Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
PANTALEÓN E AS VISITADORAS
— Acorde, Panta — diz Pochita. — São oito horas. Panta, Pantita.
— Oito, já? Puxa, que sono — boceja Pantita. — Você costurou meu galão?
— Sim, meu tenente — perfila-se Pochita. —- Ui, perdão, meu capitão. Até que me acostume, você vai continuar tenentinho, amor. Sim, já, ficou magnífico. Mas levante-se de uma vez, seu encontro a que horas é?
— Às nove, sim — ensaboa-se Pantita. — Para onde nos mandarão, Pocha? Passe a toalha, por favor. Você tem algum palpite, preta?
— Aqui, em Lima — Pochita contempla o céu cinzento, os terraços, os automóveis, os pedestres. — Ui, fico com água na boca: Lima, Lima, Lima.
— Não sonhe, Lima nunca, que esperança — Panta olha-se no espelho, aperta o nó da gravata. — Se pelo menos fosse uma cidade como Trujillo ou Tacna, eu me sentiria feliz.
— Que gozada esta notícia no El Comercio — Pochita faz uma careta. — Um sujeito se crucificou em Leticia para anunciar o fim do mundo. Foi metido no hospício, mas o povo o tirou de lá à força porque acreditam que é santo. Leticia é a parte colombiana da selva, não é?
— Que bonito você ficou de capitão, filhinho — põe a geléia, o pão e o leite sobre a mesa a Sra. Leonor.
— Agora é Colômbia, antes era Peru, ela nos foi tirada — Panta besunta de manteiga uma torrada. — Sirva-me um pouquinho mais de café, mamãe.
— Podiam nos mandar de novo a Chiclayo — recolhe as migalhas em um prato e tira a toalha a Sra. Leonor. — Afinal de contas, lá passamos tão bem, não é verdade? Para mim, o principal é que não nos afastem muito da costa. Ande, filhinho, boa sorte, leve minha bênção.
— Em nome do Pai e do Espírito Santo e do Filho QUE MORREU NA CRUZ — eleva os olhos para a noite, baixa os olhos às tochas o Irmão Francisco. — Minhas mãos estão amarradas, o lenho é oferenda, persignem-se por mim!
— O Coronel López López está me esperando, senhorita — diz o Capitão Pantaleón Pantoja.
— E também dois generais — faz dengues a senhorita. — Passe, capitão. Sim, essa, a porta marronzinha.
— Aqui está o homem — levanta-se o Coronel López López. — Aproxime-se, Pantoja, felicitações por esse novo galão.
— A nota mais alta no exame de acesso, e por unanimidade da banca — aperta a mão, bate no ombro o General Victoria. — Bravo, capitão, assim se faz carreira e pátria.
— Sente-se, Pantoja — aponta um sofá o General Collazos. — Fique à vontade e segure-se bem para ouvir o que vai ouvir.
— Não o assuste, Tigre — mexe as mãos o General Victoria. — Vai pensar que o mandamos ao matadouro.
— Que para comunicar-lhe o seu novo destino tenham vindo os chefões da Intendência em pessoa, isso lhe indica que a coisa tem os seus bemóis — adota uma expressão grave o Coronel López López. — Sim, Pantoja, trata-se de um assunto bastante delicado.
— A presença desses chefes é uma honra para mim — faz soar os calcanhares o Capitão Pantoja. — Puxa, o senhor me deixa muito intrigado, meu coronel.
— Quer fumar? — tira uma cigarreira, um isqueiro o Tigre Collazos. — Mas não fique aí de pé, sente-se. Então, não fuma?
— Aí está, uma vez pelo menos o Serviço de Inteligência acertou — acaricia uma fotografia o Coronel López López.
— Tal e qual: nem fumante, nem bêbado, nem olho grande.
— Um oficial sem vícios — admira-se o General Victoria.
— Já temos quem represente a arma no paraíso, junto a Santa Rosa e a San Martin de Porres.
— Também não exagerem — ruboriza-se o Capitão Pantoja. — Devo ter alguns vícios que não são conhecidos.
— Conhecemos do senhor mais que o senhor mesmo — levanta e deposita outra vez na escrivaninha uma pasta o Tigre Collazos. — Ficaria vesgo se soubesse quantas horas dedicamos a estudar sua vida. Sabemos o que fez, o que não fez e até o que fará, capitão.
— Podemos recitar sua folha de serviços de memória — abre a pasta, mistura fichas e formulários o General Victoria.
— Nem um só castigo como oficial e cadete, apenas meia dúzia de advertências leves. Por isso foi o escolhido, Pantoja.
— Entre cerca de oitenta oficiais de Intendência, nada menos — levanta uma sobrancelha o Coronel López López.
— Agora pode inchar-se como um pavão real.
— Agradeço-lhes o bom conceito que têm de mim — escurece a vista do Capitão Pantoja. — Farei tudo o que possa para corresponder a essa confiança, meu coronel.
— O Capitão Pantaleón Pantoja? — sacode o telefone o General Scavino. — Mal o escuto. Que você o manda para quê, Tigre?
— Em Ghiclayo deixou magnífica recordação — examina um informe o General Victoria. — O Coronel Montes estava louco para conservá-lo. Parece que o quartel funcionou como um relógio graças a você.
— “Organizador nato, sentido matemático da ordem, capacidade executiva” — lê o Tigre Collazos. — “Conduziu a administração do regimento com eficácia e verdadeira inspiração.” Puxa, o zambo Montes apaixonou-se por você.
— Confundem-me tantos elogios — baixa a cabeça o Capitão Pantoja. — Sempre tratei de cumprir com o meu dever e nada mais.
— O serviço de quantas? — solta uma gargalhada o General Scavino. — Nem você nem Victoria podem me enganar, Tigre, esqueceram-se de que sou careca?
— Bem, ao touro pelos chifres — sela seus lábios com um dedo o General Victoria. — O assunto exige a mais absoluta reserva. Refiro-me à missão que lhe será confiada, capitão. Mostre-lhe o cuco, Tigre.
— Em síntese, a tropa da selva anda se atirando às mulheres — toma alento, pestaneja e tosse o Tigre Collazos. — Há violações a granel e os tribunais não dão conta de julgar tanto safado. Toda a Amazônia está alvoroçada.
— Bombardeiam a gente todo dia com partes e denúncias — belisca a barbicha o General Victoria. — E até dos povoados mais distantes chegam a vir comissões de protesto.
— Seus soldados abusam de nossas mulheres — aperta o chapéu e perde a voz o Prefeito Paiva Runhuí. — Me desgraçaram uma cunhadinha há poucos meses e na semana passada quase desgraçaram minha própria esposa.
— Meus soldados não, os da nação — faz gestos apaziguadores o General Victoria. — Calma, calma, senhor prefeito. O Exército lamenta muitíssimo o contratempo de sua cunhada e fará quanto possa para ressarci-la.
— Agora chamam contratempo ao estupro? — transtorna-se o Padre Beltrán. — Porque foi isso o que houve.
— Dois fardados, vindos da chácara, agarraram Florcita, e montaram nela em pleno caminho — rói as unhas e pula o Prefeito Teófilo Morey. — Com tão boa pontaria que agora está grávida, general.
— Vai identificar para mim estes bandidos, Srta. Dorothea — grunhe o Coronel Peter Casahuanqui. — Sem chorar, sem chorar, verá logo como arranjo isso.
— Já pensou que tenho de aparecer? — soluça Dorothea.
— Eu, sozinha, diante de todos os soldados?
— Vão desfilar por aqui, frente à guarda — esconde-se atrás da rede metálica o Coronel Máximo Dávila. — A Srta. vai espiando os soldados pela janela e logo que descubra os abusados, aponta-os para mim, Srta. Jesus.
— Abusados? — salpica baba o Padre Beltrán. — Viciados, canalhas e miseráveis, é melhor dizer. Fazer semelhante infâmia a Dona Asunta! Desprestigiar assim a farda!
— Luisa Cánepa, minha criada, foi violada por um sargento, e depois um cabo e depois um soldado raso — limpa seus óculos o Tenente Bacacorzo. — A coisa lhe agradou, ou sei lá, o certo é que agora se dedica à putaria sob o nome de Peituda e tem por cafetão um maricas a quem chama de Milcaras.
— Agora diga-me com qual destas pessoazinhas quer se casar, Srta. Dolores — passeia diante dos três recrutas o Coronel Augusto Valdés. — E o capelão os casa neste instante. Escolha, escolha, qual deles prefere para papai do seu futuro filhinho?
— Minha senhora foi pescada na própria igreja — permanece rígido na beira da cadeira o carpinteiro Adriano Lharque.
— Não a catedral, mas a de Santo Cristo de Bagazán, senhor.
— Assim é, queridos ouvintes — brama o Sinchi. — A esses sacrílegos lascivos não conteve o temor de Deus nem o respeito devido à sua santa casa nem as nobres cãs dessa matrona digníssima, semente já de duas gerações loretanas1.
1 Natural de Loreto, província do Peru banhada pelo rio Amazonas. (N. do E.)
— Começaram a me cercar, ai, meu Jesus, queriam me jogar no chão — chora a Sra. Cristina. — Caíam de bêbados, precisava ouvir as safadezas que diziam. Diante do altar-mor, eu lhe juro.
— À alma mais caritativa de toda Loreto, meu general! — retumba o Padre Beltrán. — Violaram-na cinco vezes!
— E também sua filhinha e sua sobrinha e sua afilhadinha, já sei, Scavino — sopra a caspa de suas ombreiras o Tigre Collazos. — Mas esse padreco Beltrán está conosco ou com eles? É ou não capelão do Exército?
— Protesto como sacerdote e também como soldado, meu general — encolhe o ventre, estufa o peito o Major Beltrán.
— Porque esses abusos prejudicam tanto à instituição quanto às vítimas.
— É muito errado o que os recrutas pretendiam com a dama, naturalmente — contemporiza, sorri, curva-se o General Victoria. — Mas os parentes quase os matam a pauladas, não se esqueça. Tenho aqui o laudo médico: costelas partidas, hematomas, orelha rasgada. Neste caso houve empate, doutorzinho.
— Para Iquitos? — pára de borrifar a camisa e levanta o ferro Pochita. — Ui, que longe nos mandam, Panta.
— Com madeira fazes o fogo que cozinha teus alimentos, com madeira constróis a casa em que vives, a cama em que dormes e a balsa com que atravessas o rio — pendura por cima do bosque de cabeças imóveis, rostos ansiosos e braços abertos o Irmão Francisco. — Com madeira fabricas o arpão que pesca o paiche, a pucuna que caça o ronsoco e o caixão onde enterras o morto. Irmãs! Irmãos! Ajoelhem-se por mim!
— É um senhor problema, Pantoja — meneia a cabeça o Coronel López López. — Em Contamana, o prefeito baixou um édito pedindo aos cidadãos que encerrem as mulheres em suas casas nos dias de folga da tropa.
— E depois, que longe do mar — solta a agulha, arremata o fio e o corta com os dentes a Sra. Leonor. — Haverá muitos pernilongos na selva? São meu suplício, você já sabe.
— Preste atenção nesta lista — coca a testa o Tigre Collazos. — Quarenta e três grávidas em menos de um ano. Os paroquianos do Padre Beltrán casaram umas vinte, mas, claro, o mal exige medidas mais radicais que casamentos à força. Até agora castigos e repreensões não mudaram o panorama: soldado que chega à selva vira um porra-louca.
— Mas o mais desanimado com o lugar parece você, amor — vai abrindo e sacudindo maletas Pochita. — Por quê, Panta?
— Deve ser o calor, o clima, não acredita? — anima-se o Tigre Collazos.
— Muito possivelmente, meu general — gagueja o Capitão Pantoja.
— A umidade morna, aquela exuberância da natureza — passa a língua pelos lábios o Tigre Collazos. — Comigo acontece sempre: é chegar à selva e começar a respirar fogo, a sentir que o sangue ferve.
— Se a generala ouvisse você — ri o General Victoria —, ai de suas garras, Tigre.
— A princípio pensamos que era a dieta — dá umas palmadas na barriga o General Collazos. — Que nas guarnições se usava muito tempero, alguma coisa que exacerbava o apetite sexual da gente.
— Consultamos especialistas, inclusive um suíço, que custou bastante dinheiro — esfrega dois dedos o Coronel López López. — Um dietista cheio de títulos.
— Pas d’inconvenient — anota numa cadernetinha o Professor Bernard Lahoé. — Vamos preparar uma dieta que, sem diminuir as proteínas necessárias, enfraqueça a libido dos soldados em oitenta e cinco por cento.
— Mas não vá exagerar — murmurou o Tigre Collazos. —- Também não queremos uma tropa de eunucos, doutor.
— Horcones a Iquitos, Horcones a Iquitos — impacienta-se o Alferes Santana. — Sim, gravíssimo, de suma urgência. Não obtivemos os resultados previstos com a Operação Rancho Suíço. Meus homens morrem de fome, ficam tuberculosos. Hoje, mais dois desmaiaram na revista, meu comandante.
— Nada de gracejos, Scavino — prende o fone entre a orelha e o ombro enquanto acende um cigarro o Tigre Collazos.
— Demos voltas e mais voltas e é a única solução. Vou lhe mandar Pantojita com sua mãe e sua mulher. Faça bom proveito.
— Pochita e eu já nos acostumamos à idéia e estamos felizes por ir a Iquitos — dobra lenços, põe em ordem as saias, empacota sapatos a Sra. Leonor. — Mas você continua aborrecido. Como é isso, filhinho.
— Você é o homem, Pantoja — levanta-se e o abraça o Coronel López López. — Você vai acabar com esse quebra-cabeça.
— Além disso é uma cidade, Panta, e parece que é linda — joga trapos no lixo, faz laçadas, fecha bolsas Pochita. — Não fique com essa cara, pior se fosse a montanha, não?
— Na verdade, meu coronel, não sei como — engole saliva o Capitão Pantoja. — Mas farei o que me ordenem, naturalmente.
— Quanto antes, ir à selva — toma um ponteiro e marca um lugar no mapa o Coronel López López. — Seu centro de operação será Iquitos.
— Vamos chegar à raiz do problema e liquidá-lo em seu habitat —- bate em sua mão aberta com o punho o General Victoria. — Por que, como você já adivinhou, Pantoja, o problema não é só o das senhoras ultrajadas.
— Também o dos recrutas condenados a viver como castas pombas nesse calor tão pecaminoso — estala a língua o Tigre Collazos. — Servir na selva é bravura, Pantoja, muita bravura.
— Nos vilarejos amazônicos todas as saias têm dono — gesticula o Coronel López López. — Não há bordéis nem garotas fáceis nem nada parecido.
— Passam a semana encerrados, cumprindo missões na selva, sonhando com o seu dia de folga — imagina o General Victoria. — Caminham quilômetros até o povoado mais próximo. E o que acontece quando chegam?
— Nada, pela maldita falta de fêmeas — encolhe os ombros o Tigre Collazos. — Então, os que não a superam, perdem o controle e, ao primeiro copo de aniz, lançam-se como pumas sobre o que encontram à frente.
— Já aconteceram casos de pederastia e até de bestialidade — explica o Coronel López López. — Imagine que um cabo de Horcones foi surpreendido fazendo vida de casado com uma macaca.
— A macaca atende ao absurdo apelido de Mamadeira da Quinta Quadra — contém o riso o Alferes Santana. — Ou antes, atendia, porque a matei com uma bala. O degenerado está na prisão, meu coronel.
— Afinal, a abstinência nos traz uma corrupção de mil diabos — disse o General Victoria. — E desmoralização, nervosismo, apatia.
— É preciso dar de comer a esses esfomeados, Pantoja — olha-o solenemente o Tigre Collazos. — Aí entra você, é aí que vai aplicar seu cérebro organizador.
— Por que você fica tão aturdido e quietinho, Panta? — guarda a passagem na bolsa e pergunta onde é a saída para o avião Pochita. — Teremos um grande rio, poderemos tomar banhos, fazer passeios até as tribos. Anime-se, bobo.
— O que há com você, está tão esquisito, filhinho? — observa as nuvens, as hélices, as árvores a Sra. Leonor. — Não abriu a boca durante toda a viagem. O que é que tanto preocupa você?
— Nada, mamãe, nada, Pochita — afivela o cinto de segurança Panta. — Estou bem, não tenho nada. Olhem, já estamos chegando. Esse deve ser o Amazonas, não?
— Em todos estes dias você esteve como um idiota — coloca os óculos de sol, tira o agasalho Pochita. — Você não dizia uma palavra, sonhava com os olhos abertos. Ui, isto é um inferno. Nunca vi você tão mudado, Panta.
— Estava um pouco inquieto com o meu novo destino, mas já passou — tira a carteira, estende umas notas ao chofer Panta. — Sim, chefe, número 549, Hotel Lima. Espere, mamãe, eu a ajudo a descer.
— Você é um militar, não? — atira sua maleta de viagem sobre uma cadeira, descalça-se Pochita. — Sabia que podiam mandar você a qualquer lado. Iquitos não está mal. Panta, você não vê como parece um lugar simpático?
— Você tem razão, eu me portei como um bobo — abre o guarda-roupa, pendura um uniforme e um terno Panta. — Talvez me tenha apegado muito a Chiclayo; juro que já passou. Bem, vamos desfazer as maletas. Que calorzinho este, não, preta?
— Por mim, ficaria vivendo a vida toda num hotel — deixa-se cair de costas na cama, espreguiça-se Pochita. — Fazem tudo, não é preciso a gente se preocupar com nada.
— E ficaria bem receber o Cadete Pantoja num hotelzinho? — tira a gravata, a camisa Panta.
— Ao Cadete Pantoja? — abre os olhos, desabotoa a blusa, apóia um cotovelo no travesseiro Pochita. — Verdade? Já podemos encomendá-lo, Pantita?
— Não prometi a você quando chegasse o terceiro galão? — estende suas calças, dobra, e as pendura Panta. — Será um loretano, que é que você acha?
— Maravilhoso, Panta — ri, bate palmas, revira-se no colchão Pochita. — Ui, que felicidade, o Cadetinho Pantita Júnior.
— É preciso encomendá-lo o mais depressa possível — abre e avança as mãos Panta. — Para que chegue rapidinho. Venha, preta, por que foge.
— Ouça, ouça, o que há com você — pula da cama e corre até o banheiro Pochita. — Você ficou louco?
— Venha, venha, o cadetinho — tropeça numa maleta, derruba uma cadeira Panta. — Vamos encomendá-lo agora mesmo. Venha, Pochita.
— Mas são onze horas da manhã, acabamos de chegar — bate com as mãos, afasta, empurra, se aborrece Pochita. — Solte-me, sua mãe vai ouvir, Panta.
— Para estrear Iquitos, para estrear o hotel — arqueja, luta, abraça, escorrega Pantita. — Venha, amorzinho.
— Está vendo o que lucrou com tanta denúncia e tantas partes — brande um ofício cheio de selos e assinaturas o General Scavino. — Também o senhor tem culpa nisto, Comandante Beltrán: olhe o que esse sujeito vem organizar em Iquitos.
— Você vai rasgar a saia — protege-se atrás do guarda-roupa, atira uma almofada, pede paz Pochita. — Não reconheço você, Panta, sempre tão formalzinho, o que está acontecendo? Deixe, eu mesma tiro.
— Queria sanar um mal, não causá-lo — lê e relê o rosto envergonhado do Comandante Beltrán. — Nunca imaginei que o remédio seria pior que a enfermidade, meu general. Inconcebível, iníquo. O senhor vai permitir este horror?
— O sutiã, as meias — transpira, deita-se, encolhe-se, estira-se Pantita. — Tigre tinha razão: a umidade cálida, respira-se fogo, o sangue ferve. Ande, belisque-me onde me agrada. Na orelhinha, Pocha.
— Tenho vergonha de dia, Panta — queixa-se, enrola-se na colcha, suspira Pochita. — Você vai ficar dormindo, não tem que estar no comando às três? Você sempre fica.
— Tomo uma ducha — ajoelha-se, dobra-se, desdobra-se Pantita. — Não fale comigo, não me distraia. Belisque-me na orelhinha. Assim, assinzinho. Ai, estou me sentindo morrer, preta, já não sei quem sou.
— Sei muito bem quem é você e por que veio a Iquitos — murmurou o General Roger Scavino. — E logo já lhe participo que não me alegra, em absoluto, sua presença nesta cidade. Quero as coisas claras, desde o princípio, capitão.
— Desculpe, meu general — balbucia o Capitão Pantoja. — Deve haver algum mal-entendido.
— Não estou de acordo com o serviço que vem organizar — aproxima a careca do ventilador e entrecerra, por um instante, os olhos o General Scavino. — Eu me opus desde o princípio e continuo pensando que é uma barbaridade.
— E, principalmente, uma imoralidade sem nome — abana-se com raiva o Padre Beltrán.
— O comandante e eu nos calamos porque os superiores ordenam — desdobra o lenço e enxuga o suor da testa, das fontes e do pescoço o General Scavino. — Mas não nos convenceram, capitão.
— Eu não tenho nada que ver com este projeto, meu general — transpira imóvel o Capitão Pantoja. — Tive a maior surpresa de minha vida quando fui informado, Padre.
— Comandante — corrige o Padre Beltrán. — Não sabe contar os galões?
— Perdão, meu comandante — bate ligeiramente os saltos o Capitão Pantoja. — Asseguro-lhe que não tive a menor intervenção.
— Não é o senhor um dos cérebros da Intendência que concebeu esta porcaria? — toma o ventilador, põe diante do rosto, crânio, e pigarreia o General Scavino. — De qualquer forma, há algumas coisas que devem ficar assentadas. Não posso evitar que isto prospere, farei, porém, que atinja o menos possível as Forças Armadas. Ninguém vai deslustrar a imagem que o Exército conquistou em Loreto desde que estou à frente da V Região.
— Esse é também meu desejo — olha por sobre o ombro do general a água barrenta do rio, uma lancha carregada de bananas, o céu azul, o sol ardente o Capitão Pantoja. — Estou disposto a fazer o possível.
— Porque aqui arrebentaria a guerra, se a notícia se espalha — eleva a voz, levanta-se, apóia as mãos no peitoril da janela o General Scavino. — Os estrategistas de Lima planejam essas indecências muito tranqüilos em seus escritórios porque quem agüentará a tormenta, se a coisa se torna pública, é o General Scavino.
— Estou de acordo com o senhor, precisa me acreditar — sua, vê empaparem-se as mangas do uniforme, implora o Capitão Pantoja. — Eu jamais pediria esta missão. É uma coisa tão diferente de meu trabalho habitual que nem sequer sei se serei capaz de cumpri-la.
— Sobre a madeira teu pai e tua mãe se uniram para te gerar e sobre a madeira forcejou e abriu as pernas para te parir a que te pariu — ulula e atroa, lá em cima, na escuridão, o Irmão Francisco. — A madeira sentiu SEU corpo, avermelhou-se com o SEU sangue, recebeu SUAS lágrimas, umedeceu-se com o SEU suor. A madeira é sagrada, o lenho traz saúde. Irmãs! Irmãos! Abram os braços por mim!
— Por essa porta desfilarão dezenas de pessoas, este escritório se encherá de protestos, de ofícios com assinaturas, de cartas anônimas — agita-se, dá uns passos, volta, abre e fecha o leque o Padre Beltrán. — Toda a Amazônia porá a boca no mundo e pensará que o arquiteto do escândalo é o General Scavino.
— Já ouço o demagogo do Sinchi vomitando calúnias contra mim pelo microfone — volta-se, irrita-se o General Scavino.
— Minhas instruções são que o serviço funcione sob o maior segredo — atreve-se a tirar o quepe, a passar um lenço pela testa, a limpar os olhos o Capitão Pantoja. — A todo instante levarei muito em conta essa disposição, meu general.
— Mas que diabos poderia inventar para aplacar o povo? — grita, contorna a escrivaninha o General Scavino. — Pensaram em Lima no papelzinho que me tocará representar?
— Se o senhor assim prefere, posso pedir hoje mesmo minha transferência — empalidece o Capitão Pantoja. — Para demonstrar-lhe que não tenho nenhum interesse no Serviço de Visitadoras.
— Arre! eufemismo que os gênios procuram — sapateia de costas, olhando o rio que cintila, as cabanas, a chapada de árvores o Padre Beltrán. — Visitadoras, visitadoras.
— Nada de transferências, em uma semana me mandariam outro intendente — volta a sentar-se, a abanar-se, a enxugar a careca o General Scavino. — Do senhor depende que isso não prejudique o Exército. Tem sobre os ombros uma responsabilidade do tamanho de um vulcão.
— Pode dormir tranqüilo, meu general — endurece o corpo, joga para trás os ombros, olha em frente o Capitão Pantoja. — O Exército é o que mais respeito e quero na vida.
— A melhor maneira que tem agora de servi-lo é manter-se afastado dele — suaviza o tom e experimenta uma expressão amável o General Scavino. — Enquanto estiver à frente desse serviço, pelo menos.
— Perdão? — pisca o Capitão Pantoja. — Como disse?
— Não quero que ponha nunca mais os pés no comando ou nos quartéis de Iquitos — expõe às pás zumbidoras e invisíveis a palma, o dorso das mãos o General Scavino. — Fica liberado de assistir a todos os atos oficiais, desfiles e te-déuns. Proibido, também, de usar uniforme. Vestirá unicamente traje civil.
— Devo ir à paisana inclusive ao meu trabalho? — continua piscando o Capitão Pantoja.
— Seu trabalho estará muito longe do comando — observa-o com receio, com consternação, com piedade o General Scavino. — Não seja ingênuo, homem. Chegou a pensar que poderia abrir um escritório aqui, para o tráfico que vai organizar? Destinei-lhe um depósito nas proximidades de Iquitos, às margens do rio. Vá lá sempre à paisana. Ninguém deve saber que aquele lugar tem a menor vinculação com o Exército. Entendido?
— Sim, meu general — levanta e baixa a cabeça o boquiaberto Capitão Pantoja. — Só que, afinal, eu não esperava uma coisa assim. Vai ser, não sei, como mudar de personalidade.
— Faça de conta que o destacaram para o Serviço de Inteligência — abandona a janela, aproxima-se dele, concede-lhe um sorriso benevolente o Comandante Beltrán —, que a sua vida depende de sua capacidade de passar despercebido.
— Tratarei de adaptar-me, meu general — balbucia o Capitão Pantoja.
— Também não convém que viva na Vila Militar, de modo que procure uma casinha na cidade — desliza o lenço pelas sobrancelhas, orelhas, lábios e nariz o General Scavino. — Rogo-lhe que não mantenha relações com os oficiais.
— Quer dizer relação amistosa, meu general? — perturba-se o Capitão Pantoja.
— Não há de ser amorosa — ri ou ronca ou tosse o Padre Beltrán.
— Sei que é duro, vai lhe custar muito — concorda com amabilidade o General Scavino. — Mas não há outro jeito, Pantoja. Sua missão o porá em contato com toda a ralé da Amazônia. A única maneira de evitar que isso venha a repercutir sobre a instituição é sacrificando-se o senhor mesmo.
— Em resumo, devo ocultar minha condição de oficial — percebe, ao longe, um menino nu que sobe a uma árvore, uma garça rosada e coxa, um horizonte de mato que arde o Capitão Pantoja. — Vestir como civil, juntar-me aos civis, trabalhar como civil.
— Mas pensar sempre como militar — dá um golpezinho na mesa o General Scavino. — Designei um tenente para que nos sirva de ligação. Vão se ver uma vez por semana e através dele o senhor me dará conta de suas atividades.
— Não se preocupe por nada: serei um túmulo — levanta o copo de cerveja e deseja saúde o Tenente Bacacorzo. — Estou a par de tudo, meu capitão. Parece-lhe bem que nos vejamos às terças-feiras? Pensei que o ponto de encontro seria sempre em barzinhos, bordéis. Agora terá que freqüentar muito esses ambientes, não?
— Faz com que me sinta um delinqüente, uma espécie de leproso — passa revista aos monos, louros e pássaros dissecados, aos homens que bebem de pé no balcão o Capitão Pantoja. — Como diabos vou começar a trabalhar se o próprio General Scavino me sabota? Se a própria autoridade começa por me desanimar, por pedir que me disfarce, que não me deixe reconhecer.
— Você foi ao comando tão contente e volta outra vez com cara de tolo — ergue-se, dá-lhe um beijo na face Pochita. — O que aconteceu, Panta? Você chegou tarde e o General Scavino o repreendeu?
— Eu o ajudarei no que puder, meu capitão — oferece-lhe fatias fritas de palmito o Tenente Bacacorzo. — Não sou um especialista, mas farei o possível. Não se queixe, muitos oficiais dariam qualquer coisa para estar em sua pele. Pense na liberdade que vai ter; o senhor mesmo decidirá seus horários, seu sistema de trabalho. Além de outras coisas boas, meu capitão.
— Vamos viver aqui, neste lugar tão feio? — olha as paredes sem revestimento, o assoalho sujo, as teias de aranha no teto a Sra. Leonor. — Por que não lhe deram uma casa na Vila Militar, que é tão bonita? É a sua falta de vontade outra vez, Panta.
— Não pense que me faço derrotista, Bacacorzo, só que ando terrivelmente desorientado — prova, mastiga, engole, sussurra o Capitão Pantoja. — Sou um bom administrador, é verdade. Mas me tiraram do meu elemento e nisto não sei atar nem desatar.
— Já deu uma olhada no seu centro de operações? — enche de novo os copos o Tenente Bacacorzo. — O General
Scavino passou uma circular: nenhum oficial de Iquitos pode se aproximar desse depósito do rio Itaya, sob pena de trinta dias de castigo.
— Ainda não, irei amanhã cedo — bebe, limpa a boca, contém um arroto o Capitão Pantoja. — Porque, sejamos francos, para cumprir essa missão tal como se pede, deveria ter experiência na matéria. Conhecer a vida noturna, ter sido um pouco farrista.
— Você vai ao quartel assim, Panta? — aproxima-se, apalpa a camisa sem manga, cheira as calças azuis, o gorrinho de jóquei Pochita. — E o seu uniforme?
— Infelizmente, não é o meu caso — se entristece, esboça um gesto envergonhado o Capitão Pantoja. — Nunca fui um farrista. Nem mesmo quando era mais moço.
— Não podemos estar com as famílias dos oficiais? — esgrime o espanador, a vassoura, um balde, sacode, limpa, varre, espanta-se a Sra. Leonor. — Temos de viver como se fôssemos civis?
— Imagine que, quando era cadete, nos dias de folga, preferia ficar estudando na escola — recorda saudoso o Capitão Pantoja. — Dando duro nas matemáticas, principalmente, é do que mais gosto. Nunca ia a festas. Embora lhe pareça mentira, só aprendi as danças mais fáceis: o bolerinho e a valsa.
— Nem os vizinhos devem saber que você é capitão? — esfrega vidraças, baldeia assoalhos, pinta paredes, assusta-se Pochita.
— Por isso, o que me acontece é horrível — olha ao redor com apreensão, fala-lhe muito perto do ouvido o Capitão Pantoja. — Como pode organizar um Serviço de Visitadoras alguém que nunca em sua vida teve contato com visitadoras, Bacacorzo?
— Uma missão especial? — encera portas, empapela armários, pendura quadros Pochita. — Você vai trabalhar com o Serviço de Inteligência? Ah, já compreendo tanto mistério, Panta.
— Penso nesses milhares de soldados que esperam, que confiam em mim — examina as garrafas, emociona-se, sonha o Capitão Pantoja —, que contam os dias e pensam, já vêm, já vão chegar, e meus cabelos ficam em pé, Bacacorzo.
— Que segredo militar coisa nenhuma — arruma roupeiros, cose cortininhas, tira o pó dos abajures, liga lâmpadas a Sra. Leonor. — Segredos com a sua mãezinha? Conte, conte.
— Eu não quero decepcioná-los — angustia-se o Capitão Pantoja. — Mas por onde merda vou começar?
— Se você não me conta, sairá perdendo — estende as camas, põe tapetes, enverniza móveis, ajeita os copos, pratos e talheres no aparador Pochita. — Nunca mais beliscõezinhos onde você gosta, nunca mais mordidinhas na orelha. Como você quiser, filhinho.
— Começando pelo princípio, meu capitão — anima-o com um sorriso e um brinde o Tenente Bacacorzo. — Se as visitadoras não vêm ao Capitão Pantoja, o Capitão Pantoja deve ir às visitadoras. É o mais simples, parece.
— De espião, Panta? — esfrega as mãos, contempla a casa, murmura quanto temos melhorado este chiqueiro, não é, Sra. Leonor? Pochita. — Como nos filmes? Ui, amor, que emocionante.
— Vá dar uma voltinha esta noite pela zona dos puteiros de Iquitos — anota endereços no guardanapo o Tenente Bacacorzo. — O Mao Mao, o 007, o Gato Zarolho, o São João-zinho. Para familiarizar-se com o ambiente. Eu o acompanharia encantado, mas, já sabe, as instruções de Scavino são categóricas.
— Aonde vai tão ridículo, filhinho? — a Sra. Leonor diz sim, ninguém o reconheceria, Pochita, nós merecemos um prêmio. — Puxa, até gravata botou. Vai se assar com o calor. Uma reunião de alto nível? De noite? Que engraçado você fica de agente secreto, Panta. Sim, psiu, psiu, me calo.
— Pergunte em qualquer um desses lugares pelo Chinês Porfirio — dobra e põe o guardanapo no bolsinho do capitão o Tenente Bacacorzo. — É um cara que pode ajudá-lo. Consegue “lavadeiras” a domicílio. Sabe o que são, não é?
— Por isso ELE não morreu afogado, nem queimado, nem enforcado, nem apedrejado, nem esfolado — geme e chora sobre o cintilar das tochas e o rumor das rezas o Irmão Francisco. — Por isso foi pregado em um madeiro, por isso preferiu a cruz. Ouça quem quiser ouvir, entenda quem quiser entender. Irmãs! Irmãos! Batam três vezes no peito por mim!
— Boa noite, aham, hmmm, ach — faz-se notar, senta-se na banqueta, apóia-se no balcão Pantaleón Pantoja. — Sim, uma cerveja, por favor. Acabo de chegar a Iquitos, estou conhecendo a cidade. Mao Mao é o nome deste local? Ah, por isso as flechinhas, os totens, agora compreendo.
— Aqui está, geladinha — serve, enxuga o copo, mostra o salão o garçom. — Sim, Mao Mao. Não há quase ninguém porque é segunda-feira.
— Eu gostaria de averiguar alguma coisa, aham, hmm, hmm — limpa a garganta Pantaleón Pantoja —, se fosse possível. Para informação, simplesmente.
— Onde se conseguem garotas? — forma uma argola com o polegar e o indicador o garçom. — Aqui mesmo, mas hoje foram ver o Irmão Francisco, o santo da cruz. Veio do Brasil na canela, dizem, e também que faz milagres. Mas olhe quem entra. Escute, Porfirio, venha aqui. Apresento-o ao senhor, está interessado em informações turísticas.
— Boldéis e maliposas? — pisca-lhe um olho, faz-lhe uma reverência, dá-lhe a mão o Chinês Porfirio. — Clalo, senhol. Encantado le ponho a par em dois minutos. Vai le custar apenas uma celvejinha, balato, veldade?
— Com muito prazer — indica-lhe que se sente na banqueta vizinha Pantaleón Pantoja. — Sim, claro, uma cerveja. Não faça confusão, não tenho interesse pessoal nisto, a não ser técnico.
— Técnico? — faz um ar de nojo o garçom. — Espero que não seja um dedo-duro, senhor.
— Boldéis, há muito poucos — mostra três dedos o Chinês Porfirio. — À sua saúde e boa vida. Dois decentes e um infeliol, pala mendigos. E há também as maliposas, que vão de casa em casa, pol sua conta. As “lavadeilas”, sabia?
— Ah, sim? Que interessante — anima-o com sorrisos Pantaleón Pantoja. — Pura curiosidade, eu não freqüento esses lugares. O senhor tem ligações? Quero dizer, amizades, contatos nesses lugares?
— O Chinês está na dele onde há putaria — ri o garçom. — Chamam-no de Fumanchu de Belén, não é, compadre? Belén é o bairro das casas flutuantes, a Veneza da Amazônia, já passou por lá?
— Eu fiz tudo na vida e não me alependo, senhol — sopra a espuma e bebe um gole o Chinês Porfirio. — Não ganhei dinhelo, mas expeliência. Biletelo de cinema, motolista de lancha, caçadol de selpentes pia expoltação.
— E de todos os empregos foi posto na rua por ser putanheiro e safado, irmão — acende-lhe o cigarro o garçom. — Cante para o senhor o que a sua mamãezinha profetizou para você.
“China que nasce pobletão
Mole cafetão ou ladlão”
canta e se festeja com gargalhadas o Chinês Porfirio. — Ai, minha mãezinha linda que está no santo céu. Como só se vive uma vez, é pleciso vivê-la, não é assim? Aliscamos a segunda geladinha da noite, senhol?
— Está bem, mas, ahm, hmm — ruboriza-se Pantaleón Pantoja —, ocorre-me algo melhor. Por que não mudamos de ambiente, meu amigo?
— O Sr. Pantoja? — transpira mel a Sra. Chuchupe. — Encantadíssima, entre, esta é sua casa. Aqui tratamos bem a todo mundo, exceto os sacanas dos milicos, que pedem abatimento. Olá, Chininha bandido.
— O Senhol Pantoja vem de Lima e é um amigo — beija faces, belisca traseiros o Chinês Porfirio. — Vai ablil um negocinho aqui. Você sabe, selviço de luxo, Chuchupe. Este anão aqui se chama Chupito e é a mascote do lugal, senhol.
— Diz melhor capataz, barman e guarda-costas, filho da mãe — entrega garrafas, recolhe copos, recebe contas, liga o toca-discos, estimula as mulheres na pista de baile Chupito. — Quer dizer, é a primeira vez que vem à Casa Chuchupe? Não será a última, vai ver. Há poucas meninas, porque foram ver o Irmão Francisco, aquele que levantou aquela grande cruz junto ao lago Morona.
— Eu também estive lá, havia muita gente e os batedoles de calteila deviam fazei sua Amélica — distribui adeuses o Chinês Porfirio. — Um oladol fantástico, o ilmão. A gente entendia pouco, mas emocionava todo mundo.
— Tudo o que pregas no lenho é oferenda, tudo o que acaba na madeira sobe e o recebe o QUE MORREU NA CRUZ — salmodia o Irmão Francisco. — A mariposa colorida que alegra a manhã, a rosa que perfuma o ar, o morcego de olhinhos que fosforescem na noite e até o bicho-de-pé que se encrava sob as unhas. Irmãs! Irmãos! Plantem cruzes por mim!
— Que cara de homem sério, embora não deva ser tanto se anda com esse chinês — limpa uma mesa com o braço, oferece cadeiras, adoça-se Chuchupe. — Vamos, Chupito, uma cerveja e três copos. A primeira rodada é cortesia da casa.
— Sabe o que é uma chuchupe? — assobia, mostra uma pontinha da língua o Chinês Porfirio. — A víbola mais venenosa da Amazônia. Já pensou nas coisas que dilá do gênelo humano esta senhola pala ganhal esse apelido.
— Quieto, esfarrapado — tapa-lhe a boca, serve os copos, sorri Chuchupe. — À sua saúde, Sr. Pantoja, bem-vindo a Iquitos.
— Uma língua vipelina — mostra os despidos entrançados das paredes, o espelho quebrado, as cortinas vermelhas, as franjas bamboleantes da poltrona multicor o Chinês Porfírio. — Só que é boa amiga e esta casa, embola tenha seus aninhos, é a melhol de Iquitos.
— Dê uma olhadela no que sobra do material — vai apontando o Chupito: — mestiças, brancas, japonesas, até uma albina. Olho bom o de Chuchupe para escolher sua gente, senhor.
— Que boa música, dá comichão nos pés da gente — levanta-se, toma o braço de uma mulher, arrasta-a para a pista, dança o Chinês Porfirio. — Pol favol, pala sacudil o esqueleto. Venha aqui, bunda glande.
— Posso convidá-la para uma cerveja, Sra. Chuchupe? — acaricia um incômodo sorriso e sussurra Pantaleón Pantoja.
— Gostaria de pedir-lhe alguns dados, se não a incomoda.
— Que sem-vergonha simpático este China, nunca tem dinheiro, mas como alegra a noite — amassa um papel, atira-o à cabeça de Porfirio, acerta no alvo Chuchupe. — Não sei o que vêem nele, todas morrem por ele. Veja como se mexe bem.
— Coisas relacionadas com seu, aham, hmm, negócio — insiste Pantaleón Pantoja.
— Sim, encantada — põe-se séria, concorda, autopsia-o com o olhar Chuchupe —, eu não acreditava que viesse falar de negócios, mas de outra coisa, Sr. Pantoja.
— Minha cabeça dói horrivelmente — aninha-se, cobre-se com os lençóis Pantita. — Estou indisposto, tenho calafrios.
— Como é que não vai doer, como é que não vai ter calafrios, e, além disso, eu me alegro muito — sapateia Pochita. — Você se deitou perto das quatro e chegou cambaleando, idiota.
— Você vomitou três vezes — trafega entre panelas, escovões e toalhas a Sra. Leonor —, deixou cheirando todo o quarto, filhinho.
— Você vai me explicar o que significa isso, Panta — aproxima-se da cama, deita chispas pelos olhos Pochita.
— Já lhe disse, amor, são coisas do trabalho — queixa-se entre os travesseiros Pantita. — Você sabe de sobra que não bebo, que não gosto da noite. Fazer estas coisas é um suplício para mim, preta.
— Quer dizer que vai continuar a fazê-las? — gesticula, faz beicinho Pochita. — Deitar-se ao amanhecer, embebedar-se? Isso é que não, Panta, juro que isso não.
— Vamos, não briguem — cuida do equilíbrio do copo, da jarra, da bandeja a Sra. Leonor. — Ande, filhinho, ponha esses paninhos frios e tome este Alka-Seltzer. Depressa, com as bolhinhas;
— É meu trabalho, é a missão que me deram — desespera-se, afina-se, perde-se a voz de Pantita. — Se eu odeio isto, você tem que acreditar em mim. Não posso dizer nada, não me faça falar, seria gravíssimo para minha carreira. Tenha confiança em mim, Pocha.
— Você esteve com mulheres — estala em soluços Pochita. — Os homens não se embriagam até o amanhecer sem mulheres. Tenho certeza de que você esteve, Panta.
— Pocha, Pochita, minha cabeça arrebenta, as costas doem — segura um pano sobre a fronte, procura com as mãos debaixo da cama, aproxima um urinol, cospe saliva e bile Pantita.
— Não chore, você me faz sentir-me como um criminoso, e eu não sou, juro que não sou.
— Feche os olhinhos, abra os beicinhos — adianta-se com uma xícara fumegante, franze a boca a Sra. Leonor. — E agora tome este cafezinho quentinho, filhinho.
SVGPFA
ASSUNTO GERAL: Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins.
ASSUNTO ESPECÍFICO: preparação do posto de comando e avaliação de lugar provável para alistamento.
CARACTERÍSTICAS: secreto.
DATA E LUGAR: Iquitos, 12 de agosto de 1956.
O abaixo assinado, Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, encarregado de organizar e pôr em funcionamento um Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins (SVGPFA) em toda a região amazônica, respeitosamente apresenta-se ao General Felipe Collazos, chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército, saúda-o e diz:
1. Que logo após chegar a Iquitos se apresentou ao Comando da V Região (Amazônia) para apresentar sua saudação ao General Roger Scavino, comandante-em-chefe, o qual, logo após tê-lo recebido com amabilidade e cordial simpatia, passou a comunicar-lhe algumas providências tomadas para levar a efeito a missão que lhe foi confiada, a saber: que a fim de preservar o bom nome da instituição convém que o abaixo assinado não compareça nunca ao Comando nem aos quartéis desta cidade, nem vista o uniforme, nem fixe residência na Vila Militar, nem tenha relações com os oficiais da praça, isto é, que atue a todo momento como um civil, já que as pessoas e ambientes que deverá freqüentar (a ralé, a sociedade prostibular) não condizem com as previsíveis comissões de um capitão das Forças Armadas. Que acata rigorosamente estas disposições, em que pese o doloroso que lhe resulta ocultar sua condição de oficial de nosso Exército, da qual se sente orgulhoso, e manter-se afastado de seus companheiros de arma, a quem considera seus irmãos, e em que pese a delicada situação familiar que isso lhe acarreta, porquanto também está obrigado a guardar, diante da senhora sua mãe e de sua própria esposa, a mais absoluta reserva sobre a missão, e portanto a faltar com a verdade quase todo o tempo como preito à harmonia familiar e ao bom êxito do trabalho. Que aceita estes sacrifícios, consciente do impostergável da operação de que os superiores o encarregaram e do interesse de nossos soldados, que servem a Pátria nas comarcas mais remotas da selva;
2. Que já tomou posse do local sito às margens do rio Itaya, destinado pelo Comando da V Região para posto de comando e centro logístico (recrutador/provedor) do Serviço de Visitadoras. Que já se colocaram sob suas ordens os soldados destacados para o Serviço, os que respondem pelos nomes de Sinforoso Caiguas e Palomino Rioalto, os quais, com muito critério, os superiores escolheram por seus dotes de excelente comportamento, docilidade e certa indiferença para com as pessoas do outro sexo, pois, caso contrário, o tipo de trabalho que terão e a idiossincrasia do meio que os envolverá, poderiam suscitar neles tentações e conseqüentes problemas ao Serviço. O abaixo assinado deseja fazer constar que o local onde se acha situado o posto de comando e centro logístico se reveste das melhores condições: antes de tudo, amplitude e proximidade do meio de transporte (rio Itaya); em seguida estar protegido de olhares indiscretos, pois a cidade se acha bem longe e o lugar povoado mais próximo, o Moinho de Arroz Garote, está na margem oposta (não há ponte). De outro lado, goza de boas possibilidades topográficas para instalar um pequeno embarcadouro, de modo que todas as remessas e recepções, depois que o Serviço de Visitadoras tenha estabelecido o seu sistema circulatório, possam ser efetuadas sob a vigilância direta do posto de comando;
3. Que na primeira semana o abaixo assinado teve que dedicar todo o seu tempo e esforços à limpeza e a habitabilidade do local, semiquadrilátero de 1 323 metros quadrados (uma quarta parte desta superfície está coberta com folha-de-flandres), cercado de tabiques de madeira e com dois portões, um para o atalho de Iquitos, outro em direção ao rio. A parte coberta é de 327 metros quadrados e está assoalhada; consta de dois pavimentos, sendo o superior só um lance saliente de madeira com sacada, ligado por uma escadinha de bombeiro. O abaixo assinado instalou ali seu posto de comando, escritório particular, caixa e arquivo. Na parte inferior — que pode ser observada, a todo momento, do posto de comando — penduraram-se redes para Sinforoso Caiguas e Palomino Rioalto, e se construiu uma privada de confecção rústica (a descarga é no rio). A parte descoberta é uma área grande de terra, com ainda algumas árvores;
Que uma semana para o preparo do local poderia parecer excessivo, sintomático de indulgência ou preguiça, mas o certo é que o lugar se encontrava em condições péssimas, e, com licença da expressão, imundas, pelas razões que passa a expor: aproveitando que o Exército o tinha abandonado, esse depósito estava sendo usado para práticas heterogêneas e ilegais. E assim foi que se apossaram deles uns seguidores do Irmão Francisco, um sujeito de origem estrangeira, fundador de uma nova religião e suposto fazedor de milagres, que percorre a pé ou de balsa a Amazônia brasileira, colombiana, equatoriana e peruana, erguendo cruzes nas localidades por onde passa, e fazendo-se crucificar ele mesmo, para pregar nessa extravagante postura, seja em português, espanhol ou línguas de selvagens. Costuma anunciar catástrofes e exorta seus devotos (inúmeros, apesar da hostilidade que lhe professam a Igreja Católica e as protestantes, devido ao carisma do sujeito, sem dúvida muito grande, pois sua pregação não só faz efeito em gente simples e inculta, mas também em pessoas educadas, como ocorreu, por exemplo e por desgraça, com a própria mãe do abaixo assinado) a desfazer-se de seus bens e a construir cruzes de madeira e fazer oferendas para quando chegar o fim do mundo, que afirma estar muito próximo. Aqui em Iquitos, por onde o Irmão Francisco passou estes dias, existem numerosas “arcas” (assim se chamam os templos da seita criada por esse indivíduo por quem, se os superiores julgarem conveniente, o Serviço de Inteligência deveria talvez interessar-se), e um grupo de “irmãos” e “irmãs”, como se chamam entre eles, havia convertido esse depósito em “arca”. Haviam instalado uma cruz para suas anti-higiênicas e cruéis cerimônias, que consistem em crucificar toda espécie de animais, a fim de que seu sangue banhe todos os devotos ajoelhados aos pés da cruz. E assim foi que o abaixo assinado encontrou no local incontáveis cadáveres de macacos, cães, Jaguares e até papagaios e garças, grandes nódoas e manchas de sangue por toda parte e, sem dúvida, enxames de germes infecciosos. Que no dia em que o abaixo assinado ocupou o local teve que recorrer à polícia para desalojar os Irmãos da Arca, no momento em que se dispunham a espetar um lagarto, o mesmo que foi confiscado e entregue à Provedoria Militar da V Região;
Que, anteriormente, este infortunado local foi usado por um bruxo ou curandeiro que os “irmãos” expulsaram por métodos constrangedores, o Mestre Poncio, que celebrava aqui cerimônias noturnas com essa infusão de cascas, a ayahuasca1, que, parece, cura enfermidades e provoca alucinações, mas também, lamentavelmente, transtornos físicos instantâneos, como abundante saliva, caudalosas micções e maciça diarréia, excrescências que, junto com os posteriores cadáveres de animais sacrificados e os muitos galináceos e animais que chegavam até aqui magnetizados pelos desperdícios e a carniça, haviam convertido este local num verdadeiro inferno para a vista e para o olfato. O abaixo assinado precisou procurar para Sinforoso Caiguas e Palomino Rioalto enxadas, rastelos, vassouras, baldes (vejam-se recibos 1, 2 e 3) para que, trabalhando diligentemente, sob seu controle, queimassem o lixo, lavassem chão e paredes e desinfetassem tudo com cresol. Logo foi preciso envenenar e tapar as tocas e semear armadilhas para impedir a invasão de roedores, tão abundantes e despreocupados que, embora pareça exagero, saíam e caminhavam calmamente diante dos olhos do abaixo assinado e até tropeçavam em seus pés. Procedeu-se à caiação e pintura das paredes, o que reclamavam insistentemente os estragos, inscrições, desenhos desavergonhados (também esconderijo de amores culpáveis devia ter sido o recinto) e as cruzinhas dos “irmãos” que se destacavam. Do mesmo modo, foi preciso adquirir, no Mercado de Belén, a preços de ocasião, alguns móveis de escritório, como mesa, cadeira (recibos 4, 5, 6 e 7). Quanto ao terreno descoberto, no qual ainda aparecem muitos objetos abandonados pelo Exército desde a época em que o utilizava como depósito (latas, material motorizado em ruínas) que o Serviço de Visitadoras não quis destruir à espera de ordens, acabou-se de tirar o mato e foi devidamente limpo (até uma serpente morta foi encontrada sob um matagal), com o que o abaixo assinado tem a honra de dizer que em sete dias, impondo-se, é preciso dizer, tarefas de dez e até doze horas, conseguiu converter o indescritível monturo que recebeu em um lugar habitável, simples porém em ordem, limpo e até agradável, tal qual corresponde a toda dependência de nosso Exército, ainda que clandestina, como é o caso da presente;
1 Planta narcótica que os índios equatorianos tomam para se embriagar e ter visões fantásticas. (N. do T.)
4. Que, uma vez preparado o local, o abaixo assinado procedeu ao levantamento de diversos mapas e organogramas para determinar, com a maior exatidão, a área que ocupará o SVGPFA, o número em potencial de usuários que terá e as rotas que seguirão seus comboios. Que a primeira avaliação topográfica resume as seguintes cifras: o Serviço de Visitadoras cobrirá uma área aproximada de 400 000 quilômetros quadrados, que inclui como centros usuários em potencial 8 Guarnições, 26 Postos e 45 Acampamentos, para os quais os meios de comunicação principais, a partir do posto de comando e centro logístico, são o ar e a via fluvial (veja-se mapa número 1), embora em alguns casos excepcionais o transporte possa ser efetuado por terra (proximidades de Iquitos, Yurimaguas, Contamana e Pucallpa). Que para determinar o número em potencial de usuários do Serviço de Visitadoras se permitiu enviar (com o visto do comandante-em-chefe da V Região) a todas as Guarnições, Postos de Fronteira e Afins, para que o submetessem aos chefes de companhia ou, em seu impedimento, de grupo, o seguinte teste de sua invenção:
1. Quantos graduados e soldados solteiros estão sob o seu comando? Considere, antes de responder, para os fins que lhe interessam, que o teste agrupa entre os casados não só os graduados e soldados unidos em matrimônio pela Igreja ou o Estado, mas também aqueles que têm amantes (concubinas) e, inclusive, aqueles que, de maneira irregular ou esporádica, mantêm alguma forma de coabitação íntima nas imediações do local em que servem.
OBSERVAÇÃO: o teste visa a estabelecer, com a maior precisão, o número de homens sob o seu comando que não mantêm nenhuma forma, permanente ou passageira, de vida marital;
2. Uma vez averiguado, com a maior exatidão, o número de solteiros sob o seu comando (na acepção do teste), subtraia desse algarismo todos os graduados e soldados a quem, por uma razão ou outra, se poderia catalogar como incapazes para realizar atividades íntimas de tipo marital normal. Isto é: invertidos, onanistas inveterados, impotentes e apáticos sexuais.
OBSERVAÇÃO: considerando o natural respeito pelo que dirá cada um deles, os prejuízos humanos e o temor lógico de vir a ser objeto de zombaria do que reconhecesse estar dentro dessa exceção, alerta-se o oficial responsável pelo teste sobre o risco que haveria, ao realizar essa eliminação estatística, em confiar unicamente no testemunho de cada graduado e soldado. Recomenda-se, por isso, que para responder a este item do teste o oficial combine os dados do interrogatório pessoal com os testemunhos alheios (confidencias de amigos e companheiros do sujeito), a própria observação ou algum subterfúgio inspirado e audaz;
3 Feita esta subtração e fixado o número de graduados e soldados solteiros com capacidade marital sob o seu comando, proceda, com astúcia e discrição, para averiguar entre os que compõem este grupo o número de prestações de tipo marital que cada sujeito calcula ou sabe precisar mensalmente para satisfazer as necessidades de sua virilidade.
OBSERVAÇÃO: o teste trata de estabelecer um quadro de ambições maximalistas e outro de minimalistas, segundo este exemplo:
Sujeito X / Ambições máximas por mês: 30
Ambições mínimas por mês: 4
4. Estabelecido o quadro precedente, procure determinar entre o mesmo grupo de solteiros com capacidade marital sob seu comando, mediante a mesma técnica de sondagens indiretas, perguntas de aparência casual, etc., quanto tempo o sujeito calcula, ou sabe positivamente, que deve durar, no seu caso, a prestação marital (desde os atos preliminares até a sua total conclusão), segundo o mesmo esquema
Sujeito X / Ambições máximas prestação: 2 horas
Ambições mínimas por prestação: 10 minutos
OBSERVAÇÃO: Tanto no parágrafo 3 como no 4 do teste, tire médias e envie essa cifra, sem individualizar a informação. O teste quer estabelecer a média normal mensal desejada do número de prestações necessárias à virilidade dos graduados e soldados sob o seu comando, assim como o tempo médio normal desejado para cada prestação.
Que o abaixo assinado quer deixar constante o entusiasmo, a celeridade e a eficácia com que os oficiais das Guarnições, Postos e Acampamentos responderam ao teste em questão (só uma quinzena de Postos não puderam ser consultados por obstáculos na comunicação devidos a desarranjos no equipamento de transmissões, mau tempo, etc.), o que permitiu constituir o seguinte quadro:
Número em potencial de usuários do Serviço de Visitadoras:
8 726 (oito mil setecentos e vinte e seis)
Número de prestações mensais (média desejada por usuário):
12 (doze)
Tempo de prestação individual (média desejada):
30 minutos
O que significa que o Serviço de Visitadoras, para cumprir integralmente sua função, deveria estar em condições de assegurar a todas as Guarnições, Postos de Fronteira e Afins da V Região (Amazônia) uma média mensal de 104 712 (cento e quatro mil setecentas e doze) prestações, objetivo evidentemente distante nas atuais circunstâncias. Que o abaixo assinado está consciente da obrigação de dar início ao Serviço fixando metas modestas e atingíveis, tendo em conta a realidade e a filosofia oculta em ditados como “devagar se vai ao longe” e “nem por muito madrugar amanhece mais cedo”:
5. Que necessita saber se entre os usuários em potencial do Serviço de Visitadoras devem ser incluídos os graus intermediários (suboficiais). O abaixo assinado solicita um esclarecimento rápido a este respeito, pois, no caso de ser afirmativa a resposta dos superiores, as estimativas obtidas variariam consideravelmente. Tendo em conta o já elevado número de usuários em potencial e as crescentes ambições que manifestam, o abaixo assinado se permite sugerir que, pelo menos na primeira etapa de seu funcionamento, o Serviço de Visitadoras não compreenda os graus intermediários;
6. Que procedeu, apesar disso, a estabelecer os primeiros contatos tendo em vista o recrutamento. Graças à cooperação de um indivíduo que atende pelo nome de Porfirio Wong, aliás Chinês, a quem conheceu, por obra da casualidade, no centro noturno denominado Mao Mao (Calle Pebas, 260), fez uma visita, em horas noturnas, ao lugar de diversão freqüentado por mulheres de vida airada que Dona Leonor Curinchila, aliás Chuchupe, dirige, e vulgarmente conhecido pelo nome de Casa Chuchupe e situado na estrada do balneário de Nanay. Sendo a referida Leonor Curinchila amiga de Porfirio Wong, pôde este apresentá-la ao abaixo assinado, que, para todos os efeitos, se fez passar por um negociante (importação/exportação) recém-domiciliado em Iquitos e em procura de expansão. A nomeada Leonor Curinchila mostrou-se cooperativa e o abaixo assinado conseguiu — não tendo outro remédio senão consumir muitos copos de licor (recibo 8) — recolher interessantes dados relacionados com o sistema de trabalho e costumes do pessoal do lugar. Assim é que na Casa Chuchupe umas 16 mulheres formam o que se pode chamar plantei estável, porque há outras, de 15 a 20, que trabalham irregularmente, indo uns dias, faltando outros, segundo razões que incluem desde enfermidades venéreas (v.g. gonorréia ou cancro), contraídas no exercício das prestações, até transitórias mancebias ou contratos de temporada (v.g. madeireiro se faz acompanhar em viagem de uma semana à selva), que as afastam momentaneamente do local de trabalho. Em síntese, o pessoal completo da Casa Chuchupe, entre estável e flutuante, são umas trinta meretrizes, embora o plantel efetivo (mas renovável) de cada noite seja a metade. No dia em que o abaixo assinado fez a visita só registrou 8 presentes, mas havia um motivo excepcional: a chegada a Iquitos do já famoso Irmão Francisco. Dessas 8, a maioria deve ter ultrapassado os vinte e cinco anos, embora seja apenas um cálculo, pois na Amazônia as mulheres envelhecem prematuramente, não sendo raro encontrar-se na rua raparigas de aparência muito sedutora, cadeiras desenvolvidas, bustos túrgidos e andar insinuante, às quais, segundo os padrões costeiros, se poderia atribuir 20 ou 22 anos e se comprova terem 13 ou 14, e, por outro lado, o abaixo assinado realizava suas observações mais ou menos às escuras, pois a Casa Chuchupe é pobremente iluminada, por falta de recursos técnicos ou, talvez, por esperteza, pois a penumbra é mais tentadora que a claridade, e, se se permite uma graçola, pelo que se diz que “de noite todos os gatos são pardos”. A maioria, pois, caminhando para os trinta, com uma boa média para mais, se se as avalia com critério funcional e sem preconceitos, isto é, corpos atraentes e arredondados, principalmente nas cadeiras e seios, membros que tendem a ser generosos neste rincão da Pátria, e rostos apresentáveis, embora em seguida se possa comprovar mais defeitos, não quanto à feiúra de nascimento, mas à adquirida por acne, varíola e perda de dentes, acidente este último algo freqüente na Amazônia, pelo clima debilitante e insuficiências dietéticas. Dentre as 8 presentes predominavam as de pele branca e traços indígenas, depois as mulatas e, finalmente, as de tipo oriental. A estatura média é mais baixa que alta, sendo denominador comum do pessoal a vitalidade e alegria características desta terra. O abaixo assinado viu, durante sua permanência no local, que quando não se achavam brindando as prestações, as meretrizes dançavam e cantavam com entusiasmo e alvoroço, sem dar mostras de fadiga ou desânimo, prorrompendo freqüentemente chacotas e disputas de caráter desavergonhado, o que é lógico encontrar neste gênero de estabelecimento. Porém, ao mesmo tempo, sem espírito turbulento, embora, a julgar por histórias que escaparam da boca de Leonor Curinchila e Porfirio Wong, algumas vezes se produzam incidentes e fatos sangrentos; Outrossim, diz: Que pôde também averiguar, graças a mencionada Chuchupe, que as tarifas pelas prestações são variáveis e que só 2/3 das mesmas revertem a quem presta 3 serviço, pois o terço restante é a comissão do local. Que a diferença de tarifas relaciona-se com o maior ou menor atrativo físico da meretriz, com o tempo que dura a prestação (o cliente que deseja efetuar várias, ou dormir junto com a que o atendeu, desembolsa, naturalmente, mais dinheiro do que quem se contenta com uma prestação expedita e fisiológica), e também e principalmente com o grau de especialização e tolerância da meretriz. A Sra. Curinchila explicou ao abaixo assinado que, muito ao contrário do que este ingenuamente suspeitava, não é uma maioria, mas uma reduzida minoria de clientes a que se contenta com uma prestação simples e normal (tarifa: 50 soles; duração: 15 a 20 minutos), exigindo os mais uma série de variantes, elaborações, repetições, distorções e complicações, que se configuram no que se convencionou chamar aberrações sexuais. Que entre a matizada gama de prestações proporcionadas figuram a simples masturbação efetuada pela meretriz (manual: 50 soles; bucal ou “cometa”: 200); até o ato sodomita (em termos vulgares “polvo estreito” ou “com cocozinho”: 250), o 69 (200 soles), espetáculo sáfico ou “tortillas” (200 soles c/u), ou casos menos freqüentes que exigem dar ou receber açoites, vestir ou ver disfarces e ser adorados, humilhados e até defecados, extravagâncias cujas tarifas oscilam entre 300 e 600 soles. Que levando em conta a ética sexual imperante no país e o reduzido orçamento do SVGPFA, o abaixo assinado tomou a decisão de limitar os serviços que exigirá de suas colaboradoras, e a que, portanto, poderão aspirar os usuários, à prestação simples e normal, excluindo todas as deformações enumeradas e parentes em espírito. Que em função desta premissa o Serviço de Visitadoras estabelecerá o recrutamento e fixará o tempo e a tarifa das prestações. Isso não impede que, quando o Serviço chegar a atender plenamente a demanda em termos quantitativos, se seus meios financeiros se incrementam e os parâmetros morais do país se alargam, se possa considerar a conveniência de introduzir um princípio de diversificação qualitativa nas prestações para atender casos, fantasias ou necessidades particulares (se os superiores assim o admitem e autorizam);
Que não pôde o abaixo assinado estabelecer, com a precisão que aconselham o cálculo de probabilidade e a estatística de mercado (mercadologia), qual é a média diária de prestações que fatura ou está em condições de faturar uma meretriz, para obter uma idéia aproximada de, primeiro, sua receita mensal, e, segundo, sua capacidade operacional, porque, aparentemente, reina neste domínio a mais extraordinária arbitrariedade. Assim, uma meretriz pode ganhar, em uma semana, o que não consegue reunir em dois meses, dependendo isto de múltiplos fatores, entre os quais, possivelmente, se encontrarão até o clima e ainda os planetas (influência astral sobre glândulas e pulsações sexuais dos homens), que também não importa determinar. Que, pelo menos, o abaixo assinado pôde deixar claro, mediante brincadeiras e perguntas capciosas, que as mais bem-dotadas e eficientes podem, em uma boa noite de trabalho (sábado ou véspera de feriado), realizar umas vinte prestações sem ficar muito exaustas, o que autoriza a seguinte formulação: um comboio de dez visitadoras, escolhidas entre as de maior rendimento, estaria em condições de realizar 4 800 prestações simples e normais ao mês (semana de seis dias), trabalhando full time e sem contratempos. Quer dizer, para cobrir o objetivo máximo desejado de 104 712 prestações mensais faria falta um corpo permanente de 2 115 visitadoras da melhor categoria e que trabalhassem o tempo todo e nunca tivessem qualquer contratempo. Possibilidade, naturalmente, quimérica a estas alturas;
Diz, outrossim: Que à parte as meretrizes que trabalham nos estabelecimentos (além da Casa Chuchupe há na cidade outros do mesmo gênero, embora, ao que parece, de hierarquia inferior) existe em Iquitos grande número de mulheres cognominadas “lavadeiras”, que exercem a vida airada de forma ambulante, oferecendo seus serviços de casa em casa, de preferência ao escurecer e ao amanhecer, por serem horas de fraca vigilância policial, ou postando-se em diferentes lugares à caça de clientes, como na Plaza 28 de Júlio e nos arredores do cemitério. Que, por esta razão, parece óbvio que o SVGPFA não terá dificuldade alguma em recrutar pessoal, pois a mão-de-obra nativa é sobejamente suficiente para suas módicas possibilidades iniciais. Que tanto o pessoal feminino da Casa Chuchupe, como o dos lugares afins e as “lavadeiras” que trabalham por sua conta, têm protetores masculinos (cafetões ou rufiões), em geral indivíduos de maus antecedentes e alguns com dívidas a saldar com a justiça, a quem estão obrigadas (muitas o fazem de moto próprio) a entregar parte ou a totalidade de seus haveres. Este aspecto do assunto — existência da cafetinagem ou rufianismo — deverá ser considerado pelo Serviço de Visitadoras à hora do recrutamento do pessoal, pois e indubitável que esses sujeitos poderiam ser uma fonte de problemas. O abaixo assinado, entretanto, sabe bem, desde seus inolvidáveis tempos de cadete, que não há missão que não ofereça dificuldades e que não há dificuldade que não possa ser vencida com energia, vontade e trabalho;
Que a direção e manutenção da Casa Chuchupe parecem ser realizadas unicamente graças ao esforço de duas pessoas, a proprietária, Leonor Curinchila, e, cumprindo funções que vão desde cantineiro até encarregado da limpeza, um homenzinho de muito baixa estatura, quase anão, idade indefinível e raça mestiça, Juan Rivera, apelidado Chupito, que graceja familiarmente com o pessoal e a quem este obedece com prontidão e respeito e que é, ainda assim, popular entre os clientes. O que faz o abaixo assinado pensar que, segundo tal exemplo, o Serviço de Visitadoras, sempre e quando estiver devidamente estruturado, poderia funcionar com um mínimo pessoal administrativo. Que este reconhecimento de um possível lugar de recrutamento serviu ao abaixo assinado para formar uma idéia geral do meio em que forçosamente há de agir e para conceber alguns planos imediatos, que, tão logo ultimados, submeterá aos superiores, para sua aprovação, aperfeiçoamento ou recusa;
7. Que em seu afã de adquirir conhecimentos científicos mais amplos, que lhe permitam um melhor domínio da meta a alcançar e da forma de atingi-la, o abaixo assinado tentou procurar, nas bibliotecas e livrarias de Iquitos, um estoque de livros, folhetos e revistas concernentes ao tema das prestações que o SVGPFA deve realizar, lamentando ter que comunicar aos superiores que seus esforços foram quase inúteis, porque nas duas bibliotecas de Iquitos — a Municipal e a do Colégio dos Padres Agostinianos — não encontrou nenhum texto, nem geral nem particular, especificamente dedicado ao assunto que o interessava (sexo e afins), passando ao contrário uns momentos embaraçosos ao perguntar a respeito, pois mereceu respostas incisivas dos empregados e, no Santo Agostinho, um religioso se permitiu, inclusive, desconsiderá-lo chamando-o de imoral. Também nas três livrarias da cidade, a Lux, a Rodríguez e a Mesía (há uma quarta, dos Adventistas do Sétimo Dia, onde não valia a pena tentar a investigação), não pôde o abaixo assinado achar material de qualidade; só obteve, para cúmulo, a preços altos (recibos 9 e 10), uns manuais insignificantes e fenícios, cujos títulos são Como desenvolver o impulso viril, afrodisíacos e outros segredos do amor, Todo o sexo em vinte lições, com os quais, modestamente, inaugurou a biblioteca do SVGPFA. Que roga aos superiores, se estiverem de acordo, sirvam-se enviar-lhe de Lima uma seleção de obras especializadas em tudo que se refira à atividade sexual, masculina e feminina, de teoria e prática e, em especial, documentação sobre assuntos de interesse básico, tais como enfermidades venéreas, profilaxia sexual, perversão, etc, o que, sem dúvida, reverterá em benefício do Serviço de Visitadoras;
8. Para concluir com um caso pessoal algo cômico, a fim de aliviar a matéria escabrosa desta parte, o abaixo assinado permite-se referir que a visita à Casa Chuchupe se prolongou até quase às quatro da madrugada e lhe provocou um sério mal-estar gástrico, resultante das copiosas libações que precisou realizar, às quais está pouco acostumado, por sua nula inclinação à bebida e por prescrição médica (umas hemorróidas felizmente já extirpadas). Que precisou curar-se recorrendo a um facultativo civil, para não se valer da Saúde Militar, conforme as instruções recebidas (recibo 11) e que não poucas dificuldades domésticas lhe causaram recolher-se a seu lar a essas horas e em estado pouco idôneo.
