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O ROMANO / Mika Waltari
O ROMANO / Mika Waltari

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ROMANO

Primeira Parte

 

Antioquia

Tinha eu sete anos quando o veterano Barbo me salvou a vida. Lembro-me bem da astúcia com que induzi a minha velha aia Sofrônia a deixar-me ir até as margens do rio Orontes. A cele­ridade e o torvelinho da correnteza me atraíam, e fui debruçar-me no molhe para contemplar a água borbulhante. Então Barbo se aproximou e me perguntou solícito:

Quer aprender a nadar, meu rapaz?

Respondi que sim. Êle olhou em redor e, agarrando-me pela nuca e por entre as pernas, atirou-me bem longe ao rio. Em seguida, deixou escapar um grito pavoroso, invocando Hércules e Júpiter Romano, o Conquistador, e, jogando ao molhe o manto esfarrapado, mergulhou no meu encalço.

Acudiu gente ao seu brado. Todos viram e foram unânimes em testemunhar que Barbo, arriscando a própria vida, me livrou do afogamento, me levou para terra firme e me fêz rolar pelo chão, para que eu vomitasse a água que havia engolido. Quando Sofrô­nia chegou, desgrenhada e fora de si, Barbo tomou-me nos braços robustos e me transportou para casa, embora eu forcejasse por desvencilhar-me das suas roupas imundas e do seu hálito avinhado.

Meu pai não sentia especial afeição por mim, mas cumulou Barbo de vinho e aceitou a explicação de que eu havia escorrega­do e caído na água. Não desmenti Barbo, pois me habituara a não falar em presença de meu pai. Pelo contrário, foi deslumbra­do que escutei Barbo contar modestamente como, em seu tempo de legionário, cruzara a nado, e com todas as suas armas, o Da­núbio, o Reno e até mesmo o Eufrates. Meu pai bebeu vinho, também, para refazer-se do susto, e dispôs-se a relatar como, quando era estudante da escola de filosofia de Rodes, apostara que era capaz de nadar de Rodes ao continente. Êle e Barbo puseram-se de completo acordo em que era tempo de eu aprender a nadar. Meu pai deu a Barbo alguns trajes novos. Enquanto os vestia, Barbo exibiu inúmeras cicatrizes.

Daí por diante Barbo passou a morar em nossa casa e a cha­mar meu pai de amo. Escoltava-me à escola e, quando não estava muito embriagado, ia buscar-me lá ao fim do dia. Antes de mais nada, tratava-me como um romano. Ele realmente nascera e cres­cera em Roma, tendo servido trinta anos na 15.a Legião. Meu pai tivera o cuidado de confirmar esse fato, pois, embora fosse dis­traído e reservado, nunca empregaria em casa um desertor.

Graças a Barão, aprendi não só a nadar mas também a mon­tar. A seu pedido, meu pai comprou um cavalo para mim, a fim de que eu me tornasse membro dos jovens Cavaleiros de Antioquia tão logo completasse quatorze anos. É verdade que o Imperador Caio Calígula havia riscado o nome de meu pai dos registros da Nobre Ordem Romana dos Cavaleiros, mas em Antióquia isso era tido na conta mais de honra que de infortúnio, pois toda a gente recordava muito bem quão imprestável fora Calígula, mesmo nos tempos de rapaz. Mais tarde foi assassinado no grande circo de Roma, quando estava prestes a promover seu cavalo favorito à dignidade de Senador.

Na ocasião, meu pai, mesmo sem o querer, alcançara tal po­sição em Antioquia que deliberaram acompanhasse ele a delegação que a cidade ia enviar a Roma para felicitar o Imperador Cláudio, elevado então ao trono. Era certo que lhe restituiriam o título de cavaleiro, mas meu pai recusou-se terminantemente a ir a Roma. Viu-se mais tarde que tivera boas razões para isso. Limitou-se a declarar que preferia viver em paz, com humildade, e que não tinha desejo de ser cavaleiro.

Assim como Barbo viera para nossa casa graças a circuns­tâncias fortuitas, assim também dera de crescer a fortuna de meu pai. Dizia ele, com seu jeito amargo, que não tinha sorte na vida pois, quando nasci, perdeu a única mulher que havia realmente amado. Mas ainda em Damasco adquirira o hábito de ir ao mer­cado, no aniversário da morte de minha mãe, e comprar um ou dois infelizes escravos. Ao fim de algum tempo, quando o escravo estava bem alimentado, levava-o às autoridades, pagava a taxa de resgate e Libertava-o. Permitia que esses libertos usassem o nome de Márcio, não de Maniliano, e dava-lhes dinheiro para que come­çassem a exercer o ofício que haviam aprendido. Um dos seus libertos tornou-se Márcio, o mercador de seda, outro Márcio, o pescador, enquanto que Márcio, o barbeiro, acumulou uma for­tuna modernizando perucas femininas. Mas o que amontoou maior fortuna foi Márcio, o mineiro, que depois fez meu pai comprar uma mina de cobre na Sicília. Meu pai lamentava também com freqüência não poder realizar o mais insignificante ato de libera­lidade sem receber benefícios ou louvores em troca.

Desde que se fixara em Antioquia, após sete anos em Da­masco, servira, moderado e bom conhecedor de línguas como era, de conselheiro do Procônsul, em particular nas matérias relacio­nadas com as questões judaicas, nas quais se tornara amplamente versado, durante as primeiras viagens à Judéia e à Galiléia. Manso 12 e de boa índole, recomendava sempre a conciliação, de preferência às medidas drásticas. Dessa forma granjeou a estima dos cidadãos de Antioquia. Após ter perdido o título de cavaleiro, foi eleito para o conselho municipal, não por sua força de vontade, mas porque os partidos acreditavam que ele lhes seria útil.

Quando Calígula exigiu que se entronizasse uma estátua sua no templo de Jerusalém e em todas as sinagogas da província, meu pai compreendeu que tal ato redundaria em insurreição ar­mada e aconselhou aos judeus que, em lugar de protestos desne­cessários, tratassem de ganhar tempo. Daí resultou que os judeus de Antioquia dessem ao Senado Romano a impressão de que esta­vam dispostos a custear estátuas suficientemente condignas do Im­perador Caio em suas sinagogas. Mas as estátuas sofreram diver­sos contratempos durante a fabricação, ou então os augúrios pre­monitórios foram desfavoráveis e impediram-lhes a entronização. Quando o Imperador Caio foi assassinado, meu pai recebeu muitos aplausos por sua presciência. Contudo, não creio que tivesse sabi­do de antemão do assassínio, mas simplesmente desejara, como de costume, ganhar tempo e evitar complicação para os judeus, o que perturbaria os negócios da cidade.

Mas meu pai também sabia ser cabeçudo. Como membro do conselho municipal, negou-se categoricamente a dar dinheiro para espetáculos circenses de animais selvagens e gladiadores, e chegou até mesmo a opor-se às representações teatrais. A conselho dos seus libertos, porém, mandou levantar na cidade uma galeria com seu nome. Das casas comerciais ali instaladas recebia quantias con­sideráveis em aluguéis, de sorte que o empreendimento, além da fama, lhe proporcionava vantagens.

Os libertos de meu pai não entendiam por que ele me tratava com tanto rigor, desejando que me contentasse com sua maneira simples de viver. Rivalizavam entre si, oferecendo-me todo o di­nheiro de que eu necessitasse, presenteando-me belos trajes, man­dando adornar os meus petrechos de montaria, e faziam o possível para proteger-me dele, ocultando os meus estouvamentos. Moço e inexperiente, torturava-me o desejo de ser em tudo tão desta­cado, ou preferivelmente ainda mais destacado do que os rapazes nobres da cidade, e, imprevidentes, os libertos achavam que isso seria benéfico a eles próprios e a meu pai.

Graças a Barbo, meu pai percebeu que me era indispensável aprender latim. O próprio latim legionário de Barbo não ia muito longe. Assim, meu pai tomou providências para que eu lesse os livros históricos de Virgílio e Lívio. Durante noites a fio, Barbo me falou das colinas, panoramas e tradições de Roma, seus deuses e guerreiros, incutindo-me afinal o desejo ardente da conhecê-la. Eu não era sírio, mas nascera romano, da linhagem de Maniliano será nobre. Saiba também que seu pai bebe sangue às escondidas com os judeus e, no recesso do seu quarto, adora o cálice da Deusa da Fortuna. De outra forma como poderia alguém ter tanto êxito e ficar tão rico sem méritos próprios? Mas estou farto dele, de você e de todo esse mundo infeliz em que a injustiça reina sobre a justiça, e a sabedoria tem de sentar-se à porta enquanto a insolência promove festins.

Não dei muita atenção às suas palavras, perturbado como estava, mas senti o desejo cego de demonstrar que não era insig­nificante e ao mesmo tempo contrabalançar o mal que havia feito. Meus colegas conspiradores e eu recordávamos ter ouvido falar de um leão que andara atacando o gado numa localidade situada a meio dia de cavalgada da cidade. Era raro ousarem os leões apro­ximar-se tanto de um grande centro e o assunto deu margem a muita discussão. Julguei que se eu e os meus amigos o capturásse­mos e entregássemos ao anfiteatro da cidade, nos redimiríamos de nossa má ação e adquiriríamos fama.

Esse pensamento era tão desvairado que só podia brotar no coração ferido de um menino de quinze anos, mas o mais insano de tudo foi ter Barbo, que naquela tarde estava tão bêbado como de costume, considerado o plano excelente. Nem lhe era fácil opor-se, depois das muitas histórias que me havia narrado de seus próprios feitos heróicos. Ele mesmo colhera leões em rede inúme­ras vezes, para obter alguma receita adicional com que comple­mentava seu magro soldo.

Era necessário que abandonássemos a cidade o quanto antes. A polícia poderia estar a caminho para prender-me, e de qualquer modo eu tinha certeza de que nos privariam dos cavalos para sempre, ao amanhecer do dia seguinte, o mais tardar. Encontrei apenas seis dos meus amigos, porque três tinham tido a sensatez de contar imediatamente aos pais o que acontecera, e os pais tra­taram logo de os mandar para fora da cidade.

Meus amigos, que estavam seriamente abalados, ficaram tão empolgados com meu plano que instantes depois nos pusemos a falar aos berros. Sem que nos vissem, retiramos os cavalos dos es­tábulos e saímos da cidade. Barbo conseguiu com Márcio, o mer­cador de seda, uma bolsa de moedas de prata, levou-a para o an­fiteatro e convenceu um domador de feras a acompanhar-nos. En­cheram uma carroça de redes, armas e protetores de couro e vieram juntar-se a nós, fora da cidade, junto à nossa árvore. Barbo trouxe também carne, pão e dois alentados cântaros de vinho. O vinho restaurou-me o apetite, pois até então eu me quedara tão amargu­rado e abatido que não pudera comer nada.

A lua brilhava quando partimos. Barbo e o domador dis­traíam-nos com histórias de capturas de leões em diversos países.

Falavam disso como de coisa tão simples que eu e os meus amigos, estimulados pelo vinho, tratamos de impedir que desempenhassem papel muito ativo, em nossa aventura, a fim de que nos coubesse toda a glória. Prometeram fazê-lo de bom grado, asssgurando-nos que procuravam apenas auxiliar-nos com recomendações e com a sua experiência, e que iriam abster-se de intervir. Quanto a mim, testemunhara com meus próprios olhos no anfiteatro a maneira engenhosa pela qual um grupo experiente podia aprisionar um leão com uma rede e a facilidade com que um homem munido de duas lanças mata um desses animais.

Ao amanhecer, chegamos à aldeia de que ouvíramos falar. Os aldeãos estavam acendendo os, fogões. A notícia era falsa, pois a aldeia não dava sinais de pavor. Na realidade, estava até orgulho sa do seu leão. Nenhum outro fora visto no distrito num período alcançado pela memória dos vivos.

O leão morava na caverna de um monte das cercanias e dei­xara uma trilha que ia dar no ribeiro. Na noite anterior, matara e comera um bode que os aldeãos amarraram a uma árvore, à margem do caminho, para que lhes fossem poupadas as preciosas reses. O leão nunca atacara um ser humano. Ao contrário, tinha o hábito de se fazer anunciar com dois rugidos profundos ao sair da caverna. Nem era muito exigente. Contentava-se, à falta de coisa melhor, de comer carcaças, na medida em que os chacais lhe davam permissão para tanto. De mais a mais, os aldeãos já haviam construído uma resistente jaula de madeira em que pre­tendiam transportar a fera para Antioquia e vendê-la. Um leãc capturado com redes tem de ser atado com firmeza, pois seus membros podem ferir-se se não o metemos logo numa jaula e de­samarrarmos as cordas.

Quando souberam dos nossos planos, os aldeãos não ficaram nada satisfeitos. Felizmente ainda não tinham vendido o leão. mas logo que se deram conta de nossa situação, fizeram tais exigências que Barbo teve de pagar-lhes dois mil sestércios pelo animal e pela jaula. Ajustada a compra e contado o dinheiro, Barbo pôs-se de re­pente a tremer e sugeriu que fôssemos dprmir um pouco e adiás­semos a captura do leão para o dia seguinte. A essa altura, a po­pulação de Antióquia já se teria acalmado depois do escândalo que havíamos armado. Mas o domador ponderou sensatamente que este era o momento adequado para enxotar o leão da caverna: de manhã, depois de ter comido e bebido à saciedade, estava moro­so em seus movimentos e embotado pelo sono.

Assim, Barbo e êle vestiram os protetores de couro e, levando vários homens da aldeia, cavalgamos rumo à montanha. Os aldeãos mostraram nos a trilha e o bebedouro do leão, as marcas de patas grossas e um monte recente de excremento. À medida que lenta­mente nos aproximávamos da toca, o cheiro ia se tornando mais intenso, os cavalos agitavam-se, reviravam os olhos e empacavam. Fomos obrigados a apear-nos e mandar os cavalos de volta. Pros­seguimos a pé, em direção à caverna, até que ouvimos os roncos do leão. O som abalava o chão sob nossos pés. E tivemos medo, já que nos acercávamos da toca de um leão pela primeira vez na vida.

Os aldeãos não experimentavam o menor temor. Garanti­ram-nos que êle dormiria até à noite. Conheciam-lhe os hábitos bastante bem e juraram que haviam alimentado tanto esse animal indolente e pesadão que nossa maior dificuldade consistiria em despertá-lo e fazê-lo deixar o covil.

O leão abrira uma larga trilha entre as moitas, fora da caver­na, e os declives íngremes e rochosos que a circundavam eram tão altos que Barbo e o domador puderam galgá-los em segurança e au­xiliar-nos com seus bons conselhos. Indicaram até onde devíamos estender a pesada rede de corda diante da caverna e como três de nós deviam segurá-la em cada extremidade. Alguém deveria gritar e pular atrás da rede a fim de que o leão, aturdido, encegue­cido pelo sol, se precipitasse sobre êle e mergulhasse diretamente na rede. Depois, passássemos a rede em volta do leão o maior nú­mero possível de vezes, tendo o cuidado de não ficarmos ao al­cance dos seus dentes e patas. Quando examinamos a questão, percebemos que não era assim tão simples como nos tinham feito crer.

Sentamo-nos no chão para deliberar a respeito de quem iria despertar o leão. Barbo sugeriu que seria melhor catucar o animal com a haste da lança, o suficiente para irritá-lo sem feri-lo. O do­mador asseverou que gostaria de nos prestar esse pequeno obsé­quio, mas seus joelhos estavam entrevados de reumatismo e, afinal, não queria privar-nos da honra.

Meus amigos fitaram-me e afiançaram que, no tocante a eles, de bom grado abdicariam da honra em meu favor. Fora eu quem elaborara o plano, assim como os havia incitado ao rapto das sa­binas, início desta aventura. Com o cheiro acre do leão em minhas narinas, recordei com certa veemência aos meus amigos que meu pai só tinha a mim de filho. Ao prosseguirmos na consideração dessa matéria, verificamos que cinco de nós eram filhos únicos. Talvez esse fato explique o nosso comportamento. Um só tinha irmãs e o mais moço, Carísio, deu-se pressa em afirmar que seu único irmão, além de gago, padecia de outros defeitos.

Quando Barbo viu que meus amigos me atenazavam e que eu seria forçado a ir, quisesse ou não, bebeu um bom trago de vinho do cântaro, com a voz trêmula invocou Hércules e jurou que me amava mais do que a seu próprio filho, muito embora na verdade não tivesse filho. A tarefa não lhe era apropriada, afirmou, mas 18

sendo um velho e veterano legionário, estava disposto a penetrar na fenda das rochas e despertar o leão. Se viesse a perder a vida, por causa da vista arruinada e das pernas enfraquecidas, desejava somente que eu lhe dispensasse um belo funeral e lhe fizesse o elogio para que seus feitos célebres e numerosos fossem conheci­dos de todos. Com a morte iria provar que pelo menos uma parce­la de tudo quanto me contara acerca de suas façanhas nesses anos todos era verídica.

Quando se pôs de gatinhas e ia começar a descer o declivo com uma lança na mão, até eu fraquejei. Abraçamo-nos afetuosa­mente e choramos juntos. Não podia permitir que um velho sacri­ficasse a vida por mim e pelos meus erros. Ordenei-lhe que disses­se a meu pai que, pelo menos, eu enfrentara a morte como homem, e isso talvez reparasse tudo, já que só lhe dera desgostos desde o instante em que minha mãe morreu ao dar-me à luz até agora quando, malgrado a ausência de intenção malévola, eu lhe enxo­valhara o bom nome em toda a Antioquia.

Barbo insistiu em que eu tomasse uns tragos de vinho, desde que, assegurou-me, nada realmente nos aflige quando temos bas­tante vinho na barriga. Bebi e fiz meus amigos jurarem que segu­rariam a rede firmemente e não a largariam por nada neste mundo. Em seguida empunhei a lança com ambas as mãos, cerrei os dentes e fui rastejando pela trilha do leão, através da fenda aberta nas rochas.

Ouvindo os roncos trovejantes do leão, avistei-lhe o vulto dei­tado na caverna. Brandi a lança, ouvi o leão soltar um rugido, eu mesmo dei um urro e corri, mais veloz do que em qualquer com­petição atlética em que já tomara parte, indo precipitar-me na rede que os meus amigos tinham erguido apressadamente sem esperar pelo meu salto.

Enquanto me debatia nas malhas da rede, o leão saiu gemen­do e hesitante da caverna e estacou, surpreso de me ver. Era um bicho tão descomunal e medonho que meus amigos, incapazes de encará-lo, deixaram cair a rede e debandaram. O domador gritou, recomendando que atirássemos sem perda de tempo a rede sobre o leão, antes que este se acostumasse à luz solar. Do contrário, poderia tornar-se perigoso.

Barbo gritou também que eu revelasse presença de espírito e lembrou que eu era romano e Maniliano. Se me visse em aperto, desceria imediatamente e mataria o leão com a espada, mas pri­meiro eu devia tentar aprisioná-lo vivo. Não sei que parte desse conselho me pareceu mais judiciosa, mas uma vez que meus amigos haviam deixado cair a rede, era mais fácil libertar-me dela. A des­peito de tudo, a covardia deles me dera tanta raiva que apanhei energicamente a rede e fitei o leão nos olhos. Ele sustentou meu olhar, com um porte majestoso e uma expressão profundamente ofendida e magoada, gemendo suavemente ao erguer uma pata traseira ensangüentada. Levantei a rede com as duas mãos, sus­pendi-a com toda a força, pois era pesada para um homem só, e atirei-a. Simultaneamente o leão pulou para a frente, entrançou-se na rede e caiu de lado. Rugindo terrivelmente, começou a espo­jar-se no chão, enrolando-se na rede, de sorte que só uma vez con­seguiu atingir-me com a pata. Senti-lhe a força, pois fui arremes­sado de pernas para o ar a uma boa distância, o que, sem dúvida, me salvou a vida.

Barbo e o domador entraram logo em ação, o último pegan­do o forcado de madeira e prendendo o leão ao solo, e Barbo dando um nó nas patas traseiras. Nesse momento os camponeses sírios trataram de vir em nosso socorro, mas bradei, praguejei,

proibi-os, pois queria que os meus amigos poltrões participassem da captura do leão. De outro modo, todo o nosso plano de nada teria servido. Por fim, fizeram o que lhes cumpria, se bem que tenham recebido diversas esfoladuras das patas do leão. O domador prendeu as nossas cordas e laçadas, até que o leão ficou de tal modo amarrado que mal podia mover-se. Enquanto isto ocorria, sentei-me no chão, tremendo de raiva e tão transtornado que vo­mitei entre os joelhos.

Os camponeses sírios enfiaram uma vara por entre as patas do leão e puseram-se a transportá-lo para a aldeia. Pendurado na vara, parecia menos avantajado e majestoso do que quando saíra da caverna e surgira em plena luz. De fato, era um leão velho, fraco e picado por pulgas, com muitas falhas na juba e dentes es­tragados. O que mais me inquietava era que pudesse ser estran­gulado pelas cordas durante a viagem para a aldeia.

Minha voz me traiu em mais de uma ocasião, mas dei a en­tender aos meus amigos o que pensava deles e do seu comporta­mento. Se havia alguma lição no episódio, era que não se podia confiar em ninguém quando se tratava da própria vida. Meus amigos estavam envergonhados do seu comportamento, mas também me fizeram lembrar nosso juramento e que havíamos capturado o leão juntos. Concediam-me de boa-vontade o maior quinhão de honra, mas não deixavam de exibir suas feridas. Por minha vez, mostrei o braço — sangrava tão profusamente que os meus joelhos fraquejavam. Por fim concordamos que a aventura nos marcara com cicatrizes para a vida inteira.

Na aldeia comemoramos com uma festa e respeitosamente sacrificamos ao leão depois de o termos trancado dentro da jaula. Barbo e o domador embebedaram-se, enquanto as moças da aldeia dançavam em nossa honra e nos engrinaldavam. No dia seguinte alugamos um carro de boi para transportar a jaula e cavalgamos atrás, em procissão, com a fronte coroada de flores, tendo ao mesmo tempo o cuidado de tornar bem visíveis as manchas de sangue em nossas ataduras.

Às portas de Antioquia a polícia tinha ordem de prender-nos e tomar-nos os cavalos, mas o oficial comandante foi mais atilado e resolveu acompanhar-nos, quando lhe dissemos que nos dirigía­mos voluntariamente para a Prefeitura, a fim de nos entregarmos. Dois soldados se puseram à nossa frente, abrindo caminho com seus bastões, pois, como é costume em Antioquia, todos os vaga­bundos começaram a aglomerar-se, tão logo se espalhou a notícia de que alguma coisa extraordinária ocorrera.

A princípio, a multidão bradava insultos e nos atirava ester­co e frutas podres, já que circulava o boato de que tínhamos vio­lado todas as moças e profanado os deuses da cidade.

Irritado com o barulho e os gritos da multidão, o leão entrou a rugir tediosamente, e continuou rugindo, estimulado pelo som da própria voz, até que os nossos cavalos mais uma vez passaram a empinar-se e a recuar, assustados.

É possível que o domador tenha provocado esses rugidos. Seja como for, a multidão foi cedendo diante de nós, e, ao verem nossas ataduras manchadas de sangue, várias mulheres soltaram gritos de comiseração e choraram.

Quem já viu a larga rua principal de Antioquia, com uma milha de comprimento e suas intermináveis colunas, perceberá que pouco a pouco o nosso cortejo se foi assemelhando mais a uma procissão de triunfo do que de opróbrio. A multidão, facilmente influenciável, não tardou a atirar flores ao nosso préstito. Nossa confiança aumentou, e ao chegarmos à Prefeitura já nos imaginá­vamos heróis e não criminosos.

Os conselheiros permitiram-nos primeiro presentear o leão à cidade e dedicá-lo ao protetor Júpiter, que em Antioquia é comumente chamado Baal. Depois disto, fomos levados à presença dos magistrados criminais. Mas àquela altura já se encontrava no meio deles um advogado célebre, com quem meu pai havia falado, e nosso comparecimento voluntário causou profunda ' impressão nos juízes. Privou-nos de nossos cavalos, naturalmente, o que era inevitável, e tivemos de escutar palavras sombrias sobre a depra­vação da juventude e acerca do que se podia esperar do futuro, quando os filhos das melhores famílias da cidade davam exemplo tão aterrador ao povo, e como fora tudo tão diferente nos dias em que nossos pais e antepassados eram moços.

Mas quando voltei para casa, com Barbo, uma coroa mortuá­ria pendia em nossa porta, e a princípio ninguém nos dirigiu a pa­lavra, nem mesmo Sofrônia. Afinal, desfeita em lágrimas, ela contou que meu preceptor, Timaio, pedira na noite anterior uma panela de água morna e depois abrira as veias em seu quarto. De manha, encontraram-lhe o corpo sem vida. Meu pai, trancado em seus aposentos, não recebera sequer os libertos, que vieram con­solá-lo.

A verdade é que ninguém apreciava realmente o taciturno e descontente Timaio, mas a morte é sempre a morte e não pude es­capar a certo sentimento de culpa. Batera em meu preceptor e com meu comportamento o enchera de vergonha. Agora sentia-me aterrorizado. Esqueci que havia enfrentado um leão de verdade, e meu primeiro impulso foi de fugir para sempre, tornar-me gla­diador ou alistar-me numa das mais longínquas legiões romanas nos países de gelo e neve ou nas fronteiras da Partia. Mas não podia fugir da cidade sem ir parar na prisão. Por isso pensei desafiadoramente em seguir o exemplo de Timaio e assim livrar meu pai de minha incômoda presença.

Meu pai recebeu-me de modo bem diverso do que eu espera­va, embora não me tivesse custado muito imaginar algo parecido, visto que ele raramente procedia como as outras pessoas. Exausto da vigília e chorando, caiu sobre mim, tomou-me nos braços, apertou-me ao peito, beijou-me as faces e os cabelos, e embalou-me ternamente de um lado para outro. Nunca antes ele me havia se­gurado em seus braços dessa maneira e com tanto carinho, pois quando eu era pequeno e ansiava por suas carícias ele nunca me tocava e evitava até olhar para mim.

— Meu filho Minuto — sussurrou. — Pensei que te tinha perdido para sempre e que tivesses fugido para os confins do mundo com aquele velho bêbado, pois levavas dinheiro contigo. Não te amofines por Causa de Timaio. Ele desejava apenas vingar-se do destino de escravo e utilizar sua vaga filosofia contra nós. Mas nada do que acontece neste mundo é tão terrível que escape à re­conciliação e ao perdão. Oh, Minuto — prosseguiu meu pai —-não sou capaz de criar ninguém, pois não pude nem mesmo con­duzir a minha vida. Mas tens a fronte de tua mãe, os olhos de tua 'mãe, o nariz afilado e curto de tua mãe e a boca adorável de tua mãe. Perdoarás a dureza do meu coração e o desamparo em que te deixei?

A incompreensível ternura de meu pai derreteu-me o cora­ção e não contive o pranto. Prostrei-me diante dele, abracei-lhe os joelhos, pedi perdão pela vergonha que lhe causara e prometi cor­rigir-me, se ele mais uma vez se mostrasse indulgente. Meu pai também se tinha ajoelhado e abraçava-me e beijava-me, de modo que ali nos quedamos de joelhos, pedindo perdão um ao outro. O alívio que senti foi tão grande e tão doce por ter meu pai assumi­do a responsabilidade pela morte de Timaio e pela minha própria culpa, que meu pranto se tornou ainda mais forte.

Ao ouvir meus gemidos, Barbo não se conteve. Irrompeu atabalhoadamente no quarto, com escudo e espada desembainha­da crendo que meu pai estivesse me batendo. Seguindo-lhe os passos, entrou Sofrônia, chorando alto. Afastou-me de meu pai e acolheu-me em seu seio farto. Ela e Barbo concitaram meu desal­mado pai a bater em ambos, desde que a eles, e não a mim, devia caber a culpa. Eu era ainda uma criança e com certeza não tive­ra más intenções em minhas inocentes travessuras.

Meu pai ergueu-se, embaraçado, e defendeu-se com veemên­cia da acusação de crueldade, garantindo-lhes que não me tinha surrado. Quando percebeu o estado de espírito de meu pai, Barbo invocou em altos brados todos os deuses de Roma e jurou que ia matar-se com sua própria espada para expiar sua culpa, como fi­zera Timaio. Ficou tão exaltado que teria provavelmente causado dano a si mesmo se não tivéssemos nós três, meu pai, Sofrônia e eu, conseguido arrancar-lhe das mãos a espada e o escudo. O que ele na realidade pensara fazer com o escudo, ninguém sabia. Pos­teriormente explicou ter receado que meu pai o golpeasse na cabe­ça, e sua velha cabeça já não podia suportar as bordoadas que su­portara outrora na Armênia.

Meu pai recomendou a Sofrônia que mandasse buscar as melhores iguarias e providenciasse um banquete. Devíamos estar fa­mintos após a nossa aventura e ele mesmo não tocara em nada, depois de descobrir que eu deixara a casa e verificar que fora tão inepto na criação do próprio filho. Também enviou convites a seus libertos que moravam na cidade, pois todos se tinham inquietado comigo.

Meu pai lavou minhas feridas, besuntou-as com unguento me­dicinal e envolveu-as em linho, embora eu mesmo tivesse preferido conservar um pouco mais as ataduras manchadas de sangue. Barbo teve, então, oportunidade de narrar a história do leão. Meu pai tornou-se ainda mais soturno e voltou a incriminar-se por ter o filho preferido enfrentar a morte nas garras de um leão a procurar junto a seu próprio pai o perdão para uma diabrura juvenil.

Afinal, depois de tagarelar à vontade, Barbo sentiu sede e deixou-nos a sós. Meu pai disse ter chegado à conclusão de que devia falar-me acerca do futuro, pois dentro em breve eu iria re­ceber a toga viril, mas tinha dificuldade em encontrar as palavras. Nunca me falara antes de pai "para filho. Fitava-me com um ar de. perplexidade e em vão buscava as palavras que pudessem ajudá-lo a tocar no meu íntimo.

Encarei-o também e vi que seus cabelos estavam rareando e o rosto se cobria de rugas. Meu pai já andava mais perto dos cin­qüenta do que dos quarenta e aos meus olhos era um homem en­velhecido e solitário que não podia gozar a vida nem a fortuna dos seus libertos. Avistei os rolos de pergaminho e pela primeira vez me dei conta de que não havia estátua de nenhum deus em seu quarto, nem mesmo a imagem de algum espírito tutelar. Lembrei-me das malévolas acusações de Timaio.

— Marco, meu pai — disse eu. — Antes de morrer, meu preceptor, Timaio, me contou várias coisas desagradáveis a respei­to de minha mãe e de ti. Por isso é que eu o feri na boca. Não quero de modo algum justificar o que fiz, mas, ainda assim, dize- me se há qualquer coisa desagradável. De outro modo, quando me tornar adulto como irei julgar as minhas ações?

Meu pai perturbou-se, esfregou as mãos uma na outra e evitou o meu olhar. Depois falou com lentidão:

Tua mãe morreu quando te deu à luz, e foi isso que não pude perdoar a ti ou a mim mesmo, até hoje. Depois, com­preendi que só tinha a ti na minha vida, meu filho Minuto.

Foi mamãe uma dançarina, uma mulher dissoluta e uma es­crava, como afirmou Timaio? — perguntei sem rodeios.

Meu pai ficou visivelmente transtornado.

— Não devias pronunciar tais palavras, Minuto — bradou ele. — Tua mãe era a mulher mais nobre que já conheci, e é claro que não era escrava embora tivesse, em razão de uma promessa, consagrado parte de sua vida a servir Apolo. Uma vez percorri com ela a Galileia e Jerusalém, à procura do rei dos judeus e do seu reino.

Suas palavras me deram coragem. A voz me saiu trêmula: — Contou-me Timaio que te envolveste de tal modo nas conspirações secretas dos judeus que o magistrado não teve outro remédio senão expulsar-te da Judéia, e que por isso, e não por causa de algum capricho do Imperador Caio, não pudeste reaver o título de cavaleiro.

Ao responder, meu pai também tinha a voz trêmula: —- Deixei para te falar de tudo isso quando fosses capaz de raciocinar por tua própria conta. Não queria que fosses obrigado a pensar em Coisas que nem mesmo eu entendia. Mas agora che­gaste à encruzilhada e escolherás o caminho a palmilhar. Só me resta esperar que escolhas o certo. Não te posso forçar, porque só tenho para te oferecer coisas invisíveis que eu mesmo não com­preendo.

Pai — murmurei aterrado — não te converteste em se­gredo à fé judaica, depois de tantas relações com esse povo?

Mas, Minuto! — exclamou, surpreso, meu pai. — Tens ido comigo aos banhos e aos jogos atléticos. Deves ter notado que não trago o sinal de fidelidade no meu corpo. Se o trouxesse, me correriam dos banhos com zombarias. Não nego que li muito as escrituras sagradas dos judeus, para compreendê-los melhor. Mas na realidade nutro certa animosidade contra os judeus, porque foram eles que crucificaram o seu rei. Guardo certa má-vontade contra eles por causa da morte dolorosa de tua mãe. Levo essa má-vontade até contra o seu rei, que no terceiro dia ressurgiu dos mortos e fundou um reino invisível. Seus discípulos judeus ainda acreditam que ele há de voltar e fundar um reino visível, mas tudo isso é muito complicado e absurdo, e não te posso ensinar coisa alguma a esse respeito. Tua mãe teria sabido fazê-lo, pois sendo mulher entendia melhor do que eu esses assuntos e ainda não com­preendo por que ela teve de morrer por amor a mim.

Começava a duvidar da sanidade mental de meu pai e refleti que em todas as coisas ele se comportava de modo diferente dá maioria das pessoas.

— Quer dizer então que bebeste sangue com os judeus em seus ritos supersticiosos — disse eu, com rudeza.

Meu pai pareceu perturbado.

— Isso é algo que não podes entender, pois não sabes nada dessas coisas.

Mas apanhou uma chave e abriu uma arca. Tirou dela um cálice usado de madeira, segurou-o delicadamente e mostrou-o a mim:

— Este é o cálice de tua mãe Mirina — explicou — e neste cálice bebemos juntos o vinho da imortalidade, em certa noite sem lua, numa montanha da Galileia. E o cálice não se esvaziou, apesar de termos ambos bebido intensamente. E o rei apareceu e falou com cada um de nós, embora fôssemos mais de quinhentos. A tua mãe, ele disse que nunca mais em sua vida ela teria sede. Prome­ti que jamais contaria a ninguém essas coisas, pois eles julgavam que o reino pertencia aos judeus, e eu, sendo romano, não podia concordar com esse ponto de vista.

Convenci-me de que se tratava do cálice mágico que Timaio dissera ser. da Deusa da Fortuna. Tomei o nas mãos: era apenas um cálice usado, de madeira, mas senti certa ternura ao imaginar que minha mãe o manuseara e tivera em alta estima.

Olhei compassivo para meu pai e disse:

— Não vou incriminar-te por tua superstição, pois as artes mágicas dos judeus desconcertaram o juízo de homens mais sábios do que tu. Sem dúvida, o cálice te deu sorte e riqueza, mas nada quero dizer da imortalidade, pois não pretendo magoar-te. E quanto ao novo deus, há velhos deuses que morreram e retorna­ram, como Osíris, Tamuz, Átis, Adônis e Dionísio, para não men­cionar muitos outros. Mas todos esses não passam de parábolas e fábulas, reverenciadas pelos iniciados nos mistérios. Pessoas ins­truídas já não bebem sangue e estou farto de mistérios, graças a mocinhas estúpidas que penduram fitas coloridas nos arbustos.

Meu pai abanou a cabeça e apertou as mãos:

Ah, se eu pudesse ao menos fazer-te compreender.

Compreendo perfeitamente, mesmo que ainda não seja um adulto — afiancei. — De resto, aprendi alguma coisa aqui em Antioquia. Falas de Cristo, mas a nova superstição é ainda mais perniciosa e degradante do que os outros ensinamentos dos judeus. É verdade que ele foi crucificado, mas não era nenhum rei nem ressurgiu dos mortos. Seus discípulos roubaram-lhe o corpo do tú­mulo para não se envergonharem diante do povo. Não vale a pena falar dele. Os judeus se encarregaram de alimentar a tagare­lice e as disputas.

Meu pai passou a discutir a questão:

— Ele era rei, na verdade. Isso foi até inscrito em três línguas na sua cruz. Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus. Li com estes olhos. Se não acreditas nos judeus, acredita então no governador romano. E seus discípulos não roubaram o cadáver, mesmo que os judeus tenham subornado os guardas para que espalhassem esse boato. Sei disso porque eu mesmo estive lá e vi tudo com meus próprios olhos. E certa vez eu o encontrei na margem oriental do lago da Galileia, depois que ele retornara do meio dos mortos. Pelo menos, ainda creio que fosse ele. Foi ele mesmo quem me conduziu ao encontro de tua mãe. Naquele tempo ela estava em dificuldade na cidade de Tiberíade. Segundo a opinião geral, dezesseis anos se passaram desde esses acontecimentos,- mas ainda posso vê-los cla­ramente diante dos meus olhos quando tu me afliges com tua in­capacidade de compreender.

Não podia dar-me o luxo de provocar a ira de meu pai:

— Não desejo discutir contigo acerca das coisas divinas — apressei-me a declarar. — Há só uma coisa que eu quero saber. Podes voltar a Roma sempre que tiveres vontade? Timaio afirmou que não podes voltar nunca a Roma, por causa do teu passado.

Meu pai empertigou-se, franziu o cenho e olhou-me severo:

— Sou Marco Mezêncio Maniliano — disse ele. — E posso sem dúvida voltar a Roma sempre que desejar. Não sou exilado e Antioquia não é nenhum lugar de degredo. Tu mesmo deves saber disso. Mas tenho razões particulares para não ir a Roma. Agora, se necessário, posso ir, agora que estou velho e já não sou tão influenciável como quando era mais moço. Outras razões pelar, quais não precisas perguntar. Não as entenderias.

Essas afirmações me satisfizeram e bradei:

Falaste de uma separação de caminhos e do futuro que eu mesmo devo escolher. Em que estavas pensando?

Meu pai, hesitante, passou a mão pela testa, pesou as pala­vras e finalmente respondeu:

— Os homens de Antioquia que melhor conhecem o cami­nho começam atualmente a perceber que o reino não pertence só aos judeus. Suspeito, ou para ser inteiramente franco, sei que até mesmo gregos e sírios incircuncisos foram batizados e tiveram permissão de participar de suas refeições. Isso deu motivo a muitas disputas, mas há aqui no momento um judeu, vindo de Chipre, que encontrei certa vez em Jerusalém. Tem como auxiliar um judeu chamado Saulo, natural de Tarso, que também vi em Da­masco, numa ocasião em que êle foi levado à cidade. Havia per­dido a visão durante uma revelação divina, mas depois recuperou-a. É um homem que vale a pena conhecer. Meu mais ardente dese­jo é que procures esses homens e lhes escutes os ensinamentos. Se te convencerem, eles te batizarão como súdito do reino de Cristo e receberás permissão de participar de suas refeições secretas. Isto é, sem circuncisão, pois não precisas temer que venhas a ficar su­jeito à jurisdição da lei judaica.

Não pude Crer nos meus ouvidos:

Queres de fato que eu me inicie nos ritos judaicos? gritei. Que eu adore um rei crucificado e um reino que não existe? Que outro nome se pode dar ao que não se pode ver?

A culpa é minha retrucou impaciente meu pai e estou certo de que estou empregando as palavras erradas, já que não posso convencer-te. Seja como fôr, nada tens a perder, escu­tando o que esses homens têm a dizer.

Mas só de pensar eu me apavorava:

Não consentirei jamais que os judeus me borrifem com sua água consagrada berrei. E nem concordarei em beber sangue com eles. Aí então perderia os últimos vestígios que restam de minha boa reputação.

Mais uma vez meu pai tentou pacientemente explicar que de qualquer modo era Saulo um homem instruído e um judeu que freqüentara a escola de retórica de Tarso, e que não somente es­cravos e artesãos, mas também muitas senhoras nobres de Antio­quia iam ouvi-lo em segredo. Mas tapei os ouvidos com as mãos, bati o pé e gritei estridente e fora de mim:

Não, não, não!

Meu pai caiu em si e falou num tom mais tranqüilo:

A escolha é tua. O douto Imperador Cláudio calculou sem dúvida que na próxima primavera a cidade completará oitocentos anos de sua fundação. Está claro que o divino Augusto celebrou este centenário, e ainda vivem muitas pessoas que participaram das comemorações. Mas outra festa centenária nos dará excelente motivo para irmos a Roma.

Antes que tivesse tempo de concluir, atirei os braços em volta do seu pescoço, beijei-o, dei gritos de alegria e pus-me a correr à roda do quarto, pois eu não passava de um rapazelho. Então seus libertos começaram a chegar para o banquete e meu pai teve de dirigir-se ao átrio, a fim de os saudar e receber-lhes os presentes. Coloquei-me ao lado de meu pai, para indicar que ele pretendia estar comigo em todas as ocasiões. Os recém-chegados mostra­ram-se vivamente contentes com isto, afagaram-me o cabelo, con­solaram-me da perda do cavalo e admiraram minhas ataduras.

Quando estavam reclinados à mesa e eu me tinha sentado num dos bancos, aos pés de meu pai, uma vez que ainda era menor, meu pai explicou que a finalidade dessa reunião era uma consulta de família acerca do meu futuro.

— Comecemos por fortificar nos com vinho. O vinho desata a língua, e necessitamos de todos os bons conselhos que pudermos obter.

Não esparziu vinho no piso, mas Barbo não se assustou com esse ateísmo. Ao contrário, fez uma oferenda aos deuses e pronun­ciou a saudação em voz alta. Segui-lhe o exemplo e os libertos também derramaram pelo menos uma gota de vinho no assoalho, com as pontas dos dedos, embora nada dissessem em tom audível. Meu coração encheu-se de amor quando eu os vi a todos, pois todos eles haviam feito o possível para mimar-me e desejavam que eu me tornasse um homem com cuja reputação a reputação deles também aumentasse. Nada mais esperavam de meu pai, pois já se tinham habituado a ele.

Quando comprei os seus bastões de libertos — prosseguiu meu pai — permiti-lhes beber do vinho da eternidade no cálice de madeira de minha falecida esposa. Mas vocês não trataram de congregar as suas riquezas senão para as coisas terrenas que podem acabar a qualquer momento. Todavia, isto é apenas como deve ser, pois eu seria atormentado por minha saciedade e minha riqueza e as inúmeras obras inúteis a que não atribuo valor algum. Não desejo outra coisa senão viver quieta e humildemente.

Os libertos apressaram-se a asseverar que também procura­vam viver tão quieta e humildemente quanto era possível a vito­riosos homens de negócios. Jactar-se das próprias riquezas somente conduzia a aumentos de impostos e doações obrigatórias à cidade. E nenhum desejava gabar-se do passado quando todos tinham sido escravos.

— A bem de vocês e por causa da teimosia de meu filho Mi­nuto — disse meu pai — não posso seguir o novo caminho, que foi agora franqueado aos incircuncisos, tanto gregos quanto ro­manos. Se me fizesse cristão, como é chamado esse caminho, para diferençá-lo da fé judaica, então vocês e toda a minha casa seriam forçados a fazer o mesmo, e não creio que disso adviesse bem algum. Não acredito, por exemplo, que Barbo participasse com qualquer espírito, pouco importando quem pusesse as mãos sobre sua cabeça e soprasse. Isto para não falar de Minuto, que perdeu o controle de si mesmo até o ponto de esbravejar ante a simples 28 idéia disso. Portanto, é chegado o momento de falar a respeito de minha família. O que eu faço, faço integralmente. Minuto e eu viajaremos para Roma, e lá recuperarei minha dignidade de ca­valeiro, em associação com as comemorações do centenário. Mi­nuto receberá a toga viril em Roma, na presença de sua família. E receberá um cavalo, em substituição ao que perdeu aqui.

Para mim esta era uma surpresa com que eu não tinha sequer ousado sonhar. No máximo imaginara que, no futuro, graças à minha intrepidez e ao meu talento, eu lograria restituir a meu pai a distinção que ele perdera por capricho do Imperador. Mas isso não era novidade para os libertos. Pelo comportamento deles con­cluí que vinham desde muito instado com meu pai nesse sentido, pois eles mesmos tinham honra e benefícios a ganhar com meu pai na ordem dos cavaleiros. Confirmaram com um movimento de cabeça e explicaram que já tinham entrado em contacto com os libertos do Imperador Cláudio, que estavam encarregados de questões importantes na administração do Estado. Meu pai tam­bém possuía propriedade no Aventino e terra em Cere, de sorte que preenchia até demais as condições de renda exigidas do grau de cavaleiro.

Meu pai pediu-lhes que se calassem e explicou:

— Tudo isso é secundário. O essencial é que consegui enfim os documentos necessários sobre os antepassados de Minuto. Isso exigiu boa soma de investigações judiciais. A princípio pensei que deveria simplesmente adotá-lo, no dia em que atingisse a maiorida­de, mas meu advogado me convenceu de que tal medida não seria aconselhável. Em tal caso a ascendência romana de meu filho seria, do ponto, de vista jurídico, sempre posta em dúvida.

Após desdobrar uma massa de documentos, meu pai leu al­guns em voz alta e explicou-os minuciosamente:

— O mais importante é o contrato do meu casamento com Mirina, autenticado pela autoridade romana em Damasco. É in­questionavelmente uma certidão válida e legal, pois logo que minha mulher engravidou, em Damasco, fiquei muito feliz e resolvi con­solidar a posição de meu herdeiro futuro.

Olhou um instante o teto e continuou:

— Mais difícil foi investigar os antepassados da mãe de Mi­nuto, uma vez que na ocasião isso não me pareceu essencial e assim nunca tocamos na questão. Depois de pesquisas demoradas, comprovou-se definitivamente que sua família provinha original­mente dá cidade de Mirina, na província da Ásia, perto da cidade de Cirne. Foi meu advogado que me aconselhou a começar a in­vestigação por aquela cidade, em virtude da semelhança de nome. Mais tarde descobriu-se que sua família, tendo perdido a riqueza, mudou-se de lá para as ilhas, mas suas origens são extremamente

aristocráticas, e para confirmar isto mandei colocar uma estátua de minha mulher defronte do palácio da justiça em Mirina e também fiz várias doações em sua memória. Efetivamente, meu re­presentante providenciou a reconstrução do edifício do tribunal; não era imponente e os próceres da cidade ofereceram-se para reconstituir a linhagem de Mirina, remontando aos tempos primi­tivos, sim, a um dos deuses do rio, mas achei que isso era desne­cessário. Na ilha de Cós, meu representante encontrou um ve­nerável sacerdote do templo de Esculápio, que se lembrava muito bem dos pais de Mirina e podia confirmar por juramento que era irmão do pai de Mirina. Após a morte de seus honestos mas em­pobrecidos pais, os filhos se consagraram a Apolo e depois dei­xaram a ilha.

Ah, como eu gostaria de conhecer esse tio de minha mãe! — exclamei com veemência. — É o único parente vivo pelo meu lado materno.

Não será necessário — meu pai apressou-se a dizer. — É um ancião quase desmemoriado, a quem tratei de proporcionar um teto, comida e alguém que o guie até o dia de sua morte. Tudo quanto você precisa recordar é que pelo lado materno é de nobre ascendência grega. Quando chegar à idade adulta, poderá contem­plar de vez em quando a pobre cidade de Mirina com alguma dádiva apropriada, para que o assunto não seja totalmente esquecido.

Eu também — prosseguiu rápido — pertenço à família Maniliana por adoção, e meu nome é portanto Maniliano. Meu pai adotivo, que é seu avô legal, era o célebre astrônomo Manílio, autor de uma obra sobre esta ciência que é ainda lida nas biblio­tecas do mundo inteiro. Mas sem dúvida você estranha seu outro nome: Mezêncio. Isso me leva à sua ascendência verdadeira. O célebre Mecenas, amigo do divino Augusto, era meu parente dis­tante e estendia sua proteção aos pais do meu pai, se bem que os tenha esquecido no testamento. Ele, por sua vez, descendia dos governantes de Cere, que foram reis muito antes que Enéias fu­gisse de Tróia. Desse modo, sangue romano também corre nos antigos etruscos. Mas juridicamente falando, devemos incluir-nos na família Maniliana. Em Roma é preferível silenciar sobre os etruscos, pois os romanos não gostam de lembrar que outrora os etruscos os governaram.

Meu pai falava com tanta dignidade que todos o ouvíamos em silêncio, e somente Barbo lembrava-se de se fortalecer com vinho de vez em quando.

— Meu pai adotivo, Manílio, era um homem pobre — con­tinuou. — Malbaratou sua fortuna em livros e na investigação das estrelas, em lugar de ganhar dinheiro com a arte da adivinhação. Foi devido mais à distração do divino Tibério, do que a si mesmo, que teve permissão de reter sua dignidade de cavaleiro. Precisaria de muito tempo para relatar como passei minha juventude faminta de amanuense aqui em Antióquia. A principal razão disso foi não

meios para comprar um cavalo, em virtude da pobreza da família Maniliano. Mas, ao retornar a Roma, tive a sorte de con­star a estima de uma mulher altamente situada, cujo nome não revelarei. Essa mulher de visão apresentou-me a uma viúva, velha e enfermiça, mas generosa. Em seu testamento, esta senhora legou-me toda a sua fortuna, de sorte que me foi possível com­provar o direito de usar o anel de ouro, mas então eu já tinha quase trinta anos e não estava mais interessado no serviço público. Além disso, a família da viúva impugnou o testamento, chegando mesmo a lançar a acusação terrível de que a velha senhora fora en­venenada, após a redação de tal documento. A justiça deu-me ganho de causa, mas em razão desse malsinado processo e também de outras questões, saí de Roma e fui para Alexandria, estudar. Se bem tenha havido muita bisbilhotice em Roma, na ocasião, não creio que ninguém tenha lembrança dessa disputa iniciada por pessoas de má fé. Conto-lhes isto para mostrar a Minuto que não há nesse fato nada de vergonhoso e que nada me impede de re­gressar a Roma. E acho que é melhor, tendo em vista o que acon­teceu, embarcarmos o mais cedo possível, aproveitando a boa qua­dra da travessia marítima. Depois, terei todo o inverno para pôr em ordem os meus negócios, antes das comemorações do centenário.

Tínhamos comido e bebido. Do lado de fora da nossa casa os archotes fumegavam e apagavam-se, e o azeite baixava nas can­deias. Eu mesmo me mantinha em silêncio, procurando não coçar os braços, nos pontos em que as feridas começavam a irritar-me. Diante da casa haviam-se postado alguns dos mendigos de Antio­quia e, de acordo com o bom costume sírio, meu pai mandara distribuir entre eles o que sobrara da comida.

Exatamente quando os libertos preparavam-se para ir embora, entraram dois judeus. De inicio foram tomados por mendigos e os fâmulos mostraram-lhes a porta da rua. Mas meu pai correu-lhes ao encontro e saudou-os respeitosamente.

— Não, não — disse ele. — Conheço estes homens. São emissários do Deus mais alto. -Voltem para dentro, todos vocês, e escutem o que eles têm a dizer.

O mais digno dos dois era um homem muito empertigado, de barba grisalha. Soubemos que era um mercador judeu, oriundo de Chipre, chamado Barnabé. Ele, ou sua família, possuía casa em Jerusalém, e meu pai o conhecera lá, muito antes do meu nascimento. O outro era bem mais moço. Trajava um manto grosso de couro preto de cabra, estava ficando calvo, as orelhas eram salientes e os olhos tinham uma expressão de tal modo penetrante que os libertos os evitavam e mexiam os dedos como que para desviar lhe o olhar. Era Saulo, de quem me falara meu pai, mas já não era conhecido por seu verdadeiro nome, pois disse havê-lo trocado pelo de Paulo. Fizera-o por humildade, mas também por­que seu primitivo nome tinha má reputação entre os seguidores de Cristo. Paulo quer dizer o insignificante, como o meu próprio nome, Minuto. Não era simpático, mas havia tal ardor no rosto e nos olhos que ninguém sentia desejo de altercar com ele. Com­preendi que nada do que se dissesse a este homem poderia influen­ciá-lo. Ao contrário, ele próprio desejava influir nos outros. Com­parado com ele, o velho Barnabé parecia um indivíduo perfeita­mente razoável.

Os libertos ficaram perturbados com a chegada dos homens, mas não podiam retirar-se sem ofender meu pai. A princípio, Bar­nabé e Paulo comportaram-se polidamente, falando cada um por sua vez e contando que os mais velhos de sua assembléia haviam tido uma visão, segundo a qual deviam partir pelo mundo a pregar a boa nova, primeiro aos judeus, depois aos gentios. Tinham ido também a Jerusalém, levando dinheiro para os veneráveis de lá, e seus partidários lhes tinham selado a autoridade com um pacto. Desde então vinham pregando a palavra de Deus com tal poder que até mesmo os enfermos se restabeleciam.

Numa das cidades do interior do país, Barnabé fora tomado por Júpiter em figura de gente e Paulo por Mercúrio, a ponto de ter o sacerdote da cidade tentado sacrificar-lhes bois ornados de grinaldas. A muito custo haviam conseguido impedir tão ímpia manifestação. Depois disso, os judeus tiraram Paulo da cidade e o apedrejaram. Em seguida, com medo das autoridades, retiraram-se do local, certos de que Paulo tinha morrido. Mas ele tornou a viver.

—        De que estão vocês possuídos, então — perguntaram os libertos espantados — que não se contentam em viver como mor­tais comuns, mas se expõem ao perigo, para dar testemunho do filho de Deus e do perdão dos pecados?

Barbo deu uma gargalhada, ao imaginar que alguém tinha confundido esses dois judeus com deuses. Meu pai censurou-o e, colocando ambas as mãos na cabeça, disse a Barnabé e Paulo:

— Familiarizei-me com os seus ensinamentos e tentei recon­ciliar judeu com judeu, por causa de minha posição entre os pró­ceres da cidade. Gostaria de acreditar que vocês falam a verdade, mas o espírito não parece harmonizá-los entre si. Pelo contrário, altercam e um diz uma coisa e o outro, outra. Os santos de Jeru­salém venderam tudo quanto possuíam e aguardaram a volta do rei. Há mais de dezesseis anos que estão esperando, o dinheiro se foi e vivem de esmolas. Que dizem a isto?

Paulo afiançou-lhe que de sua parte nunca recomendara a ninguém suspender o trabalho honesto e dividir suas posses entre

nobres Barnabé também afirmou que cada um devia agir na conformidade do que lhe ditasse o espírito. Depois que os santos homens de Jerusalém passaram a ser perseguidos e mortos, muita gente fugira para o estrangeiro, para Antioquia também, comer­ciando e exercendo ofícios, alguns obtendo maior êxito do que outros.

Barnabé e Paulo continuaram a falar até que por fim os li­bertos se mostraram aborrecidos:

_ Já falaram demais do seu deus disseram eles. Não lhes desejamos nenhum mal, mas o que é que querem de nosso amo, invadindo-lhe- a casa tarde da noite e perturbando-o? Não lhe faltam preocupações.

Contaram que suas atividades haviam suscitado problemas en­tre os judeus de Antioquia, de sorte que até mesmo os fariseus e saduceus se haviam unido contra eles e os cristãos. Os judeus conduziam uma vigorosa campanha de conversão ao templo de Jerusalém e arrecadavam ricos donativos dos piedosos. Mas a seita judaica cristã estava tentando atrair os recém convertidos para seu lado, prometendo-lhes o perdão dos pecados e afirmando que já não deviam obedecer às leis judaicas. Por esse motivo intentavam agora os judeus uma ação contra os cristãos, no tribunal da cida­de. Barnabé e Paulo tinham a intenção de sair de Antioquia antes disso, mas temiam que o conselho os perseguisse e os apresentasse ao tribunal.

Meu pai alegrou-se em dissipar-lhes os receios.

Por muitas maneiras consegui que o conselho municipal não interfira nas questões internas dos judeus em matéria de cren­ça. Aos próprios judeus cabe solucionar as dissensões entre as suas seitas. Juridicamente, consideramos a seita cristã como uma das muitas seitas judaicas, apesar do fato de que ela não exige cir­cuncisão nem total obediência à lei de Moisés. Assim, a polícia da cidade tem o dever de proteger os cristãos, caso os outros judeus promovam violência contra eles. Do mesmo modo, é nosso dever proteger os outros judeus, caso os cristãos venham a perturbá-los.

Barnabé estava profundamente abalado.

Ambos somos judeus afirmou mas a circuncisão e a marca do verdadeiro judaísmo. Assim, os judeus de Antioquia dizem que embora os cristãos incircuncisos não sejam legalmente judeus, podem ser processados por violação e abuso da fé judaica.

Mas meu pai era obstinado quando metia uma coisa na cabeça, e disse:

Pelo que sei, a única diferença entre cristão e judeu é que os cristãos, circuncisos e incircuncisos, acreditam que o Mes­sias dos judeus, ou Cristo, já assumiu forma humana em Jesus de Nazaré, que êle ressurgiu dos mortos e que cedo ou tarde vol­tará para fundar o reino do milênio. Os judeus não crêem nisso, mas ainda esperam o seu Messias. Mas do ponto de vista jurídico, não há diferença, quer acreditem que o Messias já veio, quer creiam que virá. O ponto essencial é que acreditam num Messias. A cidade de Antioquia não deseja nem é sequer competente para decidir se o Messias veio ou não. Assim, os judeus e os cristãos hão de liquidar suas querelas em paz e entre si, sem perseguirem uns aos outros.

— Assim tem sido e assim ainda deveria ser — disse Paulo, arrebatado —- se os cristãos circuncisos não fossem tão covardes, como Cefas, por exemplo, que antes comia com os incircuncisos, mas depois afastou-se deles porque tem mais medo dos santos ho­mens de Jerusalém do que de Deus. Já lhe disse sem rodeios o que pensava de sua covardia, mas a cisão está feita e agora os circuncisos comem com freqüência sozinhos e os incircuncisos fa­zem o mesmo. Por isso os últimos já não podem ser chamados de judeus, nem mesmo juridicamente. Não, entre nós não há judeus nem gregos, nem libertos nem escravos, mas somos todos cristãos.

Meu pai observou que seria insensato defender esse argu­mento perante o tribunal, de vez que com êle os cristãos perderiam um benefício e uma proteção insubstituíveis. Seria mais racional admitirem que eram judeus e gozarem de todas as vantagens polí­ticas do judaísmo, mesmo que mostrassem pouco respeito pela cir­cuncisão e pelas leis judaicas.

Mas não lhe foi possível convencer os amigos. Eles tinham a crença inabalável de que um judeu era um judeu e todos os outros eram gentios, mas um gentio podia tornar-se cristão e, da mesma forma, um judeu podia também tornar-se cristão. Não ha­veria então diferença entre eles, mas seriam um só, em Cristo. Não obstante, um judeu cristão continuava a ser judeu, mas um pagão batizado só podia tornar-se judeu pela circuncisão, e esta já não era necessária nem desejável, pois o mundo inteiro devia saber que um cristão não precisava ser judeu.

Meu pai disse com amargura ser esta uma filosofia que estava além de sua compreensão. No passado, êle próprio desejara hu­mildemente tornar-se súdito do reino de Jesus de Nazaré, mas não fora aceito porque não era judeu. Os chefes da seita de Nazaré lhe tinham até mesmo proibido falar em seu rei. Até onde podia perceber, daria mostras de bom senso se continuasse aguardando que os negócios do reino se esclarecessem de modo que ficassem também inteligíveis para espíritos mais simples. Sem dúvida, era a providência que o enviava agora a Roma, pois eram tais os con­tratempos esperados em Antioquia, tanto da parte dos judeus como dos cristãos, que nem mesmo os melhores mediadores seriam ca­pazes de encontrar uma solução.

Prometeu sugerir ao conselho municipal que os cristãos não fossem processados por violação da fé judaica, uma vez que, ao receberem o batismo, idealizado pelos judeus, e ao admitirem um Messias judeu como seu rei, eram de fato, ainda que não também a rigor de jure, de uma forma ou de outra, judeus. Se o conselho acatasse esse ponto de vista, então a questão podia ser pelo menos adiada e a ação dos judeus posta de lado por algum tempo.

Com isso, Barnabé e Paulo ficaram satisfeitos, e na realidade não poderiam ter outra reação. Meu pai garantiu-lhes que, de qual­quer modo, suas simpatias iam mais para os cristãos do que para os judeus. Por seu turno, os libertos imploraram a meu pai que resignasse ao cargo no conselho municipal sem demora, pois não lhe faltava o que fazer na gestão dos seus negócios. Mas meu pai redarguiu, justificadamente, que lhe era impossível tomar tal atitude no momento, já que uma solicitação pública de renúncia faria com que toda gente acreditasse que êle de fato me julgava culpa­do de sacrilégio.

Os libertos temiam seriamente que as manifestas simpatias de meu pai pelos cristãos incutissem no povo a suspeita de que êle talvez tivesse estimulado a mim, seu filho, a violar os inocentes ritos das moças. Pois cristãos e judeus sentiam aversão igualmente implacável por ídolos, sacrifícios sagrados e cerimônias hereditárias.

Os cristãos que foram batizados e depois beberam sangue com seus companheiros de crença disseram os libertos ar­remessam ao chão seus ídolos familiares e destroem seus dispen­diosos livros de adivinhação, em lugar de os venderem a preço módico às pessoas que ainda os possam usar. Essa impetuosa into­lerância torna-os perigosos. Vós, nosso bom e paciente senhor, não deveríeis ter mais nada que ver com eles; do contrário, as coisas poderiam piorar para vosso filho.

Fazendo justiça a meu pai, cumpre-me dizer que após a visita dos dois judeus êle não voltou a insistir comigo para que fosse ouvir-lhes os ensinamentos. Depois de se desavirem com outros judeus, também entraram a altercar entre si e deixaram Antioquia, seguindo cada um o seu caminho. Os judeus fiéis serenaram após a partida deles, uma vez que os moderados evitavam qualquer conflito ostensivo e público e se mantinham recolhidos em sua própria sociedade isolada.

Por sugestão de meu pai, os conselheiros recusaram-se a acei­tar a queixa dos judeus contra Paulo e Barnabé, e proclamaram que cabia aos próprios judeus dirimir as suas discórdias. Com um pouco de decisão também foi mais fácil entregar a solução da disputa que dizia respeito a mim e aos meus amigos ao oráculo de Dafne. Nossos pais pagaram vultosas multas e nós mesmos nos submetemos a cerimônias de purificação, nos bosques de Dafne, durante três dias e três noites. Os pais das moças que havíamos ofendido já não se atreviam a apoquentar-nos com propostas de casamento. Mas juntamente com as cerimônias de purificação, fo­mos forçados a fazer certa promessa à Deusa Lua, mas isso eu não contei a meu pai, nem êle me fêz qualquer pergunta a respeito.

Contrariando seus hábitos, meu pai foi comigo ao anfiteatro, onde eu e mais seis jovens tivemos permissão de ocupar o lugar de honra, atrás das autoridades municipais, no espetáculo seguinte. Nosso leão tinha passado por um regime de emagrecimento e foi habilmente incitado a comportar-se na arena muito melhor do que ousáramos esperar. Com pouca dificuldade dilacerou um crimi­noso que fora condenado a ser lançado às feras; depois mordeu o primeiro gladiador no joelho e caiu lutando intrepidamente até o fim. A multidão urrava em delírio e rendia homenagem ao leão e a nós, erguendo-se e aplaudindo. Acho que meu pai orgulhou-se de mim, embora nada tenha dito.

Dias depois, despedimo-nos da criadagem lacrimosa e ruma­mos para o porto de Selêucia. Ali, meu pai e eu, seguidos por Barbo, tomamos um navio com destino a Nápoles e, de lá, a Roma.

 

Roma

Não é fácil descrever o que sentimos ao chegar a Roma, aos quinze anos, quando sabemos desde a infância que todos os nossos laços de sangue estão unidos àqueles montes e vales sagra­dos. Para mim, era como se o chão mesmo tremesse sob os meus pés ao saudar o próprio filho, como se cada pedra desgastada das ruas repetisse aos meus ouvidos oitocentos anos de história. Até mesmo o lamacento Tibre me era tão sagrado que me sentia des­falecer ao vê-lo.

Talvez estivesse exausto, por causa da exaltação e da falta de sono durante a nossa longa viagem, mas tudo me fazia crer que estivesse deliciosamente embriagado, mas bem mais docemente do que com vinho. Esta era a cidade dos meus antepassados e a mi­nha cidade também, que dominava todo o mundo civilizado, até mesmo regiões afastadas como a Partia e a Germânia.

Barbo aspirava voluptuosamente o ar, enquanto procuráva­mos a casa da tia de meu pai, Manília Lélia.

— Há mais de quarenta anos sinto falta do cheiro de Roma — dizia êle. — É um cheiro que a gente nunca esquece e nota melhor no distrito de Subura, exatamente a esta hora da noite, quando o cheiro de comida no fogo e de salsichas quentes se mis­tura com os odores naturais das ruas estreitas. É uma combinação de alho, azeite de cozinha, temperos, suor e incenso dos templos, mas principalmente uma espécie de cheiro básico a que só se pode dar o nome de cheiro de Roma, pois nunca o encontrei em ne­nhuma outra parte. Mas em quarenta anos a mistura parece ter mudado, ou talvez meu nariz tenha envelhecido. Só com esforço posso reencontrar o cheiro inesquecível da minha infância e juventude.

Entramos na cidade a pé, porque é proibido o uso de veículos em Roma durante o dia. De outro modo, haveria atravancamento. Por minha causa, e talvez porque êle próprio também o desejasse, meu pai escolheu um itinerário sinuoso, através do fórum, de sorte que tínhamos o monte Palatino à esquerda e o Capitólio à frente. Em seguida enveredamos pela velha estrada etrusca, para galgar o Palatino, ladeando o grande circo. Minha cabeça ia de um lado para outro, enquanto meu pai enumerava pacientemente os tem­plos e edifícios, e Barbo embasbacava-se ao ver os novos e vastos apartamentos,do fórum, que não eram de sua época. Meu pai suava e respirava forte enquanto caminhava. Percebi, cheio de compai­xão, que era um velho, embora ainda não tivesse completado cin­qüenta anos.

Mas meu pai não parou para tomar alento enquanto não che­gamos ao rotundo templo de Vesta. Pela abertura do teto subia a tênue espiral de fumo do fogo sagrado de Roma, e meu pai prometeu que no dia seguinte, se eu quisesse, poderia ir com Barbo ver a caverna onde a loba amamentara Rómulo e Remo. e que o divino Augusto preservara, como espetáculo para o mun­do inteiro. A árvore sagrada dos irmãos lobos ainda florescia diante da caverna.

—        Para mim — comentou meu pai — o cheiro de Roma é um aroma inesquecível de rosas e unguentos, de linho limpo e pisos de pedra lavados e esfregados, um cheiro que não se encontra em parte alguma do mundo. Mas só de pensar nele sinto-me tão me­lancólico que mal posso suportar novamente a caminhada por estas ruas memoráveis. Não paremos, então, para que eu não fique comovido demais e perca o autodomínio que venho exercitando há mais de quinze anos.

Mas Barbo objetou, lastimoso:

— A experiência de uma vida inteira me ensinou que alguns tragos de vinho são suficientes para que a minha mente e todo o meu ser absorvam mais claramente odores e ruídos.  Nunca nada me sabe tão bem ao paladar como as pequenas salsichas tempe­radas que a gente come, ainda quentinhas, em Roma. Paremos pelo menos o tempo suficiente para provarmos algumas.

Meu pai não pôde deixar de rir. Paramos no mercado e en­tramos numa pequena estalagem, que era tão antiga que o piso ficava muito abaixo do nível da rua. Barbo e eu aspiramos, ávidos, o ar.

— Abençoado seja Hércules! — bradou Barbo deliciado. — Afinal ainda se vê em Roma um pouco dos dias de outrora. Lembro-me deste lugar, se bem que em minha memória êle fosse bem maior e mais espaçoso do que é agora. Respire fundo, Mi­nuto, você que é mais moço do que eu. Talvez você possa sentir o cheiro de peixe e lama, de caniços e esterco, de corpos suarento? e das lojas de incenso do circo.

Bochechou, cuspiu uma oferenda no chão e depois encheu a boca de salsicha, mastigando e estalando os beiços, a cabeça para um lado. Afinal falou:

— Algo antigo e esquecido está voltando ao meu cérebro. Mas talvez minha boca também tenha envelhecido demais, porque já não posso sentir a mesma felicidade sensual de antes, com a sal­sicha na boca e um cálice de vinho na mão.

As lágrimas assomaram-lhe aos olhos e êle suspirou.

_ Na verdade sou como um fantasma do passado — lamentou-se -_agora que o centenário vai ser celebrado. Não conheço ninguém aqui, nem parente nem protetor. Uma nova geração subs­tituiu a minha e nada sabe do passado, de modo que a salsicha temperada perdeu o sabor e o vinho se diluiu. Esperava dar de cara com um velho companheiro de armas entre os Pretores do Imperador, ou pelo menos no Corpo de Bombeiros de Roma, mas agora me pergunto se chegaríamos a nos reconhecer. Aos vencidos, a desgraça. Estou como Príamo nas ruínas de Tróia.

O estalajadeiro veio correndo, a cara brilhante de gordura, e perguntou o que havia. Assegurou-nos que em sua casa podíamos encontrar tratadores de cavalos do circo, funcionários dos arqui­vos do Estado, atores e arquitetos, que estavam pondo em ordem os pontos de atração da cidade, para as festividades do centená­rio. Podíamos até mesmo travar conhecimento com lindas lobinhas debaixo do seu teto. Mas Barbo estava inconsolável e res­pondeu sombrio que não podia apreciar uma loba, pois até mesmo ela certamente não lhe produziria a mesma impressão de antes.

Depois subimos a colina do Aventino e meu pai disse, com um suspiro, que não deveríamos ter entrado na estalagem, porque a salsicha com alho Lhe dera uma dor de estômago que nem mesmo o vinho conseguira mitigar. Sentia o peito opresso e estava cheio de maus pressentimentos, que se agravaram ante a visão de um corvo que passou voando à nossa esquerda.

Entre os novos e velhos blocos de apartamentos, encontramos diversos templos antigos que pareciam soterrados ao lado dos grandes edifícios. Do outro lado da colina, meu pai descobriu afi­nal a propriedade da família Maniüano.

Comparado com nossa Casa em Antioquia, era um prédio pe­queno e mal conservado, que tivera outrora um pavimento adi­cional para proporcionar mais espaço. Mas era cercado por um muro e um jardim agreste. Quando meu pai notou minha expres­são de desdém, declarou num tom de severidade que o terreno e o jardim, por si sós, davam testemunho da idade e nobreza da casa.

Os portadores tinham chegado há bastante tempo do portão de Cápua, com a nossa bagagem, e tia Lélia nos esperava. Deixou que meu pai pagasse aos portadores e depois desceu os degraus, vindo ao nosso encontro pelo caminho aberto do jardim, entre os loureiros. Era alta e magra, e havia cuidadosamente colorido as faces de vermelho e os olhos de preto. Também usava um anel no dedo e uma corrente de cobre em volta do pescoço. As mãos tremiam quando ela se acercou de nós, com gritos de alegria cau­telosamente medidos.

Cometeu um engano, a princípio, pois meu pai com seus modos humildes se colocara atrás de nós, para pagar pessoalmente aos portadores, e ela parou diante de Barbo, inclinando se um pouCo e cobrindo a cabeça como se estivesse orando.

Ah, Marco, que ocasião feliz! exclamou. Você mu­dou muito desde a juventude. Mas o seu porte melhorou e a sua figura é mais imponente.

Meu pai desatou a rir.

Oh, tia Lélia gritou. Você continua com a vista curta de sempre. Marco sou eu. Esse bom e honesto veterano é nosso companheiro Barbo, um dos meus clientes.

Tia Lélia irritou-se com o equívoco. Aproximou-se de meu pai, esquadrinhou o com olhos brilhantes e desajeitadamente apal­pou-lhe os ombros e o estômago, com mãos trêmulas.

Não é assim tão espantoso comentou ela que eu já não o reconheça. Você está de cara inchada e barriga descaída e mal posso acreditar no que vejo, pois até que você era bem-apessoado.

Meu pai não se ofendeu com essas palavras. Pelo contrário.

Muito obrigado pelo que disse, tia Lélia. Tirou-me um peso do espírito, já que não tive senão aborrecimento com minha aparência anterior. Se você não me reconheceu, então ninguém mais me reconhecerá. Mas você não mudou nada. Está tão esbelta como antes e suas feições conservam a mesma nobreza. Os anos não a modificaram em nada. Abrace meu filho Minuto também, e seja boa e atenciosa com êle como foi comigo, nos dias des­preocupados de minha juventude.

Tia Lélia abraçou-me, encantada, beijou-me a fronte e os olhos com sua boca miúda e acariciou-me as bochechas.

Mas Minuto gritou ela você já tem os primeiros fios de barba e não é mais uma criança para esses mimos.

Segurou minha cabeça nas mãos e mirou atentamente o meu rosto.

Parece mais um grego do que um romano sentenciou. Mas esses olhos verdes e esses cabelos louros são inteiramente incomuns. Se fosse uma moça, eu diria que era bela, mas com tal aparência fará por certo um bom casamento. Sua mãe era grega, naturalmente, se a memória não me falha.

Só depois de tartamudear, engrolando as palavras, durante algum tempo, como se ela mesma não soubesse realmente o que estava dizendo, percebi que se encontrava num estado de com­pleto terror.

À entrada, fomos saudados por um escravo careca e desden­tado, tendo a seu lado uma mulher aleijada e caolha. Ambos ajoelharam-se diante de meu pai e fizeram um cumprimento que tia Lélia lhes tinha evidentemente ensinado. Meu pai, visivelmente

constrangido, bateu de leve no ombro de tia Lélia e pediu-lhe que fosse na frente, já que era a dona da casa. A saleta estava cheia de fumaça que nos fez tossir, pois tia Lélia mandara acender o fogo no altar da família, em nossa homenagem. Pouco a pouco fui iden­tificando nossos deuses domésticos em argila cozida, cujas máscaras de cera amarelada pareciam mover-se na fumaça rodopiante.

Saltitando, tossindo e gesticulando nervosamente, tia Lélia pôs-se a explicar, com os maiores circunlóquios, que, de acordo com as tradições da família Maniliano, devíamos realmente sacri­ficar um porco. Mas como não tinha certeza do dia de nossa chegada, não providenciara um porco e agora só nos podia ofe­recer azeitonas, queijos e sopa de legumes. Havia muito tempo que ela mesma deixara de comer carne.

Examinamos todos os cômodos da casa e notei teias de ara­nha nos cantos, os míseros leitos e outros móveis humildes, e de repente compreendi que nossa nobre e respeitabilíssima tia Lélia vivia nos abismos da miséria. Tudo quanto restava da biblioteca do astrônomo Manílio eram uns rolos de pergaminho roídos pelos ratos, e tia Lélia foi obrigada a confessar que tivera até mesmo de vender o busto de nosso antepassado à biblioteca pública situada no sopé do Palatino. Por fim, não podendo mais conter-se, chorou amargamente.

— A culpa é toda minha, Marco — disse ela. — Sou má dona de casa porque já vi dias melhores em minha juventude. Não teria podido manter esta casa se você não me tivesse mandado di­nheiro de Antioquia. Não sei para onde foi o dinheiro, mas pelo menos não o consumi em artigos de luxo, vinho e unguentos per­fumados. Continuo a esperar que meu destino mude qualquer dia desses. Isso me foi predito. Assim, não se zangue comigo nem me peça minuciosa prestação de contas do dinheiro que me enviou.

Mas meu pai garantiu-lhe que não viera a Roma para isso. Pelo contrário, lamentava profundamente não ter remetido mais dinheiro para a manutenção e reforma da casa. Mas agora tudo iria mudar, exatamente como fora predito a tia Lélia.

Meu pai determinou que Barbo desfizesse as malas e espalhou os ricos tecidos orientais no assoalho. Deu a tia Lélia um manto e um tecido de seda, envolveu-lhe o pescoço com um colar de pedras preciosas e pediu-lhe que experimentasse um par de sapatos de couro vermelho e macio. Também lhe presenteou uma bela peruca, o que fez com que minha tia chorasse ainda mais alto.

Oh, Marco, estará você tão rico assim? Não foi por meios desonestos que adquiriu todas essas coisas custosas, foi? Pensei

que talvez você se tivesse deixado vencer pelos vícios do Oriente, como facilmente acontece com os romanos que passam muito tempo por la. Por isso fiquei intranqüila ao ver seu rosto inchado, mas foram provavelmente as lágrimas que me turvaram a vista. Ven­do-o com maior serenidade, me acostumarei a seu rosto, que talvez não pareça tão desagradável como a princípio julguei.

Na realidade, tia Lélia temia e acreditava que rrieu pai tivesse vindo com o fito exclusivo de apropriar-se da casa e condená-la a uma vida miserável no campo. Essa crença estava tão arraigada que minha tia não. parava de repetir que uma mulher como ela pos­sivelmente não se daria bem em nenhuma outra parte fora de Roma. Pouco a pouco foi adquirindo coragem e acabou por nos fazer recordar que era, de resto, viúva de senador e ainda era festejada nas casas das velhas famílias romanas, embora seu ma­rido, Cneio Lélio, tivesse morrido na época do Imperador Tibério.

Pediu-lhe que me falasse do Senador Cneio Lélio, mas tia Lélia escutou minha solicitação com a cabeça inclinada para um lado.

Marco disse ela como é possível que seu filho fale latim com esse horroroso sotaque sírio? Temos de corrigi-lo. Do contrário, será ridicularizado em Roma.

Meu pai respondeu, com seus modos pachorrentos, que êle próprio falara tanto grego e aramaico que sua pronúncia era quase certamente estranha.

É possível concordou tia Lélia, sarcástica pois você está velho e toda a gente sabe que pegou sotaques estrangeiros nas funções militares e outros serviços prestados no exterior. Mas há de contratar um bom professor de retórica ou um ator para melhorar a pronúncia de Minuto. Êle precisa ir ao teatro e ouvir leituras públicas, pelos autores. O Imperador Cláudio é exigente quanto à pureza da língua, se bem que dê permissão para que seus libertos falem grego nas questões do Estado e sua mulher faça outras coisas que a modéstia me proíbe mencionar.

Depois voltou-se para mim.

Meu pobre marido, o Senador Cneio explicou não era nem mais estúpido nem mais simplório do que Cláudio. Sim, em sua juventude, Cláudio chegou mesmo a contratar o casamento do filho, que era menor, com a filha do prefeito Sejano, e a ca­sar-se com sua irmã adotiva, Élia. O menino era tão desmiolado quanto o pai e morreu algum tempo depois, asfixiado por uma pêra. Quero dizer que meu finado marido Lélio esforçou-se tam­bém por obter os favores de Sejano, pensando que estivesse ser­vindo o Estado dessa forma. Não esteve você mesmo, Marco, embaralhado nas intrigas de Sejano, já que desapareceu tão ino­pinadamente de Roma, antes que se descobrisse a conspiração? Ninguém teve notícias suas durante anos. Na verdade, você foi riscado do rol dos cavaleiros, pelo querido Imperador Caio, sim­plesmente porque ninguém sabia o que lhe tinha acontecido. Nada sei tampouco, disse de brincadeira o Imperador, e traçou uma li­nha por cima do seu nome. Pelo menos, foi o que ouvi dizer, em­bora talvez quem me contou tenha querido poupar meus senti­mentos e não tenha revelado tudo o que sabia.

Meu pai retrucou ríspido que iria no dia seguinte aos arquivos do Senado a fim de mandar investigar o motivo de ter sido o seu nome riscado dos registros. Tia Lélia não pareceu muito con­tente ao ouvir isso. Ao contrário, perguntou se não seria mais seguro desistir de desenterrar o que estava agora velho e podre. Quando se embebedava, o Imperador Cláudio se tornava irrita­diço e caprichoso, embora houvesse corrigido muitos dos equí­vocos do Imperador Caio.

— Mas compreendo que, para o bem de Minuto, devemos fazer o que pudermos para restaurar a honra da família — admitiu minha tia. O meio mais rápido seria conceder a Minuto a toga viril e levá-lo à presença de Élia Messalina. A jovem Imperatriz aprecia os mancebos que acabam de vestir a toga e convida-os a seus aposentos, para os interrogar a sós, acerca de seus ascendentes e de suas esperanças no futuro. Se eu não fosse tão orgulhosa, iria pedir uma audiência à cadela, por amor a Minuto. Mas receio que não me receba. Ela sabe perfeitamente que fui a melhor amiga de juventude da mãe do Imperador Caio. De fato, fui uma das poucas mulheres romanas que ajudaram Agripina e a jovem Júlia a dar aos restos mortais de seu infeliz irmão um sepultamento sofrivelmente respeitável, depois que as moças regressaram do exílio. O pobre Caio foi brutalmente assassinado, e depois os judeus financiaram Cláudio para que êle pudesse ser Imperador. Agripina encontrou um marido rico, mas Júlia foi banida de Roma outra vez, porque Messalina achou que ela andava rondando de­mais o tio Cláudio. Muitos homens foram degredados por causa dessas duas moças joviais. Lembro-me de um tal Tigelino, que podia ser inculto mas tinha a mais bela estampa dentre todos os mancebos de Roma. Não se amofinou com o exílio, fundou uma empresa de pesca e dizem que agora se dedica à criação de cava­los de corrida. Depois houve um filósofo espanhol, Sêneca, que publicou muitos livros e mantinha relações amistosas com Júlia, embora fosse tuberculoso. Há vários anos curte exílio na Córsega. Messalina achava inconveniente que uma sobrinha de Cláudio fosse lasciva, ainda que em segredo. De qualquer modo, só Agripina vive hoje.

Quando ela parou para respirar, meu pai aproveitou a opor­tunidade para dizer diplomaticamente que seria melhor que, por enquanto, tia Lélia não fizesse nada para me ajudar. Meu pai queria cuidar do assunto sozinho, sem intervenção das mulheres. Já chegava de interferência feminina, declarou com amargura na voz. Sofrera-a em demasia desde os dias de rapaz.

Tia Lélia ia responder, mas atirou-me um olhar e calou-se.

Afinal, começamos a comer as azeitonas, o queijo e a sopa de le­gumes. Meu pai fêz com que não devorássemos tudo, mas deixás­semos alguma sobra, até mesmo do minúsculo pedaço de queijo, porque de outro modo era evidente que nenhum dos idosos escra­vos da casa teria o que comer. Não me dei conta disso, pois em nossa casa de Antioquia eu sempre recebia os melhores bocados e havia sempre sobra mais do que suficiente para o pessoal de casa e para os pobres que viviam em volta de meu pai.

No dia seguinte meu pai contratou um arquiteto para restau­rar o prédio da família e dois jardineiros para pôr em ordem o jardim abandonado. Havia nele um sicômoro centenário, plantado por um Manílio que tinha sido depois assassinado em plena rua pelos homens de Mário. Duas árvores antigas também vicejavam perto da casa e meu pai teve o cuidado de tomar providências para que não sofressem dano algum. A casinha afundada meu pai tam­bém deixou exteriormente inalterada até onde foi possível.

Verás muito mármore e outros esplendores em Roma — explicou-me êle mas quando cresceres compreenderás que o que estou fazendo agora é a coisa mais suntuosa de todas. Nem mesmo o mais rico arrivista pode ter tais árvores antigas em redor de sua casa, e a aparência antiquada do edifício é mais valiosa do que todas as colunas e decorações.

Voltou ao passado em seus pensamentos e seu rosto se anu­viou.

—- Certa vez, em Damasco, pensei em construir uma Casa simples e rodeá-la de árvores para levar ali uma vida tranqüila ao lado de tua mãe, Mirina. Mas depois que ela morreu, afundei num desespero tão completo que durante muitos anos nada teve qualquer significação para mim. Talvez eu me tivesse matado se meu dever para ti não me forçasse a continuar vivendo. E uma vez um pes­cador das praias da Galileia me prometeu algo que ainda me deixa curioso, se bem que a recordação disso me pareça um sonho.

Meu pai não disse mais nada acerca dessa promessa, mas re­petia sempre que teria de contentar-se com essas árvores antigas, já que não lhe fora dada a alegria de plantar uma e vê-la crescer.

Enquanto os operários da construção e o arquiteto andavam de um lado para outro da casa e meu pai se demorava na cidade da manhã até a noite, tratando dos seus negócios, Barbo e eu ca­minhávamos pelas ruas de Roma, observando as pessoas e os lu­gares.

O Imperador Cláudio mandara restaurar todos os velhos tem­plos e monumentos, para as comemorações do centenário, e os sa­cerdotes e sábios coligiam todos os mitos e narrativas e adapta­vam-nos às exigências do presente. Os edifícios imperiais no Pala­tino, o templo no Capitólio, as termas e os teatros de Roma não me fascinavam por si mesmos, pois eu crescera em Antioquia, onde havia edifícios públicos tão suntuosos e até mesmo maiores do que esses. Na verdade, Roma, com suas vielas sinuosas e coli­nas alcantiladas, era uma cidade apertada para quem estava habi­tuado às ruas retas da espaçosa Antioquia.

Havia um edifício, porém, que me arrebatava. Era o imenso mausoléu do divino Augusto. Tinha forma circular, de vez que os templos mais sagrados de Roma eram circulares, em memória do tempo em que os primeiros habitantes da cidade moravam em ca­banas redondas. A grandeza simples do mausoléu parecia-me digna de um deus e do maior governante de todos os tempos. Nunca me cansava de ler a inscrição comemorativa que enumerava os maio­res feitos de Augusto.

Barbo não se mostrava tão entusiasmado quanto eu. Dizia que em seus dias de legionário se tornara cético a respeito de todas as inscrições comemorativas, pois' o que não constava delas era geralmente mais importante do que o que nelas figurava. Desse modo uma derrota pode converter se em vitória e erros políticos em sábias demonstrações da arte de bem governar. Asseverou-me que nas entrelinhas da inscrição do túmulo de Augusto podia ler a destruição de legiões inteiras, o afundamento de centenas de vasos de guerra e as incontáveis perdas da guerra civil.

Nascera, é claro, no momento em que Augusto já consolida­ra a paz e a ordem no Estado e fortalecera o poder de Roma, mas seu pai lhe falara menos de Augusto, que tinha reputação de mes­quinho e avarento, e mais de Marco Antônio, que às vezes subia à tribuna do fórum tão bêbado que, inflamado pelas próprias pa­lavras, era levado intermitentemente a vomitar num balde a seu lado.

Isso foi no tempo em que ainda costumavam apelar para o povo. Augusto granjeara o respeito do Senado e do povo de Roma durante seu largo reinado, mas a vida na cidade se tornara, pelo menos de acordo com o pai de Barbo, bem mais monótona do que antes. Ninguém realmente amara o precavido Augusto, mas o arrojado Antônio era estimado por suas faltas e sua bem-dotada jovialidade.

Mas eu já me habituara às histórias de Barbo, que meu pai teria talvez considerado impróprias para os meus ouvidos se delas tivesse sabido. O mausoléu de Augusto encantava-me com sua opulência maravilhosamente simples, e repetidas vezes cruzávamos Roma para contemplá-lo. Mas naturalmente atraía-me também o campo de Marte dedicado à jovem nobreza romana, onde os filhos de senadores e cavaleiros já se estavam exercitando para os jogos equestres das comemorações do centenário.

-Com inveja, eu os via agruparem-se, separarem-se em obe­diência aos sinais dados por uma trompa e depois se reagruparem. Conhecia tudo isto e sabia também que era capaz de governar um cavalo tão bem quanto eles, se não melhor.

Entre os espectadores dos jogos eqüestres havia sempre muitas mães ansiosas, porque os rapazes nobres eram de todas as idades, entre sete e quinze anos. Os meninos, como era natural, fingiam não reconhecer as mães, mas rosnavam furiosos quando um dos menores caía do cavalo e a mãe, assustada e com o manto ade­jando no ar, precipitava-se para salvá-lo dos cascos dos animais Evidentemente, os menores tinham cavalos sossegados e bem trei­nados, que logo paravam para proteger quem tivesse despencado da sela. Não eram certamente fogosos cavalos de batalha os que esses romanos montavam. Os nossos em Antioquia eram muito mais ariscos.

Avistei, certa vez, no meio dos espectadores, Valéria Messa­lina, com seu séquito deslumbrante, e fitei-a cheio de curiosidade. É claro que não me acerquei dela, mas daquela distância ela não me pareceu tão bela como me tinham dito. Seu filho de sete anos, a quem o Imperador dera o nome de Britânico, em honra das suas vitórias na Bretanha, era um menino magro e pálido, visivelmente amedrontado com o cavalo que montava. Deveria cavalgar à frente dos outros nesses jogos em razão de sua ascendência, mas isso era impossível porque o rosto se intumescia e os olhos dançavam, logo que êle se punha na sela. Após cada exercício, o rosto se tornava escarlate com exantema, e êle mal podia enxergar, tão inchados lhe ficavam os olhos.

Alegando que Britânico era muito pequeno, Cláudio nomeou Lúcio Domício, filho de sua sobrinha Domícia Agripina, para a chefia. Lúcio ainda não completara dez anos, mas era bem diferen­te do tímido Britânico, de compleição robusta para a sua idade e um cavaleiro intrépido.

Terminado o exercício, muitas vezes ficava para trás, sozinho, e realizava proezas temerárias, para conquistar o aplauso da mul­tidão. Herdara o cabelo avermelhado da família Domício, e por isso gostava de tirar o elmo, durante o exercício, para exibir ao povo esse sinal de sua linhagem antiga e intimorata. Mas o povo enaltecia-o mais por ser o sobrinho do Imperador Cláudio do que por ser um Domício, pois tinha nas veias o sangue de Júlia, a irmã de Júlio César, e de Marco Antônio. Até mesmo Barbo era levado a bradar-lhe, com sua voz rouca, motejos a um só tempo afáveis e indecentes, fazendo o povo explodir em gargalhadas.

Era voz corrente que sua mãe, Agripina, não se atrevia a vir assistir aos exercícios de equitação, como faziam as outras mães, por temer a inveja de Valéria Messalina. Chateada com a sorte de

irmã evitava tanto quanto possível aparecer em público. Mas Lúcio Domício não carecia da proteção materna. Atraía a admirada turba sozinho, com seu comportamento infantil. Controlava bem o corpo, deslocava-se graciosamente e tinha o olhar audaz Os rapazes mais crescidos não pareciam invejá-lo. Submetiam-se de boa-vontade ao seu comando durante os exercícios.

Eu me apoiava no gradil polido e lustroso, e olhava anelante a cavalgada. Mas minha vida livre logo chegou ao fim. Meu pai encontrou um funesto professor de retórica, que corrigia sarcàsticamente cada palavra que eu dizia e parece que de propósito me fazia ler em voz alta somente monótonos livros que falavam de autodomínio, humildade e ações varonis. Meu pai tinha o dom infa­lível de contratar professores que me deixavam exasperado.

Enquanto a casa estava em reparos, Barbo e eu ocupávamos um quarto no pavimento superior, que estava impregnado do cheiro de incenso e tinha símbolos mágicos pendurados nas pare­des. Não lhes dava muita atenção, pois supunha que estavam ali desde o tempo de Manílio, o astrônomo. Mas passei a dormir ma! por causa deles e a ter sonhos, de modo que acordava ao som dos meus próprios gritos, ou então Barbo me despertava, quando eu choramingava no meio de um pesadelo. Meu preceptor logo se cansou do ruído e das pancadas dos martelos e começou a levar-me para as salas de conferência, nas termas.

Achei repugnantes seus membros frágeis e seu abdome redon­do e amarelo, ainda mais quando, no meio dos seus sarcasmos, entrou a afagar-me os braços e a falar de como em Antioquia eu devia ter-me familiarizado com o amor grego. Queria que eu fosse morar com êle, no quarto que ocupava no último andar de uma casa miserável de Subura enquanto a nossa estivesse em reforma. Tinha-se de subir uma escada para chegar lá, e êle então poderia instruir-me, sem ser perturbado, e iniciar-me numa vida de sabe­doria.

Barbo notou-lhe as intenções e fez uma advertência séria. Como insistisse, Barbo deu-lhe uma surra. Ele se assustou tanto, que não se atreveu sequer a ir pedir seu salário a meu pai. De nossa parte, não ousamos contar o verdadeiro motivo pelo qual o homem desaparecera de nossa vista. Meu pai presumiu que eu, por ser cabeçudo, havia desgostado um eminente erudito. Discuti­mos e eu disse:

Dê-me um cavalo, então, para que eu possa conhecer outros rapazes em Roma e privar da companhia de outros como eu e aprender os seus costumes.

Um      cavalo foi a sua ruína em Antioquia — ponderou meu pai _    O Imperador Cláudio baixou novo e sensato édito segundo o qual, nos desfiles, um velho ou, sob outros aspectos, um homrado senador ou cavaleiro pode conduzir seu cavalo pelo

freio, sem montar. Tem-se de desempenhar, só no nome, a função militar que o cargo exige.

Mas pelo menos me dê dinheiro — dei-me pressa em dizer para que eu possa fazer amizade Com atôres, músicos e gente de circo. Se me misturo com eles, em pouco tempo estarei conhe­cendo os rapazes romanos efeminados que evitam o serviço mili­tar.

