele não conseguiu levar - respondeu Molly. - Os homens são mesmo uma merda - acrescentou. E saiu.

Cross foi sentar-se na varanda. A grande rua de Vegas, lá em baixo, estava apinhada de gente que entrava e saía dos hotéis-casinos que formavam uma linha ininterrupta de um e do outro lado. Os grandes anúncios de néon gritavam os seus nomes: Caesars, o Sands, o Mirage, o Alladin, o Desert Inn, o Stardust - púrpuras, vermelhos e verdes, um arco-íris que só terminava quando se erguia os olhos para o deserto e as montanhas que ficavam para além deles. O ofuscante sol do princípio da tarde não conseguia empanar-lhes o brilho.

O pessoal de Messalina não começaria a chegar antes das três, e então veria Athena pela última vez, se as coisas corressem mal. Pegou no telefone da varanda, ligou para a villa onde tinha instalado Lia Vazzi e pediu-lhe que fosse ter com ele à suíte do terraço para poderem rever os planos mais uma vez.

As filmagens de Messalina terminaram ao meio-dia. Dita Tommey quisera que a última imagem fosse a do sol a iluminar a terrível carnificina do campo de batalha que Athena e Steve Stallings contemplavam do alto de uma duna. Usara um duplo no lugar de Stallings, disfarçando-lhe o rosto com uma sombra. Eram quase três da tarde quando o camião das câmaras, as grandes roulotes que serviam de casas durante os exteriores, as cozinhas móveis, as roulotes do guarda-roupa e os veículos que transportavam as armas do tempo de Cristo entraram em Vegas. Vieram muitos outros, porque Cross resolvera tratar aquela ocasião ao velho estilo de Vegas.

Convidara todos os que tinham trabalhado em Messalina, acima e abaixo da linha, oferecendo quarto, comida e bebida. A LoddStone Studios fornecera uma lista de mais de trezentos nomes. Era sem dúvida generoso, ia sem dúvida criar muitas boas vontades. Mas aquelas trezentas pessoas deixariam uma boa parte dos seus salários nas caixas do casino. Como Gronevelt costumava dizer: "Quando as pessoas se sentem felizes, quando querem comemorar, jogam."

A versão "em bruto" do filme Messalina, sem música nem efeitos especiais, seria projectada às dez da noite. Depois da projecção teria lugar a festa de encerramento. O enorme salão de baile de Xanadu, onde decorrera a festa oferecida a Big Tim, foi dividido em duas partes. Uma para a projecção do filme, a outra, maior, para o banquete e a orquestra.

Às quatro da tarde, estava toda a gente instalada no hotel e nas villas. Ninguém queria faltar: tudo gratuito na convergência de dois mundos fascinantes, Hollywood e Las Vegas.

Os representantes da imprensa ficaram furiosos com as rigorosas medidas de segurança. Foi-lhes vedado o acesso à área das villas e ao salão de baile. Não era sequer possível fotografar os participantes daquele glamoroso acontecimento. Nem as estrelas do filme, a realizadora, o senador e o governador, o produtor ou o director do estúdio. Não podiam assistir à projecção do filme. Começaram a andar pelo casino, oferecendo subornos enormes aos membros menos importantes da equipa a troco dos cartões de identidade que davam acesso ao salão. Alguns foram bem sucedidos.

Quatro membros da equipa de filmagem, dois duplos mais cínicos e duas mulheres da empresa que fornecia as refeições, venderam os seus CIs aos repórteres por mil dólares cada.

Dante Clericuzio e Jim Losey estavam a gozar o luxo da sua villa. Losey abanou a cabeça, num gesto de admiração.

Um gatuno podia viver um ano só do ouro que há na casa de banho! - exclamou.

Não, não podia - respondeu Dante. - Estaria morto dentro de seis meses.

Estavam sentados na sala de estar do apartamento de Dante. Não tinham feito qualquer encomenda ao serviço de quartos porque o grande frigorífico da cozinha estava repleto de travessas de pequenas sanduíches e canapés de caviar, garrafas de cerveja importada e os melhores vinhos.

Estamos bem instalados, eh? - comentou Losey.

Podes dizê-lo. E quando acabarmos esta coisa, peço ao meu avô que me dê o hotel, e a partir daí ficamos bem instalados para o resto da vida.

O importante é trazê-lo aqui sozinho.

Eu trato disso, não te preocupes - assegurou Dante. - Se as coisas derem para o torto, levamo-lo no carro para o deserto.

Como é que tencionas atraí-lo até aqui? - perguntou Losey. - Essa é a parte mais importante.

Digo-lhe que o Giorgio veio em segredo e quer falar com ele. Depois faço o serviço e tu tratas da limpeza. Estás farto de ver locais de crimes, sabes o que eles vão procurar. - Fez uma pausa e acrescentou, sonhadoramente:- A melhor maneira é largá-lo no deserto. Pode ser que nunca o encontrem. Sabes que ele deu uma tampa ao Giorgio na noite em que o Pippi morreu? Não se atreverá a fazê-lo outra vez.

Mas se fizer? - objectou Losey. - Vou ficar aqui a noite toda à espera, feito parvo.

A villa da Athena é mesmo ao lado. Vais lá, bates à porta e pode ser que tenhas sorte.

Demasiado perigoso - disse Losey.

Podemos levá-la para o deserto com o Cross - sugeriu Dante, sorrindo.

És doido! - respondeu Losey. E, subitamente, apercebeu-se que ele estava a falar a sério.

Porque não? - insistiu Dante. - Porque não havemos de nos divertir um pouco? O deserto é suficientemente grande para esconder dois corpos.

Losey pensou no corpo de Athena, no seu rosto adorável, na sua voz, no seu ar majestoso. Oh, ele e Dante divertir-se-iam! Já era um assassino, pouca diferença lhe fazia ser também um violador. Marlowe, Pippi De Lena e o seu antigo parceiro, Phil Sharkey. Matara três homens e punha-se com escrúpulos por causa de uma violação. Estava a transformar-se num daqueles cretinos que passara a vida a mandar para a prisão. E por uma mulher que vendia o corpo ao mundo inteiro. Mas aquele malandro que tinha à sua frente, com o seu chapéu ridículo, era na verdade uma peça e tanto.

- Vou tentar - acabou por dizer. - Convido-a para uma bebida, e se ela entrar, é porque estava mesmo a pedi-las.

Dante parecia divertido pelo raciocínio de Losey.

- Toda a gente anda a pedi-las - disse. - Nós andamos a pedi-las. Reviram os pormenores do plano, após o que Dante regressou ao seu próprio apartamento. Pôs um banho a correr. Queria experimentar os perfumes caros que havia na villa. Estendido na banheira cheia de água quente e perfumada, com os cabelos negros e grossos dos Clericuzio transformados num capacete branco e pesado, pôs-se a pensar na sua vida futura. Depois de ele e Losey terem largado o corpo de Cross no deserto, a quilómetros dali, começaria a parte mais difícil da operação. Teria de convencer o avô que estava inocente. Se as coisas chegassem ao pior, confessaria também a morte de Pippi, e o avô perdoar-lhe-ia. O Don sempre lhe demonstrara um afecto especial.

Além disso, agora era ele o martelo da Família. Ia pedir o posto de bruglione do Oeste e a direcção do Xanadu Hotel. Giorgio opor-se-lhe-ia, mas Vincent e Petie manter-se-iam neutrais. Contentavam-se em viver das suas empresas legais. O velho não podia viver eternamente, e Giorgio era um manga de alpaca. Chegaria a altura em que o cabo de guerra se tornaria imperador. Nunca se retiraria para o mundo legal. Reconduziria a Família aos seus tempos de glória. Nunca abriria mão do poder sobre a vida e a morte.

Saiu da banheira e tomou um duche, para tirar o sabonete dos cabelos encordoados. Perfumou o corpo com as colónias contidas em frascos que pareciam jóias, esculpiu os cabelos com o gel aromático tirado de delicados tubos, lendo cuidadosamente as instruções. Depois foi à mala onde guardava os seus chapéus renascentistas e escolheu um incrustado de pedras preciosas e que tinha a forma de uma tarte, feito de fios dourados e purpúreos. Ali na mala, parecia ridículo, mas quando Dante o pôs na cabeça, ficou encantado. Fazia-o parecer um príncipe. Sobretudo a fiada de pedras preciosas cosidas na parte da frente. Seria assim que Athena o veria naquela noite, ou, falhando isso, Tiffany. Mas as duas poderiam esperar, se necessário.

Enquanto acabava de se vestir, Dante pensou no que a sua vida se tornaria. Viveria numa villa, tão luxuosa como qualquer palácio. Teria um fornecimento inesgotável de belas mulheres, um harém que se auto-sustentaria a dançar e a cantar nos espectáculos do Xanadu. Poderia experimentar em seis restaurantes diferentes a cozinha nacional de seis países diferentes. Poderia ordenar a morte de um inimigo, recompensar um amigo. Estaria tão próximo de ser um imperador romano quanto os tempos modernos permitiam. Só Cross se atravessava no seu caminho.

Jim Losey, finalmente sozinho no seu apartamento, meditava sobre o rumo que a sua vida tomara. Fora, durante a primeira metade da sua carreira, um grande polícia, um verdadeiro cavaleiro a defender a sua sociedade. Tinha um ódio intenso por todos os criminosos, especialmente os negros. E então, pouco a pouco, fora mudando. Enfurecia-se com as acusações de brutalidade policial feitas pela imprensa. A mesmíssima sociedade que ele protegia contra a escumalha estava a atacá-lo. Os seus superiores, com os seus uniformes cheios de galões dourados, alinhavam com os políticos, que aldrabavam as pessoas. Todas aquelas tretas a respeito de não se dever odiar os pretos. Que mal havia nisso? Eram eles que cometiam a maior parte dos crimes. E não seria ele um americano livre, com o direito de odiar quem bem quisesse? Os pretos eram as baratas que haviam de roer a civilização. Não queriam trabalhar, não queriam estudar. Queimar as pestanas não era com eles, a menos que se se tratasse de jogar basquete à luz da lua. Assaltavam cidadãos desarmados, obrigavam as mulheres a prostituírem-se e tinham um desrespeito intolerável pela lei e pelos seus agentes. A missão que lhe cabia era proteger os ricos contra a maldade dos pobres. E o seu desejo era tornar-se rico. Queria as roupas, os carros, as comidas, as bebidas e, acima de tudo, as mulheres que os ricos tinham. E isso era ser americano.

Começara com subornos para proteger o jogo, depois uma ou outra armadilha aos traficantes de drogas para os obrigar a pagar protecção. Orgulhava-se do seu estatuto de "polícia herói", dos elogios que recebia pela sua coragem, mas não havia recompensas monetárias. Continuava a ter de comprar roupas baratas, continuava a ter de ser muito cuidadoso com o dinheiro para fazer o ordenado esticar até ao fim do mês. E ele, que protegia os ricos contra os pobres, não recebia qualquer recompensa, era, na realidade, um dos pobres. A gota que fizera transbordar o copo fora, porém, o facto de sentir que, na estima do público, se situava mais abaixo que os criminosos. Alguns dos seus colegas, agentes da lei como ele, tinham sido acusados e mandados para a prisão por cumprirem o seu dever. Ou despedidos dos seus empregos. Os violadores, os gatunos, os assaltantes, aqueles que roubavam as pessoas em plena luz do dia, tinham mais direitos que os polícias.