Deus guarde V. Exa.
Assinado:
Capitão EP (Intendência) PANTALEÓN PANTOJA
c.c. ao General Roger Scavino, comandante-em-chefe da V Região (Amazônia).
Anexos: 11 recibos e 1 mapa.
Noite de 16 a 17 de agosto de 1956
Sob um sol radiante, a cometa da alvorada inaugura a jornada no quartel de Chiclayo: agitação ruidosa nas quadras, alegres relinchos nos currais, fumaça esbranquiçada nas chaminés da cozinha. Tudo despertou em poucos segundos e reina, por toda parte, uma atmosfera cálida, benfazeja, estimulante, de tendência alvoroçada e plenitude vital. Mas, minucioso, insubornável, Pontual, o Tenente Pantoja atravessa o descampado — vivo ainda no paladar e na língua o sabor de café com o cremoso leite de cabra e torradas com doce de lúcumo — onde está ensaiando a banda para o desfile das festas nacionais. Ao redor, marcham, retilíneas e animadas, as colunas de uma companhia. Contudo, rígido, o Tenente Pantoja observa agora a distribuição do desjejum aos soldados: seus lábios vão contando sem fazer ruído e, fatidicamente, quando chega mudo a cento e vinte, o cabo do rancho serve o restinho de café e entrega o pedaço de pão número cento e vinte e a laranja cento e vinte. Mas agora o Tenente Pantoja vigia, feito uma estátua, o modo como uns soldados descarregam do caminhão os fardos de abastecimentos: seus dedos acompanham o ritmo da descarga como um maestro os compassos de uma sinfonia. Atrás dele, uma voz firme, com um fundo quase perdido de ternura varonil que só um ouvido aguçado como bisturi detectaria, o Coronel Montes afirma paternalmente: “Melhor comida que a chiclayana? Nem a chinesa nem a francesa, senhores: o que poderiam comparar às dezessete variedades do arroz com pato?” Entretanto, já o Tenente Pantoja está examinando, cuidadosamente, e sem que se altere um músculo de seu rosto, as panelas da cozinha. O zambo Chanfaina, sargento-chefe dos cozinheiros, tem os olhos grudados no oficial e o suor de sua testa e o tremor de seus lábios denotam ansiedade e pânico. Porém já o Tenente Pantoja, da mesma maneira meticulosa e inexpressiva, examina as prendas que a lavanderia devolve e que dois sujeitos amontoam em sacolas de plástico. Porém já o Tenente Pantoja preside, em atitude hierática, a distribuição de botinas aos recrutas recém-chegados. Porém já o Tenente Pantoja, com uma expressão, agora sim, animada e quase amorosa, prega bandeirinhas em uns gráficos, retifica as curvas estatísticas de um quadro-negro, acrescenta uma cifra ao organograma de um painel. A banda do quartel interpreta com vivacidade uma desenvolta marinera1.
1 Dança popular do Chile, Equador e Peru. (N. do T.)
Uma úmida nostalgia impregnou o ar, nublou o sol, silenciou as cometas, os pratos e o bumbo, uma sensação de água que escorre entre os dedos, de cuspidela que a areia traga, de ardentes lábios que ao se pousar na face gangrenam, um sentimento de balão estourado, de filme que acaba, uma tristeza de gol contra: eis que a cometa (da alvorada? do rancho? do toque de silêncio?) fende outra vez o ar tépido (da manhã? da tarde? da noite?). Porém na orelha direita surgiu agora uma coceira crescente, que rapidamente ganha todo o lóbulo e se propaga ao pescoço, abraça-o e sobe à orelha esquerda: ela também se pôs, intimamente, a palpitar — movendo suas invisíveis penugens, abrindo sedenta seus incontáveis poros em busca de, pedindo que — e à nostalgia recalcitrante, à feroz melancolia seguiu-se agora uma secreta febre, uma difusa apreensão, uma desconfiança que toma corpo piramidal como um merengue, um corrosivo medo. Porém o rosto do Tenente Pantoja não o revela: esquadrinha, um por um, os soldados que se dispõem a entrar ordenadamente no armazém de peças. Porém algo provoca uma discreta hilaridade nesses uniformes de parada que observam lá, no alto, onde devia estar o teto do armazém e está, ao invés, a tribuna de festas nacionais. Está presente o Coronel Montes? Sim. O Tigre Collazos? Sim. O General Victoria? Sim. O Coronel López López? Sim. Puseram-se a sorrir sem agressividade, escondendo a boca com as luvas de couro marrom, voltando um pouco a cabeça para o lado — segredando-se? Porém o Tenente Pantoja sabe de quê, por quê, como. Não quer olhar os soldados que aguardam o apito para entrar, recolher as peças novas e entregar as velhas, porque suspeita, sabe ou adivinha, que quando olhar, comprovar e positivamente souber, a Sra. Leonor o saberá e Pochita também o saberá. Porém seus olhos mudam subitamente de parecer e auscultam a formação: ah ah, que riso, ai que vergonha. Sim, foi assim que aconteceu. Espessa como sangue, flui a angústia sob a sua pele enquanto observa, presa de terror frio, esforçando-se por dissimular seus sentimentos, como foram, vão se arredondando as fardas dos recrutas no peito, nos ombros, nas cadeiras, nas coxas, como dos casquetes começam a chover cabelos, como se suavizam, dulcificam e ruborizam as feições e como os olhares masculinos se tornam acariciadores, irônicos, safados. Ao pânico se superpôs uma sensação de ridículo sediciosa e molesta. Toma a brusca decisão de dar tudo por tudo e, estufando ligeiramente o peito, ordena: “Desabotoar as camisas, merdas!” Porém já vão passando sob os seus olhos, soltos os botões, vazias as casas, dançando as orlas pespontadas das camisas, os fugidios mamilos eretos dos números, os bamboleantes e alabastrinos, os mórbidos e terrosos peitos que balançam ao compasso da marcha. Porém já o Tenente Pantoja encabeça a companhia, a espada no alto, o perfil severo, a fronte nobre, os olhos limpos, batendo os pés no asfalto com decisão: um-dois, um-dois. Ninguém sabe que amaldiçoa sua sorte. Sua dor é profunda, grande sua humilhação, infinita sua vergonha porque atrás dele, marcando o passo nada marcialmente, brandamente como éguas na lama, vão os recrutas recém-chegados, que não souberam sequer cobrir os peitos para achatar as tetas, usar enganadoras camisas, cortar os cabelos nos cinco centímetros do regulamento e lixar as unhas. Percebe-as marchar atrás de si e adivinha: não tentam exprimir expressões viris, exibem agressivamente sua condição mulherenga, alçam o busto, requebram a cintura, tremem as nádegas e sacodem as longas cabeleiras. (Um calafrio: está a ponto de fazer pipi na cueca, a Sra. Leonor saberia ao passar a ferro o uniforme, ao costurar o novo galão Pochita rir-se-ia.) Porém, agora, é preciso concentrar-se ferozmente no desfile porque passam diante da tribuna. O Tigre Collazos mantém-se sério, o General Victoria dissimula um bocejo, o Coronel López López concorda compreensivo e até jovial, e a aflição não seria tão amarga se não estivessem também ali, num canto, recriminando-o com tristeza, fúria e decepção, os olhos cinzentos do General Scavino.
Agora já não lhe importa tanto: o formigar das orelhas agravou-se violentamente e ele, disposto a entregar-se todo, ordena à companhia “Passo acelerado! Marchem!” e dá o exemplo. Corre a uma cadência rápida e harmoniosa, seguido pelas voluptuosas pisadas cálidas e convidativas, enquanto sente subir por seu corpo uma tepidez semelhante ao vapor de uma panela de arroz com pato que sai do fogo. Porém, agora, o Tenente Pantoja parou bruscamente, e atrás dele a perturbadora companhia. Com um leve rubor nas faces faz um gesto não muito claro, que, todavia, todos compreendem. Desencadeou-se um mecanismo, a esperada cerimônia começou. Desfila diante dele a primeira seção e é desagradável que o Alferes Porfirio Wong leve tão descuidado o uniforme — consegue pensar: “Precisa ser repreendido e instruído sobre o uso das peças” —, porém, já começaram os soldados, ao passar diante dele — que se mantém imóvel e inexpressivo — a desabotoar o dólmã com rapidez, a mostrar os fogosos seios, a estender a mão para beliscar-lhe com amor o pescoço, os lóbulos, a curva superior e, logo, adiantando — uma atrás de outra, outra atrás de uma — a cabeça (ele lhes facilita a operação inclinando-se) para mordiscar-lhe deliciosamente as pontas das orelhas. Uma sensação de prazer ávido, de satisfação animal, de alegria exasperada e tentacular apagam o medo, a nostalgia, o ridículo, enquanto os recrutas beliscam, acariciam e mordiscam as orelhas do Tenente Pantoja. Porém, entre os soldados, alguns rostos familiares congelam com rajadas a felicidade com um espinho de inquietação: desancada e grotesca em seu uniforme, vai Leonor Curinchila, e, içando o estandarte, com braçadeira de cabo furriel, vem Chupito, e agora, fechando a última seção — angústia que esguicha como jorro de petróleo e banha o corpo e o espírito do Tenente Pantoja —, um soldado ainda impreciso: mas ele sabe — voltaram o medo irrespirável, o ridículo tormentoso, a embriagadora melancolia — que sob as insígnias, o casquete, as bolsudas calças e a esmirrada camisa de algodão está soluçando a tristíssima Pochita. A cometa desafina grosseiramente, a Sra. Leonor sussurra-lhe: “Já está pronto o seu arroz com pato, Pantita”.
SVGPFA
ASSUNTO GERAL: Serviço de Visitadoras para Guarnições,
Postos de Fronteira e Afins.
ASSUNTO ESPECÍFICO: retificação de avaliação, primeiros recrutamentos e distintivos do SVGPFA.
CARACTERÍSTICAS: secreto.
DATA E LOCAL: Iquitos, 22 de agosto de 1956.
O abaixo assinado, Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, oficial responsável pelo SVGPFA, respeitosamente apresenta-se diante do General Felipe Collazos, chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército, saúda-o e diz:
1. Que na parte número um, de 12 de agosto, no parágrafo relativo ao número de visitadoras que necessitaria o SVGPFA para cobrir a demanda de 104 712 prestações mensais, fixada, grosso modo, na primeira estimativa do mercado (pede-se licença aos superiores para o uso deste termo técnico), o abaixo assinado calculou aquele em “um corpo permanente de 2 115 visitadoras da mais alta categoria” (vinte prestações diárias), trabalhando full time e sem contratempos. Que esse cálculo Padece de um erro grave, pelo qual o único culpado é o abaixo assinado, por causa de uma visão masculinizada do trabalho humano, que, imperdoavelmente, o fez esquecer certos condicionamentos privativos do sexo feminino, os mesmos que, neste caso, impõem a essa contabilidade uma nítida correção, por desgraça, no sentido desfavorável ao SVGPFA. E foi assim que o abaixo assinado se esqueceu de deduzir, no número de dias de trabalho das visitadoras, os cinco ou seis de sangue que as mulheres evacuam mensalmente (dias de regra ou período) e nos quais, tanto por ser costume adotado pelos varões não ter relação carnal com a fêmea enquanto menstrua, como por se achar solidamente aferrado nesta região da Pátria o mito, tabu ou aberração científica de que manter contatos íntimos com mulher menstruada produz impotência, podem ser consideradas inabilitadas a conceder a prestação. Isso, claro está, inutiliza a anterior estimativa. Que levando em consideração este fator e assinalando, de modo superficial, uma média mensal de 22 dias hábeis por visitadora (excluídos os cinco de menstruação e só três domingos, pois não é desacertado supor que um domingo de cada mês coincida com o sangue cíclico), o SVGPFA necessitaria de um plantei de 2 271 visitadoras do mais alto nível, trabalhando em tempo integral e sem contratempos, isto é, 156 mais do que equivocadamente calculou na parte anterior;
2. Que começou a recrutar seus primeiros colaboradores civis nas pessoas, já mencionadas na parte número um, de Porfirio Wong, (a) Chinês, Leonor Curinchila, (a) Chuchupe, e Juan Rivera, (a) Chupito. Que o primeiro dos mencionados perceberá um haver básico de 2 000 (dois mil) soles mensais e uma gratificação de 300 (trezentos) soles por missão no campo e exercerá as funções de recrutador para o qual o indicam suas muitas relações no meio de mulheres de vida dissipada, tanto de estabelecimento quanto “lavadeiras”, e chefe do comboio encarregado da proteção e controle dos envios de visitadoras aos centros usuários. Que a contratação de Leonor Curinchila e seu companheiro (esta é a relação que a une a Chupito) foi mais fácil do que o abaixo assinado supunha, quando lhes propôs uma colaboração com o Serviço de Visitadoras nos momentos em que tivessem folga no seu negócio. E assim foi que, tendo-se criado uma cordial atmosfera de confidencias, na segunda visita feita pelo abaixo assinado à Casa Chuchupe, a tal Leonor Curinchila revelou-lhe que estava a ponto de falir e que desde algum tempo vinha considerando a venda de seu estabelecimento. Não por falta de clientela, pois os freqüentadores do local aumentam diariamente, mas devido a obrigações onerosas de variada índole, o que deve desviar o negócio em favor das Forças Policiais e Auxiliares. Assim é, por exemplo, que para a renovação anual da licença de funcionamento, que deve obter no Comando da Guarda Civil, Leonor Curinchila precisa desembolsar, além dos direitos legais, grossas somas à guisa de obséquio aos chefes da seção Lenocínios e Bares, para facilitar a tramitação. Fora disso, os membros da Polícia de Investigações (PIP) da cidade, que são mais de trinta, e um bom número de oficiais da GC, acostumaram-se a requerer gratuitamente os serviços da Casa Chuchupe, tanto no que se refere a bebidas alcoólicas como às prestações, sob ameaça de dar parte, acusando o local de escândalo público, o que é motivo de fechamento imediato. Que além dessa sangria econômica pertinaz, Leonor Curinchila teve que se resignar a um aumento geométrico do aluguel do local (cujo proprietário é nada menos que o prefeito do Departamento), sob pena de expulsão. E, finalmente, que Leonor Curinchila já se achava fatigada pela intensa dedicação e o ritmo febril e desordenado que seu trabalho exige — noites más, atmosfera viciada, ameaça de brigas, estafas e chantagens, falta de férias e de descanso dominical —, sem que esses sacrifícios redundassem em lucros apreciáveis. Por tudo isso, aceitou satisfeita a oferta de colaborar com o Serviço de Visitadoras, tomando ela mesma a iniciativa de propor não um trabalho eventual mas exclusivo e permanente, e demonstrando muito interesse e entusiasmo ao ser informada da natureza do SVGPFA. Que Leonor Curinchila, que já chegou a um acordo com Humberto Sipa, (a) Moquitos, dono de uma casa de diversão no distrito de Punchana, para passar-lhe a Casa Chuchupe, trabalhará no Serviço de Visitadoras nas seguintes condições: 4 000 (quatro mil) soles mensais de soldo, mais 300 (trezentos) soles de gratificação pelo trabalho no campo e direito a cobrar uma porcentagem não maior que 3%, só durante um ano, sobre os haveres das visitadoras contratadas por seu intermédio. Suas funções serão as de chefe de pessoal do SVGPFA, encarregando-se do recrutamento, fixação de horários, turnos e elenco dos comboios, controle de operações e vigilância geral do elemento feminino. Que Chupito perceberá um salário básico de 2 000 (dois mil) soles, mais 300 (trezentos) soles por missão no campo, e será responsável pela manutenção do centro logístico (com dois assistentes: Sinforoso Caiguas e Palomino Rioalto) e chefe de comboio. Que estes três colaboradores foram incorporados ao SVGPFA na segunda-feira, 20 de agosto, às 8 horas da manhã;
3. Que desejoso de dar uma fisionomia própria e diferente ao SVGPFA e dotá-lo de sinais representativos que, sem denunciar suas atividades no exterior, permitam ao menos aos que o servem reconhecer-se entre si, e aos quais servirá para identificar seus membros, locais, veículos e pertences, o abaixo assinado providenciou a designação do verde e do vermelho como as cores emblemáticas do Serviço de Visitadoras, pelo seguinte simbolismo:
a. verde pela exuberante e bela natureza da região amazônica, onde o Serviço vai forjar seu destino, e
b. vermelho pelo ardor viril de nossos suboficiais e soldados, que o Serviço contribuirá para aplacar;
Que já deu instruções para que tanto o posto de comando como o equipamento de transporte do Serviço de Visitadoras exibam as cores emblemáticas, e que mandou fazer, pela soma de 185 soles (recibo incluso), na funilaria O Paraíso da Lata, duas dúzias de pequenas insígnias vermelho-verdes (sem nenhuma inscrição, naturalmente), suscetíveis de serem trazidas na lapela pelos varões, e presas na blusa ou no vestido pelas visitadoras, insígnias que, sem quebrar as normas de discrição exigidas pelo SVGPFA, farão as vezes de uniforme e carta-credencial dos que têm e terão a honra de integrar este Serviço.
Deus guarde V. Exa.
Assinado:
Capitão EP (Intendência) PANTALEÓN PANTOJA
c.c. ao General Roger Scavino, comandante-em-chefe da V Região (Amazônia).
Anexo: 1 recibo.
Iquitos, 26 de agosto de 1956.
Querida Chichi:
Perdoe que não tenha escrito por tanto tempo, você já deve estar ralhando com sua irmãzinha que tanto a quer e dizendo furiosa por que a tonta da Poncha não me conta como vai indo lá, como é a Amazônia. Na verdade, porém, Chichita, embora desde que cheguei tenha pensado muito em você e sinta muitas saudades suas, não tive tempo para escrever e nem vontade (não se aborreça, sim?), agora vou contar por quê. Acontece que Iquitos não tem tratado muito bem sua irmãzinha, Chichi. Não estou muito contente com a mudança, as coisas aqui andam mal e estranhas. Não quero dizer que esta cidade seja mais feia que Chiclayo, não, ao contrário. Embora pequenina, é alegre e simpática e o mais lindo de tudo, claro, é a selva e o grande rio Amazonas, que a gente sempre ouviu dizer enorme como o mar, não se vê a outra margem e mil coisas mais, mas em realidade não se imagina até que se vê de perto: lindíssimo. Digo-lhe que temos feito vários passeios de deslizador (assim chamam aqui as lanchinhas), num domingo até Tamshiyaco, um pequeno povoado rio acima, outro a um de nome curiosíssimo, San Juan de Munich, e outro até Indiana, um pequeno povoado rio abaixo, construído praticamente por uns padres e madres canadenses, formidável, você não acha? que venham de tão longe para este calor e solidão a fim de civilizar os silvícolas. Fomos com minha sogra, nunca mais, porém, a levaremos a passear em deslizador, porque nas três vezes fez a viagem morta de medo, agarrada a Panta, choramingando porque íamos afundar, que vocês se salvarão nadando, mas que eu afundarei e piranhas me comerão (o que, oxalá, fosse verdade, Chichita, mas as pobres piranhinhas se envenenariam). E depois, na volta, queixando-se das picadas porque, digo a você, Chichita, uma das coisas terríveis daqui são os pernilongos e os izangos, que deixam a gente o dia todo cheia de vergões nojentos e cocando muito. Então você vê, filha, os inconvenientes de ter a pele fina e o sangue azul, o que provoca os bichinhos a picar (ah! ah!).
O certo é que se a minha vinda a Iquitos não foi boa, para minha sogra tem sido fatal. Porque lá em Chiclayo ela era feliz, você sabe como é dada a amigas, fazendo vida social com a velharia da Vila Militar, jogando canastra todas as tardes, chorando como uma Madalena com suas novelas e dando seus chazinhos, mas é que aqui, isso de que ela gosta tanto, isso que a fazíamos detestar, dizendo-lhe “sua vida de pensão” (ui, Chichi, me lembro de Chiclayo e morro de pena), aqui não vai encontrar, assim é que se tem consolado com a religião, ou melhor, com a bruxaria, é isto mesmo que você está ouvindo. Porque, você vai cair morta, esse foi o primeiro balde de água fria que recebi: não vamos viver na Vila Militar nem podemos freqüentar as famílias dos oficiais. Nem mais nem menos. E isso é terrível para a Sra. Leonor, que trazia grandes ilusões de se fazer amiga inseparável da esposa do comandante da V Região e dar-se importância, como se dava lá em Chiclayo, por ser íntima da esposa do Coronel Montes, que só faltava meter juntas na cama as duas velhas (para bisbilhotar e tagarelar sob os lençóis, não seja maliciosa). Escute, você se lembra daquela anedota? Pepito diz a Carlitos, você quer que minha avozinha imite o lobo? sim, quero; há quanto tempo que a senhora não faz amorzinho com o avô, avozinha? Uuuuuuuuuu! O certo é que com essa ordem nos lixaram, Chichi, porque as únicas casinhas modernas e cômodas que há em Iquitos são as da Vila Militar, ou as da Naval, ou as do Grupo Aeronáutico. As da cidade são velhíssimas, feiíssimas, desconfortabilíssimas. Alugamos uma na Calle Sargento Lores, dessas que construíram no princípio do século, no ciclo da borracha, que são as mais pitorescas, com suas fachadas de azulejos de Portugal e seus balcões de madeira; é grande e de uma janela se vê o rio, mas, mesmo assim, não se compara nem com a mais pobre da Vila Militar. O que mais raiva me dá é que nem sequer podemos nos banhar na piscina da Vila, nem na dos marinheiros nem na dos aviadores, e em Iquitos só há uma piscina, horrível, a municipal, aonde vai tudo quanto Deus criou: fui uma vez e havia umas mil pessoas, que nojo, montes de sujeitos esperavam com caras de tigres que as mulheres entrassem na água para, sob o pretexto do amontoamento, você já imagina. Nunca mais, Chichi, preferível o chuveiro. Que raiva quando penso que a mulher de qualquer tenentinho pode estar neste momento na piscina da Vila Militar, dourando o corpo, ouvindo seu rádio e molhando-se, e eu aqui grudada ao ventilador para não me assar: juro a você que cortaria o que você bem sabe do General Scavino (ah! ah!). Porque, além disso, acontece que nem sequer posso fazer as compras da casa no Bazar do Exército, onde tudo custa a metade, mas nas lojas da rua, como qualquer uma. Nem isso nos permitem, temos que viver como se Panta fosse civil. Deram-lhe dois mil soles a mais de soldo, como gratificação, mas isso não compensa nada, Chichi, assim você vê, no que se refere à pratinha a Pochita está fodidinha (saiu-me em verso, ainda bem que não perdi o humor, não é?).
Imagine que eles obrigam Panta a vestir-se dia e noite de civil, com os uniformes mofando num baú; não poderá pô-los nunca, ele que gosta tanto deles. E a todo mundo precisamos fazer crer que Panta é um comerciante, que veio fazer negócios em Iquitos. O engraçado é que à minha sogra e a mim acontecem umas histórias terríveis com os vizinhos, às vezes inventamos uma coisa, às vezes, outra, e de repente deixamos escapar lembranças militares de Chiclayo, que devem deixá-los muito intrigados, e já temos em todo o bairro fama de uma família esquisita e suspeita. Estou vendo você dar pulos na cama, dizendo o que há com essa idiota que não me conta de uma vez por que tanto mistério. Acontece, porém, Chichi, que não posso dizer nada, é segredo militar, e tão secreto que se soubessem que Panta contou algo, eles o julgariam por traição à Pátria. Imagine, Chichita, que lhe deram uma missão importantíssima no Serviço de Inteligência, um trabalho muito perigoso e, por isso, ninguém deve saber que é capitão. Ui, que estúpida, já lhe contei o segredo, e agora me dá preguiça rasgar a carta e começá-la de novo. Jure-me, Chichita, que você não vai dizer uma palavra a ninguém, porque eu a mato, e, depois, você não vai querer que metam seu cunhadinho num calabouço ou o fuzilem por sua culpa, não? Assim, silencie e não vá correr a contar esta história as intrigantes de suas amigas Santana. Não é gozado que Panta esteja transformado em agente secreto? Eu lhe conto que Dona Leonor e eu morremos de curiosidade por saber o que e que ele espia aqui em Iquitos, nós o comemos de perguntas e tratamos de arrancar-lhe o segredo, mas você já o conhece, não solta uma sílaba ainda que o matem. Isso, porém, está por se ver, sua irmãzinha também é teimosa como uma mula, assim que veremos quem ganha. Só lhe aviso que quando descobrir em que Panta anda metido não penso em lhe contar, ainda que faça pipi de curiosidade.
Agora, será muito emocionante que o Exército lhe tenha dado essa missão no Serviço de Inteligência, Chichita, e isso talvez o ajude muito em sua carreira, mas o caso é que eu vou lhe dizer, não estou nada contente com o assunto. Em primeiro lugar porque quase não o vejo. Você sabe o aplicado e maníaco que é Panta em seu trabalho, toma tão a peito tudo o que lhe mandam que não dorme nem come nem vive até que termine, mas em Chiclayo, pelo menos tinha seus plantões com horário fixo e eu sabia de suas entradas e saídas. Aqui, porém, passa a vida fora, nunca se sabe a que horas volta e, caia morta, nem em que estado. Eu lhe digo que não me acostumo a vê-lo de civil, com paletós e blue jeans e o gorrinho de jóquei, que deu para usar, parece que mudei de marido, e não só por isso (ui, que vergonha, Chichi, isso sim que não me atrevo a contar-lhe). Se fosse só durante o dia, ficava feliz de que trabalhe. Mas, tem que sair também de noite, às vezes até muito tarde, e já se apresentou três vezes caindo de bêbado, tinha até que ajudá-lo a despir-se e, no dia seguinte, sua mãezinha precisou pôr compressas na sua testa e fazer-lhe chás. Sim, Chichi, estou vendo sua cara de assombro, embora você não acredite, Panta, o abstêmio, o que só tomava iogurte desde que teve hemorróidas: caindo de bêbado e com a língua arrevezada. Agora me dá vontade de rir, porque me lembro o engraçado que era vê-lo ir de bruços sobre as coisas e ouvi-lo queixar-se, mas no momento fiquei com uma raiva tão grande que tinha ganas de cortar-lhe também o que você já sabe (em troca, me lixaria sozinha, ah! ah!). Ele me jura e rejura que tem de sair de noite por causa de sua missão, que deve buscar uns tipos que só vivem nos bares, que fazem aí seus encontros para despistar, e talvez seja verdade (assim se vê nos filmes de espionagem, não é certo?), mas escute, você ficaria tão tranqüila se o seu marido passasse a noite nos bares? Não, então, filhinha, nem que eu fosse boba para acreditar que nos bares só se vêem homens. Lá tem que haver mulheres que se aproximam dele e lhe metem as falas e Deus sabe o que mais. Fiz uns escândalos terríveis e me prometeu não sair mais de noite exceto quando for caso de vida ou de morte. Examinei com lente todos os seus bolsinhos e camisas e roupa interior, porque, eu lhe digo, se encontro a menor prova de que esteve com mulheres, pobre Panta. Ainda bem que nisto sua mãezinha me ajuda, está aterrorizada com as saídas noturnas e os porrezinhos de seu filhinho, que sempre acreditara ser um santinho de sacristia e acontece que agora já não é tanto (ui, Chichi, você morre se eu lhe conto).
E, além disso, pela bendita missão tem que se juntar com uma gente que põe os cabelos da gente em pé. Veja só, uma tarde fui à matinê com uma vizinha, da qual me fiz amiga, Alicia, casada com um rapaz do Banco Amazônico, uma loretana muito simpática, que nos ajudou muito na mudança. Fomos ao Cine Excelsior, ver uma fita de Rock Hudson (agarre-me senão desmaio), e na saída estávamos dando uma voltinha, tomando ar, quando, ao passar por um bar que se chama Camu Camu, vejo Panta, na mesa do cantinho, com que par! Um ataque, Chichi, a mulher uma periquita tão cheia de pintura que não lhe cabia uma gota mais nem nas orelhas, com umas mamas e um bumbum que transbordava do assento, e o tipo, um homenzinho pela metade, tão atarracado que os pés não alcançavam o chão, e ainda por cima com uns ares incríveis de conquistador. E Panta entre os dois, conversando muito animado, como se fossem amigos de toda vida. Disse à Alicia, olhe, meu marido, então ela me agarrou pelo braço, nervosíssima, vem, Pocha, vamo-nos, você não pode se aproximar. Resultado, fomos embora. Quem você pensa que era esse casal? A periquita é a mulher de pior fama de toda Iquitos, o inimigo número um dos lares, chamam-na Chuchupe e tem uma casa de prostituição na estrada de Nanay, e o anãozinho, seu amante, coisa de você partir-se de rir ao imaginá-la fazendo amorzinho com esse fantoche, que depravada, e ele pior. Que é que você acha? Depois, falei a Panta, para ver com que cara ficava, e, naturalmente, perturbou-se tão terrivelmente que começou a gaguejar. Mas não se atreveu a negar, reconheceu que essa dupla é gente de má vida; que tinha que procurá-los por causa do seu trabalho, que nunca que o visse com eles fosse me aproximar e muito menos sua mãe. Eu lhe disse, veja lá com quem anda, porque se alguma vez souber que você se meteu na casa da periquita em Nanay, o seu casamento periga, Panta. Então, filhinha, Pagine a fama que vamos ter por aqui se Panta começa a aparecer pelas ruas com essa gente. Outra de suas companhias é um chinês, eu que acreditava que todos os chineses eram magrinhos, este é um Frankenstein, embora pareça elegante à Alicia, as loretanas têm o gosto atravessado, irmã. Apanhei-o com ele um dia em que fui visitar o Aquário Moronacocha, para ver os peixes ornamentais (lindos, eu lhe digo, mas me aconteceu tocar numa enguia que me deu uma descarga elétrica com a cauda que quase me atira ao chão), e a Sra. Leonor o viu também num barzinho, e Alicia os encontrou passeando pela Plaza de Armas, e por ela fiquei sabendo que o chinês tem fama de perigoso fugitivo. Que explora mulheres, que é um boa-vida e um vagabundo: imagine as amizades do seu cunhadinho. Atirei-lhe isto na cara e a Sra. Leonor mais que eu, porque a ela aborrecem, mais que a mim, as más companhias do seu filhinho, principalmente agora que acredita que o mundo vai desabar em cima de nós. Panta lhe prometeu que não aparecerá mais nas ruas nem com a periquita, nem com o anão, nem com o chinês, mas terá que continuar a vê-los às escondidas porque é parte do seu trabalho. Eu não sei onde vai parar com essa missão e com essa espécie de relações, Chichita, você compreenderá que tenho os nervos alterados, com os olhos bem abertos.
Embora, na realidade, não deveria estar, quero dizer, quanto aos chifres e a infidelidade, porque, eu lhe conto, irmã?, você não imagina como Panta mudou no que se refere a essas coisas, as íntimas. Você se lembra de como ele sempre foi tão formal desde que nos casamos, tanto que você gracejava e me dizia estou certa de que com Pantita você faz jejum, Pocha? Pois agora você não poderá zombar nunca mais do seu cunhadinho sob este aspecto, desbocada, porque desde que chegou a Iquitos se tornou uma fera. Algo terrível, Chichi, às vezes me assusto e penso se não será uma enfermidade, porque, imagine que antes, eu lhe contei, animava-se a fazer amorzinho uma vez cada dez ou quinze dias (que vergonha, falar-lhe disto, Chichi), e agora o bandido se excita a cada dois, cada três dias, e tenho que estar refreando seus ímpetos, porque também não é assim, não é? com este calor e esta umidade tão pegajosa. Além disso, penso que isto poderia lhe fazer mal, parece que afeta o cérebro, não dizia todo mundo que o marido da Púlpito Carrasco ficou meio biruta de tanto fazer amorzinho com ela? Panta diz que a culpa é do clima, um general já o prevenira, lá em Lima, que a selva faz dos homens uma fogueira. Vou lhe dizer que fico rindo ao ver seu cunhadinho tão fogoso, às vezes tem vontade de fazer amorzinho de dia, depois do almoço, com o pretexto da sesta, mas claro que não deixo, e, às vezes, me acorda de madrugada com essa loucura. Imagine que uma noite percebi que ele marcava o tempo com um cronômetro enquanto fazíamos amorzinho, falei a ele e ficou muito confuso. Depois, me confessou que precisava saber quanto durava um amorzinho entre um casal normal: será que ele está ficando tarado? Quem pode acreditar que precisa, no seu trabalho, averiguar essas porcarias. Disse a ele, não o reconheço, Panta, você era tão educadinho, assim fico com a impressão de estar metendo chifres em você com outro Panta. Enfim, filha, basta de falar em indecências, porque você é virgenzinha e juro que brigamos para sempre se lhe acontecer comentar isto com alguém e, principalmente, com as Santana, aquelas loucas.
Em parte, claro que me tranqüiliza que Panta se tenha tornado tão impetuoso quanto ao amorzinho, quer dizer que gosta de sua mulher (eh, eh) e que não precisa buscar aventuras na rua. Se bem que até aí nada de mais, Chichi, porque aqui em Iquitos as mulheres são coisa muito, muito séria. Sabe qual é o grande pretexto que seu cunhadinho inventou para fazer amorzinho quando lhe dá na veneta? Pantita Júnior! Sim, Chichi, você está ouvindo, afinal decidiu que teremos um bebê. Ele me havia prometido logo que pusesse o terceiro galão e está cumprindo, mas agora, com a mudança de temperamento, já não sei se é para me agradar ou de puro sabido, para estar fazendo amorzinho de manhã e de tarde. Eu lhe digo que é para morrer de rir, vem da rua como um ratinho elétrico, e me dá voltas e mais voltas, até que se atreve, esta noite podemos encomendar o cadetinho, Poncha? ah! ah! não é lindo? adoro-o, Chichi (escute, não sei como lhe conto essas indecências, a você que é solteira). Até agora nada, magra, apesar de tanta encomenda, ontem mesmo me veio a regra normal, que ódio, eu achava que este mês sim. Você virá cuidar de sua irmãzinha quando estiver barriguda, Chichi? Ui, que seja amanhã, que você já tenha vindo, que vontade de ter você aqui para mexericar à vontade. Ah, isso sim, você terá uma decepção com os loretanos, para encontrar um pão, terá que procurá-lo como agulha, mas já irei pondo o olho em algum que valha a pena, para que você não se aborreça muito quando vier. (Está notando que esta carta está saindo quilométrica? Você tem que responder com número igualzinho de páginas, ok?) Será que não posso ter bebês, Chichi? Tenho tanto medo disso que todos os dias peço a Deus qualquer castigo menos esse, morreria de dor se não tivesse ao menos um homenzinho e uma mulherzinha.
O médico diz que sou perfeitamente normal, assim, espero que para o outro mês aconteça. Você sabia que cada vez que o homem faz amorzinho saem dele MILHÕES de espermatozóides e que só um entra no óvulo da mulher e aí se forma o bebezinho? Estive lendo um folheto que o doutor me deu, tudo muito bem explicado, que se fica vesga com o milagre da vida. Se quiser eu lhe mando, assim você vai se instruindo para quando sentar a cabeça, se casar, perder a virgindade e souber o que é manjar-branco, magra bandida. Espero não ficar muito feia, Chichi, algumas ficam horríveis com a gravidez, incham como sapos, têm varizes, ui que nojo. Então não vou agradar ao seu cunhadinho, o fogoso, que talvez vá buscar um divertimento na rua, e eu lhe digo que não sei o que faço a ele. Imagino que com o calor e a umidade daqui a gravidez deve ser atroz, principalmente não vivendo na Vila Militar, mas onde nós estamos, os sortudos. Eu lhe digo que essa é outra preocupação que me deixa de cabelos brancos: eu feliz por ter o bebê, mas, e se com o pretexto de que fiquei gorda o desgraçado do Panta se enreda com alguma loretana, principalmente agora que lhe deu na veneta de fazer amorzinho até dormindo? Morro de fome, Chichi, faz horas que escrevo, Dona Leonor já está servindo o almoço, você pode imaginar como ficará contente minha sogra com a idéia do neto, vou, almoço e depois continuo, por isso não se suicide, ainda não me despeço, tchauzinho, irmã.
Já voltei, Chichi, demorei horrores, são quase seis, tive que dormir uma sesta porque comi como uma jibóia. Olhe que Alicia nos trouxe de presente uma travessa de tacacho, um prato típico daqui, que amável, não? ainda bem que encontrei uma amiga em Iquitos. Tinha ouvido falar tanto do famoso tacacho, é banana verde esmagada com carne de porco, que se devia comer no Mercado de Belén, no restaurante A Lâmpada de Aladino Panduro, onde há um grande cozinheiro; por isso, estive aborrecendo Panta até que um dia nos levou. Cedinho, o mercado funciona desde o amanhecer e o fecham logo. Belén é o mais pitoresco daqui, você verá, um bairro inteiro de casinhas de madeira flutuando sobre o rio, a gente vai de botezinho de um lado ao outro, o mais original, eu lhe digo, chamam-no a Veneza da Amazônia, embora se veja uma pobreza tremenda. O mercado é muito bom para conhecer e para comprar frutas, peixe ou os colares e pulseiras que fazem nas tribos, muito bonitos, mas não para comer, Chichi. Quase morremos quando entramos no Aladino Panduro, você não pode imaginar a sujeira e as nuvens de insetos. Os pratos que nos trouxeram estavam pretos, e depois as moscas, nós as espantávamos e logo voltavam e se metiam pelos olhos e pela boca. Resultado, nem eu nem Dona Leonor provamos um pedaço, estávamos com náuseas, o bárbaro do Panta comeu os três pratos e também a carne-seca que o Sr. Aladino insistiu que devia comer com o tacacho. Contei a Alicia nosso logro e ela me disse que um dia destes eu lhe faço tacacho para que veja o que é bom e esta manhã nos trouxe uma travessa. Saborosíssimo, irmã, se parece com os chifles do norte, só um pouco, a banana tem aqui outro gosto. Só que é um chumbo de pesada, tive que me deitar para fazer a digestão, e minha sogra está se torcendo de dor de estômago e com cólica de gases, verde de vergonha porque não se agüenta e solta uns peidinhos diante de mim, de repente, desta vez arrebenta e vai ao céu de uma vez. Não, como sou má, pobre Sra. Leonor, no fundo é boa, a única coisa que me aborrece é que trata seu filhinho como se ainda fosse um bebê e um santinho, que velha chata, não?
Contei a você que a pobre tem procurado um passatempo na superstição? Fez da minha casa um monturo. Imagine que poucos dias depois de estarmos aqui, houve grande alvoroço em Iquitos, com a chegada do Irmão Francisco, talvez você tenha ouvido falar dele, eu não sabia até vir aqui. Na Amazônia é mais famoso que Marlon Brando, fundou uma religião que se chama os Irmãos da Arca, anda por toda parte a pé e onde chega ergue uma cruz enorme e inaugura arcas, que são suas igrejas. Tem muitos devotos, principalmente no povoado, e parece que os padrecos andam furiosos com a concorrência que lhes faz, mas até agora não deram um pio. Bom, minha sogra e eu fomos ouvi-lo em Moronacocha. Havia muita gente, o impressionante é que falava crucificado como Cristo, igualzinho. Anunciava o fim do mundo, pedia a todos que fizessem oferendas e sacrifícios para o Juízo Final. A gente não o entendia muito, fala um espanhol dificílimo. Mas todos o ouviam hipnotizados, as mulheres choravam e se punham de joelhos. Eu mesma me contagiei com a emoção e até derramei minhas lagrimonas, e minha sogra, você não imagina, soluçou tanto que não podíamos acalmá-la; o bruxo a flechou, Chichi. Depois, em casa, dizia maravilhas do Irmão Francisco, e no dia seguinte voltou à arca de Moronacocha para falar com os “irmãos”, e agora acontece que a velha também se fez “irmã”. Olhe por onde lhe veio sair o tiro: ela que nunca fez muito caso da religião verdadeira, acaba beata de heresias. Imagine que seu quarto está cheio de cruzinhas de madeira, e se fosse só isso, bem melhor que se distraia, mas o asqueroso do assunto é que a mania desta religião é crucificar animais e isso já não me agrada, porque em suas cruzinhas, cada manhã, encontro cravadas baratas, mariposas, aranhas e, outro dia, até um rato, que coisa espantosa. Toda vez que lhe pego em uma dessas porcarias, atiro-as no lixo e já nos engalfinhamos em boas brigas. É gozado, logo que cai uma tormenta, e aqui cai a cada momento, a velha se põe a tremer, acreditando que é o fim do mundo, e todos os dias suplica a Panta que mande fazer uma grande cruz na entrada. Veja só quantas mudanças em tão pouco tempo.
O que estava contando a você antes, quando parei para ir almoçar? Ah! sim, das loretanas. Ui, Chichi, tudo o que diziam é certo e ainda muito mais, a cada dia descubro algo novo, fico enojada, e digo que é isto mesmo. Iquitos deve ser a cidade mais corrompida do Peru, inclusive pior que Lima. Talvez seja verdade e o clima tem muita influência, quero dizer nisso que as mulheres são tão terríveis, você viu como Panta mal chegou à selva e se tornou um vulcão. O pior é que as bandidas são belíssimas, os charapas1 tão feios e sem graça e elas tão magníficas. Não exagero, Chichita, acho que as mulheres mais bonitas do Peru (com exceção da que fala e de sua irmã, claro) são as de Iquitos. Todas, as que se percebe decentes e as do povo, e até lhe digo que talvez as melhores sejam fora de moda.
1 Tartaruga; como são conhecidos os nascidos no departamento de Loreto (N. do T.)
Umas curvilíneas, filha, com tal maneirinha de caminhar coquetíssima e desavergonhada, mexendo o bumbum com grande desembaraço e jogando os ombros para trás, para que vejam o busto empinadinho. Umas desinibidas, vestem umas calças como luvas, e você pensa que se irritam quando os homens lhes dizem coisas? Que idéia, continuam dando corda e olham nos olhos deles com tal desembaraço que a algumas até dá vontade de puxar pelos cabelos. Ah! tenho que lhe contar uma coisa que ouvi ontem, ao entrar no Armazém Record (que tem o sistema do 3 X 4, você compra três artigos e o quarto eles lhe dão, genial, não?), entre duas mocinhas. Uma dizia à outra: “Você já beijou um militar?” “Não, por que você me pergunta?” “Beijam forrrmidável.” Fiquei rindo, ela dizia isto com o cantado loterano e em voz alta, sem se importar que todo mundo a ouvisse. São assim, Chichi, umas desinibidas como não há igual. E você pensa que ficam nos beijos? Que esperança, segundo Alicia, estas diabinhas começam com travessuras maiores desde o colégio e aprendem a se cuidar e tudo o mais-, e quando se casam as muito ressabiadas fazem uma grande cena para que seus maridos acreditem que ainda não estrearam. Algumas vão até as ayahuasqueras (essas bruxas que preparam a ayahuasca, você já ouviu falar, não? um cozimento que faz sonhar coisas estranhíssimas), para que as ponham novinhas outra vez. Imagine. Juro a você que toda vez que saio para compras, ou ao cinema com Alicia, volto ruborizada com as histórias que me conta. Cumprimenta uma amiga, pergunto quem é e me diz uma levada do diabo, imagine que, e a que menos teve, tem vários amantes, todas as casadas se meteram alguma vez com militar, aviador ou marinheiro, mas principalmente militar, têm um grande prestígio com as charapas, filhinha, ainda bem que não deixam Panta usar uniforme. Estas loucas aproveitam o menor descuido do marido e, zás, chifres. De fazer tremer, magra. E você pensa que fazem as coisas bem-feitas, em sua caminha e lençóis? Alicia me disse, se quiser, vamos dar uma volta em Moronacocha e você verá a quantidade de automóveis, onde os casais estão fazendo amorzinho (mas de verdade, ah!), um ao lado do outro, como se nada houvesse. Imagine que encontraram uma mulher fazendo amorzinho com um tenente da Guarda Civil na última fila do Cine Bolognesi. Dizem que o filme parou, acenderam a luz e os flagraram. Coitados, imaginem o susto que levaram ao ver que se acendia a luz, principalmente ela? Deitaram-se aproveitando que há bancos em lugar de assentos e que a última fila estava vazia. Um tremendo escândalo, parece que a esposa do tenente quase mata a mulher, porque um locutor da Rádio Amazonas, que é diabólico e solta todas as verdades, contou a história com todos os detalhes e acabaram transferindo o tenente de Iquitos. Eu não queria acreditar em semelhante aventura, mas Alicia mostrou-me a mulher na rua, uma morena muito ridícula, com uma carinha de quem não mata uma mosca. Eu a olhava e dizia, Alicia, você está mentindo, faziam amorzinho, amorzinho em pleno filme, no desconforto e com o susto de que os flagrassem? Parece que sim, a rapariga foi vista sem calcinhas e o tenente com o passarinho de fora. Depois de Paris, Iquitos, a corrompida, magra. Não pense que Alicia é uma faladeira, eu a exploro, por curiosidade e também por prevenida, filhinha, aqui é preciso estar com quatro olhos e oito mãos defendendo-se dessas loretanas; se você vira as costas, elas desaparecem com o seu marido. Alicia, embora charapa, é muito seriazinha, se bem que, às vezes, me aparece também com umas dessas calças de calçadeira. Não anda, porém, provocando os homens, não os olha com a desfaçatez de suas conterrâneas.
A respeito de como são bandidas as loretanas, que tonta, eu estava esquecendo de contar a você o mais engraçado e o melhor (ou antes, o pior). Você não pode imaginar a decepção que tivemos quando estávamos no meio da mudança para esta casinha. Já ouviu falar das famosas “lavadeiras” de Iquitos? Toda gente me dizia, mas onde é que você vivia, Pocha, de onde vem, o mundo inteiro sabe o que são as famosas “lavadeiras” de Iquitos. Então devo ser boba, ou burra, irmã, mas nem em Chiclayo, nem em Ica nem em Lima, nunca ouvira falar das “lavadeiras” de Iquitos. Veja bem que estávamos há uns poucos dias na casinha, e nosso dormitório fica na parte de baixo, com uma janela para a rua. Ainda não tínhamos empregada — agora tenho uma muito desligada, mas boníssima — e nas horas mais estranhas, de repente, batiam na janela e se ouviam vozes de mulher: “lavadeira! têm roupa para lavar?” E eu, sem sequer abrir a janela, dizia não, muito obrigada. Nunca cheguei a pensar, que estranho, em Iquitos há tantas lavadeiras pelas ruas e, em troca, é tão difícil conseguir empregada, porque tinha posto o cartãozinho “Preciso empregada” e só apareciam candidatas de quando em quando. Até que um dia, era muito cedo e estávamos ainda deitados, ouço a batidinha na janela, “lavadeira! têm roupa?” e eu havia amontoado muita roupa suja, porque aqui, lhe digo, com este calor é horrível, transpira-se horrores, é preciso trocar de roupa duas e até três vezes ao dia. Assim, pensei, que ótimo que me lave a roupa, desde que não cobre muito caro. Gritei-lhe, espere um momentinho, levantei-me de camisola e saí para abrir-lhe a porta. Nesse momento, devia suspeitar que se passava algo estranho, porque a rapariga tinha pinta de tudo menos de lavadeira, mas eu, uma boba, na lua. Uma suburbana muito bem apresentada, bem cintada para ressaltar as curvas, certamente, com as unhas pintadas e muito bem arrumadinha. Olhou-me de alto a baixo, espantadíssima, e eu pensei, o que há com esta, o que tenho eu para que me olhe assim. Disse-lhe entre, ela se meteu casa adentro e antes que lhe dissesse coisa alguma, viu a porta do dormitório e Panta na cama, e pum, atirou-se rapidinha, e, sem mais nem menos, plantou-se diante do seu cunhado numa pose que me deixou vesga, a mão nas cadeiras e as pernas abertas, como um galinho que vai atacar. Panta sentou-se na cama de um salto, os olhos esbugalhados de assombro com a aparição da mulher. E o que você pensa que aquela mulher fez antes de que eu ou Panta atinássemos a dizer-lhe espere lá fora, o que faz aqui no dormitório? Começou a falar da tarifa, que tínhamos que pagá-la em dobro, que ela não costumava ocupar-se com mulheres, apontando para mim, magra, caia morta, para dar-se a esse gosto é preciso pagar e não sei mais que vulgaridades, e de repente percebi a embrulhada e me começaram a tremer as pernas. Sim, Chichi, era um p.! uma p.! as “lavadeiras” de Iquitos são as p. de Iquitos, e vão de casa em casa oferecendo seus serviços com o pretexto da roupa. Agora, me diga, é ou não Iquitos a cidade mais imoral do mundo, irmã? Panta também percebeu e começou a gritar, fora daqui, grosseira, o que é que você está pensando, vai acabar presa. A mulher levou o maior susto de sua vida, compreendeu o equívoco e saiu disparada, tropeçando. Imagine que fria, magra. Pensou que éramos uns degenerados, que eu a fizera entrar para que fizéssemos amorzinho os três juntos. Quem sabe, Panta gracejava depois, talvez valesse a pena experimentar, sempre digo a você que isso o mudou muito? Agora que passou, já posso rir e fazer pilhéria, mas eu lhe digo que foi um mau momento; todo o dia estive morta de vergonha, lembrando da ceninha. Está vendo você o que é esta terra, irmã, uma cidade onde as que não são p. procuram ser, e onde se você descuida um segundo, fica sem marido, olhe só o covil em que vim cair.
Minha mão já se entorpeceu, Chichi, já está escuro, deve ser tardíssimo. Terei que mandar esta carta num baú para que caiba. Vamos ver se você me responde depressinha, longamente como a minha, e com montões de fofocas. Roberto continua sendo seu namorado ou já o trocou? Conte-me tudo, palavra que no futuro escreverei mais seguido.
Mil beijos, Chichi, de sua irmã que sente saudades e a quer,
POCHITA
Noite de 29 a 30 de agosto de 1956
Imagens da humilhação, instantâneos da ácida e inflamada história da coceira atormentadora: na estrita, esplêndida parada do Dia da Bandeira, diante do Monumento a Francisco Bolognesi, o cadete do último ano da Escola Militar de Chorrillos, Pantaleón Pantoja, enquanto executa, com galhardia, o passo de ganso, é subitamente transportado, em carne e espírito, ao inferno, mediante a transformação em favo da boca de seu ânus e tubo retal: cem lancetas martirizam a chaga úmida e secreta enquanto ele, apertando os dentes até quebrá-los, suando grossas gotas geladas, marcha sem perder o passo; na alegre e cintilante festa oferecida à Turma Alfonso Ugarte pelo Coronel Marcial Gumucio, diretor da Escola Militar de Chorrillos, o jovem alferes recém-recebido Pantaleón Pantoja sente que, subitamente, gelam as unhas de seus pés quando, apenas iniciados os compassos da valsa, flamante em seus braços a veterana esposa do Coronel Gumucio, recém-aberto o baile da noite por ele e o seu pouco vaporoso par, uma incandescente comichão, um formigueiro, tortuoso, uma tortura em forma de miúdas, simultâneas e afiadas coceiras alargam, avolumam e irritam o interior do reto e a abertura do ânus: os olhos coalhados de lágrimas, sem aumentar nem diminuir a pressão sobre a cintura e a mão gorducha da esposa do Coronel Gumucio, o Alferes de Intendência Pantoja, sem respirar, sem falar, continua dançando; na tenda de campanha do Estado-Maior do Regimento Número 17 de Chiclayo, perto o estrondo dos obuses, o rataplã da metralha e os secos arrotos dos balázios das companhias de vanguarda, que mal iniciaram as manobras de fim de ano, o Tenente Pantaleón Pantoja, que, de pé, diante de uma lousa e de um painel de mapas, relaciona à oficialidade, com voz firme e metálica, os gêneros, sistema de distribuição e previsões de arsenal e abastecimentos, é, de repente, invisivelmente elevado do solo e da realidade mais imediata por uma corrente sobres-saltada, ígnea, efervescente, emulsiva e crepitante, que arde, desimpede, agiganta, multiplica, suplicia, enlouquece o vestíbulo anal e a galeria retal e se desdobra como uma aranha entre suas nádegas, mas ele, bruscamente lívido, subitamente empapado de suor, o eu secretamente franzido com uma obstinação de planta, a voz mal velada por um tremor, continua emitindo números, produzindo fórmulas, somando e subtraindo. “Você tem que se operar, Pantita”, sussurra maternalmente a Sra. Leonor. “Opere-se, amor”, repete, em voz baixa, Pochita. “Você deve tirá-las de uma vez, irmão”, faz eco o Tenente Luis Rengifo Flores, “é mais fácil que operar uma fimose em lugar menos perigoso para a virilidade”. O Major Antipa Negrón, da Saúde Militar, gargalha: “Vou decapitar essas três hemorróidas com um só talho, como se fossem cabeças de meninos feitas de manteiga, meu querido Pantaleón”.
Em torno da mesa de operações, ocorre uma série de mudanças, híbridos e enxertos que o angustiam muito mais que a silenciosa faina dos médicos e enfermeiras em suas sapatilhas brancas ou que as ofuscantes cascatas de luz que despejam os refletores do teto. “Não vai doei, Senhol Pantoja”, anima-o o Tigre Collazos, que além da voz tem também os olhos oblíquos, as mãos vibráteis e o sorriso meloso do Chinês Porfirio. “Mais rápido, mais fácil e com menos conseqüências que a extração de um molar, Pantita”, assegura uma Sra. Leonor cujas cadeiras, papada e peitos se robusteceram e desbordaram até se confundir com os de Leonor Curinchila. Ali, porém, inclinadas também sobre a mesa de operações, onde o instalaram em posição ginecológica — entre suas pernas abertas, manipula bisturis, algodões, tesouras, recipientes, o Dr. Antipa Negrón —, há duas mulheres tão inseparáveis e antagônicas como certas duplas que agora giram em sua cabeça e o fazem voltar à infância, ao começo da adolescência (Laurel e Hardy, Mandrake e Lotar, Tarzan e Jane): uma montanha de banha amarrotada numa mantilha espanhola e uma menina-velha, em blue jeans, com tonsura e marcas de varíola na cara. Não saber o que fazem ali nem quem são — remotamente, entretanto, tem a sensação de tê-las visto alguma vez, de passagem, entre um montão de gente — provoca-lhe uma angústia sem limites, e, sem procurar impedi-lo, começa a chorar: ouve seus próprios soluços profundos e sonoros. “Não tenha medo delas, são as primeiras recrutas do Serviço de Visitadoras, por acaso não reconhece Pechuga e Sandra? Já as apresentei numa outra noite, na Casa Chuchupe”, tranqüiliza-o Juan Rivera, o popular Chupito, que diminuiu ainda mais de tamanho e é um macaquinho trepado nos ombros redondos, nus, débeis da triste Pochita. Sente que poderia morrer de vergonha, de raiva, de frustração, de rancor. Quisera gritar: “Como se atreve a revelar o segredo diante de mamãe, de Pocha? Anão, aborto, feto! Como se atreve a falar de visitadoras diante de minha esposa, da viúva do meu defunto papai?” Mas não abre a boca, e só sua e sofre. O Dr. Negrón terminou sua tarefa e se ergue com umas peças sangrentas, suspensas de suas mãos, que ele só entrevê um segundo, pois consegue fechar os olhos a tempo. A cada instante está mais ferido, ofendido e assustado. Tigre Collazos ri a gargalhadas: “É preciso encarar as realidades e chamar ao pão pão e ao vinho vinho: os soldados precisam foder e você lhes consegue com quem ou o fuzilaremos a canhonaços de sêmen”. “Escolhemos o Posto de Horcones para experiência-piloto do Serviço de Visitadoras, Pantoja”, anuncia-lhe com desenvoltura o General Victoria, e embora ele, apontando com os olhos, com as mãos à Sra. Leonor, à frágil e pálida Pochita, implore-lhe discrição, reserva, adiamento, esquecimento, o General Victoria insiste: “Já sabemos que além de Sandra e Pechuga, você contratou íris e Lalita. Vivam as quatro mosqueteiras!” Ele se põe a chorar outra vez, no auge da impotência.