Mas meu pai não queria isso, tampouco:

Tia Lélia já me preveniu e diz que um rapaz como você não deve ficar muito tempo sem companheiros de sua idade. En­quanto tratava dos meus negócios, conheci um certo armador e Comerciante de cereais. Agora, depois da fome, o Imperador Cláudio determinou a construção de um novo porto e vai pagar indenização pelos navios de cereais que forem a pique. A conse­lho de Márcio, o pescador, adquiri ações desses navios, já que ninguém corre mais tal risco, e alguns indivíduos enriqueceram reaparelhando velhos barcos. Mas os hábitos desses novos-ricos são tão extravagantes que não sinto desejo de vê-lo no meio deles.

Tive a impressão de que meu pai não sabia o que queria. Você veio a Roma para enriquecer? perguntei. Meu pai irritou-se:

—- Você sabe muito bem respondeu exaltado que não desejo nada mais do que levar uma vida simples, em paz e sossego. Mas meus libertos me ensinaram que é um crime contra o Estado e o bem comum guardar moedas de ouro, em sacos, numa arca. Além disso, quero comprar mais terra em Cere, onde vive minha verdadeira família. Não esqueça que pertencemos à fa­mília Maniliano apenas por adoção.

Fitou-me embaraçado:

Você tem uma dobra na pálpebra como eu. É um sinal de nossas verdadeiras origens. Mas quando dei uma busca nos ar­quivos do Estado, vi ,com meus próprios olhosos assentamentos da ordem dos cavaleiros desde a época do Imperador Caio, e não há marca nenhuma contra o meu nome, apenas uma linha sinuosa e vacilante por cima dele. As mãos de Caio tremiam muito por causa de sua enfermidade. Não houve sentença de tribunal nem processo contra mim. Se isso foi devido à minha ausência ou não, não sei, O próprio Procurador Pôncio Pilatos caiu em desgraça há dez anos, perdeu o cargo e foi removido para a Galiléia. Mas o Imperador Cláudio está de posse desses documentos secretos, os quais podiam naturalmente conter alguma coisa que me fosse des­favorável. Estive com seu liberto Félix, que está interessado nos assuntos da Judéia. Prometeu-me êle consultar Narciso, o secretá­rio particular do Imperador, num momento oportuno. Eu prefe riria avistar-me pessoalmente com esse indivíduo influente, mas dizem que êle é tão importante que para vê-lo é preciso pagar dez mil sestércios. A bem da minha honra, e não por avareza, acho melhor não suborná-lo diretamente.

Prosseguindo, contou meu pai que escutara atentamente e gravara na memória tudo quanto diziam do Imperador Cláudio, de bem e de mal. O retorno do nosso nome aos assentamentos de­pendia, em última instância, do Imperador. À medida que ia fi­cando mais velho, o Imperador Cláudio se tornava tão inconstante que a um simples capricho ou presságio alterava as mais firmes decisões. Também adormecia no meio de uma sessão do Senado, ou num julgamento, e esquecia o que estava em discussão. En­quanto esperava, meu pai lera todas as obras que o Imperador Cláudio publicara, inclusive o manual sobre o jogo de dados.

O Imperador Cláudio é um dos poucos romanos que ainda falam a língua dos etruscos e lêem seus escritos explicou meu pai. Se você quer me agradar, vá à biblioteca pública do Pala­tino e peça para ler o que êle escreveu sobre a história dos etrus­cos. Consta de vários rolos e não é muito cacete. Também explica as palavras de muitos dos ritos sacrificatórios dos sacerdotes, que até agora têm de ser decoradas por eles. Depois iremos a Cere, ver a nossa propriedade que eu mesmo ainda não vi. Lá você poderá andar a cavalo.

O conselho de meu pai me deixou desalentado e senti mais vontade de morder os lábios e chorar do que de qualquer outra coisa. Quando êle foi embora, Barbo me olhou de soslaio:

É curioso como tantos homens maduros esquecem o que é ser jovem disse êle. Recordo que quando era da sua idade chorava sem motivo e tinha pesadelos. Sei muito bem como você pode recuperar sua paz de espírito e dormir tranqüilo, mas por causa de seu pai não me atrevo a arranjar tal coisa para você.

Tia Lélia também me encarou aflita e depois me conduziu até seu quarto, olhando cautelosamente em volta antes de falar:

Se você jura que não vai dizer a seu pai, eu lhe contarei um segredo.

Por polidez, prometi que não diria, embora risse interiormen­te, julgando que seria improvável que tia Lélia tivesse qualquer segredo sensacional. Mas nisso eu estava enganado.

No quarto em que você dorme disse ela morou um mago judeu, chamado Simão, que era meu hóspede. Êle se diz sa­maritano, mas esses também são judeus, não è mesmo? Seu incen­so e seus símbolos mágicos provavelmente lhe estão perturbando o sono, Minuto. Êle chegou a Roma há alguns anos e não tardou a alcançar reputação de médico, adivinho e taumaturgo. O Sena­dor Marcelo convidou-o a morar em sua casa e erigiu-lhe uma es­tatua, acreditando que Simão tivesse poderes divinos. Esses pode­res foram postos à prova. Êle imergiu um jovem escravo no sono dos mortos e depois ressuscitou-o, embora o rapaz já estivesse frio e não revelasse o menor sinal de vida. Vi-o com estes olhos.

Não duvido — comentei. — Mas de judeus bastam os que vi em Antioquia.

De acordo — acudiu tia Lélia, impaciente. — Deixe-me continuar. Os outros judeus, os que vivem do outro lado do rio e os que vivem no Aventino, tornaram-se amargamente invejosos de Simão, o mago. Ele sabia ficar invisível e voar. Assim, os judeus mandaram buscar outro mago, que também se chamava Simão. Ambos tiveram de demonstrar seus poderes e Simão, quero dizer, o meu Simão, pediu aos espectadores que olhassem atentamente para uma nuvem e, de repente, sumiu. Quando reapareceu, vinha voando ao lado de uma nuvem acima do fórum, mas aí o outro judeu invocou seu ídolo, Cristo, e o fato é que Simão caiu ao solo, em pleno vôo, e quebrou a perna. Ficou encolerizado com isto e foi levado para fora da cidade a fim de esconder-se no campo, enquanto a perna sarava, até que o outro Simão saiu de Roma. Depois, Simão, o mago, voltou com a filha e permiti que morasse aqui, já que êle não tinha melhor patrono. Permaneceu comigo enquanto tive dinheiro, mas depois mudou-se para uma casa, perto do templo da Lua, e lá recebe clientes. Não voa mais e nem ressuscita os mortos, mas a filha ganha a vida como sacerdotisa da Lua. Muitas pessoas nobres deixam que ela lhes leia a sorte, e Simão faz com que tornem a aparecer os objetos perdidos.

Por que está me contando tudo isso? — perguntei, des­confiado.

Tia Lélia pôs-se a apertar as mãos:

— Anda tudo tão triste desde que Simão, o mago, foi embo­ra. Ele não me quer receber porque não tenho dinheiro e não ouso ir à casa dele, por causa de seu pai. Contudo, estou certa de que êle curaria os seus pesadelos e dissiparia os seus temores. De qualquer modo, com o auxílio da filha, êle poderia predizer o seu futuro e aconselhá-lo sobre o que deve comer e o que não lhe faz bem, e dizer quais são os seus dias propícios e os aziagos. Ele me proibiu de comer ervilhas, por exemplo, e desde então me sinto mal só em ver ervilhas, mesmo secas.

Meu pai me dera algumas moedas de ouro para me conso­lar e incentivar-me a ler a história dos etruscos. Achei que tia Lélia era uma velha tonta, que perdia tempo com superstição e magia porque não tinha muita alegria na vida. Mas não iria eu privá-la de seu passatempo, e o mago samaritano e a filha afigu­ravam-se muito mais interessantes do que a biblioteca empoeirada onde os velhos possam horas a fio lidando com manuscritos resse­quidos. Também já soara para mim a hora de conhecer o templo da Lua, em virtude da promessa que fizera ao oráculo de Dafne.

Quando prometi acompanhar Lélia à casa do mago, ela não coube em si de contente. Pôs as vestes de seda, pintou e alisou o rosto enrugado, colocou a peruca vermelha que meu pai lhe dera e também adornou o pescoço magro com o colar de pedras precio­sas. Barbo rogou-lhe que, em nome dos deuses, pelo menos co­brisse a cabeça, pois de outro modo poderiam tomá-la pela dona de um bordel. Tia Lélia não se zangou. Limitou-se a agitar o dedo indicador na direção de Barbo e a proibi lo de vir conosco. Mas Barbo havia prometido solenemente nunca perder-me de vista em Roma. Afinal concordamos que êle nos acompanharia até ao templo da Lua, mas esperaria do lado de fora.

O templo da Lua, no Aventino, é tão antigo que não há his-torinhas acerca dele como há acerca do mais recente templo de Diana. O Rei Sérvio Túlio, em sua época, ordenara a construção, em madeira de primeira qualidade e de forma circular. Posterior­mente erigiu-se um templo de pedra em volta do edifício de madei­ra. A parte mais central do templo é tão sagrada que não tem piso de pedra, mas é apenas terra amassada. À exceção das oferendas votivas, não se vêem outros objetos sagrados, salvo um imenso ôvo de pedra, cuja superfície, enegrecida pelo uso, é polida com azeite e unguento. Quando se penetra na penumbra do templo sente-se o estremecimento de santidade que só se experimenta nos templos muito velhos. Esse tremor, eu o sentira antes no templo de Saturno, que é o mais antigo, o mais terrificante e o mais sa­grado de todos os templos de Roma. É o templo do Tempo, e o sumo sacerdote, que é geralmente o próprio Imperador, num dia determinado de cada ano, ainda finca um prego de cobre no pilar de carvalho erguido no centro.

No templo da Lua não existe pilar sagrado, mas só o ôvo de pedra. Ao lado dele, numa trípode, sentava-se uma mulher mor­talmente pálida e tão imóvel que a princípio, na escuridão, julguei fosse uma estátua. Mas tia Lélia dirigiu-lhe a palavra num tom de voz humilde, chamou-a de Helena e comprou óleo santo para esfregar o ôvo. Ao entornar o óleo em gotas, murmurou uma fór­mula mágica que só as mulheres tinham permissão de aprender. Para os homens é inútil fazer oferendas a esse ôvo. Enquanto ela fazia as oferendas, voltei-me para as prendas votivas e reparei com satisfação que havia diversas caixinhas redondas de prata no meio delas. Senti vergonha só de pensar no que prometera ofere­cer a Deusa Lua, pois achei que era melhor levá-la ao templo numa caixa fechada, quando chegasse a ocasião.

Nesse momento, a mulher pálida virou-se para mim, fitou-me com seus olhos negros e assustadores, sorriu e disse:

Não te envergonhes dos teus pensamentos, belo jovem. A Deusa Lua é mais poderosa do que imaginas. Se lhe alcançares as graças, terás um poder incomparavelmente maior do que a força bruta de Marte ou a sabedoria estéril de Minerva.

Falava latim com sotaque, de sorte que dava a impressão de falar alguma esquecida língua antiga. Seu rosto cresceu aos meus olhos, como iluminado por um luar oculto, e, quando sorriu, vi que era bela, apesar da lividez. Tia Lélia adotou um tom ainda mais humilde, a ponto de me fazer pensar, de súbito, que ela se assemelhava a uma gatinha magra, afagando o ôvo de pedra e en­roscando se em volta dele.

Não, não, não uma gata disse a sacerdotisa. Uma leoa. Não vês? O que queres com leões, meu rapaz?

Suas palavras me apavoraram e por um brevíssimo instante tive realmente a impressão de ver uma leoa magra e aflita, no lugar em que tia Lélia estivera. A fera olhou-me tão recriminado-ramente como o velho leão da aldeia perto de Antioquia me olha­ra quando eu lhe espetei a pata com a lança. Mas a visão se esvaiu quando passei a mão pela testa.

Vosso pai está em casa? perguntou tia Lélia. Acre­ditais que êle nos receberia?

Meu pai Simão jejuou e viajou por muitos países, a fim de aparecer inesperadamente diante de pessoas que respeitam o seu divino poder respondeu a sacerdotisa Helena. Mas sei que no momento está acordado e vos espera a ambos.

Ela nos guiou pela porta dos fundos do templo e por alguns degraus ao lado de fora, até um prédio alto, que tinha uma loja de objetos sagrados no andar térreo, abarrotada de luas e estrelas de cobre e pequeninos ovos de pedra polida, artigos que eram vendidos como lembranças, por preços altos e baixos. A sacerdoti­sa Helena logo pareceu uma pessoa comum, amarelo o rosto fino, e o manto branco enodoado e recendendo enjoativamente a incen­so rançoso. Já não era moça.

Levou-nos por dentro da loja a um sórdido quarto de fundo, onde um homem de barba negra e nariz grosso estava sentado numa esteira. Levantou os olhos para nós, como se ainda estivesse em outro mundo, mas em seguida ergueu-se rígido para cumpri­mentar tia Lélia.

Estava conversando com um mago etíope disse êle, num tom surpreendentemente grave. Mas pressenti que vinhas para cá. Por que me perturbas, Lélia Manília? Por tuas sedas e jóias vejo que já recebeste todas as boas coisas que eu predisse. Que mais queres?

Tia Lélia explicou mansamente que eu dormia no quarto em que Simão, o mago, morara tanto tempo. Eu tinha maus sonhos à noite, rangia os dentes e gritava enquanto dormia. Tia Lélia de­sejava saber qual era a causa disso e, se possível, obter um remé­dio.

Também tinha uma dívida convosco, caríssimo Simão, do abandonastes minha casa na vossa amargura — afirmou tia Lélia e pediu-me que desse ao mago três moedas de ouro. Simão o mago, não se dignou êle mesmo receber o dinheiro, mas limitou-se a inclinar a cabeça para a filha — se é que a sacer­dotisa Helena era realmente sua filha — e ela pegou as moedas com indiferença. Afinal três áureos romanos são trezentos sestércios ou setenta e cinco moedas de prata. Por isso fiquei irritado com a altivez da mulher.

O mago tornou a sentar-se na esteira e pediu que me sentasse defronte dele. A sacerdotisa Helena lançou umas pitadas de incen­so no turíbulo.

_ Ouvi dizer que quebraste a perna num vôo — disse eu _cortesmente, já que o mago não falava e apenas me encarava.

_ Sofri uma queda no outro lado do mar, na Samaria — principiou êle, numa voz monótona.

Mas tia Lélia impacientou-se e começou a ficar irrequieta:

Oh, Simão, não nos comandais mais, como antes? — im­plorou.

O mago ergueu o dedo indicador no ar. Tia Lélia emperti­gou-se e pôs se a fitá-lo. Sem sequer olhar para feia, Simão, o mago, disse:

— Já não podes mexer a cabeça, Lélia Manília. E não nos perturbes, mas vai banhar-te na fonte. Quando entrares na água, estarás contente e ficarás mais jovem.

Tia. Lélia não foi a parte alguma, mas permaneceu imóvel onde estava, olhando estupidamente para a frente, enquanto fazia gestos como se estivesse tirando a roupa. Simão, o mago, conti­nuou a fitar-me e retomou sua história.

— Eu tinha uma torre de pedra — disse êle. — A lua e todos os cinco planetas estavam a meu serviço. Meu poder era divino. A Deusa Lua tomou forma humana em Helena e tornou-se minha filha. Com sua ajuda pude investigar o passado e o futuro. Mas então vieram magos da Galileia, cujos poderes eram maiores do que os meus. Bastava-lhes apenas colocar as mãos na cabeça de um homem para que êle começasse a falar e o espírito o habitas­se. Eu era moço ainda e queria estudar todos os tipos de poderes. Assim, pedi-lhes que pusessem as mãos sobre mim também, e pro­meti-lhes uma grande quantia se transferissem seus poderes para mim, a fim de que eu pudesse realizar os mesmos milagres que e es realizavam. Mas eram avarentos em seus poderes e me amal­diçoaram e proibiram de usar o nome de seu deus em minhas atividades. Encara-me nos olhos, jovem. Como é que te chamas?

Minuto — respondi com relutância, pois sua voz monótona, mais do que sua história, me pusera a cabeça a rodopiar. —

Não devíeis saber sem me perguntar, já que sois um mago tão extraordinário? — acrescentei sarcàsticamente.

— Minuto, Minuto — repetiu. — O poder que habita em mim me diz que receberás outro nome antes que a lua fique cheia pela terceira vez. Mas não creio nos magos galileus. Pelo contrá­rio, curei os doentes, em nome do Deus deles, até que começassem a perseguir-me e me processassem em Jerusalém, por causa de um pequeno Eros de ouro, que me fora dado espontaneamente por uma senhora rica. Olha-me nos olhos, Minuto. Mas eles enfeitiçaram-na com seus poderes, de modo que ela mesma esqueceu que me tinha dado o presente. Em vez disso, ela contou que eu me tornara invisível e o roubara. Sabes que posso ficar invisível, não sabes? Vou contar até três, Minuto. Um, dois, três. Agora já não podes ver-me.

Na verdade, êle sumiu da minha vista. Tive a impressão de estar mirando uma bola bruxuleante que talvez fosse a lua. Mas sacudi violentamente a cabeça, fechei os olhos e abri-os de novo, e então estava êle sentado diante de mim como antes.

— Posso ver-vos como antes, Simão, o mago — disse eu, suspeitoso. — Não quero fitar-vos os olhos.

Ele riu de maneira amistosa, fez um gesto de dispensa com as mãos e falou:

— És um menino teimoso e não quero forçar-te, pois isso não traria nada de bom. Mas olha para Manília Lélio.

Olhei. Tia Lélia erguera as mãos e inclinava-se para trás, com uma expressão de êxtase no rosto. As rugas em volta da boca e dos olhos tinham-se atenuado e sua imagem se tornara flutuante e cheia de viço.

— Onde estás neste momento, Manília Lélio? — perguntou Simão, o mago, num tom forte.

Com jeito de menina, Tia Lélia respondeu incontinenti:

Estou me banhando em vossa fonte. A água maravilhosa me cobre completamente e assim estou toda trêmula.

Continua no teu divino banho, Lélia — disse o mago e, virando-se para mim, aduziu: — Esse tipo de feitiçaria nada sig­nifica e não prejudica a ninguém. Eu podia enfeitiçar-te e fazer com que passasses o tempo todo tropeçando e ferindo os pés e as mãos. Mas por que iria desperdiçar meus poderes contigo? Predi­gamos a tua sorte, então, já que estás aqui. Helena, estás dor­mindo?

Estou dormindo, Simão — respondeu a sacerdotisa, ime­diatamente submissa, embora os olhos estivessem abertos.

Que vês em torno do jovem chamado Minuto? — inda­gou o mago.

Seu animal é o leão — disse a sacerdotisa. — Mas o leão aproxima-se de mim e não posso passar. Atrás do leão está um homem que ataca o mancebo com setas mortíferas, mas não posso ver como é êle. Está muito distante no futuro. Mas avisto nitida­mente Minuto, numa ampla sala em que as estantes estão cheias de rolos de pergaminho. Uma mulher está lhe entregando um rolo aberto. Ela tem as mãos enegrecidas. Seu pai não é seu pai. Acautela-te dela, Minuto. E agora vejo Minuto montado num ga­ranhão preto. Está usando um reluzente peito de armas. Ouço os gritos de uma multidão. Mas o leão está avançando para mim. Tenho de fugir. Simão, Simão, socorro!

Deu um grito e cobriu o rosto com as mãos. Simão ordenou-lhe apressadamente que despertasse, volveu para mim um olhar penetrante e depois perguntou:

Não estás exercendo a feitiçaria tu mesmo, estás? Com teu leão te protegendo tão ciosamente? Não te preocupes. Não terás mais sonhos desagradáveis se te lembrares de invocar o teu leão no sonho. O que ouviste foi o que desejavas ouvir?

O principal eu ouvi — confessei. — E foi um prazer para mim, quer seja verdade, quer não. Mas ficai certo de que me lem­brarei de vós e de vossa filha, se algum dia me vir montado num garanhão preto no meio de uma multidão aos berros.

Simão, o mago, voltou-se para tia Lélia e pronunciou-lhe o nome.

— É tempo já de saíres da fonte — ordenou. — Deixa que o teu amigo te belisque o braço como sinal. Não fere, apenas arde um pouco. Acorda, agora.

Tia Lélia despertou vagarosamente do seu estado hipnótico e apalpou o braço esquerdo com a mesma expressão enlevada de antes. Olhei-a, curioso e em seu braço fino havia realmente uma grande equimose. Tia Lélia esfregava-a e tremia toda de prazer, do modo que tive de desviar o olhar. A sacerdotisa Helena sorriu para mim com os lábios suplicantemente entreabertos. Mas eu não queria olhar para ela tampouco. Estava embaraçado e sentia-me cheio de espinhos. Despedi-me, mas tive de segurar o braço de tia Lélia e conduzi-la para fora do quarto do mago, tal era o ator­doamento dela.

Na loja, a sacerdotisa apanhou um pequenino ovo negro de pedra e o entregou a mim:

— Toma-o como presente meu. Que êle proteja os teus sonhos, na lua cheia.

Fui dominado pela maior relutância em aceitar qualquer coisa dela.

Quero comprá-lo. Quanto custa?

Um fio só do teu cabelo — respondeu a sacerdotisa He­lena, estendendo a mão para arrancar-me um cabelo da cabeça.

Mas tia Lélia interveio, sussurrando que seria preferível que eu, desse dinheiro à mulher.

Como não tinha comigo moedas menores, dei-lhe uma moeda de ouro. Talvez a mulher a merecesse pela sua predição. Ela aceitou a moeda com indiferença.

Atribuis alto preço aos teus fios de cabelo — disse ela, desdenhosa. — Mas talvez tenhas razão. A deusa é quem sabe.

Encontrei Barbo diante do templo, fazendo o possível para esconder o fato de que aproveitara essa oportunidade para tomar uns tragos de vinho, de sorte que cambaleava sem firmeza atrás de nós. Tia Lélia, bem-humorada, passava a mão de leve sobre a equimose do braço.

Simão, o mago, há muito que não se mostrava tão gentil comigo — explicou. — Sinto-me animada e refeita em todos os sentidos e nada me dói no corpo. Mas foi bom que você não ti­vesse dado um fio de cabelo àquela mulher desavergonhada. Com a ajuda desse fio ela poderia visitar a tua cama em sonhos.

Levou a mão à boca, arrependida, e olhou-me de relance.

— Você já está um rapagão — disse. — Seu pai deve ter-lhe explicado essas coisas. Estou certa de que Simão, o mago, às vezes enfeitiça um homem para que durma com a sua filha. Depois, o homem fica inteiramente submisso ao poder dos dois, se bem que em troca alcance êxito de outra espécie. Eu devia ter-lhe avisado com antecedência, mas não pensei nisso já que você é ainda um adolescente. Não percebi a coisa senão quando ela lhe pediu um fio de cabelo.

Após o encontro com Simão, o mago, meus sonhos não vol­taram. Quando um pesadelo tentava apossar-se de mim, eu me lem­brava do conselho de Simão, o mago, e invocava o meu leão. Logo êle vinha, deitava-se protetoramente a meu lado e era sob todos os aspectos tão vivo e real que eu podia alisar-lhe a juba com a mão, ainda que, ao despertar de meu leve sono, reparasse que estivera alisando uma dobra das cobertas.

Sentia-me tão feliz com o leão que às vezes o invocava no instante mesmo em que ia adormecendo. Até mesmo na cidade, imaginava o leão andando atrás de mim e me protegendo.

Passados alguns dias da visita a Simão, o mago, lembrei-me do pedido de meu pai e fui à biblioteca debaixo do Palatino. Per­guntei ao velho e grosseiro bibliotecário pela história dos etruscos, escrita pelo Imperador Cláudio. O homem mostrou-se desdenhoso a princípio, em virtude da minha vestimenta juvenil, mas como eu já estivesse cansado dos ares superiores dos romanos, disse-lhe que estava pensando em queixar-me por carta ao próprio Imperador de não obter permissão para ler suas obras na biblioteca. Aí o bi­bliotecário chamou depressa um escravo de roupa azul, que me conduziu a uma sala onde havia uma grande estátua de Cláudio e me indicou a seção competente.

Pus-me, cheio de espanto, a contemplar a estátua do Impera-

Cláudio se fizera representar como Apolo, e o escultor não lhe tinha de modo algum embelezado os membros frágeis e a cara de ébrio, de modo que a estátua parecia mais absurda que impo­nente Pelo menos o Imperador não era vaidoso, visto haver per­mitido a exibição daquela estátua numa biblioteca pública.

Pensei a princípio que estivesse sozinho na sala e presumi que os romanos não reputavam Cláudio um autor de primeira plana desde que lhe relegavam os códigos à poeira dos escaninhos. Mas depois notei que havia uma jovem sentada de costas para mim, ao pé de uma estreita janela de leitura. Passei algum tempo procurando a história etrusca. Achei a história de Cartago, tam­bém da autoria de Cláudio, mas os escaninhos em que era eviden­temente guardada a história dos etruscos estavam vazios. Olhei novamente para a mulher e reparei que a seu lado havia toda uma pilha de pergaminhos enrolados.

Reservara o dia inteiro para essa tarefa cansativa, porque não é permitido ler à luz de candeias na biblioteca, em virtude do pe­rigo de incêndio, e não queria ir embora sem ter realizado meu trabalho. Assim, tomei coragem, já que a timidez não me deixava dirigir a palavra a mulheres desconhecidas, caminhei para ela e indaguei se estava lendo a história dos etruscos e se precisava de todos os códigos ao mesmo tempo. Meu tom de voz era de sarcas­mo, embora soubesse muito bem que certas mulheres bem edu­cadas são ratos de biblioteca. Mas em geral não liam livros de his­tória, e sim, o que era mais provável, as fantásticas narrativas e aventuras amorosas de Ovídio.

A mulher teve um sobressalto violento, como se só então desse pela minha chegada, e levantou para mim os olhos brilhan­tes. Era nova e, a julgar pelo penteado, solteira. O rosto não era belo, mas um tanto irregular e grosseiro. A pele lisa era queimada de sol como a de uma escrava, a boca grande e os lábios cheios.

Estou aprendendo as palavras dos ritos sagrados e comparando-as nos diversos livros — disse com aspereza. — Não é di­vertido.

A despeito do mau humor, tive a impressão de que ela esta­va tão desconfiada de mim quanto eu dela. Notei que as mãos es­tavam enegrecidas de tinta e que ela tomava apontamentos num papiro com uma pena rombuda. Via-se pela caligrafia que estava habituada a escrever, mas o material inferior que usava borrava-lhe o escrito.

-  Garanto-lhe que não estou zombando — apressei-me a dizer, com um sorriso. _ Ao contrário, estou cheio de respeito por sua douta ocupação. Não quero perturbá-la de modo algum, prometi a meu pai ler esse livro. Naturalmente você o enten­derá melhor do que eu, mas promessa é promessa.

Esperava que me perguntasse quem era meu pai, para que eu pudesse indagar o nome dela. Mas não era assim tão curiosa Olhou-me como se olha para um mosca importuna, depois reme­xeu na pilha de códigos aos seus pés e entregou-me a primeira parte do livro.

— Aí está. Tome e não volte aqui com seus galanteios.

Corei tão violentamente que senti o rosto ardendo. Sem dú­vida, a moça se enganara, se pensava que eu arranjara um pre­texto para conhecê-la. Agarrei o rolo, fui para a janela do outro lado da sala e comecei a ler de costas para ela.

Li o mais rápido possível, sem procurar decorar a comprida lista de nomes. Evidentemente, Cláudio achava necessário enume­rar de quem e como obtivera cada informação, o que outros ha­viam escrito a respeito e o que êle mesmo julgava pertinente. Creio que nunca lera antes um livro tão meticuloso e enfadonho. Mas no momento em que Timaio me mandara ler os livros que êle apreciava, eu tinha aprendido a ler depressa e a decorar as passa­gens que me interessavam. Apegava-me obstinadamente a elas quan­do, mais tarde, Timaio me interrogava sobre o conteúdo do livro. Achei que ia ler este livro desse jeito.

Mas a moça não me deixava ler em paz. Ria nervosamente para si mesma e às vezes praguejava alto, enquanto fazia farfa­lhar os rolos. No fim, cansada de aguçar constantemente o bico de sua pena imprestável, quebrou-a em duas e bateu o pé, furiosa.

Será que você é cego e surdo, rapazinho infame? — gritou.

Consiga-me uma pena que preste, imediatamente. Você deve ser mesmo muito mal-educado para não ver que preciso de uma.

Meu rosto ardeu outra vez e irritei-me, pois o próprio com­portamento da moça não indicava exatamente uma boa educação. Mas não queria altercar com ela acerca dos rolos, justamente quando eu concluíra o primeiro. Por isso me dominei e fui per­guntar ao bibliotecário se tinha um cálamo disponível. Ele resmun­gou que, de acordo com o regulamento da biblioteca, penas e papel para anotações eram gratuitos, mas que cidadão nenhum era tão pobre que tivesse o desplante de levar uma pena sem pagar. Enraivecido, dei-lhe uma moeda de prata e êle, contente, esten­deu-me um molho de penas e um rolo do pior papel. Voltei à sala de Cláudio, onde a moça me arrancou as penas e o papel da mão, sem sequer agradecer.

Quando acabei o primeiro livro, fui ter novamente com ela e perguntei pelo segundo.

Lê realmente assim tão depressa? — perguntou, surpresa.

É capaz de lembrar qualquer coisa do que leu?

Pelo menos me lembro de que os etruscos tinham o hábi-

to deplorável de utilizar serpentes venenosas como armas de arremeço. Não me espanta ver que você estuda os costumes e hábi­tos deles.

Tive a impressão de que ela se arrependia do seu comporta­mento pois apesar de meu comentário ferino me entregou uma pena è, como uma menina, disse:

_ Quer fazer a ponta nessa pena, para mim? Acho que não

sei fazer. Começam a vazar quase instantaneamente.

_ É o papel que é inferior — expliquei.

Tomei a pena e a faca, fiz a ponta e cuidadosamente abri-a ao meio.

_ Não faça muita pressão sobre o papel — recomendei. —

Do contrário, borrará imediatamente. Se não for muito estouvada, verá que é bem fácil escrever até mesmo em papei ruim.

Deu-me um sorriso, inesperado como relâmpago em nuvens escuras e tempestuosas. As feições fortes, a boca larga e os olhos enviesados pareceram de repente encantadores, como eu nunca po­deria ter acreditado antes.

Vendo-me ali de pé, a fitá-la, fez uma careta, estirou a língua e disse com brusquidão:

— Pegue o livro e vá ler, já que acha tão divertido.

Mas continuou a molestar-me, vindo até onde eu estava e pedindo-me que lhe fizesse mais uma vez a ponta na pena, de tal modo que em pouco tempo meus dedos estavam tão negros quanto os seus. De qualquer maneira, a tinta era tão encaroçada que a levou a amaldiçoar diversas vezes o tinteiro.

Ao meio-dia sacou uma trouxa, abriu-a e entrou a comer vo­razmente, rasgando o pão e abocanhando enormes pedaços de queijo.

Ao dar com meu olhar reprovador, começou a desculpar-se: -— Sei muito bem que é proibido comer na biblioteca, mas que posso fazer? Se sair, fico andando por aí, com os desconheci­dos a me seguirem e a dizerem coisas feias porque estou só. Fez uma pausa e depois, com os olhos baixos, aduziu:

— Meu escravo virá me buscar à noite, quando a biblioteca fechar.

Mas logo percebi que não tinha sequer um escravo. Sua co­mida era simples, e presumivelmente não tinha dinheiro para penas e papel, razão por que me havia mandado com tanta arro­gância ir buscar-lhe uma pena. Estava desconcertado, pois não de­sejava ofendê-la de modo algum. Mas também senti fome quando a vi comer.

Devo ter engolido em seco, porque sua voz se abrandou de súbito:

Coitadinho. Você deve estar com fome também. Generosamente, partiu o pão ao meio e também me passou

o queijo redondo para que o fôssemos mordendo, cada qual por sua vez. A refeição terminou antes que tivéssemos realmente tido tempo de começá-la. Quando se é moço, tudo sabe bem. Assim, elogiei-lhe o pão

Esse eraverdadeiro pão da roça e o queijo, fresco, da roça também. Não é todos os dias que a gente encontra isso em Roma.

Ficou feliz com o elogio:

Moro fora dos muros. Sabe onde é o circo de Caio, o ce­mitério e o oráculo? Pois bem, é nessa direção, por trás do Vati­cano.

Mas não me disse seu nome. Continuamos a leitura. Ela es­crevia e num sussurroia repetindo, de cor, vários textos de que Cláudio falara em seu livro sobre os escritos sagrados dos etruscos. Li uma parte após outra, e decorei tudo acerca das guerras e cultos da cidade de Cere. À noitinha, o salão escureceu quando a sombra do Palatino incidiu sobre a janela. O céu também se co­brira de nuvens.

Não estraguemos a vista. Amanhã, poderemos continuar, mas já estou farto dessa bolorenta história antiga. Você, que é uma mulher culta, poderia ajudar-me e anotar o que consta das partes que não li, ou pelo menos as coisas mais importantes que há nelas. Meu pai tem propriedade perto de Cere, por isso é pro­vável que me pergunte a respeito de tudo o que o Imperador Cláudio escreveu sobre a história de Cere. Por favor, não se ofen­da com a sugestão, mas estou com vontade de comer uma salsicha quente. Conheço um local e gostaria de convidá-la, caso quisesse ajudar-me.

Ela franziu o cenho, ergueu-se e fitou-me bem de perto, tão perto que senti sua respiração cálida em meu rosto:

Não sabe realmente quem eu sou? Não, você não me Conhe­ce e não está mal-intencionado. É um menino.

Estou prestes a receber a toga viril redargui, ofendido. A questão foi adiada por causa de uma série de problemas de famí­lia. Você não é muito mais velha do, que eu. Sou mais alto do que você.

Meu querido menininho caçoou ela. Já fiz vinte anos e, comparada com você, sou uma velha. Seguramente sou mais forte do que você. Não tem medo de sair com uma desconhecida?

Mas rapidamente tornou a enfiar de qualquer jeito os códi­ces nos escaninhos, reuniu suas coisas, alisou as vestes e sofrega­mente preparou-se para sair, como se temesse que eu fosse me ar­repender do convite. Para minha surpresa, parou diante da está­tua do Imperador Cláudio e cuspiu nela antes que eu pudesse impedir Quando notou o meu horror, riu alto e cuspiu de novo. Era realmente muito malcriada.

Sem hesitar, enfiou o braço no meu e me arrastou consigo, para que eu sentisse como ela era forte. Não bazofiara inutilmen­te Despediu-se com altivez do bibliotecário, que veio ver se não escondêramos alguns códigos debaixo das nossas roupas. O homem, porém, fez uma inspeção superficial, como fazem algumas vezes os bibliotecários desconfiados.

A moça não tornou a falar do escravo. Havia muita gente nas imediações do fórum e ela quis passear um pouco acima e abaixo, entre O templo e a Cúria, todo o tempo agarrada ao meu braço, como se desejasse exibir aos outros seu prêmio e posse. Uma ou duas pessoas disseram-lhe qualquer coisa como se a conhecessem, e a jovem riu e respondeu sem timidez. Um senador e dois cava­leiros e seu séquito passaram por nós e desviaram o olhar, quando a viram. Ela não deu atenção*.

— Como você está vendo, não sou considerada uma moça virtuosa. — Deu uma gargalhada: — Mas não sou totalmente de­pravada. Não se assuste.

Por fim concordou em ir comigo a uma estalagem perto da feira de gado, onde ousadamente pedi salsicha quente, carne de porco numa tigela de barro e vinho.

A moça comeu com a avidez de um lobo e limpou a graxa dos dedos numa ponta do manto. Não misturou o vinho com água, nem eu tampouco. Mas minha cabeça pôs-se a girar, de vez que eu não estava acostumado a tomar vinho não-diluído. A moça resmungava enquanto comia, dava-me tapinhas nas bochechas, insultava o estalajadeiro na linguagem rude dos mercados, e re­pentinamente, com um murro, pôs minha mão completamente en­torpecida porque eu sem querer lhe roçara o joelho. Não pude deixar de supor que ela devia ter uma aduela de menos.

De súbito a estalagem ficou apinhada. Músicos, atores e bufões foram chegando também e passaram a entreter os fregue­ses, arrecadando moedas de cobre num vaso que era sacudido rui­dosamente. Um dos cantores maltrapilhos parou diante de nós, de­dilhou a cítara e cantou para a moça:

 

Vem, ó filha do lobo

Vem, oh filha do lobo

Da queixada mole,

Ela que veio à luz

No degrau de pedra fria;

O pai bebia,

A mãe putava

E um primo tirou

Sua virgindade.

 

Mas não prosseguiu. A moça ergueu-se e esbofeteou-lhe a

cara:

— Melhor ter sangue de lobo — gritou ela — do que mijo nas veias como você!

O estalajadeiro correu a afastar o cantor e com suas mãos despejou vinho em nossos copos.

— Caríssima — implorou êle — sua presença é uma honra, mas o rapaz é menor. Peço-lhe que termine de beber e vá embora Do contrário, teremos aqui os magistrados.

Já era tarde e eu não sabia o que pensar do comportamento imoderado da moça. Talvez ela fosse de fato uma lobinha depra­vada, a quem por pilhéria o estalajadeiro dispensou um tratamen­to respeitável. Senti alívio, quando ela concordou em sair sem mais escândalo mas, ao chegarmos do lado de fora, tomou outra vez o meu braço com firmeza:

— Acompanhe-me até a ponte sobre o Tibre.

Quando nos aproximamos da margem do rio, vimos nuvens agitadas que surgiam baixas no céu, avermelhadas pelos clarões da cidade. As águas turbulentas do outono suspiravam invisíveis a nossos pés e sentíamos o cheiro da lama e dos juncos em decom­posição. A moça conduziu-me à ponte que dava passagem para a ilha do Tibre. No templo de Esculápio, na ilha, senhores desal­mados deixavam os escravos mortalmente enfermos e os moribun­dos que já não podiam prestar serviços, e do outro lado da ilha uma ponte avançava para o 149 distrito da cidade, o Transtibério dos judeus. A ponte não era lugar dos mais agradáveis à noite. Nas lacunas entre as nuvens luziam algumas estrelas outonais, o rio emitia um brilho mortiço e o gemido dos doentes e agonizantes nos era trazido da ilha, pelo vento, como se fosse uma nênia das regiões infernais.

A moça debruçou-se na ponte e cuspiu no Tibre para mostrar desprezo:

— Cuspa também! Ou está com medo do Deus Rio?

Eu não tinha desejo de ultrajar o Tibre, mas depois que ela me importunou por algum tempo, cuspi também, infantil como era. No mesmo instante, uma estrela cadente cruzou o céu por cima do Tibre, num arco incandescente. Acho que recordarei até o dia da minha morte o torvelinho das águas, as nuvens verme­lhas, brilhantes e desassossegadas, as emanações do vinho na minha cabeça e a estrela de cristal atravessando em curva o Tibre negro e acetinado.

A moça encostou-se em mim de tal modo que pude sentir como seu corpo era flexível, embora ela fosse uma cabeça mais baixa do que eu.

_ A sua estrela cadente foi do leste para o oeste — murmurou _ Sou supersticiosa. Você tem linhas de felicidade nas mãos, já reparei. Talvez você me traga felicidade também.

—Pelo menos me diga agora o seu nome — falei, irritado. - Já lhe disse o meu e lhe falei de meu pai. Com certeza vou ter

aborrecimento em casa por estar na rua até esta hora.

_ Sim, sim, você é uma criança — suspirou a moça, tirando

os sapatos. Vou embora, e descalça. Meus sapatos já me esfola­ram tanto os pés que tive de me apoiar em você para andar. Agora não preciso mais do seu apoio. Vá para casa. Não quero que tenha aborrecimento por minha causa.

Mas insisti obstinadamente em que me dissesse o seu nome. Afinal deu um suspiro profundo.

— Promete me beijar na boca com seus inocentes lábios de menino, e não se assustar quando lhe disser o meu nome?

Respondi que não estava apto nem me era permitido tocar em nenhuma moça, enquanto não tivesse cumprido a promessa feita ao oráculo em Dafne, de modo que ela ficou curiosa.

Podíamos pelo menos tentar — insinuou. — Meu nome é Cláudia Pláucia Urgulanila.

Cláudia — repeti. — É você uma Cláudia, então? Ela se surpreendeu de lhe ter eu reconhecido o nome.

É verdade mesmo que não sabe nada a meu respeito? Creio então que você nasceu na Síria. Meu pai separou-se de minha mãe e eu nasci cinco meses após o divórcio. Meu pai não me tomou nos braços, mas me mandou nua para a porta da casa de minha mãe. Teria sido preferível que êle me tivesse jogado nos esgotos. Tenho direito legal a usar o nome de Cláudia, mas ne­nhum homem honesto pode ou quer casar comigo porque meu pai, com sua atitude, declarou ilícitamente que nasci fora do ma­trimônio. Compreende agora por que leio seus livros para des­cobrir até onde vai a loucura dele e por que cuspo na sua imagem?

Por todos os deuses, conhecidos e desconhecidos — bradei perplexo — estará você tentando me dizer que é a filha do Im­perador Cláudio, sua menina boba?

— Toda a gente em Roma sabe disso — retrucou. — Por isso e que os senadores e cavaleiros não ousam cumprimentar-me nas ruas. Por isso é que vivo escondida no campo atrás do Vati­cano. Mas cumpra sua promessa agora, já que lhe disse meu nome, embora naturalmente não devesse ter dito.

Deixou cair os sapatos e me envolveu com os braços, apesar da minha resistência. Mas então ela e toda a sua história come­çaram a aborrecer-me. Apertei-a com força e beijei seus lábios ardentes, na escuridão. E nada me aconteceu, a despeito de,haver quebrado a promessa. Ou talvez a deusa não se tenha ofendido, já que não me pus a tremer quando beijei a moça. Ou talvez fosse por causa da promessa que eu não tremi ao beijá-la. Não sei.

Cláudia deixou as mãos pousadas nos meus ombros e sua respiração quente bafejou-me o rosto.

— Me prometa, Minuto, que virá ver-me quando receber a toga viril.

Murmurei que mesmo então teria de obedecer a meu pai. Mas Cláudia teimou.

— Agora que me beijou, você está ligado a mim de algu­ma forma.

Curvou-se e procurou os sapatos na escuridão. Depois bateu de leve em meu rosto frio e afastou-se correndo. Gritei-lhe que não me sentia de modo nenhum ligado a ela, já que me forçara a beijá-la, mas Cláudia se esvaecera na noite. O vento carregava da ilha os gemidos dos enfermos, a água rodopiava agourenta e eu parti para casa o mais depressa possível. Barbo fora procurar-me na biblioteca e no fórum e estava furioso comigo, mas não se atreveu a contar a tia Lélia que eu desaparecera. Felizmente meu pai chegou tarde, como de costume.

No outro dia, valendo-me de circunlóquios, interroguei tia Lélia a respeito de Cláudia. Contei-lhe que conhecera Cláudia Pláucia na biblioteca e lhe dera uma pena. Tia Lélia ficou apavorada.

— Não se meta com aquela sem-vergonha. É melhor fugir se a encontrar outra vez. O Imperador Cláudio em várias ocasiões lamentou não tê-la afogado, mas naquele tempo êle ainda não ou­sava fazer essas coisas. A mãe dela era uma verdadeira fera. Cláu­dio teve medo das conseqüências caso se livrasse da moça. Para apoquentar Cláudio, o Imperador Caio sempre chamava Cláudia de prima e creio que a arrastou também para sua vida imoral. O infeliz Caio chegou até mesmo a dormir com suas irmãs porque se julgava deus. Cláudia não é recebida em nenhuma das casas respeitáveis. Seja como for, sua mãe foi assassinada por um céle­bre gladiador que não foi nem processado, porque provou ter ape­nas defendido sua própria virtude. Urgulanila foi se tornando cada vez mais violenta em seus casos de amor, com o correr do tempo.

Logo esqueci Cláudia, pois meu pai levou-me consigo para Cere e ali ficamos um mês, no inverno, enquanto êle cuidava de sua propriedade. Os imensos túmulos dos antigos reis e nobres etruscos, em número incalculável de cada lado da Via Sacra, im­pressionaram-me profundamente.

Quando capturaram Cere, centenas de anos antes, os romanos saquearam as velhas catacumbas, mas havia, intactos à margem da estrada, alguns túmulos enormes e mais recentes. Comecei a sentir respeito por meus próprios antepassados. Apesar do que me dis­sera meu pai, eu não imaginara que os etruscos tivessem sido um

ovo tão extraordinário. Pelo livro do Imperador Cláudio não se podia adivinhar a dignidade melancólica dessas tumbas régias. É preciso vê-las com os próprios olhos.

Os habitantes dessa cidade hoje paupérrima evitavam ir ao cemitério de noite e sustentavam que era mal-assombrado. Mas durante o dia os viajantes aqui vinham contemplar os túmulos an­tigos e as gravuras em relevo das sepulturas saqueadas. Meu pai valeu-se da oportunidade para fazer uma coleção de velhas mi­niaturas em bronze e negros vasos sagrados de barro encontrados pela população local quando arava e cavava poços. É óbvio que os colecionadores já haviam levado os melhores bronzes no tempo de Augusto, quando esteve em moda possuir objetos etruscos. Em sua maioria, as estatuetas haviam sido arrancadas das tampas das urnas.

Faltava-me interesse pela agricultura. Entediado, acompanhava meu pai enquanto êle inspecionava os campos, os olivais e os vi­nhedos. Em geral os poetas exaltam a vida simples do campo, mas eu mesmo não sentia mais desejo de me estabelecer ali do que eles. Nas cercanias de Cere só se caçavam raposas, lebres e pássaros, e eu não sentia muito entusiasmo por esse gênero de caça que nada mais exigia que armadilhas, laços, ramos de tília e nenhuma coragem.

Da atitude de meu pai para com os escravos e libertos que lhe cuidavam da propriedade, depreendi que a agricultura é um prazer dispendioso para um homem da cidade e que consome mais do que produz. Somente os latifúndios cultivados com o trabalho escravo poderão talvez compensar, mas meu pai era avesso a essa maneira de lavrar a terra:

— Prefiro que os meus subordinados vivam felizes e tenham filhos sadios. Alegra-me que possam desfrutar uma vida melhor a minhas expensas. É bom saber que se tem um lugar para onde ir quando as coisas não correm bem.

Notei que os lavradores nunca estavam satisfeitos e sempre se queixavam. Ora chovia demais, ora secava demais, ora os in­setos destruíam as vinhas, ora a safra das oliveiras era tão boa que o preço do azeite baixava. E os subalternos de meu pai não pareciam respeitá-lo, mas comportavam-se inescrupulosamente ao verem como êle era bondoso. Não cessavam de lamuriar-se: as casas pobres, as ferramentas escassas, as doenças do gado...

De vez em quando, meu pai se enraivecia e falava com as­pereza, contrastando com sua atitude habitual, mas aí prepara­vam-lhe às pressas uma refeição e ofereciam-lhe vinho branco li­geiramente frio. As crianças atavam-lhe uma grinalda à cabeça e brincavam de roda à sua volta, até que êle se acalmava e fazia novas concessões a seus rendeiros e libertos. De fato, em Cere, meu pai tomou tanto vinho que quase não passou lá um só

Na cidade de Cere conhecemos diversos sacerdotes e merca­dores pançudos que tinham dobras nas pálpebras e cujas árvores genealógicas remontavam a milhares de anos. Ajudaram meu pai a reconstituir a própria genealogia, até o ano em que Licurgo des­truiu a frota e o porto de Cere. Meu pai também comprou um ter­reno para construir um túmulo na estrada sagrada de Cere.

Finalmente, de Roma veio a mensagem de que tudo estava arranjado. O Censor deferira a solicitação de meu pai, no sentido de lhe ser devolvida a dignidade de cavaleiro. A matéria seria sub­metida ao Imperador Cláudio daí a dias. Assim, tivemos de regressar a Roma. Lá, aguardamos em casa, já que podíamos ser chamados ao Palatino a qualquer momento. O secretário de Cláudio, Nar­ciso, prometera aproveitar um instante favorável para resolver sa­tisfatoriamente o caso.

O inverno foi rigoroso; os pisos de pedra de Roma estavam frios como gelo e todos os dias morria gente nos apartamentos, vítima das emanações dos braseiros deixados à toa. De dia o sol resplandecia e prenunciava a primavera, mas até mesmo os sena­dores não tinham pejo de mandar colocar braseiros debaixo dos seus tamboretes de marfim, durante as sessões da Cúria. E tia Lélia deplorava a morte das antigas virtudes romanas. No tempo de Au­gusto, mais de um velho senador preferiu a pneumonia ou uma vida inteira de reumatismo a mimar o corpo de maneira tão pouco varonil.

Tia Lélia, como era natural, queria assistir às Lupercais e à procissão, também. Assegurou nos que o próprio Imperador era o sumo sacerdote e dificilmente seríamos chamados ao Palatino na­quele dia. Logo ao amanhecer dos Idos de Fevereiro, acompa­nhei-a, até onde era possível chegar, às proximidades da antiga figueira.

No interior da caverna as Lupercais imolaram um bode, em honra do Fauno Luperco. O sacerdote desenhou, com sua faca ensangüentada, um sinal na fronte de cada uma das Lupercais e todas elas o removeram de imediato, com um pano de linho santo previamente embebido em leite. Em seguida explodiram todas na gargalhada do rito comunal. A gargalhada sagrada que emergiu da caverna foi tão estrondosa e terrificante que a multidão se imobi­lizou, tomada de piedade, e várias mulheres, enlouquecidas, pre­cipitaram-se pelo caminho que os guardas mantinham aberto para a procissão com seus molhos de bastões consagrados.

Na caverna, os sacerdotes cortaram com as facas sacrificatórias o couro do bode em longas tiras e depois saíram dançando pelo caminho.

Estavam todos inteiramente nus, riam o riso sagrado e, com as tiras do couro do bode, açoitavam as mulheres que tinham

avançado pelo caminho para que recebessem manchas de sangue nas roupas. Dançando desse modo, rodearam todo o Monte Palatino.

Tia Lélia, contente, declarou que há muito não ouvia a gar­galhada sagrada soar tão solene..A mulher que é tocada pelas ensangüentadas tiras de couro das Lupercais engravida ao cabo de um ano, explicou ela. Era um remédio infalível para a esterilidade. Era uma pena que as mulheres da nobreza não quisessem ter filhos. Em sua maioria, foram as mulheres dos cidadãos co­muns que se deixaram flagelar pelas Lupercais. Ela não vira uma só esposa de senador em toda a rota da procissão. Disseram algu­mas pessoas que se encontravam no meio da compacta multidão de espectadores ter visto o Imperador Cláudio, pulando e ber­rando, enquanto incitava as Lupercais ao açoite, mas nós não o vimos.

Quando o cortejo completou a volta em torno da colina e regressou à caverna, para imolar uma cadela prenha, fomos para casa e comemos, de acordo com a tradição, carne de bode cozida e pão de trigo assado na forma de órgãos sexuais humanos.

Tia Lélia tomou vinho e exprimiu a satisfação de ver que a maravilhosa primavera romana afinal se aproximava depois de tão malfadado inverno.

No instante mesmo em que meu pai instava com ela, para que fosse tirar sua sesta do meio-dia, antes que se pusesse a falar de coisas impróprias aos meus ouvidos, embarafustou pela casa adentro, sem fôlego, um mensageiro, escravo de Narciso, o se­cretário do Imperador, com o recado de que fôssemos sem demora ao Palatino.

Partimos a pé, tendo apenas Barbo a acompanhar-nos, o que muito surpreendeu o escravo. Felizmente, em virtude da festa, ambos estávamos adequadamente vestidos para a ocasião.

O escravo, que trajava branco e ouro, contou-nos que todos os presságios eram favoráveis e que os ritos festivos se tinham efetuado sem uma falha, de modo que o Imperador Cláudio se mostrava em excelente estado de espírito. Ainda estava entretendo as Lupercais em seus aposentos, adornado com as roupagens do sumo sacerdote.

A entrada do palácio, revistaram-nos dos pés à cabeça e Barbo teve de ficar fora, porque trazia sua espada. Meu pai es­pantou-se ao ver que me revistavam também, embora eu fosse um menor.

Narciso, o liberto, secretário particular do Imperador, era um grego a quem as preocupações e a prodigiosa responsabilidade do trabalho haviam dado um ar macilento. Recebeu-nos com imprevista afabilidade, se bem que meu pai não lhe tivesse enviado um

donativo. Declarou francamente que numa época prenunciadora de muitas mudanças, era vantajoso para o Estado conferir honra­rias a homens que sabiam recordar a quem deviam demonstrar gratidão pelas posições ocupadas. Para confirmar essa opinião, remexeu nos papéis concernentes a meu pai e deles tirou uma nota amarrotada:

—        É melhor que você mesmo fique com isso. É uma nota confidencial, da época de Tibério, acerca dos seus hábitos e do seu caráter. Assuntos esquecidos que agora não têm nenhuma importância.

Meu pai leu o papel, corou e apressadamente enfiou-o na roupa. Nasciso prosseguiu, como se nada tivesse acontecido:

O Imperador se ufana do próprio conhecimento e sabe­doria prosseguiu mas é propenso a agarrar-se a minúcias e às vezes insiste numa questão antiga, um dia inteiro, só para pro­var que tem boa memória, conquanto esqueça o ponto principal.

Quem na juventude não montou guarda uma vez ou outra nos bosquetes de Baías? disse meu pai um tanto confuso. Quanto a mim, tudo isso é coisa do passado. De qualquer modo, não sei como agradecer-lhe. Soube que o Imperador Cláudio, e especialmente Valéria Messalina, são exigentíssimos em tudo o que diz respeito à moral dos cavaleiros.

Talvez um dia eu lhe diga como pode agradecer-me — disse Narciso com um sorriso glacial. Dizem que sou ganan­cioso, mas você não deve cometer o equívoco de me oferecer di­nheiro, Marco Maniliano. Sou o liberto do Imperador. Assim, meus bens são os bens do Imperador e tudo quanto sou capaz de fazer é em benefício do Imperador e do Estado. Mas apresse-mo-nos. O momento mais favorável é logo depois de uma refeição sacrificatória, quando o Imperador está se preparando para a sesta.

Conduziu-nos ao salão de recepções da ala sul, cujas paredes estavam decoradas com painéis da guerra de Tróia. Com as mãos, baixou o toldo, para que o sol não entrasse com demasiada força no quarto.

O Imperador Cláudio chegou, arrimado de cada lado em seus escravos pessoais que, a um gesto de Narciso, o assentaram no trono imperial. Êle trauteava, com a boca fechada, o hino do Fauno para si mesmo e fitou-nos com os olhos míopes. Sentado, parecia mais digno do que de pé, muito embora meneasse a cabeça em várias direções. Era fácil reconhecê-lo pelas estátuas e réplicas de sua cabeça nas moedas, posto que agora, depois da comida, estivesse salpicado de molho e vinho. Era evidente que o vinho o animava, dando-lhe disposição e ânsia de atacar os problemas do Estado antes de pegar no sono.

Narciso nos apresentou e disse prontamente:

_ A questão é perfeitamente clara. Eis aqui a árvore genea- lógica, o certificado de renda e a recomendação do Censor. Marco Mezêncio Maniliano foi membro destacado do conselho, municipal de Antioquia e merece reparação cabal pela injustiça de que foi vítima. Êle mesmo não tem ambições, mas seu filho está crescendo e poderá servir o Estado.

Enquanto resmungava qualquer coisa, acerca das lembranças juvenis que guardava do astrônomo Manílio, Cláudio desenrolava os papéis e lia neles algumas passagens salteadas. Atraído pelos antepassados de minha mãe, refletiu por algum tempo.

 _ Mirina — disse êle. — Essa foi a Rainha das Amazonas

que combateu as Górgonas, mas foi um trácio, Mopso, exilado por Licurgo, que a matou no fim. Na realidade, Mirina era seu nome divino. Seu nome terreno era Batiéia. Teria sido preferível que sua mulher tivesse usado esse nome terreno. Narciso, toma nota disso e põe nos papéis.

Meu pai agradeceu, reverente, essa correção do Imperador e prometeu tomar providências imediatas para que a estátua que a cidade de Mirina erigiu em memória de minha mãe tomasse o nome de Batiéia. O Imperador ficou com a impressão de que minha mãe fora uma dama famosa de Mirina, já que a cidade lhe levantara uma estátua.

— Teus antepassados gregos são nobilíssimos, meu rapaz — disse êle, fitando-me benignamente com seus olhos injetados. — Nossa cultura é da Grécia, mas a arte de construir cidades é de Roma. És puro e belo como uma de minhas moedas de ouro, nas quais fiz imprimir texto latino, de um lado, e grego, do outro. Como pode um rapagão tão formoso e aprumado chamar-se Minuto? Isso é exagerada modéstia.

Meu pai correu a explicar que havia adiado o dia de minha maioridade até que meu nome se inscrevesse nos registros de cava­leiros do templo de Castor e Pólux, também. Seria a maior das honras que o próprio Imperador Cláudia me desse um segun­do nome.

Tenho bens imóveis em Cere — disse êle. —- Minha fa­mília remonta aos dias em que Siracusa destruiu o poderio marí­timo de Cere. Mas essas são coisas que sabeis melhor do que eu, Claríssimo.

Bem vi que teu rosto me era de algum modo familiar — bradou Cláudio, deliciado. — Teu rosto e teus olhos, reconheço-os pelos murais dos velhos túmulos etruscos que estudei em minha juventude, embora já naquela época estivessem se deteriorando em virtude da umidade e da negligência. Se te chamas Mezêncio, então teu filho deverá chamar-se Lauso. Sabes quem foi Lauso, jovem?

Respondi que Lauso foi o filho do Rei Mezêncio, que lutou ao lado de Turno, contra Enéias.

Isso é o que consta em vossa história dos etruscos — disse eu, candidamente. — De outro modo, não o saberia.

Leste realmente o meu livrinho, apesar da tua juventude? — inquiriu Cláudio, e em seguida começou a soluçar de emoção.

Narciso bateu-lhe de leve nas costas e ordenou que os es­cravos lhe trouxessem mais vinho. Cláudio convidou-me também a beber, mas preveniu-me de modo paternal que não tomasse vinho não-diluído enquanto não chegasse à idade dele.

Narciso aproveitou o ensejo para pedir a Cláudio que refe­rendasse com sua assinatura a concessão da dignidade de cava­leiro a meu pai. Assinou de bom grado, muito embora me pare­cesse que esquecera de que se tratava.

— É de fato vossa vontade que meu filho leve o nome de Lauso? — perguntou meu pai. — Se é, a maior honra em que posso pensar é que o próprio Imperador Cláudio deseja servir-lhe de padrinho.

Cláudio tomou o vinho, a cabeça oscilando:

— Narciso — disse êle com firmeza — anote isso também. Tu, Mezêncio, envia-me uma mensagem quando chegar o momento de cortar o cabelo do menino e irei, como teu convidado, se as­suntos importantes do Estado não me impedirem na ocasião.

Levantou-se resoluto, e quase cambaleava, antes que os es-, cravos avançassem para segurá-lo. Com um arroto audível, observou:

— Meus inúmeros e doutos trabalhos de pesquisa me tor­naram esquecediço. Com mais facilidade relembro coisas antigas do que novas. Assim, o melhor seria anotar imediatamente tudo o que prometo e interdito. Agora, acho melhor ir tirar a minha sesta e vomitar convenientemente. Senão, terei dor de estômago, por causa daquela violenta carne de bode.

Quando o Imperador deixou o salão, apoiado nos dois escra­vos, Narciso virou-se para meu pai:

— Faça com que seu filho receba a toga viril no primeiro momento azado — aconselhou — e então me comunique. É pos­sível que o Imperador se lembre da promessa de servir de padrinho. Pelo menos eu falarei a êle do nome e da promessa. Então, êle fingirá que se lembrava, mesmo que não tenha lembrado.

Tia Lélia teve muita dificuldade em descobrir alguns nobres que pudessem ser considerados parentes da família Maniliano. Um dos convidados foi um velho ex-cônsul que bondosamente me se­gurou a mão enquanto eu imolava o porco. Mas a maioria era formada por mulheres, contemporâneas de tia Lélia, que foram tentadas a comparecer sobretudo pela expectativa de um almoço gratuito. Grasnavam como um bando de gansos, enquanto o bar­beiro me cortava o cabelo à escovinha e me rapava a penugem do queixo.

Esforcei-me por manter a calma, enquanto me punham a toga, afagavam os membros e me davam palmadinhas nas bochechas. Mal contiveram a curiosidade quando, em virtude da promessa que eu havia feito, subi com o barbeiro para o meu quarto e fi-lo também arrancar todos os pêlos do corpo que mostravam a minha maioridade. Estes, eu os coloquei, juntamente com a penugem do queixo, numa caixinha de prata, em cuja tampa estavam gravados uma lua e um leão. O barbeiro tagarelava e pilheriava, enquanto fazia seu serviço, mas também me contou que não era incomum oferecerem os jovens nobres, quando recebiam a toga viril, os pêlos de suas partes secretas a Vênus a fim de lhe alcançarem as graças.

O Imperador Cláudio não veio à nossa festa familiar, mas de­terminou que Narciso me enviasse o anel de ouro da ordem eqüestre e a permissão de mandar escrever nos assentamentos que êle pessoalmente me dera o nome de Lauso.

Nossos convidados foram com meu pai e comigo ao templo de Castor e Pólux. Meu pai pagou os emolumentos necessários no arquivo, e então tive de colocar o anel de ouro no polegar.

Minha toga protocolar, com sua estreita ourela vermelha, es­tava pronta. A cerimônia não teve formalidades especiais. Do ar­quivo fomos para a sala de reuniões da Nobre Ordem dos Cava leiros, onde pagamos a licença para escolhermos nossos cavalos nos estábulos do campo de Marte.

Quando voltamos a casa, meu pai me presenteou com o en­xoval completo de um cavaleiro romano, um escudo de prata tra­balhado, um elmo prateado com plumas vermelhas, uma espada comprida e uma lança. As velhas instaram comigo para que pusesse tudo isso, e é claro que não pude resistir à tentação. Barbo aju­dou-me a prender a túnica de Couro curtido e em breve estava eu marchando no piso, metido em minhas botas vermelhas de cano curto, pavoneando-me feito um peru, com o elmo na cabeça e a espada desembainhada na mão.

Já era noite. Nossa casa flamejava e do lado de fora havia gente observando as idas e vindas de convidados. Os espectadores receberam com aclamação a chegada de uma cadeirinha elegante­mente ornamentada que foi trazida até nosso portão por dois es­cravos negros como carvão.

Tia Lélia, tropeçando em suas vestes, correu ao encontro esse convidado tardio, e da cadeirinha apeou-se uma mulher baixinha e rechonchuda, cujo vestido de seda revelava com clareza quase excessiva sua figura voluptuosa. O rosto ocultava-se atrás de um véu púrpura, mas a mulher puxou-o para um lado e per­mitiu que tia Lélia a beijasse em ambas as bochechas. Tinha feições finas e um rosto belamente pintado.

Tia Lélia, a voz estridente de emoção, gritou:

— Minuto, querido, esta é a nobre Túlia Valéria, que veio desejar-lhe boa sorte. É viúva, mas seu finado marido era um verdadeiro Valério.

A mulher, ainda espantosamente bela, apesar de ter atingido a maturidade, estendeu os braços e puxou-me, com armadura, es­pada e tudo, para seu seio.

Oh, Minuto Lauso — exclamou. — Contaram-me que o próprio Imperador te conferiu o segundo nome e não é de sur­preender, agora que vejo o teu rosto. Se os meu fados e os capri­chos de teu pai houvessem permitido, poderias ser meu filho. Teu pai e eu fomos bons amigos em nossa mocidade, mas êle ainda deve ter vergonha da maneira como se comportou comigo, já que não foi me visitar logo que chegou a Roma.

Ela me segurava ainda ternamente nos braços, de modo que eu podia sentir seu seio macio e impregnar-me do aroma estupe­faciente de seus unguentos perfumados, enquanto ela passeava o olhar pela sala.

Quando meu pai a viu, enrijeceu-se, tornou-se mortalmente pálido e fez um gesto como se quisesse dar meia-volta e fugir.

A encantadora Túlia tomou me a mão e com um sorriso se­dutor aproximou-se de meu pai:

— Não tenhas medo, Marco — disse ela. — Num dia como este eu te perdôo tudo. O que passou passou, e não choremos por isso. Mas enchi muitos frascos com minhas lágrimas por tua causa, ó homem sem coração.

Largou-me, passou os braços em volta do pescoço de meu pai e beijou-o suavemente nos lábios. Meu pai desvencilhou-se, tremendo dos pés à cabeça, e falou num tom reprovador:

— Túlia, Túlia, devias saber que isto não se faz. Queria an­tes ver a cabeça de uma Górgona, do que o teu rosto, aqui em minha casa, esta noite.

Mas Túlia Cobriu-lhe a boca com a mão e voltou-se para tia Lélia:

— Marco não mudou nada. Alguém devia tomar conta dele. Quando o vejo assim tão confuso e o ouço falar de modo tão desarrazoado, lamento ter sobrepujado meu orgulho e ter vindo vê-lo, quando êle teve vergonha de procurar-me.

Esta bela mulher de trajes de seda fascinava-me, por mais velha que fosse, e experimentei um prazer maligno em ver meu pai perder tão completamente seu autodomínio na presença dela.

Túlia agora voltava a atenção para os outros convidados e sau­dava alguns de maneira amistosa e outros, desdenhosamente. As velhas senhoras tinham muito que cochichar com as cabeças juntas ela não tomava em consideração seus olhares venenosos. Ía provar apenas dos doces e beber um pouco de vinho, mas pediu que me sentasse a seu lado no sofá.

 _ Não  é indecoroso — observou — embora sejas um ho- mem agora. Eu podia ser tua mãe.

Com sua mão macia acariciou-me a nuca, suspirou, e depois me olhou nos olhos de tal modo que senti um formigueiro em todo o corpo. Meu pai notou e aproximou-se de nós com as mãos fechadas.

_Deixa meu filho em paz — falou brutalmente. — Já me causaste bastante aborrecimento.

Túlia balançou a cabeça com tristeza e suspirou:

_ Se houve alguém que te ajudou, Marco, fui eu, em teus dias de maioridade. Uma vez cheguei até a viajar para Alexandria atrás de ti, mas não penses que eu o faria de novo. É apenas para o bem de teu filho que venho prevenir-te. Valéria Messalina está melindrada, por ter Cláudio dado o nome a teu filho e mandado o anel de cavaleiro, sem consultá-la. Por esse motivo há certas outras pessoas que têm interesse em ti e teu filho e desejam favo­recer todos aqueles com quem essa mulher desavergonhada pro­cura altercar. É árdua a opção que te espera, Marco.

— Não quero envolver-me e nem mesmo saber dessas coisas — bradou meu pai, desesperado. — Não posso crer que, depois de todos esses anos, pretendas desde já enredar-me numa de tuas intrigas, nas quais posso perder minha boa reputação, justamente quando acabo de recuperá-la. Que vergonha, Túlia!

Túlia deu uma gargalhada irritante e pousou a mão na de meu pai:

— Agora compreendo por que fui tão louca por ti outrora, Marco. Nenhum outro homem jamais foi capaz de pronunciar meu nome tão deliciosamente.

E, para falar a verdade, quando meu pai pronunciou o nome dela havia um quê de melancolia em sua voz- Evidentemente, eu não podia entender o que uma mulher tão elegante e tão nobre via em meu pai. Tia Lélia acercou-se de nós, procurando abafar alegremente o riso, e aplicou uma palmadinha gentil no rosto de meu pai:

Vocês não estão aqui para trocar arrufos, como se fossem dois namoradinhos. Já é tempo de você sossegar, minha cara Túlia.

Você já teve quatro maridos e o último ainda não teve nem tempo de esfriar no túmulo.

_ Exato, querida Lélia - conveio Túlia. _ É tempo de eu sossegar. Por isso é que estou tão indizívelemente feliz de ter reencontrado  Marco.  A  presença dele   me  deixa  maravílhosamente calma.

Virou-se para mim:

— Mas tu, jovem Aquiles, a tua nova espada me põe a mente inquieta. Se pelo menos fosse dez anos mais moça, te pediria que viesses comigo olhar a lua. Mas velha como estou, não posso. Vai então divertir-te. Teu pai e eu temos muito que conversar a sós.

Quando ela mencionou a lua, fiquei perturbado e subi ao andar superior para tirar a armadura. Passei a mão pelo cabelo cortado e pelas bochechas lisas e senti-me subitamente decepcio­nado e triste, pois esperara tanto por este dia, sonhara tanto com êle e agora nada corria como eu esperara. Mas precisava cumprir a promessa feita ao oráculo de Dafne.

Enveredei para a porta dos fundos e, na cozinha, agradeci os votos de felicidades dos escravos suarentos. Disse-lhes que co­messem e bebessem tanto quanto pudessem, pois já não esperá­vamos mais convidados àquela hora.

No portão, arrumei zelosamente os archotes quase apagados e pensei com tristeza que esse era talvez o dia mais importante e mais solene da minha vida. A vida é como um archote, que a princípio ilumina tudo e depois se extingue em vapores e fumaça.

Uma moça envolta num manto pardo veio ao meu encontro, saindo- das escuras sombras do muro:

— Minuto, Minuto — chamou baixinho. -— Vim te desejar felicidade e trazer esses bolinhos que eu mesmo assei para ti. Ia deixá-los com os escravos, mas o destino foi bom para mim e me permitiu que te encontrasse.

Com horror, reconheci Cláudia, contra quem tia Lélia me tinha prevenido. Mas ao mesmo tempo senti-me lisonjeado de que essa jovem estranha tivesse descoberto o dia da minha maioridade a fim de vir desejar-me felicidade. Inesperadamente, invadiu-me um grande jorro de alegria ao ver-lhe as espessas sobrancelhas negras, a boca larga e a pele tostada de sol. Ela era diferente de todos os idosos e rabugentos convidados que se haviam reunido em nossa casa. Cláudia era viva, real e autêntica. Era minha amiga.

Ela roçou timidamente a mão pelo meu rosto e não era tão arrogante e confiada como quando nos conhecemos.

— Minuto — murmurou. — É provável que você tenha ou­vido muitas histórias feias a meu respeito, mas não sou tão ruim quanto os outros dizem. Na verdade só desejo ter bons pensa­mentos agora que estou com você. Está vendo? Você me trouxe felicidade.

Começamos a andar lado a lado em direção ao templo da Lua. Cláudia ajeitou minha toga no pescoço e juntos comemos um dos seus bolos, mordendo-o por turnos, exatamente como ha­víamos feito com seu queijo na biblioteca. O bolo era condimentado com mel e cariz. Cláudia disse que ela mesma havia colhido preparado com mel e o cariz e moído a farinha de trigo, com suas próprias mãos, num velho moinho manual.

Enquanto caminhávamos, ela não me tomou o braço, mas tímidamente evitava tocar-me. Enfunado por minha maioridade, peguei-lhe o braço e a fui conduzindo por entre os buracos da rua. Ela suspirava, feliz. Debaixo do maior sigilo, falei da minha pro­messa e contei que estava agora a caminho do templo da Lua com minha oferenda votiva numa caixa de prata.

_Uf, esse templo tem má fama! — exclamou Cláudia. — Mistérios imorais lá se realizam à noite, por trás das portas cer­radas. Foi bom que eu estivesse perto da sua casa. Se fosse lá sozinho, poderia perder mais do. que a sua oferenda. Nem me dou mais ao trabalho de assistir aos sacrifícios do Estado... Os deuses são apenas pedra e madeira. Aquele velho mentiroso, lá no Palatino, está revivificando as antigas cerimônias somente para prender o povo mais firmemente nos antigos grilhões. Tenho mi­nha árvore sagrada e um límpido poço sacrificatório. Quando estou triste, vou ao oráculo no Vaticano e contemplo os pássaros voando.

 — Você fala como meu pai. Êle nem sequer permite que um vidente perscrute o meu futuro no fígado de um animal. Mas po­deres sobrenaturais e feitiçaria existem. Até mesmo as pessoas ajuizadas o reconhecem. Por isso prefiro cumprir a promessa que fiz.

Havíamos chegado ao templo, que parecia soterrado. Feliz­mente a porta estava escancarada e no interior ardiam algumas candeias pequenas, mas não havia ninguém à vista quando colo­quei minha caixa de prata no meio das outras oferendas do tem­plo. Eu devia realmente ter tocado a sineta para chamar a sacer­dotisa, mas para ser franco estava com medo dela e não queria naquele momento particular ver o seu lívido rosto branco. Mer­gulhei apressadamente as pontas dos dedos no óleo santo e esfreguei-as no ovo de pedra. Cláudia sorriu divertida e botou um bolo no banco vazio da sacerdotisa, como se fosse uma dádiva. Depois saímos Correndo do templo como duas crianças travessas.

Fora, diante do templo, beijamo-nos. Cláudia segurou-me a cabeça entre suas mãos.

— Teu pai já te prometeu em casamento? — perguntou enciumada.  Ou foste apenas apresentado a algumas moças romanas para que faças a tua escolha? Isso em geral faz parte das cerimonias de maioridade.

Eu não pensara uma só vez no  motivo pelo qual as velhas olhado para mim enquanto chupavam os dedos. Pensei que tinham vindo para provar  dos doces e bolos.

— Não, não — respondi apavorado. — Meu pai ainda não pensou em casar-me com ninguém.

— Ah, quem me dera que eu pudesse dominar-me e con­tar-lhe com clareza os meus pensamentos — disse Cláudia, triste­mente. — Não se comprometa com ninguém cedo demais, está bem? Isso traz muita infelicidade. Já há em Roma muitos demoli­dores de casamentos. Você provavelmente ainda crê que a nossa diferença de idade é muito grande, uma vez que sou cinco anos mais velha do que você. Mas com o correr do tempo e quando você fizer seu serviço militar, a diferença parecerá menor. Você comeu um bolo que eu assei e beijou meus lábios espontanea­mente. Isso não o obriga de modo algum, mas para mim é um sinal de que não lhe sou totalmente repugnante. Por isso, posso apenas pedir-lhe que se lembre de mim algumas vezes e não se comprometa com ninguém, sem primeiro me dizer.

Não tinha eu a mais leve intenção de casar, de sorte que achei esse pedido razoável. Beijei-a mais uma vez e aqueci-me ao tomá-la nos braços.

— Isso eu prometo — respondi — desde que você não queira estar sempre comigo onde eu estiver. Na realidade nunca apreciei essas mocinhas da minha idade, que vivem rindo à toa, e gosto de você porque é mais amadurecida e porque lê livros. Não me recordo de terem os poetas descrito cerimônias de casamento em seus poemas de amor. Pelo contrário, falam do amor como de algo livre e sem entraves, o que não tem nada a ver com lareira e casa, mas com o perfume das rosas e o luar.

Cláudia ficou desconcertada e recuou um pouco:

— Você não sabe o que está dizendo. Por que não iria eu pensar no véu escarlate, no manto amarelo açafrão e na cinta com dois laços? Este é o pensamento mais secreto na mente de toda mulher, quando afaga o rosto de um homem e lhe beija os lábios.

Seu protesto fez-me trazê-la violentamente para meus braços e beijar seus lábios relutantes. Cláudia livrou-se do meu abraço, deu-me uma palmada na orelha e desfez-se em lágrimas, que de­pois enxugou com o dorso da mão.

— Pensei que você tinha outros pensamentos a meu respeito — soluçou. — Este é todo o agradecimento que recebo por me dominar e só pensar no seu bem. Mas você só quer me atirar de costas contra o muro e apartar os meus joelhos para satisfazer a sua concupiscência. Não sou dessas.

As lágrimas me enfraqueceram e abrandaram.

— Você é bastante forte para se defender — disse eu, em­burrado — e nem mesmo sei se posso fazer o que você diz. Nunca me agarrei com as escravas nem fui seduzido por minha aia. Não

precisa chorar, pois certamente você é muito mais experiente do que eu nessas coisas.

Cláudia ficou espantada com minhas palavras e esqueceu-se de chorar enquanto me fitava pasmada.

_ Está me dizendo a verdade? Sempre imaginei que os rapazes- se comportavam como macacos. Quanto mais nobres são, mais simiescos são seus hábitos. Mas se está me dizendo a verda- de então tenho maior razão para dominar meu corpo trêmulo. Você me desprezaria se eu me rendesse aos nossos desejos. Nosso prazer teria vida curta e logo seria esquecido.

Minhas bochechas ardiam e a decepção do meu corpo me

fez retrucar:

_ Você é quem sabe, é claro.

Sem olhá-la, pus-me a andar em direção a casa. Ela hesitou um instante e depois, devagarinho, veio me seguindo. Nada dis­semos um ao outro durante algum tempo. Mas afinal desatei a rir. Era agradável que ela me acompanhasse assim, humilde.

— Prometa-me só mais uma coisa, Minuto querido. Não vá direto a um bordel nem faça uma promessa a Vênus, como fazem todos os rapazes logo que recebem suas togas. Se sentir um desejo irresistível de qualquer coisa desse tipo, pois sei que os homens são incontroláveis, então prometa me dizer primeiro, ainda que isso me fira.

Prometi lhe tudo isso já que me pediu de modo tão persuasivo Tudo em que eu pensava era no tipo de cavalo que ia conseguir. Naquela época nem mesmo Cleópatra rivalizaria com um bom cavalo em minha imaginação. Ri quando dei minha palavra e lhe disse que ela era uma moça linda, mas esquisita. Separamo-nos sorrindo e com as pazes feitas. Estava bem-humorado depois disso. Quando entrei em casa, meu pai ia tomando a cadeirinha de Túlia para acompanhá-la, já que ela morava no Viminal, na outra banda da cidade, na divisa entre Altasemita e Esquilina. Os olhos de meu pai estavam parados e vítreos, e êle não me perguntou onde eu estivera, mas limitou-se a dizer-me que fosse para a cama cedo. Desconfiei que tivesse bebido boa quantidade de vinho, mas isso não era visível pelo seu andar.

Dormi bem e muito, mas foi grande minha decepção de ma­nha, quando vi que meu pai não estava em casa. Esperava que fossemos imediatamente aos estábulos escolher um cavalo para mim. A casa estava em arrumação, depois da festa, e tia Lélia queixava-se de dor de cabeça. Perguntei para onde fora meu pai tão cedo.

_ Seu pai tem idade bastante para saber o que faz — respondeu raivosa — Tinha muito que discutir com sua amiga de outros tempos. Talvez passado a noite na casa de Túlia. Ela tem cômodos para mais de um homem.

Barbo e eu matamos o tempo jogando dados no jardim, en­quanto os faxineiros limpavam a casa com suas vassouras e baldes. A primavera estava no ar. Por fim meu pai regressou ao meio-dia, barbado, os olhos desvairados e injetados. Cobria o rosto com uma dobra da toga e trazia consigo um advogado que carregava rolos de papel e material de escrita. Barbo me deu uma cutucada como sinal de que seria mais sensato ficar calado.

Meu pai, contrastando com seu comportamento habitual, dis­tribuiu pontapés nos baldes dos faxineiros e ordenou aos escravos que desaparecerem de sua vista a toda pressa. Após consultar rapidamente o advogado, chamou-me para dentro de casa. Tia Lélia chorava copiosamente e eu mal ousei balbuciar uma per­gunta a meu pai, sobre se êle tinha tempo agora de ir comigo escolher um cavalo.

— Você e seu cavalo vão me levar à loucura — exclamou. — Seu rosto estava desfigurado pela cólera, e, ao vê-lo, era fácil perceber que na juventude meu pai vivera anos em estado de confusão mental. Mas logo arrependeu-se de sua ira. — Não, não, a culpa é minha. Minha fraqueza é que me pôs neste estado. Um acaso infeliz alterou todos os meus planos. Agora só me resta voltar a Antioquia sem demora. Destinei a você a renda de algu­mas de minhas posses, em Cere, e dos meus imóveis aqui na ci­dade. Isso lhe dará mais do que a renda anual de mil sestércios, exigida de um cavaleiro. Tia Lélia tomará conta da casa. Será o seu lar, Minuto. Também reservei uma anuidade para tia Lélia. E não é irrisória. Meu advogado será seu tutor. É de família patrícia. Pode ir escolher logo seu cavalo, se quiser, mas eu tenho de regressar a Antioquia, sem perda de tempo.

Meu pai estava tão transtornado que teria partido imediata­mente, se tia Lélia e o advogado não o tivessem contido. Prepa­raram-lhe a bagagem, a roupa e a comida, não obstante ter êle dito, com impaciência, que poderia alugar uma carroça nos por­tões da cidade, ir para Puteoli e comprar tudo quanto precisasse no caminho. De súbito o caos imperou em nossa casa, depois dos alegres festejos do dia anterior. Não poderíamos permitir que par­tisse como um degredado, a ponta do manto ocultando-lhe o rosto. Assim, fomos todos com êle, tia Lélia, o advogado, Barbo e eu. Por último vinham os escravos, carregando-lhe os pertences apres­sadamente emalados.

Quando alcançou o portão de Cápua, abaixo de Célio, meu pai deu um profundo suspiro de alívio e iniciou as despedidas, dizendo que já podia ver a dourada liberdade assomar à sua frente, no outro lado do portão, e que nunca devia ter saído de Antio­quia. Mas, no portão, aproximou-se de nós um dos magistrados da cidade, empunhando seu bastão oficial e seguido por dois ro­bustos policiais.

É você o cavaleiro romano Marco Mezêncio Maniliano?

untou a meu pai. — Se é, comunico-lhe que há uma senhora de alta posição social que tem assuntos importantes a tra­tar com você.

O rosto de meu pai tornou-se primeiro escarlate e depois cin­zento Mirou o chão, disse que nada tinha a tratar com nenhuma senhora e em seguida tentou atravessar os portões da cidade.

_ Se tentar ir para o outro lado dos muros — preveniu o magistrado — terei de cumprir a ordem de apresentá-lo ao Pre­feito da Cidade. É meu dever prendê-lo para evitar que fuja.

O advogado apressou-se a defender meu pai, pedindo ao ma­gistrado que dispersasse o ajuntamento já formado em torno de nós, e perguntando de que meu pai era acusado.

_É uma história simples e desabonadora — explicou o ma- gistrado. — Eu preferia que as partes solucionassem a questão entre si. A nobre viúva de senador, Valéria Túlia, queixa-se de que ontem à noite, Maniliano, em presença de testemunhas, pro- meteu de jure desposá-la e depois de facto dormiu com ela. Tendo, por alguma razão qualquer, duvidado das respeitáveis intenções de Maniliano, ela fez com que um escravo seguisse o dito Mani- liano, depois que este deixou a casa, sem apresentar suas despedi- das. Quando se convenceu de que êle tinha intenção de fugir, a viúva recorreu ao Prefeito. Se Maniliano transpuser os muros da cidade, terá de responder por quebra de promessa, estupro e ainda pelo roubo de um valioso colar pertencente à viúva Túlia, o que é presumivelmente mais ignominioso para um cavaleiro do que o descumprimento de uma promessa.

Meu pai levou atabalhoadamente os dedos hirtos à garganta, puxou um colar de ouro com pedras de cores variadas e em se­guida falou num tom de desalento:

— A viúva Túlia pôs esse maldito colar em meu pescoço com suas próprias mãos. Na pressa esqueci de devolver. Assuntos de grande importância obrigam-me a regressar a Antioquia. É claro que restituirei o colar e darei qualquer garantia que desejar, mas tenho de partir imediatamente.

O magistrado estava envergonhado por meu pai:

Na verdade, vocês não trocaram colares entre si — per­guntou — para ratificar o noivado e a promessa de casamento?

Eu estava bêbado e não sabia o que fazia — protestou meu

pai.

Mas o magistrado não acreditou:

Pelo contrário, você recorreu eloqüentemente a numerosos exemplos, segundo os quais os filósofos puderam contrair um matrimõnio verdadeiro e legal simplesmente fazendo uma promessa na presença de testemunhas. Isto foi o que me contaram. Devo admitir que, em estado de embriaguez, fez pouco, de uma senho­ra honrada e a induziu a partilhar o leito com você? Em tal caso, o que você fez é ainda mais grave. Vou lhe dar uma oportunidade de acordo amigável, mas se transpuser aquele portão, mandarei prendê-lo e seu processo será julgado pelo tribunal.

Por fim, o advogado logrou persuadir meu pai a refrear a língua e prometeu também acompanhá-lo até à casa de Valéria Túlia, a fim de apreciar devidamente a questão. Exausto e confu­so, meu pai entregou os pontos e começou a chorar:

— Deixem-me com os meus padecimentos. Prefiro ser preso, perder o título de cavaleiro e pagar as multas, a ter de ver outra vez aquela mulher. Ela me deve ter envenenado, misturando al­guma coisa indecente ao meu vinho, para que eu tivesse ficado tão fora de mim. Não me lembro de quase nada do que aconteceu.

Tudo seria resolvido a contento, assegurou-lhe o advogado, e prometeu defendê-lo no tribunal. Então tia Lélia interveio, ba­tendo o pé e desmanchando-se em lágrimas, manchas rubras e ar­dentes marcando-lhe as bochechas.

— Não torne a enlamear o bom nome de Maniliano com outro caso vergonhoso, Marco! — gritou ela. — Seja homem uma vez e sustente o que fez.

Chorando, reforcei a recomendação de tia Lélia e bradei que esse caso iria cobrir-me de ridículo em toda Roma e arruinai o meu futuro. Supliquei que fôssemos todos à casa de Túlia ime­diatamente. Prometi que me prostraria de joelhos, ao lado de meu pai, diante dessa nobre e bela senhora, e lhe rogaria o perdão.

Meu pai não estava em condições de opor-se a nós. Seguidos pelo magistrado e pelos policiais, rumamos para o monte Viminal, com os escravos na retaguarda, transportando a bagagem de meu pai, uma vez que ninguém se lembrara de lhes dizer que dessem meia volta e fossem para casa. A vivenda e o jardim de Valéria Túlia eram imensamente amplos e suntuosos. No pátio, circundado de colunas, fomos recebidos por um porteiro agigantado, de traje verde e prata, que saudou meu pai respeitosamente.

Oh, meu senhor — exclamou. — Bem-vindo sejais no re­gresso a vossa casa. Minha ama vos espera impaciente.

Com um derradeiro olhar de desespero, meu pai pediu-nos débilmente que o aguardássemos no pátio e entrou sozinho na casa.

Todo um rebanho de escravos veio correndo ao nosso encon­tro para nos oferecer fruta e vinho em vasos de prata. Tia Lélia olhou em redor prazenteiramente.

— Há homens que não sabem o que lhes convém — comentou _ Não vejo de que é que Marco pode se queixar numa casa

como esta.      Não tardou que Túlia viesse cumprimentar-nos, vestindo  apenas uma camisa de seda transparente, o cabelo cuidadosamente penteado e o rosto pintado.

_Estou tão contente — gritou em júbilo — de que Marco tenha voltado para a minha companhia tão depressa e trazido também sua bagagem! Agora êle não precisa nunca mais sair daqui. Vamos viver juntos e felizes o resto dos nossos dias.

Ordenou fosse entregue uma bolsa de couro vermelho e macio ao magistrado, em paga de seu trabalho, e depois falou pe­sarosa:

_ Naturalmente, no fundo do coração não duvidei de Marco,

um só momento, mas uma viúva solitária tem de ser cuidadosa, e quando era mais moço Marco era muito volúvel. Que bom que êle trouxe o advogado consigo! Assim, podemos redigir o contra­to nupcial sem demora. Não podia imaginar, querido Marco, que o teu miolo estivesse sereno até esse ponto, tão desordenado estava ontem em meu leito.

Meu pai pigarreou e engoliu em seco, mas não disse uma só palavra. Túlia conduziu-nos a seus cômodos espaçosos e deixou que admirássemos o piso de mosaico, os murais e os painéis ma­ravilhosamente proporcionados. Permitiu que lhe examinássemos o quarto de dormir, mas fingiu acanhamento, cobrindo o rosto:

— Não, não. Entrar, não. Está tudo em desalinho desde ontem à noite.

Meu pai conseguiu afinal encontrar sua voz.

Venceste, Túlia, e eu me submeto ao meu fado. Mas pelo menos manda embora o magistrado para que êle não presencie a minha degradação.

Escravos primorosamente vestidos rodeavam-nos e faziam o possível para nos servir e agradar. Dois pirralhos corriam nus pela casa, brincando de cupidos. Receei que apanhassem um res­friado, até que me dei conta de que o piso de pedra desta esplên­dida mansão era aquecido por canos de água quente.

O magistrado e o advogado de meu pai trocaram idéias du­rante algum tempo e deliberaram que uma promessa de Casamento, feita na presença de testemunhas, era legalmente válida, sem uma cerimônia pública.

O magistrado e seus  policiais foram embora, quando o primeiro se convenceu  de que meu pai estava disposto a assinar sem protesto um contrato nupcial.

O advogado fez o magistrado prometer que guardaria segrêdo, mas até mesmo eu, com minha pouca experiência,

compreendi que uma pessoa em tal posição dificilmente iria abs­ter-se de divulgar tão delicioso escândalo.

Mas seria de fato um escândalo? Não era lisonjeiro para meu pai que uma mulher tão nobre e tão notoriamente rica não se de­tivesse diante de nada, para casar com êle? A despeito dos seus hábitos modestos e da sua humildade exterior, meu pai devia pos­suir qualidades ocultas de que eu não tinha conhecimento, e que sem dúvida despertariam a curiosidade de toda Roma não só por êle, mas também por mim. Na realidade, esse casamento poderia beneficiar-me sob todos os aspectos. Pelo menos forçaria meu pai a permanecer em Roma, de sorte que eu não precisava andar ao léu nesta cidade em que ainda me sentia inseguro.

Mas o que via em meu pai a bela e mimada Túlia? Por um instante invadiu-me a suspeita de que ela levava uma vida frívo­la e estava endividada até os cabelos, e assim queria o dinheiro de meu pai. Mas na verdade meu pai não era rico, pelos padrões de Roma, embora seus libertos em Antioquia e no Oriente fossem abastados. Minhas suspeitas se desvaneceram quando meu pai e Túlia, em perfeita harmonia, decidiram celebrar o contrato de ca­samento de modo que mesmo no futuro cada um tomasse conta da própria fortuna.

Mas sempre que tiveres tempo ou vontade, querido Marco

sugeriu brandamente Túlia — espero que fales com o meu te­soureiro, examines as minhas contas e me aconselhes sobre os meus negócios. Que entende uma pobre viúva de tais assuntos? Ouvi dizer que te transformaste num hábil homem de negócios, embora ninguém pudesse esperar isso de ti, quando eras rapaz.

Meu pai comentou aborrecido que agora, quando a lei e a ordem imperavam no país, graças ao Imperador Cláudio e seus li­bertos, uma fortuna sensatamente estabelecida aumentava por si só.

Minha cabeça está oca e não me resta um só pensamento

disse êle, coçando o queixo. — Preciso ir ao barbeiro e às termas, para descansar e recobrar o que me sobra de juízo.

Túlia levou-nos além das estátuas e poços de mármore do vasto pátio interno da casa até a outra extremidade do edifício, onde nos mostrou seu balneário, provido de piscinas de água quente e fria e de salas de vapor e refrigeração. Um barbeiro, um massagista e um escravo lá estavam à nossa disposição;

— Nunca mais precisarás pagar um só denário aos roupeiros das termas públicas, nem ficar exposto ao apinhamento e ao odor das multidões — Túlia explicou. — Se te der vontade de ler, ou ouvir poesia ou música, depois do banho, há aqui uma sala espe­cial para esse fim. Ide agora, Marco e Minuto, banhar-vos, en­quanto converso com minha cara amiga Lélia, sobre a maneira de arranjarmos as nossas vidas daqui por diante. Nós, mulheres, en­tendemos melhor essas coisas do que vós, homens pouco práticos.

Meu pai dormiu até o entardecer. Quando acabamos de vestir novos trajes que o roupeiro nos preparara, a casa encheu-se súbitamente de convidados. A maioria era de jovens, felizes e alegres mas havia entre eles também dois velhos gordos, de aparên­cia depravada, que não me inspiravam respeito, embora um fosse senador. Pelo menos, pude falar sobre cavalos, com um veterano centurião da Guarda Pretoriana. Para minha surpresa, êle revelou muito maior interesse pelas mulheres. Após terem tomado vinho à vontade, elas afrouxavam os vestidos, a fim de respirar mais li­vremente.

Quando notei o caráter que ia assumindo a festa fui procurar Barbo, que os fâmulos vinham regalando generosamente. Encon­trei-o com a cabeça apoiada nas mãos:

— Achei maior hospitalidade aqui do que em qualquer outra parte — disse êle — e teria até mesmo me casado, num abrir e fechar de olhos, se não soubesse, como um veterano experimen­tado, quando devia fazer alto. Esta casa não é lugar para você, Minuto, nem para um velho soldado como eu.

Músicos tocavam e bailarinas e acrobatas nus contorciam-se no chão, quando passei à procura de meu pai. Êle estava reclina­do num leito, ao lado de Túlia, imerso num silêncio soturno.

Talvez seja o costume de Roma — disse eu — que as mu­lheres patrícias vomitem por toda parte e os homens me acenem com gestos indecentes, mas simplesmente não posso tolerar que todo o mundo dê a impressão de pensar que tem o direito de me apalpar o corpo. Não sou escravo nem eunuco. Quero ir para casa.