Ao longo dos anos, Losey esforçara-se por se convencer a si mesmo da verdade desta história. A merda dos direitos Miranda, a merda da ACLU [10]; pusessem os filhos da mãe dos advogados a fazer patrulha nas ruas durante seis meses, a ver se eles não plantavam logo uma árvore para enforcar os pretos.

Ao fim e ao cabo, se usava os truques, os espancamentos e as ameaças, era para obrigar um malandro qualquer a confessar os seus crimes e afastá-lo do convívio da sociedade. Mas Losey não conseguia convencer-se, era demasiado bom polícia para isso. Não conseguia convencer-se que estava certo ter-se tornado um assassino.

Esquecer tudo; ia ser rico. Ia atirar o crachá e os louvores que recebera à cara do governo e do público. Ia ser chefe da segurança do Xanadu Hotel, com um salário dez vezes superior, e, do seu paraíso no deserto, ia ter o prazer de ver Los Angeles cair sob o assalto dos criminosos que ele já não estaria lá para combater. Naquela noite assistiria à projecção do filme Messalina e à festa de encerramento. E talvez tivesse sorte com Athena. Aqui ficou perturbado e sentiu o corpo doer-lhe face à ideia de exercer esse domínio sexual. Durante a festa, tentaria vender a Skippy Deere a ideia de fazer um filme baseado na sua carreira, o maior herói do Departamento de Polícia de Los Angeles. Dante tinha-lhe dito que Cross queria investir no filme, o que tinha muita graça. Porque havia ele de matar um tipo que estava disposto a investir no seu filme? A resposta era muito simples. Porque sabia que Dante o mataria se recuasse agora. E Losey, duro como era, sabia que não podia matar Dante. Conhecia os Clericuzio demasiado bem.

Por uma fracção de segundo pensou em Marlowe, um bom preto, bom rapaz, sempre tão bem alegre e disposto a cooperar. Sempre gostara de Marlowe, e a morte dele era uma das coisas que lamentava.

Jim Losey tinha à sua frente horas de espera antes da projecção do filme e da festa. Podia ir jogar ao casino, mas o jogo era bom para totós. Decidiu contra. Tinha uma longa noite pela frente. Primeiro o filme, depois a festa, e então, às três da manhã, teria de ajudar D ante a matar Cross De Lena e enterrá-lo no deserto.

Às cinco da tarde, Bobby Bantz convidou os principais participantes de Messalina para bebidas na sua villa: Athena, Dita Tommey, Skippy Deere e, como um gesto de cortesia, Cross De Lena. Só Cross declinou, alegando a pressão dos seus deveres no hotel naquela noite especial.

Bantz tinha consigo a sua última "conquista", uma rapariga com um ar muito jovem e fresco chamada Johanna, descoberta por um caçador de talentos numa pequena cidade do Oregon. Oferecera-lhe um contrato de quinhentos dólares por semana durante dois anos. Bonita mas completamente desprovida de talento, a jovem tinha um aspecto tão virginal que a inocência era como mais um dos seus atractivos. E no entanto, com uma esperteza para além dos seus anos, recusara-se a ir para a cama com Bantz antes de ele lhe prometer que a levaria a Vegas para a projecção de Messalina.

Skippy Deere, com um apartamento contíguo na villa de Bantz, resolvera instalar-se no espaço de Bobby, impedindo-o assim de levar Johanna para a cama, o que o deixou irritável. Skippy estava a vender-lhe a ideia de um filme pelo qual estava verdadeiramente louco. Estar louco por um filme fazia parte das funções normais de um produtor.

Tratava-se de Jim Losey, o maior herói do LAPD [11], um filho da mãe grande e atraente que talvez fosse até capaz de desempenhar ele próprio o papel principal, uma vez que seria a história da sua vida. Uma dessas grandes "histórias da vida real" em que era possível inventar tudo o que se quisesse, por mais bizarro que fosse.

Tanto Deere como Bantz sabiam que a possibilidade de Losey desempenhar o primeiro papel era uma fantasia, inventada para levar Losey a vender a sua história mais barato, e também para excitar o interesse do público.

Skippy Deere delineou a história com grande entusiasmo. Ninguém era capaz de vender melhor do que ele uma propriedade inexistente. Num momento de pura exaltação, pegou no telefone e, antes que Bantz pudesse protestar, convidou o detective para o cocktail das cinco horas. Losey perguntou se podia levar alguém consigo, e Deere respondeu que sim, deduzindo que se tratava de uma namorada. Skippy Deere, como produtor de filmes que era, gostava de misturar mundos diferentes. Nunca se sabia que espécie de milagre podia resultar.

Cross De Lena e Lia Vazzi estavam na suite do terraço do Xanadu, a rever os pormenores do que iam fazer naquela noite.

Tenho todos os homens nos seus lugares - disse Vazzi. - Contro lo a área das villas. Nenhum deles sabe o que tu e eu vamos fazer, não participarão nisso. Mas soube que o Dante tem uma equipa do Enclave a abrir-te uma cova no deserto. Esta noite vamos ter de andar com muito cuidado.

O que me preocupa é o que vai passar-se depois desta noite - respondeu Cross. - Teremos de enfrentar Don Clericuzio. Achas que ele vai engolir a história?

- Sinceramente, não. Mas é a nossa única esperança. Cross encolheu os ombros.

Não tenho alternativa. O Dante matou o meu pai e agora vai ter de matar-me a mim. - Fez uma pausa e acrescentou:- Só espero que o Don não tenha estado ao lado dele desde o início. Se assim for, estamos condenados.

Podíamos abortar a operação e expor o assunto ao Don - disse Lia, cautelosamente. - Deixá-lo decidir e agir.

Não - objectou Cross. - Ele não pode decidir contra o neto.

Tens razão, evidentemente. Mesmo assim, o Don está a tornar-se mole. Deixou esses tipos de Hollywood aldrabarem-te, e isso é uma coisa que quando era mais novo nunca teria consentido. Não por causa do dinheiro, mas pelo desrespeito.

Cross deitou mais brandy no copo de Lia e acendeu-lhe o charuto. Não lhe falou de David Redfellow.

- Que tal achas o teu quarto? - perguntou, com um sorriso. Lia aspirou o fumo do charuto.

E um disparate. Tão bonito. Para quê? Que necessidade poderá alguém ter de viver assim? É demasiado. Rouba-nos a força. Desperta invejas. Não é sensato insultar os pobres desta maneira. Porque não haverão eles de querer matar-nos? O meu pai era um homem rico, na Sicília, mas nunca viveu no luxo.

Não compreendes a América - afirmou Cross. - Qualquer homem pobre que veja o interior de uma daquelas villas fica até muito contente. Porque no fundo do seu coração sabe que um dia há-de viver num sítio assim.

Nesse momento, soou a campainha do telefone privado da suite. Cross pegou no auscultador. O coração deu-lhe um pequeno salto no peito. Era Athena.

Podemos encontrar-nos antes da exibição do filme? - perguntou ela.

Só se vieres à minha suite - respondeu Cross. - Neste momento não posso sair daqui.

Que galante! - comentou Athena, friamente. - Nesse caso podemos encontrar-nos depois da festa. Eu saio cedo e tu podes ir ter à minha villa.

Não posso, palavra.

Regresso amanhã a L. A. - prosseguiu Athena. - Depois, no dia seguinte, parto para França. Não voltaremos a ver-nos a sós até que tu lá vás... se fores.

Cross olhou para Lia, que abanou a cabeça e franziu a testa. Perguntou a Athena:

- Não podes vir cá agora? Por favor?

Teve de esperar um longo momento antes de ouvi-la dizer:

Está bem. Dá-me uma hora.

Mando um carro com segurança buscar-te. Estarão à espera à porta da tua villa. - Desligou o telefone e voltou-se para Lia. - Temos de vigiá-la. O Dante é suficientemente doido para fazer seja o que for.

A festa na villa de Bantz decorreu sob o signo da beleza.

Melo Stuart levou uma jovem actriz com muito nome no teatro, a quem ele e Skippy Deere planeavam oferecer o principal papel feminino na história de Jim Losey. Tinha uma beleza de tipo egípcio, feições bem pronunciadas e modos imperiosos. Bantz tinha a sua nova descoberta, Johanna - apelido ainda indefinido -, a virgem inocente. Athena, que nunca parecera tão radiosa, estava rodeada pelas suas amigas: Claudia, Dita Tommey e Molly Flanders. Apesar de Athena se mostrar invulgarmente reservada e silenciosa, Johanna e a actriz de teatro, Liza Wrongate, olhavam para ela quase com inveja. Ambas foram prestar a sua homenagem a Athena, a rainha que esperavam substituir.

Não convidou o meu irmão? - perguntou Claudia a Bobby Bantz.

Claro que convidei. Está demasiado ocupado.

Obrigada por ter dado à família do Ernest os pontos dele - acrescentou Claudia, com um sorriso.

A Molly roubou-me - respondeu ele. Sempre gostara de Claudia, talvez porque Eli Marrion tinha gostado, de modo que não se ofendeu com a ironia implícita no agradecimento. - Apontou-me um canhão à cabeça.

- Mas podia ter tornado as coisas mais difíceis. O Marrion teria aprovado.

Bantz ficou a olhar para ela com uma expressão vazia. Subitamente, sentiu os olhos encherem-se-lhe de lágrimas. Nunca conseguiria ser o homem que Marrion fora. E tinha saudades dele.

Entretanto, Skippy Deere encurralara Johanna e estava a falar-lhe do seu novo filme, que tinha um excelente pequeno papel de uma jovem inocente que era selvaticamente violada e morta por um traficante de droga.

- Você é perfeita para o papel. Não tem muita experiência, mas se eu conseguir convencer o Bobby, podemos fazer um teste. - Interrompeu-se por um instante e então acrescentou, num tom caloroso e confidencial: - Acho que devia mudar de nome. Johanna é demasiado insignificante para a sua carreira. - Dando com isto a entender que o estrelato estava ao virar da esquina.

Reparou que ela corava. Era verdadeiramente comovente a maneira como aquelas raparigas acreditavam na sua beleza, como desejavam ser estrelas com o mesmo ardor com que as jovens da Renascença desejavam ser santas. Quando o sorriso cínico de Ernest Vail lhe surgiu no espírito, pensou: Pois sim, ri à vontade. Continuava a ser um desejo espiritual. Em ambos os casos, conduzia mais frequentemente ao martírio do que à glória, mas isso fazia parte do negócio. E um dia ele havia de fazer um grande filme.

Previsivelmente, Johanna afastou-se para ir falar com Bantz. Deere foi juntar-se a Melo Stuart e à sua nova namorada, Liza. Embora ela fosse talentosa no palco, Deere tinha dúvidas quanto ao seu futuro no cinema. A câmara era demasiado cruel para o seu tipo de beleza. E a sua inteligência torná-la-ia inadequada para um grande número de papéis. Mas Melo insistia em que fosse ela a primeira figura feminina no filme sobre Losey, e havia ocasiões em que não se podia negar a Melo o que ele queria. Além disso, o primeiro papel feminino era uma treta, um papel de corpo presente.