Agora porém, em torno à sua cama de recém-operado, a Sra. Leonor e Pochita olham-no com carinho e ternura, sem a mais leve sombra de malícia, com uma declarada, maravilhosa, balsâmica ignorância retratada nos olhos: não sabem nada. Sente um regozijo irônico, que sobe por seu corpo e zomba de si mesmo: como poderiam saber do Serviço de Visitadoras se ainda não aconteceu, se ainda sou tenente e feliz, se nem sequer saímos de Chiclayo? Mas o Dr. Negrón acaba de entrar, acompanhado de uma enfermeira jovem e sorridente (ele a reconhece e se ruboriza: Alicia, a amiga de Pocha!), que aconchega um irrigador nos braços, como um recém-nascido. Pochita e a Sra. Leonor saem do quarto dando-lhe, da porta, um adeus solidário, quase trágico. “Joelhos separados, boca beijando o colchão, eu para cima”, ordena o Dr. Antipa Negrón. E explica: “Já se passaram vinte e quatro horas e chegou o momento de limpar o estômago. Estes dois litros de água salgada lhe farão botar para fora os pecados mortais e veniais de sua vida, tenente”. A introdução do irrigador no reto, apesar de estar recoberto de vaselina e da habilidade de prestidigitador do médico, arranca-lhe um grito. Agora, porém, o líquido está entrando com uma tibieza que já não é dolorosa, que é, inclusive, agradável. Durante um minuto, as águas continuam entrando, borbulhantes, enchendo seu ventre, enquanto o Tenente Pantoja, os olhos cerrados, pensa metodicamente: “O Serviço de Visitadoras? Não doerá, não doerá”. Dá outro gritinho: o Dr. Negrón tirou o irrigador e pôs-lhe um pouco de algodão entre as pernas. A enfermeira sai, levando o irrigador vazio. “Até agora não sentiu nenhuma dor pós-operatória, certo?”, pergunta o médico. “Certo, meu major”, responde o Tenente Pantoja, contorcendo-se com dificuldade, sentando-se, pondo-se de pé, uma das mãos apertada no algodão que as duas nádegas beliscam, e avançando para a privada rígido como um fantoche, nu da cintura para baixo, pelo braço do doutor que o olha com benevolência e alguma piedade. Um leve ardor começou a insinuar-se no reto e o ventre elefântico sofre agora encrespações, rápidas câimbras, e um repentino calafrio eletriza sua espinha dorsal. O médico ajuda-o a sentar-se na privada; dá-lhe uma palmadinha no ombro e resume sua filosofia: “Console-se pensando que depois desta experiência tudo o que lhe acontecerá na vida será melhor”. Sai, encostando suavemente a porta do banheiro. O Tenente Pantoja prende uma toalha entre os dentes e a morde com todas as suas forças. Fechou os olhos, incrustou as mãos nos joelhos e dois milhões de poros abrem-se como janelas ao longo do seu corpo para vomitar suor e fel. Repete com toda a desesperação de que é capaz: “Não cagarei visitadoras, não cagarei visitadoras”. Mas os dois litros de água começaram a baixar, a deslizar, a cair, a irromper, ardentes e satânicos, perniciosos, homicidas, aleivosos, arrastando sólidos blocos de chamas, facas e punções que abrasam, cravam, ardem, cegam. Deixou cair a toalha da boca para poder rugir como leão, fossar como porco e, ao mesmo tempo, rir como hiena.
Resolução confidencial de anexação do BAP “Pachitea”
O Contra-Almirante Pedro G. Carrillo, chefe da Força Fluvial do Amazonas,
CONSIDERANDO:
1. Que recebeu uma solicitação do Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, chefe do Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins (SVGPFA), recentemente criado pelo Exército, com a intenção de solucionar um extenso problema bio-psicológico dos suboficiais e soldados que servem em remotas regiões, para que a Força Fluvial do Amazonas lhe preste ajuda e facilidades na organização do sistema de transporte entre o posto de comando e centro logístico do Serviço de Visitadoras e seus centros usuários;
2. Que a solicitação mencionada tem a concordância da Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército (General Felipe Collazos) e do Comando da V Região (Amazônia) (General Roger Scavino);
3. Que a Direção da Administração do Estado-Maior da Armada opinou favoravelmente sobre a solicitação, assinalando, ao mesmo tempo, a conveniência de que o SVGPFA pudesse ampliar seu serviço às bases que a Armada tem nas comarcas afastadas da Amazônia e onde a marinhagem se achava afligida pelas mesmas necessidades e apetites dos suboficiais e soldados do Exército e que motivaram a criação do Serviço de Visitadoras;
4. Que, consultado sobre esse particular, o Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja respondeu que o SVGPFA não via inconveniente em atender à referida sugestão, necessitando para isso que a Força Fluvial do Amazonas efetuasse, nas bases da selva, um teste de sua autoria, destinado a detectar o número potencial de usuários na Armada Peruana (AP) do SVGPFA, o qual, instrumentalizado por oficiais responsáveis, com a devida presteza e esmero, revelou um número potencial de usuários de 327, com uma média desejada por usuário de 10 prestações mensais e um tempo médio desejado de 35 minutos por prestação individual;
RESOLVE:
1. Que se anexe, provisoriamente, ao Serviço de Visitadoras, como meio de transporte pelos rios da bacia Amazônica, entre seu centro logístico e os centros usuários, o ex-Navio-Dispensário Pachitea, com uma tripulação permanente de quatro homens, sob o comando do Primeiro-Suboficial Carlos Rodríguez Saravia;
2. Que o BAP Pachitea, antes de abandonar a base de Santa Clotilde, onde repousa desde que foi retirado do serviço ativo, depois de meio século ininterrupto de navegação a serviço da Armada, histórico que teve início com destacada participação no conflito com a Colômbia de 1910, seja despojado de bandeiras, insígnias e demais distintivos que o indicam como barco da Armada Peruana, pintado da cor que o Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja indique, sempre que não seja nem cinza-aço nem branco-nuvem, que são as cores dos barcos AP, e substituído seu nome original Pachitea na proa e ponte de comando pelo de Eva, que o Serviço de Visitadoras escolheu para ele;
3. Que, antes de assumir seu novo destino, o Primeiro-Suboficial Carlos Rodríguez Saravia e a tripulação sob seu comando sejam devidamente instruídos, por seus superiores, sobre a delicadeza da tarefa que vão cumprir, a necessidade de que, no desempenho da mesma, vistam-se só de civis e ocultem sua condição de membros da Armada, mantenham a máxima reserva sobre o que vejam ou ouçam, no curso de seus deslocamentos e, em geral, evitem a menor confidencia e revelação em torno da natureza do serviço para o qual foram destacados;
4. Que o combustível necessário, em suas novas funções, ao BAP ex-Pachitea seja proporcionalmente custeado pela Armada e pelo Exército, de acordo com o respectivo uso do Serviço de Visitadoras, o que se pode determinar pelo número de prestações oferecidas no mês a cada instituição, ou pelo número de deslocamentos a guarnições militares ou bases fluviais do BAP anexado ao SVGPFA ;
5. Que por ser de caráter confidencial, esta disposição não seja lida na Ordem do Dia, nem exibida nas bases, mas comunicada exclusivamente aos oficiais que a devem fazer cumprir.
Assinado:
Contra-Almirante PEDRO G. CARRILLO,
chefe da Força Fluvial do Amazonas.
Base de Santa Clotilde, 16 de agosto de 1956.
c.c. ao Estado-Maior da Armada Peruana, à Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército e ao Comando da V Região (Amazônia).
SVGPFA
ASSUNTO GERAL: Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins (SVGPFA).
ASSUNTO ESPECÍFICO: Propriedades do óleo de bufeo, de chuchuhuasi, o cocobolo, a clabohuasca, a huacapuruna, o ipururo e o viborachado, sua incidência sobre o SVGPFA, experiências realizadas na pessoa do abaixo assinado e sugestões que faz o mesmo.
CARACTERÍSTICAS: secreto.
DATA E LOCAL: Iquitos, 8 de setembro de 1956.
O abaixo assinado, Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, chefe do SVGPFA, respeitosamente apresenta-se diante do General Felipe Collazos, chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército, saúda-o e diz:
1. Que em toda a Amazônia existe a crença de que a variedade vermelha do bufeo (peixe-delfim dos rios amazônicos) é um animal de uma considerável potência sexual, a mesma que o induz, com ajuda do demônio ou espíritos malignos, a raptar quanta mulher pode, a fim de satisfazer seus instintos, adotando para isso uma forma humana tão varonil e galharda que nenhum ente feminino resiste a ele. Que devido a tal crença, generalizou-se esta outra: que o óleo de bufeo excita o ímpeto viril e faz o varão irresistível à fêmea, sendo por isso um produto de enorme procura em lojas e mercados. Que o abaixo assinado decidiu fazer pessoalmente uma verificação a fim de determinar de que forma esta crença folclórica, superstição ou fato científico, podia incidir no problema que originou e alicerçou a existência do Serviço de Visitadoras, e, pondo mãos à obra, pediu à senhora sua mãe e à senhora sua esposa, sob pretexto de receita médica, que durante uma semana todos os alimentos do lar fossem feitos unicamente na base do óleo de bufeo, com os resultados que expõe:
2. Que, a partir do segundo dia, o abaixo assinado experimentou um aumento brusco do apetite sexual, acentuando-se a anomalia nos dias seguintes, a ponto de, nos últimos dias da semana, as bolinações e o ato viril serem as únicas reflexões que ocuparam sua mente, tanto de dia quanto de noite (sonhos, pesadelos), com grave prejuízo de seu poder de concentração, sistema nervoso em geral e efetividade no trabalho. Que em conseqüência se viu no imperativo de solicitar de sua esposa e obter dela, durante a semana em questão, uma média de duas vezes diárias de relações íntimas, com a conseqüente aversão e surpresa da mesma, uma vez que o abaixo assinado costumava ter relações de intimidade matrimonial num ritmo de uma vez cada dez dias antes de vir a Iquitos, e de uma cada três depois de chegar, porque, devido indubitavelmente a fatores já identificados pelos superiores (calor, atmosfera úmida), o abaixo assinado havia registrado um aumento do impulso seminal desde o próprio dia em que pisou solo amazônico. Que, ao mesmo tempo, pôde comprovar que a função afrodisíaca do óleo de bufeo se registra apenas sobre o homem, embora não possa excluir que seu cônjuge, afetado pelo estímulo em questão, o dissimulasse, com muita dignidade, pelo natural sentimento de pudor e correção de toda dama que merece este apelativo, como o abaixo assinado tem o orgulho de dizer é o caso de sua digna esposa;
3. Que em seu afã de não poupar esforços para o melhor cumprimento da missão que os superiores lhe encomendaram, e ainda com risco de sua saúde física e da estabilidade familiar, o abaixo assinado decidiu igualmente experimentar em sua pessoa algumas das receitas que a sabedoria e a luxúria popular loretanas propõem para o retorno ou o reforço da virilidade, vulgarmente chamadas, com perdão da palavra, levanta-mortos ou, pior ainda, levanta-pica, e disse só algumas, porque nesta região da Pátria a preocupação por tudo o que se refere ao sexo é tão diligente e variada que há, literalmente, milhares de compostos desse tipo, o que torna impossível, embora com a melhor boa vontade, que um indivíduo sozinho possa esgotar a lista, mesmo estando disposto a imolar sua vida na experiência. Que o abaixo assinado tem o dever de reconhecer que se trata de sabedoria popular e não de superstição: certas cascas empregadas para preparar cozimentos que se bebem com álcool, como o chuchuhuaú, o cocobolo, a clabohuasca e a huacapuruna, produzem um ardor viril instantâneo e interminável que nada, salvo o ato mesmo do varão, pode aplacar. Particularmente efetivo, pela velocidade quase aeronáutica com que opera sobre o centro gerador, é a mistura de ipururo com aguardente, que, tão logo ingerida, causou no abaixo assinado um enfebrecimento indissimulável com a vergonha que é possível imaginar, pois infortunadamente a experiência não foi feita no próprio lar mas no centro noturno As Trevas, do balneário de Nanay. Que ainda pior e realmente satânica é a poção chamada viborachado, aguardente na qual se macera uma víbora venenosa, de preferência jergão, de efeitos mais cataclismáticos que os anteriores, porque, oferecida desta vez casualmente, ao autor desta parte, em outro local noturno de Iquitos, o clube A Selva, comunicou-lhe um ardor e endurecimento de tal ferocidade e urgência que, com pesar que ainda não diminui, teve que recorrer, no incômodo lavabo do local mencionado, ao vício solitário, que acreditava já extinto desde os dias de sua infância, para recobrar a temperança e a paz;
4. Que, por todo o exposto, o abaixo assinado permite-se recomendar aos superiores sejam comunicadas instruções a todas as Guarnições, Postos de Fronteira e Afins, proibindo terminantemente o uso do óleo de bufeo vermelho na confecção do rancho de suboficiais e soldados, assim como seu uso individual por parte da tropa, e que, igualmente, se proíba, de imediato, e sob castigo rigoroso, o consumo, sós ou misturados, em sólido ou líquido, do chuchuhuasi, do cocobolo, da clabohuasca, da huacapuruna, do ipururo e do viborachado, sob pena de que o Serviço de Visitadoras se veja bombardeado por uma demanda ainda muito maior que a já exorbitada a que deve fazer frente;
5. Que suplica guarde-se o mais rigoroso segredo a respeito desta parte (e se fosse possível que se destrua uma vez lida) por conter confidencias extremamente íntimas sobre a vida familiar do abaixo assinado, que este se resignou fazer pensando na complexa missão que o Exército lhe confiou, mas com desassossego e natural apreensão pela malícia e zombaria que certamente lhe atrairiam da parte de seus companheiros oficiais, se fossem divulgadas.
Deus guarde V. Exa.
Assinado:
Capitão EP (Intendência) PANTALEÓN PANTOJA
cc. ao comandante geral da V Região (Amazônia), General Roger Scavino.
ANOTAÇÃO:
a. Converta-se em disposição regulamentar a sugestão do Capitão Pantoja, e, para tanto, comunique-se a todos os chefes de quartel, acampamento e postos da V Região (Amazônia) que a partir de hoje fica terminantemente proibido o uso nos ranchos dos ingredientes, poções e espécies enumerados na parte precedente.
b. De acordo com a solicitação do Capitão Pantoja, destrua-se pelo fogo esta parte número 3 do SVGPFA por conter revelações indelicadas sobre a vida pessoal e familiar do mesmo.
General FELIPE COLLAZOS,
chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército.
Lima, 18 de setembro de 1956.
Resolução secreta concernente ao FAP Hidro Catalina N.° 37 “Requena”
O Coronel FAP Andrés Sarmiento Segovia, comandante do Grupo Aéreo N.° 42 da Amazônia,
CONSIDERANDO:
1. Que o Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, com autorização e apoio em instâncias superiores do Exército, solicitou ajuda do Grupo Aéreo N.° 42, para o transporte contínuo do pessoal do Serviço de Visitadoras, de criação recente, de seu centro logístico, às margens do Itaya, até os seus centros usuários, muitos dos quais se acham tão isolados, principalmente no período de chuvas, que o único meio funcional de transporte é o aéreo, e de tais pontos até o centro logístico;
2. Que o Comando de Administração e Culto do Estado-Maior da Força Aérea Peruana consentiu em aceder à solicitação por deferência para com o Exército, fazendo, entretanto, constar formalmente que tem reservas quanto à natureza do Serviço de Visitadoras, pois lhe parece pouco compatível com as tarefas naturais e próprias das Forças Armadas e perigoso para o seu bom nome e prestígio, sendo esta uma simples conjetura e de nenhum modo uma tentativa de intromissão nas atividades da instituição irmã,
RESOLVE:
1. Que se destaque ao SVGPFA, a título de empréstimo, para que realize os serviços de transporte mencionados, o FAP Hidro Catalina N.° 37 Requena, tão logo a Seção Técnica e Mecânica do Grupo Aéreo N.° 42 da Amazônia o tenha posto em condições de voltar a voar;
2. Que, antes de decolar da Base Aérea de Moronacocha, o FAP Hidro Catalina N.° 37 seja devidamente camuflado, de tal maneira que não possa ser reconhecido, em nenhum momento, como pertencente à Força Aérea Peruana, enquanto presta serviços ao SVGPFA, mudando-se para isso a cor da fuselagem e das asas (de azul a verde, com debruns vermelhos) e o nome (de Requeria a Dalila, segundo o desejo do Capitão Pantoja);
3. Que se destaque, para pilotar o FAP Hidro Catalina N.° 37, o suboficial do Grupo Aéreo N.° 42 que tenha tido o maior número de castigos e repreensões em sua folha de serviço durante este ano;
4. Que em vista do estado de deterioração técnica em que se acha o FAP Hidro Catalina N.° 37, devido a seus longos anos de serviço, seja semanalmente revisado por um mecânico do Grupo Aéreo N.° 42 da Amazônia, que, para isso, se mudará, discretamente e em roupas civis, para o centro logístico do SVGPFA;
5. Rogar encarecidamente ao Capitão Pantoja que o Serviço de Visitadoras tenha os maiores cuidados e considerações com o Hidro Catalina N.° 37, por se tratar de uma verdadeira relíquia histórica da FAP, pois foi nessa nobre máquina que, no dia 3 de março de 1929, o Tenente Luis Pedraza Romero uniu pela primeira vez em vôo direto as cidades de Iquitos e Yurimaguas;
6. Que o combustível, assim como todos os gastos que exijam a manutenção e o uso do FAP Hidro Catalina N.° 37, sejam de incumbência exclusiva do próprio SVGPFA;
7. Que esta resolução seja comunicada unicamente a quem afeta ou menciona, e, por ser do máximo segredo, se castigue com 60 dias de rigor a quem quer que divulgue ou participe seu conteúdo fora das mencionadas exceções.
Assinado:
Coronel FAP ANDRÉS SARMIENTO SEGOVIA
Base Aérea de Moronacocha, 7 de agosto de 1956.
c.c. ao Comando de Administração e Culto do Estado-Maior da Força Aérea Peruana, à Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército e ao Comando da V Região (Amazônia).
Disposição interna do Serviço de Saúde do Acampamento Militar Vargas Guerra
O Comandante EP (Saúde) Roberto Quispe Salas, chefe do Serviço de Saúde do Acampamento Militar Vargas Guerra, obedecidas as instruções confidenciais recebidas do Comando-Geral da V Região (Amazônia), adota as seguintes diretrizes:
1. O Major EP (Saúde) Antipa Negrón Azpilcueta selecionará entre a equipe de enfermeiros e práticos sanitaristas da seção “Enfermidades infectocontagiosas” a pessoa que considerar mais capacitada científica e moralmente para cumprir as funções que as instruções do Comando da V Região (Amazônia) tipificam para o futuro assistente sanitarista do Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins (SVGPFA);
2. O Major Negrón Azpilcueta ministrará, no curso da presente semana, ao enfermeiro ou sanitarista escolhido um treinamento teórico-prático intensivo, na previsão das tarefas que deverá desempenhar no SVGPFA, as quais, no essencial, consistirão em detectar o domicílio de lêndeas, percevejos, piolhos, chatos e carrapatos em geral, enfermidades venéreas e afecções vulvovaginais infectocontagiosas nas visitadoras integrantes dos comboios, imediatamente antes da partida destes em direção aos centros usuários do SVGPFA;
3. O Major Negrón Azpilcueta fornecerá ao assistente sanitarista uma farmácia portátil de primeiros-socorros, com acréscimo de sonda, pequena pala e dedo de borracha para exploração vaginal, dois guarda-pós brancos, dois pares de luvas de borracha e um número adequado de cadernos, nos quais, semanalmente, aquele deverá dar parte ao Serviço de Saúde do Acampamento Militar Vargas Guerra sobre o movimento quantitativo e qualitativo do Posto de Assistência Sanitária do SVGPFA;
4. Comunicar esta disposição só ao interessado e arquivá-la com a advertência “Secreta”.
Assinado:
Comandante EP (Saúde) ROBERTO QUISPE SALAS
Acampamento Militar Vargas Guerra,
1.° de setembro de 1956.
c.c. ao Comando-Geral da V Região (Amazônia) e ao Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, chefe do Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins (SVGPFA).
Informe do Alferes Alberto Santana ao Comando-Geral da V Região (Amazônia) sobre a operação-piloto efetuada pelo SVGPFA, no Posto de Horcones, sob seu comando
De acordo com as instruções recebidas, o Alferes Alberto Santana tem a honra de remeter ao Comando-Geral da V Região (Amazônia) a seguinte relação de fatos acontecidos no posto sob seu comando, sobre o rio Napo:
Tão logo informado pelos superiores de que o Posto de Horcones fora escolhido para sede da experiência inaugural do Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins, dispôs-se a prestar todas as facilidades para o êxito da operação e perguntou por rádio ao Capitão Pantaleón Pantoja quais disposições preliminares à experiência-piloto devia tomar em Horcones. Ao que o Capitão Pantoja lhe fez saber que nenhuma, porque ele, pessoalmente, se deslocaria ao rio Napo para supervisionar os preparativos e o desenvolvimento da prova.
Efetivamente, na segunda-feira, 12 de setembro, às 10h30 da manhã, aproximadamente, amerissou no rio Napo, diante do Posto, um hidroavião de cor verde com o nome Dalila pintado em letras vermelhas na fuselagem, pilotado por um indivíduo que alcunham Louco, e, como passageiros, o Capitão Pantoja, à paisana, e uma senhora chamada Chuchupe, que teve que descer carregada, pois desmaiara. A razão de seu desmaio foi ter-se assustado muito durante o vôo rio Itaya—rio Napo, devido às sacudidelas produzidas pelo vento no avião e ao fato de o piloto, segundo afirmação da supradita, com a intenção de aumentar seu terror para divertir-se, haver realizado constantes, arriscadas e inúteis acrobacias, que seus nervos não puderam suportar. Depois que a mencionada senhora se refez, pretendeu, com abuso de palavras e gestos indignos, agredir de fato o piloto, sendo preciso o Capitão Pantoja intervir para pôr fim ao incidente.
Apaziguados os ânimos, após uma leve refeição, o Capitão Pantoja e sua colaboradora começaram a preparar tudo para a realização da experiência, que devia ser celebrada no dia seguinte, terça-feira, 13 de setembro. Os preparativos foram de duas ordens: de participantes e topográficos. Quanto aos primeiros, o Capitão Pantoja, ajudado pelo abaixo assinado, estabeleceu uma lista de usuários, perguntando, um por um, aos vinte e dois graduados e soldados do Posto — os suboficiais foram excluídos — se desejavam beneficiar-se do Serviço de Visitadoras, explicando-lhes a natureza do mesmo. A primeira reação da tropa foi de incredulidade e desconfiança e todos responderam negando-se a participar da experiência, acreditando que se tratava de um estratagema tal como quando se pedem voluntários para ir a Iquitos! e os que dão um passo a frente são mandados a limpar as latrinas. Foi preciso que a mencionada Chuchupe se fizesse presente e falasse aos homens em termos maliciosos para que, às suspeitas e dúvidas, sucedesse, primeiro, uma grande hilaridade e, logo, uma excitação de tal magnitude que foi necessária a máxima energia dos suboficiais e do abaixo assinado para acalmá-los. Dos vinte e dois graduados e soldados, vinte e um inscreveram-se como candidatos-usuários, sendo a exceção o soldado raso Segundo Pachas, que explicou que se excluía porque a operação se realizava na terça-feira, dia 13, e que, sendo ele supersticioso, estava certo de que lhe traria azar participar dela. Segundo indicação do enfermeiro de Horcones, eliminou-se igualmente da lista de candidatos-usuários o Cabo Urondino Chicote, por estar sofrendo de uma erupção de sarna, suscetível de contágio, por meio da visitadora respectiva, para o resto da unidade. Com isso, ficou definitivamente estabelecida uma lista de vinte usuários, os quais, consultados, admitiram que se lhes descontasse, em folha, a tarifa fixada pelo SVGPFA como retribuição pelo serviço que lhes oferecia.
Quanto aos preparativos topográficos, consistiram, fundamentalmente, em acondicionar quatro alojamentos destinados às visitadoras do primeiro comboio do SVGPFA, o que foi feito sob a direção exclusiva da chamada Chuchupe.
Esta fez saber que, como podia chover, os locais deviam ser cobertos, e, de preferência, não ser contíguos, para evitar interferências auditivas ou emulações, o que infelizmente não se pôde conseguir totalmente. Depois de passar em revista as instalações cobertas do Posto, que, os superiores sabem, são escassas, foram escolhidos o depósito de víveres, o posto de rádio e a enfermaria como as mais convenientes. Por causa de sua extensão, o depósito de víveres pôde ser dividido em dois compartimentos, utilizando-se como barreiras separatórias as caixas de comestíveis. A mencionada Chuchupe pediu, logo, que em cada alojamento se colocasse uma cama com seu respectivo colchão de palha ou de espuma, ou, na sua falta, uma rede, com um oleado impermeável, destinado a evitar infiltrações e a deterioração do material. Procedeu-se imediatamente ao transporte para os citados alojamentos de quatro camas (escolhidas por sorteio) do quadro da tropa, com seus colchões, mas como não foi possível conseguir os oleados pedidos, foram eles substituídos pelas lonas utilizadas para cobrir a maquinaria e o armamento quando chove. Assim mesmo, uma vez forrados os colchões com as lonas, procedeu-se a instalar os mosquiteiros para que os insetos, tão abundantes nesta época, não obstaculizassem o ato da prestação. Tendo sido impossível dotar cada alojamento do penico que a Sra. Chuchupe pedia, porque o Posto não dispõe de um só dos referidos artefatos, forneceram-se quatro latas de alimento. Não houve dificuldade para instalar um lavabo, com seus respectivos recipientes de água, em cada alojamento, assim como em prover para cada um uma cadeira, caixão ou banco para colocar a roupa, e dois rolos de papel higiênico, solicitando o abaixo assinado desta aos superiores sirvam-se ordenar à Intendência lhe reponha o quanto antes estes últimos elementos, por limitadas que são nossas reservas no referido artigo, não havendo nesta zona tão isolada nada com que substituí-lo, seja papel de jornal ou de embrulho, e existindo o antecedente de urticárias e graves irritações cutâneas na tropa, pelo emprego de folhas de árvores. Assim mesmo, a chamada Chuchupe mostrou que era indispensável colocar nos alojamentos cortinas que, sem deixá-los na total escuridão, amorteceriam a luz do sol e dariam uma certa penumbra, que, segundo sua experiência, é o ambiente mais adequado à prestação. A impossibilidade de conseguir as cortininhas floridas que sugeria a Sra. Chuchupe não foi impedimento; o Primeiro-Sargento Esteban Sandora improvisou engenhosamente uma série de cortinas com os cobertores e capotes da tropa, que serviram bastante bem ao fim, deixando os alojamentos na meia-luz desejada. Além disso, na possibilidade de caída da noite antes que terminasse a operação, a Sra. Chuchupe fez com que se recobrissem os candeeiros dos alojamentos com trapos de cor vermelha, porque, assegurou, o ambiente vermelho é mais apropriado ao ato. Finalmente, a mencionada senhora, insistindo em que os locais deviam ter um certo toque feminino, procedeu ela mesma a confeccionar uns raminhos de flores, folhas e hastes silvestres, que colheu, ajudada por dois soldados, e colocou artisticamente nas cabeceiras das camas de cada alojamento. Com isso, ficaram ultimados os preparativos e só restou esperar a chegada do comboio.
No dia seguinte, terça-feira, 13 de setembro às 14hl5 da tarde, atracou no embarcadouro do Posto de Horcones o primeiro comboio do SVGPFA. Logo que se tornou visível o barco-transporte — recém-pintado de verde e com o seu nome Eva escrito com grandes letras vermelhas na proa — a tropa fez uma parada em suas tarefas cotidianas, prorrompeu em exclamações de entusiasmo e atirou os casquetes ao ar em sinal de boas-vindas. Imediatamente, seguindo as instruções do Capitão Pantoja, instalou-se um sistema de guarda para impedir que algum elemento civil se aproximasse do Posto durante a experiência-piloto, perigo improvável na realidade, tendo em conta que a povoação mais próxima a Horcones é uma tribo de índios quíchuas a dois dias de navegação águas acima do Napo. Graças à decidida colaboração dos soldados, o desembarque transcorreu com inteira normalidade. O barco-transporte Eva era comandado por Carlos Rodríguez Saravia (suboficial da Marinha camuflado de civil) e tinha uma tripulação de quatro homens, os quais, por ordem do Capitão Pantoja, permaneceram a bordo durante toda a estada do Eva em Horcones. Presidiam o comboio dois colaboradores civis do Capitão Pantoja: Porfirio Wong e um indivíduo apelidado Chupito. Quanto às quatro visitadoras, cuja aparição na escadinha de desembarque foi saudada com salvas de aplausos pela tropa, respondiam aos seguintes apelidos (as quatro recusaram-se a dar a conhecer seus nomes de família): LALITA, IRIS, PEITUDA e SANDRA. AS quatro foram imediatamente concentradas pelos chamados Chupito e Chuchupe no depósito de víveres, para descansar e receber instruções, e ficou vigiando a porta o denominado Porfirio Wong. Considerando o desassossego que a presença das visitadoras havia provocado nos homens do Posto, tornou-se muito oportuno mantê-las aquarteladas até a hora fixada para o começo da operação (às cinco da tarde), porém isso motivou um pequeno transtorno no seio do SVGPFA. Porque, passado o tempo de recuperação das fadigas da viagem, as mencionadas visitadoras pretendiam abandonar o local, alegando que desejavam conhecer as imediações e passear pelo Posto. Ao não lhes ser permitido por seus responsáveis, protestaram ruidosamente com gritos e grosserias e procuraram, inclusive, forçar a saída. Para mantê-las recolhidas foi preciso que o próprio Capitão Pantoja ingressasse no depósito de víveres. Como piada, anote-se que o soldado raso Segundo Pachas solicitou, pouco depois da chegada do comboio, que fosse incluído entre os usuários, indicando que estava disposto a desafiar o azar, o que lhe foi negado por estar a lista definitivamente confeccionada.
Às 17 horas menos 5 minutos, o Capitão Pantoja ordenou que as visitadoras ocupassem seus respectivos alojamentos, que foram sorteados assim: depósito de víveres, LALITA e PEITUDA; posto de rádio, SANDRA; enfermaria, ÍRIS. Como controladores, situaram-se o próprio Capitão Pantoja à porta do depósito de víveres, o abaixo assinado diante do posto de rádio e o suboficial Marcos Maravilla Ramos diante da enfermaria, cada qual com seu respectivo cronômetro. Às 17 horas em ponto, isto é, mal terminadas as tarefas e serviços da tropa (com exceção da guarda), fez-se formar os vinte usuários e se lhes pediu para indicar a visitadora de sua escolha, acontecendo então a primeira dificuldade séria, porque dezoito dos vinte se pronunciaram resolutamente pela denominada PEITUDA e os dois restantes por ÍRIS, com o que as outras duas ficavam sem candidatos-usuários. Consultado sobre que decisão tomar, o Capitão Pantoja sugeriu e o abaixo assinado pôs em prática a seguinte solução: os cinco homens de melhor comportamento no mês, segundo a folha de serviços, foram encaminhados ao alojamento da solicitada PEITUDA e os cinco de maior número de castigos e repreensões, ao da chamada SANDRA, por ser a de físico mais avariado entre as quatro visitadoras (abundantes marcas de varíola). Os outros foram divididos em dois grupos e dirigidos, mediante sorteio, aos respectivos alojamentos de ÍRIS e LALITA. Uma vez formados os quatro grupos de cinco homens, se lhes explicou brevemente que não podiam exceder-se de uma permanência máxima de vinte minutos no alojamento, tempo máximo de uma prestação normal segundo o regulamento do SVGPFA, e ordenou-se aos que esperavam guardar o maior silêncio e compostura para não perturbar o companheiro em ação. A segunda dificuldade séria surgiu nesse momento, pois todos os homens lutavam por encabeçar o seu respectivo grupo, a fim de serem os primeiros a obter a prestação de cada visitadora, chegando a registrar-se empurrões e altercações verbais. Uma vez mais foi preciso impor calma e recorrer ao sistema de sorteio para dispor a ordem de colocação nas filas, o que significou uma demora de uns quinze minutos.
Às 17 e 15 foi dada a ordem de partida. Convém adiantar que, em seu conjunto, a operação-piloto foi realizada com todo êxito, mais ou menos dentro dos planos previstos e com um mínimo de percalços. Quanto ao tempo de permanência com a visitadora tolerado a cada usuário, que o Capitão Pantoja temia ser demasiado curto para uma satisfatória e completa prestação, tornou-se inclusive excessivo. Por exemplo, estes foram os tempos empregados pelos cinco usuários do grupo SANDRA, que o abaixo assinado cronometrou: o primeiro, 8 minutos; o segundo, 12; o terceiro, 16; o quarto, 10 e o quinto, que obteve o recorde, 3 minutos. Tempos semelhantes registraram, também, os homens dos demais grupos. De qualquer forma, o Capitão Pantoja fez notar que estas marcas são só relativamente válidas como sintoma geral, uma vez que, pelo isolamento de Horcones, seus usuários tinham uma impaciência viril aquartelada por prazos tão longos (alguns, seis meses) que tendiam a ser anormalmente rápidos no ato da prestação. Considerando que entre prestação e prestação havia um compasso de espera de uns minutos, a fim de que os denominados Chupito e Chuchupe trocassem a água dos recipientes de cada alojamento, pode-se concluir que a operação durou menos de duas horas do princípio até o fim. Certos incidentes aconteceram no curso da experiência-piloto, sem se revestir de gravidade, sendo porém alguns, inclusive, divertidos e úteis para relaxar um pouco a tensão nervosa dos homens na fila. Assim, por exemplo, devido a um descuido do rádio-operador do Posto, que diariamente sintoniza a Rádio Amazonas de Iquitos para escutar o programa A voz do Sinchi, que propalamos pelo alto-falante, ao marcarem os relógios 18 horas, a voz desse locutor irrompeu intempestivamente sobre Horcones, pois a emissora estava ligada automaticamente, o que provocou gargalhadas e tranqüilidade nos homens, principalmente quando viram assomar, em trajes menores, a visitadora SANDRA e o Primeiro-Sargento Esteban Sandora, os quais, por estarem efetuando a prestação no posto de rádio, alarmaram-se excessivamente ao começar o ruído. Outro breve incidente produziu-se quando, aproveitando-se de que, no depósito de víveres, achavam-se operando em compartimentos vizinhos PEITUDA e LALITA, o soldado raso Amelio Sifuentes, da fila de usuários desta última, pretendeu maliciosamente introduzir-se no alojamento da apelidada PEITUDA, a qual, como os superiores terão percebido, foi a que conquistou mais simpatias entre os homens de Horcones. O Capitão Pantoja surpreendeu a manhosa tentativa do soldado Sifuentes e o repreendeu com severidade. No mesmo depósito de víveres registrou-se, igualmente, outro percalço, que só foi descoberto pelo abaixo assinado quando o comboio do SVGPFA havia partido. Foi assim que, durante o tempo dedicado às prestações, ou antes, enquanto as visitadoras ali estavam reclusas, alguém aproveitou a contingência para abrir uma caixa de comestíveis e subtrair sete conservas de atum, quatro pacotes de bolachas de água e sal e duas gasosas, sem que até o momento tenha sido possível identificar o ou os culpados. Em resumo, e com a única exceção destes incidentes de ordem menor, às 7 da noite a operação tinha terminado com todo o êxito e reinava no Posto um ambiente de grande satisfação, paz e alegria entre recrutas e soldados. O abaixo assinado esquecia-se de assinalar que vários usuários, ao terminar a prestação respectiva, inquiriram se era possível voltar a fazer fila (a mesma ou uma diferente), para obter uma segunda prestação, o que foi indeferido pelo Capitão Pantoja. Este explicou que estudaria a possibilidade de autorizar que se repita a prestação quando o SVGPFA tiver alcançado seu máximo volume operacional.
Logo que terminou a experiência-piloto, as quatro visitadoras e os colaboradores civis Chupito, Chuchupe e Porfirio Wong embarcaram no Eva para regressar ao centro logístico do rio Itaya, enquanto o Capitão Pantoja partia no Dalila. Por mais que o piloto assegurasse à denominada Chuchupe que conduziria o aparelho devidamente e que não se repetiriam os incidentes do dia anterior, esta se negou a voltar no avião. Antes de abandonar Horcones, entre os aplausos e gestos de reconhecimento dos recrutas e dos soldados, o Capitão Pantoja agradeceu ao abaixo assinado as facilidades prestadas e sua contribuição ao êxito da operação-piloto do SVGPFA e lhe fez saber que esta experiência, muito proveitosa para ele, permitiria aperfeiçoar e programar com todos os detalhes o sistema de trabalho, controle e deslocamento do Serviço de Visitadoras.
Resta apenas por submeter à consideração dos superiores, junto com este informe que oxalá lhes seja útil, a solicitação, assinada pelos quatro suboficiais do Posto de Horcones, para que, no futuro, seja permitido serem também usuários do SVGPFA os comandos intermediários, o que tem recomendação favorável do abaixo assinado, devido ao bom efeito psicológico e físico que a experiência está demonstrando ter tido nos recrutas e soldados.
Deus guarde V. Exa.
Assinado:
Alferes ALBERTO SANTANA,
chefe do Posto de Horcones, sobre o rio Napo.
16 de setembro de 1956.
ADMINISTRAÇÃO, INTENDÊNCIA E SERVIÇOS VÁRIOS DO EXÉRCITO
DEPARTAMENTO DE CONTABILIDADE E FINANÇAS
Resolução confidencial N.° 069
Os oficiais chefes de Intendência ou suboficiais encarregados da referida função nos quartéis, acampamentos e postos da V Região Militar (Amazônia), ficam autorizados, a partir de hoje, 14 de setembro de 1956, a descontar da lista de pagamento de gratificações dos soldados e dos recebimentos dos recrutas a remuneração correspondente às prestações que lhes ofereça o Serviço de Visitadoras (SVGPFA). Tais descontos deverão limitar-se estritamente às seguintes disposições:
1. As tarifas por prestação, fixadas pelo SVGPFA com a anuência da autoridade, serão unicamente de dois tipos, em todos os casos e circunstâncias, a saber:
Soldados rasos: vinte (20) soles por prestação Graduados (de cabo a primeiro-sargento): trinta (30) soles por prestação
2. O limite máximo de prestações mensais admitidas será de 8 (oito), não se assinalando limite mínimo.
3. A soma descontada será enviada, pelo oficial de Intendência ou suboficial encarregado, ao SVGPFA, organismo que remunerará as visitadoras mensalmente, de acordo com o número de prestações que tenham servido.
4. Para a verificação e controle do sistema proceder-se-á da seguinte forma: o oficial de Intendência ou suboficial encarregado receberá, com esta Resolução, um número adequado de cupons de cartolina, de dois tipos, cada um deles em uma das cores simbólicas do SVGPFA e sem nenhuma indicação escrita: os de cor vermelha destinados aos soldados e, em conseqüência, cada um valerá vinte (20) soles, e os de cor verde para graduados e, por conseguinte, cada um representará trinta (30) soles. No primeiro dia de cada mês serão distribuídos a cada graduado e soldado da unidade o número de cupons equivalentes ao máximo de prestações a que têm direito, isto é, oito (8). Um cupom será entregue pelo usuário à visitadora a cada vez que se beneficie de uma prestação. No último dia do mês, o graduado ou soldado devolverá à Intendência os cupons não usados, fazendo-se, então, o correspondente desconto em função do número de cupons não devolvidos (nos casos de extravio ou perda do cupom, o prejuízo será da visitadora e não do SVGPFA).
5. Sendo imprescindível, por razões de decoro e moral, conservar o máximo de discrição sobre a natureza desta operação contábil, nos livros do quartel, acampamento ou posto, os descontos por prestações do SVGPFA figurarão camuflados mediante contra-senhas. Para esse fim, o oficial ou suboficial de Intendência poderá usar qualquer das seguintes fórmulas:
a. Desconto para gastos de vestuário
b. Desconto por estrago da arma
c. Adiantamento para deslocamento familiar
d. Desconto por atividades esportivas
e. Desconto por superalimentação
Esta Resolução n.° 069 não será exibida nas unidades nem comunicada através de partes ou da Ordem do Dia. O oficial ou suboficial de Intendência participará verbalmente o seu conteúdo aos soldados e graduados de sua unidade, instruindo-os, ao mesmo tempo, para que guardem a maior reserva sobre esta matéria, por ser suscetível de deitar manchas ou atrair críticas malévolas sobre a instituição.
Assinado:
Coronel EZEQUIEL LÓPEZ LÓPEZ,
chefe do Departamento de Contabilidade e Finanças.
Cumpra-se e distribua-se:
General FELIPE COLLAZOS
Lima, 14 de setembro de 1956.
Carta do Capitão (CCC) Avencio P. Rojas, capelão da Unidade de Cavalaria N.° 7 Alfonso Ugarte, de Contamana,à Chefia do Corpo de Capelães Castrenses (CCC) da V Região (Amazônia)
Contamana, 23 de novembro de 1956.
Comandante (ccc) Godofredo Beltrán Calila Iquitos, Loreto.
Meu comandante e caro amigo:
Cumpro o dever de lhe informar que por duas vezes consecutivas, durante o presente mês, minha unidade recebeu a visita de grupos de prostitutas, oriundas de Iquitos e vindas até aqui de barco, que foram alojadas no quartel e puderam exercer comércio carnal com a tropa a olhos vistos e com a total anuência da oficialidade. Sei que nas duas vezes chefiava o grupo de mulherzinhas um indivíduo disforme e anão, conhecido pela alcunha de Chupo ou Pupo nos meios prostibulares de Iquitos. Não lhe posso dar maiores detalhes sobre este acontecimento, que conheço só de ouvido, já que em ambas ocasiões fui antecipadamente afastado daqui pelo Major Zegarra Avalos. Da primeira vez, e sem considerar que me acho ainda convalescendo da hepatite que tantos estragos fez ao meu organismo, como o senhor sabe de sobra, o major me mandou dar a extrema-unção a um abastecedor da unidade, um pescador supostamente moribundo, que vive a oito horas de marcha, por um atalho de lodaçais pestilentos, e a quem encontrei bêbado e apenas com uma insignificante ferida no braço, causada pela mordida de um macaco shimbillo. Da segunda vez, o major mandou-me benzer um estabelecimento comercial de campanha, refúgio de exploradores, a catorze horas rio acima do Huallaga, missão absolutamente disparatada, como o senhor próprio julgará, pois jamais, em toda a sua história, o Exército teve o costume de benzer tais instalações de tão precária existência. As duas ordens, é evidente, foram pretextos para evitar que eu fosse testemunha da conversão em lenocínio da Unidade N.° 7 da Cavalaria, se bem que, asseguro-lhe, por doloroso que fosse para mim esse espetáculo, não me teria causado as fadigas físicas e a frustração psicológica que significou esse par de expedições inúteis.
Uma vez mais permito-me rogar-lhe, meu querido e respeitado comandante, sirva-se apoiar, com o peso da influência que lhe conquistou merecidamente o seu alto prestígio, minha solicitação de transferência a uma unidade mais suportável e onde possa exercer com mais benefício espiritual minha missão de homem de Deus e pastor de almas. Repito-lhe, mesmo com risco de cansá-lo, que não há fortaleza moral nem sistema nervoso que agüente as inúmeras zombarias e o constante escárnio de que sou objeto aqui, tanto da parte dos oficiais como da tropa. Todos parecem convencidos de que o capelão é o divertimento e o bobo da unidade, e não há um só dia em que não me façam vítima de alguma vileza, às vezes tão ímpia como encontrar um rato em lugar de hóstias no cibório da Eucaristia, em plena celebração da Missa, ou ir despertando a hilaridade geral porque me foi colado nas costas, sem que eu notasse, um desenho obsceno, ou convidar-me a tomar cerveja que logo percebo ser urina, e outras coisas ainda mais humilhantes, ofensivas e até perigosas à minha saúde. Minha suspeita de que o próprio Major Zegarra Avalos instiga e atiça estas perfídias contra mim passou já a ser certeza.
Levo ao seu conhecimento esses fatos, rogando-lhe sirva-se orientar-me se deveria enviar uma denúncia ao Comando-Geral da V Região sobre a vinda das rameiras, ou se conviria que o senhor mesmo tomasse o assunto em suas mãos, ou se em sacrifício de interesses superiores convém guardar piedoso silêncio sobre o particular.
Na espera de seu esclarecido conselho e fazendo votos por sua boa saúde e melhor ânimo, saúda-o mui afetuosamente seu subordinado e amigo,
Capitão (ccc) AVENCIO P. ROJAS,
capelão da Unidade de Cavalaria N.° 7 Alfonso Ugarte, de Contamana, V Região Militar (Amazônia).
Carta do Comandante (CCC) Godofredo Beltrán Calila, chefe do Corpo de Capelães Castrenses da V Região (Amazônia) ao Capitão (CCC) Avencio P. Rojas, capelão da Unidade de Cavalaria N.° 7 Alfonso Ugarte, de Contamana
Iquitos, 2 de dezembro de 1956.
Capitão (ccc)
Avencio P. Rojas
Contamana, Loreto.
Capitão:
Uma vez mais devo lamentar que viva no mundo da lua. As delegações que visitaram a Unidade de Cavalaria N.° 7 Alfonso Ugarte pertencem ao Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins (SVGPFA), organismo criado e administrado pelo Exército e sobre o qual o senhor e todos os capelães sob o meu comando foram informados por mim há vários meses, mediante a Circular (ccc) N.° 04606. A existência do SVGPFA não faz feliz em absoluto ao Corpo de Capelães Castrenses, e ainda menos a mim próprio, porém não preciso recordar-lhe que em nossa instituição, onde manda o capitão não manda o marinheiro, e, portanto, não nos resta mais que fechar os olhos e rogar a Deus que ilumine nossos superiores, para que retifiquem o que, à luz da religião católica e da ética castrense, só pode ser considerado um grave equívoco.
Quanto às queixas que ocupam o restante de sua carta, devo repreendê-lo severamente. O Major Zegarra Avalos é seu superior e corresponde-lhe, e não ao senhor, julgar sobre a utilidade ou inutilidade das missões que se lhe confiam. A sua obrigação é cumpri-las com a maior presteza e eficácia possíveis. A respeito das zombarias de que é objeto, e que naturalmente deploro, responsabilizo por elas tanto e talvez mais a sua falta de caráter que aos maus instintos dos outros. Devo recordar-lhe que ao senhor compete, antes que a qualquer outro, fazer-se tratar com a máxima deferência que exige a sua dupla condição de sacerdote e de soldado? Só uma vez em minha vida de capelão, faz isto 15 anos, faltaram-me com o respeito e asseguro-lhe que o atrevido deve estar ainda esfregando a cara. Vestir batina não é vestir saias, Capitão Rojas, e no Exército não toleramos capelães com tendências femininas. Lamento que por sua mal-entendida noção da mansidão evangélica, ou por mera pusilanimidade, contribua o senhor para manter a abjeta idéia de que nós, os religiosos, não somos varões por inteiro e de pêlo no peito, capazes de imitar Cristo, que arremeteu com chicotadas contra os mercadores que afrontavam o Templo.
Mais dignidade e mais coragem, Capelão Rojas!
Seu amigo,
Comandante (ccc) GODOFREDO BELTRÁN CALILA,
chefe do ccc da V Região Militar.
— Acorde, Panta — diz Pochita. — Pantita, são seis horas.
— O cadetinho se mexeu? — esfrega os olhos Panta. — Deixe tocal baliguinha.
— Não “fale como idiota”, o que deu em você para imitar os chineses — faz um gesto de aborrecimento Pochita. — Não, não se mexeu. Toque, sente algo?
— Estes loucos dos “irmãos” são coisa muito séria — agita El Oriente Bacacorzo. — Viu o que fizeram em Moronacocha? Era para meter bala neles, porra. Felizmente, a polícia está dando uma batida em regra.
— Acolde, cadete Pantojinha — cola a orelha ao umbigo de Pochita Panta. — Non ouviu a alvolada? Que espela, acolde, acolde.
— Não me agrada que você fale assim, não vê que estou tão nervosa com o que aconteceu com o menininho de Moronacocha? — protesta Pochita. — Não me aperte a barriga assim, você vai fazer mal ao bebê.
— Mas, amor, estou brincando — puxa os olhos com os dedos Panta. — Estou pegando o jeito de falar de um de meus ajudantes. Você vai se aborrecer por essa brincadeira? Ande, me dê um beijinho.
— Tenho medo de que o cadete tenha morrido — apalpa a barriga Pochita. — Não se mexeu ontem à noite, nem agora de manhã. Aconteceu algo com ele, Panta.
— Nunca vi uma gravidez tão normal, Sra. Pantoja — tranqüiliza-a o Dr. Arizmendi. — Tudo está muito bem, não se preocupe. Só deve cuidar dos nervos. E para isso, já sabe, nem se recordar nem falar da tragédia de Moronacocha.
— Bom, levantai e fazei os exelcícios, Senhol Pantoja — salta da cama Panta. — Avante, avante.
— Eu o odeio, morra, por que você não me atende? — atira-lhe um travesseiro Pochita. — Não fale como chinês, Panta.
— É que estou contente, negra, as coisas vão caminhando — abre e fecha os braços, levanta-se e se abaixa Panta. — Nunca acreditei levar adiante a missão que me deu o Exército. E em apenas seis meses progredi tanto que eu mesmo me assombro.
— No princípio, você se aborrecia de ser espião, tinha pesadelos e chorava e gritava dormindo — mostra-lhe a língua Pochita. — Agora, porém, estou notando que o Serviço de Inteligência já o encanta.
— Claro que estou informado sobre essa coisa horrorosa — concorda o Capitão Pantoja. — Imagine que minha pobre mãe viu o espetáculo, Bacacorzo. Desmaiou de emoção, naturalmente, e passou três dias na clínica, sob tratamento médico, com os nervos em trapos.
— Você não tinha que sair às seis e meia, filhinho? — assoma a cabeça a Sra. Leonor. — Já está servido o seu café.
— Tomo banho em um dois pol tlês, mamãezinha — faz flexões, boxeia com a sombra, pula corda Panta. — Bom dia, Senhola Leonol.
— O que há com o seu marido, que anda assim — surpreende-se a Sra. Leonor. — Você e eu com a alma por um fio com o que houve nesta cidade e ele mais alegre que um canário.
— O segledo é a Blasilela — murmura o Chinês Porfirio. — Palavla, Chuchupe. Ele a conheceu ontem de noite, no Aladino Pandulo, e ficou vesgo. Não podia dissimulai, tolcia os olhos de admilação. Desta vez caiu, Chuchupe.
— Continua tão bonita ou já piorou alguma coisa? — perguntou Chuchupe. — Não a vejo desde que se foi a Manaus. Então não se chamava Brasileira, era só Olguinha.
— Cai dula de tão bonita, e além de olhos, tetinhas e pelnas, que toda vida folam de vitlina, cliou uma magnífica bunda — assobia e faz gestos no ar o Chinês Porfirio. — A gente compleende polque dois calas se matalam pol ela.
— Dois? — nega com a cabeça Chuchupe. — Só o gringuinho missionário, que eu saiba.
— E o estudante, mamy? — limpa o nariz Chupito. — O filho do prefeito, o advogado de Moronacocha. Também se suicidou por ela.
— Não, esse foi acidente — tira-lhe a mão do nariz e passa-lhe um lenço Chuchupe. — O safado já estava consolado, voltara à Casa Chuchupe e já ia com as meninas.
— Mas na cama chamava todas de Olguinha — assoa-se e devolve o lenço Chupito. — Você não se lembra como a gente ria espiando, mamy? Ajoelhava-se e beijava seus pés, fazendo de conta que eram os dela. Matou-se por amor, não tenho dúvida.
— Eu sei polque você duvida, mulhel de gelo — bate no peito o Chinês Porfirio. — Polque le falta o que a Chupón e a mim sobla: colação.
— Coitada, eu tenho pena da senhora, Dona Leonor — estremece Pochita. — Se eu, que só conheço o crime por ouvir e ler, tenho pesadelos e acordo pensando que estão crucificando o cadetinho, à senhora deve estar meio louca, tendo visto a criança com os seus próprios olhos. Ai, Sra. Leonor, falo disso e fico com o corpo todo arrepiado, é verdade.
— Essa Olguinha passou a vida a fazer estragos — filosofa Chuchupe. — E mal volta de Manaus pegam-na trabalhando em plena matinê do Cine Bolognesi, com um tenente da Guarda Civil. Que coisas terá feito no Brasil!
— Uma mulher para tudo, como me agrada — morde os lábios Chupito. — Bem servida daqui e de lá, um álamo de alta e até parece que inteligente.
— Você quer que eu o afogue no rio, feto de piolho? — dá-lhe um empurrão Chuchupe.
— É uma brincadeira para fazer você ficar com raiva, mamy — beija-a, solta uma gargalhada Chupito. — Para o meu coraçãozinho só você existe. As outras eu só vejo com os olhos de profissional.
— E o Sr. Pantoja já a contratou? — disse Chuchupe — Que bom seria vê-lo cair, afinal, nas malhas de uma mulher: os apaixonados sempre ficam mais moles. Ele é muito direito, sente falta.
— Quel, polém não tem dinhelinho — boceja o Chinês Porfirio. — Ah, que sono, a única coisa que não me aglada no selviço são essas madlugadas. Aí estão as lapaligas, Chupón.
— Pude notar desde que desci do táxi — entrechocam-se os dentes da Sra. Leonor. — Mas não, Pochita, apesar de ter achado a Arca mais cheia que das outras vezes e que todo inundo estava, não sei, meio histérico. Rezavam, choravam aos gritos, havia eletricidade no ar. E, no alto, esses trovões e relâmpagos.
— Bom dia, visitadoras contentes e alegres — canta Chupito. — Vamos ver, façam fila para o exame médico. Por ordem de chegada e sem brigar. Como no quartel, como Pan-Pan gosta.
— Que olhos de noite mal dolmida, Pichuza — belisca-lhe a face o Chinês Porfirio. — Nota-se que o Selviço não le basta.
— Se você continua trabalhando por sua conta, não ficará muito tempo aqui — adverte Chuchupe. — Você já ouviu mil vezes isso de Pan-Pan.
— Há incompatibilidade entre visitadora e puta, com perdão da má palavra — sentencia o Sr. Pantoja. — Vocês são funcionárias civis do Exército e não traficantes do sexo.
— Mas eu não fiz nada, Chuchupe — mostra as unhas a Porfirio, dá-se uma palmada no traseiro e sapateia Pichuza.
— Tenho mau aspecto porque estou com gripe e não durmo à noite.
— Não fale mais disso, Sra. Leonor — abraça-a Pochita.
— O médico recomendou não pensar nesse menino, a mesma coisa para mim, lembre-se. Meu Deus, pobre criança. Será que já estava mortinho quando o viu? Ou ainda agonizava?
— Jurei que não passaria mais pelo exame médico e não vou passar, Chupe — põe as mãos nas cadeiras Peituda. — Esse enfermeiro é um vivo, em mim ele não põe mais a mão.
— Então porei eu — grita Chupito. — Você não leu esse cartaz? Leia, leia, que merda diz?
— “As ordens são obedecidas sem dúvidas nem murmúrios” — lê Chuchupe.
— Você não leu este otlo? — grita o Chinês Porfirio.
— Já está há mais de um mês pendulado aí.
— “Só se pode reclamar contra uma ordem depois de cumpri-la” — lê Chuchupe.
— Não li porque não sei ler — ri Peituda. — E com muita honra.
— E Peituda tem razão, Chuchupe — adianta-se Peludinha. — Esse cara é um abusado, o exame médico é sua grande esperteza para se aproveitar. Com a história de procurar enfermidades, mete a mão até no cérebro da gente.
— Na última vez, tive que dar um bofetão nele — coça as costas Coca. — Deu-me uma mordida aqui, justamente onde me dão essas câimbras que o senhor sabe.
— Para a fila, para a fila e não protestem porque o enfermeiro também tem seu coraçãozinho — bate palmas, sorri, apressa-as Chuchupe. — Não sejam mal-agradecidas, que mais querem, além de que o Serviço as faça examinar e mantenha sempre saudáveis?
— Formem fila e caminhem, chuchupinhas! — ordena Chupito. — Pan-Pan quer que os comboios estejam prontos para a partida quando ele chegar.
— Sim, acho que já estava, não estão dizendo que o crucificaram logo que começou o aguaceiro? — treme a voz da Sra. Leonor. — Pelo menos, quando eu o vi não se mexia nem chorava. E olhe que vi de bem, bem perto.
— Transmitiu ao General Scavino minha solicitação? — aponta para uma garça, que se banha ao sol no ramo de uma árvore, dispara e falha o Capitão Pantoja. — Aceita me receber?
— Espera-o no Comando às dez da manhã — olha o animal afastar-se, esvoaçando frenético sobre as árvores o Tenente Bacacorzo. — Aceitou, porém, de má vontade e resmungando, você sabe que o Serviço de Visitadoras não contou nunca com a sua aprovação.
— Sei de sobra, em sete meses só pude vê-lo uma vez — volta a levantar a espingarda e dispara contra a carcaça vazia de uma tartaruga e a faz saltar no pó o Capitão Pantoja. — Você acha que é justo, Bacacorzo? Além de se tratar de uma missão difícil, Scavino me vigia, pensa que sou uma personagem tenebrosa. Como se eu tivesse inventado o Serviço.
— Não inventou, mas fez maravilhas com ele, meu capitão — tapa os ouvidos o Tenente Bacacorzo. — O Serviço de Visitadoras já é uma realidade e nas guarnições não só é aprovado mas aclamado. Você deve se sentir satisfeito com sua obra.
— Ainda não posso, que esperança — joga fora os cartuchos vazios, enxuga a testa, volta a carregar a espingarda e a passa ao tenente o Capitão Pantoja. — Não percebe? A situação é dramática. À custa de economias e de grandes esforços, asseguramos quinhentas prestações semanais. Isso nos preocupa, está nos agoniando. E sabe que demanda deveríamos cobrir? Dez mil, Bacacorzo!
— Dê tempo ao tempo — aponta displicentemente para um arbusto, dispara e mata uma pomba o Tenente Bacacorzo. — Estou certo de que com a sua tenacidade e o seu sistema de trabalho, conseguirá chegar a essas dez mil fodinhas, meu capitão.
— Dez mil semanais? — enruga a testa o General Scavino. — É um exagero delirante, Pantoja.
— Não, meu general — enrubesce as faces o Capitão Pantoja. — Uma estatística científica. Olhe estes organogramas. Trata-se de um cálculo cuidadoso e, melhor ainda, conservador. Veja aqui: dez mil prestações semanais correspondem à “necessidade psicobiológica primária”. Se tentássemos cobrir a “plenitude viril” de graduados e soldados, a cifra seria de cinqüenta e três mil e duzentas prestações semanais.
— É verdade que o pobre anjinho sangrava ainda pelas mãozinhas e pelos pezinhos, senhora? — balbucia, abre muito os olhos e a boca Pochita. — Que todos os “irmãos” e “irmãs” se empapavam com sangue que jorrava do corpinho?
— Vou ter uma síncope! — arqueja o Padre Beltrán.
— Quem lhe meteu na moleira essa aberração? Quem lhe disse que a “plenitude viril” só se alcança fornicando?
— Os mais destacados sexólogos, biólogos e psicólogos, padre — baixa os olhos o Capitão Pantoja.
— Já lhe disse que me chame comandante, porra! — ruge o Padre Beltrán.
— Perdão, meu comandante — bate os calcanhares, confunde-se, abre uma maletinha, tira papéis o Capitão Pantoja.
— Eu me permiti trazer-lhe estas informações. São extratos de obras de Freud, de Havelock Ellis, de Wilhelm Steckel, de Seleções e do Dr. Alberto Seguín, nosso compatriota. Se preferir consultar os livros, nós os temos na biblioteca do centro logístico.
— Porque, além de mulheres, também distribui pornografias pelos quartéis — bate na mesa o Padre Beltrán. — Sei de tudo muito bem, Capitão Pantoja. Na guarnição de Borja, seu ajudante, o anão, distribuiu estas indecências: Duas noites de prazer e Vida, paixão e amores de Maria, a Tarântula.
— Para acelerar a ereção dos soldados e ganhar tempo, meu comandante — explica o Capitão Pantoja. — Isto agora é feito de maneira regular. O problema é que não temos material suficiente. São edições fenícias, estragam-se ao primeiro manuseio.
— Tinha seus olhinhos fechados, a cabecinha caída sobre o coração, como um Cristo pequenino — junta as mãos a Sra. Leonor. — De longe, parecia um macaquinho, mas o corpo tão branco me chamou a atenção. Fui me aproximando, cheguei ao pé da cruz e então me dei conta. Ai, Pochita, até na hora da morte ainda estarei vendo o pobre anjinho.
— Ou seja, que não foi uma única vez, nem iniciativa desse anão satânico — respira com dificuldade, transpira, afoga-se o Padre Beltrán. — É o próprio Serviço de Visitadoras que presenteia os soldados com estes folhetos.
— Emprestamos, não temos recursos para presenteá-los — esclarece o Capitão Pantoja. — Um comboio de três a quatro visitadoras tem que despachar, numa jornada, cinqüenta, sessenta, oitenta clientes. Os romancinhos têm dado bom resultado e, por isso, nós os usamos. O soldado que fica lendo estes folhetos, enquanto espera na fila, termina a prestação de dois a três minutos antes do que aquele que não lê. Isto está explicado nas partes do Serviço, meu comandante.
— Terei de ouvir tudo isso antes de morrer, meu Deus — bate com a mão no cabide, pega seu quepe, coloca-o e se perfila o Padre Beltrán. — Nunca imaginei que o Exército da minha pátria ia cair em semelhante podridão. Esta reunião é muito deplorável para mim. Permita que me retire, meu general.
— Vá, por favor, comandante — faz-lhe uma vênia o General Scavino. — Está vendo em que estado o maldito Serviço de Visitadoras põe o Beltrán, Pantoja? E com razão, claro. Rogo-lhe que no futuro nos poupe os detalhes escabrosos do seu trabalho.
— Quanto sinto pelo que aconteceu à sua sogra, Pochita — destampa a panela, prova na ponta da colher, sorri, desliga o fogão Alicia. — Deve ter sido horrível para ela ver isso. Continua a ser “irmã”? Não a molestaram? Parece que a polícia está prendendo toda a gente da Arca, procurando os culpados.
— Para que pediu esta audiência? Já sabe que não quero vê-lo por aqui — consulta seu relógio o General Scavino.
— Quanto mais claro e mais breve for, melhor.
— Estamos totalmente impotentes — angustia-se o Capitão Pantoja. — Fazemos esforços sobre-humanos para estar à altura de nossas responsabilidades. Mas é impossível. Pelo rádio, pelo telefone, por carta, aborrecem-nos com solicitações que não estamos em condições de atender.
— Que merda é essa? Em três semanas não chegou um só comboio de visitadoras a Borja — se enfurece, sacode o fone, grita o Coronel Peter Casahuanqui. — Você deixa os meus homens tristes, Capitão Pantoja, vou me queixar aos superiores.
— Pedi um comboio e me mandaram uma amostra — mordisca a unha do dedo mínimo, cospe, fica indignado o Coronel Máximo Dávila. — Você está pensando que duas visitadoras podem atender a cento e trinta soldados e a dezoito graduados?
— E o que você quer que eu faça se não há mais mulheres disponíveis — gesticula, enche de saliva o aparelho de rádio Chuchupe. — Que ponha putas como as galinhas põem ovos? E depois, mandamos só duas, mas uma era a Peituda, que vale por dez. E por último, desde quando você me trata por você, Crocodilo?