Estou com a vontade embotada demais e muito conforma­do — confessou meu pai — para abandonar essa depravação, mas você deve procurar ser mais forte do que eu. Alegra-me saber dessa decisão e que você mesmo a tenha tomado. Sou obrigado a permanecer aqui, já que ninguém pode escapar a seu destino, mas é melhor que você vá morar com tia Lélia. Afinal, agora você tem meios próprios. Não teria nada a ganhar morando na casa de sua madrasta.

Túlia não me olhava tão bondosamente como na noite ante­rior. Perguntei se podia vir na manhã seguinte buscar meu pai, para irmos escolher um cavalo para mim, mas ela me interrom­peu energicamente com estas palavras:

Teu pai está muito velho para montar. Terminaria caindo do cavalo e quebrando sua preciosa cabeça. No desfile do cente­nário poderá conduzir o cavalo pela mão.

Compreendi que perdera meu pai, e um sentimento de deso­lação tomou conta de mim, pois experimentara sua proteção por muito pouco tempo. Mas também compreendi que era melhor para mim criar uma vida pessoal. Saí em busca de tia Lélia, afas­tando de mim, com violência, uma mulher seminua, de olhos bri­lhantes, que tentava agarrarme pelo pescoço. Mas a palmada na traseiro só fez esporeá-la, de modo que Barbo foi forçado a em­purrá-la.

Túlia ficou tão satisfeita de se ver livre de nós que pôs sua cadeirinha à nossa disposição. Dentro da cadeirinha, tia Lélia ajeitou o vestido e começou a tagarelar:

Soube de muito mexerico a respeito do que se passa nas novas casas de Roma, mas não pude acreditar nos meus ouvidos. Valéria Túlia é tida como uma mulher decente. Talvez o casa mento a tenha conduzido à imoderação, após a vida abstêmia da viuvez, se bem que muitos homens simpáticos parecessem estar à vontade em sua casa. Seu pai vai ter muito trabalho para mantê-la na linha.

De manhã cedo, quando comíamos nosso pão com mel, falei com Barbo.

Vou escolher um cavalo, e devo fazê-lo sozinho, pois agora que sou um adulto não preciso de acompanhante, como quando era menino. Agora, você tem oportunidade de realizar seu sonho de tornar-se estalajadeiro.

Vi boas estalagens em diversos pontos de Roma res­pondeu Barbo, gravemente e também estou em Condições de comprar uma, graças à generosidade de seu pai. Mas quando tudo está pronto, a idéia já não me seduz como no tempo em que eu dormia no chão nu e bebia o vinho azedo da legião. E também uma estalagem precisa de uma patroa, além do patrão, mas a ex­periência me diz que as boas patroas são mulheres empedernidas. Na realidade, prefiro ficar a seu serviço por enquanto. Natural­mente, você já não precisa de mim como protetor, mas observei que todo cavaleiro que tem um mínimo de apreço por sua digni­dade tem um acompanhante ou mais, alguns até mesmo dez ou uma centena, quando vão para fora da cidade. Por isso seria mais prudente, ainda que só para o seu próprio bem, que você tivesse um experimentado veterano a seu serviço. A cavalaria é outra coisa mas receio que você tenha pela frente semanas difíceis. Aos olhos dos outros, não é mais do que um recruta. Já lhe contei como são preparados os recrutas na legião, mas você provavelmen­te não acreditou em tudo e pensou que eu estivesse exagerando um pouco, talvez para diverti-lo. Antes de mais nada, lembre-se de que é preciso dominar-se, cerrar os dentes e não se enraivecer com um superior. Iremos juntos para lá. Talvez eu possa lhe dar al­guns conselhos.

Enquanto atravessávamos a cidade em direção ao campo de Marte, Barbo comentava com tristeza:

Eu devia realmente ter direito à insígnia de um subcenturião, a coroa mural, se não fosse tão dado a brigar depois de beber.

Até a corrente que recebi como lembrança do Tribuno Lúcio, daquela vez em que atravessei a nado o Danúbio, com ele sangrando nas minhas costas e por entre campos de gelo, acabou empenha­da numa miserável estalagem bárbara da Mésia, e não a recupe­rei antes de sairmos de lá. Mas poderíamos comprar uma corrente de segunda mão a um desses armeiros. É possível que lhe dispen­sem melhor tratamento se o seu acompanhante estiver usando uma, em volta do pescoço.

Respondi que ele já tinha suficiente insígnia de honra na língua, mas Barbo insistiu em entrar numa loja e comprar um distintivo triunfal de cobre, no qual a inscrição estava tão gasta que não se podia distinguir quem a havia dado outrora a algum de seus veteranos. Mas ao prendê-la ao ombro, Barbo disse que se sentia mais seguro entre todos os cavalarianos.

No vasto campo havia cerca de uma centena de jovens cava­leiros exercitando-se para os jogos eqüestres do centenário. O es­tribeira era um tipo grandalhão e rústico que rompeu na garga­lhada, ao ler o certificado que me dera o questor na Nobre Ordem dos Cavaleiros.

— Logo acharemos um cavalo que lhe sirva, jovem — bradou ele. — Deseja um grande ou pequeno, bravo ou manso, branco ou preto?

Conduziu-nos ao estábulo dos animais disponíveis. Apontei para um e vi outro que me agradou, mas o homem examinou seus papéis e disse friamente que já estavam reservados.

— É mais seguro ficar com um cavalo manso, acostumado com os exercícios, a barulheira do circo e os toques da corneta, caso esteja pensando em tomar parte na parada do centenário — disse ele. — Já montou alguma vez?

Confessei modestamente que havia praticado um pouco em Antioquia, pois Barbo me aconselhara a não bazofiar, e acrescen­tei que, a meu ver, todos os animais da cavalaria estavam habi­tuados aos toques de corneta.

Mas gostaria de pegar um cavalo indomado e doma lo eu mesmo — atrevi-me a insinuar. — Contudo, vejo que não há tempo para isso antes dos festejos.

Ótimo, ótimo! — berrou o estribeiro, quase sufocando de tanto rir. — Há muitos rapazes que sabem domar um cavalo. Por Hércules! Eu estouro. Aqui são os profissionais que cuidam disso.

Um dos profissionais aproximou-se e me mediu com os olhos da cabeça aos pés.

Temos Armínia — sugeriu. — Ela está habituada à al­gazarra do circo e se mantém bem quietinha mesmo que a gente derrube um saco de pedras na sela.

Mostrou-me uma grande égua negra que se virou na baia e me lançou um olhar de desconfiança.

Não, não, Armínia, não — disse o estribeira, horroriza­do. — É quieta demais para o nosso jovem. É muito bonita, mas é mansa como uma ovelhinha. Precisamos reservá-la para algum senador velho que queira montar no desfile.

Evidentemente não pensei em receber um cavalo de graça — disse eu — só com um certificado. Se me permite, gostaria de experimentar esse animal.

Ele quer montar e pagar pelo cavalo também — disse o domador, delicado.

Após alguns protestos, o estribeira afinal concordou.

— É um animal manso demais para um rapaz como você, mas ponha as botas e o traje de montaria. Enquanto isso, vou mandar selar a égua.

Disse-lhe eu que não trouxera nada para vestir e o estribeiro me olhou como se me julgasse um débil mental.

— Não vai montar em traje de parada, vai? O Estado custeia seus trajes de exercício.

Levou-me para a sala do equipamento e escravos prestimosos ataram tão apertado o peitoral que tive dificuldade em respirar Deram-me um elmo amassado e um velho par de botas de cano curto. Não me deram escudo, espada ou lança, mas me disseram que me contentasse de pôr à prova, pela primeira vez, minha ca­pacidade de montar.

A égua saiu trotando animosa do estábulo e relinchou majes­tosamente, mas a uma ordem do estribeiro ficou inteiramente quieta. Montei com as rédeas na mão e pedi que ajustassem as cor­reias do estribo ao comprimento justo.

— Estou vendo que já montou — comentou o estribeiro, com ar aprovador.

Depois bradou com voz trovejante:

— O cavaleiro Minuto Lauso Maniliano escolheu Armínia e pensa que vai montá-la.

Os ginetes do campo de exercícios espalharam-se pelas mar­gens, uma corneta deu o sinal de ataque e no mesmo instante teve início um jogo do qual mais por sorte do que habilidade logrei escapar incólume. Mal tive tempo de ouvir o aviso do estribeiro para poupar a boca sensível da égua e não puxar as rédeas com muita força. Mas Armínia parecia ter uma boca de ferro. Rédeas e freio eram-lhe completamente desconhecidos. Para Começar, ela pinoteou para trás a fim de me atirar por cima de sua cabeça. Como isso não sucedesse, pôs-se a corcovear e empinar e, em seguida, partiu num galope selvagem, empregando todas as artimanhas que um experimentado cavalo de circo pode descobrir para desmon­tar um cavaleiro bisonho. Compreendi então por que os outros se tinham espalhado e fugido para as margens do campo, quando

Armínia se soltou.

Não pude fazer outra coisa que agarrar-me com todas as  forças e manter a cabeça da égua pelo menos ligeiramente para a esquerda pois ela correu em linha reta para a cerca que rodeava o campo e depois estancou de repente, procurando esmagar-me a cabeça de encontro aos mourões. Vendo que a despeito de seus es­forços eu lhe continuava no lombo, enlouqueceu e passou a dar andes saltos por cima dos obstáculos do campo. Era, na verdade, um animal assombrosamente possante e esperto, de sorte que quando me refiz do primeiro susto, comecei a gostar da montaria. Soltei um ou dois gritos bravios e catuquei-lhe os flancos com os calca­nhares, para deixar que ela descarregasse toda a raiva e se can­sasse.

Atônita, Armínia tentou olhar para mim e obedeceu às rédeas o suficiente para que eu a guiasse na direção do estribeira e do domador. Os dois pararam de rir e fugiram precipitadamente para trás da porta do estábulo. O estribeiro gritou uma ordem, o rosto vermelho de raiva. Uma corneta soou, a tropa se alinhou e veio trotando para onde eu estava.

Mas Armínia não se desviou, por mais que eu puxasse as rédeas. Deitando espuma e agitando a cabeça carregou-me a todo galope rumo às cerradas fileiras de ginetes. Eu estava certo de que seria derrubado, mas ou os cavaleiros da frente perderam a coragem ou então devem ter, no último instante, aberto alas, de propósito, para a minha passagem. Mas cada um que me pôde al­cançar tentou atirar-me para fora da sela, com a lança de madeira, ou atingir-me as costas, enquanto a furiosa Armínia me levava, mordendo, pulando e escoiceando, pelb meio dos ginetes, sem que eu recebesse mais do que leves machucaduras.

Essa tentativa maliciosa e premeditada de me assustar tornou-me tão furioso que reuni todas as minhas forças e fiz Armínia voltar, a fim de procurar desmontar alguns dos cavaleiros. No der­radeiro momento, lembrei-me do conselho de Barbo, dominei-me e passei por eles gritando, rindo e acenando uma saudação.

Quando descarregou sua raiva, Armínia afinal acalmou-se e tornou-se irrepreensivelmente dócil. Quando apeei diante do está­bulo, ela tentou morder-me o pescoço, mas creio que foi de brin­cadeira, e contentei-me em troca com dar-lhe uma cotovelada por baixo do açaimo.

O estribeiro e o domador encararam-me como se su fosse um monstro, mas o estribeiro simulou estar contrariado.

- Você puxou tanto e castigou de tal modo a boca de um animal valioso que agora ele está sangrando — disse em tom re­provador - Não devia ter feito isso

_ É meu cavalo e só eu sei como devo montá-lo respondi. - Esta muito enganado tornou êle, com raiva. Não poderá cavalgá-la nos exercícios, porque ela não fica no alinha­mento e não obedece a ordens. Está acostumada a ir na frente dos outros.

Diversos cavaleiros haviam desmontado e formado um círcu­lo em torno de nós. Encorajavam-me e gritavam que eu era um bom ginete, concordando todos que o estribeiro me cedera o ani­mal e proclamara isto para que todos ouvissem.

Não vê que foi uma brincadeira? confessou, afinal, o estribeiro. Todo recruta, desde que não seja muito fraco, tem de experimentar Armínia. É um legítimo cavalo de batalha e não um mísero rocim de parada. Armínia já enfrentou animais selva­gens na arena. Quem você pensa que é, seu rapazinho insolente?

Brincadeira ou não protestei fiquei na sela e você caiu na própria armadilha. É uma vergonha manter um animal como esse trancado dias a fio apenas para amedrontar os recru­tas. Proponho um meio-têrmo. Quero montá-la diariamente, mas nos exercícios usarei outro cavalo, já que ela não se mantém no alinhamento.

O estribeiro invocou todos os deuses para testemunharem que eu tinha exigido dois cavalos em vez de um, mas os outros ficaram do meu lado e disseram que essa brincadeira com Armínia já fora longe demais. Cada um deles tinha um inchaço, ou uma cicatriz, ou um osso quebrado que os fazia recordar a tentativa de montar Armínia, no tempo em que eram recrutas, embora todos andassem a cavalo desde a infância. Se eu fora bastante louco para querer quebrar o pescoço, então tinha direito de ficar com Armínia. De qualquer modo ela era propriedade da Ordem dos Cavaleiros.

Mas eu não estava disposto a altercar com o estribeiro. Pro­meti-lhe, então, mil sestércios de gratificação e declarei que gosta­ria de oferecer vinho a todos a fim de regar minhas botas de mon­taria. Desse modo ingressei na cavalaria romana e fiz amizade com os rapazes da minha idade e também com alguns mais velhos do que eu. Pouco depois fui escolhido para integrar os cavaleiros de elite, ocupando o lugar de um mancebo que quebrara a perna, e começamos a exercitar-nos seriamente para as competições das festividades do centenário. Eram sumamente arriscadas. Por isso, só participavam delas os que estavam habilitados, não se admitindo favoritismo decorrente de origem nobre ou riqueza. Portanto, tive orgulho de ser escolhido.

É necessário continuar a vangloriar-me do êxito que alcancei nos jogos eqüestres. Dividiram-nos em duas seções que travaram um combate normal de cavalaria no grande circo, por ocasião da festa do centenário. Foi uma luta renhida, não obstante ter sido combinado que não haveria vencedores nem vencidos. Con­segui manter-me no lombo de Armínia até o fim, mas depois disso

de ser carregado para casa e pouco vi dos espetáculos reali­zados no anfiteatro ou no circo que é voz corrente terem sido os mais brilhantes e mais bem organizados já vistos em Roma.

No decorrer das festas muitos de meus amigos acharam tempo para vir visitar-me, em meu leito de enfermo, e asseguraram que sem mim teriam conquistado muito menos honra e glória.

Contentei-me de ter montado minha égua negra e ter ouvido umas duzentas mil pessoas gritar de entusiasmo e aplaudir-me antes que eu quebrasse várias costelas e a coxa esquerda. Mas fiquei na sela sobre Armínia até o último instante.

A mais significante conseqüência política das comemorações do centenário foi ter o povo rendido grande homenagem ao so­brinho do Imperador Caio, aquele Lúcio Domício de dez anos de idade, que elegante e intrepidamente chefiava as exibições mais inocentes dos ginetes infantis. O próprio filho de Cláudio, Britâ­nico, ficou irremediavelmente em segundo plano. O Imperador convidou-o ã subir a seu camarote e fez o possível para mostrá-lo ao povo, mas a multidão gritava somente por Lúcio Domício, c este recebeu a aclamação com tanta modéstia e tão boas maneiras que todos se sentiram ainda mais encantados.

Quanto a mim, teria ficado manco o resto da vida, se o mé­dico da cavalaria do templo de Castor e Pólux não fosse tão com­petente. Êle me tratou sem piedade e padeci dores terríveis. Passei dois meses inteiros na tala. Depois disso, fui obrigado a andar de muleta e não podia passar muito tempo fora de casa.

A dor, o temor de me tornar aleijado e a descoberta de que todo o sucesso é passageiro foram certamente proveitosos para mim. Pelo menos, não me envolvi nas inúmeras lutas que os mais turbulentos dos meus amigos travaram à noite, nas ruas de Roma, durante a exaltação geral provocada pelas comemorações. A prin­cipio julguei que minha forçada reclusão e a dor insuportável faziam parte dos esforços do destino para modelar meu caráter. Estava só, mais uma vez abandonado por meu pai em razão do seu casamento. Tinha de decidir sozinho o que queria da vida.

Enquanto guardava o leito em todo aquele tórrido verão, fui possuído por tal melancolia que tudo que até então me acontece­ra parecia destituído de significação. A comida boa e nutritiva de tia Lélia tinha gosto de nada. À noite não podia dormir. Pensava em Timaio, que se suicidara por minha causa. Pela primeira vez, percebi que ao cabo de tudo um bom cavalo talvez não fosse a melhor coisa da vida. Precisava descobrir por mim mesmo o que mais me convinha: dever e virtude ou comodidade e prazer. Os escritos dos filósofos que antes me tinham enfastiado, repentina-mente se tornaram cheios de sentido. E não precisei meditar muito a compreender que a disciplina e o autodomínio me davam mais satisfação do que o desenfreamento infantil.

O mais fiel dos meus amigos veio a ser Lúcio Pólio, filho de senador. Era um rapaz delgado, frágil, apenas alguns anos mais velho do que eu, e mal conseguira passar pelos exercícios de equi­tação. Fora atraído por mim por causa de minha disposição que era exatamente o oposto da sua, rude, autoconfiante e irresponsá­vel. Todavia, eu nunca proferira uma palavra áspera contra ele. Isso provavelmente eu aprendera com meu pai: era mais amistoso com os que eram mais fracos do que eu que com os que se pare­ciam comigo. Relutava, por exemplo, em bater num escravo, mesmo insolente.

Na família de Pólio sempre houve interesse pelos livros e pela ciência. O próprio Lúcio tinha muito mais de rato de biblioteca do que de ginete. Os exercícios de equitação nada mais eram para ele do que um dever enfadonho que tinha de suportar por amor à sua carreira e não tinha prazer em enriquecer o corpo. Trazia-me livros da biblioteca do pai, acreditando que a sua leitura me faria bem. Invejava o meu grego perfeito. Seu sonho secreto era ser escritor, malgrado o pai, Senador Mundo Pólio, desse por assente que seria administrador.

De que me serve perder tantos anos montando a cavalo e ouvindo processos? — disse Lúcio, com rebeldia. — Um dia me darão o comando de um manipulo, com um centurião traquejado às minhas ordens, e depois disso comandarei uma divisão de cavalaria em uma região qualquer das províncias. Afinal me farão tribuno junto ao estado-maior de alguma legião que constrói estradas no outro extremo do mundo. Só aos trinta poderei candidatar-me ao cargo de questor, quando se pode obter dispensa com base na idade em razão de méritos próprios ou da família. Sei muito bem que serei mau oficial e funcionário relapso porque não tenho ver­dadeiro interesse por tais atividades.

Deitado aqui todo esse tempo, estive pensando que talvez não seja muito inteligente quebrar os ossos por um momento de glória — reconheci. — Mas você, o que é que realmente gostaria de fazer?

Roma já domina o mundo inteiro — disse Lúcio — e não está procurando novas conquistas. O divino Augusto reduziu sensatamente a vinte e cinco o número de legiões. Atualmente a coisa mais importante a fazer é converter os hábitos rudes de Roma aos da civilização grega. Livros, poesias, drama, música e dança são mais relevantes do que os espetáculos sanguinolentos do anfiteatro.

Não suprima as corridas — disse eu. — Pelo menos nelas podem-se ver belos cavalos.

Tavolagem, promiscuidade e orgias vergonhosas — sen­tenciou Lúcio, sombrio. — Se tento organizar um debate em grego,

faziam os antigos filósofos, a reunião acaba sempre em histórias escabrosas e festins licenciosos. Em Roma é impossível encontrar uma sociedade interessada em boa música e canto ou que aprecie mais o drama clássico do que as histórias de aventuras e as anedotas imundas. Gostaria de ir estudar em Atenas ou Rodes, mas meu pai não consentiria. Segundo ele, a cultura grega tem somente o efeito de efeminar as virtudes varonis dos jovens roma­nos Como se sobrasse das primitivas virtudes romanas alguma coisa mais do que aparência oca, pompa e cerimônia.

Sonhei muito com Lúcio, pois ele de boa vontade me falou da administração e dos postos essenciais de Roma. De acordo com sua ingênua concepção, o Senado podia revogar um édito do Im­perador, embora o Imperador, como tribuno vitalício do povo, pudesse, com seu direito de veto, anular uma ordem emanada do Senado. A maioria das províncias romanas era governada pelo Senado, por intermédio dos Procônsules, mas algumas eram, de certa forma, propriedade privada do Imperador, que era respon­sável por sua administração.

A mais importante província do Imperador era o Egito; também se ligavam a Roma países inteiros e diversos reinos, cujos regentes haviam sido educados desde a infância na escola do Pa­latino e tinham aprendido os costumes romanos. Na verdade não me dera conta, antes, de como era basicamente lógica e sensata essa forma aparentemente complicada de governo.

Expliquei a Lúcio que eu mesmo queria ser oficial de cava­laria, mais do que qualquer outra coisa. Juntos examinamos as possibilidades que se me ofereciam. Não tinha oportunidade de ingressar na Guarda Pretoriana de Roma, uma vez que os filhos de senadores haviam preenchido todas as vaga: de tribunos ali exis­tentes. No território limítrofe da Mauritânia podiam-se caçar leões. Na Bretanha eram infindáveis os conflitos de fronteiras. Os germanos disputavam com Roma os campos de pastagem.

— Você dificilmente conquistará honras militares, mesmo que tome parte em combates aqui e ali — disse Lúcio. — As es­caramuças de fronteira não são nem mencionadas, pois a tarefa mais importante da legião é manter a ordem ao longo das frontei­ras. O comandante de legião que fôr empreendedor e ávido de ba­talhas perderá o posto antes de realizar suas aspirações. Um ho­mem ambicioso encontra melhor oportunidade de promoção na marinha. Um oficial naval nem precisa ser cavaleiro de nascença.

Não há nem mesmo um templo de Posídon em Roma. Você teria uma boa renda e uma vida folgada. Poderia contar de saída como o comando de um navio. Um bom timoneiro cuidaria da parte de navegação. Em geral nobre se alista na marinha.

Respondi que era bastante romano para não achar muito en­canto em vogar de um lado para outro, especialmente agora, quenão se ouvia sequer falar em piratas. Podia ser da máxima utilida­de no Oriente, já que sabia falar aramaico como todo indivíduo que tinha crescido em Antioquia. Mas não encontrava atrativo em construir estradas e morar em cidades fortificadas onde os legio­nários tinham permissão de casar e residir e os centuriões se trans­formavam em comerciantes prósperos. Não queria ir para o Ori­ente.

Por que então enterrar-se no outro extremo do mundo? perguntou Lúcio. Seria incomparavelmente melhor ficar aqui em Roma onde, cedo ou tarde, se é notado. Com sua habi­lidade para montar, sua elegância e seus belos olhos, você iria mais longe em um ano, aqui, do que em vinte anos como coman­dante de uma coorte no meio dos bárbaros.

Irritado com minha longa permanência no leito e movido por mera birra, contestei:

Roma, no calor do verão, é uma cidade que fede a suor e se enche de moscas nojentas. Até mesmo em Antioquia o ar era respirável.

Lúcio olhou-me perscrutadoramente, na crença de que havia algo oculto por trás de minhas palavras.

Não há dúvida que Roma está cheia de moscas con-veio êle. E de abutres também. Seria melhor calar-me, pois sei que seu pai recuperou o título de cavaleiro graças unicamente ao presunçoso liberto do Imperador. Suponho que você sabe que os delegados das cidades e os reis bajulam Narciso e que êle acumu­lou uma fortuna de uns duzentos milhões de sestércios, vendendo privilégios e cargos oficiais. Valéria Messalina é ainda mais ava­renta. Mandou matar um dos homens mais velhos de Roma para se apropriar dos Jardins de Lúculo no monte Píncio. Transfor­mou seus aposentos no Palatino em bordel e, não contente com isso, passa muitas noites, disfarçada e com nome falso, nos lupana­res de Subura, onde dorme com qualquer um por algumas moedas de cobre, só porque acha divertido.

Coloquei as mãos nos ouvidos e disse que Narciso era um grego de maneiras finas e que não podia acreditar nas histórias que se contavam da bela mulher do Imperador, cujo riso era tão puro e contagiante.

Messalina é apenas sete anos mais velha do que nós — -afirmei. Também tem dois filhos encantadores e nos espetácu­los festivos senta-se junto das Virgens Vestais.

O opróbrio e a ignomínia do Imperador Cláudio, no leito matrimonial, são bem conhecidos até nos países inimigos, na Partia e na Germânia disse Lúcio. Bisbilhotice é bisbilhotice, mas eu conheço pessoalmente jovens cavaleiros que se gabam de ter 92

mido com ela, por ordem do Imperador. Cláudio manda que todos obedeçam a Messalina em tudo quanto ela exigir.

Lúcio ponderei o que os rapazes alardeiam você conhece pelos simpósios que organiza. Quanto mais tímido é o indivíduo na companhia das mulheres, mais bazofias conta e mais conquistas inventa, quando bebe um pouco de vinho. Que tal me­xerico seja conhecido no exterior também, parece demonstrar que é propositadamente propalado por alguém. Quanto maior é a men­tira maior probabilidade tem ela de ser acreditada. Os seres huma­nos têm uma tendência natural a acreditar no que se lhes conta. E é precisamente nesse tipo de mentira, que delicia o paladar de­pravado, que o povo mais facilmente acredita. Lúcio ruborizou-se.

             Tenho outra explicação murmurou com voz quase trê- mula. — Talvez Valéria Messalina fosse uma virgem quando casou, aos quinze anos, com o cinqüentão ébrio e depravado que é Cláudio, a quem a própria família votava o maior desprezo. Foi Cláudio quem perverteu Messalina, dando-lhe a beber mirra, para que se tornasse numa ninfomaníaca. Agora Cláudio está acabado e não é improvável que intencionalmente feche os olhos. Seja como fôr, êle seguramente exige que Messalina lhe envie constantemen- te escravas ao leito, quanto mais jovens melhor. O que êle pratica com elas é outra história. Tudo isso a própria Messalina confes- sou, debulhada em lágrimas, a uma pessoa cujo nome prefiro calar mas em quem deposito confiança absoluta.

Somos amigos, Lúcio disse eu mas você é de origem nobre e filho de senador. Portanto, não tem competência para falar desse assunto. Sei que o Senado proclamou a república quan­do o Imperador Caio foi assassinado. Depois os pretorianos en­contraram-Lhe por acaso o tio, Cláudio, escondido atrás de um re­posteiro, quando vasculhavam o Palatino, e o aclamaram Impera­dor porque era o único a ter tal direito em razão do seu nascimen­to. É um episódio tão antigo que já não faz rir a ninguém. Mas não me surpreende que Cláudio confie mais nos seus libertos e na mãe dos seus filhos, do que no Senado.

Escolheria você um tirano mentalmente desarranjado em vez da liberdade? indagou Lúcio com amargura.

- Uma república governada pelo Senado e pelos Cônsules nao significa liberdade democrática, mas sim domínio da aristocra-

cia redargui. Saque das províncias e novas guerras civis, eis o que depreendo da história que li. Contente-se em reformar Roma Por dentro, com a cultura grega, e não diga disparates.

Lucio foi forçado a rir. _ É estranho que alguém absorva os ideais republicanos com leite materno - disse ele -  Isso me deixa exaltado. mas talvez a república não passe de uma relíquia do passado. Vou voltar a

meus livros. Assim não farei mal a ninguém, nem mesmo a mim.

— E Roma que fique com seus abutres — admiti. — Nem você nem eu podemos livrar-nos deles.

A honra mais surpreendente que me foi tributada enquanto jazia atormentado por minha inatividade e meus pensamentos sombrios foi a visita do chefe dos infantes nobres, o menino Lúcio Domício. Veio com a mãe, Agripina, despretensiosamente e sem anúncio prévio. Deixaram a cadeirinha e o séquito à frente da casa e entraram por alguns instantes apenas para exprimir condo­lência pelo meu acidente. Barbo, que durante minha enfermidade assumiu o papel de porteiro da casa, estava, como de hábito, em­briagado e dormindo. Domício deu-lhe por brincadeira um murro na testa e gritou-lhe uma ordem, ao que Barbo, estremunhando, tomou posição de sentido, ergueu a mão em continência e clamou:

— Ave, César Imperador!

Agripina perguntou-lhe por que dera ao menino o tratamen­to de Imperador. Barbo disse ter sonhado que um centurião lhe batera na testa com o bastão. Ao abrir os olhos, vira diante de si, ao sol do meio-dia, uma enorme Juno imperial e um Imperador, com resplendente armadura, inspecionando suas tropas. Só depois de lhe terem dirigido a palavra foi que a vista se lhe desanuviara e reconhecera Domício, conjeturando que Agripina era sua mãe pela beleza e estatura iguais às das deusas.

E não me enganei disse lisonjeiramente. Sois irmã do Imperador Caio e o Imperador Cláudio é vosso tio. Pelo lado de Júlio César, descendeis de Vênus e, pelo lado de Marco Antô­nio, de Hércules. Assim, não é de todo estranho que saúde vosso filho com o mais alto símbolo de honra.

Tia Lélia ficou totalmente atarantada diante de visitantes tão ilustres e com a peruca enviesada correu a esticar meus len­çóis, dizendo, em tom de recriminação, que Agripina devia ter nos informado de antemão, para que se preparasse a casa.

Sabes muito bem, querida Lélia disse tristemente Agripina que é mais seguro para mim evitar visitas oficiais, desde a morte de minha irmã. Mas meu filho tinha de visitar seu herói Minuto Lauso. Por isso viemos inesperadamente, só para fazer votos por seu pronto restabelecimento.

Esse garoto ativo, simpático e, apesar do cabelo vermelho, bo­nito, acercou-se tímido, beijou-me e depois recuou admirado en­quanto me fitava o rosto:

Oh, Minuto! Na verdade você mereceu o nome de Magno mais do que qualquer outro. Se você soubesse como admirei sua espantosa coragem! Nenhum espectador adivinhou que você havia quebrado a perna, quando continuou na sela até o fim.

Domício tirou um rolo de pergaminho das mãos da mãe e entregou-mo. Agripina voltou-se para tia Lélia, com um ar de quem pede desculpas.

É um livro sobre a firmeza de ânimo — explicou — que amigo Sêneca escreveu, na Córsega. É útil a um jovem que meu amigo Sêneca escreveu na Córsega. É útil a um jovem que está sofrendo as conseqüências de sua própria temeridade. Se, ao

mesmo tempo, ele quiser saber por que um homem tão magnânimo há de passar o resto dos seus dias sepultado vivo no exílio,

então direi que é por causa da situação atual de Roma e não por

minha causa.

Tia Lélia não tinha paciência de escutar. Estava muito em­penhada em oferecer refrescos. Seria uma vergonha que tão dis­tintos visitantes saíssem sem provar de coisa alguma.

Agripina protestou, mas finalmente disse:

_ Em tua casa nos contentaríamos em provar um pouco

daquela refrescante limonada que teu bravo inválido tem no jarro ao pé da cama. Meu filho pode comer um desses pãezinhos doces.

Tia Lélia encarou-a de olhos esbugalhados:

— Caríssima Agripina — gritou aterrorizada — as coisas já chegaram a esse ponto?

Agripina tinha então trinta e quatro anos. Era uma mulher escultural, de feições aristocráticas, ainda que inexpressivas, e olhos grandes e brilhantes. Foi com horror que vi aqueles claros olhos se encherem de lágrimas. Baixou a cabeça e chorou em silêncio.

— Conjeturaste corretamente, Lélia — disse por fim. — É mais seguro para mim ir buscar água do cano, com minhas pró­prias mãos, para meu filho, e escolher no mercado o que eu mes­ma ouso comer e dar a comer a ele. O povo o aplaudiu com demasiada sinceridade nas cerimônias do centenário. Há três dias atentaram contra sua vida, enquanto ele tirava a sesta do meio-dia. Já não confio nem nos criados. Era estranho que nenhum deles estivesse nas proximidades e que um desconhecido mal-intenciona­do penetrasse na casa sem ser visto por nenhum deles. Assim, ocor­reu-me... Talvez seja melhor não dizer nada...

Como era natural, tia Lélia ficou curiosa, o que talvez tivesse sido a intenção daquela reticência, e entrou a interrogar Agripina acerca do que tinha ocorrido.

Achei que Lúcio precisava da companhia constante — disse ela, após um instante de hesitação — de alguns jovens nobres em cuja lealdade eu pudesse confiar e que ao mesmo tempo lhe ser­vissem de exemplo. Mas não, não, isso só lhes traria infortúnios. Poderiam pôr em risco o próprio futuro.

Tia Lélia não ficou muito feliz com essa sugestão e eu não estava realmente bastante seguro de mim para me atrever a pensar que Agripina me tivesse em mente. Mas Lúcio pôs timidamente sua mão na minha e gritou:

_ Se você, Minuto, estivesse ao meu lado, eu nunca teria medo de nada nem de ninguém.      

Tia Lélia tartamudeou que poderia haver algum mal-entendi­do se Lúcio Domício começasse a reunir um séquito de nobres em torno de si.

_ Já posso andar um pouco de muletas — apressei-me a dizer. Dentro em breve minha coxa estará sarada. Talvez fique manco para o resto da vida, mas se isso não me der um ar ridículo, terei a alegria de ser companheiro de Lúcio e protegê-lo, até que êle tenha idade suficiente para cuidar de si mesmo. Isso não tardará a acontecer. Você já é bem grande para a sua idade e sabe montar e usar armas.

Para ser inteiramente franco, êle tinha mais aparência de menina que de menino, com seus movimentos graciosos e seu pen­teado esmerado. Essa impressão era reforçada mais ainda pela tez branca leitosa, que os ruivos geralmente ostentam. Mas lembrei-me de que êle tinha apenas dez anos e, no entanto, sabia dominar um cavalo e guiar um carro nos espetáculos. Um menino com essas qualidades não podia ser completamente infantil.

Conversamos mais um pouco a respeito de cavalos, poetas e cantores gregos que êle parecia admirar, mas não chegamos a ne­nhuma conclusão especial. Percebi que seria bem recebido na casa de Agripina a qualquer hora. À saída, Agripina recomendou a seu tesoureiro que desse uma moeda de ouro a Barbo.

Ela está muito só explicou depois tia Lélia. Sua ori­gem nobre a mantém afastada das outras pessoas e seus iguais não ousam ser vistos ao lado dela, com medo de incorrer no desagrade do Imperador. É triste ver uma dama tão ilustre pedindo a amizade de um moço nobre mas aleijado.

Não senti ressentimento por essas palavras, pois já pensara nisso.

Ela está realmente com medo de ser envenenada? in­quiri cautelosamente.

Tia Lélia riu com desdém:

Ela aumenta muito as coisas. Ninguém é assassinado em pleno dia numa casa habitada no centro de Roma. A história me pareceu inventada. É melhor que você não se meta nisso. É ver­dade que o Imperador Caio, o menino querido, tinha um armário cheio de venenos com os quais fazia experiências. Mas o Impe­rador Cláudio mandou destruí-lo e os envenenadores são sempre punidos com o maior rigor. Você sabe, suponho, que o marido de Agripina, Domício, pai de Lúcio, era irmão de Domícia Lépida mãe de Messalina. Aos três anos, Lúcio herdou tudo dele, mas Caio ficou com a herança toda. Agripina foi degredada e, para sobreviver, teve de aprender a pescar esponjas numa ilha distante. Lúcio ficou sob os cuidados de sua tia, Domícia. O Cabeleireiro Aniceto era seu preceptor, como ainda se pode notar pelo pen­teado do menino. Mas agora Domícia Lépida brigou com a filha Messalina e é uma das poucas pessoas que ousam aparecer aberta­mente ao lado de Agripina e festejar Lúcio. Messalina usa o nome do avô, Valério Messala, para mostrar que descende diretamente do deus Augusto. A mãe lhe tomou raiva porque ela demonstra püblicamente afeição por Caio Sílio, vai com êle para toda parte, está tão à vontade na casa dele e com seus libertos e escravos como em sua própria casa, e chegou mesmo a levar para lá o va­lioso mobiliário herdado que se encontrava no Palatino. Por outro lado, tudo isso é muito natural, pois Sílio é o homem mais atraen­te de Roma. É possível até que faça isso com inocência, já que é tão notório. Uma mocinha não pode ficar para sempre na com­panhia de um velho beberrão irascível. Cláudio, como é inevitá­vel esquece se dela em virtude de seus deveres oficiais e, nos mo­mentos de folga, prefere jogar dados a ir ao teatro. Prefere ir ao anfiteatro também, para ver os animais selvagens dilacerarem os criminosos, e isso não é espetáculo apropriado para uma jovem refinada.

Chega de Messalina agora bradei batendo com as mãos nos ouvidos. Minha cabeça está rodopiando de tanto pa­rentesco entre essas famílias.

Mas os nossos distintos visitantes haviam atiçado tia Lélia.

A coisa toda é muito simples continuou. O divino Augusto era neto da irmã do divino Júlio César. Pelo primeiro casamento de sua irmã Otávia, Messalina é filha do neto de Otávia, enquanto o Imperador Cláudio, pelo segundo matrimônio de Otá­via com Marco Antônio, é neto de Otávia. Agripina é sobrinha dele, mas ao mesmo tempo viúva do segundo neto de Otávia, Cneio Domício. Assim, Lúcio Domício é portanto preste atenção agora ao mesmo tempo neto da primeira filha e neto da segunda filha de Otávia e, de fato, irmão de Messalina.

Então o Imperador Cláudio casou, pela terceira vez, com a neta da meia-irmã de sua mãe, se não estou enganado disse  eu — Quer dizer, assim, que Messalina é de fato de origem tão nobre quanto Agripina?

Mais ou menos admitiu tia Lélia. Mas ela não tem nas veias nem uma gota do sangue depravado de Marco Antônio, de que os outros tanto padecem. Seu filho Britânico tem natural­mente um pouco dele através de Cláudio até onde. . .

Até onde...repeti inquisitivamente. _ Bem, Claúdio teve um filho ilegítimo antes - declarou tia Lélia a contragosto. _ Não é  absolutamente certo que Britânico seja de fato seu filho, quando se sabe tudo quanto se diz de Messalina por aí. Espalhou-se na época que aquele casamento foi arrumado pelo  Imperador Caio para salvar a reputação da moça. _ Tia Lélia — disse eu, solene por lealdade ao Imperador, cumpre-nos  denunciá-la por insultos como esse.

— Como se Cláudio desse crédito ao que dizem de mal de sua mulherzinha — respondeu desdenhosamente tia Lélia.

Mas, apesar de tudo, olhou cautelosamente em redor de si.

Depois perguntei a Barbo se efetivamente tivera tal sonho pro­fético ao despertar de seu sono de ébrio, e ele sustentou teimosa­mente que de fato vira o que descrevera, embora pudesse ter sido produto do vinho e da surpresa.

— O vinho faz com que a gente tenha sonhos tão estranhos no calor do verão, que às vezes apavoram.

Quando eu já havia andado de muletas por algum tempo, o médico da cavalaria recomendou-me um bom massagista que me tratou as pernas e exercitou meus músculos flácidos tão bem que não demorei a caminhar sem ajuda. Desde então venho usando um sapato de sola grossa no pé atingido, de modo que mal se nota minha claudicação.

Voltei a montar, mas logo reparei que apenas uns poucos rapazes nobres se decidiam a participar dos exercícios de equitação. A maioria não pensava na carreira militar. Para eles bastava saber que eram capazes de permanecer na sela durante a parada do ano seguinte.

Uma inquietação e um desejo de atividade se apoderaram de mim no auge do verão. Fui procurar Lúcio Domício uma ou duas vezes, mas apesar de tudo ele era um companheiro muito infantil para mim. Escrevia poemas e lia-me versos de sua tabuinha de cera, pedindo-me que os corrigisse. Esculpia surpreendentemente bem e modelava no barro animais e pessoas. Gostava de ser elo­giado mas ressentia-se facilmente de qualquer comentário crítico, se bem tratasse de ocultá-lo. Sugeriu sério que eu tomasse lições com seu professor de dança a fim de aprender a movimentar-me graciosamente com gestos agradáveis.

— A arte da dança não tem muita utilidade para quem vai aprender a manejar a espada, a lança e o escudo — disse eu.

Lúcio revelou que odiava as lutas de espada no anfiteatro, em que rudes gladiadores se feriam e se matavam uns aos outros.

Não vou ser gladiador — repliquei ofendido. — Um cava­leiro romano tem de instruir-se nas artes da guerra.

A guerra é uma atividade sangrenta e desnecessária — disse ele. — Roma levou paz ao mundo. Mas ouvi contar que um parente de meu finado pai, Cneio Domício Córbulo, está pelejan­do na Germânia, do outro lado do Reno, a fim de conquistar o direito a um triunfo. Se tem mesmo desejo de guerrear, posso escrever para ele recomendando-o para o cargo de tribuno. Mas ele é um chefe exigente e há de fazê-lo trabalhar muito, se não foi ainda removido de lá. Acho que o tio Cláudio não quer que ne­nhum parente de meu pai se torne muito célebre.

Prometi pensar no assunto, mas Barbo sabia mais a respeito Córbulo e garantiu que ele se distinguira mais como construtor de estrada na Gália do que como guerreiro nas florestas da Germânia.

É claro que li o livrinho que tinha recebido. O filósofo Séneca escrevia num estilo elegante e moderno e asseverava que o sábio podia manter a firmeza de ânimo através das provações do desti­no Mas achei-o prolixo, de vez que não fornecia exemplo mas se limitava a filosofar, de sorte que poucas de suas idéias se gra­varam em minha memória.

Meu amigo Lúcio Pólio também me emprestou uma carta de pêsames que Séneca escrevera a Políbio, liberto do Imperador. Nela Sêneca consolava Políbio da morte de seu irmão, dizendo-lhe que não precisava afligir-se enquanto tivesse a ventura de servir o Imperador.

O que divertira os leitores em Roma foi que Políbio havia sido executado por vender privilégios. Segundo Pólio, ele altercara com Messalina a respeito da divisão do dinheiro. Messalina o de­nunciara, o que não agradou de modo algum aos outros libertos do Imperador. Assim, mais uma vez o filósofo Sêneca fora infeliz. Estranhei que Cláudia não me tivesse procurado durante mi­nha enfermidade. Meu amor-próprio ficou ferido, mas o bom senso me dizia que ela me traria mais contrariedade do que alegria. Não podia esquecer suas sobrancelhas negras, seus olhos audazes, seus lábios grossos. Quando melhorei, passei a dar longos passeios a pé, para fortalecer a perna quebrada e abafar a inquietude. O morno outono romano chegara. Fazia muito calor, para usar a toga, c deixei de envergar a túnica de ourela vermelha, para hão chamar muito a atenção nos arredores da cidade.

Andei até o outro lado do rio para evitar o fedor do centro da cidade, passei pelo anfiteatro do Imperador Caio, para onde ele fizera transportar um obelisco do Egito, mediante gastos ex­traordinários, e subi o morro do Vaticano. Havia ali um antigo templo oracular etrusco de paredes de madeira que o Imperador Cláudio mandara proteger com um telheiro. O velho adivinho le­vantou o bastão para atrair minha atenção, mas não se deu ao tra­balho de me chamar. Desci a outra encosta da colina, fora da ci­dade, que dava vista para os jardins do mercado. Dali divisavam-se diversas granjas de aparência próspera. Delas e de outras mais dis­tantes partia todas as noites uma interminável torrente de carroças que, aos solavancos e matracolejando, iam vender legumes aos co­merciantes do mercado, antes do alvorecer, quando tinham todas de estar de volta.

Não tive vontade de perguntar por Cláudia aos escravos quei­mados de sol que labutavam nos campos, mas segui meu caminho.

Deixei que os pés me levassem aonde quisessem ir, mas Cláudia dissera alguma coisa a respeito de uma fonte e velhas árvores.

Assim, olhei em redor e meus pensamentos me conduziram pelo caminho certo, fazendo-me enveredar pelo leito seco de um riacho.

Debaixo de árvores antigas erguia-se uma cabana, perto de uma grande fazenda. Na horta ao lado estava Cláudia encurvada, as mãos e os pés pretos de terra, vestindo apenas uma camisa grosseira e um largo e pontudo chapéu de palha que a abrigav-do sol. A princípio quase não a reconheci. Embora se tivessempassado vários meses desde que nos víramos pela última vez, eu a identifiquei pelo movimento das mãos e o modo de curvar-se.

Salve, Cláudia! gritei. Eu estava possuído por uma ale­gria exultante, ao agachar-me no chão, para olhar o seu rosto por baixo da aba do chapéu de palha.

Cláudia estremeceu e fitou-me espantada, arregalando os olhos, o rosto escarlate. De repente atirou-me na cara um molho de enlameados talos de ervilha, ergueu-se e correu para trás da choupana. Fiquei estupefato com a recepção e praguejei baixinho, enquanto ia tirando a areia dos olhos.

Seguia-a vacilante e vi que ela estava lavando o rosto. Soltou um grito irado e me mandou esperar do outrolado da choupana. Só depois de ter penteado o cabelo e vesti, roupas limpas foi que tornou a aparecer.

Um homem bem educado avisa quando vai chegar voci­ferou com raiva. Mas como exigir boas maneiras do filho de um agiota sírio? Que quer?

Ela me insultara. Ruborizado, fiz meia volta e fui andando sem uma palavra. Depois que eu havia dado alguns passos, ela se aproximou e me pegou pelo braço:

É você assim tão suscetível, Minuto? Não vá embora. Per­doe os meus rompantes. Fiquei com raiva porque você me pegou de surpresa, feia e suja de terra.

Levou-me para o interior de sua humilde cabaninha que chei­rava a fumaça, ervas aromáticas e roupa limpa.

- Está vendo? Também sei fiar e tecer, como as romanas de outrora. Não se esqueça de que nos tempos idos até mesmo o mais altivo Cláudio guiava bois que puxavam o arado.

Tentava desse modo justificar sua pobreza.

Prefiro você assim, Cláudia respondi polido com seu rosto ainda úmido da água da fonte, a todas as mulheres pin­tadas e vestidas de seda da cidade.

É claro admitiu Cláudia honestamente que eu pre-

feria ter a pele branca como leite e o rosto maravilhosamente pintado o cabelo caindo em cachos encantadores pela testa, roupas mais mostram do que escondem e todo o corpo recendendo perfumes do Oriente. Mas a mulher de meu tio, tia Paulina Pláucia, que me permite viver aqui, desde que minha mãe mor­reu não aprova essas coisas. Ela está sempre de luto, prefere calar a falar, e se mantém sempre afastada de seus iguais. Tem muito dinheiro mas gasta sua renda em caridade e até mesmo com fins mais duvidosos, em vez de permitir que eu compre rouge e som­bra para os olhos.

Não pude deixar de rir, pois o rosto de Cláudia era tão fresco, limpo e saudável, que ela realmente não precisava de cosméticos. Quis pegar-lhe a mão, mas ela encolheu-a e disse que suas mãos se tinham tornado tão ásperas quanto as de uma escrava durante o verão. Perguntei se não ouvira falar do meu acidente, ela res­pondeu de modo evasivo.

— Tia Lélia não me deixaria entrar pára vê-lo — disse. — De mais a mais, tornei-me humilde e estou convencida de que por me conhecer não lhe advirão senão males. E eu só lhe desejo o bem, Minuto.

Retruquei rudemente que só a mim cabia tomar decisões sobre minha vida e escolher meus amigos.

— E de qualquer modo, em breve você estará livre de mim — comentei. — Prometeram-me uma carta de recomendação para ir guerrear contra os germanos, nas hostes do famoso Córbulo. Minha perna está melhor e só um nadinha mais curta do que a outra.

Cláudia deu-se pressa em dizer que nem sequer notara que eu claudicava. Em seguida ficou um instante pensativa:

— Na verdade, você estará mais seguro no campo de batalha, do que em Roma, onde alguma desconhecida poderá roubá-lo de mim a qualquer momento. Eu sofreria menos se você, por alguma ambição tola, perdesse a vida na guerra, do que se  apaixonasse por outra. Mas por que é preciso que vá combater os germanos? Eles são horrivelmente grandes e guerreiros poderosos. Se eu pedir com bons modos a tia Paulina, ela certamente lhe dará uma carta de recomendação para meu tio, Aulo Pláucio, na Bretanha. Êle lá comanda quatro legiões e tem tido muito sucesso. É evidente que os bretões são adversários muito mais fracos do que os germanos, uma vez que tio Aulo não é nenhum gênio militar. Até mesmo Cláudio conseguiu triunfar na Bretanha. Por aí se vê que os bretões não são opositores muito temíveis.

Não sabia disso e pedi mais esclarecimentos. Cláudia explicou que sua mãe era uma Pláucia. Quando a mulher de Aulo Pláucio, Paulina, tomou sob sua proteção a sobrinha órfã do marido, Aulo

de bom grado acolheu Cláudia como membro de sua família, prin­cipalmente porque os dois não tinham filhos.

— Tio Aulo não gostava de minha mãe, Urgulanila — contou Cláudia — mas de qualquer modo mamãe também era uma Pláucia e meu tio ficou muito ofendido quando Cláudio, por mo­tivos indefensáveis, se divorciou de minha mãe e mandou que me pusessem nua à porta da casa dela. Tio Aulo estava pronto a ado­tar-me, mas sou muito orgulhosa para isso. Legalmente, sou e con­tinuarei sendo filha do Imperador Cláudio, por mais repulsivos que sejam seus hábitos.

Para mim, sua ascendência era um assunto desinteressante, mas a idéia da guerra na Bretanha me empolgava.

— Seu legítimo pai, Cláudio, não domou de modo algum os bretões, embora comemorasse isso como um triunfo — disse eu. — Pelo contrário, a guerra continua. Conta-se que seu tio Aulo já pode alardear a eliminação de mais de cinco mil inimigos nesses vários anos de luta e que assim também fez jus a um triunfo. São indivíduos obstinados e traiçoeiros. Mal se celebra a paz numa parte do país, recomeçam as hostilidades em outra. Vamos ver sua tia Paulina sem demora.

— Você está com muita pressa de obter honras militares — disse Cláudia provocadora. — Mas tia Paulina me proibiu de ir sozinha à cidade e cuspir nas estátuas imperiais. Por isso, é um prazer ir com você. Faz várias semanas que não a vejo.

Voltamos juntos para a cidade e apressei-me a ir para casa, a fim de botar uma roupa mais apresentável. Cláudia não quis en­trar, com receio de tia Lélia, mas esperou ao portão, conversando com Barbo. Quando rumamos para a casa de Pláucia, no monte Célio, os olhos de Cláudia faiscavam de cólera.

— Então — explodiu — você fez amizade com Agripina e seu maldito filho, não é mesmo? Aquela velha bruxa sem-vergo­nha é perigosa. Ainda bem que ela tem idade de ser sua mãe.

Surpreso, declarei que embora fosse indubitavelmente bonita, Agripina tinha modos reservados, e seu filho era novo e infantil demais para mim.

— Conheço demais todos esses depravados Cláudios — re­trucou Cláudia. — Agripina vai para a cama com qualquer um, contanto que ache que pode tirar algum proveito. O tesoureiro do Imperador, Palas, foi seu amante muito tempo. Ela anda procuran­do um novo marido, mas debalde. Os homens que são bastante nobres evitam envolver-se nas intrigas dela, mas um rapaz inex­periente como você seria facilmente seduzido por qualquer ma­trona viúva e imoral de Roma.

Discutindo, atravessamos a cidade, mas realmente Cláudia ficou satisfeita quando eu lhe disse que ninguém me seduzira até

aquele momento e que não esquecera a promessa que lhe tinha feito a caminho de casa, quando voltávamos do templo da Lua, no dia em que recebera a toga viril.

No pátio da casa de Pláucia- havia uma comprida fileira de bustos de antepassados, máscaras funerárias e lembranças de ba­talhas. Paulina Pláucia era uma mulher idosa, de olhos grandes que pareciam varar-me enquanto me fitavam. Parecia que estivera chorando. Ao ouvir meu nome e tomar conhecimento do meu pro­pósito, mostrou-se surpresa e roçou-me o rosto com a mão fina.

— É estranho — disse ela. — Como um sinal inacreditável do único Deus. Talvez você não saiba, Minuto Maniliano, que seu pai e eu nos tornamos amigos e trocamos um santo beijo quando partimos o pão e bebemos o vinho, juntos, no ágape. Mas aconteceu algo terrível. Túlia mantém espiões que seguem seu pai. Quando recolheu provas suficientes, denunciou-me como partici­pante de vergonhosos mistérios orientais.

Percebi logo de onde Cláudia obtivera seus conhecimentos das heresias dos judeus.

— Por todos os deuses de Roma — exclamei horrorizado — meu pai tornou a se envolver nas conspirações dos cristãos? Pensei que tivesse perdido essas manias em Antioquia.

A velha encarou-me com olhos singularmente brilhantes.

— Minuto, não é uma mania, mas o único caminho para a verdade e a vida eterna. Não temo acreditar que o Jesus, judeu e nazareno, foi e é o filho de Deus. Êle apareceu a seu pai na Galileia e seu pai sabe mais a respeito dele que qualquer dos nossos cidadãos. Acha ele que seu casamento com a dominadora Túlia é o castigo com que Deus lhe pune os pecados. Por isso renunciou a seu orgulho antigo e recebeu o santo batismo cristão, como eu recebi. Nenhum de nós tem vergonha disso, ainda que não haja muita gente nobre ou rica entre os cristãos.

Essa notícia espantosa me deixou sem fala. Cláudia notou mi­nha expressão e disse:

Não me batizei nessa religião, mas do outro lado do Tibre, na parte judaica da cidade, ouvi os seus ensinamentos. Seus mis­térios e refeições sagradas os absolvem de todos os pecados.

Arruaceiros — disse eu colérico — eternos desordeiros, agitadores e demagogos. Eu os vi em Antioquia. Os verdadeiros judeus têm mais ódio a eles do que à peste. — Não é preciso ser judeu para acreditar que Jesus de Na­zaré é o filho de Deus — disse Paulina.

Eu não estava disposto a discutir teologia. Com efeito, encolerizava-me só em imaginar que meu pai se rebaixara ao ponto de tornar-se sequaz dos execráveis cristãos.

— Meu pai devia estar bêbado de novo e cheio de piedade — declarei ríspido. — Só assim ele encontra um pretexto para escapar ao reino de terror de Túlia. Mas podia, pelo menos, ter falado de seus problemas ao seu próprio filho.

A mulher dos olhos grandes balançou a cabeça ao ouvir-me falar desrespeitosamente de meu pai:

—Pouco antes da chegada de vocês, soube que o Imperador, para salvar a reputação de meu marido, não aprovará um julga­mento público resultante da denúncia. Aulo Pláucio e eu nos casa­mos segundo o rito mais antigo. Assim, o Imperador vai permitir que eu seja julgada, por meu marido, perante o tribunal familiar, logo que Aulo retorne da Bretanha. Quando você chegou, eu es­tava imaginando como iria enviar uma mensagem a meu marido, antes que ele viesse a saber de qualquer acusação exagerada e tivesse um abalo por minha causa. Minha consciência está limpa, pois não fiz nada de vergonhoso ou iníquo. Iria você imediata­mente para a Bretanha, Minuto, e levaria uma carta para meu marido?

Não tinha o menor desejo de levar essa notícia melancólica a um soldado famoso. Tudo o que me vinha à cabeça era que este não era o meio de conquistar a sua simpatia. Mas os olhos mansos da velha me enfeitiçaram. Pensei que talvez lhe devesse alguma coisa, já que ela se metera em dificuldades por causa de meu pai. De outro modo, Aulo Pláucio poderia simplesmente mandar ma­tá-la, de acordo com o rito matrimonial e as normas familiares mais antigas.

— Este parece ser o meu destino — respondi. — Estou dis­posto a partir amanhã, se prometer que em sua carta não me en­volverá nas suas superstições.

Ela prometeu e logo começou a escrever a carta. Então me lembrei que, se levasse minha própria égua, Armínia, a viagem seria das mais demoradas, pois ela precisaria repousar de vez em quando. Assim, Paulina prometeu arranjar-me um distintivo de mensageiro de primeira classe que me dava direito a usar os próprios cavalos de posta e carros do Imperador, à maneira de um senador em trânsito. Paulina era, de resto, a esposa do Coman­dante Supremo na Bretanha. Mas em troca pediu-me um favor a mais.

— Na encosta do Aventino — disse ela — mora um fabri­cante de tendas chamado Áquila. procurá- lo quando escurecer e diga a ele, ou à sua mulher Prisca, que fui denunciada. Eles então saberão proteger-se. Mas se algum estranho lhe fizer per­guntas, você diz que eu mandei encomendar tendas para meu marido na Bretanha. Não me atrevo a mandar os criados, uma vez que minha casa está sendo observada em virtude da denúncia.

Praguejei intimamente por me deixar arrastar deste modo as odiosas maquinações dos cristãos, mas Paulina me abençoou em nome de Jesus de Nazaré, tocando-me suavemente, com as pontas dos dedos, a testa e o peito, de modo que nada pude dizer Prometi agir como ela me pedia e voltar no dia seguinte, pronto para a viagem.

Quando saímos da casa de Paulina, Cláudia suspirou, mas eu estava empolgado com essa decisão repentina e com a idéia da longa viagem que solucionaria todos os meus problemas. Apesar da hesitação de Cláudia, quis que ela entrasse em nossa casa, para que eu pudesse apresentá-la a tia Lélia, como minha amiga. — Agora que meu pai se converteu num cristão abominável _             disse eu — você não tem de que se envergonhar em nossa casa.

Você é de jure a filha do Imperador e de origem nobre.

Tia Lélia comportou-se à altura da situação. Depois de se refazer da surpresa, tomou Cláudia nos braços e olhou-a demo­radamente:

Você está uma moça vigorosa e saudável. Via-a muitas vezes quando menina e lembro-me muito bem que o querido Im­perador Caio sempre a chamava de prima. Seu pai comportou-se vergonhosamente com você, mas como vai Paulina Pláucia? Você realmente tosquia ovelhas, com as suas próprias mãos, na granja de sua tia, fora dos muros, como me contaram?

Fiquem aí conversando — sugeri. — Sei que as mulheres sempre têm de que falar. Preciso ir ver meu advogado e meu pai, porque amanhã cedo parto para a Bretanha.

Tia Lélia rompeu em pranto e disse, entre gemidos, que a Bretanha era uma ilha úmida e enevoada, onde o clima terrível arruinava permanentemente a saúde daqueles que sobreviviam à luta contra os bretões pintados de azul. Ao tempo do triunfo do Imperador Caio, ela fora ao anfiteatro e vira os bretões lutando cruelmente entre si, na arena. No campo de Marte eles haviam construído, pilhado e destruído toda uma cidadezinha bretã, mas na Bretanha mesma era de presumir que houvesse pouca possibi­lidade de saque, se a cidadezinha armada nas comemorações da vitoria se assemelhara às cidades natais dos próprios bretões.

Deixei Cláudia a consolá-la, fui ao meu advogado, em busca de dinheiro, e depois à casa de Túlia, à procura de meu pai. Túlia me recebeu constrangida.

Teu pai — disse ela — está encerrado no quarto, em seu habitual estado de melancolia e não quer ver ninguém. Não fala comigo há vários dias. Dá ordens aos criados por meio de acenos de cabeça e gestos. Vê se o fazes falar, antes que emudeça de uma vez.

Consolei Túlia, dizendo-lhe que meu pai tivera desses acessos em Antioquia. Quando soube que eu ia para a Bretanha combater no exército, aprovou com a cabeça:

Boa idéia. Espero que lá honres o teu pai. Em vão tentei interessá-lo nos negócios da cidade. Quando moço estudou leis, embora, como é natural, já tenha esquecido tudo agora. Teu pai é demasiadamente indolente e sem iniciativa para conquistar uma posição digna dele.

Fui ver meu pai. Encontrei-o sentado Com a cabeça nas mãos. Bebia vinho em seu amado copo de madeira e fitou-me com os olhos injetados. Fechei cuidadosamente a porta atrás de mim.

—- Trago saudações de sua amiga Paulina Pláucia disse eu. Por causa de seu santo beijo, ela está em dificuldade e foi denunciada pela prática de superstição. Estou de partida para a Bretanha, com uma mensagem sobre o assunto, para seu marido. Vim vê-lo para que me deseje êxito nesta viagem. Na Bretanha é provável que me aliste no exército, para concluir lá meu ser­viço militar.

Nunca desejei que você fosse soldado gaguejou meu pai mas talvez até mesmo isso seja preferível a viver aqui nesta Babilônia de prostitutas. Sei que minha mulher Túlia trouxe infe­licidade a Paulina, com seu ciúme, mas eu é que deveria ter sido denunciado. Fui batizado no banho lustral deles, puseram as mãos sobre a minha cabeça, mas o espírito não me penetrou. Não tor­narei a falar com Túlia.

Pai, o que é precisamente que Túlia deseja de você?

Que me torne senador. Isso é o que aquela mulher mons­truosa meteu na cabeça. Possuo terra bastante na Itália e sou de origem suficientemente nobre para ser membro do Senado. E Tú­lia, por concessão especial, obteve os direitos de uma mãe de três filhos, apesar de nunca ter-se dado ao trabalho de ter um só. Eu a amei quando moço. Ela me seguiu até Alexandria e nunca me perdoou por ter eu-escolhido tua mãe, Mirina. Agora fala comigo

como se fala a um boi, insulta-me por não ser ambicioso e em breve me transformará num bêbado contumaz se eu não fizer o que ela quer e não me tornar um senador. Mas Minuto, meu filho, nas minhas veias não corre sangue de lobo, muito embora, ver­dade seja dita, muitos homens piores do que eu tenham ocupado com suas botas vermelhas os bancos de marfim. Perdoe-me, meu filho. Você vê agora por quê, em tais circunstâncias, eu não podia fazer outra coisa senão declarar-me cristão.

Ao contemplar o rosto inchado e os olhos inquietos de meu pai, fui tomado de grande compaixão. Percebi que êle precisava encontrar alguma coisa digna de sua vida para poder continuar ao lado de Túlia. Todavia, até mesmo o Senado seria melhor, para sua saúde espiritual, do que a participação nas reuniões secretas dos cristãos.        _

Como se tivesse adivinhado meus pensamentos, meu pai me fitou, apontando para o cálice de madeira, e disse: __ Devo suspender a minha participação nos ágapes, já que minha presença prejudica os cristãos, como já prejudicou a Pau­lina Túlia, em sua humilhação, jurou fazer com que sejam bani­dos de Roma se eu não me desligar deles. Tudo isso por causa de alguns beijos inocentes que são usuais após os ágapes.

_ Vá para a Bretanha — continuou, entregando-me seu ado- rado cálice de madeira. — É chegado o instante de você receber a única herança que lhe vem de sua mãe, antes que Túlia com raiva o queime. Jesus de Nazaré, o rei dos judeus, uma vez bebeu neste cálice, há quase dezoito anos, após ter saído do túmulo e ido à Galileia, com as cicatrizes dos pregos nas mãos e nos pés, e as feridas dos açoites nas costas. Não o perca. Talvez sua mãe esteja um pouco mais perto de você, quando você o levar à boca. Não tenho sido o pai que desejei ser.

Peguei o copo de madeira que os libertos de meu pai, em Antioquia, diziam ser abençoado pela Deusa da Fortuna. Achei que ele não havia protegido meu pai contra Túlia, caso não se considerasse esta bela casa, todas as comodidades da vida e talvez a honra de ser senador como o maior êxito possível na face da terra. Mas senti um secreto respeito quando tomei o cálice de madeira nas mãos.

Faça-me mais um favor — disse meu pai delicadamente.

Na encosta do Aventino mora um fabricante de tendas...

.. .chamado Áquila — disse eu, irônico. — De acordo. Vou levando um recado de Paulina para ele. Posso dizer, na mes­ma ocasião, que você também está se desligando deles.

Minha amargura se dissolveu e desapareceu quando meu pai me deu como recordação seu idolatrado copo. Abracei-o e encostei o rosto em sua túnica para esconder as lágrimas. Êle me apertou com força e nos separamos, sem tornar a olhar um para o outro.

Túlia me esperava na cadeira de espaldar alto da dona da casa.

Toma cuidado na Bretanha, Minuto — recomendou ela.

Será importante para teu pai ter um filho a serviço do Estado e do bem comum. Pouco sei da vida militar, mas entendo que um jovem oficial é promovido mais prontamente por ser generoso com seu vinho e jogar dados com os subalternos, do que por empreen­der expedições desnecessárias e perigosas. Não sejas avaro do teu dinheiro, mas contrai dívidas, se isso fôr necessário. Teu pai pode arcar com elas. Então serás considerado normal sob todos os aspectos.

A caminho de casa, entrei no templo de Castor e Pólux, para informar ao Curador da cavalaria da minha viagem à Bretanha.

Em casa, tia Lélia e Cláudia se tinham tornado amigas de verdade e haviam escolhido para mim o melhor tipo de roupas de lã, como proteção contra o clima frio da Bretanha. Haviam reunido outras coisas também, tantas que eu precisaria pelo menos de uma car­roça para levá-las. Mas eu não ia sequer levar minha armadura, exceto a espada, já que achei mais prudente aparelhar-me no local, de acordo com o que o país e as circunstâncias exigissem. Barbo me contara como tinham o hábito de zombar dos mimados rapazes romanos que se apresentavam para o serviço ativo com objetos desnecessários.

Naquela noite quente e úmida de outono, debaixo do inquieto céu vermelho, fui ver Áquila, o fabricante de tendas. Era eviden­temente um homem muito rico, pois era dono de uma grande tecelagem. Recebeu-me à porta, desconfiado, e olhou em volta, receoso de espiões. Aparentava uns quarenta anos e não parecia judeu. Não usava barba nem borlas no manto, de modo que o tomei por um dos libertos de Áquila. Cláudia, que me acompa­nhava, cumprimentou-o como se fossem velhos amigos. Ao ouvir meu nome e as saudações de meu pai, dissipou-se-lhe o temor, embora a inquietação nos olhos fosse a mesma que eu vira nos de meu pai. Tinha linhas verticais na testa, como um adivinho.

Convidou-nos a entrar, e sua esposa Prisca, atarantada, co­meçou imediatamente a oferecer-nos frutas e vinho diluído. Prisca era judia, pelo menos de origem, a julgar por seu nariz, uma mu­lher decidida e loquaz, que fora provavelmente muito bonita na juventude. Ambos se perturbaram, ao saber que Paulina fora de­nunciada e que meu pai achava melhor retirar-se da sociedade secreta deles para não prejudicá-los.

Temos inimigos e pessoas que nos invejam — disseram. — Os judeus perseguem-nos, enxotam-nos das sinagogas e nos ata­cam nas ruas. Um mágico influente, Simão da Samaria, odeia-nos rancorosamente. Mas contamos com a proteção do espírito que põe palavras em nossa boca e por isso não precisamos temer ne­nhum poder terreno.

Mas você não é judeu — disse eu a Áquila. Êle riu.

Sou judeu e circunciso, nascido em Trapezo, no Ponto, na margem sudeste do Mar Negro, mas minha mãe era grega e meu pai foi batizado quando comemorava a festa de Pentecostes em Jerusalém. Havia muita disputa, no Ponto, quando algumas pessoas queriam oferecer sacrifícios ao Imperador, do lado de fora da sinagoga. Mudei-me para Roma e moro aqui nesta banda pobre do Aventino, como muitos judeus que já não crêem que seguir a lei de Moisés os absolva dos pecados.

Os judeus do outro lado do rio são os que mais nos odeiam


explicou Prisca — porque os gentios que os ouvem preferem escolher o nosso caminho e o consideram mais acessível. Não sei se o nosso caminho é mais acessível. Mas temos piedade e o co­nhecimento do mistério.

Não eram desagradáveis nem tinham a habitual altivez dos judeus. Cláudia admitiu que ela e sua tia Paulina lhes escutavam os ensinamentos. Para ela, não tinham nada a ocultar. Qualquer um podia ir ouvi-los e alguns se quedavam em êxtase. Só os ágapes eram proibidos aos estranhos, mas isso também ocorria com os mistérios sírios e egípcios que se realizavam em Roma.

Não cessavam de repetir que todos, escravos ou livres, ricos ou pobres, sábios ou ignorantes, eram iguais aos olhos de seu Deus, e todos eram irmãos e irmãs. Não acreditei totalmente nisso, já que eles se tinham mostrado tão desanimados quando souberam que meu pai e Paulina Pláucia os tinham abandonado. Cláudia na­turalmente garantiu-lhes que Paulina não o fizera no íntimo, mas só exteriormente, para proteger o bom nome do marido.

Na manhã seguinte, recebi um cavalo para a viagem e um distintivo de mensageiro para usar no peito. Paulina entregou-me a carta para Aulo Pláucio e Cláudia chorou. Cavalguei ao longo das estradas militares, através da Itália e da Gália.

 

Bretanha

Cheguei à bretanha quando o inverno entrava com suas tempestades, cerrações e chuva gelada. Como sabem todos os que visitam a Bretanha, a região é opressiva para qualquer pessoa. Não há nem mesmo cidades como as que vemos na Gália. Quem não morre de pneumonia, na Bretanha, contrai reumatismo para a vida inteira, quando não é Capturado pelos bretões e decapitado nos freixais, ou levado a seus sacerdotes, os druidas, que predizem o futuro da tribo pelo exame dos intestinos dos romanos. Os le­gionários, que têm trinta anos de experiência, contaram-me tudo isso.

Encontrei Aulo Pláucio no posto comercial de Londres, loca­lizado nas proximidades de um rio veloz, e onde êle mantinha seu quartel-general, uma vez que ali havia pelo menos algumas casas romanas. Não se encolerizou, como eu receara, ao ler a carta da mulher, mas desatou a rir, dando palmadas nos joelhos. Uma ou duas semanas antes, recebera correspondência confidencial do Imperador, ratificando-lhe o triunfo. Estava pondo em ordem seus negócios na Bretanha, a fim de deixar o comando e regressar a Roma na primavera.

Quer dizer então que devo convocar um conselho de fa­mília para julgar minha querida mulherzinha, não é isso? Terei muita sorte se Paulina não me arrancar da cabeça os poucos ca­belos que me restam, quando me interrogar sobre o tipo de vida que levo na Bretanha. Já tive questões religiosas em demasia aqui, tanto por derrubar as matas sagradas dos druidas, como por fi­nanciar todo um navio carregado de ídolos, para ver se os nativos põem termo a seus revoltantes sacrifícios humanos. No entanto não tardou quebrassem as estátuas de barro e reiniciassem a rebelião. A superstição em nossa pátria é bem mais inocente que aqui. Essa acusação é apenas uma intriga dos meus colegas do Senado, que temem que eu tenha enriquecido demais, após passar quatro anos no Comando de quatro legiões. Como se fosse possível enriquecei neste país. Na verdade, o dinheiro de Roma desaparece como se caísse num poço sem fundo, e Cláudio foi obrigado a me permitir comemorar um triunfo, para que Roma pense que aqui está tudo.

 Ninguém jamais pacificará este país, porque ele vive em tumulto permanente. Se  derrota um de seus reis, numa batalha honrada logo aparece outro, que não respeita reféns nem tratados. Ouentão surge uma tribo vizinha e se apodera da terra que con­stamos e chacina os soldados da nossa guarnição. Não podemos desarmá-los completamente, pois precisam de suas armas para se defenderem uns dos outros. Eu me daria por feliz de voltar sem nenhum triunfo, só para me ver longe dessa terra amaldiçoada. Assumiu um ar grave e me fitou severo:

_ já se espalhara em Roma o boato de um triunfo quando saiu de lá? — perguntou. — Como se explica que um cavaleiro jovem como você se tenha oferecido voluntariamente para vir para cá? Suponho que espera participar do triunfo com o mínimo de esforço.

Indignado, expliquei que não ouvira falar de triunfo nenhum. Pelo contrário, dizia-se em Roma que Cláudio, só por inveja, não permitiria tal comemoração por serviços prestados na Bretanha, uma vez que ele próprio celebrara um triunfo por haver subjugado os bretões.

Venho estudar a arte da guerra sob os auspícios de um famoso comandante — disse eu. — Andava farto dos exercícios de equitação em Roma.

Aqui não há cavalos lustrosos nem escudos de prata — disse ele com sequidão. — Nem banhos quentes nem massagistas habilidosos. Aqui não há mais do que gritos de guerra de bárbaros pintados de azul, nas matas, medo diário de emboscadas, frio eter­namente presente, tosse incurável e nostalgia permanente.

E não exagerava, como vim a descobrir nos dois anos que passei na Bretanha. Manteve-me em seu estado-maior, durante alguns dias, para certificar-se de minha ascendência, ouvir os últi­mos mexericos de Roma e, com o auxílio de um mapa em relevo, ensinar-me a forma da Bretanha e as posições dos acampamentos legionários. Também me deu roupas de couro, um cavalo, armas e alguns conselhos amigáveis.

— Não perca seu cavalo de vista ou os bretões o roubarão recomendou. — Combatem em carros, de modo que seus ca­valos são pequenos e não prestam para montar. Como a guerra e a política romanas aqui se baseiam em nossos tratados com as tribos britânicas, também temos vários corpos auxiliares que em­pregam esses carros. Mas nunca confie num bretão, nem dê as costas a nenhum. Os bretões gostariam de possuir os nossos pos­santes cavalos de batalha para organizar sua cavalaria. A vitória de Cláudio aqui foi devida a seus elefantes, que os bretões nunca tinham visto antes. Os elefantes quebraram-lhes as barricadas de

madeira e amedrontaram-lhes os cavalos. Mas os bretões logo aprenderam a visar com suas lanças os olhos dos elefantes e a chamuscá-los com archotes acesos. E os elefantes também não po­diam suportar o clima. O último morreu de pneumonia, há coisa de um ano. Quanto a você, vou enviá-lo para a legião de Flávio Vespasiano, que é o meu soldado mais experiente e meu mais fiel comandante. É obtuso, mas nunca perde a cabeça. Sua família é humilde e seus hábitos, rudes, mas é um homem honesto que por isso provavelmente nunca atingirá maiores alturas do que a de co­mandante de legião. Mas com êle você aprenderá a arte da guerra, se é isto que está pretendendo.

Encontrei Flávio Vespasiano na várzea do caudaloso rio An­ton, onde havia distribuído sua legião, numa vasta área, e mandara construir fortificações de madeira, distanciadas umas das outras. Era um homem de cerca de quarenta anos, robusto, fronte larga e rugas afáveis em volta da boca severa. E não era tão insigni­ficante como levaria a crer a descrição desdenhosa de Aulo Pláucio. Gostava de rir sem reservas e pilheriar a respeito dos próprios reveses, os quais teriam feito desesperar um homem mais fraco. Sua simples presença me transmitiu uma sensação de segurança. Olhou-me maliciosamente:

Estará a fortuna vindo ao nosso encontro, agora que um jovem cavaleiro de Roma vem espontaneamente internar-se nas flo­restas úmidas e escuras da Bretanha? Não, não, não é possível. Trate de confessar logo o que fêz e de que travessuras infantis fugiu, para colocar-se sob a proteção da Águia de minha legião. Confesse e nos entenderemos melhor depois.

Ao findar o minucioso interrogatório acerca de minha famí­lia e meus amigos de Roma, concluiu que eu não era motivo de orgulho nem de desdouro. Bondoso como era, resolveu que eu devia ir me habituando pouco a pouco à sordidez, à crueza e às pro­vações da vida militar. Começou por levar-me consigo numa de suas viagens de inspeção, com o fito de me familiarizar com o país. Ditava-me seus relatórios a Aulo Pláucio, já que êle mesmo era preguiçoso para escrever. Quando se certificou de que eu real­mente sabia montar e não tropeçava na espada, confiou-me ao engenheiro da legião, para que eu aprendesse a construir forti­ficações .

Nossa guarnição isolada não chegava sequer a formar um completo manipulo. Alguns de nós iam à caça, outros derrubavam árvores nas matas e um terceiro contingente Construía fortifica­ções. Antes de partir, Vespasiano exortou-me a exigir que os ho­mens conservassem limpas as armas e os guardas se mantivessem a postos e não ociosos, pois a negligência com as armas era a mãe de todos os vícios e enfraquecia a disciplina.

Ao cabo de alguns dias fartei-me de perambular pelo acampamento escutando as chacotas descaradas dos velhos legionários. Apanhei um machado e fui derrubar árvores na floresta. Na hora de bater estacas, eu também, com areia nos olhos, segurava a corda e cantava com os outros. À noite, oferecia vinho ao centurião e ao engenheiro, vinho comprado a preço extorsivo ao mercador do acampamento, mas com freqüência juntava-me aos velhos suboficiais em volta da fogueira, e partilhava do mingau e da carne sal­gada. Tornei-me mais forte, mais vulgar, mais rude e aprendi a dizer palavrões, já não me preocupando quando me perguntavam quanto tempo fazia que deixara de mamar.

Havia cerca de uma vintena de cavalarianos gauleses adidos à nossa guarnição. Quando o oficial que os comandava percebeu que eu não lhe disputava o posto, resolveu que soara para mim a hora de matar meu primeiro bretão e me incluiu numa incursão em busca de provisões.

Após cruzarmos o rio, cavalgamos bom pedaço até alcançar­mos uma aldeia cujos habitantes se queixaram de que uma tribo vizinha os estava ameaçando. Haviam escondido as armas, mas os veteranos, que nos seguiam a pé, estavam acostumados a desco­brir armas sob os pisos de terra das cabanas redondas e nos montes de estrume fora das habitações.

Encontradas as armas, despojaram a aldeia de todo o trigo e de boa parte do gado e mataram impiedosamente os homens que tentaram defender seus bens; a justificação era que os bre­tões não prestavam sequer para escravos. Como se fosse coisa banal, violentaram entre gargalhadas despreocupadas as mulheres que não tinham tido tempo de fugir para as matas.

Essa destruição despropositada me deixou aterrorizado, mas o comandante riu e recomendou que me acalmasse. O pedido de proteção era simplesmente uma armadilha costumeira, como pro­varam as armas que havíamos encontrado. Êle não mentiu, pois ao entardecer uma multidão uivante de bretões pintados de azul atacou a aldeia, vindo de todas as direções, na esperança de nos pegar de surpresa.

Mas estávamos vigilantes e facilmente repelimos os bárbaros que portavam armas ligeiras e não tinham escudos legionários com que se defendessem. Os veteranos, que durante o dia destruíram a aldeia e aos quais pensei que jamais perdoaria os atos sanguino­lentos que havia presenciado, encerraram-me no meio deles e protegeram-me na luta de corpo a corpo. Quando fugiram, os bre­tões deixaram para trás um de seus guerreiros, ferido no joelho. O homem urrava desenfreadamente, escorando-se no escudo de couro e brandindo a espada. Os veteranos abriram alas, empurra­ram-me para a frente e gritaram rindo:

— Lá está um para você. Mate o seu bretão agora, amigo. Foi fácil proteger-me e matar o ferido, apesar de sua força

e de sua espada. Mas quando finalmente lhe cortei o pescoço com minha espada comprida e o vi estendido no chão, com o sangue jorrando da cabeça, fui forçado a dar meia volta e vomitar. A vergonha da minha fraqueza fez me trepar de novo à sela e jun­tar-me apressadamente aos gauleses que perseguiam os fugitivos bretões macega a fora, até que a corneta nos chamou de volta. Saímos da aldeia, preparados para outro ataque, pois o nosso centurião estava convencido de que a luta ainda não terminara. Tí­nhamos pela frente uma jornada difícil, de vez que precisávamos guiar o gado e transportar o trigo, em cestas, para a guarnição, e ao mesmo tempo acautelar-nos contra as investidas dos bretões. Senti-me melhor quando tive de me defender e também ir em socorro dos outros, mas não me pareceu que fosse este um meio especialmente honroso de guerrear.

Quando, afinal, tornamos a cruzar o rio e nos pusemos outra vez com os nossos despojos sob a proteção do forte, verificamos que havíamos perdido dois homens e um cavalo e tínhamos vários feridos. Exausto, fui repousar em minha cabana de madeira com chão de terra batida, mas não consegui adormecer e tive a im­pressão de ainda estar ouvindo os estridentes gritos de guerra dos bretões, do lado de fora. .

No dia seguinte, não experimentei o menor desejo de parti­cipar da divisão dos despojos, mas o comandante da cavalaria, por pilhéria, exaltou diante de todos a maneira como eu me havia distinguido, zurzindo a espada e bramindo de medo quase tão es­palhafatosamente como os bretões. Assim, tinha tanto direito aos despojos quanto os outros. Presumivelmente por zombaria, os veteranos aquinhoaram-me com uma adolescente bretã, de mãos atadas.

— Eis aí a sua parte dos despojos — gritaram. — Só assim você não achará a vida monótona e não nos abandonará, bravo cavaleirinho Minuto.

Bradei furioso que não queria sustentar uma escrava, mas os veteranos eram a pura inocência.

— Se ficar com um de nós — disseram — ela o degolará com uma faca, logo que tiver as mãos livres. Mas você é um nobre de maneiras finas e sabe falar grego. Talvez ela goste mais de você do que de nós.

Com muito gosto prometiam aconselhar-me quanto ao modo de educar tal escrava. Para começar, devia surrá-la de manhã e à noite, por uma questão de princípio, só para abrandar-lhe os

hábitos selvagens. Também me deram conselhos mais sábios, que não posso registrar aqui. Como eu recusasse obstinadamente, balançaram a cabeça e fingiram tristeza.

Então não há outra coisa a fazer senão vendê-la, quase d graça aomercador do acampamento. Você pode imaginar o que acontecerá a ela.

Compreendi que nunca me perdoaria se desse motivo a que essa menina assustada fosse transformada, à custa de chibatadas, em prostituta do acampamento. A contragosto, aceitei-a como meu quinhão dos despojos. Pus os veteranos para fora da cabana e sentei-me com as mãos sobre os joelhos, encarando a moça. Ela tinha manchas de fuligem e equimoses no rosto infantil, e seus cabelos vermelhos espalhavam-se desordenadamente pela testa. Fi-tando-me por baixo da franja, lembrava um desses potrinhos bretões.

Comecei a rir, cortei a corda que lhe atava os punhos e man­dei que fosse lavar o rosto e entrançar o cabelo. Ela esfregou os punhos inchados e me olhou desconfiada. Finalmente fui buscar o engenheiro, que sabia um pouco da língua icena. Êle riu do meu dilema, mas comentou que a moça era pelo menos sadia e tinha os membros em ordem. Ao ouvir a própria língua, ela pareceu tomar coragem. Conversaram animadamente durante algum tempo.

Não quer ir se lavar nem pentear o cabelo explicou o engenheiro porque suspeita de suas intenções. Se você tocar nela, ela o matará. Jura que o fará, pelo nome da deusa lebre.

Afiancei que não tinha a mais leve intenção de tocar na moça. O engenheiro afirmou que o mais sensato era fazer com que ela bebesse vinho porque os selvagens bretões não estavam acostuma­dos a tomar vinho e ela, em breve, estaria bêbada. Depois, eu poderia fazer com ela o que me aprouvesse, contanto que tratasse de não ficar demasiadamente embriagado também. Do contrário, a mocinha me degolaria quando voltasse ao normal. Isso foi o que aconteceu com um dos curtidores da legião que tinha cometido o erro de embriagar-se com uma bretã não-domesticada.

Repeti impaciente que não queria tocar na moça. Mas o en­genheiro insistiu em que seria mais prudente conservá-la amarra­da. De outro modo, ela fugiria na primeira oportunidade.

Isso seria ótimo — disse eu. — Diga-lhe que hoje de noite eu a levarei para fora do acampamento e a soltarei.

O engenheiro balançou a cabeça e disse que me julgara louco antes, quando me juntara voluntariamente aos batedores de estacas, mas não imaginara que a minha loucura chegasse a tanto. Falou com a moça e depois virou-se para mim.

Ela não confia em você. Acha que a levará para a flo­resta e lá fará o que bem entender. Mesmo que escape de você, os bretões de outras tribos poderão capturá-la e transformá-la em refém, já que ela não é desta região. Seu nome é Lugunda.

Então os olhos do engenheiro puseram-se a cintilar e ele lambeu os beiços enquanto fitava a moça.

— Olhe. Dou-lhe duas moedas de prata pela menina e você então se livra dela.

Notando o olhar, a jovem correu para mim, agarrando-me o braço como se eu fosse a única segurança que ela tivesse no mundo. Mas ao mesmo tempo proferiu uma torrente de palavras em sua língua sibilante. O engenheiro soltou uma gargalhada.

— Ela diz que se você tocar nela sem permissão será reen­carnado numa rã. Mas antes disso, os homens da tribo dela virão abrir-lhe a barriga, arrancar-lhe as entranhas e enfiar uma lança em brasa no seu traseiro. Acho que seria melhor vendê-la, a preço razoável, a um homem mais experiente.

Por um momento tive vontade de dar a moça de graça ao engenheiro, mas depois tornei pacientemente a garantir que não queria tocar nela. Na realidade pensei em tratá-la como a um potro. A gente penteava a crina deles e protegia-lhes as costas com um cobertor nas noites de frio. Os antigos veteranos tinham o hábito de criar bichos de estimação para espantar o tédio. A me­nina seria melhor do que um cachorro porque poderia ensinar-me a língua dos bretões.

Não sei como o engenheiro interpretou minhas palavras, ou se de fato conhecia bastante a língua para transmitir o que eu dissera à moça. Desconfio que ele disse a ela que eu tinha tão pouca vontade de tocar nela como de acasalar-me com um ca­chorro ou um cavalo. Seja como fôr, ela se afastou apressada e começou a lavar o rosto com água da minha tina de madeira, para mostrar que não era nem cavalo nem cachorro.

Mandei o engenheiro embora e ofereci sabão à moça. Ela nunca vira tal coisa antes, e, para dizer a verdade, tampouco eu vira, até aquela noite que passei na cidade gaulesa de Lutécia, a caminho da Bretanha, e visitei a péssima casa de banhos de lá. Foi no dia do aniversário da morte de minha mãe e, portanto, também do meu nascimento. Completei dezessete anos e ninguém me deu parabéns.

O escravo magro da terma me surpreendeu com o sabão suave e purificador que estava usando. Era uma sensação bem diferente daquela de ser esfregado com pedra-pomes. Lembrei-me do dinheiro que Túlia me havia dado e comprei ao mesmo tempo a Uberdade para o escravo e o seu sabão por três moedas de ouro. Na manhã em que saí de Lutécia, dei permissão a ele de se chamar Minuto. Os poucos pedaços de sabão que recebi em troca, eu os conservei bem escondidos, quando percebi que essa nova invenção despertava o desdém dos legionários.

Quando mostrei à moça como se usava o sabão, ela esqueceu

temores, banhou-se e começou a pentear os cabelos. Friccionei-lhe os  pulsos inchados com bom unguento e quando vi como suas vestes tinham sido dilaceradas pelos espinhos, fui ao mercador e comprei para ela roupa branca e uma capa de lã. Depois disso ela passou a seguir-me por toda a parte como um cão fiel.

Logo verifiquei que era mais fácil para mim ensinar latim a ela do que aprender eu mesmo a língua dos bárbaros. Durante as compridas noites escuras, ao pé do fogo, também tentei ensi­ná-la a ler. Mas fazia isso para meu próprio divertimento, escre­vendo as letras na areia e deixando que ela as copiasse. Os únicos livros existentes na guarnição eram o almanaque do centurião e o livro egípcio-caldaico dos sonhos, pertencente ao mercador, de modo que lamentei muito não ter trazido nada para ler. Ensinar Lugunda era uma compensação.

Suportei rindo a torrente de obscenidades dos veteranos, com relação à jovem na minha cabana. Eles não tinham más intenções. É mais provável que intimamente se perguntassem que tipo de fei­tiçaria eu empregara para domar a rapariga tão rapidamente. É claro que pensavam que eu dormia com ela, mas na verdade eu não tocava na moça, embora ela tivesse mais de treze anos.

À medida que a chuva gelada se amiudava e as estradas, nor­malmente ruins, se transformavam em lamaçais intransponíveis, e as poças de água amanheciam cobertas com uma enrugada camada de gelo, a vida no acampamento ia-se tornando cada vez mais es­tática e monótona. Dois jovens gauleses, que se haviam alistado na legião com o fito de obter a cidadania romana, ao fim de trinta anos de serviço, adquiriram o hábito de entrar em minha cabana de madeira, quando eu estava dando aulas a Lugunda, observar de boca aberta e repetir em voz alta as palavras latinas. Antes que me desse conta do que estava acontecendo, achei-me ensinando latim e escrita a ambos. Algum conhecimento de lei­tura e escrita é necessário para promoção na legião, pois nenhuma guerra pode ser travada sem as tabuinhas de cera.

Foi numa dessas aulas que Vespasiano me colheu de surpresa, em minha cabana de teto de relva, quando veio inspecionar a guar­nição. Como era seu hábito, chegou inesperadamente e não per­mitiu que os guardas de serviço dessem o alarma, pois queria observar o acampamento como este era todos os dias. Achava que dessa maneira obtinha um comandante um quadro mais perfeito do moral da tropa, do que mediante uma visita previamente anunciada.

Eu estava lendo em voz alta o que dizia o esfarrapado livro egípcio-caldaico dos sonhos, quando alguém sonhava com um hi­popótamo, e ia apontando cada palavra com o dedo, enquanto Lugunda e os jovens gauleses juntavam as cabeças e fitavam o livro, repetindo as palavras latinas depois de mim.

Quando êle afinal se recompôs, olhou severamente para nós com o cenho franzido. A postura correta e as caras limpas dos jovens revelaram-lhe que eles eram soldados irrepreensíveis. Disse estar satisfeito de ver que queriam aprender latim e ler, em vez de se embebedarem nos momentos de folga.

Vespasiano soltou tal gargalhada que se dobrou em dois, e bateu nos joelhos, enquanto as lágrimas lhe escorriam pela cara. Quase desfalecemos todos de susto, quando êle apareceu tão re­pentinamente atrás de nós. Tomamos posição de sentido e Lugun-da ocultou-se às minhas costas. Mas pelo seu riso, compreendi que não estava com raiva.

Vespasiano chegou até ao ponto de contar-nos que vira com os próprios olhos um hipopótamo no anfiteatro de Roma, na época do Imperador Caio, e a descrever o tamanho do animal. Os gau­leses naturalmente pensaram que êle estivesse inventando a história e riram com timidez, mas êle não se ofendeu e apenas ordenou-lhes que fossem buscar prontamente o equipamento para inspeção.

Convidei-o respeitosamente a entrar na cabana e pedi permis­são para oferecer-lhe um pouco de vinho. Êle me assegurou que gostaria muito de repousar um instante, pois concluíra a inspeção e distribuíra serviço a todos. Encontrei o cálice de madeira de meu pai, que eu considerava meu melhor vaso para beber, e Vespa­siano rodou-o na mão, curioso.

Você tem direito de usar o anel de ouro, sabia? observou.

Expliquei que realmente possuía um cálice de prata, mas que prezava acima de tudo o cálice de madeira, pois o herdara de minha mãe. Vespasiano aprovou com a cabeça.

Faz bem em honrar a memória de sua mãe disse êle. Eu mesmo herdei um velho e amassado cálice de prata de minha avó e bebo nele em todos os dias festivos, sem me incomo­dar com o que os outros pensam.

Tomou o vinho avidamente e eu de bom grado dei-lhe mais, muito embora já estivesse tão afeito à vida mesquinha da caserna, que não pude deixar de calcular quanto êle ganhava ao beber o meu vinho. Isto não era avareza. Eu aprendera que um legioná­rio, com dez moedas de cobre ou dois e meio sestércios por dia, tinha de comprar comida, manter o uniforme em ordem e con­tribuir para a caixa da legião, que o socorreria, quando adoecesse ou fosse ferido.

Vespasiano balançou vagarosamente a cabeça enorme.

Dentro em pouco a primavera estará aqui e dissolverá os nevoeiros da Bretanha. Então é bem possível que tenhamos muito trabalho. Aulo Pláucio está em preparativos para ir a Roma, celebrar o seu triunfo, e levará os soldados mais experi­mentados e com maior folha de serviços prestados. Veteranos prudentes prefeririam aceitar gratificações a palmilhar o longo cami-nho até Roma, em troca de uns poucos dias de festas e bebedeira, Entre os comandantes de legião, sou aquele cuja folha de serviços habilita a acompanhá-lo em primeiro lugar, em virtude da minha conquista da ilha de Vete. Mas alguém precisa ficar na Bretanha até que o Imperador nomeie novo comandante supremo, em substituição a Aulo Pláucio. Aulo me prometeu as insígnias de um triunfo, de qualquer modo, se eu concordar em ficar aqui.