Deere beijou Liza em ambas as faces.

- Vi-a em Nova Iorque - disse. - Uma interpretação maravilhosa. - Fez uma curta pausa e acrescentou:- Espero que aceite o papel no meu novo filme. O Melo está convencido de que vai ser a sua grande oportunidade.

Liza dirigiu-lhe um sorriso gelado.

Terei de ler o guião - declarou, e Deere sentiu a vaga de ressentimento que sempre sentia. Estavam a oferecer-lhe a oportunidade da sua vida, e ela queria ver o estupor do guião. Reparou que Melo sorria, divertido.

Claro - respondeu. - Mas, acredite, nunca lhe enviaria um guião que não fosse digno do seu talento.

Melo, sempre mais homem de negócios do que amante apaixonado, acrescentou:

- Liza, podemos garantir-lhe o principal papel feminino num filme de Classe A. O guião não é um texto tão sagrado como no teatro. Pode sempre ser alterado para lhe agradar.

Liza concedeu-lhe um sorriso apenas ligeiramente mais caloroso.

- Também acredita nessa treta? - perguntou. - As peças de teatro são reescritas. Por que é que pensa que as experimentamos primeiro na província?

Antes que qualquer deles pudesse responder, Jim Losey e Dante Cleri-cuzio entraram no apartamento. Deere apressou-se a ir recebê-los e apresentá-los aos outros convidados.

Losey e Dante formavam um par quase cómico. Losey, alto, atraente, elegantemente vestido - fato e gravata, apesar do calor escaldante de Vegas em Julho. E Dante a seu lado, com o corpo tremendamente musculado a saltar para fora de uma T-shirt e o chapéu renascentista incrustado de jóias a coroar-lhe os cabelos espessos, negros e curtos. E tão baixo. Todos os presentes na sala, peritos no mundo do faz-de-conta, souberam que aqueles dois não eram faz-de-conta, por muito bizarros que parecessem. Os seus rostos eram demasiado inexpressivos e frios, algo que não podia ser imitado com disfarces.

Losey dirigiu-se imediatamente a Athena e disse-lhe como estava ansioso por vê-la no filme. Tinha posto de parte o seu estilo intimidante e mostrava-se quase adulador. As mulheres sempre o tinham achado encantador, porque haveria Athena de ser uma excepção?

Dante serviu-se de uma bebida e sentou-se no sofá. Ninguém se aproximou dele excepto Claudia. Não se tinham visto mais de três vezes ao longo de todos aqueles anos, e tudo o que tinham em comum eram recordações de infância. Claudia beijou-o na face. Quando eram crianças, ele costumava atormentá-la, mas mesmo assim ela lembrava-se dele com uma certa ternura.

Dante estendeu os braços para a abraçar.

- Cugina, estás muito bonita. Se fosses assim quando eras miúda, não te tinha batido tanto.

Claudia tirou-lhe o chapéu renascentista da cabeça.

O Cross falou-me dos teus chapéus. Ficas engraçado com eles. - Pôs o chapéu na sua própria cabeça. - Nem sequer o papa tem um chapéu tão engraçado como este.

E ele tem uma porção de chapéus - respondeu Dante. - Quem diria que te tornarias uma pessoa tão importante no mundo do cinema?

E tu, o que fazes agora? - perguntou Claudia.

- Dirijo uma empresa de carnes. Fornecemos os hotéis. - Sorriu e perguntou: - Ouve, não me apresentas à vossa bela estrela?

Claudia levou-o até junto de Athena, ainda encurralada por Jim Losey, que insistia em dar largas ao seu encanto. Athena sorriu ao ver o chapéu de Dante, e Dante assumiu uma expressão desarmantemente cómica.

Losey continuou com a sua lisonja:

- Tenho a certeza que o filme vai ser óptimo - disse. - Depois da festa, talvez me deixe ser o seu guarda-costas no regresso até à villa, e possamos tomar uma bebida juntos. - Estava a representar o papel do "polícia bom".

Athena era perita em recusar propostas. Sorriu-lhe docemente.

- Adoraria - afirmou -, mas só vou ficar meia hora na festa, e não quero que a perca. Tenho de apanhar um avião amanhã cedo, e depois parto para França. Não me sobra tempo para nada, palavra.

Dante estava a admirá-la. Via perfeitamente que ela detestava Losey e tinha medo dele. Mas estava a dar-lhe a ideia de que talvez tivesse uma hipótese.

Posso voltar consigo a Los Angeles - ofereceu-se Losey. - A que horas é o seu voo?

E muito gentil - respondeu Athena. - Mas é um pequeno avião particular e os lugares estão já todos ocupados.

Momentos depois, a salvo na sua villa, Athena ligou para Cross e disse-lhe que ia a caminho.

A primeira coisa de que Athena se apercebeu foi da segurança. Havia guardas no elevador que dava acesso à suite do terraço do Xanadu. Havia uma chave especial para abrir a porta desse elevador. O próprio elevador tinha câmaras de vigilância no tecto, e abria-se para uma ante-sala onde se encontravam cinco homens. Um junto à porta do elevador, para a receber, outro sentado atrás de uma secretária sobre a qual havia um conjunto de monitores de televisão. Dois outros jogavam às cartas num canto da sala e o quinto, sentado num sofá, lia uma revista desportiva.

Todos olharam para ela com a expressão admirativa e ligeiramente espantada que tinha visto tantas vezes, como que a constatação de que a sua beleza era de uma qualidade muito especial. Mas havia muito que essa expressão deixara de lhe despertar a vaidade; agora só servia para a tornar consciente de uma espécie de perigo.

O homem sentado à secretária premiu um botão e abriu a porta da suite de Cross. Quando Athena entrou, a porta fechou-se silenciosamente atrás dela.

Encontrava-se na zona de escritório da suite. Cross pegou-lhe na mão e levou-a para as salas de habitação. Beijou-a ao de leve os lábios e guiou-a até ao quarto. Sem dizerem uma palavra, despiram-se e abraçaram-se, nus. Para Cross, era um tal alívio sentir a carne quente dela, ver o seu rosto radioso, que suspirou.

- Gosto mais de olhar para ti do que de qualquer outra coisa deste mundo.

Em resposta, ela acariciou-o, puxou-lhe a cabeça para que ele a beijasse, empurrou-o para cima da cama. Sentiu que aquele era um homem que a amava verdadeiramente, que faria tudo o que ela exigisse, e ela, em troca, satisfaria todos os seus desejos. Pela primeira vez em muito, muito tempo, respondeu tanto física como mentalmente. Amava-o de verdade e gostava verdadeiramente de fazer amor com ele. E, no entanto, sempre soubera que ele era perigoso, inclusivamente para ela, de uma certa maneira.

Uma hora mais tarde vestiram-se e foram para a varanda.

Las Vegas estava banhada em luzes de néon. O sol do fim da tarde pintava as ruas e os hotéis vistosos com uma grande pincelada de ouro. Para além estendia-se o deserto, e depois as montanhas. Ali, na varanda, estavam os dois isolados no espaço e no tempo. As bandeiras das villas pendiam imóveis no ar parado.

Athena apertou com força a mão de Cross.

Vemo-nos na projecção e na festa? -perguntou.

Desculpa, não posso - disse ele. - Mas vemo-nos em França.

Já reparei que não é nada fácil falar contigo - comentou Athena. - O elevador fechado à chave e os guardas.

é só durante os próximos dias. Há demasiados desconhecidos na cidade.

Conheci o teu primo, Dante. Ele e o tal detective parecem ser grandes amigos. Fazem um par encantador. O Losey estava muito interessado no meu bem-estar, e no meu calendário. Também o Dante se ofereceu para ajudar. Parecem muito preocupados em fazer-me chegar a L. sã e salva.

Cross apertou-lhe a mão.

Chegarás, descansa - prometeu.

A Claudia disse-me que tu e o Dante são primos. Porque é que ele usa aqueles chapéus esquisitos?

O Dante é bom rapaz.

Segundo a Claudia, vocês os dois são inimigos desde que eram pequenos.

É verdade - admitiu Cross, despreocupadamente. - Mas isso não quer dizer que ele seja má pessoa.

 Ficaram silenciosos, vendo as ruas lá em baixo apinhadas de carros < de pessoas que procuravam os diversos hotéis para jantar e jogar. Sonhando com um prazer apimentado pelo risco.

Então esta é a última vez que nos vemos - murmurou Athena, apertando-lhe a mão, como para anular o significado do que acabava de dizer.

Vou ter contigo a França - prometeu Cross.

Quando?

Não sei. Se não aparecer, saberás que morri.

As coisas estão assim tão sérias? - perguntou ela.

Sim.

- E não podes dizer-me nada a esse respeito? Cross não respondeu imediatamente.

Tu não corres perigo - acabou por dizer. - E penso que eu também não. Não posso dizer-te mais do que isto.

Esperarei - disse Athena. Beijou-o e saiu do quarto e da suite. Cross ficou a vê-la afastar-se e depois voltou à varanda para a ver sair do hotel. Viu o carro com os homens da segurança levarem-na até à villa. Então pegou no telefone e ligou para Lia Vazzi. Pediu-lhe que reforçasse ainda mais a segurança em volta de Athena.

Às dez da noite, a parte do salão de baile do Xanadu que fora convertida em sala de cinema estava cheia. Juntara-se uma pequena multidão para ver a versão "em bruto" do filme Messalina. Havia uma primeira fila de confortáveis cadeirões, com uma pequena central telefónica ao meio. Um desses lugares estava vazio, com uma coroa de flores ostentando o nome de Steve Stallings. Os outros tinham sido ocupados por Claudia, Dita Tom-mey, Bobby Bantz e a sua companheira, Johanna, Melo Stuart e Liza. Skip-py Deere apoderou-se imediatamente do telefone.

Athena foi a última a chegar, calorosamente acolhida pelos membros da equipa abaixo da linha e pelos duplos. O pessoal acima da linha, os restantes actores e os ocupantes dos cadeirões bateram palmas e beijaram-na na face quando ela se dirigiu ao seu lugar, no meio da fila. Então Skippy Deere pegou no telefone e disse ao projeccionista que começasse.

A frase "Dedicado a Steve Stallings" apareceu no meio de um fundo negro, e os assistentes aplaudiram de uma forma contida e respeitosa. Skippy Deere e Bobby Bantz tinham-se oposto à inserção, mas Dita Tommey contrariara-os, sabia Deus porquê, dissera Bantz. Mas, que diabo, era apenas a versão em bruto, e o sentimentalismo ficaria bem nas notícias.

Então, o filme começou a passar na tela...

Athena era fascinante, tinha ainda mais sexualidade no écran do que na vida real, e uma vivacidade de espírito que não constituía novidade para quem a conhecia bem. Claro que Claudia escrevera diálogos especialmente concebidos para dar destaque a esta qualidade. Não tinham sido poupadas despesas, e as cenas de sexo estavam tratadas com extremo bom gosto.

Ninguém duvidava que Messalina, depois de todos os seus problemas, ia ser um êxito estrondoso. E aquilo era sem a banda sonora final e os efeitos especiais. Dita Tommey estava em êxtase, era finalmente uma Realizadora Cotável. Melo Stuart fazia contas a quanto iria ter de pedir pelo próximo filme de Athena; Bantz, parecendo um pouco infeliz, estava a pensar exactamente no mesmo. Skippy contava o dinheiro que ia ganhar; poderia finalmente comprar o seu jacto particular.