— Vou queixar-me ao Comando da V Região de suas discriminações e preferências, ponto, parágrafo — dita o Coronel Augusto Valdés. — A guarnição do rio Santiago recebe um comboio a cada semana e eu um por mês, ponto. Se pensa que os artilheiros são menos homens que os infantes, vírgula, estou disposto a demonstrar-lhe o contrário, vírgula, Capitão Pantoja.
— Não, minha sogra não foi molestada, mas Panta teve que ir à polícia explicar que a Sra. Leonor não tinha nada a ver com o crime. — Pochita também prova a sopa e exclama:
— Está magnífica, Alicia. E um policial foi lá em casa para fazer-lhe perguntas sobre o que tinha visto. E não vai continuar sendo “irmã”! Não quer nem ouvir falar da Arca, e quanto ao Irmão Francisco, ela o crucificaria pelo mau momento que passou.
— Tudo isso eu sei de sobra e me entristece — concorda o General Scavino. — Mas não me surpreende, quando se brinca com fogo, a gente se queima. O pessoal se viciou e, naturalmente, quer mais e mais. O erro esteve em começar. Agora não se poderá parar a avalanche, a cada dia continuarão aumentando as solicitações.
— E a cada dia vou poder atendê-las menos, meu general — aflige-se o Capitão Pantoja. — Minhas colaboradoras estão exaustas e não posso exigir-lhes mais, corro o risco de perdê-las. É imprescindível que o Serviço cresça. Peço-lhe autorização para ampliar a unidade para quinze visitadoras.
— Quanto ao que me concerne, indeferido — resmunga, carrega o rosto, coca a calva o General Scavino. — Infelizmente, a última palavra é dos estrategistas de Lima. Transmitirei o seu pedido, mas com recomendação negativa. Dez meretrizes a soldo do Exército são mais que suficientes.
— Preparei-lhe estas informações, avaliações e organogramas sobre a ampliação — desdobra cartolinas, assinala, sublinha, esforça-se o Capitão Pantoja. — É um estudo muito cuidadoso, custou-me muitas noites de vigília. Observe, meu general: com um aumento orçamentário de vinte e dois por cento dinamizaríamos o volume operacional em sessenta por cento: de quinhentas a oitocentas prestações semanais.
— Concedido, Scavino — decide o Tigre Collazos. — A inversão vale a pena. Fica mais barato e mais efetivo que o brometo nos ranchos, que nunca deu resultado. As partes assinalam: desde que entrou em função o SVGPFA diminuíram os incidentes nos povoados e a tropa está mais contente. Deixe-o que recrute essas cinco visitadoras.
— Mas e a Aeronáutica, Tigre? — revolve-se na cadeira, levanta-se, senta-se o General Scavino. — Não vê que teremos contra nós toda a Força Aérea? Já nos fez saber, várias vezes, que desaprova o Serviço de Visitadoras. Também há oficiais do Exército e da Marinha que pensam assim: esse organismo não conjumina com as Forças Armadas.
— Minha pobre velha simpatizou com esses loucos da Arca, senhor comissário — meneia a cabeça envergonhado o Capitão Pantoja. — Ia de quando em quando a Moronacocha para vê-los e levar-lhes roupinhas para suas crianças. Uma coisa estranha, sabe? ela nunca foi dada a essas coisas de religião. Mas esta experiência curou-a, asseguro-lhe.
— Dê-lhe esse dinheiro, beato, e não se renegue tanto — ri o Tigre Collazos. — Pantoja está trabalhando bem e é preciso apoiá-lo. E diga-lhe que escolha umas novas recrutas bem bonitas, não se esqueça.
— Você me dá uma imensa alegria com a notícia, Bacacorzo — respira fundo o Capitão Pantoja. — Esse reforço vai tirar o Serviço de um grande apuro, estávamos à beira do colapso por excesso de trabalho.
— Está vendo, saiu a seu gosto, pode contratar mais cinco — entrega-lhe um comunicado, faz-lhe firmar um recibo o Tenente Bacacorzo. — Que lhe importa ter contra Scavino e Beltrán, se os chefões de Lima, como Collazos e Victoria, o apóiam.
— Naturalmente que não molestaremos a senhora sua mamãe, não se preocupe, capitão — toma-o pelo braço, acompanha-o à porta, dá-lhe a mão, acena-lhe um adeus o comissário.
— Confesso-lhe que será difícil encontrar os crucificadores. Detivemos cento e cinqüenta “irmãs” e setenta e seis “irmãos” e todos dizem a mesma coisa. Sabe quem crucificou o menino? Sim. Quem? Eu. Um por todos, todos por um, como em Os três mosqueteiros, aquele filme do Cantinflas, o senhor assistiu?
— Além disso, vai me permitir fazer uma mudança qualitativa no Serviço — relê o comunicado, acaricia-o com as pontas dos dedos, dilata o nariz o Capitão Pantoja. — Até hoje, escolhia o pessoal por fatores funcionais, era só questão de rendimento. Agora, pela primeira vez, entrará em julgamento o fator estético-artístico.
— Caramba — aplaude o Tenente Bacacorzo. — Quer dizer que encontrou uma Vênus de Milo aqui em Iquitos?
— Mas com os braços completos e uma carinha de ressuscitar cadáveres — tosse, pestaneja, pega na orelha o Capitão Pantoja. — Desculpe-me, preciso ir. Minha mulher foi ao ginecologista e quero saber como está. Só faltam dois meses para que nasça o cadetinho.
— E se em vez do cadetinho nasce uma visitadorinha, Sr. Pantoja? — começa a rir, cala-se, assusta-se Chuchupe. — Não se aborreça, não me olhe assim. Ah, nunca se pode brincar com o senhor, é muito sério para a sua idade.
— Não leu essa ordem, você que aqui deve dar o exemplo? — aponta à parede o Sr. Pantoja.
— “Nem gracejos nem brincadeiras durante o serviço”, mamy — lê Chupito.
— Por que a unidade não está pronta para a inspeção? — olha à direita e à esquerda, estala a língua o Sr. Pantoja. — Terminou o exame médico? O que esperam para entrar em forma e passar revista?
— Façam fila, visitadoras! — faz buzina com as mãos Chupito.
— Voando, mamãezinha! — faz coro o Chinês Porfirio.
— E agora dêem seus nomes e números — sapateia entre as visitadoras Chupito. — Vamos, vamos, de uma vez.
— Um, Rita!
— Dois, Penélope!
— Três, Coca!
— Quatro, Pichuza!
— Cinco, Peituda!
— Seis, Lalita!
— Sete, Sandra!
— Oito, Maclovia!
— Nove, íris!
— Dez, Peludinha!
— Inteilinhas e completas, Senhol Pantoja — dobra-se numa reverência o Chinês Porfirio.
— Perdeu a superstição, mas está ficando beata, Panta — traça uma cruz no ar Pochita. — Sabe para onde são as escapadas de sua mamãe, que nos deixam tão intrigados? À Igreja de Santo Agostinho.
— Parte do serviço médico — ordena Pantaleón Pantoja.
— “Realizado o exame, todas as visitadoras estão em condições de sair em operação” — lê Chupito. — “A chamada Coca mostra alguns hematomas nas costas e braços, que talvez prejudiquem seu rendimento no trabalho. Assinado: Assistente Sanitário do SVGPFA.”
— Mentira, esse degenerado me odeia pelo sopapo que lhe dei e quer se vingar — desce o zíper, expõe o ombro, o braço, olha com ódio para a enfermaria Coca. — Só tenho uns arranhõezinhos que me fez o gato, Sr. Pantoja.
— Bem, em todo caso, isso é melhor, negra — encolhe-se sob os lençóis Panta. — Se com os anos deu para se dedicar à religião, melhor que seja à verdadeira e não a crendices bárbaras.
— Um gato que se chama Juanito Marcano e é parecido com Jorge Mistral — sussurra Peituda ao ouvido de Rita.
— Que você já quis, embora seja para feriados nacionais — ziguezagueia como uma víbora Coca. — Tetas de porca.
— Dez soles de multa a Coca e Peituda por falar na fila — não perde a calma, tira um lápis, um caderno o Sr. Pantoja. — Se você acha que está em condições de integrar o comboio, pode fazê-lo, Coca, porque o serviço sanitário autoriza; por isso, não fique histérica. E agora, plano de trabalho da jornada.
— Três comboios, dois de quarenta e oito horas e um que regressa nesta mesma noite — surge por detrás da formação Chuchupe. — Já fiz o sorteio com os fósforos, Sr. Pantoja. Um comboio de três mulheres ao acampamento de Puerto América, no rio Morona.
— Quem o comanda e quem o integra? — molha a ponta do lápis nos lábios e anota Pantaleón Pantoja.
— Comanda-o este cristão que fala e vão comigo Coca, Pichuza e Sandra — indica Chupito. — Louco já está dando a mamadeira para Dalila, assim é que podemos partir em dez minutos.
— Que o Louco se porte bem e não faça as travessuras de sempre, Sr. Pan-Pan — Sandra indica o hidravião, que se balança no rio, e a figurinha que o cavalga. — Olhe que, se me mata, o senhor sai perdendo. Deixei ao senhor minhas filhinhas de herança. E tenho seis.
— Dez soles a Sandra, pelo mesmo motivo — levanta o indicador, escreve Pantaleón Pantoja. — Leve o seu comboio ao embarcadouro, Chupito. Boa viagem, trabalhem com vontade e convicção, moças.
— Comboio a Puerto América, vamo-nos — ordena Chupito. — Peguem suas maletinhas. E agora, em direção ao Dalila, voando, chuchupinhas.
— Os comboios dois e três saem no Eva dentro de uma hora — comunica Chuchupe. — No dois, Bárbara, Peludinha, Penélope e Lalita. Eu no comando, para a guarnição Bolognesi, no rio Mazán.
— E se, depois de tanto susto com o menininho crucificado, o cadetinho nasce um monstro? — faz beicinhos Pochita.
— Que tragédia tão horrível, Panta.
— É o telcelo vai comigo águas acima, até o Campo Javali — corta o ar com a mão o Chinês Porfirio. — A volta sela na quinta-feila ao meio-dia, Senhol Pantoja.
— Bem, vão embarcando e portem-se bem, está legal — diz adeus às visitadoras Pantaleón Pantoja. — Vocês venham um momento ao meu escritório, Chinês e Chuchupe. Precisamos falar.
— Cinco mulheres mais? Que boa notícia, Sr. Pantoja — esfrega as mãos Chuchupe. — Logo que volte, eu consigo. Não haverá nenhuma dificuldade. Já lhe disse, nós estamos ficando famosos.
— Muito errado isso, nós não devemos sair da clandestinidade — mostra o cartaz que diz “Em boca fechada não entra mosca” Pantaleón Pantoja. — Preferia que me trouxesse umas dez candidatas, eu escolho as cinco melhores. As quatro, em realidade, porque a outra, pensei...
— Em Olguinha, a Blasilela! — cinzela seios, cadeiras, coxas o Chinês Porfirio. — Uma idéia luminosa, Senhol Pan-Pan. Esse monumento nos dalá fama. Volto da viagem e com a mesma plessa eu a ploculo.
— Procure-a agorinha mesmo e traga-a imediatamente — ruboriza-se, muda de voz Pantaleón Pantoja. — Antes que Moquitos a aliste para seus bordéis. Você ainda tem uma hora, Chinês.
— Puxa, que apressadinho, Sr. Pantoja — cheira a marmelada, açúcar, suspiros Chuchupe. — Estou com uma bruta vontade de ver de novo a cara da bela Olguinha.
— Acalme-se, amor, não pense mais nisso — preocupa-se, recorta um cartão, rabisca-o, pendura-o Panta. — Daqui em diante, nesta casa fica terminantemente proibido falar do menino crucificado e dos loucos da Arca. E para que a senhora não se esqueça também, mamãe, vou pregar esse cartaz.
— Encantada por vê-lo de novo, Sr. Pantoja — come-o todo com os olhos, curva-se, perfuma o ar, atrai a Brasileira.
— Então esta é a famosa Pantilândia. Puxa, tinha ouvido falar tanto e não podia imaginar como seria.
— A famosa o quê? — estica a cabeça, empurra uma cadeira Pantaleón Pantoja. — Sente-se, por favor.
— Pantilândia, assim é que toda gente chama isto — abre os braços, exibe as axilas depiladas, ri a Brasileira. — Não só em Iquitos, em toda parte. Ouvi falar da Pantilândia em Manaus. Que nomezinho esquisito, virá de Disneylândia?
— Temo que venha de Panta — observa-a de alto a baixo, de lado a lado, sorri para ela, põe-se sério, sorri de novo, transpira o Sr. Pantoja. — Mas você não é brasileira, é peruana, não? Por sua maneira de falar, pelo menos.
— Nasci aqui, me puseram esse apelido porque vivi em Manaus — senta-se, levanta a saia, tira um estojo de pó, passa a esponja no nariz, nas covinhas das faces a Brasileira. — Mas, já se vê, todos voltam à terra em que nasceram, como na valsa.
— Melhor tirar daí esse cartaz, filhinho — tapa os olhos a Sra. Leonor. — Isso de estar lendo “Proibido falar do mártir” faz com que Pochita e eu não falemos de outra coisa todo o santo dia. Você tem umas idéias, Panta.
— E que coisas dizem da Pantilândia? — tamborila na escrivaninha, recosta-se no assento, não sabe o que fazer com as mãos Pantaleón Pantoja. — O que você ouviu por aí?
— Exageram muito, a gente não pode acreditar em tudo — cruza as pernas, os braços, faz dengues, pisca, umedece os lábios enquanto fala a Brasileira. — Imagine que em Manaus diziam que era uma cidade de vários quarteirões e com sentinelas armadas.
— Bem, não se decepcione, estamos só começando — sorri, mostra-se amável, sociável, conversador Pantaleón Pantoja.
— Aviso-a de que, desde já, temos um barco e um hidroavião. Essa publicidade internacional, porém, é que não me agrada nada.
— Diziam que havia trabalho para todo mundo em condições fabulosas — levanta e baixa os ombros, brinca com os dedos, agita as pestanas, curva o colo, ondeia os cabelos a Brasileira. — Por isso me iludi e tomei o barco. Em Manaus, deixei oito amigas de uma casa formidável fazendo malas para vir para a Pantilândia. Vão levar o mesmo fora que eu.
— Se não se importa, peço a você que dê a este lugar o nome de centro logístico em vez de Pantilândia — esforça-se por parecer sério, seguro e funcional o Sr. Pantoja. — Porfirio explicou a você por que a fiz vir?
— Contou alguma coisa — franze o nariz, as pestanas, cerra as pálpebras, incendeia as pupilas a Brasileira. — É verdade que há possibilidades de trabalho para mim?
— Sim, vamos ampliar o Serviço — orgulha-se, contempla um painel com gráficos Pantaleón Pantoja. — Começamos com quatro, logo aumentamos para seis, para oito, para dez e agora haverá quinze visitadoras. Quem sabe algum dia seremos isso que dizem.
— Fico muito contente, já pensava em voltar a Manaus, porque via a coisa preta aqui — morde os lábios, limpa a boca, examina as unhas, sacode um pouco de pó de sua saia a Brasileira. — Achei que não lhe dei boa impressão no dia em que nos conhecemos, na Lâmpada de Aladino Panduro.
— Você se engana, tive muito boa, muito boa impressão — põe em ordem lápis, pasta de papéis, abre e fecha as gavetas da escrivaninha, tosse Pantaleón Pantoja. — Eu teria contratado você antes, mas o orçamento não permitia.
— E a gente pode saber o soldo e as obrigações, Sr. Pantoja? — estica o pescoço, faz um ramalhete com as mãos, trina a Brasileira.
— Três comboios semanais, dois pelo ar e um em barco — enumera Pantaleón Pantoja. — E dez prestações mínimas por comboio.
— Comboios são as viagens aos quartéis? — assombra-se, aplaude, solta uma gargalhada, dá uma piscadela marota, faz dengues a Brasileira. — E as prestações devem ser, ai, que graça.
— Agora, deixe-me dizer uma coisa, Alicia — beija a estampazinha do menino-mártir a Sra. Leonor. — Sim, fizeram uma monstruosidade sem nome. Mas, no fundo, não era maldade, mas medo. Estavam aterrorizados com tanta chuva e acreditaram que, com o sacrifício, Deus retardaria o fim do mundo. Não queriam magoá-lo, pensavam que subia direitinho ao céu. Você não viu como lhe ergueram altares em todas as arcas que a polícia descobre?
— E quanto à percentagem, é cinqüenta por cento do deduzido dos graduados e soldados por folha de pagamento — escreve numa folha, entrega-a, particulariza Pantaleón Pantoja. — Os outros cinqüenta por cento são investidos na manutenção. E agora, embora saiba que não é necessário, porque o que você vale, hum, está à vista, tenho que cumprir a norma. Tire o vestido um segundo, por favor.
— Ai, que pena — mostra cara de aflição, levanta-se, ensaia uns passos de manequim, faz uma careta a Brasileira.
— Estou no meu dia, Sr. Pantoja, veio justamente ontem. O senhor se importaria de entrar pela porta de serviço, desta vez? No Brasil, eles gostam, inclusive preferem.
— Só quero vê-la, dar-lhe o aprovado — fica rígido, empalidece, encrespa as sobrancelhas, articula Pantaleón Pantoja.
— É o exame de presença por que devem passar todas. Você tem uma imaginação febril.
— Ah, bom, eu já estava pensando onde vai ser a coisa, se aqui não há nem sequer um tapete — dá um golpezinho com o pé no assoalho, sorri aliviada, despe-se, dobra sua roupa, faz pose a Brasileira. — Me acha bem? Estou um pouco magrinha, mas numa semana recupero o peso. Acha que terei êxito com os soldadinhos?
— Sem a menor dúvida — olha, concorda, estremece, limpa a garganta Pantaleón Pantoja. — Terá mais que a Peituda, nossa estrela. Bom, aprovada, já pode se vestir.
— E não é só isso, Sra. Leonor — examina a imagem, persigna-se Alicia. — Imagine que, além de estampinhas e orações, começaram, também, a aparecer imagens do menino-mártir. E dizem que em vez de diminuir, agora há mais “irmãos” da Arca que antes.
— O que fazem vocês aí? — salta do assento, vai a trancos à escadinha, gesticula furioso Pantaleón Pantoja. — Com que licença? Não sabem que quando faço exames é terminantemente proibido subir ao posto de comando?
— É que o procura um senhor que se chama Sinchi, Sr. Pantoja — gagueja, fica boquiaberto Sinforoso Caiguas.
— Que é urgente e muito importante, Sr. Panta — observa hipnotizado Palomino Rioalto.
— Fora daqui os dois — obstrui-lhes a visão com seu corpo, dá uma mãozada no corrimão, estica o braço Pantaleón Pantoja. — Que esse sujeito espere. Fora, proibido olhar.
— Bah, não se aborreça, a mim não me importa, isto não se gasta — vai vestindo a anágua, a blusa, a saia a Brasileira.
— Então o senhor se chama Panta? Agora entendo por que Pantilândia. Ah, o que essa gente inventa.
— Meu nome de batismo é Pantaleón, como meu pai e meu avô, dois militares ilustres — emociona-se, aproxima-se da Brasileira, aproxima dois dedos dos botões de sua blusa o Sr. Pantoja. — Tome, deixe que a ajude.
— Você não podia aumentar minha percentagem para setenta por cento? — ronroneia, recua até encostar-se a ele, joga-lhe a respiração no rosto, busca com a mão e aperta a Brasileira.
— A casa está fazendo uma boa aquisição, eu lhe mostrarei quando passar o dia. Seja compreensivo, Panta, não se arrependerá.
— Solte, solte, não me agarre aí — dá um pulinho, inflama-se, envergonha-se, irrita-se Pantaleón Pantoja. Tenho que avisá-la de duas coisas: não pode me chamar de você, mas de senhor, como todas as visitadoras. E nunca mais tenha dessas confianças comigo.
— Mas se tinha a braguilha inchadinha, foi para fazer-lhe um favor, não quis ofendê-lo — compunge-se, sofre, assusta-se a Brasileira. — Perdoe-me, Sr. Pantoja, juro-lhe que nunca mais.
— Por uma exceção especialíssima, eu lhe darei sessenta por cento, considerando que você é uma contribuição de categoria ao serviço — arrepende-se, acalma-se, acompanha-a até a escadinha Pantaleón Pantoja. — E, além disso, porque você veio de tão longe. Mas, nenhuma palavra, você me criaria uma complicação terrível com suas companheiras.
— Nenhuma, Sr. Pantoja, será um segredinho entre os dois, mil vezes obrigada — recobra o sorriso, as graças, as coqueterias, desce os degraus a Brasileira. — Agora vou embora, estou vendo que tem visita. Quando ninguém nos ouvir, poderei chamá-lo de Sr. Pantita? É mais bonito que Pantaleón ou que Pantoja. Adeus, até loguinho.
— Claro que me parece horrível o que fizeram, Pochita — levanta o mata-moscas, espera uns segundos, bate e vê cair no chão o cadáver a Sra. Leonor. — Mas se você os conhecesse como eu, entenderia que não são maus por natureza. Ignorantes, sim, não perversos. Eu os visitei em suas casas, falei com eles: sapateiros, carpinteiros, pedreiros. A maioria nem sequer sabe ler. Desde que se fazem “irmãos” não se embriagam, não enganam suas mulheres, não comem carne nem arroz.
— Encantado, muito prazer, aperte estes cinco — faz uma reverência japonesa, atravessa o posto de comando como um imperador, fuma charuto e sopra fumaça o Sinchi. — Às suas ordens, para tudo o que precisar.
— Bom dia — aspira o ar, desconcerta-se, tem um acesso de tosse Pantaleón Pantoja. — Sente-se. Em que posso servi-lo?
— Esse portento de mulher com quem me encontrei na porta me deu vertigens — aponta a escada, assobia, entusiasma-se, fuma o Sinchi. — Caramba, me disseram que a Pantilândia era o paraíso das mulheres e vejo que é verdade. Que lindas flores crescem em seu jardim, Sr. Pantoja.
— Tenho muito trabalho e não posso desperdiçar meu tempo, por isso, apresse-se — sacode-se, apanha uma pasta e trata de dissipar a nuvem que o envolve Pantaleón Pantoja.
— E quanto a isso de Pantilândia, previno-lhe de que não acho graça. Não tenho o sentido do humor.
— Esse nome não fui eu quem inventou, mas a fantasia popular — abre os braços e discursa, como se estivesse diante de uma ruidosa multidão, o Sinchi —, a imaginação loretana, sempre tão decantada, tão rica. Não o leve a mal, Sr. Pantoja, é preciso ser sensível para com as criações populares.
— A senhora está me fazendo medo, Dona Leonor — toca a sua barriga Pochita. — Embora tenha deixado a Arca, no fundo, continua sendo “irmã”, com que carinho fala deles. Tomara que nunca pense em crucificar o cadetinho.
— O senhor não dirige um programa na Rádio Amazonas? — tosse, afoga-se, seca os olhos lacrimejantes Pantaleón Pantoja. — Às seis da tarde?
— Eu mesmo, aqui tem a famosíssima Voz do Sinchi em pessoa — e emposta a voz, empunha um microfone invisível, declama o Sinchi. — Terror de autoridades corrompidas, açoite de juizes venais, redemoinho da injustiça, voz que recolhe e prodigaliza pelas ondas as palpitações populares.
— Sim, acho que já ouvi seu programa, bastante popular, não? — fica de pé, vai em busca de ar puro, respira com força Pantaleón Pantoja — Muito honrado com sua visita. O que deseja?
— Sou um homem do meu tempo, evoluído, progressista, por isso venho oferecer-lhe uma mão — levanta-se, persegue-o, envolve-o de fumaça, estende-lhe uns dedos flácidos o Sinchi.
— Além disso, o senhor caiu na minha simpatia e sei que podemos ser bons amigos. Acredito nas amizades à primeira vista, meu olfato não falha. Quero servi-lo.
— Muito agradecido — deixa-se sacudir, palmear os ombros, resigna-se a voltar à escrivaninha, a continuar tossindo Pantaleón Pantoja. — Mas, na verdade, não preciso dos seus serviços. Pelo menos, no momento.
— Isto é o que pensa, homem cândido e inocente — ocupa todo o espaço com um gesto, escandaliza-se meio sério meio de brincadeira o Sinchi. — Nesta clausura erótica, vive longe do mundano ruído e, pelo visto, não está informado das coisas. Não sabe o que se anda dizendo pelas ruas, os perigos que o rodeiam.
— Disponho de muito pouco tempo, senhor — olha a hora, impacienta-se Pantaleón Pantoja. — Ou me indica de uma vez o que quer ou me faz o favor de sair.
— Se não exige dela que me peça desculpas, não ponho mais os pés nesta casa — chora, encerra-se no seu quarto, não quer comer, ameaça a Sra. Leonor. — Crucificar meu futuro neto! Você pensa que vou agüentar uma malcriada assim, por mais nervosa que esteja com a sua gravidez?
— Estou submetido a pressões irresistíveis — esmaga o charuto no cinzeiro, despedaça-o, aflige-se o Sinchi. — Donas-de-casa, pais de família, colégios, instituições culturais, igrejas de toda cor e pêlo, até bruxas e feiticeiros. Sou humano, minha resistência tem limites.
— Que safadeza é essa? — sorri, vendo desvanecer-se a última nuvenzinha de fumaça Pantaleón Pantoja. — Não entendo palavra, seja mais explícito e vá ao fundo de uma vez.
— A cidade quer que se destrua a Pantilândia na ignomínia e se mande o senhor ao diabo que o carregue — sintetiza risonhamente o Sinchi. — Não sabia que Iquitos é uma cidade de coração corrompido mas de fachada puritana? O Serviço de Visitadoras é um escândalo que só um cara progressista e moderno como eu pode aceitar. O resto da cidade está espantado com esta safadeza, e, falando em boa língua, quer que o destrua.
— Que me destrua? — fica muito sério Pantaleón Pantoja. — Eu? Que destrua o Serviço de Visitadoras?
— Não há nada bastante sólido em toda a Amazônia que A voz do Sinchi não possa derrubar — dá um piparote no vazio, bufa, estufa o Sinchi. — Modéstia à parte, se eu o ponho no alvo, o Serviço de Visitadoras não dura uma semana e o senhor terá que sair apitando de Iquitos. É triste a realidade, meu amigo.
— Quer dizer que veio ameaçar-me — endireita-se Pantaleón Pantoja.
— Nada disso, pelo contrário — dá estocadas em fantasmas, aperta o coração como um tenor, conta dinheiro que não existe o Sinchi. — Até agora tenho resistido às pressões por espírito combativo e por uma questão de princípios. Mas, de agora em diante, uma vez que eu também tenho que viver e que o ar não enche barriga de ninguém, só o farei por uma compensação mínima. Não lhe parece justo?
— Quer dizer que veio chantagear — põe-se de pé, empalidece, vira a papeleira, corre até a escadinha Pantaleón Pantoja.
— Para ajudá-lo, homem, pergunte e verá a força ciclônica do meu programa — exibe músculos, levanta-se, passeia, gesticula o Sinchi. — Derruba juizes, subprefeitos, casais, desintegra aquilo que ataca. Por uns poucos e miseráveis soles, estou disposto a defender radiofonicamente o Serviço de Visitadoras e seu cérebro criador. A enfrentar a grande batalha pelo senhor.
— Ela que me peça desculpas, essa velha bruxa que não entende de brincadeiras — quebra copos, joga-se de barriga para baixo na cama, arranha Panta, soluça Pochita. — Você e ela vão me fazer perder o bebê na base da raiva. Você acredita que eu disse aquilo a sério, pedaço de idiota? Foi de mentirinha, de brincadeira.
— Sinforoso! Palomino! — bate palmas, grita Pantaleón Pantoja. — Enfermeiro!
— Que é que há com o senhor? Não fique nervoso, acalme-se — fica quieto, suaviza a voz, olha a seu redor alarmado o Sinchi. — Não precisa responder de imediato. Faça suas consultas, verifique quem sou e discutimos na próxima semana.
— Tirem esse vigarista daqui e dêem-lhe uns mergulhos no rio — ordena aos homens que aparecem correndo na boca da escada Pantaleón Pantoja. — E não voltem a permitir-lhe a entrada no centro logístico.
— Ouça, não se suicide, não seja inconsciente, eu sou um super-homem em Iquitos — gesticula, empurra, defende-se, escorrega, afunda, fica empapado o Sinchi. — Soltem-me, que significa isto, ouça, vai se arrepender, Sr. Pantoja, eu vinha para ajudá-lo. Sou seu amigoooo!
— É um grande vigarista, sim, mas até as pedras ouvem o seu programa — folheia uma revista abandonada na mesa do Lucho’s Bar o Tenente Bacacorzo. — Tomara que esse “banho” no Itaya não lhe traga problemas, meu capitão.
— Prefiro os problemas a ceder a uma suja chantagem — um título que pergunta “Sabe quem é e o que faz o Yacuruna?” intriga o Capitão Pantoja. — Dei parte ao Tigre Collazos e estou certo de que ele compreenderá. Em vez disso, outra coisa me preocupa, Bacacorzo.
— As dez mil prestações, meu capitão? — “Um príncipe ou demônio das águas que provoca os redemoinhos ou as cachoeirinhas dos rios”, pode-se ler entre os dedos do Tenente Bacacorzo. — Subiram a quinze mil com o calorzinho do verão?
— As fofocas. — “Cavalga no lombo dos crocodilos ou sobre a pele das gigantescas jibóias do rio”, diz a legenda de uma ilustração sobre a qual o Capitão Pantoja inclinou a cabeça. — É verdade que há tanta conversa aqui em Iquitos? Sobre o Serviço, sobre minha pessoa?
— De noite, sonhei outra vez a mesma coisa, Panta — toca na cabeça Pochita. — Que nos crucificavam, a você e a mim, na mesma cruz, um de cada lado. E a Sra. Leonor vinha e nos cravava uma lança, em mim, na barriga, e em você, no passarinho. Que sonho mais doido, não é, amor?
— O senhor é o homem mais famoso da cidade, naturalmente — “Seus pés são cobertos por uma carapaça igual à das tartarugas”, garante uma frase interrompida pelo cotovelo do Tenente Bacacorzo. — O mais odiado pelas mulheres, o mais invejado pelos homens. E a Pantilândia, desculpe, é o centro de todas as conversas. Mas como o senhor não vê ninguém e só vive para o Serviço de Visitadoras, que é que lhe interessa?
— Não me interessa por mim, mas pela família — “E à noite dorme protegido por cortinas feitas com asas de mariposas”, consegue ler, afinal, o Capitão Pantoja. — Minha esposa é muito sensível e, no seu estado atual, se descobre isto, ficaria tremendamente chocada. E o mesmo se pode dizer de minha mãe.
— A propósito de fofocas — joga a revista ao chão, volta-se, recorda o Tenente Bacacorzo, — Tenho de contar-lhe algo muito engraçado. Scavino recebeu uma comissão de gente importante de Nauta, encabeçada pelo prefeito. Levavam um memorial, ah-ah.
— Consideramos um privilégio absurdo que o Serviço de Visitadoras seja exclusividade dos quartéis e das bases navais — tira os óculos, olha seus companheiros, adota uma postura solene e lê o Prefeito Paiva Runhuí. — Exigimos que os cidadãos de maioridade e certidão militar nos abandonados povoados amazônicos tenham o direito de utilizar esse serviço, e sob as mesmas tarifas reduzidas cobradas aos soldados.
— Esse serviço só existe em suas mentes apodrecidas, meus amigos — interrompe-o, sorri para eles, olha-os com benevolência, com afeto paternal o General Scavino. — Que idéia é essa de pedir audiência para semelhante disparate? Se a imprensa tomasse conhecimento dessa petição, não duraria muito na prefeitura, Sr. Paiva Runhuí.
— Estamos dando mau exemplo aos civis, levando tentações a povoados que viviam em uma pureza bíblica — desfigura-se o Padre Beltrán. — Espero que quando lerem este memorial, os estrategistas de Lima escondam a cara de vergonha.
— Ouça isto e caia para trás, Tigre — espreme o telefone, lê o memorial com raiva o General Scavino. — Já começou a circular a notícia por toda parte, olhe o que pedem estes caras de Nauta. Está desabando sobre nós o escândalo de que tanto o adverti.
— Que contas você faz com os dedos — levanta a coxa de galinha e dá uma mordidinha o Tenente Bacacorzo. — Como diz Scavino, vocês da Intendência acabam sempre com essa loucura de matemática.
— Que sacanas, antes protestavam porque a tropa abusava de suas mulheres e agora porque sentem falta de mulheres para fazer o mesmo — brinca com um mata-borrão o Tigre Collazos. — Não há jeito de vê-los satisfeitos, o que lhes agrada é protestar. Ponha-os no olho da rua e não receba mais solicitações tão burras, Scavino.
— Horror dos horrores — pendura o guardanapo no peito, tempera a salada com azeite e vinagre, empunha o garfo e come o Capitão Pantoja. — Se ampliarem o serviço aos civis, levando em conta a população masculina da Amazônia, a demanda subiria de dez mil a um milhão de prestações mensais, no mínimo.
— Teria que importar visitadoras do estrangeiro — liquida os últimos restos de carne, deixa o osso branquíssimo, bebe um gole de cerveja, limpa a boca e as mãos e delira o Tenente Bacacorzo. — A selva se converteria em um único bordel e o senhor, em seu escritoriozinho do Itaya, marcaria o tempo desse dilúvio de fodas com um milhão de cronômetros. Confesse que lhe agradaria, meu capitão.
— Você não imagina o que vi, Pochita — põe a cesta no armário, tira um pacote e o oferece Alicia. — Na padaria de Abdón Laguna, que é “irmão”, começaram a fazer pães do mártir de Moronacocha. Eles o chamam de pão-criança e todo mundo está comprando aos montes. Eu lhe trouxe um, olhe.
— Pedi dez e você me traz vinte — observa da janela as cabeças lassas, crespas, morenas, ruivas, castanhas Pantaleón Pantoja. — Você pensa que vou passar todo o dia examinando as candidatas, Chuchupe?
— Não é culpa minha — vai descendo a escadinha agarrada ao corrimão Chuchupe. — Correu a notícia de que havia quatro vagas e começaram a sair mulheres como moscas de todos os bairros. Até de San Juan de Munich e de Tamshiyaco. Que é que está pensando, Sr. Pantoja? Todas as moças de Iquitos gostariam de trabalhar com a gente.
— A verdade é que não entendo — desce atrás delas, olhando as roliças costas, as gelatinosas nádegas, as bem torneadas pernas Pantaleón Pantoja. — Aqui ganham pouco e têm muito trabalho. Que é que as atrai? O bonitão do Porfirio?
— A segurança, Sr. Pantoja — assinala com a cabeça os vestidos multicoloridos, os grupos que zumbem como enxames de abelhas Chuchupe. — Na rua, não tem nenhuma. Para as “lavadeiras”, a cada dia bom seguem-se três ruins, nunca têm férias e não descansam aos domingos.
— E o Mocos é um explorador nos seus bordéis — impõe-lhes silêncio com um assobio e indica que se aproximem Chupito. — Mata-as de fome, trata-as mal e à primeira doença venérea, rua. Não sabe o que é consideração nem humanidade.
— Aqui é diferente — adoça-se, apalpa os bolsos Chuchupe. — Sempre há clientes, as jornadas de trabalho são de oito horas e o senhor mantém tudo tão organizado que elas ficam encantadas. Não vê que até as multas elas agüentam sem chiar?
— A verdade é que, no primeiro dia, fiquei um pouco apreensiva — corta, passa manteiga, marmelada, prova um pedaço e mastiga a Sra. Leonor —, mas, que é que vamos fazer, o pão-criança é o mais gostoso de Iquitos. Você não acha, filhinho?
— Bem, vamos selecionar as quatro — decide Pantaleón Pantoja. — Que está esperando? Ponha-as em forma, Chinês.
— Sepalem-se um pouco, moças, pia que blilhem melhol — pega braços, pressiona costas, faz avançar, retroceder, ficar de lado, coloca, mede o Chinês Porfirio. — As anãzinhas na flente e as gigantas atlas.
— Aqui estão elas, Sr. Pantoja — salta de um lado a outro, impõe silêncio, dá exemplo de seriedade, alinha-as Chupito. — Ordenadas e empertigadas. Vamos ver, moças, virar à direita. Assim, muito bem. Agora, à esquerda, mostrem seu lindo perfil.
— É pla subil, uma pol uma, ao seu esclitólio, pala exame, e peladinhas, senhol? — aproxima-se e sussurra-lhe ao ouvido o Chinês Porfirio.
— Impossível, demoraria toda a manhã — olha seu relógio, reflexiona, anima-se, dá um passo em frente e as encara Pantaleón Pantoja. — Vou passar revista coletiva, para ganhar tempo. Escutem bem, todas: se alguma não concorda em se despir em público, saia da fila que eu a examinarei depois. Nenhuma? Melhor assim.
— Todos os homens para fora — abre o portão do embarcadouro, enxota-os, empurra-os, regressa Chuchupe. — Depressa, preguiçosos, não ouviram? Sinforoso, Palomino, enfermeiro, Chinês. E você também, Chupón. Feche essa porta, Pichuza.
— Para baixo saias, blusas e sutiãs, façam-me o favor — segura as mãos nas costas e caminha muito sério esquadrinhando, avaliando, comparando Pantaleón Pantoja. — Podem ficar de calcinha, as que estão usando. Agora, meia-volta no mesmo lugar. Isso mesmo. Bem, vamos ver. Uma ruiva, você. Uma morena, você. Uma oriental, você. Uma mulata, você. Pronto, cobertas as vagas. As outras, deixem o endereço com Chuchupe, talvez logo haja uma nova oportunidade. Muito obrigado e até a próxima.
— As selecionadas, aqui, amanhã, às nove em ponto, para o exame médico — anota ruas e números, acompanha-as até a saída, despede-se Chuchupe. — Bem lavadinhas, meninas.
— Vamos ver, vamos ver, tomem isto quentinho, senão não fica bom — distribui os pratos de sopa fumegante a Sra. Leonor. — O famoso timbuche loretano, afinal, me animei a fazê-lo. Que tal ficou, Pocha?
— Que bom gosto teve para escolhê-las, Sr. Pan-Pan — sorri com malícia, olha faiscando, canta a Brasileira. — De todas as cores e sabores. Mate a minha curiosidade, não tem medo de que, vendo tanta pelada, um dia se acostume e não sinta nada pelas mulheres? Dizem que isso acontece a alguns médicos.
— Está maravilhoso, Sra. Leonor — toma a temperatura com a ponta da língua, sorve uma colherada Pochita. — Parece muito com o que na costa chamamos chilcano.
— Você está tentando me fazer de bobo, Brasileira? — enruga as sobrancelhas Pantaleón Pantoja. — Previno-a de que ser um homem sério não é ser um boboca, não se engane.
— A diferença é que todos os peixes desta sopinha são do Amazonas, não do oceano Pacífico — volta a encher os pratos a Sra. Leonor. — Paiche, palombeta e gamitana. Oi, que gostosa.
— É o que o senhor pensa, não estou tentando enganá-lo, mas fazendo uma brincadeira — pisca as pestanas, requebra os quadris, sacode os seios, canta a Brasileira. — Por que não me deixa ser sua amiga? Mal eu lhe falo, se põe xucro, Sr. Pan-Pan. Cuidadinho, olhe que sou como os caranguejos, adoro ir contra a corrente. Se me despreza assim, vou me apaixonar por você.
— Uf, mas que calor dá — abana-se com o guardanapo, examina o pulso Pochita. — Passe-me o ventilador, Panta. Afogo-me.
— Esse calor não é do timbuche, mas do cadetinho — toca-lhe o ventre, acaricia-lhe a face Panta. — Deve estar bocejando, esticando-se. Talvez esta noite, negra. Dia bom: 14 de março.
— Tomara que não seja antes do domingo — olha o calendário Pochita. — Antes que chegue a Chichi, quero que esteja aqui durante o parto.
— Segundo meus cálculos, ainda não passou do dia — transpira, aproxima a cara congestionada à cabeça do peixe a Sra. Leonor. — Falta, no mínimo, uma semana.
— Claro que sim, mamãe, não viu o organograma no meu quarto? Será entre hoje e domingo — chupa as espinhas do peixe, esfrega o prato com um pedaço de pão, toma água Panta. — Você atendeu o doutor, caminhou um pouco hoje? Com a sua inseparável Alicia?
— Sim, fomos até A Favorita para tomar sorvete — arfa Pochita. — Escute, de verdade, você sabe o que é isso de Pantilândia, amor?
— Isso de quê? — imobilizam-se as mãos, os olhos, a cara de Pantita. — Que foi que você disse, amor?
— Algo sujo, eu acho — recebe o ar do ventilador, suspirando Pochita. — Uns caras diziam piadas sujas na Favorita sobre as mulheres de, escute, que engraçado, Pantilândia é como se viesse de Panta!
— Ach, hmmm, pshhh — engasga-se, espirra, lacrimeja, tosse Pantita.
— Tome um pouco de água — segura-lhe a testa, passa-lhe um lenço, levanta-lhe os braços a Sra. Leonor. — Isso acontece por comer tão depressa, sempre lhe digo. Vamos ver, umas batidinhas nas costas, outro gole de agüinha.
SVGPFA
Instruções para os centros usuários
O Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins permite-me fazer-lhe chegar estas Instruções, que, no caso de serem estritamente aplicadas, permitirão à sua unidade aproveitar, de maneira racional e frutífera, os serviços do SVGPFA, e a este organismo cumprir sua missão com eficácia e rapidez:
1. Tão logo for alertado pelo SVGPFA da chegada de um comboio, o chefe da unidade disporá sobre os locais das visitadoras, que deverão reunir as seguintes características: telhados não contíguos, dotados de cortinas que os protejam de olhares indiscretos e assegurem uma luz pobre ou penumbra e de lamparinas ou focos providos de telhas vermelhas ou recobertas de pedaços de pano ou papéis da referida cor para o caso de as prestações serem noturnas. Cada local estará equipado de: catre com colchão de palha ou espuma, vestido com oleado ou lona impermeável e lençol; cadeira, banco ou prego, para colocar as peças do vestuário; bacia ou recipiente que faça suas vezes, como balde ou lata grande; lavabo com seu respectivo depósito de água limpa; um sabão; uma toalha; um rolo de papel higiênico; um irrigador com seringa e bico. Sugere-se acrescentar algum complemento estético feminino, como um ramo de flores, gravura ou desenho artístico, para imprimir-lhe uma atmosfera atraente. Embora convenha que a unidade tenha prontos os locais à chegada das visitadoras, para o arranjo dos mesmos o oficial responsável pode assessorar-se do chefe do comboio, que lhe proporcionará toda a ajuda necessária.
2. O oficial responsável tomará as providências para que o comboio permaneça em sua unidade o tempo estritamente necessário ao cumprimento de suas funções e não o prolongue sem razão. Desde sua chegada até sua partida, os membros do comboio deverão manter-se dentro do recinto da unidade, não se lhes permitindo, em nenhum caso, ter contato com o elemento civil das localidades vizinhas, nem, dentro da unidade, alternar com graduados e soldados fora do período da prestação. Antes e depois da mesma, as visitadoras ficarão aquarteladas em seus locais e não poderão participar dos ranchos com a tropa, nem conversar com os soldados, nem visitar as instalações da praça. A fim de que a presença do comboio passe despercebida do elemento civil das cercanias, aconselha-se impedir o ingresso na unidade a toda pessoa estranha à mesma, durante a permanência nela das visitadoras. A unidade tem a obrigação de proporcionar gratuitamente albergue e três alimentações (café, almoço e janta) a todos os membros do comboio.
3. Aconselha-se não anunciar aos graduados e soldados a vinda do comboio até a chegada do mesmo, pois a experiência tem demonstrado que se a notícia é comunicada com antecipação, corre pela tropa uma ansiedade e um nervosismo que prejudica notoriamente o cumprimento de suas obrigações. Mal chegado o comboio, o chefe da unidade estabelecerá uma lista de usuários, exclusivamente entre graduados e soldados, autorizando, para tanto, a todos estes, a solicitação de candidatos. Conhecidas as candidaturas, procederá à eliminação da lista de quem padeça de qualquer enfermidade infectocontagiosa, e muito em especial do tipo venéreo (gonorréia, cancro) e a quem abrigue carrapatos, percevejos, piolhos, chatos e demais variedades de sugadores. Aconselha-se fazer os candidatos passarem por uma inspeção médica.
4. Elaborada a lista de usuários, dar-se-á ao conhecimento destes as visitadoras presentes e se lhes exigirá manifestar suas preferências. Como, a julgar pela experiência, a escolha espontânea nunca permite uma distribuição eqüitativa de usuários por visitadora, o chefe da unidade utilizará o método que julgue melhor (sorteio, méritos e deméritos segundo folha de serviços) para dividir os usuários em grupos iguais por visitadora, tendo em conta que cada uma destas tem o compromisso de assegurar um mínimo de dez prestações em cada unidade. Excepcionalmente, se o número de usuários superar essa cifra, romper-se-á o princípio de eqüidade e simetria, atribuindo um maior número de usuários à visitadora mais solicitada ou menos fatigada do comboio.
5. Estabelecidos os grupos, proceder-se-á o sorteio da ordem de ingresso de cada usuário no local e instalar-se-ão controladores na porta dos mesmos. O tempo máximo por prestação é de vinte minutos. Excepcionalmente, nas unidades em que o número de usuários não atinja a cifra mínima de trabalho das visitadoras (dez), será admitida a extensão do tempo da prestação a trinta minutos, mas em nenhum outro caso. Nas instruções prévias, deve-se advertir aos usuários que a prestação será do tipo considerado normal, não estando a visitadora obrigada a satisfazer nenhum pedido de caráter insólito ou aberrante, fantasias antinaturais, perversões ou caprichos fetichistas. Não se permitirá a nenhum usuário repetir a prestação com a mesma nem com diferente visitadora.
6. A fim de distrair e preparar os usuários, enquanto estejam esperando sua vez para entrar no local, o chefe do comboio distribuirá a eles material impresso adequado, de caráter fotográfico e literário, que deverá ser devolvido aos controladores, ao ingressar o usuário onde estiver a visitadora, no mesmo estado em que o recebeu. A destruição ou os danos a gravuras e textos serão sancionados com multas e privações de futuras prestações do SVGPFA.
7. O SVGPFA cuidará, sempre, de fazer chegar os comboios aos centros usuários de tal modo que as prestações possam efetuar-se às horas mais convenientes (ao entardecer ou à noite), isto é, encerradas as tarefas do serviço diurno, mas se isso não for possível, em razão de tempo ou distância, o chefe da unidade permitirá que as prestações tenham lugar de dia e não reterá o comboio à espera da penumbra.
8. Uma vez terminadas as prestações, o chefe da unidade enviará ao SVGPFA parte estatística, cuidadosamente elaborada, com os seguintes dados: (a) número exato de usuários atendidos por visitadora; (b) nome e sobrenome de cada usuário, com o número da folha de serviços e com o desconto correspondente na folha de pagamento; (c) breve informe sobre o comportamento dos membros do comboio (chefe, visitadoras, pessoas de transporte) durante a estada na unidade; e (d) crítica construtiva e sugestões para a melhoria do SVGPFA.
Assinado:
Capitão EP (Intendência) PANTALEÓN PANTOJA
De acordo, General FELIPE COLLAZOS,
chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários do
Exército.
Parte estatística
Lagunas, 2 de setembro de 1957.
O Capitão EP Alberto J. Mendoza R. tem o prazer de enviar ao SVGPFA a seguinte parte sobre a passagem do comboio n.° 16 pelo Acampamento Lagunas (rio Huallaga) sob o seu comando:
O comboio n.° 16 chegou ao Acampamento Lagunas na sexta-feira, 1.° de setembro, às 15 horas, procedente de Iquitos, no transporte fluvial Eva, e partiu às 19 horas do mesmo dia em direção ao Acampamento Puerto Arturo (sobre o mesmo rio Huallaga). Presidia o comboio a Sra. Leonor Curinchila, Chuchupe, e o integravam as visitadoras Dulce Maria, Lunita, Pichuza, Bárbara, Penélope e Rita. Conforme instruções, dividiram-se os 83 usuários em seis grupos (cinco de catorze homens, um de treze), que foram atendidos pelas mencionadas visitadoras dentro dos prazos regulamentares e a sua inteira satisfação. Tendo em vista que a menos solicitada pela tropa foi a visitadora Dulce Maria, destinou-se a ela o grupo de treze homens. Junto a lista dos 83 usuários com nome, sobrenome, número da folha de serviços e nota de desconto por planilha. O comportamento do comboio durante sua permanência em Lagunas foi correto. Só se registrou um incidente, à chegada do barco, quando o soldado Reinaldino Chumbe Quisqui reconheceu, entre as visitadoras, uma irmã materna sua (a denominada Lunita) e começou a insultá-la e a impor-lhe um castigo corporal, felizmente de leves conseqüências, antes de ser contido pela guarda. O soldado Chumbe Quisqui foi privado da prestação e encerrado no calabouço com seis dias de rigor por seu mau caráter e proceder, logo, porém, anistiado desta segunda parte do castigo a instâncias de sua irmã materna Lunita e das outras visitadoras. O abaixo assinado permite-se sugerir ao SVGPFA, organismo cujo trabalho todos os graduados e soldados louvam, que estude a possibilidade de estender seus serviços aos suboficiais, por isto haverem eles solicitado repetidamente, e de criar uma brigada especial de visitadoras de alta categoria para oficiais solteiros ou com a família residindo distante da região onde servem.
Assinado:
Capitão EP ALBERTO J. MENDOZA R.
SVGPFA
Parte número quinze
ASSUNTO GERAL: Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins.
ASSUNTO ESPECÍFICO: celebração e balanço do primeiro aniversário e Hino das Visitadoras.
CARACTERÍSTICAS: secreto.
DATA E LUGAR: Iquitos, 16 de agosto de 1957.
O abaixo assinado, Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, chefe do Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins, respeitosamente apresenta-se diante do General Felipe Collazos, chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército, saúda-o e diz:
1. Que, com o motivo de celebrar-se, no dia 4 deste mês, o primeiro aniversário do SVGPFA, O abaixo assinado permitiu-se oferecer almoço de camaradagem, na sede do rio Itaya, que, para não gravar muito o orçamento do Serviço, foi elaborado por um grupo voluntário de visitadoras, sob a direção da nossa chefe de pessoal, Dona Leonor Curinchila (a) Chuchupe. Que no transcurso do ágape não só se confraternizou sadiamente com alegria e bom humor, enquanto se saboreavam as excelências da cozinha amazônica — o menu constou da célebre sopa de amendoim da região, o Inchic Capi, Juane de arroz com galinha, sorvetes de cocona e, como bebida, cerveja —, senão que, também, aproveitou-se esta comemoração para fazer uma parada no caminho, passar em revista o que foi colhido pelo Serviço em seu primeiro ano de vida e intercambiar apreciações, sugestões e críticas positivas, sempre com os olhos da mente postos no melhor cumprimento da tarefa que o Exército nos tem confiado.
2. Que, em resumo, o balanço deste primeiro ano do SVGPFA — sintetizado pelo abaixo assinado a seus colaboradores em uma breve alocução, à sobremesa do ágape — contabiliza um total de 62 160 prestações oferecidas pelo Serviço aos graduados e soldados das nossas unidades de fronteira e aos marinheiros das bases navais amazônicas, cifra que, embora muito inferior à demanda, constitui um modesto êxito para o Serviço: a referida cifra prova que, a todo momento, o SVGPFA utilizou sua potência operativa ao máximo do seu rendimento — ambição suprema de toda a empresa produtora —, como se depreende da decomposição do total de 62 160 prestações em suas parcelas componentes. Que, de fato, nos dois primeiros meses, quando o SVGPFA contava apenas com quatro visitadoras, o volume de prestações chegou a 4 320, o que dá a média de 540 prestações mensais por visitadora, quer dizer, vinte diárias, marca que (a autoridade recordará a parte n.° 1 enviada pelo abaixo assinado) caracteriza as visitadoras como da máxima eficiência. Que, nos meses quarto e quinto, quando a equipe de visitadoras era de seis membros, as prestações ascenderam a 6 480, o que dá, ainda assim, a média de uma vintena de prestações diárias por unidade de trabalho. Que os meses quinto, sexto e sétimo representam 13 560 prestações, ou seja, sempre a média diária de vinte por visitadora, das oito que então constituíam o pessoal do SVGPFA. Que no oitavo, nono e décimo mês, o ritmo manteve-se idêntico — máximo nível de eficácia —, pois as 16 200 prestações daquele trimestre representam também médias de vinte para as dez visitadoras do SVGPFA, enquanto que nestes dois últimos meses as 21 600 prestações realizadas indicam, uma vez mais, que as vinte visitadoras com que contamos na atualidade souberam manter essa alta média sem inflexão alguma. Que o abaixo assinado permitiu-se concluir sua alocução comemorativa felicitando o pessoal do SVGPFA por seu bom comportamento e regularidade no trabalho e exortando-o a redobrar esforços para alcançar, no futuro, metas mais altas de rendimento, tanto quantitativa quanto qualitativamente. 3. Que em um gesto simpático, em seguida ao brinde final pelo SVGPFA, as visitadoras cantaram, diante do abaixo assinado, uma obrinha musical, secretamente composta por elas para a ocasião, e que propuseram fosse adotada como Hino deste Serviço. Que o abaixo assinado concordou com a referida solicitação, imediatamente após ser interpretado o Hino várias vezes, com verdadeiro entusiasmo, por todas as visitadoras, medida que espera seja ratificada pela autoridade, tendo em conta a conveniência de estimular as iniciativas que, como esta, denotam interesse e carinho do pessoal pelo organismo do qual fazem parte, fomentam o espírito fraternal indispensável à realização das tarefas conjuntas e revelam uma alta moral, espírito jovem e ainda algo de engenho e picardia, que, em pequenas doses, naturalmente, nunca serão demais para acrescentar sal e pimenta à tarefa realizada.
4. Que esta é a letra da aludida composição, que deve ser entoada com a música da universalmente conhecida La Raspa:
HINO DAS VISITADORAS
Servir, servir, servir
Ao Exército da Nação
Servir, servir, servir
Com muita dedicação
Fazer felizes os soldadinhos
— Vamos voando, chuchupinhas! —
E aos sargentos e aos cabinhos
É nossa honrosa obrigação
Servir, servir, servir
Ao Exército da Nação
Servir, servir, servir
Com muita dedicação
Por isso vamos contentes e alegres
Nos comboios do nosso Serviço
— sem briga, sem se apaixonar —
com Chininho, Chuchupe ou Chupón
Servir, servir, servir
Ao Exército da Nação
Servir, servir, servir
Com muita dedicação
Na terra, na rede, na grama
Do quartel, acampamento ou solar
Damos beijos, abraços e afins
Quando o ordena o superior
Servir, servir, servir
Ao Exército da Nação
Servir, servir, servir
Com muita dedicação
Atravessamos selvas, rios e poças
Nem da onça, nem do puma nem do tigre
Temos nenhum temor
Porque nos sobra patriotismo
Fazemos belíssimo amor
Servir, servir, servir
Ao Exército da Nação
Servir, servir, servir
Com muita dedicação
E agora silêncio, visitadoras
Devemos partir para trabalhar
Dalila nos está esperando
E Eva louquinha para zarpar
Adeus, adeus, adeus
Chininho, Chuchupe e Chupón
Adeus, adeus, adeus
Senhor Pantaleón
Deus guarde V. Exa.
Assinado:
Capitão EP (Intendência) PANTALEÓN PANTOJA
cc. ao General Roger Scavino, comandante-em-chefe da V Região (Amazônia).
ANOTAÇÃO:
Comunique-se ao Capitão Pantoja que a Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército ratifica, apenas provisoriamente, sua decisão de reconhecer o Hino das Visitadoras, concebido pelo pessoal feminino do SVGPFA, pois teria preferido que a referida letra fosse cantada com a música de alguma canção do rico acervo folclórico pátrio, em vez de utilizar melodia forânea como é La Raspa, sugestão que deverá ser levada em conta no futuro.
Assinado:
General FELIPE COLLAZOS,
chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários
do Exército.
Mensagem radiofônica em código do Alferes EP Alberto Santana, chefe do Posto de Horcones (sobre o rio Napo), captada no Acampamento Militar Vargas Guerra de Iquitos e transmitida ao destinatário (cc. ao Comando da V Região, Amazônia)
Rogo comunicar ao Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, chefe do Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins, a seguinte mensagem:
1. Em meu nome e no dos suboficiais, graduados e soldados do Posto de Horcones, faço-lhe chegar nossa mais sincera felicitação pelo nascimento de sua filhinha Gladys e nossos votos pela felicidade e pelos muitos êxitos na vida da flamante herdeira, sendo causa do atraso desta congratulação o fato de nos termos inteirado do venturoso acontecimento só ontem, por ocasião da chegada a Horcones do comboio SVGPFA n.° 11.
2. Ainda assim, em meu nome e no de todos os soldados sob o meu comando, participo-lhe nossa solidariedade mais fraternal e nossa repulsa e decidida condenação pelas pérfidas insinuações e viperinas sugestões que, contra o Serviço de Visitadoras, vem fazendo, desde algum tempo, o programa A voz do Sinchi, da Rádio Amazonas, o mesmo que, como prova nossa indignação, já não se escutará mais no Posto de Horcones, retransmitindo-se agora, para a tropa, pelo alto-falante, a emissão Música e canções de ontem da Rádio Nacional.
Muito agradecido,
Alferes EP ALBERTO SANTANA, chefe do Posto de Horcones (sobre o rio Napo).
Ofício do chefe da Guarnição de Borja, Coronel EP Peter Casahuanqui, ao Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de fronteira e Afins
Borja, 1.° de outubro de 1957.
O Coronel EP Peter Casahuanqui, chefe da Guarnição de Borja, lamenta ter que comunicar ao SVGPFA que, durante a permanência nesta unidade do comboio n.° 25, presidido pelo indivíduo apelidado Chupito e integrado pelas visitadoras Coca, Peludinha, Flor e Maclovia, permanência que teve de se prolongar por oito dias devido à inclemência do tempo, que impedia o hidroavião Dalila de decolar nas águas do Maranhão, registraram-se alguns incidentes que, a seguir, pormenoriza:
1. A fim de impedir que, ao término das prestações (efetuadas com normalidade no dia da chegada do comboio), as visitadoras tivessem contatos extra-regulamentares com a tropa, nós as aquartelamos na sala de suboficiais, devidamente acondicionada para isso. Graças a uma oportuna denúncia, esta chefia foi informada de que o piloto do Dalila, aliás Louco, preparava um negócio ilícito, uma vez que tinha proposto aos suboficiais de Borja prestações das visitadoras mencionadas em troca de dinheiro. Surpreendidos em plena operação, em horas noturnas, três suboficiais da unidade receberam castigos de rigor, o indivíduo de apelido Louco foi encerrado no calabouço até a partida do comboio e as visitadoras foram admoestadas.
2. No terceiro dia da estada do comboio na Guarnição de Borja, em que pese a severa vigilância estendida em torno do local em que estava concentrado, registrou-se a fuga conjunta da visitadora Maclovia e do chefe da guarda encarregada da proteção do comboio, Primeiro-Sargento Teófilo Gualino. Imediatamente, tomaram-se as disposições necessárias à perseguição e captura dos prófugos, os quais, descobriu-se, tinham fugido apoderando-se delituosamente de um deslizador da Guarnição. Após dois dias de intensas buscas, os fugitivos foram encontrados na localidade de Santa Maria de Nieva, onde tinham recebido proteção e amparo em um refúgio clandestino dos Irmãos da Arca, depois de atravessar milagrosamente, levando em conta o tempo reinante e o embravecido do rio (por intercessão divina do menino-mártir de Moronacocha, segundo a crença ingênua do casal), os Pongos del Marafión. O refúgio dos fanáticos da Arca foi denunciado à Guarda Civil, que deu início a uma batida, infelizmente sem êxito, pois os “irmãos” e “irmãs” conseguiram internar-se na selva. Os desertores de Borja, entretanto, foram detidos, pretendendo, no começo, opor resistência, mas o grupo de captura, comandado pelo Alferes Camilo Bohórquez Rojas, dominou-os facilmente. Comprovou-se, então, por documentos confiscados aos fugitivos, que, nesse mesmo dia, pela manha, tinham contraído matrimônio, diante do capelão da Missão, no religioso. O Primeiro-Sargento Teófilo Gualino foi despojado de todos os seus graus, rebaixado à condição de soldado raso, castigado com cento e vinte dias de calabouço a pão e água, e consignada a sua reprovável ação na folha de serviços sob a qualificação de “falta gravíssima”. Quanto à visitadora Maclovia, é devolvida ao centro logístico para que o SVGPFA lhe imponha a sanção que acredite justa.
Deus guarde V. Exa.
Assinado:
Coronel EP PETER CASAHUANQUI,
chefe da Guarnição de Borja (sobre o rio Maranhão).
Iquitos, 12 de outubro de 1957.
Amigo Pantoja:
A paciência, como tudo o que é humano, tem seu limite. Não quero insinuar que o senhor abusa da minha, mas qualquer observador imparcial diria que a pisoteia, pois, como qualificar de outro modo o silêncio pétreo que têm merecido todas as mensagens verbais e amistosas que lhe tenho mandado, nas últimas semanas, por seus empregados Chupito, Chuchupe e Chinês Porfirio? A coisa é tristemente simples, o senhor tem que entender e aprender a distinguir, de uma vez por todas, entre os seus amigos os que o não são ou, perdoe-me, Sr. Pantoja, o seu florescente negócio irá a pique. A cidade inteira exige de mim que me volte contra o senhor e contra o que todas as pessoas decentes em Iquitos consideram um escândalo sem precedentes nem atenuantes. Já sabe que sou homem do meu tempo, disposto a ver, fazer e conhecer tudo antes de morrer e capaz, em nome do progresso, de aceitar que, nesta formosa terra loretana, onde vi a luz, floresça uma indústria como a sua. Mas inclusive eu, com minha mente aberta, não posso menos que compreender a quem se assusta, persigna-se e grita aos céus. No começo eram só quatro, amigo Pantoja, e agora, vinte, trinta, cinqüenta? e o senhor leva e traz as pecadoras pelos ares e pelos rios da Amazônia. Saiba que o povo já meteu no fundo da cabeça que o seu negócio deve ser fechado. As famílias não dormem em paz sabendo que, a pouca distância de suas casas, à vista de suas filhas menores, há esse abscesso de desmandamento e vício, e certamente o senhor terá percebido que o grande divertimento de todas as crianças de Iquitos é ir ao Itaya para ver partir e chegar o barco e o hidroavião com o seu colorido carregamento. Ontem mesmo comentava isso comigo, com lágrimas nos olhos, o diretor do Colégio Santo Agostinho, aquele velhinho tão santo quanto sábio, o Padre José Maria.
Aceite a realidade: a vida e a morte do seu milionário negócio estão nas minhas mãos. Até agora tenho resistido às pressões e me limitado, de quando em quando, para aplacar um pouco a cólera dos cidadãos, a fazer discretas advertências, mas se continua em sua incompreensão e teimosia e se antes do fim do mês não estiver em meu poder o que me é devido, não haverá para sua empresa, nem para seu cérebro e gerente, mais que guerra de morte, sem piedade nem compaixão, e ambos sofrerão as fatais conseqüências.