Passava continuamente a mão pela testa:

_ Enquanto eu ocupar o comando supremo não haverá pi- lhagens e adotaremos uma política de paz. Mas isso significa que teremos de cobrar impostos ainda mais altos de nossos aliados e súditos, para manter as legiões, o que fará com que se rebelem novamente. Tudo faz crer que isso não sucederá de imediato, pois Aulo Pláucio levará para Roma os reis, comandantes e outros re- féns importantes. Lá, eles se acostumarão às comodidades de uma vida civilizada e seus filhos serão educados na escola do Palatino, mas em conseqüência disso serão abandonados por suas próprias tribos. De nossa parte, contaremos com uma pausa para tomar fôlego enquanto as tribos que lutam pelo poder põem fim a suas divergências. Mas se agirem com rapidez, os bretões terão tempo de desencadear uma rebelião a 24 de junho. Esta é a data de sua principal festa religiosa. Em geral, imolam os prisioneiros no altar comunal de pedra. É estranho, pois eles também adoram os deuses das regiões infernais e a Deusa das Trevas, sob a aparência de uma coruja. A coruja é o pássaro de Minerva.

Meditou nisso alguns instantes:

— A verdade é que bem pouco sabemos da Bretanha e de suas tribos, línguas, costumes e deuses. Temos alguns conheci­mentos das estradas, dos rios, dos vaus, das montanhas, florestas, pastagens e dos locais onde se pode tomar um trago, pois a pri­meira obrigação de um bom soldado é descobrir esse tipo de coisas, de uma forma ou de outra. Há mercadores prósperos que viajam livremente entre povos hostis, enquanto outros são assaltados logo que põem os pés fora do território da legião. Há bretões civiliza­dos que estiveram na Gália e até em Roma e que falam latim mas­cavado, mas nós não soubemos dar-lhes a acolhida que a sua con­dição exige. Num momento como este, se alguém recolhesse as informações imprescindíveis sobre os bretões, seus Costumes e deuses, e escrevesse um livro digno de confiança sobre a Bretanha, tal trabalho seria mais útil a Roma do que a sujeição de todo um povo. O divino Júlio César pouco sabia dos bretões, mas acreditou em todas as informações vagas, assim como exagerou a importân­cia de suas vitórias e esqueceu os erros cometidos, quando escre­veu seu livro propagandístico sobre a guerra da Gália.

Tornou a beber em meu cálice de madeira e ficou ainda mais animado.

É claro que os bretões terminarão por adotar os costumes romanos e acultura romana, mas começo a indagar a mim mesmo se não os civilizaríamos mais depressa conhecendo-lhes os hábitos e preconceitos, em vez de matá-los. Isto viria a calhar neste mo­mento, quando desejamos a paz porque nossos melhores soldados vão deixar a Bretanha e estamos aguardando outro experimenta­do comandante supremo. Mas como você mesmo matou um bretão, suponho que quer tomar parte no triunfo de Aulo Pláucio, como a sua linhagem e à sua ourela vermelha lhe dão o direito de fazer. É evidente que eu o recomendarei, caso queira ir. Assim, saberia que tenho pelo menos um amigo em Roma.

O vinho tornava-o melancólico:

Tenho meu filho Tito, naturalmente, que está crescendo e brincando, ao lado de Britânico, no Palatino, e recebendo a mesma educação que o filho do Imperador. Assegurei para ele um futuro melhor do que aquele que eu mesmo posso esperar. Talvez êle possa afinal trazer paz à Bretanha.

Contei-lhe que provavelmente vira seu filho com Britânico, nos exercícios de equitação, antes da festa do centenário. Vespa-siano declarou que há quatro anos não via o filho e nem poderia ir vê-lo desta vez. Quanto ao outro filho, Domiciano, nem tivera oportunidade de o colocar nos joelhos, pois o menino era conse­qüência do triunfo do Imperador Cláudio, e Vespasiano fora obri­gado a regressar à Bretanha logo depois das comemorações.

Muito barulho e nada mais disse com amargura todo aquele triunfo. Nada senão um louco desperdício de dinheiro para agradar à plebe em Roma. Não nego que eu também gostaria de galgar os degraus do Capitólio com uma coroa de louro na ca­beça. Não há um comandante de legião que não tenha sonhado com isso. Mas é possível embriagar-se na Bretanha também, e é muito mais barato.

Afirmei que se êle achava -que eu lhe poderia ser útil, teria o maior prazer em permanecer na Bretanha, sob seu comando. Não sentia grande desejo de participar de um triunfo que não al­cançara. Vespasiano recebeu esta afirmação como um belo sinal de confiança e ficou visivelmente comovido.

Quanto mais bebo neste seu cálice de madeira, mais gosto de você disse êle, com os olhos marejados. Espero que meu filho cresça como você. Vou lhe contar um segredo.

Confessou que aprisionara um sacerdote bretão e o ocultava de Aulo Pláucio, exatamente agora, quando Aulo estava reunindo prisioneiros para o cortejo triunfal e as batalhas no anfiteatro. Para oferecer ao povo um regalo especial, Aulo procurava com particular empenho um autêntico sacerdote bretão que imolasse prisioneiros  num espetáculo público. _ mas um verdadeiro  druida jamais concordaria em fazer tal coisa só para agradar aos romanos — disse Vespasiano. —

Para Aulo seria muito mais fácil vestir de sacerdote um bretão que pudesse passar por tal. O povo de Roma jamais notaria a di­ferença. Quando Pláucio for embora, penso em libertar o sacerdo­te e mandá-lo de volta à sua tribo, como prova de minhas boas intenções. Se você fosse bastante corajoso, Minuto, poderia acom­panhá-lo e familiarizar-se com os costumes dos bretões. Com a ajuda dele, você poderia estabelecer laços de amizade com seus jovens nobres, pois tenho a secreta suspeita de que nossos próspe­ros mercadores adquiriram o hábito de comprar salvo-condutos aos druidas a preços elevados, se bem que não ousem confessá-lo.

Eu não sentia o menor desejo de imiscuir-me numa religião estrangeira e assustadora. Perguntava a mim mesmo que espécie -de maldição era aquela que parecia seguir-me aonde quer que eu fosse, já que em Roma me vira obrigado a travar conhecimento com a superstição cristã. Mas uma confidência vale outra, pensei, e contei a Vespasiano o motivo real pelo qual viera dar com os cos­tados na Bretanha. Ele achou muito divertido que a esposa de um comandante que alcançara um triunfo fosse julgada pelo ma­rido por causa de uma superstição vergonhosa.

Mas, para mostrar que estava a par da bisbilhotice de Roma, disse:

— Conheço Pláucia Paulina pessoalmente. Que eu saiba, ela passou a não regular bem da cabeça, após permitir que um jovem filósofo, Séneca, creio que é este o seu nome, e Júlia, irmã do Im­perador César, se reunissem secretamente em sua casa. Eles foram degredados por isso e Júlia acabou perdendo a vida. Pláucia Pau­lina não pôde suportar a acusação de alcovitice, ficou temporaria­mente louca e, ao tomar luto, retirou-se para a solidão. Natural­mente uma mulher dessas tem idéias extravagantes.

Lugunda estivera todo esse tempo agachada num canto da cabana, fitando-nos atentamente, sorrindo quando eu sorria e as­sumindo um ar apreensivo quando eu estava sério. Vespasiano olhava distraído para ela de vez em quando e, de súbito, disse:

— Em geral, as mulheres têm idéias engraçadas. Um homem nunca pode estar certo do que elas têm na cabeça. O divino César colheu impressão errada sobre as mulheres bretãs, mas a verdade e que não tinha especial respeito pelas mulheres. Acho que há mulheres boas e mulheres más, sejam bárbaras ou civilizadas. Para o homem, não há maior felicidade do que a amizade de uma boa mulher. Essa selvagem que você tem aqui parece uma crian­ça, mas pode ser-lhe mais útil do que você supõe. Provavelmente, você não sabe que a tribo icena me procurou Com ofertas para comprar a menina de volta. Habitualmente os bretões não fazem tais coisas. Normalmente admitem que os membros de sua tribo que caem nas mãos dos romanos estão perdidos para sempre.

Com certa dificuldade conversou com a moça na língua icena e pouco entendi do que dissera. Mas Lugunda pareceu confusa e arrastou-se para mais perto de mim, como se buscasse proteção. Respondeu a Vespasiano timidamente, a princípio, e depois com maior animação até que ele balançou a cabeça e voltou-se outra vez para mim.

— Esta é outra coisa desesperadora a respeito dos bretões — disse ele. — Os indivíduos que habitam a costa meridional falam uma língua diferente da das tribos do interior, e as tribos do norte não entendem nada do dialeto dos sulistas. Mas a sua Lugunda foi escolhida, desde a infância, pelos sacerdotes para ser uma sa­cerdotisa da lebre. Pelo que me é dado saber, os druidas acreditam que podem reconhecer numa criança, mesmo na mais tenra in­fância, se ela convém aos propósitos deles e se pode ser educada para o sacerdócio. Isso é necessário, pois há druidas de muitos graus e postos diferentes, de modo que têm de estudar-lhes as vidas. Entre nós, o cargo de sacerdote é quase uma honra política, mas entre eles os sacerdotes são médicos, juízes e até mesmo poetas, na medida em que se pode dizer que os bárbaros cultivam a poesia.

Pareceu-me que Vespasiano não era, de modo algum, tão rude e ignorante quanto gostava de fazer crer. Dava a impressão de representar esse papel a fim de pôr a nu a presunção de outras pessoas.

Para mim era uma novidade que Lugunda tivesse sido assina­lada como uma druidesa. Sabia que ela não podia comer carne de lebre sem vomitar e não tolerava que eu apanhasse lebres em ar­madilhas, mas presumi que isso não passasse de algum capricho bárbaro, de vez que as diferentes famílias e tribos bretãs têm di­versos animais sagrados, do mesmo modo que o sacerdote de Diana, em Nemi, não pode tocar ou sequer olhar para um cavalo.

Depois de falar outra vez com Lugunda, Vespasiano soltou uma gargalhada e deu uma palmada nos joelhos:

— A menina não quer voltar para a tribo, mas quer ficar com você. Diz que você está ensinando a ela mágicas que nem mesmo os seus sacerdotes conhecem. Por Hércules, ela pensa que você é algum santo, já que não tentou tocar nela.

Respondi aborrecido que não era nenhum santo. Apenas es­tava comprometido por certa promessa e, de mais a mais, Lugunda era uma criança. Vespasiano olhou-me de soslaio, passou a mão

ela cara larga e comentou que nenhuma mulher é totalmente in­fantil - Não posso forçá-la a voltar para a sua tribo — disse ele, após refletir por um instante. — Acho que vamos deixá-la con­sultar a sua lebre a esse respeito.

No dia seguinte Vespasiano procedeu à inspeção normal do acampamento, falou aos soldados em sua linguagem crua e expli­cou que a partir daquele momento teriam de contentar-se com es­tourar o próprio crânio e abster-se de caçar bretões.

_Estais me entendendo, bobalhões? Cada bretão é vosso pai e irmão, cada megera bretã é vossa mãe e até mesmo a don­zela mais tentadora é vossa irmã. Ide ao encontro deles. Acenai com vossos ramos verdes quando os avistardes, dai-lhes presentes, dai-lhes comida e bebida. Sabeis muito bem que as normas da guerra punem a pilhagem individual com a morte na fogueira. Pois bem, tomai cuidado para que eu não tenha de arrancar-vos o couro a fogo.

— Mas — continuou sombrio, olhando-os com ar ameaça­dor — eu vos arrancarei o couro ainda mais se permitirdes que um bretão vos roube um só cavalo ou mesmo uma espada. Lem­brai-vos de que eles são bárbaros. Compete a vós civilizá-los com brandura e ensinar-lhes os vossos próprios costumes. Ensinai-os a jogar dados e a jurar pelos deuses romanos. Esse é o primeiro passo para a cultura superior. Se um bretão vos esbofetear a face, ofere-cei-lhe a outra. Já ouvi mesmo falar de uma nova superstição que manda proceder desse modo. Acreditai se quiserdes. Contudo, não volteis a outra face com demasiada freqüência, mas liquidai as vossas divergências com os bretões por meio da luta romana, da corrida de obstáculos ou dos jogos de bola, à maneira bretã.

Raramente ouvi os legionários rir tanto como durante o dis­curso de Vespasiano. As fileiras oscilavam de regozijo e um solda­do deixou cair o escudo na lama. Para castigá-lo, o próprio Ves­pasiano fustigou-o com um bastão emprestado pelo centurião, o que arrancou novas gargalhadas. Finalmente Vespasiano fez ofe­rendas rituais no altar da guarnição, com tamanha dignidade e piedade, que não houve mais riso. Imolou tantos novilhos, carnei­ros e porcos que todos compreenderam que pelo menos uma vez iriam fartar-se de carne assada gratuita, e todos nós nos maravi­lhamos com os presságios favoráveis.

Após a inspeção, ele me mandou comprar lebres vivas a um veterano que as criava, como faziam os bretões, em gaiolas, por divertimento. Vespasiano enfiou a lebre debaixo do braço, e nós três — ele, Lugunda e eu — deixamos o acampamento e nos in­ternamos na mata. Ele não trouxe guarda, pois era um homem destemido e ambos estávamos armados, já que acabávamos. de sair da inspeção. Na mata, ele segurou a lebre pelas orelhas e entregou-a a Lugunda que, com mão experiente, colocou-a sob a capa e começou a procurar um local apropriado. Sem nenhuma razão aparente, a moça nos levou tão longe na mata, que desconfiei de uma emboscada. Um corvo levantou vôo à nossa frente, mas fe­lizmente virou para a direita.

Lugunda estacou enfim perto de um enorme carvalho, olhou em redor mais uma vez, assinalou no ar, com a mão, os pontos do horizonte, arremessou para o alto um punhado de bolotas apo­drecidas, observou onde caíram e depois entoou um sortilégio tão prolongado que comecei a sentir sono. Inesperadamente, arrancou a lebre de dentro das vestes, atirou-a para o ar e inclinou-se para a frente, os olhos negros de emoção, enquanto seguia os movimen­tos do animal. A lebre saiu correndo aos pinotes na direção no­roeste e desapareceu na floresta. Lugunda desmanchou-se em lá­grimas, lançou os braços em volta do meu pescoço e me apertou com força, soluçando.

Você mesmo escolheu a lebre, Minuto — disse Vespasia­no, como a desculpar-se. — Não tenho nenhuma responsabilidade nisso. Se não estou enganado, a lebre indica que Lugunda deve regressar à tribo sem demora. Se o animal não corresse e se escon­desse numa moita, isso significaria um mau augúrio e impediria a moça de ir embora. Acho que entendo um pouco da arte dos bre­tões de predizer por meio de lebres icenas. Lugunda acalmou-se, sorriu e agarrou-me a mão, beijando-a várias vezes.

Apenas prometi a ela que você a levaria para o território iceno — explicou Vespasiano, impassível. — Consultemos agora outros augúrios, para saber se você não precisa ir imediatamente, antes de conhecer meu prisioneiro druida. Tenho a impressão de que você é um rapaz bastante arrojado para sair por aí como um sofista ambulante, colhendo para seu próprio proveito a sabe­doria de diferentes países. Sugiro que se vista com pele de cabra. A moça testemunhará que você é um santo e o druida lhe dará proteção. Eles cumprem suas promessas, desde que as façam de determinado modo, em nome dos seus próprios deuses das regiões infernais. Se não as cumprirem, teremos de pensar em outro meio de garantir a cooperação pacífica.

Dessa maneira, Lugunda e eu fomos com Vespasiano para o acampamento da legião principal, quando ele retornou de sua viagem de inspeção. Quando partimos, verifiquei com surpresa que muitos dos homens da guarnição se tinham ligado a mim du­rante o inverno. Deram-me presentes de despedida, recomenda­ram-me que nunca cuspisse no prato em que havia comido e asse­guraram que corria em minhas veias legítimo sangue de lobo, em­bora eu falasse grego. Foi com tristeza que me separei deles.

Quando chegamos ao acampamento principal, esqueci de fazer continência de maneira adequada para a Águia da legião.

Vespasiano bramiu de cólera, ordenou que me tirassem as armas com ignomínia e me atirassem numa cela escura. Fiquei total­mente aturdido com essa severidade, até que me dei conta de que na cela teria oportunidade de conhecer o druida prisioneiro. Ele ainda não tinha trinta anos, mas era um homem notável sob todos os aspectos. Falava latim muito bem e trajava como um romano. Não fez segredo do fato de ter sido capturado a caminho de casa, vindo da Gália ocidental, quando o navio foi impelido por uma tempestade para a costa guardada pelos romanos.

_ O   comandante  Vespasiano   é   um   homem  inteligente _ disse, sorrindo. — Praticamente  ninguém mais entre vocês teria descoberto que eu era um druida, ou mesmo um bretão, porque não pinto o rosto de azul. Ele prometeu salvar-me de uma morte dolorosa no anfiteatro de Roma; isso porém não basta para obrigar-me a fazer o que ele pede. Faço apenas aquilo que me ditam meus verdadeiros sonhos e presságios. Inconscientemente, ele está realizando um desejo maior do que o seu ao salvar-me a vida. Não tenho medo de uma morte dolorosa, tampouco, pois sou um iniciado.

Eu tinha uma estilha no polegar e minha mão inchou bas­tante na cela. O druida retirou a estilha sem magoar-me, limitan­do-se a apertar-me o pulso com a outra mão. Depois de arrancar a estilha com um alfinete, conservou minha mão quente e dolorida, durante longo tempo, entre as suas. Na manhã seguinte, todo ò pus tinha saído e a mão não revelava marca nenhuma da estilha.

— Seu comandante — disse ele — provavelmente compreen­de melhor do que a maioria dos romanos que a guerra agora é entre os deuses de Roma e os deuses da Bretanha. Por isso, trata de negociar uma trégua entre os deuses e desse modo age de ma­neira muito mais sensata, do que se tentasse politicamente unir todas as nossas diferentes tribos num tratado com os romanos. Nossos deuses podem permitir-se uma trégua, porquanto nunca morrem. Augúrios dignos de confiança dizem-nos, porém, que os deuses de Roma, em breve, estarão mortos. Assim, a Bretanha nunca estará totalmente sob o domínio de Roma, por mais hábil que Vespasiano se imagine. Mas todos devem, sem dúvida, acre­ditar nos próprios deuses.

Procurou também defender os horríveis sacrifícios humanos que faziam parte de sua crença.

O preço de uma vida é outra vida — explicou. — Se um homem importante adoece, para curar-se sacrifica um criminoso ou um escravo. A morte não significa a mesma coisa para nós e para vocês, romanos, pois nós sabemos que renasceremos sobre a terra, cedo ou tarde. Assim, a morte é apenas uma mudança de tempo e espaço e nada mais do que isso. Não diria que todos re­nascem, mas um iniciada sabe que renascerá numa posição que é digna dele. Portanto, para êle, a morte nada mais é do que um sono profundo do qual tem certeza que despertará.

Mais tarde, Vespasiano libertou oficialmente o druida, que havia tomado para escravo, pagou o competente imposto à caixa da legião e lhe deu permissão de usar seu outro nome de família, Petro, indicando-lhe gravemente os deveres para com o ex-senhor, de acordo com o Direito romano. Em seguida, deu-nos três mulas e mandou-nos cruzar o rio, rumo ao território iceno. Na cela eu deixara crescer o cabelo e a barba loura, e quando deixamos o acampamento eu ia metido em peles de cabra, embora Petro zom­basse de todas essas medidas acauteladoras.

Logo que alcançamos a proteção da floresta, êle jogou seu bastão de liberto nas moitas e soltou um horripilante grito de guerra bretão. Num momento vimo-nos rodeados de uma multi­dão de icenos pintados de azul e armados. Mas eles não fizeram mal nem a Lugunda nem a mim.

Juntamente com Petro e Lugunda viajei em lombo de mula, desde o começo da primavera até o coração do inverno, por entre as diversas tribos da Bretanha, alcançando regiões tão longínquas Comi o país dos brigantes. Petro não poupou esforços para ins­truir-me em todos os costumes e crenças dos bretões, exceto nos segredos dos iniciados. É desnecessário descrever aqui toda a minha viagem, pois contei tudo no livro sobre a Bretanha.

Devo confessar que não foi senão vários anos depois que me dei conta de ter andado numa espécie de deslumbramento duran­te todo esse tempo. Se isso decorreu de algum secreto influxo de Petro ou Lugunda, ou simplesmente da minha juventude, não sei dizer. Mas creio que tudo me pareceu mais maravilhoso do que era na realidade e fiquei fascinado pelo povo e seus costumes, que mais tarde não apreciei tanto como da primeira vez. Não obstante, desenvolvi-me e aprendi tanto que seis meses depois era bem mais velho do que a minha idade.

Lugunda permaneceu com sua tribo no território iceno, a fim de se dedicar à criação de lebres, ao passo que eu fui passar os meses mais sombrios em Londres, na parte romana do .país, onde iria escrever o relato da minha viagem. Lugunda naturalmente queria acompanhar-me, mas Petro esperava que eu retornasse ao território iceno e logrou convencê-la de que isso teria mais proba­bilidade de ocorrer se ela ficasse com a família que, pelos padrões da Bretanha, era nobre.

Vespasiano não me reconheceu quando apareci diante dele com listas azuis no rosto, envolto em peles caras e com anéis de ouro. nas orelhas. Dirigi-me a êle em tom protocolar, na língua icena, e fiz com a mão o mais simples dos sinais druídicos que Petro me permitira usar, para que não corresse perigo em minha, viagem de regresso.   _  Sou Ituna — disse eu — do país dos bagantes, irmão de sangue do romano Minuto Lauso Maniliano. Trago-lhe uma mensagem dele, que se deixou conduzir ao reino dos mortos, a fim de obter para você um augúrio propício. Agora não pode voltar à terra em sua forma original, mas prometi custear-lhe uma placa funerária com inscrição romana. Pode recomendar-me um bom pedreiro?

_ Por todos os deuses dos infernos e Hecate também — bradou Vespasiano, estupefato. — Minuto Maniliano está morto? E agora, que vou dizer ao pai dele?

_ Quando meu sábio e talentoso irmão de sangue morreu por você, viu um hipopótamo no rio — continuei. — Isso signifi­ca um reino perene que nenhum poder terreno é capaz de impedir. Flávio Vespasiano, os deuses da Bretanha testemunham que você, antes de morrer, curará os doentes com o toque de suas mãos e será exaltado como deus no país dos egípcios.

Só então Vespasiano me reconheceu e soltou uma gargalhada, ao lembrar-se do livro egípcio-caldaico dos sonhos.

—Quase tive uma síncope — bradou. — Mas que disparate é esse que você está dizendo?

Contei-lhe que tivera de fato um sonho desse tipo a respeito dele, depois de permitir que um sumo sacerdote dos druidas me pusesse num estado hipnótico lá no país dos brigantes.

— Mas se tem algum significado, não sei — admiti judicio­samente. — Talvez eu tenha ficado tão assustado, naquela vez em que você me surpreendeu, quando eu estava lendo a história do hipopótamo, no livro dos sonhos, ao lado de Lugunda, que o hi­popótamo reapareceu no meu sono, enquanto eu sonhava com o Egito. O sonho era tão nítido que eu poderia descrevê-lo, assim como o templo diante do qual se desenrolou. Você estava sentado, gordo e calvo, num trono de juiz. Havia muita gente em torno. Um cego e um aleijado pediam-lhe que os curasse. A princípio você se recusava, mas afinal consentiu em cuspir nos olhos do cego e bater com o calcanhar na perna do coxo. O cego logo re­cuperou a vista e a perna do aleijado ficou boa. Vendo isto, a multidão trouxe pães sacrificatórios e nomeou-o deus.

O riso de Vespasiano foi cordial, mas um tanto forçado.

— Faça o que fizer, não conte a ninguém esse sonho, mesmo por troça — advertiu-me. —Prometo lembrar-me dos remédios que mencionou, se algum dia me vir em tal aperto. Mas é mais provável que quando fôr um velho desdentado, eu seja, no interes­se de Roma, um simples comandante de legião na Bretanha.

Não estava totalmente sério ao dizer isso, pois vi que usava um ornamento triunfal na túnica. Felicitei-o, mas Vespasiano assumiu um ar lúgubre e contou-me que a última notícia de Roma era que o Imperador Cláudio havia mandado matar sua jovem es­posa Messalina e, chorando amargamente, jurara, diante da Guar­da Pretoriana, que nunca mais casaria outra vez.

Soube de fonte segura que Messalina se tinha separado de Cláudio, para desposar o Cônsul Sílio, com quem já passava grande parte do tempo contou Vespasiano. Casaram se quan­do Cláudio estava fora da cidade. O objetivo era ou fazer ressurgir a República ou aclamar Sílio Imperador, com a aprovação do Se­nado. É difícil saber o que aconteceu, mas os libertos de Cláudio, Narciso, Palas e os outros parasitas, abandonaram Messalina e le­varam Cláudio a acreditar que sua vida corria perigo. Durante a boda, porém, os conspiradores cometeram a tolice de se embria­gar para comemorar a vitória. Cláudio regressou à cidade e conse­guiu atrair a si a Guarda Pretoriana. Então numerosos senadores e cavaleiros foram executados e só alguns tiveram permissão de suicidar-se. Por aí se vê que a conspiração ganhara terreno e fora cuidadosamente preparada.

Que história horrorosa! exclamei. Antes de sair de Roma, ouvi dizer que os libertos do Imperador ficaram apavorados quando seu colega Políbio foi executado, por ordem de Messalina. Mas nunca pude acreditar em todas as monstruosidades atribuí­das a Messalina. Tinha até mesmo a impressão de que se espalha­vam propositadamente essas histórias com o fito de denegrir a reputação dela.

Vespasiano coçou a cabeçorra e me olhou de viés:

Na verdade não sou competente para falar. Não sou mais do que um comandante de legião e vivo aqui como se estivesse dentro de um saco de couro, sem saber o que está realmente acon­tecendo. Dizem que cinqüenta senadores e uns duzentos cavaleiros foram executados em virtude da conspiração. Preocupa-me so­bretudo meu filho Tito, que foi entregue aos cuidados de Messa­lina, para ser educado ao lado de Britânico. Se Cláudio acreditou em todas as maldades assacadas contra a mãe de seu filho, então é possível que esse velho caprichoso se tenha voltado também contra as crianças.

Em seguida, não falamos de outra coisa senão das tribos e reis bretões que eu tinha conhecido, graças a Petro. Vespasiano mandou-me escrever um minucioso relato de minhas viagens, mas de modo algum pagou papel, tinta e penas egípcias, para não falar de minha estada em Londres. Na verdade, não recebi soldo algum e já não figurava nas listas de chamada da minha própria legião, de modo que me senti muito só e abandonado naquele inverno ge­lado e brumoso.

Aluguei um quarto, na casa de um mercador gaulês de trigo, e pus-me a escrever, mas descobri que não era tão fácil quanto

Pensara. Não se tratava de comentar ou rever trabalhos mais; imaginara descrever minhas próprias experiências. Desperdicei muito papel caro e andei angustiado, acima e abaixo, nas margens do caudaloso rio Tâmisa, protegendo-me com peles e roupas de lã contra o vento gélido. Ao retornar de uma viagem de ins­peção, Vespasiano determinou que me apresentasse e leu o que eu havia escrito. Quando acabou, olhou-me perplexo:

_ Não tenho capacidade para julgar literatura, e como tenho

grande respeito pelos homens de letras, nem tento. Mas isto me dá a impressão de que você quer abarcar o mundo com as pernas. Você escreve maravilhosamente, mas acho que precisa resolver se está escrevendo um poema ou um relato objetivo da geografia, das religiões e das tribos bretãs. Naturalmente é agradável ler sobre o verde dos campos que você viu na Bretanha, os freixos em flor e o canto das aves no começo do verão, mas, para soldados ou comerciantes, esse tipo de informação não tem muita utilidade. Além disso, você confia demais nas narrativas dos druidas e bre­tões nobres, concernentes à linhagem de suas tribos e às origens divinas dos reis. Descreve tão bem os seus méritos e nobres vir­tudes que a gente pensaria até que você esqueceu que era um ro­mano. Eu, se fosse você, não censuraria o divino Júlio César, nem diria que ele nunca logrou conquistar a Bretanha, mas foi forçado a fugir das costas bretãs sem concluir sua missão. Sem dúvida, o que você diz, aliás com certo fundamento, exalta a glória do Imperador Cláudio, quando ele, gradas às guerras tribais dos bretões, conseguiu pacificar boa parte do país. Mas não é boa coisa insultar publicamente o divino Júlio César. Você devia saber disso.

Enquanto ele falava dessa maneira paternal, meu coração co­meçou a palpitar, e percebi que, ao escrever, eu me transportara do sombrio inverno e da minha própria solidão para um verão irreal em que esqueci as provações sofridas e recordei apenas as coisas belas. Senti falta de Lugunda, enquanto estive escrevendo e, em virtude da convivência fraternal com os brigantes, senti-me mais bretão do que romano. Como todos os autores, não gostei de ouvir essa crítica e fiquei profundamente ofendido.

— Lamento ter ficado aquém de sua expectativa — disse eu. Seria melhor juntar as minhas coisas e voltar para Roma, en­quanto é possível cruzar o canal para a Gália, nas tempestades do inverno.

Vespasiano colocou o punho largo em meu ombro e disse com brandura:

— Você é moço ainda. Por isso eu lhe perdôo a suscetibilidade. Talvez seja melhor para você acompanhar-me numa viagem de inspeção a Colchester, a cidade dos veteranos. Depois lhe darei uma coorte por alguns meses, de modo que, como prefeito, você receberá toda a instrução militar de que carece. Seus irmãos bretões hão de respeitá-lo mais ainda quando você os visitar na primavera. Então, no outono, poderá reescrever seu livro.

Desse modo, recebi meu posto de tribuno no mesmo ano, se bem que tivesse apenas dezoito anos. Isso me afagou a vaidade e fiz o possível para mostrar-me à altura do cargo, embora o servi­ço ativo, no inverno, se limitasse a inspeções da guarnição, traba­lhos de construção e exercícios de marcha. Algum tempo depois recebi de meu pai uma boa soma de dinheiro e esta carta:

 

Marco Mezencio Maniliano saúda seu filho Minuto Lauso. Neste momento já terás sabido das mudanças ocorri­das em Roma. Com o fito de recompensar mais cabalmente minha mulher Túlia, pelos serviços que prestou, ao denun­ciar a conspiração, mais do que para premiar os meus pró­prios serviços, o Imperador Cláudio outorgou-me o privilégio de usar a larga faixa púrpura. Agora tenho assento na Cúria. Comporto-me com o decoro exigido pelo cargo. Estou te enviando uma ordem de pagamento a sacar em Londres. Conta-se aqui que os bretões fizeram de Cláudio deus e lhe erigiram um templo dom uma coberta de turfa. Seria con­veniente que levasses uma adequada oferenda votiva ao templo. Tia Lélia, pelo que sei, está bem. Teu liberto, Minúcio, está morando com ela no momento e fabricando, para vender, sabão gaulês. Túlia manda lembranças. Bebe à minha saúde no cálice de tua mãe.

 

Eis então meu pai feito senador, coisa que nunca me teria passado pela cabeça. Já não me surpreendia que Vespasiano tives­se tanta pressa em promover-me a tribuno. O que acontecera em Roma chegara mais depressa ao seu conhecimento do que ao meu. Fiquei amargurado, e meu respeito pelo Senado diminuiu consi­deravelmente.

Seguindo o conselho de meu pai, fui ao templo de madeira que os bretões haviam construído em Colchester, em honra de Cláudio, e depositei uma gravura de madeira, pintada com cores vivas, como oferenda votiva. Não ousei dar uma coisa mais valio­sa já que as próprias dádivas dos bretões eram objetos sem im­portância: escudos, armas, panos e vasos de barro. Vespasiano não dera mais do que uma espada partida, a fim de não ofender os reis bretões com sua oferenda de muito valor.

Quando o inverno começou, desfiz-me alegremente das insíg­nias e da armadura romana, fiz umas listas azuis na cara e atirei aos ombros o colorido manto de honra dos brigantes. Vespasiano fingiu que não podia permitir que o filho de um senador romano expusesse a ser assassinado pelos selvagens bretões nas florestas, mas sabia muito bem que, sob a proteção dos druidas, eu viajaria com maior segurança em todos os territórios bretões do que se es­tivesse andando nas ruas de Roma.

Com indiferença, prometi que seria responsável por mim mesmo e por minha manutenção. A vaidade fêz-me pensar em levar meu cavalo, a fim de exibir-me diante dos rapazes nobres da Bretanha, mas Vespasiano opôs-se terminantemente e elogiou, como de costume, a resistência das mulas no solo bretão.

Mandara crucificar um negociante de cavalos que tentara de­sembarcar um navio cheio deles, trazidos clandestinamente da Gália, para vender a preços extorsivos aos bretões. Meu garanhão, disse ele, seria uma tentação muito forte para os habitantes do país. Em vão vinham eles procurando melhorar a raça de seus cavalinhos, depois de terem experimentado a superioridade da cavalaria roma­na sobre seus carros de batalha.

Assim, tive de contentar-me em comprar presentes apropria­dos para meus anfitriões. Antes de mais nada, abarrotei minhas mulas de vasos de vinho, pois os nobres bretões eram talvez mais dados ao vinho do que os legionários. Naquele verão, passei o dia mais longo do ano reverenciando ao Deus Sol, no templo redondo de pedras gigantescas.

Descobri ornamentos de ouro e âmbar, num túmulo antigo, e empreendi uma excursão às minas de estanho, em cujo ancoradouro aportavam os cartagineses centenas de anos antes para comprar esse metal.

Minha maior surpresa foi Lugunda, que durante o inverno se transformara de menina em moça. Encontrei-a em sua granja, en­volta no manto branco de sacerdotisa da lebre, com um diadema do prata nos cabelos. Os olhos brilhavam como os de uma deusa. Nosso cumprimento foi um abraço, mas logo nos separamos, atônitos, e não ousamos mais tocar um no outro. Sua tribo não lhe permitiu acompanhar-me nas viagens daquele verão. Na realidade, foi para fugir dela que deixei o território iceno. Era nela que eu pensava à noite, ao adormecer, e de manhã, ao acordar, independentemente da minha vontade.

Regressei de minhas viagens mais depressa do que pretendia, só para vê-la, mas isso não me trouxe nenhuma alegria. Pelo con­trario, após o prazer inicial do reencontro, pusemo-nos a altercar, com motivo ou sem ele, e nos magoávamos tão amargamente que eu ia dormir odiando-a de todo o coração, convencido de que não queria vê-la nunca mais. Mas quando ela tornava a sorrir, e vinha com sua lebre favorita e passava-a para as minhas mãos, eu me rendia, inteiramente.

Era difícil recordar que eu era um cavaleiro romano, que meu pai era senador e que eu tinha o direito de usar o manto verme­lho de tribuno.

Roma parecia distante e irreal, quando eu me sentava na relva, em pleno estio bretão, com sua lebre arisca nos braços.

De repente, ela encostava o rosto no meu, arrebatava a lebre dos meus braços e, com os olhos brilhantes, acusava-me de ator­mentá-la intencionalmente. Segurando a lebre, as bochechas em fogo, ela me fitava de modo tão provocador que eu lamentava não ter-lhe dado uma boa surra, no tempo em que a tivera em meu poder, no acampamento.

Nos seus dias de amabilidade, levava-me a ver as vastas pas­tagens de seus pais e mostrava-me o gado, os campos lavrados e as aldeias. Também me levava ao almoxarifado e me exibia os te­cidos, ornamentos e objetos sagrados, que passavam de mãe a filha, em sua família.

— Não gosta da terra icena? — perguntava para me provo­car. — Não é bom respirar este ar? Não lhe agradam o nosso pão de trigo e a nossa cerveja espessa? Meu pai lhe daria muitas pare­lhas de cavalos e carros ornados de prata. Bastaria pedir e recebe­ria a terra que pudesse percorrer num dia.

No dia seguinte dizia:

—        Fale-me de Roma. Gostaria de andar em ruas calçadas, ver grandes templos com salões cheios de colunas e troféus guerreiros de todos os países, conhecer as mulheres que são diferentes de mim, adquirir novos hábitos, pois a seus olhos sou evidentemente apenas uma moça inculta.

Nos momentos de franqueza, dizia:

— Lembra-se como me tomou nos braços, numa noite fria de inverno, em sua cabana de madeira, e me aqueceu com seu corpo, quando eu estava com saudade de casa? Agora estou em casa e os druidas me fizeram sacerdotisa. Você não faz idéia da grande honra que isso representa, mas no momento eu preferia estar naquela cabana de madeira, segurando a sua mão e ouvin­do-o ensinar-me a ler e escrever.

Eu era ainda tão inexperiente que não entendia meus próprios sentimentos nem o que acontecera entre nós. Deles fui informado, pelo druida Petro, a quem Vespasiano havia concedido a liberdade e que no outono regressara de uma ilha secreta, onde fora inicia­do num grau ainda mais alto do sacerdócio. Ele observara os nossos jogos, sem que eu soubesse, e depois sentara-se no chão. cobrindo os olhos com as mãos e curvando-se para a frente, em êxtase religioso. Não ousamos despertá-lo, pois ambos sabíamos que, em sonhos, ele vagueava pelas regiões do outro mundo. Mas esquecemos as nossas brigas e sentamo-nos num cômoro diante dele, esperando que acordasse.

Quando voltou a si, encarou-nos com um olhar que parecia vir de outro mundo.

Você, Minuto disse êle tem a seu lado um animal enorme, semelhante a um cachorro, e um homem. Lugunda só conta com a proteção de sua lebre.

Não é um cachorro falei, indignado. É um verda­deiro leão. Mas é claro que você mesmo nunca viu um animal tão nobre como esse. Por isso perdôo o seu engano.

Seu cachorro continuou Petro, impassível perseguirá a lebre até à morte. Então o coração de Lugunda se partirá e ela morrerá, se você não fôr embora em tempo.

Não desejo mal algum a Lugunda disse eu, surpreso.

Estamos apenas nos divertindo como irmão e irmã.

Como se um romano pudesse partir meu coração riu Lugunda, com desdém. O cachorro dele vai correr até perder o fôlego. Não gosto de sonhos desagradáveis, Petro. E Ituna não é meu irmão.

É melhor que eu converse com ambos sobre essa questão

disse Petro. Primeiro com você, Minuto, e depois com Lu­gunda. Lugunda pode ir cuidar de suas lebres nesse intervalo.

Lugunda fitou-nos, os olhos amarelos de raiva, mas não se atreveu a contestar a ordem do druida. Petro continuou sentado de pernas cruzadas, apanhou um graveto e começou distraidamen­te a riscar com êle o chão.

Um dia os romanos serão atirados de volta ao mar disse êle. A Bretanha é a terra dos deuses das regiões infernais, e os deuses celestiais nunca poderão dominá-los enquanto a terra existir. Mesmo que os romanos derrubem nossos bosques sagra­dos, destruam nossas sagradas lajes de pedra, construam estradas e ensinem seus métodos agrícolas às tribos que tiverem subjugado, para transformá-las em escravas, mesmo assim, os romanos serão devolvidos ao mar um dia, quando o momento fôr oportuno. Bas­tará apenas um homem, um homem que convença as tribos inde­pendentes a se unirem e combaterem juntas e que conheça a arte bélica romana.

Por isso é que temos quatro legiões aqui disse eu. Ao fim de uma ou duas gerações, a Bretanha será um país civili­zado com a paz romana.

Uma vez expostos desse modo os nossos respectivos pontos de vista, não havia mais nada a dizer sobre a questão.

O que quer de Lugunda, Ituna Minuto? perguntou Petro.

Olhou-me severo. Baixei a vista e senti vergonha.

Pensou alguma vez em contrair um matrimônio bretão com ela e dar-lhe um filho? — indagou Petro. — Não se assuste. Esse Casamento não seria válido no Direito romano e não o impe­diria de deixar a Bretanha quando bem entendesse. Lugunda fi­caria com o filho e teria uma lembrança permanente de você. Mas se continuar a divertir-se com ela, como faz atualmente, ela sofre­rá terrivelmente quando você fôr embora.

Assustei-me só de pensar num filho, ainda que no íntimo já tivesse admitido o que era que queria de Lugunda.

"Onde estiveres, aí estarei também", dizem os romanos — falei. — Não sou um marujo aventureiro, nem um mercador ambulante, que casa aqui e ali, de acordo com os próprios dese­jos. Não quero fazer isso com Lugunda.

Lugunda não se cobriria de opróbrio aos olhos dos pais ou da tribo — disse Petro. — Seu único defeito, Minuto, é ser romano. Aí é que está a diferença. Entre nós, as mulheres têm toda a liberdade e todo o direito de escolher os maridos que qui­serem e até mesmo de os mandar embora, se não estiverem satis­feitas. Uma sacerdotisa da lebre não é uma Virgem Vestal que, ao que dizem em Roma, deve comprometer-se a permanecer sol­teira.

Dentro em pouco irei embora para minha pátria — afir­mei categórico. — De outro modo, a Bretanha me parecerá muito apertada.

Mas Petro conversou com Lugunda também. Naquela noite ela veio ver-me, envolveu-me o pescoço com os braços, cravou os olhos cor de âmbar nos meus e tremeu nos meus braços.

— Minuto Ituna — disse ela, baixinho — você sabe que sou sua só. Petro diz que você vai embora para nunca mais voltar. É de cortar o coração. Seria realmente vergonhoso para você casar comigo, à nossa maneira, antes de ir?

Gelei.

Vergonhoso não seria — disse eu, com a voz trêmula. — Apenas seria desleal para com você.

_ Leal ou desleal — disse Lugunda — que importância tem isso, quando sinto seu coração palpitar no peito com a mesma vio­lência do meu?

Pus minhas mãos em seus ombros e afastei-a de mim:

_ Fui educado na crença de que é mais virtuoso dominar-me do que entregar-me e tornar-me escravo dos meus desejos — disse eu.

_ Sou uma legítima presa de guerra e sua escrava — disse Lugunda, com obstinação. — Você tem o direito de fazer o que quiser de mim. Você nem mesmo concordou em receber o dinheiro

resgate que meus pais lhe ofereceram no verão passado. Balancei a cabeça, incapaz de falar.

_ Leve-me com você quando partir implorou, então, Lugorda. - Vou  para onde você quiser ir. Deixarei minha tribo e até mesmo minhas lebres. Sou sua serva, sua escrava, queira ou não queira.

Ajoelhou-se diante de mim:

_ Se pelo menos você soubesse o que essas palavras signifi- cam para o seu orgulho, ficaria aterrorizado, romano Minuto disse ela.

Mas eu estava possuído pelo sentimento varonil de que, sendo o mais forte, devia protegê-la contra a fraqueza. Tratei de expli­cá-lo o melhor que pude, mas minhas palavras foram impotentes contra sua cabeça obstinadamente abaixada. Por fim, ela se levan­tou e me encarou como se eu fosse um perfeito desconhecido.

Você me ofendeu profundamente disse, com frieza e nunca saberá até que ponto. Daqui por diante eu o odiarei e a todo instante desejarei vê-lo morto.

Fiquei tão magoado que senti dor no estômago e não pude comer. Pensei em partir imediatamente, mas a colheita estava no fim e realizava-se na casa a festa tradicional. Além disso, desejava registrar os costumes observados na festa da colheita e descobrir como os icenos ocultavam o trigo.

A noite seguinte foi de lua cheia. Eu já estava tonto de cer­veja icena, quando os jovens nobres do distrito se dirigiram ao res­tolhai e acenderam uma grande fogueira. Sem pedir permissão a ninguém, pegaram um novilho da manada da fazenda e o sacrifi­caram em meio à maior algazarra. Juntei-me a eles, já que conhe­cia alguns, mas não foram tão amistosos como antes. Chegaram a insultar-me.

Vá lavar as listas azuis da Cara, romano amaldiçoado disseram eles. Preferíamos ver o seu escudo imundo e a sua es­pada manchada de sangue bretão.

_ É verdade perguntou um que os romanos tomam banho quente e perdem assim a masculinidade?

É verdade respondeu outro. É por isso que as mu­lheres de Roma dormem com seus escravos. O Imperador deles mandou matar a própria mulher, que se prostituía desse modo.

Havia bastante verdade nos insultos para que eu me encole­rizasse.

Aceito as pilhérias dos meus amigos disse eu quando eles estão cheios de Cerveja e carne roubada, mas não posso to­lerar que falem desrespeitosamente do Imperador de Roma.

Eles se entreolharam maliciosamente.

Lutemos com êle sugeriram. Só assim a gente sabe­rá se perdeu os ovos na água quente, como os outros romanos.

Vi que tinham a intenção de brigar, mas eu não podia reti­rar-me depois de terem insultado o Imperador Cláudio. Após ins­tigarem-se mutuamente por algum tempo, o mais arrojado preci­pitou-se sobre mim como se quisesse travar uma luta romana, mas na verdade atingiu-me com toda a força dos punhos. A luta ro­mana faz parte dos exercícios da legião. Assim, não tive dificuldade em dominá-lo, especialmente porque êle estava muito mais bêba­do do que eu. Deitei-o de costas e pus o pé em seu pescoço, mas êle lutava, em vez de se dar por vencido. Aí então todos os outros caíram sobre mim e me derrubaram, agarrando-me firmemente os braços e as pernas.

Que faremos com o romano? perguntaram uns aos outros. Talvez fosse bom abrir-lhe a barriga e ver o que os seus intestinos anunciam.

Vamos castrá-lo, para que êle pare de correr atrás das nossas garotas feito um lebrão velho sugeriu um.

É melhor atirá-lo ao fogo disse outro e ver então a quantidade de calor que um romano pode agüentar.

Eu não sabia se falavam sério ou se apenas desejavam assus­tar-me, como fazem muitas vezes os bêbados. De qualquer modo sovaram-me de um modo que não tinha nada de brincadeira, mas o orgulho me impediu de gritar por socorro. Incitando-se mutua­mente, atingiram um ponto tal de cólera que comecei a temer de­veras pela minha vida.

De repente, calaram-se e recuaram. Vi Lugunda caminhando na minha direção. Ela parou e pôs a cabeça para um lado.

Gosto de ver um romano humilhado e inerme no chão disse ela, escarninha. Faria cócegas na sua pele, com a ponta de uma faca, se não estivesse proibida de me sujar com san­gue humano.

Estirou a língua para mim e depois virou-se para os rapazes, que eram seus conhecidos.

Não o matem recomendou. Isso só traz vingança. Vão cortar uma vara de vidoeiro, ponham-no de bruços e segu­rem-no. Eu lhes mostrarei como lidar com romanos.

Os rapazes ficaram satisfeitos por não terem de decidir sobre o que fariam de mim. Foram correndo buscar as varas e rasga­ram-me as roupas. Lugunda aproximou-se e deu-me uma chicotada nas costas, a princípio cautelosamente, como se estivesse apenas experimentando a vara, e depois passou a bater impiedosamente,

com toda a sua força. Cerrei os dentes e não emiti um único som. Isto levou-a a surrar-me furiosamente, de sorte que meu corpo se sacudia e tremia no chão e as lágrimas me vinham aos olhos.

Afinal seu braço cansou e ela jogou fora a vara.

_ Aí está, romano Minuto — gritou. — Agora estamos quites.

Os rapazes que me seguravam soltaram-me e foram recuando devagar, os punhos erguidos, com medo de que os atacasse. Minha cabeça latejava, o nariz sangrava e as costas ardiam em fogo, mas continuei silenciosamente a lamber o sangue dos beiços. Algo em mim deve tê-los assustado, pois pararam de escarnecer e me dei­xaram passar. Apanhei as roupas rasgadas e fui andando, mas não para a casa. Saí à toa pela floresta enluarada e pensei comigo mesmo que era uma sorte para todos nós que ninguém tivesse pre­senciado minha ignomínia. Não pude ir longe. Logo comecei a cam­balear e acabei caindo ao solo, num estreito montículo coberto de musgo. Pouco depois os rapazes apagaram o fogo e ouvi-os assoviar, chamando os carros, e afastar-se, fazendo o chão trepidar sob as rodas.

O luar era assustadoramente claro e as sombras na mata hor­rivelmente negras. Com um punhado de musgo limpei o sangue do rosto e invoquei meu leão.

— Leão, você está aí? — gritei. — Se estiver, dê um rugido e vá atrás deles. Se não, nunca mais acreditarei em você.

Mas não vi nem a sombra do meu leão. Eu estava totalmente só. Afinal, Lugunda veio se arrastando cautelosamente, afastando os ramos, enquanto me procurava. Seu rosto estava branco, banha­do pelo luar. Quando me viu, aproximou-se de mim com as mãos às costas.

— Como se sente? — perguntou. — Doeu muito? Você mereceu.

Tive gana de agarrar-lhe o pescoço fino, atirá-la ao chão e lacerá-la como eu fora lacerado. Mas dominei-me, sabendo que nada teria a ganhar com isso. Contudo, não pude deixar de per­guntar se ela preparara tudo aquilo.

— Claro que sim — confessou. — Acha então que, de outro modo, eles ousariam tocar num romano?

Ajoelhou-se ao meu lado e, sem timidez, apalpou-me todo, antes que eu pudesse impedir.

— Não estouraram seus testículos como disseram, não é mesmo? — perguntou apreensiva. — Seria terrível que você não pudesse fazer filhos numa jovem patrícia romana.

Então não pude mais dominar-me. Agarrei-lhe o rosto com ambas as mãos, meti-a debaixo do meu corpo e prendi-a ao chão com meu peso, embora ela me batesse nos ombros com os dois punhos, me desses pontapés e me mordesse o peito. Mas não gritou por socorro. Antes que eu soubesse onde estava, ela serenou e deixou-se penetrar. A força da minha vida jorrou dentro dela e experimentei tal sensação de prazer sensual que soltei um urro enorme. Depois, tudo quanto senti foi a força com que ela me agarrava o rosto e me beijava seguidamente. Estarrecido, recuei e me sentei. Então ela também se sentou e desatou a rir.

Sabe o que nos aconteceu? perguntou, zombeteira. Estava tão aterrorizado que não pude responder.

Você está sangrando! exclamei.

Ainda bem que você notou, idiota disse ela, com timidez.

Como eu continuasse mudo, ela riu outra vez.

Petro foi quem me aconselhou explicou ela. Eu mesma nunca teria pensado nisso. Não gostei de ter batido em você tão cruelmente. Mas Petro disse que não havia outro recurso para rapazes romanos tímidos e obstinados.

Ergueu-se e tomou-me pela mão.

Acho melhor irmos ver Petro disse ela. Êle deverá ter um pouco de vinho e um vaso de farinha à nossa espera.

Que quer dizer com isso? perguntei, desconfiado.

Você me pegou à força, embora eu tenha lutado tanto quanto exigia meu amor-próprio — respondeu surpresa. Não vai querer que meu pai tire a espada da parede e se ponha a lavar a honra nas suas entranhas, não é? Êle tem direito a agir assim. Até mesmo os romanos respeitam esse direito. Seria bem mais sensato deixar que Petro esfregasse óleo e farinha em nossos ca­belos. Êle pode colocar uma aliança no meu dedo, à maneira ro­mana, se você insistir.

Mas Lugunda, você não poderá ir comigo para Roma, ou mesmo para Londres.

Não vou sair correndo atrás de você disse Lugunda, enérgica. Não se preocupe. Você poderá vir ver-me alguma vez se quiser, mas eu também posso me cansar de esperar, que­brar meu vaso matrimonial e reduzir seu nome a cinzas. Então, serei outra vez uma mulher livre. Não lhe diz o bom senso que é melhor seguir os nossos costumes, do que armar um, escândalo que será ouvido até em Roma? Violar uma sacerdotisa da lebre não é coisa sem importância não. Ou quer negar isso? Você pulou para cima de mim feito uma fera no cio e esmagou minha resis­tência com a força bruta.

Devia ter pedido socorro disse eu, com amargura. E não devia ter-me afagadotão vergonhosamente, quando eu já estava tão atordoado.

Estava apenas preocupada com sua capacidade reprodutiva mentiu ela, com tranqüilidade. — É claro que eu não podia imaginar que o leve toque exigido pelas normas da arte de curar fosse cegá-lo de fúria.

Nada podia alterar meu sincero arrependimento, Fomos até um  lavamos cuidadosamente. Em seguida, de mãos dadas, entramos no salão da casa de madeira, onde os pais de Lugunda nos esperavam ansiosos. Petro misturou óleo e farinha, esfregou a mistura em nossos cabelos e depois fez com que bebêssemos um pouco de vinho no mesmo vaso de barro, que o pai de Lugunda guardou em seguida, com todo o cuidado, numa arca. Depois disso, conduziu-nos ao leito nupcial já preparado, derru­bou-me por cima de Lugunda e cobriu-nos com seu grande escudo de couro.

Quando todos abandonaram a cabana nupcial, Lugunda atirou o escudo ao chão e me pediu humildemente que fizesse com ela, com toda a ternura e afeição, o que fizera com fúria na mata. O dano já fora feito e nenhum obstáculo surgia no caminho.

Assim, abraçamo-nos ternamente, depois que eu a beijei à ma­neira romana. Só então Lugunda ergueu-se e foi buscar os ungüentos medicinais que passou suavemente em minhas costas. Doeu quando me lembrei de pensar nisso.

Precisamente quando ia caindo no sono mais profundo de minha vida, recordei que havia quebrado a promessa feita a Cláu­dia, mas culpei a lua cheia e a magia dos druidas. Evidentemente, ninguém podia evitar seu destino predeterminado, pensei, tanto quanto me era possível ter algum pensamento.

No dia seguinte, tratei de fazer preparativos imediatos para ir embora, mas o pai de Lugunda quis que eu o acompanhasse para ver os campos, o gado, as pastagens e matas que ia reservar para Lugunda e seus descendentes. Essa excursão tomou-nos três dias e, quando voltamos, para não ser sobrepujado, dei a Lugunda mi­nha corrente de ouro de tribuno.

O pai de Lugunda pareceu considerar isto um presente de núpcias insignificante pois, quando a filha suspendeu o cabelo, ele sacou de um colar de ouro da grossura do pulso de uma criança e colocou-o em volta do pescoço de Lugunda. Esses colares são usados somente pelas rainhas e damas da mais alta nobreza na Bretanha. De tudo isso até mesmo eu, cabeça-de-pau como era. depreendi que Lugunda era de linhagem mais nobre do que eu jamais imaginara, tão nobre que o pai nem se dava ao trabalho de alardear. Petro explicou que, se eu não fosse um cavaleiro ro­mano e filho de um senador, teria sido traspassado por uma espada e seguramente não me teriam coberto as costas feridas com o escudo de batalha da família.

Devo a meu sogro iceno e à posição de Petro, como sacerdote os sacrifícios, médico e juiz, ter escapado também à acusação  de feitiçaria. O jovem fidalgo bretão que, movido pelo ciúme, me atacara com seus punhos, quebrou o pescoço naquela mesma noite enluarada, quando o cavalo em que galopava se assustou com um animal desconhecido e o arremessou violentamente, de cabeça, contra uma pedra.

Naturalmente atormentava-me de vez em quando a lembrança da promessa que fizera a Cláudia e tão a contragosto quebrara. Também era invadido pela sensação desagradável de que Lugunda não era realmente minha esposa legal desde que, no íntimo, não podia considerar meu casamento bretão como juridicamente váli­do. Mas era moço. Meu corpo, disciplinado durante tanto tempo, ficou completamente enfeitiçado pelas carícias e pela ternura de Lugunda, e dia após dia adiei minha inevitável partida para Colchester.

Mas a gente se cansa mais rapidamente de um excesso de sa­tisfação física do que de autodomínio. Não tardou que começás­semos a irritar-nos um ao outro, Lugunda e eu, a trocar palavras ásperas e a concordar apenas no leito. Quando afinal iniciei minha viagem de volta, senti-me como se me tivesse libertado de grilhões ou de um feitiço. Sim, fugi como um pássaro que escapa da gaiola e em momento algum tive remorsos por ter abandonado Lugunda. Ela apenas satisfizera os próprios desejos. Isso lhe bastava, pensei.

Vespasiano liberou-me dos exercícios militares e dos deveres de tribuno, e reescrevi meu livro sobre a Bretanha, do princípio ao fim. Eu me livrara do deslumbramento daquele primeiro verão e agora descrevia tudo com toda a lucidez e objetividade de que era capaz. Já não via os bretões sob a mesma luz rósea e cheguei até a fazer troça de alguns dos seus costumes. Dei o devido des­taque à contribuição de Júlio César para a tarefa de civilizar a Bretanha, mas registrei, por exemplo, que o tratado do divino Au­gusto com os brigantes constituía exclusivamente, aos olhos dos próprios brigantes, uma troca amistosa de presentes. Julgavam que haviam recebido mais do que precisavam dar, desde que continuas­sem pacíficos.

Por outro lado, rendi ao Imperador Cláudio a homenagem que lhe era devida por manter a Bretanha meridional no Império Romano, e a Aulo Pláucio por fomentar a paz. O próprio Vespa­siano pediu que não me estendesse muito sobre seus próprios mé­ritos. Ainda esperava em vão por um novo delegado ou coman­dante supremo e não desejava provocar má-vontade em Roma, com elogios à sua pessoa.

— Não sou nem bastante hábil nem bastante ardiloso para adaptar-me às novas circunstâncias ali criadas. Por isso prefiro con­tinuar na Bretanha, sem desnecessários encómios aos meus méritos, a voltar à minha antiga pobreza em Roma.

Eu já sabia que o Imperador Cláudio não cumprira o jura­mento feito, perante a Guarda Pretoriana, à deusa Fides, a mão direita coberta com um pano branco. Poucos meses depois da morte 140

de Messalina ele explicara que não podia viver sem uma esposa e escolhera para sua consorte  a mulher mais nobre de Roma, sua sobrinha Agripina, a mesma pessoa cujo filho, Lúcio Domício, pro­curara outrora a minha amizade.

Tornaram-se necessárias novas leis permitindo o incesto, para tal casamento se efetuasse, mas o Senado aquiesceu. Os sena­dores mais perspicazes tinham pedido a Cláudio que retirasse sua promessa sagrada e beneficiasse o Estado com novo casamento. Em Roma ficara tudo de pernas para o ar, em pouco tempo. Vespasiano tinha o cuidado de não se intrometer nessa embrulhada.

Agripina é uma mulher bonita e prudente — disse ele. — Certamente terá aprendido muito com a amarga experiência de sua juventude e de seus dois primeiros casamentos. Espero apenas que seja boa madrasta para Britânico. Assim, não abandonará meu filho Tito, embora eu tenha cometido o erro de deixá-lo com Messa­lina quando parti para a guerra.

Vespasiano compreendeu que, com a conclusão do meu livro, eu me fartara da Bretanha e estava ansioso por voltar a Roma. Era preciso copiar o livro. Eu mesmo andava inquieto e indeciso. Cada vez mais, quando florescia a primavera na Bretanha, eu me lem­brava de Lugunda.

Após a festa da Flora, recebi em Londres uma carta escrita, em latim defeituoso, numa casca de árvore. Nela manifestava-se a esperança de que eu em breve regressasse ao país iceno para to­mar nos braços meu filho recém-nascido. Essa notícia assombrosa pôs fim imediatamente às minhas saudades de Lugunda e desper­tou em mim o ardente desejo de rever Roma. Ainda era bastante moço para pensar que podia livrar-me do sentimento de culpa mu­dando de domicílio.

Vespasiano teve a gentileza de me dar um distintivo de men­sageiro e incumbiu-me de entregar várias cartas em Roma. Indi­ferente aos ciclones, tomei o navio e na travessia vomitei toda a Bretanha no espumejante mar salgado. Mais morto do que vivo, desembarquei na Gália, e não há nada mais a dizer da Bretanha. Mas resolvi que não voltaria lá, antes que fosse possível fazê-lo a pé. Esta foi uma das decisões da minha vida que fui capaz de manter até o fim.

 

Cláudia

E maravilhoso ter dezoito anos quando se chega ao posto de tribuno, se sente que é amado pelo mundo inteiro e se pode ler impecavelmente a primeira produção literária para um auditório culto. Era como se Roma, da mesma forma que eu, es­tivesse vivendo sua primeira e esplendorosa primavera; como se o ar envenenado se tivesse purificado, quando a nobre e elegante Agripina substituíra a jovem Messalina, como esposa de Cláudio.

A vida alegre caíra da moda. A moral se tornara mais pura. pois era voz corrente que Agripina, sempre que Cláudio estava disponível, mandava buscar os assentamentos de cavaleiros e sena­dores e impiedosamente riscava os nomes de todos aqueles que eram conhecidos por sua maneira imoral de viver ou culpados sob outros aspectos. Cláudio, como de costume, exercia seu cargo de Censor, suspirando desalentado, sob o fardo dos deveres, mas aco­lhendo agradecido as sugestões de uma boa mulher com bastante experiência política.

Graças a ela, Cláudio também procurava reanimar-se. Seus libertos, mormente o secretário Narciso e o tesoureiro, Procura­dor Palas, gozavam novamente das suas simpatias. Palas, extenua­do pelas obrigações do posto, era obrigado a conferenciar com a infatigável Agripina noites seguidas.

Quando tornei a encontrar Agripina, achei que ela adquirira novo donaire, nova beleza. Deu-se ao trabalho de ir comigo à escola do Palatino, onde mandou chamar Tito, o filho de Vespa-siano, e acariciou suavemente a cabeça de seu enteado, Britânico. Este parecia sorumbático e retraído para seus nove anos, mas isso nada tinha de surpreendente, já que sentia tremendamente a falta de sua linda mãe, que nem mesmo as atenções mais extremosas da madrasta poderiam compensar. Quando saímos, Agripina con­tou-me que Britânico, para tristeza de seu pai, sofria de epilepsia e portanto não podia fazer exercícios físicos. O menino era par­ticularmente afetado no período da lua cheia e precisava de cuida­dosa observação.

Ainda mais entusiasmada, Agripina levou-me a uma parte en­solarada do Palatino, para mostrar-me sua própria família, o sim-

pático e impetuoso Lúcio Domício, e apresentou-me ao preceptor do filho.

Uma das primeiras providências de Agripina, após chegar ao fora trazer do exílio Aneu Séneca e confiar-lhe a educação de Lúcio Domício.

A estada de Séneca na Córsega evidentemente lhe fizera bem e lhe curara a tuberculose, apesar de tudo o que ele poderá ter dito do degredo nas cartas.

Era um homem de uns quarenta e cinco anos, gorducho. Cumprimentou-me com afabilidade. Pelas botas vermelhas e ma­cias, vi que também fora feito senador.

Fiquei surpreso com Lúcio Domício, que correu ao meu en­contro e beijou-me como se estivesse revendo um amigo que há muito não via. Apoderou-se de minha mão e sentou-se a meu lado, fazendo perguntas acerca de minhas experiências na Bretanha e revelando espanto por ter a Nobre Ordem dos Cavaleiros, no tem­plo de Castor e Pólux, ratificado tão prontamente minha nomeação para tribuno.

Confuso com todas essas amabilidades, tomei a liberdade de mencionar meu livrinho e humildemente solicitar a Séneca que o lesse, principalmente para melhorar o estilo, antes que eu o apre­sentasse em público. Séneca bondosamente concordou, e em con­seqüência disso fiz várias visitas ao Palácio.

Segundo sua opinião honesta, faltava fluência à minha expo­sição, mas admitiu que havia lugar para um estilo seco e concreto, uma vez que eu estava descrevendo principalmente a geografia e a história dos bretões, seus costumes tribais, crenças religiosas e modos de guerrear.

Lúcio leu meu livro em voz alta, a fim de mostrar-me como se devia ler. Tinha uma voz singularmente bonita e tal capacidade de se deixar absorver por um assunto que eu também me absorvi, como se meu livro fosse excepcionalmente notável.

— Se você fosse lê-lo — disse eu — então meu futuro es­taria garantido.

Na atmosfera requintada do Palácio, senti que já experimen­tara bastante a vida árida dos acampamentos e os hábitos rudes da legião. Encantava-me ser aluno de Lúcio, quando ele se dis­punha a ensinar-me os gestos agradáveis apropriados a um autor que lia seu trabalho em público.

Aconselhado por ele, fui ao teatro e muitas vezes o acompa­nhei nos passeios pelos jardins de Lúculo, no monte Píncio, que sua mãe herdara de Messalina.

Lúcio corria, tagarelava, mas sempre atento aos seus movi­mentos. Parava de repente, como que imerso em profundas cogi­tações, e fazia comentários tão profundos que era difícil acreditar fosse tão jovem que a voz ainda não mudara. Não se podia deixar de gostar dele, ,se êle desejasse agradar. E tinha-se a impressão de que precisava, após uma infância triste, agradar a todos os que encontrava, até mesmo aos escravos. Séneca ensinava-lhe que os escravos também eram seres humanos, exatamente como meu pai me havia ensinado em Antioquia.

Era como se esta mesma atmosfera se tivesse espalhado do Palatino sobre toda a cidade. Até mesmo Túlia me recebeu de maneira amistosa e não tentou impedir-me de ver meu pai, quando manifestei tal desejo. Vestia-se cuidadosamente agora, como era próprio da esposa de um senador romano, com direitos legais de uma mãe de três filhos, e usava um número bem menor de jóias do que antes.

Meu pai me surpreendeu. Estava bem mais magro e menos ofegante e macambúzio do que antes da minha viagem à Bretanha. Túlia comprara para êle um médico grego, educado em Alexandria, a quem meu pai, naturalmente, não tardara a conceder a liberdade. O médico prescrevera-lhe banhos e massagens, persuadira-o a be­ber menos e exercitar-se um pouco no jogo da bola, todos os dias, de modo que agora êle usava sua faixa púrpura com bastante dig­nidade. Sua reputação de homem rico e bem-humorado se espalhara em Roma, e assim grupos de clientes e pessoas que procuravam ajuda apinhavam-se em seu vestíbulo todas as manhãs. Auxiliava gente, mas recusava-se a recomendar quem quer que fosse à cida­dania, embora como senador tivesse o direito de fazê-lo.

Mas é de Cláudia que devo falar, ainda que a tenha ido ver com relutância e consciência pesada. Exteriormente ela não mu­dara nem um pouco. Todavia, a princípio tive a impressão de estar olhando para uma estranha. Para começar, deu-me um sorriso en­cantador, e depois sua boca se apertou e seus olhos se enegreceram.

Tive maus sonhos a seu respeito disse ela. Vejo que eram verídicos. Você não é o mesmo de antes, Minuto.

Como podia ser o mesmo gritei depois de passar dois anos .a Bretanha, escrever um livro, matar bárbaros e obter minhas plumas vermelhas? Você mora no campo, como que den­tro de um tanque de criar patos. Não tem o direito de esperar a mesma coisa de mim.

Cláudia me fitou nos olhos e ergueu a mão para tocar meu rosto.

Você sabe muito bem o que quero dizer, Minuto. Fui tola em esperar que você fosse fiel a uma promessa que nenhum homem pode cumprir.

Eu teria revelado maior prudência se me tivesse zangado com suas palavras, se tivesse rompido com ela ali mesmo e depois ido embora. É muito mais fácil a gente se encolerizar quando não

razão. Mas, quando vi sua profunda decepção, tomei-a nos braços, beijei-a, acariciei-a, e fui dominado pela necessidade de falar pelo menos a uma só pessoa, de Lugunda e das minhas expeiências.

Sentamo-nos junto da fonte, num banco de pedra, sob uma velha árvore, e contei-lhe como Lugunda entrara em minha vida, como eu a ensinara a ler e como ela fora útil nas minhas viagens entre os bretões. Depois, comecei a gaguejar um pouco e olhei para o chão. Cláudia segurou-me o braço com ambas as mãos e me sacudiu, mandando-me continuar. Assim narrei a ela o que o meu amor-próprio me permitiu, mas no fim não tive coragem de dizer que Lugunda tivera um filho meu. Com a vaidade da minha ju­ventude, porém, ufanei-me da minha masculinidade e da virgin­dade de Lugunda.

Para minha surpresa, o que mais magoou Cláudia foi o fato de Lugunda ser uma sacerdotisa da lebre.

Estou cansada dos pássaros que voam do Vaticano disse ela. Não creio mais em angúrios. Para mim os deuses de Roma não passam hoje de estátuas sem nenhum poder e não me surpreen­de que num país estrangeiro você tenha sido enfeitiçado, com a sua falta de experiência. Caso se arrependa sinceramente dos seus pecados, eu lhe mostrarei um novo caminho. As pessoas pre­cisam de coisas maiores do que magia, augúrios e estátuas de pe­dra. Enquanto você esteve fora, passei por coisas que nunca ima­ginei antes que fossem possíveis.

Candidamente, pedi que me falasse de sua experiência, mas me senti desalentado, quando percebi que a mulher de seu tio, Pau­lina, começara a usá-la como intermediária entre ela e seus amigos, envolvendo assim Cláudia nas infames maquinações dos cristãos.

Eles têm o poder de curar os doentes e perdoar os nossos pecados disse Cláudia, com fervor. Um escravo ou o mais pobre artífice é igual ao indivíduo mais rico e mais importante em seus ágapes. Nós nos cumprimentamos com um beijo, em sinal de nosso mútuo amor. Quando o espírito aparece à congregação, os presentes são tomados de êxtase sagrado, de modo que gente sim­ples começa a falar línguas estrangeiras e as faces dos santos bri­lham na escuridão.

Encarei-a com o mesmo horror com que se olha uma pessoa muito doente, mas Cláudia segurou minhas mãos:

Não os condene antes de conhecê-los. Ontem foi o dia de Saturno e o sabá judaico. Hoje é o dia santo dos cristãos, por­que foi um dia depois do sabá que seu rei ressurgiu dos mortos. Mas os céus podem abrir-se qualquer dia e êle voltará à terra e fundará o reino do milênio, em que os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos.

Cláudia estava assustadoramente bela, como uma profetisa, en­quanto falava. Só posso crer que houvesse realmente alguma força irresistível falando por sua boca, paralisando minha vontade e em­botando meu espírito, pois quando disse —- Vem comigo, vamos vê-los imediatamente — levantei-me submisso e segui-a. Pensando que eu estivesse com medo, ela me assegurou que não me obri­gariam a fazer nada contra a minha vontade e que eu me limitaria a ver e ouvir. Justifiquei minhas ações a mim mesmo, dizendo que tinha razão de aprender alguma coisa acêrca dessas novas crenças de Roma, assim como tratara de estudar os druidas na Bretanha.

Quando chegamos à parte judaica da cidade, Transtibéria, o local encontrava-se em estado de alarma e intranqüilidade. Depa­ramos com mulheres correndo aos gritos, e nas esquinas havia gente lutando com os punhos e com paus e pedras. Até mesmo judeus respeitáveis e encanecidos, envergando seus mantos de bor­las, participavam do salseiro, e a polícia do Prefeito da Cidade não parecia dominar a situação. Mal os guardas conseguiam com seus bastões pôr termo a uma refrega, rebentava outra no beco seguinte.

Pode me dizer, em nome de todos os deuses de Roma, o que se passa aqui? perguntei a um guarda esbaforido que lim­pava o sangue da testa.

Um sujeito chamado Cristo sublevou os judeus uns con­tra os outros explicou êle. Como está vendo, a ralé da cida­de inteira veio para cá. É melhor ir com sua pequena para outro lugar. Já mandaram chamar os pretorianos. Daqui a pouco haverá aqui outros narizes sangrando além do meu.

Cláudia olhou excitada em redor e soltou um grito de prazer.

Ontem os judeus expulsaram com violência das sinagogas todos os que reconhecem Jesus disse ela. Agora os cristãos estão revidando. E contam com a ajuda dos que não são judeus.

Nas vielas estreitas havia, de fato, grupos de escravos, fer­reiros e carregadores mal-encarados, procedentes das margens do Tibre, que forçavam as portas fechadas das lojas e as invadiam. Do interior vinham gritos lastimosos, mas os judeus são comba­tentes intrépidos, quando lutam por seu deus invisível. Agrupa­vam-se diante das sinagogas e rechaçavam todos os ataques. Não vi nenhuma arma. Naquela época, nem os judeus, nem nenhum dos outros indivíduos que acorreram de todos os pontos de Roma, tinham permissão de usar armas.

Aqui e ali víamos alguns homens maduros, de braços ergui­dos, gritando:

Paz, paz, em nome de Jesus Cristo.

Conseguiram acalmar alguns exaltados, mas só até o ponto de fazer com que eles abaixassem os porretes, deixassem cair as pedras e fossem de mansinho tomar parte em outro motim. Os judeus mais respeitáveis ficaram tão enfurecidos que se aglomera­ram defronte da sinagoga de Júlio César e se puseram a arrancar a barba e rasgar as vestes, clamando contra o sacrilégio.

Fiz o que pude para proteger Cláudia e impedir que se en­volvesse na luta, mas ela caminhou obstinadamente para a casa onde seus amigos iam realizar seus mistérios naquela noite. Quan­do chegamos lá, um grupo arrebatado de fervorosos crentes judeus estava arrastando para fora e derrubando aqueles que se tinham escondido no interior. Rasgavam os pacotes dos outros, esvazia­vam-lhes as cestas de comida e calcavam tudo aos pés, batendo como se bate nos porcos do vizinho. Quem tentava fugir era der­rubado e pisoteado no rosto.

Não sei como aconteceu. Talvez eu estivesse possuído pelo natural desejo de lei e ordem de um romano, ou talvez tentasse defender os mais fracos contra a violência dos atacantes, ou talvez Cláudia me tivesse instigado, mas a verdade é que me vi de re­pente puxando a barba de um judeu enorme e com um golpe de luta romana arrancando-lhe um pau das mãos no momento em que êle, em seu fervor religioso, estava prestes a desferir um pontapé numa moça que havia derrubado ao solo. Em seguida, achei-me combatendo com toda a seriedade, e indubitavelmente do lado dos cristãos. Cláudia exortava-me, em nome de Jesus de Nazaré, a agar­rar todos os judeus que o não reconheciam como salvador.

Caí em mim quando Cláudia me puxou para dentro da casa e apressadamente joguei fora um cacete manchado de sangue, que apanhara não sei onde, percebendo com horror quais seriam as conseqüências, se eu fosse preso por me ter envolvido nas lutas religiosas dos judeus. Não tinha a perder só o posto de tribuno, mas também a estreita faixa vermelha de minha túnica.

Cláudia conduziu-me a um porão amplo, onde os judeus cris­tãos vociferavam todos a um só tempo sobre quem dera início aos motins, e mulheres chorosas punham ataduras nos ferimentos e un­guento nas contusões. Dos aposentos superiores desciam vários an­ciãos, trêmulos de medo, juntamente Com alguns homens que, pelas vestes, não pareciam ser judeus. Tão confusos como eu, presumi­velmente perguntavam a si mesmos como iriam sair daquela si­tuação embaraçosa.

Com eles vinha um homem que só reconheci tratar-se de Áquila, o fabricante de tendas, depois que limpou o sangue e a terra do rosto. Fora severamente maltratado, pois os judeus o ti­nham feito rolar num esgoto e lhe tinham quebrado o nariz. Apesar disso, êle não cessava de exigir ordem.

Traidores, todos vós! bradou. Não ouso mais cha­mar-vos de meus irmãos. Então a liberdade em Cristo é algo de que vos aproveitais para dar vazão à ira? Fostes castigados pelos vossos pecados. Onde está a vossa paciência? Devemos submeter-nos e responder com boas ações aos que nos insultam. Houve muitos protestos.

— Já não se trata de ensinar os pagãos, no meio dos quais vivemos, a louvar a Deus, com o exemplo de nossas boas ações — gritaram. Agora são os judeus que nos combatem e ofen­dem a nosso Senhor Jesus. É por êle e por sua glória que resis­timos aos maus, não para defender nossas vidas miseráveis.

Dirigi-me até onde estava Áquila, sacudi-lhe o braço e tentei cochichar que precisava ir embora. Mas, quando me reconheceu, iluminou-se-lhe o rosto e êle me abençoou:

Minuto, filho de Marco Maniliano! exclamou. Tu também escolheste o único caminho?

Abraçou-me, beijou-me os lábios e começou fervorosamen­te a orar.

Cristo padeceu por ti também. Por que não te modelas por êle e não lhe segues as pegadas? Êle não maltrata os que o maltrataram. Não ameaça ninguém. Não revida ao mal com o mal. Se sofres por Cristo, então louva a Deus por isto.

Não posso repetir tudo quanto jorrou de sua boca, já que êle não dava atenção a meus protestos. Mas é indubitável que seu fer­vor exercia poderoso efeito sobre os demais. Quase todos se puse­ram a rezar pelo perdão dos seus pecados, muito embora alguns murmurassem, por entre os dentes cerrados, que o reino jamais produziria frutos, se os judeus tivessem liberdade de caluniar, opri­mir e maltratar os súditos de Cristo.

Enquanto isso, lá fora, a polícia prendia gente, sem procurar saber se se tratava de judeus ortodoxos ou judeus cristãos, ou de quem fosse. Enquanto os pretorianos guardavam as pontes, muitas pessoas fugiam nos botes e aproveitavam a oportunidade para desa­marrar outros botes atracados nos cais, que passavam a flutuar ao sabor da corrente. A cidade estava desprotegida. Toda a polícia fora mobilizada para o distrito judaico. Formavam-se aglomerações nas ruas, todos gritavam o nome de Cristo, como senha aprendida na outra banda do rio.

Pilharam lojas e incendiaram diversas casas. Quando o distrito judaico voltou à calma, o Prefeito teve de mandar seus homens de volta à cidade. Isso me salvou, pois os guardas estavam começan­do a busca em todas as casas do bairro dos judeus.

A noite descera. Sentado melancolicamente no chão, com a cabeça nas mãos, senti fome. Os cristãos juntaram a comida que restava e puseram-se a dividi-la entre todos os presentes. Tinham pão e azeite, cebola, mingau de ervilha e vinho. Áquila abençoou o pão e o vinho, à maneira cristã, como se fossem a carne e o sangue de Jesus de Nazaré. Aceitei o que me foi oferecido e dividi o pão com Cláudia. Recebi um pouquinho de queijo e uma fatia de carne seca. Bebi do vinho no mesmo cálice dos outros quando chegou a minha vez. Quando terminaram de comer, beijaram-se delicadamente.

Oh, Minuto — disse Cláudia, depois de me ter beijado.

_ Estou tão feliz que tenhas comido da Sua carne e bebido do

Seu sangue, para que te sejam perdoados os pecados e ganhes a vida eterna. Não sentes o espírito arder em teu coração, como se tivesses jogado fora os trajes esfarrapados de tua vida anterior e vestido novos?

Respondi amargurado que o único ardor que sentia era do vinho azedo e barato. Só então me dei conta do que ela quisera dizer, e vi que acabara de tomar parte no ágape secreto dos cris­tãos. Fiquei tão aterrado que tive vontade de vomitar, embora sou­besse que não bebera sangue no cálice.

— Bobagem! — disse eu, furioso. — Pão é pão, e vinho é vinho, quando se está com fome. Se nada pior do que isso acon­tece no meio de vocês, não vejo por que se contam tantas histó­rias absurdas acerca de suas superstições. Compreendo ainda menos como tais atividades inocentes podem gerar tanta violência.

Estava muito cansado para altercar, mas afinal ela me per­suadiu a observar mais de perto os ensinamentos cristãos. Não vi nada errado em suas tentativas de se defenderem dos judeus. Mas estava convencido de que seriam punidos, caso as desordens con­tinuassem, quer eles ou os judeus ortodoxos fossem responsáveis.

Áquila admitiu ter havido agitação antes, mas não até esse ponto. Assegurou-me que os cristãos, geralmente, se reuniam sem atrair a atenção e também respondiam com boas palavras aos in­sultos. Mas os judeus cristãos também tinham direito legal a en­trar nas sinagogas, ouvir a leitura das escrituras e falar. Muitos haviam participado da construção das novas sinagogas.

Naquela noite quente de verão levei Cláudia para casa, além do Vaticano e fora da cidade. Vimos o clarão das fogueiras e ou­vimos o murmúrio das multidões, do outro lado do rio. Carroças e carretas abarrotadas de alimentos, a caminho do mercado, esta­vam paradas na estrada. Os camponeses indagavam a si mesmos, apreensivos, o que estava acontecendo na cidade. Cochichavam, um para o outro, que um tal de Cristo incitava os judeus a come­terem crimes e atearem fogo às casas. Ninguém parecia ter uma palavra de simpatia pelos judeus.

Andando, comecei a manquejar e a ter dor de cabeça. Espan­tei-me de não ter até então sentido nenhum dos efeitos desagra­dáveis dos golpes que recebera na refrega. Quando finalmente che­gamos à choupana de Cláudia, sentia-me tão combalido, que ela nao me permitiu ir embora, mas implorou que eu passasse ali a noite. Apesar dos meus protestos, ela me pôs a dormir em sua cama, iluminada por uma candeia de azeite, mas depois passou a dar tais suspiros, enquanto se movimentava pelo quarto, que tive de perguntar-lhe se havia algo errado.

Não sou pura nem sem pecados — disse ela. — Mas cada palavra sua, a respeito daquela desavergonhada mocinha bretã, caiu como uma gota de fogo em meu coração, embora nem se­quer me lembre do nome dela.

Procure perdoar-me por não ter cumprido minha promes­sa — disse eu.

Que me importa a sua promessa? — gemeu Cláudia. — Maldigo a minha sorte. Sou carne da carne de minha mãe e o libertino Cláudio é meu pai. Não posso deixar de ficar profunda­mente perturbada ao ver você deitado na minha cama.

As mãos de Cláudia estavam geladas quando seguraram as minhas. Seus lábios também estavam frios, quando ela se curvou e me beijou.

Oh, Minuto — sussurrou. — Não tive a coragem de con­fessar antes que meu primo Caio me violentou, quando eu era ape­nas uma menina. Para se divertir, ele dormia às vezes com suas irmãs. Uma de cada vez. É por isso que odeio todos os homens. Você é o único que não odeio, porque me aceitou como amiga, sem saber quem eu era.

Que mais precisava eu dizer? Para consolá-la, arrastei-a para a cama. Ela tremia de frio e vergonha. Nem posso justificar meu ato dizendo que ela era mais velha do que eu, pois devo confessar que fui me tornando cada vez mais ardente, até que ela se chegou a mim, rindo e chorando, e compreendi que a amava.

Quando acordamos de manhã, ambos nos sentíamos tão felizes que não queríamos pensar senão em nós mesmos. Irradiando feli­cidade, Cláudia era bela a meus olhos, a despeito de suas feições grosseiras e de suas sobrancelhas espessas. Lugunda tornou-se uma sombra longínqua. Cláudia era uma mulher adulta, em comparação com aquela mocinha imatura e caprichosa.

Não trocamos juras e nem mesmo sentíamos desejo de pensar no futuro. Se me oprimia um vago sentimento de culpa, confor­tava-me o pensamento de que Cláudia sabia muito bem o que estava fazendo. Pelo menos ela tinha mais em que pensar, além dos supersticiosos mistérios dos cristãos. Isso me agradava.

Quando voltei para casa, tia Lélia comentou, com azedume, a ansiedade em que ficara por eu ter passado a noite fora sem avisar de antemão. Esquadrinhou-me atentamente com seus olhos orla­dos de vermelho e disse num tom de repreensão:

— Sua cara está tão radiante, que até parece que você anda escondendo algum segredo vergonhoso. Contanto que não se tenha extraviado num bordel sírio...

Farejou minhas roupas com ar suspeitoso.

_  Não, não está com cheiro de bordel. Mas há de ter pas­sado a noite em alguma parte. Não vá agora meter-se em alguma sórdida aventura amorosa. Isso não leva a nada e só traz abor­recimentos para você e para outros.

Meu amigo Lúcio Pólio, cujo* pai se tornara Cônsul naquele ano, veio ver-me à tarde. Estava preocupadíssimo com os motins:

— Os judeus estão ficando cada vez mais insolentes, sob a proteção de seus privilégios. O Prefeito da Cidade passou a manhã inteira interrogando os presos e tem provas irrefutáveis de que é um judeu chamado Cristo que está sublevando os escravos e a plebe. Não é um ex-gladiador, como Espártaco, mas um traidor que foi condenado em Jerusalém e, de um modo ou de outro, tor­nou a viver, depois de ter sido crucificado. O Prefeito expediu ordem para que o prendessem e estipulou um prêmio para quem o capturasse. Mas acredito que o homem já fugiu da cidade, agora que sua rebelião fracassou.

Estive a ponto de explicar ao douto Lúcio que, por Cristo, os judeus entendiam o Messias em que acreditavam, mas não podia mostrar que estava tão bem informado acerca dessa doutrina sediciosa.

Mais uma vez percorremos o manuscrito de meu livro, com o fito de tornar a redação tão clara quanto possível.

Lúcio Pólio prometeu encontrar um editor, se o livro ven­cesse a prova decisiva que é a leitura em público.

No seu modo de ver, o trabalho resistiria galhardamente. Cláudio gostaria de ver lembrada sua vitoriosa campanha entre os bretões. Para lisonjeá-lo bastava demonstrar interesse pelas ques­tões da Bretanha e, sob esse aspecto, meu livro podia ser consi­derado excelente; tal era a opinião de Pólio.

As divergências em torno da propriedade das sinagogas, causa inicial dos dissídios entre os judeus, dirimiu-as o Prefeito da Cida­de, que proclamou que todos os que haviam concorrido para a ereção delas tinham o direito de usá-las.

Os judeus ortodoxos e os judeus mais liberais tinham sina­gogas próprias. Mas quando os judeus que reconhecem Cristo se apoderavam de uma sinagoga, os outros judeus retiravam dela os valiosos códices e preferiam incendiá-la a entregá-la aos odiados cristãos. Daí resultavam novas perturbações da ordem. Afinal, os judeus ortodoxos cometeram o grande erro político de recorrer ao Imperador.

Cláudio já estava enfurecido dom os distúrbios que empana­vam a felicidade de seu novo casamento. Ficou ainda mais encole­rizado quando os judeus ousaram lembrar-lhe que não seria Im­perador, agora, se não tivesse contado, antes, com o apoio deles.

Era verdade inconteste que o companheiro de copo de Cláudia, Herodes Agripa, pedira emprestado aos judeus ricos de Roma o dinheiro necessário para subornar os pretorianos, após o assassínio de Caio Calígula. Mas Cláudio tivera de pagar juros exorbitantes e, por outros motivos, não queria que lhe fizessem lembrar este incidente que lhe ferira a vaidade.

Sua cabeça de ébrio pôs-se a tremer de ira. Gaguejando mais do que nunca, despediu os judeus e ameaçou expulsá-los de Roma,

se tornasse a ouvir falar em motins.

Os judeus cristãos e a plebe que a eles se juntara tinham seus próprios chefes também. Foi com espanto que encontrei na casa de Túlia e de meu pai o questionador Áquila, sua mulher Prisca, e alguns outros cidadãos respeitáveis, cujo único defeito consistia em se mostrarem propensos aos mistérios cristãos. Eu tinha ido ver meu pai, para falar a respeito de Cláudia. Naquela época, eu a visitava duas vezes por semana e passava a noite com ela. Achava que era preciso tomar alguma decisão a esse respeito, muito embora Cláudia não fizesse exigências diretas.

Tendo surpreendido meu pai e perturbado a reunião, ele me disse que esperasse um momento e continuou a conversa.

— Sei bastante a respeito do rei dos judeus — ia dizendo meu pai — pois após sua crucificação eu estava na Galileia e me convenci de que ele se levantou do túmulo. Seus discípulos me repeliram, mas posso afirmar que em nenhum instante ele sublevou o povo da maneira como está ocorrendo aqui em Roma.

Já ouvira tudo isso antes e não entendi por que, na velhice, meu pai continuava repetindo a mesma história. Mas Áquila tratou de explicar.

Quaisquer que sejam os nossos atos — disse ele — sere­mos sempre o empecilho em que todos esbarram. Somos mais odiados do que os idólatras. Não podemos sequer sustentar o amor mútuo e a humildade entre nós mesmos, pois todo mundo pensa que sabe mais. Os que mais se dedicam a propagar a palavra são os que acabam de encontrar o caminho e reconhecer Cristo.

Seja como fôr, estão dizendo que ele mesmo ateou fogo à terra, separou o marido da mulher e incitou os filhos contra os pais — disse Prisca. — E isso é precisamente o que está ocorrendo aqui em Roma, apesar de nossas boas intenções. Como o amor e a humildade podem frutificar em meio à discórdia, à desunião, ao ódio, ao rancor e à inveja, não posso compreender.

Escutando-os, enchi-me de virtuosa cólera.

— Que querem vocês de meu pai? — bradei. — Por que o atormentam até o ponto de fazê-lo altercar com vocês? Meu pai é um homem bondoso e lhano. Não vou permitir que o envol­vam em suas ridículas disputas.

Meu pai empertigou-se:

Silêncio, Minuto! Só através do debate é que se esclare­cem as questões, mas este assunto, quanto mais é discutido, mais se complica. Todavia, já que solicitaram meu parecer, sugiro isto: uma trégua. No tempo do Imperador Caio, os judeus de Antioquia tiravam grande proveito desse alvitre.

Fitaram meu pai, sem entender o que êle queria dizer.

_ Separem-se dos judeus disse êle, com um sorriso dis- traído deixem a sinagoga, suspendam o pagamento dos impos- tos do templo. Construam seus próprios centros de reunião, se qui- serem. Há ricos entre os seus prosélitos. Talvez possam arrecadar grandes doações, de homens e mulheres que acreditam poder com- prar a paz de espírito mediante o apoio dado a deuses diferentes. Não molestem os judeus. Guardem silêncio quando forem insul- tados. Mantenham-se a distância, como eu faço, e tratem de evitar as dissensões entre vocês mesmos.

Essas são palavras terríveis disseram todos a uma voz. Devemos dar testemunho do nosso rei e proclamar o seu reino. De outro modo, não seremos dignos dele.

Meu pai estendeu as mãos e deu um suspiro de desalento.

Seu reino está demorando muito a chegar falou mas, sem dúvida, vocês é que partilham do espírito dele e não eu. Fa­çam como quiserem. Se o assunto fôr apresentado ao Senado, ten­tarei interceder por vocês. Mas, se me permitirem, não mencio­narei o reino. Isso apenas os tornaria politicamente suspeitos.

Deram-se por satisfeitos com isto e foram embora no mo­mento justo, pois Túlia os encontrou na arcada, ao voltar de suas visitas, e não gostou.

Oh, Marco disse ela. Quantas vezes tenho de te dizer que não recebas esses duvidosos judeus? Não tenho nada contra a tua ida às palestras dos filósofos. Se isso te dá prazer, podes ajudar os pobres, enviar o teu médico aos doentes e ofertar dotes as moças órfãs. Mas, por todos os deuses, afasta-te dos judeus, para o teu próprio bem.

Em seguida, voltou a atenção para mim, deplorou os meus sapatos deselegantes, as dobras mal cuidadas do meu manto e meu cabelo mal cortado.

Já não estás entre rudes soldados disse, com aspereza. Precisas ter mais cuidado com a tua aparência, por amor a teu pai. Suponho que terei de te enviar um barbeiro e um criado pes­soal. Tia Lélia é muito antiquada e míope para enxergar um pouco mais longe.

Redargui, mal-humorado, que já tinha um barbeiro, pois não queria ter nenhum dos seus escravos a me seguir os passos. É ver-ade que, no dia do meu aniversário, eu comprara e alforriara um escravo de quem me compadecera e o ajudara a estabelecer-se, Por conta própria, em Subura. Êle ia muito bem de vida, venden­do perucas de senhoras e exercendo, como era de esperar, o proxe­netismo. Expliquei também que tia Lélia iria sentir-se profunda­mente ofendida se um escravo desconhecido passasse a cuidar dos meus trajes.

De qualquer forma, os escravos dão mais trabalho do que alegria disse eu.

Túlia comentou que era simplesmente uma questão de disciplina.

Que pretendes realmente da vida, Minuto? Contaram-me que passas as noites nos lupanares e negligencias os estudos com teu professor de retórica. Se queres realmente ler o teu livro em público, este inverno, terás de dominar o teu corpo indisciplinado e trabalhar com afinco. É tempo de arranjares um casamento apropriado.

Expliquei que desejava, dentro de certos limites, aproveitar ao máximo a minha juventude e que pelo menos não me metera em dificuldade com as autoridades por causa de bebedeiras e outras coisas pelas quais se notabilizavam os jovens cavaleiros.

Estou estudando a situação disse eu. —- Tomo parte nos exercícios de equitação. Assisto às audiências do Pretório, quando há alguma coisa interessante. Leio livros. O filósofo Séneca tem sido muito bondoso comigo. Evidentemente, estou pensando em candidatar-me, no futuro, a um cargo de questor, mas sou ainda muito moço e inexperiente para isso, mesmo que obtivesse permissão especial.

Túlia olhou-me compassiva.

Deves compreender que o que é mais importante para o teu futuro é travar conhecimento com as pessoas certas explicou.

Consegui que fosses convidado pelas famílias boas, mas me dis­seram que te pões sorumbático e mudo, e não respondes à ami­zade com amizade.

Minha querida madrasta, respeito o teu julgamento sob todos os aspectos. Mas tudo quanto vejo e ouço em Roma me diz que evite ligar-me a pessoas que no momento são consideradas as pessoas certas. Duzentos cavaleiros, aproximadamente, sem falar em numerosos senadores, foram executados ou se suicidaram há coisa de um ou dois anos, simplesmente porque na época eram as pessoas certas ou conheciam muito intimamente as pessoas certas.

Graças a Agripina, tudo isso mudou agora retrucou Túlia, talvez com excessiva impaciência. Mas as minhas palavras lhe deram o que pensar. A coisa mais sensata que podias fazer

sugeriu instantes depois era dedicar o teu tempo às corridas. Esta é uma atividade inteiramente apolítica, mas ainda assim dá margem a relações úteis. Gostas de cavalos, não gostas?