Claudia estava mais excitada do que qualquer dos outros. A sua criação chegara à tela. O seu nome aparecia sozinho no genérico, e tratava-se de um argumento original. Graças a Molly Flanders, tinha pontos do bruto. Claro que houvera uma pequena intervenção de Ben Sly, mas não o suficiente para justificar a inclusão do nome dele no genérico.

Tinham-se reunido todos em volta de Athena e de Dita Tommey, felicitando-as. Mas Molly estava de olho num dos duplos. Os duplos eram geralmente uns filhos da mãe de uns chanfrados, mas tinham corpos rijos e eram óptimos na cama.

A coroa de flores em memória de Steve Stallings fora atirada ao chão, e as pessoas espezinhavam-na. Molly reparou que Athena se afastava do grupo para pegar nela e voltar a pô-la no seu lugar. Athena captou o olhar de Molly e ambas encolheram os ombros. Athena esboçou um sorriso tímido, como que a dizer: É o cinema.

A multidão passou para o outro lado do salão de baile. Uma pequena orquestra tocava, mas toda a gente se precipitou para as mesas de bufete. Alguns pares começaram a dançar. Molly aproximou-se do duplo, que olhava sombriamente à sua volta. Era naquelas festas que se sentiam mais vulneráveis. Tinham a sensação de que ninguém apreciava o seu trabalho e ressentiam-se furiosamente por o gordalhão do actor principal poder derrubá-los a murro no écran, quando na vida real não teriam a mínima dificuldade em desfazer aqueles mariconços de merda. É mesmo à duplo, já está com uma erecção, pensou Molly, enquanto o conduzia para a pista de dança.

Athena ficou apenas uma hora na festa. Foi graciosa na maneira como recebeu as felicitações de toda a gente, e no entanto observou-se a si mesma a ser graciosa, e achou detestável. Dançou com alguns dos membros da equipa, e finalmente com um duplo cuja agressividade a decidiu a sair.

O Rolls do Xanadu aguardava-a, com um condutor armado e dois homens da segurança. Quando se apeou diante da villa que lhe fora atribuída, ficou espantada ao ver Losey sair da villa vizinha e aproximar-se dela.

- Foi extraordinária naquele filme esta noite - disse ele. - Nunca vi um corpo mais perfeito numa mulher. Especialmente aquele traseiro.

Athena teria ficado preocupada se não tivesse visto o condutor e os dois seguranças saírem do carro e tomarem posições. Fazia parte do seu treino no teatro nunca bloquear o palco onde os actores se movimentam. Por isso notou que os três homens se tinham colocado de tal maneira que as suas linhas de fogo não pusessem em perigo qualquer dos colegas. Notou também que Losey os observava com um ligeiro desprezo.

- Não era o meu traseiro - disse. - Mas obrigada, de qualquer maneira. - E sorriu-lhe.

Subitamente, Losey estava a pegar-lhe na mão.

- É a mulher mais bonita que vi em toda a minha vida! - exclamou. - Por que é que não experimenta um homem a sério, em vez desses palhaços maricas dos actores?

Athena retirou a mão.

Eu faço parte do grupo dos actores. E não somos palhaços. Boa noite.

Posso entrar para uma bebida? - pediu Losey.

Lamento - respondeu Athena, e tocou a campainha da villa. A porta foi aberta por um mordomo que nunca tinha visto.

Losey deu um passo para entrar atrás dela, e então, para grande surpresa de Athena, o mordomo saiu e empurrou-a rapidamente para dentro da villa. Os três homens da segurança formaram uma barreira entre Losey e a porta.

Losey olhou para eles com desprezo.

- Que merda é esta? - perguntou.

O mordomo permanecia do lado de fora da porta. Respondeu:

- A segurança de Miss Aquitane. Faça o favor de se retirar. Losey tirou do bolso a carteira com o crachá.

- Estão a ver quem eu sou - disse. - Parto as trombas aos três e depois meto-os na gaiola!

O mordomo examinou o crachá e disse:

- Você é de Los Angeles. Não tem jurisdição aqui. - Mostrou o seu próprio distintivo. - Eu sou do Condado de Las Vegas.

Athena Aquitane deixara-se ficar junto da porta. Ficou surpreendida ao descobrir que o seu novo mordomo era um detective, mas agora começava a compreender.

- Não façam escândalo por tão pouco - disse, e fechou a porta na cara de todos eles.

Os dois homens voltaram a guardar os respectivos distintivos. Losey olhou-os duramente, um a um.

- Vou lembrar-me de vocês - prometeu. Nenhum deles reagiu. Losey deu meia volta. Tinha peixes mais importantes para fritar. Nas próximas duas horas, Dante Clericuzio levaria Cross De Lena à villa que ambos partilhavam.

Dante Clericuzio, com o chapéu renascentista empoleirado na cabeça, estava a divertir-se imenso na festa de encerramento. Usava o divertimento para se preparar para as acções sérias. Uma das raparigas da equipa atraíra-lhe a atenção, mas ela não lhe dera qualquer espécie de encorajamento porque estava de olho num dos duplos, que por sua vez lançara a Dante olhares ameaçadores. Felizmente para ti, pensou Dante, tenho assuntos sérios a tratar esta noite. Consultou o relógio. Talvez o bom do Jim tivesse conseguido safar-se com Athena. Tiffany não aparecera, apesar de ter-lhe sido prometida. Telefonou para Cross, utilizando o número particular através da telefonista.

Cross atendeu.

Preciso de falar contigo imediatamente - disse Dante. - Estou no salão de baile. A festa está óptima.

Então vem até cá - sugeriu Cross.

Não. São ordens. Não pelo telefone e não na tua suite. Vem tu aqui. Seguiu-se uma longa pausa. Depois Cross disse:

Vou já.

Dante colocou-se de maneira a poder ver Cross atravessar o salão de baile. Aparentemente, vinha sozinho. Dante deu uma palmadinha no chapéu e pensou na infância dos dois. Cross fora o único rapaz que o fizera sentir medo, e muitas vezes lutara com ele precisamente por causa desse medo. Sempre invejara a beleza física do primo, e sobretudo a sua segurança. Era uma pena...

Logo que matara Pippi, Dante soubera que não podia permitir que Cross continuasse a viver. Agora, depois disto, ia ter de enfrentar o Don. Mas nunca duvidara de que o avô o amava, sempre lhe demonstrara o seu amor. Don Domenico poderia não gostar, mas nunca invocaria o seu terrível poder para castigar o neto.

Cross estava diante dele. Agora tinha de o levar até à villa onde Jim Losey aguardava. Seria simples. Mataria Cross e depois os dois levariam o corpo para o deserto e enterrá-lo-iam. Nada de complicado, como Pippi De Lena estava sempre a pregar. Já tinham um carro estacionado nas traseiras da villa, para o transporte.

- O que é que há? - perguntou-lhe Cross, secamente. Não parecia desconfiado, ou sequer particularmente alerta. - Bonito, esse teu chapéu novo - acrescentou, e sorriu. Dante sempre invejara aquele sorriso, como se o outro soubesse tudo o que ele estava a pensar.

Dante fez o seu jogo muito devagar, com muita cautela. Pegou num braço de Cross e levou-o para o exterior, para debaixo do enorme anúncio luminoso que custara ao Xanadu dez milhões de dólares. O cintilar das lâmpadas, azuis, vermelhas e púrpura banhou-lhes os rostos numa luz fria, esbranquiçada pelo luar.

- O Giorgio apareceu, está na minha villa- sussurrou Dante. - Segredo absoluto. E quer falar contigo imediatamente. Foi por isso que não pude dizer-te nada pelo telefone. - Ficou deliciado com a súbita preocupação que notou no rosto de Cross. - Disse-me para não te dizer nada, mas está muito chateado. Acho que descobriu qualquer coisa a respeito do teu velho.

Ao ouvir isto, Cross lançou-lhe um olhar sombrio, quase de desagrado. Depois disse:

- OK, vamos lá.

E caminhou à frente de Dante, atravessando os terrenos do hotel em direcção às villas.

Os quatro guardas que vigiavam a entrada da zona das villas reconheceram-no e deixaram-nos entrar.

Dante abriu a porta com um floreado e tirou o chapéu renascentista.

- Depois de ti - disse, e sorriu maliciosamente, o que lhe emprestou ao rosto uma expressão de humor travesso.

Cross entrou.

Jim Losey estava cheio de uma raiva fria quando se afastou dos guardas de Athena e regressou à sua própria villa. Mesmo assim, havia uma parte do seu cérebro que avaliava a situação, que emitia um sinal de alarme. Porquê tantos guardas à volta de Athena? Mas, raios, ela era uma grande estrela, e aquela experiência com Boz Skannet devia tê-la assustado a valer.

Usou a sua própria chave para entrar na villa, aparentemente deserta. Deviam estar todos na festa. Tinha mais de uma hora para se preparar para receber Cross. Foi buscar a mala e abriu-a. Lá estava a sua Glock, brilhante, cuidadosamente oleada e limpa. Abriu a outra mala, a que tinha um compartimento secreto, e tirou de lá o carregador com as balas. Enfiou-o na coronha da arma, colocou o coldre axilar e guardou a arma no coldre. Estava pronto. Reparou que não estava nervoso. Nunca ficava nervoso naquelas situações. Era precisamente isso o que fazia dele um bom polícia.

Saiu do quarto e procurou a cozinha. Muitos corredores tinha aquela villa. Tirou do frigorífico uma garrafa de cerveja importada e uma bandeja com canapés. Meteu um na boca. Caviar. Soltou um pequeno suspiro de prazer; nunca saboreara nada tão delicioso. Aquilo é que era vida. E era assim que ia viver o resto dos seus dias, o caviar, as bailarinas, talvez até, um dia, Athena. Só tinha de fazer bem o seu trabalho naquela noite.

Pegou na garrafa e na bandeja e dirigiu-se à ampla sala de estar.

A primeira coisa que o surpreendeu foi verificar que o chão e os móveis estavam cobertos por folhas de plástico, que davam a toda a sala um fantasmagórico brilho esbranquiçado. E então viu o homem sentado num cadeirão envolto em plástico, a fumar um charuto e com um copo de brandy na mão. Era Lia Vazzi.

Que merda é esta?, pensou Losey. Pousou a garrafa e a bandeja na pequena mesa de café e disse, dirigindo-se a Lia.

- Tenho andado à tua procura.

Lia puxou uma fumaça do charuto e bebeu um golo de brandy.

- E agora encontraste-me - respondeu. Levantou-se. - Podes dar-me outra bofetada.

Losey era um homem demasiado experiente para não ficar alerta. Estava a juntar as coisas. Ficara espantado ao saber que os outros apartamentos da villa estavam vagos. Parecera-lhe estranho. Desabotoou o casaco, como que por acaso, e sorriu a Lia. Desta vez vai ser mais do que uma bofetada, pensou. Ainda faltava uma hora para Dante aparecer com Cross, podia trabalhar um pouco enquanto esperava. Agora que estava armado, não tinha medo de um mano-a-mano com Lia.