Destas e outras muitas coisas teria gostado de tratar amistosamente com o senhor, amigo Pantoja. Mas temo o seu caráter, suas intemperanças, esses maus modos que tem, e, além disso, com um sorriso nos lábios, deixe-me dizer-lhe que dois “banhozinhos” forçados nas águas sujas do Itaya são o máximo que este seu servidor pode tomar por brincadeira e perdoar: ao terceiro, lhe responderia como homem, apesar de que a mim não agrade a violência.
Ontem eu o vi, amigo Pantoja, de tardinha, passeando pela Avenida González Vigil, muito perto do Asilo de Anciães. Ia aproximar-me para cumprimentá-lo mas notei-o tão bem acompanhado e vivendo um momento tão terno que não o fiz pois sei ser discreto e compreensivo. Alegrou-me muito reconhecer a bela mocinha que o senhor tinha enlaçada pela cintura e que lhe dava essas mordidinhas tão carinhosas na orelha. Entretanto, acontece que não é sua gentil esposa, disse para os meus botões, mas aquela jóia de mulher importada de Manaus por este industrial empreendedor, aquela de passado tão glorioso. O senhor tem um gosto refinado, Sr. Pantoja, e saiba que todos os homens da cidade o invejamos, porque a Brasileira é a coisa mais tentadora e apetecível que já pisou em Iquitos, feliz o senhor e também os soldadinhos. Iam ver o crepúsculo no lindo lago de Morona, jurar amor eterno no barranco onde foi crucificado o menino-mártir, tal como é moda entre os apaixonados desta terra?
Um cordial aperto de mão de quem o senhor sabe,
XXX
SVGPFA
ASSUNTO GERAL: Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins.
ASSUNTO ESPECÍFICO: incidentes ocorridos no comboio n.° 25, em Borja, entre 22 e 30 de setembro de 1957.
CARACTERÍSTICAS: secreto.
LOCAL E DATA: Iquitos, 6 de outubro de 1957.
O abaixo assinado, Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, chefe do Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins, vem, respeitosamente, à presença do General Felipe Collazos, chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército, cumprimenta-o e diz:
1. Que, a respeito dos graves acontecimentos registrados na Guarnição de Borja, aos quais se refere o ofício do Coronel EP Peter Casahuanqui, anexo a este, o SVGPFA efetuou minuciosa investigação, que permitiu estabelecer os seguintes fatos:
a. Durante os oito dias em que o comboio n.° 25 permaneceu em Borja (22 a 30 de setembro), o tempo em toda essa região não deixou absolutamente nada a desejar, resplandecendo o sol, não chovendo nem uma única vez e estando as águas do rio Maranhão muito tranqüilas, segundo as informações meteorológicas da Força Aérea Peruana e da Armada Peruana, anexadas a esta.
b. As declarações de todos os membros do comboio n.° 25 coincidem em afirmar, de maneira categórica, que a sua permanência em Borja se deveu ao fato de que a hélice do Dalila foi irregularmente desmontada por mãos desconhecidas, para impedir a partida do avião e reter o comboio em Borja, uma vez que, ao oitavo dia, a hélice reapareceu montada no aparelho da mesma maneira misteriosa.
c. Apesar disso, todos os membros do comboio n.° 25 coincidem em afirmar que, durante os oito dias de estada obrigatória em Borja, as visitadoras Coca, Peludinha, Flor e Maclovia (esta última só enquanto esteve na Guarnição, é claro) foram induzidas a conceder prestações diárias e repetidas a todos os oficiais e suboficiais da unidade, contrariamente ao regulamento do SVGPFA, que excetua de seus benefícios o oficialato e o suboficialato, e sem que as referidas prestações fossem economicamente retribuídas.
d. O piloto do Dalila assegura que a razão de sua prisão no calabouço de Borja foi, exclusivamente, por haver tentado impedir que as visitadoras brindassem as prestações anti-regulamentares e ad-honorem que se lhes exigiam, as quais se elevam, segundo cálculos aproximados das próprias, à elevada cifra de 247.
e. O abaixo assinado quer fazer constar que não comunica os resultados desta investigação com o ânimo de contradizer o testemunho do Coronel EP Peter Casahuanqui, destacado chefe do Exército, a quem estima e respeita, mas como uma simples colaboração encaminhada a ampliar o informe do referido chefe e para que resplandeça toda a verdade.
2. De outro lado, tem a honra de fazer-lhe saber que a investigação levada a cabo pelo SVGPFA sobre a fuga e posterior matrimônio da visitadora Maclovia com o ex-Primeiro-Sargento Teófilo Gualino coincide matematicamente com a versão contida no ofício do Coronel EP Peter Casahuanqui, alegando apenas a indigitada que o ex-Sargento Gualino e ela se apoderaram de um deslizador da Guarnição, na qualidade de empréstimo, por ser o rio o único meio de sair de Borja, e que era de sua firme intenção devolvê-lo na primeira oportunidade. A visitadora Maclovia foi expulsa do SVGPFA, sem indenização e sem carta de recomendação, por seu irresponsável comportamento.
3. O abaixo assinado permite-se observar a seus superiores que a origem destes incidentes, como da maioria dos que se registraram, em que pesem os esforços do SVGPFA e dos oficiais responsáveis pelos centros usuários, é a dramática falta de efetivos deste Serviço. A equipe de vinte (20) visitadoras (dezenove na atualidade, pois a referida Maclovia não foi ainda substituída), não obstante a dedicação e boa vontade de todos os colaboradores do SVGPFA, é totalmente insuficiente para cobrir a absorvente demanda dos centros usuários, aos quais não podemos atender como seria de nosso desejo, a não ser, com perdão da expressão, a conta-gotas, e este racionamento motiva ansiedade, sentimentos de frustração e, às vezes, atos precipitados e lamentáveis. Uma vez mais o abaixo assinado permite-se exortar seus superiores a que dêem um passo vigoroso e audaz, consentindo em que o SVGPFA aumente sua equipe operacional de vinte (20) para trinta (30) visitadoras, o que significará um progresso importante em prol da ainda remota cobertura que a ciência denomina “plenitude viril” dos nossos soldados da Amazônia. Deus guarde V. Exa.
Assinado:
Capitão EP (Intendência) PANTALEÓN PANTOJA
Anexos: ofício do Coronel EP Peter Casahuanqui, chefe da Guarnição de Borja (sobre o rio Maranhão) e dois (2) informes meteorológicos da FAP e da AP.
ANOTAÇÃO:
Transmita-se o anterior informe do Capitão Pantoja ao General Roger Scavino, comandante-em-chefe da V Região, com as seguintes instruções:
1. Efetuar uma investigação imediata e detalhada sobre o ocorrido na Guarnição de Borja, entre 22 e 30 de setembro, com o comboio n.° 25 do SVGPFA, e castigar severamente aqueles que se apurar responsáveis, e
2. Concordar com a solicitação do Capitão Pantoja e fornecer ao SVGPFA os recursos necessários para que aumente sua equipe operacional de vinte para trinta visitadoras.
Assinado:
General FELIPE COLLAZOS
chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército
Lima, 10 de outubro de 1957.
Ofício confidencial do Contra-Almirante AP Pedro G. Carrillo, chefe da Força Fluvial do Amazonas, ao General EP Roger Scavino, comandante-em-chefe da V Região (Amazônia)
Base de Santa Clotilde, 2 de outubro de 1957.
De minha consideração:
Tenho a honra de fazer-lhe saber que até mim chegaram, de diferentes bases que a Armada mantém pela Amazônia, manifestações de surpresa e descontentamento, tanto da marujada como da oficialidade, quanto ao Hino do Serviço de Visitadoras. Os homens que vestem a imaculada farda da Armada lamentam que o autor da letra do referido Hino não tenha achado necessário mencionar nem urna só vez a Armada Peruana e a marujada, como se esta instituição não fosse também auspiciadora do referido Serviço, para o qual, é preciso recordá-lo, contribuímos com um barco-transporte e sua respectiva tripulação, com uma percentagem eqüitativa nos gastos de manutenção, havendo pago até o momento com pontualidade irrepreensível os honorários que nos foram fixados pelas prestações requeridas.
Convencido de que esta omissão é unicamente atribuível: um descuido e ao acaso e que não houve nela ânimo algum de ofender a Armada nem de fomentar um sentimento de preterição entre a marujada em relação a seus colegas do Exército, faço-lhe chegar este ofício, juntamente com as minhas saudações, e a súplica de remediar, se está em suas mãos, a falta que lhe participo, pois, embora pequena e banal, poderia causar suscetibilidades e ressentimentos que não devem perturbar jamais as relações entre instituições irmãs.
Deus guarde V. Exa.
Assinado:
Contra-Almirante AP PEDRO G. CARRILLO,
chefe da Força Fluvial do Amazonas
ANOTAÇÃO:
Dê-se conhecimento do conteúdo do presente ofício ao Capitão Pantoja, que ele seja repreendido pela inexcusável falta de tato de que fez praça o SVGPFA no assunto em questão e ordena-se-lhe dar as devidas e prontas satisfações ao Contra-Almirante Pedro G. Carrillo e aos companheiros da Armada Nacional.
Assinado:
General ROGER SCAVINO,
comandante-em-chefe da V Região (Amazônia). Iquitos, 4 de outubro de 1957.
Requena, vintidois Otubro de mil957.
Valenti Sinchi:
Denuncia em teu programa assoite da injustiça da Rádio Amasona que todos aqui ovimos i te aplaldimos, porque os navais da Base de Santa Ysabelinha trasem aqui suas putas de iquitos, em um senhor barco de nome Eva, e se dão seus banhos de água pura ali entreles, e num permitem que ninguém toque nelas e mandam elas embora sem que nós, a juventudi progresista de Requena, pudemos fazer-lhes nada. É justo isso, Valenti Sinchi? já fumos, uma comissão de homes deste povoado, tendo a cabeça o próprio prefeito Teofilo Morey, protestar com o chefe da Base de Santa Ysabelinha, porém este covarde negou tudo a nós dizendo como vô permitir aos jovens de Requena que nos casemo com as Visitadora si as Visitadora não existiam, jurando ainda por cima pelo menino-mártir este erege. Como si não tivéssemos olhos nem ouvidos, Sinchi, que te parece a safadeza esa? Por que os navais sim e nós não? Por acaso não temos pirulito? Dá paulada neles em teu programa, Valenti Sinchi, faz eles tremer e joga eles no chão.
Teus ouvintes
ARTIDORO SOMA
NEPOMUCENO QUILCA
CAIFÁS SANSHO
Com esta cartinha te mandamos de presente um lourinho que é um Piko de Oro como você, Sinchi.
SVGPFA
ASSUNTO GERAL: Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins.
ASSUNTO ESPECÍFICO: explicações de intenções e alteração da letra do Hino das Visitadoras.
CARACTERÍSTICAS: secreto.
DATA E LUGAR: Iquitos, 16 de outubro de 1957.
O abaixo assinado, Capitão EP (Intendência) Pantaleón Pantoja, chefe do Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins, apresenta-se, respeitosamente, ao Contra-Almirante AP Pedro G. Carrillo, chefe da Força Fluvial do Amazonas, cumprimenta-o e diz:
1. Que deplora profundamente o imperdoável descuido que fez a letra do Hino das Visitadoras não mencionar explicitamente a gloriosa Armada Nacional e a esforçada marujada que a integra. Que não como justificação, mas como simples resultado informativo, quer fazer-lhe saber que este hino não foi encomendado pela chefia do SVGPFA, mas resultou de espontânea criação do pessoal e que se o adotou de maneira não premeditada e até superficial, sem submetê-lo a uma prévia avaliação crítica de forma e conteúdo. Que em todo caso, se não na letra, no espírito do referido Hino, da mesma forma que na mente e no coração dos que trabalham no SVGPFA, estão sempre presentes as bases da Armada e sua marujada, aos quais todos neste Serviço professamos o maior carinho e o mais alto respeito;
2. Que se procedeu a corrigir as deficiências do Hino, enriquecendo-o com as seguintes modificações:
a. O coro ou estribilho, que se canta cinco vezes intercalado às estrofes, será cantado três vezes (a primeira, a terceira e a quinta) em sua execução original, isto é:
Servir, servir, servir
Ao Exército da Nação
Servir, servir, servir
Com muita dedicação
A segunda e a quarta vez, o coro ou estribilho será cantado modificado, da seguinte maneira, no seu segundo verso:
Servir, servir, servir
À Armada da Nação
Servir, servir, servir
Com muita dedicação
b. A primeira estrofe do Hino fica definitivamente modificada, anulando-se o terceiro verso, que dizia “E aos sargentos e aos cabinhos”, e substituindo-o do seguinte modo:
Fazer felizes os soldadinhos
— Vamos voando, chuchupinhas! —
E aos valentes marinheirinhos
É nossa honrosa obrigação
Deus guarde V. Exa.
Assinado:
Capitão EP (Intendência) PANTALEÓN PANTOJA
c.c. ao General Felipe Collazos, chefe de Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército e ao General Roger Scavino, comandante-em-chefe da V Região (Amazônia).
Parte estatística
O Coronel EP Máximo Dávila tem o prazer de enviar ao SVGPFA o seguinte informe sintético sobre a visita que seu comboio n.° 32 efetuou à Guarnição de Barranca (sobre o rio Maranhão):
Data da visita do comboio n.° 32: 3 de novembro de 1957.
Meio de transporte e pessoal: barco Eva. Chefe do comboio: Chinês Porfirio. Visitadoras: Coca, Peituda, Lalita, Sandra, íris, Juana, Loreta, Brasileira, Roberta e Eduviges.
Permanência na Guarnição: seis (6) horas, das 14 às 20.
Número de usuários e desenvolvimento das prestações: cento e noventa e dois (192) usuários, divididos e atendidos do seguinte modo: um grupo de dez (10) homens, consignado à visitadora Brasileira (em que pese ser a mais desejada pelos homens do regimento, foi acatada uma disposição do SVGPFA de atribuir àquela visitadora só o número regulamentar mínimo de usuários); um grupo de vinte e dois (22) homens, consignado à visitadora Peituda (por ser a segunda em popularidade no regimento) e oito grupos de vinte (20) homens cada um, consignados às restantes visitadoras. Esta distribuição foi efetuada imediatamente depois de removido o imprevisto que se refere mais adiante. Como era preciso que o Eva zarpasse antes do anoitecer, em razão dos rápidos noturnos que, nesta época, se formam diante de Barranca, reduziu-se o tempo máximo de permanência do usuário no local de vinte a quinze minutos, de modo que toda a operação terminasse antes de se pôr o sol, o que felizmente foi obtido.
Apreciação: As prestações foram plenamente gratas aos usuários, lamentando alguns, apenas, a redução do tempo devida à razão já exposta, registrando o comboio n.° 32 uma conduta de todo correta, como tem sido até agora a de todos os comboios do SVGPFA que temos tido o agrado de receber na Guarnição de Barranca.
Imprevistos: A Assistência Médica desta unidade descobriu, viajando no comboio n.° 32, enganosamente vestido de mulher, um policial, o qual, levado à Segurança e interrogado, verificou-se ser o indivíduo Adrián Antúnez, (a) Milcaras, o mesmo que, descobriu-se, é protetor ou cafetão da visitadora denominada Peituda. O policial confessou ter sido introduzido no barco Eva por sua protegida e ter obtido, sob ameaças, o consentimento do chefe do comboio e o silêncio das demais visitadoras para levar a cabo o seu estrambótico intento. Com o disfarce das roupas de mulher, mentiu à tripulação dizendo que se tratava de uma visitadora nova chamada Adriana, descobrindo-se o embuste quando, ao chegar a Barranca, a suposta Adriana inventou uma enfermidade diante do seu primeiro cliente, o soldado Rogelio Simonsa, para não lhe brindar a prestação pelo lugar devido, propondo, em troca, realizá-la de maneira sodômica ou contranatural. O soldado Simonsa, começando a suspeitar, denunciou o ocorrido e a falsa Adriana foi examinada à força pelo enfermeiro de plantão, tornando-se patente o seu verdadeiro sexo. O policial assegurou, a princípio, haver idealizado essa pantomima para controlar mais de perto os recebimentos da visitadora Peituda (sobre os quais percebe 75 por cento), pois suspeitava que ela lhe fazia umas contas safadas, a fim de diminuir sua participação. Mas logo, ante a incredulidade dos interrogadores, confessou que, sendo invertido passivo há muitos anos, sua verdadeira intenção tinha sido praticar seu vício com a tropa, para demonstrar a si mesmo que podia suplantar uma mulher, com vantagem, nas funções de visitadora. Tudo isto foi corroborado por sua própria companheira Peituda. Não sendo competência desta unidade tomar uma decisão sobre o particular, o indivíduo Adrián Antúnez, (a) Milcaras, é devolvido algemado e custodiado no barco Eva ao centro logístico, para que a chefia do SVGPFA adote as medidas que melhor convenham.
Sugestão: Que se estude a possibilidade de enviar comboios do SVGPFA aos centros usuários com maior freqüência, pelo bom resultado que as prestações têm sobre a tropa.
Assinado:
Coronel EP MÁXIMO DÁVILA,
chefe da Guarnição de Barranca (sobre o rio Maranhão).
Junta-se: lista de usuários com nome, sobrenome, número na folha de serviços e folha de desconto, e o policial Adrián Antúnez, (a) Milcaras.
Iquitos, 1.° de novembro de 1957.
Respeitável Sra. Pantoja:
Muitas vezes cheguei até sua porta para bater, mas, arrependida, sempre voltei à casa de minha prima Rosita, chorando, porque então seu esposo não tem ameaçado a gente sempre, dizendo que irão pro inferno antes de se aproximar do meu lar? Mas estou desesperada e vivendo já o inferno, senhora, compadeça-se de mim, hoje que é dia dos nossos mortos queridos. Daqui vou rezar na Igreja de Punchana por todos teus mortos, Sra. Pantoja, seja boa, eu sei que a senhora é, vi como é linda tua filhinha, com sua carinha tão santa como a do menino-mártir de Moronacocha. Lhe contarei que quando nasceu tua filhinha todas tivemos tanta alegria lá na Pantilândia, fizemos uma festa a teu esposo e o embriagamos para que estivesse mais feliz com a bebezinha, que será como um anjinho de alma branca vindo do céu, a gente se dizia. Assim será, eu sei, é o que o coração me segreda. A senhora me conhece, uma vez me viu, faz como um ano ou mais, aquela “lavadeira” que entrou em sua casa por engano, pensando que eu ia lavar sua roupa. Aquela sou eu, senhora. Ajuda-me, seja boa com a pobre Maclovia, estou morrendo de fome e o pobre Teófilo lá em Borja, eles estão com ele preso no calabouço, a pão e água, me disse numa carta que me trouxe um amigo, o pobrezinho, todo seu pecado é me amar, faça alguma coisa por mim, vou te agradecer até minha morte. Como queres então que viva, senhora, se seu marido me botou pra fora da Pantilândia? Dizendo que eu me comportei mal lá em Borja, que eu tinha enganado ele para que o Teófilo fugisse comigo. Não fui eu, foi ele, me disse fujamos para Nieva, que me perdoava que fosse puta, que tinha me visto chegar a Borja e o coração lhe falara dizendo: “apareceu a mulher que você anda procurando toda vida”.
Tenho um teto graças ao coração da minha prima Rosita, mas ela também é pobre e não pode me manter, senhorinha, ela está te escrevendo esta carta por mim porque eu não sei. Tenha pena que Deus te premiará no céu e o mesmo a tua filhinha, que eu vi na rua dando seus passinhos e imaginei um deus-menino, que olhinhos. Tenho que voltar a Pantilândia, fala com teu marido, que me perdoe e contrate de novo. Então não tratei ele sempre bem? Que desgosto dei ao Sr. Pantoja desde que estou com ele? Nenhum, então, só este, unzinho num ano, acho que não é muito. Não tenho direito de amar um homem? E ele não se baba quando a Brasileira faz seus dengues? Cuida-te, senhora, aquela mulher é má, viveu em Manaus e as putas de lá são bandidas, certo que estará dando cozimento a teu marido para enfeitiçar e amarrar. E depois, dois homens já se mataram por ela, um gringuinho santo, dizem, e o outro um estudante. Será que já não pegou o Sr. Pan-Pan, pois tem tudo o que quer? Cuide-se, aquela mulher é capaz de tirá-lo e você sofreria, senhora. Rezarei para que não aconteça.
Fala com ele, pede, Sra. Pantoja. Eles ainda vão prender o meu Teófilo por muitos meses e eu quero ir vê-lo, pois sinto falta dele, de noite choro dormindo pensando nele. É meu marido perante Deus, senhora, nos casou um padre velhinho, lá em Nieva. E na Arca de lá crucificamos uma galinhazinha como sinal de amor e de fidelidade. Ele não era “irmão” mas eu sim, desde que veio a Iquitos o Irmão Francisco, Deus o abençoe, fui ouvir e me converti. Eu converti Teófilo, e ele ficou “irmão” ao ver como os “irmãos” nos ajudaram lá em Nieva. Coitados, por nos dar de comer e emprestar uma rede tiveram que ir pra selva, deixando suas casas e seus animaizinhos e as coisinhas que tinham. É justo que se persiga assim aquela gente boa que acredita em Deus e só faz o bem?
Como é que vou ver o Teófilo se não tenho dinheiro para o barco? E onde vou trabalhar, o Moquitos é muito rancoroso, não quer me receber porque eu o deixei para entrar na Pantilândia. De “lavadeira” outra vez não quero, é de matar o cansaço e tem por cima a polícia que tira tudo o que a gente ganha. Não há pra onde ir, senhora. Beija e acarinha bem ele, como as mulheres sabemos, farás que me perdoe e eu irei de joelhos beijar teus pés. Penso no meu Teófilo lá em Borja e quero me matar, cravar uma espinha de chambira no coração como fazem os selvagens das tribos e se acabou a pena, mas minha prima Rosita não deixa e além disso sei que nem Deus Nosso Senhor nem o Irmão Francisco, seu capataz na terra, me perdoariam, eles amam todas as criaturas, até uma puta querem. Tenha pena de mim e que me contrate de novo, nunca mais darei a menor raiva, te juro por tua filhinha, vou rezar por ela até ficar rouca, senhora. Meu nome é Maclovia, ele já sabe.
Agradeço-lhe tanto, então, Sra. Pantoja, que Deus lhe pague, beijo teus pés e também de tua filhinha, com toda minha devoção,
MACLOVIA
Solicitação de baixa do Exército do Comandante (CCC) Godofredo Beltrán Calila, chefe do Corpo de Capelães Castrenses da V Região (Amazônia)
Iquitos, 4 de dezembro de 1957.
General-de-Brigada Roger Scavino Comandante-em-chefe da V Região (Amazônia) Presente.
Meu general:
Cumpro o penoso dever de solicitar por seu intermédio minha baixa imediata do Exército Peruano, em cujas fileiras tenho a honra de servir há dezoito anos, isto é, desde o ano em que me ordenei sacerdote, e no qual alcancei, quero crer que por meus merecimentos, o posto de comandante. Do mesmo modo, cumpro o tristíssimo imperativo moral de devolver ao Exército, através de V. Exa., meu superior imediato, as três condecorações e as quatro citações honrosas com que, ao longo dos meus anos de serviço no sacrificado e preterido Corpo de Capelães Castrenses (ccc), as Forças Armadas quiseram estimular meus esforços e ganhar minha gratidão.
Sinto a obrigação de deixar claramente afirmado que a razão do meu afastamento desta instituição e a entrega destas medalhas e diplomas é a ominosa existência, como organismo semiclandestino do nosso Exército, do chamado Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins, eufemístico nome que agasalha, em realidade, um ativo e crescente tráfico de rameiras entre Iquitos e os acampamentos militares e bases navais da Amazônia. Nem como sacerdote nem como soldado posso admitir que o Exército de Bolognesi e de Alfonso Ugarte, que tem marcado a História do Peru com ações nobres e heróis insignes, baixe ao vergonhoso extremo de perfilhar em seu seio, subvencionando o com o próprio orçamento e pondo a seu serviço sua logística e seu corpo de intendentes, o amor mercenário. Só quero recordar o paradoxo contrastante que há no fato de não haver conseguido eu, em dezoito anos de insistentes rogos e gestões, que o Exército criasse uma seção mobilizável de sacerdotes, a fim de levar periodicamente aos soldados das afastadas guarnições onde não há capelão, que são a maioria, os sacramentos da confissão e da comunhão, e o de que o mencionado Serviço de Visitadoras disponha, na atualidade, apenas há ano e meio criado, de um hidroavião, um barco, uma caminhonete e um moderníssimo equipamento de comunicações, para distribuir, por toda a amplidão da nossa selva, o pecado, a lascívia e, sem dúvida, a sífilis.
Quero fazer observar, por fim, que este singular Serviço aparece e prospera justamente quando, na Amazônia, a fé católica, religião oficial do Peru e de suas Forças Armadas, é ameaçada por uma peste supersticiosa que, com o nome de Irmandade da Arca, assola aldeias e povoados, ganha adeptos dia a dia entre a gente ignorante e ingênua, e cujo grotesco culto ao menino bestialmente sacrificado em Moronacocha estende-se por toda parte, incluídos, como se comprovou, os quartéis da selva. Não preciso recordar a V. Exa., meu general, que faz apenas dois meses, no Posto de São Bartolomeu, no rio Ucayali, um grupo de recrutas fanáticos, secretamente organizados em uma arca, tentaram crucificar vivo a um índio para conjurar uma tormenta, o que teve de ser impedido a bala pelos oficiais da unidade. E é justamente neste momento, quando o Corpo de Capelães Castrenses luta denodadamente contra este flagelo blasfematório e homicida no seio dos regimentos amazônicos, que o comando acredita oportuno autorizar e promover o funcionamento de um Serviço que embota o moral e corrompe os costumes da tropa. Que o nosso Exército fomente a prostituição e assuma ele mesmo a degradante função de alcoviteiro, é um sintoma de degradação muito grave para permanecer indiferente. Se a dissolução ética se apodera da coluna vertebral do nosso país, que são as Forças Armadas, a qualquer momento a gangrena pode expandir-se por todo o sacrossanto organismo da Pátria. Este modesto sacerdote-soldado não quer ser cúmplice por ação nem por omissão de tão terrível processo.
Saúda-o militarmente,
Comandante (CCC) GODOFREDO BELTRÁN CALILA,
chefe do Corpo de Capelães Castrenses
da V Região (Amazônia).
ANOTAÇÃO:
Remeta-se a presente solicitação ao Ministério da Guerra e ao Estado-Maior do Exército, com a recomendação de que:
1. Seja aceito o pedido de baixa do Comandante (CCC) Beltrán Calila, por ser sua decisão de caráter irrevogável;
2. Seja admoestado suavemente pelos termos algo destoantes em que fundamentou sua solicitação, e
3. Sejam agradecidos os serviços prestados.
Assinado:
General ROGER SCAVINO,
comandante-em-chefe da V Região (Amazônia).
Transmissão de A voz do Sinchi de 9 de fevereiro de 1958 pela Rádio Amazonas
Às dezoito horas em ponto, pelo relógio Movado que ornamenta a parede dos nossos estúdios, a Rádio Amazonas tem o prazer de apresentar a seus queridos ouvintes o programa mais ouvido de sua sintonia...
Compassos da valsa La Contamanina; sobem, baixam e ficam como fundo musical.
A voz DO SINCHI!
Compassos da valsa La Contamanina; sobem, baixam e ficam como fundo musical.
Meia hora de comentários, críticas, relatos, informações, sempre a serviço da verdade e da justiça. A voz que recolhe e espalha pelas ondas as palpitações populares da Amazônia Peruana. Um programa vivo e singelamente humano, escrito e apresentado pelo conhecido jornalista Germán Láudano Rosales, o Sinchi.
Compassos da valsa La Contamanina; sobem, baixam e desaparecem completamente.
Muito boa tarde, queridos e distintos rádio-ouvintes. Aqui estou uma vez mais, através das ondas da Rádio Amazonas, a primeira emissora do Oriente Peruano, para levar ao homem da urbe cosmopolita e à mulher da distante tribo, que dá seus primeiros passos pelas rotas da civilização, ao próspero comerciante e ao humilde agricultor da solitária maloca, isto é, a todos os que lutam e trabalham pelo progresso de nossa indomável Amazônia, trinta minutos de amizade, de recreação, de revelações confidenciais e elevados debates, reportagens que causam sensação e notícias que fazem história, de Iquitos, guia de peruanidade engastada no imenso verdor de nossa selva. Mas, antes de continuar, queridos ouvintes, alguns conselhos comerciais.
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E, para começar, como em todos os dias, nossa seção: UM POUCO DE CULTURA. Nunca nos cansaremos de repetir, amáveis rádio-ouvintes: é preciso que elevemos nosso nível intelectual e espiritual, que aprofundemos nossos conhecimentos, sobretudo os que concernem ao meio que nos rodeia, ao berço natal, à cidade que nos abriga. Conheçamos seus segredos, a tradição e as lendas que engalanam suas ruas, as vidas e façanhas daqueles que lhe emprestaram o nome, a história das casas que habitamos, muitas das quais foram berço de grandes pró-homens ou cenários de episódios imarcescíveis, orgulho de nossa região. Conheçamos tudo isto porque assim, concentrando-nos um pouco em nosso povo e nossa cidade, amaremos mais a nossa Pátria e a nossos compatriotas. Hoje vamos contar a história de uma das mais fantásticas mansões de Iquitos. Refiro-me, os senhores já terão adivinhado, à conhecidíssima Casa de Fierro, como é chamada popularmente, que se ergue, tão original, tão diferente e garbosa, em nossa Plaza de Armas, e onde funciona, na atualidade, o senhorial e fino Clube Social Iquitos. O Sinchi pergunta: quantos loretanos sabem quem construiu aquela Casa de Fierro, que surpreende e encanta os forasteiros quando pisam o solo ubérrimo de Iquitos? Quantos sabiam que aquela formosa casa de metal foi desenhada por um dos mais festejados arquitetos e construtores da Europa e do mundo? Quem sabia, antes deste programa, que aquela casa tinha saído do cérebro criador do genial francês que, no começo do século, levantou, na cidade-luz, Paris, a torre de fama universal que leva seu nome? A Torre Eiffel! Sim, queridos rádio-ouvintes, foi isto mesmo que ouviram: a Casa de Fierro da Plaza de Armas é obra do audaz e muito afamado inventor francês Eiffel, isto é, um monumento histórico de primeira magnitude em nosso país e em qualquer parte do mundo. Isto quer dizer que o famoso Eiffel esteve alguma vez na cálida Iquitos? Não, nunca esteve aqui. Como se explica, então, que aquela magna obra sua brilhe na nossa querida cidade? Isto é o que o Sinchi vai lhes revelar esta tarde na seção UM POUCO DE CULTURA do seu programa...
Breves acordes.
Corriam os anos da bonança da borracha e os grandes pioneiros loretanos, os mesmos que sulcavam, de norte a sul, de este a oeste a espessura amazônica, em busca da cobiçada goma, competiam esportivamente, em benefício de nossa cidade, para ver quem construía sua casa com os materiais mais artísticos e mais caros da época. Foi assim que vieram à luz essas residências de mármore, de lajes e fachadas de azulejos, de sacadas lavradas que embelezam as ruas de Iquitos e nos trazem à memória os anos dourados da Amazônia e demonstram como ò poeta da Mãe Pátria tinha razão quando disse “qualquer tempo passado foi melhor”. Pois bem, um desses pioneiros, grandes senhores da borracha e da aventura, foi o milionário e grande loretano Anselmo dei Águila, que, como muitos de seus iguais, costumava fazer viagens à Europa para satisfazer seu espírito inquieto e sua sede de cultura. E aqui temos o nosso charapa, Dom Anselmo’dei Águila, em um duro inverno europeu — como tremeria o loretano, não? —, chegando a uma cidade alemã e hospedando-se em um hotelzinho, que chamou enormemente sua atenção e o encantou por seu grande conforto, pelo arrojado de suas linhas e sua beleza tão original, porque estava inteiramente construído de ferro. Que fez, então, o charapita Del Águila? Sem perda de tempo, e com esse fervor pela pátria pequena que nos caracteriza a nós, gente desta terra, ele se disse: esta grande obra arquitetônica deveria estar em minha cidade, Iquitos a merece e a necessita, para seu garbo e excelência. E, sem mais aquela, o mão-aberta loretano comprou o hotelzinho alemão, construído pelo grande Eiffel, pagando por ele o que lhe pediram, sem regatear um cêntimo. Fez com que o desmontassem em peças, embarcou-o e o trouxe até Iquitos, com todas as porcas e parafusos inclusive. A primeira casa pré-fabricada da história, queridos ouvintes. Aqui, foi montada novamente com todo cuidado, sob a amorosa direção do próprio Del Águila. Então, já sabem a razão da presença em Iquitos dessa curiosa e inigualável obra de arte.
Como fato último, é preciso acrescentar que, em seu gesto simpático e em seu nobre afã de enriquecer o acervo urbanístico de sua terra, Dom Anselmo dei Águila cometeu, também, uma temeridade, ao não considerar que o material da casa que comprava era muito adequado ao frio polar da culta Europa, mas algo muito diferente do caso de Iquitos, onde uma mansão de metal, com as temperaturas que conhecemos, podia se constituir em um sério problema. E foi o que aconteceu, fatalmente. A casa mais cara de Iquitos revelou-se inabitável porque o sol converteu-a em uma caldeira e não se podia tocar em suas paredes sem que estourassem bolhas nas mãos. Del Águila não teve outro remédio senão vender a casa a um amigo, o seringueiro Ambrosio Morales, que acreditava ser capaz de resistir à infernal atmosfera da Casa de Fierro, e, entretanto, também não conseguiu. E assim ficou trocando de proprietário ano após ano, até que encontrou a solução ideal: transformá-la no Clube Social Iquitos, instituição que permanece desabitada durante a manhã, quando a Casa de Fierro despeja chamas, e se realça, com a presença das nossas senhoritas mais bem-dotadas e nossos cavalheiros mais distintos, às tardes e às noites, quando a temperatura a faz acolhedora e morna. O Sinchi, porém, pensa que, levando em conta o seu ilustre criador, a Casa de Fierro deveria ser desapropriada pela Municipalidade e transformada em um museu, ou algo parecido, dedicado aos anos áureos de Iquitos, o período de apogeu da borracha, quando o nosso valorizado ouro negro transformou Loreto na capital econômica do país. E com isto, amáveis ouvintes, encerra-se nossa primeira seção: UM POUCO DE CULTURA!
Breves acordes. Anúncios em disco e fita, 60 segundos. Breves acordes.
E agora, o nosso COMENTÁRIO DO DIA. Antes de tudo, queridos rádio-ouvintes, como o tema que tenho de abordar esta noite (muito a contragosto e porque assim o exige o meu dever de jornalista íntegro, de loretano, de católico e de chefe de família) é sumamente grave e pode ofender os seus ouvidos, rogo-lhes que afastem dos receptores suas filhas e filhos menores, pois, com a franqueza que me caracteriza e que fez de A voz DO SINCHI a cidadela da verdade defendida por todos os punhos amazônicos, não terei outro remédio senão referir-me a fatos cruéis e a chamar as coisas por seu nome, como sempre soube fazer. E o farei com a energia e a serenidade de quem sabe que fala com o apoio do seu povo, fazendo-se eco do silencioso porém reto pensamento da maioria.
Breves acordes.
Em repetidas ocasiões, e com delicadeza, para não ofender a ninguém, porque esse não é o nosso desejo, temos aludido neste programa a um fato que é motivo de escândalo e de indignação para todas as pessoas decentes e corretas, que vivem e pensam moralmente e que são a maioria desta cidade. E não tínhamos querido atacar direta e frontalmente esse fato vergonhoso porque confiávamos ingenuamente — reconheçamo-lo com fidalguia — em que o responsável pelo escárnio se arrependesse, compreendesse, de uma vez por todas, a magnitude do dano moral e material que estava infligindo a Iquitos, por seu afã de lucro imoderado, por seu espírito mercantil, que não respeita barreiras nem se detém em considerações para conseguir seus fins, que são entesourar, encher as burras, mesmo que seja com as armas proibidas da concupiscência e da corrupção, próprias e alheias. Há algum tempo, arrostando a incompreensão dos humildes, expondo nossa integridade física, fizemos uma campanha civilizadora, por estas mesmas ondas, no sentido de que se pusesse fim, em Loreto, ao costume de açoitar as crianças depois do sábado de Aleluia para purificá-las. E penso que contribuímos em parte, com o nosso grãozinho de areia, para que esse mau costume, que fazia chorar tanto a nossos filhos, e a alguns tornava psicologicamente incapacitados, vá sendo erradicado da Amazônia. Em outras ocasiões, enfrentamos a sarna supersticiosa que, sob o disfarce da Irmandade da Arca, contamina a Amazônia e salpica nossa selva de inocentes animaizinhos, crucificados por culpa da estultícia e da ignorância de um setor do nosso povo, que usa falsos messias e pseudo-jesus-cristos para encher os bolsos e satisfazer seus doentios instintos de popularidade, de domesticação e manejo de multidões e de sadismo anticristão. E o fizemos sem nos amedrontar ante a ameaça de ser crucificados nós mesmos na Plaza de Armas de Iquitos, como profetizam as covardes cartas anônimas que recebemos diariamente, cheias de erros de ortografia, dos valentes que atiram a pedra e escondem a mão’, e que se atrevem a insultar mas não mostram a cara. Anteontem mesmo encontramos, na porta de nosso domicílio, quando nos dispúnhamos a abandonar o lar para ir ganhar decentemente o pão com o suor da nossa testa, um gatinho crucificado, como bárbara e sangrenta advertência. Mas enganam-se esses Herodes do nosso tempo se pensam que podem tapar a boca do Sinchi com o espantalho da intimidação. Por estas ondas, continuaremos combatendo o fanatismo demente e os crimes religiosos desta seita, e fazendo votos para que as autoridades capturem o chamado Irmão Francisco, esse Anticristo da Amazônia, a quem esperamos ver, logo, apodrecendo no cárcere, como autor intelectual, consciente e contumaz do infanticídio de Moronacocha, das várias tentativas frustradas de assassinato na cruz que se registraram, nos últimos meses, em diferentes vilas da selva, fanatizadas pela Arca, e pela abominável crucificação ocorrida, na semana passada, no missionário povoado de Santa Maria de Nieva, do ancião Arévalo Benzas, por obra dos criminosos “irmãos”.
Breves acordes.
Hoje, com a mesma firmeza e à custa dos riscos que tenha de correr, o Sinchi pergunta: até quando vamos continuar tolerando, em nossa querida cidade, distintos rádio-ouvintes, o vergonhoso espetáculo que é a existência do indevidamente chamado Serviço de Visitadoras, conhecido mais popularmente pelo apelido de Pantilândia, em irrisória homenagem a seu criador? O Sinchi pergunta: até quando, chefes e mães de família da civilizada Loreto, vamos continuar sofrendo angústias para impedir que os nossos filhos corram, inocentes, inexperientes, ignorantes do perigo, a contemplar, como se fosse uma quermesse ou um circo, o tráfico de messalinas, de mulherzinhas desavergonhadas, de PROSTITUTAS, para não usar eufemismos, que impudicamente vão e vêm nesse antro, erigido às portas de nossa cidade por esse indivíduo sem lei e sem princípios, que responde ao nome e sobrenome de Pantaleón Pantoja? O Sinchi pergunta: que poderosos e turvos interesses amparam esse sujeito para que, durante dois longos anos, tenha podido dirigir, na total impunidade, um negócio tão ilícito quanto próspero, tão infamante quanto milionário, nas barbas de toda a população? Não nos atemorizam as ameaças, ninguém pode nos subornar, ninguém impedirá nossa cruzada pelo progresso, a moralidade, a cultura e o patriotismo peruanista da Amazônia. Chegou o momento de enfrentar o monstro e, como fez o Apóstolo com o dragão, cortar-lhe a cabeça de um só golpe. Não queremos semelhante furúnculo em Iquitos, a cara de todos nós cai de vergonha e vivemos em uma constante aflição e pesadelo com a existência desse complexo industrial de meretrizes a que preside, como moderno sultão babilônico, o tristemente célebre Sr. Pantoja, que não vacila, no seu afã de riqueza e exploração, em ofender e agravar o mais santo que existe, a família, a religião e os quartéis dos defensores de nossa integridade territorial e da soberania da Pátria.
Breves acordes. Anúncios comerciais em disco e fita: 30 segundos. Breves acordes.
Essa história não é de ontem nem de anteontem, dura já nada menos que ano e meio, dezoito meses, no curso dos quais temos visto, incrédulos e estupefactos, crescer e multiplicar-se a sensual Pantilândia. Não falamos por falar, investigamos, ouvimos, verificamos tudo até o cansaço, e agora o Sinchi está em condições de revelar, em primeira mão exclusiva para os senhores, queridos rádio-ouvintes, a impressionante verdade. Uma verdade das que fazem tremer paredes e produzem síncopes. O Sinchi pergunta: quantas mulheres — se é que se pode outorgar esse digno nome a quem comercia indignamente o corpo — pensam os senhores que trabalham, atualmente, no gigantesco harém do Sr. Pantaleón Pantoja? Quarenta, completinhas. Nem mais nem menos: temos até os seus nomes. Quarenta meretrizes constituem a população feminina daquele lupanar motorizado, que, pondo a serviço dos prazeres inconfessáveis as técnicas da era eletrônica, mobiliza pela Amazônia a sua mercadoria humana em barcos e hidroaviões.
Nenhuma indústria desta progressista cidade, que se tem distinguido sempre pelo brio de seus homens de empresa, conta com os recursos técnicos da Pantilândia. Não acreditam? Ver para crer, dados irrefutáveis: é verdade ou não que o indevidamente chamado Serviço de Visitadoras dispõe de uma linha telefônica própria, de uma caminhonete pick-up marca Dodge, placa Loreto 78-256, de um aparelho de rádio transmissor-receptor, com antena própria, que faria empalidecer de inveja qualquer emissora de rádio de Iquitos, de um hidroavião Catalina N.° 37, que tem o nome, é claro, de uma cortesã bíblica, Dalila, de um barco de 200 toneladas chamado cinicamente Eva, e das acomodações mais refinadas e cobiçáveis de sua sede no rio Itaya, por exemplo, ar condicionado, que muito poucos escritórios honrados de Iquitos têm? Quem é esse afortunado Sr. Pantoja, esse Faruk da terra, que em apenas ano e meio conseguiu construir tão formidável império? Para ninguém é segredo que os longos tentáculos dessa poderosa organização, cujo centro de operações é a Pantilândia, projetam-se em todas as direções de nossa Amazônia, levando o seu rebanho prostibulário: PARA ONDE, estimados rádio-ouvintes? PARA ONDE, respeitáveis ouvintes? PARA OS QUARTÉIS DA PÁTRIA. Sim, senhoras e senhores, este é o lucrativo negócio do faraônico Sr. Pantoja: transformar as guarnições e acampamentos da selva, as bases e postos fronteiriços, em pequenas sodomas e gomorras, graças a seus prostíbulos aéreos e fluviais. É isto mesmo que estão ouvindo, é como estou lhes dizendo. Não há uma sílaba de exagero nas minhas palavras, e se falto com a verdade, que o Sr. Pantoja venha aqui para me desmentir. Eu, democraticamente, cedo-lhe todo o tempo de que precise, no meu programa de amanhã ou de depois de amanhã, ou quando quiser, para que contradiga o Sinchi se é que o Sinchi mente. Mas não virá, claro que não virá, porque ele sabe melhor que ninguém que estou dizendo a verdade e nada mais que a aplastrante verdade. Mas os senhores ainda não ouviram tudo, estimáveis rádio-ouvintes. Há mais coisas e ainda mais graves, se é que é possível. Este indivíduo sem freios e sem escrúpulos, o Imperador do Vício, não contente com levar o comércio sexual aos quartéis da Pátria, aos templos da peruanidade, em que tipo de aparelhos, pensam os senhores, mobiliza suas concubinas? Que tipo de hidroavião é esse aparelho impropriamente chamado de Dalila, pintado de verde e vermelho, que tantas vezes temos visto, com o coração partido de raiva, sulcar o céu diáfano de Iquitos? Eu desafio o Sr. Pantoja a que venha aqui dizer, ante este microfone, que o hidroavião Dalila não é o mesmo hidro Catalina N.° 37, no qual, a 3 de março de 1929, dia glorioso para a Força Aérea Peruana, o Tenente Luis Pedraza Romero, de tão grata recordação para nossa cidade, voou, pela primeira vez sem escalas, entre Iquitos e Yurimaguas, enchendo de felicidade e de entusiasmo progressista todos os loretanos pela proeza realizada. Sim, senhoras e senhores, a verdade é amarga mas pior é a mentira. O Sr. Pantoja pisoteia e denigre iniquamente um monumento histórico pátrio, sagrado para todos os peruanos, utilizando-o como meio de locomoção de suas equipes ambulantes de mariposas. O Sinchi pergunta: estão informadas deste sacrilégio nacional as autoridades militares da Amazônia e do país? Consideram este peruanicídio os respeitados chefes da Força Aérea Peruana, e, principalmente, os altos comandos do Grupo Aéreo N.° 42 (Amazônia), que estão convocados a ser zelosos guardiães da aeronave em que o Tenente Pedraza cumpriu sua memorável façanha? Nós nos negamos a acreditar nisto. Conhecemos nossos chefes militares e aeronáuticos, sabemos o quão dignos são, as abnegadas tarefas que realizam. Acreditamos e queremos acreditar que o Sr. Pantoja burlou sua vigilante atenção, que os fez vítimas de alguma grosseira manobra para perpetrar semelhante horror, qual seja o de transformar, por arte de magia meretrícia, um monumento histórico em uma casa de encontros transeunte. Porque, se não fosse assim e, em vez de terem sido enganadas e surpreendidas pelo Grande Cafetão da Amazônia, houvesse entre essas autoridades e ele algum tipo de contubérnio, então, queridos rádio-ouvintes, seria para começar a chorar; seria, amáveis ouvintes, para não acreditar nunca mais em ninguém e para não respeitar nunca mais nada. Mas não deve nem pode ser assim. E esse foco de abjeção moral deve cerrar suas portas e o Califa da Pantilândia deve ser expulso de Iquitos e da Amazônia, com toda a sua caravana de odaliscas em leilão, porque aqui, os loretanos, que somos gente boa e simples, trabalhadora e correta, nós não o queremos nem dele necessitamos.
Breves acordes. Anúncios comerciais gravados em disco e fita: 60 segundos. Breves acordes.
E agora, estimados rádio-ouvintes, passemos à nossa seção O SINCHI NA RUA: ENTREVISTAS E REPORTAGENS! Não vamos nos afastar do tema em questão, para que o Tzar da Pantilândia não durma sobre seus lauréis prostibulários. Os senhores conhecem o Sinchi, respeitáveis ouvintes, e sabem que quando empreende uma campanha em favor da justiça, da verdade, da cultura ou da moral de Iquitos, não retrocede em seu empenho até chegar à meta, que é contribuir, embora colocando apenas uma palhinha na fogueira, para o progresso da Amazônia. Pois bem, esta noite, e como complemento gráfico e direto, como testemunho vivo, dramático e calidamente humano do mal que denunciamos no nosso COMENTÁRIO DO DIA, O Sinchi vai oferecer-lhes duas gravações exclusivas, obtidas à custa de esforços e riscos, que denunciam por si sós a tenebrosa Pantilândia e a catadura da personagem que a criou e constrói sua fortuna à custa dela, e que, levado por sua ânsia de dinheiro, não vacila em sacrificar o que é mais sagrado ao homem, o seu nome, sua família, sua digna esposa e sua pequena filhinha. São dois testemunhos terríveis em sua verdade nua e estridente, que o Sinchi leva a seus ouvidos, queridos rádio-ouvintes, com a esperança de que conheçam, em todos os seus íntimos mecanismos maquiavélicos, o tráfico cotidiano de amores carnais na imoral Pantilândia.
Breves acordes.
Aqui, diante de nós, sentada, com uma expressão inibida por sua pouca familiaridade com o microfone, temos uma mulher ainda jovem e bem-parecida. Seu nome é MACLOVIA. Seu sobrenome não tem importância, e, além disso, ela prefere que a gente o ignore, pois, muito humanamente, deseja que os seus familiares não a identifiquem e sofram ao conhecer sua verdadeira vida, que é, ou, perdão, tem sido, foi até agora, a PROSTITUIÇÃO. Que ninguém atire a primeira pedra, que ninguém arranque os cabelos. Nossos ouvintes sabem muito bem que uma mulher, por mais baixo que tenha caído, pode sempre redimir-se, se lhe são dadas as facilidades e a ajuda moral para tanto, se lhe estendem umas mãos amigas. O primeiro passo para retornar à vida decente é querê-lo. Maclovia, os senhores irão comprovar dentro de breves instantes, quer isto. Ela foi “lavadeira”, “lavadeira” entre aspas, claro, exerceu, sem dúvida por fome, por necessidade, por fatalidade da vida, esse ofício trágico: o de se oferecer ao melhor licitador pelas ruas de Iquitos. Mas em seguida, e esta é a parte que nos interessa, trabalhou na viciada Pantilândia. Ela poderá nos revelar, por isso, o que se esconde sob esse nome circense. As desgraças da vida empurraram Maclovia àquele antro para que um senhor xis a explorasse e alcançasse gordas prebendas com sua dignidade de mulher. Mas é preferível que ela mesma nos conte tudo, com a sua simplicidade de mulher humilde, a quem não foi dado estudar ou fazer-se culta, mas adquirir uma imensa experiência pelas atribulações da vida. Aproxime-se um pouquinho, Maclovia, e fale aqui, isso mesmo. Sem medo nem vergonha, a verdade não ofende nem mata. O micro é seu, Maclovia.
Breves acordes.
— Obrigada, Sinchi. Olha, aquilo do meu sobrenome não é tanto pela minha família, a verdade é que, fora da prima Rosita, parentes não tenho, pelo menos próximos. Minha mãe morreu antes que eu trabalhasse nisso que você falou, meu pai afogou-se numa viagem ao Madre de Dios, e meu único irmão se meteu na selva faz cinco anos para não fazer o serviço militar, e ainda estou esperando que volte. É mais porque, não sei como dizer, Sinchi, Maclovia vai melhor com o trabalho, porque esse também não é meu nome, e, em vez disso, meu nome de verdade serve para tudo mais, por exemplo, minhas amizades. E aqui você me trouxe para que fale só daquilo, não é? É como se eu fosse duas mulheres, cada uma fazendo uma coisa e cada uma com um nome diferente. Assim me acostumei. Já sei que não estou explicando bem. O quê? como? Ah, sim, estou saindo do assunto. Bem, agora, falo daquilo, Sinchi.
Sim, então, antes de entrar na Pantilândia estive de “lavadeira”, como você disse, e depois na casa de Moquitos. Há gente que pensa que as “lavadeiras” ganham horrores e têm vida boa. Uma mentira deste tamanho, Sinchi. É um trabalho sujo, chatíssimo, caminhar todo dia, os pés da gente ficam assim de inchados e muitas vezes por nada, para voltar a casa irritada, sem ter conseguido um cliente. E ainda por cima teu cafifa te bate porque você não trouxe nem cigarros. Você dirá, para que um cafifa, então? Porque se você não tem um, ninguém te respeita, te assaltam, te roubam, você se sente desamparada e, além disso, Sinchi, quem gosta de viver só, sem homem? Sim, me desviei outra vez, agora falo daquilo. Era para que você saiba por quê, quando de repente correu a notícia de que na Pantilândia davam contratos com salários fixos, domingos livres e até viagens, bem, foi uma loucura entre as “lavadeiras”. Era a loteria, Sinchi, você não vê? Um trabalho seguro, sem ter que procurar clientes, porque a gente tinha para dar de presente, e ainda por cima tratadas com toda a consideração. Parecia um sonho, então. Foi uma correria até o rio Itaya. Embora a gente tenha voado, só tinha contratos para umas poucas, porque nós éramos uma cachorrada, ai, perdoa. E, depois, com a Chuchupe de chefona ali, a gente não tinha maneira de entrar. O Sr. Pantoja ouvia todos os seus conselhos e ela sempre preferia as que tinham trabalhado na sua casa de Nanay. Por exemplo, as que vinham de casas competidoras, dos bordéis do Moquitos, ela impedia, punha uma porção de mas e cobrava delas umas comissões bárbaras. E com as “lavadeiras” fazia ainda pior, desmoralizava a gente dizendo ao Sr. Pantoja não gostar das que vêm da rua, como as cadelinhas, a não ser as que trabalharam em domicílio conhecido. Queria dizer Casa Chuchupe, claro. Desgraçada, ficou me barrando a entrada pelo menos quatro meses. Corria a notícia, vagas no Itaya, eu voava e toda vez batia de cara contra aquela montanha, a Chuchupe. Por isso entrei para a casa do Moquitos, não no seu velho bordel, mas no que ele comprou da Chuchupe, em Nanay. Mas só ficaria lá uns dois meses, quando teve outra vez vaga na Pantilândia, corri e o Sr. Pan-Pan ficou me olhando no exame e disse você tem presença, moça, fica nessa fila. E me escolheu por meu bom corpo. Assim entrei na Pantilândia, Sinchi. Me lembro bem da primeira vez que fui ao Itaya, já contratada, para o exame médico. Estava tão feliz como no dia da primeira comunhão, te juro. O Sr. Pantoja fez um discurso, pra mim e as quatro que entraram comigo. Fez a gente chorar, te digo, dizendo agora vocês já têm outra categoria, são visitadoras e não mariposas, cumprem uma missão, servem à Pátria, colaboram com as Forças Armadas e nem sei quantas coisas mais. Fala tão bonito quanto você, Sinchi, que uma vez, eu me lembro, fez a Sandra, a Peludinha e eu chorar. A gente ia no Eva, pelo rio Maranhão, e você começou a falar na rádio dos orfãozinhos do Lar de Menores e os nossos olhos se encheram de lágrimas.
— Obrigado, Maclovia, pela parte que nos toca. Emociona-nos saber que chegamos a todos os lugares e que A voz DO SINCHI é capaz de fazer vibrar as fibras íntimas dos seres mais embrutecidos pelas circunstâncias da vida. Isso que me diz é uma grande recompensa e vale mais para nós que tantas ingratidões. Bem, Maclovia, assim foi como você caiu nas redes do Cafifa da Pantilândia. Que houve, então?
— Eu feliz, Sinchi, imagina. Passava o dia viajando, conhecendo os quartéis, as bases, os acampamentos de toda a selva, eu que até então nunca tinha subido num avião. A primeira vez que me subiram no Dalila peguei um susto, cosquinhas na barriga, calafrios, tive náuseas. Porém, depois não, me encantavam, pediam voluntárias para o comboio aéreo! e sempre eu, Sr. Pantoja, eu, eu! Agora vou te dizer uma coisa, Sinchi, voltando ao de antes. Teus programas são tão bonitos, você faz essas campanhas tão finas como a dos orfãozinhos, que ninguém pode entender por que você ataca os Irmãos da Arca, por que você calunia e insulta todo tempo. Que injustiça, Sinchi, nós queremos que reine o bem e Deus esteja contente. Quê? Sim, já falo daquilo, me perdoa, mas tinha que te dizer isto em nome da opinião pública. A gente ia, assim, aos quartéis e os milicos nos recebiam como rainhas. Por eles, a gente ficava lá a vida toda, fazendo mais suportável o serviço deles. Organizavam passeios pra gente, emprestavam deslizadores pra sair pelo rio, convidavam pra comer, umas considerações que a gente vê pouco neste ofício, Sinchi. E, depois, a tranqüilidade de saber que o trabalho é legal, não viver com o susto da polícia, de que os tiras caiam em cima de você e tirem num minuto o que se ganhou num mês. Que segurança trabalhar com os milicos, a gente sentir que está protegida pelo Exército, não é verdade? Quem ia se meter com a gente? Até os cafifas andavam mansinhos, pensavam duas vezes antes de levantar a mão, de medo que a gente fosse se queixar aos soldados e eles acabassem na gaiola. Quantas éramos? No meu tempo, vinte. Mas agora tem quarenta, felizes porque estão no paraíso. Até os oficiais se consumiam pra atender a gente, Sinchi, que é que você pensa? Sim, era uma felicidade, ai, Senhor, me dá uma tristeza quando penso que saí da Pantilândia por pura burrice.
A verdade é que foi por minha culpa, o Sr. Pantoja me mandou embora porque, numa viagem a Borja, fugi e me casei com um sargento. Faz poucos meses, pra mim séculos. Por acaso é pecado casar? Uma das coisas ruins de ser visitadora, não aceitam as casadas, o Sr. Pantoja disse que há incompatibilidade. Isso parece um grande abuso. Agora, te digo que fui casar em má hora, Sinchi, porque o Teófilo acabou meio biruta. Bem, melhor não falar mal dele, que está preso, e estará ainda tantos anos. Até dizem que podem fuzilar todos, ele e outros “irmãos”. Você acredita que façam isso? Olha que só vi meu pobre marido quatro ou cinco vezes, seria de rir se não fosse uma grande tragédia. Pensar que fui eu quem fez ele “irmão”. Ele nem sequer tinha pensado na Arca, nem no Irmão Francisco nem na salvação pelas cruzes, até que me conheceu. Eu falei da Arca, fiz ver que era coisa de gente boa, algo pelo bem do próximo e não as maldades que os bobos diziam, essas que você repete, Sinchi. Mas o que acabou convencendo ele foi conhecer os “irmãos” de Santa Maria de Nieva, que ajudaram a gente tanto quando fugimos. Deram de comer à gente, emprestaram dinheiro, abriram o coração e as casas, Sinchi. E depois, quando o Teófilo estava preso no quartel, iam vê-lo, levavam comida todos os dias. Ali foram ensinando pra ele as verdades. Mas eu nunca podia sonhar que a religião ia cair tão fundo nele. Imagina que quando saiu da prisão, eu, que navegando céu e terra pra conseguir a passagem, fui me juntar a ele em Borja, encontrei outro homem. Me recebeu dizendo não posso tocar em você nunca mais, vou ser apóstolo. Que se eu quisesse, podíamos viver juntos, ainda que só como “irmão” e “irmã”, os apóstolos têm que ser puros. Mas que isso seria um sofrimento para os dois e melhor seguisse cada um seu caminho, já que eram tão diferentes, ele tinha escolhido a santidade. Resultado, já está vendo, Sinchi, fiquei sem Pantilândia e sem marido. E mal tinha voltado a Iquitos, fiquei sabendo que tinham crucificado Dom Arévalo Benzas lá em Santa Maria de Nieva, e que o Teófilo dirigiu tudo. Ai, Sinchi, que abalo que eu tive. Conheci aquele velhinho, era o chefe da Arca naquele povoado, o que mais nos ajudou e nos deu tantos conselhos. Não acredito nessa história dos jornais, essa que você também repete, que o Teófilo crucificou Dom Arévalo pra ficar de chefe da Arca de Santa Maria de Nieva. Meu marido virou santo, Sinchi, queria chegar a apóstolo. Tem que ser verdade o que os “irmãos” confessaram, estou certa que o velhinho, sentindo que ia morrer, chamou os “irmãos” e pediu pra ser crucificado, pra acabar como Cristo, que, pra fazer sua vontade, o crucificaram. Pobre Teófilo, espero que não seja fuzilado, me sentiria responsável, você não vê que eu é que o meti nisso, Sinchi? Quem podia imaginar que terminaria assim, com a religião tão metida no seu sangue. Sim, já falo daquilo.
Enfim, como estava te contando, o Sr. Pantoja não me perdoou nunca minha fugida com o pobre Teófilo, não me deixou voltar à Pantilândia, por mais que lhe pedisse tanto, e imagino que agora, depois do que te contei, acabou-se pra sempre. Mas a gente tem que viver, não é, Sinchi? Porque outra das proibições do Sr. Pan-Pan é falar na Pantilândia. A ninguém, nem à família, nem aos amigos, e se perguntam pra gente, deve-se negar tudo. Não é outro absurdo? Como se até as pedras de Iquitos não soubessem o que é a Pantilândia e quem são as visitadoras. Mas, que você quer, Sinchi, cada qual com suas manias, e elas sobram no Sr. Pantoja. Não, não é verdade isso que você disse uma vez, que ele conduz a Pantilândia com salmoura e chicote, como uma senzala. A gente precisa ser justo. Ele tem tudo muito organizadinho, outra mania sua é a ordem. Todas diziam isto não parece bordel mas quartel. Faz a gente formar, passa revista, a gente tem que ficar em sentido e mudas quando ele fala. Só faltava que tocassem cometa e nos fizessem desfilar, uma graça. Mas essas manias eram engraçadas e a gente agüentava porque, no resto, ele era justo e gente boa. Só quando se embeiçou, se apaixonou pela Brasileira é que começaram as injustiças para favorecê-la, por exemplo, fazia que dessem pra ela o único camarote individual do Eva nas viagens. Ela o domina, eu te juro. Escuta, você quer saber disso também? Melhor esquecer, não quero brigas com a Brasileira, ela é meio bruxa e depois me bota mau-olhado. E depois, já tem dois cadáveres nas costas, você lembra. Apaga o que eu disse dela e do Sr. Pantoja, afinal todo cristão tem direito à cama, de se apaixonar por quem mais lhe agrade, e a mesma coisa pra toda cristã, não te parece? Eu acho que o Sr. Pantoja teria perdoado minha fugida com o Teófilo se não tivesse escrito aquela carta pra sua senhora, que nem escrevi, eu ditei pra minha prima Rosita, a professora. Esse foi o maior erro e por isso me estrepei, Sinchi, eu mesma me cravei o punhal. Que você quer, estava desesperada, morrendo de fome, teria feito qualquer coisa pra que o Sr. Pan-Pan voltasse a me encontrar. E também queria ajudar o Teófilo, que passava fome na prisão de Borja. É verdade que a Rosita me disse: “Vai fazer uma loucura, prima”. Enfim, eu não achava. Pensei que podia tocar as fibras do coração de sua esposa, que ela se compadeceria, falaria com o marido e o Sr. Pantoja me receberia de novo. Foi a única vez que o vi tão furioso, parecia que ia me matar. Eu, boba, acreditando que sua senhora tinha intercedido, que já estaria bonzinho, fui vê-lo na Pantilândia, certa de que ia me dizer te perdôo, uma multa, para o exame médico e dentro de novo. Só faltou puxar o revólver, Sinchi. Até palavrões me disse, ele que não costuma dizer palavras feias. Tinha os olhos vermelhos, perdia a voz, fazia espuma pela boca. Que eu tinha destruído seu casamento, que tinha dado uma punhalada no coração de sua esposa, que sua mãe tinha desmaiado. Tive de sair correndo da Pantilândia, porque pensei que ia bater em mim. Também, coitado, não é, Sinchi? Sua senhora não sabia nada de nada, descobriu a tramóia do Sr. Pan-Pan pela minha carta. Que fria, mas eu não sou adivinha, como podia pensar que sua senhora era tão inocente, que não sabia como seu marido ganhava o feijão. Como tem gente inocente no mundo, não? Parece que a mulher o abandonou e levou a filhinha pra Lima. Olha só que tremenda bagunça se armou por minha culpa. E aqui estou, assim, outra vez de “lavadeira”. Moquitos não quis me receber, porque eu deixei sua casa para ir para a Pantilândia. Criou essa lei, senão ficaria sem mulheres nas suas casas: aquela que vai trabalhar com o Sr. Pan-Pan não volta nunca mais aos bordéis de Moquitos. Assim que aqui estou, outra vez como no princípio, caminhando pra cima e pra baixo, sem sequer poder pagar um cafifa. Tudo estaria muito bem se ainda por cima não tivessem aparecido umas varizes, olha meus pés, você já viu alguma coisa mais inchada, Sinchi? E apesar do calor tenho que andar com meias grossas pra que ninguém veja as veias saltadas, senão jamais conseguia um cliente. Enfim, não sei mais o que contar, Sinchi, já se acabou a história.