_ Cavalos também se tornam cansativos disse eu. Mas são menos perigosos do que as mulheres replicou Túlia, com malícia.

Meu pai encarou-a, pensativo, e disse que pelo menos nisso ela tinha razão.

_ Apenas atrairias desnecessária atenção observou vinga­tivamente se formasses teus parelheiros imediatamente, admi­tindo que teu pai pudesse fazer face às despesas. Sei que dentro de mais algum tempo os campos serão pastagens outra vez. O plan­tio de trigo na Itália não compensará, logo que o porto de Óstia estiver concluído. Mas difícilmente serias um bom criador de ca­valos. Contenta-te com apostar nas corridas.

Mas meus dias estavam bastante cheios sem o circo. Tinha minha velha casa no Aventino, e precisava cuidar de Barbo, tran­qüilizar tia Lélia e também defender meu liberto gaulês, que fora acusado, pelo vizinho, de espalhar um cheiro repugnante, com sua fabricação de sabão.

Era relativamente fácil defendê-lo no tribunal, uma vez que os curtumes e tinturarias exalavam odores muito mais repugnantes. Mas era mais difícil contestar a afirmação de que o uso de sabão, em vez de pedra-pomes, tinha conseqüências debilitadoras e era contra a vontade de nossos antepassados. O advogado do vizinho pretendia banir de Roma a manufatura de sabão, remontando aos antepassados dos nossos antepassados, até Rómulo, pois todos ti­nham julgado suficiente esfregar o corpo com a saudável e enrije-cedora pedra-pomes.

Em minha contestação, fiz o elogio de Roma como Império e potência mundial.

Rómulo não queimava incenso diante de seus ídolos bradei orgulhoso. Nossos austeros avoengos não mandavam buscar caviar do outro lado do Mar Negro, nem aves estrangeiras das Estepes, nem línguas de flamingos ou peixe da India. Roma é o cadinho de muitos povos e costumes. Roma escolhe o melhor de tudo e dignifica os hábitos alheios para que se tornem seus.

Assim, o uso de sabão não foi banido de Roma e meu liberto melhorou o produto, adicionando-lhe perfume e dando-lhe belos nomes. Ganhamos uma pequena fortuna com o Genuíno Sabão Cleópatra, não obstante ser fabricado numa ruela de Subura. Devo Confessar também que seus melhores fregueses, afora as mulheres romanas, eram gregos e pessoas do Oriente que moravam em Roma. O uso de sabão, nas termas, ainda era considerado imoral.

Não me faltava o que fazer mas, apesar de tudo, à noite, quando ia pegando no sono, muitas vezes me punha a refletir sobre o significado da vida. Em certas ocasiões, deleitava-me com os pe­quenos êxitos obtidos e, em outras, sentia-me deprimido porque tudo me parecia desprovido de sentido. O acaso e a fortuna go­vernavam a nossa existência, e a morte era cedo ou tarde o des­tino irremediável de todos. Era, naturalmente, feliz e bem-sucedido, mas todas as vezes que alcançava alguma coisa, minha satisfação se anuviava e eu me tornava novamente desgostoso comigo mesmo.

Afinal chegou o dia para o qual eu me preparara tão avida­mente. Ia ler o meu livro, na sala de palestras da Biblioteca Im­perial no Palatino. Através de meu amigo Lúcio Domício, o Im­perador Cláudio mandou avisar que estaria presente na parte da tarde. Por causa disso, todos os que buscavam o favor do Impe­rador lutaram por obter um lugar na sala.

Na assistência, encontravam-se alguns oficiais que haviam ser­vido na Bretanha, membros da comissão do Senado sobre assuntos bretãos, e até Aulo Pláucio. Mas muitas pessoas tiveram de ficar do lado de fora e queixaram-se a Cláudio de não haver lugar para elas, apesar de seu enorme interesse pelo assunto.

Comecei a ler de manhã cedo e, independentemente de minha compreensível excitação, li sem vacilações, entusiasmado com a minha própria leitura, como todo autor que se deu ao trabalho de burilar a própria obra. Nada me perturbava, tampouco, exceto os murmúrios e gestos de Lúcio Domício, que tentava mostrar-me como devia ler. Trouxeram uma refeição um tanto suntuosa de­mais, providenciada por Túlia e custeada por meu pai. Ao retomar, depois, a leitura, na parte referente aos costumes religiosos dos bretões, muita gente cabeceava de sono, embora este me parecesse um dos trechos mais interessantes do livro.

Fui forçado a interromper, quando Cláudio chegou, come prometera. Veio com Agripina e ambos tomaram assento no banco de honra, convidando Lúcio Domício a sentar-se entre eles. O salão ficou, de repente, apinhado, mas, aos que se queixavam, Cláudio disse com firmeza:

Se o livro merece ser ouvido, poderá ser lido outra vez. Tratai de comparecer então. Mas ide agora. Do contrário, nin­guém aqui vai poder respirar.

Na realidade, o Imperador estava ligeiramente embriagado e arrotava amiúde ruidosamente. Eu não lera mais do que umas poucas linhas quando ele me interrompeu:

Tenho a memória fraca. Permite-me então, como primeiro cidadão, em razão do meu cargo e da minha idade, apontar os teus acertos e também os teus erros.

Passou então à fornecer sua prolixa interpretação dos sacri­fícios humanos dos druidas, e declarou que, na Bretanha, pro­curara em vão os cestões de vime entrançado em que eram colo­cados os prisioneiros, antes de serem queimados vivos.

—É claro que acredito no que me contam fidedignas testemunhas oculares continuou. Mas confio mais nos meus próprios olhos e, por isso, não posso engolir a tua exposição na integra. Peço-te, porém, jovem Lauso, que prossigas. Ao cabo de mais alguns momentos êle me interrompeu, de novo com algo que vira na Bretanha e julgava necessário debater. As gargalhadas dos ouvintes desconcertaram-me um pouco, mas Cláudio tinha algumas observações inteligentes a fazer sobre meu livro.

Afinal, na metade da leitura, êle e Aulo Pláucio absorveram-se numa discussão acalorada, em torno dos pormenores da campanha do Imperador. O público estimulava-os, gritando "Apoiado, apoia­do" e fui forçado a suspender a leitura. Apenas a influência tran­quilizadora de Séneca fêz com que eu contivesse minha irritação.

O Senador Ostório, que parecia entendido em todas as ma­térias relacionadas com os bretões, entrou no debate. Sustentou que o Imperador cometera um erro político, ao dar por encerrada a campanha, sem suprimir os bretões.

Suprimir os bretões! É mais fácil dizer do que fazer retrucou Cláudio, justificadamente afrontado. Mostra a êle as tuas cicatrizes, Aulo. Isso me faz lembrar que tudo na Bretanha anda à matroca porque ainda não tive tempo de nomear um dele­gado para substituir Aulo Pláucio. Mas temos a ti, Ostório. Acho que não sou o único aqui a estar cansado de saber que és um perito em tudo. Vai para casa e prepara-te para viajar. Hoje mes­mo, Narciso aprontará as tuas credenciais.

Acredito que meu livro já havia revelado ao auditório que não era empreitada amena civilizar os bretões. Todos riram, e depois que Ostório deixou humilhado a sala, pude concluir mi­nha leitura em paz.

Cláudio teve a gentileza de me permitir continuar à luz de candeias, já que fora êle o autor das interrupções e do atraso. Quando Cláudio se pôs a aplaudir, todos os presentes prorrom­peram em palmas. Não havia mais correções a fazer no meu livro, pois já era tarde e todos estavam com fome.

Alguns dos que tinham ido ouvir-me foram conosco para a casa de meu pai, onde Túlia providenciara um banquete, uma vez que seu cozinheiro era célebre em toda a Cidade. Não se falou mais de meu livro.

Seneca apresentou-me a seu editor, um velho simpático, pá­lido, corcunda e míope de tanto ler, que propôs publicar meu tra­balho numa edição de quinhentos exemplares, para começar.

_ Sei que você mesmo pode arcar com as despesas de pu­blicação do seu livro disse êle, gentil. Mas o nome de um editor bem conhecido aumenta a venda de uma obra. Meus liber­tos tem cem escravos escribas que, num único ditado, são capazes e copiar qualquer livro rapidamente e sem muitos erros.

Séneca havia elogiado este homem, que não o abandonara nem mesmo quando êle estava no exílio, e pontualmente abastecera as livrarias com os textos que o filósofo enviara da Córsega para Roma.

Evidentemente ganho mais com traduções e revisões de histórias de amor e livros de viagens dos gregos. Mas nenhuma das obras de Séneca jamais deu prejuízo.

Percebi a indireta e respondi que, naturalmente, estava dis­posto a pagar minha parcela do custo de produção do livro. Era realmente uma grande honra para mim que êle pusesse seu nome respeitado como uma garantia da qualidade de meu livro. Depois disso, deixei-o e fui conversar com outros convidados. Eram tan­tos que fiquei confuso; também bebi vinho em demasia. Por fim, enchi-me de desespero ao compreender que nenhum dos presentes, na verdade, se interessava por mim ou pelo meu futuro. Para eles meu livro era apenas um pretexto para que pudessem comer pratos raros e beber o melhor vinho da Campânia, estudar e criticar uns aos outros e, às ocultas, assombrar-se com o êxito de meu pai, para o qual, a seus olhos, êle carecia de habilitações pessoais.

Tive saudades de Cláudia que, pensei, era a única pessoa no mundo que realmente me compreendia ou se interessava por mim. Ela naturalmente não ousara comparecer à sessão, mas eu sabia com que ânsia aguardava as novas da leitura. Sem dúvida estaria fora da choupana, contemplando as estrêias no céu de inverno e olhando para Roma, enquanto as carretas de legumes passavam, com estrondo, pela estrada e o gado mugia no distante silêncio da noite. Eu me habituara tanto a esses ruídos, durante as noites passa­das ao lado dela, que os amava. A simples lembrança das Chocalhantes rodas dos carros tornava Cláudia tão nitidamente presen­te em meu espírito que meu corpo começou a tremer.

Não há cena mais melancólica do que o término de uma grande recepção, quando os archotes ardem sem chama e fumegam nas arcadas, os últimos convidados, amparados por seus escravos, entram nas liteiras, as candeias se apagam, o vinho derramado é removido dos lustrosos pisos de mosaico e o vômito lavado das pa­redes dos reservados. Túlia estava encantada com o êxito da reunião e conversava excitada com meu pai, acerca desse ou daquele con­vidado, e do que êle ou ela tinha dito ou feito. Mas eu me sentia longe de tudo.

Se fosse mais experiente, teria compreendido que isso era de­vido aos efeitos do vinho mas, jovem como era, não percebi. Assim, nem mesmo a companhia de meu pai me atraía, quando êle e Túlia reparavam as forças, ingerindo um pouco de vinho suave e produtos marinhos frescos, enquanto os escravos e fâmulos arru­mavam os grandes aposentos. Agradeci a ambos e saí sozinho, sem pensar nos perigos de Roma à noite, apenas desejando arden-

temente ver Cláudia. A choupana estava aquecida e a cama tinha um suave cheiro lã Cláudia alimentou o braseiro para que eu não sentisse frio. A príncípio, disse que não me esperava, depois de uma recepção tão suntuosa e do sucesso de meu livro. Mas tinha lágrimas nos olhos quando sussurrou:

_ Oh, Minuto, agora eu sei que você me ama de verdade.

Após um longo momento de prazer e um curto período de sono, a manhã penetrou na choupana. Não havia sol e o inverno cinzento doía na alma quando, pálidos e cansados, tornamos a olhar um para o outro.

_ Cláudia — disse eu — o que acontecerá a você e a mim?

A seu lado sinto-me como se estivesse além das realidades, num outro mundo, sob as estrelas. Sou feliz com você. Mas isso não pode continuar assim.

Suponho que, no íntimo, eu esperava que ela se apressasse a responder que era melhor que as coisas continuassem como esta­vam e que podíamos prosseguir como antes, já que não era possí­vel agirmos de outro modo. Mas Cláudia soltou um profundo sus­piro de alívio.

— Eu o amo mais do que nunca, Minuto, porque você mesmo tocou nesse assunto delicado. É claro que as coisas não podem continuar como estão. Você, por ser homem, não pode talvez imaginar com que pavor eu espero as regras. Nem é digno de uma verdadeira mulher não fazer outra coisa senão esperar até que você tenha vontade de me visitar. Desse modo, minha vida não é nada mais que medo e espera aflita.

Estas palavras feriram-me profundamente:

— Você conseguiu esconder esses sentimentos muito bem — observei áspero. — Até agora me fez acreditar que bastam as mi­nhas visitas para torná-la feliz. Mas tem alguma sugestão a fazer?

Agarrou com força as minhas mãos e encarou-me nos olhos.

— Só há uma possibilidade, Minuto. Sairmos de Roma. Aban­done a sua carreira. Em qualquer parte, nas províncias ou no outro lado do mar, podíamos viver juntos, sem receio, até à morte de Cláudio.

Não podia olhá-la nos olhos e puxei minhas mãos que esta­vam presas nas dela.

Você disse que gostava de segurar os cordeiros enquanto eu os tosquiava — disse ela — e de ir buscar lenha para o fogo. Elogiou a água da minha fonte e disse que a minha comida simples era melhor do que a ambrosia celeste. Encontraríamos a mesma felicidade em qualquer recanto do mundo, contanto que fosse bas­tante longe de Roma.

Refleti um instante e falei sério:

— Não renego nem retiro minhas palavras. Mas uma decisão como esta tem conseqüências muito amplas para ser tomada no impulso do momento. Não podemos assim, sem mais nem menos, partir para um degredo voluntário.

E só por malícia, acrescentei:

— Que me diz do reino pelo qual você está esperando e dos ágapes secretos em que toma parte?

Cláudia pareceu abatida:

— Estou pecando com você — respondeu — e com eles já não sinto o mesmo arrebatamento que sentia. É como se pudessem ler no meu coração e estivessem sofrendo por mim. Por isso come­cei a evitá-los. Sinto-me mais culpada todas as vezes que nos en­contramos. Você roubará minha fé e minha esperança, se tudo con­tinuar como antes.

Ao voltar ao Aventino tive a sensação de que me tinham ati­rado um balde de água. Sabia que me comportara vergonhosa­mente, usando Cláudia como instrumento de prazer, sem ao menos lhe dar dinheiro. Mas pensei que o casamento era um preço muito alto a pagar pela mera satisfação sexual, e nem desejava sair de Roma, quando me lembrava como tinha sonhado com ela, quando menino, em Antioquia, e homem, nos invernos da Bretanha.

Em conseqüência disso, passei a ver Cláudia cada vez menos e a descobrir ocupações, até que a inquietação do corpo me levava a vê-la de novo. Depois disso, já não éramos felizes juntos, a não ser na cama. Atormentávamo-nos constantemente até que mais uma vez eu ia embora furioso.

Na primavera seguinte, Cláudio expulsou os judeus de Roma, pois não se passava um dia sem que rebentasse um distúrbio, de modo que a desunião entre os judeus causava intranqüilidade em toda a cidade. Em Alexandria, judeus e gregos rivalizavam em matar uns aos outros, e em Jerusalém agitadores judeus causavam tantos tumultos que, afinal, Cláudio fartou-se de todos eles.

Seus libertos influentes estavam de perfeito acordo com a decisão do Imperador, porquanto podiam agora vender permissões especiais, a preços altos, aos judeus mais ricos que pretendiam esca­par ao exílio. Cláudio não chegou sequer a submeter sua decisão ao Senado, embora houvesse muitos judeus que viviam em Roma, há várias gerações, e tinham alcançado a cidadania. O Imperador julgou que um édito escrito fosse suficiente, desde que não priva­va ninguém do direito de cidadania. Também se propalara o boato de que os judeus haviam subornado inúmeros senadores.

Assim, as casas da outra margem do Tibre foram abandonadas e as sinagogas fechadas. Muitos judeus que não tinham dinheiro esconderam-se em diversas partes de Roma, onde os superintenden­tes distritais da cidade tiveram dificuldade para localizá-los. A polí­cia do Prefeito da Cidade prendeu muitos indivíduos na via pública.

E forçou-os a mostrar o membro, para ver se eram circuncisos. Alguns foram descobertos nos lugares públicos, pois os cidadãos romanos não tinham, em geral, grande estima pelos judeus, e até mesmo os escravos tinham certa má-vontade contra eles. Os judeus capturados eram postos a trabalhar no porto de Óstia ou nas minas da Sardenha, o que, obviamente, era um enorme desper­dício pois eram artífices habilíssimos. Mas Cláudio foi impiedoso.

O ódio entre os próprios judeus tornava-se ainda mais violen­to quando altercavam em torno do que fora o motivo do desterro. Nas estradas fora de Roma encontraram-se muitos judeus mortos. Impossível dizer se eram cristãos ou ortodoxos. Um judeu morto era um judeu morto e os guardas das estradas não se importavam muito com eles desde que o crime não ocorresse nas suas barbas. "O único judeu bom é o judeu morto", gracejavam uns com os outros, enquanto, no interesse da ordem, procuravam ver se o corpo mutilado que encontravam era circunciso.

Os cristãos incircuncisos sofriam dolorosamente a dispersão dos seus chefes e os seguiam em longos percursos para protegê-los contra os ataques. Eram ignorantes e pobres, alguns, escravos, e as desilusões da vida tornava-os amargos. Na confusão que se estabe­leceu, após o desterro dos judeus cristãos, eles eram como um re­banho sem pastor.

Apegavam-se uns aos outros, de maneira comovente, e reu­niam-se para comer suas refeições humildes. Mas entre eles um pregava uma coisa e outro, outra, de modo que ao fim de algum tempo se separavam em grupos opostos. Os mais velhos aferravam-se obstinadamente ao que tinham escutado, com os próprios ouvidos, acerca da vida e dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, mas outros propendiam a oferecer outras versões.

Os mais audazes punham à prova seus poderes, atingindo um estado de êxtase e praticando a cura pela superposição de mãos. Mas nem sempre eram bem sucedidos. Simão, o mago, não foi ex­pulso, não sei se por ter comprado sua liberdade ou porque, sendo samaritano, não era considerado judeu.

Tia Lélia me contou que ele ainda curava os doentes com seus poderes divinos. Pensei que se contentasse com aqueles sobre os quais tinha influência. Não sentia vontade de voltar a vê-lo, mas ele fazia proselitismo entre as cristãs ricas e curiosas, que acredita­vam mais nele do que nos que pregavam humildade e um modo simples de vida, o amor mútuo e o retorno à terra do filho de seu deus envolto numa nuvem do céu. Fortalecido com isto, Simão, o mago, recomeçou seus vôos e costumava desaparecer, de repente, da vista de seus seguidores, para reaparecer em outra parte.

Tive alguns problemas com Barão também, pois às vezes ele negligenciava suas obrigações de porteiro e rumava para lugar ig­norado. Tia Lélia, com medo dos ladrões, exigiu que eu o chamas­se à ordem.

Sou um cidadão como os outros — contestou ele — e dou meu cesto de trigo à casa quando há distribuição. Você sabe que não me incomodo muito com os deuses. Contento-me em fazer sa­crifícios a Hércules, uma vez ou outra, quando há realmente neces­sidade, mas, com a aproximação da velhice, a gente tem de pôr as coisas em ordem. Vários bombeiros e outros veteranos me conven­ceram que eu devia entrar para uma sociedade secreta, graças à qual não morrerei nunca.

O outro mundo é um lugar sinistro — disse eu. — Os es­pectadores se satisfazem em lamber o sangue em volta dos altares dos sacrifícios. Não seria mais prudente aceitar o próprio destino e contentar-se com os espectros e as cinzas quando a vida chega ao fim?

Mas Barbo balançou a cabeça:

— Não tenho o direito de revelar os segredos dos iniciados — respondeu — mas posso dizer-lhe que o nome do novo deus é Mitras. É filho de uma montanha. Os pastores o encontraram e prosternaram-se diante dele. Depois, ele matou o grande touro e trouxe tudo o que é bom para o mundo. Prometeu a imortalidade a todos os seus iniciados que foram batizados no sangue. Se não estou enganado, vou receber novos membros, depois da morte,

e morar numa caverna bonita, onde os deveres são leves e o vinho e o mel sempre abundantes.

— Barbo, pensei que você já tivesse juízo bastante para não acreditar em tais balelas. Acho que devia ir curar-se numa estação de águas. Temo que o excesso de vinho o tenha levado a ver miragens.

Mas Barbo levantou, com dignidade, as mãos trêmulas:

_ Não, não — disse ele — quando as palavras são pronun­ciadas, a luz de sua coroa resplandece na treva e o sino sagrado começa a tanger, então sentimos um tremor na barriga, os cabelos se põem em pé e até mesmo os mais céticos se convencem de sua divindade. Depois disso, comemos uma refeição sagrada, em geral carne de boi, quando um velho centurião passou pelo batismo de sangue. Depois de bebermos vinho, todos cantamos em coro.

Estamos vivendo numa época estranha — disse eu. — Tia Lélia se salva com a ajuda de um mágico samaritano, meu pró­prio pai se inquieta com os cristãos e você, um velho guerreiro, se imiscui nos mistérios orientais.

_ No Oriente nasce o sol — continuou Barbo. — De certo modo, este matador de touros é também o Deus Sol e assim o Deus dos soldados de cavalaria também. Mas eles não desprezam um veterano da infantaria como eu, e nada há que o impeça de apren­der tudo a respeito do nosso deus, contanto que você prometa guardar segredo. Em nosso grupo, há velhos e moços cavaleiros os que se cansaram dos sacrifícios e ídolos habituais. Naquela fase eu andava aborrecido com corridas e apostas, a vida de prazeres, ao lado de fúteis e presunçosos atores do teatro, e com a interminável conversa de Pólio e seus amigos, acerca de filosofia e da nova poesia. Prometi ir com Barbo a uma das reuniões de seu culto secreto. Ele ficou muito satisfeito e orgulhoso. Para minha surpresa, no dia marcado, ele realmente fez jejum e lavou-se completamente. Chegou mesmo a não tocar numa gota de vinho e vestiu roupas limpas também.

Naquela noite ele me levou, ao longo de ruelas tortas e féti­das a um templo subterrâneo, no vale entre o Esquilino e o Célio. Quando descemos a escada e entramos numa sala mal iluminada, de paredes de pedras, fomos recebidos por um sacerdote de Mi­tras, que trazia nos ombros uma cabeça de leão e que, sem me interrogar, permitiu que eu tomasse parte nos mistérios.

— Não temos do que nos envergonhar — explicou. — Exi­gimos limpeza, honestidade e varonilidade dos que seguem nosso deus Mitras, pela paz de suas almas e uma vida agradável depois da morte. Sua cara, jovem, está limpa e sua postura é ereta. Então creio que vai gostar do nosso deus. Mas, por favor, -não fale dele, sem necessidade, aos estranhos.

Na sala, havia uma multidão de velhos e moços. No meio deles reconheci, com assombro, vários tribunos e centuriões da Guarda Pretoriana. Alguns eram veteranos e inválidos de guerra. Todos envergavam roupas limpas e usavam a insígnia sagrada de Mitras, correspondente ao posto que ocupavam, de acordo com o grau de iniciação a que haviam chegado. A esse respeito, sua posição militar ou riqueza pessoal parecia não ter a menor im­portância.

Barbo explicou que, quando um irrepreensível veterano era iniciado com o batismo de sangue, cabia então aos iniciados mais ricos pagar pelo boi. Ele mesmo satisfazia-se com o grau de corvo, uma vez que não levara uma vida inteiramente inatacável e nem sempre se lembrava de apegar-se à verdade.

A luz era tão escassa na sala subterrânea, que não se podiam distinguir muitas caras. Mas vi um altar e, nele, a imagem de um deus com uma coroa na cabeça, matando um touro. Então, fez silencio. Os mais velhos da congregação passaram a entoar textos sagrados que sabiam de cor. Eram em latim e pude entender quase todos. Segundo seus ensinamentos, depreendi que se travava no mundo uma luta constante entre a luz e a treva, o bem e o mal.

Por fim, apagou-se a última candeia, ouvi um discreto esparrinhar de água e um sino de prata começou a soar. Muita gente soltou um suspiro pesado e Barbo apertou-me o braço com força. Vaga­rosamente, as luzes emanadas de frestas ocultas nas paredes prin­cipiaram a iluminar a coroa e a imagem de Mitras.

Não devo revelar mais nada dos mistérios, mas a piedade so­lene dos adoradores de Mitras e a confiança que depositavam na vida futura me convenceram. Após a vitória da luz e das forças do bem, as tochas da sala se acenderam e foi servida uma mo­desta refeição.

Todos pareciam aliviados, as caras irradiavam alegria, e con­versavam sem cerimônia, independentemente do posto e do grau de iniciação. A refeição consistiu em carne dura de boi e vinho azedo e barato dos acampamentos militares.

Pelas canções pias e pela conversa, tive a impressão de que todos eram homens honestos, embora simples, que se esforçavam virtualmente por levar uma vida inatacável. A maioria era cons­tituída de viúvas ou celibatários, que encontravam consolo e se­gurança nesse vitorioso Deus Sol e na companhia de seus iguais. Pelo menos não tinham medo de magia e não respeitavam outros augúrios senão os próprios.

Imaginei que só poderiam ser de grande valia e ajuda para Barbo. Mas as cerimônias mitraístas não me atraíam. Talvez eu me sentisse muito civilizado e jovem entre todos aqueles adultos um tanto solenes. Terminada a refeição, começaram a contar his­tórias, mas eram as mesmas histórias ouvidas, sem qualquer ceri­mônia, ao pé do fogo, em qualquer acampamento do Império Romano.

Contudo, meu espírito continuava agitado. Nesses momentos, tirava da arca meu cálice de madeira, acariciava-o e pensava em minha mãe grega, que nunca conhecera. Em seguida, tomava um pouco de vinho no cálice, em memória de minha mãe, e me sentia ligeiramente envergonhado de minha própria superstição. Chega­va, na verdade, a sentir a presença boa e suave de minha mãe. Mas nunca contei nada a ninguém acerca desse hábito.

Também entrei a atormentar-me com exercícios continuados de equitação, pois parecia experimentar maior satisfação ao do­minar um cavalo arisco e cansar meu corpo, do que ao passar uma noite lacrimosa com Cláudia. Assim, eu fugia a uma cons­ciência pesada e aos intermináveis sentimentos de culpa.

O moço Lúcio Domício ainda se sobressaía no campo de equi­tação, mas sua maior ambição era montar impecavelmente um cavalo bem adestrado. Foi escolhido como o melhor dos ginetes jovens da Ordem, e, para agradar Agripina, nós, os outros mem­bros da Nobre Ordem dos Cavaleiros, concordamos em mandar cunhar em homenagem a seu filho uma nova moeda de ouro. Transcorrera apenas um ano desde que o Imperador Cláudio o perfilhara.

Num lado da moeda fizemos imprimir seu em delineado perfil de menino e, em torno do retrato, seus novos nomes ado­tivos: A Nero Cláudio Druso, e em memória de seu avô materno,

- de Cláudio, Germânico. A inscrição no outro lado rezava: ANobre Ordem dos Cavaleiros rejubila com seu chefe. Na verdade, foi Agripina quem pagou a cunhagem. Distribuída como

 em todas as províncias, tinha naturalmente curso legal, orno todas as moedas de ouro cunhadas no templo de Juno Moneta.

Evidentemente, Agripina podia permitir-se essa pequena de­monstração política em proveito do filho. De seu segundo marido, Crispo Passieno, que por certíssimo período foi padrasto de Lúcio Domício, herdara ela uma fortuna de duzentos milhões de ses-tércios e soubera ampliá-la, através de sua posição de esposa do Imperador e amiga íntima do Procurador do Tesouro do Estado.

O nome Germânico tinha tradições antigas e era mais ilustre do que Britânico, de quem não gostávamos por causa de sua epi­lepsia e de seu horror a cavalos. Muitas anedotas circulavam a res­peito de sua verdadeira origem, desde que o Imperador Caio tinha-tão repentina e inesperadamente casado Messalina, adolescente de quinze anos, com o decrépito Cláudio.

Sendo um dos amigos de Lúcio, fui convidado para a festa de perfilhamento e as cerimônias sacrificatórias a ela relacionadas. Toda Roma reconhecia que Lúcio Domício fizera jus a sua nova posição em virtude de sua ascendência nobre e também de sua na­tureza alegre e agradável. A partir de então passamos a chamá-lo apenas de Nero. Seus nomes adotivos foram escolhidos por Cláu­dio, em memória de seu próprio pai, irmão mais moço do Impe­rador Tibério.

Lúcio Domício, ou Nero, foi o mais versátil e talentoso de todos os rapazes que conheci, e era física e espiritualmente mais precoce do que seus contemporâneos. Gostava de luta romana e derrotava todos os competidores, muito embora fosse tão admira­do que ninguém tentava seriamente vencê-lo, para não ferir-lhe os sentimentos. Nero desmanchava-se em lágrimas, quando sua mãe ou Séneca repreendiam-no com demasiada severidade. Foi educa­do pelos melhores mestres de Roma, e Séneca era seu professor de oratória. Eu nada tinha contra meu jovem amigo Nero, posto houvesse notado que êle sabia mentir hábil e plausivelmente, ao fazer alguma coisa que Séneca julgasse errada. Mas todos os ra­pazes fazem a mesma coisa, e ninguém podia ter raiva de Nero por muito tempo.

Agripina cuidava rara que Nero tivesse permissão de parti-ipar dos banquetes oficiais de Cláudio e se sentasse na ponta do sofá do Imperador, tão próximo quanto Britânico. Dessa maneira, os nobres de Roma e os enviados das províncias travavam conhe­cimento com Nero e tinham oportunidade de comparar os dois rapazes, o jovial e encantador Nero e o sorumbático Britânico.

Agripina convidava os filhos das famílias mais nobres de Roma para fazerem refeições com os dois rapazes. Nero atuava como anfitrião e Séneca conduzia a conversa, fornecendo a cada um o assunto de que devia falar. Desconfio que ele dava o tema a Nero de antemão e o ajudava a preparar sua alocução, pois todas as vezes Nero se destacava com sua oratória fácil e brilhante.

Eu era convidado, com freqüência, para essas refeições, uma vez que pelo menos metade dos convivas já tinha recebido a toga viril e Nero parecia realmente gostar de mim. Mas cansei de ouvir os oradores temperar constantemente seus discursos com versos cediços de Virgílio e Horácio, ou citações dos poetas gregos. Por isso comecei a preparar-me para as reuniões, lendo as obras de Séneca e decorando seus trechos preferidos sobre o autodomínio, a brevidade da existência e a calma imperturbável do sábio ante as vicissitudes do destino.

Desde que conheci Séneca comecei a ter por ele grande estima, pois não havia nada nesta terra sobre o que ele não desse uma opinião sensata, moderada e refletida, com sua voz bem educada. Mas eu queria ver se a imperturbabilidade do sábio também resis­tia à vaidade natural do homem.

É óbvio que Séneca me conhecia bem. Não era tolo, mas deve ter gostado de ouvir seus próprios pensamentos citados ao lado daqueles das sumidades do passado. Eu também fui bastante ladi­no para nunca mencionar-lhe o nome nas citações que fazia, uma vez que isso seria uma lisonja demasiadamente crua. Limitava-me a dizer: — Li outro dia não sei onde.. . — ou: — Tenho sem­pre na memória uma palavra...

A puberdade foi para Nero um verdadeiro tormento, e ele recebeu a toga viril aos quatorze anos. Levou a cabo o sacrifício a Júpiter, como um homem, não interrompendo nem se repetindo enquanto lia a litania sacrificatória. O fígado nada mais revelou do que bons augúrios. Nero chamou de volta a juventude de Roma e o Senado concordou unanimemente, sem o mais leve protesto, em que ele ocupasse o posto de Cônsul, ao completar vinte anos e, assim, como Cônsul, o direito a uma cadeira no Senado.

Nessa época, chegou um enviado da célebre ilha dos filósofos, Rodes, que veio pedir o restabelecimento da liberdade e o auto­governo para a ilha. Não sei se Cláudio se tornara mais benevo­lente para com o povo de Rodes, mas Séneca achou que era esse o momento mais propício para Nero proferir seu primeiro discurso na Cúria. Com o auxílio de Séneca, Nero preparou-se em segredo e com todo o cuidado para isso.

Meu pai me contou que ficara espantado quando Nero, após o discurso do enviado e alguns comentários sarcásticos do Senado, levantou-se timidamente e disse:

— Honrados pais.

Todo mundo despertou. Tendo Cláudio assentido com um

da cabeça, Nero transportou-se para a tribuna e entusiasticamente esboçou a história deRodes, dos célebres filósofos

dailha e dos grandes romanos que ali haviam completado sua educação:

Não terá já esta rosea ilha de sabios, cientistas, poetas e ora­dores sofrido bastante por seus erros? Não terá chegado o mo mento de enaltecê-la?

E foi por aí adiante. Quando terminou, todos olharam para Cláudio, como se êle fosse um criminoso, pois êle é que negara a liberdade a essa ilha. Cláudio sentia-se culpado, e a eloqüência de Nero o comovera.

_ Não fiqueis aí a encarar-me como vacas diante de uma

porteira disse êle com azedume. Tomai uma decisão. Sois o Senado de Roma.

Posta em votação, a proposta de Nero recebeu perto de qui­nhentos sufrágios. Meu pai disse que o que mais apreciou foi a modéstia de Nero. Em resposta a todas as congratulações, Nero dizia apenas:

Não me elogiem, elogiem meu preceptor.

Foi até onde estava Séneca e o abraçou à vista de todos.

Séneca sorriu e respondeu) para que todos ouvissem:

Nem mesmo o melhor preceptor pode fazer um bom ora­dor de um pupilo sem talento.

Não obstante, os senadores mais velhos não gostavam de Sé­neca, pois êle vivia feito um mundano e, na opinião deles, diluíra em seus escritos o inflexível estoicismo de outrora. Diziam tam­bém que êle era demasiadamente propenso a ter meninos bonitos como alunos. Mas isso não era propriamente culpa de Séneca. Nero odiava a feiúra a tal ponto que um rosto deformado ou um sinal de nascença desfigurante lhe tiravam o apetite. Seja como fôr, Sé­neca nunca me dirigiu uma palavra equívoca, nem permitiu que o ultra-afetuoso Nero beijasse seus professores.

Após sua nomeação para o cargo de Pretor, Séneca passou a preocupar-se principalmente com processos civis que, em si mes­mos, eram mais difíceis e complicados do que os processos crimi­nais, uma vez que diziam respeito a bens, propriedades, terrenos de construção, divórcios e testamentos. Êle mesmo dizia que não podia resolver-se a condenar alguém ao açoite ou à morte. Reparou que eu comparecia regularmente a todos os processos em que funcio­nava e um dia me fêz uma sugestão:

Você é um moço de talento, Minuto Lauso. Fala grego com o mesmo desembaraço com que se exprime em latim e revela interesse pelas questões judiciárias, como convém a um verdadeiro romano. Como encararia a idéia de se tornar Pretor assistente e, Por exemplo, desencavar velhos precedentes e decretos esquecidos sob a minha supervisão?

Enrubesci de prazer e afiancei-lhe que essa tarefa seria suma­mente honrosa. O rosto de Séneca se anuviou:

Você compreende, suponho observou êle que quase todos os rapazes dariam tudo para ter uma oportunidade, como esta, de derrotar os rivais nesta especialidade.

Eu compreendia, sim, e assegurei que lhe ficaria eternamente grato por um favor tão incomparável. Séneca balançou a cabeça:

Você sabe disse êle que, pelos padrões de Roma, não sou rico. No momento, estou construindo uma casa. Quando estiver pronta, espero casar-me e pôr fim a toda essa maledicência. Presumo que você administra seus próprios bens e pode pagar-me alguma compensação por minhas aulas de Direito.

Tomei fôlego e pedi-lhe que perdoasse minha falta de percep­ção. Quando lhe perguntei que quantia julgaria adequada, êle sor­riu e me deu uma palmadinha no ombro:

Talvez respondeu fosse conveniente você consultai seu rico pai, Marco Mezêncio, a esse respeito.

Fui direto a meu pai e indaguei se, por exemplo, dez moedas de ouro seriam uma soma grande demais para um filósofo que amava a modéstia e a vida simples. Meu pai soltou uma gar­galhada:

Conheço os hábitos modestos de Séneca disse êle. Deixe comigo e não se preocupe mais com isso.

Posteriormente, soube que êle enviara a Séneca mil moedas de ouro, ou seja, cem mil sestércios que, na minha opinião, cons­tituíam uma soma descomunal. Contudo, Séneca não se ofendeu, mas tratou-me ainda mais bondosamente do que antes, para mos­trar que perdoara a meu pai aquela extravagância de novo rico.

Trabalhei vários meses como assistente de Séneca, no Pretório. Êle era absolutamente justo nas decisões, pesando-as todas com cuidado. Nenhum advogado o iludia com eloqüência, pois êle pró­prio era o maior orador da época. Apesar disso, os que perdiam suas demandas espalhavam o boato de que êle aceitava suborno. É claro que tais boatos circulavam envolvendo todos os pretores. Mas Séneca afirmava peremptoriamente que nunca recebera um presente antes de proferir uma sentença.

Por outro lado, se a questão trata da propriedade de um terreno que vale um milhão de sestércios, é natural que o ganha­dor da causa dê posteriormente ao juiz um ou dois presentes. Nin­guém pode viver somente dos vencimentos de Pretor e custear es­petáculos gratuitos no teatro, durante o exercício do cargo.

Voltara a primavera. Sob o influxo do verde da relva, do sol cálido e das notas da cítara, as empoladas frases forenses foram banidas de nossos pensamentos pelos despreocupados versos de Ovídio e Propércio.

Eu vinha aguardando uma oportunidade para solucionar o problema de Cláudia e ocorreu-me que Agripina era a única pes­soa que podia fazê-lo com magnanimidade e justiça. Não podia falar de Cláudia a tia Lélia ou a Túlia —- a esta muito menos. Numa tarde encantadora, em que as nuvens acima de Roma resplandiam da cor do ouro, a oportunidade surgiu, quando Nero me levou aos jardins do Píncio. Lá encontramos sua mãe atarefada em dar instruções aos jardineiros, para a primavera. Afogueada pelo calor, o rosto se lhe iluminou, como de costume, ao ver seu belo filho.

_ Que há contigo, Minuto Maniliano? — perguntou ela. — Tens o ar de quem guarda alguma tristeza secreta. Teus olhos es­tão inquietos e não me encaras de frente.

Vi-me obrigado a fitá-la nos olhos, que eram límpidos e Sábios como os de uma deusa.

Permitiríeis realmente que eu vos apresentasse meu pro­blema? — balbuciei.

Ela me conduziu a um canto, longe dos jardineiros e dos es­cravos que cavavam a terra, e me pediu que falasse com franqueza e sem receio. Falei-lhe de Cláudia, mas minhas primeiras palavras fizeram-na estremecer, se bem que a expressão de rosto tranqüilo não se alterasse.

A reputação de Pláucia Urgulanila foi sempre duvidosa

disse ela, pensativa. — Eu a conheci, em minha juventude. Quisera agora não a ter conhecido. Como é possível que tenhas chegado a conhecer essa moça? Pelo que sei, ela não tem permis­são de pôr os pés dentro dos muros da cidade. Não é ela uma cabreira, na granja de Aulo Pláucio?

Contei como nos tínhamos conhecido, mas não pude prosse­guir, pois Agripina interrompia-me a todo instante com perguntas

para chegar à origem da questão, como dizia.

Nó nos amamos — aventurei-me a dizer, afinal — e gos­taria de me casar com ela, se descobrisse um meio de fazê-lo.

Minuto — protestou Agripina, com rispidez — ninguém deve casar com moças dessa espécie.

Tentei, como pude, exaltar os aspectos positivos de Cláudia, mas Agripina quase não me ouvia. Com lágrimas nos olhos, con­templava o crepúsculo vermelho-sangue que se espraiava sobre Roma, como se tivesse ficado transtornada pelo que eu dissera. Finalmente, interrompeu me, dizendo:

Dormiste com ela? Responde sinceramente.

Tive de dizer a verdade. Cometi até o erro de contar que éramos felizes juntos, embora isso já não fosse exato, em virtude das nossas brigas. Perguntei se havia qualquer possibilidade de uma boa família adotar Cláudia.

Oh, meu pobre Minuto — disse ela, compassiva — onde te meteste! Em toda Roma não há uma única família respeitável que queira adotá-la, nem por todo o dinheiro do mundo. A famí­lia que estivesse disposta a aceitá-la mostraria simplesmente que não é mais respeitável.

Fiz nova tentativa, escolhendo cuidadosamente minhas pala­vras, mas Agripina foi irredutível.

Neste ponto é meu dever, como protetora da Nobre Ordem dos Cavaleiros, pensar no que é melhor para ti e não nessa pobre moça libertina disse ela. Não fazes a menor idéia da repu­tação dela. Não quero me aprofundar no assunto, porque em tua cegueira dificilmente acreditarias em mim. Mas prometo estudar a questão.

Expliquei, confuso, que estava havendo um mal-entendido. Cláudia não era libertina nem depravada. Se isso fosse verdade, eu nunca teria sequer sonhado em casar-me com ela. Agripina, pelo menos, foi muito paciente comigo. Interrogando-me a respeito de tudo que havíamos feito juntos, Cláudia e eu, ensinou-me a dife­rença entre virtude e depravação na cama, e fêz-me Compreender que Cláudia era evidentemente muito mais traquejada do que eu nessas matérias.

O divino Augusto desterrou Ovídio, cujo livro imoral pre­tendia mostrar que o amor era uma arte explicou Agripina. Certamente não duvidas do seu julgamento. Esse tipo de arte é próprio dos bordéis. Comprova-o o fato de não poderes fitar-me nos olhos sem corar.

De qualquer modo, senti que havia retirado um peso dos om­bros, ao confiar a questão ao discernimento de Agripina. Feliz, saí correndo da cidade para contar a Cláudia que os nossos assuntos estavam em boas mãos. Não falara previamente de minhas inten­ções, a fim de não fazer surgir falsas esperanças.

Quando narrei minha conversa com Agripina, Cláudia empa­lideceu horrorizada, e as sardas de cada lado do nariz tomaram um tom castanho escuro, em contraste com a pele acinzentada.

Minuto, Minuto gemeu que foi que você fêz? Per­deu o juízo?

Fiquei, é claro, profundamente ofendido com essa falta de compreensão, pois acreditava estar fazendo tudo isso para o bem dela. Era necessário muita coragem moral para discutir um assunto tão delicado com a primeira dama de Roma. Tratei de perguntar a Cláudia o que tinha ela contra Agripina, mas Cláudia não me deu resposta. Sentou-se como que paralisada, as mãos no regaço, recusando-se até mesmo a olhar para mim.

As carícias que lhe fiz foram inúteis. Cláudia repeliu-me com brusquidão e afinal não pude deixar de pensar que ela tinha algo na consciência que não queria ou não podia revelar-me. Não lhe arranquei outra resposta, exceto que não valia a pena explicar, já

que era realmente tão simplório, a ponto de confiar numa mulher como Agripina.

Saí furioso, pois ela é que estragara tudo, com suas infindáveis histórias sobre casamento e nosso futuro. Já andara um bom pedaço, quando ela apareceu à porta e gritou por mim.

_ Vamos nos separar desse jeito, Minuto? Você vai embora sem me dizer uma palavra amável? Talvez não nos vejamos nunca mais.

Como é compreensível, eu estava decepcionado, porque ela não se rendera às minhas carícias, como em nossas reconciliações anteriores. Por isso, xinguei-a.

— Por Hércules! — bradei. — Espero que não nos vejamos nunca mais!

Ao chegar à ponte sobre o Tibre, estava arrependido e teria dado meia volta, se meu orgulho masculino não me tivesse impedido.

Passou-se um mês sem acontecer nada. Então, um dia, Séneca me chamou a um canto.

— Minuto Lauso — disse ele — você está agora com vinte anos. É tempo de se familiarizar com a administração de uma província, para o bem de sua carreira. Como é provavelmente do seu conhecimento, meu irmão recebeu a província de Acaia, por alguns anos, como recompensa por serviços prestados. Ele acaba de me escrever, dizendo que precisa de um assistente que entenda de leis e tenha alguma experiência militar. Você é um pouco jovem, naturalmente, mas acho que o conheço bem. E seu pai tem sido tão generoso comigo, que me sinto na obrigação de proporcionar a você esta excelente oportunidade de progredir. Seria conveniente que partisse o mais cedo possível. Pode partir imediatamente para Bríndisi e lá tomar o primeiro navio para Corinto.

Compreendi que se tratava de uma ordem, não apenas de um favor. Mas um rapaz nas minhas condições dificilmente conseguiria um posto melhor. Corinto é uma cidade alegre, feliz e vizinha da antiga Atenas. Eu poderia visitar todos os memoráveis lugares he­lénicos, nas viagens de inspeção. Ao regressar, depois de dois anos, talvez pudesse candidatar-me à função pública. A idade limite de trinta anos muitas vezes era reduzida com o auxílio de mérito es­pecial e boas relações. Agradeci reverentemente a Séneca e comecei a preparar-me para a longa viagem.

Na verdade, a designação vinha no momento mais favorável. Sabia-se em Roma que as tribos bretãs se tinham levantado para por Ostório à prova. Vespasiano já conheciam, mas Ostório ainda não estava a par das coisas da Bretanha. Já me assaltara o receio de ser enviado de novo para lá e eu não tinha nenhum desejo de ir. Até mesmo os icenos, que até então tinham sido os aliados mais pacíficos e corretos de Roma, vinham promovendo correrias, além do rio que lhes servia de fronteira, e por causa de Lugunda ter-me-ia sido difícil dar-lhes combate.

Apesar de tudo, achei que não devia partir sem despedir-me de Cláudia, por mais antipática que ela tivesse sido. Assim, um dia fui até o outro lado do Tibre, mas a choupana de Cláudia estava interditada e vazia. Ninguém respondeu aos meus chamados e seu rebanho tinha desaparecido. Dirigi-me a toda a pressa à fa­zenda de Pláucio e fiz perguntas. Mas fui recebido com frieza e ninguém parecia ter a menor idéia do paradeiro de Cláudia. Era como se fosse proibido pronunciar-lhe o nome.

Fiquei tão transtornado que voltei correndo para a cidade e fui ver tia Paulina, na casa de Pláucio, A velha, enlutada como de costume, recebeu-me mais lacrimosa do que nunca, mas não me deu nenhuma informação direta a respeito de Cláudia.

Quanto menos se falar nesse assunto melhor disse ela, olhando-me hostil. Você a arruinou, mas talvez isso tivesse de acontecer um dia, cedo ou tarde. Você é moço ainda e não creio que saiba o que fez. Mas não posso perdoá-lo. Peço a Deus que o perdoe.

Todo esse segredo me deixou desalentado e cheio de pressen­timentos. Não sabia em que acreditar. Não me sentia culpado, pois o que acontecera entre mim e Cláudia fora espontâneo. Mas eu estava com pressa.

Mudei de roupa e rumei para o Palatino, a fim de apresentar minhas despedidas a Nero, que disse invejar essa oportunidade de travar conhecimento com a antiga cultura grega. Tomando-me pela mão, como sinal de amizade, conduziu-me à sua mãe, embora Agripina estivesse ocupada com Palas, no exame das contas do erário. Palas era considerado o homem mais rico de Roma. Era tão soberbo que nunca falava com os escravos, contentando-se em exprimir seus desejos por meio de gestos que todos tinham de in­terpretar, sem perda de tempo.

Agripina evidentemente não gostou de ser incomodada, mas como sempre ficou satisfeita ao ver Nero. Desejou-me êxito em minha missão, preveniu-me quanto à frivolidade de Corinto e ma­nifestou a esperança de que eu buscasse o melhor da cultura helé­nica, mas regressasse um bom romano.

Gaguejei alguma coisa, encarando-a e fazendo um gesto de apelo. Ela entendeu, sem palavras, o que eu queria. O liberto Palas não se dignou olhar-me, mas mexia impaciente nos rolos de per­gaminho e escrevia algarismos em sua tabuinha de cera. Agripina recomendou a Nero que observasse a habilidade com que Palas somava grandes parcelas e me levou para outra sala.

Seria melhor que Nero não escutasse a nossa conversa disse ela. É um menino inocente, apesar de usar a toga viril.

Isso não era verdade, pois o próprio Nero se vangloriava de dormir com uma escrava e também de ter relações com um me­nino, só para se divertir, mas eu não podia dizer isso à sua mãe. Agripina fitou-me com seus olhos claros e uma expressão sublime e suspirou.

_  Sei que desejas notícias de Cláudia — disse ela. — Não quero desiludi-lo. Sei como se encaram essas coisas quando se é moço. Mas é melhor abrires os olhos em tempo, por mais que isso doa. Determinei que Cláudia passasse a ser vigiada. Por tua causa, tive de saber a verdade a respeito de sua vida e de seus hábi­tos. Não me importa que ela tenha desobedecido à proibição expres­sa de aparecer dentro dos muros da cidade. Também não me importa que ela tenha participado de certas refeições secretas dos escravos, nas quais imagino que aconteceram coisas não muito agradáveis. Mas é imperdoável que, fora da cidade e sem a necessária super­visão médica, ela se tenha vendido, por dinheiro a feitores, pastores, e outros indivíduos.

Essa acusação terrível e inacreditável tirou-me a fala, e Agri­pina volveu para mim um olhar de compaixão:

— A questão foi tratada pelo tribunal da polícia com o mí­nimo de publicidade — disse ela. — Havia muitas testemunhas. Para o teu próprio bem, não direi quem eram. A vergonha seria insuportável. Por misericórdia, Cláudia não foi punida como man­da a lei. Não foi açoitada, nem teve o cabelo raspado. Foi conde­nada a passar um período numa casa fechada do interior, a fim de se regenerar. Não te direi onde, para não cometeres alguma tolice. Se ainda quiseres vê-la quando voltares da Grécia, eu farei isso por ti, caso ela se tenha regenerado. Mas hás de prometer que não tentarás entrar em contacto com ela, antes desse tempo. Tu me deves isso.

Sua explicação era tão inconcebível que senti uma fraqueza nos joelhos e quase faleci. Lembrei-me apenas de tudo que me parecia estranho em Cláudia: sua experiência e o fato de ser ela em geral tão impetuosa. Agripina pôs sua mão encantadora em meu braço e balançou a cabeça lentamente:

— Examina bem a tua consciência, Minuto. Só a tua vaida­de juvenil te impede de ver como foste cruelmente traído. Apren­de a não confiar em mulheres depravadas e no que elas dizem. Foi uma sorte que tenhas conseguido desvencilhar-te em tempo, ao recorreres a mim. Nisto foste ajuizado.

Encarei-a, na esperança de notar o mais leve sinal de incer­teza em seu rosto redondo e em seus olhos claros. Ela afagou-me de leve a bochecha:

— Olha-me nos olhos, Minuto Lauso. Em quem acreditas mais, em mim ou naquela rapariga tola que tão cruelmente traiu a confiança que nela depositavas?

Meu bom senso e meus sentimentos conturbados porfiaram entre si para dizer-me que devia acreditar mais nesta dama gentil, que era a esposa do Imperador, do que em Cláudia. Curvei a ca­beça, pois a penosa desilusão me trazia quentes lágrimas aos olhos. Agripina apertou-me a cabeça de encontro ao seio macio. De re­pente, senti um tremor de excitação no corpo e fiquei mais en­vergonhado ainda.

— Por favor, não me agradeças agora, embora eu tenha feito por ti muita coisa que me foi desagradável — sussurrou ela em meu ouvido, inundando-me o rosto com seu hálito quente e fazzendo-me tremer ainda mais. — Sei que virás agradecer-me mais tarde, quando tiveres tido tempo de examinar toda a questão. Eu te salvei do pior perigo que um jovem pode enfrentar no limiar da idade viril.

Cautelosamente, com medo de alguma testemunha inesperada, ela me afastou de si e me contemplou com um sorriso adorável. Meu rosto estava tão afogueado e manchado de lágrimas que de­sejei não ser visto por ninguém. Agripina mandou-me embora por uma saída dos fundos do palácio. De cabeça baixa, desci a viela íngreme da Deusa da Vitória, tropeçando nas pedras brancas.

 

Corinto

Corinto é uma metrópole, a mais ativa e alegre do mun­do na opinião dos seus habitantes. Não obstante ter sido arrasada por Múmio, há uns duzentos anos, a cidade, renascida das cinzas, reúne hoje meio milhão de seres humanos, oriundos de todas as regiões da terra, graças sobretudo à visão do divino Júlio César. Da Acrópole, a cidade e suas ruas parecem refulgir dentro da noite. Para um jovem melancólico que remói amargamente a pró­pria credulidade, Corinto com sua vida movimentada é, em ver­dade, uma cura.

Meu servo Hierex mais de uma vez lamentou que me tivesse implorado que o comprasse, quando se achava no estrado do tra­ficante de escravos, em Roma. Sabia ler, escrever, dar massagem, cozinhar, regatear no mercado e falar grego e latim mascavado. Assegurou-me que viajara por muitos países, com seus amos ante­riores, e aprendera a remover os obstáculos do caminho deles.

O preço pedido pelo vendedor era tão elevado, que imaginei que Hierex fosse um escravo da mais alta qualidade, embora natu­ralmente houvesse razões para uma redução. Hierex pediu-me que não pechinchasse demais, pois seu senhor o cedera com relutância, por motivos financeiros decorrentes de uma ação judicial. Descon­fiei que Hierex iria receber uma parcela do seu próprio preço, se pudesse elevá-lo com sua facúndia. Mas no estado de espírito em que me encontrava, na ocasião, não me sentia em condições de regatear.

Hierex evidentemente desejava um amo jovem e amável, e tinha medo de acabar numa casa cuidadosamente governada, cheia de velhos rabugentos. Meu silêncio e minha melancolia ensina­ram-no a calar a boca, por mais que isso lhe custasse, pois êle era de nascença um verdadeiro tagarela grego. Nem mesmo a via­gem me distraía e eu não queria conversar com ninguém. Assim, dava ordens ao modo de Palas, só por meio de gestos. Hierex fazia o possível para servir-me, provavelmente receando que por trás de minha aparência sombria se escondesse um senhor cruel que sen­tisse prazer em castigar os escravos.

Jierex nascera  escravo e criara-se como tal. Não era robusto, comprei-o para não ter que procurar mais, já que êle não tinha

defeitos visíveis e seus dentes eram bons, apesar de ter mais de trinta anos. Evidentemente, desconfiei de alguma anormalidade que justificasse a venda, mas em minha posição não era possível viajar sem um criado. No começo, êle foi para mim um tormento, mas depois que o ensinei a ficar em silêncio, passou a tomar conta muito bem da minha bagagem, roupas e alimentação. Chegava mesmo a raspar minha barba ainda juvenil, sem me cortar ex­cessivamente .

Tinha estado antes em Corinto e escolheu alojamentos para nós dois na Hospedaria dos Navegantes, perto do templo de Netuno. Espantou-se de não ter eu corrido a fazer uma oferenda de agradecimento pelo venturoso resultado de uma viagem peri­gosa, mas, em vez disso, ter-me lavado, mudado de roupa e ido imediatamente ao fórum, apresentar-me ao Procônsul.

O edifício da administração da província de Acaia era um prédio bonito, com um propileu e o pátio externo murado e pro­vido de casas da guarda. Ambos os legionários postados à entrada estavam palitando os dentes e cavaqueando com os transeuntes, os escudos e lanças encostados ao muro. Atiraram um olhar irônico à minha estreita faixa vermelha, mas deixaram-me entrar sem uma palavra.

O Procônsul Júnio Aneu Gálio recebeu-me vestido à moda grega, recendendo a unguentos e com uma coroa de flores na ca­beça, domo se estivesse a caminho de um banquete. Era um homem de bom coração. Ofereceu-me vinho de Samos, enquanto lia a carta de seu irmão mais moço Séneca, e as outras que eu trouxera, como mensageiro do Senado. Deixei meu cálice semicheio e não me preocupei mais com o vinho, pois desprezava profundamente todo aquele mundo em que tivera a infelicidade de nascer e, de modo geral, já não acreditava na bondade dos seres humanos.

Ao concluir a leitura das cartas, Gálio assumiu um ar grave e lançou-me um olhar perscrutador:

_ Creio que seria preferível que você só usasse sua toga no tribunal sugeriu cautelosamente. Convém lembrar que Acaia é Acaia. Sua civilização é mais antiga e, de qualquer maneira, incomparavelmente mais espiritual do que a de Roma. Os gregos têm suas próprias leis e sabem como manter a ordem. A política de Roma, em Acaia, consiste em interferir o menos possível e dei­xar que as coisas sigam seu curso natural, a menos que sejamos chamados diretamente a intervir. Aqui os ataques violentos são muito raros. O maior problema, numa cidade portuária como esta, são os ladrões e trapaceiros. Ainda não temos um anfiteatro aqui em _ Corinto, mas há um ótimo circo para as corridas. Os teatros funcionam todas as noites. Não faltam diversões para um cavaleiro decente e jovem.

_ Não vim para Corinto em busca de diversões respondi

Irritado - mas para preparar-me para a minha carreira na fun­ção pública.

_ Claro, claro — disse Gálio. — Vi isso na carta de meu irmão Talvez o melhor seja você se apresentar primeiro ao co­mandante das coortes, em nossa guarnição. É um Rúbrio. Assim é bom ser cortês. À parte isso, pode incumbir-se dos exercícios com armas, já que os soldados se tornaram negligentes, sob o co­mando de Rúbrio. Depois, poderá fazer viagens de inspeção a ou­tras guarnições. Não são muitas. Em Atenas e em algumas outras cidades sagradas, não é aconselhável sequer usar uniforme militar romano. Os trapos de filósofo seriam mais adequados. Uma vez por semana presido ao tribunal aqui, fora do prédio. Você terá, naturalmente, de comparecer. Temos de adaptar-nos aos costumes que encontramos. Agora vou mostrar-lhe o prédio e apresentar-lhe os meus auxiliares.

Discorrendo amavelmente sobre vários assuntos, apresentou-me ao seu tesoureiro, ao seu advogado, ao superintendente da coletoria de Acaia e ao representante comercial de Roma.

— Gostaria de pedir-lhe que ficasse comigo — disse Gálio. — Mas é melhor para Roma que vá morar na cidade, numa boa estalagem ou numa casa. Assim terá melhor oportunidade de tra­var relações com o povo e ficar ao corrente de seus desejos, hábitos e queixas. Não se esqueça que é preciso tratar Acaia com muito cuidado, como se fosse uma bola de plumas.

No momento, estou aguardando uns sábios e filósofos para jantar. Gostaria que nos fizesse companhia, mas vejo que está exausto da viagem, e a comida pode não ser do seu agrado, como vejo que meu vinho não é. Vá primeiro refazer-se das canseiras. Passeie pela cidade e apresente-se a Rúbrio, quando julgar conve­niente. Não há pressa.

Também apresentou-me à sua mulher. Ela usava um manto grego bordado a ouro, sandálias de couro dourado e um diadema de ouro, no cabelo cuidadosamente arrumado. Olhou primeiro ma­liciosamente para mim e depois para Gálio. Em seguida, tornou-se grave, cumprimentando-me com a maior tristeza, como se todas as preocupações do mundo a oprimissem. Então, de repente levou a mão à boca, abafou o riso, deu meia volta e fugiu da sala.

Achei que a espanhola Hélvia, malgrado sua beleza, não tinha nenhum amadurecimento. Gálio escondeu o sorriso, acompanhan­do com olhar solene a saída de sua mulher, e confirmou meu pen­samento oculto.

Sim, Lauso, ela é muito jovem e não pode desempenhar os deveres de sua posição com a desejada seriedade. Felizmente, isso não tem importância alguma em Corinto.

No dia seguinte, levei muito tempo a pensar se devia mandar uma mensagem à guarnição, solicitando um cavalo e guarda de honra para acompanhar-me, quando fizesse minha primeira visita ao quartel. Isto eu tinha o direito de exigir, é claro. Mas como ainda não conhecia Rúbrio, julguei que talvez fosse melhor não me mostrar petulante demais. Por isso, uniformizei-me de acordo com os regulamentos: peito de armas com as águias de prata sapatos ferrados, perneiras e o elmo de plumas vermelhas. Hierex envolveu-me as costas com o manto vermelho e curto de tribuno, e amarrou o broche em meu ombro.

Minha partida causou tal sensação na hospedaria, que até mes­mo os cozinheiros e faxineiros se comprimiram à porta para me ver sair. Após os primeiros passos na rua, fazendo tilintar minha armadura, vi-me cercado de transeuntes boquiabertos. Os homens apontavam para as minhas plumas e gritavam qualquer coisa, as mulheres aproximavam-se e cutucavam meu peito de armas e os garotos formavam a meu lado, marchando e berrando. Logo per­cebi que estavam zombando de meu esplendor militar.

A situação era tão aflitiva, que senti o desejo selvagem de puxar de minha longa espada e dar golpes a torto e a direito. Tam­bém percebi que isso iria atrair mais atenção ainda. Com a cara em fogo, recorri a um guarda que ia passando. Ele acenou para os garotos com seu bastãozinho, determinando que me dessem pas­sagem. Apesar disso umas cem pessoas pelo menos me seguiram até à entrada do acampamento.

Apressadamente, as sentinelas agarraram as lanças e escudos que estavam encostados ao muro. Uma deu alarma, com a cor­neta, quando viu a multidão marchando em algazarra, na direção do quartel. A turba não tinha o menor desejo de pôr os pés dentro da guarnição romana. Pararam todos, formando um semicírculo diante das pontas das lanças dos soldados, fizeram votos pelo meu êxito e garantiram-me que há muitos anos não viam um espetáculo tão maravilhoso.

O centurião mais antigo da coorte veio correndo ao meu en­contro, vestindo apenas uma camisa de baixo. Um punhado de legionários, com lanças e escudos, perturbados pelo sinal de alar­ma, deram-se pressa em reunir-se no pátio, pondo-se desajeitada­mente em fila. Talvez a minha juventude justifique o fato de eu lhes ter bradado ordens que ainda não tinha direito de dar, uma vez que não me apresentara a Rúbrio. Depois de os fazer ir em marcha acelerada até ao muro, voltar e manter-se em perfeito ali­nhamento, passei o comando ao centurião. Ele me olhou atônito, as pernas escarranchadas, a barba curta e espetada no queixo e as mãos nos quadris.

— O Comandante Rúbrio está dormindo, após um estafante exercício noturno — disse ele. — Os homens estão cansados pelo mesmo motivo. Convido-o a acompanhar-me, tomar um gole de vinho e  dizer-me quem é, de onde vem e por que desembarcou aqui feito o  próprio Deus da Guerra, de sobrolho franzido e ri­mando os dentes!

Pelo rosto e pelas coxas escalavradas, vi que se tratava de um veterano traquejado e não pude deixar de aceitar o convite. Era fácil para um centurião como ele, mandar às favas um cavaleiro moço e eu não queria passar por novas humilhações e ser ridicula­rizado diante do número cada vez maior de soldados que acorriam ao pátio.

O centurião conduziu-me a seu alojamento, que tresandava a couro e metal polido, pegou de um jarro e começou a servir-me vinho. Disse-lhe eu que, em virtude de uma promessa, só aceitaria água e legumes. Ele me olhou estupefato.

Corinto não é considerado um lugar de desterro — comen­tou. — Você deve ser realmente de família muito nobre, se sua presença aqui é uma espécie de Castigo para o que fez em Roma.

Coçou o queixo, sem nenhuma cerimônia, produzindo um som áspero na barba curta e espetada, deu um vasto bocejo e tomou um pouco de vinho. Não obstante, por ordem minha, foi buscar o escrevente do Comandante Rúbrio e a lista de chamada da coorte.

— Na cidade propriamente dita — explicou — só temos guar­das no pátio do Procônsul e nos portões principais. Em Cencréia e Licéia, os portos, como você sabe, temos guarnições permanen­tes, com quartéis próprios, para que os homens não fiquem an­dando de um lado para outro, entre os acampamentos e os portos. De acordo com a lista de chamada, somos uma coorte completa, excluindo os engenheiros, alfaiates e outros especialistas. Assim, em caso de necessidade, podemos formar uma unidade de cam­panha auto-suficiente.

Perguntei pela cavalaria.

— Na verdade, não temos um só cavalariano aqui no mo­mento — disse ele. — Naturalmente, há alguns cavalos à dispo­sição do Comandante e do Governador, mas ambos preferem usar liteira. Você poderá obter um, se não puder viver sem cavalo. A própria cavalaria de Corinto, evidentemente, é obrigada a nos dar assistência.

Quando indaguei da manutenção das armas e do equipamento, das ordens do dia e do programa de exercícios, ele me olhou curioso:

— Talvez seja melhor perguntar a Rúbrio. Sou apenas um subalterno.

Para matar o tempo, inspecionei os alojamentos vazios, co­bertos de poeira e teias de aranha, o depósito de armas, a cozinha e  o altar. A guarnição não tinha Águia própria, somente a costu­meira insígnia de campanha da coorte, com borlas e placas come­morativas. Finda a inspeção, senti-me ao mesmo tempo confuso e estarrecido.

— Em nome de Hércules — gritei — onde estão os homens? Que aconteceria se tivéssemos de partir de repente para o combate?

O centurião não me suportava mais:

— É melhor perguntar isso também ao Comandante Rúbrio — respondeu, agastado.

Ao meio-dia, Rúbrio afinal mandou me chamar. Seu quarto era esplendidamente mobiliado à moda grega, e vi pelo menos três moças servindo-o. Ele era calvo, a cara gorda, de veias irregulares, os beiços azuis. Arrastava o pé esquerdo, quando andava. Rece­beu-me cordialmente, manchou-me de vinho, ao abraçar-me, e ime­diatamente mandou que eu me sentasse e ficasse à vontade.

— Vindo de Roma, você deve estar espantado de ver como somos indolentes aqui em Corinto — disse ele. — Sem dúvida, era preciso que viesse um cavaleiro jovem e animoso movimentar isto aqui. Muito bem. Você ocupa o posto de tribuno, não é ver­dade? Obtido na Bretanha, já sei. Isso é uma distinção, não um posto de comando.

Perguntei pelas instruções de serviço e ele não respondeu logo.

— Em Corinto — disse, por fim — não precisamos manter-nos de prontidão. O conselho municipal e os habitantes ficariam insultados, se agíssemos dessa forma. Quase todos os legionários são casados. Têm licença minha para morar com a família e exer­cer algum ofício ou o comércio. De vez em quando, nos dias de festa de Roma, nós os passamos em revista, é claro. Mas só dentro dos muros, para não atrair desnecessária atenção.

Aventurei-me a dizer que os soldados que eu vira eram apáticos e indisciplinados, que o depósito de equipamento estava cheio de poeira e os alojamentos, imundos.

— É possível, é possível — admitiu Rúbrio. — Faz muito tempo que não me lembro de dar uma olhadela nos alojamentos dos homens. A vida social em Corinto é puxada, para um tipo já velhusco como eu. Felizmente, conto com um centurião de abso­luta confiança. Ele é responsável por tudo. Pergunte-lhe tudo quanto quiser. Do ponto de vista formal, você deveria ser meu braço direito, mas ele se ofenderia se eu o relegasse a segundo plano. Talvez vocês possam trabalhar juntos, em pé de igualdade, desde que não me aborreçam com queixas, um do outro. Já estou farto de disputas e quero passar o resto do meu tempo de serviço em paz. Tenho poucos anos pela frente.

Lançou-me um olhar surpreendentemente penetrante e acres­centou, com simulada distração:

— Sabe, por acaso, que minha irmã Rúbia é a mais velha das Virgens Vestais de Roma?

Depois, resolveu dar-me um conselho:

Lembre-se sempre — disse ele — que Corinto é uma cidade grega;

 - Lembre-se sempre- disse ele- que Corinto é uma cidade grega se bem  que os seus habitantes provenham de muitos outros países. Aqui as honras militares não valem grande coisa. A arte da vida social é mais importante. Para começar, faça suas observações e depois trace você mesmo um programa de serviço, mas não puxe excessivamente pelos meus soldados.

Com essas instruções, vi que tinha de ir embora. O centurião estava à minha espera, do lado de fora, e me olhou com frieza: _ Conseguiu as informações?

Vi dois legionários cruzando preguiçosamente o portão, com os escudos nas costas e as lanças nos ombros. Fiquei espantado, ao ouvir o centurião explicar tranqüilamente que aquilo era a mu­dança da guarda.

_ Não estão nem em forma! — gritei. — E podem andai

assim, com as pernas sujas, o cabelo grande, sem um suboficial ou uma escolta?

— Não organizamos paradas da guarda aqui em Corinto — disse, calmamente, o centurião. — Seria melhor que você guar­dasse em algum lugar seu elmo emplumado e se habituasse aos usos da terra..

Mas não interveio, quando ordenei que os suboficiais provi­denciassem a limpeza do quartel e o polimento das armas, e que os soldados se barbeassem, cortassem o cabelo e, de modo geral; tratassem de mostrar que eram romanos. Prometi estar de volta na manhã seguinte, para realizar uma inspeção, ao alvorecer. Para tanto, determinei que se lavasse a prisão e se preparassem novas chibatas.

Os veteranos olharam surpresos para mim e para o centurião, que fazia caretas, mas julgaram conveniente não dizer nada.

Lembrei-me do conselho que tinha recebido e pendurei meu uniforme de parada no depósito do equipamento, vestindo no lugar dele uma simples túnica de couro e um elmo redondo, de exer­cícios, antes de voltar à estalagem.

Hierex mandara cozinhar para mim repolho e feijão. Bebi agua e fui para o quarto tão abatido que não senti nenhum desejo de conhecer as curiosidades de Corinto.

Quando cheguei de manhã cedo ao quartel, vi que algo acon­tecera na minha ausência. Os guardas de serviço à entrada toma­ram posição de sentido, ergueram as lanças e me prestaram calo­rosa continência. O centurião estava vestido para os exercícios. Empenhava-se em fazer com que os homens se lavassem nas tinas, gritando com voz rouca. O barbeiro trabalhava sem parar; no altar fuliginoso, o fogo crepitava; e o pátio tinha mais cheiro de limpeza do que de chiqueiro.

Desculpe não ter mandado soar a corneta à sua chegada

disse o centurião, sarcástico mas o Comandante Rúbrio faz muita questão do sono matinal. Agora, assuma o comando. Eu observarei. Os homens estão aguardando avidamente um sacrifício. Dois porcos servirão, caso um boi seja muito caro.

Em virtude da minha educação e adestramento, tinha pouca experiência de sacrifícios e em nenhuma circunstância iria expor-me ao ridículo de matar porcos guinchantes com uma lança.

Ainda não é hora de sacrifícios retruquei. Primeiro tenho de ver se vale a pena continuar aqui ou se é melhor desistir da missão.

Andando pelo pátio, percebi logo que aqueles homens conhe­ciam os exercícios e poderiam marchar corretamente, se quisessem. Ficaram um tanto esbaforidos, após a marcha acelerada, mas no treinamento de batalha em grupo atiraram as lanças pelo menos nas proximidades dos sacos de palha. Durante os exercícios de es­padas com armas rombudas, reparei que vários eram bons espa­dachins. Quando afinal estavam todos arquejantes e suados, o cen­turião aproximou-se:

Que tal mandá-los descansar agora, e mostrar-nos, você mesmo, sua habilidade na esgrima? Estou velho e gordo, mas gos­taria de lhe mostrar como manejávamos a espada na Panônia. Foi lá, em Carnuntum, que conquistei meu distintivo de centurião.

Descobri, surpreso, que tinha de empenhar-me a fundo para enfrentá-lo. Êle me teria levado à parede, com seu escudo, apesar de minha espada .mais comprida, se não tivesse em pouco tempo perdido o fôlego. A agilidade dos movimentos do centurião e a clara luminosidade de Corinto fizeram pouco a pouco com que me envergonhasse de minha irritação anterior e me lembrasse que todos esses homens eram mais velhos do que eu e tinham bons vinte anos de serviço. Havia quase tantas graduações quantos sol­dados. Uma legião, com os quadros normais, tem cerca de setenta categorias diferentes de soldo, para aumentar o zelo pelo serviço.

Procurei reconciliar-me com o centurião:

Agora estou pronto a imolar um novilho. Também paga­rei um carneiro a ser imolado por você. O veterano mais antigo pode imolar um porco. Teremos então os melhores tipos de carne. Não vale a pena ficar ressentido comigo por causa de um pouco de exercício para estimular a camaradagem, vale?

O centurião olhou-me de alto a baixo e seu rosto se iluminou.

Vou mandar meus melhores homens ao mercado de gado, para que escolha os animais. Você fornecerá o vinho também, su­ponho.

Eu não podia recusar-me a participar do almoço sacrificató­rio com os soldados. Eles competiam entre si, para ver quem me oferecia os melhores pedaços de carne. Não pude furtar-me a beber vinho também. Depois dos esforços do dia, a carne bastava

embriagar-me, e o vinho desceu-me diretamente para os joelhos nós tão longo período de abstinência. Ao anoitecer, várias mulheres, Cuja profissão ninguém podia deixar de reconhecer, embora algumas fossem jovens e bonitas, entraram furtivamente no quartel Tenho a impressão de que chorei amargamente e disse ao centurião que nenhuma mulher merecia confiança, porque toda mulher era a personificação da perfídia e da cilada. Também me lembro de que os soldados puseram nos ombros o leito do Deus da Guerra, em que me fizeram deitar, e deram voltas pelo pátio, entoando em minha homenagem as canções obscenas da legião panônia. É só do que me lembro.

Durante o último turno da guarda da noite, acordei todo vo­mitado, numa cama dura de madeira, dentro do quartel. As pernas bambas, as mãos segurando a cabeça, saí cambaleando para o pátio, onde vi os homens estendidos nos lugares onde haviam caído.

Sentia-me tão mal, que as estrelas no céu matutino dança­vam diante dos meus olhos quando eu tentava encará-las. Lavei-me o melhor que pude. Estava tão dolorosamente envergonhado do meu comportamento que me teria jogado sobre minha espada, se em boa hora não tivessem trancado todas as armas pontiagudas.

Aos tropeções pelas ruas de Corinto, com seus archotes mor­tiços e caldeirões de piche terminei encontrando minha hospeda­ria. Hierex esperava-me ansioso. Vendo meu estado miserável, despiu-me, enxugou-me os membros» com um pano úmido, deu-me a beber um líquido amargo e meteu-me na cama, debaixo de uma coberta de lã. Quando acordei, maldizendo o dia em que nascera, ele, cheio de desvelo, me fez beber algumas colheradas de vinho com gemas de ovo batidas. Antes que tivesse tempo de pensar em minha promessa, já tinha engolido um prato de ensopado de carne bem temperado.

Suspirando aliviado, Hierex deu asas à loquacidade.

— Benditos sejam todos os deuses — disse ele — Conhecidos e desconhecidos, mas principalmente a vossa Deusa da Fortuna. Passei momentos de angústia por vossa causa e receei que fôsseis perder a razão. Não é natural, nem justo, que um moço de vossa idade e posição contemple o mundo com olhos sombrios e não coma senão repolho e não beba senão água. Portanto, foi como se me tivessem tirado um fardo dos ombros, quando vos vi regres­sar tresandando a vinho e vômito, e compreendi que havíeis com­partilhado da sorte dos outros homens.

Creio que arruinei minha reputação para sempre em toda Corinto — disse eu com amargura. — Recordo vagamente que tomei parte com os legionários na dança caprina dos gregos. Quando o Procônsul Gálio souber disso, certamente me enviará de volta a Roma.

Hierex obrigou-me a sair e passear com ele, pelas ruas amplas da cidade, alegando que o exercício me faria bem. Vimos juntos as curiosidades de Corinto, o antigo cadaste do navio dos Argo­nautas, no templo de Netuno, a fonte de Pégaso e a marca do casco na rocha ao lado. Hierex tentou levar-me ao templo de Vénus, na montanha, mas tive o bom senso de resistir.

Em lugar disso, fomos ver a maravilha de Corinto, um carril de madeira encerada no qual navios bastante grandes podiam ser puxados por escravos, desde Cencréia até Licéia, e também em sentido contrário. Podia-se imaginar que isso exigisse hordas de escravos e intermináveis correias de chicotes, mas os construtores gregos de navios, com a ajuda de sarilhos e rodas dentadas, arran­javam tudo com uma habilidade tal que as embarcações deslizavam pelo carril como por si mesmas. Um marujo que notou nosso inte­resse jurou pelas Nereidas que, com bom vento a impeli-los, bas­tava apenas içar as velas. Depois disso, eu me senti melhor, minhas inquietações foram desaparecendo. Enquanto isso, Hierex me con­tou sua vida e várias vezes me fez rir.

Eu ainda não vencera o constrangimento quando voltei ao quartel, no outro dia. Felizmente, tudo fora arrumado depois da orgia, os homens da guarda estavam bem postos em seus lugares e a habitual rotina diária corria a contento. Rúbrio mandou-me chamar e me censurou diplomaticamente:

— Você ainda é jovem e inexperiente. Não havia nenhuma razão válida para incitar esses velhos guerreiros à luta e à baderna durante a noite. Espero que isso não se repita. Trate de refrear a brutalidade romana de sua natureza e adaptar-se, tanto quanto lhe for possível, aos hábitos mais refinados de Corinto.

O centurião levou-me, como prometera, a inspecionar os ho­mens dos róis da coorte que exerciam ofícios na cidade. Eram fer­reiros, curtidores, tecelões e oleiros, mas muitos haviam simples­mente utilizado sua cidadania romana, ganha após prolongado ser­viço militar, para casar nas famílias dos comerciantes ricos e ad­quirir privilégios, que lhes asseguravam uma vida de tranqüila abun­dância. Seu equipamento tinha correias roídas pelos ratos, as pontas de suas lanças estavam enferrujadas e os escudos não viam polimento há muitos anos. Alguns não sabiam sequer onde tinham deixado o equipamento.

Por toda a parte ofereciam-nos vinho e comida, e até mesmo moedas de prata. Um legionário, que se tornara negociante de perfumes e não sabia o que era feito de seu escudo, tentou em­purrar-me para o interior de um quarto, com uma moça. Como eu o censurasse, ele disse com azedume:

— Está bem, pode dizer o que quer, então. Mas já pagamos tanto a Rúbrio, pelo direito de exercer um ofício livre, que não nos restam muitas dracmas para enfiar na sua bolsa.

Quando me dei conta do que ele dizia, tratei logo de assegu-

lhe que não estava ali para ser subornado, mas só para ver, como era minha obrigação, se todos os homens inscritos nos róis

estavam equipados e cuidavam de suas armas. O perfumista acalmou-se e prometeu comprar outro escudo no adeleiro, logo

tivesse tempo. Também prometeu tomar parte nos exercícios, se eu determinasse, e declarou que um pouco de atividade física lhe faria bem, uma vez que, em seu ramo de negócios, estava sempre sentado e engordava muito.

Vi que seria mais prudente não investigar a fundo os negó­cios do Comandante Rúbrio, principalmente porque sua irmã era a mais importante sacerdotisa de Roma. O centurião e eu traça­mos um programa que, pelo menos, parecia dar aos homens al­guma ocupação.

Após inspecionar os tradicionais postos de guarda, concorda­mos que convinha revezar as sentinelas pela altura do sol e pela clepsidra, não lhes permitindo mais reclinar-se ou sentar-se, e obrigando-as a trazer equipamento completo. Na verdade, não vi o que uma guarda dupla nos portões da cidade poderia estar real­mente vigiando, mas o centurião me disse que esses lugares vinham sendo vigiados há cem anos e, por isso, não deviam ficar sem nin­guém. Retirar a guarda seria ofender os coríntios, pois eram eles que, através de impostos, mantinham a guarnição romana em sua cidade.

Depois de algum tempo, achei que havia levado a cabo meus deveres de tribuno em Corinto da melhor maneira possível. Os legionários tinham superado sua antipatia inicial por mim e agora me cumprimentavam alegremente. No dia de sessão do tribunal do Procônsul, apresentei-me, envergando a minha toga. Enquanto um escrivão grego examinava antecipadamente os processos, Gálio ordenou, entre bocejos, que transportassem sua curul para a frente do edifício.

Gálio revelou-se um juiz moderado e justo. Pedia o nosso parecer, pilheriava de vez em quando, inquiria ele mesmo, cuida­dosamente, as testemunhas e protelava todos os processos que não lhe parecessem suficientemente explicados pelos discursos dos ad­vogados e pelos depoimentos das testemunhas. Recusava-se a pro­ferir sentença nos casos que julgava excessivamente banais. Nesses momentos, exigia que as partes solucionassem o litígio entre si, ou multava a ambas, por falta de respeito pelo tribunal. Terminada a sessão, convidou-me para uma refeição suculenta e me deu al­guns conselhos a respeito dos bronzes coríntios, que naquela época era moda colecionar em Roma.

Quando retornei à hospedaria, deprimido, apesar de tudo, pela Prudência grave de Gálio e a mediocridade do tribunal, Hierex tinha uma sugestão a fazer:

— É indubitável que podeis viver da maneira que vos aprou­ver. Mas morar um ano inteiro numa estalagem é puro desperdício. Corinto é uma cidade próspera. Seria mais aconselhável que inves­tísseis o vosso dinheiro numa casa própria e me incumbísseis de cuidar do vosso conforto. Se não tendes bastante dinheiro aqui, como funcionário romano certamente obtereis o crédito que tiverdes a coragem de solicitar.

— Casas precisam sempre de consertos —- respondi — e os criados estão sempre altercando. Possuindo uma casa, eu teria de pagar impostos à cidade. Por que vou ter todas essas preocupações? É mais simples mudar-me para uma hospedaria mais barata, se achar que aqui estão me explorando.

— É para isso que estou aqui — disse Hierex — para cuidar desses problemas todos. Dai-me autorização e eu resolverei tudo com as melhores intenções. A única coisa que tereis de fazer é assinar um documento do templo de Mercúrio. Mais tarde, tereis de pagar hospitalidade com hospitalidade. Pensai no preço que pa­garíeis numa estalagem, por exemplo, quando convidássemos seis pessoas para um banquete regado a vinho. Em vossa própria casa, eu mesmo me encarregaria de ir ao mercado, compraria os vinhos a preços de atacado e instruiria o cozinheiro. E não teríeis de viver deste modo, quando qualquer estranho sabe o momento em que verteis água ou assoais o nariz.

Havia boa dose de bom senso na sugestão, e alguns dias depois vi-me dono de uma casa bastante grande, com dois pavi­mentos e um jardim. A sala de recepção tinha um agradável piso de mosaico e os cômodos internos excediam as minhas necessida­des. Reparei que também tinha um cozinheiro e um porteiro grego. A casa estava guarnecida de mobiliário antigo e confortável, de sorte que nada parecia novo e espalhafatoso. Até mesmo dois deuses domésticos gregos ocupavam seus nichos, em ambos os lados do altar, que o tempo tornara sebento e fuliginoso. Hierex comprara também algumas máscaras ancestrais de cera, num leilão, mas eu disse que não queria comigo os antepassados de outras pessoas.

Rúbrio, o centurião e o advogado grego de Gálio foram meus primeiros convidados. Hierex arrumou um filósofo grego, para con­versar com os Convidados, e uma hábil dançarina, com um flau­tista, para entretenimento leve. A comida estava excelente. Meus comensais foram embora à meia-noite, em estado de civilizada em­briaguez. Posteriormente, vim a saber que eles rumaram para o bordel mais próximo, pois de lá me enviaram uma conta, para ensinar-me os costumes coríntios. Sendo solteiro, devia ter provi­denciado uma convidada, procedente da montanha do Templo, para cada um dos comensais. Mas eu não queria aderir a tais costumes.

De qualquer modo, não sei o que teria acontecido, uma vez

Hierex fez o possível, quieta e paulatinamente, para converter-me no tipo de senhor que ele desejava ter. Mas era novamente dia de sessão do tribunal. Gálio, ainda de ressaca da noite anterior havia acabado de sentar-se e ajeitar a toga, quando um grupo de judeus correu para ele, arrastando dois homens, que também eram judeus. Conforme o hábito judaico, gritavam todos ao mesmo tempo. Por fim, Gálio, após um breve sorriso, determinou

um deles falasse pelos demais. Depois de discutirem sobre a queixa que iam prestar, o chefe deu um passo à frente:

_ Este homem está induzindo o povo a adorar a Deus de maneira contrária à lei.

Desanimado e assustado, descobri que até mesmo aqui, e agora como membro do tribunal, eu tinha de me envolver nas dis­sensões dos judeus. Olhei atentamente o acusado. Era quase, calvo, de olhos abrasadores e orelhas grandes. Estava altivamente ereto, em seu manto surrado de pele de cabra.

Como num sonho, lembrei-me de que o vira muitos anos antes, na casa de meu pai, em Antioquia. Fiquei ainda mais as­sustado ainda, pois em Antioquia ele provocara tanto conflito, que os judeus que reconheciam Cristo haviam preferido mandá-lo embora, para que fosse semear discórdia entre os judeus noutra parte.

O homem já abrira a boca para iniciar sua defesa, mas Gálio, adivinhando o que se aproximava, fez sinal para que se manti­vesse em silêncio e voltou-se para os judeus.

— Se tratasse de crime ou injustiça, então eu os escutaria com paciência — disse Gálio. — Mas se a desavença diz respeito a questões de doutrina, do nome dela e das leis de vocês, então nada tenho com isso. Não desejo ser juiz dessas coisas.

Ordenou que os judeus se fossem e virou-se para nós:

— Se fosse ouvi-los, não sei quando sairia daqui.

Mas não se livrou deles assim com tanta facilidade. Encerra­da a sessão, convidou-nos outra vez para comer, mas estava distraí­do e mergulhado nos próprios pensamentos. Depois, levou-me para um canto:

— Conheço aquele homem que os judeus pretendiam acusar — disse ele, confidencialmente. — Mora em Corinto há um ano e ganha a vida honestamente, como fabricante de tendas. Seu nome é Paulo. Dizem que mudou de nome, para esconder o passado, e tirou o novo nome de um ex-governador de Chipre, Sérgio

Paulo. Naquela época seus ensinamentos fizeram profunda im­pressão em Sérgio, e Sérgio não é nenhum simplório, embora tentasse predizer o futuro pelas estrelas e tivesse um mágico dentro casa. Portanto, Paulo não é um indivíduo insignificante. Tive

a impressão de que seus olhos penetrantes viam outro mundo através de mim, enquanto estava ali de pé, fitando-me desassom­bradamente.

É o pior agitador entre os judeus — disse eu, irrefletida-mente. — Em Antioquia, quando eu era menino, ele procurou en­volver meu pai nas intrigas dos judeus.

Você era muito pequeno naquele tempo para entender o que ele ensinava — observou Gálio circunspecto. — Dizem que antes de vir para Corinto, ele pregou no mercado de Atenas. Os atenienses não somente se deram o trabalho de escutá-lo, como ainda lhe disseram que podia voltar. E ninguém é mais atilado do que eles. Na verdade eu gostaria muito de convidá-lo a vir aqui em segredo, um dia destes para conhecê-lo melhor. Mas isso podia dar margem a diz-que-diz e melindrar os judeus ricos de Corinto. E eu tenho de me manter rigorosamente imparcial. Soube que ele fundou uma espécie de sinagoga própria, ao lado da sinagoga ju­daica, e difere agradavelmente deles por instruir a todos os que o procuram, preferindo mesmo os gregos aos judeus.

Era óbvio que Gálio refletira longamente sobre esses assuntos já que continuou a abordá-los.

— Não acreditei naquela história absurda que circulou em Roma a respeito do escravo fugido chamado Cristo — disse ele. — Vivemos numa época em que todos os fundamentos de nossas idéias estão aluindo. Não vou falar dos deuses. Em suas formas tra­dicionais, são apenas imagens que podem deleitar as almas simples. Mas os mestres da sabedoria não podem tornar o homem bom, nem lhe dar paz de espírito. Vemos isso nos estóicos e epicuristas. Talvez esse desventurado judeu tenha realmente encontrado um segredo divino. Por que então suas pregações provocam tanta dis­puta, tanto ódio e inveja entre os judeus?

Não é necessário continuar reproduzindo aqui as reflexões de Gálio. Mas por fim ele me deu uma ordem:

— Vá, Minuto, procure desvendar a doutrina desse homem. Você está perfeitamente apto para isso, já que o conhece desde a infância, em Antioquia. E também está, de um modo geral, fami­liarizado com o Jeová dos judeus e com suas leis e costumes. Sei que seu pai teve muito êxito em Antioquia como mediador entre os judeus e o conselho municipal.

Vi-me apanhado numa armadilha e era inútil protestar, pois Gálio não deu ouvidos às minhas objeções:

Você precisa vencer seus preconceitos. Deve ser honesto se quer buscar a verdade, na medida em que o dever lhe permite. Tem tempo de sobra. Há maneiras piores de gastá-lo do que no es­tudo da mensagem desse judeu salvador do mundo.

E se ele me dominar com suas mágicas?

Gálio achou que minha pergunta não merecia resposta.

Ordem é ordem. Eu tinha de cumpri-la da melhor maneira ossível. Talvez fosse importante para Gálio eliminar todas as dú-yjjas em torno do que pregava aquele agitador influente e peri-goso. No dia de Saturno, vesti um simples traje grego, localizei sinagoga dos judeus e entrei no prédio vizinho. Não era uma verdadeira sinagoga, mas uma casa comum que o dono, um nego­ciante de tecidos, cedera à assembléia que Paulo havia fundado.

A sala de recepção do andar superior estava cheia de gente simples que aguardava com alegre expectativa nos olhos. Todos se cumprimentavam amigavelmente e eu também fui bem recebi­do. Ninguém perguntou meu nome. A maioria era formada de artífices, pequenos comerciantes ou escravos de confiança, mas havia também algumas velhas que usavam ornamentos de prata. A julgar pelas roupas, poucos eram judeus.

Paulo chegou com vários discípulos. Saudaram-no com ex­clamações de reverência, como emissário do verdadeiro Deus, e algumas mulheres choraram dé alegria quando o viram. Êle fala­va alto, com uma voz penetrante, e estava tão empolgado com a convicção do que dizia, que era como um vento quente varrendo a multidão de ouvintes suarentos.

Procurei escutar com atenção e tomei apontamentos numa tabuinha de cera, pois no começo êle se referiu às sagradas escri­turas judaicas, mostrando por meio de citações desses livros que Jesus de Nazaré, que foi crucificado em Jerusalém, era de fato o Messias ou Cristo anunciado pelos profetas.

Interessante é ter êle mencionado com toda a franqueza seu próprio passado. Era sem dúvida um homem bem dotado, pois disse ter estudado na renomada escola de filosofia de sua cidade natal, Tarso, e mais tarde em Jerusalém, com mestres afamados. Na juventude, fora logo cedo escolhido para o mais alto conselho judaico. Declarou que tinha sido um apaixonado seguidor das leis e perseguira os discípulos de Jesus. Chegara até mesmo a guardar as vestes dos apedrejadores e dessa forma tomara parte na primei­ra execução ilegal de um membro da assembléia dos pobres. Acos­sara, amarrara e arrastara para o tribunal diversos partidários da nova doutrina e finalmente recebera, tendo tido a iniciativa de soli­citar autorização para prender os seguidores de Nazaré que, para escapar à perseguição, haviam fugido para Damasco.

No caminho de Damasco vira uma luz tão sobrenatural que O cegara. O próprio Jesus lhe tinha aparecido, e desde então se modificara. Em Damasco, um homem que conhecera Jesus, um tal de Ananias, pusera as mãos em sua cabeça e lhe restituíra a vista, porque Jesus de Nazaré desejava mostrar-lhe quanto tinha de sofrer para apregoar o nome de Cristo.

E sofrera, sim. Muitas vezes fora açoitado. Numa ocasião

quase morrera apedrejado. Trazia cicatrizes de Cristo no corpo, disse êle. Isto, no seu modo de ver, demonstrava que Deus esco­lhera o que na terra é simples e desprezado, para envergonhar os sábios. Deus escolhia os tolos e fracos em lugar dos sábios, porque transformava a sabedoria do mundo em tolice.

Também falou da procura do espírito e daqueles que dispu­tam corridas. E falou do amor, mais seguramente, me parece, do que qualquer outra pessoa que eu tenha ouvido. Devia o homem amar o próximo como a si mesmo, sim, até o ponto de que o que quer que fizesse pelo bem de outro sem amor fosse inútil. Sus­tentou categoricamente que mesmo que um indivíduo distribuísse todos os seus bens com os pobres e oferecesse o próprio corpo para queimar, sem sentir verdadeiro amor, ainda assim esse indi­víduo não era nada.

Essa afirmação tocou as profundezas do meu cérebro. Gálio também havia dito que a sabedoria, por si só, não fazia o homem bom. Pus-me a meditar nisso e já não lhe escutava as palavras que passavam acima de minha cabeça como o rugido de uma tempes­tade. Indubitavelmente êle falava em estado de êxtase e ia de um assunto a outro à medida que o espírito lhe punha as palavras na boca. Parecia saber o que dizia. Nisto era bem diferente dos cristãos que eu encontrara em Roma, onde um dizia uma coisa e outro, outra. Tudo o que eu ouvira antes era garrulice infantil, em comparação com a poderosa eloqüência de Paulo.

Tentei separar os pontos principais de sua pregação e anotei diversas questões para discutir com êle, depois, à moda grega. Mas era difícil, pois êle rodopiava de um assunto para outro, como que impelido por uma ventania. Ainda que no íntimo discordasse, tinha de admitir que êle não era um homem sem importância.