Subitamente, a sala foi invadida por homens. Vieram da cozinha, do vestíbulo, da sala contígua, onde estavam o vídeo e a TV. Todos eles eram maiores do que Jim Losey. Só dois empunhavam armas.

Sabem que sou polícia? - perguntou-lhes Losey.

Todos nós sabemos - respondeu Lia, num tom tranquilizador. Aproximou-se de Losey. No mesmo instante, os dois homens comprimiram os canos das suas armas contra as costas do detective.

Lia meteu-lhe a mão no casaco e tirou-lhe a Glock. Entregou-a a um dos seus homens e em seguida deu uma ligeira palmada no peito de Losey.

- Muito bem - disse -, tinhas sempre tantas perguntas para fazer. Aqui estou eu. Pergunta.

Losey ainda não começara a ter verdadeiramente medo. O que o preocupava era a possibilidade de Dante chegar com Cross. Não podia acreditar que um homem como ele, que tivera a boa sorte de sair vivo de tantas situações tão perigosas, pudesse finalmente ser derrotado.

Sei que liquidaste o tal Skannet - disse. - E hei-de apanhar-te por isso, mais cedo ou mais tarde.

Terá de ser mais cedo - respondeu Lia. - Não vai haver mais tarde. Sim, tens razão, e agora podes morrer feliz.

Losey continuava a não acreditar que alguém se atrevesse a matar um agente da polícia a sangue frio. Claro que os traficantes de drogas respondiam aos tiros, e, claro, havia sempre um estupor de um preto capaz de rebentar com um homem só por ele ter mostrado o distintivo, ou mesmo um assaltante de bancos em fuga. Mas um tipo da Máfia nunca teria tomates para executar um polícia. O risco era demasiado grande.

Estendeu um braço para empurrar Lia, para assumir o controlo da situação. Mas, subitamente, um relâmpago de fogo atravessou-lhe o estômago, e as pernas vacilaram-lhe. Começou a cair de joelhos. Um objecto duro bateu-lhe na cabeça e ficou com a orelha a arder, e não conseguia ouvir. Tombou de joelhos, e a alcatifa pareceu-lhe uma enorme almofada. Olhou para cima. Lia Vazzi estava a inclinar-se para ele, segurando nas mãos um pedaço de fino cordão de seda.

Lia Vazzi passara dois dias inteiros a coser os dois grandes sacos que teria de usar. Eram de lona castanha escura, fechados em cima por uma corda. Cada um deles podia conter um corpo grande. Completamente estanques, não deixariam escapar o sangue, e, depois de fechados, podiam ser postos às costas, como uma mochila. Losey nem sequer os vira, estendidos em cima do sofá. Os homens enfiaram o corpo num deles e Lia fechou-o, dando um nó na corda. Deixou-o de pé, apoiado ao sofá. Ordenou aos seus homens que cercassem a villa, mas que não se mostrassem a menos que ele os chamasse explicitamente. Todos sabiam o que teriam de fazer mais tarde.

Cross e Dante fizeram o percurso desde o portão até à villa. O ar da noite pesava, devido ao calor sufocante que se fizera sentir durante todo o dia. Estavam ambos a transpirar. Dante notou que Cross vestia umas calças, camisa aberta e casaco abotoado, que podia estar armado...

As sete villas, com as suas bandeiras verdes a ondularem debilmente, ofereciam um espectáculo magnífico, banhadas pelo luar do deserto. Pareciam edifícios de uma outra era, com as suas varandas, as persianas verdes a proteger as janelas, as grandes portas decoradas com motivos dourados. Dante segurou Cross por um braço.

Olha para elas - disse. - Não são uma beleza? Ouvi dizer que andas a comer aquela boazona do filme. Quando estiveres farto, diz-me.

Claro - respondeu Cross, amavelmente. - Acho que ela gostou de ti e do teu chapéu.

Dante tirou o chapéu e afirmou, animadamente:

Toda a gente gosta dos meus chapéus. A sério que ela disse que tinha gostado de mim?

Ficou encantada contigo - respondeu Cross, secamente.

- Encantada - murmurou Dante. - Isso é que é classe. - Perguntou a si mesmo, por um instante, se Losey teria conseguido levar Athena até à villa deles, para a tal bebida. Seria o remate ideal para aquela noite. Esta va deliciado por ter conseguido distrair Cross; notara a ligeira nota de irri tação na voz do primo.

Estavam diante da porta da villa. Parecia não haver quaisquer guardas da segurança por perto. Dante premiu o botão da campainha, esperou e voltou a tocar. Não obtendo resposta, pegou na sua chave e abriu a porta. Entraram na suite de Losey.

Talvez o Jim esteja com a Athena na cama, pensou Dante. O que era um raio de uma maneira de conduzir uma operação, mas ele teria feito a mesma coisa.

Levou Cross para a sala de estar e ficou surpreendido ao descobrir os móveis e as paredes cobertos por folhas de plástico transparente. Encostado ao sofá, de pé, estava um grande saco de lona castanha. Em cima do sofá havia outro saco igual, mas vazio. Tudo coberto de plástico.

- Céus, que raio é isto? - perguntou.

Voltou-se para enfrentar Cross. Cross empunhava uma arma extremamente pequena.

- Para o sangue não sujar a mobília - respondeu Cross. - Tenho a dizer-te que nunca achei graça aos teus chapéus, e nunca acreditei que um assaltante tivesse morto o meu pai.

Onde raios estará o Losey?, pensou Dante. Chamou-o em voz alta, ao mesmo tempo que pensava que uma arma de calibre tão pequeno nunca conseguiria detê-lo.

- Toda a tua vida foste um Santadio - disse Cross.

Dante pôs-se de lado, para oferecer um alvo mais pequeno, e saltou para Cross. A estratégia resultou, a bala atingiu-o no ombro. Teve uma fracção de segundo de alegria, pensou que ia vencer, e então a bala explodiu, arrancando-lhe metade do braço. E ele compreendeu que não havia esperança. Foi então que surpreendeu verdadeiramente Cross. Com o braço ileso, arrancou as folhas de plástico que cobriam o chão e enrolou-as numa bola. Com o sangue a jorrar-lhe do corpo, os braços cheios de folhas de plástico, tentou, cambaleante, afastar-se de Cross, e ergueu as folhas de plástico à sua frente, como um escudo prateado.

Cross avançou para ele. Muito deliberadamente, disparou através do plástico, e voltou a disparar. As balas explodiram, e o rosto de Dante ficou quase inteiramente coberto por pequenos pedaços de plástico tingidos de vermelho. Quando Cross disparou novamente, a coxa direita de Dante pareceu separar-se do resto do corpo. Dante caiu, e uma mancha escarlate começou a espalhar-se pela alcatifa branca. Cross ajoelhou-se junto dele, envolveu-lhe a cabeça numa folha de plástico e disparou mais uma vez. O chapéu renascentista explodiu para cima, mas permaneceu agarrado à cabeça. Cross viu que estava preso aos cabelos por uma espécie de ganchos. Só que agora repousava sobre um crânio aberto. Parecia flutuar.

Cross endireitou-se e guardou a arma no coldre que usava à cintura, junto aos rins. Nesse momento, Lia entrou na sala. Olharam um para o outro.

Está feito - disse Lia. - Lava-te na casa de banho e volta para o hotel. E vê-te livre dessas roupas. Eu fico com a arma e trato do resto.

E a alcatifa e os móveis? - perguntou Cross.

Eu trato disso. Lava-te e vai até à festa.

Quando Cross saiu, Lia Vazzi tirou um charuto da caixa pousada em cima da mesa de mármore e examinou-o, em busca de manchas de sangue. Não havia nenhumas. Mas o sofá e a alcatifa estavam ensopados. Bom, já não se podia evitar.

Embrulhou o corpo de Dante em folhas de plástico e, com a ajuda dos seus homens, meteu-o no saco de lona vazio. Quando acabou, fechou-o e amarrou-o. Primeiro, carregaram o saco que continha o corpo de Losey para a garagem da villa e meteram-no na carrinha. Depois fizeram mais uma viagem para ir buscar Dante.

A carrinha fora modificada por Lia Vazzi. Tinha um duplo fundo, com um espaço entre ambos. Lia e os seus homens enfiaram os dois sacos com os corpos nesse espaço e voltaram a colocar o fundo falso.

Como Homem Qualificado que era, Lia estava preparado para todas as contingências. Na carrinha havia duas latas cheias de gasolina. Levou-as ele próprio para a villa e despejou-as no chão e em cima dos móveis. Acendeu um rastilho que lhe daria cinco minutos para sair dali. Depois meteu-se na carrinha e iniciou a longa viagem até Los Angeles.

À frente e atrás dele iam outros carros com membros da sua equipa.

Uma hora mais tarde deteve a carrinha diante do iate que o aguardava. Descarregou os dois sacos e levou-os para bordo. O iate afastou-se imediatamente do cais.

Já passava do meio-dia quando, em pleno mar alto, viu a gaiola de ferro contendo os dois corpos descer lentamente para o fundo do oceano. Dante Clericuzio e Jim Losey tinham feito a sua última Comunhão.

Molly Flanders desapareceu com o seu duplo, mas foram para o quarto que ele ocupava no hotel e não para a villa, porque Molly, apesar do seu afecto pelos menos poderosos deste mundo, tinha ainda vestígios do velho esnobismo de Hollywood, e não queria que se soubesse que andava a for-nicar abaixo da linha.

A festa de encerramento começou a esmorecer ao raiar da aurora. Quando o sol, esplenderosamente vermelho, se mostrou acima do horizonte, uma fina coluna de fumo azulado ergueu-se como que ao seu encontro.

Cross tinha tomado um duche, mudado de roupa e ido até ao salão de baile. Estava sentado com Claudia, Bobby Bantz, Skippy Deere e Dita Tommey, a festejar o inevitável êxito de Messalina. Subitamente, ouviram-se gritos de alarme no exterior. O grupo de Hollywood correu para fora, e Cross seguiu-os.

Uma coluna de fogo erguia-se triunfantemente acima das luzes de néon da Strip. Depois abriu-se num grande cogumelo de nuvens rosadas que se enovelavam, tendo como pano de fundo o deserto e as montanhas.

- Oh, meu Deus! - exclamou Claudia. - É uma das tuas villas! Cross permaneceu silencioso. Viu a bandeira verde sobre a villa ser engolfada pelas chamas, ouviu as sereias dos carros de bombeiros que corriam pela Strip. Doze milhões de dólares desfaziam-se em fumo para esconder o sangue que ele derramara. Lia Vazzi era um Homem Qualificado que não olhava a despesas nem corria riscos.

 

Jim Losey estava oficialmente de licença, de modo que a sua ausência só foi notada cinco dias depois do incêndio no Xanadu. O desaparecimento de Dante Clericuzio nunca chegou, evidentemente, ao conhecimento das autoridades.

As investigações da polícia levaram à descoberta do corpo de Phil Shar-key. As suspeitas centraram-se em Losey, e assumiu-se que este fugira para escapar a ser interrogado.

Cross foi contactado por detectives de L. A., uma vez que Losey fora visto pela última vez no Xanadu. Mas nada havia que mostrasse qualquer espécie de ligação entre os dois homens. Cross explicou que apenas o vira por alguns instantes, na noite da festa.