— Bem, muito bem, Maclovia, efetivamente, agradecemos a sua franqueza e espontaneidade, em nome dos rádio-ouvintes de A voz DO SINCHI, pela Rádio Amazonas, que, estamos certos, compreendem seu drama e se apiedam de sua sorte. Estamos muito reconhecidos a você por seu corajoso testemunho, denunciando as escabrosas atividades do Barba Azul do rio Itaya, embora não lhe reconheçamos razão em acreditar que todas as suas calamidades decorrem de sua saída da Pantilândia. Nós pensamos que o turvo Sr. Pantoja, ao despedi-la, prestou-lhe um grande serviço, naturalmente que sem o desejar, dando-lhe a oportunidade de regeneração e de voltar à vida honrada e normal, o que esperamos deseje e alcance logo. Muito boa tarde, Maclovia.
Breves acordes. Anúncios comerciais gravados em disco e fita: 30 segundos. Breves acordes.
As últimas palavras desta desgraçada mulher, cujo testemunho acabamos de levar a vossos ouvidos, queridos rádio-ouvintes — refiro-me à ex-visitadora Maclovia —, puseram dramaticamente o dedo na chaga de um assunto trágico e doloroso, que retrata, melhor que uma fotografia ou um filme em tecnicolor, a idiossincrasia da personagem que faz luzir em seu prontuário a sombria façanha de haver criado em Iquitos a mais insuspeitada e multitudinária casa de perdição do país e, talvez, da América do Sul. Porque, com efeito, é certo e faz fé que o Sr. Pantaleón Pantoja tem uma família, ou melhor dito, tinha, e que tem levado uma vida dupla, afundado, de um lado, na lama pestilencial do negócio do sexo e, de outro, aparentando uma vida no lar digna e respeitável, ao amparo da ignorância em que mantinha seus seres queridos, sua esposa e sua pequena filhinha, quanto às suas verdadeiras e rendosas atividades. Mas um dia se fez a luz da verdade no infeliz lar e à ignorância de sua esposa seguiu-se o espanto, a vergonha e, com justíssima razão, a ira. Dignamente, com toda a nobreza de mãe ofendida, de esposa enganada no mais sagrado de sua honra, tomou aquela honesta dama a determinação de abandonar o lar manchado pelo escândalo. No Aeroporto Tenente Bargeri, de Iquitos, para dar testemunho de sua dor e para acompanhá-la até a escadinha da moderna aeronave Faucett, que haveria de afastá-la pelos ares de nossa querida cidade, ESTAVA O SINCHI!
Breves acordes, som de motor de avião que sobe, baixa e permanece como fundo sonoro.
— Muito boa tarde, distinta senhora. É a Sra. Pantoja, não é verdade? Prazer em cumprimentá-la.
— Sim, sou eu. Quem é o senhor? Que é isso que tem na mão? Gladycita, filhinha, cale-se, você me deixa nervosa. Alicia, dê a ela a chupeta pra ver se esta criança se cala.
— Sou o Sinchi, da Rádio Amazonas, às suas ordens, respeitável senhora. Permita-me roubar-lhe uns segundos do seu precioso tempo para uma entrevista de quatro palavras?
— Uma entrevista? Comigo? Mas a troco de quê?
— Do seu esposo, senhora. Do celebérrimo e muito conhecido Pantaleón Pantoja.
— Vá fazer a entrevista com ele mesmo, senhor, eu não quero saber mais nada desse individuozinho nem de sua celebridade, que me faz rir, nem desta cidade asquerosa que espero
não voltar a ver nem em pintura. Licencinha, por favor. Retire-se daí, senhor, não vê que pode dar uma pisadela na nenezinha?
— Compreendo sua dor, senhora, e nossos ouvintes também a compreendem, e saiba que conta com toda a nossa simpatia. Sabemos que só o sofrimento pode incitá-la a se referir dessa maneira ofensiva à Pérola do Amazonas, que não lhe fez nada. Em vez disso, seu esposo é que está fazendo muito mal a esta terra.
— Perdoe-me, Alicinha, sei que você é loretana, mas juro que sofri tanto nesta cidade que a odeio com toda minha alma e que não voltarei nunca, você terá que ir a Chiclayo para me ver. Olhe, meus olhos ficam outra vez cheios de lágrimas e na frente de todo mundo. Alicia, ai, que vergonha.
— Não chore, Pochita linda, não chore, coragem. E eu, burra, que nem trouxe lenço. Me dê, passe a Gladycita, eu a seguro para você.
-— Permita-me oferecer-lhe meu lenço, distinta senhora. Tome-o, por favor, suplico-lhe. Não se envergonhe de chorar, o choro é para uma dama o que o orvalho é para as flores, Sra. Pantoja.
— Mas o que quer o senhor ainda aqui; escute, Alicia, mas que tipo tão teimoso. Já não lhe disse que não vou dar nenhuma reportagem sobre meu marido? E que não o será por muito tempo, além disso, porque eu lhe juro, Alicia, chegando a Lima vou a um advogado e proponho o divórcio. Vamos ver se não me dão a custódia da Gladycita, com as porcarias que esse desgraçado está fazendo aqui.
— Justamente, sobre isso mesmo é que nos atrevemos a esperar uma declaração sua, embora seja muito breve, Sra. Pantoja. Porque a senhora não ignora, pelo visto, o insólito negócio em que...
— Vá embora, vá embora de uma vez se não quer que chame a polícia. Já está me enchendo, eu o previno, não estou com ânimo para agüentar desaforos neste momento.
— É melhor que não o insulte, Pochita, se a ataca no seu programa, o que não dirá o povo, mais fofocas? Por favor, senhor, compreenda-a, ela está mortificada, está indo embora de Iquitos, não tem coragem para falar pelo rádio de sua via-crúcis. O senhor tem de entender.
— Claro que entendemos, estimável senhorita. Sabedores de que a Sra. Pantoja se dispunha a partir, em razão das atividades pouco recomendáveis a que se dedica o Sr. Pantoja nesta cidade, e que têm merecido a reprovação enérgica da população, nós...
— Ai que vergonha, Alicia, se todo mundo sabe, se todo mundo sabia menos eu, tamanha boba, tamanha idiota, odeio aquele bandido, como pôde me fazer isso? Nunca mais falarei com ele, eu juro, não deixarei que veja Gladycita, para que não a corrompa.
— Acalme-se, Pocha. Olhe, já estão chamando, seu avião sai agora. Que pena que você vai embora, Pochita. Mas tem razão, filha, aquele homem se portou tão mal que não merece viver com você. Gladycita, amoreco, um beijinho em sua tia Alicia, beijinho, beijinho.
— Escrevo chegando, Alicia. Muito obrigada por tudo, não sei o que teria feito sem você, que tem sido meu pano de lágrimas nestas semanas tão horríveis. Já sabe, não vá dizer nada a Panta nem à Sra. Leonor antes de duas ou três horas, senão eles chamam pelo rádio e fazem o avião regressar. Tchau, Alicia, tchauzinho.
— Muito boa viagem, Sra. Pantoja. Parta a senhora com os melhores augúrios dos nossos ouvintes e com a nossa compreensão generosa por seu drama que é, também, de certo modo, o de todos nós e o de nossa querida cidade.
Breves acordes. Anúncios comerciais em disco e fita: 30 segundos. Breves acordes.
Tendo em vista que o relógio Movado dos nossos estúdios assinala que são 18 horas e 30 minutos em ponto, devemos encerrar nosso programa com este impressionante documento radiofônico, que torna patente como, em sua negra odisséia, o senhor da Pantilândia não vacilou em levar dor e aflição à própria família, tal como vem fazendo a esta terra, cujo único delito foi recebê-lo e dar-lhe hospitalidade. Muito boa tarde, queridos ouvintes. Os senhores escutaram...
Compassos da valsa La Contamanina; sobem, baixam e permanecem como fundo musical.
A VOZ DO SINCHI!
Compassos da valsa La Contamanina; sobem, baixam e permanecem como fundo musical.
Meia hora de comentários, críticas, relatos, informações, sempre a serviço da verdade e da justiça. A voz que recolhe e espalha pelas ondas as palpitações de toda a Amazônia. Um programa vivo e singelamente humano, escrito e apresentado pelo conhecido jornalista Germán Láudano Rosales, O SINCHI,
diariamente, de segunda-feira a sábado, entre 6 e 6h30 da tarde, pela Rádio Amazonas, a primeira emissora do Oriente Peruano. Compassos da valsa La Contamanina; sobem, baixam e são cortados totalmente.
Noite de 13 para 14 de fevereiro de 1958
Soa o gongo, o eco fica vibrando no ar e Pantaleón Pantoja pensa: “Foi embora, abandonou você, levou sua filha”. Está no posto de comando, as mãos apoiadas no parapeito, rígido e sombrio. Tenta esquecer Pochita e Gladys, esforça-se para não chorar. Agora, ainda mais, está colhido pelo terror. Volta a soar o gongo e ele pensa: “Outra vez, outra vez o maldito desfile dos dobles1”. Transpira, treme, seu coração tem saudade dos tempos em que podia correr para afundar o rosto na saia da Sra. Leonor. Pensa: “Foi embora, você não verá crescer sua filha, jamais voltarão”. Mas, fazendo das tripas coração, domina-se e se concentra no espetáculo.
1 O autor usa, no original, a palavra “dobles”, buscando o duplo sentido — o dobre dos sinos e o significado de duplo; em português, doble é, também, dobre e velhaco, ou fingido, e parece que isto foi o que o autor pretendeu, ao descrever a visão delirante de Pantoja. (N. do T.)
À primeira vista, não há motivo para alarmar-se. O pátio do centro logístico ampliou-se o suficiente para fazer as vezes de um coliseu ou de um estádio, mas, fora de suas proporções ampliadas, é idêntico a si mesmo: ali estão os altos tabiques cobertos por lemas, provérbios e instruções, os armários das visitadoras, o biombo branco da Assistência Sanitária e os dois portões de madeira com a tranca caída. Não há ninguém. Mas essa paisagem familiar e desabitada não tranqüiliza Pantaleón Pantoja. Seu receio cresce e um zumbido teimoso perturba seus ouvidos. Está tenso, assustado, esperando e repetindo: “Pobre Pochita, pobre Gladycita, pobre Pantita”. Elástico e demorado, o som do gongo faz com que pule no assento: vai começar. Apela a toda a sua vontade, a seu senso do ridículo, pede secretamente ajuda a Santa Rosa de Lima e ao menino-mártir de Moronacocha para não se levantar, descer a escadinha a pulos e sair correndo como alma penada do centro logístico.
Acaba de se abrir (suavemente) o portão do embarcadouro e Pantaleón Pantoja divisa silhuetas apagadas, em posição de sentido, aguardando a ordem de ingressar no centro logístico. “Os dobles, os dobles”, pensa, com os cabelos em pé, sentindo que seu corpo começa a gelar de baixo para cima: os pés, os tornozelos, os joelhos. Mas o desfile já começou e nada justifica seu pânico. Trata-se, apenas, de cinco soldados que, em fila indiana, vão avançando do portão em direção ao posto de comando, cada um puxando uma corrente ao extremo da qual trota, pula, agita-se, o quê? Presa de uma ansiedade que empapa suas mãos e faz entrechocar seus dentes, Pantaleón Pantoja avança a cabeça, aguça o olhar, esquadrinha com avidez: são cachorrinhos. Um suspiro de alívio incha e desincha seu peito: devolve-lhe a alma ao corpo. Não há nada que temer, sua apreensão era estúpida, não são os dobles, mas diversos expoentes do melhor amigo do homem. Os soldados aproximaram-se mas ainda continuam longe do posto de comando. Agora Pantaleón Pantoja distingue-os melhor: entre soldado e soldado há vários metros de luz e os cinco animaizinhos estão arranjados primorosamente, como se fosse para um concurso. Percebe-se que foram lavados, pêlos cortados, escovados, penteados, perfumados. Todos levam ao pescoço, além da coleira, fitas rubro-verdes com atraentes adornos e nós enfeitados. Os soldados marcham muito sérios, olhando para a frente, sem se apressar nem atrasar, cada qual a pouca distância do animal sob o seu cuidado. Os cachorrinhos deixam-se levar documente. São de cor, forma e tamanho diferentes: salsicha, dinamarquês, chihuahua e policial. Pantaleón Pantoja pensa: “Perdi minha esposa e minha filha, mas pelo menos o que vai acontecer aqui não será tão atroz como de outras vezes”. Vê aproximarem-se os soldados e sente-se sujo, infame, magoado, e tem a impressão de que, por todo o seu corpo, se está propagando uma erupção de sarna.
Quando volta a ressoar o gongo — a vibração, desta vez, é amarga e como que retilínea — Pantaleón Pantoja sofre um sobressalto e se mexe intranqüilo no assento. Pensa: “cria corvos e eles te comerão os olhos”. Faz um esforço e olha: seus olhos saltam das órbitas, seu coração bate tão forte que poderia estourar como bolsa de plástico. Grudou-se ao parapeito e os dedos doem de tanto pressionar a madeira. Os soldados estão já muito perto e ele poderia reconhecer suas feições se os observasse. Mas só tem olhos para o que tropeça, rola, sacode-se no extremo das correntes: ali onde estavam os cachorros há agora umas formas grandes, animadas e horríveis, uns seres que o repelem e fascinam. Gostaria de examiná-los um por um, detalhadamente, gravar as suas abruptas imagens antes que desapareçam, mas não pode individualizá-los: seu olhar pula de um a outro ou os abarca ao mesmo tempo. São enormes, entre humanos e simiescos, com rabos que chicoteiam no ar, muitos olhos, mamas que beijam o chão, cornos cinzentos, escamas palpitantes, incômodos pezunhos que chiam como broca na laje, trombas peludas, babas e línguas aureoladas de moscas. Têm lábios leporinos, crostas sanguinolentas, narizes dos quais pendem fiapos de ranho e pés encouraçados de calos, encrespados de unheiros e joanetes, e pelames como puas, onde piolhos gigantes pulam como macaquinhos no bosque. Pantaleón Pantoja decide jogar a cartada final e fugir. O terror arranca-lhe os dentes, que ricocheteiam sobre os joelhos como grãos de milho: suas mãos estão atadas ao parapeito e ele não poderá se mexer até que eles passem diante do posto de comando. Está pedindo que alguém dispare, faça voar o tampo de sua cabeça e acabe com esse suplício de uma vez.
Mas voltou a soar o gongo — seu eco interminável vibra em cada um de seus nervos — e agora o primeiro soldado está passando em câmara lenta diante do posto de comando. Atado, febril, amordaçado, Pantaleón Pantoja vê: não é cachorro nem monstro. A figura acorrentada que lhe sorri com malícia é a Sra. Leonor, em cujos traços enxertaram-se, sem substituí-los, os de Leonor Curinchila, e a cujo magro esqueleto foram acrescentados — “uma vez mais”, pensa, engolindo fel, Pantaleón Pantoja — as tetas, as nádegas, as gorduras e o andar protuberante de Chuchupe. “Não importa que Pocha tenha ido embora, filhinho, eu continuarei cuidando de você”, disse a Sra. Leonor. Faz a reverência e afasta-se. Não tem tempo de refletir pois aí está o segundo soldado: a cara é a do Sinchi, e também a corpulência, a desenvoltura animal e o microfone que leva na mão. Mas a farda e as estrelas de general são do Tigre Collazos e, da mesma forma, a maneira de inflar o peito, de cocar o bigode e o aprumo franco do sorriso e o transparente dom de comando. Pára um instante, o tempo necessário para levar o microfone à boca e rugir: “Ânimo, Capitão Pantoja: Pochita será a estrela do Serviço de Visitadoras de Chiclayo. Quanto à Gladycita, nós a nomearemos mascote dos nossos comboios”. O soldado dá um puxão na corrente e o Sinchi Collazos afasta-se saltando em um pé. Agora está frente a ele, calvo, diminuto em sua farda verde, mostrando-lhe a espada desembainhada, que rutila menos que seus olhos sarcásticos, o General Chupito Scavino. Ladra: “Viúvo, cornudo, colhudo! Pantaleão, maricão, cagão!” Afasta-se a passo apressado, mexendo garbosamente a cabeça em sua coleira. Mas aí está agora, admoestador e severo, em sua batina escura, abençoando-o friamente, um Comandante Beltrán de olhos rasgados e voz adocicada: “Em nome do máltil de Molonacocha, condeno-o a ficar sem mulel e sem filinha pala semple, Senhol Pantaleón”. Tropeçando na orla de sua batina e sacudido pelo riso, o Padre Porfirio afasta-se atrás dos outros. E aí está a que encerra o desfile. Pantaleón Pantoja luta, morde, trata de livrar as mãos para pedir perdão, livrar-se da mordaça para suplicar, mas seus esforços são inúteis e a figura de graciosa silhueta, negra cabeleira, tez aleonada e lábios carmesins está ali embaixo, aureolada por uma inesgotável tristeza. Pensa: “Eu a odeio, Brasileira”. A figurinha sorri aflita e sua voz se ‘enche de melancolia: “Já não reconhece sua Pochita, Panta?” Dá meia-volta e afasta-se, arrastada pelo soldado, que puxa a corrente com força. Sente-se embriagado de solidão, furor e espanto enquanto o gongo martela estrepitosamente em seus ouvidos.
— Acorde, filhinho, são seis horas — bate na porta, entra no quarto, beija Panta na testa a Sra. Leonor. — Ah, você já se levantou.
— Tomei banho e fiz a barba há uma hora, mamãe — boceja, faz um gesto de aborrecimento, abotoa a camisa, inclina-se Panta. — Dormi muito mal, os malditos pesadelos de novo. A senhora preparou tudo?
— Pus a roupa para três dias — concorda, sai, volta arrastando uma maleta, mostra as peças arrumadas a Sra. Leonor. — Será bastante?
— De sobra, não demorarei mais que dois dias — põe um gorrinho de jóquei, olha-se no espelho Panta. — Vou a Huallaga, ver Mendoza, um velho colega. Fizemos juntos a Escola de Chorrillos. Faz séculos que não o vejo.
— Bem, até agora não quis dar importância a isso, porque parecia pouca coisa — lê telegramas, consulta oficiais, estuda expedientes, assiste a reuniões, fala pelo rádio o General Scavino. — A Guarda Civil nos pede ajuda há meses, eles não dão conta de tanto fanático. Sim, claro, da Arca. Você recebeu os informes? A coisa está ficando feia. Duas novas tentativas de crucificação esta semana. Em Puerto América e em Dos de Mayo. Não, Tigre, não os pegaram.
— Mas tome o leite, Pantita — enche a xícara, põe açúcar, corre à cozinha, traz pães a Sra. Leonor. — E as torradinhas que fiz? Ponho manteiguinha e um pouquinho de marmelada. Coma um pouco, filhinho, estou pedindo.
— Um pouco de café e nada mais — permanece de pé, bebe um gole, impacienta-se Panta. — Não tenho fome, mamãe.
— Você vai ficar doente — sorri aflita, volta a insistir com doçura, pega-lhe o braço, obriga-o a sentar-se a Sra. Leonor. — Você não comeu nada, está que é puro osso e pele. Você assim arrebenta meus nervos, Panta. Não come, não dorme, trabalha todo o santo dia. Assim não pode ser, você vai ficar fraco do pulmão.
— Cale-se, mamãe, não seja boba — resigna-se, bebe a xícara de um gole, mexe a cabeça, come uma torrada, limpa a boca Panta. — Depois dos trinta, o segredo da saúde é a dieta. Estou muito bem, não se preocupe. Olhe, aqui fica um pouco de dinheiro, pode ser que precise.
— Você já está assobiando outra vez La Raspa — tapa os ouvidos a Sra. Leonor. — Não sabe como cheguei a odiar essa bendita musiquinha. E também Pocha, que ficava maluca. Não pode assobiar outra coisa?
— Estava assobiando? Nem me dei conta — enrubesce, tosse, vai a seu quarto, olha penalizado uma foto, levanta a maleta, volta à sala de jantar Panta. — A propósito de Pocha, se chegar carta dela.. .
— Não me agrada meter o Exército nesta embrulhada — reflete, preocupa-se, vacila, trata de caçar uma mosca, fracassa o Tigre Collazos. — Combater bruxos e fanáticos é trabalho para padres ou, em última análise, para polícias. Não para soldados. A coisa está tão séria assim?
— Eu a guardo com o maior cuidado até seu regresso, claro que sei, não me faça recomendações bobas — zanga-se, põe-se de joelhos, lustra os sapatos, escova as calças, a camisa, toca no rosto de Panta a Sra. Leonor. — Venha, quero lhe dar a bênção. Vá com Deus, filhinho, e procure, faça o possível...
— Já sei, já sei, não olharei para elas, não falarei com elas — fecha os olhos, aperta os punhos, torce o rosto Panta. — Darei as ordens por escrito e de costas. A senhora, também, não me faça recomendações bobas, mamãe.
— Que foi que fiz a Deus para que me dê este castigo — soluça, levanta as mãos para cima, exaspera-se, sapateia a Sra. Leonor. — Meu filho vivendo entre perdidas as vinte e quatro horas do dia e por ordem do Exército. Somos o prato de toda Iquitos, me apontam com o dedo nas ruas.
— Calma, mamãezinha, não chore, eu lhe suplico, não tenho tempo agora — passa-lhe o braço pelos ombros, acaricia-a, beija-a na face Panta. — Perdoe-me se gritei com a senhora. Ando um pouco nervoso, não dê importância a isso.
— Se seu pai e seu avô estivessem vivos, morreriam de susto — limpa os olhos com a barra da saia, aponta um retrato amarelento a Sra. Leonor. — Devem estar pulando no túmulo depois de saber que você foi encarregado disso. No tempo deles, não rebaixavam os oficiais a essas coisas.
— Faz oito meses que a senhora me repete a mesma coisa quatro vezes por dia — grita, arrepende-se, baixa a voz, sorri sem vontade, explica Panta. — Sou militar, tenho de cumprir ordens e, enquanto não me dão outro, minha obrigação é fazer bem este trabalho. Já lhe disse que, se prefere, posso mandá-la a Lima, mamãezinha.
— Muito surpreendente, sim, meu general — remexe em uma pasta, tira um punhado de papelões e fotos, faz um pacote, lacra-o, ordena despachem isto a Lima o Coronel Peter Casahuanqui. — Na última revista ao vestuário de cada um, descobrimos que a metade dos soldados tinha orações do Irmão Francisco ou santinhos do menino-mártir. Aí vão umas amostras.
— Não sou como certas pessoas que abandonam o lar à primeira contrariedade, não me confunda — empertiga-se, agita o indicador, adota uma postura beligerante a Sra. Leonor. — Não sou das que desaparecem da noite para a manhã sem dizer adeus, das que roubam a filha a seu pai.
— Não me venha agora com Pocha — caminha pelo corredor, tropeça em um porta-vasos, pragueja, coca o tornozelo Panta. — Está voltando a outro dos seus temas, mamãe.
— Se ela não tivesse roubado a Gladycita você não estaria assim — abre a porta da rua a Sra. Leonor. — Por acaso não vejo como se consome de dor pela menininha, Panta? Ande, vá logo.
— Não agüento mais, depressa, depressa — sobe a escadinha do Eva, desce ao camarote, joga-se no beliche, sussurra Pantita. — Aqui, onde eu gosto, sim? No pescoço, na orelhinha. Só beliscão, não, mordidinhas também, devagarzinho. Ande, sim?
— Eu faço com gosto, Pantita — suspira, observa-o aborrecida, aponta para o embarcadouro, corre a cortina da escotilha a Brasileira. — Mas espere, pelo menos, que o Eva parta. O suboficial Rodríguez e os marinheiros estão saindo e entrando a todo instante. Não é por mim, mas por você, cara.
— Não espero nem um minuto — arranca a camisa, baixa as calças, tira os sapatos e as meias, aflige-se Pantaleón Pantoja. — Feche o camarote, venha. Beliscõezinhos e mordidinhas.
— Ah, Jesus, você é incansável, Pantita — tranca a lingüeta, despe-se, sobe no beliche, requebra-se a Brasileira. — Você sozinho me dá mais trabalho que um regimento. Que prejuízo eu tive. Na primeira vez que vi você pensei que nunca tinha enganado a mulher.
— E era verdade, mas agora, cale a boca — arqueja, inclina-se, sobe, desce, entra, sai, volta, sufoca-se Pantita. — Já lhe disse que me distraio, porra. Na orelhinha, na orelhinha.
— Você sabe que pode ficar tuberculoso de tanto trepar? — ri, mexe-se, aborrece-se, olha as unhas, levanta-se, abaixa-se, esmera-se a Brasileira. — A verdade é que, nos últimos dias, você está mais fraco que um bagre. Mas, mesmo assim, cada vez mais tesudo. Sim, já sei, não falo mais, está bem, na orelhinha.
— Pfuuu, afinal, pfuuu, que bom — explode, empalidece, respira, goza Pantita. — Meu coração sai pela boca, tenho vertigens.
— Com toda a razão do mundo, Tigre, a mim também não me agrada misturar a tropa nas operações policiais — toma aviões, sobe o rio em motoras1, inspeciona povoados e acampamentos, exige detalhes, envia mensagens o General Scavino.
1 Pequena embarcação com motor. (N. do T.)
— Por isso agüentei a coisa até agora. Mas o que aconteceu em Dos de Mayo dá para inquietar. Você leu a parte do Coronel Dávila?
— Quantas vezes por semana, Pantita? — levanta-se, enche recipientes, lava-se e enxágua a boca, veste-se a Brasileira.
— Mais de uma visitadora, não é? E quando há exame de candidatas, perde a conta. Com o costume que você pegou na, como se chama? revista profissional. Como você é sacana.
— Isso não é diversão, é trabalho — espreguiça-se, senta-se no beliche, toma coragem, arrasta os pés até a latrina, urina Panta. — Não ria, é verdade. Além disso, você é a culpada, me deu a idéia quando tomei seu exame de presença. Antes nunca tinha pensado. Você acha que esse troço é fácil?
— Depende da pessoa — atira no chão o lençol, examina o colchão, esfrega-o com uma esponja, sacode-o a Brasileira.
— Com muitas, o passarinho nem vai levantar.
— Claro que não, uma qualquer eu elimino de saída — ensaboa-se, seca-se com papel higiênico, puxa a água da latrina Pantaleón Pantoja. — É a maneira mais justa de selecionar as melhores. Com o passarinho não pode haver engano.
— Já estamos partindo, o Eva começou a jogar — abre a escotilha, puxa o colchão para que o sol bata no molhado a Brasileira. — Ajeite-se, me deixe abrir a janelinha, nos afogamos, quando vai comprar um ventilador? E agora não venha com arrependimentos, Pantita.
— Crucificaram a anciã Ignacia Curdimbre Peláez na pracinha de Dos de Mayo, à meia-noite, e estando presentes os duzentos e catorze habitantes da localidade — dita, revê, assina e despacha o seu informe o Coronel Máximo Dávila. — Deram uma tremenda surra em dois guardas civis que tentaram fazer os “irmãos” desistir. Segundo as testemunhas, a agonia da velhinha durou até o amanhecer. O pior é o que veio depois, meu general. Aquela gente lambuzava a cara e o corpo com o sangue da cruz e até o bebia. Agora, começaram a adorar a vítima. Já estão circulando santinhos de Santa Ignacia.
— É que eu não era assim — senta-se no beliche, pega a cabeça, recorda, lamenta-se Pantaleón Pantoja. — Eu não era assim, maldita seja a minha sorte, eu não era assim.
— Você nunca tinha metido cornos na sua fiel esposa e só trepava de quinze em quinze dias — sacode, lava, espreme, estende o lençol a Brasileira. — Eu sei isso de memória, Panta. Você chegou aqui e se animou. Mas foi demais, cara, você passou para o outro extremo.
— No princípio, achava que a culpa era do clima — veste a cueca, a camiseta, as meias, calça-se Pantaleón Pantoja. — Pensava que o calor e a umidade inflamavam o macho. Mas descobri uma coisa estranhíssima. O que acontece com o meu passarinho é culpa deste trabalho.
— Quer dizer, por estar tão pertinho da tentação? — toca-se nos quadris, olha seus peitos, envaidece-se a Brasileira. — Que aprendeu a fazer piu-piu comigo? Que elogio, Panta.
— Você não entende, nem eu entendo — observa-se no espelho, arranja as sobrancelhas, penteia-se Panta. — É uma coisa muito misteriosa, uma coisa que nunca aconteceu a ninguém. Um sentido de obrigação doentio, igualzinho a uma doença. Porque não é moral, mas biológico, corporal.
— Quer dizer, você já sabe, Tigre, os fanáticos é que as trazem — sobe ao jipe, atravessa lodaçais, acompanha enterros, consola vítimas, instrui oficiais, fala por telefone o General Scavino. — A coisa não é de grupinhos. São milhares. Na outra noite passei pela cruz do menino-mártir, em Moronacocha, e fiquei espantado. Havia um mar de gente. Até soldados fardados.
— Você quer dizer que tem tesão todo dia por causa do senso da obrigação? — fica petrificada e boquiaberta, solta uma gargalhada a Brasileira. — Olhe, Panta, conheci muitos homens com mais experiência que você nessas coisas. Mas garanto que nenhum cara do mundo levanta o passarinho por pura obrigação.
— Não sou como todo mundo, esse é o meu azar, comigo não acontece o que acontece aos outros — deixa cair o pente, abstrai-se, pensa em voz alta Pantaleón Pantoja. — Quando menino, era mais enfastiado que agora. Mas logo que me deram o primeiro trabalho, os ranchos de um regimento, despertou em mim um apetite feroz. Passava o dia comendo, lendo receitas, aprendi a cozinhar. Trocaram meu trabalho e pssst, adeus à comida, comecei a me interessar por corte e costura, a roupa, a moda, o comandante do quartel pensava que eu fosse maricas. Mas era porque tinham me encarregado do vestuário da guarnição, agora é que estou entendendo.
— Tomara que nunca ponham você para dirigir um manicômio, Panta, a primeira coisa que faria seria louquejar — aponta a escotilha. — Olhe só essas bandidas, nos espiando.
— Fora daí, Sandra, Viruca! — corre à porta, abre a lingüeta, ruge, gesticula Pantaleón Pantoja. — Cinqüenta soles de multa para cada uma, Chupito!
— E para que servem os padres, para que pagamos capelães? — passeia aos trancos por seu gabinete, examina balanços, soma, diminui, indigna-se o Tigre Collazos. — Para que fiquem cocando o saco? Como é possível que as guarnições da Amazônia estejam ficando cheias de “irmãos”, Scavino?
— Não saia assim, Pantita — pega-o pelos ombros, retorna-o ao camarote, fecha a porta a Brasileira. — Você esquece que está quase pelado?
— Esquecer-me de você? — acotovela marinheiros e soldados, sobe, saltando a bordo, abre os braços o Capitão Alberto Mendoza. — Como é que você pode pensar nisto, irmão? Venha aqui, deixe-me dar-lhe um abraço apertado. Há quantos anos, Panta?
— Que prazer, Alberto — bate palmas, desembarca, aperta mãos de oficiais, responde à continência dos suboficiais e soldados o Capitão Pantoja. — Você está o mesmo, os anos não o envelhecem.
— Vamos tomar um trago no cassino dos oficiais — pega-o pelo braço, guia-o através do acampamento, empurra uma porta com tela metálica, escolhe uma mesa sob o ventilador o Capitão Mendoza. — Não se preocupe com o trepa-trepa.
Tudo está preparado e aqui a coisa funciona sempre como um trem. Alferes, você se encarrega de tudo e quando a festa terminar, avise. Assim, enquanto os soldados “descarregam”, a gente toma uma cervejota. Que grande alegria vê-lo de novo, Panta.
— Escute, Alberto, agora me lembro — observa pela janela as visitadoras entrando nas tendas de campanha, as filas de soldados, os controladores que tomam posição o Capitão Pantoja. — Não sei se sabe que aquela visitadora, a que chamam, hum...
— A Brasileira, já sei, para ela só os dez do regulamento, você pensa que não leio suas instruções? — dá-lhe um soco de mentira, ordena, abre garrafas, enche copos, brinda o Capitão Mendoza. — Cerveja para você também? Duas, bem geladas. Mas é um absurdo, Panta. Se essa fêmea lhe agrada e você se chateia que a comam, por que não a exclui totalmente do serviço? Para que, então, é chefe, se não pode?
— Isso não — tosse, enrubesce, gagueja, bebe o Capitão Pantoja. — Não quero faltar com o meu dever. Além disso, garanto a você que essa visitadora e eu, de verdade...
— Todos os oficiais sabem e não acham errado que você tenha uma preferida — chupa a espuma do bigode, acende um cigarro, bebe, pede mais cerveja o Capitão Mendoza. — Mas ninguém compreende o seu sistema. A gente entende que não ache graça vendo a tropa atirar-se sobre sua fêmea. Por que então esse formalismo ridículo? Dez fodas é o mesmo que cem, irmão.
— Dez é o que determina o regulamento — vê sair das tendas os primeiros soldados, entrar os segundos e os terceiros, engole saliva o Capitão Pantoja. — Como é que vou violá-lo? Eu mesmo o fiz.
— Você não pode com seu gênio, cérebro eletrônico — atira a cabeça para trás, entrecerra os olhos, sorri nostálgico o Capitão Mendoza. — Ainda me lembro que, em Chorrillos, o único cadete que lustrava os sapatos para ir embarrá-los nas manobras era você.
— A verdade é que, desde que o Padre Beltrán pediu sua baixa, o Corpo de Capelães Castrenses deixa muito a desejar — recebe queixas, atende recomendações, ouve missas, entrega troféus, monta cavalos, joga bocha o General Scavino. — Mas, afinal, Tigre, esse é um fenômeno geral na Amazônia, os quartéis não podiam se livrar do contágio. De qualquer maneira, não se preocupe. Estamos tratando do assunto com mão firme. A cada santinho do menino-mártir ou de Santa Ignacia, trinta dias de rigor; por uma fotografia do Irmão Francisco, quarenta e cinco.
— Estou em Lagunas por causa do incidente da semana passada, Alberto — vê sair os quartos, entrar os quintos, os sextos o Capitão Pantoja. — Li sua parte, claro. Mas me pareceu bastante grave, a ponto de vir saber em que condições ocorreu.
— Não valia a pena tanto trabalho — afrouxa o cinto da calça, pede um sanduíche de queijo, come, bebe o Capitão Mendoza. — O que acontece é muito simples. Nestes povoadinhos, cada vez que se aproxima um comboio de visitadoras é uma loucura. Só a notícia já faz com que todos os galinhos da vizinhança fiquem com o esporão duro. E, às vezes, cometem loucuras.
— Invadir um acampamento militar é muita loucura — vê Chupito recolhendo gravuras e revistas dos soldados o Capitão Pantoja. — Não havia guarda, por acaso?
— Reforçada, como agora, porque sempre que chega o comboio é a mesma coisa — puxa-o para fora, mostra-lhe as cancelas, as sentinelas com baionetas, os grupos de civis o Capitão Mendoza. — Venha, vamos, quero que veja. Está entendendo? Todos os porra-loucas do povoado amontoados à volta do acampamento. Olhe lá, está vendo? Trepados nas árvores, aliviando-se pelos olhos. Que mais quer, irmão? O tesão é humano. Se até a você acontece, que parecia ser uma exceção.
— Aqueles loucos da Arca não tiveram nada que ver com este assunto? — vê sair os sétimos, entrar os oitavos, os nonos, os décimos e murmura afinal o Capitão Pantoja. — Não me repita a parte, Alberto, conte-me o que realmente aconteceu.
— Oito indivíduos de Lagunas invadiram o acampamento e tentaram raptar umas visitadoras — metralha o aparelho de rádio o General Scavino. — Não, não estou falando dos “irmãos”, mas do Serviço de Visitadoras, a outra calamidade da selva. Você percebe aonde estamos chegando, Tigre?
— Não acontecerá de novo, irmão — paga a conta, põe o quepe, óculos escuros, deixa Panta sair primeiro o Capitão Mendoza. — Agora, desde a véspera da chegada do comboio, duplico a guarda e ponho sentinelas em toda a área próxima. A companhia entra em estado de alerta de combate para que os soldados fodam em paz, puta, que gozado.
— Acalme-se, fale mais baixo — compara informes, ordena pesquisas, relê cartas o Tigre Collazos. — Não fique histérico, Scavino. Sei de tudo, tenho comigo a parte de Mendoza. A tropa resgatou as visitadoras e pronto. Bem, não é caso para se suicidar. Um incidente como qualquer outro. Coisas piores fazem os “irmãos”, não é?
— É que este não é o primeiro fato desta natureza a acontecer, Alberto — vê sair de uma tenda a Brasileira, e a vê atravessar o descampado entre assobios, subir ao Eva o Capitão Pantoja. — Há constantes interferências do elemento civil. Em todos os povoados brota uma efervescência de merda quando surgem os comboios.
— Houve uma briga feroz entre soldados e civis por essas duas mulheres — recebe chamadas, vai à cadeia, interroga detidos, desvela-se, toma calmantes, escreve, chama o General Scavino. — Você ouviu bem? Entre sol-da-dos-e-ci-vis. Os raptores conseguiram tirá-las do acampamento e a briga foi bem no povoado. Há quatro homens feridos. A qualquer momento pode acontecer algo muito sério, Tigre, por causa deste maldito Serviço.
— Não é para menos, irmão — aponta para os curiosos, as visitadoras que abandonam as tendas e voltam ao embarca-douro protegidas por soldados o Capitão Mendoza. — Para estes selváticos, que nem sequer conhecem Iquitos, essas mulheres parecem anjos caídos do céu. Os soldados também têm culpa. Vão e contam coisas no povoado, despertam o desejo dos outros. A gente proibiu que eles falassem disso, mas não entendem.
— Fico chateado que isto aconteça agora, quando tenho quase pronto um projeto para ampliar o Serviço e dar-lhe mais categoria — mete as mãos nos bolsos, caminha cabisbaixo, chutando pedrinhas o Capitão Pantoja. — Algo muito ambicioso, que me custou dias de reflexão e de números. E o meu plano, quem sabe, solucionaria o problema dos civis porra-loucas, irmão.
— Mas triplicaria o outro, Pantoja, o dos padres e das beatas de Iquitos, que andam esquentando a cabeça do Scavino — chama o ordenança, manda-o comprar cigarros, dá-lhe uma gorjeta, pede fogo o Tigre Collazos. — Não, é muito. Cinqüenta visitadoras são suficientes. Não podemos recrutar mais, pelo menos no momento.
— Com uma equipe operacional de cem visitadoras e três barcos navegando de maneira permanente nos rios amazônicos — contempla os preparativos para a partida do Eva o Capitão Pantoja — ninguém poderia prever a chegada dos comboios aos centros usuários.
— Está ficando louco — acende um isqueiro e o aproxima do rosto do Tigre Collazos o General Victoria. — O Exército teria que deixar de comprar armas para contratar mais rameiras. Não há orçamento que agüente as fantasias desse insaciável.
— Estude o plano que lhe mandei, meu general — escreve a máquina com dois dedos, faz cálculos, desenha quadros sinóticos, preocupa-se, apaga, acrescenta, insiste o Capitão Pantoja.
— Criaríamos um “sistema de rotação não-comum irregular”. A chegada do comboio seria sempre imprevista, nunca haveria ocasião para incidentes. Só os chefes de unidades conheceriam as datas de chegada.
— E pensar que custou tanto trabalho convencê-lo a aceitar a missão de criar o Serviço de Visitadoras — procura pelo gabinete um cinzeiro e o coloca perto do Tigre Collazos o Coronel López López. — Agora está em seu elemento. Movimenta-se entre as putas como peixe na água.
— É verdade, a única forma de controlar eficazmente esse sistema seria por via aérea — cifra memorandos, prepara garrafas térmicas de café, divide, coca a cabeça, despacha anexos o Capitão Pantoja. — Precisaríamos de outro avião. E, no mínimo, mais um oficial de Intendência. Bastaria um segundo-tenente, meu general.
— Está com um parafuso a menos, não há dúvida — lê El Oriente, escuta A voz do Sinchi, recebe cartas anônimas, chega ao cinema tarde e sai antes que termine o filme o General Scavino. — Se dessa vez você o atender e aprovar esse projeto, advirto-o de que peço a minha baixa, como o Beltrán. Os fanáticos da Arca e as visitadoras do Pantoja vão acabar comigo. Sobrevivo à custa de calmantes, Tigre.
— Lamento dar-lhe uma má notícia, meu general — parte em expedição, invade um povoado deserto, pragueja, ajuda a descer da cruz, ordena a volta a passo acelerado, rapazes, o Coronel Augusto Valdés. — Anteontem à noite, no casario de Frailecillos, a duas horas de barco de minha guarnição, crucificaram o suboficial Avelino Miranda. Estava de licença, à paisana, e é possível que ignorassem sua condição de soldado. Não, ainda não morreu, mas os médicos dizem que é questão de horas. Todo o casario, trinta ou quarenta pessoas. Meteram-se no mato, sim.
— Acalme-se, Scavino, a coisa não deve ser bem assim — escuta e faz brincadeiras sobre as visitadoras no Cassino Militar, tranqüiliza a mãe sobre os crucificados da selva o General Victoria. — É verdade que esses provincianos andam tão alvoroçados com as meninas do Pantoja?
— Alvoroçados, meu general? — toma o próprio pulso, olha a língua, desenha cruzes sobre o mata-borrão o General Scavino. — Esta manhã me apareceu aqui o bispo, com seu estado-maior de padres e freiras.
— Tenho o desprazer de anunciar-lhe que se o chamado Serviço de Visitadoras não desaparecer, excomungarei todos os que trabalham nele ou o utilizam — entra no gabinete, faz uma vênia, não sorri, não se senta, limpa o anel e o oferece ao beijo o bispo. — Já violaram os limites mínimos da decência e do decoro, General Scavino. A própria mãe do Capitão Pantoja veio até mim, chorando sua tragédia.
— Participo inteiramente desse critério e Sua Eminência bem o sabe — levanta-se, faz uma genuflexão, beija o anel, fala suave, oferece refrigerantes, despede-se dos visitantes na rua o General Scavino. — Se dependesse de mim, esse serviço não teria nascido. Rogo-lhe um pouco de paciência. Quanto a Pantoja, não o mencione diante de mim, monsenhor. Qual tragédia nem meia tragédia. O filhinho dessa senhora que foi se lamentar tem grande parte de culpa no que acontece. Se pelo menos tivesse organizado a coisa de um modo medíocre, defeituoso. Mas esse idiota transformou o Serviço de Visitadoras no.organismo mais eficiente das Forças Armadas.
— Não tem jeito mesmo, Panta — sobe a bordo, examina a ponte de comando, observa a bússola, manipula o timão o Capitão Mendoza. — Você é o Einstein da foda.
— Sim, naturalmente, mandei vários grupos para perseguir os fanáticos — vai à enfermaria, encoraja a vítima, crava bandeirinhas em um mapa, dita instruções, deseja boa sorte aos oficiais que partem o Coronel Augusto Valdés. — Levam ordem para me trazer o casario inteiro para prestar contas. Não foi necessário, meu general. Meus homens estão indignados, o suboficial Avelino Miranda sempre foi muito querido pela tropa.
— Cedo ou tarde o Tigre acabará por aceitar meu plano — mostra os compartimentos do Eva ao Capitão Mendoza, a despensa, as máquinas, cospe, pisa em cima o Capitão Pantoja.
— O crescimento do Serviço é inevitável. Com três barquinhos, dois aviões, uma equipe operacional de cem visitadoras e dois oficiais-adjuntos, farei maravilhas, Alberto.
— Em Chorrillos, pensávamos que a sua vocação não era para ser militar, mas computador — desce a rampa de desembarque, volta com Panta pelo braço ao acampamento, pergunta já preparou a parte estatística, alferes? o Capitão Mendoza. — Agora estou vendo que estávamos enganados. Seu sonho é ser o Grande Alcoviteiro do Peru.
— Você se engana, desde que nasci só quis ser soldado, mas soldado-administrador, que é tão importante quanto artilheiro ou infante. Tenho o Exército aqui — examina o gabinete rústico, o lampião de querosene, os mosquiteiros, o capim que nasce dos buracos do soalho, bate no peito o Capitão Pantoja.
— Você se ri, igual ao Bacacorzo. Garanto-lhe que algum dia vão ter uma surpresa. Funcionaremos em todo o território nacional, com uma frota de barcos, ônibus e milhares de visitadoras.
— Pus à frente dos grupos de perseguição os oficiais mais enérgicos — acompanha e dirige pelo rádio o deslocamento dos expedicionários, muda de posição as bandeirinhas no mapa, fala com os médicos o Coronel Augusto Valdés. — Com o calorão que têm de agüentar, os soldados precisam ser contidos. Não vá acontecer que linchem os fanáticos pelo caminho. Quanto ao suboficial Miranda, parece que se salva, meu general. Mas ficará aleijado, coxo.
— Será preciso criar uma especialidade nova no Exército — recebe a parte estatística, relê, corrige-a, abotoa a braguilha o Capitão Mendoza. — Artilharia, Infantaria, Cavalaria, Engenharia, Intendência e Fodas Militares? ou Bordéis Castrenses?
— Teria de ser um nome mais discreto — ri, divisa através da tela metálica o corneteiro, que chama para o rancho, e os soldados que entram em um galpão de madeira o Capitão Pantoja. — Mas por que não, algum dia, quem sabe?
— Olhe, já acabou a função e aí estão suas mariposas cantando La Raspa — aponta para o Eva, para a sirena que apita, para as visitadoras acotoveladas na coberta, para o suboficial Rodríguez que subiu à ponte de comando o Capitão Mendoza. — Cada vez que ouço seu hino me cago de tanto rir, irmão. Vai voltar a Iquitos agora mesmo?
— Agora mesmo — abraça Mendoza, sobe ao Eva em dois pulos, fecha o camarote, mergulha no beliche o Capitão Pantoja.
— Na orelhinha, no pescoço, nas minhas tetinhas. Arranhões, beliscõezinhos, mordidinhas.
— Ai, Panta, como você é chato — renega, bate o pé no chão, corre a cortina, suspira olhando o teto, joga a roupa no chão com raiva a Brasileira. — Não está vendo que estou cansada, que terminei de trabalhar agora? E depois, já sei o que virá, a grande cena de ciúme.
— Pst, feche esse biquinho, você sabe que, mais em ciminha — encolhe-se, estira-se, agita-se, embala-se, desmaia, acaba Panta. — Aizinho mesmo, ai que gostosinho.
— Mas eu tenho que dizer uma coisa a você, Panta — sobe ao beliche, acocora-se, estende-se, enlaça-se, desprende-se a Brasileira. — Estou cheia de tanto perder dinheiro com essa sua mania de só me dar dez.
— Puff — acalma-se, transpira, engole ar em golfadas Pantita. — Você não pode ficar calada nem por um momento?
— É que por sua culpa estou perdendo dinheiro e eu também tenho que cuidar dos meus interesses — afasta-se, lava-se, veste-se, abre a escotilha, põe a cabeça para fora e respira a Brasileira. — Estas coisas que você gosta acabam com os anos. E depois? Todas viveram vinte, hoje, o dobro que eu.
— Puxa, como se o seu Serviço não significasse já bastante despesa para a Intendência — recebe o telegrama, lê, agita-o o Coronel López López. — Sabe o que nos traz agora o Pantoja, meu general? Que estudemos a possibilidade de dar um adicional por risco às visitadoras quando integram um comboio. Acontece que estão com medo dos fanáticos.
— Mas você recebe percentagem dobrada e isso compensa a diferença, já provei isso, fiz até uma avaliação — sobe à coberta, vê Viruca e Sandra pondo creme no rosto, Chupito dormindo em uma cadeira de balanço Pantaleón Pantoja. — Como fiquei cansado, que taquicardia. Você perdeu o organograma que lhe fiz? Esqueceu-se de que, além disso, eu lhe dou, todo mês, quinze por cento do meu soldo para reforçar seus vencimentos?
— Já sei, Panta — apóia os braços na proa, olha as árvores da margem, as águas barrentas, a esteira de espuma, as nuvens vermelhas a Brasileira. — Mas seu soldo é uma boa porcaria. Não se zangue, é verdade. E, também, por causa dessa mania, todas me odeiam. Não tenho nenhuma amiga entre as garotas. Até Chuchupe me chama de privilegiada mal você vira as costas.
— Você foi e é a grande vergonha da minha vida — passeia pela coberta, pergunta, chegaremos a Iquitos cedo?, ouve o suboficial Rodríguez dizer claro o Sr. Pantoja. — Não se queixe tanto, não é justo. Eu é que deveria me lamentar. Por sua culpa quebrei um princípio que tinha respeitado desde que me conheço por gente.
— Está vendo? Já começou — sorri para a Peludinha, que ouve rádio sob o toldo da popa, para um marinheiro que enrola uns cabos a Brasileira. — Por que você não é mais franco e em vez de falar de princípios reconhece que tem ciúme dos dez soldadinhos de Lagunas?
— Pensava que diminuíam? Nada disso, Tigre, aumentam como fogo no mato — veste-se de civil, procura entre o povo, cheira a cebola e a incenso, vê a cintilação dos candeeiros, sente a pestilência das oferendas o General Scavino. — Você não calcula o que foi o aniversário do menino-mártir. Uma procissão como nunca se viu em Iquitos. Ao longo do Moronacocha, as margens tomadas por uma multidão compacta. A mesma coisa na lagoa. Não cabia uma lancha, um bote.
— Eu nunca tinha faltado com meu dever, maldita seja minha lembrança — dá alô à Peituda e à Rita, que jogam cartas em pleno sol, recosta-se em um salva-vidas, vê pôr-se o sol no horizonte Pantaleón Pantoja. — Tinha sido sempre um cara reto, um cara justo. Antes de você aparecer, nem mesmo este clima de zangões teria feito quebrar meu sistema.
— Se você diz que tem vontade de me insultar por causa dos dez soldadinhos, eu agüento — olha seu relógio, faz uma careta, diz parou outra vez, lhe dá corda a Brasileira. — Mas se continua falando de sistema, vá à merda, que eu desço ao camarote para descansar.
— Este trabalho e você têm sido minha ruína — empalidece, não responde à continência do marinheiro que conversa com Pichuza, esquadrinha o rio, o céu que escurece Pantaleón Pantoja. — Se não fosse por vocês, não teria perdido minha esposa, minha filhinha.
— Como você é chato, Panta — pega-o pelo braço, leva-o ao camarote, serve-lhe uns sanduíches, uma coca-cola, descasca-lhe uma laranja, joga as cascas no rio, acende a luz a Brasileira. — Chegou a hora de chorar pela esposa e a filhinha? Cada vez que vem comigo você tem uns arrependimentos que não há quem agüente. Não se faça de bobo, cara.
— Sinto falta delas, tenho muita saudade — come, bebe, põe o pijama, deita-se, treme a voz Panta. — A casa está tão vazia sem Pocha e sem Gladycita. Não me acostumo.
— Venha, cara, venha, não seja chorãozinho — fica de saia, deita-se junto a Panta, apaga a luz, abre os braços a Brasileira. — A única coisa que você tem é ciúme dos soldadinhos. Venha, fique aqui, deixe eu cocar sua cabecinha.
— Corria até a notícia de que o Irmão Francisco ia se apresentar em pessoa — observa os apóstolos de branco, os fiéis ajoelhados com os braços abertos, os inválidos, os cegos, os leprosos, os anões, os moribundos que estão à volta da cruz o General Scavino. — Melhor que não o fizesse. Ele nos poria em apuros. Seria impossível mandar prendê-lo diante de vinte mil pessoas dispostas a morrer por ele. Onde diabos andará? Não, não há rastros desse louco.
— O balco é um belcinho, eu sou Pochita, você é Gladycita — entoa, embala-se, olha a lua que passa pela escotilha e banha de prata o fim do beliche a Brasileira. — Que nenezinha ton bonita. Eu coco cabecinha, eu dou beijinhos. Quel chupal sua tetinha?
— Agora está na cabeça, aí mesmo, puxa, voou — empurra a porta do Museu e Aquário Amazônico e dá passagem ao Capitão Pantoja o Tenente Bacacorzo. — Chegou a picá-lo? Acho que era uma vespa.
— Mais embaixinho, mais devagalzinho — muda de ânimo, aninha-se, amorna-se, adoça-se, agasalha-se Pantita. — Nas costinhas, no pescocinho, na olelinha. Insista na pontinha, senholita.
— Ah, matei-a — bate com a mão na piscina da vaca-marinha ou manati o Tenente Bacacorzo. — Vespa não, uma mosca varejeira. São perigosas, o povo diz que transmitem a lepra.
— Devo ter o sangue ácido, porque os insetos nunca me picam — passa junto ao delfim louco, ao delfim cinzento, ao delfim vermelho, pára diante da formiga curhuinse, lê “é noturna, muito daninha, em uma noite pode arrasar uma chácara; andam aos milhares, quando adultas têm asas e ficam barrigudas” o Capitão Pantoja. — Em troca, minha pobre mãe, é terrível, sai à rua e a devoram.
— Sabe que há gente que come essas formigas torradas, com sal e banana? — passa o dedo pela crista de um iguana dissecado, pelas plumas multicoloridas de um tucano o Tenente Bacacorzo. — O senhor tem que se cuidar, está muito magro. Deve ter perdido, pelo menos, dez quilos nestes últimos meses. Que há, meu capitão? Trabalho, preocupações?
— Um pouco das duas coisas — inclina-se e procura em vão os oito olhos da grande, bailarina e peçonhenta aranha-viúva o Capitão Pantoja. — Quando todo mundo diz isto, deve ser verdade. Vou me entregar a uma superalimentação, para recuperar os quilinhos perdidos.
— Sinto muito, Tigre, mas tive que dar ordem à tropa para ajudar a Guarda Civil na captura dos fanáticos — recebe petições, queixas, denúncias, investiga, vacila, consulta, toma uma decisão, informa o General Scavino. — Quatro crucificados em seis meses é muito, estes loucos estão transformando a Amazônia em uma terra de bárbaros e chegou o momento de usar mão de ferro.
— O senhor não está tendo vantagem com a vida de solteiro — empunha a lente de aumento e aumenta a vespa huayranga, a vespa-da-campanha e a vespa shiro-shiro o Tenente Bacacorzo. — Em vez de estar feliz e contente com a liberdade recobrada, anda mais triste que um morcego.
— É que para mim estar solteiro não serve de grande coisa — avança até o setor dos felinos e roça com seu corpo no tigre negro, no otorongo1 ou príncipe da selva, no gato montes, no puma e na onça-pintada o Capitão Pantoja. — Eu sei que a maioria dos homens, depois de algum tempo, fica farta com a monotonia familiar e dão qualquer coisa para se livrar de suas mulheres. Comigo ainda não tinha acontecido. De verdade, fiquei triste porque Pocha foi embora. E, ainda mais, levando minha filhinha.
1 Onça. (N. do T.)
— Nem precisa dizer que ficou triste,, a gente vê pela cara — “os camaleões pequeninos vivem nas árvores, os grandes na água” escuta o Tenente Bacacorzo. — Afinal, são coisas da vida, meu capitão. Teve notícias de sua esposa?
— Sim, me escreve todas as semanas. Está vivendo com sua irmã Chichi, lá em Chiclayo — conta as cobras, a yacumama ou mãe-d’água, a jibóia-negra, a mantona, a sachamana ou mãe da selva o Capitão Pantoja. — Não estou ressentido com Pocha, eu a compreendo muito bem. Minha missão era muito pouco decente para ela. Nenhuma mulher decente teria suportado. De que se ri? Não é nenhuma piada, Bacacorzo.
— Perdoe, mas é que não deixa de ser engraçado — acende um cigarro, sopra a fumaça entre as barras da jaula do paucar, lê “imita o canto das demais aves e ri e chora como as crianças” o Tenente Bacacorzo. — O senhor tão cheio de manias, tão exigente em questões morais. E com a fama mais suja que se possa imaginar. Aqui em Iquitos todos pensam que é um terrível foragido.
— Como não tinha razão para ir embora, senhora? Não seja cega — entrega a madeixa de lã à Sra. Leonor, faz um novelo, começa a tecer Alicia. — As mamães fecham a chave suas filhas quando vêem o seu Pantita passar, fazem o sinal da cruz e viram Tas costas. Saiba disso logo e, assim, tenha pena de Pocha.
— Pensa que não sei? — entretém-se dando de comer aos peixes ornamentais, vendo fosforescer o furta-cor neon tetra o Capitão Pantoja. — O Exército me fez uma grande sujeira me confiando este trabalho.
— Ninguém pensaria que o lamenta ao vê-lo trabalhar no Serviço de Visitadoras com tanto ímpeto — observa o transparente blue tetra, o escamoso limpa-vidros e a carnívora piranha o Tenente Bacacorzo. — Sim, eu sei, seu sentido do dever.
— As duas primeiras patrulhas regressaram, meu general — recebe os expedicionários à entrada do quartel, felicita-os, convida-os a uma cerveja, ordena silêncio aos prisioneiros que gritam, manda-os prender na guarda o Coronel Peter Casahuanqui. — Trazem meia dezena de fanáticos, um deles com terça. Estiveram na crucificação da velhinha, em Dos de Mayo. Guardo-os aqui, entrego-os à polícia ou os despacho para Iquitos?
— Ouça, você ainda não me disse para que marcou este encontro comigo no museu, Bacacorzo — mede com o olhar o paiche, o maior peixe de água doce que se conhece no mundo o Capitão Pantoja.
— Para lhe dar uma má notícia entre ofídios e aracnídeos — põe um olhar indiferente à enguia, à raia, às charapas ou tartarugas-d’água o Tenente Bacacorzo. — Scavino quer vê-lo urgentemente. Espera-o no Comando, às dez. Tenha cuidado, previno-o de que está soltando chispas.
— Só os impotentes, os eunucos e os assexuados podem pretender que — sobe e desce entre acordes, declama, encabrita-se A voz do Sinchi — os esforçados defensores da Pátria, que se sacrificam lá servindo, nas intrincadas fronteiras, vivam em viúva castidade.
— Sempre está soltando chispas, pelo menos comigo — sai para o molhe, olha o rio brilhando sob o sol homicida, as motoras e balsas que chegam ao porto de Belén o Capitão Pantoja. — Sabe por que essa sua raiva de agora?
— Por causa do maldito programa de ontem do Sinchi — não responde à continência, não o convida a sentar-se, coloca uma fita e liga o gravador o General Scavino. — O vigarista não fez outra coisa senão falar do senhor, dedicou-lhe os trinta minutos do programa. Parece-lhe pouca coisa, Pantoja?
— Devem os nossos valentes soldados recorrer ao debilitante onanismo? — duvida, dança com os compassos da valsa La Contamanina, espera uma resposta, interroga de novo A voz do Sinchi. — Voltar à autogratificação infantil?
— A voz do Sinchi? — ouve chiar, empacar, estragar-se o gravador, vê o General Scavino sacudi-lo, bater nele, experimentar todos os botões o Capitão Pantoja. — Está certo disso, meu general? Me atacou de novo?
— Defendeu-o, defendeu-o de novo — descobre que a tomada soltou-se, murmura que burro, agacha-se, liga outra vez o aparelho o General Scavino. — E é mil vezes pior que se o atacasse. Não compreende? Isto põe em ridículo e enlameia o Exército ao mesmo tempo.
— Sim, eu as cumpri ao pé da letra, meu general — conferência com o alferes-chefe da Intendência, revisa o armazém de provisões, decide sobre os cardápios com o sargento-cozinheiro o Coronel Máximo Dávila. — Só que aconteceu um grave problema de abastecimento. São cinqüenta os fanáticos detidos e, se os alimento, teria que racionar para a tropa. Não sei o que fazer, meu general.
— Tenho terminantemente proibido que sequer mencione meu nome — vê acender-se a luzinha amarela, rodar os carretéis, ouve ruídos metálicos, ecos, enfurece-se o Capitão Pantoja.
— Não entendo, asseguro-lhe que...
— Cale-se e escute — ordena, cruza os braços, as pernas, olha com ódio o gravador o General Scavino. — É de dar náuseas.
— O governo deveria condecorar com a Ordem do Sol o Sr. Pantaleón Pantoja — estala, rutila entre Lux, o sabonete que perfuma, Coca-Cola, a pausa que refresca, e sorrisos Kolynos, dramatiza e exige A voz do Sinchi. — Pelo encomiástico labor que realiza em busca da satisfação das necessidades íntimas das sentinelas do Peru.
— Minha esposa ouviu-o e minhas filhas tiveram que lhe dar sais — desliga o gravador, percorre a sala com as mãos nas costas o General Scavino. — Está nos transformando no motivo de risos de toda Iquitos com as suas arengas. Não lhe ordenei tomar medidas para que A voz do Sinchi não mencionasse mais o Serviço de Visitadoras?
— A única maneira de tapar a boca desse sujeito é lhe dando um balaço ou dinheiro — escuta o rádio, vê as visitadoras preparando as maletas para embarcar, Chuchupe subindo ao Dalila Pantaleón Pantoja. — Liquidá-lo me traria muitos problemas, não resta outro remédio senão esquentar-lhe a mão com uma porção de moedas. Ande, diga-lhe, Chupito. Que se apresente aqui, não há outro remédio.
— Quer dizer que destina parte do orçamento do Serviço de Visitadoras para subornar jornalistas? — examina-o dos pés à cabeça, alarga as aletas do nariz, enruga a testa, mostra os incisivos o General Scavino. — Muito interessante, capitão.
— Já tenho aqui, na salmoura, os que crucificaram o Suboficial Miranda — divide as patrulhas, duplica as horas de guarda, suprime folgas e licenças, extenua, encoleriza seus homens o Coronel Augusto Valdés. — Ele já identificou a maioria, sim. Só que de tanto mobilizar meus homens atrás dos Irmãos da Arca estou com a fronteira desguarnecida. Eu sei que não há perigo, mas se algum inimigo quisesse, entraria até Iquitos passeando, meu general.
— Do orçamento, não, esse é sagrado — percebe um ratinho cruzando veloz o peitoril da janela, a poucos centímetros da cabeça do General Scavino, o Capitão Pantoja. — O senhor tem a cópia da contabilidade e pode comprovar. Do meu próprio soldo. Tive que sacrificar cinco por cento por mês do que recebo para calar esse chantagista. Não compreendo por que fez isto.
— Por escrúpulos profissionais, por indignação moral, por solidariedade humana, amigo Pantoja — entra no centro logístico batendo com o portão, sobe a escadinha do posto de comando como um vendaval, tenta abraçar o Sr. Pantoja, tira o casaco, senta-se diante da escrivaninha, ri, ribomba, arenga o Sinchi. — Porque não posso suportar que haja gente aqui, nesta cidade onde minha santa mãe me pôs no mundo, que menospreze o seu trabalho e que todo o dia fale cobras e lagartos contra o senhor.