Afinal, todos os que não eram batizados tiveram de retirar-se, ficando apenas o grupo mais íntimo. Algumas pessoas pediram a Paulo que as batizasse e pusesse as mãos em suas cabeças, mas êle recusou peremptoriamente e disse-lhes que se batizassem com seus próprios mestres, que haviam recebido o dom de fazê-lo. Quando chegara a Corinto, cometera o erro de batizar algumas pessoas, depois ouvira-as vangloriar-se de terem sido batizadas em nome de Paulo e ao mesmo tempo terem compartilhado de seu espírito. Não queria difundir uma doutrina tão desfigurada, pois sabia que êle mesmo não era nada.

Imerso em meus pensamentos, fui para casa e tranquei-me no quarto. É claro que não acreditava no que Paulo dissera. Na realidade, tratei de descobrir um meio de argumentar contra a sua doutrina. Como indivíduo e ser humano, êle me despertava interesse. Fui forçado a admitir que êle devia ter experimentado algo inexplicável, já que essa experiência lhe alterara a vida com­pletamente.

Também cumpria reconhecer que ele não disputava os favor e dádivas de gente importante e rica, como faziam geralmente os sacerdotes itinerantes de Isis e outros visionários. O escravo mais humilde, até mesmo uma pessoa simplória, parecia ter para ele o mesmo valor, ou talvez mais, que um indivíduo nobre e sábio Séneca ensinava que os escravos também eram seres hu­manos, mas Séneca não tinha desejo algum de misturar-se com os escravos por causa disso. Escolhia outra companhia.

Reparei afinal que qualquer que fosse o rumo dos meus pen­samentos, eu procurava sempre argumentar contra Paulo e não a favor dele. Havia um espírito poderoso que o impelia a falar, pois não me era possível ficar a distância e refletir fria e ordenadamen­te acerta de sua louca superstição para depois, com uma garga­lhada, comunicar a Gálio as minhas impressões. A razão me dizia que eu não podia sentir tão profunda e óbvia hostilidade contra a certeza absoluta de Paulo, se suas idéias não me tivessem im­pressionado.

Cansei-me de meditar e novamente me invadiu o desejo de beber no velho cálice de madeira de minha mãe, que meu pai tanto estimava e no qual havia muito tempo eu não tocava. Encontrei-o na arca, enchi-o de vinho e bebi. O quarto estava quase às escu­ras, mas não acendi as candeias. De súbito foi como se os meus pensamentos tivessem perdido todos os seus alicerces e todas as suas raízes.

A filosofia racional de hoje subtrai ao homem toda esperan­ça. Pode o homem escolher uma vida razoável de prazer ou uma vida rigorosamente disciplinada, cuja finalidade é servir o Estado ou o bem comum. Uma epidemia, uma telha que cai, ou um buraco no chão pode por mera casualidade pôr fim à vida do homem. O sábio se suicida quando sua vida se torna insuportável. As plantas, as pedras, os animais e as pessoas nada mais são do que um jogo cego e sem sentido dos átomos. É tão sensato ser mau como ser bom. Deuses, sacrifícios, augúrios não passam de superstições san­cionadas pelo Estado para satisfazer as mulheres e os ingênuos.

Há, naturalmente, homens como Simão, o mago, e os druidas que, por aproveitarem certas fontes espirituais, podem fazer al­guém adormecer profundamente ou podem dominar vontades fracas. Mas essa força reside neles e não vem de fora. Estou con­vencido disto, embora o próprio druida acredite que percorreu as regiões infernais e lá teve visões fantásticas.

Com suas palavras e por sua vida, pode o sábio constituir-se em exemplo para os outros e demonstrar por uma morte intencio­nal que a vida e a morte não passam de bagatelas. Mas não acre­dito que valha a pena buscar uma vida desse gênero.

Sentado no escuro, meus pensamentos perderam todo susten­táculo e, de modo estranho, senti a presença benfazeja de minha mãe enquanto sustinha nas mãos o liso cálice. Pensei também em meu pai, que acreditava firmemente na ressurreição do rei dos judeus, após a crucificação, e dizia que o tinha visto, quando ele e minha mãe viajavam pela Galiléia. Desde a infância eu temia que meu pai fosse alvo da zombaria de pessoas dignas por expres­sar esses sentimentos tresloucados.

Mas o que representavam para mim os pontos de vista de pessoas dignas ou mesmo de superiores se a vida ainda não tinha sentido? Evidentemente parece sublime servir um reino cujo ob­jetivo é criar a paz universal e dar ao mundo romano paz e ordem. Mas serão boas estradas, esplêndidos aquedutos, poderosas pontes e permanentes casas de pedra um objetivo na vida? Por que estou vivo, eu, Minuto Lauso Maniliano, e por que existo? Perguntei tudo isto a mim mesmo e ainda estou perguntando, aqui nesta es­tação de águas onde me trato de uma enfermidade do sangue e para matar o tempo escrevo minha vida por amor de ti, meu filho — de ti que acabas de receber a toga viril.

No dia seguinte humilhei-me e fui procurar Paulo, na viela dos fabricantes de tendas, para falar com ele a sós. No fim de contas, ele era um cidadão romano e não apenas um judeu. O de­cano da corporação percebeu logo de quem se tratava e deu uma gargalhada:

— Refere-se ao letrado judeu, não é isso? O que abandonou suas leis e está pregando uma nova religião, prometendo aos ju­deus que o sangue há de lhes cobrir a cabeça e desejando que eles não somente sejam circuncidados, mas castrados também. Bom homem e bom artesão. Não precisa de muito incentivo. Prega até no tear quando lhe dá vontade. Dou boas gargalhadas à custa dele. Sua fama também nos traz novos fregueses. Deseja um toldo novo ou uma capa impermeável?

Logo que consegui livrar-me do homem, desci a viela em­poeirada, juncada de pêlo de cabra, e fui dar a uma oficina, onde tive a surpresa de encontrar Áquila, de Roma, com seu nariz que­brado, sentado ao lado de Paulo. Sua mulher, Prisca, me reco­nheceu imediatamente e soltou uma exclamação de prazer, dizendo a Paulo meu nome e contando como um dia, em Roma, eu fora em auxílio dos cristãos, na luta com os judeus ortodoxos.

— Mas tudo isso acabou — prosseguiu Prisca, sem fazer pausa. — Lamentamos muito a certeza cega que nos fez bazofiar daquele modo. Agora aprendemos a mostrar a outra face e orar pelos que nos insultam.

Ela tagarelava e o marido continuava calado, como antes, não

interrompido seu monótono trabalho para me saudar.

_  Pergunte-lhes acerca de   sua fuga e como se estavam arranjando em Corinto. Não     podiam queixar-se, mas Prisca chorou, lembrando-se dos mortos que haviam deixado para trás, nas valas à beira da estrada, quando saíram de Roma.

_ Mas eles receberam a palma imortal disse ela. E não morreram com uma maldição nos lábios, mas louvando a Jesus, que os salvou dos pecados.

Não respondi, porque ela era uma tola que causara graves prejuízos aos seus correligionários e aos judeus ortodoxos. Voltei-me respeitoso para Paulo.

_ Ouvi-o pregar ontem disse eu. Tenho de fazer um relato completo de sua doutrina. Assim tenho algumas objeções que gostaria de apresentar. Não podemos debater aqui. Poderia vir esta noite a minha casa para jantar comigo? Que me conste, você nada tem a esconder na sua doutrina, nem ela o proíbe de comer com um romano.

Para meu espanto, Paulo não se mostrou impressionado com o convite. Com sua expressão cansada e seus olhos penetrantes, encarou-me e disse lacónicamente que a sabedoria divina destruía todos os argumentos e os tornava inúteis. Não lhe cabia discutir, mas dar testemunho de Jesus Cristo, em virtude da revelação que tivera.

Ouvi dizer que falou no mercado de Atenas protestei. Não pode ter escapado às discussões com os atenienses.

Parecia que Paulo não desejava especialmente que lhe fizes­sem recordar essa aparição em Atenas. Provavelmente fizera papel ridículo ali. Mas declarou que algumas pessoas acreditaram nele, entre elas um dos juízes do tribunal da cidade. Se foram realmen­te convencidos por este orador estrangeiro ou se não quiseram ofendê-lo, não perguntei.

Mas podia pelo menos responder a algumas perguntas simples disse eu. E presumo também que precisa comer como toda a gente. Prometo não perturbar o fio dos seus pensa­mentos com objeções retóricas. Não discutirei; ouvirei apenas.

Áquila e Prisca instaram-no a aceitar meu convite e disse­ram lhe que nunca tinham sabido de maldade cometida por mim. Durante os distúrbios em Roma, eu tinha casualmente participado do ágape cristão. Meu pai ajudava os pobres e comportava-se como um homem piedoso. Também não creio que Paulo tivesse qualquer suspeita política a meu respeito.

De volta ao lar, tomei as providências para o jantar e dei uma volta pela casa. Insólitamente, todos os meus objetos me pareciam desconhecidos. Hierex, também, me parecia estranho, embora eu tivesse a impressão de conhecê-lo. Que sabia eu do porteiro e do co­zinheiro? Não podia compreendê-los ao falar com eles, pois só me davam as respostas que julgavam que eu gostaria de ouvir.

Devia estar contente com a minha vida. Tinha dinheiro, boa aparência, um cargo na administração do Estado, patronos excelen­tes e um corpo sadio. A maioria das pessoas chegava ao fim da vida sem alcançar as culminâncias a que eu me guindara ainda na ju­ventude. Todavia, eu não era feliz.

Paulo e seus companheiros chegaram quando despontavam as estrelas vespertinas, mas deixou os amigos do lado de fora e entrou sozinho. Por cortesia para com êle, eu cobrira com um pano meus deuses domésticos, pois sabia que os ídolos ofendiam aos judeus. Mandei que Hierex acendesse velas de cera de abelha, de perfume agradável, em homenagem ao meu convidado.

Após os legumes, ofereci um prato de carne, explicando que êle não precisava prová-lo, se sua doutrina não lhe permitisse comer carne. Paulo serviu-se, com um sorriso, e disse que não queria me-lindrar-me ou nem mesmo perguntar onde a carne tinha sido com­prada. Com os gregos gostava de ser grego, com os judeus judeu. Também tomou vinho diluído, mas comentou que dentro em breve iria fazer um voto por certos motivos.

Eu não queria preparar armadilha com alimentos proibidos ou perguntas Capciosas. Quando começamos a conversar, tentei formu­lar minhas indagações com todo o cuidado. O ponto mais impor­tante sob o prisma de Gálio e de Roma era descobrir exatamente qual era a posição do meu convidado com relação ao Estado ro­mano e ao bem comum.

Êle me asseverou, com toda a franqueza, que normalmente aconselhava a gente a obedecer às autoridades públicas, viver de acordo com a lei e a ordem e evitar cometer delitos.

Não insuflava êle os escravos contra os senhores? Não. Para êle, todos deviam contentar-se com sua condição na terra. O es­cravo devia submeter-se à vontade do seu senhor e o senhor tratar os servos bem e lembrar-se de que há um Senhor que é o Senhor de todos.

Referia-se ao Imperador? Não. Ao Deus vivo, o criador do céu e da terra, e Jesus Cristo, seu filho, que prometera voltar à terra para julgar os vivos e os mortos.

Por um momento eu contornei esse ponto delicado e pergun­tei que instruções dava êle àqueles que lograva converter. Sobre isto êle havia evidentemente meditado muito, mas limitou-se a dizer:

Amparar os aflitos, cuidar dos fracos, mostrar-se paciente com todos. Nunca revidar ao mal com o mal, mas esforçar-se por fazer o bem. Ser sempre alegre. Orar incessantemente. Render graças por todos os momentos.

Também informou que recomendava aos irmãos que levas­sem uma vida modesta e trabalhassem com as mãos. Não lhes

cabia censurar os adúlteros, caluniadores, beberrões e idólatras.

Depois eles mesmos seriam obrigados a retirar-se do mundo. Mas se entre eles houvesse algum adúltero, caluniador, beberrão ou idólatra, esse          devia ser censurado. Se não se regenerasse, nenhum

idolatra, esse devia ser censurado. Se não se regenerasse, nenhum dos irmãos devia associar-se a ele ou sequer comer em sua presença.

_ Não  me julga então — disse eu, com um sorriso — em­bora á seus olhos eu seja um idólatra, adúltero e beberrão?

_  Você está fora. Não me compete julgá-lo. Julgamos apenas os de dentro. Deus é quem há de julgá-lo.

Disse isso com tanta seriedade, como um fato preciso, que tremi interiormente. Embora eu tivesse decidido não ofendê-lo, não pude deixar de fazer uma pergunta maliciosa:

_ Quando ocorrerá esse julgamento, de acordo com a in- formação que você tem?

Paulo disse que tampouco lhe cabia profetizar. O dia do Senhor chegaria como um ladrão na noite. Vi que ele estava ple­namente convencido de que a vinda do Senhor se daria ainda em sua vida.

De súbito, Paulo ergueu-se.

O Senhor descerá do céu e aqueles que morreram em Cristo serão os primeiros a levantar-se. Depois, nós que estamos vivos seremos levados com eles para encontrar o Senhor entre as nuvens. Estaremos então todos na presença do Senhor.

E o julgamento de que você tanto fala?

O Senhor Jesus aparecerá numa labareda com seus anjos celestiais, e vingar-se-á daqueles que não reconhecem a Deus e não obedecem à mensagem de Nosso Senhor Jesus. Como castigo, serão atormentados com a perdição eterna, longe da face de nosso Senhor e da luz do seu poder.

Tive de reconhecer que ele não procurava conquistar a minha simpatia, mas dizia duramente o que pensava. Suas palavras me comoviam, pois ele não era senão sincero no fervor de sua crença. Sem que eu lhe perguntasse, falou-me dos anjos e das forças do mal, das viagens que empreendera por diversos países e da auto­ridade de que fora investido pelos fiéis em Jerusalém. Acima de tudo, surpreendi-me ao ver que ele não mostrava o menor desejo de me converter. No fim, eu não somente o escutava como me sub­metia ao poder e à convicção que pareciam emanar dele.

Podia sentir-lhe a presença com toda a nitidez. Aspirava o perfume agradável das velas, da boa comida, do incenso e do limpo pêlo de cabra. Era bom estar na companhia dele. Não obs­tante, numa espécie de sonho, tentei separar-me de tudo isso. Sa­cudi de mim o entorpecimento e bradei:

_ Como pode pensar que conhece tudo muito melhor do que outras pessoas?

Estendeu as mãos e respondeu com toda a simplicidade:

— Sou companheiro de trabalho de Deus.

E não blasfemava ao dizê-lo; estava tranqüilo mas absoluta­mente convencido da verdade de suas palavras. Levantei-me ra­pidamente com a mão na frente e andei de um lado para o outro do quarto como se estivesse enfeitiçado. Se tudo era realmente como ele dizia, então aí estava a oportunidade inigualável de des­cobrir o sentido da vida.

— Não entendo o que diz — confessei, com voz trêmula — mas ponha essas suas fortes mãos em minha cabeça, se isso é ha­bitual entre vocês, para que o seu espírito venha a mim e eu possa entender.

Mas ele não me tocou. Em vez disso, prometeu rezar por mim para que Jesus me fosse revelado e se tornasse meu Cristo, pois o tempo era curto e este mundo já estava perecendo. Quando foi embora, tudo quanto havia dito se me afigurou rematada lou­cura. Gritei, censurei-me por ser tão crédulo, dei pontapés nos móveis e quebrei os vasos de barro, atirando-os ao chão.

Hierex veio correndo. Quando viu meu estado, pediu a ajuda  do porteiro. Juntos, trataram de me pôr na cama. Eu chorava e de minha boca saiu um grito desvairado que não era meu. Era como se uma força estranha me tivesse abalado todo o corpo c se tivesse desprendido de mim sob a forma desse uivo terrível.

Por fim, exausto, adormeci. De manhã doía-me a cabeça e o corpo todo. Por isso permaneci na cama e, fatigado, tomei o re­médio amargo que Hierex preparara.

_ Por que recebeis aquele mágico judeu? — perguntou. — Nada de bom vem dos judeus. Eles têm o poder de confundir pessoas sensatas.

_ Ele não é mágico — disse eu. — Ou é louco ou então é o indivíduo espiritualmente mais forte que já conheci. Receio muito que ele seja íntimo de um deus inexplicável.

Hierex olhou-me perturbado:

— Nasci escravo e assim me criei. Portanto, aprendi a julgar a vida do ponto de vista de um verme. Mas também sou mais velho do que vós, viajei muito, experimentei o bem e o mal e aprendi a conhecer as pessoas. Se quiserdes, irei ouvir o vosso judeu e depois vos direi sinceramente o que penso dele.

Sua lealdade me comoveu. Achei que seria útil saber o que Hierex, à sua maneira, pensaria de Paulo.

—Está bem, vá então — disse eu. — Tente compreendê-lo e escutar o ensinamento de Paulo.

Por minha vez, redigi um breve relatório sobre Paulo para Gálio, na linguagem mais formal possível.

 

Minuto Lauso Maniliano sobre Paulo:

Ouvi-o pregar na sinagoga dos seus seguidores. Inqui-

ri-o a sós. Falou sem rodeios. Não procurou conquistar a minha simpatia. Nada escondeu.

E judeu de pais judeus. Estudou em Tarso, depois em Jerusalém. Outrora perseguiu os discípulos e adeptos de Jesus de Nazaré. Teve uma revelação. Em Damasco, reco­nheceu a Jesus como o Messias judeu. Esteve no deserto. Altercou em Antioquia com Simão, o pescador, principal discípulo de Jesus. Mais tarde reconciliou-se com o outro. Conferiram-lhe o direito de anunciar Jesus, como Cristo, aos incircuncisos.

Viajou pelas províncias orientais. Castigado com fre­qüência. Táticas: primeiro visita as sinagogas judaicas. Pro­clama Jesus o Messias. Ê surrado. Converte os ouvintes que se interessam peio Deus judaico. A circuncisão não é exigi­da. As leis judaicas não precisam ser obedecidas. Quem acre­dita que Jesus é Cristo está perdoado e recebe a vida eterna.

Não é agitador. Não incentiva a rebelião dos escravos. Prega a vida modesta. Não recrimina os outros, só a sua própria gente. Forte autoridade pessoal. Influi mais nos já contaminados pelo judaísmo.

Nota: convencido de que Jesus de Nazaré voltará um dia, para julgar o mundo inteiro, quando a ira de Deus castigará todos os outros. Assim, de certa forma, inimigo da humanidade.

Politicamente inofensivo, do ponto de vista de Roma. Causa dissensões e querelas entre os judeus. Desse modo, vantagem para Roma.

Nada encontrei de censurável neste homem.

 

Fui levar a Gálio meu relatório. Depois de examiná-lo, o Procônsul olhou-me de soslaio, o queixo tremendo-lhe um pouco: É muito lacônico — disse êle.

_É só um pro memoria repliquei aborrecido. Se quiser, posso lhe dizer mais alguma coisa sobre o homem.

Qual é seu segredo divino? perguntou Gálio, deprimido. Não sei respondi, impetuoso. Depois baixei a cabeça, tremi e continuei: - Se não fosse romano, talvez jogasse fora minha insígnia

de tribuno, abandonasse o cargo e o seguisse. Gálio sondou-lhe com o olhar, empertigou-se e ergueu o queixo. _ Eu me equivoquei quando lhe mandei investigar disse ele com rispidez. Você ainda é moço demais.

Em seguida balançou a cabeça, desalentado:

— Sim, exatamente. A sabedoria do mundo e os prazeres da vida ainda não o corromperam. Está doente para tremer desse jeito? Temos excelente encanamento aqui, mas de vez em quando bebe­mos água insalubre. Então pegamos uma febre chamada febre do Corinto. Eu mesmo já tive dela. Mas não se assuste. Não creio que esse Jesus de Nazaré venha julgar a humanidade enquanto formos vivos.

Sem embargo, penso que as coisas sobrenaturais interessavam a Gálio, pois ele gostava de referir-se a elas vez por outra. Qual o romano que está inteiramente livre de superstição?

Ele me convidou a tomar vinho, chamou a esposa e começou a ler para nós uma peça que escrevera em latim, com base num original grego. Leu também versos gregos, à guisa de compara­ção, para mostrar que, manejada com arte, nossa língua se ajusta maravilhosamente aos ritmos gregos.

A peça tratava da guerra de Tróia. Deve ter me interessado, pois os troianos, através de Enéias, eram os antepassados dos ro­manos. Mas depois de tomar um pouco de vinho, aconteceu-me dizer:

— O grego escrito é belo, mas hoje soa estranhamente morto aos meus ouvidos. Paulo fala a língua viva do povo.

Gálio olhou-me compassivo.

— Só é possível escrever na língua do povo o tipo mais cru de sátira — disse ele. — Aí a própria linguagem tem efeito cô­mico. Exatamente como os atores de Óstia, em Roma, empregam o linguajar do mercado. Filosofia em língua falada! Você deve estar louco, Minuto!

Subitamente seu rosto se tornou escarlate e ele enrolou reso­lutamente seus manuscritos.

— Já é tempo de expelir da cabeça essas fumaças de judaísmo — disse ele. — Você ainda não esteve em Atenas. Há uma questão de fronteira, em Delfos, que reclama a presença de um funcioná­rio no local. E há problemas em Olímpia, suscitados pelo progra­ma dos Jogos. Pode partir já. O chefe do arquivo lhe fornecerá todas as informações necessárias e também uma procuração.

A encantadora Hélvia afagou a testa e a cara gorda de Gálio com a ponta dos dedos e interveio:

— Por que entregas a um jovem tão talentoso uma missão tão fatigante? No devido tempo, os gregos virão a ti, com as suas controvérsias. Estamos em Corinto. A amizade com uma dama experimentada traria mais proveito ao desenvolvimento do rapaz do que essa viagem desnecessária.

Seus olhos sorridentes moveram-se de Gálio para mim e ela puxou para cima o manto que escorregara de seus alvos ombros.

possuísse mais experiência, poderia descrever as artísticas dobras do manto, o penteado primoroso e as magníficas jóias hindus de Hélvia.Não me detive a contemplar essas coisas mas ergui-me com um salto, tomei posição  de sentido e respondi:

_ Ás suas ordens. Procônsul.

Assim, Paulo semeou a discórdia entre mim e Gálio, também. Deixei minha casa aos cuidados de Hierex e saí de Corinto, com alguns soldados da coorte e um guia grego.

Há inúmeras descrições excelentes de Delfos, Olímpia o Atenas, o que me exime de falar aqui de seus panoramas incom­paráveis. Nem mesmo Roma lograra até então despojá-las de mais do que uma fração de seus tesouros artísticos, muito embora te­nhamos de reconhecer que fazemos o possível desde a época de Sila para enriquecer Roma à custa das preciosidades gregas.

Contudo, por mais que fatigasse o corpo procurando ver todas as atrações locais, a beleza do que contemplava não parecia ter significação alguma para mim. Nem o mármore pintado, nem o marfim, nem o ouro das mais admiráveis esculturas existentes conseguiam sensibilizar-me.

Enfronhei-me nas questões de fronteiras em Delfos. Por amor à justiça, aceitei convites de ambos os lados. Em Delfos, vi Pítia em delírio com meus próprios olhos. Os ministros discerni­ram nas palavras ininteligíveis da sacerdotisa um ou dois lisonjei­ros vaticínios que me diziam respeito. Não posso nem reprodu­zi-los aqui.

Perto de Olímpia situam-se umas terras e um templo que o Comandante Xenofonte há mais de quatro séculos consagrou a Ártemis. Uma décima parte da produção daquela área era outro­ra reservada ao festival da colheita dos habitantes. Quem quisesse podia apanhar os pomos dos antigos bosques de árvores frutíferas.

Mas com o correr dos anos, muitos marcos divisórios tinham desaparecido e o templo estava em melancólica decadência. Na época dos pompeianos até mesmo a estátua da deusa foi levada para Roma. Os habitantes queixavam-se que o possuidor das terras votivas já não vinha cumprindo as condições estipuladas. Con­servavam cuidadosamente uma inscrição em pedra na qual ainda se podiam ler estas palavras:

 

Este lugar é consagrado a Ártemis. Quem dele tiver a posse deve contribuir todos os anos com um dízimo. Do restante reserve-se uma parce­la para a manutenção do templo. Não perdoe a deusa a quem se mostrar negligente.

 

Reunidos os moradores, alguns anciãos recordaram os tempos idos em que se distribuíam vinho., farinha e doces na festa de Ár­temis. Todos tinham o direito de caçar na terra sagrada. Deixei que falassem à vontade. Afinal, o proprietário da terra prometeu preservar o costume do festival da colheita, mas declarou que a conservação do templo estava acima de suas forças. Então pro­nunciei minha sentença:

A decisão deste caso não é da alçada de Roma. Resol­vam-no vocês mesmos com a deusa, como está dito nesta inscri­ção de pedra.

O veredicto não agradou a ninguém. Em Olímpia, soube que o proprietário tinha caído num barranco enquanto caçava. Ima­ginei então que Ártemis estivesse cobrando seus emolumentos. O homem não tinha herdeiros diretos, de modo que os habitantes do distrito dividiram harmoniosamente entre si a terra votiva. Guardei na memória este episódio para contar a Cláudio quando tornasse a encontrá-lo. O Imperador apreciava velhas inscrições comemora­tivas e poderia facilmente mandar restaurar o templo.

Por fim cheguei a Atenas. Como era de praxe, desfiz-me da armadura nos portões da cidade, vesti um manto branco, pus uma coroa de flores na cabeça e entrei na cidade a pé, acompanhado apenas por meu guia grego. Enviei os soldados de licença ao Pireu, onde podiam distrair-se sob a proteção da guarnição romana se­diada no porto.

É verdade, como me tinham dito antes, que se vêem mais ídolos do que gente em Atenas. Há belos edifícios erigidos por monarcas orientais e, no fórum, os filósofos andam de um lado para o outro com seus discípulos, de manhã à noite. Em cada ruela há uma loja que vende lembranças da cidade, na maioria artigos baratos, mas também custosas miniaturas dos templos e ídolos.

Após a visita protocolar à Prefeitura e ao Areópago, fui para a melhor estalagem e lá encontrei vários rapazes de Roma que estavam concluindo os estudos em Atenas antes de se inicia­rem na vida pública. Alguns elogiaram os professores, outros enu­meraram os nomes de famosas hetairas e seus preços, assim como as casas de pasto aonde eu forçosamente tinha de ir.

Vi-me assediado -por guias que desejavam mostrar-me os pontos pitorescos de Atenas, mas depois de andar pelo mercado durante alguns dias e escutar diversos professores, fiquei conheci­do e me deixaram em paz. Pelo que pude entender, todos os filó­sofos de Atenas competiam uns com os outros, em ensinar a arte de adquirir paz de espírito. Falavam com ardor e agudeza, empre­gando metáforas surpreendentes, e gostavam de discutir entre si.

Havia no meio deles uns dois filósofos de cabelos compridos, vestidos em roupas de pele de cabra. Esses mestres ambulantes

jactavam-se de ter visitado a Índia ou a Etiópia e de estudar ciências ocultas. Contavam mentiras tão inadmissíveis acerca de suas viagens, que faziam o auditório estourar na gargalhada. Os mais grosseiros foram expulsos pelo tribunal do Areópago, mas de um modo geral qualquer um podia tomar a palavra e discorrer sobre o que bem entendesse, contanto que não insultasse os deuses, nem se envolvesse em política.

Eu comia e bebia e tratava de gozar a vida. Era agradável sentar ao sol, num morno banco de mármore, após um bom re-pasto e contemplar as sombras móveis dos transeuntes no calça­mento de mármore do mercado. As anedotas áticas são inegavel­mente brilhantes. Numa disputa, aquele que provoca o riso ganha sempre, mas esse riso ático parecia-me sem alegria e os pensa­mentos por trás dele não penetravam fundo em meu espírito como deveriam tê-lo feito se tivessem sido verdadeira sabedoria. A im­pressão que eu tinha era que o que se aprendia em Atenas naque­la época era um estilo requintado de vida, a fim de contrabalançar a aspereza romana, mais do que autêntica filosofia.

Por pura rebeldia, achei que devia ficar estudando em Atenas até que o Procônsul Gálio me chamasse de volta a Corinto. Acontece que os livros das bibliotecas não me seduziam, tal era meu estado de espírito, nem encontrava eu um mestre de quem desejasse ser discípulo.

A cada dia aumentava meu abatimento, já que eu me sentia um perfeito estrangeiro em Atenas. De vez em quando comia e bebia com os jovens romanos, só para poder falar latim puro e cristalino, em vez de grego balbuciante.

Um dia fui com eles a uma das famosas hetairas, para escu­tar a música de flauta e ver as exibições de dança e acrobacia. Acreditei em nossa sorridente anfitrioa, quando ela afirmou que podia elevar a sensualidade à categoria de arte refinada. Mas não me tocou e nenhum dos visitantes era obrigado a estudar as artes dos sentidos com o auxílio de suas adestradas escravas. Ela mesma preferia conversar a ir para a cama com seus convidados. Exigia soma tão vultosa que somente os mais ricos dentre os velhos depravados podiam pagar. Por isso, era ela tão rica que não queria induzir-nos, a nós, jovens romanos, a gastar nosso dinheiro sem necessidade.

— Talvez a minha escola só se destine àqueles que já atin­giram a decrepitude — disse-me ela, afinal — se bem que eu es­teja orgulhosa de minha arte. Tu és moço. Sabes o que são a fome e a sede. O vinho resinoso e o pão do pobre têm melhor sabor em tua boca faminta do que o vinho de Chipre e as línguas de fla­mingo numa boca que está enfastiada. Se te apaixonas por uma jovem donzela, a simples vista de um ombro nu deslumbra os teus sentidos, mais do que a satisfação do teu desejo. Desenruga a testa e rejubila com a tua vida, porque ainda és moço.

Gostaria de que me falasses dos segredos divinos suge­ri. Serves Afrodite com a tua arte?

Ela me encarou pensativa, com seus olhos lindamente som­breados :

Afrodite é uma deusa caprichosa e cruel, mas também maravilhosa. Aquele que se empenha com a maior avidez em con-quistar-lhe os favores e em suas aras mais sacrifica, permanece eternamente insatisfeito. Ela nasceu da espuma do mar e ela mesma é como a espuma que borbulha e rebenta. Ela se dissolve no ar, quando alguém avaramente lhe agarra os membros impe­cáveis.

Também ela franziu um pouco a testa ao erguer ambas as mãos e olhar distraída para as unhas vermelhas:

Vou te dar um exemplo do seu capricho. Tenho uma co­lega ainda bastante jovem, sem uma ruga ou defeito. É modelo de escultores e tem grande fama como tal. A deusa meteu-lhe na cabeça que seria capaz de seduzir todos os filósofos célebres que chegam a Atenas para ensinar a arte da virtude e do autodomínio. Em sua vaidade, ela deseja desacreditar a sabedoria deles e fazê-los chorar em seus braços. Venceu muito osso duro de roer. Como es­cutasse humildemente os seus ensinamentos, os filósofos a enalte­ciam. Para êle, era a mulher mais sábia que haviam conhecido, já que sabia ouvi-los atentamente. Mas ela não andava atrás da ciência deles. Valia-se de todas as artimanhas para fazê-los fra­quejar no caminho da virtude. Tão logo atingia o objetivo, ela os mandava embora e não tornava a vê-los, embora muitos se arras­tassem de quatro pés diante de sua casa, e um se tenha matado à sua porta. Mas faz algum tempo, uns seis meses mais ou menos, chegou a Atenas um judeu errante.

Um judeu! exclamei, pondo-me de pé com um salto. Sentia alfinetadas na cabeça como se meu cabelo estivesse em pé. A hetaira não entendeu a minha surpresa e prosseguiu.

Sim, sei disse ela os judeus são mágicos poderosos. Mas este era diferente. Pregava no mercado. Foi interrogado sobre sua doutrina pelo tribunal do Areópago, como é de hábito. Era um homem de nariz aquilino, calvo e de pernas arqueadas, mas inspirado. A mulher de que estou falando ficou possuída pelo de­sejo incontrolável de confundir a ciência do judeu também. Con­vidou-o para sua casa, chamou outras pessoas para ouvi-lo, vestiu-se recatadamente e cobriu a cabeça, a fim de homenageá-lo. Por mais que fizesse, não conseguia seduzi-lo. Assim, acabou renden-do-se e passou a escutá-lo com seriedade. Depois que êle saiu de Atenas, ela ficou profundamente abatida, fechou a casa e agora só recebe os poucos atenienses que se impressionaram com os en­sinamentos do judeu. Não existe filósofo que não encontre um ou dois seguidores em Atenas. Foi assim que a, deusa se vingou da vaidade da mulher, embora esta tenha pago grande tributo a Afro­dite. De minha parte, cheguei à conclusão de que o judeu não era um verdadeiro sábio, mas foi enfeitiçado pela própria deusa para resistir a todas as seduções. A pobre mulher ainda está tão amar­gurada com a humilhação sofrida, que ameaça desligar-se de nossa associação e levar uma vida modesta com suas economias.

Riu e atirou-me um olhar que pretendia encorjar-me a aderir ao riso. Mas não tive vontade de rir. Então, ela tornou a ficar séria.

A juventude passa depressa — reconheceu — e a beleza se extingue, mas o verdadeiro poder de enfeitiçar pode ser retido na velhice, com o auxílio da deusa. Tenho um exemplo disso na mulher que até bem pouco era a colega mais velha de nossa asso­ciação e que aos setenta podia seduzir qualquer rapaz.

_ Como se chama e onde posso encontrá-la?

Ela hoje é cinza. A deusa permitiu que morresse de um ataque cardíaco, na cama, enquanto praticava sua arte pela última vez.

Não me refiro a ela, mas à mulher que o judeu converteu.

Ah, esta se chama Dâmaris. É fácil chegar à sua casa. Mas previno-te: ela está envergonhada de sua desgraça e não rece­be mais ninguém. Não está gostando de minha casa?

Lembrei-me do que a polidez exigia, elogiei-lhe a casa, a hos­pitalidade, o vinho de aroma agradável e a beleza incomparável da anfitrioa, até que ela se acalmou e esqueceu a indignação. Ao cabo de um intervalo conveniente, levantei-me, depositei minha dádiva numa bandeja e regressei à hospedaria no mais miserável estado de espírito. Era uma espécie de maldição. Nem mesmo em Atenas eu me livrava de Paulo, o judeu. Evidentemente era ele o homem de quem falara a hetaira.

Não pude dormir logo. Passei muito tempo escutando os ruídos noturnos da estalagem até que a aurora se infiltrou no quarto por entre as fendas das janelas. Desejei estar morto ou nunca ter nascido. Não tinha do que me queixar, é certo. Tivera mais êxito do que a maioria dos meus contemporâneos. Gozava de boa saúde e não tinha defeito físico, exceto uma ligeira clau­dicação, e esta não me impedia de fazer qualquer coisa, a menos que eu quisesse ser sacerdote de algum Colégio Romano. Por que me era negada a felicidade? Por que Cláudia usara tão cruelmente a minha credulidade? O que me fazia desesperar desse modo ao encontrar Paulo?

Afinal caí num sono profundo e dormi até meio-dia. Quando acordei, vi que tivera um sonho delicioso mas não podia lembrar- me dele. Em contraste com os pensamentos da noite, domina­va-me a certeza de que fora por acaso que ouvira falar da hetaira Dâmaris. Isso tinha algum sentido. Tal convicção me agradava tanto que comi com apetite, fui ao barbeiro e mandei encrespar o cabelo. Também mandei preguear artisticamente o manto.

Não demorei a achar a bonita casa de Dâmaris. A aldrava era um lagarto coríntio de bronze. Bati muitas vezes. Um indiví­duo que ia passando fez um gesto obsceno e balançou a cabeça, para mostrar que eu esperava em vão. Por fim, a porta foi aberta por uma escrava chorosa, que tentou fechar novamente a porta. Mas enfiei o pé na abertura e disse a primeira coisa que me veio à cabeça.

— Conheci em Corinto o judeu Paulo. Quero falar com sua patroa. Só isso.

A moça introduziu-me, a contragosto, numa sala cheia de estátuas coloridas, sofás ornamentados e tapeçarias orientais. Após breve intervalo, Dâmaris entrou apressada, um tanto descomposta e descalça. Seu rosto brilhava em jubilosa expectativa. Cumpri­mentou-me com gestos impacientes.

— Quem és, forasteiro? Tens realmente uma saudação para mim, da parte de Paulo, o mensageiro?

Procurei explicar que encontrara Paulo em Corinto, com ele falara demoradamente, e a conversa me deixara tal impressão que não podia esquecê-la. Tento sabido que Dâmaris andava em dificuldades, por causa dos ensinamentos do judeu errante, quis encontrá-la e com ela discutir o assunto.

Ao falar, observei Dâmaris e notei que ela já vivera os me­lhores anos de sua vida. Devia ter sido muito bonita e sua figura esbelta era ainda impecável. Sedutoramente vestida e cuidadosa­mente pintada, com o cabelo bem escovado, na penumbra causa­ria impressão a qualquer homem.

Sentou-se extenuada num sofá e convidou-me com um gesto a seguir-lhe o exemplo. Deve ter notado meu exame atento, por­que levou a mão ao cabelo, como fazem as mulheres, ajeitou a roupa e puxou os pés nus para debaixo das dobras do manto. Mas limitou-se a isso. Fitava-me com os olhos arregalados. De repente senti-me satisfeito em sua companhia. Sorri.

— Esse terrível judeu — disse eu — faz com que eu me sinta feito um rato numa ratoeira. Dá-se o mesmo contigo, Dâma­ris? Pensemos os dois num meio de abrir a ratoeira e reconquistar a nossa felicidade.

Ela sorriu também, mas ergueu a mão num movimento de­fensivo:

— Por que temes? Paulo é o mensageiro do Cristo ressus-citado e propaga a palavra da alegria. Não conhecia o sabor da verdadeira felicidade na minha vida, antes de encontrá-lo.

 _ Eras tu realmente que fazias tombar os homens mais sábios? Falas como se tivesses perdido o juízo.

_ Minhas velhas amigas pensam que estou louca admitiu

vacilar. Mas prefiro estar louca, em virtude dos ensinamen-dêle a continuar em minha vida anterior. Êle me olhou de um modo bem diferente do dos lascivos filósofos de barba branca. Tive vergonha da minha antiga maneira de ser. Através de seu Senhor alcancei o perdão dos meus pecados. Sigo a nova senda de olhos fechados, como se o espírito me estivesse guiando.

_  Se é assim disse eu, lacônico — nada temos a dizer um ao outro.

Mas ela me deteve, cobrindo os olhos com a mão:

Não saias. Tinhas de vir. Algo te feriu o coração. De outro modo não terias vindo. Se quiseres, eu te apresentarei aos irmãos que o escutaram e acreditaram na mensagem de alegria.

Foi assim que travei conhecimento com Dâmaris e alguns gre­gos que iam à casa dela, entrando pela porta dos fundos, para discutir Paulo e a nova doutrina. Desde o início tinham freqüen­tado a sinagoga, movidos pela curiosidade de conhecer o deus ju­daico. Também haviam lido as sagradas escrituras dos judeus. O mais erudito era Dionísio, juiz do tribunal do Areópago que fora oficialmente designado para inquirir Paulo.

Para falar com sinceridade, Dionísio empregava uma lingua­gem tão elevada e, de certa forma, tão arrevesada, que nem mesmo seus amigos o entendiam, muito menos eu. Mas é provável que tivesse boavontade nas exposições que fazia em nossos encontros. Dâmaris escutava-o com um sorriso distraído estampado no rosto, exatamente como devia ter escutado os outros sábios.

Findo o debate, Dâmaris oferecia-nos uma refeição modesta e partíamos o pão e bebíamos o vinho em nome de Cristo, como Paulo havia ensinado. Mas mesmo a uma refeição simples como esta os atenienses atribuíam uma quádrupla significação. Era a um só tempo material e simbólica, moralmente edificante, uma busca mística de comunhão Com Cristo e uma confraternização dos par­ticipantes .

Enquanto conversávamos, eu observava Dâmaris. Depois da refeição, sentia prazer em beijá-la, como determina o costume cris-ao. Nunca vira uma mulher portar-se tão encantadoramente e, to-avia, com tanta simplicidade como ela. Cada movimento seu era belo e sua voz tão admirável,que agente antes escutava o tom que as palavras. Fazia tudo com tanto donaire que dava gosto contempla-la. O prazer virava alegria incontida quando eu lhe bei-java os lábios macios em sinal de amizade.

Paulo parecia ter dado aos gregos algo substancioso. Eles discutiam com verdadeira paixão. Acreditavam implicitamente eni Paulo, mas seus próprios conhecimentos os impeliam a certas res­salvas. Enfeitiçado por Dâmaris, contentava-me de olhar para ela e deixar que as palavras esvoaçassem à minha volta.

Reconheciam eles que no íntimo de cada pessoa existe um veemente desejo de luz divina, mas daí passavam a discutir se este mesmo anelo se encontrava também nas pedras, nas plantas, nos animais e em todos os desenvolvimentos superiores das formas originais. Dionísio dizia que Paulo possuía uma soma surpreen­dente de conhecimento secreto dos poderes espirituais, mas parecia acreditar que ele mesmo possuía conhecimento ainda maior da ordem mútua e da gradação dos poderes espirituais. Para mim, essa palestra era como água corrente.

Adquiri o hábito de levar um presentinho para Dâmaris: flo­res ou fruta em conserva, bolo ou puro mel de violeta do Himeto. Ela recebia os presentes encarando-me com seus olhos claros e ex­perientes. Eu me sentia moço e desajeitado em comparação com ela. Logo percebi que ela estava constantemente em meus pensa­mentos e que eu não fazia outra coisa que esperar por esses mo­mentos em que tinha oportunidade de voltar a vê-la.

Creio que durante os nossos debates ela me ensinava mais com seu comportamento do que com suas palavras. Naturalmente chegou o instante em que fui forçado a admitir que estava Cega­mente apaixonado por ela. Ansiava por ela¡ por sua presença, seu contacto e seu beijo, mais do que por qualquer outra coisa que desejara antes. Minhas paixões anteriores pareciam totalmente insig­nificantes quando comparadas com o que eu podia encontrar em seus braços. Era como se o pensar nela reduzisse a cinzas tudo o que havia dentro de mim.

Fiquei apavorado comigo mesmo. Era esta então minha sen­tença — apaixonar-me pelo resto da vida por uma hetaira, vinte anos mais velha do que eu e consciente de todo o mal que experi­mentara? Quando me dei conta da verdade, tive vontade de fugir de Atenas, mas já não podia fazê-lo. Entendi os sábios que suspi­ravam por ela e também entendi o filósofo que se suicidara à porta da casa de Dâmaris ao notar a inutilidade do desejo que o consumia.

Não podia fugir. Tinha de ir vê-la. Quando voltamos a nos encontrar e eu a fitei, meus lábios tremeram e quentes lágrimas de desejo me assomaram aos olhos.

Dâmaris sussurrei. — Perdoa-me. Receio que te amo para além da razão.

Dâmaris encarou-me com seus olhos claros, estendeu a mão e roçou a minha com as pontas dos dedos. Nada mais era necessário para que um arrepio terrível me percorresse o corpo todo. Eu mesmo me ouvi suspirar entre soluços             Eu também tinha receio disso — disse Dâmaris. — Vi que acontecer. A princípio era uma nuvem inocente no horizonte,

mas agora é um negro temporal que relampeja dentro de ti. Eu

devia te ter mandado embora em tempo. Mas sou apenas uma mulher. apesar de tudo.

Pousou o queixo na mão, alisou as rugas do rosto, e ficou olhando para a frente.

_ Isto sempre acontece — disse, com tristeza. — A boca resseca, a língua treme e as lágrimas vêm aos olhos.

Tinha razão. Minha língua tremia na boca seca, de tal modo que não me era possível dizer uma única palavra. Atirei-me de joelhos diante dela e tentei enlaçá-la com meus braços. Mas ela afastou-se de leve e disse:

_ Lembre-se de que me ofereceram mil moedas de ouro por uma noite. Certa vez, um ricaço vendeu uma mina de prata, por minha causa, e teve de recomeçar tudo, partindo da miséria.

_ Posso arranjar mil moedas de ouro — prometi. — Sim. duas mil, se me deres tempo de falar com os banqueiros.

Às vezes bastava uma violeta, quando eu me agradava de um belo rapaz — disse ela. — Mas não falemos disso agora. Não quero dádivas de ti. Eu mesma te darei uma. Essa dádiva é o co­nhecimento inconsolável, adquirido em minha experiência, de que o prazer físico é uma tortura, não a verdadeira satisfação, e faz surgir constantemente um desejo de satisfação ainda mais terrível. Mergulhar no prazer físico é o mesmo que atirar-se num braseiro vivo. Meu fogo se extinguiu. Nunca mais tornarei a acender a chama sacrificatória para a queda de outrem. Não vês que tenho vergonha de minha vida passada?

_ Tocaste em minha mão com a ponta dos teus dedos — murmurei, a cabeça baixa e as lágrimas dos meus olhos caindo no piso de mármore.

_ Foi um erro — confessou Dâmaris. — Eu queria tocar em ti para que nunca me esquecesses. Minuto, caríssimo, o desejo significa muito mais do que a satisfação. Essa é uma verdade do­lorosa mas admirável. Acredita-me, Minuto querido, se nos sepa­rarmos agora, só teremos boas recordações um do outro, e nunca nos quereremos mal. Encontrei um novo caminho. Talvez o teu te

leve um dia à mesma felicidade eterna. Mas eu não queria compreende-la.

Não me faças sermões, mulher — gritei, a voz rouca de desejo.      Prometi pagar o que quiseres.

Dâmaris enrijou-se e olhou-me com firmeza por um momento, Pois, pouco a pouco, empalideceu e disse com desdém:

_ Como queiras, então. Volta amanhã de noite, para que eu tenha tempo de preparar tudo. E não me culpes depois.

Sua promessa fez minha cabeça rodopiar, embora as palavras tivessem um timbre agourento. Saí de joelhos trêmulos e, consu­mido de impaciência, vaguei pela cidade, galguei a Acrópole e fui contemplar o mar da cor de vinho escuro, para passar o tempo. No dia seguinte, dirigi-me às termas e relaxei os membros com exercícios no ginásio, mas cada movimento violento enviava uma flama ardente através de meu corpo, à lembrança de Dâmaris.

Afinal caiu o crepúsculo acinzentado e surgiram as estrelas vespertinas. Bati com força na porta de Dâmaris, mas ninguém veio abrir. Minha decepção foi esmagadora, quando imaginei que ela tivesse mudado de idéia e quebrado a promessa. Depois, apalpei a porta e reparei com alívio que não estava trancada. Entrei e vi que a sala de recepção estava iluminada.

Senti um odor desagradável. O sofá estava coberto com uma colcha esfarrapada. As candeias tinham sujado as paredes com fuligem. O cheiro de incenso rançoso era sufocante. Olhei estupi­dificado para a sala outrora tão bela. Depois bati com impaciên­cia na bandeja das dádivas. O som ecoou pela casa. Daí a instan­tes, Dâmaris entrou na sala arrastando os pés, e eu a fitei com horror. Não era a Dâmaris que eu conhecia.

Besuntara os lábios espalhafatosamente, trazia o cabelo ema­ranhado e sujo, como o de uma rapariga do cais, e vestia uma ca­misola rota fedendo a vinho e vômito. Ao redor dos olhos traça­ra horrorosos anéis pretos e, com o mesmo pincel, acentuara cada ruga da face. Era o rosto de uma velha devassa e encarquilhada.

— Aqui estou, Minuto. A tua Dâmaris — disse ela, apática. — Aqui estou, como tu me terias. Toma-me então. Cinco moedas de cobre bastarão como pagamento.

Entendi o que ela queria dizer. Todo o vigor abandonou-me o corpo e caí de joelhos diante dela, curvando a cabeça até o chão e pranteando meu desejo impotente.

_ Perdoa-me, Dâmaris, minha querida — disse eu, afinal.

Vês agora, Minuto — disse ela num tom mais suave. — Isso era o que querias fazer de mim. Era a esse ponto que querias degradar-me. Dá tudo no mesmo. Tanto faz uma cama docemente perfumada ou uma pocilga com cheiro de porco e urina, e eu de costas para a parede no cais.

Com a cabeça em seu regaço, chorei a minha desilusão até não sentir mais desejo. Ela me afagava a cabeça, comiserando-se de mim, e murmurava ternas palavras ao meu ouvido. Por fim. afastou-se, lavou o rosto, mudou de roupas e voltou com o cabe­lo penteado. O rosto estava tão iluminado de prazer que tive de retribuir, com os lábios trêmulos, ao seu sorriso.

— Muito obrigada, meu caríssimo Minuto. No último instan­te tu compreendeste, apesar de teres o poder de me fazer trope­çar de novo em meu passado. Toda a minha vida serei grata por tua bondade, por não me teres roubado a felicidade que eu alcan­çara Um dia saberás que a minha felicidade em Cristo é mais maravilhosa do que qualquer felicidade terrena.

Sentamo-nos de mãos dadas, durante longo tempo, e conver­samos como irmão e irmã ou, melhor, como mãe e filho. Cuida­dosamente, procurei explicar que talvez só aquilo que vemos com nossos olhos seja real e tudo o mais não passe de ilusórios jogos da imaginação. Dâmaris limitou-se a fitar-me com seus olhos sua­vemente brilhantes.

_ Minha disposição de espírito oscila entre o desânimo mais profundo e a felicidade arrebatada — disse ela. — Nos meus me­lhores momentos alcanço um júbilo que ultrapassa todas as limi­tações terrenas. Tal é a graça, a verdade e a misericórdia que co­nheço. Não preciso crer nem entender mais nada.

Ao retornar à hospedaria, ainda paralisado pela decepção, não sabendo em que acreditar nem em que confiar, encontrei à minha espera um dos soldados panônios da minha escolta. Vestia um manto sujo e não trazia espada. Imaginei o terror que ele sen­tira ao passar furtivamente pelos inúmeros ídolos e estátuas de Atenas, supersticiosamente apavorado com a célebre onisciência dos atenienses. Ao ver-me, pôs-se imediatamente de joelhos.

— Perdoai-me a desobediência às vossas ordens expressas, Tribuno — implorou. — Mas meus companheiros e eu não pode­mos mais suportar a vida no porto. Vosso cavalo está definhando de tristeza e nos derruba da sela todas as vezes que procuramos exercitá-lo como recomendastes. Não cessamos de nos desentender com a guarnição do porto, por causa do dinheiro das provisões. Mas o pior de tudo é que os malditos áticos nos roubam. Somos como ovelhas amarradas nas mãos deles, embora estejamos afeitos aos trapaceiros de Corinto. De todos, o mais terrível é um sofista que nos depenou completamente ao provar a cada um de nós, de maneira convincente, que Aquiles não pode derrotar a tartaruga na corrida. Em Corinto, ríamos dos prestidigitadores que ocultavam uma conta colorida debaixo de três canecos de vinho e pediam que adivinhássemos sob qual delas estava a conta. Mas esse ático terrível está nos pondo loucos, pois quem não apostaria que Aquiles pode correr mais depressa do que uma tartaruga? Mas ele divide a distância na metade, depois em mais outra metade e assim por diante, até provar que Aquiles tem sempre um trecho a percorrer e não pode  vencê-lo antes da tartaruga. Nós mesmos disputamos uma carreira  com uma tartaruga e é claro que ganhamos fàcilmente, mas não encontrámos uma falha na demonstração do

sofista. Enxotando-lo e voltamos a apostar com ele. Senhor, em nome de todas as  Águias de Roma, reconduzi-nos a Corinto antes

que enlouqueçamos.

Essa catadupa de queixas não me deu oportunidade de profe­rir uma palavra. Quando o soldado terminou, admoestei-o severa­mente por seu comportamento, mas não tentei solucionar o enig. ma para êle, já que não me achava num estado de espírito ade­quado. Por fim, deixei-o levar minha bagagem nas costas, liquidei a conta na hospedaria e saí de Atenas sem despedir-me de ninguém, numa pressa tal que esqueci na lavandaria duas túnicas.

Deixamos o Pireu em tamanho abatimento, que levamos três dias para fazer um percurso que eu poderia ter feito, sozinho, num único dia. Pernoitamos em Elêusis e Mégara. Os homens, porém, ficaram tão animados que cantavam ruidosamente quando afinal chegamos a Corinto.

Apresentei-os ao centurião no quartel. O Comandante Rúbrio recebeu-me com a roupa molhada de vinho e uma coroa de folhas de parreira encarapitada obliquamente na cabeça. Não estava in­teiramente certo de quem eu era, pois várias vezes perguntou meu nome. Desculpou-se de sua distração, dizendo que era um velho e estava sofrendo os efeitos tardios de um golpe no crânio recebido na Panônia e que agora só lhe restava aguardar a pensão.

Dali dirigi-me ao Proconsulado, e o secretário deGálio contou-me que os habitantes de Delfos haviam apelado para o Im­perador a respeito da questão dos limites e pago os emolumentos da apelação. A gente que morava na terra votiva de Ártemis perto de Olímpia havia, por seu turno, encaminhado uma queixa por escrito de que eu insultara a deusa e assim causara a morte do proprietário. Isso eles tinham feito para salvar a própria pele, depois de repartir as terras votivas e deixar que o templo se trans­formasse em ruína. Não havia informação de Atenas acerca de meu procedimento.

Sentia-me desalentado, mas Gálio recebeu-me bondosamente, abraçou-me e convidou-me imediatamente para compartilhar de sua mesa.

Você deve estar saturado até à borda de sabedoria ate­niense disse êle mas falemos dos negócios de Roma.

Enquanto comíamos, êle ia me contando que seu irmão Sé­neca escrevera que o jovem Nero progredia cada vez mais e se mostrava tão respeitoso para com os senadores e cavaleiros que todos lhe chamavam a delícia e alegria da humanidade. Cláudio casara-o com sua própria filha Otávia, de oito anos, nascida de seu matrimônio com Messalina, a fim de agradar mais ainda a sua querida Agripina.

Do ponto de vista jurídico, esse casamento era um incesto, pois Cláudio perfilhara Nero, mas essa objeção legal fora posta de lado por um senador, que generosamente adotara Otávia antes do enlace.

Britânico náo revelava os mesmos sinais de desenvolvimento Nero. Estava quase sempre doente, passava a maior parte do  tempo em seus aposentos, no Palatino, e se mostrava frio para com

madrasta. O velho guerreiro maneta, Burro, fora nomeado co­mandante único dos Pretorianos. Burro era velho amigo de Séneca e tinha grande estima por Agripina, pelo fato de ser ela filha do grande Germânico.

_ O Imperador está bem — disse Gálio, relanceando a carta e ao mesmo tempo derramando vinho do cálice no piso. — Com­porta-se com a majestade de sempre e padece de vez em quando de um inofensivo ardor na garganta. A mais importante notícia fi­nanceira é que o porto de Óstia está concluído e os navios de ce­reais podem agora descarregar ali. Milhões de moedas de ouro foram enterrados na lama e nos bancos de areia de Óstia, mas isso indica que Roma não precisa mais temer os distúrbios motivados pelo atraso dos suprimentos de cereais. Certa vez uma multidão de cidadãos enfurecidos espremeu Cláudio tão fortemente de encontro à parede que ele levou o maior susto de sua vida. O preço das se­mentes do Egito e da África cairá e já não compensa plantar ce­reais na Itália. Os senadores mais previdentes já começaram a criar gado e estão vendendo no estrangeiro os escravos que lavram seus campos.

Enquanto Gálio falava em seu tom paternal, minha ansieda­de se foi dissipando e compreendi que não precisava temer uma reprimenda por ter demorado em Atenas. Apesar de tudo, ele me olhava perscrutadoramente, prosseguindo no mesmo tom de voz despreocupado:

— Você está pálido e seus olhos perderam o brilho. Estudar em Atenas tem Confundido muitos outros honrados jovens romanos. Ouvi dizer que você recebeu instrução de uma mulher inteligente. É claro que essas coisas são fisicamente extenuantes e também o seu tanto dispendiosas. Espero que não esteja encalacrado de dívidas. Queres saber de uma coisa, Minuto? Um pouco de ar marinho lhe faria bem.

Antes que eu tivesse tempo de dar qualquer explicação, ele ergueu a mão para conter-me e disse com um sorriso:

Sua vida privada não é da minha conta. O importante é que o moço Nero e a adorável Agripina lhe enviam cordiais sau­dações, através de meu irmão. Nero tem sentido a sua falta. Não se pode deixar de louvar a Deusa da Fortuna de Roma, por ter colocado uma mulher tão decidida e verdadeiramente imperial como Agripina ao lado de Cláudio, de cujas responsabilidades compartilha. Soube que você enviou a Agripina um belo cálice de onze coríntios, como presente daqui. Ela está encantada com sua atenção.

°r um instante meu espírito ansiou por Roma, porque a vida

lá parecia mais simples e enquadrada numa sensata rotina. Mas ao mesmo tempo eu sabia que não podia livrar-me dos meus problemas com uma simples mudança de domicílio. Minha situa­ção embaraçosa me fez suspirar. Gálio sorriu distraído.

— Soube que você andou brigando com Ártemis nessa viagem — continuou. Seria prudente que, levasse pessoalmente uma ofe­renda para ela no templo de Éfeso. Tenho razões para enviar uma carta confidencial ao Procônsul, na Ásia. Quando você mesmo o encontrar, fale-lhe também dos incomparáveis talentos de Nero, da modéstia com que se comporta no Senado e da maneira sábia como Agripina o vem educando. O casamento de Nero com Otávia tem certa significação política que talvez você entenda se pensar nisso um pouco. Naturalmente eles ainda não vivem juntos, pois Otávia é uma criança.

Mas minha cabeça estava como que cheia de névoa, de modo que tudo quanto pude fazer foi curvá-la estupidamente em sinal de concordância. Por isso, Gálio estendeu-se sobre a questão:

— Cá entre nós, tanto as origens de Britânico quanto as de Otávia são, é o mínimo que se pode dizer, suspeitas, por causa da reputação d - Messalina. Mas Cláudio os tem na conta de filhos e, afinal, legalmente o são. Nem mesmo Agripina ousaria ferir-lhe a vaidade masculina, tocando em questões tão delicadas.

Admiti que ouvira comentários semelhantes antes de sair de Roma.

— Mas ao mesmo tempo — acrescentei — parecia-me que alguém espalhava propositadamente essas histórias terríveis a res­peito de Messalina, e eu não podia levá-las a sério. Ela era jovem, bonita e gostava de se divertir. Cláudio era um ancião a seu lado Mas não posso crer em tudo que dizem dela.

Gálio agitou seu cálice com impaciência.

Lembre-se de que cinqüenta senadores e uns duzentos ca­valeiros foram mortos ou tiveram permissão de cortar as veias por causa da imprudência de Messalina. De outro modo, seu pai, Minuto, dificilmente teria recebido a larga faixa púrpura.

Se o entendo corretamente, Procônsul — disse eu, hesi­tante — Cláudio tem mau estômago e uma cabeça fraca, não é isso? Um dia ele terá de pagar a dívida que todos nós teremos de pagar, por mais que sacrifiquemos a seu gênio.

Façamos de conta que você nunca pronunciou tais pala­vras — gritou Gálio. — Apesar de sua debilidade, Cláudio vem governando com tanto acerto que o Senado pode elevá-lo à condi­ção de deus, após a morte, mesmo que isso se cubra de certo ridí­culo. Um homem previdente deve encaminhar com antecedência o problema de sua sucessão.

_ Nero Imperador murmurei em devaneio. Mas Nero é um menino.

Pela primeira vez, pensei nesga  possibilidade. Não podia deixar de deleitar-me, já que era amigo de Nero desde muito antes que sua mãe se tornasse esposa de Cláudio.

_Não se assuste com esse pensamento, Tribuno Minuto disse Gálio. Mas difundi-lo tão abertamente é perigoso, enquan­to Cláudio estiver vivo e respirando. Arrumar e reunir todos os fios do destino e do acaso seria útil se o mesmo excelente pensa­mento surgisse nos círculos dirigentes das outras províncias. Eu não me oporia a que você passasse de Éfeso a Antioquia. Esta úl­tima é sua cidade natal. Dizem que os libertos de seu pai aí acu­mularam grande riqueza e prestígio. Bastaria que você falasse bem de Nero. Só. Nem uma única menção ao futuro, explicitamente. Tome cuidado com esse ponto. Aqueles com quem você conversar tirarão suas próprias conclusões. No Oriente há mais intrigante senso político do que Roma geralmente imagina.

Deixou que eu refletisse um instante e depois continuou:

É evidente que você mesmo terá de custear sua viagem, embora, por uma questão de formalidade, eu lhe confie algumas cartas, para que possa encontrar-se com os destinatários numa at­mosfera de intimidade. Mas. tudo quanto disser, dirá espontanea­mente. Não por minha ordem. Você é fraco por natureza e muito moço ainda para que o julguem capaz de maquinações políticas. Nem se trata disso, como espero que compreenda. Mas há exilados romanos que estão sofrendo os tormentos do degredo, em razão dos caprichos e suspeitas de Cláudio. Esses homens têm amigos em Roma. Não os evite porque, quando Cláudio morrer, todos os exi­lados serão perdoados, os judeus também. Isto prometeu meu irmão Séneca, pois êle mesmo suportou oito anos de exílio. Pode mencio­nar as perturbações de estômago do Imperador, mas não esqueça de acrescentar que talvez não passem de vômitos sem conseqüên­cia. Por outro lado, o câncer de estômago tem sintomas idênticos. Cá entre nós, Agripina está profundamente inquieta com a saúde de Cláudio. Êle é um gastrónomo e não é capaz de cumprir à risca uma dieta sensata.

Fui forçado a concluir que Gálio estava embriagado, uma vez que se atrevera a falar de tais coisas sem nenhuma reserva. Deve ter superestimado minha lealdade, porque pensava que a lealdade era uma qualidade inata em todos os jovens romanos. Também tenho sangue de lobo nas veias. Mas êle encheu minha cabeça de idéias tempestuosas e me fêz pensar em outras coisas além de Dâ­maris e Atenas.

No fim pediu-me que meditasse calmamente e depois me mandou para casa. Era tarde da noite; apesar disso, o fogo crepi­tava à porta de minha casa e do interior provinha o ruído de uma cantoria barulhenta. Pensei que talvez Hierex tivesse sabido do meu regresso e preparado uma recepção. Quando entrei vi uma porção de gente, homens e mulheres, acabando de comer em minha sala de jantar. Era óbvio que estavam todos inteiramente ébrios. Um dançava pela sala, rodando os olhos, e outro balbucia­va numa língua que não pude entender. Hierex andava de um lado para outro, atuando como anfitrião e beijando cordialmente todos os seus convidados, um por um. Quando me viu, perturbou-se mas logo recobrou a serenidade:

— Benditas sejam a vossa entrada e a vossa saída, meu senhor Minuto — exclamou. — Como vedes, estamos praticando juntos, da melhor maneira possível, os cânticos sacros. Cumprindo vossas ordens, investiguei a nova doutrina dos judeus. Ela se ajusta a um simples escravo como uma luva.

O porteiro e o cozinheiro prontamente saíram de seu êxtase e se ajoelharam à minha frente. Ao perceber que eu começava a inchar de raiva, Hierex apressou-se em puxar-me para um canto.

Não vos encolerizeis — disse ele. — Tudo está em boa ordem. Paulo, aquele homem severo, não sei por que motivo sentiu-se subitamente desanimado, mandou cortar o cabelo e foi para Jerusalém prestar contas aos superiores. Com sua partida, nós, cristãos, começamos a discutir para ver quem estava mais apto a instruir os outros. Os judeus, por egoísmo, acham que sabem mais a respeito de tudo, até mesmo de Cristo. Assim uso a vossa casa como ponto de reunião onde nós, os incircuncisos, nos en­contramos para praticar a nova doutrina da melhor maneira pos­sível. Também comemos um pouco melhor do que nas refeições comunais, o que atrai sempre muita gente pobre que não paga nada. Este ágape corre por minha conta. Fisguei aquela viúva rica que está ali. Fiz várias amizades úteis entre os cristãos. É de­cididamente a melhor sociedade secreta a que já me filiei.

Quer dizer então que você se tornou cristão, foi batizado, faz penitência e tudo o mais? — perguntei perplexo.

Vós mesmo o ordenastes — disse Hierex na defensiva. — Sem vossa permissão, eu nunca teria ingressado, pois sou apenas vosso escravo. Mas com os cristãos joguei fora minha pecaminosa indumentaria servil. De acordo com o ensinamento deles, somos iguais de Cristo, vós e eu. Deveis ser bondoso comigo e eu vos ser­virei da melhor maneira possível, como sempre servi. Quando nos tivermos desembaraçado dos judeus mais presumidos, nossa socie­dade do amor será um ornamento para toda Corinto.

De manhã, Hierex readquirira a sobriedade e estava bem mais humilde, mas o rosto se lhe ensombrou quando eu disse que ia para a Ásia levando-o comigo, já que não podia empreender tão longa viagem sem um criado.

_ Impossível — gemeu Hierex — arrancando os cabelos.

Exatamente agora, quando acabo de firmar os pés aqui e em vosso nome encetar todos os tipos de transações úteis! Se tiverdes de liquidar tudo de imediato, então tenho a impressão de que perde­reis boas somas. Nem posso deixar os cristãos em apuros agora que Paulo foi embora e eles estão brigando. Há viúvas e órfãos que precisam de proteção. Isso faz parte da doutrina deles. E eu sou um dos poucos em toda a congregação que entendem alguma coisa de dinheiro. Contaram-me uma história interessante de um senhor que deu a seus servos algumas libras de ouro e depois pediu-lhes conta da maneira como haviam aumentado o patrimônio. Eu não queria parecer incompetente no dia da prestação de contas.

Em minha ausência, Hierex engordara muito. Não me seria útil em viagens longas e enfadonhas. Não faria outra coisa senão queixar-se, bufar e arquejar, ansiando pelas comodidades de Co­rinto.

Dentro em breve será o dia do aniversário da morte de minha mãe — disse eu. — Vamos juntos às autoridades. Eu lhe darei a liberdade, para que você possa ficar em Corinto e cuidar da casa. Acredito que terei prejuízo se de repente vender tudo o que adquiri aqui a crédito.

Isso mesmo é o que eu ia sugerir — disse Hierex, impa­ciente. — Deve ter sido o Deus cristão que me deu tão excelente idéia. Economizei bom dinheiro, de modo que eu mesmo poderia pagar metade do imposto de alforria. Já procurei saber de um advo­gado da Prefeitura quanto poderiam pedir por mim. Engordei de­mais, já não sirvo para o trabalho físico. Também tenho certos de­feitos que consegui ocultar de vós, mas que reduziriam considera­velmente meu preço num leilão.

Não aceitei o oferecimento, pois achei que Hierex iria preci­sar de suas economias para se iniciar nos negócios e agüentar a vida cara de Corinto. Assim, paguei os emolumentos à Prefeitura e eu mesmo coloquei em suas mãos o bastão de liberto. Ao mesmo tempo passei-lhe uma procuração para administrar minha casa e meus bens em Corinto. Na realidade, estava satisfeito por ver-me livre dele e de todos os enfadonhos assuntos financeiros. Não gostei da maneira despreocupada como Hierex se unira aos cris­tãos e não queria ser responsável por ele, a não ser como meu liberto.

Hierex Láusio acompanhou-me a Cencréia, onde embarquei para Éfeso. Mais uma vez ele me agradeceu por permitir que se chamasse Láusio, que considerava um nome muito mais imponen­te e digno do que o modesto Minuto. As lágrimas que derramou na minha partida eram, acredito, sinceras, mas imagino que ele deu um suspiro de alívio, ao ver o navio levantar ferros e saber-se livre de um senhor muito moço e imprevisível.

 

Sabina

TROXOBORES, CHEFE de bandoleiros montanheses, era o autor das escaramuças que na Armênia davam grande trabalho às le­giões sírias. Tendo enviado ao interior da Cilicia uma traquejada força expedicionária que dali passou impetuosamente à costa, pilhando os portos e transtornando o comércio marítimo, reduziu à impotência o velho Antíoco, Rei da Cilicia, já que os reforços deste se encontravam na Armênia.

Afinal os Cleitores passaram a sitiar a própria cidade portuá­ria de Anemurium. Viajando de Éfeso para Antioquia, topei com uma divisão da Cavalaria síria, comandada pelo Prefeito Cúrcio Severo, que se deslocava a toda a pressa para defender Anemurium. Em tais circunstâncias, achei que tinha o dever de juntar-me à tropa.

Sofremos uma derrota esmagadora fora dos muros de Ane­murium, onde o terreno era mais favorável aos montanheses de Troxobores do que à nossa cavalaria. Severo teve sua parcela de culpa, pois julgou que podia pôr em fuga um magote inexperien­te de bandidos apenas fazendo soar as cornetas e atacando a toda a brida, sem primeiro ordenar o reconhecimento do terreno e intei­rar-se das forças de Troxobores.

Fui ferido na ilharga, no braço e no pé. Com uma corda em volta do pescoço e as mãos amarradas às costas, fui levado para o topo das inacessíveis montanhas dos bandoleiros. Durante dois anos Troxobores me manteve como refém. Os libertos de meu pai, em Antioquia, teriam pago o resgate a qualquer momento, mas Troxobores era astuto e agressivo e preferia conservar como reféns alguns romanos importantes a entesourar dinheiro em seus escon­derijos.

O Procônsul da Síria e o Rei Antíoco menosprezavam o mais possível essa rebelião, afirmando que podiam esmagá-la com seus próprios contingentes. Temiam, não sem razão, a ira de Cláudio, caso este viesse a saber da verdade.

Nenhuma quantidade de ouro comprará minha vida en­quanto eu estiver acuado disse Troxobores. Mas a ti, ó cavaleiro romano, posso a qualquer momento crucificar-te para obter uma elegante escolta aos infernos.

  Era inconstante no tratamento dispensado aos reféns:  ora amistoso, ora cruel. Convidava-nos para seus banquetes bárbaros, dava-nos comida e bebida e, ébrio, desfeito em lágrimas, chama-nos de amigos. Depois encerrava-nos numa caverna imunda, mandava murar a entrada e alimentar-nos através de um orifício do tamanho de um punho, com o mínimo de pão indispensável para manter-nos vivos, no meio dos nossos excrementos. Nessa prisão dois homens se mataram, abrindo as veias com pedras agu­çadas.

Meus ferimentos infeccionados torturavam-me. O pus escor­ria deles e julguei que ia morrer. No Curso desses dois anos

aprendi a viver em extrema degradação, esperando a todo ins­tante a tortura e a morte. Meu filho Júlio, meu único filho, quando leres isto depois de minha morte, lembra-te de que certas cicatrizes que carrego na face e que, quando eras pequeno, jul­gavas que eram fruto de minha estada na Bretanha — enfatuado que eu era — não foram obra dos bretões. Recebi-as muitos anos antes do teu nascimento, numa escura caverna da Cilicia, onde pre­cisei de muita paciência e vergonhosamente escalavrei o rosto de encontro à dura parede de pedra. Pensa nisso quando criticares acerbamente teu sórdido, antiquado e falecido pai.

Todos os homens que Troxobores reuniu à sua volta e ades­trou para a guerra durante o período de suas vitórias, ele os perdeu depois de sua primeira derrota. Embriagado pelo êxito, co­meteu o erro de se envolver em batalhas campais, e a esse tipo de combate não estavam afeitas suas tropas indisciplinadas.

O Rei Antíoco tratou bondosamente os prisioneiros, liber­tou-os e os enviou às montanhas com promessa de perdão a todos °s que abandonassem Troxobores. Quase todos os homens de Troxobores, achando que já tinham pilhado o suficiente, senti­ram-se saturados da aventura e fugiram para suas aldeias, a fim de passar o resto da vida como homens ricos, -pelos padrões da Cilicia. Troxobores seguiu e matou esses desertores, disseminando assim o rancor entre seus amigos tribais.

Finalmente, até mesmo os seus mais íntimos colaboradores cansaram-se de suas crueldades e caprichos e o capturaram para alcançar o perdão para si mesmos. Isso aconteceu no momento exato, porque o exército do Rei Antíoco se aproximava, os escra­vos cavavam os muros diante da caverna e os postes para a nossa execução estavam no chão do lado de fora. Meus colegas de prisão Pediram que Troxobores fosse crucificado em vez de nós. Mas o Rei Antíoco deu-se pressa em mandar decapitá-lo, pondo termo a um episódio doloroso.

a cura pela e há também centenas de mágicos de outros países aqui. O mais em voga no momento é um judeu que com um toque das mãos cura os enfermos e acalma os dementes. Seus chairéis e aventais são vendidos em todo o país como panaceias para todos os tipos de doenças. Mas êle não se por satisfeito com isso. Alugou a escola de Tirano para ensinar seu ofício a outros. Tam­bém tem inveja dos colegas e fala com desdém dos livros de magia e dos ídolos milagrosos.

Os judeus são a causa de todas as perturbações disse eu com azedume porque não se contentam mais com adorar seu deus lá entre eles, sob a proteção de seus direitos especiais, mas procuram contaminar os gregos também.

O verão jónico é benigno. O liberto de Júnio Silano, Hélio, que lhe administrava os bens na Ásia, tratava-me com todo o des­velo, promovia representações de peças e mimos nas horas de re­feição e às vezes, quando me julgava entediado, enviava uma linda escrava ao meu leito. Os dias dourados e as noites azul-fer-rête se dissipavam. Achei que já não desejava nada senão a vida diária dos seres humanos. Isso me bastava como esperança e futu­ro. Tornava-me rijo e entorpecido.

No começo do verão aportou a Éfeso um veloz navio roma­no, trazendo um cavaleiro idoso chamado Públio Céler, que vinha com a notícia de que Cláudio falecera, vítima das perturbações gástricas, como havia muito se esperava. Afrânio Burro, o Prefei­to dos Pretorianos, fizera transportar Nero ao acampamento dos Pretorianos, e lá Nero pronunciara um discurso e prometera aos homens a habitual distribuição de dinheiro. No meio do júbilo geral, fora aclamado Imperador, e o Senado ratificara a decisão por unanimidade.

O Procônsul Júnio Silano examinou atentamente as ordens e credenciais que Céler trouxera consigo. Públio Céler era um ho­mem robusto, apesar da idade, e parecia saber o que queria. Um talho de espada lhe deixara uma cicatriz num canto da boca, en-tortando-a, o que lhe conferia um ar desdenhoso.

Trazia uma mensagem para mim, de Séneca, que me agra­decia a carta e instava comigo para que voltasse a Roma, pois Nero sentia falta dos seus verdadeiros amigos e estava inaugu­rando seu regime novo e liberal. Os crimes, as discórdias e os erros do passado foram esquecidos e perdoados. Os exilados podiam regressar a Roma. Com o apoio do Senado, Nero tinha a esperan­ça de ser um dia o portador da boa sorte para a humanidade.

Tomaram-se as necessárias providências oficiais. Os regen­tes da Ásia resolveram encomendar ao mais famoso escultor de Roma um retrato de Nero. Mas apesar de sua riqueza, Júnior Si­lano não organizou um banquete especial em honra de Nero, como devia

devia ter feito. Em vez disso, convidou os amigos mais íntimos sua residência rural. Desse- modo, não éramos mais do que trinta à mesa.

Após fazer uma oferenda ao Imperador Cláudio, agora proclamado deus pelo Senado, Júnio Silano volveu a cara gorda para Céler e disse venenoso:

_ Deixemos de lado essa tagarelice. Conte-nos o que real­mente aconteceu em Roma.

Públio Céler ergueu as sobrancelhas e sorriu escarninho:

_ Anda estafado pelo peso das suas obrigações? Por que está tão exaltado? Sua idade e seu físico não suportarão emoções desnecessárias.

Júnio Silano tinha efetivamente a respiração pesada e se por­tava pessimamente como acontece com os desiludidos. Mas Públio Céler tratou de atenuar tudo com um tom de voz galhofeiro:

— A caminho dos funerais de Cláudio, Nero, como seu filho, proferiu a costumeira oração fúnebre no fórum. Não sei dizer se ele mesmo a preparou ou se contou com o auxílio de Séneca. Apesar de jovem, Nero tem dado prova de possuir talento para a poesia. De qualquer forma, falou com clareza e gestos graciosos. Os pais da pátria, os cavaleiros e a plebe escutavam atentamente, enquanto Nero exaltava a família ilustre de Cláudio e os consula­dos e triunfos de seus antepassados, as doutas ocupações do morto e a ausência de luta externa durante seu regime. Então, Nero ha­bilmente mudou de tom e começou, como que forçado pela praxe, a elogiar a sabedoria, o gênio e a arte de governar de Cláudio. Ninguém pôde deixar de rir, e gargalhadas constantes interrom­piam o discurso necrológico de Nero. Todos riram até mesmo quando ele lamentou a perda irreparável que sofrera, o pesar e o abatimento que lhe inundavam o coração. O cortejo fúnebre trans­formou-se numa farsa. Ninguém procurou esconder o alívio que representava para Roma o desaparecimento de um velho trapalhão, cruel, voluptuoso e apalermado.

Júnio Silano sacudiu com tamanha violência seu cálice de ouro na borda do sofá que o vinho me atingiu o rosto:

_ Cláudio era meu contemporâneo — rosnou — e não per­mitirei insultos à sua memória. Quando os pais da pátria recobra­rem o juízo, verão que o adolescente de dezessete anos, filho de uma mulher sedenta de poder, não pode governar o mundo.

Mas Céler não se aborreceu:

 - Cláudio foi proclamado deus — disse ele. — Quem pode denegrir um deus? Nos campos Elíseos, Cláudio situa-se divina-mente acima das críticas  e dos insultos à sua pessoa. Devia saber disso, Procônsul.

Gálio, irmão de Séneca, comentou, provavelmente por ga­lhofa, que Cláudio foi içado ao céu por um gancho preso à sua queixada, da mesma forma que habitualmente arrastamos o corpo de um traidor do Tullianum até o Tibre. Mas esse gênero de pi­lhéria serve apenas para mostrar que se pode outra vez rir livre­mente em Roma.

Enquanto Júnio Silano continuava a gaguejar furioso, Públio mudou de tom e falou com jeito de admoestação:

Seria melhor que bebesse à saúde do Imperador e esque­cesse o ressentimento, Procônsul.

Por ordem de Públio, Hélio trouxe outro cálice de ouro e o entregou a Céler. Céler misturou o vinho diante de todos nós, levou o cálice à boca e depois passou-o a Silano, já que o dele se amolgara. Silano esvaziou o cálice em dois tragos, como de cos­tume, pois não podia recusar-se a brindar o Imperador.

Após colocar o cálice a seu lado, preparava-se para prosse­guir no mesmo tema quando, de súbito, as veias de suas têmporas se intumesceram, e, agarrando a garganta, Silano gemeu, incapaz de dizer uma palavra, o rosto enegrecendo e tornando-se azul. Nós o fitamos horrorizados. Antes que esboçássemos um gesto, êle caiu ao chão, o corpo roliço batendo uma ou duas vezes, antes de exalar o último estertor diante dos nossos olhos.

Com um salto pusemo-nos de pé, espavoridos, sem fala, e Públio Céler era o único que se conservava calmo.

Recomendei que não se exaltasse tanto disse êle. Si­lano ficou excessivamente chocado com essa notícia inesperada e tomou um banho quente demais antes da refeição. Mas encare­mos essecolapso cardíaco como um bom presságio. Todos vocês ouviram com que rancor êle falou do Imperador e de sua mãe. Lúcio, irmão mais moço de Silano, tirou a própria vida quase da mesma forma há algum tempo, só para estragar a festa do casa­mento de Cláudio e Agripina, quando Cláudio rompeu o com­promisso com Otávia.

Começamos todos a discutir a um só tempo como pode o co­ração de um homem tão gordo arrebentar de excitação e como pode o rosto enegrecer tão repentinamente. Hélio foi buscar o médico de Silano, que já tinha ido dormir de acordo com as normas de vida saudável da população de Cós. Êle chegou assustado, virou o cadáver, pediu mais luz e examinou desconfiado a gar­ganta de Silano. Depois cobriu-lhe a cabeça com um manto sem dizer uma palavra.

Inquirido por Públio Céler, admitiu com voz sumida que muitas vezes aconselhara o amo a não empanturrar-se de boas iguarias e confirmou que todos os indícios eram de colapso car­díaco.

_ Este infeliz episódio deve ser registrado num laudo médico _       disse Públio Céler — e também num documento oficial, que todos nós assinaremos, como testemunhas. Uma morte súbita provoca a maledicência dos linguarudos, quando se trata de pessoa muito conhecida. Assim, faça-se constar que eu mesmo provei do vinho antes de passar o cálice para Silano.

Entreolhamo-nos confusos. Não havia dúvida que Céler le­vara o cálice aos lábios, mas por outro lado ele poderia ter apenas simulado, caso o cálice contivesse veneno. Descrevi aqui exata­mente o que aconteceu, porque posteriormente correu que Agri­pina enviara Céler com a missão específica de envenenar Silano. É indiscutível que a morte deste ocorreu no momento oportuno.

O boato dizia que Céler subornara Hélio e o médico, e meu nome também foi mencionado com maliciosa referência à minha amizade com Nero. O julgamento de Céler, que por solicitação do Senado devia investigar miudamente a questão, foi adiado ano após ano e finalmente arquivado quando Céler morreu de velhi­ce. Eu teria de bom grado prestado testemunho a seu favor. Hélio foi agraciado mais tarde com um posto de relevo a serviço de Nero.

A morte inesperada do Procônsul atraiu, como era de espe­rar, muita atenção em Eixo, assim como em toda a província da Ásia. Os funerais foram modestos, já que não se queria provocar ansiedade na população. O cadáver foi cremado no jardim da re­sidência rural de Silano. Quando a pira cessou de arder, recolhe­mos as cinzas e pusemo-las numa bela urna que foi enviada ao mausoléu da família, em Roma. Públio Céler assumiu o Proconsulado até que o Senado tivesse tempo de escolher um novo Pro­cônsul para a Ásia dentre aqueles que aguardavam a vez. De qualquer modo, estava para encerrar-se o período de governo de Silano.

A própria mudança de regime produzira considerável inquie­tação em Éfeso, e a morte do Procônsul agravou a situação. Os inúmeros adivinhos, taumaturgos, vendedores de livros de magia negra e acima de tudo os prateiros, que vendiam miniaturas do templo de Ártemis como lembranças da cidade, valeram-se da oportunidade para tumultuar as ruas e maltratar os judeus.

Paulo, como não podia deixar de ser, era a causa disso. Sei agora que ele estivera semeando a discórdia em Éfeso durante 5 anos, e foi dele que o médico de Silano tinha falado, embora na ocasião eu não tivesse percebido.

Paulo persuadira seus adeptos a reunirem todos os seus calendários astrológicos e livros dos sonhos, no valor de cem ses­tercios ou mais, e os queimarem públicamente no fórum como de­monstração contra os rivais.

A fogueira de livros suscitara a ira da população supersticiosa de Éfeso, e até mesmo as pessoas cultas não a aprovaram, embo­ra não atribuíssem grande importância aos dias propícios e funes­tos dos horóscopos ou à interpretação dos sonhos. Mas temiam que a filosofia e a poesia seguissem em breve o caminho da fo­gueira.

Fui tomado de fúria quando tornei a ouvir o nome de Paulo mencionado como perturbador da ordem. Pensei em ir embora de Éfeso imediatamente, mas Públio Céler, receando novos motins, pediu-me que assumisse o comando da cavalaria da cidade e da guarnição romana.

Não tardou que o conselho municipal enviasse uma mensa­gem angustiada, informando que grandes multidões se deslocavam pelas ruas que levavam ao teatro grego, onde ia realizar-se uma reunião ilegal. Os prateiros tinham apanhado na rua dois companheiros de Paulo, mas os outros discípulos tinham impedido energicamente que Paulo fosse ao teatro. Os conselheiros também mandaram um aviso a Paulo, pedindo-lhe que não se misturasse com a multidão, para evitar derramamento de sangue.

Quando se evidenciou que o conselho municipal não conse­guia dominar a situação, Públio Céler ordenou-me que convocas­se a cavalaria e ele próprio colocou uma coorte de infantaria à porta do teatro.

Ele sorria, os olhos frios e a boca torta. Assegurou-me que estivera esperando por uma oportunidade conveniente como essa, para dar a esse povo turbulento algumas lições de disciplina e ordem romanas.

Acompanhado de um corneteiro e um comandante de coorte, entrei no teatro a fim de tomar posição para dar sinal, caso a multidão se tornasse violenta. Todos se mostravam ruidosos e impacientes dentro do imenso teatro; é óbvio que muitos não sabiam do que se tratava e como bons gregos tinham vindo sim­plesmente para gritar com toda a força dos pulmões. Ninguém parecia estar armado. Imaginei o pânico que se seguiria a uma ordem de evacuar o teatro à força.

O mais velho representante dos prateiros procurou acalmar a turba para poder falar, mas ele mesmo já a insuflara tanto, que estava rouco e desafinado, quando iniciou sua arenga. Mesmo assim, pude perceber que ele acusava o judeu Paulo de instigar o povo, não só de Éfeso mas de toda a Ásia, a crer que os ídolos feitos a mão não eram deuses.

— Estamos ameaçados pelo perigo — bradou com sua voz desafinada — de vermos desrespeitado o grande templo de Árte-

mis e destituída de poder a própria deusa, ela que é adorada por toda a Ásia e pelo mundo inteiro. A turba começou então a berrar: -  Grande é Ártemis de Êfeso!

O vozerio prolongou-se tanto que meu corneteiro se exaspe­rou e tentou levar o instrumento à boca, mas eu o contive.

Judeus adornados de borlas, e reunidos nas proximidades, empurraram para a frente um caldeireiro, gritando:

_ Deixem Alexandre falar.

Pelo que pude entender, este Alexandre desejava explicar que os judeus ortodoxos não eram partidários de Paulo e que Paulo não gozava sequer da completa confiança de todos os cristãos de Éfeso.

Mas ao ver pelas roupas que êle era judeu, multidão não quis deixá-lo falar e com razão, já que os judeus ortodoxos não aprovavam os ídolos, nem as imagens de tais coisas trabalhadas a mão. Para impedir que o homem falasse, a turba voltou a bradar:

— Grande é Ártemis de Éfeso!

Desta vez a gritaria durou sem exagero duas linhas comple­tas marcadas na clepsidra.

Públio Céler apareceu a meu lado com a espada desembai­nhada:

Por que não dá o sinal? Podemos dispersar esse povo num instante.

Várias centenas de pessoas seriam calcadas aos pés — preveni-o.

Esse pensamento pareceu agradar a Céler. Por isso apressei-me a acrescentar:

— Estão apenas louvando sua própria Ártemis. Seria blasfê­mia e tolice política dispersar uma multidão por esse motivo.

Quando o Chanceler da Cidade nos viu de pé e hesitantes numa das portas, acenou desesperadamente para nós, recomendan­do que esperássemos. Ele teve bastante autoridade para acalmar, pouco a pouco, a multidão enquanto se preparava para falar.

Agora os cristãos eram empurrados para a frente. Tinham sido batidos e suas roupas estavam rasgadas, mas nada pior lhes acontecera. Para mostrar o que pensavam, os judeus cuspiram neles, mas o Chanceler disse à multidão que não agisse irrefletidamente e lembrou que a cidade de Éfeso fora escolhida para cuidar o ídolo de Ártemis que caíra do céu. No seu entender, os discipu-°s de Paulo não eram profanadores do templo nem blasfemos.

As pessoas mais sensatas começaram a relancear os olhos às minhas plumas vermelhas e ao corneteiro da cavalaria, abandonando em seguida o teatro. Por um momento pareceu que tudo ia ser decidido.

Públio Céler cerrou os dentes, pois encontrara motivo para atacar e, depois, no tradicional estilo romano, atear fogo às oficinas dos praieiros e saqueá-las.

As camadas educadas da multidão felizmente lembraram-se dos acontecimentos aterradores do passado e trataram de ir embora Dando vazão a sua contrariedade, Céler mandou que seus soldados sitiassem o teatro e espancassem alguns dos rebeldes restantes e judeus. Mas nada de mais grave ocorreu.

Posteriormente êle me censurou com aspereza:

Ambos seríamos agora enormemente ricos se você não ti­vesse vacilado tanto. Sufocar uma rebelião nos levaria ao topo da lista de cavaleiros. Poderíamos dar como causa da sublevação o governo indulgente de Silano. Temos de aproveitar a oportuni­dade que surge. Do contrário, nós a perdemos de uma vez por todas.

Paulo passou algum tempo escondido e depois teve de fugir da cidade. Após uma séria advertência que lhe fiz por portas tra­vessas, soubemos que êle tinha ido para a Macedónia. Paulatina­mente foi se restabelecendo a calma e os judeus encontraram ou­tras coisas em que pensar. Entre eles figuravam muitos artesãos romanos exilados que pretendiam voltar a Roma na primavera.

As tempestades de inverno atingiam seu ponto máximo e no porto não havia um só navio com viagem marcada para a Itália. Mas Públio Céler passara a antipatizar comigo e, para evitar alter­cação com êle, encontrei afinal um barquinho carregado de ima­gens de Ártemis que ia arriscar-se a velejar para Corinto sob a proteção da deusa. Tivemos a sorte de não encontrar os ventos do norte, mas fomos obrigados diversas vezes a procurar abrigo nas ilhas ao largo da rota.

Em Corinto, Hierex Láusio me julgava morto após passar tanto tempo sem notícias minhas. Engordara mais ainda e andava de queixo no ar, falando em voz monótona.

Desposara a viúva grega e levara dois órfãos para casa, a fim de cuidar da educação e dos bens deles. Mostrou-me orgulhoso seu açougue, que era refrigerado no verão com água vinda dos ma­nanciais da montanha. Também adquirira ações de navios e com­prara escravos hábeis, para empregar em sua fundição de bronze.

Quando lhe falei dos distúrbios ocorridos em Éfeso, balançou a cabeça com um ar de quem conhecia bem essas coisas:

—        Também tivemos tumultos aqui. Estais lembrado de que Paulo tinha saído daqui para avistar-se com os anciãos de Jerusa­lém. Supomos que eles julgaram sua doutrina complicada demais e não lhe deram completa aprovação. Não é de admirar que em sua humilhação êle pregue ainda mais fervorosamente. Deve ter uma parcela do espírito de Cristo, já que consegue realizar tantas

curas, mas os cristãos mais moderados preferem manter-se longe dele.

- Quer dizer que você ainda é cristão?

- Penso que sou melhor cristão agora do que antes — respondeu  Hierex — Minha alma está em paz. Tenho uma boa esposa e meus negócios vão bem. Um mensageiro chamado Apolo chegou a Corinto depois de estudar as escrituras judaicas em Alexandria e receber instrução de Áquila e Prisca em Éfeso. É um ador irresistível e em pouco tempo granjeou muitos adeptos. Assim temos uma seita de Apolo que promove reuniões especiais, come em separado e vive afastada dos outros cristãos. A conselho de Prisca, Apolo foi excessivamente festejado aqui, antes que sou­béssemos de suas ambições de poder. Felizmente está entre nós Cefas, o mais importante dos discípulos de Jesus de Nazaré. Percorreu muitos lugares para acalmar o espírito e pretende ir a Roma na primavera a fim de impedir que ali se repitam as antigas disputas quando retornarem os judeus degredados. Creio nele mais do que em qualquer outro, pois seu ensino vem diretamente da boca de Jesus de Nazaré.

Hierex falou com tanto respeito de Cefas que resolvi pro­curá-lo, embora já estivesse mais do que farto de judeus e cristãos, Este Cefas era um pescador originário da Galileia, a quem Jesus de Nazaré, uns vinte e cinco anos antes do meu nascimento, en­sinara a pescar almas. Sem dúvida fora difícil, já que Cefas era um plebeu ignorante e não sabia uma palavra de grego, de modo que tinha de levar consigo um intérprete quando viajava. Achei que tinha bons motivos de conhecer um homem que se mostrara capaz de tornar Hierex pio, pois nem mesmo Paulo com toda a sua sabedoria e fé judaicas pudera realizar tal milagre.

Cefas morava com um judeu que reconhecia a Cristo, um homem que negociava em peixe conservado em azeite e que não era nenhum ricaço. Quando entrei em sua casa, levado por Hierex, tive de tapar o nariz ante o cheiro de peixe e a areia rangente que os numerosos visitantes haviam deixado no piso. A salinha era acanhada e mal iluminada, e o hospedeiro judeu de Cefas rece­beu-nos contrafeito, como se receasse que a minha presença lhe emporcalhasse a casa.

Era evidente que êle pertencia ao grupo de judeus que havia escolhido a Cristo mas ainda procurava seguir as leis judaicas, evi­tando contacto com gregos cristãos incircuncisos. Sua posição era mais insustentável do que a dos gregos, porque os judeus ortodoxos e tinham particular aversão, considerando-o um desertor, e em virtude das leis que êle próprio seguia, sua consciência nunca es­tava em paz.