Não era, no entanto, com a lei que Cross estava preocupado. Esperava notícias de Don Clericuzio.

Com toda a certeza os Clericuzio sabiam que Dante tinha desaparecido, com toda a certeza sabiam que estava no Xanadu quando fora visto pela última vez. Por que razão, nesse caso, não o tinham ainda contactado a pedir informações? Poderia toda aquela questão ter passado com tanta facilidade? Cross não acreditava nisso por um instante sequer.

Continuou a ocupar-se da gestão quotidiana do hotel, fazendo planos para reconstruir a villa que o incêndio consumira. Lia Vazzi tinha, sem a mínima dúvida, resolvido a questão das manchas de sangue.

Claudia foi visitá-lo. Estava rebentar de excitação. Cross mandou servir o jantar na sua suite, para poderem falar à vontade.

Não vais acreditar nisto - anunciou Claudia. - A tua irmã vai ser a nova presidente da LoddStone Studios.

Parabéns - disse Cross, abraçando-a. - Eu sempre disse que tu eras a mais dura de todos os Clericuzios.

Fui ao funeral do nosso pai por tua causa. Deixei isso bem claro a toda a gente - declarou Claudia, franzindo a testa.

Cross riu-se.

- Podes apostar que sim, e deixaste toda a gente danada excepto o Don, que disse: "Deixem-na fazer filmes, e que Deus a proteja."

Claudia encolheu os ombros.

Não quero saber deles. Mas deixa-me contar-te o que aconteceu, porque é tão estranho. Quando partimos de Vegas, no jacto do Bobby, parecia tudo perfeito. Mas quando aterrámos em L. A., foi o diabo. Havia detectives à espera para o prenderem. Adivinha porquê.

Por fazer uns filmes horrorosos - brincou Cross.

Não, escuta, isto é muito estranho. Lembras-te daquela rapariga, a Johanna, que o Bantz levou à festa? Lembras-te do ar dela? Pois bem, parece que tinha só quinze anos. Acusaram o Bobby de violação de menores e tráfico de escravas, por tê-la levado para outro estado. - Claudia tinha os olhos muito abertos de excitação. - Mas foi tudo uma armadilha. O pai e a mãe da Johanna estavam no aeroporto, aos gritos porque a pobre filha tinha sido violada por um homem quarenta anos mais velho.

Não parecia nada ter quinze anos - comentou Cross. - A mim pareceu-me uma espertalhona de todo o tamanho.

Podia ter sido um escândalo terrível - continuou Claudia -, mas o bom e velho Skippy Deere resolveu a situação. Safou o Bantz, pelo menos de momento. Evitou que o levassem preso e evitou que a história chegasse aos jornais. De modo que, por agora, parece estar tudo bem.

Cross sorriu. Aparentemente, David Redfellow não perdera nenhuma das suas qualidades.

- Não tem graça nenhuma - disse Claudia, em tom de censura. - O pobre do Bobby foi tramado. A rapariga jurou que ele a obrigara a ter relações sexuais em Vegas. O pai e a mãe juraram que não queriam saber do dinheiro, que só queriam impedir outros violadores de abusar de rapariguinhas inocentes. O estúdio inteiro ficou num pandemónio. A Dora e o Kevin ficaram tão perturbados que começaram a falar em vender a LoddStone. Nessa altura o Skippy voltou a assumir o comando. Contratou a rapariga para interpretar o primeiro papel feminino num filme de pequeno orçamento, com um argumento escrito pelo pai. Por um monte de dinheiro. Depois pôs o Benny Sly a reescrever a história de um dia para o outro, por outro monte de dinheiro. Nada mau, a propósito, o Benny é uma espécie de génio. Estava tudo combinado. E então o Promotor Público de Los Angeles insiste em levar o caso para a frente. O PP que a LoddStone tinha feito eleger, o PP que o Eli Marrion tratava como se fosse um rei. O Skippy chegou a oferecer-lhe um lugar na LoddStone, na gestão de negócios, a um milhão de dólares por ano durante cinco anos, e ele recusou. Insistiu que Bobby Bantz fosse afastado da presidência do estúdio. Só depois chegaria a um acordo. Ninguém percebe por que razão foi tão intransigente.

- Um funcionário público incorruptível - disse Cross, encolhendo os ombros. - Acontece.

Voltou a pensar em David Redfellow. Redfellow negaria violentamente a existência de semelhante animal. E Cross imaginou como David devia ter tratado daquele assunto. Provavelmente dissera ao PP: "Estou a suborná-lo para cumprir o seu dever." Quanto ao dinheiro, teria ido imediatamente até ao limite. Vinte, calculou Cross. Num negócio de dez biliões, que raio significavam vinte milhões? E sem qualquer risco para o PP. Estaria a agir estritamente de acordo com a lei. Era verdadeiramente elegante.

Claudia continuava a falar, muito depressa:

- Seja como for, o Bantz teve de se demitir. E a Dora e o Kevin tiveram muito prazer em vender a LoddStone. Um bilião de dólares para os bolsos deles, mais o compromisso de luz verde para cinco dos seus próprios filmes. E esse tipo italiano aparece nos estúdios, convoca uma reunião e anuncia que é ele o novo proprietário. E então, assim sem mais nada, nomeia-me presidente da LoddStone. O Skippy ficou furioso. Agora sou a patroa dele. Não é de loucos?

Cross limitou-se a olhar para ela, divertido. Depois sorriu.

Subitamente, Claudia recuou um passo e olhou para o irmão. E os olhos dela estavam mais escuros, mais atentos, mais inteligentes do que ele alguma vez os vira. Mas tinha nos lábios um sorriso bem humorado quando disse:

- Como os rapazes, Cross, não é verdade? Estou a funcionar exacta mente como os rapazes. E nem sequer tive de ir para a cama com ninguém...

Cross ficou surpreendido.

- Que se passa, Claudia? - perguntou. - Pensei que estavas feliz. Claudia sorriu.

- E estou feliz. Não sou é parva. E uma vez que és meu irmão, e eu gosto muito de ti, quero que saibas que não me deixei enganar.

Aproximou-se e sentou-se no sofá ao lado dele.

- Menti quando disse que fui ao funeral do nosso pai só por tua causa. Fui porque queria fazer parte de uma coisa em que ele participava, em que tu participavas. Fui porque não podia continuar a manter-me afastada. Mas odeio o que eles representam, Cross. O Don e todos os outros.

- Isso significa que não queres ser a presidente da LoddStone? Claudia riu-se.

- Não, estou disposta a admitir que continuo a ser uma Clericuzio. E quero fazer bons filmes, e ganhar muito dinheiro. O cinema é um grande igualizador, Cross. Posso fazer um bom filme a respeito de grandes mulheres...

Vamos ver o que acontece quando eu usar os talentos da Família para o bem em vez de para o mal. - Riram-se ambos.

Então Cross abraçou-a e beijou-a na face.

- Acho que é estupendo, palavra - disse.

E dizia aquilo tanto por ele próprio como por ela. Porque se Don Cleri-cuzio fizera Claudia presidente da LoddStone, era porque não o relacionara a ele, Cross, com o desaparecimento de Dante. O esquema resultara.

Tinham acabado de jantar e estavam a conversar havia horas. Quando Claudia se levantou para sair, Cross pegou numa bolsa cheia de fichas pretas que tinha em cima da secretária.

- Tenta a tua sorte nas mesas, por conta da casa - disse. Ela deu-lhe uma palmadinha na cara e respondeu:

- Só se tu prometeres não armares outra vez em irmão mais velho e falares comigo como se eu fosse uma criança. Da última vez a minha vontade foi bater-te. Cross voltou a abraçá-la. Era bom senti-la tão próxima. Num momento de fraqueza, disse:

- Sabes, deixei-te um terço dos meus bens, no caso de me acontecer alguma coisa. E eu sou muito rico. De modo que podes sempre dizer à Lodd Stone que se vá lixar, se quiseres.

Os olhos de Claudia brilharam quando ela respondeu:

Cross, agradeço a tua preocupação, mas posso sempre dizer à Lodd Stone que se vá lixar, mesmo sem a tua herança...- Então, subitamente, pareceu preocupada. - O que é que se passa? Estás doente?

Não, não - disse Cross. - Só queria que soubesses.

Graças a Deus. - Agora que eu entrei, talvez tu possas sair. Podes afastar-te da Família. Podes ser livre.

Cross riu-se.

- Eu sou livre - afirmou. - Vou partir muito em breve. Vou viver com a Athena em França.

Na tarde do décimo dia, Gíorgio apareceu no Xanadu para falar com ele, e Cross teve uma sensação de aperto no estômago que, sabia-o, o levaria ao pânico se não a controlasse.

Giorgio deixou os seus guarda-costas à entrada da suite, com os seguranças do hotel. Mas Cross não teve ilusões, os seus próprios guarda-costas obedeceriam a qualquer ordem que Giorgio lhes desse. E não se sentiu tranquilizado pelo aspecto do primo. Giorgio parecia ter perdido peso, e estava muito pálido. Era a primeira vez que dava a impressão de não se controlar totalmente a si mesmo.

Cross recebeu-o efusivamente.

- Giorgio! - exclamou. - Que prazer inesperado. Deixa-me mandar preparar-te uma villa.

Giorgio dirigiu-lhe um sorriso cansado e disse:

Não conseguimos localizar o Dante. - Fez uma curta pausa. - Parece ter desaparecido do mapa, e a última vez que foi visto foi aqui, no Xanadu.

Jesus, isso é sério. Mas tu sabes como é o Dante, nem sempre é fácil controlá-lo.

Desta vez Giorgio não se deu ao trabalho de sorrir.

Estava com o Jim Losey, e o Losey também desapareceu.

Fazem um par esquisito - comentou Cross. - Tenho pensado nisso muitas vezes.

Eram amigos. O velho não gostava, mas era o Dante quem pagava ao tipo.

Ajudarei em tudo o que puder - ofereceu-se Cross. - Vou falar com o pessoal do hotel. Mas tu sabes que o Dante e o Losey não estavam oficialmente registados. Os ocupantes das villas nunca estão.

Podes tratar disso quando voltares - disse Giorgio. - O Don quer falar pessoalmente contigo. Até fretou um avião para te levar a Nova Iorque.

Cross ficou silencioso por um longo instante.

Vou fazer a mala - disse, finalmente. - Giorgio, isto é sério? Giorgio olhou-o de frente nos olhos.

Não sei - respondeu.

No avião fretado, a caminho de Nova Iorque, Giorgio estudou um monte de documentos que trazia numa pasta. Cross não o interrompeu, embora aquilo fosse mau sinal. Fosse como fosse, Giorgio nunca lhe daria qualquer informação.

O avião era aguardado por três carros e seis soldados dos Clericuzio. Giorgio meteu-se num dos carros e fez sinal a Cross para entrar num dos outros. Mais um mau sinal. A aurora despontava quando os três carros atravessaram os portões da mansão dos Clericuzio, em Quogue.

A porta da casa estava guardada por dois homens. Havia outros espalhados pelos terrenos, mas não se viam mulheres ou crianças.

- Onde diabo se meteu toda a gente? - perguntou Cross a Giorgio. - Na Disneylândia? - Mas Giorgio ignorou a piada.