— Nosso compromisso era claríssimo e o senhor o violou — estala uma régua contra um painel, tem os lábios cheios de saliva e os olhos incendiados, range os dentes Pantaleón Pantoja. — Para que merda os quinhentos soles mensais? Para que se esqueça de que eu existo, de que o Serviço de Visitadoras existe.
— É que eu também sou humano, Sr. Pantoja, e sei assumir minhas responsabilidades — concorda, acalma-o, gesticula, ouve roncar a hélice, vê o Dalila correr pelo rio levantando paredes de água, vê levantar-se, perder-se no céu o Sinchi. — Tenho sentimentos, impulsos, emoções. Por onde vou, ouço maldições contra o senhor e me esquento. Não posso permitir que caluniem alguém tão cavalheiro. Sobretudo sendo, como somos, amigos.
— Vou fazer-lhe uma advertência muito séria, seu grandíssimo safado — pega-o pela camisa, sacode-o de trás para diante, de diante para trás e o vê assustar-se, enrubescer, tremer, solta-o Pantaleón Pantoja. — Sabe bem o que lhe aconteceu na última vez, quando atacou o Serviço. Tive de conter as visitadoras, queriam arrancar-lhe os olhos e crucificá-lo na Plaza de Armas.
— Sei de sobra, amigo Pantoja — ajeita a camisa, trata de sorrir, recupera o aprumo, aperta o colarinho o Sinchi. — Pensa que não soube que tinham colado minha foto na porta da Pantilândia e que cuspiam nela ao entrar e sair?
— Na verdade, é um senhor problema, Tigre — imagina motins, cargas de infantaria, mortos e feridos, manchetes sangrentas, destituições, julgamentos, sentenças e lágrimas o General Scavino. — Em três semanas, botamos a mão em cerca de quinhentos fanáticos que andavam escondidos na selva. Mas agora não sei o que fazer deles. Mandá-los a Iquitos seria um escândalo, haveria manifestações, milhares de “irmãos” continuam soltos. O que pensa o Estado-Maior?
— Mas agora elas estão felizes com os elogios que lhes faço no meu programa, Sr. Pantoja — põe o casaco, vai até o parapeito, dá adeuzinho ao Chinês Porfirio, volta à escrivaninha, bate no ombro do Sr. Pantoja, cruza os dedos e jura o Sinchi.
— Quando me vêem na rua, me atiram beijinhos. Vamos, amigo Pan-Pan, não seja tão trágico, eu queria ajudá-lo. Mas se prefere, A voz do Sinchi não o mencionará nunca mais.
— Porque, na primeira vez que falar de mim, ou do Serviço, vou jogar em cima do senhor as cinqüenta visitadoras e lhe previno que todas têm unhas compridas — abre a gaveta da escrivaninha, tira um revólver, carrega-o e o descarrega, faz girar o tambor, aponta para o quadro-negro, o telefone, as vigas Pantaleón Pantoja. — E se elas não acabam com o senhor, remato eu, com um tiro na cabeça. Entendido?
— Inteiramente, amigo Pantoja, nem uma palavra mais — multiplica as vênias, os sorrisos, os adeuses, desce a escadinha de costas, põe-se a correr, desaparece no atalho para Iquitos o Sinchi. — Claríssimo como o sol. Quem é o Sr. Pan-Pan? Não é conhecido, não existe, nunca se ouviu falar dele. E do Serviço de Visitadoras? Que é isso, como é que se come isso? É assim mesmo? Puxa, nós nos entendemos bem. Os quinhentos bagarotes deste mês, com Chupito, como sempre?
— Não, não, isso é que não — segreda com Alicia, corre até os agostinianos, escuta confidencias do diretor, volta sufocada à casa, recebe Panta com protestos a Sra. Leonor. — Você se apresentou com uma dessas bandidas na igreja. E na de Santo Agostinho, ainda por cima! O Padre José Maria me contou.
— Primeiro ouça-me e trate de entender, mamãe — joga o gorrinho no guarda-roupa, vai à cozinha, bebe um suco de mamão com gelo, limpa a boca Panta. — Não faço isso nunca, jamais apareço na cidade com qualquer uma delas. Foi uma circunstância muito especial.
— O Padre José Maria viu vocês dois entrarem, de braço dado, com o maior desembaraço — enche a banheira com água fria, arranca o invólucro de um sabonete, arranja toalhas limpas a Sra. Leonor. — Às onze da manhã, exatamente quando todas as senhoras de Iquitos vão à missa.
— Porque essa é a hora dos batismos, não é culpa minha, deixe-me explicar-lhe — tira o casaco, a calça, a camiseta, a cueca, põe um roupão, chinelos, entra no banheiro, despe-se, submerge na banheira, entrecerra os olhos e murmura que fresquinha está Pantita. — A Peituda é uma das minhas colaboradoras mais antigas e eficientes, tinha obrigação de fazê-lo.
— Não podemos fabricar mártires, já chega os que eles fazem — revisa pastas de recortes de jornais marcados a lápis vermelho, celebra conciliábulos com oficiais do Serviço de Inteligência, da Polícia de Investigações, propõe um plano ao Estado-Maior e o executa o Tigre Collazos. — Segure-os aí, nos quartéis, umas semanas, a pão e água. Em seguida, dê um susto neles e os deixe ir embora, Scavino. Menos a uns dez ou doze cabeças, esses mande para Lima.
— A Peituda — revoluteia pelo quarto, pela salinha, aparece no banheiro, vê Panta mexendo com os pés e molhando o chão a Sra. Leonor. — Olhe só com quem você trabalha, com quem se junta. A Peituda, a Peituda! Como é possível que você se apresente na igreja com uma perdida e que ainda por cima tem esse nome. Já não sei a que santo pedir, até ao menino-mártir fui pedir de joelhos para que o tire desse antro.
— Pediu que fosse padrinho do seu filhinho e não podia me negar, mamãe — ensaboa a cabeça, o rosto, o corpo, enxágua-se com a ducha, enrola-se em toalhas, pula da banheira, enxuga-se, põe desodorante, penteia-se Pantita. — A Peituda e o Milcaras tiveram o gesto simpático de pôr meu nome na criança. Chama-se Pantaleón e eu mesmo fiz com que deixasse de ser pagão.
— Quanta honra para a família — vai à cozinha, traz um escovão e panos, seca o banheiro, entra no quarto, entrega a Panta uma camisa, as calças recém-passadas a Sra. Leonor. — Já que tem de fazer esse trabalho tão incrível, pelo menos, cumpra o que você me prometeu. Não passeie com elas, que o povo não o veja.
— Já sei, mamãezinha, não seja maçante, upa, até o teto, upa — veste-se, joga a roupa suja em uma cesta, aproxima-se da Sra. Leonor, abraça-a, levanta-a Pantita. — Ah, esquecia de mostrar. Olhe, chegou carta de Pocha. Manda fotos da Gladycita.
— Deixe ver, meus óculos — ajeita a saia, a blusa, arrebata-lhe o envelope, aproxima-se da luz da janela a Sra. Leonor. — Ui, que coisa mais linda, minha netinha linda, como engordou. Quando me dará o que lhe peço, Santo Cristo de Bagazán. Passo as tardes na igreja rezando, faço novenas para que nos tire daqui e nada.
— Em Iquitos você virou beata, velhinha; em Chiclayo nem sequer ia à missa, só jogava canastra — senta-se na cadeira de balanço de palha, folheia um jornal, resolve um quebra-cabeça, ri Panta. — Acho que suas rezas não servem porque mistura igreja com superstição: o menino-mártir, o Santo Cristo de Bagazán, o Senhor dos Milagres, a Santa Ignacia.
— Não se esqueça que é preciso desviar gente e dinheiro para caçar os loucos da Arca — toma aviões, jipes e lanchas, percorre a Amazônia, volta a Lima, faz os oficiais da contabilidade e finanças trabalhar horas extraordinárias, redige um informe, apresenta-se ao gabinete do Tigre Collazos o Coronel López López. — Isso significa pesados gastos para o Exército. E o Serviço de Visitadoras é uma hemorragia, trabalha em pura perda. Além de outros probleminhas.
— Aqui está a carta de Pocha, são só quatro palavras, eu leio para a senhora — ouve música, sai a passeio com a Sra. Leonor pela Plaza de Armas, trabalha em seu quarto até a meia-noite, dorme seis horas, levanta-se com as primeiras luzes Panta. — Foram para Pimentel, com Chichi, passar o verão na praia. Não fala nada de voltar, mamãe.
— Nada feito, então? — enterra o quepe, deixa o General Victoria e o Coronel López López saírem do gabinete à sua frente, senta-se no banco dianteiro do carro, ordena ao chofer para Rosita Rios, voando, o Tigre Collazos. — Sim, claro, é uma das soluções possíveis, a que Scavino escolheria na hora. Mas não é um pouco precipitada? Não vejo razão nem urgência para declarar que o Serviço de Visitadoras é um fracasso. Depois de tudo, os incidentes que provocou são insignificantes.
— Não me preocupam as coisas negativas do Serviço de Visitadoras, mas as positivas, Tigre — escolhe uma mesa ao ar livre, senta-se na cabeceira, afrouxa a gravata, estuda o cardápio atentamente o General Victoria. — O mais grave são seus fantásticos êxitos. Para mim, o problema está em que, sem querer nem saber, pusemos em marcha um mecanismo infernal. López acaba de percorrer todas as guarnições da selva e o seu informe é inquietante.
— Vi-me na imperiosa necessidade de recrutar dez visitadoras com toda a urgência — telegrafa o Capitão Pantoja. — Não para ampliar o Serviço, mas para manter o ritmo de trabalho alcançado até o presente.
— A verdade é que as visitadoras de Pantoja se transformaram na preocupação central de todas as guarnições, acampamentos e postos de fronteira — pede anticuchos e choclos sancochados1 para começar e, como segundo prato, pato a escabeche com muito pimentão verde o Coronel López López. — Não exagero nem um pouquinho, meu general. Quase não pude falar de outra coisa com oficiais, suboficiais e soldados, acredite. Até os crimes da Arca passam a segundo plano quando se trata das visitadoras.
1 Anticuchos: espetinho de coração de boi; choclos sancochados: maçaroca de milho verde aferventada. (N. do T.)
— A razão está nas numerosas patrulhas e grupos de perseguição e captura dos assassinos religiosos — põe em código o Capitão Pantoja. — Como bem sabem os superiores, esses comandos encontram-se internados na selva, desenvolvendo uma ação cívico-policial de primeira ordem.
— Nessa maleta estão as provas, Tigre — decide-se pelo cebiche de corvina2 e rins à moda com arroz branco o General Victoria. — Adivinhe o que são estes papéis. Informes sobre o estado da defesa aero-terrestre-fluvial nas fronteiras equatoriana, colombiana, brasileira e boliviana? Está frio. Sugestões e planos para melhorar o nosso próprio dispositivo de vigilância e ataque na Amazônia? Frio. Estudos sobre comunicações, logística, etnografia? Frio, muito frio.
2 Guisado de corvina, temperado com pimentão verde (aji). (N. do T.)
— O Serviço de Visitadoras acreditou ser sua obrigação fazer chegar àqueles comandos, onde se encontrem, os comboios de visitadoras — comunica pelo rádio o Capitão Pantoja. — E o conseguimos, graças ao esforço entusiasta de todo o pessoal, sem exceção.
— Só de pedidos relativos ao SVGPFA, meu general — de sobremesa, rosquinhas de mel e amendoim, e para beber cerveja Pilsen bem geladinha, conclui o Coronel López López. — Todos os suboficiais da Amazônia assinaram memoriais pedindo que lhes seja permitido utilizar o Serviço de Visitadoras. Aqui estão, em ordem: cento e setenta e dois ofícios.
— Para isso criei brigadas volantes de duas e três visitadoras, e essa fragmentação do pessoal me teria impedido de continuar assegurando a cobertura regular aos centros usuários — telefona o Capitão Pantoja. — Espero não me haver excedido em minhas atribuições, meu general.
— E a entrevista de López López com a oficialidade é ainda mais incrível — empurra com um pedacinho de pão, acompanha cada garfada com golinhos de cerveja, seca a testa com o guardanapo o General Victoria. — De capitão para baixo, noventa e cinco por cento dos oficiais também reclamam visitadoras. E de capitão para cima, cinqüenta e cinco por cento. Que me diz disso, Tigre?
— De acordo com as cifras que o Coronel López me comunicou, extraídas de sua entrevista extra-oficial, devo modificar totalmente o plano minimalista de ampliação do SVGPFA, meu general — sobressalta-se, rabisca cadernos, toma anfetaminas para amanhecer no posto de comando, despacha volumosos envelopes registrados o Capitão Pantoja. — Rogo-lhe que considere nulo e não recebido o protesto que lhe enviei. Estou trabalhando dia e noite em um novo organograma. Espero enviá-lo muito breve.
— Porque, além disso, sinto dizer-lhe que Pantoja, embora esteja louco, tem toda a razão do mundo, Tigre — ataca os rins com ímpeto, brinca os franceses é que têm razão, se a gente descobre o ritmo adequado pode ingerir qualquer quantidade de pratos, dezoito, vinte o General Victoria. — Sua argumentação é irrefutável.
— Tendo em vista a duplicação potencial do número de usuários, se se admitem os suboficiais e os comandos intermediários — discute com Chuchupe, Chupito e o Chinês Porfirio, passa revista às candidatas, manda embora as “lavadeiras”, conversa com cafetães, suborna alcoviteiros o Capitão Pantoja —, devo comunicar-lhe que o plano minimalista de prestações regulares, a um ritmo sempre abaixo do mínimo vital sexual, exigiria quatro embarcações da tonelagem do Eva, três aviões tipo Dalila e uma equipe operacional de duzentas e setenta e duas visitadoras.
— Se é permitido aos graduados e soldados, por que não aos suboficiais? — afasta as cebolas, os ossos e acaba o escabeche de pato em algumas garfadas, sorri, vê passar uma mulher, pisca um olho e exclama que escultura o Coronel López López. — E se estes puderem, também, por que não os oficiais? É a proposição de todos. E, na verdade, não se pode nem discutir.
— Naturalmente, se se considera a ampliação à oficialidade, minhas estimativas registrariam novas variantes, meu general — visita feiticeiros, toma ayahuasca, tem alucinações em que exércitos de mulheres desfilam pelo Campo de Marte cantando La Raspa, vomita, trabalha, exulta o Capitão Pantoja. — Estou fazendo um estudo das possibilidades, pelo que possa acontecer. Seria preciso criar uma seção especial, um grupo de visitadoras exclusivas, claro.
— Claro — recusa a sobremesa, pede café, puxa um vidrinho de sacarina, joga duas pastilhas, esvazia a xícara de um gole, acende um cigarro o General Victoria. — E se se considera indispensável para a saúde biológica e psicológica da tropa que exista esse Serviço, será preciso aumentar, a cada mês, o número de prestações. Porque, você sabe de sobra, Tigre, a função faz o órgão. Neste caso, a demanda irá sempre adiante da oferta.
— É isto mesmo, meu general — pede a conta, tenta puxar sua carteira, ouve você está louco, hoje são convidados do Tigre o Coronel López López. — Querendo tapar um buraco, abrimos uma buraqueira e por aí vai se escoar todo o orçamento da Intendência.
— E toda a energia dos nossos soldados — desloca-se em missão especial a Lima, visita políticos, pede audiências, aconselha, intriga, trapaceia, retorna a Iquitos o General Scavino.
— A esta fome de visitadoras que despertou na selva nem Cristo põe paradeiro, Tigre — abre a porta do carro, sai primeiro, diz pena não poder tirar uma sestazinha depois deste almoço, ordena de volta ao ministério o General Victoria. — Ou, para estar na moda, nem o menino-mártir. A propósito, sabem que essa devoção já chegou a Lima? Ontem descobri que minha nora tinha um altarzinho com os santinhos do menino-mártir.
— Poderíamos começar com uma equipe selecionada de dez visitadoras para oficiais, meu general — fala sozinho pela rua, fica adormecido em sua escrivaninha, fantasia, espanta a Sra. Leonor com sua magreza o Capitão Pantoja. — Nós as recrutaríamos em Lima, naturalmente, para garantir uma alta categoria. Agrada-lhes as siglas SPO do SVGPFA? Seção para Oficiais do Serviço de Visitadoras. Enviarei um projeto detalhado.
— Porra, acho que eles têm razão — entra em seu gabinete, cisma, abre a correspondência, morde uma unha o Tigre Collazos. — Isto já é sacanagem demais.
Número especial do jornal El Oriente (Iquitos, 5 de janeiro de 1959), dedicado aos graves acontecimentos de Nauta
Reportagem especial de toda a redação de El Oriente, —mobilizada sob a orientação intelectual de seu diretor, Joaquín Andoa, para levar aos leitores do departamento de Loreto a versão mais atual, pormenorizada e fiel do trágico caso da formosa Brasileira, desde o assalto de Nauta até o enterro em Iquitos, com os acontecimentos que eletrizaram a atenção da população.
Pranto e surpresas despediram os restos de bela assassinada
Ontem pela manhã, às 11 horas aproximadamente, os restos mortais daquela que foi Olga Arellano Rosaura, conhecida no baixo mundo pelo apelido de Brasileira, em razão de seus anos de residência na cidade de Manaus (ver biografia na pág. 2, cols. 4 e 5), foram enterrados no histórico cemitério-geral desta cidade, entre cenas de pesar e aflição de companheiros de trabalho e amizades, que comoveram a numerosa assistência. Pouco antes, uma escolta da infantaria do Acampamento Militar Vargas Guerra prestou honras militares à finada, em um gesto insólito, que não deixou de provocar considerável surpresa, mesmo entre as pessoas mais penalizadas pela forma trágica em que perdeu a vida essa jovem e perdida beleza loretana, a quem o Capitão (sic) Pantaleón Pantoja chamou, em sua oração fúnebre, “desditosa mártir do cumprimento do dever e vítima da baixeza e vilania do homem” (ver a íntegra da oração fúnebre na pág. 3, col. 1).
Sabedores de que a inumação da infortunada jovem seria realizada ontem de manhã, desde muito cedo congregaram-se, nas imediações do cemitério (Calles Alfonso Ugarte e Ramón Castilla), muitos curiosos, que logo bloquearam a entrada principal e a área do Monumento aos Mortos pela Pátria. Às 10h30, mais ou menos, os presentes puderam perceber a chegada de um caminhão do Acampamento Militar Vargas Guerra, do qual desceu uma escolta de doze soldados, com capacete, equipagem e fuzil, comandados pelo Tenente de Infantaria Luis Bacacorzo, o mesmo que dispôs seus homens em ambos os lados da porta de entrada do cemitério. Esta operação despertou a curiosidade das pessoas presentes, que não podiam adivinhar a razão do comparecimento de uma escolta do Exército naquela hora, lugar e circunstância. O enigma ficaria esclarecido momentos depois. Tendo em vista que a aglomeração de curiosos e de público em geral obstruía por completo o acesso ao cemitério, o Tenente Bacacorzo ordenou aos soldados desimpedir a porta, o que estes fizeram de imediato e sem contemplações.
Às 11 menos 15 minutos, o conhecido carro de luxo da principal agência funerária de Iquitos, a Modus Vivendi, fez sua aparição, totalmente coberto por oferendas florais, pela Calle Alfonso Ugarte, seguido de grande número de táxis e veículos particulares. O cortejo fúnebre, que avançava muito lento, tinha partido minutos antes do local no rio Itaya chamado Serviço de Visitadoras, conhecido geralmente pelo simples apelido de Pantilândia, onde fora velada, toda a noite anterior, a infeliz Olga Arellano Rosaura. Um impressionante silêncio estendeu-se de imediato pelo bairro e o povo reunido abriu passagem ao cortejo por iniciativa própria, a fim de que pudesse chegar até a própria entrada do campo-santo. Grande número de pessoas — uma centena, segundo os observadores, acompanhava, em sua viagem à última morada, a infeliz Olga, muitas delas vestindo escuro e dando mostras, sobretudo suas companheiras de trabalho, as visitadoras e “lavadeiras” de Iquitos, de angústia. Pôde notar-se, entre os componentes do cortejo fúnebre, a totalidade das mulheres que laboram na mal-afamada instituição do rio Itaya, sendo elas, justificadamente, as que denotavam maior dor, vertendo vivas lágrimas sob os véus e mantilhas negras. Forneceu uma nota de emoção e dramatismo o fato de que, entre as visitadoras presentes, estivessem, na primeira fila, as seis mulheres que viveram com a extinta Brasileira os graves acontecimentos de Nauta e nos quais aquela perdeu a vida, e inclusive a própria Luisa Cánepa, (a) Peituda, que, como nossos leitores sabem, recebeu feridas e contusões muito sérias, causadas pelos assaltantes, durante o lutuoso acontecimento (ver na pág. 4 uma recapitulação em detalhe da emboscada de Nauta e seu sangrento final). Mas a surpresa maior dos cidadãos ali reunidos foi ver descer, do carro funerário, vestido com a farda de capitão do Exército e óculos escuros, o promotor-chefe do chamado Serviço de Visitadoras, o bem conhecido e pouco apreciado Sr. Pantaleón Pantoja, do qual, até agora, ninguém, pelo menos que este jornal saiba, conhecia a condição de oficial do Exército. Isto, naturalmente, provocou comentários diversos entre o público.
Ao ser baixado do carro, foi possível perceber que o ataúde tinha a forma de cruz, como é costume entre os defuntos que em vida pertenceram à Irmandade da Arca, fato que deve ter parecido espantoso a muita gente, diante da suspeita de que a morte da Brasileira se deveu a confrades dessa seita religiosa, conjetura que, de outra parte, foi energicamente desmentida pelo profeta supremo da Arca (ver a Epístola aos bons sobre os maus, do Irmão Francisco, que publicamos na pág. 3, cols. 3 e 4). O ataúde foi descido do carro e levado ao campo-santo nos ombros do próprio Capitão Pantoja e de seus colaboradores do mal-afamado Serviço de Visitadoras, os quais vestiam rigoroso luto, a saber: Porfirio Wong, conhecido por Chinês no bairro de Belén, o Primeiro-Sargento AP Carlos Rodríguez Saravia (que comandava o barco Eva ao registrar-se o assalto de Nauta), o Suboficial FAP Alonso Pantinaya, (a) Louco, famoso ás do passado da acrobacia aérea, os recrutas Sinforoso Caiguas e Palomino Rioalto e o enfermeiro Virgílio Pacaya. Carregaram as fitas do ataúde, que mostrava sobre a tampa uma elegante e solitária orquídea, a célebre Leonor Curinchila, (a) Chuchupe, e várias pupilas desse centro do mau agir do rio Itaya, a saber, Sandra, Viruca, Pichuza, Peludinha e outras, e o popular Juan Rivera, (a) Chupito, que exibia curativos e marcas das numerosas feridas que recebeu, ao pretender reagir, com típica galhardia loretana, à agressão de Nauta. Apanharam também as fitas do ataúde duas senhoras de certa idade e de origem humilde, notoriamente condoídas, que se negaram a dar seus nomes e a mencionar sua relação com a massacrada, a quem alguns rumores indicavam como familiares de Olga Arellano Rosaura, que preferiam ocultar sua identidade devido às pouco recomendáveis atividades a que se dedicou em vida a jovem crucificada. Tão logo ficou alinhado o cortejo, na forma por nós descrita, a um sinal do Capitão Pantoja, o Tenente Luis Bacacorzo, com voz marcial, deu aos soldados de sua escolta a ordem de Apresentar! Armas! ao que aqueles obedeceram com garbo e elegância. Assim, nos ombros de seus colegas e amigos e entre uma fila dupla de fuzis que lhe rendiam homenagem, entrou no cemitério geral de Iquitos a desgraçada Brasileira, que perdeu a vida a pouca distância de onde nasce o nosso rio-mar. O ataúde foi levado até o pequeno pódio, vizinho ao Monumento aos Mortos pela Pátria, onde uma placa recebe o visitante com esta apóstrofe sombria: “ENTRA, REZA, OLHA COM CARINHO ESTA MANSÃO; PODE SER QUE SEJA RUA ÚLTIMA MORADA”.
Ali, dando mostras de inexplicável mau humor e irritação, que não deixaram de ser reprovadas pela assistência, encontrava-se o ex-capelão do Exército e atual pároco encarregado do cemitério de Iquitos, Padre Godofredo Beltrán Calila. O religioso oficiou, com exagerada rapidez, os responsos fúnebres, não pronunciou sermão algum, como se esperava dele, e abandonou o lugar sem esperar o término da cerimônia. Acabado o ato religioso, o Capitão Pantaleón Pantoja, instalando-se diante do ataúde da infeliz Olga Arellano Rosaura, pronunciou a oração que reproduzimos em outro local desta edição (ver pág. 3, col. 1), a qual levou o funeral a seu clímax de sensibilidade e comoção, ao ver-se interrompido o capitão, em vários momentos, por seus próprios soluços, que eram imitados, como tristes ecos, pelos de seus colaboradores mencionados e muitas mariposas presentes.
Imediatamente depois, o ataúde foi de novo levantado em ombros pelos mesmos que o haviam introduzido no campo-santo, enquanto outras pessoas, a maioria visitadoras e “lavadeiras”, revezavam-se com as cintas. O cortejo percorreu assim o cemitério até o extremo sul, onde, no Pavilhão de Santo Tomás, quadra 17, nicho superior, repousaram os restos da desaparecida. A colocação do ataúde e a instalação da lápide (na qual singelamente se lê, em letras douradas: “OLGA ARELLANO ROSAURA, CHAMADA BRASILEIRA (1936-1959): SEUS DESCONSOLADOS COMPANHEIROS”) deu motivo a novas efusões de sentimento e dor por sua cruenta partida, havendo prorrompido muitas mulheres em inconsolável choro. Em seguida a um padre-nosso e a uma ave-maria, que foram entoados por sugestão de Leonor Curinchila, (a) Chuchupe, pela paz eterna da falecida loretana, o cortejo se desfez. Começavam a dispersar-se os assistentes, em direção a seus respectivos domicílios, quando sobreveio uma súbita chuva, como se o céu tivesse querido imediatamente associar-se ao luto. Eram 12 horas.
Elegia fúnebre do Capitão Pantaleón Pantoja no enterro da formosa Olga Arellano, a visitadora assassinada em Nauta
Reproduzimos, em continuação, por considerá-la de interesse dos nossos leitores e por sua arrojada sinceridade e assombrosas revelações, a oração fúnebre que pronunciou, no sepultamento da sacrificada Olga Arellano Rosaura, (a) Brasileira, aquele que foi seu amigo e chefe, o tão famoso Dom Pantaleón Pantoja, e que se verificou ser, desde ontem, para surpresa geral, capitão de Intendência do Exército Peruano.
PRANTEADA Olga Arellano Rosaura, sempre lembrada e muito querida Brasileira, como te chamávamos carinhosamente todos os que te conhecíamos ou freqüentávamos no trabalho diário:
Vestimos nossa gloriosa farda de oficial do Exército do Peru para vir acompanhar-te a este que será teu último domicílio terrestre, porque era nossa obrigação proclamar, ante os olhos do mundo, com a cabeça erguida e pleno sentido de responsabilidade, que havias caído como um valoroso soldado a serviço de tua Pátria, nosso amado Peru. Vimos até aqui para mostrar, sem ter vergonha e com orgulho, que éramos teus amigos e superiores, que nos sentíamos muito honrados em compartilhar contigo a tarefa que o destino nos tinha deparado, qual era a de servir, de maneira nada fácil e ainda mais eriçada de dificuldades e sacrifícios (como tu, respeitada amiga, experimentaste na própria carne), a nossos compatriotas e a nosso país. És uma desditada mártir do cumprimento do dever, uma vítima da baixeza e vilania de certos homens. Os covardes que, incitados pelo demônio do álcool, dos baixos instintos da lascívia ou do fanatismo mais satânico, se postaram na Quebrada dei Cacique Cocama, nas imediações de Nauta, para, mediante o rasteiro engano e a vil mentira, abordar como piratas o nosso transporte fluvial Eva e, em seguida, aplacar, com bestial brutalidade, seus inclementes desejos, não sabiam que essa beleza tua, que a eles instigava delituosamente, tu a havias consagrado, com exclusividade generosa, aos esforçados soldados do Peru.
PRANTEADA Olga Arellano Rosaura, sempre lembrada Brasileira: Estes soldados, os teus soldados, não te esquecem. Agora mesmo, nos rincões mais indômitos de nossa Amazônia, nas quebradas onde é monarca e domina o anófele palúdico, nas clareiras mais afastadas da selva, ali onde o Exército Peruano se fez presente para manifestar e defender nossa soberania, e ali onde tu não vacilavas em chegar, sem te importares com os insetos, as enfermidades, a falta de conforto, levando o presente da tua beleza e da tua alegria franca e contagiosa às sentinelas do Peru, há homens que te recordam com lágrimas nos olhos e o peito tomado de cólera contra os teus sádicos assassinos. Eles não esquecerão nunca tua simpatia, tua graciosa malícia, e esse modo tão teu de compartilhar com eles as servidões da vida castrense, que, graças a ti, se faziam sempre, a nossos oficiais e soldados, mais gratas e suportáveis.
PRANTEADA Olga Arellano Rosaura, sempre lembrada Brasileira, como te apelidavam, por haveres vivido no país irmão, ao qual te levaram tuas jovens inquietações, embora — devemos dizê-lo — não houvesse em ti uma só gota de sangue nem um só cabelo que não fossem peruanos:
Deves saber que, junto com os melancólicos soldados, dispersados pela Amazônia, também te choram e evocam as tuas companheiras e os teus companheiros de trabalho do Serviço de Visitadoras para Guarnições, Postos de Fronteira e Afins, em cujo centro logístico do rio Itaya foste sempre uma flor de luxo que o enriquecia e perfumava, e nós que sempre te admiramos, respeitamos e estimamos por teu senso do dever, teu infatigável bom humor, teu grande espírito de camaradagem e colaboração e tantas outras virtudes que te adornavam. Em nome de todos eles quero dizer-te, refreando o pranto, que teu sacrifício não terá sido em vão: teu sangue ainda jovem, selvagemente derramado, será o vínculo sagrado que nos una desde agora com mais força e o exemplo que nos guie e estimule todo o dia para cumprir nosso dever com a perfeição e o desinteresse com que tu o fazias. E, finalmente, em meu próprio nome, deixa-me agradecer-te profundamente, pondo o coração na mão, por tantas provas de afeto e compreensão, por tantas lições íntimas que nunca esquecerei.
PRANTEADA Olga Arellano Rosaura, sempre lembrada Brasileira:
DESCANSA EM PAZ!
Notícia do assalto de Nauta
O crime da Quebrada del Cacique Cocama, minuto a minuto: seu cortejo de sangue, paixão, sadismo necrófilo e instintos desavergonhados
N. da Red.: El Oriente quer tornar público seu mais efusivo agradecimento ao Coronel da Guarda Civil Juan Amézaga Riofrío, chefe da V Região de polícia, e ao Inspetor-Chefe de Loreto da Polícia de Investigações do Peru (PIP) Federico Chumpitaz Fernández, que têm sob sua responsabilidade a investigação dos trágicos acontecimentos de Nauta, por haver facilitado, com a maior amabilidade, sacrificando muitos minutos do seu precioso tempo, toda a informação disponível, até o momento, sobre o referido fato. Queremos destacar a atitude de cooperação para com a imprensa livre e democrática daqueles distintos chefes de polícia, a quem outras autoridades do departamento deveriam tomar como exemplo.
A conspiração de Requena
À medida que progride a investigação dos acontecimentos de Nauta, descobrem-se elementos que retificam as primeiras versões difundidas pela imprensa escrita e falada sobre o acontecimento. Assim, a cada instante, enfraquece-se a tese segundo a qual o assalto de Nauta e a morte e a crucificação de Olga Arellano Rosaura, (a) Brasileira, foram um rito de “sacrifício e purificação pelo sangue”, ordenado pela Irmandade da Arca, seita que teria usado os sete indivíduos como meros instrumentos. Deste modo, a fogosa campanha do nosso colega Germán Láudano Rosales, no seu programa A voz do Sinchi, defendendo a Irmandade da Arca e recusando como falsa a confissão dos delinqüentes de haver obedecido a ordens do Irmão Francisco, está ganhando foros de verdade. A conjetura do Sinchi, de que a referida confissão é um estratagema dos encarcerados para diminuir sua culpa, parece respaldada pelos fatos. Assim mesmo, os primeiros interrogatórios a que têm sido submetidos em Iquitos os implicados — chegaram ontem a esta cidade, por via fluvial, procedentes de Nauta, onde haviam permanecido detidos desde 2 de janeiro — também permitiram às autoridades da Guarda Civil e da PIP eliminar a outra hipótese que circulava, segundo a qual o assalto de Nauta foi produto da inspiração do momento, filho dos maus conselhos do álcool, e comprovar, sem lugar a dúvidas, que foi planejado com muita antecedência, nos seus mais mínimos e macabros detalhes. Tudo começou, ao que parece, uns quinze dias antes da data fatídica, em uma reunião social — e não religiosa, como se disse — celebrada com características da maior inocência, entre um grupo de amigos do pujante povoado de Requena. A festa teria tido lugar no dia 14 de dezembro passado, na casa do ex-Prefeito Teófilo Morey, que comemorava seu qüinquagésimo quarto aniversário. No decurso do ágape, ao qual assistiram todos os acusados (isto é: Artidoro Soma, 23 anos; Nepomuceno Quilca, 31 anos; Caifás Sancho, 28 anos; Fábio Tapayuri, 26 anos; Fabriciano Pizango, 32 anos; e Renán Márquez Curichimba, 22 anos), foram consumidos muitos copos de licor, havendo alcançado todos os citados o estado de embriaguez. Foi no transcorrer da mencionada festa que o próprio ex-Prefeito Teófilo Morey, indivíduo muito conhecido em Requena por seus instintos sensuais, sua predileção pela boa mesa e as bebidas espirituosas, assim como as coisas parecidas, lançou — segundo a declaração de alguns dos acusados — a idéia de emboscar um comboio de visitadoras, quando este se encontrasse em viagem para algum acampamento militar, para desfrutar à força dos encantos das corrompidas. (Como recordarão os nossos leitores, em um primeiro momento, os assaltantes afirmaram que a idéia do assalto tinha surgido durante uma missa noturna da Arca de Requena, na qual sortearam-se sete “irmãos” para executar a missão decidida por todos os assistentes da cerimônia, mais de uma centena, segundo disseram.) A idéia foi recebida com mostras de aprovação e entusiasmo pelos outros inculpados. Todos estes reconheceram que o assunto visitadoras era freqüente em suas vidas e reuniões, tendo enviado várias vezes protestos escritos ao Alto Comando do Exército, pedindo-lhe autorizar as referidas mulheres da vida a receber a clientela civil dos povoados amazônicos que percorriam, e havendo-se dirigido, inclusive, uma vez, em comissão com outros jovens de Requena, ao chefe da Base Naval de Santa Isabel, vizinha daquele povoado, para deixar constante o seu protesto contra o monopólio, a seu juízo abusivo, das Forças Armadas sobre as expedições de mariposas. Com estes antecedentes, compreende-se que a sugestão do ex-Prefeito Morey, brindando-lhes a oportunidade de extravasar seus contidos anseios, fosse recebida com júbilo e verdadeiro frenesi pelos detidos. Não se pode determinar, entretanto, se os sete conjurados eram seguidores do Irmão Francisco e assistiam, com freqüência, aos ritos clandestinos da Arca de Requena, como disseram, ou se isto é totalmente falso, como têm afirmado vários apóstolos da seita, através de comunicados enviados à imprensa de seus esconderijos, e foi referendado, inclusive, pelo próprio Irmão Francisco (ver pág. 3, cols. 3 e 4). Nessa mesma festa, se diz, os sete amigos chegaram a traçar os primeiros planos e acertaram perpetrar seu malfadado desígnio longe de Requena, para não comprometer o bom nome do povoado e para despistar as autoridades se houvesse uma investigação. Mesmo assim, decidiram averiguar, de maneira dissimulada, as datas de chegada dos próximos comboios de visitadoras a Nauta ou Bagazán, cujas imediações consideraram então, desde aquela vez, as mais propícias para assestar o golpe. O próprio ex-Prefeito Morey ofereceu-se para conseguir os detalhes pertinentes, graças à estreita relação que, devido a seu cargo edílico, tinha mantido com os oficiais da Base de Santa Isabel.
E, sem perda de tempo, pondo mãos à obra, os acusados aperfeiçoaram seu plano no curso de duas ou três reuniões posteriores. Teófilo Morey conseguiu, efetivamente, extrair, mediante espertezas, do Primeiro-Tenente da Armada Germán Urioste, a informação de que um comboio fluvial de seis visitadoras, procedente de Iquitos, percorreria, nos primeiros dias de janeiro, os postos de Nauta, Bagazán e Requena, estando fixada a chegada ao primeiro dos pontos mencionados no dia 2 por volta do meio-dia. Reunidos novamente na casa do ex-prefeito, os sete indivíduos ultimaram o seu criminoso projeto, decidindo emboscar o comboio nas imediações de Nauta, para fazer pensar às vítimas e à polícia que os autores do latrocínio sexual eram moradores daquela histórica localidade. Ao que parece, neste momento, teriam concebido a idéia de deixar como pista falsa, nas imediações do lugar da emboscada, uma cruz com um animal pregado, para fazer supor que a operação era obra dos “irmãos” da Arca de Nauta. Para este fim, equiparam-se dos correspondentes cravos e martelos, sem suspeitar — assim afirmam eles — que o acaso ia favorecer terrivelmente seu plano, oferecendo-lhes não um animal para crucificar mas o corpo de uma jovem e bela mariposa. Os sete sujeitos decidiram dividir-se em dois grupos e dar cada qual uma explicação diferente aos familiares e conhecidos para ausentar-se de Requena. Foi assim que o grupo, integrado por Teófilo Morey, Artidoro Soma, Nepomuceno Quilca e Renán Márquez Curichimba, abandonou o lugar no dia 29 de dezembro, em uma lancha, com motor externo, propriedade do primeiro dos mencionados, fazendo crer a todo mundo que se dirigiam para o lago de Carahuite, onde pensavam passar as festas de fim de ano consagrados ao sadio esporte das peças do sâbalo e da gamitana. O outro grupo — Caifás Sancho, Fábio Tapayuri e Fabriciano Pizango — partiu só a 1.° de janeiro ao amanhecer, em um deslizador pertencente a este último, garantindo aos conhecidos que iam caçar na direção de Bagazán, onde recentemente se havia descoberto, vagando não longe do povoado, uma manada de jaguares.
Tal como haviam programado, os dois grupos se dirigiram rio abaixo, em direção a Nauta, passando, sem se deter, diante deste povoado, o mesmo que tinham feito diante de Bagazán, pois seu objetivo era alcançar, sem serem vistos, um ponto situado a uns três quilômetros águas abaixo do nascimento do Amazonas, nosso grande rio-mar, isto é, a Quebrada dei Cacique Cocama, denominada assim pela lenda segundo a qual, naquele lugar, nos dias de muita chuva, se vê flutuando, perto da margem, o fantasma do célebre cacique cocama Dom Manuel Pacaya, que, em 30 de abril de 1840, fundou, na confluência dos rios Maranhão e Ucayali, o progressista povoado de Nauta. Os sete inculpados tinham escolhido este lugar, apesar do temor que inspirava a alguns deles a superstição mencionada, porque a abundante vegetação que cobre parte do leito era muito conveniente a seu propósito de passar despercebidos. Os dois grupos encontraram-se na Quebrada dei Cacique Cocama no entardecer de 1.° de janeiro, acampando ali em um baixio e divertindo-se, nessa noite, em uma improvisada festa. Pois, muito sabidos, tinham viajado abastecidos não só de revólveres, carabinas, cravos e cobertores para dormir, mas também de gordas garrafas de aniz e cerveja, o que lhes permitiu embriagar-se, enquanto, sem dúvida muito excitados e faladores, extasiavam-se pensando no novo dia, que viria converter em realidade suas doentias maquinações e anseios.
Pirataria na Quebrada dei Cacique Cocama
Desde muito cedo, os sete sujeitos estiveram vigiando, trepados nas árvores, as águas do Amazonas. Para tanto, tinham-se munido de uns binóculos, que passavam de mão em mão, a fim de ter uma visão mais nítida do rio. Estiveram assim boa parte do dia, pois só às quatro da tarde Fábio Tapayuri divisou ao longe as cores verde-rubras do barco Eva, que remontava as águas ocres do rio-mar com sua cobiçada carga. Imediatamente, os indivíduos começaram a executar seus ardilosos planos. Enquanto quatro deles — Teófilo Morey, Fábio Tapayuri, Fabriciano Pizango e Renán Márquez Curichimba — ocultavam a lancha na vegetação da margem e permaneciam ali escondidos, Artidoro Soma, Nepomuceno Quilca e Caifás Sancho subiam ao deslizador e avançavam até o meio da corrente para interpretar o seu astucioso teatro. Indo a muito pouca velocidade, aproximaram-se do Eva, ao mesmo tempo em que Soma e Quilca começavam a fazer gestos e a dar grandes gritos, pedindo auxílio para Caifás Sancho, dizendo que precisava, com urgência, de ajuda médica, picado por uma víbora. O Primeiro-Sargento Carlos Rodríguez Saravia, ao escutar o clamor daqueles sujeitos, ordenou parar a máquina e fez que subissem o doente a bordo do Eva (pois dispõe de maleta de remédios) com o louvável propósito de prestar ajuda ao simulador Caifás Sancho.
Tão logo os três sujeitos conseguiram, mediante o referido ardil, chegar a bordo, tiraram as pacíficas máscaras, puxaram os revólveres que levavam escondidos e determinaram ao Sargento Rodríguez Saravia e a seus quatro homens que lhes prestassem obediência no que lhes fosse ordenado. Enquanto Artidoro Soma obrigava o grupo de seis visitadoras (Luisa Cánepa, Peituda; Juana Barbichi Lu, Sandra; Eduviges Lauri, Eduviges; Ernesta Sipote, Loreta; Maria Carrasco Lunchu, Flor; e a infausta Olga Arellano Rosaura, Brasileira) e a Juan Rivera, Chupito, que comandava o grupo, a permanecer encerrados em um camarote, Nepomuceno Quilca e Caifás Sancho, com insultos soezes e ameaças de morte, exigiam que a tripulação do Eva pusesse novamente em marcha o motor e o dirigisse até a Quebrada, onde se encontrava, à espreita, o resto do bando. Foi nesta circunstância, enquanto se executava a manobra prescrita pelos assaltantes, que o astuto timoneiro Isidoro Ahuanari Leiva conseguiu, mediante uma engenhosa mentira (uma necessidade natural do organismo), abandonar por um momento a coberta, entrar na sala de rádio e lançar um desesperado SOS à base de Nauta, a qual, embora não entendesse cabalmente a mensagem, decidiu enviar de imediato, rio abaixo, um deslizador, com um prático e dois soldados, para ver o que acontecia ao Eva. A embarcação, enquanto isso, imobilizara-se na Quebrada dei Cacique Cocama, sítio estrategicamente escolhido, pois, graças à abundante vegetação, ficava meio oculta e dificilmente poderia ser reconhecida, do meio da corrente, por lanchas e motoras de pescadores que percorrem o nosso rio-mar.
O covarde desmaio: violações e feridos
Com matemática precisão cumpriam-se, uma depois da outra, as etapas do maquiavélico plano dos delinqüentes. Uma vez na Quebrada dei Cacique Cocama, os quatro homens que haviam ficado em terra apressaram-se a subir e, junto com seus três companheiros de delito, amarraram e amordaçaram, com a maior violência, o Sargento Rodríguez Saravia e os quatro tripulantes, a quem, em seguida, a empurrões e maus-tratos, encerraram no porão da nave, dizendo a trouxe-mouxe que estavam ali por ordem da Arca para realizar um escarmento em razão das atividades pecaminosas do Serviço de Visitadoras. De imediato, os sete piratas — os quais, segundo o testemunho de suas vítimas, denotavam forte estado alcoólico e agitado nervosismo — dirigiram-se ao camarote onde mantinham encerradas as visitadoras para satisfazer seus desmedidos desejos. Neste instante, produziu-se o primeiro derramamento de sangue. Com efeito, ao descobrir as criminosas intenções dos indivíduos, as aventureiras opuseram-lhes viva resistência, seguindo o exemplo do bravo Juan Rivera, Chupito, o qual, sem se amedrontar nem parar para pensar, em sua baixa estatura e debilidade física, arremeteu contra os piratas a cabeçadas e patadas, increpando-lhes seu mau proceder, porém, por desgraça, sua quixotesca ação não durou muito, já que aqueles o fizeram desmaiar em pouco tempo, batendo nele com as coronhas dos seus revólveres e chutando-o no chão até quebrar-lhe a cara. Sorte parecida sofreu a visitadora Luisa Cánepa, (a) Peituda, a qual demonstrou também muita energia, enfrentando os seqüestradores como um verdadeiro varão, arranhando-os e mordendo-os até que estes bateram nela com tanta ferocidade que perdeu os sentidos. Uma vez dominada a resistência das perdidas mulheres, os piratas obrigaram-nas, a ponta de revólver e carabina, a comprazê-los em seus viciados desejos, para o que cada um dos assaltantes escolheu uma vítima, tendo-se registrado uma ameaça de pugilato entre eles, que aspiravam todos à possessão da infortunada Olga Arellano Rosaura, que, finalmente, foi cedida a Teófilo Morey em consideração à sua idade.
Tiroteio e resgate: morre a bela visitadora
Entretanto, ao mesmo tempo em que os sete indivíduos celebravam, em meio à violência, sua grande orgia, o deslizador enviado pela base de Nauta tinha percorrido um bom trecho do rio sem encontrar vestígios do Eva e se dispunha a regressar quando, milagrosamente, os arrebóis do crepúsculo fizeram perceber, a distância, brilhando entre as árvores da Quebrada dei Cacique Cocama, as cores verde-rubras do barco. O deslizador dirigiu-se, de imediato, a seu encontro, sendo recebido, ante a estupefação do grupo, com uma chuva de balas, uma das quais feriu, na coxa esquerda e parte inferior do glúteo, o soldado raso Felicio Tanchiva. Mal recuperados do espanto, os soldados repeliram o fogo, iniciando-se então um tiroteio que se prolongou pelo espaço de alguns minutos e no curso dos quais caiu, mortalmente ferida — pelas balas dos soldados, segundo determinou a autópsia —, Olga Arellano Rosaura, (a) Brasileira. Vendo que se encontravam em inferioridade de condições, os soldados decidiram retornar a Nauta em busca de reforços. Ao observar que a patrulha se afastava, os delinqüentes, presas do pânico em face da morte ocorrida, demonstraram uma grande confusão. O primeiro a reagir foi, ao que parece, Teófilo Morey, que exortou a seus cupinchas a guardar calma, indicando-lhes que enquanto a patrulha chegava a Nauta tinham tempo não só para fugir mas, inclusive, para completar seu plano. Foi então quando alguém — não se pôde saber quem: o próprio Morey, segundo uns, Fábio Tapayuri, segundo outros — sugeriu que crucificassem a Brasileira em vez de um animal. Os delinqüentes começaram a executar o seu sangrento desígnio, jogando à margem o cadáver de Olga Arellano e decidindo, para economizar tempo, não armar uma cruz, mas utilizar uma árvore qualquer. Estavam entregues a seu macabro mister quando quatro deslizadores com soldados se fizeram visíveis no horizonte. Os delinqüentes iniciaram, de imediato, a fuga, internando-se na selva. Só dois deles — Nepomuceno Quilca e Renán Márquez Curichimba — puderam ser capturados naquele momento. Ao subir à coberta do Eva, os soldados depararam-se com um espetáculo de provocar calafrios: mulheres aterrorizadas e seminuas, correndo em estado de histeria, algumas com marcas de sevícias no rosto e no corpo (Peituda) e, um pouco mais além, a uns passos da margem, o belo corpo de Olga Arellano Rosaura cravado em um tronco de lupuna. As balas haviam ferido a desditada ao começar o tiroteio, atingindo-lhe órgãos vitais, como o coração e o cérebro, o que terminou instantaneamente com seus dias. A infeliz foi tirada da cruz, coberta com cobertores e levada ao barco, em meio ao horror e ao choro frenético das outras vítimas.
Imediatamente após serem liberados, o Primeiro-Sargento Rodríguez Saravia e a tripulação alertaram Nauta, Requena e Iquitos, através do rádio, sobre o acontecido, mobilizando-se de imediato todos os postos, bases navais e guarnições da região em imensa caçada aos cinco prófugos. Todos foram capturados em vinte e quatro horas. Três deles — Teófilo Morey, Artidoro Soma e Fábio Tapayuri — ao anoitecer, nos arredores de Nauta, onde pretendiam introduzir-se sub-repticiamente, depois de haver percorrido, estropiando as roupas e ensangüentando o corpo, muitos quilômetros de selva. Os outros dois — Caifás Sancho e Fabriciano Pizango — foram capturados nas primeiras horas da manhã, quando subiam o Ucayali, em um deslizador roubado no porto de Nauta. Um deles, Caifás Sancho, estava ferido com certa gravidade, por uma bala que lhe arrancou parte da boca.
As vítimas da agressão foram transferidas para Nauta, onde Luisa Cánepa e Chupito receberam os curativos que exigiam, demonstrando ambos muita energia e coragem em sua aflitiva situação. Lá mesmo foram tomadas as primeiras declarações das vítimas sobre a terrível experiência que acabavam de passar. O cadáver da infeliz Olga Arellano Rosaura só pôde ser trazido a Iquitos no dia 4, devido às diligências policiais, o que se fez pelo ar, no hidroavião Dalila, tendo-se trasladado a Nauta, para acompanhar os restos e realizar as primeiras investigações, o então ainda unicamente Sr. Pantaleón Pantoja. O restante das visitadoras retornou a Iquitos por via fluvial, no barco Eva, que não sofreu avarias de importância durante o assalto, enquanto os detidos permaneciam dois dias mais em Nauta, submetidos a interrogatórios exaustivos por parte das autoridades. Ontem, sob forte escolta, chegaram a Iquitos em um hidroavião da FAP, e se encontram atualmente nas celas da prisão central da Calle Sargento Lores, onde, sem dúvida, permanecerão bastante tempo ainda, por causa do seu procedimento canalha.
Inquieta e escandalosa foi a vida da visitadora falecida
Nasceu a 17 de abril de 1936, no então afastado casario de Nanay (ainda não existia a estrada que une o balneário a Iquitos), sendo filha de Dona Hermenegilda Arellano Rosaura e de pai desconhecido. Foi batizada a 8 de maio do mesmo ano, na igreja de Punchana, com o nome de Olga e os dois sobrenomes da mãe. Esta exercia em Nanay, segundo contam pessoas do bairro que a recordam, ofícios diversos, como empregada doméstica da base naval de Punchana e de bares e restaurantes do lugar, trabalhos de onde sempre a despediam por seu gosto pela bebida, a tal extremo, dizem, que era usual o espetáculo da cambaleante figura de Traguinho Hermes, como a apelidavam, percorrendo o bairro entre o riso da gente e seguida por sua filha mais moça, Olguita. Com um pouco de sorte, quando a menina teria uns oito ou nove anos, Traguinho Hermes desapareceu de Nanay, abandonando a desamparada menininha, que foi recolhida, de caridade, pelos Adventistas do Sétimo Dia em seu pequeno orfanato da esquina de Samanez Ocampo com Napo, onde atualmente só está a igreja. Na referida instituição, aquela pobre menina, que até então fora criada como um animalzinho vira-lata, na sujeira e na ignorância, recebeu os primeiros ensinamentos, aprendeu a ler, escrever e a contar e levou uma vida modesta mas sadia e bela, regulada pelos severos preceitos morais desta igreja. (“Não devem ser tão sólidos, como os pintam, esses preceitos, a julgar pela folha de serviços da cortesã”, comentou, para um dos nossos redatores, com sua severidade característica, um religioso católico antigamente vinculado ao Exército, célebre pelas constantes ironias dos seus sermões contra as numerosas igrejas protestantes domiciliadas em Iquitos, e que nos pediu não revelar seu nome.)
O drama de um jovem missionário
“Lembro-me muito bem dela” disse-nos, por sua vez, o pastor adventista Reverendo Abraham MacPherson, que dirigia o orfanato nos anos em que lá permaneceu á jovem Olga Arellano Rosaura. “Era uma moreninha alegre, de inteligência rápida e espírito vivo, que acompanhara documente as prédicas de seus guardiães e professores, e de quem esperávamos muitas coisas boas. O que a perdeu foi, sem dúvida, a grande beleza física com que a dotou a natureza a partir da adolescência. Mas, enfim, oremos por ela e inspiremo-nos em seu caso para emendar nossas próprias vidas, em vez de recordar coisas tristes e amargas que a ninguém servem e a nada conduzem.”
O Reverendo Abraham MacPherson alude, veladamente, a um acontecimento que, na época, deu muito o que falar em Iquitos: a sensacional fuga do orfanato dos Adventistas do Sétimo Dia da bela menina-moça que era então Olguita Arellano Rosaura com um de seus guardiães, o jovem pastor adventista Richard Jay Pierce Jr., recém-chegado a Iquitos de sua distante terra, América do Norte, para fazer aqui suas primeiras experiências missionárias. O episódio terminou tragicamente, como recordarão muitos leitores de El Oriente, pois foi a este jornal, já então o mais prestigioso de Iquitos, que o atormentado missionário dirigiu sua carta de desculpas à opinião pública loretana antes de pôr fim a seus dias, desesperado pelo remorso por haver sucumbido ante a beleza adolescente de Olguita, enforcando-se em uma palmeira, nas imediações do casario de San Juan (El Oriente publicou a íntegra da carta, em seu texto meio inglês, meio espanhol, a 20 de setembro de 1949).
O tobogã da vida airada
Em seguida a esta precoce e infeliz aventura sentimental, Olga Arellano Rosaura começou a descer as ladeiras dos maus costumes e da vida desregrada, para o que, inquestionavelmente, a ajudavam seus encantos físicos e sua grande simpatia. Assim é que, desde aquela época, foi comum distinguir sua bela silhueta nos lugares noturnos de Iquitos, como o Mao Mao, A Selva e o desaparecido antro O Vergel Florido, que as autoridades tiveram de fechar por se haver comprovado que o citado bar, honrando seu nome, era uma casa de encontros na qual perdiam a virtude, das quatro às sete da tarde, alunas dos colégios secundários de Iquitos. Seu proprietário, o quase mitológico Humberto Sipa, (a) Moquitos, que passou uns meses na cadeia, empreendeu depois uma exitosa carreira nesse campo de negócios, como é de todos conhecido. Seria longo, naturalmente, traçar o itinerário sentimental da encantadora Olguita Arellano Rosaura, a quem, por esses anos, a murmuração e o falatório atribuíam incontáveis protetores e amigos poderosos, muitos deles casados, com os quais a rapariga não vacilava em aparecer em público. Um desses rumores inconfirmáveis assegura que Olguita foi expulsa de Iquitos, discretamente, em fins de 1952, pelo então prefeito do departamento, Dom Miguel Torres Salamino, devido aos apaixonados amores que mantinha com a travessa Olguita um filho do prefeito, o estudante de engenharia Miguelito Torres Saavedra, cuja morte, nas espessas águas da laguna de Quistococha, muitas cabeças qualificaram de suicídio, pelas repetidas mostras de desolação que dava o jovem desde a partida de sua amada, embora a família desmentisse energicamente esse rumor. Em todo caso, a inquieta Olguita partiu para a brasileira cidade de Manaus, onde a única coisa que se soube dela foi que, nos anos que permaneceu ali, em vez de corrigir sua conduta, piorou-a, dedicando-se à vida a plena luz, pois começou a exercer integralmente, em lugares aparentes — lupanares e casas de encontro —, o milenário ofício da prostituição.
Volta à Pátria
Adestrada nesses indecentes misteres e mais bela que nunca, Olga Arellano Rosaura, a quem a inventiva loretana marcou, de imediato, com o apelido de Brasileira, voltou, há uns dois anos, à sua Iquitos natal, ingressando quase imediatamente, através do conhecido recrutador de mulheres desse lugar, o Chinês Porfirio, do bairro de Belén, no Serviço de Visitadoras, essa instituição que transporta mulheres da vida fácil como se fossem cabeças de gado ou artigos de primeira necessidade às guarnições de fronteira. Entretanto, pouco antes, a incorrigível Olguita protagonizou outro ruidoso escândalo, ao ser surpreendida, na última fila do Cine Bolognesi, na sessão noturna, realizando gestos indecentes e ações indecorosas com um tenente da Guarda Civil, que teve de ser transferido de Loreto por causa do ocorrido. Houve, inclusive — recordarão nossos leitores —, uma tentativa de agressão de parte da esposa do oficial, que avançou contra a Brasileira, numa quinta-feira de retreta, trocando ambas golpes e insultos sobre o gramado de nossa Plaza de Armas.
Olga Arellano Rosaura se converteria, em pouco tempo, graças a seus atrativos físicos, na visitadora estrela do mal-afamado recinto do rio Itaya, e na amiga dileta do administrador-gerente do estabelecimento, a quem, até ontem, ingenuamente, supúnhamos um paisano comum e conhecido, Dom Pantaleón Pantoja, e que resultou ser, para perplexidade e confusão de muitos, nada menos que capitão do nosso Exército. Para ninguém é segredo, nesta cidade, a estreita e íntima relação que houve entre a formosa finada e o senhor (perdão), o capitão da ativa Pantoja, casal que não era raro ver, passeando muito melosamente na Plaza 28 de Júlio ou abraçando-se com furor, à caída da tarde, no Malecón1 Tarapacá. Involuntária semeadora de tragédias, dizem que Olga Arellano Rosaura, a sedutora Brasileira, foi a razão da partida de Iquitos da desprezada esposa do Capitão Pantoja, lamentável drama familiar, revelado por um colega nosso, destacado comentarista radiofônico desta cidade.
1 Aterro. (N. do E.)
Fim trágico
E assim chegamos ao desenlace desta vida, que, ainda em plena juventude, encontrou, no entardecer do segundo dia do ano de 1959, na Quebrada dei Cacique Cocama, nos arredores de Nauta, prematuro e espantoso final, em razão de balas traiçoeiras que, talvez enfeitiçadas por sua beleza, como tantos homens, a preferiram em sua mortífera trajetória, e dos cravos de uns degenerados ou fanáticos. As muitas pessoas que acudiram ao mal-afamado local do rio Itaya, onde a funerária Modus Vivendi tinha instalado uma capela ardente de primeira classe, para assistir ao velório de Olga Arellano Rosaura, ao aproximar-se do ataúde admiravam intata, através do vidro transparente, resplandecente sob os lírios fúnebres, a beleza moreninha da BRASILEIRA!
Primeira mão exclusiva de El Oriente
Epístola aos bons sobre os maus do Irmão Francisco
Publicamos, a seguir, em primeira mão e com exclusividade, um texto chegado a nossa redação ontem à noite, e escrito de próprio punho pelo celebérrimo Irmão Francisco, profeta e chefe supremo da Irmandade da Arca, que é procurado pela polícia de quatro países como cérebro pensante escondido atrás das crucificações que, de um tempo a esta parte, vêm ensangüentando nossa querida Amazônia. El Oriente está em condições de garantir a autenticidade deste sensacional documento.
Em nome do Pai, do Espírito Santo e do FILHO QUE MORREU NA CRUZ, inclino-me à opinião pública de todo o Peru e do mundo para, com a permissão e a inspiração das vozes do Céu que espera os BONS, desmentir e negar como malvadas, caluniosas e faltas de toda verdade, as acusações dos MAUS que pretendem desposar as IRMÃS e IRMÃOS DA ARCA com a violação, morte e posterior CRUCIFICAÇÃO da Srta. Olga Arellano Rosaura, tristemente ocorrida na Quebrada dei Cacique Cocama, nas proximidades de Nauta. Do meu afastado refúgio, onde carrego a CRUZ que o Senhor quis destinar-me, em sua generosa e infinita sabedoria, mantendo-me distante das mãos ímpias que não podem nem poderão nunca alcançar-me nem afastar-me do povo crente, santo, BOM, das Irmãs e dos Irmãos, unidos em cópula divina no amor a Deus e no ódio ao MAU, levanto minha mão e, movendo-a energicamente da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, digo, acompanhando com o grito o gesto, NÃO! Não é verdade que as Irmãs e os Irmãos da Arca, cujo objetivo é fazer o BEM e preparar-se para subir ao Céu quando o Pai, o Espírito Santo e o FILHO QUE MORREU NA CRUZ decidam que este mundo cheio de MALDADE e de impiedade acabe pelo fogo e pela água como está anunciado no livro BOM da Bíblia, o que acontecerá muito em breve porque assim me disseram as vozes que escuto e que não vêm deste mundo, tenham algo que ver com o crime que cometeram os MAUS e que querem atribuir-nos para desviar suas culpas e fazer mais grossos e pontiagudos nossos CRAVOS e mais áspera a MADEIRA de nossas CRUZES. Nenhum dos acusados da morte da Srta. Arellano pertenceu nunca a nossa IRMANDADE de gente BOA e nem sequer assistiu, nenhum deles, na qualidade de espectador ou curioso, às reuniões que têm realizado as ARCAS da região onde vivem, ou seja, as de Nauta, Bagazán e Requena, como me confirmaram os BONS Apóstolos dessas Arcas. Nunca se viu nenhum desses acusados presente em corpo às reuniões celebradas para render alabança ao Pai, Espírito Santo e ao FILHO QUE MORREU NA CRUZ e pedir-lhes perdão por seus pecados para estar com a alma lavada quando chegue o MOMENTO FINAL. As Irmãs, os Irmãos não matam, não violam, não assaltam, não roubam e só odeiam a violência do MAL, como lhes ensinou o Céu por minha boca. Nunca se poderá atirar em nossa cara um só ato contrário ao BEM e não é verdade que prediquemos o crime como nos imputam os que nos perseguem e obrigam a nos esconder e a viver como feras daninhas no fundo das espessuras. Mas nós os perdoamos porque eles são simples escravos obedientes em mãos do Céu, que os utiliza como CRUZES que a nós assegurarão a imortalidade da glória eterna. E a pobre Olga Arellano, embora não tivesse ainda escutado a palavra, desde já a incorporamos a nossas orações e desde agora a recordaremos junto a nossos mártires e santos que nos vêem, que nos ouvem, nos falam, nos protegem e gozam merecidamente, lá em cima, da paz celestial junto ao Pai, ao Espírito Santo e ao FILHO QUE MORREU NA CRUZ.
IRMÃO FRANCISCO
Nota da Redação: Efetivamente, durante o enterro, circularam no cemitério-geral de Iquitos estampas com a imagem de Olga Arellano Rosaura, semelhantes às que existem com as de outros crucificados da Arca, como o célebre menino-mártir de Moronacocha e a Santa Ignacia.