Cefas, o judeu, usava um manto com borlas nas pontas. Era um tipo grandalhão, de vasta cabeleira e faixas grisalhas na barba Via-se pelas mãos robustas que fora outrora um homem afeito ao trabalho manual. Tinha uma aparência tranqüila e destemida, mas julguei ver um lampejo de astúcia camponesa em seus olhos quan. do êle me encarou. Parecia irradiar uma impressão de segurança

Devo confessar que guardo pouca recordação de nossa con­versa. Hierex foi quem falou o tempo todo, de maneira insinuante e fomos perturbados pelo intérprete, um judeu magro, chamado Marcos, que era bem mais moço do que Cefas.

Cefas se exprimia num aramaico tortuoso, através de frases curtas. Ouvindo-o, acudiram-me as lembranças infantis de Antióquia e tentei entender o que êle dizia antes que o intérprete tra duzisse. Isso também me atrapalhou. E de fato, o que Cefas tinha a dizer não me pareceu particularmente memorável. O que havia de melhor nele era a cordialidade conciliatória que espalhava em torno.

Cefas procurou, um tanto puerilmente, demonstrar seus conhe­cimentos citando as escrituras sagradas dos judeus. Repeliu a baju­lação de Hierex e instou-o a louvar somente a Deus, o pai de Jesus Cristo, que em sua misericórdia permitira a Hierex renascer na esperança eterna.

Hierex, em tom lacrimoso, reconheceu honestamente que, se bem tivesse observado uma espécie de renascimento em seu cora­ção, seu corpo estava ainda sujeito a exigências egoístas. Cefas não o julgou. Limitou-se a fitá-lo, os olhos ao mesmo tempo brandos e espertos, como se penetrasse em todas as fraquezas humanas mas simultaneamente percebesse umas migalhas de verdadeira procura da bondade nessa infeliz alma de escravo.

Impaciente, Hierex pediu a Cefas que nos contasse como se salvara do Rei Herodes e nos falasse dos milagres que realizara em nome de Jesus Cristo. Mas Cefas tornara a encarar-me atenta­mente e não desejava jactar-se de seus milagres. Ao invés disso, pôs-se afàvelmente a fazer pouco de si mesmo, mostrando quão pouco compreendera Jesus de Nazaré quando o acompanhara antes da crucificação. Também narrou como não fora nem mesmo capaz de se manter em vigília enquanto Jesus orava em sua última noite na terra. Quando Jesus fora preso, êle também desaparecera, e ao pé do fogo no pátio da prisão negara três vezes coahecer Jesus, exatamente como Jesus predissera quando Cefas alardeara que es­tava pronto a compartilhar os sofrimentos do mestre.

Senti que a força de Cefas residia em histórias simples como esta que êle, de tanto repetir através dos anos, conhecia de cor e salteado. À maneira singela e inculta de um pescador, lembra­va-se bem das palavras e ensinamentos de Jesus, e, com sua hu­queria apresentar um exemplo a outros cristãos, que

como Hierex, podiam inchar como sapos em nome de Cristo, Não  Cefas não era um homem sem atrativo, mas pressenti podia tornar-se assustador se se encolerizasse. Não fêz nenhuma tentativa de  converter, depois de fixar os olhos em mim du­rante algum tempo, o que me deixou levemente irritado. A caminho de casa, Hierex expôs seus pontos de vista:

_ Nós, cristãos, consideramo-nos irmãos. Mas como todas as pessoas são diferentes, nós cristãos também somos diferentes. Assim, temos a facção de Paulo, a facção de Apolo, a facção de Cefas e finalmente nós que simplesmente gostamos de Cristo e fazemos o que julgamos correto. Assim, estamos sempre agredin-do-nos uns aos outros por causa de nossa luta interna e nossa in­veja. Os recém-convertidos são os piores nas disputas e os pri­meiros a censurar os mais quietos por seu modo de vida. Desde que encontrei Cefas, tento de minha parte não parecer mais exce­lente nem inatacável do que qualquer outro homem.

Minha demora forçada em Corinto me intranqüilizava e não me sentia à vontade em minha própria casa. Comprei uma bela parelha de cavalos esculpidos em marfim para presentear Nero, lembrando-me de que o vira brincar com uma igual na meninice quando sua mãe não lhe permitia ir às corridas.

Transcorrera já a festa das Saturnais quando afinal, depois de uma travessia tempestuosa, voltei a Roma passando por Puteoli.

Tia Lélia, alquebrada e rixenta, reprochou-me o ter passado três anos sem lhe mandar notícias. Somente Barbo mostrou ver­dadeira satisfação em me ver e contou que tendo tido um mau sonho a meu respeito, custeara a imolação de um touro a Mitras pelo meu bem-estar. Ao ouvir o relato de minhas experiências, pa­receu convencer-se de que esse sacrifício me tirara da prisão na Cilicia.

A primeira coisa que tive vontade de fazer foi ir ao Viminal para ver meu pai, diante de quem me sentia um estranho. Mas tia Lélia, que já estava mais calma, puxou-me para um canto:

É melhor não ir a parte alguma, antes de saber o que aconteceu em Roma.

Fervendo de maliciosa excitação, contou-me então como ò Imperador Cláudio decidira dar a toga viril a Britânico, apesar de sua juventude, e como depois, num momento de embriaguez, mencionara rudemente a sede de poder de Agripina. Por isso Agripina lhe dera cogumelos venenosos. Era o que se dizia em toda a Roma, abertamente, e Nero sabia disso. Constava ter êle

arado que oensopado de cogumelos tinha a propriedade de converter um homem num deus. Cláudio fora proclamado deus e

Agripina determinara se construísse um templo a seu falecido ma­rido, mas pouca gente se candidatara ao sacerdócio.

Então Roma é o mesmo velho viveiro de bisbilhotice disse eu, azedo. Sabemos há dois anos que Cláudio sofria de câncer no estômago, ainda que êle mesmo não o admitisse. Por que procura estragar a minha felicidade? Conheço Agripina pes­soalmente e sou amigo de Nero. Como é que posso crer nessas coisas terríveis a respeito deles?

Narciso também foi empurrado para o Hades con­tinuou tia Lélia, sem nem sequer ouvir o que eu dizia. — Deve-se notar a seu favor que êle queimou todos os arquivos secretos de Cláudio, antes de suicidar-se. Agripina queria esses arquivos a qualquer preço. Dessa maneira, Narciso salvou a vida de muitos homens. Agripina teve de contentar-se com cem milhões de ses-tércios que reclamou dos bens dele. Acredite se quiser, mas sei que teria havido um banho de sangue se Agripina tivesse conseguido o que queria. Felizmente, Séneca e o Prefeito Burro são homens sensatos e lograram Contê-la. Séneca foi eleito Cônsul, depois de escrever uma sátira maliciosa sobre Cláudio, para agradar ao Se­nado. Agora ninguém pode ouvir Cláudio ser chamado de deus, sem rir. Foi pura vingança pelo exílio que sofreu. Mas nós, que sabemos dessas coisas em Roma, estamos convencidos de que êle bem o mereceu, depois do escândalo que envolveu a irmã de Agripina. No fim, a pobre moça também perdeu a vida. Não sa­bemos o que nos espera quando um filósofo eloqüente toma de­cisões nos negócios do Estado. Os tempos são outros. Os moços andam por aí vestidos indecentemente, como gregos, agora que Cláudio não está mais aqui para fazê-los usar toga.

Tia Lélia tagarelou mais um pouco, até que consegui ver-mc livre dela. Caminhando a passo acelerado para a casa de meu pai no Viminal, reparei que a atmosfera de Roma se tornara mais livre do que antes. O povo se atrevia a rir. As incontáveis estátuas do fórum eslava cobertas de ditos picantes que eram lidos em voz alta para divertimento geral. Ninguém se dava o trabalho de apa­gá-los, e embora ainda, fosse de tarde, vi nas ruas numerosos jo­vens de cabelos compridos, bêbados e tocando cítara.

O átrio de Túlia estava apinhado como antigamente de pes­soas que buscavam audiência ou algum favor, e clientes, e também para minha tristeza judeus, dos quais meu pai nunca se desvencilhava.

Túlia interrompeu a conversa com dois velhos linguarudos e, para minha surpresa, aproximou-se de mim e abraçou-me efu­sivamente. Os anéis cintilavam em seus dedos gorduchos e ela ten­tava esconder a pele flácida do pescoço com um colar de pérolas de muitas voltas.

_ Já era tempo de retornares a Roma, Minuto — gritou ela.

_ Quando teu pai soube que havias desaparecido, adoeceu de inquietação, embora eu lhe lembrasse o seu próprio comportamento no passado. Vejo que estás bem, menino travesso. Serão essas hor­rendas cicatrizes no teu rosto o resultado de alguma orgia na Ásia? Cheguei a recear que teu pai viesse a morrer de aflição por tua causa.

Meu pai envelhecera, mas na qualidade de senador, portava-se com dignidade ainda maior do que antes. Vendo-o depois de tanto tempo, notei que seus olhos eram os mais tristes que já vira em qualquer homem. Não pudemos conversar tranqüilamente um com o outro, por mais alegre que êle estivesse de me ver. Limitei-me a falar-lhe de minhas experiências, dando pouca importância ao meu encarceramento. Afinal perguntei, mais por brincadeira, o que os judeus ainda queriam dele.

O Procurador da Judéia atualmente é Félix, o irmão do tesoureiro Palas — disse meu pai. — Você deve conhece lo. É o homem que casou com uma neta de Cleópatra. Por causa de sua cupidez, as queixas se avolumam. Ou então os judeus são eternos desordeiros para quem ninguém é suficientemente bom, e agora um indivíduo achou de matar outro em alguma parte. Penso que toda a Judéia está nas mãos de uma quadrilha de bandoleiros. A pilhagem e o incêndio lavram na região e é óbvio que Félix não pode manter a ordem. Os judeus estão procurando levar a questão para o Senado. Mas quem de nós quer envolver-se nessas coisas? Palas é poderoso demais para pecar. E o Senado defronta-se com problemas reais na Armênia e na Bretanha.

Reunimo-nos agora no Palácio — prosseguiu meu pai. — Agripina quer escutar, atrás de uma cortina, os debates do Senado.

é sem dúvida mais cômodo lá, do que naquela horrível Cúria, onde alguns dentre nós têm de estar, se por um miraculoso acaso todos ali se encontram ao mesmo tempo. É de ficar com os pés gelados no inverno.

E Nero? — perguntei pressuroso. — Que acha dele?

Sei que Nero desejou nunca ter aprendido a escrever, quando teve de assinar a primeira sentença de morte — disse meu pai. — Talvez um dia êle seja realmente a esperança da humanida­de, como muitos em verdade acreditam. De qualquer modo, de­volveu parte da jurisdição aos Cônsules e ao Senado. Se isto é uma demonstração de respeito pelos próceres da cidade, ou se é um meio de fugir à obrigação de comparecer aos tribunais para en­tregar-se a ocupações mais amenas, não posso nem mesmo imagi­nar.

Era evidente que meu pai falava só por falar. Franzia a testa, olhava distraído para um ponto distante e não parecia ter o menor interesse pelos assuntos do Estado. De repente encarou-me.

Minuto, meu único filho — disse êle — que vai fazer de sua vida?

Passei dois anos numa caverna escura — respondi — hu­milhado e mais miserável do que um escravo. Um capricho da Deusa da Fortuna roubou-me dois anos de vida. Se eu fosse capaz de um pensamento construtivo, esse seria o de um dia recuperar aqueles dois anos e ter a alegria de viver como um homem, sem desanimar desnecessariamente e renegar as dádivas da vida.

Meu pai fêz um gesto indicando as paredes lustrosas da sala, como se quisesse abranger toda a pompa e magnificência da casa de Túlia:

Talvez eu também viva numa caverna escura — disse êle, com profunda melancolia na voz. — Submeto-me a deveres que não solicitei. Mas você é carne da carne de sua mãe e não deve desesperar. Ainda tem aquele cálice de madeira?

Era só um caneco de madeira e os salteadores da Cilicia não se deram nem o trabalho de tirá-lo de mim — respondi. — Quando passávamos vários dias sem água e a língua engrossava na boca e o nosso hálito tinha o cheiro do bafo de animais selva­gens, às vezes eu fingia beber no cálice, imaginando que estava cheio. Mas não estava. Era só delírio.

Tive o cuidado de não falar a meu pai acerca de Paulo e Cefas, porque desejava esquecê-los tão completamente como se nunca os houvesse encontrado. Mas meu pai disse:

—Quisera ser um escravo, pobre e insignificante, a fim de poder começar de novo a minha vida. Mas é tarde demais para mim. As cadeias já fazem parte da minha carne.

Não me seduzia esse sonho filosófico de vida simples. Séne­ca descrevera com eloqüência os benefícios da pobreza e da paz de espírito, mas na verdade preferia ser enfeitiçado pelo poder, pelas honrarias e pela riqueza, explicando que não podiam modi­ficar o sábio, exatamente como a pobreza e o exílio não puderam.

Acabamos falando de matérias financeiras. Depois de consul­tar Túlia, que também tinha planos para minha vida, meu pai de­liberou transferir para mim, de imediato, um milhão de sestércios, para que me fosse possível viver como devia, dando banquetes e travando relações proveitosas. Prometeu-me dar mais quando eu precisasse, já que êle mesmo talvez não pudesse gastar todo o seu dinheiro, por mais que tentasse.

— Teu pai carece de um interesse que o satisfaça na velhice e lhe encha a vida — queixou-se Túlia. — Já não vai às conferências embora eu tenha mandado construir um auditório especial casa pois pensei que talvez prosseguisses na carreira literária. Ele podia colecionar antigos instrumentos musicais ou quadros e tornar-se célebre por isso. Alguns criam peixes especiais em seus tanques, outros preparam gladiadores e êle podia até dar-se o luxo de possuir cavalos de corrida. Esse é o mais caro e mais elegante passatempo que um homem maduro pode ter. Mas não. Ele é tão cabeçudo! Ou liberta um escravo ou distribui donativos a gente inútil. Bem, suponho que êle podia ter distrações piores. Com concessões de ambos os lados, conseguimos encontrar uma maneira de viver que nos satisfaz.

Queriam que eu ficasse para a refeição da noite, mas achei que devia apresentar-me no Palácio o mais cedo possível, antes que a notícia da minha volta chegasse lá por outros meios. Os guardas, na verdade, permitiram-me entrar sem revistar-me. Os tempos tinham mudado até esse ponto. Mas espantei-me de ver quantos cavaleiros estavam sentados nas arcadas, aguardando uma audiência. Comuniquei minha chegada a diversos funcionários da corte, mas Séneca estava tão assoberbado com sua enorme carga de deveres, que não pôde receber-me, e o próprio Imperador Nero

fechara-se em sua sala de trabalho para escrever poemas. A nin­guém era dado perturbá-lo, quando êle estivesse consultando as musas.

Fiquei desanimado ao ver o número de pessoas que por todos os meios buscava os favores do jovem Imperador. Quando eu ia saindo, um dos inúmeros secretários de Palas acercou-se de mim e me conduziu à sala de Agripina. Ela andava inquieta de um lado para outro, dando encontrões nos tamboretes e pontapés nos valiosos tapetes orientais.

Por que não me vieste ver imediatamente? — disse ela, irada. — Ou também perdeste todo o respeito por mim? A ingra­tidão é a recompensa que se ganha. Acho que mãe nenhuma se sacrificou tanto pelo filho e pelos amigos dele.

Augusta, Mãe da Pátria! — exclamei, embora soubesse que ela não tinha direito a esses títulos honoríficos. Oficialmente ela era apenas sacerdotisa do deus Cláudio. — Como podeis acu­sar-me de ingratidão? Nem em sonho ousaria perturbar a aflição de vossa viuvez com meus assuntos mesquinhos.

Agripina agarrou minha mão, apertou meu braço contra o seio e envolveu-me o rosto numa fragrância de violetas.

— É bom que tenhas voltado, Minuto Lauso — disse ela. És  um homem despreocupado, a despeito dos teus erros passados, frutos da pura inexperiência. Neste momento, Nero precisa mais do que nunca dos seus verdadeiros amigos. O rapaz é indeciso e se deixa manobrar com extrema facilidade. Talvez eu tenha sido ri­gorosa demais com êle. Parece que começa propositadamente a evitar-me, se bem que a princípio tomasse assento a meu lado, na mesma cadeirinha, ou cortesmente seguisse atrás dela. Talvez saibas que o Senado me conferiu o direito de cavalgar até ao Ca­pitólio, se me apraz. Nero desperdiça somas vultosas com amigos que são indignos dele, atores, gente das corridas, autores de louvaminhas, como se não tivesse noção do valor do dinheiro. Palas está preocupadíssimo. Graças a êle, houve pelo menos um pouco de ordem nas finanças do Estado, na época do pobre Cláudio, quando o tesouro imperial se manteve estritamente afastado do tesouro do Estado. Nero não entende a diferença. E agora anda enrabichado por uma escrava. Podes imaginar? Prefere ir ao en­contro de uma rapariga franzina e de pele branca, a vir ver sua própria mãe. Isso não é comportamento de imperador. E amigos pavorosos incitam-no a todos os tipos de atos imorais.

Agripina, enérgica e bela, que habitualmente se portava com a dignidade de uma deusa, estava transtornada, ao ponto de me anunciar seus ressentimentos de modo que presumia excessiva confiança em minha amizade.

Séneca traiu a minha confiança — gritou. — Ah, maldito hipócrita de língua solta! Fui eu quem o tirou do exílio. Fui eu quem o fêz preceptor de Nero. É a mim que êle deve o seu êxito. Deves saber que temos problemas na Armênia, atualmente. Quando Nero ia receber um enviado de lá, entrei na sala, para ocupar o lugar que me cabe por direito, ao lado do Imperador. Séneca mandou que Nero me pusesse para fora, com piedade filial naturalmente. Mas foi um insulto político. As mulheres não devem in- terferir nos assuntos do Estado, mas há uma mulher que fêz de Nero um Imperador.              

Não pude deixar de imaginar o que teria pensado o enviado armênio, se tivesse visto uma mulher aparecer em público ao lado do Imperador, e achei que Nero revelara mais bom senso nessa questão do que Agripina. Mas é óbvio que eu não podia manifes­tar essa opinião. Fitei-a aterrorizado, do jeito que se encara uma leoa ferida, e compreendi que tinha chegado a tempo de testemu­nhar uma fase decisiva da luta pelo poder, que iria mostrar quem devia governar Roma: Agripina ou os conselheiros de Nero. Isso me parecia inimaginável, pois sabia como Nero fora até então completamente subordinado à sua mãe.

Perplexo, tentei falar lhe de minhas aventuras, mas Agripina não tinha paciência de escutar. Só quando falei no ataque cardía­co de Silano, ela prestou um pouco de atenção:

— Foi a melhor coisa que podia ter acontecido. De outro modo, um dia seríamos forçados a processá-lo por traição.

Nesse momento, um fâmulo entrou, apressado, com a men­sagem de que Nero começara sua refeição, atrasado como de cos­tume. Agripina deu-me um empurrão.

- Corre idiota — disse ela. — Vá vê-lo agora. Não deixes que ninguém te barre o caminho.

Estava tão influenciado por ela que de fato saí quase corren­do e disse aos criados que tentaram deter-me que fora convidado a ceia do Imperador. Nero estava recebendo os amigos na sala de jantar menor, que tinha lugar para apenas umas cinqüen­ta pessoas. O recinto estava tão cheio que não havia sofás em nú­mero suficiente, muito embora houvesse três pessoas em cada um e vários convidados se tivessem contentado com tamboretes.

Nero estava animado e vestido com negligência, mas seu agradável semblante juvenil irradiava felicidade. De início, arre­galou os olhos, mas depois abraçou-me e beijou-me, determinando que fossem buscar uma cadeira para mim e a colocassem ao lado do seu lugar de honra.

_ As musas se mostram bondosas comigo! — exclamou e, em seguida, curvou-se para a frente e cochichou-me ao ouvido:

_ Minuto, Minuto, passaste alguma vez pela experiência de amar com todas as forças da alma? Amar e ser amado. Que mais pode desejar um ser humano?

Comia vorazmente e depressa, enquanto ia dando instruções a Terpno, cujo manto de músico lhe cobria todo o corpo. Só depois é que vim a saber que aquele era o mais célebre citaredo de nossa época. Eu era então bastante ignorante ainda. Durante a ceia, Terpno compôs um acompanhamento para os poemas de amor que Nero escrevera de tarde e depois cantou, para os convidados imóveis e silenciosos.

Sua voz era bem educada e tão forte que parecia traspassar-nos. Depois da canção, com acompanhamento da cítara, todos nós aplaudimos com vigor. Não sei avaliar a qualidade artística dos poemas de Nero, nem dizer até que ponto derivavam da obra de outros poetas, mas com a interpretação de Terpno causaram pro­funda impressão. Com simulada timidez, Nero agradeceu os aplau­sos, tirou o- instrumento das mãos de Terpno e dedilhou-o anelan-temente, mas não se atreveu a cantar, apesar das muitas suges­tões neste sentido.

— Um dia eu cantarei — disse Nero, com simplicidade — quando Terpno tiver tido tempo de preparar e fortalecer minha voz com os exercícios necessários. Sei que minha voz tem certas possibilidades e, se eu chegar alguma vez a cantar, só quero com­petir com as melhores vozes. Esta é minha única ambição.

Pediu a Terpno que cantasse mais uma vez e outra, e mais outra, não se cansando de ouvir e dardejando com o olhar aqueles que se tinham cansado da música e começavam a conversar bai­xinho diante de seus cálices.

Finalmente, eu mesmo tive dificuldade em sufocar os boce jos. Passei os olhos pelos convivas e constatei que Nero não esco­lhia seus amigos levado por alguma exagerada atenção à linhagem ou à posição social deles, mas segundo suas próprias preferências pessoais.

O mais nobre dos convidados era Marco Oto, que, como me pai, descendia dos reis etruscos e a cujo pai o Senado erigira uma estátua no Palatino. Mas êle tinha tal fama de temerário e extra­vagante, que me lembrei de ter ouvido dizer que o pai o surrara muitas vezes, mesmo depois de ter recebido a toga viril.

Cláudio Senécio também se encontrava entre os convivas muito embora seu pai tivesse sido apenas um dos libertos do Im­perador Caio. Ambos eram rapazes simpáticos que podiam com­portar-se bem quando queriam.

Outro convidado era um parente rico de Séneca, Aneu Sere­no, a quem Nero sussurrava nos momentos em que Terpno guar­dava silêncio, suavizando a voz com uma bebida à base de ôvo.

Quando ouvia a música, Nero se entregava ao devaneio, como um Endimião de mármore, com suas feições nobres e seu cabelo avermelhado. Afinal, mandou embora a maioria dos convidados, retendo apenas uns dez. Eu também fiquei, já que êle não me pe­dira que saísse. Em seu amor juvenil pela vida, Nero ainda não se saciara e sugeriu que nos vestíssemos com apuro e fôssemos pela porta dos fundos divertir-nos na cidade.

Êle mesmo pôs uma roupa de escravo e cobriu a cabeça com um capuz. Estávamos todos suficientemente bêbados para achar graça em tudo. Assim, rindo e gritando, descemos, aos trambo­lhões, a rua que levava ao fórum e nos impusemos silêncio quando passamos pela habitação das Virgens Vestais. Oto injuriou-as com uma obscenidade, o que mostrou sua total impiedade.

Na rua dos ourives, encontramos um cavaleiro romano bêba­do, que se queixava de ter perdido os companheiros. Nero provo­cou uma pendência com o desconhecido e derrubou-o, quando o outro tentou lutar. Nero era bem forte para os seus dezoito anos. Oto tirou o manto e com êle atiramos o homem para o ar em meio a gargalhadas. Afinal, Senécio empurrou-o para uma abertura do esgoto, mas nós o tiramos de lá, para que não se afogasse. Fazendo tremenda algazarra, batendo nas portas das lojas e arrancando as tabuletas como sinais de triunfo, chegamos às vielas fedorentas de Subura.

Ali pusemos em debanda os fregueses de uma taverna e for­çamos o proprietário a dar-nos vinho. O vinho era péssimo, como se podia imaginar. Então quebramos os jarros, e o vinho se espa­lhou pelo piso, correndo para a rua. Sereno prometeu indenizar o proprietário, quando este lamentou o próprio desamparo. Nero es-

tava muito orgulhoso do corte sofrido numa bochecha, e não permitiu que puníssemos o tropeiro do Lácio que o ferira, mas qualificou o asno rude de homem honrado. Senécio queria que fossemos a um bordel, mas Nero declatou com tristeza que não tinha permissão de gozar da companhia da melhor prostituta, em virtude da severidade de sua mãe. Então Sereno, com ar reservado, fez jurar que guardaríamos segredo e levou-nos a uma linda Casa na encosta do Palatino. Disse tê-la comprado e equipado para a mais bela mulher do mundo. Nero,confuso e tímido, perguntou várias vezes:

_ Não será muito tarde para incomodá-la? — E logo em se- guida: Achais que posso ler um poema para ela?

Tudo isso era quase só conversa fiada, porque na casa mora­va a liberta Acte, uma grega que fora escrava e que era de fato a própria moça por quem Nero se apaixonara perdidamente. Sereno apenas fingia ser amante dela, para que, em seu nome, pudesse dar a ela os inúmeros presentes de Nero.

Devo admitir que Acte era extremamente bonita. É de presu­mir que também estivesse bastante apaixonada, pois sentiu grande prazer em ser despertada alta noite para receber o bêbado Nero e seus companheiros de orgia.

Nero jurou que Acte descendia do Rei Átalo e que haveria de prová-lo um dia. De minha parte, achei que êle não precisava mostrai-nos a moça nua, nem ufanar-se da brancura nevada de sua pele. A moça parecia bem educada e inteiramente agradável, mas Nero se deleitou em vê-la enrubescer, quando êle mesmo ex­plicou que nada podia recusar a seus amigos. Estes deviam ver que era o mancebo mais feliz e invejável do mundo.

Assim teve início minha nova vida em Roma, e não era uma vida das mais meritórias. Pouco depois, Nero ofereceu-me sua proteção, para o caso de haver algum posto que eu- quisesse ocupar. Mostrou-se até mesmo disposto a recomendar-me para o comando de uma coorte na Guarda Pretoriana. Declinei da honra e afirmei que desejava apenas ser seu amigo e companheiro, para aprender a arte de viver. Isto lhe agradou, e êle disse:

Escolhes sabiamente, Minuto. Não há cargo, por mais in­significante, que não devore o tempo de um homem.

Cumpre-me dizer, em favor de Nero, que nas ocasiões em que era forçado a julgar processos que não podia transferir para o Prefeito da Cidade ou para o Prefeito Burro, êle atuava com probidade e circunspecção, restringindo a verbosidade dos advo­gados e exigindo veredictos, por escrito, dos outros juízes, para coibir abusos. Depois de ler os três pareceres separados, proferia a sentença no outro dia, de acordo com sua própria opinião. Malgrado a pouca idade, podia conduzir-se com decoro em público) mesmo vestido com artística negligência e usando cabelos com­pridos.

Eu não lhe invejava a sorte. É difícil aos dezessete anos ser guindado à posição de Imperador de Roma e reger o mundo, so­frendo constantemente as pressões de uma mãe ciumenta e ávida de poder. Creio que só a paixão de Nero por Acte o salvou da in­fluência de Agripina e os separou, por mais que isso custasse a Nero. Mas êle não podia suportar as palavras ferinas de sua mãe a respeito de Acte e podia ter feito uma escolha pior, pois Acte não se imiscuía nos negócios do Estado e nem sequer se valia de ardis para obter presentes dele, se bem que, como era natural, se deleitasse com o que recebia.

Discretamente, Acte também logrou moderar o ímpeto domiciano de Nero. Ela tinha grande respeito por Séneca, que secre­tamente aprovava a ligação, de vez que no seu entender teria sido muito mais perigoso se Nero se tivesse embeiçado por nobre don­zela ou jovem matrona romana.

O casamento de Nero com Otávia era mera formalidade; os dois nem dormiam juntos, pois Otávia era ainda uma criança. E depois, também, Nero detestava-a, por ser irmã de Britânico. Ademais, a verdade é que Otávia não tinha feições muito atraen­tes. Era uma rapariga retraída, arrogante, com quem não se podia conversar seriamente, e que por infelicidade não herdara a beleza e o encanto de sua mãe, Messalina.

Agripina era atilada e acabou por compreender que suas queixas e explosões de cólera apenas aumentavam a distância que a separava de Nero. Assim, voltou a ser a mãe meiga, dedicando-se a acariciá-lo e beijá-lo arrebatadamente, e dispondo-se a partilhar com êle seu quarto de dormir a fim de que só ela fosse sua melhor e mais íntima confidente.

Em conseqüência disso, o remorso passou a atormentar Nero. Certa vez, quando escolhia para Acte um presente na loja de teci­dos e jóias do Palatino, êle pôs ingenuamente de lado uma jóia para Agripina, movido por uma picada da consciência. Mas Agri­pina ficou lívida de raiva e frisou que os objetos de valor do Pa­lácio já eram dela, herdados de Cláudio, e que era somente graças a ela que Nero tinha acesso a eles.

Também eu fui vítima da ira de Agripina quando, na opinião dela, deixei de lhe relatar as extravagâncias e opiniões políticas de Nero e seus amigos. Era como se esta mulher, por tanto tempo reprimida e agora corroída por suas amargas experiências, tivesse de súbito perdido completamente o domínio de si mesma, ao dar-se conta de que não lhe seria permitido governar Roma, através do filho.

O rosto se lhe desfigurou numa feiúra horripilante, os olhos fuzilaram como os de Medusa, e a linguagem se lhe tornou tão obscena que era penoso escutá-la. Já não me era possível ter boa

opinião dela. Creio que a causa mais profunda do abismo entre Nero e Agripina era realmente o amor desmedido que ele tinha pela mãe, além dos limites do amor filial. Acho mesmo que Agripina o se­duzira propositadamente. Assim, sentia ele atração e repulsa por sua mãe a um só tempo, e fugia dela para os braços de Acte, ou descarregava seu rancor nas arruaças que promovia a horas mortas da noite em Roma.

Por outro lado, a doutrina moral de Séneca dava-lhe forças para sopitar os impulsos mais recônditos, porquanto Nero procu­rava pelo menos manter a aparência de discípulo digno. Agripina, em seu desvairado ciúme, cometia o grande equívoco de se des­controlar.

O único sustentáculo de Agripina, extremamente poderoso a esse respeito, era o liberto grego Palas, que se tinha na conta de descendente dos míticos reis árcades e que, após servir o Estado à sombra de três Imperadores, se tornara tão astuto que nunca diri­gia a palavra a seus escravos para evitar que lhe torcessem o sen­tido, mas dava todas as suas ordens por escrito. Para mim, o mur­múrio da ligação de Agripina com ele parecia sem importância. De qualquer forma, fora Palas quem primeiro aconselhara Cláudio a desposá-la. Naturalmente, a amizade que a primeira dama de Roma demonstrava abertamente por um ex-escravo o lisonjeava.

Palas nunca deixou de considerar Nero um rapazinho tolo, e aproveitava todas as oportunidades para mostrar como sua própria experiência era indispensável ao bom andamento das finanças do' Estado. Quando Nero quis reduzir os impostos para agradar à plebe e às províncias, Palas simulou concordar de bom grado, mas depois perguntou acremente onde o Imperador pensava ir buscar dinheiro de que o Estado precisava, demonstrando, com cifras eloqüentes, que o Estado" ficaria arruinado, se os impostos baixas­sem. Por mais talentoso que fosse em outros sentidos, Nero não tinha cabeça para números e, no seu modo de ver, cálculos eram trabalho de escravos, indigno de um Imperador.

Pessoalmente, Palas era um indivíduo corajoso. Fora ele quem, vinte e cinco anos antes, arriscara a vida, indo a Capri, denunciar conspiração de Seja no ao Imperador Tibério. Sua riqueza era imensa, estimada em trezentos milhões de sestércios, e sua influência, incalculável. Respeitava Britânico e Otávia, por serem filhos de Claydio, e não se envolvera diretamente na morte infe­liz de Messalina.

Ao concordar em gerir as finanças do Estado, arrancara de Cláudio a promessa de que este não lhe pediria conta das medidas adotadas. Também exigira igual promessa de Nero, no primeiro dia de governo, quando pagou do tesouro do Estado as dádivas que Nero anunciara aos Pretorianos.

Contudo, estava envelhecendo, cansado, e a administração das finanças do Estado não vinha acompanhando o enorme desen­volvimento de Roma, mas se enrijecia nas velhas tradições. Isto foi o que ouvi em muitos locais. Mas ele ainda se considerava indis­pensável. Durante as disputas com Nero, ameaçava sempre exo­nerar-se do cargo, levando assim o caos às finanças públicas.

— Pergunta à tua mãe, se não me crês — acrescentava. Séneca, temendo que sua própria posição fosse afetada, tomou então uma decisão categórica em nome de Nero. Com o auxílio dos mais hábeis banqueiros de Roma, elaborou um plano porme­norizado de gestão das finanças do Estado e uma completa reorga­nização da coleta de impostos, com benefícios para o Estado, de conformidade com o espírito dos tempos. Após consultar Burro, mandou que os pretorianos ocupassem o Palatino e guardassem o fórum.

— És o Imperador ou não? — disse ele a Nero. — Manda chamar Palas e ordena-lhe que vá embora.

Nero tinha tal temor e respeito por Palas que não teve cora­gem para tanto:

— Não poderia mandar-lhe uma ordem por escrito, como ele sempre faz?

Mas Séneca queria pôr Nero em brio por mais que custasse a Nero encarar Palas nos olhos. Palas, naturalmente, ouvira ru­mores a respeito dessa nova ordem, mas desprezava demais o filó­sofo e mestre-escola Séneca, para levá-la a sério. E desde que Nero desejava estar rodeado de amigos, a fim de contar com o apoio moral e a aprovação deles quando aparecesse como Impera­dor, também fui testemunha desse acontecimento desagradável.

Quando recebi a mensagem de Nero, Palas já estava sob vi­gilância, de modo a não poder comunicar-se com Agripina. Cumpre reconhecer que ele compareceu perante Nero como um príncipe, sem a menor vibração no velho rosto enrugado, enquanto Nero, com gestos delicados, pronunciou um discurso exaltado em sua honra, sem esquecer os reis árcades e agradecendo-lhe profunda­mente todos os serviços prestados ao Estado.

— É para mim intolerável ver-vos envelhecer antes de tempo, alquebrado pelo peso de vosso gigantesco fardo de responsabilida­des, como vós mesmo lamentastes tantas vezes — disse Nero, por fim. — Como especial mercê, permito que vos retireis imediata­mente para vossa herdade, de cuja excelência e luxo todos temos

 Conhecimento a fim de que possais, até o fim da vida, gozar a ri-

queza que       acumulastes sem que a mais leve suspeita ou falta enodoasse a vossa reputação.

_ Espero que me permitireis, antes de partir, ser submetido ao juramento de purificação no Capitólio, como é devido à minha

Posição _ foi tudo quanto Palas pôde dizer, em resposta.

_Nero ponderou que, de acordo com sua promessa, não podia exigir tal juramento de tão consciencioso e fidedigno servidor do Estado mas que se os próprios Palas o desejava, para aliviar o escrito então evidentemente não cabiam objeções. Pelo contrário. O juramento poria fim a todo o falatório em circulação.

Exprimimos nossa aprovação com vigorosas palmas, risos e brados, Nero enfunou-se feito um galispo e sorriu para si mesmo, contente, metido em seu imperial manto púrpura.

Palas limitou-se a olhar friamente para cada um de nós. Nunca esquecerei aquele olhar, tão cheio de gélido desprezo por nós, os melhores amigos de Nero.

Desde então, tive de admitir que uma fortuna de trezentos milhões de sestércios não é, de modo algum, uma compensação desproporcionada por cuidar das formidáveis finanças do Império Romano durante vinte e cinco anos.

Séneca acumulou a mesma soma, em cinco anos, como inde­nização por seu degredo, para não mencionar a minha própria fortuna, cujo tamanho um dia descobrirás, Júlio, depois que eu tiver desaparecido. Há muitos anos que eu mesmo não me dou ao trabalho de verificar, ainda que aproximadamente, a quanto monta.

A presença dos pretorianos no fórum e nos outros lugares públicos não tardou a atrair multidões, e a notícia de que Palas caíra em desgraça suscitou geral satisfação.

Que mais delicia a multidão do que saber que um homem rico e influente despencou do pedestal?

Pouco depois os bufões ambulantes imitavam Palas nas esqui­nas das ruas e rivalizavam na invenção de coplas irreverentes.

Mas quando Palas desceu do Palatino, seguido por seus oito­centos libertos e assistentes, a turba ficou em silêncio e abriu alas para seu solene cortejo. Palas deixou seu gabinete como um rei oriental. Sua comitiva resplandecia com os trajes valiosos, o ouro, a prata e as pedrarias. Quem é mais ostentoso em suas vestimentas que um ex-escravo? Por isso, Palas ordenara-lhes que viessem todos com suas melhores roupas.

Ele próprio envergava uma simples túnica branca ao subir ao Capitólio, primeira à casa da moeda, no templo de Juno Moneta, e daí ao Tesouro do Estado, o templo de Saturno. Perante cada ídolo, prestou o juramento purificador e tornou a confir­má-lo no templo de Júpiter.

Esperando levar a confusão às finanças do Estado, Palas car­regara consigo todos os seus libertos que, através dos anos, tinham sido preparados para as mais diversas tarefas, confiando em que Nero seria obrigado a chamá-lo de volta, ao cabo de alguns dias

Mas Séneca estava preparado para isso. Quinhentos escravos habilitados, emprestados pelos banqueiros, foram colocados no edifício de Palas, no Palatino. E vários dos subalternos de Palas o abandonaram, mal ele saiu da cidade, e de bom grado voltaram a suas antigas ocupações. O próprio Séneca avocou a si o direito de tomar decisões sobre as questões financeiras em alto nível e fundou uma espécie de banco do Estado que emprestava somas avultadas ao Egito e aos reis das tribos da Bretanha. O dinheiro não permanecia inativo, mas produzia dividendos para Séneca.

Durante vários dias, Nero não ousou encarar sua mãe. Agri­pina, por sua vez, julgou ter sido mortalmente insultada, trancou-se em seus aposentos, no Palatino, e chamou para junto de si Britâ­nico, com seu séquito e preceptor, para mostrar a quem ela, no futuro, dedicaria sua atenção.

O filho de Vespasiano, Tito, era um dos companheiros de Britânico, como o sobrinho de Séneca, Aneu Lucano, que, apesar de sua juventude, era um poeta de muito talento e por isso mesmo pouco apto a conquistar as simpatias de Nero. Conquanto apre­ciasse a companhia de poetas e artistas e organizasse concursos de poesia. Nero não gostava de admitir que alguém pudesse superá-lo.

Por mais satisfatório que lhe parecesse o papel desempenhado na demissão de Palas, Nero ainda não se sentia à vontade, quando pensava em sua mãe. Como uma espécie de penitência, emprega­va seu tempo em educar a voz, sob a orientação de Terpno. Je­juava e passava longos períodos deitado de costas, com uma folha de chumbo sobre o peito. Era monótono ouvir-lhe os exercícios e, para falar verdade, tínhamos vergonha deles e procurávamos cer­tificar-nos de que não eram escutados por nenhum velho senador ou enviado estrangeiro.

Até certo ponto a boa nova que chegou da Armênia, por essa época, aumentou a autoconfiança de Nero. A conselho de Sé­neca e Burro, Nero convocara o maior comandante de Roma, Córbulo, que se encontrava na Germânia, para abafar os distúr­bios na Armênia, pois o fato de ter sido este estado-tampão ocu­pado pelos partos era razão suficiente para a guerra, de acordo com a tradição política romana.

Na luta interna pelo comando supremo, Córbulo e o Procônsul da Síria, mediante vitoriosas marchas forçadas, haviam con­seguido ocupar as margens do Eufrates e depois exibido tal deter­minação, que os partos houveram por bem sair outra vez da Ar­mênia, sem declarar guerra. O Senado deliberou dar uma festa

de ação de graças, em Roma, conferiu a Nero o direito a um triunfo e mandou colocar coroas de flores nos fasces do seu lictor. Essas providências foram adotadas com o intuito de acalmar inquietação geral, pois muita gente receava que a resolução de Nero redundasse em guerra com a Partia. A vida comercial de Roma sofria com os boatos de guerra, e o decréscimo da ativida- de no templo de Mercúrio, causava prejuízo a todos os nego- ciantes.          

No fim do ano celebraram-se as Saturnais durante quatro dias com um estusiasmo nunca visto antes. Toda a gente competia no envio de presentes dispendiosos, e os mais velhos e mais avarentos, que desejavam aferrar-se à tradição e trocar apenas fi­guras de barro e pão festivo, eram ridicularizados.

No Palatino, uma sala imensa ficou atravancada de dádivas enviadas a Nero, pois os patrícios ricos das províncias tinham exercitado seus poderes inventivos com o fim de encontrar pre­sentes extravagantes para o Imperador.

A Chancelaria azafamava-se na organização de listas em que se anotavam as doações, seus valores e os nomes dos doadores, pois Nero achava que sua posição exigia que cada presente fosse retribuído com um ainda mais caro.

Préstitos de bufões percorriam as ruas, cítaras soavam em todas as partes, gente cantava e gritava, escravos pavoneavam-se nas vestes dos senhores e os amos humildemente serviam refei­ções festivas e obedeciam às suas ordens durante esses dias do ano em que Saturno tornava iguais os escravos e os senhores.

Nero deu o costumeiro banquete no Palatino para os jovens mais nobres de Roma. Tornou-se por sorteio o rei das Saturnais, com poderes para exigir de nós o cumprimento de qualquer toli­ce que ordenasse. Já tínhamos tomado tanto vinho que os mais fracos vomitavam nas paredes, quando Nero meteu na cabeça que Britânico devia cantar para nós. A intenção era humilhá-lo, e Britânico era obrigado a obedecer ao rei do festival, embora a boca lhe começasse a tremer. Estávamos preparados para boas gargalhadas, mas, para surpresa nossa, Britânico pegou da cítara e cantou comovedoramente a mais melancólica de todas as canções, aquela que começa: "Oh, Pai, oh, Pátria, oh, Reino de Príamo!"

Não pudemos fazer outra coisa senão escutar atentamente, evitando olhar nos olhos uns dos outros, e quando Britânico ter-minou de cantar esta canção sobre a agonizante Tróia, um triste silêncio pairou no imenso salão de banquetes. Não era possível aplaudi lo, pois com seu lamento demonstrara cabalmente que se considerava ilegalmente despojado do poder. Mas não podíamos rir, tamanho era o pesar que sua canção exprimira.

A bela voz e a magistral interpretação de Britânico consti­tuíram uma desagradável surpresa para Nero, mas ele ocultou seus

sentimentos e elogiou com grande eloqüência o talento de Britâni­co. Pouco depois Britânico retirou-se, queixando-se de que não estava passando bem. A meu -ver temia sofrer um ataque de epi­lepsia, em virtude da agitação em que se encontrava. Seus com­panheiros o seguiram e diversos rapazes de formação rígida va­leram-se da ocasião para ir embora também. Com razão ou sem ela, Nero interpretou essa saída como uma demonstração contra ele e ficou furioso.

— Aquela canção queria dizer guerra civil — gritou. — Lembrai-vos de que Pompeu tinha só dezoito anos e o divino Augusto só dezenove quando comandaram legiões nas guerras civis. Não precisareis esperar tanto. Mas se Roma prefere ter no meu lugar um epiléptico irascível, então renuncio e vou para Rodes. Nunca mergulharei o Estado na guerra civil. Seria melhor abrir as próprias veias ou tomar veneno do que permitir que tal coisa acontecesse à pátria.

Suas palavras nos assustaram, embora estivéssemos bêbados. Vários outros despediram-se e foram embora. O restante elogiou Nero e tratou de explicar que Britânico não tinha probabilidade alguma de êxito.

—Primeiro, o duunvirato — disse Nero. — É esta a ameaça de minha mãe. Depois, a guerra civil. Quem sabe que lista Bri­tânico está agora ruminando naquele cérebro pacato. Talvez vós mesmos estejais todos nela.

As palavras bastavam para apavorar-nos. Nero estava desagradàvelmente com razão, muito embora tentássemos rir e lembrar-lhe que, como rei das Saturnais, podia ele gracejar tão cruelmente como lhe aprouvesse. Voltando aos jogos, entrou a confiar-nos ta­refas abusivas. Alguém recebeu a incumbência de apoderar-se dos sapatos de uma das Virgens Vestais. Senécio teve ordem de acor­dar e trazer à nossa roda a velha nobre cuja assistência o ajudara a encontrar um lugar sólido no Palatino, a despeito de suas ori­gens modestas.

Cansando-se dessas extravagâncias, Nero resolveu então orde­nar algo ainda mais impossível. Muitos se retiraram quando por fim ele gritou:

— Minha coroa de louros para quem trouxer Locusta para cá. Os outros pareciam saber quem era Locusta, mas eu perguntei

em minha ingenuidade:

— Quem é Locusta?

Ninguém quis me dizer, mas Nero respondeu:

— Locusta é uma mulher que tem sofrido muito e sabe pre­parar pratos de cogumelos para os deuses. Talvez eu esteja com

vontade de provar da comida dos deuses porque fui tão odiosa­mente insultado esta noite.

_ Dai-me os vossos louros — gritei, sem dar importância às suas palavras. — Ainda não me atribuístes uma tarefa.

_ Sim — disse Nero. — Sim, Minuto Lauso, meu melhor

amigo, a ti deve ser atribuída a tarefa mais espinhosa. Minuto pode ser o herói de nossas Saturnais.

_ E depois de nós, o caos — disse Oto.

_ Não, o caos enquanto vivermos — bradou Nero. — Por que deixaríamos de tentá-lo?

Naquele momento entrava a velha nobre, seminua e bêbada como uma bacante, espalhando ramos de mirta à sua volta, en­quanto Senécio procurava apressadamente contê-la. Esta mulher sabia tudo a respeito de Roma, de modo que lhe perguntei onde podia encontrar Locusta. Ela não se surpreendeu com minha per­gunta, mas apenas abafou uma risadinha com a mão e me disse que fosse seguindo o caminho para o distrito de Célio. Parti no mesmo instante. A cidade estava bem iluminada e não precisei in­dagar muito para chegar à casinha de Locusta. Bati e a porta foi aberta, para meu espanto, por um raivoso guarda pretoriano que não me deixou entrar. Só depois de ver minha estreita ourela ver­melha mudou de tom.

— A mulher Locusta está sob vigilância — explicou — acusa­da de delitos graves. Ela não pode ver nem falar com ninguém. Por causa dela, estou perdendo todas as comemorações das Saturnais.

Tive de ir a toda a pressa até ao acampamento dos preto­rianos em busca de seu superior, que por sorte era Júlio Pólio, irmão do amigo de minha adolescência. Lúcio Pólio. Ele era então tribuno da Guarda Pretoriana, e não se opôs à ordem do rei das Saturnais. Pelo contrário, aproveitou o ensejo para aderir ao cír­culo formado em torno de Nero.

— Sou responsável pela mulher — disse ele. — Portanto, tenho de ir com Locusta para vigiá-la.

Locusta não era ainda uma velha, mas o rosto era como uma mascara da morte. Uma de suas pernas estava tão estropiada pela tortura que tivemos de arranjar um cadeirinha para transportá-la ao Palatino. Ela não disse nada durante o percurso, limitando-se a olhar para a frente com uma expressão de amargura no rosto. Havia nela algo assustador e sinistro.

Nero se transferira para a sala menor de recepção com os convidados restantes e mandara embora todos os escravos. Fiquei surpreso ao ver que Séneca e Burro haviam-se juntado à companhia no meio na noite. Não sei se o próprio Nero os convocara ou se o chamado partira de Oto, amedrontado pelo estado de

espírito de Nero. Não sobrava um só vestígio da alegria das Sa­turnais. Cada um parecia evitar o olhar do outro e alguns tinham um quê de angústia no semblante.

Quando Séneca avistou Locusta, virou-se para Nero:

És o Imperador disse êle. A escolha é tua. O des­tino decidiu assim. Mas permite que eu me retire.

Cobriu a cabeça com uma ponta do manto e saiu. Burro hesitava.

Devo ser mais fraco do que minha mãe? gritou Nero. Não posso falar com a amiga de minha mãe e interrogá-la a respeito do alimento dos deuses?

Em minha inocência, pensei que talvez Locusta tivesse sido antigamente uma das Cozinheiras do Palácio.

Tu és o Imperador disse Burro, tristemente. Sabes melhor do que ninguém o que estás fazendo.

Também foi embora de cabeça baixa, o coto de braço pen­dendo desajeitadamente do ombro.

Nero seguiu-o com os olhos redondos e esbugalhados.

Ide, todos vós ordenou. —- Deixai-me as sós com a amiga querida de minha mãe. Temos muito que conversar sobre a arte da cozinha.

Polidamente introduzi Júlio Pólio na grande sala vazia e ofe­reci-lhe um pouco de vinho e do que restava da comida.

De que é acusada Locusta? perguntei. Que tem ela que ver com Agripina?

Júlio fitou-me espantado.

Não sabes que Locusta é a mais hábil preparadora de ve­nenos de Romã? disse êle. Devia ter sido condenada anos atrás, de acordo com a lei Júlia, mas graças a Agripina nunca foi processada. Depois do exame pela tortura, que é de praxe quando se trata de envenenadores, foi posta em prisão domiciliar. Acho que tinha tanta coisa para contar que os inquiridores se assustaram.

Atônito, nada pude dizer. Júlio Pólio piscou o olho, tomou um gole e falou:

Nunca ouviste falar do prato de cogumelo que transfor­mou Cláudio num deus? Roma inteira sabe que Nero deve à inte­ligente cooperação entre sua mãe e Locusta a oportunidade de ser Imperador.

Eu estava viajando pelas províncias e não acreditei em todos os boatos que vinham de Roma exclamei, os pensamentos voando céleres em minha cabeça. A princípio pensei que Nero que­ria veneno para pôr fim à sua vida, como ameaçara fazer, mas agora eu via as coisas mais claramente.

Pensei que poderia explicar a presença de Séneca e Burro se fosse verdade que Nero, ofendido pelo comportamento insolente

de Britânico desejava ele mesmo interrogar Locusta, talvez  com o intuito de acusar Agripina de ter envenenado Cláudio. Se ameaçasse Agripina com isso, talvez pudesse silenciá-la, ou mesmo, após um julgamento secreto, expulsa la de Roma. Seguramente não podia acusar sua mãe publicamente. Esse pensamento me acalmou, pois eu ainda  não podia acreditar que Agripina tivesse mandado matar Cláudio No fim de contas, eu ouvira falar do seu câncer de estô­mago dois anos antes de seu falecimento.

_Acho que o melhor seria — disse eu, após ruminar tudo isso por um momento — que nós dois nada disséssemos acerca do que aconteceu esta noite.

Júlio Pólio riu.

_ Isso não me será difícil — disse ele. — Um soldado cum- pre ordens sem falar.

Dormi mal naquela noite e tive sonhos agourentos. No outro dia fui para a quinta de meu pai, perto de Cere levando apenas Barbo comigo. Fazia um frio glacial e estávamos na época mais escura do ano, mas, na paz e quietude do campo, esperei executar um plano que havia muito tinha em mente: escrever um livro narrando as minhas experiências na Cilicia.

Eu não era poeta; disto já sabia. Não podia fazer uma crô­nica histórica da rebelião dos Cleitores sem colocar o Rei da Ci­licia e o Procônsul da Síria numa perspectiva desfavorável. Lem­brei-me das narrativas gregas de aventuras que havia lido para matar o tempo na casa de Silano e resolvi escrever uma história idêntica, de bandoleiros, num estilo tosco e divertido, em que exa­gerasse o aspecto absurdo de meu encarceramento e atenuasse as

dificuldades. Durante vários dias enterrei-me nesse trabalho com tanto afinco que esqueci o tempo e o lugar. Creio que, ao escrever, consegui libertar-me dos sofrimentos passados na prisão, fazendo pouco deles dessa maneira.

Quando redigia as últimas linhas, a tinta espirrando da pena, recebi uma comunicação estarrecedora de Roma: Britânico, no meio de uma refeição conciliatória da família imperial, fora aco­metido de um grave ataque de epilepsia; transportado para o leito, morrera pouco depois, ante a consternação geral, já que habitual­mente ele se refazia bem depressa desses ataques.

De acordo com o costume de ocultar eventos dolorosos, her­dado de seus antepassados, Nero fizera cremar o corpo de Britâ­nico naquela mesma noite no campo de Marte, sob fortes aguacei­ros de inverno, e depois mandara levar os ossos, sem oração fúne­bre nem procissão pública, para o mausoléu do divino Augusto. No discurso que pronunciou sobre o assunto, perante o Senado e o Povo, Nero apelou para a pátria, cujo apoio era sua única espe­rança para o futuro, já que perdera tão repentinamente o amparo e a ajuda do irmão, no governo do Império.

A gente gosta de crer no que espera que seja verdade. Assim, minha primeira reação foi de enorme alívio. Em meu espírito, a morte súbita de Britânico solucionava todos os conflitos políticos por um modo que era melhor para Nero e para Roma. Agripina já não podia apontar Britânico quando censurasse a ingratidão do filho. O espectro de uma guerra civil dissolvia-se ao longe.

Na raiz de meus pensamentos uma dúvida secreta continuava roendo, muito embora eu não desejasse tomar conhecimento dela. O tempo ia passando em Cere e eu não tinha vontade de voltar a Roma. Soube que Nero repartira com os amigos e os membros influentes do Senado a grande fortuna herdada de Britânico. Pa­recia esbanjar dádivas, como se pretendesse comprar a estima de todos. Eu não sentia desejo algum de receber um quinhão da for­tuna de Britânico.

Quando regressei a Roma no princípio da primavera, Nero privara Agripina de sua guarda de honra e transferira-a do Pala­tino para a casa abandonada da finada Antônia, mãe de Cláudio. Nero ia visitá-la de vez em quando, mas sempre na presença de testemunhas para obrigá-la a controlar-se.

Agripina estava construindo um templo a Cláudio na colina de Célio, mas Nero mandou derrubá-lo, declarando que precisava

do local para fins que tinha em mente. Tinha grandes planos de alargar o Palácio. Desse modo a posição de Agripina como sacer­dotisa de Cláudio perdera todo e qualquer significado. Tia Lélia comentou que Agripina estava outra vez tão só como estivera nos tempos difíceis em que Messalina ainda vivia.

O filho de Vespasiano, Tito, amigo e companheiro de Bri­tânico, adoecera desde o banquete no qual Britânico sofrera seu ataque fatal. Decidi visitá-lo, uma vez que lhe conhecia muito bem o pai, embora viesse evitando Tito desde o momento em que começara a freqüentar o círculo de Nero.

Tito ainda estava debilitado e pálido em virtude da enfermi­dade. Olhou-me com desconfiança já que eu chegava tão inespera­damente, levando-lhe presentes. Via-se-lhe a ascendência etrusca da família Flávio no rosto quadrado, no queixo e no nariz muito mais nitidamente do que em seu pai. Bastava compará-lo um instante com alguma estátua etrusca, e para mim, que acabava de chegar de Cere, a semelhança era espantosamente manifesta.

— Estive em Cere desde as comemorações das Saturnais — disse eu — e escrevi uma história de aventura que talvez trans­forme numa peça de teatro. Portanto, não estou a par do que vem ocorrendo em Roma, embora tenha ouvido boatos alarmantes. Meu nome também foi mencionado a propósito da morte súbita de Bri­tânico. Você deve me conhecer o suficiente para saber que não tenho más intenções. Conte-me a verdade. Como morreu Britânico? Tito encarou-me sem medo.

Britânico era meu melhor e único amigo — disse êle. — Um dia consagrarei a êle uma estátua de ouro entre os deuses do Capitólio. Logo que tiver forças, irei para junto de meu pai na Bretanha. Naquele banquete, sentei ao lado de Britânico. Nero não permitiu que nós, adolescentes, nos reclinássemos à mesa. Era uma noite fria e tomamos bebidas quentes. O escanção de Britâ­nico ofereceu-lhe intencionalmente um copo tão quente que lhe queimou a língua. Britânico pediu que pusessem água fria em seu copo, bebeu e instantaneamente ficou sem fala e cego. Eu então peguei do Copo e tomei um trago. Logo me senti tonto e tudo passou a dançar diante dos meus olhos. Felizmente apenas adoeci gravemente. Estou enfermo desde então. Talvez tivesse morrido também se não tivesse vomitado.

— Acha então que êle foi envenenado e que você mesmo bebeu um pouco do veneno? — perguntei, quase sem acreditar nos meus ouvidos.

Tito olhou-me sério, menino como era:

Não acho não — disse êle. — Tenho certeza. Não me pergunte quem é o culpado. Não foi Agripina, pois ela ficou es­tarrecida na ocasião.

Se isso é verdade, então devo acreditar que ela envenenou Cláudio, como andam dizendo por aí.

Tito fitou-me compassivo com seus olhos amendoados:

_ Não sabia disso? Até os cães de Roma uivaram quando Agripina desceu ao fórum, depois que os Pretorianos aclamaram Nero Imperador.

_ Então o poder é uma coisa mais terrível do que eu pen­sava — admiti.

O poder é grande demais para ser exercido por um ho­mem só, por mais ajuizado que seja — disse Tito. — Nenhum dos governantes de Roma sustentou-o sem ser destruído. Tenho tido tempo de sobra para pensar nessas coisas durante a minha doença, e no entanto ainda prefiro fazer boa opinião das pessoas. Tenho boa opinião a seu respeito também, por ter vindo aqui pedir-me honestamente que lhe diga a verdade. Sei que o Todo-Poderoso cria atores, mas acho que você não veio descobrir por ordem de Nero o que eu penso da morte do meu melhor amigo. Conheço Nero também. Ele imagina que com suborno pode fazer com que seus amigos esqueçam o que aconteceu. Ele mesmo gostaria de esquecê-lo. Mas tenho uma faca à mão, caso você tenha a inten­ção de me fazer mal.

Sacou de um punhal oculto sob o travesseiro e atirou-o longe, como se quisesse demonstrar sua total confiança em mim. Mas não me pareceu que confiasse completamente. Falava com muita ponderação e experiência. Ambos nos sobressaltamos quando uma jovem muito bem trajada entrou inopinadamente no quarto, segui­da por uma escrava que carregava uma Cesta. A moça era delgada e espadaúda como Diana, tinha feições belas mas duras e o cabelo penteado à grega em pequenos cachos. Fixou-me indagadoramente com seus olhos esverdeados. Tão familiares me pareceram que não pude desviar a vista.

Não conhece minha prima, Flávia Sabina? perguntou Tito. Ela vem me ver todos os dias, trazendo a comida prescrita pelo médico e cujo preparo ela mesma é quem fiscaliza. Não quer compartilhar, como meu amigo?

Compreendi que a moça era a filha do Prefeito de Roma, Flávio Sabino, irmão mais velho de Vespasiano. Talvez eu a tivesse visto em algum banquete ou num cortejo festivo, já que ela não me era estranha. Saudei-a respeitosamente, mas a língua me secou na boca e fitei seu rosto largo como que enfeitiçado.

Sem demonstrar a menor perturbação, ela serviu com suas próprias mãos uma refeição espartana. Não havia nem mesmo um jarro de vinho na cesta. Comi apenas por cortesia, mas a comida colava na garganta enquanto eu a olhava. Pensei que nenhuma outra mulher jamais me causara tal impressão à primeira vista.

Não pude entender o motivo. Ela não demonstrava nenhum interesse por mim; ao contrário, mantinha-se fria e severa, retraí­da, calada mas consciente de seu papel de filha do Prefeito da Ci­dade. Durante a refeição fui me sentindo cada vez mais atormen­tado pela impressão de que era tudo um sonho e, embora não be­bêssemos senão água, experimentei uma leve sensação de embria­guez.

Por que você mesma não come alguma coisa? pergun­tei afinal.

Preparei a comida disse ela, escarninha. Não sou sua copeira. E não tenho motivos para partilhar meu pão e meu sal com você, Minuto Maniliano. Eu o conheço.

Como pode me conhecer se eu não a conheço? protestei.

Flávia Sabina esticou sem cerimônia seu fino dedo indi­cador e passou-o de leve em meu olho esquerdo.

Ah, bem, vejo que não causei nenhum mal a seu olho disse ela. Se fosse mais experiente, teria posto o polegar dentro dele. Espero pelo menos que meu punho lhe tenha arroxea­do o olho.

- Andaram brigando então na infância? — perguntou Tito, vinha escutando tudo com assombro. - Não passei a infância em Antioquia — respondi, distraído. Mas de súbito acudiu-me uma lembrança que me fez corar de vergonha. Sabina fitou-me nos olhos, gozando minha perplexidade.

_ Ah, afinal se lembrou! — exclamou. — Você estava bê- bado e fora de si, juntamente com um bando de escravos e vaga- bundos. Foi no meio da noite e vocês perambulavam pelas ruas. Descobrimos quem era você e papai não quis processá-lo, por mo- tivos que você bem sabe quais são.

Lembrava-me perfeitamente. Certa vez no outono, numa das excursões noturnas de Nero, eu procurara agarrar uma jovem que vinha em minha direção, mas recebera tal golpe no olho que caíra de costas. Passei uma semana com uma mancha preta e azulada no olho. O acompanhante da jovem nos atacara e com um archote aceso produzira umas queimaduras na cara de Oto. Estava tão bê­bado no ocasião, que mais tarde quase não podia recordar o que se passara.

Espero que não lhe tenha causado dano algum — disse eu, tentando desculpar-me. — Apenas agarrei-me a você quando colidimos na escuridão. Se soubesse quem você era, naturalmente teria corrido a apresentar-lhe desculpas no dia seguinte.

Deixe de mentiras — disse ela. — E não tente agarrar-se a mim novamente. Seria pior para você de outra vez.

Jamais ousaria — disse eu, procurando não dar impor­tância ao caso. — De hoje por diante farei meia volta todas as ve­zes que a avistar. Você me tratou rudemente.

No entanto, não fiz meia volta; na realidade, acompanhei Sabina até à casa do Prefeito. Seus olhos esverdeados estavam risonhos e seu braço nu era liso como mármore. Uma semana de­pois, meu pai e seu séquito de duzentos clientes e escravos dirigi­ram-se à casa de Flávio Sabino, levando a minha proposta.

Túlia e tia Lélia tinham outras idéias na cabeça, mas este con­trato de casamento não era mau, de modo nenhum. A família Flá­vio era pobre, mas a fortuna de meu pai contrabalançava.

A pedido de Sabina, casamo-nos de acordo com o ritual mais antigo, ainda que eu não tivesse intenção de pertencer a nenhum Colégio de Sacerdotes. Mas Sabina disse que queria casar para a vida toda e não desejava divorciar-se, e eu, naturalmente, fiz-lhe a vontade. Pouco tempo depois de casados reparei que não era somente nesse ponto que eu lhe permitia ter tudo o que queria.

Nossa festa de casamento foi das mais bonitas. Às expensas de meu pai e em nome do Prefeito da Cidade, todo o povo foi convidado a comer, não somente o Senado e os cavaleiros. Nero veio pessoalmente à festa, tomou parte no cortejo nupcial e can­tou um hino indecente que êle mesmo compusera para música de flauta. Por fim, polidamente virou seu archote de cabeça para baixo e saiu sem espalhafato.

Tirei o véu escarlate da cabeça de Sabina e levantei o manto amarelo que lhe cobria os ombros. Mas quando ia desatar os dois laços trabalhosos de sua cinta de linho, ela sentou-se, os olhos ver­des chamejando, e gritou:

— Sou uma mulher Sabina. Rapta-me como as Sabinas foram raptadas.

Eu não tinha, sequer um cavalo, nem era bom no tipo de pilhagem que ela desejava. Nem mesmo entendia- o que ela que­ria, pois, em meu amor por Cláudia, habituara-me à ternura e às concessões mútuas.

Sabina ficou decepcionada, mas fechou os olhos, cerrou os punhos e deixou-me fazer o que eu queria e o que o véu vermelho me obrigava a fazer. Finalmente, atirou os braços fortes em volta do meu pescoço, beijou-me de leve e deu-me as costas para ir dor­mir. Persuadido de que éramos ambos tão felizes como dois recém-casados podem ser, adormeci com um suspiro de contentamento.

Só muito depois foi que descobri o que Sabina esperava do amor físico. As cicatrizes do meu rosto fizeram com que ela pen­sasse que eu era muito diferente do que sou. Nosso primeiro en­contro na rua, à noite, levara-a a sonhar que eu podia fazer com ela o que ela queria, mas nisso estava enganada.

Não guardo ressentimento. Ela se desiludiu mais de mim d que eu dela. Como e por quê ela se transformou no que se viu depois, não posso explicar. Vénus é uma deusa caprichosa e quase sempre cruel. Juno é mais digna de confiança de um ponto de vista familiar, mas, em outros aspectos do casamento, acaba por se tornar monótona.

 

Agripina

Passamos na praia, em Cere, os dias mais quentes do verão. Minha mulher Flávia Sabina deu vazão à sua fome de atividade construindo para nós uma nova e moderna residência de veraneio no lugar da velha palhoça de pescadores. Ao mesmo tempo, obser­vava-me, a mim e às minhas fraquezas, sem se fazer notar e sem aludir a meus planos futuros, pois via que a mera referência ao serviço público me deprimia. Ao regressarmos à cidade, foi con­sultar o pai, daí resultando o chamado que recebi do Prefeito Flá­vio Sabino:

— O anfiteatro de madeira está quase concluído e o próprio Nero estará presente à cerimônia de inauguração — disse êle. — Venho enfrentando sérias dificuldades em relação aos valiosos animais selvagens que continuam chegando de todas as partes do mundo. A velha casa dos bichos na via Flamínia é pequena demais e Nero se mostra particularmente exigente. Quer animais ames­trados capazes de executar números nunca vistos antes; os sena­dores e cavaleiros vão dar demonstrações de suas habilidades vena­torias na arena. Daí a necessidade de que os animais que vão ser caçados não sejam demasiadamente bravios. Por outro lado, é pre­ciso que os animais que vão lutar entre si proporcionem um espe­táculo empolgante. O que nos falta é um superintendente que seja responsável pelos animais e também organize aquela parte do pro­grama. Nero está com vontade de nomeá-lo para o cargo, já que você tem certa experiência desses bichos. O posto é importante no serviço público.

Suponho que só podia culpar a mim mesmo por isto, pois achara de vangloriar-me de ter, ainda rapazinho, capturado um leão vivo, e de mais tarde, entre os bandoleiros da Cilicia, ter salvo a vida dos meus companheiros quando um dos chefes do bando, para se divertir, nos obrigara a entrar na toca de um urso. Mas cuidar de centenas de feras e organizar espetáculos no anfi­teatro constituíam uma responsabilidade tal que achei que não possuía, as habilitações mais adequadas ao exercício do cargo.

Quando fiz ver isso a meu sogro, ele redarguiu Cáustico:

— Você receberá do tesouro imperial o dinheiro de que pre­cisar. Os mais calejados domadores de todos os países estarão disputando uma oportunidade de trabalhar em Roma. Nada mais se exige de você do que discernimento e bom gosto na escolha dos programas. Sabina o ajudará. Brinca no pátio dos bichos desde menina e adora domar animais.

Para mim isso era novidade. Amaldiçoando meu destino, voltei para casa e queixei-me amargamente a Sabina.

Prefiro assumir o cargo de questor, para lhe agradar, do que ser domador de feras.

Sabina encarou-me, como se me avaliasse, e depois virou a cabeça para um lado.

Não, você nunca chegaria a cônsul. Coitado! Por que então não leva uma vida emocionante e movimentada como superinten­dente da casa dos bichos? Nunca houve antes nesse posto ninguém que tivesse o grau de cavaleiro.

Ponderei que meus interesses pendiam mais para os livros:

Qual é o valor de uma reputação ganha numa sala de conferências disse ela desdenhosa onde cinqüenta ou cem pessoas batem palmas de gratidão quando você afinal pára de ler? Você é um preguiçoso sem iniciativa. Não tem ambição alguma.

Sabina estava tão irada que resolvi não apoquentá-la mais, embora a reputação advinda de malcheirosos animais selváticos não me atraísse. Dirigimo-nos imediatamente à casa dos bichos, e, du­rante nossa curta inspeção, percebi que as condições eram ainda piores do que dissera o Prefeito da Cidade.

Os animais passavam fome após longas viagens e não tinham alimento apropriado. Um tigre de alto preço agonizava, e ninguém fazia idéia do que os rinocerontes, trazidos da África com enorme despesa, normalmente comiam, pois haviam esmagado sob as patas o homem que os acompanhava. A água potável era imunda, e os elefantes não queriam comer. As jaulas estavam abarrotadas e sujas demais. As girafas praticamente morriam de medo, por terem sido colocadas perto das jaulas dos leões.

Os bramidos e urros dos mortificados animais me punham a cabeça a rodopiar e a fedentina era insuportável. Nenhum dos feitores e escravos queria responsabilizar-se por coisa alguma. "Não é comigo", era a resposta que davam a todas as minhas perguntas. Chegavam até a dizer que animais famintos e assustados lutam com mais ardor na arena, desde que se pudesse mantê-los mais ou menos vivos até o dia do espetáculo.

Sabina mostrou-se -mais interessada por dois avantajados monos peludos, maiores do que um homem, que tinham sido tra­zidos a Roma de alguma região desconhecida da África. Não faziam caso da comida que lhes era oferecida e nem sequer bebiam.

É preciso reconstruir todo o local disse eu, com decisão.

Os domadores necessitam de bastante espaço e as jaulas devem ser suficientemente grandes para que os animais possam movimentar-se Temos de proporcionar-lhes água corrente. Todas as espécies

de animais devem ser nutridas e tratadas por homens especial­mente nomeados que lhes conheçam os hábitos.

O capataz que me acompanhava balançou a cabeça.

 - Qual é a utilidade disso? — disse ele. — Os animais mor­rerão na arena de qualquer jeito.

Enfurecido com todas essas objeções, atirei a maçã que estava comendo à jaula dos monos gigantescos.

_ A primeira coisa a fazer é açoitá-los a todos — bradei _ para que aprendam o que têm que fazer.

Sabina pôs a mão em meu braço para acalmar-me, ao mesmo tempo em que com um gesto de cabeça indicava os macacos. Vi com espanto um braço cabeludo estender-se para a maçã. Depois, a fera descobriu seus dentes assustadores e triturou a maçã com uma dentada única. Franzi a testa e assumi o ar mais car­rancudo possível.

—  Dêem-lhes uma cesta de frutas —- disse eu — e água fresca num recipiente limpo.

O zelador desatou a rir.

— Feras como essa são carnívoras — disse ele. — Vê-se pelos dentes.

Sabina arrancou-lhe o chicote da mão e açoitou-o no rosto.

— É essa a maneira de falar com seu senhor? — gritou.

O homem ficou amedrontado e furioso, mas, para expor-me ao ridículo, foi buscar uma cesta de frutas e esvaziou-a na jaula. Os animais famintos tornaram à vida e caíram sobre a comida. Para minha própria surpresa, vi que gostavam até mesmo de uva. Isso era tão estranho para os zeladores, que eles se puseram a observar e pararam de rir das minhas ordens.

Firmada minha autoridade, logo reparei que a principal defi­ciência não era a falta de prática mas uma indiferença geral e au­sência de disciplina. Dos feitores aos escravos, era considerado um direito natural roubar alguns dos ingredientes da alimentação dos animais, de modo que estes eram nutridos sem nenhum método.

O arquiteto que projetara o anfiteatro de madeira de Nero e era responsável pela construção considerara indigno de si preocupar-se com jaulas de feras e pátio de exercícios. Mas ao ver meus desenhos e ouvir as explicações de Sabina acerca do que estava em jogo, na verdade um setor inteiramente novo da cidade, passou a interessar-se.

Dispensei ou dei outros serviços a todos os homens que se divertiam atormentando os animais, ou que tinham excessivo medo deles. Sabina e eu imaginamos um uniforme atraente para os inú­meros empregados do circo e também construímos uma casa no local, porque logo me dei conta de que precisava passar ali os dias e as noites, se de fato queria cuidar adequadamente daqueles valiosos animais.

Abandonamos toda a vida social e dedicamo-nos integralmen­te aos bichos, a ponto de Sabina criar filhotes de leão em nossa cama e forçar-me a alimentar, por meio de um chifre, aqueles que haviam perdido a mãe quando nasceram. Até mesmo nossa vida matrimonial ficou esquecida nessa roda-viva, pois superin­tender uma coleção de animais é indubitavelmente uma tarefa emo­cionante e de responsabilidade.

Quando arrumamos o local, asseguramos provisões suficien­tes e regulares e nomeamos zeladores eficientes e interessados nos animais, tivemos de começar a planejar os números do espetáculo inaugural do anfiteatro, cuja data se aproximava com alar­mante rapidez.

Como assistira a muitos combates de animais, sabia como or­ganizar caçadas na arena que oferecessem a maior segurança pos­sível aos caçadores e, ainda assim, atraíssem a atenção do espec­tador. Era mais difícil escolher os animais que iam lutar entre si, pois a multidão estava acostumada a ver as mais notáveis com­binações desse gênero. Depositava grandes esperanças nas exibições dos animais amestrados, já que hábeis domadores do mundo inteiro viviam a oferecer-me os seus préstimos.

Os ensaios de tais exibições deram menos trabalho do que mantê-los em segredo até o dia. Incalculável era o número de pessoas que a todo instante queriam entrar no recinto. Afinal, resolvi cobrar ingressos dos que desejavam percorrer o pátio. O dinheiro apurado desse modo, empreguei-o em benefício mesmo da empresa, embora pudesse tê-lo embolsado, como fora meu pri­meiro pensamento. Crianças e escravos tinham entrada franca nos dias em que não havia grandes multidões.

Uma semana antes da inauguração recebi a visita de um indi­víduo coxo e barbado, em quem só vim a reconhecer Simão, o mago, depois que começou a falar. A proibição de adivinhar pelos astros ainda estava em vigor, de modo que êle já não podia usar seu belo manto caldeu com os signos do zodíaco. Parecia infeliz e sem recursos, os olhos desassossegados, e fêz um pedido tão es­tranho que pensei que houvesse perdido o juízo. Desejava dar uma demonstração pública de vôo no anfiteatro, para reconquistar a fama e o bom nome.

Pelo que pude depreender de sua confusa história, seus po­deres de cura milagrosa haviam declinado e êle passara da moda. Morrera-lhe a filha, em conseqüência das intrigas dos mágicos ri-

Vais firmou Os cristãos de Roma, sobretudo, o odiavam e lhe moviam tal perseguição que ele se via às portas da miséria e de uma velhice desamparada. Portanto, pretendia agora demonstrar seus divinos poderes perante todo o povo.

_Sei que posso voar — disse ele. — Antes, eu voava diante de grandes multidões e aparecia saindo de uma nuvem, mas um dia surgiu um dos mensageiros cristãos com suas feitiçarias e me fez cair no fórum e quebrar o joelho. Quero provar que ainda posso voar. Quero prová-lo a mim mesmo e aos outros. Certa vez lancei-me da torre do Aventino à noite, em plena tempestade, e o manto aberto me serviu de asa. Voei sem nenhuma dificuldade e cheguei são e salvo ao chão.

— Na realidade, nunca acreditei que você voasse — disse eu — Pensei que apenas deformava a vista das pessoas, levan­do-as a crer que o tinham visto voar.

Simão, o mago, torceu as mãos nodosas e coçou a barba do queixo:

— Talvez eu deformasse a vista do povo, mas não importa. Era obrigado a persuadir-me de que estava voando, com tal inten­sidade que ainda creio que voei. Mas não procuro mais atingir as nuvens. Dar-me-ei por satisfeito se conseguir voar uma ou duas ve­zes em redor do anfiteatro. Então acreditarei em meu próprio poder e que meus anjos me seguram no ar.

A idéia de voar era a única coisa que havia em sua cabeça. Assim, acabei por perguntar como achava que ia concretizá-la. Explicou que se podia arvorar um mastro comprido no centro do anfiteatro e que ele, Simão, podia ser içado para o topo num cesto, de maneira a alcançar suficiente altura, já que não podia erguer-se do chão com cem mil pessoas assistindo. Fitava-me com seus olhos penetrantes e falava com tanta convicção que me pôs a cabeça a girar. Ao menos, pensei, esse seria um número nunca visto antes em nenhum anfiteatro, e cabia ao próprio Simão, o mago, a responsabilidade pelo risco de quebrar o pescoço. Talvez até tivesse êxito em sua temerária iniciativa.

Nero veio inspecionar o anfiteatro no momento em que vários jovens gregos ensaiavam uma dança da espada. Era um dia quente de outono, e Nero envergava apenas uma túnica encharcada de suor, ao elogiar e animar os jovens aos brados, de vez em quando participando da dança para lhes dar um exemplo. Quando lhe falei da proposta de Simão, o mago, mostrou-se logo entusiasmado-

— Voar já é por si só suficientemente extraordinário, mas devemos procurar uma moldura artística para fazer disso um acontecimento excepcional. Ele pode ser Ícaro, mas nesse caso con­vém incluir Dédalo e sua obra-prima também. Por que não tam­bém Pasifaé, para dar um pouco de alegria à multidão?

Sua imaginação pôs-se a funcionar com tal agilidade que dei graças à minha boa sorte. Também concordamos em que Simão raspasse a barba, se vestisse feito um jovem grego e prendesse às costas umas cintilantes asas douradas.

Quando transmiti a Simão essas exigências imperiais, êle se recusou categoricamente de saída a raspar a barba, sustentando que isso lhe arrebataria os poderes. Não tinha objeções às asas. Quando falei de Dédalo e da vaca de madeira, narrou-me o mito judaico de Sansão, que perdeu toda a sua força no momento em que uma estrangeira lhe cortou os cabelos. Mas como eu insinuasse que evi­dentemente êle tinha pouca fé em sua capacidade de voar, Simão concordou com as exigências. Perguntei-lhe se queria o mastro er­guido desde já para lhe dar tempo de praticar, mas êle respondeu que os exercícios lhe enfraqueceriam os poderes. Seria melhor je­juar e ler palavras mágicas a sós com o fim de concentrar as ener­gias para o dia do espetáculo.

Nero preceituara que o programa tivesse ao mesmo tempo caráter edificante e recreativo. Pela primeira vez na história, um espetáculo de tal envergadura ia efetuar-se sem o intencional der­ramamento de sangue humano. Portanto, tinha-se de propiciar ao povo a maior alegria possível entre os números emocionantes e artisticamente excelentes. Durante os inevitáveis intervalos, jogar-se-iam dádivas à multidão, abrangendo desde aves assadas, frutas e bolos até lâminas lotéricas de marfim, das quais seriam sortea­dos mais tarde trigo, roupas, ouro e prata, bois de tiro, escravos e até mesmo lotes de terreno.

Nero não queria a presença de gladiadores profissionais. Assim, e para acentuar o valor e a dignidade de seu espetáculo, ordenou que os jogos fossem precedidos de uma batalha entre quatrocentos senadores e seiscentos cavaleiros. O povo divertiu-se ao ver homens importantes, de ilibada reputação, batendo-se com espadas de ma­deira e lanças rombudas. Grupos de guerreiros de escol também demonstraram suas habilidades, mas a multidão mostrou-se insa­tisfeita ao ver que ninguém se feria e começou a manifestar-se em voz alta sobre esse ponto. Os soldados da guarda puseram-se em movimento, mas Nero determinou que se retirassem a fim de que o povo de Roma se habituasse à liberdade.

Esta ordem provocou aplauso e contentamento gerais. Os des­contentes se contiveram, para mostrar que eram dignos da con­fiança do Imperador. Um duelo com redes e tridentes entre dois obesos e esbaforidos senadores foi tão cômico que a turba rom­peu numa gargalhada descomunal, e os dois cavalheiros na reali­dade ficaram tão enraivecidos um com o outro que se teriam fen­do se os tridentes estivessem afiados ou se as redes contivessem os habituais pesos de chumbo.

Três homens exibindo gigantescas serpentes causaram consideravel horror quando deixaram que os ofídios os envolvessem letamente, mas Nero não gostou, de vez que ninguém percebeu que eles representavam Laocoonte e seus filhos. As caçadas de leão tigre e bisão decorreram sem contratempo, o que desagra­dou enormemente ao populacho. Mas os jovens cavaleiros que re-esentavam os caçadores ficaram a dever-me esse favor, já que eu mandara construir torres de proteção para eles em vários pontos da arena. Eu mesmo não gostei desse número porque já me afei­çoara de tal modo aos meus animais que não queria vê-los mortos.

Houve aplausos delirantes para uma domadora de leões, uma jovem ágil que saiu correndo de uma porta escura e atravessou a arena com três leões aparentemente enfurecidos em seu encalço. Um murmúrio de surpresa tomou conta da turba, mas a moça, es­talando o chicote, fez parar os leões no meio do picadeiro e obri­gou-os a sentar-se, obedientes como cães, e a pular por dentro de aros.

O ruído e o aplauso devem ter transtornado os animais, pois quando a moça realizava seu ato mais ousado, forçando o maior dos leões a abrir a boca e nela enfiando a cabeça, a fera tornou a fechar a boca. Esta surpresa causou tal júbilo e tantos aplausos que tive tempo de acudir aos leões.

Uma turma de escravos equipada com tochas acesas e barras de ferro incandescentes cercou-os e os fez retornar às jaulas. De outro modo, os arqueiros montados teriam sido obrigados a ma­tá-los. Para dizer a verdade, eu estava tão preocupado com meus valiosos leões que pulei desarmado para a arena, a fim de dar or­dens aos escravos.

Eu estava tão envaidecido que apliquei um pontapé com minha bota ferrada debaixo da mandíbula do leão, para fazê-lo soltar a cabeça da domadora. O animal rosnou raivoso mas provavelmente ficou de tal modo abalado com o acidente que não me atacou.

Depois que um grupo de negros pintados engodou um rino­ceronte, uma vaca de madeira foi transportada para a arena e o cômico Paris representou a história de Dédalo e Pasifaé, ao mesmo tempo em que um enorme touro cobria tão avidamente a vaca de madeira que a maioria do povo foi levada a crer que Pasifaé realmente se escondera lá dentro.

 Simão, o mago, com suas imensas asas douradas, foi um es­petáculo que surpreendeu a todos. Por meio de mímica, Páris ten­tou induzi-lo a dar alguns passos de dança, mas Simão repeliu a idéia com o volteio de suas magníficas asas. Dois marinheiros içaram-no a uma plataforma colocada no topo do mastro desmesura­damente alto. Nas galerias superiores, diversos judeus puseram-se a gritar maldições, mas a turba fê-los calar. No alto do mastro,

Simão voltou-se em todas as direções para saudar o público do o instante mais solene de sua vida. Penso que até o de' V'Ve momento êle estava convencido de que suplantaria e esm  ^ seus rivais.

Assim, agitou as asas, uma vez mais, e jogou-se ao ar reção do camarote imperial, caindo instantaneamente, tão perto Nero que algumas gotas de sangue salpicaram o Imperador, morreu ao tocar o chão, naturalmente, e depois discutiu-se se voar" mesmo ou não. Alguns sustentavam que tinham visto sua asa querda danificada quando êle fora suspendido na cesta. Outra _achavam que as terríveis maldições dos judeus o tinham derruba­do. Talvez tivesse tido êxito se lhe tivessem permitido ret sua barba.

De qualquer modo, os números tinham de continuar. Os mari- nheiros estenderam uma grossa corda entre a primeira galeria e pé do mastro.

Para a indescritível surpresa da multidão, um elefante ca­minhou então cuidadosamente na corda, desde a galeria até à areia carregando no pescoço um cavaleiro conhecido em toda a Roma por sua temeridade. O cavaleiro não havia, é claro, ensinado elefante a andar na corda, pois este estava habituado a fazer isso sem um ginete. Mas recebeu o aplauso final por uma exibição de habilidades e ousadia nunca vistas antes em nenhum anfiteatro

Creio que a multidão em conjunto ficou satisfeita com o que viu. O salto fatal de Simão, o mago, e a morte inesperada da d madora de leões foram considerados os melhores números. | única queixa era que tivessem sido realizados com excessiva rapl dez. Os senadores e cavaleiros que tinham sido forçados a apare cer como caçadores estavam alegres por terem escapados ilesos. Somente os espectadores mais antiquados lamentavam que não tive-se corrido sangue humano em honra dos deuses de Roma, e lem bravam com uma ponta de melancolia os dias cruéis de Cláudia.

A maioria ocultou esplendidamente sua decepção, pois Nero distribuíra liberalmente custosas prendas durante os intervalos,retirada dos pretorianos também tinha agradado ao natural senti- mento de liberdade do povo, e menos de uma centena de especta dores saíram gravemente feridos das lutas pela posse das laminas de marfim.

Otávia, esposa do Imperador, suportara em silêncio o insulto de ver Nero permitir que Acte assistisse ao espetáculo do camarote imperial, ainda que através de um orifício aberto numa parede. Não se reservara localidade para Agripina, e Nero espalhara a notícia de que sua mãe não estava passando bem. Constou que alguém, na multidão, gritara que ela talvez tivesse comido cogumelos. Eu mesmo não ouvi tal comentário, mas diziam que Nero não escondeu sua satisfação ao saber que o povo aproveitara, com destemor esta oportunidade para exibir sua liberdade de opinião na

presença dele. Minha coleção de animais sofrera baixas lamentáveis, mas restava naturalmente uma reserva básica que eu pretendia empregar como núcleo de  uma criação que iria abranger feras procedentes de todos os recantos da terra. Desse modo, no futuro, as exibições não dependeriam do acaso, mas seriam realizadas sempre que Nero julgasse necessário divertir o povo. Conhecendo os caprichos de Nero percebi que havia boas razões para estar preparado de antemão para acontecimentos políticos que exigissem di­vertimentos organizados com o fim de levar o povo a esquecer fatos desagradáveis.

No dia anterior, as matrizes dos rinocerontes mortos se tinham enrijecido numa massa clara e trêmula em seus fossos africanos de cozedura, onde tinham passado a noite inteira a ferver a fogo lento. Resolvi levar esse esplêndido manjar, a meu ver até então desconhecido em Roma, para a mesa do Imperador. Contemplei entristecido as jaulas vazias, os escravos de novo entregues à faina cotidiana e a casa modesta em que Sabina e eu tínhamos passado uma fase ativa mas, como então me parecia, feliz de nossa vida.

Sabina — exclamei agradecido — sem a sua experiência de animais e a sua infatigável energia, eu não poderia ter executa­do honrosamente essa tarefa. Estou certo de que vamos ter sauda­des desses dias, apesar dos obstáculos e surpresas, quando retornarmos à vida normal.

_ Retornarmos? — disse prontamente minha mulher, endu­recendo o semblante. — Que quer dizer com isso, Minuto?

_ Levei a cabo minha missão, e creio que de modo satisfató­rio tanto para seu pai como para o Imperador — respondi. — Agora vou levar uma iguaria inédita para Nero e o nosso inten­dente vai tratar da parte financeira com o tesouro imperial. Nero não tem talento para lidar com algarismos e, para ser sincero, também não entendo essa complicada contabilidade, exceto em números redondos. Acho, porém, que está tudo em ordem e não me incomodo com o dinheiro que perdi. Talvez Nero me recompense de algum modo, mas a melhor recompensa para mim foi o aplauso do povo.

Mais do que isso não reclamo e afinal não poderia suportar  por mais tempo essa continuada excitação.

_ Qual de nós teve de mostrar mais tolerância? — disse Sabina - Quase não posso acreditar nos meus ouvidos. Você mal deu o primeiro passo. Como é que se atreve a dizer que está disposto a abandonar o leão que agora está sem domador, ou aqueles quase humanos macacos gigantescos, um dos quais está tossindo horrívelmente e precisa de cuidados, para não falar dos outros animais? Não, Minuto, você deve estar cansado ou de mau humor Papai prometeu que você pode continuar em seu posto atual, sob minha supervisão. Isso poupa a êle uma série de problemas, desde que não tem de brigar por causa das miseráveis subvenções do Estado.

Agora era a minha vez de recusar-me a crer nos meus ouvidos.

Flávia Sabina disse eu —, não vou viver o resto da minha vida como domador de feras, por mais valiosos e belos que sejam os animais. Pelo lado paterno descendo dos reis etruscos de Cere, tanto quanto Oto ou quem quer que seja.

Sua linhagem é duvidosa, é o mínimo que se pode dizer retrucou Sabina com raiva. E é melhor até nem mencionar sua mãe grega. As máscaras de cera da casa de seu pai foram herda­das por Túlia. Na família Flávia houve pelo menos cônsules. Vi­vemos em outros tempos. Não percebe que a superintendência da casa dos bichos é uma posição política que causa inveja a toda a gente, embora não seja ainda universalmente reconhecida?

_ Não tenho desejo nenhum de competir com estribeiros e citaristas protestei altaneiro. Posso citar dois velhos senado­res que já levam a toga ao nariz quando se encontram comigo, como se quisessem resguardar-se do mau cheiro dos animais. Qui­nhentos anos atrás, os mais nobres patrícios gabavam-se de recender a esterco, mas não vivemos mais naqueles tempos. E devo dizer que já estou cansado dos filhotes de leão em nossa cama. Você tem mais afeição por eles do que por mim, seu marido.

O rosto de Sabina tornou-se amarelo de fúria:

Não quis ofendê-lo com alusões a suas qualidades de ma­rido disse ela, controlando-se com dificuldade. Um homem mais inteligente e de mais tato teria tirado suas conclusões há muito tempo. Não somos feitos da mesma substância, Minuto. Mas casamento é casamento e a cama não é a parte mais impor­tante dele. Em seu lugar, eu me daria por satisfeita de ver minha mulher procurando encher o vazio de sua vida com outros interes­ses. Mas resolvi em seu nome que continuaremos aqui. Papai também pensa assim.

Talvez meu pai também tenha seus pontos de vista sobre essa questão ameacei um tanto dèbilmente. Seu dinheiro não irá custear indefinidamente essa coleção de animais.

Mas isso não vinha ao caso. O que mais doeu foi a inesperada censura de Sabina ao meu malogro como marido.

Eu tinha de providenciar o envio da geléia de matriz de rino­ceronte ao Palatino enquanto estava quente, e por isso interrom­pemos a altercação. Não foi de modo algum nosso primeiro desen­tendimento, mas sem dúvida o pior que tínhamos tido até então e o mais doloroso.

Nero convidou-me a comer, o que era perfeitamente Neroconvidou-me a comer, o queera perfeitamente natural,e para mostrar sua magnanimidade ordenou que me dessem meio milhão de sestércios pelo trabalho realizado, o que indicava que ele não fazia  a menor idéia das despesas de administração da casa dos bichos. Na realidade nunca recebi aquela soma. Contudo, não achei necessário reclamá-la, já que meu pai não estava mal pro­vido de numerário.

Ponderei um pouco mal-humorado que seria mais importan­te para mim que o posto de superintendente da casa dos bichos se tornasse um cargo do Estado, de modo que ao deixá-lo fosse feita a competente anotação em meus assentamentos. Minha sugestão deu origem a um jocoso debate a que meu sogro pôs termo ao de­clarar que uma função tão importante não podia ficar à mercê de um caprichoso Senado, o qual era capaz de confiá-la a um candi­dato inepto.

Segundo êle, tal função era legalmente imperial, como a de superintendente da cozinha ou superintendente da rouparia ou es-tribeiro-mor, da qual só se saía quando se incorria na má-vòntade do Imperador.

Pelo semblante satisfeito de nosso soberano, presumo que ainda gozas de sua confiança disse meu sogro por fim. Por minha parte, na qualidade de Prefeito da Cidade, és tu o superin­tendente. Portanto, não estragues um discussão importante com outras observações desse jaez.

Nero entrou pressurosamente a expor seus planos de jogos que deveriam realizar-se de cinco em cinco anos, à moda grega, a fim de elevar o nível da educação e do gosto do povo.

Podemos proclamar que o objetivo é assegurar a existên­cia ininterrupta do Estado, disse êle pensativo. Eu mesmo cuida­rei de que sejam considerados como os maiores jogos de todos os tempos. A princípio serão chamados simplesmente de jogos festi­vos de Nero, para que o povo se habitue a eles. Dividi-los-emos em competições musicais, competições atléticas e corridas. Estou pensando em convidar as Virgens Vestais a assistirem às compe­tições atléticas, uma vez que ouvi dizer que as sacerdotisas de Ceres têm idêntico direito nos Jogos Olímpicos. Os números mais importantes de todos os esportes nobres localizar-se-ão em Roma.

Isto é politicamente apropriado, pois somos nós, de resto, que ad­ministramos o legado recebido da Hélade. Mostremo-nos dignos dele.

Não podia entusiasmar-me com seus grandiosos planos, pois -a razão me dizia que os jogos gregos desse gênero só fariam rebai-xara reputação dos espetáculos de animais e diminuir a dignidade o meu próprio cargo. Naturalmente a multidão preferiria sempre os prazeres do anfiteatro às canções, músicas e disputas atléticas.

Conhecia bastante bem o povo de Roma para ter certeza disso. Mas o pomposo interesse de Nero pela arte parecia estar transfor­mando o anfiteatro num tipo um tanto duvidoso de prazer.