A primeira coisa que Cross viu na sala de estar da mansão foi um círculo de oito homens, e no meio desse círculo dois outros homens que conversavam amigavelmente. O coração deu-lhe um salto no peito. Eram Petie e Lia Vazzi. Vincent estava a observá-los, com uma expressão zangada.

Petie e Lia pareciam muito amigos. Mas Lia vestia apenas as calças e a camisa, sem casaco nem gravata, e Lia trajava sempre formalmente, de modo que aquilo significava que tinha sido revistado e desarmado. A verdade era que parecia um alegre rato rodeado por oito gatos sorridentes e ameaçadores. Cumprimentou Cross com um aceno de cabeça triste. Petie nem sequer olhou para ele. Mas quando Giorgio levou Cross para o escritório, afastou-se do grupo e seguiu-os, acompanhado por Vincent.

Don Clericuzio esperava-os. Sentado num amplo cadeirão, fumava uma das suas cigarrilhas retorcidas. Vincent aproximou-se dele e entregou-lhe um copo de vinho, que fora buscar ao bar. Ninguém ofereceu nada a Cross. Petie ficou à porta, de pé. Giorgio sentou-se no sofá junto ao cadeirão do Don e fez sinal a Cross para que se sentasse a seu lado.

O rosto do Don, emaciado pela idade, não mostrava quaisquer traços de emoção. Cross beijou-o na face. O Don olhou para ele, e uma expressão como que de tristeza suavizou-lhe as feições.

- Então, Croccifixio - disse o Don -, foi tudo feito com muita esperteza. Mas agora tens de explicar as tuas razões. Sou o avô do Dante, a minha filha é mãe dele. Estes homens que aqui estão são seus tios. Tens de responder perante todos nós.

Cross tentou manter a compostura.

Não compreendo - disse.

O Dante - perguntou Giorgio, rispidamente. - Onde está ele?

Céus, como é que hei-de saber? - respondeu Cross, fingindo surpresa. - Não me disse nada. Tanto quanto sei, pode estar no México, a divertir-se à grande.

Não estás a compreender - disse Giorgio. - Deixa-te de histórias. Já foste julgado e considerado culpado. Onde foi que o largaste?

Junto ao bar, Vincent desviou a cara, como se não suportasse olhar para ele. Cross ouviu Petie aproximar-se do sofá, vindo da porta.

Onde estão as provas? - perguntou. - Quem diz que eu matei o Dante?

Digo eu. - Fora o Don quem falara. - Compreende: declarei-te culpado. Não há apelo para este veredicto. Trouxe-te aqui para ouvir o teu pedido de misericórdia, mas tens de justificar a morte do meu neto.

Ao ouvir aquela voz, o tom tranquilo, Cross soube que estava tudo acabado. Para ele e para Lia Vazzi. Mas Vazzi já o sabia. Via-se-lhe nos olhos. Vincent voltou-se para Cross. O seu rosto de pedra suavizou-se.

- Diz a verdade ao meu pai, Cross. É a tua única hipótese. O Don assentiu. Disse:

- Croccifixio, o teu pai era mais do que meu sobrinho, do sangue dos Clericuzio, como tu és. O teu pai era um amigo de confiança. Por isso ouvirei as tuas razões.

Cross preparou-se.

- O Dante matou o meu pai. Julguei-o e declarei-o culpado, como o senhor, Don Domenico, me julgou a mim e me declarou culpado. E matou-o por motivos de vingança e ambição. No fundo do coração, era um Santadio.

O Don não respondeu. Cross prosseguiu:

Como podia eu deixar de vingar o meu pai? Como podia esquecer que o meu pai era o responsável pela minha vida? E tinha demasiado respeito pelos Clericuzio, como ele tinha, para suspeitar da vossa mão no crime. No entanto, penso que o senhor sabia que o Dante era culpado, e não fez nada para o castigar. Como poderia, nesse caso, vir junto de si pedir justiça?

As tuas provas! - exigiu Giorgio.

Um homem como Pippi De Lena nunca poderia ser apanhado de surpresa. E a presença do Jim Losey no local do crime é demasiada coincidência. Não há nesta sala um único homem que acredite em coincidências. Todos vocês sabem que o Dante era culpado. E, Don, o senhor contou-me a história dos Santadio. Quem sabe o que o Dante planeava depois de me ter morto, como seguramente sabia que tinha de fazer? A seguir, os tios. - Cross não se atreveu a referir o Don. - Contava com o seu afecto - acrescentou, dirigindo-se ao Don.

Don Domenico pousou a cigarrilha. O seu rosto permanecia inescrutável, velado por uma leve tristeza.

Foi Petie quem falou. Petie sempre fora o mais chegado a Dante.

- Onde largaste o corpo? - voltou a perguntar. E Cross não conseguiu responder-lhe, não conseguiu obrigar as palavras a saírem-lhe da boca.

Fez-se um longo silêncio. Finalmente, o Don ergueu a cabeça e falou:

- Os funerais são um desperdício no caso dos jovens - disse. - Que fizeram eles para os merecerem? De que maneiras inspiraram um grande respeito? Os jovens não têm compaixão, não sabem o que é a gratidão. E a minha filha já está louca, porque haveríamos nós de lhe aumentar o desgosto e perder todas as esperanças de recuperação? Dir-lhe-emos que o filho fugiu, e passar-se-ão anos antes que descubra a verdade.

Todos os presentes na sala se descontraíram visivelmente. Petie avançou e sentou-se no sofá ao lado de Cross. Vincent, atrás do bar, levou um copo de brandy aos lábios, no que poderia ter sido um gesto de saudação.

Mas, com justificação ou sem ela, cometeste um crime contra a Família - continuou o Don. - Tem de haver um castigo. Para ti, dinheiro. Para o Lia Vazzi, a vida.

O Lia não teve nada a ver com o Dante - afirmou Cross. - Com o Losey, sim. Deixe-me resgatá-lo. Sou dono de metade do Xanadu. Transferirei metade da minha propriedade para a Família, como pagamento por mim e pelo Vazzi.

Don Clericuzio pareceu ponderar a proposta.

- És leal - disse. Voltou-se para Giorgio, e depois para Vincent e Petie. - Se vocês os três concordarem, eu concordo.

Nenhum deles respondeu. O Don suspirou, como que com pena:

- Passarás para nosso nome metade dos teus interesses, mas terás de sair do nosso mundo. O Vazzi regressará à Sicília, com ou sem a família, como ele preferir. E o mais longe que posso ir. Tu e o Vazzi nunca mais voltarão a falar um com o outro. E ordeno aos meus filhos, na tua presença, que nunca vinguem a morte do sobrinho. Tens uma semana para tratar dos teus assuntos, para assinar os papéis necessários. - Então, a voz do Don adquiriu um tom menos duro. - Quero que saibas que eu não tinha conhecimento dos planos do Dante. Agora, vai em paz, e lembra-te que sempre amei o teu pai como se fosse meu filho.

Depois de Cross ter saído, Don Clericuzio ergueu-se do cadeirão e disse a Vincent:

- Para a cama.

Vincent ajudou-o a subir as escadas, porque o Don tinha agora uma certa fraqueza nas pernas. A idade começava finalmente a devastar-lhe o corpo.

 

Nice, França Quogue.

No seu último dia em Vegas, Cross sentou-se na varanda na suite no terraço do Xanadu e ficou a olhar para Strip, encharcada em sol. Os grandes hotéis - o Caesars Palace, o Flamingo, o Desert Inn, o Mirage e o Sands - tinham os anúncios luminosos acesos, num desafio ao sol.

Don Clericuzio fora específico na sua sentença: Cross nunca mais poderia voltar a Las Vegas, a cidade onde o pai, Pippi, fora tão feliz, a cidade que Gronevelt construíra como o seu próprio Valhalla, mas onde ele nunca se sentira verdadeiramente bem. Apreciara, era verdade, os prazeres de Vegas, mas esses prazeres tinham sempre tido o sabor frio do aço.

As bandeiras verdes das sete villas pendiam molemente no ar parado do deserto, mas os farrapos chamuscados de uma delas encimavam um edifício calcinado, um esqueleto negro, o fantasma de Dante. Cross nunca tornaria a ver nada daquilo.

Amara o Xanadu, amara o pai, Gronevelt e Claudia. E no entanto, de certa maneira, traíra-os a todos. Gronevelt, não tendo sido fiel ao Xanadu; o pai, não tendo sido leal aos Clericuzio, e Claudia, porque ela acreditava na sua inocência. Agora estava livre de todos eles. Ia começar uma nova vida.

Que dizer do seu amor por Athena? Gronevelt avisara-o dos perigos do amor romântico; e o pai também, e até o velho Don. Era o erro fatal dos grandes homens que aspiravam a controlar os seus próprios mundos. Que o levara então a ignorar esses avisos? Porque estava a colocar o seu destino à mercê de uma mulher?

Muito simplesmente, porque a presença dela, o som da sua voz, a maneira como se movia, a sua alegria ou a sua tristeza, tudo o fazia feliz. O mundo era deslumbrantemente agradável quando estava com ela. A comida era deliciosa, o calor do sol aquecia-lhe os ossos e sentia aquela fome pela carne dela que tornava a vida sagrada. E quando dormia com ela nunca tinha medo daqueles pesadelos que precediam a madrugada.

Tinham-se passado três semanas desde a última vez que vira Athena, mas falara com ela nessa mesma manhã. Telefonara-lhe para França a dizer-lhe que ia a caminho, e detectara a felicidade na voz dela, porque agora sabia que ele continuava vivo. Era possível que ela o amasse. E agora, em menos de vinte e quatro horas, ia vê-la.

Cross tinha fé que algum dia ela havia de amá-lo verdadeiramente, que o recompensaria pelo seu amor, que nunca o julgaria e que, como um anjo, o salvaria do Inferno.

Athena Aquitane era provavelmente a única mulher em França que se maquilhava e vestia para destruir a sua própria beleza. Não que tentasse parecer feia, não era masoquista, mas chegara a um ponto em que via na sua beleza física um perigo para o seu mundo interior. Detestava o poder que ela lhe conferia sobre as outras pessoas. Detestava a vaidade que continuava a desfear-lhe o espírito. Interferia com aquilo que ela sabia que ia ser o trabalho da sua vida.

No seu primeiro dia no Instituto para Crianças Autistas, em Nice, quisera parecer-se com aquelas crianças, mover-se como elas. Sentira-se invadida por uma necessidade de identificação. Nesse dia, relaxou os músculos faciais até conseguir imitar a serenidade vazia de alma dos pensionistas do Instituto, tentou caminhar da maneira um pouco arrastada e enviesada de algumas das crianças que tinham problemas motores.

O Dr. Gérard reparou nisto e disse-lhe, sardonicamente:

- Oh, muito bem, mas está a ir na direcção errada. - Depois pegou-lhe nas mãos e acrescentou, num tom mais gentil:- Não deve identificar-se com o infortúnio deles. Deve combatê-lo.

Athena sentiu-se censurada e envergonhada. Uma vez mais, a sua vaidade de actriz conduzira-a na direcção errada. Mas sentia-se em paz consigo mesma a cuidar daquelas crianças. Pouco lhes importava que o francês dela fosse imperfeito, de qualquer maneira não compreendiam o significado das suas palavras.