Desmando contra jornalista loretano
(Editorial de El Oriente, 6 de janeiro de 1959)
A publicação, em primeira mão e com exclusividade, em nossa edição de ontem, da Epístola aos bons sobre os maus, enviada à nossa redação do seu esconderijo secreto, em algum lugar da selva, pelo Irmão Francisco, líder e condutor espiritual supremo dos “cruzes” ou “irmãos” da Arca, tem sido motivo para que nosso diretor, o conhecido jornalista de prestígio internacional Joaquín Andoa, fosse objeto de um inqualificável desmando de parte das autoridades policiais do departamento de Loreto e viesse a engrossar a gorda lista de vítimas da liberdade de imprensa. Com efeito, nosso diretor foi convocado, ontem pela manhã, pelo Coronel da Guarda Civil Juan Amézaga Riofrío, chefe da V Região de Polícia (Loreto) e pelo inspetor-chefe de Loreto da Polícia de Investigações do Peru (PIP), Federico Chumpitaz Fernández. As referidas autoridades exigiram-lhe que revelasse o modo pelo qual o jornal El Oriente tinha obtido a missiva do Irmão Francisco, indivíduo perseguido pela justiça como eminência parda dos vários casos de crucificações ocorridas na Amazônia. Ao responder nosso diretor, respeitosa mas firmemente, que as fontes de informação de um jornalista constituem segredo profissional e são pelo mesmo motivo tão sagradas e invioláveis como as revelações recebidas em confissão pelo sacerdote, os dois chefes policiais desataram em impropérios de uma vulgaridade sem precedentes contra o Sr. Joaquín Andoa, ameaçando-o, inclusive, com castigos corporais (“Te daremos um aperto”, foram suas palavras textuais) se não respondesse a suas perguntas. Como nosso diretor se negasse dignamente a trair a ética profissional, foi trancafiado em uma cela da delegacia pelo espaço de oito horas, isto é, até as sete da tarde, quando foi liberado, por gestão do próprio prefeito do departamento. A redação toda de El Oriente, unida como um único homem na defesa da liberdade de imprensa, do segredo profissional e da ética informativa, protesta por este abuso cometido contra um destacado intelectual e jornalista loretano e comunica que enviou telegramas, denunciando o fato, à Federação Nacional de Jornalistas do Peru e à Associação Nacional de Jornalistas do Peru, nossos mais altos órgãos de classe no país.
Assassinos da Quebrada Cacique Cocama não serão julgados por tribunal militar
Iquitos, 6 de janeiro. — Uma fonte bem informada e ligada ao Comando-Geral da V Região Militar (Amazônia) desmentiu esta manhã os insistentes rumores que circulavam em Iquitos, no sentido de que os sete assaltantes de Nauta seriam transferidos ao foro castrense e julgados por um tribunal militar, através de um processo sumário. Segundo aquela fonte, as Forças Armadas não reclamaram, em nenhum momento, que lhes fosse confiada a tarefa de ajuizar e punir os delinqüentes, de modo que aqueles, assim, permanecerão submetidos ao foro regular da justiça civil.
Ao que parece, a origem do desmentido boato foi uma solicitação levada às instâncias superiores do Exército pelo Capitão de Intendência Pantaleón Pantoja — cujas funções são de sobejo conhecidas nesta cidade — para que o foro jurídico castrense exigisse a instrução processual e o castigo dos responsáveis pelo assalto de Nauta, sob o argumento de que o barco Eva e seus tripulantes pertenciam à Marinha Nacional e de que o comboio de mariposas era parte de um organismo militarizado, como seria o caso do desprestigiado Serviço de Visitadoras que aquele oficial dirige. As Forças Armadas teriam desconsiderado por “estranha” — é o qualificativo empregado por nosso informante — a solicitação do Capitão Pantoja, indicando que o transporte Eva e seus tripulantes, quando vítimas do assalto, não efetuavam serviço militar algum, mas tarefas estritamente civis, e que o chamado Serviço de Visitadoras não é nem poderia ser, em nenhum caso, uma instituição militarizada, mas uma empresa comercial civil, que teve eventuais e meramente toleradas, nunca, porém, auspiciadas nem oficializadas, relações com o Exército. A este respeito, acrescentou a mesma fonte, leva-se a termo atualmente, com a discrição necessária, uma investigação ordenada pelo próprio Estado-Maior do Exército sobre o referido Serviço de Visitadoras, com a finalidade de revelar sua origem, composição, funções e benefícios, determinar sua legalidade e, se for o caso, as responsabilidades e sanções pertinentes.
— Ah, já está de pé, filhinho — passa a noite sobressaltada, em seu sonho uma barata é comida por um rato que é comido por um gato que é comido por um lagarto que é comido por um jaguar que é crucificado e cujos despojos são devorados por baratas, levanta-se ao amanhecer, passeia pela sala escura retorcendo as mãos, quando ouve o relógio tocar seis vezes, bate na porta do quarto de Panta a Sra. Leonor. — Como, você pôs a farda outra vez?
— Toda Iquitos me viu fardado, mamãe — verifica que a túnica está desbotada e que as calças estão dançando, olha-se em diferentes poses no espelho e se enche de melancolia Pantita.
— Não tem mais sentido continuar com esta mentira do Sr. Pantoja.
— Isso é o Exército que devia dizer, não você — engana-se com as chaves da cozinha, derrama o leite, lembra que se esqueceu do pão, não pode impedir que a bandeja trema em suas mãos a Sra. Leonor. — Venha, pelo menos tome um pouco de café. Não saia com o estômago vazio, não seja teimoso.
— Está bem, mas só meia xícara — dirige-se calmamente à sala de jantar, põe o quepe e as luvas sobre a mesa, senta-se, bebe aos pouquinhos Panta. — Ande, me dê um beijo. Não fique com essa cara, mamãezinha, sua angústia me contagia.
— A noite toda tive pesadelos terríveis — desaba no sofá, leva a mão à boca, tem a voz rouca e torturada a Sra. Leonor.
— E agora, que é que vai acontecer a você, Panta? Que será de nós?
— Não vai acontecer nada — tira dinheiro de sua carteira, coloca-o no roupão da Sra. Leonor, abre uma persiana, vê gente caminhando para o trabalho, o mendigo cego da esquina já instalado com o pratinho e a flauta Panta. — E, além disso, se acontecer, não me importo.
— Ouviram o rádio? —pula de espanto no assento do táxi, ouve o chofer exclamar e repete não é possível, que desgraça, paga, desce, entra na Pantilândia batendo com o portão, urra íris. — Prenderam o Irmão Francisco! Estava escondido no rio Napo, perto de Mazán. Estou com tanta pena, que é que vão fazer a ele?
— Não me arrependo do que fiz — vê sair de sua casa o fabricante de lápides e o marido de Alicia, vê passar carros, crianças em uniforme, com livros, uma velhinha que oferece bilhetes de loteria, sente-se esquisito, abotoa a túnica Panta.
— Agi segundo minha consciência e esse é também o dever de um soldado. Enfrentarei o que vier. Tenha confiança em mim, mamãe.
— Sempre tive, filhinho — escova-o, arruma-o, abre os braços, beija-o, aperta-o, olha os bigodões do velho retrato a Sra. Leonor. — Uma fé cega em você. Mas, com este assunto, já não sei em que pensar. Você ficou louco, Panta? Vestir a farda para fazer um discurso no enterro de uma p.! Seu pai, seu avô teriam feito uma coisa dessas?
— Mamãe, por favor, não insista — vê se cumprimentarem a vendedora de bilhetes e o cego, vê um homem que caminha lendo jornal, um cachorro que mija caudalosamente, faz meia-volta, caminha em direção à porta Panta. — Acho que lhe disse que estava terminantemente proibida de tocar outra vez nesse tema.
— Está bem, eu me calo, eu, sim, sei obedecer aos superiores — abençoa-o, despede-se na calçada, volta a seu quarto, joga-se na cama sacudida por soluços a Sra. Leonor. — Queira Deus que você não se arrependa, Panta. Rezo para que não aconteça nada, mas a loucura que você fez vai nos trazer desgraças, estou certa.
— Bem, em certo sentido sim, pelo menos quanto a mim — mal sorri, passa entre os parentes agrupados à porta do cárcere esperando a hora de visita, afasta um menino que vende tartarugas e macaquinhos o Tenente Bacacorzo. — Perdi a promoção deste ano, quanto a isso não há dúvida. Mas, enfim, a coisa está feita e não se pode dar marcha à ré.
— Eu lhe ordenei levar a escolta, eu lhe ordenei prestar homenagens àquela pobre mulher — abaixa-se para amarrar um sapato, distingue na porta do Banco Amazônico a divisa “O dinheiro da selva para a selva” o Capitão Pantoja. — Toda a responsabilidade é minha e só minha. Isso foi o que lembrei ao General Collazos em carta e é isso o que vou dizer pessoalmente a Scavino. Você não tem culpa nenhuma, Bacacorzo: os regulamentos são muito claros.
— Encontraram-no dormindo — senta-se na rede de Sinforoso Caiguas, fala no centro de um círculo de visitadoras Penélope. — Tinha feito uma covinha com ramos e folhas, passava o dia rezando, não comia nada do que levavam os apóstolos. Só raízes, ervinhas. É um santo, é um santo.
— A verdade é que eu não devia lhe dar importância — afunda as mãos nos bolsos, entra na sorveteria O Paraíso, pede um cafezinho com leite, ouve o Capitão Pantoja perguntar-lhe não é esse o professor, o feiticeiro? responde é esse mesmo o Tenente Bacacorzo. — Aqui entre nós, o que me pediu era uma grande loucura. Uma pessoa com cinco dedos de testa teria ido contar a Scavino o que o senhor pretendia fazer, para que garantisse a mão. Talvez agora estivesse me agradecendo, capitão.
— Tarde para se lamentar — ouve o professor aconselhar a uma senhora se quer que seu recém-nascido não demore a falar, esmague grãos de milho na boca o Capitão Pantoja. — Se pensava assim, por que merda não o fez, Bacacorzo? Você me livraria dos remorsos que terei se não lhe derem o novo galão por minha culpa.
— Porque só tenho quatro dedos aqui — bate na testa, bebe seu café com leite, paga, escuta o professor recomendar a sua cliente e se seu filhinho é mordido por víbora, cure-o com mamadeiras de fel de majaz, sai à rua o Tenente Bacacorzo.
— Minha mulher sempre diz isso. Falando sério, eu o vi tão abalado com a morte daquela visitadora, que fiquei de coração mole.
— O diretor de El Oriente se mata dizendo que não delatou o Irmão, jura e chora que não contou nada à polícia — é a última a chegar a Pantilândia, anuncia trago notícias, senta-se na rede, engasga-se Coca. — É por gosto, já lhe queimaram o carro e quase queimam seu jornal. Se não sai de Iquitos, os “irmãos” vão matá-lo. Vocês pensam que o Sr. Andoa sabia o esconderijo do Irmão Francisco?
— E depois, aquela idéia de prestar homenagens a uma puta, exatamente pela loucura, era tão fascinante — solta uma gargalhada, caminha entre os vendedores ambulantes e as lojas atopetadas do Jirón1 Lima, percebe que o Bazar Moderno pendurou um novo letreiro: “Artigos afamados por sua durabilidade e aspecto inesquecível” o Tenente Bacacorzo. — Não sei o que me aconteceu, talvez ficasse contagiado por seu delírio.
1 Via urbana composta de várias ruas ou trechos entre esquinas. (N. do T.)
— Não houve tal delírio, foi uma decisão tomada com calma e raciocínio — chuta uma latinha, atravessa o asfalto, esquiva-se de uma caminhonete, pisa na sombra dos jambeiros da Plaza de Armas o Capitão Pantoja. — Mas essa é outra história. Prometo-lhe fazer o impossível para evitar que isto o prejudique, Bacacorzo.
— Uma boa história para contar aos netos, embora não vão acreditar — sorri, apóia-se na Coluna dos Heróis, nota que os nomes estão apagados ou manchados pela caca dos pássaros o Tenente Bacacorzo. — Se bem que, talvez, para isso servem os jornais. Sabe que não me acostumo a vê-lo fardado? Parece outra pessoa.
— A mesma coisa me acontece, sinto-me estranho. Três anos é muito tempo — contorna o Banco de Crédito, cospe diante da Casa de Fierro, vislumbra o proprietário do Hotel Imperial perseguindo uma moça o Capitão Pantoja. — Você já viu Scavino?
— Não, não vi — olha as janelas de brilhosos azulejos do quartel-general, chega ao Malecón Tarapacá, detém-se para ver sair do Hotel de Turistas um grupo de estrangeiros com máquinas fotográficas o Tenente Bacacorzo. — Mandou-me dizer que tinha terminado a missão especial, ou seja, meu trabalho com o senhor. Tenho de me apresentar, na segunda-feira, em seu gabinete.
— Sobram-lhe quatro dias para juntar forças e preparar-se para a tormenta — pisa numa casca de banana, observa as paredes descascadas do antigo Colégio Santo Agostinho, a erva que o devora, pulveriza uma família de formigas que arrastavam uma folhinha o Capitão Pantoja. — De modo que esta é nossa última entrevista oficial.
— Vou contar um mexerico que vai fazê-lo rir — acende um cigarro junto ao Monumento do Rotary Club, vê umas alunas jogando vôlei na esplanada do molhe o Tenente Bacacorzo. — Sabe que papo correu, bastante tempo, entre o pessoal que nos via sempre sozinhos e em lugares afastados? Que éramos bichas, imagine. Puxa, nem assim o senhor ri?
— Está preso em Mazán e cercaram o povoado de soldados — fica com a orelha grudada no rádio, repete a gritos o que ouve, corre ao embarcadouro, aponta para o rio Pichuza.
— O povo vai a Mazán para salvar o Irmão Francisco. Vocês viram? Quantas lanchas, deslizadores, balsas. Olhem, olhem.
— Nestes anos de conversas meio secretas, cheguei a apreciá-lo muito, Bacacorzo — põe a mão no ombro dele, vê colegiais pular, chutar a bola, correr, sente cócegas na orelha, coça-se o Capitão Pantoja. — É o único amigo que fiz aqui até agora, por causa desta minha situação tão estranha. Queria que soubesse disso. E, também, que lhe fico muito agradecido.
— Com o senhor, a mesma coisa, simpatizei desde o primeiro momento — consulta o relógio, pára um táxi, abre a porta, sobe, vai embora o Tenente Bacacorzo. — E tenho a impressão de que sou o único que o conhece tal como é. Boa sorte no Comando, alguma coisa muito ruim o espera. Aperte os cinco, meu capitão.
— Adiante, já o estava esperando — levanta-se, vai a seu encontro, não lhe dá a mão, olha-o sem ódio, sem rancor, inicia uma caminhada nervosa à sua volta o General Scavino. — E com a impaciência que deve estar imaginando. Vamos ver, comece a vomitar as justificativas para a sua façanha. Vamos, rápido, comece.
— Bom dia, meu general — bate os calcanhares, faz continência, pensa não parece furioso, que estranho o Capitão Pantoja. — Peço-lhe que faça subir aos superiores esta carta, depois de lê-la. Nela assumo eu só a responsabilidade pelo que ocorreu no cemitério. Quero dizer, o Tenente Bacacorzo não teve a menor...
— Alto, não fale desse sujeito, que me embrulha o estômago — permanece imóvel um segundo, levanta a mão, recomeça o seu passeio circular, exaspera ligeiramente a voz o General Scavino. — Proíbo-o de mencioná-lo mais em minha presença. Pensava que era um oficial de minha confiança. Ele devia vigiá-lo, refreá-lo, e acabou sendo um amigo seu. Mas eu juro que lamentará haver levado aquela escolta ao enterro da puta.
— Não fez mais que obedecer às minhas ordens — continua em posição de sentido, fala com suavidade, pronuncia devagar todas as letras o Capitão Pantoja. — Eu obriguei o Tenente Bacacorzo a levar a escolta ao cemitério.
— Não se ponha a defender os outros, é o senhor quem precisa que o defendam — volta a sentar-se, examina-o com olhos lentos e triunfais, remexe em uns jornais o General Scavino. — Imagino que já viu os resultados de sua gracinha. Terá lido estes recortes, claro. Mas ainda não conhece os de Lima, os editoriais de La Prensa, de El Comercio. Todo mundo protestando contra o Serviço de Visitadoras.
— Se não mandam reforços, pode acontecer algo muito feio, meu coronel — coloca sentinelas, ordena calar as baionetas, previne os forasteiros um passo mais e disparo, manipula o aparelho de rádio portátil, assusta-se o Tenente Santana. — Deixe-me transferir o louco para Iquitos. A cada momento desembarca mais e mais gente e aqui em Mazán estamos sem cobertura, o senhor sabe. A qualquer momento tentarão tomar de assalto’ a cabana onde ele está preso.
— Não pense que estou tentando tirar o corpo quanto a meus atos, meu general — põe-se em posição de descanso, sente que suas mãos transpiram, não olha os olhos mas a calva com sardas pardas de Scavino, murmura o Capitão Pantoja. — Mas permita-me recordar-lhe que rádios e jornais tinham falado do Serviço de Visitadoras antes do episódio de Nauta. Não cometi nenhuma indiscrição. Minha ida ao cemitério não delatou o Serviço. Sua existência era vox populi.
— De modo que aparecer vestido de oficial do Exército em um cortejo de meretrizes e de cafifas é um incidente sem importância — mostra-se teatral, compreensivo, benevolente, até risonho o General Scavino. — De modo que prestar honrarias a uma mulherzinha, como se se tratasse...
— De um soldado morto em ação — levanta a voz, faz um gesto, dá um passo à frente o Capitão Pantoja. — Sinto muito, mas esse é, nem mais nem menos, o caso da visitadora Olga Arellano Rosaura.
— Como se atreve a gritar comigo — ruge, avermelha-se, estremece no assento, desarruma a mesa, acalma-se em seguida o General Scavino. — Baixe essa voz se não quer que o mande prender por insolente. Com quem, merda, pensa que está falando?
— Peço-lhe que me perdoe — retrocede, enquadra-se, faz soar os tacos, baixa os olhos, sussurra o Capitão Pantoja. — Sinto muito, meu general.
— O comando queria que ele permanecesse lá até receber ordens de Lima, mas se em Mazán a coisa está tão feia, sim, o melhor será levá-lo a Iquitos — consulta seus adjuntos, estuda o mapa, assina um vale para combustível aéreo o Coronel Máximo Dávila. — De acordo, Santana, mando-lhe um hidroavião para tirar daí o profeta. Mantenha a cabeça fria e evite derramamento de sangue.
— De modo que as idiotices do seu discurso, acredita naquilo de verdade — recobra a compostura, o sorriso, a superioridade, soletra o General Scavino. — Não, já o estou conhecendo melhor. O senhor é um grande cínico, Pantoja. Por acaso não sei que a rameira era sua querida? Montou aquele espetáculo em um momento de desespero, de sentimentalismo, porque estava apaixonado por ela. E agora, que porra, vem me falar de mortos em ação.
— Juro-lhe que meus sentimentos pessoais por aquela visitadora não influíram em nada neste assunto — enrubesce, sente fogo nas faces, gagueja, crava as unhas na palma das mãos o Capitão Pantoja. — Se, em vez dela, a vítima tivesse sido outra, teria procedido da mesma forma. Era minha obrigação.
— Sua obrigação? — berra com alegria, levanta-se, passeia, detém-se diante da janela, vê que chove a cântaros, que a bruma oculta o rio o General Scavino. — Cobrir de ridículo o Exército? Fazer o papel de um fantoche? Revelar que um oficial está trabalhando de alcoviteiro por atacado? Essa era sua obrigação, Pantoja? Que inimigo o paga? Porque isso é pura sabotagem, puro quintacolunismo.
— Estão vendo? Eu não disse? Os “irmãos” o salvaram — bate palmas, crava uma rãzinha em uma cruz de papelão, ajoelha-se, ri Lalita. — Acabo de ouvir, Sinchi contava isto pelo rádio. Iam metê-lo em um avião para levá-lo a Lima, mas os “irmãos” atiraram-se em cima dos soldados, resgataram-no, fugiram para a selva. Ah, que felicidade! Viva o Irmão Francisco!
— Faz apenas uns meses, o Exército rendeu homenagens ao médico Pedro Andrade, que morreu ao ser jogado do lombo de um cavalo, meu general — recorda, vê os vidros da janela crivados de gotinhas, ouve roncar o trovão o Capitão Pantoja.
— O senhor mesmo leu um elogio fúnebre magnífico no cemitério.
— Está tentando insinuar que as putas do Serviço de Visitadoras estão na mesma condição dos médicos incorporados ao Exército? — ouve tocar na porta, diz entre, recebe um impresso das mãos de um ordenança, grita que não me interrompam o General Scavino. — Pantoja, Pantoja, volte à terra.
— As visitadoras prestam um serviço às Forças Armadas não menos importante que o dos médicos, dos advogados ou dos sacerdotes incorporados — vê o raio rasgar nuvens plúmbeas, espera e ouve o estrondo do céu o Capitão Pantoja. — Com o seu perdão, meu general, mas é assim e eu lhe posso demonstrar.
— Ainda bem que o Padre Beltrán não ouve isso — desmorona em um sofá, folheia o impresso, atira-o ao cesto de papéis, olha para o Capitão Pantoja entre consternado e temeroso o General Scavino. — Você o teria deixado raivoso com o que acaba de dizer.
— Todos os nossos soldados rendem mais, são mais eficientes e disciplinados e suportam melhor a vida na selva desde que o Serviço de Visitadoras existe, meu general — pensa na segunda-feira Gladycita fará dois anos, emociona-se, aflige-se, suspira o Capitão Pantoja. — Todos os estudos e surveys que fizemos provam isto. E às mulheres que levam a cabo essa tarefa, com verdadeira abnegação, nunca se reconheceu o que fazem.
— Então, essas sinistras mentiras, acredita nelas de verdade — fica subitamente nervoso, caminha de uma a outra parede, fala só com trejeitos o General Scavino. — É verdade que acredita que o Exército deve estar agradecido às putas por se dignarem a foder com os soldados?
— Acredito com a maior firmeza, meu general — vê as cargas d’água varrendo a rua deserta, lavando os tetos, as janelas e os muros, vê que até as árvores mais robustas vergam como papéis o Capitão Pantoja. — Eu trabalho com elas, sou testemunha do que fazem. Sigo passo a passo seu difícil labor, esforçado, mal retribuído e, como se viu, cheio de perigos. Depois do que houve em Nauta, o Exército tinha o dever de prestar-lhes uma pequena homenagem. Tinha que levantar-lhes o moral de algum modo.
— Não posso nem me irritar tal o assombro em que estou — pega as orelhas, a testa, a calva, meneia a cabeça, encolhe os ombros, faz cara de vítima o General Scavino. — Não tenho raiva para tanto. Estou com a sensação de estar sonhando, Pantoja. Você me faz sentir que tudo é irreal, um pesadelo, que virei idiota, que não entendo nada do que está acontecendo.
— Houve tiros, mortos? — apavora-se, junta as mãos, reza, reúne as visitadoras, pede que a consolem a Peituda. — Santa Ignacia, que não tenha acontecido nada ao Milcaras. Sim, ele está lá, foi a Mazán, como todo mundo, pra ver o Irmão Francisco. Não é que seja “irmão”, foi de curioso.
— Imaginei que essa iniciativa não teria a aprovação dos superiores e por isso agi sem consultar a via hierárquica — vê cessar a chuva, aclarar-se o céu, ficarem muito verdes as árvores, encher-se de gente a rua o Capitão Pantoja. — Sei que mereço uma punição, claro. Não agi, porém, pensando em mim, mas no Exército. Sobretudo no futuro do Serviço. O que aconteceu podia provocar uma debandada de visitadoras. Era preciso levantar-lhes o ânimo, injetar-lhes um pouco de coragem.
— O futuro do Serviço — soletra, aproxima-se muito, observa-o com comiseração e alegria, fala quase que o beijando no rosto o General Scavino. — De modo que você acredita que o Serviço de Visitadoras ainda tem futuro. Já não existe, Pantoja, o maldito morreu. Kaputt, finish.
— O Serviço de Visitadoras? — sente uma lambada de frio, que o chão treme, vê que nasceu o arco-íris, tem vontade de sentar-se, -de fechar os olhos o Capitão Pantoja. — Já morreu?
— Não seja ingênuo, homem — sorri, busca seu olhar, fala com prazer o General Scavino. — Pensava que sobreviveria a semelhante escândalo? No mesmo dia dos acontecimentos de Nauta, a Marinha tirou-nos o barco, a FAP seu avião, e Collazos e Victoria entenderam que se devia acabar com esse absurdo.
— Ordenei que disparassem, mas não me obedeceram, meu coronel — atira duas vezes para o ar, insulta os soldados, vê desaparecer os últimos “irmãos”, chama o rádio-operador o Tenente Santana. — Havia muitos fanáticos, sobretudo fanáticas. Talvez fosse preferível, teria havido um massacre. Não podem andar longe. Logo que cheguem os reforços, saio atrás e ponho a mão neles, não demora.
— Essa medida deve ser retificada o quanto antes — balbucia sem convicção, sente-se enjoado, apóia-se na escrivaninha, vê gente tirando a água da casa com baldes o Capitão Pantoja. — O Serviço de Visitadoras está em pleno auge, começa a render frutos o labor de três anos, vamos ampliá-lo a suboficiais e oficiais.
— Morto e enterrado para sempre, graças a Deus — fica de pé o General Scavino.
— Apresentarei estudos detalhados, estatísticas — continua balbuciando o Capitão Pantoja.
— Foi o lado bom do assassinato da puta e do escândalo do cemitério — contempla a cidade iluminada pelo sol mas ainda gotejante o General Scavino. — O maldito Serviço de Visitadoras esteve a ponto de acabar comigo. Mas se acabou, voltarei a caminhar tranqüilo pelas ruas de Iquitos.
— Organogramas, entrevistas — não emite sons, não move os lábios, nota que as coisas se ocultam o Capitão Pantoja. — Não pode ser uma decisão irrevogável, ainda há tempo de retificá-la.
— Mobilize toda a Amazônia se for necessário, mas capture esse Messias em vinte e quatro horas — é repreendido pelo ministro, repreende o chefe da V Região o Tigre Collazos.
— Quer que se riam de você em Lima? Que tipo de oficiais você tem que quatro bruxas arrebatam-lhe um prisioneiro das mãos?
— E a você, recomendo que peça sua baixa — vê aparecer no rio as primeiras motoras, elevar-se a fumaça das cabanas de Padre Islã o General Scavino. — É um conselho de amigo. Sua carreira está acabada, você se suicidou profissionalmente com a brincadeira do cemitério. Se fica no Exército, com esse manchão na folha de serviços, apodrecerá capitão. Escute, que é que há? Está chorando? Mais coragem, Pantoja.
— Sinto muito, meu general — assoa-se, soluça outra vez, esfrega os olhos o Capitão Pantoja. — É a excessiva tensão destes últimos dias. Não pude me conter, peço-lhe que me desculpe esta fraqueza.
— Deve fechar hoje mesmo a sede no Itaya e entregar as chaves na Intendência antes do meio-dia — faz um gesto para significar que terminou a entrevista, vê Pantoja assumir a posição de sentido o General Scavino. — Parta para Lima no avião Faucett de amanhã. Collazos e Victoria esperam-no no ministério, às seis da tarde, para que lhes conte sua proeza. E se não perdeu a razão, siga o meu conselho. Peça sua baixa e procure algum trabalho na vida civil.
— Isso nunca, meu general, jamais abandonarei o Exército por minha própria vontade — ainda não recupera a voz, ainda não levanta o olhar, ainda continua pálido e envergonhado o Capitão Pantoja. — Já lhe disse uma vez que o Exército é o que mais me importa na vida.
— Vá então — condescende em dar-lhe rapidamente a mão, abre a porta, fica olhando-o afastar-se o General Scavino.
— Antes de sair, limpe outra vez o ranho e seque os olhos. Porra, ninguém acreditará que vi um capitão do Exército chorar porque fecharam uma casa de putas. Pode retirar-se, Pantoja.
— Com a sua licença, meu capitão — sobe correndo ao posto de comando, brande um martelo, uma chave de fenda, enquadra-se, tem o avental coberto de terra Sinforoso Caiguas.
— Retiro também o mapa grande, o das flechinhas?
— Também, mas esse não rasgue — abre a escrivaninha, tira um monte de papéis, folheia, rasga, joga ao chão, dá ordens o Capitão Pantoja. — Nós o devolveremos ao escritório de cartografia. Você terminou com esses quadros e organogramas, Palomino?
— Ai, meu Deus, ajoelhem-se, chorem, façam o sinal da cruz — sacode os cabelos, forma uma cruz com os braços Sandra. — Morreu, mataram-no, não se sabe. É verdade, verdade. Dizem que o Irmão Francisco está crucificado perto de Indiana. Aiiiiii!
— Sim, meu capitão, já tirei da parede — salta de um banquinho, levanta um caixão repleto, vai até o caminhão estacionado à porta, deposita sua carga no chão, regressa a passo ligeiro, bate com o pé no chão Palomino Rioalto. — Ainda falta este pacotão de fichas, livretos, pastas. Que é que se faz com isto?
— Rasgar, também — corta a luz, desliga o aparelho de transmissão, envolve-o em sua capa, confia-o ao Chinês Porfirio o Capitão Pantoja. — Ou melhor, levem esse monte de lixo a um descampado e façam uma boa fogueira. Mas, rápido, vamos, ligeiro. O que há, Chuchupe? Outra vez beicinhos?
— Não, Sr. Pantoja, já lhe prometi que não — tem um lenço floreado na cabeça e um avental branco, faz pacotinhos, dobra lençóis, empilha travesseiros em um baú Chuchupe. — Mas não sabe quanto me custa agüentar.
— Em uns segundinhos viram pó tantas horas de trabalho, Sr. Pantoja — emerge de um caos de biombos, caixas e maletas, aponta as chamas, a fumaça do descampado Chupito.
— Quando penso nas noites que passou fazendo esses organogramas, esses fichários.
— Eu também sinto uma pena que nem imagina, Senhol Pantoja — atira uma cadeira, um atado de redes e um rolo de cartazes às costas o Chinês Porfirio. — Estava tão apegado a isto como se fola minha casa, eu julo.
— Para o mau tempo, boa cara — desliga um lampião, empacota uns livros, desarma uma estante, carrega um quadro-negro Pantaleón Pantoja. — A vida é assim. Apressemo-nos, ajudem-me a tirar tudo isto, a jogar fora o que não presta.
Tenho de entregar o depósito à Intendência antes do meio-dia. Vamos ver, carreguem vocês a escrivaninha.
— Não, não foram os soldados, foram os próprios “irmãos” — chora, abraça-se a íris, pega a mão de Pichuza, olha para Sandra Peludinha —, os que o estavam salvando. Ele é que pediu, ordenou: não deixem que me prendam de novo, crucifiquem-me, crucifiquem-me.
— Vou le dizel uma coisa, Senhol Pantoja — agacha-se, conta um, dois, foiça! e levanta o Chinês Porfirio. — Pia que saiba como fiquei contente aqui. Nunca agüento um chefe nem sequei um mês. E quanto tempo levo com o senhol? Tlês anos. E se fosse pol mim, toda a vida.
— Obrigado, Chinês, eu sei — pega um balde, apaga a pinceladas de cal as divisas, refrões e conselhos da parede o Sr. Pantoja. — Vamos ver, cuidadinho com a escada. Assim, acertem os pés. Eu também já estava acostumado a isto, a vocês.
— Garanto que por muito tempo não vou pôr os pés por aqui, Sr. Pantoja, as lágrimas saltariam dos meus olhos — soca no baú irrigadores, baciazinhas, toalhas, roupões, chinelos, calças Chuchupe. — Que idiotas, parece mentira que tenham pensado em fechar isto aqui no seu melhor momento. Com os planos tão bonitos que tínhamos.
— O homem põe e Deus dispõe, Chuchupe, que é que se vai fazer? — desengancha persianas, enrola esteiras, conta as caixas e os volumes no caminhão, espanta os curiosos que estão à volta da entrada do centro logístico. — Vamos ver, Chupito, você tem força para carregar este arquivo?
— A culpa foi de Teófilo Moley e seus cupinchas, se não fosse pol eles, deixavam a gente em paz — trata de fechar o baú, não consegue, senta em cima Chupito, firma o aro o Chinês Porfirio. — Malditos, eles nos fodelam, não é, Senhol Pantoja?
— Em parte, sim — passa uma corda em volta do baú, dá e aperta nós Pantaleón Pantoja. — Mas cedo ou tarde isto ia acabar. Tínhamos inimigos muito poderosos dentro do próprio Exército. Estou vendo que lhe tiraram as ataduras, Chupito, que já mexe o braço como se não tivesse nada.
— Erva ruim não morre — vê as veias saltadas na testa do Chinês Porfirio, o suor do Sr. Pantoja Chupito. — Quem pode entender uma coisa assim? Inimigos por quê? Éramos a felicidade de tanta gente, os soldadinhos ficavam tão contentes vendo a gente. Me faziam sentir como um rei mago quando chegava aos quartéis.
— Ele mesmo escolheu a árvore — junta as mãos, fecha os olhos, bebe o cozimento, bate no peito Rita; — ele disse esta, cortem esta e façam a cruz deste tamanho. Ele mesmo escolheu o lugar, um bonito lugar, perto do rio. Disse a eles, levantem, aqui será, aqui me ordena o céu.
— Os invejosos que não faltam nunca — traz e distribui coca-colas, vê Sinforoso e Palomino alimentando a fogueira com mais papéis Chuchupe. — Não podiam engolir que isto funcionasse tão bem, Sr. Pantoja, os progressos que fazíamos graças a suas invenções.
— O senhol é um gênio pia estas sacanagens — bebe no bico da garrafa, arrota, cospe o Chinês Porfirio. — Todas as meninas dizem: acima do Senhol Pantoja, só o limão Flancisco.
— E esses fichários, Sinforoso? — tira o avental e joga-o às chamas, limpa com querosene a tinta das mãos e braços o Sr. Pantoja. — E o biombo da enfermaria, Palomino? Rápido, leve tudo isto ao caminhão. Vamos, rapazes, ligeiro.
— Por que não aceita nossa proposta, Sr. Pantoja? — guarda rolos de papel higiênico, frascos de álcool e mercurocromo, ataduras e algodão Chupito. — Deixe o Exército, que lhe paga tão mal seus esforços, e fique com a gente.
— Esses bancos também, Chinês — certifica-se de que não ficou nada na enfermaria, arranca a cruz vermelha da caixa de medicamentos o Sr. Pantoja. — Não, Chupito, já disse que não. Só deixarei o Exército quando o Exército me deixar ou eu morrer. Também o quadrinho, por favor.
— A gente ficará rica, Sr. Pantoja, não desperdice a grande oportunidade — arrasta escovas, espanadores, prendedores de roupa, baldes Chuchupe. — Fique. Será nosso chefe e não terá mais chefes. Obedeceremos em tudo, fixará as comissões, os pagamentos, o que quiser.
— Vamos ver, este cavalete entre nós, para cima, Chinês! — bufa, vê que os curiosos voltaram, encolhe os ombros Pantaleón Pantoja. — Já expliquei, Chuchupe, eu organizei tudo isto por ordem superior, como negócio não me interessa. Além disso, preciso ter chefes. Se não tivesse, não saberia o que fazer, o mundo desabaria sobre mim.
— E aos que choravam, consolava com sua voz de santo, não chorem, irmãos, não chorem, irmãos — enxuga as lágrimas, não vê Peituda abraçada a Mónica e Penélope, beija o chão Milcaras. — Eu vi tudo, estava ali, bebi uma gota do seu sangue e se foi o cansaço de caminhar horas e horas pelo mato. Nunca mais andarei com homem ou mulher. Ai, outra vez sinto que me chama, que me elevo, que sou oferenda.
— Não dê as costas à foltuna, senhol — vê que os curiosos se aproximam, pega um pau, ouve o Sr. Pantoja dizer deixe-os, já não há nada a esconder o Chinês Porfirio. — Levando visitadolas a soldados e civis, vamos ganhai um montão de dinhelo.
— Compraremos deslizadores, lanchas, e logo que pudermos, um aviãozinho, Sr. Pantoja — apita como uma sirena, ronca como uma hélice, assobia La Raspa, marcha e faz continência Chupito. — Não precisa pôr recursos, Chuchupe e as meninas investem suas economias e com isso terá de sobra para começar.
— Se faltar, a gente consegue, pediremos dinheiro emprestado aos bancos — tira o avental, o lenço da cabeça, tem o cabelo fervilhante de rolos Chuchupe. — Todas as meninas estão de acordo. Não lhe pediremos contas, o senhor poderá fazer e desfazer. Fique e ajude a gente, não seja mau.
— Com o nosso capitalzinho e sua cuca, levantalemos um impélio, Senhol Pantoja — molha as mãos, o rosto e os pés no rio o Chinês Porfirio. — Ande, decida-se.
— Está decidido e é não — examina as paredes nuas, o espaço vazio, acomoda os últimos objetos inúteis junto à porta Pantaleón Pantoja. — Vamos, não façam essas caras. Se estão assim entusiasmados, montem o negócio entre vocês e tomara que tudo saia bem, desejo de verdade. Eu volto ao meu trabalho de sempre.
— Tenho muita fé e acredito que a coisa sairá bem, Sr. Pantoja — tira uma medalhinha do peito e a beija Chuchupe. — Fiz uma promessa ao menino-mártir para que ajude a gente. Mas, claro, nunca vai ser como se o senhor ficasse de chefão.
— E dizem que não deu nem um grito, nem soltou uma lágrima, nem sentia dor nem nada — leva à Arca o filho recém-nascido, pede ao apóstolo que o batize, vê o menino lamber as gotinhas de sangue que o padrinho derrama íris. — Aos que o crucificavam, dizia mais forte “irmãos”, sem medo, “irmãos”, vocês estão me fazendo um bem, “irmãos”.
— Temos que levar adiante esse projeto, mamãe — atira uma pedra no zinco do teto e vê bater asas e afastar-se um abutre Chupito. — Que é que nos resta, senão isto? Voltar a abrir um bordel em Nanay? Morreríamos, já não se pode fazer concorrência a Moquitos, ele tirou muita vantagem.
— Outra casa em Nanay, voltar tudo de novo? — bate na madeira, diz que não, faz o sinal-da-cruz Chuchupe. — Outra vez enterrar-se em uma cova, outra vez aquele negócio tão aborrecido, tão miserável? Outra vez dobrar o lombo para que nos chupem todo o sangue os cafifas? Nem morta, Chupón.
— A gente aqui se acostumou a trabalhar à vontade, como gente moderna — abraça o ar, o céu, a cidade, a selva Chupito. — À luz do dia, com a cabeça erguida. Para mim, o bacana disto é que sempre parecia estar fazendo uma boa ação, como dar esmola, consolar um cara que sofreu desgraças ou curar um enfermo.
— A única coisa que pedia era apressem-se, crucifiquem-me, crucifiquem-me, antes que venham os soldados, quero estar lá em cima quando chegarem — arranja um cliente na Plaza 28 de Júlio, atende-o no Hotel Requena, cobra-lhe 200 soles, despede-o Penélope. — E às “irmãs”, que se contorciam chorando, dizia vamos, fiquem contentes, lá hei de continuar com vocês, “irmãzinhas”.
— As meninas sempre dizem isto, Sr. Pantoja — abre a portinhola do caminhão, sobe e senta-se Chuchupe. — Faz a gente sentir-se útil, orgulhosa do trabalho.
— O senhol deixou elas moitas quando anunciou que ia embola — põe a camisa, instala-se ao volante, esquenta o motor o Chinês Porfirio. — Tomala que no novo negócio a gente possa injetai nelas esse otimismo. É o fundamental, não?
— E onde anda a equipe? Desapareceram — fecha a porta do embarcadouro, firma a tranca, atira um último olhar ao centro logístico Pantaleón Pantoja. — Queria dar-lhes um abraço, agradecer sua colaboração.
— Foram à Casa Mori comprar um presentinho para o senhor — sussurra, aponta Iquitos, sorri, fica sentimental Chuchupe. — Uma pulseira escrava, de prata, com seu nome em letras douradas, Sr. Pantoja. Não diga que fui eu que contei, faça como se não soubesse, querem fazer uma surpresa. Vão levá-lo ao aeroporto.
— Puxa, que coisa — faz girar seu chaveiro, fecha o portão principal, sobe ao caminhão Pantaleón Pantoja. — Vão acabar me deixando muito triste com estas coisas. Sinforoso, Palomino! Saiam ou eu os deixo aí dentro, vamos. Adeus, Pantilândia, até a vista, rio Itaya. Arranque, Chinês.
— E dizem que no mesmo momento em que morreu o céu ficou escuro, eram só quatro horas, tudo cinzento, começou a chover, todos estavam cegos com os raios e surdos com os trovões — trabalha no bar Mao Mao, viaja em busca de clientes por acampamentos de madeireiros, apaixona-se por um afiador Coca. — Os animais da selva puseram-se a grunhir, a rugir, e os peixes saíam da água para se despedir do Irmão Francisco que subia.
— Já aprontei a bagagem, filhinho — examina volumes, pacotes, camas desfeitas, faz o inventário, entrega a casa a Sra. Leonor. — Só deixei fora seu pijama, suas coisas de barbear e a escova de dentes.
— Muito bem, mamãe — leva maletas ao escritório da Faucett, despacha-as como bagagem desacompanhada Panta. — A senhora conseguiu falar com Pocha?
— Custou muito, mas consegui — telegrafa à pensão reservem lugares família Pantoja a Sra. Leonor. — Quase não se ouvia. Uma boa notícia: viajará amanhã para Lima, com Gladycita, para a gente vê-la.
— Irei a Lima para que Panta abrace o bebê, mas eu garanto que não perdoarei nunca esta última cachorrada do seu filhinho, Sra. Leonor — ouve as rádios, lê revistas, escuta as fofocas, sente que apontam para ela nas ruas, acredita estar na boca de todos em Chiclayo Pochita. — Todos os jornais daqui continuam falando do que houve no cemitério e sabe o que dizem? Cafetão! Sim, sim, CAFETÃO. Nunca farei as pazes com ele, senhora. Nunca, nunca.
— Fico contente, tenho tanta vontade de ver a menininha — percorre as lojas do Jirón Lima, compra brinquedos, uma boneca, babadores, um vestido de organdi com um cinto azul-celeste Panta. — Como deve ter mudado em um ano, não é, mamãe?
— Disse que Gladycita está uma beleza, gordinha, cheia de saúde. Eu a ouvi brincando no telefone, ai minha netinha linda — vai à Arca de Moronacocha, abraça os “irmãos”, compra medalhas do menino-mártir, santinhos de Santa Ignacia, cruzes do Irmão Francisco a Sra. Leonor. — Pochita alegrou-se muito ao saber que transferiam você de Iquitos, Panta.
— Ah, sim? Bem, era lógico — entra na Casa de Flores Loreto, escolhe uma orquídea, leva-a ao cemitério, pendura-a no nicho da Brasileira Panta. — Mas não ficou tão alegre quanto a senhora. A senhora remoçou vinte anos desde que lhe dei a notícia. Só lhe falta sair cantando e dançando pelas ruas.
— Em troca, você não parece alegrar-se nada — copia receitas de comidas amazônicas, compra colares de sementes, de escamas, de dentes, flores de plumas de ave, arcos e flechas de fios multicoloridos a Sra. Leonor —, e isso é que não entendo, filhinho. Parece que você sentiu pena por deixar esse trabalho sujo para voltar a ser um militar de verdade.
— E nisso chegaram os soldados e os bandidos ficaram duros ao vê-lo morto na cruz — joga na loteria, adoece do pulmão, trabalha como servente, pede esmolas nas igrejas Pichuza. — Os judas, os herodes, os malditos. Que fizeram, loucos, que fizeram, loucos? Matava-se de tanto gritar aquele cara de Horcones que agora é tenente. Os “irmãos” nem o ouviam: de joelhos, com as mãos para o alto, rezavam e rezavam.
— Não é que me dê pena — passa a última noite em Iquitos deambulando só e cabisbaixo pelas ruas desertas Pantita. — Depois de tudo, são três anos da minha vida. Deram-me uma missão difícil e a levei adiante. Apesar das dificuldades, da incompreensão, fiz um bom trabalho. Construí algo, já tinha vida, crescia, era útil. Agora, jogam-no ao chão com uma paulada e nem sequer me agradecem.
— Não sente que lhe dá pena? Você se acostumou a viver entre bandidos e foragidos — regateia por uma rede de shambira, decide levá-la na mão com a maleta de viagem e a bolsa a Sra. Leonor. — Em lugar de estar feliz por sair daqui, você está amargurado.
— Por outro lado, não tenha muitas ilusões — chama o Tenente Bacacorzo para despedir-se, presenteia ao cego da esquina a roupa velha, contrata um táxi para que os recolha ao meio-dia e os leve ao aeroporto Panta. — Duvido muito que nos mandem a um lugar melhor que Iquitos.
— Irei feliz a qualquer parte, desde que você não tenha de fazer as porcarias que fez aqui — conta as horas, os minutos, os segundos que faltam para a partida a Sra. Leonor. — Ainda que seja no fim do mundo, filhinho.
— Está bem, mamãe — deita-se ao amanhecer mas não prega os olhos, levanta-se, toma uma ducha, pensa hoje estarei em Lima, não sente alegria Panta. — Saio um momento, para me despedir de um amigo. Quer alguma coisa?
— Eu vi quando ele saiu e pensei que era uma boa ocasião, Sra. Leonor — entrega-lhe uma carta para Pocha e este presentinho para Gladycita, acompanha-a ao aeroporto, beija-a e a abraça Alicia. — Levo-a rapidinho ao cemitério para que veja onde está enterrada aquela p.?
— Sim, Alicia, vamos dar uma fugidinha — empoa o nariz, estréia um chapéu, treme de raiva no aeroporto, sobe ao avião, assusta-se na decolagem a Sra. Leonor. — E depois vai comigo ao Colégio Santo Agostinho, para me despedir do Padre José Maria. Ele e você são as únicas pessoas daqui que vou recordar com carinho.
— Tinha a cabeça sobre o coração, os olhinhos fechados, as feições estavam afinadas, muito pálido — Moquitos a aceita, trabalha sete dias na semana, contrai duas gonorréias em um ano, muda três vezes de cafetão Rita. — A chuva tinha lavado o sangue da cruz, mas os “irmãos” recolhiam aquela água santa em trapos, baldes, pratos, tomavam e ficavam puros de pecado.
— Em meio ao contentamento de uns e às lágrimas de outros, odiado e querido pelo povo dividido — emposta a voz, usa roncos de aviões como fundo sonoro o Sinchi —, hoje, ao meio-dia, partiu para Lima, via aérea, o discutido Capitão Pantaleón Pantoja. Acompanhavam-no a senhora sua mãe e as emoções controvertidas da população loretana. Nós nos limitamos, com a proverbial cortesia iquitenha, a desejar-lhe boa viagem e melhores costumes, capitão!
— Que vergonha, que vergonha — vê um lençol verde, nuvens espessas, os picos nevados da cordilheira, os areais da costa, o mar, alcantis a Sra. Leonor. — Todas as p. de Iquitos no aeroporto, todas chorando, todas abraçando você. Até o último momento esta cidade devia provocar minha raiva. A cara ainda está me ardendo. Espero não ver nunca mais na minha vida ninguém de Iquitos. Escute, olhe, já vamos aterrissar.
— Perdoe que a incomode de novo, senhorita — toma um táxi até a pensão, faz passar a farda, apresenta-se à Chefia de Administração, Intendência e Serviços Vários do Exército, senta-se em uma poltrona e aí permanece durante três horas, inclina-se o Capitão Pantoja. — Está certa de que devo continuar esperando? Marcaram para as seis e são nove. Terá havido alguma confusão?
— Nenhuma confusão, capitão — deixa de lustrar as unhas a senhorita. — Estão reunidos lá e ordenaram que espere. Um pouquinho de paciência, já vão chamá-lo. Quer que lhe empreste outra fotonovela de Corín Tellado?
— Não, muito obrigado — folheia todas as revistas, lê todos os jornais, consulta mil vezes seu relógio, tem calor, frio, sede, febre, fome o Capitão Pantoja. — A verdade é que não posso ler, estou um pouco nervoso.
— Bem, não é para menos — faz dengues a senhorita. — O que estão decidindo lá dentro é o seu futuro. Tomara que não lhe dêem um castigo muito pesado, capitão.
— Obrigado, mas não é só isso — enrubesce, recorda a festa em que conheceu Pochita, os anos de noivado, o arco de espadas que fizeram os companheiros de turma no dia de seu casamento o Capitão Pantoja. — Estou pensando em minha esposa e na minha filhinha. Devem ter chegado há pouco de Chiclayo. Faz um montão de tempo que não as vejo.
— Efetivamente, meu coronel — cruza de ida e volta a selva, chegada Indiana, perde a fala, chama seus superiores o Tenente Santana. — Morto há dias e se decompondo como papa. Espetáculo para arrepiar os cabelos de qualquer um. Deixo que o levem os fanáticos? Enterro-o aqui mesmo? Não está em condições de ser trasladado a nenhum lugar, já está ali há dois ou três dias e a pestilência dá vômitos.
— Não se importaria de me dar outro autógrafo? — estende-lhe uma caderneta com capa de couro, uma caneta-tinteiro, sorri para ele com admiração a senhorita. — Me esquecia da prima Charo, também coleciona celebridades.
— Com muito prazer, se já lhe dei três, que diferença faz dar quatro — escreve Com meus respeitos parabéns a Charo e assina o Capitão Pantoja. — Mas asseguro-lhe que se engana, não sou uma celebridade. Só os cantores dão autógrafos.
— O senhor é mais famoso que qualquer artista, com as coisas que fez, ah ah — pega um batom, pinta-se usando o vidro da escrivaninha como espelho a senhorita. — Ninguém acreditaria, capitão, com a pinta de sério que tem.
— Empresta-me o telefone um momento? — olha uma vez mais o relógio, vai até a janela, vê os postes de luz, as casas apagadas pela neblina, pressente a umidade da rua o Capitão Pantoja. — Gostaria de telefonar à pensão.
— Me dê o número, eu a chamo — aperta um botão, gira o disco a senhorita. — Com quem quer falar? A Sra. Leonor?
— Sou eu, mamãezinha — pega o auricular, fala muito baixo, olha de viés a senhorita o Capitão Pantoja. — Não, ainda não me receberam. Pocha e o bebê já chegaram? Como está a menininha?
— É verdade que os soldados abriram caminho até a cruz a balaços? — opera em Belén, em Nanay, abre casa própria na estrada de San Juan, tem clientes aos montes, prospera, economiza Peituda. — Que derrubaram a cruz com um machado? Que jogaram no rio o Irmão Francisco, com cruz e tudo, para que as piranhas o comessem? Conte, Milcaras, deixe de rezar, o que foi que você viu?
— Alô, Panta? — modula a voz como uma cantora tropical, olha a sogra sorrindo feliz, Gladycita cercada de brinquedos Pocha. — Amor, como está? Ai, Sra. Leonor, estou tão emocionada que não sei nem o que lhe dizer. Aqui está, do meu lado, a Gladycita. Está lindíssima, Panta, você vai vê-la logo. Garanto que cada dia que passa mais se parece com você, Panta.
— Como está você, Pocha, amorzinho? — sente bater o coração, pensa amo-a, é a minha mulher, não nos separaremos nunca Panta. — Um beijo no bebê e outro para você, bem grande. Estou louco para vê-las. Não pude ir ao aeroporto, perdoe-me.
— Já sei que está no ministério, sua mamãe me explicou — canta, derrama umas lágrimas, troca sorrisos cúmplices com a Sra. Leonor Pochita. — Não tem importância que não fosse, bobo. O que lhe disseram, amor, que vão fazer com você?
— Não sei, logo saberemos, ainda estou no purgatório — vê sombras através dos vidros, impacienta-se de novo, tem medo Panta. — Tão logo saia, irei voando. Tenho de interromper, Pocha, a porta está se abrindo.
— Passe, Capitão Pantoja — não lhe dá a mão, não lhe faz reverências, volta-lhe as costas, ordena o Coronel López López.
— Boa noite, meu coronel — entra, morde o lábio, choca os saltos, faz continência o Capitão Pantoja. — Boa noite, meu general. Boa noite, meu general.
— Pensávamos que não matava uma mosca e acabou um safado de marca maior, Pantoja — movimenta a cabeça atrás de uma cortina de fumaça o Tigre Collazos. — Sabe por que teve de esperar tanto? Nós explicamos agorinha mesmo. Sabe quem acaba de sair por aquela porta? Conte a ele, coronel.
— O ministro da Guerra e o chefe do Estado-Maior — despejam chispas os olhos do Coronel López López.
— Trazer os restos a Iquitos era impossível porque já estavam pesteados e Santana e seus homens podiam pegar uma infecção de mil diabos — despacha o informe, viaja a Iquitos em motora, entrevista-se com o General Scavino, de volta à sua guarnição compra um porquinho o Coronel Máximo Dávila.
— E, depois, os malucos iam acompanhá-lo, o enterro seria monstruoso. Acho que o rio foi o mais sensato. Não sei o que o senhor pensa, meu general.
— Adivinha para o que vieram? — grunhe, dissolve uma pastilha em um copo de água, bebe, faz caretas o General Victoria. — Para advertir o Serviço pelo escândalo de Iquitos.
— Para advertir, como se fôssemos recrutas novos, capitão, a gritar, com os cabelos brancos que temos — coca os bigodes, acende um cigarro com o toco do anterior o Tigre Collazos. — Não é a primeira vez que temos o prazer de receber aqui aqueles cavalheiros. Quantas vezes eles se incomodaram a vir aqui para puxar nossas orelhas, coronel?
— É a quarta vez que o ministro da Guerra e o chefe do Estado-Maior nos dão a honra de sua visita — joga no cesto de papéis as baganas do cinzeiro o Coronel López López.
— E cada vez que aparecem neste gabinete, nos dão de presente um novo pacote de jornais, capitão — limpa as orelhas, o nariz com um lencinho azulado o General Victoria.
— Onde se fala do senhor, naturalmente.
— Neste momento, o Capitão Pantoja é um dos homens mais populares do Peru — apanha um recorte, aponta para o título “Capitão do Exército elogia prostituição: prestou homenagens a mariposa loretana” o Tigre Collazos. — De onde pensa que vem este pasquim? De Tumbes, o que está pensando?
— É o discurso mais lido da história deste país, sem a menor dúvida — revolve, mistura, esparrama os jornais na escrivaninha o General Victoria. — O povo recita parágrafos de memória, fazem brincadeiras sobre ele nas ruas. Até no estrangeiro se fala do senhor.
— Afinal, afinal, os dois pesadelos da Amazônia terminaram de uma vez por todas — desabotoa a braguilha o General Scavino. — Pantoja liquidado, o profeta morto, as visitadoras transformadas em fumaça, a Arca dissolvendo-se. Isto será outra vez a terra tranqüila dos bons tempos. E por isto mereço uns carinhos de prêmio, não é, Peludinha?
— Sinto muito haver causado inconvenientes aos superiores com aquela iniciativa, meu general — não mexe um cabelo, não pisca, segura a respiração, olha fixamente a fotografia do presidente da República o Capitão Pantoja. — Não foi essa a minha intenção, nem de longe. Fiz uma avaliação incorreta dos prós e contras. Reconheço minha responsabilidade. Aceitarei a punição que me for aplicada por essa falta.
— O grande problema é que não há castigo bastante grave para a monstruosidade que cometeu em Iquitos — cruza os braços sobre o peito o Tigre Collazos. — Fez tanto mal ao Exército com este escândalo que nem o fuzilando tiraríamos uma revanche.
— Já dei voltas e mais voltas ao assunto e cada vez continuo mais besta, Pantoja — apóia o rosto nas mãos, olha-o com malícia, surpresa, inveja, receio o General Victoria. — Seja sincero, diga-nos a verdade. Por que cometeu semelhante disparate? Estava louco de dor pela morte de sua querida?
— Juro por Deus que meus sentimentos por aquela visitadora não influíram em minha decisão, meu general — continua rígido, não mexe os lábios, conta seis, oito, doze condecorações no fraque do primeiro mandatário o Capitão Pantoja. — O que escrevi na parte é a mais estrita verdade: tomando aquela iniciativa, pensei servir o Exército.
— Rendendo honrarias militares a uma puta, chamando-a de heroína, agradecendo-lhe as fodas prestadas às Forças Armadas — atira lufadas de fumaça, tosse, olha seu cigarro com ódio, murmura estou me matando o Tigre Collazos. — Não nos defenda, compadre. Com outro serviço destes, o senhor nos desprestigiava para sempre.
— Apressei-me, retirando-me em vez de dar a última batalha — recosta a cabeça na rede, olha o céu e suspira o Padre Beltrán. — Confesso que sinto falta dos acampamentos, das guardas, dos galões. Nestes meses, sonhei diariamente com espadas, com o toque de alvorada. Estou tratando de voltar a vestir a farda e parece que a coisa se resolve. Mas não se esqueça do saquinho, Peludinha.
— Minhas colaboradoras estavam profundamente afetadas pela morte daquela visitadora — desvia um milímetro os olhos, distingue o mapa do Peru, a grande mancha verde da selva o Capitão Pantoja. — Meu objetivo era levantar seu moral, animá-las, pensando no futuro. Eu não podia supor que o Serviço de Visitadoras ia ser fechado. Precisamente agora, quando funcionava melhor que nunca.
— Não pensou que esse Serviço só podia existir na clandestinidade mais absoluta? — passeia pelo gabinete, boceja, coca a cabeça, ouve batidas de relógio, diz é tardíssimo o General Victoria. — O senhor foi advertido até o cansaço de que a primeira condição do seu trabalho era o segredo.
— A existência e as funções do Serviço de Visitadoras eram conhecidas de todo mundo em Iquitos, muito antes de minha iniciativa — mantém os pés juntos, as mãos coladas ao corpo, a cabeça imóvel, tenta localizar Iquitos no mapa da parede, pensa é esse ponto negro o Capitão Pantoja. — Muito a contragosto. Asseguro-lhe que tomei todas as precauções para evitá-lo. Mas em uma cidade tão pequena, impossível, ao fim de uns meses a notícia era conhecida.
— Essa era uma razão para que transformasse os rumores em uma verdade apocalíptica? — abre a porta, indica pode ir embora quando quiser, Anita, eu fecho tudo, o Coronel López López. — Se queria discursar, por que não o fez em seu nome e à paisana?
— Então, todas sentem muita falta dele? Eu também, éramos bons amigos, o coitado deve estar tiritando de frio — estende-se de boca para cima o Tenente Bacacorzo. — Mas, pelo menos, não o expulsaram do Exército, teria morrido de tristeza. Sim, hoje assim. Mãos nos quadris, cabeça atirada para trás e mexa-se, Coca.
— Por uma equivocada avaliação das conseqüências, meu coronel — não volta a cabeça, não olha de viés, pensa que distante parece tudo isso o Capitão Pantoja. — Estava atormentado com a idéia de que houvesse uma debandada no Serviço depois do que aconteceu em Nauta. E cada vez ficava mais difícil recrutar visitadoras, pelo menos de qualidade. Queria conservá-las, reavivar sua confiança e carinho na instituição. Sinto muito haver cometido esse erro de cálculo.
— Seu equívoco vem nos custando uma semana de problemas e de noites mal dormidas — acende um novo cigarro, traga, bota fumaça pela boca e o nariz, está com os cabelos desalinhados, os olhos avermelhados e fatigados o Tigre Collazos. — É verdade que, pessoalmente, passava pelas armas as candidatas ao Serviço de Visitadoras?
— Era parte do exame de presença, meu general — fica vermelho, emudece, fala engasgando-se, gagueja, crava-se as unhas, morde a língua o Capitão Pantoja. — Para verificar suas aptidões. Não podia me fiar nos meus colaboradores. Teria descoberto favoritismos, subornos.
— Não sei como não acabou tuberculoso — contém o riso, ri, fica sério, volta a rir, tem os olhos com lágrimas o Tigre Collazos. — Ainda não descobri se o senhor é um colhudo angelical ou um cínico de merda.
— O Serviço de Visitadoras afundou, a Arca afundou, já não há mais a quem defender e ninguém me solta um tostão — bate na própria barriga, torce, retorce, estala a língua o Sinchi. — Há uma conspiração geral para que eu morra de fome. Essa é a razão por que não lhe respondo, não por sua falta de encantos, querida Penélope.
— Terminemos este assunto de uma vez — dá uma batidinha na mesa o General Victoria. — É verdade que se nega a pedir sua baixa?
— Nego-me terminantemente, meu general — recobra a energia o Capitão Pantoja. — Toda a minha vida está no Exército.
— Nós estamos dando ao senhor uma saída cômoda — abre uma pasta, passa ao Capitão Pantoja uma solicitação escrita a máquina, espera que a leia, guarda-a o General Victoria.
— Porque poderíamos submetê-lo a um conselho de disciplina e então já imagina a sentença: degradação infamante, expulsão.
— Decidimos não agir assim, porque já chega de escândalo e por seus antecedentes pessoais — fuma, tosse, vai à janela, abre-a, cospe na rua o Tigre Collazos. — Se prefere ficar no Exército, fique. Verá que com essa parte que acrescentamos à sua folha de serviços passará uma boa temporada sem que os seus galões dêem cria.
— Farei todo o possível para me reabilitar, meu general — alegram-se a voz, o coração, os olhos do Capitão Pantoja. — Nenhum castigo será pior que o remorso de haver causado um dano involuntário ao Exército.
— Está bem, não volte nunca mais a errar dessa maneira — olha seu relógio, diz são dez, eu vou indo o General Victoria. — Já lhe encontramos um novo destino, bem distante de Iquitos.
— O senhor vai para lá amanhã mesmo e não se mexa desse lugar pelo menos durante um ano, nem mesmo por vinte e quatro horas — veste a túnica, aperta a gravata, alisa o cabelo o Tigre Collazos. — Se quer continuar no Exército, é indispensável que o povo se esqueça da existência do famoso Capitão Pantoja. Depois, quando ninguém se lembre do assunto, então veremos.
— Os braços amarradinhos assim, as perninhas assim, a cabeça caída sobre a tetinha — arqueja, vai, vem, enfeita, dá nós, mede o Tenente Santana. — Agora feche os olhos e faça de conta que está morta, Pichuza. Assim mesmo. Coitadinha da minha visitadora, ai que pena da minha crucificada, minha “irmãzinha” da Arca tão bonita.
— A guarnição de Pomata, lá estão precisando de um intendente — fecha as cortinas, passa chave aos armários, ordena as escrivaninhas, pega uma maleta o Coronel López López. — Em vez do rio Amazonas, terá o lago Titicaca.
— E em vez do calor da selva, o frio da puna — abre a porta, deixa passar seus companheiros o General Victoria.
— E em vez de visitadoras, lhaminhas e vicunhas — põe o quepe, apaga a luz, estende a mão o Tigre Collazos. — Que bicho raro o senhor me saiu, Pantoja. Sim, já pode se retirar.
— Brrrr, que frio, que frio — estremece Pochita. — Onde estão os fósforos, onde está a maldita vela, que horrível viver sem luz elétrica. Panta, acorde, são cinco horas. Não sei por que é você mesmo que tem de ir ver o café da manhã dos soldados, seu louco. É muito cedo, morro de frio. Ai, idiota, você me arranhou outra vez com essa pulseira escrava, por que não a tira de noite? Já lhe disse que são cinco horas. Acorde, Panta.
Mario Vargas Llosa
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