Ao chegar à casa no pátio dos bichos, não me achava na melhor das disposições e fiquei desesperado ao ver que tia Lélia e Sabina estavam empenhadas numa discussão feroz. Tia Lélia viera buscar o corpo de Simão, o mago, ao qual pretendia dar se­pultura sem cremação, à maneira judaica, uma vez que Simão não tinha amigos que lhe prestassem esse derradeiro serviço. Os judeus e suas famílias tinham cavernas subterrâneas, fora da cidade, onde depositavam os corpos dos seus mortos. Tia Lélia perdeu muito tempo até descobrir esses sepulcros meio secretos.

Após algumas indagações, vim a saber que ninguém reclama­ra em tempo o corpo de Simão, o mago, de modo que ele fora dado como alimento às feras, como acontecia com os cadáveres dos escravos. Eu não gostava dessa prática, mas é claro que ela reduzia os gastos, bastando apenas verificar se a carne era sadia. Proibira os meus subalternos de alimentar os animais com os ca­dáveres de pessoas que tivessem morrido de doença.

Pareceu-me que neste caso Sabina agira com precipitação. Simão, o mago, fora um homem respeitado em seus próprios cír­culos e merecia um enterro de conformidade com os costumes de seu povo. Na realidade, um crânio ôco e algumas vértebras foram tudo o que os escravos acharam, depois que enxotaram os raivo­sos leões para longe de seu repasto.

Mandei colocar o que sobrava de Simão numa urna apressa­damente adquirida e entreguei-a a tia Lélia, recomendando-lhe que não a abrisse para o bem de sua própria paz de espírito. Sabina mostrou francamente seu desprezo por nossa compassividade.

A partir daquela noite, passamos a dormir em quartos sepa­rados. A despeito da amargura que me consumia, devo dizer que havia muito tempo não provava de um sono tão reparador, já que não tinha filhotes de leão a pular por cima de mim. Eles agora pos­suíam dentes que eram verdadeiras facas.

Depois da morte de Simão, o mago, tia Lélia não tardou a perder a vontade de viver e o juízo que possa ter tido. Havia muito tempo que envelhecera. Mas em lugar de procurar escon­dê-lo, como fizera até então com vestidos, perucas e pintura, aban­donou a luta e passava a maior parte do tempo dentro de casa, resmungando e falando do passado, do qual se lembrava mais do que do presente.

Quando notei que ela não sabia quem era o Imperador e que me confundia com meu pai, achei que devia pernoitar o mais pos­sível em minha velha casa no Aventino. Sabina não fêz objeção e na verdade pareceu deliciada com a oportunidade de supervisio­nar sozinha a casa dos bichos.

Sabina comprazia-se na companhia dos domadores, embora estes, a despeito de suas respeitadíssimas habilidades profissionais, fossem pessoas sumamente ignorantes que só sabiam falar de feras. Sabina era também de grande utilidade para supervisionar o de­sembarque dos bichos no cais e tinha mais capacidade do que eu para pechinchar. Antes de mais nada, submetia os empregados a uma disciplina inflexível.

Logo compreendi que teria bem pouca coisa a fazer desde que proporcionasse a Sabina dinheiro suficiente para cuidar da casa dos bichos, pois a subvenção do tesouro imperial não dava para cobrir as despesas de manutenção e abastecimento. Foi por isso que me dei conta de que o cargo de superintendente era pura­mente honorífico, exigindo de quem o exercesse o dispêndio dos próprios recursos.

Graças a meu liberto gaulês, o dinheiro jorrava de sua fábri­ca de sabão. Um dos meus libertos egípcios manufaturava ungüen­tos para senhoras, e, de Corinto, Hierex mandava-me generosos presentes. Mas meus libertos gostavam de investir seus lucros em novas empresas comerciais. O fabricante de sabão estendeu seus negócios a todas as grandes cidades do Império e Hierex especula­va com terreno em Corinto. Meu pai comentou brandamente que a casa dos bichos não era um empreendimento rendoso.

No intuito de contribuir para mitigar a carência de moradias, mandei construir vários blocos residenciais de sete andares num terreno onde se dera um incêndio e que comprei barato graças a meu sogro. Também obtive alguns lucros aparelhando e enviando expedições para a Tessália, Armênia e África, e vendendo os ani­mais excedentes para os anfiteatros das cidades provinciais. Na­turalmente conservávamos para nós mesmos os melhores animais.

Minha maior renda provinha dos navios que velejavam do Mar Vermelho para a Índia, nos quais eu tinha o direito de adquirir cotas, oficialmente para poder importar da Índia animais raros. As mercadorias chegavam a Roma via Alexandria, e em troca eram levados para a Índia produtos manufaturados da Gália e vinhos da Campânia.

Mediante acordo com os príncipes árabes, Roma teve permis­são de instalar uma base no extremo sul do Mar Vermelho com o direito de manter ali uma guarnição. Isto já se fazia necessário em virtude de ter a procura de artigos de luxo aumentado com o incremento da prosperidade da nação, e de não aquiescerem os partos em que as caravanas de Roma lhes atravessassem o país a nao ser pagando-lhes uma parcela dos lucros produzidos pelas mer­cadorias.

Alexandria beneficiou-se da nova ordem de coisas, mas gran­des centros comerciais como Antioquia e Jerusalém foram preju­dicados pela queda dos preços dos artigos da Índia. Então, os grandes -príncipes mercadores da Síria, por intermédio dos seus agentes, começaram a propalar em Roma a idéia de que mais Cedo ou mais tarde seria inevitável a guerra com a Partia a fim de abrir uma rota comercial terrestre e direta para a Índia.

Quando serenou a situação na Armênia, Roma havia estabe­lecido relações com os hircânios, que dominavam o salgado Mar Cáspio ao norte da Partia. Desse modo, fixou-se uma rota comer­cial para a China, contornando os partos e trazendo seda e porce­lana para Roma através do Mar Negro. Devo dizer que minha compreensão de todo o fenômeno não era particularmente clara, e isso também era verdade no que tange aos outros nobres de Roma. Contava-se que eram necessários dois anos completos para transportar mercadorias em lombo de camelo da China para a costa do Mar Negro. Em sua maioria, as pessoas sensatas não acredita­vam que pudesse existir um país tão distante e diziam que isso era invenção dos mercadores das caravanas para justificar seus preços exorbitantes.

Em seus momentos mais sombrios, Sabina insistia em que eu mesmo fosse buscar tigres na Índia ou os lendários dragões na China, ou subisse o Nilo em demanda dos rinocerontes da escurís­sima Núbia. Em minha amargura, estive algumas vezes inclinado a partir, mas depois voltava-me a razão e eu compreendia que havia homens traquejados e mais qualificados do que eu para a ta­refa e os rigores da viagem.

Assim, todos os anos, no aniversário da morte de minha mãe, eu alforriava um dos escravos da casa dos bichos e o aparelhava para uma viagem. Mandei um dos meus libertos gregos, ávido de viagens, para a Hircânia a fim de que tentasse chegar à China. Tinha ele a vantagem de saber escrever, e eu contava receber um relato útil de suas andanças para aproveitá-lo num livro. Mas nunca mais ouvi falar desse homem.

Desde o meu casamento e a morte de Britânico eu vinha até certo ponto evitando Nero. Quando penso nisso agora, vejo que meu casamento com Sabina foi de alguma forma uma fuga do círculo fechado em torno de Nero, o que talvez explique a sú­bita e tola atração que senti por ela.

Quando tornei a dispor de mais tempo livre, comecei a ofere­cer modestas recepções em minha casa aos escritores romanos. Aneu Lucano, filho de um dos primos de Séneca, gostou dos elo­gios irrestritos que fiz ao seu talento poético. Petrônio, que era al­guns anos mais velho do que eu, agradou-se do livrinho que eu havia escrito acerca dos bandoleiros da Cilicia e louvou particular­mente o emprego intencional da linguagem simples do povo.

Petrônio era um indivíduo requintado e nutria a ambição de, nós cumprir os deveres políticos, elevar a vida à categoria de uma das belas artes. Era difícil tê-lo como amigo, já que gostava de dormir durante o dia e passar a noite acordado, a pretexto de que o ruído do tráfego em Roma, à noite, o impedia de conciliar o sono.

Cheguei a planejar e escrever parcialmente um compêndio a respeito das feras, sua captura, transporte, tratamento e domesti­cação. Visando torná-lo útil ao auditório, narrei muitos incidentes emocionantes que eu mesmo testemunhara ou me tinham sido des­critos por outras pessoas, e só exagerei até onde qualquer autor tem o direito de fazê-lo para manter o interesse do público. Petrô­nio considerou-o um livro excelente de valor duradouro, e dele extraiu algumas das expressões mais vulgares encontradas na lin­guagem do anfiteatro.

Já não participava das escapadas noturnas de Nero para as zonas menos respeitáveis de Roma, pois meu sogro era o Prefeito da Cidade. Nisto agi sabiamente, de vez que esses prazeres turbu­lentos tiveram um triste desfecho.

Nero não guardava ressentimento contra ninguém por ter apanhado numa luta, mas tomava isso como um indício de que a refrega fora honesta. Contudo, um desventurado senador, defen­dendo a honra da esposa, atingiu-o fortemente na cabeça e, depois, ao descobrir horrorizado a identidade do indivíduo em quem ba­tera, cometeu a tolice de escrever uma carta a Nero pedindo des­culpas. Nero hão teve outra alternativa senão assombrar-se de que um homem que sovara o Imperador continuasse a viver e ainda por cima se jactasse do feito em cartas despudoradas. Assim, o senador teve de mandar que seu médico lhe abrisse as veias.

Séneca irritou-se com este incidente e percebeu a necessidade de encontrar outras saídas para a impetuosidade de Nero. Por isso converteu o circo do Imperador Caio, na vizinhança do Vaticano, em local de divertimento particular de Nero. Ali, tendo por es­pectadores amigos e nobres de confiança, podia enfim o Imperador exercitar-se à vontade na arte de guiar uma parelha de cavalos.

Agripina deu-lhe os seus jardins, que se estendiam até ao Janiculo, com seus inúmeros bordéis. Séneca esperava que o atletismo, que Nero praticava mais ou menos secretamente, atenuasse o deleite, exagerado para um Imperador, com a música e,o canto.

Nero não tardou a transformar-se num auriga ousado e destemido, Pois desde a infância gostava de cavalos.

Na verdade, êle raramente precisava de estar vigilante numa pista de corrida para que outros não lhe virassem o carro, mas a arte de dominar uma parelha espanhola nas curvas do circo não é dada a qualquer um. Muito entusiasta das corridas quebrou o pescoço ou ficou aleijado para o resto da vida ao cair do carro e não conseguir desembaraçar-se a tempo das rédeas que lhe envol­viam o corpo.

Na Bretanha, Flávio Vespasiano tivera uma grave desinteligência com Ortório e por fim recebera ordem de voltar à pátria. O jovem Tito começara a distinguir-se sob suas ordens e certa vez assumira corajosamente o comando de uma divisão de cavalaria e fora em socorro do pai que estava cercado pelos bretões, muito embora Vespasiano sustentasse que teria sabido safar-se sozinho.

Séneca reputava inúteis e perigosas essas mesquinhas guerras na Bretanha, uma vez que em sua opinião o empréstimo que con­cedera aos reis bretões criara paz mais efetiva no país do que as expedições punitivas que outra coisa não representavam senão um ônus para o tesouro. Nero permitiu que Vespasiano desempenhas­se as funções de Cônsul por alguns meses, nomeou-o para um Co­légio ilustre e mais tarde escolheu-o para um Proconsulado na África pelo prazo costumeiro.

Quando nos encontramos em Roma, Vespasiano mediu-me de alto a baixo com o olhar:

— Você mudou muito nestes últimos anos, Minuto Maniliano — disse êle — e não me refiro só às cicatrizes que tem na cara. Quando estávamos na Bretanha, eu não teria acreditado que viés­semos um dia a ser parentes através do seu casamento com minha sobrinha. Mas um jovem faz mais progressos em Roma do que pe­gando reumatismo para o resto da vida na Bretanha e casando-se de vez em quando à maneira dos bretões.

Eu quase esquecera meu casamento nominal no território iceno. O encontro com Vespasiano trouxe-me desagradavelmente à memória as experiências dolorosas que ali tivera, e supliquei-lhe que guardasse silêncio em torno do assunto.

— Que legionário não deixa bastardos por esse mundo a fora? — disse êle. — Mas a sua sacerdotisa da lebre, Lugunda, não tornou a casar. Educa o filho à moda romana. Os mais nobres icenos já atingiram esse estágio de civilização.

A notícia doeu, porquanto minha mulher Sabina não mani­festava indício nem mesmo desejo de me dar um filho, e havia muito tempo não dormíamos juntos com essa intenção. Mas afastei de mim as lembranças perturbadoras de Lugunda, como já o fize­ra antes, e Vespasiano concordou de boa sombra em não dizer uma só palavra a respeito do meu casamento bretão, pois êle co­nhecia o temperamento áspero de sua sobrinha.

No banquete que meu sogro deu em homenagem a Vespasia­no vi Lólia Popéia pela primeira vez. Dizia-se que sua mãe fora a mais bela mulher de Roma e atraíra a atenção de Cláudio a tal ponto que Messalina decidira suprimi-la do rol dos vivos embora eu não desse crédito a todas as maldades que ainda se atribuíam a Messalina.

O pai de Popéia, Lólio, pertencera quando moço ao círculo de amigos de Sejano e portanto estava eternamente em desgraça. Lólia Popéia era casada com um cavaleiro um tanto insignificante, chamado Crispino, e usava o nome do avô, Popeu Sabino, em lugar do pai. Seu avô fora outrora Cônsul e comemorara um triunfo.

Assim, Popéia era aparentada com Flávio Sabino, mas de ma­neira tão intrincada, como era habitual na nobreza romana, que nunca consegui saber como. A memória de tia Lélia era quase sempre defeituosa e ela mesma amiúde confundia as pessoas. Quando conheci Popéia Sabina, disse-lhe que lamentava que minha mulher só tivesse em comum com ela o nome.

Popéia arregalou ingenuamente seus olhos cinzentos. Reparei que a cor deles variava de conformidade com a luz e a disposição de ânimo da dona.

— Achas que estou tão velha e calejada, depois de um parto, que não posso sequer suportar o confronto com minha prima Sa­bina, que parece uma Ártemis virginal? — disse ela, intencional­mente, interpretando mal as minhas palavras. — Somos da mesma idade, Sabina e eu.

Minha cabeça rodopiou quando fitei Popéia nos olhos:

— Não. Quero dizer que és a mulher casada mais modesta e recatada que vi em Roma e só posso estar atônito com a tua bele­za, agora que te vejo pela primeira vez sem o véu.

: Tenho de usar um véu ao sol porque minha pele é extre­mamente delicada — disse Popéia Sabina com um sorriso tímido. — Invejo a tua Sabina, que pode ser musculosa e bronzeada como Diana, estalando seu chicote no calor da arena.

Ela não é a minha Sabina, embora nos tenhamos casado segundo o rito mais antigo — disse eu, amargo. — Ela é a Sabina dos domadores, a Sabina dos leões, e sua linguagem se torna mais grosseira a cada ano que passa.

Não te esqueças que somos parentas, ela e eu — disse Popéia Sabina, em tom de admoestação. — Não obstante, não sou a única pessoa em Roma a estranhar que um homem com a tua sensibilidade tenha escolhido precisamente Sabina, quando pode­rias ter casado com outra.

Mencionei meu ambiente e insinuei que havia outras razões, além da estima recíproca, para um casamento. O pai de Flávia Sabina era o Prefeito de Roma e seu tio conquistara o direito a um triunfo. Não sei como foi, mas a verdade é que, estimulado pela tímida presença de Popéia, comecei a falar de uma coisa e de outra, e Popéia não tardou a confessar acanhadamente que era in­feliz em seu malfadado casamento com o presunçoso centurião pretoriano.

A gente espera de um homem outra coisa mais que um porte altaneiro, armadura brilhante e plumas vermelhas disse ela. Eu era uma menina inocente quando lhe fui dada em casamento. Como vês, não sou forte. Minha pele é tão delicada que tenho de banhá-la diariamente com pão de trigo embebido em leite de ju­menta.

Mas não era tão jovem e fraca quanto fazia crer. Senti isto quando inadvertidamente encostou o seio em meu cotovelo. Sua pele era maravilhosamente alva. Eu nunca vira nada igual e não encontrava palavras que a descrevessem. Murmurei os lugares-co-muns acerca de ouro, marfim e porcelana chinesa, mas creio que meus olhos deram testemunho do enlevo em que me deixara sua beleza juvenil.

Não podíamos conversar demoradamente, pois eu tinha de desempenhar meus inúmeros deveres de genro no banquete de meu sogro. Mas cumpria-os desatentamente, só pensando nos profundos olhos cinzentos e na tez esplêndida de Popéia. Cheguei até a ga­guejar ao ler em voz alta as antigas invocações aos numes tutela­res da casa.

Finalmente minha mulher Sabina levou-me para um canto:

Seus olhos estão rígidos e sua cara está vermelha disse ela azeda — como se você estivesse bêbado, embora se tenha toma­do pouco vinho até o momento. Não vá embaralhar-se nas intrigas de Lólia Popéia. É uma cadelinha calculista, e tem seu preço, mas desconfio que é alto demais para um idiota como você.

Enraiveci-me em defesa de Popéia, pois o comportamento dela era dos mais inocentes e decerto não se podia levá-lo a mal. Ao mesmo tempo, o comentário ofensivo de Sabina excitou-me se­cretamente e fêz-me pensar que talvez me restasse alguma espe­rança se eu tivesse bastante tato para me familiarizar mais intima­mente com Popéia.

Aproveitei uma breve pausa nas minhas obrigações para apro­ximar-me novamente dela, o que não foi difícil, uma vez que as outras mulheres a evitavam ostensivamente e os homens se haviam mais uma vez reunido em volta do convidado de honra para lhe ouvir as cruas histórias da Bretanha.

A meus olhos ofuscados, Popéia parecia uma criança aban­donada, malgrado a altivez com que ela erguia a cabeça loura. Senti grande ternura por ela, mas quando tentei afagar-lhe o braço nu, ela se afastou com um sobressalto, desviou-se e atirou-me um olhar que refletia profunda decepção:

_ Isso é tudo o que desejas, Minuto? — sussurrou com amargura. — És como os demais, embora eu pensasse que em ti havia encontrado um amigo. Não vês por que prefiro ocultar o rosto por trás de um véu a expor-se aos olhares lascivos? Lem­bra-te de que sou casada, ainda que me sentisse livre se pudesse obter um divórcio.

Assegurei-lhe que preferiria abrir minhas veias a molestá-la. Ela estava prestes a desfazer-se em lágrimas e encostou-se em mim, exausta, de modo que senti seu corpo junto ao meu. Do que ela disse, depreendi que não tinha dinheiro para o divórcio, e na ver­dade só o Imperador podia dissolver-lhe o casamento, pois ela era patrícia. Mas não conhecia ninguém no Palácio que fosse bastan­te influente para defender sua causa perante Nero.

— Já provei da mesquinhez de todos os homens — disse ela. — Se me volto para um estranho em busca de ajuda, êle logo procu­ra tirar proveito da minha situação indefesa. Se ao menos eu pu­desse contar com um verdadeiro amigo que se contentasse com minha eterna gratidão sem ofender a minha modéstia...

O fim da história foi que eu fui levá-la a casa após o banquete. O marido, Crispino, deu permissão com muito gosto já que assim poderia embriagar-se em paz. Eram tão pobres que não tinham nem mesmo uma cadeirinha própria a esperá-los à porta, de modo que ofereci a nossa a Popéia. Ela hesitou a princípio, mas acabou per­mitindo que me sentasse a seu lado, o que me proporcionou tê-la junto a mim durante todo o percurso.

Mas não rumamos diretamente para a área da guarnição pretoriana. A noite estava bela e clara, e Popéia sentia-se tão cansada do cheiro de suor do acampamento, quanto eu da fedentina da casa dos animais. Da encosta mais próxima alongamos o olhar pelo panorama do outro lado das luzes dos bazares. De maneira um tanto estranha, terminamos em minha casa no Aventino, já que Popéia desejava perguntar alguma coisa a tia Lélia a respeito de seu pobre pai. Mas tia Lélia tinha naturalmente ido para a cama e Popéia não se resolveu a acordá-la aquela hora. Assim, sentamo-nos e bebemos um pouco de vinho, enquanto assistíamos ao romper da aurora acima do Palatino. Imaginamos como as coisas poderiam ser, se ela e eu fôssemos livres.

Popéia encostou-se confiadamente em mim e contou-me que sempre anelara por uma amizade desprendida, mas nunca a encon­trara. Ao cabo de muita instância de minha parte, ela concordou em aceitar como empréstimo uma quantia substancial que lhe per­mitisse dar início a uma ação de divórcio contra Crispino.

Para distraí-la, falei-lhe da singular afabilidade de Nero, de sua magnanimidade para com os amigos e de suas outras qualida­des, pois Popéia era curiosa como o são em geral as mulheres e nunca vira Nero pessoalmente. Falei-lhe de Acte também, de sua beleza e de seu bom procedimento, e das outras mulheres que Nero conhecia. Confirmei que Nero não consumara ainda o casamento com Otávia, em virtude da antipatia que ela lhe inspirava como irmã de Britânico e por ser sua meia-irmã.

Popéia Sabina sabia lisonjear-me, e, com perguntas habilido­sas, incitou-me a contar mais coisas, de modo que passei a admi­rar-lhe a inteligência tanto quanto já lhe admirava a beleza. Era surpreendente que uma mulher tão encantadora e sensível, que já dera à luz um filho, pudesse ainda parecer indiferente e nas pro­fundezas de sua alma incorrupta sentir profunda aversão pelos en­cargos da corte. Admirei-a mais ainda, e quanto mais inacessível eu imaginava que ela era, mais desejável ela se tornava para mim.

Quando nos separamos ao alvorecer, pouco antes de soarem as cornetas, ela consentiu num beijo de amizade. Ao sentir seus doces lábios dissiparem-se sob os meus, quedei-me tão cativado que jurei fazer tudo o que estivesse a meu alcance para ajudá-la a libertar-se de seus mesquinhos laços matrimoniais.

Nos dias que se seguiram, vivi como que num sonho confuso. Todas as cores pareciam aos meus olhos mais nítidas do que antes, a noite era suavemente escura e eu me sentia levemente embriaga­do, ao ponto de tentar escrever poemas. Encontramo-nos no templo de Minerva e juntos simulamos apreciar os quadros e esculturas dos mestres gregos.

Popéia Sabina contou-me que tivera uma conversa séria com o marido e Crispino aquiescera no divórcio, desde que recebesse suficiente indenização. Com saudável senso comum Popéia expli­cou que seria mais prudente pagar a Crispino do que desperdiçar dinheiro com advogados e acusações mútuas que tinham de ser comprovadas e só redundariam em escândalo público.

Ela estava aterrorizada ante o simples pensamento de que eu lhe viesse a dar mais dinheiro. Possuía algumas jóias que podia vender, se bem que fossem herança usufrutuária. Mas sua liberda­de ia custar muito mais.

Popéia fez-me sentir tão penalizado que a obriguei a aceitar uma vultosa ordem de pagamento por intermédio de meu ban­queiro. Tudo o que então havia ainda por fazer era conseguir o assentimento de Nero à dissolução do casamento. Isto êle mesmo podia fazer na qualidade de pontífice máximo, função que podia desempenhar sempre que desejasse, embora não a exercesse conti­nuamente porque ela apenas acrescentava ao seu trabalho a serviço do Estado os inumeráveis deveres religiosos.

Eu não queria pôr tudo a perder apresentando a questão diretamente a Nero, porque êle podia suspeitar-me de intenções ignominiosas. Eu mesmo era casado de acordo com o rito mais antigo eNero dera para observar sarcàsticamente que seria melhor que me limitasse a cumprir meus deveres na casa dos bichos, coisa de que eu entendia, e não tomasse parte em tertúlias filosó­ficas e musicais. Isso me apoquentava.

Então, pensei em Oto, que era o melhor amigo de Nero e tinha tanto dinheiro e tanta influência que se atrevia até mesmo a altercar com Nero quando bem entendia. Oto tinha um fraco por manter a pele tão lisa que padecia inteiramente glabro, e isso me deu ensejo de dizer um dia que conhecia uma mulher que usava leite de jumenta em sua pele delicada.

Oto mostrou-se imediatamente interessado e contou-me que, depois de beber muito e passar muitas noites sem dormir, banha­va o rosto com pão embebido em leite. Falei-lhe confidencialmente de Popéia Sabina e seu malfadado casamento. Ele quis conhecê-la, naturalmente, antes de apresentar o caso a Nero.

Assim, eu mesmo, feito um feliz idiota, levei Popéia à mag­nífica vivenda de Oto. A beleza, o recato e a tez maravilhosa de Popéia impressionaram-no de tal modo que êle prometeu de boa-vontade ser seu porta-voz, mas primeiro precisava conhecer todas as necessárias minúcias.

Sorrindo alegremente, Oto interrogou Popéia a respeito de pormenores íntimos de seu casamento. Ao notar que isso me punha tão embaraçado, que eu não sabia para onde olhar, suge­riu que o deixasse a sós. Anuí satisfeito, pois entendi que Popéia preferia conversar reservadamente com um homem experimentado e simpático como Oto.

Atrás das portas trancadas falaram até o fim da tarde. Por fim, Popéia saiu e tomou-me a mão, os olhos timidamente abaixa­dos e o queixo escondido no véu. Oto agradeceu-me o ter-lhe apre­sentado uma mulher tão deliciosa e prometeu fazer o possível pelo divórcio. Popéia trazia no alvo pescoço rubras manchas da melindrosa conversa que viera de sustentar.

Mas Oto cumpriu a promessa. Nero, na presença de dois juízes e à vista dos documentos necessários, dissolveu o casamento. Popéia teve permissão de conservar o filho, e algumas semanas depois Oto desposou-a sossegadamente, sem querer esperar os nove meses de praxe. Isto representou para mim um golpe tão atordoante que a princípio recusei-me a acreditar fosse verdade. Era como se o céu tivesse despencado à minha volta; todas as cores desbotaram e tive uma dor de cabeça tão terrível que fui obrigado a encerrar-me alguns dias num quarto escuro.

Quando voltei à razão, queimei meus poemas no altar fami­liar, jurando nunca mais escrever — decisão a que me mantenho dei até hoje. Compreendi que não podia censurar Oto, porque eu mesmo experimentara os poderes do fascínio de Popéia. Imaginara que Oto, célebre por seus inúmeros casos sentimentais com mulheres e mancebos, jamais se sentiria atraído por uma mulher tão tímida e ingênua como Popéia. Mas é possível que Oto desejasse mudar de vida e Popéia bem que poderia exercer benéfica influên­cia sobre sua alma dissoluta.

Recebi de Popéia um convite para o enlace e mandei-lhes como presente de núpcias o mais belo conjunto de taças que pude encontrar. Mas no banquete devo ter-me portado como um fan­tasma das regiões infernais e bebi mais do que de costume. Final­mente, ponderei a Popéia, com meus olhos marejados, que talvez eu também pudesse obter um divórcio.

Mas por que então não disseste nada? — gritou Popéia. — É verdade que eu não podia dar esse desgosto a Flávia Sabina. Oto, é claro, tem as suas fraquezas. É um pouco efeminado e ar­rasta um pé quando anda, ao passo que quase não se nota a tua claudicação. Mas êle me prometeu iniciar vida nova e deixar os amigos que o levaram a certos vícios. Não posso nem falar-te deles. O pobre Oto é tão sensível e sujeito à influência dos outros... Por isso espero que a minha influência faça dele um homem novo.

_Ele é mais rico do que eu também — lembrei, sem escon­der minha amargura. — É de família antiquíssima e é o amigo mais íntimo do Imperador.

Popéia encarou-me reprovadoramente.

— Pensas isto de mim, Minuto? — sussurrou, a boca trêmu­la. — Imaginei que acreditavas que a fama e a riqueza nada sig­nificam para mim quando gosto de alguém. Não te olho com desdém, embora sejas apenas o superintendente da casa dos bichos.

Ela estava tão magoada e tão bela que me enterneci e implo­rei que me perdoasse.

Durante muito tempo Oto foi outro homem. Desligou-se dos festins de Nero, e quando Nero mandava chamá-lo, voltava para casa cedo, alegando que não podia fazer sua mulher esperar demais. Gabou tantas vezes diante de Nero o encanto e as carí­cias de Popéia que Nero foi-se tornando cada vez mais curioso e começou a pedir a Oto que trouxesse a mulher ao Palatino.

Oto, porém, explicava que Popéia era demasiadamente aca­nhada e altiva, e achava ainda outras desculpas. Mas foi persua­dido a contar que nem mesmo a própria Vénus, ao nascer por entre as ondas, podia ser mais bonita do que Popéia em seu banho matinal de leite de jumenta. Oto adquirira um estábulo de mulas que eram ordenhadas exclusivamente para a sua esposa.

Eu andava tão consumido de negros ciúmes que não apare­cia em nenhum lugar onde Oto estivesse presente. Meus amigos escritores arreliavam-me com perguntas sobre a minha melancolia, ouço a pouco encontrei consolação na idéia de que, se eu real­mente amava Popéia, só me cabia fazer votos pela sua felicidade. Exteriormente ao menos, Popéia realizara o enlace mais vantajo­so que podia encontrar em Roma.

Minha mulher Flávia Sabina me era cada vez mais estranha e já não nos víamos sem que brigássemos. Entrei a pensar seria­mente em divórcio, ainda que isso me fizesse odioso a toda a fa­mília Flávia. Contudo, não podia nem imaginar que Sabina con­cordasse. Ela me dera a entender de uma vez por todas que eu lhe infundira repugnância às delícias do leito conjugal.

De sua parte, pouco se lhe dava que eu dormisse de vez em quando com uma escrava experimentada, contanto que a deixasse em paz. Não havia razão para uma dissolução do nosso casamen­to e quando, certa vez, mencionei o assunto, Sabina enraiveceu-se, temendo principalmente que viesse a perder seus amados animais. Finalmente, só me restava esperar que um dia ela fosse estraça­lhada por um dos seus leões ao intimidá-los com sua vontade im­periosa e forçá-los a realizar proezas fantásticas, com a ajuda do domador Epafrodito.

Assim passaram-se para mim os primeiros cinco anos do go­verno de Nero. Este foi provavelmente o período mais feliz e mais próspero que o mundo já conheceu, e talvez nem torne a conhecer outro igual. Mas eu me sentia como um bicho enjaulado. Paulati­namente fui negligenciando os meus deveres, abandonei a equita­ção e adquiri uma gordura um tanto excessiva.

Não obstante, não havia grande diferença entre mim e os outros rapazes de Roma. Nas ruas viam-se homens de cabelos compridos e despenteados, molhados de suor, cantando e tocando lira, uma nova geração da sociedade que desprezava os rígidos costumes antigos. Eu mesmo me sentia indiferente a tudo, pois a melhor parte de minha vida já se escoara sem ser notada, embora eu ainda não tivesse trinta anos.

Foi então que Nero e Oto se desavieram. Para irritar Nero, Oto levou um dia Popéia ao Palatino. Nero naturalmente apaixo­nou-se perdidamente por ela e, como um menino mimado, estava habituado a conseguir tudo o que queria. Mas Popéia repeliu suas propostas amorosas e declarou que Nero nada tinha que Oto não pudesse também oferecer.

Finda a refeição, Nero mandou abrir um frasco do seu perfu­me mais caro e permitiu que todos os convivas esfregassem um pouco dele em si mesmos. Posteriormente, quando Nero foi recebido na casa de Oto, este mandou vaporizar o mesmo perfume sobre todos os presentes.

Contaram que Nero, em sua mórbida paixão, fez transportar alta noite para a casa de Oto e bateu em vão à porta. Oto não lhe permitiu entrar porque Popéia achou que a hora era imprópria para visitas. Chegaram mesmo a contar que Oto, na presença de várias pessoas, tinha dito a Nero:

— Vês em mim o futuro Imperador.

Se essa idéia era fruto de alguma profecia ou de outra coisa qualquer, não sei. Nero, porém, mantivera a calma e rira desde­nhosamente de Oto.

— Não te vejo nem como futuro Cônsul — disse êle.

Foi com surpresa que recebi um chamado de Popéia, num dia esplêndido de primavera, quando as cerejeiras dos jardins de Lúculo estavam florindo. Pensei que lograra esquecê-la, mas minha indiferença era obviamente apenas superficial, pois acorri imedia­tamente à sua presença, tremendo de ardor. Popéia estava mais bela do que nunca. Trajava um vestido de seda, que mais revelava do que escondia a formosura extasiante de seu corpo.

Oh, Minuto — exclamou — como tenho sentido a tua falta! Tu és o único amigo desinteressado que eu tenho. Preciso do teu conselho.

Não pude deixar de sentir certa desconfiança, lembrando-me do que acontecera da última vez que eu lhe tinha servido de con­selheiro. Mas Popéia me contemplou com um sorriso tão inocen­te que não tive coragem de pensar mal dela.

— Deves ter ouvido falar do terrível embaraço em que me encontro por causa de Nero — disse ela. — Não entendo como isso aconteceu. Eu mesma não dei o menor motivo. Mas Nero vive a importunar-me com sua afeição. A coisa chegou a um ponto que o querido Oto está ameaçado de cair em desgraça, por prote­ger a minha virtude.

Fitou-me atentamente. Seus olhos cinzentos tornaram-se subi­tamente violáceos, e ela trazia o cabelo arrumado de tal modo que dava à sua figura a aparência de uma deusa esculpida em marfim e ouro. Torcia os dedos finos.

— O mais terrível de tudo é que não posso ser totalmente in­diferente a Nero — disse ela. — É um belo homem, com aquele cabelo vermelho, e a violência dos seus sentimentos me seduz mais ainda. É tão nobre, também, e que artista, quando canta! Quando o ouço tocar e cantar, fico tão embevecida que não posso deixar de encará-lo. Se êle fosse altruísta, como tu por exemplo, procu­raria defender-me dos meus próprios sentimentos e não atiçar a chama que há neles. Mas talvez êle mesmo não veja as emoções que sua simples presença faz surgir em mim. Minuto, fico toda trêmula logo que o vejo. Nunca fiquei assim antes em presença de um homem. Felizmente não me têm faltado forças para ocultar meu tremor, e procuro evitar Nero tanto quanto é possível em minha posição.

Não sei se ela própria sabia como eu sofria quando ela falava dessa maneira.

_ Corres grande perigo, Popéia querida — disse eu, aterrado.

Tens de fugir. Pede a Oto que se candidate a um Proconsulado numa das províncias. Vai embora de Roma.

Popéia fitou-me como se eu estivesse louco:

 _ Como poderia eu viver fora de Roma? Morreria de des­gosto. Mas há uma coisa muito pior e ainda mais estranha. Não me atreveria a contar-te se não confiasse inteiramente na tua dis­crição. Um adivinho judeu, e sabes como eles são perspicazes nessas coisas, disse há algum tempo — não rias agora — que um dia eu seria consorte de um Imperador.

— Mas minha cara e doce Popéia não leste o que Cícero diz das profecias? Não atormentes a tua linda cabecinha com tal lou­cura.

Popéia amuou-se e disse com azedume:

— Por que achas que é loucura? A família de Oto é das mais antigas e êle tem muitos amigos no Senado. Na verdade, Nero nada pode fazer quanto à profecia, a menos que anule o nosso ca­samento. Ele tem Otávia, embora jure que nunca se resolverá a dormir com ela, tamanha é a aversão que sente pela pobre moça. Por outro lado, não posso compreender como um jovem Impera­dor pode e quer ter uma liberta como companheira de cama. É tão baixo e desprezível, em minha opinião, que fervo sempre que penso nisso.

Quedei-me silencioso e pensativo.

— Que queres realmente de mim? — perguntei afinal, um pouco desconfiado.

Popéia afagou-me a bochecha, suspirou receosa e lançou-me um olhar terno.

Oh, Minuto. Realmente não és muito sagaz. Mas talvez por isso é que gosto tanto de ti. Uma mulher precisa de um amigo com quem possa falar sinceramente. Se fosses um amigo de ver­dade, irias ver Nero e lhe contarias tudo. Ele sem duvida te rece­beria se dissesses que ias da minha parte. Ele está tão apaixonado Por mim que sei que escutaria.

Que entendes por "tudo"? — perguntei. — Há pouco dizias que confiavas na minha discrição.

Popéia puxou minha mão para si e apertou-a de encontro ao quadril.

— Dize-lhe que me deixe em paz, porque êle me torna tão fraca, sou apenas uma mulher e êle é irresistível. Mas, se em minha fraqueza eu me render à sua sedução, terei de tirar minha própria a para conservar meu amor-próprio, já que não posso viver de­sonrada. Dize-lhe isto claramente. Fala-lhe da profecia também pois não posso suportar a idéia de que Oto lhe faça algum mal' Em minha ingenuidade contei a Oto a profecia e lamento profun­damente o que fiz. Eu não imaginava que êle fosse tão ambicioso.

Eu não sentia o menor desejo de tornar a ser moço de reca­dos de Popéia. Mas sua presença me fazia impotente e sua arden­te confiança em mim despertava a minha necessidade masculina de proteger os fracos. De fato, eu começava a suspeitar obscura­mente que Popéia não estava assim tão carente de proteção. Por outro lado imaginei que possivelmente não estaria enganado acerca da tímida modéstia de seu Comportamento e de seus ado­ráveis olhos cinzentos. Ela não se teria encostado tão confiada­mente em mim nem me teria permitido abraçá-la se tivesse a mais leve noção do que estimulava em meu corpo despudorado.

Após demorada procura, encontrei Nero no circo de Caio, exercitando sua parelha espanhola em desabalada carreira pela pista, numa disputa com o outrora exilado Caio Sofônio Tigelino. a quem nomeara estribeiro-mor. Havia guardas no portão por mera formalidade, mas, apesar disso, muita gente, ocupando as localidades dos espectadores, encorajava Nero e o aplaudia.

Tive de esperar bastante até que Nero, empapado de suor, tirasse o elmo e as ataduras de linho que lhe protegiam as pernas. Tigelino elogiou-o por seu rápido progresso e criticou-o severa­mente pelos erros .cometidos nas curvas e com as rédeas dos cava­los dos lados. Nero escutou com humildade e acatou as recomen­dações. Sensatamente, em todas as questões relacionadas com ca­valos e carros, depositava absoluta confiança em Tigelino.

Tigelino não recuava diante de ninguém e tratava seus escra­vos com tremenda brutalidade. Alto, musculoso, cara magra, olha­va com arrogância à sua volta, como se estivesse convencido de que não havia nada na vida que não pudesse ser vencido pela crueldade. Perdera outrora tudo quanto possuía, mas no exílio en­riquecera criando cavalos e promovendo empresas de pesca. Dizia-se que nenhuma mulher ou menino estava a salvo em sua presença.

Como desse a entender por caretas e gestos que meu recado era importante, Nero permitiu-me acompanhá-lo à sua casa de banhos no jardim. Quando cochichei em seu ouvido o nome de Popéia Sabina, êle despediu todo mundo e, como mercê, deixou que eu lhe esfregasse o corpo empoeirado com a pedra-pomes. Com perguntas espertas, conseguiu extrair de mim praticamente tudo quanto Popéia havia dito.

— Deixa-a em paz, então — disse eu, solene. — Isso é tudo o que ela pede, para não ser dilacerada por seus sentimentos. De­seja apenas ser uma esposa honrada. Tu mesmo conheces sua mo­déstia e inocência.

Nero desatou a rir, mas em seguida ficou sério, balançando várias vezes a cabeça em sinal afirmativo:

_Naturalmente eu preferiria que viesses com louros na ponta da tua lança, mensageiro. Estou surpreso de ver como compreen­des bem as mulheres. Mas já estou farto dos seus caprichos. Há outras mulheres no mundo, além de Lólia Popéia. Portanto, vou deixá-la em paz. Ela mesma há de ver que não vai continuar bam-boleando-se diante dos meus olhos, como tem feito até aqui. Saúdaa em meu nome e dize-lhe que suas condições são demasia­damente pesadas.

_ Mas ela não estabeleceu condições.

Nero olhou-me penalizado:

É melhor que vás cuidar das tuas feras e de tua própria mulher. Manda Tigelino aqui, para me lavar o cabelo.

Assim, despediu-me. Mas eu o compreendia. Se êle estava de fato tão loucamente apaixonado por Popéia, a recusa da parte dela sem dúvida o irritava. Apressei-me contente a dar a boa nova a Popéia, mas foi com espanto que vi que ela não ficara nada sa­tisfeita. Na realidade, despedaçou no chão um jarrinho, de modo que o unguento caro se espalhou pela sala e o perfume pôs minha cabeça a girar.

Tinha as feições contorcidas e feias quando disse:

Veremos quem vencerá no fim, êle ou eu. Lembro-me bem daquele dia, no verão seguinte, em que eu

exigia obstinadamente que o intendente do aqueduto destinasse canos mais novos e maiores para a casa dos bichos. Durante vários dias vinha soprando um vento quente que levantava uma poeira vermelha e me provocava dores de cabeça.

Eram comuns as brigas por causa do abastecimento de água, pois os nobres ricos tinham seus próprios canos ligados diretamen­te dos aquedutos a seus banheiros, jardins e tanques, e em virtude do aumento da população de Roma havia grande falta de água. Eu entendia a situação embaraçosa do intendente. Seu cargo não era cobiçável, mesmo que um ocupante sem prevenções tivesse en­riquecido no exercício dessa função. Por outro lado, parecia-me que a casa dos bichos merecia atenção especial e que eu não tinha motivo para pagar por aquilo que de fato era uma prerrogativa minha.

Havíamos chegado a um impasse. Êle recusava e eu exigia. Achávamos difícil até mesmo manter uma polidez formal na dis­cussão. Por mim, teria ido embora e não tocaria mais na questão, mas seria ainda mais árduo enfrentar a cólera de minha mulher.

Sei de cor e salteado as decisões dos magistrados ,e do Se­nado acerca do fornecimento de água disse eu, por fim. you falar pessoalmente com Nero, embora êle não goste de ser incomodado por questiúnculas dessa natureza. Temo que isso vá acabar pior para você do que para mim.

O intendente, que era um tipo obtuso, sorriu ironicamente: — Faça como quiser. No seu lugar, eu não iria aborrecer

Nero com reclamações a respeito de fornecimento de água num momento como este.

Fazia muito tempo que não escutava nenhum boato, de modo

que lhe perguntei o que havia.

— Não sabe, ou está fingindo que não sabe? Oto foi nomeado Procônsul, na Lusitânia, e aconselhado a ir para lá o mais cedo possível. Hoje de manhã Nero anulou o casamento de Oto, a pe­dido deste, é claro. Todos os outros assuntos foram postos de lado, pois Nero estava ansioso por cuidar da desprotegida Popéia, que está se mudando para o Palatino.

Foi como se tivesse recebido uma cacetada em minha cabeça já dolorida.

— Conheço Popéia Sabina. Ela jamais concordaria com uma coisa dessas. Nero levou-a à força para o Palatino.

O intendente balançou a cabeça grisalha:

— Minha impressão é que vamos ter uma nova Agripina no lugar da velha. Dizem que a velha está de mudança da casa de An­tônia, no campo, para o Âncio.

Não pude levar a sério esta insinuação. O nome de Agripina foi a única coisa que realmente me interessou. Esqueci meus se­dentos animais e o tanque seco dos hipopótamos. Agripina era a única pessoa que a meu ver podia salvar Popéia Sabina das inten­ções imorais de Nero. Uma mãe devia ter sobre o filho influência suficiente para impedir que este violasse a mais bela mulher de Roma. Eu tinha de proteger Popéia, agora que ela já não podia proteger a si mesma.

Fora de mim, corri à casa da velha Antônia, no Palatino, onde encontrei todos em tal estado de perturbação causada pela mu­dança que ninguém me barrou a entrada. Agripina, álgida de furor, tinha a seu lado Otávia, a moça quieta a quem nada mais fora concedido do que a condição de esposa, decorrente de seu casa­mento com o Imperador. A meia-irmã de Agripina, Antônia, filha do primeiro matrimônio de Cláudio e ainda bonita, também estava lá, assim como o segundo marido de Antônia, Fausto Sila. Ante o meu inesperado aparecimento, todos se calaram, mas Agri­pina me saudou ferina.

— Que surpresa agradável, após tantos anos — disse ela. — Pensei que havias esquecido tudo quanto fiz por ti e que fosses tão ingrato como o meu próprio filho. Sinto-me ainda mais con­tente por ver que és o único cavaleiro de Roma a vir dizer adeus a uma pobre exilada.

— Talvez eu tenha negligenciado a nossa amizade — gritei, em desespero — mas não percamos tempo com conversas inúteis.

Deveis salvar Popéia Sabina das garras sôfregas de Nero e tomá-la sob a vossa proteção. Vosso filho se degrada aos olhos de toda a Roma com esse ultraje. Não é só a inocente Popéia quem se de­grada.

Agripina fitou-me e balançou a cabeça:

_ Fiz tudo o que pude. Cheguei até a chorar e praguejar.

para salvar meu filho das mãos daquela  mulher libidinosa e intri­gante. Como recompensa recebi ordem de deixar Roma. Popéia Conseguiu o que queria e se gruda a Nero como uma sanguesssuga.

Tentei assegurar-lhe que Popéia desejava somente que Nero a deixasse em paz, mas Agripina riu com desdém. Não acreditava nas boas intenções de nenhuma outra mulher:

Aquela mulher levou Nero à loucura com sua devassidão. Nero é inclinado a isso, apesar de eu ter feito o possível para es­conder essa tendência das outras pessoas. Seu gosto desvairado pelos prazeres baixos e impróprios é prova do que digo. Mas co­mecei a escrever as minhas memórias e vou terminá-las no Âncio. Sacrifiquei tudo por meu filho, cometi até crimes que só êle pode perdoar. Agora isso deve ser dito, já que todos sabem afinal.

Seus olhos brilhavam de modo estranho e ela ergueu as mãos como que para aparar um golpe. Em seguida, mirou Otávia e afagou-lhe o rosto:

Vejo a sombra da morte em teu rosto. Tuas faces estão geladas. Mas tudo passaria se Nero se recuperasse dessa loucura. Nem mesmo o Imperador pode desafiar a vontade do Senado e do povo. Ninguém pode confiar em Nero. Êle é um hipócrita terrível e um ator nato.

Quando olhei para Antônia, ainda bonita, apesar da lividez, uma sombra desagradável cruzou meu cérebro, e pensei em sua meia-irmã Cláudia, que trouxera a vergonha ao amor que eu lhe dedicava. Creio que devo ter ficado confuso com as acusações insensatas de Agripina a Popéia, já que a pergunta escapou-me da boca involuntariamente:

Falastes das vossas memórias disse eu. Ainda vos lembrais de Cláudia? Como está ela? Regenerou-se?

Acho que Agripina não teria tomado conhecimento da minha pergunta se a fúria não lhe tivesse roubado o equilíbrio.

Podes indagar no bordel naval de Miseno. Prometi mandar a tua Cláudia para uma casa escondida no campo, onde ela pu­desse concluir sua educação. Um bordel é o lugar indicado para bastardos.

Encarou-me como uma Medusa:

Creio que és o maior paspalhão que já encontrei. Não fi­zeste mais do que abrir a boca e engolir todos os falsos testemu­nhos da prostituição de Cláudia. Mas para ela era suficiente ter-se envolvido com um cavaleiro romano. Se eu soubesse até onde ia chegar a tua ingratidão, nunca me teria dado o trabalho de impedir que ela te fizesse infeliz.

Antônia soltou uma gargalhada:

Mandastes realmente Cláudia para um bordel, querida ma­drasta? Eu não sabia por que de repente ela deixou de me atena-zar, para que eu a reconhecesse como minha irmã, e desapareceu da minha vista.

As narinas de Antônia tremiam. Ela deu uma palmadinha leve em seu pescoço macio como se afastasse um inseto invisível. Havia uma beleza estranha e frágil em sua figura esguia naquele momento.

Emudeci completamente. Horrorizado, olhei para aquelas duas mulheres monstruosas. De súbito, minha cabeça se iluminou e cresceu assustadoramente à medida que eu ia entendendo e afinal acreditando em todas as maldades que ouvira contar a respeito de Agripina no curso dos anos.

Também vi que Popéia Sabina se valera cruelmente de minha amizade para levar a termo todos os seus desígnios. Tudo isso aconteceu num segundo, como que numa visão. Era como se na­quele instante eu tivesse envelhecido vários anos e ao mesmo tempo me tivesse tornado mais rijo. Talvez eu estivesse inconscientemen­te esperando essa mudança. Era como se se tivessem arrebentado as barras da jaula ao meu redor e de repente eu me visse de pé sob a amplidão do céu como um homem livre.

A maior asneira da minha vida fora falar com Agripina acerca de Cláudia. Eu tinha de encontrar um meio de compensar isso. Tinha, de certo modo, de recomeçar minha vida a partir da­quele momento, muitos anos antes, em que Agripina envenenou meu espírito contra Cláudia e destruiu meu amor por ela. Não seria ingênuo mais.

Agindo com cautela, fui a Miseno examinar a possibilidade de transportar animais da África em navios da armada. O coman­dante da frota era Aniceto, ex-barbeiro, que fora o primeiro pre­ceptor de Nero, na infância do Imperador. Mas a marinha é uma coisa à parte, e os cavaleiros romanos não se sentem inclinados a fazer carreira nela. Atualmente, o comandante é um autor de livros de consulta, chamado Plínio, que utiliza os vasos de guerra e os marinheiros na coleta de plantas e pedras raras de diferentes regiões. Não há dúvida que as belonaves podiam ter pior destino, e os marinheiros pelo menos correm o mundo e enriquecem os povos bárbaros com seu sangue de lobo.

Aniceto recebeu-me respeitosamente, pois eu era de origem

nobre cavaleiro e filho de Senador. Os clientes de meu pai também tinham muitos negócios com os estaleiros navais, e Aniceto não rejeitava as propinas que eles lhe ofereciam. Depois de se gabar de sua educação grega, de seus quadros e objetos de arte, embriagou-se e passou a contar histórias indecentes, revelando Sim sua própria devassidão.

_ Cada um tem seu vício particular — disse êle. — Isso é perfeitamente natural e compreensível, e não é motivo para ninguém se envergonhar. A castidade é máscara só e mais nada. Plantei essa verdade na cabeça de Nero há muitos anos. Nada odeio mais do que as pessoas que fingem ser virtuosas. Que tipo você prefere? Gorda ou magra, morena ou loura, ou prefere meninos? Posso arrumar mocinhas ou velhotas, uma acrobata ou uma virgem in­tacta. Gosta de ver uma sova de chicote, ou você mesmo quer ser açoitado? Sim, podemos providenciar um mistério dionisíaco, de acordo com as normas, se você quiser. Basta dizer, basta dar um sinal e eu satisfarei seu secreto desejo, em consideração à nossa amizade. Isto aqui é Miseno, veja bem, e não está longe de Baías, Puteoli e Nápoles, com todos os vícios alexandrinos. De Capri herdamos a engenhosidade de Tibério nesses assuntos, e Pompeia tem alguns esplêndidos lupanares. Vamos dar uma remada até lá?

Aparentei timidez, mas para mostrar-me digno de sua con­fiança, disse:

— Houve uma época em que me parecia emocionante disfar­çar-me e meter-me em badernas noturnas, em Subura, ao lado do seu talentoso pupilo Nero. Acho que jamais experimentei maior prazer do que nos mais miseráveis bordéis usados pelos escravos. Como você sabe, às vezes a gente se cansa de manjares delicados e encontra mais sabor no pão inferior e no azeite rançoso. Assim, sou o contrário de você. Desde que me casei, acabei com essas coisas, mas agora sinto intenso desejo de travar conhecimento com os bordéis navais, que, segundo contam, você organizou primo­rosamente.

Aniceto arreganhou os dentes num sorriso libertino e aprovou com a cabeça:

— Temos três casas reservadas para o nosso pessoal. A melhor para os oficiais, a segunda para os marujos e a terceira para os escravos das galés. Talvez não me acredite, mas a verda­de é que algumas vezes recebo a visita de damas nobres de Baías, que estão enjoadas de tudo e desejam servir uma noite num bordel.

mais dissolutas gostam sobretudo dos galés e, em seu desejo de servir, são melhores do que as nossas mais experimentadas mere­trizes. Veja bem, por motivos financeiros, as novatas devem pri­meiro servir os oficiais, depois os marujos e, ao fim de três anos, °s galés. Algumas agüentam dez anos nessa árdua profissão, mas eu diria que a média é cinco anos. Há as que se enforcam, é claro, as que adoecem e ficam imprestáveis e as que se entregam à bebi­da e se tornam um problema. Mas recebemos constantes remessas de Roma e outras cidades italianas. Os bordéis da marinha são instituições penais para as mulheres que foram acusadas de levar uma vida indecente, como roubar os fregueses ou quebrar jarros de vinho na cabeça de fregueses turbulentos.

O que acontece com aquelas que sobrevivem ao seu tempo de serviço?

Uma mulher precisa estar muito gasta para não ser útil aos galés — disse Aniceto. — Não se preocupe. Nenhuma sai viva das minhas casas. Não faltam sujeitos que encontram prazer em matar uma mulher, de vez em quando, de algum modo desagradável. Esses têm de ser vigiados. O objetivo de minhas casas, entre outras coisas, é resguardar dos marujos as mulheres decentes da vizinhan­ça. Há, por exemplo, um indivíduo que uma vez por mês tem de sugar o sangue da veia jugular de uma mulher. Por causa disso, temos de pô-lo a ferros no navio. O que é maçante nisso é que todas as vezes que dá vazão a seus impulsos, êle lamenta amarga­mente o que faz e pede para ser açoitado até morrer.

Não acreditei em todas as histórias de Aniceto. Ele era um fanfarrão e tentava assustar-me com suas perversões, porque no fundo era um sujeito fraco e em quem não se podia confiar. Compreendi que exagerara bastante, como o fazem os marujos.

Para começar, êle me levou a um gracioso templo circular de Vénus, que proporcionava uma visão maravilhosa do mar cintilan­te e era ligado por um túnel subterrâneo ao quartel da marinha para evitar desnecessária atenção. Os dois primeiros bordéis mu­rados não diferiam de seus equivalentes romanos e tinham até água corrente. Mas a casa reservada aos galés assemelhava-se mais a uma prisão, e mal pude suportar os olhares dos que lá estavam, tão bestialmente embotados eram eles.

Não achei Cláudia, embora a procurasse cuidadosamente. Mas encontrei-a no dia seguinte, numa fortaleza naval em Puteoli. Vi uma mulher envelhecida, bem mais do que seria.de esperar de sua idade, cujo cabelo e sobrancelhas tinham sido raspados por causa dos piolhos. Vestia uma túnica esfarrapada de escrava, pois estava atarefada com os utensílios de cozinha da fortaleza.

Realmente só reconheci Cláudia pelos olhos. Ela me reco­nheceu imediatamente se bem que a princípio não tenha dado mostras disso. Foi fácil trocá-la por um saquinho de prata. Podia ter ficado com ela de graça, se quisesse, mas, para despistar os censores, achei mais seguro ter um cúmplice mediante suborno.

Quando chegamos juntos à melhor hospedaria da cidade, Cláudia falou pela primeira vez.

— Você deve ter-me procurado ansiosamente, querido Minuto _ disse ela, áspera já que me encontrou tão depressa. Faz somente sete anos que nos vimos pela última vez. Que quer de mim?

Aquiesceu ao meu pedido de que vestisse alguma roupa apre­sentável e pusesse uma peruca, bem como desenhasse umas so­brancelhas. Graças a seus deveres na cozinha, engordara e estava bem de saúde.

Mas não dizia uma palavra acerca de suas experiências em Miseno. Suas mãos estavam duras como pau, as solas dos pés pa­reciam couro, e o sol lhe escurecera a tez morena. Apesar das roupas e da peruca, ela só podia ser tomada por uma escrava. Quanto mais eu a fitava, mais estranha ela se tornava.

Agripina disse eu, por fim, em desespero. Ninguém mais, senão Agripina, foi responsável pelo seu destino. Na insen­satez de minha juventude, procurei interceder por você junto a ela. E ela me enganou.

_ Não estou me queixando disse Cláudia com veemên­cia. Tudo o que me aconteceu foi de conformidade com a von­tade de Deus, para humilhar meu corpo orgulhoso. Pensa que eu ainda estaria viva, se Cristo não tivesse fortalecido meu coração?

Se a superstição dos cristãos ajudara-a a suportar os ultrajes da escravidão, eu nada podia dizer. Assim, comecei cautelosamen­te a falar-lhe de mim. Para reconquistar sua confiança, contei-lhe o meu encontro com Paulo e Cefas, em Corinto, e como meu li­berto Láusio Hierex se transformara num cristão influente. Cláudia ouviu-me com a cabeça apoiada na mão, os olhos negros iluminando-se à medida que ficava mais animada.

_ Aqui em Puteoli disse ela temos diversos irmãos, entre os marujos que se converteram, depois que ouviram contar como Jesus de Nazaré andou sobre as águas. Se não fossem eles, eu nunca teria saído daquela casa em Miseno.

_ A vida de um marinheiro é cheia de perigos comentei. Puteoli e Nápoles, é o que todos dizem, são terrenos férteis para o Oriente sob muitos aspectos. Portanto não é de admirar que a nova fé se tenha propagado aqui com os judeus.

Cláudia atirou-me um olhar agudo.

_ E você, Minuto? Crê em alguma coisa? Refleti demoradamente e -meneei a cabeça.

_ Não, Cláudia. Não creio mais em nada. Estou calejado.

Nesse caso disse Cláudia decidida, apertando as duras palmas de suas mãos devo ajudá-lo a seguir o caminho certo. Estou convencida de que foi com esse objetivo que você foi leva­do a achar-me e a libertar-me da escravidão. Depois de Miseno, a escravidão foi a maior dádiva que Deus podia conceder-me.

Não fui levado por ninguém disse eu, irritado. Co­mecei a procurá-la espontaneamente, logo que ouvi da boca da própria Agripina que ela me tinha enganado. Cláudia olhou-me penalizada:

— Minuto, você não tem vontade própria e nunca teve. Do contrário tudo seria diferente. Não quero deixar a assembléia dos cristãos de Puteoli, mas compreendo que devo ir com você para Roma e persuadi lo, dia e noite, até que você se humilhe e se torne súdito do reino secreto de Cristo. E não fique tão conster­nado. Nele reside a única paz verdadeira, a única alegria deste mundo efêmero.

Achei que a dureza da vida de Cláudia lhe tinha perturbado o juízo e não me atrevi a discutir com ela. Viajamos juntos para o Âncio num navio mercante carregado de animais selvagens, e de lá seguimos para Óstia. Depois transportei-a às escondidas para a minha casa no Aventino, onde ficou instalada como criada e caiu nas boas graças de tia Lélia, que voltara mentalmente aos dias da infância e se sentia plenamente feliz quando brincava com bonecas.

Não se passava um só dia sem que Cláudia me importunasse com histórias de Jesus de Nazaré. Fugia de minha casa para o pátio dos bichos, mas ali Sabina, com sua malícia, me tornava a vida in­suportável. Ela se mostrava cada vez mais confiante depois que um parente seu galgara um alto posto no tesouro do Estado, e já não era tão dependente do meu dinheiro como antes. Na realida­de, era ela que superintendia a coleção de animais, dava todas as ordens e organizava os espetáculos no anfiteatro. E até apresenta­va-se em público para demonstrar sua habilidade como domadora de leões.

Creio que por essa época a vida de Nero começou a tornar-se quase tão intolerável quanto a minha. Ao desterrar a mãe para o Âncio e levar abertamente Lólia Popéia, como amante, para o Palatino, êle saltara da frigideira para o fogo. O povo não gostou do tratamento rude dado a Otávia. Popéia arreliava e chorava, exigindo que êle se separasse legalmente de Otávia e ameaçando-o com as intrigas secretas de Agripina, possivelmente com alguma razão. Em todo o caso, Nero viu-se forçado a degredar o marido de Antônia, Fausto Sila, para Massília. Antônia, naturalmente, foi com o marido e passaram-se cinco anos, antes que eu voltasse a vê-la.

Séneca opunha-se categoricamente a um divórcio imperial e o velho Burro dizia publicamente que se Nero se separasse de Otávia, então devia também renunciar a seu dote matrimonial ou ao trono. E Lólia Popéia não tinha nenhum desejo especial de mudar-se para Rodes e lá viver como esposa de um artista livre.

Agripina talvez tenha sido responsável pelo seu próprio fadá­rio, se levarmos em conta sua sede de poder e seus ciúmes. Tinha a apoiá-la uma fortuna herdada do segundo marido e de Cláudio, e  apesar do desterro de Palas, ainda exercia grande influência.

Segundo a opinião geral, não lhe restavam verdadeiros amigos. Todavia, mais do que uma conspiração política, Nero temia que sua mãe publicasse as memórias que estava escrevendo no Âncio, ela mesma, já que não se arriscava a ditá-las ao escravo mais digno de confiança. Irrefletidamente, Agripina deixava que a notí­cia dessas memórias se divulgasse por toda a Roma, de sorte que muita gente que estava de uma forma ou de outra envolvida em seus crimes desejava sinceramente vê-la morta.

Em meus pensamentos, eu acusava Agripina de ter destruído minha vida quando ainda era moço, crédulo e apaixonado por Cláudia. Culpava-a por todas as desgraças que me haviam acon­tecido. Certo dia fui procurar a velha Locusta, em sua casinha no campo. A anciã sorriu ao ver-me, tanto quanto uma máscara mor­tuária pode sorrir, e disse francamente que eu não era a primeira pessoa a visitá-la com a mesma finalidade.

Por uma questão de princípio, ela não tinha objeção a pre­parar veneno para Agripina também; era simplesmente uma ques­tão de preço. Mas meneou sua velha cabeça experimentada e de­clarou que já consumira todos os seus ingredientes. Agripina era extraordinariamente cautelosa. Cozinhava ela mesma a comida e não ousava sequer colher as frutas de suas árvores, já que era tão fácil envenená-las. Cheguei à conclusão de que a vida de Agripi­na não era lá muito agradável, ainda que ela saboreasse a vingan­ça de escrever suas memórias.

Nero alcançou a paz de espírito e a reconciliação com Po­péia no momento em que tomou a decisão terminante de matar sua mãe. Por motivos políticos, a morte de Agripina tornou-se tão essencial para êle, como o fora a de Britânico. E não se ouviu um sussurro de Séneca contra este assassínio, muito embora êle mesmo, naturalmente, não quisesse envolver-se nisto.

O problema, então, consistia apenas em como planejar o crime de modo a parecer um acidente. A imaginação de Nero pas­sou a trabalhar, reclamando o máximo de dramaticidade, e êle en­trou a consultar sofregamente seus amigos mais íntimos.

Tigelino, que tinha certas razões pessoais para odiar Agripi­na, prometeu matá-la, atropelando-a com seu carro, caso ela fosse induzida a aparecer na estrada do Âncio. Eu sugeri as feras, mas não havia jeito de as fazer entrar no jardim cuidadosamente vigia­do da quinta de Agripina.

Nero pensava que eu estava do seu lado por pura afeição a ele e Popéia, e não sabia que eu era impelido por meu próprio de­sejo inflexível de vingança. Agripina, com seus crimes, fazia mil vezes jus à morte, e me parecia perfeitamente natural que viesse a sucumbir às mãos de seu próprio filho. Tu também tens sangue de lobo nas veias, Júlio, meu filho, mais autêntico do que o meu. Procura dominá-lo melhor do que teu pai foi capaz de fazê-lo.

Foi através de minha mulher, Sabina, que encontramos final­mente uni método exeqüível. Um engenheiro grego lhe mostrara um naviozinho que podia conter animais selvagens e que, com o auxílio de um engenhoso sistema de alavancas, acionado por um único homem, podia a qualquer momento desintegrar-se, libertan­do desta maneira os bichos.

Sabina andara muito impressionada com a idéia do recém-construído teatro de naumaquias, mas no fim de contas, em virtu­de do custo, eu me opusera a todos os animais marinhos. Contudo, Sabina saiu vitoriosa, e a nova descoberta suscitou tal curiosidade que Aniceto deslocou-se de Miseno para o dia do espetáculo em Roma.

No ponto culminante da naumaquia, o barco desintegrou-se conforme fora planejado. A multidão ficou encantada ao ver au-roques e leões em luta com monstros marinhos dentro da água ou nadando para a praia, onde eram abatidos por corajosos caçadores. Nero aplaudiu vibrantemente.

— Podes construir-me um barco como esse — gritou êle para Aniceto — mas maior e mais bonito e suficientemente ornamental para as viagens da imperial mãe?

Prometi que Aniceto podia ver os desenhos sigilosos do en­genheiro grego, mas lembrei-me de que uma engenhoca tão teatral exigia a cooperação de muita gente e não podia, portanto, ficar em segredo.

Como recompensa, Nero convidou-me para a festa de Baías em março, onde eu iria ver, com meus próprios olhos, a represen­tação especial que êle planejara. Em público, e no Senado também, Nero começara a desempenhar o papel do filho arrependido, an­sioso de reconciliar-se com a mãe. Rixas e explosões de mau humor, explicava êle, podiam ser esquecidas desde que houvesse suficiente boa vontade de ambos os lados.

É claro que os informantes de Agripina corriam imediata­mente para o Âncio com essa notícia. Portanto, Agripina não se mostrou muito surpreendida -ou suspicaz ao receber uma carta de Nero, admiravelmente composta, contendo um convite para a festa de Minerva em Baías. A festa era por si mesma um indício, pois Minerva é a deusa de todos os escolares, e uma reconciliação bem longe de Roma e da belicosa Popéia parecia inteiramente na­tural.

O dia de Minerva é um dia de paz, em que não se pode der­ramar sangue nem exibir armas. A princípio Nero quis mandar o novo barco de passeio, tripulado por marinheiros, buscar Agripi­na no Âncio, para mostrar que pretendia devolver à sua mãe as antigas prerrogativas. Mas coro a ajuda de uma clepsidra, calcu­lamos que nesse caso o barco teria de ser afundado de dia, e, além disso, Agripina, como todos sabiam; era tão desconfiada que bem podia recusar a honra e viajar por terra.

Afinal ela chegou à base naval de Miseno numa trirreme tripulada pelos escravos de sua confiança. Nero foi recebê-la com todo o seu séquito, e até insistira em que Séneca e Burro lá esti­vessem também para acentuar a significação política da recon­ciliação.

Não pude deixar de admirar o extraordinário talento de Nero para representar quando êle, comovido até às lágrimas, correu ao encontro da mãe, abraçou-a e saudou-a como a mais excelente de todas as mães. Agripina também tinha feito o possível para vestir se bem e embelezar-se, de modo que dava a impressão de ser uma deusa esbelta e, por causa da espessa camada de pintura, total­mente inexpressiva.

No dia de Minerva predomina uma atmosfera de alegria pri­maveril. Por isso, o povo, que não entende muito de negócios de Estado, acolheu Agripina com aplauso jubiloso enquanto ela era levada para sua quinta em Baules, ao pé do Lago Locrino. No ancoradouro à beira do lago encontrava-se um grupo de belonaves embandeiradas, e no meio delas o barco de passeio lindamente or­namentado. Por ordem de Nero, Aniceto colocou-o à disposição de Agripina. Mas após pernoitar em Baules, ela preferiu ser trans­portada de novo para Baías, que não fica distante, desejando re­galar-se com a aclamação do povo ao longo da estrada.

Nas cerimônias oficiais em honra de Minerva, em Baías, Nero permitiu que Agripina aparecesse em primeiro plano e colocou-se a um canto, como tímido escolar. O banquete de meio-dia, ofere­cido pelas autoridades da cidade, com seus inúmeros discursos e a sesta depois, prolongou as cerimônias, de sorte que já estava es­curo quando se iniciou o banquete vespertino de Nero. Séneca e Burro também estavam presentes e Agripina ocupava o lugar de honra, com Nero sentado a seus pés e conversando despreocupada­mente -com ela. Bebeu-se grande quantidade de vinho, e quando Agripina notou que estava ficando tarde, Nero assumiu um ar grave, baixou a voz e começou a consultá-la a respeito dos assuntos do Estado.

Pelo que pude entender, discutiram a situação futura de Lólia Popéia. Agripina era dura como pedra. Iludida pela atitude humil­de de Nero, declarou que tudo quanto exigia era. que Nero envias­se Popéia para a Lusitânia, de volta a Oto. Depois disso, Nero podia uma vez mais contar com o apoio e o amor materno de Agripina, que não desejava senão o bem para seu filho.

Nero chorou algumas lágrimas de raiva, mas fez saber que sua mãe lhe era mais cara do que qualquer outra mulher no mundo, e chegou até a declamar alguns poemas que escrevera em homena­gem a ela.

Agripina estava bêbada do vinho e da vitória alcançada, pois as pessoas gostam de crer naquilo que imaginam que seja real. Mas notei que ela ainda não se dispunha a tocar em seu copo, se Nero não bebesse nele antes, como também não comia nada que não tivesse sido provado por Nero ou por sua amiga Acerrônia Acho que nessa ocasião não se tratava de suspeita, mas de hábito que se enraizara em Agripina através dos anos.

Aniceto também se revelou um ator de talento ao anunciar compungido, que as belonaves empregadas no espetáculo haviam acidentalmente colidido com a trirreme de Agripina, sendo o dano de tal monta que impelia o retorno da embarcação ao Âncio, até que se fizessem os reparos necessários. Contudo, ali estava o barco de recreio com sua tripulação de marinheiros.

Fomos todos levar Agripina ao porto festivamente iluminado. No momento da separação Nero beijou-a nos olhos e nos seios e amparou-a, quando ela tropeçou, ao embarcar. Com sua voz bem modulada, disse adeus a sua mãe.

— Vai em paz, minha mãe — disse êle. — Só através de ti posso governar.

Para ser franco, devo frisar que achei essas palavras de des­pedida um acréscimo um tanto exagerado ao hábil desempenho de Nero A noite estava serena e estrelada, e quando o barco deixou o círculo das luzes do porto, Séneca e Burro retiraram-se para seus aposentos e nós, conspiradores, demos continuação ao banquete.

Nero não falava. Então, de repente, empalideceu e saiu para vomitar. Por um momento desconfiamos de que Agripina tivesse conseguido depositar furtivamente algum veneno em seu copo, mas depois nos demos conta de que o dia fora muito puxado para êle. A mente sensível de Nero não podia suportar a prolongada tensão da espera, apesar de Aniceto garantir que o plano não podia falhar, uma vez que tudo fora arranjado da maneira mais enge­nhosa.

Posteriormente, vim a saber do que acontecera, por intermé­dio do centurião naval, Obarito, a quem Aniceto entregara o co­mando do barco. Agripina recolhera-se de imediato a seu camarote magnificamente guarnecido, mas não pudera conciliar o sono. Suas suspeitas surgiram quando ela percebeu, na escuridão das águas, que estava exposta à boa-vontade de marujos estrangeiros, tendo apenas a companhia de Acerrônia e de seu Procurador Crepeio Galo.

Agripina mandou Galo para a popa, exigir que o barco ru­masse para Baules, pois desejava passar a noite lá e continuar a viagem para o Âncio ao amanhecer. Aniceto, lembrando-se de que durante o exílio, na ilha de Pandataria, Agripina ganhara a vida mergulhando à cata de esponjas, planejara a desintegração do navio em duas fases.

A primeira torção da alavanca derribaria a estrutura chum­bada do convés, e em seguida outra alavanca faria aluir o casco. Mas a preparação do camarote fora confiada a indivíduos que nada sabiam do plano e, por motivos de segurança, só uns poucos ma­rinheiros foram postos a par da tramóia.

Algum imbecil aparelhara o camarote com um leito de desfi­le, provido de altos espigões. Assim, quando o teto caiu, os pesa­dos espigões protegeram Agripina, de modo que ela escapou com apenas um corte no ombro. Acerrônia, que se encontrava de joelhos no soalho, dando massagens nos pés de Agripina, nada sofreu. Galo foi o único que morreu instantaneamente, colhido pelo desabamento do teto.

Reinou completa confusão no navio, quando a estrutura no convés se desfez. Somente Agripina compreendeu o que se passava, pois o mar estava calmo e o navio não abalroara com nada. Mandou que Acerrônia fosse engatinhando ao convés e gritasse:

— Sou Agripina. Salvai a imperial mãe!

Imediatamente, o centurião determinou que os marinheiros conluiados a matassem a paulada com seus remos. Em seguida, suspendeu e torceu a outra alavanca, mas esta emperrara e não se movia. Então tratou de,virar o barco. O teto caído com seus pesos de chumbo já o tinham feito adernar, levando vários marinheiros para o lado que tinha afundado. Mas alguns marinheiros subiram para o outro lado, de modo que o navio não emborcou.

No meio de toda essa barafunda, Agripina esgueirara-se de mansinho do camarote, resvalara para dentro da água e pusera-se a nadar para terra. Apesar do vinho que tinha bebido e do feri­mento no ombro, conseguia vencer a nado, sob a água, longos trechos de cada vez, de sorte que ninguém lhe avistava a cabeça à superfície do mar iluminado pelas estrelas. Após distanciar-se o su­ficiente para não ser vista, Agripina encontrou um barco de pesca que se fazia ao largo. Os pescadores recolheram-na e, a pedido dela, conduziram-na para Baules.

O centurião naval era um homem de sangue-frio. De outro modo, Aniceto não o teria escolhido para a missão. Quando viu que a morta era Acerrônia e que Agripina desaparecera, ordenou a volta do destroçado barco a Baías e foi comunicar imediata­mente o fracasso a Aniceto. Enquanto se dirigia a toda a pressa para os alojamentos de Nero, os marinheiros que desconheciam a conspiração espalharam por toda a cidade a perturbadora notícia do acidente.

Os habitantes de Baías correram ao cais, meteram-se na água e lançaram-se em seus barcos pesqueiros ao salvamento de Agri­pina. Quando a confusão atingiu o auge, os verdadeiros salvado­res de Agripina, aos quais ela concedeu valiosas recompensas, vol­taram e contaram a toda a gente que a imperial mãe estava salva e sofreia apenas leves escoriações. Decidiu então o povo ir a Baules, num cortejo de homenagem, a fim de congratular-se com Agripina por ter ela escapado milagrosamente dos perigos do mar.

Nero, ansioso mas confiante e rodeado de seus fiéis amigos, preparava-se, meio lacrimoso e meio brincalhão, para prantear a morte de sua mãe. Planejava celebrações fúnebres em todo o Im­pério e elaborava uma proclamação dirigida ao povo de Roma e ao Senado.

Com uma ponta de remorso, perguntou-me se podia sugerir a elevação de Agripina à condição de deusa; de vez que ela era, de resto, filha do grande Germânico, irmã do Imperador Caio, viúva do Imperador Cláudio e mãe do Imperador Nero, e como tal, de fato, uma mulher de mais elevada preeminência na história de Roma do que Lívia. Nós todos nos comportávamos de maneira terrivelmente ridícula e já havíamos começado por gracejo a no­mear-nos sacerdotes do culto da nova deusa.

No meio de toda essa galhofaria, entrou afobado o centurião naval Obarito, com a notícia de que o navio tinha somente ader­nado e Agripina sumira sem deixar vestígio. A esperança de que se tivesse afogado dissipou-se no instante seguinte, quando os pesca­dores assomaram à frente de uma multidão jubilosa e contaram que Agripina se salvara. Tinham avistado as luzes do salão de ban­quete e esperavam que Nero os recompensasse. Mas Nero, toma­do de pânico, mandou chamar Séneca e Burro, como o escolar que é apanhado em alguma travessura e se volta em lágrimas para seus professores.

Tive a presença de espírito de ordenar a Aniceto que prendes­se imediatamente os pescadores e os encerrasse em lugar seguro, enquanto esperavam o prêmio, para que não divulgassem boatos que agravariam a situação. Por felicidade de Nero, Agripina evi­dentemente não revelara a eles as suas suspeitas, uma vez que ta­garelavam tão ingenuamente acerca do salvamento.

Séneca e Burro chegaram ao mesmo tempo, Séneca descalço e só de túnica. Nero portava-se como um desvairado, correndo de um lado para outro da sala. Aniceto rapidamente relatou o que tinha acontecido, e fustigado pelo sentimento de sua culpa, Nero temia seriamente por sua própria vida. Sua imaginação delirante fazia-o proclamar aos gritos que o que êle receava podia ocorrer; que Agripina talvez estivesse armando seus escravos ou sublevando contra êle os soldados da guarnição, ou estivesse a caminho de Roma para queixar-se ao Senado do intento de Nero de assassi­ná-la, exibindo suas feridas aos senadores e narrando-lhes a morte cruel de sua serva.

Séneca e Burro eram estadistas experimentados e não preci­savam de muitas explicações. Séneca contentou-se de olhar inter­rogativamente para Burro, e Burro deu de ombros:

_ Eu não mandaria os pretorianos ou os germanos da Guarda Real matar a filha de Germânico disse êle.

Com uma careta de repugnância, virou-se para encarar Ani­ceto:

Complete, Aniceto, o que começou sugeriu.-Lavo as minhas mãos de todo esse negócio.

Aniceto não esperou por uma segunda ordem. Tinha boas razões para temer por sua própria vida, pois Nero, no meio de sua fúria, já lhe tinha batido no rosto com o punho. Prometeu então pressurosamente concluir a tarefa com o auxílio dos seus mari­nheiros. Nero fitou Séneca e Burro, com os olhos inquietos.

Só esta noite é que me livrarei de minha tutela disse êle, em tom de censura e receberei o direito de governar. Mas recebo-o de um ex-barbeiro, um escravo liberto, não de Séneca, o Estadista, ou do General Burro. Vai, Aniceto, avia-te, e leva con­tigo todos aqueles que desejarem prestar esse serviço ao Imperador.

Mas empalideceu e recuou quando anunciaram que um dos libertos de Agripina, Agerino, trazendo uma mensagem de Agripi­na, solicitava-lhe audiência.

Um assassino gritou, agarrando uma espada e ocultan-do-a sob o manto.

Na verdade, não havia o que temer, pois Agripina, exausta pelo esforço de nadar e pela perda de sangue, pesara os prós e os contras, e compreendera que tinha de enfrentar a situação com co­ragem, e fingir que ignorava Completamente a tentativa de assassi­ná-la. Assim, Agerino entrou trêmulo e, gaguejando um pouco, deu o recado de Agripina.

A bondade dos deuses e o nume tutelar do Imperador sal­varam-me de morte imprevista. Muito embora te aflijas quando souberes dos perigos que me ameaçaram, não venhas por enquanto ver a tua mãe. Preciso de repouso.

Quando viu que nada tinha a recear do mensageiro, Nero voltou à razão, deixou cair a espada aos pés de Agerino e depois deu um salto para trás, indicando acusadoramente a arma e bra­dando dramático:

Tomo-vos por testemunhas de que minha mãe mandou seu liberto matar-me.

Corremos e seguramos Agerino, sem fazer caso de seus pro­testos. Nero ordenou que o encarcerássemos, mas Aniceto julgou mais prudente decepar-lhe a cabeça logo que atravessaram a porta. Assim, Aniceto tinha sentido o gosto de sangue, mas achei que devia acompanhá-lo para vê-lo concluir sua tarefa. Nero veio cor­rendo atrás de nós e escorregou no sangue que jorrava do corpo de Agerino.

— Minha mãe quis tirar-me a vida — disse êle, com alívio. — Ninguém suspeitará de coisa alguma se ela se matar, quando seu crime for divulgado, Ajamos nessa conformidade.

Obarito, o centurião naval, veio conosco, porque desejava re­parar o seu malogro. Aniceto determinou que seu subcomandan­te, Herculeio, fizesse soar o alarma no quartel da marinha, e nós conseguimos apoderar-nos de alguns cavalos. Correndo descalços, vieram também alguns soldados que, gritando e brandindo armas, procuravam dispersar a multidão que se encaminhava para Baules, com o intuito de congratular-se com Agripina.

Quando chegamos a Bailes, o diá ia raiando. Aniceto mandou que seus homens cercassem a casa. Derrubamos a porta e escorra­çamos os escravos que tentaram opor resistência à nossa invasão. O quarto de dormir estava em penumbra e Agripina jazia na cama, o ombro envolto em panos quentes. A escrava que a servia fugiu e Agripina ergueu a mão, chamando-a inutilmente:

— Tu também me abandonas?

Aniceto fechou a porta atrás de nós, para que não houvesse demasiados espectadores. Agripina saudou-nos com voz débil:

— Se viestes perguntar por minha saúde, dizei então a meu filho que já estou um pouco melhor.

Ao avistar as nossas armas, sua voz tornou-se mais firme:

— Se viestes matar-me, então não creio que o fazeis com ordem de meu filho. Ele nunca consentiria num matricídio.

Aniceto, Herculeio e Obarito rodearam a cama, um pouco canhestros, não sabendo como começar, pois Agripina parecia ma­jestosa, até mesmo em seu leito de enferma. Mantive-me com as costas arrimadas à porta, conservando-a fechada. Por fim, Hercu­leio desferiu um golpe na cabeça de Agripina, mas tão sem jeito que ela não perdeu a consciência. Pretendiam pô-la inconsciente e depois abrir-lhe as veias, de sorte que o anúncio de suicídio guar­dasse alguma semelhança com a verdade.

Agripina abandonou então toda a esperança, desnudou a parte inferior do corpo, desdobrou os joelhos e gritou para Ani­ceto:

— Retalha o ventre que trouxe Nero ao mundo!

O centurião naval desembainhou a espada e seguiu à risca aquelas palavras. Em seguida todos passaram a dar cutiladas e es­tocadas, de maneira que Agripina recebeu muitos ferimentos, antes de exalar o último suspiro.

Quando nos convencemos de que estava morta, cada um de nós escolheu um objeto como lembrança de seu quarto de dormir e Aniceto ordenou aos escravos que lavassem o corpo e o prepa­rassem para a pira. Peguei uma minúscula estatueta de ouro da Fortuna, que estava perto da cama, na crença de que era aquela que o Imperador Caio sempre levava consigo. Mais tarde verifi­quei que não era a mesma e me senti extremamente frustrado.

Um mensageiro foi despachado para levar a Nero a notícia de que sua mãe se suicidara. Nero rumou imediatamente para gaulês, pois com o auxílio de Séneca já enviara uma mensagem ao Senado, dando conta da tentativa de assassínio de que fora alvo, e desejava ver com seus próprios olhos se Agripina realmente es­tava morta.

Nero chegou tão depressa que os servos ainda estavam ocu­pados com banhar e ungir o corpo nu de Agripina. Nero acercou-se de sua mãe, apalpou os ferimentos com seus dedos e disse:

— Vede como minha mãe é bonita até mesmo morta.

A lenha estava empilhada no jardim, e o cadáver de Agripi­na, acomodado num sofá da sala de jantar, foi erguido sem ceri­mônia e colocado no alto da pira. Quando a fumaça começou a votar no ar, reparei de súbito que fazia uma esplêndida manhã em Baules. O mar era de um azul cintilante, os pássaros cantavam e todas as flores da primavera vicejavam num tumulto de cores no jardim. Mas não se via vivalma nos caminhos. O povo, perplexo, escondera-se dentro de casa, já que ninguém sabia o que efetiva­mente acontecera.

Enquanto a pira ainda ardia, apareceu galopando um grupo de tribunos e centuriões. Ao ouvir o ruído dos cascos dos cavalos e ver a fileira de fuzileiros recuar diante dos animais, Nero olhou em volta procurando escapar. Mas os ginetes arremessaram-se das selas e correram a apertar-lhe a mão, rendendo cada um, aos gritos, graças aos deuses, por ter o Imperador escapado às intenções cri­minosas de sua mãe.

O Prefeito Burro os tinha enviado, para indicar ao povo qual era a situação mas êle mesmo não viera, pois estava demasiada­mente envergonhado. Depois que os restos de Agripina foram apressadamente recolhidos das cinzas e enterrados no jardim, tratrou se de nivelar a terra no local do sepultamento. Nero não deu um túmulo à sua mãe, a fim de evitar que o lugar se transfor­masse em antro de romarias políticas.

Criamos coragem e subimos ao templo de Baules, para levar aos deuses uma oferenda de gratidão pelo miraculoso salvamento de Nero. Mas, no templo, Nero começou a escutar toques de clarins acusadores em seus ouvidos. Disse êle que o dia escureceu diante de seus olhos também, embora o sol estivesse brilhando in­tensamente.

A morte de Agripina não constituiu realmente nenhuma sur­presa para o Senado em Roma ou o povo, pois eles já estavam preparados para algum evento espantoso. Na noite em que Agripi­na morreu, tremendo temporal com relâmpagos e trovões desa­bou sobre a cidade, apesar da época do ano, e registraram-se quatorze quedas de raios em diferentes zonas da urbe, de modo que o Senado já determinara a realização dos costumeiros sacrifí­cios expiatórios. O ódio reprimido contra Agripina era tamanho que os senadores decidiram incluir seu aniversário natalício no rol dos dias aziagos.

O receio de perturbações, sentido por Nero, era perfeitamente infundado. Quando afinal chegou a Roma, procedente de Nápoles, foi êle saudado como se estivesse celebrando um triunfo. Os sena­dores trajaram-se como nos dias de grandes solenidades e as mu­lheres e crianças receberam-no com canções de louvor, juncando o chão de flores primaveris que atiravam das arquibancadas apres­sadamente erguidas de cada lado do caminho.

Quando Nero subiu ao Capitólio para levar sua oferenda de gratidão, foi como se toda a Roma se tivesse libertado de um pe­sadelo. Nesse maravilhoso dia de primavera, o povo em sua alegria estava predisposto a acreditar no falso relato, apresentado por Sé­neca, do suicídio de Agripina. A simples idéia de matricídio afi­gurava-se tão monstruosa às pessoas mais velhas, que ninguém queria sequer pensar nela.

Vindo para Roma antes dos outros, fui direto a Cláudia, trê­mulo de orgulho.

— Cláudia! — exclamei. — Vinguei-a. Agripina está morta e eu mesmo tomei parte no ato. O próprio Nero deu ordem de matá-la. Por Hércules, paguei minha dívida para com você. Não precisa mais lamentar a degradação de que foi vítima.

Entreguei-lhe a estatueta da Fortuna que havia tirado da mesa de cabeceira de Agripina, mas Cláudia encarou-me como se eu fosse um monstro e ergueu ambas as mãos, como se fosse re­chaçar um golpe meu:

— Nunca lhe pedi que me vingasse. Suas mãos estão ensan­güentadas, Minuto.

De fato eu tinha ainda uma atadura manchada de sangue numa das mãos. Por isso apressei-me a assegurar-lhe que não tinha sujado minhas mãos no sangue de Agripina, mas apenas, no meu estouvamento, cortara o polegar com a minha espada. Mas isto foi inútil. Cláudia pôs-se a repreender-me, pedindo que o julgamento de Jesus de Nazaré descesse sobre mim, e de todos os modos comportando-se de maneira tão insensata que afinal não pude deixar de responder furioso, aos gritos:

— Se é como você diz, então fui apenas um instrumento do seu deus. Pode considerar a morte de Agripina como um castigo apli­cado pelo seu Cristo aos crimes que ela cometeu. E os judeus são o povo mais vingativo do mundo. Aprendi isso em seus livros sa­grados. Não desperdice lágrimas chorando a morte de Agripina.

—Há pessoas que têm orelhas, mas não ouvem coisa alguma _     redarguiu ela com raiva. — Será, Minuto, que você realmente não entendeu uma só palavra do que venho tentando ensinar-lhe?

_ Você é a mulher mais ingrata do mundo, Cláudia. Maldi­ta seja! Até hoje tolerei sua tagarelice a respeito de Cristo, mas não lhe devo mais nada. Cale-se e saia da minha casa.

_ Cristo que me perdoe esse meu gênio violento — resmun­gou Cláudia, por entre os dentes cerrados — mas não posso mais me dominar.

Com suas duras mãos espalmadas, estapeou-me as bochechas com tanta força que meus ouvidos zumbiram, em seguida agar­rou-me pela nuca e obrigou-me a ajoelhar, embora eu seja mais alto do que ela.

— Agora, Minuto, você vai orar ao pai celestial e pedir perdão do seu tenebroso crime.

Meu amor-próprio não me permitia lutar com ela, e de qual­quer forma ela era excepcionalmente robusta naquele tempo. Saí do quarto arrastando-me de quatro pés e Cláudia atirou a estatue­ta de ouro atrás de mim. Quando tornei a ficar de pé, gritei pelos criados, a voz trêmula de raiva, e ordenei-lhes que reunissem os objetos de Cláudia e os pusessem do lado de fora da porta. Apa­nhei o ídolo da Fortuna, cuja asa esquerda estava agora arqueada, e fui para a casa dos bichos, onde pelo menos podia, diante de Sa­bina, jactar-me do que tinha feito.

Para minha surpresa, Sabina mostrou-se amável e chegou até a afagar-me as bochechas, que as palmadas de Cláudia tinham dei­xado um tanto abrasadas. Aceitou a estatueta, agradeceu-me e es­cutou de bom grado, ainda que um pouco distraída, minha narra­ção dos acontecimentos de Baías e Baules.

— Você é um homem e mais bravo do que imaginei, Minu­to — disse Sabina. — Mas não deve sair espalhando por aí o que aconteceu. O principal é que Agripina está morta. Ninguém irá pranteá-la. Popéia, aquela meretriz, também recebeu o que me­recia. Depois disso, Nero não se atreverá a divorciar-se de Otávia, Isso é tudo o que sei de política.

Essa afirmação me espantou, mas Sabina pôs a mão em minha boca.

— É primavera, Minuto — murmurou ela. — Os pássaros estão cantando e os leões abalam a terra com seus rugidos. Sinto um desejo veemente e meus membros estão em fogo, Minuto. Pensei muito e cheguei à conclusão de que devemos ter um filho, para o bem da família Flávia e da sua. Acho que não sou uma mulher estéril, embora você tenha tão ofensivamente abandonado o meu leito.

A acusação era injusta, mas talvez Sabina tivesse mudado de opinião a meu respeito em virtude do que eu fizera, ou talvez aquela ação terrível lhe tivesse afetado a feminilidade, pois há mu­lheres que se excitam sexualmente com coisas como incêndio e sangue correndo na areia.

Olhei para minha mulher. Não havia nada de errado com ela, se bem que sua pele não fosse tão alva como a de Lólia Popéia. Dormimos juntos duas noites, o que havia muito tempo não fa­zíamos, mas o êxtase que eu sentira no começo de nossa vida con­jugal não se repetiu. Sabina era um pau também, e afinal confes­sou que cumprira seu dever mais pela família do que por prazer, a despeito do monótono rugido dos leões naquelas duas noites.

Nosso filho nasceu oito meses depois. Receei que tivéssemos de abandoná-lo, como se faz com as crianças nascidas prematura­mente. Mas êle era perfeitamente sadio e bem desenvolvido, e o parto feliz causou imenso regozijo na casa dos bichos. Convidei nossas centenas de empregados para uma festa, em honra do meu primogênito, e mal pude acreditar que os rudes domadores fossem capazes de tal ternura com um recém-nascido.

Quase não conseguíamos livrar-nos do pardavasco Epafrodito, que vivia a acariciar o menino, descurando da alimentação dos animais e insistindo em pagar êle mesmo uma ama-de-leite para a criança. Acabei concordando, por considerar a oferta como um ato de homenagem.

Mas não pude desvencilhar-me de Cláudia. Quando voltei confiante à minha casa no Aventino alguns dias depois, encontrei todos os meus servos, até mesmo Barbo, reunidos na sala de re­cepção, enquanto ao centro, em meu lugar de honra, sentava-se o taumaturgo judeu Cefas, com vários jovens que me eram totalmen­te desconhecidos.

Um dos rapazes traduzia para o latim as histórias que Cefas contava em aramaico. Tia Lélia dançava de um lado para outro, deliciada, batendo palmas com suas velhas mãos nodosas. Fiquei tão aborrecido que estive a ponto de açoitar todos os meus servos, mas Cláudia deu-se pressa em explicar que Cefas estava sob a prote­ção do Senador Pudeus PublíColo, em cuja casa morava, longe dos judeus da outra banda do rio, a fim de não provocar mais conflitos entre judeus e cristãos. Pudeus era um velho parvo, mas também era um Valeriano, de modo que fui forçado a calar-me.

Cefas lembrava-se muito bem de nosso encontro em Corinto e dirigiu-se a mim com muita amabilidade, chamando-me pelo meu nome. Não exigia que eu acreditasse, mas notei o seu desejo de que eu fizesse as pazes com Cláudia e a tolerasse em minha casa. Afinal, isto foi o que aconteceu, e terminei, com espanto para mim mesmo, apertando a mão de Cláudia, beijando-a, sim, e participando até da refeição deles, visto que, no fim de contas, era eu o dono da casa.

Não quero alongar-me a respeito desse vergonhoso episódio. Depois perguntei sarcàsticamente a Barbo se tinha trocado Mitras pelos cristãos. Barbo não respondeu diretamente, mas limitou-se a murmurar:

— Estou velho. O reumatismo dos meus anos de guerra me atormenta tão terrivelmente, que farei tudo para não sentir as dores. E basta-me fitar esse antigo pescador para que elas desapareçam. Quando como do seu pão e bebo do seu vinho, sinto-me bem du­rante dias seguidos. Os sacerdotes de Mitras não sabiam curar-me, embora ninguém entenda mais do que eles de reumatismo dos le­gionários.

 

                                                                                            CONTINUA

 

 

                      

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