Nem sequer as duras realidades a desencorajavam. As crianças eram por vezes destrutivas, não reconheciam as regras da sociedade. Lutavam umas com as outras e com as enfermeiras, espalhavam as próprias fezes pelas paredes, urinavam onde bem lhes apetecia. Por vezes eram verdadeiramente assustadoras na sua ferocidade, na maneira como repeliam o mundo exterior.

As únicas ocasiões em que Athena se sentia impotente era à noite, no pequeno apartamento que alugara em Nice, onde estudava a literatura do Instituto. Eram relatórios sobre a evolução dos diversos casos, e eram assustadores. Depois enfiava-se na cama e chorava. Ao contrário dos filmes que tinha vivido, aqueles relatórios tinham quase sempre finais infelizes.

Quando recebeu o telefonema de Cross, a dizer que ia a caminho, sentiu uma onda de felicidade e de esperança. Ele estava vivo, ele havia de ajudá-la. Depois foi assaltada por dúvidas. Consultou o Dr. Gérard.

O que acha que seria melhor? - perguntou.

Pode ser uma grande ajuda para a Bethany - respondeu o médico. - Gostaria muito de ver como é que ela se relaciona com ele ao longo de um período de tempo. E pode ser muito bom para si. As mães não devem ser mártires por amor dos filhos.

Athena pensou nestas palavras enquanto se dirigia ao aeroporto de Nice para ir buscar Cross.

No aeroporto, Cross teve de fazer a pé o percurso entre o avião e o terminal. A temperatura estava amena e o ar perfumado, nada como o calor sufocante e a atmosfera sulfurosa de Las Vegas. À volta do átrio de recepção cresciam luxuriantes canteiros de flores vermelhas e púrpura.

Viu Athena à sua espera, e mais uma vez ficou espantado com a habilidade dela para mudar de aspecto. Não conseguia esconder completamente a sua beleza, mas conseguia disfarçá-la. Uns óculos de lentes coloridas e armação dourada transformavam-lhe os olhos de um verde brilhante em cinzento. As roupas que vestia faziam-na parecer mais forte e mais pesada. Os cabelos louros estavam escondidos sob um chapéu de ganga azul cuja larga aba quase lhe escondia um dos lados do rosto. Experimentou uma excitante sensação de posse ao pensar que era ele o único a saber como ela era realmente bonita.

Quando Cross se aproximou, Athena tirou os óculos e guardou-os no bolso da blusa. Ele sorriu ao notar este gesto de irreprimível coqueteria.

Menos de uma hora mais tarde, estavam na suite do Hotel Negresco, onde Napoleão dormira com Josefina. Ou pelo menos era o que afirmava a brochura publicitária que encontraram em cima da pequena mesa da saleta. Um empregado do serviço de quartos bateu à porta e levou-lhes uma bandeja com uma garrafa de vinho e um prato cheio de minúsculas sanduíches. Deixou-a na mesa da varanda sobranceira ao Mediterrâneo.

Ao princípio, pareceram pouco à vontade um com o outro. Athena pegou-lhe na mão, como se quisesse ser ela a tomar a iniciativa, e o contacto da sua carne quente e macia fez subir em Cross uma onda de desejo. Apercebeu-se, no entanto, que ela não estava ainda realmente pronta.

A suite estava ricamente mobilada, mais opulenta do que qualquer das villas do Xanadu. A cama tinha um dossel de seda vermelha escura, os cortinados a condizer eram salpicados de flores de lis douradas. As mesas e as cadeiras tinham uma elegância que nunca poderia ter existido no mundo de Vegas.

Athena levou Cross para a varanda, e quando o fez ele beijou-a levemente na face. Então ela não pôde conter-se mais, pegou no guardanapo húmido que estava enrolado em torno do gargalo da garrafa e limpou toda aquela maquilhagem que a desfigurava. O rosto dela cintilou com o brilho de minúsculas gotículas de água, a pele radiante e rosada. Pousou uma mão no ombro dele e beijou-o ternamente nos lábios.

Da varanda, viam as casas de pedra de Nice, tingidas de verdes e azuis já muito esbatidos de pinturas que tinham centenas de anos. Lá em baixo, os cidadãos de Nice deambulavam pela Promenade des Anglais, na praia pedregosa corpos jovens, quase nus, nadavam na água azul-esverdeada, enquanto grupos de crianças brincavam na areia. Ao longe, elegantes iates brancos patrulhavam o horizonte.

Cross e Athena tinham provado o seu primeiro golo de vinho quando ouviram aquela espécie de rugido surdo e abafado. Do paredão oriental, daquilo que parecia a boca de um canhão mas era na realidade a saída do cano de esgoto, uma grande golfada de líquido castanho saltou para as límpidas águas azuis do Mediterrâneo.

Athena desviou a cabeça.

Quanto tempo vais ficar? - perguntou a Cross.

Cinco anos, se me deixares.

Isso é uma loucura - respondeu ela, franzindo a testa. - O que é que podes fazer aqui?

Sou rico, talvez compre um pequeno hotel. ' O que foi que aconteceu ao Xanadu? Tive de vender a minha posição - Cross fez uma pequena pausa. - Não vamos ter de preocupar-nos com questões de dinheiro.

Eu tenho dinheiro - afirmou Athena. - Tens de compreender. Vou ficar aqui cinco anos, e depois vou levá-la para casa. Não quero saber do que as pessoas dizem, nunca mais voltarei a interná-la numa instituição, vou tomar conta dela enquanto viver. E se alguma coisa lhe acontecer, a minha vida será com crianças como ela. Por isso, como vês, nunca poderemos ter uma vida juntos.

Cross compreendia-a perfeitamente. Demorou muito tempo a pensar a sua resposta.

A voz dele soou forte e decidida quando disse:

- Athena, a única coisa de que tenho realmente a certeza neste momento é do meu amor por ti e pela Bethany. Tens de acreditar nisto. Não vai ser fácil, eu sei, mas faremos o melhor que pudermos. O que tu queres é ajudar a Bethany, não ser uma mártir. Para isso, temos de dar o salto final. Farei tudo o que puder para te ajudar. Escuta, seremos como jogadores no meu casino. As probabilidades estão contra nós, mas há sempre uma hipótese de bater as probabilidades.

Cross viu-a enfraquecer, e insistiu.

- Casa comigo - pediu. - Podemos ter outros filhos e viver como pessoas normais. Tentemos corrigir com os nossos filhos aquilo que parece estar mal no nosso mundo. Todas as famílias têm os seus infortúnios, esforcemo-nos o mais que pudermos para inverter esse movimento. Sei que somos capazes. Acreditas em mim?

Finalmente, Athena olhou-o nos olhos.

- Só se acreditares que eu te amo de verdade - disse.

No quarto, quando fizeram amor, aceitaram-se um ao outro na base da fé; Athena acreditava que Cross a ajudaria a salvar Bethany, e Cross acreditava que Athena o amava. Quando finalmente ela voltou o corpo para ele, disse:

- Amo-te. Amo-te muito.

Cross inclinou a cabeça para a beijar. Ela repetiu:

- Amo-te muito.

E Cross pensou: que homem neste mundo seria capaz de não acreditar?

Sozinho no seu quarto, o Don puxou os lençóis frios até ao pescoço. A morte aproximava-se, e ele era demasiado astuto para não se aperceber dessa proximidade. Mas tudo correra de acordo com os seus planos. Ah! era tão fácil enganar os jovens.

Durante os últimos cinco anos, tinha visto em Dante a principal ameaça ao seu grande desígnio. Dante opor-se-ia à dissolução da Família Clericuzio no seio da sociedade legal. E, no entanto, o que podia ele, o Don, fazer? Ordenar a morte do filho da sua filha, do seu próprio neto? Teriam Giorgio, Vin-cent e Petie obedecido a uma tal ordem? E se obedecessem, não o julgariam uma espécie de monstro? Não passariam a temê-lo mais do que o amavam? E Rose Marie, o que restaria então da sua sanidade mental, pois sem a mínima dúvida adivinharia a verdade?

Quando Pippi De Lena fora assassinado, os dados tinham sido lançados. O Don soubera imediatamente a verdade, investigara o relacionamento de Dante com Losey e fizera o seu julgamento.

Mandara Vincent e Petie guardar Cross, com carro blindado e tudo. E depois, para avisar Cross, contara-lhe a história da guerra contra os Santa-dio. Era tão difícil endireitar o mundo! E quando ele morresse, quem restaria para tomar aquelas terríveis decisões? Resolvera então, de uma vez por todas, que os Clericuzio fariam a sua retirada final.

Vinnie e Petie ocupar-se-iam exclusivamente dos seus restaurantes e empresa de construções. Giorgio compraria empresas em Wall Street. A retirada seria completa. Até o Enclave do Bronx deixaria de ser reabastecido em homens. Os Clericuzio estariam finalmente a salvo e lutariam contra os novos criminosos que estavam a surgir por toda a América. Nunca se acusaria por erros passados, a perda da felicidade da filha e a morte do neto. Ao fim e ao cabo, conseguira libertar Cross.

Antes de adormecer, o Don teve uma visão. Viveria para sempre, o sangue dos Clericuzio faria para sempre parte da Humanidade. E fora ele, ele sozinho, com a sua virtude, quem criara aquela linhagem. Mas, oh, que perverso era aquele mundo que obrigava um homem a pecar!



 

[1] A palavra "rustler" significa concretamente "ladrão de gado", designação que aparentemente tem ainda, na América actual, algumas conotações pitoresco-românticas. As traduções possíveis no presente contexto ("aldrabão", "trapaças", etc.) são todas muito mais pejorativas, em português, e não descrevem a personagem. Pareceu preferível, por isso, manter o termo inglês.

[2] Trata-se aqui do Internal Revenue Service, ou seja, o Fisco nos Estados Unidos, e não do nosso Imposto sobre Rendimentos, mas o efeito, no fundo, é o mesmo.

[3] Fruto citrino originário da China.

[4] Mais uma expressão do golfe que significa enfiar a bola de um buraco no seguinte com uma única tacada.

[5] Espécie de presunto italiano que se serve geralmente em fatias muito finas.

[6] Filadélfia.

[7] Um conto para crianças americano que não faz parte da nossa "mitologia" infantil. Poder-se-ia traduzir por "Caracóis dourados e os três ursos", mas isso não é importante, como não é importante conhecer a história, uma vez que o autor explica suficientemente a razão da referência.

[8] "Catering" designa o serviço profissional completo de banquetes para casamentos e outras festas. Em Portugal existem já algumas empresas que prestam este tipo de serviço, e o anglicismo parece estar a firmar-se entre nós. Por isso pareceu preferível não o traduzir.

[9] A frase traduz-se literalmente por "AQUELES (neste caso aquelas) QUE BEIJAM O RABO A STEVE STALLINGS", mas a expressão "ass kisser" corresponde semanticamente a "lambe botas" ou, num sentido mais lato e menos pejorativo, "fã". Aqui é usada com ambos os significados. Daí a não tradução. E a nota.

[10] Os direitos Miranda, como qualquer telespectador sabe, são os contidos no célebre: "Tem o direito de permanecer calado... etc". ACLU é o acrónimo de Américan Civil Liberties Union (União Américana das Liberdades Cívicas)

[11] Los Angeles Police Department.

 

                                                                                            Mario Puzo

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades